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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ARMAGEDOM / Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins
ARMAGEDOM / Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ARMAGEDOM

 

            Os seis primeiros anos da Tribulação ficaram para trás, tem início o Armagedom, no entanto será necessário suportar ainda um ano até o Glorioso Aparecimento. Quem permanecerá firme em sua fé mesmo diante de uma captura, interrogatório ou tortura?

            O Comando Tribulação, espalhado por todos os cantos da Terra, e os exércitos do mundo inteiro são atraídos inexoravelmente para O Oriente Médio no momento em que a História leva-os a reunir-se em preparação para a batalha dos séculos. Durante o último ano da Grande Tribulação, as casas secretas deixam de ser secretas e os personagens da trama mudam dramaticamente.

            O anticristo dá as cartas para o jogo mais traiçoeiro do mundo, e todos são obrigados a mudar-se para outro local, exceto os que estão em Petra. Inicia-se um novo romance, um romance recente é oficializado e um romance antigo entra em crise enquanto milhões de pessoas se aglomeram para a grande guerra.

            Mesmo depois de tantos preparativos, artimanhas e recursos, de que forma os membros do Comando Tribulação sobreviverão para ver o Glorioso Aparecimento? A força que eles enfrentam é tremenda. O Armagedom será semelhante às muitas batalhas da antigüidade, quando o inimigo parecia tão grande e a derrota tão iminente.

 

 

            Pela primeira vez desde a decolagem, Rayford Steele teve dúvidas sobre a passageira que viajava com ele e Abdullah Smith.

            - Não devíamos ter trazido essa moça, Smitty - ele disse, olhando de esguelha para Abdullah, que estava no comando da aeronave.

            O jordaniano sacudiu a cabeça.

            - Sinto muito, capitão, mas o problema é seu. Eu tentei lhe dizer que ela era muito importante em Petra.

            A escuridão envolvendo apenas Nova Babilônia, mas visível a uma distância de mais de 160 quilômetros, era diferente de tudo o que Rayford já vira. No momento em que Abdullah iniciou as manobras de pouso do Gulfstream IX em direção ao Iraque, o relógio marcava 12 horas, horário do palácio.

            Normalmente, as magníficas estruturas da capital do novo mundo reluziam de maneira deslumbrante ao sol do meio-dia. Agora, apenas uma impressionante e solitária coluna negra erguia-se nas imensas fronteiras de Nova Babilônia e subia em direção ao céu sem nuvens, até a uma altura que os olhos conseguiam enxergar.

            Chang Wong era o espião de Rayford dentro do palácio. Confiando nas informações do jovem de que eles seriam capazes de enxergar o que outros não conseguiriam, Rayford trocou um olhar com Abdullah, o co-piloto que conduzia a aeronave na escuridão, baseando-se apenas na brancura refletida pela areia do deserto. Abdullah acendeu as luzes de pouso.

            Rayford olhou para ele de esguelha.

            - Vamos precisar de ILS?

            - Sistema de pouso por instrumentos? - disse Abdullah.

            - Acho que não, capitão. Estou enxergando o suficiente.

            Rayford comparou a terrível escuridão com o dia lindo que eles passaram em Petra. Olhou para a jovem por cima do ombro, imaginando ver medo em seu semblante. Ela estava tranqüila.

            - Ainda temos possibilidade de voltar - Rayford disse a ela. - Seu pai parecia relutante quando você subiu a bordo.

            - Talvez por não querer causar problemas para o senhor - disse Naomi Tiberias. - Ele sabe que vou ficar bem.

            O humor e a autoconfiança daquela adolescente perita em informática eram excelentes. Ela pareceu tímida e retraída na presença dos dois adultos até o momento de conhecê-los melhor; depois, passou a conversar de igual para igual. Rayford sabia que ela ensinara Abdullah a ser um profundo conhecedor dos assuntos de informática e que manteve contato constante com Chang desde que a escuridão tomou conta de Nova Babilônia.

            - Por que está escuro somente aqui? - Naomi perguntou.

            - É muito estranho.

            - Não sei - respondeu Rayford. - A profecia diz que ela afetaria o trono da besta e que seu reino se transformaria em trevas. É só isso que eu sei.

            A cada visita a Petra, Rayford presenciara a crescente influência e responsabilidade de Naomi perante os remanes­centes. Por ter se sobressaído como um prodígio em tecno­logia, Naomi tornou-se chefe de fato e de direito do imenso centro de informática de Petra. Passando rapidamente de subordinada a chefe, ela se tornou professora dos outros pro­fessores.

            O centro de tecnologia que havia sido projetado pelo falecido David Hassid, o antecessor de Chang, era agora o ponto nevrálgico que mantinha Petra em contato com mais de um bilhão de almas todos os dias. Milhares de computadores permitiam que muitos mentores acompanhassem o público virtual de Tsion Ben-Judá. Naomi coordenava pessoalmente o contato entre Chang, em Nova Babilônia, e o Comando Tribu­lação ao redor do mundo.

            A idéia de incluí-la no vôo que resgataria Chang em Nova Babilônia partira dele próprio. A princípio, Rayford não con­cordou. Já havia assumido responsabilidade suficiente quando viajou mais de 12 mil quilômetros de San Diego a Petra, onde pegou Abdullah para ser seu co-piloto durante os últimos 800 quilômetros até Nova Babilônia.

            George Sebastian, o piloto especialista em aeronaves de combate, teria sido melhor escolha, mas Rayford sabia que o grandalhão passara por maus bocados recentemente. Havia muito trabalho para ele em San Diego, e Rayford queria poupar George para o evento ao qual o Dr. Ben-Judá dava o nome de "a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso", que ocorreria antes de um ano.

            Mac McCullum e Albie estavam em Al Basrah, cidade localizada cerca de 300 quilômetros ao sul de Nova Babilônia, aguardando ordens. Mas Rayford tinha outros planos para eles.

            O genro e a filha de Rayford - Buck e Chloe Williams - prontificaram-se a tirar Chang da toca do inimigo, o que não era surpresa alguma, porém Rayford estava convencido de que, em breve, Buck seria mais útil em Israel.

            Quanto a Chloe, a Cooperativa Internacional de Mercadorias havia sentido sua falta quando ela esteve ausente por uns tempos. E alguém teria de cuidar do pequeno Kenny.

            - Pegue todos os equipamentos de que você necessita enquanto estivermos a caminho, Chang - Rayford dissera, com o telefone encaixado entre o ombro e ouvido enquanto arrumava a mala.

            - Smitty e eu chegaremos aí dentro de dois dias.

            Chang explicara que a missão era complicada demais e que ele e Naomi, trabalhando juntos, poderiam tirá-lo de Nova Babilônia muito mais rápido.

            - Eu não quero deixar nada para trás - ele dissera. - Ela pode ajudar. Quero ter condições de monitorar este palácio de qualquer lugar do mundo.

            - Não se preocupe - disse Rayford. - Logo você estará frente a frente com ela.

            - Não sei do que o senhor está falando.

            - O pai dela é um dos anciãos de Petra, você sabe.

            - E daí?

            - Só restaram os dois na família. Ele a protege muito.

            - Ela e eu temos muito trabalho a fazer.

            - Entendo.

            - Não estou brincando, capitão Steele. Por favor, ela pre­cisa vir com o senhor. Eu já vi o rosto dela na tela.

            - E então, o que você achou dela?

            - Eu já lhe disse. Temos muito trabalho a fazer.

 

            Rayford sentiu um cutucão no espaldar de sua poltrona quando Naomi esticou o corpo para a frente.

            - O Sr. Smith tem condições de pousar? - ela perguntou. - Ele está enxergando bem?

            - Não sei - respondeu Rayford. - Parece que alguém pintou as janelas da aeronave de marrom. Procure entrar em contato com nosso garoto.

            A missão de Chang era confirmar se as pistas de Nova Babilônia estavam em condições, mas ele não podia dizer isso por telefone, com medo de que alguém escutasse. Naomi tirou um computador pequeno de dentro de uma caixa de alumínio, e seus dedos começaram a correr pelo teclado.

            - Evitem pista três esquerda e três direita - ela disse. - E Chang quer saber que pista será escolhida para poder estar lá quando pousarmos.

            Rayford olhou de relance para Abdullah e dirigiu-se à jovem.

            - Ele está falando sério, Naomi?

            Ela assentiu com a cabeça.

            - Diga a ele que a torre está fechada e que não vamos comunicar nossa chegada. Daqui, não podemos distinguir as pistas, portanto ele vai ter de nos dar as coordenadas e...

            - Um momento - disse Naomi, digitando mais algumas palavras. - Ele incluiu em um anexo tudo o que o senhor necessita.

            Naomi virou a tela em direção a Rayford e apon­tou para o anexo.

            - O sistema de voz está ativado. Diga a ele o que o senhor quiser.

            - O aparelho vai reconhecer minha voz? - perguntou Rayford, examinando a tela.

            - Sim - respondeu o computador.

            Naomi riu.        

            - Anexo, por favor - disse Rayford.

            Uma imagem detalhada apareceu na tela exibindo a vista aérea do aeroporto de Nova Babilônia.

            - Vou acertar as coordenadas para você, Smitty - disse Rayford, procurando programar o sistema de controle de vôo.

            - Esta coisa faz tudo. Só não é capaz de preparar comida para o senhor, capitão Steele - disse Naomi. - O senhor tem uma saída de raio infravermelho?

            - Acho que sim. Temos, Smitty?

            Abdullah apontou para um botão no painel de controle.

            - Aqui - disse Naomi. - Deixe por minha conta.   

            Ela debruçou o corpo por cima do ombro de Rayford e apontou a parte traseira do computador na direção da saída.

            - Pronto para aterrissar, capitão?

            - Positivo.

            - Iniciar manobras de pouso - ela disse, apertando um botão.

            - Em qual pista? - perguntou o computador.

            Naomi olhou para Rayford, que, por sua vez, olhou para Abdullah.

            - Será que essa coisa reconhece tudo, até meu sotaque? - perguntou o jordaniano.

            - Sim - disse o computador. - Pista três esquerda e pista três direita congestionadas. Escolha pistas 11 ou 16.

            - Onze - disse Abdullah.

            - Esquerda ou direita? - perguntou o computador.

            - Esquerda - respondeu Abdullah. - Por que não?

            Abdullah acionou o piloto automático para a esquerda e tirou as mãos dos controles.

            - Obrigado - ele disse.

            - De nada - respondeu o computador.

            Seis minutos depois, o Gulfstream pousou na pista.

 

            Pouco depois de uma hora da madrugada em San Diego, Buck deu um salto na cama. Chloe se mexeu.

            - Volte a dormir, querido - ela disse. - Você ficou vigiando três noites seguidas. Hoje não.

            Ele levantou a mão.

            - Você precisa dormir, Buck.

            - Acho que ouvi alguma coisa.

            O pequeno walkie-talkie na mesinha de cabeceira vibrou. Sebastian acionou seu código. Buck agarrou o aparelho.

            - Sim, George.

            - Sinais no detector de movimento - Sebastian sussurrou.

            Chloe sentou-se na cama.

            - Vou verificar pelo periscópio - disse Buck.

            - Tome cuidado - alertou Sebastian. - Não levante nem gire o aparelho.

            - Entendido. Alguém mais sabe disto?

            - Negativo.

            - Mãos à obra.

            Chloe já havia se levantado e vestido um agasalho. Ela abriu um armário, retirou duas Uzis e jogou uma para Buck, que se dirigiu para o periscópio ao lado do minúsculo quarto de Kenny. Ele colocou a arma no chão, guardou o walkie-talkie no bolso do pijama e curvou-se para enxergar no visor.

            Enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão, ele notou que Chloe abriu e fechou a porta do quarto de Kenny. O garoto estava prestes a completar quatro anos; dormia bem, mas o sono era menos profundo que antes.

            - Ele está dormindo? - perguntou Buck, sem desgrudar os olhos do periscópio.

            - Como um anjo - respondeu Chloe, colocando uma malha de lã ao redor dos ombros de Buck. - É o que você devia estar fazendo.

            - Quem me dera - disse Buck.

            - Também acho. - Ela pousou as mãos abertas nos ombros do marido. - O que você está vendo?

            - Nada. George acha que não devo girar o aparelho. Ele está apontando para o oeste, no nível do chão. Eu adoraria levantá-lo uns 15 centímetros, o que me daria um ângulo de visão de 36°.

            - Ele está certo, meu bem - ela disse. - Você sabe que esse aparelho faz barulho quando é movimentado. Alguém lá fora poderá ouvir.

            - Não acho que haja alguém lá fora - disse Buck, afas­tando-se do aparelho para coçar os olhos.

            Ela deu um longo suspiro.

            - Quer uma cadeira?

            Buck assentiu com a cabeça e voltou a olhar pelo periscópio.

            - Pode ter sido um animal. Talvez o vento.

            Chloe colocou uma cadeira atrás de Buck e o fez sentar-se.

            - É por isso que você devia ter permitido que eu...

            - Oh!, não - ele disse.

            - O que foi?

            Buck colocou o dedo indicador diante dos lábios e pegou o walkie-talkie.

            - George - ele sussurrou. - Seis, sete, oito, nove. Nove homens da CG, fardados e armados, na direção oeste.

            - Fazendo o quê?

            - Nada de importante. Chutando as aberturas de ventila­ção. Parecem entediados. Talvez tenham visto alguma coisa no caminho.

            - Veículos?

            - Eu teria de levantar e girar o periscópio.

            - Negativo. Há mais alguns?

            - Deste ângulo, não sei dizer. Não passou mais ninguém. Agora só estou vendo três.

            - Você está ouvindo ronco de motores?

            Buck ficou em silêncio por alguns instantes. Em seguida, respondeu:

            - Sim, ouvi um. Depois outro.

            - Também estou ouvindo - disse George. - Devem estar indo embora. Posso ir até aí?

            - Diga a ele que não - sussurrou Chloe.

 

            Ao olhar para a lúgubre paisagem em tonalidade sépia através da janela da cabina de comando, Rayford imaginou que o pessoal do palácio deveria estar sofrendo muito. Chang lhe contara que o povo se contorcia e gemia, mas o zumbido de um jato na pista os assustaria ainda mais.

            Eles pensariam que teria havido um acidente aéreo, como aconteceu antes nas pistas três esquerda e três direita.

            Parecia que o povo desistira de tentar enxergar. As pes­soas próximas ao Gulfstream IX tropeçaram na escuridão para afastar-se dele e agora estavam aglomeradas aqui e ali.

            - Aquele deve ser Chang - disse Rayford, apontando para um asiático correndo na direção deles e gesticulando ner­vosamente para que abrissem a porta.

            - Deixe por minha conta, Srta. Naomi - disse Abdullah, desatando o cinto de segurança e pulando por cima dela.

            Assim que Abdullah abriu a porta e abaixou a escada, Rayford viu Chang virar-se para um pequeno grupo de homens e mulheres que tateavam no escuro, procurando segui-lo.

            - Afastem-se! - ele gritou. - Perigo! Motores quentes! Combustível vazando!

            Eles se viraram e correram em todas as direções.

            - Como ele conseguiu pousar? - gritou alguém.

            - Milagre - disse outro.

            - Vocês se lembraram de usar sapatos de sola de borra­cha? - perguntou Chang, estendendo a mão para ajudá-los a sair do avião.

            - Prazer em conhecê-lo, Sr. Wong - disse Abdullah.

            Chang pediu silêncio.

            - Eles não estão enxergando, mas não são surdos.

            - Chang - Rayford começou a dizer, mas o rapaz estava cumprimentando timidamente Naomi. - Tudo bem. Vocês dois terão tempo para se conhecerem melhor. Vamos fazer o que for necessário e sair daqui.

 

            - Devo trocar de roupa? - perguntou Buck quando viu Sebastian trajando farda de serviço.

            - Não. Eu sempre uso esta farda quando estou de vigia. Deixe-me ver o que está acontecendo. - Ele olhou através do periscópio. - Nada. Vamos levantar e girar o periscópio, Buck?

            - Faça como quiser.

            - Tudo em ordem. Alarme falso.

            Chloe respirou fundo.

            - Não diga isso só para me tran­qüilizar. Vocês viram pelo menos nove homens da CG lá fora, e sabemos que havia mais. E eles vão voltar.

            - Ei - disse Sebastian -, por que não pensar no melhor em vez de pensar no pior?

            - Talvez eu esteja fazendo isso - ela disse. - Priscilla e Beth Ann estão dormindo tranqüilas?

            Ele assentiu com a cabeça.      

            - Não quero alarmar Priss e gostaria que você...

            - Que eu não dissesse nada? Faz sentido, George. Deixe sua mulher em paz, ignorando que é chegada a hora de sair­mos daqui - disse Chloe.

            - Sair daqui? - perguntou Buck. - Eu não imaginei essa hipótese.

            - O que você acha? Devemos ficar aqui e aguardar até que eles nos encontrem, se é que ainda não nos encontra­ram?

            - Chloe, preste atenção - disse Buck. - Eu deveria ter permitido que você visse aqueles sujeitos. Eles não descon­fiaram de nada. Deviam estar conversando sobre este lugar que, antes, foi uma base militar. Não estavam tensos, não estavam à procura de nada. Apenas notaram as aberturas de ventilação e foram verificar, só isso.

            Chloe sacudiu a cabeça e desabou em uma cadeira.

            - Detesto viver desta maneira.

            - Eu também - disse Sebastian. - Mas quais são nossas opções? A CG encontrou ontem em Los Angeles, ou melhor, no que restou daquela cidade, um grupo de pessoas sem a marca. Mais de 20 foram executadas.

            Chloe estremeceu.

            - Crentes?

            - Acho que não. Se fosse um grupo de judaístas, eles teriam noticiado. Tenho a impressão de que pertenciam a um foco de resistência da milícia ou algo parecido.

            - É essa gente que estamos querendo alcançar - disse Chloe. - E estamos todos sentados aqui, sem poder mostrar o rosto, criando bebês que quase não vêem a luz do sol. Será que não existe outro esconderijo em um lugar qualquer, onde a CG nem imagine nos encontrar?

            - O melhor lugar é Petra - disse Buck. - A CG sabe quem está lá, mas não pode fazer nada.

            - Esse lugar está ficando cada vez mais atraente. Mas... o que vamos fazer a respeito do que acabou de acontecer?

            Buck e Sebastian entreolharam-se.

            - Vamos, rapazes - disse Chloe. - George, você pensa que Priscilla não notou que você saiu e que não vai pergun­tar onde esteve?

            - Ela sabe que eu estava no posto de vigia.

            - Mas você não viria até aqui, a menos que houvesse algo importante.

            - Espero que ela não tenha acordado.

            Chloe levantou-se e sentou-se no colo de Buck.

            - Vejam, eu não quero ser rabugenta. Buck, diga isso a ele.

            - Chloe Steele Williams está dizendo que não quer ser rabugenta - ele anunciou.

            - Que bom - resmungou Sebastian. - Você quase me enganou, Chloe.

            Ela sacudiu a cabeça.

            - Por favor, George. Você sabe que eu o considero um elemento muito importante para o Comando Tribulação. Você é muito talentoso e nos livrou de tragédias mais de uma vez. Mas todos que moram aqui têm o direito de saber o que vocês viram esta noite. O fato de não contar nada a ninguém, fingir que nada aconteceu, não vai mudar a situação. Quase fomos descobertos.

            - Mas não fomos, Chloe - disse Sebastian. - Por que assustar todo mundo?

            - Já estamos assustados! Passo o dia inteiro com essas mulheres e seus filhos. Estamos vivendo como cães aban­donados, mesmo sem ter a CG bisbilhotando por aqui e transitando acima de nós no meio da noite. As crianças só respiram ar puro quando acordam antes do nascer do sol e alguém as leva até a porta de acesso ao estacionamento. Vocês dois precisam sair furtivamente e dirigir cerca de 50 quilômetros para chegar aos aviões, sempre na esperança de não estar sendo seguidos. Só estou dizendo que se não resolvermos nos defender, pelo menos temos o direito de estar preparados.

 

            Rayford teria de fazer uma pergunta a Tsion. Por que a escuridão era tão opressiva a ponto de deixar suas vítimas angustiadas? Ele ouvira falar de tragédias - desastres fer­roviários, terremotos, batalhas - que sempre deixavam as equipes de resgate assustadas por causa dos gritos e gemidos dos feridos.

            Enquanto ele, Abdullah, Chang e Naomi atraves­savam na ponta dos pés as enormes pistas do aeroporto, desviando-se de equipamentos pesados e de gente se contorcendo, ficou claro que aquelas pessoas preferiam morrer. E algumas já deviam estar mortas. Dois aviões que se chocaram no ar estavam despedaçados na pista, ainda em chamas, com muitos corpos carbonizados presos às poltronas.

            Rayford sentia um aperto no peito à medida que passava por entre cadáveres e pessoas sofrendo. Os gemidos corta­vam-lhe o coração e ele reduziu o ritmo dos passos, que­rendo ajudar. Mas o que poderia fazer?

            - Oh! Alguém! - Era o grito de uma senhora de meia-idade. - Por favor! Ajude-me!

            Rayford parou e olhou. Ela estava deitada de lado no chão, perto do terminal. Algumas pessoas ordenaram-lhe que se calasse. Um homem gritou:

            - Estamos todos perdidos e cegos, mulher! Você não pre­cisa de mais ajuda que nós!

            - Vou morrer de fome! - ela choramingou. - Alguém tem alguma coisa para eu comer?

            - Estamos todos morrendo de fome! Cale a boca!

            - Eu não quero morrer.

            - Eu quero!

            - Onde está o potentado? Ele vai nos salvar!

            - Quando você viu o potentado pela última vez? Ele já tem preocupações suficientes.

            Rayford não conseguia afastar-se dali. Olhou para a frente, mas ele enxergava apenas uns seis metros adiante e havia perdido seus companheiros de vista. Abullah foi a seu encontro.

            - Eu não me atrevi a chamá-lo pelo nome, capitão, mas você precisa vir conosco.

            - Não posso, companheiro.

            - Você é capaz de encontrar o caminho de volta ao avião?

            - Sim.

            - Então vamos nos encontrar lá.

            Abdullah seguiu em frente, mas a conversa sussurrada entre eles provocara um silêncio entre os gritos e lamentos. Alguém gritou:

            - Quem está aí?

            - Para onde ele foi?

            - Quem tem um avião?

            - Você está vendo alguma coisa?

            - O que está vendo?

            A mulher voltou a falar.

            - Oh!, Deus, salva-me. Quero dormir...

            - Você aí, cale a boca!

            - Deus é grande. Deus é bom. Vou agradecer a Ele...

            - Pare de falar, mulher! Se você não é capaz de fazer alguma coisa útil, cale a boca!

            - Deus! Oh, Deus! Salva-me!

            Rayford ajoelhou-se e tocou no ombro da mulher. Ela recuou com um berro.

            - Espere! - ele disse, tocando-a novamente.

            - Ai! Está doendo!

            - Eu não quis machucá-la - ele disse em voz baixa.

            - Quem é você? - ela disse com um gemido.

            Rayford viu o número 6 dos Estados Unidos Europeus gravado em sua testa.

            - Um anjo?

            - Não.

            - Eu orei pedindo um anjo.

            - A senhora orou?

            - Prometa que não vai dizer a ninguém. Eu lhe imploro.

            - A senhora orou a Deus?

            - Sim!

            - Mas eu vi a marca de Carpathia em sua testa.

            - Eu falsifiquei a marca! Conheço a verdade. Sempre con­heci. Mas nunca quis saber de nada.

            - Deus a ama.

            - Eu sei, mas é tarde demais.

            - Por que a senhora não pediu perdão a Deus e aceitou sua dádiva? Ele queria salvá-la.

            Ela soluçou baixinho.

            - Como você pode estar aqui e me dizer isso?

            - Eu não sou daqui.

            - Você é meu anjo!

            - Não, mas sou crente.

            - E consegue enxergar?

            - O suficiente para me locomover.

            - Oh, cavalheiro, estou com fome! Leve-me ao terminal, até a máquina de sanduíches. Por favor!

            Rayford procurou ajudá-la a levantar-se, mas ela reagiu como se seu corpo estivesse em chamas.

            - Por favor, não me toque!

            - Sinto muito.

            - Deixe que eu segure a manga de sua camisa. Você está vendo o terminal?

            - Mais ou menos - ele disse. - Posso levá-la até lá.

            - Por favor. - A mulher levantou-se com dificuldade e agarrou desajeitadamente o punho da camisa dele com o polegar e o indicador.

            - Devagar, por favor. - Ela caminhava com passos miúdos atrás de Rayford. - Está longe?

            - Pouco menos de cem metros.

            - Não sei se vou conseguir - ela disse, com lágrimas cor­rendo pelo rosto.

            - Vou buscar alguma coisa para a senhora comer - ele disse. - O que a senhora quer?

            - Qualquer coisa - ela respondeu. - Sanduíche, doce, água... qualquer coisa.

            - Não saia daqui.

            Ela deu uma risadinha triste. - Não estou enxergando nada. Não posso ir a lugar algum.

            - Eu volto logo. Vou encontrar a senhora.

            - Eu orei para que Deus salvasse minha alma. E quando isso acontecer, vou poder enxergar.

            Rayford não sabia o que dizer. Ela já havia dito que era tarde demais.

            - Deus amou muito o mundo - ela prosseguiu. - O Senhor é o meu pastor. Oh!, Deus...

            Rayford correu em direção ao terminal, passando por entre pessoas angustiadas. Ele queria ajudar todas, mas não podia. Havia um homem deitado, imóvel, do lado de dentro da porta automática, impedindo a passagem. Rayford aproxi­mou-se o suficiente para acionar o sensor. A porta abriu alguns centímetros e foi de encontro ao homem.

            - Por favor, afaste-se da porta - disse Rayford.

            O homem estava dormindo ou morto.

            Rayford empurrou a porta com força, mas ela mal se movimentou. Ele abaixou o ombro e investiu contra a porta, sentindo a pressão nos quadris quando ela se abriu lenta­mente e empurrou o homem. Rayford ouviu-o gemer.

            Dentro do terminal havia uma fileira de máquinas automáticas, mas assim que ele pegou algumas moedas no bolso, viu que elas estavam emperradas. Muitas pessoas que conseguiram chegar até ali haviam arrombado as máquinas e saqueado tudo o que havia dentro.

            Rayford vasculhou uma a uma, procurando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que tivesse sobrado ali. Mas só encontrou garrafas, latas e pacotes vazios.

            - Quem entrou lá? - alguém quis saber. - Aonde você pensa que vai? Consegue enxergar? Há luz em algum lugar? O que aconteceu? Vamos todos morrer? Onde está o potentado?

            Rayford correu para fora.

            - Aonde você está indo? - gritou outro. - Leve-me com você!

            Ele encontrou a mulher deitada de bruços, com o rosto escondido entre os braços. Seu choro era tão sofrido que ele mal suportou olhar para ela.

            - Estou de volta, senhora - ele disse em voz baixa. - Não há comida. Sinto muito.

            - Oh, Deus, oh, Deus e Jesus, ajuda-me!

            - Senhora - ele disse, estendendo o braço.

            Ela soltou um grito quando Rayford a tocou, mas ele a virou de lado até poder ver seus olhos fundos e aterrorizados.

            - Eu sabia de tudo antes dos desaparecimentos - ela disse, com voz chorosa. - Depois, tive certeza. Mesmo com todas essas pragas e julgamentos, eu afrontei Deus. Ele procurou me alcançar, mas eu queria viver por conta própria. Não queria submeter-me a ninguém. Mas sempre tive medo do escuro, e meu maior pesadelo é morrer de fome. Mudei de idéia, quero voltar atrás...

            - A senhora não pode.

            - Eu não posso! Não posso! Esperei demais!

            Rayford conhecia a profecia: o povo rejeitaria Deus tantas vezes que Ele endureceria seus corações e eles não teriam condições de aceitá-lo, mesmo que quisessem. Mas o fato de saber disso não significava que Rayford entendia. E, certa­mente, não significava que ele tinha de gostar.

            Era difícil conciliar tudo aquilo com o Deus que ele conhecia, o Deus amoroso e misericordioso que parecia fazer uso de todos os meios para receber cada pessoa no céu, sem deixar nenhuma de fora.

            Rayford levantou-se e sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça no momento em que ouviu uma voz partindo dos alto-falan­tes.

            - Aqui fala o potentado! - soou a voz forte. - Tenham bom ânimo. Não fiquem com medo. Seu tormento está quase no fim. Acompanhem o som de minha voz até a torre de alto-falantes mais próxima. Lá, haverá comida, água e instruções.

 

            - Quero fazer um trato com vocês - disse Chloe. - Vou assumir o posto de vigia se vocês concordarem em contar a todos, assim que o dia amanhecer, que tivemos visitas esta noite.

            Buck olhou para George, e George apontou para Buck.

            - Na ausência de seu sogro, você é o responsável, com­panheiro.

            - Só porque sou o mais velho de vocês. Transfiro a missão a você que é militar.

            - Não estamos em guerra, homem. O assunto tem a ver com relações públicas. Se você aceita um conselho, faça o que deseja fazer, desde que seja a coisa certa. Diga ao pes­soal: "Achamos por bem contar a vocês que vimos a CG rondando por aqui esta noite, mas, pelo que sabemos, ainda não há motivos para preocupações."

            - Tudo bem, Chloe? - Buck perguntou.

            Ela assentiu com a cabeça.

            - Eu preferia orar e entregar munições ao pessoal, mas minha resposta é sim. Tratem todos como adultos e vocês extrairão o que eles têm de melhor.

            - Se você vai mesmo ocupar o posto de vigia, Chloe - disse Sebastian -, vou para casa e desligar meu walkie-talkie.

            - Combinado.

 

            Para conseguir a façanha de agrupar as pessoas aterrorizadas de Nova Babilônia em vários locais, alguém imaginou que uma música tocada bem alto no sistema de som atrairia o povo para as torres dos alto-falantes.

            - Caminhem com cuidado, leais cidadãos. Ajudem uns aos outros. Evitem perigo.

            Enquanto Leon Fortunato, o braço direito de Carpathia, dizia com tranqüilidade essas palavras, ouvia-se ao fundo a gravação de um coral carpathianista de 500 vozes cantando uma versão gravada de "Salve Carpathia":

 

                        Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor;

                        Salve Carpathia, dono do mundo e nosso governador.

                        Todos nós o adoraremos eternamente;

                        Ele é nosso Nicolae, nosso amado dirigente.

                        Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor.

           

            Rayford detestava aquela canção e o hábito infernal do Sistema de Transmissão da Comunidade Global de executá-la, via rádio, a cada duas horas pelo menos. Carpathia insis­tia nessa execução todas as vezes que aparecia em público. Os desfiles e as concentrações em sua homenagem sempre iniciavam e terminavam com ela.

            No entanto, algo estranho estava acontecendo naquele momento. O povo se levantou lentamente e caminhou angus­tiado em direção ao som, mas ninguém cantava.

            - Lembrem-se - disse Fortunato, fazendo uma careta de dor ao pronunciar cada palavra -, aqueles que vão servir vocês, levando água e comida, também estão acompanhando o som para chegar aos lugares certos. Por favor, tenham paciência e abram caminho para os veículos. Há alimento suficiente para todos, desde que vocês cooperem. Agora, cantem com o coral. Vocês serão levados ao local de adoração da imagem de nosso supremo potentado, que no momento não é visível.

            As pessoas em volta de Rayford não demonstraram entu­siasmo.

            - Não vou cantar - disse alguém. - Morte ao potentado!

            - Tome cuidado com o que diz - alertou outro. - Está querendo morrer?

            - Carpathia não consegue enxergar mais que nós! Ele não sabe quem está falando.

            - Ele não é um simples mortal. Eu não me arriscaria.

            - O que ele tem feito por você ultimamente?

            O pessoal de dentro do palácio estava em melhores condições, era o que Rayford pensava. Pelo menos, eles tinham condições de tatear o caminho que os levava a lugares conhecidos, inclusive chuveiros, camas e geladeiras. Os de fora não podiam sequer encontrar o caminho de volta para casa.

            Rayford tentava imaginar como o povo devia estar desori­entado, sem ter nenhum foco de luz. A situação era frus­trante até para ele que conseguia enxergar um pouco.

            - Há 12 torres de alto-falantes distintas - disse Fortunato.

            O volume da música foi reduzido enquanto ele falava.

            - Quando os mantimentos chegarem, por favor, mantenham a ordem. Cada um deve dizer o seu nome para que nosso pessoal possa gravá-lo em disco de áudio. Em seguida, peguem sua ração de alimento e água.

            - Também queremos respostas! - gritou alguém, como se Fortunato pudesse ouvi-lo. - O que significa isto? Quanto tempo vai durar? Por que sentimos tanta dor?

 

            Chloe sabia qual seria a reação de Ming Toy quando ouvisse a notícia de manhã. Ela e Ree Woo haveriam de querer se casar imediatamente. Todos, exceto Chloe, pro­curaram dissuadi-los dessa idéia, mas Ming planejara tudo. Queria que Tsion Ben-Judá realizasse o casamento sem sair de Petra, por meio de câmera de vídeo.

            - Sei que estou exigindo demais de um homem tão impor­tante e atarefado - ela confidenciara a Chloe. - Mas pro­gramei a cerimônia para durar apenas alguns minutos.

            - Acho que ele vai concordar - Chloe lhe dissera. - No lugar dele, eu concordaria.

            As mesmas pessoas que aconselharam Ming e Ree a não se casarem, em razão do momento em que o mundo se encontrava no calendário profético, foram as mesmas que haviam aconselhado Chloe e Buck a não ter filhos durante a Tribulação.

            Porém, certos assuntos eram muito pessoais. Chloe não podia imaginar ter desistido de se casar com Buck, apesar de saber que teriam pouco tempo pela frente para viver juntos. E, para ela, a vida não teria sentido sem a existência de seu querido filhinho.

            Se Ming e Ree desejassem ficar casados por um ano antes do Glorioso Aparecimento, de quem seria o problema a não ser deles? Ambos estavam conscientes das dificuldades. Ini­ciar uma família naquele período seria complicado, é claro, mas Chloe entendia que o problema não era seu, a menos que Ming lhe pedisse conselho.

            Aparentemente, Buck voltara a dormir depois de alguns minutos. Ela achava que George estava certo por ter deixado sua esposa dormindo no período em que esteve ausente.

            Priscilla era uma das pessoas mais atarefadas dali, sempre em pé antes do amanhecer e esbanjando saúde. Geralmente, começava a ficar sonolenta após o jantar e ia para a cama às 21 horas.

            Chloe ficou feliz por estar de vigia. Um dos motivos era poupar Buck, que passara quatro noites seguidas no posto. Ela gostou do trabalho - verificar o detector de movimento, inspecionar a área com o periscópio. Sua rotina diária era agitada e cansativa; ela passava quase o dia inteiro no computador, coordenando os trabalhos dos fornecedores e transportadores de suprimentos e comida ao redor do mundo inteiro.

            Aquela era a maneira de Chloe manter-se a par das notí­cias, apesar de serem cada vez piores. Seus colaboradores estavam sendo descobertos, presos pela CG em invasões noturnas e ataques de surpresa. A CG os executava assim que constatava que eles não tinham a marca de lealdade a Carpathia.

            Segundo o relato de uma testemunha, o motorista de um caminhão de 18 rodas da cooperativa, que transportava exemplares da revista virtual de Buck, A Verdade, traduzida para o norueguês, recusou-se a permitir que a carga caísse nas mãos da CG. Ele distraiu os guardas por algum tempo para que seu motorista auxiliar fugisse. Em seguida, acelerou o caminhão e despencou de uma ribanceira de 30 metros de altura. Foi morto a tiros pelos Monitores de Moral.

            Chloe também ouviu falar de dissidentes no mundo inteiro - na maioria judeus - que, em vez de serem condena­dos à morte, foram transportados para campos de concentra­ção, torturados e mantidos vivos propositadamente.

            Algumas notícias ocasionais davam conta de intervenções milagrosas, por exemplo, o aparecimento de um anjo no local da guilhotina para alertar o povo sobre as conseqüên­cias de aceitar a marca de Carpathia. Pelo que se sabia, essas decisões de última hora eram inúteis, porque, de qualquer forma, os retardatários já estavam condenados à morte. Mas o anjo implorava aos indecisos que aceitassem a Cristo para ser salvos. E muitos aceitaram.

            Chloe passou um xale ao redor dos ombros e foi, pé ante pé, até o quarto de Kenny, cuja respiração era profunda e lenta. Ela estendeu outro cobertor em cima dele. O menino não se mexeu.

            Depois de fechar a porta, ela verificou o detector de movi­mento e sentou-se diante do periscópio. Não havia ninguém à vista, portanto ela levantou e girou o aparelho para ter uma visão total da área. Ela gostava de ter um periscópio no meio de sua casa. Isso lhe dava a sensação de poder proteger - ou controlar, conforme Buck dizia para brincar com ela - seus amigos e pessoas queridas, cujo número atingia mais de 200, que moravam escondidos em San Diego.

            Todos esperavam viver até o Glorioso Aparecimento, porém, mais que isso, poder alcançar outras pessoas, mesmo sem sair de suas moradias subterrâneas.

            O periscópio tinha uma característica peculiar: o visor não precisava ser movimentado com o aparelho. Um sim­ples controle nas alças fazia o aparelho levantar, abaixar e esquadrinhar em círculo, em qualquer direção. Chloe não estava interessada em compreender o conjunto de espelhos necessários para fazer isso.

            Descontraída, com a testa encostada no visor enquanto seus olhos se acostumavam com a pouca iluminação externa, ela notou que George Sebastian havia deixado o aparelho no nível do chão, apontado para o oeste.

            A lente superior estava camuflada para confundir-se com folhagem de arbustos. Poderia ser levantada até uma altura de 1,5 metro, porém, antes de tudo, o mais importante era fazer uma exploração minuciosa de 360° no nível do chão para certificar-se de que não havia ninguém por perto que pudesse notar o aparelho.

            A exploração poderia ser feita em movimento suave e muito devagar, porque o Comando Tribulação de San Diego aprendera que as coisas feitas com lentidão se tornavam muito mais fáceis. O método escolhido por Chloe era mover o aparelho alguns centímetros por vez. Cada vez que ela apertasse o minúsculo embolo vermelho na alça esquerda, a lente lhe daria mais 45° de visão; oito movimentos desses completariam 360°.

            Não havia nada interessante do lado oeste, portanto Chloe começou a explorar o lado direito. Passavam das três horas da manhã na Califórnia.

 

            Rayford havia caminhado uns 400 metros em direção ao norte do terminal, passando por homens e mulheres mais jovens que ele, mas que se arrastavam penosamente, com passos de pessoas idosas.

            - Na tentativa de manter todos vocês informados - Fortunato anunciou -, temos algumas notícias animadoras. Apesar de não haver nenhum tipo de luz ou claridade em Nova Babilônia, esse fenômeno intrigante não afetou as transmissões via rádio ou telefone. Nossos sistemas de aquecimento e refrigeração continuam funcionando. Os fogões não foram afetados, a não ser aqueles movidos por luz solar. Os fogões elétricos e a gás continuam a esquentar e a irradiar calor, embora não possam ser vistos, portanto, tenham muito cuidado.

            - Os pilotos de aeronaves que partiram de Nova Babilônia ou que chegaram aqui relataram que a escuridão está restrita a esta cidade. Não sabemos quanto tempo ela vai durar, mas se vocês conseguirem encontrar um caminho que os leve para fora dos limites da cidade, encontrarão luz.

            Rayford ouviu palavras de determinação vindas de todos os lados.

            - Eu vou tentar - disse alguém.

            - Eu também. Não sei onde nem como, mas vou dar um jeito de encontrar luz.

            - Alguém tem uma bússola em braile? Sem uma, vamos andar em círculos.

            - Atenção - Fortunato voltou a falar -, todo o pessoal da alta cúpula deve reunir-se no escritório do potentado às 15 horas.

            Rayford olhou para seu relógio. São 13h15. Como eles vão conseguir chegar lá às 15 horas?

            - Usem relógios sonoros - disse Fortunato. - São 13h15. Desligaremos todos os alto-falantes às 14h30, exceto os da torre perto da entrada oeste do palácio. Acompanhem o som para terem condições de encontrar o caminho para a reunião. Os elevadores estão funcionando. O botão inferior direito é o do último andar. O comparecimento é obrigatório, mas limitado ao pessoal da alta cúpula.

            - Eu vou de qualquer jeito - disse alguém.

            - Eu também. Quero ir até o fundo disto tudo.

            - Quero descobrir o que está acontecendo.

            - Dizem que ele é o deus encarnado. Por que não toma uma providência?

            Rayford piscou uma vez, depois outra. Ele imaginou ter visto luz a distância. Estava cada vez mais longe do avião e do lugar em que Chang, Naomi e Abdullah se encontravam, mas se o pior acontecesse, ele poderia seguir o pessoal até a entrada do palácio, às 14h30, e ir ao encontro dos três. Por ora, ele precisava investigar aquela luz.

 

            Chloe já havia movimentado quatro vezes o aparelho na direção leste. Enquanto examinava a paisagem escura, ela notou um par de pontos luminosos. Sua respiração acelerou à medida que eles aumentavam de tamanho. Fosse o que fosse, estavam se aproximando.

            De repente, ficou claro que se tratava de um carro ou caminhão. O veículo rodou até a distância de um quarteirão dali, parou e deu meia-volta. Agora Chloe via apenas as lanternas traseiras. E elas continu­aram ali. Passaram dez minutos, depois mais cinco.

            Chloe explorou rapidamente o caminho ao redor. Nada. Mais um clique no aparelho e ela voltou a ver o setor leste e o veículo parado. Ela não queria acordar Buck para contar-lhe o que estava vendo. Todos os que moravam nos escon­derijos sabiam que havia tráfego de veículos nas redonde­zas, mas ninguém pararia ali àquela hora da noite.

 

            Chloe gostaria que o periscópio tivesse uma lente telescópica para poder ver o veículo mais de perto e saber se alguém estaria descendo dele. O estacionamento oculto dos veículos do pessoal que morava nos esconderijos, usado apenas à noite quando todos sabiam que a área estava livre, dava acesso para o leste.

            Será que ela deveria atrever-se a dar uma espiada mais de perto? Uma porta de serviço, escon­dida perto de outra maior, permitiria que ela enxergasse a área externa, se mantivesse apagadas as luzes internas. Assim, ela chegaria uns cem metros mais perto, sem aventu­rar-se a ser vista por alguém.

            Chloe tirou do armário um macacão preto com capuz e vestiu-o sobre o pijama e o agasalho. Calçou meias de lã e uma bota de cano alto, própria para caminhadas em terrenos acidentados. Pegou a Uzi, mas não levou o walkie-talkie. Um som qualquer emitido por ele poderia atrapalhar seus planos. E ela não queria envolver-se em situações que exigissem pedido de socorro. A Uzi serviria apenas para tranqüilizá-la. Portanto, esta foi a oração de Chloe: Senhor, ajuda-me ou perdoa-me, uma coisa ou outra.

            Ela voltou a abrir silenciosamente a porta do quarto de Kenny. O menino continuava na mesma posição. Ao colocar a mão em seu rosto, notou que estava úmido por causa do sono, mas confortavelmente quente. Ela beijou sua testa. Fria e macia.

            Depois de fechar a porta, ela foi até o local em que Buck dormia e firmou um dos joelhos no colchão, perto do centro. Curvou-se para beijá-lo, segurando-lhe a cabeça. Se o sono de Buck fosse leve, ele teria acordado. Chloe surpreendeu-se ao ver o contraste entre sua roupa escura e a tonalidade branca de sua pele, que raramente ficava sob os raios do sol.

            Ela encontrou um par de luvas e uma máscara de esquiar. Já estava transpirando quando chegou ao corredor que passava pelas outras casas e dava acesso ao estacionamento de veículos. A casa em que eles moravam ficava no centro do conjunto e havia quatro saídas para as casas de seus com­panheiros.

            Arrastando-se no chão, ela passou pela casa de Sebastian, por mais três de outras famílias, por uma fileira de aposentos para homens que viviam sós - inclusive o de Ree Woo e o de Rayford - por mais duas casas de outras famílias e por uma mistura de casas para famílias e aposentos para moças que viviam sozinhas, inclusive o de Ming.

            Todos sabiam que Grande George estava de vigia naquela noite e que Buck Williams, o chefe do grupo na ausência de Rayford, se revezaria com ele. Talvez fosse por isso que o sono do pessoal era tão profundo.

            Rayford atravessou a multidão e caminhou na direção da luz. Seria imaginação sua? Além de uma distância de seis metros, ele só via uma espécie de neblina, e ninguém por perto tinha condições de enxergar nada, muito menos aquela luz. Quanto mais ele se aproximava, mais a luz assemelhava-se a uma silhueta humana, a uns 50 metros de distância. Era só isso o que Rayford via. Quando ele trabalhou no palácio e morou na região, as garagens e os veículos ficavam naquela área. 

            Será que alguém conseguira um meio de produzir luz? Rayford havia passado por pequenos grupos de pessoas que andavam com dificuldade, e agora não havia nada entre ele e aquilo... aquilo o quê? Uma aparição? Ao longe, a luz tinha pouco brilho, mas, em seguida, as cores tornaram-se mais nítidas. Primeiro vermelha, depois amarela e, finalmente, um tom alaranjado forte. Sim, era a figura de uma pessoa, espe­cificamente de um homem alto e esguio. E ele se mexia.

 

            Havia outras pessoas perto do homem, utilizando a clari­dade daquela luz para acionar os veículos. Todos deviam estar sofrendo como os demais, mas trabalhavam rápido, como se sentissem revigorados pela luz. O homem reluzente parecia ser capaz de enxergar até onde sua luz irradiava, cerca de um metro. Qualquer um que necessitasse de luz precisaria estar a essa distância dele.

            Rayford imaginou que fosse Carpathia. O Dr. Ben-Judá havia dito que essa mesma pessoa apareceria em primeiro lugar na forma de uma serpente, depois, como um leão rugindo e, finalmente, como um anjo de luz.

            Rayford teve de conter o riso. O demônio que havia em Nicolae certamente gostaria de poder emitir mais luz do que aquele patético brilho que lhe permitia apenas identificar as pessoas que estavam a um metro de distância.

            Rayford caminhou um pouco mais até misturar-se a um pequeno grupo ao redor dos mecânicos que tentavam acio­nar vários veículos, cuja finalidade ele ainda não conseguira entender.

            - Todos os sistemas estão funcionando? - perguntou Carpathia.

            - Sim, potentado. O jipe está em ordem.

            - Acenda os faróis.

            O mecânico obedeceu à ordem.

            - O sistema elétrico está em ordem, Excelência, portanto está passando corrente, mas conforme o senhor pode ver...

            - Conforme todos nós podemos ou não podemos ver - disse Carpathia. - Os faróis não acendem. Bem, de qualquer forma, eu irei adiante do comboio até atravessarmos a escu­ridão a caminho de Al Hillah. Não quero saber quanto tempo vai levar.

            Que tipo de estratégia seria aquela? A diretoria se reuniria no escritório de Carpathia, e ele os conduziria a Al Hillah? Para quê? E quanto aos milhares que continuariam em Nova Babilônia? Não haveriam de querer segui-lo, para encontrar um pouco de alívio?

            - O que há em Al Hillah? - perguntou Rayford.

            - Quem está perguntando? - inquiriu Carpathia. - E como você se dirige a mim sem usar meu título de honra?

            Nicolae estava olhando na direção de Rayford, mas não tinha condições de enxergar a uma distância maior que o raio de sua aura diabólica. Quando Nicolae deu alguns passos à frente, Rayford recuou para a esquerda e postou-se atrás dele.

            - Pois não - Rayford disse com tom de voz ligeiramente diferente.

            - O que há em Al Hillah, ó Grandioso?

            Carpathia virou-se para trás, e Rayford desviou-se nova­mente.

            - Eu estava falando com quem se dirigiu a mim! - disse Carpathia.          - Quem está perguntando?

            - Acho que ele fugiu de medo - respondeu Rayford com voz grave - Excelência.

            Aquilo era muito divertido.

 

            Chloe sabia que a longa passagem até o estacionamento de veículos era fria e úmida na maior parte do tempo. Talvez estivesse assim agora. Mas a agitação em sua mente, os movi­mentos rápidos para subir a rampa dos veículos até as portas de acesso ao nível do chão aqueceram seu corpo em demasia.

            Ela retirou as luvas e a máscara de esquiar, ralhando consigo mesma por tê-las usado sem necessidade. Depois de abaixar o zíper do macacão, ela se agachou e encostou-se na parede entre a porta de acesso ao estacionamento e a porta de ser­viço, para acalmar-se e recuperar o fôlego.

            A sensação de liberdade era deliciosa. Ela estava perto da superfície, quase fora do esconderijo. Faltava menos de um ano para a verdadeira liberdade.

            Seus joelhos começaram a doer, e ela precisou sentar-se no chão para esticar as pernas. Depois de deixar a arma de lado, ela estendeu o corpo até tocar nas pontas das botas, alternando movimentos para a esquerda e para a direita. Apesar de ter sofrido graves ferimentos, Chloe se sentia orgulhosa porque sua missão na Grécia provara que seu corpo ainda estava em muito boa forma.

            Ela fechou o zíper do macacão até o pescoço, colocou a máscara de esquiar no rosto, cobriu a cabeça com o capuz, calçou as luvas, passou a tira da Uzi por cima da cabeça para que a arma ficasse encostada em seu quadril direito, levantou-se e dirigiu-se para a porta de serviço.

            A porta de acesso ao estacionamento não podia ser aberta aos poucos. Todos sabiam disso. A areia, a terra e a vegeta­ção grudadas ali faziam com que ela se movimentasse de uma só vez. Ou ela ficava totalmente aberta ou totalmente fechada. Mas a porta de serviço, embora fosse camuflada da mesma maneira, podia ser aberta aos poucos, conforme Chloe desejava. Ela apagou a luz e segurou a maçaneta com firmeza.

 

            Rayford seguiu apressado rumo ao palácio. Ele queria verificar como estavam seus companheiros e falar sobre seu plano. Em seis anos, ele havia presenciado numerosos even­tos bizarros, talvez em número maior do que um dia chegou a imaginar.

            Embora muitos tivessem sido mais significativos, mais espalhafatosos e mais violentos, aquele era completa­mente diferente. Pobres pessoas! Sim, elas haviam escolhido seu destino e, sim, tiveram muitas oportunidades de voltar-se para Deus. Mas que preço estavam pagando!

            A angústia era geral. Por todos os lugares onde ele andava, mais e mais pessoas tornavam-se visíveis dentro de seu raio de visão de seis metros. Muitas estavam mortas. Muitas balançavam o corpo no lugar ou choravam deitadas no chão. Todas haviam desistido de enxergar alguma coisa, e a escuridão era tanta que chegava a desorientá-las.

            As que acompanhavam a música ou a voz de Fortunato cami­nhavam com passos trôpegos ou com os braços esticados para a frente ou para os lados, balançando o corpo como se estivessem embriagadas ou com tontura.

            Chocavam-se umas com as outras ou com prédios e passavam por cima de escombros. Muitas não tinham forças, andavam lentamente, paravam, cambaleavam. Rayford gostaria de ajudá-las, mas não havia nada que ele pudesse fazer.

            Quando estava a caminho do apartamento de Chang, Rayford teve uma idéia e mudou de direção. Entrou no eleva­dor e chegou ao último andar do palácio. Lá, ele passou, na ponta dos pés, por entre vários executivos e seus asseclas, que conversavam ao telefone ou permaneciam sentados diante de computadores, ditando algumas palavras mas incapazes de enxergar se suas mensagens estavam sendo enviadas.

            Todas as ligações telefônicas tinham o mesmo tema e o mesmo tom.

            A assistente de Carpathia não era a mesma dos tempos em que Rayford trabalhou com ele. Chang havia lhe contado qual era o nome dela. Devia ser aquela mulher falando ao telefone na ante-sala do novo escritório de Carpathia. Rayford notou que ela se assustou quando o ouviu sentar-se no sofá do outro lado, mas ele não disse nada e a mulher continuou a conversa.

            - Não sei - ela dizia com voz chorosa. - Ele quer que eu trabalhe como se não estivesse sofrendo igual aos outros. Mas estou sofrendo, mãe. Posso fazer algumas pequenas coisas quando ele está aqui, porque ele emite esse tal brilho. Mas ele convocou uma reunião com a diretoria e eles estão planejando uma espécie de romaria... Não, eu não quero ir, não quero mesmo. Ele não está contando ao pessoal que os chefes estão partindo. Ooh! Ai... não sei descrever o que sinto. Cãibras, acho. Uma dor de cabeça como nunca senti, e tenho tido um pouco de tontura...

            Ela parecia americana, mas estava de costas para Rayford, e ele não podia ver o número em sua testa ou mão.

            - Parece que estou carregando um peso enorme nos ombros, pressionando minha coluna. Sinto dor no quadril, nos joelhos, nos tornozelos, nos pés. Semelhante à sua artrite, acho. Mas, mãe, eu só tenho 36 anos. Parece que tenho 75... Sim, estou me alimentando. Consigo tatear o caminho até meu apartamento e preparar alguma coisa para comer, mas quando me deito, tenho vontade de dormir por cem anos. Mas não posso... É por causa da dor! Não há posição que a alivie. Parece que a escuridão está me oprimindo e causando todo este sofrimento, mas todos se queixam da mesma coisa.

            Rayford se mexeu no lugar e a mulher assustou-se mais uma vez.

            - Um momento, mãe. - Ela se virou e Rayford viu o número - 6 em sua testa, o que confirmou sua suposição. Estados Unidos Norte-americanos.

            - Há alguém aí? Posso ajudar?

            Ele sentiu vontade de dizer que tinha algumas perguntas a fazer sobre a reunião, mas que aguardaria até que ela ter­minasse a conversa. Porém, a assistente de Carpathia conhecia os homens que restaram na diretoria e não reconheceria sua voz. Ele gostaria de dizer-lhe algumas palavras de con­forto, dizer algo que Jesus diria. Mas ela não podia mais ser ajudada. Rayford nunca se sentira tão manietado.

            - Desculpe-me, mãe - ela disse. - Agora estou ouvindo coisas. É melhor eu desligar. Está chegando a hora da reunião, e eu não sei o que ele está pretendendo fazer. Nin­guém será capaz de ler nada, a não ser que coloque o papel perto da luz dele, e o grupo é composto de 20 pessoas... Sim, 20... Eu sei... Sim, eram 36. Imagine só!

            - Empolgante? Não. Isso já faz muito tempo. Ele não é o homem que eu imaginava... Ah!, sim, em todos os sentidos. Mesquinho, cruel, violento, egoísta. Preciso de um dicionário para encontrar outros adjetivos para ele... Não posso!... Não! Claro que não! Para onde eu iria? O que faria? Eu sei muita coisa, e ele não vai permitir que eu saia de seu controle... Não, agora vou ter de conviver com isso... Não sei, mãe. Essa história não vai terminar bem. Eu não me importo mais. A morte será um alívio... Bem, lamento muito, mas foi isso mesmo o que eu quis dizer... Não se preocupe, mãe. Não estou planejando tomar atitude drástica alguma... Sei que você tem. Todos nós temos. Todos menos o tio Gregory, acho. Ele ainda está resistindo, não?... Como está vivendo? Você sabe o que vai acontecer se ele for descoberto... Não, não me conte. Não quero saber. Assim, se alguém me per­guntar vou dizer que não sei. Diga-lhe que estou orgulhosa dele, que ele continue a resistir, mas que tome cuidado. Você e o papai também devem tomar muito cuidado. Se vocês forem pegos ajudando-o de uma forma ou outra...

            Rayford ouviu passos no saguão, e ficou claro que ela também ouviu.

            - Preciso desligar, mãe. Tudo de bom para você.

            Ela desligou e virou-se quando a porta foi aberta. Um homem alto e magro, de cerca de 50 anos, arregalou os olhos, boquiaberto, ao ver Rayford. Ele apontou para a testa de Rayford, e Rayford também notou o selo na testa dele.

            - Posso ajudar? - perguntou a assistente de Carpathia. - Quem está aí?

            Rayford levou o dedo indicador aos lábios, apontou para o saguão e disse apenas movimentando os lábios:

            - Cinco minutos.

            O homem fechou a porta e afastou-se correndo. A mulher encolheu os ombros.

            - Obrigada por ter vindo - ela murmurou - seja você quem for.

            - Quem chegou acabou de sair - disse Rayford.

            Ela deu um salto na cadeira.

            - Faz tempo que você está aqui?

            - Tempo suficiente para saber quem é o tio Gregory.

            - Eu sou uma idiota! Não conheço você, conheço?

            - Não.

            - Você não faz parte da diretoria.

            - Não.

            - Há alguém com você?

            - Não, Krystall.

            - Como sabe meu nome?

            - Posso ajudar seu tio.

            - Garanto que vou negar cada palavra que eu disse.

            - Você não quer que alguém o ajude?

            - Você está preparando uma armadilha para mim.

            - Não estou. Se eu fosse da CG, não seria capaz de enxer­gar, certo?

            - Você não está enxergando nada.

            - Estou. E posso provar. As cores de suas roupas não combinam.

            - Isso não é prova, seu idiota. Não consigo enxergar nada. Eu me visto apenas usando o tato, como todo mundo está fazendo.

            - Já que você não acredita, levante alguns dedos. Vou dizer quantos... Três... Sua mão direita está de frente para mim e você levantou o dedo mínimo, o anular e o médio.

            - Como você sabe?

            - Você quer saber como posso enxergar?

            - Você não pode.

            - Então me responda uma coisa. Como eu sei que agora você está me mostrando seis dedos: cinco da mão esquerda e o indicador da direita, com as duas mãos viradas de costas para mim? Vejo pela expressão de seu rosto que você está começando a se convencer. Agora está escondendo as mãos debaixo da mesa.

            Krystall comprimiu os lábios, como se desejasse conter o choro.            Rayford levantou-se.

            - Fique onde está - ela disse, com a voz trêmula e as mãos no colo.

            Rayford levantou-se e postou-se atrás dela.

            - Isso não seria nada divertido - ele disse.

            Ela deu um salto e virou-se na cadeira.

            - Estou vendo novamente suas mãos. Elas estão fechadas em seu colo, com os polegares apontando para cima.

            - Muito bem, você consegue enxergar. Como?

            - Esta escuridão é uma maldição de Deus, e eu sou um dos filhos dele.

            - Você está falando sério?

            - Posso ajudar seu tio, Krystall.

            - Como?

            - Você não estava dizendo que ele ainda não recebeu a marca?

            - E se estivesse?

            - Então ele ainda tem chance de se salvar. Ele é crente em Cristo?

            - Acho que não. Acho que ele não passa de um rebelde.

            - Um homem de sorte, se agir rápido.

            - Se você imagina que vai me ludibriar para que eu conte onde é o esconderijo dele, está muito...

            - Eu não preciso saber disso. Seria uma tolice você arris­car-se a me contar. De qualquer forma, você não pediu a sua mãe que não lhe contasse onde ele está?

            Ela não respondeu.

            - Se quer ajudá-lo de verdade, diga a ele para entrar no site do Dr. Tsion Ben-Judá. Você sabe como se escreve o nome dele ou preciso soletrar?

            - Você acha que não conheço esse nome e como se escreve?

            - Desculpe-me.

            - Foi no site dele que fiquei sabendo que é tarde demais para mim e meus pais, para minha família inteira... que sen­tiam tanto orgulho de mim.

            - Lamento muito, Krystall.

            - Lamenta muito? Como acha que estou me sentindo?

            - Você não vai contar a ninguém que estive aqui, vai?

            - Por que eu contaria? Eles não vão enxergar você. O que poderiam fazer? Ficar tateando à sua procura?

            - Bem lembrado.

            - O que você está fazendo aqui?

            - Tratando de negócios. A idéia de ajudar seu tio ocorreu-me há poucos instantes.

            - Bem, de qualquer forma, obrigada. Você é judaísta, não?

            - Sou um crente em Cristo, para ser mais preciso.

            - Então, diga-me uma coisa: por que é tarde demais para as pessoas que já receberam a marca de Carpathia? Não con­tinuamos a ter livre-arbítrio?

            Rayford sentiu um aperto na garganta.

            - Aparentemente não - ele conseguiu dizer. - Eu não entendo muito bem, mas você deve admitir que já teve moti­vos suficientes para escolher o outro caminho.

            - Durante muitos anos.

            - É isso mesmo, Krystall.

            - Quer dizer que minhas chances acabaram quando fiz a grande escolha?

            - Sim. Talvez antes disso. Quem pode conhecer a mente de Deus?

            - Estou começando a conhecer.

            - Como assim?

            - Isso dói muito. Dói mais do que a angústia e o sofri­mento causados pela escuridão. Acho que aprendi tarde demais que não podemos zombar de Deus.

 

            A possibilidade de abrir apenas uma fresta na porta de serviço camuflada causou um problema para Chloe: ela não tinha a visão de que necessitava. Embora a porta estivesse de frente para o leste, onde o veículo suspeito estava parado a apenas um quarteirão de distância na última vez que Chloe olhou, ela conseguia apenas enxergar o lado nordeste.

            A porta teria de ser aberta no mínimo 45° para Chloe confir­mar se o carro ou o caminhão continuava lá. Deveria ela se arriscar a abrir um pouco mais a porta para receber a clari­dade da lâmpada da rua? Será que isso não faria barulho ou acionaria algum detector de movimento portátil da CG?

            Chloe resolveu pensar que o veículo poderia estar tra­zendo boas notícias em vez de más. Talvez estivesse trans­portando um grupo de crentes de outros esconderijos que ouviram falar que o contingente do Comando Tribulação havia se protegido embaixo de uma antiga base militar.

            Não seria maravilhoso descobrir outros irmãos e irmãs que estariam chegando para ajudá-los, animá-los, defendê-los? Foi o que Chloe descobrira em "O Lugar", em Chicago, onde havia um grupo de crentes autodidatas. De outro lado, toda aquela atividade e movimentação do Comando Tribulação já estava comprometendo a casa secreta.

            Um número maior de pessoas transitando naquela área que, segundo a CG, estava de quarentena, poderia chamar a atenção dos guardas e levá-los até lá para bisbilhotar. Se fossem novos amigos chegando, Chloe teria de aceitar que aquilo seria o fim da grande casa secreta.

            Ela não gostaria que isso acontecesse novamente. Havia muita gente ali e, embora o local fosse subterrâneo, pos­suía as mesmas vantagens do Edifício Strong. E agora eles contavam com a ajuda de George Sebastian, que havia expandido o que Chloe - e todas as outras pessoas interes­sadas - aprendera sobre treinamento de combate com Mac McCullum em sua missão na Grécia. Os equipamentos de exercícios em estado precário que George e Priscilla resgataram da base militar não eram grande coisa., mas George os considerava uma vantagem.

            - Esses equipamentos serão úteis para vocês – George disse.

            Ele consertou e lubrificou os que tinha em mãos, e depois de seis semanas vários membros do Comando Tribulação resolveram passar algum tempo na sala de exercícios para fortalecer os músculos. Aquilo era apenas um pré-requisito, é claro.

            Chloe gostava dos treinamentos comandados por George. Muitos faziam sentido, outros não. Ele havia rece­bido um treinamento de alto nível e provou ser um excelente professor. Chloe achava que agüentaria carregar uma arma em qualquer situação.

            Ao lembrar-se daquele treinamento, ela se deu conta de que estava cometendo um erro fundamental. Havia-se afastado de seu posto, e ninguém tinha idéia de onde ela estava. Seria impossível comunicar-se com alguém a uma distância tão grande. Portanto, se levasse adiante o plano de abrir a porta de serviço o suficiente para enxergar um inimigo em potencial a um quarteirão de distância ou, talvez, mais perto ainda, ela teria de tomar uma decisão.

            Deve­ria abrir a porta de uma só vez, sair e fechá-la de novo ou deveria continuar com a mão na maçaneta caso necessitasse recuar rapidamente?

            Chloe encostou a orelha na porta para ouvir algum movi­mento do lado de fora, mas não logrou êxito. A Uzi bateu de encontro à porta e o capuz e a máscara de esquiar que ela usava abafavam qualquer tipo de som. Ela recuou, sentindo-se uma idiota.

            Calma. Respirem fundo. Vamos sair bem deva­gar e fechar a porta atrás de nós.

            O fato de usar o pronome nós a fez sentir-se menos desamparada, mas ela sabia que estava enganando a si própria.

            Tomando o máximo de cuidado, ela caminhou pé ante pé, abriu a porta, saiu e fechou-a atrás de si. Será que o veículo continuava ali?. Ela teria de aguardar alguns instan­tes. Talvez ele estivesse com as lanternas traseiras apagadas. Chloe dirigiu-se a uma fileira de arbustos no lado leste e escondeu-se atrás deles. Em seguida, girou o corpo para ver se o inimigo não estava vindo na outra direção. Ela fez uma pausa para sentir o gosto da liberdade, a liberdade de estar respirando o ar frio da madrugada.

            Quando seus olhos se acostumaram à fraca luz proporcio­nada apenas pelas lâmpadas da rua, Chloe olhou através da folhagem e viu o caminhão branco, especial para transportar funcionários da CG, estacionado no mesmo lugar, com as lanternas traseiras apagadas, mas, aparentemente, e o motor não estava desligado.

            A pergunta era se o caminhão estaria vazio. Se estivesse, quantos soldados trouxera e para onde teriam ido?

 

            Rayford caminhou rapidamente, nas pontas dos pés, até o fim do corredor e encontrou um homem inquieto e retorcendo as mãos.

            - Fala inglês? - o desconhecido perguntou, com acen­tuado sotaque alemão.

            - Sim. Sou americano.

            - Irmão, irmão, irmão! - o homem sussurrou, abraçando Rayford com força.

            - Quem é você? Como se chama? O que está fazendo aqui?

            O homem tinha músculos firmes, como os de um trabalha­dor braçal.

            - Eu também quero lhe fazer estas mesmas perguntas, amigo - disse Rayford, libertando-se do abraço. - Mas pre­cisamos tomar cuidado para que ninguém nos ouça.

            - Sim, muito bem. Onde?

            - Tenho alguns companheiros aqui. Eles estão em um apartamento particular. Você precisa conhecê-los. Vamos conversar lá.

            - Será que vou agüentar esperar tanto tempo? Estou muito emocionado. O apartamento fica longe daqui?

            - Seis andares abaixo, na outra ala - disse Rayford, conduzindo-o ao elevador.

            - Você mora aqui no palácio? Trabalha aqui?

            - Morei e trabalhei aqui. - Rayford olhou ao redor e aproximou-se mais do homem. - Estou morando em um esconderijo em San Diego e tenho amigos em Petra. Vamos tirar nosso espião daqui enquanto é possível.

            - Achei que o espião fosse você!

            - Fui um deles. Agora temos apenas um. Pelo menos é o que imaginamos. Você é daqui?

            - Moro a uns dez quilômetros de distância, você pode acreditar?

            Havia três executivos diante dos elevadores, amparando-se um no outro e tateando à procura dos botões. Rayford e seu novo amigo entreolharam-se e ingressaram no primeiro elevador que chegou. Os três entraram depois deles.

            - Precisamos chegar no horário - disse um executivo.

            - É verdade - disse outro. - Eu gostaria de ter um relógio sonoro.

            - Retirei o cristal do meu. Estou aprendendo a sentir as horas. O problema é que fico passando a mão nos ponteiros e nunca sei qual é a hora exata. - Ele passou dois dedos sobre seu relógio. - Acho que são 14h50. Ainda temos dez minutos.

            Rayford notou que o alemão olhou para o próprio relógio e ergueu as sobrancelhas. O elevador parou dois andares abaixo, e os três desceram. Mas assim que as portas começaram a se fechar, o companheiro de Rayford segurou-as com as duas mãos, deu uma batida de leve no ombro do executivo que calculou as horas e, ao mesmo tempo, esfregou o polegar no mostrador do relógio dele. O homem assustou-se, e seu companheiro foi de encontro a ele e perguntou:

            - O quê?

            E o terceiro perguntou: - O que foi?

            O alemão recuou os braços para que as portas se fechas­sem. Quando ficou sozinho com Rayford no elevador, ele caiu na gargalhada.

            - Acho que foi a última vez que ele ficou sabendo qual era a hora certa. Agora posso me apresentar?

            - Ainda não - disse Rayford.

            Em seguida, pronunciou as palavras somente movimentando os lábios.

            - Quase todos os elevadores e corredores daqui têm sistema de escuta.

 

            Imprudência ou coragem? Para Chloe, era uma questão de ponto de vista. Provavelmente, muitos a tachariam de imprudente. Mas ela estava curiosa demais a respeito do caminhão e mais curiosa ainda a respeito de quem eram seus ocupantes.

            Acompanhando a fileira de arbustos e distante das lâmpadas da rua, ela caminhou um quarteirão à esquerda, movimentando-se silenciosamente no meio da noite, con­forme aprendera.

            Ela reduziu o ritmo dos passos assim que se alinhou à esquerda do veículo, a uma distância aproximada de 30 metros. Censurou a si mesma por não ter levado o binóculo e o walkie-talkie. Poderia ter deixado o aparelho desligado até o momento de necessitar dele, evitando, assim, uma trans­missão inoportuna. E teria a possibilidade de comunicar-se com Buck ou com qualquer outra pessoa em caso de urgência.

            No entanto, até aquele momento, não tinha havido urgên­cia alguma. Chloe aproximou-se mais do veículo, dizendo a si mesma que se houvesse alguém dentro, o motor estaria funcionando e uma ou mais janelas estariam abertas. Mas ela não queria avançar sem ter certeza.

            Depois de girar lenta­mente o corpo em círculo para ver se não havia alguém se aproximando ou ao redor, Chloe chegou perto do caminhão e olhou através das janelas traseiras. Não havia ninguém.

            Mas dali ela não podia saber se havia alguém no banco da frente. Se houvesse uma pessoa aguardando, deveria estar sentada diante do volante. Ela aproximou-se pelo outro lado, com o corpo curvado para ficar abaixo do nível da janela até o momento de poder endireitar-se rapidamente e pegar o inimigo de surpresa, se necessário.

 

            Rayford surpreendeu-se ao ver o grande número de moradores do palácio aglomerados no saguão dos eleva­dores. Todos estavam sofrendo. Ele caminhou em direção ao apartamento de Chang em companhia de seu novo com­panheiro.

            Havia pessoas abraçadas nos cantos, chorando. Outras rastejavam na tentativa de encontrar o caminho para os apartamentos, apoiavam-se nas maçanetas e passavam os dedos nos números antes de bater e implorar que os amigos lhes abrissem a porta.

            - Isso me corta o coração - Rayford cochichou ao ouvido do alemão.

            - O meu não - disse o homem -, mas estou procurando me sensibilizar.

            Rayford deu uma batida de leve na porta de Chang. A conversa lá dentro cessou.

            - Sou eu - ele disse baixinho. - E não se assustem. Trouxe alguém comigo.

            Abdullah abriu uma fresta da porta, o suficiente para enxergar e encaixar o cano de uma Glock calibre .45. Satis­feito ao ver que era Rayford, ele examinou o alemão de cima a baixo. Depois de ver o selo dos crentes na testa do homem, Abdullah abriu a porta com força.

            Assim que entrou, o homem não conseguiu ficar parado. Depois de olhar para todos, para os computadores e para as pilhas de disquetes, ele perguntou.

            - Posso falar? Tudo bem aqui?

            Chang fez um movimento afirmativo com a cabeça. Apesar de ter-se assustado diante da reação efusiva do homem, ele continuou a trabalhar com Naomi.

            - Meu nome é Otto Weser - ele disse. - Madeireiro alemão, judaísta, chefe de um pequeno grupo de crentes aqui em Nova Babilônia.

            O alemão abraçou Abdullah e disse, rindo:

            - Cuidado com essa arma aí!

            Ao cumprimentar Chang, quase o levantou do chão.

            - Vejam só! Você é asiático. Nosso amigo de turbante é o quê? Egípcio?

            Abdullah o corrigiu.

            - Ah! jordaniano. Quase acertei. Eu sou alemão. Rayford Steele, seu nome é ocidental e você me disse que é americano, mas também tem a aparência de egípcio.

            - É um disfarce.

            - E você, minha jovem, também é do Oriente Médio, não? Claro que é. Não vou abraçá-la sem a permissão de seu pai.

            Otto apontou primeiro para Rayford, que fez um movi­mento negativo com a cabeça, e depois para Abdullah, que pareceu ofendido.

            - Ah!, mas vocês têm idade para ser pai dela. - Ele se virou para Chang. - Sei que ela não é nada sua, a menos que sejam casados.

            Naomi aproximou-se dele, com os braços abertos.

            - Meu pai não está aqui, mas se eu tiver de lhe dar permissão, pode me abraçar.

            - Ah! Eu adoro esses jovens que gostam de filmes antigos.

            Assim que ficou conhecendo todos, Otto prosseguiu:

            - Vou ser breve. Sei que vocês têm uma missão a cum­prir e que precisam sair daqui. Eu não sabia se encontraria algum irmão ou irmã dentro do palácio, mas estou feliz por ter encontrado. Meus amigos e eu nos consideramos cumprimento da profecia. Vocês querem saber por quê? Estáva­mos escondidos na Alemanha, lutando contra a CG sempre que possível, e Deus... quem mais poderia ser?... levou-me a ler Apocalipse 18. Fiquei confuso; o que mais posso dizer? Vocês conhecem a passagem. Eu a memorizei.

            - Não sou nenhum intelectual, nenhum estudante, nenhum teólogo, mas procuro ficar um passo adiante de meu pessoal para poder ensinar alguma coisa a eles. Bem, Apocalipse 18 fala sobre a destruição desta cidade, desta mesma onde estamos. Iniciando no versículo quatro, lemos: "Ouvi outra voz do céu, dizendo: Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados, e para não participardes dos seus flagelos; porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou dos atos iníquos que ela praticou. Dai-lhe em retribuição como também ela retribuiu, pagai-lhe em dobro segundo as suas obras, e, no cálice em que ela misturou bebidas, misturai dobrado para ela. Quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxúria, dai-lhe em igual medida tormento e pranto, porque diz consigo mesma: Estou sentada como rainha. Viúva não sou. Pranto, nunca hei de ver! Por isso em um só dia sobrevirão os seus flagelos, morte, pranto e fome, e será consumida no fogo, porque poderoso é o Senhor Deus que a julgou."

            - Bem, vocês devem conhecer esta passagem melhor que eu. "Retirai-vos dela, povo meu"? O que podíamos entender desta frase a não ser o óbvio? Devia haver povo de Deus aqui, ou pelo menos uma pequena parte, até pouco antes de acon­tecerem esses flagelos! Quem eram eles? Nunca imaginei que pudesse haver crentes aqui. E se existissem, não durariam muito tempo! Como isso seria possível? Se a CG e os Moni­tores de Moral estão matando gente no mundo inteiro por não ter a marca de Carpathia, que chance alguém daqui teria?

            - Não sabíamos, mas queríamos descobrir. E vou dizer uma coisa a vocês. Não era mais possível ficar brincando de esconde-esconde com a CG na Alemanha. Reunimos um grupo de quase 40 pessoas, arrumamos nossas coisas e viemos para cá. Devo dizer que a viagem não foi fácil. Também não tem sido fácil viver aqui, mas sabíamos disso quando decidimos vir. Perdemos seis pessoas de nosso grupo desde que chegamos... Quatro de uma só vez. Dois, devo admitir, morreram por minha culpa e vou sentir vergonha disso pelo restante da vida. Mas vamos nos encontrar nova­mente, não é verdade? E eu mal posso esperar.

            - E outra coisa que eu esperei ansiosamente foi esta praga da escuridão. Quando ela chegou e percebemos que ninguém podia enxergar, exceto nós, decidi que queria conhecer este lugar. Queria conhecer os prédios, o pátio, o palácio, tudo... principalmente o escritório do potentado. Não pude trazer os outros comigo, mas estou aqui, e quem mais eu poderia encontrar a não ser vocês? Bem, se somos cumprimento da profecia por fazer parte de um pequeno grupo do povo de Deus que deve sair daqui antes que chegue o fim, vocês são uma resposta à minha oração. Se tivermos de sair daqui, precisamos descobrir um lugar para ficar, de preferência que seja seguro. Se vocês têm ligações com Petra, é para lá que queremos ir, se eles nos aceitarem.

            - Desculpe-me, Rayford - disse Chang. - Esta conversa está muito interessante e agradável, mas preciso mostrar a Naomi, você sabe, como funciona o sistema que David instalou aqui. Depois, acho que devemos partir.

            - Certo - disse Rayford -, e vou me sentir mais tranqüilo se Abdullah ficar com vocês. Quero voltar ao escritório de Carpathia para ver se Otto e eu podemos entrar na grande reunião e saber o que está acontecendo.

            - Ah! Eu adoraria! Conforme já disse, eu queria conhecer o escritório dele. Foi por isso que eu estava lá, mas fiquei tão assustado quando vi alguém com o selo...

            - Otto - disse Rayford -, precisamos ir.

 

            Depois de ficar agachada por um bom tempo ao lado da porta direita do caminhão, Chloe quase desistiu de levar seu plano adiante. O que aconteceria se ela erguesse o corpo e o motorista estivesse sentado ali, aguardando o retorno dos soldados?

            Talvez ela tivesse de apontar a arma para ele. E fazer o que depois? Desarmá-lo? Impedi-lo de falar pelo rádio? Forçá-lo a contar para onde foram os soldados e o que pretendiam fazer?

            Porém, tudo aquilo só serviria para comprometer o esconderijo, a não ser que Chloe estivesse disposta a matar o motorista e tentar afugentar o restante do pessoal. Para isso, ele teria de lhe contar onde os soldados estavam.

            Finalmente Chloe disse a si mesma que se o caminhão estivesse vazio, ela faria um amplo reconhecimento do ter­reno ao redor do esconderijo para saber se a CG não estava por perto ou prestes a capturá-los; em seguida, voltaria para buscar ajuda.

            Chloe soltou a trava de segurança da Uzi, colocou o indicador direito no gatilho, apoiou o cano da arma na palma da mão esquerda e levantou-se rapidamente.

            Vazio.

            Era como ela também se sentia: vazia. Os efeitos da adrenalina em seu organismo desde o momento em que ela se aventurara a sair pela porta de serviço haviam-na deixado quase imóvel. Ela se abaixou ao lado do caminhão para recompor-se. Seus braços e pernas pareciam ser feitos de borracha. Se seus sentidos não estivessem em estado de alerta máximo, ela teria encostado o queixo no peito e dor­mido ali mesmo.

            Apesar da sensação de estar sendo observada, imagi­nando que havia no mínimo nove soldados da CG com armas apontadas em sua direção, ela se sentia uma mulher de sorte em razão da fragilidade de seu plano. Na verdade, ela mal elaborara um plano.

            Embora concordasse com o lema do Comando Tribulação - "Não acreditamos em sorte" -, era difícil atribuir a Deus a proteção que recebera até aquele momento, principalmente porque se sentia tola demais por ter novamente testado seu destino.

            Chloe levantou-se e começou a fazer o reconhecimento do terreno. Enquanto caminhava silenciosamente no escuro, sentindo-se vulnerável e procurando ser mais cautelosa que rápida, ela só percebia o ritmo acelerado de sua respiração e as batidas fortes de seu pulso.

 

            Quando Rayford e Otto chegaram ao conjunto de escritórios de Carpathia, a reunião já havia começado, e alguns retardatários atravessavam desajeitadamente a porta da sala de conferências. Rayford viu o fraco brilho emitido por Carpathia. Apenas Leon Fortunato permanecia perto dele o suficiente para receber um pouco de luz.

            Rayford tocou levemente nos ombros dos homens que estavam na porta e eles abriram caminho para ele e Otto passarem. Por questão de segurança, eles se sentaram na outra extremidade da sala, longe de Carpathia.

            O potentado pediu a Krystall que procedesse à chamada dos presentes, o que foi feito quase que de memória. Ao constatar que havia se esquecido dos nomes de três diretores, ela perguntou se poderia ler o restante da lista sob a luz de Carpathia.

            - É melhor que as pessoas cujos nomes não foram chamados se identifiquem - disse Nicolae.

            Enquanto elas se identificavam, Otto cutucou o braço de Rayford e disse, apenas movimentando os lábios, que gostaria de gritar seu nome para ver a confusão que isso provo­caria.

            - Cavalheiros, se vocês tiverem a bondade de reprimir seus gemidos - Carpathia começou a dizer -, o diretor do Serviço de Segurança e Inteligência, Suhail Akbar, vai men­cionar o primeiro item da reunião.

            - Obrigado, Excelência. Oh! Perdoe-me, senhor, mas estou sentindo muitas dores. Ai!

            - Suhail, por favor!

            - Desculpe-me, potentado, mas não sei o que...

            - Controle-se, homem!

            - Vou tentar, senhor. Nosso primeiro assunto, senhoras e senhores, além do óbvio, é que uma...

            - O que pode ser mais importante que o óbvio? - pergun­tou alguém com sotaque indiano. - Temos de encontrar uma solução para este...

            - Quem está falando? - Carpathia interpelou. - Raman Vajpayee, é você?

            - Sim, senhor, eu só quero saber...

            - Raman, eu só quero que você fique calado. Como se atreve a interromper um membro de meu gabinete?

            - Bem, senhor, há algo mais importante que...

            - Há algo mais importante que tudo. Sua ofensa merece um miserável pedido de desculpas, e é melhor que seja feito imediatamente.

            - Sinto muito, potentado, mas...

            - Sua resposta foi mais miserável ainda. Não posso imagi­nar tamanha insubordinação em uma época de crise interna­cional. Estou pensando em...

            - Pensando em quê? - desafiou Vajpayee. - Em me matar como faz com qualquer um que fala o que pensa? Eu lhe digo uma coisa: prefiro morrer a viver desta maneira! No escuro! Sofrendo dores! Sem nenhuma possibilidade de alívio. E, apesar disso, o senhor está...

            - Apresente-se, Raman! Imediatamente!

            O indiano correu para a frente, empurrando quem estava no caminho. Para Rayford, ficou claro que ele estava sim­plesmente seguindo o som da voz de Carpathia, incapaz até mesmo de enxergar o brilho.

            - Estou aqui, distante um braço do senhor! Mate-me por eu ter ousado falar o que penso ou revele-se como um covarde!

            - Suhail - ordenou Carpathia -, tire este homem daqui e execute-o.

            - O senhor é mesmo um covarde! Não vai usar suas mãos para me matar! Pelo menos tenha um pouco de respeito comigo.

            - Eu só sinto desprezo por você, Raman. Você arruinou sua posição dentro da Comunidade Global e eu...

            - Mate-me com suas mãos, seu medroso...

            Ao ouvir estas palavras, Carpathia arremessou-se em direção ao indiano, permitindo, assim, que um enxergasse o outro. Os dois homens começaram a lutar enquanto os outros ouviam aterrorizados. Carpathia conseguiu agarrar a cabeça do homem com as mãos. Com uma forte torção, ele quebrou o pescoço de Vajpayee, e o homem caiu morto no chão.

            - Há outros dissidentes aqui? - perguntou Carpathia. - Alguém que prefira morrer a sofrer pela causa? Hem? Se não há, prossiga, Suhail, e quando terminar, tire este corpo daqui.

            Ainda abalado, Akbar conseguiu controlar seus gemidos de dor enquanto relatava que uma aeronave havia pousado em Nova Babilônia naquela tarde.

            - Só podemos imaginar que a aeronave estava ligada no piloto automático - ele disse -, mas não temos registro do equipamento. Solicitamos cautela por parte de todos, porque deve haver subversivos entre nós.

            - Se não conseguirmos que os ocupantes da aeronave se identifiquem - disse Carpathia -, eu mesmo vou inspecioná-la depois desta reunião.

            - Esta é a nossa deixa - Rayford cochichou ao ouvido de Otto. - Temos de sair daqui antes disso.

            Enquanto eles começavam a sair sorrateiramente da sala, Carpathia prosseguiu:

            - Conforme vocês sabem, estou determinado a pôr um fim em nosso problema com os judeus, e se isso incluir os judaís­tas covardes que continuam escondidos nas montanhas, tanto melhor. Estou convocando uma reunião com todos os dez líderes das regiões globais daqui a seis meses. A reunião será em Bagdá e terá a finalidade de traçar nossa estratégia para livrar o mundo de nossos inimigos. Nesse ínterim, nosso posto de comando será transferido para Al Hillah, onde há luz. Conforme é do conhecimento da maioria de vocês - e se for novidade, espero que tratem o assunto com total dis­crição -, em Al Hillah está localizado nosso imenso depósito de armamento nuclear, voluntariamente entregue a nós por todo o mundo. Isto nos será muito útil neste derradeiro esforço para encontrarmos uma solução final.

            - Enquanto as outras partes do mundo se preparam para cerrar fileiras comigo, planejo começar a reunir forças de combate em Israel. Todos os militares dos Estados Unidos Carpathianos que ainda não foram designados para trabalhar como soldados das Forças Pacificadoras ou Monitores de Moral deverão apresentar-se no vale de Jezreel para treinamento de combate.

            - Quanto ao nosso deslocamento para Al Hillah, estejam prontos em 24 horas. Levem tudo o que for necessário para ajudá-los nessa transferência.

            - E quanto aos nossos funcionários, nossos departamen­tos?

            - Continuarão aqui, e eles não devem saber para onde vamos, nem que estamos indo. Entendido?

            Rayford já estava do lado de fora da porta quando consta­tou que ninguém respondeu.

            - Entendido?

            - Sim - murmuraram alguns.

            - Então, mãos à obra. O Sr. Akbar, o reverendo Fortunato e eu vamos nos dirigir ao aeroporto.

            Rayford fez um sinal para que Otto o acompanhasse e correu para os elevadores.

            - Chame todos os elevadores e aperte todos os botões. Retarde esses elevadores o mais que puder. Vou descer pela escada. Não tenho idéia de onde meus amigos estão, mas preciso deixar um bilhete no apartamento de Chang caso eles voltem para lá. Temos de sair daqui antes que Carpathia descubra a identidade de nosso avião e onde estamos. Enten­deu?

            - Entendi. Obrigado por confiar em mim.

            - Você estava esperando ir conosco? Isso só será possível se você...

            - Não, vamos deixar esse assunto para mais tarde. Não quero ir sem meus companheiros.

            - Se você encontrar meus amigos antes de mim, mande-os para o avião.

            Rayford desceu correndo a escada, provocando gritos estridentes do povo sofrido que estava sentado nos degraus. Alguns perguntaram, aos brados, como ele conseguia correr daquela maneira no escuro. Rayford detestava ter de desprezá-los.

            Quando chegou ao piso principal, ele saltou por cima de várias pessoas e correu em ziguezague no meio de outras. Passou rapidamente pela porta e disparou rumo ao avião. Se conseguisse ligar o motor e posicionar a aeronave, ficaria esperando e orando para que Chang, Naomi e Abdullah estivessem a caminho.

 

            Buck dormiu profundamente durante horas até o momento em que alguma coisa começou a perturbá-lo. Ele foi ficando cada vez mais agitado e acordou de repente. A sensação era de culpa por ter deixado Chloe de vigia depois de ela ter trabalhado arduamente o dia inteiro nos assuntos da cooperativa e cuidado do filho. Que tipo de marido ele era?

            Passou as mãos no cabelo, sentou-se na cama e gritou:

            - Está tudo bem, querida?

            Talvez ela estivesse no quarto de Kenny. Ou preparando chá na cozinha. Buck saiu do quarto, espreguiçando-se.

            - Chloe! - ele chamou. - O detector de movimento está sinalizando alguma coisa aqui!

            Ele se curvou para olhar no periscópio e fez uma rápida exploração. Não havia ninguém. De repente, ao virar o apa­relho para sudoeste, ele avistou um vulto sozinho, armado.

            - Chloe! - ele gritou, com a testa franzida. - É melhor chamar George. Estou vendo um fantasma às oito horas da manhã. Chloe?

            O sangue de Buck gelou. Ele se levantou e foi até a cozi­nha. Tudo escuro. E Kenny estava chorando. Buck pegou o telefone a caminho do quarto de Kenny e digitou o número de Ming.

            - Ei, garotão - ele disse.

            O menino, em pé na cama, passou rapidamente do choro ao riso.

            - Mamãe?

            - Ela já vem. Deite mais um pouco e volte a dormir. Ainda está escuro.

            Ming atendeu.

            - Peço desculpas por despertá-la, Ming, mas tenho uma emergência aqui.

            - Estou às ordens, Buck.

            - Você poderia cuidar de Kenny por alguns instantes? Acho que Chloe saiu.

            - Chego aí em um minuto.

            Ele agradeceu a Ming e ligou o walkie-talkie.

            - George, você já está em pé?

 

            Rayford já havia ligado os motores e feito uma mano­bra de meia-volta com a aeronave quando avistou a luz de Carpathia ao longe. O potentado parecia apressado, mas, por ter de conduzir Suhail Akbar e Leon Fortunato, ele tinha de andar lentamente para iluminar o caminho para os dois.

            No entanto, essa luz não ajudaria muito sem o ronco dos motores do jato, portanto Rayford desligou tudo e orou para que aquele trio com dificuldade para enxergar se perdesse no caminho, para dar tempo ao outro trio - seus três companhei­ros - de encontrá-lo.

            Rayford pegou seu celular e ligou para Mac McCullum em Al Basrah para contar-lhe as novidades.

            - Você e Albie podem seguir para Al Hillah hoje?

            - Estamos sentados aqui como dois patetas, sem fazer nada.

            - Pelo que entendi, a resposta é sim. Vocês estão muito visados depois do que aconteceu na Grécia. Como vão con­seguir andar por aí?

            - Com muita conversa, charme, e viajando somente à noite, é claro. Acho que você está querendo saber o que NC e seus garotos estão aprontando.

            - O ideal seria que vocês descobrissem onde eles vão se reunir em Bagdá e instalar nesse lugar um sistema de escuta para nós.

            - Ah!, claro. Eu vou dizer ao pessoal de lá que sou o novo criado pessoal dele e perguntar se posso passar algu­mas horas na sala de reunião antes da chegada deles.

            - Se fosse tão fácil assim, eu mesmo faria isso – disse Rayford.

            - Albie conhece todo mundo. Se tiver de ser feito, pode contar com ele.

            Chang, Naomi e Abdullah chegaram, cada um carre­gando várias caixas e maletas. Naomi estava pálida como um lençol. Rayford abriu a porta e abaixou a escada.

            - Chegaram na hora exata - ele disse.

            - Providenciamos tudo, capitão - disse Abdullah. - Graças a este jovem gênio.

            - Só estava fazendo algumas demonstrações - disse Chang, colocando sua bagagem dentro da aeronave e aju­dando Naomi a entrar.

            - Eu queria mostrar a ela como David grampeou o palácio inteiro e que podíamos ouvir tudo o que se passa no escritório de Carpathia.

            - Então você sabia que ele estava vindo - disse Rayford, permitindo que Abdullah se sentasse na poltrona do piloto.

            - Por favor, vamos mudar de assunto? - disse Naomi. Aquelas palavras provocaram um silêncio constrangedor.

            Rayford atreveu-se a olhar para trás. A pálida silhueta alaran­jada estava caminhando mais rápido. Carpathia devia ter abandonado Akbar e Fortunato ou os dois estavam sofrendo dores muito fortes. Aparentemente, o sofrimento não atingira Carpathia. Talvez Deus estivesse reservando outra coisa para ele.

            Rayford e Abdullah evitaram fazer uma inspeção formal da aeronave e verificaram apenas os pontos críticos.

            - Ligue os motores - disse Rayford.

            Mas Abdullah continuou parado, esticando o pescoço para ver a luz aumentar cada vez mais de tamanho à medida que se aproximava do avião.           

            - O que você está esperando, Smitty? Vamos embora.

            - Um momento, por favor, capitão. A que distância você acha que ele consegue enxergar?

            - Até onde o brilho dele alcança. Agora vamos.

            - Um momento, por favor.

            - O que está havendo, Sr. Smith? - gritou Naomi. - Aquele não é Carpathia?

            - Ele não sabe para onde está indo. Mas eu sei.

            - Assim que ligarmos o motor, ele não vai poder fazer nada - disse Rayford. - Mas é melhor que ele não saiba quem somos.

            - Ele não vai saber - disse Abdullah.

            Rayford inclinou o corpo sobre Abdullah e viu Carpathia correndo na pista, cerca de seis metros atrás da aeronave.

            - Lá vamos nós - gritou Abdullah, acionando os motores e deixando a luz alaranjada para trás, até a figura de Nicolae desaparecer ao longe.

            Assim que ganharam altitude, Naomi inclinou-se para a frente.

            - Posso falar com o senhor? - ela perguntou. Rayford tirou os fones de ouvido. - Vocês acham tudo isso normal?

            - Hoje, nada mais é normal, Naomi. Você tem visto muitas coisas com os próprios olhos.

            - Nunca ouvi falar que um homem foi assassinado. E nunca andei no meio de tantas pessoas feridas sem poder fazer alguma coisa por elas. Estamos isolados em Petra, e eu gostaria de estar no meio da ação. Nunca vi nada semelhante a isto, mas está tudo bem comigo. E vamos poder fazer coisas em nosso centro de informática que jamais imaginei.

            - Você passou por situações difíceis, sinto muito - disse Rayford. - Eu também passei.

            Ele contou sobre a conversa que teve com a assistente de Nicolae e como procurou ajudá-la.

            - Vamos procurar o nome do tio dela no sistema - disse Naomi. - E acho que também vamos receber notícias do Sr. Weser.

            - Espero. Que sujeito bom!

            Naomi aproximou-se um pouco mais de Rayford. Apesar de ter de falar alto por causa do ruído dos motores, ela con­seguiu que só Rayford ouvisse suas palavras.

            - Chang não está bem.

            - O que houve?

            - Por pior que tenha sido, ali era o seu lar. Ele deve estar estranhando ter de abandonar tudo.

            - Pensei que ele ficaria feliz por sair de lá.

            - Eu gostaria de ter conhecido o Sr. Hassid, aquele homem do qual Chang tanto fala. O que eles fizeram no palácio e os equipamentos que instalaram onde estamos morando...

            Rayford assentiu com a cabeça.           

            - Você acha que vai ser capaz de fazer a mesma coisa em Petra, isto é, monitorar esse lugar?

            - Com a ajuda de Chang, sim. Vai ser maravilhoso poder contar com ele.

            - Ele vai concorrer com você?

            - Acho que não. Vou deixar que ele faça o que quiser. Ele gosta de assuntos técnicos, de lidar com as partes internas do computador, muito mais do que lidar com pessoas. Mas ele poderá dar aulas, se quiser.

            O celular de Rayford soou. Era George Sebastian.

            - Faz tempo que estava querendo falar com você. Seu celular estava desligado? - George perguntou.

            - Deixei-o desligado para cuidar de uma missão no palácio. Estava esperando vocês acordarem para contar as novidades. Ainda é noite aí, não?

            - Temos um problema.

            - Por que está sussurrando? Onde você está?

            - Fora do esconderijo.

            - Que horas são aí?

            - Quase cinco. Não conseguimos encontrar Chloe.

 

            Buck concluiu que o vulto que havia visto através do periscópio era o de Chloe, mas onde ela estava? Fazia parte do comportamento dela sair sem um walkie-talkie ou um telefone, o que Buck considerava uma estratégia e não uma imprudência. Mas ele teria dificuldade para convencer o pes­soal.

            Ele e George haviam se separado, ambos armados e em constante contato um com o outro. George descobrira o caminhão da CG vazio - que devia ser uma espécie de chamariz - mas não viu ninguém da CG nem Chloe. Buck esperava não ter de chamar outras pessoas para ajudá-los, porque não queria expor seus companheiros nem o escon­derijo.

            Duas horas depois, quando o sol despontou no horizonte, Buck e George tiveram de retornar ao esconderijo. Eles haviam percorrido uma área de dois quilômetros quadrados, sem encontrar nada.

            Quando chegaram ao esconderijo, todos já estavam em pé, preocupados, orando e ansiosos por saber notícias de Chloe. Ming Toy levou Kenny e Beth Ann, a filha de George, para sua casa "pelo tempo que for necessário".

            George e Priscilla instalaram um centro de comando na sala de operações. Ree Woo, sentado diante de uma mesinha dobrável em um dos cantos, folheava os arquivos para ver se encontrava algum codinome que não havia sido usado ou que não estivesse comprometido.

            Buck admitiu que pouco poderia ajudar.

            - Estou parali­sado.

            - Pare de pensar no pior - disse George. - Desse jeito, você não está ajudando nem Chloe nem nós.

            Buck olhou firme para George, sabendo que seu com­panheiro estava certo.

            - Para você, é fácil falar, Sebastian. Não é a sua mulher que está lá fora.

            Priscilla olhou para o outro lado. George deixou seus papéis caírem sobre a mesa e aproximou-se de Buck. Colo­cou as mãos nos braços da poltrona de Buck e ficou frente a frente com ele.

            - Vou dizer uma vez só. Se minha esposa estivesse lá fora, eu não ficaria sentado aqui com as mãos no colo. Devo um favor enorme a sua esposa. Ela arriscou a vida por mim na Grécia. Posso imaginar como você se sente. O fato de não sabermos nada é melhor do que saber que aconteceu o pior. Talvez você esteja furioso com Chloe porque ela não obede­ceu ao protocolo e infringiu várias regras.

            - Talvez - ele prosseguiu - você esteja se sentindo culpado por ter se zangado com sua mulher e agora está com medo de que tenha acontecido algo com ela. Eu não culpo você. Não culpo mesmo. Mas vou lhe dizer uma coisa. Precisamos da ajuda de todos, principalmente de alguém com sua inteligência. Eu lhe faço uma pergunta: você quer descobrir onde Chloe está para trazê-la de volta sã e salva ou quer pensar no pior e começar a chorar desde já?

            - George! - ralhou Priscilla.       

            - Não estou pretendendo ser duro demais com ele - disse George. - É que não há nada que possamos fazer lá fora durante o dia, a não ser que a gente saiba que o terreno está livre ou que existe alguém com um bom disfarce e um codi­nome. Enquanto isso, vamos ter de ficar calmos e planejar uma estratégia, e não queremos que Buck continue sentado aqui se sentindo infeliz...

            - Muito bem, George, já entendi! Certo?

            - Você e eu estamos entendidos?

            - Claro.

            - Você acha que saí daqui no meio da noite para brincar?

            - As notícias não são boas - disse Ree. - Os nomes "Chloe Irene" de Chloe e "Howie Johnson" de Mac foram descobertos depois do que houve na Grécia. O nome de "Indira Jinnah" de Hannah ainda está limpo, mas só ela pode usá-lo, e ela está muito longe daqui. As identidades de cidadãos do Oriente Médio utilizadas por Rayford e Abdullah continuam válidas, mas Abdullah está em Petra e Rayford vai precisar de descanso quando chegar aqui.

            - Não tenha tanta certeza assim - disse George. - Ele vai querer ir até o fim.

            - Tenho certeza - disse Buck.

            - O nome de "Comandante Elbaz" usado por Albie já está comprometido? - perguntou Ree.

            Buck assentiu com a cabeça.

            - Infelizmente, sim.

            - Ele também está muito longe daqui - disse George. - Temos mais alguém?

            - Temos mais um. "Chang Chow", o nome masculino que Ming adotou.

            - Não vamos pôr a vida de Ming em risco - disse Buck.

            - Por que não? - estranhou George. - Ela ainda tem a farda. Pode cortar o cabelo e...

            - Ei! - interrompeu Ree. - Você está falando de minha noiva.

            - E daí?

            - Pelo menos ela precisa ser consultada.

            - Não, Ree - disse George. - Acho que devemos arrastá-la até aqui, segurá-la e cortar o cabelo dela.

            - Calma, rapazes - disse Priscilla. - Ninguém me conhece. Eu poderia inventar um codinome e...

            - Você não - disse George.

            - Agora a pimenta ardeu nos seus olhos, não? - disse Buck. - A idéia de sua mulher sair daqui...

            - Pare com isso! - disse George. - Eu só acho que ela é inexperiente e não tem muita saúde.

            - Ming não tem um bom físico - disse Ree. - Não recebeu treinamento para lidar com armas.

            - Não me venha com essa - disse Buck. - Ela trabalhou no PRFB.

            - Cuidar de detentas em uma prisão feminina não é o mesmo que resgatar um de nós das mãos da CG.

            - De qualquer forma, ninguém daqui gostaria que ela fizesse isso - disse George. - Buck e eu, e talvez você, Ree, temos de resgatar Chloe. Vamos precisar de Ming, ou de outra pessoa, para descobrir onde ela está.

 

            Quando estava no meio do caminho para voltar ao esconderijo, Chloe avistou outros dois veículos da CG, que rodavam em direção ao sul. Enquanto ela observava, os dois caminhões pararam, e mais de meia dúzia de homens desce­ram de cada um dos veículos. Ficou claro que eles levavam adiante um cuidadoso plano de encontrar acampamentos clandestinos. E a casa secreta subterrânea ficava no caminho deles. Talvez estivessem com ar de tédio quando Buck os viu pelo periscópio poucas horas antes, mas haviam notado alguma coisa estranha.

            Aqueles homens tinham o semblante compenetrado. Car­regavam detectores de metal, sondas e alguma coisa parecida com aparelho para descobrir substâncias radioativas. Chloe não sabia se teria tempo de correr de volta ao esconderijo para alertar os outros. Se calculasse mal o tempo, levaria a CG diretamente ao esconderijo.

            Determinada a distraí-los e desviar o rumo deles, ela começou a caminhar novamente. Queria que eles a vissem, mas sem perceber que ela estava fazendo isso de propósito. Ela caminhava com passos furtivos, mas determinados.

            Em vez de seguir à direita e dar meia-volta para chegar à entrada, Chloe continuou a caminhar na direção oeste, mais para o sul. Quando ouviu um dos veículos vindo em sua direção, ela começou a andar mais depressa e, em seguida, correu a toda velocidade. Não conseguiria ir mais depressa que o caminhão, mas talvez pudesse chegar aonde ele não chegasse.

            A Uzi, por mais leve que fosse, começou a ficar pesada. Fazia mais sentido livrar-se dela e vir buscá-la depois, a não ser que Chloe acreditasse ser capaz de dominar um ou dois pelotões da CG com ela.

            Chloe jamais teria condições de explicar o uso de uma arma como aquela. Ao ouvir o ronco de um caminhão - talvez dois - a cerca de um quarteirão e rodando rápido, Chloe deu meia-volta e atirou a Uzi e a máscara de esquiar atrás de algumas árvores. Retomou o ritmo dos passos e correu cerca de 500 metros. Sua idéia tinha dado certo. Agora os dois caminhões a seguiam.

            Ao ver que estava bem longe do esconderijo, Chloe decidiu que a melhor atitude seria a de indiferença, portanto abaixou a cabeça e continuou a correr. O caminhão da frente emparelhou com ela, mas Chloe não olhou para ele.

            Da janela do lado do passageiro, uma moça gritou:

            - Quer uma carona?

            - Não, obrigada.

            - Entre.

            - Não, obrigada. Estou bem.

            - Queremos fazer-lhe algumas perguntas.

            - Pode fazer.

            - Vamos lá, pare e venha conversar conosco.

            - Converse comigo onde estou.

            - De onde você é?

            - Moro a uns dez quilômetros a oeste.

            - Tempos atrás, havia ali um reservatório de água subter­râneo proveniente de um tsunami (palavra japonesa usada para definir um tipo de onda oceânica, gerada por distúrbios sísmicos).

            - É claro que eu sei disso.

            - O que está fazendo aqui?

            - Correndo.

            - Como chegou até aqui?

            - Correndo.

            - Para onde está indo?

            - Para casa.

            - Como se chama?

            - Febe.

            Parece um nome bíblico.

            - Febe de quê? 

            - Febe Evangelista.

            - Nome estrangeiro?

            - Meu marido é. Ele é WASP [Protestante Branco Anglo-saxão]

            - Você tem um documento de identidade?

            - Não está comigo.

            - Muito bem, senhora, vou ter de pedir que pare e venha conversar conosco por alguns instantes.

            - Não, obrigada. Você poderá acompanhar-me até em casa, se quiser.

            Vou me distanciar do esconderijo até cair de exaustão.

            - Preciso saber de que região você é. Também quero ver sua marca.

            - Não vou tirar o capuz nem as luvas porque está frio e estou transpirando.

            - O quê? Você recebeu a marca na testa e na mão? Chloe fez um gesto de pouco caso e continuou a correr.

            O caminhão saiu da estrada e parou diante dela. Chloe desviou-se dele e continuou seu caminho. Ouviu as portas sendo abertas e passos de botas no asfalto. De repente, dois homens da CG apareceram e começaram a correr a seu lado.

            - Muito bem - disse um deles -, a brincadeira acabou. Pare ou vai ter de entrar no caminhão. Vamos, a senhora sabe que podemos obrigá-la a entrar à força, mas não há necessidade.

            Chloe continuou a correr. O homem à sua direita atirou a arma ao companheiro da esquerda, e, a seguir, passou os dois braços ao redor do pescoço dela, forçando os joelhos no meio de suas costas. O homem devia pesar uns 90 quilos. Chloe perdeu o equilíbrio e caiu de bruços no chão. O sangue começou a escorrer-lhe pela testa. O homem pressionou um dos joelhos na nuca de Chloe, puxou-lhe as mãos para trás e algemou-as.

            Desesperada para retardá-los, Chloe fingiu estar sem forças para sair do lugar.

            - Faça como quiser - disse um deles.

            O homem segurou-a pelas algemas e arrastou-a em direção ao caminhão. Ela continuou com o rosto encostado no chão, deixando que a areia, os pedregulhos e o asfalto lhe ferissem a face.

            Deitada de bruços ao lado do caminhão, ela só poderia ser levantada do chão se forçasse os ombros para cima. Foi o que o homem da CG procurou fazer.

            - Há um jeito mais fácil - ele disse -, já que ela quer assim.

            Ele agarrou-a pelos pés e dobrou suas pernas, forçando os tornozelos a encostarem-se às algemas e amarrou-os ali com uma tira de plástico. Em seguida, jogou-a dentro do caminhão.

            Chloe tinha certeza de que havia fraturado uma costela. Durante o percurso de 20 minutos até a sede da CG, ela começou a orar.

            Deus, dá-me força. Permite que eu morra antes de delatar alguém. Fica com Kenny, Buck e meu pai.

            Ela se lembrou das histórias espetaculares que George contou quando foi preso na Grécia. Ele não disse absoluta­mente nada a seus captores. Se ao menos ela tivesse aquela coragem. Preferia ridicularizá-los, provocar a ira deles, deixá-los confusos. O que seria melhor? Ficar sentada sem dizer uma só palavra ou enfrentá-los, para que eles soubessem que ela não era uma presa fácil?

            Tortura. Como enfrentaria uma tortura? Com a tua força, Senhor. Permite que eu ofereça minha vida em troca da vida das pessoas que amo.

            Quando Chloe chegou à sede, eles retiraram suas alge­mas, revistaram-na e perguntaram novamente seu nome e sua região. Ela não disse nada. Passou cuidadosamente a palma da mão no rosto e sentiu os ferimentos na testa e nas faces.

            - Ela já nos disse. Febe Evangelista. Americana.

            - Então deve haver o número - 6 em algum lugar, escon­dido debaixo de todo esse sangue. Pegue uma toalha molhada e limpe os ferimentos.

            Alguém segurou Chloe pela nuca e passou uma toalha em seu rosto. Ela gritou de dor.

            - Não estou vendo nada. Mas deve haver um número. Alguém está procurando o nome e a descrição dela nos arquivos?

            - Sim. Até agora, nada.

            - Jock vai chegar às nove. Ela precisa tomar banho e vestir um macacão limpo. E não se esqueçam das impressões digitais.

            Chloe pensou em soltar o corpo e deixar que uma fun­cionária da CG a despisse, a colocasse debaixo do chuveiro e tornasse a vesti-la, mas obedeceu às ordens. Saiu do chu­veiro com o rosto ardendo, vestiu um macacão verde escuro e fechou as mãos com força.

            Continuou com as mãos fechadas quando foi conduzida aos locais para tirar foto e impressões digitais. Ela parecia tão diferente da aluna que estudou em Stanford seis anos antes que não se preocupou com a foto. Ninguém a reconheceria.

            Uma mulher mexicana, do tipo matrona, procurou abrir a mão de Chloe e disse:

            - Primeiro a mão direita, por favor.

            Chloe fez um movimento negativo com a cabeça.

            - Vamos, querida. Você não vai querer me enfrentar. Vou tirar suas impressões digitais e você precisa cooperar.

            Chloe fez o mesmo movimento com a cabeça.

            - Eu vou fazer isso, você entendeu? Será que vou ter de chamar dois caras daqui para fazer você me obedecer? Se for assim, veja o que costumamos usar.

            A mulher mostrou a Chloe um fio de metal semelhante ao usado pelos homens da "carrocinha" para laçar cães.

            - Eu amarro este fio um pouco acima de seus pulsos. Quando ficar bem apertado, você vai abrir as mãos. Não sei quem você é nem por que está aqui, mas não vai querer passar por isso.

            Chloe sacudiu novamente a cabeça, e a mulher solicitou ajuda pelo rádio. Chloe resistiu quando dois homens chega­ram, mas, conforme a mulher dissera, o esforço não valeu a pena. Quando o fio de metal foi amarrado ao redor de seus braços, ela abriu as mãos. A CG tirou suas impressões digi­tais e enviou-as, via Internet, aos bancos de dados do mundo

inteiro.

            - Também fizemos uma leitura de seus olhos com a câmera, querida. Vamos descobrir se você tem licença para dirigir, se cursou faculdade ou se é casada. Vamos descobrir tudo sobre você.

            Chloe esperava que a CG estivesse com falta de pessoal para trabalhar. Talvez as informações demorassem a chegar, dando tempo para que Buck, George e o restante do grupo viessem resgatá-la. Quem eu estou enganando?

           

            Rayford havia planejado descansar um ou dois dias antes de voltar a San Diego, mas agora teria de sair de Petra assim que a aeronave fosse reabastecida. A presença de Mac McCullum aguardando por ele ali o deixou atônito.

            - Buck já me contou - ele disse. - Penso que Tsion e Chaim precisam saber o que aconteceu a fim de reunir o pessoal daqui para orar. Albie já entrou em contato com Al Hillah e está resolvendo o assunto, portanto não necessita de mim. Vou ser seu piloto.

            - Mac, não posso lhe pedir que...

            - Você não pediu. Eu me ofereci. Vamos lá. Se você não quiser ficar para trás, é melhor se apressar.

            Rayford não sabia como expressar sua gratidão a Mac. Assim que ganharam altitude, Mac disse:

            - Você pode pensar, orar, dormir ou conversar. Vou levar esta lindeza aqui até San Diego. Não vejo a hora de rever aquele pessoal e conhecer os novos. Meu palpite é que Chloe já está lá, aguardando sua chegada.

            - Eu estava pensando igual a você - disse Rayford. - Mas agora estou tendo um pressentimento ruim, muito ruim. Se Buck e George não encontrarem Chloe logo, ou se descobrirem que a CG a pegou, vamos ter de tirar aquelas pessoas de lá.

            - E levá-las para onde?

            - Petra é o único lugar que me veio à mente.

            - Chloe não vai dizer nada à CG. Se não a viram saindo do esconderijo, não vão descobrir nada.

            - Ela devia estar nas redondezas. Se ela não puder con­vencê-los de que veio de outro lugar qualquer, com certeza eles vão vasculhar a área.

            Rayford segurou a cabeça com as duas mãos e procurou dormir. Não conseguiu. Tudo o que ele podia fazer era orar. Chloe sempre foi a garotinha preferida do papai. Ela adorava ir à escola, era curiosa, decidida, obstinada. Foi a última pessoa da família a aceitar a Cristo, e Rayford sabia que não leve participação alguma nisso. Ele a ensinara a acreditar somente no que ela podia ver, cheirar e tocar.

            Chloe sempre quis estar no meio da ação, e se alguém não a colocasse lá, ela própria se encarregava de intrometer-se. Rayford gostaria de censurá-la por isso, mas estava angustiado e com medo. Só queria saber se ela estava em lugar seguro, na companhia de Buck e Kenny. Ele sabia que, indepen­dentemente do que acontecesse, eles voltariam a reunir-se um dia, e que isso ocorreria em menos de um ano. Mas esse pensamento não o confortou.     

            Eles iriam para Cristo quando morressem, mas se sobre­vivessem, estariam com Ele aqui na terra por um período de mil anos. Porém, a idéia de morrer ainda era algo temeroso. Aparentemente, os membros do Comando Tribulação que morressem durante o ano seguinte seriam mártires pela causa de Cristo, mas seus parentes e amigos chorariam por eles, sentiriam saudades deles. E, pior ainda, Rayford não queria pensar como seus queridos morreriam.

            Talvez o sofrimento não durasse muito tempo, mas nin­guém gostaria de imaginar uma pessoa querida sendo sub­metida a torturas ou agonizando.

            Pai, Rayford orou, permite que o pior que possa acontecer seja uma nova mudança para outro local. Não sou melhor que ninguém para merecer um tratamento especial, para que protejas minha filha de maneira sobrenatural. Tu não neces­sitas dela; não necessitas de nenhum de nós. Mas nós nos entregamos a ti e confiamos que sabes o que estás fazendo.

 

            Jock era um homem alto e corpulento. Trajava uma farda que um dia lhe serviu, mas agora estava tão apertada que lhe dificultava os movimentos. Seus funcionários tiraram Chloe da pequena cela em que ela se encontrava e a levaram para um cômodo um pouco maior, a sala dele. Sentado diante de uma mesa de metal, Jock apontou para uma cadeira, e Chloe sentou-se à sua frente.

            Ele colocou uma pasta do tipo sanfona em cima da mesa e tirou o paletó, deixando-o sobre o encosto da cadeira. Pare­cia exausto e soltou um longo suspiro.

            - Febe Evangelista. De onde você tirou esse nome? Chloe o encarou. Ela notou um sotaque australiano e viu o número 18 em sua testa. No dorso da mão direita havia uma tatuagem com o rosto de Nicolae Carpathia.

            - Você se importa se eu fumar?

            Chloe ergueu as sobrancelhas e movimentou a cabeça afirmativamente.

            - Bem, eu não quero saber se você se importa ou não. Tenho muito trabalho para fazer hoje, moça, e você está me atrapalhando.

            - Vá direto ao assunto - disse Chloe.

            - Ah!, ela fala - ele disse, tirando um pequeno charuto do bolso. - Pensei que você fosse uma daquelas que não gostam de falar. Bem, meu serviço agora é você, e você não foi uma boa garota. Mentiu para meus funcionários, não?

            -Sim.

            - Você quer dizer alguma coisa ou quer que eu conte o que nós descobrimos?

            Chloe encolheu os ombros.

            - Não vamos extrair nada de você, vamos?

            - Não.

            - Demorou um pouco, mas conseguimos. Além de estarmos com falta de pessoal, nossos sistemas estão com problemas e...

            - Isso me corta o coração.

            Jock pegou uma pasta.

            - Pelo que descobrimos, imagino que isso seja verdade. Tenho boas e más notícias esta manhã, Sra. Williams. Qual você prefere?

            Então, era isso. Em poucas horas ela foi identificada pelas impressões digitais e pela leitura feita em seus olhos.

            - Você jamais vai me dar uma boa notícia.

            - Não seja precipitada. Somos pessoas razoáveis, por mais que você e seu pessoal pensem ao contrário e por mais que tentem convencer aquele rebanho todo que segue um maluco chamado Ben-Judá.

            Tsion tem muito mais cérebro que dez homens da CG juntos.

            - Tenho uma proposta a lhe fazer, senhora.

            - Eu não quero ouvi-la.

            - É claro que quer.

            - Vou adivinhar. Minha liberdade em troca de algumas informações?

            - Você pode brincar de sabichona comigo, mãe, mas acho que deveria me ouvir, porque a proposta que vou fazer tem relação com seu bebê.

 

            O submundo do mercado negro em que Albie viveu compunha-se de uma lista de operadores que, em sua maioria, eram conhecidos por apelidos e iniciais. O próprio Albie havia escolhido para si o nome de sua cidade natal, Al Basrah. As pessoas que necessitavam saber quem ele era não tinham muitos problemas para obter informações a seu respeito.

            Albie havia sido um dos três principais homens do mercado negro do Oriente Médio. Depois de sua conversão, restaram apenas dois. E com a morte de um deles, pos­sivelmente levada a efeito pelo outro em razão de um mau negócio, restou apenas um. E era aquele que Albie precisava encontrar.

            Ele nunca gostou de MM, ou Mainyu Mazda, mesmo nos tempos em que fazia parte daquele grupo. Matar nunca foi novidade para Mainyu. Era assim que ele mantinha sua repu­tação e autoridade. Se alguém precisasse de alguma coisa, qualquer coisa, ele era a pessoa certa. Mas pobre daquele que tentasse ludibriar ou passar aquele homem para trás.

            Diziam que ele havia assassinado, com as próprias mãos, 12 pessoas - entre elas uma de suas esposas - por não cumprirem sua parte em uma barganha. Ninguém se atrevia a calcular quantas mortes ele perpetrara por intermédio de assassinos contratados.

            Quem afirmava saber o número certo dizia que Mainyu comemorava cada morte acrescentando a tatuagem de um MM no próprio pescoço. Sua vida de assassino começou 20 anos antes quando ele estrangulou um guarda em uma prisão do Kuwait.            

            A primeira tatuagem foi aplicada por ele próprio, usando uma mistura de aparas de borracha das solas de seus sapatos, lascas da pintura das grades da prisão e sangue. A aplicação foi feita com um clipe de papel afiado, aquecido em um isqueiro. Ele tatuou o primeiro MM logo abaixo do pomo de Adão.

            A cada assassinato subseqüente, ele tatuava um MM de um lado e de outro, portanto todos tinham condições de saber se o número de pessoas mortas por ele era par ou ímpar.

            Na última vez que Albie viu Mainyu, seu pescoço tinha um MM a mais do lado esquerdo, e ele contou 12. As tatua­gens recentes eram mais nítidas e feitas por profissional. A que representava uma de suas esposas tinha um leve toque feminino.

            Albie propagou pelas ruas que queria ter uma conversa com Mainyu. Depois de duas horas, alguém enfiou um bilhete por baixo de sua porta contendo um endereço na área clandestina do comércio de rua da ilha de Abadã, localizada no rio Chat el Arab, na região sudoeste do Irã.

            Parecia que MM farejava dinheiro. A imensa refinaria de Abadã era ligada aos campos petrolíferos do Irã por meio de oleodutos. Evidentemente, Mainyu realizava seu comércio de mercado negro nos arrabaldes da cidade.

            Da mesma forma que todos os que não possuíam a marca de lealdade a Carpathia, Albie só se aventurava a sair à noite. Ele e Mac dividiam um flat em uma área abandonada de Al Basrah. O proprietário não queria saber quem eram os inquilinos, nem se tinham a marca de Carpathia, desde que o envelope estivesse recheado de dinheiro no primeiro dia de cada mês.

            Albie dissera a Mac que uma motoneta era o melhor veículo para transportá-los de um lado para o outro pelo fato de ter um tamanho ideal para ser guardada dentro de casa ou na mata, onde eles escondiam um avião de pequeno porte.

            Albie aguardaria o sol se pôr antes de aventurar-se a entrar em uma balsa que o levaria com a motoneta para a ilha, onde ele encontraria o endereço que ficava a uns 50 quilômetros de distância de sua casa.

 

            Quando Jock, o grandalhão, resmungou que a hora do desjejum de Chloe havia se esgotado, ela começou a salivar.

            - Você já deve ter compreendido, madame, que não servi­mos refeições a prisioneiros que não cooperam conosco. Ah!, talvez você receba uma barra de cereal para mantê-la viva até o momento de sua execução. - Ele deu uma batida de leve no arquivo. - Não posso ter certeza enquanto não rece­ber notícias da divisão internacional, mas tudo isto aqui me faz pensar que assistiremos a um espetáculo. Você não acha?

            - Isso não é da minha conta.

            - Mas seu bebê... como ele se chama?

            Chloe nivelou os olhos com os de Jock e comprimiu os lábios. Ela adorava pronunciar o nome de seu bebê. Kenneth Bruce Williams. Kenny Bruce. Kenny B. Mas não diria nada àquele homem. Não havia nenhum registro oficial do nascimento de Kenny, e a CG não tinha idéia se o bebê era menino ou menina.

            - Que mal pode haver se eu souber o nome dele?

            - Febe Evangelista Filha.

            Jock olhou para o teto.

            - Sabe de uma coisa? Não achei graça alguma. Nem me causa surpresa, porque estou acostumado a lidar com gente da sua laia. Dizem que vocês são pessoas admiráveis, que perseveram até o fim, mesmo sabendo que vão sair perdendo. Mas achei que você fosse uma pessoa religiosa... Vamos lá, você não é religiosa? Achei que ficaria um pouco preocupada com o destino de seu bebê. É uma menina? Que idade ela tem?

            - Olhe - disse Chloe -, você sabe quem eu sou, o que sou e o que não sou. Sabe que não sou leal a Carpathia. Isso é punível com a morte, portanto por que você não...

            - Ei, espere um pouco, madame. Essas coisas ainda são negociáveis. Não tire conclusões precipi...

            - Não vou fornecer informação alguma para reduzir minha sentença. Não estou interessada em passar a vida na prisão. Não vou receber a marca mesmo que você prometa liberdade para minha família. E todo mundo sabe que os que estão recebendo a marca agora também são executados.

            - Oh!, onde você ouviu isto? É terrível. E uma mentira também.

            - Não acredito em você.

            Jock recostou-se na cadeira e gritou:

            - Nigel?

            - Sim.

            - Você poderia abrir a janela? Está muito abafado aqui. Um jovem fardado entrou na sala e abriu uma janela deixando pesadas barras de ferro à mostra. Não haveria meios de fugir dali.

            - Considero justo mencionar o que tenho a lhe oferecer - prosseguiu Jock. - Veja, sabemos muito mais coisas além de seu nome. Sabemos que você abandonou a Universidade de Stanford seis anos atrás. Sabemos que você é filha do primeiro piloto do potentado Carpathia. Sabemos, e você também sabe, que seu pai se tornou subversivo e que deve ter tramado o assassinato do potentado ou participado dele.

            - Seu marido também foi funcionário de Sua Excelência e agora publica uma revista clandestina. Os dois têm fortes ligações com Tsion Ben-Judá e Rosenzweig, o assassino traidor. E você, Sra. Williams, não é nenhuma santinha. Não. Você dirige um mercado negro judaísta. Esse mercado negro mantém vivos milhões de pessoas sem a marca, gente que não tem o direito legal de comprar ou vender.

            - Não, madame, você não tem direito a nada, a nenhuma troca, nenhum favor, nada, nem mesmo para seu filho. Porque, acima de tudo, você esteve envolvida em uma opera­ção na Grécia onde se fez passar por uma oficial da Comuni­dade Global.

            - Como você sabe disto? - Chloe deixou escapar, sem pensar. Haveria um espião no meio do Comando Tribulação? Ela nunca desconfiou de ninguém.

            - Só vou responder se você me contar algumas coisas.

            - Para mim, tanto faz.

            - Foi por causa da maravilha da tecnologia que faz a leitura da íris. As câmeras normais de segurança, como aquelas que existem em nossos escritórios em Ptolemaïs, foram capazes de fazer uma leitura de sua íris e compará-la com uma anterior, quando você se matriculou na Universi­dade de Stanford. Essa tecnologia tem pontos de referência em número quatro vezes maior que as impressões digitais, e nunca houve um erro sequer. Um sujeito do grupo de vocês matou uma pessoa de nossa corporação naquele mesmo edifício, e perdemos o paradeiro dele. Mas agora ele está vivendo nesta cidade, não é mesmo? A que distância daqui? Muito longe do lugar em que você estava correndo?

 

            Buck mal podia acreditar no que estava ouvindo. E aquelas palavras partiam de Sebastian, que estava ali graças aos atos heróicos e altruístas do Comando Tribulação, princi­palmente de Chloe.

            - Não é fácil dizer isto, Buck - prosseguiu George. - Mas temos de pensar que estamos pondo em risco a vida de 200 pessoas para salvar apenas uma, e as probabilidades são quase nulas.

            - Você está supondo que a CG a pegou - disse Buck.

            - Ela pode estar em outro lugar qualquer. E mesmo que você tenha razão, por que as probabilidades de agora são mais remotas do que a sua, na Grécia?

            - Eu sei, Buck. E não pense que quero ficar aqui sem fazer nada. Mas existe uma grande diferença agora. O prisioneiro naquela situação era um homem grande e forte, treinado para matar. Depois de tudo o que Mac, Hannah e Chloe fizeram por mim, fiquei frente a frente apenas com um de meus captores. Até mesmo naquela situação as probabi­lidades eram remotas, e poderia ter dado tudo errado. Se eu falhasse, comprometeria os três. Perderíamos quatro pessoas. Se invadirmos a sede daqui, vamos pôr tudo a perder.

            - E daí? Você acha que devemos deixar Chloe apodre­cendo aqui enquanto nos mudamos para Petra?

 

            - Veja o que tenho em mente para seu bebê, Sra. Williams - disse Jock -, caso você recupere o juízo e nos ajude um pouco. Acho que você prefere que seu filho ou filha continue a ser educado da maneira tradicional, como você e seu marido têm feito até agora. É claro que isso vai contra os nossos obje­tivos. Queremos ver todas as crianças fazendo parte da CG Júnior antes de se matricularem na escola. Mas, no seu caso, estamos dispostos a fazer de conta que ele ou ela não existe, até completar 12 anos.

            - E quem vai educá-lo? - perguntou Chloe, piscando ao perceber que a fome era uma tática excelente.

            - Ah!, então estamos falando de um menino. Muito bem. Não quer me dizer o nome dele? Assim, será mais fácil levar­mos nossas negociações adiante.

            Chloe não respondeu. Aquilo não era nenhuma negocia­ção. Ela só precisava proteger Kenny por mais um ano, e a CG não poria as mãos nele.

            - Ora, vamos, Sra. Williams. Você é uma mulher inteli­gente. Sabe que é muito valiosa para nós. Os judaístas têm sido um transtorno e, devo admitir, um constrangimento para nós. Temos quase certeza de que seu pessoal está por trás desse nosso probleminha em Nova Babilônia. Você pode nos ajudar. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que você deseja fazer isso, mas estou tentando apresentar-lhe um motivo. Você tem muitas coisas para negociar conosco.

            - Posso me levantar?

            - Pode, mas devo avisá-la de que está trancada aqui. Sou três vezes maior que você, mas só por brincadeira, digamos que você me domine, que me jogue no chão, que quebre meu pescoço e me mate. Mesmo assim, não vai sair daqui.

            - Eu só quero movimentar um pouco o corpo, senhor.

            - À vontade. E pode me chamar de Jock.

            Ah!, agora você passou a ser meu melhor amigo.

            - Ei, você quer comer alguma coisa?

            - Claro.

            - Eu também. O que deseja para o desjejum?

            - Qualquer coisa. Não sou exigente.

            - Mas eu sou. Gosto de coisas que entopem as artérias. Ovos, bacon, lingüiça, torradas, panquecas com molho à beça. Você aceita?

            Ele devia estar brincando. Chloe levantou-se com os braços cruzados e virou-se para trás.

            - Ora, vamos. Não consigo que você me chame pelo primeiro nome. Não consigo que você me diga o que quer comer. Que tal? Vai me fazer companhia? Vai querer o mesmo que eu?

            - Eu já disse. Não sou exigente.

            - Você também disse que estava com fome. Vou pedir o desjejum para nós, viu, Chloe? Você se importa se eu a chamar de Chloe?

            - A bem da verdade, eu me importo.

            - Ah!, está bem, que seja assim. Você é a figura principal daqui. Quero saber o que você deseja. Se o travesseiro de sua cela não estiver macio, me avise. Ou avise a recepção.

            Então, o jogo ia começar. Chloe o convencera de que não ia cooperar, e ele agora se fingia de policial bonzinho. Ou não seria fingimento? Jock passou por ela e chamou Nigel novamente. Chloe o ouviu pedindo a comida que descrevera. Ele virou-se para ela.

            - A comida servida aqui é a mesma que servimos nas celas, Chloe, mas até os garçons estão sobrecarregados de serviço. Vamos conversar enquanto aguardamos. Vejo que você não é uma pessoa maleável. Eu não esperava que fosse. E não a respeitaria se fosse. O acordo é o seguinte. Você sabe que não vamos libertá-la mesmo que nos conte tudo. Como ficaríamos perante o público? Mas posso transformar sua execução em prisão perpétua e mandá-la para uma peni­tenciária onde você viveria em melhores condições. Eu lhe dou minha palavra. Seria uma penitenciária de segurança máxima, é claro, mas seu filho ficaria sob sua guarda até completar 12 anos.

            O fato era que Kenny estava seguro com Buck, e se ela conseguisse manter a sanidade, a situação não precisaria ser mudada. Se ao menos ela pudesse alertar Buck para ele tirar todos do esconderijo e levá-los para Petra!

            Chloe sentiu uma leve tontura provocada pela fome.

            - E esse acordo seria em troca de...?

            - Receber a marca de lealdade seria o ponto principal. Sem isso, nossa credibilidade iria por água abaixo. Com a marca, você continuaria a viver em vez de morrer. Mas, se quiser ir para uma penitenciária melhor e ter a guarda de seu filho, terá de nos contar o que sabe.

            - Você deve estar achando que vou delatar meu pessoal.

            - Estou, e sabe por quê? Porque você é uma mãe amo­rosa. Pensa que seu pessoal não a entregaria em questão de minutos para não ter a cabeça decepada pela lâmina da guilhotina? É melhor colaborar comigo.

 

            Albie sentia um frio na espinha enquanto atravessava Abadã em sua motoneta, com os olhos quase cobertos pelo boné. Al Basrah não era um lugar melhor que aquele, mas Abadã talvez pudesse ser comparada a Sodoma e Gomorra antes de Deus incendiar as duas cidades.

            Nas ruas, eram praticadas todas as formas de pecado e devassidão. O local que antes foi o lado mais sujo da cidade era, agora, seu centro comercial. Filas e mais filas de bares, bandos de carto­mantes, prostíbulos, sex shops e clubes destinados a satis­fazer a qualquer tipo de perversão fervilhavam, oferecendo bebidas e mercadoria humana. O ar estava impregnado de odor de haxixe. Vendia-se cocaína e heroína em plena luz do dia.

            Os soldados das Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral da CG costumavam fazer uma ruidosa batida policial duas vezes por semana para manter as aparências. Mas com a redução do número de pessoal, eles agora se concentravam em crimes contra o governo. Se alguém não se curvasse diante da imagem de Carpathia três vezes por dia ou deixasse de reverenciá-la, seria levado à prisão.

            E se fosse pego sem a marca de lealdade? Tolerância zero. A CG gostava de brincar com o povo dizendo que eles teriam uma última chance. Quando uma alma profundamente agradecida se aproximava ansiosamente do centro de apli­cação da marca, era empurrada ou arrastada, aos gritos, até a guilhotina para servir de exemplo.

            Além da sujeira existente em Abadã, havia uma parte da cidade que era pior ainda: o local onde Mainyu Mazda e seu bando exerciam seu comércio. No mercado ao ar livre, onde as pechinchas e as trapaças faziam parte do dia-a-dia, havia espeluncas camufladas, feitas de tábuas, que consistiam apenas de paredes sem teto e uma porta com tranca. Um encerado, jogado a um canto, poderia ser rapidamente preso a quatro estacas para protegê-los da chuva.

            Os homens do mercado negro e seus sequazes (um deles sempre ficava de guarda do lado de fora) realizavam suas transações dentro daquelas espeluncas, reunidos com pessoas que desejavam alguma coisa, qualquer coisa, e estavam dispostas a pagar um preço alto para consegui-la. Sem descer da motoneta, Albie desligou o motor e foi arrastando o veículo com os pés pelos becos da cidade.

            Em meio a bêbados dormindo havia também pessoas demen­tes, mulheres de má reputação, homens e mulheres que vendiam mercadorias das mais variadas espécies. Todos acenavam para o homem franzino com roupa de couro que passava por eles arrastando a motoneta.

            Albie não olhava nem para a direita nem para a esquerda; seguia seu caminho sem fitar ninguém nos olhos. Sabia aonde estava indo e queria que todos soubessem. Não conseguia esconder certo orgulho ao ver que seus negócios nunca chegaram a uma situação tão lastimável. Evidente­mente, o que Albie havia feito durante anos era ilegal, e não havia justificativas para isso. Mas comparado ao que via agora, ele trabalhara com dignidade. Construíra uma pista para aeronaves - sua obra mais importante. E sua clientela era composta de homens de negócio abastados e pilotos, bem como de gente de baixo nível e trapaceira.

            Porém, ele conhecia esse mundo e sua linguagem. Necessitava da ajuda de um sujeito de má índole, mas que conhecesse pessoas importantes. Precisava de alguém que mantivesse contato com o palácio e soubesse onde seriam realizadas as reuniões em Al Hillah. Alguém que pudesse informar onde estavam armazenadas as ogivas nucleares. Alguém que, antes da chegada de Carpathia e seus asseclas, pudesse entrar na sala de reuniões e instalar uma escuta clandestina ali, para transmitir tudo em uma freqüência à qual apenas uma pessoa no mundo teria acesso. Só Albie e seus companheiros sabiam quem era essa pessoa: Chang em Petra.

            Se dispusesse de um dia a mais, Albie poderia fazer esse serviço com a ajuda de seus contatos, pessoas que apresen­tavam menos riscos, menos problemas. Mas havia ocasiões na vida de um homem em que ele precisava analisar suas opções e jogar o dado. E embora essa analogia fosse estranha na nova vida em que ele levava, a ocasião havia chegado.

 

            - Por favor, sente-se à mesa enquanto a porta vai ser aberta brevemente, Chloe - disse Jock.

            O aroma da comida era tentador, e ela sentou-se de costas para a porta.

            - Colo­que aqui, Nigel, por favor.

            Jock sentou-se de frente para ela, atirou um guardanapo a Chloe, prendeu o seu, em grande estilo, acima do nó da gra­vata e abriu-o para cobrir todo o seu peito e barriga. Chloe desdobrou seu guardanapo e abriu-o sobre o colo enquanto Nigel ajeitava a bandeja abarrotada de comida entre os dois.

            Nigel colocou uma pilha de panquecas diante de Jock. Um jarro com molho. Um prato com torradas, manteiga e geléia. Uma xícara grande na qual ele despejou café fumegante, deixando o bule sobre a mesa. Um prato enorme de ovos mexidos com bacon e rodelas de lingüiça. Os talheres de Jock foram colocados ao lado do prato principal.

            Em seguida, Nigel colocou uma faca, um garfo e uma colher diante de Chloe. E ela continuou sentada ali, tendo apenas os talheres à sua frente e o guardanapo no colo. Nigel pegou a bandeja vazia e saiu, trancando a porta.

            Jock esfregou as mãos e disse, mostrando os dentes:

            - Não é uma maravilha? Nem sei por onde começar. - Ele puxou os pratos para perto de si, pegou a faca e o garfo e ajeitou os ovos mexidos para dar a primeira mordida. - Ah!, desculpe-me. Onde estão minhas boas maneiras? Você quer agradecer a comida? Pedir a bênção? Não? Então, eu mesmo faço isso. Obrigado, Excelência, pela delícia que vou apre­ciar.

            Jock enfiou um bocado enorme de ovos na boca, deposi­tou-o na bochecha direita para dar lugar a uma nova garfada de rodelas de lingüiça, e falou com a boca cheia.

            - Acho que Nigel se esqueceu da sua comida, não é mesmo, Chloe? Ah!, mas está tudo bem. Você não está cooperando, certo? O problema é seu.

            O homenzarrão continuou sentado, lidando com a faca, o garfo e a colher, lambendo os beiços, sorvendo o café com força e rindo.

            - Tem certeza de que não quer um pouco? Não quer mesmo? Está uma delícia. Mas o problema é seu. Se você cooperar, Nigel vai ficar de olho em você, e aquela barra de cereal para dar energia será entregue em sua cela, digamos dentro de uma hora, talvez duas, depois que você desistir de lutar contra nós. E energia talvez não seja a palavra certa. A barra de cereal vai servir para manter você viva até ser executada. Ela apenas nutre, mas não proporciona energia. Mas você vai adorar comer uma barra daquelas e aguardar ansiosamente por ela. Não vamos servir bacon com ovos, e essas barras de cereais serão seu único alimento.

 

            Albie parou diante de uma pequenina estrutura que parecia ser feita de uma mistura de tábuas amarelas desbotadas com fios de arame e pregos. A tranca ficava à mostra na porta, guardada por um homem alto e magro que Albie reconheceu de anos antes. E, se Albie não estivesse enganado, o nome do homem era Sahib, ex-cunhado de Mainyu. Ex-cunhado porque era irmão da esposa que Mainyu assassinara. Que lealdade!

            Albie desceu da motoneta e estendeu a mão. Sahib não estendeu a sua e olhou-o de esguelha na escuridão.

            - Está querendo vender essa moto? Veio ao lugar certo.

            - Não. Quero falar com Mainyu, Sahib.

            Ao ouvir seu nome, Sahib olhou firme para ele.

            - Albie?

            Agora o homem estava apertando sua mão. Ele levan­tou um dedo, destrancou a porta e entrou. Albie ouviu uma conversa firme, em voz baixa. Um desconhecido de olhar frio saiu dali e foi embora apressado.

            Sahib reapareceu e fechou a porta atrás de si.

            - Aguarde dois minutos, Albie - ele disse, fazendo um gesto para indicar que Mainyu estava falando ao telefone. - Cinqüenta Nicks para tomar conta de sua moto.

            - Vinte.

            - Vinte e cinco.

            - Combinado. Mas se ela não for encontrada do jeito que a deixei, abro sua cabeça ao meio.

            - Eu sei, Albie. Pagamento adiantado.

            - Dez agora, quinze depois.

            - Quinze agora.

            Albie contou as notas. Ele esperava que haveria nego­ciação, até mesmo ameaças. O ruído de alguém limpando a garganta, vindo de trás da porta, foi a deixa para Sahib per­mitir a entrada de Albie. Antes de acompanhar Sahib, Albie avistou uma pequena mulher aparecer diante deles, vindo de um cubículo a uns 30 metros dali.

            - Espere - disse Albie. - Sahib, tome conta da moto.

            - Eu disse que ia tomar conta. Ah!, ela é uma convidada que vai participar da reunião.

            A mulher jovem de olhos grandes e olhar severo, trajando um manto da cabeça aos pés, tinha o número 42 na testa e carregava uma sacola. Assim que Albie entrou, Sahib a empurrou para dentro, saiu e trancou a porta.

            Mainyu, iluminado por uma lâmpada movida a bateria, estava sentado atrás de uma frágil mesa de madeira, tendo uma caneca diante de si. Ao sorrir, ele exibiu uma fileira de dentes surpreendentemente brancos.

            - Albie, meu amigo, como vai? - ele disse, estendendo as duas mãos.

            - Vou bem, Mainyu. Mas devo insistir que meu assunto com você é particular.

            - Como sempre, claro. Por favor, sente-se.

            Albie sentou-se em uma cadeira dobrável de metal enfer­rujado. A mulher deu a volta na mesa, pegou uma caixa de madeira em um dos cantos e sentou-se em cima dela, abrindo a sacola. Albie olhou para Mainyu e ergueu a cabeça em direção à mulher.

            - Ela? - perguntou Mainyu, com ar de pouco caso. - É uma artista em tatuagens. Não tem ouvidos nem boca.

            A mulher sorriu enquanto retirava seus instrumentos da sacola e segurou a lâmpada diante de Mainyu para ilu­miná-lo melhor. Ele levantou o queixo e, com a ajuda de uma mecha de algodão, ela aplicou um líquido desinfetante em uma pequena área de seu pescoço onde uma tatuagem igualaria os números de um lado com o do outro.

            - Você sabe o que dizem sobre minhas tatuagens, não, meu velho amigo?

            Albie sorriu.

            - Todo mundo sabe o que elas significam.

            - Bem, verdade ou não, elas funcionam, certo?

            - Sim. É verdade, Mainyu?

            - Claro.

            - Quem foi a ultima vitima?

            - Você está perguntando quem vai ser?

            - Como assim?

            - Às vezes, eu providencio a tatuagem antes.

 

            Mesmo contra a vontade, Rayford havia cochilado. E enquanto o Gulfstream voava rumo aos Estados Unidos, ele começou a vasculhar suas sacolas.

            - O que está havendo, Ray? - perguntou Mac.

            - Que horas são em Nova Babilônia?

            - Perto de 22 horas.

            - Então a manhã deve estar terminando em San Diego, e nada de notícias. Buck prometeu ligar se eles tivessem descoberto onde Chloe estava. Você se lembra do número principal do palácio?

            - Eu nunca soube. E você?

            - Sabia em épocas passadas.

            - Deve ser fácil conseguir. Mas não há mais ninguém de nosso pessoal lá, Ray. Você quer falar com alguém em Petra?

            - Não. Você se lembra do que David ou Chang disseram? Que é impossível rastrear esses telefones?

            - Disso eu me lembro.

            Mac passou a Rayford a combinação de símbolos e números por meio dos quais ninguém poderia identificar de que local partiam as chamadas via satélite feitas por aqueles telefones.

            Rayford digitou o número da operadora internacional.

            - Palácio da Comunidade Global em Nova Babilônia, por favor - ele disse.

            - Estou tentando completar a ligação - disse a tele­fonista -, mas lá não há luz, portanto é provável que o senhor tenha de aguardar um pouco.

            - Obrigado.

            - Você ligou para o Palácio da Comunidade Global em Nova Babilônia. Por favor, tenha um pouco de paciência. Em razão de problemas técnicos, pode ser que sua chamada não seja atendida imediatamente.

            E lá estava Rayford ouvindo novamente o "Salve Carpathia" cantado pelo grande coral.

            - Droga! - ele disse.

            - Comunidade Global, para quem devo direcionar sua chamada?

            - Krystall, por favor.

            - No escritório do potentado?

            - Claro.

            - Senhor, já é noite aqui. Todos os escritórios estão fecha­dos.

            - Eu sei. Ligue para o apartamento dela, por favor.

            - Posso saber quem deseja falar com ela?

            - Eu mesmo digo.

            - Eu preciso saber, senhor, caso contrário não vou acor­dar ninguém a esta hora.

            - Já que você precisa saber, diga a ela que é o tio Gregory.

            - Um momento.

            Mac olhou para Rayford, sem entender nada.

            - Tio Gregory?

            - É uma longa história.

            - O vôo também vai ser longo. Não vejo a hora de saber do que se trata.

            - Tio Gregory? - disse Krystall, com a voz rouca por causa do sono.

            - Esta linha é segura? - perguntou Rayford.

            - Acho que sim. Não sei. Você não é meu tio, é?

            - Você sabe quem está falando.

            - Você nunca me disse o seu nome.

            - Você sabe que sou seu amigo.

            - Só vou saber de verdade se você ajudar meu tio. Já transmiti seu recado a ele.

            - Já? Ele está acompanhando o site?

            - Acho que sim.

            - Pode acreditar em mim. Se seu tio fizer contato, nosso pessoal vai conseguir tudo o que ele necessitar.

            - Eu agradeço, mas por que você está ligando...

            - Preciso de um favor.

            - Eu sabia. Não posso...

            - Peço que me deixe falar. Quando conversei com você, não tinha idéia de que necessitaria de um favor. Eu preciso de uma informação que só você pode me fornecer.

            - Eu não posso fornecer infor...

            - Trata-se de uma coisa relativamente simples - ele disse -, mas não quero criar problemas para você.

            - Ah! E qual é a diferença? Tanto faz. Ser obediente a ele também não está resolvendo nada.

            - Eu preciso saber se existe alguma notícia sobre a prisão de alguém muito importante nos Estados Unidos Norte-americanos, uma mulher jovem...

            - Sim! Sim! Foi no final do dia, algumas horas depois do encerramento do expediente. Ainda estávamos trabalhando por causa da mudança amanhã à tarde. O Sr. Akbar chegou todo eufórico falando sobre uma prisão em San Diego. A CG de lá prendeu alguém que tinha ligações com os judaístas.

            - Você sabe se eles estão planejando...

            - É tudo o que eu sei. Verdade.

            - Você não faz idéia do quanto me ajudou Krystall. Existe alguma coisa que eu possa fazer por você?

            - O que, por exemplo?

            - Eu só gostaria...

            - Se você puder me enviar um par de olhos... Não me lembro de outra coisa mais importante.

           

            A artista em tatuagem calçou luvas de borracha e per­guntou a Mainyu Mazda, com sotaque indiano, se ele queria anestesia. O homem recuou o corpo e olhou para ela.

            - Eu nunca sei - ela disse. - Cabeça para trás, queixo levantado.

            Albie sabia que seria bizarra uma reunião com aquele homem nessa parte da cidade, mas nunca imaginou que teria de disputar espaço com um procedimento dermatológico.

            - Vá em frente, meu amigo - disse Mainyu, gesticulando. - Você veio aqui para quê?

            Albie inclinou-se para a frente, com os antebraços pousa­dos na mesa, e contou a MM sobre o serviço que necessitava ser feito urgentemente em Al Hillah.

            O aplicador de tatuagem movido a bateria emitia um clique alto e rápido enquanto a mulher trabalhava. Mainyu estremecia o corpo mas tentava animar Albie a prosseguir, balbuciando "hã, hã" e "hum".           Finalmente, ele disse:

            - Um momento, Kashmir.

            A mulher afastou-se e ficou segurando a agulha sob o brilho da luz da lâmpada.

            - Não é segredo para ninguém que você não é amigo do potentado - disse MM.

            Albie sorriu.

            - Espero que seja segredo em alguns lugares.

            - Por que não autoriza Kashmir a aplicar a marca de leal­dade em você? Escolha o número que quiser.

            - Você sabe que não posso fazer isso, Mainyu.

            - Ah! Sim. Agora você é judaísta e acredita em espíritos malignos.

            - Espíritos malig...?

            Mainyu fez um gesto de pouco caso.

            - O seu pessoal não acredita que qualquer um que tenha a marca de Carpathia vai para o inferno ou algo parecido?

            - O mais importante de tudo é a quem nós somos leais. MM olhou para Kashmir, recostou-se na cadeira e sorriu para Albie. Em seguida, soltou uma sonora gargalhada.

            - Você não vai começar a falar dessas coisas para mim, vai, meu velho amigo? Estou achando que sim.

            - Não, você já fez a escolha. Eu também gostaria de saber por que você tem um 72 e não um 216.

            - Você acha que sou amigo do regime internacional?

            - Bem, eu...

            - Acha que minha marca é autêntica? Você me conhece muito bem.

            Depois de dizer isso, ele cuspiu.

            - Mas a punição para uma marca falsa é pior que a morte - disse Albie.

            - Tortura em público, eu sei - disse Mainyu. - Mas a CG não está interessada em mim. Só quer saber como posso ser útil a eles. Se eu fosse exibir a marca de alguém a quem sou leal, teria de ser o número 1.. O que dizem os nossos amigos mexicanos, Albie? "Preste atenção ao número uno!". E se eu não fosse útil à CG, seria enviado para a planície de Jezreel da mesma forma que outros milhões de pessoas. Que tipo de negócio eu poderia fazer lá?

            - De que forma você é útil à CG?

            Kashmir limpou um filete de sangue que escorria no pescoço de Mainyu.

            - Sou um homem de negócios, Albie. Procuro obter lucro máximo gastando o mínimo, e agora estou ganhando muito dinheiro.

            - Você...

            - Entrego desleais às Forças Pacificadoras. Claro que faço isso. Você quer saber quanto ganho com esse tipo de negó­cio? Vinte mil Nicks por cabeça. O preço é igual tanto para vivos quanto para mortos. Prefiro mais entregar gente morta. Quando a vítima morre, não há mais perigo, ela não pode mais fugir, não pode criar problemas. Um saco plástico de tamanho correto evita qualquer tipo de sujeira no carro. Está entendendo?

            - Então, você é um fornecedor de...

            - Para a CG, sim, claro. Se o lema dos homens de negó­cios é pouca despesa e alto lucro, que melhor coisa pode haver quando não gastamos nada e ainda saímos lucrando? Eles estão dispostos a pagar pelo que eu faço.

            Albie gostaria de saber quantos judaístas foram vítimas de Mainyu.

            - Quer dizer que meu pedido apresenta um conflito de interesses para você? - perguntou Albie.

            - Claro que não, meu amigo! Desde que você tenha trazido dinheiro. Não sou amigo da CG. Simplesmente faço negócios com eles. Meu interesse é lucro.

            - Eu não sabia quanto custava esse tipo de serviço.

            - Ah!, sim, você sabia. Não faz muito tempo que abandonou seus negócios. E é claro que não esperava que eu aceitasse seu pedido sem ver todo o dinheiro na minha frente. Além de tudo, você está pedindo um serviço urgente.

            - Você tem gente para fazer isso, equipamento e...?

            - Você sabe que tenho tudo. O serviço vai ser feito. Desde que você tenha o dinheiro.

            - Alguns anos atrás, um serviço como esse custava 20 mil Nicks - disse Albie.

            - Então, suponho que você trouxe mais, considerando a inflação e a natureza urgente do pedido.

            Albie hesitou.

            - Claro que trouxe, e você não vai cometer o erro de me enrolar, porque sabe que é muito fácil para mim descobrir quanto dinheiro você tem.

            - É verdade. Eu trouxe 30 mil Nicks.

            - Hummm.

            - Claro que é suficiente. Cinqüenta por cento a mais deve cobrir a inflação e a pressa.

            - Não é suficiente - disse Mainyu. - Quero mais 20 mil.

            Albie imaginou que o negócio estava prestes a ir por água abaixo. Eles estavam na fase da pechincha, e qualquer gros­seria de um dos lados indicaria falta de respeito.

            - Eu só trouxe 30 mil e é tudo o que estou disposto a pagar.

            - Hã-hã. E está tudo com você ou uma parte ficou na moto?

            - Você sabe muito bem que eu não faria isso, Mainyu. Quem deixaria dinheiro nestes becos aqui?

            Mainyu riu.

            - Sahib!

            O homem alto destrancou a porta e entrou.

            - Quanto nosso amigo está pagando para você tomar conta da moto dele?

            - Vinte e cinco.

            - Quanto ele ainda está devendo?

           - Dez.

            Mainyu virou-se para Albie.

            - Você tem 30 mil mais os dez que deve a Sahib?

            - Sim.

            - Mais algum dinheiro?

            - Uns trocados para a viagem de volta.

            - Quero ver os 30 mil.

            Albie enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou um maço de notas embrulhado em papel celofane.

            - Agora quero ver os dez que você deve a Sahib.

            Albie jogou uma nota de dez em cima da mesa.

            - Agora os trocados.

            Do bolso esquerdo, Albie tirou algumas notas e moedas.

            - Acho que tenho mais 15 - ele disse.

            Mainyu comprimiu os lábios e levantou a cabeça, arqueando as sobrancelhas para Albie.

            - Ainda faltam 20 mil.

            - Eu disse que estava disposto a pagar somente 30 mil.

            - Então temos um problema. O que vamos fazer quanto aos outros 20?

            Albie lutou para conter o riso. Sempre foi difícil barganhar com Mainyu.

            - Você está falando sério? - perguntou Albie. - Não vai aceitar os 30? Quer que eu procure outra pessoa para fazer o serviço?

            - Ah, não! E deixar escapar o que está diante de mim? Não!

            - E então, negócio fechado?

            - Já está fechado, meu amigo. Pouca despesa e lucro alto. Cinqüenta mil e alguns trocados sem gastar quase nada.

            - Cinqüenta?

            - Kashmir, ligue para o palácio, por favor. Chame o Sr. Akbar. Sahib? Lembra-se do que aprendeu comigo sobre negócios? Soluções criativas até se chegar ao ponto em que o negócio se torne lucrativo?

            Sahib assentiu com a cabeça.

            - Sim, Sr. Mazda.

            - Sua arma, por favor.

            Sahib entregou-lhe um revólver .44.

            Mainyu Mazda levantou-o e girou-o nas mãos.

            - Meu velho amigo e eu estamos separados por 20 mil Nicks, e a solução é ele próprio. Qual é a recompensa por cidadãos sem a marca, Sahib?

            - Vinte mil.

            - Somados aos 30, lucramos 50. Nem sequer vamos ter de fazer o serviço.        

            Ele apontou o cano da arma entre os olhos de Albie e puxou o gatilho.

 

            O local de sua cela, pensou Chloe, era muito estranho. Consistia de uma espécie de gaiola em um canto de um cômodo maior. Uma prateleira grande de metal projetava-se da parede. Sua cama, ela imaginou. Em um lugar bem visível, havia uma combinação de pia com instalações sanitárias. Mas ela se preocupava com o que não havia ali. Nada era movível ou removível. Não havia assento no vaso sanitário, nem cobertor ou travesseiro. Nenhum material de leitura. Nada.

            Atordoada pela fome, Chloe arrastou-se até a cama na parede e deitou-se de lado, de frente para a porta. A cama era sustentada por tiras trançadas de metal de cerca de dez centímetros de largura, que poderiam ter cedido se ela pesasse uns 50 quilos a mais. Nem mesmo o sempre presente Nigel estava à vista.

            O cômodo em que a cela se encontrava estava bastante iluminado, e os raios do sol atravessavam as janelas e as grades. Mas tinha um aspecto desagradável, com seus azulejos, piso de linóleo e barras de aço - tudo pintado com a tradicional cor verde.

            Chloe queria gritar, dizer a alguém que estava com fome, mas o orgulho sobrepujava o desconforto. Ela se sentou rapi­damente quando ouviu a porta ser aberta. Um homem com uniforme de agente penitenciário entrou apressado. Em seu cinto havia alguns frascos de produtos de limpeza ao lado de um telefone celular. Ele carregava um trapo e tinha outro no bolso traseiro.

            - Oh!, oi - ele disse. - Eu não sabia que havia alguém aqui.

            - Você não tinha meios de saber - ela disse, jogando um pouco de charme.

            - Como assim?

            - Eu estava andando por aí. Tranquei-me aqui como se fosse uma idiota.

            Ele riu. Seu sorriso era radiante.

            - E você também teve a má sorte de estar usando um macacão parecido com o de uma detenta. Que tragédia!

            - Pois é, veja só - ela disse.

            - Pode ser que você foi trancada aqui porque não tem gosto para se vestir, não?

            - Pode ser.

            - Bem, eu só vim pegar um balde. Sucesso para você.

            - Obrigada.

            Ele pegou um balde em um dos cantos em que havia um aparelho de TV preso à parede por um suporte e virou-se para sair. De repente, ele parou e deu meia-volta.

            - Eles permitiram que você desse um telefonema, não?

            - Ah! Claro. Estou sendo tratada como uma rainha. Liguei para o Papai Noel.

            O homem depositou o balde no chão e aproximou-se da cela. Olhou para a porta por cima do ombro e disse em voz baixa.

            - Eu estou falando sério. Esta é a única coisa desa­gradável aqui. Quero dizer, as pessoas recebem o que merecem por não terem aceitado a marca, como você. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que elas não devem ser julgadas por isso, mas o que aconteceu com o direito de dar um telefonema? Isto aqui ainda é a América, não?

            - Não é a América que conheci.

            - Também acho. Ei, você gostaria de ligar para alguém?

            - O quê?

            - Mas prometa que não vai contar a ninguém, para não me criar problemas.

            - O quê? Ligar no seu telefone?

            - Claro. Este aqui. - Ele tirou o celular do cinto e virou-o de lado para passá-lo entre as grades. - Mas só uma ligação, e tem de ser rápida. Depois, você precisa esconder o tele­fone. Ou deixá-lo no chão, do lado de fora da cela, como se ele tivesse caído sem eu perceber. Volto daqui a pouco.

            - Você está falando sério?

            - Sim. Que mal há? Vá em frente. Divirta-se, belezinha. Eu já volto.

            As mãos de Chloe tremiam enquanto ela se dirigia a um canto, de costas para a porta. Então, eles pensam que sou uma idiota? Esta coisa não deve estar funcionando, e se esti­ver, não vai funcionar aqui. Mas valia a pena tentar. Ela pre­cisava falar com alguém. Não queria correr o risco de ligar para a casa secreta, imaginando que aquilo não passava de uma trapaça e que qualquer chamada poderia ser rastreada. Chloe discou o número de seu pai. Ele já devia estar em Petra.

 

            Rayford ligou para o palácio e despertou Krystall nova­mente.

            - Estive pensando em seu pedido - ele disse.

            - Meu pedido?

            - O par de olhos.

            - Não brinque comigo.

            - Não estou brincando. A idéia não me sai da cabeça. Talvez eu conheça um par de olhos que você poderia usar. Você se lembra daquele dia em que trocamos algumas pala­vras? Pouco antes, alguém abriu a porta, fechou-a nova­mente e saiu correndo. Lembra-se?

            - Como eu poderia esquecer? Foi quando você quase me matou de susto.

            - Ele também é crente, e pode enxergar aí em Nova Babilônia.

            - Continue.

            - Eu poderia falar com ele, convencê-lo a ajudá-la depois que todos tiverem partido. Ele tem condições de ajudá-la, de dizer onde as coisas estão, fazer tudo por você.

            - O que você está querendo?

            - Deve haver coisas nos arquivos que eu preciso saber.

            - Muito mais do que você pensa.

            - Está vendo? Ele a ajuda durante alguns dias ou pelo tempo que for necessário, e você lhe dá acesso às coisas que podem me ajudar. Combinado?

            - E qual seria o interesse dele?

            - Deixe por minha conta. Vou ligar para ele agora para ver se podemos acertar tudo. Não, vou ligar para ele amanhã. Não faz sentido despertá-lo.

            - Não faz. Mas por que eu sou a única pessoa que pode ser despertada a esta hora?

            - Sinto muito. - Rayford ouviu um bip sinalizando que havia alguém ligando para ele. - Aguarde um instante, Krystall. - Ele verificou o identificador de chamadas. O código de área era de San Diego, mas ele não reconheceu o número. - É melhor eu atender. Se conseguirmos acertar tudo, vou pedir que o sujeito ligue para você.

            Rayford apertou o botão de chamada duas vezes, termi­nou uma ligação e atendeu a outra.

            - Aqui é Steele.

            - Papai, sou eu.

            - Chloe!

            - Por favor, só escute. Você ainda tem aquele recurso de gravação em seu telefone?

            - Tenho, mas...

            - Acione-o imediatamente. Faça isso. Já fez? Está ligado?

            - Sim, mas...

            - Sei que esta ligação está sendo rastreada e que seu tele­fone não vai mais poder ser usado, mas eu não podia ligar para o restante do pessoal. Estou em uma prisão da CG em San Diego, e eles estão tentando negociar comigo para pegar o resto do pessoal. Diga a Buck e a Kenny que eu os amo de todo o coração e que se não puder vê-los aqui na terra, estarei aguardando por eles lá no céu. Papai, a culpa foi toda minha. Eu estava correndo a uns 50 quilômetros de casa quando tudo aconteceu. Quero apenas que você saiba que, por enquanto, estou bem. Enquanto passo o tempo sentada aqui, fico me lembrando daquela viagem maravilhosa que você, mamãe e eu fizemos ao Colorado quando eu tinha cinco ou seis anos. Você se lembra?

            - Mais ou menos. Chloe, preste atenção...

            - Papai, não posso falar muito. É importante para mim que você se lembre daquela viagem!

            - Querida, aquilo foi há mais de 20 anos. Eu...

            - Exatamente! Mas foi muito especial, e eu gostaria que todos nós pudéssemos voltar para lá. Meu maior sonho é podermos ir todos para lá agora, o mais rápido possível.

            - Chloe...

            - Não diga nada, papai. Você sabe que eles devem estar ouvindo. Só quero dizer que amo todo o nosso pessoal. Peça que orem para que eu seja forte até o fim. Não vou fornecer informação alguma. Nada. E, papai, pense na viagem ao Colorado para que pensemos a mesma coisa, na mesma hora. Eu amo você, papai. Nunca se esqueça disto.

            - Eu também amo você, querida. Eu...

            - Adeus, papai. E ela desligou.

 

            - Você foi treinado para ser um homem de combate, George - disse Buck -, mas não pára de falar em arrumar as coisas para sairmos daqui.

            - Só quero que você saiba, Buck, que não vou me ofender com suas agressões verbais enquanto Chloe não voltar sã e salva. Depois disso, você vai ver.

            - Ah! sim. Ela vai fazer picadinho de você, George - disse Priscilla.

            Buck devia ter achado graça. George não gostava nem um pouco quando Priscilla tentava, em vão, melhorar o humor dele. Só que Buck estava desolado. Seu sogro acabara de descobrir onde Chloe estava, por meio de seu contato no palácio. Mas a sede da CG em San Diego não era um lugar fácil de ser invadido.

            - A melhor coisa que temos a nosso favor - disse Sebastian - é que, assim que eles souberem quem ela é, vão querer mantê-la viva. Ela é muito valiosa para eles.

            Buck sabia que isso era verdade, mas a idéia de sua amada esposa estar sendo considerada mercadoria de guerra deixava-lhe um gosto amargo na boca.

            No final da tarde, Ming levou Beth Ann Sebastian e Kenny para a sala de operações. Ree levantou-se rapidamente e abraçou Ming. Buck sabia que a situação de Chloe o abalara. Ele gostaria de saber se Ree estava reconsiderando a idéia de se casar.

            Beth Ann correu para o lado da mãe e, depois, para o lado do pai. Kenny, com a testa franzida, correu em direção a Buck e sentou-se em seu colo.

            - Ele não dormiu - disse Ming.

            Buck assentiu com a cabeça e encostou o rosto de Kenny em seu peito.

            - Está com sono, rapazinho? - ele perguntou.

            Kenny movimentou a cabeça negativamente.

            - Quero a mamãe.

            - Ela vai chegar mais tarde.

            O menino fechou os olhos. Buck olhou para Priscilla e mordeu o lábio, incapaz de conter as lágrimas.

            - Esta é a parte que vou passar a detestar - ele disse, apenas movimentando os lábios e com o peito arfando.

            Kenny despertou, mas Buck ajeitou a cabeça do garoto sob o queixo e passou os dois braços ao redor dele, balan­çando o corpo. E chorando.

            Priscilla soltou-se de Beth Ann, que correu para perto do pai, e aproximou-se de Buck.

            - Não abandone a luta, Buck - ela disse. - Nenhum de nós vai abandonar.

 

            Chloe queria ligar para todas as pessoas que conhecia, mas tinha quase certeza de que sua conversa foi ouvida pela CG. Tudo havia sido fácil demais. O sistema de posicionamento global (GPS) no telefone de seu pai deveria ter indicado à CG onde ele se encontrava. Ela imaginara Petra, mas pelos sons que ouviu, ele estava no ar. Por quanto tempo seu pai e Abdullah ficaram em Nova Babilônia? E por que ele estava retornando somente agora? Ela não conseguia entender. Evidentemente, alguém o informara sobre o desaparecimento dela. Talvez ele estivesse a caminho de casa. Ela só esperava que ele conseguisse livrar-se do telefone antes de aproximar-se da Califórnia. A última coisa que ela queria era levar a CG diretamente à casa secreta.

            Chloe esticou o corpo o mais alto que pôde e atirou o telefone através de uma abertura na cela. Ele voou mais de dois metros antes de cair no chão e espatifar-se.

            - Que pena - ela disse -, isso acontecer depois que aquele homem bondoso me entregou seu telefone.

            O homem retornou em seguida, ainda trajando o uni­forme mas sem nada nas mãos. Nenhum balde, nenhum produto de limpeza, nenhum trapo. E nenhum sorriso também. Ele ajoelhou-se para ajuntar os pedaços do telefone.

            - Obrigada por ter-me emprestado seu telefone. Foi uma ótima idéia. Talvez você possa me trazer um bolo com uma serra dentro ou avisar meu pessoal. Peço desculpas pelo estrago.

            - Está tudo certo, boneca - ele disse, sem olhar para ela. - Conseguimos o que precisávamos. Parece que seu pai está um pouco distante da costa leste. Deve estar reabastecendo. Vamos alertar todos os aeroportos prováveis. Você devia fazer um favor a si mesma, colaborar com Jock. Ele é um sujeito legal. É verdade. Não estou dizendo que ele é um santo, mas é realista. Você tem a informação que ele quer, e ele sabe o que vai ganhar com isso.

            - Sem dúvida, amigo. Diga a Jock que estou pronta para o que der e vier. Vou fornecer todas as informações que ele quiser, agora que sei que ele é um sujeito legal. Foi você quem me disse, e eu o conheço muito bem para confiar ple­namente em você.

            - Pode bancar a espertinha o quanto quiser, garota. Você vai ver aonde vai chegar. Ah!, a propósito, Nigel conseguiu sua barra de cereais. Devo dizer a ele que você está com fome?

            Chloe sentou-se na cama de metal. Estava morrendo de fome, porém o orgulho era maior que o desespero.

            - Não. Tive um maravilhoso desjejum. Estou completa­mente satisfeita.

            - Talvez queira ver algum programa na TV.

            - Deixe para lá. Já ouvi propagandas suficientes para o restante da vida.

            - Mas está na hora do noticiário.

            - Ah! sim a eminente CNNCG, sempre tão objetiva. Ei, basta! O volume está muito alto!

            Ele fingiu que não ouviu. Deixou o volume nas alturas e dirigiu-se para a porta.

            - Abaixe o volume, por favor!

            - Não estou ouvindo nada - ele disse. - O som da TV está alto demais.

            Jock devia ter engendrado tudo. O noticiário das 17 horas estava começando. A âncora Anika Janssen falava ao vivo de Detroit.

            - Boa noite. A escuridão continua a atormentar a sede da Comunidade Global Internacional em Nova Babilônia. Ela está confinada aos limites da cidade e acreditamos ser um ato de agressão da parte dos dissidentes contrários à Nova Ordem Mundial.

            - O Sr. Suhail Akbar, chefe do Serviço de Segurança e Inteligência da CG, conversou conosco por telefone há poucos instantes, diretamente da capital isolada pela praga. Apesar do tumulto existente naquele local, ele tem boas notícias para todos nós, e esta vai ser a reportagem principal desta noite.

            - Sim Anika - disse Akbar - depois de meses de cui­dadoso planejamento e cooperação entre as várias filiais da Comunidade Global que visam ao cumprimento da lei, temos a satisfação de informar que uma força-tarefa combinada de agentes das Forças Pacificadoras e dos Monitores de Moral logrou êxito na captura de uma pessoa do alto escalão do grupo de judaístas que está aterrorizando o mundo.

            - Após meses de planejamento, a prisão foi efetuada hoje em San Diego, antes do alvorecer. Prefiro não fornecer detalhes da operação, mas a pessoa suspeita foi desarmada e presa sem nenhum incidente. Seu nome é Chloe Steele Williams, 26 anos, ex-radical do campus da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, de onde foi expulsa seis anos atrás por ter ameaçado a vida dos funcionários da administração.

            - Obrigada, chefe Akbar. Posteriormente, ficamos sabendo que a Sra. Williams é filha de Rayford Steele, que trabalhou como piloto do Supremo Potentado da Comuni­dade Global Nicolae Carpathia. Ele foi demitido do posto anos atrás por insubordinação e embriaguez durante os vôos, e o serviço de inteligência da CG acredita que o ressenti­mento o levou a transformar-se em terrorista internacional. Ele também participou da conspiração para matar o poten­tado Carpathia e tem ligações com o ex-estadista israelense Dr. Chaim Rosenzweig, atualmente líder dos judaístas. Eles estão a serviço do rabino Tsion Ben-Judá, chefe dos judaís­tas, o último foco de resistência à Nova Ordem Mundial.

            - A Sra. Williams é esposa de Cameron Williams, ex-famoso jornalista americano que também trabalhou direta­mente para o potentado antes de perder o emprego em razão de diferenças no estilo de administração. Atualmente, ele edita uma revista clandestina impressa e também divulgada pela internet, com circulação limitada.

            - Williams, sua esposa e o pai dela são fugitivos interna­cionais exilados, procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo. A Sra. Williams dirige uma operação de mercado negro que é suspeita de contrabandear mercadorias valiosas de diferentes países e vendê-las, obtendo lucros exagerados, a pessoas que não podem comprar e vender legalmente por terem se recusado a jurar lealdade ao potentado.

            - O casal Williams, que amealhou uma fortuna no mer­cado negro, tem um filho nascido, segundo dizem, após a Sra. Williams ter abortado duas vezes. Uma filha mais velha morreu sob circunstâncias duvidosas. O filho, a quem eles deram o nome de Jesus Salvador Williams, cuja foto está sendo exibida, tem dois anos de idade. Pessoas relacionadas ao casal dizem que a criança é a reencarnação de Jesus Cristo, que, um dia, dominará Nicolae Carpathia e restabelecerá o cristianismo no mundo.

            Chloe olhava firme para uma criança, que evidentemente não era Kenny Bruce, com uma Bíblia no colo e trajando uma camiseta onde se lia: "Morte a Carpathia!"

            - O chefe Akbar informa que seus homens localizaram a célula dos judaístas em San Diego, nos Estados Unidos Norte-americanos, onde a Sra. Williams foi presa hoje. Os funcionários da CG de San Diego dizem que ela já está "cantando como um passarinho, oferecendo todos os tipos de informações sobre seus companheiros, inclusive a própria família, para escapar da condenação à morte".

            - Aqui está a repórter Sue West, da CNNCG de San Diego, com o coronel Johathan "Jock" Ashmore. Sue?

            - Obrigada, Anika. Coronel Ashmore, até que ponto essa prisão é importante?

            - Ela é inestimável - respondeu Jock, nervoso e espremido dentro do paletó de sua farda, que não podia ser abotoado. - E a Sra. Williams demonstrou ser uma típica terrorista que sabe quando é chegada a hora de negociar. Quando ela soube que foi identificada e nós a informamos sobre as acusações que lhe pesam, em questão de minutos ela começou a fazer várias propostas para salvar a pele.

            - O senhor tem autorização para nos dizer que propostas foram essas?

            - Não todas, embora ela já tenha se comprometido a matricular seu filho na CG Júnior assim que for possível. Ela revelou o paradeiro de um negociante de mercado negro do Oriente Médio chamado Al Basrah, que adotou para si o nome de uma cidade iraniana.

            - Creio que essa cidade fica no Iraque, coronel, mas pros­siga.

            - O quê?

            - Al Basrah está localizada no Iraque, senhor.

            - Que seja. De qualquer forma, esse sujeito se matou com um tiro para não ser preso.

            - Daqui a pouco vamos mostrar uma fotografia do falecido Al Basrah - disse Sue West -, mas devemos advertir a todos que a foto está bem nítida.

            Chloe levantou-se e viu a foto sendo exibida. Era Albie com um furo entre os olhos, e sem vida. Sua cabeça estava mergulhada em uma poça de sangue. Era ele mesmo. Mas a foto seria verdadeira ou montada?

            - Jock! Jock! Nigel! Vá chamar Jock! - ela gritou. Os gritos transformaram-se em soluços, mas ela continuou a exigir uma resposta. - É verdade? Quero saber se é verdade! Albie está morto? Diga-me que Albie não morreu!

            Mas ninguém apareceu. Ninguém respondeu. Enquanto a TV continuava ligada no volume máximo, Chloe foi escorre­gando até cair no chão, gemendo:

            - Deus, por favor! Não!

 

            - Lembrei-me de um amigo na Flórida - disse Mac. - Em Jacksonville. Um sujeito da cooperativa. Podemos reabas­tecer lá para evitar locais muito visados.

            - Vou colocar este telefone sob uma das rodas antes de decolarmos - disse Rayford. - Se eles encontrarem uma mis­tura de metal e plástico na pista, o que vão fazer com ela?

            - Não seria melhor atirá-lo na água? Não vai levar mais de um minuto para ele afundar no Atlântico.

            - E como vou fazer isso, Mac? Abrir a janela e jogar o telefone para fora?

            - Não. Havia um artifício excelente que costumávamos usar em meus tempos de militar quando queríamos atirar um objeto do alto. Você prende o objeto no freio controlador da velocidade. Ele fica encostado no solo, você sabe. Assim que ganharmos altitude, eu ativo o freio...

            - Que abrirá o painel. Lindo.

            - Sim - disse Mac. - Você levanta vôo, acelera, ativa o freio e o telefone vai parar no fundo do mar azul.

            - Não quero perder tempo voando por aí.

            - Dê-me esse telefone. Eu faço isso. Não vai levar mais que um minuto.

            - Antes, preciso transcrever a gravação de Chloe. Ela estava querendo me dizer alguma coisa, tenho certeza.

            - Já está na hora de meu descanso, Ray. Assim que você decifrar a mensagem de Chloe, troque de lugar comigo e eu vou estudá-la.

 

            Chang havia chegado a Petra no meio da tarde, e Naomi ofereceu-se para levá-lo a conhecer o lugar.

            - Vou deixar um recado no centro de tecnologia para que eles nos avisem quando receberem alguma notícia sobre Chloe - ela disse -, mas só quero que você conheça o centro por último, está bem?

            Ele encolheu os ombros.

            - Abdullah pediu que levassem suas malas a sua nova casa, que fica mais ou menos perto da dele. Ele vai acom­panhá-lo para que você possa arrumar suas coisas. Eu passo depois por lá para darmos o primeiro giro por esse lugar.

            Chang estava determinado a não ficar dependente de uma só pessoa. Principalmente de Naomi. Ela ainda era uma adolescente. Ele já tinha 20 anos. E, embora não houvesse dúvidas quanto à inteligência e conhecimentos técnicos de Naomi, eles iam trabalhar juntos durante um ano. Para que complicar as coisas?

            Mas, mesmo assim... ela era muito bonita. Pele morena e belos olhos escuros que se destacavam por causa de seus cabelos longos e pretos. Para Chang, era difícil não ficar olhando para ela. Naomi tinha um sorriso lindo e tímido e parecia muito simpática e prestativa. Ele nunca havia tido uma namorada, apenas garotas pelas quais se interessou no curso de segundo grau, mas que jamais souberam desse seu segredo.

            Enquanto se dirigia à sua casa pré-fabricada em com­panhia de Abdullah, Chang notou que o jordaniano parecia conhecer a todos e queria que todos conhecessem o recém-chegado. Eles trataram Chang como se ele fosse um rei, mas o rapaz estava tão envergonhado pelo fato de portar a marca de Carpathia que cobriu a testa com um boné de beise­bol. Seu desejo era retirar o boné e curvar-se a cada cum­primento, mas não podia.

            - O nosso homem de dentro do palácio - era assim que Abdullah o apresentava, e o povo o abraçava ou o cum­primentava com um aperto de mão. Muitos o abençoaram.

            Para Chang, aquilo era um prelúdio do céu.

            - Eu gostaria de ter a oportunidade de conhecer o Dr. Ben-Judá e o Dr. Rosenzweig - ele disse.

            - Oh!, sinto muito - disse Abdullah. - Eu devia ter-lhe contado. Eles pediram desculpas por não poder recepcioná-lo como gostariam. Estão reunidos com os anciãos tratando do assunto do desaparecimento de Chloe, e haverá uma reunião do conselho mais tarde. Você está convidado para saborear o maná com eles amanhã cedo.

            - Ótimo. Obrigado, Sr. Smith. Quero fazer uma pergunta ao Dr. Ben-Judá.

            - Creio que o pai de Naomi também gostaria de conhecer você.

            Pela inflexão da voz de Abdullah, Chang imaginou que ele estivesse insinuando alguma coisa, mas não mordeu a isca.

            - Eu também quero conhecê-lo - ele disse.

            Quando eles chegaram ao setor das casas pré-fabrica­das, trazidas e montadas por um grupo dirigido por Lionel Whalum, Abdullah mostrou a sua em primeiro lugar.

            - Você pode ver que gosto de ficar perto do chão. Eu me sento do lado de fora, perto de uma fogueira, para comer o maná. Lá dentro, durmo no chão. Se este não for o seu cos­tume, não é necessário fazer o mesmo que eu. Sua casa tem mais ou menos o mesmo tamanho do apartamento em que você morava no palácio, mas, evidentemente, é muito mais simples e tem menos mobília.

            - É perfeita - disse Chang quando eles chegaram. Suas malas estavam perto de uma cama de lona. Os computadores e as caixas de arquivos haviam sido deixados perto da porta.

            - Esta noite vou dormir como um homem livre, sem me preocupar com nada, a não ser com o bem-estar de nossos companheiros.

            - Vou deixá-lo sozinho para você desfazer suas malas. Se precisar de alguma coisa, sabe onde fica a minha casa. Alguma pergunta?

            - Apenas uma. Estou um pouco nervoso a respeito do maná. Todos daqui gostam?

            - Sim, gostam. E tenho certeza de que você também vai gostar. Imagine só, receber alimento do Rei. Sim, o maná serve apenas para sustentar, e tem a aparência de pão. Mas vem das cozinhas do céu. Existe coisa mais gloriosa que isso? Recebemos uma porção pouco antes do pôr-do-sol, por­tanto você vai saber se gostou ou não antes de se encontrar com os doutores para o desjejum amanhã cedo.

            Meia hora depois, quando já havia arrumado suas coisas do jeito que queria, Chang ouviu uma batida na porta.

            - Entre! - ele disse, mas ninguém entrou. - Está aberta! Nada.

            Chang abriu a porta e viu Naomi.

            - Entre, entre!

            - Ah!, eu não devo - ela disse. - Em nossa cultura, isso é impróprio.

            - Sinto muito.

            - Com o tempo, você vai aprender. Venha, quero lhe mostrar Petra.

            - Alguma notícia de Chloe? - ele perguntou assim que começaram a caminhar.

            Ela sacudiu a cabeça.

            - O final não vai ser bom, você sabe.

            - Este é o meu medo - ele disse. - Mas vamos esperar e orar.

            Naomi contou que a cidade era tão grande que levaria dias para conhecê-la inteira.

            - Vamos ter um sistema de TV avançado perto do centro de tecnologia. Primeiro vou lhe mostrar o Tesouro, depois alguns túmulos na redondeza. São muitos. Por último, quero levá-lo ao lugar alto onde o míssil caiu e a fonte ainda bor­bulha, fornecendo água diariamente para mais de um milhão de pessoas. Se eu calculei bem o tempo, devemos estar perto do pôr-do-sol, e poderemos saborear o maná com água dire­tamente da fonte.

            Chang não estava acostumado a essas caminhadas e subidas, portanto ficou feliz quando cada um deles entrou em um veículo pequeno de quatro rodas. Ele ficou deslum­brando diante da magnífica arquitetura de Petra e gostaria de saber como alguém foi capaz de escavar estruturas tão maravilhosas naquelas rochas sólidas.

            Quando, finalmente, eles chegaram à crista do lugar alto, em que a fonte caía em forma de cascata dentro de cisternas e aquedutos que levavam a água para a área inteira, Naomi desligou o motor de seu veículo e pediu a Chang que fizesse o mesmo.

            - Você está com sede? - ela perguntou.

            - Muita. Mas procuro me acostumar a não ficar preocu­pado com alguém que esteja me olhando.

            - Não acredito. Você quer beber água das minhas mãos? Chang, normalmente esperto e petulante, apenas sorriu.

            - Desde que sua cultura permita.

            Ela se ajoelhou, lavou as mãos na correnteza e sacudiu-as para secá-las. Chang fez o mesmo. Ela o levou até um local mais próximo do centro da fonte.

            - Pronto? - ela perguntou.

            Ele assentiu com a cabeça. Naomi fez uma espécie de cuia com as mãos e enfiou-as na água. Em seguida, aproxi­mou-as do queixo dele.

            - Rápido - ela disse, rindo. - Minha mão não é imper­meável.

            Ele abaixou a cabeça e sorveu um enorme gole. Sua gar­ganta estava seca. E embora a água estivesse apenas alguns graus mais fria que o ar, parecia gelada. Ele riu, tossiu e disse:

            - Mais.

            Depois que ele tomou outro gole, ela disse:

            - Agora é a minha vez.

            Chang também fez uma espécie de cuia com as mãos e pegou um pouco de água para ela beber.

            - Satisfeita? - ele perguntou quando suas mãos ficaram vazias.

            Naomi assentiu com a cabeça, e ele limpou com as mãos a poeira que estava sob os olhos dela. Em seguida, abriu as mãos e passou-as levemente pelos cabelos da moça.

            Naomi fechou os olhos, levantou o rosto para receber os raios do sol poente e abriu os braços com as palmas das mãos para cima.

            - O maná está chegando, Chang. Receba seu pão diário que vem do Deus do céu.

            Chang deu um passo para trás, olhou para cima e estendeu os braços. Dos céus, começaram a cair pedacinhos de pão macio, como se fossem neve, que cobriram toda a área. Lá embaixo, a multidão de um milhão de pessoas começou a sair de suas casas com jarros e cestos, para recolher o alimento que comeria no jantar.

            - Fazemos como está escrito na Bíblia - disse Naomi. - Pegamos apenas a quantidade necessária, sem guardar nada, porque ele se estraga. E se o guardarmos, demonstra­mos falta de fé em Deus para supri-lo todos os dias.

            Chang sentou-se ao lado dela e colocou o maná na palma da mão.

            - Você pede a Deus que abençoe o alimento que Ele próprio nos manda? - ele perguntou.

            Ela riu.

            - Você gostaria que eu fizesse isso?

            - Por favor.

            Chang tirou rapidamente o boné assim que ela começou a orar.

 

            Ao grande Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e ao Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, oferecemos nosso humilde agradecimento por tudo o que nos proporcionas.

 

            Sua voz de menina era tão pura e doce, e suas palavras tão perfeitas que o rosto de Chang se contorceu quando as lágrimas começaram a brotar em seus olhos.

 

            Obrigada pela proteção que deste à nossa missão hoje e por nos permitires trazer Chang para cá. Que ele possa encontrar paz renovada e descanso em ti.

            Em nome de Jesus te pedimos que abençoes esta dádiva que vem de ti.

            Amém.

 

            Com lágrimas rolando pelo rosto, Chang virou-se e reco­locou o boné. Sentou-se segurando o maná com uma das mãos, incapaz de comer por causa do choro. Naomi tocou-lhe delicadamente no ombro.

            - Deus o abençoe, Chang. Que Ele o abençoe.

            Chang recompôs-se e enxugou o rosto com a mão livre.

            - Não me espere - ele conseguiu dizer. - Coma sua porção de maná.

            - É o que vou fazer - ela disse meigamente. - Eu nunca me canso deste alimento.

            - Que gosto tem? - ele perguntou.

            - Ah!, não sou eu quem deve lhe dizer. Não sei explicar. Chang escolheu duas porções brancas e pequenas e levou-as à boca.

            - E então? - ela perguntou.

            Ele parecia ter emudecido e só conseguiu murmurar:

            - Oh! Oh!

            - É só isso que você tem a dizer?

            Chang enfiou mais alguns bocados na boca.

            - Oh!

            - Pelo jeito, você aprovou.

            - Senti gosto de mel. Claro, tem gosto de mel.

            - Sim.

            - O sabor é doce, parecido com o de bolo de mel. E são nutritivos. Gostaria de comer mais, porém já estou satisfeito.

            - Imagine só - disse Naomi. - Recebemos três porções por dia, e elas são suficientes para nos sustentar durante 24 horas.

            - É um milagre.

            - Êxodo 16.31 diz: "Deu-lhe a casa de Israel o nome de maná; era como semente de coentro, branco, e de sabor como bolos de mel."

            - Estou impressionado - disse Chang. - Você decorou o Antigo Testamento inteiro?

            Ela riu.

            - Quem me dera! Mas você sabe que nos tempos de minha infância não o chamávamos de Antigo Testamento. Chamávamos de Bíblia. Eu a estudava todos os dias. Con­tinuo a fazer isso, mas agora é diferente. Agora eu conheço Deus de verdade.

            - Eu também costumo memorizar trechos da Bíblia - disse Chang. - Mas nunca tive uma. Cresci ateu e leio a Bíblia na internet.

            - Você decora os textos?

            - Não é assim que todo mundo faz? Em suas mensagens diárias, o Dr. Ben-Judá nos adverte a decorarmos trechos bíblicos.

            - E quais você está decorando?

            - O livro de João, no Novo Testamento. Estou no capítulo três. Sou muito lento.

            - Você já decorou até esse ponto? - ela perguntou. - Está muito bom.

            - Acho que sim. Mas não faça um teste comigo. Bem, pode me pedir que recite o capítulo três, porque foi exata­mente aí que parei, mas...

            Chang não prosseguiu. Ele poderia ficar sentado ao lado de Naomi a noite inteira, mas ela se levantou e sorveu outro gole da água da fonte.

            - Eu vou lhe mostrar mais uma coisa - ela disse, aproxi­mando-se de Chang e estendendo a mão para ajudá-lo a levantar-se. - Você prestou atenção em minha roupa?

            Ele encolheu os ombros e movimentou a cabeça afirma­tivamente. Será que havia prestado atenção? Apenas lançara alguns olhares furtivos para ela. Ele não sabia que nome dar àquela indumentária. Parecia mais um manto que um ves­tido, semelhante aos trajes das mulheres dos tempos bíbli­cos, conforme ele sempre imaginou.

            - É a única roupa que uso aqui. Estou com ela desde o dia em que chegamos.

            - Parece nova.

            - Eu a lavo todas as noites, e ela se renova a cada manhã, da mesma forma que a misericórdia do Senhor.

            - Outra passagem que você decorou?

            - Sim. Esta é uma passagem que meu pai me ensinou depois que sobrevivemos ao ataque das bombas.

            - Você estava aqui naquela época?

            - Fomos os primeiros a chegar.

            - E como foi?

            - Como se fosse um sonho, Chang. Às vezes, não consigo imaginar que aquilo aconteceu.

            - Qual é a passagem?

            - Lamentações 3.22-24: "As misericórdias do Senhor a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericór­dias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto esperarei nele."

            - É linda.

            - Sim, muito linda. Bem, prometi a meu pai que voltaría­mos ao centro de tecnologia antes do pôr-do-sol. Fica perto do anfiteatro, portanto vamos ter de nos apressar.

            - Você vai terminar de me contar sua história? - ele per­guntou.

            - Claro. E eu quero ouvir a sua. Talvez amanhã, depois do desjejum.

            Para Chang, o centro de tecnologia era exatamente o que ele esperava encontrar ali. O único fato inusitado foi ver a enorme rede de computadores instalada em uma construção cavada nas pedras. Mas, agora, ele estava muito mais impressionado com Naomi do que com equipamentos de informática.

            - Você é capaz de encontrar o caminho de casa sozinho? - ela perguntou. - Aqui, nós nos recolhemos cedo e nos levantamos quando o sol nasce.

            - Acho que sim, mas prefiro não correr o risco - ele disse.

            - Por ser meu primeiro dia aqui, ainda necessito de um guia.

            - Vou encontrar alguém. Aguarde um instante.

            - Naomi! - ele disse. - Estou brincando. É claro que sei o caminho. Só queria que você me acompanhasse até lá.

            - Em minha cultu...

            - Já sei, não é apropriado. Que tal eu levá-la até sua casa?

            - Isso seria aceitável e um ato de cavalheirismo de sua parte. Meu pai está me esperando, e já estará escuro quando eu chegar. Ele vai gostar de ver alguém me acompanhando.

            Assim como Abdullah, o pai de Naomi tinha acendido uma pequena fogueira do lado de fora da casa. Ele era um homem alto, de silhueta arredondada e tinha barba crespa e espessa. Chang aproximou-se timidamente, tirou o boné no escuro e curvou o corpo.

            - Chang Wong - ele disse.

            O pai de Naomi segurou-o pelos ombros e encostou a face direita no rosto de Chang, e depois a esquerda.

            - Eleazar Tiberias - ele disse, com voz grossa e firme.

            - Talvez você conheça o meu lago.

            Chang coçou a cabeça e olhou para Naomi, e esse gesto fez o pai e a filha acharem muita graça.

            - Já ouvi falar muito de você, jovem - disse o ancião.

            - Sou grato por você ter cuidado de minha filha e espero conhecê-lo melhor.

            No caminho até sua casa, Chang respirou fundo o ar fresco da noite. A fogueira de Abdullah já estava se extin­guindo, e a roupa de Chang ficou impregnada de fumaça. Ele se sentia tão livre, tão feliz e tão apaixonado que, por certo, não seria capaz de dormir.

            Em casa, ajoelhou-se ao lado da cama, sem saber exatamente como orar. Procurou lem­brar-se do versículo citado por Naomi, mas só se lembrava destas palavras: "Grande é a tua fidelidade", portanto repe­tiu-as várias vezes enquanto se ajeitava na cama.

            Através da janela aberta, ele contemplou o céu tão límpido que parecia ser possível contar todas as estrelas do universo. Mas em pouco menos de 60 segundos, ele não viu mais nada, a não ser Naomi em seus sonhos.

 

            Mac analisava os rabiscos de Rayford.

            - Você transcreveu todas as palavras dessa conversa, não?

            - Eu não sabia mais o que fazer - disse Rayford. - Está claro que a dica está naquele assunto do Colorado.

            - Você se lembra de alguma coisa de lá, Ray?

            - Faz muito tempo, Mac. Foi uma daquelas férias de verão que a gente costuma viajar com os filhos pequenos. Raymie ainda não era nascido. Fomos só nós três.

            - Sim, mas depois de falar sobre Buck e Kenny, Chloe diz que a culpa foi toda dela. E essa história de estar correndo... ela não estava falando sério, estava?

            - A uns 50 quilômetros de casa? Não. Ela estava tentando despistar a CG, é claro, mas eles não vão cair nessa.

            - Ela promete que não vai entregar ninguém, e eu acredito piamente nisso.

            - Eu também. Eles não vai extrair informação alguma de Chloe.

            - Aí ela diz que a viagem foi "muito especial, e eu gos­taria que todos nós pudéssemos voltar para lá". Mas você disse que só vocês três foram.

            - Correto. Então, o que mais pode ser? Será que ela quer que todo o pessoal de San Diego vá para o Colorado?

            - Não pode ser - disse Mac. - Ela diz que sabe que a CG está ouvindo a conversa. Mas diz também que seu "maior sonho é podermos ir todos para lá agora, o mais rápido pos­sível". Em que parte do Colorado vocês estiveram, Ray?

            Rayford sacudiu a cabeça.

            - Eu não me lembro. Você já esteve lá?

            - Várias vezes - disse Mac. - Que cidades você visitou?

            - Apenas Springs e Denver, acho.

            - Você viajou na estrada de ferro com trilhos engrenados?

            - Pikes Peak, claro.

            - O lugar que tem aquelas enormes formações rochosas?

            - Sim, o Jardim dos Deuses.

            - Aquele lugar dos cowboys, o rancho?

            - Flying W, uma autêntica cidade do velho oeste, com comidas e trajes típicos, claro. Eu jamais deixaria de visitar.

            - E a Academia de Força Aérea?

            - Só passei por lá. Não tive tempo de visitá-la. Estávamos indo a um concerto.

            - Onde?

            - Nos arredores de Denver. Um concerto ao ar livre. Pare­cia que a subida não acabava nunca, e eu tive de carregar Chloe. Aquela altitude me deixou com a respiração curta.

            - Red Rocks [Pedras Vermelhas]?

            - Sim! Exatamente. Ouvimos música country. Chloe adorou.

            - Você ainda não entendeu, Ray?

            - Entendeu o quê?

            - O que ela queria lhe dizer?

            - Não, mas acho que você já entendeu, Mac. Fale.

            - Red Rocks.

            - Foi o que eu disse.

            - Hã-hã.

            - Ah! Petra! A CG está tentando encontrar a casa secreta, e nós temos de tirar o pessoal de lá e levar todos para Petra.

 

            De manhã, Abdullah conduziu Chang até uma área perto do local onde o conselho dos anciãos se reunia diariamente. O chão por todo o caminho estava coberto de maná fresco, e muitas pessoas estavam saindo de suas casas e recolhendo-o para o desjejum.

            - Não vou lhe fazer companhia hoje - disse Abdullah -, porque a Srta. Naomi necessita de mim no centro de infor­mática. Ela gostaria que você fosse até lá para ajudá-la, quando puder.

            - Algum problema?

            - Receio que sim.

            Chang parou. Abdullah parecia muito tristonho e taci­turno.

            - O que houve?

            - Prefiro não estragar seu desjejum, mestre Chang.

            - Estragar meu desjejum? Estou indo ao encontro de meus heróis, e aqui posso ir aonde quiser e fazer o que quiser, e, mesmo assim, você me diz que existe uma coisa que pode arruinar meu dia?

            - Por favor, vamos nos apressar. Não podemos chegar atrasados.

            - Eu preciso saber Sr. Smith. Não me diga que a notícia se refere a Chloe Williams.

            - Ela está viva, por enquanto. A CNNCG está espalhando as mais infames mentiras a respeito da Sra. Williams, mas todos imaginam que a CG não vai executá-la enquanto esti­ver achando que vai ser capaz de extrair informações dela.

            Chang sacudiu a cabeça, enquanto continuavam a andar.

            - Teria sido melhor se ela tivesse fingido estar prestes a abrir a boca - ele disse -, pelo menos dar a entender que forneceria alguma informação, do que deixar claro desde o início que não vai cooperar.

            - Você conheceu a Sra. Williams?

            - Claro que não.

            - Mas tratou com ela por telefone e pela internet o sufici­ente para conhecer...

            - Conhecer a personalidade dela. Sim. Além de não dizer nada, ela também vai gostar que eles saibam disso.

            - Meu medo - disse Abdullah - é que isso reduza as chances dela com a CG e, por conseqüência, reduza sua vida.

            - Certamente o Comando Tribulação de San Diego está planejando invadir o local para resgatá-la.

            - Não sei. Pelo que conheço de Cameron, ele deve estar querendo invadir o local sozinho. George Sebastian vai querer liderar essa missão, e ele é o homem preparado para isso. Mas não será o mesmo que surpreender um bando de amadores na mata, como eles fizeram na Grécia. Você deve imaginar que a CG de San Diego está alerta a respeito disso.

            - Você não está me contando tudo, está, Sr. Smith?

            - Prefiro que você tome conhecimento do restante da história no centro de tecnologia. Mas acho que Naomi não está ansiosa por lhe contar.

            Chang parou novamente e colocou a mão no ombro de Abdullah.

            - Perdoe-me a familiaridade - ele disse -, mas não me esconda informação alguma. Por favor, eu preciso saber. Não quero chegar lá despreparado.

            Abdullah parecia estar analisando o chão. Parou e pegou um punhado de maná, sem levá-lo à boca.

            - A CNNCG disse que Chloe denunciou Albie e que ele cometeu suicídio para não ser preso.

            - Ora, vamos, Sr. Smith. Sabemos que isso não é verdade. Ela jamais faria...

            Abdullah segurou Chang pelo cotovelo e insistiu para que continuassem a andar.

            - Ninguém suspeita que Chloe tenha feito isso, e todos os que conhecem Albie não acreditam que ele se matou.

            - Então, qual é o proble...

            - Há evidências de que Albie pode estar morto. Ele e o Sr. McCullum eram amigos íntimos, conforme você sabe, e quando Mac soube da notícia, procurou entrar em contato com Albie de várias maneiras.

            - Pode ter sido uma coincidência. Talvez estivesse longe do telefone. Talvez...

            - Ele nunca fica longe do telefone. Mac sempre conseguiu falar com ele quando precisou.

            - Mas Mac e o capitão Steele já devem estar em San Diego. Talvez o problema tenha sido a distância e...

            Agora foi a vez de Abdullah parar.

            - Já estamos quase chegando. O Dr. Ben-Judá e o Dr. Rosenzweig estão aguardando por você depois da próxima curva. O Sr. Tiberias fará as apresentações e participará do desjejum. As refeições são rápidas aqui porque comemos apenas um alimento acompanhado da água da fonte.

            - Obrigado, Sr. Smith. Vou continuar acreditando que Albie ainda vai ligar.

            - Muito bem, se é assim que você pensa... Alguém aten­deu ao telefone de Albie, mas não foi ele. Conforme você sabe, ele estava trabalhando em uma missão perigosa e deve ter cometido o erro terrível de ir sozinho. O homem que atendeu ao telefone disse a Mac que, se ele quisesse saber notícias de seu amigo, deveria assistir ao noticiário. Nós vimos e gravamos o noticiário, mestre Chang. Naomi vai lhe mostrar depois do desjejum. Agora vá.

 

            Às 21 horas em San Diego, Chloe estava deitada na cama de aço de sua cela, chorando baixinho. Depois que o sol se pôs, a sala maior mergulhou na escuridão, e agora a única claridade vinha da TV ligada no último volume. Ninguém aparecera depois que o falso agente penitenciário voltou para recolher o que sobrou de seu telefone. Ela ouvira o noticiário mais de uma dúzia de vezes - somente porque não tinha escolha - mas recusava-se a ver as ima­gens.

            Chloe não se importava com as mentiras. Nenhum judaísta acreditaria naquilo. E, se alguém acreditasse, Buck esclareceria tudo na próxima edição de A Verdade. Mas Albie, pobre e precioso Albie. Ela esperava que a notícia de sua morte fosse mentira e orou por isso, mas como eles foram capazes de produzir uma imagem tão vivida de um homem morto tão parecido com ele?

            Ela não havia comido nada desde as 19 horas do dia anterior. Dobrou os joelhos até encostá-los no peito e passou os braços em volta das canelas. Balançando o corpo, ela tentava acalmar a dor no estômago. Procurava consolar a si mesma imaginando a operação que George, Buck e seu pai estariam planejando naquele exato momento.

            Chloe procurou desviar os pensamentos de Kenny, porque a saudade que ela sentia dele era tanta que seus braços chegavam a doer. Será que o veria novamente? Como Buck estaria respondendo às perguntas do filho a respeito da mãe? Quem cuidaria de Kenny quando Buck estivesse ausente?

            Ela gostaria de saber se o sono aliviaria a angústia da fome e se seria possível dormir. Aprendera muita coisa com George e sabia que qualquer tentativa de resgate teria de ocorrer quando a CG menos esperasse, portanto isso poderia demorar dias, talvez muito mais tempo. Ela teria de aprender a dormir. Precisava manter a sanidade apesar do modo que estava sendo tratada.

            Todos os vestígios dos direitos dos prisioneiros haviam desaparecido desde a ascensão de Nicolae Carpathia. - Aqui estamos nós, faltando um ano para o fim da história, e podendo ser morta em minha cela por não ter a marca.

            Sozinha, com fome, com saudade de seus queridos, chorando por Albie, Chloe fechou os olhos no escuro, tapou os ouvidos e começou a cantarolar baixinho para não ouvir o som que vinha da TV. E foi por causa disso, ela imaginou, que só ouviu a chegada da agente penitenciária do turno da noite quando a mulher já estava em pé perto de sua cela. Chloe estremeceu e sentou-se rapidamente, aterrorizada diante da silhueta volumosa.

 

            O pai de Naomi cumprimentou Chang da mesma maneira da noite anterior, encostando as duas faces no rosto dele. Chang curvou-se, mas não retirou o boné à luz do dia.

            - Um conselho ao sábio - murmurou o ancião Tiberias a seu ouvido durante o abraço. - Em qualquer cultura, é gros­seria não tirar o chapéu na presença de um ancião.

            - Perdoe-me, senhor - Chang disse suavemente -, mas se eu tirar o boné vou revelar uma desgraça.

            Eleazar Tiberias fechou os olhos e assentiu com a cabeça, como se já conhecesse o problema de Chang.

            - Eu entendo - ele disse. Em seguida, pegou um cesto repleto de maná. - O Dr. Ben-Judá estará aqui dentro de alguns instantes, mas antes quero apresentar-lhe o Dr. Rosenzweig. Venha, venha.

            Chang acompanhou o homem até a casa dele e ficou surpreso quando viu o pequenino Chaim Rosenzweig, que mais se parecia com Albert Einstein do que com o famoso Miquéias que afrontara o potentado. Aparentemente, fazia muito tempo que Rosenzweig chegara a Petra. Seus cabelos estavam compridos e a pigmentação de sua pele já havia retornado ao normal.

            Rosenzweig levantou-se rapidamente, demonstrando muita energia para um homem de sua idade.

            - Então, você é Chang Wong, o gênio espião.

            - Bem, eu...

            - Não se faça de modesto, meu jovem amigo. Você tem sido usado por Deus. E de maneira muito poderosa! Ah! Quantas recompensas aguardam por você no céu. - Chaim segurou Chang pelo braço e puxou-o para perto de si.

            - Venha, vamos esperar o Dr. Ben-Judá do lado de fora. Eleazar, faça companhia a nós, por favor. Conforme você sabe, o Dr. Ben-Judá é o líder daqui, embora tenha sido meu aluno durante muitos anos. Ah! sim, no mínimo 20 anos. Fui seu professor há muitos e muitos anos. É verdade. Bem, Sr. Wong, seja bem-vindo, seja bem-vindo, seja bem-vindo. É uma pena estarmos vivendo um dia triste por causa da morte de um de nossos membros e da prisão de outro, mas nos sentimos felizes por tê-lo em nossa companhia.

            Ao longe, Chang viu a comoção causada pela chegada do Dr. Ben-Judá. A seu lado, havia vários anciãos, e todos estavam vindo do centro de tecnologia.

            O Dr. Rosenzweig confidenciou:

            - Aqueles homens não participarão de nossa reunião. Não são guarda-costas. Não necessitamos de guarda-costas aqui, claro. Mas o Dr. Ben-Judá é tão popular e querido que está sempre rodeado de anciãos, por onde quer que ande. Todos querem um momento de seu tempo, mas esses momentos estão se acumulando. Eles desejam expressar gra­tidão e amor, porém o Dr. Ben-Judá tem muitas coisas para fazer e está assoberbado.

            - Para mim, é uma honra tomar um pouco do tempo dele - disse Chang. - Assim como todos aqui, quero um momento de seu tempo.

            - Ah! Confie em mim, meu jovem amigo. Eu o conheço muito bem, e sei que ele está aguardando esta oportunidade.

            Os anciãos dispersaram-se quando o Dr. Ben-Judá chegou.

            - Lamento muito ter adiado esta reunião e, mesmo assim, ter chegado atrasado - ele disse. - Mas não houve condição. Bem, quero ser apresentado ao nosso morador mais recente.

            Eleazar Tiberias riu alto quando o Dr. Rosenzweig disse:

            - Ah!, creio que você já sabe quem ele é. Dr. Tsion Ben-Judá, apresento-lhe Chang Wong.

            O Dr. Ben-Judá evitou o tradicional cumprimento judeu. Curvou o corpo da mesma forma que Chang, deu um passo a frente e abraçou o rapaz com força.

            - Sente-se, sente-se - ele disse. - Sente-se aqui entre mim e o Dr. Rosenzweig. Anos atrás ele foi meu profe...

            - Eu já contei a ele, Tsion - disse Chaim. - Vamos orar e comer.

            Tsion inclinou o corpo na direção de Chang e falou em voz baixa, mas fez questão que suas palavras fossem ouvi­das por Chaim.

            - Os idosos não têm muita paciência!

            Tsion segurou a mão de Chang e a de Chaim ao mesmo tempo.

            - Eleazar, por favor, vamos dar as mãos.

            Depois que os quatro estavam de mãos dadas, o Dr. Ben-Judá olhou para cima e Chang curvou a cabeça.

            - Grande Pai, criador, mestre e amigo - ele começou a orar -, neste momento em que iniciamos mais um dia que precede o glorioso aparecimento de nosso Senhor e Salvador, nós abençoamos o teu nome. Somos gratos a ti pelo nosso pão diário. Sentimo-nos humildes quando nos lembramos de onde estávamos poucos anos atrás. O Sr. Tiberias, um homem de negócios e dedicado religioso. O Dr. Rosenzweig, um esta­dista, erudito e agnóstico. Eu, um estudioso da Bíblia, mas cego d verdade. E o Sr. Wong, um jovem brilhante e ateu. Quem a não ser um Deus bondoso nos daria uma segunda chance e nos redimiria mediante o sangue de seu precioso Filho? Nós te louvamos em nome dele.

 

            Tsion estendeu o cesto de maná a Chang, que pegou um pequeno punhado. Os homens mais velhos pegaram porções generosas, e Tsion disse:

            - Quero mostrar-lhe como me sirvo de minha provisão diária. Sou grato porque esta refeição não consome meu tempo, mas tenho de admitir que sinto falta dos rituais que, antigamente, acompanhavam minhas refeições. Em geral, as refeições aqui duram cinco minutos.

            Ele colocou uma porção de maná na palma da mão direita, passou delicadamente os dedos ao redor e formou um círculo com o polegar e o indicador.

            - Como se fossem amendoins, não é mesmo? - ele prosseguiu, sorrindo. Em seguida, derrubou a porção inteira na boca. - Um punhado - ele disse, mastigando -, e já estou satisfeito.

            O Sr. Tiberias levantou-se, colocou as sobras dentro de um cesto e atirou-as ao vento, e elas se espalharam pelo chão.

            - Dr. Ben-Judá - perguntou Chang -, é verdade o que estão dizendo sobre Albie?

            - Que ele está morto? Acho que sim - respondeu Tsion. - Suicídio? Não, nenhum de nós acredita nisso.

            Após alguns instantes, Chaim disse:

            - Tsion, nós precisa­mos ir.

            - Ah!, senhor - disse Chang ao Dr. Ben-Judá -, eu hesitei em lhe fazer uma pergunta porque fiquei sabendo que o senhor é muito ocupado e que todos querem um pouco de seu tempo...

            - Por favor, Chang. Temos uma grande dívida com você. Pergunte qualquer coisa. Se eu souber a resposta, será um prazer.

            - Eu necessito ficar a sós com o senhor. Por favor, não se ofenda, Dr. Rosenzweig.

            - De maneira alguma. O Sr. Tiberias e eu temos de pre­parar nossa reunião.

            Tsion conduziu Chang até a parte traseira de uma grande rocha.

            - O que posso fazer por você?

            Chang tirou o boné, deixando à mostra o número 30 em sua testa e a linha fina e rosada onde o biochip da Comuni­dade Global havia sido inserido. Ele viu um ar de piedade nos olhos de Ben-Judá.

            - Confesso que é estranho, Wong, ver essa marca e o selo dos crentes em sua testa.

            - Não suporto olhar no espelho - disse Chang. - Não tenho coragem de tirar o boné aqui. Sim, esta marca me manteve vivo e sim, tive acesso a lugares aonde nenhum crente imaginou chegar perto. Mas eu me sinto ridículo, detestável. Eu a odeio.

            - Você foi obrigado a recebê-la, filho. Não teve escolha nem culpa por...

            - Eu sei de tudo isso, senhor, mas gostaria que ela desa­parecesse. É possível?

            - Não sei.

            - Senhor, eu leio seus ensinamentos todos os dias. O senhor diz que, para Deus, tudo é possível. Por que Ele não faz esta marca desaparecer agora?

            - Não sei, Chang. Não quero prometer que Ele fará isso.

            - E se eu acreditar que Ele fará? E se o senhor acreditar?

            - Nós dois podemos ter fé, Chang. Porém, por mais que a gente acredite, confie e estude, ninguém pode afirmar que conhece a mente de Deus. Se você quiser que eu ore a Deus para que Ele a elimine, vou orar. E creio que Deus pode e vai fazer aquilo que Ele deseja. Mas quero que você prometa que vai acatar a decisão dele, seja ela qual for.

            - Claro.

            - Não diga isso precipitadamente. Sei que você deseja muito retirar a marca, mas se Deus não atender a esse pedido, não quero ver sua fé ameaçada.

            - Vou ficar desapontado e sem entender o por que, mas vou aceitar. O senhor poderia orar por mim?

            O Dr. Ben-Judá parecia analisar o rosto de Chang. Com­primiu os lábios e desviou o olhar. Finalmente, disse:

            - Vou orar. Venha, sente-se aqui e espere. Por mais que você deseje que esse assunto seja tratado reservadamente, prefiro orar com os homens de Deus. Você se importa?

            - Claro que não. Eu só não queria que eles me vissem com esta...

            - Não há como evitar. Faz parte do preço a ser pago.

            Chang assentiu com a cabeça, e Tsion afastou-se para chamar Eleazar e Chaim. Quando chegaram, eles olharam tristemente para Chang, que estava sentado em uma rocha, chorando. Tsion contou-lhes rapidamente o problema e pediu que orassem com ele. Os três aproximaram-se. Ben-Judá ficou no meio, Tiberias à sua esquerda e Rosenzweig à sua direita.

            Tsion colocou a mão esquerda na parte posterior da cabeça de Chang e firmou o pulso direito em sua testa. Os outros dois seguraram as mãos de Chang e colocaram as mãos livres sobre seus ombros. Chang estremeceu quando aqueles três homens de Deus o tocaram suavemente e sentiu-se amado por eles e por Deus. Seu corpo enrijeceu-se e, depois, relaxou.

            - Deus Criador - Tsion começou a falar de maneira tão suave que Chang mal conseguia ouvir - reconhecemos que criaste este jovem. Tu o conheces e o amas desde antes da formação da Terra. Tu, que és rico em misericórdia, nos amaste mesmo estando nós mortos em nossos delitos, nos deste vida com Cristo e com Ele nos ressuscitaste, e nos fizeste assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar nos séculos vindouros a incomparável riqueza de sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque, pela graça somos salvos, por meio da fé, e isso não vem de nós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus...

            - Agora, Chang Wong, sabemos que você não foi redimido mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha e sem defeito. Por meio de seu Filho, você deve crer em Deus. Ele ressuscitou a Cristo dentre os mortos e o glorificou, para que sua fé e esperança esteja em Deus. Nós estamos aqui reunidos em fé e cremos nisso. Oramos ao Deus para quem nada é impossível, o Deus que nos poupou da mesma forma que poupou Sadraque, Mesaque e Abede-Nego da fornalha do inimigo. E Ele fez isso para mostrar que somos povo seu e que o fogo não tem poder algum sobre nossos corpos; os cabelos de nossa cabeça não foram cha­muscados, nossas roupas não foram afetadas, e o cheiro do fogo não passou sobre nós.

            - Deus, de acordo com tua vontade, nós te suplicamos que retires deste rapaz qualquer sinal do maligno.

            Chang sentia o corpo frouxo, como se cada uma de suas pernas pesasse cem quilos. Cada poro seu transpirava pro­fusamente e ele sentia o suor escorrer-lhe pelo rosto, braços e tronco. As mãos dos homens estavam úmidas, mas eles continuaram imóveis e em silêncio.

            No momento em que Chang sentiu que, se os homens o soltassem, ele escorregaria da rocha, Tsion disse:

            - Obrigado, cavalheiros.

            Eles apertaram os ombros e as mãos de Chang e deram um passo para trás. Agora, Chang estava amparado apenas por Tsion, que continuava com a mão esquerda na parte pos­terior de sua cabeça e a direita sobre sua testa. Em seguida, Tsion escorregou suavemente a mão direita até juntá-la com a mão esquerda que estava atrás da cabeça de Chang.

            Chang abriu os olhos, piscou por causa da luz do sol e olhou firme para o rosto do Dr. Ben-Judá, que também olhava para ele.

            Tsion sorriu.

            - Cavalheiros - ele disse -, o que vocês estão vendo?

            Tiberias inclinou-se de um lado e Rosenzweig do outro.

            - Louvado seja Deus! - exclamou Chaim.

            Eleazar levantou a cabeça e deu uma sonora gargalhada. Sua voz era forte e grossa.

            - Só estou vendo o selo dos crentes! Tenho um espelho em casa. Venha, Chang, você vai ver com os próprios olhos!

 

            Rayford nunca vira Mac tão abatido. Ou tão resoluto.

            - Se alguém matou aquele velho companheiro, vou ter de tomar uma providência, Ray - ele disse. - Pense em alguma coisa que eu possa fazer, que me dê a chance de descobrir tudo. Estou falando sério.

            - Albie e eu também éramos bons amigos - disse Rayford.

            - Eu sei. Parece que sempre o conheci, desde a infância.

            - O que sua intuição está lhe dizendo, Mac? Que isso faz parte da propaganda da CG ou que ele está morto?

            Mac suspirou fundo.

            - Bem, ele não se matou, de jeito nenhum, mas acho que eles o pegaram.

            Rayford usou o telefone de Mac para ligar para Buck a fim de contar-lhe que eles estariam pousando por volta de 22 horas, horário de San Diego.

            - Celular de Buck. Ei, Mac, aqui é George.

            - Bem, este telefone é de Mac, mas quem está falando é Rayford. Como estão as coisas aí, George?

            - Da forma que você imagina. Buck está arrasado. Quere­mos evitar a todo custo que ele vá sozinho até a sede da CG.

            - Vocês podem nos pegar às dez?

            - Dez? A viagem foi rápida.

            - Mais ou menos. Paramos só uma vez. Depois, tivemos de desviar um pouco da rota para jogar meu telefone no mar. Leve Buck com você. Talvez possamos ajudá-lo a acalmar-se.

            - É melhor você convencê-lo a ir comigo. Ele não quer me ouvir e não vai querer me acompanhar.

            - Ele está aí?

            - Está lá embaixo com Kenny. O menino não está con­seguindo dormir sem a mãe.

            - Bem, diga a Buck que é uma ordem minha. Nós quatro precisamos conversar assim que o avião pousar na pista. Alguém pode tomar conta de Kenny?

            - Claro. No momento, há um excesso de babás volun­tárias aqui.

            - Ei, você acha que é muito tarde para ligar para Lionel Whalum, em Illinois?

            - Não. Ele não dorme cedo. Qual é o problema?

            - Descobri qual era a mensagem de Chloe. Ela está con­vencida de que devemos tirar todo o pessoal de San Diego e levar para Petra.

            - É o que eu receava - disse Sebastian.

            - Lionel é o único sujeito que me veio à mente. Ele tem aeronaves suficientes, contatos suficientes e experiência sufi­ciente para fazer uma coisa dessas... e rápido.

            - Este lugar era tão perfeito.

            - Todas as casas secretas que tivemos foram perfeitas até o momento em que deixaram de ser secretas, George.

            - Isso é verdade.

            - Você me faria o favor de ligar para Lionel? Também preciso entrar em contato com Zeke. Veja se ele está pronto para sair da toca e nos ajudar em Petra.

            - Em que você está pensando, capitão?

            - Em uma atividade para Buck fazer para que ele não enlouqueça, e em algo para mim e Mac. Algo que nos deixe sentir que estamos fazendo alguma coisa por Albie.

            - Espero fazer parte disso.

            - Nós não sonharíamos em fazer qualquer coisa sem você, George.

 

            - Cansada dessa TV? - perguntou a agente penitenciária do turno da noite para Chloe.

            - Estou.

            - Espero não ter perdido nada.

            Chloe tinha visto o ajuntamento dos exércitos de todos os países dos Estados Unidos Carpathianos, com exceção da cidade de Nova Babilônia, que quase não foi mencionada no noticiário. Sob a iluminação fraca que vinha da TV, Chloe viu que a mulher era negra.

            - Sou Florence - ela disse, dirigindo-se à TV e desligando-a com seu bastão. - Fui escalada para lhe dar alguma coisa para comer, desde que você tenha se comportado bem. Você se comportou bem?

            - Estou oficialmente com fome, se é isto que você está querendo dizer.

            - Não foi o que eu perguntei, mas tenho uma barra de energia no bolso, se você quiser.

            - Eu quero.

            - Não levou muito tempo para você mudar de idéia. Ouvi dizer que você foi muito arrogante e muito espertinha, como se não precisasse de ninguém, não quisesse nada.

            - Eu só quero continuar viva.

            - Por quanto tempo? É melhor abrir o jogo e contar alguma coisa que Jock possa usar ou, então, não vai tomar seu primeiro banho.

            - E quando vai ser?

            - Daqui a uma semana. Uma semana a partir de hoje.

            - Eu vou ficar uma semana sem tomar banho?

            - Use aquela pia à vontade. Que gosto tem aquela água?

            - Não tem gosto de água.

            Florence soltou uma gargalhada.

            - Não é verdade. E você vai gostar dela. Vai ter de gostar. E vai continuar viva por causa das 250 calorias por dia, mas não por muito tempo.

            - O que mais há por aqui?

            - Ah! Você sabe, alguém vai gostar de você, vai querer tirar uma casquinha. Você sabe do que estou falando.

            Chloe riu. Era a única coisa que podia fazer.

            - Você está achando graça? O que pretende fazer?

            - Prefiro morrer - respondeu Chloe. - Antes, essa gente vai ter de me matar.

            - Você está dizendo isto agora. Mas não vai conseguir me matar. Veja o meu tamanho e veja o seu.

            - Uma de nós não vai sair viva daqui.

            - Conversa fiada. Você vai cantar uma música diferente quando não agüentar com o peso do seu corpo, quando esti­ver fedendo e alguém tirar esse seu macacão.

            - Eu vou avisar desde já, enquanto estou lúcida. Quero que você e todos aqui saibam que vão se arrepender se ten­tarem alguma coisa comigo.

            - Acabou?

            - Sim, e isso inclui Jock.

            - Jock não vai fazer esse tipo de coisa e sabe quando deve olhar para o outro lado.

            - Quando ele olhar para trás, vai encontrar alguém morto. Alguém daqui ou sua famosa prisioneira.

            - Por que você não cede um pouco, moça? Conte alguma coisa a Jock. Ele não vai fazer muitas perguntas. E você vai conseguir coisas que ninguém jamais conseguiu. Entrar aqui sem a marca e continuar viva? Você devia pensar um pouco. Está em posição de negociar.

            - Eles já podiam ter me matado.

            - Não pense que eu não gostaria de fazer isso.

            - Você? Você não me conhece. Eu não quero matar você.

            - Você acabou de dizer que ia me matar, moça, se eu entrasse na cela.

            - É verdade, mas só se você me fizesse alguma malva­deza. Aí, eu teria de me defender.

            - Eu desejo todo o mal do mundo para você. Ou você está do nosso lado ou contra nós, querida.

            - Eu estou contra vocês - disse Chloe.

            - Disso eu já sei. Conte outra coisa.

            - Quero saber de que forma vou receber essas 250 calo­rias.

            - Você sabe. Da barra de energia.

            - É só isso que vou comer?

            - Só isso. Uma vez por dia.

            - Ninguém consegue sobreviver com essa quantidade de calorias.

            - Quem está dizendo é você. É claro que quanto mais coisas você contar, talvez receba mais calorias.

            - Talvez?

            - Talvez, mas acho que não. Já que você não comeu nada hoje, eu trouxe uma barra esta noite. Você só vai receber uma a cada 24 horas. Mas você está sendo muito malcriada. Acho que vou devolver esta barra a Nigel. Ele vai cuidar disso amanhã.

            Chloe queria implorar que a mulher lhe entregasse a barra, mas não faria isso. Ficaria em silêncio, esperando que Florence se divertisse um pouco por estar encarregada de servir o alimento todos os dias.

            - Se você ainda estiver acordada e parar de ser atrevida, vou trazer uma barra lá pela meia-noite. Agora, se quiser ler alguma coisa ou fazer maquiagem, pintar as unhas, seja lá o que for, vou deixar as luzes acesas. E já que a TV está des­ligada, vou providenciar uma música para você adormecer.

            Oh! por favor, nada de luzes acesas e nada de música.

            Florence caminhou com passos bamboleantes até a porta, com os cotovelos apoiados no cinto de couro, que tinha tudo menos uma arma de fogo - bastão, cassetete, molho de chaves, coldre vazio e, por um motivo qualquer, um suprimento de projéteis. Ela acendeu as luzes, todas. Para Chloe, o cômodo estava mais claro do que quando os raios de sol atravessaram as janelas.

            Isso não seria problema. Ela viraria o rosto para a parede. Apesar do profundo arrependimento de ter-se privado de alimento por mais algumas horas, ela conseguiria sobreviver.

            Tentaria orar, pensar em seus queridos, recitar os trechos bíblicos memorizados e aguardar a chegada do sono.

            Mas, de repente, soou uma música, em volume mais alto que o necessário. Alto demais. E, evidentemente, tratava-se do hino "Salve Carpathia" que, pelo jeito, tocaria a noite inteira.

            Buck lhe ensinara a adaptação feita por ele. Aquilo a dis­trairia por alguns minutos. Como era mesmo? Ela começou a recordar-se e, em seguida, a cantarolar baixinho:

            Abaixo Carpathia, seu farsante, velhaco e indecente; Abaixo Carpathia, que pensa enganar toda gente! Vou espernear e lutar até você morrer; E no lago de fogo e enxofre você vai arder. Abaixo Carpathia, seu farsante, velhaco e indecente!

 

            Depois de olhar no espelho de Eleazar Tiberias, Chang correu ao centro de tecnologia, onde saltou e gritou de alegria, exultando em companhia de Abdullah e Naomi.

            Após algum tempo, eles lhe mostraram o vídeo de Albie, que o deixou triste. Apesar de ter saído recentemente do palácio, Chang ficou atônito diante do atrevimento da CG de levar ao ar uma notícia contendo uma mentira tão infamante sobre Chloe. Ele gostaria de saber se os simpatizantes da CG acreditariam em tal besteira. Naomi, porém, lhe mostrou vários e-mails vindos de judaístas do mundo inteiro com­provando que muitas pessoas passariam a necessitar de confirmações e ser lembradas de que o demônio é o pai da mentira.

            - Os redatores desta seção - Naomi disse a Chang - estão elaborando respostas contundentes para as perguntas mais comuns. Elas serão transmitidas para os digitadores, que poderão escolher as mais apropriadas e enviá-las imediata­mente.

            Naomi pediu permissão a um redator para imprimir uma lista atualizada das respostas e mostrou-a a Chang.

            A única parte da notícia que está correta é o nome e a idade de Chloe e o fato de que ela é filha de Rayford e esposa de Cameron "Buck" Williams. Embora seja verdade que Chloe estudou na Universi­dade de Stanford, ela nunca foi radical nem expulsa. Abandonou o curso após o Arrebatamento, mas suas notas alcançaram a média de 3,4 e ela participou ativamente de assuntos relacionados aos estudantes.

            Rayford Steele trabalhou, mesmo depois de con­vertido, como piloto de Nicolae Carpathia e forneceu informações valiosas à causa dos seguidores de Cristo no mundo inteiro. Ele nunca foi demitido e jamais foi acusado de insubordinação ou de embriaguez durante os vôos. Demitiu-se do cargo depois que sua segunda esposa foi morta em um acidente aéreo.

            Os judaístas não são, de forma alguma, os "últi­mos focos de resistência à Nova Ordem Mundial". Muitas facções de judeus e muçulmanos, bem como ex-grupos da milícia, principalmente dos Estados Unidos Norte-americanos, ainda se recusam a aceitar a marca de lealdade ao supremo potentado e são obrigados a viver na clandestinidade por medo de perder a vida.

            Cameron Williams foi, realmente, um famoso jor­nalista americano que também trabalhou diretamente para o potentado, mas ele se demitiu, e não é verdade que "perdeu o emprego em razão de diferenças no estilo de administração". Quanto à revista clandestina impressa e também divulgada pela internet, com "cir­culação limitada", essa afirmação é, naturalmente, uma questão de ponto de vista. A Verdade circula entre as mesmas pessoas que são doutrinadas diariamente pelo Dr. Tsion Ben-Judá, cujo número chega a mais de um bilhão.

            Rayford Steele, Cameron Williams e Chloe Williams não são "procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo". O Comando Tribulação reconhece uma morte perpetrada por Cameron Williams e duas por Rayford Steele, as duas em defesa própria.

            A Cooperativa Internacional de Mercadorias, dirigida pela Sra. Williams, nunca contrabandeou mercadorias, nem as vende para obter qualquer tipo de lucro. Simplesmente faz permutas para beneficiar seus membros.

            O casal Williams não amealhou fortuna alguma no mercado negro. A bem da verdade, a cooperativa existe graças à generosidade de seus membros.

            A Sra. Williams nunca abortou nem perdeu uma criança. Ela engravidou apenas uma vez, e dessa gravidez nasceu um filho, hoje com três anos e meio de idade. O casal Williams jamais alegou que seu filho fosse divino ou que tivesse poderes especiais, embora acreditem sinceramente que Nicolae Carpathia é o anticristo e que Jesus Cristo dominará Carpathia um dia e estabelecerá seu reino aqui na Terra.

            Uma pessoa que teve um contato rápido com a Sra. Williams depois de sua captura confirmou que ela está determinada a não negociar com a CG, e esta é a política do Comando Tribulação. Além de não oferecer nada em troca para evitar a sentença máxima, ela já provou várias vezes no passado sua disposição de morrer pela causa de Cristo.

            Não há prova alguma de que a Sra. Williams tenha fornecido informações sobre o ativista do Comando Tribulação Al Basrah, nem existem provas de que ele cometeu suicídio.

            - Isso vai servir para alguma coisa? - perguntou Chang.

            - Sim, para o nosso pessoal - respondeu Naomi. - Até mesmo as pessoas que já conhecem a verdade querem ser tranqüilizadas. Os outros estão preocupados com o agrupa­mento das tropas no vale de Jezreel.

            - O que está acontecendo em San Diego?

            - Quase nada até a chegada do capitão Steele e do Sr. McCullum, que deve ocorrer a qualquer momento. Estamos nos preparando para a chegada de, pelo menos, 200 pessoas nos próximos dias. Elas poderão nos contar alguma coisa. Você conversou com sua irmã recentemente?

            - Não. Mas tenho pensado em ligar para ela, agora que tenho novidades para contar.

            - Ela também tem novidades para lhe contar.

            - Que novidades?

            - Ah!, não quero estragar a surpresa.

            - Naomi!

            - Não, não posso. Estou ansiosa por conhecê-la e não quero cometer uma falha logo no início e trair a confiança dela.

            - Ela lhe contou alguma coisa que deixou de me contar?

            - Não exatamente. Mas minha função não permite que eu passe informações que outras pessoas não devem saber.

            - Por exemplo?

            - Mensagens aos líderes. Em vez de pedirmos que eles venham ao centro e as leiam diretamente na tela do computador, nós as imprimimos e as entregamos pessoalmente.

            - E foi numa dessas mensagens que você ficou sabendo alguma coisa sobre minha irmã que ela não quis me contar?

            Naomi assentiu com a cabeça.

            - Bem, eu posso resolver isso rapidamente - ele disse, pegando seu celular. - E quando você terá alguns minutos para mim?

            - Pode ser agora - ela respondeu. - Mas tenho apenas alguns minutos. O dia de hoje vai ser muito agitado.

            - Você está me devendo uma história.

            - A minha história, você quer dizer? A história diz res­peito a meu pai e a mim, mas, como não é longa, vou ter tempo para contá-la.

            - Voltamos a conversar daqui a dez minutos - disse Chang, digitando o número do telefone da irmã.

            - Alô, Chang - disse Ming. - Perdoe-me por estar sussur­rando, mas estou tomando conta de Kenny Bruce, e só agora ele conseguiu dormir.

            - Eu só queria saber como você está e como vão as coisas aí.

            - Tenho certeza de que você sabe.

            - Sim. Tenho novidades para você.

            - Conte-me, irmão.

            - Deus eliminou a marca da besta de minha testa.

            - Louvado seja Deus! Quero que me conte tudo! Estou ansiosa para ver você novamente.

            Ele contou o que acontecera.

            - Foi maravilhoso demais, Chang. Que pena isso ter acon­tecido em um dia tão triste.

            - Sim, e você também tem uma novidade para me contar, não?

            - Do que você está falando?

            - Não faço idéia. Foi só um palpite.

            - Ah!, Chang. Ree me pediu em casamento, e eu pedi ao Dr. Ben-Judá que realize a cerimônia quando chegarmos aí.

 

            - Vou fazer o reconhecimento da área - disse Buck -, para ver se eles poderão aterrissar com segurança.

            George, sentado ao volante do Hummer, olhou de esguelha para Buck.

            - Não havia ninguém na área quando saímos do escon­derijo, não vimos pessoa suspeita alguma no caminho e ninguém nos seguiu. Nos últimos 800 metros, rodamos em estrada de terra e acendemos os faróis apenas para saber se estávamos no rumo certo. Buck, a pista aérea é muito mais segura do que já foi.

            Buck suspirou fundo e sacudiu a cabeça.

            - Desde quando eu passei a ser cauteloso? O militar é você.

            - Existe cautela e prudência, e há paranóia - disse Sebastian. - Sei que eles pegaram Chloe, mas não estavam vigiando ninguém. A culpa foi dela. Sinto muito, mas seu sogro disse que ela reconheceu a culpa. E essa história de Chloe ter se aventurado a sair...

            - Mas por que ela saiu? Eu vi os caras. Ela também deve ter visto. E eles a pegaram.

            - Eles deviam estar fazendo uma simples verificação de rotina. Você mesmo disse que pareciam entediados.

            - Mas agora não estão mais entediados, estão?

            - Não, Buck, agora eles não estão entediados. Vou esta­cionar no final da pista. Se quiser andar um pouco pela mata até a chegada deles, fique à vontade.

            - Você não vai me acompanhar?

            - O chefe é você. Se quiser que eu o acompanhe, tudo bem. Mas você disse claramente: "Vou fazer o reconhe­cimento da área." Bem, estou deixando que você faça o reconhecimento da área.

            - Venha comigo.

            - É uma ordem?

            - Estou pedindo como amigo.

            - Isso não é justo, Buck. Não tente me convencer.

            - Ora, vamos. E se eu descobrir alguma coisa? Você nunca se perdoará.

            - Você é mesmo um caso perdido.

            Buck sabia que Sebastian tinha razão. A verdade é que ele estava fragilizado e precisava fazer alguma coisa. Estava pronto para invadir a sede da CG em San Diego, disparando uma rajada de metralhadora, para resgatar Chloe.

            - Você sabe que Rayford deve estar pronto para ir atrás de Chloe - disse Buck, enquanto eles caminhavam pela mata, com fardas de camuflagem, cada um carregando uma Uzi do lado.

            - Mas ele e Mac passaram quase 16 horas no ar, pro­vavelmente revezando-se no comando. Esses caras vão precisar descansar um pouco.

            - Mac já ficou sabendo do que houve com Albie. Deve estar ligado e pronto para partir.

            - Ele vai querer voltar a Al Basrah para descobrir o que realmente aconteceu. De qualquer forma, Buck, se plane­jarmos uma invasão, quando vamos fazer isso? E quem vai levar nosso pessoal para Petra nesse meio tempo?

            - Pensei que Rayford fosse encarregar Lionel disso.

            - Lionel vai organizar e fornecer o necessário, claro. Mas temos de liderar essas pessoas e providenciar para que tudo funcione.

            Buck deu um tapa em um mosquito.

            - O que estamos fazendo? Não há nada aqui. De quem foi a idéia? Você ouviu o barulho de um jato?

            - Não. Já que estamos aqui, vamos fazer alguma coisa.

            - Você quer procurar alguma coisa para fazer?

            - Não quero perder tempo, só isso. Não podemos nos afastar muito da pista de pouso.

            De repente, Buck foi envolvido por uma nuvem de inse­tos. Ele soltou a Uzi, deixando-a dependurada no cinto, e começou a bater na cabeça e no rosto com as duas mãos.

            - Vamos dar o fora daqui - ele disse.

            Quando os dois saíram da mata, estavam mais ou menos no ponto intermediário da pista.

            - Agora vamos ter de caminhar até o fim da pista quando eles chegarem - disse George.

            - Vamos já para lá - disse Buck. - Você pode ocupar seu tempo me ajudando a planejar o ataque.

            - Na sede da CG?

            - Onde mais?

            - O que você sabe sobre aquele lugar?

            - Como assim? Acabamos de passar por lá. Você viu.

            - Buck, nenhum de nós entrou lá. Sei que o prédio tem quatro pavimentos e um porão, mas não sei se os prisionei­ros ficam no porão. Você sabe?

            - Não, mas lembro que havia grades nas janelas debaixo.

            - Tudo bem. Isso ajuda. Mas quanto mais você sabe, mais certeza tem de que não sabe nada.

            - O que deve haver dentro daquele mostrengo?

            George parou.

            - Muito bem, preste atenção. Vou dar minha opinião sobre a sede da CG em San Diego. Sei que é uma das maio­res dos Estados Unidos Norte-americanos, mas não tenho idéia de quanta gente trabalha lá. Você tem?

            - Não.

            - Só sei que ela tem quatro pavimentos e um porão, mas não sei onde ficam as celas. Você sabe?

            - Não.

            - Imagino que eles tenham celas separadas para homens e mulheres, mas não tenho certeza. Você tem?

            - Não.

            - Bem, se tiverem celas separadas, os homens e as mulheres ficam no mesmo pavimento ou em pavimentos diferentes?

            - Não sei dizer.

            - Você está vendo que não sabemos nada, Buck? Absolu­tamente nada. Uma operação militar, principalmente um ataque de surpresa, é complicada e exige planejamento meticuloso. Temos um único objetivo que é tirar Chloe viva de lá. Mas, para isso, precisamos infiltrar alguém lá.

            - Não podemos infiltrar ninguém lá!

            - Então, como vamos fazer, Buck? Pense, homem. Pense no que precisamos saber antes de invadir o local. Será que a CG separa os prisioneiros mais importantes dos comuns? E se separa, onde eles ficam?

            - Está certo. Você já deu sua opinião.

            - Eu nem comecei ainda, Buck. Vocês de fora acham muito bonito o treinamento militar, mas não sabem metade da história. É preciso ter bom senso. Além de sabermos exatamente onde Chloe está, temos de saber qual é o caminho mais curto para entrar e sair. Temos de saber que portas e janelas são menos vigiadas. Temos de saber quanta munição vamos ter de levar. Buck, você sabe o que isto sig­nifica? Sabe o que determina a quantidade de munição que devemos levar?

            - O tamanho e a resistência das portas e janelas?

            - Mais ou menos. Mas o problema é o pessoal de lá, com­panheiro. Quantos vão cruzar nosso caminho e que armas estarão empunhando? Se você me dissesse que Chloe está no canto nordeste do segundo pavimento e quantos homens da CG eu teria de enfrentar para chegar lá, se me dissesse quantas pessoas estão vigiando e que tipo de armas elas têm, eu seria capaz de planejar uma missão para você. Caso contrário, vamos ficar rodando no mesmo lugar, fazendo suposições e levando adiante uma missão que, provavel­mente, será um fracasso total.

            Eles chegaram ao final da pista e sentaram-se na grama, no escuro.

            - E como deve ser feita uma invasão desse tipo?

            George colocou a arma no colo.

            - Nunca é fácil, mas existem pré-requisitos. Nos velhos e bons tempos, quando as pessoas não eram identificadas por uma marca, a gente podia infiltrar alguém em determi­nado lugar. Alguém que tivesse um grande conhecimento do prédio, talvez acesso às plantas, ao planejamento do piso e aos sistemas de encanamento, eletricidade e ventilação.

            - Eu me sinto de mãos atadas, George. O que vamos fazer?

            Buck avistou as luzes de pouso antes de ouvir o ronco dos motores do Gulfstream. Ele sinalizou com uma lanterna possante que a área estava livre. Em poucos minutos, o avião estava no chão e escondido, e Rayford e Mac desem­barcando.

            Os quatro cumprimentaram-se com um aperto de mão, sem dizer nada. Em seguida, Buck e Rayford se abraçaram. Nenhum deles demonstrou emoção, mas o abraço foi mais apertado e mais longo do que nas vezes anteriores. Eles transferiram as bagagens para o Hummer, mas, antes de entrarem no carro, Mac disse:

            - Eu me sinto 20 anos mais velho. Será que temos de sentar em outro lugar apertado imediatamente?

            - Não temos pressa - disse Rayford.      - Estique as pernas.

            - Eu não me importo de retardar um pouco a volta para casa - disse Buck. - Não vimos atividade alguma da CG hoje, mas com certeza eles vão bisbilhotar por lá mais tarde.

            Rayford disse:

            - Você não está imaginando que Chloe conseguiu despistá-los quando disse que estava a uns 50 quilômetros de casa?

            Buck riu.

            - Acho que não, mas você sabe que ela deve ter tentado. Na verdade, vai ser interessante ver que lugar eles vão vigiar esta noite. Com isso, vamos ter uma idéia de onde eles a pegaram.

            - Agora você está raciocinando - disse George. - Vamos ter uma idéia do tempo que eles vão necessitar para desco­brir o esconderijo e do tempo que precisamos para sair de lá.

 

            - Eu não devia ter me afastado muito de lá - disse Naomi, sentada ao lado de Chang perto de um pilar que fazia parte do pórtico da Tumba das Urnas. - Se eu tivesse alguém como você para me substituir no trabalho, eu poderia ir mais longe ainda.

            - Com quem? - Chang perguntou, e ela riu. - Falando sério, estou curioso para conhecer sua história.

            - Eu adoro essas lembranças, Chang, apesar de minha história ser triste. Meu pai era um homem de negócios, proprietário de um restaurante, com várias filiais na área que contorna o Estádio Teddy Kollek. Você conhece Jerusalém?

            - Não.

            - Ele era honesto e bom e todos gostavam dele, o respeita­vam. Isso é muito importante na minha cultura.

            - Na minha também.

            - Acho que a reputação de uma pessoa é importante em qualquer cultura. Para meu pai, era um orgulho ter um número tão grande de amigos e um negócio lucrativo. Ele proporcionava tudo o que minha mãe e eu necessitávamos. Também era um homem muito religioso e transmitiu esses princípios à família. Íamos à sinagoga todos os sábados. Conhecíamos as Escrituras. Amávamos a Deus. Creio que meu pai sentia orgulho disso, mas não um orgulho no mau sentido. Você entende o que estou dizendo?

            Chang assentiu com a cabeça.

            - Cerca de oito anos atrás - ela prosseguiu -, quando eu tinha 11 anos, minha mãe adoeceu. Câncer. Câncer no... bem, perdoe-me. Sou tímida demais para mencionar o local. Ainda não nos conhecemos o suficiente para eu lhe contar certas coisas.

            - Está tudo bem.

            - Ela ficou muito mal. Meu pai foi bom demais para ela. Tinha dinheiro e podia contratar alguém para ajudá-la em tempo integral. Mas não fez isso. Contratou uma pessoa por meio período e reduziu suas horas de trabalho pela metade, para poder passar as tardes e as noites com ela. Meu pai foi um exemplo maravilhoso para mim, e eu passei a querer ser mais prestativa ainda. Nós amávamos minha mãe, e meu pai dizia que considerava um privilégio poder servi-la da mesma maneira que ela nos serviu durante tantos anos. Ele a fez sentir-se feliz, apesar do sofrimento.

            - Parece que ele é um homem maravilhoso.

            - Ah!, ele é, Chang. Sempre foi. Pouco depois de meu 12º aniversário, o estado de saúde de minha mãe piorou e ele precisou interná-la em um hospital. Ela foi desenganada pelos médicos. Mas meu pai não acreditava na palavra "desenganada". Ele acreditava em Deus. Disse aos médicos e a qualquer pessoa que quisesse chorar antecipadamente a morte dela que nós lhes provaríamos o que ia acontecer. O "nós" incluía sua filhinha. Mas como poderíamos provar alguma coisa? Apenas orando. Deus faria sua obra e minha mãe seria curada.

            Chang notou angústia na voz de Naomi, e ela se calou.

            - Está bem - ele disse. - Termine a história em outra ocasião.

            - Não - ela disse, enxugando os olhos. - Parece que tudo aconteceu recentemente. Vou terminar. Quero terminar. Uma noite, quase madrugada, meu pai chegou do hospital muito aborrecido. Eu não o acompanhava ao hospital à noite, somente à tarde. Eu lhe perguntei: "Pai, o que houve? A mamãe piorou?", e ele respondeu: "Não, mas penso que ela pode piorar por minha causa."

            - Aquilo me assustou. Ele nunca discutiu com minha mãe, jamais disse uma palavra maldosa sobre ela, pelo menos na minha frente. Minha mãe disse alguma coisa a meu pai, e ele imaginou que ela estivesse delirando por causa da medicação que estava recebendo. Ela chorou e disse que isso não era verdade, que ela acreditava no que havia lhe contado. Eu perguntei: "O que foi, papai, o que foi?" Ele começou a chorar e disse que levantou a voz para ela, que a mandou parar de falar bobagens.

            - "Eu fiz sua mãe chorar", ele me contou, chorando, chorando alto. "Magoei a mulher que amo de todo o coração, que está morrendo diante de meus olhos." E eu perguntei: "Mas, papai, a mamãe também o magoou. O que ela disse?" Ele respondeu: "Ela me disse: 'Jesus é o Messias'. Eu quis saber onde sua mãe tinha ouvido tamanha heresia, mas ela não respondeu. Tinha medo de que eu criasse problemas para alguém, e confesso que eu faria isso!"

            - Eu não sabia o que pensar. Levei um susto quando meu pai repetiu as palavras dela. Ele disse à minha mãe que me proibiria de vê-la novamente caso ela continuasse a acreditar nessa bobagem, mas aquilo só serviu para me fazer chorar. Naquela mesma noite, fomos chamados para comparecer ao hospital. Disseram que se quiséssemos vê-la viva, devería­mos ir imediatamente.

            - Meu pai chorou durante todo o percurso, culpando-se por ter sido rude com ela. "Eu fui o causador disso tudo!", ele repetia sem parar. Suplicou a Deus que poupasse a vida dela, fez promessas. Nunca vi meu pai tão arrasado. Estáva­mos ao lado de minha mãe quando ela morreu. Suas últimas palavras foram dirigidas a nós. Digo nós, Chang, porque ela me fitou nos olhos e, em seguida, fitou os olhos de meu pai, e disse: "Vou para junto de Deus. Estudem as profecias. Estudem as profecias."

            - Puxa!

            - Eu não aceitei Jesus da maneira que você imagina. A conclusão lógica seria esta: meu pai e eu fomos para casa, estudamos as profecias e passamos a acreditar no que minha mãe acreditava. Mas não aconteceu dessa maneira. Meu pai ficou tão angustiado que se revoltou contra Deus e deixou de estudar as Escrituras. Paramos de orar. Paramos de ir à sinagoga.

            - Ele ainda me amava e cuidava de mim, mas tentava sufocar o sofrimento no trabalho. Seus amigos não podiam fazer nada, apenas sentir pena dele, porque meu pai não era mais o mesmo homem de antes.

            - Eu não conseguia esquecer as últimas palavras de minha mãe, mas meu pai proibiu-me de estudar qualquer trecho da Bíblia, principalmente as profecias. Fiquei triste, muito triste, porque minha vida mudou radicalmente com a perda de minha mãe e com a mudança drástica ocorrida na vida de meu pai. Todas as vezes que eu mencionava que Deus poderia nos ajudar, que encontraríamos conforto na sinagoga ou que a Bíblia nos forneceria respostas, ele não queria ouvir.

            - Eu tinha 13 anos quando ocorreram os desapareci­mentos. Aquilo chamou a atenção de todo mundo, até de meu pai. Assustados demais, voltamos a recorrer a Deus, voltamos à sinagoga, voltamos a ler as Escrituras. Comecei a estudar as profecias. Apesar de minha pouca idade, passei a compreender aquilo que minha mãe compreendeu quando alguém lhe disse aquelas palavras. Meu pai não queria admitir, mas acho que ele também passou a compreender.

            - Quando ouvimos falar que o conhecido estudioso da Bíblia, o Dr. Tsion Ben-Judá, ia aparecer na TV, em rede internacional, para apresentar suas conclusões a respeito do Messias com base nas profecias bíblicas, assistimos ao pro­grama juntos. No dia seguinte, todos estavam comentando sobre o problema que o Dr. Ben-Judá criou para si quando declarou que o Messias já tinha vindo ao mundo, mas meu pai e eu ficamos empolgados demais com o que ouvimos. Ele encontrou um Novo Testamento, e começamos a estudá-lo todas as noites.

            - Quando chegamos à história do judeu chamado Saulo, que se tornou Paulo, meu pai ficou muito entusias­mado. Enquanto líamos cada vez mais depressa e trechos cada vez mais longos, passamos a acreditar que Jesus era o Messias e que Ele poderia perdoar nossos pecados. Memorizamos 1 Coríntios 15.1-4: "Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de tudo vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras."

            - Meu pai e eu queríamos fazer tudo o que Paulo havia feito. Aceitar aquela verdade mediante a qual Paulo disse que poderíamos ser salvos. Não sabíamos o que dizer ou fazer. Simplesmente oramos e contamos a Deus que acredi­távamos naquelas palavras e queríamos aceitá-las. Depois de algumas semanas de leitura foi que compreendemos o que havíamos feito e o que aquilo tudo significava. Um dia, meu pai encontrou, no final do Novo Testamento, um guia para a salvação, mencionando que devíamos aceitar, crer e confes­sar. Estudamos a parte que se chama estrada para a salva­ção, aqueles versículos que falam que todos nós pecamos e carecemos da glória de Deus, que o salário do pecado é a morte, mas que o dom de Deus é a vida eterna por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.

            Chang continuou no mesmo lugar, olhando para ela.

            - As histórias nunca são iguais - ele disse. - Já ouvi muitas histórias sobre pessoas que se converteram, e cada uma é diferente da outra. Quero dizer, todas chegam ao mesmo lugar, mas quase sempre começaram por ocasião dos desaparecimentos. No seu caso, a responsável por tudo foi sua mãe.

            - Não vejo a hora de voltar a vê-la, Chang. E não vai demorar muito.

 

            Chloe não sabia se estava cochilando ou desmaiada quando Florence voltou à meia-noite, fazendo muito barulho. Ela enfiou a barra de energia, com toda força, entre as grades da cela e deixou-a cair no chão. Chloe queria agar­rar a barra, rasgar a embalagem e devorá-la de uma só vez, mas o orgulho ainda era maior. Ela se virou para olhar, mas não saiu do lugar.

            - Seu jantar, querida - disse Florence. - Recomendo um vinho branco para acompanhar, do tipo água de torneira.

            Chloe só se movimentou depois que ela saiu. Comeu metade da barra, que não tinha gosto de nada. Mas apren­dera que o tempero mais saboroso era a fome. Embrulhou a outra metade, determinada a reservá-la para o desjejum. Mas as poucas calorias que acabara de ingerir serviram apenas para estimular seu apetite. Ela aguardaria meia hora e comeria o restante.

            Embora Chloe ainda estivesse fraca, a barra serviu para saciar um pouco a fome e ela conseguiu cochilar.

            Sonhou primeiro com sua família. Buck e Kenny estavam perto o suficiente para que ela pudesse sentir o cheiro deles, mas não podia alcançá-los, nem tocá-los, nem beijá-los. A seguir, as expressões dos rostos deles se modificaram, demonstrando horror e repulsa ao vê-la. Teria ela a marca na testa? Estaria terrivelmente feia? Eles fizeram uma careta e lhe viraram as costas. Ainda sonhando, Chloe correu até um espelho e desco­briu que estava sem cabeça. Desmaiou de susto e, quando caiu no chão, despertou.

            Sentou-se no catre, com as mãos no rosto, balançando o corpo. Aquilo ia ser mais difícil do que ela imaginara. Mas não se deixaria enganar e, mesmo sob tortura, não forneceria nenhuma informação à CG.

            Ela apenas orou pedindo a Deus que, se não fosse libertada de alguma forma - e essa missão seria praticamente impos­sível -, sua execução fosse rápida.

 

            - Tomei uma decisão muito difícil, Buck - disse Rayford. Eram duas horas da madrugada no esconderijo. Rayford estava em seus aposentos conversando com Buck, que pas­saria a noite ali. Ming se transferira para a casa de Buck e Chloe para que Kenny pudesse dormir em sua própria cama. Sebastian e um jovem companheiro estavam no posto de vigia.

            - Eu não vou querer ouvir qual é a decisão, vou? - per­guntou Buck.

            - Provavelmente não. Mas, por um motivo ou outro, Deus me colocou nesta posição. Embora eu seja tendencioso e tenha quase os mesmos interesses que você, necessito assumir a liderança deste caso. Mac está dormindo. Quando ele estiver completamente descansado, seguirá para Wisconsin a fim de pegar Zeke. Ele vai deixá-lo em Petra para começar a trabalhar em nossa próxima missão.

            Buck abaixou a cabeça.

            - Nossa próxima missão não será aqui?

            - Ouça, Buck. Mac vai esclarecer o assunto em Al Basrah e se mudará para Petra. Quando ele estiver a caminho de lá, vou lhe pedir que ligue para Otto Weser, o sujeito de quem lhe falei. Otto está no palácio e talvez tenha condições de descobrir o que está acontecendo em Al Hillah. A assistente de Carpathia sabe que Nicolae está planejando uma reunião em Bagdá com os dez chefes de Estado do mundo inteiro. Acreditamos que será nessa ocasião que ele ajuntará os efeti­vos militares de todas as outras regiões com os exércitos que já estão se enfileirando em Israel.

            - Sinto muito, pai, mas no momento não estou nem um pouco interessado no que está acontecendo longe daqui. Parece que todas as atenções estão voltadas para as ativi­dades de lá. Enquanto isso, deixamos Chloe perecendo aqui.

            - Buck, nós dois estamos sem dormir há muito tempo. Acredite em mim. Tenho chorado, orado e me preocupado tanto quanto você, o que é...

            - Duvido.

            -...muito desgastante. Preciso descansar, e você também.

            - Pai, não vou conseguir dormir.

            - Eu não estou falando em dormir. Tire essa roupa, deite-se e estique o corpo, coloque os pés para cima. Descanse um pouco, mesmo que não consiga desligar. Precisamos de você inteiro, Buck.

            - Com isso, você está querendo me dizer que não vou acompanhar George esta noite.

            - Não vou permitir que George vá, Buck. Não queremos prejudicá-lo de maneira alguma. Ele reuniu um grupo que pode seguir o rastro dos homens da CG se eles aparecerem esta noite. Só queremos saber que área eles estão começando a vasculhar. Tenho a impressão de que nosso pessoal já começou a aprontar-se para sair daqui. Lionel já providenciou os aviões e os pilotos. Temos de estar preparados para partir a qualquer momento.

            Buck inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos.

            - Eu confio em você, pai, e sei que deseja o melhor para Chloe. Mas não estou entendendo. Quando vamos começar a investigar a sede da CG, descobrir como entrar lá ou como encontrar alguém que conheça tudo sobre o local?

            - Nós dois podemos tentar chegar o mais perto possível de lá, amanhã à noite. Se George estiver livre, vamos levá-lo.

            - Estamos perdendo tempo. Rayford endireitou o corpo e suspirou.

            - Minha prioridade é preservar os recursos de que dispo­mos. E isso inclui o elemento humano. Nossas mentes nos dizem que ainda temos vigor físico, mas se começarmos a nos desgastar desta maneira, vamos ficar mais lentos, vamos agir com precipitação e pouca eficiência. Confie em mim, Buck. Quero ver Chloe fora de lá tanto quanto você, mas ela não é a única pessoa sob nossa responsabilidade.

            - Mas eu quero ser informado imediatamente assim que o grupo de George descobrir alguma coisa sobre...

            - Não. E tem mais. Dei uma ordem para que ninguém nos perturbe até a metade da manhã, a não ser em caso de emergência.

            - Pai!

            - O fato de você saber de alguma coisa e não poder agir não vai servir para nada. Chega de conversa. Vamos descan­sar um pouco.

 

            Ao meio-dia, quando o sol estava a pino, Chang preferia trabalhar internamente, da mesma forma que todos moradores de Petra. Ele descobrira, por meio de erros e acertos, que podia ter acesso a tudo o que se passava em Nova Babilônia, a partir de Petra. O problema era que todos os executivos haviam partido para Al Hillah.

            Depois que o plano de insta­lação de uma escuta clandestina no palácio fracassou, ele foi encarregado de descobrir um meio que permitisse a Otto Weser passar-lhe as informações. Para conseguir isso, foi necessário saber que equipamentos o pessoal deixou no palá­cio e se os tais equipamentos permitiriam que as conversas fossem ouvidas em Petra.

            Chang preocupava-se por estar demonstrando aberta­mente seu interesse por Naomi. Queria passar o tempo todo ao lado dela. Decidiu não fazer conjecturas e não sair de perto de seu computador na hora do almoço. Estava com fome, mas podia aguardar o maná da noite.

            Ele ficou emocionado quando Naomi aproximou-se timi­damente com um cesto na mão.

            - Ei, trabalhador! - ela disse. - Não quero que morra de fome.

            - Oi - ele disse.

            - Eu trouxe alguns bolos de mel para você.

 

            O hino "Salve Carpathia" passara a fazer parte da rotina de Chloe. Ela calculou que deveria ser quatro horas da madrugada. Tentara tapar os ouvidos enquanto cochilava, mas quando o sono chegou, suas mãos escorregaram. Foi por isso que ela ouviu a porta ser aberta e prendeu a respira­ção.

            Pelo som dos passos pesados e do tilintar das chaves, ela imaginou que fosse Florence. O que aquela mulher queria?

            Chloe percebeu que ela estava perto da cela e sentiu cheiro de comida. Cheiro de hambúrguer com todos os ingredientes. E o som de líquido sendo sorvido por um canudinho. Para Chloe, aquilo parecia ser o néctar dos deuses.

            Ela se virou lentamente e, sob a iluminação fraca, viu Florence sentada no chão e encostada na cela. Chloe apoiou-se em um cotovelo e respirou fundo.

            - Está acordada? - Florence perguntou.

            - Penso que sim.

            - Quer que eu desligue aquela música?

            - E se eu quiser? Você vai se importar?

            - Não me provoque novamente.

            - Se você quer saber mesmo se quero, minha resposta é sim, quero que desligue a música.

            - Eu não sou uma pessoa tão má quanto você imagina - disse Florence.

            Ela colocou perto da cela a metade do hambúrguer que havia sido mordido, metade da bebida e um copo alto de papel, com tampa. Em seguida, caminhou em direção à porta. A música parou.

            Quando Florence retornou, Chloe disse:

            - Obrigada.

            - Hã-hã - ela resmungou, sentando-se no chão nova­mente. - Estou comendo um hambúrguer.

            - Eu sei.

            - Eu trouxe uma coisa para você.

            - Não acredito.

            - Está vendo? Por que você é assim o tempo todo? Será que uma pessoa não pode ser gentil com a outra?

            - Como eu gostaria que isso fosse verdade.

            - Bem, seu desejo foi atendido, se é que você gosta de chocolate.

            - Quem não gosta?

            - Que tal um chocolate batido com leite?

            - Eu ainda devo estar sonhando, certo? A música foi des­ligada e agora me oferecem um chocolate no meio da noite. O que aconteceu com você?

            - Eu já disse. Não sou tão má assim. Ninguém é.

            Conheço alguém que é.

            - Se for verdade que você vai me oferecer um chocolate, só posso lhe dizer que fico muito agradecida.

            - Eu também sou mãe.

            - Verdade?

            - Hã-hã. O nome dele é Brewster. Está com quase três anos.

            - Você tem uma foto dele?

            - Tenho! Você quer mesmo ver?

            - Claro.

            - Espere um pouco. Não posso acender as luzes quando estou sozinha com você.

            Ela terminou o sanduíche, deixou o chocolate no chão e afastou-se para jogar o resto no lixo. Chloe queria tanto aquele chocolate que chegou a tremer. Será que poderia con­quistar a simpatia daquela mulher, de mãe para mãe?

            Florence saiu e acendeu as luzes. Quando retornou, a porta foi trancada pelo lado de fora. Chloe já sabia que aquilo fazia parte da regra.       O copo com o chocolate não poderia passar pela malha entrelaçada da cela, portanto se a porta da cela fosse aberta, a outra teria de ficar trancada. Mas aquilo fez Chloe pensar que Florence mentiu quando disse que estava sozinha. Caso contrário, como faria para sair dali?

            - Se eu destrancar esta cela, o que é totalmente contra as regras, você não vai abusar de minha bondade e fazer alguma coisa contra mim, vai? Sou maior e mais forte que você, mas mesmo que queira...

            - Sim, eu sei. Jock já me contou. Nós duas estamos trancadas.

            - Exatamente.

            - Se eu ficar bem comportada e pegar o chocolate, e se você me trancar aqui nesta cela, como vai conseguir sair?

            - Eu toco a campainha, e eles me deixam sair.

            - Quer dizer que não estamos sozinhas.

            - Bem, não, não depois que eu tocar a campainha.

            - E se eles virem que você me entregou alguma coisa?

            - Aí eu vou ficar encrencada. Por isso, se você quiser o chocolate, é melhor ser rápida.

            - Eu quero.

            - Fique onde está. Não se levante quando eu abrir a porta, se não eu tranco de novo.

            Florence destrancou a cela, entregou o chocolate a Chloe, e trancou-a novamente. Foi a primeira vez que Chloe notou um sinal de emoção no rosto de Florence. Ela parecia nervosa, talvez assustada. Talvez entusiasmada por estar fazendo uma boa ação quando não deveria.

            Chloe sorveu avidamente o chocolate e não ficou desa­pontada. O líquido ainda estava gelado, espesso, saboroso e, aparentemente, com uma quantidade exagerada de choco­late. Ou substancioso, conforme ela costumava dizer, rindo, às amigas quando alguma comida tinha um sabor muito acentuado.

            Florence continuava em pé, observando-a.

            - Puxa vida, moça. Veja o que está fazendo com seu estômago vazio. É melhor ir mais devagar.

            - É o que vou fazer. Não quero congelar meu cérebro. Florence riu.

            - E não se esqueça de me mostrar a fotografia de Brewster - disse Chloe.

            - Ah! Vou mostrar. Assim que você terminar.

            Por que não agora? Foi a pergunta que Chloe fez a si mesma enquanto sorvia mais um pouco do líquido. O açúcar e a cafeína a manteriam acordada, mas não havia acontecimento especial algum aguardando por ela de manhã. Talvez Jock aparecesse e saboreasse o desjejum na frente dela.

            - Jock - disse Chloe, rindo sem motivo.

            - O quê? - perguntou Florence.

            - Ovos na minha frente.

            - Do que você está falando?

            - Jock. Jack. Jick. Jeck...

            - Hein?

            Chloe estava zonza. O copo começou a escorregar. Ela procurou segurá-lo com a outra mão para firmá-lo, mas o líquido caiu no chão e espirrou. Ela ainda teve tempo de lembrar-se de que aquilo era a maior tragédia que poderia ter acontecido e começou a chorar.

            Seus olhos queriam fechar. Ela se forçou a mantê-los abertos e levantou o queixo para tentar enxergar Florence, que continuava no mesmo lugar, observando-a. Florence tocou a campainha. A outra porta foi aberta. Nigel e Jock entraram, empurrando uma maca.

            - Vou limpar tudo - disse Florence, destrancando a cela.

            - Excelente trabalho, Flo - disse Jock. - Adorei quando você disse que tinha um filho.

            - Ora, meu bem, essa gente facilita nosso trabalho quando está com fome.

 

            Buck foi despertado no meio da manhã por uma batida leve, porém insistente, na porta do quarto de Rayford. Ele esticou o braço e abriu-a, sem levantar-se do sofá-cama.

            - Imaginei estar acordando seu sogro - disse Sebastian.

            Foi nesse momento que Buck despertou completamente.

            - Que horas são? - ele perguntou.

            - Quase dez horas.

            - O que houve? O que seus homens encontraram?

            - Buck, tenho de obedecer à hierarquia.

            - O quê? Você está brincando comigo? Não pode me contar o que está acontecendo com minha esposa?

            - Eu me reporto a Rayford, Buck. E você também.

            - Você sempre sai ganhando, George. Sabe de uma coisa? - Buck levantou-se do sofá-cama e bateu na porta de Rayford. - Sebastian está aqui e tem notícias para lhe dar, pai. Abra a porta.

            Rayford apareceu, com ar sonolento.

            - Ei, rapazes - ele disse. - Vocês conseguiram dormir?

            - Da mesma forma que você - respondeu Buck. - Agora vamos ao que interessa.

            Buck ajeitou os lençóis e os cobertores entre o assento e o encosto do sofá, fechou-o e sentou-se. Rayford também se sentou.

            - Meu subordinado está aguardando no corredor - disse Sebastian. - Queria ter certeza de que vocês estavam apresentáveis.

            - Mande-o entrar - disse Rayford. - Aqui estamos nós em trajes de dormir.

            George abriu a porta.

            - Razor! - ele chamou. - Pode entrar.

            Razor era um rapaz hispânico, de pouco mais de 20 anos, com aparência de militar. Ele fez continência a todos, e Buck dispensou o protocolo, dizendo:

            - Vamos, vamos. Somos só nós. O que você descobriu?

            - Senhores, eu estava no posto de vigia, conforme todos sabem, e notei atividade no detector de movimento por volta das três horas. Uma pessoa do nosso grupo de três é mulher, portanto pedi a ela que verificasse o periscópio na residência do casal Williams, porque havia uma mulher sozinha lá... bem, com um bebê, e eu não queria passar por cima das regras...

            - Estamos entendendo, Sr. Razor - disse Buck. - Por favor, prossiga.

            - Sim, senhor. Ela verificou e relatou atividade do inimigo a uma distância de dois quarteirões do esconderijo. Também obteve permissão da Sra. Toy para que eu entrasse na casa.

            Buck olhou de relance para Rayford, sacudiu a cabeça e fitou o chão. Por tudo o que é mais sagrado...

            - Observei pessoalmente uma atividade semelhante e reuni meu pessoal. Saímos com fardas de camuflagem, rostos pintados de graxa e armas automáticas leves e pos­santes. Nosso objetivo era observar, chegar perto o suficiente para ouvir a conversa deles, se possível... e, se necessário, defender o esconderijo ou atrair o inimigo para uma área neutra, para dar aos ocupantes daqui...

            - Tempo de fugir - complementou Buck. - Sim, e daí, o que aconteceu?

            - Observamos dois pelotões da CG examinando a área. Aparentemente, eles haviam começado cerca de dois quar­teirões a oeste e estavam seguindo naquela direção.

            - O que significa que eles estavam se afastando em vez de aproximar-se daqui?

            - Sim, senhor, mas as notícias não são tão boas assim. Observamos a direção que os homens seguiam e a velocidade de seus passos e conseguimos ficar lado a lado com eles. Os dois que me acompanhavam, caminhando escondidos no meio de arbustos, foram capazes de ouvir o que os homens diziam. Chegaram à conclusão que o objetivo daquela missão era recomeçar no ponto em que eles pararam e, dali em diante, vasculhar uma área mais ampla que leva ao local em que a Sra. Williams foi capturada. Eu calculo, Sr. Williams, que o ponto em que eles pararam é o mesmo que o senhor e o Sr. Sebastian observaram 24 horas antes.

            - Estou orando para que você tenha seguido os homens até o tal ponto - disse Buck.

            - Seguimos, senhor. Também ouvimos aqueles homens dizerem que amanhã à noite, na mesma hora, eles vão fazer o percurso de volta e passar por onde começaram, o que inclui o esconderijo novamente. Achamos que eles vão levar a tarefa até o fim e, se for possível, devemos sair daqui antes das duas horas de amanhã.

            - Você já informou as pessoas certas? A mudança está sendo providenciada?

            - Sim, senhor, mas ainda não terminei. Perto do local onde a Sra. Williams foi capturada, nosso pessoal encontrou a Uzi dela e a máscara de esquiar.

            - O que você acha disto, Buck? - perguntou Sebastian.

            - Que ela as escondeu.

            - Mas nós também... pelo menos meus comandados... ouvimos dois homens da CG conversando sobre o que iam fazer com ela.

            Buck não conseguiu conter-se.

            - Por favor, recruta Razor, conte-me o que ouviu sobre o que eles vão fazer com minha esposa.

            - Pela conversa deles, ela vai ser transferida, senhor.

            - Quando?

            - Dentro de uma hora, senhor. Entendemos que a trans­ferência vai ser feita antes que Carpathia comece a convocar as tropas desta região.

            - Vamos voltar ao assunto "dentro de uma hora", Razor - disse Buck. - Em uma hora a partir de agora ou daquele momento?

            - Daquele momento, senhor.

            - Está bem, mas, por favor, pare com esse "senhor". Sei que você foi militar, mas eu não fui, e isso está me deixando maluco. Você está me dizendo que Chloe foi transferida às quatro horas desta madrugada?

            - Sim, senh...

            - Para onde?

            - Pelo que meu pessoal conseguiu entender, senh... isto é, Sr. Williams, eles disseram "algum lugar perto do leste".

            - Algum lugar perto do leste. - Buck levantou-se, abriu as duas mãos e olhou para Rayford e George. - Eles a levaram para algum lugar perto do leste, o que deve ter sido feito por avião... - Buck olhou para seu relógio. - ...seis horas atrás.

            - Diga-me uma coisa, Razor, nenhum de vocês pensou em ir até a sede da CG para ver se seria possível abortar a trans­ferência?

            - Não, senhor.

            - Ninguém pensou que se tratava de uma emergência, que valia a pena chamar o Sr. Steele ou Sebastian ou eu?

            - Quando ouvimos a conversa, senhor... perdão... a trans­ferência já devia estar sendo feita.

            - Você supôs.

            - Sim, foi uma suposição.

            - No único momento em que, provavelmente, eles estavam mais vulneráveis, tirando uma mulher da cela, levando-a para fora do edifício, caminhando ao ar livre até um veículo que a conduziria ao avião... estávamos todos dormindo.

            - Peço que me desculpe, senhor, mas em meu julgamento não havia nada que pudesse ser feito. Já era tarde demais quando ouvimos a conversa e, ah, o horário em que a opera­ção seria feita.

            Buck não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro, olhando com ar de expectativa para os três.

            - Dormimos no ponto - ele disse. - Tivemos uma boa oportunidade, mas estávamos descansando.

            - Por favor, Buck - disse Rayford, mas Buck não se acalmava.

            - Algum lugar perto do leste - ele repetiu, imitando Razor. - Isso reduz nossas chances, não? Talvez se começar­mos a caminhar na direção leste, poderemos alcançá-los, não?

            - Obrigado, Razor - disse Sebastian. - Se não houver mais nada a relatar, pode ir.

            - Obrigado, senhores - disse Razor.

            - Ah! Sim, obrigado por nada - disse Buck.

            - Eu lamento muito, senhor, se...

            - Ora, pode ir - disse Buck.

            Rayford fez um sinal com a cabeça para dispensar o rapaz, que disparou porta a fora.

            - Buck - disse George -, provavelmente ele tomou a decisão certa. Correr até lá de madrugada, na esperança de chegar a tempo de fazer alguma coisa, sem ter um plano...

            - Pelo menos poderíamos ter feito uma tentativa, não?

            - Buck chutou uma cadeira que foi parar na cozinha e bateu na mesa e no armário. - Acho que se eu quiser ver minha esposa novamente, vou ter de arregimentar um comando de um homem só.

            - E ser morto - disse Rayford. - Você já desabafou. Agora chega.

            - Não vou parar enquanto não tiver Chloe de volta.

 

            Chloe havia caído da cama de metal, em cima do choco­late esparramado no chão. Incapaz de impedir a queda, ela bateu com a cabeça no ladrilho. Permaneceu deitada desajeitadamente sobre uma perna, com a cabeça zonza e lutando para não dormir. A substância misturada ao choco­late devia ser um tranqüilizante muito forte porque ela queria apenas dormir o sono profundo dos drogados. Aquilo a fez lembrar-se de como se sentiu depois do parto, quando Kenny nasceu.

            Florence destrancou a cela e ajoelhou-se para limpar a sujeira. Rolou o corpo de Chloe e puxou-a pelo pé para que as duas pernas ficassem esticadas. Segurou o corpo de Chloe com uma das mãos enquanto limpava o chão. Quando a soltou, Chloe rolou no chão e ficou deitada de costas.

            Seus olhos se fecharam e sua respiração passou a ser pro­funda e regular, mas ela orava desesperadamente.

            - Deus, eu preciso continuar consciente. Preciso ouvir. Ajuda-me a ouvir.

            - O chão já está seco? - Jock perguntou.

            - Só mais um instante - respondeu Florence.

            - Coloque o lençol no chão, Nigel, e segure-a pelos torno­zelos.

            Chloe sentiu as mãos de Jock em suas axilas e as de Nigel segurando-lhe os pés.

            - Em três! - disse Jock, e eles a levantaram do chão com a ajuda do lençol e a colocaram na maca. Chloe ficou feliz por estar com os olhos fechados. Ela não tinha equilíbrio e sentia que poderia cair da maca a qualquer momento.

            - Para o caminhão imediatamente.

            A maca rodou atravessando a sala maior, passou pela porta e parou. Chloe ouviu as portas do elevador sendo abertas. Ela foi empurrada para dentro, e o elevador subiu um andar. Em seguida, ela estava do lado de fora do edifício. Não conseguia abrir os olhos por mais que tentasse. Com o corpo descoberto, ela sentiu o ar frio, mas alguma coisa a impedia de tremer. Queria encostar uma perna na outra e massagear os braços com as mãos, mas não podia se movi­mentar.

            - Senhor, por favor. Eu preciso ficar acordada.

            - Um carro fúnebre? - perguntou Nigel. - De quem foi a idéia?

            - Minha - respondeu Jock, rindo. - As pessoas não vão olhar se pensarem que há um morto dentro.

            - Você vai com ela até lá? - perguntou Florence.

            - Vou - respondeu Jock, e Chloe notou orgulho em sua voz. - É meu dever ir até o fim.

            - Quando vai ser? - perguntou Florence.

            Chloe sentiu o veículo rodando.

            - Ainda não sei. Eles vão querer extrair o máximo de informações dela. O passo seguinte é o soro da verdade.

            - Isso sempre funciona, não?

            - Geralmente.

            Não desta vez, Chloe pensou, Deus, não permitas que eu diga algo que tu não desejas.

            Ela estava imóvel, dos pés até a cabeça, mas Deus parecia ter atendido ao seu pedido de manter-se consciente. Podia ouvir, podia sentir cheiro. Não podia tocar nem ver, mas sentia o ar fresco da madrugada.

            Aquela foi a viagem mais suave da qual ela se lembrava, uma viagem que durou menos de uma hora. De repente, a maca foi retirada do carro fúnebre, rodou uns cem metros e foi levantada do chão para subir por uma escada, que ela imaginou ser a de um avião. E quando os motores começaram a funcionar, ela sabia que estava certa.

            Chloe ouviu as felicitações e despedidas de Nigel e Florence. Em seguida, Jock e, pelo jeito, outro homem a deitaram em vários assentos que tinham os braços levantados. Os homens amarraram-lhe o tronco e os joelhos com os cintos de segu­rança dos assentos.

            Pelo som das vozes, Chloe imaginou que eles deviam estar sentados na fileira à sua frente. Ela teve a impressão de que havia ali apenas os três mais os pilotos de um Jumbo. Não conhecia outra aeronave com tantos assentos enfileirados para permitir que alguém se deitasse com o corpo esticado.

            - Quanto tempo vai demorar este vôo? - perguntou um homem com sotaque espanhol.

            - Eu calculo quatro horas, Jess - respondeu Jock.

            - Depois, vamos ter de rodar cerca de 80 quilômetros a partir do sudoeste. A área inteira de Chicago está contaminada por radiação, portanto vamos ter de seguir para o norte, sempre que possível.

            A conversa passou para assuntos triviais, e Chloe sucumbiu ao sono.

 

            Buck sabia que estava sendo inconveniente, mas não conseguia conter-se. Enquanto todos os moradores do escon­derijo se preparavam para a grande mudança, ele questionava o pessoal. Alguém havia trabalhado na sede da CG antes de se converter? Alguém conhecia um homem ou mulher que tivesse trabalhado lá? Existe alguma conexão, alguma pista, alguma notícia? Alguém poderia falar com uma pessoa que tenha condições de fornecer informações sobre o paradeiro de Chloe?

            Ele procurou ligar para a sede por meio de um telefone seguro, fingindo ser um funcionário da CG Internacional. Ninguém acreditou. Talvez Ming lograsse êxito. Buck ras­cunhou algumas frases para ela usar, enquanto ele brincava com Kenny. Também não funcionou.

            Finalmente, Rayford encontrou Buck e lhe disse:

            - Faça o que quiser, mas esteja pronto para partir com o pessoal.

            - Eu vou fazer uma viagem mais curta, chefe - disse Buck. - Será que um dos homens de Lionel poderia me deixar em algum lugar perto do leste?

            Rayford negou com a cabeça e começou a afastar-se.

            - Ei, pai - chamou Buck -, seu quarto está destrancado?

            - Está. E vazio. Só deixei suas coisas lá.

            - Vou pegá-las imediatamente.

            A caminho do quarto de Rayford, Buck cruzou com Razor no corredor.

            - Senhor - disse o rapaz, fazendo continência instintiva­mente.

            - Ei, filho, espere um pouco. Eu lhe devo um pedido de desculpa.

            - Não, está tudo bem. Eu entendo que o senhor está pas­sando por um problema sério.

            - Existe um motivo, mas isso não serve como justifica­tiva. Quero que me perdoe. Perdi o controle.

            - Entendo, senhor. Não pense mais nisso.

            - Bem, obrigado. Posso lhe fazer uma pergunta?

            - Pois não.

            - Por que você tem esse nome?

            Razor (em inglês, razor significa navalha) corou e abaixou a cabeça.

            - Acidente com um snowmobile, aquele veículo que desliza na neve.

            - O quê!? Acha que vale a pena me contar?

            - Foi na primeira vez. Em Minnesota. O lugar não é muito parecido com o México, o senhor sabe. Eu não vi o arame farpado. Quase morri. O arame prendeu-se no meu capa­cete e fez um estrago nele, mas não decepou minha cabeça. Chegou a arrancar o capacete quando me abaixei e passei por baixo. As pessoas que estavam assistindo disseram que o arame se enrolou no capacete, mas não se partiu. Enquanto eu corria para bem longe, o arame funcionou como um esti­lingue e atirou o capacete de volta. Ele bateu na minha nuca, e eu desmaiei.

            - Mas você está aqui. E, apesar de toda a minha grosse­ria, estou feliz por você estar aqui conosco.

            Depois de ouvir aquela história maluca, Buck começou a pensar insistentemente em decapitação. Seu maior medo era perder Chloe, é claro, mas ele se preocupava com o sofri­mento que seria imposto à sua esposa. Buck não suportava imaginar que ela pudesse estar sendo ultrajada, sofrendo maus-tratos, torturada - não queria sequer considerar todas as possibilidades. Não o confortava o fato de saber que, mesmo que ela fosse martirizada, ele voltaria a vê-la em menos de um ano. O que aquilo significaria para Kenny?

            E, para piorar as coisas, ele começou a pensar no tipo de morte a que Chloe seria submetida. Morte é morte, e a maneira de morrer não fazia diferença alguma, ele sabia. Mas, se ela fosse morta e se a CG fizesse disso um espetáculo público como certamente faria, ele não suportaria assistir à cena. A idéia de ver sua querida esposa morrendo de maneira tão horripilante e grotesca lhe causou náuseas.

            Não havia dúvida de que ela permaneceria firme na fé até o fim. Ele ouvira histórias semelhantes e chegou a ver seu velho amigo Steve Plank afrontar Carpathia e glorificar a Deus antes de morrer. Buck também sabia que, se Chloe tivesse o mesmo fim, ela receberia um novo corpo no céu. Mesmo assim, rejeitava a idéia de que a pessoa que ele mais amava pudesse morrer da pior maneira imaginável.

            Se, agora, ele não estava conseguindo livrar-se desses pensamentos, como seria se aquilo acontecesse realmente? Ele resolveu falar com Rayford.

            - Estou muito ocupado - disse seu sogro -, e você também deveria estar. Não espero que você se esqueça de Chloe; eu também não consigo me esquecer dela. Mas você deveria ser mais produtivo.

            - Eu sei. Só preciso de um minuto seu.

            Buck contou a Rayford os pensamentos que o atormenta­vam. Para sua surpresa, os lábios de Rayford começaram a tremer. Sua voz ficou embargada.

            - Eu também estou pensando a mesma coisa, Buck, mas não queria lhe contar.

            - Sério? Em tudo o que pode acontecer a ela?

            - Exatamente. O sentimento de um pai é diferente, você sabe. Imagine como se sente a respeito de Kenny. Eu estava presente quando Chloe nasceu. Parece que foi ontem. Ela era uma garotinha vermelha, rechonchuda, que chorava o tempo todo e só parava quando era enrolada em um cober­tor ou colocada de encontro ao peito da mãe. De repente, ela se transformou na criatura mais linda do mundo. Fazíamos tudo por ela, qualquer coisa para protegê-la. E isso nunca mudou. Ela cresceu e se tornou uma linda mulher. E, apesar de todos os ferimentos e cicatrizes em seu rosto, eu ainda a vejo daquela maneira.

            - Eu também.

            - Portanto, Buck, sei o que você está pensando. Temos de ser fortes e tentar não remoer essa idéia. Não sei mais o que fazer.

 

            Chang estava acompanhando Naomi até a casa dela à noite.

            - Amanhã, eu quero lhe mostrar uma coisa em meu computador - ele disse. - Descobri que a solução encontrada pelo chefe de produção da CNNCG para a praga da escu­ridão foi tatear o caminho até a sala de controle e encontrar o botão que permite que a rede internacional seja acessada, por meio de controle remoto, por três ou quatro afiliadas mais importantes.

            - Genial - disse Naomi. - Não é mesmo?

            - Ah! Fiquei impressionado. E estou empolgado. Também posso acessá-la e ser mais rápido que as afiliadas, usando o sistema que David Hassid instalou em Nova Babilônia.

            - Estou ansioso para ver.

            - A capacidade é ilimitada, Naomi. Quando Cameron Williams chegar aqui, vamos trabalhar juntos e contra-atacar as mentiras veiculadas pela CG, e isso pode ser feito imediatamente.

            - Não há nada que eles possam fazer para impedir?

            - Que eu saiba, não. Só se eles instalarem uma rede total­mente nova. Talvez eles pensem que vão ter tempo, mas o fim está mais próximo do que eles imaginam.

 

            - Então, você tirou a pior carta do baralho, hein, par­ceiro? - disse Mac.

            - Sinto muito, Sr. McCullum - disse Ree -, mas não conheço essa expressão.

            - Bem, sem entrar em detalhes, significa que o pior ser­viço ficou com você.

            Eles haviam estudado a área através do periscópio uma hora antes e constataram que poderiam retirar o Hummer do estacionamento sem ser detectados.

            - Levar o senhor até o avião? Não há problema. Eu gosto de fazer isso. Só gostaria de voar com o senhor até Wisconsin. Pilotei um Gulfstream apenas uma vez e gostei.

            - Se essa foi sua única experiência, prefiro que não seja meu piloto. Você entende o que estou dizendo?

            Em pouco mais de três horas, Mac pousou em Hudson, Wisconsin, onde foi recebido pelo grandalhão Gustaf Zuckermandel Jr., mais conhecido como Zeke.

            - Eu gostaria que o senhor conhecesse o pessoal de Avery - disse o rapaz de 25 anos. - Mas o sujeito que me trouxe de carro já retornou. Levamos uma hora para arrastar minhas tralhas até um arbusto.

            Mac o acompanhou ao local onde estavam suas caixas e baús.

            - Você tem certeza de que quer transportar todas estas coisas até o avião em plena luz do dia, Zeke?

            - Se o senhor quiser aguardar até escurecer, para mim não há problema, mas não há necessidade. A CG se esque­ceu desta parte do país. Não vi ninguém das Forças Pacifica­doras desde que cheguei aqui.

            Enquanto eles colocavam a bagagem no avião, Mac disse:

            - Você não pensou duas vezes antes de sair daqui? Deve ter feito muitos amigos.

            - Pensei várias vezes, mas acho que a gente deve ir para onde foi chamado. Fui convocado para ficar aqui, e agora estou sendo chamado para lá. Que seria de um sujeito jogado para as traças como eu se ninguém se lembrasse dele?

            - Você é o melhor criador de disfarces e falsificador de documentos que já conheci, e fiquei sabendo que você fez grande sucesso aqui.

            - Ah! Isso não é verdade. O senhor não conhece os fatos verdadeiros, Sr. McCullum. Não havia mais nada para eu fazer aqui em matéria de disfarces e falsificação de docu­mentos, porque ninguém necessitava disso. Resolvi, então, envolver-me em estudos bíblicos, aperfeiçoar minha leitura, essas coisas. Logo em seguida, o líder me convocou. Eu nunca fui professor ou pregador, mas fiz o melhor que pude. E gostei. Gostei de ter uma ocupação. Aquele título de assis­tente de pastor me foi dado por bondade.

            - Foi uma honra, não?

            - Sim, eu gostei.

            - Espero que se sinta honrado, porque esse título é muito significativo.

            - Vou sentir falta de todos, mas devo lhe dizer que estou querendo chegar a Petra e conhecer o lugar. E ver novamente o Dr. Ben-Judá, Dr. Rosenzweig e todos os outros, bem...

            - E você vai ter um trabalho muito importante.

            - Eu gostaria que o senhor me contasse.

 

            Chloe passou a maior parte do tempo dormindo durante as quatro horas de vôo. Quando o efeito das drogas passou, ela voltou a si. E estava com fome. Uma barra de energia e alguns goles do líquido que ela ingeriu antes de sentir o efeito do narcótico foram seu único alimento desde as 19 horas da noite anterior, quando foi seqüestrada. Aquilo seria uma boa desculpa para fingir que estava inconsciente.

            - Que horas são aqui? - perguntou o companheiro de Jock quando o avião pousou.

            - Perto de meio-dia, e estou com fome - disse Jock. - E você?

            - Eu também.

            - Vou oferecer alguma coisa à prisioneira. Fingir que sou um tira bonzinho. Injetar um pouco de soro da verdade. Ver se ela começa a cantar.

            - Ela é um passarinho difícil de cantar, não?

            - Você nem imagina, Jess. Até agora, estou cantando o coro de "Aleluia" sozinho.

            - E se ela não falar? Quanto tempo você vai esperar?

            - Quando a gente não consegue extrair nada nas primei­ras 48 horas, a coisa fica cada vez mais difícil.

            - A fome não ajuda?

            - Para mim, ajudaria, mas acho que já fizeram isso com prisioneiros de guerra. Aqueles que sobrevivem ao primeiro round de tortura física e psicológica não falam, por mais que a gente insista.

            Enquanto Chloe estava sendo transportada através do túnel de acesso ao terminal, Jock disse:

            - Aquela prisão nunca abrigou uma detenta antes de tomarmos posse dela. A nossa prisioneira vai ficar numa solitária. É a única maneira de mantê-la separada do restante da população carcerária.

            Chloe foi deitada no banco traseiro de um espaçoso veículo utilitário, com tela de arame nas janelas e nenhuma maçaneta interna. Jock a algemou.

            - Ela vai voltar a si logo - ele explicou. - Um pouco de cuidado nunca é demais.

            Quando eles pararam no caminho, Chloe procurou imagi­nar uma forma de fugir. Jock disse:

            - Vou buscar comida. Fique aqui com ela.

            Chloe sentou-se.

            - Preciso ir ao banheiro.

            Jock olhou firme para ela.

            - Está falando sério?

            - Claro.

            - Não temos uma policial para acompanhá-la. Você vai ter de usar o banheiro masculino, e um de nós vai ficar a seu lado.

            - Esqueça.

            - Você quer que eu compre uma daquelas fraldas para adultos?

            - Quanto tempo falta para chegarmos ao destino?

            - Meia hora.

            - Eu espero.

            Enquanto Jock não voltava, Chloe procurou puxar con­versa com o homem para quem ela não olhara até aquele momento. Ele tinha um 0 na testa, o que significava que era dos Estados Unidos Sul-americanos. Sua pele era surpreen­dentemente escura, e ele tinha dentes perfeitos.

            - Você me faz lembrar meu marido - ela disse.

            - Sério?

            - Sim, só que ele não é tão feio assim.

            O homem achou graça e virou-se para ela.

            - Você é muito engraçadinha - ele disse. - Por que está me hostilizando?

            - Você é um dos que vão me matar. Acho que não vou ser capaz de lutar com você, machucá-lo, portanto...

            - É verdade.

            - Jock chamou você de Jess.

            - Sim, meu nome é Jessé - ele disse.

            - Hum. Nome em homenagem a Jesus. Esse é o seu nome verdadeiro? Jesus? - Chloe pronunciou o nome em espanhol.

            - A bem da verdade, sim, e tenho uma irmã chamada Maria.

            - Ela também é carpathianista?

            - Claro.

            - Que decepção o seu homônimo deve estar sentindo!

            Jock trouxe a comida e tirou as algemas de Chloe. Os homens começaram a devorar o lanche deles. Chloe con­tinuou sentada atrás da grade que a separava do banco dianteiro. Ela orou em voz alta:

            - Senhor, obrigada por este alimento. Peço-te que me ajudes a comê-lo lentamente para eu não passar mal, e que elimines qualquer tipo de veneno que Jock possa ter colocado aqui. Dá-me força para resistir às tentativas de Jock ou Jessé de me obrigarem a falar o que não devo. Oro em nome de Jesus. Amém.

 

            - Eu gostava muito de Albie - disse Zeke, enquanto Mac pilotava o avião, cruzando o Atlântico. - Ele era um homem bom.

            - Você tem razão, Z - disse Mac. - E nunca vou entender o que aconteceu, mas penso que ele fez uma tremenda boba­gem para ser morto daquela maneira.

            - Não parece ser do feitio dele. Você, o capitão Steele e o restante do pessoal sempre respeitavam as idéias dele.

            - Mas todos nós somos humanos. Quem sabe ele abaixou a guarda por alguns segundos, ficou confiante demais? Ele estava determinado a ter a vida comum que sempre teve. Mesmo quando nós dois concordamos que eu deveria ir a Petra e transportar Rayford de volta para os Estados Unidos, Albie insistiu que queria levar sua pequena missão até o fim. Eu também tive culpa. Nós dois achamos que se tratava de um assunto que precisava ser feito... e rápido. Agora, veja o que aconteceu.

            - Rayford disse que isso foi um baque para Tsion e Chaim.

            - Para todos nós. Já passamos por muitos sofrimen­tos, mas nunca é fácil. Eles estão planejando realizar um pequeno culto em memória de Albie em Petra, assim que todo o pessoal de San Diego chegar lá.

            - Quando eles vão chegar?

            - Ah! A primeira leva deverá chegar amanhã, por volta das três da madrugada. Você e eu estamos 13 horas na frente deles. Assim que eu deixar você lá, sigo para Al Basrah e pego as minhas coisas e as de Albie que ficaram em nosso apartamento. Não podemos deixar pista alguma. Depois, volto para Petra e pego um avião maior, porque vou ter de transportar Otto Weser e todo o seu pessoal para lá.

            - O capitão Steele me contou sobre esse homem. Pelo que estou entendendo, você vai levar toda aquela gente para Petra por causa de um trecho da Bíblia que diz que o povo de Deus deve ser tirado da Babilônia antes que Ele a destrua, é isso?

            - Exatamente.

            Z olhou para o oceano, cerca de 12 quilômetros abaixo.

            - Como deve ter sido quando as águas se transformaram em sangue?

            - Não dá para imaginar.

            - Ei, Mac, você acha que Rayford deve confiar na secre­tária de Carpathia?

            - Pelo jeito que ele contou, acho que sim. Você também não acha?

            - Não confio em ninguém que não seja crente. E se ela estiver preparando uma armadilha para pegar você e esse tal de Otto?

            - Que pensamento agradável!

            - Você mesmo disse que um pouco de cuidado nunca é demais.

            - Bem - disse Mac -, precisamos saber o que está acon­tecendo em Al Hillah e o que vamos ter de enfrentar depois disso. Não temos outro recurso.

            Uma hora mais tarde, Zeke vasculhou uma de suas saco­las e tirou um livro de dentro. Ele parecia compenetrado.

            - Eu não lia bem quando você me conheceu em Chicago.

            - Eu ia dizer que...

            - Mas agora que estou lendo melhor, acho que vou poder fazer outras coisas, você sabe, coisas mais científicas.

            - Por exemplo?

            - Estou imaginando que vocês vão me pedir para criar novos disfarces e identidades para um monte de gente.

            - Correto. Todos os nossos antigos codinomes e disfarces já foram descobertos.

            - Encontrei este livro em uma biblioteca abandonada, do outro lado da divisa do Estado de Minnesota. Aqui, há coisas de que eu nunca ouvi falar. Novas maneiras de mudar a cor da pele e dos olhos, tudo. Imitar cicatrizes e manchas. Quan­tas pessoas vão precisar disso?

            - Penso que cinco - disse Mac. - Acho que Ray vai querer disfarces para mim, para ele, Buck, Sebastian e Smitty.

            - Sério? Só isso? Eu trouxe um exagero de coisas.

            - O que você trouxe?

            - Tudo o que sobrou quando saímos de Chicago. Uni­formes da CG com todos os tipos de patentes, documen­tos de identidade e de outros tipos, roupas para homens e mulheres. Vai ser fácil. Quero dizer, isso leva tempo, mas eu imaginei que fossem dez ou 12. O mais difícil de todos é o Sr. Sebastian, mas já bolei uma idéia para ele.

            - Qual e?

            Zeke colocou o livro no colo, aparentemente para poder gesticular com as duas mãos.

            - O problema com pessoas grandes é que, por mais que a gente queira, nunca pode diminuir o tamanho delas. Uma pessoa miúda pode ficar maior se a gente colocar enchimen­tos e outras coisas por baixo da roupa delas, mas não é pos­sível tirar alguns quilos de quem é corpulento.

            - Mas, veja - prosseguiu Zeke -, posso dar uma nova aparência a George, a aparência de um homem bem mais velho. Aí, o tamanho dele não vai fazer diferença. Ele pode ficar com jeito de um velho, sem que ninguém perceba que recebeu treinamento militar. Posso dar uma bengala a ele, óculos. Fazer com que fique parecido com aqueles sujeitos de meia-idade que envelheceram depressa demais. Corto aquele cabelo loiro, aplico fios brancos, coloco algumas rugas no rosto. De repente, em vez de parecer um sujeito de mais ou menos 30 anos, grandalhão e em perfeita forma, ele vai aparentar ter o dobro dessa idade, abatido por estar mal alimentado, com o corpo um pouco curvado, talvez sofrendo de diabetes, problemas nos joelhos, nos pés. Eu coloco um pouco de enchimento na frente e nas costas dele, para que ande com passos miúdos. Assim, ele não vai representar ameaça para ninguém.

            - Brilhante. E o que você vai fazer comigo?

            - O maior problema com você é seu sotaque sulino. Você é capaz de imitar outros sotaques? De um ianque ou um inglês?

            - É mais fácil imitar um inglês do que um ianque, com certeza.

            - Então, vou dar um jeito de você ficar parecido com um inglês. Com terno de tweed e tudo.

 

            A suposição de Chloe quanto ao local para onde estava sendo levada foi confirmada quando Jock conversou, pelo rádio, com alguém à frente e, pouco depois, o veículo em que ela viajava foi cercado por batedores da CG em moto­cicletas e viaturas. Eles escoltaram a famosa prisioneira às instalações que, um dia, foram conhecidas como Centro Correcional Stateville, em Joliet, Illinois.

            O local era uma casa de horror, em estilo gótico, que um dia abrigara uma penitenciária estadual e, agora, se transfor­mara em uma das maiores prisões internacionais da CG, para homens e mulheres. A população carcerária feminina dali era imensa e só perdia para o Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB).

            A primeira coisa que Chloe notou foi o número enorme de caminhões da imprensa atravancando a entrada. Havia câmeras de todos os lados apontadas para o veículo em que ela viajava. Assim que o veículo passou pelos caminhões, Chloe olhou para trás e viu uma multidão de fotógrafos e jornalistas no imenso pátio, lutando para conseguir uma posição privilegiada.

            Nos últimos dois anos e meio, o pátio de Stateville tor­nara-se famoso. Os prisioneiros só recebiam permissão para permanecer naquele lugar em duas situações. Quando eram levados a passar diante da gigantesca estátua de bronze de Carpathia três vezes por dia, onde paravam em grupos de 30 a 50 e se ajoelhavam para adorá-la, ou quando eram leva­dos para lá a fim de serem executados. O pátio tinha sete guilhotinas separadas por cerca de dez metros uma da outra e posicionadas de maneira a receber a luz do sol desde o alvorecer até o crepúsculo.

            Jock parou o veículo no meio do pátio.

            - Olhe para lá, meu bem - ele disse. - Aquelas lâminas são afiadas todas as noites, mas nenhuma jamais foi limpa. Não são esfregadas, não são lavadas, não recebem protetores contra ferrugem.

            - E você está vendo aquelas ranhuras de cada lado, por onde as lâminas maiores descem? Nos tempos em que éramos mais bonzinhos, elas eram lubrificadas depois de serem usadas. Não são mais. Agora, as lâminas descem com dificuldade pelas laterais, algumas vezes emperram, ficam enrascadas, demoram a cair. Mas são suficientemente pesa­das. Mesmo quando não descem de uma vez, elas afundam pelo menos uns dez centímetros na hora em que atingem o pescoço de alguém.

            - Nos velhos tempos, a lâmina não era tão eficiente assim, para tristeza nossa. A regra era colocar a cabeça lá e esperar a lâmina cair. Se, por um motivo ou outro, ela não matasse a pessoa, bem... o castigo já havia sido aplicado. E não pense que era raro isso acontecer. Muitas pessoas fica­vam andando por aí com ferimentos graves no pescoço.

            - Mas agora, se a lâmina não matar na primeira vez, ela é levantada para descer de novo. Duas, três vezes, até comple­tar o serviço. E, conforme eu disse, aquela lâmina enferru­jada e empastada de sangue é afiada todas as noites.

            Cerca de seis metros adiante de cada guilhotina havia uma mesa franzina de madeira, também cinza e gasta pela exposição ao sol e ao vento. Atrás de cada uma, viam-se duas cadeiras de espaldar alto, ao estilo das encontradas no Banco da Inglaterra, que não combinavam com o local. O vento não desgastara sua madeira vermelha polida.

            - Os processadores e os aplicadores da marca costumam sentar-se ali - ele disse. - Os condenados ficam enfileirados.

            Assim que as informações sobre eles são registradas e nós confiscamos seus pertences pessoais, eles recebem um cesto de plástico, do tipo daqueles usados em lavanderia, e o entregam ao executor ou à executora. Ele ou ela o coloca do outro lado, onde a lâmina despenca. A cabeça cai no cesto e o corpo continua no lugar onde a pessoa se ajoelhou. Os condenados à prisão perpétua fazem o recolhimento. Vamos, eu vou lhe mostrar.

            - Peço que me poupe disso.

            - Ora, você vai gostar.

            Jock afastou-se.

            - Algeme esta mulher, Jess.

            Jessé se virou e abriu a grade.

            - Estique os braços.

            - É melhor me dopar outra vez - disse Chloe.

            - O quê?

            - Você acha que vou me deixar ser algemada para que vocês me levem para um lugar que eu não quero ir?

            Jock abriu a porta traseira do carro.

            - Espere, Jock! - gritou Jessé. - Ela ainda não está alge­mada.

            - O que está...?

            Para Chloe, Jock estava querendo aparecer diante das câmeras quando entrou rapidamente no veículo pela porta traseira. Chloe continuou sentada com as mãos fechadas entre os joelhos.

            - Você gosta de ser difícil, hein? - ele disse.

            Jock agarrou os pulsos de Chloe e a forçou a levantar as duas mãos juntas, para que Jessé colocasse a algema. Assim que ela foi algemada, Jock saiu do veículo, puxando-a pelas algemas e arrastando-a para fora. Com os braços esticados para a frente, ela bateu a cabeça na porta, arranhou os joelhos no chão do carro e, depois, no terreno. Jock a forçou a ficar em pé.

            Chloe estava toda machucada, mas se sentia feliz por ter dado tanto trabalho a eles. Talvez outra pessoa não resistisse e caminhasse docemente em direção à morte. Ela não. Jock a segurou pelo cotovelo e a conduziu para perto da máquina mortífera do centro.

            - Ela vai ser toda sua amanhã, se você não cooperar hoje. O mau cheiro a sufocou. Os dois homens taparam a boca e o nariz com um lenço. Chloe, desta vez misericor­diosamente algemada com as mãos para a frente, dobrou os braços e cobriu o nariz com os dedos.

            - Conforme você pode ver - disse Jock -, nós não lava­mos a plataforma nem o chão. Por que deveríamos fazer isso?

            Para Chloe, a área ao redor das guilhotinas enfileiradas, que ocupavam um espaço de mais de 50 metros, tinha a aparência de um matadouro. O chão ao redor era preto, empastado de sangue.

            - Você está vendo aquela caçamba ali? - perguntou Jock. Bem atrás da máquina do centro, talvez a uma distância de 30 metros, havia uma caçamba enorme, cujo tamanho era cerca de metade de um vagão para transporte de carga. Ele não tinha tampa.

            - Um coletor pega o cesto e joga a cabeça lá - prosseguiu Jock. - Dois coletores arrastam o corpo para o mesmo lugar. Você está vendo aquelas trilhas pretas que começam nas guilhotinas e terminam na caçamba? Você sabe o que elas significam.

            Chloe sabia muito bem. Procurou prender a respiração, mas Jock continuava a puxá-la pelo braço, impedindo-a de tapar o nariz com as mãos. Ela orou para que ele não a for­çasse a olhar dentro da caçamba.

            - Ela é esvaziada uma vez por semana - ele disse.

            A CG mantinha a imprensa afastada, mas o pessoal gri­tava de longe.

            - O que é aquilo no macacão dela? Está sujo de terra?

            Chloe, mortificada, gritou:

            - Chocolate!

            Jock se virou e a espancou na testa com as costas da mão.

            - Não fale com ninguém, a não ser conosco, entendeu?

            - Eles me drogaram com um choco...!

            Jock se postou atrás dela e cobriu-lhe a boca com a mão. Quando Chloe quis mordê-la, ele fincou o joelho nas costas dela, fazendo-a perder o equilíbrio.

            - Jess, me dê a fita adesiva.

            - A situação não precisava ter chegado a este ponto, senhora - disse Jessé, pegando um rolo de fita adesiva no bolso da jaqueta.

            - Pensei que não fosse necessário.

            Jock esticou o braço para pegar um pedaço da fita, deixando livre a boca de Chloe.

            - A verdade é uma só! Eu fui drogada! Eles...

            Jock passou a fita tão apertada sob o nariz de Chloe que provocou um inchaço imediato no lábio superior dela. Quando ele apertou a fita contra as bochechas, ela não pôde mais movimentar a mandíbulas, e muito menos falar.

            Deus, Chloe orou silenciosamente, ajuda-me a ser forte. Eu não quero fraquejar. Não quero ser surrada nem levada a falar alguma coisa por medo. E, se eu tiver de morrer, permite que eu fale antes. Ajuda-me a lembrar-me de todos os versícu­los que memorizei. Por favor, Deus, permite que eu fale tuas palavras.

            Jock e Jessé forçaram-na a atravessar o pátio em direção a uma porta de aço na parede de um dos conjuntos de celas. A porta ficava no nível do chão, mas ela supôs que teria de descer uma escada de acesso à cela solitária no porão.

            Eles pararam a uns dez metros da porta. A imprensa estava do outro lado, a mesma distância.

            - Ela contou mais alguma coisa? - perguntou uma mulher.

            - Ah! Sim - respondeu Jock.

            Chloe movimentou negativamente a cabeça, com muita firmeza.

            - Um pouco de cada vez - ele prosseguiu. - É claro que tivemos de dizer a ela que não existe mais clemência em troca de, ah, favores físicos, como havia antigamente. Ela só poderá ajudar a si mesma se contar a verdade. Tenho certeza de que chegaremos lá. Ela já nos forneceu outras pistas sobre o esconderijo judaísta e a cooperativa de mercado negro. Já extraímos mais informações dela do que de qualquer outra pessoa. Como vocês sabem, ela entregou o Sr. Al Basrah, o principal subversivo do Oriente Médio, e ele já está morto.

            Chloe continuou a sacudir a cabeça, mas sabia que não apareceria na CNNCG naquela noite.

            - Por ora, basta, turma. Temos mais alguns pré-requi­sitos para que a Sra. Williams seja condenada à prisão perpétua, e não à morte, mas nossas execuções diárias aqui serão realizadas amanhã, às dez horas. Não esperamos ter o mesmo número de condenados de ontem, quando todas as máquinas trabalharam por quase meia hora, mas a última contagem é de 35, ou seja, cinco em cada máquina.

            A imprensa começou a dispersar-se, mas Jock e Jessé continuaram em pé ao lado de Chloe.    

            - Vou terminar meu discurso de guia turístico, madame, e você vai ter de me ouvir até o fim - disse Jock. - Os dias mais felizes de minha vida foram passados neste pátio, vendo essa gente receber o castigo que merece. Sincera­mente, fiquei desapontado quando fui transferido para San Diego, mas a chefia me garantiu que havia um grupo enorme de judaístas naquela cidade. Disseram que eu poderia trans­portá-los para cá se conseguíssemos arrancá-los de lá. Espe­ramos que você seja apenas a primeira.

 

            Mac estava satisfeito por ter a companhia de Zeke naquele vôo tão longo. Apesar de ter pouco estudo, o jovem era inteligente e curioso. Tinha sempre uma pergunta a fazer ou histórias para contar.

            - É difícil inventar um disfarce para Abdullah, porque seus traços são muito evidentes. Ele não tem facilidade para mudar de sotaque, por isso acho melhor manter sua aparên­cia de homem do Oriente Médio, mas um pouco diferente de um jordaniano. Rayford é bem fácil, porque posso inventar qualquer tipo para ele. Buck é o mais difícil de todos por causa daquelas cicatrizes no rosto. Mas digamos que posso transformar vocês cinco em pessoas totalmente diferentes. O que vocês vão fazer?

            - Ainda não sei ao certo, Z - respondeu Mac. - Dizem que Carpathia está convocando os dez reis. Ele chama esses homens de potentados regionais, mas nós sabemos o que vai acontecer, não?

            - Eu sei.

            - Se Otto tiver êxito em Nova Babilônia, vamos desco­brir o local da grande festança antes que ela comece, para instalarmos as "escutas" lá. Não devemos tentar impedir os eventos proféticos, mas será muito bom saber exatamente o que está acontecendo.

            - E aquela secretária de Carpathia?

            - Krystall? Se eles pedissem minha opinião, eu diria que devemos convencê-la de que sabemos o que vai acontecer em Nova Babilônia e tirá-la de lá.

            - Para Petra?

            Mac sacudiu a cabeça.

            - Por mais que a gente queira pensar de outra forma, Deus separou aquela cidade de refúgio apenas para seu povo. É muito triste dizer isto, mas ela tomou uma decisão, tomou partido e aceitou a marca. Se nós a tirarmos de Nova Babilônia, ela não vai morrer no meio daquela confusão, quando Deus julgar a cidade. Mas, de qualquer maneira, ela vai morrer antes do Glorioso Aparecimento. E quando ela morrer, não vai gostar da vida eterna que vai ter. Mas isso não significa que não devemos ser amigos dela e ser gratos por sua ajuda. Ou que não lamentemos por ela ter esperado tanto tempo para conhecer a verdade.

            - Eu ainda tenho dúvidas se podemos confiar nela – disse Zeke.

 

            O horário para a partida de San Diego foi antecipado para a meia-noite, em parte porque os preparativos estavam adiantados e em parte por questões de segurança. Ninguém sabia ao certo quando a CG iniciaria a próxima ronda para vasculhar o local.

            Buck estava no estacionamento conversando por meio de um walkie-talkie com Ming, que se encontrava em seu apartamento cuidando de Kenny e manipulando o periscópio. Quando ela disse que o terreno estava livre, Buck ordenou que os veículos carregados seguissem para a pista aérea, onde os aviões e os pilotos providenciados por Lionel Whalum estariam aguardando. Às 18 horas, Ming o chamou.

            - Buck, Chloe está na TV.

            - Kenny está vendo?

            - Vou levá-lo para o quarto dele.

            Buck retornou rapidamente a seu apartamento e, quando chegou, Rayford já se encontrava ali. O noticiário mostrou Chloe tentando comunicar-se com a imprensa e Jock golpeando-a na testa. Buck ficou furioso, principalmente quando eles colaram uma fita adesiva na boca de Chloe. Ele já estava acostumado às mentiras proferidas pela CG, mas não supor­tava ver sua esposa sendo agredida.

            - O que você está achando disto, Ray? - ele perguntou. Rayford sacudiu a cabeça.

            - Estou procurando entender.

            Uma das repórteres disse:

            - Aqui em Louisiana todas as prisões são terríveis, mas nenhuma chega aos pés da prisão de Angola. A terrorista internacional Chloe Williams se arrependerá do dia em que provocou a CG até o ponto de ser enviada para cá. A guilhotina será um refresco comparada ao trabalho for­çado que ela terá de enfrentar pelo restante da vida.

            - Angola, Louisiana! - exclamou Buck. - É para lá que eu vou. Quero levar Sebastian e Razor, e você também há de querer ir, é claro, pai. Quem mais você acha que devemos...

            - Calma, Buck - disse Rayford. - Nós não vamos a Louisiana.

            - O quê? Você mandou três pessoas importantes à Grécia para resgatar George, e agora vai permitir que a CG faça o que quiser com Chloe?

            - Ela não está em Louisiana.

            - Você acabou de ouvir!

            - Pense um pouco, Buck. Eles querem que a gente acredite que ela está em Louisiana. Eles a tiraram de San Diego para impedir uma invasão. E jamais anunciariam para onde ela foi levada.

            Buck sabia que Rayford estava certo.

            - Mas ela está em uma prisão, não? Eles não estão disfar­çando isso.

            - Claro que não.

            - Ray, eu não posso ir para Petra e deixar Chloe aqui. Se eu ficar em algum lugar perto do leste, pelo menos vou ter uma chance de...

            - E como você vai descobrir onde ela está?

            - Eu jamais me perdoaria se partisse para um lugar seguro e deixasse Chloe morrer sozinha. Não sei como você pode fazer isso.

            - Eu não estou querendo fazer isso.

            - Ora, vamos, pai, estamos juntos nessa missão. Não seja teimoso.

            - Quero ligar para Krystall para saber se ela ouviu alguma coisa. O problema é que, lá, são quatro horas da madrugada, e ela acha que não há ninguém que possa fornecer alguma informação. As pessoas que sabem de alguma coisa estão em Al Hillah, e não temos acesso a elas. Krystall vai chamar a atenção se começar a fazer perguntas sobre Chloe.

 

            Chloe não ficou surpresa por ter sido deixada sozinha no meio da noite em Illinois. Ela estava com razão a respeito da solitária. A escada dava acesso ao porão, e ela foi conduzida para uma pequena cela sem cama, sem pia, sem instalação sanitária, sem cadeira, sem banco, sem nada. E também sem luz e sem janela. A fita adesiva havia sido retirada de sua boca, e quando a porta resistente de metal foi fechada, ela ficou na mais completa escuridão.

            Uma portinhola quadrada na porta foi aberta, preenchida pelo rosto de Jock.

            - Vou deixar você descansar um pouco - ele disse -, e eu também vou descansar. Pense em tudo o que pode me contar para seu próprio bem, porque quando eu voltar, vamos ver se haverá necessidade de uma injeção para você abrir a boca. Esta cela é resultado das besteiras que você fez hoje. E você não vai gostar daqui se sofrer de claustrofobia ou tiver medo do escuro.

            Chloe sofria de claustrofobia e tinha medo do escuro, mas não admitiria isso. Temia entrar em pânico ou enlouquecer, porém quando ouviu os passos de Jock se afastando, ela foi tomada por uma sensação de paz.

            - Obrigada, Senhor - ela disse. - Eu necessito de ti. Estou disposta a morrer, mas não quero te envergonhar. Preciso de ti para não sucumbir ao soro da verdade. Não permitas que eu diga alguma coisa nem que prejudique alguém. Torna-me forte para que eu não me preocupe muito comigo. Ajuda-me a manter a lucidez, a concentrar-me em minhas prioridades. E sê com Kenny, Buck e papai.

            Ao pensar neles, um soluço subiu-lhe à garganta. Chloe encostou-se na parede e abaixou-se até o chão frio.

 

            - Deus, por favor, faze-me lembrar dos trechos da Bíblia que queres que eu tenha na memória neste momento. Não permitas que a fome, o cansaço ou o medo obscureçam minha memória. Tu sabes quem eu sou e quem eu não sou. Eu só quero ser aquilo que tu desejas. Tu sabes muito bem que estás lidando com uma pessoa imperfeita.

            Ela se deitou de lado sem sentir palpitações decorrentes da claustrofobia ou da escuridão. Aquilo era prova de que Deus ouvira sua oração. Ela começou a lembrar-se de ver­sículos bíblicos, desde o começo da Bíblia. Porém, quando sua mente falhou, ela entrou em pânico.

            - Senhor, revigora minha mente. Não permitas que eu esqueça. Quero citar tuas palavras quando estiver frente a frente contigo.

            Seus pensamentos começaram a ficar desordenados. Como eu vou me lembrar? E se minha memória se apagar?

            - Senhor, por favor - ela orou.

            De repente, surgiu uma luz. Estaria ela sonhando? A luz a fez piscar. O cômodo sujo e cheirando a bolor estava tão claro que ela teve de proteger os olhos. Uma visão? Um sonho? Uma alucinação?

            Em seguida, uma voz. Citando seus versículos favoritos. Ela os repetiu, palavra por palavra.

            - É tua resposta, Senhor? Tu citarás os versículos para que eu os repita? Obrigada! Obrigada!

            Uma batida forte na porta.

            - Silêncio aí dentro!

            - Sim, paz, continua onde estás. Aquela voz veio de um dos cantos!

            Chloe tirou as mãos dos olhos e avistou uma figura, sen­tada, com um dedo nos lábios.

            - És tu, Senhor? - ela perguntou, sem fôlego.

            - Ninguém pode ver a Deus e continuar vivo - ele sussur­rou.

            - Então, quem és?

            - Ele me enviou.

            - Louvado seja Deus.

            - Sim, por favor.

            - Alguém mais pode ver-te?

            - Amanhã. Antes disso, não.

            - Vais me fazer lembrar das promessas de Deus?

            - Sim.

            - Tua presença me faz querer cantar.

            - À vontade.

            - Canta comigo.

            - Não estou aqui para cantar, mas para falar. Você canta.

            Chloe começou a cantar.

            - "Em Jesus confiar, sua lei observar; oh, que gozo, que bênção, que paz! Satisfeito guardar, tudo o que Ele ordenar, alegria perene nos traz."

            - Silêncio aí dentro!

            Chloe cantou mais alto.

            - "Crer e observar, tudo o que Ele ordenar! O fiel obe­dece ao que Cristo mandar."

            - Se eu tiver de abrir esta porta, você vai se arrepender amargamente!

            - "Que delícia de amor! Comunhão com o Senhor..."

            Aquele cântico provocou batidas na porta, como se alguém estivesse usando um bastão, e Chloe riu alto.

            - Eles não estão gostando de minha voz - ela disse a seu novo amigo.

            - Ou das palavras - ele disse, e Chloe riu mais alto ainda.

            - Você aí, está maluca?

            - Não! Você tem algum pedido a fazer?

            - Só quero que você pare com essa cantoria!

            - Sinto muito! - E ela voltou a cantar. - "Firme nas promessas do meu Salvador, cantarei louvores ao meu Cria­dor; cada dia alegro-me no seu amor, firme nas promessas de Jesus."

            - Muito bem! - A portinhola foi aberta com força.

            O cômodo escureceu novamente.

            - Você tinha uma luz aí?

            - Claro! A luz de Deus.

            - Estou falando sério! Você tinha uma luz aí?

            - Somente a luz da presença dele.

            - Se Jock voltar e descobrir que você tem alguma coisa aí, vai se arrepender.

            - Arrepender de fazer uma surpresa para ele? Acho que não. Você sabe cantar? Cante comigo. "Firme nas promessas do meu Salvador..."

            O guarda fechou a portinhola com força.

 

            Rayford tinha apenas uma idéia do que Buck devia estar sofrendo. Talvez os sentimentos de marido fossem diferentes dos de pai. Mas ele não estava com certeza disso.

            - Vamos fazer o seguinte - ele disse ao genro. - Lionel me arrumou um avião de dois lugares. É rápido, mas carrega pouco combustível. Vamos ter de reabastecer no caminho, talvez em Cypress. Primeiro, temos de ajudar todo o pes­soal a sair daqui. Depois, se tivermos de ficar aguardando na pista, para mim tanto faz. Voamos para algum lugar do meio-oeste, ou do sul. Onde você achar que vai ficar mais perto de Chloe.

            - E fazer o quê?

            - Podemos levar aquela pequena TV via satélite e manter contato com Mac, Otto e Krystall, para ver se conseguimos alguma pista - disse Rayford.

            - Você quer estar no mesmo continente quando ela morrer, é isso?

            - Bem, hã, não...

            - Pai, pense um pouco. Eu não sei pilotar avião. Você não tem um co-piloto. Nenhum de nós é militar. Se você con­seguiu um avião de dois lugares, só para duas pessoas, não vamos poder trazer Chloe conosco.

Rayford sentou-se e segurou a cabeça com as mãos.

            - Não sei mais o que fazer, Buck. Não quero sair daqui enquanto ela estiver presa. Mas não sabemos onde ela está, não podemos levar uma tripulação conosco.

            - Para onde você acha que devemos ir?

            - Que tal Wisconsin, onde Zeke estava? Ele me contou que a CG nunca aparece por lá. O lugar é central. Assim que soubermos onde ela está, poderemos partir rápido.

 

            Jock conduziu Chloe a um cômodo mal iluminado, cerca de cem passos da cela solitária.

            - Hoje somos só nós dois, madame. Nada de brincar de policial, nada de luzes nos olhos, nada de pressão.

            Porém, quando Chloe viu o lugar em que deveria sentar-se - uma cadeira de aço presa ao chão e com tiras de couro nas pernas e braços - ela disse:

            - Não, só nós dois, não, Jock.

            - Como assim?

            - Você sozinho não vai conseguir me amarrar naquela cadeira.

            - Acho que vou conseguir, mas você não vai gostar.      

            - Você vai se arrepender de tentar fazer isso sozinho. E não vou ficar amarrada de jeito nenhum, a menos que seja à força.

            - Que tal tentarmos um jeito mais fácil? - ele perguntou. - Que tal conversarmos um pouco para ver se você precisa mesmo ser amarrada?

            - Sem soro da verdade?

            - Sim, se você cooperar.

            - Estou dizendo desde já que não vou cooperar.

            - Será que não vou conseguir convencer você a pensar mais um pouco, ser simpática, ajudar a si mesma?

            - Não. E tem mais. Preciso usar o toalete das senhoras. Antes disso, não vou me sentar nesta cadeira e muito menos ser amarrada.

            Jock suspirou fundo e a acompanhou até o fim do cor­redor.

            - Conforme você pode imaginar - ele disse -, não existem janelas neste tipo de prisão. O único caminho para sair é o caminho da entrada, e eu vou ficar aqui esperando.

 

            Mac estava conversando por telefone com Rayford enquanto sobrevoava o Atlântico no meio da noite.

            - Quando Weser vai estar no palácio?

            - Por volta de oito horas, horário de lá.

            - Estou achando que a prioridade máxima é Chloe.

            - Correto.

            - E depois os planos de Carpathia.

            - Exatamente.

            - Vou tentar falar com Weser daqui a meia hora, quando ele já estiver lá. Ligo para você assim que souber de alguma coisa.

 

            Chloe saiu do banheiro sujo da prisão de Stateville e avis­tou Jock acompanhado de três guardas - uma mulher e dois homens.

            - Então, Jock, não seríamos só nós dois? - ela perguntou.

            - Poderia ter sido. Quando você estiver amarrada naquela cadeira e muito infeliz, vai ver sua cara no espelho. Pelo menos você me avisou antes, não me fez perder tempo com conversa boba para depois eu ter de amarrá-la na cadeira, sem ajuda de ninguém.

            Enquanto Chloe atravessava o corredor, a mulher agar­rou sua mão direita e torceu-a para trás; um dos homens fez o mesmo com a esquerda. Ela pensou em protestar; havia deixado claro a Jock que não ia cooperar. Assim que eles entraram na saleta, o terceiro guarda curvou-se e levantou-a do chão pelos tornozelos. A dor provocada pela distensão dos músculos de seus ombros a fez gritar de dor, mas, em questão de segundos, ela estava amarrada na cadeira.

            Os guardas saíram, deixando uma seringa hipodérmica com Jock. Ele fechou a porta e se aproximou de Chloe.

            - Última chance - ele disse. - Você não vai contar a ver­dade sem isto?

            O pulso de Chloe começou a bater aceleradamente até o momento em que ela viu seu amigo da cela solitária sentado na cadeira de Jock.

            - Eu não vou contar a verdade de jeito algum - ela disse.

            - Ah! Isto aqui já derrotou gente mais forte que você - disse Jock.

            Ele começou a inserir um receptáculo em uma das veias do antebraço de Chloe. Fez isso com tanta precisão que ficou claro que tinha experiência. Chloe não sentiu qualquer dor, e ele prendeu o receptáculo no lugar com muita destreza. Em seguida, inseriu um tubo que ia até a lateral da mesa dele.

            Jock sentou-se, e o novo amigo de Chloe ficou em pé atrás dele. Ela conteve-se para não rir, olhando para ele por cima da cabeça de Jock.

            - Para quem você está olhando? - ele perguntou.

            - Você não o conhece - respondeu Chloe, já que ele queria a verdade, havia um pouco de verdade nessa resposta.

            Jock inseriu a seringa no tubo.

            - Quando eu empurrar o embolo, vou injetar 15cc de soro em suas veias. Isso vai lhe dar uma sensação de tranqüilidade. Você deve saber como essa coisa funciona. Ela neutraliza a substância química em seu cérebro que a impede de ser totalmente sincera. É exatamente isto que eu quero de você: que seja sincera.

            - Eu não vejo a hora de ouvir o que tenho a dizer.

            - Diga o suficiente. É isso que vai fazer a diferença entre a vida e a morte para você.

            - Ora, Jock, penso que há alguém aqui que necessita mais do soro da verdade que eu.

            - Você está duvidando de mim?

            - Você sabe muito bem que, mesmo que eu conte tudo, vou morrer.

            - Necessariamente não.

            - Você é um mentiroso. Eu sei disto, e esta é a verdade. Se eu não estiver enganada, você ainda não me injetou nada.

            - De fato, mas chega de conversa. Vou começar.

            O amigo de Chloe fez um gesto atrás de Jock como se fosse um diretor musical. Ela começou a cantarolar em voz baixa:

            - "Chuvas de bênçãos teremos, é a promessa de Deus, tempos benditos trazendo chuvas de bênçãos dos céus."

            - O soro não age assim tão rápido, por isso o que você está cantando não é verdade.

            - "Chuvas de bênçãos, chuvas de bênçãos dos céus! Gotas benditas já temos, chuvas rogamos a Deus."

            - Você é afinada.

            - Obrigada. A canção também é linda.

            Dali a poucos minutos, Chloe sentiu o efeito do soro. Era uma estranha sensação de bem-estar, de confiança, e ela se sentia livre para dizer qualquer coisa. Mesmo que não soubesse tudo, queria ajudar aquele homem e responder às suas perguntas. Nada de mal aconteceria a ela, e tudo ficaria bem.

            Mas ela sabia que não. Olhou por cima da cabeça de Jock.

            - Por quanto tempo ficarás aqui comigo? - ela perguntou.

            - Pelo tempo que for necessário - respondeu o homem invisível.

            - Hã? - disse Jock - Pelo tempo que for necessário. Já descansei um pouco. Posso ficar aqui até quando você quiser.

            - Garanto que não pode.

            - Então, tente.

            Chloe sorriu.

            - Creio que você vai achar que quero demais.

            - Como está se sentindo?

            - Tranqüila.

            - Ótimo. É um bom começo. Qual é o seu nome?

            - Chloe Steele Williams, e sinto orgulho dele.

            - Qual é o nome de seu pai?

            - Rayford Steele.

            - E de seu marido?

            - Cameron Williams. Eu o chamo de Buck.

            - Você tem um filho?

            - Tenho.

            - Qual é o nome dele?

            - O nome dele é muito especial para Buck e para mim, porque ele tem o nome de dois amigos e compatriotas muito queridos, que já morreram.

            - E qual era o nome deles?

            - Se eu responder, você vai saber o nome de meu filho.

            - E por que eu não devo saber o nome de seu filho?

            - Quanto menos você souber sobre ele, mais dificuldade vai ter de encontrá-lo.

            - Eu já lhe disse que não vamos fazer mal algum a seu filho.

            - É mentira.

            - De qualquer forma, você mencionou o nome dele para seu pai pelo telefone. É Kenny.

            Jock empurrou o embolo novamente. Talvez fosse psi­cológico, mas Chloe sentiu um impulso de falar. Aquilo era estranho, mas a droga parecia forçá-la a contar a verdade, mesmo que as respostas não fossem as que Jock desejava.

            O rosto dele estava mais corado do que o normal. Estaria ela deixando-o furioso? Tomara que sim.

            - Você faz parte de um grupo subversivo que se opõe ao governo da Comunidade Global e a seu supremo potentado, Nicolae Jetty Carpathia?

            - Sim.

            - É verdade que vocês não acreditam que o potentado é um ser divino?

            - Sim, e tem mais. Nós acreditamos que ele é o anticristo da Bíblia.

            - Você está ciente de que a afirmação que acabou de fazer é punível com a morte?

            - Sim. Também estou ciente de que Deus deseja a ver­dade, que a lei de Deus é a verdade, que Jesus é a verdade e que, se você conhecer a verdade, ela o libertará.

            De onde vieram essas palavras? Obrigada, Senhor.

            - Você faz parte de uma facção judaísta que tem um grupo enorme morando em San Diego, Califórnia?

            - Você está me perguntando quem eu sou?

            - Estou perguntando se você faz parte de uma...

            - Sou seguidora de Cristo, o Filho do Deus vivo. Ele é mais poderoso do que eu, e não sou digna de desatar as cor­reias de suas sandálias.

            - O quê?

            - Você não ouviu o que eu disse?

            - Os judaístas ou uma facção dos judaístas chamada Comando Tribulação têm alguma coisa a ver com a escu­ridão que tomou conta de Nova Babilônia?

            - Isso foi obra do próprio Deus.

            - Você ou o grupo que representa deseja destruir o governo deste mundo?

            - Ele já está destruído. Só que muita gente ainda não sabe.

            - O governo da Comunidade Global está destruído?

            - Esse fato se tornará conhecido de todos.

            - Você adora a imagem de Nicolae Carpathia pelo menos três vezes por dia?

            - Jamais.

            - Você vai me contar onde estão seus companheiros ou me fornecer alguma pista que nos leve a capturá-los? Estou falando principalmente de seu pai, de seu marido, do Dr. Tsion Ben-Judá e do Dr. Chaim Rosenzweig.

            - Prefiro morrer a contar.

            Jock aplicou o restante do soro e aguardou cinco minutos, cutucando as unhas. Chloe cantou:

            - "Preciosa a graça de Jesus, que um dia me salvou. Per­dido andei, sem ver a luz, mas Cristo me encontrou."

            Jock levantou-se e olhou para a porta, respirando pesada­mente. Em seguida, dirigiu-se para perto de Chloe, retirou o tubo e o receptáculo e a desamarrou.

            - Pronto? - ela perguntou.

            - Não, mas eu apliquei a dose máxima. Nunca vi coisa semelhante. Vamos ficar sentados e conversar por alguns minutos. Se a última porção da droga fizer efeito e você recu­perar o bom senso, é só me dizer.

            - Vamos conversar sobre você, Jock. Por que esse entu­siasmo tão ardente por Carpathia?

            - Ah!, não, você não vai conseguir. Quero que me deixe em paz. Acredite no que quiser. É impressionante. Vou lhe dizer o que penso. Gente mal orientada, mas impressionante. É esse o problema dos religiosos extremistas.

            - É isso o que somos? - ela perguntou.

            - Claro.

            - Você está nos confundindo com gente que mata em nome da fé, não é isso?

            - Vocês são tão extremistas quanto eles, madame.

            - Nós não matamos pessoas que não concordam conosco. Não erguemos estátuas de nosso Deus por aí nem exigimos, por lei, que todos se curvem e façam bajulações diante delas três vezes por dia. Nós apresentamos a verdade, mostramos o caminho às pessoas, exortamos que conheçam a Deus. Mas não obrigamos ninguém.

            Jock sentou-se pesadamente na cadeira.

            - Você já se deu conta de que vai morrer amanhã?

            - Esse pensamento já me passou pela cabeça.

            - E não está preocupada?

            - Claro que estou. Estou apavorada.

            - Você nunca mais vai ver seu marido, seu filho, seus parentes e seus amigos.

            - Se eu acreditasse nisso, a história seria bem diferente.

            - Já entendi. Sonhos e quimeras. Um dia, vocês vão ficar flutuando em volta das nuvens, tocando harpa e usando mantos brancos.

            - Espero que você esteja certo a respeito da harpa, e não dos sonhos e quimeras.

            Jock sacudiu a cabeça.

            - Você sabe que vamos mostrar tudo ao mundo pela TV.

            - Espalhar mais mentiras sobre mim?

            - Vamos dizer o que é necessário para livrar a nossa cara.

            - E, no meu caso, vocês precisam livrar a cara porque essa operação foi um enorme fracasso, não?

            - Poderia ter sido melhor.

            - Poderia? Não poderia ter sido pior! O que vocês con­seguiram?

            - Bem, quando descobrirmos onde o restante dos covar­des está escondido, vamos conseguir alguma coisa.

            - Você os chama de covardes porque estão escondidos ou quer dizer que eles são covardes como eu? Você me acha covarde?

            - A bem da verdade, não.

            - Vou ter direito a dizer minhas últimas palavras amanhã?

            - No seu caso, não vamos permitir. Você vai tentar pregar um sermão, atacar Carpathia, tentar salvar as pessoas.

            - Em resumo, eu só vou poder dizer minhas últimas pala­vras se fizer tudo o que a Comunidade Global deseja.

            - Mais ou menos.

            - É o que nós veremos.

            - Nós? Nós quem?

            Chloe levantou-se e notou que seu amigo havia desapare­cido. Ela prosseguiu corajosamente.

            - Jock, você já pensou que o dia está chegando, muito antes do que você pensa? O dia em que todos terão de prestar contas a Deus e a seu Filho?

            - Você acredita nisso?

            - "Como está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua dará louvores a Deus" (Rm 14.11).

            - Bem, querida, eu não vou fazer isso.

            - Sinto muito, Jock. Cada um de nós prestará contas a Deus.

            - Meu deus é Carpathia. E isto me basta.

            - E quando Jesus vencer?

            - Ele vai vencer?

            - "Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai" (Fp 2.9-11).

            - Espero que isto tudo lhe dê algum conforto quando você estiver debaixo do sol quente amanhã cedo, sentindo aquele cheiro, vendo cabeças rolando e sabendo que a próxima será a sua. Talvez eu não seja um interrogador tão bom quanto pensava, ou você pagou muito dinheiro para ser treinada e assim resistir ao soro da verdade. Mas não existe nada melhor para deixar a mente mais clara do que saber que você está na fila da guilhotina e vai ser a próxima. Vou estar de olho em você amanhã, moça. Aposto que vai tremer, gemer e implorar por uma chance de se salvar.

 

            O relógio marcava 8h30, horário do palácio, e ainda falta­vam sete horas para Mac chegar a Petra. Ele digitou o número de Otto Weser, que Rayford lhe dera, e identificou-se.

            - Ele ressuscitou - disse o alemão.

            - Cristo ressuscitou verdadeiramente - disse Mac. - Você tem alguma novidade para mim?

            - Eu preciso lhe dizer que a Srta. Krystall tem sido uma preciosidade para nós. Gostaria que ela estivesse do nosso lado. Ela me deixou ouvir a conversa de um homem chamado Suhail Akbar, chefe do...

            - Eu sei quem ele é, Sr. Weser. Com todo respeito, vamos ao que interessa.

            - Carpathia encarregou aquele homem e seu pessoal de duas coisas. Primeira, providenciar a instalação do governo em Al Hillah, e segunda, preparar uma verdadeira Oktoberfest para os líderes do mundo inteiro em Bagdá, daqui a seis meses.

            - Não vai ser em outubro?

            - É apenas um modo de dizer. Vai ser igual ao que vocês ianques chamam de um mega-evento, com toda pompa e circunstância, bandeiras, cartazes, show de luzes, bandas, dançarinos, tudo. Se a escuridão terminar em Nova Babilônia, o governo volta para cá. Mas, mesmo que isto aconteça, a festa será mantida em Bagdá.

            - Exatamente onde? Você sabe?

            - Em um edifício novinho em folha, Sr. McCullum. No lugar em que estava localizado o Museu do Iraque, antes da guerra. Deve ser um evento de alto gabarito, com acomoda­ções de luxo, sala para reuniões e muita ostentação. Existem apenas dez chefes de Estado, mas, pelo jeito, além das reuniões particulares com seu gabinete, Carpathia também quer algumas festividades abertas ao público. Mas para o povo dele, Carpathia está se referindo às reuniões com os subpotentados como uma solução final para o problema dos judeus.

            - Para um alemão, isso deve ser parecido com o que está escrito em seus livros de história, não, Sr. Weser?

            - Francamente, nossos livros de história não são iguais aos que os outros escrevem sobre nós, mas entendo o que o senhor está querendo dizer. Já percorremos essa estrada antes.

            - Alguma notícia de Chloe Williams?

            - Krystall diz que ela está na Prisão de Angola, em Louisiana.

            - Ela está se baseando nos noticiários que vimos ou tem informações de dentro do palácio?

            - Vou perguntar a ela.

            Depois de alguns instantes, Otto voltou a falar.

            - As duas coisas. Ela diz que ouviu o noticiário e que ouviu também o pessoal do Serviço de Segurança e Inteligên­cia conversar sobre Chloe, dizendo que ela está lá. A última notícia é que ela vai ser executada às 10 horas, horário cen­tral.

 

            - Temos de partir e levar George e alguns homens conosco, Rayford - disse Buck.

            - Esta história ainda não faz sentido para mim - disse Rayford. - Por que a CG divulgaria onde ela está?

            - Talvez para preparar uma armadilha para nós.

            - Então, é menos provável que ela esteja lá.

            - Você acha que eles estão desconfiados de Krystall? - perguntou Buck.

            - Que deram uma informação falsa só para testá-la?

            - Vamos ver o que Sebastian acha disto.

 

            Chang estava sentado diante de seu computador, no centro de tecnologia, desde antes do alvorecer. Quando Naomi chegou, ela se postou atrás dele e pousou suavemente as mãos sobre seus ombros.

            - Tropas, tropas e mais tropas - ele disse. - Se as tropas da Grécia sozinhas poderiam dominar Israel, imagine só as tropas de todos os Estados Carpathianos juntas. E isto é apenas o começo.

            - Quais são as últimas notícias sobre a esposa do Sr. Williams?

            - Tudo o que consegui extrair das informações recebidas no palácio procedentes de Al Hillah foi que Chloe está em Louisiana e que será executada às 18 horas, nosso horário.

            - Oh! Não.

            - E isto não é o pior, Naomi. Eles divulgaram a notícia pela televisão internacional, mas nunca dizem a verdade. Se quisessem ludibriar o Comando Tribulação, poderiam ter deixado Chloe em San Diego. Rayford e Buck estão atarefa­dos tirando o pessoal de San Diego e acho que não sabem o que fazer. Espero que consigam enxergar uma saída. Pelo que sabemos, Chloe está a uma hora de San Diego. A CG só precisa que ela esteja em algum lugar onde uma afiliada da CNNCG possa fazer uma transmissão ao vivo.

            Naomi puxou uma cadeira e se sentou ao lado de Chang.

            - Acho que você vai fazer de tudo para interferir nesse noticiário, não?

            - Não quero que o mundo veja isso de jeito algum.

            - Mas nós vamos querer que o mundo veja e ouça o que Chloe tem a dizer.

            - Claro. Eu só quero dar um jeito de tirar a cena do ar no momento em que eles perderem a paciência com ela.

 

            Rayford constatou que Sebastian concordava com ele.

            - A CG não vai informar onde ela está de jeito nenhum - disse Sebastian. - Seria uma gafe tremenda.

            - E então, como nós ficamos? - perguntou Buck. - É melhor saber o pior do que não saber nada.

            - Quero ver se Krystall está pronta para assumir o risco - disse Rayford. - Vou ligar para ela.

            Quando a ligação foi completada, Rayford disse:

            - Preciso lhe fazer uma pergunta muito importante para mim.

            - Já forneci tantas informações sobre seu pessoal que poderia ter sido executada.

            - Vou lhe passar uma informação que prolongará sua vida.

            - Do que você está falando?

            - Você costuma visitar o site do Dr. Ben-Judá, certo?

            - Eu já lhe disse que sim.

            - Então sabe que ele tem informado por antecipação e mostrado trechos da Bíblia, profecias sobre todas essas pragas e julgamentos que estão se abatendo sobre a terra.

            - Sim, é de arrepiar os cabelos.

            - É de arrepiar os cabelos, mas tudo isso é verdadeiro, e sabemos o que vai acontecer em Nova Babilônia. Só não sabemos exatamente quando.

            - E o que vai acontecer aqui?

            - Deus vai destruir a cidade inteira no espaço de uma hora.

            - Oh!, meu...

            - Deus vai tirar o povo dele daí... pessoas como Otto e seus amigos... para salvá-lo da morte. Você também precisa sair.

            - Para onde eu devo ir?

            - Para qualquer lugar, menos ficar em Nova Babilônia.

            - Você tem certeza de que isso vai acontecer?

            - Se não acontecer, será a primeira vez que uma das pro­fecias não se cumprirá. Veja, Krystall, não posso prometer que você será protegida só por ter saído de Nova Babilônia. O restante do mundo também sofrerá, mas talvez não de maneira tão trágica e rápida quanto em Nova Babilônia. Sua única esperança é sair daí.

            - Todos esses exércitos que Carpathia está enviando para Israel também fazem parte das profecias? - perguntou Krystall.

            - Você já ouviu falar em Armagedom? É isso. Mas o fim de Nova Babilônia será antes.

            - E o que você vai querer de mim depois de me dar esse alerta?

            - Quero que ligue para alguém. Alguém que saiba das coisas. E quero que você inclua Chloe Williams na conversa. Diga a essa pessoa que assistiu ao noticiário, ou coisa pare­cida, e que está apenas curiosa. É verdade que ela vai ser executada? Onde? Você me faria este favor?

            - Você não está acreditando que será em Louisiana? - ela perguntou.

            - Acho isso muito difícil de engolir.

            - Não prometo nada, mas vou ver o que posso descobrir.

 

            - O que você vai fazer esta noite, Jock? - perguntou Chloe quando ele a levou de volta à cela solitária.

            - Dormir como um bebê. Amanhã será um grande dia. Vamos contar ao mundo que você cantou como um canarinho, mas que, no fim, recusou a marca e não prometeu lealdade a Carpathia. Bem que nós forçamos.

            - E você será o herói da história.

            - Talvez promovido. Despachado para a divisão interna­cional.

            - E onde você vai trabalhar?

            - Por que está interessada em saber? Você não pode contar a ninguém nem fazer alguma coisa.

            - E que mal faz você me contar?

            Jock aprumou a cabeça e olhou para ela.

            - Dizem que vou trabalhar no vale de Jezreel.

            - Sério? O que está acontecendo lá?

            - Não tenho autorização para dizer.

            - Mas você sabe?

            - Bem, sim, claro que sei.

            - Parabéns.

            - Obrigado.

            - O céu é o limite, não?

            - Acho que sim - ele disse.

            - Quer que eu lhe dê uma pequena informação?

            - Agora é um pouco tarde, mas quero saber.

            - Nova Babilônia nunca mais voltará ao normal.

            - Você diz isto com muita certeza.

            - Tanta certeza quanto estou em pé aqui - disse Chloe.

            - Duvido que você esteja certa, mas não vai poder consta­tar. Eu vou.

            - Eu não teria tanta certeza assim.

            - Até amanhã cedo, madame.

            Chloe sentou-se na cela escura e perguntou em voz baixa:

            - Ainda estás aqui comigo?

            - Sempre - foi a resposta. - Até à consumação do século.

            Chloe prostrou-se no chão e orou o restante do tempo, incapaz de dormir. Ela cantou, citou versículos da Bíblia, louvou a Deus e ouviu.

            Ficou a maior parte do tempo ouvindo. E Ele confortou seu coração.

 

            - Nunca mais vou permitir que isto aconteça - disse Buck.

            O dia começava a amanhecer, e eles estavam em pé, do lado de fora do jato de dois lugares, em uma região remota do oeste de Wisconsin, monitorando um rádio e uma TV em miniatura e aguardando o chamado de Krystall.

            - Mesmo se tivéssemos descoberto que Chloe estava a meia hora de St. Paul, não teríamos condições de fazer nada. Esta­mos sem carro, sem disfarces, sem documentos de identi­dade. Nunca mais, pai, eu prometo.

            Aparentemente, Rayford não tinha nada a dizer, e Buck condoeu-se dele.

            - Não sei o que mais poderia ter sido feito - prosseguiu Buck. - Mas eu preferia não estar parado aqui, esperando alguma coisa acontecer.

            - Eu não entendo por que Krystall ainda não ligou - disse Rayford. - Ela teve o dia inteiro para fazer isso. - Ele con­sultou seu relógio. - A tarde já chegou à metade em Nova Babilônia.

            - É melhor não pensarmos que eles estão desconfiando dela, que grampearam seu telefone ou algo parecido. Aí, eles vão notar tudo sobre Otto, descobrir que sabemos onde a grande reunião vai ser realizada, descobrir tudo.

            - Não sei - disse Rayford. - David e Chang sempre afir­maram que a CG não grampeia os próprios telefones.

            - Entendo que todos em Al Hillah estão em reunião o dia inteiro e que não há ninguém que possa contar a verdade a Krystall sobre o paradeiro de Chloe, é isso? Você devia ter dado um prazo a ela. Será que ela faz idéia de que precisa­mos saber disto antes da execução?

            - Ela não trabalha para nós, Buck. Ela tem sido uma dádiva de Deus.

            - É interessante usar esta expressão para alguém que possui a marca da besta.

 

            Mac deixou Zeke em Petra por volta das 14 horas. Abdullah, que já havia providenciado uma aeronave maior para Mac, encarregou-se de ajudar Zeke a instalar-se em sua nova moradia.

            - Planejo entrar e sair daquele apartamento o mais rápido que puder - disse Mac. - Depois, pego Weser e seu grupo e volto para cá. Eu gostaria de terminar tudo antes que a CNNCG leve ao ar o caso de Chloe. Não quero assistir à cena em que ela vai ser morta, mas quero ver as preliminares.

 

            Envolvida na mais completa escuridão, Chloe não tinha idéia da passagem do tempo. De vez em quando, ela encostava a orelha na porta de aço para ouvir o que se pas­sava no conjunto de celas solitárias. Até aquele momento, nada.

            Ela imaginou que o tempo de espera para a execução deveria ser o mesmo que aguardar para falar com o diretor do colégio ou enfrentar um castigo iminente, só que multipli­cado por um milhão de vezes. E, mesmo assim, ela se sentia relativamente calma. Seu coração estava pesaroso em relação a Buck, não apenas pela falta que ele sentiria dela, mas pelo esforço que ele teria de fazer para explicar o acontecido a Kenny.

            Kenny era muito criança, e não haveria necessidade de muitas explicações, ela sabia disto. Mas as perguntas do dia-a-dia, a falta que ele sentiria da mãe, a triste realidade de que ninguém poderia amá-lo da mesma forma que ela... tudo isso era muito desgastante.

            Chloe sentia a presença de Deus, embora não estivesse vendo o mensageiro que aparecera na noite anterior. Seus músculos estavam doloridos por causa das posições em que ela se colocava para orar e quando tentava acomodar-se melhor. A fome era um problema que ela conseguira afastar da mente. Em breve, ela dizia a si mesma, estaria jantando na mesa de banquete do Rei dos reis.

            O mais gratificante de tudo era que Chloe tinha poucas dúvidas e muito mais segurança à medida que as horas pas­savam. Ela colocara todos os ovos em um só cesto, conforme costumava dizer. Se estivesse errada, paciência. Se tudo aquilo não passasse de uma grande encenação, ela havia engolido a história inteira. Mas, para ela, os dias de questio­namentos e receios não mais existiam.

            Já presenciara muita coisa, passara por muitos sofrimentos. Já vira, como todas as pessoas do planeta, que Deus era real, que Ele estava no controle de tudo, que Ele era o arquiinimigo do anticristo, e que Ele seria o vencedor final.

            No início de sua vida espiritual, Chloe se mostrava um tanto presunçosa, principalmente quando as pessoas a criticavam ou zombavam dela por causa de sua crença. Ela aprendera a não se alegrar com o sofrimento alheio, mas não podia deixar de sentir uma satisfação interior por saber que um dia provaria a todos que estava certa.

            Porém, pela misericórdia de Deus, aquela atitude já não existia. Quanto mais ela aprendia, quanto mais sabia, quanto mais via exemplos de outros crentes demonstrando com­paixão pela condição deplorável das pessoas perdidas, mais Chloe amadurecia na fé. Esse amadurecimento era mani­festado na tristeza que ela sentia pelas almas das pessoas, no desespero para que elas conhecessem a verdade e aceitassem a Cristo antes que fosse tarde demais.

            Ela não sabia o que fazer com seus sentimentos de amor, preocupação e simpatia pelas pessoas que já haviam recebido a marca de Carpathia e estavam condenadas ao castigo eterno. Não havia mais esperança nem possibili­dade de ajudá-las, mas ela sentia pena delas.

            Lampejos de humanidade em Florence, em Nigel, em Jessé, em Jock... o que aquilo significava? Ela não podia esperar que pessoas incrédulas vivessem como crentes, portanto não sabia como julgá-las - apenas as amava. Mesmo assim, não havia mais nada a fazer.

            Embora não conseguisse compreender que ainda hou­vesse pessoas incrédulas no mundo, Chloe sabia que isso era verdade. Talvez fossem aquelas pessoas que ela ten­taria convencer quando Deus forçasse a CG a permitir que ela dissesse suas últimas palavras. Era difícil entender como alguém que presenciou todos os acontecimentos dos últimos seis anos ainda não houvesse percebido que as únicas opções eram Deus ou Satanás - ou pior, apesar de conhecer as alternativas, optara por Satanás.

            Mas, sem dúvida, esta era a dura realidade. Ming lhe contara que os muçulmanos eram contra Carpathia porque não queriam abandonar sua crença. Alguns judeus pratican­tes que não acreditavam que Jesus era o Messias também rejeitavam Carpathia como deus deste mundo.

            George conhe­cia alguns militares que se recusaram a prometer lealdade a um ditador, embora não confiassem em Cristo para receber a salvação.

            Seria possível que depois de tanto tempo ainda houvesse pessoas espiritualmente descompromissadas, que simples­mente não queriam tomar uma decisão? Chloe não podia imaginar, mas sabia que isso era verdade. Algumas preferi­ram correr atrás de seus objetivos, de suas concupiscências.

            Chloe pensou nos outros prisioneiros de Stateville que morreriam naquela manhã. Muitos eram portadores da marca de Carpathia, mas outros não. Será que ela, a prisio­neira mais famosa, seria a última da fila?

            - Clareza, Senhor - ela disse. - É tudo o que eu peço. Tu já me prometeste graça e força. Permite apenas que minha mente funcione melhor do que funcionaria nestas circunstân­cias.

 

            Mac vasculhou sua sacola e encontrou seus trajes de homem embriagado. Ninguém se daria ao trabalho de pro­curar a marca de Carpathia debaixo do gorro de meia de um homem malcheiroso, sem eira nem beira. Foi o único jeito que Mac encontrou para atrever-se a sair à rua durante o dia.

            Ele encontrou sua motoneta no mesmo lugar onde havia deixado - no arbusto perto da pista aérea - e dirigiu-se à periferia de Al Basrah. Deixou a motoneta presa por corrente antes de entrar cambaleando na cidade.

            Mac foi cumprimentado por vários bêbados verdadeiros. Ele agia como se estivesse andando a esmo, mas tinha um roteiro em mente. E quando chegou a um quarteirão de distância do apartamento que morou com Albie, ele entrou em uma viela, onde não havia ninguém. Correu o restante do caminho e ouviu vozes quando começou a subir a escada. Mac parou e sentou-se no patamar superior da escada. Havia dois homens em frente ao apartamento dele e de Albie.

            - Você não pode ficar aí, velho! - gritou um deles. - Dê o fora.

            Mac resmungou alguma coisa, abaixou a cabeça e começou a roncar.

            Os homens riram.

            - Estou achando - disse um deles em voz baixa - que ele vai chegar depois que escurecer. O MM quer esse cara vivo.

            Mac reconheceu o apelido.

            - Consegui dois homens para vigiarem a entrada uma hora antes do pôr-do-sol. Você tem certeza de que ele não vai chegar mais cedo?

            - Ele não tem a marca, homem! Quem se arriscaria a andar por aí durante o dia sem a marca?

            Quando os homens se afastaram e Mac teve certeza de que o caminho estava livre, ele se levantou rapidamente e abriu a porta do apartamento. O local estava vazio. Nenhuma mobília. Os pertences deles haviam desaparecido. Agora, o local servia apenas como armadilha para ele.

            Mac desceu correndo a escada, pegou sua motoneta, dirigiu-se rapidamente para a pista aérea e seguiu para Nova Babilônia. Já havia combinado com Otto para que ele levasse seu pessoal até a pista do aeroporto de Nova Babilônia.

            - É melhor o pessoal entrar no avião antes que alguém nos veja - ele dissera.

            Os homens e mulheres sob a responsabilidade de Otto, em número de 30 ou pouco mais, tentaram agradecer individualmente a Mac, mas ele se limitou a sorrir e con­tinuou guiando-os até o avião. Ele não se sentiria tranqüilo enquanto não chegasse a Petra. Depois, com uma nova iden­tidade fornecida por Zeke, ele estaria pronto para qualquer traquinagem que Rayford pudesse ter imaginado.

            Otto estava inquieto atrás do grupo.

            - Assim que tudo estiver pronto - disse Mac -, podemos partir.

            - Mac, não podemos partir ainda.

            - Por quê? O que houve agora?

            - Ela está morta.

            - Quem?

            - Krystall.

            - Como assim?

            - Vá até lá e veja. Depois que estive aqui esta manhã, voltei para nosso esconderijo e ajudei todos se aprontarem para ir a seu encontro. Quando cheguei aqui, eu disse a meu pessoal que aguardasse sua chegada e que você seria a única pessoa capaz de enxergar o suficiente para poder pousar. Voltei para agradecer a Krystall, e foi então que descobri.

            - Como você sabe que ela está morta?

            - Não sou médico, mas havia um cheiro forte como se alguém tivesse atirado alguma substância lá dentro. Ela estava no chão, com o telefone tocando. Eu a deixei ali. Veri­fiquei o pulso dela. Vá até lá e veja.

            - Sr. Weser, não temos tempo. Se ela está morta, está morta, sinto muito. E isso talvez tenha acontecido porque Rayford a colocou no meio de toda essa confusão. Mas não há nada que eu possa fazer por ela, e podemos prejudicar esta missão se você e eu sairmos daqui e deixarmos todo o seu pessoal aguardando no avião.

            - Você acha que eles estavam desconfiando dela? Que enviaram alguém para matá-la?

            - Eu não sei como poderiam fazer isso se não estão enxer­gando nada.

            - Achei que talvez eles tivessem encarregado alguém que conhece o palácio, e essa pessoa tateou o caminho até lá, conversou com aquela mulher para ter certeza de que ela estava lá e, em seguida, atirou um gás venenoso ou algo parecido dentro do apartamento dela.

            - Pode ser. Isso explica por que Rayford não recebeu notí­cias dela. Você já o avisou?

            - Eu deveria, não? Mas não sabia o que fazer. Fiquei muito aborrecido.

            - Vamos subir a bordo. Eu ligo para Rayford.

 

            Buck aguardava impaciente enquanto Rayford conversava com Mac e cobriu os olhos com a mão.

            - O que foi? - ele perguntou.

            Rayford fez um gesto pedindo um pouco de tempo, e os joelhos de Buck fraquejaram.

            - O que foi? Chloe está morta?

            - Ainda não, Buck - respondeu Rayford, ajoelhado na grama. - Mas isso poderá acontecer.

            Rayford relatou os fatos.

            Buck sentou-se, dobrou as pernas e encostou os joelhos no peito.

            - Não posso acreditar que estou parado aqui no meio do nada, aguardando minha mulher morrer, sem sequer saber onde ela está.

            O rosto de Rayford estava branco como cera.

            - Deveríamos ter ido para Petra.

            - Mas e se alguém...

            - Ninguém que saiba de alguma coisa vai nos contar, Buck. É hora de levantarmos acampamento.

            - Desistir, você quer dizer.

            - Sim, Buck. - Rayford levantou-se e disse com voz embargada. - Estou desistindo. Agora ela está nas mãos de Deus. Se Ele deseja poupá-la por um motivo qualquer, acho que decidiu fazer isso sem nossa ajuda.

            Enquanto Rayford subia a bordo, Buck levantou-se e apoiou as mãos abertas na fuselagem do avião, com a cabeça baixa.

            - Chloe - ele disse com a voz rouca pela emoção. - Onde quer que você esteja, saiba que eu a amo.

 

            Após uma longa noite de oração, Chloe passou por um cochilo. Foi despertada, sem saber quanto tempo depois, por um inconfundível toc-toc-toc da hélice de helicóptero. Mais de um. Talvez três. Ela imaginou, apenas por alguns instantes, que alguém chegara para tirá-la dali.

            No íntimo, ela sabia que seu marido e seu pai, e talvez outros companheiros do Comando Tribulação, iriam até o fim na tentativa de libertá-la. Porém, sabia também que, sem um milagre, eles não teriam meios de saber onde ela estava. Aquilo havia sido o ponto alto de sua transferência.

            Teriam eles descoberto alguma coisa? Ela nunca cessava de maravilhar-se diante dos recursos disponíveis para seus companheiros. Deveria preparar-se para fugir, caso eles invadissem o local para resgatá-la? Saberiam eles mais coisas que ela? Conheceriam a arquitetura e a planta da prisão, onde ficavam as solitárias, em que cela ela se encontrava? E em quantos eles estariam? Teriam condições de dominar o pessoal da CG?

            Suas perguntas foram respondidas em seguida, quando seu amigo reapareceu e deixou a cela tão iluminada quanto se fosse meio-dia.

            - Posso saber qual é o teu nome? - ela perguntou.

            - Pode me chamar de Calebe.

            - Eu não vou ser resgatada hoje, vou, Calebe?

            - Você será libertada, mas não da maneira que está pen­sando.

            - Libertada?

            - Hoje você estará com Cristo no paraíso.

            Ao ouvir aquelas palavras, Chloe ajoelhou-se no chão.

            - Eu não consigo esperar - ela disse. - Vou sentir uma enorme saudade de muitas pessoas queridas, mas não será por muito tempo. Como eu anseio estar com Jesus!

            Além dos helicópteros, Chloe ouvia apenas barulhos fortes do lado de fora e nenhum do lado de dentro do edifí­cio. Veículos. Marteladas em objetos de metal. Gritos. Sons semelhantes ao de uma construção em andamento. Apesar de seu preparo psicológico, ela começou a ficar nervosa.

            - Quero ser uma filha de Deus exemplar - ela disse, esfor­çando-se para controlar as emoções.

            - Deus a manterá em perfeita paz se seus pensamentos permanecerem nele.

            - Obrigada, Calebe. Mas, de repente, estou me sentindo frágil demais.

            Finalmente, Chloe ouviu sons no interior do conjunto das celas solitárias. Uma batida rápida na porta de aço. A portinhola foi aberta. O rosto de Jock apareceu.

            - Como se sente esta manhã, moça? Pausa para ir ao banheiro.

            - Aguarde um minuto, por favor.

            - Ora, que garota difícil!

            Ela olhou desesperadamente para Calebe.

            - "Deixo-vos a paz", diz o Senhor Jesus Cristo - foram as palavras de Calebe. - "...a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize" (Jo 14.27).

            Chloe bateu na porta de aço.

            - Estou pronta.

            Um guarda abriu a porta. Quando Chloe saiu, avistou Jock trajando um uniforme azul com botões dourados, todo enfeitado. Ela também ficou frente a frente com uma mulher que trajava um blazer da CNNCG e carregava uma maleta de couro.

            - Ora, ora - disse a mulher a Chloe. - Assim não está bom. Quero que me avise quando eu puder entrar no banheiro com você. Ei, Jock, providencie um macacão limpo para ela.

            - Você vai me vestir para a morte? - perguntou Chloe.

            - Com toda pompa, minha querida - respondeu a mulher. - A pena será cumprida, mas vamos deixar claro que você não foi maltratada.

            - Estou vendo - disse Chloe, enquanto a mulher a acom­panhava. - Arrancada de minha família, passando fome, sendo drogada, atravessando metade do país de avião, rece­bendo uma injeção do soro da verdade e presa a noite inteira numa cela solitária... é esta a sua idéia de um tratamento justo?

            - Eu sou apenas uma artista em maquiagem. Quando estiver pronta, me chame.

            - Para quê?

            - Vou arrumar seu cabelo, fazer uma maquiagem leve em você.

            - Não se preocupe.

            - Ah! , é minha obrigação.

            - Você não tem escolha? - Chloe perguntou.

            - Se ao menos você estivesse apresentável... mas, olhe para você.

            - Mas eu tenho escolha. Posso ter a aparência que desejar.

            - É o que você pensa. Mas não é assim.

            Chloe se viu de relance quando passou pelo espelho. Seu aspecto era horrível. Ela estava com o rosto oleoso e sujo, e os cabelos emaranhados. Que situação bizarra! Quando foi a última vez que alguém me embelezou? E agora ela estava recebendo um tratamento grátis, quando a aparência era a última coisa que lhe passava pela mente.

            - Não demore - gritou a mulher. - O pessoal da TV tem um horário de programação, você sabe.

            Chloe sacudiu a cabeça. Pessoal da TV. Eles esperavam que até mesmo uma condenada à morte fizesse parte de sua equipe.

            - Estou deixando um macacão limpo em cima da pia! Troque de roupa e me avise quanto estiver pronta!

            Chloe trocou de roupa, mas não disse nada. Quando ela saiu, a mulher reclamou:

            - Você ficou de me avisar quando estivesse pronta!

            - Eu não.

            - Vamos entrar lá novamente para que eu possa usar o espelho.

            - À vontade. Eu não preciso de espelho.

            - Ora, vamos! Eu tenho de aprontar você.

            - Eu já estou pronta.

            - Pare! Espere! Fique onde está!           

            Chloe encarou a mulher.

            - Você não está vendo o absurdo que está cometendo? Não basta me condenarem à morte? Vocês precisam fazer um espetáculo disto?

            - Eu recebo ordens e tenho de cumpri-las.

            - Então, faça o que tem de fazer, aqui e agora.

            A mulher curvou-se, colocou a sacola no chão e pegou um pente e uma escova. Penteou com força o cabelo de Chloe. Em seguida, usou um lenço de papel umedecido para limpar o rosto dela e passou um pouco de blush em suas faces. Quando ela pegou o rímel, Chloe disse:

            - Não. Chega. Nada de rímel, nada de batom. Vamos parar por aqui.

            - Você é uma moça muito bonita.

            Chloe ergueu uma sobrancelha.

            - Muito obrigada. Este vai ser o ponto alto de minha manhã.

            Que pensamento reconfortante! Minha cabeça vai ser a mais linda da caçamba.

            Quando Chloe apareceu diante de Jock, ele perguntou:

            - Eu preciso algemá-la, amarrá-la?

            -Não.

            - É assim que se fala, garota. Ela olhou firme para Jock.

            - Não é nada pessoal - ele disse. - Só estou cumprindo o meu dever.

            - Providencie, então, para que eu tenha direito a dizer minhas últimas palavras.

            - Se dependesse de mim...

            Ela se virou e o encarou.

            - Depende de você, Jock, e você sabe disto. As pessoas que poderiam dizer o que você pode ou não fazer estão a quilômetros de distância daqui. Assuma a responsabilidade pelo menos uma vez, por favor. Tome uma decisão. Anuncie que vou falar e deixe que eu fale. Eu vou morrer e você vai receber uma promoção. Qual é o problema?

            Jock desviou o olhar. Conduziu-a escada acima e para fora do edifício.

            O sol da manhã estava brilhante. Ela pro­tegeu os olhos. A imprensa dominada por Carpathia estava toda presente. Havia palanques armados e, aparentemente, o público tinha sido convidado. Chloe gostaria de saber qual era a finalidade de todo aquele tumulto até o momento em que percebeu que ela era a atração principal. O povo estava aplaudindo e dando vivas.

            Os outros prisioneiros, na maioria homens, já estavam em suas respectivas filas, aguardando atrás das mesas. Alguns se mexiam no lugar nervosamente. Outros pareciam pálidos demais. Havia oficiais sentados diante de cada mesa, uma delas reservada para o aplicador da marca. O que aquilo significava? A esta altura, até aqueles que já haviam recebido a marca teriam de enfrentar a guilhotina. Estariam imagi­nando que a marca lhes daria alguma vantagem na vida após a morte que Carpathia oferecia?

            Em volta de cada guilhotina, Chloe avistou alguns prisio­neiros sentados, com as pernas cruzadas, usando uniformes de brim escuro. Aqueles homens, Chloe imaginou, deviam ser os condenados à prisão perpétua que Jock descreveu como coletores. Eles dariam um fim aos restos mortais. Todos pareciam entusiasmados, sorrindo, caçoando um do outro.

            Jock a conduziu ao fim da fila diante da mesa do meio.

            - Bem, é isso aí - ele disse.

            Chloe notou um tom de justi­ficativa na voz dele.

            - Você ainda pode...

            - Você deveria ter feito uma aposta ontem - ela disse.

            - Como assim?

            - Você tinha certeza de que, neste momento, eu faria um último apelo, imploraria.

            - Esta você ganhou - ele disse. - Você é uma mulher estranha.

            Chloe estava ciente dos holofotes presos em postes altos, das gruas que sustentavam as câmeras e seus operadores, dos técnicos com fones de ouvido correndo de um lado para o outro e das pessoas olhando para seus relógios.

            Na fila diante da mesa à sua direita, Chloe viu um homem de meia-idade ostentando a marca de Carpathia - o que significava que ele havia sido condenado por outro crime capital - cair de joelhos no chão, tremendo e chorando. Ele agarrou as pernas da calça do homem à sua frente, que queria pousar a mão em seu ombro, com ar de constrangimento.

            Uma senhora idosa, na fila seguinte àquela, estava em pé com as mãos no rosto, balançando o corpo. Talvez orando, Chloe imaginou. Em todas as filas havia judeus, identificados com a Estrela de Davi reproduzida por meio de estêncil, ou usando solidéus, alguns feitos de retalhos de tecido; outros, de cartolina. Todos estavam abatidos, com escoriações na pele por terem sido surrados, debilitados pela fome e tosta­dos pelo sol.

            Por meio de pesquisas feitas por Buck e de informações recebidas de David Hassid e Chang procedentes de dentro do palácio, Chloe sabia que Carpathia queria que os judeus fossem torturados até o limite de suas forças, porém a morte só deveria ocorrer diante do público, no momento em que fossem decapitados.

            Já fazia certo tempo que Chloe vinha se alarmando, da mesma forma que muitas pessoas, com a degradação dos programas de TV que pioravam a cada dia. Alguns canais exibiam, 24 horas por dia, as mais terríveis perversões, e não havia limites para nada. Mas quando as pesquisas reve­laram que os programas de TV mais vistos durante a semana inteira eram as execuções públicas, Chloe constatara que havia um lado mais perverso ainda, para o qual a sociedade estava derivando, e esse lado já vinha sendo mostrado.

            A sede de sangue era, aparentemente, insaciável, che­gando a tal ponto que os programas mais populares de execuções ao vivo eram aqueles que duravam uma hora e mostravam replays em câmera lenta das mortes mais horripi­lantes. Quando as guilhotinas apresentavam problemas e as lâminas emperravam, as vítimas eram deixadas ali, mortal­mente feridas e gritando, mas sem morrer... Era isso que o público queria ver, e quanto mais, melhor.

            Cada execução era precedida de um relato detalhado dos delitos praticados pelos recalcitrantes. A lógica era a seguinte: quanto mais sórdido o passado, mais sofrimento era imposto à vítima. Chloe conhecia os tipos de histórias que circulavam sobre ela, mas não tinha idéia do que diziam sobre os verdadeiros culpados.

            Chloe viu Jock retornar e dirigir-se à plataforma onde havia um microfone. Um homem - aparentemente o apre­sentador - pediu silêncio ao povo, aguardando o aviso de alguém. Em seguida, pediu aplausos enquanto lia um texto que mencionava as qualificações de Jock Ashmore.            Ele disse que Jock era o um dos principais investigadores da Comu­nidade Global, responsável sozinho pela captura e prisão de Chloe Steele Williams, a terrorista anti-Carpathia de maior periculosidade que havia sido detida até aquela data. O povo aplaudiu aos gritos.

            - Obrigado - Jock começou a dizer. - Hoje vamos realizar 36 execuções: 21 por assassinato, dez por recusa a receber a marca de lealdade, quatro por crimes contra o Estado, e uma por todas estas acusações e outras tantas.

            O povo aplaudiu, gritou, vaiou e assobiou.

            - Para mim, é uma satisfação dizer que, apesar de Chloe Steele Williams não ter concordado em receber a marca de lealdade a nosso supremo potentado, ela nos forneceu informações detalhadas sobre seus companheiros no mundo inteiro, o que nos ajudará a erradicar de vez os judaístas que estão fora de Petra e a pôr um fim na cooperativa de mer­cado negro.

            O povo aplaudiu freneticamente.

            - Falaremos mais dessa mulher quando ela se tornar, hoje, a 36ª paciente da Dra. Guilhotina.

            Depois que o povo finalmente se acalmou, Jock prosseguiu:

            - Esta manhã, começaremos pela fila sete com um homem que assassinou sua esposa e dois filhos pequenos.

            Chloe olhou de relance para um monitor de TV que mostrava uma cena terrível dos corpos mutilados dos meni­nos.

            Deus, dá-me força, ela orou silenciosamente. Permite que eu me mantenha concentrada em ti.

            Uma mulher bem à frente de Chloe, pálida, de aspecto doentio e sem a marca de lealdade, virou-se de repente para ela e perguntou:

            - Você é Chloe Williams?

            Chloe assentiu com a cabeça.

            - Eu não quero morrer e não sei o que fazer!      

            Obrigada, Senhor.

            - Se a senhora sabe quem eu sou - disse Chloe -, sabe de que lado estou.

            - Sim.