Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ARMAGEDOM
Os seis primeiros anos da Tribulação ficaram para trás, tem início o Armagedom, no entanto será necessário suportar ainda um ano até o Glorioso Aparecimento. Quem permanecerá firme em sua fé mesmo diante de uma captura, interrogatório ou tortura?
O Comando Tribulação, espalhado por todos os cantos da Terra, e os exércitos do mundo inteiro são atraídos inexoravelmente para O Oriente Médio no momento em que a História leva-os a reunir-se em preparação para a batalha dos séculos. Durante o último ano da Grande Tribulação, as casas secretas deixam de ser secretas e os personagens da trama mudam dramaticamente.
O anticristo dá as cartas para o jogo mais traiçoeiro do mundo, e todos são obrigados a mudar-se para outro local, exceto os que estão em Petra. Inicia-se um novo romance, um romance recente é oficializado e um romance antigo entra em crise enquanto milhões de pessoas se aglomeram para a grande guerra.
Mesmo depois de tantos preparativos, artimanhas e recursos, de que forma os membros do Comando Tribulação sobreviverão para ver o Glorioso Aparecimento? A força que eles enfrentam é tremenda. O Armagedom será semelhante às muitas batalhas da antigüidade, quando o inimigo parecia tão grande e a derrota tão iminente.
Pela primeira vez desde a decolagem, Rayford Steele teve dúvidas sobre a passageira que viajava com ele e Abdullah Smith.
- Não devíamos ter trazido essa moça, Smitty - ele disse, olhando de esguelha para Abdullah, que estava no comando da aeronave.
O jordaniano sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, capitão, mas o problema é seu. Eu tentei lhe dizer que ela era muito importante em Petra.
A escuridão envolvendo apenas Nova Babilônia, mas visível a uma distância de mais de 160 quilômetros, era diferente de tudo o que Rayford já vira. No momento em que Abdullah iniciou as manobras de pouso do Gulfstream IX em direção ao Iraque, o relógio marcava 12 horas, horário do palácio.
Normalmente, as magníficas estruturas da capital do novo mundo reluziam de maneira deslumbrante ao sol do meio-dia. Agora, apenas uma impressionante e solitária coluna negra erguia-se nas imensas fronteiras de Nova Babilônia e subia em direção ao céu sem nuvens, até a uma altura que os olhos conseguiam enxergar.
Chang Wong era o espião de Rayford dentro do palácio. Confiando nas informações do jovem de que eles seriam capazes de enxergar o que outros não conseguiriam, Rayford trocou um olhar com Abdullah, o co-piloto que conduzia a aeronave na escuridão, baseando-se apenas na brancura refletida pela areia do deserto. Abdullah acendeu as luzes de pouso.
Rayford olhou para ele de esguelha.
- Vamos precisar de ILS?
- Sistema de pouso por instrumentos? - disse Abdullah.
- Acho que não, capitão. Estou enxergando o suficiente.
Rayford comparou a terrível escuridão com o dia lindo que eles passaram em Petra. Olhou para a jovem por cima do ombro, imaginando ver medo em seu semblante. Ela estava tranqüila.
- Ainda temos possibilidade de voltar - Rayford disse a ela. - Seu pai parecia relutante quando você subiu a bordo.
- Talvez por não querer causar problemas para o senhor - disse Naomi Tiberias. - Ele sabe que vou ficar bem.
O humor e a autoconfiança daquela adolescente perita em informática eram excelentes. Ela pareceu tímida e retraída na presença dos dois adultos até o momento de conhecê-los melhor; depois, passou a conversar de igual para igual. Rayford sabia que ela ensinara Abdullah a ser um profundo conhecedor dos assuntos de informática e que manteve contato constante com Chang desde que a escuridão tomou conta de Nova Babilônia.
- Por que está escuro somente aqui? - Naomi perguntou.
- É muito estranho.
- Não sei - respondeu Rayford. - A profecia diz que ela afetaria o trono da besta e que seu reino se transformaria em trevas. É só isso que eu sei.
A cada visita a Petra, Rayford presenciara a crescente influência e responsabilidade de Naomi perante os remanescentes. Por ter se sobressaído como um prodígio em tecnologia, Naomi tornou-se chefe de fato e de direito do imenso centro de informática de Petra. Passando rapidamente de subordinada a chefe, ela se tornou professora dos outros professores.
O centro de tecnologia que havia sido projetado pelo falecido David Hassid, o antecessor de Chang, era agora o ponto nevrálgico que mantinha Petra em contato com mais de um bilhão de almas todos os dias. Milhares de computadores permitiam que muitos mentores acompanhassem o público virtual de Tsion Ben-Judá. Naomi coordenava pessoalmente o contato entre Chang, em Nova Babilônia, e o Comando Tribulação ao redor do mundo.
A idéia de incluí-la no vôo que resgataria Chang em Nova Babilônia partira dele próprio. A princípio, Rayford não concordou. Já havia assumido responsabilidade suficiente quando viajou mais de 12 mil quilômetros de San Diego a Petra, onde pegou Abdullah para ser seu co-piloto durante os últimos 800 quilômetros até Nova Babilônia.
George Sebastian, o piloto especialista em aeronaves de combate, teria sido melhor escolha, mas Rayford sabia que o grandalhão passara por maus bocados recentemente. Havia muito trabalho para ele em San Diego, e Rayford queria poupar George para o evento ao qual o Dr. Ben-Judá dava o nome de "a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso", que ocorreria antes de um ano.
Mac McCullum e Albie estavam em Al Basrah, cidade localizada cerca de 300 quilômetros ao sul de Nova Babilônia, aguardando ordens. Mas Rayford tinha outros planos para eles.
O genro e a filha de Rayford - Buck e Chloe Williams - prontificaram-se a tirar Chang da toca do inimigo, o que não era surpresa alguma, porém Rayford estava convencido de que, em breve, Buck seria mais útil em Israel.
Quanto a Chloe, a Cooperativa Internacional de Mercadorias havia sentido sua falta quando ela esteve ausente por uns tempos. E alguém teria de cuidar do pequeno Kenny.
- Pegue todos os equipamentos de que você necessita enquanto estivermos a caminho, Chang - Rayford dissera, com o telefone encaixado entre o ombro e ouvido enquanto arrumava a mala.
- Smitty e eu chegaremos aí dentro de dois dias.
Chang explicara que a missão era complicada demais e que ele e Naomi, trabalhando juntos, poderiam tirá-lo de Nova Babilônia muito mais rápido.
- Eu não quero deixar nada para trás - ele dissera. - Ela pode ajudar. Quero ter condições de monitorar este palácio de qualquer lugar do mundo.
- Não se preocupe - disse Rayford. - Logo você estará frente a frente com ela.
- Não sei do que o senhor está falando.
- O pai dela é um dos anciãos de Petra, você sabe.
- E daí?
- Só restaram os dois na família. Ele a protege muito.
- Ela e eu temos muito trabalho a fazer.
- Entendo.
- Não estou brincando, capitão Steele. Por favor, ela precisa vir com o senhor. Eu já vi o rosto dela na tela.
- E então, o que você achou dela?
- Eu já lhe disse. Temos muito trabalho a fazer.
Rayford sentiu um cutucão no espaldar de sua poltrona quando Naomi esticou o corpo para a frente.
- O Sr. Smith tem condições de pousar? - ela perguntou. - Ele está enxergando bem?
- Não sei - respondeu Rayford. - Parece que alguém pintou as janelas da aeronave de marrom. Procure entrar em contato com nosso garoto.
A missão de Chang era confirmar se as pistas de Nova Babilônia estavam em condições, mas ele não podia dizer isso por telefone, com medo de que alguém escutasse. Naomi tirou um computador pequeno de dentro de uma caixa de alumínio, e seus dedos começaram a correr pelo teclado.
- Evitem pista três esquerda e três direita - ela disse. - E Chang quer saber que pista será escolhida para poder estar lá quando pousarmos.
Rayford olhou de relance para Abdullah e dirigiu-se à jovem.
- Ele está falando sério, Naomi?
Ela assentiu com a cabeça.
- Diga a ele que a torre está fechada e que não vamos comunicar nossa chegada. Daqui, não podemos distinguir as pistas, portanto ele vai ter de nos dar as coordenadas e...
- Um momento - disse Naomi, digitando mais algumas palavras. - Ele incluiu em um anexo tudo o que o senhor necessita.
Naomi virou a tela em direção a Rayford e apontou para o anexo.
- O sistema de voz está ativado. Diga a ele o que o senhor quiser.
- O aparelho vai reconhecer minha voz? - perguntou Rayford, examinando a tela.
- Sim - respondeu o computador.
Naomi riu.
- Anexo, por favor - disse Rayford.
Uma imagem detalhada apareceu na tela exibindo a vista aérea do aeroporto de Nova Babilônia.
- Vou acertar as coordenadas para você, Smitty - disse Rayford, procurando programar o sistema de controle de vôo.
- Esta coisa faz tudo. Só não é capaz de preparar comida para o senhor, capitão Steele - disse Naomi. - O senhor tem uma saída de raio infravermelho?
- Acho que sim. Temos, Smitty?
Abdullah apontou para um botão no painel de controle.
- Aqui - disse Naomi. - Deixe por minha conta.
Ela debruçou o corpo por cima do ombro de Rayford e apontou a parte traseira do computador na direção da saída.
- Pronto para aterrissar, capitão?
- Positivo.
- Iniciar manobras de pouso - ela disse, apertando um botão.
- Em qual pista? - perguntou o computador.
Naomi olhou para Rayford, que, por sua vez, olhou para Abdullah.
- Será que essa coisa reconhece tudo, até meu sotaque? - perguntou o jordaniano.
- Sim - disse o computador. - Pista três esquerda e pista três direita congestionadas. Escolha pistas 11 ou 16.
- Onze - disse Abdullah.
- Esquerda ou direita? - perguntou o computador.
- Esquerda - respondeu Abdullah. - Por que não?
Abdullah acionou o piloto automático para a esquerda e tirou as mãos dos controles.
- Obrigado - ele disse.
- De nada - respondeu o computador.
Seis minutos depois, o Gulfstream pousou na pista.
Pouco depois de uma hora da madrugada em San Diego, Buck deu um salto na cama. Chloe se mexeu.
- Volte a dormir, querido - ela disse. - Você ficou vigiando três noites seguidas. Hoje não.
Ele levantou a mão.
- Você precisa dormir, Buck.
- Acho que ouvi alguma coisa.
O pequeno walkie-talkie na mesinha de cabeceira vibrou. Sebastian acionou seu código. Buck agarrou o aparelho.
- Sim, George.
- Sinais no detector de movimento - Sebastian sussurrou.
Chloe sentou-se na cama.
- Vou verificar pelo periscópio - disse Buck.
- Tome cuidado - alertou Sebastian. - Não levante nem gire o aparelho.
- Entendido. Alguém mais sabe disto?
- Negativo.
- Mãos à obra.
Chloe já havia se levantado e vestido um agasalho. Ela abriu um armário, retirou duas Uzis e jogou uma para Buck, que se dirigiu para o periscópio ao lado do minúsculo quarto de Kenny. Ele colocou a arma no chão, guardou o walkie-talkie no bolso do pijama e curvou-se para enxergar no visor.
Enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão, ele notou que Chloe abriu e fechou a porta do quarto de Kenny. O garoto estava prestes a completar quatro anos; dormia bem, mas o sono era menos profundo que antes.
- Ele está dormindo? - perguntou Buck, sem desgrudar os olhos do periscópio.
- Como um anjo - respondeu Chloe, colocando uma malha de lã ao redor dos ombros de Buck. - É o que você devia estar fazendo.
- Quem me dera - disse Buck.
- Também acho. - Ela pousou as mãos abertas nos ombros do marido. - O que você está vendo?
- Nada. George acha que não devo girar o aparelho. Ele está apontando para o oeste, no nível do chão. Eu adoraria levantá-lo uns 15 centímetros, o que me daria um ângulo de visão de 36°.
- Ele está certo, meu bem - ela disse. - Você sabe que esse aparelho faz barulho quando é movimentado. Alguém lá fora poderá ouvir.
- Não acho que haja alguém lá fora - disse Buck, afastando-se do aparelho para coçar os olhos.
Ela deu um longo suspiro.
- Quer uma cadeira?
Buck assentiu com a cabeça e voltou a olhar pelo periscópio.
- Pode ter sido um animal. Talvez o vento.
Chloe colocou uma cadeira atrás de Buck e o fez sentar-se.
- É por isso que você devia ter permitido que eu...
- Oh!, não - ele disse.
- O que foi?
Buck colocou o dedo indicador diante dos lábios e pegou o walkie-talkie.
- George - ele sussurrou. - Seis, sete, oito, nove. Nove homens da CG, fardados e armados, na direção oeste.
- Fazendo o quê?
- Nada de importante. Chutando as aberturas de ventilação. Parecem entediados. Talvez tenham visto alguma coisa no caminho.
- Veículos?
- Eu teria de levantar e girar o periscópio.
- Negativo. Há mais alguns?
- Deste ângulo, não sei dizer. Não passou mais ninguém. Agora só estou vendo três.
- Você está ouvindo ronco de motores?
Buck ficou em silêncio por alguns instantes. Em seguida, respondeu:
- Sim, ouvi um. Depois outro.
- Também estou ouvindo - disse George. - Devem estar indo embora. Posso ir até aí?
- Diga a ele que não - sussurrou Chloe.
Ao olhar para a lúgubre paisagem em tonalidade sépia através da janela da cabina de comando, Rayford imaginou que o pessoal do palácio deveria estar sofrendo muito. Chang lhe contara que o povo se contorcia e gemia, mas o zumbido de um jato na pista os assustaria ainda mais.
Eles pensariam que teria havido um acidente aéreo, como aconteceu antes nas pistas três esquerda e três direita.
Parecia que o povo desistira de tentar enxergar. As pessoas próximas ao Gulfstream IX tropeçaram na escuridão para afastar-se dele e agora estavam aglomeradas aqui e ali.
- Aquele deve ser Chang - disse Rayford, apontando para um asiático correndo na direção deles e gesticulando nervosamente para que abrissem a porta.
- Deixe por minha conta, Srta. Naomi - disse Abdullah, desatando o cinto de segurança e pulando por cima dela.
Assim que Abdullah abriu a porta e abaixou a escada, Rayford viu Chang virar-se para um pequeno grupo de homens e mulheres que tateavam no escuro, procurando segui-lo.
- Afastem-se! - ele gritou. - Perigo! Motores quentes! Combustível vazando!
Eles se viraram e correram em todas as direções.
- Como ele conseguiu pousar? - gritou alguém.
- Milagre - disse outro.
- Vocês se lembraram de usar sapatos de sola de borracha? - perguntou Chang, estendendo a mão para ajudá-los a sair do avião.
- Prazer em conhecê-lo, Sr. Wong - disse Abdullah.
Chang pediu silêncio.
- Eles não estão enxergando, mas não são surdos.
- Chang - Rayford começou a dizer, mas o rapaz estava cumprimentando timidamente Naomi. - Tudo bem. Vocês dois terão tempo para se conhecerem melhor. Vamos fazer o que for necessário e sair daqui.
- Devo trocar de roupa? - perguntou Buck quando viu Sebastian trajando farda de serviço.
- Não. Eu sempre uso esta farda quando estou de vigia. Deixe-me ver o que está acontecendo. - Ele olhou através do periscópio. - Nada. Vamos levantar e girar o periscópio, Buck?
- Faça como quiser.
- Tudo em ordem. Alarme falso.
Chloe respirou fundo.
- Não diga isso só para me tranqüilizar. Vocês viram pelo menos nove homens da CG lá fora, e sabemos que havia mais. E eles vão voltar.
- Ei - disse Sebastian -, por que não pensar no melhor em vez de pensar no pior?
- Talvez eu esteja fazendo isso - ela disse. - Priscilla e Beth Ann estão dormindo tranqüilas?
Ele assentiu com a cabeça.
- Não quero alarmar Priss e gostaria que você...
- Que eu não dissesse nada? Faz sentido, George. Deixe sua mulher em paz, ignorando que é chegada a hora de sairmos daqui - disse Chloe.
- Sair daqui? - perguntou Buck. - Eu não imaginei essa hipótese.
- O que você acha? Devemos ficar aqui e aguardar até que eles nos encontrem, se é que ainda não nos encontraram?
- Chloe, preste atenção - disse Buck. - Eu deveria ter permitido que você visse aqueles sujeitos. Eles não desconfiaram de nada. Deviam estar conversando sobre este lugar que, antes, foi uma base militar. Não estavam tensos, não estavam à procura de nada. Apenas notaram as aberturas de ventilação e foram verificar, só isso.
Chloe sacudiu a cabeça e desabou em uma cadeira.
- Detesto viver desta maneira.
- Eu também - disse Sebastian. - Mas quais são nossas opções? A CG encontrou ontem em Los Angeles, ou melhor, no que restou daquela cidade, um grupo de pessoas sem a marca. Mais de 20 foram executadas.
Chloe estremeceu.
- Crentes?
- Acho que não. Se fosse um grupo de judaístas, eles teriam noticiado. Tenho a impressão de que pertenciam a um foco de resistência da milícia ou algo parecido.
- É essa gente que estamos querendo alcançar - disse Chloe. - E estamos todos sentados aqui, sem poder mostrar o rosto, criando bebês que quase não vêem a luz do sol. Será que não existe outro esconderijo em um lugar qualquer, onde a CG nem imagine nos encontrar?
- O melhor lugar é Petra - disse Buck. - A CG sabe quem está lá, mas não pode fazer nada.
- Esse lugar está ficando cada vez mais atraente. Mas... o que vamos fazer a respeito do que acabou de acontecer?
Buck e Sebastian entreolharam-se.
- Vamos, rapazes - disse Chloe. - George, você pensa que Priscilla não notou que você saiu e que não vai perguntar onde esteve?
- Ela sabe que eu estava no posto de vigia.
- Mas você não viria até aqui, a menos que houvesse algo importante.
- Espero que ela não tenha acordado.
Chloe levantou-se e sentou-se no colo de Buck.
- Vejam, eu não quero ser rabugenta. Buck, diga isso a ele.
- Chloe Steele Williams está dizendo que não quer ser rabugenta - ele anunciou.
- Que bom - resmungou Sebastian. - Você quase me enganou, Chloe.
Ela sacudiu a cabeça.
- Por favor, George. Você sabe que eu o considero um elemento muito importante para o Comando Tribulação. Você é muito talentoso e nos livrou de tragédias mais de uma vez. Mas todos que moram aqui têm o direito de saber o que vocês viram esta noite. O fato de não contar nada a ninguém, fingir que nada aconteceu, não vai mudar a situação. Quase fomos descobertos.
- Mas não fomos, Chloe - disse Sebastian. - Por que assustar todo mundo?
- Já estamos assustados! Passo o dia inteiro com essas mulheres e seus filhos. Estamos vivendo como cães abandonados, mesmo sem ter a CG bisbilhotando por aqui e transitando acima de nós no meio da noite. As crianças só respiram ar puro quando acordam antes do nascer do sol e alguém as leva até a porta de acesso ao estacionamento. Vocês dois precisam sair furtivamente e dirigir cerca de 50 quilômetros para chegar aos aviões, sempre na esperança de não estar sendo seguidos. Só estou dizendo que se não resolvermos nos defender, pelo menos temos o direito de estar preparados.
Rayford teria de fazer uma pergunta a Tsion. Por que a escuridão era tão opressiva a ponto de deixar suas vítimas angustiadas? Ele ouvira falar de tragédias - desastres ferroviários, terremotos, batalhas - que sempre deixavam as equipes de resgate assustadas por causa dos gritos e gemidos dos feridos.
Enquanto ele, Abdullah, Chang e Naomi atravessavam na ponta dos pés as enormes pistas do aeroporto, desviando-se de equipamentos pesados e de gente se contorcendo, ficou claro que aquelas pessoas preferiam morrer. E algumas já deviam estar mortas. Dois aviões que se chocaram no ar estavam despedaçados na pista, ainda em chamas, com muitos corpos carbonizados presos às poltronas.
Rayford sentia um aperto no peito à medida que passava por entre cadáveres e pessoas sofrendo. Os gemidos cortavam-lhe o coração e ele reduziu o ritmo dos passos, querendo ajudar. Mas o que poderia fazer?
- Oh! Alguém! - Era o grito de uma senhora de meia-idade. - Por favor! Ajude-me!
Rayford parou e olhou. Ela estava deitada de lado no chão, perto do terminal. Algumas pessoas ordenaram-lhe que se calasse. Um homem gritou:
- Estamos todos perdidos e cegos, mulher! Você não precisa de mais ajuda que nós!
- Vou morrer de fome! - ela choramingou. - Alguém tem alguma coisa para eu comer?
- Estamos todos morrendo de fome! Cale a boca!
- Eu não quero morrer.
- Eu quero!
- Onde está o potentado? Ele vai nos salvar!
- Quando você viu o potentado pela última vez? Ele já tem preocupações suficientes.
Rayford não conseguia afastar-se dali. Olhou para a frente, mas ele enxergava apenas uns seis metros adiante e havia perdido seus companheiros de vista. Abullah foi a seu encontro.
- Eu não me atrevi a chamá-lo pelo nome, capitão, mas você precisa vir conosco.
- Não posso, companheiro.
- Você é capaz de encontrar o caminho de volta ao avião?
- Sim.
- Então vamos nos encontrar lá.
Abdullah seguiu em frente, mas a conversa sussurrada entre eles provocara um silêncio entre os gritos e lamentos. Alguém gritou:
- Quem está aí?
- Para onde ele foi?
- Quem tem um avião?
- Você está vendo alguma coisa?
- O que está vendo?
A mulher voltou a falar.
- Oh!, Deus, salva-me. Quero dormir...
- Você aí, cale a boca!
- Deus é grande. Deus é bom. Vou agradecer a Ele...
- Pare de falar, mulher! Se você não é capaz de fazer alguma coisa útil, cale a boca!
- Deus! Oh, Deus! Salva-me!
Rayford ajoelhou-se e tocou no ombro da mulher. Ela recuou com um berro.
- Espere! - ele disse, tocando-a novamente.
- Ai! Está doendo!
- Eu não quis machucá-la - ele disse em voz baixa.
- Quem é você? - ela disse com um gemido.
Rayford viu o número 6 dos Estados Unidos Europeus gravado em sua testa.
- Um anjo?
- Não.
- Eu orei pedindo um anjo.
- A senhora orou?
- Prometa que não vai dizer a ninguém. Eu lhe imploro.
- A senhora orou a Deus?
- Sim!
- Mas eu vi a marca de Carpathia em sua testa.
- Eu falsifiquei a marca! Conheço a verdade. Sempre conheci. Mas nunca quis saber de nada.
- Deus a ama.
- Eu sei, mas é tarde demais.
- Por que a senhora não pediu perdão a Deus e aceitou sua dádiva? Ele queria salvá-la.
Ela soluçou baixinho.
- Como você pode estar aqui e me dizer isso?
- Eu não sou daqui.
- Você é meu anjo!
- Não, mas sou crente.
- E consegue enxergar?
- O suficiente para me locomover.
- Oh, cavalheiro, estou com fome! Leve-me ao terminal, até a máquina de sanduíches. Por favor!
Rayford procurou ajudá-la a levantar-se, mas ela reagiu como se seu corpo estivesse em chamas.
- Por favor, não me toque!
- Sinto muito.
- Deixe que eu segure a manga de sua camisa. Você está vendo o terminal?
- Mais ou menos - ele disse. - Posso levá-la até lá.
- Por favor. - A mulher levantou-se com dificuldade e agarrou desajeitadamente o punho da camisa dele com o polegar e o indicador.
- Devagar, por favor. - Ela caminhava com passos miúdos atrás de Rayford. - Está longe?
- Pouco menos de cem metros.
- Não sei se vou conseguir - ela disse, com lágrimas correndo pelo rosto.
- Vou buscar alguma coisa para a senhora comer - ele disse. - O que a senhora quer?
- Qualquer coisa - ela respondeu. - Sanduíche, doce, água... qualquer coisa.
- Não saia daqui.
Ela deu uma risadinha triste. - Não estou enxergando nada. Não posso ir a lugar algum.
- Eu volto logo. Vou encontrar a senhora.
- Eu orei para que Deus salvasse minha alma. E quando isso acontecer, vou poder enxergar.
Rayford não sabia o que dizer. Ela já havia dito que era tarde demais.
- Deus amou muito o mundo - ela prosseguiu. - O Senhor é o meu pastor. Oh!, Deus...
Rayford correu em direção ao terminal, passando por entre pessoas angustiadas. Ele queria ajudar todas, mas não podia. Havia um homem deitado, imóvel, do lado de dentro da porta automática, impedindo a passagem. Rayford aproximou-se o suficiente para acionar o sensor. A porta abriu alguns centímetros e foi de encontro ao homem.
- Por favor, afaste-se da porta - disse Rayford.
O homem estava dormindo ou morto.
Rayford empurrou a porta com força, mas ela mal se movimentou. Ele abaixou o ombro e investiu contra a porta, sentindo a pressão nos quadris quando ela se abriu lentamente e empurrou o homem. Rayford ouviu-o gemer.
Dentro do terminal havia uma fileira de máquinas automáticas, mas assim que ele pegou algumas moedas no bolso, viu que elas estavam emperradas. Muitas pessoas que conseguiram chegar até ali haviam arrombado as máquinas e saqueado tudo o que havia dentro.
Rayford vasculhou uma a uma, procurando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que tivesse sobrado ali. Mas só encontrou garrafas, latas e pacotes vazios.
- Quem entrou lá? - alguém quis saber. - Aonde você pensa que vai? Consegue enxergar? Há luz em algum lugar? O que aconteceu? Vamos todos morrer? Onde está o potentado?
Rayford correu para fora.
- Aonde você está indo? - gritou outro. - Leve-me com você!
Ele encontrou a mulher deitada de bruços, com o rosto escondido entre os braços. Seu choro era tão sofrido que ele mal suportou olhar para ela.
- Estou de volta, senhora - ele disse em voz baixa. - Não há comida. Sinto muito.
- Oh, Deus, oh, Deus e Jesus, ajuda-me!
- Senhora - ele disse, estendendo o braço.
Ela soltou um grito quando Rayford a tocou, mas ele a virou de lado até poder ver seus olhos fundos e aterrorizados.
- Eu sabia de tudo antes dos desaparecimentos - ela disse, com voz chorosa. - Depois, tive certeza. Mesmo com todas essas pragas e julgamentos, eu afrontei Deus. Ele procurou me alcançar, mas eu queria viver por conta própria. Não queria submeter-me a ninguém. Mas sempre tive medo do escuro, e meu maior pesadelo é morrer de fome. Mudei de idéia, quero voltar atrás...
- A senhora não pode.
- Eu não posso! Não posso! Esperei demais!
Rayford conhecia a profecia: o povo rejeitaria Deus tantas vezes que Ele endureceria seus corações e eles não teriam condições de aceitá-lo, mesmo que quisessem. Mas o fato de saber disso não significava que Rayford entendia. E, certamente, não significava que ele tinha de gostar.
Era difícil conciliar tudo aquilo com o Deus que ele conhecia, o Deus amoroso e misericordioso que parecia fazer uso de todos os meios para receber cada pessoa no céu, sem deixar nenhuma de fora.
Rayford levantou-se e sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça no momento em que ouviu uma voz partindo dos alto-falantes.
- Aqui fala o potentado! - soou a voz forte. - Tenham bom ânimo. Não fiquem com medo. Seu tormento está quase no fim. Acompanhem o som de minha voz até a torre de alto-falantes mais próxima. Lá, haverá comida, água e instruções.
- Quero fazer um trato com vocês - disse Chloe. - Vou assumir o posto de vigia se vocês concordarem em contar a todos, assim que o dia amanhecer, que tivemos visitas esta noite.
Buck olhou para George, e George apontou para Buck.
- Na ausência de seu sogro, você é o responsável, companheiro.
- Só porque sou o mais velho de vocês. Transfiro a missão a você que é militar.
- Não estamos em guerra, homem. O assunto tem a ver com relações públicas. Se você aceita um conselho, faça o que deseja fazer, desde que seja a coisa certa. Diga ao pessoal: "Achamos por bem contar a vocês que vimos a CG rondando por aqui esta noite, mas, pelo que sabemos, ainda não há motivos para preocupações."
- Tudo bem, Chloe? - Buck perguntou.
Ela assentiu com a cabeça.
- Eu preferia orar e entregar munições ao pessoal, mas minha resposta é sim. Tratem todos como adultos e vocês extrairão o que eles têm de melhor.
- Se você vai mesmo ocupar o posto de vigia, Chloe - disse Sebastian -, vou para casa e desligar meu walkie-talkie.
- Combinado.
Para conseguir a façanha de agrupar as pessoas aterrorizadas de Nova Babilônia em vários locais, alguém imaginou que uma música tocada bem alto no sistema de som atrairia o povo para as torres dos alto-falantes.
- Caminhem com cuidado, leais cidadãos. Ajudem uns aos outros. Evitem perigo.
Enquanto Leon Fortunato, o braço direito de Carpathia, dizia com tranqüilidade essas palavras, ouvia-se ao fundo a gravação de um coral carpathianista de 500 vozes cantando uma versão gravada de "Salve Carpathia":
Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor;
Salve Carpathia, dono do mundo e nosso governador.
Todos nós o adoraremos eternamente;
Ele é nosso Nicolae, nosso amado dirigente.
Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor.
Rayford detestava aquela canção e o hábito infernal do Sistema de Transmissão da Comunidade Global de executá-la, via rádio, a cada duas horas pelo menos. Carpathia insistia nessa execução todas as vezes que aparecia em público. Os desfiles e as concentrações em sua homenagem sempre iniciavam e terminavam com ela.
No entanto, algo estranho estava acontecendo naquele momento. O povo se levantou lentamente e caminhou angustiado em direção ao som, mas ninguém cantava.
- Lembrem-se - disse Fortunato, fazendo uma careta de dor ao pronunciar cada palavra -, aqueles que vão servir vocês, levando água e comida, também estão acompanhando o som para chegar aos lugares certos. Por favor, tenham paciência e abram caminho para os veículos. Há alimento suficiente para todos, desde que vocês cooperem. Agora, cantem com o coral. Vocês serão levados ao local de adoração da imagem de nosso supremo potentado, que no momento não é visível.
As pessoas em volta de Rayford não demonstraram entusiasmo.
- Não vou cantar - disse alguém. - Morte ao potentado!
- Tome cuidado com o que diz - alertou outro. - Está querendo morrer?
- Carpathia não consegue enxergar mais que nós! Ele não sabe quem está falando.
- Ele não é um simples mortal. Eu não me arriscaria.
- O que ele tem feito por você ultimamente?
O pessoal de dentro do palácio estava em melhores condições, era o que Rayford pensava. Pelo menos, eles tinham condições de tatear o caminho que os levava a lugares conhecidos, inclusive chuveiros, camas e geladeiras. Os de fora não podiam sequer encontrar o caminho de volta para casa.
Rayford tentava imaginar como o povo devia estar desorientado, sem ter nenhum foco de luz. A situação era frustrante até para ele que conseguia enxergar um pouco.
- Há 12 torres de alto-falantes distintas - disse Fortunato.
O volume da música foi reduzido enquanto ele falava.
- Quando os mantimentos chegarem, por favor, mantenham a ordem. Cada um deve dizer o seu nome para que nosso pessoal possa gravá-lo em disco de áudio. Em seguida, peguem sua ração de alimento e água.
- Também queremos respostas! - gritou alguém, como se Fortunato pudesse ouvi-lo. - O que significa isto? Quanto tempo vai durar? Por que sentimos tanta dor?
Chloe sabia qual seria a reação de Ming Toy quando ouvisse a notícia de manhã. Ela e Ree Woo haveriam de querer se casar imediatamente. Todos, exceto Chloe, procuraram dissuadi-los dessa idéia, mas Ming planejara tudo. Queria que Tsion Ben-Judá realizasse o casamento sem sair de Petra, por meio de câmera de vídeo.
- Sei que estou exigindo demais de um homem tão importante e atarefado - ela confidenciara a Chloe. - Mas programei a cerimônia para durar apenas alguns minutos.
- Acho que ele vai concordar - Chloe lhe dissera. - No lugar dele, eu concordaria.
As mesmas pessoas que aconselharam Ming e Ree a não se casarem, em razão do momento em que o mundo se encontrava no calendário profético, foram as mesmas que haviam aconselhado Chloe e Buck a não ter filhos durante a Tribulação.
Porém, certos assuntos eram muito pessoais. Chloe não podia imaginar ter desistido de se casar com Buck, apesar de saber que teriam pouco tempo pela frente para viver juntos. E, para ela, a vida não teria sentido sem a existência de seu querido filhinho.
Se Ming e Ree desejassem ficar casados por um ano antes do Glorioso Aparecimento, de quem seria o problema a não ser deles? Ambos estavam conscientes das dificuldades. Iniciar uma família naquele período seria complicado, é claro, mas Chloe entendia que o problema não era seu, a menos que Ming lhe pedisse conselho.
Aparentemente, Buck voltara a dormir depois de alguns minutos. Ela achava que George estava certo por ter deixado sua esposa dormindo no período em que esteve ausente.
Priscilla era uma das pessoas mais atarefadas dali, sempre em pé antes do amanhecer e esbanjando saúde. Geralmente, começava a ficar sonolenta após o jantar e ia para a cama às 21 horas.
Chloe ficou feliz por estar de vigia. Um dos motivos era poupar Buck, que passara quatro noites seguidas no posto. Ela gostou do trabalho - verificar o detector de movimento, inspecionar a área com o periscópio. Sua rotina diária era agitada e cansativa; ela passava quase o dia inteiro no computador, coordenando os trabalhos dos fornecedores e transportadores de suprimentos e comida ao redor do mundo inteiro.
Aquela era a maneira de Chloe manter-se a par das notícias, apesar de serem cada vez piores. Seus colaboradores estavam sendo descobertos, presos pela CG em invasões noturnas e ataques de surpresa. A CG os executava assim que constatava que eles não tinham a marca de lealdade a Carpathia.
Segundo o relato de uma testemunha, o motorista de um caminhão de 18 rodas da cooperativa, que transportava exemplares da revista virtual de Buck, A Verdade, traduzida para o norueguês, recusou-se a permitir que a carga caísse nas mãos da CG. Ele distraiu os guardas por algum tempo para que seu motorista auxiliar fugisse. Em seguida, acelerou o caminhão e despencou de uma ribanceira de 30 metros de altura. Foi morto a tiros pelos Monitores de Moral.
Chloe também ouviu falar de dissidentes no mundo inteiro - na maioria judeus - que, em vez de serem condenados à morte, foram transportados para campos de concentração, torturados e mantidos vivos propositadamente.
Algumas notícias ocasionais davam conta de intervenções milagrosas, por exemplo, o aparecimento de um anjo no local da guilhotina para alertar o povo sobre as conseqüências de aceitar a marca de Carpathia. Pelo que se sabia, essas decisões de última hora eram inúteis, porque, de qualquer forma, os retardatários já estavam condenados à morte. Mas o anjo implorava aos indecisos que aceitassem a Cristo para ser salvos. E muitos aceitaram.
Chloe passou um xale ao redor dos ombros e foi, pé ante pé, até o quarto de Kenny, cuja respiração era profunda e lenta. Ela estendeu outro cobertor em cima dele. O menino não se mexeu.
Depois de fechar a porta, ela verificou o detector de movimento e sentou-se diante do periscópio. Não havia ninguém à vista, portanto ela levantou e girou o aparelho para ter uma visão total da área. Ela gostava de ter um periscópio no meio de sua casa. Isso lhe dava a sensação de poder proteger - ou controlar, conforme Buck dizia para brincar com ela - seus amigos e pessoas queridas, cujo número atingia mais de 200, que moravam escondidos em San Diego.
Todos esperavam viver até o Glorioso Aparecimento, porém, mais que isso, poder alcançar outras pessoas, mesmo sem sair de suas moradias subterrâneas.
O periscópio tinha uma característica peculiar: o visor não precisava ser movimentado com o aparelho. Um simples controle nas alças fazia o aparelho levantar, abaixar e esquadrinhar em círculo, em qualquer direção. Chloe não estava interessada em compreender o conjunto de espelhos necessários para fazer isso.
Descontraída, com a testa encostada no visor enquanto seus olhos se acostumavam com a pouca iluminação externa, ela notou que George Sebastian havia deixado o aparelho no nível do chão, apontado para o oeste.
A lente superior estava camuflada para confundir-se com folhagem de arbustos. Poderia ser levantada até uma altura de 1,5 metro, porém, antes de tudo, o mais importante era fazer uma exploração minuciosa de 360° no nível do chão para certificar-se de que não havia ninguém por perto que pudesse notar o aparelho.
A exploração poderia ser feita em movimento suave e muito devagar, porque o Comando Tribulação de San Diego aprendera que as coisas feitas com lentidão se tornavam muito mais fáceis. O método escolhido por Chloe era mover o aparelho alguns centímetros por vez. Cada vez que ela apertasse o minúsculo embolo vermelho na alça esquerda, a lente lhe daria mais 45° de visão; oito movimentos desses completariam 360°.
Não havia nada interessante do lado oeste, portanto Chloe começou a explorar o lado direito. Passavam das três horas da manhã na Califórnia.
Rayford havia caminhado uns 400 metros em direção ao norte do terminal, passando por homens e mulheres mais jovens que ele, mas que se arrastavam penosamente, com passos de pessoas idosas.
- Na tentativa de manter todos vocês informados - Fortunato anunciou -, temos algumas notícias animadoras. Apesar de não haver nenhum tipo de luz ou claridade em Nova Babilônia, esse fenômeno intrigante não afetou as transmissões via rádio ou telefone. Nossos sistemas de aquecimento e refrigeração continuam funcionando. Os fogões não foram afetados, a não ser aqueles movidos por luz solar. Os fogões elétricos e a gás continuam a esquentar e a irradiar calor, embora não possam ser vistos, portanto, tenham muito cuidado.
- Os pilotos de aeronaves que partiram de Nova Babilônia ou que chegaram aqui relataram que a escuridão está restrita a esta cidade. Não sabemos quanto tempo ela vai durar, mas se vocês conseguirem encontrar um caminho que os leve para fora dos limites da cidade, encontrarão luz.
Rayford ouviu palavras de determinação vindas de todos os lados.
- Eu vou tentar - disse alguém.
- Eu também. Não sei onde nem como, mas vou dar um jeito de encontrar luz.
- Alguém tem uma bússola em braile? Sem uma, vamos andar em círculos.
- Atenção - Fortunato voltou a falar -, todo o pessoal da alta cúpula deve reunir-se no escritório do potentado às 15 horas.
Rayford olhou para seu relógio. São 13h15. Como eles vão conseguir chegar lá às 15 horas?
- Usem relógios sonoros - disse Fortunato. - São 13h15. Desligaremos todos os alto-falantes às 14h30, exceto os da torre perto da entrada oeste do palácio. Acompanhem o som para terem condições de encontrar o caminho para a reunião. Os elevadores estão funcionando. O botão inferior direito é o do último andar. O comparecimento é obrigatório, mas limitado ao pessoal da alta cúpula.
- Eu vou de qualquer jeito - disse alguém.
- Eu também. Quero ir até o fundo disto tudo.
- Quero descobrir o que está acontecendo.
- Dizem que ele é o deus encarnado. Por que não toma uma providência?
Rayford piscou uma vez, depois outra. Ele imaginou ter visto luz a distância. Estava cada vez mais longe do avião e do lugar em que Chang, Naomi e Abdullah se encontravam, mas se o pior acontecesse, ele poderia seguir o pessoal até a entrada do palácio, às 14h30, e ir ao encontro dos três. Por ora, ele precisava investigar aquela luz.
Chloe já havia movimentado quatro vezes o aparelho na direção leste. Enquanto examinava a paisagem escura, ela notou um par de pontos luminosos. Sua respiração acelerou à medida que eles aumentavam de tamanho. Fosse o que fosse, estavam se aproximando.
De repente, ficou claro que se tratava de um carro ou caminhão. O veículo rodou até a distância de um quarteirão dali, parou e deu meia-volta. Agora Chloe via apenas as lanternas traseiras. E elas continuaram ali. Passaram dez minutos, depois mais cinco.
Chloe explorou rapidamente o caminho ao redor. Nada. Mais um clique no aparelho e ela voltou a ver o setor leste e o veículo parado. Ela não queria acordar Buck para contar-lhe o que estava vendo. Todos os que moravam nos esconderijos sabiam que havia tráfego de veículos nas redondezas, mas ninguém pararia ali àquela hora da noite.
Chloe gostaria que o periscópio tivesse uma lente telescópica para poder ver o veículo mais de perto e saber se alguém estaria descendo dele. O estacionamento oculto dos veículos do pessoal que morava nos esconderijos, usado apenas à noite quando todos sabiam que a área estava livre, dava acesso para o leste.
Será que ela deveria atrever-se a dar uma espiada mais de perto? Uma porta de serviço, escondida perto de outra maior, permitiria que ela enxergasse a área externa, se mantivesse apagadas as luzes internas. Assim, ela chegaria uns cem metros mais perto, sem aventurar-se a ser vista por alguém.
Chloe tirou do armário um macacão preto com capuz e vestiu-o sobre o pijama e o agasalho. Calçou meias de lã e uma bota de cano alto, própria para caminhadas em terrenos acidentados. Pegou a Uzi, mas não levou o walkie-talkie. Um som qualquer emitido por ele poderia atrapalhar seus planos. E ela não queria envolver-se em situações que exigissem pedido de socorro. A Uzi serviria apenas para tranqüilizá-la. Portanto, esta foi a oração de Chloe: Senhor, ajuda-me ou perdoa-me, uma coisa ou outra.
Ela voltou a abrir silenciosamente a porta do quarto de Kenny. O menino continuava na mesma posição. Ao colocar a mão em seu rosto, notou que estava úmido por causa do sono, mas confortavelmente quente. Ela beijou sua testa. Fria e macia.
Depois de fechar a porta, ela foi até o local em que Buck dormia e firmou um dos joelhos no colchão, perto do centro. Curvou-se para beijá-lo, segurando-lhe a cabeça. Se o sono de Buck fosse leve, ele teria acordado. Chloe surpreendeu-se ao ver o contraste entre sua roupa escura e a tonalidade branca de sua pele, que raramente ficava sob os raios do sol.
Ela encontrou um par de luvas e uma máscara de esquiar. Já estava transpirando quando chegou ao corredor que passava pelas outras casas e dava acesso ao estacionamento de veículos. A casa em que eles moravam ficava no centro do conjunto e havia quatro saídas para as casas de seus companheiros.
Arrastando-se no chão, ela passou pela casa de Sebastian, por mais três de outras famílias, por uma fileira de aposentos para homens que viviam sós - inclusive o de Ree Woo e o de Rayford - por mais duas casas de outras famílias e por uma mistura de casas para famílias e aposentos para moças que viviam sozinhas, inclusive o de Ming.
Todos sabiam que Grande George estava de vigia naquela noite e que Buck Williams, o chefe do grupo na ausência de Rayford, se revezaria com ele. Talvez fosse por isso que o sono do pessoal era tão profundo.
Rayford atravessou a multidão e caminhou na direção da luz. Seria imaginação sua? Além de uma distância de seis metros, ele só via uma espécie de neblina, e ninguém por perto tinha condições de enxergar nada, muito menos aquela luz. Quanto mais ele se aproximava, mais a luz assemelhava-se a uma silhueta humana, a uns 50 metros de distância. Era só isso o que Rayford via. Quando ele trabalhou no palácio e morou na região, as garagens e os veículos ficavam naquela área.
Será que alguém conseguira um meio de produzir luz? Rayford havia passado por pequenos grupos de pessoas que andavam com dificuldade, e agora não havia nada entre ele e aquilo... aquilo o quê? Uma aparição? Ao longe, a luz tinha pouco brilho, mas, em seguida, as cores tornaram-se mais nítidas. Primeiro vermelha, depois amarela e, finalmente, um tom alaranjado forte. Sim, era a figura de uma pessoa, especificamente de um homem alto e esguio. E ele se mexia.
Havia outras pessoas perto do homem, utilizando a claridade daquela luz para acionar os veículos. Todos deviam estar sofrendo como os demais, mas trabalhavam rápido, como se sentissem revigorados pela luz. O homem reluzente parecia ser capaz de enxergar até onde sua luz irradiava, cerca de um metro. Qualquer um que necessitasse de luz precisaria estar a essa distância dele.
Rayford imaginou que fosse Carpathia. O Dr. Ben-Judá havia dito que essa mesma pessoa apareceria em primeiro lugar na forma de uma serpente, depois, como um leão rugindo e, finalmente, como um anjo de luz.
Rayford teve de conter o riso. O demônio que havia em Nicolae certamente gostaria de poder emitir mais luz do que aquele patético brilho que lhe permitia apenas identificar as pessoas que estavam a um metro de distância.
Rayford caminhou um pouco mais até misturar-se a um pequeno grupo ao redor dos mecânicos que tentavam acionar vários veículos, cuja finalidade ele ainda não conseguira entender.
- Todos os sistemas estão funcionando? - perguntou Carpathia.
- Sim, potentado. O jipe está em ordem.
- Acenda os faróis.
O mecânico obedeceu à ordem.
- O sistema elétrico está em ordem, Excelência, portanto está passando corrente, mas conforme o senhor pode ver...
- Conforme todos nós podemos ou não podemos ver - disse Carpathia. - Os faróis não acendem. Bem, de qualquer forma, eu irei adiante do comboio até atravessarmos a escuridão a caminho de Al Hillah. Não quero saber quanto tempo vai levar.
Que tipo de estratégia seria aquela? A diretoria se reuniria no escritório de Carpathia, e ele os conduziria a Al Hillah? Para quê? E quanto aos milhares que continuariam em Nova Babilônia? Não haveriam de querer segui-lo, para encontrar um pouco de alívio?
- O que há em Al Hillah? - perguntou Rayford.
- Quem está perguntando? - inquiriu Carpathia. - E como você se dirige a mim sem usar meu título de honra?
Nicolae estava olhando na direção de Rayford, mas não tinha condições de enxergar a uma distância maior que o raio de sua aura diabólica. Quando Nicolae deu alguns passos à frente, Rayford recuou para a esquerda e postou-se atrás dele.
- Pois não - Rayford disse com tom de voz ligeiramente diferente.
- O que há em Al Hillah, ó Grandioso?
Carpathia virou-se para trás, e Rayford desviou-se novamente.
- Eu estava falando com quem se dirigiu a mim! - disse Carpathia. - Quem está perguntando?
- Acho que ele fugiu de medo - respondeu Rayford com voz grave - Excelência.
Aquilo era muito divertido.
Chloe sabia que a longa passagem até o estacionamento de veículos era fria e úmida na maior parte do tempo. Talvez estivesse assim agora. Mas a agitação em sua mente, os movimentos rápidos para subir a rampa dos veículos até as portas de acesso ao nível do chão aqueceram seu corpo em demasia.
Ela retirou as luvas e a máscara de esquiar, ralhando consigo mesma por tê-las usado sem necessidade. Depois de abaixar o zíper do macacão, ela se agachou e encostou-se na parede entre a porta de acesso ao estacionamento e a porta de serviço, para acalmar-se e recuperar o fôlego.
A sensação de liberdade era deliciosa. Ela estava perto da superfície, quase fora do esconderijo. Faltava menos de um ano para a verdadeira liberdade.
Seus joelhos começaram a doer, e ela precisou sentar-se no chão para esticar as pernas. Depois de deixar a arma de lado, ela estendeu o corpo até tocar nas pontas das botas, alternando movimentos para a esquerda e para a direita. Apesar de ter sofrido graves ferimentos, Chloe se sentia orgulhosa porque sua missão na Grécia provara que seu corpo ainda estava em muito boa forma.
Ela fechou o zíper do macacão até o pescoço, colocou a máscara de esquiar no rosto, cobriu a cabeça com o capuz, calçou as luvas, passou a tira da Uzi por cima da cabeça para que a arma ficasse encostada em seu quadril direito, levantou-se e dirigiu-se para a porta de serviço.
A porta de acesso ao estacionamento não podia ser aberta aos poucos. Todos sabiam disso. A areia, a terra e a vegetação grudadas ali faziam com que ela se movimentasse de uma só vez. Ou ela ficava totalmente aberta ou totalmente fechada. Mas a porta de serviço, embora fosse camuflada da mesma maneira, podia ser aberta aos poucos, conforme Chloe desejava. Ela apagou a luz e segurou a maçaneta com firmeza.
Rayford seguiu apressado rumo ao palácio. Ele queria verificar como estavam seus companheiros e falar sobre seu plano. Em seis anos, ele havia presenciado numerosos eventos bizarros, talvez em número maior do que um dia chegou a imaginar.
Embora muitos tivessem sido mais significativos, mais espalhafatosos e mais violentos, aquele era completamente diferente. Pobres pessoas! Sim, elas haviam escolhido seu destino e, sim, tiveram muitas oportunidades de voltar-se para Deus. Mas que preço estavam pagando!
A angústia era geral. Por todos os lugares onde ele andava, mais e mais pessoas tornavam-se visíveis dentro de seu raio de visão de seis metros. Muitas estavam mortas. Muitas balançavam o corpo no lugar ou choravam deitadas no chão. Todas haviam desistido de enxergar alguma coisa, e a escuridão era tanta que chegava a desorientá-las.
As que acompanhavam a música ou a voz de Fortunato caminhavam com passos trôpegos ou com os braços esticados para a frente ou para os lados, balançando o corpo como se estivessem embriagadas ou com tontura.
Chocavam-se umas com as outras ou com prédios e passavam por cima de escombros. Muitas não tinham forças, andavam lentamente, paravam, cambaleavam. Rayford gostaria de ajudá-las, mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Quando estava a caminho do apartamento de Chang, Rayford teve uma idéia e mudou de direção. Entrou no elevador e chegou ao último andar do palácio. Lá, ele passou, na ponta dos pés, por entre vários executivos e seus asseclas, que conversavam ao telefone ou permaneciam sentados diante de computadores, ditando algumas palavras mas incapazes de enxergar se suas mensagens estavam sendo enviadas.
Todas as ligações telefônicas tinham o mesmo tema e o mesmo tom.
A assistente de Carpathia não era a mesma dos tempos em que Rayford trabalhou com ele. Chang havia lhe contado qual era o nome dela. Devia ser aquela mulher falando ao telefone na ante-sala do novo escritório de Carpathia. Rayford notou que ela se assustou quando o ouviu sentar-se no sofá do outro lado, mas ele não disse nada e a mulher continuou a conversa.
- Não sei - ela dizia com voz chorosa. - Ele quer que eu trabalhe como se não estivesse sofrendo igual aos outros. Mas estou sofrendo, mãe. Posso fazer algumas pequenas coisas quando ele está aqui, porque ele emite esse tal brilho. Mas ele convocou uma reunião com a diretoria e eles estão planejando uma espécie de romaria... Não, eu não quero ir, não quero mesmo. Ele não está contando ao pessoal que os chefes estão partindo. Ooh! Ai... não sei descrever o que sinto. Cãibras, acho. Uma dor de cabeça como nunca senti, e tenho tido um pouco de tontura...
Ela parecia americana, mas estava de costas para Rayford, e ele não podia ver o número em sua testa ou mão.
- Parece que estou carregando um peso enorme nos ombros, pressionando minha coluna. Sinto dor no quadril, nos joelhos, nos tornozelos, nos pés. Semelhante à sua artrite, acho. Mas, mãe, eu só tenho 36 anos. Parece que tenho 75... Sim, estou me alimentando. Consigo tatear o caminho até meu apartamento e preparar alguma coisa para comer, mas quando me deito, tenho vontade de dormir por cem anos. Mas não posso... É por causa da dor! Não há posição que a alivie. Parece que a escuridão está me oprimindo e causando todo este sofrimento, mas todos se queixam da mesma coisa.
Rayford se mexeu no lugar e a mulher assustou-se mais uma vez.
- Um momento, mãe. - Ela se virou e Rayford viu o número - 6 em sua testa, o que confirmou sua suposição. Estados Unidos Norte-americanos.
- Há alguém aí? Posso ajudar?
Ele sentiu vontade de dizer que tinha algumas perguntas a fazer sobre a reunião, mas que aguardaria até que ela terminasse a conversa. Porém, a assistente de Carpathia conhecia os homens que restaram na diretoria e não reconheceria sua voz. Ele gostaria de dizer-lhe algumas palavras de conforto, dizer algo que Jesus diria. Mas ela não podia mais ser ajudada. Rayford nunca se sentira tão manietado.
- Desculpe-me, mãe - ela disse. - Agora estou ouvindo coisas. É melhor eu desligar. Está chegando a hora da reunião, e eu não sei o que ele está pretendendo fazer. Ninguém será capaz de ler nada, a não ser que coloque o papel perto da luz dele, e o grupo é composto de 20 pessoas... Sim, 20... Eu sei... Sim, eram 36. Imagine só!
- Empolgante? Não. Isso já faz muito tempo. Ele não é o homem que eu imaginava... Ah!, sim, em todos os sentidos. Mesquinho, cruel, violento, egoísta. Preciso de um dicionário para encontrar outros adjetivos para ele... Não posso!... Não! Claro que não! Para onde eu iria? O que faria? Eu sei muita coisa, e ele não vai permitir que eu saia de seu controle... Não, agora vou ter de conviver com isso... Não sei, mãe. Essa história não vai terminar bem. Eu não me importo mais. A morte será um alívio... Bem, lamento muito, mas foi isso mesmo o que eu quis dizer... Não se preocupe, mãe. Não estou planejando tomar atitude drástica alguma... Sei que você tem. Todos nós temos. Todos menos o tio Gregory, acho. Ele ainda está resistindo, não?... Como está vivendo? Você sabe o que vai acontecer se ele for descoberto... Não, não me conte. Não quero saber. Assim, se alguém me perguntar vou dizer que não sei. Diga-lhe que estou orgulhosa dele, que ele continue a resistir, mas que tome cuidado. Você e o papai também devem tomar muito cuidado. Se vocês forem pegos ajudando-o de uma forma ou outra...
Rayford ouviu passos no saguão, e ficou claro que ela também ouviu.
- Preciso desligar, mãe. Tudo de bom para você.
Ela desligou e virou-se quando a porta foi aberta. Um homem alto e magro, de cerca de 50 anos, arregalou os olhos, boquiaberto, ao ver Rayford. Ele apontou para a testa de Rayford, e Rayford também notou o selo na testa dele.
- Posso ajudar? - perguntou a assistente de Carpathia. - Quem está aí?
Rayford levou o dedo indicador aos lábios, apontou para o saguão e disse apenas movimentando os lábios:
- Cinco minutos.
O homem fechou a porta e afastou-se correndo. A mulher encolheu os ombros.
- Obrigada por ter vindo - ela murmurou - seja você quem for.
- Quem chegou acabou de sair - disse Rayford.
Ela deu um salto na cadeira.
- Faz tempo que você está aqui?
- Tempo suficiente para saber quem é o tio Gregory.
- Eu sou uma idiota! Não conheço você, conheço?
- Não.
- Você não faz parte da diretoria.
- Não.
- Há alguém com você?
- Não, Krystall.
- Como sabe meu nome?
- Posso ajudar seu tio.
- Garanto que vou negar cada palavra que eu disse.
- Você não quer que alguém o ajude?
- Você está preparando uma armadilha para mim.
- Não estou. Se eu fosse da CG, não seria capaz de enxergar, certo?
- Você não está enxergando nada.
- Estou. E posso provar. As cores de suas roupas não combinam.
- Isso não é prova, seu idiota. Não consigo enxergar nada. Eu me visto apenas usando o tato, como todo mundo está fazendo.
- Já que você não acredita, levante alguns dedos. Vou dizer quantos... Três... Sua mão direita está de frente para mim e você levantou o dedo mínimo, o anular e o médio.
- Como você sabe?
- Você quer saber como posso enxergar?
- Você não pode.
- Então me responda uma coisa. Como eu sei que agora você está me mostrando seis dedos: cinco da mão esquerda e o indicador da direita, com as duas mãos viradas de costas para mim? Vejo pela expressão de seu rosto que você está começando a se convencer. Agora está escondendo as mãos debaixo da mesa.
Krystall comprimiu os lábios, como se desejasse conter o choro. Rayford levantou-se.
- Fique onde está - ela disse, com a voz trêmula e as mãos no colo.
Rayford levantou-se e postou-se atrás dela.
- Isso não seria nada divertido - ele disse.
Ela deu um salto e virou-se na cadeira.
- Estou vendo novamente suas mãos. Elas estão fechadas em seu colo, com os polegares apontando para cima.
- Muito bem, você consegue enxergar. Como?
- Esta escuridão é uma maldição de Deus, e eu sou um dos filhos dele.
- Você está falando sério?
- Posso ajudar seu tio, Krystall.
- Como?
- Você não estava dizendo que ele ainda não recebeu a marca?
- E se estivesse?
- Então ele ainda tem chance de se salvar. Ele é crente em Cristo?
- Acho que não. Acho que ele não passa de um rebelde.
- Um homem de sorte, se agir rápido.
- Se você imagina que vai me ludibriar para que eu conte onde é o esconderijo dele, está muito...
- Eu não preciso saber disso. Seria uma tolice você arriscar-se a me contar. De qualquer forma, você não pediu a sua mãe que não lhe contasse onde ele está?
Ela não respondeu.
- Se quer ajudá-lo de verdade, diga a ele para entrar no site do Dr. Tsion Ben-Judá. Você sabe como se escreve o nome dele ou preciso soletrar?
- Você acha que não conheço esse nome e como se escreve?
- Desculpe-me.
- Foi no site dele que fiquei sabendo que é tarde demais para mim e meus pais, para minha família inteira... que sentiam tanto orgulho de mim.
- Lamento muito, Krystall.
- Lamenta muito? Como acha que estou me sentindo?
- Você não vai contar a ninguém que estive aqui, vai?
- Por que eu contaria? Eles não vão enxergar você. O que poderiam fazer? Ficar tateando à sua procura?
- Bem lembrado.
- O que você está fazendo aqui?
- Tratando de negócios. A idéia de ajudar seu tio ocorreu-me há poucos instantes.
- Bem, de qualquer forma, obrigada. Você é judaísta, não?
- Sou um crente em Cristo, para ser mais preciso.
- Então, diga-me uma coisa: por que é tarde demais para as pessoas que já receberam a marca de Carpathia? Não continuamos a ter livre-arbítrio?
Rayford sentiu um aperto na garganta.
- Aparentemente não - ele conseguiu dizer. - Eu não entendo muito bem, mas você deve admitir que já teve motivos suficientes para escolher o outro caminho.
- Durante muitos anos.
- É isso mesmo, Krystall.
- Quer dizer que minhas chances acabaram quando fiz a grande escolha?
- Sim. Talvez antes disso. Quem pode conhecer a mente de Deus?
- Estou começando a conhecer.
- Como assim?
- Isso dói muito. Dói mais do que a angústia e o sofrimento causados pela escuridão. Acho que aprendi tarde demais que não podemos zombar de Deus.
A possibilidade de abrir apenas uma fresta na porta de serviço camuflada causou um problema para Chloe: ela não tinha a visão de que necessitava. Embora a porta estivesse de frente para o leste, onde o veículo suspeito estava parado a apenas um quarteirão de distância na última vez que Chloe olhou, ela conseguia apenas enxergar o lado nordeste.
A porta teria de ser aberta no mínimo 45° para Chloe confirmar se o carro ou o caminhão continuava lá. Deveria ela se arriscar a abrir um pouco mais a porta para receber a claridade da lâmpada da rua? Será que isso não faria barulho ou acionaria algum detector de movimento portátil da CG?
Chloe resolveu pensar que o veículo poderia estar trazendo boas notícias em vez de más. Talvez estivesse transportando um grupo de crentes de outros esconderijos que ouviram falar que o contingente do Comando Tribulação havia se protegido embaixo de uma antiga base militar.
Não seria maravilhoso descobrir outros irmãos e irmãs que estariam chegando para ajudá-los, animá-los, defendê-los? Foi o que Chloe descobrira em "O Lugar", em Chicago, onde havia um grupo de crentes autodidatas. De outro lado, toda aquela atividade e movimentação do Comando Tribulação já estava comprometendo a casa secreta.
Um número maior de pessoas transitando naquela área que, segundo a CG, estava de quarentena, poderia chamar a atenção dos guardas e levá-los até lá para bisbilhotar. Se fossem novos amigos chegando, Chloe teria de aceitar que aquilo seria o fim da grande casa secreta.
Ela não gostaria que isso acontecesse novamente. Havia muita gente ali e, embora o local fosse subterrâneo, possuía as mesmas vantagens do Edifício Strong. E agora eles contavam com a ajuda de George Sebastian, que havia expandido o que Chloe - e todas as outras pessoas interessadas - aprendera sobre treinamento de combate com Mac McCullum em sua missão na Grécia. Os equipamentos de exercícios em estado precário que George e Priscilla resgataram da base militar não eram grande coisa., mas George os considerava uma vantagem.
- Esses equipamentos serão úteis para vocês – George disse.
Ele consertou e lubrificou os que tinha em mãos, e depois de seis semanas vários membros do Comando Tribulação resolveram passar algum tempo na sala de exercícios para fortalecer os músculos. Aquilo era apenas um pré-requisito, é claro.
Chloe gostava dos treinamentos comandados por George. Muitos faziam sentido, outros não. Ele havia recebido um treinamento de alto nível e provou ser um excelente professor. Chloe achava que agüentaria carregar uma arma em qualquer situação.
Ao lembrar-se daquele treinamento, ela se deu conta de que estava cometendo um erro fundamental. Havia-se afastado de seu posto, e ninguém tinha idéia de onde ela estava. Seria impossível comunicar-se com alguém a uma distância tão grande. Portanto, se levasse adiante o plano de abrir a porta de serviço o suficiente para enxergar um inimigo em potencial a um quarteirão de distância ou, talvez, mais perto ainda, ela teria de tomar uma decisão.
Deveria abrir a porta de uma só vez, sair e fechá-la de novo ou deveria continuar com a mão na maçaneta caso necessitasse recuar rapidamente?
Chloe encostou a orelha na porta para ouvir algum movimento do lado de fora, mas não logrou êxito. A Uzi bateu de encontro à porta e o capuz e a máscara de esquiar que ela usava abafavam qualquer tipo de som. Ela recuou, sentindo-se uma idiota.
Calma. Respirem fundo. Vamos sair bem devagar e fechar a porta atrás de nós.
O fato de usar o pronome nós a fez sentir-se menos desamparada, mas ela sabia que estava enganando a si própria.
Tomando o máximo de cuidado, ela caminhou pé ante pé, abriu a porta, saiu e fechou-a atrás de si. Será que o veículo continuava ali?. Ela teria de aguardar alguns instantes. Talvez ele estivesse com as lanternas traseiras apagadas. Chloe dirigiu-se a uma fileira de arbustos no lado leste e escondeu-se atrás deles. Em seguida, girou o corpo para ver se o inimigo não estava vindo na outra direção. Ela fez uma pausa para sentir o gosto da liberdade, a liberdade de estar respirando o ar frio da madrugada.
Quando seus olhos se acostumaram à fraca luz proporcionada apenas pelas lâmpadas da rua, Chloe olhou através da folhagem e viu o caminhão branco, especial para transportar funcionários da CG, estacionado no mesmo lugar, com as lanternas traseiras apagadas, mas, aparentemente, e o motor não estava desligado.
A pergunta era se o caminhão estaria vazio. Se estivesse, quantos soldados trouxera e para onde teriam ido?
Rayford caminhou rapidamente, nas pontas dos pés, até o fim do corredor e encontrou um homem inquieto e retorcendo as mãos.
- Fala inglês? - o desconhecido perguntou, com acentuado sotaque alemão.
- Sim. Sou americano.
- Irmão, irmão, irmão! - o homem sussurrou, abraçando Rayford com força.
- Quem é você? Como se chama? O que está fazendo aqui?
O homem tinha músculos firmes, como os de um trabalhador braçal.
- Eu também quero lhe fazer estas mesmas perguntas, amigo - disse Rayford, libertando-se do abraço. - Mas precisamos tomar cuidado para que ninguém nos ouça.
- Sim, muito bem. Onde?
- Tenho alguns companheiros aqui. Eles estão em um apartamento particular. Você precisa conhecê-los. Vamos conversar lá.
- Será que vou agüentar esperar tanto tempo? Estou muito emocionado. O apartamento fica longe daqui?
- Seis andares abaixo, na outra ala - disse Rayford, conduzindo-o ao elevador.
- Você mora aqui no palácio? Trabalha aqui?
- Morei e trabalhei aqui. - Rayford olhou ao redor e aproximou-se mais do homem. - Estou morando em um esconderijo em San Diego e tenho amigos em Petra. Vamos tirar nosso espião daqui enquanto é possível.
- Achei que o espião fosse você!
- Fui um deles. Agora temos apenas um. Pelo menos é o que imaginamos. Você é daqui?
- Moro a uns dez quilômetros de distância, você pode acreditar?
Havia três executivos diante dos elevadores, amparando-se um no outro e tateando à procura dos botões. Rayford e seu novo amigo entreolharam-se e ingressaram no primeiro elevador que chegou. Os três entraram depois deles.
- Precisamos chegar no horário - disse um executivo.
- É verdade - disse outro. - Eu gostaria de ter um relógio sonoro.
- Retirei o cristal do meu. Estou aprendendo a sentir as horas. O problema é que fico passando a mão nos ponteiros e nunca sei qual é a hora exata. - Ele passou dois dedos sobre seu relógio. - Acho que são 14h50. Ainda temos dez minutos.
Rayford notou que o alemão olhou para o próprio relógio e ergueu as sobrancelhas. O elevador parou dois andares abaixo, e os três desceram. Mas assim que as portas começaram a se fechar, o companheiro de Rayford segurou-as com as duas mãos, deu uma batida de leve no ombro do executivo que calculou as horas e, ao mesmo tempo, esfregou o polegar no mostrador do relógio dele. O homem assustou-se, e seu companheiro foi de encontro a ele e perguntou:
- O quê?
E o terceiro perguntou: - O que foi?
O alemão recuou os braços para que as portas se fechassem. Quando ficou sozinho com Rayford no elevador, ele caiu na gargalhada.
- Acho que foi a última vez que ele ficou sabendo qual era a hora certa. Agora posso me apresentar?
- Ainda não - disse Rayford.
Em seguida, pronunciou as palavras somente movimentando os lábios.
- Quase todos os elevadores e corredores daqui têm sistema de escuta.
Imprudência ou coragem? Para Chloe, era uma questão de ponto de vista. Provavelmente, muitos a tachariam de imprudente. Mas ela estava curiosa demais a respeito do caminhão e mais curiosa ainda a respeito de quem eram seus ocupantes.
Acompanhando a fileira de arbustos e distante das lâmpadas da rua, ela caminhou um quarteirão à esquerda, movimentando-se silenciosamente no meio da noite, conforme aprendera.
Ela reduziu o ritmo dos passos assim que se alinhou à esquerda do veículo, a uma distância aproximada de 30 metros. Censurou a si mesma por não ter levado o binóculo e o walkie-talkie. Poderia ter deixado o aparelho desligado até o momento de necessitar dele, evitando, assim, uma transmissão inoportuna. E teria a possibilidade de comunicar-se com Buck ou com qualquer outra pessoa em caso de urgência.
No entanto, até aquele momento, não tinha havido urgência alguma. Chloe aproximou-se mais do veículo, dizendo a si mesma que se houvesse alguém dentro, o motor estaria funcionando e uma ou mais janelas estariam abertas. Mas ela não queria avançar sem ter certeza.
Depois de girar lentamente o corpo em círculo para ver se não havia alguém se aproximando ou ao redor, Chloe chegou perto do caminhão e olhou através das janelas traseiras. Não havia ninguém.
Mas dali ela não podia saber se havia alguém no banco da frente. Se houvesse uma pessoa aguardando, deveria estar sentada diante do volante. Ela aproximou-se pelo outro lado, com o corpo curvado para ficar abaixo do nível da janela até o momento de poder endireitar-se rapidamente e pegar o inimigo de surpresa, se necessário.
Rayford surpreendeu-se ao ver o grande número de moradores do palácio aglomerados no saguão dos elevadores. Todos estavam sofrendo. Ele caminhou em direção ao apartamento de Chang em companhia de seu novo companheiro.
Havia pessoas abraçadas nos cantos, chorando. Outras rastejavam na tentativa de encontrar o caminho para os apartamentos, apoiavam-se nas maçanetas e passavam os dedos nos números antes de bater e implorar que os amigos lhes abrissem a porta.
- Isso me corta o coração - Rayford cochichou ao ouvido do alemão.
- O meu não - disse o homem -, mas estou procurando me sensibilizar.
Rayford deu uma batida de leve na porta de Chang. A conversa lá dentro cessou.
- Sou eu - ele disse baixinho. - E não se assustem. Trouxe alguém comigo.
Abdullah abriu uma fresta da porta, o suficiente para enxergar e encaixar o cano de uma Glock calibre .45. Satisfeito ao ver que era Rayford, ele examinou o alemão de cima a baixo. Depois de ver o selo dos crentes na testa do homem, Abdullah abriu a porta com força.
Assim que entrou, o homem não conseguiu ficar parado. Depois de olhar para todos, para os computadores e para as pilhas de disquetes, ele perguntou.
- Posso falar? Tudo bem aqui?
Chang fez um movimento afirmativo com a cabeça. Apesar de ter-se assustado diante da reação efusiva do homem, ele continuou a trabalhar com Naomi.
- Meu nome é Otto Weser - ele disse. - Madeireiro alemão, judaísta, chefe de um pequeno grupo de crentes aqui em Nova Babilônia.
O alemão abraçou Abdullah e disse, rindo:
- Cuidado com essa arma aí!
Ao cumprimentar Chang, quase o levantou do chão.
- Vejam só! Você é asiático. Nosso amigo de turbante é o quê? Egípcio?
Abdullah o corrigiu.
- Ah! jordaniano. Quase acertei. Eu sou alemão. Rayford Steele, seu nome é ocidental e você me disse que é americano, mas também tem a aparência de egípcio.
- É um disfarce.
- E você, minha jovem, também é do Oriente Médio, não? Claro que é. Não vou abraçá-la sem a permissão de seu pai.
Otto apontou primeiro para Rayford, que fez um movimento negativo com a cabeça, e depois para Abdullah, que pareceu ofendido.
- Ah!, mas vocês têm idade para ser pai dela. - Ele se virou para Chang. - Sei que ela não é nada sua, a menos que sejam casados.
Naomi aproximou-se dele, com os braços abertos.
- Meu pai não está aqui, mas se eu tiver de lhe dar permissão, pode me abraçar.
- Ah! Eu adoro esses jovens que gostam de filmes antigos.
Assim que ficou conhecendo todos, Otto prosseguiu:
- Vou ser breve. Sei que vocês têm uma missão a cumprir e que precisam sair daqui. Eu não sabia se encontraria algum irmão ou irmã dentro do palácio, mas estou feliz por ter encontrado. Meus amigos e eu nos consideramos cumprimento da profecia. Vocês querem saber por quê? Estávamos escondidos na Alemanha, lutando contra a CG sempre que possível, e Deus... quem mais poderia ser?... levou-me a ler Apocalipse 18. Fiquei confuso; o que mais posso dizer? Vocês conhecem a passagem. Eu a memorizei.
- Não sou nenhum intelectual, nenhum estudante, nenhum teólogo, mas procuro ficar um passo adiante de meu pessoal para poder ensinar alguma coisa a eles. Bem, Apocalipse 18 fala sobre a destruição desta cidade, desta mesma onde estamos. Iniciando no versículo quatro, lemos: "Ouvi outra voz do céu, dizendo: Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados, e para não participardes dos seus flagelos; porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou dos atos iníquos que ela praticou. Dai-lhe em retribuição como também ela retribuiu, pagai-lhe em dobro segundo as suas obras, e, no cálice em que ela misturou bebidas, misturai dobrado para ela. Quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxúria, dai-lhe em igual medida tormento e pranto, porque diz consigo mesma: Estou sentada como rainha. Viúva não sou. Pranto, nunca hei de ver! Por isso em um só dia sobrevirão os seus flagelos, morte, pranto e fome, e será consumida no fogo, porque poderoso é o Senhor Deus que a julgou."
- Bem, vocês devem conhecer esta passagem melhor que eu. "Retirai-vos dela, povo meu"? O que podíamos entender desta frase a não ser o óbvio? Devia haver povo de Deus aqui, ou pelo menos uma pequena parte, até pouco antes de acontecerem esses flagelos! Quem eram eles? Nunca imaginei que pudesse haver crentes aqui. E se existissem, não durariam muito tempo! Como isso seria possível? Se a CG e os Monitores de Moral estão matando gente no mundo inteiro por não ter a marca de Carpathia, que chance alguém daqui teria?
- Não sabíamos, mas queríamos descobrir. E vou dizer uma coisa a vocês. Não era mais possível ficar brincando de esconde-esconde com a CG na Alemanha. Reunimos um grupo de quase 40 pessoas, arrumamos nossas coisas e viemos para cá. Devo dizer que a viagem não foi fácil. Também não tem sido fácil viver aqui, mas sabíamos disso quando decidimos vir. Perdemos seis pessoas de nosso grupo desde que chegamos... Quatro de uma só vez. Dois, devo admitir, morreram por minha culpa e vou sentir vergonha disso pelo restante da vida. Mas vamos nos encontrar novamente, não é verdade? E eu mal posso esperar.
- E outra coisa que eu esperei ansiosamente foi esta praga da escuridão. Quando ela chegou e percebemos que ninguém podia enxergar, exceto nós, decidi que queria conhecer este lugar. Queria conhecer os prédios, o pátio, o palácio, tudo... principalmente o escritório do potentado. Não pude trazer os outros comigo, mas estou aqui, e quem mais eu poderia encontrar a não ser vocês? Bem, se somos cumprimento da profecia por fazer parte de um pequeno grupo do povo de Deus que deve sair daqui antes que chegue o fim, vocês são uma resposta à minha oração. Se tivermos de sair daqui, precisamos descobrir um lugar para ficar, de preferência que seja seguro. Se vocês têm ligações com Petra, é para lá que queremos ir, se eles nos aceitarem.
- Desculpe-me, Rayford - disse Chang. - Esta conversa está muito interessante e agradável, mas preciso mostrar a Naomi, você sabe, como funciona o sistema que David instalou aqui. Depois, acho que devemos partir.
- Certo - disse Rayford -, e vou me sentir mais tranqüilo se Abdullah ficar com vocês. Quero voltar ao escritório de Carpathia para ver se Otto e eu podemos entrar na grande reunião e saber o que está acontecendo.
- Ah! Eu adoraria! Conforme já disse, eu queria conhecer o escritório dele. Foi por isso que eu estava lá, mas fiquei tão assustado quando vi alguém com o selo...
- Otto - disse Rayford -, precisamos ir.
Depois de ficar agachada por um bom tempo ao lado da porta direita do caminhão, Chloe quase desistiu de levar seu plano adiante. O que aconteceria se ela erguesse o corpo e o motorista estivesse sentado ali, aguardando o retorno dos soldados?
Talvez ela tivesse de apontar a arma para ele. E fazer o que depois? Desarmá-lo? Impedi-lo de falar pelo rádio? Forçá-lo a contar para onde foram os soldados e o que pretendiam fazer?
Porém, tudo aquilo só serviria para comprometer o esconderijo, a não ser que Chloe estivesse disposta a matar o motorista e tentar afugentar o restante do pessoal. Para isso, ele teria de lhe contar onde os soldados estavam.
Finalmente Chloe disse a si mesma que se o caminhão estivesse vazio, ela faria um amplo reconhecimento do terreno ao redor do esconderijo para saber se a CG não estava por perto ou prestes a capturá-los; em seguida, voltaria para buscar ajuda.
Chloe soltou a trava de segurança da Uzi, colocou o indicador direito no gatilho, apoiou o cano da arma na palma da mão esquerda e levantou-se rapidamente.
Vazio.
Era como ela também se sentia: vazia. Os efeitos da adrenalina em seu organismo desde o momento em que ela se aventurara a sair pela porta de serviço haviam-na deixado quase imóvel. Ela se abaixou ao lado do caminhão para recompor-se. Seus braços e pernas pareciam ser feitos de borracha. Se seus sentidos não estivessem em estado de alerta máximo, ela teria encostado o queixo no peito e dormido ali mesmo.
Apesar da sensação de estar sendo observada, imaginando que havia no mínimo nove soldados da CG com armas apontadas em sua direção, ela se sentia uma mulher de sorte em razão da fragilidade de seu plano. Na verdade, ela mal elaborara um plano.
Embora concordasse com o lema do Comando Tribulação - "Não acreditamos em sorte" -, era difícil atribuir a Deus a proteção que recebera até aquele momento, principalmente porque se sentia tola demais por ter novamente testado seu destino.
Chloe levantou-se e começou a fazer o reconhecimento do terreno. Enquanto caminhava silenciosamente no escuro, sentindo-se vulnerável e procurando ser mais cautelosa que rápida, ela só percebia o ritmo acelerado de sua respiração e as batidas fortes de seu pulso.
Quando Rayford e Otto chegaram ao conjunto de escritórios de Carpathia, a reunião já havia começado, e alguns retardatários atravessavam desajeitadamente a porta da sala de conferências. Rayford viu o fraco brilho emitido por Carpathia. Apenas Leon Fortunato permanecia perto dele o suficiente para receber um pouco de luz.
Rayford tocou levemente nos ombros dos homens que estavam na porta e eles abriram caminho para ele e Otto passarem. Por questão de segurança, eles se sentaram na outra extremidade da sala, longe de Carpathia.
O potentado pediu a Krystall que procedesse à chamada dos presentes, o que foi feito quase que de memória. Ao constatar que havia se esquecido dos nomes de três diretores, ela perguntou se poderia ler o restante da lista sob a luz de Carpathia.
- É melhor que as pessoas cujos nomes não foram chamados se identifiquem - disse Nicolae.
Enquanto elas se identificavam, Otto cutucou o braço de Rayford e disse, apenas movimentando os lábios, que gostaria de gritar seu nome para ver a confusão que isso provocaria.
- Cavalheiros, se vocês tiverem a bondade de reprimir seus gemidos - Carpathia começou a dizer -, o diretor do Serviço de Segurança e Inteligência, Suhail Akbar, vai mencionar o primeiro item da reunião.
- Obrigado, Excelência. Oh! Perdoe-me, senhor, mas estou sentindo muitas dores. Ai!
- Suhail, por favor!
- Desculpe-me, potentado, mas não sei o que...
- Controle-se, homem!
- Vou tentar, senhor. Nosso primeiro assunto, senhoras e senhores, além do óbvio, é que uma...
- O que pode ser mais importante que o óbvio? - perguntou alguém com sotaque indiano. - Temos de encontrar uma solução para este...
- Quem está falando? - Carpathia interpelou. - Raman Vajpayee, é você?
- Sim, senhor, eu só quero saber...
- Raman, eu só quero que você fique calado. Como se atreve a interromper um membro de meu gabinete?
- Bem, senhor, há algo mais importante que...
- Há algo mais importante que tudo. Sua ofensa merece um miserável pedido de desculpas, e é melhor que seja feito imediatamente.
- Sinto muito, potentado, mas...
- Sua resposta foi mais miserável ainda. Não posso imaginar tamanha insubordinação em uma época de crise internacional. Estou pensando em...
- Pensando em quê? - desafiou Vajpayee. - Em me matar como faz com qualquer um que fala o que pensa? Eu lhe digo uma coisa: prefiro morrer a viver desta maneira! No escuro! Sofrendo dores! Sem nenhuma possibilidade de alívio. E, apesar disso, o senhor está...
- Apresente-se, Raman! Imediatamente!
O indiano correu para a frente, empurrando quem estava no caminho. Para Rayford, ficou claro que ele estava simplesmente seguindo o som da voz de Carpathia, incapaz até mesmo de enxergar o brilho.
- Estou aqui, distante um braço do senhor! Mate-me por eu ter ousado falar o que penso ou revele-se como um covarde!
- Suhail - ordenou Carpathia -, tire este homem daqui e execute-o.
- O senhor é mesmo um covarde! Não vai usar suas mãos para me matar! Pelo menos tenha um pouco de respeito comigo.
- Eu só sinto desprezo por você, Raman. Você arruinou sua posição dentro da Comunidade Global e eu...
- Mate-me com suas mãos, seu medroso...
Ao ouvir estas palavras, Carpathia arremessou-se em direção ao indiano, permitindo, assim, que um enxergasse o outro. Os dois homens começaram a lutar enquanto os outros ouviam aterrorizados. Carpathia conseguiu agarrar a cabeça do homem com as mãos. Com uma forte torção, ele quebrou o pescoço de Vajpayee, e o homem caiu morto no chão.
- Há outros dissidentes aqui? - perguntou Carpathia. - Alguém que prefira morrer a sofrer pela causa? Hem? Se não há, prossiga, Suhail, e quando terminar, tire este corpo daqui.
Ainda abalado, Akbar conseguiu controlar seus gemidos de dor enquanto relatava que uma aeronave havia pousado em Nova Babilônia naquela tarde.
- Só podemos imaginar que a aeronave estava ligada no piloto automático - ele disse -, mas não temos registro do equipamento. Solicitamos cautela por parte de todos, porque deve haver subversivos entre nós.
- Se não conseguirmos que os ocupantes da aeronave se identifiquem - disse Carpathia -, eu mesmo vou inspecioná-la depois desta reunião.
- Esta é a nossa deixa - Rayford cochichou ao ouvido de Otto. - Temos de sair daqui antes disso.
Enquanto eles começavam a sair sorrateiramente da sala, Carpathia prosseguiu:
- Conforme vocês sabem, estou determinado a pôr um fim em nosso problema com os judeus, e se isso incluir os judaístas covardes que continuam escondidos nas montanhas, tanto melhor. Estou convocando uma reunião com todos os dez líderes das regiões globais daqui a seis meses. A reunião será em Bagdá e terá a finalidade de traçar nossa estratégia para livrar o mundo de nossos inimigos. Nesse ínterim, nosso posto de comando será transferido para Al Hillah, onde há luz. Conforme é do conhecimento da maioria de vocês - e se for novidade, espero que tratem o assunto com total discrição -, em Al Hillah está localizado nosso imenso depósito de armamento nuclear, voluntariamente entregue a nós por todo o mundo. Isto nos será muito útil neste derradeiro esforço para encontrarmos uma solução final.
- Enquanto as outras partes do mundo se preparam para cerrar fileiras comigo, planejo começar a reunir forças de combate em Israel. Todos os militares dos Estados Unidos Carpathianos que ainda não foram designados para trabalhar como soldados das Forças Pacificadoras ou Monitores de Moral deverão apresentar-se no vale de Jezreel para treinamento de combate.
- Quanto ao nosso deslocamento para Al Hillah, estejam prontos em 24 horas. Levem tudo o que for necessário para ajudá-los nessa transferência.
- E quanto aos nossos funcionários, nossos departamentos?
- Continuarão aqui, e eles não devem saber para onde vamos, nem que estamos indo. Entendido?
Rayford já estava do lado de fora da porta quando constatou que ninguém respondeu.
- Entendido?
- Sim - murmuraram alguns.
- Então, mãos à obra. O Sr. Akbar, o reverendo Fortunato e eu vamos nos dirigir ao aeroporto.
Rayford fez um sinal para que Otto o acompanhasse e correu para os elevadores.
- Chame todos os elevadores e aperte todos os botões. Retarde esses elevadores o mais que puder. Vou descer pela escada. Não tenho idéia de onde meus amigos estão, mas preciso deixar um bilhete no apartamento de Chang caso eles voltem para lá. Temos de sair daqui antes que Carpathia descubra a identidade de nosso avião e onde estamos. Entendeu?
- Entendi. Obrigado por confiar em mim.
- Você estava esperando ir conosco? Isso só será possível se você...
- Não, vamos deixar esse assunto para mais tarde. Não quero ir sem meus companheiros.
- Se você encontrar meus amigos antes de mim, mande-os para o avião.
Rayford desceu correndo a escada, provocando gritos estridentes do povo sofrido que estava sentado nos degraus. Alguns perguntaram, aos brados, como ele conseguia correr daquela maneira no escuro. Rayford detestava ter de desprezá-los.
Quando chegou ao piso principal, ele saltou por cima de várias pessoas e correu em ziguezague no meio de outras. Passou rapidamente pela porta e disparou rumo ao avião. Se conseguisse ligar o motor e posicionar a aeronave, ficaria esperando e orando para que Chang, Naomi e Abdullah estivessem a caminho.
Buck dormiu profundamente durante horas até o momento em que alguma coisa começou a perturbá-lo. Ele foi ficando cada vez mais agitado e acordou de repente. A sensação era de culpa por ter deixado Chloe de vigia depois de ela ter trabalhado arduamente o dia inteiro nos assuntos da cooperativa e cuidado do filho. Que tipo de marido ele era?
Passou as mãos no cabelo, sentou-se na cama e gritou:
- Está tudo bem, querida?
Talvez ela estivesse no quarto de Kenny. Ou preparando chá na cozinha. Buck saiu do quarto, espreguiçando-se.
- Chloe! - ele chamou. - O detector de movimento está sinalizando alguma coisa aqui!
Ele se curvou para olhar no periscópio e fez uma rápida exploração. Não havia ninguém. De repente, ao virar o aparelho para sudoeste, ele avistou um vulto sozinho, armado.
- Chloe! - ele gritou, com a testa franzida. - É melhor chamar George. Estou vendo um fantasma às oito horas da manhã. Chloe?
O sangue de Buck gelou. Ele se levantou e foi até a cozinha. Tudo escuro. E Kenny estava chorando. Buck pegou o telefone a caminho do quarto de Kenny e digitou o número de Ming.
- Ei, garotão - ele disse.
O menino, em pé na cama, passou rapidamente do choro ao riso.
- Mamãe?
- Ela já vem. Deite mais um pouco e volte a dormir. Ainda está escuro.
Ming atendeu.
- Peço desculpas por despertá-la, Ming, mas tenho uma emergência aqui.
- Estou às ordens, Buck.
- Você poderia cuidar de Kenny por alguns instantes? Acho que Chloe saiu.
- Chego aí em um minuto.
Ele agradeceu a Ming e ligou o walkie-talkie.
- George, você já está em pé?
Rayford já havia ligado os motores e feito uma manobra de meia-volta com a aeronave quando avistou a luz de Carpathia ao longe. O potentado parecia apressado, mas, por ter de conduzir Suhail Akbar e Leon Fortunato, ele tinha de andar lentamente para iluminar o caminho para os dois.
No entanto, essa luz não ajudaria muito sem o ronco dos motores do jato, portanto Rayford desligou tudo e orou para que aquele trio com dificuldade para enxergar se perdesse no caminho, para dar tempo ao outro trio - seus três companheiros - de encontrá-lo.
Rayford pegou seu celular e ligou para Mac McCullum em Al Basrah para contar-lhe as novidades.
- Você e Albie podem seguir para Al Hillah hoje?
- Estamos sentados aqui como dois patetas, sem fazer nada.
- Pelo que entendi, a resposta é sim. Vocês estão muito visados depois do que aconteceu na Grécia. Como vão conseguir andar por aí?
- Com muita conversa, charme, e viajando somente à noite, é claro. Acho que você está querendo saber o que NC e seus garotos estão aprontando.
- O ideal seria que vocês descobrissem onde eles vão se reunir em Bagdá e instalar nesse lugar um sistema de escuta para nós.
- Ah!, claro. Eu vou dizer ao pessoal de lá que sou o novo criado pessoal dele e perguntar se posso passar algumas horas na sala de reunião antes da chegada deles.
- Se fosse tão fácil assim, eu mesmo faria isso – disse Rayford.
- Albie conhece todo mundo. Se tiver de ser feito, pode contar com ele.
Chang, Naomi e Abdullah chegaram, cada um carregando várias caixas e maletas. Naomi estava pálida como um lençol. Rayford abriu a porta e abaixou a escada.
- Chegaram na hora exata - ele disse.
- Providenciamos tudo, capitão - disse Abdullah. - Graças a este jovem gênio.
- Só estava fazendo algumas demonstrações - disse Chang, colocando sua bagagem dentro da aeronave e ajudando Naomi a entrar.
- Eu queria mostrar a ela como David grampeou o palácio inteiro e que podíamos ouvir tudo o que se passa no escritório de Carpathia.
- Então você sabia que ele estava vindo - disse Rayford, permitindo que Abdullah se sentasse na poltrona do piloto.
- Por favor, vamos mudar de assunto? - disse Naomi. Aquelas palavras provocaram um silêncio constrangedor.
Rayford atreveu-se a olhar para trás. A pálida silhueta alaranjada estava caminhando mais rápido. Carpathia devia ter abandonado Akbar e Fortunato ou os dois estavam sofrendo dores muito fortes. Aparentemente, o sofrimento não atingira Carpathia. Talvez Deus estivesse reservando outra coisa para ele.
Rayford e Abdullah evitaram fazer uma inspeção formal da aeronave e verificaram apenas os pontos críticos.
- Ligue os motores - disse Rayford.
Mas Abdullah continuou parado, esticando o pescoço para ver a luz aumentar cada vez mais de tamanho à medida que se aproximava do avião.
- O que você está esperando, Smitty? Vamos embora.
- Um momento, por favor, capitão. A que distância você acha que ele consegue enxergar?
- Até onde o brilho dele alcança. Agora vamos.
- Um momento, por favor.
- O que está havendo, Sr. Smith? - gritou Naomi. - Aquele não é Carpathia?
- Ele não sabe para onde está indo. Mas eu sei.
- Assim que ligarmos o motor, ele não vai poder fazer nada - disse Rayford. - Mas é melhor que ele não saiba quem somos.
- Ele não vai saber - disse Abdullah.
Rayford inclinou o corpo sobre Abdullah e viu Carpathia correndo na pista, cerca de seis metros atrás da aeronave.
- Lá vamos nós - gritou Abdullah, acionando os motores e deixando a luz alaranjada para trás, até a figura de Nicolae desaparecer ao longe.
Assim que ganharam altitude, Naomi inclinou-se para a frente.
- Posso falar com o senhor? - ela perguntou. Rayford tirou os fones de ouvido. - Vocês acham tudo isso normal?
- Hoje, nada mais é normal, Naomi. Você tem visto muitas coisas com os próprios olhos.
- Nunca ouvi falar que um homem foi assassinado. E nunca andei no meio de tantas pessoas feridas sem poder fazer alguma coisa por elas. Estamos isolados em Petra, e eu gostaria de estar no meio da ação. Nunca vi nada semelhante a isto, mas está tudo bem comigo. E vamos poder fazer coisas em nosso centro de informática que jamais imaginei.
- Você passou por situações difíceis, sinto muito - disse Rayford. - Eu também passei.
Ele contou sobre a conversa que teve com a assistente de Nicolae e como procurou ajudá-la.
- Vamos procurar o nome do tio dela no sistema - disse Naomi. - E acho que também vamos receber notícias do Sr. Weser.
- Espero. Que sujeito bom!
Naomi aproximou-se um pouco mais de Rayford. Apesar de ter de falar alto por causa do ruído dos motores, ela conseguiu que só Rayford ouvisse suas palavras.
- Chang não está bem.
- O que houve?
- Por pior que tenha sido, ali era o seu lar. Ele deve estar estranhando ter de abandonar tudo.
- Pensei que ele ficaria feliz por sair de lá.
- Eu gostaria de ter conhecido o Sr. Hassid, aquele homem do qual Chang tanto fala. O que eles fizeram no palácio e os equipamentos que instalaram onde estamos morando...
Rayford assentiu com a cabeça.
- Você acha que vai ser capaz de fazer a mesma coisa em Petra, isto é, monitorar esse lugar?
- Com a ajuda de Chang, sim. Vai ser maravilhoso poder contar com ele.
- Ele vai concorrer com você?
- Acho que não. Vou deixar que ele faça o que quiser. Ele gosta de assuntos técnicos, de lidar com as partes internas do computador, muito mais do que lidar com pessoas. Mas ele poderá dar aulas, se quiser.
O celular de Rayford soou. Era George Sebastian.
- Faz tempo que estava querendo falar com você. Seu celular estava desligado? - George perguntou.
- Deixei-o desligado para cuidar de uma missão no palácio. Estava esperando vocês acordarem para contar as novidades. Ainda é noite aí, não?
- Temos um problema.
- Por que está sussurrando? Onde você está?
- Fora do esconderijo.
- Que horas são aí?
- Quase cinco. Não conseguimos encontrar Chloe.
Buck concluiu que o vulto que havia visto através do periscópio era o de Chloe, mas onde ela estava? Fazia parte do comportamento dela sair sem um walkie-talkie ou um telefone, o que Buck considerava uma estratégia e não uma imprudência. Mas ele teria dificuldade para convencer o pessoal.
Ele e George haviam se separado, ambos armados e em constante contato um com o outro. George descobrira o caminhão da CG vazio - que devia ser uma espécie de chamariz - mas não viu ninguém da CG nem Chloe. Buck esperava não ter de chamar outras pessoas para ajudá-los, porque não queria expor seus companheiros nem o esconderijo.
Duas horas depois, quando o sol despontou no horizonte, Buck e George tiveram de retornar ao esconderijo. Eles haviam percorrido uma área de dois quilômetros quadrados, sem encontrar nada.
Quando chegaram ao esconderijo, todos já estavam em pé, preocupados, orando e ansiosos por saber notícias de Chloe. Ming Toy levou Kenny e Beth Ann, a filha de George, para sua casa "pelo tempo que for necessário".
George e Priscilla instalaram um centro de comando na sala de operações. Ree Woo, sentado diante de uma mesinha dobrável em um dos cantos, folheava os arquivos para ver se encontrava algum codinome que não havia sido usado ou que não estivesse comprometido.
Buck admitiu que pouco poderia ajudar.
- Estou paralisado.
- Pare de pensar no pior - disse George. - Desse jeito, você não está ajudando nem Chloe nem nós.
Buck olhou firme para George, sabendo que seu companheiro estava certo.
- Para você, é fácil falar, Sebastian. Não é a sua mulher que está lá fora.
Priscilla olhou para o outro lado. George deixou seus papéis caírem sobre a mesa e aproximou-se de Buck. Colocou as mãos nos braços da poltrona de Buck e ficou frente a frente com ele.
- Vou dizer uma vez só. Se minha esposa estivesse lá fora, eu não ficaria sentado aqui com as mãos no colo. Devo um favor enorme a sua esposa. Ela arriscou a vida por mim na Grécia. Posso imaginar como você se sente. O fato de não sabermos nada é melhor do que saber que aconteceu o pior. Talvez você esteja furioso com Chloe porque ela não obedeceu ao protocolo e infringiu várias regras.
- Talvez - ele prosseguiu - você esteja se sentindo culpado por ter se zangado com sua mulher e agora está com medo de que tenha acontecido algo com ela. Eu não culpo você. Não culpo mesmo. Mas vou lhe dizer uma coisa. Precisamos da ajuda de todos, principalmente de alguém com sua inteligência. Eu lhe faço uma pergunta: você quer descobrir onde Chloe está para trazê-la de volta sã e salva ou quer pensar no pior e começar a chorar desde já?
- George! - ralhou Priscilla.
- Não estou pretendendo ser duro demais com ele - disse George. - É que não há nada que possamos fazer lá fora durante o dia, a não ser que a gente saiba que o terreno está livre ou que existe alguém com um bom disfarce e um codinome. Enquanto isso, vamos ter de ficar calmos e planejar uma estratégia, e não queremos que Buck continue sentado aqui se sentindo infeliz...
- Muito bem, George, já entendi! Certo?
- Você e eu estamos entendidos?
- Claro.
- Você acha que saí daqui no meio da noite para brincar?
- As notícias não são boas - disse Ree. - Os nomes "Chloe Irene" de Chloe e "Howie Johnson" de Mac foram descobertos depois do que houve na Grécia. O nome de "Indira Jinnah" de Hannah ainda está limpo, mas só ela pode usá-lo, e ela está muito longe daqui. As identidades de cidadãos do Oriente Médio utilizadas por Rayford e Abdullah continuam válidas, mas Abdullah está em Petra e Rayford vai precisar de descanso quando chegar aqui.
- Não tenha tanta certeza assim - disse George. - Ele vai querer ir até o fim.
- Tenho certeza - disse Buck.
- O nome de "Comandante Elbaz" usado por Albie já está comprometido? - perguntou Ree.
Buck assentiu com a cabeça.
- Infelizmente, sim.
- Ele também está muito longe daqui - disse George. - Temos mais alguém?
- Temos mais um. "Chang Chow", o nome masculino que Ming adotou.
- Não vamos pôr a vida de Ming em risco - disse Buck.
- Por que não? - estranhou George. - Ela ainda tem a farda. Pode cortar o cabelo e...
- Ei! - interrompeu Ree. - Você está falando de minha noiva.
- E daí?
- Pelo menos ela precisa ser consultada.
- Não, Ree - disse George. - Acho que devemos arrastá-la até aqui, segurá-la e cortar o cabelo dela.
- Calma, rapazes - disse Priscilla. - Ninguém me conhece. Eu poderia inventar um codinome e...
- Você não - disse George.
- Agora a pimenta ardeu nos seus olhos, não? - disse Buck. - A idéia de sua mulher sair daqui...
- Pare com isso! - disse George. - Eu só acho que ela é inexperiente e não tem muita saúde.
- Ming não tem um bom físico - disse Ree. - Não recebeu treinamento para lidar com armas.
- Não me venha com essa - disse Buck. - Ela trabalhou no PRFB.
- Cuidar de detentas em uma prisão feminina não é o mesmo que resgatar um de nós das mãos da CG.
- De qualquer forma, ninguém daqui gostaria que ela fizesse isso - disse George. - Buck e eu, e talvez você, Ree, temos de resgatar Chloe. Vamos precisar de Ming, ou de outra pessoa, para descobrir onde ela está.
Quando estava no meio do caminho para voltar ao esconderijo, Chloe avistou outros dois veículos da CG, que rodavam em direção ao sul. Enquanto ela observava, os dois caminhões pararam, e mais de meia dúzia de homens desceram de cada um dos veículos. Ficou claro que eles levavam adiante um cuidadoso plano de encontrar acampamentos clandestinos. E a casa secreta subterrânea ficava no caminho deles. Talvez estivessem com ar de tédio quando Buck os viu pelo periscópio poucas horas antes, mas haviam notado alguma coisa estranha.
Aqueles homens tinham o semblante compenetrado. Carregavam detectores de metal, sondas e alguma coisa parecida com aparelho para descobrir substâncias radioativas. Chloe não sabia se teria tempo de correr de volta ao esconderijo para alertar os outros. Se calculasse mal o tempo, levaria a CG diretamente ao esconderijo.
Determinada a distraí-los e desviar o rumo deles, ela começou a caminhar novamente. Queria que eles a vissem, mas sem perceber que ela estava fazendo isso de propósito. Ela caminhava com passos furtivos, mas determinados.
Em vez de seguir à direita e dar meia-volta para chegar à entrada, Chloe continuou a caminhar na direção oeste, mais para o sul. Quando ouviu um dos veículos vindo em sua direção, ela começou a andar mais depressa e, em seguida, correu a toda velocidade. Não conseguiria ir mais depressa que o caminhão, mas talvez pudesse chegar aonde ele não chegasse.
A Uzi, por mais leve que fosse, começou a ficar pesada. Fazia mais sentido livrar-se dela e vir buscá-la depois, a não ser que Chloe acreditasse ser capaz de dominar um ou dois pelotões da CG com ela.
Chloe jamais teria condições de explicar o uso de uma arma como aquela. Ao ouvir o ronco de um caminhão - talvez dois - a cerca de um quarteirão e rodando rápido, Chloe deu meia-volta e atirou a Uzi e a máscara de esquiar atrás de algumas árvores. Retomou o ritmo dos passos e correu cerca de 500 metros. Sua idéia tinha dado certo. Agora os dois caminhões a seguiam.
Ao ver que estava bem longe do esconderijo, Chloe decidiu que a melhor atitude seria a de indiferença, portanto abaixou a cabeça e continuou a correr. O caminhão da frente emparelhou com ela, mas Chloe não olhou para ele.
Da janela do lado do passageiro, uma moça gritou:
- Quer uma carona?
- Não, obrigada.
- Entre.
- Não, obrigada. Estou bem.
- Queremos fazer-lhe algumas perguntas.
- Pode fazer.
- Vamos lá, pare e venha conversar conosco.
- Converse comigo onde estou.
- De onde você é?
- Moro a uns dez quilômetros a oeste.
- Tempos atrás, havia ali um reservatório de água subterrâneo proveniente de um tsunami (palavra japonesa usada para definir um tipo de onda oceânica, gerada por distúrbios sísmicos).
- É claro que eu sei disso.
- O que está fazendo aqui?
- Correndo.
- Como chegou até aqui?
- Correndo.
- Para onde está indo?
- Para casa.
- Como se chama?
- Febe.
Parece um nome bíblico.
- Febe de quê?
- Febe Evangelista.
- Nome estrangeiro?
- Meu marido é. Ele é WASP [Protestante Branco Anglo-saxão]
- Você tem um documento de identidade?
- Não está comigo.
- Muito bem, senhora, vou ter de pedir que pare e venha conversar conosco por alguns instantes.
- Não, obrigada. Você poderá acompanhar-me até em casa, se quiser.
Vou me distanciar do esconderijo até cair de exaustão.
- Preciso saber de que região você é. Também quero ver sua marca.
- Não vou tirar o capuz nem as luvas porque está frio e estou transpirando.
- O quê? Você recebeu a marca na testa e na mão? Chloe fez um gesto de pouco caso e continuou a correr.
O caminhão saiu da estrada e parou diante dela. Chloe desviou-se dele e continuou seu caminho. Ouviu as portas sendo abertas e passos de botas no asfalto. De repente, dois homens da CG apareceram e começaram a correr a seu lado.
- Muito bem - disse um deles -, a brincadeira acabou. Pare ou vai ter de entrar no caminhão. Vamos, a senhora sabe que podemos obrigá-la a entrar à força, mas não há necessidade.
Chloe continuou a correr. O homem à sua direita atirou a arma ao companheiro da esquerda, e, a seguir, passou os dois braços ao redor do pescoço dela, forçando os joelhos no meio de suas costas. O homem devia pesar uns 90 quilos. Chloe perdeu o equilíbrio e caiu de bruços no chão. O sangue começou a escorrer-lhe pela testa. O homem pressionou um dos joelhos na nuca de Chloe, puxou-lhe as mãos para trás e algemou-as.
Desesperada para retardá-los, Chloe fingiu estar sem forças para sair do lugar.
- Faça como quiser - disse um deles.
O homem segurou-a pelas algemas e arrastou-a em direção ao caminhão. Ela continuou com o rosto encostado no chão, deixando que a areia, os pedregulhos e o asfalto lhe ferissem a face.
Deitada de bruços ao lado do caminhão, ela só poderia ser levantada do chão se forçasse os ombros para cima. Foi o que o homem da CG procurou fazer.
- Há um jeito mais fácil - ele disse -, já que ela quer assim.
Ele agarrou-a pelos pés e dobrou suas pernas, forçando os tornozelos a encostarem-se às algemas e amarrou-os ali com uma tira de plástico. Em seguida, jogou-a dentro do caminhão.
Chloe tinha certeza de que havia fraturado uma costela. Durante o percurso de 20 minutos até a sede da CG, ela começou a orar.
Deus, dá-me força. Permite que eu morra antes de delatar alguém. Fica com Kenny, Buck e meu pai.
Ela se lembrou das histórias espetaculares que George contou quando foi preso na Grécia. Ele não disse absolutamente nada a seus captores. Se ao menos ela tivesse aquela coragem. Preferia ridicularizá-los, provocar a ira deles, deixá-los confusos. O que seria melhor? Ficar sentada sem dizer uma só palavra ou enfrentá-los, para que eles soubessem que ela não era uma presa fácil?
Tortura. Como enfrentaria uma tortura? Com a tua força, Senhor. Permite que eu ofereça minha vida em troca da vida das pessoas que amo.
Quando Chloe chegou à sede, eles retiraram suas algemas, revistaram-na e perguntaram novamente seu nome e sua região. Ela não disse nada. Passou cuidadosamente a palma da mão no rosto e sentiu os ferimentos na testa e nas faces.
- Ela já nos disse. Febe Evangelista. Americana.
- Então deve haver o número - 6 em algum lugar, escondido debaixo de todo esse sangue. Pegue uma toalha molhada e limpe os ferimentos.
Alguém segurou Chloe pela nuca e passou uma toalha em seu rosto. Ela gritou de dor.
- Não estou vendo nada. Mas deve haver um número. Alguém está procurando o nome e a descrição dela nos arquivos?
- Sim. Até agora, nada.
- Jock vai chegar às nove. Ela precisa tomar banho e vestir um macacão limpo. E não se esqueçam das impressões digitais.
Chloe pensou em soltar o corpo e deixar que uma funcionária da CG a despisse, a colocasse debaixo do chuveiro e tornasse a vesti-la, mas obedeceu às ordens. Saiu do chuveiro com o rosto ardendo, vestiu um macacão verde escuro e fechou as mãos com força.
Continuou com as mãos fechadas quando foi conduzida aos locais para tirar foto e impressões digitais. Ela parecia tão diferente da aluna que estudou em Stanford seis anos antes que não se preocupou com a foto. Ninguém a reconheceria.
Uma mulher mexicana, do tipo matrona, procurou abrir a mão de Chloe e disse:
- Primeiro a mão direita, por favor.
Chloe fez um movimento negativo com a cabeça.
- Vamos, querida. Você não vai querer me enfrentar. Vou tirar suas impressões digitais e você precisa cooperar.
Chloe fez o mesmo movimento com a cabeça.
- Eu vou fazer isso, você entendeu? Será que vou ter de chamar dois caras daqui para fazer você me obedecer? Se for assim, veja o que costumamos usar.
A mulher mostrou a Chloe um fio de metal semelhante ao usado pelos homens da "carrocinha" para laçar cães.
- Eu amarro este fio um pouco acima de seus pulsos. Quando ficar bem apertado, você vai abrir as mãos. Não sei quem você é nem por que está aqui, mas não vai querer passar por isso.
Chloe sacudiu novamente a cabeça, e a mulher solicitou ajuda pelo rádio. Chloe resistiu quando dois homens chegaram, mas, conforme a mulher dissera, o esforço não valeu a pena. Quando o fio de metal foi amarrado ao redor de seus braços, ela abriu as mãos. A CG tirou suas impressões digitais e enviou-as, via Internet, aos bancos de dados do mundo
inteiro.
- Também fizemos uma leitura de seus olhos com a câmera, querida. Vamos descobrir se você tem licença para dirigir, se cursou faculdade ou se é casada. Vamos descobrir tudo sobre você.
Chloe esperava que a CG estivesse com falta de pessoal para trabalhar. Talvez as informações demorassem a chegar, dando tempo para que Buck, George e o restante do grupo viessem resgatá-la. Quem eu estou enganando?
Rayford havia planejado descansar um ou dois dias antes de voltar a San Diego, mas agora teria de sair de Petra assim que a aeronave fosse reabastecida. A presença de Mac McCullum aguardando por ele ali o deixou atônito.
- Buck já me contou - ele disse. - Penso que Tsion e Chaim precisam saber o que aconteceu a fim de reunir o pessoal daqui para orar. Albie já entrou em contato com Al Hillah e está resolvendo o assunto, portanto não necessita de mim. Vou ser seu piloto.
- Mac, não posso lhe pedir que...
- Você não pediu. Eu me ofereci. Vamos lá. Se você não quiser ficar para trás, é melhor se apressar.
Rayford não sabia como expressar sua gratidão a Mac. Assim que ganharam altitude, Mac disse:
- Você pode pensar, orar, dormir ou conversar. Vou levar esta lindeza aqui até San Diego. Não vejo a hora de rever aquele pessoal e conhecer os novos. Meu palpite é que Chloe já está lá, aguardando sua chegada.
- Eu estava pensando igual a você - disse Rayford. - Mas agora estou tendo um pressentimento ruim, muito ruim. Se Buck e George não encontrarem Chloe logo, ou se descobrirem que a CG a pegou, vamos ter de tirar aquelas pessoas de lá.
- E levá-las para onde?
- Petra é o único lugar que me veio à mente.
- Chloe não vai dizer nada à CG. Se não a viram saindo do esconderijo, não vão descobrir nada.
- Ela devia estar nas redondezas. Se ela não puder convencê-los de que veio de outro lugar qualquer, com certeza eles vão vasculhar a área.
Rayford segurou a cabeça com as duas mãos e procurou dormir. Não conseguiu. Tudo o que ele podia fazer era orar. Chloe sempre foi a garotinha preferida do papai. Ela adorava ir à escola, era curiosa, decidida, obstinada. Foi a última pessoa da família a aceitar a Cristo, e Rayford sabia que não leve participação alguma nisso. Ele a ensinara a acreditar somente no que ela podia ver, cheirar e tocar.
Chloe sempre quis estar no meio da ação, e se alguém não a colocasse lá, ela própria se encarregava de intrometer-se. Rayford gostaria de censurá-la por isso, mas estava angustiado e com medo. Só queria saber se ela estava em lugar seguro, na companhia de Buck e Kenny. Ele sabia que, independentemente do que acontecesse, eles voltariam a reunir-se um dia, e que isso ocorreria em menos de um ano. Mas esse pensamento não o confortou.
Eles iriam para Cristo quando morressem, mas se sobrevivessem, estariam com Ele aqui na terra por um período de mil anos. Porém, a idéia de morrer ainda era algo temeroso. Aparentemente, os membros do Comando Tribulação que morressem durante o ano seguinte seriam mártires pela causa de Cristo, mas seus parentes e amigos chorariam por eles, sentiriam saudades deles. E, pior ainda, Rayford não queria pensar como seus queridos morreriam.
Talvez o sofrimento não durasse muito tempo, mas ninguém gostaria de imaginar uma pessoa querida sendo submetida a torturas ou agonizando.
Pai, Rayford orou, permite que o pior que possa acontecer seja uma nova mudança para outro local. Não sou melhor que ninguém para merecer um tratamento especial, para que protejas minha filha de maneira sobrenatural. Tu não necessitas dela; não necessitas de nenhum de nós. Mas nós nos entregamos a ti e confiamos que sabes o que estás fazendo.
Jock era um homem alto e corpulento. Trajava uma farda que um dia lhe serviu, mas agora estava tão apertada que lhe dificultava os movimentos. Seus funcionários tiraram Chloe da pequena cela em que ela se encontrava e a levaram para um cômodo um pouco maior, a sala dele. Sentado diante de uma mesa de metal, Jock apontou para uma cadeira, e Chloe sentou-se à sua frente.
Ele colocou uma pasta do tipo sanfona em cima da mesa e tirou o paletó, deixando-o sobre o encosto da cadeira. Parecia exausto e soltou um longo suspiro.
- Febe Evangelista. De onde você tirou esse nome? Chloe o encarou. Ela notou um sotaque australiano e viu o número 18 em sua testa. No dorso da mão direita havia uma tatuagem com o rosto de Nicolae Carpathia.
- Você se importa se eu fumar?
Chloe ergueu as sobrancelhas e movimentou a cabeça afirmativamente.
- Bem, eu não quero saber se você se importa ou não. Tenho muito trabalho para fazer hoje, moça, e você está me atrapalhando.
- Vá direto ao assunto - disse Chloe.
- Ah!, ela fala - ele disse, tirando um pequeno charuto do bolso. - Pensei que você fosse uma daquelas que não gostam de falar. Bem, meu serviço agora é você, e você não foi uma boa garota. Mentiu para meus funcionários, não?
-Sim.
- Você quer dizer alguma coisa ou quer que eu conte o que nós descobrimos?
Chloe encolheu os ombros.
- Não vamos extrair nada de você, vamos?
- Não.
- Demorou um pouco, mas conseguimos. Além de estarmos com falta de pessoal, nossos sistemas estão com problemas e...
- Isso me corta o coração.
Jock pegou uma pasta.
- Pelo que descobrimos, imagino que isso seja verdade. Tenho boas e más notícias esta manhã, Sra. Williams. Qual você prefere?
Então, era isso. Em poucas horas ela foi identificada pelas impressões digitais e pela leitura feita em seus olhos.
- Você jamais vai me dar uma boa notícia.
- Não seja precipitada. Somos pessoas razoáveis, por mais que você e seu pessoal pensem ao contrário e por mais que tentem convencer aquele rebanho todo que segue um maluco chamado Ben-Judá.
Tsion tem muito mais cérebro que dez homens da CG juntos.
- Tenho uma proposta a lhe fazer, senhora.
- Eu não quero ouvi-la.
- É claro que quer.
- Vou adivinhar. Minha liberdade em troca de algumas informações?
- Você pode brincar de sabichona comigo, mãe, mas acho que deveria me ouvir, porque a proposta que vou fazer tem relação com seu bebê.
O submundo do mercado negro em que Albie viveu compunha-se de uma lista de operadores que, em sua maioria, eram conhecidos por apelidos e iniciais. O próprio Albie havia escolhido para si o nome de sua cidade natal, Al Basrah. As pessoas que necessitavam saber quem ele era não tinham muitos problemas para obter informações a seu respeito.
Albie havia sido um dos três principais homens do mercado negro do Oriente Médio. Depois de sua conversão, restaram apenas dois. E com a morte de um deles, possivelmente levada a efeito pelo outro em razão de um mau negócio, restou apenas um. E era aquele que Albie precisava encontrar.
Ele nunca gostou de MM, ou Mainyu Mazda, mesmo nos tempos em que fazia parte daquele grupo. Matar nunca foi novidade para Mainyu. Era assim que ele mantinha sua reputação e autoridade. Se alguém precisasse de alguma coisa, qualquer coisa, ele era a pessoa certa. Mas pobre daquele que tentasse ludibriar ou passar aquele homem para trás.
Diziam que ele havia assassinado, com as próprias mãos, 12 pessoas - entre elas uma de suas esposas - por não cumprirem sua parte em uma barganha. Ninguém se atrevia a calcular quantas mortes ele perpetrara por intermédio de assassinos contratados.
Quem afirmava saber o número certo dizia que Mainyu comemorava cada morte acrescentando a tatuagem de um MM no próprio pescoço. Sua vida de assassino começou 20 anos antes quando ele estrangulou um guarda em uma prisão do Kuwait.
A primeira tatuagem foi aplicada por ele próprio, usando uma mistura de aparas de borracha das solas de seus sapatos, lascas da pintura das grades da prisão e sangue. A aplicação foi feita com um clipe de papel afiado, aquecido em um isqueiro. Ele tatuou o primeiro MM logo abaixo do pomo de Adão.
A cada assassinato subseqüente, ele tatuava um MM de um lado e de outro, portanto todos tinham condições de saber se o número de pessoas mortas por ele era par ou ímpar.
Na última vez que Albie viu Mainyu, seu pescoço tinha um MM a mais do lado esquerdo, e ele contou 12. As tatuagens recentes eram mais nítidas e feitas por profissional. A que representava uma de suas esposas tinha um leve toque feminino.
Albie propagou pelas ruas que queria ter uma conversa com Mainyu. Depois de duas horas, alguém enfiou um bilhete por baixo de sua porta contendo um endereço na área clandestina do comércio de rua da ilha de Abadã, localizada no rio Chat el Arab, na região sudoeste do Irã.
Parecia que MM farejava dinheiro. A imensa refinaria de Abadã era ligada aos campos petrolíferos do Irã por meio de oleodutos. Evidentemente, Mainyu realizava seu comércio de mercado negro nos arrabaldes da cidade.
Da mesma forma que todos os que não possuíam a marca de lealdade a Carpathia, Albie só se aventurava a sair à noite. Ele e Mac dividiam um flat em uma área abandonada de Al Basrah. O proprietário não queria saber quem eram os inquilinos, nem se tinham a marca de Carpathia, desde que o envelope estivesse recheado de dinheiro no primeiro dia de cada mês.
Albie dissera a Mac que uma motoneta era o melhor veículo para transportá-los de um lado para o outro pelo fato de ter um tamanho ideal para ser guardada dentro de casa ou na mata, onde eles escondiam um avião de pequeno porte.
Albie aguardaria o sol se pôr antes de aventurar-se a entrar em uma balsa que o levaria com a motoneta para a ilha, onde ele encontraria o endereço que ficava a uns 50 quilômetros de distância de sua casa.
Quando Jock, o grandalhão, resmungou que a hora do desjejum de Chloe havia se esgotado, ela começou a salivar.
- Você já deve ter compreendido, madame, que não servimos refeições a prisioneiros que não cooperam conosco. Ah!, talvez você receba uma barra de cereal para mantê-la viva até o momento de sua execução. - Ele deu uma batida de leve no arquivo. - Não posso ter certeza enquanto não receber notícias da divisão internacional, mas tudo isto aqui me faz pensar que assistiremos a um espetáculo. Você não acha?
- Isso não é da minha conta.
- Mas seu bebê... como ele se chama?
Chloe nivelou os olhos com os de Jock e comprimiu os lábios. Ela adorava pronunciar o nome de seu bebê. Kenneth Bruce Williams. Kenny Bruce. Kenny B. Mas não diria nada àquele homem. Não havia nenhum registro oficial do nascimento de Kenny, e a CG não tinha idéia se o bebê era menino ou menina.
- Que mal pode haver se eu souber o nome dele?
- Febe Evangelista Filha.
Jock olhou para o teto.
- Sabe de uma coisa? Não achei graça alguma. Nem me causa surpresa, porque estou acostumado a lidar com gente da sua laia. Dizem que vocês são pessoas admiráveis, que perseveram até o fim, mesmo sabendo que vão sair perdendo. Mas achei que você fosse uma pessoa religiosa... Vamos lá, você não é religiosa? Achei que ficaria um pouco preocupada com o destino de seu bebê. É uma menina? Que idade ela tem?
- Olhe - disse Chloe -, você sabe quem eu sou, o que sou e o que não sou. Sabe que não sou leal a Carpathia. Isso é punível com a morte, portanto por que você não...
- Ei, espere um pouco, madame. Essas coisas ainda são negociáveis. Não tire conclusões precipi...
- Não vou fornecer informação alguma para reduzir minha sentença. Não estou interessada em passar a vida na prisão. Não vou receber a marca mesmo que você prometa liberdade para minha família. E todo mundo sabe que os que estão recebendo a marca agora também são executados.
- Oh!, onde você ouviu isto? É terrível. E uma mentira também.
- Não acredito em você.
Jock recostou-se na cadeira e gritou:
- Nigel?
- Sim.
- Você poderia abrir a janela? Está muito abafado aqui. Um jovem fardado entrou na sala e abriu uma janela deixando pesadas barras de ferro à mostra. Não haveria meios de fugir dali.
- Considero justo mencionar o que tenho a lhe oferecer - prosseguiu Jock. - Veja, sabemos muito mais coisas além de seu nome. Sabemos que você abandonou a Universidade de Stanford seis anos atrás. Sabemos que você é filha do primeiro piloto do potentado Carpathia. Sabemos, e você também sabe, que seu pai se tornou subversivo e que deve ter tramado o assassinato do potentado ou participado dele.
- Seu marido também foi funcionário de Sua Excelência e agora publica uma revista clandestina. Os dois têm fortes ligações com Tsion Ben-Judá e Rosenzweig, o assassino traidor. E você, Sra. Williams, não é nenhuma santinha. Não. Você dirige um mercado negro judaísta. Esse mercado negro mantém vivos milhões de pessoas sem a marca, gente que não tem o direito legal de comprar ou vender.
- Não, madame, você não tem direito a nada, a nenhuma troca, nenhum favor, nada, nem mesmo para seu filho. Porque, acima de tudo, você esteve envolvida em uma operação na Grécia onde se fez passar por uma oficial da Comunidade Global.
- Como você sabe disto? - Chloe deixou escapar, sem pensar. Haveria um espião no meio do Comando Tribulação? Ela nunca desconfiou de ninguém.
- Só vou responder se você me contar algumas coisas.
- Para mim, tanto faz.
- Foi por causa da maravilha da tecnologia que faz a leitura da íris. As câmeras normais de segurança, como aquelas que existem em nossos escritórios em Ptolemaïs, foram capazes de fazer uma leitura de sua íris e compará-la com uma anterior, quando você se matriculou na Universidade de Stanford. Essa tecnologia tem pontos de referência em número quatro vezes maior que as impressões digitais, e nunca houve um erro sequer. Um sujeito do grupo de vocês matou uma pessoa de nossa corporação naquele mesmo edifício, e perdemos o paradeiro dele. Mas agora ele está vivendo nesta cidade, não é mesmo? A que distância daqui? Muito longe do lugar em que você estava correndo?
Buck mal podia acreditar no que estava ouvindo. E aquelas palavras partiam de Sebastian, que estava ali graças aos atos heróicos e altruístas do Comando Tribulação, principalmente de Chloe.
- Não é fácil dizer isto, Buck - prosseguiu George. - Mas temos de pensar que estamos pondo em risco a vida de 200 pessoas para salvar apenas uma, e as probabilidades são quase nulas.
- Você está supondo que a CG a pegou - disse Buck.
- Ela pode estar em outro lugar qualquer. E mesmo que você tenha razão, por que as probabilidades de agora são mais remotas do que a sua, na Grécia?
- Eu sei, Buck. E não pense que quero ficar aqui sem fazer nada. Mas existe uma grande diferença agora. O prisioneiro naquela situação era um homem grande e forte, treinado para matar. Depois de tudo o que Mac, Hannah e Chloe fizeram por mim, fiquei frente a frente apenas com um de meus captores. Até mesmo naquela situação as probabilidades eram remotas, e poderia ter dado tudo errado. Se eu falhasse, comprometeria os três. Perderíamos quatro pessoas. Se invadirmos a sede daqui, vamos pôr tudo a perder.
- E daí? Você acha que devemos deixar Chloe apodrecendo aqui enquanto nos mudamos para Petra?
- Veja o que tenho em mente para seu bebê, Sra. Williams - disse Jock -, caso você recupere o juízo e nos ajude um pouco. Acho que você prefere que seu filho ou filha continue a ser educado da maneira tradicional, como você e seu marido têm feito até agora. É claro que isso vai contra os nossos objetivos. Queremos ver todas as crianças fazendo parte da CG Júnior antes de se matricularem na escola. Mas, no seu caso, estamos dispostos a fazer de conta que ele ou ela não existe, até completar 12 anos.
- E quem vai educá-lo? - perguntou Chloe, piscando ao perceber que a fome era uma tática excelente.
- Ah!, então estamos falando de um menino. Muito bem. Não quer me dizer o nome dele? Assim, será mais fácil levarmos nossas negociações adiante.
Chloe não respondeu. Aquilo não era nenhuma negociação. Ela só precisava proteger Kenny por mais um ano, e a CG não poria as mãos nele.
- Ora, vamos, Sra. Williams. Você é uma mulher inteligente. Sabe que é muito valiosa para nós. Os judaístas têm sido um transtorno e, devo admitir, um constrangimento para nós. Temos quase certeza de que seu pessoal está por trás desse nosso probleminha em Nova Babilônia. Você pode nos ajudar. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que você deseja fazer isso, mas estou tentando apresentar-lhe um motivo. Você tem muitas coisas para negociar conosco.
- Posso me levantar?
- Pode, mas devo avisá-la de que está trancada aqui. Sou três vezes maior que você, mas só por brincadeira, digamos que você me domine, que me jogue no chão, que quebre meu pescoço e me mate. Mesmo assim, não vai sair daqui.
- Eu só quero movimentar um pouco o corpo, senhor.
- À vontade. E pode me chamar de Jock.
Ah!, agora você passou a ser meu melhor amigo.
- Ei, você quer comer alguma coisa?
- Claro.
- Eu também. O que deseja para o desjejum?
- Qualquer coisa. Não sou exigente.
- Mas eu sou. Gosto de coisas que entopem as artérias. Ovos, bacon, lingüiça, torradas, panquecas com molho à beça. Você aceita?
Ele devia estar brincando. Chloe levantou-se com os braços cruzados e virou-se para trás.
- Ora, vamos. Não consigo que você me chame pelo primeiro nome. Não consigo que você me diga o que quer comer. Que tal? Vai me fazer companhia? Vai querer o mesmo que eu?
- Eu já disse. Não sou exigente.
- Você também disse que estava com fome. Vou pedir o desjejum para nós, viu, Chloe? Você se importa se eu a chamar de Chloe?
- A bem da verdade, eu me importo.
- Ah!, está bem, que seja assim. Você é a figura principal daqui. Quero saber o que você deseja. Se o travesseiro de sua cela não estiver macio, me avise. Ou avise a recepção.
Então, o jogo ia começar. Chloe o convencera de que não ia cooperar, e ele agora se fingia de policial bonzinho. Ou não seria fingimento? Jock passou por ela e chamou Nigel novamente. Chloe o ouviu pedindo a comida que descrevera. Ele virou-se para ela.
- A comida servida aqui é a mesma que servimos nas celas, Chloe, mas até os garçons estão sobrecarregados de serviço. Vamos conversar enquanto aguardamos. Vejo que você não é uma pessoa maleável. Eu não esperava que fosse. E não a respeitaria se fosse. O acordo é o seguinte. Você sabe que não vamos libertá-la mesmo que nos conte tudo. Como ficaríamos perante o público? Mas posso transformar sua execução em prisão perpétua e mandá-la para uma penitenciária onde você viveria em melhores condições. Eu lhe dou minha palavra. Seria uma penitenciária de segurança máxima, é claro, mas seu filho ficaria sob sua guarda até completar 12 anos.
O fato era que Kenny estava seguro com Buck, e se ela conseguisse manter a sanidade, a situação não precisaria ser mudada. Se ao menos ela pudesse alertar Buck para ele tirar todos do esconderijo e levá-los para Petra!
Chloe sentiu uma leve tontura provocada pela fome.
- E esse acordo seria em troca de...?
- Receber a marca de lealdade seria o ponto principal. Sem isso, nossa credibilidade iria por água abaixo. Com a marca, você continuaria a viver em vez de morrer. Mas, se quiser ir para uma penitenciária melhor e ter a guarda de seu filho, terá de nos contar o que sabe.
- Você deve estar achando que vou delatar meu pessoal.
- Estou, e sabe por quê? Porque você é uma mãe amorosa. Pensa que seu pessoal não a entregaria em questão de minutos para não ter a cabeça decepada pela lâmina da guilhotina? É melhor colaborar comigo.
Albie sentia um frio na espinha enquanto atravessava Abadã em sua motoneta, com os olhos quase cobertos pelo boné. Al Basrah não era um lugar melhor que aquele, mas Abadã talvez pudesse ser comparada a Sodoma e Gomorra antes de Deus incendiar as duas cidades.
Nas ruas, eram praticadas todas as formas de pecado e devassidão. O local que antes foi o lado mais sujo da cidade era, agora, seu centro comercial. Filas e mais filas de bares, bandos de cartomantes, prostíbulos, sex shops e clubes destinados a satisfazer a qualquer tipo de perversão fervilhavam, oferecendo bebidas e mercadoria humana. O ar estava impregnado de odor de haxixe. Vendia-se cocaína e heroína em plena luz do dia.
Os soldados das Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral da CG costumavam fazer uma ruidosa batida policial duas vezes por semana para manter as aparências. Mas com a redução do número de pessoal, eles agora se concentravam em crimes contra o governo. Se alguém não se curvasse diante da imagem de Carpathia três vezes por dia ou deixasse de reverenciá-la, seria levado à prisão.
E se fosse pego sem a marca de lealdade? Tolerância zero. A CG gostava de brincar com o povo dizendo que eles teriam uma última chance. Quando uma alma profundamente agradecida se aproximava ansiosamente do centro de aplicação da marca, era empurrada ou arrastada, aos gritos, até a guilhotina para servir de exemplo.
Além da sujeira existente em Abadã, havia uma parte da cidade que era pior ainda: o local onde Mainyu Mazda e seu bando exerciam seu comércio. No mercado ao ar livre, onde as pechinchas e as trapaças faziam parte do dia-a-dia, havia espeluncas camufladas, feitas de tábuas, que consistiam apenas de paredes sem teto e uma porta com tranca. Um encerado, jogado a um canto, poderia ser rapidamente preso a quatro estacas para protegê-los da chuva.
Os homens do mercado negro e seus sequazes (um deles sempre ficava de guarda do lado de fora) realizavam suas transações dentro daquelas espeluncas, reunidos com pessoas que desejavam alguma coisa, qualquer coisa, e estavam dispostas a pagar um preço alto para consegui-la. Sem descer da motoneta, Albie desligou o motor e foi arrastando o veículo com os pés pelos becos da cidade.
Em meio a bêbados dormindo havia também pessoas dementes, mulheres de má reputação, homens e mulheres que vendiam mercadorias das mais variadas espécies. Todos acenavam para o homem franzino com roupa de couro que passava por eles arrastando a motoneta.
Albie não olhava nem para a direita nem para a esquerda; seguia seu caminho sem fitar ninguém nos olhos. Sabia aonde estava indo e queria que todos soubessem. Não conseguia esconder certo orgulho ao ver que seus negócios nunca chegaram a uma situação tão lastimável. Evidentemente, o que Albie havia feito durante anos era ilegal, e não havia justificativas para isso. Mas comparado ao que via agora, ele trabalhara com dignidade. Construíra uma pista para aeronaves - sua obra mais importante. E sua clientela era composta de homens de negócio abastados e pilotos, bem como de gente de baixo nível e trapaceira.
Porém, ele conhecia esse mundo e sua linguagem. Necessitava da ajuda de um sujeito de má índole, mas que conhecesse pessoas importantes. Precisava de alguém que mantivesse contato com o palácio e soubesse onde seriam realizadas as reuniões em Al Hillah. Alguém que pudesse informar onde estavam armazenadas as ogivas nucleares. Alguém que, antes da chegada de Carpathia e seus asseclas, pudesse entrar na sala de reuniões e instalar uma escuta clandestina ali, para transmitir tudo em uma freqüência à qual apenas uma pessoa no mundo teria acesso. Só Albie e seus companheiros sabiam quem era essa pessoa: Chang em Petra.
Se dispusesse de um dia a mais, Albie poderia fazer esse serviço com a ajuda de seus contatos, pessoas que apresentavam menos riscos, menos problemas. Mas havia ocasiões na vida de um homem em que ele precisava analisar suas opções e jogar o dado. E embora essa analogia fosse estranha na nova vida em que ele levava, a ocasião havia chegado.
- Por favor, sente-se à mesa enquanto a porta vai ser aberta brevemente, Chloe - disse Jock.
O aroma da comida era tentador, e ela sentou-se de costas para a porta.
- Coloque aqui, Nigel, por favor.
Jock sentou-se de frente para ela, atirou um guardanapo a Chloe, prendeu o seu, em grande estilo, acima do nó da gravata e abriu-o para cobrir todo o seu peito e barriga. Chloe desdobrou seu guardanapo e abriu-o sobre o colo enquanto Nigel ajeitava a bandeja abarrotada de comida entre os dois.
Nigel colocou uma pilha de panquecas diante de Jock. Um jarro com molho. Um prato com torradas, manteiga e geléia. Uma xícara grande na qual ele despejou café fumegante, deixando o bule sobre a mesa. Um prato enorme de ovos mexidos com bacon e rodelas de lingüiça. Os talheres de Jock foram colocados ao lado do prato principal.
Em seguida, Nigel colocou uma faca, um garfo e uma colher diante de Chloe. E ela continuou sentada ali, tendo apenas os talheres à sua frente e o guardanapo no colo. Nigel pegou a bandeja vazia e saiu, trancando a porta.
Jock esfregou as mãos e disse, mostrando os dentes:
- Não é uma maravilha? Nem sei por onde começar. - Ele puxou os pratos para perto de si, pegou a faca e o garfo e ajeitou os ovos mexidos para dar a primeira mordida. - Ah!, desculpe-me. Onde estão minhas boas maneiras? Você quer agradecer a comida? Pedir a bênção? Não? Então, eu mesmo faço isso. Obrigado, Excelência, pela delícia que vou apreciar.
Jock enfiou um bocado enorme de ovos na boca, depositou-o na bochecha direita para dar lugar a uma nova garfada de rodelas de lingüiça, e falou com a boca cheia.
- Acho que Nigel se esqueceu da sua comida, não é mesmo, Chloe? Ah!, mas está tudo bem. Você não está cooperando, certo? O problema é seu.
O homenzarrão continuou sentado, lidando com a faca, o garfo e a colher, lambendo os beiços, sorvendo o café com força e rindo.
- Tem certeza de que não quer um pouco? Não quer mesmo? Está uma delícia. Mas o problema é seu. Se você cooperar, Nigel vai ficar de olho em você, e aquela barra de cereal para dar energia será entregue em sua cela, digamos dentro de uma hora, talvez duas, depois que você desistir de lutar contra nós. E energia talvez não seja a palavra certa. A barra de cereal vai servir para manter você viva até ser executada. Ela apenas nutre, mas não proporciona energia. Mas você vai adorar comer uma barra daquelas e aguardar ansiosamente por ela. Não vamos servir bacon com ovos, e essas barras de cereais serão seu único alimento.
Albie parou diante de uma pequenina estrutura que parecia ser feita de uma mistura de tábuas amarelas desbotadas com fios de arame e pregos. A tranca ficava à mostra na porta, guardada por um homem alto e magro que Albie reconheceu de anos antes. E, se Albie não estivesse enganado, o nome do homem era Sahib, ex-cunhado de Mainyu. Ex-cunhado porque era irmão da esposa que Mainyu assassinara. Que lealdade!
Albie desceu da motoneta e estendeu a mão. Sahib não estendeu a sua e olhou-o de esguelha na escuridão.
- Está querendo vender essa moto? Veio ao lugar certo.
- Não. Quero falar com Mainyu, Sahib.
Ao ouvir seu nome, Sahib olhou firme para ele.
- Albie?
Agora o homem estava apertando sua mão. Ele levantou um dedo, destrancou a porta e entrou. Albie ouviu uma conversa firme, em voz baixa. Um desconhecido de olhar frio saiu dali e foi embora apressado.
Sahib reapareceu e fechou a porta atrás de si.
- Aguarde dois minutos, Albie - ele disse, fazendo um gesto para indicar que Mainyu estava falando ao telefone. - Cinqüenta Nicks para tomar conta de sua moto.
- Vinte.
- Vinte e cinco.
- Combinado. Mas se ela não for encontrada do jeito que a deixei, abro sua cabeça ao meio.
- Eu sei, Albie. Pagamento adiantado.
- Dez agora, quinze depois.
- Quinze agora.
Albie contou as notas. Ele esperava que haveria negociação, até mesmo ameaças. O ruído de alguém limpando a garganta, vindo de trás da porta, foi a deixa para Sahib permitir a entrada de Albie. Antes de acompanhar Sahib, Albie avistou uma pequena mulher aparecer diante deles, vindo de um cubículo a uns 30 metros dali.
- Espere - disse Albie. - Sahib, tome conta da moto.
- Eu disse que ia tomar conta. Ah!, ela é uma convidada que vai participar da reunião.
A mulher jovem de olhos grandes e olhar severo, trajando um manto da cabeça aos pés, tinha o número 42 na testa e carregava uma sacola. Assim que Albie entrou, Sahib a empurrou para dentro, saiu e trancou a porta.
Mainyu, iluminado por uma lâmpada movida a bateria, estava sentado atrás de uma frágil mesa de madeira, tendo uma caneca diante de si. Ao sorrir, ele exibiu uma fileira de dentes surpreendentemente brancos.
- Albie, meu amigo, como vai? - ele disse, estendendo as duas mãos.
- Vou bem, Mainyu. Mas devo insistir que meu assunto com você é particular.
- Como sempre, claro. Por favor, sente-se.
Albie sentou-se em uma cadeira dobrável de metal enferrujado. A mulher deu a volta na mesa, pegou uma caixa de madeira em um dos cantos e sentou-se em cima dela, abrindo a sacola. Albie olhou para Mainyu e ergueu a cabeça em direção à mulher.
- Ela? - perguntou Mainyu, com ar de pouco caso. - É uma artista em tatuagens. Não tem ouvidos nem boca.
A mulher sorriu enquanto retirava seus instrumentos da sacola e segurou a lâmpada diante de Mainyu para iluminá-lo melhor. Ele levantou o queixo e, com a ajuda de uma mecha de algodão, ela aplicou um líquido desinfetante em uma pequena área de seu pescoço onde uma tatuagem igualaria os números de um lado com o do outro.
- Você sabe o que dizem sobre minhas tatuagens, não, meu velho amigo?
Albie sorriu.
- Todo mundo sabe o que elas significam.
- Bem, verdade ou não, elas funcionam, certo?
- Sim. É verdade, Mainyu?
- Claro.
- Quem foi a ultima vitima?
- Você está perguntando quem vai ser?
- Como assim?
- Às vezes, eu providencio a tatuagem antes.
Mesmo contra a vontade, Rayford havia cochilado. E enquanto o Gulfstream voava rumo aos Estados Unidos, ele começou a vasculhar suas sacolas.
- O que está havendo, Ray? - perguntou Mac.
- Que horas são em Nova Babilônia?
- Perto de 22 horas.
- Então a manhã deve estar terminando em San Diego, e nada de notícias. Buck prometeu ligar se eles tivessem descoberto onde Chloe estava. Você se lembra do número principal do palácio?
- Eu nunca soube. E você?
- Sabia em épocas passadas.
- Deve ser fácil conseguir. Mas não há mais ninguém de nosso pessoal lá, Ray. Você quer falar com alguém em Petra?
- Não. Você se lembra do que David ou Chang disseram? Que é impossível rastrear esses telefones?
- Disso eu me lembro.
Mac passou a Rayford a combinação de símbolos e números por meio dos quais ninguém poderia identificar de que local partiam as chamadas via satélite feitas por aqueles telefones.
Rayford digitou o número da operadora internacional.
- Palácio da Comunidade Global em Nova Babilônia, por favor - ele disse.
- Estou tentando completar a ligação - disse a telefonista -, mas lá não há luz, portanto é provável que o senhor tenha de aguardar um pouco.
- Obrigado.
- Você ligou para o Palácio da Comunidade Global em Nova Babilônia. Por favor, tenha um pouco de paciência. Em razão de problemas técnicos, pode ser que sua chamada não seja atendida imediatamente.
E lá estava Rayford ouvindo novamente o "Salve Carpathia" cantado pelo grande coral.
- Droga! - ele disse.
- Comunidade Global, para quem devo direcionar sua chamada?
- Krystall, por favor.
- No escritório do potentado?
- Claro.
- Senhor, já é noite aqui. Todos os escritórios estão fechados.
- Eu sei. Ligue para o apartamento dela, por favor.
- Posso saber quem deseja falar com ela?
- Eu mesmo digo.
- Eu preciso saber, senhor, caso contrário não vou acordar ninguém a esta hora.
- Já que você precisa saber, diga a ela que é o tio Gregory.
- Um momento.
Mac olhou para Rayford, sem entender nada.
- Tio Gregory?
- É uma longa história.
- O vôo também vai ser longo. Não vejo a hora de saber do que se trata.
- Tio Gregory? - disse Krystall, com a voz rouca por causa do sono.
- Esta linha é segura? - perguntou Rayford.
- Acho que sim. Não sei. Você não é meu tio, é?
- Você sabe quem está falando.
- Você nunca me disse o seu nome.
- Você sabe que sou seu amigo.
- Só vou saber de verdade se você ajudar meu tio. Já transmiti seu recado a ele.
- Já? Ele está acompanhando o site?
- Acho que sim.
- Pode acreditar em mim. Se seu tio fizer contato, nosso pessoal vai conseguir tudo o que ele necessitar.
- Eu agradeço, mas por que você está ligando...
- Preciso de um favor.
- Eu sabia. Não posso...
- Peço que me deixe falar. Quando conversei com você, não tinha idéia de que necessitaria de um favor. Eu preciso de uma informação que só você pode me fornecer.
- Eu não posso fornecer infor...
- Trata-se de uma coisa relativamente simples - ele disse -, mas não quero criar problemas para você.
- Ah! E qual é a diferença? Tanto faz. Ser obediente a ele também não está resolvendo nada.
- Eu preciso saber se existe alguma notícia sobre a prisão de alguém muito importante nos Estados Unidos Norte-americanos, uma mulher jovem...
- Sim! Sim! Foi no final do dia, algumas horas depois do encerramento do expediente. Ainda estávamos trabalhando por causa da mudança amanhã à tarde. O Sr. Akbar chegou todo eufórico falando sobre uma prisão em San Diego. A CG de lá prendeu alguém que tinha ligações com os judaístas.
- Você sabe se eles estão planejando...
- É tudo o que eu sei. Verdade.
- Você não faz idéia do quanto me ajudou Krystall. Existe alguma coisa que eu possa fazer por você?
- O que, por exemplo?
- Eu só gostaria...
- Se você puder me enviar um par de olhos... Não me lembro de outra coisa mais importante.
A artista em tatuagem calçou luvas de borracha e perguntou a Mainyu Mazda, com sotaque indiano, se ele queria anestesia. O homem recuou o corpo e olhou para ela.
- Eu nunca sei - ela disse. - Cabeça para trás, queixo levantado.
Albie sabia que seria bizarra uma reunião com aquele homem nessa parte da cidade, mas nunca imaginou que teria de disputar espaço com um procedimento dermatológico.
- Vá em frente, meu amigo - disse Mainyu, gesticulando. - Você veio aqui para quê?
Albie inclinou-se para a frente, com os antebraços pousados na mesa, e contou a MM sobre o serviço que necessitava ser feito urgentemente em Al Hillah.
O aplicador de tatuagem movido a bateria emitia um clique alto e rápido enquanto a mulher trabalhava. Mainyu estremecia o corpo mas tentava animar Albie a prosseguir, balbuciando "hã, hã" e "hum". Finalmente, ele disse:
- Um momento, Kashmir.
A mulher afastou-se e ficou segurando a agulha sob o brilho da luz da lâmpada.
- Não é segredo para ninguém que você não é amigo do potentado - disse MM.
Albie sorriu.
- Espero que seja segredo em alguns lugares.
- Por que não autoriza Kashmir a aplicar a marca de lealdade em você? Escolha o número que quiser.
- Você sabe que não posso fazer isso, Mainyu.
- Ah! Sim. Agora você é judaísta e acredita em espíritos malignos.
- Espíritos malig...?
Mainyu fez um gesto de pouco caso.
- O seu pessoal não acredita que qualquer um que tenha a marca de Carpathia vai para o inferno ou algo parecido?
- O mais importante de tudo é a quem nós somos leais. MM olhou para Kashmir, recostou-se na cadeira e sorriu para Albie. Em seguida, soltou uma sonora gargalhada.
- Você não vai começar a falar dessas coisas para mim, vai, meu velho amigo? Estou achando que sim.
- Não, você já fez a escolha. Eu também gostaria de saber por que você tem um 72 e não um 216.
- Você acha que sou amigo do regime internacional?
- Bem, eu...
- Acha que minha marca é autêntica? Você me conhece muito bem.
Depois de dizer isso, ele cuspiu.
- Mas a punição para uma marca falsa é pior que a morte - disse Albie.
- Tortura em público, eu sei - disse Mainyu. - Mas a CG não está interessada em mim. Só quer saber como posso ser útil a eles. Se eu fosse exibir a marca de alguém a quem sou leal, teria de ser o número 1.. O que dizem os nossos amigos mexicanos, Albie? "Preste atenção ao número uno!". E se eu não fosse útil à CG, seria enviado para a planície de Jezreel da mesma forma que outros milhões de pessoas. Que tipo de negócio eu poderia fazer lá?
- De que forma você é útil à CG?
Kashmir limpou um filete de sangue que escorria no pescoço de Mainyu.
- Sou um homem de negócios, Albie. Procuro obter lucro máximo gastando o mínimo, e agora estou ganhando muito dinheiro.
- Você...
- Entrego desleais às Forças Pacificadoras. Claro que faço isso. Você quer saber quanto ganho com esse tipo de negócio? Vinte mil Nicks por cabeça. O preço é igual tanto para vivos quanto para mortos. Prefiro mais entregar gente morta. Quando a vítima morre, não há mais perigo, ela não pode mais fugir, não pode criar problemas. Um saco plástico de tamanho correto evita qualquer tipo de sujeira no carro. Está entendendo?
- Então, você é um fornecedor de...
- Para a CG, sim, claro. Se o lema dos homens de negócios é pouca despesa e alto lucro, que melhor coisa pode haver quando não gastamos nada e ainda saímos lucrando? Eles estão dispostos a pagar pelo que eu faço.
Albie gostaria de saber quantos judaístas foram vítimas de Mainyu.
- Quer dizer que meu pedido apresenta um conflito de interesses para você? - perguntou Albie.
- Claro que não, meu amigo! Desde que você tenha trazido dinheiro. Não sou amigo da CG. Simplesmente faço negócios com eles. Meu interesse é lucro.
- Eu não sabia quanto custava esse tipo de serviço.
- Ah!, sim, você sabia. Não faz muito tempo que abandonou seus negócios. E é claro que não esperava que eu aceitasse seu pedido sem ver todo o dinheiro na minha frente. Além de tudo, você está pedindo um serviço urgente.
- Você tem gente para fazer isso, equipamento e...?
- Você sabe que tenho tudo. O serviço vai ser feito. Desde que você tenha o dinheiro.
- Alguns anos atrás, um serviço como esse custava 20 mil Nicks - disse Albie.
- Então, suponho que você trouxe mais, considerando a inflação e a natureza urgente do pedido.
Albie hesitou.
- Claro que trouxe, e você não vai cometer o erro de me enrolar, porque sabe que é muito fácil para mim descobrir quanto dinheiro você tem.
- É verdade. Eu trouxe 30 mil Nicks.
- Hummm.
- Claro que é suficiente. Cinqüenta por cento a mais deve cobrir a inflação e a pressa.
- Não é suficiente - disse Mainyu. - Quero mais 20 mil.
Albie imaginou que o negócio estava prestes a ir por água abaixo. Eles estavam na fase da pechincha, e qualquer grosseria de um dos lados indicaria falta de respeito.
- Eu só trouxe 30 mil e é tudo o que estou disposto a pagar.
- Hã-hã. E está tudo com você ou uma parte ficou na moto?
- Você sabe muito bem que eu não faria isso, Mainyu. Quem deixaria dinheiro nestes becos aqui?
Mainyu riu.
- Sahib!
O homem alto destrancou a porta e entrou.
- Quanto nosso amigo está pagando para você tomar conta da moto dele?
- Vinte e cinco.
- Quanto ele ainda está devendo?
- Dez.
Mainyu virou-se para Albie.
- Você tem 30 mil mais os dez que deve a Sahib?
- Sim.
- Mais algum dinheiro?
- Uns trocados para a viagem de volta.
- Quero ver os 30 mil.
Albie enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou um maço de notas embrulhado em papel celofane.
- Agora quero ver os dez que você deve a Sahib.
Albie jogou uma nota de dez em cima da mesa.
- Agora os trocados.
Do bolso esquerdo, Albie tirou algumas notas e moedas.
- Acho que tenho mais 15 - ele disse.
Mainyu comprimiu os lábios e levantou a cabeça, arqueando as sobrancelhas para Albie.
- Ainda faltam 20 mil.
- Eu disse que estava disposto a pagar somente 30 mil.
- Então temos um problema. O que vamos fazer quanto aos outros 20?
Albie lutou para conter o riso. Sempre foi difícil barganhar com Mainyu.
- Você está falando sério? - perguntou Albie. - Não vai aceitar os 30? Quer que eu procure outra pessoa para fazer o serviço?
- Ah, não! E deixar escapar o que está diante de mim? Não!
- E então, negócio fechado?
- Já está fechado, meu amigo. Pouca despesa e lucro alto. Cinqüenta mil e alguns trocados sem gastar quase nada.
- Cinqüenta?
- Kashmir, ligue para o palácio, por favor. Chame o Sr. Akbar. Sahib? Lembra-se do que aprendeu comigo sobre negócios? Soluções criativas até se chegar ao ponto em que o negócio se torne lucrativo?
Sahib assentiu com a cabeça.
- Sim, Sr. Mazda.
- Sua arma, por favor.
Sahib entregou-lhe um revólver .44.
Mainyu Mazda levantou-o e girou-o nas mãos.
- Meu velho amigo e eu estamos separados por 20 mil Nicks, e a solução é ele próprio. Qual é a recompensa por cidadãos sem a marca, Sahib?
- Vinte mil.
- Somados aos 30, lucramos 50. Nem sequer vamos ter de fazer o serviço.
Ele apontou o cano da arma entre os olhos de Albie e puxou o gatilho.
O local de sua cela, pensou Chloe, era muito estranho. Consistia de uma espécie de gaiola em um canto de um cômodo maior. Uma prateleira grande de metal projetava-se da parede. Sua cama, ela imaginou. Em um lugar bem visível, havia uma combinação de pia com instalações sanitárias. Mas ela se preocupava com o que não havia ali. Nada era movível ou removível. Não havia assento no vaso sanitário, nem cobertor ou travesseiro. Nenhum material de leitura. Nada.
Atordoada pela fome, Chloe arrastou-se até a cama na parede e deitou-se de lado, de frente para a porta. A cama era sustentada por tiras trançadas de metal de cerca de dez centímetros de largura, que poderiam ter cedido se ela pesasse uns 50 quilos a mais. Nem mesmo o sempre presente Nigel estava à vista.
O cômodo em que a cela se encontrava estava bastante iluminado, e os raios do sol atravessavam as janelas e as grades. Mas tinha um aspecto desagradável, com seus azulejos, piso de linóleo e barras de aço - tudo pintado com a tradicional cor verde.
Chloe queria gritar, dizer a alguém que estava com fome, mas o orgulho sobrepujava o desconforto. Ela se sentou rapidamente quando ouviu a porta ser aberta. Um homem com uniforme de agente penitenciário entrou apressado. Em seu cinto havia alguns frascos de produtos de limpeza ao lado de um telefone celular. Ele carregava um trapo e tinha outro no bolso traseiro.
- Oh!, oi - ele disse. - Eu não sabia que havia alguém aqui.
- Você não tinha meios de saber - ela disse, jogando um pouco de charme.
- Como assim?
- Eu estava andando por aí. Tranquei-me aqui como se fosse uma idiota.
Ele riu. Seu sorriso era radiante.
- E você também teve a má sorte de estar usando um macacão parecido com o de uma detenta. Que tragédia!
- Pois é, veja só - ela disse.
- Pode ser que você foi trancada aqui porque não tem gosto para se vestir, não?
- Pode ser.
- Bem, eu só vim pegar um balde. Sucesso para você.
- Obrigada.
Ele pegou um balde em um dos cantos em que havia um aparelho de TV preso à parede por um suporte e virou-se para sair. De repente, ele parou e deu meia-volta.
- Eles permitiram que você desse um telefonema, não?
- Ah! Claro. Estou sendo tratada como uma rainha. Liguei para o Papai Noel.
O homem depositou o balde no chão e aproximou-se da cela. Olhou para a porta por cima do ombro e disse em voz baixa.
- Eu estou falando sério. Esta é a única coisa desagradável aqui. Quero dizer, as pessoas recebem o que merecem por não terem aceitado a marca, como você. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que elas não devem ser julgadas por isso, mas o que aconteceu com o direito de dar um telefonema? Isto aqui ainda é a América, não?
- Não é a América que conheci.
- Também acho. Ei, você gostaria de ligar para alguém?
- O quê?
- Mas prometa que não vai contar a ninguém, para não me criar problemas.
- O quê? Ligar no seu telefone?
- Claro. Este aqui. - Ele tirou o celular do cinto e virou-o de lado para passá-lo entre as grades. - Mas só uma ligação, e tem de ser rápida. Depois, você precisa esconder o telefone. Ou deixá-lo no chão, do lado de fora da cela, como se ele tivesse caído sem eu perceber. Volto daqui a pouco.
- Você está falando sério?
- Sim. Que mal há? Vá em frente. Divirta-se, belezinha. Eu já volto.
As mãos de Chloe tremiam enquanto ela se dirigia a um canto, de costas para a porta. Então, eles pensam que sou uma idiota? Esta coisa não deve estar funcionando, e se estiver, não vai funcionar aqui. Mas valia a pena tentar. Ela precisava falar com alguém. Não queria correr o risco de ligar para a casa secreta, imaginando que aquilo não passava de uma trapaça e que qualquer chamada poderia ser rastreada. Chloe discou o número de seu pai. Ele já devia estar em Petra.
Rayford ligou para o palácio e despertou Krystall novamente.
- Estive pensando em seu pedido - ele disse.
- Meu pedido?
- O par de olhos.
- Não brinque comigo.
- Não estou brincando. A idéia não me sai da cabeça. Talvez eu conheça um par de olhos que você poderia usar. Você se lembra daquele dia em que trocamos algumas palavras? Pouco antes, alguém abriu a porta, fechou-a novamente e saiu correndo. Lembra-se?
- Como eu poderia esquecer? Foi quando você quase me matou de susto.
- Ele também é crente, e pode enxergar aí em Nova Babilônia.
- Continue.
- Eu poderia falar com ele, convencê-lo a ajudá-la depois que todos tiverem partido. Ele tem condições de ajudá-la, de dizer onde as coisas estão, fazer tudo por você.
- O que você está querendo?
- Deve haver coisas nos arquivos que eu preciso saber.
- Muito mais do que você pensa.
- Está vendo? Ele a ajuda durante alguns dias ou pelo tempo que for necessário, e você lhe dá acesso às coisas que podem me ajudar. Combinado?
- E qual seria o interesse dele?
- Deixe por minha conta. Vou ligar para ele agora para ver se podemos acertar tudo. Não, vou ligar para ele amanhã. Não faz sentido despertá-lo.
- Não faz. Mas por que eu sou a única pessoa que pode ser despertada a esta hora?
- Sinto muito. - Rayford ouviu um bip sinalizando que havia alguém ligando para ele. - Aguarde um instante, Krystall. - Ele verificou o identificador de chamadas. O código de área era de San Diego, mas ele não reconheceu o número. - É melhor eu atender. Se conseguirmos acertar tudo, vou pedir que o sujeito ligue para você.
Rayford apertou o botão de chamada duas vezes, terminou uma ligação e atendeu a outra.
- Aqui é Steele.
- Papai, sou eu.
- Chloe!
- Por favor, só escute. Você ainda tem aquele recurso de gravação em seu telefone?
- Tenho, mas...
- Acione-o imediatamente. Faça isso. Já fez? Está ligado?
- Sim, mas...
- Sei que esta ligação está sendo rastreada e que seu telefone não vai mais poder ser usado, mas eu não podia ligar para o restante do pessoal. Estou em uma prisão da CG em San Diego, e eles estão tentando negociar comigo para pegar o resto do pessoal. Diga a Buck e a Kenny que eu os amo de todo o coração e que se não puder vê-los aqui na terra, estarei aguardando por eles lá no céu. Papai, a culpa foi toda minha. Eu estava correndo a uns 50 quilômetros de casa quando tudo aconteceu. Quero apenas que você saiba que, por enquanto, estou bem. Enquanto passo o tempo sentada aqui, fico me lembrando daquela viagem maravilhosa que você, mamãe e eu fizemos ao Colorado quando eu tinha cinco ou seis anos. Você se lembra?
- Mais ou menos. Chloe, preste atenção...
- Papai, não posso falar muito. É importante para mim que você se lembre daquela viagem!
- Querida, aquilo foi há mais de 20 anos. Eu...
- Exatamente! Mas foi muito especial, e eu gostaria que todos nós pudéssemos voltar para lá. Meu maior sonho é podermos ir todos para lá agora, o mais rápido possível.
- Chloe...
- Não diga nada, papai. Você sabe que eles devem estar ouvindo. Só quero dizer que amo todo o nosso pessoal. Peça que orem para que eu seja forte até o fim. Não vou fornecer informação alguma. Nada. E, papai, pense na viagem ao Colorado para que pensemos a mesma coisa, na mesma hora. Eu amo você, papai. Nunca se esqueça disto.
- Eu também amo você, querida. Eu...
- Adeus, papai. E ela desligou.
- Você foi treinado para ser um homem de combate, George - disse Buck -, mas não pára de falar em arrumar as coisas para sairmos daqui.
- Só quero que você saiba, Buck, que não vou me ofender com suas agressões verbais enquanto Chloe não voltar sã e salva. Depois disso, você vai ver.
- Ah! sim. Ela vai fazer picadinho de você, George - disse Priscilla.
Buck devia ter achado graça. George não gostava nem um pouco quando Priscilla tentava, em vão, melhorar o humor dele. Só que Buck estava desolado. Seu sogro acabara de descobrir onde Chloe estava, por meio de seu contato no palácio. Mas a sede da CG em San Diego não era um lugar fácil de ser invadido.
- A melhor coisa que temos a nosso favor - disse Sebastian - é que, assim que eles souberem quem ela é, vão querer mantê-la viva. Ela é muito valiosa para eles.
Buck sabia que isso era verdade, mas a idéia de sua amada esposa estar sendo considerada mercadoria de guerra deixava-lhe um gosto amargo na boca.
No final da tarde, Ming levou Beth Ann Sebastian e Kenny para a sala de operações. Ree levantou-se rapidamente e abraçou Ming. Buck sabia que a situação de Chloe o abalara. Ele gostaria de saber se Ree estava reconsiderando a idéia de se casar.
Beth Ann correu para o lado da mãe e, depois, para o lado do pai. Kenny, com a testa franzida, correu em direção a Buck e sentou-se em seu colo.
- Ele não dormiu - disse Ming.
Buck assentiu com a cabeça e encostou o rosto de Kenny em seu peito.
- Está com sono, rapazinho? - ele perguntou.
Kenny movimentou a cabeça negativamente.
- Quero a mamãe.
- Ela vai chegar mais tarde.
O menino fechou os olhos. Buck olhou para Priscilla e mordeu o lábio, incapaz de conter as lágrimas.
- Esta é a parte que vou passar a detestar - ele disse, apenas movimentando os lábios e com o peito arfando.
Kenny despertou, mas Buck ajeitou a cabeça do garoto sob o queixo e passou os dois braços ao redor dele, balançando o corpo. E chorando.
Priscilla soltou-se de Beth Ann, que correu para perto do pai, e aproximou-se de Buck.
- Não abandone a luta, Buck - ela disse. - Nenhum de nós vai abandonar.
Chloe queria ligar para todas as pessoas que conhecia, mas tinha quase certeza de que sua conversa foi ouvida pela CG. Tudo havia sido fácil demais. O sistema de posicionamento global (GPS) no telefone de seu pai deveria ter indicado à CG onde ele se encontrava. Ela imaginara Petra, mas pelos sons que ouviu, ele estava no ar. Por quanto tempo seu pai e Abdullah ficaram em Nova Babilônia? E por que ele estava retornando somente agora? Ela não conseguia entender. Evidentemente, alguém o informara sobre o desaparecimento dela. Talvez ele estivesse a caminho de casa. Ela só esperava que ele conseguisse livrar-se do telefone antes de aproximar-se da Califórnia. A última coisa que ela queria era levar a CG diretamente à casa secreta.
Chloe esticou o corpo o mais alto que pôde e atirou o telefone através de uma abertura na cela. Ele voou mais de dois metros antes de cair no chão e espatifar-se.
- Que pena - ela disse -, isso acontecer depois que aquele homem bondoso me entregou seu telefone.
O homem retornou em seguida, ainda trajando o uniforme mas sem nada nas mãos. Nenhum balde, nenhum produto de limpeza, nenhum trapo. E nenhum sorriso também. Ele ajoelhou-se para ajuntar os pedaços do telefone.
- Obrigada por ter-me emprestado seu telefone. Foi uma ótima idéia. Talvez você possa me trazer um bolo com uma serra dentro ou avisar meu pessoal. Peço desculpas pelo estrago.
- Está tudo certo, boneca - ele disse, sem olhar para ela. - Conseguimos o que precisávamos. Parece que seu pai está um pouco distante da costa leste. Deve estar reabastecendo. Vamos alertar todos os aeroportos prováveis. Você devia fazer um favor a si mesma, colaborar com Jock. Ele é um sujeito legal. É verdade. Não estou dizendo que ele é um santo, mas é realista. Você tem a informação que ele quer, e ele sabe o que vai ganhar com isso.
- Sem dúvida, amigo. Diga a Jock que estou pronta para o que der e vier. Vou fornecer todas as informações que ele quiser, agora que sei que ele é um sujeito legal. Foi você quem me disse, e eu o conheço muito bem para confiar plenamente em você.
- Pode bancar a espertinha o quanto quiser, garota. Você vai ver aonde vai chegar. Ah!, a propósito, Nigel conseguiu sua barra de cereais. Devo dizer a ele que você está com fome?
Chloe sentou-se na cama de metal. Estava morrendo de fome, porém o orgulho era maior que o desespero.
- Não. Tive um maravilhoso desjejum. Estou completamente satisfeita.
- Talvez queira ver algum programa na TV.
- Deixe para lá. Já ouvi propagandas suficientes para o restante da vida.
- Mas está na hora do noticiário.
- Ah! sim a eminente CNNCG, sempre tão objetiva. Ei, basta! O volume está muito alto!
Ele fingiu que não ouviu. Deixou o volume nas alturas e dirigiu-se para a porta.
- Abaixe o volume, por favor!
- Não estou ouvindo nada - ele disse. - O som da TV está alto demais.
Jock devia ter engendrado tudo. O noticiário das 17 horas estava começando. A âncora Anika Janssen falava ao vivo de Detroit.
- Boa noite. A escuridão continua a atormentar a sede da Comunidade Global Internacional em Nova Babilônia. Ela está confinada aos limites da cidade e acreditamos ser um ato de agressão da parte dos dissidentes contrários à Nova Ordem Mundial.
- O Sr. Suhail Akbar, chefe do Serviço de Segurança e Inteligência da CG, conversou conosco por telefone há poucos instantes, diretamente da capital isolada pela praga. Apesar do tumulto existente naquele local, ele tem boas notícias para todos nós, e esta vai ser a reportagem principal desta noite.
- Sim Anika - disse Akbar - depois de meses de cuidadoso planejamento e cooperação entre as várias filiais da Comunidade Global que visam ao cumprimento da lei, temos a satisfação de informar que uma força-tarefa combinada de agentes das Forças Pacificadoras e dos Monitores de Moral logrou êxito na captura de uma pessoa do alto escalão do grupo de judaístas que está aterrorizando o mundo.
- Após meses de planejamento, a prisão foi efetuada hoje em San Diego, antes do alvorecer. Prefiro não fornecer detalhes da operação, mas a pessoa suspeita foi desarmada e presa sem nenhum incidente. Seu nome é Chloe Steele Williams, 26 anos, ex-radical do campus da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, de onde foi expulsa seis anos atrás por ter ameaçado a vida dos funcionários da administração.
- Obrigada, chefe Akbar. Posteriormente, ficamos sabendo que a Sra. Williams é filha de Rayford Steele, que trabalhou como piloto do Supremo Potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia. Ele foi demitido do posto anos atrás por insubordinação e embriaguez durante os vôos, e o serviço de inteligência da CG acredita que o ressentimento o levou a transformar-se em terrorista internacional. Ele também participou da conspiração para matar o potentado Carpathia e tem ligações com o ex-estadista israelense Dr. Chaim Rosenzweig, atualmente líder dos judaístas. Eles estão a serviço do rabino Tsion Ben-Judá, chefe dos judaístas, o último foco de resistência à Nova Ordem Mundial.
- A Sra. Williams é esposa de Cameron Williams, ex-famoso jornalista americano que também trabalhou diretamente para o potentado antes de perder o emprego em razão de diferenças no estilo de administração. Atualmente, ele edita uma revista clandestina impressa e também divulgada pela internet, com circulação limitada.
- Williams, sua esposa e o pai dela são fugitivos internacionais exilados, procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo. A Sra. Williams dirige uma operação de mercado negro que é suspeita de contrabandear mercadorias valiosas de diferentes países e vendê-las, obtendo lucros exagerados, a pessoas que não podem comprar e vender legalmente por terem se recusado a jurar lealdade ao potentado.
- O casal Williams, que amealhou uma fortuna no mercado negro, tem um filho nascido, segundo dizem, após a Sra. Williams ter abortado duas vezes. Uma filha mais velha morreu sob circunstâncias duvidosas. O filho, a quem eles deram o nome de Jesus Salvador Williams, cuja foto está sendo exibida, tem dois anos de idade. Pessoas relacionadas ao casal dizem que a criança é a reencarnação de Jesus Cristo, que, um dia, dominará Nicolae Carpathia e restabelecerá o cristianismo no mundo.
Chloe olhava firme para uma criança, que evidentemente não era Kenny Bruce, com uma Bíblia no colo e trajando uma camiseta onde se lia: "Morte a Carpathia!"
- O chefe Akbar informa que seus homens localizaram a célula dos judaístas em San Diego, nos Estados Unidos Norte-americanos, onde a Sra. Williams foi presa hoje. Os funcionários da CG de San Diego dizem que ela já está "cantando como um passarinho, oferecendo todos os tipos de informações sobre seus companheiros, inclusive a própria família, para escapar da condenação à morte".
- Aqui está a repórter Sue West, da CNNCG de San Diego, com o coronel Johathan "Jock" Ashmore. Sue?
- Obrigada, Anika. Coronel Ashmore, até que ponto essa prisão é importante?
- Ela é inestimável - respondeu Jock, nervoso e espremido dentro do paletó de sua farda, que não podia ser abotoado. - E a Sra. Williams demonstrou ser uma típica terrorista que sabe quando é chegada a hora de negociar. Quando ela soube que foi identificada e nós a informamos sobre as acusações que lhe pesam, em questão de minutos ela começou a fazer várias propostas para salvar a pele.
- O senhor tem autorização para nos dizer que propostas foram essas?
- Não todas, embora ela já tenha se comprometido a matricular seu filho na CG Júnior assim que for possível. Ela revelou o paradeiro de um negociante de mercado negro do Oriente Médio chamado Al Basrah, que adotou para si o nome de uma cidade iraniana.
- Creio que essa cidade fica no Iraque, coronel, mas prossiga.
- O quê?
- Al Basrah está localizada no Iraque, senhor.
- Que seja. De qualquer forma, esse sujeito se matou com um tiro para não ser preso.
- Daqui a pouco vamos mostrar uma fotografia do falecido Al Basrah - disse Sue West -, mas devemos advertir a todos que a foto está bem nítida.
Chloe levantou-se e viu a foto sendo exibida. Era Albie com um furo entre os olhos, e sem vida. Sua cabeça estava mergulhada em uma poça de sangue. Era ele mesmo. Mas a foto seria verdadeira ou montada?
- Jock! Jock! Nigel! Vá chamar Jock! - ela gritou. Os gritos transformaram-se em soluços, mas ela continuou a exigir uma resposta. - É verdade? Quero saber se é verdade! Albie está morto? Diga-me que Albie não morreu!
Mas ninguém apareceu. Ninguém respondeu. Enquanto a TV continuava ligada no volume máximo, Chloe foi escorregando até cair no chão, gemendo:
- Deus, por favor! Não!
- Lembrei-me de um amigo na Flórida - disse Mac. - Em Jacksonville. Um sujeito da cooperativa. Podemos reabastecer lá para evitar locais muito visados.
- Vou colocar este telefone sob uma das rodas antes de decolarmos - disse Rayford. - Se eles encontrarem uma mistura de metal e plástico na pista, o que vão fazer com ela?
- Não seria melhor atirá-lo na água? Não vai levar mais de um minuto para ele afundar no Atlântico.
- E como vou fazer isso, Mac? Abrir a janela e jogar o telefone para fora?
- Não. Havia um artifício excelente que costumávamos usar em meus tempos de militar quando queríamos atirar um objeto do alto. Você prende o objeto no freio controlador da velocidade. Ele fica encostado no solo, você sabe. Assim que ganharmos altitude, eu ativo o freio...
- Que abrirá o painel. Lindo.
- Sim - disse Mac. - Você levanta vôo, acelera, ativa o freio e o telefone vai parar no fundo do mar azul.
- Não quero perder tempo voando por aí.
- Dê-me esse telefone. Eu faço isso. Não vai levar mais que um minuto.
- Antes, preciso transcrever a gravação de Chloe. Ela estava querendo me dizer alguma coisa, tenho certeza.
- Já está na hora de meu descanso, Ray. Assim que você decifrar a mensagem de Chloe, troque de lugar comigo e eu vou estudá-la.
Chang havia chegado a Petra no meio da tarde, e Naomi ofereceu-se para levá-lo a conhecer o lugar.
- Vou deixar um recado no centro de tecnologia para que eles nos avisem quando receberem alguma notícia sobre Chloe - ela disse -, mas só quero que você conheça o centro por último, está bem?
Ele encolheu os ombros.
- Abdullah pediu que levassem suas malas a sua nova casa, que fica mais ou menos perto da dele. Ele vai acompanhá-lo para que você possa arrumar suas coisas. Eu passo depois por lá para darmos o primeiro giro por esse lugar.
Chang estava determinado a não ficar dependente de uma só pessoa. Principalmente de Naomi. Ela ainda era uma adolescente. Ele já tinha 20 anos. E, embora não houvesse dúvidas quanto à inteligência e conhecimentos técnicos de Naomi, eles iam trabalhar juntos durante um ano. Para que complicar as coisas?
Mas, mesmo assim... ela era muito bonita. Pele morena e belos olhos escuros que se destacavam por causa de seus cabelos longos e pretos. Para Chang, era difícil não ficar olhando para ela. Naomi tinha um sorriso lindo e tímido e parecia muito simpática e prestativa. Ele nunca havia tido uma namorada, apenas garotas pelas quais se interessou no curso de segundo grau, mas que jamais souberam desse seu segredo.
Enquanto se dirigia à sua casa pré-fabricada em companhia de Abdullah, Chang notou que o jordaniano parecia conhecer a todos e queria que todos conhecessem o recém-chegado. Eles trataram Chang como se ele fosse um rei, mas o rapaz estava tão envergonhado pelo fato de portar a marca de Carpathia que cobriu a testa com um boné de beisebol. Seu desejo era retirar o boné e curvar-se a cada cumprimento, mas não podia.
- O nosso homem de dentro do palácio - era assim que Abdullah o apresentava, e o povo o abraçava ou o cumprimentava com um aperto de mão. Muitos o abençoaram.
Para Chang, aquilo era um prelúdio do céu.
- Eu gostaria de ter a oportunidade de conhecer o Dr. Ben-Judá e o Dr. Rosenzweig - ele disse.
- Oh!, sinto muito - disse Abdullah. - Eu devia ter-lhe contado. Eles pediram desculpas por não poder recepcioná-lo como gostariam. Estão reunidos com os anciãos tratando do assunto do desaparecimento de Chloe, e haverá uma reunião do conselho mais tarde. Você está convidado para saborear o maná com eles amanhã cedo.
- Ótimo. Obrigado, Sr. Smith. Quero fazer uma pergunta ao Dr. Ben-Judá.
- Creio que o pai de Naomi também gostaria de conhecer você.
Pela inflexão da voz de Abdullah, Chang imaginou que ele estivesse insinuando alguma coisa, mas não mordeu a isca.
- Eu também quero conhecê-lo - ele disse.
Quando eles chegaram ao setor das casas pré-fabricadas, trazidas e montadas por um grupo dirigido por Lionel Whalum, Abdullah mostrou a sua em primeiro lugar.
- Você pode ver que gosto de ficar perto do chão. Eu me sento do lado de fora, perto de uma fogueira, para comer o maná. Lá dentro, durmo no chão. Se este não for o seu costume, não é necessário fazer o mesmo que eu. Sua casa tem mais ou menos o mesmo tamanho do apartamento em que você morava no palácio, mas, evidentemente, é muito mais simples e tem menos mobília.
- É perfeita - disse Chang quando eles chegaram. Suas malas estavam perto de uma cama de lona. Os computadores e as caixas de arquivos haviam sido deixados perto da porta.
- Esta noite vou dormir como um homem livre, sem me preocupar com nada, a não ser com o bem-estar de nossos companheiros.
- Vou deixá-lo sozinho para você desfazer suas malas. Se precisar de alguma coisa, sabe onde fica a minha casa. Alguma pergunta?
- Apenas uma. Estou um pouco nervoso a respeito do maná. Todos daqui gostam?
- Sim, gostam. E tenho certeza de que você também vai gostar. Imagine só, receber alimento do Rei. Sim, o maná serve apenas para sustentar, e tem a aparência de pão. Mas vem das cozinhas do céu. Existe coisa mais gloriosa que isso? Recebemos uma porção pouco antes do pôr-do-sol, portanto você vai saber se gostou ou não antes de se encontrar com os doutores para o desjejum amanhã cedo.
Meia hora depois, quando já havia arrumado suas coisas do jeito que queria, Chang ouviu uma batida na porta.
- Entre! - ele disse, mas ninguém entrou. - Está aberta! Nada.
Chang abriu a porta e viu Naomi.
- Entre, entre!
- Ah!, eu não devo - ela disse. - Em nossa cultura, isso é impróprio.
- Sinto muito.
- Com o tempo, você vai aprender. Venha, quero lhe mostrar Petra.
- Alguma notícia de Chloe? - ele perguntou assim que começaram a caminhar.
Ela sacudiu a cabeça.
- O final não vai ser bom, você sabe.
- Este é o meu medo - ele disse. - Mas vamos esperar e orar.
Naomi contou que a cidade era tão grande que levaria dias para conhecê-la inteira.
- Vamos ter um sistema de TV avançado perto do centro de tecnologia. Primeiro vou lhe mostrar o Tesouro, depois alguns túmulos na redondeza. São muitos. Por último, quero levá-lo ao lugar alto onde o míssil caiu e a fonte ainda borbulha, fornecendo água diariamente para mais de um milhão de pessoas. Se eu calculei bem o tempo, devemos estar perto do pôr-do-sol, e poderemos saborear o maná com água diretamente da fonte.
Chang não estava acostumado a essas caminhadas e subidas, portanto ficou feliz quando cada um deles entrou em um veículo pequeno de quatro rodas. Ele ficou deslumbrando diante da magnífica arquitetura de Petra e gostaria de saber como alguém foi capaz de escavar estruturas tão maravilhosas naquelas rochas sólidas.
Quando, finalmente, eles chegaram à crista do lugar alto, em que a fonte caía em forma de cascata dentro de cisternas e aquedutos que levavam a água para a área inteira, Naomi desligou o motor de seu veículo e pediu a Chang que fizesse o mesmo.
- Você está com sede? - ela perguntou.
- Muita. Mas procuro me acostumar a não ficar preocupado com alguém que esteja me olhando.
- Não acredito. Você quer beber água das minhas mãos? Chang, normalmente esperto e petulante, apenas sorriu.
- Desde que sua cultura permita.
Ela se ajoelhou, lavou as mãos na correnteza e sacudiu-as para secá-las. Chang fez o mesmo. Ela o levou até um local mais próximo do centro da fonte.
- Pronto? - ela perguntou.
Ele assentiu com a cabeça. Naomi fez uma espécie de cuia com as mãos e enfiou-as na água. Em seguida, aproximou-as do queixo dele.
- Rápido - ela disse, rindo. - Minha mão não é impermeável.
Ele abaixou a cabeça e sorveu um enorme gole. Sua garganta estava seca. E embora a água estivesse apenas alguns graus mais fria que o ar, parecia gelada. Ele riu, tossiu e disse:
- Mais.
Depois que ele tomou outro gole, ela disse:
- Agora é a minha vez.
Chang também fez uma espécie de cuia com as mãos e pegou um pouco de água para ela beber.
- Satisfeita? - ele perguntou quando suas mãos ficaram vazias.
Naomi assentiu com a cabeça, e ele limpou com as mãos a poeira que estava sob os olhos dela. Em seguida, abriu as mãos e passou-as levemente pelos cabelos da moça.
Naomi fechou os olhos, levantou o rosto para receber os raios do sol poente e abriu os braços com as palmas das mãos para cima.
- O maná está chegando, Chang. Receba seu pão diário que vem do Deus do céu.
Chang deu um passo para trás, olhou para cima e estendeu os braços. Dos céus, começaram a cair pedacinhos de pão macio, como se fossem neve, que cobriram toda a área. Lá embaixo, a multidão de um milhão de pessoas começou a sair de suas casas com jarros e cestos, para recolher o alimento que comeria no jantar.
- Fazemos como está escrito na Bíblia - disse Naomi. - Pegamos apenas a quantidade necessária, sem guardar nada, porque ele se estraga. E se o guardarmos, demonstramos falta de fé em Deus para supri-lo todos os dias.
Chang sentou-se ao lado dela e colocou o maná na palma da mão.
- Você pede a Deus que abençoe o alimento que Ele próprio nos manda? - ele perguntou.
Ela riu.
- Você gostaria que eu fizesse isso?
- Por favor.
Chang tirou rapidamente o boné assim que ela começou a orar.
Ao grande Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e ao Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, oferecemos nosso humilde agradecimento por tudo o que nos proporcionas.
Sua voz de menina era tão pura e doce, e suas palavras tão perfeitas que o rosto de Chang se contorceu quando as lágrimas começaram a brotar em seus olhos.
Obrigada pela proteção que deste à nossa missão hoje e por nos permitires trazer Chang para cá. Que ele possa encontrar paz renovada e descanso em ti.
Em nome de Jesus te pedimos que abençoes esta dádiva que vem de ti.
Amém.
Com lágrimas rolando pelo rosto, Chang virou-se e recolocou o boné. Sentou-se segurando o maná com uma das mãos, incapaz de comer por causa do choro. Naomi tocou-lhe delicadamente no ombro.
- Deus o abençoe, Chang. Que Ele o abençoe.
Chang recompôs-se e enxugou o rosto com a mão livre.
- Não me espere - ele conseguiu dizer. - Coma sua porção de maná.
- É o que vou fazer - ela disse meigamente. - Eu nunca me canso deste alimento.
- Que gosto tem? - ele perguntou.
- Ah!, não sou eu quem deve lhe dizer. Não sei explicar. Chang escolheu duas porções brancas e pequenas e levou-as à boca.
- E então? - ela perguntou.
Ele parecia ter emudecido e só conseguiu murmurar:
- Oh! Oh!
- É só isso que você tem a dizer?
Chang enfiou mais alguns bocados na boca.
- Oh!
- Pelo jeito, você aprovou.
- Senti gosto de mel. Claro, tem gosto de mel.
- Sim.
- O sabor é doce, parecido com o de bolo de mel. E são nutritivos. Gostaria de comer mais, porém já estou satisfeito.
- Imagine só - disse Naomi. - Recebemos três porções por dia, e elas são suficientes para nos sustentar durante 24 horas.
- É um milagre.
- Êxodo 16.31 diz: "Deu-lhe a casa de Israel o nome de maná; era como semente de coentro, branco, e de sabor como bolos de mel."
- Estou impressionado - disse Chang. - Você decorou o Antigo Testamento inteiro?
Ela riu.
- Quem me dera! Mas você sabe que nos tempos de minha infância não o chamávamos de Antigo Testamento. Chamávamos de Bíblia. Eu a estudava todos os dias. Continuo a fazer isso, mas agora é diferente. Agora eu conheço Deus de verdade.
- Eu também costumo memorizar trechos da Bíblia - disse Chang. - Mas nunca tive uma. Cresci ateu e leio a Bíblia na internet.
- Você decora os textos?
- Não é assim que todo mundo faz? Em suas mensagens diárias, o Dr. Ben-Judá nos adverte a decorarmos trechos bíblicos.
- E quais você está decorando?
- O livro de João, no Novo Testamento. Estou no capítulo três. Sou muito lento.
- Você já decorou até esse ponto? - ela perguntou. - Está muito bom.
- Acho que sim. Mas não faça um teste comigo. Bem, pode me pedir que recite o capítulo três, porque foi exatamente aí que parei, mas...
Chang não prosseguiu. Ele poderia ficar sentado ao lado de Naomi a noite inteira, mas ela se levantou e sorveu outro gole da água da fonte.
- Eu vou lhe mostrar mais uma coisa - ela disse, aproximando-se de Chang e estendendo a mão para ajudá-lo a levantar-se. - Você prestou atenção em minha roupa?
Ele encolheu os ombros e movimentou a cabeça afirmativamente. Será que havia prestado atenção? Apenas lançara alguns olhares furtivos para ela. Ele não sabia que nome dar àquela indumentária. Parecia mais um manto que um vestido, semelhante aos trajes das mulheres dos tempos bíblicos, conforme ele sempre imaginou.
- É a única roupa que uso aqui. Estou com ela desde o dia em que chegamos.
- Parece nova.
- Eu a lavo todas as noites, e ela se renova a cada manhã, da mesma forma que a misericórdia do Senhor.
- Outra passagem que você decorou?
- Sim. Esta é uma passagem que meu pai me ensinou depois que sobrevivemos ao ataque das bombas.
- Você estava aqui naquela época?
- Fomos os primeiros a chegar.
- E como foi?
- Como se fosse um sonho, Chang. Às vezes, não consigo imaginar que aquilo aconteceu.
- Qual é a passagem?
- Lamentações 3.22-24: "As misericórdias do Senhor a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto esperarei nele."
- É linda.
- Sim, muito linda. Bem, prometi a meu pai que voltaríamos ao centro de tecnologia antes do pôr-do-sol. Fica perto do anfiteatro, portanto vamos ter de nos apressar.
- Você vai terminar de me contar sua história? - ele perguntou.
- Claro. E eu quero ouvir a sua. Talvez amanhã, depois do desjejum.
Para Chang, o centro de tecnologia era exatamente o que ele esperava encontrar ali. O único fato inusitado foi ver a enorme rede de computadores instalada em uma construção cavada nas pedras. Mas, agora, ele estava muito mais impressionado com Naomi do que com equipamentos de informática.
- Você é capaz de encontrar o caminho de casa sozinho? - ela perguntou. - Aqui, nós nos recolhemos cedo e nos levantamos quando o sol nasce.
- Acho que sim, mas prefiro não correr o risco - ele disse.
- Por ser meu primeiro dia aqui, ainda necessito de um guia.
- Vou encontrar alguém. Aguarde um instante.
- Naomi! - ele disse. - Estou brincando. É claro que sei o caminho. Só queria que você me acompanhasse até lá.
- Em minha cultu...
- Já sei, não é apropriado. Que tal eu levá-la até sua casa?
- Isso seria aceitável e um ato de cavalheirismo de sua parte. Meu pai está me esperando, e já estará escuro quando eu chegar. Ele vai gostar de ver alguém me acompanhando.
Assim como Abdullah, o pai de Naomi tinha acendido uma pequena fogueira do lado de fora da casa. Ele era um homem alto, de silhueta arredondada e tinha barba crespa e espessa. Chang aproximou-se timidamente, tirou o boné no escuro e curvou o corpo.
- Chang Wong - ele disse.
O pai de Naomi segurou-o pelos ombros e encostou a face direita no rosto de Chang, e depois a esquerda.
- Eleazar Tiberias - ele disse, com voz grossa e firme.
- Talvez você conheça o meu lago.
Chang coçou a cabeça e olhou para Naomi, e esse gesto fez o pai e a filha acharem muita graça.
- Já ouvi falar muito de você, jovem - disse o ancião.
- Sou grato por você ter cuidado de minha filha e espero conhecê-lo melhor.
No caminho até sua casa, Chang respirou fundo o ar fresco da noite. A fogueira de Abdullah já estava se extinguindo, e a roupa de Chang ficou impregnada de fumaça. Ele se sentia tão livre, tão feliz e tão apaixonado que, por certo, não seria capaz de dormir.
Em casa, ajoelhou-se ao lado da cama, sem saber exatamente como orar. Procurou lembrar-se do versículo citado por Naomi, mas só se lembrava destas palavras: "Grande é a tua fidelidade", portanto repetiu-as várias vezes enquanto se ajeitava na cama.
Através da janela aberta, ele contemplou o céu tão límpido que parecia ser possível contar todas as estrelas do universo. Mas em pouco menos de 60 segundos, ele não viu mais nada, a não ser Naomi em seus sonhos.
Mac analisava os rabiscos de Rayford.
- Você transcreveu todas as palavras dessa conversa, não?
- Eu não sabia mais o que fazer - disse Rayford. - Está claro que a dica está naquele assunto do Colorado.
- Você se lembra de alguma coisa de lá, Ray?
- Faz muito tempo, Mac. Foi uma daquelas férias de verão que a gente costuma viajar com os filhos pequenos. Raymie ainda não era nascido. Fomos só nós três.
- Sim, mas depois de falar sobre Buck e Kenny, Chloe diz que a culpa foi toda dela. E essa história de estar correndo... ela não estava falando sério, estava?
- A uns 50 quilômetros de casa? Não. Ela estava tentando despistar a CG, é claro, mas eles não vão cair nessa.
- Ela promete que não vai entregar ninguém, e eu acredito piamente nisso.
- Eu também. Eles não vai extrair informação alguma de Chloe.
- Aí ela diz que a viagem foi "muito especial, e eu gostaria que todos nós pudéssemos voltar para lá". Mas você disse que só vocês três foram.
- Correto. Então, o que mais pode ser? Será que ela quer que todo o pessoal de San Diego vá para o Colorado?
- Não pode ser - disse Mac. - Ela diz que sabe que a CG está ouvindo a conversa. Mas diz também que seu "maior sonho é podermos ir todos para lá agora, o mais rápido possível". Em que parte do Colorado vocês estiveram, Ray?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Eu não me lembro. Você já esteve lá?
- Várias vezes - disse Mac. - Que cidades você visitou?
- Apenas Springs e Denver, acho.
- Você viajou na estrada de ferro com trilhos engrenados?
- Pikes Peak, claro.
- O lugar que tem aquelas enormes formações rochosas?
- Sim, o Jardim dos Deuses.
- Aquele lugar dos cowboys, o rancho?
- Flying W, uma autêntica cidade do velho oeste, com comidas e trajes típicos, claro. Eu jamais deixaria de visitar.
- E a Academia de Força Aérea?
- Só passei por lá. Não tive tempo de visitá-la. Estávamos indo a um concerto.
- Onde?
- Nos arredores de Denver. Um concerto ao ar livre. Parecia que a subida não acabava nunca, e eu tive de carregar Chloe. Aquela altitude me deixou com a respiração curta.
- Red Rocks [Pedras Vermelhas]?
- Sim! Exatamente. Ouvimos música country. Chloe adorou.
- Você ainda não entendeu, Ray?
- Entendeu o quê?
- O que ela queria lhe dizer?
- Não, mas acho que você já entendeu, Mac. Fale.
- Red Rocks.
- Foi o que eu disse.
- Hã-hã.
- Ah! Petra! A CG está tentando encontrar a casa secreta, e nós temos de tirar o pessoal de lá e levar todos para Petra.
De manhã, Abdullah conduziu Chang até uma área perto do local onde o conselho dos anciãos se reunia diariamente. O chão por todo o caminho estava coberto de maná fresco, e muitas pessoas estavam saindo de suas casas e recolhendo-o para o desjejum.
- Não vou lhe fazer companhia hoje - disse Abdullah -, porque a Srta. Naomi necessita de mim no centro de informática. Ela gostaria que você fosse até lá para ajudá-la, quando puder.
- Algum problema?
- Receio que sim.
Chang parou. Abdullah parecia muito tristonho e taciturno.
- O que houve?
- Prefiro não estragar seu desjejum, mestre Chang.
- Estragar meu desjejum? Estou indo ao encontro de meus heróis, e aqui posso ir aonde quiser e fazer o que quiser, e, mesmo assim, você me diz que existe uma coisa que pode arruinar meu dia?
- Por favor, vamos nos apressar. Não podemos chegar atrasados.
- Eu preciso saber Sr. Smith. Não me diga que a notícia se refere a Chloe Williams.
- Ela está viva, por enquanto. A CNNCG está espalhando as mais infames mentiras a respeito da Sra. Williams, mas todos imaginam que a CG não vai executá-la enquanto estiver achando que vai ser capaz de extrair informações dela.
Chang sacudiu a cabeça, enquanto continuavam a andar.
- Teria sido melhor se ela tivesse fingido estar prestes a abrir a boca - ele disse -, pelo menos dar a entender que forneceria alguma informação, do que deixar claro desde o início que não vai cooperar.
- Você conheceu a Sra. Williams?
- Claro que não.
- Mas tratou com ela por telefone e pela internet o suficiente para conhecer...
- Conhecer a personalidade dela. Sim. Além de não dizer nada, ela também vai gostar que eles saibam disso.
- Meu medo - disse Abdullah - é que isso reduza as chances dela com a CG e, por conseqüência, reduza sua vida.
- Certamente o Comando Tribulação de San Diego está planejando invadir o local para resgatá-la.
- Não sei. Pelo que conheço de Cameron, ele deve estar querendo invadir o local sozinho. George Sebastian vai querer liderar essa missão, e ele é o homem preparado para isso. Mas não será o mesmo que surpreender um bando de amadores na mata, como eles fizeram na Grécia. Você deve imaginar que a CG de San Diego está alerta a respeito disso.
- Você não está me contando tudo, está, Sr. Smith?
- Prefiro que você tome conhecimento do restante da história no centro de tecnologia. Mas acho que Naomi não está ansiosa por lhe contar.
Chang parou novamente e colocou a mão no ombro de Abdullah.
- Perdoe-me a familiaridade - ele disse -, mas não me esconda informação alguma. Por favor, eu preciso saber. Não quero chegar lá despreparado.
Abdullah parecia estar analisando o chão. Parou e pegou um punhado de maná, sem levá-lo à boca.
- A CNNCG disse que Chloe denunciou Albie e que ele cometeu suicídio para não ser preso.
- Ora, vamos, Sr. Smith. Sabemos que isso não é verdade. Ela jamais faria...
Abdullah segurou Chang pelo cotovelo e insistiu para que continuassem a andar.
- Ninguém suspeita que Chloe tenha feito isso, e todos os que conhecem Albie não acreditam que ele se matou.
- Então, qual é o proble...
- Há evidências de que Albie pode estar morto. Ele e o Sr. McCullum eram amigos íntimos, conforme você sabe, e quando Mac soube da notícia, procurou entrar em contato com Albie de várias maneiras.
- Pode ter sido uma coincidência. Talvez estivesse longe do telefone. Talvez...
- Ele nunca fica longe do telefone. Mac sempre conseguiu falar com ele quando precisou.
- Mas Mac e o capitão Steele já devem estar em San Diego. Talvez o problema tenha sido a distância e...
Agora foi a vez de Abdullah parar.
- Já estamos quase chegando. O Dr. Ben-Judá e o Dr. Rosenzweig estão aguardando por você depois da próxima curva. O Sr. Tiberias fará as apresentações e participará do desjejum. As refeições são rápidas aqui porque comemos apenas um alimento acompanhado da água da fonte.
- Obrigado, Sr. Smith. Vou continuar acreditando que Albie ainda vai ligar.
- Muito bem, se é assim que você pensa... Alguém atendeu ao telefone de Albie, mas não foi ele. Conforme você sabe, ele estava trabalhando em uma missão perigosa e deve ter cometido o erro terrível de ir sozinho. O homem que atendeu ao telefone disse a Mac que, se ele quisesse saber notícias de seu amigo, deveria assistir ao noticiário. Nós vimos e gravamos o noticiário, mestre Chang. Naomi vai lhe mostrar depois do desjejum. Agora vá.
Às 21 horas em San Diego, Chloe estava deitada na cama de aço de sua cela, chorando baixinho. Depois que o sol se pôs, a sala maior mergulhou na escuridão, e agora a única claridade vinha da TV ligada no último volume. Ninguém aparecera depois que o falso agente penitenciário voltou para recolher o que sobrou de seu telefone. Ela ouvira o noticiário mais de uma dúzia de vezes - somente porque não tinha escolha - mas recusava-se a ver as imagens.
Chloe não se importava com as mentiras. Nenhum judaísta acreditaria naquilo. E, se alguém acreditasse, Buck esclareceria tudo na próxima edição de A Verdade. Mas Albie, pobre e precioso Albie. Ela esperava que a notícia de sua morte fosse mentira e orou por isso, mas como eles foram capazes de produzir uma imagem tão vivida de um homem morto tão parecido com ele?
Ela não havia comido nada desde as 19 horas do dia anterior. Dobrou os joelhos até encostá-los no peito e passou os braços em volta das canelas. Balançando o corpo, ela tentava acalmar a dor no estômago. Procurava consolar a si mesma imaginando a operação que George, Buck e seu pai estariam planejando naquele exato momento.
Chloe procurou desviar os pensamentos de Kenny, porque a saudade que ela sentia dele era tanta que seus braços chegavam a doer. Será que o veria novamente? Como Buck estaria respondendo às perguntas do filho a respeito da mãe? Quem cuidaria de Kenny quando Buck estivesse ausente?
Ela gostaria de saber se o sono aliviaria a angústia da fome e se seria possível dormir. Aprendera muita coisa com George e sabia que qualquer tentativa de resgate teria de ocorrer quando a CG menos esperasse, portanto isso poderia demorar dias, talvez muito mais tempo. Ela teria de aprender a dormir. Precisava manter a sanidade apesar do modo que estava sendo tratada.
Todos os vestígios dos direitos dos prisioneiros haviam desaparecido desde a ascensão de Nicolae Carpathia. - Aqui estamos nós, faltando um ano para o fim da história, e podendo ser morta em minha cela por não ter a marca.
Sozinha, com fome, com saudade de seus queridos, chorando por Albie, Chloe fechou os olhos no escuro, tapou os ouvidos e começou a cantarolar baixinho para não ouvir o som que vinha da TV. E foi por causa disso, ela imaginou, que só ouviu a chegada da agente penitenciária do turno da noite quando a mulher já estava em pé perto de sua cela. Chloe estremeceu e sentou-se rapidamente, aterrorizada diante da silhueta volumosa.
O pai de Naomi cumprimentou Chang da mesma maneira da noite anterior, encostando as duas faces no rosto dele. Chang curvou-se, mas não retirou o boné à luz do dia.
- Um conselho ao sábio - murmurou o ancião Tiberias a seu ouvido durante o abraço. - Em qualquer cultura, é grosseria não tirar o chapéu na presença de um ancião.
- Perdoe-me, senhor - Chang disse suavemente -, mas se eu tirar o boné vou revelar uma desgraça.
Eleazar Tiberias fechou os olhos e assentiu com a cabeça, como se já conhecesse o problema de Chang.
- Eu entendo - ele disse. Em seguida, pegou um cesto repleto de maná. - O Dr. Ben-Judá estará aqui dentro de alguns instantes, mas antes quero apresentar-lhe o Dr. Rosenzweig. Venha, venha.
Chang acompanhou o homem até a casa dele e ficou surpreso quando viu o pequenino Chaim Rosenzweig, que mais se parecia com Albert Einstein do que com o famoso Miquéias que afrontara o potentado. Aparentemente, fazia muito tempo que Rosenzweig chegara a Petra. Seus cabelos estavam compridos e a pigmentação de sua pele já havia retornado ao normal.
Rosenzweig levantou-se rapidamente, demonstrando muita energia para um homem de sua idade.
- Então, você é Chang Wong, o gênio espião.
- Bem, eu...
- Não se faça de modesto, meu jovem amigo. Você tem sido usado por Deus. E de maneira muito poderosa! Ah! Quantas recompensas aguardam por você no céu. - Chaim segurou Chang pelo braço e puxou-o para perto de si.
- Venha, vamos esperar o Dr. Ben-Judá do lado de fora. Eleazar, faça companhia a nós, por favor. Conforme você sabe, o Dr. Ben-Judá é o líder daqui, embora tenha sido meu aluno durante muitos anos. Ah! sim, no mínimo 20 anos. Fui seu professor há muitos e muitos anos. É verdade. Bem, Sr. Wong, seja bem-vindo, seja bem-vindo, seja bem-vindo. É uma pena estarmos vivendo um dia triste por causa da morte de um de nossos membros e da prisão de outro, mas nos sentimos felizes por tê-lo em nossa companhia.
Ao longe, Chang viu a comoção causada pela chegada do Dr. Ben-Judá. A seu lado, havia vários anciãos, e todos estavam vindo do centro de tecnologia.
O Dr. Rosenzweig confidenciou:
- Aqueles homens não participarão de nossa reunião. Não são guarda-costas. Não necessitamos de guarda-costas aqui, claro. Mas o Dr. Ben-Judá é tão popular e querido que está sempre rodeado de anciãos, por onde quer que ande. Todos querem um momento de seu tempo, mas esses momentos estão se acumulando. Eles desejam expressar gratidão e amor, porém o Dr. Ben-Judá tem muitas coisas para fazer e está assoberbado.
- Para mim, é uma honra tomar um pouco do tempo dele - disse Chang. - Assim como todos aqui, quero um momento de seu tempo.
- Ah! Confie em mim, meu jovem amigo. Eu o conheço muito bem, e sei que ele está aguardando esta oportunidade.
Os anciãos dispersaram-se quando o Dr. Ben-Judá chegou.
- Lamento muito ter adiado esta reunião e, mesmo assim, ter chegado atrasado - ele disse. - Mas não houve condição. Bem, quero ser apresentado ao nosso morador mais recente.
Eleazar Tiberias riu alto quando o Dr. Rosenzweig disse:
- Ah!, creio que você já sabe quem ele é. Dr. Tsion Ben-Judá, apresento-lhe Chang Wong.
O Dr. Ben-Judá evitou o tradicional cumprimento judeu. Curvou o corpo da mesma forma que Chang, deu um passo a frente e abraçou o rapaz com força.
- Sente-se, sente-se - ele disse. - Sente-se aqui entre mim e o Dr. Rosenzweig. Anos atrás ele foi meu profe...
- Eu já contei a ele, Tsion - disse Chaim. - Vamos orar e comer.
Tsion inclinou o corpo na direção de Chang e falou em voz baixa, mas fez questão que suas palavras fossem ouvidas por Chaim.
- Os idosos não têm muita paciência!
Tsion segurou a mão de Chang e a de Chaim ao mesmo tempo.
- Eleazar, por favor, vamos dar as mãos.
Depois que os quatro estavam de mãos dadas, o Dr. Ben-Judá olhou para cima e Chang curvou a cabeça.
- Grande Pai, criador, mestre e amigo - ele começou a orar -, neste momento em que iniciamos mais um dia que precede o glorioso aparecimento de nosso Senhor e Salvador, nós abençoamos o teu nome. Somos gratos a ti pelo nosso pão diário. Sentimo-nos humildes quando nos lembramos de onde estávamos poucos anos atrás. O Sr. Tiberias, um homem de negócios e dedicado religioso. O Dr. Rosenzweig, um estadista, erudito e agnóstico. Eu, um estudioso da Bíblia, mas cego d verdade. E o Sr. Wong, um jovem brilhante e ateu. Quem a não ser um Deus bondoso nos daria uma segunda chance e nos redimiria mediante o sangue de seu precioso Filho? Nós te louvamos em nome dele.
Tsion estendeu o cesto de maná a Chang, que pegou um pequeno punhado. Os homens mais velhos pegaram porções generosas, e Tsion disse:
- Quero mostrar-lhe como me sirvo de minha provisão diária. Sou grato porque esta refeição não consome meu tempo, mas tenho de admitir que sinto falta dos rituais que, antigamente, acompanhavam minhas refeições. Em geral, as refeições aqui duram cinco minutos.
Ele colocou uma porção de maná na palma da mão direita, passou delicadamente os dedos ao redor e formou um círculo com o polegar e o indicador.
- Como se fossem amendoins, não é mesmo? - ele prosseguiu, sorrindo. Em seguida, derrubou a porção inteira na boca. - Um punhado - ele disse, mastigando -, e já estou satisfeito.
O Sr. Tiberias levantou-se, colocou as sobras dentro de um cesto e atirou-as ao vento, e elas se espalharam pelo chão.
- Dr. Ben-Judá - perguntou Chang -, é verdade o que estão dizendo sobre Albie?
- Que ele está morto? Acho que sim - respondeu Tsion. - Suicídio? Não, nenhum de nós acredita nisso.
Após alguns instantes, Chaim disse:
- Tsion, nós precisamos ir.
- Ah!, senhor - disse Chang ao Dr. Ben-Judá -, eu hesitei em lhe fazer uma pergunta porque fiquei sabendo que o senhor é muito ocupado e que todos querem um pouco de seu tempo...
- Por favor, Chang. Temos uma grande dívida com você. Pergunte qualquer coisa. Se eu souber a resposta, será um prazer.
- Eu necessito ficar a sós com o senhor. Por favor, não se ofenda, Dr. Rosenzweig.
- De maneira alguma. O Sr. Tiberias e eu temos de preparar nossa reunião.
Tsion conduziu Chang até a parte traseira de uma grande rocha.
- O que posso fazer por você?
Chang tirou o boné, deixando à mostra o número 30 em sua testa e a linha fina e rosada onde o biochip da Comunidade Global havia sido inserido. Ele viu um ar de piedade nos olhos de Ben-Judá.
- Confesso que é estranho, Wong, ver essa marca e o selo dos crentes em sua testa.
- Não suporto olhar no espelho - disse Chang. - Não tenho coragem de tirar o boné aqui. Sim, esta marca me manteve vivo e sim, tive acesso a lugares aonde nenhum crente imaginou chegar perto. Mas eu me sinto ridículo, detestável. Eu a odeio.
- Você foi obrigado a recebê-la, filho. Não teve escolha nem culpa por...
- Eu sei de tudo isso, senhor, mas gostaria que ela desaparecesse. É possível?
- Não sei.
- Senhor, eu leio seus ensinamentos todos os dias. O senhor diz que, para Deus, tudo é possível. Por que Ele não faz esta marca desaparecer agora?
- Não sei, Chang. Não quero prometer que Ele fará isso.
- E se eu acreditar que Ele fará? E se o senhor acreditar?
- Nós dois podemos ter fé, Chang. Porém, por mais que a gente acredite, confie e estude, ninguém pode afirmar que conhece a mente de Deus. Se você quiser que eu ore a Deus para que Ele a elimine, vou orar. E creio que Deus pode e vai fazer aquilo que Ele deseja. Mas quero que você prometa que vai acatar a decisão dele, seja ela qual for.
- Claro.
- Não diga isso precipitadamente. Sei que você deseja muito retirar a marca, mas se Deus não atender a esse pedido, não quero ver sua fé ameaçada.
- Vou ficar desapontado e sem entender o por que, mas vou aceitar. O senhor poderia orar por mim?
O Dr. Ben-Judá parecia analisar o rosto de Chang. Comprimiu os lábios e desviou o olhar. Finalmente, disse:
- Vou orar. Venha, sente-se aqui e espere. Por mais que você deseje que esse assunto seja tratado reservadamente, prefiro orar com os homens de Deus. Você se importa?
- Claro que não. Eu só não queria que eles me vissem com esta...
- Não há como evitar. Faz parte do preço a ser pago.
Chang assentiu com a cabeça, e Tsion afastou-se para chamar Eleazar e Chaim. Quando chegaram, eles olharam tristemente para Chang, que estava sentado em uma rocha, chorando. Tsion contou-lhes rapidamente o problema e pediu que orassem com ele. Os três aproximaram-se. Ben-Judá ficou no meio, Tiberias à sua esquerda e Rosenzweig à sua direita.
Tsion colocou a mão esquerda na parte posterior da cabeça de Chang e firmou o pulso direito em sua testa. Os outros dois seguraram as mãos de Chang e colocaram as mãos livres sobre seus ombros. Chang estremeceu quando aqueles três homens de Deus o tocaram suavemente e sentiu-se amado por eles e por Deus. Seu corpo enrijeceu-se e, depois, relaxou.
- Deus Criador - Tsion começou a falar de maneira tão suave que Chang mal conseguia ouvir - reconhecemos que criaste este jovem. Tu o conheces e o amas desde antes da formação da Terra. Tu, que és rico em misericórdia, nos amaste mesmo estando nós mortos em nossos delitos, nos deste vida com Cristo e com Ele nos ressuscitaste, e nos fizeste assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar nos séculos vindouros a incomparável riqueza de sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque, pela graça somos salvos, por meio da fé, e isso não vem de nós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus...
- Agora, Chang Wong, sabemos que você não foi redimido mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha e sem defeito. Por meio de seu Filho, você deve crer em Deus. Ele ressuscitou a Cristo dentre os mortos e o glorificou, para que sua fé e esperança esteja em Deus. Nós estamos aqui reunidos em fé e cremos nisso. Oramos ao Deus para quem nada é impossível, o Deus que nos poupou da mesma forma que poupou Sadraque, Mesaque e Abede-Nego da fornalha do inimigo. E Ele fez isso para mostrar que somos povo seu e que o fogo não tem poder algum sobre nossos corpos; os cabelos de nossa cabeça não foram chamuscados, nossas roupas não foram afetadas, e o cheiro do fogo não passou sobre nós.
- Deus, de acordo com tua vontade, nós te suplicamos que retires deste rapaz qualquer sinal do maligno.
Chang sentia o corpo frouxo, como se cada uma de suas pernas pesasse cem quilos. Cada poro seu transpirava profusamente e ele sentia o suor escorrer-lhe pelo rosto, braços e tronco. As mãos dos homens estavam úmidas, mas eles continuaram imóveis e em silêncio.
No momento em que Chang sentiu que, se os homens o soltassem, ele escorregaria da rocha, Tsion disse:
- Obrigado, cavalheiros.
Eles apertaram os ombros e as mãos de Chang e deram um passo para trás. Agora, Chang estava amparado apenas por Tsion, que continuava com a mão esquerda na parte posterior de sua cabeça e a direita sobre sua testa. Em seguida, Tsion escorregou suavemente a mão direita até juntá-la com a mão esquerda que estava atrás da cabeça de Chang.
Chang abriu os olhos, piscou por causa da luz do sol e olhou firme para o rosto do Dr. Ben-Judá, que também olhava para ele.
Tsion sorriu.
- Cavalheiros - ele disse -, o que vocês estão vendo?
Tiberias inclinou-se de um lado e Rosenzweig do outro.
- Louvado seja Deus! - exclamou Chaim.
Eleazar levantou a cabeça e deu uma sonora gargalhada. Sua voz era forte e grossa.
- Só estou vendo o selo dos crentes! Tenho um espelho em casa. Venha, Chang, você vai ver com os próprios olhos!
Rayford nunca vira Mac tão abatido. Ou tão resoluto.
- Se alguém matou aquele velho companheiro, vou ter de tomar uma providência, Ray - ele disse. - Pense em alguma coisa que eu possa fazer, que me dê a chance de descobrir tudo. Estou falando sério.
- Albie e eu também éramos bons amigos - disse Rayford.
- Eu sei. Parece que sempre o conheci, desde a infância.
- O que sua intuição está lhe dizendo, Mac? Que isso faz parte da propaganda da CG ou que ele está morto?
Mac suspirou fundo.
- Bem, ele não se matou, de jeito nenhum, mas acho que eles o pegaram.
Rayford usou o telefone de Mac para ligar para Buck a fim de contar-lhe que eles estariam pousando por volta de 22 horas, horário de San Diego.
- Celular de Buck. Ei, Mac, aqui é George.
- Bem, este telefone é de Mac, mas quem está falando é Rayford. Como estão as coisas aí, George?
- Da forma que você imagina. Buck está arrasado. Queremos evitar a todo custo que ele vá sozinho até a sede da CG.
- Vocês podem nos pegar às dez?
- Dez? A viagem foi rápida.
- Mais ou menos. Paramos só uma vez. Depois, tivemos de desviar um pouco da rota para jogar meu telefone no mar. Leve Buck com você. Talvez possamos ajudá-lo a acalmar-se.
- É melhor você convencê-lo a ir comigo. Ele não quer me ouvir e não vai querer me acompanhar.
- Ele está aí?
- Está lá embaixo com Kenny. O menino não está conseguindo dormir sem a mãe.
- Bem, diga a Buck que é uma ordem minha. Nós quatro precisamos conversar assim que o avião pousar na pista. Alguém pode tomar conta de Kenny?
- Claro. No momento, há um excesso de babás voluntárias aqui.
- Ei, você acha que é muito tarde para ligar para Lionel Whalum, em Illinois?
- Não. Ele não dorme cedo. Qual é o problema?
- Descobri qual era a mensagem de Chloe. Ela está convencida de que devemos tirar todo o pessoal de San Diego e levar para Petra.
- É o que eu receava - disse Sebastian.
- Lionel é o único sujeito que me veio à mente. Ele tem aeronaves suficientes, contatos suficientes e experiência suficiente para fazer uma coisa dessas... e rápido.
- Este lugar era tão perfeito.
- Todas as casas secretas que tivemos foram perfeitas até o momento em que deixaram de ser secretas, George.
- Isso é verdade.
- Você me faria o favor de ligar para Lionel? Também preciso entrar em contato com Zeke. Veja se ele está pronto para sair da toca e nos ajudar em Petra.
- Em que você está pensando, capitão?
- Em uma atividade para Buck fazer para que ele não enlouqueça, e em algo para mim e Mac. Algo que nos deixe sentir que estamos fazendo alguma coisa por Albie.
- Espero fazer parte disso.
- Nós não sonharíamos em fazer qualquer coisa sem você, George.
- Cansada dessa TV? - perguntou a agente penitenciária do turno da noite para Chloe.
- Estou.
- Espero não ter perdido nada.
Chloe tinha visto o ajuntamento dos exércitos de todos os países dos Estados Unidos Carpathianos, com exceção da cidade de Nova Babilônia, que quase não foi mencionada no noticiário. Sob a iluminação fraca que vinha da TV, Chloe viu que a mulher era negra.
- Sou Florence - ela disse, dirigindo-se à TV e desligando-a com seu bastão. - Fui escalada para lhe dar alguma coisa para comer, desde que você tenha se comportado bem. Você se comportou bem?
- Estou oficialmente com fome, se é isto que você está querendo dizer.
- Não foi o que eu perguntei, mas tenho uma barra de energia no bolso, se você quiser.
- Eu quero.
- Não levou muito tempo para você mudar de idéia. Ouvi dizer que você foi muito arrogante e muito espertinha, como se não precisasse de ninguém, não quisesse nada.
- Eu só quero continuar viva.
- Por quanto tempo? É melhor abrir o jogo e contar alguma coisa que Jock possa usar ou, então, não vai tomar seu primeiro banho.
- E quando vai ser?
- Daqui a uma semana. Uma semana a partir de hoje.
- Eu vou ficar uma semana sem tomar banho?
- Use aquela pia à vontade. Que gosto tem aquela água?
- Não tem gosto de água.
Florence soltou uma gargalhada.
- Não é verdade. E você vai gostar dela. Vai ter de gostar. E vai continuar viva por causa das 250 calorias por dia, mas não por muito tempo.
- O que mais há por aqui?
- Ah! Você sabe, alguém vai gostar de você, vai querer tirar uma casquinha. Você sabe do que estou falando.
Chloe riu. Era a única coisa que podia fazer.
- Você está achando graça? O que pretende fazer?
- Prefiro morrer - respondeu Chloe. - Antes, essa gente vai ter de me matar.
- Você está dizendo isto agora. Mas não vai conseguir me matar. Veja o meu tamanho e veja o seu.
- Uma de nós não vai sair viva daqui.
- Conversa fiada. Você vai cantar uma música diferente quando não agüentar com o peso do seu corpo, quando estiver fedendo e alguém tirar esse seu macacão.
- Eu vou avisar desde já, enquanto estou lúcida. Quero que você e todos aqui saibam que vão se arrepender se tentarem alguma coisa comigo.
- Acabou?
- Sim, e isso inclui Jock.
- Jock não vai fazer esse tipo de coisa e sabe quando deve olhar para o outro lado.
- Quando ele olhar para trás, vai encontrar alguém morto. Alguém daqui ou sua famosa prisioneira.
- Por que você não cede um pouco, moça? Conte alguma coisa a Jock. Ele não vai fazer muitas perguntas. E você vai conseguir coisas que ninguém jamais conseguiu. Entrar aqui sem a marca e continuar viva? Você devia pensar um pouco. Está em posição de negociar.
- Eles já podiam ter me matado.
- Não pense que eu não gostaria de fazer isso.
- Você? Você não me conhece. Eu não quero matar você.
- Você acabou de dizer que ia me matar, moça, se eu entrasse na cela.
- É verdade, mas só se você me fizesse alguma malvadeza. Aí, eu teria de me defender.
- Eu desejo todo o mal do mundo para você. Ou você está do nosso lado ou contra nós, querida.
- Eu estou contra vocês - disse Chloe.
- Disso eu já sei. Conte outra coisa.
- Quero saber de que forma vou receber essas 250 calorias.
- Você sabe. Da barra de energia.
- É só isso que vou comer?
- Só isso. Uma vez por dia.
- Ninguém consegue sobreviver com essa quantidade de calorias.
- Quem está dizendo é você. É claro que quanto mais coisas você contar, talvez receba mais calorias.
- Talvez?
- Talvez, mas acho que não. Já que você não comeu nada hoje, eu trouxe uma barra esta noite. Você só vai receber uma a cada 24 horas. Mas você está sendo muito malcriada. Acho que vou devolver esta barra a Nigel. Ele vai cuidar disso amanhã.
Chloe queria implorar que a mulher lhe entregasse a barra, mas não faria isso. Ficaria em silêncio, esperando que Florence se divertisse um pouco por estar encarregada de servir o alimento todos os dias.
- Se você ainda estiver acordada e parar de ser atrevida, vou trazer uma barra lá pela meia-noite. Agora, se quiser ler alguma coisa ou fazer maquiagem, pintar as unhas, seja lá o que for, vou deixar as luzes acesas. E já que a TV está desligada, vou providenciar uma música para você adormecer.
Oh! por favor, nada de luzes acesas e nada de música.
Florence caminhou com passos bamboleantes até a porta, com os cotovelos apoiados no cinto de couro, que tinha tudo menos uma arma de fogo - bastão, cassetete, molho de chaves, coldre vazio e, por um motivo qualquer, um suprimento de projéteis. Ela acendeu as luzes, todas. Para Chloe, o cômodo estava mais claro do que quando os raios de sol atravessaram as janelas.
Isso não seria problema. Ela viraria o rosto para a parede. Apesar do profundo arrependimento de ter-se privado de alimento por mais algumas horas, ela conseguiria sobreviver.
Tentaria orar, pensar em seus queridos, recitar os trechos bíblicos memorizados e aguardar a chegada do sono.
Mas, de repente, soou uma música, em volume mais alto que o necessário. Alto demais. E, evidentemente, tratava-se do hino "Salve Carpathia" que, pelo jeito, tocaria a noite inteira.
Buck lhe ensinara a adaptação feita por ele. Aquilo a distrairia por alguns minutos. Como era mesmo? Ela começou a recordar-se e, em seguida, a cantarolar baixinho:
Abaixo Carpathia, seu farsante, velhaco e indecente; Abaixo Carpathia, que pensa enganar toda gente! Vou espernear e lutar até você morrer; E no lago de fogo e enxofre você vai arder. Abaixo Carpathia, seu farsante, velhaco e indecente!
Depois de olhar no espelho de Eleazar Tiberias, Chang correu ao centro de tecnologia, onde saltou e gritou de alegria, exultando em companhia de Abdullah e Naomi.
Após algum tempo, eles lhe mostraram o vídeo de Albie, que o deixou triste. Apesar de ter saído recentemente do palácio, Chang ficou atônito diante do atrevimento da CG de levar ao ar uma notícia contendo uma mentira tão infamante sobre Chloe. Ele gostaria de saber se os simpatizantes da CG acreditariam em tal besteira. Naomi, porém, lhe mostrou vários e-mails vindos de judaístas do mundo inteiro comprovando que muitas pessoas passariam a necessitar de confirmações e ser lembradas de que o demônio é o pai da mentira.
- Os redatores desta seção - Naomi disse a Chang - estão elaborando respostas contundentes para as perguntas mais comuns. Elas serão transmitidas para os digitadores, que poderão escolher as mais apropriadas e enviá-las imediatamente.
Naomi pediu permissão a um redator para imprimir uma lista atualizada das respostas e mostrou-a a Chang.
A única parte da notícia que está correta é o nome e a idade de Chloe e o fato de que ela é filha de Rayford e esposa de Cameron "Buck" Williams. Embora seja verdade que Chloe estudou na Universidade de Stanford, ela nunca foi radical nem expulsa. Abandonou o curso após o Arrebatamento, mas suas notas alcançaram a média de 3,4 e ela participou ativamente de assuntos relacionados aos estudantes.
Rayford Steele trabalhou, mesmo depois de convertido, como piloto de Nicolae Carpathia e forneceu informações valiosas à causa dos seguidores de Cristo no mundo inteiro. Ele nunca foi demitido e jamais foi acusado de insubordinação ou de embriaguez durante os vôos. Demitiu-se do cargo depois que sua segunda esposa foi morta em um acidente aéreo.
Os judaístas não são, de forma alguma, os "últimos focos de resistência à Nova Ordem Mundial". Muitas facções de judeus e muçulmanos, bem como ex-grupos da milícia, principalmente dos Estados Unidos Norte-americanos, ainda se recusam a aceitar a marca de lealdade ao supremo potentado e são obrigados a viver na clandestinidade por medo de perder a vida.
Cameron Williams foi, realmente, um famoso jornalista americano que também trabalhou diretamente para o potentado, mas ele se demitiu, e não é verdade que "perdeu o emprego em razão de diferenças no estilo de administração". Quanto à revista clandestina impressa e também divulgada pela internet, com "circulação limitada", essa afirmação é, naturalmente, uma questão de ponto de vista. A Verdade circula entre as mesmas pessoas que são doutrinadas diariamente pelo Dr. Tsion Ben-Judá, cujo número chega a mais de um bilhão.
Rayford Steele, Cameron Williams e Chloe Williams não são "procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo". O Comando Tribulação reconhece uma morte perpetrada por Cameron Williams e duas por Rayford Steele, as duas em defesa própria.
A Cooperativa Internacional de Mercadorias, dirigida pela Sra. Williams, nunca contrabandeou mercadorias, nem as vende para obter qualquer tipo de lucro. Simplesmente faz permutas para beneficiar seus membros.
O casal Williams não amealhou fortuna alguma no mercado negro. A bem da verdade, a cooperativa existe graças à generosidade de seus membros.
A Sra. Williams nunca abortou nem perdeu uma criança. Ela engravidou apenas uma vez, e dessa gravidez nasceu um filho, hoje com três anos e meio de idade. O casal Williams jamais alegou que seu filho fosse divino ou que tivesse poderes especiais, embora acreditem sinceramente que Nicolae Carpathia é o anticristo e que Jesus Cristo dominará Carpathia um dia e estabelecerá seu reino aqui na Terra.
Uma pessoa que teve um contato rápido com a Sra. Williams depois de sua captura confirmou que ela está determinada a não negociar com a CG, e esta é a política do Comando Tribulação. Além de não oferecer nada em troca para evitar a sentença máxima, ela já provou várias vezes no passado sua disposição de morrer pela causa de Cristo.
Não há prova alguma de que a Sra. Williams tenha fornecido informações sobre o ativista do Comando Tribulação Al Basrah, nem existem provas de que ele cometeu suicídio.
- Isso vai servir para alguma coisa? - perguntou Chang.
- Sim, para o nosso pessoal - respondeu Naomi. - Até mesmo as pessoas que já conhecem a verdade querem ser tranqüilizadas. Os outros estão preocupados com o agrupamento das tropas no vale de Jezreel.
- O que está acontecendo em San Diego?
- Quase nada até a chegada do capitão Steele e do Sr. McCullum, que deve ocorrer a qualquer momento. Estamos nos preparando para a chegada de, pelo menos, 200 pessoas nos próximos dias. Elas poderão nos contar alguma coisa. Você conversou com sua irmã recentemente?
- Não. Mas tenho pensado em ligar para ela, agora que tenho novidades para contar.
- Ela também tem novidades para lhe contar.
- Que novidades?
- Ah!, não quero estragar a surpresa.
- Naomi!
- Não, não posso. Estou ansiosa por conhecê-la e não quero cometer uma falha logo no início e trair a confiança dela.
- Ela lhe contou alguma coisa que deixou de me contar?
- Não exatamente. Mas minha função não permite que eu passe informações que outras pessoas não devem saber.
- Por exemplo?
- Mensagens aos líderes. Em vez de pedirmos que eles venham ao centro e as leiam diretamente na tela do computador, nós as imprimimos e as entregamos pessoalmente.
- E foi numa dessas mensagens que você ficou sabendo alguma coisa sobre minha irmã que ela não quis me contar?
Naomi assentiu com a cabeça.
- Bem, eu posso resolver isso rapidamente - ele disse, pegando seu celular. - E quando você terá alguns minutos para mim?
- Pode ser agora - ela respondeu. - Mas tenho apenas alguns minutos. O dia de hoje vai ser muito agitado.
- Você está me devendo uma história.
- A minha história, você quer dizer? A história diz respeito a meu pai e a mim, mas, como não é longa, vou ter tempo para contá-la.
- Voltamos a conversar daqui a dez minutos - disse Chang, digitando o número do telefone da irmã.
- Alô, Chang - disse Ming. - Perdoe-me por estar sussurrando, mas estou tomando conta de Kenny Bruce, e só agora ele conseguiu dormir.
- Eu só queria saber como você está e como vão as coisas aí.
- Tenho certeza de que você sabe.
- Sim. Tenho novidades para você.
- Conte-me, irmão.
- Deus eliminou a marca da besta de minha testa.
- Louvado seja Deus! Quero que me conte tudo! Estou ansiosa para ver você novamente.
Ele contou o que acontecera.
- Foi maravilhoso demais, Chang. Que pena isso ter acontecido em um dia tão triste.
- Sim, e você também tem uma novidade para me contar, não?
- Do que você está falando?
- Não faço idéia. Foi só um palpite.
- Ah!, Chang. Ree me pediu em casamento, e eu pedi ao Dr. Ben-Judá que realize a cerimônia quando chegarmos aí.
- Vou fazer o reconhecimento da área - disse Buck -, para ver se eles poderão aterrissar com segurança.
George, sentado ao volante do Hummer, olhou de esguelha para Buck.
- Não havia ninguém na área quando saímos do esconderijo, não vimos pessoa suspeita alguma no caminho e ninguém nos seguiu. Nos últimos 800 metros, rodamos em estrada de terra e acendemos os faróis apenas para saber se estávamos no rumo certo. Buck, a pista aérea é muito mais segura do que já foi.
Buck suspirou fundo e sacudiu a cabeça.
- Desde quando eu passei a ser cauteloso? O militar é você.
- Existe cautela e prudência, e há paranóia - disse Sebastian. - Sei que eles pegaram Chloe, mas não estavam vigiando ninguém. A culpa foi dela. Sinto muito, mas seu sogro disse que ela reconheceu a culpa. E essa história de Chloe ter se aventurado a sair...
- Mas por que ela saiu? Eu vi os caras. Ela também deve ter visto. E eles a pegaram.
- Eles deviam estar fazendo uma simples verificação de rotina. Você mesmo disse que pareciam entediados.
- Mas agora não estão mais entediados, estão?
- Não, Buck, agora eles não estão entediados. Vou estacionar no final da pista. Se quiser andar um pouco pela mata até a chegada deles, fique à vontade.
- Você não vai me acompanhar?
- O chefe é você. Se quiser que eu o acompanhe, tudo bem. Mas você disse claramente: "Vou fazer o reconhecimento da área." Bem, estou deixando que você faça o reconhecimento da área.
- Venha comigo.
- É uma ordem?
- Estou pedindo como amigo.
- Isso não é justo, Buck. Não tente me convencer.
- Ora, vamos. E se eu descobrir alguma coisa? Você nunca se perdoará.
- Você é mesmo um caso perdido.
Buck sabia que Sebastian tinha razão. A verdade é que ele estava fragilizado e precisava fazer alguma coisa. Estava pronto para invadir a sede da CG em San Diego, disparando uma rajada de metralhadora, para resgatar Chloe.
- Você sabe que Rayford deve estar pronto para ir atrás de Chloe - disse Buck, enquanto eles caminhavam pela mata, com fardas de camuflagem, cada um carregando uma Uzi do lado.
- Mas ele e Mac passaram quase 16 horas no ar, provavelmente revezando-se no comando. Esses caras vão precisar descansar um pouco.
- Mac já ficou sabendo do que houve com Albie. Deve estar ligado e pronto para partir.
- Ele vai querer voltar a Al Basrah para descobrir o que realmente aconteceu. De qualquer forma, Buck, se planejarmos uma invasão, quando vamos fazer isso? E quem vai levar nosso pessoal para Petra nesse meio tempo?
- Pensei que Rayford fosse encarregar Lionel disso.
- Lionel vai organizar e fornecer o necessário, claro. Mas temos de liderar essas pessoas e providenciar para que tudo funcione.
Buck deu um tapa em um mosquito.
- O que estamos fazendo? Não há nada aqui. De quem foi a idéia? Você ouviu o barulho de um jato?
- Não. Já que estamos aqui, vamos fazer alguma coisa.
- Você quer procurar alguma coisa para fazer?
- Não quero perder tempo, só isso. Não podemos nos afastar muito da pista de pouso.
De repente, Buck foi envolvido por uma nuvem de insetos. Ele soltou a Uzi, deixando-a dependurada no cinto, e começou a bater na cabeça e no rosto com as duas mãos.
- Vamos dar o fora daqui - ele disse.
Quando os dois saíram da mata, estavam mais ou menos no ponto intermediário da pista.
- Agora vamos ter de caminhar até o fim da pista quando eles chegarem - disse George.
- Vamos já para lá - disse Buck. - Você pode ocupar seu tempo me ajudando a planejar o ataque.
- Na sede da CG?
- Onde mais?
- O que você sabe sobre aquele lugar?
- Como assim? Acabamos de passar por lá. Você viu.
- Buck, nenhum de nós entrou lá. Sei que o prédio tem quatro pavimentos e um porão, mas não sei se os prisioneiros ficam no porão. Você sabe?
- Não, mas lembro que havia grades nas janelas debaixo.
- Tudo bem. Isso ajuda. Mas quanto mais você sabe, mais certeza tem de que não sabe nada.
- O que deve haver dentro daquele mostrengo?
George parou.
- Muito bem, preste atenção. Vou dar minha opinião sobre a sede da CG em San Diego. Sei que é uma das maiores dos Estados Unidos Norte-americanos, mas não tenho idéia de quanta gente trabalha lá. Você tem?
- Não.
- Só sei que ela tem quatro pavimentos e um porão, mas não sei onde ficam as celas. Você sabe?
- Não.
- Imagino que eles tenham celas separadas para homens e mulheres, mas não tenho certeza. Você tem?
- Não.
- Bem, se tiverem celas separadas, os homens e as mulheres ficam no mesmo pavimento ou em pavimentos diferentes?
- Não sei dizer.
- Você está vendo que não sabemos nada, Buck? Absolutamente nada. Uma operação militar, principalmente um ataque de surpresa, é complicada e exige planejamento meticuloso. Temos um único objetivo que é tirar Chloe viva de lá. Mas, para isso, precisamos infiltrar alguém lá.
- Não podemos infiltrar ninguém lá!
- Então, como vamos fazer, Buck? Pense, homem. Pense no que precisamos saber antes de invadir o local. Será que a CG separa os prisioneiros mais importantes dos comuns? E se separa, onde eles ficam?
- Está certo. Você já deu sua opinião.
- Eu nem comecei ainda, Buck. Vocês de fora acham muito bonito o treinamento militar, mas não sabem metade da história. É preciso ter bom senso. Além de sabermos exatamente onde Chloe está, temos de saber qual é o caminho mais curto para entrar e sair. Temos de saber que portas e janelas são menos vigiadas. Temos de saber quanta munição vamos ter de levar. Buck, você sabe o que isto significa? Sabe o que determina a quantidade de munição que devemos levar?
- O tamanho e a resistência das portas e janelas?
- Mais ou menos. Mas o problema é o pessoal de lá, companheiro. Quantos vão cruzar nosso caminho e que armas estarão empunhando? Se você me dissesse que Chloe está no canto nordeste do segundo pavimento e quantos homens da CG eu teria de enfrentar para chegar lá, se me dissesse quantas pessoas estão vigiando e que tipo de armas elas têm, eu seria capaz de planejar uma missão para você. Caso contrário, vamos ficar rodando no mesmo lugar, fazendo suposições e levando adiante uma missão que, provavelmente, será um fracasso total.
Eles chegaram ao final da pista e sentaram-se na grama, no escuro.
- E como deve ser feita uma invasão desse tipo?
George colocou a arma no colo.
- Nunca é fácil, mas existem pré-requisitos. Nos velhos e bons tempos, quando as pessoas não eram identificadas por uma marca, a gente podia infiltrar alguém em determinado lugar. Alguém que tivesse um grande conhecimento do prédio, talvez acesso às plantas, ao planejamento do piso e aos sistemas de encanamento, eletricidade e ventilação.
- Eu me sinto de mãos atadas, George. O que vamos fazer?
Buck avistou as luzes de pouso antes de ouvir o ronco dos motores do Gulfstream. Ele sinalizou com uma lanterna possante que a área estava livre. Em poucos minutos, o avião estava no chão e escondido, e Rayford e Mac desembarcando.
Os quatro cumprimentaram-se com um aperto de mão, sem dizer nada. Em seguida, Buck e Rayford se abraçaram. Nenhum deles demonstrou emoção, mas o abraço foi mais apertado e mais longo do que nas vezes anteriores. Eles transferiram as bagagens para o Hummer, mas, antes de entrarem no carro, Mac disse:
- Eu me sinto 20 anos mais velho. Será que temos de sentar em outro lugar apertado imediatamente?
- Não temos pressa - disse Rayford. - Estique as pernas.
- Eu não me importo de retardar um pouco a volta para casa - disse Buck. - Não vimos atividade alguma da CG hoje, mas com certeza eles vão bisbilhotar por lá mais tarde.
Rayford disse:
- Você não está imaginando que Chloe conseguiu despistá-los quando disse que estava a uns 50 quilômetros de casa?
Buck riu.
- Acho que não, mas você sabe que ela deve ter tentado. Na verdade, vai ser interessante ver que lugar eles vão vigiar esta noite. Com isso, vamos ter uma idéia de onde eles a pegaram.
- Agora você está raciocinando - disse George. - Vamos ter uma idéia do tempo que eles vão necessitar para descobrir o esconderijo e do tempo que precisamos para sair de lá.
- Eu não devia ter me afastado muito de lá - disse Naomi, sentada ao lado de Chang perto de um pilar que fazia parte do pórtico da Tumba das Urnas. - Se eu tivesse alguém como você para me substituir no trabalho, eu poderia ir mais longe ainda.
- Com quem? - Chang perguntou, e ela riu. - Falando sério, estou curioso para conhecer sua história.
- Eu adoro essas lembranças, Chang, apesar de minha história ser triste. Meu pai era um homem de negócios, proprietário de um restaurante, com várias filiais na área que contorna o Estádio Teddy Kollek. Você conhece Jerusalém?
- Não.
- Ele era honesto e bom e todos gostavam dele, o respeitavam. Isso é muito importante na minha cultura.
- Na minha também.
- Acho que a reputação de uma pessoa é importante em qualquer cultura. Para meu pai, era um orgulho ter um número tão grande de amigos e um negócio lucrativo. Ele proporcionava tudo o que minha mãe e eu necessitávamos. Também era um homem muito religioso e transmitiu esses princípios à família. Íamos à sinagoga todos os sábados. Conhecíamos as Escrituras. Amávamos a Deus. Creio que meu pai sentia orgulho disso, mas não um orgulho no mau sentido. Você entende o que estou dizendo?
Chang assentiu com a cabeça.
- Cerca de oito anos atrás - ela prosseguiu -, quando eu tinha 11 anos, minha mãe adoeceu. Câncer. Câncer no... bem, perdoe-me. Sou tímida demais para mencionar o local. Ainda não nos conhecemos o suficiente para eu lhe contar certas coisas.
- Está tudo bem.
- Ela ficou muito mal. Meu pai foi bom demais para ela. Tinha dinheiro e podia contratar alguém para ajudá-la em tempo integral. Mas não fez isso. Contratou uma pessoa por meio período e reduziu suas horas de trabalho pela metade, para poder passar as tardes e as noites com ela. Meu pai foi um exemplo maravilhoso para mim, e eu passei a querer ser mais prestativa ainda. Nós amávamos minha mãe, e meu pai dizia que considerava um privilégio poder servi-la da mesma maneira que ela nos serviu durante tantos anos. Ele a fez sentir-se feliz, apesar do sofrimento.
- Parece que ele é um homem maravilhoso.
- Ah!, ele é, Chang. Sempre foi. Pouco depois de meu 12º aniversário, o estado de saúde de minha mãe piorou e ele precisou interná-la em um hospital. Ela foi desenganada pelos médicos. Mas meu pai não acreditava na palavra "desenganada". Ele acreditava em Deus. Disse aos médicos e a qualquer pessoa que quisesse chorar antecipadamente a morte dela que nós lhes provaríamos o que ia acontecer. O "nós" incluía sua filhinha. Mas como poderíamos provar alguma coisa? Apenas orando. Deus faria sua obra e minha mãe seria curada.
Chang notou angústia na voz de Naomi, e ela se calou.
- Está bem - ele disse. - Termine a história em outra ocasião.
- Não - ela disse, enxugando os olhos. - Parece que tudo aconteceu recentemente. Vou terminar. Quero terminar. Uma noite, quase madrugada, meu pai chegou do hospital muito aborrecido. Eu não o acompanhava ao hospital à noite, somente à tarde. Eu lhe perguntei: "Pai, o que houve? A mamãe piorou?", e ele respondeu: "Não, mas penso que ela pode piorar por minha causa."
- Aquilo me assustou. Ele nunca discutiu com minha mãe, jamais disse uma palavra maldosa sobre ela, pelo menos na minha frente. Minha mãe disse alguma coisa a meu pai, e ele imaginou que ela estivesse delirando por causa da medicação que estava recebendo. Ela chorou e disse que isso não era verdade, que ela acreditava no que havia lhe contado. Eu perguntei: "O que foi, papai, o que foi?" Ele começou a chorar e disse que levantou a voz para ela, que a mandou parar de falar bobagens.
- "Eu fiz sua mãe chorar", ele me contou, chorando, chorando alto. "Magoei a mulher que amo de todo o coração, que está morrendo diante de meus olhos." E eu perguntei: "Mas, papai, a mamãe também o magoou. O que ela disse?" Ele respondeu: "Ela me disse: 'Jesus é o Messias'. Eu quis saber onde sua mãe tinha ouvido tamanha heresia, mas ela não respondeu. Tinha medo de que eu criasse problemas para alguém, e confesso que eu faria isso!"
- Eu não sabia o que pensar. Levei um susto quando meu pai repetiu as palavras dela. Ele disse à minha mãe que me proibiria de vê-la novamente caso ela continuasse a acreditar nessa bobagem, mas aquilo só serviu para me fazer chorar. Naquela mesma noite, fomos chamados para comparecer ao hospital. Disseram que se quiséssemos vê-la viva, deveríamos ir imediatamente.
- Meu pai chorou durante todo o percurso, culpando-se por ter sido rude com ela. "Eu fui o causador disso tudo!", ele repetia sem parar. Suplicou a Deus que poupasse a vida dela, fez promessas. Nunca vi meu pai tão arrasado. Estávamos ao lado de minha mãe quando ela morreu. Suas últimas palavras foram dirigidas a nós. Digo nós, Chang, porque ela me fitou nos olhos e, em seguida, fitou os olhos de meu pai, e disse: "Vou para junto de Deus. Estudem as profecias. Estudem as profecias."
- Puxa!
- Eu não aceitei Jesus da maneira que você imagina. A conclusão lógica seria esta: meu pai e eu fomos para casa, estudamos as profecias e passamos a acreditar no que minha mãe acreditava. Mas não aconteceu dessa maneira. Meu pai ficou tão angustiado que se revoltou contra Deus e deixou de estudar as Escrituras. Paramos de orar. Paramos de ir à sinagoga.
- Ele ainda me amava e cuidava de mim, mas tentava sufocar o sofrimento no trabalho. Seus amigos não podiam fazer nada, apenas sentir pena dele, porque meu pai não era mais o mesmo homem de antes.
- Eu não conseguia esquecer as últimas palavras de minha mãe, mas meu pai proibiu-me de estudar qualquer trecho da Bíblia, principalmente as profecias. Fiquei triste, muito triste, porque minha vida mudou radicalmente com a perda de minha mãe e com a mudança drástica ocorrida na vida de meu pai. Todas as vezes que eu mencionava que Deus poderia nos ajudar, que encontraríamos conforto na sinagoga ou que a Bíblia nos forneceria respostas, ele não queria ouvir.
- Eu tinha 13 anos quando ocorreram os desaparecimentos. Aquilo chamou a atenção de todo mundo, até de meu pai. Assustados demais, voltamos a recorrer a Deus, voltamos à sinagoga, voltamos a ler as Escrituras. Comecei a estudar as profecias. Apesar de minha pouca idade, passei a compreender aquilo que minha mãe compreendeu quando alguém lhe disse aquelas palavras. Meu pai não queria admitir, mas acho que ele também passou a compreender.
- Quando ouvimos falar que o conhecido estudioso da Bíblia, o Dr. Tsion Ben-Judá, ia aparecer na TV, em rede internacional, para apresentar suas conclusões a respeito do Messias com base nas profecias bíblicas, assistimos ao programa juntos. No dia seguinte, todos estavam comentando sobre o problema que o Dr. Ben-Judá criou para si quando declarou que o Messias já tinha vindo ao mundo, mas meu pai e eu ficamos empolgados demais com o que ouvimos. Ele encontrou um Novo Testamento, e começamos a estudá-lo todas as noites.
- Quando chegamos à história do judeu chamado Saulo, que se tornou Paulo, meu pai ficou muito entusiasmado. Enquanto líamos cada vez mais depressa e trechos cada vez mais longos, passamos a acreditar que Jesus era o Messias e que Ele poderia perdoar nossos pecados. Memorizamos 1 Coríntios 15.1-4: "Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de tudo vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras."
- Meu pai e eu queríamos fazer tudo o que Paulo havia feito. Aceitar aquela verdade mediante a qual Paulo disse que poderíamos ser salvos. Não sabíamos o que dizer ou fazer. Simplesmente oramos e contamos a Deus que acreditávamos naquelas palavras e queríamos aceitá-las. Depois de algumas semanas de leitura foi que compreendemos o que havíamos feito e o que aquilo tudo significava. Um dia, meu pai encontrou, no final do Novo Testamento, um guia para a salvação, mencionando que devíamos aceitar, crer e confessar. Estudamos a parte que se chama estrada para a salvação, aqueles versículos que falam que todos nós pecamos e carecemos da glória de Deus, que o salário do pecado é a morte, mas que o dom de Deus é a vida eterna por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.
Chang continuou no mesmo lugar, olhando para ela.
- As histórias nunca são iguais - ele disse. - Já ouvi muitas histórias sobre pessoas que se converteram, e cada uma é diferente da outra. Quero dizer, todas chegam ao mesmo lugar, mas quase sempre começaram por ocasião dos desaparecimentos. No seu caso, a responsável por tudo foi sua mãe.
- Não vejo a hora de voltar a vê-la, Chang. E não vai demorar muito.
Chloe não sabia se estava cochilando ou desmaiada quando Florence voltou à meia-noite, fazendo muito barulho. Ela enfiou a barra de energia, com toda força, entre as grades da cela e deixou-a cair no chão. Chloe queria agarrar a barra, rasgar a embalagem e devorá-la de uma só vez, mas o orgulho ainda era maior. Ela se virou para olhar, mas não saiu do lugar.
- Seu jantar, querida - disse Florence. - Recomendo um vinho branco para acompanhar, do tipo água de torneira.
Chloe só se movimentou depois que ela saiu. Comeu metade da barra, que não tinha gosto de nada. Mas aprendera que o tempero mais saboroso era a fome. Embrulhou a outra metade, determinada a reservá-la para o desjejum. Mas as poucas calorias que acabara de ingerir serviram apenas para estimular seu apetite. Ela aguardaria meia hora e comeria o restante.
Embora Chloe ainda estivesse fraca, a barra serviu para saciar um pouco a fome e ela conseguiu cochilar.
Sonhou primeiro com sua família. Buck e Kenny estavam perto o suficiente para que ela pudesse sentir o cheiro deles, mas não podia alcançá-los, nem tocá-los, nem beijá-los. A seguir, as expressões dos rostos deles se modificaram, demonstrando horror e repulsa ao vê-la. Teria ela a marca na testa? Estaria terrivelmente feia? Eles fizeram uma careta e lhe viraram as costas. Ainda sonhando, Chloe correu até um espelho e descobriu que estava sem cabeça. Desmaiou de susto e, quando caiu no chão, despertou.
Sentou-se no catre, com as mãos no rosto, balançando o corpo. Aquilo ia ser mais difícil do que ela imaginara. Mas não se deixaria enganar e, mesmo sob tortura, não forneceria nenhuma informação à CG.
Ela apenas orou pedindo a Deus que, se não fosse libertada de alguma forma - e essa missão seria praticamente impossível -, sua execução fosse rápida.
- Tomei uma decisão muito difícil, Buck - disse Rayford. Eram duas horas da madrugada no esconderijo. Rayford estava em seus aposentos conversando com Buck, que passaria a noite ali. Ming se transferira para a casa de Buck e Chloe para que Kenny pudesse dormir em sua própria cama. Sebastian e um jovem companheiro estavam no posto de vigia.
- Eu não vou querer ouvir qual é a decisão, vou? - perguntou Buck.
- Provavelmente não. Mas, por um motivo ou outro, Deus me colocou nesta posição. Embora eu seja tendencioso e tenha quase os mesmos interesses que você, necessito assumir a liderança deste caso. Mac está dormindo. Quando ele estiver completamente descansado, seguirá para Wisconsin a fim de pegar Zeke. Ele vai deixá-lo em Petra para começar a trabalhar em nossa próxima missão.
Buck abaixou a cabeça.
- Nossa próxima missão não será aqui?
- Ouça, Buck. Mac vai esclarecer o assunto em Al Basrah e se mudará para Petra. Quando ele estiver a caminho de lá, vou lhe pedir que ligue para Otto Weser, o sujeito de quem lhe falei. Otto está no palácio e talvez tenha condições de descobrir o que está acontecendo em Al Hillah. A assistente de Carpathia sabe que Nicolae está planejando uma reunião em Bagdá com os dez chefes de Estado do mundo inteiro. Acreditamos que será nessa ocasião que ele ajuntará os efetivos militares de todas as outras regiões com os exércitos que já estão se enfileirando em Israel.
- Sinto muito, pai, mas no momento não estou nem um pouco interessado no que está acontecendo longe daqui. Parece que todas as atenções estão voltadas para as atividades de lá. Enquanto isso, deixamos Chloe perecendo aqui.
- Buck, nós dois estamos sem dormir há muito tempo. Acredite em mim. Tenho chorado, orado e me preocupado tanto quanto você, o que é...
- Duvido.
-...muito desgastante. Preciso descansar, e você também.
- Pai, não vou conseguir dormir.
- Eu não estou falando em dormir. Tire essa roupa, deite-se e estique o corpo, coloque os pés para cima. Descanse um pouco, mesmo que não consiga desligar. Precisamos de você inteiro, Buck.
- Com isso, você está querendo me dizer que não vou acompanhar George esta noite.
- Não vou permitir que George vá, Buck. Não queremos prejudicá-lo de maneira alguma. Ele reuniu um grupo que pode seguir o rastro dos homens da CG se eles aparecerem esta noite. Só queremos saber que área eles estão começando a vasculhar. Tenho a impressão de que nosso pessoal já começou a aprontar-se para sair daqui. Lionel já providenciou os aviões e os pilotos. Temos de estar preparados para partir a qualquer momento.
Buck inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos.
- Eu confio em você, pai, e sei que deseja o melhor para Chloe. Mas não estou entendendo. Quando vamos começar a investigar a sede da CG, descobrir como entrar lá ou como encontrar alguém que conheça tudo sobre o local?
- Nós dois podemos tentar chegar o mais perto possível de lá, amanhã à noite. Se George estiver livre, vamos levá-lo.
- Estamos perdendo tempo. Rayford endireitou o corpo e suspirou.
- Minha prioridade é preservar os recursos de que dispomos. E isso inclui o elemento humano. Nossas mentes nos dizem que ainda temos vigor físico, mas se começarmos a nos desgastar desta maneira, vamos ficar mais lentos, vamos agir com precipitação e pouca eficiência. Confie em mim, Buck. Quero ver Chloe fora de lá tanto quanto você, mas ela não é a única pessoa sob nossa responsabilidade.
- Mas eu quero ser informado imediatamente assim que o grupo de George descobrir alguma coisa sobre...
- Não. E tem mais. Dei uma ordem para que ninguém nos perturbe até a metade da manhã, a não ser em caso de emergência.
- Pai!
- O fato de você saber de alguma coisa e não poder agir não vai servir para nada. Chega de conversa. Vamos descansar um pouco.
Ao meio-dia, quando o sol estava a pino, Chang preferia trabalhar internamente, da mesma forma que todos moradores de Petra. Ele descobrira, por meio de erros e acertos, que podia ter acesso a tudo o que se passava em Nova Babilônia, a partir de Petra. O problema era que todos os executivos haviam partido para Al Hillah.
Depois que o plano de instalação de uma escuta clandestina no palácio fracassou, ele foi encarregado de descobrir um meio que permitisse a Otto Weser passar-lhe as informações. Para conseguir isso, foi necessário saber que equipamentos o pessoal deixou no palácio e se os tais equipamentos permitiriam que as conversas fossem ouvidas em Petra.
Chang preocupava-se por estar demonstrando abertamente seu interesse por Naomi. Queria passar o tempo todo ao lado dela. Decidiu não fazer conjecturas e não sair de perto de seu computador na hora do almoço. Estava com fome, mas podia aguardar o maná da noite.
Ele ficou emocionado quando Naomi aproximou-se timidamente com um cesto na mão.
- Ei, trabalhador! - ela disse. - Não quero que morra de fome.
- Oi - ele disse.
- Eu trouxe alguns bolos de mel para você.
O hino "Salve Carpathia" passara a fazer parte da rotina de Chloe. Ela calculou que deveria ser quatro horas da madrugada. Tentara tapar os ouvidos enquanto cochilava, mas quando o sono chegou, suas mãos escorregaram. Foi por isso que ela ouviu a porta ser aberta e prendeu a respiração.
Pelo som dos passos pesados e do tilintar das chaves, ela imaginou que fosse Florence. O que aquela mulher queria?
Chloe percebeu que ela estava perto da cela e sentiu cheiro de comida. Cheiro de hambúrguer com todos os ingredientes. E o som de líquido sendo sorvido por um canudinho. Para Chloe, aquilo parecia ser o néctar dos deuses.
Ela se virou lentamente e, sob a iluminação fraca, viu Florence sentada no chão e encostada na cela. Chloe apoiou-se em um cotovelo e respirou fundo.
- Está acordada? - Florence perguntou.
- Penso que sim.
- Quer que eu desligue aquela música?
- E se eu quiser? Você vai se importar?
- Não me provoque novamente.
- Se você quer saber mesmo se quero, minha resposta é sim, quero que desligue a música.
- Eu não sou uma pessoa tão má quanto você imagina - disse Florence.
Ela colocou perto da cela a metade do hambúrguer que havia sido mordido, metade da bebida e um copo alto de papel, com tampa. Em seguida, caminhou em direção à porta. A música parou.
Quando Florence retornou, Chloe disse:
- Obrigada.
- Hã-hã - ela resmungou, sentando-se no chão novamente. - Estou comendo um hambúrguer.
- Eu sei.
- Eu trouxe uma coisa para você.
- Não acredito.
- Está vendo? Por que você é assim o tempo todo? Será que uma pessoa não pode ser gentil com a outra?
- Como eu gostaria que isso fosse verdade.
- Bem, seu desejo foi atendido, se é que você gosta de chocolate.
- Quem não gosta?
- Que tal um chocolate batido com leite?
- Eu ainda devo estar sonhando, certo? A música foi desligada e agora me oferecem um chocolate no meio da noite. O que aconteceu com você?
- Eu já disse. Não sou tão má assim. Ninguém é.
Conheço alguém que é.
- Se for verdade que você vai me oferecer um chocolate, só posso lhe dizer que fico muito agradecida.
- Eu também sou mãe.
- Verdade?
- Hã-hã. O nome dele é Brewster. Está com quase três anos.
- Você tem uma foto dele?
- Tenho! Você quer mesmo ver?
- Claro.
- Espere um pouco. Não posso acender as luzes quando estou sozinha com você.
Ela terminou o sanduíche, deixou o chocolate no chão e afastou-se para jogar o resto no lixo. Chloe queria tanto aquele chocolate que chegou a tremer. Será que poderia conquistar a simpatia daquela mulher, de mãe para mãe?
Florence saiu e acendeu as luzes. Quando retornou, a porta foi trancada pelo lado de fora. Chloe já sabia que aquilo fazia parte da regra. O copo com o chocolate não poderia passar pela malha entrelaçada da cela, portanto se a porta da cela fosse aberta, a outra teria de ficar trancada. Mas aquilo fez Chloe pensar que Florence mentiu quando disse que estava sozinha. Caso contrário, como faria para sair dali?
- Se eu destrancar esta cela, o que é totalmente contra as regras, você não vai abusar de minha bondade e fazer alguma coisa contra mim, vai? Sou maior e mais forte que você, mas mesmo que queira...
- Sim, eu sei. Jock já me contou. Nós duas estamos trancadas.
- Exatamente.
- Se eu ficar bem comportada e pegar o chocolate, e se você me trancar aqui nesta cela, como vai conseguir sair?
- Eu toco a campainha, e eles me deixam sair.
- Quer dizer que não estamos sozinhas.
- Bem, não, não depois que eu tocar a campainha.
- E se eles virem que você me entregou alguma coisa?
- Aí eu vou ficar encrencada. Por isso, se você quiser o chocolate, é melhor ser rápida.
- Eu quero.
- Fique onde está. Não se levante quando eu abrir a porta, se não eu tranco de novo.
Florence destrancou a cela, entregou o chocolate a Chloe, e trancou-a novamente. Foi a primeira vez que Chloe notou um sinal de emoção no rosto de Florence. Ela parecia nervosa, talvez assustada. Talvez entusiasmada por estar fazendo uma boa ação quando não deveria.
Chloe sorveu avidamente o chocolate e não ficou desapontada. O líquido ainda estava gelado, espesso, saboroso e, aparentemente, com uma quantidade exagerada de chocolate. Ou substancioso, conforme ela costumava dizer, rindo, às amigas quando alguma comida tinha um sabor muito acentuado.
Florence continuava em pé, observando-a.
- Puxa vida, moça. Veja o que está fazendo com seu estômago vazio. É melhor ir mais devagar.
- É o que vou fazer. Não quero congelar meu cérebro. Florence riu.
- E não se esqueça de me mostrar a fotografia de Brewster - disse Chloe.
- Ah! Vou mostrar. Assim que você terminar.
Por que não agora? Foi a pergunta que Chloe fez a si mesma enquanto sorvia mais um pouco do líquido. O açúcar e a cafeína a manteriam acordada, mas não havia acontecimento especial algum aguardando por ela de manhã. Talvez Jock aparecesse e saboreasse o desjejum na frente dela.
- Jock - disse Chloe, rindo sem motivo.
- O quê? - perguntou Florence.
- Ovos na minha frente.
- Do que você está falando?
- Jock. Jack. Jick. Jeck...
- Hein?
Chloe estava zonza. O copo começou a escorregar. Ela procurou segurá-lo com a outra mão para firmá-lo, mas o líquido caiu no chão e espirrou. Ela ainda teve tempo de lembrar-se de que aquilo era a maior tragédia que poderia ter acontecido e começou a chorar.
Seus olhos queriam fechar. Ela se forçou a mantê-los abertos e levantou o queixo para tentar enxergar Florence, que continuava no mesmo lugar, observando-a. Florence tocou a campainha. A outra porta foi aberta. Nigel e Jock entraram, empurrando uma maca.
- Vou limpar tudo - disse Florence, destrancando a cela.
- Excelente trabalho, Flo - disse Jock. - Adorei quando você disse que tinha um filho.
- Ora, meu bem, essa gente facilita nosso trabalho quando está com fome.
Buck foi despertado no meio da manhã por uma batida leve, porém insistente, na porta do quarto de Rayford. Ele esticou o braço e abriu-a, sem levantar-se do sofá-cama.
- Imaginei estar acordando seu sogro - disse Sebastian.
Foi nesse momento que Buck despertou completamente.
- Que horas são? - ele perguntou.
- Quase dez horas.
- O que houve? O que seus homens encontraram?
- Buck, tenho de obedecer à hierarquia.
- O quê? Você está brincando comigo? Não pode me contar o que está acontecendo com minha esposa?
- Eu me reporto a Rayford, Buck. E você também.
- Você sempre sai ganhando, George. Sabe de uma coisa? - Buck levantou-se do sofá-cama e bateu na porta de Rayford. - Sebastian está aqui e tem notícias para lhe dar, pai. Abra a porta.
Rayford apareceu, com ar sonolento.
- Ei, rapazes - ele disse. - Vocês conseguiram dormir?
- Da mesma forma que você - respondeu Buck. - Agora vamos ao que interessa.
Buck ajeitou os lençóis e os cobertores entre o assento e o encosto do sofá, fechou-o e sentou-se. Rayford também se sentou.
- Meu subordinado está aguardando no corredor - disse Sebastian. - Queria ter certeza de que vocês estavam apresentáveis.
- Mande-o entrar - disse Rayford. - Aqui estamos nós em trajes de dormir.
George abriu a porta.
- Razor! - ele chamou. - Pode entrar.
Razor era um rapaz hispânico, de pouco mais de 20 anos, com aparência de militar. Ele fez continência a todos, e Buck dispensou o protocolo, dizendo:
- Vamos, vamos. Somos só nós. O que você descobriu?
- Senhores, eu estava no posto de vigia, conforme todos sabem, e notei atividade no detector de movimento por volta das três horas. Uma pessoa do nosso grupo de três é mulher, portanto pedi a ela que verificasse o periscópio na residência do casal Williams, porque havia uma mulher sozinha lá... bem, com um bebê, e eu não queria passar por cima das regras...
- Estamos entendendo, Sr. Razor - disse Buck. - Por favor, prossiga.
- Sim, senhor. Ela verificou e relatou atividade do inimigo a uma distância de dois quarteirões do esconderijo. Também obteve permissão da Sra. Toy para que eu entrasse na casa.
Buck olhou de relance para Rayford, sacudiu a cabeça e fitou o chão. Por tudo o que é mais sagrado...
- Observei pessoalmente uma atividade semelhante e reuni meu pessoal. Saímos com fardas de camuflagem, rostos pintados de graxa e armas automáticas leves e possantes. Nosso objetivo era observar, chegar perto o suficiente para ouvir a conversa deles, se possível... e, se necessário, defender o esconderijo ou atrair o inimigo para uma área neutra, para dar aos ocupantes daqui...
- Tempo de fugir - complementou Buck. - Sim, e daí, o que aconteceu?
- Observamos dois pelotões da CG examinando a área. Aparentemente, eles haviam começado cerca de dois quarteirões a oeste e estavam seguindo naquela direção.
- O que significa que eles estavam se afastando em vez de aproximar-se daqui?
- Sim, senhor, mas as notícias não são tão boas assim. Observamos a direção que os homens seguiam e a velocidade de seus passos e conseguimos ficar lado a lado com eles. Os dois que me acompanhavam, caminhando escondidos no meio de arbustos, foram capazes de ouvir o que os homens diziam. Chegaram à conclusão que o objetivo daquela missão era recomeçar no ponto em que eles pararam e, dali em diante, vasculhar uma área mais ampla que leva ao local em que a Sra. Williams foi capturada. Eu calculo, Sr. Williams, que o ponto em que eles pararam é o mesmo que o senhor e o Sr. Sebastian observaram 24 horas antes.
- Estou orando para que você tenha seguido os homens até o tal ponto - disse Buck.
- Seguimos, senhor. Também ouvimos aqueles homens dizerem que amanhã à noite, na mesma hora, eles vão fazer o percurso de volta e passar por onde começaram, o que inclui o esconderijo novamente. Achamos que eles vão levar a tarefa até o fim e, se for possível, devemos sair daqui antes das duas horas de amanhã.
- Você já informou as pessoas certas? A mudança está sendo providenciada?
- Sim, senhor, mas ainda não terminei. Perto do local onde a Sra. Williams foi capturada, nosso pessoal encontrou a Uzi dela e a máscara de esquiar.
- O que você acha disto, Buck? - perguntou Sebastian.
- Que ela as escondeu.
- Mas nós também... pelo menos meus comandados... ouvimos dois homens da CG conversando sobre o que iam fazer com ela.
Buck não conseguiu conter-se.
- Por favor, recruta Razor, conte-me o que ouviu sobre o que eles vão fazer com minha esposa.
- Pela conversa deles, ela vai ser transferida, senhor.
- Quando?
- Dentro de uma hora, senhor. Entendemos que a transferência vai ser feita antes que Carpathia comece a convocar as tropas desta região.
- Vamos voltar ao assunto "dentro de uma hora", Razor - disse Buck. - Em uma hora a partir de agora ou daquele momento?
- Daquele momento, senhor.
- Está bem, mas, por favor, pare com esse "senhor". Sei que você foi militar, mas eu não fui, e isso está me deixando maluco. Você está me dizendo que Chloe foi transferida às quatro horas desta madrugada?
- Sim, senh...
- Para onde?
- Pelo que meu pessoal conseguiu entender, senh... isto é, Sr. Williams, eles disseram "algum lugar perto do leste".
- Algum lugar perto do leste. - Buck levantou-se, abriu as duas mãos e olhou para Rayford e George. - Eles a levaram para algum lugar perto do leste, o que deve ter sido feito por avião... - Buck olhou para seu relógio. - ...seis horas atrás.
- Diga-me uma coisa, Razor, nenhum de vocês pensou em ir até a sede da CG para ver se seria possível abortar a transferência?
- Não, senhor.
- Ninguém pensou que se tratava de uma emergência, que valia a pena chamar o Sr. Steele ou Sebastian ou eu?
- Quando ouvimos a conversa, senhor... perdão... a transferência já devia estar sendo feita.
- Você supôs.
- Sim, foi uma suposição.
- No único momento em que, provavelmente, eles estavam mais vulneráveis, tirando uma mulher da cela, levando-a para fora do edifício, caminhando ao ar livre até um veículo que a conduziria ao avião... estávamos todos dormindo.
- Peço que me desculpe, senhor, mas em meu julgamento não havia nada que pudesse ser feito. Já era tarde demais quando ouvimos a conversa e, ah, o horário em que a operação seria feita.
Buck não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro, olhando com ar de expectativa para os três.
- Dormimos no ponto - ele disse. - Tivemos uma boa oportunidade, mas estávamos descansando.
- Por favor, Buck - disse Rayford, mas Buck não se acalmava.
- Algum lugar perto do leste - ele repetiu, imitando Razor. - Isso reduz nossas chances, não? Talvez se começarmos a caminhar na direção leste, poderemos alcançá-los, não?
- Obrigado, Razor - disse Sebastian. - Se não houver mais nada a relatar, pode ir.
- Obrigado, senhores - disse Razor.
- Ah! Sim, obrigado por nada - disse Buck.
- Eu lamento muito, senhor, se...
- Ora, pode ir - disse Buck.
Rayford fez um sinal com a cabeça para dispensar o rapaz, que disparou porta a fora.
- Buck - disse George -, provavelmente ele tomou a decisão certa. Correr até lá de madrugada, na esperança de chegar a tempo de fazer alguma coisa, sem ter um plano...
- Pelo menos poderíamos ter feito uma tentativa, não?
- Buck chutou uma cadeira que foi parar na cozinha e bateu na mesa e no armário. - Acho que se eu quiser ver minha esposa novamente, vou ter de arregimentar um comando de um homem só.
- E ser morto - disse Rayford. - Você já desabafou. Agora chega.
- Não vou parar enquanto não tiver Chloe de volta.
Chloe havia caído da cama de metal, em cima do chocolate esparramado no chão. Incapaz de impedir a queda, ela bateu com a cabeça no ladrilho. Permaneceu deitada desajeitadamente sobre uma perna, com a cabeça zonza e lutando para não dormir. A substância misturada ao chocolate devia ser um tranqüilizante muito forte porque ela queria apenas dormir o sono profundo dos drogados. Aquilo a fez lembrar-se de como se sentiu depois do parto, quando Kenny nasceu.
Florence destrancou a cela e ajoelhou-se para limpar a sujeira. Rolou o corpo de Chloe e puxou-a pelo pé para que as duas pernas ficassem esticadas. Segurou o corpo de Chloe com uma das mãos enquanto limpava o chão. Quando a soltou, Chloe rolou no chão e ficou deitada de costas.
Seus olhos se fecharam e sua respiração passou a ser profunda e regular, mas ela orava desesperadamente.
- Deus, eu preciso continuar consciente. Preciso ouvir. Ajuda-me a ouvir.
- O chão já está seco? - Jock perguntou.
- Só mais um instante - respondeu Florence.
- Coloque o lençol no chão, Nigel, e segure-a pelos tornozelos.
Chloe sentiu as mãos de Jock em suas axilas e as de Nigel segurando-lhe os pés.
- Em três! - disse Jock, e eles a levantaram do chão com a ajuda do lençol e a colocaram na maca. Chloe ficou feliz por estar com os olhos fechados. Ela não tinha equilíbrio e sentia que poderia cair da maca a qualquer momento.
- Para o caminhão imediatamente.
A maca rodou atravessando a sala maior, passou pela porta e parou. Chloe ouviu as portas do elevador sendo abertas. Ela foi empurrada para dentro, e o elevador subiu um andar. Em seguida, ela estava do lado de fora do edifício. Não conseguia abrir os olhos por mais que tentasse. Com o corpo descoberto, ela sentiu o ar frio, mas alguma coisa a impedia de tremer. Queria encostar uma perna na outra e massagear os braços com as mãos, mas não podia se movimentar.
- Senhor, por favor. Eu preciso ficar acordada.
- Um carro fúnebre? - perguntou Nigel. - De quem foi a idéia?
- Minha - respondeu Jock, rindo. - As pessoas não vão olhar se pensarem que há um morto dentro.
- Você vai com ela até lá? - perguntou Florence.
- Vou - respondeu Jock, e Chloe notou orgulho em sua voz. - É meu dever ir até o fim.
- Quando vai ser? - perguntou Florence.
Chloe sentiu o veículo rodando.
- Ainda não sei. Eles vão querer extrair o máximo de informações dela. O passo seguinte é o soro da verdade.
- Isso sempre funciona, não?
- Geralmente.
Não desta vez, Chloe pensou, Deus, não permitas que eu diga algo que tu não desejas.
Ela estava imóvel, dos pés até a cabeça, mas Deus parecia ter atendido ao seu pedido de manter-se consciente. Podia ouvir, podia sentir cheiro. Não podia tocar nem ver, mas sentia o ar fresco da madrugada.
Aquela foi a viagem mais suave da qual ela se lembrava, uma viagem que durou menos de uma hora. De repente, a maca foi retirada do carro fúnebre, rodou uns cem metros e foi levantada do chão para subir por uma escada, que ela imaginou ser a de um avião. E quando os motores começaram a funcionar, ela sabia que estava certa.
Chloe ouviu as felicitações e despedidas de Nigel e Florence. Em seguida, Jock e, pelo jeito, outro homem a deitaram em vários assentos que tinham os braços levantados. Os homens amarraram-lhe o tronco e os joelhos com os cintos de segurança dos assentos.
Pelo som das vozes, Chloe imaginou que eles deviam estar sentados na fileira à sua frente. Ela teve a impressão de que havia ali apenas os três mais os pilotos de um Jumbo. Não conhecia outra aeronave com tantos assentos enfileirados para permitir que alguém se deitasse com o corpo esticado.
- Quanto tempo vai demorar este vôo? - perguntou um homem com sotaque espanhol.
- Eu calculo quatro horas, Jess - respondeu Jock.
- Depois, vamos ter de rodar cerca de 80 quilômetros a partir do sudoeste. A área inteira de Chicago está contaminada por radiação, portanto vamos ter de seguir para o norte, sempre que possível.
A conversa passou para assuntos triviais, e Chloe sucumbiu ao sono.
Buck sabia que estava sendo inconveniente, mas não conseguia conter-se. Enquanto todos os moradores do esconderijo se preparavam para a grande mudança, ele questionava o pessoal. Alguém havia trabalhado na sede da CG antes de se converter? Alguém conhecia um homem ou mulher que tivesse trabalhado lá? Existe alguma conexão, alguma pista, alguma notícia? Alguém poderia falar com uma pessoa que tenha condições de fornecer informações sobre o paradeiro de Chloe?
Ele procurou ligar para a sede por meio de um telefone seguro, fingindo ser um funcionário da CG Internacional. Ninguém acreditou. Talvez Ming lograsse êxito. Buck rascunhou algumas frases para ela usar, enquanto ele brincava com Kenny. Também não funcionou.
Finalmente, Rayford encontrou Buck e lhe disse:
- Faça o que quiser, mas esteja pronto para partir com o pessoal.
- Eu vou fazer uma viagem mais curta, chefe - disse Buck. - Será que um dos homens de Lionel poderia me deixar em algum lugar perto do leste?
Rayford negou com a cabeça e começou a afastar-se.
- Ei, pai - chamou Buck -, seu quarto está destrancado?
- Está. E vazio. Só deixei suas coisas lá.
- Vou pegá-las imediatamente.
A caminho do quarto de Rayford, Buck cruzou com Razor no corredor.
- Senhor - disse o rapaz, fazendo continência instintivamente.
- Ei, filho, espere um pouco. Eu lhe devo um pedido de desculpa.
- Não, está tudo bem. Eu entendo que o senhor está passando por um problema sério.
- Existe um motivo, mas isso não serve como justificativa. Quero que me perdoe. Perdi o controle.
- Entendo, senhor. Não pense mais nisso.
- Bem, obrigado. Posso lhe fazer uma pergunta?
- Pois não.
- Por que você tem esse nome?
Razor (em inglês, razor significa navalha) corou e abaixou a cabeça.
- Acidente com um snowmobile, aquele veículo que desliza na neve.
- O quê!? Acha que vale a pena me contar?
- Foi na primeira vez. Em Minnesota. O lugar não é muito parecido com o México, o senhor sabe. Eu não vi o arame farpado. Quase morri. O arame prendeu-se no meu capacete e fez um estrago nele, mas não decepou minha cabeça. Chegou a arrancar o capacete quando me abaixei e passei por baixo. As pessoas que estavam assistindo disseram que o arame se enrolou no capacete, mas não se partiu. Enquanto eu corria para bem longe, o arame funcionou como um estilingue e atirou o capacete de volta. Ele bateu na minha nuca, e eu desmaiei.
- Mas você está aqui. E, apesar de toda a minha grosseria, estou feliz por você estar aqui conosco.
Depois de ouvir aquela história maluca, Buck começou a pensar insistentemente em decapitação. Seu maior medo era perder Chloe, é claro, mas ele se preocupava com o sofrimento que seria imposto à sua esposa. Buck não suportava imaginar que ela pudesse estar sendo ultrajada, sofrendo maus-tratos, torturada - não queria sequer considerar todas as possibilidades. Não o confortava o fato de saber que, mesmo que ela fosse martirizada, ele voltaria a vê-la em menos de um ano. O que aquilo significaria para Kenny?
E, para piorar as coisas, ele começou a pensar no tipo de morte a que Chloe seria submetida. Morte é morte, e a maneira de morrer não fazia diferença alguma, ele sabia. Mas, se ela fosse morta e se a CG fizesse disso um espetáculo público como certamente faria, ele não suportaria assistir à cena. A idéia de ver sua querida esposa morrendo de maneira tão horripilante e grotesca lhe causou náuseas.
Não havia dúvida de que ela permaneceria firme na fé até o fim. Ele ouvira histórias semelhantes e chegou a ver seu velho amigo Steve Plank afrontar Carpathia e glorificar a Deus antes de morrer. Buck também sabia que, se Chloe tivesse o mesmo fim, ela receberia um novo corpo no céu. Mesmo assim, rejeitava a idéia de que a pessoa que ele mais amava pudesse morrer da pior maneira imaginável.
Se, agora, ele não estava conseguindo livrar-se desses pensamentos, como seria se aquilo acontecesse realmente? Ele resolveu falar com Rayford.
- Estou muito ocupado - disse seu sogro -, e você também deveria estar. Não espero que você se esqueça de Chloe; eu também não consigo me esquecer dela. Mas você deveria ser mais produtivo.
- Eu sei. Só preciso de um minuto seu.
Buck contou a Rayford os pensamentos que o atormentavam. Para sua surpresa, os lábios de Rayford começaram a tremer. Sua voz ficou embargada.
- Eu também estou pensando a mesma coisa, Buck, mas não queria lhe contar.
- Sério? Em tudo o que pode acontecer a ela?
- Exatamente. O sentimento de um pai é diferente, você sabe. Imagine como se sente a respeito de Kenny. Eu estava presente quando Chloe nasceu. Parece que foi ontem. Ela era uma garotinha vermelha, rechonchuda, que chorava o tempo todo e só parava quando era enrolada em um cobertor ou colocada de encontro ao peito da mãe. De repente, ela se transformou na criatura mais linda do mundo. Fazíamos tudo por ela, qualquer coisa para protegê-la. E isso nunca mudou. Ela cresceu e se tornou uma linda mulher. E, apesar de todos os ferimentos e cicatrizes em seu rosto, eu ainda a vejo daquela maneira.
- Eu também.
- Portanto, Buck, sei o que você está pensando. Temos de ser fortes e tentar não remoer essa idéia. Não sei mais o que fazer.
Chang estava acompanhando Naomi até a casa dela à noite.
- Amanhã, eu quero lhe mostrar uma coisa em meu computador - ele disse. - Descobri que a solução encontrada pelo chefe de produção da CNNCG para a praga da escuridão foi tatear o caminho até a sala de controle e encontrar o botão que permite que a rede internacional seja acessada, por meio de controle remoto, por três ou quatro afiliadas mais importantes.
- Genial - disse Naomi. - Não é mesmo?
- Ah! Fiquei impressionado. E estou empolgado. Também posso acessá-la e ser mais rápido que as afiliadas, usando o sistema que David Hassid instalou em Nova Babilônia.
- Estou ansioso para ver.
- A capacidade é ilimitada, Naomi. Quando Cameron Williams chegar aqui, vamos trabalhar juntos e contra-atacar as mentiras veiculadas pela CG, e isso pode ser feito imediatamente.
- Não há nada que eles possam fazer para impedir?
- Que eu saiba, não. Só se eles instalarem uma rede totalmente nova. Talvez eles pensem que vão ter tempo, mas o fim está mais próximo do que eles imaginam.
- Então, você tirou a pior carta do baralho, hein, parceiro? - disse Mac.
- Sinto muito, Sr. McCullum - disse Ree -, mas não conheço essa expressão.
- Bem, sem entrar em detalhes, significa que o pior serviço ficou com você.
Eles haviam estudado a área através do periscópio uma hora antes e constataram que poderiam retirar o Hummer do estacionamento sem ser detectados.
- Levar o senhor até o avião? Não há problema. Eu gosto de fazer isso. Só gostaria de voar com o senhor até Wisconsin. Pilotei um Gulfstream apenas uma vez e gostei.
- Se essa foi sua única experiência, prefiro que não seja meu piloto. Você entende o que estou dizendo?
Em pouco mais de três horas, Mac pousou em Hudson, Wisconsin, onde foi recebido pelo grandalhão Gustaf Zuckermandel Jr., mais conhecido como Zeke.
- Eu gostaria que o senhor conhecesse o pessoal de Avery - disse o rapaz de 25 anos. - Mas o sujeito que me trouxe de carro já retornou. Levamos uma hora para arrastar minhas tralhas até um arbusto.
Mac o acompanhou ao local onde estavam suas caixas e baús.
- Você tem certeza de que quer transportar todas estas coisas até o avião em plena luz do dia, Zeke?
- Se o senhor quiser aguardar até escurecer, para mim não há problema, mas não há necessidade. A CG se esqueceu desta parte do país. Não vi ninguém das Forças Pacificadoras desde que cheguei aqui.
Enquanto eles colocavam a bagagem no avião, Mac disse:
- Você não pensou duas vezes antes de sair daqui? Deve ter feito muitos amigos.
- Pensei várias vezes, mas acho que a gente deve ir para onde foi chamado. Fui convocado para ficar aqui, e agora estou sendo chamado para lá. Que seria de um sujeito jogado para as traças como eu se ninguém se lembrasse dele?
- Você é o melhor criador de disfarces e falsificador de documentos que já conheci, e fiquei sabendo que você fez grande sucesso aqui.
- Ah! Isso não é verdade. O senhor não conhece os fatos verdadeiros, Sr. McCullum. Não havia mais nada para eu fazer aqui em matéria de disfarces e falsificação de documentos, porque ninguém necessitava disso. Resolvi, então, envolver-me em estudos bíblicos, aperfeiçoar minha leitura, essas coisas. Logo em seguida, o líder me convocou. Eu nunca fui professor ou pregador, mas fiz o melhor que pude. E gostei. Gostei de ter uma ocupação. Aquele título de assistente de pastor me foi dado por bondade.
- Foi uma honra, não?
- Sim, eu gostei.
- Espero que se sinta honrado, porque esse título é muito significativo.
- Vou sentir falta de todos, mas devo lhe dizer que estou querendo chegar a Petra e conhecer o lugar. E ver novamente o Dr. Ben-Judá, Dr. Rosenzweig e todos os outros, bem...
- E você vai ter um trabalho muito importante.
- Eu gostaria que o senhor me contasse.
Chloe passou a maior parte do tempo dormindo durante as quatro horas de vôo. Quando o efeito das drogas passou, ela voltou a si. E estava com fome. Uma barra de energia e alguns goles do líquido que ela ingeriu antes de sentir o efeito do narcótico foram seu único alimento desde as 19 horas da noite anterior, quando foi seqüestrada. Aquilo seria uma boa desculpa para fingir que estava inconsciente.
- Que horas são aqui? - perguntou o companheiro de Jock quando o avião pousou.
- Perto de meio-dia, e estou com fome - disse Jock. - E você?
- Eu também.
- Vou oferecer alguma coisa à prisioneira. Fingir que sou um tira bonzinho. Injetar um pouco de soro da verdade. Ver se ela começa a cantar.
- Ela é um passarinho difícil de cantar, não?
- Você nem imagina, Jess. Até agora, estou cantando o coro de "Aleluia" sozinho.
- E se ela não falar? Quanto tempo você vai esperar?
- Quando a gente não consegue extrair nada nas primeiras 48 horas, a coisa fica cada vez mais difícil.
- A fome não ajuda?
- Para mim, ajudaria, mas acho que já fizeram isso com prisioneiros de guerra. Aqueles que sobrevivem ao primeiro round de tortura física e psicológica não falam, por mais que a gente insista.
Enquanto Chloe estava sendo transportada através do túnel de acesso ao terminal, Jock disse:
- Aquela prisão nunca abrigou uma detenta antes de tomarmos posse dela. A nossa prisioneira vai ficar numa solitária. É a única maneira de mantê-la separada do restante da população carcerária.
Chloe foi deitada no banco traseiro de um espaçoso veículo utilitário, com tela de arame nas janelas e nenhuma maçaneta interna. Jock a algemou.
- Ela vai voltar a si logo - ele explicou. - Um pouco de cuidado nunca é demais.
Quando eles pararam no caminho, Chloe procurou imaginar uma forma de fugir. Jock disse:
- Vou buscar comida. Fique aqui com ela.
Chloe sentou-se.
- Preciso ir ao banheiro.
Jock olhou firme para ela.
- Está falando sério?
- Claro.
- Não temos uma policial para acompanhá-la. Você vai ter de usar o banheiro masculino, e um de nós vai ficar a seu lado.
- Esqueça.
- Você quer que eu compre uma daquelas fraldas para adultos?
- Quanto tempo falta para chegarmos ao destino?
- Meia hora.
- Eu espero.
Enquanto Jock não voltava, Chloe procurou puxar conversa com o homem para quem ela não olhara até aquele momento. Ele tinha um 0 na testa, o que significava que era dos Estados Unidos Sul-americanos. Sua pele era surpreendentemente escura, e ele tinha dentes perfeitos.
- Você me faz lembrar meu marido - ela disse.
- Sério?
- Sim, só que ele não é tão feio assim.
O homem achou graça e virou-se para ela.
- Você é muito engraçadinha - ele disse. - Por que está me hostilizando?
- Você é um dos que vão me matar. Acho que não vou ser capaz de lutar com você, machucá-lo, portanto...
- É verdade.
- Jock chamou você de Jess.
- Sim, meu nome é Jessé - ele disse.
- Hum. Nome em homenagem a Jesus. Esse é o seu nome verdadeiro? Jesus? - Chloe pronunciou o nome em espanhol.
- A bem da verdade, sim, e tenho uma irmã chamada Maria.
- Ela também é carpathianista?
- Claro.
- Que decepção o seu homônimo deve estar sentindo!
Jock trouxe a comida e tirou as algemas de Chloe. Os homens começaram a devorar o lanche deles. Chloe continuou sentada atrás da grade que a separava do banco dianteiro. Ela orou em voz alta:
- Senhor, obrigada por este alimento. Peço-te que me ajudes a comê-lo lentamente para eu não passar mal, e que elimines qualquer tipo de veneno que Jock possa ter colocado aqui. Dá-me força para resistir às tentativas de Jock ou Jessé de me obrigarem a falar o que não devo. Oro em nome de Jesus. Amém.
- Eu gostava muito de Albie - disse Zeke, enquanto Mac pilotava o avião, cruzando o Atlântico. - Ele era um homem bom.
- Você tem razão, Z - disse Mac. - E nunca vou entender o que aconteceu, mas penso que ele fez uma tremenda bobagem para ser morto daquela maneira.
- Não parece ser do feitio dele. Você, o capitão Steele e o restante do pessoal sempre respeitavam as idéias dele.
- Mas todos nós somos humanos. Quem sabe ele abaixou a guarda por alguns segundos, ficou confiante demais? Ele estava determinado a ter a vida comum que sempre teve. Mesmo quando nós dois concordamos que eu deveria ir a Petra e transportar Rayford de volta para os Estados Unidos, Albie insistiu que queria levar sua pequena missão até o fim. Eu também tive culpa. Nós dois achamos que se tratava de um assunto que precisava ser feito... e rápido. Agora, veja o que aconteceu.
- Rayford disse que isso foi um baque para Tsion e Chaim.
- Para todos nós. Já passamos por muitos sofrimentos, mas nunca é fácil. Eles estão planejando realizar um pequeno culto em memória de Albie em Petra, assim que todo o pessoal de San Diego chegar lá.
- Quando eles vão chegar?
- Ah! A primeira leva deverá chegar amanhã, por volta das três da madrugada. Você e eu estamos 13 horas na frente deles. Assim que eu deixar você lá, sigo para Al Basrah e pego as minhas coisas e as de Albie que ficaram em nosso apartamento. Não podemos deixar pista alguma. Depois, volto para Petra e pego um avião maior, porque vou ter de transportar Otto Weser e todo o seu pessoal para lá.
- O capitão Steele me contou sobre esse homem. Pelo que estou entendendo, você vai levar toda aquela gente para Petra por causa de um trecho da Bíblia que diz que o povo de Deus deve ser tirado da Babilônia antes que Ele a destrua, é isso?
- Exatamente.
Z olhou para o oceano, cerca de 12 quilômetros abaixo.
- Como deve ter sido quando as águas se transformaram em sangue?
- Não dá para imaginar.
- Ei, Mac, você acha que Rayford deve confiar na secretária de Carpathia?
- Pelo jeito que ele contou, acho que sim. Você também não acha?
- Não confio em ninguém que não seja crente. E se ela estiver preparando uma armadilha para pegar você e esse tal de Otto?
- Que pensamento agradável!
- Você mesmo disse que um pouco de cuidado nunca é demais.
- Bem - disse Mac -, precisamos saber o que está acontecendo em Al Hillah e o que vamos ter de enfrentar depois disso. Não temos outro recurso.
Uma hora mais tarde, Zeke vasculhou uma de suas sacolas e tirou um livro de dentro. Ele parecia compenetrado.
- Eu não lia bem quando você me conheceu em Chicago.
- Eu ia dizer que...
- Mas agora que estou lendo melhor, acho que vou poder fazer outras coisas, você sabe, coisas mais científicas.
- Por exemplo?
- Estou imaginando que vocês vão me pedir para criar novos disfarces e identidades para um monte de gente.
- Correto. Todos os nossos antigos codinomes e disfarces já foram descobertos.
- Encontrei este livro em uma biblioteca abandonada, do outro lado da divisa do Estado de Minnesota. Aqui, há coisas de que eu nunca ouvi falar. Novas maneiras de mudar a cor da pele e dos olhos, tudo. Imitar cicatrizes e manchas. Quantas pessoas vão precisar disso?
- Penso que cinco - disse Mac. - Acho que Ray vai querer disfarces para mim, para ele, Buck, Sebastian e Smitty.
- Sério? Só isso? Eu trouxe um exagero de coisas.
- O que você trouxe?
- Tudo o que sobrou quando saímos de Chicago. Uniformes da CG com todos os tipos de patentes, documentos de identidade e de outros tipos, roupas para homens e mulheres. Vai ser fácil. Quero dizer, isso leva tempo, mas eu imaginei que fossem dez ou 12. O mais difícil de todos é o Sr. Sebastian, mas já bolei uma idéia para ele.
- Qual e?
Zeke colocou o livro no colo, aparentemente para poder gesticular com as duas mãos.
- O problema com pessoas grandes é que, por mais que a gente queira, nunca pode diminuir o tamanho delas. Uma pessoa miúda pode ficar maior se a gente colocar enchimentos e outras coisas por baixo da roupa delas, mas não é possível tirar alguns quilos de quem é corpulento.
- Mas, veja - prosseguiu Zeke -, posso dar uma nova aparência a George, a aparência de um homem bem mais velho. Aí, o tamanho dele não vai fazer diferença. Ele pode ficar com jeito de um velho, sem que ninguém perceba que recebeu treinamento militar. Posso dar uma bengala a ele, óculos. Fazer com que fique parecido com aqueles sujeitos de meia-idade que envelheceram depressa demais. Corto aquele cabelo loiro, aplico fios brancos, coloco algumas rugas no rosto. De repente, em vez de parecer um sujeito de mais ou menos 30 anos, grandalhão e em perfeita forma, ele vai aparentar ter o dobro dessa idade, abatido por estar mal alimentado, com o corpo um pouco curvado, talvez sofrendo de diabetes, problemas nos joelhos, nos pés. Eu coloco um pouco de enchimento na frente e nas costas dele, para que ande com passos miúdos. Assim, ele não vai representar ameaça para ninguém.
- Brilhante. E o que você vai fazer comigo?
- O maior problema com você é seu sotaque sulino. Você é capaz de imitar outros sotaques? De um ianque ou um inglês?
- É mais fácil imitar um inglês do que um ianque, com certeza.
- Então, vou dar um jeito de você ficar parecido com um inglês. Com terno de tweed e tudo.
A suposição de Chloe quanto ao local para onde estava sendo levada foi confirmada quando Jock conversou, pelo rádio, com alguém à frente e, pouco depois, o veículo em que ela viajava foi cercado por batedores da CG em motocicletas e viaturas. Eles escoltaram a famosa prisioneira às instalações que, um dia, foram conhecidas como Centro Correcional Stateville, em Joliet, Illinois.
O local era uma casa de horror, em estilo gótico, que um dia abrigara uma penitenciária estadual e, agora, se transformara em uma das maiores prisões internacionais da CG, para homens e mulheres. A população carcerária feminina dali era imensa e só perdia para o Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB).
A primeira coisa que Chloe notou foi o número enorme de caminhões da imprensa atravancando a entrada. Havia câmeras de todos os lados apontadas para o veículo em que ela viajava. Assim que o veículo passou pelos caminhões, Chloe olhou para trás e viu uma multidão de fotógrafos e jornalistas no imenso pátio, lutando para conseguir uma posição privilegiada.
Nos últimos dois anos e meio, o pátio de Stateville tornara-se famoso. Os prisioneiros só recebiam permissão para permanecer naquele lugar em duas situações. Quando eram levados a passar diante da gigantesca estátua de bronze de Carpathia três vezes por dia, onde paravam em grupos de 30 a 50 e se ajoelhavam para adorá-la, ou quando eram levados para lá a fim de serem executados. O pátio tinha sete guilhotinas separadas por cerca de dez metros uma da outra e posicionadas de maneira a receber a luz do sol desde o alvorecer até o crepúsculo.
Jock parou o veículo no meio do pátio.
- Olhe para lá, meu bem - ele disse. - Aquelas lâminas são afiadas todas as noites, mas nenhuma jamais foi limpa. Não são esfregadas, não são lavadas, não recebem protetores contra ferrugem.
- E você está vendo aquelas ranhuras de cada lado, por onde as lâminas maiores descem? Nos tempos em que éramos mais bonzinhos, elas eram lubrificadas depois de serem usadas. Não são mais. Agora, as lâminas descem com dificuldade pelas laterais, algumas vezes emperram, ficam enrascadas, demoram a cair. Mas são suficientemente pesadas. Mesmo quando não descem de uma vez, elas afundam pelo menos uns dez centímetros na hora em que atingem o pescoço de alguém.
- Nos velhos tempos, a lâmina não era tão eficiente assim, para tristeza nossa. A regra era colocar a cabeça lá e esperar a lâmina cair. Se, por um motivo ou outro, ela não matasse a pessoa, bem... o castigo já havia sido aplicado. E não pense que era raro isso acontecer. Muitas pessoas ficavam andando por aí com ferimentos graves no pescoço.
- Mas agora, se a lâmina não matar na primeira vez, ela é levantada para descer de novo. Duas, três vezes, até completar o serviço. E, conforme eu disse, aquela lâmina enferrujada e empastada de sangue é afiada todas as noites.
Cerca de seis metros adiante de cada guilhotina havia uma mesa franzina de madeira, também cinza e gasta pela exposição ao sol e ao vento. Atrás de cada uma, viam-se duas cadeiras de espaldar alto, ao estilo das encontradas no Banco da Inglaterra, que não combinavam com o local. O vento não desgastara sua madeira vermelha polida.
- Os processadores e os aplicadores da marca costumam sentar-se ali - ele disse. - Os condenados ficam enfileirados.
Assim que as informações sobre eles são registradas e nós confiscamos seus pertences pessoais, eles recebem um cesto de plástico, do tipo daqueles usados em lavanderia, e o entregam ao executor ou à executora. Ele ou ela o coloca do outro lado, onde a lâmina despenca. A cabeça cai no cesto e o corpo continua no lugar onde a pessoa se ajoelhou. Os condenados à prisão perpétua fazem o recolhimento. Vamos, eu vou lhe mostrar.
- Peço que me poupe disso.
- Ora, você vai gostar.
Jock afastou-se.
- Algeme esta mulher, Jess.
Jessé se virou e abriu a grade.
- Estique os braços.
- É melhor me dopar outra vez - disse Chloe.
- O quê?
- Você acha que vou me deixar ser algemada para que vocês me levem para um lugar que eu não quero ir?
Jock abriu a porta traseira do carro.
- Espere, Jock! - gritou Jessé. - Ela ainda não está algemada.
- O que está...?
Para Chloe, Jock estava querendo aparecer diante das câmeras quando entrou rapidamente no veículo pela porta traseira. Chloe continuou sentada com as mãos fechadas entre os joelhos.
- Você gosta de ser difícil, hein? - ele disse.
Jock agarrou os pulsos de Chloe e a forçou a levantar as duas mãos juntas, para que Jessé colocasse a algema. Assim que ela foi algemada, Jock saiu do veículo, puxando-a pelas algemas e arrastando-a para fora. Com os braços esticados para a frente, ela bateu a cabeça na porta, arranhou os joelhos no chão do carro e, depois, no terreno. Jock a forçou a ficar em pé.
Chloe estava toda machucada, mas se sentia feliz por ter dado tanto trabalho a eles. Talvez outra pessoa não resistisse e caminhasse docemente em direção à morte. Ela não. Jock a segurou pelo cotovelo e a conduziu para perto da máquina mortífera do centro.
- Ela vai ser toda sua amanhã, se você não cooperar hoje. O mau cheiro a sufocou. Os dois homens taparam a boca e o nariz com um lenço. Chloe, desta vez misericordiosamente algemada com as mãos para a frente, dobrou os braços e cobriu o nariz com os dedos.
- Conforme você pode ver - disse Jock -, nós não lavamos a plataforma nem o chão. Por que deveríamos fazer isso?
Para Chloe, a área ao redor das guilhotinas enfileiradas, que ocupavam um espaço de mais de 50 metros, tinha a aparência de um matadouro. O chão ao redor era preto, empastado de sangue.
- Você está vendo aquela caçamba ali? - perguntou Jock. Bem atrás da máquina do centro, talvez a uma distância de 30 metros, havia uma caçamba enorme, cujo tamanho era cerca de metade de um vagão para transporte de carga. Ele não tinha tampa.
- Um coletor pega o cesto e joga a cabeça lá - prosseguiu Jock. - Dois coletores arrastam o corpo para o mesmo lugar. Você está vendo aquelas trilhas pretas que começam nas guilhotinas e terminam na caçamba? Você sabe o que elas significam.
Chloe sabia muito bem. Procurou prender a respiração, mas Jock continuava a puxá-la pelo braço, impedindo-a de tapar o nariz com as mãos. Ela orou para que ele não a forçasse a olhar dentro da caçamba.
- Ela é esvaziada uma vez por semana - ele disse.
A CG mantinha a imprensa afastada, mas o pessoal gritava de longe.
- O que é aquilo no macacão dela? Está sujo de terra?
Chloe, mortificada, gritou:
- Chocolate!
Jock se virou e a espancou na testa com as costas da mão.
- Não fale com ninguém, a não ser conosco, entendeu?
- Eles me drogaram com um choco...!
Jock se postou atrás dela e cobriu-lhe a boca com a mão. Quando Chloe quis mordê-la, ele fincou o joelho nas costas dela, fazendo-a perder o equilíbrio.
- Jess, me dê a fita adesiva.
- A situação não precisava ter chegado a este ponto, senhora - disse Jessé, pegando um rolo de fita adesiva no bolso da jaqueta.
- Pensei que não fosse necessário.
Jock esticou o braço para pegar um pedaço da fita, deixando livre a boca de Chloe.
- A verdade é uma só! Eu fui drogada! Eles...
Jock passou a fita tão apertada sob o nariz de Chloe que provocou um inchaço imediato no lábio superior dela. Quando ele apertou a fita contra as bochechas, ela não pôde mais movimentar a mandíbulas, e muito menos falar.
Deus, Chloe orou silenciosamente, ajuda-me a ser forte. Eu não quero fraquejar. Não quero ser surrada nem levada a falar alguma coisa por medo. E, se eu tiver de morrer, permite que eu fale antes. Ajuda-me a lembrar-me de todos os versículos que memorizei. Por favor, Deus, permite que eu fale tuas palavras.
Jock e Jessé forçaram-na a atravessar o pátio em direção a uma porta de aço na parede de um dos conjuntos de celas. A porta ficava no nível do chão, mas ela supôs que teria de descer uma escada de acesso à cela solitária no porão.
Eles pararam a uns dez metros da porta. A imprensa estava do outro lado, a mesma distância.
- Ela contou mais alguma coisa? - perguntou uma mulher.
- Ah! Sim - respondeu Jock.
Chloe movimentou negativamente a cabeça, com muita firmeza.
- Um pouco de cada vez - ele prosseguiu. - É claro que tivemos de dizer a ela que não existe mais clemência em troca de, ah, favores físicos, como havia antigamente. Ela só poderá ajudar a si mesma se contar a verdade. Tenho certeza de que chegaremos lá. Ela já nos forneceu outras pistas sobre o esconderijo judaísta e a cooperativa de mercado negro. Já extraímos mais informações dela do que de qualquer outra pessoa. Como vocês sabem, ela entregou o Sr. Al Basrah, o principal subversivo do Oriente Médio, e ele já está morto.
Chloe continuou a sacudir a cabeça, mas sabia que não apareceria na CNNCG naquela noite.
- Por ora, basta, turma. Temos mais alguns pré-requisitos para que a Sra. Williams seja condenada à prisão perpétua, e não à morte, mas nossas execuções diárias aqui serão realizadas amanhã, às dez horas. Não esperamos ter o mesmo número de condenados de ontem, quando todas as máquinas trabalharam por quase meia hora, mas a última contagem é de 35, ou seja, cinco em cada máquina.
A imprensa começou a dispersar-se, mas Jock e Jessé continuaram em pé ao lado de Chloe.
- Vou terminar meu discurso de guia turístico, madame, e você vai ter de me ouvir até o fim - disse Jock. - Os dias mais felizes de minha vida foram passados neste pátio, vendo essa gente receber o castigo que merece. Sinceramente, fiquei desapontado quando fui transferido para San Diego, mas a chefia me garantiu que havia um grupo enorme de judaístas naquela cidade. Disseram que eu poderia transportá-los para cá se conseguíssemos arrancá-los de lá. Esperamos que você seja apenas a primeira.
Mac estava satisfeito por ter a companhia de Zeke naquele vôo tão longo. Apesar de ter pouco estudo, o jovem era inteligente e curioso. Tinha sempre uma pergunta a fazer ou histórias para contar.
- É difícil inventar um disfarce para Abdullah, porque seus traços são muito evidentes. Ele não tem facilidade para mudar de sotaque, por isso acho melhor manter sua aparência de homem do Oriente Médio, mas um pouco diferente de um jordaniano. Rayford é bem fácil, porque posso inventar qualquer tipo para ele. Buck é o mais difícil de todos por causa daquelas cicatrizes no rosto. Mas digamos que posso transformar vocês cinco em pessoas totalmente diferentes. O que vocês vão fazer?
- Ainda não sei ao certo, Z - respondeu Mac. - Dizem que Carpathia está convocando os dez reis. Ele chama esses homens de potentados regionais, mas nós sabemos o que vai acontecer, não?
- Eu sei.
- Se Otto tiver êxito em Nova Babilônia, vamos descobrir o local da grande festança antes que ela comece, para instalarmos as "escutas" lá. Não devemos tentar impedir os eventos proféticos, mas será muito bom saber exatamente o que está acontecendo.
- E aquela secretária de Carpathia?
- Krystall? Se eles pedissem minha opinião, eu diria que devemos convencê-la de que sabemos o que vai acontecer em Nova Babilônia e tirá-la de lá.
- Para Petra?
Mac sacudiu a cabeça.
- Por mais que a gente queira pensar de outra forma, Deus separou aquela cidade de refúgio apenas para seu povo. É muito triste dizer isto, mas ela tomou uma decisão, tomou partido e aceitou a marca. Se nós a tirarmos de Nova Babilônia, ela não vai morrer no meio daquela confusão, quando Deus julgar a cidade. Mas, de qualquer maneira, ela vai morrer antes do Glorioso Aparecimento. E quando ela morrer, não vai gostar da vida eterna que vai ter. Mas isso não significa que não devemos ser amigos dela e ser gratos por sua ajuda. Ou que não lamentemos por ela ter esperado tanto tempo para conhecer a verdade.
- Eu ainda tenho dúvidas se podemos confiar nela – disse Zeke.
O horário para a partida de San Diego foi antecipado para a meia-noite, em parte porque os preparativos estavam adiantados e em parte por questões de segurança. Ninguém sabia ao certo quando a CG iniciaria a próxima ronda para vasculhar o local.
Buck estava no estacionamento conversando por meio de um walkie-talkie com Ming, que se encontrava em seu apartamento cuidando de Kenny e manipulando o periscópio. Quando ela disse que o terreno estava livre, Buck ordenou que os veículos carregados seguissem para a pista aérea, onde os aviões e os pilotos providenciados por Lionel Whalum estariam aguardando. Às 18 horas, Ming o chamou.
- Buck, Chloe está na TV.
- Kenny está vendo?
- Vou levá-lo para o quarto dele.
Buck retornou rapidamente a seu apartamento e, quando chegou, Rayford já se encontrava ali. O noticiário mostrou Chloe tentando comunicar-se com a imprensa e Jock golpeando-a na testa. Buck ficou furioso, principalmente quando eles colaram uma fita adesiva na boca de Chloe. Ele já estava acostumado às mentiras proferidas pela CG, mas não suportava ver sua esposa sendo agredida.
- O que você está achando disto, Ray? - ele perguntou. Rayford sacudiu a cabeça.
- Estou procurando entender.
Uma das repórteres disse:
- Aqui em Louisiana todas as prisões são terríveis, mas nenhuma chega aos pés da prisão de Angola. A terrorista internacional Chloe Williams se arrependerá do dia em que provocou a CG até o ponto de ser enviada para cá. A guilhotina será um refresco comparada ao trabalho forçado que ela terá de enfrentar pelo restante da vida.
- Angola, Louisiana! - exclamou Buck. - É para lá que eu vou. Quero levar Sebastian e Razor, e você também há de querer ir, é claro, pai. Quem mais você acha que devemos...
- Calma, Buck - disse Rayford. - Nós não vamos a Louisiana.
- O quê? Você mandou três pessoas importantes à Grécia para resgatar George, e agora vai permitir que a CG faça o que quiser com Chloe?
- Ela não está em Louisiana.
- Você acabou de ouvir!
- Pense um pouco, Buck. Eles querem que a gente acredite que ela está em Louisiana. Eles a tiraram de San Diego para impedir uma invasão. E jamais anunciariam para onde ela foi levada.
Buck sabia que Rayford estava certo.
- Mas ela está em uma prisão, não? Eles não estão disfarçando isso.
- Claro que não.
- Ray, eu não posso ir para Petra e deixar Chloe aqui. Se eu ficar em algum lugar perto do leste, pelo menos vou ter uma chance de...
- E como você vai descobrir onde ela está?
- Eu jamais me perdoaria se partisse para um lugar seguro e deixasse Chloe morrer sozinha. Não sei como você pode fazer isso.
- Eu não estou querendo fazer isso.
- Ora, vamos, pai, estamos juntos nessa missão. Não seja teimoso.
- Quero ligar para Krystall para saber se ela ouviu alguma coisa. O problema é que, lá, são quatro horas da madrugada, e ela acha que não há ninguém que possa fornecer alguma informação. As pessoas que sabem de alguma coisa estão em Al Hillah, e não temos acesso a elas. Krystall vai chamar a atenção se começar a fazer perguntas sobre Chloe.
Chloe não ficou surpresa por ter sido deixada sozinha no meio da noite em Illinois. Ela estava com razão a respeito da solitária. A escada dava acesso ao porão, e ela foi conduzida para uma pequena cela sem cama, sem pia, sem instalação sanitária, sem cadeira, sem banco, sem nada. E também sem luz e sem janela. A fita adesiva havia sido retirada de sua boca, e quando a porta resistente de metal foi fechada, ela ficou na mais completa escuridão.
Uma portinhola quadrada na porta foi aberta, preenchida pelo rosto de Jock.
- Vou deixar você descansar um pouco - ele disse -, e eu também vou descansar. Pense em tudo o que pode me contar para seu próprio bem, porque quando eu voltar, vamos ver se haverá necessidade de uma injeção para você abrir a boca. Esta cela é resultado das besteiras que você fez hoje. E você não vai gostar daqui se sofrer de claustrofobia ou tiver medo do escuro.
Chloe sofria de claustrofobia e tinha medo do escuro, mas não admitiria isso. Temia entrar em pânico ou enlouquecer, porém quando ouviu os passos de Jock se afastando, ela foi tomada por uma sensação de paz.
- Obrigada, Senhor - ela disse. - Eu necessito de ti. Estou disposta a morrer, mas não quero te envergonhar. Preciso de ti para não sucumbir ao soro da verdade. Não permitas que eu diga alguma coisa nem que prejudique alguém. Torna-me forte para que eu não me preocupe muito comigo. Ajuda-me a manter a lucidez, a concentrar-me em minhas prioridades. E sê com Kenny, Buck e papai.
Ao pensar neles, um soluço subiu-lhe à garganta. Chloe encostou-se na parede e abaixou-se até o chão frio.
- Deus, por favor, faze-me lembrar dos trechos da Bíblia que queres que eu tenha na memória neste momento. Não permitas que a fome, o cansaço ou o medo obscureçam minha memória. Tu sabes quem eu sou e quem eu não sou. Eu só quero ser aquilo que tu desejas. Tu sabes muito bem que estás lidando com uma pessoa imperfeita.
Ela se deitou de lado sem sentir palpitações decorrentes da claustrofobia ou da escuridão. Aquilo era prova de que Deus ouvira sua oração. Ela começou a lembrar-se de versículos bíblicos, desde o começo da Bíblia. Porém, quando sua mente falhou, ela entrou em pânico.
- Senhor, revigora minha mente. Não permitas que eu esqueça. Quero citar tuas palavras quando estiver frente a frente contigo.
Seus pensamentos começaram a ficar desordenados. Como eu vou me lembrar? E se minha memória se apagar?
- Senhor, por favor - ela orou.
De repente, surgiu uma luz. Estaria ela sonhando? A luz a fez piscar. O cômodo sujo e cheirando a bolor estava tão claro que ela teve de proteger os olhos. Uma visão? Um sonho? Uma alucinação?
Em seguida, uma voz. Citando seus versículos favoritos. Ela os repetiu, palavra por palavra.
- É tua resposta, Senhor? Tu citarás os versículos para que eu os repita? Obrigada! Obrigada!
Uma batida forte na porta.
- Silêncio aí dentro!
- Sim, paz, continua onde estás. Aquela voz veio de um dos cantos!
Chloe tirou as mãos dos olhos e avistou uma figura, sentada, com um dedo nos lábios.
- És tu, Senhor? - ela perguntou, sem fôlego.
- Ninguém pode ver a Deus e continuar vivo - ele sussurrou.
- Então, quem és?
- Ele me enviou.
- Louvado seja Deus.
- Sim, por favor.
- Alguém mais pode ver-te?
- Amanhã. Antes disso, não.
- Vais me fazer lembrar das promessas de Deus?
- Sim.
- Tua presença me faz querer cantar.
- À vontade.
- Canta comigo.
- Não estou aqui para cantar, mas para falar. Você canta.
Chloe começou a cantar.
- "Em Jesus confiar, sua lei observar; oh, que gozo, que bênção, que paz! Satisfeito guardar, tudo o que Ele ordenar, alegria perene nos traz."
- Silêncio aí dentro!
Chloe cantou mais alto.
- "Crer e observar, tudo o que Ele ordenar! O fiel obedece ao que Cristo mandar."
- Se eu tiver de abrir esta porta, você vai se arrepender amargamente!
- "Que delícia de amor! Comunhão com o Senhor..."
Aquele cântico provocou batidas na porta, como se alguém estivesse usando um bastão, e Chloe riu alto.
- Eles não estão gostando de minha voz - ela disse a seu novo amigo.
- Ou das palavras - ele disse, e Chloe riu mais alto ainda.
- Você aí, está maluca?
- Não! Você tem algum pedido a fazer?
- Só quero que você pare com essa cantoria!
- Sinto muito! - E ela voltou a cantar. - "Firme nas promessas do meu Salvador, cantarei louvores ao meu Criador; cada dia alegro-me no seu amor, firme nas promessas de Jesus."
- Muito bem! - A portinhola foi aberta com força.
O cômodo escureceu novamente.
- Você tinha uma luz aí?
- Claro! A luz de Deus.
- Estou falando sério! Você tinha uma luz aí?
- Somente a luz da presença dele.
- Se Jock voltar e descobrir que você tem alguma coisa aí, vai se arrepender.
- Arrepender de fazer uma surpresa para ele? Acho que não. Você sabe cantar? Cante comigo. "Firme nas promessas do meu Salvador..."
O guarda fechou a portinhola com força.
Rayford tinha apenas uma idéia do que Buck devia estar sofrendo. Talvez os sentimentos de marido fossem diferentes dos de pai. Mas ele não estava com certeza disso.
- Vamos fazer o seguinte - ele disse ao genro. - Lionel me arrumou um avião de dois lugares. É rápido, mas carrega pouco combustível. Vamos ter de reabastecer no caminho, talvez em Cypress. Primeiro, temos de ajudar todo o pessoal a sair daqui. Depois, se tivermos de ficar aguardando na pista, para mim tanto faz. Voamos para algum lugar do meio-oeste, ou do sul. Onde você achar que vai ficar mais perto de Chloe.
- E fazer o quê?
- Podemos levar aquela pequena TV via satélite e manter contato com Mac, Otto e Krystall, para ver se conseguimos alguma pista - disse Rayford.
- Você quer estar no mesmo continente quando ela morrer, é isso?
- Bem, hã, não...
- Pai, pense um pouco. Eu não sei pilotar avião. Você não tem um co-piloto. Nenhum de nós é militar. Se você conseguiu um avião de dois lugares, só para duas pessoas, não vamos poder trazer Chloe conosco.
Rayford sentou-se e segurou a cabeça com as mãos.
- Não sei mais o que fazer, Buck. Não quero sair daqui enquanto ela estiver presa. Mas não sabemos onde ela está, não podemos levar uma tripulação conosco.
- Para onde você acha que devemos ir?
- Que tal Wisconsin, onde Zeke estava? Ele me contou que a CG nunca aparece por lá. O lugar é central. Assim que soubermos onde ela está, poderemos partir rápido.
Jock conduziu Chloe a um cômodo mal iluminado, cerca de cem passos da cela solitária.
- Hoje somos só nós dois, madame. Nada de brincar de policial, nada de luzes nos olhos, nada de pressão.
Porém, quando Chloe viu o lugar em que deveria sentar-se - uma cadeira de aço presa ao chão e com tiras de couro nas pernas e braços - ela disse:
- Não, só nós dois, não, Jock.
- Como assim?
- Você sozinho não vai conseguir me amarrar naquela cadeira.
- Acho que vou conseguir, mas você não vai gostar.
- Você vai se arrepender de tentar fazer isso sozinho. E não vou ficar amarrada de jeito nenhum, a menos que seja à força.
- Que tal tentarmos um jeito mais fácil? - ele perguntou. - Que tal conversarmos um pouco para ver se você precisa mesmo ser amarrada?
- Sem soro da verdade?
- Sim, se você cooperar.
- Estou dizendo desde já que não vou cooperar.
- Será que não vou conseguir convencer você a pensar mais um pouco, ser simpática, ajudar a si mesma?
- Não. E tem mais. Preciso usar o toalete das senhoras. Antes disso, não vou me sentar nesta cadeira e muito menos ser amarrada.
Jock suspirou fundo e a acompanhou até o fim do corredor.
- Conforme você pode imaginar - ele disse -, não existem janelas neste tipo de prisão. O único caminho para sair é o caminho da entrada, e eu vou ficar aqui esperando.
Mac estava conversando por telefone com Rayford enquanto sobrevoava o Atlântico no meio da noite.
- Quando Weser vai estar no palácio?
- Por volta de oito horas, horário de lá.
- Estou achando que a prioridade máxima é Chloe.
- Correto.
- E depois os planos de Carpathia.
- Exatamente.
- Vou tentar falar com Weser daqui a meia hora, quando ele já estiver lá. Ligo para você assim que souber de alguma coisa.
Chloe saiu do banheiro sujo da prisão de Stateville e avistou Jock acompanhado de três guardas - uma mulher e dois homens.
- Então, Jock, não seríamos só nós dois? - ela perguntou.
- Poderia ter sido. Quando você estiver amarrada naquela cadeira e muito infeliz, vai ver sua cara no espelho. Pelo menos você me avisou antes, não me fez perder tempo com conversa boba para depois eu ter de amarrá-la na cadeira, sem ajuda de ninguém.
Enquanto Chloe atravessava o corredor, a mulher agarrou sua mão direita e torceu-a para trás; um dos homens fez o mesmo com a esquerda. Ela pensou em protestar; havia deixado claro a Jock que não ia cooperar. Assim que eles entraram na saleta, o terceiro guarda curvou-se e levantou-a do chão pelos tornozelos. A dor provocada pela distensão dos músculos de seus ombros a fez gritar de dor, mas, em questão de segundos, ela estava amarrada na cadeira.
Os guardas saíram, deixando uma seringa hipodérmica com Jock. Ele fechou a porta e se aproximou de Chloe.
- Última chance - ele disse. - Você não vai contar a verdade sem isto?
O pulso de Chloe começou a bater aceleradamente até o momento em que ela viu seu amigo da cela solitária sentado na cadeira de Jock.
- Eu não vou contar a verdade de jeito algum - ela disse.
- Ah! Isto aqui já derrotou gente mais forte que você - disse Jock.
Ele começou a inserir um receptáculo em uma das veias do antebraço de Chloe. Fez isso com tanta precisão que ficou claro que tinha experiência. Chloe não sentiu qualquer dor, e ele prendeu o receptáculo no lugar com muita destreza. Em seguida, inseriu um tubo que ia até a lateral da mesa dele.
Jock sentou-se, e o novo amigo de Chloe ficou em pé atrás dele. Ela conteve-se para não rir, olhando para ele por cima da cabeça de Jock.
- Para quem você está olhando? - ele perguntou.
- Você não o conhece - respondeu Chloe, já que ele queria a verdade, havia um pouco de verdade nessa resposta.
Jock inseriu a seringa no tubo.
- Quando eu empurrar o embolo, vou injetar 15cc de soro em suas veias. Isso vai lhe dar uma sensação de tranqüilidade. Você deve saber como essa coisa funciona. Ela neutraliza a substância química em seu cérebro que a impede de ser totalmente sincera. É exatamente isto que eu quero de você: que seja sincera.
- Eu não vejo a hora de ouvir o que tenho a dizer.
- Diga o suficiente. É isso que vai fazer a diferença entre a vida e a morte para você.
- Ora, Jock, penso que há alguém aqui que necessita mais do soro da verdade que eu.
- Você está duvidando de mim?
- Você sabe muito bem que, mesmo que eu conte tudo, vou morrer.
- Necessariamente não.
- Você é um mentiroso. Eu sei disto, e esta é a verdade. Se eu não estiver enganada, você ainda não me injetou nada.
- De fato, mas chega de conversa. Vou começar.
O amigo de Chloe fez um gesto atrás de Jock como se fosse um diretor musical. Ela começou a cantarolar em voz baixa:
- "Chuvas de bênçãos teremos, é a promessa de Deus, tempos benditos trazendo chuvas de bênçãos dos céus."
- O soro não age assim tão rápido, por isso o que você está cantando não é verdade.
- "Chuvas de bênçãos, chuvas de bênçãos dos céus! Gotas benditas já temos, chuvas rogamos a Deus."
- Você é afinada.
- Obrigada. A canção também é linda.
Dali a poucos minutos, Chloe sentiu o efeito do soro. Era uma estranha sensação de bem-estar, de confiança, e ela se sentia livre para dizer qualquer coisa. Mesmo que não soubesse tudo, queria ajudar aquele homem e responder às suas perguntas. Nada de mal aconteceria a ela, e tudo ficaria bem.
Mas ela sabia que não. Olhou por cima da cabeça de Jock.
- Por quanto tempo ficarás aqui comigo? - ela perguntou.
- Pelo tempo que for necessário - respondeu o homem invisível.
- Hã? - disse Jock - Pelo tempo que for necessário. Já descansei um pouco. Posso ficar aqui até quando você quiser.
- Garanto que não pode.
- Então, tente.
Chloe sorriu.
- Creio que você vai achar que quero demais.
- Como está se sentindo?
- Tranqüila.
- Ótimo. É um bom começo. Qual é o seu nome?
- Chloe Steele Williams, e sinto orgulho dele.
- Qual é o nome de seu pai?
- Rayford Steele.
- E de seu marido?
- Cameron Williams. Eu o chamo de Buck.
- Você tem um filho?
- Tenho.
- Qual é o nome dele?
- O nome dele é muito especial para Buck e para mim, porque ele tem o nome de dois amigos e compatriotas muito queridos, que já morreram.
- E qual era o nome deles?
- Se eu responder, você vai saber o nome de meu filho.
- E por que eu não devo saber o nome de seu filho?
- Quanto menos você souber sobre ele, mais dificuldade vai ter de encontrá-lo.
- Eu já lhe disse que não vamos fazer mal algum a seu filho.
- É mentira.
- De qualquer forma, você mencionou o nome dele para seu pai pelo telefone. É Kenny.
Jock empurrou o embolo novamente. Talvez fosse psicológico, mas Chloe sentiu um impulso de falar. Aquilo era estranho, mas a droga parecia forçá-la a contar a verdade, mesmo que as respostas não fossem as que Jock desejava.
O rosto dele estava mais corado do que o normal. Estaria ela deixando-o furioso? Tomara que sim.
- Você faz parte de um grupo subversivo que se opõe ao governo da Comunidade Global e a seu supremo potentado, Nicolae Jetty Carpathia?
- Sim.
- É verdade que vocês não acreditam que o potentado é um ser divino?
- Sim, e tem mais. Nós acreditamos que ele é o anticristo da Bíblia.
- Você está ciente de que a afirmação que acabou de fazer é punível com a morte?
- Sim. Também estou ciente de que Deus deseja a verdade, que a lei de Deus é a verdade, que Jesus é a verdade e que, se você conhecer a verdade, ela o libertará.
De onde vieram essas palavras? Obrigada, Senhor.
- Você faz parte de uma facção judaísta que tem um grupo enorme morando em San Diego, Califórnia?
- Você está me perguntando quem eu sou?
- Estou perguntando se você faz parte de uma...
- Sou seguidora de Cristo, o Filho do Deus vivo. Ele é mais poderoso do que eu, e não sou digna de desatar as correias de suas sandálias.
- O quê?
- Você não ouviu o que eu disse?
- Os judaístas ou uma facção dos judaístas chamada Comando Tribulação têm alguma coisa a ver com a escuridão que tomou conta de Nova Babilônia?
- Isso foi obra do próprio Deus.
- Você ou o grupo que representa deseja destruir o governo deste mundo?
- Ele já está destruído. Só que muita gente ainda não sabe.
- O governo da Comunidade Global está destruído?
- Esse fato se tornará conhecido de todos.
- Você adora a imagem de Nicolae Carpathia pelo menos três vezes por dia?
- Jamais.
- Você vai me contar onde estão seus companheiros ou me fornecer alguma pista que nos leve a capturá-los? Estou falando principalmente de seu pai, de seu marido, do Dr. Tsion Ben-Judá e do Dr. Chaim Rosenzweig.
- Prefiro morrer a contar.
Jock aplicou o restante do soro e aguardou cinco minutos, cutucando as unhas. Chloe cantou:
- "Preciosa a graça de Jesus, que um dia me salvou. Perdido andei, sem ver a luz, mas Cristo me encontrou."
Jock levantou-se e olhou para a porta, respirando pesadamente. Em seguida, dirigiu-se para perto de Chloe, retirou o tubo e o receptáculo e a desamarrou.
- Pronto? - ela perguntou.
- Não, mas eu apliquei a dose máxima. Nunca vi coisa semelhante. Vamos ficar sentados e conversar por alguns minutos. Se a última porção da droga fizer efeito e você recuperar o bom senso, é só me dizer.
- Vamos conversar sobre você, Jock. Por que esse entusiasmo tão ardente por Carpathia?
- Ah!, não, você não vai conseguir. Quero que me deixe em paz. Acredite no que quiser. É impressionante. Vou lhe dizer o que penso. Gente mal orientada, mas impressionante. É esse o problema dos religiosos extremistas.
- É isso o que somos? - ela perguntou.
- Claro.
- Você está nos confundindo com gente que mata em nome da fé, não é isso?
- Vocês são tão extremistas quanto eles, madame.
- Nós não matamos pessoas que não concordam conosco. Não erguemos estátuas de nosso Deus por aí nem exigimos, por lei, que todos se curvem e façam bajulações diante delas três vezes por dia. Nós apresentamos a verdade, mostramos o caminho às pessoas, exortamos que conheçam a Deus. Mas não obrigamos ninguém.
Jock sentou-se pesadamente na cadeira.
- Você já se deu conta de que vai morrer amanhã?
- Esse pensamento já me passou pela cabeça.
- E não está preocupada?
- Claro que estou. Estou apavorada.
- Você nunca mais vai ver seu marido, seu filho, seus parentes e seus amigos.
- Se eu acreditasse nisso, a história seria bem diferente.
- Já entendi. Sonhos e quimeras. Um dia, vocês vão ficar flutuando em volta das nuvens, tocando harpa e usando mantos brancos.
- Espero que você esteja certo a respeito da harpa, e não dos sonhos e quimeras.
Jock sacudiu a cabeça.
- Você sabe que vamos mostrar tudo ao mundo pela TV.
- Espalhar mais mentiras sobre mim?
- Vamos dizer o que é necessário para livrar a nossa cara.
- E, no meu caso, vocês precisam livrar a cara porque essa operação foi um enorme fracasso, não?
- Poderia ter sido melhor.
- Poderia? Não poderia ter sido pior! O que vocês conseguiram?
- Bem, quando descobrirmos onde o restante dos covardes está escondido, vamos conseguir alguma coisa.
- Você os chama de covardes porque estão escondidos ou quer dizer que eles são covardes como eu? Você me acha covarde?
- A bem da verdade, não.
- Vou ter direito a dizer minhas últimas palavras amanhã?
- No seu caso, não vamos permitir. Você vai tentar pregar um sermão, atacar Carpathia, tentar salvar as pessoas.
- Em resumo, eu só vou poder dizer minhas últimas palavras se fizer tudo o que a Comunidade Global deseja.
- Mais ou menos.
- É o que nós veremos.
- Nós? Nós quem?
Chloe levantou-se e notou que seu amigo havia desaparecido. Ela prosseguiu corajosamente.
- Jock, você já pensou que o dia está chegando, muito antes do que você pensa? O dia em que todos terão de prestar contas a Deus e a seu Filho?
- Você acredita nisso?
- "Como está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua dará louvores a Deus" (Rm 14.11).
- Bem, querida, eu não vou fazer isso.
- Sinto muito, Jock. Cada um de nós prestará contas a Deus.
- Meu deus é Carpathia. E isto me basta.
- E quando Jesus vencer?
- Ele vai vencer?
- "Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai" (Fp 2.9-11).
- Espero que isto tudo lhe dê algum conforto quando você estiver debaixo do sol quente amanhã cedo, sentindo aquele cheiro, vendo cabeças rolando e sabendo que a próxima será a sua. Talvez eu não seja um interrogador tão bom quanto pensava, ou você pagou muito dinheiro para ser treinada e assim resistir ao soro da verdade. Mas não existe nada melhor para deixar a mente mais clara do que saber que você está na fila da guilhotina e vai ser a próxima. Vou estar de olho em você amanhã, moça. Aposto que vai tremer, gemer e implorar por uma chance de se salvar.
O relógio marcava 8h30, horário do palácio, e ainda faltavam sete horas para Mac chegar a Petra. Ele digitou o número de Otto Weser, que Rayford lhe dera, e identificou-se.
- Ele ressuscitou - disse o alemão.
- Cristo ressuscitou verdadeiramente - disse Mac. - Você tem alguma novidade para mim?
- Eu preciso lhe dizer que a Srta. Krystall tem sido uma preciosidade para nós. Gostaria que ela estivesse do nosso lado. Ela me deixou ouvir a conversa de um homem chamado Suhail Akbar, chefe do...
- Eu sei quem ele é, Sr. Weser. Com todo respeito, vamos ao que interessa.
- Carpathia encarregou aquele homem e seu pessoal de duas coisas. Primeira, providenciar a instalação do governo em Al Hillah, e segunda, preparar uma verdadeira Oktoberfest para os líderes do mundo inteiro em Bagdá, daqui a seis meses.
- Não vai ser em outubro?
- É apenas um modo de dizer. Vai ser igual ao que vocês ianques chamam de um mega-evento, com toda pompa e circunstância, bandeiras, cartazes, show de luzes, bandas, dançarinos, tudo. Se a escuridão terminar em Nova Babilônia, o governo volta para cá. Mas, mesmo que isto aconteça, a festa será mantida em Bagdá.
- Exatamente onde? Você sabe?
- Em um edifício novinho em folha, Sr. McCullum. No lugar em que estava localizado o Museu do Iraque, antes da guerra. Deve ser um evento de alto gabarito, com acomodações de luxo, sala para reuniões e muita ostentação. Existem apenas dez chefes de Estado, mas, pelo jeito, além das reuniões particulares com seu gabinete, Carpathia também quer algumas festividades abertas ao público. Mas para o povo dele, Carpathia está se referindo às reuniões com os subpotentados como uma solução final para o problema dos judeus.
- Para um alemão, isso deve ser parecido com o que está escrito em seus livros de história, não, Sr. Weser?
- Francamente, nossos livros de história não são iguais aos que os outros escrevem sobre nós, mas entendo o que o senhor está querendo dizer. Já percorremos essa estrada antes.
- Alguma notícia de Chloe Williams?
- Krystall diz que ela está na Prisão de Angola, em Louisiana.
- Ela está se baseando nos noticiários que vimos ou tem informações de dentro do palácio?
- Vou perguntar a ela.
Depois de alguns instantes, Otto voltou a falar.
- As duas coisas. Ela diz que ouviu o noticiário e que ouviu também o pessoal do Serviço de Segurança e Inteligência conversar sobre Chloe, dizendo que ela está lá. A última notícia é que ela vai ser executada às 10 horas, horário central.
- Temos de partir e levar George e alguns homens conosco, Rayford - disse Buck.
- Esta história ainda não faz sentido para mim - disse Rayford. - Por que a CG divulgaria onde ela está?
- Talvez para preparar uma armadilha para nós.
- Então, é menos provável que ela esteja lá.
- Você acha que eles estão desconfiados de Krystall? - perguntou Buck.
- Que deram uma informação falsa só para testá-la?
- Vamos ver o que Sebastian acha disto.
Chang estava sentado diante de seu computador, no centro de tecnologia, desde antes do alvorecer. Quando Naomi chegou, ela se postou atrás dele e pousou suavemente as mãos sobre seus ombros.
- Tropas, tropas e mais tropas - ele disse. - Se as tropas da Grécia sozinhas poderiam dominar Israel, imagine só as tropas de todos os Estados Carpathianos juntas. E isto é apenas o começo.
- Quais são as últimas notícias sobre a esposa do Sr. Williams?
- Tudo o que consegui extrair das informações recebidas no palácio procedentes de Al Hillah foi que Chloe está em Louisiana e que será executada às 18 horas, nosso horário.
- Oh! Não.
- E isto não é o pior, Naomi. Eles divulgaram a notícia pela televisão internacional, mas nunca dizem a verdade. Se quisessem ludibriar o Comando Tribulação, poderiam ter deixado Chloe em San Diego. Rayford e Buck estão atarefados tirando o pessoal de San Diego e acho que não sabem o que fazer. Espero que consigam enxergar uma saída. Pelo que sabemos, Chloe está a uma hora de San Diego. A CG só precisa que ela esteja em algum lugar onde uma afiliada da CNNCG possa fazer uma transmissão ao vivo.
Naomi puxou uma cadeira e se sentou ao lado de Chang.
- Acho que você vai fazer de tudo para interferir nesse noticiário, não?
- Não quero que o mundo veja isso de jeito algum.
- Mas nós vamos querer que o mundo veja e ouça o que Chloe tem a dizer.
- Claro. Eu só quero dar um jeito de tirar a cena do ar no momento em que eles perderem a paciência com ela.
Rayford constatou que Sebastian concordava com ele.
- A CG não vai informar onde ela está de jeito nenhum - disse Sebastian. - Seria uma gafe tremenda.
- E então, como nós ficamos? - perguntou Buck. - É melhor saber o pior do que não saber nada.
- Quero ver se Krystall está pronta para assumir o risco - disse Rayford. - Vou ligar para ela.
Quando a ligação foi completada, Rayford disse:
- Preciso lhe fazer uma pergunta muito importante para mim.
- Já forneci tantas informações sobre seu pessoal que poderia ter sido executada.
- Vou lhe passar uma informação que prolongará sua vida.
- Do que você está falando?
- Você costuma visitar o site do Dr. Ben-Judá, certo?
- Eu já lhe disse que sim.
- Então sabe que ele tem informado por antecipação e mostrado trechos da Bíblia, profecias sobre todas essas pragas e julgamentos que estão se abatendo sobre a terra.
- Sim, é de arrepiar os cabelos.
- É de arrepiar os cabelos, mas tudo isso é verdadeiro, e sabemos o que vai acontecer em Nova Babilônia. Só não sabemos exatamente quando.
- E o que vai acontecer aqui?
- Deus vai destruir a cidade inteira no espaço de uma hora.
- Oh!, meu...
- Deus vai tirar o povo dele daí... pessoas como Otto e seus amigos... para salvá-lo da morte. Você também precisa sair.
- Para onde eu devo ir?
- Para qualquer lugar, menos ficar em Nova Babilônia.
- Você tem certeza de que isso vai acontecer?
- Se não acontecer, será a primeira vez que uma das profecias não se cumprirá. Veja, Krystall, não posso prometer que você será protegida só por ter saído de Nova Babilônia. O restante do mundo também sofrerá, mas talvez não de maneira tão trágica e rápida quanto em Nova Babilônia. Sua única esperança é sair daí.
- Todos esses exércitos que Carpathia está enviando para Israel também fazem parte das profecias? - perguntou Krystall.
- Você já ouviu falar em Armagedom? É isso. Mas o fim de Nova Babilônia será antes.
- E o que você vai querer de mim depois de me dar esse alerta?
- Quero que ligue para alguém. Alguém que saiba das coisas. E quero que você inclua Chloe Williams na conversa. Diga a essa pessoa que assistiu ao noticiário, ou coisa parecida, e que está apenas curiosa. É verdade que ela vai ser executada? Onde? Você me faria este favor?
- Você não está acreditando que será em Louisiana? - ela perguntou.
- Acho isso muito difícil de engolir.
- Não prometo nada, mas vou ver o que posso descobrir.
- O que você vai fazer esta noite, Jock? - perguntou Chloe quando ele a levou de volta à cela solitária.
- Dormir como um bebê. Amanhã será um grande dia. Vamos contar ao mundo que você cantou como um canarinho, mas que, no fim, recusou a marca e não prometeu lealdade a Carpathia. Bem que nós forçamos.
- E você será o herói da história.
- Talvez promovido. Despachado para a divisão internacional.
- E onde você vai trabalhar?
- Por que está interessada em saber? Você não pode contar a ninguém nem fazer alguma coisa.
- E que mal faz você me contar?
Jock aprumou a cabeça e olhou para ela.
- Dizem que vou trabalhar no vale de Jezreel.
- Sério? O que está acontecendo lá?
- Não tenho autorização para dizer.
- Mas você sabe?
- Bem, sim, claro que sei.
- Parabéns.
- Obrigado.
- O céu é o limite, não?
- Acho que sim - ele disse.
- Quer que eu lhe dê uma pequena informação?
- Agora é um pouco tarde, mas quero saber.
- Nova Babilônia nunca mais voltará ao normal.
- Você diz isto com muita certeza.
- Tanta certeza quanto estou em pé aqui - disse Chloe.
- Duvido que você esteja certa, mas não vai poder constatar. Eu vou.
- Eu não teria tanta certeza assim.
- Até amanhã cedo, madame.
Chloe sentou-se na cela escura e perguntou em voz baixa:
- Ainda estás aqui comigo?
- Sempre - foi a resposta. - Até à consumação do século.
Chloe prostrou-se no chão e orou o restante do tempo, incapaz de dormir. Ela cantou, citou versículos da Bíblia, louvou a Deus e ouviu.
Ficou a maior parte do tempo ouvindo. E Ele confortou seu coração.
- Nunca mais vou permitir que isto aconteça - disse Buck.
O dia começava a amanhecer, e eles estavam em pé, do lado de fora do jato de dois lugares, em uma região remota do oeste de Wisconsin, monitorando um rádio e uma TV em miniatura e aguardando o chamado de Krystall.
- Mesmo se tivéssemos descoberto que Chloe estava a meia hora de St. Paul, não teríamos condições de fazer nada. Estamos sem carro, sem disfarces, sem documentos de identidade. Nunca mais, pai, eu prometo.
Aparentemente, Rayford não tinha nada a dizer, e Buck condoeu-se dele.
- Não sei o que mais poderia ter sido feito - prosseguiu Buck. - Mas eu preferia não estar parado aqui, esperando alguma coisa acontecer.
- Eu não entendo por que Krystall ainda não ligou - disse Rayford. - Ela teve o dia inteiro para fazer isso. - Ele consultou seu relógio. - A tarde já chegou à metade em Nova Babilônia.
- É melhor não pensarmos que eles estão desconfiando dela, que grampearam seu telefone ou algo parecido. Aí, eles vão notar tudo sobre Otto, descobrir que sabemos onde a grande reunião vai ser realizada, descobrir tudo.
- Não sei - disse Rayford. - David e Chang sempre afirmaram que a CG não grampeia os próprios telefones.
- Entendo que todos em Al Hillah estão em reunião o dia inteiro e que não há ninguém que possa contar a verdade a Krystall sobre o paradeiro de Chloe, é isso? Você devia ter dado um prazo a ela. Será que ela faz idéia de que precisamos saber disto antes da execução?
- Ela não trabalha para nós, Buck. Ela tem sido uma dádiva de Deus.
- É interessante usar esta expressão para alguém que possui a marca da besta.
Mac deixou Zeke em Petra por volta das 14 horas. Abdullah, que já havia providenciado uma aeronave maior para Mac, encarregou-se de ajudar Zeke a instalar-se em sua nova moradia.
- Planejo entrar e sair daquele apartamento o mais rápido que puder - disse Mac. - Depois, pego Weser e seu grupo e volto para cá. Eu gostaria de terminar tudo antes que a CNNCG leve ao ar o caso de Chloe. Não quero assistir à cena em que ela vai ser morta, mas quero ver as preliminares.
Envolvida na mais completa escuridão, Chloe não tinha idéia da passagem do tempo. De vez em quando, ela encostava a orelha na porta de aço para ouvir o que se passava no conjunto de celas solitárias. Até aquele momento, nada.
Ela imaginou que o tempo de espera para a execução deveria ser o mesmo que aguardar para falar com o diretor do colégio ou enfrentar um castigo iminente, só que multiplicado por um milhão de vezes. E, mesmo assim, ela se sentia relativamente calma. Seu coração estava pesaroso em relação a Buck, não apenas pela falta que ele sentiria dela, mas pelo esforço que ele teria de fazer para explicar o acontecido a Kenny.
Kenny era muito criança, e não haveria necessidade de muitas explicações, ela sabia disto. Mas as perguntas do dia-a-dia, a falta que ele sentiria da mãe, a triste realidade de que ninguém poderia amá-lo da mesma forma que ela... tudo isso era muito desgastante.
Chloe sentia a presença de Deus, embora não estivesse vendo o mensageiro que aparecera na noite anterior. Seus músculos estavam doloridos por causa das posições em que ela se colocava para orar e quando tentava acomodar-se melhor. A fome era um problema que ela conseguira afastar da mente. Em breve, ela dizia a si mesma, estaria jantando na mesa de banquete do Rei dos reis.
O mais gratificante de tudo era que Chloe tinha poucas dúvidas e muito mais segurança à medida que as horas passavam. Ela colocara todos os ovos em um só cesto, conforme costumava dizer. Se estivesse errada, paciência. Se tudo aquilo não passasse de uma grande encenação, ela havia engolido a história inteira. Mas, para ela, os dias de questionamentos e receios não mais existiam.
Já presenciara muita coisa, passara por muitos sofrimentos. Já vira, como todas as pessoas do planeta, que Deus era real, que Ele estava no controle de tudo, que Ele era o arquiinimigo do anticristo, e que Ele seria o vencedor final.
No início de sua vida espiritual, Chloe se mostrava um tanto presunçosa, principalmente quando as pessoas a criticavam ou zombavam dela por causa de sua crença. Ela aprendera a não se alegrar com o sofrimento alheio, mas não podia deixar de sentir uma satisfação interior por saber que um dia provaria a todos que estava certa.
Porém, pela misericórdia de Deus, aquela atitude já não existia. Quanto mais ela aprendia, quanto mais sabia, quanto mais via exemplos de outros crentes demonstrando compaixão pela condição deplorável das pessoas perdidas, mais Chloe amadurecia na fé. Esse amadurecimento era manifestado na tristeza que ela sentia pelas almas das pessoas, no desespero para que elas conhecessem a verdade e aceitassem a Cristo antes que fosse tarde demais.
Ela não sabia o que fazer com seus sentimentos de amor, preocupação e simpatia pelas pessoas que já haviam recebido a marca de Carpathia e estavam condenadas ao castigo eterno. Não havia mais esperança nem possibilidade de ajudá-las, mas ela sentia pena delas.
Lampejos de humanidade em Florence, em Nigel, em Jessé, em Jock... o que aquilo significava? Ela não podia esperar que pessoas incrédulas vivessem como crentes, portanto não sabia como julgá-las - apenas as amava. Mesmo assim, não havia mais nada a fazer.
Embora não conseguisse compreender que ainda houvesse pessoas incrédulas no mundo, Chloe sabia que isso era verdade. Talvez fossem aquelas pessoas que ela tentaria convencer quando Deus forçasse a CG a permitir que ela dissesse suas últimas palavras. Era difícil entender como alguém que presenciou todos os acontecimentos dos últimos seis anos ainda não houvesse percebido que as únicas opções eram Deus ou Satanás - ou pior, apesar de conhecer as alternativas, optara por Satanás.
Mas, sem dúvida, esta era a dura realidade. Ming lhe contara que os muçulmanos eram contra Carpathia porque não queriam abandonar sua crença. Alguns judeus praticantes que não acreditavam que Jesus era o Messias também rejeitavam Carpathia como deus deste mundo.
George conhecia alguns militares que se recusaram a prometer lealdade a um ditador, embora não confiassem em Cristo para receber a salvação.
Seria possível que depois de tanto tempo ainda houvesse pessoas espiritualmente descompromissadas, que simplesmente não queriam tomar uma decisão? Chloe não podia imaginar, mas sabia que isso era verdade. Algumas preferiram correr atrás de seus objetivos, de suas concupiscências.
Chloe pensou nos outros prisioneiros de Stateville que morreriam naquela manhã. Muitos eram portadores da marca de Carpathia, mas outros não. Será que ela, a prisioneira mais famosa, seria a última da fila?
- Clareza, Senhor - ela disse. - É tudo o que eu peço. Tu já me prometeste graça e força. Permite apenas que minha mente funcione melhor do que funcionaria nestas circunstâncias.
Mac vasculhou sua sacola e encontrou seus trajes de homem embriagado. Ninguém se daria ao trabalho de procurar a marca de Carpathia debaixo do gorro de meia de um homem malcheiroso, sem eira nem beira. Foi o único jeito que Mac encontrou para atrever-se a sair à rua durante o dia.
Ele encontrou sua motoneta no mesmo lugar onde havia deixado - no arbusto perto da pista aérea - e dirigiu-se à periferia de Al Basrah. Deixou a motoneta presa por corrente antes de entrar cambaleando na cidade.
Mac foi cumprimentado por vários bêbados verdadeiros. Ele agia como se estivesse andando a esmo, mas tinha um roteiro em mente. E quando chegou a um quarteirão de distância do apartamento que morou com Albie, ele entrou em uma viela, onde não havia ninguém. Correu o restante do caminho e ouviu vozes quando começou a subir a escada. Mac parou e sentou-se no patamar superior da escada. Havia dois homens em frente ao apartamento dele e de Albie.
- Você não pode ficar aí, velho! - gritou um deles. - Dê o fora.
Mac resmungou alguma coisa, abaixou a cabeça e começou a roncar.
Os homens riram.
- Estou achando - disse um deles em voz baixa - que ele vai chegar depois que escurecer. O MM quer esse cara vivo.
Mac reconheceu o apelido.
- Consegui dois homens para vigiarem a entrada uma hora antes do pôr-do-sol. Você tem certeza de que ele não vai chegar mais cedo?
- Ele não tem a marca, homem! Quem se arriscaria a andar por aí durante o dia sem a marca?
Quando os homens se afastaram e Mac teve certeza de que o caminho estava livre, ele se levantou rapidamente e abriu a porta do apartamento. O local estava vazio. Nenhuma mobília. Os pertences deles haviam desaparecido. Agora, o local servia apenas como armadilha para ele.
Mac desceu correndo a escada, pegou sua motoneta, dirigiu-se rapidamente para a pista aérea e seguiu para Nova Babilônia. Já havia combinado com Otto para que ele levasse seu pessoal até a pista do aeroporto de Nova Babilônia.
- É melhor o pessoal entrar no avião antes que alguém nos veja - ele dissera.
Os homens e mulheres sob a responsabilidade de Otto, em número de 30 ou pouco mais, tentaram agradecer individualmente a Mac, mas ele se limitou a sorrir e continuou guiando-os até o avião. Ele não se sentiria tranqüilo enquanto não chegasse a Petra. Depois, com uma nova identidade fornecida por Zeke, ele estaria pronto para qualquer traquinagem que Rayford pudesse ter imaginado.
Otto estava inquieto atrás do grupo.
- Assim que tudo estiver pronto - disse Mac -, podemos partir.
- Mac, não podemos partir ainda.
- Por quê? O que houve agora?
- Ela está morta.
- Quem?
- Krystall.
- Como assim?
- Vá até lá e veja. Depois que estive aqui esta manhã, voltei para nosso esconderijo e ajudei todos se aprontarem para ir a seu encontro. Quando cheguei aqui, eu disse a meu pessoal que aguardasse sua chegada e que você seria a única pessoa capaz de enxergar o suficiente para poder pousar. Voltei para agradecer a Krystall, e foi então que descobri.
- Como você sabe que ela está morta?
- Não sou médico, mas havia um cheiro forte como se alguém tivesse atirado alguma substância lá dentro. Ela estava no chão, com o telefone tocando. Eu a deixei ali. Verifiquei o pulso dela. Vá até lá e veja.
- Sr. Weser, não temos tempo. Se ela está morta, está morta, sinto muito. E isso talvez tenha acontecido porque Rayford a colocou no meio de toda essa confusão. Mas não há nada que eu possa fazer por ela, e podemos prejudicar esta missão se você e eu sairmos daqui e deixarmos todo o seu pessoal aguardando no avião.
- Você acha que eles estavam desconfiando dela? Que enviaram alguém para matá-la?
- Eu não sei como poderiam fazer isso se não estão enxergando nada.
- Achei que talvez eles tivessem encarregado alguém que conhece o palácio, e essa pessoa tateou o caminho até lá, conversou com aquela mulher para ter certeza de que ela estava lá e, em seguida, atirou um gás venenoso ou algo parecido dentro do apartamento dela.
- Pode ser. Isso explica por que Rayford não recebeu notícias dela. Você já o avisou?
- Eu deveria, não? Mas não sabia o que fazer. Fiquei muito aborrecido.
- Vamos subir a bordo. Eu ligo para Rayford.
Buck aguardava impaciente enquanto Rayford conversava com Mac e cobriu os olhos com a mão.
- O que foi? - ele perguntou.
Rayford fez um gesto pedindo um pouco de tempo, e os joelhos de Buck fraquejaram.
- O que foi? Chloe está morta?
- Ainda não, Buck - respondeu Rayford, ajoelhado na grama. - Mas isso poderá acontecer.
Rayford relatou os fatos.
Buck sentou-se, dobrou as pernas e encostou os joelhos no peito.
- Não posso acreditar que estou parado aqui no meio do nada, aguardando minha mulher morrer, sem sequer saber onde ela está.
O rosto de Rayford estava branco como cera.
- Deveríamos ter ido para Petra.
- Mas e se alguém...
- Ninguém que saiba de alguma coisa vai nos contar, Buck. É hora de levantarmos acampamento.
- Desistir, você quer dizer.
- Sim, Buck. - Rayford levantou-se e disse com voz embargada. - Estou desistindo. Agora ela está nas mãos de Deus. Se Ele deseja poupá-la por um motivo qualquer, acho que decidiu fazer isso sem nossa ajuda.
Enquanto Rayford subia a bordo, Buck levantou-se e apoiou as mãos abertas na fuselagem do avião, com a cabeça baixa.
- Chloe - ele disse com a voz rouca pela emoção. - Onde quer que você esteja, saiba que eu a amo.
Após uma longa noite de oração, Chloe passou por um cochilo. Foi despertada, sem saber quanto tempo depois, por um inconfundível toc-toc-toc da hélice de helicóptero. Mais de um. Talvez três. Ela imaginou, apenas por alguns instantes, que alguém chegara para tirá-la dali.
No íntimo, ela sabia que seu marido e seu pai, e talvez outros companheiros do Comando Tribulação, iriam até o fim na tentativa de libertá-la. Porém, sabia também que, sem um milagre, eles não teriam meios de saber onde ela estava. Aquilo havia sido o ponto alto de sua transferência.
Teriam eles descoberto alguma coisa? Ela nunca cessava de maravilhar-se diante dos recursos disponíveis para seus companheiros. Deveria preparar-se para fugir, caso eles invadissem o local para resgatá-la? Saberiam eles mais coisas que ela? Conheceriam a arquitetura e a planta da prisão, onde ficavam as solitárias, em que cela ela se encontrava? E em quantos eles estariam? Teriam condições de dominar o pessoal da CG?
Suas perguntas foram respondidas em seguida, quando seu amigo reapareceu e deixou a cela tão iluminada quanto se fosse meio-dia.
- Posso saber qual é o teu nome? - ela perguntou.
- Pode me chamar de Calebe.
- Eu não vou ser resgatada hoje, vou, Calebe?
- Você será libertada, mas não da maneira que está pensando.
- Libertada?
- Hoje você estará com Cristo no paraíso.
Ao ouvir aquelas palavras, Chloe ajoelhou-se no chão.
- Eu não consigo esperar - ela disse. - Vou sentir uma enorme saudade de muitas pessoas queridas, mas não será por muito tempo. Como eu anseio estar com Jesus!
Além dos helicópteros, Chloe ouvia apenas barulhos fortes do lado de fora e nenhum do lado de dentro do edifício. Veículos. Marteladas em objetos de metal. Gritos. Sons semelhantes ao de uma construção em andamento. Apesar de seu preparo psicológico, ela começou a ficar nervosa.
- Quero ser uma filha de Deus exemplar - ela disse, esforçando-se para controlar as emoções.
- Deus a manterá em perfeita paz se seus pensamentos permanecerem nele.
- Obrigada, Calebe. Mas, de repente, estou me sentindo frágil demais.
Finalmente, Chloe ouviu sons no interior do conjunto das celas solitárias. Uma batida rápida na porta de aço. A portinhola foi aberta. O rosto de Jock apareceu.
- Como se sente esta manhã, moça? Pausa para ir ao banheiro.
- Aguarde um minuto, por favor.
- Ora, que garota difícil!
Ela olhou desesperadamente para Calebe.
- "Deixo-vos a paz", diz o Senhor Jesus Cristo - foram as palavras de Calebe. - "...a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize" (Jo 14.27).
Chloe bateu na porta de aço.
- Estou pronta.
Um guarda abriu a porta. Quando Chloe saiu, avistou Jock trajando um uniforme azul com botões dourados, todo enfeitado. Ela também ficou frente a frente com uma mulher que trajava um blazer da CNNCG e carregava uma maleta de couro.
- Ora, ora - disse a mulher a Chloe. - Assim não está bom. Quero que me avise quando eu puder entrar no banheiro com você. Ei, Jock, providencie um macacão limpo para ela.
- Você vai me vestir para a morte? - perguntou Chloe.
- Com toda pompa, minha querida - respondeu a mulher. - A pena será cumprida, mas vamos deixar claro que você não foi maltratada.
- Estou vendo - disse Chloe, enquanto a mulher a acompanhava. - Arrancada de minha família, passando fome, sendo drogada, atravessando metade do país de avião, recebendo uma injeção do soro da verdade e presa a noite inteira numa cela solitária... é esta a sua idéia de um tratamento justo?
- Eu sou apenas uma artista em maquiagem. Quando estiver pronta, me chame.
- Para quê?
- Vou arrumar seu cabelo, fazer uma maquiagem leve em você.
- Não se preocupe.
- Ah! , é minha obrigação.
- Você não tem escolha? - Chloe perguntou.
- Se ao menos você estivesse apresentável... mas, olhe para você.
- Mas eu tenho escolha. Posso ter a aparência que desejar.
- É o que você pensa. Mas não é assim.
Chloe se viu de relance quando passou pelo espelho. Seu aspecto era horrível. Ela estava com o rosto oleoso e sujo, e os cabelos emaranhados. Que situação bizarra! Quando foi a última vez que alguém me embelezou? E agora ela estava recebendo um tratamento grátis, quando a aparência era a última coisa que lhe passava pela mente.
- Não demore - gritou a mulher. - O pessoal da TV tem um horário de programação, você sabe.
Chloe sacudiu a cabeça. Pessoal da TV. Eles esperavam que até mesmo uma condenada à morte fizesse parte de sua equipe.
- Estou deixando um macacão limpo em cima da pia! Troque de roupa e me avise quanto estiver pronta!
Chloe trocou de roupa, mas não disse nada. Quando ela saiu, a mulher reclamou:
- Você ficou de me avisar quando estivesse pronta!
- Eu não.
- Vamos entrar lá novamente para que eu possa usar o espelho.
- À vontade. Eu não preciso de espelho.
- Ora, vamos! Eu tenho de aprontar você.
- Eu já estou pronta.
- Pare! Espere! Fique onde está!
Chloe encarou a mulher.
- Você não está vendo o absurdo que está cometendo? Não basta me condenarem à morte? Vocês precisam fazer um espetáculo disto?
- Eu recebo ordens e tenho de cumpri-las.
- Então, faça o que tem de fazer, aqui e agora.
A mulher curvou-se, colocou a sacola no chão e pegou um pente e uma escova. Penteou com força o cabelo de Chloe. Em seguida, usou um lenço de papel umedecido para limpar o rosto dela e passou um pouco de blush em suas faces. Quando ela pegou o rímel, Chloe disse:
- Não. Chega. Nada de rímel, nada de batom. Vamos parar por aqui.
- Você é uma moça muito bonita.
Chloe ergueu uma sobrancelha.
- Muito obrigada. Este vai ser o ponto alto de minha manhã.
Que pensamento reconfortante! Minha cabeça vai ser a mais linda da caçamba.
Quando Chloe apareceu diante de Jock, ele perguntou:
- Eu preciso algemá-la, amarrá-la?
-Não.
- É assim que se fala, garota. Ela olhou firme para Jock.
- Não é nada pessoal - ele disse. - Só estou cumprindo o meu dever.
- Providencie, então, para que eu tenha direito a dizer minhas últimas palavras.
- Se dependesse de mim...
Ela se virou e o encarou.
- Depende de você, Jock, e você sabe disto. As pessoas que poderiam dizer o que você pode ou não fazer estão a quilômetros de distância daqui. Assuma a responsabilidade pelo menos uma vez, por favor. Tome uma decisão. Anuncie que vou falar e deixe que eu fale. Eu vou morrer e você vai receber uma promoção. Qual é o problema?
Jock desviou o olhar. Conduziu-a escada acima e para fora do edifício.
O sol da manhã estava brilhante. Ela protegeu os olhos. A imprensa dominada por Carpathia estava toda presente. Havia palanques armados e, aparentemente, o público tinha sido convidado. Chloe gostaria de saber qual era a finalidade de todo aquele tumulto até o momento em que percebeu que ela era a atração principal. O povo estava aplaudindo e dando vivas.
Os outros prisioneiros, na maioria homens, já estavam em suas respectivas filas, aguardando atrás das mesas. Alguns se mexiam no lugar nervosamente. Outros pareciam pálidos demais. Havia oficiais sentados diante de cada mesa, uma delas reservada para o aplicador da marca. O que aquilo significava? A esta altura, até aqueles que já haviam recebido a marca teriam de enfrentar a guilhotina. Estariam imaginando que a marca lhes daria alguma vantagem na vida após a morte que Carpathia oferecia?
Em volta de cada guilhotina, Chloe avistou alguns prisioneiros sentados, com as pernas cruzadas, usando uniformes de brim escuro. Aqueles homens, Chloe imaginou, deviam ser os condenados à prisão perpétua que Jock descreveu como coletores. Eles dariam um fim aos restos mortais. Todos pareciam entusiasmados, sorrindo, caçoando um do outro.
Jock a conduziu ao fim da fila diante da mesa do meio.
- Bem, é isso aí - ele disse.
Chloe notou um tom de justificativa na voz dele.
- Você ainda pode...
- Você deveria ter feito uma aposta ontem - ela disse.
- Como assim?
- Você tinha certeza de que, neste momento, eu faria um último apelo, imploraria.
- Esta você ganhou - ele disse. - Você é uma mulher estranha.
Chloe estava ciente dos holofotes presos em postes altos, das gruas que sustentavam as câmeras e seus operadores, dos técnicos com fones de ouvido correndo de um lado para o outro e das pessoas olhando para seus relógios.
Na fila diante da mesa à sua direita, Chloe viu um homem de meia-idade ostentando a marca de Carpathia - o que significava que ele havia sido condenado por outro crime capital - cair de joelhos no chão, tremendo e chorando. Ele agarrou as pernas da calça do homem à sua frente, que queria pousar a mão em seu ombro, com ar de constrangimento.
Uma senhora idosa, na fila seguinte àquela, estava em pé com as mãos no rosto, balançando o corpo. Talvez orando, Chloe imaginou. Em todas as filas havia judeus, identificados com a Estrela de Davi reproduzida por meio de estêncil, ou usando solidéus, alguns feitos de retalhos de tecido; outros, de cartolina. Todos estavam abatidos, com escoriações na pele por terem sido surrados, debilitados pela fome e tostados pelo sol.
Por meio de pesquisas feitas por Buck e de informações recebidas de David Hassid e Chang procedentes de dentro do palácio, Chloe sabia que Carpathia queria que os judeus fossem torturados até o limite de suas forças, porém a morte só deveria ocorrer diante do público, no momento em que fossem decapitados.
Já fazia certo tempo que Chloe vinha se alarmando, da mesma forma que muitas pessoas, com a degradação dos programas de TV que pioravam a cada dia. Alguns canais exibiam, 24 horas por dia, as mais terríveis perversões, e não havia limites para nada. Mas quando as pesquisas revelaram que os programas de TV mais vistos durante a semana inteira eram as execuções públicas, Chloe constatara que havia um lado mais perverso ainda, para o qual a sociedade estava derivando, e esse lado já vinha sendo mostrado.
A sede de sangue era, aparentemente, insaciável, chegando a tal ponto que os programas mais populares de execuções ao vivo eram aqueles que duravam uma hora e mostravam replays em câmera lenta das mortes mais horripilantes. Quando as guilhotinas apresentavam problemas e as lâminas emperravam, as vítimas eram deixadas ali, mortalmente feridas e gritando, mas sem morrer... Era isso que o público queria ver, e quanto mais, melhor.
Cada execução era precedida de um relato detalhado dos delitos praticados pelos recalcitrantes. A lógica era a seguinte: quanto mais sórdido o passado, mais sofrimento era imposto à vítima. Chloe conhecia os tipos de histórias que circulavam sobre ela, mas não tinha idéia do que diziam sobre os verdadeiros culpados.
Chloe viu Jock retornar e dirigir-se à plataforma onde havia um microfone. Um homem - aparentemente o apresentador - pediu silêncio ao povo, aguardando o aviso de alguém. Em seguida, pediu aplausos enquanto lia um texto que mencionava as qualificações de Jock Ashmore. Ele disse que Jock era o um dos principais investigadores da Comunidade Global, responsável sozinho pela captura e prisão de Chloe Steele Williams, a terrorista anti-Carpathia de maior periculosidade que havia sido detida até aquela data. O povo aplaudiu aos gritos.
- Obrigado - Jock começou a dizer. - Hoje vamos realizar 36 execuções: 21 por assassinato, dez por recusa a receber a marca de lealdade, quatro por crimes contra o Estado, e uma por todas estas acusações e outras tantas.
O povo aplaudiu, gritou, vaiou e assobiou.
- Para mim, é uma satisfação dizer que, apesar de Chloe Steele Williams não ter concordado em receber a marca de lealdade a nosso supremo potentado, ela nos forneceu informações detalhadas sobre seus companheiros no mundo inteiro, o que nos ajudará a erradicar de vez os judaístas que estão fora de Petra e a pôr um fim na cooperativa de mercado negro.
O povo aplaudiu freneticamente.
- Falaremos mais dessa mulher quando ela se tornar, hoje, a 36ª paciente da Dra. Guilhotina.
Depois que o povo finalmente se acalmou, Jock prosseguiu:
- Esta manhã, começaremos pela fila sete com um homem que assassinou sua esposa e dois filhos pequenos.
Chloe olhou de relance para um monitor de TV que mostrava uma cena terrível dos corpos mutilados dos meninos.
Deus, dá-me força, ela orou silenciosamente. Permite que eu me mantenha concentrada em ti.
Uma mulher bem à frente de Chloe, pálida, de aspecto doentio e sem a marca de lealdade, virou-se de repente para ela e perguntou:
- Você é Chloe Williams?
Chloe assentiu com a cabeça.
- Eu não quero morrer e não sei o que fazer!
Obrigada, Senhor.
- Se a senhora sabe quem eu sou - disse Chloe -, sabe de que lado estou.
- Sim.
- Sua única esperança é depositar sua fé em Cristo. Reconheça que é pecadora, que está separada de Deus. A senhora não pode salvar a si mesma. Jesus morreu na cruz pelos seus pecados e, se a senhora acreditar nisto, diga a Deus e peça-lhe que a salve por meio do sangue de Cristo.
- Mesmo assim, eu vou morrer?
- A senhora vai morrer, mas estará com Deus.
A mulher ajoelhou-se e cruzou as mãos, clamando a Deus. Um guarda apontou para um dos coletores e, depois, para a mulher. O homem levantou-se de um salto e correu na direção dela. Quando ele estava prestes a agarrá-la, Chloe abaixou o ombro e investiu contra ele.
O cotovelo dela atingiu a boca do homem e empurrou sua cabeça para trás. Ele caiu no chão, gritando e cuspindo dentes e sangue. A mulher continuou a orar. Finalmente, levantou-se. O homem fez um novo movimento em direção à mulher, mas Chloe apontou para ele, o que o fez fugir em disparada.
- Eu orei - disse a mulher -, mas continuo apavorada. Como sei se deu certo?
- Deixe-me olhar para a senhora - disse Chloe. Ela viu o selo dos crentes em sua testa. - O que a senhora está vendo em minha testa?
- Um sinal, como se fosse em 3D. Ela esticou o braço para tocá-lo.
- Eu também vejo o mesmo sinal na senhora - disse Chloe. - Somente os filhos de Deus são selados com esse sinal. Não importa o que vai lhe acontecer hoje. A senhora pertence a Deus.
O povo gargalhou quando os coletores tentaram arrastar o primeiro homem para a guilhotina, puxando-o pelos cabelos. Ele fincou os pés no lugar, chutou e gritou. Em seguida, começou a cair e teve de ser forçado a ficar em pé. O homem se contorceu e lutou de tal maneira que foram chamados dois coletores extras para segurá-lo no lugar. Quando o executor assegurou-se de que os coletores haviam se afastado, ele puxou a corda para descer a imensa lâmina.
A lâmina enferrujada, enegrecida de sangue, enroscou ligeiramente no momento de atingir o pescoço da vítima. Chloe estremeceu quando ela afundou apenas alguns centímetros. O homem fez um movimento brusco, pulou para trás e agrediu os coletores que tentavam dominá-lo.
Depois de conseguir livrar-se deles, o homem girou o corpo e começou a cambalear, esguichando sangue para todos os lados. Os coletores se protegeram, rindo e ridicularizando dele quando o executor bateu com força na lâmina para endireitá-la e levantou-a novamente.
Dois coletores agarraram o homem e forçaram-no a ficar na posição correta. A corda foi puxada novamente e, desta vez, a lâmina completou o trabalho. Pela reação demonstrada pelo povo, aquela era a maneira perfeita de iniciar o dia.
- A seguir - disse Jock -, executaremos os primeiros dez da fila daqueles que se recusaram a receber a marca, com exceção de nossa convidada de honra, é claro. Deixaremos o melhor para o fim.
Antes que ele pudesse prosseguir, Calebe apareceu no meio do pátio, com todo seu esplendor, entre Chloe e Jock. Ele parecia ter uns quatro ou cinco metros de altura. Seus trajes eram tão brancos que, quando Chloe se virou para ver a reação do povo, ficou claro que a luz ofuscara os olhos de todos.
Eles gritaram e ficaram imóveis. Chloe viu Jock virar-se para ver o que havia deixado o povo tão apavorado. Ele caiu, segurando o microfone e com os olhos arregalados, aparentemente incapaz de se mexer.
Quando Calebe falou, o chão tremeu e um vento fez levantar uma poeira. Chloe tinha certeza de que todos queriam fugir dali, mas não podiam.
- Eu vim em nome do Deus Altíssimo - ele começou a dizer. - Ouvi a minha voz e prestai atenção às minhas palavras. Aqueles que me desprezarem, estarão em perigo. "Rendam graças ao Senhor por sua bondade e por suas maravilhas para com os filhos dos homens!" (Sl 107.8).
- "Pois dessedentou a alma sequiosa e fartou de bens a alma faminta. Os que se assentaram nas trevas e nas sombras da morte, presos de aflição e em ferros, por se terem rebelado contra a palavra de Deus, e haverem desprezado o conselho do Altíssimo" (Sl 107.9-11).
- "Então, na sua angústia, clamaram ao Senhor, e ele os livrou das suas tribulações. Tirou-os das trevas e das sombras da morte, e lhes despedaçou as cadeias" (Sl 107.13,14).
- Assim diz o Filho do Deus Altíssimo: "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente" (Jo 11.25,26).
- Mas ai daqueles que não derem atenção à minha admoestação neste dia. Assim diz o Senhor: "Se alguém adora a besta e a sua imagem e recebe a sua marca na fronte ou sobre a mão, também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro" (Ap 14.9,10).
- "A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem e quem quer que receba a marca do seu nome" (Ap 14.11).
Sentado no meio do centro de tecnologia de Petra, Chang finalmente compreendeu o significado de não desgrudar os olhos da tela da TV, conforme diziam os ocidentais. Ele estava preparado para interromper a transmissão, tirá-la do ar antes que alguém visse a execução de Chloe.
Contudo, a aparição daquele mensageiro de Deus, advertindo os indecisos para que não recebessem a marca e suplicando que aceitassem a Cristo, era algo que o mundo necessitava ver e ouvir mais uma vez.
Nos últimos meses, o mundo inteiro foi informado sobre o aparecimento de anjos nos locais da aplicação da marca e das guilhotinas. Era difícil acreditar em alguns desses relatos, mas Tsion Ben-Judá explicou que eles se encaixavam perfeitamente no amor e bondade de Deus.
Chang olhou de relance para o local onde os anciãos estavam sentados na frente de um telão. Um pouco adiante deles, centenas de digitadores aguardavam instruções.
O sol do fim de tarde lançava raios oblíquos através da porta, a uns 30 metros de Chang, e ele se comoveu às lágrimas ao ver a chegada do maná. Proporcionando alimento para seu povo escolhido, protegendo e emocionando Chang, confortando Chloe e enviando mensageiros para anunciar o Evangelho eterno... Deus era o supremo obreiro das mil e uma funções.
Um telefone tocou e Naomi atendeu. Pela leitura labial, Chang entendeu o que ela disse quando se aproximou de Tsion.
- Buck quer falar com o senhor.
- Cameron, meu amigo! Como deve estar sendo difícil para você... Não, lamento muito, filho. Não conheço fato algum em que o portador do Evangelho eterno tenha interferido na sentença... Sim, é claro que Deus pode realizar um milagre, mas eu o advirto a estar preparado para qualquer resul...
Rayford questionou a decisão que tomara de estar em pleno vôo durante a transmissão. Ele acionou o piloto automático e ficou só observando, mas temia o momento que estava prestes a chegar e se perguntava quando recobraria a confiança em si mesmo para reassumir o controle da aeronave.
Bem, ele pensou, não havia escolha. Talvez esta fosse a melhor terapia. Se não quisesse ver Chloe, Buck e ele próprio morrerem no mesmo dia, precisava manter o equilíbrio mental.
Pobre Buck! Falando ao telefone com Tsion e, aparentemente, não ouvindo o que esperava. Rayford queria consolá-lo, mas Buck era o tipo de pessoa que só aceitava uma palavra de conforto depois de terminada a crise. Naquele momento ele estava argumentando com Tsion. Quando o mensageiro de Deus olhou para a multidão paralisada e viu os nove indecisos restantes, ajoelhados, chorando, Buck pressionou Tsion.
- Deus enviou seu mensageiro para lá, doutor! Por que é tão difícil interferir? Por que Ele não a tira de lá e nos devolve? Você sabe que Ele pode fazer isso! Ele também podia ter nos avisado onde ela estava. O que eu fiz ou deixei de fazer para merecer tão pouca consideração?
Chang voltou a olhar a tela para ter certeza de que não havia perdido nada, mas ainda podia ouvir Tsion aconselhando Buck com toda sinceridade.
- Cameron - disse Tsion -, é sua emoção que está falando. Você sabe muito bem que este período inteiro, o período da Tribulação, não se refere a nós individualmente. Deus tem um plano grandioso. É o auge da batalha entre o bem e o mal que tem atravessado milênios. Ele está reconciliando seu povo consigo. Devemos ser gratos por termos sido incluídos. Ele tem um cenário maior em mente, que também é uma prova de seu amor eterno para conosco. Confie nele, meu amigo. Confie nele sejam quais forem as circunstâncias.
Chloe sentia como se já estivesse no céu. O brilho de Calebe a impedira de presenciar a morte horrenda da primeira vítima. Ela viu Jock levantar-se com dificuldade e limpar a poeira do uniforme.
- Por favor, pessoal, ninguém deve sair daqui. Temos notícias dessas aparições em outros locais, embora esta seja a primeira visita que recebemos aqui. Trata-se de um truque perpetrado pelos espiritualistas que fazem parte do grupo dos rebeldes. Talvez devêssemos perguntar ao intruso se podemos prosseguir com nossa programação.
Ele se virou e olhou para Calebe, fingindo mais medo do que realmente sentia. Chloe percebeu que ele não conseguira convencer a multidão de que aquilo era real.
- Por gentileza, senhor - disse Jock, com a voz destilando sarcasmo -, podemos continuar?
A voz de Calebe, muito mais alta agora, ecoou nos muros da prisão.
- Você foi julgado e considerado culpado por seus crimes contra o Deus Altíssimo. Está condenado à morte por ostentar a marca do demônio. Não há nada que você possa fazer para fugir de seu destino. Você beberá do vinho da cólera de Deus por ter adorado a besta e sua imagem e recebido sua marca. Será atormentado com fogo e enxofre diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. E não terá descanso, nem de dia nem de noite.
- Tudo o que o Senhor Deus pensa certamente acontecerá, e o que Ele decide jamais mudará, porque está escrito em sua Palavra: "Jurou o Senhor dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará" (Is 14.24).
Jock encarou Calebe com as sobrancelhas erguidas. A seguir, olhou para a multidão e encolheu os ombros.
- A pergunta é simples... - ele disse, e o povo riu nervosamente. - Entendo que esta é uma indicação de que podemos prosseguir, porque... prestem atenção... se ele estiver certo e nós estivermos na mira de Deus, esse mesmo Deus poderá acionar o gatilho quando quiser. Mas vejam quem está morrendo aqui hoje. Quem? Vocês estão entendendo? Quem está morrendo? Quero que me respondam!
Ninguém respondeu.
- Esse tal povo de Deus! - disse Jock. - Aqueles que o adoram em vez de adorar o deus verdadeiro e nosso supremo potentado, Nicolae J. Carpathia! Vamos, minha gente, não se intimidem diante de fantasmas enormes, luminosos e transparentes. Ah, sim, ele é uma figura assustadora. Mas só conseguiu interromper um programa de TV e... vejam bem... torná-lo melhor ainda! Será que tudo isto não passa de uma encenação ou coisa parecida? O inimigo aparece para brandir a espada, mas ele não mudou nada! Vocês estão aqui para ver cabeças sendo cortadas, e é o que vão ver. Essas pessoas podem chorar, orar e suplicar o quanto quiserem, mas vão morrer!
Chloe se emocionou ao constatar que, dos nove indecisos que se levantaram, seis tinham o selo dos crentes na testa. Devia ter acontecido alguma coisa no íntimo deles, porque levantaram as mãos e sorriram, mesmo sabendo que morreriam. Os outros três estavam desolados, e Chloe supôs que eles fizessem parte dos que tinham o coração endurecido. Talvez tivessem desejado mudar de idéia, mas demoraram demais.
Apesar de toda a sua empáfia, Jock devia estar mais temeroso de Calebe do que deixara demonstrar ou queria cumprir à risca a programação da TV.
- Vamos esquecer essas coisas por alguns instantes, está certo? - ele disse. - Quero que sete dos dez que não têm a marca de Carpathia fiquem na frente de cada guilhotina, todos ao mesmo tempo. Já! Vamos! Coletores, comecem a trabalhar! Executaremos todos de uma vez e retornaremos à programação. Se ainda existe alguém que deseja receber a marca, que diga agora.
A mulher na frente de Chloe e os seis que receberam o selo de Deus na testa não saíram do lugar. Os outros três arrastaram-se até o local onde se encontravam os aplicadores da marca.
Dois coletores agarraram os sete restantes que não possuíam a marca de Carpathia, inclusive a mulher na frente de Chloe. A mulher virou-se e as duas se abraçaram.
- Seja forte e confie em Deus - disse Chloe.
A mulher foi arrastada até a guilhotina do meio. Nenhum dos sete lutou, esperneou ou teve de ser forçado a ajoelhar-se e colocar o pescoço no lugar.
- Vamos executar três de uma vez! - gritou Jock.
O povo, embora assustado diante da presença daquele desconhecido, de tamanho descomunal e brilhante, começou a vibrar antecipadamente.
Chloe abaixou a cabeça e fechou os olhos, determinada a não presenciar a execução dos filhos de Deus. Porém, mesmo com os olhos fechados, ela notou alguma coisa diferente. Levantou a cabeça e viu que o brilho de Calebe havia tomado conta do pátio inteiro. A claridade era tão intensa que ninguém conseguia enxergar nada. Aquilo provocou um estrago nas câmeras de TV, e os operadores e técnicos começaram a gritar pedindo ajuda, implorando a Jock que aguardasse.
- Não vamos retardar nossa programação por causa deste truque do inimigo! - disse Jock. Em seguida, contou até três. O som aterrador das lâminas pesadas ecoou, e o povo aplaudiu. Mas a luz intensa não permitiu que ninguém presenciasse as mortes, nem o pessoal dali nem os que estavam assistindo o espetáculo pela TV no mundo inteiro.
Chang recostou-se na cadeira e analisou a tela. A seguir, fez um sinal para que Naomi se aproximasse.
- Você viu isto? - ele perguntou. - Se o anjo fizer o mesmo com Chloe, não vamos precisar interromper a transmissão. Ele fará o serviço para nós.
- Ele desapareceu - disse Naomi. - Veja.
Ela estava certa. O pátio da prisão parecia ter voltado ao normal. As execuções prosseguiram na meia hora seguinte, de acordo com o programado, cada morte precedida das mesmas preliminares: representações gráficas dos crimes dos condenados.
Após o desaparecimento de Calebe, a reação do povo retornou ao normal: assobios, vaias, gritos e aplausos. Os coletores estavam sujos de sangue e de poeira. Pareciam embriagados de emoção por estar realizando aquela tarefa.
Chloe, em pé sob o sol quente por mais de uma hora, evitou olhar para aquele cenário de horror. Enfraquecida pela fome, ressequida pela sede e zonza por estar em pé, ela lutou para controlar as emoções. Orou o tempo todo suplicando a Deus que lhe concedesse uma oportunidade de falar em seu nome e que ela fosse capaz de expressar o que tinha em mente.
Chloe sentiu a falta de Calebe. Enquanto ele esteve ali, ela parecia estar recebendo o brilho da glória e sentindo a presença de Deus. Agora, sabia que Deus estava a seu lado, mas era necessário ter mais fé ainda. Ela procurou concentrar-se no pensamento de que, dentro de alguns instantes, estaria na presença do Deus Todo-Poderoso e se emocionou diante da idéia de que, em breve, se ajoelharia aos pés de Jesus.
Mas, naquele momento, ela estava em pé sob o forte calor do dia, recebendo poeira de todos os lados. Notou os olhares de simpatia dos funcionários que haviam aplicado a marca nos condenados. Eles já estavam acostumados a isso, tinham visto a "convidada de honra" ser ridicularizada e humilhada, como se a decapitação não fosse suficiente.
Mais de 30 minutos depois que Calebe o interrompera, Jock se mostrava envaidecido. Ele se dedicara à tarefa e, conforme Chloe imaginava, podia antecipar o gosto da promoção e já se via nos corredores do poder em Al Hillah em companhia do potentado.
Ainda de frente para o povo, Jock pegou um microfone sem fio e começou a caminhar em direção a Chloe.
- E agora chegou o momento pelo qual tanto aguardamos - ele anunciou, e o povo o aplaudiu.
Quando chegou perto de Chloe, ele tocou em seu ombro e a virou de frente para a platéia. Continuou ali com o braço ao redor dela. Embora enojada, Chloe surpreendeu-se com a gentileza dele. Com os dedos esticados e a mão aberta, ele a amparava, segurando-lhe o ombro. Ela queria desvencilhar-se e cuspir nele, mas sabia que estava sendo vista pelo mundo inteiro e aquela era sua última oportunidade de causar impacto e conduzir muitas pessoas a Cristo.
- É nosso costume conceder a um prisioneiro famoso o direito de proferir suas últimas palavras - disse Jock. - Mas, neste caso, eu estou em dúvida. O que vocês acham?
Alguns gritaram:
- Acabe logo com isso! Mate essa mulher! Queremos ver essa linda cabecinha dentro de um cesto!
Outros batiam palmas e gritavam:
- Permita que ela fale!
Jock olhou para a diretora de TV, e Chloe viu a mulher sinalizar que havia tempo para ser preenchido.
- Eu não sei - ele disse. - Devo ou não devo? O povo começou a gritar novamente.
- Enquanto pensamos no assunto - ele prosseguiu -, vamos ver o teipe dos crimes que estamos punindo hoje.
As vaias e os gritos recomeçaram quando as telas de TV mostraram uma história totalmente falsa, atribuindo todos os tipos de maldades a Chloe, aos judaístas, ao Comando Tribulação e à Cooperativa Internacional de Mercadorias.
Chloe surpreendeu-se ao ver que ela e seus companheiros foram responsabilizados por grande parte das pragas e julgamentos que tinham vindo do céu nos últimos seis anos.
Finalmente, as acusações falsas contra ela, seu pai e seu marido foram exibidas, acompanhadas da fotografia falsificada de um menino de dois anos ao qual ela, supostamente, dera o nome de Jesus e declarara que ele era a encarnação de Deus.
- Além de tudo - disse Jock -, esta mulherzinha mudou completamente de atitude quando ficou sabendo que ia morrer. Para proteger sua família, particularmente seu filho deus que assumiu a figura humana, ela cantou como um canarinho atrás das portas fechadas. Ela nos forneceu tantas informações que temos de admitir que Chloe Steele Williams nos ajudou sobremaneira a eliminar os últimos vestígios da mais significativa rebelião que a Nova Ordem Mundial já enfrentou.
O povo vibrou aos gritos.
- Podemos afirmar que ela disse o suficiente! Talvez tenha fornecido informações mais que suficientes! Talvez seja melhor permitirmos que ela fale! O que vocês acham?
Mais aplausos, batidas de pés no chão, gritos.
- A Sra. Williams entregou seus amigos, parentes e companheiros de conspiração, mas se recusou a prometer lealdade ao verdadeiro deus deste mundo, o ressurrecto Nicolae Carpathia.
Vaias tomaram conta do pátio.
- E agora Sra. Williams - ele disse virando-se para ela -, creio que estamos prontos para prosseguirmos com a sentença, a menos que esteja pronta para mudar de idéia.
Chloe esticou o braço para pegar o microfone, mas Jock o segurou com força.
- Ah, ah, ah! - ele disse. - Nada de privilégios, a não ser que você esteja disposta a aceitar a marca de lealdade ao trono do líder da Comunidade Global.
Ela, porém, continuou com o braço esticado, e agora estava com as duas mãos no microfone.
- Estamos presenciando um momento histórico, não é mesmo, pessoal? - disse Jock. - Você está entendendo, Sra. Williams, que, se pegar este microfone, está aceitando receber a marca de Carpathia?
Chloe pegou o microfone. Jock virou-se para o povo com os braços esticados para a frente e recebeu uma enorme ovação.
- Jock, você me garantiu que, se dependesse de sua vontade, eu poderia dizer algumas palavras. Depende de você?
Jock quis pegar o microfone.
- Eu não disse isso! Você só vai poder falar se receber a marca.
Calebe apareceu atrás de Chloe e levantou um dedo, fazendo um gesto negativo para Jock.
Jock ficou paralisado e tombou para trás, com o braço ainda esticado para pegar o microfone. O povo riu ao ver Jock com o rosto vermelho, transpirando e sem poder se mexer.
Chloe virou-se para a platéia e falou meigamente.
- Certa vez, um mártir famoso disse que lamentava ter apenas uma vida para entregar. É assim que me sinto hoje. Na cruz, morrendo pelos pecados do mundo, meu Salvador, Jesus, o Cristo, orou: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 23.34).
- Vocês querem saber qual é minha preferência pessoal? Minha escolha? Eu gostaria de estar com minha família, com pessoas que amo, com meus amigos, até o glorioso aparecimento de Jesus, que vai voltar. Mas este é o meu quinhão, e eu o aceito. Quero expressar meu amor eterno a meu marido e a meu filho. E um agradecimento eterno a meu pai, que me levou a conhecer a Cristo.
- Um famoso estadista missionário, que morreu como mártir, escreveu certa vez: "Não é tolo aquele que dá o que não pode manter para ganhar o que não pode perder." Ele estava falando de sua vida na terra comparada à vida eterna com Deus. Minha natureza humana não deseja uma morte igual às que vocês presenciaram 35 vezes hoje. Mas, para ser franca, em meu espírito, estou aguardando ansiosamente a chegada desse momento, porque estar ausente do corpo é estar presente com o Senhor. O próprio Jesus disse a seu Pai na hora da morte: "Nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23.46).
- E agora, "...segundo a minha ardente expectativa e esperança [...] em nada serei envergonhado; antes, com toda a ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte. Porquanto, para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Ora, de um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor" (Fp 1.20,21,23).
- E para meus companheiros que lutam pela causa de Deus no mundo inteiro eu digo: "Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz" (Fp 2.5-8).
- "Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai" (Fp 2.9-11).
- "Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós..." (Ef 3.20) "e para vos apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos" [Judas 24,25].
- Buck e nosso querido filhinho, saibam que eu amo vocês e que os estarei aguardando do lado de dentro do Portão Leste.
Chloe se curvou e colocou o microfone no peito imóvel de Jock. Sem precisar de escolta, ela caminhou até a base da guilhotina do meio. Quando ela se ajoelhou e colocou a cabeça debaixo da lâmina, o brilho de Calebe ofuscou os olhos das pessoas do mundo inteiro. Chloe ouviu apenas a corda ser puxada e a descida da lâmina mortal afiada que a conduziu à vida eterna.
Quinze horas mais tarde, Buck desceu penosamente do avião de Rayford, exausto por causa da longa viagem e com os olhos turvos, porém ansioso demais para carregar o filho nos braços.
Abdullah os aguardava com um carro na pista, nos arredores de Petra. Ele havia levado Ming, que carregava o menino. Buck pegou Kenny e o apertou com força de encontro ao peito, derramando lágrimas nas costas do filho.
Enquanto os cinco se dirigiam para Siq, a entrada estreita de acesso a Petra, Abdullah informou o pessoal de lá, pelo rádio, sobre o horário previsto da chegada deles.
- Espero que não se importe, Buck - ele disse -, mas o. Dr. Ben-Judá gostaria de realizar o culto em memória de Albie e Chloe assim que você e Rayford chegarem lá.
Buck ficou atônito diante da multidão que os aguardava. Centenas de pessoas haviam se reunido no lugar alto, de onde era possível ouvir o som forte da correnteza do riacho. O pessoal abriu caminho para que os amigos mais próximos de Buck e Chloe se reunissem à frente da multidão. Com um pouco de dificuldade por ter os braços de Kenny enroscados com força em seu pescoço, Buck sentou-se na parte plana de uma rocha e contemplou a cena.
Tsion e Chaim estavam em pé no meio, aguardando o povo se acomodar. Formando um meio círculo, de frente para Buck, Kenny e Rayford, estavam George e Priscilla Sebastian e Beth Ann. Ao lado deles, Buck avistou Ree Woo e Ming Toy de mãos dadas. Também estavam presentes Lionel Whalum e sua esposa, Felicia, acompanhados de Leah Rose e Hannah Palemoon, todos recém-chegados de Illinois.
Buck fez um sinal com a cabeça para cumprimentar Zeke, em pé perto de Abdullah e Mac. Um pouco mais adiante, Buck avistou Chang sentado em uma rocha com sua nova amiga Naomi, ambos demonstrando estar à vontade um com o outro. Buck notou o olhar de Eleazar Tiberias, pai de Naomi, vigiando a filha.
Tsion levantou a mão pedindo silêncio. Começou a falar em voz baixa, mas Buck teve a impressão de que todos podiam ouvi-lo apesar do ruído da correnteza.
- Hoje, eu trouxe comigo minha Bíblia pessoal. Conforme vocês devem saber, os anciãos daqui, o Dr. Rosenzweig e eu estamos estudando constantemente a Bíblia, comentários e dicionários bíblicos, procurando encontrar uma explicação para o que está acontecendo nestes últimos dias.
- São buscas de cunho acadêmico. Ao mesmo tempo em que elas têm relação com a vida cotidiana daqui, também são exercícios devocionais muito úteis. Diariamente, vemos em cada página as mãos do próprio Deus trabalhando para cumprir sua vontade em nosso meio e neste mundo.
- Mas hoje eu trago a Palavra de Deus que, além de fazer parte de minha biblioteca teológica, é o livro que tenho estudado desde alguns anos antes do Arrebatamento.
Conforme vocês sabem, minha vida mudou quando descobri que Jesus era o Messias que eu tanto aguardava. Essa descoberta não se deu apenas por causa do Arrebatamento, mas porque eu também tinha sido encarregado de estudar as profecias referentes ao Messias.
- Para fazer esse estudo, tive de comprar um exemplar do Antigo e do Novo Testamentos, o que me causou, na ocasião da compra, um enorme constrangimento. Eu não queria ser excomungado por meus colegas nem por meu Deus.
- Tomei conhecimento da verdade antes que o Arrebatamento a comprovasse para mim; logo a seguir, aceitei o verdadeiro Messias e passei a acreditar nele. De repente, este livro - Tsion ergueu a Bíblia - passou a ser o meu pão diário. Esta Bíblia, um livro que na época era necessário apenas para pesquisas de textos e que comprei com o rosto corado de vergonha, passou a ser o bem mais precioso que possuo.
- Quando minha família foi trucidada, eu me apeguei desesperadamente a ela para continuar a viver. Minha Bíblia tornou-se um símbolo material, um talismã como alguém diria, da Palavra de Deus que me fez conhecer Jesus, o Cristo, o Messias, o Filho do Deus vivo, o Cordeiro que foi imolado para levar consigo os pecados do mundo. Li, certa vez, a história de um grande teólogo cuja Bíblia pessoal se lhe tornou tão preciosa que às vezes ele se via acariciando-a, como se fosse um filho, uma filha ou um cônjuge. Aquilo me pareceu estranho, mas passei a entender o significado da Bíblia e a identificar-me com ela.
- Eu amo este livro! Eu amo esta Palavra! Eu amo seu autor e amo o Senhor que ela representa. E por que estou falando da Palavra de Deus hoje, neste dia em que estamos com o coração pesaroso demais, lembrando-nos de dois companheiros tão queridos?
- Porque Albie e Chloe eram pessoas da Palavra. Oh, como eles se deliciavam com a carta de amor de Deus endereçadas a ambos e a nós! Albie era o primeiro a dizer que não tinha estudos, que mal sabia ler. Ele cursou apenas a faculdade da vida; aprendeu a caminhar sozinho pelo mundo e se tornou, rapidamente, uma pessoa astuta e sarcástica. Porém, sempre que se lhe apresentava uma ocasião, quando podia sentar-se para estudar a Bíblia, ele tomava notas e fazia perguntas, assimilava seus ensinamentos. A Palavra de Deus foi fundamental em sua vida. Mudou seu modo de ser. Ajudou-o a transformar-se no homem que foi até o dia de sua morte.
- E Chloe, nossa querida irmã, foi um dos membros fundadores do pequenino Comando Tribulação que, hoje, é tão grande. Todos os que a conheceram adoravam sua personalidade marcante, seu intelecto, sua coragem. Que grande esposa e mãe ela foi! Jovem, porém muito dinâmica, ela transformou a Cooperativa Internacional de Mercadorias em uma empresa que manteve vivos milhões de pessoas do mundo inteiro, pessoas que recusaram a marca do anticristo e perderam o direito legal de comprar e vender.
- Nas várias casas secretas em que morei nos últimos seis anos, convivi com Chloe e sua família. Era comum encontrá-la lendo a Bíblia, memorizando versículos, e empenhando-se em transmiti-los a outras pessoas. De vez em quando, ela me entregava sua Bíblia e me pedia que conferisse se os versículos decorados estavam corretos, palavra por palavra. E ela sempre queria saber o significado exato de cada um. Não lhe bastava conhecer o texto; ela queria que ele se tornasse vivo em seu coração, em sua mente, em sua vida.
- Para aqueles que sentirão uma falta terrível, profunda e dolorosa de Chloe até o dia em que a veremos novamente em glória, eu ofereço o único conselho que me manteve a mente sã quando minha querida família foi arrancada de mim de maneira tão cruel. Segurem firme na mão imutável de Deus. Apeguem-se à sua Palavra. Apaixonem-se novamente pela Palavra de Deus. Agarrem as promessas da mesma forma que um cãozinho agarra as pernas da calça do seu dono com os dentes, sem soltá-las jamais.
- Buck, Kenny e Rayford, não compreendemos o que aconteceu. Não somos capazes de compreender. Somos seres finitos. A Bíblia diz que o conhecimento é tão passageiro que um dia desaparecerá, "...porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito...", e, oh!, meus amados, o que é perfeito está vindo, "...então, o que é em parte será aniquilado" (1 Co 13.9,10).
- "Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das cousas próprias de menino. Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face..." (1 Co 13.11,12).
- Vocês ouviram a promessa, o "então"? Que maravilha podermos nos regozijar com os entãos da Palavra de Deus! O então está se aproximando, meus queridos! O então está se aproximando.
Tsion sentou-se e abriu a Bíblia no colo.
- Enquanto choramos, não como fazem os idólatras, a perda de nossos amados irmãos em Cristo, quero encerrar este culto com as palavras do salmista: "Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos. Senhor, deveras sou teu servo, teu servo, filho da tua serva; quebraste as minhas cadeias. Oferecer-te-ei sacrifícios de ações de graças e invocarei o nome do Senhor" (Sl 116.15,16,17).
- "Cumprirei os meus votos ao Senhor, na presença de todo o seu povo, nos átrios da Casa do Senhor, no meio de ti, ó Jerusalém. Aleluia!" (Sl 116.18,19).
- "Louvai ao Senhor [...] louvai-o, todos os povos. Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco, e a fidelidade do Senhor subsiste para sempre. Aleluia!" (Sl 117.1,2).
- "Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre" (Sl 118.1).
- "Diga, pois, Israel: Sim, a sua misericórdia dura para sempre" (Sl 118.2).
Seis anos e cinco meses e meio dentro da Tribulação
Ree e Ming casaram-se em uma cerimônia simples, realizada por Tsion, alguns dias após o culto em memória de Albie e Chloe. O relacionamento de Chang e Naomi havia florescido, mas eles foram aconselhados a adiar o noivado para depois do Glorioso Aparecimento.
Rayford havia reorganizado o Comando Tribulação ao longo de vários meses. Mac, Abdullah e Ree tornaram-se os pilotos principais. Lionel Whalum, depois de meses voando de um lado para o outro, apresentou-se como voluntário para assumir a direção da cooperativa, tendo Ming como assistente e Leah e Hannah como colaboradoras.
Chang idealizou um plano brilhante para "grampear" a reunião internacional dos chefes de Estado da CG em Bagdá. Pelo fato de ter acesso diário ao computador principal de Nova Babilônia, ele descobriu que Leon Fortunato havia encarregado alguém de transmitir, por controle remoto, os registros das atividades diárias do governo para fins de duplicação e divulgação.
A grande oportunidade surgiu quando Chang descobriu que o governo estava abrindo concorrência para contratar a instalação de um serviço de som para o grande evento, no salão de conferências. Ele contou seu plano a Naomi.
- É espetacular - ela disse -, e acho que o capitão Steele também vai gostar. Seria bom você trocar idéia com ele logo, não?
No final de uma noite, Chang convidou Rayford para ir ao centro de tecnologia.
- Meu plano é este - ele disse a Rayford. - A identidade de Ree Woo nunca levantou suspeitas, e o nome dele não é conhecido pela CG. Formulei um dossiê mencionando que ele estudou numa faculdade de tecnologia e é proprietário de uma pequena empresa de engenharia de som na Coréia do Sul, chamada Woo e Associados.
- Presumo que essa empresa não existe.
- Claro. Como o senhor pode ver, registrei Ree como um cidadão leal bem conceituado da Região 30, com uma longa lista de clientes satisfeitos. Se alguém cruzar estas informações com as dos clientes, eles confirmarão tudo. Já sei quais são os preços dos concorrentes para a instalação do som, por isso posso fazer uma oferta mais baixa para que Woo ganhe a concorrência.
- E daí?
- Incluí vários avisos dizendo que ele prefere ter uma equipe pequena e trabalhar rapidamente à noite, para que outros sons não interfiram nos ajustes que devem ser feitos. Não será difícil instalar o som na sala principal e trabalhar com a CNNCG. Posso ensinar Ree e você como fazer isso em um dia ou dois. Vamos dizer à CG que o trabalho vai demorar o dobro do tempo normal, para que vocês possam ter acesso ao principal salão de conferências, onde sabemos que Carpathia e seu gabinete planejam reunir-se com os potentados regionais. Vai ser um pouco complicado instalar uma escuta clandestina lá, mas posso ensinar a vocês como fazer isso.
- Eu adoraria fazer esse serviço pessoalmente - Chang prosseguiu -, mas Zeke teria muito trabalho para me deixar irreconhecível perante as pessoas com quem trabalhei durante tanto tempo. Minha idéia é ensinar Buck e George como fazer a instalação. Enquanto você e Ree instalam o sistema de som básico no salão grande, eles poderão entrar na sala de reuniões e deixar tudo pronto.
- Ree é o único que tem a aparência de coreano, Chang. Buck, George e eu somos muito corpulentos.
- Isso é fácil. De qualquer forma, a equipe de trabalho terá de ser aprovada antecipadamente, por isso não haverá problemas em incluir todos vocês com as aparências e nacionalidades que Zeke escolher para cada um. O Sr. Woo vai explicar que está usando uma equipe internacional de alto gabarito para fazer o melhor trabalho possível.
- Gostei da idéia, Chang. Precisamos reunir todo o pessoal envolvido, principalmente Zeke. Ele terá de confeccionar uniformes da empresa e providenciar disfarces e documentos para todos.
Tudo correu às mil maravilhas. Zeke foi um artista e transformou George e Rayford em dois homens bem mais velhos. Buck precisou receber um tom rosado nas bochechas para ficar semelhante a um australiano. Todos passaram rapidamente a estudar eletrônica. Buck aprendeu tudo com facilidade, porque, na opinião de Chang, necessitava muito se concentrar em um novo trabalho.
Na época, houve um contratempo que se tornou útil, conforme Rayford descobriu posteriormente. A única representante do gabinete da CG responsável pela entrada da empresa Woo e Associados no salão de conferências era uma mulher que não foi contemporânea de Rayford e Buck quando eles trabalharam para Carpathia.
Ela não desconfiou de nada, e os dois se tranqüilizaram por estar lidando com uma pessoa estranha. Os demais membros do governo continuavam escondidos em Al Hillah, mas a mulher deixou escapar que, quando o salão estivesse pronto para as reuniões, o governo se mudaria para lá dentro de algumas semanas.
Rayford ficou impressionado com a habilidade de Ree em fingir que era um especialista em eletrônica. Ele havia aprendido os jargões com Chang e fez questão de impressionar a mulher responsável pelas chaves. Ela raramente trabalhava após o expediente, e, pelo fato de toda a equipe de Woo portar crachás e bonés da empresa cobrindo-lhes a testa, eles nunca foram abordados por ninguém, e o serviço transcorreu sem imprevistos.
Chang contara com a colaboração de Lionel para conseguir as peças para a instalação do som, e a equipe da Woo e Associados levou todo o material necessário para captar a transmissão de cada emissora afiliada que faria a cobertura da grande reunião. Também instalaram vídeo transmissores em metade das luminárias.
Ree Woo e seus associados terminaram o trabalho antes do tempo, e a CG depositou, eletronicamente, o pagamento total via internet.
- Agora estamos na folha de pagamento de Carpathia - Chang disse a Rayford.
O gabinete de Nicolae mudou-se de Al Hillah para a mansão perto do salão de conferências de Bagdá e, em questão de dias, os chefes das dez regiões seguiriam para lá. Certa noite, Rayford disse a Buck:
- Faz meses que o mundo não ouve um pronunciamento de Carpathia. Agora, pelo menos vamos saber o que esse sujeito tem em mente.
Carpathia adotara uma atitude discreta desde que a escuridão tomou conta de Nova Babilônia. O governo encontrava-se em um verdadeiro caos e muitos funcionários haviam morrido. O potentado conseguira pouco sucesso para arregimentar suas tropas em Israel. Rayford imaginou que Nicolae devia estar constrangido e humilhado por não ter sido capaz de contra-atacar a última praga.
- É aí que ele se torna mais perigoso ainda, não? - disse Buck. - Quando tem tempo para pensar e arquitetar seus estratagemas. Pode apostar que ele está ruminando alguma coisa espetacular.
Carpathia fez uma alusão a essa "alguma coisa" na primeira vez que Chang teve acesso à sala de reuniões, quando estavam presentes apenas Nicolae e seus homens de confiança. Chang gravou a conversa para ser ouvida posteriormente por Rayford.
- Tenho novidades - disse o potentado. - E ela é tão dinâmica e maravilhosa que mal posso aguardar para contá-la a vocês. Mas não posso dizer nada agora. Vocês terão de esperar a chegada de nossos colegas do mundo inteiro. Quero apresentar um trio a todos vocês. Eles nos ajudarão a atingir nossos objetivos.
- De onde vem esse trio, Excelência? - soou a voz clara de Viv Ivins.
- Por enquanto, é segredo.
- Oh!, divindade, por que o senhor gosta de brincar conosco? - perguntou Leon.
- Fique feliz por eu estar brincando com vocês, meu amigo. As forças rebeldes se arrependerão amargamente do dia em que sonharam opor-se a mim.
Certa noite, Rayford estava prestes a retirar-se para seus aposentos quando recebeu um recado que Tsion queria vê-lo.
- Ele está disposto a vir ao encontro do senhor - foi o que lhe disseram.
- Oh!, não, eu irei até lá.
Quando Rayford chegou, Tsion começou a dizer:
- Antes de fazer meu pedido, quero que você saiba que estou a seu dispor. Os anciãos e eu sabemos muito bem que, quando você está em Petra, é o chefe do Comando Tribulação, e eu sou simplesmente... como posso dizer?... o capelão do grupo.
- Estou satisfeito por você ter abordado este assunto, Tsion, porque eu também tinha a intenção de conversar com você sobre sua deferência em relação a mim. Isso me deixa desconfortável. Eu não considero Petra como quartel-general do Comando Tribulação. Sim, sinto que Deus colocou o manto de liderança sobre mim para comandar esse grupo, mas você foi o escolhido por Ele para liderar seu povo, que agora é composto de um milhão de pessoas. Você não deve sentir-se na obrigação de dar satisfações a mim. Você tem os anciãos e seu colega Chaim, e sei que o Senhor o conduz por meio deles. Para mim, está tudo bem. Na verdade, prefiro que seja assim.
Tsion esticou o braço e apertou o ombro de Rayford.
- Eu agradeço muito a sua confiança, capitão Steele. Mas você não deve subestimar suas responsabilidades de líder. Eu pretendia pedir-lhe um conselho sobre minha nova mensagem que será levada ao ar internacionalmente.
Rayford estava perplexo.
- Suas mensagens são transmitidas diariamente via internet, não?
- Claro. Mas, de vez em quando, Deus coloca em meu coração uma mensagem que, conforme acredito, é do desejo dele que ela seja dirigida tanto a crentes quanto a incrédulos. E, embora eu saiba que o site está disponível para todos e que muitos incrédulos o acessam involuntariamente, se pudéssemos mais uma vez entrar ilegalmente nas ondas de transmissão internacionais, eu ficaria muito grato por essa oportunidade. Creio que Deus me transmitiu uma mensagem que deve ser ouvida até mesmo pelo deus deste mundo e seus bajuladores. Quando o povo ouve a verdade de Deus pregada nas redes de TV de propriedade de Carpathia, bem, é como levar o Evangelho até as profundezas do inferno.
- E as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja - disse Rayford, citando um versículo bíblico.
- Excelente. E então, o que você acha? Podemos fazer isso? Quando?
- Em primeiro lugar, Tsion, você não necessita de minha permissão.
- Considere, então, que eu estou lhe transmitindo uma informação.
- Tudo bem. Você deve saber que os melhores técnicos de informática do mundo estão aqui. Chang é o principal, mas Naomi também trabalha lá, e eles montaram uma equipe capaz de fazer qualquer coisa. Trabalham para você da mesma forma que trabalharam para mim, portanto se necessitar de alguma coisa deles, basta pedir.
- Você tem um ótimo entrosamento com eles, Rayford. E comigo. Prefiro ter você como intermediário.
- Como você quiser. Só quero dizer, Tsion, que o que vamos fazer, seja lá quando for, é pirataria. É ilegal.
- Você tem algum problema em fazer isso?
- Absolutamente nenhum. Nem preciso pensar duas vezes. Estamos em guerra, e estou preparado para usar os meios que forem necessários para conquistar alguma vantagem. Em minha opinião, isso não precisará ser planejado. Chang montou um sistema tão aperfeiçoado que basta apertar um botão para aquele pessoal sair do ar e nós entrarmos. Você só terá de dizer quando e dar a ordem.
- Bem, penso que devemos fazer isso no momento oportuno, quando a maioria do povo estiver assistindo. Talvez durante um pronunciamento oficial de Carpathia ou durante um dos programas mais populares.
- Você sabe quais são esses programas.
- Não precisa me lembrar. Imagino que possa ser a qualquer hora. Que tal amanhã, ao meio-dia de nosso horário?
- Combinado.
- Vou reunir todo o pessoal, porque me sinto duplamente fortalecido quando tenho uma platéia ao vivo.
- Uma platéia de um milhão de pessoas? Eu não posso sequer imaginar. As câmeras serão instaladas e Chang estará no comando de tudo.
No dia seguinte, Tsion se sentia estranhamente nervoso. Havia muita gente recém-chegada a Petra, e ele nunca sabia o que esperar da multidão. Os anciãos oraram por ele e o animaram.
Chaim fez a apresentação de Tsion. E, quando ele apareceu para falar e o mestre Chang fez um sinal de que a transmissão estava sendo feita ao vivo internacionalmente, Petra irrompeu em aplausos.
Era exatamente isso que Tsion temia. Embora ele tivesse pedido silêncio e tentado transferir ao Senhor aquele extravasamento de emoções, apontando para cima, o povo não se acalmava. Rayford devia ter notado a situação desconfortável e embaraçosa em que Tsion se encontrava, porque se aproximou do rabino e falou em seu ouvido:
- Eles estão apenas demonstrando gratidão e amor a você, Tsion! Estão agradecidos demais pelo que você tem feito a eles. Aceite essa demonstração de gratidão e amor e ela cessará.
- Mas capitão Steele! Em Isaías 42.8, Deus é claro! Ele diz: "Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem."
- E eu digo que estas pessoas não estão tentando glorificar você. Estão simplesmente lhe agradecendo por você as ter levado até Ele.
Tsion queria acreditar que Rayford estava certo, mas não podia aceitar aquela reação do povo. Preferia que a terra o engolisse naquele momento. Ele abaixou a cabeça e olhou para o chão durante alguns minutos até o povo se cansar de aplaudi-lo.
Chang voltou rapidamente ao centro de tecnologia assim que a transferência foi feita e se deliciou ouvindo o caos em Bagdá.
- O que está havendo? - gritou alguém. - Como isto pôde acontecer? É impossível!
Outra pessoa ordenou à equipe de controle que desligasse todas as afiliadas.
- Não podemos - foi a resposta. - Todos os nossos sistemas sofreram interferência.
E não foi apenas o milhão de pessoas em Petra que, naquele dia, ouviu a mensagem de Deus por intermédio de Tsion. O número de telespectadores no mundo inteiro chegou a bilhões.
- Deus incutiu em meu coração uma mensagem que, conforme acredito, Ele gostaria que eu compartilhasse com vocês - Tsion começou a dizer. - Não vou fazer uso de meias palavras nem dourar a pílula, porque estamos atravessando o período mais perigoso da história da humanidade. Conforme todos nós sabemos, estamos chegando aos últimos seis meses de vida que nos restam. A batalha dos séculos, que tem sido travada desde o início dos tempos, está prestes a alcançar seu apogeu.
- O rei maligno deste mundo, o anticristo, está cuspindo sua raiva e vingança principalmente sobre o povo escolhido de Deus. No mundo inteiro, homens e mulheres inocentes estão sendo torturados o tempo todo. Que crime que cometeram? Cometeram o crime de ser judeus. Alguns acreditam que Jesus é o Messias; muitos não. Por um motivo ou outro, eles recusaram a marca de lealdade a Nicolae Carpathia e estão pagando por isso todos os dias.
- Vocês têm presenciado tudo, desde o início, e conhecem o prazer com que o demônio vê seu plano sendo levado a efeito.
- Muitos anos atrás, eu comecei a provar a verdade da Palavra de Deus quando lhes falei, antecipadamente, sobre os julgamentos e flagelos que seriam lançados à Terra, fatos claramente profetizados há centenas, talvez milhares, de anos. Vimos a concretização da profecia de um cavaleiro sobre um cavalo branco, prometendo paz, mas trazendo uma espada. A seguir, veio o cavalo vermelho, a Terceira Guerra Mundial que, por sua vez, trouxe o cavalo preto da fome, e, depois, o cavalo amarelo da morte. De maneira subseqüente, houve o martírio de muitos santos antes do terremoto da Ira do Cordeiro.
- Aqueles seis julgamentos foram profetizados nas Escrituras Sagradas, e o sétimo anunciou os sete julgamentos seguintes. Granizo e fogo caíram sobre a Terra. A seguir, a montanha incandescente foi atirada ao mar. O absinto envenenou as águas. Logo depois, o sol, a lua e as estrelas perderam um terço de sua luminosidade. Gafanhotos demoníacos atacaram aqueles que não foram selados por Deus, e, em seguida, a humanidade foi atacada por um exército de cavaleiros satânicos, em número de 200 milhões, que exterminaram grande parte da população. O 14º julgamento anunciou os últimos sete, cinco dos quais já foram enviados.
- Milhões de pessoas sofreram com as úlceras. O mar se transformou em sangue, e o mesmo aconteceu com os rios. O sol queimou o povo com seu calor e destruiu um terço da vegetação da Terra. A escuridão que tomou conta de Nova Babilônia tem sido justificada, analisada e recebido explicações sem fundamento. Mas ninguém pode contestar o fato de que ela é tão abrangente e penetrante a ponto de fazer as pessoas morderem a língua por causa da dor que sentem.
- Muita gente tem especulado quanto tempo ela vai durar. Eu lhes digo que não há nada na Bíblia que indique que ela se abrandará antes do fim. Foi por causa dessa escuridão que o rei deste mundo mudou o local de seu reinado, talvez pensando que chegará o dia em que ele e seu povo poderão voltar para lá, mas eu afirmo que isso jamais acontecerá. Haverá mais dois julgamentos antes do glorioso aparecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus o Cristo.
- Ouçam o que eu digo! As águas do rio Eufrates secarão! Alguém poderá zombar disso hoje, mas se surpreenderá quando acontecer e se lembrará desta profecia. O último julgamento será um terremoto que arrasará o mundo inteiro. Esse julgamento trará granizos tão grandes que matarão milhões de pessoas.
- Todos os dias alguém me pergunta como o povo pode presenciar todas essas coisas e, mesmo assim, escolher o anticristo em vez de Cristo? Este é o enigma dos séculos. Para muitos de vocês, é tarde demais para mudar de idéia. Talvez enxerguem, agora, que escolheram o lado errado desta guerra. E se prometeram lealdade ao inimigo de Deus aceitando sua marca, é tarde demais.
- Se ainda não receberam a marca, talvez também seja tarde demais, porque demoraram muito tempo. Vocês exorbitaram e fizeram Deus chegar ao limite de sua paciência.
- Mas pode ser que ainda há uma chance para vocês. Para saber se ela existe, orem para aceitar a Cristo, digam a Deus que reconhecem que são pecadores e que estão separados dele, e que admitem que sua única esperança está no sangue de Cristo, derramado na cruz por vocês.
- Lembrem-se disto: se não aceitarem a Cristo e não forem poupados do próximo julgamento, este sofrimento pelo qual estão passando neste momento será eterno. Se aceitarem a Cristo e se seus corações não estiverem endurecidos, não mais sofrerão pelo restante da eternidade.
- Para aquelas pessoas do mundo inteiro que já são meus irmãos e irmãs em Cristo, exorto que sejam fiéis até a morte, porque Jesus disse: "Não temas as cousas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova [...] Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida" (Ap 2.10).
- Que promessa maravilhosa! Cristo lhes dará a coroa da vida. Será uma emoção indescritível ver Jesus voltar novamente, mas oh!, que privilégio morrer por amor a Ele.
- A boa nova é que eu creio que o inimigo, quer ele admita ou não, sabe que seu tempo é limitado. Isto também faz parte das profecias. Apocalipse 12.12 diz: "Por isso, festejai, ó céus, e vós os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta." Para que vocês não duvidem de minhas palavras, lembrem-se de que tudo o que esse homem tem feito foi predito. Apocalipse 13.5-8 diz: "Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir quarenta e dois meses; e abriu a boca em blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o nome e difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no céu. Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação; e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo."
- Vocês podem ter o seu nome escrito no Livro da Vida! Esta é a boa nova.
- Agora, preciso dizer-lhes que também existem más notícias. A ira do demônio se intensificará, em ritmo frenético, de agora até o fim. Haverá cada vez mais exigências para que todos o adorem e recebam sua marca. Para vocês que compartilham minha fé e estão dispostos a ser fiéis até a morte, lembrem-se da promessa de Tiago 5.8 que diz que "...a vinda do Senhor está próxima".
- Oh!, você que é crente, compartilhe sua fé e viva intrepidamente, para que outros possam receber a Cristo pela fé e serem salvos. Pense nisto, meu amigo. Você pode orar para conduzir outras pessoas que ainda não conhecem a verdade. Você pode ser aquele que vai levar a última alma a Cristo.
- Em 2 Pedro 3.10-14, lemos: "Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas cousas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão. Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça. Por essa razão, pois, amados, esperando estas cousas, empenhai-vos por serdes achados por ele em paz, sem mácula e irrepreensíveis."
- Eu os exorto a imitarem nosso Senhor e Salvador e a dizerem com Ele: "Devo cuidar das coisas de meu Pai."
- Alguns têm questionado, legitimamente, como um Deus amoroso e misericordioso pôde ser capaz de lançar essas pragas e julgamentos horríveis à Terra. E eu lhes pergunto: o que mais Ele poderia ter feito depois de tantos milênios procurando livrar homens e mulheres de uma falsa sensação de segurança e levá-los a buscar sua misericórdia e perdão?
- Pensem no quanto Deus tem sido misericordioso. Ele arrebatou sua Igreja antes do início da Tribulação. Enviou duas testemunhas sobrenaturais para pregarem em Jerusalém e comunicarem seu amor. Derramou seu Santo Espírito em poder, conforme prometeu por intermédio do profeta Joel, para convencer a humanidade da necessidade de aceitar a Cristo em vez de servir a Satanás e a seus demônios.
- Selou 144 mil evangelistas judeus para irem por todo o mundo e alcançarem o que a Bíblia chama de "grande multidão que ninguém podia enumerar" com o poder redentor do Filho de Deus. Enviou três anjos de misericórdia para ajudarem o povo a decidir-se por Cristo. E prometeu advertir a humanidade, de maneira sobrenatural, antes de destruir a Babilônia.
- E o mais importante de tudo é que, em sua misericórdia, Deus ainda permite que o povo escolha seu destino eterno: aceitando Jesus Cristo como Senhor e Salvador ou acreditando em Satanás.
- A notícia mais espetacular que posso lhes transmitir hoje é que Deus nos capacitou a usar as mentes brilhantes e a tecnologia com as quais fomos abençoados aqui. Qualquer pessoa que se comunicar conosco, via internet, receberá uma resposta pessoal inclusive tudo o que é necessário para saber como aceitar a Cristo.
- Sim, eu sei que o rei deste mundo proibiu que o povo visite nosso site, mas podemos assegurar a todos que esse site é seguro e que sua visita não será rastreada. Temos milhares de conselheiros na internet com capacidade para responder a qualquer pergunta e conduzir vocês a Cristo.
- Temos também equipes de resgate que poderão transportar para cá as pessoas que estão sendo perseguidas por amor a Cristo. Este é um tempo perigoso, e muitos serão mortos. Muitas pessoas que amávamos perderam a vida porque estavam em busca da justiça. Faremos o que for possível, até o fim, para continuarmos a lutar pelo que é certo. Porque, no final, venceremos e estaremos com Jesus.
Perto do final da mensagem de Tsion, Rayford atravessou a multidão e dirigiu-se ao centro de tecnologia. Postou-se atrás de Chang, enquanto o jovem ria, assistindo à frustração em Bagdá e nas emissoras afiliadas do mundo inteiro.
Quando notou a presença de Rayford, Chang disse:
- Ouça isto.
Ele clicou uma gravação feita na sala de reuniões quando Nicolae estava exigindo saber quem deveria ser despedido ou morto por causa do vexame ocorrido com a TV.
- Onde está Figueroa?
- Ele não foi visto desde que partimos de Nova Babilônia, Excelência.
- Onde estão os funcionários dele? Aquele garoto asiático. O jovem escandinavo.
- O asiático desapareceu. O escandinavo morreu por causa do calor, lembra-se?
- Não tenho condições de saber quem morreu por causa dessas pragas. Quem é o responsável pela TV agora?
- A responsabilidade foi transferida para as afiliadas. Não se pode fazer nada em Nova Babilônia.
- Eu sei, Leon! Quero que alguém se encarregue de pôr um fim nisto. O que o povo vai pensar?
Fortunato pigarreou.
- Com todo o respeito, Alteza, o povo deve estar fazendo a mesma pergunta que o pessoal de seu gabinete. Eles estão perguntando: "Todas essas coisas que estamos sofrendo não foram preditas? Será que existe alguma verdade em tudo isto? Quem é Carpathia?"
- Eles querem saber quem é Carpathia? - perguntou Nicolae, com um tom mais alto na voz. - O meu gabinete está querendo saber?
- Sim, senhor.
- E quanto a você, Leon? Quem você diz que eu sou?
- Eu sei quem o senhor é, e eu o adoro.
- Você está insinuando que existem pessoas de minha confiança que não sabem?
- Só estou repetindo o que ouvi, majestade.
- Talvez seja tempo de contar a eles, Leon. Talvez seja tempo de saberem quem eu sou, se é que ainda não sabem.
Chang imaginou que não conseguiria dormir. Ele e Naomi caminharam juntos até a casa dela, com passos cada vez mais lentos à medida que se aproximavam.
- Que época maravilhosa estamos vivendo! - ele exclamou.
- Você está falando sério? - ela perguntou. - Se eu pudesse escolher, teria conhecido Jesus antes, para ser levada com Ele no Arrebatamento.
- É claro, se tivéssemos tido escolha.
- Nós tivemos.
- Ah!, sim.
- A bem da verdade, Chang, penso que o melhor tempo para viver será após o Glorioso Aparecimento. Além de estar com Jesus em uma época de paz na Terra, vou viver com você durante mil anos.
Chang ficou confuso diante daquele pensamento. Parou e segurou as mãos dela nas suas.
- Eu gostaria de saber como vou estar quanto tiver 1.020 anos - ele disse. - Um velhinho chinês todo enrugado, eu acho.
- Para mim, você será sempre bonito. Eu vou ser uma velhinha judia com muitos filhos com idades desde 500 anos até 900 e alguma coisa.
Sob a luz do luar, Chang segurou o rosto dela com as duas mãos.
- Estou muito agradecido por ter conhecido você.
Buck estava deitado em sua cama de lona, de frente para o quarto de Kenny, com os braços doloridos por estar segurando a Bíblia no alto para poder lê-la. Ele queria estudar tudo o que encontrasse sobre a batalha que se aproximava.
Rayford prometera que o encarregaria de ir a Jerusalém. A princípio, Buck ficou desapontado, imaginando que toda a ação ocorreria nos arredores de Petra ou no vale de Jezreel. Mas pelo que sabia, aquelas áreas serviriam apenas de palco para os exércitos do mundo. A maior parte do conflito se daria em Jerusalém.
E era lá que ele queria estar.
Rayford surpreendeu-se ao notar que a situação estava piorando. No momento em que ele imaginava que Carpathia não poderia fazer mais nada para intensificar seus atos maldosos, o centro de informática começou a receber uma enxurrada de relatórios deixando claro que Nicolae aumentara a pressão no mundo inteiro. Mais perseguições, mais torturas, mais decapitações.
O apelo de Tsion ao povo para entrar em contato com os conselheiros em Petra, via internet, havia produzido um número incalculável de pedidos, tornando-se necessário que os anciãos preparassem mais conselheiros. Naomi e Chang treinaram mais professores, que arregimentaram um número maior de pessoas para dar mais velocidade aos computadores.
Fazia um bom tempo que Tsion pregava que o mundo estava caminhando a passos largos rumo ao Armagedom, mas Rayford nunca havia sentido isso. Agora, ele realmente aguardava com ansiedade o dia em que veria seu Salvador face a face e voltaria a reunir-se com sua querida família e amigos. Porém, ainda havia muita coisa a ser feita. Mac, Abdullah e Ree recrutaram pilotos e aeronaves do mundo inteiro para transportar o povo para Petra.
Houve dias em que Rayford teve dúvidas se eles seriam capazes de atender à demanda. O único pré-requisito para uma viagem grátis ao porto seguro era o selo dos crentes. A opinião geral era de que as pessoas sem a marca de Carpathia seriam perseguidas ou executadas.
O que mais impressionava Rayford, enquanto ele estudava a Bíblia diariamente, era que o fim da estranha profecia de Apocalipse 16.10,11 - aquela que mencionava a praga em Nova Babilônia - provara ser verdadeira aos seguidores de Carpathia do mundo inteiro: "Derramou o quinto [anjo] a sua taça sobre o trono da besta, cujo reino se tornou em trevas, e os homens remordiam a língua por causa da dor que sentiam e blasfemaram o Deus do céu por causa das angústias e das úlceras que sofriam; e não se arrependeram de suas obras."
Como era possível, Rayford se perguntava, que depois de todas aquelas pragas e julgamentos a grande maioria do povo ainda não tivesse mudado de idéia?
Chang havia devolvido o controle da televisão internacional à Comunidade Global. E, pelos pronunciamentos de Carpathia, ficou claro que ele estava se vangloriando de "finalmente ter a TV sob seu controle".
- A próxima vez que ele disser isso - Chang contou a Rayford -, vou mudar imediatamente a transmissão para este comercial que criamos na semana passada.
A gravação mostrava um clip do último discurso de Tsion que foi levado ao ar e encerrava com uma voz que dizia: "Os pronunciamentos do potentado só serão permitidos com a benevolência de Tsion Ben-Judá e de seus amigos em Petra."
Chang testou, durante vários dias, a "escuta" instalada por Buck e George na sala de reuniões particular de Bagdá. O trabalho foi tão bem feito que ele conseguiu a proeza de coordenar o vídeo com o áudio, ouvir as falas e até mesmo acompanhar os passos de Carpathia até a cabeceira da mesa. Dois vídeos instalados em local oculto possibilitavam acompanhar qualquer pessoa que estivesse na sala.
A chegada dos dez potentados regionais do mundo inteiro foi levada ao ar pela CNNCG. Buck não se lembrava de tanta pompa e circunstância desde o dia em que Carpathia ridicularizara as Estações da Cruz em Jerusalém.
Desfiles, bandas marchando pelas ruas, show de luzes, bailarinas, avisos e pronunciamentos. As arquibancadas construídas ao longo das ruas estavam lotadas de pessoas humildes saudando o cortejo dos representantes de cada região antes da chegada do potentado.
Finalmente, os dignitários e alguns milhares de bajuladores, aquinhoados com ingressos para adentrar o recinto, foram conduzidos à sala principal do novo salão de conferências, onde Carpathia anunciaria, em grande estilo, um novo e empolgante capítulo da História mundial.
O reverendíssimo pai do Carpathianismo, Leon Fortunato, foi incumbido de fazer a nobre apresentação, é claro. Vestido com trajes de gala, ele usava na cabeça um barrete turco de feltro vermelho, cujo topo era enfeitado com uma borla de fios alternando tons dourados e prateados, que brilhavam ao refletir as luzes do auditório inteiro. O novo manto roxo e amarelo cintilante tinha seis listras de brocado em cada manga.
Fortunato foi tão subserviente e bajulador em sua apresentação que qualquer outra pessoa teria se sentido terrivelmente constrangida, menos Carpathia. Enlevado diante da adoração de seus súditos, o anticristo fingia humildade, lutando para conter o riso.
- Obrigado, obrigado, obrigado a todos vocês - disse Carpathia, com os braços estendidos para a frente. - Vocês estão sendo generosos demais com este humilde servo de origem modesta, ao qual foi imposta uma responsabilidade que ele jamais imaginou. Porém, por meio de um lampejo do divino, ele descobriu que era o verdadeiro deus, chegando a ponto de ser capaz de ressuscitar a si mesmo.
- E vocês... sim, cada um de vocês... têm facilitado minha tarefa, apesar da esmagadora oposição e obstáculos que encontro de todos os lados. Cada região tem sido bem servida por subpotentados dinâmicos que se uniram em tempos de crise e ajudaram a transformar este mundo fracionado em uma verdadeira comunidade global.
Carpathia foi interrompido um sem-número de vezes por aplausos frenéticos. Nesses momentos, ele parecia mergulhar no brilho de sua glória.
- Esta talvez seja a ocasião mais significativa e esclarecedora da História de nosso mundo. Apesar da perda de grande parte de nossos cidadãos e funcionários do governo em razão das pragas implacáveis às quais nossos inimigos insistem em dar o nome de "julgamentos do céu", eu convoquei uma reunião com os principais líderes do mundo inteiro. Amanhã, em uma reunião altamente confidencial e particular, detalharei meu plano maravilhoso e legitimamente inspirado, que nos levará, de uma vez por todas, a alcançar nosso objetivo de uma verdadeira harmonia global.
- Nossos inimigos caluniadores tiveram muitas oportunidades de enxergar o caminho errado que seguiram e juntar-se à nossa família internacional. Acreditei durante muito tempo que eles simplesmente compreenderam mal o nosso objetivo e não se deram conta dos benefícios que teriam se permanecessem ombro a ombro conosco. Imaginem só o que poderíamos ter alcançado se tivéssemos todos ao nosso lado!
- Bem, esse dia em breve chegará, meus amigos. Faremos um esforço conjunto para recrutar os inimigos e torná-los nossos trabalhadores braçais ou os erradicaremos de nosso meio e ficaremos apenas com os cidadãos leais... cidadãos leais que compartilham um objetivo e propósito em comum: a verdadeira utopia, o paraíso na Terra.
- Não tenho dúvida de que todos, até mesmo nossos opositores, concordam que temos agido de maneira justa. Temos sido pacientes. Temos tentado. Mas o tempo de tolerância se esgotou. Vocês notaram que a paciência terminou? Eu admito isso espontaneamente. Chegou a hora da decisão: ou passar para o nosso lado ou ser eliminado. Prometo a todos os cidadãos leais de nossa Comunidade Global que, daqui a seis meses, todos os que se opõem à paz serão destruídos. Vocês viverão na mais completa paz no mundo maravilhoso com o qual sempre sonharam.
Todos os representantes dos subpotentados das dez regiões, quando entrevistados pelos repórteres da TV, responderam mais ou menos da mesma maneira:
- Trata-se de um privilégio sem precedentes. Eu daria tudo para poder participar da reunião particular que se seguirá a esta.
Quando as cerimônias terminaram, a transmissão também cessou. Porém, a melhor parte viria no início da manhã seguinte, por ocasião da reunião dos potentados. Conforme todos da Comunidade Global supunham, essa reunião também seria particular por ser realizada a portas fechadas.
Porém, um seleto número de pessoas do Comando Tribulação assistia a tudo, como se estivesse presente na sala. Reunido ao redor de um telão de TV, nas profundezas das cavernas de Petra, um grupo escolhido a dedo por Rayford observava cada momento, graças ao milagre da tecnologia e às manobras do perito Chang.
Sentado atrás do grupo, Chang manipulava os controles. Rayford estava entre Buck e George, tendo por companhia Tsion e Chaim. Todos informariam o acontecido aos outros membros do Comando Tribulação que trabalhavam na cooperativa e no transporte aéreo do pessoal.
Enquanto a sala em Bagdá estava sendo ocupada pelos convidados, Rayford pediu a Chang que mostrasse uma imagem panorâmica do local.
- Queremos ver quem está lá - ele disse. A grande mesa de reuniões tinha espaço para três pessoas nas extremidades e seis de cada lado. Diante de cada lugar havia um microfone e o nome do ocupante, menos os nomes dos três na extremidade mais distante. Apenas dois lugares foram reservados na cabeceira da mesa: um à esquerda para Carpathia, que ainda não havia chegado e outro para Leon Fortunato, que batia nervosamente seu enorme anel de rubi no primeiro dos dois luxuosos notebooks de couro à sua direita.
À esquerda do lugar de Carpathia estavam sentados, na seqüência, os potentados dos Estados Unidos Africanos, Estados Unidos Europeus, Estados Unidos da Grã-Bretanha, Estados Unidos Sul-americanos, Estados Unidos Norte-americanos e Viv Ivins.
Cada um usava um traje ou acessório característico de sua respectiva região, que iam desde o dashiki colorido do potentado africano, passando pelo sombrero e bombacha dos sul-americanos até o chapéu e as roupas bordadas dos cowboys norte-americanos.
Viv Ivins trajava seu tradicional conjunto azul-claro, que quase se confundia com a cor de seu cabelo. Usava um enorme broche de diamante pela primeira vez, e sua blusa era tão branca que chegava a prejudicar a imagem no vídeo.
A direita de Fortunato, acompanhando o outro lado da mesa, estavam os potentados dos Estados Unidos Carpathianos, Estados Unidos Russos, Estados Unidos Indianos, Estados Unidos Asiáticos, Estados Unidos do Pacífico e Suhail Akbar.
Estes potentados também estavam vestidos com trajes regionais. O mais chamativo de todos era um quimono preto e prateado usado pelo líder asiático. Suhail trajava o uniforme formal das Forças Pacificadoras da Comunidade Global, complementado por um quepe da marinha com uma reluzente trança dourada.
As três cadeiras na extremidade da mesa oposta a Carpathia e Fortunato estavam ocupadas por três homens que, para Rayford, pareciam três manequins. Todos usavam ternos pretos abotoados e gravatas pretas. Nenhuma jóia, nenhum adereço na cabeça, nada mais. Sentados com as mãos cruzadas sobre a mesa, eles não se movimentavam e não olhavam nem para a direita nem para a esquerda.
- Eu não reconheço aqueles três, Tsion - disse Rayford. - E você?
O rabino fez um movimento negativo com a cabeça.
- É muito estranho, mas eles nem sequer piscam. Os demais estão lançando olhares furtivos para eles. Você acha que são pessoas de verdade? Não seriam figuras recortadas de cartolina?
- Chang - disse Rayford -, você é capaz de focalizar os três?
Chang os focalizou e disse:
- São pessoas de verdade. Tenho uma gravação do momento em que eles se sentaram. Querem ver?
- Desde que a gente não perca a entrada de Carpathia.
- Isso não vai acontecer.
Chang voltou a fita, mostrando os três tomando assento. Eles pareciam ser um só; os gestos e movimentos eram idênticos.
- Por qual porta eles entraram? - perguntou Rayford.
- Eu perdi essa parte. Aparentemente, eles surgiram do nada.
- Está bem, vamos voltar às imagens ao vivo.
Um rápido toque de campainha fez Fortunato dar um salto e enfiar a mão no manto, como se estivesse desligando um pager. Ele se levantou rapidamente, endireitou o manto e retirou o barrete.
- Senhoras e senhores - ele disse -, por favor levantem-se para receber seu supremo potentado, Sua Alteza, Sua Majestade, Sua Excelência, nosso senhor e rei ressurrecto, Nicolae Carpathia, o primeiro e o último, mundo sem fim, amém.
Com exceção dos três homens misteriosos, que continuaram imóveis, todos se levantaram e descobriram a cabeça. Um militar de farda azul abriu a porta e Carpathia entrou. Nesse exato momento, Fortunato ajoelhou-se espalhafatosamente. Nicolae trajava um terno preto com finas listras brancas, camisa branca e gravata azul-turquesa.
Enquanto Leon permanecia ajoelhado, com o rosto no chão protegido pelas duas mãos e o traseiro levantado, deixando à mostra uma ampla parte de seu corpo coberta pelo manto, Nicolae parou um pouco atrás de sua cadeira e permitiu que o grupo se aproximasse dele, um por vez.
Eles se curvaram e apertaram a mão do potentado entre as suas. Muitos beijaram-lhe a mão ou o anel; outros ajoelharam-se rapidamente à semelhança de Leon, murmurando palavras de devoção e deferência. Em seguida, retornaram e ficaram em pé atrás de suas cadeiras.
Quando a bajulação terminou, houve um silêncio constrangedor. Aparentemente, Leon seria o próximo a falar, mas ele não se deu conta disso. Carpathia pigarreou.
Leon ergueu a cabeça e levantou-se repentinamente, prendendo a barra do manto na ponta do sapato. No momento em que ele endireitou o corpo, todos ouviram claramente o tecido sendo rasgado. Leon tropeçou, caiu por cima da cadeira de rodinhas de Carpathia e quase derrubou o seu senhor e rei ressurrecto, o primeiro e o último, mundo sem fim, amém.
Fortunato agarrou a mão de Nicolae e levou-a aos lábios, chegando quase a desequilibrar Carpathia. No último instante, ao perceber que agarrara a mão errada, Leon segurou a outra mão e beijou ruidosamente o anel do potentado.
- Sua Excelência, senhor - ele disse puxando a cadeira de Carpathia com uma das mãos e fazendo um gesto amplo com a outra, para que o potentado se sentasse.
- Obrigado por tão grande gentileza, reverendo - disse Carpathia, sentando-se. - Senhoras e senhores, podem sentar-se.
Leon havia deixado a cadeira do potentado um pouco distante da mesa, e Carpathia teve de apoiar-se na beirada e inclinar o corpo para a frente. Percebendo a gafe, Fortunato empurrou rapidamente a cadeira, forçando Carpathia a encostar o peito na mesa.
Enquanto Leon abria atabalhoadamente um dos notebooks de couro e o colocava diante de Sua Majestade, Carpathia afastou-se para ficar a uma distância mais confortável da mesa.
Nicolae agradeceu a presença de todos, como se eles estivessem ali de livre e espontânea vontade, e disse:
- Vamos ao trabalho. Vou iniciar lembrando a todos vocês que esta reunião não é democrática. Não viemos aqui para votar, nem vocês estão aqui para fornecer-me subsídios. Se houver alguma coisa que vocês acreditem que eu necessite saber, podem dizer. Se tiverem algum problema com minha liderança ou alguma pergunta sobre o que tenho feito ou sobre os planos que revelarei hoje, lembrem-se do que aconteceu com os três ex-potentados do sul que foram substituídos por terem morrido antes do tempo.
- Alguma pergunta? Penso que não. Vamos prosseguir.
- Senhoras e senhores, chegou o momento em que necessito contar com a confiança de vocês. Devemos estar todos unidos a fim de vencermos a batalha final. Olhem nos meus olhos e prestem atenção, porque o que vocês ouvirem hoje é verdade e ninguém daqui terá problemas por acreditar em cada palavra minha. Eu sou eterno. Eu sou de eternidade a eternidade. Eu estava presente no início e permanecerei eternamente.
Nicolae se levantou e começou a caminhar lentamente ao redor da mesa enquanto falava. Nenhum dos presentes o acompanhou com o olhar. Todos pareciam catatônicos.
- Eis o problema - ele disse. - Aquele que diz ser Deus não é Deus. Reconheço que ele me precedeu. Quando fui formado do limo e da água, ele já existia. Mas, sinceramente, ele surgiu da mesma maneira que eu. Só por ter me precedido, ele quis que eu pensasse que ele criou a mim e a todos os outros seres semelhantes a ele nos vastos céus. Eu sabia muito mais coisas. Quase todos nós sabíamos.
- Ele quis nos dizer que fomos criados para ser servos dedicados. Nós tínhamos um trabalho a fazer. Ele disse que havia criado os humanos à sua imagem e que nós deveríamos servi-los. Se eu tivesse chegado em primeiro lugar, teria dito a ele que eu o criei e que ele seria meu colaborador nas demais criações.
- Mas ele não criou nada! Nós, todos nós... vocês, eu, os outros exércitos celestiais, homens e mulheres... todos nós viemos do mesmo lugar. Mas não! De acordo com ele, não foi assim! Ele estava em companhia de outro ser evoluído como eu e disse que aquele era seu filho predileto. Esse filho era o especial, o escolhido, o unigênito.
- Eu sabia desde o início que se tratava de uma mentira e que eu, ou melhor, todos nós estávamos sendo usados. Eu era um anjo inteligente e cintilante. Tinha ambição. Tinha idéias. Mas tudo aquilo representava uma ameaça ao mais velho. Ele dizia ser o Deus criador, sim, o criador da vida. Assumiu a posição de favorecido. Exigiu que a Terra inteira o adorasse e lhe obedecesse. Eu tive a audácia de perguntar por quê. Por que não eu?
- Se eu provoquei uma insurreição? Claro que sim. E por que não? Por que dar preferência ao mais velho, se todos nós tivemos a mesma origem? Existe espaço para todos, mas se alguém deveria ter primazia, esse alguém seria eu! Cerca de um terço dos outros seres evoluídos concordaram comigo e ficaram do meu lado, me prometeram lealdade. Os outros dois terços eram fracos, fáceis de serem dominados. Eles ficaram do lado do tal pai e do tal filho.
- Se eu sou o anticristo? Bem, se ele é o Cristo, eu sou o anticristo! Sim! Sou contra o Cristo que foi falsamente coroado pelo pretenso criador. Eu subirei ao céu; eu exaltarei meu trono acima das estrelas de Deus. Eu subirei acima das alturas das nuvens; eu serei semelhante ao Altíssimo.
- Só porque ele chegou primeiro e eu tive a audácia de desafiá-lo, fui expulso de lá! Onde está a justiça nisso? Somos inimigos mortais desde então. Nós três: o pai, o filho e eu. Ele chegou a convencer os seres humanos que ele os criou! Mas isso não pode ser verdade, porque se ele os tivesse criado, os seres humanos não teriam livre-arbítrio. E se ele me criou, eu não teria sido capaz de rebelar-me. Tudo isso não faz sentido.
- Assim que passei a compreender melhor, comecei a gostar de minha condição de proscrito. Fui atrás dos seres humanos, daqueles que ele gostava de dizer que lhe pertenciam, os mais fáceis de mudarem de opinião. A mulher com o fruto! Ela não queria obedecer. Foi simples. Bastou uma sugestão para levá-la a fazer o que ela realmente queria. A propósito, aquilo aconteceu perto daqui.
- E os dois primeiros irmãos... que facilidade! O mais novo era fiel àquele que dizia ser o único e verdadeiro Deus, mas o outro... ah!, o outro queria o mesmo que eu. Um pouco de alguma coisa para si mesmo. Antes que vocês me perguntem, estou provando categoricamente que essas criaturas não são produtos da criatividade do anjo mais velho. Após algumas gerações, eu faço com que os seres humanos fiquem tão confusos, tão egoístas, tão cheios de si que o velho deixa de afirmar que eles foram feitos à sua imagem.
- Eles se embriagam, brigam, blasfemam. São teimosos, são infiéis. Matam uns aos outros. Os únicos que não consegui atingir são Noé e sua família. Claro, o grande criador decide que o restante da História depende deles e extermina os demais com um dilúvio. Com o passar do tempo, aproximei-me de Noé, mas ele já havia recomeçado a povoar a Terra.
- Sim, eu vou admitir. O pai e o filho têm sido meus inimigos ferrenhos ao longo das gerações. Eles têm seus favoritos: os judeus. Os judeus são a menina dos olhos do velho, mas este é o seu ponto fraco. Ele tem um apreço muito grande por esse povo, e é exatamente esse povo que causará a destruição dele.
- Meus exércitos e eu quase conseguimos erradicá-los algumas gerações atrás, mas o pai e o filho intervieram, devolveram a terra que lhes pertencia e nos frustraram mais uma vez. O destino tem insistido em brincar conosco, meus amigos, mas, no final, nós prevaleceremos.
- O pai e o filho documentaram suas intenções em um livro, achando que estavam fazendo um favor ao mundo. O plano completo está escrito lá, desde enviar o filho para morrer e ressuscitar... e eu também provei ser capaz disto... até profetizar este período inteiro. Sim, milhões de pessoas acreditaram nessa grande mentira. Até agora, tive de reconhecer que o outro lado levou vantagem.
- Porém, duas grandes verdades causarão a ruína deles. Primeira, eu conheço a verdade. Eles não são maiores nem melhores do que eu ou do que qualquer outra pessoa. A origem deles é a mesma que a de todos nós. Segunda, eles não devem ter percebido que eu leio. Eu li o livro deles! Sei o que estão tramando! Sei o que vai acontecer em seguida, e sei até o lugar!
- Deixem que eles apaguem as luzes da grande cidade que eu tanto amava! Ah!, como ela era linda quando abrigava o centro do comércio e a sede do governo, quando navios e aeronaves enormes levavam mercadorias do mundo inteiro para lá. Agora, ela está às escuras. E o que vai acontecer se ela for destruída? Eu a reconstruirei, porque sou mais poderoso do que o pai e o filho juntos.
- Deixem que eles façam a terra tremer até ser completamente arrasada. Deixem que eles atirem pedras de gelo gigantescas dos céus. Eu serei o vencedor final, porque li o plano da batalha que eles prepararam. O velho planeja enviar o filho para estabelecer, aqui na Terra, o reino que ele profetizou mais de 300 vezes naquele livro. E ele até diz onde o filho chegará! Senhoras e senhores, teremos uma surpresa aguardando por eles.
- O filho e eu temos lutado para conquistar as almas de homens e mulheres desde o início. Se vocês e eu reunirmos os exércitos do mundo inteiro e agirmos em conjunto na mesma área, poderemos nos livrar, de uma vez por todas, daquelas forças que têm impedido nossa vitória até agora.
- O tal Messias ama Jerusalém muito mais do que qualquer outra cidade do mundo. Ele a chama de Cidade Eterna. Bem, vamos ver se ela é eterna. Foi lá que ele supostamente morreu e voltou a viver.
- Essa estranha afeição pelos judeus resultou no que ele chama de aliança perpétua de bênçãos. Se nós, os governadores da Terra, reunirmos todos os nossos recursos e atacarmos os judeus, o filho terá de vir para defendê-los. Será nesse momento que voltaremos nosso olhar para ele e o eliminaremos. Com isso, teremos controle total da Terra, e estaremos prontos para tirar do pai o domínio que ele tem do universo.
Depois de ter dado duas voltas ao redor da mesa, Nicolae sentou-se em sua cadeira, parecendo exausto.
- Está escrito na Bíblia deles - Carpathia prosseguiu. - E eles afirmam que nunca mentem. Sabemos exatamente o lugar onde ele estará. Vocês estão do meu lado?
- Estamos, Excelência - disse o sul-americano -, mas onde é esse tal lugar?
- Vamos reunir todo o nosso pessoal e nossos tanques, aviões, armas e exércitos na planície do Megido. Essa área localizada no norte de Israel, também conhecida como planície de Esdralom ou planície de Jezreel, fica a cerca de 30 quilômetros a sudeste de Haifa e a cem quilômetros ao norte de Jerusalém. No momento certo, despacharemos um terço de nossos exércitos para destruir a fortaleza em Petra. Desta vez, farei isso sem usar armamentos nucleares. Vamos derrotá-los facilmente, talvez no lombo de um cavalo.
- O restante de nossos exércitos marchará rumo à tal Cidade Eterna e derrubará aqueles muros infernais, destruindo todos os judeus. E é lá que estaremos, reunidos com nossos exércitos vitoriosos vindos de Petra, para surpreendermos o filho, com força total, quando ele chegar.
Fortunato movimentou a cabeça como se estivesse maravilhado diante da brilhante estratégia.
- Perguntas para Sua Excelência? - ele disse. - Alguém tem perguntas a fazer?
O potentado dos Estados Unidos Asiáticos levantou a mão timidamente.
- Eu não sei qual é a opinião do restante do grupo - ele disse -, mas nosso exército composto de centenas de milhões de militares é conduzido por muitos generais independentes, e será difícil agrupá-los. Seus contingentes e pelotões sofreram muitas baixas por causa das pragas, das úlceras e de muitos outros sofrimentos inacreditáveis. Metade da população sob meu comando está morta ou desaparecida. Como vamos fazer para persuadir esses exércitos e seus líderes a nos seguirem?
Vários movimentaram a cabeça, concordando com a pergunta.
- Eu não vou recuar diante desta pergunta, meus amigos - disse Carpathia. - Antes, porém, de lhes dizer como realizaremos essa missão, vou contar qual será a primeira ordem para seus líderes militares. Conforme vocês se lembram, quando assumi o poder havia quase sete anos, recolhi 90% do armamento de todos os governos do mundo. Esse armamento está guardado em um local secreto que resolvi revelar neste instante. Ao redor e dentro de Al Hillah, a menos de cem quilômetros daqui, temos vários arsenais imensos onde estão armazenadas armas com poder de fogo suficiente para destruir o planeta.
- É desnecessário dizer que não queremos nem precisamos destruir o planeta. Simplesmente queremos que seus soldados tenham armas em maior número do que necessitam para eliminar os judeus e destruir o filho de quem sou adversário há tanto tempo. Portanto, assim que eu lhes contar como vamos arregimentar seus líderes militares, a próxima missão de vocês será levá-los a Al Hillah, onde o Sr. Suhail Akbar, nosso diretor do Serviço de Segurança e Inteligência, providenciará para que recebam todos os armamentos de que necessitam.
- Daqui a quanto tempo? - perguntou o potentado indiano.
- O prazo é de menos de seis meses, senhoras e senhores, portanto comecem hoje. Eu já enviei as tropas dos Estados Unidos Carpathianos para Israel há meses. E quando nosso exército da Comunidade Global estiver posicionado, quero ver todos os arsenais de Al Hillah vazios. Entendido?
- Entendido - respondeu o potentado russo. - Mas, da mesma forma que meus colegas, estou ansioso por saber como vamos convencer as tropas e os líderes desanimados, enfermos e feridos.
- Reverendo Fortunato - disse Carpathia, levantando-se. Leon se aprumou rapidamente, empurrando sua cadeira para trás. - Senhoras e senhores, chegou a hora de apresentar-lhes meus três coadjuvantes de maior confiança. Tenho certeza de que vocês gostariam de saber quem são os três sentados na extremidade da mesa.
- Estamos querendo saber por que eles não piscaram desde que nos sentamos - disse o potentado britânico.
Carpathia riu.
- Os três não pertencem a este mundo. Eles usam ternos somente quando é necessário. Na verdade, são seres espirituais que estão comigo desde o início. Faziam parte dos primeiros que acreditaram em mim e viram a mentira que o pai e o filho estavam tentando perpetrar no céu e na terra.
- Leon - disse Carpathia, e ambos se dirigiram à outra extremidade da mesa, cada um por um lado. - Com licença, Sra. Ivins.
Ela se levantou e afastou sua cadeira do caminho.
- Com licença, diretor Akbar - disse Leon, e Suhail fez o mesmo.
Rayford deu um salto quando Tsion gritou, chamando a atenção de todos.
- Chang, focalize esta imagem! Está escrito em Apocalipse 16.13 e 14!
O ângulo da câmera mudou, e o pessoal que estava assistindo em Petra viu claramente, pelo novo ângulo, Nicolae e Leon atrás das três criaturas aparentemente sem vida, na extremidade da mesa.
O anticristo e o falso profeta inclinaram o corpo, um do lado esquerdo e outro do lado direito, apoiando os cotovelos na mesa e olhando dentro dos olhos das criaturas robóticas. Da boca de Nicolae e Leon foram expelidos três espíritos medonhos e asquerosos, semelhantes a rãs - um da boca de Leon e dois da boca de Nicolae - que saltaram dentro da boca dos três.
Os três pareceram adquirir vida.
Nicolae sorriu.
- Queremos vê-los de frente, Chang - gritou Buck, e Chang fez os ajustes necessários.
Agora, os três tinham uma surpreendente semelhança com Carpathia. Recostaram-se casualmente nas cadeiras, sorrindo, cumprimentando todos os potentados com um movimento de cabeça. A princípio, os líderes demonstraram um ar de espanto e susto, mas, logo a seguir, olharam com simpatia para os estranhos bem-apessoados.
- Por favor, quero que conheçam Astarote, Baal e Locusta [Gafanhoto Devorador]. Eles são os espíritos mais convincentes e persuasivos que tive o prazer de conhecer. Agora, todos nós vamos nos ajuntar e impor as mãos sobre eles, para encarregá-los desta tarefa de tão grande significado.
Os três recuaram suas cadeiras para que os potentados, Viv, Suhail, Leon e Nicolae fizessem um círculo ao redor deles e tocassem suas cabeças com as mãos.
Nicolae disse:
- Agora, vocês três devem ir até os confins da terra e reunir o povo para a batalha final em Jerusalém, onde destruiremos, de uma vez por todas, o pai e esse tal Messias. Convençam cada pessoa, em todos os lugares por onde andarem, de que a vitória é nossa, que estamos certos e que, juntos, podemos destruir o filho antes que ele assuma o controle deste mundo. Assim que ele se for, seremos os líderes incontestáveis do mundo, sem sofrer oposição alguma.
- Outorgo-lhes o poder de operar sinais, curar enfermos, dar vida aos mortos e, se necessário, convencer o mundo de que a vitória é nossa. Agora vão em poder...
Astarote, Baal e Locusta desapareceram em meio a um violento relâmpago que se abateu no centro da mesa de reuniões e escureceu, temporariamente, o monitor de TV em Petra. Quando a imagem retornou, um forte estrondo fez Chang arrancar os fones de ouvido.
Nicolae e Leon retornaram a seus lugares e ficaram em pé atrás das respectivas cadeiras. Os potentados, Viv e Suhail fizeram o mesmo. Enquanto eles aguardavam calmamente, Nicolae disse:
- Adeus a todos vocês. Eu os verei daqui a seis meses na planície do Megido no grande dia, quando a vitória estiver a nosso alcance.
Buck ficou atordoado, mas voltou rapidamente a raciocinar com clareza.
- Quero que alguém leia a passagem que Tsion mencionou! - ele pediu.
- Está exatamente aqui - disse Chaim. - Vou ler Apocalipse 16.13 e 14: "Então, vi sair da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs; porque eles são espíritos de demônios, operadores de sinais, e se dirigem aos reis do mundo inteiro com o fim de ajuntá-los para a peleja do grande Dia do Deus Todo-poderoso."
- Leia também os dois versículos seguintes, Chaim - disse Tsion.
- O primeiro cita as palavras de Jesus: "Eis que venho como vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para não andar nu, e não se veja a sua vergonha. Então, os ajuntaram no lugar que em hebraico se chama Armagedom."
Rayford pediu a Buck e a George que encontrassem uma nova sala de reuniões, em algum lugar de Petra que não atraísse a atenção de curiosos.
- Ela precisa ter tamanho suficiente para acomodar umas 20 pessoas, no máximo - ele disse, embora soubesse que apenas metade desse número compareceria.
Reunido com Tsion na pequenina sala de estar da casa do rabino, ele disse:
- Quero que você transmita alguns ensinamentos a meu pessoal de primeira linha. Todos eles já sabem o que se passou em Bagdá, e todos têm perguntas para fazer sobre o que isso significa e qual será a função de cada um. Ninguém deseja ficar protegido aqui enquanto o restante do mundo vai para o inferno.
- Eu compreendo tudo isso, Rayford, e fico feliz por poder ajudá-lo. Hoje de manhã, transferi a Chaim todas as responsabilidades administrativas e doutrinárias sobre os remanescentes que estão aqui.
Rayford olhou para Tsion, sem acreditar no que ouvia.
- Você fez o quê?
- Eu também não quero ficar aqui.
- O que você está dizendo?
- Se eu posso transmitir ensinamentos a seu pequeno grupo de militares de primeira linha, também quero fazer parte dele. Quero aprender a lutar, usar armas, defender-me, manter vivos meus companheiros e meus concidadãos judeus.
Rayford levantou-se, caminhou até a janela sem tela e olhou para a imensidão do céu.
- Estou estarrecido - ele disse.
- Não pense que não consultei o Senhor sobre esta decisão.
- Não lhe basta ser rabino, professor, pregador? Agora quer também ser soldado?
- Ouça, Rayford. Eu me identifico com o Senhor, meu Messias. Não posso ficar sentado aqui enquanto o anticristo e seus exércitos do mundo inteiro aquartelam-se ao redor de Jerusalém. Não vou ficar parado vendo judeus inocentes serem mortos. A Bíblia diz que um terço dos judeus remanescentes aceitarão o Messias antes do fim. Isso significa que muitos, muitos mais do que já o aceitaram, necessitam ser alcançados. Quero pregar em Jerusalém, Rayford. É o que estou tentando lhe dizer.
- Você será morto.
- Prefiro acordar no céu uns dias antes e juntar-me ao exército que virá com o Messias, sabendo que morri lutando, a ficar sentado aqui em Petra assistindo tudo pela TV.
- Não sei se posso permitir isso.
- Se o Senhor permitiu, acho que você não tem escolha. Ora, Rayford, sente-se. Não quero seguir para lá ingenuamente, seguir para lá despreparado. Já cheguei à casa dos 50, mas não sou velho. Sei que não sou jovem, mas estou em forma. Se Mac McCullum pode fazer tantas coisas na idade que tem, é claro que eu também posso. Sei que minhas mãos são macias como as de um intelectual, mas quanto tempo vai demorar para que elas fiquem calejadas e eu aprenda a lidar com uma arma?
- Vejo que você está falando sério.
- Ninguém vai me dissuadir. Estou mais que disposto a transmitir ensinamentos a seu grupo sobre tudo o que sei que vai acontecer. Mas meu preço é ser aluno do Sr. Sebastian.
Rayford sentou-se e balançou a cabeça de um lado para o outro.
- Talvez você não seja um velho caduco, mas é muito teimoso.
- Teimosia também não faz parte dos atributos de um guerreiro?
- Ah! Agora você é um guerreiro.
- Espero ser.
- Você consultou os anciãos?
- Se eu os informei? Sim. Se eles ficaram felizes? Não. Se eles orarão por mim? Sim. Se eu me importo com a opinião deles? Só se a resposta deles for sim.
Buck não podia acreditar.
- Sou forçado a admirar a coragem dele. Nunca vou me esquecer da noite em que ele e eu conversamos pela primeira vez com as duas testemunhas no Muro das Lamentações. Foi antes de eu saber que o Dr. Ben-Judá era crente. Eu também era novato no assunto, mas reconheci a passagem registrada em João 3 e a conversa que Jesus teve à noite com Nicodemos. Foi comovente.
- E eu nunca vou me perdoar se permitir que Tsion saia daqui e acontecer alguma coisa com ele - disse Rayford.
- Ele é um homem durão. Afrontou Carpathia em um programa de TV internacional, dizendo que Jesus era o Messias. E, depois que sua família foi trucidada, sei que ele gostaria mais de carregar uma Uzi do que uma Bíblia. Ele poderia ser muito valioso ao grupo de militares. É o único que sabe pregar e ensinar. Dou meu voto a ele.
- Não estou pondo o assunto em votação.
- Você já conseguiu um voto. Alguém votaria contra?
- Talvez eu - disse Rayford.
- Você é mais covarde que ele.
Mac achou graça quando soube da história. Foi totalmente favorável a que Tsion aprendesse a ser um soldado e fosse com eles para Jerusalém. Ele freqüentou as aulas de Tsion na sala de reuniões particular todas as semanas dos meses seguintes e aprendeu muito sobre a batalha final, muito mais do que podia imaginar. Ele via um brilho nos olhos do rabino e sabia, apesar das apreensões de Rayford, que Tsion estava decidido a ir.
Uma noite, Tsion começou a aula lendo Judas 14,15:
- "Quanto a estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele."
- Vocês entenderam isto, meus amigos? A palavra que ele repete tantas vezes? Cala fundo dentro de nós quando um profeta de Deus se refere aos ímpios quatro vezes em uma mesma sentença, não é mesmo? Esses inimigos nossos são inimigos de Deus. Eles vieram para roubar, matar e destruir tudo o que é de Deus. Mas Jesus diz em João 10.10 e 11: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas." Oh!, que maravilha ser um pastor chamado para dar a vida pelas suas ovelhas!
- Muitos de vocês têm me perguntado de onde extraí a idéia de que um terço do povo escolhido de Deus se voltará para Ele antes do fim. Abram suas Bíblias em Zacarias 13. É o penúltimo livro do Antigo Testamento. Nos versículos 8 e 9, o profeta menciona o Remanescente de Israel: "Em toda a terra, diz o Senhor, dois terços dela serão eliminados e perecerão; mas a terceira parte restará nela. Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei como se purifica a prata, e a provarei, como se prova o ouro; ela invocará o meu nome, e eu a ouvirei; direi: é meu povo, e ela dirá: O Senhor é meu Deus."
- Mas, conforme já lhes disse antes, chamar este último conflito de Batalha do Armagedom não é correto, porque esse lugar é apenas o palco que abrigará os exércitos do mundo. Os verdadeiros conflitos ocorrerão aqui em Petra, ou perto daqui, uma vez que Deus provou que esta cidade é impenetrável, e em Jerusalém. Para ser mais preciso, o último conflito deveria chamar-se Batalha do Grande Dia do Deus Todo-Poderoso.
Buck levantou a mão.
- Tenho ouvido você dizer isto há anos e ainda não entendi a seqüência dos fatos. Como essa seqüência se dará?
Tsion riu.
- Os estudiosos têm debatido esta questão desde que o mundo é mundo. Descobri que a única maneira de compreender seria deixar minha Bíblia e todos os meus livros e comentários abertos e procurar fazer uma lista dos vários estágios dos eventos.
- Em minha opinião, oito eventos ocorrerão após o sexto Julgamento das Taças, que secará as águas do rio Eufrates. A propósito, esse evento possibilitará que os reis do leste transportem seus armamentos de guerra diretamente à planície do Megido, por terra seca, poupando o tempo que demoraria para transportá-los por mar ao redor dos continentes. Não existe comprovação bíblica para esta próxima afirmativa, porém, em minha humilde opinião, trata-se de uma armadilha preparada pelo Deus Todo-Poderoso. Deus vai atrair esses governadores e seus exércitos diretamente para o lugar que Ele deseja.
- Independentemente disto, assim que as águas do Eufrates secarem, veremos o ajuntamento dos aliados do anticristo. A seguir, creio eu, virá a destruição de Babilônia. Isaías 13.6-9 diz: "Uivai, pois está perto o Dia do Senhor; vem do Todo-poderoso como assolação. Pelo que todos os braços se tornarão frouxos, e o coração de todos os homens se derreterá. Assombrar-se-ão, e apoderar-se-ão deles dores e ais, e terão contorções como a mulher parturiente; olharão atônitos uns para os outros; o seu rosto se tornará rosto flamejante. Eis que vem o Dia do Senhor, dia cruel, com ira e ardente furor, para converter a terra em assolação e dela destruir os pecadores."
- Puxa! - exclamou Buck. - Não sei se quero estar lá para ver isso.
- Você estará em Jerusalém nessa época, Buck – disse Rayford.
- Eu também - disse Tsion. - Depois da destruição de Babilônia virá a queda de Jerusalém, o que incentivará as tropas aliadas do anticristo. Elas se reunirão com seus compatriotas aqui neste lugar, que a Bíblia chama de Bozra. Imediatamente a seguir, virá o que eu chamo de regeneração nacional de Israel.
- Em Romanos 11.25-27, o apóstolo Paulo escreve: "Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que não sejais presumidos em vós mesmos): que veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: Virá de Sião o Libertador e ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados."
- A seguir, virá a boa nova - disse George. - Pelo menos foi o que entendi quando li a passagem.
- Exatamente - disse Tsion. - O Glorioso Aparecimento. Jesus Cristo vem em um cavalo branco com um exército de 10 mil santos. Independentemente do que o anticristo pensa que vai acontecer, seu fim está próximo.
- Vocês querem ouvir uma metáfora bizarra? Quando João fala disto em Apocalipse, ele diz o seguinte nos versículos 19 e 20 do capítulo 14: "Então, o anjo passou a sua foice na terra, e vindimou a videira da terra, e lançou-a no grande lagar da cólera de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade, e correu sangue do lagar até aos freios dos cavalos, numa extensão de mil e seiscentos estádios."
- Pensem nisto! Quando Jesus e seu exército santo finalmente exterminarem os aliados do anticristo, o massacre será tão grande que o sangue derramado no vale central de Israel atingirá a altura dos freios de um cavalo. Que altura é esta? Creio que 1,20 metro ou mais.
- E o que significa uma extensão de 1.600 estádios?
- Gostei de sua pergunta, George - disse Tsion -, porque eu já estudei isso. Significa cerca de 295 quilômetros, a distância aproximada de Armagedom a Edom.
- Mas até agora vimos seis eventos - disse Buck. - Haverá mais dois?
- Sim. O final da batalha se dará no vale de Josafá, que é basicamente a área que vai daqui até o sul de Jerusalém, a oeste do mar Morto. Pelo fato de Petra ser um lugar protegido, todos os exércitos do anticristo só poderão lutar fora daqui.
- E, finalmente, a vitória de Jesus subindo o monte das Oliveiras. Quero estar lá para ver.
- Você estará - disse Rayford. - Se estará vivo, esta é outra história.
Seis anos e onze meses dentro da Tribulação
Faltando apenas algumas semanas para o apogeu dos eventos finais, Rayford já se acostumara à idéia de que Tsion partiria para Jerusalém.
- Minha concordância não significa que eu apoio sua decisão, certo, Tsion?
- Eu sei muito bem. Mas talvez eu o conheça melhor que você mesmo. Depois de toda esta conversa, você ficaria desapontado se eu desistisse.
- Desapontado? Aliviado. Eu sinto que vou ter de responder perante Deus pelo que acontecer a você.
- Confie em mim. Vou deixar você fora disto.
- Quero ver suas mãos, meu velho.
- Eu já lhe disse. - Tsion esticou as mãos. - Não sou tão velho assim.
- Mais velho do que eu, e está há muito tempo sob meu comando - disse Rayford. - Esses calos são impressionantes. George e Razor me contaram que você está começando a acertar o alvo com aquela Uzi.
- Não entendo como alguém não consegue acertar. Ela dispara tantos projéteis em tão curto espaço de tempo que, para mim, é o mesmo que usar uma mangueira de jardim. Se eu errar o alvo, é só movimentá-la para a frente e para trás que eu acerto.
- Falando sério, doutor, o que você planeja fazer? Ficar em algum lugar e pregar com uma arma dependurada no ombro?
- Sim, se for necessário. Rayford, nós nos conhecemos há muito tempo e podemos ser francos um com o outro. Eu sinto um impulso muito grande de fazer um apelo a meus compatriotas para que eles entreguem suas vidas ao Messias, e não posso acreditar que meu físico será um empecilho para mim. Eu preciso estar lá; eu preciso pregar. Não quero usar disfarce algum. Acho que a CG deixou de se preocupar comigo.
- Você está falando sério? O líder internacional dos judaístas...
- Este é um termo que eles usam em relação a nós. Eu, pelo menos, não o uso.
- Mas, Tsion, todo mundo conhece você. Se eles acharam que minha filha era uma presa muito preciosa, imagine se você for pego.
Tsion meneou a cabeça negativamente.
- Se Deus incutiu essa idéia de uma forma tão enraizada em meu coração, talvez Ele esteja me dizendo que serei protegido de maneira sobrenatural.
- Bem, Ele vai ou não vai proteger você?
- Eu só sei que preciso ir.
- Estou enviando Buck com você. Prometi uma missão para ele em Jerusalém. Não posso imaginar uma tarefa de mais ação do que essa que vocês vão realizar.
- Eu me sentiria honrado se Buck fosse meu guarda-costas. Ele recebeu treinamento militar como George?
- Ninguém daqui recebeu. Mas George está empenhado em outras tarefas, você sabe.
- Sim, defender o perímetro daqui. Ele me contou. Minha pergunta é a seguinte: se os limites da cidade são intransponíveis, por que não deixamos o perímetro de lado?
- Porque o povo está buscando refúgio aqui o tempo todo, e eles só se sentem seguros quando entram.
- Mas eles estão seguros no ar. Como você explica isso?
- Eu deixei de questionar as coisas de Deus, Tsion. Estou surpreso por você estar questionando.
- Ora, Rayford, você acabou de cair em uma de minhas armadilhas. Você sabe que eu adoro citar a Palavra de Deus.
- Claro.
- Quando você falou em questionar as coisas de Deus, eu me lembrei de uma de minhas passagens favoritas. Ironicamente, o versículo justifica minha ida, apesar do perigo.
- Estou ouvindo.
- Romanos 11.33-36: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as cousas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém."
- Impressionante.
- Esta passagem, meu amigo, antecede o primeiro versículo do capítulo 12, que é minha justificativa: "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional."
- Só espero que seja um sacrifício vivo, Tsion.
De acordo com as conclusões de Chang, Carpathia acreditava na profecia sobre o rio Eufrates, cujas águas secariam, porque ele havia aprovado que fossem colocados equipamentos sensíveis no rio para registrar informações que eram transmitidas ao computador central da CG e avaliadas pelos técnicos. Chang, é claro, monitorava tudo em Petra. Depois de quase quatro semanas, quando o evento ocorreu, ele tomou conhecimento antes da CG.
- Aconteceu! - ele gritou, em pé diante de seu computador.
Todos deram um salto e olharam para ele. Naomi veio correndo.
- Havia água no rio Eufrates um minuto atrás, e agora ele está completamente seco. Podem apostar que amanhã este fato estará nos noticiários. Haverá alguém em pé no leito seco do rio, para mostrar que é possível andar sem medo da lama ou da areia movediça.
- É fantástico - disse Naomi. - Isto é, eu sabia que ia acontecer, mas não parece que Deus resolveu fazer tudo isto de uma só vez? Esse rio não tem 800 quilômetros de comprimento?
- Tinha.
Os vôos de reconhecimento de Mac e Abdullah sobre a área mostraram que os armamentos foram retirados dos arsenais de Al Hillah até deixá-los completamente vazios. Após alguns dias, imensas colunas de soldados, tanques, caminhões e armamentos começaram a dirigir-se para o oeste, vindos de regiões distantes como Japão, China e Índia.
- E aqui - Chang contou a Naomi - está a chance que Tsion aguardava, quer ele saiba disto ou não. Veja só.
- Chang imprimiu uma ordem expedida pelo próprio Suhail Akbar, instruindo os homens das Forças Pacificadoras da Comunidade Global e os Monitores de Moral que abandonassem todas as tarefas atuais e se deslocassem para o Exército da Unidade Mundial Um da CG. "Seus superiores também receberam esta ordem, e vocês se reportarão a eles dentro de 24 horas na área demarcada ou terão de enfrentar as conseqüências por deserção."
- Como ficarão as ruas? - Naomi perguntou.
- Não posso imaginar, meu amor. Os loucos passarão a dirigir o hospício. Mas isso significa que as pessoas sem a marca de Carpathia poderão sair dos esconderijos.
- Se elas tiverem coragem. Ainda existe um prêmio pela cabeça delas. Os cidadãos leais as matarão e amontoarão os corpos, esperando o fim da guerra para receber a recompensa.
- Eles ficarão desapontados.
- Eu preciso partir o mais breve possível - disse Tsion a Rayford. - Qual é o meio mais rápido para Cameron e eu chegarmos a Jerusalém?
- De helicóptero, eu suponho, se conseguir encontrar um piloto.
- O que você está fazendo neste momento?
- Hã? Bem, acho que nada. Alguma coisa mais?
Tsion riu.
- Eu não posso esperar. Já coloquei alimentos e uma muda de roupas em uma sacola. Se Cameron atendeu ao meu pedido, deve ter feito o mesmo. Quem pode me dizer se há um helicóptero disponível?
- Encontre-se comigo no heliponto daqui a meia hora.
Priscilla Sebastian fez um esforço enorme para distrair Kenny Bruce enquanto Buck procurava desvencilhar-se do abraço do filho.
- Vou voltar logo - disse Buck. - Preciso viajar com o tio Tsion.
Kenny não disse nada. Apenas agarrou-se com mais força ao pescoço de Buck.
- O vovô vai nos levar, mas volta logo, está bem? Você vai ficar alguns dias com ele enquanto eu estiver viajando.
Kenny soltou-se um pouco do abraço e olhou para Buck.
- O vovô?
- Isso mesmo.
- Vou passear de avião?
- Claro que sim.
- Quando?
- Logo. Assim que ele voltar.
- Eu quero ir com você.
- Não há lugar. Agora, seja um bom menino e vá brincar com Beth Ann. O vovô vai voltar logo. Está bem?
- Tá bem.
Mac estava trabalhando com Otto Weser e George planejando a saída dos crentes de Nova Babilônia, assim que a ordem chegasse para o povo de Deus deixar o local. Ninguém, nem mesmo Tsion, sabia como esse aviso sobrenatural seria dado ou se alguém de fora de Nova Babilônia o ouviria.
- Sei que existem algumas células lá - disse Otto. - Deixei instruções com um dos líderes, uma mulher, para me ligar assim que ela receber o aviso. Não sei mais o que fazer. Vou dizer a eles que nos encontrem na pista aérea do palácio e espero que tenhamos uma aeronave com tamanho suficiente para tirar todo o pessoal de lá.
- Não podemos fazer mais do que já estamos fazendo - disse Mac.
Naomi os interrompeu.
- Querem dizer adeus a Tsion? Todos estão se reunindo para a despedida.
- Ele já está partindo?
Ela contou o motivo a Mac.
- Tsion nunca deixa a idéia esfriar, não é mesmo? Ele, George e Otto acompanharam Naomi a um lugar descampado perto do heliponto, onde havia centenas de milhares de pessoas aglomeradas.
- As notícias voam por aqui, não, Otto?
- Sr. McCullum, muitas pessoas daqui estão chorando. Ele só vai a Jerusalém, não é mesmo? A distância não pode ser de mais de cem quilômetros. E, com certeza, ele vai voltar.
- As pessoas estão chorando, Otto, porque não sabem se ele vai voltar.
Rayford retardou o momento de ligar o helicóptero para que Tsion pudesse ser ouvido. O rabino tirou um lenço branco do bolso e acenou para o povo enquanto Buck subia a bordo.
- O pessoal daqui vai cortar seu pescoço se você voltar sem ele, Rayford - disse Buck.
- E eu planejo estar de volta dentro de uma hora ou menos.
- Eu preferiria não voltar sem ele - disse Buck.
- Pessoal! Pessoal! - gritou Tsion. - Estou emocionado diante da bondade de vocês. Orem por mim, para que eu tenha o privilégio de levar muito mais almas ao reino. Faltam poucos dias para a batalha, e vocês sabem o que isso significa. Aguardem e estejam vigilantes. Preparem-se para o Glorioso Aparecimento! Se eu não voltar até lá, nós nos reuniremos em breve.
- Vocês estarão em meus pensamentos e em minhas orações, e sei que estarão me acompanhando em pensamento e com orações. Obrigado mais uma vez! Vocês estão nas boas mãos de Chaim "Miquéias" Rosenzweig. Adeus a todos!
Tsion continuou a acenar enquanto entrava no helicóptero. Rayford viu lágrimas nos olhos do rabino enquanto ele atava o cinto de segurança.
- Alguma coisa deve estar passando em sua mente - disse Naomi, enquanto ela e Chang caminhavam de mãos dadas.
Ele acabara de transmitir ao helicóptero de Rayford um esquema de Jerusalém com os vários locais de pouso que poderiam ser usados.
Chang encolheu os ombros.
- Às vezes, eu me sinto feliz por estar protegido aqui e poder dormir em paz, o que não acontecia no palácio, mas, outras vezes, penso que escolhi o caminho mais fácil. Todos estão se preparando para a batalha.
- Oh! Chang. Não diga isto. Você dedicou anos de trabalho na linha de frente. E, de qualquer forma, sabe muito bem que é muito mais importante aqui no centro do que lá fora, atirando em alguém ou recebendo tiros. Não sei o que faríamos sem você.
- Vocês estavam indo muito bem antes de minha chegada.
Naomi soltou a mão de Chang e colocou as duas mãos nos quadris, olhando firme para ele.
- Você tem memória curta, Chang Wong. Como pode esquecer que eu passei muitas horas do dia no computador com você, embora estivéssemos a mais de 800 quilômetros de distância um do outro? Eu não teria chegado a lugar algum sem a sua ajuda, e é assim que me sinto agora.
- Tudo está funcionando a contento aqui. Eu poderia me ausentar por algumas semanas.
- Eu não estava falando profissionalmente, Chang. Pode me chamar de egoísta, mas estou feliz por você não ter se aventurado a sair daqui. O meu pai me ama, mas não da maneira como você me ama.
- Espero que isso seja verdade. Ela sorriu.
- Eu gosto de ficar ao lado dele, apesar de saber que é raro uma jovem de minha idade dizer isto. Mas prefiro estar com você. Lembre-se, quero sobreviver para ficarmos juntos durante mil anos. Não vamos arriscar isso por causa de um peso em sua consciência.
- Você acha que eu não seria um bom soldado.
- A bem da verdade, eu acho, Chang. Sei que você tem a metade do tamanho de Sebastian e usa muito mais a razão do que Buck Williams. Mas acredito que a personalidade e o caráter de uma pessoa são produtos da pressão que ela sofre, e tenho visto você trabalhar sob pressão. Com um pouco de treinamento, você poderia ser capaz de vencer os obstáculos.
Rayford estava analisando as transmissões de Chang e tentando discutir com Buck o melhor lugar para pousar o helicóptero. Buck, atarefado vasculhando sua sacola, disse:
- É você quem vai decidir, Ray. Acho que não existe um lugar menos perigoso que outro.
- Lembre-se que toda essa gente da CG deverá estar no Megido amanhã - disse Rayford. - E não hoje. Talvez eles queiram efetuar a prisão de uma personalidade famosa.
- Não concordo com você - disse Buck. - Eles receberam a ordem de abandonar todas as tarefas atuais e se deslocar para o lugar onde precisam estar. Não conheço homem fardado algum que não cumpra as ordens recebidas.
- Eu só preciso que você me leve ao Muro das Lamentações, Rayford - disse Tsion. - Quero estar pregando quando descer deste helicóptero.
- Você não poderia ter escolhido um lugar mais perigoso.
- O perigo não é importante neste momento, capitão. O tempo é. O Dia do Senhor está chegando. Não devemos ficar parados enquanto o inimigo ataca.
- Para você, é fácil dizer isto, Tsion.
- Não é, a menos que eu esteja em terra firme. Agora, por favor, faça o que estou pedindo.
Rayford avistou o Monte do Templo. Estava apinhado de gente.
- Droga! - ele disse.
- Eles vão se afastar de lá - disse Tsion. - Confie em mim. Comece a descer, e eles sairão do caminho. Por favor.
O desaparecimento instantâneo das águas do rio Eufrates foi útil apenas para os reis do leste, que transportaram suas armas direto para Israel através do leito seco.
O restante do Crescente Fértil deixou de ser fértil. A irrigação cessou, as usinas hidrelétricas foram desligadas e as fábricas, fechadas. Em resumo, tudo o que dependia da força motora do grande rio entrou, imediatamente, em fase terminal.
A previsão feita por Chang estava correta. Os noticiários da CNNCG mostravam os repórteres em pé no meio do leito seco do rio. Porém, todos aqueles pronunciamentos mirabolantes do tipo "não posso acreditar que estou em pé aqui, neste mesmo lugar que, se fosse ontem, eu estaria a 30 metros abaixo da superfície" não serviram para alegrar milhões de pessoas que dependiam do Eufrates para viver.
Buck não se surpreendeu ao constatar que Tsion estava certo. Quando Rayford pousou o helicóptero em uma área livre no Monte do Templo, centenas de pessoas iradas se espalharam, levantando as mãos fechadas em direção a ele.
Buck pegou sua sacola e escondeu a Uzi nas costas, sob a jaqueta. Saltou do helicóptero e correu à procura de abrigo embaixo de um arbusto perto do Muro. Ao olhar para trás, viu Tsion fazendo o mesmo e surpreendeu-se diante da agilidade do guerrilheiro recém-treinado.
Eles se ajoelharam para recuperar o fôlego e viram Rayford levantar vôo. A figura do helicóptero desaparecendo ao longe desviou a atenção do povo. Buck olhou ao redor.
- Foi aqui que eu vi as duas testemunhas subindo ao céu três anos e meio atrás - ele disse.
A velha curiosidade voltou a perseguir Rayford. Ele não conseguia livrar-se dela. Era impossível chegar tão perto do Armagedom - a uma distância de pouco mais de 110 quilômetros, segundo seus cálculos - e não sobrevoar o local. Seria uma loucura, ele sabia.
Talvez encontrasse um congestionamento aéreo pela frente. Porém, a possibilidade de ver de cima tudo aquilo sobre o qual tinha ouvido, lido e orado o atraía como se fosse um ímã. E se a conseqüência fosse mergulhar em um abismo da mesma forma que uma jangada despenca de uma cachoeira, valeria a pena correr o risco.
- Veja, Cameron - disse Tsion. - Veja todos aqueles homens sem a marca! Eles estão andando com ar de orgulho, sorrindo uns para os outros, como se estivessem desafiando a CG.
As Forças Pacificadoras da Comunidade Global e os Monitores de Moral haviam sumido dali. Mas a guerra pairava no ar. Pelo comportamento dos judeus devotos no Monte do Templo, ficou claro que o terror tomara conta do local. Os judeus sabiam onde a CG estava e sabiam também que, em breve, se tornariam alvo de Carpathia.
- Os anciãos estão diante do Muro - disse Tsion -, orando fervorosamente e com plena liberdade, como não acontecia tempos atrás. Meu coração está quebrantado por eles. Os mais jovens estão conversando, planejando, procurando armas. Estão determinados a defender esta cidade, da mesma forma que eu.
- Mas a cidade vai ser destruída, Tsion. Você mesmo disse isto.
- Apenas temporariamente, e quanto maior for o número de pessoas que conseguirmos manter vivas, maior será o número que entrará no reino de Deus. É esta a minha preocupação principal.
Mac não sabia ao certo o que fazer com Otto Weser. Otto era um bom sujeito, sem dúvida, mas pensava à maneira de um amador. Talvez tivesse sido um madeireiro bem-sucedido na Alemanha, mas Mac não queria ter Otto como seu superior durante um combate.
- Você não percebe, McCullum - Otto estava dizendo -, que se estivermos pisando em solo firme na pista aérea do palácio quando o aviso sobrenatural for dado, estaremos mais que preparados para fazer o pessoal subir a bordo e sair de lá?
- E se não ouvirmos o aviso ou os crentes não conseguirem chegar à pista aérea? Vamos ficar sentados vendo a cidade desabar ao redor de nós.
- Mas, como crentes, nós não seremos protegidos?
- Pense, homem! Se os crentes estivessem protegidos, por que Deus haveria de pedir que seu povo saísse de lá antes de destruir o local?
- Eu não quero esperar mais, Cameron. Vou até o Muro e começar a pregar.
- Mas e se...
- Não há mais tempo para pensar - disse Tsion. - Estamos aqui com um objetivo, e vou até o fim. Você vai me dar cobertura? Vai me acompanhar? O que vai fazer?
- Vou com você. Ninguém notará minha presença assim que você começar a falar.
Tsion cobriu a cabeça com um solidéu e entregou outro a Buck.
- Não faz sentido sermos apedrejados por infringir os costumes daqui - disse Tsion. - Estamos nos dirigindo a um lugar santo.
Eles esconderam as sacolas entre uma árvore e uma cerca de ferro pintada de preto. Usando roupas folgadas de lona e com as Uzis presas ao corpo, eles rastejaram para sair do meio das árvores e correram em direção ao Muro.
- Ei, velhote, 200 Nicks por essa arma!
- Eu ofereço 300! - disse outra pessoa.
- A arma não está à venda! - gritou Tsion. - Venham ouvir o que tenho a lhes oferecer!
A área diante do Muro das Lamentações estava apinhada de judeus com trajes tradicionais, ansiosos por enfiar suas orações nas fendas entre as pedras. Muitos começavam a orar antes mesmo de chegar perto do Muro. Provavelmente, o local esteve deserto no dia anterior. E qualquer pessoa com trajes religiosos, mesmo tendo a marca de Carpathia, teria sido enviada a um campo de concentração ou executada.
Assim que Buck e Tsion começaram a abrir caminho para chegar ao Muro, os homens olharam firme para eles e resmungaram. Tsion gritou, sem hesitação:
- Homens de Israel, ouçam-me! Eu sou um de vocês! Tenho notícias para lhes dar!
Ficou claro que o povo imaginou que as notícias seriam sobre o ataque iminente, porque todos começaram a se ajuntar. Tsion subiu em um lugar um pouco mais alto para poder ser visto e ouvido.
- Lutaremos até a morte! - alguém gritou.
- Eu sei e também vou lutar até a morte! - disse Tsion. - Vocês estão vendo que tenho a cabeça coberta e que não há marca alguma em minha testa ou em minha mão.
Os homens o aplaudiram.
- Muitos de nós morreremos neste conflito - prosseguiu Tsion. - Estou disposto a entregar minha vida em favor de Jerusalém!
- Nós também - gritaram vários judeus em uníssono.
- Precisamos de armas!
- Precisamos de informações!
- Vocês precisam - ecoou a voz de Tsion - do Messias!
Os homens gritaram. Muitos riram. Outros murmuraram.
Não era exatamente isto o que esperavam ouvir.
- Muitos de vocês me conhecem! Sou Tsion Ben-Judá. Tornei-me persona non grata quando falei ao mundo inteiro sobre minhas descobertas depois de ter sido encarregado de estudar as profecias referentes ao Messias.
Muitos se lembraram e aplaudiram. Embora discordassem claramente das conclusões de Tsion, eles pareciam admirá-lo.
- Minha família foi trucidada. Eu fui exilado. Minha cabeça foi colocada a prêmio.
- Então, por que você está aqui, homem? Você não sabe que os demônios da Comunidade estão voltando?
- Eu não tenho medo deles, porque o Messias também está voltando! Não zombem! Não virem as costas para mim!
A maioria continuou a olhar para Tsion.
- Prestem atenção ao nosso Texto Sagrado. O que vocês acham que isto significa?
Tsion leu Zacarias 12.8-10:
- "Naquele dia, o Senhor protegerá os habitantes de Jerusalém; e o mais fraco dentre eles, naquele dia, será como Davi, e a casa de Davi será como Deus, como o Anjo do Senhor diante deles. Naquele dia, procurarei destruir todas as nações que vierem contra Jerusalém. E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o espírito da graça e de súplicas; olharão para aquele a quem traspassaram; pranteá-lo-ão como quem pranteia por um unigênito e chorarão por ele como se chora amargamente pelo primogênito."
- Explique para nós o que isto significa!
- Deus está dizendo que tornará os mais fracos de nós em pessoas fortes como Davi. E Ele destruirá as nações que investirem contra nós. Meus queridos amigos, seremos atacados por todas as nações da Terra!
- Nós sabemos. Carpathia não fez segredo disto!
- Deus, porém, diz que finalmente "olharão para aquele [Eu] a quem traspassaram", e que choraremos por Ele como se chora a morte de um primogênito. O Messias foi traspassado! E Deus se refere ao traspassado usando a palavra "aquele [Eu]"! (itálicos acrescentados). O Messias também é Deus.
- Amados, meus estudos exaustivos sobre as centenas de profecias referentes ao Messias levaram-me a uma única conclusão lógica. O Messias nasceu de uma virgem em Belém. Ele viveu sem pecado. Foi falsamente acusado. Foi assassinado injustamente. Morreu, foi sepultado e ressuscitou depois de três dias. Estas profecias são suficientes para apontar Jesus de Nazaré como o Messias. É Ele que está vindo para lutar por Israel. Ele vingará todos os erros que foram perpetrados contra nós ao longo dos séculos.
- O tempo é curto. O dia da salvação está aqui. Talvez vocês não tenham tempo para estudar as profecias. O Messias é a promessa de Deus para nós. Jesus é o cumprimento dessa promessa. Ele está vindo. Preparem-se para a chegada dele!
O helicóptero de Rayford não era a única aeronave que sobrevoava a planície do Megido. Mesmo tendo de fazer um esforço enorme para desvencilhar-se do tráfego aéreo, ele não conseguia desviar o olhar do solo. Ele subiu até a uma altura de onde pôde avistar o vale inteiro, de cerca de 900 hectares.
A poeira parecia levantar-se a mais de mil metros à medida que os tanques, caminhões para transporte de pessoal, lançadores de mísseis, tropas da cavalaria e infantaria aproximavam-se da área. Rayford nunca vira tantas pessoas aglomeradas em um mesmo lugar. Parecia que um exército de milhões de soldados estava se posicionando na imensa área reservada à concentração de todos os exércitos do mundo.
Ele também podia enxergar o movimentado porto de Haifa, onde imensos navios formavam filas enormes, à espera de desembarcar armamentos e tropas.
Militares e equipamentos de todas as regiões abarrotavam o local. Apesar da imensidão da área, parecia que não havia lugar para mais nada. E, mesmo assim, os exércitos continuavam a chegar.
A princípio, Buck pensou que Tsion estivesse ofendendo a multidão de judeus piedosos. Muitos ordenaram que ele calasse a boca; outros se afastaram. Mas alguns pediram silêncio e chamaram outras pessoas para ouvirem a mensagem de Tsion. A aglomeração foi aumentando cada vez mais, apesar do barulho e da confusão.
Tsion parecia ter as forças renovadas. Ele começou a citar trechos bíblicos e explicar o que significavam, sem aguardar a reação do povo. Sua mensagem passou do diálogo ao monólogo. O povo tinha os olhos cravados nele.
- Sim, os exércitos do mundo estão chegando. Enquanto falamos aqui, eles estão se dirigindo para o norte, com o objetivo de destruir Jerusalém e nos matar. Mas eu lhes peço que "Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo" (Mt 10.28). Sim, vocês sabem de quem estou falando. O Messias está vindo! O Messias vencerá! Estejam preparados para sua chegada!
- Se quiserem saber como se preparar para a vinda dele, reúnam-se aqui à minha esquerda e ouçam o que o meu colega tem a lhes dizer. Por favor! Venham agora! Não demorem! Este é o momento! Hoje é o dia da salvação.
Buck estava atônito. Não se preparara para falar, mas, quando viu os judeus reunidos a seu redor, olhando com ar de expectativa, ele murmurou uma oração desesperada, e Deus lhe deu as palavras.
- Quando vocês, povo judeu, entenderem que Jesus é o Messias aguardado há tanto tempo - disse Buck -, não estarão se convertendo de uma religião para outra, não importa o que outras pessoas digam. Vocês encontraram o Messias, só isso. Tudo o que vocês estudaram e ouviram durante a vida inteira é o alicerce para aceitarem o Messias e o que Ele tem feito por vocês.
Buck passou a falar do plano de salvação, pedindo àqueles homens famintos e sedentos que confessassem a Deus que Jesus era o Messias.
- Ele não virá apenas para vingar Jerusalém, mas para salvar a alma de vocês, perdoar seus pecados, conceder-lhes a vida eterna com Deus.
- Naomi! - Chang gritou. - Venha ver isto.
Carpathia estava sendo entrevistado pela CNNCG.
Pelas imagens mostradas, ele ainda não se encontrava no Armagedom. Montado em um enorme cavalo preto, ele empunhava uma espada muito larga e comprida, cujo peso teria derrubado da sela um homem de menor estatura. Ele calçava botas de couro de cano alto e ria o tempo todo.
- Temos o poder absoluto e a mais moderna tecnologia em nossas mãos - ele gritou à repórter que segurava o microfone com o braço esticado para alcançá-lo. - Meus meses de estratégia terminaram, e elaboramos um plano infalível. Isso me possibilita encorajar as tropas, estar presente no campo de batalha, sentir-me fortalecido, ser um símbolo visual para que todos se lembrem de que a vitória está próxima e, em breve, a teremos em nossas mãos.
- Aproxima-se o momento, meus irmãos e irmãs da Comunidade Global, em que reinaremos vitoriosos. Eu retornarei para reconstruir meu trono como rei vencedor. Finalmente, o mundo será unificado! Comecem a regozijar-se desde já!
A notícia de que Tsion Ben-Judá estava diante do Muro das Lamentações pregando aos judeus começou a correr de boca em boca, e um número cada vez maior de pessoas afluía ao local.
- A Bíblia profetiza o que vai acontecer brevemente! - ele disse. - Ouçam mais uma vez as palavras de Pedro: "Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas cousas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão. Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça" (2 Pe 3.10-13).
- Esta é a promessa, a promessa que estamos aguardando! Por quantas gerações temos orado pedindo a paz? Brevemente, após o conflito, teremos a paz eterna!
- O Messias retornará como o Rei dos reis. Ele prometeu voltar, vencer Satanás e instalar seu reino milenar aqui, restabelecer Israel e fazer de Jerusalém a capital eterna!
- Depois que um número aproximado de um bilhão de seguidores do Messias foram levados desta terra nos desaparecimentos ocorridos sete anos atrás e que foram profetizados mais de dois mil anos antes, muitos judeus e gentios aceitaram Jesus Cristo como o verdadeiro Messias.
- Nosso profeta Joel predisse os dias que estamos vivendo. Ouçam as palavras das Sagradas Escrituras: "E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias. Mostrarei prodígios no céu e na terra; sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, assim como o Senhor prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o Senhor chamar" (Jl 2.28-32).
- Vocês são o povo remanescente de Israel. Aceitem o Messias hoje! Ouçam a continuação da profecia de Joel e vejam se elas não refletem os dias em que estamos vivendo! "Eis que, naqueles dias e naquele tempo, em que mudarei a sorte de Judá e de Jerusalém, congregarei todas as nações e as farei descer ao vale de Josafá; e ali entrarei em juízo contra elas por causa do meu povo e da minha herança, Israel..." (Jl 3.1-3).
- Esse imenso conjunto de exércitos do mundo inteiro que o governador maligno deste mundo chama de Exército da Unidade Mundial Um se deslocará da área de concentração e atravessará o próprio vale de Josafá, mencionado pelo profeta Joel. Quando eles descobrirem que a cidade de refúgio não poderá ser destruída, a luta se dará naquele vale.
Rayford precisava voltar. Não havia nada que ele pudesse fazer enquanto sobrevoava o ajuntamento dos exércitos do anticristo. Ele sabia que a grande concentração se dividiria naquela área em dois terços e um terço, e que o um terço iniciaria sua inexorável marcha rumo a Petra.
Pelos seus cálculos, levaria quase um dia para o exército percorrer a distância até lá e começar o ataque. Contudo, em questão de horas, os dois terços com destino a Israel já deveriam estar travando a batalha.
Buck estava respondendo perguntas, orando com o povo e procurando ouvir as palavras de Tsion, que parecia ter mais fôlego ainda.
- O Dia do Senhor está diante de nós - ele estava dizendo. - E se houver aqui alguém que ainda duvide, quero lhes contar o que as profecias dizem que acontecerá depois que os exércitos do mundo estiverem reunidos no Armagedom. E, conforme todos nós temos conhecimento, é o que eles estão fazendo agora. Quantos de vocês sabem que as Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral foram enviados para lá? Estão vendo? Muitos daqui sabem. Não temos ilusões. Eles estão se reunindo neste momento, planejando nossa destruição.
- E as Sagradas Escrituras dizem que quando eles se reunirem lá, o sétimo anjo derramará sua taça no ar. Vocês sabem o que isto significa homens de Israel? A extinção das águas do rio Eufrates foi o sexto Julgamento das Taças que Deus derramou sobre a terra, o 20a julgamento desde o Arrebatamento.
- O sétimo Julgamento das Taças será o último, e vocês sabem o que ele representa? A Bíblia menciona que, quando essa taça for derramada, sairá "grande voz do santuário, do lado do trono, dizendo: Feito está" (Ap 16.17). São palavras semelhantes ao pronunciamento do imaculado Cordeiro de Deus na cruz, quando Ele bradou: "Está consumado."
- "E sobrevieram relâmpagos, vozes e trovões, e ocorreu grande terremoto, como nunca houve igual desde que há gente sobre a terra" (Ap 16.18).
- Eu quero adverti-los, meus compatriotas. Esse terremoto atingirá o mundo inteiro. Pensem nisto! A Bíblia diz: "Todas as ilhas fugiram, e os montes não foram achados" (Ap 16.20). Os montes não foram achados! Os montes do mundo inteiro desabarão até ficarem no nível do mar! Quem sobreviverá a essa catástrofe?
- A profecia continua dizendo que "...também desabou do céu sobre os homens grande saraivada, com pedras que pesavam cerca de um talento..." (Ap 16.21). Amados, um talento pesa cerca de 30 quilos! Quem já ouviu falar de granizos desse tamanho? Homens e mulheres morrerão esmagados por eles! E as Escrituras dizem que "...os homens blasfemaram de Deus, porquanto o seu flagelo era sobremodo grande..." (Ap 16.21). Bem, eu devo dizer que o flagelo será grande demais! Arrependam-se já! Façam parte do exército de Deus, não do exército do inimigo.
- Vocês sabem o que acontecerá aqui, exatamente aqui em Jerusalém? Será a única cidade do mundo poupada da destruição devastadora do maior terremoto que o homem já conheceu. A Bíblia diz: "E a grande cidade", ou seja, Jerusalém, "se dividiu em três partes, e caíram as cidades das nações" (Ap 16.19).
- Agora, meus irmãos, vem a boa notícia. Jerusalém se tornará mais bonita, mais eficiente. Será preparada para ocupar a função de nova capital no reino milenar do Messias.
A multidão no Monte do Templo foi aumentando à medida que a notícia da pregação de Tsion continuava a se espalhar. Centenas e, logo a seguir, milhares de pessoas choravam alto e se ajoelhavam arrependidas diante de Deus, aceitando Jesus Cristo como o Messias, firmando um compromisso com o Rei dos reis.
Apesar de exausto, Buck continuava a responder às perguntas, atônito ao ver que tantos judeus, arraigados à sua religião durante muitos séculos, finalmente estavam compreendendo que Jesus Cristo cumpriu todas as profecias do Antigo Testamento referentes à vinda do Messias.
A voz de Tsion continuava a ecoar:
- Como saberemos quando estas coisas terminarão? Antes, virá a destruição de Babilônia. Sim, a destruição de Babilônia! Ouçam: "E lembrou-se Deus da grande Babilônia para dar-lhe o cálice do vinho do furor da sua ira" (Ap 16.19).
- Será terrível! Medonho! A paciência do Deus amoroso e misericordioso chegou ao limite por causa daquela cidade perversa, e Ele não refreará sua ira. A praga da escuridão não foi suficiente para satisfazer à sua ira. Ele permitirá que ela seja atacada e saqueada, destruída em questão de uma hora. Essa calamidade vai ser tão grande que sua repercussão será sentida no mundo inteiro, porque todas as nações prantearão a morte da cidade que, um dia, foi a capital do mundo.
Sabendo que havia pouco tempo e conhecendo a promessa que Buck fizera a Kenny, Rayford conversou, via rádio, com Petra e pediu que Abdullah levasse o menino ao heliporto. Lá, ele fez um rápido sobrevôo com Kenny, subindo e descendo algumas vezes. Kenny adorou o passeio.
Rayford ficou satisfeito por Kenny não ter feito perguntas acerca do pessoal que George e Razor estavam arregimentando lá embaixo, ao redor da cidade de pedra. Comparado ao que Rayford vira ao norte de Jerusalém, estava claro que as tropas de Petra, compostas de alguns milhares de combatentes, não teriam chance alguma sem uma intervenção sobrenatural.
Rayford passou as duas horas seguintes com Kenny. Em seguida, saiu para inspecionar o trabalho que George e seu grupo estavam fazendo.
- Mac, venha rápido - disse Otto. - Há uma colega minha ao telefone, e ela está tão assustada que quase não consegue falar.
Quando Mac chegou aos aposentos de Otto, ouviu a mulher tentando relatar o que acontecera.
- Não sei quanto tempo nos resta - ela disse, com a respiração ofegante -, mas chegou a hora de sairmos daqui.
- Como a senhora ficou sabendo? - Mac perguntou.
- Um anjo - ela respondeu.
- Tem certeza?
- Brilhante, reluzente, branco, grande, muito grande. Era um homem, pelo menos este era. O brilho dele foi tão intenso que fez desaparecer a escuridão desta cidade. Aqui, está claro como se fosse meio-dia.
- O que ele disse?
- Ele falou em voz tão alta que todos aqui ouviram, e eu nunca vou me esquecer de cada palavra. Ele disse: "Caiu, caiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios, covil de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de todo gênero de ave imunda e detestável, pois todas as nações têm bebido do vinho do furor da sua prostituição. Com ela se prostituíram os reis da terra. Também os mercadores da terra se enriqueceram à custa da sua luxúria" (Ap 18.2,3).
- Estamos a caminho daí. Leve todos para a pista aérea do palácio. Se a senhora conhecer outros grupos de crentes, mande-os para lá também.
- Ainda não terminei, senhor.
- Como assim?
- Ouvi outra voz do céu que disse: "Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus flagelos; porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou dos atos iníquos que ela praticou" (Ap 18.4,5).
- Eu não tenho homens suficientes para fazer um círculo ao redor deste lugar - disse Sebastian.
Rayford evitou olhar para George.
- Não sei o que dizer. Pelo que li, não vamos resistir.
- Não quero que homens e mulheres sofram, capitão. Eu gostaria de escolher apenas alguns.
- Pense um pouco, George. É aqui que Jesus deve chegar primeiro. Poderemos estar entre os primeiros que presenciarão o Glorioso Aparecimento.
- É difícil dizer isto a um exército tão pequeno, que tem um homem para cada mil do inimigo. Talvez eles estejam no céu antes de Jesus partir de lá.
Por não ter idéia do que encontraria em Nova Babilônia, Mac convocou Lionel, na última hora, para trazer um jato grande, calculando que, com duas aeronaves, seria possível tirar até 200 pessoas de lá.
Quando eles pousaram na pista do palácio, o local tinha um aspecto sinistro. A escuridão desaparecera, mas as pessoas feridas que se achavam dentro dos limites da cidade não sabiam o que fazer. Depois de tanto sofrimento e de terem vivido no escuro durante muito tempo, elas estavam completamente desnorteadas e não haviam encontrado o rumo certo. A maioria ainda mancava ou andava com dificuldade.
Porém, mais de 150 crentes aguardaram, com enorme entusiasmo, a chegada dos aviões de resgate. Eles carregavam seus pertences em sacos e caixas e estavam ansiosos para subir a bordo, possibilitando que a operação fosse feita com rapidez e facilidade. Mac e Lionel, com os aviões lotados, estavam de frente para a pista de decolagem quando dois exércitos invasores atacaram.
Enquanto Mac ainda sobrevoava o espaço aéreo de Nova Babilônia, uma coluna de fumaça negra subiu em direção ao céu. Ele circundou a área por uma hora, acompanhado de Lionel, e os passageiros presenciaram a completa destruição daquela que, um dia, foi uma grande cidade.
No espaço de uma hora, todas as casas e edifícios desabaram, e Mac sabia que seus moradores estavam mortos. Quando os exércitos misteriosos, que haviam invadido pelo norte e noroeste, se afastaram, deixaram a metrópole inteira em chamas. No momento em que Mac rumava para Petra, não se via mais nada em Nova Babilônia, a não ser cinza e fumaça.
Confuso, Chang observava a chegada dos noticiários da CNNCG sobre a luta que se travava dentro das fileiras do Exército da Unidade Mundial Um. Aparentemente, as forças armadas de Carpathia tiveram de contra-atacar as nações que haviam se embriagado de poder e ambição quando receberam o armamento estocado em Al Hillah.
A maioria dos aliados de Nicolae se reuniu para esmagar a resistência. Quando todos se ajuntaram no Armagedom, já haviam sido persuadidos, pelos demônios, por Carpathia ou pelas realidades da guerra, a cerrar fileiras contra o povo de Deus.
O número imenso de tropas expandiu-se além do vale do Megido e espalhou-se pelo norte, sul, leste e oeste, passando por Jerusalém rumo a Edom. Algumas estimativas davam conta de que apenas um exército contava com uma quantidade inimaginável de mais de 200 mil combatentes.
As imagens aéreas captadas por uma aeronave da CNNCG somente conseguiam mostrar cerca de um milhão de soldados por vez, sendo necessário que dezenas e dezenas de outras imagens separadas fossem levadas ao ar.
Chang notou que o pânico começava a tomar conta do povo em Petra.
Aqueles que viram os noticiários imaginavam que jamais seriam capazes de enfrentar um exército tão poderoso. Os que não viram foram informados pelos que viram, e a notícia se espalhou por todo o acampamento. Muitos correram para os lugares altos de onde podiam ver as nuvens de poeira e uma multidão de homens, animais e armamento atravessando lentamente o deserto.
Chaim aproveitou a ocasião para reunir o povo, pouco antes da chegada do maná noturno.
- Meus queridos irmãos e irmãs no Messias. Tenham bom ânimo. Não se intimidem. Tenho recebido notícias maravilhosas de Jerusalém, onde nosso irmão Tsion está pregando o Evangelho de Jesus Cristo com grande ousadia. Estou feliz por poder lhes dizer que os resultados têm sido ótimos.
- Faz apenas dez minutos que conversei com o exausto e atarefado Cameron Williams. Ele me contou que milhares de judeus estão se arrependendo de seus pecados e se voltando para Cristo, aceitando Jesus de Nazaré como o Messias.
- Louvado seja o Senhor Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da terra!
Aparentemente encorajado e animado, o povo chorou e levantou as mãos.
- Não ignoramos o que vai acontecer - prosseguiu Chaim. - Nova Babilônia foi completamente destruída em uma hora, em cumprimento às profecias. Agora, existem apenas dois eventos no calendário profético, meus amigos. O primeiro é?
O povo respondeu aos gritos:
- O sétimo Julgamento das Taças.
- E qual é o segundo?
- O Glorioso Aparecimento.
Chaim concluiu:
- Nós servimos ao grande Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o libertador de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. Sobrevivemos às fornalhas de fogo do anticristo e fomos libertados do laço do passarinheiro. Não tenham medo. Permaneçam firmes e inabaláveis, e vejam a salvação do Senhor que Ele lhes concederá. Em breve, vocês nunca mais verão o inimigo que estão vendo hoje. O Senhor lutará por vocês, e vocês terão paz duradoura.
Já era noite em Jerusalém e, mesmo assim, o povo continuava a afluir ao Monte do Templo. Ao notar que Tsion estava fraco e cansado, Buck afastou-se sorrateiramente e dirigiu-se ao local onde havia escondido as sacolas, para levar um pouco de alimento ao rabino. As sacolas, porém, haviam desaparecido. Ele correu de volta ao local onde Tsion Continuava a falar, mas ele próprio sentiu-se zonzo por causa da fome.
- Preciso de comida para alimentar o rabino! - ele gritou.
- Eu estou bem! - Tsion disse e continuou a pregar.
- Por favor, alguém tem algum alimento? Um petisco Qualquer. Pão, fruta.
- Que tal cinco pães e dois peixes? - gritou alguém, e todos riram.
Um senhor idoso atirou uma maçã para Buck. Outros lhe entregaram uma fatia de pão quente e crocante. Alguns doaram um pedaço de queijo. Um deles cedeu duas laranjas.
- Ajudem-me a persuadir este professor obstinado a fazer uma pausa! - disse Buck.
Muitos dos que ali estavam insistiram para que Tsion, ao menos, se sentasse. Ele concordou.
Agora, falando mais em tom de professor do que de pregador, Tsion assimilava as perguntas e mordiscava os petiscos entre uma resposta e outra. A multidão não parava de crescer.
- Eu não tinha idéia de que estava com tanta fome - disse Tsion, olhando para Buck. - Muito obrigado, meu amigo.
Alguém lhe entregou um copo d'água, e ele sorveu o conteúdo com avidez.
De repente, um dos presentes levantou as duas mãos para silenciar o povo, e todos se aquietaram. O ronco de um exército em movimento tornou-se audível. Buck sentiu a vibração por todo o corpo.
- Precisamos levar o rabino a um abrigo - disse alguém.
- Vamos nos reunir um pouco mais adiante.
Tsion fez menção de protestar, mas a multidão já estava saindo, em massa, do local. Ele e Buck acompanharam o povo até uma enorme construção de pedra, com capacidade para acomodar mil pessoas com facilidade. Cerca de metade do povo ajuntou-se perto da entrada da construção.
- O que vamos fazer quando o inimigo chegar? - perguntou um deles.
- Temos mais gente que o exército de Gideão.
- Só poderemos fazer o que estiver a nosso alcance - respondeu Tsion. - Não sei se vocês têm idéia do que estou fazendo aqui hoje, mas saibam que quero conduzir o maior número possível de compatriotas judeus ao reino do Messias, antes que seja tarde demais. E, por causa disto, meu maior desejo é que todos permaneçam vivos, se possível. Se vocês concordam com minha missão, espalhem-se pela cidade e convidem todos os que assim o desejarem para cerrar fileiras conosco. O inimigo começará a atacar Jerusalém e levar seu povo para o cativeiro, mas acredito que seu principal objetivo é a Cidade Velha. Poderia haver maior orgulho para Carpathia do que pensar que pode invadir este lugar santo e estabelecer seu quartel-general aqui?
- Se formos atacados antes que vocês retornem, contem a todos o que ouviram. Não há necessidade que venham até aqui para proferir a oração de fé e tornar-se um participante do reino do Messias.
Alguém gritou:
- Melhor ainda será trazer para cá os que já tomaram a decisão, todos carregando uma arma!
- Bem - disse Tsion. - Sim.
Já era uma rotina. Quando passava a noite com Rayford, Kenny só adormecia depois que se deitava, com o corpo esticado, em cima do peito do avô. Rayford tinha de equilibrar-se na pequenina cama do menino e chamá-lo para perto de si. Kenny subia e se deitava com a cabeça logo abaixo do queixo de Rayford.
Rayford lutava contra o cansaço. Não queria dormir enquanto Kenny estivesse fazendo perguntas, cantando, orando.
- A mamãe está no céu - disse Kenny.
- É verdade. E nós sentimos saudades dela, não?
- Eu sinto.
- Eu também.
- Logo eu vou ver a mamãe.
- Logo, logo mesmo, Kenny. - Rayford sabia que Buck havia mostrado o calendário ao filho.
- Amanhã?
- Talvez. Ou depois de amanhã. Ou daqui a alguns dias.
- Onde fica o céu, vovô?
- Com Deus.
- E Deus está com a mamãe?
- Está.
- E Jesus?
- Jesus também.
- Quero que eles venham aqui.
- Logo.
Rayford havia combinado com Priscilla Sebastian para que ela fosse tomar conta de Kenny antes do alvorecer, quando ele precisava reunir-se com as tropas no perímetro de Petra.
Não demorou muito para que Kenny parasse de falar e de se mexer. Sua respiração tornou-se regular e profunda. Rayford orou pelo neto e aguardou alguns minutos antes de esgueirar-se lentamente da cama.
Em seguida, Rayford deitou-se em sua cama, do outro lado do quarto, e olhou para o menino. Como Irene ficaria emocionada com o neto! Se Kenny tivesse nascido em outro período da História, começaria a freqüentar escola dentro de um ano. Rayford gostaria de saber que tipo de escolas haveria no reino milenar.
Ele também se perguntou como isso funcionaria. Será que ele, Buck e Kenny envelheceriam enquanto Irene, Raymie e Chloe continuariam com a mesma idade de quando foram para o céu? E quanto a Amanda? Ele receava que aquele encontro com sua esposa fosse constrangedor, mas será que situações desse tipo teriam alguma importância quando todos estivessem na presença de Jesus?
Por ter estado ocupado demais durante muito tempo, Rayford não se dera ao luxo de imaginar essa cena. Qual seria a sensação de presenciar o Glorioso Aparecimento e estar fisicamente com Cristo? Rayford estava mais emotivo do que quando era jovem. Com freqüência, a simples lembrança da mudança que Cristo operara em sua vida o deixava com a voz embargada.
Imaginar o imaculado Filho de Deus se preocupando com ele a ponto de morrer por seus pecados... ainda era difícil aceitar esse sacrifício. E como seria maravilhoso ter a oportunidade de agradecer ao Filho de Deus, adorá-lo face a face. Durante mil anos. E, depois, por toda a eternidade. Rayford ainda não imaginara como seria o céu.
Pouco antes do amanhecer em Jerusalém, um senhor chamado Shivte e seus dois filhos, ambos com mais de 40 anos de idade, levaram Buck e Tsion a casa deles. Os três homens eram fortes, corpulentos e falavam em voz baixa.
Assim que abriu a porta ao ouvir a batida em código do marido, a esposa de Shivte empalideceu e quase desmaiou de emoção.
- Louvado seja Deus! Louvado seja Deus! - ela exclamou. - Você é Tsion Ben-Judá! E vocês!
Ela olhou primeiro para o marido e depois para os filhos.
- Vocês têm o selo de Deus na testa! Será que agora conseguem ver o meu?
Eles sorriram e confirmaram com um movimento de cabeça, abraçando-a, um após o outro.
- Não tenho palavras para expressar o meu agradecimento - disse Tsion. - Nossos pertences desapareceram, e não temos abrigo nem comida.
- Nós não temos um quarto para lhes oferecer - disse a esposa de Shivte. - Mas temos cobertores e um pouco de comida.
- O Senhor os recompensará - disse Tsion.
- Ele já recompensou - ela disse. - A recompensa foi ver meu marido e meus dois filhos entrando por esta porta. É uma honra receber os servos de Deus em nossa casa.
- Conte-me como foi que a senhora aceitou o Messias - disse Tsion.
- Miquéias - ela disse, depois de sentar-se pesadamente.
Buck e Tsion se entreolharam.
- Esperei muito tempo para receber a marca de Carpathia. Eu não queria. Meu marido e meus filhos também não queriam. Eles ficavam escondidos aqui durante o dia para não serem vistos pela CG. Mas eu achava que um de nós teria de receber a marca para poder comprar e vender e nos manter vivos. Eu estava disposta a receber a marca, mas a idéia de adorar aquela estátua me provocava vômito. Perdoe-me.
- Por favor, prossiga.
- Eu estava no Monte do Templo, planejando levar minha decisão adiante, mesmo crendo intimamente no verdadeiro Deus. Eu não sabia mais o que fazer. Preocupava-me com minha alma eterna, mas acreditava estar entregando minha vida em favor de minha família. Em meu pensamento, não poderia haver ato mais nobre. Na época, eu não compreendia que estaria vendendo minha alma ao demônio. Ninguém de minha família seria merecedor disto.
O marido e os filhos sorriram.
- Naquele dia, rabino, eu estava na fila. Não sei quantas pessoas tinha entre mim e o aplicador da marca. Mas, ao notar um tumulto por perto, eu saí da fila. Fiquei em pé atrás da multidão, observando tudo. Vi os tiros que não mataram o homem de Deus. Voltei correndo para casa, e estes três homens vão ter de admitir que zombaram de mim. Eles haviam gostado do plano de um de nós, ou melhor, eu, receber a marca para podermos comer. Como faríamos dali em diante?
- Eu os aconselhei a saírem na escuridão da noite para procurar alimento. Eu queria obter mais informações a respeito do homem de Deus. Um jovem amigo nosso tinha um computador, e descobrimos o seu site. Foi assim que passei a acreditar que Jesus era o Messias. Fui desprezada por minha família. Meu marido e meus filhos eram judeus praticantes a ponto de resistir a Carpathia, mas não estavam preparados para aceitar o Messias.
- Tentei de tudo, orei, pedi e implorei. Finalmente, concordamos em não tocar mais no assunto. Eles me deram um ultimato e eu já estava cansada de ser rejeitada e ridicularizada. Mas eu ainda podia orar. E Deus responde às orações. Você está aqui, e eles estão aqui, com o selo de Deus.
Sem conseguir dormir, Rayford resolveu conversar com Buck. Caminhou pé ante pé até o outro cômodo para não despertar Kenny e fez a ligação. Depois de perguntar por Kenny, Buck lhe contou as novidades.
- Incrível - disse Rayford. - O que Tsion está dizendo sobre os próximos acontecimentos?
- Ele espera um ataque antes do alvorecer. Talvez aí também.
- Estamos pensando a mesma coisa, Buck, mas, para nós, essa luta será em vão.
- Temporariamente, você quer dizer.
- Claro, mas não vejo vantagem em arriscar a vida de tantas pessoas quando elas poderiam permanecer aqui dentro e...
- ...e aguardar a chegada de Jesus?
- Exatamente.
- Ora, vamos, pai. Quem deseja ficar parado aguardando? Eu quero que Ele me encontre trabalhando. E você?
- Eu também, mas você deveria estar aqui para ver o número de pessoas que vão circundar a cidade. Cerca de duas mil, eu calculo. E também temos Otto e alguns companheiros. Nenhum deles sabe manejar uma arma. Ree, Ming, Lionel, Hannah e Zeke não são verdadeiros soldados. Mac, é claro, e Smitty podem cuidar de si mesmos. Não tenho dúvida alguma quanto a Razor e George. A menos que George tente ser um herói. Ele é um perfeito militar, Buck. Você precisaria ver o esforço e a dedicação desse rapaz. Parece que ele acha que seus homens têm o dever de carregar tudo nas costas. Mas, de repente, ele percebe que tem poucos soldados de verdade sob seu comando, e seus olhos perdem o brilho.
- Vocês ainda têm as DEWs, aquelas armas de energia direcionada, e as calibre 50, certo?
- Temos, mas lutar contra armas nucleares? Ora, nem pensar.
- Façam algum estrago. Vocês precisam retardar o ataque do inimigo até a cavalaria do Calvário chegar aqui.
- O quê?
- Pensei nisto outro dia. Jesus vai surgir do céu montado, literalmente, em um cavalo. É o que Tsion diz. Dez mil santos virão com Ele. A cavalaria do Calvário.
- Você está tendo tempo demais para pensar.
- Ei, Rayford?
- Diga.
- Nós podemos ouvir os exércitos chegando. E vocês?
- A maneira como esta cidade está disposta não permite. Talvez quando estiverem mais perto. Com certeza poderão ser vistos dos lugares altos. Sinistro demais. Se eu não ficar sabendo de mais detalhes, vou dar um jeito de sair daqui.
- Tudo isto é mais ou menos parecido com uma bola que chega atrasada quando já sabemos o resultado do jogo, você não acha?
- Talvez - disse Rayford. - É o tipo de coisa que só uma mente como a sua é capaz de imaginar.
- Acho que devo dizer muito obrigado.
Incapaz de dormir, Chang dirigiu-se ao centro de tecnologia e sentou-se diante de seu computador. Eram mais ou menos quatro horas da madrugada. Enquanto acompanhava indolentemente a transmissão da afiliada da CNNCG de Haifa, ele ouviu uma notícia sobre o desdobramento das tropas.
- O supremo potentado Nicolae Carpathia não fez segredo algum de sua estratégia - dizia a repórter. - Na verdade, parece que ele sabe exatamente o que vai acontecer. Conversei com ele ontem à noite em seu bunker, localizado perto do mar da Galiléia.
- Veja - disse Carpathia -, temos uma vantagem tão espetacular no que diz respeito a força humana, poder de fogo e tecnologia que não estamos preocupados com o que vamos encontrar pela frente. Não escondi de ninguém que temos dois objetivos principais que deverão atingir a mesma meta. Queremos sitiar a cidade de Jerusalém, onde reside a maioria dos judeus renitentes. E queremos eliminar Petra de uma vez por todas. É ali que o tal povo "Remanescente" está escondido, assustado como criancinhas.
- Eles sabem que estamos chegando. Eles verão nossa chegada, mas pouco poderão fazer quanto a isso.
- O senhor imagina que não haverá baixas?
- Ah! Sempre há baixas - disse Carpathia, como se estivesse comovido. - Mas meu povo sente-se honrado em oferecer sua vida a mim e à Comunidade Global. Todos serão recompensados. É claro que existe a possibilidade de não haver perda de vidas humanas ou ferimentos em relação a nosso pessoal. Isto é, desde que o inimigo veja o que tem pela frente e conclua que não há esperança. Seria prudente que houvesse uma rendição incondicional, e, evidentemente, eu aceitaria essa rendição demonstrando o máximo respeito por eles.
- Sério? Que acordos o senhor faria neste caso? Carpathia riu tanto que não conseguiu responder.
O dia ainda não havia clareado, e Rayford já estava em pé, vestido e de arma em punho.
Ele abriu a porta antes de Priscilla bater.
- Vou ficar aqui até Kenny acordar, Rayford, se você estiver de acordo.
- Perfeito. Obrigado, Priss. Fique à vontade.
- Ray? Você tem certeza de que meu marido virá para casa esta noite?
- Sim, se depender de mim.
- Sua resposta não foi muito convincente.
- Bem, achei que sua pergunta foi séria. A resposta séria é que não existem garantias. Espero que ele se esforce ao máximo para eu voltar para casa.
- Ele se sente na obrigação de cuidar de todo mundo - disse Priscilla, sentando-se.
Rayford parou ao lado da porta aberta.
- É o preço da liderança. Ele se apresentou como voluntário para esse posto de comando.
- Como se houvesse escolha.
- Para mim, não havia, Priscilla.
- Eu só estava dizendo que...
- Eu sei. Às vezes, um sujeito como eu, tentando vigiar um homem que sabe o que está fazendo, só serve para atrapalhar. Você sabe, é claro, que mesmo que...
- Não diga isto, Rayford. Muitas esposas tentam se consolar dizendo que seus maridos irão para o céu, ficarão um ou dois dias lá, talvez menos, e depois vão voltar. Isso não ajuda.
- É verdade.
- Eu sei. Mas não é o fato de viver sem ele que me preocupa neste momento. É vê-lo ferido, sofrendo, morrendo aos poucos.
Buck, Tsion e seus hospedeiros tomaram um café forte e amargo. Buck nunca havia experimentado um café desse tipo. Lá fora, ainda estava bastante escuro. A esposa de Shivte começou a chorar baixinho, tentando disfarçar.
- Cameron - sussurrou Tsion -, eu gostaria que você acompanhasse Shivte.
- Espere um pouco. Vim até aqui para ser seu guarda-costas, de ninguém mais.
- Faça-me este favor. Eu me preocupo com ele. A arma desse homem é muito antiga. Os filhos dele acreditam que os invasores virão do noroeste e tentarão atravessar a Porta de Damasco.
- Baseados em quê? - perguntou Buck.
- O Exército da Unidade poderia atravessar qualquer uma das portas, mas a Porta de Jaffa e a Fortaleza estão muito bem guardadas por inúmeras tropas rebeldes.
- Além disso, eles poderiam tentar arrombar qualquer uma das portas, e a mais provável, em minha opinião, é a Porta Dourada. A prioridade deles é o Monte do Templo, não?
- Não sei, Cameron. Só quero que me faça este favor. Leve o homem à Fortaleza. Assim que ele estiver instalado lá, vá ao meu encontro. Eu estarei com os outros dois perto da Porta de Damasco.
Buck preferia seguir sua intuição e ir direto à Porta Dourada, mas estava ali por causa de Tsion, e faria esse favor ao amigo. Ele não sabia de onde partira o palpite dos dois irmãos. Se dois terços das tropas de Carpathia estavam se concentrando em Jerusalém, não haveria necessidade de muitos homens para tomar posse da pequenina Cidade Velha.
Buck, Tsion e os outros três homens ouviram tiros assim que atravessaram a porta. Tsion e os irmãos correram para o lado noroeste. Buck e Shivte, para o oeste. Os rebeldes espalhavam-se por toda parte, gritando o que sabiam. O inimigo ocupava a Estrada para Jaffa.
A Porta de Damasco estava cercada. O Museu Histórico Yad Vashem das vítimas do holocausto havia sido destruído. A Universidade Hebraica, a Biblioteca Universitária e Nacional dos Judeus e o Museu de Israel ardiam em chamas.
A Cidade Velha seria o próximo alvo.
Havia milhares de pessoas mortas e muitas capturadas. Se os boatos fossem verdadeiros, Buck sabia que ele e Shivte se encontravam no pior lugar possível. Em essência, eles estavam encurralados dentro dos muros da Cidade Velha.
Rayford ficou impressionado com a estratégia de Sebastian, apesar de ambos saberem que as táticas de nada mais valiam diante de uma situação tão inusitada.
O terço das tropas de Carpathia destinado a Petra carregava todos os tipos de armamentos do arsenal do potentado. Uma tropa montada de, no mínimo, 200 mil homens aproximava-se lentamente pelos flancos do pequeno exército de Sebastian, cercando completamente a cidade.
- Tenho poucas DEWs - George disse a Rayford. - Se eu soubesse que eles iriam iniciar a batalha montados em cavalos, eu teria pedido a Lionel que me conseguisse mais armas.
- O que os cavalos têm a ver com isso?
- Os cavalos não possuem escudos, e os cavaleiros não têm como se proteger. Você está vendo a lentidão com que eles estão vindo?
Rayford pegou o binóculo e avistou milhares de cavaleiros aproximando-se. Eles estavam a um quilômetro e meio das tropas de Petra.
- Pelo jeito, eles não têm pressa alguma - disse Rayford.
De repente, George pareceu animado.
- Vamos atacar primeiro e ficar em posição privilegiada, pelo menos temporariamente.
- Como?
- Aqueles cavalos são treinados para não se assustar com tiroteio. Poderíamos fazer alguns disparos com as armas calibre 50 na direção deles para provocar um pequeno tumulto. Talvez derrubar alguns cavalos e alguns cavaleiros. Mas aposto que eles ainda não aprenderam a lidar com uma DEW. Você está pronto para entrar em ação?
- Claro.
- Tenho apenas cem DEWs, mas fui esperto o suficiente para entregá-las ao pessoal que está cercando a cidade. Preciso que elas fiquem espalhadas em intervalos regulares, contornando todo o topo da cidade. Você pode cuidar disto?
- Sem dúvida. E depois?
- Diga ao pessoal que aguarde meu comando. Se dispararmos as DEWs e conseguirmos atingir um lugar qualquer próximo a cem cavalos ou cavaleiros, vamos provocar uma debandada. Os cavalos ficarão desnorteados por uns tempos.
- Brilhante.
- Só se funcionar. O problema é que temos de fazer isso antes que eles saibam realmente onde estamos. Podemos pôr esses homens para correr para que eles vejam como é bom ter alguém no calcanhar deles.
Buck acomodou Shivte dentro da Fortaleza repleta de gente, onde muitos jovens assustados também haviam decidido esconder-se. Buck ouvia o que se passava na Estrada para Jaffa, mas os invasores não tomaram conhecimento da Porta de Jaffa pelo mesmo motivo que ele havia imaginado. Por que ter trabalho dobrado?
Pelos cálculos de Buck, a Porta de Damasco localizava-se a uns 400 metros dali. Essa distância talvez parecesse mais longa em razão da dificuldade que ele encontraria para atravessar a aglomeração de rebeldes assustados e furiosos. E, evidentemente, ele perdera Tsion e os dois irmãos de vista.
- Senhor, vem rápido.
Rayford pegou rapidamente um veículo de tração nas quatro rodas, especial para rodar em terrenos acidentados, e se dirigiu ao lugar alto mais próximo. Apesar de estar motorizado e munido de um walkie-talkie, ele levou quase meia hora para espalhar, em intervalos regulares, as cem DEWs entre os combatentes.
Assim que George expedisse a ordem, eles disparariam feixes invisíveis de energia direcionada contra o inimigo. Esses feixes tinham o poder de esquentar o tecido macio do corpo, além do ponto de tolerância, em menos de um segundo. E se o cavaleiro ou o cavalo não se desviasse do feixe, ficaria com o corpo queimado.
Pelo fato de Petra estar cercada por duas brigadas de tropas montadas, os disparos das DEWs provocariam uma enorme confusão e desnorteariam o inimigo. A estratégia era atingir apenas os cavalos. Eles fugiriam em disparada, levando os outros cavalos a fazerem o mesmo.
Não havia dúvida de que alguns cavaleiros seriam atingidos, principalmente nas pernas. A reação deles seria espernear e fugir dali também. Se o feixe atingisse o corpo do cavaleiro, ele gritaria e soltaria as rédeas. George era um gênio, pensou Rayford.
- A Porta do Monturo está cedendo! - gritou alguém. - Vamos matar essa gente do Exército Mundial Um!
Buck orou para que isso não fosse verdade. A Porta do Monturo era a porta do sul mais próxima do lado ocidental do Muro. Era o caminho mais longo para se chegar ao Monte do Templo, e foi por isso que Buck supôs que a Porta Dourada, no lado leste, seria a primeira escolha do Exército da Unidade. Se o exército atravessasse a Porta do Monturo, poderia tentar destruir o Muro das Lamentações, para conseguir o objetivo desejado.
Impossibilitado de falar com Tsion por telefone e sem condições de encontrá-lo sozinho ou com os irmãos na Porta de Damasco - que, no momento, parecia estar cercada -, Buck correu em direção à Porta do Monturo, que ficava a um quilômetro e meio de distância.
Ao longo do caminho, ele ouviu boatos e palavras de medo. Se parte daquilo fosse verdade, não demoraria muito para que metade da grande cidade de Jerusalém fosse sitiada. Seu objetivo era permanecer vivo até a chegada das pessoas do bem.
Rayford calculou que faltava pouco menos de 15 minutos para o sol despontar em Petra quando ele informou George que as armas de energia direcionada estavam em seus respectivos lugares e aguardando sua ordem.
- Antes de iniciarmos, quero ter certeza de que os alvos estão onde eu gostaria que estivessem - disse George.
- Só existe um meio de fazer isso com a rapidez de que você necessita - disse Rayford.
- Com um veículo de tração nas quatro rodas?
- O percurso é longo demais. Vai ser necessário contornar o perímetro inteiro, pelo alto.
- Helicóptero?
- Acertou!
- Se você quiser arriscar.
- Eles não vão acreditar que somos nós - disse George. - Quem seria tão idiota a ponto de se expor desta maneira?
- Você.
Buck havia corrido uns 800 metros e ofegava quando avistou as tropas do Exército da Unidade de Carpathia chegando pelo outro lado. Agora, ele estava desesperado para encontrar Tsion e tirá-lo da Cidade Velha.
Os rebeldes, alguns atirando por cima dos ombros, passaram correndo por ele, tentando escapar com vida, mas Buck notou que os homens da CG não estavam disparando suas armas. Eles movimentavam um colossal aríete que, aparentemente, derrubaria com facilidade o Muro das Lamentações.
Aquilo seria uma tragédia. Como um local sagrado como aquele, destinado a orações durante milênios, poderia ser destruído em tão pouco tempo?
De repente, todos os rebeldes que passaram correndo por Buck retornaram. Seus gritos ecoavam:
- O Muro das Lamentações não! O Muro não! Vocês é que devem ser sacrificados! Lutaremos até a morte!
A notícia se espalhou pelo Bairro Judeu e pelo centro da Cidade Velha. Em pouco tempo, as centenas de pessoas transformaram-se em milhares.
Buck juntou-se ao grupo de rebeldes. Eles acusavam a CG, disparavam armas, atiravam pedras, lutavam corpo a corpo. Conseguiram dominar o pessoal que movimentava o aríete e correram de volta à Porta do Monturo.
Com a chegada de mais rebeldes, os judeus afugentaram o Exército da Unidade, pelo menos durante aquele breve entrevero. Passaram o aríete por cima da Porta do Monturo, acossaram o exército e conseguiram fechar a porta com o aríete do lado de dentro.
Os gritos de alegria aumentaram da mesma forma que crescia a confiança dos rebeldes. Um grande grupo foi designado para guardar a porta, ao passo que outros foram enviados para a Porta Dourada e a Porta do Leão, no lado leste.
O celular de Buck soou.
- Tsion! Onde você está? Tentei falar com você!
- Meu telefone quebrou. Estou usando um emprestado. É verdade que os rebeldes afugentaram o exército da Porta do Monturo?
- Sim! Estou aqui agora! Onde vamos nos encontrar?
- Você conhece a Igreja da Flagelação?
- Perto do Bairro Muçulmano?
- Sim, a oeste daí! - disse Tsion. - Rápido! Eu me perdi dos dois irmãos.
- Você sabe que sempre fomos protegidos no espaço aéreo ao redor daqui - disse Rayford, assim que começou a levantar vôo com o helicóptero.
- Prefiro não testar - disse Sebastian. - Só quero que você suba reto para que eu tenha uma visão de 360° e possa ver se os cavalos estão no lugar que eu quero. Em seguida, desça reto.
- Oh, não! - exclamou Rayford. - Está vindo!
- O quê?
Um míssil estava riscando o céu na direção do helicóptero. Rayford procurou desviar, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Os helicópteros não tinham mobilidade nem velocidade para esquivar-se de um míssil.
- Minha idéia não deu certo, George. Sinto muito.
- Fique longe da cidade, Ray!
Rayford havia tido a idéia de descer em um lugar alto, mas se o míssil o seguisse, poderia machucar ou matar mais pessoas além deles dois.
Ele inclinou o helicóptero e sobrevoou o local onde as tropas de Petra estavam posicionadas, mas aquilo só serviu para que ele ficasse frente a frente com o míssil.
- Sinto muito, Priscilla - Rayford murmurou, fechando os olhos quando a ogiva foi de encontro ao helicóptero.
Buck não entendeu como conseguiu chegar ao local de encontro antes de Tsion, apesar da diferença de idade entre eles. Buck calculou que Tsion devia estar a uma distância duas vezes menor que a dele. Entrou na igreja lotada, mas nada de Tsion. Aquilo estava se tornando cansativo.
- Porta de Herodes! - gritou alguém.
Centenas de rebeldes dirigiram-se à porta no extremo norte da cidade. Era impressionante ver a indignação nos olhos deles quando seus antigos lugares santos eram ameaçados. Tsion devia estar lá. Buck não conseguiu pensar em outra opção.
A Porta de Herodes ficava a uns 200 metros da igreja, mas, desta vez, não havia correria. Buck se viu pressionado por todos os lados pelos rebeldes. Talvez fosse melhor assim. Ele estava exausto e seu pulso batia de maneira incontrolável.
Não tinha meios de ligar para Tsion, porque o telefone do rabino não estava funcionando. A única coisa que ele poderia fazer era dobrar os joelhos de vez em quando e dar um salto para conseguir enxergar por cima da multidão.
Porém, quando avistou Tsion Ben-Judá, ele não gostou da situação em que o rabino se encontrava.
O helicóptero sacudiu e continuou na rota.
- Pensei que fôssemos morrer - disse Rayford. - Eu nunca me acostumo a isto.
- Para onde ia aquele míssil?
- Em nossa direção, como é normal.
- Não vejo nada de normal nisto - disse Sebastian. Ele esquadrinhou o horizonte. - Veja lá!
Rayford avistou uma coluna de fumaça preta a cerca de um quilômetro e meio ao sul de Petra.
- Eles devem ter atingido o próprio pessoal! - disse George, pegando seu rádio. - Cão Grande 1 chamando perímetro sul, câmbio.
- Aqui é Mac, Cão. O que foi aquilo?
- Não nos atingiu. Qual foi o estrago?
- Encontramos um dos carros de transporte deles um pouco adiante da fileira de cavalos. Deve ter havido algumas baixas. Eles parecem bastante preocupados.
- Espere até eles descobrirem que foram atingidos pelo fogo amigo. Atenção todos os operadores das DEWs! Abram fogo imediatamente! - George ordenou.
Em questão de segundos o círculo negro formado por cavalos e cavaleiros ao redor de Petra se desintegrou, e os animais dispararam em todas as direções.
- Uma verdadeira obra-prima, George - disse Rayford. - Excelente.
- A carne daqueles cavalos deve ter ficado bem passada. Ei, Ray, será que eu ouvi você mencionar o nome de minha mulher quando a ogiva estava vindo de encontro a nós?
- Sentimento de culpa.
- Como assim?
- Eu disse a ela que tomaria conta de você na medida do possível.
- A idéia de tomar conta de mim foi sua?
- Na medida do possível. Que tal levantarmos vôo novamente para ver se eles atiram em nós mais uma vez? Quem sabe vamos poder pegar um pouco de munição do pessoal do outro lado?
- Não achei graça, Rayford.
Todas as vezes que Buck saltava na tentativa de localizar Tsion, ele via o rabino sendo levado nos ombros dos zelotes. Ele queria gritar para que eles o colocassem no chão, mas ninguém o ouviria no meio daquele tumulto. O que estavam planejando fazer? Conduzi-lo à morte?
Talvez o considerassem um herói ou estivessem imaginando que, se conseguissem colocá-lo diante da massa humana, Tsion poderia transmitir ânimo às tropas. De qualquer forma, isso era uma loucura.
Buck abaixou o corpo e forçou o caminho com os ombros até chegar mais perto de Tsion.
- Ei! - ele gritou. - Ei! Coloquem o rabino no chão!
- Ele nos conduzirá à vitória!
- Ele é nosso líder!
- Vejam, ele está sob minha responsabilidade, e vocês vão conduzi-lo à morte!
Buck agarrou o tornozelo de Tsion, o que forçou os homens a reduzirem o ritmo dos passos. Eles soltaram Tsion, e o rabino começou a cair de cabeça no chão. Buck mergulhou por baixo dele para suavizar a queda, e agora ambos estavam sendo pisoteados.
No entanto, isso foi providencial, porque as tropas do Exército da Unidade haviam escalado o muro acima do Portão de Herodes e abriam fogo. Os rebeldes caíram ao redor de Tsion e Buck, batendo a cabeça no chão e espirrando sangue por todos os lados.
Buck passou os braços ao redor da cabeça de Tsion e protegeu a sua, à espera do tiroteio. Ao ouvir o zunido de balas ricocheteando e a explosão do pavimento a seu redor, Buck preparou-se para receber os tiros mortais que atingiriam a cabeça, o pescoço ou a espinha deles.
Mas eles foram poupados.
Quando o tiroteio cessou, Buck arrastou Tsion pelos pés até o legendário tanque de Betesda, onde muitas pessoas foram curadas.
- Eu não fui atingido, Cameron! Não preciso ser curado!
Mesmo a poucos milímetros da morte, o rabino ainda conseguia brincar.
Rayford e George pousaram o helicóptero, pegaram o veículo de tração nas quatro rodas e estavam se dirigindo a toda velocidade ao posto de comando de George.
- Eles vão revidar - disse Rayford.
- De que forma? E o que vamos fazer?
- Eles devem ter uma série de lançadores de morteiros. Quero ver se os cavaleiros vão conseguir convencer os cavalos a retornarem. Se não conseguirem, será o caos. O segredo é mantê-los fora do Siq. Não quero ver nenhum deles entrando neste lugar.
- Você deve estar achando que Carpathia aprendeu a lição. Imagine quanto dinheiro ele gastou para vir nos pegar aqui - disse Rayford.
- É verdade, mas todo comandante militar pensa que é melhor que qualquer outro, portanto o comandante desta ofensiva vai ter de aprender por conta própria.
- As DEWs e o míssil deveriam ter ensinado alguma coisa a ele.
- Deveriam - disse George. - Mas garanto que ele vai tentar de tudo antes de desistir.
- Qual seria a estratégia mais consistente que eles usariam contra nós?
- Um número muito grande de homens. Quando eles começarem a vir para cá, vamos ter de nos proteger dentro da cidade.
- Onde temos sido protegidos até agora.
- É verdade. Mas bater em retirada não faz parte de meus planos de guerra. Deus nos protegeu daquele míssil, mas você não achou divertido atacar aquela gente com as armas de energia direcionada?
Uma jovem acenava freneticamente da entrada de uma pequena gruta perto dos tanques. Buck levou Tsion até ela.
- Aqui há espaço para mais duas pessoas - ela disse. Enquanto eles entravam na gruta, Buck ouviu vozes de umas 20 pessoas lá dentro.
- É o rabino? - alguém perguntou.
- Estou aqui - disse Tsion.
- Louvado seja Deus. Quando o Messias virá?
- Na verdade, eu esperava que Ele tivesse chegado cinco minutos atrás. Ou talvez seja melhor dizer que Ele devia estar me esperando.
- Quero acreditar que Ele está vindo para nos resgatar.
- Sim, desde que vocês estejam preparados - disse Tsion.
- Eu estou. Quero estar vivo quando Ele chegar.
- Eu também - disse Tsion. - Mas nós não escolhemos o melhor lugar para estar vivos, não?
- Que história é esta do Messias? - alguém resmungou.
- Faz séculos que estamos esperando que Ele venha nos resgatar.
Tsion começou a doutrinar aquelas pessoas o mais rápido que podia. Três homens aterrorizados e a jovem oraram para aceitar Jesus como o Messias, mas o cético não orou.
- Só vou acreditar - ele disse - quando Ele vier.
- Bem-aventurados aqueles que não viram e creram - disse Tsion.
O tiroteio cessou repentinamente. Buck espiou por trás da jovem. O que estava acontecendo? Será que o Messias havia retornado para salvá-los?
Os homens mais moços saíram correndo, gritando:
- Nós vencemos! Nós vencemos! Eles estão batendo em retirada! As portas estão livres!
- Esperem! É uma armadilha! Não acreditem nisto! Eles estão se reagrupando!
Os companheiros de Buck e Tsion se amontoaram, olhando ao redor, com as armas em punho.
- Não estou gostando disto - um deles disse. - Eles têm bombas que podem nos destruir. O que estão fazendo?
- Brincando conosco.
- Devíamos partir para a ofensiva! Abram as portas e ataquem! Vamos matá-los enquanto estão se retirando.
- Eles não estão se retirando. É uma armadilha. Eles querem que a gente abra as portas. Devemos nos reagrupar enquanto eles também estão se reagrupando. Vamos ficar preparados.
A calmaria também tomara conta de Petra, e Rayford recebeu uma ligação de Mac McCullum.
- Você e Razor poderiam abrir mão de minha presença por alguns instantes, George? - perguntou Rayford. - Mac quer que eu vá até lá para ver uma coisa.
Usando o veículo de tração nas quatro horas, Rayford levou meia hora para chegar lá. Mac estava estudando o inimigo através de um binóculo possante.
- Você sabia que eles estão nos vendo, Ray, da mesma forma que podemos vê-los? O que estão esperando?
Mac entregou o binóculo a Rayford e disse:
- Parece que eles conseguiram controlar a maioria dos cavalos. Deve ter havido uma enorme confusão lá. E eu sei, Ray, que nossas DEWs causaram a debandada. Mas por que eles estão andando em ziguezague? Não consigo entender.
Rayford analisou o inimigo a distância. Os cavalos estavam agitados por causa das queimaduras. Aparentemente, os cavaleiros não conseguiam controlar os animais.
- Isto me faz lembrar um versículo, Ray. Um que Tsion nos ensinou. Como era mesmo?
- Eu não me lembro. Quer perguntar a ele? Eu preciso mesmo saber como ele e Buck estão.
O silêncio era mais que sepulcral. Buck e Tsion aproximaram-se do muro perto da Porta de Herodes. Buck atendeu ao telefone e passou-o a Tsion.
- Sim, aqui também - disse Tsion. - Tenho um estranho pressentimento de que se trata de uma calmaria antes da tempestade. Cavalos? Sim. Em Zacarias 12.4 está escrito: "Naquele dia, diz o Senhor, ferirei de espanto a todos os cavalos e de loucura os que os montam; sobre a casa de Judá abrirei os olhos e ferirei de cegueira todos os cavalos dos povos." Saiba, Mac, que está acontecendo o mesmo aqui.
Assim que Tsion desligou o telefone, o povo quis saber com quem ele havia conversado. Ele lhes contou.
- Vamos verificar - disse um deles. - O rabino acredita que o Exército da Unidade está cego ou louco.
- Pode ser - disse Tsion. - É a única explicação que encontrei para o que está acontecendo.
Alguns jovens se apoiaram uns nos outros e começaram a subir. Dois chegaram ao topo do muro.
- Não estou vendo nada! Acho que eles se esconderam.
- Rabino! Queremos que o senhor continue a nos doutrinar.
Buck olhou para Tsion, que encolheu os ombros.
- Foi para isto que vim. Se eles querem ouvir, quero pregar.
Assim que ele começou a falar, os curiosos se aglomeraram novamente. E, enquanto observava e ouvia, Buck emocionou-se ao pensar no privilégio de estar ali naquele momento. A sensação era a de que ele veria Jesus a qualquer momento. E Chloe.
Ouvir o homem de Deus falar na cidade de Deus e no tempo de Deus - que privilégio indescritível. Assustado? Claro que ele estava. Querendo saber se Jesus viria realmente, conforme Ele prometeu? Sem sombra de dúvida. Buck não conseguia esperar. Ele não podia esperar.
Quando retornou para o lugar onde George se encontrava, Rayford não tinha idéias para apresentar.
- Não me pergunte - ele disse. - Se você quiser disparar as armas calibre 50, dispare.
- Eu sei que poderíamos matar cavalos e homens desta distância e tirar alguns veículos deles de circulação - disse George. - Mas sei também que eles abririam fogo contra nós. Não estou preocupado com a parte interna da cidade. Acho que estamos muito vulneráveis aqui fora no perímetro.
- De que adianta partir para a ofensiva quando sabemos que não podemos vencer?
- Concordo. Mas detesto ficar parado aqui, esperando as coisas acontecerem. Precisamos fazer alguma coisa.
- Dispare uma ou duas 50. Muita coisa vai acontecer.
Um dos jovens que estavam no muro interrompeu Tsion aos gritos.
- Eles estão segurando um megafone enorme. Talvez queiram negociar.
- Não queremos negociar com o demônio - disse Tsion, e o povo deu uma gargalhada.
- Talvez ele esteja propondo uma trégua!
- Uma trégua - disse Tsion - é digna do caráter do homem que se senta do outro lado da mesa.
- Atenção, povo de Jerusalém! Quem fala é seu supremo potentado!
- Uuuh! Uuuh! Nosso único potentado é o Deus de Israel!
- Silêncio! Ouçam o que ele tem a dizer!
- Por favor, cidadãos, ouçam. Eu venho em paz.
- Não! Você vem com armas!
- Ora, vamos raciocinar juntos!
- Ouçam! Silêncio! Prestem atenção ao que ele vai dizer!
- Eu vim oferecer perdão. Estou disposto a assumir um compromisso. Não desejo nenhum mal a vocês. Se estiverem dispostos a me servir e ser obedientes a mim, comerão os frutos bons da terra; mas se vocês se recusarem e se rebelarem, serão devorados pela espada. Eu me livrarei de meus adversários e me vingarei de meus inimigos. Estenderei minha mão contra vocês e os expurgarei completamente.
- Mas não precisa ser assim, cidadãos da Comunidade Global. Se abaixarem as armas e me acolherem em sua cidade, garanto-lhes paz e segurança.
- Este será o sinal de vocês para mim. Se depois de contar até três, ninguém disser nada durante 15 segundos, vou entender que vocês estão dispostos a atender aos meus pedidos. Um único tiro para o ar durante esse período será o sinal de que vocês se opõem a mim. Mas eu os advirto, metade de Jerusalém já está sitiada. A cidade inteira poderá ser destruída facilmente na próxima hora. A escolha é de vocês. Vou contar até três.
Antes que Carpathia dissesse o primeiro número, milhares de tiros foram disparados para o ar, inclusive pelas armas de Buck e Tsion.
A tentativa do inimigo de controlar os cavalos e cercar Petra não estava funcionando. Rayford postou-se na beira de um precipício e observou através do binóculo que um número cada vez maior de veículos da Unidade estava se preparando para o combate.
No horizonte, só se via poeira e fumaça, e a enorme quantidade de munições e equipamentos parecia uma volumosa massa agitada e negra, tomando conta de sua visão e escoando-se lentamente diante dele como se fosse a lava de um vulcão.
- Vou permitir que eles avancem somente até esse ponto - disse George. - Depois, voltaremos a atacar com as DEWs e as calibre 50.
- Parece que vamos impedir a chegada de uma onda gigantesca com tacos de beisebol - disse Rayford.
Quando os tiros cessaram em Jerusalém, o silêncio sinistro retornou. O Exército da Unidade Mundial Um não atacou imediatamente, mas Buck gostaria que isso tivesse acontecido. A tranqüilidade era inquietante.
Ele temia que o próximo som fosse o ronco de um trem cargueiro que as vítimas dos tornados sempre mencionam, só que dessa vez seria o prenúncio da chegada de uma imensidão de saqueadores que faria Jerusalém virar pó.
Mas se isso fosse necessário para prenunciar a chegada de Jesus, bem... que viesse.
O fato estranho era que o povo queria ouvir cada vez mais as palavras de Tsion. Buck ficou impressionado com a disposição do rabino.
- Não é tarde demais! - gritou Tsion. - Aceitem o Messias já! Arrependam-se e serão salvos!
Muitos fizeram isso.
Agora, até mesmo Sebastian parecia alarmado. O exército de cavalos, homens e armamentos que avançava em direção a Petra era grande demais. À medida que se espalhava, se separava e se ajuntava novamente, ele formava uma muralha, impedindo que se visse o horizonte, a areia do deserto, as pedras.
Parecia que uma nuvem de gafanhotos estava tapando a luz do sol. Nenhum ser humano teria imaginado a magnitude do exército do inimigo. Eles haviam conseguido reagrupar-se, vencer a loucura e a cegueira, livrar-se da estagnação. E continuavam avançando.
Eles se espalharam e contornaram a cidade inteira de Petra, preenchendo lentamente cada espaço até onde a vista podia alcançar. Embora as linhas de frente ainda estivessem cerca de um quilômetro e meio do perímetro, o imenso exército parecia não ter fim.
Era impossível enxergar onde terminavam aquelas colunas e mais colunas, formadas por milhões de homens, cavalos e equipamentos que continuavam a aproximar-se cada vez mais.
E quando eles se posicionaram nos lugares certos, simplesmente pararam e aguardaram. Ninguém entendeu por quê. Porém, mesmo quando estavam parados, não havia espaço algum entre eles, nenhuma abertura naquele exército sem fim.
- Aquilo, Rayford - disse Sebastian - é apenas uma parte do exército deles. Se disparássemos todos os projéteis de nossas armas e todos eles fossem fatais, não abriríamos espaço algum naquela fortaleza.
- O que você acha de aproximarmos deles a uma distância de uns 800 metros para ver se conseguimos fumar o cachimbo da paz com alguém?
- Você anda vendo TV demais, capitão.
- Falando sério, que tal dispararmos mais uma seqüência de feixes direcionados? Quem sabe conseguimos afugentá-los por algum tempo.
- Se eu achasse que eles cairiam como pedras de dominó, até poderia concordar. A verdade é que eles não têm espaço para recuar, porque colidiriam com as próprias tropas. Você acha que podemos pôr milhões para correr?
Rayford meneou a cabeça negativamente.
- Eu não me importo com o que poderia acontecer a eles. Talvez eles não estejam muito ansiosos por aproximar-se de nós.
- Mas, Ray, o número deles é grande demais.
Tsion ainda estava falando quando um som semelhante ao de uma bomba sacudiu a área, e o povo espalhou-se à procura de proteção.
Em instantes chegou a notícia de que um segundo aríete havia penetrado na Cidade Velha. Desta vez, o Exército da Unidade desistira de atacar as portas e destruíra o muro nordeste da Cidade Velha, mais ou menos no meio do caminho entre a Porta do Leão e o ângulo nordeste.
Centenas de judeus rebeldes correram em direção ao local. Para espanto de Buck, Tsion correu atrás deles, sem sequer argumentar. Buck não teve escolha a não ser acompanhá-los e correu atrás de Tsion no meio do tumulto.
Quando o alcançou, a batalha estava no auge, mas, surpreendentemente, os judeus pareciam ter adquirido o domínio mais uma vez. Eles estavam fazendo o exército recuar, e o combate corpo a corpo para tomar posse do aríete quase foi vencido pelos rebeldes novamente.
No momento em que eles estavam acossando o exército contra o muro, vários homens da linha de frente da Unidade viraram-se e abriram fogo com armas automáticas e super-potentes, um lançador de granadas e algo que, para Buck, parecia uma bazuca.
Ele se juntou ao grupo de rebeldes para contra-atacar, e a invasão foi brevemente dominada. Mas ele ficou horrorizado ao ver mais de cem israelenses mortos ou feridos a sua volta. Talvez ele próprio tivesse chegado perto demais do tiroteio.
O buraco no muro parecia ser seguro o suficiente naquele momento, portanto Buck virou-se para pegar Tsion e levá-lo de volta ao tanque de Betesda. O rabino, porém, estava ajoelhado desajeitadamente, com os pés embaixo do corpo. Sua Uzi havia escorregado do ombro e ficou dependurada. A tira estava perto de seu cotovelo.
Buck segurou o ombro da jaqueta de Tsion para ajudá-lo a levantar-se, mas quando o puxou, o rabino rolou sobre um dos joelhos e caiu no chão.
- Tsion! Levante-se! Precisamos ir!
Mas Tsion já não era o mesmo.
- Você está bem? - interpelou Buck, virando o rosto de Tsion de frente para ele.
- Acho que não, amigo.
- Você foi atingido?
- Receio que sim.
- Onde?
- Não tenho certeza.
- Você é capaz de movimentar-se?
- Não.
- Posso ajudá-lo?
- Por favor. Tente.
Buck não teve tempo de pensar em ser delicado. Pegou a arma de Tsion e prendeu-a no ombro esquerdo. Em seguida, posicionou-se atrás da cabeça do rabino e passou as duas mãos sob os braços dele.
Conseguiu levantá-lo e foi andando de costas, arrastando o amigo pelas ruas. Felizmente, o tiroteio havia cessado, pelo menos temporariamente.
Buck sentiu cãibras depois de arrastar Tsion por cerca de 200 metros, mas não queria parar enquanto eles não estivessem em segurança naquela pequena gruta no tanque de Betesda.
Continuou a olhar para trás tentando ver se o caminho estava livre, mas quando voltou a virar a cabeça, viu um espesso rastro de sangue deixado por Tsion.
Buck parou para descansar e verificar as condições de Tsion. Abriu a jaqueta do rabino e viu de onde o sangue jorrava. Se Tsion tivesse sido baleado no coração, já estaria morto. Mas perdera muito sangue, que escorria perto do esterno, pela barriga, sob a jaqueta, pelas pernas e pela rua.
Tsion estava pálido, e seus olhos teimavam em querer virar para trás. Buck aproximou-se e ouviu sua respiração fraca.
- Não me abandone, amigo - Buck disse.
- Deixe-me partir, Cameron. Encontre um abrigo. É triste demais morrer nas ruas de minha amada cidade.
- Você não vai morrer, Tsion. Vai viver para ver a vitória, está certo?
- Eu gostaria.
- Não basta querer! Coopere comigo!
Buck tirou a jaqueta e a camisa, enrolou a camisa e a enfiou no ferimento. O orifício era quase do tamanho da mão fechada de Buck.
- Preciso levá-lo até o abrigo - ele disse. - Você agüenta ser arrastado mais alguns metros?
- Não estou sentindo mais nada, Cameron. Vá sozinho. Por favor.
- Não vou deixá-lo aqui.
- Vamos, vamos. Não vou ficar aqui por muito tempo. Nós dois sabemos disto.
- Vou levá-lo ao abrigo.
- Não faça isto por mim.
- Estou fazendo por mim.
Buck sabia que de nada adiantaria. A camisa saltou para fora, deixando espirrar uma golfada de sangue. Tsion gemia. A vida dele parecia estar se esvaindo. Seus olhos estavam úmidos e sem brilho, e os lábios, azuis. Seu corpo começou a tremer.
Buck conseguiu levá-lo ao abrigo e procurou estancar o sangue novamente, mas Tsion fez um movimento fraco com as mãos em sua direção. Finalmente, conseguiu segurar uma das mãos de Buck e puxou-o para perto de si.
- Não faça mais nada. Por favor. É tarde demais.
- Eu não quero que você morra aqui, Tsion!
- Aproxime-se de mim - ele murmurou. - Preste atenção.
Agora a voz dele estava rouca, e as palavras eram sussurradas entre uma respiração entrecortada e outra.
- Eu posso repetir... as palavras de Paulo: "Quanto a mim... estou sendo já oferecido por libação... e o tempo da minha partida é chegado... Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé... Já agora... a coroa da justiça... me está guardada... a qual o Senhor... reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim... mas também a todos quantos amam a sua vinda" (2 Tm 4.6,7,8).
- Tsion, não! Não me abandone!
- Cameron... por causa de Jesus... minha esposa e filhos... para sempr...
Sebastian havia ordenado outra seqüência de disparos com as DEWs, e Rayford teve de admitir que foi bom demais ver a linha de frente do exército invasor recuar por causa da dor intensa que sentia. O efeito pôde ser visto a quilômetros de distância.
Razor deixara as armas calibre 50 preparadas para a eventualidade de um contra-ataque, o que não ocorreu. Aquilo só serviu para tornar a situação mais estranha ainda. A cidade de refúgio, que abrigava um milhão de pessoas, assemelhava-se a uma ervilha no meio de um oceano de inimigos que pareciam aguardar para esmagá-la.
O celular de Rayford soou, e no visor apareceu o nome de Buck.
- Pode falar.
Buck disse com voz rouca: - Ele se foi.
- Tsion?
- Atingido no peito. Não pude fazer nada.
- Você precisa voltar para cá, Buck. Vamos enviar alguém até aí.
- Ninguém conseguirá entrar aqui, e não posso abandonar Tsion.
- Buck! Pense um pouco. Ele está morto. Detesto isto, mas, conforme você mesmo disse, não havia mais nada a fazer. E, agora, muito menos.
- Ninguém pode entrar aqui, e não tenho como sair.
- Você está bem?
- Eu não imaginava que isto pudesse acontecer, francamente.
- Fique com o celular à mão. Não podemos cometer tolice alguma agora. Estamos muito perto do fim.
Buck cruzou os pés de Tsion na altura dos tornozelos. Fechou a jaqueta sobre o ferimento mortal e juntou as mãos de Tsion, entrelaçando seus dedos em cima do peito. Alisou o cabelo do rabino, fechou-lhe os olhos e fitou seu rosto pela última vez.
- Você quase conseguiu, amigo - ele disse.
Em seguida, cobriu o tronco e o rosto de Tsion com a própria jaqueta.
Empunhando as duas Uzis, ele se dirigiu para a Porta de Herodes, onde dois jovens rebeldes pareciam estar levando vantagem. Não era o lugar mais seguro, e ele não estava seguindo o conselho de Rayford para não cometer nenhuma tolice. Mas Buck não sabia o que fazer.
Mac estava ao telefone do lado de fora da cidade.
- Rayford, se eu pedir a Sebastian que empreste você para nós, será que ele vai concordar?
- Provavelmente ele vai ficar feliz por se ver livre de mim. Vou perguntar a ele.
- Para quê? - perguntou Sebastian.
- Mac! Sebastian quer saber para quê.
- Não quero dizer.
- Esta não é uma resposta que ele vai aceitar. Você sabe disto.
- Devo dizer a verdade a ele?
- A verdade nunca dói.
Mac sussurrou:
- Preciso conversar com alguém. Smitty está a uns 200 metros a oeste daqui, e Otto está me deixando maluco. Além do mais, falo sério, poderíamos fazer uso de nosso efetivo aqui. Por exemplo, eu poderia usar um veículo de tração nas quatro rodas para verificar minhas tropas, do leste e do oeste. Há muito mais tropas de Carpathia aí do que temos aqui?
- O número delas é infinito, Mac.
- Estou confiando que Jesus chegará logo. Mas, nesse meio-tempo, você poderia vir até aqui?
Chegar ao topo do muro da Cidade Velha, especialmente pela Porta de Herodes, não era tarefa fácil. Buck não se sentia velho, mas os dois rebeldes que chegaram antes dele eram, no mínimo, 15 anos mais jovens. Os dois fizeram um movimento afirmativo com a cabeça em sua direção e apontaram para um local ao longe.
As tropas do Exército da Unidade estavam se ajuntando na Estrada para Jericó, na Estrada para Suleiman e no jardim onde, segundo a tradição, localiza-se o túmulo de Jesus. Os soldados da infantaria enfileiravam-se até onde a vista de Buck podia alcançar - desde o Museu Rockefeller à sua direita, passando pela Igreja de Santo Estêvão, depois pelo jardim, chegando até Hel Ha Handasa.
Buck e os dois rebeldes estavam plenamente visíveis, mas o inimigo parecia satisfeito por permitir que eles permanecessem ali. Buck gostaria de saber se Cristo retornaria apenas quando o cerco à cidade estivesse no limite máximo ou se Ele surgiria a qualquer momento. Sua esperança era que o povo Remanescente em Petra só tomasse conhecimento da morte de Tsion depois do Glorioso Aparecimento.
Ele se preocupava com as tropas enfileiradas atrás do Museu Rockefeller. Pareciam mais tranqüilas, mais furtivas que as outras. E eram mais difíceis de ser vistas. Ele detectou movimento, mas não havia agitação. Seria necessário prestar atenção àquela área.
Buck olhou para cima. Ele esperava que, quando Jesus chegasse, uma nuvem cobriria o céu, o sol escureceria e a terra entraria em polvorosa.
Tudo aquilo poderia acontecer em um piscar de olhos, e quando Buck começou a concentrar-se no assunto, a atmosfera parecia prestes a estalar de tensão.
- Vá em frente - disse Sebastian a Rayford - e segure a mãozinha de Mac. Às vezes, ele parece uma pessoa rabugenta. Mas ele que espere um pouco. No caminho, faça uma visita a Chang. Para não ter de dar muitas voltas para chegar lá, você poderá subir e entrar, e depois descer e sair.
- Do que Chang está precisando?
- De um pouco de estímulo. Pela maneira com que aquele rapaz tem conversado comigo nos últimos dias, ficou claro que ele prefere estar em ação do lado de fora, e não dentro no centro de tecnologia. Diga que ele é muito importante para nós, essas coisas. É claro que isto é verdade, você sabe.
O caminho sugerido por Sebastian era mais acidentado do que Rayford esperava. Ele já se acostumara a dirigir o veículo de tração nas quatro rodas, mas o terreno era traiçoeiro. Precisou usar o breque e as marchas pesadas mais do que nunca e, por duas vezes, se viu no meio de formações rochosas impossíveis de atravessar. Foi necessário deixar no ponto morto, afastar e tentar um novo caminho.
Quando chegou ao centro de tecnologia, ele estava exausto e feliz por poder descansar um pouco.
Dentro da Cidade Velha, as conversas sussurradas e os planejamentos pareciam estar em pleno andamento.
Buck notou vários grupos, especialmente de jovens rebeldes, seguindo em direção aos muros. Ele gostou do lugar em que estava colocado e do que podia avistar dali, mas não tinha certeza se havia sido uma boa idéia deixar as linhas de frente no alto, circundando a volta inteira. E quanto mais ele observava, mais claro se tornava que alguém tomara aquela decisão.
Ainda havia uma boa tropa de combate no centro da cidade, mas era composta de homens mais velhos e algumas mulheres. Os principais combatentes, os adolescentes e os que tinham pouco mais de 20 anos estavam se posicionando no alto do muro.
Um pensamento ocupava o tempo todo a mente de Buck. Havia certa vulnerabilidade nisso, algo como se fosse tudo ou nada. Ele gostava da idéia de ter opções, mas não podia fazer nada. Não estava encarregado de defender o local inteiro.
Chang já se conformara com sua função, mas gostou do fato de Rayford ter encontrado tempo para passar por ali e de seus comentários. Naomi aproximou-se, e os três sentaram-se diante do monitor de Chang.
- Todos nós acreditamos que o Milênio começará logo - disse Rayford. - Talvez amanhã. Por isso, é importante que o povo daqui não saiba o que aconteceu com Tsion.
- Tsion?
- Ele foi baleado e morreu.
- Não!
Rayford contou as notícias que ouvira de Buck. Naomi cobriu o rosto com as mãos. Chang procurou consolá-la, mas estava muito emocionado também.
- Buck está bem? - ele perguntou.
- Até agora, sim, mas eles estavam em um local muito perigoso, onde Buck ainda se encontra.
- É possível tirá-lo de lá?
- Não vale a pena correr o risco. Ele é auto-suficiente. Da mesma forma que todos os demais, ele está trabalhando para manter os judeus vivos e, é claro, manter-se vivo também, até a chegada do evento que o mundo tem aguardado há milhares de anos.
Chang apontou para a tela, e eles assistiram ao mais recente noticiário da CNNCG.
- O supremo potentado da Comunidade Global, Nicolae J. Carpathia, reuniu o maior exército da história da humanidade. Conforme as tomadas aéreas mostram, o Exército da Unidade Mundial Um consiste de soldados, cavalaria, material circulante e munições de todas as partes do mundo. O exército de milhões e milhões de combatentes cobre as planícies de Israel desde a planície do Megido no norte até Bozra em Edom no sul e se estende de leste a oeste, ocupando toda a área que um dia foi conhecida como Terra Santa.
- As tropas de infantaria recebem apoio de todas as bases aéreas até Chipre, dos porta-aviões no mar Mediterrâneo e dos navios de transporte de tropas no Golfo de Suez e no Golfo de Acaba, na região do mar Vermelho.
- A esta hora, um terço dos exércitos de Carpathia já cercou Petra, em Edom, no sul da Jordânia, esconderijo dos judaístas rebeldes. O chefe do Serviço de Segurança e Inteligência da Comunidade Global, Suhail Akbar, diz que Tsion Ben-Judá está escondido naquele local. Embora o objetivo do Exército da Unidade seja destruir completamente a cidade, é importante que o líder seja capturado vivo.
- Os outros dois terços do Exército da Unidade estão preparados para tomar a cidade de Jerusalém. O potentado Carpathia informou que quase metade da cidade já foi ocupada e que não levará muito tempo para que a Cidade Velha seja dominada.
- No início do dia, o potentado concedeu uma entrevista à imprensa, montado em um cavalo, e disse que estava otimista quanto ao resultado.
O rosto de Carpathia apareceu na tela.
- Estamos confiantes de que estes sejam os dois últimos redutos rebeldes no mundo - ele disse -, e assim que eles forem completamente derrotados e nossos inimigos dispersados, realizaremos o sonho acalentado há tanto tempo: um mundo inteiro vivendo em paz e harmonia. Não existe lugar para rebeliões em uma verdadeira comunidade global. Se nosso governo não foi benevolente ou não deu prioridade aos cidadãos, talvez tenha sido por causa da dissensão. Todos nós, porém, sempre tivemos em mente criar uma utopia para a sociedade.
- É realmente lamentável que a situação tenha chegado a este ponto, que seja necessário um derramamento de sangue para atingirmos nossos objetivos. Mas faremos o que tiver de ser feito.
Alguém perguntou:
- O tamanho de seu exército global não parece um exagero?
- Excelente pergunta - disse Carpathia em voz macia.
O couro da sela rangeu quando ele se ajeitou em cima do cavalo.
- Nenhum esforço em prol da paz mundial é inútil. Surpreendentemente, as facções rebeldes provaram ser valentes. Decidimos, nos altos escalões, não dar nenhuma chance a eles desta vez. Usaremos tudo o que for necessário, tudo o que estiver a nosso alcance, para o sucesso desta empreitada.
- Será que existe alguma verdade nos rumores de que o senhor se armou até os dentes por achar que a oposição receberá um apoio inesperado, que talvez o Deus desses rebeldes intervenha em favor deles?
Carpathia soltou uma risadinha.
- Eu não acredito em contos de fadas, porém, mesmo recebendo ajuda sobrenatural, eles jamais venceriam nossa estrutura militar. Com nosso pessoal, mesmo desarmado, poderemos vencer qualquer guerra, porque temos condições de suprir continuamente nossos exércitos. E estamos equipados com a melhor e a mais moderna tecnologia.
- Por que não vencer esta guerra de uma vez? Qual o motivo da demora?
- Eu sou um homem de paz. Sempre acredito que a diplomacia e a negociação devem ter prioridade. A porta para este acerto de contas de maneira pacífica está sempre aberta. Eu esperava que os inimigos da paz fossem persuadidos pelo tamanho de nossos exércitos e estivessem dispostos a negociar conosco. Mas nossa paciência está se esgotando. Eles parecem decididamente desinteressados em qualquer tipo de solução razoável, e estamos preparados para usar todos os meios necessários. Portanto, agora é apenas uma questão de tempo.
Ao meio-dia, quando o sol estava a pino, Buck sentiu fome e desceu apressadamente do muro ao ver que os voluntários haviam trazido alimentos para os combatentes.
Depois de comer fruta, pão e queijo, ele subiu novamente no muro. Aparentemente, o exército também havia feito uma pausa para almoçar.
Buck gostaria que os rebeldes tivessem armas mais poderosas. Talvez um ataque de surpresa provocasse algum estrago nas fileiras do inimigo. De outro lado, um gigante adormecido era um gigante mais dócil, e talvez fosse melhor deixar as coisas como estavam.
Ele detestava a idéia de ficar aguardando o ataque, mas, com as linhas de frente posicionadas no alto do muro, pelo menos o ataque não seria de surpresa.
Rayford começou a descer pelo lado de trás de Petra. Para ele, descer estava sendo pior que subir. Por ter permanecido mais tempo do que planejara com Chang e Naomi, ele supôs que Mac devia estar aguardando sua chegada e que George devia estar pensando que ele já havia chegado.
O local em que ele se encontrava permitia uma boa visão do exército a cerca de um quilômetro e meio de distância. Estava esticando o braço para pegar seu celular e tranqüilizar Mac quando notou que algo estranho acontecera. As linhas de frente estavam recuando novamente, sinal de que George devia ter iniciado outra seqüência de disparos com as armas de energia direcionada.
Porém, desta vez, apesar do caos provocado pelas DEWs, o Exército da Unidade não se acovardou. Rayford ouviu os estrondos dos disparos em represália, como se fossem trovões prenunciando a chegada de uma tempestade que atingiria um círculo de centenas de quilômetros de diâmetro.
Seus conhecimentos sobre munições lhe diziam que os exércitos de Carpathia deviam estar um pouco mais longe, porque usavam canhões de morteiros e atiravam em ângulos altos. Ele calculou que as bombas cairiam perto do perímetro de Petra.
Ele estava enganado. Talvez os canhões fossem maiores do que os tradicionais de cano curto e sem estrias. As bombas passaram voando pelo perímetro e começaram a cair ao redor dele.
Quando uma delas explodiu à sua frente, Rayford quase foi lançado para fora do veículo. Agarrado ao volante com a mão livre, ele viu seu telefone ser atirado a uma distância de uns cem metros e cair no precipício rochoso.
O veículo estava sem controle. Rayford se deslocara do assento e estava suspenso no ar, apenas com as duas mãos agarradas ao veículo.
Quando ele voltou a sentar-se com força, o veículo desgovernou-se e rolou de lado. A única opção, agora, era continuar se equilibrando, mas, de repente, essa opção também deixou de existir.
Quando o veículo colidiu novamente com alguma coisa no caminho, as mãos de Rayford se soltaram do volante e ele foi atirado para fora. Enquanto rolava no terreno acidentado, ele viu o veículo despencar no vale depois de se espatifar completamente contra as rochas.
Rayford teve tempo de lembrar-se de não tentar impedir a própria queda. Protegeu os braços e as mãos e fez o possível para relaxar o corpo, lutando com todas as forças contra seu instinto natural de contrair os músculos.
O declive era acentuado demais, e Rayford estava despencando a uma velocidade tão grande que não conseguia controlar-se. O melhor que ele podia esperar naquele momento era cair em um lugar macio.
A explosão ensurdecedora de uma bomba a uns três metros à sua direita, forçou-o a rolar de lado. Ao bater a têmpora de encontro a uma pedra pontuda, Rayford ouviu um som de água corrente enquanto rolava em direção a um arbusto espinhoso. Por mais terríveis que fossem os espinhos, deviam ser mais suaves do que a pedra contra a qual ele colidira.
Finalmente, Rayford foi capaz de equilibrar o peso do corpo quando caiu de costas nos espinhos. Foi, então, que ele se deu conta do que significava aquele som de água corrente. A cada batida acelerada de seu coração, o sangue que jorrava da têmpora espirrava a uma distância de quase dois metros.
Ele apertou a palma da mão contra a cabeça e sentiu o jato de sangue. Apertou-a com mais força para ver se o estancava. Mas sabia que estava correndo um grande perigo - um perigo mortal.
Ninguém sabia exatamente onde ele se encontrava. Sem telefone e sem meio de transporte, ele nem sequer se deu ao trabalho de verificar seus ferimentos, porque eram insignificantes comparados ao orifício em sua cabeça.
Ele precisava conseguir ajuda - e rápido - ou morreria em questão de minutos. Os braços de Rayford apresentavam cortes profundos, e ele sentia dores lancinantes nos joelhos e em um dos tornozelos.
Quando esticou a mão livre para levantar a perna da calça, ele se arrependeu de ter feito isso. Havia um pedaço de pele dependurado em seu tornozelo e, aparentemente, uma parte do osso havia sido arrancada.
Será que ele conseguiria andar? Deveria tentar? Não seria possível rastejar, porque a distância era muito grande. Ele aguardou que sua pulsação se acalmasse para readquirir o controle emocional.
Mac e seu pessoal estavam a mais de um quilômetro e meio de distância, e ele não podia vê-los. Não havia meios de retornar. Ele virou o corpo e ficou de cócoras, segurando o ferimento com uma das mãos, para não sangrar até morrer.
Rayford quis ficar em pé.
Conseguiu apoiar-se somente em uma das pernas, justamente aquela cujo tornozelo estava em frangalhos.
Provavelmente, havia fraturado o osso da canela da outra. Ele quis saltar, mas o declive era muito acentuado e o forçou a inclinar o corpo para a frente.
Novamente descontrolado, ele tentava pular com uma perna só para não cair e ganhar velocidade a cada salto. Sem tirar a mão da têmpora, ele tomava cuidado para não ir de encontro a outra pedra ou coisa parecida.
Senhor, este seria o momento mais apropriado para retornares.
Chang pressentiu que algo estava para acontecer. Ele foi bem-sucedido quando interceptou os sinais dos satélites geo-sincrônicos que auxiliavam as comunicações entre os milhões de tropas, que agora estavam prestes a se movimentar. Os homens que ocupavam postos de comando precisavam saber disto.
Ele ligou para George.
- Aguarde um avanço das tropas daqui a 60 segundos.
- Já caíram algumas bombas aqui - gritou George. - Você acredita que haverá mais?
- Sim, eles estão se aproximando.
- Rayford passou por aí?
- Sim, e faz pouco tempo que saiu. Está indo falar com Mac.
- Obrigado. Ligue para Mac, por favor. Vou informar os outros.
Chang ligou para Mac e informou-o também sobre o avanço das tropas.
- Ei - disse Mac -, não consigo falar com Sebastian, e Ray já devia ter chegado aqui.
- Ele está a caminho.
Em seguida, Chang ligou para Buck.
- Aguarde um avan...
Mas a ligação foi interrompida. Ele discou novamente. Nada.
- Eles estão vindo! Eles estão vindo!
Assim que seu celular soou, Buck ouviu um jovem rebelde gritando e avistou um objeto de fogo passando por cima do Museu Rockefeller e vindo em sua direção.
Ao ver as tropas do Exército da Unidade movimentando-se para todos os lados, ele pegou o celular e o segurou de encontro ao ouvido no exato momento em que a bomba atingiu o muro bem à sua frente e espatifou-se no chão, do lado de fora.
Buck reconheceu a voz de Chang pouco antes de a bomba abrir um rombo no muro. Pedras e estilhaços espirraram com força por todo o seu lado direito, destruíram seu celular e derrubaram uma das Uzis. Ele sentiu que algo terrível acontecera em seu quadril e no pescoço no momento em que perdeu o equilíbrio.
Um dos jovens perto dele foi atirado para o ar e estatelou-se no chão. O muro começou a desabar no momento em que Buck estava determinado a subir novamente. Ele passou a mão no pescoço e sentiu uma golfada de sangue. Mesmo não sendo médico, ele sabia que algo havia cortado sua artéria carótida. O problema era grave.
Enquanto o muro desmoronava, ele saltou com a cabeça erguida para permanecer na posição vertical, mas precisava manter uma das mãos no pescoço. A outra Uzi escorregou por seu braço esquerdo, e quando ele quis fincá-la em algum lugar para apoiar-se nela, a arma caiu para o outro lado. Ele estava sem armas, sem forças para permanecer em pé e mortalmente ferido.
E o inimigo estava se aproximando.
Rayford conseguiu evitar a queda com a mão que estava livre, sem atrever-se a tirar a outra da têmpora. Seu queixo sofreu o mesmo impacto que a parte inferior da palma da mão quando ele escorregou a um ângulo de cerca de 45°.
Não havia mais condições de andar.
Dali em diante, ele só conseguiria rastejar e tentar permanecer vivo.
Os pés de Buck prenderam-se na fenda de uma rocha em estado precário, e a parte superior de seu corpo tombou para a frente.
Ele ficou dependurado de cabeça para baixo no muro em ruínas acima da Cidade Velha. Seu quadril fraturado também sangrava, e o sangue escorria até sua cabeça.
Mesmo dentro do centro de tecnologia de uma cidade feita de pedra, Chang sentia a vibração dos milhões de soldados avançando sobre Petra.
Ele clicava aqui e ali, apertava botões e tentava ligar para outras pessoas. Por quanto tempo Deus permitiria que isto continuasse antes de enviar o Rei vencedor?
Lutando para não ficar inconsciente, ele tentava mover-se cuidadosamente, com uma das mãos à frente, a outra ocupada. Cada centímetro tornava o ângulo mais inclinado, o caminho mais instável.
A cada batida do coração, a cada golfada de sangue, a cada dor lancinante, ele se perguntava de que adiantaria tudo aquilo. Qual a importância de permanecer vivo? Para quê? Para quem?
Vem, Senhor Jesus.
A tontura aumentava, a dor era insuportável. Aparentemente, um dos pulmões estava perfurado. A respiração tornou-se ruidosa, agonizante, descompassada.
O primeiro sinal do fim foram as batidas descontroladas de seu coração. Rápidas, falhando, depois trêmulas. Perda exagerada de sangue. Pouca irrigação no cérebro. Insuficiência de oxigênio. A sonolência sobrepujou o medo. A inconsciência seria um grande alívio.
E, assim, ele se deixou levar. O pulmão estava prestes a estourar. O coração bateu descompassado e parou. O sangue que pulsava tornou-se uma poça.
Ele não via nada, mesmo estando de olhos arregalados.
- Senhor, por favor.
Ele ouviu o inimigo aproximando-se. Sentiu a aproximação. Mas, de repente, não sentiu mais nada. Sem sangue para correr nas veias, sem ar para respirar, ele perdeu as forças e morreu.
Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento, e os poderes dos céus serão abalados.
Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e muita glória.
Mateus 24.29,30
Tim LaHaye & Jerry B. Jenkins
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