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ARQUIVO CONFIDENCIAL 10255 Marcia Ribeiro
ARQUIVO CONFIDENCIAL 10255 Marcia Ribeiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
27 de dezembro; 21h21min.
A chuva caía insistentemente no vidro da janela, e a moça de verruga acentuada na altura do lábio esquerdo, olhos verdes abertos e brilhantes, e um cabelo loiro despontando na boina de feltro azul marinho, ia aos poucos se entediando.
Ela suspirou profundamente, trocou o pé que apoiava o corpo esbelto, e limpou o embaçado que provocou pela respiração próxima, tentando mais uma vez mudar a posição de apoio. Mas nada mudava o quadro, chovia insistentemente.
— Aline?! — gritou uma voz estridente por detrás da porta de madeira maciça da biblioteca, onde a moça estava parada a ver a chuva.
— Oui? Je suis et la bibliothèque!!! — gritou Aline Dubois em resposta.
— Puxa! — e June Sulgween parou para respirar após ter corrido feito uma gazela. — Estou lhe procurando a mais de meia hora pela École inteira, e não lhe encontrava de jeito nenhum — falou a agitar os braços, abrindo e fechando a enorme porta de madeira maciça da biblioteca.
Os braços de June eram pequenos e atarracados pela excessiva gordura que traziam, e as bochechas avermelharam mais ainda pela corrida, pela emoção.
Seus olhos castanhos e pequenos também se apertaram, June havia desempenhado um grande esforço para chegar rápido ali.
— Pourquois? — perguntou Aline quase sem vontade de fazê-lo, sem se quer sair do lugar, irritada com o temporal.
— A diretora Cybele está lhe procurando. Sabe o que ela quer com você a essa hora da noite? — perguntou a amiga curiosa.
— Je ne sais pas.
— Mas ela anda tão insistente.
— “Insistant”?
— Sim. Insistente. Você está bem?
— Je ne sais pas.
— Não fala comigo em francês, Aline.
— Ãh? C’est aussi loin! — e foi só o que Aline respondeu ao sair da biblioteca.
— “É tão distante!”? — June não acreditou no que ouviu, ficando a observá-la ir.
Aline Dubois, a bela Aline de nariz adunco, queixo proeminente, cabelos cor de fogo. A Aline considerada pelas outras meninas da École Hoteliere Dubois uma metida, a Aline que só se preocupava com a beleza e a vaidade, e enfim, a Aline que ultimamente relaxava das unhas, dos cabelos, e principalmente das roupas que agora as repetia sem censura, às vezes dormindo e acordando com a mesma.
June também estava preocupada com a amiga, isso não era de seu normal. Acreditava que tinha haver com aquele romance, só podia ter, porque homens era uma complicação na vida das Dubois.
E Aline era a única herdeira da quase falida École Hoteliere Dubois. Escola milenar, que um dia já fora um internato, uma refinada e exclusiva escola de etiquetas somente para meninas como ela, algumas iguais, e outras bem diferentes, que sonhavam em se tornar esposas de reis, embaixadores, políticos da alta cúpula.
“Noël passou como todos. Espero que o Nouvel An seja diferente”; pensava Aline enquanto atravessava todos os corredores, ainda com resquícios de obras, em direção à sala da diretoria.
Órfã de pai e mãe, falecidos num desastre enquanto ainda pequena, Aline se viu sem alternativas a não ser aceitar a propostas dos advogados de Cybele Dubois, e trocar a École Féminine Dubois pela École Hoteliere Dubois.
Por questões financeiras, a escola de hotelaria aceitaria alunos de fora de sua convivência habitual, como também do sexo masculino, o que para Aline ia ser uma benção. Cansava-lhe ver só rostos femininos; rostos emprestados era bem verdade. Rostos emprestados, corpos emprestados, lugares emprestados.
Tudo ali era falso, plasmado.
Aline voltou a pensar em tudo, e tudo ao seu redor se modificou; paredes giraram trocando de lugar, assumindo outra idade, outra época.
Em meio a espíritos que iam e vinham, corpos sem alma dos que ali já passaram, atravessando pisos, paredes, séculos, e os cabelos loiros de Aline, despontando na boina azul marinho se substituíram por serpentes, milhares delas, com a pupila de seus olhos verdes se tornando elíptica.
Os passos dela também ficaram mais decisivos, mais ágeis e escorregadios, e todo seu corpo tomou-se de escamas douradas, verdadeiras placas rígidas que se movimentavam no rastejar do corpo pelo piso que envelhecia, até alcançar o corredor agora iluminado por velas, e parar à frente da grande porta de frontões filetados a ouro.
— Entre! — alguém falou de lá de dentro. Aline entrou e fechou a porta fazendo todo o seu corpo de górgona mostrar-se a Cybele. — Oh! Mon Dieu, Aline! Volte a ser normal!
— E esse por acaso não é o nosso normal? — sua voz tornou-se cavernosa.
— Chega Aline! — Cybele olhou a coisa monstruosa à sua frente. — Sua rebeldia me enerva!
As maneiras religiosas e pudicas de sua tia também a enervavam. Maneiras também emprestada, era bem verdade. Já que ambas não eram da Terra, daquela terra.
— Très bien! Très bien! — e Aline voltou a ter pele apessegada, cabelos loiros, nariz adunco, humano, com uma verruga acentuada na altura do lábio esquerdo, de olhos verdes, abertos. — Não vai me dizer que me chamou outra vez para contar que um de seus ajudantes ‘sumiu’, vai titia?
— Sabe por que eles somem, não sabe? Então sem deboches, mon’amour... — Cybele viu Aline sentar-se pesada, desleixada, e só virou os olhos.
Sua sobrinha já não era tão apessoada como antes.
Logo ela, um primor de mulher em matéria de moda, de classe, com seu cabelo loiro platinado, sempre preso num coque rosquinha que até não caía bem na sua idade, na que tentava aparentar.
Cybele Dubois era uma mulher madura com nariz perfilado, boca vermelha, sempre emplastada num vermelho cremoso, nada brilhante, chique, porém.
Chique como sua sala, com paredes revestidas de papeis floridos e luzes de velas em castiçais de cristal dependurados nela, iluminando estantes lotadas de livros, de muitas línguas.
— Très bien! Para que me chamou afinal?
— A nave chega amanhã!
— Amanhã? — Aline levantou-se num rompante fazendo os cabelos loiros balançarem no movimento. — Mas ela... Ela...
— Ela mudou de ideia. Ela vem mudando de ideia, Aline. E precisamos alertar os outros, os outros de nós para tais mudanças.
Mas algo diferente alertou foi a própria Aline.
— Acha que a Irmandade vai tentar convencê-la a procriar? É isso?
— Aqueles desgraçados. Eles não saem de lá um minuto. Oh! Mon Dieu! Já a avisei sobre o fato, mas ela está irredutível. Até parece que a ideia estapafúrdia de proliferar nesse planeta maldito é algo viável.
— Mas já morreram tantos tentando agradá-la, e tantos e tantos outros que vieram dos mais profundos espaços, e tantos e mais tantos corpos foram resgatados, e tantas naves vieram e os levaram... — e parou de falar vendo a seriedade da tia. — Pourquoi?
— Je ne sais pas pourquoi. Não sei o por quê? Talvez porque Billy não tenha conseguido convencê-la de algo.
— Fala como se Billy não fosse nada. Billy era especial, tia Cybele! — exclamou com força.
— Especial para quem, mon’amour?
Agora Aline teve medo. Fechou toda sua comunicação telepática com medo que a tia descobrisse de seu envolvimento com Billy no passado. E teve mais medo ainda que a tia soubesse que ela própria, andava tendo envolvimentos com outros terráqueos no presente.
— Acha que ela então... Que então aquela polícia secreta, vai então... Que então... — Aline tentava perguntar, mas foi definitivamente interrompida.
— Só acho então, mon’amour, que você devia tomar cuidado é com os Luciedes. Se um deles desconfiar de que nós os aceitamos aqui porque ela... — e sua frase também se perdeu no ar.
— Já disse que não vão saber.
— Sabe que eles podem saber Aline. Que fora das paredes da École que nos protegem, eles podem saber.
Aline passou a mão pelo pescoço como quem teme algo.
— Acha que vão nos matar para saber nossos segredos?
— Não tenho duvidas disso. ‘Quando’ é o que me pergunto.
— Mas então nunca mais poderemos sair daqui? — apavorou-se com suas escapadas.
— Não seja exagerada! Sabe que temos a capacidade de fechar nossas comunicações telepáticas.
Aline sabia, fazia aquilo o tempo todo com os humanos terráqueos.
— Mas se ela conseguir, digo, se ela o encontrar... Nós estaremos enfim livres?
Cybele olhou para um lado e muitas fotos na estante a fizeram paralisar.
Depois como que encanto, se ergueu.
— Oh! Mon Dieu! A campainha tocou novamente. Vá receber os novos funcionários.
Aline estava tão desacorçoada com tudo que lhe acontecia na vida, que se levantou mecanicamente.
— Espero que o Nouvel An seja realmente diferente... — e se foi pelos corredores a falar sozinha sabendo que uma decisão precisava ser tomada.
A perpetuação de sua raça dependia daquilo, do que o humano terráqueo Otto Miller ia ou não colocar no arquivo confidencial de número 10-2-5-5 da Poliu, sobre a Sentinela do lago.

 

 

 


 

 

 


1
Aeroporto de Genève-Cointrin, Genebra; Cantão de Genebra, Suíça.
46° 14’ 11” N e 6° 6’ 26” E.
05 de janeiro; 07h05min.
A viagem havia sido uma das mais atribuladas que o jovem empresário brasileiro Sean Queise já fizera. Nuvens carregadas fizeram à desestabilização do avião que planava pouco acima delas; deu graças quando aterrissou vivo, ainda preso à máscara de oxigênio.
Houve momentos em que a comissária não permitiu que se levantassem, e a xícara de café que Sean pedira já se encontrava na sua quarta edição, quando chacoalhou e atingiu sua calça de brim branca.
“Droga!”, esbravejou a se ver sujo pelo espelho do luxuoso saguão, em meio ao aeroporto lotado.
Sean Queise era um jovem de uma beleza realmente bela. Olhos azuis, cabelos loiros que vez ou outra escondia as sobrancelhas levemente arqueadas. Corpo malhado, sorriso perfeito, Sean era disputado no estreito mundo das finanças.
Finanças essas, sempre apertadas em meio a muitos investimentos e busca por inovações.
Após inusitada aposentadoria de seu pai Fernando Queise, Sean assumira aos dezoito anos o controle da Computer Co., uma grande empresa de computadores e mainframes, que alugava seus bancos de dados há muitas empresas pelo mundo.
Agora com 21 anos, Sean tomava sozinho, atitudes arriscadas como o outsourcing de algumas etapas da construção dos mainframes; atitude essa, que vinha ao longo dos anos causando desconforto na mais poderosa e secreta corporação de inteligência, a Polícia Intercontinental Unida, Poliu, que se utilizava dos mainframes da Computer Co..
Temendo que Sean Queise tivesse acesso privilegiado de alguma forma sobre arquivos lá armazenados, a Poliu temia mais que tudo, a descoberta de um arquivo dito confidencial, sobre a vinda de uma poderosa alienígena ao Planeta Terra no passado, num longínquo passado de exatos 10.255 anos.
Mas tal arquivo confidencial também computava a vinda de outros alienígenas, de outros quadrantes, com outros interesses.
Isso provocava o desespero em Mr. Trevellis, força comandante dentro da corporação de inteligência chamada Poliu, e que forçava Fernando Queise, pai de Sean Queise, o proibir de ter acesso a tudo que lhe pertencia, o que também era desesperante para Sean, que sabia que existiam tais arquivos confidenciais, que existiam provas, que elas estavam guardadas em seus mainframes.
Sabia, porém que nem toda sua inteligência e dons para o hackerismo conseguiriam provar que a Poliu era um governo oculto, mancomunado com alienígenas nada benévolos, se seu pai, talvez os dois pais, estivessem de acordo com aquela proibição.
Precavidos, sempre, a Poliu e o próprio Mr. Trevellis lançavam na mídia, em fragmentos, informações que geravam por vezes caos, desconfianças, e enfim, a paródia, o descaso, fazendo o povo desacreditar o trabalho de ufólogos sérios, competentes, empenhados na causa.
Também passou a ser para Sean seu maior intuito, destruir a Poliu naqueles anos que se seguiram ao suicídio de sua noiva Sandy Monroe, que após incessante perseguição da corporação alegando roubo de informações de Spartacus, satélite de observação que os cientistas da Computer Co. projetaram, deu cabo a sua vida. Sean nunca se recuperara e os anos não conseguiam aplacar a raiva, a frustração, o arrependimento, a vingança, a única que ainda o movia.
E o arrependimento talvez fosse a força maior, por saber que todos seus dons paranormais de pré-cognição não previram, que não se adiantaram à dor da perda, a ceifação da vida da jovem e bela Sandy.
Vida dele também ceifada, interrompida na sua juventude, na dor que se propagou pela culpa, pelo sangue que ainda escorria de suas mãos, pela desconfiança de que ele próprio escolhera aquilo, sofrer nas mãos da Poliu.
Porque sem a chance de dizer-lhe que a amava, que acreditava nela, que nada mais importava a não ser a felicidade deles, Sandy ainda sofria, perdida entre a luz e a escuridão.
— Ahhh... — o som de um tiro o trouxe ao burburinho do aeroporto internacional da Suíça.
Sean engoliu a seco aquilo tudo, ao eterno retorno ao passado, à dor.
“Droga!”, pensou bravo.
E sua vida era feita de retornos, de idas e vindas ao passado, em busca de respostas. Tudo gerado por suas desconfianças, a mãe dos pensamentos humanos.
Porque Sean sabia que não era um Queise, que Fernando Queise não tinha os dons paranormais da família Roldman, que Fernando não tinha os ditos dons metapsíquicos que Sean Queise manifestava desde a tenra idade. Dos objetos movidos, sumidos e reencontrados, das vozes ouvidas, das imagens que ninguém mais via. Sean sabia, era filho e objeto de estudo da Poliu, porque era filho de Oscar Roldman.
Tudo reunido, anotado em muitos arquivos confidenciais.
— Taxi! — Sean entrou e logo seguiu ao seu destino, Cidade de Coppet, uma comuna suíça localizada no Cantão de Vaud, no Distrito de Nyon.
A Suíça estava fria naquela manhã. Sean encostou a cabeça no banco do taxi e ficou a pensar como gostaria que a sócia Kelly Garcia estivesse ali.
Kelly que sempre era presente, que sempre gerenciava seus negócios, sua vida, seus pensamentos; ela que não podia amá-lo.
“Ou sou eu quem não pode amá-la?”
Porque não era a diferença de idade, catorze anos, o que o brecava. No fundo Sean Queise era um jovem, com medo do que se tornava. Fechara-se aos amigos, ao amor platônico da sócia Kelly, às repostas desse amor que também sentia que não queria sentir, se entregando ao trabalho, aos seus computadores, e as suas fábricas espalhadas em mais de quinze países.
Trabalho como o que fazia naquela escura manhã da Suíça, um encontro de negócios com a diretoria comercial e financeira da Hautch Propieté, ‘Aliment du Démain’, para a construção de banco de dados de suas novas fábricas de alimentos, que a Hautch Propieté construía mundo afora.
Sean se utilizava da chance de terceirizar, tentando se globalizar, se expandir mundialmente, fazer a Computer Co. despontar como a melhor do ramo de banco de dados; provar que era um Queise apesar de tudo.
Hautch Propieté, Lago Léman; Coppet, Cantão de Vaud.
46° 18’ 56.2” N e 6° 9’ 1” E.
05 de janeiro; 10h45min.
A Suíça era um país montanhoso, sem saída para o mar. Com neve abundante, um frio prometia ser rigoroso naquele começo de ano.
Sean observou o edifício dos Braushin atrás dele, um grande complexo com mais de 70.000 m2 de área construída, distribuída em três andares do edifício administrativo, e um grande galpão nos fundos. Sediada na cidade de Coppet, situada à margem direita do Lago Léman, o Lago Léman.
E foi para o lago que ele se dirigiu.
— Eu gostaria de ver melhor essa beleza — seus pés estavam tão próximos à margem, que Sean pôde sentir a umidade da grama por debaixo da neve flocada.
— Acredite Monsieur Queise, é uma paisagem belíssima — foi o que falou Ernest G. Fuiü, seu guia pela Suíça, ao apontar para o lago escondido pelo fog. — O Lago Léman é o nome dado à parte sul do lago. O primeiro nome gravado foi Lacus Lemannus, datado do tempo do Império Romano; do grego clássico Limanos que significa Lago do porto. Estamos no Cantão de Vaud, o terceiro maior dos cantões suíços. Ao longo dos lagos, Vaud foi habitado em épocas pré-históricas. Mais tarde, as tribos celtas habitaram a área.
— A tribo foi derrotada por César em 58 a.C., e, como consequência, os romanos se estabeleceram na área.
— Exato Monsieur… — Ernest parecia ter se animado. — Os grandes centros populacionais do Cantão de Vaud são: Lausanne, Montreux, Vevey, e Yverdon-les-Bains. A região em torno de Nyon é muitas vezes considerada parte da aglomeração de Genebra, e todos estes ficam aqui, no Lago Léman, ou Lac Léman. E claro, exceto para Yverdon, que fica no Lago Neuchâtel — e olhou Sean lhe olhando. — Ah! Acho que me animei Monsieur.
Sean também achava aquilo.
— O que é aquele complexo de telhados vermelhos do outro lado do lago? — apontou para uma grande construção ao longe, tão escondida pelo fog que só se via seu telhado.
— A residência dos Braushin. Se pudesse ver melhor, veria que é uma belíssima obra da arquitetura. Fica na maior profundidade do lago, entre Évian-les-Bains e Lausanne, capital do cantão de Vaud.
Sean virou-se para olhar Ernest e por segundos ele estava tão nublado quanto o redor.
Ernest G. Fuiü era tido como uma pessoa estranha. Com poucos amigos, franzino e de pele muito branca, cabelos sempre banhados num gel melado, óculos de lentes grossas, e uma maneira nada correta de falar dos outros. Contudo, Ernest trabalhava para a Computer Co. da Alemanha com excelente gestão de qualidade. Havia sido recomendado pessoalmente por Renata Antunes, sua secretária trazida da Alemanha, para ser sua “first” no Brasil.
Renata assumira o cargo de secretária que antes fora de Kelly Garcia, agora sócia dele na Computer Co..
“Kelly!” ficou em pensamento.
— Como os Braushin conseguiram permissão para construir essa fábrica tão próximo ao Lago Léman? Sistemas de esgotos e outros? — Sean voltou a olhar o lago.
— A Hautch Propieté é uma das fábricas modelo da Suíça. Tudo está sob normas rígidas de controle ambiental. Não se preocupe!
— Entendo! Não... Não me preocupo... — Sean suspirou cansado alertando o funcionário ao lado.
Ernest até estava naquele momento, um pouco mais calmo em relação ao patrão, tido também como uma pessoa difícil, arrogante em se tratando de negócios, e gélido em seus relacionamentos.
Tão frio como o entorno.
Sean esfregou uma mão na outra.
— Perdão por isso Monsieur Queise. O frio está realmente cortante. A umidade relativa do ar está em 86%, com 2 horas de Sol por dia, precipitação atmosférica de 48% e 12 dias de chuva no mês de janeiro — sorriu amigavelmente.
— Bem que Renata falou o quanto eficiente você era — sorriu de volta.
Eram ambos, duas figuras para lá de diferentes.
O tempo passava, e não passava. Sean começava a cansar-se de ter de esperar a reunião, e Ernest voltava a falar, agora de um terceiro funcionário da Computer Co. da Alemanha.
— E então aquele cara nem sabia fechar um contrato e tal; que a meu ver não deveria exercer aquele cargo...
Sean Queise começava a se irritar com aquilo. Não gostava de saber como a Computer Co. funcionava, se ela funcionava tão bem, se Kelly Garcia funcionava tão bem.
De cima de sua altura e bíceps bem construídos, Sean tinha além da beleza, uma inteligência acima da média, desligada de assuntos administrativos, era verdade, mas totalmente voltada para um mundo underground, um submundo construído virtualmente na Rede Internet. E um mundo onde por horas vigiava toda e qualquer coisa que pudesse destruir a Poliu, a ‘secreta polícia’ Poliu, a única coisa que movia sua vida até então.
Uma vida de suposições, buscas, investigações de teorias de conspiração, de arquivos confidenciais.
Mas Sean Queise também desconfiava que a Poliu investigava sua gestão, seus contratos, como aquele que fechava na Suíça; um contrato que vozes pediam para ele não fechar.
Sean chacoalhou a cabeça e cortou a fala de Ernest.
— Você não soube mais nada sobre esse contrato, Ernest?
Ele parou de falar do quarto funcionário e olhou-o.
— Não Monsieur! Apenas o que lhe comuniquei; que a Hautch Propieté havia escolhido a Computer Co. por causa de sua posição privilegiada nos mercados europeus, por sua balança comercial estar sempre em superávit, e porque Monsieur possui filial em todos os países onde a Hautch Propieté está construindo as suas filiais.
— Eles estão construindo onde tenho filiais? Em todos os países?
— Sim! Monsieur Queise globaliza e isso os interessa.
— Ah... — Sean tinha certeza que havia muito mais.
Como os hoax que inundavam o mercado corporativo alegando que Sean Queise era um moleque irresponsável, um hacker, um cracker, um phreacker, um warez, talvez um Black Hat; um ‘Chapéu Preto’ na linguagem underground, sobre aqueles que não seguem a ética hacker.
“Droga!”, explodiu.
Porque Sean estava naquele momento, pensando que fora mesmo um milagre, a Hautch Propieté ter aceitado seus argumentos de que não era nada daquilo, quando um som abafado vindo de longe chegou até eles; um grupo de pessoas que começava a se formar em suas retinas.
— Quem são aqueles? — Sean apontou para um círculo de pessoas que pareciam estarem ajoelhados, rodeados por sua vez de pessoas com câmeras postadas em tripés, iluminação artificial, e um megafone pedindo que se mantivessem em fila porque alguém ia falar.
Ernest pareceu calar-se por segundos, para então cair em gargalhada tão brusca que Sean virou rapidamente para ele.
— Um bando de doidos, Monsieur Queise — disparou a fazer um movimento giratório com o dedo.
— “Doidos”? — Sean achou graça na seriedade do funcionário.
— Sim, eles fazem essas reuniões religiosas, ou sei lá o que fazem, para venerar, acredite alienígenas.
Sean ergueu o sobrolho, totalmente alerta.
— “Alienígenas”?
— Sim Monsieur Queise — riu Ernest quando Sean o olhou. E Ernest não conseguiu decifrar aquele olhar. — Estou falando sério! Juro!
— Claro! — Sean voltou a olhar o círculo de pessoas logo adiante.
Ernest era um fofoqueiro muito conhecido na Computer Co. para ser levado a sério.
E ele também sentiu aquilo na careta de Sean.
— É sério, Monsieur Queise. Primeiro vieram essas caras, e depois vieram os ufólogos, acho que mais para estudar essas caras do que os alienígenas — riu Ernest. — Nunca ninguém viu nada.
— Nunca ninguém vê nada, Ernest.
— É... — ficou na duvida se aquilo fora ou não uma afirmação. — E já não chegava um serial killer agindo aqui no Lago Léman, ainda temos os alienígenas que ninguém vê — voltou a rir.
— Pluralidade dos Mundos.
E Ernest parou.
— Como é que é Monsieur?
— Camille Flammarion, La pluralité des mondes habités; uma discussão do ponto de vista da Astronomia e da Fisiologia, enquanto era astrônomo do Observatório Imperial de Paris em 1863 — e Sean se virou para Ernest que esperava entender aquilo. — Amigo de Allan Kardec.
— Ahhh… — e pareceu não querer deixar por aquilo. — Pluralidade como?
— Camille dizia que o filósofo Pitágoras, ensinava em público a imobilidade da Terra e o movimento dos astros à sua volta, como um centro único da Criação, ao passo que declarava aos adeptos adiantados de sua doutrina a crença no movimento da Terra, como planeta, e na pluralidade dos mundos. Mais tarde Demócrito, Heráclito e Metrodoro de Chio, os mais ilustres de seus discípulos, propagaram do alto da cátedra a opinião de seu mestre, que se tornou a de todos os pitagóricos e da maior parte dos filósofos gregos. Também Filolaus, Nicetas e Heráclito foram dos mais ardentes defensores desta crença; este último chegou mesmo a pretender que cada estrela é um mundo que, como o nosso, tem uma terra, uma atmosfera e uma imensa extensão de matéria eterizada.
— Ahhh… Entendo! — ele viu Sean achar que não. — Mas o caos é ainda pior porque a mídia escreve que os tais sequestros, assassinatos sei lá mais o quê, são causados por eles... — Ernest apontou para o céu pluralizado. —, pelos seriais killers alienígenas — gargalhou com gosto outra vez.
Sean o olhou agora já não conseguindo disfarçar o interesse.
— Sequestros por alienígenas?
— Assassinatos por alienígenas, Monsieur Queise — corrigiu-o.
— É o que a polícia diz?
— Ih... — voltou a rir. — A polícia aqui já nem aparece mais. Só recolhem os corpos.
Sean voltou a olhar para o longe.
— E eles?
— Bem... Eles anunciam em público e em voz alta — escorregou um olhar. —, isso mesmo, se autoproclamam como a ‘Irmandade Simbiótica’, e veneram os alienígenas que sequestram e...
— Simbiótica? — Sean cortou a frase dele. — ‘Indispensável a um deles, indiferente a outro’ — divagou. — Eles interagem mentalmente com o quê?
— O que entende disso, Monsieur Queise?
Sean encarou Ernest novamente. Havia algo a mais com ele, talvez com a maneira com que ele agia. E Sean não gostou de não conseguir decifrá-lo. Talvez a proximidade de aniversário da morte da noiva o estivesse afetando.
Na duvida, manteve-se frio e direto:
— Nada!
— Ah! — voltaram a andar pelo frio de Genebra. — Já ouviu falar de Billy Méier, Monsieur Queise? Digo... Na Internet está cheio dessas fotos que ele diz que tirou.
— Que fotos?
— Sei lá, nunca as vi. Mas durante anos o caso de Billy Méier motivou muitos debates acalorados na tal ufologia daqui — Ernest apontou para o grupo à beira do lago.
— Quantos anos exatamente?
— Billy começou toda essa história quando tinha cinco anos, quando disse que conheceu um alienígena. Depois quando tinha 15 anos, ele viu, diz que viu... — fez uma pequena aproximação. —, uma nave voadora sobre o Lago Léman, com a neta do alienígena dentro — Ernest arregalava os olhos e ria ao mesmo tempo. — Billy dizia que os alienígenas transmitiram sabedoria espiritual e filosófica a essa tal Irmandade Simbiótica — apontou novamente para o grupo à beira do lago. —, que interage mentalmente com essas naves, Monsieur.
— Quer dizer UFOs?
— Sim, naves, UFOs e tal — Ernest deu de ombros. — Digo... Desde então eles dizem que o Lago Léman esconde as tais naves espaciais, e que existem túneis subterrâneos, e que os alienígenas vão voltar porque tem...
— E existem? — Sean cortou Ernest outra vez.
— O quê?
— Os túneis?
— Existem lendas sobre buracos e submundos... — Ernest deu de ombros. — E fazem essas tais reuniões aqui em Genebra, em Nyon, em Lausanne, em Montreux. Vão para os jornais e falam um montão de coisas desconexas; a mídia os chama de OSNI, Objeto Submarino Não Identificado — Ernest riu enquanto passava a mão pelo gel melado do cabelo e Sean tentou outra vez ler-lhe a mente sem conseguir. — Depois tiram fotos, armam barracas, tumultuam o trânsito, promovem encontros entre outras Irmandades. Tem até ciência pelo mundo todo, gastando horas de filmagens; tudo verificado e esmiuçado no YouTube, para contar que uma ‘sentinela’ está escondida aqui na Terra, no lago — e voltou a rir.
“Sentinela?”, Sean estranhou aquilo, tudo aquilo.
Era como se ele estivesse num canto do Universo, e a Irmandade Simbiótica à beira do Lago Léman estivesse noutro.
— Sabia que Billy disse que tinha obrigação de fornecer ao público tais informações, e que então os alienígenas passaram se comunicar da telepatia para o diretão? — Ernest parecia não ter desistido.
Mas Sean estava confuso com a imagem da irmandade, tentando ouvir algo que ia além do conhecimento humano, tentando invadir o éter atrás de rastros, atrás das vozes que lhe alertava sobre o contrato, vozes que o proibiam ir à Suíça, se misturar a tudo àquilo.
“Àquilo o quê?”, nada encontrando no éter.
— Já pensou? — Ernest esperou Sean o olhar. — Digo, conversar e tal, cara a cara com um Pleiadiano? — Sean só o olhava e Ernest sentiu aquilo. — Sabe quem são os pleiadianos Monsieur?
— Um conjunto de alienígenas vindos de um conglomerado de estrelas das Plêiades, que ao contrário de alienígenas malévolos, os pleiadianos são alienígenas benévolos, seres de luz segundo... — e deixou algo no ar a frase inacabada, vendo o funcionário de olhos arregalados. — Assisto documentários, Ernest.
— Ah! — mas Ernest parecia estar realmente se divertindo e voltou a rir. — Mas esses são pleiadianos ou Errans, do planeta ‘Erra’, com nomes do tipo Ptaah, Semjase, Pleja, Quetzal...
— “Quetzalcoatl”? — Sean interrompeu outra vez a tamanha alegria. — Fala da serpente alada dos Toltecas?
— Não sei... Serpente? Falo?
— Esta serpente, meio homem meio serpente, lembra o mito de Quetzalcoatl, um grande tema filosófico já que se trata de um deus solar que estabelece a ponte entre o céu/ave e a terra/serpente. Com certeza a serpente é o réptil que mais provocou interpretações maiêuticas e simbólicas Ernest, porque para o poeta grego Hesíodo e sua cosmogonia grega, a matéria prima essencial é a essência da serpente, algo próxima a água primordial, primitivo do mundo, o Caos — Sean interessou-me mais ainda pelo círculo de pessoas do outro lado do lago.
— E esse ‘caos’ também estava no documentário?
— Caos Ernest, segundo os poetas gregos uma matéria que existia desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível, indescritível, na qual confundiram com os princípios de todos os seres particulares, nós... — e parou de falar quando algo o puxou para baixo, fazendo Sean sentir a neve do chão nos lábios, quando a tocou.
“Monsieur? Monsieur?”, a voz de Ernest demorou a chegar até Sean.
— Monsieur Queise está bem? — Ernest levantou-o do chão.
Se estava, Sean não sabia.
— Eu... — e um corpo verde estava ali no fog, se rastejando até ele, se moldando em mulher. — Ahhh... — Sean dobrou-se de joelhos no chão outra vez.
“Monsieur?” a voz de Ernest era distante novamente.
— Monsieur? — a voz do funcionário se firmou outra vez e Sean saiu do torpor. — Mon Dieu! — olhava um lado e outro. — Monsieur Queise quer entrar? Posso pedir a alguém...
— Não... — fosse o que fosse aquela força, havia literalmente o puxado para baixo. — Esse fog me deixou... — porque também continuava impactado com a figura quase mítica à sua frente. — Acho que estou... — olhou a mulher esverdeada, olhou Ernest e olhou novamente a mulher esverdeada, enevoada, de cabelos longos e finos, se movimentando lentamente, para perceber que Ernest não a via.
— Acha que está o que Monsieur Queise?
— Acho que estou estressado, Ernest... — e Sean só ouviu Ernest desembestar a falar novamente.
Tentava aquietar-se, tentava entender o que era aquela imagem da mulher verde que o fog desmanchava, dissipava, levava embora, para então se virar em choque para Ernest lembrando que havia ido à Suíça para fechar um contrato que não acreditava estar fechando, que não acreditava em coincidências, mas que sabia, devia estar ali, naquele exato momento, com vozes o proibindo de estar ali, na Suíça.
— Então aquela mulher magrela disse...
— Você tem razão Ernest. Acho melhor nós entrarmos antes que os Braushin desistam do negócio.
Ernest sorriu sem saber por que sorria, nem no que tinha razão, se falava sobre outro assunto, mas ambos entraram num hall de entrada de lajotas coloridas; coloridas demais para o gosto refinado de Sean Queise.
2
Computer Co. House’s; São Paulo, capital, Brasil.
23° 36’ 19” S e 46° 41’ 45” W.
26 de fevereiro; 08h23min.
— Bom dia Kelly! — exclamou Sean Queise na sala do escritório de São Paulo no que abriu a porta para ela entrar, antes mesmo dela se aproximar da porta para entrar.
E Sean abria portas com dons ditos paranormais.
Kelly Garcia achava aquilo estranho, mas encantador. E ela também era encantadora, uma bela e encantadora espanhola; de pele apessegada, longas madeixas morenas sempre jogadas de um lado para o outro, que brilhavam pelo excesso de tratamento despendido, que faziam Sean ter tonturas quando começava a prestar atenção demais no que ela fazia.
Respeitada por todos dentro da Computer Co., pela sua sempre presença na vida do jovem Sean Queise, e por sua sempre cordata postura perante o amor dele por Sandy Monroe.
Mesmo quando ela morreu, Kelly dera a Sean um tempo considerado para se refazer; a mãe de Sean, Nelma Queise a tinha em alta conta exatamente por isso. Mas nem Nelma nem Kelly imaginavam o quanto o coração do jovem empresário estava lacrado ao amor, desenganado a qualquer relacionamento sério.
Sean se fechara a qualquer sentimento, até os correlacionados a Computer Co.. Ficava ano após ano mais frio, mais distante e mais difícil de lidar. Seus funcionários o temiam acima de tudo, e se Kelly não podia resolver um problema, o problema tendia a não se solucionar nas mãos dele.
E era um daqueles bem difíceis que caíam em sua mesa naquele instante.
— Apesar de contar com o seu ‘dia bom’, patrãozinho, você vai ter que resolver isso! — apontou para os papéis trazidos. — O contrato com a Hautch Propieté na Suíça está para se finalizar, e você não se incluiu na montagem de todo esquema em março.
Sean respirou profundamente:
— O setor de RH...
— Não! Você precisa se envolver mais, patrãozinho. Se envolver e conhecer gente. Ou eu não percebi?
— Percebeu o quê, Kelly?
— Que você vem fugindo da Computer Co..
— Fugindo? — riu fingindo achar graça nela.
— Eu não sei bem o porquê, mas nessas últimas semanas você vem fugindo da Computer Co. — e Kelly viu Sean escorregar um olhar.
— Está me dizendo que devo ir para Suíça fazer o trabalho que qualquer bom cientista daqui faria?
— Estou dizendo, patrãozinho, que...
— Ainda me chamando de patrãozinho?
— Não mude de assunto Sean! — irritou-se. — Vejo você levando trabalho para o flat, visitando pouquíssimo seu pai, vindo ao escritório quase uma vez por semana. Por quê?
— Por nada. Meu trabalho é criativo, o trânsito me esgota e o café da minha cafeteira sai melhor — sorriu todo charmoso sabendo que aquilo era uma bronca, e que ele a merecia.
Já Kelly era inteligente, sabia que não podia ficar o tratando como uma criança, não com catorze anos os separando. E queria acima de tudo conquistá-lo, nem que para isso tivesse que aceitar tudo aquilo.
Tentou relaxar, sorrir até covinhas explodirem no rosto maduro, bonito.
Naquela manhã Kelly vestia um minúsculo tailleur rosa, estilo Chanel, devidamente fechado por lindos botões dourados.
— O que você tem Sean?
— Nada! — escorregou outro olhar, e viu Kelly ainda na mesma posição. — Já disse que nada! — e falar sobre vozes que o mandavam não estar numa Suíça, lar de Billy Méier e sentinelas de lagos, não estava nos seus planos.
Nem falar sobre a impressão de ver o fog tomar formato de uma mulher esverdeada; aquilo era pedir para Kelly interná-lo; amando-o ou não.
— Ok! — sentou-se pesado.
— ‘Ok!’ não. Já disse que não é nada! Nada! Renata já me disse que chegou o e-mail com o contrato da Hautch Propieté, com todos os itens votados e aceitos. Então não vejo o porquê de precisar de mim na Suíça, se a globalização não necessita de seus proprietários ao redor do mundo, Kelly querida.
— Então não ficou feliz com o contrato?
— Por que acha que não fico feliz com nada?
— Porque não fica feliz com nada.
— Kelly...
— Ok Sean! — cortou qualquer explicação mais. Sean só a olhou e Kelly deu um assobio nervoso. — Porque até posso não ter seus poderes, mas sei que está com problemas na Suíça.
Sean girou os olhos.
— Não tenho problemas na Suíça! — exclamou fingindo ler o que não conseguia ler porque sabia que Kelly desconfiava de algo.
— “Não tenho problemas na Suíça!” — ela o repetiu.
— Não me trate como criança Kelly. Porque não sou...
— Não. Você é um adulto com problemas na Suíça.
Ele a fuzilou.
E ela continuava ali, firme.
— Droga Kelly! Eu ouvi vozes.
Kelly até quis voltar a repeti-lo, mas realmente não entendeu o que ouviu.
— Como assim ‘vozes’?
— Vozes Kelly. Alertando para que eu não fechasse o contrato — e um som agudo da cadeira se arrastando invadiu a grande cobertura de Sean Queise. Kelly se levantara furiosa ameaçando sair da sala. — Aonde você vai? — Sean a olhou profundamente.
— Conheço você o suficiente para saber que há algo além do além.
— De onde? — e Sean viu Kelly sair. — Kelly?! — gritou furioso se erguendo da cadeira. Ela voltou a abrir a porta sem entrar. — Aonde ia?
— Comprar um bolo. Hoje é aniversário de morte de Sandy.
Sean agora sentiu a maior das dores.
— Por que faz isso comigo? — caiu sentado, prostrado.
— As vozes são dela, não são? — insistia totalmente insensível.
— Não!
— São Sean?
— Não Kelly! Droga! São! Acho...
— Eu sabia Sean! — bateu as mãos nas coxas e voltou a entrar nervosa.
— Sabia nada.
— Sabia!!! — gritou. — Sei fazer contas, está bem?!
— Não se atreva... Não se atreva... — e Sean colocou a mão no ar para que a sócia nada falasse. — Não fale Kelly...
— Não ia falar nada! — mentiu Kelly. — Está bem! Ia! Vou falar! Sandy se suicidou, Sean! Pelo amor de Deus, você não a matou!
Sean ficou sem ação. Sem fala e sem ação.
E não ela, não Kelly a julgá-lo.
— Matei Kelly! Cada vez que os olhos dela se encontravam com os meus e eu desviava! Cada vez que eu a seguia pelas ruas para saber aonde ela ia, eu a matava um pouco! E terminei por matar quando acreditei no que Mona me contou, sem usar meus dons para lhe ler os pensamentos; dons que não usei para saber que ela ia se matar!!! — berrou a salivar.
Os dois ficaram lá, em choque, se fuzilando.
— E sabe que mesmo que tivesse usado não os leria porque ela era...
— Basta! — Sean tremia todo. — Eu não quero mais falar nisso...
— Ótimo! Então faça isso! Ponha uma pedra em tudo! Porque como espiã da Poliu, Sandy sabia bloqueá-lo! — exclamava descontrolada.
Sean se levantou e foi até sua sacada, onde o vento lhe bagunçou os cabelos, trazendo-o um pouco para a realidade que não queria ver.
— E eu não saberia ler! Porque ela era uma espiã da Poliu programada para me bloquear. Não é? — ele se virou para uma Kelly arrependida, com os cabelos negros e sedosos voando, com o perfume dela chegando até ele, e toda a vontade de beijar-lhe, de dizer que na verdade sempre a amou. — Perdão...
E foi a vez dela querer beijá-lo. Mas Sean se virou e entrou para a sala caindo em choque no sofá.
Kelly perdeu a referência do seu espaço ali, na varanda ventosa, na vida dele. Odiava saber que era sua sócia para se meter, mais do que a amiga que se sentou ao lado dele, no sofá, íntimos.
E o perfume dela o acordou outra vez.
— Sean...
— Está vendo aquele quadro? — Sean a tirou de seu drama apontando para a parede oposta. — Quando meu cérebro dá uma ordem ao meu braço, para que levante minha mão e pegue o quadro... — e Sean se levantou e pegou o quadro com as mãos. —, sinapses nervosas dão ordens ao meu braço para derrubá-lo no chão — e o quadro foi ao chão fazendo barulho.
Sean e Kelly se olharam.
— Sean...
— Não Kelly... Porque sem tocá-lo, o quadro volta à parede — e o quadro se ergueu do chão e voltou destruído à parede. — E não preciso de um túnel, algo, alguma coisa que faça sinapses iguais ao do meu cérebro alcançar o quadro, erguê-lo... — e olhou em volta. —, e consertá-lo.
E Kelly viu que o quadro outrora destruído, estava de novo intacto.
— Sean... — e aquilo se perdeu no susto dela.
— Porque não importa a distância, eu posso ordenar qualquer coisa ao quadro, exteriorizando uma energia, dirigindo-a pela mente, movimentando objetos, quebrando-os e...
— Controlando uma energia que também pode consertá-las.
E Sean a amou.
Amou aquela Kelly que ele sabia, se esforçava para entender o que não entendia.
— Você nunca perguntou não Kelly? O que realmente fiz Mona fazer comigo?
Ela foi pega de surpresa. Porque não, nunca havia realmente perguntado, não com todas as letras, supunha. O amava tanto que a possibilidade, mesmo remota, de pensar o quanto Sean se tornava esquisito, ou o quanto ele nascera assim, a adoecia.
No final de toda aquela loucura uma coisa ela sabia, ela o amava.
E Sean a amou outra vez, por ler-lhe tudo aquilo.
— Não sei realmente o que Mona lhe ensinou, Sean. Nem se foi por pena de vê-lo sofrendo com dons que não conhecia, não dominava, ou pelo remorso de deixar Sandy se matar.
— Acha que Mona a deixou para morrer?
— Ela sabia Sean, como você, ela podia saber.
E Sean se virou nervoso.
— E você? O que sabe realmente sobre mim Kelly?
E ela foi pega pela pergunta.
— Como é que é?
— Você não se candidatou àquela vaga de emprego na Computer Co. da Espanha, não foi?
E Kelly o temeu como nunca.
— O que quer dizer? Acha que sou uma traidora como Sandy? — alterou a voz.
— Não disse que...
— Não Sean, você não disse! Não precisava dizer! — e Kelly se levantou sabendo que sua mente era aberta, que ele navegava por suas lembranças, que ele podia fazer aquilo. E sabia que Sean sabia que Nelma Queise, antes mesmo de Fernando Queise a contratar para trabalhar na Computer Co., havia a escolhido, a bela geóloga espanhola, para ser tudo aquilo que Sean um dia precisaria, que talvez Nelma soubesse mais do que dizia, que talvez fora orientada por dons tão iguais aos dele, Oscar Roldman. — Por que me olha dessa maneira?
— Por nada... — Sean recuou lendo aquilo.
E Kelly se arrependeu por aquilo, por deixar-se ser lida, por desestabilizá-lo brigando tanto.
— Desculpe-me Sean... Sei o que passa com esse... — e também recuou.
Um silêncio caiu.
— Não tem sido fácil Kelly. Perguntas e respostas complexas, encontros com entidades que me fogem a compreensão. E a Poliu escondendo segredos, dificultando as perguntas e as respostas.
— Mesmo porque você vem respondendo a tudo sozinho.
— Por que diz isso?
— Porque deve realmente ser difícil encontrar cientistas íntegros que queiram testar mentes que podem realmente influenciar a matéria.
— Sim... — e Sean ficou imaginando o quanto de matéria seria mesmo necessário para uma mulher esverdeada se materializar naquele lago. —, porque dificilmente um cientista de renome vai analisar uma Katie King, e seu caso célebre de materialização de espírito, ou os tais ‘entortadores’ como o israelense Uri Geller, um paranormal que não só entortava talheres, Kelly, como parava relógios, com o poder da mente. Contudo a ciência conhece a capacidade da mente humana de agir à distância sobre a matéria, controlando realmente a energia de cada um de nós, transformando-a em algo.
— Em algo nada bom?
— Sabe o que é um RSPK, Psicocinese Recorrente Espontânea? Ou simplesmente Poltergeist?
— Algo nada bom!
Sean e Kelly riram aliviando um pouco aquela discussão matutina. Porque Kelly sabia que a Poliu não só pressionava cientistas e experimentos, como quando os encontravam, os recrutavam para ela; pessoas especiais com dons especiais.
— Não necessariamente ‘nada bom’, porque isso pode ser uma prova de paranormalidade, como o Caso de Therese Selles, uma francesa atormentada pelas panelas de sua cozinha que volitavam em 1911.
— Como quando você sai do sério?
— E acha que faço só quando sou ‘tirado do sério’? Não posso desejar sair e me projetar? Materializar algo? Alguém?
— Já tentou?
Sean sabia onde ela ia chegar, onde ela ia chegar outra vez. E Sandy Monroe se materializava para ele, sem sua ajuda.
— Não! Nunca!
— Desculpe-me Sean. Não queria tocar novamente nesse assunto — Kelly se levantou. — Não sei o que realmente dizer, nem como sai do corpo, nem como seu corpo acompanha seus sonhos.
— Não são sonhos Kelly, nem alucinações como propaga os céticos, é uma viagem fora do corpo. Mas não vou junto... — riu nervoso ao ler o que a sócia pensou. —, nunca me teletransportei. Isso seria ridículo.
— Seria?
Sean sabia que ela era esperta.
— Como poderia me desmaterializar e rematerializar em outro lugar? Seria preciso um molde de mim mesmo, em algum lugar onde Deus tivesse moldes de nós...
— Cruzes!
— Ou talvez sejamos apenas um programa computacional... — ambos riram.
— Do tipo supercomputador capaz de saber onde cada molécula atômica do seu corpo está na viagem?
— Sim! Para que eu não me rematerialize ao contrário ou invertido...
Ambos voltaram a rir.
— Mas Mona Foad pode, não?
— Apport!
— O que?
— Mona faz apport dela. E também aspport. Ela ‘se põe’ e ‘se tira’ de algum lugar como um poltergeist; indivíduos, denominados epicentro, dotados de excepcional faculdade psicogenética. O que pode ser uma faculdade gerada por algum trauma emocional, extravasando suas energias em forma de ação física sobre os objetos de suas adjacências.
— Como eu disse...
— Quando tirado do sério! É você disse... — e ambos riram outra vez.
— E já se perguntou por que domina essa energia somente quando é tirado do sério?
“Somente quando... somente quando... somente quando...” ficou intermitente ali.
Mas Sean sabia que não era só quando tirado do sério.
— Não sei... Acho que é porque não vim com um manual de instruções.
Foi a vez de Kelly o amar.
— Está bem Senhor que veio sem manual de instruções... — achou graça. —, vou buscar-lhe uma xicrona de café e...
— Kelly? — a chamou quando ela alcançou a porta. — Eu vou voltar à Suíça!
Ela olhou um lado, outro lado e ele.
— O que foi que eu perdi aqui?
— Nada! Não tem haver com o contrato.
— Como é que é?
— Vou esquiar em Zermatt, uma estação turística na encosta do Monte Cervino.
— Uau... — continuou perdida. — Nós vamos fazer...
— ‘Eu’, Kelly! — cortou-a. — Não ‘nós’!
Kelly olhou o redor outra vez como quem de repente não se situa mais em nada, sabendo que deixou escapar algo, talvez ele.
— Por que vão dizer que estou viajando com você?
— Sabe que...
— Não! — ergueu a mão. — Entendo! É porque vão dizer que deixei de ser secretária para me aproximar de...
— Apenas... — tentou ser firme. — Apenas estou precisando esquiar um pouco.
— Esquiar com quem?
— Como com quem?
— Alguma mulher nova?
— Nova?
— É a Poliu outra vez Sean? — alterava o tom de voz.
— Do que está falando?
— Sabe do que estou falando!!! — alterou-se de vez. — Droga Sean! Se não é outra mulher então...
— Então nada! Disse que vou esquiar Kelly! Sozinho!
— Claro! Você vai esquiar depois de ir a Genebra rever o contrato, e sanar dúvidas se a Poliu tem haver com as vozes de mortos que lhe dizem que... — e Kelly parou de falar quando todos os quadros da sala caíram no chão. O som de coisas quebrando e se esparramando pelo chão de mármore ainda cintilivam. Kelly suspirou e anunciou. — Eu faço sua mala! — exclamou seco se virando e abrindo a porta.
— Kelly...
Mas Kelly nem se deu ao trabalho de se virar para ele.
— Mas no final de março vou para a Suíça! — ela só ouviu a respiração dele ficar mais forte. — Tão logo Gyrimias e sua equipe de cientistas comecem.
— Kelly...
— E vou Sean! Vou atrás de você, onde você estiver, porque vou fazer trinta e cinco anos. Não posso mais esperar.
— Kelly... Eu...
— Você nada! — e Kelly se virou para ver Sean escorregar um único olhar para ela. — Um mês Sean! É o prazo que lhe dou! — e ela saiu.
Sean só voltou a respirar quando o som da porta da sala da cobertura batendo, chegou até suas sinapses.
“Um mês?”; foi só o que conseguiu pensar até o final daquele dia.
3
Genebra; Cantão de Genebra, Suíça.
46° 2’ 0” N e 6° 7’ 0” E.
02 de março; 09h00min
A Suíça limitava-se ao norte com a Alemanha ocidental, a leste com a Áustria e Liechtenstein, a sudoeste e ao sul com a Itália, a oeste e noroeste com a França. É um dos grandes centros mundiais de turismo, visto que os homens não conseguiram resistir ao chamado de suas grandes montanhas cobertas de neve, e nem de seus belos e azuis lagos.
Sean Queise desceu em Genebra, se dirigindo a Coppet, no Lago Léman. Tinha um encontro com M. Leopold Braushin, juntamente com seu irmão M. Lüdovick Braushin, proprietários da Hautch Propieté.
Sean não chegou a conhecer o irmão Lüdovick, mas desgostou totalmente de Leopold; um homem grande de tamanho e de altura, com cavanhaque ruivo, destoando do cabelo preto, fumando charutos cubanos. Suas unhas eram pintadas de bege bem claro, e pareciam serem muito bem tratadas. Ainda destacava-se o colar que usava, com seu ouro brilhando no peito inflado, mais que toda uma vitrine de joalheria.
Foi repulsa à primeira vista.
E não foi só isso o que Sean sentiu naquele momento, vozes sussurradas acompanhavam-no a cada passo dentro do escritório, do grande galpão de lajotas vermelhas, de todo o entorno, do tempo em que a caneta corria no contrato com a Hautch Propieté.
“Sean...” “Contrato...” “Dor...” “Morte...”.
Sean sabia que não era Sandy, que não era nada que suas sinapses conseguiam distinguir.
Mas ainda sim, eram vozes que por vezes tomavam corpo, materializavam-se em homens, mulheres, e dor.
Saiu de lá confuso, precisando de ajuda.
— Avenue de Châtelaine 93. Centre d’Etudes Spirites, s’il vous plait — anunciou ao taxi.
“Bienvenue au CESG! Naître, mourir, renaître encore et progresser sans cesse, telle est la loi - Allan Kardec” foi o que leu logo à entrada.
Sean passou a tarde no CESG, atrás de passes magnéticos que lhe permitissem uma orientação, uma abertura de seus canais espirituais, paranormais. Sabia que estava sobre pressão, que o aniversário de morte de Sandy Monroe o estava afetando, porque realmente aquelas vozes avisavam para algo que não conseguia compreender, talvez a ponto de ser tirado do sério, não controlando aquelas plasmagens.
Temeu-se, acima de tudo.
Gare de Cornavin, Genebra.
46° 12’ 37” N e 6° 8’ 33” E.
02 de março; 22h00min
Em 563, de acordo com os escritos de Gregório de Tours e Marius Aventicensis, um tsunami varreu tudo ao longo do Lago Léman, destruindo o forte de Tauredunum e outros assentamentos, e causando várias mortes em Genebra. Simulações posteriores indicaram que o Evento Tauredunum foi provavelmente causado por um enorme deslizamento de terra perto do delta do Ródano, o que causou uma onda de oito metros de altura, que chegou a Genebra em 70 minutos.
Em 888 a cidade fazia parte do novo Reino de Borgonha, e com ele foi assumido em 1033, pelo imperador alemão.
Agora a Suíça era notoriamente conhecida por seu transporte ferroviário, seguro, um dos mais eficientes do mundo, distantes das forças destruidoras da natureza.
Como havia viajado sem qualquer equipamento ou apetrecho necessário para esquiar, Sean Queise resolvera que alugaria tudo em Zermatt mesmo.
Não pretendia se entediar com muitas malas e sacolas, mesmo porque Kelly, que sempre arrumava suas malas e sua vida, arrumara poucas coisas ali, dando sinais que ele não iria precisar de muita roupa.
E ele não gostou daquilo.
Sean queria poder chegar ainda naquela noite em Lausanne, capital do Cantão de Vaud, visto que a viagem duraria somente duas horas. Havia feito via Internet, reservas para duas noites no Lausanne Palace & Spa, como também fez reserva para a cabine 5-5 do trem, mas chegou à Gare Cornavin, estação de trem de Genebra, atrasado, e com todas as cabines lotadas.
Como dormir na poltrona estava fora de cogitação, decidiu descer em Nyon, e lá pernoitar, visto que a viagem durava apenas quarenta minutos.
Sean fez outra vez pela Internet, reservas e depósitos para o Ambassador Hotel em Nyon, e passagem de trem com partida marcada para Zermatt, dia seguinte, 03 de março, no trem das 10h00min.
Ia cancelar o hotel em Lausanne, mas esqueceu.
À medida que o trem avançava os 25 km que separava Genebra de Nyon, Sean viu mais próximo o monte coberto de neve. Chamou o comissário de buffet do vagão restaurante, e foi imediatamente atendido por um homem magro, de olhos verdes e esbugalhados, e um tom de pele branco, típico dos Alpes.
— Bonsoir Monsieur. Bienvenue!
— Merci!
— Que je peux être utile? — o comissário de buffet foi solicito em anotar-lhe o pedido.
— Poderia me trazer um lanche leve e salgado, de tiras de pão com queijos, cebola e ervas; para acompanhar mais uma xícara de chá?
— Oui Monsieur! — exclamou ao anotar o pedido. — Le pain léger, fromages, l’oignon, lá fines herbes. Le thé gláce?
— “Chá gelado”? Não, chá quente. E me traga fatias de limão, s’il vous plait.
— Le citron. Oui Monsieur! — e o comissário de buffet saiu quando um homem gordo, suado e esbaforido sentou-se na poltrona ao lado de Sean.
— Découvrez les charmes de Ville de Nyon? — ele viu Sean erguer-se com o susto, olhando em volta o trem lotado, e voltando a se sentar.
— Excusez-moi...
— 17’000 habitants située sur les bords du Lac Léman, face au massif du Mont Blanc — insistiu o homem gordo e suado apontando para fora da janela do trem. Os cabelos em desalinho foi o que mais chamou atenção sobre ele. Depois o suor que escorria da cara gorda, com melanomas nada sutis despontando abaixo do olho direito, e uma dentadura quase tomada de ouro. — Perguntei se está indo descobrir o charme da cidade de Lausanne. São apenas 17.000 habitantes à beira do Lago Léman, de cara com o Mont Blanc; e não falo das canetas — riu.
— Ah! — Sean viu que o homem gordo balançava as mãos insistentemente. — Não, estarei só de passagem por Nyon.
O homem gordo olhou no relógio.
— Estranho não? O trem sair sempre à meia-noite?
— “Meia-noite”? Mas saímos às 22 horas, não?
O homem gordo riu.
— Falo de Lausanne, Monsieur Sean Queise. Os trens sempre saem de Lausanne à 00h00min, para onde for — voltou a sorrir.
— Ah! Não vou mais até Lausanne. Desço antes como disse — sorriu mesmo não se situando com o alegre companheiro de viagem.
— Oui! Homens importantes nunca descansam.
— Não entendi.
— Eu esperei ver se estava sozinho — o homem gordo olhou para os lados e Sean fez o mesmo.
Ambos perceberam a mulher jovem e loira, usando casaco de veludo vermelho e boina azul-marinho, sentada alguns bancos à sua frente, mas de costa para eles, olhando-os pelo espelho de maquiagem.
Sean ficou sem saber se ela estava interessada em observá-los.
— Estou sozinho Monsieur.
— Então é isso! Naître, mourir, renaître encore et progresser sans cesse, telle est la loi.
— “Nascer, morrer, renascer e progredir sem cessar, tal é a lei”; Allan Kardec! — Sean tremeu ao ouvir aquilo.
— Oui! — o homem gordo voltou a sorrir. — Sou Armand Lacreax, relojoeiro. Enchanté! — deu a mão agitada para ser cumprimentada. — Você é Sean Queise, não é? — prosseguia Armand. — O jovem empresário dono dos computadores Computer Co.?
— Sim...
— É! Vi algumas fotos no jornal sobre você e sobre alguns negócios em Genebra. E você acredita em alienígenas! — exclamou Armand com força.
Sean mal acreditou no que ouviu.
— Como é que é?
— Pois é... — e o homem gordo continuou a balançar as mãos como quem quer tirar algo delas. —, então você veio por causa dela?
— “Dela”? — Sean realmente continuava não entendendo.
— ‘Dela’; a Èquidna, a serpente mãe de todos os monstros.
Sean riu sem graça.
— Desculpe-me! Não estou entendendo muito bem esse assunto sobre...
— Falo da serpente-sentinela do lago, Sean Queise! — Armand cortou-o deixando Sean alerta. — A serpente-sentinela do lago dos OSNIs do Lago Léman, pesquisada e inserida num arquivo confidencial de número 10-2-5-5.
“Serpente-sentinela do lago”; tinha que ser a Poliu, a corporação de inteligência e seus muitos arquivos confidenciais.
— Me chame apenas de Sean... — olhou um lado e outro.
— Très bien, Sean. Nós, ufólogos do mundo todo... — Armand apontou para umas quinze pessoas sentadas quatro carreiras de bancos à frente deles, e que agora repentinamente se viraram para trás para cumprimentá-lo. Armand esperou Sean devolver os cumprimentos num levantar de mão. —, viemos tentar vê-la agora que as posições da constelação serpentário estão favoráveis.
— “Constelação serpentário”? — e todos os ufólogos à frente dele sorriram-lhe outra vez.
Sean retribuiu o sorriso nem soube por quê. Eram uma dúzia de pessoas aparentando riqueza, e uns poucos jovens do tipo mochileiro.
— Dentre as 88 constelações definidas, 12 delas são chamadas de Constelações Zodiacais, e por elas passa o Sol durante o seu movimento anual aparente. São elas: Carneiro, Touro, Gêmeos, Caranguejo, Leão, Virgem, Balança, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. A constelação da Serpente é a única que está dividida em duas, Serpens Caput ou Cabeça da Serpente, e Serpens Cauda ou Cauda da Serpente, e tendo entre elas a Constelação do Ofiúco, que significa o Serpentário, ou seja, o ‘criador’ — deu ênfase a palavra.
— Criador do que?
— Nem pode imaginar o que é criado lá. E não vai mesmo querer saber o que se vive e mata por lá, Sean.
— Ah... — foi só o que Sean conseguiu falar até se recuperar. — Filon de Alexandria, filósofo judeo-helenista, acreditava que a serpente ao desprender-se de sua pele, desligava-se também da velhice, que podia matar e curar, sendo por isto um símbolo dos poderes complementares; positivo e negativo, se me entende.
— Saber ou não saber, Sean. Esta é a questão! — viu Sean escorregar um único olhar para ele. — Como eu disse, ‘Nascer, morrer, renascer e progredir sem cessar, tal é a lei’.
‘Tal é a lei’, soou por todo ele.
— O interessante é que ambas as partes são separadas pela Constelação do Ofiúco, onde pode começar por identificar a cabeça da Serpente… — prosseguiu Armand. —, por exemplo, a partir da facilmente reconhecível constelação da Coroa Boreal.
— E por que eu preciso de tamanha precisão de informação Monsieur...
— Armand Lacreax!
— Você faz parte da Irmandade Simbiótica? — agora Sean foi direto.
— Très bien! Vejo que já ouviu falar de nós — Armand ficou que como encantado.
Sean não estava tão encantado assim, nem com muita paciência de explicar nada. Queria sim, mais explicações.
— Com o que exatamente ocorre a simbiose, Monsieur... Como disse? Armand Lacreax?
— Oui! Gostaria, porém de dizer que o contato telepático muitas vezes acontece não com os seres alienígenas, mas sim com as próprias naves, pois elas sim são simbióticas.
— Naves simbióticas? — agora Sean mal acreditou.
— Oui! Muitas delas são quase como seres vivos; um tipo de inteligência artificial, preparada para responder aos pensamentos do piloto e da tripulação da nave. O perigo ronda quando algum humano paranormal, porém sem respaldo de conhecimento sobre seus poderes, consegue entrar em sintonia mental com a nave usada por uma missão de alienígenas, o que pode afetar ou desviar a sua rota da...
— Sinapses!
— O que disse?
— Prossiga!
— Très bien! Eu dizia da nave que caiu no Lago Léman em 1975. Billy Méier não sabia, mas era especial, com dons paranormais especiais, mas sem respaldos, e deve ter entrado em sintonia com o UFO o derrubando. Assim como outros tantos contatados que acabaram por derrubar naves.
“Acabaram por derrubar naves”, Sean realmente não gostou de ter ouvido aquilo.
Talvez um poltergeist conseguisse aquilo.
— Especial quanto a ponto de derrubar naves?
— Especial Sean, porque somos descendentes de colonos alienígenas que originalmente tiveram sua gênese aqui no Planeta Terra, misturada a mitos de todas as espécies.
Sean ergueu o sobrolho.
— “Mitos de todas as espécies”? Fala de cosmogonia, não? A cosmogonia de Hesíodo que dizia que Èquidna, meio mulher meio serpente, criou todos os monstros? Provável também as lâmias e as górgonas.
Armand Lacreax achou graça do susto dele.
— Eu sei que parece incrível, mas a razão disto nos será explicada mais adiante, Sean. Porque muitos destes alienígenas são de herança pré-escandinava ou nórdica, como queira chamar, por isso essa mistura de mitos; e são em grande parte seres pacíficos e éticos.
— ‘Pacíficos e éticos’ Monsieur?
— Não Sean, não estou querendo dizer que todos nórdicos que são encontrados em naves ou UFOs, sejam nossos amigos, e nos desejam o melhor. Porque eu estaria mentindo ou omitindo muita coisa.
— Nórdicos? Não seriam celtas?
— E o que foi a mitologia nórdica e celta se não a precursora da mitologia grega, Sean Queise?
— É... — Sean só o olhava cada vez mais impressionado com o assunto levantado.
Olhou a janela embaçada e o frio que lhe tomava o material, para então voltarem as vozes de dor, angustia, e contratos de negócios talvez nada pacíficos, nada éticos.
Sean voltou a olhar Armand Lacreax que prosseguia sem parecer escutar alguma coisa.
— As informações sobre uma serpente-sentinela do lago, ‘meio mulher meio serpente’ como você a chama, alienígena como eu a chamo, chegaram até nós ufólogos, quando foram divulgadas no final do ano passado no arquivo confidencial #10255, e poucos tomaram seriamente quaisquer delas em crédito. Tais informações eram para lá de exóticas já que a tal serpente-sentinela do lago, era conhecida apenas como uma protetora de alienígenas, e que tinha o dever de proteger naves espaciais que desciam no lago.
— Mas algo aconteceu?
— Très bien! O Réveillon e tudo aconteceu. Uma grande onda de pessoas comparecendo aos seminários e circuitos de palestras, se envolvendo muito mais.
— Fala das vigílias?
Armand olhou Sean de uma maneira esquiva.
— Sei aonde quer chegar, mas é claro que também há as pessoas que estão acercando-se disto, para fazer dinheiro fácil com o temor dos outros.
— Que temor?
— Do Império subterrâneo conjunto reptiliano-fascista, com maciços campos de concentração que fariam aqueles da Alemanha nazista empalidecer em comparação, e que escolheram a Suíça como suas bases.
— Campos de concentração? Campos de concentração alienígenas na Suíça? — Sean achou graça; ou estava desinformado, ou tudo aquilo era baboseira, perda de tempo.
Ergueu o braço e chamou o comissário de buffet para retirá-lo dali.
— Très bien! Très bien! — o homem gordo e esbaforido levantou-se tão enigmático como chegou, percebendo Sean descrente. — Já estamos acostumados com aquela polícia secreta e escusa nos rebelando, sempre nos perseguindo, então sua descrença não nos afeta Monsieur — Armand mal acreditou naquilo, ouvira dizer que apesar de muito jovem, Sean Queise era um habilidoso hacker e um ávido pesquisador da ufologia, que ele perseguia arquivos confidenciais daquele tipo, que os hackeava.
E Sean captou tudo aquilo.
— Desculpe-me Monsieur... Eu realmente...
Armand levantou uma mão suada e firme, e Sean calou-se.
— Se ainda quiser participar da nossa vigília, estaremos instalados no Youth Hostel Lausanne, na Rue Chemin du Bois-de-Vaux, 36. A partir da estação principal, pegue o metrô no sentido de Ouchy até Délices, em seguida o ônibus nº 25 para Bourdonette. A partir dali, é uma caminhada de dois minutos até o albergue da juventude.
“Polícia secreta e escusa...”, aquilo ecoou na sua cabeça.
Sean desceu em Nyon ao ver que alguns dos ufólogos acenavam pela janela no partir do trem. Despediu-se confuso, com a certeza de nunca ter lido nas listas de ufologia que fazia parte, nada sobre vigílias no Lago Léman ou Lac Léman, nem nada sobre uma serpente-sentinela alienígena, serpente mitológica grega Èquidna, ou qualquer coisa do gênero, que protegia o lago e naves que lá chegavam.
Ficou a imaginar um lago suíço cheio de bases e campos de concentração alienígena, vindos, provável, de uma constelação serpentária, cheia de nebulosas exóticas, que ele nem ia querer saber o que nasce e morre por lá.
Sean achou graça, havia gente mais louca que ele.
Entrou num encantador hotel de cor pêssego, três andares, e lindas mansardas despontando do telhado, que fizeram Sean sentir-se cada vez mais encantado com a Cidade de Nyon.
“Quem será a tal serpente-sentinela do lago, inserida num arquivo confidencial de número 10-2-5-5?”, dormiu pensando.
Mas a madrugada, porém não foi das mais fáceis. Músicos italianos, vindos para uma apresentação na École de Musique de Nyon obrigou Sean a descer para reclamar do barulho, e acabar por ser convidado a participar da festa que atravessou a manhã.
4
Nyon; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 23’ 0” N e 6° 14’ 0” E.
03 de março; 11h00min.
Sean Queise cantou e bebeu tanto que tentou se levantar, apesar da hora se mostrar a ele no bater da porta de seu quarto.
— Bonjour Monsieur! — o garçom entregou o café oferecido pelos músicos.
— Merci!
— Sua passagem chegou bem cedo por mensageiro, Monsieur. Mas acredito que não vá conseguir viajar.
— Por quê? — falou sem entender.
— Porque houve algo nos trilhos.
— Ah! Droga! — e Sean viu a hora no relógio da mesa lateral. — Perdi o trem das 10h00min para Zermatt — viu o garçom esperando algo, lembrou-se de olhar o bolso do paletó.
— Merci beaucoup, Monsieur! — o garçom se retirou após as gorjetas.
Sean cambaleou até a janela e havia algo ali. Não em Nyon, mas ali com ele, próximo. Escorregou os olhos para o quarto, para a janela e para o quarto novamente.
“Campos de concentração alienígena” ecoou nonsense.
E Sean realmente estava ligado a vigílias ufológicas, era um estudioso das efemérides em busca de contatos alienígenas, acobertados pela Poliu; mais precisamente contatos alienígenas com a Poliu. Porque acreditava piamente que a Poliu e seu governo oculto, na mais pura ‘teoria de conspiração’, vinham todos esses anos escondendo e distorcendo informações preciosas aos ufólogos do mundo inteiro.
Como havia perdido o trem, Sean resolveu ficar para a apresentação da tarde dos músicos na École de Musique de Nyon com quem fizera amizade.
À noite, tomaria outro trem para Zermatt.
Gare de Dépert, Nyon.
46° 22’ 55” N e 6° 14’ 26” E.
03 de março; 23h00min.
Sean chegou à Gare de Dépert – Kiosque du débarcadere não entendo o porquê de apesar o trem estar ali esperando os passageiros, a estação encontrava-se vazia; silenciosa e vazia.
O trem deu sinal de partida e atônito ele procurava as passagens nos bolsos do pesado casaco de lã que usava.
— Le train va partir! Le train va partir! Le train va partir! — avisava o inspetor de cabines para a estação vazia quando Sean parou à sua frente. — Le train va partir Monsieur! — o inspetor de cabines viu Sean entregar-lhe a passagem. — Não vamos fazer parada em Lausanne Monsieur! — o inspetor de cabines picou a passagem dele e a entregou.
— Merci beaucoup! — Sean entrou no trem.
Todo o metal do trem estava frio. Sean tremeu e pegou mais um casaco pesado de lã na mala guardando o resto de seus pertences numa confortável cabine, a de número 5-5, guardando seu netbook no cofre aberto. Depois se postou no carro vagão-restaurante quando o trem partiu silencioso, averiguando que não era só a estação de Nyon, o vagão também estava quase vazio, frio; um frio que aumentava cada vez mais invadindo a lataria e seus vidros, embaçando por vezes seguidos a cada longa curva que o trem fazia.
Sean sentiu um arrepio e alguma coisa se rastejou ao lado dele. Ergueu-se em alerta e todos no trem dormiam em suas poltronas.
Olhou um lado e outro e outro mais, quando voltou a se sentar.
“Wow!”, fechou o zíper do casaco de lã sem nada entender, e ficou a olhar o contorno do belo Lac Léman e do Mont Blanc acima de suas cabeças, quando foi a vez do perfume de Sandy Monroe invadir suas narinas.
Kelly Garcia tinha razão, as vozes também eram de Sandy Monroe. Dela e de outros. Vozes que o alertavam, que também o preveniam da solidão imposta, que também o preveniam do perigo, do perigo de estar sozinho, de se desenvolver sem orientação. Porque Sean até tinha ido ao CESG, ao Centre d’Etudes Spirites de Genève, mas não conseguiu falar, se expressar, contar sobre vozes e alienígenas que lhe falavam, porque ficou lá parado, sentindo as mentalizações, incapacitado de acreditar naquilo, nele, no que lhe acontecia.
E agora estava ali, se entregando cada vez mais às duvidas, às dores, ao perfume de Sandy que o invadia, que invadia o vagão, que trazia a imagem dela se projetando à sua frente.
— Sandy? — Sean assustou-se a olhar a noiva morta, sentada no banco à sua frente, lhe olhando. Engoliu a seco até a imagem desaparecer sem saber se como Katie King, ele também materializava o espírito da ex-noiva morta. — Deus... — deixou escapar. — Mona me deve explicações...
Mas a culpa era dele, toda dele. Sean a havia procurado, contado a Mona Foad que Mr. Trevellis a enganava, que a Poliu usava sua mediunidade para transformá-la numa espiã, uma espiã psíquica usada para seguir pessoas, induzi-las ao erro, à morte; talvez ao suicídio.
Mona rompera com a Poliu e ensinara Sean a se desenvolver, a desenvolver seu dom paranormal; dom que Mr. Trevellis sempre quis em seu rol de espiões, porque sem saber, Sean Queise estava se tornando um agente da Poliu.
“Não!”, aquilo não podia ser verdade.
Mr. Trevellis nunca o enganara, Mona não o enganara, mas ele se enganara, continuava a se enganar, porque queria ser um agente de Mr. Trevellis.
“Não!” tentou outra vez se convencer, se desenvolveu porque quis, porque queria atingir a Poliu, destruí-la, persegui-la onde ela estivesse, onde agisse, onde seu governo oculto tentasse dominar; qualquer planeta.
Mas as duvidas existiam, brotando de tempos em tempos em Fernando Queise, Nelma Queise e Oscar Roldman, amigos desde a juventude, unidos pelo dinheiro e poder, unidos em torno da criança que nasceu especial, com a genética da família Roldman e seus dons paranormais, quando algo voltou a se rastejar ali.
Dessa vez Sean só escorregou um olhar e todos aqueles dons disputados pelo poder, o alertavam; havia algo ali, no trem, no belo visual que se escondia no denso nevoeiro, que piorava na entrada do túnel, na visão atrapalhada pela fumaça, pelo vapor vindo das fornalhas abastecidas com carvão pelos foguistas.
O frio aumentou e Sean abaixou o gorro até quase enterrá-lo quando foi a vez de uma voz feminina chegar até ele:
“Je veux faire l’amour avec toi?”
— Como é que é? — mas não havia ninguém ali, seus poucos companheiros de viagem dormiam à sua frente.
No primeiro corredor de bancos, um casal de turistas italianos, à frente deles, uma Senhora com tantas pérolas penduradas que lembrava uma árvore de Natal.
No segundo corredor de bancos, uma menina aparentando estar doente, brincava com uma boneca na companhia do pai.
No terceiro corredor de bancos, um par de olhos verdes, envolto em cabelos loiro, macios como a seda, se escondia na boina de feltro azul marinho.
E nada mais, nenhuma voz sussurrada.
Sean pegou uma caneta e começou a tracejar uma nova rota de viagem. Ia descer até Spiez e depois continuar de trem até Brig. Depois seguir de carro até Zermatt, e tomar um vapor que atravessava o final do Lago Léman até chegar a Interlaken quando a caneta falhou no frio que fazia as bordas da janela criar gelo. Começou a achar que tal ação ultrapassava as condições meteorológicas locais, porque outra vez sentiu algo ali, no vagão quase vazio, nas pessoas que viajavam quietas, no frio intenso da Suíça quando tocou o vidro e gritos tomaram conta do seu canal auricular.
Tirou a mão do vidro e os gritos cederam.
“Wow!”, o coração dele disparou de uma maneira que ele sabia que se tocasse o vidro novamente, os gritos de dor voltariam; e voltaram no que Sean os tocou e novos gritos quase o ensurdeceram.
— Comissarrie? Comissarrie? — Sean o chamou mais de uma vez, percebendo ser o mesmo comissário de buffet, o mesmo homem magro, de olhos verdes e esbugalhados, e um tom de pele branco, típico dos Alpes.
— Não vamos parar em Lausanne, Monsieur...
— Como é que é?
— Não vamos parar em Lausanne, Monsieur...
Sean viu que o comissário de buffet parecia mais branco que da última vez; desatento também.
— Ok... — desistiu de algo. — Como não vamos parar em Lausanne, poderia deixar um bule de café extra para o fim da noite para a cabine-leito número 5-5, s’il vous plait — mas nada mudava nele. — Um bule de café para a cabine 5-5? Já que não vamos parar em Lausanne?
— Não vamos parar em Lausanne, Monsieur...
— Já disse isso — e Sean viu uma substância borrachenta, parecendo espuma, escapar do nariz do comissário.
— Não vamos parar em Lausanne... — e o comissário de buffet se retirou olhando confuso para os lados, no balançar do trem.
E não foi a substância que escapava do comissário, nem foi o balançar do trem que acentuava, o que fez Sean sentir medo. Era o medo do que rastejava ali, da voz que queria fazer amor com ele, dos gritos de dor, mas também da substância que saía do comissário, dos passageiros à frente dele, e também do trem que o lançou contra a poltrona da frente no que os freios do trem soltaram um som agudo.
— Ahhh!!! — e Sean foi realmente arremessado por sobre a mesa até o banco da frente, no que o trem soltou faíscas de fogo com o impacto dos freios no ferro do trilho, parando.
— Oh! Oh! Oh! — exclamava a Senhora das pérolas com a boca ferida, com sangue escorrendo e a mesma substância borrachenta escapando dela.
— Deus... — Sean recuou olhando atônito para os lados, tentando lembrar-se dela, de onde a vira, mas toda a cena se passava tão rápido e em tão baixa temperatura, que ele se sentia congelando de todas as maneiras.
E outro grito se fez ali:
— Não!!! — gritou o pai logo após ver a filha com aspecto doente cair no chão e rolar.
Sean correu para socorrê-la quando os olhos do pai, vazios, cruzaram com os dele, que em choque largou o braço rígido e frio da menina.
Ergueu-se confuso, olhando as pessoas caídas no chão em meio a um cheiro de fumaça que invadiu todos seus sentidos.
Sean voltou a correr por entre bancos arrancados do lugar atrás do inspetor de cabines, que sentiu o braço deslocado na velocidade que Sean empregou ao segurá-lo.
— O que aconteceu? — perguntou-lhe incisivo.
O homem tentou responder.
— Não... Não... — batia os dentes, um contra os outros.
— Não se faça de idiota!
— Não... Não sei... — o inspetor de cabines arregalou os olhos craquelados, com a respiração acelerada pelo pavor. — Não consigo entender...
Mas Sean estava sem paciência para entender o desentendimento dele. Agarrou-o de uma forma que seus dedos se encontraram no braço do inspetor de cabines.
Sean o largou quando percebeu que sua mão o havia atravessado e as luzes falharam. Gemidos e gritos ouvidos por todos os vagões, e ele agora sabendo de onde vinha o seu medo.
— Por que o trem parou? Por que o trem parou?! — gritou. — Alguém subiu, não foi? Alguém subiu?!
— Não Monsieur... — foi só o que o inspetor de cabines conseguiu falar. — Alguém desceu...
“Alguém desceu?”, Sean viu o inspetor de cabines sair no que o trem voltou à carga total e uma nova locomoção, se fez.
Sean foi ao chão novamente rolando dois corredores de bancos adiante.
— Droga! — levantou-se.
A jovem loira ergueu os olhos verdes, escondidos debaixo da boina de feltro azul marinho no que ele passou por ela. Sean não a viu, estava resolvido a voltar para sua cabine 5-5 para pegar o celular que havia esquecido, em meio à confusão, em meio ao cheiro ocre, ácido, que penetrou no seu nariz.
“Quem desceu?”, ainda se perguntava quando chegou a sua cabine 5-5 agora lotada de gelo.
Sean ergueu os olhos para o visor da calefação. Bateu no vidro e viu que o aparelho havia congelado.
Sentiu-se tonto, consumido por um estranho sono.
Adormeceu.
5
Place de la Gare, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 30’ 59” N e 6° 37’ 45” E.
02 de março; 00h00min.
“Je veux faire l’amour avec toi?”, soou ao seu lado.
Sean abriu os olhos no que a voz pedia para fazer amor com ele e viu pelo vidro embaçado que a Place de la Gare, a estação central de trem de Lausanne, estava totalmente tomada por um nevoeiro espesso àquela hora. Seus olhos se fecharam e o som de vinte e quatro badaladas se fez.
Sean abriu os olhos novamente, e percebeu o trem parado num fog parecido como o que já experimentara no Lago Léman. Os olhos se fecharam e se abriram e do lado de fora do trem, o casal de italianos, o pai com a filha doente e sua boneca, a Senhora de pérolas, o comissário de buffet e o inspetor de cabines; todos na plataforma de desembarque onde o letreiro informava ‘Lausanne’.
— Lausanne? — Sean deu um salto do leito. — Paramos em Lausanne?
“Os trens sempre saem de Lausanne as 00h00min para onde for”, a voz de Armand Lacreax ecoou de repente.
Sean procurou o bolso do casaco pesado e a passagem picotada pelo inspetor de cabines, mostrava a data de 02 de março; aquela não era sua passagem comprada em Nyon para 03 de março com destino a Zermatt, era a mesma que comprara em Genebra.
Olhou o relógio da estação e marcava ‘02 de março - 00h00min’.
Algo se enrolou em sua garganta, foi à impressão que teve. Ou ele havia voltado no tempo, ou o trem parara em meio há algo muito errado.
Sean largou tudo e correu para a plataforma fazendo seus pés tocarem no chão duro de madeira da estação, sem que o som se propagasse. Olhou em volta atônito e o relógio ainda marcava 02 de março - 00h00min.
— “02 de março”? Mas como isso... — e olhou sua passagem. — Não... Não... Eu cheguei dia 02 de março em Nyon... — e o relógio ainda marcava 02 de março - 00h00min. — Eu dormi em Nyon e acordei dia 03 de março... Com música... Dos músicos... — e o relógio ainda marcava 02 de março - 00h00min — Os músicos tocaram e 00h01min eu... — e o relógio ainda marcava 02 de março - 00h00min. — Não... Não... Eu acordei 00h01min quando os músicos tocaram...
“Um paranormal que não só entortava talheres, Kelly, como parava relógios, com o poder da mente”, Sean teve medo dele próprio.
— Hei?! Por que vocês todos estão do lado de fora do trem? — perguntou Sean ao grupo que havia descido. Nada nem ninguém lhe responderam; nenhum ruído, como se ele tivesse ficado momentaneamente surdo. — Por que o trem parou? — voltou a perguntar no meio do nevoeiro, não entendendo a falta de som, o trem em Lausanne, a data e horas paradas, as pessoas que não lhe respondiam. — Deus... Por que tudo parou?
E algo rastejou ali.
— Otto Miller? — falou uma voz feminina, jovem, doce e arrastada por detrás dele. Sean se virou e viu que alguém se aproximava. — Posso lhe beijar e fingir que namoramos?
— Como é que... — e foi tarde.
A voz se materializou no nevoeiro, e Sean sentiu o calor dos lábios da bela jovem nos dele; a verruga acentuada na altura do lábio esquerdo, os olhos verdes abertos, extremamente brilhantes, o cabelo loiro despontando da boina de feltro azul marinho, que não combinava com o casaco de veludo vermelho.
Aline então soltou os lábios de Sean, que já se acostumavam ao calor e o encarou:
— Não sabe como lhe sou grata — e Aline se perdeu no nevoeiro que se dissipava.
Atrás dela, três homens jovens, usando cada um uma capa impermeável colorida, em tons berrantes de rosa choque, azul-anil e amarelo-limão.
Sean arregalou os olhos azuis até não poder mais. Se não pelo fato da jovem loira, de voz feminina, doce e arrastada usando boina de feltro azul marinho, e os três jovens de capas berrantes sumirem, mas pelo fato do trem ter sumido também.
— Deus! — exclamou sem entender o que lhe acontecera.
Sean ficou a olhar a estação vazia e o relógio a marcar ‘02 de março – 00h00min’.
“Não Monsieur... Alguém desceu...”.
— Alguém desceu! — Sean repetiu. Ao longe um pequeno sinal da fumaça do trem que partiu o deixando em Lausanne. — Eu desci! — compreendeu enfim ao olhar a estação vazia.
“Sean?”, foi a vez de uma voz cavernosa o chamar.
Agora Sean teve medo como nunca.
“Sean? Sean? Sean?”, chamavam-lhe outra vez, muitas vozes.
Ele fechou os olhos e qualquer comunicação com o que quer que fossem aquelas vozes lhe chamando quando algo passou por ele; rápido, frio, rastejante quando Sean achou ter visto o inspetor de cabines da estação e correu.
— Monsieur? — mas não havia ninguém lá. — Deus... — ninguém, nenhum som, cheiro, horas passando.
Sean caminhou até ver a sombra de mulher velha sentada num banco.
“Graças!”, respirou aliviado vendo enfim que não estava sozinho.
— Bonsoir Madame! — resolveu perguntar onde ficava a bilheteria da estação. — Où est le guichet de vente des tomets et le quai? — e a sombra da mulher velha sentada sumiu por entre os dedos quando Sean chegou perto. — Hei? — apavorou-se, sozinho ali no frio, em meio a sombras que se rastejavam, e se delineavam através de vozes confusas que chegavam até ele. — Deus... Deus... O que é isso? — Sean estava realmente desgostando daquilo, se dirigindo para a saída da estação até encontrar as portas dos guichês fechados. — Pouvez-vous m’aider? — bateu com força. — Hei?! Je né parle pás français très bien!
“Droga!”, a língua francesa não era seu forte.
— O que está acontecendo aqui? O que está acontecendo aqui?! — bateu descontrolado na última portinhola da estação, mas outra vez nenhum som se fez.
Sean lembrou-se que o ufólogo Armand Lacreax havia lhe dito que uma escadaria saía da estação de Lausanne, que de lá se chegaria ao centro da cidade, imaginando que àquela hora da madrugada estava vazia também.
Pôs-se a caminhar sem rumo, horas a fio, pisando em gelo que afundavam seus pés em meio um nevoeiro que não dissipava, até que um som afinal reverberou ao longe.
Sean vislumbrou uma carroça feita de madeira, carregada de lenha. Mal conseguiu falar porque o frio cortava-lhe os lábios. Ergueu a mão pedindo que parasse e pegou carona com o camponês e seu filho pequeno.
No caminho placas avisavam - Cantão de Vaud, no braço do camponês, um relógio a girar – 00h01min, 00h02min, 00h03min, 00h04min, 00h05min, 00h06min, 00h07min, 00h08min, 00h09min.
Lago de Neuchâtel, Yverdon-les-Bains; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 46’ 42.6” N e 6° 38’ 27” E.
02h00min.
Chegaram à fazenda do camponês, duas horas depois, calculou Sean congelado, agradecendo a hospitalidade, tomando uma xícara de leite quente, com os olhos ainda arregalados vendo o relógio girar para 02h01min, 02h02min, 02h03min, 02h04min, 02h05min, 02h06min, 02h07min, 02h08min, 02h09min.
O camponês se identificou como Monsieur Oswald Lambert, casado com Madame Albertinne Lambert, pais do pequeno Pauli Lambert.
Oswald lhe deu outro casaco já que o dele estava úmido, e Sean agradeceu lembrando de que havia ficado sem dinheiro, cartões de crédito, mala ou qualquer documento, e principalmente sem o contrato da Hautch Propieté na mala, com o netbook, no cofre da cabine 5-5.
Sean precisava chegar até um telefone público já que na fazenda não havia telefone, mas o casal de camponeses desaconselharam-no a tentar sair na neve outra vez, de madrugada. Ele, porém estava irredutível, despediu-se após ver o relógio marcar 02h35min e o camponês Oswald também lhe dar uma pequena quantidade de moedas.
Oswald também lhe ensinou a chegar a um ponto de ônibus regional para percorrer os 38 quilômetros de distância, da Cidade de Yverdon-les-Bains até o centro da Cidade de Lausanne.
“38 km?”, Sean parecia não entender momentaneamente o que significava aquela distância.
Saiu para a neve tomando a decisão de enfim ficar em Lausanne, já que as reservas no hotel estavam pagas, mas o frio cortante era demais para ele. Depois pensou em voltar à estação e esperar alguém aparecer, porque afinal também precisava reclamar a bagagem perdida. Porém, o fato do chão estar branco pela neve que caíra dias seguidos, fez-lhe ficar confuso quanto ao itinerário, caminhando até perder a fazenda do camponês Oswald Lambert de vista.
Sean viu vacas nos currais, ouviu os chocalhos amarrados aos pescoços, sentiu a presença de pessoas ao seu redor, mas não pressentiu o carro que se aproximava em alta velocidade, que passou por ele levantando o frio gelo do chão, nem o forte impacto do cano de ferro na sua cabeça, o fazendo cambalear e desistir da viagem ali mesmo.
Foi ao chão sentindo sua boca tocar o frio suíço.
Lago de Neuchâtel, Yverdon-les-Bains.
02h57min.
Algumas vozes ainda ecoavam quando Sean abriu os olhos. Tonto e congelado tentou se levantar, mas foi abatido pelo cano de ferro novamente.
Caiu achando ter ouvido risadas, para então serem acompanhadas por gritos de pavor que passaram a se misturar há outros sons indecifráveis, agora mais distantes, no bater de uma porta de carro, enquanto seu sangue ainda manchava a imaculada neve branca que até pouco tempo atrás, pisava.
E tudo silenciou.
Sean tentou erguer o rosto outra vez, mas só conseguiu ver a figura esguia, feminina e esverdeada que caminhava a seu encontro. Seus cabelos compridos, lisos como a seda, balançavam ao vento que não se perfumou de rosas brancas.
Sean sentiu frio, sentiu dor, sentiu já não sabia mais o quê.
“É um animal?”, pensou ao desmaiar de vez.
6
Computer Co. House’s; São Paulo, capital.
23° 36’ 19” S e 46° 41’ 45” W.
20 de março; 18h00min.
— Renata? — chamava Kelly Garcia pelo interfone naquele fim de tarde chuvoso. — Alguma notícia de Sean?
— Sinto muitíssimo, Srta. Garcia. Ainda não há notícias do Sr. Queise.
Kelly respirou profundamente, não entendia o porquê de Sean ficar tanto tempo sem comunicação alguma. Teve medo que tal silêncio significasse o tempo que lhe dera para decidir ao seu amor. E aquilo não podia ser reportado de modo algum à família dele que cobrava dela o paradeiro do filho.
Um chamado de repente fez a sócia de Sean Queise, acordar.
— Sim, Renata? — falou ao interfone.
— Gyrimias Leferi comunicou que há uma chamada vinda de dentro dos mainframes da Computer Co..
— Sean?
— Não sei Srta. Garcia. A chamada foi retransmitida a partir do satélite Spartacus.
“Spartacus?”, Kelly sentiu seu coração disparar.
— Os mainframes? Ninguém tem acesso a eles a não ser... — estancou. — Renata? Mande Gyrimias transferir a chamada para a sala de Sean. Eu vou atender no computador de mesa dele — Kelly sabia, era Oscar Roldman, o todo poderoso homem da Polícia Mundial, se comunicando no canal particular que Sean havia criado para acessar Spartacus, o satélite de observação que projetara. — Sr. Roldman! — falou Kelly, logo após ter aberto o banco de dados.
— Srta. Garcia? — estranhou Oscar ao reconhecer a voz e ver que Kelly ligara a câmera. — Onde está Sean? — foi direto como sempre. — Ele não responde a meus chamados no celular nem responde a meus e-mails.
— Eu não sei onde ele está — respondeu sincera.
— Está mentindo!
— Não, não estou. Eu...
— O que Sean foi fazer na Suíça?
E Kelly gelou. Pela fisionomia e o tom de voz de Oscar Roldman, ele fez mais que mudar a fisionomia e o tom de voz, ele lera os pensamentos dela.
— Sean foi fechar um contrato em Genebra com a Hautch Propieté. Depois seguiria para esquiar em Zermatt — e Kelly parou.
— Continue Srta. Garcia. Porque não vai querer que eu continue pela Senhorita, vai?
Kelly engoliu com dificuldades. Não sabia se queria falar, mas queria acima de qualquer coisa que ele não continuasse.
— Eu não sei bem o que aconteceu a Sean, mas o localizei através do cartão American Express dele — Kelly leu algo. — Há uma compra de passagem de trem com cabine de Genebra a Lausanne para dia 02 de março, mas há um almoço pago ao restaurante da École de Musique de Nyon dia 03 de março, então calculo que Sean tenha descido em Nyon já que há pagamentos efetuados ao Ambassador Hotel em Nyon dia 03 de março. Depois há uma passagem leito de trem de Nyon a Zermatt comprada para dia 03 de março, mas a estação de trem estornou porque as linhas dos trens estavam com problemas.
“Problemas?”, pensou Oscar sem nada dizer.
— A Poliu sabe?
— Como assim, Sr. Roldman? — Kelly sentiu algo errado.
— Perguntei se Trevellis sabe que Sean estava em Lausanne?
Kelly tremeu só de ouvir aquele nome.
— Em Lausanne?
— Continue Srta. Garcia!
— Continuar como? Já disse que não conheço seu paradeiro, e nem o porquê dele não se comunicar, mas Sean não está em Lausanne.
E a fisionomia de Oscar Roldman a fazia tremer.
Aquilo ele também leu.
— Continue...
— Houve anteriormente, um depósito via Internet de 2500 Euros para o Palace & Spa Hotel em Lausanne, mas o hotel disse que ele não havia aparecido até agora.
— Os travellers checks foram usados?
— A American Express diz que ainda não houve depósito da numeração que passei a eles.
— Lausanne? — foi só o que Oscar, falou.
— O que digo a...
— Nelma... — escapou de seus lábios.
— Desculpe-me Sr. Roldman, mas a Sra. Nelma Queise perguntou-me se Sean estava... Se ele estava trabalhando com...
Oscar a olhou com os olhos a brilharem.
— Diga a Nelma Queise que seu filho está bem.
— E como sabe?
Oscar a encarou em meio a uma risada curta e sarcástica que a respondeu.
— Diga a ela que de agora em diante me encarrego de Sean, Srta. Garcia — e Oscar desligou.
Kelly ficou com o coração na mão e a ligação virtual desconectada.
Queria poder ter falado mais, contado sobre Sean e seus dons e o quanto ele estava a ponto de sair do sério.
Lago de Neuchâtel, Yverdon-les-Bains.
46° 46’ 42.6” N e 6° 38’ 27” E.
20 de março; 18h00min.
— Papa?! — gritou uma jovem quando viu os olhos do estranho se abrir.
E quando Sean Queise os abriu em definitivo, pôde ver a comitiva à sua volta, contando oito homens, quatro mulheres e cinco crianças no espaçoso e confortável quarto de paredes de toras de madeira envernizada, quando reconheceu o pequeno Pauli e o camponês de nome Oswald Lambert.
Também a jovem que gritou.
Ela tinha as bochechas vermelhas pelo frio, cabelos lisos e loiros avermelhados, centenas de pintinhas no rosto e um corpo magro que se vestia tal qual uma camponesa.
Sean tentou se erguer, entretanto sentiu tonturas, e voltou a tombar a cabeça.
— Onde estou? — Sean falou em português, ninguém entendeu. Lembrou-se com muito esforço que estava na Suíça. — Où je suis? — perguntou em francês.
— Yverdon-les-Bains, capital do Distrito do Jura-Nord Vaudois. E depois de Lausanne, é a segunda cidade mais populosa do Cantão de Vaud.
Informação desperdiçada, Sean continuou sem se situar olhando um e outro, quando viu o camponês lhe olhando como numa interrogação.
Ele pareceu ver que Sean percebeu aquilo:
— Ontem Monsieur falou seu nome, mas eu esqueci — perguntou o camponês Oswald.
— É Sean... — e parou. — O que quer dizer com ‘ontem’?
E todos dispararam a falar.
— Você caiu? — perguntou Pauli, o filho de Oswald Lambert.
— Quantos anos você tem? — perguntou um homem usando o uniforme que mais lembrava o Corpo de bombeiros.
— Sean de que? — perguntou uma Senhora.
— De onde você é? — perguntou outra Senhora, agora mais velha e extremamente gorda.
— Ele é bonito, não? — falou a garota de bochechas vermelhas a quase ser engolida por um rapaz ruivo, jovem, de pele extremamente branca usando vestes coloridas, e que não gostou do entusiasmo das bochechas vermelhas para com a beleza de Sean Queise.
— Ninguém veio te reclamar? — e foi só o que o rapaz ruivo questionou.
— Notre-Dame de La Salette! Acalmem-se! — falou a velha Senhora gorda para Sean. — Ele vai responder uma coisa de cada vez, não é Monsieur?
Sean se virou para olhá-los, realmente não sabendo por onde começar a responder.
— Ah... Merci infini — agradeceu, porém. —, por terem salvado a minha vida — e Sean voltou a olhar a velha Senhora gorda.
Havia algo nela que o fazia sentir medo.
— Sabe por que foi atacado? — perguntou o rapaz ruivo ainda nada simpático.
— Fui atacado? — respondeu com ironia.
— Não percebeu? — retrucou o rapaz ruivo.
— Que é isso Lück, meu neto? — a velha Senhora gorda bateu-lhe no estômago.
— Não, não havia percebido... — Sean ergueu o sobrolho. — Lück, neto dela.
O rapaz ruivo ia contra-atacar mais uma vez, mas a velha Senhora gorda fora mais rápida. Mais rápido até que Sean percebendo a animosidade do neto para com o doente na cama.
— Notre-Dame de La Salette! — exclamou novamente. — Esquecemo-nos de nos apresentar. Monsieur Sean, este é Lück Laun — e a velha apontou para o rapaz ruivo e insolente que pegara na mão da jovem de bochecha vermelha como quem mostrava propriedade. —, e eu sou a avó dele, Madame Michelina Laun.
— Ah! Enchanté! — soou um pouco cínico. Depois recuou. — O que me aconteceu afinal?
— Nós vimos um pequeno caminhão aberto sair em disparada e vimos um corpo caído. Havia um círculo de sangue à sua volta e isso foi ontem, Monsieur Sean — falou madame Michelina Laun.
— “Vimos”? — Sean tentava realmente raciocinar sabendo que estava sem as roupas com que lá chegara, no meio de estranhos, sentido dor, e sem uma resposta convincente.
— Se lembra de alguma coisa, Sean Queise?
E agora Sean se virou para encarar seu interlocutor, era o homem mais velho ali; alto, de bochechas vermelhas e abundantes cachos de cabelos brancos.
— Do que me chamou Monsieur?
— Leio jornais! — sorriu. — Sabe por que foi atacado, Sean Queise? — voltou a insistir o homem de cachos de cabelos brancos.
Todos à sua volta não pareciam ter se dado conta do sobrenome ‘Queise’ e Sean não insistiu.
— Não tenho a mínima ideia... — mentiu, a pensar se talvez o beijo da loira de boina de feltro azul marinho e verruga acentuada na altura do lábio esquerdo, e também os três jovens de capa berrantes, além do fato de ter sido deixado na estação pelo trem que não passavam as horas, não estavam de alguma forma ligada ao ataque que sofrera.
Estranhou também tantos cabelos avermelhados por ali.
— De onde vinha Sean Queise? — voltaram a perguntar.
— Vinha de Nyon. O trem entrou num túnel e...
— “Nyon”? — Oswald Lambert perguntou.
— Turista! — disse a menina, ficando mais vermelha ainda depois do quarto em peso ficar a encará-la assustados.
— É! Sou! — respondeu Sean friamente ao ver o aspecto do olhar do ruivo Lück Laun. — Um turista!
— Disse ‘trem’? — o pequeno Pauli perguntou.
— Vamos! Vamos! — falou madame Michelina, por detrás de todos. — Vamos deixar o Monsieur Sean Queise descansar. Percebe-se que ele não está nada bem — e todos foram praticamente empurrados por Madame Michelina para sair.
“Nada bem?”, Sean não entendeu.
Oswald Lambert e o homem de abundantes cachos brancos lá ficaram.
E Oswald correu a apresentá-lo:
— Meu jovem, este é o Dr. Zuquim Heling. Ele é o médico mais antigo dessas redondezas do Cantão de Vaud.
— Muito prazer, doutor — falou tentando se erguer novamente, mas o frio e a grande altitude de onde se encontrava, alteravam o seu labirinto; Sean sentiu uma pressão no fundo do ouvido e se contorceu de dor. — Wow! O mundo ficou de ponta cabeça? — viu todo o quarto preso no teto.
— Como disse?
Sean viu que os dois homens e tudo mais voltaram ao normal.
— Acho... — e chocalhou a cabeça achando que a pancada havia afetado mais que seu equilíbrio. — Acho que... Nada!
Os dois homens só se olharam.
— Disse que vinha de Nyon? De trem? — Oswald o questionou outra vez.
— Sim! — respondeu Sean agora olhando para a porta que o Dr. Zuquim acabara de trancar e tirar a chave.
— Ele falou sobre o túnel — um disse para o outro.
— Não! Não pode ser isso.
— Mas se for?
— Está querendo dizer o que?
— Não sei. Talvez o Dr. Ângelus...
— Não! Sem permissão não, Oswald!
— Mas se foram os Luciedes? — voltou a cogitar Oswald para Dr. Zuquim que o fuzilou com um olhar. — Não, claro que não pode ser.
Sean viu a discussão se sentindo mais perdido do que já estava na Suíça, no quarto trancado.
Interrompeu a confusão:
— Quem é esse Luciedes? O rapaz Lück? — apontou para a porta agora fechada.
Os dois homens se olharam mais uma vez.
— Não! Lück e sua avó chegaram faz pouco tempo — respondeu Oswald. — Eles disseram que vieram de uma terra mais distante que a minha.
“Mais distante que a minha?”, pensou Sean sem dizer.
— Acho que eles falaram que vieram da Suécia — correu o Dr. Zuquim a concertar a fala de Oswald Lambert.
Dr. Zuquim e Oswald se olharam mais uma vez e Sean começou a não gostar daqueles olhares.
Não sabia se fora a pancada, mas nada ali ele conseguir penetrar, captar no éter, nem pensamentos nem quartos que ficavam de ponta cabeça.
— Com o que me atacaram? — foi só o que perguntou Sean.
— Provavelmente um cano longo e liso de ferro, porque não há marcas de superfície irregular — respondeu Dr. Zuquim. — A pancada atingiu o supercílio esquerdo.
— “Supercílio”? Não vi nada. Quero dizer... Como fui atacado duas vezes pela frente se não vi ninguém?
— Não sei, mas admira-me que seu rosto não tenha afundado pela pancada — explicou.
— Onde estou? — Sean sentiu um cheiro forte.
— Na minha casa — respondeu o Dr. Zuquim. —, na maior zona úmida da Suíça, a Grande Cariçaie junto ao Lago Neuchâtel, próximo ao Centro Champ-Pittet.
— Pântanos... — Sean entendeu o cheiro de enxofre.
— Monsieur me disse quando lhe dei carona na estação que havia vindo de trem?
— Por que a insistência?
— É que ainda não há ninguém trabalhando na estação.
— Não entendeu Sean Queise? Estamos com problemas na linha férrea de Nyon a Lausanne desde os primeiros minutos de 03 de março.
— Desde... Como? — olhou assustado para eles. — Que dia é hoje?
— Hoje é dia 20 de março.
— Vinte?! — gritou Sean se erguendo e caindo outra vez. — Ahhh... — o quarto girou e não foi nada metafórico.
Sean viu tudo girando, rostos e cores e cheiros tomando formas. Sabia que havia sido atingido de alguma maneira e por algo desconhecido aos seus dons.
— Você está bem?
— Eu... Desculpe-me...
— Acalme-se meu jovem. Vamos explicar isso — e Oswald e Zuquim voltaram a se olhar. — Eu lhe encontrei vagando na madrugada de 19 de março, por volta de meia-noite, próximo ao Sítio de Mormont, quando havia ido buscar lenha para vender. Depois subimos até Bavois e pegamos a E23, e viemos para Yverdon-les-Bains.
— O que é o Sítio de Mormont?
Os dois voltaram a se olhar.
— Um sítio arqueológico situado entre Lausanne e Yverdon-les-Bains, onde em 2008 encontraram dois corpos adultos com dois mil anos, deitados de bruços, sem o braço e a perna direitos, e queimados, confirmando o que os arqueólogos supunham já há algum tempo; que os antigos suíços praticavam canibalismo — falou Oswald entusiasmado.
— Cani... — e não continuou porque a sensação de que algo se rastejava no trem voltou às suas memórias.
— Textos romanos dizem que os celtas, dos quais os suíços são um povo descendente, praticavam sacrifícios humanos, mas até agora nenhuma prova arqueológica permitiu provar atos desse tipo.
— Não se preocupe mais com isso Sean Queise... — e o Dr. Zuquim olhou atravessado para Oswald que diminuiu um pouco de seu entusiasmo. —, o que interessa agora é você se recuperar e voltar.
— Voltar? Então hoje é dia 20 de março? — falava Sean totalmente confuso. — Não... Não... Não se pode voltar no tempo...
— No tempo?
— Não... Deve haver um engano em tudo isso. Eu parti as 23h00min, noite de 03 de março, de Nyon para Zermatt — olhou um e olhou outro. — Então passei pelo túnel... E estava frio... E a estação estava vazia... E eu desci... — Sean viu os dois lhe olhando outra vez, sentindo o medo lhe apertando o peito. — Deus... Por que eu desci?
— Não sabemos responder. Só que estamos sem trens desde a meia-noite do dia 02 de março, Sean Queise.
“Meia-noite... meia-noite... meia-noite...”, soava intermitente.
— Sempre achei aquele túnel perigoso — prosseguiu Oswald sentando-se numa cadeira revestida de pelos de carneiro. —, e dizem que os Luciedes, um bando de desordeiros, foram vistos roubando o aparelho que controlava a saída e chegada dos trens no túnel de Lausanne.
— Não pode ser... — foi a vez de Sean olhar um e outro. — Eu parti de Genebra para Lausanne dia 02 de março, e havia o grupo de observadores...
— Observadores? — ambos se alertaram.
— Sim. Eles estavam no trem quando desci em Nyon... E os músicos tocaram... E eu levantei atrasado e perdi a hora... E peguei o trem das 23h00min do dia 03 de março... E os observadores também estavam lá, quando eu desci em Lausanne a meia-noite...
— Mas não havia trens Sean Queise. Não havia porque os trilhos estavam obstruídos, e consequentemente todo sistema ferroviário fora desligado após o trem explodir na estação de Lausanne à 00h00min do dia dois.
— “Explodir”? “Lausanne”? Dia dois? — deu uma risada nervosa. — Não... Não... Eu peguei o trem... Coloquei meu netbook no cofre... Cabine 5-5... Pedi um bule extra... — e Sean sentiu dor de cabeça.
— Acha que a pancada... — ia Oswald falando para o Dr. Zuquim.
— Não estou louco! — alterou-se.
— Sr. Queise...
— Não me chame assim!!! — ergueu a voz. — Eles me chamam assim! Está bem? Não me chame assim!
Os dois se olharam sem saber ao certo quem era ‘eles’ e como o chamavam.
— Sean...
— Ótimo! Sean... Isso! Meu nome é Sean.
— Très bien Sean... Você sofreu com o frio, deve ter estado inconsciente e suas lembranças...
— É isso! — concordou Oswald. — Talvez seja isso. E não se lembre.
— Não sofri acidente. Estive no trem e ele parou... — e um fog se fez no quarto. Sean olhou os dois lhe olhando sem ver aquilo. — O trem parou... — engoliu a saliva a seco. —, e alguém desceu no fog... — e o fog ou o que fosse aquilo se desmanchou em pleno quarto. — Acho... Acho que estou cansado...
— Cansado! — e Oswald fez um movimento com as mãos para que ambos saíssem. — Vamos! Vamos o deixar descansar — deu uma virada laçando a mão na maçaneta com mãos firmes, enfiando a chave e girando rapidamente.
Para susto dos três, alguém do outro lado da porta quase caiu.
— Papa? — falou assustada ao ver o Dr. Zuquim a olhando por detrás do Monsieur Oswald. O pai das bochechas vermelhas que acentuavam a cor toda vez que via Sean, a encarou, mas nada falou. A moça prosseguiu. — Est-ce que je peux...
— Minha filha quer saber se já pode fazer o jantar? — falou o Dr. Zuquim num salto só.
— Sim... — falou um Sean meio sonado.
— Oui! — e o pai nada mais falou.
Sean, porém teve a certeza de que ela ouvira tudo.
Fechou e abriu os olhos. Fechou de novo e quase não conseguiu abrir. Fechou-os em definitivo e voltou a adormecer.
Residência do Dr. Zuquim, Lago de Neuchâtel, Yverdon-les-Bains; Cantão de Vaud, Suíça.
20 de março; 20h00min.
Sean abriu os olhos e sentiu algo acontecendo com seu estômago.
Um medo talvez, ele não sabia.
O quarto estava nublado outra vez, uma encenação tal qual o fog do Lago Léman, tal qual o fog da estação havia tomado conta do quarto de toras de madeiras envernizadas. Sean se ergueu sob os cotovelos e percebeu uma sombra de mulher, de curvas sinuosas e longos cabelos que se esverdeavam em meio ao fog.
Sentiu-se tonto sem saber se estava num sonho lúcido, sem saber se estava acordado, à frente daquela estranha figura verde e feminina.
Uma panela caiu não muito longe dali e todo seu corpo vibrou, mostrando a Sean que ele não estava longe do quarto onde dormira, que era aquela sombra esverdeada, que ainda o encarava, que havia ido até ele.
Sean tentou chamar o Dr. Zuquim, mas sua voz não saiu. Tentou mover-se, mas nada no seu corpo se movimentava.
A sombra esverdeada se inclinou e recuou, e outra vez um cheiro ocre, de restos se fez ali. Sean sentiu-se saindo do corpo, indo em direção à ela e se apavorou.
Desejou como nunca voltar ao corpo, tentar acordar mesmo sabendo que estava acordado, que era ela quem lhe comandava a alma.
“Mona?!”; gritou Sean em pensamentos.
Nada! Só o cheiro ocre, movimentos de panelas não muito longe dali e seus olhos girando sem controle.
Sean desesperava-se, ordenava seu corpo a reagir, acordar, e sua cabeça começou pequenos movimentos, sinapses que explodiam sob suas ordens, sentindo seus dedos tocarem o lençol macio, as mãos agarrarem-se a coberta de lã, e sua alma colar-se ao corpo.
— Ahhh! — o ar voltou-lhe aos pulmões.
Por mais míseros segundos e Sean estaria morto.
Olhou em volta em choque, a sombra esverdeada havia sumido. Arriscou se erguer, mas teve a sensação que todo o mundo o puxava para baixo.
Tombou encontrando o chão frio de madeira.
Esticou uma mão e outra, e se agarrou à cama, erguendo-se até os pés se firmarem no chão.
Pôs-se a caminhar e a porta do quarto desembocava numa espaçosa cozinha.
— Bonsoir! — sentiu o cheiro do jantar, o perfume da sopa.
A moça de bochechas avermelhadas teve um sobressalto na sua entrada; era bela, apesar de muito jovem.
— Bonsoir, Monsieur Sean Queise — falou tímida. — Comment allez-vous?
— Très bien! Merci!
— Quer sentar? — mostrou o sofá no outro extremo.
— Não.
Ela outra vez abaixou o rosto em sinal de timidez e Sean adorou aquilo até sentir que o médico o observava por detrás dele. A moça de cabelo loiro avermelhado ficou com as bochechas mais vermelhas ainda, no que viu o pai os observando, e se foi, passando por ele cabisbaixa, para um corredor que levava a outras portas.
— Je m’appelle Clara — disse seu nome de longe.
Sean voltou a achá-la um charme.
— Dizem que você é muito jovem para o cargo — a voz do Dr. Zuquim se fez afinal.
Sean tentou se encontrar na situação.
— Meu pai não pensava assim.
— Vinte e um anos? Por que lhe quiseram tão cedo?
— Por que o quê? — Sean se virou numa rapidez tamanha. — Ahhh... — sentiu dor, tontura.
— Ainda vai sentir latejar por alguns dias — o Dr. Zuquim apontou para a cabeça.
Sean percebeu a entonação profissional na voz. Andou e sentou-se com dor, servindo-se de sopa após ser indicado um prato; e tudo sem perguntar mais nada.
— Li que o centro termal em Yverdon-les-Bains oferece água de nascente sulfurosa a mais de 30 °C — Sean quebrou o silêncio.
Zuquim percebeu que ele tentava um diálogo.
— Graças às fontes ricas em enxofre e magnésio, Yverdon-les-Bains carrega uma longa tradição de Spas, e muitos vêm aqui para curarem-se. Nossas termas salutares datam da antiga era romana com primitivos castelos medievais de 6.000 anos de história.
— Aonde consulta?
— EHNV, Etablissements Hospitaliers du Nord Vaudois.
Sean sentiu a jovem Clara os ouvindo de longe. Sabia que ela estava ali, escondida quando o Dr. Zuquim serviu o prato vazio de ambos com sopa, novamente.
— Posso ir junto, amanhã?
— Pourquoi?
— Porque deve haver um computador com modem, não? — olhou em volta.
— Mas temos celulares.
— Preciso de um computador.
— Como queira.
— Sobre o desastre...
— Saiu nos jornais — explicou o Dr. Zuquim. — Morreram alguns moradores das redondezas do Cantão de Vaud, alguns funcionários locais e muita gente de fora.
— “Muita gente de fora”? — Sean arregalou os olhos azuis lembrando-se do fantasma de Sandy Monroe sentada à sua frente, no vagão-restaurante.
Depois se lembrou do túnel, se lembrou do frio que percorreu seu corpo, do pai sem olhos e da filha gelada, da substância que saía da boca da mulher de colar de pérolas. E lembrou-se também dos ufólogos, da vigília que aconteceria em Lausanne, da tal Èquidna, a serpente-sentinela do lago.
— A Suíça é um país pequeno, e tremendamente bem informado — prosseguiu Dr. Zuquim. — Um grande jornal como o Tribune de Genève anunciou a vinda do jovem empresário brasileiro, Sean Queise, para fechar o contrato de informatização da maior fabricante de alimentos da Europa, a Hautch Propieté.
— Sabe mais, não?
— Ufólogos falam aqui e ali.
— Deus... — olhou para o lado nervoso. Sabia que não podia ter se exposto tanto. — Meu rosto saiu estampado nos jornais?
— Acho que não.
— Armand disse que sim. Que me reconheceu pelas fotos do jornal.
— Armand Lacreax?
— Conhece?
— Ufólogos falam aqui e ali.
Sean girou os olhos, nervoso outra vez.
— O trem... Onde estão os destroços?
— Não sei. Foi tudo fechado para a perícia. Depois levado para a garagem.
— Droga! Alguns documentos meus ficaram na cabine 5-5 do trem.
— Sinto por isso!
Sean resolveu mudar de assunto. No fundo estava tão confuso que raciocinar, doía.
— Os Luciedes, quem são?
— Os três filhos do magnata da relojoaria, mais um sobrinho. Um bando de desordeiros que gostam de provocar as pessoas nas ruas, mexer com as moças. E eu que pensei que eles tivessem ido para a École Hoteliere Dubois por desordem, numa manobra de cumprimento de pena aliviada.
Sean não disse mais nada, acabou o jantar e se despediu dormindo até o dia seguinte.
7
Residência do Dr. Zuquim, Lago de Neuchâtel; Yverdon-les-Bains.
46° 46’ 42.6” N e 6° 38’ 27” E.
21 de março; 07h33min.
Sean já estava de pé quando o Dr. Zuquim abriu a porta do chalé para ir consultar. Entraram ambos no carro, não falando nada em todo o trajeto até o vilarejo. Mesmo assim, o Dr. Zuquim aproveitou para explicar que a menina Clara pouco saía de casa, que ela era uma menina medrosa desde a morte da mãe. Sean ficou achando que havia mais naquela informação, só não conseguia saber o porquê, e nem por que aquela informação estava bloqueada.
Começou a achar que talvez a pancada tivesse deixado seus dons paranormais mais lentos, lentos ao ponto de não saber onde estivera.
— Quem é o Dr. Ângelus?
O Dr. Zuquim o ficou observando.
— Um paranormal — foi o que respondeu.
Sean ergueu o sobrolho. Era tudo o que não imaginava que seria dito.
“Por que lhe quiseram tão cedo?”; ecoou, porém.
Etablissements Hospitaliers du Nord Vaudois, Yverdon-les-Bains.
46° 46’ 44” N e 6.64° 38’ 24’ E.
21 de março; 08h00min.
A fila de pacientes no consultório era grande quando chegaram.
Dr. Zuquim ficou sem saber o que o empresário brasileiro Sean Queise fazia dentro da sala dos médicos, nos computadores, pelo tanto de tempo que ficou lá, trancado.
— Poderia me fornecer uma xícara de algo bem quente? — perguntou Sean ao sair da sala e perambular pelo hospital, encontrando uma sala de refeições.
— Le thé, le café, le chocolat? — falou a cozinheira com uma voz rouca.
— Ah... — Sean se incomodou com a intensidade de seus olhos verdes. — Chocolat, s’il vous plait.
— Très bien! — e a cozinheira se foi para dentro de uma porta que no seu vai e vem, mostrou uma bem montada cozinha.
Sean olhou em volta novamente. Havia um banco encostado numa das paredes, e lá uma pilha de jornais e revistas. Ele se virou para a porta da cozinha e a cozinheira ainda não havia retornado. Virou-se para a pilha novamente e um jornal aberto chamou-lhe a atenção.
Arqueou-se para ver melhor e seus olhos se vidraram no que sua retina moldou a imagem, a fotografia de um corpo magro, seco, envolto em tecido de veludo vermelho; um corpo tomado pelo enrijecimento da morte onde só uma boina de feltro azul marinho sobrara intacta no rosto de verruga acentuada.
— Não!!! — ecoou o grito de Sean Queise por todo o hospital.
Residência do Dr. Zuquim, Lago de Neuchâtel; Yverdon-les-Bains.
46° 46’ 42.6” N e 6° 38’ 27” E.
21 de março; 17h25min.
— Você tem certeza do que está falando, Sean querido? — perguntou Oscar Roldman, ao vê-lo estático a mais de uma hora.
Era um homem de grande estatura, magro, elegante, de olhos azuis escondidos nos óculos de lente grossa e cabelos que se tornavam grisalhos.
Oscar Roldman era belo.
— Acha que eu imaginei tudo isso? — respondeu com uma pergunta cheia de irritação pela intimidade com que ele o chamava. — Acha que eu imaginei que saí de um trem enquanto ele ia embora sem mim?
— Não sei o que... Mona Foad me disse que você andava...
Sean sentiu-se atingido, não imaginava Mona amiga contando a Oscar ou a quem quer que fosse a angustia que ele vivia.
— Eu andava o que? O que Mona falou?
— Que você andava atrás dela.
— O que tem eu sair no éter atrás de Sandy com o fato de ter sido retirado de um trem que não existia?
— Os dois são ilógicos.
Sean deu uma risada gélida, no mesmo quarto de antes, os de toras de madeira nas paredes.
— O filósofo Friedrich Nietzsche dizia que entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero, estava o conhecimento de que o ilógico era necessário para o homem, e de que do ilógico também nascia coisas boas.
— Ela morreu Sean...
— Ninguém morre Oscar. Porque Nietzsche tinha razão. Somente os homens demasiadamente ingênuos, podem acreditar que a natureza do homem pode ser transformada em uma natureza puramente lógica.
Oscar balançou a cabeça nervoso. Sabia que aquela conversa não os levaria a nada. Mas sabia, contudo que Sean procurava Sandy Monroe no éter, por entre os muitos mortos, para lhe pedir perdão.
Sean captou tudo aquilo, toda aquela informação. Não queria, mas elas chegavam até ele. E não queria, pois tinha medo de saber o que não queria saber; medo da duvida de ser Oscar Roldman, seu verdadeiro pai.
— Ahhh... — se odiou por lembrar aquilo. — Por que Oscar? — Sean o viu olhar imaginando muitas coisas. — Por que não consigo fazer isso com eles?
— Eles quem?
— Os habitantes daqui — e Sean percebeu que Oscar fechara qualquer comunicação telepática com ele.
“Droga!”; resolveu mudar de tática.
— Monsieur Oswald disse que os trens não funcionam desde os últimos segundos de 02 de março, 00h00min. Mas eu tomei um trem em Nyon para Zermatt, Oscar, às 23h00min da noite de 03 de março, numa estação quase vazia, com um inspetor de cabines dizendo que o trem não iria parar em Lausanne — olhou Oscar lhe olhando.
— Sean...
Sean só o olhou.
— Mas o trem parou Oscar. E eles desceram Oscar, desceram na estação que marcava 02 de março 00h00min, e 00h00min, e 00h00min, e 00h00min, e 00h00min, e o tempo não passava.
— Sean! — exclamou nervoso.
— O que? — encarou-o. — Acha que sou ilógico? — Sean respirou profundamente e se controlou. — É... Talvez ache. Mas você tem que acreditar que cheguei a Lausanne mostrando que a estação parou no tempo, dia 02 de março. E que cheguei no frio que congelava os metais, que cobria a estrada de um nevoeiro espesso, que me levou até o Sítio de Mormont, onde corpos celtas foram comidos.
— “Comidos”?
— Comidos há dois mil anos, em Mormont, onde peguei carona com o Monsieur Oswald e seu filho segundo minhas contas, horas depois de ter sido abandonado na estação, mas ele diz que foram 17 dias depois.
— Kelly disse que o American Express Card estornou o pagamento que você fez para as passagens de trem, porque simplesmente não havia trens para viajar.
Sean arqueou a bela face.
— Isso não é possível... — olhou em volta; suas ideias estavam confusas. — Eu recebi as passagens...
— Eu não tenho explicação para isso, Sean querido. Houve realmente um acidente fatal dia 02 de março à 00h00min, logo que o trem saiu da estação de Lausanne e explodiu.
Sean caiu em sonora risada.
— Como não pensei nisso antes? Tomei um trem fantasma! — Sean viu o olhar frio de Oscar. — O quê? Acha que tomei um trem fantasma?
— O que foi fazer no CESG? — cortou sua fala.
— Onde?
— Não adianta mentir Sean. Sei que esteve no Centre d’Etudes Spirites de Genève para ouvi-los.
— Os mortos ou os alienígenas?
— Não me provoque Sean!!! — berrou descontrolado.
— Olha aqui! Não sei como sabe que estive lá, mas...
— Temos um problema! — cortou sua fala outra vez.
— Com minhas duvidas espirituais?
Oscar só o fuzilou.
— A Polícia Mundial investiga os Luciedes há mais de três décadas sem nada conseguir provar.
— “Três décadas”? Disseram-me que eram jovens... — e Sean sabia que havia algo mais. — Só a Polícia Mundial os investiga ou a Poliu também está atrás deles?
— A Poliu não existe.
Sean gargalhou.
— Então qual é o problema que ‘temos’ aqui?
— Uma coleção de arquivos confidenciais da Poliu.
— Wow! Estamos falando sobre uma corporação de inteligência chamada Poliu que não existe, mas que adora ‘colecionar’ arquivos confidenciais? — Sean se enervou quando Oscar nada falou. — Uma coleção de arquivos confidenciais sobre a Èquidna, não?
— Não sei nada sobre mitos gregos sobre Èquidna, Sean querido.
— Qual é Oscar? ‘Só sei que nada sei’? Pois eu sei que há ufólogos que falam aqui e ali, vigílias no Lago Léman, e uma coleção de arquivos confidenciais falando sobre uma serpente-sentinela do lago chamada ‘Èquidna, a serpente grega’, sob o número 10-2-5-5.
— “Èquidna”?
— Estudei filosofia, Oscar. Hesíodo, o poeta grego descreve na sua Teogonia que ‘A feroz deusa Èquidna que é metade ninfa com olhos brilhantes e face clara, e a outra metade uma gigantesca serpente, com a pele manchada, comendo restos de carne escondida em um pequeno buraco localizado em partes secretas da terra’.
— Buraco... — soou outra vez estranho da boca de Oscar Roldman. — Por que o interesse?
— “Interesse”? Meu? Não tenho nada haver com isso. Os ufólogos no trem é que disseram que eu estava aqui por causa dela — Sean viu que Oscar continuava a olhá-lo. — E não me olhe assim. Já disse que não sabia sobre arquivos confidenciais de serpente-sentinela do lago algum, nem sobre serpentes alienígenas ou sei lá mais o quê, enfiada em buracos suíços que nem se quer poderiam ser comparados aos campos de concentração nazista.
— Mas há algo na coleção de arquivos confidenciais, não Sean querido?
— Há? E como eu saberia? Ou ainda achando que vim parar aqui em Lausanne porque hackeei algo de algo que não existe?
— Você que está falando.
Sean agora riu nervoso.
— Não comece Oscar, que coleção de arquivos confidenciais é essa? Por que está me provocando dessa maneira?
— “Provocando”?
— Como conseguiu essa coleção de arquivos confidenciais, Oscar?! — gritou.
— Não se atreva a levantar a voz moleque mal-educado!
— É... Meu pai nunca foi forte comigo, não? Na minha educação?
— Que educação?
Sean o fuzilou.
— Basta com essa baboseira toda. Quero saber como conseguiu algo que não consta nos computadores da Poliu?
— Você voltou a hackear a corporação?
— Voltei?
Oscar também sabia que aquela baboseira toda não os levaria a nenhum lugar, e que ele precisava era levar Sean dali, precisava que ele estivesse em Lausanne, que assumisse os problemas que existiam ali.
E aquilo não chegou até Sean.
— Fale-me sobre os ufólogos.
— Ufólogos mortos no trem fantasma?
— Como ‘mortos’?
— Mortos Oscar, com ectoplasma saindo deles.
— Sean... — caiu sentado tentando encontrar alguma lógica ali.
Sean também tentava encontrar lógica naquilo tudo, no que acontecera com ele noite anterior, e se ele também era capaz de gerar ectoplasma e plasmar a noiva morta no banco em frente ao seu, num trem que não existia.
— Charles Richet era um fisiologista que se propôs a responder o que era a paranormalidade, como a telecinese de raps, levitação de mesa e poltergeistes, ou a telepatia, clarividência e outras, no que o pesquisador Ernesto Bozzano relatou em seu livro Pensamento e Vontade, como substância ectoplasmática, já bem conhecida pelos alquimistas do século XVII, já que Paracelso a denominou de Mysterium Magnum e Thomas Vaughan a denominou de Matéria Prima.
Oscar o encarou por segundos.
— Aonde quer chegar?
— Eu? Os ufólogos estavam mortos Oscar, emanando uma substância borrachenta de suas bocas, quando tentaram se comunicar, dizer que estavam mortos.
— Carl Sagan dizia que a psicocinese pertencia a uma longa lista de produtos típicos da pseudociência e da superstição, afirmando que seria tolice aceitar qualquer afirmação paranormal sem evidências adequadas.
— Ele com certeza não conhecia a família Roldman, não?
Oscar sentiu um arrepio atravessar-lhe.
— Podemos começar outra vez? Disse que encontrou ufólogos?
— Os encontrei ainda vivos, na viagem que fiz de Genebra a Nyon após fechar o contrato com a Hautch Propieté — e Sean viu os olhos de Oscar brilhar. — Ok! Sei que parece ilógico eu ter feito duas viagens, mas Armand Lacreax contou-me sobre as vigílias ufológicas que presenciei no lago, e eu disse que nada sabia sobre vigílias aqui, mas menti. Menti está bem? Porque sabia que a lista de ufologia andava interessada em mitologia grega, em gigantomaquia.
— Lista de ufologia?
— É isso que te incomoda? Eu ainda participar das listas? Então seu incômodo será maior, quando disser que vinha tentando ler os pensamentos de todos naquela vigília do dia 05 de janeiro, mas não consegui saber nada.
— Acha que estavam preparados para lhe bloquear? — soou irônico.
— Não! Meus dons estão afetados pelo aniversário de morte de Sandy, impregnados pelo arrependimento de tê-la deixado se matar sabendo que ela ia se matar.
— Não fale baboseiras! — explodiu.
— Há vozes, Oscar, vozes que vinham me avisando há mais de um mês sobre o negócio que fechei aqui com os Braushin, avisando que eu não deveria fechá-lo, porque traria mortes e dor.
— Meu Deus Sean querido... — e aquilo se perdeu.
— Porque venho tentando desenvolver meu dom paranormal sozinho, porque Mona já não tão amiga assim, me abandonou. E porque tento sair do corpo atrás das atividades deles, dos espiões psíquicos da Poliu, mas nada consigo saber, nada sobre esse negócio que fechei aqui.
— Trevellis sabe?
— Não sei. Os agentes da Poliu foram preparados para brecar seus próprios espiões psíquicos.
— “Seus próprios espiões psíquicos”? Você se incluiu? — Oscar não gostou do silêncio. — Por que acho que vou ter uma enxaqueca?
— Porque deveria ter uma! — Sean exclamou com força e Oscar sentou-se na beirada da cama realmente antecedendo uma enxaqueca. — Porque sim, menti mais de uma vez, a lista de ufologia investigava a Èquidna. Mas eu não estava interessado. Juro! Não atrás de mais mitologia do que iria querer.
— Do que está falando?
— Quando me trouxeram para cá após o ataque na neve, Monsieur Oswald queria me levar a um paranormal de nome Dr. Ângelus. Eu investiguei pelo computador do hospital, ele é um estudioso das Lâmias.
— “Lâmias”?
— Lâmias eram criaturas misteriosas, geralmente femininas, que viviam em cavernas ou no subsolo, e atormentavam os povoados, alimentando-se de sangue humano ou devorando mulheres jovens.
— Sabe que não gosto dessas coisas de...
— Na mitologia grega conta-se que Poseidon se apaixona por uma mulher humana, rainha da Líbia, e que deles nascem Lâmias, possuidoras de uma beleza tão estonteante que todos os homens a desejam, e o próprio pai Poseidon, se apaixona por elas.
— Mitologia Sean...
— E o que é a mitologia se não... — e Sean calou-se.
E calou-se porque havia vozes ali.
“Je veux faire l’amour avec toi!”
— Ouviu isso?
— Isso?
— Quando Hera, Deusa do casamento, descobre que Lâmia teve filhos com seu pai Poseidon... — Sean prosseguiu já com medo estar ali, naquela aldeia, na Suíça toda. —, ela mata todos os filhos dela, e a amaldiçoa a vagar pela Terra sem nunca fechar os olhos para ver seus filhos mortos. Lâmia então se torna um monstro, mas assume sua beleza para arrastar homens para a cama, e fazer as mulheres sofrerem o que ela sofria. Alguns contos dizem que ela tem uma cauda de serpente abaixo da cintura, e provável Èquidna, Lâmia e mais mulheres serpentes estão inseridas em arquivos confidenciais da Poliu.
— Quantas mulheres serpentes Sean querido?
— Medusa, Esteno e Euríale; górgonas Oscar, monstros ctônicos que se designam deuses ou espíritos do mundo subterrâneo, metade mulher metade serpente.
Agora Oscar teve a enxaqueca. Sentou-se na beirada da cama tentando entender como Sean, que não lia pensamentos dos agentes preparados para bloqueá-lo, podia captar informações no éter, informações sobre o Dr. Ângelus que Oscar sabia, não tinha informações em sites ou qualquer outro lugar físico.
Temeu que seu filho estivesse realmente preparando seus dons para algo muito pior que hackear os bancos de dados da Poliu.
— Isso são insights, Sean! Porque lunáticos estão sob vigília de lunáticos.
— É isso que acha de mim, Oscar? Que sou um lunático? Propenso a insights? — Sean sabia que Oscar não responderia, não àquilo.
— Por que acha que a Poliu tem uma coleção de arquivos confidenciais sobre essas mulheres serpentes?
— Não sei se ela os tem Oscar, mas mitos sobre serpentes, mulheres belas e fantasmagóricas, com seios empinados e firmes, atraindo jovens a seu leito são coisas que a Poliu vinha investigando.
Nunca a frase ‘Quero fazer amor com você’ o apavorou tanto.
— Diodoro Sículo, um historiador grego que viveu no século I a.C. dizia que Lâmia era uma mulher de rosto distorcido, provável uma plasmagem de algo que não conseguia entender. Sabe-se, porém que Diodoro esteve no Egito, entre 60 a.C. e 57 a.C., onde iniciou as pesquisas necessárias para suas atividades de historiador. E que deve ter se envolvido com Jâmblico e os pitagóricos que sabiam da existência de deuses alienígenas — Sean viu Oscar o olhar com interesse. — O que foi? Estudei história, você não?
Oscar ficou o olhando e Sean odiou-se pela falta de coragem, porque não podia ler-lhe os pensamentos como fazia com Kelly, com sua mãe, sua irmã, seu pai.
Sons de panelas se ouviam do lado de fora do quarto, provável Clara preparava o almoço.
— Eles foram encontrados no Gilf Kebir após sumiço de uma semana — a voz de Oscar estava tão rouca que Sean não entendeu o que ouviu.
— Quem?
— Os cientistas afirmaram categoricamente que um bando de répteis, serpentes alienígenas, estava infiltrado na Terra, vindos do Egito antigo, disfarçados de seres humanos há muito divulgado por mitos.
— Wow! — Sean realmente se assustou com aquilo saindo da boca do todo poderoso homem da Polícia Mundial. — Wow! Wow! — ele sabia que não ia gostar de ouvir mais. — Estamos falando sobre egípcios reptilianos? De que eles estiveram aqui antes dos Anunnakis, engenheiros alienígenas que nos fizeram como contam os contos sumérios?
— Não sei dizer Sean.
— Apep também conhecido como Apófis, era o espírito egípcio do mal, da escuridão e destruição, que ameaçou destruir o deus Sol, Rá; uma criatura em forma de serpente que vivia no último dos 12 portões do Submundo, cada um representando uma hora da noite, e onde era o maior desafio para Rá chegar lá, na meia-noite... — e Sean ouviu o silêncio do outro lado da porta. — Apep era a personificação do caos no submundo, rodeado por demônios que auxiliavam na captura de almas que tinha... Deus! — olhou Oscar esperando mais. — Está me dizendo que a Polícia Mundial resgatou cientistas abduzidos? É isso? Abduzidos por serpentes alienígenas disfarçados em humanos, em Gilf Kebir, deserto da Líbia? — Oscar não respondeu e Sean ficou de guarda. — É no sudoeste do Egito e no sudeste da Líbia, mais precisamente na Cratera de Kebira, que as listas de ufologia falam de inscrições rupestres e desenhos de UFOs. Não pode ser tudo uma grande coincidência pode? — Oscar nada falou outra vez. — Vamos lá Oscar! São as vigílias que veneram serpentes que lhe estão incomodando, não? Que o trouxe à Suíça?
— Vim à Suíça lhe resgatar.
— Mentira! Você já estava aqui antes mesmo de eu me comunicar com a Polícia Mundial. Porque o estudo de Armand Lacreax sobre Lâmias e naves simbióticas que se comunicam com serpentes alienígenas, chegou até você.
Oscar levantou-se e voltou a dar voltas e voltas. Oscar sentou-se e Sean sabia que não ia gostar de ouvir o que ia ouvir.
— Sempre que episódios de vulto são revestidos de uma ponta de mistério, surgem paralelamente às chamadas teorias conspiratórias; suposições de que alguém ou alguma associação planejou uma ação.
E o silêncio.
— E?
— Nada! Depois o sumiço de provas e dos envolvidos nela — Oscar olhou-o. — Não é teoria que a Polícia Mundial deu suporte a alguns cientistas tempos atrás.
— Cientistas da Poliu, não? Cientistas que montaram a coleção de arquivos confidenciais para a Poliu e foram abduzidos, suponho.
— Está lendo mentes, Sean querido?
— Não leria a sua por nada nesse mundo.
Oscar desgostou daquilo. Resolveu se fixar no problema ali presente. Ser ele filho dele ou não, teria que esperar. E a próxima reclamação sobre a educação que Fernando Queise lhe dava, também.
— Os cientistas da Poliu investigavam o caso de um objeto que desapareceu dentro do Lago Léman, no Réveillon, quando sumiram e reapareceram no Gilf Kebir.
— Sabia que o Ph.D em História Americana, David Jacobs já conduziu 900 regressões sob hipnose em 1400 abduzidos? É um número considerável para acreditarmos em quem afirma que os abdutores não informam sua origem ou seus objetivos, não compartilham os aspectos clínicos sobre tais procedimentos, e não desejam ser descobertos, e muito menos interrompidos, Oscar.
— Não brinque!
— Não achei que estava brincando! Porque sei que acha que fui abduzido, levado ao Gilf Kebir, trazido depois do acidente de trem.
— Que trem Sean?
Sean não quis participar daquele jogo. Sabia que Oscar, talvez todos ali em Yverdon-les-Bains jogavam com ele, com seu sumiço.
— Fale-me sobre o Réveillon.
— Fomos chamados depois que a polícia local encontrou um corpo vazio nas margens do Lago no Réveillon.
— “Vazio”? Vazio como... — não conseguia terminar. — Droga! Eram agentes da Polícia Mundial ou da Poliu no trem? Os ufólogos eram seus agentes, Oscar?! — gritava. — Você os mandou me vigiar?!
— Não sei nada sobre ufólogos, Sean! Não grite comigo!
— Sabia sim! Ufólogos que estudavam uma irmandade que venera discos voadores simbióticos, UFOs no Lago Léman de onde desapareceram agentes da Poliu! Ahhh! Mas que droga! — explodiu.
Sean saiu do quarto dando de cara com Oswald e o Dr. Zuquim que se ergueram do sofá assustados. Olhou Clara paralisada com uma panela na mão, e voltou a olhar Oswald e Zuquim, quando se virou e saiu do chalé, ganhando a neve.
— Espere Sean! — Oscar o alcançou pisando e afundando na neve macia que caía. — Precisamos realmente conversar!
— Conversar?! Desde quando realmente conversamos Oscar?!
Ambos eram dois pontos na imensidão branca.
— Pare de gritar, Sean! Não! Não conversamos! Brigamos porque Fernando não soube educá-lo!
Sean estancou fazendo Oscar respirar o ar dele.
— E você o quis, Oscar querido? — e Sean viu Oscar paralisado ali, na neve macia. — Vamos! — Sean bufava. — Responda! O que veio fazer aqui?
— Convencê-lo!
— E do que preciso ser convencido? — afundava agora ele na neve macia.
— O nome dela era Aline Dubois! — Oscar mostrou no tablet uma foto tão parecida quanto Sean viu no jornal do hospital, que o fez perder o equilíbrio.
— Foi essa Aline quem me beijou na estação...
— Como pode afirmar isso? Esteve sobre efeito do frio.
— Frio?
— Bateram em você.
— Bateram em mim... — e Sean se virou, andando para longe.
— Sean? Aonde vai Sean? Sean?! — descontrolou-se o vendo andar para cada vez mais longe. — Sean?! Volte aqui seu moleque atrevido!
Sean agora estancou e voltou trotando feito um cavalo furioso, que estava.
— Era um moleque criando Spartacus para a Polícia Mundial?! — vociferou fazendo sua voz alcançar Oswald e Dr. Zuquim na sala, que se olharam. — Era moleque quando você e meu pai mandaram-me assumir a Computer Co.?!
— Eu e quem?
— Você e meu pai, sim! Porque eu sei que você... Meu pai e você... E que minha mãe mandou Kelly... Ahhh!!! — e se virou novamente para longe dele.
Mas Oscar não perdia o equilíbrio, não chegara à chefia da Polícia Mundial por pouco. Não depois da infância pobre, da escola cara financiada pelo tio rico, não após manifestar dons paranormais e sofrer com eles.
Não era homem de desistir, não sabendo que Sean também sofria, que amava aquele que sabia ser seu filho.
— Aline desapareceu logo após o Natal e foi encontrada vazia na noite de Réveillon, Sean. Você não podia tê-la visto.
— Vamos Oscar! Insista que Mona me preparou para fazer algo naquela maldita estação — se distanciava.
— As coisas insanas que Trevellis faz com seus espiões psíquicos me fogem a razão, sim... — foi atrás dele. —, mas Mona Foad lhe ensinar tudo aquilo me foi mais perturbador ainda — e Oscar viu Sean nem se quer virar-se para ele. — A tia de Aline é Cybele Dubois, diretora de uma escola em Lausanne.
— “Dubois”? A escola dos Luciedes?
Agora Oscar viu Sean parar de andar.
— École Dubois, uma escola das ciências, todas elas, inclusive feitiçaria sob o controle da família Dubois, chegada à Suíça ainda no século I a.C..
— Século I a.C.? Século I a.C. onde Diodoro Sículo dizia que Lâmia era uma mulher de rosto distorcido? Essa é a hora em que eu deveria estar com medo?
— A École Dubois se mudou para Lausanne quando os romanos construíram um acampamento militar, a que chamavam Lousanna, no local de um assentamento celta, perto do lago, onde atualmente são Vidy e Ouchy.
— Wow! Você também estuda história? É genético? — Sean viu Oscar atingido.
Os dois se mediram.
— A Suíça detém o recorde europeu de perseguição às chamadas bruxas. Cinco mil pessoas foram julgadas por bruxaria na Suíça até 1782, só aqui no Cantão de Vaud mais de três mil pessoas foram processadas por bruxaria, e duas mil executadas publicamente. Foi uma das taxas mais elevadas de pena de morte na Suíça, tempo em que coincidentemente a École Dubois esteve ‘fechada’.
— Deus... Na Alta Idade Média, o termo Lâmia referia-se a espíritos que voavam a noite. Depois de 1450, as Lâmias começaram a aparecer em tratados inquisitoriais de feitiçaria, referindo-se a feiticeiras.
— No começo do século XIX, a École Dubois, então escondida numa floresta fechada, foi transformada numa escola de etiquetas, interna, só para meninas, e que por sua vez por motivos econômicos, se viu obrigada nos dias de hoje a abrir vagas para homens, a fim de se reestruturar.
— E por que isso é importante?
— A coleção de arquivos confidenciais não fala.
— E por que essa escola é importante?
— Como você acabou de fazer vinte e um anos... — e Oscar ouviu Sean gargalhar nervoso. —, eu quero você dentro da École Hoteliere Dubois! — aquilo soou realmente como uma ordem.
— Você quer o que?
— Um amigo meu tem um sobrinho, afilhado, que se chama Sean; Sean Montebello.
— Antônio Montebello é o português das telas de LCD, amigo da família do meu pai. O quê? Meu pai e você também dividem os amigos? — Sean foi cruel.
— Por que acha que não?
Sean não sabia o porquê, mas imagens de sua infância voltavam, porque tudo sempre voltava; a imagem de seu pai, seu sorriso, o orgulho em tê-lo como filho, sua inocência intacta. E Oscar lá, por perto, na saída da escola, nas muitas apresentações de música, nas vitórias esportivas, no noivado com Sandy.
E o som do tiro daquela noite o trouxe à Suíça, à realidade:
— Por que me quer nessa escola Oscar?
— Antônio Montebello tem um irmão perdido pelo mundo com centenas de filhos espalhados. Sean Montebello é um deles.
— Por que me quer nessa escola Oscar?
— Sean é um jovem muito pobre sustentado pelo padrinho Antônio, que tenta dar estudo a ele a qualquer custo, mas ele é expulso de todas as escolas por onde estuda — continuava de costas.
Sean girou os olhos nervoso.
— Por que me quer nessa escola Oscar?! — alterou-se.
— Porque meus agentes reconheceram seu agressor como Günter Luciedes. E Günter Luciedes apareceu morto ontem! Vazio!
Sean arregalou os olhos azuis a quase saltar do globo ocular. Não sabia se era impressão ou não, mas estava ali porque tinha que estar ali, porque precisava estudar naquela escola, porque Günter apareceu morto e vazio.
E porque algo esverdeado, sem rosto e de aspecto feminino se rastejou no trem, e se rastejou no ataque, e se rastejou no quarto de toras envernizadas, querendo fazer sexo com ele.
Sean se virou e se aproximou dele.
— “Mesmo o homem mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo da natureza, de sua postura fundamental ilógica diante de todas as coisas” — Sean se virou e entrou no Volvo consular que trouxe Oscar Roldman. — Incrível como Nietzsche é atual, não?
Foi o que Oscar ouviu de dentro do carro.
8
Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 12’ 0” N e 6° 9’ 0” E.
22 de março; 10h17min.
Oscar Roldman e Sean Queise haviam dormido em Lausanne, no quarto já pago por Sean. E ele passou a noite pensando em muita coisa, mas nada foi mais assustador que a despedida de Clara, sob fortes olhares do bruto Lück Laun do outro lado da rua, a fuzilá-lo quando ele aceitou o delicado beijo no rosto que ela lhe deu. Madame Michelina Laun o puxou para trás quando passaram por ele. E ela usou de alguma tática que fizera Lück se controlar e Sean temê-la mais que tudo até aquele momento, porque sabia que devia temê-la.
Sean e Oscar seguiram para a École Hoteliere Dubois, uma grande construção enterrada na La Forêt du Jorat, Floresta de Jorat, que por sua vez contornava a costa do Lago Léman.
O Volvo consular entrou numa clareira e parou. Sean saiu do carro e parou em frente a um imponente portão de ferro.
Oscar o alcançou.
— Conversei com a Srta. Cybele Dubois sobre você — Oscar não se intimidou pelo silêncio. Sean continuava nada a falar e Oscar sabia que algo o motivara a aceitar aquela missão. No fundo temia um confronto dele com a Poliu. — Tome cuidado com certos detalhes sobre a morte da sobrinha Aline. Nada que falei saiu nos jornais — e Oscar entregou um pacote lacrado nas mãos de Sean que encarou o pacote antes de pegá-lo das mãos dele. — Aí tem dinheiro. Não é muito, por isso use-o nas emergências. Não poderá usar seu sobrenome e nem seus cartões de crédito, muito menos o netbook.
— Perdi meu netbook — Sean não falou sobre o ilógico cofre do trem fantasma.
— Sinto por isso! De qualquer forma se precisar de dinheiro, telefone para mim de um telefone público como sendo meu sobrinho, porque me apresentei na escola com o passaporte de Antônio Montebello.
— Ótimo! — exclamou irritado — ‘Titio’ já veio fazer minha matrícula?
Oscar não entrou no jogo dele.
— Tente manter-me comunicado, Sean querido.
— Através de Spartacus? — foi puro fel.
Oscar nem começou a falar o que ia falar.
— Sabe que venho tentando acessá-lo e encontro dificuldades, não sabe?
— Como saberia? Não trabalho para a Polícia Mundial, não trabalho para você, Fernando não me educou como deveria, e provável nem sei mexer no satélite de observação que fui obrigado a construir.
Os dois se encararam por breve segundo.
— Isso! O construiu, não foi talhado para usá-lo.
— Talhado...
— Os entanglements dos dados de Spartacus não funcionam a contento, meus agentes dizem que é porque você não sabe lidar com o satélite de observação Spartacus.
— Seus agentes o quê? — Sean achou que não entendeu.
— Tive dificuldades de explicar à Polícia Mundial porque ele age assim.
— Primeiro, o entrelaçamento é um fenômeno, Oscar, que faz com que duas partículas se influenciem diretamente, qualquer que seja a distância entre elas. Spartacus pode estar tendo algum eco e não fui eu quem o gerou.
Oscar não se deu por vencido.
— Não gerou, ou continua a gerar vácuos condensados utilizado na detecção de ondas gravitacionais para criar um supercomputador?
— Aonde quer chegar?
— Chegar, a saber, por que precisa de outsourcing. É para fugir ao controle de seu pai que nada sabe sobre vácuos condensados?
Sean sentiu todo seu corpo esfriar. E não foi pelo frio suíço, tinha certeza.
— Nunca escondi nada de meu pai. Gero vácuos condensados utilizados nas pesquisas sobre computação quântica, onde eles são utilizados para armazenar informação, gerando o entrelaçamento construído com luz congelada — encarou agora demoradamente. — Só isso!
— “Só isso”? — Oscar estava nitidamente uma fera com ele. — Está tentando criar algo para esconder algo, Sean querido?
— Wow! Será algo como uma coleção de arquivos confidenciais? De uma corporação de inteligência que não existe?
Oscar só o olhou e Sean sabia que seu próprio cinismo era só uma máscara.
— Mas que inferno, Sean! — se enervou. — Agora pegue esse nano adaptador USB Wireless e coloque dentro dessa falsa jaqueta dentária, isso vai permitir conectar um desktop ou notebook, a uma rede wireless na velocidade de 150 Mbps — Oscar retirou de um estojo de acrílico, o vendo encaixar dentro do dente molar sem cogitar.
— Onde fica a rede?
— Não fica! Não existe qualquer maneira de se usar uma comunicação wireless dentro da École Hoteliere Dubois, nem celulares — ele viu Sean só escorregar um olhar. — Agentes meus acreditam que Cybele Dubois possui códigos identificadores que bloqueiam o backbone local, para que não se possa enviar ou receber qualquer conteúdo, deixando todo o entorno sem autorização para acessar a Internet.
— Então devo procurar algum computador em rede escondido?
— Não! O nano adaptador irá se morfar num backbone. Contudo avisará o sistema de segurança de Cybele, por isso use-o somente em emergências. Fui claro?
— Claro...
Oscar prosseguiu:
— Estaremos em dois lugares; acima da escola há uma trilha em meio à Floresta de Jorat que leva para o ponto mais alto da montanha. Lá há uma cabana. Procure-me nas emergências. Também estaremos abaixo da escola, pela trilha que o levará a uma cachoeira, e lá há um pequeno lago. Só nas emergências.
— Já viu quantas vezes essa palavra foi usada?
— Do outro lado da cachoeira há uma terra inabitada. Não sabemos a quem pertence o terreno, mas vimos movimentação estranha por lá. Evite-a!
— Não se preocupe. Vou evitar tudo isso e mais.
Oscar não o entendeu.
— Cuidado, Sean querido.
— Não sou seu querido — e retirou as mãos que Oscar depositara nos seus ombros.
— Não seja mesquinho, Sean. Deixe-me cuidar de você.
— Como cuidou do amor de minha mãe?
Oscar o encarou furioso e se foi.
Sean ficou o olhando, havia algo ali, naquela atitude.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
22 de março; 11h11min.
Sean virou-se e ficou a encarar o imponente portão de ferro envelhecido com mais de quatro metros de altura. O terreno amplo e cheio de altos e baixos escondia a École Hoteliere Dubois do portão de entrada; um enorme edifício antigo em forma de um U, com colunas dóricas e jônicas, que se intercalavam numa mistura exótica de estilos.
Com paredes todas revestidas de pedras, tomadas pela vegetação que subiam até a sua cobertura, era conservada apesar da idade, contudo sempre reformada e adequada às necessidades.
A construção do edifício tinha internamente dois pavimentos distintos, onde terminava cada um, pelo lado de fora, em uma cobertura ladeada por um torreão, um em cada ponta, e onde adormeciam antigos relógios. Seguia-se pelo chão da entrada, uma pista de tijolos envernizados sem neve. O redor, porém era gramado verde, agora tomado pelo tapete de gelo. Sean imaginou que funcionários limpavam aquela entrada diariamente.
Ao lado esquerdo protegido por uma enorme pirâmide de vidro, e aço, o centro aquático da escola despontava; uma piscina que Sean julgou ser aquecida mostrava seu reflexo no vidro, enquanto quatro quadras de esporte do lado de fora estavam com suas redes congeladas.
Por detrás da fechada e espessa Floresta de Jorat, ladeando o edifício, Oscar havia dito ter uma descida íngreme, com uma pequena cachoeira que descia pelas falésias da bela montanha que Sean apreciava naquele momento ao entrar na escola.
E ele percebeu o reboliço que aconteceu dentro do edifício quando tocou a campainha e rostos e mais rostos pintaram na janela, à direita de onde estava.
A Srta. Cybele Dubois abriu a porta num rompante, não estava acostumada a abrir portas.
Usava os cabelos loiro platinado, envoltos, porém, num belo e alto coque.
— Que voulez-vous?
— “Que desejo”? Ah! Não havia qualquer comunicador na entrada do portão então... — apontou para trás, falando em inglês.
Cybele olhou para trás e viu dois homens de terno preto com malas na mão.
“Desgraçado!”; pensou Sean furioso ao ver as malas prontas.
Os homens de preto nem uma palavra trocaram. Despediram-se de Sean e sumiram portão afora onde Oscar Roldman os esperava.
— Je m’appelle Sean Montebello — recuperou-se.
— Oh! Enchanté! Est-ce que vous me comprenez?
— Se eu compreendo? Bem... Meu francês não é dos melhores — respondia em inglês.
— Está bem então. Vamos Sean Montebello, estávamos esperando-o ontem — sorriu para um Sean impactado. — À gauche, s’il vous plait — falou gentil e bondosa a esticar as mãos suaves e levantar uma das maletas para ajudá-lo.
— Não! — Sean a tirou de suas mãos. — S’il vous plait!
Ela se inclinou numa mesura.
Gostava de jovens educados.
— À direita, por favor — apontou.
Sean foi introduzido num grande hall de entrada. Uma coleção de oito grandes e confortáveis sofás de veludo vermelho sendo refletido por três grandes e majestosos lustres de cristal Baccara, que pendiam do pé direito de cinco metros, iluminando telas de artistas de renome e muitos vasos de porcelana chinesa, ladeando peças de cristais acomodados em mesas de vidro e pés de ferro verde.
Havia mesas ladeando as paredes de madeira pintadas de branco, contrastando com a madeira escura do piso.
Num outro extremo da espaçosa sala que mais lembrava um lounge de hotel, havia uma extensa bancada de mármore travertino mostrando ser onde provável o concierge recebia os hóspedes.
Era uma decoração clássica, contrastando da fachada gótica.
— Quem projetou a escola?
Sean sentiu que Cybele realmente fora pega de surpresa pela pergunta.
— Um arquiteto de renome.
— Exótico por sinal.
Ela parou para olhá-lo.
— ‘Exótico’ você disse Sean Montebello?
Sean ficou sem saber o que falar, na duvida calou-se.
— Pode me chamar somente de Sean, Srta. Cybele — falou enfim.
— Quel àge avez-vous, Sean? — Cybele arrumou os óculos para enxergá-lo direito.
— Quantos anos? J’ai 21 nas.
— Oh! Personne ne me a dit rien sur cela — falou ao observá-lo.
Sean gelou.
— ‘Ninguém lhe disse sobre isso’, o quê?
— Sur être aussi joli, aussi beau.
— “Tão belo”? Gentileza... — preferiu não argumentar. — Podemos... — Sean apontou para as malas que pesavam.
— Ah! — e Cybele mostrou um corredor para que ele a seguisse.
O corredor era extenso e o som de vozes jovens o alcançou. Também ali o corredor tinha sua majestade, com papel de parede clássico, num tom terroso, num desenho que lembrava ânforas, com iluminação vinda de arandelas de cristais agora com luzes de LED.
“Wow!” Sean pensou.
— Deixe suas malas aqui. Vou lhe mostrar algo e depois acomodá-lo em seu chambre. Os alunos estão em aula e não devemos atrapalhá-los — ela viu Sean olhar para trás. — Depois, apresentarei você — e atravessaram um corredor. — Aqui são os armários escolares... — falou a Srta. Cybele quase adivinhando o pensamento de Sean. — Ainda temos alguns vagos até amanhã, por tanto pode escolher um dos que estão sobrando.
— Por que até amanhã? — perguntou Sean e Cybele não respondeu. — Pourquoi arrivent?
— Arrivent amendent plus 2 élèves — olhou-o. — Oh! Pardon! Amanhã chegarão mais dois alunos — respondeu Cybele sorridente por ver a escola lotada.
Ambos passaram por duas salas fechadas que ela não disse para o que serviam.
Três salas na continuação estavam vazias.
— Ali fica a sala de decoração e história da arte, são as duas únicas matérias que dividimos alunos em ala féminin e ala masculin — apontava para onde vozes ainda se ouviam agitadas. — Essa aqui é a sala de etiqueta, e temos até um palco para o teatro e outro para a passarela.
— “Passarela”?
Cybele não respondeu e Sean percebeu que eles fizeram uma espécie de trajeto circular porque deram a volta em várias salas para voltar ao hall de entrada, e de lá seguir até chegarem à majestosa escada, que levava ao andar superior.
Mas eles não subiram, seguiram em frente para um local que cheirava a todos os tipos de tintas e materiais de construção.
Cybele abriu uma porta de folha dupla e a luz fria se acendeu.
— Essa aqui é a nossa cozinha experimental — olhou-o esperando algo do tipo ‘Wow!’.
— Wow! — porque era realmente uma grande e bela decoração.
Sean viu uma grande sala com muitos balcões, equipamentos e oito fogões a lenha no centro. Mais geladeiras, freezer e fogões a gás, mesas e cadeiras espalhados por 500 m2 de teto cheirando a gesso novo.
— Como mudamos nossa estrutura para adaptarmo-nos às novas disciplinas, um pequeno hotel com recepção, salão e depósitos estará sendo entregue amanhã no setor norte — apontou a esmo. A porta foi fechada e eles retornaram à escada; Sean a havia visto pelo lado de fora pelo vitral colorido que a iluminava, como também a carreira de janelas do andar de cima. — Vamos subir? — ela apontou para cima e Sean pegou as malas ali depositadas.
Um extenso tapete persa cobria cada degrau, dos muitos que permitiam subir os cinco metros de pé-direito.
— Teremos aulas externas? — perguntou despretensioso.
— Por enquanto não! Depois cada aluno escolherá um tema e poderá sair da escola para pesquisas de campo — subiram à escada. — Aqui no andar superior temos os aposentos — voltava a explicar a Srta. Cybele —, os meninos dormem com os meninos e as meninas com as meninas — riu baixinho.
Sean imaginava que a coisa não devia ser tão simples assim. Ou até fosse, mas de uma maneira mais ‘moderna’.
Os degraus acabaram e ambos entraram num corredor que fazia uma bifurcação do corredor principal. O quarto dele ficava num canto da parede e tinha o número 5-5 marcado na madeira.
Sean paralisou ainda sentindo as mãos vibrarem pelo peso das malas.
— Os quartos identificam quantos lá ficam pelo número. Cybele abriu a porta para que ele entrasse sem o perceber paralisado. Então o quarto de número 6-6-6-6 acomoda quatro alunos, o quarto de número 3-3-3 acomoda três alunos e seu quarto de número 5-5 acomoda dois alunos — apontou.
— Quem vai dividir comigo? — entrou no quarto.
— Não conheço ainda o seu companheiro de quarto, ele só chegará amanhã — ficou a observá-lo atentamente por detrás de seu corpo. Sean percebeu pelo reflexo feito no espelho. Não soube em que pensar preferindo não fazê-lo. — Sabe o caminho de volta? — Cybele viu Sean fazer que ‘sim’ com um movimento de cabeça. — Então espero você lá embaixo. Oh... A aula de química, ministrada pelo professor Arthur vai começar e hoje você só assiste. Depois virá a aula da professora Juliette, de história da arte; a aula dela é très jolie. Depois, amanhã você pega as matérias já dadas e tenta se situar — e fechou a porta.
Sean olhou em volta após ela sair, agradecendo que a calefação funcionava maravilhosamente bem.
O frio começava a cortar do lado de fora.
As cortinas eram de tecido bem pesado, de um amarelo forte, quase dourado, e uma mesa de cabeceira com um relógio digital em cima separava as duas camas de madeira pintadas de amarelo, com dois abat-jour presos à parede.
No chão as mesmas réguas de madeira escura e na parede o mesmo papel clássico e de tom terroso, agora com manchas de quadros retirados.
Sean escolheu a cama próxima da janela e jogou uma das malas que Oscar mandara em cima dela.
— Deus... — caiu sentado. — Eu só queria esquiar...
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
22 de março; 11h49min.
Sean desceu e encontrou Cybele.
— Agora vou apresentá-lo a sua turma — e ela abriu a porta da sala, à direita do corredor que vinha do hall de entrada.
Sean apareceu e entrou até quase a metade da sala comum, do tipo que qualquer escola teria, quando todos se viraram para vê-lo.
Um burburinho começou e terminou na inclinação da boca de Cybele.
“Wow!”, Sean também gostou da força dela.
— Enseignant Arthur, celui-là est le nouvel élève Sean Montebello. Il est portugais — uma animada Cybele apresentou Sean ao Professor Arthur, como sendo de nacionalidade portuguesa.
— Comment allez-vous? — perguntou o professor polidamente ao observá-lo.
— Très bien!
Sean correu os olhos azuis vendo a escola um tanto vazia de alunos para tanta animação, mas Cybele prosseguiu, a mostrar aos alunos da classe, que já contabilizavam 21 alunos na escola; e contando com Sean Montebello e mais dois alunos que chegariam no dia seguinte, totalizariam 24 alunos.
— Celui-ci est Marcello Prestato; est italien — explicou Cybele mostrando de quem falava. — Marcello é italiano.
Sean viu Marcello, um rapaz de 20 anos, aparentando ser de baixa estatura, cabelos escuros e aspecto franzino, de pela branca ao extremo. Olhos esbugalhados e sorriso franco, Marcello vestia jeans desbotado, tênis caro e casaco de neve da École Hoteliere Dubois, e fez Sean lembrar-se de seu funcionário Ernest G. Fuiü.
— Ciao! Tutto bene con te? Spero di sì! — falou Marcello.
— Tutto bene! Grazie! — cumprimentou Sean.
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Adelfo Kyriapokos; Adelfo é grego.
Sean viu Adelfo, um rapaz mais envelhecido do que o primeiro, provável 23 anos, mas com um sorriso de dentes perfeitos.
Adelfo o cumprimentou com um aceno de cabeça e Sean também se inclinou. Com olhos saltados, muitas espinhas e usando uma perfeita divisão no cabelo bem preto, o que ampliava sua expressão, Adelfo vestia-se com uma jaqueta de jeans e o mesmo casaco de neve da escola por cima; completava com um boné cheio de ‘memes’.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Mitti Whoo; est chinois; Mitti é chinesa.
Sean observou a moça de cabelos bem negros, bem lisos e bem cuidados, aparentando 18 anos.
Mitti tinha os olhos bem puxados e uma pele esticada que chegava a brilhar na intensidade da luz artificial da classe; sorria um sorriso metálico para ele, à frente de uma mesa impecavelmente em ordem.
— Ha Lo! — Mitti disse ‘Olá!’.
— Ha Lo! — Sean respondeu.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Najla Souad; est libanais — e Cybele apontou para uma moça de aspecto avermelhado e olhos tão negros quanto o breu, com no mínimo 25 anos. — Najla é libanesa.
Najla usava uma roupa folgada e de tecido escuro, tinha um hejab, um lenço de tecido colorido na cabeça, e sentava-se dobrada sobre as pernas que pareciam estar inchadas por algum motivo.
— Márhaba! Kifaki? Tcharráfna ktir! — Najla disse ‘Oi!’ ‘Como vai?’ ‘Prazer!’.
— Tcharráfna ktir!
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Ema Soundweiler; est allemand — e apontou para uma moça pequena, de pele clara como a neve e cabelos loiros quase brancos, com 20 anos. — Ema é alemã.
— Hallo Ema...
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Cristina Pompur; est swisses. Cristina é suíça.
Já Cristina era uma moça quase criança, com 17 anos, sorrindo com dentes totalmente metalizados. Parecia ter menos idade até do que uma escola como aquela permitiria.
— Enchanté, Cristina.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Mary Ann Grou; est américain — e Cybele mostrou uma moça loira e cheia de espinhas a moldar-lhe a face, com 25 anos. — Mary Ann é americana.
Contudo, as roupas de Mary Ann eram apertadas e sua mesa estava numa bagunça, só. Era gorda, desajeitada e mal cabia na cadeira. Sean ficou sem saber a sua altura.
— Pleasure Miss — falou ele enfim.
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Louis Newell; est swisses — continuou Cybele a apresentar. — Louis é suíço.
Sean viu Louis, um rapaz acanhado, de cabelos avermelhados, escondido debaixo de uma boina, de 20 anos.
Louis era magro, mas aparentava ter uma grande altura. Usava óculos fundos de garrafa, e tinha dentes escondidos atrás de aparelhos de correção, vestindo-se num esmero, só.
— Enchanté... — soou fraco.
— Enchantè! — respondeu Sean Queise.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Eunice e Monica Hambüa; est allemand — e apontou para duas moças gêmeas, uma o clone da outra, de aspecto avermelhado, idade de 23 anos, e olhos tão negros quanto o breu. Usavam ambas, uniforme completo. — Eunice e Monica são alemãs, duas irmãs alemãs.
— Hallo!
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Charles Laujërnüiün; est celta allemand. Charles é celta alemão — Cybele acabou de apresentar o nome mais complicado que Sean ouvira até então.
O rapaz apresentado também era um bocado esquisito, apesar de ter um rosto do tipo bonitinho e idade que não ultrapassava 18 anos, Sean não encontrou palavra melhor para defini-lo.
Charles usava roupas extremamente coloridas, todas em padrões xadrez.
— Hallo! — Sean voltou a exclamar.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Beth Monthought; est anglais — Cybele apontou para uma menina também esquisita, 24 anos, com longas tranças nas pontas de um cabelo colorido, onde o tom rosa se sobressaía dos demais. Ela sorriu-lhe e um piercing na língua ficou evidente. — Beth é inglesa.
— Hello!
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Neide Tavares; est portugais — e foi só Cybele terminar de falar e Sean gostou de enfim, ouvir um sotaque conhecido. Neide era de pele morena, muito peluda nos braços, mas extremamente bonita. — Neide é portuguesa como você — sorriu Cybele animada.
Daquela animação Sean não gostou.
Virou-se para Neide e sorriu:
— Ola, guria...
Neide sorriu-lhe de volta; e era um sorriso bonito.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Elisa Rivitii; est italien. Elisa é italiana.
Sean se virou para olhá-la. Achou que Cybele deveria ter dito “uma bela regazza”.
Elisa era uma bela morena, e era ainda mais bela que Neide. Tinha pele mais para queimada pelo Sol do que por traços genéticos, uns 26 anos, e cabelos de corte reto e longos. Sua dentadura era alva e perfeita quando sorriu para Sean, fazendo seus seios parecerem pular para fora da malha vermelha que usava.
E Elisa esticou-se toda para que ele a notasse, como se houvesse sido uma coisa difícil de não acontecer.
— Oi? — Elisa foi à única que o cumprimentou até então.
— Oi! — respondeu de repente confuso; algo na voz dela o fez sentir-se mal.
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Friedrich; est swisses — Cybele falava enquanto Sean estava longe, incomodado com algo no corpo perfeito da bela italiana. — Ele é suíço, de Lausanne, mas todos o chamam de Friedrich Luciedes.
Sean voltou tão rápido naquele fim de frase que quase não conseguiu disfarçar. Tentava se recordar das três figuras de capas berrantes na plataforma do trem fantasma, quando Friedrich se levantou nada falando; apenas o encarava, a beleza de Sean que não passou despercebida ao sexo igual.
Friedrich era um jovem troncudo, de cabelos louros, que começavam a rarear apesar da pouca idade; 18 anos. Tinha olhos verdes bem claros que sofriam de um leve estrabismo, e usava uma jaqueta de couro brilhante por cima de uma malha com o logotipo da École Hoteliere Dubois.
Também tinha um porte de capanga, com uma horrenda âncora desenhada na jugular, emoldurada por um caríssimo colar de ouro reluzente.
— Perdeu a voz, Friedrich? — provocou um rapaz atrás dele fazendo muitos rirem e Sean saber que quem perdera a fala, fora ele.
O rapaz atrás de Friedrich era avantajado e tinha um rastro de bigode que começava a despontar. Sua roupa era desajeitada diferente do empoado Friedrich. Tinha 22 anos, era loiro e tinha os mesmo olhos verdes brilhantes.
Cybele se virou para apresentá-lo:
— Ah! Celui-ci est Hübinjer Luciedes; est swisses — Cybele parecia encantada pelo rapaz grande em todos os aspectos e por todos os lados que olhasse. — Hübinjer é o irmão mais velho de Friedrich.
“Será que eles me reconhecerão?”, pensava Sean debatendo-se com sua consciência a tentar imaginar se os Luciedes o viram naquela estação de trem.
— Comment allez-vous? — Hübinjer fez uma mesura com sinais claros de gozação.
Sean se inclinou também e respondeu a altura.
— Je suis très contente!
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Hans Luciedes; est swisses — prosseguia Cybele sem perceber o estado em que Sean ficara. — Hans é de Lausanne, também, primo de Friedrich e Hübinjer.
Hans tinha a pele tão clara quanto o primo, e também os olhos verdes brilhantes. Com os cabelos loiros um pouco mais encaracolados que Friedrich, mas da mesma tonalidade.
E eram cabelos cumpridos, mal arrumados, com o físico menos avantajado.
Hans se levantou para imitar Hübinjer e esticou a mão para cumprimentá-lo. Sean o cumprimentou sentindo que Hans apertava sua mão com força.
Mas nem um músculo ele moveu, porém. Encarou Hans até ele soltá-lo.
Todos perceberam e Cybele prosseguiu:
— É com tristeza imensa que Günter Luciedes não mais esteja aqui conosco, um desastre ‘vide de sens’.
“Incoerente?”, traduziu Sean; e ele achava que não.
Mas os Luciedes abaixaram a cabeça como quem sentia algo.
— Oui... — até o professor Arthur concordou.
Sean percebeu que os Luciedes tinham muita força e prestígio na região.
— Très bien! — Cybele suspirou e prosseguiu. — Celle-ci est June Sulgween; est néerlandais — ela correu a continuar. — June é neolandeza.
Sean estava tão irritado que não percebeu que a pequena e atarracada neolandeza o observava com os olhos castanhos a brilharem.
June passou batido para ele.
Cybele prosseguiu:
— Celui-ci est Bruce Kuvieskk; est russe — Cybele sorriu pragmática para um homem, o mais velho da classe, aparentando 40 anos. Tinha um semblante simpático apesar de agir como quem está deslocado de seu ambiente. — Bruce é russo.
— Priviet, Sean.
— Priviet, Bruce.
Cybele prosseguiu:
— Celle-ci est Sandra Torrente; est african — bateu no ombro de uma moça. — Celle-ci est Silvya Torrente; est african — e apontou para outra moça. — Sandra e Silvya são africanas, de Senegal, irmãs gêmeas que nada se parecem.
Eram realmente totalmente diferentes uma da outra. Sandra era muito mais bonita que sua irmã Silvya; ambas tinham belos olhos cor de mel e um corpo perfeito, da cor do ébano.
Os cabelos de Sandra eram encaracolados e trancados num rastafári, já os cabelos de Silvya estavam alisados, com mechas de cores variadas.
Cybele, depois de percorrer a sala fez Sean Montebello, sentar-se na primeira fileira.
A sala toda o observava e Sean sentiu-se pesado.
— Amanhã chegarão dois novos alunos — falou a diretora, já se preparando para sair. — Nathan Garande é argentino e Pitt MacLlion é escocês.
E Cybele saiu.
— Oi! — exclamou Sean sem graça depois de constatar que June não desgrudava o olhar dele.
— Oi! — respondeu atônita sem perceber que ele a tinha pega olhando-o.
Sean também correu a vista em volta da sala de aula e Elisa se arrastava para cima da carteira toda vez que seus olhos se encontravam. Parecia ser uma mulher um tanto decidida em relação aos homens.
Quando seus olhos se encontraram pela ultima vez, Elisa havia arrancado June de sua cadeira, próxima a dele, com o grito de June engolido. Sean evitou que seus olhos voltassem a se cruzar, sabendo que Elisa o encarava, e começou a desgostar daquilo.
Olhou para a direita e percebeu Hans e Friedrich a lhe encarar. Ficou confuso, desligando-se completamente da aula, até seu nome ser repetido.
Sean arregalou os olhos azuis para o professor.
— Montebello é você? — perguntou irritado. — Atenção! — e a aula prosseguiu então.
“Droga!”
Ao terminar ele se levantou, e sem falar com ninguém, foi para o quarto. Estava cansado, irritado pela bronca e pelo fato de ter esquecido o seu sobrenome.
Ele só queria esquiar.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
22 de março; 23h23min.
A noite estava escura e um estrondo abaixo da janela de Sean Queise o fez pular da cama. Tentou em vão achar a luz do abat-jour, mas não se lembrava de onde estava nem como era o contorno dos móveis no breu.
Desorientado tateou chegando ao pé da cama, e se agachando tocou o chão. Prosseguiu até apalpar o frio da parede e começar a se levantar, sentindo as cortinas pesadas, para então as puxar de supetão e nada além da Lua brilhante.
Sean se virou para dentro do quarto; armário, duas camas, uma mesa de cabeceira e algo girando em suas costas, na janela agora escancarada. Virou-se novamente para a janela e engoliu o grito: algo pequeno, redondo, metálico e iluminado pairava no ar, sobre o pátio da École Hoteliere Dubois.
“Um Orb!”
Caminhou de costas até a porta girando a maçaneta e percebeu-se trancado.
“Quem?”, se perguntou ao ver o UFO em forma de Orb entrando no quarto.
Mas o Orb só ficou girando.
Sean escorregou os olhos para a esquerda e lá só as camas, as malas desmanchadas e o pânico de não saber que não havia deixado a janela aberta. Escorregou os olhos para a direita e a porta do banheiro fechada. Voltou a olhar para frente e o pequeno objeto redondo e metálico ainda pairava no ar frio que a madrugada expunha no quarto.
O UFO Orb então se apagou e a escuridão da noite mostrou uma coisa verde, esguia, agachada no patamar da janela o observando.
— Ahhh! — e foi só o que Sean conseguiu exclamar com suas pernas parecendo presas ao chão, tentando a todo custo raciocinar, respirar, mover-se.
E foi numa fração de segundo dos seus cílios batendo, que a coisa verde e esguia se arrastou para dentro do quarto.
“Droga!” Sean conseguiu correr até a janela a fim de fechar a cortina para que aquela coisa verde e esguia não escapasse, mas sua mão parou no ar, e todo seu corpo paralisou outra vez sob uma força que controlava seus movimentos, suas sinapses nervosas, seu ar, indo ao chão em choque, com dificuldades para respirar.
A coisa verde e esguia se arrastou até ele, e Sean só conseguiu mover milímetros de seus cílios, tentando economizar o ar para não desmaiar, sabendo que fosse o que fosse aquilo, era a coisa verde quem controlava seus movimentos, todos eles, quando um Sean duplicado saiu de si invadindo o éter, se jogando contra a coisa verde e esguia que foi ao chão.
— Arghhh... — grunhiu a coisa verde e esguia, não acreditando que ele conseguira fugir ao seu comando psíquico.
“Wow!” Sean paralisou o que ainda não paralisara por puro medo, confuso por ter saído de seu corpo, se duplicado, e voltado a si, sem o comando psíquico dela.
A coisa verde e esguia tentou se levantar e um Sean agora livre agarrou-a, podendo sentir a pele úmida e os cabelos lisos e compridos escorregarem por entre seus dedos.
— Arghhh... — grunhiu a coisa verde e esguia outra vez agora se moldando em algo desfocado.
Sean perdeu a coordenação pelo medo, pelo som cavernoso que a coisa verde e esguia fez, pelo rosto que se mostrou feminino, embaçado, e pela corda fina e úmida que saiu de sua boca; uma língua que enlaçou o pescoço dele que realmente perdera o ar.
— Ahhh... — tentou gritar pela dor, pela incoerência de sentir aquela coisa fina e úmida dar voltas no pescoço e entrar por sua narina, caminhar pelas cavidades nasais, tentar alcançar seu cérebro.
E Sean jogou o quadro da parede para cima da coisa verde e esguia.
— Arghhh!!! — gritou agora alertando toda École Hoteliere Dubois, que acordou em meio à noite escura.
Movimentos no corredor se fizeram e a coisa verde e esguia tentava se desvencilhar dele, quando Sean a agarrou pela quarta vez e um corpo feminino, de perfume doce, delicado caiu sobre o corpo dele provocando cada sinapse do cérebro o excitar, ali no chão gelado, com aquela coisa verde e esguia sobre seu corpo retesado, o levando a um desdobramento astral, com dois ‘Sean’, banhado de cheiro sensual, em meio às curvas dela.
Sean se viu em meio a nuvens, relâmpagos e gritos que o chamavam.
“Sean!!! Sean!!! Sean!!!”
Sean tentou desesperadamente fechar qualquer comunicação telepática, pensar em algo que o fizesse voltar a si, e só o rosto de Kelly Garcia se desenhava naquele momento; o corpo de Kelly, o cheiro de Kelly, cada sorriso, cada dia desde que se conheceram, cada timbre de voz dela que o trazia à realidade da bela espanhola Kelly, de cabelos negros e esvoaçantes, de corpo quente, sensual, sempre presente na sua vida.
E Kelly Garcia sua sócia, sua amiga, seu amor eterno.
— Ahhh... — Sean voltou do êxtase sabendo que a coisa verde e esguia havia invadido sua mente, que de alguma forma ela conhecera Kelly Garcia dentro dele.
Sean ficou em pânico, havia exposto o quanto amava a sócia àquela coisa que escapava pelo beiral da janela, quando lençóis, cobertores, quadros, abat-jour e tudo que Sean pôde erguer com seus dons paranormais, voou contra ela que foi lançada da janela na neve branca e fria, enrolada e atingida por tudo aquilo.
— Arghhh!!! — invadiu a noite violentamente.
— Sean Montebello? — a chave girou, e a porta se abriu no que a luz foi acesa por Cybele dentro de um enorme roupão felpudo; e foi uma entrada nervosa, vendo Sean saltar pela janela. — Montebello?! — gritou Cybele da porta.
— Não!!! — gritou ele estatelando no chão em meio a lençóis, cobertores, quadros e abat-jour enterrados na neve branca.
— Montebello?! — gritou Cybele da janela. — O que significa isso?!
Sean não sabia responder àquilo e os olhos verdes da coisa brilharam atrás da pele verde que escondia seu rosto, correndo e se embrenhando dentro da Floresta de Jorat.
Ele olhou para o piso coberto de neve, e lá, pegadas pequenas e estreitas demais para serem de uma mulher, muito menos de um homem pequeno.
Mas fosse quem fosse, corria na ponta do pé ou era bom no que fazia.
“Droga!”
— Sean Montebello?! — uma Cybele nervosa e agitada também invadiu a neve, com voz que estourava tímpanos.
— Droga... — foi o que repetiu.
— Ficou maluco, Sean Montebello?! — falava a diretora soltando fumacinha da boca.
— Eu ia... — falou cínico batendo as pernas em movimentos precisos a fim de se aquecer. — Eu ia...
— Você ia?
— Fazer exercício...
— “Exercício”? — Cybele olhou as copas fechadas que conseguiam escurecer a noite iluminada pela linda Lua, sem perceber olhos atentos e verdes ali presentes. — Há essa hora? — voltou a olhar o redor.
As janelas iam sendo abertas uma após a outra.
— Está frio aí dona Cybele?! — gritou Adelfo.
— Entre Montebello! — falou autoritária. — Porque parece que já começou a trazer problemas! — e todos riam da travessura enquanto Friedrich Luciedes só observava Sean que também ia rir, mas levou um tapa e engoliu a graça. Ia dirigir-se até onde os lençóis, cobertas, abat-jour e tudo mais que havia voado na queda da coisa esverdeada e outra vez a voz dela era autoritária. — Disse!!! Entre!!! — gritava Cybele atônita atrás dele que congelava.
Sean largou tudo onde estava e entrou.
De dentro da Floresta de Jorat, um par de olhos verdes observou tudo, satisfeita, contudo com o encontro.
9
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
23 de março; 09h17min.
— Vejam!!! — gritou a espevitada Mary Ann.
Todos na sala se levantaram das cadeiras em que apenas sete minutos atrás começaram a serem usadas.
A aula de paisagismo ocidental ministrada pela professora, Srta. Camila Floyd estava iniciando-se no momento em que um carro camioneta do tipo van, estacionou no pátio da frente. O mesmo reboliço que Sean ouvira quando chegou um dia antes, acontecia agora, igual.
Uma sineta tocou e ele ficou sem compreender o que significava.
— Vamos? — falou Adelfo para ele.
— Aonde? — perguntou Sean.
— É a ordem de chamada da bandeira — e Adelfo se foi.
Sean entendeu menos ainda, sendo o último a chegar.
A camioneta tipo van estava sendo descarregada.
Desceu um garoto muito engraçado, gordo e redondo como uma bola. Tinha as bochechas preenchidas por círculos de pele vermelha, provenientes do frio que fazia. Seus cabelos espichavam quando se mexia, e apresentou-se como Nathan Garande, argentino, 19 anos.
Desceu outro rapaz logo após, era muito jovem ainda, 16 anos. Tinha uma pequena boina de canto e usava um sobretudo com o brasão da família, bordado em linha dourada, no bolso, parecendo ser tímido e inseguro.
Sean ouviu Cybele o apresentar pelo nome de Pitt MacLlion, de uma aristocrática família escocesa.
— E é com alegria que saberão agora que na verdade serão quatro os novos alunos — Cybele estava encantada.
— Quanto encantamento — Sean ouviu Elisa debochar.
Debochar e se aproximar dele.
Afastou-se dela.
— Sean? — Cybele chamou-o no meio da multidão. — Esse será seu companheiro de quarto; Maykon Godoy.
Sean e todos olharam para a porta da van que voltou a se abrir, e de dentro sair um rapaz de não mais de 20 anos, todo vestido de cor de rosa, olhos verdes brilhantes, com os cabelos castanhos claros, rosto magro e miúdo, montado num corpo de músculos nada definidos, usando presilhas colorida na cabeça.
Risadas se espalharam por sobre o pátio e Sean levou um cutucão de Hans Luciedes.
— Ele é menos pessoa que você? — Sean se pôs em defesa do estranho e todos gelaram no silêncio total que se seguiu à brincadeira.
Hans se encolheu receoso pela voz forte que Sean empunhara e com algo que pareceu tocar sua garganta apertando-a. Hans olhou um lado e outro e sua garganta ainda apertava.
Ninguém percebeu e Cybele prosseguiu perante tamanho desconforto gerado pelos Luciedes, sabendo que a vinda deles para sua escola não ia dar em boa coisa, quando Sean aliviou o que parecia ser sua mão plasmada enforcando um Hans, que realmente não entendeu aquilo.
Sean voltou-se para frente furioso e confuso pelo descontrole, por ‘sair do sério’; nunca havia feito aquilo, plasmar uma mão, tentar esganar alguém, ou perder o foco, a visão da porta da van sendo aberta no outro lado, obrigando a nova aluna a dar a volta. Porque quando Sean voltou a si, às apresentações, só conseguiu ver os cabelos pretos e lisos se desenharem através do vidro da janela, a pose esguia de seu corpo, o andar suave, balançado, decidido, imaginando o rosto por detrás do chapéu de feltro vermelho que ela usava, acompanhando o casaco de lã na mesma cor, dentro da blusa justa que mostravam seios fartos, e uma saia curta em tecido xadrez que fazia despontar as belas pernas roliças, envoltas em meias de lã, dentro de uma bota de couro preta, e que parou à sua frente com uma mão delicada esticada.
— Kelly... — escapou da boca de Sean.
Mas não era Kelly Garcia, era um clone dela, mais jovem, mais sorridente, tão próxima que quase lhe roubou o ar.
— Hola! Sou Marcia Toledo... — e a voz dela até não era tão parecida com a de Kelly, mas Sean teria dito, se a voz dele saísse, que elas eram gêmeas.
Gêmea da jovem Kelly que adentrou na Computer Co. do Brasil vinda da Catalunha, da jovem Kelly de vinte e sete anos formada em geologia, contratada para trabalhar com a secretária first de Fernando Queise, da jovem Kelly que viria ser a secretária first de Sean aos quinze anos, que viria a ser seu suporte e amor eterno.
Mas Marcia não era Kelly, e continuou com a mão estendida para um Sean paralisado, surdo, até ela sorrir sem graça e se virar para ir embora.
Sean sabia que não estava surdo, que as pessoas moviam os lábios, que risos e sorrisos se espalhavam por ali e era ele quem não ouvia nada. Quando o som voltou Sean ouviu a voz de Cybele se afastando em meio a sons que se misturavam ao de corvos na floresta escura.
Sean acordou de vez a se ver sozinho no pátio, com Friedrich o observando. Friedrich então se virou e entrou. Agora o silêncio calou-o de vez.
Sean ficou lá, imaginando o lógico e o ilógico, replicando os mesmos, denotando sucessões de atos e feitos, de idas e vindas, de vida e morte, tão reativas e tão demonstrativas do quanto o ilógico sucede o lógico, não menos lógico que o estritamente opositor.
Perante a desconstrução do ser, da desconstrução do aspecto fazer, nunca foi tão importante a ele o conhecimento do ilógico naquele momento.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
23 de março; 10h40min.
Os quatro novos alunos foram encaminhados para seus devidos aposentos, mas só os três rapazes entraram em aula.
“Cadê ela?”, Sean se perguntou.
— Esse é Sean; ele é português — Cybele falava algo para Maykon, algo sobre o quarto de ambos.
Sean acordou, sorriu educadamente e a classe voltou a rir. Sean só precisou se levantar com todos os músculos da camiseta branca se mostrando e o silêncio reinou.
Cybele adorou aquilo.
Mas foi Maykon quem agradeceu abaixando a cabeça.
A aula de paisagismo ocidental enfim terminou e as aulas de gastronomia iam ser separadas. A ala feminina ia para a cozinha interna preparar as massas das pizzas da noite, e a ala masculina ia para a cozinha externa ter aula de comida mediterrânea.
Elisa aproveitou Sean sozinho no corredor e voltou a insistir numa aproximação, mas ele continuava distante, decidido mesmo a desprezá-la não sabia por quê.
Isso a vinha deixando desconcertada, era uma mulher que conseguia todos os homens que queria, e já tinha tido todos os alunos da escola ao seu alcance, inclusive alguns professores. Foi o que Sean ouvira sobre ela no intervalo da aula.
E ele não estava gostando daquela situação, acabara de chegar à escola e problemas já começavam a se fazer. Queria terminar o mais rápido possível aquela investigação durante a madrugada e se mandar dali. Porque sabia que era um empresário sério, com problemas sérios a resolver, sem saber como lidar com aquilo, ser jovem.
Sean voltou a procurar Marcia com os olhos e houve vinte e quatro badaladas rápidas anunciando a hora. Ele alertou-se olhando para cima vendo o teto da sala reformado pelo gesso novo, e segurou Adelfo pelo braço no que ele passou por ele.
— Que horas são?
Adelfo olhou para o visor de sua caneta.
— Onze e três. Hora do rango. Vamos fazer Tzatziki, feito à base de iogurte, com pepino e hortelã, com um sabor azedinho muito bom. E também Moussaka, que é um tipo de torta de berinjela com carne moída que... — e houve outra vez vinte e quatro badaladas rápidas que fizeram Sean se arrepiar todo; Adelfo achou graça. — Problemas com tortas de berinjela?
— Problemas com o relógio.
— Que relógio?
— Não ouviu?
— Ouvi o que?
Sean não gostou realmente daquilo.
— Onde fica a outra escada?
Adelfo olhou para um lado e outro confuso.
— Que outra escada?
— A que leva aos torreões.
— Que torreões?
— As dos relógios.
— Que relógios? — Adelfo gargalhou.
— Não estou achando graça Adelfo!
Adelfo recuou assustado.
— Ah... Desculpe-me. É que não estou entendendo que escadas levam a que relógios, já que só temos a escadaria central que leva... — e o braço e os pensamentos dele foram arrancados do lugar por Sean que o puxava pelo corredor vazio, pelo hall de entrada suntuoso lotado de sofás de veludo vermelho, e porta afora até a neve que caía miúda mostrar a ambos a fachada que Sean via de olhos arregalados.
— Os relógios... — Sean entrou em choque. — Onde estão os relógios do telhado?! — subiu o tom de voz apontando para cima.
A neve caía e Adelfo realmente ficou com medo dele.
— Ah... Já podemos entrar Sean?
— Não!
— Mas está nevando e... E não temos relógios no telhado — apontou Adelfo. —, que percebeu é um telhado de duas águas e telhas horrorosas precisando, diga-se de passagem, de uma reforminha — gargalhou Adelfo se divertindo.
Mas Sean estava realmente em choque. A fachada da École Hoteliere Dubois era de tijolos americanos, mostrando ter dois andares distintos e telhados de telhas que precisavam ser trocadas.
— Mas... Havia pedras na parede...
— Havia? — riu Adelfo, achando que começava a gostar dele, das brincadeiras dele. Bateu nas costas de Sean e sorriu. — Você é divertido Sean Montebello! — e viu Sean sem se mover. — Agora chega... Está bem? Estamos... Ui! — arrepiou-se. — Estamos congelando... — ria pulando num pé e noutro vendo que Sean não se movia.
E não se movia porque havia algo muito errado ali, na construção, nos poderes dele, e do por que seus dons não funcionarem não captarem lembranças de outros no éter.
Nem o porquê do próprio éter não parecer existir ali.
“Droga!”
Adelfo viu que Sean não ia sair dali tão cedo e correu.
— Hei?! Montebello?! Temos aula lembra? — falou sumindo pela porta.
Mas Sean não conseguia entender, tinha certeza de ao chegar ter visto a construção de pedras na parede da fachada quando um cheiro ocre se fez abaixo dele. Sean olhou para o chão e não mais havia neve, nem o frio da hora do almoço. Abaixo dele, o piso se desenhava em tiras de madeira que aqueciam que incendiavam as paredes de metal que subiam ao seu lado, com janelas de vidros que se projetavam para fora pela força do impacto da explosão que destruiu o trem em que ele estava.
Sean foi ao chão branco pela neve sentindo que cada fio de cabelo, cada pelo de seu corpo se moveu pela força do deslocamento do ar provocado pela explosão, com a menina e sua boneca rica nas mãos o olhando caído.
“Você nos deixou no trem para morrer Sean Queise”
— Ahhh... — ergueu-se girando atônito em volta de si mesmo e a menina e sua boneca rica desapareceram.
Sean não acreditou que estivera no trem e não estivera, quando olhou em volta e viu estar de volta à neve, à uma escola de paredes de pedras e dois torrões com dois relógios enegrecidos nele badalando vinte e quatro vezes.
“Droga!”, Sean não pensou duas vezes, correu saltando na parede, se agarrando nas plantas que lhe subiam à construção, e alcançou ainda em choque, um dos torreões, pisando um telhado sujo, coberto de neve e fuligem quando seus pés sentiram que tudo sumiu.
— Ahhh!!! — gritou por toda queda caindo no chão duro e coberto de mármore carrara limpo da cozinha, sob olhares assustados de Mitti, Najla, Ema, Cristina, Mary Ann, Eunice, Monica, Beth, Neide, Elisa, June, Sandra e Silvya.
— Sean? — correu June para ajudá-lo a levantar, o vendo sujo de folhagens e fuligem. — Nossa! De onde você veio?
E todas as treze jovens olharam para o teto de gesso novo, intacto, sem imaginar de onde ele viera.
Sean também estava em choque. Havia estado em um trem em chamas que não existia, havia subido e caído de um telhado que não existia, e caíra por um buraco no teto que não existia, mas que ele atravessou ainda em choque, com a lembrança da garota que também não mais existia, e que o culpava por ter sido deixada no trem para morrer.
Receou não estar existindo também.
A professora Karinne, porém se aproximou dele à frente das outras alunas e o questionou:
— Não devia estar na outra cozinha meu jovem?
— Eu... Eu... — Sean não conseguia ir além daquilo ao se levantar e dar passos mecânicos por toda a cozinha nova, cheirando nova, sem um único buraco no teto de gesso novo.
Saiu sem nada falar deixando Mitti e Silvya ainda olhando para cima procurando um alçapão ou algo assim.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
23 de março; 17h00min.
As aulas da tarde haviam sido canceladas, Cybele explicou que tudo seria reestruturado para a recepção dos dois alunos novos não esperados.
Sean, que não foi à aula de gastronomia mediterrânea, tomou um banho e continuou no quarto imaginando que teria que passar o resto do dia lendo revistas.
Desceu e saiu para a neve outra vez, contornando toda a construção pelo lado oposto a da piscina e quadras. Caminhou até dar a volta e passar pela área de esportes e voltar à porta de entrada percebendo que não havia uma porta de serviço. Sean realmente estranhou aquilo, não havia portas, não havia quintal nem dependências de empregados e não havia pedras na parede.
A grande École Hoteliere Dubois era uma construção de tijolos e telhado de duas águas.
— Me procurando? — uma jovem por trás dele falou num tom arrastado.
Sean se assustou e Elisa se aproximou mais passando a mão pelo peito dele, que recuava sem sucesso até ser imprensado na parede, a de tijolos, e Elisa abrirem os botões da camisa perante a velocidade dos dedos femininos pelo tecido, até ter sua mão brecada.
— Basta!
— Hei?! — exclamou ela com os olhos esbugalhados no que Sean agarrou suas mãos, apertando-as. — Por que a agressividade?
— Gostaria que eu tivesse tido a mesma falta de respeito com a Senhorita? — perguntou-lhe friamente.
Elisa o encarou e gargalhou.
— Você não é jovem demais para falar tão empoladamente? — Elisa sentiu dor no que Sean largou sua mão com mais força que usada antes.
— Não enche... — e voltou a entrar na École Hoteliere Dubois atravessando a grande sala de sofás de veludo vermelho.
— Se não estava me procurando o que queria lá fora?! — gritou ela atrás dele.
— Não é da sua conta.
— Posso fazer ser, falando coisinhas para a Cybele.
Sean estancou.
— Que tipo de coisinhas Senhorita?
— Você fala como um adulto sabia? — ela viu Sean voltar a andar. — É até educadinho como um adulto — gargalhava outra vez.
— Desculpe-me Senhorita pela minha educação exemplar — e chegou à escada.
— Ela não está lá em cima.
Sean estancou outra vez.
— Quem não está lá em cima Elisa?
Elisa voltou a gargalhar. Irritada, porém, com a frieza dele.
Sean continuou a subir.
— E ela nem é tudo isso — Elisa viu Sean não dando trela. — Ou talvez você que não seja tudo isso — agora ele parou de vez. Míseros segundos para ter medo dela, do medo que sabia que tinha que ter dela. E do medo de nada captar, nenhuma linha de pensamento dela, do lugar, dele próprio. Acabou por subir e sumir da sua vista. — Cuidado Sean... — sussurrou Elisa para o vão da escada vazia.
Porém vazia, não estava. Marcia observava o acontecido com os olhos verdes a brilhar pela intensidade.
Já Sean entrou no quarto de supetão fazendo Maykon dar um grito afetado. E foi um Sean nervoso quem se dirigiu para o banheiro com ares de pouca conversa, saindo pronto para dormir e deitando-se sem trocar uma palavra.
— Não vai descer para o jantar? — Maykon ergueu o semblante. — Achei que havia...
— Não disse que podia falar comigo — falou rispidamente.
Maykon nada mais falou e Sean se virou para dormir. Maykon fez o máximo para não mais incomodá-lo, fechando a porta delicadamente e saiu.
Sean ia se virar, ia pedir desculpas pela grosseria, mas Maykon saíra.
— Droga... Eu só queria esquiar...
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
23 de março; 23h56min.
O tilintar das teclas mexeu com alguns sonos. Sean não havia descido para o jantar, mas a ‘lição de casa’ ia fazer, nem que fosse a sua maneira.
Digitava alucinadamente após ter invadido a sala de computação.
Os computadores não estavam em rede, cada computador, no montante de doze, eram independentes uns dos outros. Sean retirou da jaqueta dentária postiça o nano adaptador USB Wireless que se morfou, se adaptando à porta, mas ele não se conectou. Frustrado, guardou novamente e tirou uma pequena chave de fenda de dentro do casaco que usava por cima do pijama, abrindo uma das CPUs; depois outra, e outra e outra até achar uma placa de modem desconectada.
Sean conectou a placa de modem novamente para conseguir acessar a rede da École e trazer de sites escrupulosos, programas hacker para quebrar senhas, que Cybele com certeza tinha em todos seus arquivos.
Até pensou em um acesso jurássico, mas não encontrou tomada de linha telefônica.
“Droga!” percebeu que Oscar não queria nada nos computadores, era ele ali, em carne e osso, o que a Polícia Mundial ou a Poliu desejava.
Sean vasculhou em gavetas, armários, cada canto e encontrou três pendrives. Os inseriu e começou a investigar, parando de vez em quando para ouvir algum som além do que fazia, mas só encontrou material da escola nos arquivos.
“Droga!” exclamou outra vez sabendo que ia ter que ficar mais um dia e alcançar a Cidade de Lausanne para conseguir alguns programas hackers, e voltar a invadir os arquivos dos doze computadores quando passos começaram a descer as escadas.
A sala de computação se abriu e fechou e uma pequena fresta de luz se fez. Sean se ergueu em alerta não entendendo como não conseguia se adiantar a nada nem ninguém dentro da École Hoteliere Dubois, porém um perfume doce se fez no escuro.
— Quem está aí? — ninguém respondeu, mas ele teve a sensação que davam à volta por trás dele. — Quem esta aí? — tentou delinear na escuridão uma imagem, um vulto e alguém por detrás dele, lia a tela do computador.
Ele apertou uma tecla e tudo se perdeu ficando ambos no escuro, literalmente.
— Por que fez isso? — falou uma voz suave, decidida, arrebatadora.
Agora Sean deu um passo atrás.
— Quem está aí? — voltou a questionar.
— Eu! — respondeu com a mesma segurança de antes e a luz do abat-jour foi acesa mostrando a ele uma Marcia em toda sua beleza.
Ela percebeu que Sean não se movia, que talvez não pudesse se mover pelo medo de vê-la parecera uma jovem Kelly Garcia, que adentrou a Computer Co. da Espanha para trabalhar.
E uma boca decidida e farta aproximaram-se. Sean engoliu qualquer fala e Marcia beijou-lhe o rosto.
“Wow!” ele jurava que ia ser outra, a atitude dela.
— Então! Boa noite, Sean.
— Me conhece?
— Não fomos apresentados? — e encostou-se à mesa. — Ah! Claro! Você não me cumprimentou — sorriu charmosa.
— Aquilo foi... Foi... — e ele viu que ela mudava a perna que apoiava o roliço corpo no pijama felpado e vermelho, tão apertado que não o fazia pensar direito. — Por que me beijou?
— Não é costume na sua terra?
— Minha... Por que entrou no escuro, Senhorita?
— “Senhorita”? Quanta educação... — Marcia riu.
— É a segunda vez que me dizem isso.
— Dizem o que? Que entrei no escuro? — mudou o tom e o assunto.
— Não! — respondeu sério.
Marcia sentiu a seriedade daquela resposta.
— Uhm! Ficou bravo? — ela acendeu a luz geral e Sean sentiu o impacto ardendo às vistas de imediato. — Desculpe-me. Você estava no escuro digitando.
Sean outra vez só conseguiu se concentrar no pijama felpado; quente, vermelho, justo e ela percebeu o interesse dele.
E gostou do que percebeu no silêncio que se instalou quando uma terceira personagem se fez.
— Posso saber o que fazem aqui? — perguntou Cybele na porta.
Sean só abriu a boca.
— Fazíamos a lição! — respondeu Marcia numa rapidez impressionante. — Aproveitamos que todos dormiam e resolvemos escrever de uma só vez, as lições atrasadas — e apontou para os cadernos que trouxera e deixara na entrada da porta. — Depois íamos passar tudo no computador e tirar duas cópias na impressora — e Marcia prosseguia sorrindo inocentemente. — Não é Sean?
— É... — soou quase inaudível.
— Sean falou que digitava rápido, mas perdeu tudo o que escrevera. Argumentou que seus computadores estavam com algum tipo de defeito. Estão?
— Defeitos? — Cybele se perdeu naquilo.
— Defeitos, do tipo HDs com bug, placas danificadas, aplicativos maliciosos, malwares que deletam informações, vírus em data-base, aceso remoto via rádio.
— Ah! — Cybele um e outro. — Acredito que não temos nenhum desses tipos que falou.
— Então! — pegou os cadernos trazidos. — Percebe-se então que Sean não sabe usar os computadores já que precisou dos doze — falou terrivelmente irritada.
Sean imaginou que ela havia deliberadamente criado aquele álibi trazendo cadernos no meio da noite. Nada comentou, nem sobre o beijo da terra dele em sua bochecha nem o fato dela ser uma mentirosa de mão cheia, com conhecimento sobre computadores.
— Nossos HDs se apagam após meia hora.
Sean alertou-se.
— Por quê? — perguntou Marcia.
— Não temos necessidades de HDs — e foi uma resposta visando Sean na linha de visão.
Ele não gostou daquilo.
— Então como...
— Amanhã peço para a Luisa, minha assistente, digitar — prometeu a diretora Cybele numa firmeza incontestável, cortando mais qualquer palavra de Marcia. — Ela entregará uma cópia para cada aluno, das matérias já dadas nestes dias que perderam — e parou para pegar as capas que protegiam os doze computadores do chão. — Agora vão dormir.
Sean foi o primeiro a passar pela porta em direção ao andar de cima. Cybele ficou para trás quando deu um grito. Sean e Marcia que já se aproximavam dos degraus voltaram para a sala de computação.
— O que aconteceu? — perguntou Marcia ao ver Cybele ajoelhada no chão aos prantos.
— Luisa... — tentou falar através das lágrimas e os dois se olharam, não entendendo. — Ela foi assassinada! — e Cybele se pôs a chorar.
— “Assassinada”? — perguntou Marcia.
Sean a tocou de leve, e Marcia percebeu que não era para continuar. Ela ajudou-a e saíram da sala.
Subiram as duas, e Marcia a abraçava delicadamente. Ele ficou para apagar a luz e desligar os estabilizadores de voltagem dos computadores. Arrumou tudo, recolocou as doze capas e saiu. Quando chegou lá em cima, virou para a direita e foi até o fim do corredor.
Os quartos se encontravam em silêncio e paz.
Sean viu Marcia saindo do último quarto da última curva do corredor à esquerda da escada, o de número 36-36 e aproximou-se dela.
— Ela vai ficar bem? — perguntou Sean.
— Sim.
— Com quem ela divide o quarto?
— Ela está sozinha lá dentro.
— Cybele disse que os números na porta identificam quantos dormem no quarto.
— Acha que ela esconde trinta e cinco homens no armário? — riu.
E Sean viu o quanto Marcia e Kelly ficavam lindas sorrindo.
— Não quis dizer isso... Cybele disse que a quantidade de repetição nos números... — e riu também. — Achei que antigamente dividia com a sobrinha.
— Que sobrinha?
— A que morreu.
— Você sabe sobre muitas mortes, não?
— Não sei do que está falando.
— Então por que me cutucou quando Cybele disse que a Luisa morreu?
— Achei que era de bom tom não insistir na dor alheia. Vocês mulheres são tão curiosas — e ergueu o supercílio, o fazendo maravilhosamente bem.
Marcia ia comentar, não o fez. Porém percebeu que o corpo dele também era interessante, e o quanto gostou de ter aquele interesse.
— Não devia se preocupar comigo, Sean. Sou uma jovem mulher que controla a curiosidade muito bem — sorriu encostando-se à parede numa posição totalmente sensual. — O que estava escrevendo?
— Vê-se logo que controla sua curiosidade muito bem, jovem mulher — respondeu cínico.
— Em Pascal?
— Wow! Conhece mesmo linguagens de computação?
— Então! Você que diz... — e Marcia não se fez de rogada, começou a se dirigir para seu quarto vendo Sean a seguir, o vendo apreciar seu corpo de formas avantajadas e perfeitas, que faziam o tecido vermelho agarrado delinearem curva após curva.
— Criadores de malwares desenvolveram softwares maliciosos, de forma que eles podiam usar recursos como a Instrumentação de gerenciamento do Windows e o PowerShell, a fim de executar tarefas sem a necessidade de salvamento no HD.
— Por isso os HDs vazios?
— Antigamente, as infecções por vírus depositavam um pequeno código binário em algum lugar do HD, mas hoje hackers e crackers usam técnicas de evasão que permitem malwares não deixar rastros, o que dificulta a busca por arquivos estáticos já que alguns nem arquivos geram.
— Mas Cybele disse que os HDs estão preparados para apagar informações após meia hora.
— Uma técnica interessante, se você tem pendrives, HDs externos ou backup em nuvens, mas esses aplicativos costumam depender de serviços de Back-end para gerenciar as informações que vão para essas nuvens através da Rede Internet — evitou falar dos bloqueadores de sinal. — E ainda que a maioria dê suporte de segurança é comum ver milhões de conjuntos de dados desprotegidos, infectados com códigos vulneráveis. Então ou Cybele não guarda nada importante, ou há algo faltando nessa informação dada.
— Informação que é importante porque...
— Por nada! Foi só um comentário adicional — sorriu, caminhando atrás dela, se perdendo nas estradas sinuosas de seu corpo quando ela parou e ele quase se chocou com ela.
— Pensei que hackers já não usassem mais a linguagem Pascal?
— “Hackers”? — riu pela situação. — É sou só um jovem homem antiquado — debochou.
E Marcia sorriu-lhe.
— Me disseram hoje no jantar, que sua beleza não vinha acompanhada de inteligência nem ‘antiquada’, nem ‘atualizada’ — parou à porta de seu quarto.
Sean murchou o sorriso sentindo que pisava em terreno perigoso; Marcia era esperta.
— Ninguém me conhece ainda, Senhorita... Como podem saber o quanto minha beleza é ou não inteligente?
— Cybele é uma mulher muito fofoqueira. Que fala demais — insinuou Marcia. — Cuidado! — e se virou para ir embora.
— Não a vi jantar — sorriu-lhe.
Marcia parou de andar e o viu sorrindo.
— Jantei com Cybele.
— Cybele jantou conosco — mentiu. — Não a vi jantar conosco Senhorita? — Sean voltou a sorrir-lhe no silêncio dela. — Boa noite! — e se foi.
Marcia esperou ele sumir na curva do corredor. Entrou no quarto 22-22 que dividia com Mitti, e a viu dormindo na cama. Um ódio profundo invadiu seus olhos esverdeados para com sua companheira de quarto.
Já Sean abria a porta do quarto 5-5 quando se lembrou de que não tinha certeza de haver deletado suas ações na máquina.
“Droga!”, precisava retornar antes que Cybele encontrasse alguma modificação na placa de modem, provando que fazia lá muito mais que lições de casa perdidas.
Desceu como um louco, não podia ser pego, não podia ser visto.
Invadiu a sala, acendeu a luz no mesmo momento que olhou para os computadores e se deparou com as doze capas que os protegiam, no chão. As mesmas doze capas que ele próprio arrumara, agora fora arrancadas, rasgadas na pressa.
Sean religou um dos computadores e levou um choque, o computador havia sido desmagnetizado; tudo.
Olhou em volta:
— Quem? — foi só o que conseguiu falar.
10
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
24 de março; 19h26min.
O dia começou e terminou dentro das salas de aula. Sean queria ter morrido no desastre de trem a ter que precisar voltar a estudar numa escola, mas estava ali.
Logo ele que se achava tão completo.
— Sean? — chamou June por detrás da porta fechada por Maykon.
Sean se levantou, começava a adormecer. Chegou à porta e ia abri-la quando percebeu a tranca. Olhou para Maykon que já dormia, e percebeu que ele temia algo ou alguém.
— O que quer? — abriu-a.
— A Cybele quer falar com você — disse June vermelha de vergonha.
— Já passa das dezenove horas, achei que pudéssemos nos recolher.
— Ela só pediu para lhe chamar — falou sincera.
Sean fechou a porta deixando Maykon adormecido lá dentro.
— Por que ela lhe mandou? — saiu de pijamas mesmo.
— Porque depois da morte da Aline ela se apegou muito a mim.
— Quem era Aline?
— Aline, era a sobrinha da diretora.
— Ela foi embora? — perguntava nas escadas que desciam.
— Ela morreu, dizem que foi assassinada. Ninguém pode falar. A Cybele não deixa. Ainda mantém uma foto bem grande dela na biblioteca — respondeu após um suspiro seguido de uma lágrima derramada.
Ele estendeu a ponta da camisa do pijama e June sorriu-lhe carinhosamente. Limpou-se e se pôs a chorar mais forte ainda; ele não soube o que fazer.
Abraçou-a num ímpeto e June gostou.
— Acalme-se June — recuou temendo que alguém acordasse e os viesse ali, já tinha problemas demais. — Imagino que...
— Não imagina. Ela não queria ter ido — e soluçou.
Sean ergueu o supercílio.
— Aonde Aline não queria ter ido, June?
— June! — chamou Cybele na ponta do final da escada.
Ambos se assustaram e Sean sentiu o impacto do apertão das mãos dela em suas mãos.
June voltou correndo para cima.
— Queria falar comigo, diretora?
— Antônio lhe espera na cidade ainda está noite.
“Antônio?”, Sean percebeu a intimidade.
Centro de Lausanne, Cantão de Vaud.
46° 12’ 0” N e 6° 9’ 0” E.
24 de março; 19h53min.
Sean trocou-se e desceu quando um carro Volvo azul estacionou no portão. Ele subiu o capuz do moletom na cabeça porque nevava, vestindo-se de jeans, camiseta branca e tênis, e usando o casacão de neve com o logotipo da École Hoteliere Dubois por cima. Entrou no carro e partiu percebendo que quem dirigia era um dos agentes da Polícia Mundial.
A rua escura em que chegaram parecia ser residencial. O carro estacionou em frente a uma casa estreita e comprida, e ele foi deixado lá.
Sons de corvos ecoavam por ali e Sean começava a ter medo deles.
Caminhou até os fundos da casa passando por um canil vazio, mal cheiroso, para entrar numa sala fria, parecendo-lhe estar entrando numa clínica veterinária quando um homem vestido de médico, paramentado, trabalhava de costas para a porta por onde entrara.
— Boa noite, Sean querido — Oscar vestindo um costume italiano, de corte perfeito, se levantou de detrás de uma mesa onde algo grande estava coberto por uma lona preta; um cheiro ocre que invadiu a todos.
— Não sou seu querido — se desviou dele.
Oscar sorriu cínico sabendo que ele não falava a sério.
— Desculpe-me por isso meu filho, não tive escolha quanto a escola.
— Também não sou seu filho — e balançou o pescoço nervoso. Dessa vez Oscar não manifestou nada. — O que quer comigo à uma hora dessas? — e Sean cortou qualquer outra afinidade.
— O que descobriu? — Oscar insistiu.
— Que não estou na École Hoteliere Dubois.
Oscar ergueu o sobrolho.
— Como é que é?
— Como é o que? Achava que eu não perceberia?
— Não sei do que está falando. A École é a École desde...
— Isso! — cortou a fala de Oscar. — A École é a École desde quando suas paredes eram feitas de pedras e havia dois torreões com dois relógios que dão 24 badaladas avisando meia-noite.
— Desculpe-me Sean, mas não estou entendendo...
— Não! Nem você nem eu vamos entender, não é Oscar? Não por enquanto. Mas eu vi essa fachada de pedras envelhecidas, que calculo um dia a École deve ter tido, antes das muitas reformas e adaptações — olhou em volta. — Mas não é a fachada que ela tem agora, de tijolos americanos e um telhado que precisa de reformas.
— Não sei mesmo do que está falando Sean.
— Nem eu. Acredite. Porque alcancei um telhado sujo de folhas secas e fuligem, para então cair dentro de uma cozinha por um alçapão que nunca existiu no teto.
Oscar ficou realmente piscando, tentando o entender quando o respirar arfado do médico atrás deles chamou-lhes a atenção.
— Eu disse Monsieur Oscar Roldman, eu disse que por isso a Poliu estava apavorada. A École Hoteliere Dubois é um antro de bruxas — falou o médico ainda de costas.
Sean olhou para o médico com o bisturi na mão e uma porção deles numa mesa auxiliar, no seu lado direito.
— Dr. Zuquim? O que faz aqui?
Zuquim olhou Oscar antes de qualquer coisa. Abriu a porta do freezer e puxou uma gaveta quando o cheiro ocre, as vozes ensurdecedoras, e tudo ao redor deu um giro de 360º graus.
Sean foi ao chão tonto.
— Sean?
Mas Sean se desvencilhou da mão de Oscar, que se inclinara para ajudá-lo. Ergueu-se e viu que algo parecido com um cão estava estendido sobre a mesa de metal. Olhou de novo e não era a mesma sala, não era o mesmo cheiro nem mesmo um cão o que estava em cima da mesa de metal; lá havia dois homens de idade entre trinta e cinquenta anos, nus, presos a uma mesa de metal por amarras que brilhavam, lhe encarando, pedindo socorro.
Olhou em volta pela terceira vez e cinco serpentes alienígenas com pernas o encaravam.
— Ahhh... — Sean foi novamente chão no que voltou ao corpo.
— Sean querido? O que houve?
E dessa vez Sean estava no chão em choque, com todo seu sistema circulatório em pane.
— Eu... Eu... Eu acabo... — engoliu a saliva. — Acabo de descobrir onde fica o Gilf Kebir...
Oscar lhe olhou tentando entender as entrelinhas.
— Os cientistas da Poliu? — olhou em volta. — Eles estiveram aqui?
— Estavam sendo... — Sean olhou o Dr. Zuquim lhe olhando. —, sendo abduzidos, se me entende.
Zuquim olhou Oscar que olhou Sean que olhou Zuquim.
— Esse cão também foi abduzido, Monsieur Oscar Roldman. Abduzido e seco; sem cérebro e sem vísceras — Zuquim terminou a autópsia.
— Meu Deus Sean... Com o que estamos lidando?
— Não sei. E não sei se vou querer saber, mas aquelas serpentes tinham pernas Oscar — precisou se segurar para outra vez não cair e Oscar não gostou de ouvir aquilo.
— Reptilianos... — soou nonsense do Dr. Zuquim.
— O que é isso aqui? — Sean olhou em volta.
— Uma clínica veterinária abandonada há dois meses. A Polícia Mundial a estava investigando.
— Por que a investigavam? A Poliu sabia algo sobre reptilianos abduzindo seus cientistas?
— Não sei. Mas meus agentes averiguaram que os Luciedes entravam e saíam daqui com muita frequência.
— Mas o canil? Ele cheira...
— Sim, os Luciedes ainda trazem cães vivos aqui vez ou outra.
— E como você conseguiu entrar? Onde estão os cães?
— Não há cães.
O Dr. Zuquim fechou o cão morto num saco de zíper e o depositou na entrada da sala.
— Mas há outros corpos aqui — e o Dr. Zuquim abriu outra gaveta do freezer.
Um ar gelado saiu de lá.
Sean correu os olhos do médico para Oscar, voltou para o médico e pousou sobre o corpo morto, seco que o Dr. Zuquim estendia sobre a mesa. Era o corpo de Armand Lacreax, o ufólogo relojoeiro com melanomas nada sutis despontando abaixo do olho direito.
— Ele não morreu no acidente de trem?
— Agentes da Poliu encontram-no enterrado na neve, próximo a parada Maladière.
— É... Armand disse para que eu descesse na Parada Maladière chegando a Lausanne, seguindo as placas de indicação do HI, e que estariam instalados no albergue Youth Hostel Lausanne caso eu quisesse participar da vigília.
— O que iam vigiar?
— UFOs! — Sean percebeu que Oscar não gostou de ouvir aquilo. — Então não vai gostar de ouvir que Armand disse que um Império subterrâneo conjunto reptiliano-fascista escolheu a Suíça para montar ‘campos de concentração que fariam aqueles na Alemanha Nazista empalidecer’ — e Sean também percebeu que Oscar não gostou de ouvir aquilo também, como saber que ele o lera. Depois olhou para o Dr. Zuquim, que iniciava mais outra autópsia clandestina. — Ele está... — e o cheiro do formol os atingiu novamente. — Armand está ‘vazio’?
— Sim.
— ‘E então tudo aconteceu, e as pessoas compareceram aos seminários e circuitos de palestras, se envolvendo um pouco mais’ — foi só o que Sean lembrou-se.
— Do que está falando Sean querido?
— Alguém que veio no Réveillon, não é Oscar? Alguém que veio no Réveillon e anda com muita fome... — Sean não soube se Oscar entendeu ou não, mas aquilo realmente o assustou.
Do lado de fora da clínica, um par de olhos verdes brilharam na neve, olhos escondidos na escuridão da noite, ao lado de almas que ainda sofriam.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
24 de março; 23h55min.
Parecia que entrar na École Hoteliere Dubois era mais fácil que sair. Sean chegou à porta de entrada e não se conformou com a fachada de tijolos americanos. Ele a tocou e nada chegou até ele; nenhuma lembrança da obra, da reforma, de trabalhadores mudando tudo.
“Uma escola das ciências, todas elas, inclusive feitiçaria sob o controle da família Dubois desde o século IV a.C.”, soou em lembranças.
Mas havia outra coisa agindo ali além de bruxaria e feitiçaria, uma que mudava fachadas, mas também provocava mortes secas.
Sean fez o mínimo de barulho nas portas, nos muitos corredores, nos degraus da escada, mas só foi virar o corredor e alcançar seu quarto que deu de encontro com Marcia, vestindo uma minúscula camisola amarela.
— Ahhh... — e foi só o que saiu dele.
— Então! Onde esteve? — e Marcia grudou a camisola amarela que usava na roupa dele.
Sean percebeu que todos haviam saído de seu quarto para olhá-los, e teve certeza que os esperavam para aquilo.
— Passeando! — recuou no tom.
— Por onde?
— Pensei que você controlasse sua curiosidade com mais facilidade, jovem mulher — e um silêncio mortal tomou conta do corredor quando foi a vez dele sentir Cybele ao lado dele.
— Saia, Marcia mon’amour! Entre no quarto, Sean Montebello! — ordenou Cybele com sensíveis diferenças nos timbres de voz usada para um e outro.
Marcia, contudo não gostou de ter que sair da frente com ou sem o ‘meu amor’ na frase, e Sean entrou e fechou a porta sem falar mais nada.
— Uhuuu! Tanto empenho e nada? — desafiou Mitti ao longe.
Marcia fuzilou Mitti e Cybele dispersou todos e todas em meio às muitas risadas. Marcia se virou para Elisa e sorriu de uma maneira diferente.
Mitti, Sandra, Eunice, Ema, Cristina e Silvya ficaram sem entender o que só Elisa entendeu.
11
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
25 de março; 07h00min.
A manhã chegou como todas as outras; fria e nublada. A aula de laboratório de biologia iniciara às 7 da manhã e Sean quase dormia sobre os vários tipos de fermentos e massas a serem estudadas quando Elisa não perdeu a oportunidade de se aproximar dele.
— Vai precisar de ajuda?
Sean estranhou-a.
— Por quê?
— Faz tempo que saiu da escola, não?
Sean sentiu mais que uma ponta de malícia na frase de Elisa.
— Cuidado, Srta. Elisa! — exclamou nervoso, olhando para os lados. — Pode ser que eu me machuque nessa empreitada, mas você pode se machucar muito mais do que eu.
Elisa se afastou dele contra sua vontade.
— Não se dá muito bem com Elisa, não? — insinuou Marcia se aproximando logo em seguida, sentando-se ao lado dele na aula.
Sean nem acreditou que ela voltasse a falar com ele depois de ver Cybele cortar a graça dela. Gostou, contudo de tê-la ali do lado, tão perto.
— Eu queria me desculpar por ontem...
— Esqueça! — cortou-o enérgica, se inclinando sobre a bancada de granito mostrando o decote da malha de lã que usava.
Algo nela o encantava, o prendia, o excitava.
— Ok!
E a jovem Marcia parecia conhecer seus próprios pontos fortes tocando os seios no granito gelado. Olhando-o por rápidas olhadelas, escorregadias, sorrindo, vendo Sean sorrir-lhe, achar-lhe parecida a uma jovem Kelly, atrevida como nunca fora, como nunca tivera coragem de ser. Um charme que corria de um para o outro; tímidos, atrevidos, ambos.
Mas a chamada “Turma Anarkhos” comandada por Adelfo já não acreditava que eles não se conheciam. Aquilo Sean captou, e recuou percebendo que não sabia muito bem onde estava se metendo, com quem.
Tinha que investigar os computadores e se ater a eles.
— Está calor aqui! — falou Marcia ao tirar a decotada malha de lã.
“Calor?”, pensou Sean.
— Então! Eu soube que tem uma piscina natural descendo uma trilha, por detrás daquelas árvores — e Marcia apontou para a parte de trás do colégio, na direção em que se encontravam.
Sean se virou para trás automaticamente, a sala toda os olhava. Depois a olhou, Marcia estava gentil demais.
Tentou ler-lhe os pensamentos, mas gritos ecoaram.
— Ahhh... — a cabeça latejou.
— Está bem?
— Ãh? Sim... — Sean olhou Marcia embaçada. — Acho que sim... — tentou novamente penetrar-lhe os pensamentos e outra pontada sentiu. — Ahhh... — e dessa vez tentou disfarçar enquanto Marcia lhe sorria. Mas algo nela estava errado, podia sentir. — Disse ‘uma piscina’?
— Sim... Descendo a trilha... — Marcia caprichava na colocação da caneta na curva da boca, no cruzar e descruzar das pernas, no trocar de cabelo negros que oras lhe caia sobre o ombro esquerdo, oras pousavam sobre o ombro direito.
Aquilo tudo era dilacerante, tudo lembrava Kelly Garcia e Sean começava a desgostar daquilo. Ou ele via Kelly no andar de Marcia ou era Kelly que ele via no jogar de cabelo de Marcia, a espanhola, como Kelly o era.
A verdade era que Sean estava extasiado ao lado dela, o perfume doce, o jogar dos cabelos, tudo lhe deliciava, porque tudo lhe era permitido, porque Marcia não era sua sócia.
Sean não percebeu que Elisa observava cada detalhe.
A aula enfim terminou e ele quase nada, conseguiu anotar.
— Você...
— Me encontra lá? — Marcia foi direta no que os alunos se dispersaram.
“Lá?”, Sean se perguntou.
Ela sorriu e saiu.
Sean viu que todos os alunos já haviam entrado na próxima aula menos Marcia. Seu coração teve um sobressalto sabendo que havia algo, algo em que ele ia se arriscar.
Olhou em volta, esperou seis minutos e Marcia não voltara à aula.
Ficou ali se sentindo infantil, excitado a ponto de arriscar-se.
Floresta de Jorat, Lausanne.
46° 34’ 57” N e 6° 41’ 28” E.
25 de março; 08h00min.
A porta da École Hoteliere Dubois se abrira com uma rajada de vento e Marcia havia se embrenhado no frio, na duvida se ele iria atrás ou não.
Era a sua chance de experimentar tudo, não podia perdê-la.
Atravessara a fechada Floresta de Jorat e descera a encosta até encontrar a piscina de águas naturais. Tocara a água ao senti-la congelada, tirando a roupa e colocando um roupão que trouxera. Depois sentara e ficara a apreciar o entorno, uma trilha na mata fechada observada por olhos astutos, usando uma potente luneta; olhos preparados que viram o momento em que Sean saiu pela mesma porta.
Floresta de Jorat, Lausanne.
46° 34’ 57” N e 6° 41’ 28” E.
25 de março; 08h06min.
Sean Queise se encolheu de frio quando saiu do edifício. Olhou para trás e ouviu que a aula continuava.
Adentrou a floresta se lembrando da noite que aquela coisa verde e esguia se embrenhara ali e acabou por se enroscar num galho.
— Ahhh! — exclamou de dor.
O galho rasgara sua coxa direita na altura das nádegas, danificando o tecido da calça. Um fio de sangue que começou a escorrer seguindo a dor e a marca que ficaria.
“Droga!” Sean arrancou o casaco e tentou fazer um torniquete e o tecido se encheu de sangue.
— Droga! Droga! — proferia ao descer a trilha até ouvir o som da queda d’água que Oscar falara se mostrar a ele.
Aproximou-se da borda do penhasco para ver a queda d’água e seu pé falseou fazendo pedrinhas miúdas se projetarem pelo barranco. Sean recuou e recomeçou a descer por um complexo de arbustos chegando num espaço grande e vazio onde as águas pareciam terminar.
— Então! — exclamou ela por detrás dele.
Sean se virou e Marcia o estudava detalhadamente. Seus olhos se cruzaram e a intensidade da cor verde dos olhos dela o fez sentir algo que não compreendeu.
— Por que me chamou aqui? — perguntou Sean enfim. Marcia não respondeu, o observava a dar pequenas risadas de prazer. — Não vai me dizer?
E ela continuava a nada dizer, aproximando-se de seu rosto e lambendo-o.
Sean esticou as sobrancelhas e ela o lambeu mais, e mais outra vez. Ele sentiu o ar frio lhe penetrar na face agora úmida, seguindo-a com o olhar rasteiro em meio ao silêncio que tomava conta da cena, da piscina natural, do casal.
— Eu pensei que não viesse... — e Marcia falou enfim parando de falar quando sua boca molhada invadiu a dele.
Um beijo molhado, eletrizante que fez Sean sentir todo seu corpo desejar o corpo quente dela, que se aproximou do dele, que percebeu que não estava mais com o roupão.
— Marcia... — e aquilo se perdeu ali.
Marcia colou seus seios nus na blusa dele fazendo movimentos na camiseta que ergueu, até deixá-lo com o tórax exposto.
Sean não falava, não queria falar. Sentiu, porém um frenesi acontecer abaixo da linha do equador.
Foi levado até as pedras gigantescas que forravam a beirada da água com seu corpo se inclinando cada vez mais até deitar-se, Marcia sobre ele.
— Eu nunca havia experimentado isso...
“Isso?”, Sean ficou atônito, não conseguindo invadir seus pensamentos, não com a facilidade com que invadia os de Adelfo que dizia a ele que Marcia aprontava alguma coisa.
Mas Marcia se inclinava mostrando os belos seios, jogando os cabelos de um lado para o outro, falando frases confusas, o fazendo lembrar-se de Kelly, seus cabelos em movimento, seu perfume, seu corpo e as mãos que o invadiram.
— Ahhh... — o som da sua voz se misturou aos sons de lugares que ele sabia, já havia estado. Cheiros que lhe remetiam a infância, com vozes que ele lembrava já ter ouvido, com as mãos dela lhe tocando. Sean achou-se enlouquecendo enquanto Marcia se aproveitava do descuido, tirando-lhe as calças. — O que está fazendo... — sentiu o impacto do frio no corpo nu na pedra úmida.
— Cale-se! — ordenou a bela, alucinada pela beleza do corpo dele, pelo peito viril entrecortado por réguas de músculos, pelo sexo rígido, perfeito.
Marcia não esperava mesmo ter sido atingida daquela maneira, sentindo sua própria respiração perder o controle, se apossando do mesmo tesão.
Sean voltou a sentir-se estranho, com Marcia se inclinando, com sua pele enrijecendo mudando de coloração.
Ele arregalou os olhos e não estava na cachoeira, a cachoeira não estava lá; lá só a areia seca do deserto, uma mancha de sangue e os agentes da Poliu caídos nela.
— Ahhh... — Sean voltou a cachoeira nu, com a sua perna sangrando, a observá-la absorver cada gota de suor que o congelavam, com mais que os olhos dela a observá-lo nu.
— Está com frio Sean belo? — perguntou Elisa rindo.
Mais risadas se fizeram por detrás deles, e Sean nem precisou olhar Marcia que viu o ódio se pronunciando em cada linha desenhada no rosto bonito dele, percebendo o golpe dado.
Marcia de repente sentiu-se mal enquanto Elisa, Mary Ann, Mitti, Eunice, Monica, Sandra e Silvya se divertiam, enquanto ela o quis esconder, protegê-lo dela própria.
Maykon se aproximou dos dois e fuzilou Marcia que não o olhou no que passou por ele.
— Saiam daqui!!! — gritou Maykon com todos na sequência.
— Ora, veja! A ‘menininha’ Maykon veio salvá-lo? — debochava Elisa, satisfeita com o que conseguira que Marcia fizera.
— Eu vou chamar a Cybele!!! — gritava Maykon.
— Ui! Ui! — Elisa então puxou June que prestava atenção na marca do rasgo provocado pelo galho na coxa direita de Sean, que sangrava, manchava a neve imaculadamente branca.
E os sons pareciam ecos para Sean que se sentiu ridículo, arrependido de ter confiado numa estranha que o fazia lembrar-se do amor por Kelly Garcia, que lhe deu um mês por uma decisão, lembrando que ele ainda era um adolescente que nunca soube amar.
Porque nunca soube amar.
— Vamos! Coloque! — falou Maykon estendendo um casaco para Sean vestir.
Sean olhou o casaco que Maykon lhe dera.
— Pegou esse casaco na minha mala? — espremeu a testa vendo Maykon observando-o. — Ah! Adivinhou que eu estava aqui precisando de uma muda extra de roupas? — Sean viu Maykon se assustar, olhar em volta, se ver sozinho. — Sabia que elas estavam programando esse ridículo e deixou que acontecesse?! — alterava-se.
— Não... — tentou falar Maykon.
— Suma!!! — gritou descontrolado.
Maykon correu pela clareira, entrou no edifício indo direto para seu quarto. Cybele o viu passar, não compreendendo o porquê da corrida nem porque não estavam todos em sala de aula.
Sean, por sua vez, se vestiu quando ergueu a vista lembrando-se do agente de Oscar Roldman a espreita. Fez um movimento obsceno chocando o agente da Polícia Mundial que de luneta, ainda o vigiava.
Oscar Roldman haveria de receber um arquivo nada confidencial.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
25 de março; 18h19min.
Sean não tinha duvidas que seria contatado; nem precisava tê-las.
Uma batida forte se fez na porta do quarto de número 5-5, para o qual Sean se dirigira vindo direto da cachoeira e de lá não saíra mais.
— Posso entrar? — perguntou Cybele a ele.
— Claro — respondeu Sean sem muita emoção.
— Eu recebi outro telefonema de Antônio — Cybele não parecia ter sido avisada do fato de ter ficado nu. — Ele lhe quer falar no começo da noite. Assista a aula inaugural de mitologia e vá ao mesmo lugar; sei lá que lugar é esse — se virou para sair e voltou. — E Antônio mandou que fosse de táxi dessa vez.
— “Dessa vez”? Ah... Eu vou me encontrar com ele... Não se preocupe... — Sean era o desanimo em pessoa.
Mas Cybele continuava lá, parada, de costas para um Sean irritado por não saber ser jovem.
— Por que não desceu para as aulas da tarde?
— Senti-me resfriado... depois da aula de laboratório de biologia.
— Vai ter que me avisar sempre que se sentir mal. Não pode abandonar aulas sem motivos.
— Aqui na escola não tem um posto médico?
— Não precisamos! — falou se enervando.
— Eu só achei que ficava mais fácil a gente procurar um...
— Não tem que chamar médico algum, Montebello. Chame-me, apenas. Fui clara? — e saiu.
— Muito clara! — exclamou com deboche.
Sean percebeu que não tinham médicos, empregados nem fachadas de pedras.
Começou a ter medo do que percebia.
— O desastre... — e Cybele voltara ao quarto sorrateiramente. — Soube algo sobre o desastre?
— Desastre? — Sean viu Cybele de uma forma tão borrada que teve mesmo vontade de esfregar os olhos.
Porque Sean sabia que algo acontecia com ele, com talvez sua paranormalidade, após ter sido ‘tirado do sério’.
— Fala dos trens de Lausanne?
— Fiquei mesmo me perguntando como chegou até Lausanne.
— Vim de helicóptero. Titio Antônio é um homem muito rico.
— Sim! Muito rico!
E os dois se olharam.
Cybele sorriu-lhe encantadoramente e saiu. Sean diria que ela sorriu-lhe aterrorizadamente e saiu; porque ficara claro que Cybele tinha medo de algo.
Sean entrou no banheiro percebendo que sua coxa sangrava. Fez um curativo e depois lavou o rosto para se preparar para assistir a tal aula inaugural de mitologia, mas levou um susto maior no abrir da porta do banheiro e seus pesadelos mais remotos invadirem seu quarto.
— Elisa disse que esteve passeando? — Friedrich falou irado.
— Não sei do que está falando — respondeu Sean para Friedrich que o encarava com ódio nos olhos, percebendo se tratar de ciúme, talvez ciúme de Elisa. — Saia do meu quarto! — afirmou Sean empurrando-o para o lado e passando para dentro do quarto, fingindo arrumar roupas em cima da cama. — Você ainda está aí?
— Vou lhe dar um aviso de amigo — disse Friedrich colocando o dedo no ar para Sean que ficou a imaginar que a palavra ‘inimigo’ parecia ter sido mais original. —, não se aproxime de Marcia, de maneira alguma.
Sean pareceu ter ouvido errado, preferiu mesmo.
— A conhece?
— E você? — inquiriu Friedrich se alterando cada vez mais.
— Não! — exclamou Sean com exatidão.
— Então fique sem conhecê-la, para sua própria segurança.
— Marcia me parece uma mulher decidida demais para precisar que decidam por ela.
— Não me ire, Montebello!!! — descontrolou-se aos gritos.
— Sinto muito! Mas é ela quem escolhe, não?
E Friedrich olhou um lado e outro sorrateiro, como quem avalia o local, as circunstâncias, o tempo, o que poderia usar e o que machucaria mais, sem perceber que a porta havia sido aberta e ele estava do lado de fora do quarto.
Agora Sean gostou do que fazia.
— Montebello?! — berrou do lado de fora do quarto.
A porta se abriu e Friedrich deu um pulo do chão ao ver Sean ainda no mesmo lugar, próximo à janela, longe da porta e da maçaneta que a abriu.
— Da próxima vez que entrar no meu quarto sem convites... — e Sean viu Friedrich correr mais rápido quem um fóton de luz em seu momentum.
A porta voltou a se fechar e Sean agora sabia que foram muitos os olhos na piscina de água natural.
“Droga!”
E a porta agora abriu pelas mãos de Maykon que entrou a trancando, encostando-se a ela, o observando.
— Estava ouvindo a minha conversa com Friedrich?
Ele piscou e piscou antes de responder.
— Quer saber se Friedrich a conhecia?
— A conhecia?
— Não! Marcia me disse durante a viagem que não conhecia ninguém aqui — e Maykon parou. — Ontem procurou minha amizade porque não simpatizou com ninguém daqui.
— Me parece que pela amizade de Elisa ela teve simpatia, sim.
— Nada sei sobre isso — e Maykon abaixou a cabeça. — Mas posso oferecer minha amizade.
— E para que precisarei de sua amizade?
Maykon só sorriu e entrou no banheiro.
Sean não gostou da falta de resposta.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
25de março; 20h00min.
A aula inaugural de mitologia devia ser mesmo importante; nenhum dos alunos faltara. A não ser Marcia, que parecia nunca levar broncas pelas suas ausências.
A professora Adalfrida em questão estava longe das típicas professoras que Sean tivera na sua infância. Alemã de nascença, seu sotaque era puramente nórdico.
Ele, porém apreciou o coque de cabelos brancos seguros por um enfeite que mais parecia uma grande agulha de tricô.
Sean até achava se tratar de uma.
— Como vão? — e Adalfrida passou entregando apostilas ricamente encadernadas. — Hoje nossa aula de mitologia será sobre uma deusa mais nossa, a deusa Branwen — sorriu e Sean olhou a agitação de alguns. Nada entendia sobre mitologia galesa. — Branwen é uma das três matriarcas da Grã-Bretanha. Em algumas lendas asturianas, Branwen é considerada a Dama do Lago.
— Dama do Lago... — escapou de sua boca fazendo toda a classe lhe olhar.
— Que foi Sean Montebello? — perguntou Adelfo.
— Foi?
— Confuso cara? — brincou.
— Confuso? — alguns alunos olharam Sean repetindo tudo. — É... — foi só o que conseguiu falar.
Um silêncio se seguiu e a professora recomeçou para um Sean totalmente alertado.
— O que é o mundo? — prosseguia Adalfrida. — Qual a importante necessidade de o homem pôr ordem no aparente caos em que existe e adequar-se a ele? Criar um sentido para a sua existência? O homem sempre teve a necessidade de por ordem no caos. Mas para colocar ordem, o homem precisou criar uma interpretação de mundo que o acomodasse diante deste caos.
“Caos!”, nunca aquilo foi tão claro para ele.
Sean também vivia o caos; sua infância, sua adolescência, sua vida adulta. Sozinho, isolado, trabalhando demais se divertindo de menos. Kelly tinha razão, ele estava a ponto de ‘sair do sério’, extrapolar toda sua paranormalidade, criar poltergeist, se pondo em perigo, levando o perigo a outros.
Sabia que tinha que ter ido à Suíça, porque vozes diziam para ele não ir. E sabia que as vozes nada mais eram que a materialização de sua consciência, que ele podia materializar o que quisesse o que precisasse.
Sean temeu o que fazia.
— E qual é esta primeira interpretação de mundo? — a voz de Adalfrida voltou. — A da religião e do mito. Depois filosofia e ciência.
“Filosofia e ciência...”, vagou por ali.
— Porque a mitologia é uma forma de linguagem, uma comunicação com a alma — Adalfrida bateu no próprio peito. —, lendas e mitos provando o quanto mal pode acarretar uma mentira.
“Droga!”, Sean não gostou de ouvir aquilo; ele era a mentira ali.
— Não foi só a mitologia grega que se propagou pelo mundo antigo, cada um a seu modo a criava e divulgava. Muitas vezes oralmente... — Adalfrida pigarreou e prosseguiu. —, inicialmente para entendermos qualquer mitologia, necessário retornarmos à Mitologia grega, primitiva, o estado primordial do mundo, o Caos.
— Segundo os poetas... — e Sean silenciou a professora e a classe já imersa em silêncio. —, uma matéria que existia desde tempos imemoriais. Vazio primordial em vale profundo de espaço incomensurável; o Caos, estado não organizado, o nada de onde todas as coisas surgiram... — escapou de seus lábios.
— Certo Montebello! — ela viu Sean encará-la. — De acordo com a Teogonia de Hesíodo, o Caos precedeu a origem, não só do mundo, mas também dos deuses. Caos divindade rudimentar, capaz de fecundar. Dele nasce Gaia, a mãe Terra, que gera Ponto que gera...
— Èquidna! — alguns se viraram para Sean outra vez. — “A feroz deusa Èquidna, que é metade ninfa com olhos brilhantes e face clara, e a outra metade serpente, grande e terrível, com a pele manchada, comendo restos de carne escondida em um pequeno buraco localizado em partes secretas da terra. Este lugar dela é uma caverna muito profunda, especial para a morte dos deuses e dos homens mortais”; Hesíodo, th 337-403 — o silêncio não fora gratuito.
— Por que Montebello?
— Porque o filósofo Ludwig Wittgenstein defendia que os problemas filosóficos não eram mais que equívocos linguísticos, e a tarefa principal do filósofo era desfazer esses equívocos mediante análise de conceito — Sean era antiquado.
— E qual o conceito de realidade na mitologia?
— A mitologia foi entendida por muito tempo como uma maneira pela qual o homem buscava entender e explicar a natureza, e tudo o que o rodeava ou o que não tivesse uma explicação simples, lógica, sob uma narrativa imaginária que estruturava e organizava de forma sistêmica e criativa as crenças culturais.
— Certo Montebello! — seus olhos brilharam. — Os estados de consciência da mente dependem apenas da própria mente e de nada mais.
— É por isso que o filósofo Descartes conseguia duvidar da existência de um mundo exterior, sem duvidar da existência de seus estados de consciência — o olharam. — A consciência, para Descartes, não era consciência de algo diferente dela mesma. Cogito, Ergo Sun.
Houve um silencio merecido e Adalfrida sorriu-lhe encantada.
— Certo outra vez Montebello! — todos agora se viraram para Sean e a professora prosseguiu. — Para Descartes o homem só devia ser guiado pela razão, no que em seu livro ‘O Discurso do Método’ escreveu que se desde o nascimento, todo homem tivesse sido guiado pela razão, poderia ser puro, já que as crianças são governadas por nós e de nós adquirem os conhecimentos.
“Pureza?”; Sean sentia perdendo a sua, envolvido em tramas cada vez mais complexas, teorias de conspiração, atrás de uma corporação de inteligência que lhe escapava à razão, com poderes que desafiavam a compreensão humana; suas regras, sua inocência.
— A Dama do Lago... — Sean viu que todos continuavam a olhar-lhe no que subitamente mudou o rumo da pergunta, do que julgou ser uma pergunta. — Ela é uma lenda?
— Na verdade é um mito, e mito é uma história de quem acredita nela.
— Mas para tudo que duvido, algo existe... — divagou Sean.
A professora Adalfrida gostou dele.
Percebeu que Sean era um leitor da filosofia.
— Certo Montebello! O mito é aquilo que lhe parece original, verdadeiro, mesmo que para nós soe como ficção fantástica.
— Mas são ficções, ou os mitos cosmogônicos e de origem não conseguiriam dar conta de explicar a natureza?
— Sean, não é?
— Sim...
— Então, Sean Montebello, no que tange ao conhecimento, alicerça-se numa postura dogmática e irrefutável das certezas, visto que o mito deve ser compreendido enquanto substrato da cultura. Em outros termos, equivale a religião dos povos antigos e primitivos, de modo que, por sua origem divina, tem um caráter inquestionável.
— “Precisamos ligar o homem razoável, sapiens, ao homem louco, demens, ao homem produtor, ao homem técnico, ao homem construtor, ao homem ansioso, ao homem gozador, ao homem extático, ao homem cantante e dançante... — agora todos olharam Sean. —, ao homem instável, ao homem subjetivo, ao homem imaginário, ao homem mitológico, ao homem crísico, ao homem neurótico, ao homem erótico, ao homem úbrico, ao homem destruidor, ao homem consciente, ao homem inconsciente, ao homem mágico, ao homem racional, numa cara com muitas faces, em que o hominídeo se transforme definitivamente em homem” — todos ainda olhavam Sean. — Edgar Morin! — explicou.
— Certo Sean Montebello! — Adalfrida estava adorando aquela turma e a turma adorando Sean. — O mito se torna uma forma privilegiada, uma vez que para ele não há a consciência de assimilar um conhecimento básico indispensável da verdade, que é o pensamento grego em busca da descoberta através da resposta findada em suas questões mais profundas, mostrando e demonstrando o seu lugar, o seu papel no mundo natural, da qual o homem é uma parte.
— E sobre os filhos monstruosos de Èquidna, a serpente alienígena?
Agora um silêncio se perpetuou.
— Alienígena? — Adalfrida riu não sabendo bem por que ria. — Não sei se os gregos acreditavam nisso Montebello, mas Èquidna era um monstro com corpo de bela mulher e cauda de serpente que vivia nas profundezas.
— Em túneis? — outro silêncio se fez na pergunta de Sean.
— Em buracos, meu querido — sorriu languida. — Como era mesmo a sua pergunta? — Adalfrida fez uma careta tentando se lembrar. — Ah! Sim... Sobre os filhos monstruosos como o Cão Cérbero que guardava a entrada do Hades, mas nunca permitia a saída; o Hades, uma concepção do inferno de Dante.
Sean agradeceu a explanação e se desligou do mundo ficando pensativo. E ficou pensando porque outra vez nenhuma única forma-pensamento se perdeu ali. Porque se havia inferno, tuneis, UFOs e Orbs, então havia serpentes alienígenas, havia forças sobrenaturais agindo ali, com ou sem a aprovação dos gregos antigos, e haveria pensamentos plasmados.
E era uma força alienígena poderosa, que tinha o poder de plasmar o que queria; um trem, uma fachada e mentes impenetráveis.
Agora Sean teve medo do que teve medo.
Centro de Lausanne, Cantão de Vaud.
46° 12’ 0” N e 6° 9’ 0” E.
25 de março; 22h43min.
As ruas de Lausanne estavam úmidas e escorregadias pelo súbito calor que desceu sobre elas derretendo alguns centímetros de neve. Um vento ameno, já não feria o rosto de Sean Queise que saíra de táxi da École Hoteliere Dubois e chegara a Lausanne.
Ele pagou e desceu atravessando à rua em direção à clínica veterinária em que estivera noite anterior. Com a luz da Lua, dessa vez pôde ler que a placa escondida num canto denunciava que a casa era mesmo uma clínica.
Sean ouviu o latido de alguns cães ao se aproximar, ficou repentinamente arisco em entrar. Lembrou-se que Oscar dissera que os Luciedes costumavam trazer cães esporadicamente.
Olhou para os lados da rua e não viu nenhum carro parado.
— Por que Oscar me chamaria outra vez? — já não acreditou no recado que Cybele lhe transmitira, e vestindo o agasalho da escola, uma impressão horrível lhe tomou, tirando-o, virando-o do lado do avesso, e o amarrando na cintura.
Sean resolveu pular o muro da casa ao lado, subir numa árvore e assim verificar o que suas impressões lhe diziam, um pequeno caminhão com a capota de fibra de vidro fechada estava estacionado no mesmo corredor que atravessara na noite anterior, chegando a brecar o caminho da passagem. Cães nada dóceis estavam dentro dele. E como não havia uma janela no caminhão para ventilação ou iluminação, aquilo vinha deixando os animais mais nervosos ainda.
A porta da clínica veterinária abriu num rompante.
— Nada ainda? — perguntou uma voz ao longe.
O homem que sentava no volante do caminhão respondeu com um aceno negativo. Sean ficou a imaginar se era dele que se referiam.
Mais um homem saiu da clínica veterinária, ficando postado atrás daquele que saiu primeiro, mas Sean não os reconheceu.
E o homem que saiu por último, olhou para fora e voltou para dentro quando um empurrão e um corpo pequeno, todo coberto por um tecido escuro foi jogado de dentro da clínica e caiu na soleira da porta; o que Sean julgava ser uma pequena mulher estava provavelmente amarrada.
O motorista do caminhão desceu da boleia e agarrou a pequena mulher do chão, e a colocou na parte detrás do caminhão, junto aos cães nada dóceis. Os dois homens da clínica também entraram na frente da boleia do caminhão e o motorista partiu.
Sean sentiu-se impotente, sem saber ao certo o que fazer quando a porta de repente se abriu novamente, e outro homem estranho saiu da casa, seguido de outro homem nem tão estranho assim. Os olhos azuis de Sean se esbugalharam ao ver Leopold Braushin vestindo um costume escuro, óculos espelhados e belíssimos sapatos de cromo alemão, usando reluzentes joias nas mãos.
Era o mesmo homem entojado que fechara o contrato com a Computer Co..
— Deus! Leopold me conhece como Sean Queise — e um carro BMW amarelo, último modelo, apareceu minutos depois levando o homem estranho e Leopold.
Sean os deixou irem embora, sentindo-se seguro o suficiente para descer da árvore, pular o muro e entrar na clínica veterinária após girar as trancas da porta com a força do pensamento e essas abrirem.
A casa cheirava outra vez a formol, cheirava a cães, cheirava a sangue. Uma poça dele se espalhava pelo chão. Fosse quem fosse a pequena mulher, ela estava ferida, concluiu nervoso, vendo que a sala cirúrgica havia sido desmanchada, e apenas as cadeiras velhas e as gavetas do freezer permaneciam na parede oposta à porta da entrada.
Ele resolveu ir atrás do agente da Polícia Mundial.
Floresta de Jorat, Lausanne.
46° 34’ 57” N e 6° 41’ 28” E.
25 de março; 23h41min.
A floresta estava úmida, escorregadia, com uma Lua estranhamente brilhante, que iluminava tudo.
Sean chegou ao pé da cachoeira onde ficara nu, vindo pelo terreno da École Hoteliere Dubois sem ser visto por ninguém da escola. Atravessou por sobre pedras até a outra margem, e gritava nervoso com Oscar Roldman ao telefone celular que o agente da Polícia Mundial emprestara, sentindo as pernas congelarem pela água fria no tecido da calça.
— Acha que eu não sei do que estou falando?! Droga! — e Sean ficou na linha esperando algo.
Ele e o agente da Polícia Mundial margeavam a piscina natural.
— Você ainda está aí? — Oscar voltou ao telefone nervoso depois de se comunicar com algumas vozes ao seu redor. — Ninguém aqui sabe sobre nenhuma reunião na clínica veterinária, Sean querido. A clínica está desativada há muito tempo e se Leopold Braushin alugou-a não foi difícil.
— Voltei lá porque Cybele disse que ‘Antônio’ me ligou e pediu para encontrar-me no mesmo lugar. Imaginei que era na clínica veterinária, e só não entrei porque minha consciência me brecou.
“Consciência?”; Oscar achava que aquilo tinha outro nome.
— Eu não mandei recado algum! Já disse!
— Droga! Droga! — olhava um lado e outro. — Preciso de um favor. Preciso que investigue a lista de mortos do acidente de trem.
— Por que isso agora Sean?
— Não sei. Mas há alguma coisa errada nisso tudo.
— Eu vi várias.
— Por favor, Oscar, investigue. Preciso saber também aonde colocaram os restos do trem para perícia. Preciso acessar a caixa-preta.
— Por que isso é relevante?
— Não sei. Mas ver Leopold hoje me deixou fora de mim, com a impressão que não foram só os Luciedes que causaram aquela explosão.
— Acha que Leopold já descobriu sua identidade?
— Não ou eu estaria morto uma hora dessas — e parou para suspirar. — Eu não sei, estou confuso. Preciso me envolver mais.
— Não Sean. Não o quero...
— Quer! E quer porque me trouxe a Suíça, Oscar, para me dizer que os agentes abduzidos, encontrados no Gilf Kebir estavam mortos, secos, abduzidos por reptilianos alienígenas.
Oscar agora não soube como conduzir aquilo.
— Você conversou com eles? Conversou com os mortos? O que anda fazendo?
— Fazendo? Eu? Os agentes estavam mortos e você mentiu para mim. E sim, os agentes me disseram que ‘ela’ não havia ido buscar eles.
— “Ela”?
— Quem é ela Oscar? E aonde ela ia buscá-los? Que fascinação é essa pelas almas libertas da matéria?
— Eu não sei do que está falando.
— Oscar!!! — berrou Sean congelando.
— Gritar não vai levarmos a nada! Já disse que o arquivo confidencial nada fala sobre qualquer ‘ela’ que se esqueceu de buscar almas libertas.
Mas Sean se descontrolava.
— Mas o arquivo confidencial fala de uma serpente-sentinela do lago, Èquidna, Lâmia, Branwen, não? Ou Ament, deusa da morte egípcia que recebe os mortos nos portões do submundo com pão e vinho; ou Ereshkigal, deusa Suméria e Acadiana dos mortos, filha de Anu, Senhor do céu, ou Nammu, deusa do mar e irmã gêmea de Enki, o engenheiro genético Anunnaki.
— Está falando de alienígenas?
— Estou falando de Mania, deusa romana dos mortos que é mãe dos fantasmas; ou Tuchulcha, deusa etrusca demoníaca que aguarda o submundo; ou Nideninna, deusa Babilônica que tem o poder sobre o livro dos mortos; ou Atropos, uma das três Moirai, que tinha o mecanismo de morte, e que acabou com a vida de cada mortal, cortando os seus fios com o sua ‘tesoura’; fios de prata Oscar que se rompido é capaz de matar quando....
— Chega Sean!!! — berrou.
— Não chega não! Porque tudo é mito Oscar, se misturando chegando nessa serpente-sentinela que o ufólogo Armand disse que eu vinha estudar! Mas eu não vim estudar ninguém Oscar!!!
— Não! Não veio! Você veio por causa da Computer Co., fazer outsourcing, porque não consegue crescer para assumir tamanha responsabilidade.
— Eu o quê?!
— Não me culpe por... — e Oscar ouviu Sean desligar. — Sean?! Sean?! — berrou Oscar nervoso do outro lado da linha.
Mas nervoso estava Sean e o agente da Polícia Mundial sob a mira dos dentes de um cão ensandecido que rosnava para eles.
O agente ameaçou se mexer.
— Fique quieto! — Sean exclamou rapidamente. — Não se mexa!
E o cão babava.
— Por que ele ainda não nos atacou Sr. Queise?
— Porque está desligado.
— Desligado por quem? — o agente olhou em volta. — Precisamos sair daqui! Estamos desarmados — falava o agente.
— E vamos para onde?
— Há uma arma escondida na cabana, na subida da trilha — apontou o agente com a cabeça. —, fora dos domínios da École.
— “Cabana”? — Sean não tirava o cão desligado da mira.
— Acima da École, caminho contrário à essa piscina... — e um grande estrondo se fez sobre suas cabeças. Sean se jogou ao chão e o cão se jogou sobre o agente. — Corra Sr. Queise!!! — gritou o agente lutando com o cão.
Mas Sean não teve tempo para aquilo, uma rajada de tiros despedaçou a madeira da árvore que os encobriu.
— Ahhh!!! — gritaram uníssonos, Sean e o agente, debaixo de galhos e troncos de árvores.
Sean tentou se livrar do peso quando mais tiros lhe passaram de raspão. Abaixou-se e mais tiros acertaram a cabeça do agente da Polícia Mundial que caiu de olhos abertos sob os dentes do cão.
— Droga... — Sean pegou um pedaço de tronco de madeira e acertou o cão descontrolado que comia pedaços do agente. O cão rolou longe ficando desacordado e Sean correu a puxar o corpo do agente para trás das árvores sabendo que já não podia fazer nada por ele. — Droga... Droga... Mas que droga!
A piscina de água natural não era muito grande e uma cachoeira descia rente onde estavam. Sean pensou subi-la através das pedras, mas outra rajada de tiros abortou aquela ideia.
— Ahhh!!! — um grito dolorido invadiu tudo.
Sean se aproximou da água e algo foi lançado do alto da trilha. Ficou estático a entender o que caía, apavorando-se mais ainda ao vê-la aos seus pés; um corpo de menina que se deslocava com o movimento das águas que a levava embora.
— Não!!! — gritou ao tentar pegá-la e seu corpo ferido escapou-lhe das mãos. — Deus... — Sean arrancou o casaco da cintura e se jogou nas águas.
Nadou, nadou, e a alcançou percebendo que outra vida fora ceifada, quando começou a ser puxado pela forte correnteza em meio a mais tiros disparados.
Sean olhou para cima, e ouviu o uivar dos cães furiosos comandados por um dos homens da clínica que descia desembestado. Sean nadou o mais rápido de volta e saiu da água.
Os cães foram desviados pelo cheiro de sangue do agente morto enquanto ele corria terreno acima, subindo a trilha molhado, com frio, em total desespero. Um dos homens da clínica chegou onde o corpo desfigurado do agente estava escondido e lá encontrou um casaco da École Hoteliere Dubois. Não gostando nada do que pensou, chamou os cães para cheirarem o casaco.
— Vão!!! — gritou o homem da clínica.
Sean se virou e viu que os cães agora farejavam o cheiro dele, que os cães corriam alucinados floresta acima quando Sean viu mais uma jovem correndo floresta abaixo com mais cães ferozes a seguindo.
— Clara? — Sean agarrou-a no voo que deu lançando-lhe as mãos na boca dela para que não gritasse.
Clara levou um tempo para entender onde estava, quem ele era, apavorada demais para pensar.
— Monsieur...
— O que está fazendo aqui?
— Eles iam... Eu ia... Eles disseram... Eu ia viajar...
Sean olhou para os lados, entendeu que não podia se dar ao luxo de parar.
— Vamos! — Sean a ergueu do chão e embrenharam-se mais ainda, subindo a escarpada montanha quando os cães se aproximaram.
Sean se jogou sobre ela no que seu corpo tomou-se do branco da neve e os escondeu dos cães que passaram por eles confusos pelo cheiro que não acompanhava a visão.
Sean não acreditou no que fez, no que podia fazer, mesclar-se à neve.
E não parou para entender, puxou uma Clara atordoada com tudo e aquilo também, e correu em meio a tiros certeiros.
— Ahhh... — e Clara foi ao chão, ferida, com Sean vendo que sua coxa também estava ferida, se esvaecendo em sangue, e mais tiros se seguiram.
— Vamos! Vamos! Vamos! — Sean sabia que não podia se dar ao luxo de parar. Corria pulando sob a perna boa voltando ao chão no que o corpo de Clara foi atingido por um segundo tiro, desmaiando. — Não!!! Clara não!!! — Sean gritou desesperado a erguendo por sobre o ombro, carregando-a com toda a força que ainda possuía, atravessando os domínios da École Hoteliere Dubois onde a neve era mais espessa e enterrava seus pés dificultando a fuga com Clara nos ombros.
O sangue da coxa dele misturado ao corpo baleado dela formava uma trilha fácil de serem localizados. Sean sabia que não podia correr o risco de levá-los até a École Hoteliere Dubois, e descobrirem quem Clara era, entregando que ele era um rico empresário que chegou a Lausanne num trem fantasma.
Mudou de rumo e ideia adentrando novamente a floresta fechada, tentando alcançar a cabana que o agente da Polícia Mundial dissera conter uma arma.
— Peguem-nos!!! — um grito se fez ao longe e os cães alucinados obedeceram ao comando de um apito.
Sean se jogou outra vez sobre o corpo de Clara enquanto outra menina apareceu ao lado deles e foi dilacerada por cães.
— Ahhh... — Sean segurou o grito ao vê-la ser despedaçada.
Olhou Clara ferida, olhou-se e tomou-se de coragem continuando a correr com ela em total desespero vendo um, dois, três restos de corpos, jovens e belas como Clara era, pelo caminho.
Corria pela neve uma vez imaculadamente branca, agora tingida de sangue e saliva de cães, que se lançaram sobre eles, quando Sean se lançou sobre o corpo de Clara, e algo verde e esguio se lançou sobre os dois, protegendo-os, fazendo os cães se chocarem contra ela.
Sean pôde ouvir o uivado de dor dos cães quando a serpente-sentinela alienígena laçou-os com uma grande língua, os enforcando. Sean arregalou os olhos azuis, engoliu o grito que com certeza não daria e a serpente-sentinela se ergueu de costas para eles sob um estranho som de papel amassado, transformando seu corpo de serpente em corpo de mulher.
E o corpo que se desenhava, perfeito era, com cabelos verdes lisos e escorregadios, que balançavam ao vento, como a imagem confusa no fog do Lago Léman, como na névoa do quarto de Clara.
Um perfume doce que se espalhou por toda a densa Floresta de Jorat na madrugada iluminada e fria.
Sean percebeu que a coisa verde e esguia de costas para eles não era humana, que a pele dela começava a modificar passando a se mesclar às árvores, a neve, interagir com sua textura, ficar transparente até um Orb, um UFO metálico aparecer e girar luzes estroboscópicas que quase o cegaram.
— Ahhh! — fosse o que fosse aquela coisa verde e esguia, ela usava os UFOs metálicos circulares para ir e vir.
Outro apito e mais cães começaram a se aproximar.
“Droga!” Sean acordou do torpor e ergueu Clara mais uma vez, recomeçando a subir a clareira que voltava a abrir suas copas, e a iluminar melhor a trilha.
Quando ele alcançou a cabana com Clara desfalecida, Sean derrubou a porta num chute, entrando; uma cama, duas cadeiras, uma mesa e um rádio foram tudo o que encontrou.
Sean colocou Clara sangrando na cama desarrumada e ligou o rádio, tentando alguma frequência.
— Oscar?! Câmbio!!! — sons estáticos começaram a ser ouvido. — Oscar pelo amor de Deus! Socorro! Câmbio! — só chiado. — Deus... — Sean olhava em torno aterrorizado com tudo. — Base! Câmbio!
— Aqui é base! Câmbio!
— Preciso de socorro! Câmbio!
— O que houve Monsieur Sean Queise? Câmbio!
— Comunique a Polícia Mundial do ocorrido.
— Ocorrido? Câmbio!
E Sean desligou. Esperava que agentes de Oscar investigassem, conseguissem descobrir o ocorrido.
Abandonou Clara a própria sorte e correu, não podia ficar fora tanto tempo da École Hoteliere Dubois ou ia colocar em risco sua identidade; não podia parar, não agora.
Voltou para a neve, para o frio, correndo com as forças que ainda tinham até alcançar o pátio da escola, estancando, no entanto ao ouvir vozes; alunos da École vagavam pelo pátio na madrugada fria, provável atrás dele, que não voltara do encontro com o ‘tio Antônio’.
Sean olhou um lado e outro sabendo que não podia voltar à cabana, que não podia ser pego ensanguentado, que não conseguia mais pensar.
Estava rasgado, molhado, sujo, sangrando.
Sentou-se ao chão e desmaiou.
12
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
26 de março; 09h40min.
“Você está bem?”, perguntou uma voz distante, muito distante.
Sean firmou a vista e um nevoeiro rosa se formou na sua retina.
— Quem...
— Você está com febre — falou uma voz carinhosa. — Aguente mais um pouco, por favor.
— Eu... — Sean voltou a fechar os olhos, só abrindo-os novamente muito tempo depois.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
26 de março; 10h10min.
E o nevoeiro cor de rosa ainda permanecia ali.
— Está se sentindo melhor agora? — perguntaram. — O ferimento parou de sangrar.
Sean firmou a vista de uma vez e Maykon tinha um pano úmido, torcido, nas mãos. Trocava sobre a cabeça dele para abaixar a febre.
— O que...
— Você estava caído no pátio. Eu chamei o Adelfo e o Bruce para carregá-lo. O resto de seus amigos distraiu todos com uma bombinha caseira no banheiro do vestiário. Foi um escândalo em plena madrugada — vibrou femininamente. — A diretora Cybele quase teve um ataque — riu. — Marcello é bom na fabricação de confusão.
Sean quis falar algo do por que achar Marcello parecido com Ernest, mas a dor o impediu.
Maykon ia retirar o pano para trocar, mas Sean brecou o ato.
— Obrigado... — soou segurando a mão do amigo.
— É meu segundo pagamento de agradecimento — brincou sem saber se Sean estava suscetível a brincadeiras.
— Não o fiz para gerar agradecimentos, apenas fiz o que achei certo.
— Compreendo.
— Estou aqui... — Sean olhou para o lado. —, faz muito tempo?
— Desde as duas da madrugada quando o encontramos caído e ferido.
— Só vocês me viram?
— Sim. Cybele disse que você havia saído, depois ela disse que você não havia voltado, e depois ela disse que você havia voltado. Deu-nos ordem para procurá-lo, mas procuramos por toda escola e não o achamos. Então Adelfo falou que você devia estar procurando a escada dos relógios, e riu tanto que Cybele precisou lançar seu chinelo de quarto na cabeça dele. Ninguém entendeu.
Sean entendeu.
Ameaçou se erguer imaginando que Cybele o viu quando atravessou o terreno da École Hoteliere Dubois para descer até o agente da Polícia Mundial.
— Alguém mais me viu chegar quando Cybele disse que eu havia chegado?
Maykon percebeu a confusão mental dele.
— Não... Acho que não...
— Maykon... Eu queria te perguntar... — e Sean ficou sem como prosseguir. — Alguém mais ficou sabendo da piscina da cachoeira?
— Todos!
— Que vergonha! — balançava a cabeça ainda se sentindo meio tonto quando a sineta tocou tão alto que ambos tiveram um sobressalto. — Bandeira? — se perguntou ao olhar no relógio digital. — À uma hora dessas?
— Vai conseguir se levantar? — Maykon correu a ajudá-lo.
— Preciso! Não posso mostrar a Cybele que estou ferido.
— Sua perna sangrou muito.
Sean se olhou com o short de pijama. Olhou Maykon que ficou totalmente tomado pelo rubor, mas ambos nada falaram sobre quem o trocou.
Foi até o banheiro e lavou o rosto, tomando mais dois anti-inflamatórios dado por Maykon que desceu antes para não chamar mais atenção, e se trocou.
Quando chegou ao andar debaixo viu que a primeira sala estava vazia. Andou com dificuldades e viu a segunda sala vazia, andou até a terceira sala e a menina e a boneca rica, o pai preocupado, o casal de italianos, a mulher de colares, o inspetor de cabines com o comissário de buffet estavam lá dentro, lhe olhando.
— Ahhh... — Sean voltou ao corredor em choque sentindo o coração bater destrambelhado na garganta. Engoliu a saliva com o que viu e voltou à porta escorregando um olhar para dentro da terceira sala percebendo-a vazia. — Alguém se esqueceu de buscá-los.
“Qual deusa?” foi a pergunta mais difícil de fazer até o momento.
Estavam todos no pátio lotado apesar do frio e da neblina. Um Volvo azul estava estacionado no portão. Sean tremia pelo frio e pelo medo sentindo as mãos congelarem, não acreditando ao ver outra vez a fachada de tijolos americanos.
O que aquilo significava também ia ter que esperar.
A bandeira da Suíça ia aos poucos sendo hasteada e o silêncio fora recomendado. Ele olhou para os lados sem chamar atenção e um homem, um político de olhar polido olhava a bandeira com a mão ao coração. Também viu Cybele ao seu lado; os Luciedes a ladeavam.
Era realmente uma família muito influente na região.
Sean tentou visualizar a estação de trem outra vez, as três capas berrantes, mas não conseguiu.
“Droga!”, se irritou.
Todos estavam ali em volta menos Marcia. Olhou para cima e todas as janelas pareciam se encontrar abertas.
“Não pode estar dormindo com a claridade e o barulho”, voltou a estranhar.
Mas um puxão quase o fez perder o equilíbrio. Ia se alterar, mas o susto o impediu que o fizesse.
Um homem de terno e casaco pesado de tweed de lã por cima, usando óculos escuros de grau, e com o semblante carregado, estava do seu lado.
Quando Oscar se virou para ir embora Sean o segurou.
— Preciso falar...
— Agora não... — sussurrou voltando para onde estava, ao lado do político de olhar polido, trocando algumas palavras quando o hino terminou.
Sean disfarçou percebendo que o político havia vindo no mesmo carro Volvo azul de Oscar. Escondeu as mãos do frio no casaco que usava e sentiu um papel que não colocara lá. Olhou diretamente para Oscar que franziu a testa concordando com algo. Percebera que era um bilhete dele e recuou, voltando a entrar no corredor de dentro da escola.
Leu:
— “Rue de Antrô, 33. Altura dos 30415 da Rue de Genebra, - Flon; Vinte e duas horas; hoje. Sem avisar Cybele Dubois” — e Sean rasgou-o em pedacinhos.
Depois temeu que alguém os remontasse e olhou em volta. Foi mancando até a sala da diretoria que estranhou estar trancada. Entrou numa das salas de aula e triturou os pedaços de papel na máquina de picar que já havia visto estar ali, e bagunçou os papéis na lixeira.
Saiu de novo e voltou para o pátio, onde Cybele falava algo do político de olhar polido ser o prefeito de alguma outra cidade próxima, e o quanto estava encantada com a sua visita à escola.
Cybele estava emocionada, notoriamente.
Sean não compreendeu foi o porquê de Oscar estar ali, se ele havia se apresentado para a diretora como seu tio Antônio Montebello.
Todos aplaudiram as falas do prefeito visitante, e Sean tentava participar da mesma emoção, tentava ver Oscar, e tentava não encarar os Luciedes.
Sua cabeça girava rápido; o pequeno UFO metálico na janela, o ataque daquela coisa vestida de verde, a saída do corpo e Sandy, e Kelly, e Marcia, e os computadores de HDs vazios, e seus dons paranormais congelados no frio de Lausanne, em meio a um telhado que não existia e mortos que não eram levados, ele não sabia para aonde.
“Droga!” voltou a soar em pensamentos.
Os alunos começaram a se dispersar e Sean viu Cybele parada à frente dele.
— Antônio veio nos fazer uma visita — falou Cybele com um brilho no olhar verde para com o tio dele.
“Antônio?”
Cybele estava deslumbrada, era notório.
— Como ele está indo? — perguntou o tio Antônio Montebello.
— Ainda estamos muito no início, Antônio... Posso chamá-lo de Antônio? — Cybele jogava-lhe charme. Oscar concordou com uma mesura e Sean nunca havia visto nenhuma mulher ‘cantar’ o todo poderoso homem da Polícia Mundial. — Então Antônio... — Cybele sorriu gentil. —, não exija tanto do rapaz.
“Quanta delicadeza agora”, pensou Sean cabisbaixo.
— Cuidado, Srta. Cybele Dubois — Oscar olhou para Sean. — Por baixo da aparência de estudante mora um vagabundo — falou ríspido. —, um daqueles bem perigosos.
Sean continuava com a cabeça baixa.
— Cuidaremos para que esse quadro se modifique, Antônio — Cybele sorriu com graça. — Pode ter ser certeza que a École Hoteliere Dubois é a melhor opção para seu sobrinho — Cybele viu Sean não levantar a cabeça uma única vez. — Talvez... — e Oscar foi levado por ela que o amarrou em seus braços, para longe de Sean. —, se o tivesse trazido antes...
— Se o tivesse trazido antes talvez sua educação teria sido mais esmerada.
E Sean começou a não gostar daquilo, daquele Oscar atrevido.
— Talvez se o tivesse trazido antes, a École Hoteliere Dubois teria conseguido milagres... — e se afastaram de vez.
— “Milagres”? — falou Sean sozinho. — Precisarei de um para sair daqui sem a autorização dela... — deu de ombros para sua educação e voltou a entrar no edifício onde os alunos estavam dispersos demais.
Uma bagunça se instalava ali e Sean viu o colega Adelfo rindo quando o puxou para um canto, o assustando.
— Sean?
— Me disse que estava na École Hoteliere Dubois há muito tempo; isso é por que conhece a cidade? Pode me indicar um lugar?
— Mais ou menos — respondeu Adelfo olhando Sean mancar. — A gente não pode sair daqui, sabia?
— Já percebi.
— Mesmo assim dá umas escapadinhas não?
— Clube da luta.
— Clube do que?
— Nos reunimos para lutar até cair.
— Ah! — Adelfo gostou daquilo. — Por isso estava sangrando? Legal!
Sean não acreditou no que ouviu, nem no que falou. Ele era uma mentira que perdia a inocência cada vez mais rápido.
— E então?
Adelfo criou coragem para falar algo.
— Nós temos um tempo livre da manha de sábado até à tarde do domingo — olhou em volta. —, porque a Cybele, e olha, ela é o único empecilho e força aqui dentro — e parou para olhar em volta novamente. — A turma gostou muito de você.
— Ah... — Sean não esperava aquilo, ficou desconcertado sem saber quem era a ‘turma’ e sem saber como ser jovem como eles. — Obrigado!
— Você quer fugir conosco?
— Quando?
— Todo o sábado a Cybele vai a uma reunião religiosa.
— “Reunião religiosa”? De que tipo?
— Não sabemos. Ela fica a rezar do sábado para o domingo e só retorna segunda de manhã bem cedo... Então a gente foge.
Sean riu.
— Aonde Cybele vai?
— Acho que aqui mesmo no Cantão de Vaud, a 40 km da capital Lausanne, perto da fronteira com a França. Nas grutas de Vallorbe.
— “Grutas”?
— Sim.
— Só que tenho um problema, Adelfo. Eu preciso estar às vinte e duas horas de hoje, na Rue de Antrô número 33, na altura do número 30415 da Rue de Genebra, no bairro do Flon.
— No Flon?
— O que tem de errado com o Flon?
— Bem, o Flon é um bairro antigo, até um pouco pobre, mas concentra a vida noturna de Lausanne. Cinemas, cabarés, casa de shows ao vivo, restaurantes. Tem até um funicular para você andar.
— Eu já ouvi falar do bairro boêmio — olhou em volta quando sentiu um repuxo na perna.
— Venha! — e Adelfo começou a levá-lo para o seu quarto. — Consegue andar?
— Sim — e uma chuva de papéis se instalara no corredor; uma bagunça geral. — Que animação, não? — disse Sean ao subir as escadas.
— Não viu nada. É só… — Adelfo fez um movimento com a cabeça apontando Cybele. —, ela se distrair um pouco — os dois riram e Adelfo percebeu algo. — Nunca viu isso não?
Sean sentiu-se mal.
— Minha educação foi rígida. Não tive muitos amigos...
— Por isso a filosofia?
— Por isso a filosofia, a única que me sobrou como amiga.
— Entendo. Mas nunca me imaginei estudando filosofia só porque era sozinho — riu.
— Também comecei cedo nos negócios da família.
— Sua família faz o que?
Sean estancou.
— Telas de LCD.
— Que legal... — falou Adelfo despretensioso.
E Sean viu Cybele ainda lá fora, emaranhada em Oscar. Achou graça da diretora para depois ver Elisa o encarando, tentando e nada conseguindo ler em sua mente. Sean olhou Elisa de novo, e de novo, e de novo, e nada conseguiu. Aquilo ele não achou engraçado, podia sentir o ódio dela por ele, mas não compreendeu por que ela agia daquela maneira.
“Ou sou eu?”; pensou ao subir os últimos degraus atrás de Adelfo.
Sem mais olhar para a confusão, chegou ao quarto de número 10-10-10, ao lado da escada mostrando que lá dormiam três alunos.
Adelfo entrou e foi logo abrindo uma gavetinha onde um diário com chave, foi invadido.
— Esse é o mapa da perdição — falou Adelfo rindo e mostrando a Sean algo não muito grande, mas muito bem desenhado. — A Rue de Antrô, é uma rua de prostituição e jogatina.
— É o quê? — agora Sean levou um susto.
— Parece assustado. Não sabia o que ia encontrar lá? — perguntou Adelfo, inclinando o pequeno óculo de grau para leituras, sem aro, sobre o grande nariz angular.
— Na verdade não — respondeu Sean sorrindo, imaginado onde Oscar o queria levá-lo.
— Então tome cuidado. Seja lá qual o motivo que o vai levar lá.
— Pelo que vejo você conhece o número 33 da Rue de Antrô.
Adelfo riu sem graça.
— É uma rua estreita, e apesar de ser de mão dupla mal passam dois carros. Funcionam vinte e quatro horas, diga-se de passagem, e são apinhadas de turistas.
— Não estou interessado em turismo erótico — falou com força.
— “Ils sont trop verts et bons pour des goujats”.
— “Quem desdenha, quer comprar” — Sean traduziu não achando muita graça no ditado.
— Lá estão cinco pequenos cabarés de strip-tease, duas casas de jogos de azar e um velho hotel. Acho que uma ou duas casas de massagem e tem também o Q’Animal.
Sean estancou no último.
— O que é o ‘Q’Animal’?
— É um club privê. Custam 500 Euros só para entrar e tem as mulheres mais lindas da Europa na plateia.
— “Na plateia”? — Sean riu. — Não seria no palco?
— Não! No palco ficam os animais — e foi a vez de Adelfo rir.
Sean não quis insistir, mesmo por que Adelfo não o fez também.
— Fico muito grato — e pegou o mapa. — E como eu saio da École, afinal? Já tive dificuldades em encontrar um táxi.
— Saindo do portão, siga a pé uns três quilômetros acima para não chamar atenção. Há uma estação de esqui, subindo a estrada. Nem sempre a estação está lotada, mas tem muitos jovens por lá. Vai sobrar carona — explicou.
Sean ficou a divagar entre suas ideias. Agradeceu Adelfo que o convidou para fazer parte da turma, ficando de dar uma resposta mais para frente.
Ele também não sabia bem o que era uma turma, nunca tivera uma. Só lhe sobrara os livros e a filosofia. E aquilo não era uma mentira.
Voltaram juntos para a aula de moda da Srta. Noubelle, que iniciava naquele momento. Cybele estava lá, parecia que Oscar conseguira enfim escapar da simpatia da diretora.
— Olá, todos! — e a comoção foi geral. — ‘O’ bíblia chegou! — mostrou a Srta. Noubelle animada para um enorme livro sobre vestuário. — Desde o cinema mudo que as pessoas se interessam em saber o que as outras vestem no mundo todo... — a Srta. Noubelle falava e Sean se entediava. Ele nunca se interessou por moda. Até sua mala quem fazia era Kelly. — Fazendo uma análise geral do vestuário desta época, verifica-se o predomínio da influência romana no mesmo, a qual se caracteriza por vestes amplas, que dissimulavam as formas do corpo; contudo era já patente uma elegância no pregueado do traje, assim como a riqueza e decoração do próprio tecido...
Sean olhava em volta não acreditando estar ali, ter que estar ali.
— Apesar da diferença entre as roupas femininas e masculinas ser insignificante, a mensagem cristã, também influenciou o modo de vestir? — falou Bruce acordando a todos.
— Oui! Oui! Neste século, e também no anterior, Constantinopla simbolizava a capital da moda, do luxo, da riqueza e do prazer, assemelhando-se com a atual Paris...
Sean cerrou os olhos e jogou a cabeça para trás sentindo que ia odiar a vida dali em diante.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
26 de março; 21h00min.
Como bom menino, Sean almoçou e jantou, e se preparou para dormir; e também fugir, com Maykon já avisado sobre o ‘Clube da luta’ e seus muitos ferimentos.
Vestia uma jeans e uma camiseta colada demais para seu gosto refinado, mas todas eram assim na mala entregue. Terminou por colocar uma jaqueta da moda; tudo ‘stylist’ da Polícia Mundial.
Após Maykon dar o último suspiro e se entregar ao cansaço do dia, Sean abriu a janela e viu que folhas estavam agarradas à estrutura de pedra que recobriam a fachada da École Hoteliere Dubois. Não acreditava ver novamente aquela imagem quando tocou sua estrutura fria e úmida e todo seu corpo arrepiou-se até o último pelo.
Diferente da outra vez sentiu algo naquela construção.
Desceu sentindo dor na coxa machucada e saiu mancando, tentando não pensar em mais nada quando foi a vez da voz de Mona Foad o invadir.
“Sean?”, e a voz dela também invadiu o caminho que ele percorria estrada acima, se plasmando na mulher egípcia, de turbante na cabeça e a tez preocupada, e que agora caminhava ao lado dele.
— Mona? — falou para a escuridão, para a imagem ali plasmada.
“Segundo Allan Kardec, o ser evolui por si mesmo, pelo desenvolvimento gradual das forças que estão nele inconscientes no início do curso de sua vida, tornando-se mais inteligente e consciente”.
— O que quer dizer Mona? — olhou para ela.
“Ainda que sua liberdade seja limitada pela ação das leis naturais que intervêm para assegurar sua conservação, livre arbítrio e fatalismo se equilibram e se temperam um ao outro”.
Sean olhou um lado e outro e a imagem de Mona Foad sumira, olhou outra vez um lado e outro e somente a luz de farol de um carro se via ao longe.
Ergueu a mão pedindo carona e suspirou profundamente.
Uma longa noite o esperava.
Distrito de Flon, Lausanne.
46° 31’ 18” N e 6° 37’ 37’ E.
26 de março; 21h50min.
O layout da cidade de Lausanne era único. Dividida entre Cidade Alta, Haute Ville, e Cidade Baixa, Basse Ville ou Ouchy, espalhava-se em plano inclinado do alto de um plateau até o Lago Léman.
E parecia ser duas cidades distintas, com sua parte alta histórica e labiríntica, distinguindo-se a construção gótica, a Catedral de Notre Dame, e o Le Flon, uma região com bares e nightclubs, de onde saía o metrô que leva à sua parte mais baixa, à beira do lago de passeios à barco, com seus hotéis clássicos de balneário, jardins, e o Museu Olímpico.
Sean alcançou o Flon ainda mancando, faltando apenas dez minutos para que os sincronizados relógios suíços avisassem as vinte e duas horas no centro da cidade.
Ele foi deixado por um casal de turistas franceses já perto da famosa Rue de Genebra, quase na altura do número 30000.
De lá, alcançou a estreita Rue de Antrô a pé.
O brilho do néon lotava a rua mais iluminada do bairro. Aquilo devia encher a vista de um rapaz jovem ou qualquer outro que buscasse diversão e prazer num fim de noite. E apesar de Lausanne estar saindo do auge das estações de inverno, os turistas ainda lotavam a Rue de Antrô.
O Club Acheir estava apinhado de homens bêbados. Sean viu quando a porta foi aberta e cinco deles foram expulsos por enormes montanhas de músculos, fazendo um deles quase caírem aos seus pés quando passava.
Sean achou impossível aquilo estar acontecendo com ele. Balançou a cabeça, enfiou as mãos na jaqueta atravessando a rua com dificuldades, tamanha era o acúmulo de carros, torcendo para não ser reconhecido.
E havia trazido muito dinheiro apesar da recomendação de Oscar. Nunca ficara sem dinheiro, temendo entrar em encrencas.
Contudo, estava tão desligado com o problema de ser visto por alguém conhecido que passou da numeração, e se encontrava na frente do Lidô Hotel, um ‘pulgueiro’ que tinha na sua parede o número 21.
Sean voltou os olhos para trás e levou um susto, o estabelecimento de número 33 tinha um néon laranja piscando insistente a mostrar Q’Animal.
“Quinhentos Euros?”, pensou.
— Que droga! — não viu saída se não voltar atrás.
Deu poucos passos e teve que recuar para não ser atropelado.
De dentro da Ferrari FF vermelha último modelo, uma bela mulher de pele amorenada e cabelos loiros e encaracolados, saiu. O dirigia dentro de um minúsculo vestido vermelho, que fora posto propositalmente na mesma cor.
Sean só foi perceber sua proximidade para com ela quando foi brecado, com dor, por uma montanha de músculos maior do que a que jogara os bêbados para fora do clube de jogo.
Os capangas, mais de dois, faziam à segurança da bela morena de cabelos loiros e encaracolados, que se perdeu para dentro do Q’Animal sem vê-lo.
Sean teve a sensação de conhecê-la.
Caminhou até o guichê e entregou o dinheiro para comprar o ingresso.
Uma mulher de seus quarenta anos numa portinhola pequena e mal iluminada, encravada numa reentrância da porta da entrada, gritou:
— Pode entrar!!!
— Como é que é? — perguntou Sean inclinando a cabeça sem compreender porque ela não pegou o dinheiro.
— Está atrasado! — falou sem encará-lo. — Ele o esperava às vinte e duas!
— “Ele”?
— Seu cafetão, engraçadinho — respondeu fechando a portinhola.
— Meu... — Sean ergueu o pescoço e esticou tanto os olhos azuis, que pensou que fossem saltar para fora do globo ocular.
Achou mesmo, que não tinha entendido. Ia bater na portinhola e comprar o ingresso quando a mesma louca mulher de quarenta anos abriu a porta grande, atrás da portinhola para que ele entrasse.
Sean olhou para os lados e entrou.
— Uhm! Pelo menos dessa vez mandaram um artigo melhor — e fechou a porta atrás dele.
— “Um artigo melhor”? — disse para si mesmo a se ver sozinho, num corredor comprido e barulhento pelo escape da fumaça e do som musical vindo de dentro do salão.
Sean entrou numa sala pequena com duas poltronas e a sala foi invadida por três homens mal encarados.
— Chegou faz muito tempo? — perguntou o primeiro.
— Já se alimentou? — perguntou o segundo.
— Conseguiu algum documento? — perguntou o terceiro.
Sean não soube o que responder, a quem, se recuperando logo em seguida.
— Precisava trazer no primeiro contato?
— Não! — respondeu friamente o terceiro homem, armado com uma automática no coldre, por debaixo de um horrível terno listrado de amarelo e preto e calças marrons.
Sean foi encaminhado pela porta, rodando os olhos pela sala que entrara, agora de aspecto luxuoso mesmo que sem estética alguma.
Percebeu ainda dois quadros na parede parecendo autênticas obras de artes; um Rembrandt e um Gauguin.
Lá também, dois homens baforavam um horrível charuto; um deles de costas para Sean usava gorro, mostrando cabelos negros escondidos por baixo. O outro, um moreno com faixas largas pintadas de vermelho no cabelo, usava barba e piercing no nariz e o encarava quando o homem de costas, balançou o pescoço como de costume.
— Oscar... — Sean calou-se nem soube como.
— Timmy, meu menino de ouro — falou Oscar num tom brega ao se levantar e abraçar um Sean tão rígido que nem o ar passava pelos seus pulmões.
“Menino?” “Ouro?”; Sean tentava respirar e pensar ao mesmo tempo quando recuou do abraço levado.
— Já falei para manter distância — disse num fel, só.
Oscar brilhou os olhos azuis, escondidos nos óculos de lentes grossas.
— Parece que nunca concordamos em nada, não é? — e Oscar passou as mãos pela bunda de Sean, que se encolheu com o ato. — Timmy, este é Albert Falppo... — e Oscar apontou para o homem de piercing. — Você já deve ter ouvido falar dele.
— O empresário das grandes estrelas? — soou um Timmy debochado e um Sean que mal sabia de quem debochava.
Falppo, porém não gostou do deboche. Ergueu-se partindo para cima dele quando foi brecado pelo corpo de Oscar, que se pôs na frente.
— Hei! — se impôs. — Nem pensar em estragar o meu material. Meu menino custou caro.
— Não vou estragar nada, Bruno! Não se preocupe! — respondeu Falppo, nervoso. — Sabe que estou com dificuldades de bons fornecedores.
“Fornecedores?”, Sean queria poder lembrar como respirar.
— É! — e Oscar/Bruno riu. — Se aceitar meu menino de ouro aqui no clube, é claro!
A voz de Oscar Roldman ecoava cada vez mais alto, cada vez mais rápido; e cada vez e cada vez.
— Oscar... — falou Sean baixinho.
Oscar empurrou-o.
— Está bem, Bruno! — concordou Falppo após desligar o telefone e falar com alguém que não foi identificado naquele momento. — Timmy vai trabalhar no Q’Animal por um tempo.
“Timmy?” “Trabalhar?” “Q’Animal?”, Sean sentiu um frio no estômago, ele era o ‘Timmy’ e estava sendo contratado não sabia no que, para trabalhar ali.
— Está feito meu menino de ouro — falou Oscar/Bruno ao agarrar o pescoço de Sean e dar-lhe um beijo na boca. A escolha de ação de Sean não foi tão rápida dessa vez e ele foi beijado. — Um dia você ainda vai entender meu amor por você.
“Meu amor por você... Meu amor por você... Meu amor por você...”, ecoava sem dó.
Sean se virou para sair quando Falppo falou:
— Timmy trabalha hoje! — Falppo viu Sean paralisar a mão na maçaneta. — O Pierre faltou! Ele entra no lugar dele!
— Não!!! — gritou Oscar/Bruno atônito. — Eu falei daqui a uma semana quando...
— Não me interessa sua agenda Bruno! — respondeu Falppo com o piercing que levantava e abaixava no que o nariz nervoso dele abria e fechava. — E o quero no mínimo em três shows adiantados.
— Não! Não! — Oscar/Bruno balançava a cabeça como um negativo e Sean percebia o seu desespero se desesperando também. — Timmy não treina dança há muito tempo.
— “Dança”? — agora os pensamentos escaparam de Sean.
— Não! Não!
— Hoje Bruno!
— Não... Timmy está...
— Hoje ou nada feito!
— Vai trabalhar só hoje! — e falou um Oscar para lá de nervoso e irritado consigo mesmo. — E voltará a se apresentar daqui a uma semana como o combinado!
Oscar/Bruno viu Falppo alterado, mas aceitando por forças das circunstâncias.
— Está bem, Bruno! — falou Falppo afinal. — Hoje ele dança! Amanhã ponho outro no lugar. Depois ele fecha outros dois shows que faltam. E depois vamos ver um contrato em longo prazo.
“Longo prazo”, agora Sean se alterou.
— Acalme-se... — sussurrou Oscar/Bruno vendo todo o corpo de Sean vibrar de raiva. — Voltamos a nos falar, Falppo! — e saíram.
A porta fechou e Oscar Roldman foi erguido do chão sem que Sean Queise o tocasse.
— Vejo que seus dons se aprimoram — Oscar viu Sean de olhos arregalados e ele suspenso no ar.
— Não se atreva a brincar comigo Oscar!
— Não estou...
— Porque vou matar você, mesmo sabendo que a Polícia Mundial vai me matar depois — Sean viu Oscar só o olhar, o descendo.
— Mas antes de me matar, vai ter que dançar! — exclamou ao chegar ao chão.
Oscar se virou e foi embora.
— Você só deve estar... — Sean nem se deu ao trabalho de correr atrás dele.
— Não estou não!
— Escola? Club? — Sean agora o segurou pelo braço. — O que está acontecendo Oscar?
— Perdão! — e Oscar olhou em volta ainda preso pelas mãos firmes de um Sean Queise furioso. — Não tive como avisá-lo.
— Avisar-me? Que droga está acontecendo Oscar? Nunca o vi fazendo isso... Isso... Isso que fez! — apontou para as roupas dele. — Ahhh! Que droga, Oscar! Quem é Bruno?
Oscar se virou para a câmera que os vigiava e ficou de costas.
— É um idiota qualquer.
— Então me diz, sou idiota também?
— Por favor, Sean querido. Vai ter que fazê-lo. E vai fazer porque quer descobrir o porquê dela não vir buscar os mortos do trem que lhe visitam.
Sean arregalou os olhos azuis e soltou o braço de Oscar que começava a roxear.
— Como... Como... — Sean teve medo da resposta.
No final das contas temia o que perguntava; a família Roldman tinha dons, ele sabia. E ele sabia aquilo e muito mais.
Sean piscou nervoso olhando o chão.
— A propósito... — Oscar falou baixinho. —, a mulher morena do carro Ferrari FF... — Oscar esperou ele encará-lo. — Conquiste-a!
Sean ficou no meio do enfumaçado e fétido corredor do Q’Animal achando que ele era mesmo agente dele.
Q’Animal, Flon; Lausanne.
26 de março; 22h57min.
Os cabelos que escorregavam sobre o ombro desnudo, chamavam a atenção até das paredes. A mulher de cabelos loiros e encaracolados, sentada a primeira mesa, tinha a pele jambo que reluzia tanto quanto a sua Ferrari FF que lá fora estacionara; Sean a observava por detrás de uma cortina.
Ela beirava os trinta e cinco anos que a maquiagem, um pouco, confundia, e vestia-se toda de vermelho com o batom combinando com o esmalte das unhas, com a sandália Jimmy Choo, com a bolsa Chloé e tudo mais que Sean aprendeu com ‘o bíblia’.
E parecia ser rica pelo tanto de joias que carregava.
Sean viu também que a mulher morena jambo da Ferrari não prestava atenção ao show. Então o que ela fazia ali ele não conseguia captar. Nada. Não naquele ambiente fétido, que emanava baixas vibrações, que minava todo seu dom.
“Conquiste-a!”; voltou Oscar a falar em seus pensamentos.
Depois voltou sua atenção para o palco, uma bela bailarina terminava o seu show, nua. Tinha uma espécie de tinta pelo corpo e os aplausos e gritos eram estrondosos. Era jovem como Clara, como as moças mortas na cachoeira.
— Vamos! — falou um dos capangas de Falppo, empurrando Sean para longe do palco.
“Eu só queria esquiar...”, pensou com seus botões.
Os corredores eram abafados e carregados de fumaça vinda de várias procedências. O piso era escorregadio e Sean sentiu-se assim mesmo; escorregando.
— Lhe ensinaram algo de onde veio? — falou uma voz no final do corredor. — Que tipo de performance está acostumado?
Sean se virou e Falppo e seu piercing nasal se aproximavam dele.
— Oscar... — recuperou-se antes que ele tivesse ouvido. — Bruno não lhe falou sobre minhas ‘especialidades’?
— O camarim é aquele no fim do corredor! — Falppo apontou com a cabeça. — Seja lá qual for sua especialidade faça bem. Temos uma clientela a zelar.
— A zelar... Claro... — Sean se virou para ver a porta indicada, se encolhendo perante o rombo aberto no seu estômago.
— Estarei na plateia com meus convidados. Seja p-e-r-f-e-i-t-o! — soletrou Falppo, devagar, para que Sean ou Timmy, não tivesse dúvidas.
Sean olhou em volta, o camarim tinha uma centena de fantasias ao seu redor, penduradas em cabides, presos ao longo das paredes. A maioria de animais, mas também insetos e répteis.
— Deus... Eu nem sei dançar — olhou-se assustado para o espelho.
Um estranho personagem entrou pela porta, parecendo cambalear. Brilhava todo por debaixo do roupão que usava. Era magro, porém de músculos definidos, e mancava pelo fato de ter uma perna mais curta que a outra.
Vinha seguido por mais dois homens.
— Oi! — exclamou o terceiro bailarino, parecendo ser o mais receptivo.
— Oi! — respondeu Sean, meio duvidoso.
Sean percebeu que o três eram bailarinos do Q’Animal e que exalavam um cheiro ocre que o fez recuar no odor.
— Qual é seu nome? — perguntou o segundo bailarino.
— Timmy — respondeu de impacto.
— Chegou quando?
“Chegou quando?”; Sean não sabia o que falar.
— Faz algum tempo.
— Já te deram o que comer?
“Comer... comer... comer...”, soava agora sem controle.
— Sim. Deram comida quando cheguei.
— Ótimo! Vai substituir aquele infeliz do Pierre! — ainda falava o segundo bailarino por ordem de entrada no camarim.
O primeiro bailarino então caiu no chão, Sean percebeu que ele estava drogado.
— Não vai conseguir dançar se continuar assim — falou o terceiro bailarino para o primeiro bailarino, tentando se levantar, sem conseguir. — Não veio para isso.
“Conseguiu documentos? Lhe ensinaram algo? Chegou quando? Deram o que comer? Não veio para isso”; Sean sabia que se tivesse entendido tudo aquilo não passaria o que passaria.
Mas seus dons realmente não funcionavam naquele ambiente de vibrações negativas; e ele teria dito inexistentes quando foi acordado pelo primeiro bailarino, que acabou por derrubar tudo o que tinha sobre a mesa em que se apoiara, indo ao chão, ficando por lá.
Sean ameaçou ajudá-lo, mas o terceiro bailarino o segurou. Fez um aceno negativo com a cabeça.
— Vamos! Temos um show a fazer! — e o terceiro bailarino entregou-lhe uma fantasia.
Sean encarou a fantasia que tinha de usar, se é que alguma fantasia seria usada.
— Não acredito! — falou alto demais.
Os segundo e o terceiro bailarinos se olharam.
— Não sabia?
Sean mal conseguiu fechar a boca.
Q’Animal, Flon; Lausanne.
26 de março; 23h56min.
As cortinas foram fechadas e as luzes foram apagadas a quase deixar o breu tomar conta do salão. Sean sentiu frio, um frio mais interno, mais filosófico.
Ficou se imaginando ali, naquele palco, naquela situação, na criação que teve, que abandonaria, sabia, ao pisá-lo, a fazer parte daquele antro.
A perda de uma inocência, verdadeiro sentimento que de certa forma o guiou a vida toda, que o limitou também. Sem amigos, sem adolescência, sem tempos para jogos, e brincadeiras, e erros.
Nunca houve a farra, a luxúria, a esbórnia; a Computer Co. o consumiu, o consumia.
O filósofo Diderot tinha razão, não é aquele sentimento no qual jamais vacilamos que tememos perder, mas aquele ao qual mais habitualmente retornamos é o que mais nos leva a perda.
— A inocência perdida! — exclamou para si mesmo.
A cortina ameaçava abrir e a máscara incomodava sua vista. Seu cabelo tinha uma espécie de geleia que alterava para escuro as madeixas louras de seu cabelo original. Sua pele foi tomada por um óleo pegajoso e escuro e até o ferimento ficou escondido naquela pintura. Seus músculos se sobressaíram, ficaram expostos, brilhantes, dando-lhe um aspecto bronzeado no corpo branco, escorregadio, tomado de prazer.
Sean era belo, um monte de belo.
— 1, 2, 3 — disse um dos bailarinos.
— 3, 2, 1 — disse o outro.
— Ilógico... — foi só o que Sean disse dentro de uma sunga minúscula que o escondia ele não soube aonde.
Seu tecido imitava leopardo, tigre, algo manchado. Uma máscara do mesmo material escondia quase todo o seu rosto. O palco fora enfeitado de arbustos, Sean sentiu-se no zoológico, sentiu-se animal; vestia-se como um.
— 1, 2, 3, 3, 2, 1 — falavam entre si, os dois bailarinos à sua frente.
A música dava seus primeiros acordes e a cortina abria. Uma luz vermelha incidiu sobre os corpos quase nus, e Sean recuou sentindo-se mal, sentindo-se saindo do corpo, invadindo imagens que chegavam até ele; grandes naves invadindo a Terra, centenas delas em meios a sons e cheiros ocres que o invadiam, com gente despedaçada, mortas numa poça de sangue. Toda sua paranormalidade estava sendo colocada à prova no que os dois bailarinos à sua frente se tornaram verdes, de pele escamosa, e suas pernas foram substituídas por uma cauda réptil tão esverdeada quanto eles.
— Deus... — Sean voltou no acorde da confusão, com a boca seca e as pernas balançando mais pelo susto pela emoção, do que pelos gritos femininos que iam de um lado a outro do salão tomado pela música ensurdecedora que ele mal escutava.
Sean voltou a si e viu a plateia, se agachou por detrás dos outros dois bailarinos que se chacoalhavam agora com pernas normais.
O coração batia destrambelhado e Sean continuava inerte, sem saber ao certo se vira algo, se algo acontecera, ou ele estava com problemas depois do desastre de trem, que tinha certeza, sofreu.
A música agora era realmente ensurdecedora, como os gritos da plateia; homens, no fundo do salão, que também gritavam mais alto, histéricos, excitados.
Os dois bailarinos à frente dele se levantaram do chão onde faziam sua performance que Sean classificou como acrobacia; um show que nunca havia tido a curiosidade de ver, participar, então, lhe pareceu ‘ilógico’.
Ficou mesmo imaginando se um dia Nietzsche e a ‘origem da tragédia proveniente do espírito da música’ se aplicaria ali, se tais experiências provenientes de estados estéticos de dor e alegria que invadiram sua obra juvenil se aplicariam àquela dança suja, cheia de enquetes e performances, em meio à histeria presente num mundo, sabia ele, não o pertencia.
Porque tudo ali era ilógico.
Mas seus pensamentos lhe pregaram uma peça. Sean distraiu-se não percebendo estar sozinho no palco. Quando caiu em si, olhou para a primeira mesa, e os capangas de Falppo o encaravam.
“Vou morrer!”, pensou ao perceber a música parar e um silêncio mortal cair.
Sean engoliu a seco e uma luz vermelha incidia sobre ele, navegavam por seu corpo deslizando músculos abaixo.
A histeria foi geral.
Ele correu os olhos ao seu redor desesperado, tentando ver uma saída para aquela situação quando viu a mulher morena jambo do carro Ferrari FF e lembrou-se do UFO metálico, das naves derrubadas por telepatia, das jovens mortas por cães e da defesa da coisa verde e esguia, meio mulher-meio serpente, e que fora ela quem apareceu na janela do seu quarto.
Também se lembrou dos mortos que não descansavam e de como Oscar poderia saber sobre aquilo.
Então estava ali porque tinha que estar ali. Controlou-se, havia serpentes alienígenas envolvidas, forças ocultas e uma mulher morena jambo o observando com interesse. Aquilo lhe pareceu uma chance quando Falppo, sentado ao lado dela, cochichava-lhe algo no que outra música começou.
Sabia, era a hora de seu showzinho particular.
Era arrebatador, o sabia ser.
— “Push me! And than just touch me! Do I can get my... satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction...” — uma voz masculina falava mais que cantava na música. — “Push me! And than just touch me! Do I can get my... satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction…” — repetia agora uma voz feminina, sexy.
E sexy e sensual era a letra, ele, seu embalo, a plateia. Réguas de músculos que sobressaíam que se locomoviam no dorso másculo, jovem, viril. Corpo que balançava no compasso. Inclinava, mexia e remexia dando voltas num espaço que não parecia se mover para ele lá caber.
Sean se movia, se movia e se movia.
— “Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push!” — Sean driblava, vibrava a plateia. — “Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push!” — balançava o quadril, o torso, as nádegas.
— “Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push!” — as pessoas gritavam em êxtase total.
— “Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push! Push!” — Sean só tinha interesse nela, na mulher de vermelho, da Ferrari FF vermelha, de pele jambo, que se excitava.
— “Satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction...” — ele foi até o chão de sunga, desceu e subiu numa velocidade que matava. — “Satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction...” — uma vez mais e outra, virando-se, voltando a ficar de frente, balançando o quadril lento, mortalmente.
A coxa perfeita despontava, ele já nem sentia a dor.
Sua pele brilhava, seu suor corria a se misturar.
— “Satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction...” — seu cabelo envolto em gel balançava, seu corpo musculoso se pronunciava.
— “Satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction, satisfaction...” — palmas de acompanhamento se misturavam à música, aos gritos, ao balanço.
Sean era Q’Animal, parecia saber ser.
A mulher morena jambo se encantava, mal prestava atenção no que Falppo falava, e ele falava muito.
Ela ameaçou abrir a boca para calar-lhe, nem isso conseguiu.
Sean se virou para ela, desceu do palco, não acreditando quando seus pés o levaram até ela e a musica mudou, ficou rápida, divertida.
A plateia enlouquecia com o homem belo que desfilava tão próximo às mesas. As pessoas ameaçavam passar-lhe a mão, alcançá-lo, com ele se desviando como numa dança em meio a homens que gritavam tanto quanto as mulheres, numa casa cheia, cara, de mentes abertas, promiscuas.
Sean já nem estranhava, atordoado tanto quanto a mulher morena jambo que lhe dominava o olhar, a mulher morena jambo que delirou, ameaçou levantar olhando para si mesma, para Falppo, rindo de sua própria pessoa, do tesão pelo jovem belo que desfilava ali, do óleo doce que cobria o corpo dele que excitava, iludibriava, enlouquecia na música alterada, quando voltou para o palco e olhou para a plateia pela última vez, vendo Mr. Trevellis o observando no fundo do salão.
Agora Sean sentiu que haviam lhe tirado o chão, o som, o ar.
Mr. Trevellis a cabeça da Poliu, o grande estrategista, ali no Q’Animal, vestindo roupas extravagantes, de tecido de segunda, cores berrantes demais para o homem refinado que era, e imagens desconexas outra vez se formaram; o sangue nas mãos, o corpo morto de Sandy em seus braços, a arma recém-disparada no chão, todo seu quarto, os gritos, a polícia, os jornais sensacionalistas.
Tudo misturado a gritos e pessoas despedaçadas em meio a serpentes, gente serpente, serpentes alienígenas.
Sean correu.
— Hei?! Aonde pensa que vai? — um dos bailarinos tentou segurá-lo, mas num golpe de Krav maga, Sean enfiou quatro dedos rígidos na sua glote cortando o ar do bailarino que caiu desacordado.
Dois seguranças apareceram e mal tiveram chances de se aproximar dele. Todo o corpanzil dos seguranças foram lançados longe no que Sean os olhou, em meio a dons que já não mais controlava.
As cortinas se fecharam e outra vez os gritos de morte, Oscar Roldman e Mr. Trevellis expostos, vestindo roupas cafajestes, significava algo muito maior que ele estudante da École Hoteliere Dubois, que ele bailarino no Q’Animal, podia suportar. Sean correu desorientado, sentindo que o ar não subia, que perdia o controle de seus dons no que todo corredor se transformou, com o papel de parede velho nas paredes e lustres de lâmpadas de LED substituídas por velas, e candelabros, e tapetes persas vermelho berrante no chão que o acolheu quando suas pernas falsearam.
Sean ergueu-se e correu agora para o camarim que abriu, vendo que a mulher morena jambo da Ferrari FF vermelha fora mais rápida. Estava lá, o vendo trajando a máscara, a sunga, o suor, o medo, a boca carnuda que se projetava para frente fazendo seus lábios ficarem grossos, insinuantes, provocadores.
A mulher morena jambo do carro Ferrari FF vermelha concordava, engoliu-os para dentro da sua boca mais vermelha do que nunca, com suas mãos hábeis deslizando pelo creme, pelas coxas musculosas pelo ferimento.
Sean sentiu dor, confusão.
Ela o encostou contra a parede, encostando seu corpo no dele que sentiu o calor do decote grudar em sua pele melada.
— Seu nome? — falava excitada. — Seu nome? — insistia ela.
— Timmy... — tentou responder.
A mulher morena jambo passava sua boca sobre a dele, deslizando suas mãos sem censura, ameaçando tirar-lhe a máscara, quando ele segurou sua mão.
Ela olhou para ele e riu satisfeita:
— Venha! — ordenou.
“Para onde?”, Sean ainda conseguiu pensar.
13
Residência dos Braushin; Caux, Cantão de Vaud, Suíça.
46° 25’ 58” N e 6° 56’ 12” E.
27 de março; 09h44min.
Sean abriu os olhos vendo o lençol de puro algodão que usava, sentindo a renda que o adornava, e deu um salto da cama cambaleando pela coxa ferida, inchada. Olhou em volta não reconhecendo o quarto, a cama, os lençóis, a casa. Não se lembrava de quase nada a não ser Mr. Trevellis na última mesa ao fundo do salão.
O homem jambo que comandava a corporação de inteligência Poliu com seu corpulento tamanho, sua feição fria e calculista num antro, assistindo um show de homens animais.
— Bom dia! — falou uma voz macia por detrás dele. — Com fome? — ela viu Sean se virar, esconder o corpo nu nos lençóis detalhados de renda branca que puxou.
— Onde... — a olhou agora com mais cuidado.
A mulher morena jambo, agora sem as joias, trazia uma bandeja de café.
Era bela com certeza; bela e rica, com sua pele jambo brilhando pelo excesso de zelo, de cremes de boa procedência.
— Está com fome ou não? — disse ela outra vez, no mesmo delicado timbre de voz.
— Um pouco... — respondeu a correr os olhos.
— Como é mesmo seu nome... Sean?
Sean ia responder, pensou que o ataque cardíaco que desejara ter tido no show, acontecia agora, sem a sua vontade.
— Meu nome é Timmy! — insistiu.
— Claro! — exclamou sorrindo. — Falppo também acha — e se agachou para recolher uma fronha arrancada do travesseiro, vendo que ele acompanhava seus movimentos. — E nós não precisamos contar a verdade, precisamos? — falou delicada.
— Meu tio...
— É! Eu sei! — e a mulher da Ferrari FF o encarou de bem perto. — Ele não te dá grana suficiente — e o beijou com mais fome que na noite anterior.
E Sean não sabia mesmo como agir.
— Quem lhe contou sobre mim?
— Acha que vou entregar minhas fontes?
— E para que tem fontes desse tipo? — Sean não gostou que a mulher morena jambo da Ferrari FF vermelha não respondesse. — Você vai contar sobre minha dança para a diretora da École Hoteliere Dubois, não vai?
— Não! É claro que não.
Sean riu friamente.
— E por que não contaria?
— Porque terei você à hora que quiser.
— E por que acha que eu concordarei? — Sean desafiou-a. — Bruno já me pagou pela dança, já tenho dinheiro por um bom tempo — mentiu.
— Por um bom tempo, não para sempre — sorriu diabólica. — E não conseguirá ser pago de novo.
— Wow! Está me chantageando?
— Será necessário?
Sean viu que a mulher não era de brincadeiras. Também não sabia ao certo que brincadeira brincava.
Ela se virou para servi-lo.
— Eu... — Sean se olhou nu. — Nós?
— Não tivemos oportunidade — ela viu Sean só a olhar dessa vez. — Você adormeceu... — tirou as xícaras, duas, que trouxera na bandeja e as acomodou sobre a mesa.
Servia o café enquanto olhava Sean por debaixo dos cabelos loiro platinado, que voltavam a escorrer em ondas por sobre o ombro desnudo.
E Sean não gostou do silêncio que se seguiu.
— Qual é seu nome?
— Umah; Umah Braushin.
— O contrato... — sentiu seu coração desregular geral.
— O que disse?
— Nada!
— “Nada”? O que foi? Reconheceu o sobrenome? — falou cínica.
Sean ergueu os olhos para ela.
— Seria ingenuidade minha perguntar se é uma Braushin legítima?
Ela caiu em risada.
— Não! Não nasci Braushin. Sou esposa de Lüdovick Braushin.
— Meu... Deus... — tentou falar. — Você é... Você é casada? — Sean se olhou nu.
— Muito bem casada — corrigiu.
— É! Deu para notar! — debochou.
A mulher riu escrachadamente.
“Droga!” foi a única palavra que lhe veio à mente.
— Por que deixou que vissem você entrar no Q’Animal?
— Não se preocupe meu querido bailarino — e tomou um gole do café.
— Não, eu não vou me preocupar, não. Não se preocupe você também — ironizou.
A mulher puxou-o e Sean tentou em vão se esconder.
— Venha! — beijou-o. — Venha se sentar, meu bailarino moleque. O café vai esfriar.
— Costuma sair com todos os bailarinos moleques do Q’Animal?
— Não! — e serviu-o de café. — E nem todos tem 21 aninhos, diga-se de passagem.
— Wow! Além do nome sabe minha idade? Leu meu registro dentário também? — Sean resolveu relaxar um pouco no que Umah gargalhou com gosto. Ainda coberto pelo tecido do lençol macio, sentou-se na cadeira que ela voltou a convidar para sentar-se. — Então quer que eu acredite que não sai com todos os bailarinos de Lausanne?
— Está sem dinheiro?
— Vai me dar?
— Se você quiser — e o olhou insinuante.
Sean engoliu a gracinha, não queria se arriscar mais. Tomou o café a observá-la.
Ela, a medi-lo.
— Vou encolher — brincou a tentar aliviar o ambiente que se carregava outra vez.
— Não corre o risco, Sean querido.
Sean se levantou.
— Preciso ir embora...
— Não precisa ir, meu marido está trabalhando.
— Quanta gentileza sua, me avisar — e sorriu-lhe.
— Vai ao Q’Animal todas as noites?
— Está querendo me ver mais vezes, Umah?
— Corro o risco, Sean? — e Umah terminou a xícara de café se limpando com o guardanapo que esticou até alcançar à perna dele que ainda tinha a tinta oleosa.
Sean percebeu que ela o limpara enquanto ele dormia; o estudara também.
Ela dobrou-o e guardou-o no bolso do penhoar que usava.
— Recordações?
Ela não respondeu apontando para a cadeira para que ele voltasse a se sentar, e voltou a servir uma xícara de café que Sean sorveu sem sentir o gosto.
— Vai dançar hoje à noite? — foi o que perguntou.
— Vai ver-me? — voltou ele a insistir.
— Acho que realmente não está entendendo, aquilo tudo é meu — respondeu Umah Braushin.
Sean só conseguiu lembrar-se do milionário contrato da Computer Co. em meio a prostituição, Lüdovick Braushin, Hautch Propieté, Poliu, coleção de arquivos confidenciais, Oscar Roldman, corpos vazios, ufólogos, campos de concentração serpentes alienígenas, e alguém que não veio buscar os mortos; realmente tentava pensar quando sentiu Umah o acariciando.
Suas mãos suaves atingiram a bacia de um Sean ainda nu e ele acordou.
— Desculpe-me... — e se levantou de supetão se escondendo agora com a almofada da cadeira. —, eu não devia ter feito isso...
— Feito o quê, Sean?
— Eu preciso ir embora — e procurou suas calças.
A mulher riu:
— Veio de fantasia, Sean. Vai voltar com ela? Ou talvez esteja querendo atravessar os portões da École Hoteliere Dubois vestindo uma almofada? — Umah riu e Sean não soube o que fazer.
— Droga! — a encarou friamente e saiu do quarto nu coberto pela almofada.
Umah não acreditou.
— Sean? Volte aqui Sean!
Ele caminhou descalço como que perdido através de salas ricamente decoradas. A casa era extremamente lotada de obras de arte, e ele outra vez achou que obras vistas em museus internacionais ali estavam, e não pareciam cópias.
“Roubo de obras de artes?”, pensava confuso.
— Sean?! — gritava a mulher.
Sean se lembrou de que ela conhecia seu nome. Montebello ou não ela sabia seu primeiro nome.
— A aula! — e tapeou-lhe a própria testa.
— Eu posso ligar para a escola — falou ela ao alcançá-lo.
Sean estancou nu, preso outra vez na teia da mulher morena jambo.
— Telefone! — foi só o que pôde falar naquele momento.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
27 de março; 14h36min.
Se algum dia Sean tivesse sonhado estar em meio à maior encrenca de todas, acordaria suado agradecido por ter sido um sonho daqueles em que saía do corpo sem nada entender por onde andava com quem falava, nem mesmo o que fazia.
Mas não era sonho, era pesadelo e acontecia enquanto acordado.
Voltou de tarde à École Hoteliere Dubois, com Umah prestando o favor de ligar para a escola e dizer que era a ex tia de Sean, casada com Antônio Montebello, dizendo que estava na cidade naquele dia da visita do prefeito a École Hoteliere Dubois, e que pedira a Sean para encontrá-la.
O sobrinho fora obediente e nada contaria ao tio ou ele não teria o deixado ir.
Cybele disse que não era uma atitude correta, mas que perdoaria o deslize somente àquela vez porque estava nervosa, cheia de problemas com o sumiço de um de seus alunos após Sean ter que passar por uma batelada de perguntas sobre o passado de seu ‘tio’, que não sabia ter sido casado. Estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo para saber sobre o motivo do encontro, esperando mesmo, que não houvesse sido uma tentativa de reaproximação da ex com Antônio. E descarregou perguntas e mais perguntas que ele desviou com maestria; Sean estava se tornando um mentiroso de primeira.
Porém se lembrava de que o favor de Umah Braushin em comprar-lhe roupas, deixar-lhe descansar e salvá-lo de Cybele Dubois ainda sairia caro demais.
Encontrou Maykon e Adelfo próximo ao hall de entrada.
— O que houve aqui afinal? — perguntou.
— Bruce sumiu — falou Maykon.
— Já procuraram em todos os lugares. Nas trilhas que sobem e nas trilhas que descem — Adelfo completou. — Há policiais e cães por todos os lados.
— Cães? — Sean acordou.
— Homens trazidos de Lausanne por Cybele, para procurar Bruce — falou Maykon.
— Ela já usou dos serviços deles quando a Luisa sumiu — falou Adelfo.
“Serviços deles” Sean não gostou daquilo
— Você conhecia a secretária Luisa, Adelfo?
— Fala como se também a conhecesse.
— Eu... Cybele... Ouvi falar.
Maykon que não parecia estar entendendo questionou:
— Quem é ela afinal?
— A Luisa era secretária de Cybele. Eu não a conheci bem, mas falavam horrores dela. Sabe né, como fica a moral de uma mulher que pula muito de galho — Adelfo riu e parou de rir no que viu o semblante sério de Sean e Maykon. — Na verdade, ela foi a primeira a morrer e acho que poucos garotos que conheço haviam chegado à escola.
— Primeira? Quem mais morreu? — Maykon se agitou alertando Sean.
— Conheceu a sobrinha de Cybele, Adelfo? Eu soube que ela fora assassinada — Sean emendou.
— Ih! — exclamou Adelfo, nervoso puxando os dois para longe do hall de entrada. Quando alcançaram o final do corredor, Adelfo voltou a falar. — Ninguém pode falar nesse assunto. Cuidado com as paredes.
— Paredes têm escuta?
— Pior! — apontou com o indicador para os lados. — Muitas matrículas foram canceladas por causa disso. Os jornais sensacionalistas devoraram a pele da Cybele. Ela dizia inclusive que a repórter era uma ex-aluna revoltada com ela, mas a sobrinha Aline era uma menina muito bonita. Parece que o Marcello a conhecia.
— Como foi que ela morreu? — perguntou Maykon.
— Ela foi assaltada. Depois disseram que faltava segurança dentro da École Hoteliere Dubois e choveu telefonemas. Meu pai estava até decidido a não me colocar aqui.
— Você disse que ela morreu aqui na École?
— É sim, Sean. Dizem que morreram várias e várias antes.
— “Várias e várias”? Doença?
— Seilá… Desde 1200 e bolinha, desde que a escola foi montada — riu. — Acho que foi até antes de Cristo... Ih! Não sei quando. A família Dubois é antiga na Europa.
— E essa outra que falou? — correu Sean a voltar ao assunto.
Maykon lembrou-se de algo, mas nada disse. Sean, porém com ou sem dom percebeu algo.
— Fala da faxineira Ruth?
— Não sei, Adelfo. Falo?
— Ih! Ela foi escorraçada daqui um dia antes de morrer. A Cybele gritava pelos corredores que a Ruth havia entrado na sala dela e mexido na sua bolsa, mas a Ruth era famosa na cidade, pelas casas ricas em que trabalhava. Ela se gabava para nós de ter trabalhado nessas casas, então roubar a bolsa de Cybele... Sei não... A Ruth era gente boa, dizia ter sido trazida para ser funcionária de Embaixada — riu. — Contava cada caso apimentado de alguns patrões que comiam as empregadas que ele mandava importar — ria. — Acho que as daqui não eram do seu agrado.
“Chegou quando? Já te deram o que comer?”
— Importaram de onde?
— Sei lá Sean... Esses caras são exóticos, tipo um ricaço do ramo de alimentos que só queria ir para a cama com motoristas musculosos e mascarados, que falavam uma língua que a Ruth não conseguia saber qual era — e Adelfo voltou a rir.
Sean ficou a ouvir, algo naquela história começava a fazer sentido.
— E os cães também foram procurar a Ruth?
— Acho que não. Afinal a Cybele estava muito brava. Já que a despediu porque ela estava vendo umas fotografias velhas dentro do armário, que ela nunca tinha aberto porque nunca tinha limpado aquela sala.
— Cybele sempre limpava pessoalmente.
— Como você soube?
— Imaginei... — e Sean olhou Maykon o olhando. — E você Adelfo? Como soube?
— Porque eu estava no portão, pronto para sair, quando eu vi a cena dela chorando, indo embora. Era um sábado e a Cybele nunca havia voltado. Foi à primeira vez que ela retornara. Parecia até que foi avisada. Então a Ruth resolveu limpar tudo a sua maneira, sem ordens, porque ela odiava ordens.
Os três se olharam e a aula de matemática financeira ia começar. Quando Sean entrou até a metade da sala, ela quase veio abaixo.
— Ehhh!!! — gritos ecoaram pela École Hoteliere Dubois.
A turma que Adelfo se referia acabava de avisá-lo que ele fora escolhido para participar. Sean aceitou não soube bem o quê e Adelfo e algumas meninas deliraram com a aceitação dele. E Sean havia sido admitido para ser o maioral da ‘Turma do Anarkhos’, anarquia em grego, após desafiar Cybele e fugir da École Hoteliere Dubois, já que anarquia significava de um modo geral, aqueles que eram contra qualquer tipo de ordem hierárquica que não fosse livremente aceita.
Adelfo e a turma agiam como Diógenes de Sínope, que perambulava pela Grécia antiga na maior pobreza para contrariar o Estado e seu domínio, e que pedia esmolas às estátuas porque elas não o podiam ver, e nada receberia delas já que não aceitaria viver dependendo de alguém.
Sean se divertiu com aquilo, com eles, a filosofia e a farra.
Marcia dessa vez estava lá, na aula, na confusão. Estava séria, porém.
Já June estava deslumbrada, igual à Mary Ann. Mitti e Najla ficaram na sua. Silvya e Sandra o analisavam. Elisa o engolia sem tempero. E Neide, Beth, Ema, Monica, Cristina e Eunice aproveitaram para observar o quanto ele era belo, um ‘monte de belo’.
Cybele tentava organizar a bagunça e cancelar a aula de matemática financeira tentando encaminhar todos para a nova cozinha.
— Seu tio tinha razão. Você é sinal de problemas.
Sean engoliu a bronca, sentindo-se desanimado para fazer qualquer aula quando Elisa veio por trás dele, e o empurrou para cima dos armários com sua boca tentando a todo custo atingi-lo, o machucando no encontro dele com o metal; Sean foi ao chão sentindo dor na perna ferida.
— Piranha! — levantou-se furioso e foi a vez dele a jogar contra as portas do armário.
— Desde quando você é chegado em respeito?! — gritou ela furiosa, caída, agora ela, no chão.
Mas revoltado com a noite anterior, irritado com o que fizera, com a exposição a que se submetera, Sean acabara por descontar em Elisa que foi arrancada do chão e esbofeteada até voltar a ele.
E Sean só acordou após o ato.
— Perdão... Eu...
Mas Elisa levantou furiosa e se foi.
“Droga!” pensou irritado a socar o ar.
Marcia saiu de detrás da porta a que estava escondida, vendo tudo, e os olhos de ambos se cruzaram, com Sean impactado por outra vez ver uma bela e jovem Kelly Garcia na bela e jovem Marcia Toledo. Marcia, porém se virou e entrou na cozinha, se acomodando numa cadeira longe dele.
Sean até ficou tentado em sentar ao lado dela, falar-lhe, dizer que não era o que ela pensava, que aquele não era ele, que estava sob pressão, mas desistiu.
— Bonsoir! — o professor Ramis entrou.
Sean mal prestou atenção. Em meia a toda confusão que se tornara sua vida, ele se sentia interessado era por Marcia Toledo.
— Bonsoir! — responderam todos.
— Je suis très contente d’avoir convaincremes amies de devenir de École Hoteliere Dubois... — o professor Ramis começou a se apresentar quando Elisa entrou na cozinha em choque.
— Bruce está morto! — a voz dela silenciou tudo e todos.
O próximo som foi das cadeiras arranhando o piso, com todos correndo para fora da cozinha e Sean olhando Marcia sem mover um único músculo do rosto perfeito.
A noite entrou adentro com a polícia de Lausanne espalhada pelo terreno da École Hoteliere Dubois procurando também o corpo de Beth, que aparentemente também desaparecera.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
27 de março; 23h51min.
— Não consegue dormir? — questionou Maykon ao entrar no quarto e ver Sean sentado na cama olhando a janela aberta e a Lua brilhando, iluminando tudo.
— Acharam-na?
— Sim. Os policiais acreditam que Beth saiu para namorar Bruce e ambos caíram da trilha escarpada.
— Como sabem que são eles?
Maykon olhou Sean.
— E como sabe que estavam irreconhecíveis a ponto de não saberem?
Sean nem se deu ao trabalho de se virar.
— “Eu sei que parece incrível, mas a razão disto nos será explicada mais adiante” — Sean repetiu Armand.
— Que explicação?
— A explicação sobre o arquivo confidencial #10255, que poucos tomaram seriamente em crédito porque veio o Réveillon, Maykon; o Réveillon...
— Do que está falando Sean?
— Também não sei!
Maykon riu achando que era para rir.
Depois parou olhando-o sério.
— Ah! E como sabia que Beth e Bruce... — e parou de falar no que Sean ergueu uma mão pedindo que calasse.
Maykon então se calou.
Tirou os sapatos e deitou de roupa e tudo nas cobertas sentindo seu corpo congelar, vendo Sean ainda parado, olhando para a janela aberta, tão enigmático quanto tudo o que ele disse.
— Eles sofreram? — a voz dele soou de repente.
Maykon não sabia se devia falar ou não, ele o mandara calar-se.
— Acho que sim. Os policiais disseram que eles haviam caído numa distração, e que seus rostos devem ter se chocado com as pedras escarpadas e assim acabaram desfigurados.
Sean cerrou os olhos e se deitou cobrindo-se, sabendo que havia mais coisa embutida ali.
Só não sabia ainda ao certo o quê.
Virou-se e viu Maykon adormecendo. Olhou o teto e luzes que lá desenhavam a noite fria, se iniciava. Fechou os olhos e todo seu corpo estremeceu em meio à tempestade elétrica que sinapses do seu cérebro criavam, provocavam.
Sean abriu os olhos e viu o quarto imerso em silêncio; o quarto ainda estava lá.
Fechou e abriu os olhos e o quarto ficava maior, com papel de parede listrado nas paredes, e as camas se juntando, se tornando uma só, e o corpo de Oscar Roldman deitado ao lado ele.
Oscar deu um pulo sentindo o coração bater na garganta, que secou no que viu Sean ali, deitado na sua cama, no quarto de hotel, olhando-o.
— Mas o que aquela...
“Agora não é hora de falar de Mona amiga” a voz de Sean era metálica.
Oscar caiu sentado na cadeira, mais pelo medo de ver que Sean falava com ele do que por outra coisa. Olhou um lado e outro do quarto do hotel em que se hospedara e olhou Sean deitado na cama, olhando-o.
Ele realmente teve medo de se aproximar, ver que Sean se projetara até ali como Mona Foad fazia, provável como ela o ensinara.
— Você...
“O que Trevellis fazia no Q’Animal?”
— “Trevellis”? — Oscar arqueou todo o rosto que ficou mais enrugado. — Trevellis em campo? Não pode ser...
“Algo na École Hoteliere Dubois não permite que meus dons se mantenham estáveis. Não consigo ler mentes, mal abro portas e mal consigo jogar alguém contra a parede”
Sean viu Oscar erguer o sobrolho.
“Que foi Oscar querido? Com medo do que faço com o que herdei?”
— Não se atreva Sean... — Oscar o odiou, filho ou não.
“Fale! O que Trevellis queria lá, durante o show, observando-me...”
— Trevellis conversou com Umah?
“Droga Oscar! Por que você não me disse que Umah é mulher de Lüdovick Braushin”.
— O que?
“Wow! Só você não sabia?”
— Eu não sabia! — respondeu sério demais. — Já disse que não sei, que só tenho fragmentos. A coleção de arquivos confidenciais tinha pistas que levavam ao Q’Animal e lá terminavam.
“Pensei que a coleção de arquivos confidenciais levava até a École Hoteliere Dubois e lá terminavam, em meio a mortes de jovens desde 1200 e bolinha”, questionou Sean cínico com a mesma voz metálica vibrando nos ouvidos de Oscar Roldman.
— “Mortes”? — Oscar não gostou de ter ouvido aquilo. — É que nada me parece muito preciso. A Polícia Mundial tentou investigar a École Hoteliere Dubois, mas nada conseguiu, já disse. Quando informações sobre os Luciedes e os Braushin juntos levaram-nos até a Q’Animal, tentamos encontrar os proprietários do antro e não conseguimos ir além de Falppo.
“E Umah me contou com a maior naturalidade do mundo que era proprietária?”, debochou.
— Umah é fria e perigosa. Se ela lhe contou isso é porque tem algo maior em mente. Porque ela só faz o que quer.
“E você a conhece pelo ‘ela só faz o que quer’?”
— A conhecia somente de nome. Umah trabalhava na Alemanha para a Poliu.
“Espiã psíquica? Por isso não consegui invadi-la?”
— Umah foi expulsa por atrapalhar algo anos atrás, e a Poliu passou a persegui-la durante seis meses, desistindo quando nada conseguiu provar.
“Desistindo? A Poliu nunca desisti de nada, de ninguém!”, enervava-se.
— O que está acontecendo Sean?
“Como o que está acontecendo? O que acha que está acontecendo? Tudo está errado”.
— Sean... — Oscar viu que Sean começava a perder a nitidez.
“Desgraçado! Trevellis desgraçado! A Poliu nunca desiste! Não desistiu até Sandy se matar!”, e Sean voltou ao quarto 5-5.
O ódio pela Poliu minava suas forças paranormais. Sean tentou se controlar, voltar à suíte de Oscar, mas não conseguiu. Olhou Maykon dormindo e a janela aberta, olhou o piso de madeira da École Hoteliere Dubois, olhou o carpete do chão do hotel em Lausanne, olhou a parede pintada do seu quarto e olhou a parede de papel listrado, olhou a cama com Maykon dormindo e olhou Oscar lhe olhando voltar, agora em pé, próximo a porta do quarto, quando se plasmou inteiramente.
— Que tipo de investigação Umah fazia para a Poliu? — sua voz soou perfeita dessa vez.
— Santo Deus Sean! Você se teletransportou? — e Oscar esticou o braço para alcançá-lo.
— Não me toque! — Sean se afastou dele. — Não sei controlar isso direito.
— Nunca vou entender o que fez com você mesmo, não Sean querido?
— Chega! — enervava-se de novo. — Que tipo de investigação Umah fazia?
— Umah sumiu faz quatro anos! — Oscar se sentou numa cadeira, longe dele, sem, porém perdê-lo da visão. — Na época investigava ações de contrabando de artes. Não eram roubos, eram trocas. Alguém muito poderoso, como a família Braushin estava trocando obras de artes verdadeiras por excelentes falsificações. Os museus nunca desconfiaram ou os peritos contratados foram calados.
— Por que?
— Barganha! Quais, não descobriram. E se Umah descobriu, ficou com o segredo para ela.
— E aparece casada com um dos Braushin anos depois? Isso me cheira Poliu.
— Provável!
Sean olhou um lado e outro.
— Por isso a Poliu temia meu contrato com a família Braushin?
— A Poliu conseguiu interferir em algo, Sean querido?
Sean estranhou a pergunta, ficou pensando se talvez Oscar nada tenha feito para ajudá-lo porque talvez nada soubesse sobre a interferência da Poliu.
— Boatos sobre eu ser um cracker surgiram durante o contrato, achei mesmo que não conseguiria.
— E sabe por que conseguiu?
Sean gelou, no fundo temia algo escuso.
— Não, não tenho ideia, além da Computer Co. ser a melhor do ramo — desafiou-o.
— Nunca tive duvidas de sua competência, Sean querido, nem duvido da qualidade dos computadores da Computer Co..
— Não foi o que disse dias atrás.
— Você me enerva Sean. Acabo falando o que não quero.
— O que não quer ou o que não quer que eu saiba que pensa?
— Não vou discutir isso. Mas se a Poliu não tentou deter você realmente, e sabe que ela pode deter quem ou o que quiser, é porque algo maior há nesse seu contrato que a interessa.
— Algo maior como? Trevellis no Q’Animal? Acha que ele estava lá por minha causa? — e Sean fez uma careta para um espaço mais longe que a porta do hotel. — Alguém se aproxima da porta do meu quarto. Não posso demorar aqui.
— Preciso que continue investigando Umah. Só isso! — Oscar disparou.
— O que houve? Pensei que havia pedido para eu a conquistasse. Mudou de ideia?
— Umah uma Braushin? Com certeza mudei de ideia.
E Sean mudou de assunto:
— Por que o nano adaptador USB Wireless não funcionou?
— Porque não é um nano adaptador USB Wireless.
— E acha que eu não perceberia?
— Só peço que tenha paciência, e confie em mim. Não tire a jaqueta do dente sob-hipótese alguma — Oscar viu Sean se diluindo, sua imagem se tomando de rabiscos. — E Sean... — respirou profundamente. —, não tente ler a mente de mais ninguém.
Sean sentiu-se mal, Oscar o punha em perigo quando tentava salvá-lo.
“Do que?”, se perguntou em off voltando o corpo à cama da École Hoteliere Dubois, sentindo dor em cada músculo, osso, terminação nervosa, quando passos do outro lado da porta de seu quarto cederam.
Se havia alguém lá, ele se foi.
Sean voltou a olhar Maykon que ainda dormia, olhou para cima e adormeceu, agora com a certeza que sua alma não ia muito longe dali na vigília.
14
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
28 de março; 09h00min.
Foi só Sean Queise sair da sala após o final da aula de Planejamento e Empreendimento, que Cybele apareceu na porta, o chamando.
— Como está indo Montebello?
Sean estranhou a atenção dada.
— Ótimo! Aprendi a programar a construção e a instalação de hotéis, resorts e pousadas de acordo com o potencial turístico, como a localização e a infraestrutura de um local determinado — sorriu no mais puro ‘Diógenes de Sínope’.
— Promover um empreendimento e definir o preço de diárias e serviços é essencial.
— Não me parou para isso, parou Srta. Cybele?
— Sua tia Montebello ligou! — e Cybele viu Sean gelar. — Ela quer vê-lo amanhã à tarde, antes de viajar! — falou terrivelmente enciumada.
— “Viajar?” — Sean não entendeu.
— E eu não sei como devo agir.
— Não aja! Tem toda razão, Srta. Cybele. Não devo mais me encontrar com minha tia. Diga isso a ela na próxima vez que ligar; e também diga que meu tio Antônio a odeia. E acho que deve fazê-la compreender que quem manda aqui na École Hoteliere Dubois é a Senhorita, e que ninguém mais sai daqui sem suas ordens — falou encorajando-a. Cybele se sentiu nas alturas. — A propósito... — Sean voltou a olhá-la. —, titio Antônio mandou lembranças.
— Oh... — se perdeu por ali.
E Sean se misturou a alguns alunos que estavam dispersos ao fim da aula. Soube que a polícia sumira como por encanto, e nenhum parente dos jovens mortos no trágico acidente apareceu.
Também só se falavam em Bruce e Beth com muito cuidado, após orientação da própria Cybele Dubois.
Sean não estranhava mais nada.
— Eu preciso sair daqui hoje à noite! — falou sorrateiro para Maykon.
— O que? — sobressaltou.
— Preciso ir ao encontro de uma mulher... — falou com cuidado. — Ela é casada. Entende?
Maykon olhou um lado e outro e ninguém os ouvia.
— O que quer que eu faça?
— Preciso que distraia Cybele e os Luciedes.
— Mas logo eles? — agora Maykon tremeu.
— Então vamos fazer uma troca; você me ajuda com a distração, seja ela qual for, e eu dou um jeitinho nos Luciedes para você.
— Que tipo de jeitinho?
— Eles andaram te incomodando, não?
— Sim. Quer dizer... Sim — resolveu contar. — Mas que tipo de jeitinho Sean?
— Vai ver!
Ambos riram e Maykon segurou Sean pelo braço quando ele já ia embora.
— Há um problema. Teremos uma aula de matemática financeira a tarde e uma aula de cinema hoje à noite; vão durar umas três horas cada.
— O espaço é curto para ir e voltar. Amanhã é sábado, Adelfo disse que Cybele sai para rezar — Sean lembrou-se. — Você me arranja a distração para amanhã a noite e eu escapo; ok?
— Ok!
E seguiram para a aula de matemática financeira.
Sean entrou e se acomodou na bagunça da classe percebendo Marcia num canto afastado.
— Silêncio!!! — o professor Laerman de matemática financeira deu um berro assustando a todos com o descontrole.
— Ok! — todos temiam aquela aula, as notas dadas em suas provas nunca alcançavam o seis, nem para o melhor QI. Sean ouvira dizer que a nota dez, era a do professor.
E o professor Laerman era conhecido em toda a Europa como um dos melhores da área tendo três livros publicados.
Sean no fundo se divertia com o desespero de todos, era bom lembrar que não precisava se preocupar em ser aprovado em alguma coisa. Exímio matemático, hábil empresário da informática, resolveu tumultuar a aula ficando a conversar com Maykon, com Marcello, e Adelfo.
Aquilo estava começando a irritar o professor.
— Você aí!!! — gritou na sua direção.
— Quem? — perguntou Sean.
— Você mesmo, o engraçadinho vestido de tomate — falou por entre dentes cerrados. Todos riram e Sean vestia-se realmente assim. — Seu nome?
— Montebello! — sorriu cínico.
— Está muito ocupado para prestar atenção à aula, Montebello?
— Não, Monsieur — e olhou para os lados a fazer palhaçadas.
— Pelo que vejo está animado, não?
— Estou?
E todos riram tirando Laerman realmente do sério. Fazia muito tempo que ninguém se atrevia àquilo.
— Já que está com tanta disposição assim tomatinho, venha cá e faça todos os exercícios! — falava nervoso. — Se falhar, a classe toda leva três pontos negativos na prova final.
A classe gelou, o professor nada havia explicado. Só Sean manteve-se frio, se levantando e se dirigindo para frente da sala.
— Na lousa? — perguntou debochado.
Adelfo e Marcello seguraram uma risada.
— Na lousa sim, tomatinho!
— Se eu acertar?
Foi a vez de o professor Laerman cair numa risada estridente.
— Você não vai acertar tomatinho.
— Se eu acertar?
— Você não vai acertar tomatinho! — começou a se irritar.
— Se eu acertar?
— Não vai acertar!!! — berrou descontrolado outra vez.
— E se eu acertar? — insistia cínico.
— Precisaria ser um gênio da matemática ou um exímio programador, mas o que dizem... — e gargalhou.
Sean se dirigiu para a lousa. Apagou tudo o que havia escrito ali e se virou para o professor.
— E se eu acertar? — retornou a perguntar com a mesma entonação cínica.
A classe ria miudinho.
— Três pontos positivos para a classe na nota final. ‘Dez’ como nota, para você... — Laerman deu uma pausa. —, se você acertar, tomatinho.
Sean então começou, em pouco tempo usava as fórmulas corretas, pecava pelo excesso explicativo. Ocupava meia lousa dissertando sobre a obra do matemático em questão, usando e abusando de linguagens computacionais inexistentes no mercador corporativo.
— E os computadores usados na Psicologia Cognitiva, o GPS e a Teoria Psicológica são... — todos o olhavam enquanto falava sem parar. — Por isso, a relação entre teoria e programas de computador é apropriadamente afirmada pelo psicólogo Nico Frijda; embora um programa possa representar uma teoria, ele não é necessariamente a própria teoria... — todos olhavam Sean, olhavam Laerman, olhavam Sean; ele percebeu. — Todos os programas são modelos de uma teoria, baseando suas ações em conceitos teorizados, mas eles não necessariamente executam diretamente a teoria... Conseguem perceber a questão? — olhava a classe em movimento de mãos e giros de olhos. — Programas são projetados para funcionar com eficácia e método, e, como tal, podem muitas vezes pegar atalhos para emular os processos de uma teoria, o que não quer dizer, colocar em prática diretamente... Até pó provoca vácuos quânticos... — riu olhando todos se olharem e lhe olharem. — O que não se faz necessário, claro, que um programa reproduza a estrutura de uma teoria para chegar aos mesmos resultados básicos. Em grande parte, esta é uma função da natureza altamente processual dos computadores, uma qualidade que o cientista da computação Joseph Weizenbaum prefere ignorar completamente… — balançou a cabeça como quem não aceita aquilo.
Todos voltaram a olhar Sean, para depois olhar Laerman, que só fez um ‘Shhh!’ que calou todos.
Mas Sean prosseguia:
— Vejam! Como os computadores são processuais em seus processos, eles não conseguem reproduzir os vários processos não lineares dos seres humanos...
— É... ele disse... — disse um.
— Não... ele disse... — disse outro.
— Ele está dizendo... — disse alguém.
— Shhh!!! — Laerman se agitou.
— E sejam eles cognitivos ou outros... — Sean escrevia e escrevia, fórmulas e mais fórmulas, inerte a tudo. — Porque existem alguns processos que entendemos em um nível teórico, mas que simplesmente não podem ser reproduzidos por um computador... — e resolvia intrincadas fórmulas matemáticas quando se virou para a sala. — Este é um exemplo primordial de como a relação teoria-programa de Frijda conflita com o conceito de Weizenbaum das capacidades de modelagem do computador — e bateu uma mão na outra tirando o pó do giz. — Duvidas?
— Ah... — foi só o que escapou de Laerman.
E foi um Sean debochado para a classe imersa em silêncio que prosseguiu.
— Sabia que os filósofos exigiam que se duvidasse de tudo aquilo que era assumido como uma verdade adquirida? Porque ao duvidar, ela se distanciava das coisas, quebrando o estigma? — e olhou a todos. — Duvidar faz parte da natureza cética humana, professor.
Marcia o encarou e o professor Laerman mal conseguiu falar.
— Três pontos na média final da classe...
Histeria geral e Sean foi aplaudido pela Turma Anarkhos, que assobiou até chamar a atenção de Cybele que correu para ver a gritaria.
— E que nota para Sean professor?
— Dez para ele... — terminou o professor derrotado.
— O primeiro ‘dez’ foi dado, professor? — debochava Adelfo.
O professor estava surpreso; nada quis comentar. Sean ganhava a preferência de todos outra vez, percebendo ter colocado uma pedra na cena da piscina.
Mas momentaneamente, ele ainda precisava atingir Marcia.
Cybele enfim adentrou nervosa na sala de aula tentando acalmar todos sem conseguir, e a aula foi suspensa por total falta de organização. Cybele outra vez ficou brava por ele ter perturbado a aula de matemática financeira.
Ela nem notou que ele havia sido inteligente demais para a ‘pele’ de Sean Montebello.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
28 de março; 21h10min.
Quando a aula de cinema começou, Sean não viu Marcia. A professora Denyse dissertava sobre a obra de Charles Chaplin e ele não conseguia prender sua atenção.
Ficava irritado quando Marcia desaparecia.
E estava irritado por estar irritado.
15
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
29 de março; 10h08min.
A neve estava espessa, Sean desejara que aquele sábado houvesse sido no mínimo um pouco mais quente. Estranhamente Cybele demorou a sair para rezar e ele não conseguira escapar como queria. Também não encontrava a mínima disposição para frequentar aulas de natação, mas Marcia e todos estavam lá.
A piscina era coberta e aquecida. Sean não acreditou no imenso tamanho da piscina ladrilhada com motivos romanos e rodeada por colunas de provável mesma época. Ao lado da piscina térmica e cheia de água mineral havia dezenas de dúzias de cadeiras de descanso com um grande bar provável desativado já há algum tempo.
Do outro lado, havia uma escada de onde saía um ar abafado, que levava à sauna a vapor, sauna seca, banho turco, hidromassagem, chuveiros, três cabines para massagem, apesar dele não ter sido avisado sobre massagistas ou fisioterapeutas, e uma ampla sala de descanso com uma sala para se trocarem.
Sean não fez a aula de natação, já que alguns também não fizeram. Quando a aula terminou, a grande diversão era jogar todos dentro d’água, mas Marcia, que também não participou da aula, não tinha a mínima vontade de entrar na piscina. Também Sean se afastou um pouco da diversão, se sentindo mal outra vez, por não saber se divertir.
Sentou-se numa das poltronas mais ao fundo na saída do professor e depois se levantou, tirou a calça de moletom e mergulhou.
Se alguém estranhou não soube, mas deu umas poucas braçadas usando camiseta por causa dos arranhões, e usando o short mais comprido que encontrou na mala.
Saiu da água encharcado e viu o vergão na coxa direita.
— Droga... — tentou escondê-lo com uma toalha sem perceber que June, deslumbrada, viu a marca que ele tinha na coxa direita, e viu que o machucado começava a cicatrizar num formato arredondado.
Já Marcia percebeu que Sean a mantinha distante como os outros, mudou de tática a fim de chamar a atenção dele. Gargalhou alto ao ver que iam jogá-la na piscina, e fez sinal para que o engraçado Adelfo esperasse; ela mesma tiraria o roupão para ser jogada.
Sean se esticou para ver o corpo que despontava de debaixo do roupão atoalhado, lembrando-se do corpo quente na piscina natural fria, dos seios que lhe relaram o peito másculo. Depois escorregou os olhos para Maykon percebendo que ele entendeu aquilo, o interesse dele por ela, e voltou a olhar Marcia que se exibia, era notório.
E Adelfo caprichou na queda. Marcia foi ao fundo e voltou. Saiu subindo degrau por degrau a fazer pequenas paradinhas. Passou a mão pelos cabelos negros, pelo rosto belo, pelo corpo branco e Sean sentiu-se um colegial babaca ao perceber seus olhos azuis fixando as pernas que despontavam torneadas e perfeitas, como as de Kelly Garcia, em suas sandálias altas, exóticas, que ela colocava para chamar-lhe de patrãozinho todos os dias.
E Sean a amava, sabia que a amava, que não podia amá-la.
Abaixou a cabeça e Marcia voltou a água num gritinho sensual, fazendo todos os homens ali prestarem-lhe atenção.
Agora Sean sentiu mais que tesão por ela, sentiu ciúme, o mesmo sentimento que sentia quando Kelly Garcia trocava as pernas, sentava-se sensual para chamar-lhe a atenção, chamando a atenção de todos, o provocando; e ela chamava toda sua atenção, porque Sean não perdia cada movimento que a sócia fazia.
Maykon resolveu falar com Sean. Dirigiu-se para onde ele estava a fim de combinarem a fuga, quando Friedrich colocou o pé e Maykon saiu do chão e voltou chegando perto dele. Maykon e os Luciedes arregalaram os olhos vendo que ele não caíra, que seu corpo parara a milímetros do chão sem tocá-lo, e Sean virou a folha de uma revista.
Maykon olhou um lado, outro, e se levantou atordoado, sem entender como não quebrara a cara no chão duro. Respirou profundamente e voltou a se aproximar de Sean quando foi a vez de um Hans inconformado se virar para jogar a garrafa que tinha na mão, e a garrafa, a mão e todo o corpo de Hans deu piruetas, e voou toda a extensão caindo dentro da água com roupa e tudo.
Gargalhadas se espalharam e Sean virou mais uma página da revista que lia.
Maykon começou a gostar de ver aquilo e ergueu a cabeça confiante, recomeçando a andar.
Contudo, a confiança dele não passou despercebida de Friedrich e Hübinjer que o pegaram pela camisa e Maykon gritou.
— Ahhh!!! — a dor e o desespero de ver-se quase enforcado chamou atenção de Adelfo.
— Hei monstros?! Largue-o!
E os joelhos de Friedrich e Hübinjer se dobraram, os fazendo se ajoelharem aos pés de Maykon, largado repentinamente de seus opressores.
O franzino Maykon olhou para um lado e outro quando os dois Luciedes passaram a lamber seu par de chinelos cor-de-rosa.
Gargalhadas se espalharam para todos os lados e Sean virou mais uma página da revista.
— Sua putinha — e Hans saiu da piscina descontrolado, correndo para onde os outros dois Luciedes estavam lambendo o par de chinelos de Maykon, quando os três ficaram de ponta cabeça, e aos gritos perderam os sapatos, as meias, as calças e as cuecas que vestiam ficando de traseiro de fora, balançando para todos.
Gargalhadas e gargalhadas e mais gargalhadas para então Hans e Hübinjer Luciedes encararem Maykon que não sabia se eles pensaram que fora ele quem fizera aquilo, quando Hans e Hübinjer chegaram ao chão colocando as calças e fugiram dali deixando somente Friedrich, que só tinha Sean Montebello na mira dele, virando mais uma página da revista.
Maykon então passou pela espreguiçadeira de Sean e sussurrou:
— Obrigado... — e se foi.
Sean só virou mais uma página e nada comentou, nem o porquê de Maykon saber que foi ele, quando viu os olhos de Friedrich fixos em Marcia, e que ela sim, percebera que fora ele quem fizera aquilo.
Mas Marcia também viu Friedrich tomando coragem de se aproximar.
— A gente nunca teve a oportunidade de se falar direito — Friedrich se aproximou.
— É! — respondeu Marcia chegando à sua cadeira.
Sean alertou-se.
— Gostaria que me chamasse de Fried.
— Eu sei o seu nome inteiro.
— É que ‘Fried’ soa forte — e Friedrich riu vendo Marcia nada falar, pegando o roupão para se vestir. — Não ponha! — exclamou numa ordem a segurar a mão dela.
— Eu estou com frio — e tentou se largar da mão que segurava o seu braço.
— Fica sem o roupão! — voltou a ordenar.
— Ninguém me diz o que fazer.
— Quero ver seu corpo.
Marcia pôs o roupão, mas Friedrich o puxou tão forte que alguns fios de cabelo negros se prenderam em sua pulseira de ouro.
— Ahhh... — Marcia viu que Sean já estava ao lado deles.
— Largue ela!
— Saia daqui!!! — mas Friedrich se virou e gritou com ele.
— Me tira! — desafiou Sean.
Friedrich ia empurrá-lo com uma mão cheia, mas Sean a agarrou em pleno voo. Friedrich tentou a outra e Sean também a segurou.
— Ahhh! — Friedrich sentiu a dor, se inclinando agora sem paranormalidade usada, até atingir o chão, no que Sean torceu-lhe os braços fazendo-o perder o ar e os sentidos.
A piscina parou perante a cena.
— Já disse que devia escolher melhor as suas amizades, Senhorita? — e Sean saiu.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
29 de março; 20h20min.
Uma pancada seca na porta de número 5-5 se fez.
— Sean? — perguntou Adelfo entrando no quarto de Sean e vê-lo deitado de costas para a porta. — Não vai fugir conosco?
— Não! — ele se virou e viu Maykon com a ‘Turma Anarkhos’.
Houve uma troca de olhares e nada mais. Sean entendeu que Maykon fazia a parte dele na fuga, indo com a turma.
— E o que vai fazer?
— Continuar a ler — mostrou-lhes um livro.
— Puxa que pena. Até o Maykon, nosso herói do dia... — e riu vendo Sean trocar outro olhar com Maykon. —, vai sair conosco.
— Que bom que vai sair Maykon.
— É... Cybele não sabe. Vamos aproveitar a saída dela.
— Aonde vocês vão?
— Não sabemos ainda. A Turma Anarkhos vai sair completa hoje.
— As meninas não costumam sair com vocês? — perguntou Sean, de supetão.
— Às vezes — e Adelfo deu de ombros se despedindo de Sean.
Maykon também abaixou a cabeça e saiu. Sean só esperou o silêncio reinar e fugiu.
Na noite de sábado carona não seria difícil arranjar e ele tinha algo inacabado no Q’Animal.
Q’Animal, Flon; Lausanne.
46° 31’ 19.9” N e 6° 37’ 37’ E.
29 de março; 22h00min.
— O tal do bailarino Timmy, chegou? — perguntou Falppo ferozmente para o bailarino chamado Hélder.
— Não, Monsieur — respondeu se encolhendo de frio.
— Não encontro o idiota do Bruno! — e saiu batendo a porta mais furioso ainda, estremecendo o camarim.
Havia cabides enormes espalhados para todos os lados, pontas de cigarro, papelotes de cocaína, restos de garrafas de uísque barato. Também quilos de maquiagem e spray em cima de uma penteadeira que tinha o canto superior do espelho trincado.
— Sete anos de azar! — exclamou Sean, ao entrar, se referindo ao espelho quebrado que o bailarino tampava com fita adesiva.
O bailarino chamado Hélder se virou rapidamente.
— Onde esteve Timmy? O Falppo está louco atrás de você — e cambaleou.
— Por quê?
— Ele está louco atrás do Bruno.
— Ele anda um bocado louco não?
— Ele quer falar com você antes do show.
— “Antes do show”? — temeu Sean uma aproximação.
— Agora fica aí com medo. Faz a caca e se borra depois — falou rude.
— Do que é que está falando? — estranhou Sean.
— Da mulher rica — respondeu Hélder num tom que se alterava rapidamente.
— Não sei do que está falando — e se virou para pegar o creme e passar no corpo.
Hélder o agarrou com a sua mão.
— Quer chegar aqui do nada e roubar a freguesia?
— Umah me disse que nunca tinha saído com nenhum outro bailarino.
— “Umah”? Quanta intimidade agora — e Hélder segurou a mão de Sean que só olhou sua mão segura por algo gelado, pegajoso.
E ele sabia que não era o creme que usavam.
— Solte-me!
— Não! Não vou soltar porque... Ahhh!!! — gritou Hélder no que todo seu corpo foi lançado contra o espelho e lá ficou esverdeando.
Sean não soube o que pensar. Preferiu não fazê-lo. Soltou-o do laço mental e Hélder foi ao chão.
— Quem contou a Umah sobre mim? — mas Sean viu que Hélder estava se entregando ao efeito de alguma droga. Ele o ergueu do chão e toda pele de Hélder se tomava de escamas. — Ahhh... — Sean o largou quando a porta se abriu e escondeu a mão tomada de algo que tinha medo de saber o que era.
— Ainda bem que você chegou! — proferiu Falppo, gerente do Q’Animal vendo a serpente Hélder desmaiada no chão. — Vai entrar sozinho hoje! — e Falppo saiu e voltou. — Ordens de Umah!
Sean ainda estava lá, de olhos arregalados, com uma serpente desmaiada aos seus pés.
Q’Animal, Flon; Lausanne.
29 de março; 23h53min.
A plateia estava em desacordo, o sábado rendia uma grana alta e a lotação estava esgotada. Muitos ainda queriam entrar sendo barrados lá fora. As bebidas também encareciam nos finais de semana e as mesas lotadas esperavam ansiosas e agitadas, a nova sensação do momento na casa, brandida num cartaz de néon logo na entrada do Q’Animal; o novo bailarino Timmy.
Sean viu a propaganda espalhada pelo corredor com os olhos ainda arregalados e toda sua consciência avisando para não entrar no palco. Talvez as vozes que inicialmente lhe avisavam sobre o contrato não fossem de Sandy, fosse mais que materialização de seu inconsciente, fosse sua inocência se perdendo na neve imaculadamente branca em meio a serpentes alienígenas.
— Droga... — soou da boca carnuda.
Alguns acordes foram dados e uma bailarina entrou no palco iniciando sua performance. Sean a observava do corredor. Ela tinha o corpo tomado por um creme escorregadio, bronzeando sua pele, alterando sua cor para um verde, que ele já imaginava ser o seu real.
Agora ele sabia que havia algo muito maior acontecendo ali, muito maior que a globalização da Computer Co., do que naves simbióticas pilotadas por serpentes de um serpentário distante, e alguém com muita fome.
E tudo se misturava numa mescla nonsense.
— Saia daí, vagabunda!!! — gritavam a casa lotada.
Sean viu a plateia na escuridão, não identificando de onde vinham os gritos.
— Queremos ver o tal show!!! — gritavam outros.
As vozes se alteravam e a bailarina de cabelos coloridos e pele esverdeada, tremia de medo após uma garrafa ter sido jogada no palco. A bailarina se encolheu e engoliu a nova vaia para então abandonar a dança, passando por ele chorando.
— Investi muito dinheiro em vocês!!! — berrava Falppo com ela.
Os cacos de vidro do palco eram varridos enquanto Sean ouvia gritos muito mais distantes que os do Flon, observando que a moça que se encolhia nua, coberta apenas por uma penugem de tinta brilhante era muito bonita, muito jovem também.
Sean já não tinha mais tanta certeza de ter feito a coisa certa, em meio a sensações dolorosas, gritos de morte que iam e vinham de uma memória que não era sua. Acordou com uma mão gelada sobre seu ombro. Era um dos capangas musculosos de Umah.
— Vá para o palco! — ordenou.
Sean fechou os olhos na máscara feita de pele de serpente que escondia seu rosto e subiu ao palco ainda de cortinas fechadas. Tocou-se, tocando o mesmo tecido que cobria o seu sexo e sua coxa, escondendo o ferimento.
O resto estava à mostra, a mercê.
Um grande telão lançou raios de néon alterando a cor do ambiente. Imagens aleatórias, totalmente computadorizadas lançadas para todos os lados no correr das cortinas de um palco tão escuro quanto o setor da plateia. Sean não soube como agir. A música enigmática dava sinais de sua entrada, exigia que a alma cedesse às tentações, que toda nudez fosse exposta e que os corpos puros, vazios, se preenchessem de sêmen, de uma energia orgástica.
A música aumentava seu timbre, era erótica.
Sean resolveu afastar qualquer pensamento de sua cabeça, esquecer quem era o que possuía o que devia fazer, e virou-se de costas no que a luz vagou por seu corpo nu; um corpo molhado, moldado, perfeito. Ele retesou a musculatura mostrando as belas coxas, mexendo o quadril lentamente, e uma luz forte tomou conta do Q’Animal, iluminando o palco, a plateia.
Euforia geral.
Ele temeu mais que tudo se virar, tentando olhar pelo canto dos olhos vendo as mesas tomadas, lotadas, em frenesi. Tentou desligar-se outra vez, esquecer o ambiente e tudo a sua volta.
Sua pele brilhava, seu corpo acompanhava a música, girava lentamente a matar, se pronunciando perante o embalo do som. Sean sentia-se tremendamente envergonhado, tentando a todo o momento se convencer que a máscara o esconderia que ninguém o reconheceria que não poderiam ver o seu rosto.
Mas era ele quem não conseguia enfrentar a plateia, e tinha que mudar de tática rapidamente se não quisesse morrer nas mãos de Falppo.
Fechou os olhos, se virou de frente e os gritos quase fizeram a Q’Animal vir abaixo. Ele engoliu aquilo sem saber como no que a luz apagou e acendeu de novo caminhando pelo seu corpo.
Sean abriu os olhos, e não viu as mesas imersas na escuridão.
A música recomeçou, e erótica, a cantora excitada, cantava uma música de iniciação, o fazendo viajar pelo ambiente, pelo calor que emanava que o suava. Sinapses de emoção, tempestade elétrica que fazia seu cérebro descer o corpo até o piso e de lá voltar, mexer-se e se teletransportar, sair do palco, ir à plateia, e ao palco voltar.
Uma cena de êxtase que fizeram todos gritar, implorar seu corpo, sua dança, toda sua alma. Com lábios que se pronunciavam, com bíceps que se mexiam sem censura, com seu corpo viajando na mesma velocidade que a plateia.
Sean era erotismo no corpo que pedia aconchego, pedia passagem, queria se esconder, se expor, excitar a todos que queriam se levantar, invadir o palco, que exigiram de seguranças se colocarem nas escadas que davam acesso ao palco, com Falppo sabendo que ele tinha algo diferente, especial.
Já Umah só conseguia enxergar o corpo dele, que dançava seu mais interno prazer, que se mexia fazendo seus pudores o abandonar, sua mais profunda inocência morrer; porque ele era sua própria performance, um fetiche. Ela mal acreditou no que via no que sentia, no que desejava. Porque ela ia, tinha certeza, quebrar todas as regras por causa daquele corpo no que o show terminou.
As luzes acenderam e Sean estava agachado, de frente, na madeira fria. Ergueu a vista encarando a primeira mesa para então arregalar os olhos num terror que percorreu cada pelo de seu corpo.
Adelfo, Mitti, Najla, Ema, Cristina, Mary Ann, Louis, Eunice, Monica, Charles, Neide, Elisa, Sandra, Silvya e Maykon, estavam lá.
June, em pé, vinha do bar com uma garrafa de refrigerante. Encarou as pernas do bailarino e fixou o olhar na coxa exposta. Estancou apavorada deixando a garrafa ir ao chão:
— Sean... — falou boquiaberta para a multidão que ensurdecia a todos, a olhar a marca da cicatrização do machucado arredondado ganho por ele na cachoeira.
E aplausos explodiam com Sean mal conseguindo respirar, com os olhos azuis a correrem desesperados de um lado a outro procurando Marcia, no que viu os três Luciedes na mesa de Falppo, com Umah.
As coisas se embaralharam ainda mais na sua cabeça. Tudo rodou e Sean perdeu a firmeza de seus pés no assoalho do palco; tentou se erguer do chão gelado e a cortina quase o derruba pela velocidade que foi fechada.
Sean não voltou para o camarim e Umah estava furiosa o procurando em cada canto do Q’Animal. A mulher de pele morena jambo, minissaia de couro de antílope vermelho e blusa de seda no mesmo tom, entrou no carro Ferrari FF último modelo após brigar com todo mundo dentro do Q’Animal, furiosa com o fora que levara.
Ninguém viu onde o bailarino Timmy se metera.
16
Residência dos Braushin, Caux; Lausanne, Cantão de Vaud.
46° 25’ 58” N e 6° 56’ 12” E.
30 de março; 03h00min.
A Ferrari FF tomava o rumo da estrada que a levava para a casa de Umah Braushin. A velocidade crescia na mesma proporção que a sua irritação, passando por vários sinais vermelhos, não se importando com as leis.
Com potência de 650 cavalos, Umah corria a 230 km por hora, entrando tão bruscamente numa das curvas fechadas que fizera com que os pneus cantassem no asfalto.
Umah olhou de repente pelo espelho retrovisor.
— Eu não acredito! — exclamou Umah se virando para trás. — Eu fiquei lhe esperando a noite toda! — entrou noutra curva fechada.
— Vai capotar o carro com ou sem sua bela tração nas quatro rodas — riu Sean.
— Por que fugiu? — ela voltou a dirigir.
— Não aguentei o sucesso — sorriu cínico percebendo que já chegavam ao Lago Léman.
— Está fantasiado? — perguntou, molhando a ponta dos lábios.
— Como você gosta — insinuou.
Umah sorriu satisfeita e entrou no condomínio onde sua casa estava construída não o tirando de sua vista pelo espelho retrovisor. E sabia que cometeria um erro, talvez o maior de sua carreira.
Ambos entraram na garagem e Umah se jogou no banco traseiro agarrando-o, passando as mãos pelo creme que cobria o corpo perfeito, másculo, delineado, o tocando sem censura.
— Oh! Sean...
Sean odiava ter que se vender daquela maneira, sentia que traía mais Kelly que qualquer outra mulher; não se permitindo ao seu amor.
Foi traído mais que traidor.
Porém Umah era mulher bonita e ele estava resolvido a se entregar aos seus afagos, aos seus caprichos, a sua própria curiosidade mórbida.
— Quem eram os rapazes na mesa com você? — falou ao pé de seu ouvido. — Amantes?
Umah gargalhou:
— Sean querido! Esqueceu que eu sei quem você é?
— Não... — Sean não havia esquecido, só não sabia onde pisava com ela, uma agente da Poliu. A empurrou e saiu do carro. — Foi Hélder, não foi? Foi ele quem contou sobre Sean Montebello? Ele tem muito ciúme de quem se aproxima de você.
Umah voltou a agarrá-lo pelo rosto e lambeu-o.
— Hélder é um idiota. Não entendeu o meu recado.
— Que recado?
— Que eu não me envolvo com garotos! — exclamou com firmeza.
Sean a encostou na parede fria de azulejos.
— Sou o que?
— Ah... Sean... Engole-me... — e Umah foi engolida para dentro da boca máscula, grande, tomada de prazer pela saia de antílope que provocava frenesi no seu corpo quase nu, que excitava a meia-calça vermelha que rasgou, que Sean terminou de rasgar. Umah vibrou de olhos arregalados, excitados, querendo mais que ser rasgada. — O que quer com os irmãos Luciedes, Sean querido?
— Por que acha que eu quero algo?
Umah se calou, parou de se esfregar feito gata pelo corpo melado e o encarou com frieza.
— Por que o interesse em Lüdovick? — mudou o semblante.
— E você? Qual o interesse da Poliu em Lüdovick?
Umah agora gargalhou escandalosamente.
— Não trabalho para a Poliu.
— Mentira! Você sabe que sou Sean Queise e o que estou fazendo aqui na Suíça.
— Uhm... São esses os seus tais dons? — gargalhou. — Porque me parece que aquela alucinada realmente conseguiu algo com você.
— “Alucinada”? — Sean decifrou-a como Mona Foad. — De onde conhece Mona Foad, Umah?
— Uhm... Não acabou de dizer que sou da Poliu? — ria escandalosamente. — Então sei quem é Mona — e foi virada violentamente contra a parede por um Sean irado. — Então sei que tem dons paranormais, Sean Queise, capazes de ler minha mente que ficou excitada e descuidada — e pegou o sexo dele.
— Ahhh... — Sean perdeu o fio da meada.
— Excitada e descuidada, sim... — e Umah o largou continuando a entrar na casa. —, mas não se engane Sean Queise. Fui treinada para brecar seus poderes — olhou-o ainda parado. — Qualquer um — e saiu da gagarem entrando por uma porta.
Sean só girou os olhos irritado com o que fazia, com uma agente da Poliu. A seguiu entrando e pisando num corredor de mármore italiano, gelado.
— Foi por isso que Trevellis foi pessoalmente ao Q’Animal? Ver se sua ‘performance’ em bloquear-me, funcionava?
— “Trevellis”? — ela se virou de repente. — Que performance? — Umah parecia estar mesmo assustada com aquela informação. Sean mais nada falou. — Mr. Trevellis estava lá? — insistiu Umah voltado aonde Sean havia estancado. — Quando?
— Trevellis é esperto Umah, sempre foi. Despediu-te e fez a Poliu te seguir e ver que você nada escondia, para que você então pudesse sair e ficar livre para agir ao mando dele.
— Você está delirando, Sean querido.
— Não, Umah querida. A Poliu nunca desiste de vigiar ninguém, não até que ela se autodestrua.
— Está falando da ladrazinha Sandy Monroe?
Sean sentiu todo sua face aquecer.
— Não se atreva...
— Atrever-me?! Sandy era uma traidora!!! — berrava.
— Vagabunda! — Sean a empurrou com tanta força que a jogou no chão.
Umah riu no choque, no frio chão de mármore italiano.
— Tanto quanto você! — desafiou-o. — Vagabunda como você!
— Não sou como você Umah! Ainda tenho dignidade suficiente para ir embora e te deixar aí excitada, implorando meu corpo.
— Não! — Umah agarrou-o. — Não me arrisquei nesses últimos dias para perdê-lo. Se eles descobrem, estou...
— Está com medo de contar a alguém sobre mim, Umah?
— Também não combina muito com meu estilo ser fiel a alguém, não é Sean querido?
— Fidelidade? — riu Sean que se afastou do beijo que ela vinha lhe dar. — Achei que estava falando de sexo, Umah. Além do mais, Lüdovick é chegado em motoristas musculosos e esverdeados, o que me explica seu fetiche por bailarinos.
Umah parou de tentar beijá-lo e ficou a encará-lo, não gostando das insinuações. Puxou seus cabelos com mãos firmes, e Sean inclinou a cabeça para trás num ato só.
— Ahhh!!! — e gritou pela dor dela morder-lhe seu pescoço, a arrancar sangue. — Ficou louca?!
— Louca! Ensandecida! Excitada! Fora de mim! Escolha!
Sean não sabia como prosseguir perante tantas opções.
— O que a Poliu quer com os Luciedes?
— O que Oscar quer aqui, Sean querido?
— O que a Poliu quer com os Luciedes, Umah?
— Nada! Os meninos sentaram-se à mesa por sentar...
— Qual é Umah? — empurrou-a longe. — Acha que sou idiota? Falppo não deixa ninguém se aproximar de você, e você mesmo disse que não se envolvia fácil.
— Não vou mais falar sobre isso! — e Umah o largou sozinho no corredor de ligação da garagem.
— Droga! — Sean sentiu enfim seus pés descalços no frio do mármore italiano.
Não viu alternativa a não ser seguir Umah para dentro da casa, que primeiro entrou por uma escada que subia para um alpendre, que dividia a casa principal da residência dos empregados. Depois entrou na cozinha sendo seguida por Sean; o frio roxeava a pele dele.
— Tome! Vista esse casaco! — falou Umah como numa ordem. — Está morrendo de frio!
Sean a olhou, estava mesmo morrendo de frio. Tomou o casaco de peles legítimas de suas mãos e o vestiu olhando em volta, vendo a cozinha espaçosa e clean, com pequenos vasos de uma mini horta ao longo da parede, imaginando que Umah nunca tratou deles.
Entraram numa pequena copa até a enorme sala de jantar de paredes ricamente forradas de veludo vermelho e madeira branca filetada a ouro, totalmente perdido.
Na parede, só obra de arte.
— O Monet é verdadeiro?
Umah riu e não parou, prosseguiu para outra sala até alcançar o segundo andar, sempre a observar se Sean vinha atrás dela, sabendo que ele não tinha escapatória, precisava arrancar dela o que queria.
Mais pinturas modernas e estilizadas nas paredes e Umah abriu a última porta do corredor entrando num quarto escuro.
Sean voltou a notar o acúmulo de obras de artes nas paredes.
— Dinheiro não parece problema para mim, não é? — ela respondeu sua pergunta.
— São verdadeiras? É isso que investigava para Trevellis?
— No começo era — respondeu sem emoção alcançando o meio do mesmo quarto de antes.
— E agora?
— Venha! — ordenou para que Sean se deitasse ao lado da cama em que se jogara.
— Não vou me deitar com você.
— Vai sim! — e Umah arrancara suas próprias roupas numa velocidade impressionante. — Tenho pressa... — parecia até ler os pensamentos dele.
— Quero tirar o óleo...
— Venha! — repetiu nua, de joelhos, a acariciar seus próprios seios que empinaram, fazendo os bicos duplicarem de tamanho.
— Você investiga os Luciedes?
Umah riu e levantou-se indo até ele; e arrancando-lhe o casaco de pele o puxou para próximo da cama.
— Está com ciúme, Sean querido?
— Já disse para não confundir prazeres, Umah. Somos profissionais... — e Sean ergueu o supercílio. — Porque sabemos onde pisamos, não sabemos?
— Foi exatamente isso que eu soube sobre você.
— Sobre mim?
— Um arquivo confidencial interessante, com muitas páginas sobre sua frieza treinada nos porões da Poliu — gargalhou.
Sean não gostou do que ouviu. Sua frieza se traduzia em paranormalidade treinada na Poliu, longe do conhecimento da Poliu, sob as ordens de Mr. Trevellis.
Odiou-se.
— Conhece o mais novo dos Luciedes?
— Mudando de assunto, Sean querido?
— Responda!
— Fala do Friedrich? — Umah tentava tirar-lhe a sunga.
— Sim!
— Já o vi várias vezes aqui em casa durante os jantares amigos que Lüdovick promove.
Sean gelou e se afastou dela.
“Amigos?”, tentou raciocinar.
Umah alcançou-o passando as mãos pelo corpo dele. O puxava para cama outra vez voltando a se deitar.
— Você é tão lindo — passava seus próprios dedos por dentro do sexo molhado, os chupando depois. — Sandy sabia o que queria.
— Não fale dela!
— Sempre foi uma agente tão exigente.
— Cale-se Umah!
— Era a preferida de Trevellis — provocava-o.
— Sandy nunca trabalhou para a Poliu.
Umah se levantou, pegou a mão dele, separou-lhe os dedos e enfiou-os dentro dela.
Sean atordoou de tesão.
— Não, claro que nunca trabalhou — ria Umah, o puxando.
Sean ficou confuso, se deitou, Umah sobre ele, seus dedos ainda dentro dela e o tecido amarrado em sua coxa provocou a ferida, com um fio de sangue a correr.
Ela nada falou, era esperta. Sua boca lambeu o sangue para depois mordê-lo.
— Ahhh!!! — Sean berrava de dor, de tesão pela dor provocada, por ela no meio de suas coxas e ele excitado com tudo aquilo. — Louca... — tentava se livrar da boca dela, dos dentes que o machucavam.
Ela riu com a boca cheia de sangue e Sean a esbofeteou. Umah caiu em gargalhadas no chão do quarto.
Ele estava testando-a, se testando também.
Umah levantou-se e voou em cima dele que num golpe, o girou até amarrar seus braços e deixá-lo sem ação, rindo escandalosamente. Agora Sean já não tinha mais certeza se queria testar-se tanto assim, havia ultrapassado todos os seus limites, os morais também quando algo passou pela janela aberta.
Ele viu a sombra, o movimento distorcendo o espaço-tempo, a visão que não entendeu o que viu. Mas Sean estava amarrado por Umah, que se deliciava de tesão a esfregar-lhe o corpo nu sobre o corpo melado dele, e algo verde e esguio grudou-se na parede para então sumir.
— Umah... Umah... Acho melhor você me... — e não conseguiu acabar de pedir no que Umah mordeu-lhe outra vez a coxa machucada. — Ahhh!!! Pare!!! Pare!!!
— Não! Não! Não! — Umah não pensava daquela maneira, ser sádica a excitava.
Naquele momento, ele não compartilhava de seus ideais liberais, temeu pela sorte dos dois, nus, em meio à dor de não conseguir pensar pela dor sentida, infringida, no que um cheiro ocre invadiu o quarto.
Sean deu um giro e caiu sobre Umah. Mas ela tocou-o fazendo Sean entrar em êxtase e ela o girou outra vez.
— Pare Umah... Pare com isso… — e o pânico se instalou nos olhos dele no que o teto ondulava, encrespava, modificava sua textura e seu sexo foi engolido, chupado, mastigado. — Ahhh... Ahhh... Umah não... — algo, alguém, alguma coisa caminhava pelo teto, se transformando em teto, se plasmando em quarto. — Umah... — Sean tentou falar. — Umah... — e a bela morena jambo, de cabelos loiro platinado e encaracolados encaixou-se nele o cavalgando. Sean não conseguia mais nada, excitado e apavorado com a aproximação daquilo, em meio ao tesão da penetração. — Ahhh... Ahhh... Umah...
— Isso... — pulava nele. — Geme Sean... Geme Sean querido... — e enterrou-o dentro dela com toda força. — Isso! Faz-me gozar...
— Não Umah... Umah... Deus...
— Sean querido... Sem religiões, por favor.
E tudo parou de mover-se.
— O teto...
— O teto é só o limite — Umah o mordeu novamente até que ele perdeu a voz.
— Ahhh... — e Sean tentava não se entregar; precisava raciocinar, parar, raciocinar mais uma vez. — Umah... — e o chão voltou a mover-se quando algo se plasmou. — A serpente-sentinela do lago...
Umah acordou no que uma grande serpente verde se moldou ao lado deles. Ela saltou da cama alcançando a mesa de cabeceira, armando-se com a pistola calibre .38, que engatilhou para então ser invadida pela língua da serpente.
— Ahhh!!! — gritou Umah caindo no chão.
— Não!!! — gritou Sean vendo a serpente-sentinela alienígena perfurar a perna dela, chegar à barriga e a língua voltar com vísceras de Umah que se espalharam pelo quarto.
Ela se virou para ele e Sean estava paralisado pelo medo.
— Otto Miller… — soou da boca da serpente-sentinela alienígena.
Uma voz suave, ludibriante.
— Ahhh... — Sean engoliu a seco o pavor que tomou de seu corpo, de sua mente.
— Timmy? — a serpente-sentinela alienígena prosseguia.
Sean tentou fechar sua mente no que percebeu que a grande serpente-sentinela alienígena interagia telepaticamente com suas vítimas. Entendeu mais naquele momento do que até então vinha tentando entender, e Umah se pôs a debater de dor, engatilhando a pistola, disparando.
Mas Sean saltou nu da cama sobre Umah tentando lhe tirar a arma quando foi laçado pela língua da serpente-sentinela alienígena, sendo jogado contra o outro lado do quarto.
— Ahhh!!! — caiu dobrado sobre a coxa direita que voltou a sangrar.
A serpente-sentinela alienígena então fez um estranho som de papel amassado e se morfou adquirindo braços femininos, seios grandes e eretos, cabelos lisos e esverdeados que esvoaçavam com a brisa da janela escancarada.
A serpente-sentinela alienígena então se rastejou num movimento sensual em direção a ele, que se sentiu nonsense, tendo dito ‘ilógico’.
O olhar da serpente-sentinela, alienígena ou que fosse aquilo, era direto, vindo de um rosto de forma estranhamente triangular, que projetava sua face angular numa expressão austera, de comando. Seus olhos verdes, brilhantes, tomaram a visão de um Sean nu, encolhido, que tentava fugir, mas que nada nele se movia.
Outro som de papel amassado e a cauda de serpente plasmou-se em pernas, com a serpente-sentinela do lago em pé, próximo a ele, se inclinando até muito perto dele, que percebeu que ela lhe lia os pensamentos. Tentou desesperadamente soltá-la de sua mente, pensar em algo diferente, mas não conseguia. Imagens de Sandy, de Kelly, de Oscar, de sua vida na Computer Co. desenharam-se por todo o seu redor. Seu pai, sua mãe, sua irmã, sua infância; seus feitos, prêmios, namoradas, conquistas de anos a fio por um Sean Queise jovem, solitário.
Sua vida regrada, rica e poderosa fora exposta ali.
A serpente-sentinela do lago voltou a se inclinar quase se dobrando e cada vez mais próxima dele, mediu cada milímetro de lábio que beijou, que amou também.
— Desgraçada... — sussurrou Umah ao ver a alienígena beijando Sean.
Alcançou o alarme que acionou homens no portão. Agentes da Poliu que faziam à guarda dela invadiram a casa e Sean ouviu o movimento. A serpente-sentinela alienígena arregalou os olhos esverdeados e afastou-se dele em meio ao som de papel amassado, que lhe devolveu a cauda reptiliana, que rastejou aproximando-se novamente de Umah num rastejo sensual, com sua metade forma de mulher nua metade serpente, e uma grande língua saiu da boca que beijara Sean, e voltou a se lançar dentro das narinas de Umah.
— Por favor, não!!! — gritou Sean e a serpente-sentinela alienígena brilhou os olhos esverdeados para Umah que estava anestesiada a olhá-la. — Não a mate... — Sean implorou e a serpente-sentinela alienígena escorregou os olhos que brilhavam para ele, o observando, quando movimentos de homens correndo invadiram a escadaria, se aproximando. — Vá embora! — Sean falou de supetão. — Eles estão chegando! — e ele viu a língua sair de dentro de Umah que caiu desmaiada no chão.
A serpente-sentinela alienígena se ergueu em toda sua magnificência e outra vez moldou pernas no lugar do corpo de serpente, mostrando mais uma vez o quanto era belo e estranho o corpo esverdeado dela.
— Sean... — a voz dela era sensual.
— Vá! Por favor! Vão lhe machucar! — completou Sean com todas aquelas exclamações.
Ela o olhou extasiada por vê-lo protegendo-a. Jamais ninguém a protegera. Esse tinha sido seu papel séculos e séculos; incompreendida, porém.
Contudo, sons ininterruptos dentro da casa anunciavam os agentes já no segundo andar da casa.
— Sean...
— Vá! — pediu ele novamente. — Por favor!
— Sean... — e a serpente-sentinela alienígena em corpo de mulher o encarou novamente, sorrindo e desmanchando-se sob um estranho som de papel amassado, perante seus olhos, plasmando-se em tapete, plasmando-se em janela, escapando no que um Orb, circular e metálico, lançando cores e raios de luz iluminou o lado de fora, a levando embora.
— Deus... — foi só o que podia dizer.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
30 de março; 17h23min.
Sean só retornou a École Hoteliere Dubois no final da tarde, com roupas emprestadas pela Polícia Mundial. Umah foi hospitalizada e os médicos disseram que um pedaço do fígado iria se recompor, mas que o processo seria demorado.
Umah, contudo não queria parar, precisava concluir o esquema pelo qual lutara quase cinco anos. Mr. Trevellis, no entanto não viu alternativa. Encarregou-se pessoalmente do desmantelamento do esquema a tirando do caso definitivamente. Antes, mandou seus agentes que trabalhavam disfarçados como seguranças do condomínio, simularem um roubo.
A Poliu não podia arriscar que os Braushin e nem os Luciedes soubessem que estavam atrás deles.
Oscar Roldman também foi categórico, queria Sean fora da École Hoteliere Dubois, mas ele era mais teimoso ainda. Bateu o pé e disse que ficaria, tinha que terminar o que começara também. Mesmo sem saber o que fez até agora, mesmo sabendo que quebrou todas as regras de conduta das quais acreditava, pelas qual fora criado.
Em meio à confusão toda, Sean sentiu-se gostando de uma mulher, talvez duas.
Quanto a Clara, Dr. Zuquim agradeceu infinitamente Sean mandando um recado: havia inicialmente pedido a Oscar para não se envolver, temeroso pela segurança da filha, mas depois de todo o acontecido, ele resolvera falar; tinha um segredo sobre os Luciedes que não havia divulgado a ninguém.
O mais novo, Friedrich Luciedes, o havia procurado no Réveillon. Estava muito assustado com um ferimento muito profundo na sua barriga, que sangrava demais. Friedrich disse que havia caído, mas o Dr. Zuquim havia diagnosticado que Friedrich tinha uma pequena hemorragia interna no fígado e aconselhou-lhe procurar um hospital bem equipado, o que foi prontamente recusado. Então lhe passou medicamentos e descanso, e ele se foi pedindo que Günter, Hübinjer e Hans nada soubessem sobre aquilo. Em troca, ele nunca deixaria nada acontecer a Clara, que andava na mira de Hübinjer.
Oscar não sabia por que Friedrich não queria que os irmãos e o primo soubessem, mas desconfiava que Friedrich houvesse feito algo ou provocado algo, e agora estava temeroso. Já Sean imaginava que pelo fato ter ocorrido no Réveillon, a morte de Aline Dubois estava relacionada. Só não conseguia ainda decifrar o enigma porque havia uma força dentro da École Hoteliere Dubois capaz de mascarar-lhe as informações que tirava do éter.
Quando Sean atravessou os portões enferrujados, Maykon estava logo na entrada, chacoalhando-se para passar o frio. Usava um enorme casacão vermelho de esqui com o emblema da escola bordado na lapela, e que o deixava até gordo. Sua pequena cabeça despontava para fora, amarrado num gorro e num cachecol pink.
Somente ele sabia da saída de Sean.
— Aconteceu outra desgraça — falava tremendo logo que ele aportou.
Sean sobressaltou-se.
“Outra?”, pensou.
— Pare de tremer! Está me deixando nervoso Maykon.
— Eu tive que mentir sobre você... — ele viu Sean não gostar de ouvir aquilo. — Disse a todos que você havia tomado um calmante e ainda dormia — percebeu que Sean respirou aliviado. — Tive que sair pela janela... — e apontou para o edifício.
— O que foi que aconteceu afinal?
— Cybele ainda não voltou e Pitt está morto. Elisa o encontrou, mas só chamou uma ambulância agora a pouco.
— Ele também foi namorar na borda escarpada?
— Como pode ser irônico numa hora dessas? — Maykon sabia que ele não responderia. — Não! Elisa encontrou o seu corpo na cozinha; ele estava sujo de fuligem, folhas e meio que... — olhou Sean o olhando. — seco.
— Vamos entrar antes que congelemos... — e Sean deu um puxão tão forte em Maykon que ele só foi perceber que já não estavam no portão e sim à frente da porta de entrada, escondidos atrás de árvores, quando latidos de cães o alertou.
— Como chegamos... — Maykon olhou um lado e outro. — Como chegamos... — Maykon olhou um lado e outro. — Como chegamos...
— Cale-se! — falou nervoso, com a respiração acelerada tentando enxergar na pouca luz que o Sol emitia em meio às árvores.
Mas não foi o som dos cães que alertou Sean, foram as luzes dos Orbs, UFOs metálicos que sobrevoavam a École Hoteliere Dubois; ele sabia que serpentes alienígenas estavam por ali, que elas viajavam em Orbs.
Puxou Maykon novamente e ambos agora correram para a escola no que Sean sentiu toda sua força esvair. Foi ao chão úmido e gelado fazendo Maykon cair também, vendo que a perna dele sangrava.
— Sean... — sussurrava.
— Cale-se... — sussurrava também.
— Não... Não vou me calar... Você está sangrando...
— Isso não é importante... — olhou um lado e outro. — Porque esses carros não estavam aqui quando foi me esperar no portão.
Maykon também olhou um lado e outro.
— Como sabe?
— Porque eles vieram com eles — apontou para o céu.
— “Eles” com “eles”? — Maykon também olhou para cima. — Por que não estou entendendo?
— Vamos... — Sean apontou para o complexo esportivo. — Precisamos entrar e... — e desabou logo que levantou. — Droga... Estou me sentindo fraco — e Sean foi erguido por Maykon.
— Deixe-me ajudá-lo... — e ambos correram para a porta lateral invadindo a piscina coberta, alcançando o corredor com a rajada de frio logo atrás.
Eles ouviram vozes adiante no corredor e passos se fizeram, saindo da sala da diretoria de Cybele.
— Não disse que Cybele havia saído? — falou Sean de repente.
Maykon arregalou os olhos como quem não entende mais nada, e Sean apontou para a biblioteca quando desfaleceu.
— Sean... Sean... — sussurrou Maykon, o vendo abrir os olhos. — O que há com você?
— Não sei... Todas minhas sinapses nervosas estão em curto.
Maykon sabia que era mais que aquilo, que talvez o fato deles terem se teletransportado do portão até atrás das árvores na entrada da École Hoteliere Dubois, fosse o motivo do curto-circuito.
Sean voltou a se apoiar em Maykon que o ergueu do chão e juntos correram até uma janela que mostrava os ocupantes dos carros saindo; Leopold Braushin segurava um cão. Um suor de pavor tomou o rosto de Sean. Maykon olhou-o assustado novamente, percebendo que alguém ali assustara Sean de alguma forma.
Maykon o levou até a biblioteca, a mesma biblioteca que Aline Dubois via a chuva, a mesma biblioteca onde um grande quadro dela estava emoldurado na parede. Sean estancou no chão ao olhar para cima, largando o próprio corpo. Maykon ainda o tentou levantar, mas alguma coisa na fotografia de Aline o perturbara.
— Ela tem... — apontou para o quadro. — Ela tem uma verruga... — ficou sem ação.
Maykon olhou para onde Sean apontava. Viu que o lábio superior de Aline tinha um sinal que parecia realmente uma verruga. Sobre sua cabeça inclinavam-se os belos cachos loiros a cair-lhe sobre os ombros vestidos com o uniforme da École Hoteliere Dubois; uma boina de feltro azul marinho que fazia parte do uniforme.
— É a sobrinha de Cybele? — Maykon estava confuso. Sean não respondia, pensava algo que não lhe parecia fazer muito sentido. — É a sobrinha de Cybele, Sean?
— Eles já foram? — perguntou de repente.
— Por que está fugindo daqueles homens? — perguntou Maykon atordoado, olhando pela janela os carros que se afastavam levando um grande cão.
— Eles já foram? — insistiu.
— Sim! Por que está fugindo, Sean? São os caras do tal clube da luta?
— Não... Tenho negócios com eles — no fundo não mentira. —, e sim, devo dinheiro a eles pelo saldo das lutas.
Maykon ficou apavorado com o que Sean Montebello fazia quando sirenes invadiram toda École Hoteliere Dubois.
— Venha... — Maykon o ergueu do chão. — Vamos fazer um curativo nessa perna. Acho que a polícia vai estragar a semana de Cybele.
17
Place de la Cathédrale, Lausanne; Cantão de Vaud.
46° 31’ 21” N e 6° 38’ 8” E.
31 de março; 09h00min.
Cybele havia entrado em total desespero dia anterior quando soube sobre a morte de Pitt MacLlion em meio às sirenes de ambulâncias no portão, e muita polícia em volta. E consequentemente os repórteres também já haviam sido chamados.
A diretora só acalmou quando o grande empresário Leopold Braushin a assegurou que ele próprio iria controlar a mídia, como um presente a ela e a École Hoteliere Dubois onde sua mãe havia estudado no passado. Cybele estava nervosa por mais um componente da escola ter sido colocado num escândalo. Não tinha mais como esconder o fato, alguém atacava a escola de hotelaria da família dela.
Os pais de Pitt não compareceram e apenas o advogado foi receber o corpo seco, autopsiado por mais de seis horas.
A bandeira na escola foi levada a meio pau e no outro lado do Cantão de Vaud, um padre estava terminando a missa na Cathédrale Notre-Dame de Lausanne quando Sean Queise olhou para trás, e se apavorou ao ver Mr. Trevellis vestindo o mesmo horroroso terno marrom de listras, longe de ser um Mister da moda, num dos últimos bancos da igreja.
Era a segunda vez que o via tão participativo de uma investigação fora dos domínios da Poliu. O que ele escondia talvez nunca soubesse. Mesmo assim, Sean levantou-se discretamente e encaminhou-se para a pia batismal localizada na porta da entrada.
Mr. Trevellis se levantou e parou discretamente ao lado dele.
— Deus nos criou em igualdade.
— Do que está falando filho de Oscar?
— Acha que Deus só povoou um único e pequeno mundinho? Todos têm direito a uma missa! Elas morreram naquela...
— Pelo amor de Deus filho de Oscar! — Mr. Trevellis cortou sua fala. — Missa para alienígenas? O que corre em suas veias afinal?
— Provável algo que não corre nas suas Trevellis — e Sean se virou para ir embora.
— Espere Sean! — segurou seu braço. — Obrigado por ter salvado a vida de Umah.
“Sean?” arregalou os olhos sem que ele visse.
A maneira como foi chamado lhe espantou. Era a primeira vez que ele não fora cínico chamando-lhe de ‘filho de Oscar’.
— Devo-lhe uma! — completou o grande homem da Poliu.
— Deve-me uma? — Sean sentiu-se realmente incomodado. — Wow! O que foi que eu não entendi?
Mas Mr. Trevellis nada falou.
“Droga!”, soou por todo o corpo de Sean Queise.
— Por que ela é tão importante assim para você?
— Umah é minha filha.
Sean sentiu um frio percorrer-lhe o corpo todo. Demorou a responder, a respirar também.
— Eu... Eu não...
— Ninguém nunca soube. Umah foi treinada para que espiões psíquicos nunca descobrissem.
— Seus próprios espiões psíquicos, não?
— Outros também.
“Eu?”, pensou Sean de repente.
— Droga Trevellis... Por que arriscou a vida dela?
— Nossos filhos nasceram teimosos.
Sean sabia que ele falava em entrelinhas.
Mr. Trevellis era grande de tamanho e altura; sua pele jambo, seu olhos verdes, seu sorriso frio. Sean só tinha a imagem dele ao adentrar na Computer Co. e denunciar Sandy; não conseguia perdoar.
— Oscar sabia, não? — mas Mr. Trevellis não respondeu. — Oscar sabia! — Sean concluiu. — O desgraçado sabia! — outra vez Mr. Trevellis nada falou. — Por que não posso ler a mente de Oscar?
— Anda tentando? — sorriu cínico.
— Perdendo o sono achando que invado a sua também?
Agora Mr. Trevellis viu o assunto mudar.
— A minha? — olhou para os lados temendo estar sendo vigiado. — Não ‘filho de Oscar’. Nunca perdi meu sono — sorriu-lhe cínico. — Mona Foad nunca foi tudo aquilo que dizia ser. Não soube ensinar...
— Mona amiga é tudo aquilo que dizia e mais, e você sabe — Sean viu Mr. Trevellis encará-lo. — E sou muito mais que ela dizia, e você sabe — Sean viu Mr. Trevellis agora respirar pesado. — E você sabe que ela me ensinou tudo e mais do que dizia, porque você permitiu isso, Trevellis — e Sean viu Mr. Trevellis ameaçar ir embora e ser virado para ele sem que nada o tocasse. — Quem é a serpente-sentinela do lago?
Mr. Trevellis sentiu o impacto da pergunta. Olhou em volta, agora ele, sentindo um frio percorrer-lhe o grande corpo jambo.
— Uma alienígena!
— Wow! — foi irônico. — Quando chegou ao planeta Terra?
— Antes de Cristo.
— Quanta precisão! — Sean viu Mr. Trevellis se abster de comentários. — Onde?
— 37° 58’ 0” N e 23° 43’ 0” E.
— Ah! Atenas!
— Sempre admirei sua capacidade de memória.
— Prive-me Trevellis... — Sean o olhou de lado. Algo naquilo tudo o enervava, e Mr. Trevellis sabia do que ele sabia. Porque Mr. Trevellis sabia que Sean vinha investigando, se envolvendo cada vez mais com ufólogos no mundo inteiro, e que provável Armand Lacreax tivesse razão para com ele. — Quando a serpente-sentinela chegou à Suíça?
— 10-2-5-5; dez mil duzentos e cinquenta e cinco anos.
— Deus... A serpente-sentinela chegou aqui a mais de oito mil anos? Então já estava aqui antes que a École Dubois fosse trazida à Suíça?
— Não sabemos.
— O que liga a tal serpente-sentinela a École Hoteliere Dubois de hoje, Trevellis?
— Um túnel.
— Um o quê? — não era a resposta que Sean esperava com certeza.
— Um túnel debaixo do Lago Léman, ou Lago Genebra.
“Ernest sabia muito mais do que falava”, pensou Sean irritado.
— Existe um túnel que liga o Lago Léman até a École Hoteliere Dubois?
— Umah diz que sim.
— “Umah diz que sim”? Ah! Que ótimo! Umah diz que sim! — riu cínico. — Quantos mais?
— “Quantos mais”, o quê?
— Túneis?
— Sempre achei que Oscar amigo velho tinha genes inteligentes — Mr. Trevellis riu.
— Já disse para não brincar...
— Não estou brincando! É que achei que coisas como conversar com mortos, alienígenas e fazer viagens pelas muitas dimensões fosse ficção cientifica até conhecer Oscar...
— Oscar viaja...
— Ah! Oscar tem poderes assustadores meu querido.
— Não sou seu querido.
— Nem dele — gargalhava. —, já que Fernando foi mais inteligente que toda sua inteligência Sean, já que Fernando foi um hacker de sua época, que sempre...
— Basta Trevellis!
— E vou te dizer mais... — prosseguiu mesmo assim. —, Fernando era um gênio nos computadores! O que você ainda não tinha aperfeiçoado é claro — ria.
— Não brinque Trevellis. Não ando muito suscetível a brincadeiras ultimamente.
Porque Mr. Trevellis sabia que Sean era muito mais inteligente do que qualquer estudo sobre ele que a Poliu fazia. Porque Mr. Trevellis sabia quem ele tinha genes de um Roldman, e criação de um Queise. E por fim, Mr. Trevellis se divertia, era visível.
Depois retornou a rezar temeroso com sua presença tão exposta.
— Não estou brincando! A família Roldman é composta de paranormais, dons que me escapam ao entendimento — o olhou profundamente. — Acredite! Dons que me impactam.
Sean teve medo do que ouviu.
— A serpente-sentinela do lago é a alienígena que Irmandade Simbiótica venera? Que os ufólogos que vi no trem faziam vigília, vigiando a Irmandade Simbiótica que venerava uma serpente-sentinela alienígena? — mas ele nada respondeu. — Droga Trevellis! Os cientistas da Poliu que foram abduzidos vigiavam os ufólogos, que vigiavam a Irmandade Simbiótica, que veneravam uma serpente-sentinela alienígena, que vigiava outras serpentes alienígenas, que abduziram os ufólogos e os levaram para Gobi; cientistas da Poliu que Oscar não sabe, mas que foram secos e agora vagam pelas dimensões a procura de luz, auxiliados por um mito que atravessaram continentes? — e foi tudo quase sem fôlego.
Mr. Trevellis só piscou.
— Você que diz...
— Basta Trevellis! O que aconteceu no Réveillon tem haver com o desastre do trem?
— Não sabemos.
— Mas sabem por que a tal serpente-sentinela do lago não veio buscá-los?
— Não sabemos. Já disse.
Sean teve medo daquilo, da Poliu ficar sem saber lago.
— Deus... Com o que estamos lidando afinal?
— Não sabemos — se repetiu.
— Umah... Sua filha Umah... Ela lhe contou algo mais sobre as tais serpentes alienígenas?
— Umah, minha filha, contou-me muitas coisas.
Sean daquilo não gostou. Sabia que Umah sendo uma Trevellis se tornava um perigo ambulante. Nem se o que ‘contou-me muitas coisas’ significava algo sobre eles dois; porque ter ido para a cama com a filha de Mr. Trevellis fora tão intenso quanto sua inocência sendo perdida por toda Suíça.
— Por que os ufólogos no trem temiam... Deus... — sentiu-se envergonhado de repente com o que fizera. — Por que eles temiam serpentes alienígenas gregas?
— Gregas, egípcias, etruscas, africanas, haitianas. Tudo junto e misturado por onde ela andava, se escondia.
— Wow! 10.255! Acredito mesmo que ela tenha tido tempo para mais que influenciar as tradições locais, até transformar o Império subterrâneo no Hades grego e se tornar o mito Èquidna.
Mr. Trevellis agora o encarou:
— Não devia acreditar no que aquele relojoeiro destrambelhado...
— Basta Trevellis! Por que essa serpente-sentinela é tão importante para essas serpentes alienígenas? É ela quem mantém um equilíbrio entre forças do mal e do bem? — e Sean sabia que Mr. Trevellis nada falaria. — Droga Trevellis! O que realmente liga os Luciedes e os Braushin a essa serpente-sentinela?
— Já disse que não sabemos! — e Mr. Trevellis se levantou para ir embora.
Marcia percebeu que Sean falava algo com um homem de pele jambo e tremendamente encorpado na pia batismal. Andava desconfiada de tudo e de todos. Também enciumada, tremendamente enciumada, não gostando de não tê-lo visto na École Hoteliere Dubois, quando os outros alunos voltaram do passeio de sábado à noite.
Ideias desconexas surgiam e ela sentia que ele lhe escapava.
June e Maykon também perceberam o que Marcia fazia, que olhava para trás o tempo todo vigiando Sean, quando a missa terminou.
— Só mais uma pergunta... — Sean se virou para Mr. Trevellis — O que afinal é o ‘arquivo confidencial #10-2-5-5’?
— 10.255 anos de ações da serpente-sentinela no Planeta Terra, que agora está tentando procriar, perpetuar sua espécie — e Mr. Trevellis saiu.
“Perpetuar?”, Sean estava realmente impactado, com ideias mil passando-lhe pela cabeça.
Os carros alugados por Cybele iam retornar. Sean ia entrar no último quando Marcia se aproximou dele.
— Onde você estava? — e Marcia usou de uma entonação estranha.
— Por que o interesse?
Sean não teve respostas.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
31 de março; 11h30min.
Sean sentia um frio na boca do estômago toda vez que precisava atravessar os portões da École Hoteliere Dubois. Eles desceram dos carros e seguiram para o refeitório onde um chá com vários tipos de pães estava sendo servido.
As aulas haviam sido suspensas até o dia seguinte.
O buchicho era muito grande, conversas paralelas levantaram duas questões importantes para Sean; primeiro o fato de Pitt ser um menino muito fechado, segundo, Louis seu vizinho de quarto contou para uma rodinha que Pitt voltou as duas últimas noites de outro quarto, muito machucado, gemendo muito à noite. Louis até pediu para ajudá-lo, mas Pitt disse que havia caído da janela quando foi pegar um papel que voara; Louis achava que ele não havia caído, achou que ele havia sido jogado.
Marcello alegou tomar sonífero e nada ver, nunca. Pediu inclusive que sua matrícula fosse cancelada, partiria após ser liberado pela polícia.
— Por favor, Srta. Cybele... — enervava-se o policial quando se aproximaram. —, estou fazendo o meu trabalho. Fui mandado aqui para fazer perguntas e vou fazê-las.
— O prefeito vai saber disso! Isso é um ultraje! Meus alunos são pessoas ricas, importantes na projeção mundial...
Sean se lembrou de olhar em volta, não viu os Luciedes na missa nem durante o chá servido.
— O prefeito Human sabe sobre o que vim fazer aqui. Conheço a sua autoridade nessa cidade e o quanto de poderosos tem em suas mangas, Mademoiselle. Não viria até aqui sem respaldo. Temo por meu emprego — proferia o policial irritado.
Já Sean não se surpreendeu com a notícia.
— Não sei do que está falando, policial intransigente — Cybele se empertigou autoritária. — Apenas acho que meus alunos estão abalados demais para ouvir coisas ‘vide de sens’.
“Incoerente?”, pensou Sean Queise outra vez percebendo que a vida humana para Cybele Dubois era totalmente sem sentido, provável sem valor também.
— Eu consegui o que me pediu... — sussurrou Maykon atrás dele.
Sean só esticou a sobrancelha para o amigo.
— Por favor, todos! — falou Cybele sem querer ter falado.
Todos ficaram em silêncio, se virando para ele. Maykon não insistiu mais e se afastou de Sean para não chamar atenção.
O policial, um homem gordo e perfumado, se aproximou de todos.
— Bom dia! Eu sou o policial John Negasah, e queria perguntar...
— Por que Pitt demorou em pedir socorro se estava sujo de fuligem? — questionou Sean, fazendo todos pararem para ouvi-lo. — E onde afinal tem fuligem nessa escola?
O policial mal teve tempo de assimilar as perguntas.
— Como é que é?
— Nós o encontramos de madrugada, caído na cozinha — completou Mary Ann olhando Sean de uma forma que mais parecia perguntar como ele poderia saber aquilo, se ela e Elisa haviam arrastado ele até o hall de entrada, e só chamado uma ambulância de tarde.
Mas Cybele percebeu algo.
— E o que faziam na cozinha de madrugada?
— Por que Pitt não pediu socorro? — insistiu Sean. — Ele vinha de onde já que não há fuligem na cozinha?
— Como ele vinha de onde? — correu Cybele a perguntar. — Por que a insistência Montebello?
— Porque essa escola é extremamente limpa, mas não vemos empregados aqui. Porque essa escola tem fachadas, mas ninguém vê quem as modifica. E porque essa escola tem fuligem num teto, mas ninguém tem acesso a ele.
— Escola limpa, que ninguém limpa? — Neide olhou Sandra. — Não tem empregados aqui?
— Nunca vi nenhum — respondeu Sandra.
— Nem eu vi — completou Eunice.
— Nem eu vi — completou Charles também.
— Nem fachadas que ninguém vê quem as modifica — falou Cristina confusa.
— E como assim um teto que ninguém tem acesso? — indagou Adelfo ao fim.
E todos olharam para Sean sem entender o que ele falou, mas Cybele sim. Ela agora sabia quem Sean Montebello não era, e aquilo chegou até ele que sorriu satisfeito.
— E onde Mademoiselle estava para que seus alunos não fossem lhe chamar? — questionou o policial para Cybele.
— Não fosse me chamar? — Cybele ainda estava tão horrorizada com o verdadeiro Sean que as ideias pulavam na sua cabeça. — Eu não... Eu... Eu não estava aqui.
— Abandona seus alunos ricos e influentes na projeção mundial, sozinhos? — enfatizou o policial.
— Eu... Vou rezar todos os sábados à noite. Eles não tinham permissão para sair da escola.
— Alguém saiu? — perguntou o policial olhando todos que nada responderam. Ele anotou aquilo. — Então... Quem encontrou o garoto?
— Foi Elisa! — apontou Mary Ann.
Elisa ficou furiosa.
— Sua intrometida! Você estava comigo já que me seguia.
— Por que ela lhe seguia Mademoiselle?
— Porque eu ia... — e Elisa olhou Sean lhe olhando. —, fazer um lanche.
— A autópsia diz que o garoto Pitt morreu entre meia-noite e duas da manhã. Por que só chamaram a ambulância de tarde?
— Nós o arrastamos até o hall e voltamos a dormir.
Um ‘Oh!’ correu ali.
— Encontraram um colega de classe caído, sujo e foram dormir?
— Estávamos sonados — respondeu June.
— “Sonados”? E por que estavam sonados...
— Chega June! — Elisa se alterou e o policial viu todos olhando June irritados.
Viu que havia algo ali.
— E por que todos estavam sonados, Mademoiselle June? — e o silêncio. — Quero reiterar a todos que sou um homem da lei e mentir para a lei traz consequências...
— Porque saímos sábado à noite.
— June!!! — gritaram todos ao mesmo tempo.
Cybele nem ouviu aquilo. Ideias sobre Sean, e agora Antônio ainda pulavam de um setor a outro da sua cabeça.
— A Elisa demorou em chamar a ambulância porque temia que a Cybele descobrisse que saímos — entregou Mary Ann de vez.
— Ora sua desgraçada... — avançou Elisa sendo contida pelo policial.
Elisa e Mary Ann foram caladas sob fortes olhares da diretora que voltou ao normal.
— Quem saiu afinal? — perguntou o policial a todos.
— Eu, Adelfo, Mitti, Najla, Ema, Cristina, Louis, Eunice, Monica, Charles, Neide, Elisa, Friedrich, Hübinjer, Hans, June, Sandra, Silvya, e Maykon — Mary Ann falou apontando e cada um foi erguendo sua mão na confirmação.
— Vão receber uma advertência e mais uma saída estão expulsos.
— Mas diretora? — ia Mary Ann falar.
Sean gelou, não podia ser expulso. Cybele parecia ter adivinhado os pensamentos dele, e se virou logo o questionando.
— E você Montebello?
— Estava comigo! — afirmou Marcia, antes que Sean abrisse a boca.
Sean e Maykon arregalaram os olhos sem Cybele ver.
— O quê?! — gritou a diretora. — Já não falei que não podiam ficar juntos?
— Ninguém falou que nós não podíamos conversar como amigos na beira da piscina aquecida — e mudando o timbre de voz, Marcia falou. — Era sábado, lembra-se? Nosso horário era livre — terminou a frase fazendo Sean ver que mais uma vez Cybele se controlou perante as afirmações de Marcia.
Sean lembrou-se da Madame Michelina controlando o neto Lück e não entendeu porque tal associação.
— Vão para seus quartos! — falou Cybele notoriamente abalada fazendo Sean voltar a si.
Marcia passou pelo policial e esbarrou deixando cair tudo o que ele carregava nas mãos, no chão. Ela se abaixou para ajudá-lo.
— Obrigado, Mademoiselle — respondeu educado. — E agora, por favor, Mademoiselle Cybele, aconselho chamar seu advogado.
Cybele fuzilou o policial e anunciou:
— Amanhã as aulas voltarão ao normal — e se retirou atrás dos Luciedes.
Sean nada falou, nem agradeceu a Marcia. A viu ajudando o policial pegar os papéis e tomou o rumo das escadas sumindo para seu quarto de número 5-5.
“5-5” lembrou-se da cabine do trem, dos mortos, dos vivos, de serpentes alienígenas, e de céu e o inferno, tentando entender o que fazia ali afinal.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
31 de março; 21h21min.
Quase ninguém conseguia dormir. Sean também se debatia na cama acordado, precisava saber como Pitt chegou ao teto e caiu como ele na cozinha, para morrer vazio, seco. Os únicos que haviam ficado além de Pitty na École Hoteliere Dubois sábado a noite foram Nathan e Marcello; precisava conversar com eles. Mas antes tinha que fazer algo.
Sean ouviu Cybele subir e saiu sorrateiro do quarto, visitando a porta de alguns quartos a fim de ouvir se estavam acordados, e em alguns quartos entrou e saiu rapidamente. Marcia também não dormia, olhava Mitti que começava a sonhar. A facilidade com que ela dormia a irritava. Levantou-se e viu Sean, entrar e sair de alguns quartos, porém do dela, ele não se aproximou, descendo as escadas e sumindo. Marcia olhou para a colega de quarto Mitti outra vez e entrou no banheiro, colocou a lingerie que comprara, colocou o colar de pérolas, e seu corpo brilhou no espelho pelo creme que passara.
Já Sean havia atravessado toda a École Hoteliere Dubois em silêncio. Entrou na biblioteca e deparou-se com o quadro de Aline Dubois. A imagem da estação de trem veio à sua mente; os três homens usando capas de cores berrantes, o beijo roubado. Ele apostava que aquilo ocorrera no Réveillon, na data em que Aline fora morta. Pegou um livro policial e sentou-se para ler, para então ver Mona Foad sentada à sua frente.
Sean ergueu-se no susto.
“Não estou aqui!” foi o que ela falou.
— Achou que eu não perceberia?
Mona percebeu a irritabilidade dele.
“E sabe que não estou porque anda fazendo o mesmo!”
— Temerosa de me ver teletransportando Mona amiga?
“Não sei por que acha que eu ficaria temerosa com algo que sabia que você fazia”
— Por que nunca foi honesta comigo? Por que nunca foi...
“Chega Sean! Não vim até aqui para perder tempo com perguntas das quais, você sabe a resposta” foi dura.
— Vá embora Mona!
E Mona sentiu aquilo.
“Você sabe que os riscos da projeção são tão grandes quantos os passos que vem tomando”.
— Passos?
“Na sua expressão mais elevada, o sexo é a experiência espiritual mais importante entre duas pessoas no mundo físico, Sean”.
Sean a encarou sabendo de alguma forma que Marcia Toledo se aproximava da escada, chegava ao corredor, da porta que ia abrir; e que vinha bela e perfumada para ele, para encontrá-lo.
— Acha que tenho medo dela? — falou Sean para uma Mona ainda projetada.
“Uma vez, o espírito Emmanuel disse que a sexualidade é um doce mistério, se não víssemos nele as realidades da reencarnação e da afinidade”.
Sean teve medo do que ouviu, do que fazia da promiscuidade a que fora levado, e a porta não foi aberta como deveria.
— Insônia? — falou uma voz sensual e arrastada por detrás de sua poltrona.
Sean arregalou os olhos azuis e viu a porta ainda fechada, e Mona com a projeção cancelada.
— Cybele a deixou sair do quarto, Marcia?
— Deixou você? — Marcia saiu de detrás da poltrona; laços, roupa, maquiagem.
— Lindas pérolas... — sussurrou encantador.
— Pareço antiquada? — enrolou os dedos nas pérolas a fazer voltas e mais voltas, a balançar o corpo para que as pérolas se movimentassem com graça.
A imagem da Senhora alemã com colares de pérolas no trem do qual nunca viajou, se desenhou em sua mente tão nítida como Mona Foad fora até segundos atrás.
— Era ela... — escapou.
— “Era ela”?
— Era quem? — Sean acordou do torpor.
— Eu perguntei primeiro — riu se insinuando toda; e Marcia era pura mensagem corporal. — Quem é ela?
— Não sei...
— Não sabe?
— Não! Porque eles morreram.
— “Morreram”? Você está me assustando.
Sean a olhou outra vez.
— Não vê? Não foi um erro temporal. Ela sabia o que fazia.
— Ela sabia? — Marcia achou graça de tudo aquilo. — Sean... — e riu nervosa vendo que não havia graça em tudo aquilo. — Você decididamente não está bem! — ia sair, mas Sean se levantou e a puxou pelo braço.
— Espere... — e Sean a beijou.
Um beijo longo. Minutos incontáveis se olhando, tocando, sentindo a vibração do toque, do momento. Marcia o olhou. Sean a olhou. Marcia ergueu a perna e uma penugem suave, outra vez elétrica caminhou pelas pernas dele. Sean sentiu o subir e descer, o pé dela delicado, lhe explorando. Ele sorriu-lhe e Marcia o beijou. Sean voltou a olhá-la e agora as mãos dela, atrevidas, caminharam pelas costas dele, pelo tórax; caminhando. Ela o sentou outra vez na poltrona como se o dominasse. Esticou uma perna e outra e sentou-se nele. Sean sentiu-se perdido, apaixonadamente perdido.
E tudo era estranho; o amor, o tesão, o desejo incontrolável por aquela desconhecida, pela mulher que o desprezara, que o enganara, que o queria, agora desejava.
Os lábios se tocaram. Libidinosas maneiras de se sentarem em meio aos beijos atrevidos, sensuais, cheios de linguagem.
Sean voltou a olhá-la e Marcia se tornou mais atrevida ainda no que sua mão invadiu-lhe a calça do pijama. Todo o perfume doce do corpo dela alcançou suas narinas; o perfume de rosas brancas de Sandy, o perfume forte e francês de Kelly, outros perfumes de outras mulheres.
Sean recuou.
— O que foi agora? — perguntou ela, devagar.
Ele teve medo de responder e Marcia não se deteve por aquilo, pelos perfumes e medos que tomavam conta dele, em meio ao silêncio que os dominou durante a queda da seda do penhoar florido que ela usava, que alcançava o chão.
Sean permaneceu sob controle, mesmo sem saber se tinha controle algum e ela não se intimidou mais uma vez, soltando as presilhas da lingerie finamente bordada, comprada para ele, mostrando o par de seios duros que o pediam, se aproximavam.
“A sexualidade é um doce mistério” ecoou por todo ele.
Sean lambeu-lhe os seios que roçava a boca.
— Ahhh... Ahhh... Ahhh... — era Marcia quem gemia, se atrevendo ir mais longe ainda, algemando-o.
— O que... — Sean acordou, achou ter acordado, olhou um lado e outro e sentiu-se perigosamente controlado, com uma fina fumaça escapando de sua boca, e as paredes, os livros, o lustre de cristal congelaram.
Sean não entendeu onde estava, mas os muito ali com eles também nada entendiam, porque toda biblioteca havia sido tomada de homens, mulheres e crianças; estranhos também, mortos. Ele engoliu aquilo apavorado, não controlava mais sua libido nem seus dons paranormais. Uma coisa sabia, porém, estava entre mortos, no meio de uma biblioteca, onde o gelo tomava conta.
— Sean... — a voz sussurrada de Marcia o fez voltar.
— Ahhh... — Sean sentiu dor no que voltou ao corpo que era tocado por Marcia que não ouviu os muitos passos no corredor. — Não Marcia... Não...
— Não diga não, Sean. Estou fascinada pelo seu corpo nu.
E Sean se olhou, não entendendo como ela tirara sua roupa, como ele não sentira aquilo, como não controlava o suor do pavor de não ter previsto que ela o dominaria, em meio ao gelo que transformava a biblioteca. Também não entendeu como Marcia se decidira por também ficar nua, em meio aos carinhos atrevidos, as mãos algemadas, o beijo engolido e a corrente de energia baixa percorrendo todos seus corpos expostos a Marcello, Adelfo, Louis, Charles, Friedrich, Hübinjer, Hans, Nathan e Maykon, que estava totalmente em desacordo com aquela vingança, os olhando.
— Ahhh!!! — Marcia deu um grito se jogando ao chão, tentando alcançar suas roupas quando se virou friamente para encarar Sean que estava tão congelado quanto tudo a sua volta.
Marcia saiu pelos corredores escuros sem querer olhar um Friedrich irado, que também saiu seguido pelo irmão e pelo primo, para então todos irem embora. Sean ficou lá, em total estado de choque, dependurado por algemas, nu, preso a poltrona da biblioteca que congelava, sabendo que de alguma forma não ficou feliz com o que fizera.
18
Vilarejo de Gstaad; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 28’ 27” N e 7° 17’ 10” E.
01 de abril; 07h07min.
Sean havia passado um rádio da cabana onde adormecera numa cama dura, sem travesseiros, com muito frio, para que Oscar o encontrasse no portão da École. Estava decido não mais voltar à École Hoteliere Dubois. Dirigia em alta velocidade o Volvo azul de Oscar pela estreita estrada que levava a Passo do Pillon, Col du Pillon, em Gstaad; um colo de montanha entre o Cantão de Vaud e o Cantão de Berna.
Próximo de Gstaad, e a 1546 m de altitude, havia uma estação para a prática do esqui que levava seus alpinistas pelo teleférico do Glaciar des Diablerets.
— Por que mudou de ideia? Por que vai abandonar a investigação no meio? — falava Oscar, nervoso, ao seu lado.
— Roda de Samsara.
— Como é que é?
— Samsara, Oscar, palavra sânscrita que vem da combinação de ‘Samsa’ que significa ilusão e ‘Ra’ que significa movimento. É a ilusão em movimento, representada de forma cíclica; por isso a roda de samsara, o sentido de perambulação, do lugar em que vivemos no momento, o lugar que abandonamos quando vamos para o nirvana.
— Está falando das viagens astrais que Mona lhe ensinou?
— E acha mesmo que Mona me ensinou algo? Talvez ver os mortos? — Sean cortou qualquer explicação maior. — Porque vejo Oscar, vejo as almas perdidas que gritam por socorro num mundo que foge a minha compreensão. Talvez num mundo alienígena, de almas humanas que sofreram nas mãos deles.
Oscar teve medo daquilo, Sean enganara Mona, Mr. Trevellis e ele próprio se desenvolvendo sem controle.
— Meu Deus... Meu filho... O que você fez com você mesmo?
— Não sei Oscar. Só sei que cansei! — respondeu bruscamente. — Está bem? Cansei e não quero mais me envolver!
— Vai deixar mais inocentes morrer?
— Morrer?! — Sean se virou tão bruscamente que lhe escapou o pé do acelerador. — Quer que eu me sinta culpado pelas mortes do mundo?! — gritava descontrolado. — Já não basta vê-las?!
— Acalme se Sean!
— Acalmar-me?! — berrava. — Tenho que me sentir culpado até quando? O suicídio da minha noiva não foi suficiente para eu pagar em preço alto pelo projeto de Spartacus?
— Foi decisão de seu pai colocá-lo na construção de Spartacus.
— Decisão que você apoiou.
— Apoiei sua mãe, que o queria um Queise.
E Sean sentiu aquela frase como nunca.
— Como pôde...
— Pude o que? Ver tudo acontecer à minha volta e nada poder fazer?
— E nada fez Oscar? Nada? Porque abandonou a minha mãe grávida! Porque poder fazer coisas acontecerem, era a única coisa importante para você.
E Oscar se virou violentamente para ele.
— Não abandonei sua mãe grávida. Foi decisão dela ir embora com você no ventre. E foi decisão de Sandy roubar Spartacus, não minha — porém argumentava sem alterar o timbre de voz, sem se alterar.
— Mas Sandy paga Oscar, Sandy paga pelo suicídio vagando entre um mundo e outro.
— “Vagando entre um mundo e outro”? Por que tudo em você soa bizarro? — Oscar soltou um som que mais parecia puro desanimo.
O carro deslizava por estradas escorregadias quando Sean meteu o pé no freio e ambos se projetarem para frente. Oscar escorregou-lhe um olhar frio não gostando das atitudes impulsivas dele.
— Por que depois do ataque a Umah Trevellis, você não queria me deixar continuar? E agora que não quero, você quer? Vamos bater de frente para o resto da vida?
— Não pode parar essa investigação por causa da Computer Co..
— O que quer dizer com isso?
— Fechou um contrato com a Hautch Propieté e não sabe o real envolvimento de Leopold Braushin nesse jogo.
Sean mal conseguia pensar, desceu do carro e olhou em volta, o belo glacial. Depois enfiou a cabeça pela janela falando para Oscar que continuava dentro do carro.
— Foi por isso que me envolveu, não foi? Você sabia sobre Umah Trevellis envolvida com os Braushin, sabia sobre os Braushin envolvidos com serpentes alienígenas, e sabia sobre a Computer Co. envolvida com Hautch Propieté, envolvida com a serpente-sentinela do lago, não foi?! — berrou.
— Eu não sabia que Umah estava envolvida com os Braushin! Ninguém dentro da Poliu sabia sobre o paradeiro de Umah — Oscar falou como que sozinho. — Trevellis a...
— A preparou!!! — gritou nervoso e descontrolado. Entrou no carro e ficou bufando. — E a preparou para a família Roldman não descobrir, não foi? — e Sean engatou a marcha e prosseguiu pela estrada que levava até a estação de esqui, em alta velocidade, em silêncio.
Oscar cerrou os olhos e os abriu. Não conseguia mesmo se comunicar com Sean. Talvez não fosse só Fernando a ter dificuldades com ele.
— O que Trevellis lhe disse?
— Nada!
— Chega Sean!
Sean respirou pesado olhando o painel do carro.
— Por que eu não sabia quem Umah era? Por que meus poderes brecaram isso se eu a tive tão próxima? Tão descuidada?
— A teve... — e Oscar não completou com medo do que ia completar. — Seus poderes não brecam nada; pessoas brecam seus poderes. E Trevellis fez questão de ensinar suas três filhas a bloquear os espiões psíquicos.
— Espiões psíquicos que ele inventou.
— Trevellis não inventou nada. A parapsicologia afirma que os especiais, com dons especiais, estão por aí, pelo mundo, há muitas gerações. Alguns confundidos com deuses.
— Deuses que controlam o raio, a chuva, o vento, a vida, a morte e as almas? — Sean viu Oscar olhar-lhe de lado.
— Se você diz!
— Sim! Digo! Deuses que controlam planetas, galáxias, universos inteiros, e até deuses que controlam esses deuses que controlam os planetas, galáxias, universos inteiros; ‘deuses astronautas’ — Sean sabia que Oscar sabia que ele o testava que sabia que fora feito para aquilo, para se comunicar com alienígenas.
“Mitos!”, e Sean teve medo de quem ele próprio era.
Estação de Esqui Col du Pillon, Gstaad; Cantão de Vaud.
46° 21’ 25” N e 7° 12’ 56” E.
01 de abril; 07h33min.
Chegaram ao estacionamento da estação de esqui e Sean saiu do Volvo azul. O frio cortava-lhe as mãos, e as escondeu dentro do casacão de microfibra de seda com o emblema da escola.
Suas botas afundavam na neve e o ar gelado fazia cortar-lhe os lábios.
— Inferno! — Oscar desceu do Volvo ao ver que Sean não voltava, o encontrando com a cabeça enterrada nas mãos, sentado numa mesa de pedra usada em piqueniques.
Ambos se olharam.
— Eu preciso lhe falar sobre o trem...
— Sean querido...
— Já disse que não sou seu querido! — ele sabia que Oscar não gostava daquilo.
— Prossiga! — exclamou mais frio que o frio.
— Quando me afasto das energias que circundam a École Hoteliere Dubois, eu consigo... — e parou. —, consigo acessar máquinas, computadores e mais... — viu Oscar lhe olhando, congelando também. — Eu acessei o sistema de registro de operação das locomotivas, a caixa preta. Investiguei os destroços, e o computador de bordo registrou uma parada de emergência após o freio ser acionado. O trem então parou por dois minutos na Gare de Lausanne às 11h58min, e como Armand dizia, o trem sempre partia à exata meia-noite. Que seguiu para Montreux, quando cem metros adiante explodiu a meia-noite em ponto.
— Trevellis me garantiu que não havia registros sobre a explosão.
— Não havia registros! — Sean encarou Oscar. — Estava na mente do Inspetor de cabines!
— Acessou a mente de um morto?
— Já disse que não morremos?
— Chega Sean!
— Eu saí de Nyon para Zermatt onde o Inspetor de cabines avisava que não iam parar em Lausanne, Oscar. Mas o trem parou. E alguém desceu. E só levou dois minutos — Sean viu Oscar sem saber o que falar. — Eu devia tê-las ouvido não Oscar? As vozes que falavam para que eu não fechasse o maldito contrato? Que falavam sobre mortes... — e parou no que suas sinapses o levaram ao chão.
— Sean? — ia auxiliá-lo, mas Sean ainda tonto ergueu a mão e pediu que ele não o tocasse.
Oscar obedeceu.
— O Inspetor de cabines... — sentiu-se como se uma tonelada houvesse descido sobre sua cabeça. — Ele acionou o freio por algum motivo... — Sean sentiu que tudo girava, e não era metafórico. —, e o trem parou em Lausanne para que eu descesse.
— Meu Deus Sean...
— E fui eu quem desceu em Lausanne, Oscar! Naqueles dois minutos! Porque o trem seguiu sem mim, levando meu notebook e o contrato no cofre! Para explodir a meia-noite! — Sean outra vez ergueu a mão no que Oscar ia falar. — Eu liguei ontem para o hotel de Nyon, que confirmou que eu fiz check in às exatas 23h58min do dia 02 de março, no mesmo espaço de tempo que saí do trem após o freio ser acionado, no mesmo espaço de tempo que pisei a Gare de Lausanne, no mesmo espaço de tempo que o trem partiu de Lausanne para explodir a meia-noite.
Ambos se olharam.
— Você se teletransportou da explosão de Lausanne para Nyon? — Oscar viu que Sean não ia responder. — Você se teletransportou Sean?!
— Eu não sei... Mas me despedi de Armand, dos ufólogos, da mulher de perolas, do pai e a garota gelada, do casal de italianos, do...
— Chega Sean! Como você sabia que o trem ia explodir?!
— Não grite! Eu já disse que não sei, mas estou sob pressão a ponto de sair do sério e provocar um poltergeist.
— Polter... Oh! Meu Deus...
— E não é só isso.
— Não é só isso? Jura Sean?
Sean engoliu a seco.
— Ela também estava lá.
— ‘Ela’?
— A serpente-sentinela do lago também estava lá, no trem, me observando.
— Por quê?
— Não sei, mas ela me observava, e me avaliava também.
— Prossiga... — Oscar sentiu que sua cabeça também ia explodir.
— No dia seguinte à minha estadia em Nyon, o quanto eu sei, fui até a estação de trem. Lá, tomei o trem com a mulher de perolas, o pai e a garota gelada, o casal de italianos, o inspetor de cabines e o comissário de buffet... — e parou.
— Sean?
— Eles tentavam falar Oscar, materializavam ectoplasma tentando falar, contar que estavam todos mortos, que ela não os havia buscado porque eu saí daquele trem, porque minha atitude mudou a rota de suas vidas, porque os deixei lá para morrer, porque fiz algo que... — e Sean fechou os olhos. — Eu fiquei vendo aquela coisa borrachenta saindo da boca deles, e o trem de repente voltou a andar. Quando cheguei à cabine ela estava congelada, explicando que aquela viagem não me pertencia mais porque eu havia saído ileso do acidente.
— Porque se teletransportou antes.
— Sim! Porque eu havia feito algo que obrigou o Inspetor de cabines acionar o freio dois minutos antes, Oscar... — se arrepiou todo. —, e quem desceu fui eu. Eu Oscar! Porque eu sabia que ia morrer — Sean viu Oscar se arrepiar. — Porque os Luciedes danificaram a linha do trem para que o empresário Sean Queise morresse, porque sabiam que a Computer Co. ia terminar o contrato mesmo comigo morto, porque Kelly apoia minhas decisões, porque ela também me ama — e Sean viu Oscar erguer o sobrolho. — Então me pergunto, por que eles queriam o empresário Sean Queise morto? Respondo, porque sabiam que Sean Queise acreditava em serpentes alienígenas, que os ufólogos me esperavam para ver o serpentário agora que estavam alinhados, e que a serpente-sentinela do lago queria algo comigo — Sean viu Oscar abrir a boca e ficar naquilo.
— Você...
— Eu o que?! Eu o que?! — berrava descontrolado. — Não sou um Queise?!
— Eu só ia dizer que não pode achar que vai salvar o mundo com seus poderes — Oscar levantou-se furioso, e furioso mais que tudo, pelo fato dele cobrá-lo, dele ter seus dons, de Mr. Trevellis chamá-lo de ‘dons que me escapam ao entendimento’.
— Nunca quis saber como a coisa funcionava não Oscar? Com medo que dissessem que somos uma mentira, que os Roldman são um monte de mitos.
— Não se atreva!
— Me atrever a que? A dizer que você preferiu deixar para ‘Trevellis amigo velho’ dizer, e dizer que também é amigo velho de meu pai que deixou a Poliu me desenvolver?
— Não se atreva a falar de Fernando assim... — e Oscar calou no que Sean ergueu a mão e todos os bancos enterrados em concreto e neve ergueram e à neve voltaram.
Sean se foi e Oscar ficou lá olhando a neve e a terra sob ela mexida, deslocada.
Respirou profundamente e foi atrás dele. Encontrou Sean comprando algo.
— Duas passagens, por favor? — pediu Sean ao vendedor na cabine.
— Por que se enerva toda vez que defendo Fernando?
— Não quero falar sobre isso! — e Sean se foi.
Oscar ficou mais furioso ainda. Olhou para os lados e percebeu a estação de esqui vazia se não pelo vendedor de passagens no guichê embaçado usando um gorro verde abacate.
— Aonde vamos?
— Passear de funicular! O que mais se faz numa Suíça nevada?
A estação estava realmente vazia se não talvez, pelos controladores das máquinas. O frio era de rachar a pele e Oscar comprou dois canecos de chocolate quente na máquina do restaurante. Sean entregou as passagens para o mesmo vendedor, um Senhor de muita idade que usava um gorro verde-abacate que dava voltas ao redor do pescoço.
Os dois entraram quando o funicular se colocou em movimento começando a subir com apenas os dois dentro.
— Como conseguiu desenvolver-se Sean?
— Consegui?
— Como Sean?
— Não sei como. Ainda não sei como, está bem? Mas vou descobrir em breve ‘como’ porque coloquei Friedrich para fora do quarto quando desejei que ele saísse, porque virei os Luciedes de ponta cabeça e me movi na neve com Maykon antes mesmo dele perceber que saímos do portão; e deve ser da mesma maneira como faço quadros e bancos de concreto saírem do lugar ou faço meu corpo se mimetizar a neve.
“Se mimetizar a neve”, Oscar balançou a cabeça totalmente desorientado.
Havia amado e perdido Nelma, tido um filho e o feito paranormal, o abandonado para Fernando de quem era amigo e confidente, e o admirava; e errara mais que tudo ao fechar os olhos ao que Mona e Mr. Trevellis faziam.
Oscar ficou olhando a Suíça se afastando de seus pés, se odiando por aquilo tudo.
— Você tem razão — a voz de Sean tomou conta do funicular vazio. — Preciso voltar e mostrar àquela gente morta que estão mortos, que estão presos em alguma dimensão paralela, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e pedir perdão porque sou culpado deles não terem sido levados pela serpente-sentinela que protege lagos e infernos.
— Você não foi...
— Fui! E fui porque sei que Sandy também vaga por lá... — e não teve coragem de continuar. — E preciso voltar porque tenho que entender o porquê da serpente-sentinela do lago querer fazer apport.
— “Apport” o quê?
— Apport ou Aporte em parapsicologia é o nome dado a um fenômeno da passagem da matéria através da matéria; teletransporte Oscar, como Mona faz, como eu faço. Mas o apport manifesta-se diferente, porque vai além do transporte de si, porque ele pode transportar algo grande, complexo, como um mundo inteiro.
— Que mundo inteiro?
— Eu consegui teletransportar Maykon, comigo, do portão até a frente da École, mas não posso atravessar o tempo, voltar nele; não levando meu corpo com ele. Isso está além da nossa capacidade. Mas a serpente-sentinela do lago consegue fazer apport de tempo, voltá-lo e modificá-lo, e transferi-lo.
— Tenho medo de perguntar transferir o que.
— O mundo dela, Oscar.
— Acha que ela está tentando trazer o mundo dela para cá? Por quê? Ela já está aqui há 10.255 anos. Por que agora?
— Se pudesse responder a isso talvez entendêssemos o que ela quer.
— Os agentes...
— Eles descobriram durante aquelas vigílias, que essa sociedade simbiótica acreditava que ela está querendo procriar, perpetuar sua espécie. Mas há algo que a impede, que a impediu todos esses anos.
— E trazer o mundo dela ajudará em que?
— Não sei, mas o apport refere-se a um objeto material, nunca de grande tamanho, que atravessa, literalmente, a barreira física e reaparece noutro lugar. Não sabia que podíamos atravessar grandes coisas, mas entenda, não há buracos negros, nem buracos brancos, nem wormholes. Não há entradas nem saídas, mas se ela puder fazer grandes objetos atravessarem o tempo-espaço, então...
— Acha que...
— Acho que não sei. Só sei que nada sei. Mas a serpente-sentinela do lago plasmou aquela estação para me mostrar que eu me tirei daquele trem. Ela me fez reviver tudo aquilo; a passagem, a viagem, o trem parando, todos mortos.
— Então ela pode atravessar dimensões, plasmar algo, mas não pode procriar?
— Acho que é algo mais complexo Oscar, muito mais complexo e bizarro porque a serpente-sentinela está acima de todos os mitos.
E Oscar olhou a Suíça cada vez mais distante e a montanha tomada de neve se aproximando deles.
— Por que insistiu em vir até aqui?
— Porque não tiveram tempo de colocar escutas no funicular — e entregou um pequeno gravador de vozes que ele encontrou no Volvo de Oscar.
— Você sabe quem nos vigia?
— Homens mandados pelos Luciedes que começam a desconfiar de Sean e Antônio Montebello.
— Inferno!
Os dois ficaram olhando a Suíça de cima, cada vez mais bela, cada vez mais branca.
— Mas há algo ainda maior me intrigando, Oscar, porque Aline realmente fugia dos três Luciedes com capas berrantes no Réveillon, porque Aline realmente fingiu beijar Otto Miller na estação de trem para disfarçar.
— Não estou entendendo.
— Acredite! Nem eu! Porque quando a serpente-sentinela do lago plasmou a estação também me pediu para beijá-la.
— Verdade! Disse que beijou Aline na estação.
— Também achei, mas Aline Dubois tinha olhos verdes e a Aline Dubois da estação tinha olhos verdes ‘brilhantes’ — Sean se divertia.
— Por que está se divertindo? Os Luciedes estão atrás de você e você está encrencado com Fatto e o Q’Animal.
— Você me encrencou, diga-se de passagem — e voltou a sorrir. — Mas isso me diverte sim, por que uma alienígena que está no Planeta Terra há exatos 10.255 anos, fazendo ações que impactam Trevellis precisaria palmar uma estação? Plasmar-se em Aline?
— Porque tudo é ilógico.
Sean voltou a sorrir.
— Sabia que Camille Flammarion, o grande astrônomo e amigo de Alan Kardec escreveu Os Mundos Imaginários e os Mundos Reais, contando que nosso mundo não era o único habitado? Flammarion dizia que se nos transportarmos além de nossa nebulosa, veríamos que nos cercam milhões de sóis e um número ainda maior de planetas habitados.
— E você usa seus dons para isso? Para procurar os ‘além de nossa nebulosa’?
Sean o encarou antes de responder.
— Na época de Allan Kardec, a fenomenologia estava intimamente ligada ao espiritismo, e até grande mágicos e ilusionistas como Harry Houdini era chamado para desmistificar as fraudes, que eram muitas. Os espíritos se tornaram o hit do momento, e mesas girantes e médiuns produzindo ectoplasma de pessoas mortas, se espalharam pela Europa; pela Suíça também. E onde estavam esses estudiosos estavam acontecimentos bizarros, prováveis estudados de perto pela serpente-sentinela do lago, que por sua vez era estudada de perto por sociedades iniciáticas como a família Dubois, que há muito veneram tais irmandades.
— Serpentes alienígenas...
— Também. Talvez espíritos de serpentes alienígenas também. Porque até o pensador espírita francês Léon Denis, Allan Kardec, acreditava que o mundo dos espíritos não era uma dimensão estática, estagnada, nem parada no tempo e no espaço. Dizia que as almas dos mortos não eram entidades vagas, indefinidas, como alguns acreditavam, pois, atingindo as altas camadas da hierarquia espiritual, elas se convertiam em poderes notáveis, em centros de atividades e de vida, capazes de exercer uma ação sobre a humanidade terrestre. Ilógico, não? — Sean voltou a sorrir. — Allan Kardec dizia que durante os conflitos bélicos em guerras, os espíritos assistiam aos combates e amparavam cada um dos exércitos ‘lhes estimulando a coragem’. Os deuses de cada povo eram simplesmente espíritos representados por alegorias.
— Acha que a serpente-sentinela do lago é uma alegoria que promove a guerra?
— Não! Mas essa serpente-sentinela quer promover algo que os Luciedes e os Braushin não querem que ela consiga.
— Como pode saber se tudo dentro da École Hoteliere Dubois atrapalha seus dons?
— Algo que Armand disse, algo que nos seria explicado mais adiante — e Sean saiu no que o funicular deu um tranco e parou na base da estação de esqui acima do Vilarejo de Gstaad.
Oscar foi atrás dele sentindo muito frio.
— Acredita que seus dons lhe estão guiando Sean querido?
Sean teve mais medo daquela pergunta do que tentar responder.
— Charles Richet, que cunhou o termo ‘Metapsíquica’ para designar os fenômenos e experimentos em pesquisas psíquicas, definiu-a como uma ciência que tem por objeto a produção de fenômenos, mecânicos ou psicológicos, devidos a forças que parece serem inteligentes ou a poderes desconhecidos, latentes na inteligência humana; ilógico não?
— O que?
— Achar que sempre fomos paranormais. E que nossa evolução, em algum momento, tolheu-nos desse acesso — e o funicular deu um aviso sonoro avisando que iam descer. Sean e Oscar voltaram para dentro iniciando a descida. — Platão chamava de ‘Mundo das ideias’, um mundo sensível, diferente do mundo concreto em que vivemos, um ‘Mundo das sombras’; imagens distorcidas de uma realidade perfeita. E eram nesse mundo das ideias onde guardávamos nossas lembranças, lembranças de outras vidas também, acessadas através das sensações.
— Fora do tempo e do espaço, longe do alcance material, deixado para trás a cada reencarnação.
— Exato! Dons adormecidos até acordarem...
— Acha que você os acordou na Poliu?
— Desde minha infância, desde quando recordo algo, movo objetos, assusto empregados e afasto amigos. Não Oscar! Nasci assim! Com acesso a esse mundo idealizado em que tudo é imutável e perfeito.
Oscar não sabia como prosseguir. Sabia, porém que precisava ir além dele próprio e revelar-lhe coisas.
— Aline Dubois morreu no Réveillon, Sean querido — Oscar o olhou, olhou Gstaad se aproximando, e olhou Sean outra vez. — Aline ia fugir com Otto Miller, agente da Poliu, e os Luciedes a seguiram até a Gare de Lausanne, para impedi-la de fugir já que Leopold Braushin era apaixonado por ela. Otto contou em seu relatório, após o fato, que só lembrava que ela o beijara e os Luciedes deram um tiro que acabou atingindo a ambos. Otto Miller tentou salvá-la, mas algo o nocauteou logo em seguida, reaparecendo ferido, jogado no beco atrás de sua casa, próximo ao Flon.
— Eu não ouvi tiro algum, não havia som na estação. Nem os meus passos eu conseguia escutar... — Sean olhou Oscar o olhando de uma maneira estranha. — Não entende Oscar? Não há som no que a serpente-sentinela plasma... — se aproximou do vidro do funicular. Gstaad era linda vista de baixo, era linda vista de cima. Algumas casas com seus telhados congelados, estradas tomadas pela neve, fumaça cortando os céus. — Segundo algumas tradições, a serpente seria um dos primeiros seres vivos que teria aparecido quando a Terra ainda não se tinha completamente separado das águas primordiais, e, como teria aprendido a caminhar na lama, adquirira esta maneira lenta de caminhar, que esteve na origem do aparecimento da morte. A morte Oscar, a morte que a serpente-sentinela do lago domina... Ahhh!!! — gritaram ambos no que o funicular deu um tranco.
Seus corpos foram projetados para frente, deslizando pela madeira gelada, no que vidro na frente do funicular foi o final da queda.
O funicular estancou no ar.
— Ahhh... — Oscar cortou o supercílio.
— Oscar? — perguntou Sean ao vê-lo ainda deitado no chão do funicular sangrando.
— Estou bem! O que aconteceu?
Sean se levantou.
— Eu não sei — falou olhando para fora, olhando para baixo; a estação estava deserta e o funicular balançava pelas fortes correntes de ar. — O funicular está dependurado.
— O funicular falhou?
— Ou alguém está tentando nos matar.
Sean olhou para Oscar que lhe devolveu o olhar. Tentou subir até o outro extremo do veículo que parara inclinado, mas outro movimento brusco fez o funicular recomeçar a descer, voltando a parar bruscamente, fazendo seus corpos outra vez se lançarem para frente, espremendo-se no vidro.
Oscar viu Sean erguer-se, olhar-lhe e o funicular voltar a disparar.
— Ahhh!!! — e a porta de vidro explodiu pelo deslocamento de ar frio vindo de fora com o ar quente de dentro.
Estilhaços se fizeram para todos os lados e o funicular passou pela guia de segurança quando a atingiu em alta velocidade, e os freios de emergência não se acionaram.
— Vamos bater!!! — Oscar viu Sean se segurar no ferro que sustentava o teto e se concentrar, desejar que eles parassem. O ferro cantou e uma chama nos freios se iniciou. — Sean?! O que está fazendo?! — Oscar viu Sean outra vez se concentrando em algo e o cheiro do ferro aquecido invadiu a cabine do funicular com uma faísca de fogo se iniciando. — Vamos bater Sean!!! — berrava Oscar descontrolado vendo Gstaad se aproximar, a estação se moldar à frente deles e a lanchonete se aproximar. — Sean?! — e Oscar Roldman foi retirado do funicular por Sean que o puxou do chão.
Oscar atravessou as quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze dimensões, distorcendo o espaço-tempo, desmontando cada molécula construída. Oscar voltou a quadrimensão terrestre com ele sentindo todo seu corpo vibrar, aparecendo na neve macia, rolando, rolando e rolando pela força paranormal de Sean Queise, que parou o funicular. Mas Sean foi projetado pelo vidro antes da explosão que destruiu o funicular.
O corpo de Sean também rolou, e rolou em meio as chamas por sobre as mesas da lanchonete, por sobre as cadeiras, por sobre o balcão, atravessando as paredes de vidro que a separavam da cozinha sem conseguir se teletransportar, estacionando ensanguentado aos pés de um fogão.
Um cheiro de gás entrou nas suas narinas e o alertou.
Sean se levantou cambaleando, a correr por entre estilhaços, por entre madeiras destruídas, sendo projetado de volta de onde saíra pela explosão agora de gás que destruiu a cozinha, a lanchonete, as cabines de bilhetes, o resto do funicular até cair na neve, com todos os estilhaços passando por ele, não o atingindo, que jogou cada átomo do que estilhaçava para dimensões paralelas, ele agora não soube quantas.
E a neve só mostrava além da imensidão branca e de destroços, a solidão do local.
— Oscar?! — Sean correu e pedaços de mesa, cadeiras, vidros e porcelanas se erguiam sozinhos; tudo o que via pela frente até chegar ao corpo parcialmente desfalecido do todo poderoso homem da Polícia Mundial que estava soterrado por tudo aquilo.
Sean o arrastou como pôde o deitando mais adiante.
— Sean... Sean...
— Não... Não fale...
— Não Sean... Ele sumiu... — Oscar olhou em volta atordoado. — Sumiram todos...
Sean ergueu os olhos e viu o gorro verde-abacate enterrado na neve. Um frio interno lhe percorreu o corpo e largou Oscar, correndo até o gorro verde-abacate, tropeçando não soube aonde. Um corpo seco estava afundado na neve fofa, no meio da destruição da estação de esqui. Sean começou a tirar a neve com as mãos, desesperadamente. Arrancou as luvas e começou a afastar a neve para encontrar um corpo vazio, seco, denunciando o ato.
— Deus... — Sean voltou a olhar em volta e não mais ver Oscar onde o havia deixado. — Oscar?! — gritou desesperado o vendo cambalear em direção ao carro Volvo azul.
Oscar entrou, sentou-se ao volante e fechou a porta que não fechou.
— Mas que droga! — procurou o celular que trouxera quando ligou o desembaçador e ele também não funcionou.
Oscar colocou as chaves na ignição e a porta foi arrancada pela força paranormal de Sean que agarrou Oscar pelo colarinho da camisa e ambos voaram longe pela explosão do Volvo azul que se soltou do chão.
O corpo de Oscar estava em chamas.
— Não!!! — Sean desesperou-se e o virou sobre a neve gelada, tentando apagar as chamas com as próprias mãos e o sentiu desacordado, com o rosto coberto de cortes que sangravam. — Não!!! Não!!! Não!!! — se pôs a chorar, abandonados no meio da neve, no meio da estação de esqui, no meio do frio de Gstaad, em meio a várias explosões, quando uma voz chegou até ele.
— Precisa de ajuda?! — um homem aproximava-se correndo com um pedaço grosso de tecido nas mãos. — Vamos! Vamos! — ajudou Sean a levantar Oscar. — Temos que levá-lo a um hospital.
— Como... — Sean olhou em volta. — Como... — olhou o taxista.
— Pela estrada — foi o que respondeu. — Alguém telefonou para a agência de táxis de Gstaad e mandou-me vir até aqui resgatar dois homens feridos.
Sean se olhou, foi só o que conseguiu fazer.
19
Centro Hospitalar Universitário; Lausanne, Cantão de Vaud.
46° 31’ 30” N e 6° 38’ 36” E.
02 de abril; 03h00min.
— Monsieur Sean Montebello? — perguntou o médico de plantão para Sean, que se sentava na sala de espera fazia muitas horas.
Suas mãos estavam envoltas em ataduras e havia cortes por todo o rosto bonito.
— Sim, sou eu.
— Terminamos todos os exames. O Dr. Zuquim o chama no quarto do seu tio Antônio Montebello. Perguntou se você já avisara a família.
Sean imaginava que a família em questão era a Polícia Mundial.
— Eu já comuniquei nossa família, obrigado.
E um alvoroço dentro da organização ocorreu. A Polícia Mundial havia investigado a chamada feita à agência de táxi e não conseguiram rastrear. Sean ficou temeroso, ideias se passaram na sua cabeça. Só um tipo de ligação podia ser feita sem rastreamento, ligações de dentro dos seus mainframes, de dentro dos mainframes do satélite de observação Spartacus, sabendo que não fora ele, nem seus dons.
— Sean Queise — falou Dr. Zuquim quando ele entrou no quarto de Oscar. — Como está?
— Vivo! Obrigado por tudo doutor.
— Devo-lhe até muito mais pela vida de Clara — Sean nada falou e Zuquim seguiu o olhar triste dele. — O Monsieur Oscar Roldman vai ficar de repouso até cessarem as dores de cabeça que está sentindo. Ele teve sorte de não ter sofrido queimaduras graves. Apenas alguns arranhões no rosto e corpo, e uma forte luxação na nuca.
— Sabe que ele não pode ficar aqui.
— Sim, eu sei. Quando ele acordou me deu ordens específicas. Eu já me comuniquei com quem precisava ser comunicado e seu ‘tio Antônio’ vai ser vigiado uns dias até ser removido para o Brasil.
— “Brasil”? Mas ele mora em Londres.
— Foram ordens dele.
Sean olhou para Oscar, imaginou que ele de alguma forma queria ver sua mãe, Nelma. Ficou sentado algum tempo o observando, triste por amar dois pais.
Oscar abriu os olhos ao perceber sua presença.
— Sean...
— Não fale. Vai se cansar.
— Obrigado... — tentou.
— Não vou dizer que estamos quites — brincou.
— Meu filho querido — falou abatido.
Sean agora sentiu o impacto das palavras. Fechou os olhos com vontade de chorar.
— Descanse! — tentou se manter frio.
— Por favor... — pediu Oscar. — Veja se vale à pena concluir o contrato. Sei que o mercado pode chamá-lo de principiante se...
— Quero que peça a seus agentes da Polícia Mundial que preparem a cabana para mim. Roupas de cama e geladeira abastecida. Vou dormir lá hoje. Também preciso de uma arma. Esconda-a numa das toras de madeira à entrada da cabana. Não vou voltar a École sem uma arma.
— Por que isso?
— Porque alguém acionou Spartacus, e só eu e você podíamos lançar uso das ligações internas dos mainframes do satélite.
— Spartacus... — soou da boca cansada.
— Por favor, Oscar. Só faça o que peço — e Sean saiu.
Oscar Roldman o olhou ir embora; ele era seu sangue.
Cabana, Floresta de Jorat; Lausanne, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 30” E.
02 de abril; 10h12min.
Sean acordou assustado. Havia chegado e dormido ainda sob um colchão duro e sem lençóis. Imaginou que os homens da Polícia Mundial não tiveram tempo de fazer o que havia pedido.
Levantou-se e desceu correndo a encosta da floresta, entrando na escola e arrancando as ataduras das mãos. Ia sentir dor, mas não podia chamar mais atenção do que já chamava. Não queria passar por Cybele, mas isso fora mesmo impossível, ela estava dentro do seu quarto 5-5, com Maykon.
— Srta. Cybele? — engoliu a seco escondendo as mãos.
— Eu soube sobre seu tio e o acidente no funicular; que coisa mais ‘vide de sens’. Nossos funiculares são extremamente seguros.
— São... Claro que são...
— O hospital ligou avisando de sua presença lá. Eles ficaram preocupados que a escola notasse sua saída — ela levantou-se e se aproximou dele passando a mão no rosto machucado dele. — Mas sabe o que realmente é ‘vide de sens’? Não vi você sair da aula Montebello, nem vi você passar pelos portões.
Sean não a entendeu, havia permitido que ela soubesse telepaticamente quem era ele após a morte de Pitt, já que a diretora da École Hoteliere Dubois era um tipo de bruxa capaz de fazer paredes de pedras se transformarem em tijolos americanos.
— Eu levantei muito cedo quando... Eu saí quando a Senhorita estava dentro da classe de... — girou os olhos outra vez passando por ela e se sentando na cama. — Não achei necessidade de avisar.
— Ah! Então deve ter sido isso — concluiu Cybele, olhando o quarto impecavelmente arrumado. Abriu e fechou a porta ainda permanecendo no quarto, de costas para eles. — Eu soube que saiu no sábado; Q’Animal, é esse o nome? — a voz de Cybele fez Sean sentir dor na boca do estômago. Ele olhou Maykon em ajuda, mas ele não sabia o que falar. Cybele então se virou. — Eu lhe fiz uma pergunta, Maykon? — Cybele estava muito interessada no tio Antônio para algo diferente daquilo.
— Não sei do que...
— Chega Maykon!!! — berrou Cybele cortando a explicação de Maykon. — Não me faça de idiota, Maykon!!! — berrava cada vez mais alto. — Alunos meus, alunos da École Hoteliere Dubois num pulgueiro de última categoria?!
Maykon deu um gritinho de desespero.
— Por favor, Cybele, não faça isso com ele — Sean interviu. — Maykon estava comigo e meu tio Antônio no sábado.
— Como é que é? — ergueu a cabeça rapidamente.
— Meu tio queria conhecer o meu colega de classe... Ele teme que eu conheça pessoas que possam... Que possam me desviar mais ainda do caminho.
— Está admitindo que fugiu no sábado, Montebello? Outra e outra vez?! Que levou outro aluno?! — gritava descontrolada a balançar a cabeça, agora para Sean. — Não estava na piscina com Marcia? Ela agora mente também?
— Por favor, Srta. Cybele — interrompeu passando a mão pela testa suada. —, a minha cabeça dói muito depois do acidente com o titio. Ele até pediu que a Senhorita o visitasse no hospital...
— Visitas? — estancou de imediato.
— Se não for incomodo.
Cybele ficou perdida em pensamentos e Sean não conseguiu materializar um se quer. Ela saiu sem mais nada a falar e Sean só deu alguns passos e caiu na cama totalmente atordoado com tantas mentiras. Nunca mentira tanto em toda sua vida. Só esperava não estar encrencando Oscar de alguma forma.
— Obrigado! — falou Maykon. Sean estava tão longe que Maykon repetiu. — Obrigado!
— Ah! É! Sim! Não! O que disse?
Maykon só arregalou os olhos para o confuso amigo.
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
02 de abril; 21h16min.
Sean já dormia quando o som na porta de seu quarto ecoou pela batida. Maykon e Sean se olharam e a porta foi aberta sem que nenhum dos dois se levantasse. Maykon nem mais perguntava nada. Sabia que Sean abria portas, que era especial.
— Eu posso lhe falar? — perguntou Elisa da porta, sem entender qual dos dois abriu a porta.
Maykon se levantou e saiu apesar da hora. Já Sean tinha duvidas se queria ter ficado sozinha com ela.
— O que quer falar comigo, Elisa?
Elisa o olhou, viu uma pequena atadura na mão dele.
— Muito machucado?
— Sabe que sim.
— Dói?
— Não!
— Você...
— Vamos logo com isso, Elisa. Estou cansado.
— Acalme-se! Tenho algo que você quer.
Sean a olhou. Sabia que Elisa estava jogando no que fechou a porta à chave.
— Vendendo informações?
— Quer informações, não quer?
— Do tipo?
— Do tipo quem matou Pitt? — Elisa perguntou cínica, sorrindo perigosamente.
— Não estou à venda.
— Não é o que dizem.
— Não sei o que dizem nem quem dizem Elisa. Agora saia!
— Foi June! — Elisa correu a lhe dizer.
— O quê?! — gritou. — June matou Pitt?
— Não, mas June sabe quem matou. E não conta porque tem medo de apanhar de Cybele.
Sean a encarou.
— Cybele costuma bater nela?
— Quando não obedece a regras — respondeu perigosa. Sean ia falar quando percebeu que ela estava cada vez mais perto de sua cama. Ergueu num pulo da cama e foi brecado. — Não vai sair daqui depois que conseguiu o queria — Elisa começou a rodeá-lo.
— Foi você ou Marcia quem tramou na piscina da cachoeira?
— Você quer ver o poço?
— Que poço? — Sean começava a se enervar com as voltas dela quando Elisa o beijou. Ele dessa vez deixou ela o beijar sem mover um único músculo. — Que poço agente Elisa?
Elisa engoliu a sua própria idiotice, para então gargalhar.
— Quem me denunciou? Umah Trevellis?
— Você! Agora! — Sean nem precisou ver que Elisa se recolheu a sua insignificância e o encarou com um olhar nada amigo.
— Desgraçado!
— Sou? Porque sempre achei que Trevellis convocava agentes com muita pouca idade. Agora percebo que com pouca inteligência também — e Sean foi esbofeteado.
— Cuidado Sean Queise. Posso ser tão jovem e perigosa quanto você. Porque posso, por exemplo, ir ao quarto de Cybele e contar quem é o proprietário da Computer Co. com quem seus queridos Braushin fazem negócios escusos.
— Elisa... Elisa... Você é tão patética... — e Sean foi esbofeteado novamente. Ele sentiu sua face aquecer, no que riu cínico, a provocando. Elisa levantou a mão para esbofeteá-lo novamente, mas foi Sean quem a esbofeteou, fazendo-a girar duas vezes pelo quarto até se chocar com a beirada da cama e cair. — Cuidado você, comigo, Elisa. Eu já perdi toda a minha inocência. Não tenho mais nada a perder — e Sean abriu a porta vendo Marcia parada ali, tendo certeza que ela escutara muita coisa.
Sean a encarou friamente com o rosto a arder e sumiu até ver Cybele acabando de verificar as portas do final do corredor, sabendo que ela não mais voltaria aos quartos dos alunos, e a festa começou.
Sean então viu Adelfo e Marcello saírem do quarto e irem para o quarto de Nathan que aos poucos ficava estranho à turma. Elisa saiu do seu quarto e foi atrás de Sandra e Silvya, no quarto delas. Charles já havia saído do quarto dele e ido para o quarto de número 6-6-6-6, para aguentar uma conversa chata com Ema já que Cristina, companheira de quarto de Ema namorava Hübinjer. O mesmo acontecia com Beth que saía após Cybele dormir, para encontrar Louis do número 12-12-12.
Algumas noites, Neide do também quarto de número 3-3-3 a acompanhava, estava enamorada por Nathan. Friedrich e Hans saíam do quarto de número 9-9 quando Hans decidiu que queria ter com June, uma conversinha que ela jamais esqueceria.
A coisa, contudo não saiu como previu.
— Temo que você tenha problemas daqui para frente — a voz de Sean alcançou Hans quando ele abriu a porta de número 1-1 e o encontrou na frente de June que se protegia atrás dele.
Hans que tinha uma verdadeira paúra de Sean se virou tentando sair, mas teve seu rosto atentado contra a porta.
— Ahhh!!! — ele foi ao chão sendo levantado por Sean que o ergueu de novo, sem tocá-lo, pela gola do pijama, fazendo o porrete que trazia do quarto 13-13 cair das mãos trêmulas.
Sean então se aproximou do jovem suíço.
— Não pare ao lado de June para piscar! Não pare ao lado de June para pensar na vida! Não pare ao lado de June para respirar o último ar sobre a Terra, entendeu?! — berrou ao fazer todos os vidros se agitarem, as luzes apagarem e voltarem a acender.
Portas se abriram e fecharam, e todos entraram em pânico, voltando correndo para seus verdadeiros aposentos, se encontrando, todos, no corredor.
Já Hans engoliu a resposta perante a ameaça de Sean, que ainda o pendurava com a força de seu olhar. E Hans ainda suava frio quando percebeu que estava na biblioteca, olhando Aline lhe olhar furiosa no grande quadro.
— Ahhh!!! — Hans correu com todas suas forças enquanto June, ainda no quarto, chorava miúdo com a confusão.
Esboçou um sorriso e Sean se virou para ir embora.
— Foi para te salvar... — chorou June ao esconder a cabeça sobre as mãos fechadas.
Sean parou a mão na maçaneta.
— Do que está falando?
— Se ela soubesse... Se ela soubesse... Você correria perigo de vida.
— “Ela”? “Ela” quem?
— Cybele!
— Cybele sabe tudo a meu respeito June. Não se preocupe com...
— Ela odeia aquilo, aquilo que fazem, que são obrigados a fazer.
— Aquilo?
— Se soubesse sobre seu trabalho ali, você sumiria igual os outros sumiram.
— Quem sumiu?
— Outros. Outros homens que vieram para trabalhar.
— E que tipo de trabalho faziam? Do que está falando June?
— Acho que é porque Cybele é extremamente pudica. Não aceita isso... Isso que faz.
Sean começou a não gostar daquele jogo.
— E o que eu faço June?
— Dançar no Q’Animal.
Sean sentiu todo o piso ruir, mesmo que metaforicamente.
— Como...
— Sua marca na coxa... — June apontou. —, eu vi quando machucou na piscina da cachoeira.
Sean passou a mão na perna que ainda doía.
— Acha que...
— Não! Ninguém comentou comigo, então acho que ninguém viu.
Sean respirou aliviado.
— Olha June... Não é o que está pensando.
— Não tenho que julgar você, Sean. Nem julgava os outros. Eles eram bons comigo...
Sean sentou-se na beirada da cama e ficou lá tentando não pensar no Q’Animal.
— Por que Cybele... — e mudou de tática. — Acha que Cybele sumiu com os outros dançarinos do Q’Animal?
— Sim! Sim! E Aline sabia. Não gostava do que Cybele ordenava, mas eles sumiam.
— Sumiam como?
— Acho que... — olhou um lado. — Acho que... — olhou o outro lado. — Acho que ela os denunciava para a família Luciedes, porque eles vinham e eles sumiam — e June olhou Sean atento. — Acho que eram levados de volta para sua terra.
— Que fica onde?
— Não sei. Longe, Aline dizia.
— E todos vieram do mesmo lugar longe June? Para trabalhar no Q’Animal?
— Alguns vinham para cá, para ajudar nas obras.
— Não vi resquício de obra nenhuma June. Nem empregados, cozinheiros, motoristas ou...
— Não! Eles sumiam.
— Ok! — Sean deu-se um tempo para pensar. — Cybele gostava da sobrinha?
— Não sei se gostava, se já gostou de alguém na vida — June olhou para a cama e sentou-se também. — Ela mandou Aline se envolver com um milionário chamado Leopold, mandou ela se entregar apesar de saber que ela amava o Otto Miller — chorava compassivamente. — Logo ela, tão pudica, tão severa. Mas ela só se preocupa com a École. Passa por cima de tudo e de todos. Aceita até os Luciedes.
— Não era do Marcello que Aline gostava?
— Não, o Marcello é ‘laranja’ do milionário — June estava abalada, chorava sem parar. — A família do Marcello está na bancarrota, ele também faz qualquer coisa por dinheiro.
— Marcello estava aqui quando Pitt morreu. Acha que ele teve alguma coisa a ver com isso?
— Os Luciedes também estiveram aqui.
— Mas eu os vi no Q’Animal.
— Mas eles saíram antes. Podiam ter vindo até aqui e matado Pitt.
— E Bruce e Beth?
— Não sei nada sobre eles. Só que Nathan e Marcello não gostaram do envolvimento deles.
— Marcello e Nathan juntos? Marcello e os Braushin? Marcello que se parece com Ernest? — falava sozinho quando June voltou a chorar, se aproximando dele, o abraçando. — Quem era esse Otto Miller?
— Eu não o conheci — falou erguendo a cabeça redonda. — Ele vinha investigando a escola, também não sei por que.
— Quando tudo começou?
— Não sei... Não sei... Aline era esquisita, assim como você.
— Assim como eu? — Sean não gostou de saber que Aline era esquisita como ele.
— Ela fazia isso que você faz, levantar pessoas... — voltou a abaixar a cabeça redonda. — Como o que fez na piscina com os Luciedes.
— Acha que mais alguém percebeu que sou assim? Esquisito?
— Não... Não... Nunca mínguem soube sobre Aline também. Ela só contou a mim que fazia essas coisas, porque isso irritava sua tia. Mas o Otto Miller era legal, não ligava para o que ela fazia, por ela ser diferente, entende? — e olhou Sean absorto. — Eu também não ligo Sean. Você é muito bonito.
Sean achou graça. Era a primeira vez que alguém perdoava sua paranormalidade por achá-lo bonito.
Ficou pensando se talvez Kelly Garcia não o aceitasse por aquilo também.
— Conhece bem as tais atividades religiosas de Cybele? — pensou melhor como formular a perguntar. — Conhece essa igreja que ela frequenta?
— Não. Ela nunca deixou Aline falar sobre isso.
— Aline frequentava?
— Somente nos últimos três meses de vida. Aí ela parou de ser esquisita, também não falava coisa com coisa, tinha medo de dormir no escuro e às vezes falava... — June viu Sean a olhando. —, falava com as paredes.
— Droga... — aquilo alertou Sean, ele percebeu que a parede em questão não era uma parede, era a serpente-sentinela do lago em seu ato de mimetismo. Ficou a imaginar por que uma alienígena como a serpente-sentinela se daria ao trabalho de vir às noites visitar Aline. — Me diga June... Sabe algo sobre um poço?
— Poço... Poço... Aline uma vez falou algo. Não! Foi a professora Adalfrida.
— A professora de mitologia nórdica?
— Sim... Algo sobre o Poço de Urd.
— Droga... — Sean entendeu tudo. — No início do mundo, segundo as Edas, não havia nem céu nem terra, mas um abismo sem fundo onde flutuava uma fonte dentro de um mundo de vapor. Dessa fonte saíam doze rios, que após terem corrido longas distâncias, congelaram-se muito longe das suas origens, preenchendo o grande abismo com gelo. O universo então era dividido entre Asgard, a morada dos deuses, Midgard, a morada dos homens, Jothunhein, a morada dos gigantes e Niflheim, a morada e região das trevas e do frio. Segundo a lenda, o Poço de Urd levava a Niflheim, o mundo inferior. Provável pelo túnel que a serpente-sentinela do lago usa para levar almas ao Hades — levantou-se e mais uma vez se despediu dela. — Obrigada June. Por tudo.
— Não se preocupe Sean, seu segredo morre comigo.
Sean abaixou os olhos, lembrou-se da pele oleosa, do balançar do corpo provocante, da nudez exposta, do fim da inocência. Foi embora se sentindo totalmente arrasado em relação ao Q’Animal. Chegou ao seu quarto de número 5-5 e entrou à meia luz vendo que Maykon deitava-se a olhar a janela aberta. Não puxou conversa com ele, deitando-se após tirar a blusa de lã. Tirou a roupa que vestia sobre o pijama ainda envolto em pensamentos, com sua cabeça girando demais, e deitou-se vendo que Maykon e Marcia o observavam.
Sean deu um salto da cama ao vê-la ali.
— Você?
Marcia se levantou e caminhou até ele. E não se fazendo de rogada, aproximou-se até ele deitar-se novamente e ela deitar-se sobre ele, o engolindo num beijo ardente.
Sean só lembrou-se de olhar para o lado e Maykon sentiu-se deslocado.
— Vou tomar um copo de leite — falou Maykon para o infinito saindo mais uma vez.
Marcia observava Sean embaixo dela.
— Não me magoe... — foi só o que ele pediu.
Ela sorriu-lhe e Sean suspirou profundamente sentindo o aconchego, o abraço, o amor por ela. Um amor que parecia antigo, incrustado num coração há muito magoado, fechado, onde só Kelly ele permitia se aproximar, mas que nem Kelly conseguia entrar porque Sean a amava à maneira dele.
Não sabia explicar o que acontecia consigo naquele momento, mas Marcia permanecia deitada sobre ele quando Sean sentiu-se pesado, com uma força a lhe puxar a alma.
Sentiu-se fechando as pálpebras, sentindo a respiração ficar lenta, adormecendo no que uma leve corrente percorreu todo seu corpo retesado.
Até o amanhecer de mais um dia.
20
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
03 de abril; 09h44min.
— Sean?! Sean?! Sean?! — gritava Elisa à porta de número 5-5.
Sean pulou da cama feito um furacão e se viu nu. Olhou em volta, o quarto estava vazio. Marcia sumira e ele ficou sem entender o que acontecera quando a luz do Sol reinava lá fora, e a porta foi aberta numa velocidade só.
— Ficou louca, Elisa? — falou ele baixinho ao se envolver no lençol.
— Já estamos na segunda aula e você ainda não desceu nem para o café.
— Segunda aula? — paralisou perante a constatação.
— Eu preciso conversar com você — entrou desesperada no quarto.
— Saia daqui! — falou ele. — Saia Elisa!
— Está nu?
— O que você quer Elisa?
— Está nu? Com quem dormiu? — Elisa tentava sentir o perfume de outra mulher.
— Não dormi com ninguém. Saia Elisa.
— Lück!
Sean arregalou os olhos azuis sem que ela visse.
— Como é que é?
— Ele está lá embaixo conversando com Cybele.
— Meu Deus! — exclamou extasiado. — Você acha que...
— Que ele vai colocar seu disfarce em perigo?
Sean acordou naquela frase.
— Como você sabia sobre Lück Laun?
— Acha que a Poliu não sabe sobre o que você faz?
Sean percebeu mais que fel em Elisa, sentiu a Poliu mostrando suas garras. Percebeu também que o agradecimento de Mr. Trevellis para com ele havia terminado com Umah Trevellis.
— O quanto de poder você tem sobre ele?
Elisa gargalhou.
— Já percebeu então? — perguntou cínica. — Ou é seu dom paranormal vindo à tona?
— O que sabe sobre mim?
— O que nós agentes da Poliu sabemos sobre você e os espiões psíquicos que você teve prazer em destruir?! — gritou Elisa.
E Sean não gostou daquele grito. Elisa estava se tornando um problema. Um problema como aquele quando se sentou na cama, tirou os sapatos e entrou debaixo das cobertas arrancando a roupa.
— Foi você quem pediu para Lück matar Günter Luciedes?
— Como sabe sobre Günter, ‘Sean querido’?
— Parece que a Poliu não sabe nem da metade do que faço e destruo — e Sean sabia que se Elisa, tão jovem, conhecia os espiões psíquicos era porque deveria ficar em alerta.
— Não mandei matar ninguém — Elisa o encarou a encarando. —, pedi apenas que Lück desse um susto naquele idiota do Günter. Quase aquele híbrido sentimental estragou tudo.
— Meu Deus! — exclamou Sean ao cair sentado em choque na cama de Maykon. — Lück é uma serpente-sentinela alienígena?
— Sim.
— Como Lück matou Günter?
— Quer os detalhes mórbidos? Eles primeiramente, os detêm mentalmente numa espécie de letargia. Depois enfiam a língua na coxa e retiram suas vísceras; alguns tiram tudo. Depois penetram as narinas e retiram o cérebro, para por último se plasmar numa espécie de híbridos, meio humanos, meio serpentes que secam suas vítimas, retirando suas almas para prendê-las numa dimensão paralela, num lugar plasmado, parecido com sua vida antes da morte.
— Num lugar plasmado... — Sean observava Elisa com cuidado, aquilo estava sendo derrubado muito rápido. — Por que prendem sua alma?
— Porque se alimentam dela. É assim que aprendem sobre nós.
— E como soube isso?
— Arquivo confidencial #10255! — Elisa gargalhou maliciosamente provocando azia nele. — Aliás, eu soube melhor quando os Luciedes me chamaram para o grupo deles. Claro que eles não sabiam que eu e Umah éramos agentes da Poliu.
— “Éramos”? — agora Sean sabia o porquê da raiva que sentia por ela, do por que Elisa irritava-o desde o começo. Aproximou-se da porta com receios de ter que sair dali rápido. — Então Trevellis sabia sobre a alimentação das serpentes e as retirou da Poliu para que vocês duas agissem livremente, sem regras...
— Menino esperto! — Elisa se levantou nua e se aproximou dele tocando a ponta do seu nariz.
— Se vista Elisa.
— Não. Porque faço o que quero, porque se não houvesse sido assim, se Umah não tivesse aceitado minha ideia a Poliu e toda aquelas cabeças de Misteres, já nos teriam tirado do caso — deu meia volta e voltou a deitar-se nua na cama.
— Umah sabe que você controla as serpentes alienígenas?
— Sean Queise... — riu. — Sabe que ninguém controla as serpentes alienígenas. Eu apenas fiz uma oferta ao alienígena no corpo do Lück; o conhecimento do meu sexo pelo susto em Günter — Elisa ergueu-se num supetão e Sean se moveu. Ela gargalhou nervosa. — Com medo de mim Sean Queise?
— Quando pediu para Lück assustar Günter?
— Quando você chegou ao vilarejo de Yverdon-les-Bains.
— Sabia sobre meu acidente?
— Que acidente?
— O que eu não sofri — e Sean viu Elisa repentinamente confusa. — Umah também sabia que eu estava na casa do Dr. Zuquim?
— Não! Estávamos separadas desde o casamento dela com Lüdovick Braushin. E não podíamos nos comunicar sob hipótese alguma. Para isso usávamos os bailarinos.
— Serpentes alienígenas bailarinos, não?
— Menino esperto...
— E o que os bailarinos disseram?
— Que você havia aparecido próximo ao sítio arqueológico de Mormont, e socorrido por camponeses. E que os Luciedes ficaram em polvorosa.
— Mas eles não me conheciam pessoalmente ou já teriam me matado quando cheguei aqui.
— Tentaram antes...
— Atacaram um homem de costas, Elisa, num pasto tomado pela neve.
— Porque os Luciedes não conheciam você pessoalmente, e nem os Braushin sabiam que você estava aqui como Sean Montebello, por isso seu segredo vale muito — e passou a mão nele que recuou. Elisa ficou furiosa. — Você não tem muita amizade com Mr. Trevellis para achar que vão lhe defender, não é? Talvez nem tenha muito conhecimento sobre Oscar Roldman, o verdadeiro Oscar Roldman e seus poderes paranormais familiares.
— Saia Elisa! Já terminamos!
— Ah... Não sabia? Foi a família de Oscar Roldman quem começou tudo isso — Elisa gargalhou.
— “Começou”? O que Oscar começou?
— Os espiões psíquicos! Dons paranormais voltados ao cosmo profundo — gargalhou.
— Oscar e os... Os Roldman conversando com serpentes alienígenas? — foi sua vez de rir. — Oscar não tem dons. Não esses.
— Não, ele fugiu da iniciação. Mas parece que o filho dele não fugiu. Preparando-se para se comunicar com eles — apontou para o teto.
Sean teve medo dela, das informações dela.
— Trevellis sabia sobre Günter?
— Quero sexo!
— Responda!
— Sabia que Günter havia descoberto algo sobre Umah e eu… — Elisa voltou a deitar-se, e voltou fazendo posições obscenas. —, então tive que fazer o trabalho sujo.
Sean só girou os olhos não gostando daquelas agentes, daquele tipo de agentes.
— Quem matou Aline Dubois?
— Quero sexo!
— Quem matou Aline, Elisa?
— Não sei. Quando entramos no grupo dos Luciedes, eu vim para a École e Umah casou-se com Lüdovick para esconder sua homossexualidade; Aline era uma obscura paixão de Leopold.
— Mas ela morreu igual a todos? Seca!
— Quero sexo!
— Responda!
Elisa estava mais furiosa.
— Só sei que os Luciedes já conheciam as serpentes alienígenas nos corpos de Michelina, a avó de Lück e do rapaz Lück — abriu e fechou as pernas. — Agora quero sexo!
— Os Luciedes conheciam as serpentes antes ou depois de Friedrich se machucar?
Elisa nua observava Sean, percebendo que ele era muito mais inteligente que a Poliu supunha.
— Nada sei sobre o acidente de Friedrich. Eles até já tocaram no assunto de um poço profundo que não faz eco, à entrada de um túnel onde Friedrich se machucou, mas nunca foram muito adiante. Um olha para o outro e depois se calam.
— Onde fica esse poço Elisa?
— Já disse que não sei.
— Umah sabe sobre a serpente-sentinela do lago?
— Nunca a vimos. Só os répteis menores como Lück, os que se intitulam de ‘coletores de corpos’.
— Quem são os coletores de corpos? Lück? As meninas que morreram?
— Umah até deu falta de algumas delas no Q’Animal.
— E a serpente-sentinela do lago?
— A serpente-sentinela do lago é um nível muito alto, ela nunca apareceu para ninguém.
— Mas Trevellis disse que a serpente-sentinela já havia aparecido para Umah. E Umah acordou quando eu disse ‘serpente-sentinela’.
— Mentira! Se Umah tivesse visto a tal serpente-sentinela, ela já estaria morta uma hora dessas.
— Deus... — caiu sentado não querendo entrar em detalhes, sabia no fundo que a serpente-sentinela ia matar Umah Trevellis se ele não tivesse impedido, não tivesse implorado.
— Uma coisa posso afirmar, Sean querido, até as serpentes alienígenas temem essa sentinela desesperadamente.
— Por que as serpentes alienígenas a temem? Ela também é uma Èquidna, uma mulher-serpente como os outros, não?
— Não conheço profundamente os poderes dessa serpente-sentinela, já disse, nem se tem cauda de serpente como o mito da Èquidna, está bem? Só sei que ela é a tal sentinela do lago que nossos ufólogos estudavam.
— O que sabe sobre os ufólogos abduzidos?
— Nada! Quero sexo!
— Responda Elisa! Qual a real importância dela nessa abdução? O que a serpente-sentinela queria com eles?
— Não sabemos se a serpente-sentinela queria algo com os ufólogos. Eles sumiram e apareceram mortos. Tudo o que ronda essa serpente-sentinela ainda é um mistério. Nem os próprios gregos sabiam muito sobre ela. Èquidna ainda é uma obscura personagem de Hesíodo — e Elisa o puxou. — Agora venha! Quero sexo!
— Já disse que não estou a venda.
— Estamos todos, Sean querido.
Sean a largou com força.
— Como as ordens da serpente-sentinela do lago funcionam? Ela dá uma ordem e as serpentes alienígenas matam e morrem por ela?
— Perguntas e mais perguntas... — massageava seus próprios seios os fazendo tomar várias formas.
— Não vou trepar com você, Elisa — Sean se afastou incomodado.
— Muito bem! — gargalhou batendo palmas. — Parece que perdeu a educação refinada dos Queise...
— Saia! — falou por entre os dentes.
— Se é assim... Vou avisar mais uma vez que Lück está na biblioteca. E ele é um dos coletores de corpos sob o domínio dos Braushin — se levantou da cama, vestiu a lingerie, o vestido e colocou o casaco pesado, e passou por Sean abrindo a porta. — Porque se eu fosse você, Sean Queise, descia para encarar Lück e lhe fazia questões mais diretas do que me faz. Porque se eu fosse você, Sean Queise... — agora estava mais fria. —, eu ia pessoalmente à biblioteca cuidar da minha segurança, porque se eu fosse realmente você, não confiaria minha vida na Poliu — e saiu.
Sean saiu depois dela.
Quando entrou na biblioteca, seus olhos primeiramente pousaram sobre o quadro de Aline pintado na parede, antes mesmo de ver o susto de Lück Laun ao vê-lo.
— Eu não acredito... — tentou Lück raciocinar, não acreditava que Sean fosse capaz de ter ido até lá após Elisa contar sobre quem era realmente.
— A diretora Cybele lhe perguntou alguma coisa? — perguntou, sem dar tempo de Lück voltar a falar.
— Sobre você ser Sean Queise?
— Não!
— Ah! Uma infinidade de perguntas...
— Os Luciedes te viram aqui?
— Os Luciedes? — Lück voltou a tremer.
— Por que um alienígena como você, com seus poderes, temem os Braushin ou os Luciedes? — Sean arriscava-se a falar coisas que nem ele próprio sabia por que falava.
— Como disse?
— Quando o Dr. Zuquim pegou Clara para criar, sabia que ela era uma alienígena? — blefou.
— Você... Você sabia?
— Sabia o que? Sobre Clara ou sobre os Braushin estarem torturando jovens serpentes alienígenas na cachoeira com cães ferozes?
Lück caiu sentado perante a figura máscula de Sean.
— Só... Só os fracos...
— “Fracos”? Como você? Como sua avó? Como Clara?
— Sim... Somos sentimentais... Temos sentimentos, entende?
“Híbridos sentimentais”; ecoou a voz de Elisa.
— Quando você, Clara e sua avó chegaram aqui na Terra?
— 1975!
— Quando Billy Méier viu o disco voador?
— Quem? Não sei. Fomos levados para o Lago Léman para sermos escondidos.
— Por quem?
— Um homem. Nunca mais o vimos. Ficamos lá sem sermos aborrecidos até precisarmos ser defendidos pela serpente-sentinela do lago.
— Por que precisaram ser defendidos?
— A população. Alguns estudiosos andaram por lá.
“Os ufólogos da Poliu”, Sean entendeu.
— Quem é a serpente-sentinela do lago?
— Nossa guardiã, nossa abelha rainha.
— Está querendo me dizer que só a serpente-sentinela pode procriar?
— Fora de nosso planeta sim.
— Então ela pode procriar na Terra?
— Sim. É para isso que está aqui.
— “Aqui”? — Sean precisava de ar, muito ar. — Mas ela está aqui há 10.255 anos? O que não estou entendendo Lück?
— Meu povo a enviou há muito tempo atrás, a procura de um humano para procriar — prosseguiu Lück.
— Por quê? Por que modificar a genética de um povo todo?
— Nada sei sobre isso.
Sean achava que ele sabia. E que era algo haver com o planeta Terra e não com o planeta deles.
— Traduza ‘muito tempo atrás’.
— Nada entendendo de datas. Mas era antes do ser humano ser moderno, curioso.
“10.255!”; voltou a ecoar em lembranças.
— Então ela é um de vocês... Deus... — Sean sentiu-se mal. — Abelha rainha... — sussurrou nervoso. — Ela o encontrou?
— Não, ou estaria vendo muitos como nós, Sean Queise, e outros de nós não precisando fazer essa longa viagem até o Planeta Terra.
— Outros de vocês? Ela tentou procriar na Terra com outros de vocês?
— Sim.
Sean voltou a sentir-se mal com tudo.
— E por que ela passou a precisar de um ser humano para sua prole, se Èquidna só gera monstros?
— Não sabemos nada sobre monstros. Uma vez Elisa perguntou se era como Hesi... alguma coisa.
— Hesíodo! O poeta grego que nos conta sobre monstros, filhos de uma Èquidna, meia serpente meia mulher... Droga! Elisa sabe mais do que diz — Sean olhou em volta, o quadro de Aline o desconcertava, agora entendia o porquê. — Mas e vocês? Vocês são o quê?
— Répteis menores. Não somos como a nossa serpente-sentinela.
— Lâmia, Branwen, Górgonas, mas só uma Èquidna.
— O que disse? — Lück nada entendeu.
— Nada! Diga-me... O fato dela ainda não encontrar ninguém tem haver com encontrar alguém especial? Com dons... — e parou.
E parou porque precisava parar, respirar, se concentrar.
— Sou um réptil menor, já disse; não posso falar sobre isso. A serpente-sentinela é algo superior, ninguém fala dela, fala com ela, a procura; ninguém.
— Mas Cybele pode falar, não é? Procurá-la quando precisar? A família dela cuida de vocês séculos após séculos.
“Droga!” explodiu dentro dele, Sean estava extremante nervoso.
— Até Friedrich encontrar a entrada do túnel e expor vocês ao ar, e obrigar a vocês saírem, não?
— Sim! Então a serpente-sentinela apareceu e nos defendeu, machucando Friedrich.
— Por que a serpente-sentinela não o matou?
— Os Luciedes financiavam Cybele que nos financiava. Cybele não deixou.
— Então está me garantindo que Cybele conhece a serpente-sentinela do lago?
— Ah! Sim! Uma das poucas que permaneceu viva depois disso.
“Mas Umah conheceu a serpente-sentinela e ficou viva”, nada disse, porém.
— Mas você matou Günter Luciedes.
— Não o matei, só o assustei. Eu nunca matei ninguém. Não sei o que aconteceu depois que arranquei o garoto Günter do caminhão, que os Luciedes roubaram para segui-lo, Sean Queise. O vi caído, sangrando, e então sumi.
— Mas vocês se alimentam das almas?
— Sim, mas nunca suguei alguém vivo, nunca suguei alma viva — Lück começava a enervar-se e um estranho som de papel amassado invadiu a biblioteca.
Sean viu a pele de Lück esverdear-se e toda a estrutura de seu rosto assimilar a forma triangular de uma serpente-sentinela alienígena. E ele já ouvira aquele som antes, quando a serpente-sentinela alienígena se transformou na serpente-sentinela do lago, na neve, a proteger Sean e Clara; e também no quarto de Umah a tentar matá-la.
— Quem se alimentou de Günter?
— Não sei. E eu só fiz aquilo com o garoto Günter porque a garota Elisa me pediu — até o timbre da voz de Lück se modificara. — Ela me prometeu conhecer o mundo do sexo de vocês.
Sean olhou horrorizado para o verdadeiro Lück
— Vocês se alimentam de almas que Cybele leva ao túnel?
— São almas de semimortos ou recém-mortos.
— E se os Luciedes dominam Cybele com o dinheiro, então eles dominam vocês, é isso?
— Sim! — Lück abaixou a cabeça triangular de serpente-sentinela alienígena, e voltou ao normal após o cessar do estranho som de papel amassado. — Eles nos dominam Sean Queise — o timbre da voz também voltou ao normal.
— Por que os Luciedes tentaram matar Clara, Lück?
— Tentaram? — Lück levantou-se num rompante e seu rosto voltou a assimilar a forma de uma serpente-sentinela alienígena num corpo de homem viril e musculoso, no estranho som de papel amassado.
“Droga!”, Sean percebeu que eles se transformavam quando estavam sob forte tensão.
— Leopold havia prometido que ela seria levada a outro túnel.
— “Outro túnel”? Eu resgatei Clara na cachoeira quando ela fugia junto a algumas serpentes alienígenas fêmeas, que não sobreviveram ao ataque dos cães. E Clara quase foi morta por um tiro quando escapava comigo.
— Você a salvou? — Lück se ajoelhou ainda em forma de humano e rosto de serpente-sentinela alienígena. — Tenho uma dívida com você Sean Queise!
— Chega de dívidas. Quero apenas que você, Clara e sua avó sumam do nosso mundo. Vocês não pertencem a Terra.
— Perdão Sean Queise! Não posso decidir que vai quem fica. Posso apenas tentar ser transferido.
— “Transferido”? Isso me assusta mais ainda.
— Perdão! Eu sinto muito!
— Tente sentir Lück! Ou vão tentar matar Clara outra vez quando descobrirem que está viva.
Lück voltou à forma humana após o som característico de papel amassado acontecer.
— Onde ela está?
— Em segurança. É só isso que precisa saber por enquanto.
— Não deixe ninguém machucar Clara, Sean Queise. Ela nunca me perdoou quando...
— Essa dimensão aonde os corpos coletados vão? Onde fica?
— Não posso falar.
— Mas não vai me impedir de descobrir, não é?
— Não! Agora sei que Clara não me perdoaria se eu tentasse machucá-lo.
E a porta da biblioteca se abriu num rompante.
— Oh! — Cybele abriu os olhos a quase fazê-los pular da órbita. — Vocês se conhecem?
Lück veio ao auxílio.
— Não, Srta. Cybele. O jovem aqui veio buscar um livro.
Sean olhou para Cybele e sorriu. Saiu com um livro que apareceu do nada na mão dele, e saiu não entendendo porque a mensagem telepática que acabara de enviara ela, informando que era na verdade Sean Queise, um agente da Polícia Mundial infiltrado, não foi computado por Cybele.
“Ou foi?” temeu Sean que Cybele já estivesse aprontando algo contra ele.
— Ele? — Cybele perguntou quando Sean saiu.
— Nada sabe!
— Tenho que confiar, não é? Depois de tudo o que minha família tem feito por vocês só me resta confiar, não é?
— Sua família tem feito. Não você. Porque não tem se empenhado muito nesses últimos anos. Não posso garantir que onde sua família esteja ainda seja um paraíso.
— Não pode deixar minha família sem auxílio plasmado, somos tão estranhos aqui nessa Terra quanto vocês. A serpente-sentinela do lago prometeu a nossa família auxílio por muitas gerações. Sabe que não posso fazer nada, sou uma alienígena como vocês.
— Não é da nossa raça.
— Não importa de que raça, de que planeta eu e minha família viemos. Somos estrangeiros nessa terra também.
— Mas nos traiu com os Luciedes.
— Eu precisava de dinheiro para sustentar vocês e conseguir sua alimentação nada convencional.
— Você nunca deveria ter nos exposto aos humanos e você sabe que errou.
— Já paguei minha dívida, não? — Cybele começou a chorar. — Levaram Aline de mim.
— Não conheço sua dívida com a serpente-sentinela, só sei que ela vem se descontrolando muito ultimamente. E você tem parcela de culpa nas mortes que vem acontecendo com cada vez mais frequência.
— Vocês são... Vocês são... — e Cybele não conseguiu terminar.
— Somos o que somos. E você, Srta. Cybele? O que você é? — Lück saiu da biblioteca da École Hoteliere Dubois.
Sean o viu passar pela porta de entrada, escondido por detrás das janelas do salão da frente. Ficou mesmo tentando entender pensamentos que ficaram por ali, no éter, desconexos, entre uma dimensão e outra, numa escola plasmada, ele agora sabia.
Nunca as palavras da filósofa Marilena Chauí fizeram tanta confusão nele; “Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão”.
“Será?”; se perguntou.
Sean suspirou e saiu à procura dos alunos. Os encontrou na aula de designer que ele perdia. Marcia o viu sentando-se à mesa, no canto da porta, e sorriu-lhe. Sean continuava sério, não lhe sorriu de volta. O corpo dela, a lembrança de seu perfume o perturbava demais.
Marcia não voltou a insistir e ele sentiu aquilo.
A aula terminou e todos começaram a sair. Marcia também saiu e Sean ponderou algo indo atrás dela, verificando que ninguém os olhava.
— Tem uma cabana... — Sean sussurrou no ouvido de Marcia e seus olhos esverdeados brilhavam na claridade do pequeno corredor. — Dessa vez vai ser com ou sem público? — falou por fim.
Marcia o encarou, não sabendo o que falar; o perigo a excitava, porém. Ele saiu e ela foi atrás, pelo frio do pátio, ambos não se importando em ser brecados.
Os dois se encontraram na porta da cabana, mas foi ela quem abriu a porta suada pela corrida, pelo frio, pelo tesão.
Sean levou um susto ao ver a cabana arrumada, ficou a imaginar se Oscar tivera tido tempo para aquilo.
— Eu a aluguei! — Marcia tirou o blusão, a blusa, fazendo sua pele arrepiar-se no frio que vinha da Floresta de Jorat.
Ela entrou e Sean a acompanhou fechando a porta, tirando o blusão, a blusa, encostando o tórax viril, entremeado por réguas de músculo aos seios fartos, quentes. Ele também sentiu o calor que emanava da lareira a lenha, do coração acelerado pelo tesão, dos pensamentos que Marcia parecia ler do corpo que roçava no dela.
Ela sorriu maliciosa abrindo o zíper da calça dele, o tocando, fazendo-o se sentir embebido de êxtase, fazendo-o ver luzes piscarem na sua retina; uma profusão de cores psicodélicas no qual ele girava junto; Marcia foi mais fundo, mais profundo.
— Ahhh... — como numa letargia, Sean sentiu-se bem ao lado dela, numa paz que o invadiu com há muito não invadia, desligando-se cada vez mais do mundo que os rodeava. — Marcia... — voltou a soar.
— Sean... — e Marcia tocou cada pedaço dele; braço, coxas, pés.
Tudo era prazeroso no toque, na mão aveludada que o tocava, no seu cheiro, seu arfar fora do normal, sua espera por pecados cada vez mais pecaminosos, por prazeres prazerosos. Sean outra vez se viu nu na cachoeira, na poltrona, no palco do Q’Animal, na cama de Umah. Todo seu corpo vibrava e ele não conseguia se recordar de já ter estado excitado daquela maneira.
Ergueu as pernas dela num movimento rápido, atlético e invadiu-a, a levando ao delírio. E Marcia foi invadida por ele de formas desconhecidas, o sentindo passear por dentro dela. Sean tocou as madeixas morenas que lhe caíam no rosto, madeixas de textura leve, úmida, perfumada, com a certeza de nunca ter tocado fios de cabelo como aquele.
— Nós... — Sean sentia-se em transe fazendo sua cabeça girar mais uma, e outra e outra vez.
— Nós?
— Nós não devíamos estar fazendo isso, devíamos?
Marcia Toledo só sorriu e o levou a invadi-la outra vez. Para dentro para fora, para dentro e saindo dela.
Tonto, confuso, e entorpecido, Sean Queise entregou-se aos caprichos daquele amor.
Porque ambos eram adrenalina pura, queda vertiginosa, êxtase total.
21
Cabana, Floresta de Jorat; Lausanne, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 30” E.
04 de abril; 08h08min.
Marcia acordara antes dele. Ficou vendo Sean acordar, olhar em volta, ver que a cabana lhe parecia familiar.
Mas estava decorada, limpa, perfumada; um ninho de amor.
— Bom dia! — ela exclamou e ele só conseguiu piscar. — Vamos! Levante-se! — sorriu-lhe magistralmente a jogar o cabelo liso, negro, de um lado para o outro como Kelly fazia. — Quero te levar a um lugar.
“Lugar?” foi só o que Sean teve tempo de pensar, se trocar e sair ainda vendo uma jovem Kelly na Marcia feliz.
Os dois andaram muito até o lado oposto da cabana. Sean lembrava-se da fuga, dos cães, do corpo da alienígena Clara sendo carregado, da alienígena serpente-sentinela do lago os salvando quando de repente Marcia parou e lhe sorriu. Sean nada entendeu, mas sorriu-lhe também. Marcia havia alugado um Jeep com tração para neve.
— Aonde vamos?
— St. Beatus! — Marcia sorriu-lhe ao fechar a porta, ligar o Jeep e partir. — Quero mostrar-lhe a face oculta da Suíça turística.
— “Face oculta”?
— O maravilhoso mundo subterrâneo das grutas e cavernas helvéticas.
— Devia ter entendido?
— Sabe que existem na Suíça, catalogadas, cerca de 7.500 cavernas e grutas? No total, mapeados mais de mil quilômetros de mundo subterrâneo, chamados ‘O buraco do inferno’?
“Buraco?”, Sean não acreditou no que ouviu.
Percebeu que nada sabia sobre Marcia Toledo.
O Jeep balançou, derrapou, mas alcançou a estrada. Eles saíram de Lausanne em direção à cidade de Interlaken.
— Aqui no Cantão de Vaud, a 40 km da capital de Lausanne e perto da fronteira com a França, as grutas de Vallorbe oferecem um espetáculo fascinante. Com seus drapeados em pedra digna de um vestido de noiva, as grutas de Vallorbe estão entre as mais visitadas da Europa.
— Uhm... — a olhava de lado tentando decifrar a aula de geologia.
— A escuridão eterna, as baixas temperaturas, a alta umidade, a escassa alimentação fazem das grutas e cavernas, um ambiente hostil à vida. Porém, por milagres que só a sua Terra pode proporcionar algumas espécies animais adaptaram-se às situações adversas.
“Sua Terra?”; Sean agora teve medo dela.
— Não é de se admirar que os pequenos habitantes das cavernas, sem olhos nem pigmentação, fossem confundidos, no século XVII, com larvas de répteis.
— Serpentes?
— Viperina, do latim Vipera e do grego Aspis, que significa serpente — Marcia gargalhou parecendo se divertir com aquilo.
“Poliu?”, Sean queria com todas as suas forças não pensar naquilo, acreditar que Marcia também era uma das jovens agentes de Mr. Trevellis, apagadas dos anais da Poliu, livres para agirem.
— Na Suíça foram classificados 95 tipos de criaturas que jamais abandonam as grutas durante a vida. Representantes deste grupo, como lesmas, répteis, centopeias e minhocas são consideradas tipo subterrâneo por excelência — Marcia prosseguia e Sean se encantava, era verdade. — Sabe que há evidências mais do que suficientes, que indicam que uma forma de vida réptil, altamente evoluída, interagiu com seres humanos ao longo de nossa existência, Sean? — Marcia o olhou e Sean ficou na defensiva. — Você é um deles!
— Sou um o quê?
— Você é um daqueles que Cybele falava! Dos que acreditam em serpentes alienígenas! — gargalhou Marcia.
— Desde quando ‘Cybele falava’? Nunca a ouvi...
— A presença de serpentes alienígenas tem sido testemunhada em cada canto da Terra pelas mais diferentes pessoas — cortou a fala dele. — Sempre me pego pensando no fato destes répteis terem realmente estado aqui.
— Se pega? — Sean riu. — Wow! Nunca pensei em você se pegando a pensar em serpentes alienígenas...
— A pergunta é ‘De onde elas estão vindo’?
— Elas estão vindo... — e Sean já não sabia mais qual era seu papel ali. — Isso deve ser assustador para você, não Marcia? Serpentes espaciais? Répteis alienígenas? — riu debochado.
— E por que seria? Acha que não tenho a mente aberta?
— Mente aberta? As teorias sobre a origem das formas de vida alienígena reptiliana parecem considerar três aspectos, Srta. Marcia Toledo... — piscou charmoso. — Primeiro, eles são extraterrestres, seres de outro planeta ou sistema estelar, segundo, eles são intraterrestres, seres que são formas de vida da Terra Oca que evoluíram naturalmente, e que residem em cavernas intraterrenas, cidades subterrâneas, e bases subaquáticas... E terceiro...
— “Terceiro”? — Marcia percebeu sua parada.
— Eles são intradimensionais, irmandades de serpentes alienígenas existindo em níveis vibracionais — Sean acabou de falar e Marcia acelerou o carro; ele não se deixou levar sorrindo o cínico que era. — Embora exista uma grande quantidade de dados apoiando cada teoria dessas, arquivos confidenciais de ufólogos competentes, dizem que os fatos, talvez sejam que as três teorias estão corretas.
— Arquivos confidenciais... — e se perdeu por ali. — Serpentes alienígenas que vivem em cavernas e que é ‘pura alma’, Sean? — voltou a gargalhar. — Vivendo em outras dimensões próximas as nossas?
— Próximas não Marcia, entrelaçadas — e Sean não gostava quando ela gargalhava daquela maneira. — Mas deixe-me lhe perguntar de novo... Aonde quer chegar com tudo isso, Marcia Toledo?
Marcia divertia-se com ele, era notório.
— Não sei aonde quero chegar Sean Montebello. Ando me perguntando muito nisso ultimamente.
— “Nisso”? — Sean a olhou de lado, havia algo sombrio naquilo tudo.
— Sabia que no Cantão do Valais, ainda na parte francesa da Suíça, se encontra o maior lago subterrâneo da Europa, Sean?
— Não! Deveria saber?
— Deveria! Por causa do lago, que alcança 260 metros de comprimento e uma profundidade máxima de 13 metros, a gruta de St. Leonard é a mais visitada do país.
— Achei que estávamos indo a St. Beatus.
— Não!
— Não?
— Vamos à gruta de St. Leonard, encontrar nossos ancestrais do período neolítico que já a usava de abrigo.
— Wow! Não sabia que tínhamos ancestrais do período neolítico nos esperando para o almoço — riu voltando a olhar Marcia, e como era linda.
Porque ele sabia que estava deixando-se levar por ela e seus longos cabelos negros, iguais aos de Kelly. E como ele também gostava de Kelly Garcia, agora sabia.
Tentou se desviar daqueles pensamentos, ainda estava investigando aquilo tudo, cada vez mais perdido por entre informações cada vez mais desconcertantes, ilógicas e sombrias como ela.
Marcia percebeu.
— Quero ‘almoçar’ você.
— Me almoçar? — Sean a olhou. — Estou tão disponível assim?
— Não! Mas temos sempre algo a oferecer.
— Está barganhando algo, Marcia?
— Nunca barganho Sean!
“Droga!”, Sean não gostou de ouvir aquilo; e era mais medo que tesão.
Marcia prosseguiu:
— Conhece a lenda das Sibilas, feiticeiras capazes de prever o futuro na antiga Roma? — Marcia dirigia olhando para ele sem prestar atenção na estrada. — Um belo dia, uma delas apareceu no palácio do Imperador Tibério com nove livros; disse que ali estava o futuro do Império, e pediu dez talentos de ouro pelos textos.
— Olha para frente — Sean se alertou.
Mas Marcia continuava a dirigir só olhando para ele.
— Tibério achou caríssimo e não quis comprar. A Sibila saiu, queimou três livros, e voltou com os seis restantes. “São dez talentos de ouro”, disse. Tibério riu, e mandou-a embora. “Como tem coragem de vender seis livros pelo mesmo preço de nove?”, se perguntava.
— Olha para frente Marcia — apontou.
— A Sibila queimou mais três livros e voltou para Tibério com os únicos três volumes que restavam: “Custam os mesmos dez talentos de ouro”. Intrigado, Tibério terminou comprando os três volumes, e só pôde ler uma terça parte do que o futuro lhe destinava — Marcia enfim olhou para frente.
Sean não sabia o que dizer sobre aquilo.
Lago Subterrâneo de Saint-Léonard, Cantão de Valais; Suíça.
46° 15’ 23” N e 7° 25’ 32” E.
04 de abril; 11h11min.
O Jeep chegou pedindo combustível e Marcia desceu do carro para abastecê-lo enquanto Sean entrou no pequeno restaurante para tomar água. Ela o observava com interesse e ele ficou pensando se ela não o observava, achando se ele iria se comunicar com alguém.
Sean não tinha celular, GPS nem a arma pedida. Não sabia se Oscar havia tido tempo de colocar tudo lá antes dela ter alugado a cabana. Sentia-se andando em círculos com tudo o que envolvia a École Hoteliere Dubois. Suspirou desanimado e pegou uns poucos panfletos turísticos disponíveis ali, tomou água e saiu do pequeno restaurante.
— “Il y a plusieurs millénaires elles servaient déjà comme abri pour les populations du Néolithique” — leu ele olhando para Marcia que era mais do que falava.
Marcia sorriu e pagou o combustível, e ambos partiram.
Chegaram à pequena cidade com ela dirigindo até a gruta St. Leonard. Marcia estacionou e eles entraram num pequeno museu se dirigindo ao guichê, comprando duas entradas para o barco.
— A caverna tem 300m e o lago 260m de cumprimento. Há luz elétrica em toda sua extensão. Não se preocupe, Sean.
— O que lhe faz pensar que estou preocupado?
Marcia não respondeu.
Havia mais oito turistas na fila e Sean e ela foram com mais quatro turistas no primeiro barco, encantado com o que via.
— Este é o lago subterrâneo mais profundo da Suíça — a voz dela alcançou a todos. — O nível de água já foi maior, mas um terremoto com uma magnitude de 5.6 na Escala Richter abriu fissuras adicionais na caverna em 25 de janeiro de 1946.
— Interessante — respondeu ele.
— O acesso ao lago também foi fechado entre o ano 2000 e o ano 2003, para a colocação de mais de 5.000 parafusos, a fim de manter a estabilidade do local.
— Interessante — voltou a falar sabendo que ela era mais que bem informada.
As paredes da alta caverna e todas as estalagmites pareciam ser coloridas de azul do reflexo de suas águas. Marcia respirava feliz. Ela realmente estava feliz com algo, com ele, com o local.
Sean olhava Marcia que também o estudava o tempo todo. Ele já não conseguia mais ficar ao lado dela sem beijá-la. Beijaram-se a esquecerem de onde estavam. Marcia deliciava-se com os lábios úmidos e macios dele. Ele se encantava com os suaves fios do cabelo dela que teimavam estranhamente em se enrolar em seus braços.
A visita à gruta terminou e Marcia dava sinais que queria ‘almoçá-lo’. Os turistas se afastaram com o guia e Marcia o puxou.
Sean foi quase arrastado cada vez mais dentro da caverna.
— O que vai fazer? — Sean até sabia que ela não responderia, e eles andaram muito margeando o grande lago subterrâneo até chegarem num grande lobby de estalactites. — Wow! Como isso é lindo.
— Você é que é lindo Sean! — Marcia o analisava, sorrindo enigmática e voltando a andar.
Sean não via alternativas a não ser se embrenhar cada vez mais para dentro da caverna que mais parecia uma catedral inundada, brilhante, misteriosamente iluminada. E Marcia só parou depois de molharem os pés na caverna quando ela se virou para ele, o querendo.
Sean girou os olhos ao redor.
— Aqui?
— Aqui!
Sean sentiu que se inclinava não sabia como. Seus corpos tocaram a umidade da caverna, num canto iluminado por algo que esverdeava as paredes.
E ele mal acreditou na mão rápida que lhe invadiu.
— Ahhh... — foi tocado despudoradamente, massageado, movimentado em sentido de ida e vinda, levado a outro nível existencial.
— Sean...
— Marcia... — sentiu-se abandonando o corpo, literalmente.
“Sean... Sean... Sean...”, vozes surradas o alcançaram.
Sean voltou a si sentindo Marcia levemente nublada, em meio a imagens confusas que se projetavam ali. E fosse o que fosse aquilo, as vozes, as imagens, Sean sentia-se excitado, a desejando.
— Me ame! — foi a ordem dada.
Voltaram tarde da noite para a cabana, sem ele saber como.
22
Cabana, Floresta de Jorat; Lausanne, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 30” E.
05 de abril; 06h38min.
A sirene estridente soou por toda Floresta de Jorat; a chamada da bandeira havia sido acionada. Sean entrou em pânico ao abrir os olhos e ver que já amanhecia.
Marcia lhe trazia café.
— Bom dia... — a voz dela era metálica.
Sean também não conseguia ver seu rosto nitidamente.
— Como... — esfregou as vistas e olhou em volta, a cabana também estava embaçada. — Como chegamos aqui? — Sean olhou em volta vendo Marcia se vestindo. — Como eu dormi tanto? — mas Marcia nada falava. — Não me lembro de sairmos de St. Leonard, Marcia? Não me lembro de chegar aqui... — outra vez o som estridente da chamada da bandeira chegou até eles. — Esse som é do estiar da bandeira, não é? — ele viu Marcia se esticar e outra vez não responder. — Está escutando? Marcia? Marcia? Não, claro que não escuta, porque também não escuto nada — Sean olhou para a cabana que ondulava.
Nada se ouvia, nem sua própria respiração.
— Sean... — ela se virou e o beijou quando a imagem assim como o som se firmou. — Acho que Cybele arranjou um bom motivo para estear a bandeira e esquecer os lutos, não? — riu Marcia ao vê-lo confuso e apavorado. — O quê? Está triste pela morte de Bruce, Beth e Pitt?
— Você não está?
— Por que estaria?
— Não sei. Não te incomoda quando uma vida jovem se torna tão curta?
Marcia se serviu de uma torrada com geleia e o encarou. Mas o silêncio dela se transformou em silêncio total, quando Sean sentiu um aperto no peito ao vê-la suja de geleia.
— Sean? — ela o viu levantar-se desesperado, se vestir nem soube com que rapidez. — Sean o que houve? Aonde vai? — e a porta bateu. — Sean?! — Marcia se levantou e olhou-se ao espelho percebendo o erro. — Merda! — e abriu a porta. — Sean volte aqui!!! — ela berrou furiosa para o frio da floresta.
Mas Sean invadia a floresta fria, a neve gelada, correndo até perder a cabana de vista, atravessando a densa Floresta de Jorat, tropeçando, se levantando, disparando os passos à quase não conseguir parar mais. Estancou no precipício confuso, atordoado, numa vontade louca de se jogar, de acabar com a sua vida.
— Não!!! — berrou ele ao se ajoelhar e chorar.
Marcia ainda se olhava no espelho, a imagem de mulher bonita, de olhos verdes brilhantes, e a geleia moldando uma verruga no rosto dela, no rosto de uma Aline de olhos verdes e brilhantes.
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
05 de abril; 07h30min.
Um silêncio caiu na classe quando Sean entrou, ele havia chegado tentando se lavar, lavar-lhe a alma com o banho. Mas só encontrou uma carteira vazia, a que ficava em frente de Marcia que havia voltado também. E todos haviam percebido a fuga deles.
A aula de etiqueta geral terminou e Sean nada assimilou. Marcia tentava ver o rosto dele, mas ele à sua frente quase não se movia. Todos saíram para um intervalo e Marcia esperou ele se levantar.
— Sean? — tentou carinhosa.
— Seria idiotice buscar a infantilidade perdida... — falou nem soube como. —, tanto quanto seria inútil tentar encontrar o caminho de volta para a inocência — divagava feito um poema.
— Sean...
Ele se virou para ela.
— Eu fiquei muito triste quando cheguei a École e vi as brincadeiras, as fugas e os namoricos, me dei conta que havia crescido sem amigos, que não havia brincado o suficiente, que não havia feito coisas que jovens ditos normais, fazem. Esqueci até que amar era um ato simples.
— Não gostou? É isso?
— O que me doe Marcia, é ter gostado. Porém envolver-me com um tipo como... Deus... — e Sean se foi.
Marcia arregalou os olhos verdes a fazê-los quase saltarem, e eles brilharam na imensidão da classe vazia, sentindo uma dor infinita, aquela que julgou nunca existir. Marcia se levantou e foi atrás dele, no corredor. Aproximou-se dele quando todos se afastaram os deixando a sós, no corredor de armários de metal e histórias de almas que vagavam por ali, se materializando.
Marcia percebeu que Sean também as via, e teve medo do que percebeu.
— Je veux faire l’amour avec toi? — e as almas sumiram. Marcia viu Sean se virar e ir embora. — Sean? Eu estou amando você, Sean? — mas ele continuava a se afastar dela. — Por favor, Sean! Amei-te desde o primeiro momento em que te vi.
E Sean se virou furioso.
— E quando foi Marcia? Consegue recordar? Ou a neblina era forte demais naquela estação de trem?
Marcia sentiu um buraco abrir sobre seus pés e Sean foi embora outra vez.
— Sean? Sean? — mas ele não se virava. — Sean Queise?! — gritou Marcia furiosa.
Sean estancou se virando para trás estarrecido.
— Quer que os Luciedes me matem?
— Tenho salvado sua vida até agora! — exclamou Marcia num rude tom de voz. — Não é justo! Eu o quero! Você me pertence!
— Pois vai ter que me entregar à morte para me tocar outra vez Marcia Toledo, ou que nome você tenha — e Sean entrou na aula encarando a todos, com medo que tivessem escutado algo.
Marcia ameaçou entrar na sala e todos ouviram um grito gutural invadir a École Hoteliere Dubois.
— O que foi isso? — perguntou Mitti se levantando da cadeira.
— Não sei... — Silvya estava apavorada.
Sean até ficou confuso se ouvira direito, mas todos saíram da sala atrás de Marcia, e ele foi atrás de todos pelos corredores.
Um novo grito, agora de dor, ecoou outra vez pela École e Louis vinha de algum lugar quando se chocou com Marcia e caiu no chão ofegante.
— June... June... June... — e Louis apontava para o corredor que acabara de virar. — June está morta...
Sean e todos alcançaram Marcia e Louis caído. Marcia correu na frente outra vez e todos invadiram a biblioteca, vendo a sensível June se contorcendo de dor e Maykon tremendo descontrolado, encostado na estante do fundo.
— O que faz aqui Maykon? — falou Sean olhando para todos os lados, procurando uma almofada para proteger a cabeça de June que batia com força no chão da biblioteca, num sintomático choque epilético.
Eunice, Mary Ann e Monica estavam paralisadas na porta, quando o fim das pancadas da cabeça de June anunciaram o ato.
— Ohhh! — soou ali.
— Não! — Sean se desesperou e começou fazer massagem cardíaca.
— Sean? — Marcia o chamou, vendo-o desesperado. — Sean? Pare Sean!
— Não! Não! Não! — fazia massagem com tanta força que o corpo de June balançava.
— Sean? Sean? Sean?! — gritou Marcia. — Ela já morreu.
Sean olhava o corpo quase seco dela, e na sua mão direita, um Orb, uma esfera de metal feito o UFO que uma vez pairou sob sua janela, feito o UFO que o perseguia pela Floresta de Jorat ao salvar Clara, feito os UFOs que iam e vinham com as serpentes alienígenas, e que Maykon pegou, escondendo no blusão.
— O que... — Sean ia perguntar a Maykon quando outra coisa lhe desviou a atenção. — Ela esteve aqui — falou para si mesmo.
— Quem? — perguntou Marcia.
— Ela!
E Marcia e Sean haviam se comunicado naquele olhar.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
05 de abril; 17h31min.
A porta da biblioteca foi aberta num rompante, o policial John saiu bufando. Mais um corpo havia sido levado para a autópsia. Cybele proibiu que os alunos saíssem dos quartos até a saída dos médicos legistas e a equipe de cenas de crime, mas ninguém obedeceu. Não houve alternativa se não as aulas serem suspensas.
Na verdade nenhum professor apareceu para dar aula. Temiam o escândalo em que se envolvera a École Hoteliere Dubois, e por isso, o policial John tentava a todo custo fazer com que Cybele assinasse o mandado do Juiz para o fechamento da École.
— Não!!! Não!!! E não!!! — brandia ela. — Ninguém manda em mim!!! — gritava Cybele descontrolada. — Eu vou falar com o delegado, com o prefeito, com a autoridade maior!!! Não enxerga que foi aquela fedelha da June quem matou todo mundo?! Matou minha sobrinha querida, Bruce, Beth, Pitt, ela própria; e eu vou sofrer quantas vezes mais?! — berrava.
O policial John suspirou profundamente.
— O delegado recebeu uma chamada da família das jovens Eunice e Monica Hambüa, que mandou buscar as filhas em Lausanne no final da tarde, e não as querem nem mais um só minuto aqui. O delegado tem ordens por escrito, também, da família do jovem Adelfo Kyriapokos que mandou o menino ir para um hotel, que os advogados deles na Europa estavam voando para cá, e não querem precisar entrar em conflitos com a École — e terminou de falar para Cybele que estava em estado de choque.
Os poucos alunos que circulavam pelos corredores das salas de aula ficaram paralisados pela briga. Sean e Marcia estavam lá, separados um do outro. Marcia alternava sua atenção entre a discussão de Cybele com o policial e sua atenção sobre Sean, arrasada com o descaso dele. Maykon se aproximou e Sean subiu. Maykon olhou Marcia e ela não gostou de ter sido olhada.
Maykon também subiu e uma batida leve na porta de número 5-5 se fez logo depois.
Foi Maykon quem abriu.
— Posso falar com ele? — pediu Marcia.
— Ele está descansando!
— Quero falar com ele!
— Não podemos decidir nunca, não é? — e Maykon encarou Marcia que também não gostou do que ouviu.
Maykon saiu e deixou Sean absorto em seus pensamentos. Marcia se tomou de coragem:
— Ao contrário do que você pensa, eu sinto muito por June, Sean — falou carinhosa ao se aproximar de sua cama. Como ele nada falou, Marcia sentou-se na beirada como quem tem medo de se aproximar, como quem tem respeito. — Cheguei tarde!
Sean ergueu às vistas e a encarou.
— Quem é você?
— Não tenho nome. Sou uma espécie de investigadora.
Sean cerrou os olhos jogando a cabeça para trás.
— Não é hora para piadas!
Marcia tentou tocá-lo, mas ele recuou.
— Vou te explicar, eu prometo.
— Que tipo de investigação faz?
— Trabalho, pode-se dizer assim, para a Confederação Intergaláctica.
— Confederação?
— Sou uma...
— Uma alienígena! — ele exclamou com força.
— Nunca! — Marcia ergueu-se até parecer ficar mais alta do que já era. — Os alienígenas são raças inferiores! — cerrou os dentes. — E vocês humanos, é que são híbridos. Nós, humanos puros — e Marcia falava de uma maneira que assustava mais que elucidava.
— Ah! Por favor, Marcia! — ele temeu o tamanho da elucidação. — Papai Noel não existe, fada não existe, alienígena não existe.
— Chega! — Marcia incomodou-se com as provocações de Sean. — Fui chamada ao Planeta Terra para investigar as ações de um humano híbrido que estava contrariando as leis intergalácticas.
— Que tipo de humano híbrido? Nós misturados aos Anunnaki ou essas serpentes misturadas a sei lá o que?
— As serpentes não são misturadas, são...
— Não me importa! Que leis esse humano contrariou?
— As leis do equilíbrio.
— Quer dizer que o equilíbrio estava sofrendo riscos?
— ‘Está’ sofrendo riscos, Sean Queise — Marcia foi direta. — Desde quando vocês humanos aprenderam a andar, a pensar...
Sean sentiu uma rajada de ácido corroer seu estômago, sentiu temor nas palavras do que era aquilo que se chamava Marcia Toledo.
— Que humano híbrido você investiga?
— O humano híbrido a que vim investigar é Leopold Braushin, que está escravizando serpentes alienígenas em troca do uso de seus poderes.
— Que poderes? Das serpentes alienígenas coletores de corpos?
— Sim.
— Por que as serpentes alienígenas coletam corpos?
— Para se alimentar. Como já falei, são raças inferiores. Alimentam-se do corpo e da memória dos recém-mortos.
— Deus... — sua cabeça doía. — Acho que nunca vou entender, não?
— Se você deseja...
Sean a encarou.
— Ok! O que Leopold dava aos coletores de corpos para que ocorresse o tal desequilíbrio?
— Almas humanas; cada vez mais.
— Quantas serpentes alienígenas estão aqui na Terra?
— Muitas, de várias espécies, entre os humanos, pelos quatro cantos.
— Não minta! Perguntei quantas serpentes alienígenas coletores de corpos, que você fez questão de dar-me uma aula antes de me comer na gruta, estão aqui na Terra?
Marcia sorriu.
— Não precisei dar aula alguma antes de comê-lo Sean Queise, você sempre foi um estudante das efemérides, já que seu satélite de observação conhece cada constelação habitada — e Marcia o quis beijá-lo.
“Spartacus?”; Sean teve medo dela.
— Conhece meu satélite?
— Seu? Achei que o havia criado para seu pai.
“Meu pai?”; Sean a temeu mais ainda.
Olhou um lado e outro também, com medo de estar ali sozinho com ela.
— Como Leopold Braushin, sendo um humano híbrido ou sei lá o que, e sem poderes, fez com que serpentes alienígenas parassem de procurar corpos recém-mortos e procurassem os vivos?
— Ainda não descobri.
— Ainda? Ótimo! Nossa raça raiz e ainda não descobriu.
— Ainda não tenho certeza se ele barganha algo.
— Que fiasco! — a desafiava.
Mas Marcia queria outra coisa. Tentou se aproximar no que ele recuou.
— Não faça isso Sean Queise...
— Não faça o que? Quero saber como Leopold Braushin conseguiria barganhar por corpos e almas da própria espécie dos coletores? Como ele conseguiu escravizar um povo inteiro e depois matá-los, sem que essas serpentes alienígenas se revoltassem? Quem são os Braushin? — e Sean não ouviu resposta. — Claro! É que você ainda não descobriu... — olhou-a quieta. — Eu devia ter lido os tais arquivos confidenciais, não? Porque talvez a Poliu e a Polícia Mundial tenha informações sobre investigadores da confederação que a confederação nada sabe.
— Não compreendo muito bem suas ironias Sean Queise, mas nunca permiti ser incluída num arquivo desses, porque nunca permiti que soubessem que eu existia, porque sou algo muito superior para que um bando de lunáticos consiga me compreender.
— Bando de... — e Sean teve medo de continuar aquilo. — Você os conhecia?
— Quem?
— Os ufólogos lunáticos do trem?
— Não sei do que está falando.
— A sociedade simbiótica?
— Não sei do que está falando.
— A Hautch Propieté?
— Com quem você fechou um contrato para que Leopold Braushin pudesse escravizar mais serpentes alienígenas espalhadas pelo mundo, e destruí-los até o final da raça humana?
— Wow! Wow! — Sean se ergueu. — Do que está falando você? Meu único trabalho com a Hautch Propieté era informatizar suas fábricas de alimentos. Esqueci-me de perguntar quais, não?
— Como pode ver não sou a única espécie enganada pelos Braushin.
— Droga! — Sean voltou a se deitar nervoso. — Enganados pelos Braushin... Um mundo onde só sobrariam eles, os Luciedes e um exército de almas vivas... Você conhece Trevellis?
— Conheço a Poliu. Mr. Trevellis é só mais um Mister na Poliu em sua longa carreira, digamos, diplomática.
— Conhece meu pai? — Sean nem soube perguntou aquilo.
— Os dois.
— Droga... — Sean viu Marcia delineando cada contorno do corpo dele quando teve um orgasmo. — Ahhh... O que você... O que você... — e Marcia se aproximou de uma forma que ele sabia que estava paralisado, excitado até o último pelo do corpo, escorregando seu corpo, seu sexo ereto até abrir as pernas e se encaixar nela que nada movia. — Pare com isso... — soou quase como um apelo.
— Se você deseja...
E Sean voltou se encolheu excitado.
— Eu... — balançou a cabeça e tentou resistir àquilo. — Eu desejo...
— Se você deseja...
E Sean percebeu que havia algum código de honra ali, algo que não a permitia fazer o que outros não queriam, desejavam; livre-arbítrio.
— A Computer Co... — tentou realmente se desligar do corpo ereto. — A empresa esteve envolvida com vocês? Digo... Droga! Trevellis e meu pai, e os mainframes... Eles ajudavam vocês da confederação de alguma forma? — Sean observava a aproximação, os olhos de Marcia brilhando quando ficava nervosa. Os mesmos olhos verdes que o encantaram na estação de trem de Lausanne, na cabana, que impunha sua vontade sobre seu sexo. — Sabia que eu era Sean Queise esse tempo todo, não?
— Quando cheguei à Terra no Réveillon...
— No Réveillon?
— Sim! Vim para Lausanne e aluguei a cabana no alto da Floresta de Jorat.
— A cabana?
— Passei a investigar a École Hoteliere Dubois e a morte da menina Aline. Também passei a investigar os Braushin até chegar a você, no Lago Léman, fechando um contrato com a Hautch Propieté.
— “Aliment du Démain”! Realmente esqueci-me de perguntar qual — olhou-a. — Disse que alugou a cabana?
— Como é que é?
— A cabana estava vazia quando levei Clara lá
— Quem é Clara?
— Clara... A serpente alienígena protegida pela serpente-sentinela do lago que... — e Sean teve medo dela outra vez, porque algo nela ia muito além de contos de ficção. — Já a viu, não?
— A sentinela das serpentes? Nunca a encontrei. Meu trabalho aqui na Terra não é encontrar a serpente-sentinela do lago.
— Para alguém vinda da raça raiz você não é muito esperta, não? — Sean viu Marcia não gostando muito de suas ironias; entendendo-as ou não.
Porque Marcia sabia que Sean a testava.
— Admito! Eu errei!
— Errou? — ficou perdido.
— Não devia ter-me feito passar por Aline naquela viagem, foi uma brincadeira inútil.
— “Brincadeira”? O trem não existia...
— Não existia? Do que está falando? — Marcia brilhou os olhos naquela estranha mescla de verde. — Tomamos o trem, lembra? E aquele homem suado sentou-se com você, lembra?
— Você estava naquela viagem?
— Casaco vermelho, boina azul, três poltronas à frente da sua.
— Você, a mulher das perolas, o homem e a filha... — e parou. — E o trem... E a estação... Foi a serpente-sentinela quem plasmou tudo?
— Tudo?
— Não foi ela quem plasmou?
— Plasmou o que? Não consigo entender suas ironias.
— Não estou sendo irônico.
— Sean Queise, já falei que me apaixonei por você quando lhe vi no lago, com seu funcionário, fechando o contrato.
— Viu-me com Ernest? Mas era ela...
— “Ela”? No que está pensando?
Sean jurava que preferia não estar pensando.
— Você conhece a serpente-sentinela?
— Por que a insistência?
— Porque Lück disse que ninguém se mete com ela. Então os... — e passou a divagar em voz alta sem perceber. —, os Luciedes não podiam ter matado Pitt, não? Porque Pitt veio com vocês...
— Você está bem, Sean?
— Sim! — mudou rapidamente quando sentiu o perfume que Sandy Monroe usava; sentiu-se entorpecido virando o rosto para o lado engolindo a seco aquela provocação, sabendo que era Marcia quem brincava com seus medos, que envolviam Sandy sempre o avisando do perigo, do perigo de estar ali com ela.
— Eu te segui quando pegou o trem em Genebra para Lausanne.
— Não peguei o trem para Lausanne. Peguei o trem para Zurick. As acbiens estavam lotadas então desci em Nyon.
— Você desceu em Lausanne. Eu estava três bancos à sua frente quando o ufólogo suado veio falar-lhe.
— Como sabia que era um ufólogo?
— Já disse. Sou uma investigadora.
Sean sabia que aquilo não podia ser verdade, ele parou o trem, todos caíram, ele desceu deixando o netbook e o contrato no cofre.
— Eu levei o netbook.
— Fez o que?
— Estava com ele no hotel, em Nyon... Mas eu viajei com ele... O coloquei na cabine 5-5...
— Do que está falando Sean Queise?
— Você colocou o jornal no restaurante do hospital para me testar? Droga! Era você na lanchonete do hospital?
— Não se exalte!
— Não me exaltar?! — gritou já exaltado. — Então também viu os Luciedes me atacarem?
E Sean recuou no que Marcia tentou beijá-lo.
— Sean...
— Sean? Droga! Viu Lück atacar Günter? — agora Sean não gostou de Marcia demorando mais que o normal para responder, que encolheu os lábios e os liberou num sorriso. — Foi você quem me avisou sobre a reunião de Leopold Braushin na clínica?
— Não sei do que está falando, Sean Queise — Marcia se levantou. — Percebe-se que está confuso. Temo que deva lhe dar um descanso... — e sorriu mais uma vez para ele. —, mais prolongado que uma noite de sono embalado pelo meu corpo — e Marcia bateu a porta quando saiu.
Sean estava tão atordoado que uma existência toda de sono não o faria descansar.
Maykon entrou após a saída de Marcia e Sean o ficou olhando, compreendendo quase tudo.
“Mas quase tudo o que?”, foi o que Sean pensou.
23
Centro Hospitalar Universitário; Cantão de Vaud, Lausanne.
46° 31’ 30” N e 6° 38’ 36” E.
06 de abril; 10h00min.
— Impossível! — exclamou Sean a observar o soro pingar para dentro do tubo que estava preso ao braço que envelhecia. — Impossível!
— Calma, meu filho! — disse Oscar ainda sentindo muita dor.
— Calma? — continuava a andar pelo quarto do hospital, descontrolado. — Como ela pode fazer aquelas coisas?
— Que coisas ela faz?
— Não sei, não sei. Aquela viagem... A cabana... Ela me intriga, não entende?
— Eu já expliquei que não consegui realmente alugar a cabana, que já estava alugada por uma imobiliária de Lausanne.
— Mas ela disse que estivera lá desde antes da minha chegada a École. Mas a cabana estava diferente quando deixei Clara lá ferida e...
— “E”?
— Alguém acessou Spartacus para chamar aquele táxi até o funicular, alguém me levou até a clínica quando Leopold sequestrou Clara, e Lück Laun disse que Leopold estava matando serpentes alienígenas. Então se Marcia é uma investigadora do tipo ‘fôrma original’ então como nunca viu a serpente-sentinela do lago? — e viu Oscar lhe olhando. — O que? Achando que Umah e eu tivemos insights Oscar querido?
— Não é hora para brigarmos — estava nervoso. — Se o que essa tal de Marcia falou for verdade... — prosseguiu Oscar sem entender nada. —, então precisamos esquecê-la e focar na Hautch Propieté a fim de saber se essa serpente-sentinela está ou não ligada a eles.
— Esquecê-la? E se o que Marcia falou não for verdade? Como ela pode achar que a serpente-sentinela do lago é de uma importância quase secundária?
— Não sei. Se ela se acha tão original, raça raiz, então todos alienígenas e nós terráqueos, que também somos alienígenas para eles, somos secundários.
— Não! Não! A serpente-sentinela do lago está aqui para procriar, Oscar... — e Sean parou de falar arregalando os olhos para o chão que se movia lentamente até ele. — Viu isso? — apontou para o chão. — Viu o chão... — e Sean jogou a cabeça para trás parecendo desmaiado.
— Sean? — Oscar o chamou, mas ele não respondia. — Sean? — e Oscar viu o chão que se inclinava. — Sean?! — mas Sean não conseguia responder, com seus olhos virando sem controle e seu corpo entrando em curto circuito. Sean caiu no chão e Oscar saltou da cama arrancando todos os tubos preso a ele. — Sean?! Sean?! Socorro!!! Alguém ajude?! — e uma língua verde, fina e pegajosa saltou do encontro dos pisos e ateou-se a pescoço de Oscar, apertando com força. — Ahhh... Ahhh... — e seu corpo foi jogado na cama e lá ficou paralisado.
Se Oscar tinha dúvidas, a serpente-sentinela alienígena que se apresentava já não era mais um insight, no que um som de papel amassado tomou conta do quarto de hospital e a serpente-sentinela do lago se plasmou em Èquidna, meia mulher meia serpente, balançando sensual até Oscar.
Oscar entrou em pânico com todo seu corpo agora amarrado pela língua úmida, olhando moldarem-se seios empinados, barriga perfeita, coxas insinuantes, andando até ele com cabelos lisos que pareciam balançar num vento que não existia.
— Oscar querido... — a serpente-sentinela do lago fez soar sensualmente.
Mas Oscar não parecia estar tão agradecido pela gentileza de ser chamado pelo nome.
Viu Sean em total curto-circuito.
— Solte-o! — exigiu.
— Quieto!!! — gritou ela fazendo, agora, um vento soprar tão forte que os lençóis foram ao chão, os vidros na mesa de cabeceira se projetaram e os cabelos brancos de Oscar ficaram em total desalinho. — E preste atenção porque não sou de repetir! — dizia a serpente-sentinela descontrolada.
Oscar arregalava agora toda a sua face e o som não reverberava no quarto de hospital.
“Sean” Oscar teve medo de ver Sean tremendo no chão, não parecendo estar raciocinando.
A serpente-sentinela leu os pensamentos dele:
— Não se preocupe! Não vou machucar Sean... — ela viu Oscar não gostando da intimidade para com seu filho. — E você também não vai querer machucá-lo, não é? — Oscar nada respondeu. — Não é?! — berrou e Oscar fez que ‘não’ com a cabeça. — É por isso que vai desistir dele, vai esquecer que ele existe, e vai afastá-lo de todos que povoam seus pensamentos.
“Você sabe que não posso dizer a Sean para se afastar da família, dos amigos”, falou telepaticamente.
— Amigos? — sorriu encantadoramente. — E vocês permitiram ele ter algum? Algum outro que não aquela mulher que o consome?
“Kelly?”, Oscar teve medo de aquilo escapasse de seu pensamento.
— Você, Oscar querido, sabe melhor que Mr. Trevellis quem sou eu, e o que posso vir a fazer.
“Você não pode!”
— Posso! E dessa vez não vou me alimentar de corpos expostos nas suas guerras inúteis. Vou querer sangue novo, vivo, pulsante. E o resto do mundo nem vai saber o que lhes atingiu — e todo o quarto desestabilizou, as paredes ondularam e o piso levantou a fazer ondas, a fazer a mesa e as cadeiras caírem.
Oscar arregalou os olhos para o chão e o corpo de Sean em curto desaparecera junto com a serpente-sentinela do lago.
— Apport... — soou da boca trêmula.
06 de abril.
Sean acordou zonzo e em choque ao ver-se deitado na cama da École Hoteliere Dubois. Ergueu a mão e jogou o abat-jour no chão; nenhum som se pronunciou.
Entendeu que o quarto era plasmado.
— Por quê? — perguntou-se e sua voz também não reverberou.
Os olhos correram pelo lado. Não havia Maykon e nem a cama dele. Só a dele, como se o quarto tivesse sido esvaziado. Levantou-se se sentindo sonolento, gelado. Fumaça saía da boca enquanto ele colocava os pés no sapato. Som não fazia, mas uma música tocava não muito longe; era a primeira vez que um som reverberava numa cena plasmada.
Sean ficou arisco, andou devagar até abrir a porta e ver que a porta não era a mesma de sempre, que tinha frontões entalhados e a maçaneta era de bronze puro. O corredor do segundo andar da École Hoteliere Dubois estava vazio, mas também não era o mesmo por onde trafegava todos os dias. Tinha papeis de parede florido estampando as paredes, e luzes de velas em castiçais de cristal, dependuradas neles.
Sabia que aquele era uma École Dubois antiga.
“Droga!”
A música continuava longe e Sean desceu os degraus. Nada em volta a não ser o medo que tomava conta dele, das paredes geladas, do frio que o alcançava. O andar debaixo estava como o de cima, vazio, antigo. Sean olhou um lado e outro. Não pensou duas vezes e se dirigiu para o escritório particular de Cybele. A porta estava sem tranca e ele girou a maçaneta, uma pequena luz vinda do abat-jour iluminava o ambiente; papeis de parede florido estampando as paredes, luzes de velas em castiçais dependuradas neles.
Aquilo provocava medo.
Também havia uma mesa, duas poltronas coloridas, um tapete árabe e uma larga estante de livros lotada de porta-retratos; foi o que mais lhe chamou a atenção. Aquele era o motivo da empregada ter sido morta, os porta-retratos emoldurando rostos tão estranhos quanto as fotos ali envelhecidas pelo tempo. Pessoas de outras eras e também de outros planetas, que foram flagradas pelo que talvez fosse uma câmera.
“Híbridos sentimentais!”, algo começava a fazer sentido a Sean.
Cybele, em meio às serpentes alienígenas de cara de serpente-sentinela alienígena como Lück, que faziam um peculiar som de papel amassado, fora fotografada com a cabeça lotada de serpentes.
— Górgona! — Sean sabia que era aquilo. — Então Cybele é uma híbrida como todas as mulheres de sua família, que faz barulho de papel amassado quando se plasmam no que são... Górgonas... — e mais pensamentos desconexos e confusos povoaram-no. — Então Aline era uma híbrida também. Uma estranha mistura de alienígenas com outros alienígenas que podia ser ‘seca e esvaziada’ — Sean arregalou os olhos azuis. — Lück Laun e sua avó? Clara? As garotas na cachoeira? Será que também podem ser secos?
Olhou para os lados tentando assimilar tudo quando tocou a parede e um som metálico reverberou o apavorando. Parecia que uma grande parede se movia. E se movia, porque a escola tinha fachadas, mas ninguém via quem as modificava.
“Sean?”; reverberou uma voz estranha não muito longe.
Sean se esticou todo com medo daquilo. Tocou a parede outra vez e tudo começou a se movimentar na sala; mesa, poltronas, livros até que a estante escorregou para dentro da parede e mostrou a passagem de piso de terra batida, com paredes de mármore muito, muito antigas.
— A empregada foi morta, por saber do túnel. A mesma empregada que um dia já trabalhou nas melhores casas de Lausanne.
“Sean?”
E o susto brecou-lhe qualquer ação. Sean viu o garoto Pitt lhe chamando, com as mãos estendidas, a pedir socorro.
Alguém estava atrás dele. Era grande e verde, e Pitt chorava, pedia-lhe perdão, ajoelhado, para então ser invadido por uma língua fina, esverdeada, que sugava Pitt, que estremecia no telhado de torreões e relógios sujos, envelhecidos, que badalavam vinte e quatro vezes. E a cada badalada Sean tentava se controlar, lembrar-se que era uma cena plasmada, como por onde ele andava.
“Sean?”, e foi à vez de uma voz feminina lhe chamar.
Essa voz, Sean tinha medo de encarar, porque o perfume de rosas invadiu sua narina, seu coração, quando uma mão elétrica lhe tocou, fazendo todo seu corpo estremecer e cenas de extrema felicidade invadir sua mente. Sean transportou-se para dias felizes onde Sandy sorria, eles dançavam, se amavam. Abriu os olhos, e a bela moça morta o olhava sorrindo, com o sangue a correr-lhe da têmpora.
E foi a vez de Sean ajoelhar-se.
Fechou os olhos, mas os pensamentos de dor que lhe traziam se materializaram; a festa de noivado, a briga, a corrida pelas escadas, o som de um tiro e o corpo morto da noiva agora estava aos seus pés.
— Não!!! — e o grito dele não ecoou. — Perdão... Perdão... — Sean agarrou o corpo dela, beijou-a em meio o sangue que lhe escorria das mãos.
“Sean, meu amor!” a voz de Sandy se firmou.
E a imagem da moça morta se mesclou à sala de Cybele, e o quarto ensanguentado onde o corpo de Sandy estava morto, e a sala de Cybele, e o quarto onde a Poliu e a Polícia Mundial invadiram; e a sala de Cybele, e o quarto ensanguentado, com agentes e Sean segurando o corpo dela, morto.
— Não! Não! Não! — tentava se controlar quando a sala sumiu e Sean caiu com os braços estendidos num chão de terra batida.
Sons confusos tomaram-lhe todo e Sean olhou para os lados, o pouco de luz que ainda possuía no túnel foi-se extinguindo até sumir.
Ele tentou entender toda aquela viagem quando sons voltaram, vozes reais não muito longe dali, se misturando ao som da água que caía adiante. Caminhou sempre a tocar a parede como auxílio, sentindo que o chão inclinava, sentindo-se descendo não sabia para onde, e a umidade penetrava suas narinas em meio a sons verdadeiros.
A cena plasmada sumira e ele estava dentro de um túnel, um verdadeiro, aproximando-se da queda de água que levava à piscina de águas naturais, a piscina que Marcia o enganara, que Clara e outras serpentes alienígenas foram levadas para serem mortas, que Sean viu Leopold e seus cachorros matar serpentes alienígenas, coletores de corpos. Beirou a queda até alcançar a mata, até penetrar na Floresta de Jorat e de lá sumir.
Tinha uma visitinha a fazer.
Cabana, Floresta de Jorat; Lausanne, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 30” E.
06 de abril; 17h00min.
Uma batida seca à porta de madeira da cabana se fez. Marcia assustou-se por ver Sean ali. Ela não o tinha rastreado antes.
— Posso entrar?
— E se eu não concordar? Também tenho direto de escolhas, não?
— Pensei que estivesse interessada em me ajudar, Marcia? — Sean cortou o cinismo dela. — Porque veio à Terra para ajudar alguém, não?
— Não é a questão de ajudar, Sean Queise; é a questão de juntarmos forças para que a Terra não sofra.
— A Terra? Claro... — Sean girou os olhos tentando entender tudo aquilo; a cama arrumada, a mesa e as cadeiras, e o fogão mais ao fundo cozinhando algo. — Você existe Marcia? Eu existo?
— Não existe?
Sean sorriu:
— Descartes dizia que o fato de nos perguntarmos já era prova de nossa existência. Cogito, Ergo Sun.
— Aonde quer chegar com a filosofia?
— A filosofia sempre foi a resposta, Marcia. A duvida de Descartes que primeiro se persuadiu que não existia nada no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma Terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; mas será que se persuadiu também que não existia? — sorriu o cínico que era e entrou. Ali cama arrumada, mesa e cadeiras, um fogão cozinhando algo. — Descartes se perguntou mais de uma vez “Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou existir”.
— Por que se situa na mesma duvida de Descartes?
— Existência, Marcia. Essa é a palavra chave — Sean recuou do beijo que ela tentou dar. — Depois sobrevivência; essa é a palavra final — e ele foi beijado mesmo assim. Mas Sean lhe deu uma chave de braço e Marcia outra vez não previu uma ação dele. Ambos foram ao chão numa posição para lá de interessante. — Confortável? — ele viu Marcia abrir a boca e desistir. — Sabe o que é isso?
— Digamos que estou em duvida cartesiana se isso é para me fazer perder os sentidos ou é para acentuá-los...
Sean gostou da ironia.
— Isso se chama ‘chave de braço’, onde um lutador pega o braço do inimigo e o coloca entre suas pernas.
— Uhum. É bem excitante o que costuma fazer com seus inimigos Sean Queise.
— Não é? — Sean gostou outra vez da Marcia irônica.
Deu outro giro e colocou a perna sobre o pescoço dela colocando o calcanhar contra ela, e no giro, colocou também a outra perna sobre o peito dela, mantendo-a sob seu domínio.
— O que... — e Marcia sentiu que ele não estava para brincadeiras. — O que está fazendo Sean Queise? — o ar começou a falhar, e tivesse ela ou não outra maneira de respirar, ia ter que aprender rápido.
— Nada! Ou acha que é só você que sabe fazer joguinhos?
— Não acho que isso seja um jogo muito interessante Sean Queise, se um golpe desses pode destruir toda a articulação do meu cotovelo, desde ligamentos até as cartilagens — tentou respirar. — Ou corta minha conexão com o ar... — tossiu.
Sean soltou-a a fazendo girar no chão.
Ela se pôs em pé e em alerta.
— Que foi? Perdeu o tesão ou não está mais curiosa sobre o nosso sexo o suficiente para barganhar o que nunca barganha? — perguntou ele entre frases.
— Eu vou... — falou ela com as forças que sobravam, sabendo naquele momento que ele duvidava dela, que a investigava. — Falou com ele? Falou a Oscar sobre mim? Sobre o que vim fazer na Terra?
Sean sentiu o tom de voz usado por ela e a intimidade como chamou o todo poderoso homem da Polícia Mundial.
— Isso quer dizer que pode ler a minha mente?
— Isso quer dizer que posso ler sua mente aqui, agora, e não dentro da École, que como percebeu é uma plasmagem, que se modifica de acordo com o século vivido, e é feita e gerenciada por górgonas, alienígenas híbridas como todas as Dubois — Marcia olhou Sean com medo de pensar o que fora da École, ela sabia e riu. — Isso lhe preocupa Sean? Saber o que sei?
“Droga!” explodiu dentro dele.
— E você, Marcia? Você se preocupa com o que? Com suas credenciais sendo analisadas?
Marcia voltou a rir.
— Não seja ridículo, Sean Queise querido. Sou algo muito superior ao que imagina. Minha credencial é abrir e fechar portas. Não me desafie.
Sean se afastou dela. Não queria desafiá-la por nada nesse mundo, ele tinha certeza daquilo. Mas precisava dela, ao lado dele, fazendo o que ele propusesse, se quisesse vencer os Braushin, se quisesse sumir com a serpente-sentinela do lago de vez das mitologias. Ambos trocaram olhares e foi só. Contudo ele tinha que ser realista, estava encantado com aquele tipo de mulher primordial ou não, à sua frente.
Ela apontou para a porta mandando-o embora. Sean saiu e voltou para a École Hoteliere Dubois; precisava arranjar uma maneira de se comunicar com Lück. Uma impressão horrível havia lhe tomado de repente.
École Hoteliere Dubois, Lausanne.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
06 de abril; 18h30min.
Anoitecia e as salas estavam vazias. Sean verificou uma por uma. Nem sinal dos alunos, nem sinal dos professores, nem sinal de Cybele. Derrubou o vaso de flores ao seu lado até ouvir o espatifar dos vidros no chão, queria ter certeza que estava na verdadeira École Hoteliere Dubois.
A porta da diretoria de Cybele estava fechada, Sean tentou girar a maçaneta com toda força que possuía, mas ela não cedera. Procurou muito e não achou nenhum telefone. Foi até a sala dos computadores, mas não havia nenhum aparelho, nada.
E ele até tentou entender aquilo.
O carro de Cybele também não estava na garagem, ela havia ido à Lausanne para depor, lembrou-se. Provável os alunos a acompanharam. Sean saiu pelo portão correndo estrada abaixo tomando a direção da cidade de Lausanne. Um carro passou-lhe rente e Sean acenou, conseguindo mais uma vez carona até o Vilarejo de Yverdon-les-Bains onde morava Lück Laun e sua avó, já que se teletransportar atravessando onze dimensões não era algo tão fácil assim.
Afinal ele era só um híbrido.
Lago de Neuchâtel, Yverdon-les-Bains; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 46’ 42.6” N e 6° 38’ 27” E.
06 de abril; 19h40min.
Já era hora do jantar e havia pouco movimento na rua. Sean estava encantado com o lugar quando bateu na porta da casa de Lück sem obter respostas. Olhou ao redor e encontrou uma das janelas aberta. Olhou em volta novamente e pulou dentro de uma sala notoriamente arrumada; um pequeno sofá de madeira maciça e almofadas extremamente organizadas, um quarto com duas camas arrumadas e uma cozinha impecavelmente limpa.
Não parecia mesmo uma casa habitada por pessoas normais, com um piso sem um arranhão.
Sean sentiu-se mal dentro da casa, jogou um dos bibelôs que enfeitavam o frontão da lareira e nenhum som se propagou.
— Plasmada! — girava em volta. — Ninguém nunca percebeu? — se questionava quando algo lhe passou pela cabeça. — E se não... Não pode ser... — Sean correu para a fazenda de Monsieur Oswald Lambert.
Várias pancadas e ninguém respondeu. Um medo começava a tomar-lhe por completo.
Ele olhou em volta, não havia nenhuma janela aberta como na casa de Lück, mas uma porta de vidro, nos fundos da casa da fazenda foi atingida pelo cotovelo de Sean, que a quebrou. O som se propagou e Sean sentiu-se seguro para abrir a maçaneta por dentro. Entrou fazendo testes; uma caneca de porcelana, uma das quais tomara leite quente no dia de seu resgate, um prato e uma bandeja com copos em cima, tudo ao chão provocando som na sujeira feita. Mas havia mais que sons e sujeiras ali, num piso arranhado e de móveis muito usados, ao som de um relógio que fazia ‘tic tac’; havia fotos numa prateleira, lotada de imagens de serpentes alienígenas, górgonas, e algo que Sean só podia definir como um amontoado de luzes em forma humanoide.
“Eles disseram que vieram de uma terra mais distante que a minha” soou ali.
— Deus... Monsieur Oswald e sua família são alienígenas! — olhou a casa normal.
“Eles disseram que vieram de uma terra mais distante que a minha” repetia em suas lembranças ao som de um relógio que fazia ‘tic tac’ sem parar.
— Mas de onde? De onde Oswald veio para não precisar de uma casa plasmada? Para conhecer Ângelus? Para o relógio não parar? — olhou em volta. — A não ser que... Não... Oswald já estava aqui quando... — olhou outra vez. — Droga! Se Lück, sua avó e Clara chegaram em 1975, na nave interceptada por Billy Méier, então... Então quem chegou no Réveillon para que a serpente-sentinela do lago... — e Sean saiu.
Caminhava na neve imaculadamente branca, imaginando o que significou a morte de Aline Dubois, que contara algo a Otto Miller, que contara algo a Umah e Elisa, que contaram algo a Poliu, que contratou cientistas e ufólogos que contaram que uma nave chegou.
Sean respirou profundamente e foi até a estrada conseguir um táxi:
— Chemin Bois-de-Vaux, 1007.
— Le Cemitrè Bois-de-Vaux?
— Cemitério? — Sean não gostou daquilo. — Youth Hostel Lausanne, s’il vous plait — anunciou ao motorista.
— Oui Monsieur! Chemin Bois-de-Vaux, 36 — e o taxi partiu.
Agora mais que nunca, Sean precisava ir ao albergue da juventude aonde os ufólogos tinham reservas antes de morrer no acidente de trem.
Tinha certeza que lá encontraria suas respostas.
Chemin de Bois-de-Vaux, 36; Lausanne.
46° 31’ 12” N e 6° 36’ 05” E.
06 de abril; 21h51min.
O Youth Hostel Lausanne número 36 era realmente um albergue e Sean dirigiu-se ao salão de descanso. Fora encaminhado por uma sorridente Senhora que mostrava o ambiente para aquele que julgava ser o próximo hóspede.
O salão de descanso era realmente o que o nome propunha, vinte espreguiçadeiras se enfileiravam uma ao lado da outra.
— Olá Ernest? Eu soube que havia tirado uns dias de descanso.
Ernest G. Fuiü levou um susto.
— Monsieur... Monsieur Queise — ergueu-se derrubando a espreguiçadeira e o cobertor no chão.
O som estridente pelo menos o avisou que a Suíça inteira não estava plasmada.
— Por que o susto, Ernest?
— Ah! Monsieur... — arregalou os olhos. — Não imaginei... Não imaginei... Não o imaginei aqui em Lausanne.
— E não imaginou mais o quê? Que eu nunca descobriria que todas aquelas informações que me passou no Lago Léman sobre Eduard Billy Méier eram por demais esclarecedoras?
— Eu... — seus olhos soltavam das órbitas, levantou a espreguiçadeira do chão. — Eu não tinha como falar-lhe diretamente, Monsieur. Eles pediram, mas fiquei receoso do meu emprego.
— “Eles”? Os ufólogos da Poliu que investigava a Irmandade Simbiótica?
— Oui! Oui! — Ernest balançava a cabeça atônito. — Mas eu não trabalho para a Poliu, juro! Só sou um ufólogo amador em meio aos profissionais que tanto admiro.
— “Que tanto admiro”? Por que isso não parece combinar com você que só sabe falar mal dos outros?
— Eu não tive saída Monsieur... — gemia Ernest. — Eu juro... Os ufólogos me pediram que o convencesse a juntar-se a eles na vigília, mas eu sabia que Monsieur Queise ficaria furioso seu percebesse. Juro!
— Pare de jurar tanto Ernest.
— Oui! Oui! Eu tive medo de que eles não me dessem valor se eu não fizesse, mas fiquei... — abaixou a cabeça. — Fiquei com medo que Monsieur me despedisse por forçar algo vindo da Poliu.
Sean sentou-se na espreguiçadeira ao lado, relaxou as pernas como até então não fizera. Bufou ao se virar.
— Fale-me mais sobre a serpente-sentinela do lago?
— Bem, não é muito. Sei o que ouvi falar.
— Sabia que eles morreram no acidente do trem?
— Ouvi falar...
— Ouviu falar também que alguns foram levados para ser alimentos de serpentes alienígenas coletores de corpos?
— Sacré-Coeur de Marie! — Ernest esticou tanto o rosto que seus olhos voltaram a pular das orbitas. — Monsieur Queise sabe muito mais do que eu imaginava.
— Não sabia, não — Sean suspirou. — Tiveram prazer em me contar.
— “Prazer”? “Em contar”? Quem contou Monsieur?
— Um deles.
Ernest arregalou os olhos para o rasgo de Lua que penetravam as nuvens.
— E Monsieur... Eles não tentaram... Não tentaram matá-lo?
— Não! Porque algum outro alienígena me quer vivo Ernest... — e Sean viu Ernest se virar para ele. —, só não sei o porquê.
— Sacré-Coeur de Marie! Oh... Que medo, não? — Ernest não sabia o que pensar, nem o que falar.
— Não é? — Sean ficou imaginando o quanto Ernest realmente sabia dos profissionais que tanto admirava, mas nada conseguiu tirar de sua mente.
Ficou até imaginando se Ernest era mais que pau mandado de Mr. Trevellis.
“Droga!” e Sean encarou Ernest.
— Prossiga!
— Oui! Oui! No começo, os ufólogos receberam a notícia que Monsieur Queise estaria na Suíça com certo desconforto — Ernest tomou-se de coragem. — Eles achavam realmente que Monsieur estava aqui por causa da serpente-sentinela do lago que veio resgatar corpos no Réveillon. E depois...
— “E depois”? — Sean virou-se para ele.
— Que Monsieur ia querer saber da Poliu, digo, saber dos ufólogos, digo, querer saber da Irmandade...
— Prossiga! — Sean encarou-o com uma cara não muito simpática. — Estou cansado de andar em círculos!
— Não vou...
— Não vai ser despedido.
Ernest sentiu confiança.
Achou sentir.
— A Poliu investigava a serpente-sentinela do lago há muitos anos, muitos mesmo. Monsieur sabe que a Poliu não é uma só, que são vários ‘misteres’, chefes em vários anos de corporação...
— Me prive dos detalhes. Há quanto tempo a serpente-sentinela está aqui?
— 10.255 anos! — olhou-o.
— Prossiga!
— Os ufólogos descobriram que uma alienígena havia estado no Egito, na época dos grandes faraós e as pirâmides, e que lá, foi protegida por uma religião que se formou só para protegê-la. Eles não sabem dizer se já havia serpentes alienígenas lá, na época, antes, mas essa serpente-sentinela chegou e ensinou-os a arte da mumificação e o porquê de precisarem fazer aquilo.
— Para poderem viver após a morte.
— Oui! Oui! Numa outra vida plasmada. Por isso levavam seus objetos mais caros — pigarreou ao olhar para os lados e ver o jardim vazio.
— Com isso ela se alimentava das almas recém-mortas as prendendo numa outra dimensão, ganhando também, assim, conhecimento.
— Oui! Oui! Mas era um conhecimento limitado, porque quando a gente morre não pensa em muita coisa — riu até ver que Sean não achar graça. — Digo... Quando a mumificação caiu, por assim dizer, em desuso, mesmo os romanos ainda a propondo, essa religião se fechou publicamente para se tornar uma religião secreta, uma religião iniciática nos métodos da mumificação. E não é só isso, essa serpente-sentinela ensinou os ditos pitagóricos, que seguiam o Filósofo Pitágoras, na arte de fazer as viagens astrais, a se teletransportarem...
— Apport! A mesma técnica que a Poliu treina em seus espiões psíquicos, e a mesma que levou os cientistas da Poliu para o Gilf Kebir.
— Ah... Isso... Bem...
— Eu sei que eles foram abduzidos, testados e analisados sexualmente pelas serpentes alienígenas — Sean evitou, porém falar da serpente-sentinela do lago querer procriar.
— Sim Monsieur — Ernest balançou a cabeça. — Os cientistas da Poliu voltaram com marcas de cirurgias cauterizadas, mas sem um único sinal de infecção pós-operatória.
— E secos!
Mas Ernest olhou Sean.
— Disse ‘espiões psíquicos’, Monsieur?
Sean olhou Ernest.
— Prossiga!
— Ah... O Léman ou Lago Genebra, francês Lac Léman... — olhou Sean furioso. — Digo... O lago se formou após a última era glacial, há aproximadamente 15000 anos...
— Basta Ernest!!! — gritou.
— Digo... — arregalou os olhos. — Ela teve dificuldade de viver aqui, Monsieur. Ela precisava de calor.
— A serpente-sentinela do lago?
— Oui! Oui! Foi parar nas grutas de rios subterrâneos e lá ficou quieta não sei por que nem por quanto tempo.
— Lück, o alienígena, me disse que a serpente-sentinela do lago quer procriar — enfim falou.
— Ele disse isso? — Ernest arqueou tanto o sobrolho que outra vez deformou o rosto.
— Conhece Lück?
— Não... Não...
— Conhece, não Ernest? É por isso que a Poliu se movimentou até a Suíça de repente, porque descobriu a serpente-sentinela do lago aqui, tentando procriar após pedir para que serpentes alienígenas viessem à Terra em 1975. A pergunta é, por que Lück ou quem mais veio com ela, não a satisfez?
— A serpente-sentinela do lago quer criar uma comunidade dela, dos dela? Sacré-Coeur de Marie... Ela quer a tal sonhada ‘família’ — Ernest balançou a cabeça em total desanimo. — Já pensou no resultado, Monsieur?
— Adaptação! — Sean encarou Ernest. — Já que teorias da conspiração aventam que muitos políticos são alienígenas reptilianos.
Ernest realmente se agitou com a última frase.
— Os ufólogos da Poliu disseram que a Polícia Mundial havia os colocado na parede, para tentar uma aproximação com a serpente-sentinela e tentar afastá-la dessa ideia sobre ‘procriação’.
— A Polícia Mundial fez o que? “Afastá-la dessa ideia sobre procriação”? Deus... Oscar sabia que a serpente-sentinela estava aqui na Suíça? Que queria procriar?
— Monsieur Roldman sabe até muito mais do que a Poliu, Monsieur Queise. Sabe por exemplo, que a serpente-sentinela esteve em todas as grandes catástrofes, como grandes e pequenas guerras, incêndios, terremotos... Onde estivesse gente morrendo.
— E por que a Polícia Mundial ou a Poliu nunca tentou pará-la?
— Porque até então todos já estavam morrendo mesmo e por outras causas, a serpente-sentinela nunca havia matado ninguém.
— Por isso Marcia estava brava com Oscar, ela sabia que Oscar sabia sobre a serpente-sentinela, que ele nunca a havia parado. E é obvio que Marcia investigava a serpente-sentinela do lago — gargalhou. — Já que sua procriação não deverá ser muita aceita por uma confe... — e parou no que percebeu Ernest atentíssimo. — E por que a serpente-sentinela parou de coletar os tais semimortos e começou a coletar os vivos?
— Ah! Os ufólogos tentaram descobrir, mas o mais perto que chegaram foi do fato da procriação.
— Para procriar precisa aprender e para aprender é preciso matar, não é Ernest? — sorriu Sean. — Só que a serpente-sentinela não mata. Lück não mentiria sobre isso.
— Ah... Aquele Lück...
E Sean ficou atento aquilo, ao fato de Ernest, por algum motivo, conhecer ‘aquele Lück’.
— Só mais uma coisa... Sabe algo sobre uma investigadora da Confederação Intergaláctica agindo na Terra?
— Como é que é? — Ernest espantou-se.
— Também penso como você — Sean gargalhou, deixando Ernest confuso depois de pedir-lhe um favor para lá de especial.
24
Q’Animal, Flon, Lausanne.
46° 31’ 19.9” N e 6° 37’ 37’ E.
07 de abril; 00h03min.
“Fui chamada ao Planeta Terra para investigar as ações de um humano híbrido que estava contrariando as leis intergalácticas”.
— Não são as leis intergalácticas que estão sendo ameaçadas, é o equilíbrio alienígena, e Marcia está aqui para defender a serpente-sentinela do lago, porque um humano híbrido está matando as serpentes alienígenas e a serpente-sentinela não pode correr o risco de procriar, e ver sua cria ser dominada pelo ‘humano híbrido que está contrariando as leis intergalácticas’— suspirou. — Desgraçada! Marcia está aqui em prol dos seus semelhantes primordiais.
Sean olhou em volta, a Rue de Genebra estava mergulhada no escuro; um black-out havia atingido o bairro do Flon. Ia se arriscar, ele sabia, sua identidade podia ter sido exposta aos Luciedes e aos Braushin. Mas Sean queria ter certeza de quem era o verdadeiro humano híbrido investigado pela Confederação Intergaláctica quando viu a Ferrari FF vermelha de Umah Trevellis na porta do Q’Animal. Não acreditou que Mr. Trevellis houvesse deixado Umah prosseguir com as investigações.
As portas do Q’Animal também estavam abertas ao público apesar do frio, da neve que começava a cair abundante e da escuridão. Era noite de flashback, com músicas anos 70 tocando alto.
“Livre arbítrio e fatalismo se equilibram e se temperam um ao outro”, Sean caminhava pela corda bamba, seguindo seu destino com descuido ao entrar no antro do inimigo.
O camarim foi aberto e Sean viu Umah. Ela nada falou sentada numa cadeira de rodas com a perna engessada. Percebeu que ela evitava movimentar a abertura na coxa que a serpente-sentinela do lago fizera. Sean tentava manter a frieza perante Albert Falppo que estava mais ao canto, observando Umah como até então nunca fizera.
Ele era esperto, desconfiava dela.
— Veio cumprir seu contrato, Timmy? Combinamos três shows, lembra? — Falppo falava num tom ameno, nem parecendo o homem rude de tempos atrás.
— Talvez ache que eu não esteja preparado...
— Você dança hoje! — ergueu-se. — Amanhã converso com seu cafetão Bruno e veremos como fica — e parou ao lado dele empurrando a cadeira de rodas de Umah. — Amanhã decidiremos seu futuro, bailarino Timmy.
O camarim foi trancado a chaves após sua saída e Sean estava sozinho outra vez. E Umah nada falara nada impora a Albert Falppo; aquilo trazia maus presságios.
— Talvez não tenha sido uma boa ideia vir aqui sem avisar Oscar — Sean olhou em volta no mesmo instante que a porta fora aberta e uma bandeja com frutas, uísque barato e cocaína, entraram.
“Só espero que Ernest tenha entendido tudo e Gyrimias não tenha medo de fazê-lo”, pensou ao tirar a roupa e começar a passar o creme num movimento inexpressivo. Colocou a precária sunga de palha e um estranho acorde nas caixas acústicas chegou aos ouvidos dele; seu corpo tremeu de frio não soube por que.
A porta do camarim outra vez se abriu num rompante, e dessa vez Sean pulou para trás na mesma velocidade.
— Sean? — Marcia estava estática pelo reconhecimento.
— Não é o que está pensando...
Ela o olhou de cima a baixo.
— E ainda acha que posso pensar algo?
Sean cerrou os olhos de vergonha. Quando abriu, Marcia já não estava lá.
— Marcia?! — gritou para a mulher amada. — Droga! — Sean pegou uma toalha para esconder a frágil sunga de palha; se enrolou e saiu gritando pelos mesmos corredores, atrás dela. — Marcia?! Marcia?!
“Droga!” exclamou ao ver homens de Falppo virando o corredor.
Escondeu-se e Marcia já havia atravessado os corredores, desaparecendo porta afora, invadindo a neve que tomava conta do bairro do Flon.
Sean deu-se segundos e saiu do esconderijo quando um golpe de fina tira de couro o levou ao chão caindo pelas pernas enlaçadas.
— Pensando em dar uma volta Timmy? — perguntou Falppo.
Sean se virou, levantou, tentou fugir, mas outra chicotada cortou-lhe o rosto bonito.
— Ahhh!!! — o sangue espirrou nas paredes que o circulavam com a força do chicote, o levando ao chão outra vez agora com a toalha a se soltar.
Falppo laçou o chicote pela terceira vez e lançou-o no ar para açoitá-lo quando Sean enlaçou a fina tira no seu braço e puxou Falppo, que com seu peso excessivo se chocou com a parede dura indo ao chão, fazendo o piercing do nariz balançar. Sean se enrolou na toalha e viu Falppo alcançando o bolso da calça, tirando uma esfera de metal, um UFO circular.
“Apport!” os olhos de Sean Queise viram o UFO num estranho movimento circular abrindo-se em cinco pontas fazendo um frio tomar conta do corredor e luzes estroboscópicas trazerem um cheiro ocre e um som de papel amassado.
— Serpente-sentinela alienígena!
— Desgraçado! — e Falppo também se transformou em uma serpente-sentinela alienígena.
Sean se levantou do chão e correu escapando pela esquerda, invadindo os salões apinhados no embalo dos anos 70 usando toalha, óleo viscoso e o medo a estampar-lhe o belo rosto que sangrava. Falppo foi atrás dele e gritos de pavor tomaram conta do salão lotado de turistas no que a serpente-sentinela alienígena coletora de corpos invadiu-o.
Sean abriu e fechou a porta que dava para fora do Q’Animal alcançando a neve, fugindo, esquecendo-se que era Sean Queise, homem rico e influente, proprietário da Computer Co.. Falppo também alcançou as ruas e as pessoas gritavam ao verem o homem fantasiado de serpente. Falppo não viu alternativa a não ser voltar a ser o grande homem com piercing no nariz que empunhava uma arma, que disparou contra Sean que quase nu foi atingindo no ombro, indo ao chão gelado da Rue de Antrô.
— Ahhh!!! — Sean ergueu-se se vendo ferido e mais sons de papel amassado tomaram conta da madrugada fria.
Era Nathan quem se transformara em uma serpente-sentinela alienígena, um coletor de corpos que Falppo trouxe ao acionar novamente o UFO circular.
— Mate-o!!! — gritou Falppo pelas ruas lotadas.
A língua do alienígena Nathan esverdeou-se, triplicou de tamanho, e alcançou o pescoço de Sean que foi agarrado em meio ao desespero dos transeuntes, de pessoas que gritavam.
Sean foi arrastado pela neve tentando desesperadamente se agarrar em algo, segurar sua própria garganta que não lhe permitia respirar e nuvens se moveram pelo céu estrelado, se eletrificando, provocando água cair em cestos e latas de lixo que foram esvaziadas arrastadas pela neve, tudo pela ordem paranormal de Sean que desesperado só conseguia lembrar-se da aula de química, provocando uma chuva elétrica de Kelvin, com a água portadora de vasta quantidade de cargas positivas e negativas, em perfeito equilíbrio, provocando volts em que cargas elétricas provenientes da atmosfera incumbiram da eletrização inicial, provocando o curto que soltou faíscas fazendo as pessoas gritar e se esconderem do incêndio que tomou conta da rua.
Nathan soltou Sean na confusão e ele se levantou voltando a correr. Falppo viu que Sean era mais do que Bruno havia dito e atirou novamente com Sean se desviando. Falppo atirou outra e outra vez e Sean se projetou dali aparecendo do outro da rua.
Falppo agora só teve tempo de arregalar os olhos e fazer o piercing erguer-se na raiva. Atirou mais uma, e mais uma, e mais uma fazendo os tiros arrancarem lascas das paredes das casas por onde Sean escapava, quando ele se projetou outra vez se teletransportando para mais à frente e caiu no chão pelo desgaste da força que se esvaecia.
Falppo e Nathan correram agora como humanos que não eram e Nathan lançou sua língua outra vez no pescoço de Sean que perdia forças após empregar tal paranormalidade que o avisava da morte se não conseguisse fugir dali. Sean se ergueu do chão e agarrou-se ao poste de luz dando voltas até que a língua se amarrou no poste. Na nova força que a serpente-sentinela alienígena Nathan impôs, o poste arrancado caiu sobre ele.
— Arghhh!!! — Nathan deu um grito horrendo e fez algo que a faísca das lâmpadas criadas sem misturassem ainda mais ao fogo que consumia a rua, a trilha de creme que o corpo de Sean deixava pelo caminho incendiando a neve, o entorno, carros que explodiam.
Caos e sons de ambulâncias e carros do corpo de bombeiro já ficavam próximos às ruas laterais à Rue de Genebra, que Sean alcançava, correndo quase sem forças com a coxa sangrando com o rosto sangrando com o ombro sangrando; tudo se esvaecendo dele.
As ruas encheram-se de mais gente curiosa com a então inusitada movimentação e Sean sangrava pela rua lotada de neve, de gente que o empurrava, correndo em meio às pessoas que fugiam dos clubs tomados pelo fogo que atravessava a madrugada fria, escura. Gritaria e desespero espalhavam-se por todos os cantos. Sean viu que Nathan se pôs a persegui-lo novamente. Como humano ele não tinha agilidade, Nathan virou uma serpente-sentinela alienígena com todo seu corpo fazendo o estanho som de papel amassado para uma multidão cada vez maior, cada vez mais apavorada, se rastejando entre pernas, pessoas caídas e o tumulto criado pelo incêndio que tomava conta do bairro desesperado.
Sean corria entre à multidão assustada ao vê-lo com uma sunga de palha a lhe cobrir o corpo oleoso e ensanguentado num frio de gelar os ossos quando Falppo se prostrou a sua frente.
— Antes animal, agora réptil! — e Falppo atirou.
— Ahhh!!! — Sean foi jogado longe pelo projétil que lhe acertou novamente o ombro perdendo a frágil sunga de palha que se rompeu ao cair ferido. O sangue espalhou-se na neve e mais gritos foram dados. — Ahhh... Ahhh... — Sean perdia os sentidos, pisoteado na neve suja manchada de sangue, na qual se misturou, mimetizou, se arrastando sem forma definida, morrendo.
Falppo e seus capangas o perderam de vista na confusão enquanto Sean nu, ferido, voltava a ser um homem ferido, que se arrastava pelas paredes quando encontrou a porta de um hotel barato. Entrou cambaleando quando duas prostitutas o seguraram antes dele cair com o ombro rasgado pelos projéteis, em meio a visão embaralhada pela dor.
— Dê-me um quarto!!! — alguém gritou vindo da rua, por detrás dele.
Sean fechou e abriu os olhos. Fechou e abriu. Fechou de vez.
25
Flon, Lausanne.
46° 31’ 18” N e 6° 37’ 37’ E.
08 de abril; 09h33min.
— Como está se sentido, Sean Queise?
Sean lembrou-se que a voz não era estranha, olhou para o lado e Maykon trocava o pano úmido que descansava na sua testa.
— O alienígena...
— Não o vimos mais — explicou Maykon.
Sean abriu os olhos de vez. Lá também estavam Dr. Zuquim, Clara, Lück e sua avó Madame Michelina.
Ele nem sabia mais o que pensar.
— Como... Como você chegou aqui? — Sean perguntou a Maykon que não respondeu. — Foi com o UFO circular de June? — os olhos de Maykon brilharam momentaneamente como os de Marcia.
Havia algo naquele olhar, na maneira como brilhavam; Sean agora sabia.
— Seu funcionário me procurou ontem — o Dr. Zuquim Heling interrompeu-o explicando o que faziam lá.
— Ernest?
— Sim, ele me trouxe sua jaqueta dentária. Disse que seu outro funcionário compreendeu tudo — Zuquim entregou-a após retirar do bolso da camisa e desenrolá-la de uma gaze que cheirava formol, e que Sean recolocou mecanicamente.
Dr. Zuquim fez uma cara de quem procurava explicações e Sean fez uma cara de quem não se propunha a explicar.
— Como me encontrou Maykon?
— Marcia me disse onde você estava.
— E como Marcia sabia se eu... — e a dor não o deixou completar a frase. — Falppo conseguiu o inusitado de atirar duas vezes no mesmo lugar — e Sean passou a mão no ombro ferido.
Dr. Zuquim se aproximou e levantou a cabeça dele lhe dando mais antibióticos:
— Inusitada foi sua sorte dos projeteis não terem perfurado algum nervo importante — e o olhar de Zuquim foi profundo.
“Sorte?”, Sean leu-lhe a mente e não gostou do que leu, ele próprio havia de alguma forma, desviado os projeteis de ‘nervos importantes’; sua mente estava se desenvolvendo rápido demais.
Zuquim lhe deu mais água.
— O que eles estão fazendo aqui? — Sean apontou para as serpentes alienígenas sentadas num sofá deteriorado.
— Eles querem ajudar — foi Maykon quem falou.
— Como você que vem me ajudando desde a chegada da van na escola.
Maykon olhou para Madame Michelina Laun, avó de Lück, que fez um movimento positivo com a cabeça aprovando algo.
Sean viu que não era só Lück quem obedecia a ela.
— Sim! — falou Maykon. — Nathan, Pitt e eu chegamos à Terra no Réveillon; fomos chamados pela serpente-sentinela do lago para sermos escolhidos para a procriação.
— Vocês três chegaram? Marcia não veio com vocês no Réveillon?
Maykon arregalou os olhos para a avó de Lück e dessa vez fez-lhe um sinal negativo.
— Não posso falar. Marcia é algo diferente de nós...
— Ela me contou — Sean cortou-lhe a fala.
— Contou? — Maykon tremeu afastando-se dele. — E você não... — o olhou de olhos arregalados.
Sean percebeu algo mais naquele olhar, só não soube diluir.
— Marcia contou-me que é um ser primordial, que nós terráqueos somos uma experiência genética deles, os primordiais, e que é uma investigadora da Confederação Intergaláctica na Terra atrás de um humano híbrido que está provocando desequilíbrio.
Maykon voltou a arregalar os olhos após tamanha história.
Sean outra vez quis ter diluído aquele olhar.
— Entendo! Ela nunca havia dito nada sobre contar... Então eu achei...
— Você achou?
— Achei que ela nunca se exporia a ninguém, visto que ninguém... — Maykon olhou todos. —, que ninguém acreditaria.
— Marcia disse que veio investigar alguém que estava na estação...
— Que estação? — foi à primeira vez que Lück falava cortando a difícil explicação de Sean. — A estação de trem onde Nathan matou Aline?
Sean sentiu um frio na barriga.
— Foi Nathan então? — Sean mal acreditou.
— Logo que chegamos tínhamos fome — explicava Maykon com muita calma. —, então os Luciedes deram a górgona Aline a Nathan.
— Tinham fome? — Sean arregalou os olhos azuis para Maykon. — Eu devia ter medo dessa frase, não? — Sean viu Maykon outra vez olhar Madame Michelina Laun e ela lhe negar algo. — Mas Aline também era uma alienígena? Vocês comem outros alienígenas? — Sean viu Maykon outra vez olhar Madame Michelina Laun e ela outra vez lhe negar algo. Dessa vez, Sean não insistiu. — Por que os Luciedes entregaram Aline se tinham um acordo com Cybele?
— Os Luciedes são humanos, Monsieur Sean Queise, devia saber melhor do que ninguém o que o dinheiro faz — a voz de Madame Michelina Laun o assustava mais que tudo. — Quando souberam que Aline ia fugir, mataram-na para agradar aos Braushin.
— Mas nem todos os Braushin ficaram agradecidos, não? Como Leopold Braushin reagiu sobre a morte de Aline?
— Irado! Só que ele não ficou sabendo que foram os Luciedes — falou Dr. Zuquim.
— A serpente-sentinela do lago também ficou muito brava quando soube que a sobrinha de Cybele havia sido sugada — foi a avó Madame Michelina quem falou. —, ela foi obrigada a plasmar a estação para que a alma de Aline conseguisse paz até seu dia de morte verdadeira; o que está longe de acontecer.
— Deus... A estação que eu... Não pode ser... Quer dizer que Aline está vagando por lá?
— Sim, Monsieur. Como os suicidas, os assassinados, os que não acreditam ou não querem acreditar que morreram — Madame Michelina explicou.
— Ilógico...
— Para os humanos iniciados no estudo da alma e da reencarnação isso não soa tão ilógico assim — completou a avó de Lück Laun. — Achei que Mona Foad tivesse lhe explicado.
Sean sentiu suas pernas amolecerem mesmo deitado.
— Mona... Conhece Mona Foad?
— Ela e os espiões psíquicos que nos monitoram.
— Que os monitoram... — e todo seu corpo amoleceu.
Sean nunca sentiu tanto medo de Mona quanto naquele momento. Porque ela havia se desligado da Poliu, se afastado dos espiões psíquicos, mas ainda monitorava alienígenas que chegavam.
“Por quê?” ele até se perguntou.
E se perguntou sabendo que Mr. Trevellis, Oscar, Fernando e os mainframes da Computer Co., que ele percebeu, não conhecia totalmente, também os monitoravam.
— Os passageiros do trem... — Sean olhou Maykon. —, eles precisam de orações não de cenas plasmadas.
— Excusez-moi, Monsieur Sean Queise. Isso não compete a nós — voltou Madame Michelina a falar como uma suíça comum, não dando muito tempo para Maykon se quer lhe perguntar se podia ou não responder àquilo.
E Sean outra vez a temeu.
Tentou se levantar, mas toda sua energia havia sumido.
— Tem se desgastado Sean Queise — Maykon ficava cada vez mais diferente do jovem afeminado que queria parecer inicialmente.
— Quem são vocês?
— Não somos tão diferentes quanto parece.
— Os tais humanos híbridos que Marcia veio investigar, são humanos misturados com alienígenas que aqui estiveram no passado? Modificando o DNA de ancestrais, como os Neandertais?
— “Os tais humanos híbridos”? Por que acha que não seja como eles Monsieur?
— Não sei se sou Madame Michelina, já que não sou igual a ninguém — e Sean viu que ela não gostou do que ouviu, porque se ela conhecia Mona então ela o conhecia, o verdadeiro Sean Queise.
— Nathan foi excluído da lista da serpente-sentinela para procriar — falou a pequena Clara de repente.
— Então por que o trouxeram?
— A hierarquia de escolhas para quem vem quem volta não nos é de conhecimento Sean Queise — foi Maykon quem respondeu.
— Mas Nathan...
— Nathan não é diferente de nós — voltou Clara a falar. —, mas é muito violento, tripudiando outros alienígenas, os fazendo de réptil menor.
— “Réptil menor”?
— Uma espécie de escravo sexual — explicou Maykon. — Um “alienígena putinha”.
— Como os que se apresentam no Q’Animal?
— O que entende sobre nossa sexualidade, Monsieur Sean Queise? — voltou Madame Michelina Laun de repente.
— Nada! — Sean viu Maykon desviar de seu olhar. — E quanto a sexualidade de Cybele e sua família?
— As Dubois são Górgonas — foi a vez de Lück Laun falar. —, eles são uma mistura de várias raças serpentes alienígena, com pele mais acinzentada que a nossa, e serpentes numa cabeça que...
— É! Eu vi! — Sean olhou um e outro. — Pode me privar dos detalhes — todos se olharam. — E Falppo? Em que tipo de raça ele se enquadra?
— Albert Falppo deveria ser mais bem investigado, Monsieur Sean Queise — começou Madame Michelina a falar por entrelinhas. — Acreditamos que ele tenha um sangue humano diferente.
— ‘Diferente’ quanto? Ele é o cruzamento de uma serpente-sentinela alienígena com humanos? Então eles podem sobreviver na Terra? Deus... Será ele o homem híbrido que está desestabilizando o mundo de vocês? — Sean mexeu-se no colchão duro vendo as respostas se materializarem. — Meu Deus! Então Marcia realmente investiga o mundo de vocês e não o nosso. Ela está aqui na Terra para defender a serpente-sentinela do lago e o equilíbrio do mundo alienígena, não o terráqueo.
Maykon outra vez sentiu-se mal.
— Não é com Marcia que devia se preocupar tanto, Monsieur Sean Queise — Madame Michelina estava arisca. — É com a ‘serpente-sentinela do lago’ — entoou bem seu nome. — Ela é quem devia ser mais bem investigada, visto que nada sabemos sobre ela — completou a avó de Lück furiosa.
— Madame Michelina não parece morrer de amores por ela, não?
Sean viu Madame Michelina ficar sem ter como prosseguir. Ela levantou-se e fez o peculiar som de papel amassado mostrando uma ‘Madame’ de rosto envelhecido e um corpo de serpente-sentinela alienígena como todos os outros. Ela se virou e saiu. Lück também se levantou e pegou na mão de Clara que até então estava deitada no ombro do Dr. Zuquim, que acariciava a cabeça dela como se Clara fosse uma criança.
“Híbridos sentimentais!” ecoou outra vez.
— Você a adotou depois que sua filha morreu, não foi?
O Dr. Zuquim parou na porta assustado pelo que ouviu. Deixou Michelina, Lück e Clara se afastarem e se virou para Sean.
— Monsieur Oscar...
— Não! Oscar não falou nada. Ele não falaria.
— Leu minha mente, Sean Queise?
— Não! Mas imaginei que aceitara Clara, uma alienígena, como filha, por ter sofrido uma perda muito grande.
— Quando Clara chegou em 1975 eu estava à beira do lago tentando o suicídio. Fazia uma semana da morte da minha filha, lavada pelo câncer. Eu socorri as três serpentes alienígenas na nave e a serpente-sentinela do lago chegou e me agradeceu.
— Mas Lück me disse que quando chegou um homem havia os socorrido, dado sua alimentação.
— Mas fui eu quem os socorreu. Eu havia tirado os três corpos de escamas da nave que afundava após uma pane. A serpente-sentinela veio e me agradeceu.
— Você a viu então?
— Sim. Uma mulher verde, rosto triangular e austero. Ela apareceu, dias depois com Clara nas mãos. Entendi que ela havia deixado uma das serpentes alienígenas que salvei se plasmar em Clara, com as lembranças que eu possuía. A dor, a impossibilidade de encarar sua perda me fez envolver-me nisso. Como ninguém sabia que ela havia morrido no hospital de Montreux, eu trouxe a nova Clara para casa e todos acharam que ela havia se recuperado. Eu tive muito medo, mas estava sofrendo, sem saber o que fazer, então aceitei os termos da alimentação.
— A serpente-sentinela voltava para trazer alimento?
— Não! Clara saía de casa. Mas sempre voltava, então nunca fiz perguntas.
— Quando os ufólogos da Poliu chegaram, você os ajudou?
— Não! Só entendi direito o que acontecia quando conheci e fiz amizade com Oswald e sua família, vindos há séculos de uma estrela brilhante, em forma de um punhado de luz. Então a serpente-sentinela voltou a aparecer para mim e me sorriu agradecida por outra vez estar recebendo alienígenas em minha casa. Eu sabia que estava sendo conivente com algo, mas nem ela nem os alienígenas nunca nos fez mal.
Sean olhou Maykon. E Maykon ficou sem entendê-lo. Porque Sean sabia que havia algo faltando ali, talvez um personagem sem nome.
— Diga-me doutor, por que Madame Michelina não parece gostar da serpente-sentinela, um ser tão caridoso?
— Madame Michelina não gosta de receber ordens, mas devia ser agradecida, sim. A serpente-sentinela permitiu que eu também ajudasse Lück e sua avó a se integrar à Irmandade Simbiótica com a ajuda do Monsieur Oswald Lambert.
— Mas Oswald também é um alienígena com alimentação bem exótica, não? Um draconiano chegado aqui na Suíça que não se alimenta como as serpentes alienígenas porque é um canibal que esconde corpos no Sítio de Mormont quando vai ‘buscar lenha’ para vender — Sean viu Dr. Zuquim se alertar. — Por isso Oswald estava tão preocupado ao ponto de me mandar ver o Dr. Ângelus? Achou que eu era outro alienígena tentando usar o sítio?
Dr. Zuquim riu e ninguém o compreendeu.
— Ângelus... — Zuquim olhou agora Sean. — Oswald na verdade queria era chamar o seu pai quando o reconheceu pelo nome.
— Oscar era o estudioso das Lâmias?
— Monsieur Oscar Roldman? — perguntou Zuquim confuso. — Não! Quis dizer seu pai, já que Fernando Queise estivera aqui com Mr. Trevellis.
— Meu pai? — Sean sentiu que seu mundo desabara. — Com Trevellis? Aqui? Quando?
— Quando jovens. Ele nunca lhe disse?
Sean não sabia responder àquilo. Tudo soava tão ilógico.
— Meu pai nunca... Não... Ele nunca... Eu nunca soube... — e Sean parou no que algo explodiu dentro dele.
Olhou um, olhou outro e se pudesse teria levantado e corrido para fora dali, da Suíça, do planeta Terra.
— Eu sinto por...
— Não sinta doutor... — e abaixou as pálpebras tentando parar de fazer a cabeça latejar, compreender o que realmente fazia ali. — Eu sempre soube que meu pai estudou na Suíça. Foi aqui que ele e minha mãe... Que namorava Oscar... Que era amigo de Trevellis... — e não conseguiu falar mais. — Todos eles sabiam muito mais sobre a serpente-sentinela do que haviam contado, não é?
— Monsieur Oscar Roldman ficou sabendo das ações de uma alienígena durante a Guerra do Golfo, protetora de outros alienígenas aqui chegados, conhecida como ‘serpente-sentinela do lago’ porque eu lhe contei. Que essa serpente-sentinela estivera por muitos séculos, misturada a mitos que a esconderam enquanto sugava as almas daqueles que se desesperavam entre viver e morrer.
— Adiantando-lhe a morte?
— Não! Os levando a outra dimensão para que compreendessem sua atual situação.
— Os que os espíritas chamam de hospital de socorro?
— Acredito.
— Enquanto ela aprendia com eles, aprendia principalmente a arte de guerrear e de sobreviver a uma guerra — compreendeu Sean extasiado. — Fico imaginando Oscar acreditando numa figura de mulher bonita que vinha buscar soldados para atravessar a barca da morte.
— Como sabe que a serpente-sentinela do lago é uma mulher bonita, Sean Queise? — Maykon ficou em total alerta.
Ele se ajeitou no colchão duro, àquele lençol sujo, e nada respondeu.
O Dr. Zuquim viu que nada mais podia fazer ali.
— Espero ver suas melhoras, Sean Queise. Sempre estaremos a sua disposição em agradecimento — Dr. Zuquim esticou-lhe as mãos num cumprimento. — Tenho que voltar com Clara para casa porque ela precisa... Precisa se alimentar.
Sean os imaginou caçando. Sentiu-se impotente, sem saber como detê-los.
Já os olhos de Maykon brilhavam.
— Você não é como eles; não é Maykon? Ou já teria me matado quando teve oportunidade ao invés de ficar me salvando sempre.
— O que tem no seu dente, Sean Queise?
— Você sabe que é um nano GPS. Acessou-o para salvar minha vida e de Oscar no funicular, chamando aquele taxi.
Os olhos de Maykon brilharam outra vez.
Palace & Spa Hotel, Lausanne; Suíça.
46.6 30’ 31” N e 6.6 38’ 2” E.
08 de abril; 09h33min.
O Q.G. da Poliu na Europa, mais precisamente na Suíça ficava numa cara suíte do Palace & Spa Hotel em Lausanne, já paga pela Computer Co.. Mr. Trevellis esparramava seus quase 130 kg num sofá de veludo caramelo, estilo Luiz XV, baforando um charuto cubano a quase sufocar o esguio Oscar Roldman que levantou para abrir as janelas que davam para a sacada.
— Ele está chegando perto, não amigo velho?
— Não sei do que está falando — respondeu Oscar agora sentando e coçando o braço dentro do gesso.
— Sean, está sim — concluiu Mr. Trevellis baforando outra vez. — Umah o viu no Q’Animal anteontem.
— Ele não devia ter voltado lá, os Braushin podem tentar matá-lo.
— Umah ouviu tiros, não podia fazer nada porque Falppo está desconfiando dela desde o ataque daquela serpente ambulante.
— Meu Deus, Sean está ferido? — Oscar levantou-se num rompante.
— O ama, não? — Mr. Trevellis sentiu Oscar ter sua boca a secar. — É! Eu sei o que é amar um filho — continuou Mr. Trevellis para desespero do todo poderoso homem da Polícia Mundial.
— Eu não vejo Sean desde... Desde quando a serpente-sentinela o levou — sentou-se novamente na beirada da cama de veludo marrom e caramelo.
— Não se preocupe. Sean deve estar vivo em algum lugar. Ele sempre foi mais esperto do que queríamos que ele houvesse sido não é, Oscar querido?
— Não comece. Estou nervoso demais para ficar discutindo com você — levantou-se alterado novamente.
— Nunca entendi sua posição.
— Minha posição?
— Sua posição de recusar a desenvolver seus dons paranormais, amigo velho?
— Pare Trevellis! — alterou-se.
— Está bem! Está bem! — baforou seu charuto cubano. — Mas ouça o que lhe digo. Um dia ele vai criar coragem, e vai saber o que você e Fernando fizeram.
Oscar sentiu-se tonto.
Só conseguiu chegar à sacada e respirar.
— Sean... — escapou de seus pensamentos.
Mr. Trevellis foi atrás dele, com a sacada do quarto ao lado aberta, e o som de suas vozes a alcançando.
— Porque sabemos que seu filho tem dons que nos escapam a compreensão. E não digo de dons que os espiões psíquicos de Mona dominam. Não! Eu falo de algo muito maior, maior até do que você conhece.
— Como pode conhecer minha genética mais que eu Trevellis?
— Amigo velho... — Mr. Trevellis sorriu cínico que era e baforou mais ainda o charuto.
— Santo Deus Trevellis! Você me investigou?
— Eu? É claro que não. Mas investigo Sean Queise, cada passo dele, cada movimento pelo espaço-tempo, que eu sei que ele atravessa — e Mr. Trevellis ergueu a mão que calou Oscar Roldman no ato. — Porque você sabe que os Roldmans têm dons de viajar pelo espaço quadrimensional.
— Você é ridículo Trevellis — Oscar sorriu nervoso era evidente.
Mr. Trevellis se aproximou dele.
— Pois me deixe dizer algo que seus dons não leem. Porque eu li o arquivo confidencial que a Polícia Mundial fez do seu acidente no funicular, então sei que se Sean não tivesse usado seus poderes para parar aquele monte de ferro retorcido atravessando você por dimensões, você não estaria aqui me contradizendo — e voltou a entrar no quarto, esparramando-se confortavelmente.
— Não pode sair por aí...
— E um dia Oscar querido... — Mr. Trevellis viu Oscar embranquecido, parado à porta da sacada. —, um dia Sean vai dominar mais que onze dimensões, e vai viajar mais rápido que um fóton — gargalhou.
— Sean sabe sobre Spartacus em Atenas! — disparou.
Mr. Trevellis derrubou tudo quando se ergueu violentamente.
— Ele o que?! — se excedeu.
— Ele ainda não sabe que sabe, mas desconfia da cabana.
— A cabana... Ahhh... — Mr. Trevellis sentiu o chão abrir-se. — Você... Você...
— Eu o que?
— Você a deixou fazer aquilo! — exclamou furioso.
— Não seja idiota Trevellis! Jamais deixaria nada.
— Então Sean não tem como entender o que Spartacus fazia em Atenas a menos que...
— A menos que o que Trevellis?
— A menos que algo tenha escapado ao controle da Poliu.
Foi a vez de Oscar cair em gargalhada.
— Não venha me culpar por nada, Trevellis amigo velho, foi sua filha quem ficou descuidada na cama.
— Ou foi você quem deixou escapar porque você permitiu que ele usasse Spartacus para falar com aquelas serpentes alienígenas.
— Não fui eu! Foi Fernando! E sabe melhor que eu, que Fernando é tão ou mais dono do satélite de observação que eu ou que a própria Polícia Mundial.
— Achei que seu filho fosse dono do...
— Pare Trevellis!!!
Mr. Trevellis dessa vez não gargalhou. Estava nervoso, furioso, e apavorado, tudo naquela ordem.
— Eu paro amigo velho! Eu paro! Mas aviso desde já que Sean vai descobrir sobre nós quatro; sobre mim, sobre você e sobre Nelma e Fernando estudando mais que matemática e ciências aqui na Suíça.
Marcia Toledo só ouvia escondida no quarto ao lado, com ninguém sabendo de sua presença ali. Porque ela também investigava Mr. Trevellis e suas ações dentro daquela corporação de inteligência de nome Poliu, com extremo zelo.
Mais zelo até do que investigava Oscar Roldman e a Polícia Mundial, mais que a Fernando Queise e a Computer Co., e mais que Nelma Queise, a mulher de ambos.
E tudo aquilo sem a autorização da Confederação Intergaláctica.
26
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
09 de abril; 08h14min.
Sean e Maykon não tinham alternativos, tinham que voltar e enfrentar os Luciedes mesmo que suas identidades tivessem sido expostas. No dia seguinte estavam atravessando os grandes e enferrujados portões da École Hoteliere Dubois quando um dos agentes de Oscar Roldman os interceptou.
— Sr. Queise? — o agente se apresentou.
— Vou entrar! — anunciou Maykon indo sem ele.
Sean nada falou e o agente apontou agora para um carro Mercedes preto estacionado alguns metros adiante.
— Desde quando são “amiguinhos”? — Sean foi puro fel ao ver Oscar e Mr. Trevellis juntos no carro. — Ou está faltando meu pai nessa ‘amizade’?
— Se serpentes alienígenas podem ser amigos de um hacker perigoso — Mr. Trevellis olhou para fora e viu Maykon sumindo para dentro da École Hoteliere Dubois. —, então a Poliu pode ser amiguinha da Polícia Mundial e da Computer Co..
Sean estremeceu ao perceber que Mr. Trevellis sabia sobre a identidade de Maykon e ficou furioso. Provável ele e muito mais faziam parte do arquivo confidencial 10-2-5-5.
— Desgraçado!
— Parem os dois! — exclamou Oscar se impondo enfim. — Como você está?
Sean virou-se para ele sentindo dor no ombro.
— Sobrevivendo, ‘Oscar querido’.
— O velho Braushin mandou fechar a escola e Cybele se encontra furiosa — Mr. Trevellis atropelou os sentimentos paternalistas do todo poderoso homem da Polícia Mundial não parecendo querer ser gentil com ninguém.
— “O velho Braushin”?
— Albert Falppo Braushin é seu verdadeiro nome. Ele é pai de Leopold e Lüdovick.
— Então os Braushin são híbridos? Uma mistura interessante de serpentes alienígenas com humanos — Sean olhou Oscar. — Meu Deus! Eu podia ter sido reconhecido, Oscar.
— Só Leopold o conhecia — Oscar balançava o pescoço nervoso.
— Mas ele poderia ter ido lá e...
— Leopold não mistura os negócios aparentemente limpos da Hautch Propieté com os do pai ou do irmão — começou Oscar a ficar agitado. — Foi por isso que na duvida, eu não quis que você dançasse naquela noite.
— “Na duvida”? — Sean só conseguiu rir. — O negócio do alienígena Albert Falppo Braushin é a prostituição de alienígenas e quais são os negócios alienígenas de Lüdovick Braushin?
— Armas! Mais preciosamente, armamento pesado — foi Mr. Trevellis quem falou.
— Ah! Claro! As serpentes alienígenas dominando e plasmando os homens de grandes potências, e os Braushin no poder com muito armamento pesado. Estou correto?
Mr. Trevellis não se deu ao trabalho de responder. Encheu um copo que tirou do bar do carro e se serviu de uísque.
— Uma dose? — Mr. Trevellis se virou para Sean.
— Sabe que eu não bebo.
— É! Eu sei! Gosta de se embebedar de outros líquidos.
Sean se inclinou para cima de Mr. Trevellis que recuou com o uísque balançando no copo, dentro do carro.
— Pare! — e foi Oscar quem o segurou.
E todo seu corpo sabia que aquele toque significava muito. Que Oscar mandava em Sean e Sean o obedecia.
Mr. Trevellis resolveu nada declarar sobre aquilo. No fundo tinha medo dos Roldmans.
— Vamos falar de negócios, porque Cybele está a ponto de ser levada por sua inteligência, filho de Oscar.
— Como a ponto de ser levada? O que quer dizer com isso?
— Vai ter que ir até o fim para descobrir, filho de Oscar.
Sean só olhou para Oscar, quase pedindo para ser segurado.
— Temo que Trevellis tenha razão.
— Droga! — Sean o fuzilou com um olhar.
— Isso é um ‘sim’, filho de Oscar?
— Não me chame assim! — falou Sean entre dentes. Oscar nada disse e Mr. Trevellis se divertia. — Onde estão todos?
— Colocamos Oswald Lambert e sua família sob a guarda da Polícia Mundial — foi Mr. Trevellis quem falou novamente. — Eles não quiseram ficar sob a guarda da Poliu — riu cínico ao servir-se novamente de uma dose de uísque — Acredita que não sei por quê? — gargalhou depois. — O resto da população, assim como o Dr. Zuquim e sua filha plasmada também estão em segurança. Ele nos contou a pouco sobre os tiros que levou na Q’Animal e que o alienígena Maykon o salvara.
— Tem certeza que estão em segurança, Trevellis?
— Se é que há segurança em algum lugar para Clara ou quem quer que aquilo seja — Mr. Trevellis olhou para fora do vidro.
Sean observava Oscar quieto, aquilo o incomodava mais que suas brigas.
— Madame Michelina e o neto?
— Sumiram.
Sean suspirou profundamente. Por vezes pensava em desistir, por vezes não tirava a imagem da bela Marcia da cabeça.
— Onde estão os outros alunos?
— Alguém em especial? — Mr. Trevellis era fel só.
— Menos, Trevellis — pediu Oscar.
Sean sabia que eles sabiam. Os viu, os dois, lhe olhando profundamente. Mas outra vez sabia que tinha que continuar.
— Onde estão os outros alunos? — repetiu.
— Alguns pais vieram buscar seus filhos e Friedrich foi chamado a Genebra por Leopold, ainda não sabemos por quê. E claro, a agente Elisa desapareceu sem dar notícias a Umah — Mr. Trevellis tomou todo o copo e voltou a encher.
— Você já tentou andar por uma casa no escuro Trevellis?
Ele olhou Oscar por debaixo de um olhar rápido antes de responder.
— Aonde quer chegar?
— Você esbarra em tudo! — Sean viu Oscar olhar Mr. Trevellis ainda o olhando. — Mas quanto mais tempo você passa nessa casa mais forte essa imagem mental se torna até que ao viajar pelo astral, durante a vigília, essas coisas por demais assimiladas aqui, crescem como formas de pensamento nas outras dimensões.
— Do que está falando, Sean querido?
— Falando sobre a geração de formas-pensamento no astral, mas que ilogicamente também funcionam ao contrário, fazendo objetos físicos existentes em pensamentos se materializarem aqui, na Terra, em uma impressão tão duradoura que fachadas de pedras se moldam a nossa vontade.
— À sua vontade filho de Oscar, que é um ilógico.
Sean não se deu por atingido por Mr. Trevellis.
— Parapsicólogos dizem que podemos encontrar móveis que não temos mais, roupas que já não usamos ou pessoas que já não fazem parte de nossa vida social por onde sua alma vaga na vigília.
— Sean...
— Quer saber por que a imagem dela me persegue, Oscar querido? Porque eu a tenho, tenho Sandy Monroe gravada aqui — apontou sua própria cabeça. — Aqui!!! — gritou colocando o dedo novamente na cabeça. — Plasmando-a aqui!!! — apontou para o chão. — Na Terra!!! — Oscar sentiu-se incomodado e Mr. Trevellis ia rir quando a voz de Sean o alcançou novamente. — Podemos conversar lá fora Trevellis?
Mr. Trevellis engasgou-se pela pergunta e pela entonação usada nela. Escorregou outro olhar para Oscar que nada falou.
Mr. Trevellis colocou o copo no bar e saiu.
Sean foi atrás.
— Pela força de sua frase vai me cobrar algo não filho de Oscar?
Mr. Trevellis era realmente inteligente.
— Abra sua mente!
Mr. Trevellis olhou, olhou e olhou antes de rir até sentir que o ar faltou-lhe nos pulmões.
— Você teve febre. No mínimo deve ter perdido a consciência algumas vezes — e se virou para voltar para o carro.
— Você me deve um favor! — segurou o braço dele com a mesma força da exclamação usada.
Mr. Trevellis só tinha Oscar dentro do carro na mira.
— E parece que você não demorou a cobrar.
— Você me deve!
— O que quer afinal filho de Oscar?
— Que desbloqueie sua mente.
Mr. Trevellis voltou a cair em sonora risada.
— Não vou deixar você acessar Sandy...
— Não é ela que eu quero acessar.
O susto tomou conta dele.
— Por que quer saber isso Sean? Magoar seu pai?
— Wow! Desde quando se preocupa com ele? E com ele?
Mr. Trevellis não gostou da ironia, mas abriu os braços num gesto de ironia e permitiu. Sean foi ao chão de joelhos amolecido com o que soube, com o que Mr. Trevellis permitiu que ele soubesse, porque sabia que Sean jamais invadiria Oscar.
— Boa sorte filho de Oscar — e Mr. Trevellis se virou gargalhando com gosto, e com o gosto de tê-lo atingido, magoá-lo. Entrou no carro Mercedes e fechou a porta se chacoalhando para esquentar-se. — Que frio não amigo velho? — e voltou a encher o copo de uísque sabendo que Oscar não conseguiria tirar nada de dentro dele.
Já Sean se ergueu com lágrimas escorregando pelo rosto bonito. Sentiu-se arrasado, minado mesmo. Nunca imaginara que os quatro fossem tão mais próximos como Mr. Trevellis permitiu sabê-lo, nem tão mais perigosos como jamais imaginou que fossem. Toda uma vida de ilusão, com três homens e uma mulher que só almejavam o poder, e o dinheiro que esse poder era capaz de gerar. Sean sentiu-se mais só que nunca, triste, vazio, sabendo agora que o suicídio de Sandy havia sido só um efeito colateral na vida dele, no desenvolvimento paranormal que os quatro amigos desejavam; cada um a sua maneira.
Sean olhou para frente e viu que a École Hoteliere Dubois era a École Dubois, alguns séculos atrás, com paredes de pedra e dois torreões enegrecidos com relógios badalando meia-noite.
“Apport!”, olhou para cima, para os lados, e sentiu que vivia algo plasmado.
Sean também não gostou daquilo, recomeçou a trafegar o pátio e sentiu o peito apertar. Parou e olhou para a École Dubois outra vez e górgonas se inclinavam nos torreões como estátuas de pedra que eram. Quis fugir e seu peito espremeu fazendo o ar não chegar até ele, fazendo todas suas sinapses nervosas entrarem um curto em meio a gritos de corvos que sobrevoavam a terra que cheirava um odor ocre de coisa morta, de corpos decompostos arrastados pela serpente verde que seguia à sua frente, por um chão de pedras escuras que Sean não conseguia andar, paralisado.
“Sean?”, chamaram-lhe.
Sean tentou respirar, sair do lugar, e uma janela bateu no alto da école de pedras, o fazendo ajoelhar no chão sem forças, se contorcendo pelo frio, querendo fazer suas mãos se aquecerem as aproximando da boca que roxeava rapidamente, enquanto seu coração dava sinais de falhar. Tentou tirar as luvas com os dentes e sentiu que todos os seus movimentos começavam realmente a falhar, não mais sentindo as pernas, a mão direita, que congelava.
E nenhum passo, nenhuma voz, nenhuma poeira no ar.
“Socorro!!!”; a voz não reverberou.
Sean ficou ali, ajoelhado no frio, sabendo que na école, ninguém o via. Só ele congelando, morrendo aos poucos.
“Frio... frio... frio...”; tremia ajoelhado no meio do pátio.
Sean tentou mover-se, olhar em volta e percebeu-se em meio a muitos homens que corriam; iam e vinham por todos os lados. O gelo sumira, o frio sumira e ali um calor que não existia, só uma terra seca que levantava pó pelos movimentos desordenados de homens uniformizados, armados, passando ao lado dele, ao redor, por dentro.
“Ahhh!”; sentiu dor no que começou a ser ultrapassado por um homem, por vários homens, por espíritos de homens ainda presos a outros mais. Os uniformes se trocavam e o redor se inclinava, em meio aos sons inconfundíveis de pólvora seca saindo de uma espingarda de percussão quando Sean olhou para o lado, e um homem o olhava tão apavorado com o que via quanto ele.
Sons de canhões os alcançaram e o homem de espingarda na mão sumiu com a fumaça que os canhões emitiam em meio a gritos, projéteis, e aviões que o levavam de uma guerra à outra, desordenadamente; Guerra da Prússia, Primeira Grande Guerra, Segunda Grande Guerra.
Dois soldados alemães estacionaram ao lado dele, montaram um fuzil AR15 MG 34, atiraram, e morreram. Sons de aviões se misturaram; antigos, modernos. Sean nada entendia, compreendia. Guerra do Golfo, Afeganistão para então novos sons se misturarem ao redor que inclinava, inclinava e inclinava novamente para um tanque atravessá-lo, fazendo-o sentir cada pedaço de átomo de seu corpo vibrar.
Enfim entendeu a cena plasmada, plasmada para espíritos que ainda vagavam entre uma guerra e outra quando os corpos que caíam, eram consumidos, secos. Sean tossiu pelo frio, pela pouca oxigenação, voltando ao pátio da École Hoteliere Dubois ainda congelado, ainda preso entre uma e outra dimensão.
“Sean?!”; gritou Bruce.
“Sean?!”; gritou Beth.
“Sean?!”; gritou Pitt.
Sean tentava manter-se alerta ao pensar no que acontecia, aos vê-los ali mostrando estarem todos mortos em meio a soldados que voltavam a cair dilacerados; alemães, franceses, árabes, ingleses, japoneses; de todas as nacionalidades, de todas as idades, de todas as guerras.
“Sean?!”; gritou June.
Sean se desesperava cada vez mais rápido.
“Sean?!”; gritou Lück.
“Lück?”, Sean tentava pensar.
“Sean?!”; foi à vez de Elisa.
“Não!!!”; gritava Sean sem nada sair da boca que congelava jogado no pátio da École Hoteliere Dubois e seus gritos se misturando ao grito desconhecido de Aline, de uma Aline no meio da neve ainda usando a boina de veludo azul marinho.
“Sean?!” “Tenho frio!!!.”; gritava Aline.
“Sean?!” “Está tudo escuro!!!”; gritava Sandy.
“Oh! Não... Não a deixe sofrer assim...”; mas Sean sabia que ela sofria.
E ele sofria também.
“Sean...”; mas foi à vez de uma voz parecida com Kelly, ecoar.
“Não?!” “Kelly, não!!!”, desesperou-se.
“Sean...” ecoou Kelly outra vez.
“Por favor, serpente-sentinela!!!” “Kelly, não!!!”; berrava tentando enxergar o redor, as imagens inclinadas que iam e vinham, do piso tomado pela neve da École Hoteliere Dubois para o piso de mármore carrara de sua cobertura, da Computer Co., do sorriso perfeito da morena, sócia, amada Kelly Garcia, de pernas torneadas, cruzadas, que não podia mais esperá-lo.
“Soco...” Sean tentou falar, congelando cada vez mais rápido preso entre dimensões.
“Socorro... Maykon...” usava de todos seus dons.
Maykon pressentiu algo enquanto descia as escadas da École Hoteliere Dubois.
Marcia estava no andar debaixo o encarando furiosa.
— Onde está Sean Queise, Marcia?
— Em todas as guerras!
— Ele vai morrer — Maykon apavorou-se.
— Ele procurou!
— Não posso deixar que ele morra, Marcia! — exclamou nervoso.
— Não somos daqui, Maykon! Isso é livre arbítrio!
— Isso não é livre arbítrio! É omissão, Marcia!
— Não podemos alterar a escolha de cada um! — falava descontrolada.
— Você está com ciúme, Marcia. Com ciúme das lembranças dele.
— Cale-se!!! — berrou a fazer tudo em volta estremecer. — Não estou com ciúme!!! — Marcia gritava a fazer seus olhos verdes brilharem intensamente.
Mas Maykon não teve medo dela.
— Esses sentimentos humanos não deveriam nos atingir, Marcia — enfrentou-a, desafiando seu poder, sua posição hierárquica. — Porque ele vai morrer se não fizer nada — Maykon continuou a descer as escadas. — Pensei que o amasse? — Maykon viu Marcia ficar furiosa com aquela pergunta, e sumir para dentro do corredor que levava à diretoria. Foi atrás de Cybele enquanto Maykon invadiu o pátio lotado de neve a procura de Sean. — Sean Queise?! — Maykon gritava ao vento, desesperado por não encontrá-lo, não poder vê-lo preso numa outra dimensão. — Sean Queise?! Sean Queise?!
“Soco...” Sean conseguiu falar antes de cair no chão, entre as dimensões, a fazer sua lenta pulsação o desligar.
— Onde você está?! Sean Queise?! — Maykon girava em torno dele mesmo. — Concentre-se!!! — gritava a esmo, correndo para um lado e depois para o outro, a socar o ar, a tentar esbarrar em algo que pudesse levá-lo até a outra dimensão. — Pense em algo, Sean Queise!!! Em alguém!!! — e fazia movimentos no ar tentando esbarrar em algo que não enxergava.
Sean voltou a si o escutando. Mas Maykon era uma figura desfocada, com seu corpo tomado por rabiscos desconexos.
— Pensar... — soou distante. — Aqui... — e esticou a mão, a única coisa que se moveu e atravessou a dimensão em que estava preso.
Mas Maykon não conseguia vê-lo e Sean perdeu os sentidos novamente.
“Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean… Sean...”; ecoavam pelas onze cordas dimensionais.
— Pense Sean Queise!!! Pense!!! — gritava Maykon.
“Kelly...”; Sean lembrou-se dela, do seu sorriso, de seus cabelos negros balançando de um lado e outro pelos corredores da Computer Co..
Lembrou-se em como ela o amava, e como lhe devia uma resposta àquele amor; um mês.
— Kelly... — e o braço de Sean Queise atravessou a dimensão.
Maykon o encontrou perto da porta da entrada vendo um braço penso no ar.
O puxou com toda sua força, mas Sean não se moveu.
— Ajude-se!!! Você pode!!! Você tem força para controlar as dimensões!!!
E Sean abriu os olhos novamente a ver agora Maykon cada vez mais nítido.
— Como... — soou de outros locais.
— Você tem força para controlar! Você é especial Sean Queise. A Poliu já percebeu isso, até Marcia percebeu também.
— Não...
— Foi sua amiga Mona quem o ensinou. Você pode controlar as dimensões. Concentre-se!
Sean estava confuso. Percebeu em meio ao sofrimento que Maykon lera sua mente o tempo todo. Temeu que ele soubesse mais do que devia.
— Não... Não consigo...
— Consegue sim, sim. Você é especial Sean Queise — Maykon segurava o braço de Sean, a única coisa que atravessara a dimensão. — Você parou aquele funicular, Sean Queise. Você pode! Nasceu assim! Especial! — Maykon insistia.
“Kelly”, Sean pensava nela a fazer o braço avançar cada vez mais para a dimensão onde a École Hoteliere Dubois estava, onde ele vivia. Não posso mais esperar
“E vou Sean! Vou atrás de você, onde você estiver...”
— Ahhh!!! — um grito do futuro alcançou os soldados feridos, mortos de corpo.
Eles se olharam armados, olharam o homem caído no chão, congelando em meio a batalha que se seguia e correram ao ajudá-lo.
“Porque vou fazer trinta e cinco anos...”
Sean mexia-se com cada vez mais facilidade no pátio no que os soldados mortos de uma guerra já guerreada o ajudavam a se erguer, os vendo sumir, um a um, como se ao ajudá-lo os soldados abriram uma porta de luz.
“Não posso mais esperar!” agora a voz de Kelly foi nítida e o grito dele também:
— Ahhh!!! — um grito que ecoou por toda École Hoteliere Dubois, pelas escutas do carro de Mr. Trevellis e Oscar Roldman.
— Sean?! — Oscar gritou.
— Não! — Mr. Trevellis segurou-lhe. — Não podemos Oscar. Sabe que não podemos.
Oscar encarou Mr. Trevellis e Sean sentiu uma dor horrível apertar-lhe o peito, caindo zonzo aos pés de Maykon na neve da Suíça. Maykon o arrastou como pôde para dentro da École Hoteliere Dubois o levando até a biblioteca, onde acendeu o fogo em meio às estáticas de rádio que invadiram o carro consular.
Mr. Trevellis olhou Oscar novamente e Maykon tentava arrancar as roupas de Sean o deixando só de calças e o cobrindo com o casaco quente que usava. Correu ao andar de cima atrás de roupas secas e Sean olhou em volta, atordoado pelo frio, pelo cansaço da passagem de uma dimensão a outra, por estar na biblioteca onde o quadro de Aline fora retirado da parede, e Cybele quase derrubou a porta ao entrar furiosa.
— Parece que o som melhorou depois de tanta estática — falou o agente da Polícia Mundial ao volante. — Ouvi uma batida de porta muito forte — ele usava um fone de ouvido. — Vamos entrar Monsieur Oscar Roldman?
— Espere! Ainda não é hora! — quem respondeu foi Mr. Trevellis sob forte pressão de Oscar que vigiava o som na mesma intensidade. — Abra o som para o carro!
Os dois se olharam e Sean dentro da École Hoteliere Dubois tremia percebendo que Cybele não estava muito estável psicologicamente com cobras mil se movimentando na cabeça.
— O que faz aqui? — falou ela numa voz entorpecida ao vê-lo tremendo no chão.
— Estava... — Sean gaguejou se não pelo frio, pelas cobras que o encaravam e a pele de Cybele que ganhava contornos de escamas acinzentadas. — Estava procurando todo mundo.
— Por que a ironia?
— Como disse?
— Perguntei por que a ironia?! — e os gritos deixaram Oscar e Mr. Trevellis em alerta.
— Não estou sendo irônico, Cybele. Estou querendo saber onde estão...
— “Onde”? — e caiu em sonora gargalhada.
Oscar do outro lado do receptor se moveu temeroso, mas Mr. Trevellis mandou que ele se acalmasse com um seco movimento de mão. Cybele dentro da biblioteca fechou a respiração da lareira fazendo Sean voltar a congelar vendo que as cobras na cabeça dela começavam a ganhar sua roupa, o piso, descendo.
— Cybele...
— Nunca gostou mesmo de estudar, não? — perguntou ela agora fechando e retirando a chave da porta.
— “Estudar”? — perguntou Sean para a porta fechada.
— Você nunca se esforçou para que seu tio tivesse uma retribuição.
— “Tio”? Do que está falando, Cybele?
— Você envergonhou a École Hoteliere Dubois! Expôs-me ao ridículo sua alienígena putinha! — Cybele se aproximava apontando para ele um dos UFOs circulares de metal. Sean sentiu que ia parar de respirar. — Entregou seu corpo nu com o emblema da minha escola?! — berrava. — Você nos desmoralizou dançando nu para envergonhar a mim e a seu tio?! — e jogou o vaso perto de suas mãos em cima de Sean que se desviou.
— Cybele, você está louca? Você sabe que sou Sean Queise, porque você pode saber lendo mentes. E deixei você ler a minha quando o policial...
— Alienígena putinha!!!
— Não! Não! Eu não sou alienígena Cybele. Disse isso a você. Sou realmente o proprietário da Computer Co., empresa de computadores com quem Leopold Braushin negociava. Não sou uma plasmagem.
E Cybele apontou para ele o UFO circular de metal.
Sean arregalou os olhos azuis. Sabia que se o UFO circular abrisse uma serpente-sentinela alienígena viria atrás dele e ele seria seco como os outros.
“Quem viria?” “Nathan?”, pensava sofrendo. “Sobrou mais algum”, desesperava-se.
— Raciocine Cybele! Eu sei sobre sua religião, sobre a Irmandade Simbiótica. Sei que a Irmandade Simbiótica venerava as serpentes alienígenas desde o antigo Egito, depois Grécia, que eles os alimentavam em troca de conhecimentos esotéricos.
— Não!!! — berrava descontrolada com cobras pulando dela.
— Deus... Deus... Não faça isso Cybele! — Sean se arrastava como podia, com as forças que ainda tinha para longe das muitas cobras que se rastejavam ali. — Escute Cybele! Sei que os Luciedes mataram Aline porque queriam dominá-la e não estavam conseguindo. Sei que você é uma górgona.
— Não!!! Não!!! Não!!! — Cybele procurava desesperada a abertura do UFO circular de metal.
— Cybele, pelo amor de Deus raciocine. Os Braushin vão dominar as serpentes alienígenas e fazê-los plasmar quem eles quiserem. Eles já aprenderam como alimentá-los. Leopold Braushin vai destruir você e a École Hoteliere Dubois porque não precisam mais daqui, nem das serpentes alienígenas, nem do túnel — blefou alto.
— Não precisam mais do túnel? — Cybele acordou e todas as cobras de sua cabeça assim como a pele acinzentada voltaram ao normal.
— Não! Não precisam mais! Só não sei como eles vão fazer para chegar à nave — Sean olhou o UFO circular de metal na mão dela. — Pelo amor do meu Deus, Cybele. Não chame nenhuma serpente-sentinela alienígena ou os Braushin vão saber. Por favor! Não sou seu inimigo.
Cybele parecia ter medo de encará-lo e assim encarar a verdade.
— Eu ia... — Cybele olhou para o UFO circular de metal. — June roubou um porque achou que poderia chamar Aline — olhou para Sean, agora perdido com aquela explicação.
— Os UFOs circulares podem chamar serpentes e mortos?
— Ãh? Ah! Sim! Mas foi Nathan quem apareceu e matou June sob ordem de um dos Luciedes — Cybele chorava. — Não fui eu!!! Você não pode me culpar!!! — recomeçava a se descontrolar aos gritos.
Sean tentava a todo custo, dominar a situação.
— Não, Cybele... — levantou-se com frio e se arrastou como pôde até ela. — Claro que não vou culpá-la pela morte de June. Você tentou segurar a instituição que um dia foi a École Dubois — tirou o UFO dela.
— A polícia...
— Haverá um inquérito, você sabe — escondeu o UFO circular na calça molhada. — Você se envolveu em outras mortes, mesmo que indiretamente. Tudo pela sua religião, eu sei, pelo seu povo, que acabou... Que acabou em você, que acabou na última górgona Dubois — Sean olhou para os lados. — Eu posso ajudá-la! Conheço gente muito influente.
— Alienígenas influentes?
— Não... Sim!
— Você ajudar-me-ia Sean?
— Sim! Mas você vai ter que me ajudar também.
— Como?
— Adormecendo!
— Como é que é?
Não entendeu Cybele, nem Mr. Trevellis e nem Oscar Roldman que se olharam assustados no chiado que desligou a comunicação de rádio. Já Sean se arrastou até a escada, para subir ao segundo andar se livrando do microfone que arrancou, microfone que Mr. Trevellis colocara nele no mesmo momento em que Maykon vinha descendo com roupas quentes.
Sean estava com frio, molhado, mas decidido a lhe pedir algo também.
— Onde está Marcia? — perguntou antes de tudo.
Maykon olhou para cima, para os quartos e viu o corredor vazio.
— Não sei Sean Queise.
Sean passou por ele e subiu.
Maykon foi atrás.
— Você é igual a ela? — Sean entrou e bateu a porta do quarto 5-5 no que eles passaram.
— Por que a pergunta?
— Porque se vocês forem iguais, preciso de dois favores seu.
— Dois? — Maykon se espantou.
— Quantos forem necessários.
— Sabe o que eu vim fazer aqui na Terra, não sabe Sean Queise?
— Começo a compreender cada vez mais rápido.
— Então sabe que não posso fazer isso. Não posso quebrar os eventos mundiais...
— Mas é exatamente isso o que vai fazer a Terra ser destruída num ‘evento mundial’.
Maykon olhou em volta a pensar. Há muito que deixara de ser a figura delicada, homossexual.
— O quer que eu faça?
— Primeiro, proteja essa pessoa — abriu o armário, tirou de dentro um envelope contendo uma foto de Kelly impressa numa oportunidade em Lausanne.
— Quem é ela?
— Ela é uma pessoa muito importante para mim. A pessoa mais importante para mim.
— Mas por que ela se parece com a Marcia?
— Devia era se perguntar por que a Marcia se parece com Kelly.
Houve um silêncio considerável por parte de Maykon até ele falar:
— Está bem! Vou pedir proteção à Confederação Intergaláctica.
— Ótimo! — Sean mostrou para Maykon o UFO, o UFO circular de metal que tirou de Cybele. — Em segundo, preciso viajar a meia-noite.
— Precisa o quê? — Maykon achou que não tinha entendido.
27
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
10 de abril; 00h01min.
Um calor subiu pelas pernas pequenas e peludas de Louis que ficaram dependuradas para fora da cama à noite toda. Uma grande chama que vinha do andar debaixo crispava, atravessando o assoalho após as vinte e quatro badaladas.
— Socorro!!! — ecoou os gritos de Louis por toda a École Hoteliere Dubois.
Marcia e Maykon acordaram de pesadelos idênticos, os avisando da tragédia. Maykon chegou antes e deu de encontro com Hübinjer Luciedes na porta derrubada por Louis. Hübinjer num rápido movimento se virou e partiu para a agressão, atingindo Maykon com um chute. Maykon foi ao chão sentindo dor quando foi erguido pela língua verde de Hübinjer, que enlaçou seu pescoço, apertando-o. Marcia chegou e tocou em Hübinjer, ele largou Maykon com a língua secando, com o corpo secando até que o humor aquoso da córnea secou, e os olhos pularam para fora do corpo seco, que foi ao chão.
Marcia então se virou para o corpo caído de Maykon.
— Sabe que não é correto usarmos nossos poderes nesse planeta. Em planeta algum.
Mas Marcia não respondeu. Virou-se e viu Mitti logo atrás, com os olhos arregalados, entendendo que Marcia era um ser superior. Mitti correu, mas Marcia ergueu a mão e Mitti voou escadaria abaixo.
Marcia a alcançou nos degraus abaixo.
— Alienígena putinha! — foi o que Marcia falou para Mitti transformada em serpente-sentinela alienígena coletora de corpos, desfalecida no primeiro degrau da escada vendo Marcello chegar ao seu lado sem entender muito bem o que acontecia.
— Eu não... — e Marcello tossiu. —, não consigo respirar...
Najla e Louis o pegaram antes que ele caísse e o levaram para longe da fumaça quando o corpo de Marcello se tomou de escamas e ambos o largaram em choque.
— O quarto de número 9-9!!! — gritou Cristina em meia a confusão e fumaça que sufocava a todos.
Marcia subiu e viu labaredas invadirem os corpos de Charles e Monica quando eles abriram à porta. Monica caiu desmaiada sendo puxada pela irmã Eunice para longe enquanto Charles conseguiu apagar sua própria chama e resgatava Mary Ann que gritava.
— Não!!! Solte-me!!! — gritava Mary Ann. — Neide?! Não encontro Neide?!
Todos se olharam no corredor do segundo andar, em meio a labaredas que chegavam ao teto se espalhando.
— Cadê a Ema?! — alguém se lembrou.
— Cadê o Hübinjer? — lembrou-se Hans chegando perto de todos outra vez. — Onde?! — berrava descontrolado com todos.
Um curto circuito seguido de uma explosão escureceu a École Hoteliere Dubois. Maykon se pôs a tossir freneticamente pela fumaça que invadia seu pulmão frágil, indo procurar a caixa de disjuntores que sabia que estava no segundo andar, corredor masculino. Ele viu que Marcia também sofria pela fumaça, se apoiando na parede em meio a pouca luz do gerador que foi acionado após ter subido as escadas. Maykon conseguiu acionar as baterias do gerador de emergência e uma luz azulada invadiu os corredores.
Marcia olhou em volta, as labaredas crispavam cada vez mais rápidas.
— Onde está Sean? — perguntou ela a Maykon e ele nada falou. — Onde?! — ergueu-o do chão.
— Em outra dimensão! — exclamou Maykon para Marcia que arregalou os olhos esverdeados em meio uma segunda explosão.
Gritos e desesperos e Marcia mantinha Maykon no ar.
— Permitiu que ele fizesse um apport?! — gritou em meio ao teto que caía sob suas cabeças. Maykon não respondeu. — Permitiu?! — gritou furiosa, o largando.
— Ele nunca precisou de permissão Marcia. Nasceu especial.
Marcia não respondeu àquilo. Virou-se e correu para socorrer Neide que apareceu catatônica debaixo de escombros.
— Vamos! — ordenou Marcia a Charles que acabava de subir, para que juntos puxassem o corpo dela em choque no meio do corredor, ainda sob um pedaço de gesso do teto.
— O incêndio!!! — gritou Najla, apontando agora o andar de baixo impedindo que eles descessem.
A escada se tomou pelo fogo e Marcia outra vez tossiu pela fumaça, sentindo dificuldades para respirar. Mary Ann a segurou quando ela ia cair, e Marcia sorriu em agradecimento quando uma terceira explosão fez o piso ruir. Charles, Marcia, Mary Ann, Najla, Cristina, Monica, Maykon e Hans foram projetados para o andar abaixo caindo dentro da sala de teatro.
Mary Ann e Charles se recuperaram antes de todos e encontraram extintores que ficavam dependurados ao longo dos corredores. Apontaram para cima e tentavam apagar o fogo que vinha de cima, consumindo quase toda a madeira do piso que ameaçava a fazer roer todo o forro de gesso do teto de baixo.
— A École Hoteliere Dubois está ruindo!!! — gritava Cristina.
— É culpa das obras que aquela louca da Cybele faz!!! — gritava Najla.
Maykon e Marcia se olharam. Sabiam como Sean sabia, que as obras eram plasmadas por Cybele. E se tudo ruía era porque ela já não estava no comando da milenar École Dubois, quando Neide jogou cadeiras e o que encontrava pela frente nas janelas, quebrando os vidros das vidraças.
O ar entrou e todos sentiram em meio ao nevoeiro enegrecido, o cheiro ocre que vinha do corpo górgona de Cybele Dubois, seco, caído no chão por detrás das cortinas.
— Parece que é o nosso fim — foi só o que Maykon disse para Marcia em meio a muita gritaria e choro.
Place de la Gare, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 30’ 59” N e 6° 37’ 45” E.
02 de março; 00h00min.
Sean Queise usava casaco pesado e luvas num frio como só se sentia quando se adentrava noutra dimensão. Olhou em volta e havia o mesmo nevoeiro espesso de antes, com o inspetor de cabines em pé na estação, recolhendo os bilhetes da ufóloga com colar de pérolas, os bilhetes do casal de turistas italianos e finalmente os bilhetes do pai e a filha com sua boneca burguesa que entravam no trem que já ia partir.
Sean não conseguia entender aquilo, Armand havia dito que iam descer em Lausanne, que iam ficar no albergue, que os ufólogos iam participar de uma vigília. Então por que eles desceram e voltaram a entrar no trem, ele não conseguia se responder. Só que ele acionara os freios, que ele parara o trem e que ele descera.
— Le Tomet, Monsieur — o inspetor de cabines olhou para ele.
Sean arrepiou-se todo na voz que ouviu. Entregou-o e o inspetor de cabines recolheu o bilhete das mãos enluvadas.
— Preciso ficar na cabine 5-5 — falou Sean como se sua voz fosse oca também.
— Eu o conheço? — perguntou o inspetor de cabines de repente.
— Se você está me reconhecendo é porque começa a compreender sua situação atual.
O inspetor de cabines espremeu os olhos começando a ficar transparente.
— Oh! Excusez-moi, Monsieur — uma fina lâmina de sangue escorreu da testa. — Pensar dói! — o inspetor de cabines caminhou como quem não percebe aonde e entrou no trem.
Sean respirou profundamente, olhou para estação de Lausanne e a viu vazia perdida em meio a um nevoeiro espesso; entrou no trem pela escada aberta e o piso de madeira não reverberava seus passos.
Um movimento fez o trem começar a andar e Sean caminhou pelas portas das cabines até encontrar a cabine de número 5-5; abriu-a e entrou. Sua mala estava no armário, a mesma mala que Kelly arrumara para ele. Sean digitou os números do cofre da parede e lá estava o netbook. Tudo passou pela sua cabeça, mas nada que pudesse explicar os mistérios da vida.
Segurou o netbook nas mãos e tentou se concentrar, a fazer uma imagem se formar, e a imagem do luxuoso edifício da Computer Co. House’s em São Paulo, Brasil, se mesclou à cabine 5-5.
Sean viu o hall de fino mármore se moldar, os funcionários irem e virem, os muitos andares, os elevadores, a secretária Renata na sua mesa a falar no telefone, a copeira servir-lhe o café, viu Kelly adentrar na sua sala, se sentar na sua mesa, abrir a gaveta e encontrar o netbook que Sean colocara lá. Kelly se arrepiou toda não entendendo, não sabendo que o netbook atravessara as dimensões. Sean voltou com toda força ao trem plasmado se chocando com a parede da cabine 5-5. Olhou para as suas mãos que tremiam e viu que o netbook sumira.
Ficou em choque com o que podia fazer.
— Sean... — alguém falou na porta da cabine 5-5. Agora Sean teve medo de verdade, sentindo o perfume de rosas brancas no ar. — Você veio me procurar, Sean? — perguntou Sandy Monroe.
Sean engoliu aquilo a seco. Fechou os olhos e cruzou os braços para que o pesado casaco o aquecesse, abotoando-o até em cima. Continuou de costas para a imagem de Sandy na porta da cabine e caminhou até a cama onde o armário sobre ela, guardava a sua mala. Tentou pensar na mala e fazer seus pensamentos mandarem sua mala de volta também, mas sentia que o perfume de rosas brancas ainda estava ali.
— O que faz aqui, Sandy?
— Achei que você queria me ver depois de tanto tempo.
Sean cerrou os olhos, nunca havia sentido tanto pavor como sentia naquele momento.
— Perdão! Eu não vim vê-la Sandy — Sean tentava a todo custo se concentrar na mala e não conseguia. — Vá embora, Sandy. Por favor...
— Por quê? — chorava. — Estou feia? — enfiava e tirava o dedo do buraco na têmpora.
Sean não olhava para trás, apenas conversava com a voz dela. Sabia que se a visse algo muito ruim podia acontecer a ambos.
— Vá embora, Sandy! Por favor! Por favor! Por favor! — escondeu o rosto nas mãos que gelavam apesar das luvas.
— Para onde, Sean? Estou tão sozinha.
— Deus... Não faça isso comigo.
— Faz frio lá, Sean, lá no escuro...
E Sean teve vontade de chorar, sentindo uma tristeza tão profunda que quis morrer de repente, a mesma sensação de vazio que o arrastava anos a fio.
— Escuridão não existe quando apagamos as luzes, Sandy. É só ausência de luz... Você pode viver na luz se quiser, tudo é livre arbítrio.
Uma mão fria, estática o arrepiou quando tocou seu ombro machucado. Sean viu que voltava a sangrar, que o curativo que o Dr. Zuquim fizera, rompera.
— VOCÊ NÃO ACREDITOU EM MIM! — a voz ficou rude.
— Foi você quem...
— VOCÊ ME MATOU!!! — a voz começava a ficar cada vez mais áspera, profundamente áspera.
— Encontre a luz, por favor... — e Sean começou a soltá-la de sua mente.
— NÃO, SEAN!!! EU NÃO QUERO IR!!! — gritava. — EU AMO VOCÊ!!! NÃO!!! NÃO!!! NÃO!!! — e o som de papel amassado se fez.
Sean se virou para se arrepender por toda sua vida. O rosto distorcido, deformado pelo suicídio da noiva se mesclava ao corpo verde da serpente-sentinela alienígena coletor de corpos que o encarava da porta da cabine 5-5 lançando sua língua fina e úmida no pescoço dele, o enforcando em meio ao calor que subia pelos seus pés, subia por suas pernas.
— Socorro!!! — gritos se faziam por todo trem, por toda École Hoteliere Dubois.
Sean ouviu os gritos, ouviu Mary Ann gritar, reconheceu sua voz.
— Mary Ann? — ele ficou confuso ao ver que estava na escada da École Hoteliere Dubois, que ela se misturava com o trem plasmado, onde a língua fria e úmida o enforcava.
Sean esticou a mão desesperado, tentando alcançar o armário, a mala, o contrato da Computer Co. com a Hautch Propieté, mas a língua da serpente-sentinela alienígena coletor de corpos apertava cada vez mais.
— Arghhh!!!
Sean sentiu seus pés pregados no terceiro degrau da escada da École Hoteliere Dubois em chamas.
— Deus... Deus... Deus... — Sean arrancou as luvas no que ainda tinha de ar nos pulmões procurando no bolso do casaco o Orb, o UFO circular de metal com que viajara até o trem plasmado, tentando desesperadamente abri-lo quando a serpente-sentinela alienígena relaxou a língua entrando na cabine 5-5, tentando tirar-lhe o UFO circular das mãos dele.
O trem também começou a pegar fogo, e os pés de Sean estavam pregados entre uma dimensão e outra quando a serpente-sentinela alienígena agarrou-lhe o pescoço agora com mãos úmidas de humano reptiliano e Sean bateu o UFO circular na cabeça da serpente-sentinela alienígena que caiu no chão incendiado.
— Arghhh!!! — berrava descontrolada.
Sean girou o UFO circular e gritos de horror se misturaram; gritavam os passageiros do trem, gritavam os alunos da École Hoteliere Dubois numa gigantesca fogueira, no que luzes estroboscópicas quase o cegaram.
Num último movimento, Sean saltou para cima da cama, tocou a sua mala e caiu no chão, mais precisamente no chão da École Hoteliere Dubois, em meio ao incêndio da École Hoteliere Dubois, com sua mala na mão, vendo Neide jogar uma cadeira na janela e quebrar o vidro que permitiu o ar entrar e todos sentirem em meio ao nevoeiro enegrecido, o cheiro ocre que vinha do corpo górgona de Cybele Dubois, seco, caído no chão por detrás das cortinas.
A vida realmente era ilógica.
28
École Hoteliere Dubois, Lausanne; Cantão de Vaud, Suíça.
46° 34’ 56” N e 6° 41’ 28” E.
10 de abril; 12h34min.
O trabalho de rescaldo fora difícil e tumultuado. Os poucos alunos que sobraram estavam em estado de choque e não conseguiam explicar ao corpo de bombeiros como a escola havia se modificado tanto naquele incêndio, nem como o refeitório e a nova e moderna cozinha eram um monte de pedras, as mesmas usadas na fachada.
A mídia também correu para a École Hoteliere Dubois fotografando torreões de relógios que ainda teimavam em funcionar.
Os corpos de Marcello, Hübinjer, Mitti e Cybele foram encontrados carbonizados pelo incêndio, com seus corpos estranhamente secos. A perícia não entendeu como o fogo provocara aquilo e a Poliu como de costume teve que intervir nas autópsias.
— Sean? — chamou Marcia ao vê-lo sentado no que restou de um banco parcialmente carbonizado pela noite anterior vestindo um grosso casaco de lã.
— Haviam me dito que os Luciedes eram humanos. Agora tenho medo de saber o porquê pude fazer o que fiz com os Luciedes se eles são híbridos.
— Eu não sei o que dizer, Sean querido.
“Sean querido?”; Sean teve medo do que ouviu.
— Não diga nada então. Não vou gostar de ouvir você dizer outra vez que nós seres humanos somos misturas de alienígenas.
Marcia não disse nada e Sean virou os olhos nervosamente.
“Droga!” repercutiu por cada sinapse dele.
— Eu disse a ela que tentaria ajudar...
— Disse a quem?
— Cybele! Pedi que tomasse um sonífero e assim não pudesse ouvir os chamados das serpentes alienígenas. Eu disse que a protegeria e não o fiz.
— Você não podia imaginar isso.
— Podia Marcia.
— Você não podia saber que...
— Podia!
E houve silêncio outra vez agora quebrado por ela.
— Maykon contou-me...
E Sean ergueu a mão.
— Já disse para não falar nada se não vou gostar.
— Maykon contou-me que você pediu a ele para plasmar algo? Talvez alguma conhecida? — Marcia foi vil.
“Kelly!”, Sean teve medo de Maykon falando mais do que devia.
— Não seja ridícula.
— Não sou quem faz papéis ridículos no Q’Animal — começava a se irritar.
— Queria que eu fizesse o quê? — perguntou agora Sean mais irritado do que ela. — E por que fala comigo como se eu...
— Por que Lück veio até aqui falar com você aquele dia?
— Não sei do que está...
— Por que Lück veio até aqui?! — estava começando a se enfurecer.
— Se você quer continuar a ir tão profundo assim com sua investigação intergaláctica, Senhorita Marcia — ergueu-se. —, por que não vai para a cama com ele como Elisa fez e descobre o porquê de Lück ter vindo?
Marcia se virou numa velocidade tremenda e o esbofeteou.
— Ahhh!!! — Sean foi ao chão pela força dela. — Olha aqui! Não te dou direito... — e ergueu-se agarrando as mãos que iam atacá-lo novamente.
— Largue-me Sean Queise! — e ela tentou se soltar dele.
— Eu vi Lück noutra dimensão.
— Você o que?
Sean deu uma pausa e Marcia brilhava os olhos esverdeados com suas mãos agarradas por ele.
Daquilo ele também não gostava.
— E sabe por quê? Sabe por que Marcia? Porque Lück já estava morto antes do incêndio. Porque Friedrich foi falar com Leopold e isso também deve ter sido seu fim. Porque Leopold mandou Nathan vir aqui e matar Cybele, Mitti, Marcello, Hans e Hübinjer, que também deviam estar na lista.
— Nathan colocou fogo na École Hoteliere Dubois?
— Sim!
— Não tem sentido Leopold matar os Luciedes, ele precisa deles.
— Para que? Para saber como entrar no túnel? — Sean viu Marcia arregalar os olhos verdes, a fazer sua face esticar-se toda. — O que tem nesse túnel afinal?
— Nada sei sobre túnel algum.
— Já disse que você é uma investigadora fraca?
— Chega Sean Queise!
— Hans, Friedrich e Hübinjer cometeram um erro, investigadora intergaláctica. Eu não sei qual nem quando, mas em algum lugar eles erraram... — e Sean parou. — O poço... — soltou-a.
— Poço? — e Marcia não teve respostas porque Sean correu em disparada invadindo a Floresta de Jorat, lotada de neve. — Sean Queise?! Volte aqui!!! — gritou nervosa no afastar dele.
— O poço... O poço... — Sean estava numa corrida desenfreada para poder lhe dar atenção. Não podia mais perder tempo, invadindo desesperado a trilha congelada que levava ao desfiladeiro. — Não vai dar tempo... Não vai... Não vai... — corria sem parar. — Ela já deve estar morta... — mas foi obrigado a brecar na ponta da falésia mortal no plasmar da enorme serpente-sentinela alienígena coletor de corpos que o encarava após ‘papel ser embrulhado’. — Deus! — Sean recuou e correu de volta, escorregando, caindo, se levantando e correndo trilha acima quando a serpente-sentinela alienígena saltou sobre a árvore e o grosso galho atingiu Sean que caiu afundando na neve, ferindo a coxa e o ombro ainda não cicatrizado.
Por ser de tamanho desproporcional, a língua da serpente-sentinela alienígena demorou em alcançá-lo e Sean tirou o galho de cima se pondo a correr outra vez, agora subindo em direção à cabana.
O frio era grande e um tiro vindo ele não soube de onde explodiu outro galho da árvore ao seu lado. Sean se jogou ao chão ao perceber que alguém mais o seguia, era humano e dessa vez estava armado.
“Droga!”, o suor tomou conta de seu rosto enquanto arrastava-se com dor na coxa que moldava uma fina trilha de sangue na imaculada neve branca.
Levantou-se, caiu, se levantou e correu até a cabana se moldar à sua frente. Ele tentou abrir a porta sem sucesso e sons difusos denunciavam o perigo eminente; uma serpente-sentinela alienígena ainda o seguia. Sean desistiu e virou para a direita, saindo dos domínios da École Hoteliere Dubois, atravessando a Floresta de Jorat mais densa ainda, que se fechava cada vez mais rápido quando se enganchou ficando preso pelo casaco que viajara no trem plasmado.
Em desespero Sean arrancou-o ficando com uma blusa da École Hoteliere Dubois não muito quente e uma calça que se molhava cada vez mais na neve que derretida, que fazia seus pés escorregarem e ele começou a rolar pela Floresta de Jorat como uma bola de neve.
Um som conhecido o fez brecar, um som de papel amassado mostrava Madame Michelina na sua frente.
— Monsieur Sean Queise! — falou ela num tom respeitoso se plasmando numa enorme e velha serpente-sentinela alienígena coletor de corpos, de língua fina e esverdeada, e que enroscara no pescoço dele.
— Não... — Sean agarrou a língua, que num golpe de sorte fez o corpo pesado da velha serpente-sentinela alienígena, enterrar-se na neve macia e degelada.
Sean soltou-se da língua e correu até parar na beirada. Uma decisão instantânea que ele tinha que tomar; saltar a cachoeira ou se encontrar com seus inimigos.
Aproximou-se mais e olhou para baixo, tocou o tecido da blusa e percebeu que o contrato da Computer Co. que recuperara da mala, na volta ao trem plasmado através do apport, estava lá. Fechou o zíper do saco plástico onde o contrato estava e um tiro no tornozelo lhe lançou em queda livre no que mais sons do estranho barulho de papel amassado se fizeram atrás dele. A água gelada foi o ato final, com Sean Queise indo até o fundo da cachoeira, a ver que seu sangue se misturando a ela. E a espuma da queda da água e seu sangue mostraram aos homens de Leopold e a quem quer que estivessem lá em cima, que a sua morte fora instantânea.
Todos foram embora com a sensação de trabalho cumprido e Sean ficou debaixo d’água até sentir que seu pulmão ia explodir. Tirou a cabeça para fora e nadou, nadou, nadou. Mas sua pele roxeava pelo frio, com toda sua concentração se esvaecia.
Estava ferido, cansado, morrendo.
E foi a correnteza que o salvou, Sean estacionou já desacordado dois dia depois, num montante de cascalhos e pedras emaranhado ao entulho. Um pescador avistou o brilho que o cinto da sua calça reluziu no Sol, estranhou o fato e se aproximou. Viu um corpo envolto em restos de plantas e galhos, um corpo parcialmente morto pela hipotermia margeando o Lago Léman. Foi o que o médico que o atendeu disse à Polícia Mundial três dias depois do pescador resgatar e levar Sean Queise ao hospital Clinical Matignon Vevey, em Vevey, Cantão de Vaud.
Oscar Roldman só o havia localizado depois do acionamento da jaqueta dentária, guiado por Spartacus, furioso pelo artefato não ter funcionado a contento.
29
Clinical Matignon Vevey, Vevey; Cantão de Vaud, Suíça.
46.46° 27’ 43” N e 6.84° 50’ 49” E.
13 de abril; 17h00min.
— Sean? — falou uma voz rouca, ainda um pouco longe para ele compreender. Sean tentou se virar para localizar a voz rouca na pouca claridade de seu quarto do hospital, mas todo o seu corpo cheio de curativos após ser arrastado pelas correntezas do Lago Léman não permitiam tantas manobras. — Está me ouvindo ‘filho de Oscar’? — insistiu a mesma voz rouca.
Sean agora acordou.
— Aonde...
— O jovem está em Vevey — quem respondeu foi outro homem, também jovem, vestido de branco, à sua direita.
Sean calculou ser um médico.
— “Vevey”? Desci tanto assim?
— O jovem foi salvo por um pescador que o avistou em meio a alguns galhos...
— Desorientado por Spartacus — completou outra voz. —, que você mandou Gyrimias modificar — Oscar não parecia muito contente com aquilo.
Sean não respondeu àquilo. Olhou para a esquerda e Oscar Roldman estava lá. E também Umah Trevellis, que ladeava Mr. Trevellis.
— Queria o quê com tanto buraco pelo corpo, Sean querido? — falou ela. — Virar queijo suíço? — Umah gargalhou com gosto.
Sean sentia muita dor para rir. Viu Mr. Trevellis o olhando; desviou-se daquele olhar.
— O doutor poderia nos dar licença? — pediu Mr. Trevellis ao médico.
— Claro! — foi só o que falou ao sair.
— Você quer me perguntar o porquê de eu ter alterado a jaqueta dentária, Oscar querido? — Sean o encarou. — Será que era porque eu sabia que me perderia nas águas de Vevey?
Mr. Trevellis gargalhou com vontade; no fundo gostava dele.
— Você se arriscou a ficar sem a Polícia Mundial para protegê-lo? — falou furioso.
— A que tipo de proteção se refere? A que estava de prontidão na École Hoteliere Dubois para ela não ser destruída por Nathan?
— Não culpe seu pai Sean — a voz de Umah acordou Mr. Trevellis. — Perdemos Nathan de vista após ele entrar no Q’Animal. Não sabíamos que ele...
— Porque ele não precisa entrar ou sair de nenhum lugar. Não com UFOs circulares os levando por apport.
— E por isso desligou Spartacus?
— Não o desliguei. Só o desorientei ou os Braushin iam me localizar.
— E como eles fariam isso se...
— ‘Se’ nada! — Sean cortou a fala de Oscar. — Esses alienígenas podem mais que se transformarem em serpentes, eles podem se plasmar em seres humanos, como percebeu, e assumir a identidade de quem quiserem. E nós não saberíamos nem se você, eu, ou Trevellis seria quem realmente é.
— Está dizendo que o intuito dos Braushin é matar gente importante e tomar seus lugares filho de Oscar?
— Não sei! Estou Trevellis?
— Inferno Umah! O que esse destrambelhado está falando?
— Trevellis!!! — gritou Oscar.
— Não Oscar amigo velho! Não adianta gritar comigo. Porque o que seu filho...
— Cale-se!
— O que a serpente-sentinela quer Sean? — Umah cortou tudo aquilo.
— Não sei...
— Não sabe?! — gritou Mr. Trevellis.
— Não sei! Está bem?
— Não! Não está nada bem! Porque se essa alienígena destrambelhada como você pode se plasmar... — e Mr. Trevellis olhou Oscar, olhou Umah e olhou Sean; e bufou. — Ela pode se plasmar?
— Sim! — respondeu Oscar, Umah e Sean uníssonos.
Mr. Trevellis caiu com todo seu peso no sofá.
— Sean...
— Não Umah! Tirando o problema religioso que surge ao nos defrontarmos com mundos plurais, multiversos, e o fato de ser ou não um único Deus quem nos criou à sua imagem, o grande medo do ser humano em confrontar uma raça alienígena está no fato de não sabermos o que realmente eles querem de nós. Porque se levarmos em conta a distância que cada Sistema Solar, Galáxia e até Universo tem, pode imaginar que só uma raça desenvolvida ao extremo seria capaz de empenhar tais viagens espaciais. Então o que nos leva outra vez ao motivo de sua visita. Domínio? Adaptação? Ou almas de luz que só querem o nosso progresso?
— O que acha que a serpente-sentinela quer? — voltou Umah a perguntar.
— Ela chegou aqui 10.255 anos atrás com o intuito de procriar, mas encontrou um mundo pouco habitável, inóspito, com homens ainda pouco inteligentes. Ela precisou esperar, aprender, ensinar, prepará-los. Mas ainda devia faltar algo nessa formula, algo que fez seu povo enviar repteis menores para satisfazê-la, fazê-la mudar de ideia.
— Mas a serpente-sentinela não gostou do que recebeu.
— Não só não gostou como provável resolveu mudar muita coisa por aqui. Porque tinha que ser um humano especial. E isso irritou quem a mandou para cá.
— Especial quanto Sean querido?
— Venho me perguntando isso há muito tempo Oscar. Perguntando-me por que minha mãe me quis assim.
— Nelma o que?
— Por que ela quis não Oscar? Não Trevellis? Minha mãe me quis especial, com dons especiais, com inteligência fora do normal e poderes que fogem à compreensão.
— Não fale assim de sua mãe!!! — vociferou Oscar Roldman. — Fernando não... — começou Oscar.
— Fernando o que? Não estava preparado para criar um filho especial? Talvez porque vocês quatro só foram preparados para estudar administração armamentista.
— Você... — Oscar olhou para Sean. — Você... — Oscar olhou para Mr. Trevellis que se calou.
— Eu o que? Trevellis o que? Administração empresarial, política, econômica e armamentista foi mais fácil que administrar um filho problema?
— Você não... Você não se atreva Sean! Eu e sua mãe...
— É! Você e minha mãe, namorados, que meu pai tratou de roubar. E que você roubou depois, para meu pai roubar de volta. E minha mãe que parecia nunca saber de qual ladrão gostava, carregou-me de um lado para outro, criando-me como um Queise com dons de um Roldman, porque o poder a encantava.
— Como você foi capaz? — Oscar deu só alguns passos para Mr. Trevellis, que sentiu toda sua garganta enrolar, entendendo que Oscar sabia que ele desbloqueara algo.
— Não foi Trevellis! — Sean o defendeu como talvez Mr. Trevellis nunca imaginaria. — Foi o Dr. Zuquim quem deixou escapar que Oswald conhecia Trevellis e meu pai quando jovens. Aliás, Oscar querido, fico me perguntando por que Trevellis tem essa fascinação por espiões psíquicos, meu pai fascinação por satélites que conversam com o Cosmo, e você fascinação por ajudar Trevellis, os psi e o satélite de observação com seus dons paranormais? Foi tudo para ajudar o pobre Oswald amigo de infância? Um Oswald alienígena, que morava na Suíça onde vocês estudaram, e que tinha dons de premonição a ponto de falar para a minha mãe o que ela tinha que fazer para chegar até onde chegamos?
— Você... Você... — e Oscar soltaria faíscas se aquilo fosse possível.
— Eu o escondi! Escondi porque... porque... — Oscar vociferava e soltava faíscas. — Por causa de sua mãe e aquelas... Aquelas ideias ridículas de poder... — e Oscar sentia que ia explodir.
— Eu o escondi! — foi a vez de Sean. — Escondi Oswald e sua família canibal, que vão ficar fora de ação por muito tempo.
— Você... Você... — Oscar se desesperava.
— Acalme-se Oscar! — foi Umah Trevellis quem o evitou falar o que certamente Oscar ia falar. — Quer deixá-lo mais nervoso? Sean precisa descansar.
Oscar a fuzilou com um olhar que até ela não tinha visto, ele estava realmente uma fera.
— Oscar tem razão, Umah... — Mr. Trevellis a chamava pelo nome. —, sem Oswald perdemos o único contato que dispúnhamos com a serpente-sentinela do lago. Tudo por causa dele — apontou um Sean mais queijo suíço que jovem bonito.
— Eu devia... Eu devia... — Oscar queria realmente dar-lhe algo como um corretivo. — Vai continuar um moleque para sempre, Sean?
Sean continuou dono da situação, porém mexeu-se desconfortavelmente apesar do colchão macio e os lençóis limpos.
— Essa conversa toda é sobre Spartacus. Sempre foi o satélite de observação Spartacus, não? — Sean, contudo não deixou de perder a oportunidade de ser cínico. — Porque vocês me enganaram o tempo todo. Precisavam que eu ficasse compondo peça por peça do quebra-cabeça para vocês, e mesmo assim aproveitaram à chance de despistarem-me de Spartacus.
— Precisávamos de alguém dentro da École Hoteliere Dubois... — Mr. Trevellis ia falar.
— Você já tinha Elisa!
Mr. Trevellis arregalou os olhos para Umah.
— Por isso perguntou sobre Elisa? — foi Umah quem perguntou. — Já sabia que ela era agente da Poliu?
— Uma péssima agente, aliás; como todas as outras.
Umah Trevellis sentiu-se atingida agora.
— Precisávamos de alguém que nada soubesse sobre a serpente-sentinela do lago para misturamos aos alunos da École Hoteliere Dubois.
— Por que a serpente-sentinela lia pensamentos? Por que sabiam que a serpente-sentinela se aproximaria de mim e ela leria meus pensamentos? — os três só se olharam. — Deveria ter medo de perguntar por que ela iria querer ler logo os meus pensamentos, não Trevellis?
— Filho de Oscar... — Mr. Trevellis divertia-se.
— Eu não estava na Suíça por uma coincidência, não é Trevellis?
— Nada foi uma coincidência. Os Braushin precisavam do satélite de observação Spartacus para redirecionar as armas que vão distribuir.
— Distribuir?
— Você era a maneira dos Braushin conectarem a Hautch Propieté aos mainframes da Computer Co. e depois invadirem Spartacus de lá de dentro a fim de...
— Deixou-me fechar um contrato de outsourcing que permitiria os Braushin exportar armas dentro de contêineres de alimentos? Com o satélite de observação desviando algo?
— Achei que as vozes haviam...
E Sean levantou-se com tubos ainda presos nele.
— Como sabe sobre as vozes Trevellis?
Mr. Trevellis arregalou os olhos, e olhou Umah e Oscar também, esperando ajuda, mas ambos pareciam perdidos naquilo tudo.
— Você disse filho de Oscar...
— Você disse? — Sean perguntou a Oscar.
— Não!
Sean olhou para ele e Mr. Trevellis não sabia o que falar.
— Ele...
— Ele?
E Mr. Trevellis realmente não sabia o que falar.
— Inferno! — explodiu Mr. Trevellis. — Está bem? Inferno! — explodiu de novo. — Aquele incompetente e destrambelhado do Armand me garantiu que aquela entidade que me foge a compreensão lhe alertaria. Está bem?! — voltou a explodir. — Eu mandei aqueles montes de ufólogos destrambelhados avisarem você sobre o perigo — e olhou Oscar furioso. — Eu gosto dele! — apontou para Sean. — Gosto de seu filho — olhou Umah e Oscar o olhando. — Estou sendo sincero! Está bem? Armand me garantiu que Sean havia recebido a advertência que alienígenas malévolos estavam...
— Mas as vozes não me disseram isso. Ernest me disse isso, a mando dos ufólogos.
— Viu?
Mas Sean não gostou daquilo. As vozes diziam outra coisa, e elas não vinham de nenhuma paranormalidade vinda da Entidade Simbiótica.
— Foi Armand quem ajudou as três serpentes alienígenas em 1975? Quando Billy Meyer derrubou telepaticamente a nave?
— Sei lá! Armand dizia que sim. Que os vinha ajudando para se aproximar da serpente-sentinela, que seu pai e seu avô, como toda sua família destrambelhada sempre a procuraram. Armand achava que se começasse a ajudar os alienígenas, ela iria até ele agradecer por algo.
— Como ela agradeceu o Dr. Zuquim?
— Sei lá. Deve ter sido. Por isso mandei Armand avisar você dos perigos. Só precisávamos que a Computer Co. fechasse o contrato e os teria sobre controle. Não imaginava você aqui fazendo viagens em trens fantasmas... — e Mr. Trevellis parou no que Sean ameaçou se levantar outra vez.
— Mentira! A Poliu me queria na Suíça por causa da Irmandade Simbiótica, a Polícia Mundial me queria na Suíça por causa dos cientistas desaparecidos e todos aqueles UFOs de metal que fazem apport... — e parou para ver o silêncio dos três. — E tenho medo de pensar que mais alguém me queria na Suíça, Oscar querido, para procriar — o silêncio foi ainda mais fatal. — Além do que se os Braushin me matassem jamais passariam por meus firewalls.
— Talvez não soubessem que estavam lidando com o melhor hacker do mundo — Mr. Trevellis olhou a jambo Umah após ser cutucado. — Que foi? Isso foi um elogio. Já disse que gosto dele?
— Vocês tinham medo que eu descobrisse qual era o verdadeiro temor da Poliu na Suíça e acessasse Spartacus para descobrir. Temiam que eu visse o conteúdo da coleção de arquivos confidenciais guardados dentro dos mainframes, antes de eu acabar por me envolver com as serpentes alienígenas, não é Oscar? 10-2-5-5!
Oscar começou a andar em círculos, quando se sentiu mais controlado, prosseguiu.
— Eu nunca quis envolvê-lo...
— Mentira!!! — berrou.
— Não é mentira, não! Você não me contou sobre o contrato com a Hautch Propieté.
— Não preciso lhe contar sobre todos os contratos que faço. Afinal você me deu para Fernando criar-me.
— Cale-se!!! — Oscar Roldman explodiu.
Olhou Umah e Mr. Trevellis e tentou se controlar mesmo sabendo que era quase impossível.
Dirigiu-se então até a porta e abriu-a para que entrasse um homem alto, magro e com porte de homem fino e educado.
Sean o achou parecido com um príncipe ou qualquer coisa assim.
— Boa noite! — soou imponente.
— Este é Atila Childü, ele é o chefe de operações da Poliu aqui na Suíça — e Oscar apresentou-o aos três. — Ele trabalhava com Otto Miller quando ele fugiu com Aline e acabou morto.
— É um prazer conhecê-lo Monsieur Sean Queise. Ouvi falar muito a seu respeito.
— Foi ela quem o matou, não? — Sean cortou a baboseira e Atila não respondeu. — Seu silêncio quer dizer que a serpente-sentinela nunca havia matado alguém até então?
— Matou quem, Sean querido? — Oscar olhou para o homem. — Do que ele está falando, Atila?
Mas Atila nada falou outra vez.
— Se a serpente-sentinela nunca matou ninguém e sempre se alimentou dos que já estavam morrendo, então por que matou Günter? — Sean continuou.
— Talvez Monsieur saiba a resposta, já que tem resposta para tudo.
— A resposta de que a serpente-sentinela nunca matou ninguém?
— Mas a serpente-sentinela do lago tentou matar Umah? — prosseguiu Mr. Trevellis sem dar tempo a Atila pensar em respostas.
— Ciúme! — foi Umah quem respondeu.
Sean sentiu-se mal de repente, lembrou-se de Umah Trevellis na cama e seu corpo todo cheio de óleo do Q’Animal.
— Temo que você tenha sido o escolhido, Monsieur Sean Queise — falou Atila, enfim.
— O quê?! — gritou Sean, Oscar e Mr. Trevellis em uníssono.
— Ciúme sim! — Umah se aproximou da boca dele, e Sean só teve olhos para Mr. Trevellis que não gostou daquela aproximação. — A serpente-sentinela do lago quer procriar, lembra-se? E as serpentes alienígenas que ela manda buscar interruptamente nunca a satisfazem — e Umah o beijou a força.
Sean arregalou os olhos azuis e ela o soltou, soltou seus lábios. Ela ia voltar a beijá-lo e Sean outra vez arregalou os olhos para com Mr. Trevellis.
— Chega Umah! — foi Mr. Trevellis quem exclamou.
Umah gargalhou satisfeita e Oscar só olhou Mr. Trevellis que fugiu àquele olhar.
— Otto Miller escreveu na coleção de arquivos confidenciais, que Aline contara a ele que a serpente-sentinela procurava um homem que pudesse assimilar suas técnicas — falou Oscar confuso, sentando-se na beirada do sofá.
— “Técnicas”? Fala de apport?
Mr. Trevellis ergueu-se sentindo muita raiva, olhou Oscar como quem o culpa por sua melhor agente, Mona Foad, ter ensinado aquilo que nem Sean sabia ter sido ensinado.
— Mona havia me dito o que fez, o que você fazia, mas eu nunca acreditei nela. Só descobri que você conseguia fazer apport quando atravessou o funicular pelas onze dimensões. E você já estava envolvido com o Q’Animal.
— Mas faço isso sem saber como faço. Kelly tem razão. Quando estou a ponto de sair do sério provoco poltergeist. E talvez tenha saído do trem quando algo alguma coisa me alertou para a proximidade do acidente. Não sei dominar essa coisa — olhou um, outro, o estranho e Umah quando algo lhe chamou a atenção. — Por que disse que eu já estava envolvido com o Q’Animal? A serpente-sentinela está envolvida com o Q’Animal?
— Não sabemos se a serpente-sentinela do lago era uma das serpentes usadas por Falppo ou se ela esteve lá investigando, como você — falou Atila se intrometendo na discussão. —, mas ela se plasma no que quiser.
Os quatro se olharam.
— Por que redirecionou Spartacus para Lausanne? — mas Oscar quis comentar aquilo.
— Por que redirecionou Spartacus para Atenas? — devolveu Sean na mesma moeda.
— Eu não acredito! — bateu Mr. Trevellis na sua própria testa com a própria mão gorda e jambo. — Desde quando sabe sobre Atenas, filho de Oscar?
— Cale a boca! — respondeu Oscar nervoso para Mr. Trevellis.
— Não mande me calar! — respondeu Mr. Trevellis no mesmo tom de voz rude.
— Você sempre arrasta Spartacus para onde precisa, Oscar querido — insinuou Sean debochado. — Só pode ser porque a nave da serpente-sentinela estava em Atenas e alguém ia usá-la.
— O que não vai demorar muito se a serpente-sentinela conseguir engravidar — Atila pigarreou. —, quero dizer, procriar.
— Procriar... — Sean sentiu-se tonto. — Não é isso, não.
— Como não é isso não? — Umah se atiçou.
— Oscar direcionou Spartacus para Atenas porque investigava Leopold Braushin e a Hautch Propieté, que queria expandir para todos os lugares onde a Computer Co. tinha filiais, como na Grécia. Porque Leopold investigava a nave da serpente-sentinela do lago que aterrissou em Atenas há 10.255 anos e é mantida em segurança pela Irmandade Simbiótica que Cybele fazia parte, não é Umah?
— Leopold... — Umah começou a falar.
— Não, Umah! — Mr. Trevellis repreendeu-a com vigor.
E Umah se calou.
— Umah não fala, falo eu — Sean enervava-se. — Leopold Braushin quer a nave, porque a nave é o armamento pesado que Spartacus vai controlar para atacar o mundo das serpentes alienígenas, não é? — soltou Sean para Mr. Trevellis que caiu com todo seu peso na cadeira.
— Eu fui vencido! — ergueu os braços para ar. — O ‘filho de Oscar’ é especialista em adivinhações.
— Não são adivinhações — Sean irritou-se de como era chamado. —, tenho tentado juntar as peças, só isso.
— E você trouxe Spartacus para os céus da Suíça para desafiar os Braushin? Para que eles soubessem que nós sabíamos, Sean querido?
Sean sorriu cínico.
— Quase isso.
— Está arriscando toda a corporação...
— A corporação que se dane, Trevellis! Tem gente inocente correndo perigo de vida.
— O que pretende fazer? — Oscar não ligava mais para os ataques de Mr. Trevellis.
— Não sei! Preciso voltar a École Hoteliere Dubois.
Mr. Trevellis gargalhou.
— Por que a École Hoteliere Dubois é importante? Tudo foi quase destruído no incêndio.
— Para onde foram todos?
— Alguns são hóspedes nos hotéis de Lausanne, alguns voltaram ao seu país de origem — foi Oscar quem respondeu.
— Hübinjer? Onde está?
— Em Lausanne, sob vigilância da Poliu.
— Como os Luciedes começaram os negócios, Atila?
— Aonde quer chegar Sean? — Umah tentava ler a linha do pensamento de Sean.
— Com a relojoaria — falou Atila até então quieto no fogo cruzado.
— Relógios são muito populares na Suíça, — Sean se mexeu na cama. —, canetas também.
Umah quis entender aquele pensamento e outra vez falhou.
— Na verdade o dinheiro entrava na Hautch Propieté e depois seguia para a relojoaria onde era distribuído. O montante não era tão alto e nunca chamava atenção — explicou Atila.
— Mas começaram depósitos acima do normal, não começaram? E era na cifra de bilhões de dólares, não era? Foi isso que chamou a atenção dos bancos suíços ao chamarem a Poliu para investigarem a Hautch Propieté, não foi? — se arriscava Sean, cada vez mais.
— Muito esperto, ‘filho de Oscar’ — falou Mr. Trevellis.
— Chega Trevellis! — exclamou Oscar e Umah em uníssono.
Mas foi de Umah quem Mr. Trevellis não gostou de ouvir aquilo.
— Depois disso encontramos a serpente-sentinela do lago por aqui, no mesmo tempo em que a Computer Co. fechava um contrato com a Hautch Propieté. E conhecendo o desejo dela como conhecíamos... E sabendo o potencial que tem Sean querido... — Umah completou.
“Potencial”; aquilo foi dúbio, Sean não gostou de ouvir aquilo e percebeu que Mr. Trevellis também não.
— Quem montou a coleção de arquivos confidenciais, Oscar?
— Foi Atila e Otto Miller — Oscar apontou para o homem que os olhava.
— Foram vocês dois os contatados pelos ufólogos da Poliu de quem Ernest falou?
— Eu vou matá-lo, Oscar — desafiou Mr. Trevellis a Oscar Roldman porque Sean tinha que ter tirado aquilo da mente de alguém.
Porque ele só havia permitido que Sean soubesse que os quatro, ele, Oscar, Fernando e Nelma haviam estudado juntos na Suíça.
E fez para se vingar dele.
— Isso mesmo! — falou Atila no fogo cruzado outra vez.
— Então você investigava a serpente-sentinela do lago há quanto tempo, Atila? — Sean jogava sua última carta. — Há dez mil anos?
— Há seis milênios! — Atila olhou para Oscar e para Mr. Trevellis e depois Umah e Sean.
E Umah achou que não entendera.
— “Seis milênios”? — perguntou Umah. — Isso não são seis mil anos?
— Congratulações minha filhinha — debochou Mr. Trevellis nervoso. —, você sabe fazer contas.
Atila se afastou um pouco de todos e produziu o peculiar som de papel amassado. Sua face se plasmara em algo que Sean só tinha visto em filmes até então. Atila era um egípcio, um membro da Irmandade Simbiótica.
— Foi você e Otto Miller quem chamaram Maykon, não foi Atila?
— Isso mesmo, Monsieur Sean Queise! — Atila agora se vestia todo com roupas douradas, tinha uma faixa de diamantes na cabeça e pinturas características nos olhos. — O investigador Maykon é um sensor cinco da Confederação Intergaláctica! — seu peito inflou num porte de poder. — Ele está aqui para evitar que um humano híbrido domine as forças da Terra e faça um ataque a um planeta alienígena!
— E esse planeta alienígena então se defenderia nos matando?
— Provável!
— O híbrido é Albert Falppo Braushin?
— Não posso dizer quem é!
— Mas pode dizer quem não é, não pode?
— Posso!
— Então o híbrido é Albert Falppo Braushin?
— Não! — respondeu Atila com muita certeza no que falava.
— Mas eu achei — Sean ficou confuso. —, eu achei que as serpentes alienígenas haviam matado os verdadeiros Braushin e os plasmaram para si. Nem os Braushin nem os Luciedes são totalmente humanos.
— Isso é verdade! Os Braushin e os Luciedes são serpentes alienígenas, mas não foram os Braushin que Maykon viera investigar!
Sean pareceu momentaneamente confuso, toda a sua ordem de pensamentos precisava sofrer alterações.
— Então os Braushin não existem? — falou Oscar confuso, também.
— Foi por isso que o dinheiro da joalheria se multiplicou tão rápido, as serpentes alienígenas Braushin plasmavam dinheiro também, — tentava Sean entender agora. — para que os Luciedes, seus répteis menores pudessem comprar armas mundo afora, e qualquer coisa útil na sua fase final de invasão ao planeta alienígena que os mandou para cá.
— Isso mesmo! — respondeu o pomposo Atila. — Leopold, Lüdovick e Albert Falppo Braushin são híbridos, e os Luciedes, serpentes alienígenas menores!
— E você não vai me dizer quem realmente Maykon investiga, Atila?
— Não podemos interferir nas ações da Confederação Intergaláctica, Monsieur Sean Queise!
— E eu que achava que o verdadeiro perigo era aquela mulher serpente com aqueles seios, se arrastando... — e Mr. Trevellis parou para ver o silêncio que tomou o quarto. — O que foi? Ela nunca me procurou se querem saber.
— Que bom saber Trevellis. Que bom mesmo saber. Além do que falei que se ela não havia feito nada até então é porque não faria — falou Oscar para Mr. Trevellis que tinha uma maneira estranha em relação a ela.
— Mas ela ainda quer procriar, amigo velho — prosseguiu Mr. Trevellis. —, e não quer ir embora como vocês acham — todos se olharam.
— Não! Não quer! — foi a vez de Sean. — Por isso vem tentando controlar os Braushin. A serpente-sentinela do lago quer que sua cria fique na Terra, misturada aos humanos comuns, ou quase comuns; já que somos humanos híbridos.
— Humanos com poderes sobrenaturais — falou Umah.
— Enquanto ela fica escondida no lago que leva aos túneis da Terra Oca, protegida pela Irmandade Simbiótica egípcia, como assim foi por todos esses milênios — completou Sean para Atila, que pelo silêncio, concordara com tudo o que fora dito até ali.
— Você é mesmo muito perigoso ‘filho de Oscar’ — Mr. Trevellis o observava da cadeira onde estava esparramado. — Que foi? — olhou Umah mais uma vez. — Isso também foi um elogio.
— Atila... — Sean não se deixou levar pelo cinismo de um Mr. Trevellis atrevido. —, temos que pegar as serpentes alienígenas Braushin com vida antes que a serpente-sentinela do lago os destrua.
— E por que acha que não queremos que a serpente-sentinela do lago vá atrás deles e os destrua, Sean? — emendou Umah como uma legítima agente.
— Porque aqui como em qualquer outro planeta, temos que respeitar algumas leis, Senhorita.
— Ah! As leis... — Umah foi puro charme. — Tem as leis, não?
Mr. Trevellis riu até não poder mais, encantado por saber que sua filha Umah Trevellis tinha mesmo o seu sangue.
30
Hautch Propieté, Lago Léman; Coppet, Cantão de Vaud.
46° 18’ 56.2” N e 6° 9’ 1” E.
15 de abril; 19h00min.
Estava escura a estrada tomada pela última nevasca, Sean Queise e Oscar Roldman haviam deixado o Volvo consular numa clareira, longe da estrada que levava à Hautch Propieté, em Genebra, para não chamar atenção de quem por lá passasse. Sean mancava sentindo muita dor, aliviada por fortes inflamatórios, mas tinha que praticamente arrastar Oscar pela neve, que andava cabreiro com as atitudes dele.
Primeiro Sean havia dito que precisava voltar a École Hoteliere Dubois e depois o fizera alugar um helicóptero que os levaram dia seguinte de Vevey até Genebra, onde afundavam as botas de borracha compradas por eles.
— Vamos, Oscar! — repreendeu-o. — Mais rápido!
— Que idade acha que eu tenho? — falava ofegante pelo frio, pela corrida. — Onde estamos indo?
— Você acha que Trevellis poderia entrar na Hautch Propieté sem um mandado? — e Sean se virou para Oscar Roldman.
Oscar arregalou os olhos, olhou em volta e sentiu a umidade da proximidade do Lago Léman que até então nem notara, tomando-se de pavor.
— Vamos invadir a Hautch Propieté? Você enlouqueceu Sean? Esqueceu que eles são serpentes alienígenas?
— Quieto! — exclamou nervoso para depois relaxar. — Tem toda razão, podíamos ter entrado pelo poço.
— Que poço? — Oscar fez uma careta.
— Como “que poço”? Não sabe sobre o... — e Sean parou.
— “Sobre”?
— Deus! — pôs as mãos no rosto. — Então...
— “Então”?
— Quer parar de repetir tudo o que falo? — e o som de um carro que se aproximava, os fez sobressaltarem-se, os faróis nos olhos de Oscar Roldman completaram seu temor. O carro verde parou ao lado deles. — Conseguiu o que te pedi? — Sean enfiou a cara na janela do carro verde.
— Sim, Monsieur Sean Queise.
“Monsieur Sean Queise?”, estranhou Oscar.
— Este é Rafael Gelger — Sean meio que o apresentou. — Ele é primo de Ernest Gelger Fuiü.
— Quem é Ernest?
— Ernest é gerente de vendas da Computer Co. na Alemanha e me representava aqui em Genebra, no contrato com a Hautch Propieté — Sean pegou uma caixa de ferramentas das mãos de Rafael e uma arma, que pelo pouco de iluminação, fez Oscar ver tratar-se de uma automática, calibre .38; ele nada comentou.
Rafael engatou a marcha ré e sumiu no carro verde pela escuridão.
Oscar olhou em volta e caminhou com Sean.
— Estamos expostos — falou Oscar olhando para todos os lados.
— Eu sei.
— Quer que saibam que estamos aqui?
— Mais ou menos.
— Ah! — falou nervoso. — Por que então não saímos gritando para chamar atenção?
Sean riu.
— Oscar! Oscar!
Sean entrou no pátio que margeava o Lago Léman, o mesmo pátio que estivera com Ernest, apreciando a bela paisagem local. Caminhou em sentido contrário à fábrica da Hautch Propieté e entrou numa mata onde havia um pequeno casebre. Agachou-se e abriu a caixa de ferramentas, tirando de dentro um pequeno pé-de-cabra com o qual arrombou o cadeado da porta de metal.
Oscar alternava-se em olhá-lo e sentir muito medo.
— Como sabia sobre esse lugar? — Oscar esperou, mas Sean nada falou. — Usou Spartacus para rastrear do espaço esse lugar?
— Obvio que não! — Sean abriu uma caixa contendo alguns circuitos e puxou uma centena de fios, tirando alguns chips colocados como gavetas.
— Como sabia sobre esses controles?
— Quantas perguntas ‘vide de sens’, Oscar, porque o que importa realmente aqui é que Ernest sempre foi uma cabeça privilegiada — apontou para que ele lhe desse uma ferramenta. — E pensar que ele me foi altamente recomendado.
— Do que está falando? — entregou a ferramenta.
— Seu primo Rafael trabalha em Lausanne, numa loja de chocolates. Ele me viu quando saí da clínica veterinária aquela noite em que fui falar com você; eu estava usando o blusão da École Hoteliere Dubois. Quando fugi sábado para ir ao Q’Animal, encontrei ele no Flon, e ele veio falar comigo — riu. —, pedi-lhe silêncio e descrição, mas ele já tinha contado a Ernest sobre a minha ida a clínica veterinária usando um uniforme escolar — e suspirou como quem tem o pensamento muito distante da realidade. — Foi muito ruim alguém da Computer Co. saber que eu estava ‘passando férias’ numa escola de hotelaria... A chave inglesa? — apontou, soltando alguns fios.
Depois acendeu um maçarico fazendo os olhos de Oscar brilhar.
— Por que está me contando isso Sean?
— Acredita em coincidências? Rafael também foi aluno do Dr. Ângelus — Oscar agora não gostou do assunto e Sean o provocava. — Agora entendeu, não? Rafael não veio exatamente falar comigo, nós trocamos informações por telepatia quando estive no sábado no Flon — olhou Oscar o olhando. — Mundo pequeno, não? — voltou a acender o maçarico. — Quem diria que há muitos como eu, como nós? — olhou Oscar que se incomodou.
— E aonde quer chegar com Ernest, é o que realmente importa?
— Quero chegar ao grande problema que estamos enfrentando aqui, Oscar querido, porque o fato de Atila ter vindo à Terra junto com Otto, e mesmo assim precisarem chamar Maykon... — parou para encará-lo novamente. —, significa que há mais um alienígena nessa jogada toda.
— Como assim?
— Quero dizer, além das serpentes alienígenas coletores de corpos como Lück, Madame Michelina, Clara, das muitas meninas serpentes do Q’Animal, os bailarinos, Luciedes, ou os Braushin. E além de Nathan, Pitt, Maykon, Marcello, Cybele, Aline, Otto, Atila, Mitti e Marcia.
— Meu Deus! Quantos alienígenas mais?
— Um a mais, Oscar; tem mais um alienígena plasmado aqui — e foi só Sean tocar o painel eletrônico e as linhas no circuito se alteraram.
— Você consegue não Sean? Se comunicar com as máquinas?
— E parece que só com as máquinas. Porque fechei o contrato com os Braushin sem conseguir ler suas mentes. Porém... — sorriu cínico. —, fiz o que fiz com os Luciedes porque eles são serpentes alienígenas menores, repteis menores — apontou novamente para a caixa de ferramentas. — Agora pegue a lanterna!
— Quem sobrou então é um alienígena poderoso?
— De certa forma... Já que conseguiu enganar todo mundo.
— Quem? Algum outro aluno da École Hoteliere Dubois?
— Não!
— Meu Deus! Quem sobrou?
E Sean correu de volta ao escritório dos Braushin, sem responder a Oscar, que não viu alternativa alguma a não ser correr atrás dele.
A entrada de vidro não foi obstáculo, as portas tiveram seus alarmes desligados e as câmeras se travaram na última imagem. Sean e Oscar entraram e atravessaram o mesmo corredor de pastilhas coloridas que Sean outra vez achou de um gosto exagerado.
— Não percebe Oscar? Marcia disse que a Confederação Intergaláctica veio investigar um humano híbrido que estava para quebrar as forças da natureza, ou o que seja. E Atila também falou que Maykon havia vindo investigar o tal humano híbrido — caminhavam por largos corredores que Oscar mal podia imaginar para o que serviam. — Eu achei que houvesse sido Albert Falppo Braushin, mas ele e os filhos são serpentes alienígenas híbridos, não humanos híbridos, porque os poucos humanos híbridos na Terra fazem parte da Irmandade Simbiótica, como Atila e Otto Miller, agora morto.
— Otto Miller?
— Sim. Só alienígenas podem ser secos, não entendeu?
— Não!
— As mulheres da família Dubois, Cybele e Aline, são górgonas e podiam ser secas, mas eu, você, Umah, Trevellis, não podemos ser secos... — e Sean parou de falar.
— O que houve?
— “Houve”? Nada. Responda você Oscar, todas essas questões — pararam de andar. — Quem é o humano híbrido que está faltando? O humano híbrido que a tal Federação Intergaláctica investiga?
— Quem?
— Quem estava por dentro de todos os acontecimentos! Quem me conhecia para saber que a serpente-sentinela do lago procurava um homem com habilidades como as que Mona me ensinara! Quem levara a Computer Co. a fechar um contrato com a Hautch Propieté e assim ter acesso aos mainframes de Spartacus! — e Sean se virou e abriu a porta da sala bem decorada, com um grande aquário iluminado e um bar espelhado ao fundo, lotado de bebidas exóticas.
Mexia em todas as gavetas até encontrar uma que não abriu. Sean não esperou testar seus dons ali, tirou da calça a arma, engatilhou disparando na gaveta fechada. A gaveta explodiu e ele enfiou a mão por entre a mesa para encontrar um pequeno teclado, onde digitou alguns números.
Um cofre se projetou para fora de um quadro Gauguin; legítimo, supôs.
— Tenho até medo de perguntar como sabia sobre o cofre.
— Com medo de que já tenho domínio total sobre a técnica de apport, Oscar querido? Que já estive aqui outras vezes? — gargalhou e parou de gargalhar assumindo uma face séria. — Ou com medo que meu próximo passo seja visitar Sandy?
— Acho que nunca vou entender, não é Sean? — jogou-se num sofá ficando lá esparramado.
— Não, nunca vai entender o que eu vi naquele trem, no que Sandy vem se transformando após o suicídio — Sean abriu o cofre e retirou de dentro o contrato completo, a segunda cópia do contrato da Computer Co. com a Hautch Propieté. — A primeira cópia que eu retirei do trem plasmado foi destruída pela queda na água — Sean agora destruiu o contrato no picador de papéis. —, agora termino meu papel aqui nessa história.
— “Trem plasmado”? Fala do trem em que os ufólogos morreram?
Sean se virou para Oscar sem responder outra vez, tirou do bolso do casaco que usava uma peça redonda de metal e pôs em cima da mesa após abri-la.
Oscar não entendeu o brilho que passou a emanar por toda a sala.
Sean então se sentou confortavelmente na cadeira de espaldar alto de Leopold Braushin e não parecia ter pressa de ir embora; Oscar notou.
— Sabe quem avisou os Luciedes sobre a vigília dos ufólogos, os levando a preparar o desastre do trem a fim de matá-los? — Sean recomeçou e Oscar sentado no sofá, também.
Percebeu que a noite seria longa.
— Não!
— E eu achando que a serpente-sentinela do lago era a grande vilã dessa história, mas ela estava só ajudando. Ajudando as serpentes alienígenas e os mortos o tempo todo, sorrindo em agradecimento.
— Parece concordar com o que ela faz Sean.
— Não, não concordo com seu estilo de vida, mas apesar de ser uma alienígena ela não estava provocando aquelas mortes, nenhuma delas. Até Günter já estava morrendo pelo ataque de Lück.
— Então quem, Sean querido?
— Quem? — Sean remexeu todo corpo machucado. — Quem sabia sobre Spartacus, sobre a serpente-sentinela do lago, sobre os Luciedes? Quem sabia sobre a Poliu, sobre os ufólogos e os OSNIs? — Sean olhou Oscar com afinco. — Quem mais conhecia minha dor e desespero por Sandy Monroe? Meu amor por Kelly Garcia? Meus dons paranormais? A escolha certa para serpente-sentinela do lago, procriar?
— Quem?
— Ernest G. Fuiü!
— Seu gerente de vendas? Mas por quê?
— Por poder. Por ele não ser um alienígena puro.
— “Alienígena puro”? Mas acabamos de falar com Rafael.
— Que me contou que seu pai encontrou Ernest vagando nas redondezas do Lago Léman em 1980, portanto ainda pequeno, após sua mãe ter sido atacada por ‘monstros’. Eles o criaram e viram Ernest crescer no tempo real de um humano porque ele era um híbrido.
— E podiam saber disso tudo porque os G. Fuiü tinham dons paranormais para se comunicar com alienígenas.
— Arrisco a dizer que o pai de Ernest veio na mesma nave de 1975 que caiu no Lago Léman, a mesma que trouxe Clara, Lück e a vó Madame Michelina. Porque Lück nunca me disse quantos vieram em 1975.
— Meu Deus do céu. O pai de Ernest então teve contato sexual com um ser humano gerando Ernest, um humano híbrido?
— E por não ser um alienígena legítimo, Ernest nunca teve poder de decisão entre eles. Com poder, ele deixaria de ser um réptil menor, um objeto sexual para eles ou qualquer coisa assim.
— Até as serpentes alienígenas vendem o sexo pelo poder? — Oscar riu.
— O poder é o que nos diferencia no equilíbrio universal, não é Oscar querido? — ele só o encarou. — Era só o poder que encantava minha mãe, não? Imagino o quanto lutou na vida para conquistá-la.
Oscar se levantou tão rápido que nem a porta sendo aberta num rompante o fez recuar. Ernest e Albert Falppo adentraram a sala da diretoria. Atrás deles, três capangas. Oscar perdeu a fala com o susto e Sean fez um movimento para que ele não se mexesse.
— Você é mesmo muito atrevido, bailarino Timmy.
— Não sou mais seu bailarino, Falppo — Sean riu. — Pedi demissão quando atirou em mim.
— Parece que não tenho boa mira.
— Pode tentar novamente se quiser — levantou os braços.
— Seu putinha atrevido — Falppo ia lançar-se sobre ele, mas foi agarrado pelo braço pelo filho Leopold que adentrava naquele momento, seguido pelo então desconhecido, Lüdovick Braushin.
— Não faça nada, pai — Lüdovick sorriu sarcástico. — Precisamos dele vivo para controlar o satélite.
Mas Sean riu também.
— Não vai achar tanta graça assim, depois de ser torturado, Monsieur Sean Queise — completou Leopold.
Oscar não sabia o que fazer.
— Não se preocupe Oscar — falou Sean olhando ele no sofá. — Eles não podem vê-lo.
Leopold viu Sean conversando com o sofá vazio.
— Com quem está falando? — perguntou Leopold.
Oscar olhou para eles, olhou para Sean, olhou para eles de novo.
— O que está acontecendo, Sean?
— Você está em outra dimensão, Oscar. Pode vê-los, mas não os pode tocar nem ser tocado.
Leopold olhou nervoso para os lados à procura de Oscar que tentou tocar neles e sua mão atravessou-os como se fosse uma holografia.
— Isso é... — depois e virou para Sean furioso.
— Isso é tecnologia alienígena — apontou para o UFO circular de metal que abrira em cima da mesa.
— Fez apport comigo?
— Não! É o Orb que permite que atravessemos as dimensões, Oscar; e que as mescle.
Leopold a viu também, correu para pegá-la sem conseguir tocá-la.
— Desgraçado! — ficou nervoso a fazer suas mãos o atravessarem.
— Ninguém pode tocar um UFO circular após ela ser acionado. A não ser quem o tiver acionado — Sean olhou para Leopold que sentiu muita raiva dele. — Por isso Nathan não conseguiu roubar o UFO circular que estava nas mãos de June. E Maykon a retirou das mãos dela somente porque June morreu — olhou Oscar se tornando rabiscos nada nítidos. — Perdão! Eu estou na Hautch Propieté — Sean olhou para Oscar e Leopold alternadamente com tristeza. — Você em Londres.
E Oscar caiu no chão da Polícia Mundial, mais precisamente no chão do seu escritório, na Polícia Mundial, numa Londres distante.
— Não!!! — berrou sozinho.
Trafalgar Square; Londres, Inglaterra.
51° 30’ 27” N e 0° 7’ 40” W.
15 de abril; 19h55min.
Oscar entrou na sala de operações da Polícia Mundial como até nunca entrara, batendo portas. Dirigiu-se para o modem que se comunicou com os mainframes da Computer Co., com o satélite de observação Spartacus, com os satélites de posição global. Spartacus se comunicou com os mainframes, havia encontrado o que lhe fora pedido.
Oscar chamou os agentes da Polícia Mundial e mandou todos seguirem os movimentos de Spartacus. Sabia que o satélite Spartacus estava sobre a Suíça, mais precisamente lançando as coordenadas que o satélite rastreara. Estava sobre o que sobrou da École Hoteliere Dubois, na Floresta de Jorat, vigiando certa nave alienígena.
— Ele sabia — falou Oscar. —, Sean sabia onde a nave estava sem acessar Spartacus — sentou-se em meio à corrida e movimentação dos seus agentes.
“Como?”, foi só o que pôde pensar.
Mr. Trevellis acionou seus agentes da Poliu também. Por onde Oscar se locomovesse, ele o seguiria.
Hautch Propieté, Lago Léman; Coppet, Cantão de Vaud.
46° 18’ 56.2” N e 6° 9’ 1” E.
15 de abril; 17h55min.
Já Sean estava encrencado, ele sabia. Leopold havia colocado uma arma .22 na sua nuca.
— Feche o UFO circular e dê-me.
— Não pode me matar, precisa de meus mainframes.
— Cheguei até aqui sem você e nada vai me impedir de continuar — apertou com força a arma, a fazer a pele ceder. — Feche-a!!! — berrou apontando o UFO circular.
Sean nada fez e Leopold acertou-lhe uma coronhada. Sean foi ao chão com cadeira e tudo. Leopold voltou a tentar pegar o UFO circular e Ernest atirou no UFO circular de metal o destruindo. Sean e todos foram lançados longe pelo impacto da explosão. Vidros estouraram e móveis saíram do lugar. Os três capangas e Albert Falppo Braushin foram atingidos em cheio.
Falppo estava caído com uma tira de madeira da mesa a atravessar-lhe a cabeça, um fluído verde escorria do seu corpo que começava a secar impressionantemente rápido.
— Pai?! Pai?! — berrava Lüdovick a abraçá-lo.
Sean havia se enganado, as serpentes alienígenas também eram ‘híbridos sentimentais’.
— Seu desgraçado!!! — gritava Leopold para Ernest ao levantar do chão. — Veja o que você fez?!
Ernest tremia todo. Apontava a arma para Leopold, para Sean caído, para os capangas mortos, para Lüdovick que estava jogado sobre o corpo agora seco de Falppo, para a parede do fundo da sala, para depois voltar a apontar para Leopold, para Lüdovick, para Sean caído.
— Não vão me deter, não. Digo... Não vão, não. Não cheguei até aqui para ser detido.
— Do que está falando, seu pervertido?
— Não sou pervertido!!! — falava Ernest descontrolado. — Vocês que me faziam vestir aquelas roupas e dançar, e dançar e dançar... — tremia quando sons de papel amassado tomaram conta da sala da diretoria da Hautch Propieté.
Sean ficou vendo o rosto de Ernest se plasmar no bailarino Hélder e voltar a ser Ernest, e se plasmar na bailarina que jogaram uma garrafa e voltar a ser Ernest, para então se plasmar em Louis e voltar a ser Ernest. Sean entendeu tudo o que tinha que entender naquele momento, de como Ernest sabia tudo sobre ele na École Hoteliere Dubois, de quem matou June na biblioteca.
— Você é mesmo um putinha de alienígena!!! — gritava Lüdovick para ele.
— Não! Não! Não!
— E veja o que você fez?! Você sempre será um réptil menor!!! — continuava Lüdovick gritando com ele. — Nunca mais conseguiremos erguer a Hautch Propieté!
— Vocês nunca quiseram erguer nada! Digo, só queriam a nave da serpente-sentinela do lago, a nave que eu levei anos para encontrar.
— A nave nos pertence. Viemos com a serpente-sentinela...
Ernest olhou para Sean.
— É Monsieur Sean Queise! Eles vieram com a serpente-sentinela do lago sim, mas vieram como prisioneiros. A serpente-sentinela os trouxe para a Terra para que apodrecessem aqui. Digo, longe do Serpentário, sua estrela de origem.
— Mas eles escaparam do Egito, não foi? — perguntou Sean sangrando na testa. — Onde a Irmandade Simbiótica ajudava a serpente-sentinela do lago a mantê-los presos.
— Sim, Monsieur. A serpente-sentinela do lago os perdeu de vista há muitos milênios.
— Onde está à nave da serpente-sentinela do lago, Ernest? — tentava Sean se comunicar com ele.
Ernest estava se descontrolado rápido demais, havia conseguido sobrepor o poder dos Braushin.
— Eles a querem para fugir da Terra, querem voltar ao Serpentário, matar as serpentes alienígenas — e Ernest se plasmou em Nathan para voltar a se plasmar em Ernest. —, mas eu tenho planos mais ambiciosos para a nave.
— Não duvido nada, Ernest. Você sempre foi muito inteligente.
Ernest ergueu-se todo, era a primeira vez que ouvia um elogio.
— Seu pervertido idiota, não vê que ele o está bajulando? — Leopold se descontrolava, sua face se plasmava numa serpente-sentinela alienígena para depois voltar a ser o pomposo Leopold Braushin.
— Não! Não! Não! — Ernest se descontrolava, nem parecia o ser que ia colocar a Terra em perigo.
— Você nos traiu esse tempo todo! — a serpente-sentinela alienígena Lüdovick Braushin também parecia entender.
— É claro que sim! — a serpente-sentinela alienígena Ernest empunhava a arma para todos outra vez. — Acha que eu ia deixar passar a oportunidade de resgatar a nave e deixar vocês a usarem como um ônibus?
— Nós precisamos voltar! Você sabe Ernest! — e a raiva de Leopold t o transformava em uma serpente-sentinela alienígena. — Nosso tempo aqui na Terra está se esgotando.
— Se esgotando... — escapou dos lábios de Sean.
“Eles vieram com a serpente-sentinela do lago... Eles vieram com a serpente-sentinela do lago... Eles vieram com a serpente-sentinela do lago...”, ecoava aos ouvidos de Sean Queise.
— Mas a nave é minha agora! Todas as armas que ela possui, são minhas agora. Eu as vou usar!
— Você não vai usar nada! Não sabe fazer nada além de dançar putinha!
— Você é o humano híbrido! — exclamou Sean sem querer.
E a serpente-sentinela alienígena voltou a ser o humano Ernest ao se virar para ele.
— O idiota do Maykon andou conversando com você?
— O ‘idiota’ do investigador censor cinco da Confederação Intergaláctica você quer dizer? — perguntou Sean sarcástico no que Ernest atirou nele, errando de propósito, dessa vez.
Sean ficou em alerta com a parede atrás dele destruída.
— Cuidado com o que fala Monsieur! — falava como se ainda fosse um funcionário da Computer Co.. — Digo... Muito cuidado...
A serpente-sentinela alienígena Leopold se ergueu lançando sua língua verde sobre Ernest, o enrolando numa velocidade extraordinária. Ernest caiu no chão perdendo a arma que segurava. Sean se aproveitou do momento e lançou-se para fora da sala alcançando o corredor e colocando-se a correr. Com as vistas embaçadas pelo excesso de sangue que ainda escorria, se locomovia por instinto.
— Sean Queise fugiu! — avisou a serpente-sentinela alienígena Lüdovick fazendo a serpente-sentinela alienígena Leopold largar Ernest quase sem ar no chão e se arrastar atrás dele.
A serpente-sentinela alienígena Lüdovick voltou a ser o humano Lüdovick e pegou a arma caída no chão, apontando para Ernest que tentava se recuperar. Antes, sua língua invadiu as narinas de Ernest assim como a língua dele invadiu as narinas de Lüdovick, que mais fraco, caiu no chão a se chacoalhar todo, ao ver pedaços do que seria seu cérebro, ser retirado. Lüdovick gritou de dor até ser seco rapidamente e Leopold recebeu a informação da morte do irmão Lüdovick no meio do corredor. Uma sensação de impotência o tomou de repente.
Paralisado ficou a pensar no que fazer; seu pai, e agora o irmão havia sido morto por Ernest.
— Alienígena putinha! — voltou para a sala da diretoria.
Sean ouviu Leopold exclamar, estava escondido na curva do corredor sem saída, a quase ser pego.
“Híbridos sentimentais”; nunca soou tão bem a ele.
Sean invadiu a neve com passos atropelados, fugindo desesperado para fora da Hautch Propieté a alcançar as margens do Lago Léman, se ajoelhando na poça de sangue que ele próprio formava. Ele ouviu o som de uma máquina muito barulhenta, um trator tira-gelo estacionando ao seu lado. Não havia percebido sua aproximação. Ficou confuso se não havia sido lançado a uma cena plasmada, mas o som do trator era quase ensurdecedor.
— Droga! — Sean viu que o trator tira-gelo não tinha motorista, alguém o dirigia através do pensamento. Levantou-se da neve que molhava rapidamente seu corpo e correu mancando para a estrada onde avistou o carro verde de Rafael. Desesperou-se ao ver o trator dar a volta e chegar antes dele no carro. — Não!!! — gritou Sean acenando para Rafael, mas o vidro embaçado pela respiração nervosa não o deixava ver nada.
“Rafael?!” Sean o chamou pelo pensamento.
Rafael se alertou e viu o trator tira-gelo se aproximando. Ligou o carro, mas esse falhou. Rafael olhou outra vez desesperado para trás tentando limpar o vidro e ligar o carro novamente, quando a grande máquina se projetou por cima do carro fazendo uma explosão lançar Sean no piso duro do estacionamento.
— Não!!! — Sean gritou e estancou ao mesmo tempo.
Sean olhou para frente, para os lados e homens armados corriam. Arrancou a jaqueta dentária e enterrou-a na neve fazendo Spartacus girar descontrolado.
Oscar percebeu que o satélite de observação mudava as coordenadas, fechava a arquitetura dos satélites de posição global sobre Genebra. Percebeu que Sean não usara o tal UFO circular de metal alienígena em uso próprio, não conseguira sair da Hautch Propieté, não fora para a École Hoteliere Dubois como previra.
Sean ainda estava em Genebra, na Hautch Propieté, e estava em apuros.
— Por aqui!!! — gritavam vozes e passos não tão longe de Sean que corria desorientado.
Não entendia de onde os homens haviam saído, nem tão pouco procurou entender. Correu como pôde como conseguia de volta à fábrica agora pelo outro lado.
Um grande galpão desenhou-se à sua frente, mais parecendo um armazém e Sean entrou no que uma rajada de fuzil AR15 se fez às suas costas. Sean viu grandes contêineres subindo num deles, e depois noutro para ter uma vista privilegiada dos homens que atiravam.
Sentia-se perdido, sem rumo, insistindo em sobreviver sobre contêineres e mais contêineres.
Um pouco de óleo e seus pés escorregaram, falsearam o passo a projetar o corpo do jovem empresário para o alto. Sean caiu no vácuo formado, batendo a cabeça e o tornozelo ainda machucado.
— Ahhh... — arrastou-se como pôde, tentando alcançar outra saída quando o som de papel amassado o fez paralisar.
Uma cauda esverdeada de serpente estacionava à sua frente.
— Monsieur Sean! — a velha serpente-sentinela alienígena cumprimentou-o.
— Madame Michelina? — sorriu sentido muita dor. — Parece que ando me esquecendo da Senhora com muita frequência.
O corpo de serpente-sentinela alienígena e o rosto da velha avó de Lück juntos, o incomodava. Ela tirava sua língua fina e esverdeada para fora da boca quando Leopold atirou nela e ela saiu a correr em disparada.
— Ainda preciso de seus mainframes, Monsieur Sean Queise! — falou a serpente-sentinela alienígena Leopold empunhando um fuzil AR15, fazendo movimentos para que ele se levantasse quando uma rajada de balas, provável de pistolas automáticas, vindas do lado de fora fez Leopold não entender o que realmente acontecia.
Sean percebeu que os tiros lá fora não eram plasmados, que sua cavalaria havia chegado. Lançou-se sobre o corpo da serpente-sentinela alienígena, fazendo os dois cair de uma altura de quatro metros diretos no chão duro. Sean outra vez se ergueu e correu mancando, subindo noutro contêiner, e de lá noutro, e noutro, pulando, trocando de contêiner o tempo todo até cair novamente num contêiner vazio.
Dessa vez bateu a cabeça, a ficar totalmente atordoado.
— Saia, Monsieur Sean Queise!!! — gritava a serpente-sentinela alienígena Leopold por perto. — Facilite as coisas para ambos!
“Facilitar?”, Sean arregalou os olhos azuis os cerrando depois.
Tentou não respirar, tentou não pensar, viver um pouco mais, mas outra vez o som de papel amassado se fez, agora dentro do contêiner vazio.
Sean sentiu o perfume de rosas lhe provocando, ficando tão triste naquele momento. Sentou-se no chão do contêiner a não querer lutar por mais nada, nem por sua vida.
— Você parece gostar mesmo do perigo, não? — falou ela do nada.
— Pareço? — Sean olhou para o lado e a serpente-sentinela do lago estava linda, mesmo empunhando o fuzil AR15 de Leopold, que provável já estava morto uma hora daquela.
Ele voltou a encará-la; seus cabelos e sua pele esverdeada a deixavam sensual mesmo com uma cauda de serpente.
— Quanta melancolia, Sean Queise — riu ela. — Não parece aquele homem poderoso que conheci há tempos atrás.
— E há quanto tempo foi?
— Como é? — a serpente-sentinela do lago não compreendeu.
— Há quanto tempo você me cobiça?
— Como assim? Cobicei você na École Hoteliere Dubois...
— Não foi no Lago, em Genebra? No dia em que fechei o contrato?
A serpente-sentinela do lago riu nervosa.
— Digo... — riu. — Claro! Foi! Como pude esquecer?
— Você não esqueceu. Só não sabia Ernest.
A serpente-sentinela do lago olhou-o assustada, seus olhos verdes não tinham o brilho de costume.
— Então a serpente-sentinela do lago nos vigiava no lago enquanto eu contava sobre ela? — gargalhou Ernest plasmando a sua face humana novamente. — Interessante!
— Não é?
Ernest ficou o observando.
— E como sabia que eu não era a serpente-sentinela do lago, Monsieur Sean Queise?
— Porque seus olhos verdes não brilham quando me veem — falou cínico.
— Ah! Que poético. Sempre o achei um sentimental, Monsieur.
— Como quando estava na minha festa de noivado e viu Sandy suicidar-se?
— Aquilo sim foi um show. Digo... Renata sempre foi providencial me levando às muitas festas da Computer Co..
— Renata nunca soube quem você era.
— É verdade. Sua secretária é uma humana muito descrente. Fácil dominar mentes descrentes não Monsieur? — voltava a rir.
— Seu alienígena... — Sean quis atacá-lo, mas o fuzil AR15 na mão o fez rever seus impulsos.
— Ah! Não faça isso Monsieur. Porque vai encontrar o mesmo fim que sua noivinha... — ria. — Porque digo, havia de tudo lá, não Monsieur? Champagne francês, agentes secretos, caviar, mídia, desmaios, salmão e polícia — Ernest gargalhava debochado. — É, tinha de tudo mesmo.
— Inclusive um alienígena, ou seria meio alienígena — Sean o desafiava também. —, ou seria ‘putinha’ de alienígena?
E Ernest arrancou sangue no que o fuzil AR15 bateu na sua face com força. Sean chegou a virar o rosto com força, batendo na lataria do contêiner.
— Para mim tanto faz se você vai ficar vivo ou não, Monsieur, porque posso me plasmar em você e fazer Gyrimias acionar Spartacus, ou fazer Kelly abrir os códigos de defesa dos firewalls a levando para a cama, dando-lhe o que ela tanto deseja.
— Desgraçado... — e Sean se jogou sobre ele com vista borrada levando outra coronhada. — Ahhh... — Sean fuzilou Ernest que ainda se divertia.
— Ou posso ser Oscar Roldman e mandar explodir a Computer Co. com todos os seus queridos funcionários lá dentro — falava nervoso. — Ou talvez me plasmar em Mr. Trevellis e lançar uma ogiva contra alguma grande potência — riu. — Ou me plasmar em Fernando Queise e acabar com a graça de Oscar Roldman e Mr. Trevellis.
— O que você ganha com essa guerra, Ernest? O que se ganha com uma guerra que vai destruir tudo o que se quer conquistar?
E Sean foi esbofeteado pela terceira vez com o fuzil AR15.
Sentiu tanta dor que quase desmaiou.
— Eu não disse que Monsieur era poético? — Ernest viu a boca de Sean se encher de sangue enquanto mais tiros aconteciam do lado de fora do armazém outra vez. — Sabe o que são esses tiros, Monsieur? — Ernest parecia adivinhar o pensamento de Sean, talvez até o estivesse fazendo. — É o todo poderoso Oscar Roldman atrás do filhinho bastardo dele.
— Desgraçado! — aquilo fez com que Sean se projetasse em cima dele fazendo agora Ernest cair com o fuzil AR15 no coração de Sean.
— Agora você vai ver o que é morrer, Monsieur... — e Ernest secou.
— Não!!! — Sean lançou-se para longe ao ver Ernest secar tão rapidamente, tão profundamente, que ele virou pó.
Sean arregalou os olhos azuis se não pela velocidade com que Ernest foi sugado, pelo perfume de rosas que o atingiu intensamente novamente.
— Você está bem? — Marcia brilhou os olhos verdes.
— Não... — respondeu Sean sangrando muito.
— Não se preocupe com isso — Marcia apontou para Ernest com a arma calibre .38 que Sean deixara no escritório. —, nem se preocupe com isso — apontou para o rosto dele machucado. — Você nunca vai ficar feio.
Sean sorriu sem graça e os tiros cessaram do lado de fora.
— Onde está Leopold, Marcia?
— Ernest o matou. E temo que pelo cessar de tiros, signifique que os homens de Oscar acabaram com qualquer um que ainda estivesse lá fora — apontou para fora.
Sean olhou-a com uma dor profunda no coração e ela não precisava ler os pensamentos dele para perceber que ele sofria.
— O tempo está se esgotando, não está Marcia?
Marcia sentiu a força daquelas palavras.
— Quando você soube?
— Quando Maykon disse que ele era o investigador, o investigador que Atila e Otto Miller pediram a Confederação Intergaláctica.
— E eu, Sean querido?
— Você sobrou ser a serpente-sentinela do lago.
E um som de papel amassado o fez extasiar-se; Marcia havia se plasmado numa estranha figura feminina. Sua pele era verde, escamosa, brilhante.
Seu corpo era moldado, largo e esguio ao mesmo tempo.
As curvas perfeitas e os seios abundantes em meio a seu rosto triangular, lhe impunha um ar de poder. Seus cabelos, num estranho tom esverdeado, balançavam num vento inexistente feito as caudas de uma serpente.
— Perdão, Sean. Eu não tive coragem de lhe contar a verdade. Eu li seus pensamentos ali no lago, quando Ernest se pôs a contar coisas; você não acreditava na serpente-sentinela do lago. Então não podia lhe pedir ajuda. Eu tinha que esperar você descobrir tudo sem minha influência.
Sean abaixou a cabeça tão triste que mal conseguia falar.
— Por que me atacou na primeira noite que cheguei a École Hoteliere Dubois?
— Eu não o ataquei, só queria sentir seu cheiro. Depois tentei fugir e você me atacou e eu tentei escapar de você.
— Eu no fundo não queria acreditar que você não fosse...
— A espanhola Marcia? — e a serpente-sentinela do lago se plasmou em Marcia novamente; aquilo aliviava Sean de alguma forma. — Ah! Sean! Você é tudo aquilo que eu vinha procurando todos esses tempos — Marcia colocou um dos UFOs circulares de metal no chão do contêiner e abriu-o.
— O que está fazendo? — Sean apavorou-se. — Aonde vai?
— Eu já vivi muito tempo aqui, Sean. Ou eu volto ao Serpentário ou morro.
— Não precisa ir embora — Sean ia esticar a mão mesmo sabendo que não podia tocar o UFO circular.
Marcia inclinou-se sobre ele e Sean sentiu que seu corpo todo era um vulcão em erupção, desejando-a naquele momento como nunca até então.
Ela se inclinou mais e o beijou profundamente, sentindo o gosto de sangue misturar-se a paixão dele. Sean teve a sensação que ela roubava sua alma também.
— Você sabe, não, Sean?
— Sobre a procriação?
Marcia passou a mão na barriga e Sean sentiu um frio percorrer-lhe seu corpo.
— Sr. Queise?! — gritaram os agentes da Polícia Mundial entrando no armazém de contêineres. — Sr. Queise?!
— Vá Sean! — falou Marcia, com um sentimento de perda totalmente humano. — Retorne a inocência!
Sean lembrou-se da estação de trem, do beijo quente. Lembrou-se do corpo envolto em roupas verdes que o excitaram no ataque, da nudez nas rochas. Da poltrona atrevida, da cabana acolhedora, do sexo ardente.
— Não!!! — gritou com o coração a palpitar na garganta quando agentes apontaram as armas para Marcia no que os alcançaram no contêiner.
Sean olhou para os agentes e eles estavam paralisados. Ela ou ele havia feito aquilo. Marcia sorriu-lhe com carinho.
— Eu te amei, Sean. Como ninguém em todo o Universo um dia o amara.
— Eu também te amei Marcia ou quem quer que você seja — Sean viu que Marcia ia tocar o UFO circular e gritou — Marcia?! — ela ainda o olhou, porém sem nada falar. — Libera Sandy da escuridão?
Marcia o olhou com ternura e sorriu-lhe como nunca fizera; havia compaixão naquele sorriso. Cores psicodélicas atingiram a vista de Sean que chorou ao se encolher de dor. Os agentes da Polícia Mundial acordaram do torpor não entendo o que lhes aconteceu.
Olharam-se, olharam-no chão ferido.
— Sr. Queise está bem? — perguntou o agente confuso, olhando para o contêiner vazio.
— Não... — Sean chorava tanto, sentindo tanta dor que mal conseguiu responder.
A dor só não foi maior porque sentiu que havia resgatado um pouco de sua pena com a doce Sandy Monroe. Ele foi levado de ambulância até o hospital de Genebra. De lá um jato fretado pela Polícia Mundial levou Sean Queise de volta ao Brasil, de volta a inocência.
FINAL
Computer Co. House’s; São Paulo, capital.
23° 36’ 19” S e 46° 41’ 45” W.
01 de maio.
O jovem empresário Sean Queise já tinha até se esquecido de como era bom o calor tropical do Brasil, mesmo com o mês de maio tendo um outono gelado. Quando recebeu alta, trabalhar era sua prioridade.
O seu escritório, na cobertura da Computer Co. House’s estava lotado de flores.
— Kelly! — exclamou Sean ao entrar na sua sala. — Sempre tão exagerada — completou para si mesmo. — Sempre tão carinhosa tão bela... — suspirou sozinho.
O amor que Kelly Garcia nutria por Sean, naqueles anos todos começava a dar resultados; ele teve tanto medo de perdê-la que aquele sentimento o confundia toda vez que desejava o corpo de Marcia. De certa forma, o amor de Marcia, a serpente-sentinela do lago, era calcado nas lembranças que ele tinha de Sandy e Kelly.
O telefone tocou, ele estava tão distraído que demorou a atender.
— Sim, Renata?
— O almoço foi confirmado para as 14h00m, Sr. Queise.
— Obrigado, Renata — respondeu Sean para a secretária suspirando outra vez.
Levantou-se e partiu.
Chegou com quinze minutos de atraso e Oscar se levantou quando ele se aproximou da mesa sentando-se logo após. Sean pediu um copo de saquê e o maitrê se afastou.
— Aqui está! — e Sean entregou uma única folha de papel para Oscar. — E Nietzsche foi claro, Oscar, quando disse que não há fatos eternos, como não há verdades absolutas.
Oscar Roldman sobressaltou-se.
— O que é isso, Sean querido? — olhando a folha de papel sem pegá-la.
— As coordenadas de onde Madame Michelina está. Spartacus a localizou no Tibet. Ela deve gostar de passar frio.
— Como...
— Como eu consegui? — Sean desafiou-o com um estranho olhar.
— Não vim aqui para brigar.
— Ótimo! — pegou o cardápio e começou a escolher. — Você só tem que localizá-la. Maykon saberá o que fazer com ela.
— Você tem falado com ele?
— Durante os sonhos — pigarreou incomodado. — Nunca havia experimentado me projetar no éter com tanta frequência.
— Então deve saber se ela conseguiu?
Sean levantou o rosto que apreciava o cardápio.
— O que quer dizer com isso?
— Imagino que...
— “Quê”?
— A serpente-sentinela do lago tinha um propósito, não tinha?
Sean sentiu faltar-lhe o chão sob seus pés, engoliu a seco a resposta que não deu. A ideia de que Marcia ao passar a mão pela barriga significasse algo, de que ela carregava um filho seu, o assustava dia após dia.
“Deve precisar de mim, não é Oscar?” “Deve precisar muito, só não sei por que”; ecoava todos os dias em sua memória.
Na memória que Sean tinha de tudo que lhe acontecera em Lausanne, temendo mais que tudo que Oscar tivesse barganhado há muito tempo com a serpente-sentinela do lago, barganhado um filho pelo seu filho.
— Vocês a encontraram?
— Marcia ou a serpente-sentinela do lago?
— Ambas! — Sean girou os olhos sabendo que Oscar sabia que ele saía noite após noite pelo éter a procura dela.
— Sabe que jamais conseguiremos achá-la — Oscar se enervava agora.
— É! — Sean cerrou os olhos para que Oscar não visse que sentiu necessidade de chorar. — Eu imaginei — falou Sean afinal.
— A Poliu conseguiu entrar no que restou da sala de Cybele. Conseguiu encontrar a passagem atrás da estante que levava a um túnel onde havia um poço. Como você disse, o corpo de Elisa estava lá.
— Elisa! Elisa! — exclamou ainda vistoriando o cardápio e disfarçando lágrimas de saudades de Marcia que caíam pelo rosto bonito. — Ela era uma agente muito má.
— Quem matou Elisa?
— Não sei — Sean deu de ombros. — Talvez Umah.
Oscar gargalhou e Sean o encarou friamente. Oscar parou de rir e ficou sério, aquela possibilidade não havia lhe passado pela cabeça.
— Estamos brigando?
— Costumamos fazer outra coisa, Oscar querido? — o maitrê se aproximou e serviu mais saque para Sean, que sabia que os olhos de Oscar o estudavam, mediam forças enquanto os pratos eram servidos. — Prossiga!
— Encontramos o corpo de Louis seco na relojoaria, estava debaixo do piso da loja. As pessoas começaram a sentir um odor estranho e a polícia foi chamada. A Irmandade Simbiótica fez um enterro simbólico.
— Entendo! — Sean comia sem muito prestar atenção ou querer explicar que Louis era Ernest o tempo todo, que sabia de tudo que Sean fazia dentro da École Hoteliere Dubois.
— Então deixou de entender o que aquelas serpentes alienígenas queriam abduzindo os cientistas da Poliu?
— Você sabe que eles os estavam testando sexualmente, porque queriam barganhar com a serpente-sentinela do lago que sabiam, queria procriar; então por que acha que deixei de entender algo?
— A Poliu mandou fechar todas as empresa da Hautch Propieté.
— Trevellis enfim teve uma boa ideia...
— Mas você conhece outra coisa alienígena, não é Sean querido?
Sean ergueu os olhos do prato que começava a comer e o encarou.
— Do que é que está falando?
— Você sabe que todas Hautch Propieté eram plasmadas, que os Braushin podiam plasmar tudo até dinheiro. Então sabe que não encontramos a nave alienígena que devia estar plasmada também.
— Quanta sensatez Oscar. Parabéns! Porque parece que não fui só eu que percebeu que a nave da serpente-sentinela do lago não foi encontrada, porque ela viajou com ela de volta ao serpentário.
— Viajou?
— Sim... — Sean agora teve medo.
— Então por que direcionou Spartacus para os destroços da École Hoteliere Dubois se a nave nunca esteve lá?
— Ela estava lá! — falou Sean comendo um rolinho primavera de legumes.
— Não, não estava, Sean.
— Estava sim, na cabana.
— “Na cabana”? — agora Oscar riu com gosto.
— Plasmada em cabana — completou Sean.
Oscar parou de rir novamente.
— Está me dizendo que a serpente-sentinela do lago plasmou sua nave numa cabana? Que a cabana que eu vi na trilha...
— Não, a cabana que você viu na trilha logo que cheguei a École Hoteliere Dubois era a cabana original. A cabana que deixei o corpo baleado de Clara e você foi lá com seus agentes resgatarem-na, era a cabana original. E a cabana na qual dormi sozinho era a cabana original — comeu outro rolinho. — Eu falo da cabana que Marcia me levou; era sua nave plasmada em cabana. Ela plasmou tudo aquilo para me satisfazer. Por isso a cabana estava tão diferente... — Sean se lembrou do sexo, da penetração, do quanto sentia a falta dela. — Ela precisava, entende? Tinha que ser na nave dela. No ambiente dela... — bebeu saquê.
— “No ambiente dela”?
— Como na caverna onde ela viveu quando na Terra chegou. Falada na Teogonia por Hesíodo, na Ilíada por Homero, Lasus, Pseudo-Apolodoro, nas Rãs por Aristófanes, Bacchylides, nos Fragmentos por Calímaco, Licofron, Pausanas, falada na Queda de Tróia por Quintus Smyrnaeus, por Pseudo-Higino, na Metamorphoses por Ovídio, e na Dionysiaca por Nonnus; até cair no esquecimento.
— Deus! Deus! — Oscar olhou para os lados assustado com tudo e com todos. Passava as noites imaginando que alguém ao seu lado podia ser um alienígena plasmado. — E agora, Sean?
— Agora não sei. Ou ela levou a sua nave para dentro do lago, para a Terra Oca ou talvez tenha ido para a Islândia, o país onde a maioria das fontes escritas para a mitologia nórdica foi construída, ou até voltado ao Serpentário, ou outra estrela — sorriu cínico como de costume.
— Você não direcionou Spartacus para a Islândia, Sean, nem para o Serpentário uma única vez; por quê?
— Porque não me interessa saber qualquer movimentação dela.
— Parou de perseguir a Poliu também?
— Eu e a Poliu, a corporação toda, ainda nem começamos, Oscar querido.
— Não se arrisque Sean...
Sean comia com gosto.
— Não se preocupe, serei cuidadoso das próximas vezes.
— “Próximas vezes”? O que está tramando?
— Não estou tramando nada! — Sean se alterava. — Já disse!
— Não pode me deixar no escuro.
— O escuro não existe, Oscar; só a ausência de luz...
— Por que Sean?
— “Por que”? — questionou.
— Por que se afastou de sua fé, meu filho?
— Quem disse que não tenho fé, Oscar? Que não acredito num Deus superior, bondoso? Que como Einstein, minha religião consiste em humilde admiração do espírito superior e ilimitado, que se revela nos menores detalhes que podemos perceber em nossos espíritos frágeis — e Sean se levantou num rompante, fazendo sua cadeira balançar.
O restaurante cheio os observou, Sean correu os olhos para o lado lembrando-se de sua posição na rica sociedade paulistana. Oscar Roldman andava cada vez mais preocupado com o que Sean ia descobrir dali para frente, do que seus dons paranormais seriam capazes de fazer.
Oscar sentiu-se velho, cansado da labuta. Sabendo mais do que nunca entendeu o quanto precisava do amor dele, do amor de seu filho.
Mas Sean virou-se e largou o guardanapo na mesa.
— Aonde vai, Sean querido?
— Retornar à inocência! — e se foi.

 

 

                                                   Marcia Ribeiro Malucelli         

 

 

 

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