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Arquivo X - A BESTA HUMANA
Arquivo X - A BESTA HUMANA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Arquivo X

A BESTA HUMANA 

 

A criação de gado era a atividade principal do rancho Two Medicine, em Browning, uma pacata cidadezinha em Montana, Estados Unidos, ao pé das Montanhas Rochosas. Ali, naquelas terras ocupadas pelos animais, duas culturas se enfrentavam: o homem branco, com suas armas poderosas e seus hábitos de consumo; e os índios tregos, com suas tradições, seus espíritos protetores e seus demônios. Os índios viviam confinados em uma reserva e seus demônios vagavam enfurecidos pela noite, com sede de vingança...

 

                   Rancho Two Medicine, Browning, Montana

Gim Parker tinha sentido durante o dia inteiro a formação daquela tempestade. O gado havia ficado irritado e inquieto a tarde toda. O sol tinha desaparecido no horizonte com uma estranha cor esverdeada. Já estava bastante escuro e o vento tinha aumentado, gemendo como um homem cheio de dores. Durante mais de uma hora os raios vinham cortando os céus de Montana. A chuva ainda não tinha começado a cair, mas não havia dúvida de que estava chegando.

           Parker e seu filho, Lyle, estavam do lado de dentro, perto da porta da casa-sede da fazenda. Não diziam coisa alguma, limitando-se a ouvir o barulho da tempestade que se aproximava. Estavam esperando por uma coisa. Mas nenhum dos dois jamais havia falado a respeito. Era uma coisa que vinha ao rancho para matar.

           Lá fora, os raios colocavam sobre o negro do céu rachaduras prateadas que duravam uns poucos segundos apenas. Não demorou para que as nuvens, como se tivessem sido rasgadas pelos relâmpagos, começassem a derramar grandes quantidades de água, que era lançada de um lado para o outro pelo vento. E então, de repente, a casa ficou às escuras.

           Parker não se importava muito com a escuridão. O fogo ardia na lareira da sala, iluminando o ambiente com uma luz alaranjada, que refletia sobre a superfície brilhante dos olhos vidrados dos troféus de caça que enchiam as paredes. Para Parker, aqueles troféus representavam um grande conforto. O urso-pardo, o leão-da-montanha, o lobo-da-floresta, a cascavel eram claras lembranças dos tempos em que havia enfrentado o perigo e saído vitorioso. E ele pretendia vencer de novo naquela noite.

           Foi então que Parker ouviu aquele som. O mesmo barulho que já havia escutado várias vezes antes. Um rugido baixo, cheio de ódio. Animal, mas ao mesmo tempo sobrenatural. Havia momentos em que Parker achava que aquele ruído era um eco que nascia nas montanhas ou que talvez viesse das próprias entranhas da terra.

           O barulho estava mais próximo agora. Parker havia caçado durante toda a sua vida. Embora não soubesse exatamente o que estava lá fora, ele sabia que era outro caçador. Alguma coisa que estava pretendendo caçar o seu gado.

           Mas naquela noite ele não pretendia correr riscos desnecessários. Rapidamente carregou dois cartuchos calibre doze na sua espingarda Winchester 1300 Defender.

Os olhos de Parker encontraram os de seu filho. Lyle puxou a barra deslizante que engatilhava sua espingarda. Dessa vez, os dois estavam bem preparados.

           De repente, do lado de fora, o rugido sobrenatural transformou-se em um ronco ensurdecedor, que encobriu até o barulho da tempestade. A cabeça de Lyle virou de uma vez na direção de onde vinha o ruído. Os relâmpagos cortavam o céu em todas as direções. Sob o efeito da brilhante luz intermitente, tudo o que havia dentro de casa parecia estar parado e em movimento ao mesmo tempo. Lyle tornou a olhar para o pai.

Mas Jim Parker não registrava mais a presença do filho. Toda sua atenção estava concentrada naquilo que esperava do outro lado da porta.

           Lá fora, os ventos tempestuosos varriam a fazenda e pareciam ter vida, uivando ao atravessar os galhos sem folhas das árvores. Algumas cabeças de gado moviam-se, nervosamente, de um lado para o outro do curral. Os animais estavam com medo.

           Orientados pela luz de uma lanterna, Jim Parker e seu filho dirigiram-se ao curral. O chão já parecia ser uma grande poça de lama. Parker estava protegido da chuva por uma grande e longa capa de vaqueiro. Mas Lyle, que usava uma calça jeans e uma jaqueta de náilon, ficou ensopado logo depois de dar os primeiros passos do lado de fora da casa. Tremia um pouco, mas não sabia se era de frio ou do medo de encontrarem-se com o que estavam procurando, e que não sabiam o que era.

           Parker fez um sinal a Lyle, dizendo que tomaria o lado esquerdo do curral. Lyle fez que sim com a cabeça, dirigindo-se para a direita. Foi então que ele pressentiu aquilo e ouviu o barulho. Era alguma coisa na escuridão que rugia.

           O barulho parecia vir de dentro do celeiro, cujas portas estavam abertas. Lenta e cuidadosamente, Lyle aproximou-se da larga porta. Seu coração disparado parecia querer sair pela boca. Ele esperava que a criatura não tivesse ido atacar os cavalos.

           Agarrando a espingarda com uma das mãos e a lanterna com a outra, ele entrou no celeiro. Sentiu-se um pouco mais calmo quando foi recebido pelo familiar cheiro de feno e pelo barulho dos cavalos. Examinou todas as baias. Os animais estavam nervosos, mas todos bem. A tempestade sempre deixava os animais assustados.

           Com todo o cuidado, Lyle verificou o restante do celeiro. Várias vezes percebeu que estava tomando grandes golfadas de ar, em uma tentativa de acalmar as descontroladas batidas do coração.

           Na escuridão, uma criatura engatinhava atrás dele. Uma criatura que Lyle nunca vira antes. Caminhava sobre duas pernas. Os membros pareciam ter forma humana. Mas a criatura movia-se com a aparência de um animal muito forte. E, sob o brilho intenso dos relâmpagos, suas garras pareciam grandes lâminas de marfim.

           Lyle achou que estava tudo em ordem no celeiro. Caminhou de volta para fora e parou ao notar que havia algo no chão. Era alguma coisa escura, amontoada. Ele andou na direção daquilo, sem saber que dois olhos de animal, de um intenso brilho avermelhado, seguiam de perto cada passo que ele dava.

           Lyle apontou o facho da lanterna para o monte escuro. Sentiu o coração pesado. Eles haviam chegado tarde demais. Era outra vaca. Morta, com o corpo todo cortado em pedaços. Ele ficou parado ali, triste e amedrontado. Que tipo de animal podia agir com tamanha selvageria, mutilando uma vaca daquele jeito? E como podiam eles acabar com aquela matança? Ele ouviu o barulho de novo. Dessa vez bem atrás de si.

           Lyle virou a lanterna e iluminou os olhos da besta com o facho. Olhos vermelhos, totalmente inumanos.

           Ele não teve tempo de levantar a arma antes que a criatura atacasse, derrubando-o ao chão com um só golpe. Lyle bateu forte na terra molhada e imediatamente sentiu seu corpo sendo erguido no ar. Estava sendo atirado de um lado para o outro, como uma boneca de pano, por alguma coisa que ele nem conseguia enxergar na escuridão.

           A última coisa de que Lyle Parker se lembrou foi do som dos seus gritos, misturados aos rugidos da criatura, quando seu corpo foi lançado ao ar e bateu forte contra a cerca do curral.

           Jim Parker ouviu o barulho da luta na área do celeiro e correu para lá, esperando poder chegar ao gado antes do predador.

           Seus olhos arregalaram-se horrorizados quando ele viu uma gigantesca criatura de duas pernas, com as costas cobertas por uma pele grossa. A coisa estava atacando seu filho.

           Parker não hesitou. Levantou o cano da espingarda e atirou. O animal girou ao impacto da bala e tombou ao chão.

           Parker ajoelhou-se ao lado de Lyle. O rapaz estava coberto de sangue e todo o seu corpo tremia, mas ainda estava vivo.

           Então Lyle fez uma coisa que não fazia desde quando tinha 10 anos. Colocou o braço ao redor do pai e agarrou-se a ele, como se nunca mais quisesse largá-lo.

Parker ficou abraçado ao filho durante alguns instantes, mas tinha o pensamento na criatura, que estava deitada, totalmente imóvel, a menos de três metros de distância do curral. Mas ele não tinha certeza de que o bicho estivesse morto. Só para confirmar, Parker voltou-se e cutucou uma vez mais aquela coisa com o cano da espingarda.

           Um relâmpago tornou a acender o céu, bem acima deles. Horrorizado, Parker viu o que tinha acabado de matar. Não era um animal, mas um homem. Um jovem nativo norte-americano, de peito nu, com longos cabelos negros. Parecia ter uns 25 anos. A mesma idade de Lyle.

           Parker sentiu que seu corpo começava a tremer, tomado pelo choque daquela descoberta. Ele tinha certeza de que havia atirado contra um animal. Mas havia acabado de matar um homem.

 

           Dois dias depois, os agentes Fox Mulder e Dana Scully, do FBI, partiam da sede da agência em Washington D.C. tomando um avião que os levaria à região noroeste de Montana. Iam para investigar a morte de um jovem índio da tribo trego, chamado Joe Goodensnake. Sua primeira parada seria no Rancho Two Medicine. Scully dirigia o carro que haviam alugado, quando passaram pela longa estrada de terra que atravessava a pastagem e levava à sede da fazenda.

           - Parker tem um belo pedaço de terra - observou ela.

           - São mais de dois mil e quinhentos hectares - disse Mulder. – Ele tem uma das mais lucrativas fazendas de criação de gado desta parte do país.

           - E uma casa que mais parece um rancho de caça - disse Scully, quando apareceu diante dos seus olhos a sede da fazenda, um enorme sobrado construído com toras de madeira.

           Jim Parker encontrou-se com eles na porta e os fez passar para a sala de visitas. Mulder logo examinou visualmente o lugar: a lareira de pedra, o alto pé-direito da sala de visitas, a enorme janela que dava para a vasta pastagem. Ao contrário da maioria dos criadores de gado, a família Parker tinha uma vida bastante confortável.

           Jim Parker estava com pouco mais de 50 anos e seus cabelos grisalhos eram um pouco mais compridos do que o normal para a época. Usava um enorme bigode, cujas pontas viravam para cima, e tinha um olhar muito penetrante. Estava usando botas de vaqueiro, calças jeans e uma camisa leve, também jeans. Tinha a aparência austera de um homem que havia passado a maior parte de sua vida trabalhando ao ar livre e as maneiras bruscas e diretas de um homem que estava acostumado a controlar tudo e todos.

           Parker apresentou-os ao seu filho, Lyle, e ao seu advogado, David Gates. Lyle era um rapaz de boa figura, que parecia estar com pouco mais de 20 anos. Mulder estudou a figura do rapaz com todo interesse. Lyle parecia ser bem mais amável e delicado do que o pai. Mulder imaginou que, em uma situação na qual Jim Parker poderia tomar uma decisão apressada, Lyle pensaria bem antes de resolver o que fazer.

           Eles se sentaram na sala de visitas. A lareira estava acesa e as labaredas aqueciam bastante bem o ambiente. Sobre a lareira havia um relógio e algumas fotografias. Mas nada havia de agradável ou convidativo naquela sala. Pelo contrário: a atmosfera parecia ser um tanto... Perturbadora. Porque o que mais se destacava, além das labaredas da lareira, eram os animais.

           “Está mais do que claro”, pensou Mulder, “que Parker não é apenas criador de gado, mas um caçador”. A sala estava cheia de animais empalhados. Em um dos cantos havia um urso-pardo em pé, congelado em posição de ataque. Uma enorme coruja, de asas abertas, havia sido colocada perto do teto. Sobre a mesinha de centro estava um texugo, e até a prateleira de livros era decorada com uma pequena raposa. Em outro canto da sala via-se um grande lobo-da-floresta, com os dentes arreganhados. As pessoas ali estavam cercadas de animais mortos.

           Mulder sentou-se ao lado de Gates, o advogado. Scully colocou-se na frente deles, do outro lado da mesinha de centro. Lyle ficou ao lado do pai e demonstrava estar preocupado. Parker caminhava de um lado para o outro da sala, contando aos agentes o seu lado da história. Começou sua narrativa dizendo:

           - Eu não sou um assassino.

           Os olhos de Mulder foram para os animais empalhados.   “Depende de ver de que lado da arma você está”, pensou ele. E Parker continuou:

           - Nunca foi minha intenção ferir alguém. Eu só estava cansado de ver meu gado sendo morto de maneira tão selvagem, e a quase duzentos quilômetros de distância do matadouro. Foi a quarta cabeça de gado que mataram aqui só este mês! - disse ele irritado.

           - E quem, ou o quê, o senhor acha que poderia ser o responsável? - perguntou Mulder, com uma voz calma.

           - Olhe moço - respondeu Parker, quase gritando. - Aquela vaca mais parecia um pedaço de papel retalhado por uma tesoura. Eu não conheço nenhum animal que poderia ter feito isso.

           - Então o senhor está dizendo que acha que uma pessoa ou várias pessoas seriam responsáveis por esse ato? - perguntou Mulder.

           David Gates, o advogado, um homem de meia-idade, quase careca, que usava paletó e gravata de caubói, falou antes que Parker respondesse:

           - Eu gostaria de lembrar que o Sr. Parker está em liberdade sob fiança, aguardando julgamento. Ele concordou em conversar com o senhor, mas apenas sobre este incidente, e não a respeito de outros casos semelhantes.

           - Quer dizer, então, que não podemos conversar com o Sr. Parker sobre a ação legal que ele tem na Justiça Federal contra a Reserva Indígena Trego? - perguntou Scully.

           Mulder viu o rosto do advogado ficar vermelho de raiva ao ouvir a pergunta de Scully. Ela era uma jovem bastante bonita, de cabelos avermelhados e profundos olhos azuis. A maior parte das pessoas jamais imaginaria como ela era durona... Até ter de enfrentá-la em uma discussão.

           - É exatamente isso que estou querendo dizer! - replicou Gates.

           - Ei, espere um pouco aí - interrompeu Jim Parker.

           - Jim, não diga mais uma palavra! - advertiu o advogado.

           - Não! Acho que não é hora dessa conversa de advogado – gritou Parker. - Eu quero que este assunto seja colocado às claras.

          “A franqueza de Parker era admirável”, pensou Mulder. Entretanto, o homem era desagradável. Não era apenas o fato de ele estar impaciente e furioso. Alguma coisa em seu comportamento deixava claro que ele estava acostumado a impor a sua vontade. E ele provocaria todo mundo à vista até conseguir.

           Parker arregalou os olhos para os dois agentes e disse:

           - Vocês vêm à minha casa pensando que eu saí e matei um índio só porque estamos tendo uma discussão legal sobre o ponto onde acaba minha terra e começa a deles?

           - Queremos resolver tudo da maneira mais pacífica possível insistiu Lyle, em um tom de voz bastante calmo. - Nos tribunais.

           - Bem, acontece que Joe Goodensnake foi morto pelos tiros de sua espingarda - lembrou Scully a Jim Parker. - E isso parece indicar exatamente o contrário.

           O fazendeiro acalmou-se um pouco e disse:

           - O que estou tentando dizer é que o responsável pelos ataques ao meu gado não é qualquer animal que eu conheça - explicou ele.

           O filho levantou a camisa, mostrando uma verdadeira rede de pontos sobre o peito e os ombros.

           - Estava escuro - continuou Jim Parker -, e escutamos um rosnado. Saímos para proteger o gado - Ele se sentou e a sua voz tornou-se um pouco menos defensiva. Pela primeira vez ele pareceu inseguro - Eu posso jurar que vi um par de olhos vermelhos e grandes presas arreganhadas para mim.

           Mulder viu uma expressão de dúvida nos olhos de Scully. Ela não dava muito crédito a histórias de monstros.

           - Pensei que o meu filho Lyle estava... - Parker não conseguiu terminar a frase. Balançou a cabeça como se ainda não conseguisse acreditar no que tinha visto. - Escutem, ninguém, ninguém ficou mais surpreso e estarrecido do que eu, quando descobri que havia sido aquele rapaz indígena. - A voz do fazendeiro tornou-se mais forte e seu tom mais acusador. - Mas se era ele quem estava matando o nosso gado, eu sinto muito, muito mesmo, que tivéssemos de descobrir desta maneira, mas... Quanto a mim, este é o fim da história.

           Mulder concordou com neutralidade. A atitude de Parker o lembrava de todos os velhos bangue-bangues que ele já tinha visto na vida. Se Joe Goodensnake estava matando o gado, então Jim Parker se achava no direito de proteger sua propriedade.

Scully olhou de uma forma inquisitiva para Mulder, como se perguntasse:   “Você acredita nele?”.

Mulder acenou-lhe rapidamente com a cabeça. Estava convencido de que Parker contara a verdade - como ele a conhecia. Mulder também tinha certeza de que havia muito mais por trás dessa história.

 

            Scully tinha lido o relatório da polícia sobre a morte de Joe Goodensnake. E havia prestado atenção a tudo o que Jim Parker dissera a respeito. Mas ainda não conseguia entender por que Mulder e ela continuavam nas investigações daquele caso. Para ela, isso parecia ser apenas um homicídio, dos mais simples e diretos. Não havia mistério algum para ser investigado. Parker tinha até admitido ter assassinado Goodensnake. Era o tipo de caso que Mulder geralmente gostava de deixar que os próprios policiais locais resolvessem.

           Mulder tinha desenvolvido um interesse todo especial pelos casos que nenhum outro agente do Bureau gostava de investigar. Todos os documentos relativos a esse tipo de caso iam para o chamado Arquivo X e relacionavam-se com fatos estranhos e acontecimentos de natureza paranormal e sobrenatural.

           Scully, por sua vez, tinha estudado Medicina e também era formada em Física. Antes de mais nada ela era uma cientista, que acreditava nas leis de causa e efeito e que achava que tudo tem uma explicação racional. Porém, nada havia de racional a respeito do Arquivo X.

Trabalhando com Mulder, ela já havia investigado alienígenas, mutantes genéticos e visões psíquicas, que de certo modo haviam-se tornado reais.

Coisas em que ela mal conseguia acreditar, mesmo tendo visto as provas com os próprios olhos.

           Muitos dos colegas do FBI achavam que Mulder não passava de um louco. Tinham chegado inclusive a dar-lhe o apelido de O Estranho. Mas isso parecia não afetá-lo nem um pouco. Mulder era um agente muito bom. Tinha memória fotográfica. Scully o achava simplesmente brilhante quando se tratava de analisar os casos investigados, ainda que demonstrasse uma certa tendência no sentido de acreditar demais no sobrenatural. Mas nada havia de sobrenatural naquele caso. Portanto, o que ainda estavam eles dois fazendo em Browning, Montana?

           Mulder levantou-se e se dirigiu a Jim Parker, perguntando:

           - Podemos dar uma olhada no curral?

           - Eu os levarei até lá - ofereceu Lyle.

           O rapaz vestiu uma jaqueta, apanhou o chapéu e levou os dois agentes para fora, passando pela grande porta corrediça de vidro, que dava para a varanda.

           Scully puxou para cima a gola de sua capa de chuva. Estava garoando forte e o ar estava impregnado pelo agradável aroma dos pinheiros. Em Washington D.C., eles haviam partido quando a temperatura estava por volta dos vinte graus. Em Montana, à sombra das Montanhas Rochosas, o clima era bem mais frio e úmido. Parecia mais inverno do que outono.

           Mas ela estava contente, porque os dois iam ter oportunidade de conversar a sós com Lyle. Dos dois membros da família Parker, ele era o único que parecia realmente perturbado e sentido pela morte de Joe Goodensnake.

           O rapaz os levou para longe da casa e parou, de repente, dizendo com hesitação:

           - Agente Mulder, agente Scully... Eu acho que se alguém me contasse apenas o nosso lado da história, seria muito difícil de eu acreditar. Na verdade, nem eu mesmo compreendo algumas das coisas que andaram acontecendo. Coisas que meu pai jamais tentaria explicar para pessoas estranhas.

           - Que tipo de coisa? - perguntou Mulder.

           Lyle parecia inseguro. Quando finalmente resolveu falar, disse tudo muito rapidamente, como se os seus pensamentos tivessem ficado engarrafados durante muito tempo, esperando uma chance para sair de dentro dele.

           - Durante os últimos meses, sempre que a gente saía durante a noite para dar uma olhada no gado... Eu nunca vi nada fora do comum. Não vi nenhum leão-da-montanha. Nem coiotes. E nenhum índio trego. - O rapaz suspirou fundo e seu hálito formou pequenas nuvens de vapor diante do seu rosto. - Mas eu podia sentir uma coisa no ar. Algo que nada tinha de humano. Naquela direção. - Ele apontou para as montanhas. - Como se estivesse me observando. O ar parecia ficar mais parado. Os animais noturnos mantinham silêncio. Era como se a própria natureza tivesse medo. Eu confesso que meu corpo todo ficava arrepiado de medo.

           - Arrepiado? - perguntou Scully.

           - É, arrepiado - respondeu Lyle. - Por acaso nunca sentiu medo a ponto de ficar arrepiada?

           Scully encolheu os ombros. Ela nunca havia pensado muito em arrepios. O medo irracional, que provavelmente era o que Lyle queria dizer, não era uma coisa para a qual Scully tinha muito tempo disponível.

           Mulder dirigiu a ela um olhar de reprovação, como se estivesse dizendo: “Será que não pode dar ao rapaz uma resposta melhor?” Scully, por sua vez, pensou: “Que Mulder se preocupe com arrepios, se achar que deve”. Ela estava bem mais interessada em investigar a cena do crime. A passos rápidos, ela foi na direção do curral.

           Uma chuva fina continuava a cair, enquanto Scully terminava sua investigação do celeiro. Pela primeira vez ela procurou conferir o que dizia o relatório preparado pela polícia. Satisfeita por ter observado que os policiais não haviam deixado nada para trás, ela abriu o guarda-chuva e atravessou o curral. Parou por um instante para examinar o local onde a cerca estava quebrada. Lyle lhe dissera que a cerca tinha sido quebrada quando ele fora atacado pelo animal e jogado contra as tábuas.

           Mulder permaneceu do outro lado do curral coberto de barro. Estava olhando perdidamente para as montanhas, como se elas tivessem alguma mensagem para lhe transmitir.

           Scully leu outro trecho do relatório policial e ficou parada na frente da cerca quebrada. E gritou para Mulder:

           - A vítima foi alvejada bem aqui. A uns três metros de distância de onde Jim Parker disse ter disparado. - Ela balançou a cabeça ao se lembrar da versão de Parker para o episódio. E acrescentou: - Não haveria maneira de ele confundir uma pessoa com um animal, estando tão perto. Acho que podemos dar o caso por encerrado, Mulder. - Mulder ficou olhando para o chão, sem se mover. E Scully continuou: - Sabe? Eu chego a me surpreender quando me lembro de que você se ofereceu para investigar este caso. Qualquer agente do Bureau poderia ter investigado este homicídio. Por que você haveria de se interessar?

           Mulder olhou firme para uma área barrenta, onde havia várias marcas. Rastros deixados pelos cascos de animais, misturados com os sinais das botas de um homem. Mulder, então, encontrou o que estava procurando.

           Ele se ajoelhou para ver melhor. Cuidadosamente acompanhou com os dedos as pegadas humanas. As marcas deixadas pelas botas transformaram-se em rastros de pés descalços. E mais adiante transformavam-se de novo... em rastros deixados pelas patas de um grande animal, com garras nas pontas. A transformação ia de um passo para o seguinte. De homem para animal.

           Ele tirou uma foto das pegadas. Estivera esperando por esse tipo de prova. Mas foi então que ele viu algo que não estava esperando. Uma coisa que nem ao menos tinha imaginado.

           Scully encerrou sua investigação da cena do crime e caminhou na direção de Mulder, dizendo:

           - Os índios tregos e os Parker estão brigando por causa de terras. Goodensnake tinha motivo para atacar o gado de Parker. E Parker tinha motivo para matar Goodensnake. Parece-me que não existe nada que esteja sem explicação neste caso.

           - Não - disse Mulder, com secura na voz. - Nada mesmo. As sobrancelhas de Scully se levantaram quando Mulder levantou no ar, com uma pinça, o objeto de sua estranha descoberta. Era um pedaço de pele transparente, no formato de uma mão com apenas três dedos.

 

           Scully correu os olhos pela paisagem que se descortinava à sua frente, enquanto Mulder dirigia calmamente o carro alugado pela estrada que levava à Reserva Indígena Trego. A estrada parecia uma faixa estendida no chão, reta, plana e sem fim. O caminho era emoldurado pelo capim amarelado que crescia dos dois lados.

           Não havia nenhum tipo de construção, nenhum posto de gasolina, nenhum poste telefônico. Nada, exceto a faixa preta de asfalto, para indicar que o homem já havia chegado àquela parte do mundo. Ao longe, na frente deles, as Montanhas Rochosas erguiam-se para o céu, escuras, transmitindo maus pressentimentos.

            “Tudo parece tão aberto e distante nesta parte do Oeste”, pensou Scully. A fazenda de Parker fazia divisa com a reserva indígena mas, para chegar à aldeia que ficava no centro da reserva, fazia bem mais de uma hora que ela e Mulder vinham viajando sem parar.

           Uma vez mais Scully examinou o saquinho de plástico transparente onde Mulder havia guardado o macabro pedaço de pele.

           - Mulder, isso é muito estranho - disse ela. - É quase como uma pele de cobra, que foi substituída por uma pele nova.

           Mulder limitou-se a balançar a cabeça.

           Scully colocou o saquinho de plástico sobre o painel do carro e disse:

           - Eu acho que Parker matou Joe Goodensnake sabendo muito bem o que estava fazendo. Mas eles não parecem pessoas que arrancam a pele de suas vítimas.

           - Além disso, os relatórios da polícia e do médico legista não dizem coisa alguma sobre pele arrancada do cadáver - observou Mulder.

           - Bem, acho que nós mesmos vamos ter de fazer um exame do cadáver - disse Scully. Na sua qualidade de médica, além de agente do FBI, ela já havia realizado muitas autópsias.

           - O corpo foi transferido para a jurisdição das autoridades da reserva - disse Mulder. Ele enfiou a mão no bolso, procurou por um pedaço de papel e o colocou entre as mãos, sobre o volante do carro, dizendo: - Vamos ter de procurar pelo xerife Charlie Tskany...

           A voz de Mulder desapareceu por baixo de um grito baixo e áspero, que chamou sua atenção. Ele olhou para o céu, onde uma águia pairava sobre a paisagem. Mulder parou o carro no acostamento da estrada.

           - O que está fazendo? - perguntou Scully.

           - Parei para ficar observando uma águia - respondeu Mulder. A gente não tem chance de ver muitas aves como essa em Washington. Ele saiu do carro e olhou em volta. Os picos mais altos das montanhas estavam cobertos por nuvens brancas. Mulder teve a clara sensação de que aquela terra era bastante velha e que havia silenciosamente testemunhado a história muito antes de o homem branco ter pisado o solo da América. As nuvens de cima das montanhas pareciam estar repletas de primitivos mistérios e segredos.

           O vento que ele sentia também fazia balançar os galhos dos pinheiros que havia nas encostas dos morros. Nuvens negras de tempestade formavam-se na frente do sol. A águia gritou de novo e um bando de corvos saiu voando da mata.

           Mulder sabia que Scully iria dizer que tudo aquilo não tinha mistério algum. Mas ele sentia uma presença estranha no ar. E isso o assustava.

           - Mulder! - gritou Scully de repente.

           Ele despertou de suas divagações e olhou para a parceira, ainda meio aturdido.

           - Você está bem? - perguntou ela.

           - O diabo acaba de tocar em minha espinha - respondeu Mulder, baixinho.

           - O quê?

           - Minha mãe costumava dizer que, quando a gente sente um calafrio, é que o diabo tocou em nossa espinha - explicou Mulder. Scully encolheu os ombros, sem entender o que ele dizia. E ele perguntou:

           - Sabe, Scully, você acabou deixando sem resposta a pergunta de Lyle Parker. E confesso que também estou interessado. Você nunca teve arrepios?

           Scully pensou impacientemente na pergunta durante alguns instantes. Depois, respondeu:

           - Sinto, quando estou no metrô, em Washington, às três horas da madrugada.

           - Não é a mesma coisa - disse Mulder. - O arrepio a que me refiro se manifesta quando a gente sente uma presença que não pode ver nem ouvir.

           Scully perdeu a paciência de uma vez.

           - Mulder, dê uma olhadinha em volta. Você vai ver árvores, montanhas e animais. É um cenário maravilhoso... que convida à meditação. E o “arrepio” vem da sua psique, provavelmente por sugestão da tentativa de Lyle Parker de procurar um álibi para seu pai.

           Mulder olhou para ela com uma expressão de descrença no rosto. E perguntou:

           - Por acaso você já esteve alguma vez em Niagara Falls?

           - Estive sim, quando era criança.

           - E conhece a explicação geológica para a origem daquelas cataratas?

           Scully procurou lembrar-se das aulas que havia tido a respeito. E respondeu:

           - Eu acho que o lento degelo das geleiras que havia na região, há uns dez mil anos, fez com que a água do lago Erie fluísse para o lago Ontário, que, pelo que eu imagino, está em um nível inferior.

           Mulder balançou a cabeça. Ele estava esperando por uma resposta como aquela. Mas não conseguia resistir à tentação de provocá-la.

           - Mas quando fica parada na base das cataratas, você não tem a clara impressão de que alguma coisa diferente está acontecendo? Não parece que há uma presença estranha trabalhando ali?

           - Claro que sim - respondeu Scully. - A gravidade.

           Com ar de preocupação, Mulder virou para o outro lado. E sentiu o corpo todo gelar quando viu um enorme gavião pousado sobre o capô do carro, com as asas totalmente abertas... um sinal dos mais agourentos. O pássaro olhou bem para ele e levantou vôo de repente, deixando os dois agentes sozinhos de novo na estrada.

           - Os indígenas das planícies acreditam que os gaviões representam os espíritos dá força interior necessária para lutar contra o mal - disse Mulder.

           Os olhos de Scully seguiram o vôo do falcão, enquanto ela dizia:

           - Mulder, é só uma ave!

           Mulder ficou parado, olhando para ela, e depois entrou no carro.

Scully acompanhou seus movimentos, balançando a cabeça.

           Algum tempo depois, após atravessarem muitos quilômetros de uma região completamente deserta, o carro dos dois agentes entrou em uma pequena aldeia, no centro da Reserva Trego. A larga estrada de terra tinha ficado coberta de barro por causa da chuva recente. De um lado havia diversos trailers, além de casas de madeira. Do outro lado existia um pequeno centro comercial: uma loja de conveniência, uma lavanderia, o correio e o salão de bilhar. No outro extremo da rua havia um posto de gasolina.

           Mulder observou que havia também várias caminhonetes, um par de motocicletas e uma antena parabólica. Havia cachorros soltos por toda parte, alguns acompanhando as pessoas que andavam pela rua e que entravam e saíam dos prédios, outros correndo em bandos. Mas não havia muito luxo à vista. Como a maior parte dos nativos norte-americanos que viviam em reservas indígenas, os tregos não tinham muito dinheiro.

           - Por onde vamos começar? - perguntou Scully, quando Mulder parou o carro.

           - Acho que podemos começar pelo salão de bilhar - sugeriu Mulder.

           Estava bastante escuro no interior do salão. As janelas estavam cobertas por persianas abaixadas. Um letreiro em néon estava piscando sobre o balcão. Na escuridão Mulder conseguiu ver que ali havia três aposentos diferentes. Mesas e cadeiras enchiam a maior parte do espaço do salão. Em uma sala lateral havia uma velha mesa de bilhar, coberta com um veludo verde bastante gasto, debaixo de uma única lâmpada acesa. De taco na mão estava uma jovem que usava calças jeans, uma camisa de flanela e um colete bege. Não havia aparelho de som no salão. De uma única caixa acústica localizada atrás do balcão, vinha o som triste de uma velha canção de Johnny Cash. O ar estava carregado com o cheiro de fumaça, café e lã molhada.

           Embora tivesse passado apenas metade do dia, a maior parte das mesas estava ocupada. Exceto pelos dois agentes, todas as pessoas ali eram norte-americanos nativos. Quando Mulder e Scully caminharam na direção do bar, um homem deu um encontrão em Mulder, e de propósito.

           Mulder fez que não percebeu.

           O salão foi tomado pelo mais completo silêncio quando os dois agentes andaram na direção do bar. A pele branca e a vestimenta oficial os destacava bastante do restante das pessoas presentes. Eram estranhos e não eram bem-vindos àquele lugar. Ambos sabiam disso.

           Mulder não tinha o menor constrangimento em se sentir como estranho. Na verdade, tivera essa mesma sensação durante toda a sua vida, até mesmo dentro do FBI. Mas sentia-se perturbado com as razões que estavam por trás da clara hostilidade dos tregos. Os norte-americanos brancos tinham uma longa e trágica tradição de terríveis maus-tratos e abusos contra os povos indígenas. Haviam-nos expulsado de suas terras, tomado suas propriedades e, em muitos casos, massacrado tribos inteiras. Mulder não culpava aquelas pessoas por desconfiar deles. Só desejava poder fazer alguma coisa para reparar ao menos uma pequena parte dos erros cometidos por sua gente, no passado distante e naquele não tão distante.

           Do outro lado do balcão um homem servia café para um freguês. Mulder pigarreou e falou com o homem:

           - Por favor, nós não somos daqui e estamos procurando pelo xerife Tskany.

           O homem de trás do balcão não respondeu. Terminou de servir o café para o outro e afastou--se. A única coisa que se ouvia era a voz melancólica de Johnny Cash, cantando sobre o amor e a solidão.

           - Por acaso alguém aqui conhece Charlie Tskany? - perguntou Mulder. Ele falou suficientemente alto para que todas as pessoas presentes no salão pudessem ouvir.

           Ninguém respondeu. Mulder correu lentamente os olhos por todo o salão. Era uma comunidade bastante pequena. A maior parte das pessoas presentes com certeza conhecia o xerife. O problema era apenas encontrar alguém que estivesse disposto a responder à pergunta.

           No canto, um grupo de rapazes que deviam ter pouco mais de 20 anos agia como se Mulder e Scully nem existissem. Estavam todos de calças jeans e camisetas brancas com desenhos de uma banda heavy metal.

           A moça que estava jogando bilhar endireitou o corpo. Tinha os cabelos longos e bastante escuros e uma expressão forte e determinada. Os olhos pareciam estar lançando fagulhas na direção dos dois agentes. Não, pensou Mulder, não é uma candidata muito apropriada para apresentar respostas às minhas perguntas.

           Ele olhou com ar inquisitivo para Scully. Ela fez um gesto com a cabeça, indicando que achava ser hora de partirem dali.

           Mas Mulder resolveu esperar um pouco mais.

           Uma voz lúgubre, então, rompeu o silêncio e disse três palavras apenas:

           - Vão embora, FBI.

 

           Mulder voltou-se na direção do lugar de onde vinha a voz. À sua esquerda, dois homens mais velhos do que a maioria estavam sentados perto de uma mesa em um canto escuro. Mulder caminhou na direção deles.

           O homem que havia falado tinha cabelos longos e prateados, um rosto largo e a pele escura como cobre. Usava uma malha de lã estampada e uma camisa jeans por baixo da malha. Trazia um grande colar de contas no pescoço. Mulder notou alguma coisa no seu olhar que talvez tivesse encontrado apenas uma ou duas vezes na vida. Era um tipo especial de calma e serenidade. Mulder percebeu que devia haver muito pouca coisa neste mundo capaz de assustar aquele homem. Ele já vira praticamente tudo. E suas palavras haviam intrigado Mulder.

           - Como sabe que somos do FBI? - perguntou ele.

           - Eu posso sentir o cheiro de vocês a vários quilômetros de distância - respondeu o homem.

           - É. Disseram que meu desodorante havia sido feito para mulher, mas é suficientemente forte para os homens - brincou Mulder.

           O índio trego aparentemente não viu graça alguma na piada.

           - Eu estive em Wounded Knee, em 1973 - disse ele, como se isso explicasse tudo.

           Na verdade, a explicação dizia muito a respeito daquele homem. Mulder sabia dos detalhes daquela histórica confrontação, e de outra que acontecera muito tempo antes.

           Em 1973, os nativos norte-americanos tinham tomado a aldeia de Wounded Knee e desafiado o governo dos Estados Unidos a repetir o massacre que havia acontecido no mesmo lugar quase duzentos anos antes. Eles foram logo cercados por agentes do governo federal, fortemente armados. Depois de um impasse que durou setenta e dois dias, os índios se entregaram. Mas haviam conseguido despertar as atenções de todo o país e do mundo para suas tragédias do passado... e do presente.

           - E o que eu aprendi, ao enfrentar o FBI - continuou o homem trego -, é que vocês não acreditam em nós. Mas nós tampouco acreditamos em vocês.

           - Eu quero acreditar - disse Mulder, ecoando as palavras de um pôster pendurado em sua sala, na sede do FBI. Para Mulder, aquelas palavras eram verdadeiras. Ele queria acreditar em coisas que eram freqüentemente desmentidas e até ridicularizadas. Coisas que compreendiam a crença das pessoas, como os nativos norte-americanos, que nem sempre estavam de acordo com os pontos de vista do governo.

           Aquele homem idoso estudou Mulder com um olhar cheio de suspeita. E perguntou:

           - Por que vocês vieram aqui? O que estão procurando?

           - Acho que o senhor já sabe o que nós viemos procurar aqui - respondeu Mulder. Embora nunca tivesse visto antes aquele índio trego, ele sentia ter uma ligação com ele, como se os dois se entendessem.

           - Então me diga o que acha que eu sei - desafiou o homem.

           Scully adiantou-se. Mulder e o velho estavam falando de um modo enigmático demais. Ela precisava de respostas diretas. E disse:

           - Estamos procurando por qualquer pessoa que possa nos dar informações sobre o assassinato de Joe Gooden...

           Mulder a interrompeu.

           - Estamos procurando por uma coisa capaz de deixar uma pegada humana em um passo e um rastro de animal no passo seguinte.

           - Parker - disse o homem trego. - Ele encontrou o que vocês estão procurando. Ele matou o que vocês estão procurando, FBI.

           De repente, a jovem que jogava bilhar arremessou o taco com toda a força sobre a mesa. Os dois agentes voltaram-se na direção dela.

           - O que Parker e seu filho mataram foi meu irmão - disse ela, furiosa. - E vocês estão morrendo de medo de uma estúpida lenda indígena para tomar providências. Eu odeio essa atitude!

           - Gwen! - chamou o velho índio.

           A jovem ignorou o chamado dele. Apanhou sua jaqueta e caminhou na direção da porta. Mas parou durante alguns instantes na frente de Mulder e Scully.

           - E odeio estes almofadinhas que estão sempre por aqui quando eles querem alguma coisa de nós. Quando somos nós que precisamos de ajuda, não conseguimos sequer falar com eles por telefone.

           Enquanto observava a jovem afastar-se, Scully notou a presença de um norte-americano nativo com a estrela de xerife na jaqueta. Era um homem alto, de cabelos grisalhos penteados para trás e rosto liso. Ele tinha ficado o tempo todo escondido entre as sombras, observando tudo sem se mover nem dizer nada.

           - Xerife Tskany? - perguntou Scully.

           O homem olhou para ela sem expressão alguma no rosto. Scully adiantou-se na direção dele, aliviada por haver encontrado outro homem da lei. E apresentou-se:

           - Sou a agente Scully. Este é o agente Mulder.

           O xerife balançou a cabeça. Parecia tão pouco hospitaleiro como todas as outras pessoas que estavam no salão.

           - O corpo de Goodensnake está no meu escritório - informou ele, como se não tivesse vontade alguma de falar. Virou-se e saiu do salão, sem ao menos dar aos dois uma oportunidade de responder.

           Scully e Mulder entreolharam-se. Estavam os dois um tanto surpresos diante da frieza do xerife. Mas nada podiam fazer, além de segui-lo até o corpo de Joe Goodensnake.

 

           Scully e Mulder foram andando atrás do xerife Tskany, para um velho prédio de madeira. O letreiro pintado na porta de vidro dizia: Autoridade Policial da Tribo. Havia dois outros índios tregos na escada, do lado da porta. Usavam calças jeans, camisa, jaqueta e botas. Ambos tinham longos cabelos pretos, com tranças dos dois lados da cabeça. Havia uma pena na extremidade de cada trança. Mas foi o olhar dos dois que fez Mulder parar e observá-los bem. De longe, até parecia que eles estavam usando máscaras brancas. De perto, ele viu que tinham o rosto pintado com cinza branca. O efeito era assustador. Fantasmagórico.

           Charlie Tskany deu dois passos na escada, em direção a seu escritório. Mulder e Scully estavam bem atrás dele. Os dois homens de cara branca aproximaram-se um do outro, bloqueando a passagem deles.

           - Bill, Tom... Deixem-nos passar - ordenou o xerife, com bastante calma na voz. - Vamos lá rapazes, deixem-nos passar.

           Os dois esperaram um instante e depois se afastaram para os lados. A delegacia da Reserva não se parecia nem um pouco com as delegacias das grandes cidades que Mulder e Scully estavam acostumados a visitar. Não havia dezenas de policiais correndo de um lado para o outro, cheios de trabalho por fazer. Nem telefones tocando, gente fazendo reclamações, ou suspeitos algemados, esperando para ser trancafiados no xadrez. Não havia caos, nem barulho.

           Era apenas uma sala. Uma cadeira. Um arquivo de aço. Uma simples cela individual num dos cantos da sala. No centro, uma escrivaninha com um computador e um telefone.

           Tskany foi até a mesa e procurou alguma coisa em uma pilha de envelopes.

           Mulder fez um sinal na direção dos dois homens que estavam na porta e perguntou:

           - Quem são eles?

           - São guardiões dos mortos - respondeu Tskany. - A função deles é acompanhar os espíritos dos mortos para o outro mundo. Eu só dou permissão para que cheguem até a porta. Qualquer pessoa que me conhece sabe muito bem que eu gosto de manter as crenças primitivas lá fora e o trabalho policial aqui dentro.

           Uma coisa estava perturbando Mulder. E ele disse:

           - A jovem que estava no salão de bilhar falou alguma coisa sobre o medo das pessoas em relação a uma antiga lenda indígena. O que é que todos estão achando que aconteceu no caso Parker?

           O xerife ficou alguns instantes estudando os dois agentes federais. Depois disse:

           - Olhe, eu não sou guarda do Serviço Nacional de Parques aqui para ficar respondendo a perguntas de turistas sobre os índios. – Mulder tentou explicar que não era isso que ele tinha pretendido dizer. Mas Tskany não lhe permitiu falar: - Toda vez que eu preciso de ajuda das autoridades federais me deixam ficar aqui falando sozinho, e nunca consigo nada. Como este caso está dentro da jurisdição do FBI, vocês podem examinar o cadáver. Então, vamos logo com isso.

           Mulder e Scully voltaram a se entreolhar. O problema de jurisdição era sempre uma questão delicada. A reserva indígena era considerada um território independente, com seu próprio governo tribal, suas leis, suas autoridades policiais e sua Constituição.       Mas quando um crime daquela envergadura era cometido, o governo federal tinha direito de intervir nas investigações.

           Mulder sabia que era verdade o que Tskany estava dizendo. Quase sempre, o governo federal manifestava total desinteresse pelos problemas das reservas indígenas. De fato, naquele momento ele e Scully não estavam ali porque os tregos tivessem pedido ajuda. Estavam ali apenas porque havia sido despertado o interesse de Mulder pelo caso. Para os índios tregos, era como se eles estivessem se intrometendo indevidamente na vida da tribo.

           Tskany abriu uma porta na parte dos fundos da sala. Mulder e Scully o acompanharam através dela.

           Sobre uma mesa havia um corpo humano, coberto por um lençol. Em uma etiqueta pendurada no dedão do pé do cadáver estava escrito à mão o nome de Joe Goodensnake.

           - A jovem que estava no salão de bilhar era irmã dele? – perguntou Mulder.

           - Gwen? - perguntou de volta o xerife. - Sim, ela e Joe eram os principais responsáveis pela disputa de divisas com Parker. Eles achavam que Parker vinha mandando o seu gado pastar cada vez mais para dentro das divisas da reserva. Parker provavelmente disse a vocês que foi idéia dele resolver o problema nos tribunais. Na verdade, foram Joe e Gwen que entraram com a ação na Justiça.

           Mulder puxou o lençol que cobria o cadáver. Viu um jovem indígena de boa aparência, testa alta e longos cabelos negros.

           - Mulder - disse Scully. - Dê uma olhada naquelas cicatrizes. Parece que ele também foi atacado por um animal selvagem. Três longas linhas de tecido cicatrizado davam a volta pelo ombro de Joe Goodensnake e desciam pelo seu peito. Mulder balançou a cabeça, como se aquilo fosse mais uma peça do quebra-cabeça que ele estava conseguindo armar aos poucos.

           Tskany, no entanto, mostrou-se bastante surpreso. E disse:

           - Será que Joe foi atacado também? Talvez os Parker tenham de fato visto algum animal por lá.

           - Não - disse Scully. - Esses ferimentos já estão perfeitamente cicatrizados. Se Goodensnake foi atacado, aconteceu há bastante tempo.

           Scully começou a examinar os ferimentos na parte inferior do peito e em toda a área abdominal do corpo de Joe Goodensnake.

           - As marcas deixadas no corpo indicam que os tiros de espingarda foram dados à queima-roupa - explicou ela. - As bolas de chumbo penetraram o corpo em um grupo compacto. A pessoa que disparou não devia estar a mais de um metro de distância.

           Mulder nem ouvia direito o que ela dizia. Estava ajoelhado ao lado da cabeça de Goodensnake. Curioso, ele ergueu por um instante o lábio superior do jovem índio. Depois disse:

           - Vamos precisar dos registros do histórico dentário de Goodensnake.

           Scully e Tskany voltaram-se para ele.

           - Por quê? - perguntou o xerife.

           Dessa vez Mulder levantou os dois lábios do cadáver. Tskany e Scully olharam bem para o que Mulder tinha acabado de descobrir: dois pares de presas, compridas e amareladas, cada uma com mais de dois centímetros de comprimento.

 

           Algum tempo depois, Mulder estava na sala do xerife Tskany examinando as radiografias tiradas dos dentes de Joe Goodensnake. Estava com as chapas erguidas diante dos olhos, contra o abajur da mesa do xerife.

Mulder apontou para uma das radiografias e disse:

           - Veja, estes são os caninos dele. Parecem perfeitamente normais.

           Scully tentou encontrar sentido naquilo tudo, levando em consideração as duas presas mais parecidas com caninos de tigres que acabara de ver na boca do cadáver de Joe Goodensnake. E perguntou:

           - Por acaso as radiografias não poderiam ter sido trocadas ou estar com rótulos errados?

           Mulder balançou a cabeça e disse:

           - Não. Veja, o segundo incisivo aqui da radiografia está quebrado, do mesmo jeito que o dente da boca do cadáver. Estas radiografias combinam perfeitamente com as arcadas dentárias dele.

           Scully fez uma pausa procurando uma explicação médica.

           - Bem, talvez estejamos diante de um caso de sais de fosfato de cálcio desenvolvendo-se de modo anormal, com a idade...

           Mulder inclinou a cabeça, sem concordar nem discordar da opinião dela.

           Mas Charlie Tskany resolveu falar.

           - Isso poderia explicar o que Jim Parker afirma ter visto. Ele disse que, naquela noite, estava pensando que iria encontrar um leão-da-montanha atacando o seu gado lá fora. Deve ter levado um susto e, quando apontou a lanterna, viu na sua frente o nosso Joe... – O xerife apontou para a boca de Goodensnake.

           - Portanto, Parker viu o que estava querendo ver - disse Scully, procurando seguir a mesma linha de pensamento de Tskany. Ele viu um animal.

           Mulder não parecia aceitar aquela teoria.

           - Lyle Parker foi atacado por alguma coisa - lembrou ele aos outros dois. - Ele tem o mesmo tipo de cicatrizes que Joe tem. Existe aqui algum lugar onde se possa realizar uma autópsia? - perguntou ao xerife.

           - Por quê? - perguntou Tskany de volta.

           - Bem, porque se os dentes de Joe são anormais, talvez uma autópsia revele outras anormalidades no interior de sua anatomia – respondeu Mulder. - Eu bem que gostaria de ver a aparência do coração e de outros órgãos dele.

           - Não posso permitir isso - disse Tskany, voltando para sua mesa.

           Mulder tinha a clara impressão de que, para o xerife, aquela investigação havia terminado.

           Scully foi atrás de Tskany, decidida a não se entregar com tamanha facilidade. E garantiu:

           - Sou plenamente qualificada para fazer a autópsia.

           - Não! - respondeu o xerife, com firmeza. - Não posso permitir a autópsia. O sepultamento vai ser hoje à noite.

           - E o corpo vai ser cremado - disse Mulder. - Depois disso, não vamos ter mais nada para estudar.

           Tskany suspirou fundo, como se estivesse cansado. E explicou:

- Os tregos acreditam que as pessoas que acabaram de morrer ainda estão muito inseguras na sua condição de espíritos. Qualquer tipo de violação do corpo provoca a ira do espírito e o mantém assombrando este mundo para sempre.

           Scully mal podia acreditar que Tskany pudesse deixar que uma crença desse tipo atrapalhasse o andamento de uma investigação criminal. Especialmente a crença em fantasmas!

           - Mas o senhor é um agente da lei - disse ela. - Não pode permitir a destruição de provas.

           - Não venham me dizer o que eu posso ou não posso fazer - respondeu o xerife, irritado. - Os nativos norte-americanos acreditam na existência de leis muito maiores e mais justas do que as leis do governo dos Estados Unidos. - O xerife arregalou os olhos para os dois agentes, dando tempo para que suas palavras fossem bem digeridas, antes de continuar: - Se meu povo deseja que Joe descanse, e que seu corpo não seja retalhado como qualquer outra prova de um crime, então é assim que vai ser. E se vocês dois acham que devem exercer toda a sua “autoridade mais elevada”, então estejam à vontade.

           Scully olhou para Mulder. Ela sabia que, como agente federal encarregado daquela investigação, ele podia exigir que a autópsia fosse feita. Mas também sabia que ele não faria isso. Mulder também acreditava na existência de leis mais importantes do que as do governo dos Estados Unidos. Mulder tinha o seu próprio elenco de leis não escritas, às quais obedecia cegamente. Uma dessas leis era estar sempre aberto para a crença de outras pessoas e dar a elas todo o respeito.

           Com um ar de curiosidade nos olhos, Mulder perguntou:

           - Charlie, você acredita que o espírito de Joe Goodensnake está naquela sala?

           O xerife olhou bem para eles, com ar de cansaço. Scully sabia que ele realmente acreditava naquilo, mas que jamais admitiria uma coisa dessas diante de dois agentes federais.

           Finalmente Tskany respondeu:

           - Tudo o que sei é que amanhã ou depois vocês vão partir daqui. Mas eu terei de ficar. E terei de continuar respondendo a todas essas pessoas. Portanto, se vocês querem continuar com sua investigação, podem ir em frente. Mas vão investigar sem tocar no corpo de Joe Goodensnake.

 

           Scully e Mulder chegaram ao cemitério indígena antes do anoitecer. A cerimônia estava marcada para realizar-se em uma clareira, no alto de uma colina de onde se podia ver toda a aldeia. O lugar era, ao mesmo tempo, lindo e terrivelmente desolado. Não havia coisa alguma à vista, além de uma floresta de pinheiros. E podiam-se ver também as nuvens escuras que se formavam.

           Já haviam começado os preparativos para a cerimônia. O corpo de Joe Goodensnake havia sido posto sobre uma plataforma retangular elevada, construída com galhos e troncos de árvore. O cadáver havia sido envolvido em um lençol branco. Os dois índios de cara branca, que faziam o papel de guardas do morto, estavam em pé diante da pira funerária. Um feiticeiro com o corpo coberto por uma pele de lobo dançava ao redor do corpo, agitando no ar uma pena de águia.

           Mulder tinha tido a sorte de assistir a diversas cerimônias semelhantes de nativos norte-americanos. Ele sabia que as águias eram consideradas aves dotadas de grande poder. Como nenhuma outra criatura era capaz de voar tão alto, muitos indígenas acreditavam que a águia levava as orações e mensagens para os espíritos que viviam do lado de cima das nuvens. Observando o feiticeiro que dançava ao redor da pira funerária com a pena de águia, Mulder sabia que poderosas orações estavam sendo mandadas para cima, para ajudar o espírito de Joe Goodensnake em sua viagem para o além.

           Mulder e Scully estavam sentados no carro que haviam alugado, observando aquela cena. Um a um, começaram a chegar os indígenas que vinham prestar sua última homenagem ao morto. Gwen Goodensnake, vestida com calça e blusa pretas, estava em pé ao lado do corpo do irmão.

           - Mulder - disse Scully, com a voz perturbada. - Desde que chegamos aqui, você vem agindo como se esperasse encontrar tudo o que encontramos até agora. O que é que está escondendo de mim? Por que ainda estamos aqui?

           Mulder pensou na pergunta dela por alguns momentos. Depois estendeu o braço para o banco de trás, onde estava sua maleta de documentos.

Abriu-a e tirou de dentro uma velha pasta de cartolina amarelada, com alguma coisa escrita na capa em uma antiga máquina de escrever.

           - Este documento é um verdadeiro pedaço da história, Scully – disse ele. - Foi o primeiro Arquivo X, aberto pelo próprio J. Edgar Hoover, em 1946. - Ele entregou o documento a Scully e começou a fazer um resumo do caso: - Durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma série de assassinatos inexplicáveis em todo o noroeste dos Estados Unidos. Nada menos do que sete pessoas foram mortas aqui mesmo em Browning.

           Scully examinou atentamente as páginas amassadas do documento. E Mulder continuou:

           - Cada uma das vítimas foi basicamente rasgada em pedaços e sua carne comida, como se tivesse sido atacada por um animal selvagem. No entanto, muitas dessas vítimas foram encontradas dentro de casa, como se tivessem permitido que o assassino entrasse. Em 1946, a polícia conseguiu cercar o que se pensava que fosse o tal animal em uma pequena cabana que havia dentro do Parque Nacional Glacier. E os policiais atiraram na criatura. Mas quando entraram na cabana para examinar a carcaça do tal animal, encontraram apenas o corpo de um homem chamado Richard Watkins.

           - Parece o mesmo que aconteceu na fazenda de Parker – disse Scully.

           - Os assassinatos pararam naquele ano - disse Mulder. Mas como o caso todo ficou sem solução e foi considerado muito estranho, Hoover mandou que os documentos a respeito fossem trancados no arquivo, na esperança de que, com o tempo, as pessoas da região acabassem se esquecendo de tudo.

           Scully folheou os documentos que estavam na pasta amarelada. Depois disse:

           - Mas aqui diz que o mesmo tipo de assassinato voltou a ocorrer em 1954...

           - Sim. E também em 59, 64, 78 e agora de novo, em 1994. Mas... - Mulder estendeu o braço de novo para trás e procurou alguma coisa na sua maleta.

           - E agora! - disse Scully.

           Ela já vinha trabalhando com Mulder tempo suficiente para reconhecer o tom de voz dele. A qualquer momento ele iria começar a defender suas estranhas teorias, falando de alienígenas da reserva indígena, de pumas psíquicos, ou...

           Mulder apresentou a ela uma outra pasta de cartolina, mais recente do que a anterior. E disse:

           - Esses assassínios cometidos por um homem-animal ou coisa parecida começaram a ser registrados cerca de cento e cinqüenta anos antes do mais antigo Arquivo X que nós temos.

           Scully folheou os documentos e fotografias que estavam dentro da pasta que Mulder acabara de lhe entregar. Muitos dos documentos eram cópias fotostáticas de recortes de jornais antigos. O primeiro desses documentos estava datado de 1805 e havia sido escrito à mão.

           - Os membros da expedição de Lewis e Clark escreveram um relato sobre homens indígenas que podiam se transformar em lobos – disse Mulder. E mostrou a Scully outro dos documentos da pasta. Era um desenho que alguém fizera a partir da imagem da criatura descrita no relatório de Lewis e Clark.

           Scully olhou para o desenho: era uma criatura com cabeça de lobo, corpo humano e olhos raivosos. Os dentes caninos da criatura estavam enfiados na garganta de um pobre homem branco. Era um desenho bastante imaginativo. Mas pouco convincente.

           Ela fechou a pasta e olhou para Mulder, com uma expressão de descrença no rosto. Estaria ele de fato esperando que ela levasse tudo aquilo a sério?

           - Mulder - disse ela, impaciente. - O que estes documentos descrevem é chamado de licantropia. É um tipo particular de insanidade em que o indivíduo acredita que pode se transformar em lobo. A maior parte das antigas histórias de lobisomem não passa de descrições de pessoas que sofriam de licantropia. Afinal de contas, ninguém pode se transformar fisicamente em um animal!

           Scully devolveu a pasta e saiu do carro. A mais recente teoria de Mulder era ridícula demais e não merecia sequer ser discutida. Ela abriu o guarda-chuva e caminhou na direção da pira funerária. Um vento gelado soprava da direção das montanhas. Estava chovendo de novo.

           Mulder a alcançou e perguntou:

           - Como é que você pode desconsiderar todas as provas? Nós vimos os rastros na lama. A pele rasgada. Um homem com dentes de animal.

           Scully não tinha mais paciência.

           - Mulder! - gritou ela, contra o vento. - Mesmo que você estivesse certo, mesmo que Joe Goodensnake tivesse de algum modo conseguido se transformar em animal, ele está morto! Jim Parker o matou com um tiro e, em alguns minutos, o cadáver terá sido cremado. Fim do mistério.

           - Vamos esperar que não - disse Mulder.

           Scully afastou-se dele, procurando acalmar-se. Lobisomens! Se as coisas continuassem daquele jeito, Mulder logo estaria investigando vampiros. Ou fogo-fátuo!

           Ela desacelerou o passo quando seus olhos focalizaram o que ocorria à sua frente. O feiticeiro acendia um maço de incenso. E o cadáver de Joe Goodensnake estava à espera de ser cremado. Ela pensou nos grandes caninos que tinha visto na boca de Goodensnake. E nos ferimentos de seu peito. As cicatrizes eram muito semelhantes às que haviam sido recebidas por Lyle Parker. E ela pensou na vaca que havia sido rasgada em pedaços.

           Scully não acreditava, nem por um segundo, que Goodensnake pudesse ter-se transformado em algum tipo de animal sobrenatural. Mas alguma coisa muito estranha estava acontecendo ali. E cabia a ela e a Mulder descobrir o que era.

 

           A noite começava a cair. O crepúsculo tinha dado ao céu uma coloração vermelho-alaranjada que parecia vir do outro mundo. Para Mulder, o céu da cor das labaredas parecia prenunciar o fogo que logo estaria consumindo o cadáver de Joe Goodensnake. Aos pés da pira funerária o feiticeiro ainda continuava suas orações, e o ar tinha um cheiro forte mas agradável de cedro e artemísia. Como muitas outras cerimônias dos nativos norte-americanos, aquela deveria durar várias horas.

           Muitas outras pessoas apareceram para dar adeus a Joe Goodensnake. Mulder reconheceu entre elas o homem alto e grisalho com quem tinha conversado rapidamente no salão de bilhar. Mulder o cumprimentou respeitosamente, com um movimento da cabeça, mas o homem não respondeu ao gesto.

           Scully percebeu que tinha os olhos fixos em Gwen Goodensnake. A jovem indígena estava sozinha, bem distante das outras pessoas. Não havia lágrimas em seus olhos, mas Scully podia notar o pesar que se manifestava na maneira como seu corpo se movia. Gwen parecia estar doente, além de terrivelmente solitária. Com um olhar vidrado, ela olhava para a plataforma fúnebre, como se não conseguisse acreditar no que estava vendo ali.

           Scully aproximou-se lentamente dela.

           Gwen nem se voltou para ver quem era, mas disse:

           - Você não deveria estar aqui.

           - Gwen... - começou Scully a dizer.

           - Você só está aqui entre nós para terminar sua investigação. - Gwen falava com uma voz grave e seca.

           Scully sabia que aquele não era o lugar nem o momento para discussões. Começou a afastar-se, mas parou e disse:

           - Eu só queria transmitir os meus pêsames pela morte de seu irmão. Eu sempre fico triste por alguém que perde uma parte de sua família.

           - Uma “parte”? - perguntou Gwen. Scully limitou-se a ouvir, e a jovem indígena continuou, sussurrando: - Ele era toda a minha família. Agora estou completamente sozinha.

           Scully ficou parada ali, ao lado da pesarosa jovem. Não sabia o que fazer. Desejava poder, de algum modo, confortar Gwen. Mas na sua condição de estranha, de pessoa de fora, não havia muito o que pudesse dizer. Especialmente sabendo que Gwen tinha toda a razão. Se não fosse por causa daquela investigação, ela e Mulder jamais teriam ido àquele lugar.

           Gwen virou-se de frente para ela. Parecia estar juntando coragem para dizer suas palavras seguintes.

           - Como demonstração de pesar, tenho de dar a alguém as coisas que pertenciam a meu irmão - disse ela.

           Ela estendeu a mão com uma pulseira de contas, feita à mão. Era decorada com algumas penas, duas garras de urso e um dente canino de leão-da-montanha. Scully não sabia de muita coisa a respeito das tradições dos nativos norte-americanos, mas havia aprendido que tanto as garras de urso como os dentes de leão-da-montanha eram considerados símbolos de coragem. Joe Goodensnake devia ter sido um rapaz bastante corajoso.

           Scully ficou surpresa com o gesto e se emocionou quando Gwen lhe entregou a pulseira.

           - Gwen... Eu... Eu... confesso que não sei o que dizer.

           - Não é grande coisa - disse Gwen. Sua voz parecia ter-se tornado repentinamente amarga e revoltada. - Meu irmão tinha mais posses do que amigos.

Então, antes que Scully pudesse dizer qualquer coisa, Gwen afastou-se dela, limpando as lágrimas que lhe corriam dos olhos.

           Mulder foi o primeiro a notar o jipe de Charlie Tskany se aproximando. O xerife desceu, dando a impressão de que não estava muito à vontade. Por baixo de sua jaqueta de xerife ele vestia um terno escuro e gravata borboleta. Permaneceu afastado das demais pessoas, observando a pira funerária.

           Mulder aproximou-se dele e disse:

           - Estive lendo o relatório oficial de sua investigação a respeito do homicídio de Goodensnake. Achei que foi muito bem elaborado. Completo. Profissional. Mas o que eu quero saber é particular, extra-oficial... O que acha que realmente aconteceu?

           O xerife deu uma olhada de soslaio para Mulder. E respondeu:

           - A explicação que procura, agente Mulder, está deitada naquela plataforma fúnebre. Por que não decide aceitar isso de uma vez por todas e ir logo embora daqui?

           Mas Mulder não estava disposto a desistir ainda. Sabia que a investigação talvez tivesse terminado. Isso queria dizer que aquela era sua última chance de fazer perguntas. E perguntou:

           - Charlie, você acredita que uma pessoa pode mudar de forma?

           Tskany recusou-se a permitir que Mulder visse os seus olhos. Continuou olhando para a pira funerária e disse:

           - Isto é um funeral.

           Quando os últimos raios do sol desapareceram no horizonte, uma tocha foi acesa. O feiticeiro colocou a tocha em contato com a madeira. Labaredas alaranjadas levantaram-se na direção das cristalinas estrelas que havia no alto. Também se ergueram ondas de fumaça, que ajudaram a criar no céu um brilho irreal, quase fantasmagórico.

           Enquanto o fogo crepitava no alto da plataforma, um grupo de homens reunidos em torno de um tambor produzia um ritmo lento, baixo e muito triste. Algumas pessoas começaram a entoar um cântico fúnebre que tinha sido parte daquela cerimônia durante muitas gerações. Para Mulder, a canção entoada em um tom de voz muito alto fazia lembrar gritos de pesar e de tristeza. Era uma canção assustadora, primitiva, maravilhosa.

           O fogo aumentou depressa por causa do vento. O cheiro forte e penetrante da carne queimando logo tomou conta do ar. Por cima da música. dos tambores e das vozes dos cantores, ouviu-se então o barulho de cascos de cavalo. Mulder virou-se e ficou surpreso ao ver Lyle Parker cavalgando na direção do funeral, vestindo terno e gravata.

           Lyle fez o cavalo parar no limite externo da clareira. Tirou o chapéu e permaneceu ali, observando a cerimônia de cima da sela. Seu cavalo relinchou baixinho. E Gwen ouviu. Ela se voltou na direção daquele barulho e um olhar de ódio atravessou seu rosto. Ela caminhou furiosa na direção de Lyle. Tskany e os dois agentes do FBI a seguiram de perto.

           - Fora daqui! - gritou Gwen.

           - Por favor - implorou Lyle. - Eu só queria manifestar os meus sentimentos.

           - Eu não quero os seus “sentimentos” - disse Gwen, em um tom bastante irritado. - Eu quero que o seu coração fique gelado. Eu quero que você sinta o mesmo que eu estou sentindo. - Com a voz abafada pelo ódio, ela cuspiu na direção dele.

           Lyle não respondeu, limitando-se a baixar o olhar, como se estivesse com vergonha.

           - Acho que é melhor o senhor ir embora, Sr. Parker – sugeriu o xerife. E colocou a mão sobre o ombro de Gwen, mas ela o afastou. Lyle parecia perturbado. Pelo que Scully podia ver, ele estava mesmo profundamente sentido pela morte de Goodensnake. E achava que o rapaz devia ter a melhor das intenções indo aos funerais. Mas só estava piorando as coisas. E ele sabia disso.

           Lyle tornou a colocar o chapéu na cabeça, dizendo a Gwen:

- Eu gostaria que seu irmão estivesse aqui. Esse é o maior de todos os meus desejos.

           Gwen não respondeu. Apenas voltou para o seu lugar ao lado do fogo, não se dando sequer ao trabalho de levantar os olhos quando o cavalo de Lyle se afastou a galope.

           Mulder ficou observando Gwen, cujo rosto era iluminado pelas labaredas. Ela, por sua vez, tinha os olhos fixos na fogueira, dominada pelo pesar, mas estava orgulhosa e balançava lentamente o corpo ao som dos tambores.

           Mulder mal conseguia enxergar o corpo envolvido pelas chamas.   “Seria Joe Goodensnake capaz de mudar de forma? E estaria Jim Parker dizendo a verdade? Teria Goodensnake tomado a forma de algum tipo de animal selvagem na noite em que tinha sido morto? Agora, ninguém mais conseguiria descobrir”. Para Mulder, aquele seria outro Arquivo X que ficaria sem solução.   “Mais um mistério para os gabinetes do FBI “.

           Ele nada mais podia fazer além de ficar olhando para as labaredas que dançavam de um lado para o outro, transportando o espírito de Joe Goodensnake de volta para o seu Criador.

 

Muitos quilômetros de distância da clareira onde estava sendo realizada a cerimônia de cremação do corpo de Joe Goodensnake, Jim Parker estava sentado em uma cadeira de balanço, na varanda da sede de sua fazenda. Era uma noite fria, iluminada pelas estrelas. Ele balançava em silêncio, pensando no que havia acontecido aquele dia. Ele havia consertado a cerca que tinha sido quebrada na noite em que Lyle fora atacado. Havia passado horas domando um novo cavalo quarto-de-milha. Tinha descarregado um caminhão de feno, preparando o celeiro para o inverno. Depois de um longo dia de trabalho na fazenda, aquela era sua maneira preferida de passar algumas horas à noite. Sentado em sua cadeira de balanço, na varanda, com uma caneca de café na mão. Olhando o sol que descia no horizonte, à espera do nascer da lua.

           A noite havia caído mais ou menos uma hora antes. O céu estava negro como veludo, pontilhado de estrelas. Ele deixou que a caneca de café aquecesse suas mãos, enquanto observava o líquido escuro dançar de um lado para o outro, acompanhando o movimento da cadeira de balanço. Não sabia onde estava Lyle. O rapaz tinha saído a cavalo logo após o jantar. E Parker não tinha visto o filho desde então.

           Brevemente, ele permitiu que seu pensamento se concentrasse em Joe Goodensnake. Atirar no jovem indígena tinha sido uma coisa horrível. Não era nada daquilo que ele queria. Ele ainda podia jurar que tinha visto algum tipo de animal atacando Lyle. Mas, pelo menos, agora o gado estava em segurança. Isso já não era mais motivo de preocupação.

           Uma brisa gelada atravessou sua jaqueta leve. Parker levantou o colarinho e ficou ouvindo os sons da noite. Grilos chiando. Vacas pastando. Cavalos bufando no curral. Os móbiles da varanda sacudidos pelo vento. A cadeira de balanço fazendo ranger as tábuas largas do assoalho da varanda.

           Ele tomou um gole de café. Tudo estava em paz naquela noite. Exatamente do jeito que devia estar.

           Foi então que ele ouviu aquilo. Um rosnado baixo, muito fraco. Tão fraco que ele nem mesmo tinha certeza de ter ouvido.

           Ele parou a cadeira de balanço e fez força para ouvir melhor. Mas o único barulho que havia era o dos móbiles ao vento.

           Então a brisa foi diminuindo até parar de soprar. E os móbiles também ficaram em silêncio.

           O mais estranho de tudo é que as vacas e os cavalos também ficaram quietos. Assim como os grilos. Todos os sons da noite desapareceram de repente.

           Parker sentiu um calafrio na espinha. O silêncio era fantasmagórico. Sobrenatural. Não podia haver uma noite tão silenciosa como aquela numa fazenda do interior.

           Ele não tinha intenção alguma de se entregar ao medo. Jamais havia sentido medo antes e se considerava velho demais para começar a ter medo naquele momento. Com todo o cuidado, ele colocou de lado a caneca de café.

           A base arredondada da cadeira de balanço girou quando Parker se levantou. Lentamente, ele desceu da varanda. O couro espesso de suas botas de vaqueiro faziam um rangido leve enquanto caminhava. Aquele era o único som que se podia ouvir.

           Parker caminhou na direção do curral. Parou um pouco para ouvir no meio daquele silêncio. Nada. Talvez tivesse imaginado o rugido. Afinal de contas, as coisas que vinham acontecendo naquele lugar eram suficientes para deixar qualquer pessoa descontrolada. Ele decidiu voltar para casa, achando que talvez fosse hora de apanhar sua arma. E nem ouviu o que vinha atrás.

           Em um momento o silêncio era total.

           No outro, algo apareceu quase em cima dele. Uma coisa tão poderosa que o derrubou com um único golpe, de cara contra a escada da varanda.

           Parker virou a cabeça para ver o que o atacava, apesar da violenta dor que sentia no pescoço. Já havia enfrentado ursos enraivecidos, lobas que davam proteção aos filhotes e até um leão-da-montanha com hidrofobia. Mas jamais vira uma coisa como aquela. Uma criatura animalesca, apoiada em duas patas, com um corpo enorme, peludo e deformado. O focinho parecia ser de couro amassado e brilhava sob as estrelas. Os olhos eram selvagens, de um forte tom avermelhado. As garras eram curvadas e afiadas como navalha. Metade homem, metade animal. Parker sabia que aquela criatura, fosse o que fosse, era responsável pela morte de muitas de suas cabeças de gado. E sabia que, naquela noite, tinha aparecido para matá-lo.

           Pelas veias de Parker o sangue correu misturado a um pavor gelado. O medo era ainda maior do que na noite em que ele atirara contra Joe Goodensnake. Naquela ocasião, ele estava tentando salvar a vida de seu filho. Agora, estava lutando contra a própria morte.

           Parker tentou correr. Se pudesse chegar lá dentro, teria chance de apanhar sua arma. E talvez pudesse chegar até o telefone. Se ao menos conseguisse colocar a pesada porta de madeira maciça entre ele e aquela horrível criatura...

Parker não chegou sequer a ter uma chance.

           Nem tinha chegado a dar o primeiro passo quando foi violentamente derrubado de novo. Bateu com tamanha força contra a cadeira de balanço que ela se arrebentou debaixo dele.

           Durante alguns instantes Parker ficou parado, aturdido. O sangue correu por sua testa. Os rugidos atrás dele transformaram-se em berros enlouquecidos. Parker virou-se para ver o animal saltando sobre ele.

           Desesperado, ele tentou puxar o corpo para cima e lançar-se para o lado. Suas unhas arranharam a madeira da escada. Nesse momento, ele sentiu seu corpo sendo arremessado para cima. Girou o corpo para um lado, em um esforço inútil para libertar-se daquelas garras.

           Mas não conseguiu ser suficientemente rápido. Nem teve força que bastasse. E sua sorte não o favoreceu.

           O grito que deu foi o último som que fez em vida. Sua voz ecoou pela noite de Montana, enquanto seu sangue corria pela caneca de cerâmica e se misturava ao café ainda morno.

           Mais uma vez o silêncio sobrenatural tomou conta da fazenda. Até que a brisa finalmente voltou a soprar e os móbiles voltaram a mandar sua música repetitiva pelo ar da noite.

 

           Na manhã seguinte, Scully e Mulder entraram no carro alugado e partiram a caminho do aeroporto. O caso que investigavam estava agora oficialmente encerrado. Era chegada a hora de voltarem para a sede geral do FBI, em Washington D.C.

           Scully estava dirigindo. Mulder olhava pela janela, sem prestar muita atenção no que via.

           - Você está contente por estarmos voltando para Washington, não? - perguntou ele.

           - Não há nada mais aqui para fazermos - respondeu Scully.

           - E você continua achando que nem precisávamos ter vindo... - insistiu Mulder.

           Scully encolheu os ombros e respondeu:

           - Até agora não vi qualquer prova conclusiva da existência de pessoas que possam mudar de forma. Acho que este Arquivo X entrou em um beco sem saída durante os funerais de Joe Goodensnake. Mas, vejamos uma coisa, Mulder. Vamos dizer que tivéssemos podido provar que Goodensnake fosse algum tipo de aberração genética, uma pessoa capaz de transformar-se em animal. E daí?

           - Daí talvez pudéssemos encontrar um modo de impedir que o fato se repetisse - respondeu Mulder.

           - De que maneira? - perguntou ela. - Seria o mesmo que tentar impedir que uma pessoa nasça com os cabelos loiros. Ou com hemofilia. Os nossos conhecimentos sobre genética ainda não estão tão adiantados a ponto de nos permitirem manipular...

           - Talvez não seja aqui o caso de a pessoa já nascer como aberração genética. Talvez... - Mulder foi interrompido pelo chamado do telefone celular. Ele apanhou o aparelho e respondeu: - Aqui é Mulder... – Scully não conseguia entender o que Mulder estava ouvindo. Quando desligou o telefone, ele disse: - Temos de voltar.

           - Por quê? - perguntou ela.

           - Temos de ir ao Rancho Two Medicine - explicou Mulder. – Jim Parker está morto. Eles acham que foi assassinado ontem à noite. Pelo que a polícia conseguiu investigar até agora, ele foi atacado por um animal selvagem.

           Uma hora depois Scully estava saindo da casa da fazenda de Parker. Ela havia acabado de falar com o legista e com os dois policiais de Browning que estavam no local.

           O corpo de Jim Parker estava na varanda, coberto com uma lona plástica preta. Scully levantou a lona e chegou a fechar os olhos quando viu o corpo. A morte de Parker tinha sido horrível.

            Ali perto piscou o flash da câmera fotográfica de outro policial, que fazia um completo registro da cena. O xerife Tskany estava em pé na base da escada da varanda, lendo o relatório preliminar que um de seus comandados lhe havia entregue.

           Scully foi conversar com ele.

           - Pelo modo como o corpo está mutilado, eu diria que Parker foi atacado por um predador dos maiores - disse ela. Ela parou um momento e pensou em outra possibilidade, dizendo: - Ou talvez alguém tenha feito parecer que foi assim. - Tskany permaneceu em silêncio, e ela perguntou:

- Xerife, o senhor não acha que poderia ter sido um ato de retaliação, pela morte de Joe Goodensnake?

           - Eu não sei - disse Tskany.

           - O senhor já interrogou Gwen Goodensnake? Afinal, ela estava bastante perturbada ontem à noite.

           - Ela desapareceu - respondeu o xerife. - Ninguém a viu desde a cerimônia de cremação.

           Scully fez o possível para disfarçar sua impaciência. No seu modo de ver, Gwen seria a principal suspeita do crime. Como o xerife podia manifestar tanta calma em relação ao desaparecimento da jovem?

           Como se estivesse lendo os seus pensamentos, Tskany disse:

           - Já mandei expedir uma ordem de busca dela.

           Scully balançou a cabeça. Talvez Tskany não gostasse de trabalhar com agentes federais, mas era um bom policial.

           - E o que aconteceu com Lyle Parker? - perguntou Scully.

           - Também desapareceu - admitiu o xerife.

           - O rapaz também poderia estar morto - disse Scully, com uma sombra de preocupação na voz. - Vou dar uma olhada por aí.

           Tskany balançou a cabeça enquanto Scully se afastava. Ele caminhou na direção do cadáver coberto pela lona plástica. Precisava dar uma olhada no corpo.

           Mas parou no primeiro degrau da escada. Sua mão esquerda, aquela em que levava o relatório preliminar da investigação, começou a tremer. Foi então que Tskany percebeu uma coisa que não queria admitir. Ele não queria olhar para o cadáver de Parker. Sabia exatamente o que iria ver, e isso o aterrorizava.

           A mais de um quilômetro de distância da cena do crime, Mulder procurava por provas, onde ninguém perderia tempo de olhar. Ele estava sobre uma colina, do outro lado do curral. Andou pela área e abaixou-se para apanhar um chumaço de pêlo marrom que encontrou no chão. Precisaria de um especialista para examinar aquilo, mas não parecia se tratar de pêlo de urso, nem de vaca, lobo ou leão-da-montanha. Mulder nunca tinha visto nada como aquilo. E estava disposto a apostar que a maior parte dos técnicos de laboratórios policiais tampouco havia visto algo parecido.

           Ele continuou procurando. E finalmente viu o que esperava encontrar. Outro pedaço de pele transparente, desta vez, no formato de um rosto humano. Scully afastou-se dá sede da fazenda, andando em círculos cada vez maiores. Não queria perder nenhuma prova. Encontrava-se em uma área perto do curral onde Parker mantinha os animais presos. Ali havia diversas gaiolas de arame com galinhas, coelhos e algumas cabras.

           Dois olhos de animal seguiam todos os movimentos de Scully. Eram olhos de predador, que não perdiam sequer um passo que ela dava.

           Um rosnado baixo e gutural fez com que ela se voltasse. E viu-se frente a frente com um leão-da-montanha, cuja cauda balançava de um lado para o outro, como se estivesse irritado.

           Antes que ela conseguisse esboçar qualquer reação, o animal saltou para cima dela, arreganhando os caninos amarelados... mas bateu contra as barras da jaula onde estava preso.

           Scully sentiu seus nervos relaxarem, aliviados.   “Por que haveria alguém de prender um leão-da-montanha em uma jaula?”, pensou ela. Lembrou-se dos troféus de caça empalhados na sala de visitas da casa de Parker. Teria ele planejado um destino semelhante para aquele puma? Scully afastou-se do animal, que rosnava, e continuou sua busca pela fazenda.

           A uma boa distância da jaula onde estava o puma, ela viu uma coisa escura amontoada no chão. Ficou com medo do que poderia ser, mas assim mesmo correu na direção do objeto.

           Quando se tornou mais clara a forma daquilo que estava no chão, o temor de Scully transformou-se em tristeza e pena. Era o corpo de Lyle Parker, imóvel, dentro de uma poça de lama.

           O xerife Tskany ajoelhou-se e levantou com todo o cuidado a lona plástica que cobria o cadáver de Jim Parker. Seus olhos percorreram rapidamente o corpo. Ele viu alguma coisa e estendeu a mão para retirar um objeto que estava sobre o corpo de Parker. Estudou aquilo com a maior concentração, de sobrancelhas cerradas.

           Aproximando-se da varanda, Mulder viu que Tskany estava segurando uma garra de animal. Uma garra curvada, quebrada, afiada como uma navalha.

           - Isso não parece pertencer a nenhum animal que conheço disse Mulder. Tskany não deu resposta alguma. E Mulder continuou: - Xerife, acho que já está na hora de termos uma conversa séria. Como sempre, o xerife respondeu com o silêncio. - Que tal uma troca de idéias? - sugeriu Mulder. Ele tentava manter sua voz livre de sarcasmo, mas já estava cansado de ver Tskany mantendo segredo, enquanto as pessoas eram assassinadas a torto e a direito ao seu redor.

           Tskany finalmente pigarreou, como se estivesse preparando-se para dizer alguma coisa. Mas, naquele momento, apareceu Scully, vinda do outro lado da casa. Com ela vinha Lyle Parker, enrolado em um grosso cobertor de cavalos. O jovem caminhava com bastante dificuldade. Estava pálido como um fantasma e tinha círculos escuros debaixo dos olhos febris. E transpirava muito, embora a temperatura ambiente não passasse dos cinco graus.

           Scully levou o rapaz até o carro que haviam alugado e o ajudou a sentar-se no banco de trás.

           - Vou levá-lo ao hospital - disse ela a Mulder e Tskany. Ele foi exposto à umidade e ao frio muito intenso. Depois que for medicado e sair do estado de choque, eu vou interrogá-lo.

           Com um movimento de cabeça Mulder quis dizer que concordava, enquanto Scully entrava no carro e partia com o rapaz. Mulder voltou-se de novo para Tskany. Já era hora de parar com aquela brincadeira. Dessa vez, ele estava disposto a obter respostas. E perguntou:

           - O que é que você está escondendo?

           O xerife ficou olhando para o chão. E, quando respondeu, parecia estar falando mais consigo mesmo do que com Mulder:

           - Pensei que tudo tinha acabado.

           - Acabado? - ecoou Mulder. - Foi por isso que não permitiu que realizássemos uma autópsia no corpo de Joe Goodensnake? Você pensou que tudo acabaria depois que o corpo dele fosse cremado, não é mesmo? O que você teme que possamos descobrir aqui?

           Tskany olhou bem para o corpo de Parker e finalmente encarou Mulder, respondendo:

           - Não posso lhe dizer. Mas vou levá-lo a alguém que tem a resposta.

 

A Clínica Médica Grove, em Browning, ficava em um prédio pequeno, construído de madeira. Scully ficou esperando em um quarto que ficava no segundo andar, enquanto uma enfermeira colhia sangue das veias do braço de Lyle Parker.

           Scully olhou pelo quarto. A decoração daquele modesto hospital rural parecia ser do tempo da Grande Depressão, na década de 30. Ela esperava apenas que a tecnologia da clínica fosse mais moderna do que a decoração do ambiente.

           Quando a enfermeira saiu do quarto, Scully aproximou-se do lado da cama. Lyle estava recostado nos travesseiros. Ele ainda estava pálido e parecia completamente esgotado.

           Scully tentou imaginar o que teria acontecido com ele, depois que deixara o local onde havia sido cremado o corpo de Joe Goodensnake, na noite anterior. Por acaso ele estaria sabendo da morte do pai? E teria ele sido atacado pela mesma pessoa, ou a mesma coisa que assassinara seu pai? Caso contrário, o que teria acontecido a ele?

           Lyle parecia ter sentido o que ela queria saber. Hesitante, evitando o olhar de Scully, então, ele falou com fraqueza na voz:

           - Não sei o que aconteceu depois da cerimônia de cremação. Eu estava muito perturbado. Só sei que fui de volta para a fazenda... Não me lembro de nada depois disso.

           Ele fechou os olhos com força, e Scully não sabia se era por causa da dor física ou do sofrimento causado pelas lembranças. E Lyle continuou:

           - Algumas vezes, quando estou me sentindo triste, eu tenho o costume de ir para onde meu pai e eu deixamos os animais que aparecem perdidos por aí. Muitos animais selvagens aparecem aqui na fazenda, feridos ou procurando comida. Eu vou até lá e fico olhando para eles, sabe? Isso ajuda a me acalmar.

           Scully ficou ouvindo, interessada em saber onde Lyle queria chegar, e o que estaria para confessar.

           O rapaz fez uma pausa, como se estivesse procurando o que dizer. Depois, continuou:

           - Aquele puma que está preso na jaula eu costumava ficar olhando durante horas, enquanto ele caminhava de um lado para o outro, sem parar. Ficava observando os seus músculos tensos, os seus olhos dourados, de brilho intenso. Aqueles olhos nunca precisam se preocupar com advogados, tribunais e disputas de terras... - Ele parou, como se estivesse envergonhado. Mas continuou: - Seja como for... minha mãe, quando estava viva, foi ela quem começou a cuidar desses animais. Acho que eu gosto de ir até lá para ficar pensando nela também. - Lyle forçou um sorriso e balançou a cabeça, dizendo: - Acho que eu estava mesmo perdido ontem à noite, andando por aí daquele jeito. Talvez eu tenha até pensado que era um daqueles animais...

           - Quando você voltou da cerimônia de cremação de Joe Goodensnake - perguntou Scully -, foi conversar com seu pai?

           Lyle pensou durante alguns instantes antes de responder, como se estivesse fazendo força para se lembrar.

           - Não. Ele teria ficado louco de ódio por eu ter ido aos funerais. Eu... Eu tenho na mente a imagem dele sentado na sua cadeira de balanço, na varanda... Mas não me lembro de ter falado com ele. Por quê?

           De repente Scully percebeu que Lyle não sabia o que havia acontecido a seu pai. E isso queria dizer que cabia a ela lhe contar tudo.

           Ela não hesitou e falou da maneira mais gentil que pôde.

           - Seu pai está morto. Os olhos de Lyle se arregalaram para ela, como se estivesse pedindo que dissesse que aquilo era uma brincadeira. E Scully acrescentou:

           - Sinto muito...

           Lyle fechou os olhos, e Scully viu que ele estava tentando não chorar.

           Depois de alguns momentos, ela achou melhor dar a Lyle todas as informações de que dispunha a respeito da morte de Jim Parker. E disse:

           - Parece que ele foi atacado por um animal selvagem. Ainda não temos informações suficientes, mas eu tenho a impressão de que foi assassinato.

           Lyle recebeu as notícias em silêncio. Ficou deitado ali, com os punhos fortemente cerrados, lutando contra a própria tristeza. Scully tinha uma política profissional bastante rígida: jamais se envolvia pessoalmente nos problemas das pessoas que encontrava durante suas investigações. Mas não podia deixar de sentir uma profunda pena de Lyle Parker. E disse:

           - Lyle, também perdi meu pai recentemente e sei como é dolorosa uma perda dessas...

           - Foi por minha culpa? - interrompeu Lyle, com os olhos ainda fechados. - A pergunta pegou Scully de surpresa. Como ela nada respondesse, Lyle acrescentou: - Pelo fato de eu ter ido ao funeral, teria eu provocado a ira dos indígenas a ponto de matarem meu pai?

           - Não sei - respondeu Scully, com toda a sinceridade.

           Lyle estava como se alguma coisa dentro de seu peito houvesse quebrado. E disse:

           - Eu posso perfeitamente lidar com a morte, sabe? A vida na fazenda, tão perto da natureza, nos ensina muito. As coisas nascem e morrem. Tudo o mais fica entre esses dois extremos. Eu posso aceitar isso sem problema algum. - Scully balançou a cabeça. E Lyle continuou: - Só é difícil de aceitar a idéia de que fui eu o responsável... Isto é, eu... - O rapaz estava lutando contra as lágrimas. - Eu não poderia entender... Eu...

           Ele não conseguiu mais resistir e começou a soluçar sem controle. Scully colocou a mão sobre os ombros dele. Havia muita coisa que ela poderia dizer, mas nada que pudesse fazer para confortar Lyle Parker. Exceto permitir que ele chorasse.

 

           Mulder achava que ele e Charlie Tskany já estavam na estrada fazia quase uma hora depois de terem partido do Rancho Two Medicine. Tskany não dissera uma única palavra durante toda a viagem. Nada sobre a morte de Jim Parker. Nem a respeito do lugar para onde estavam indo, muito menos sobre a pessoa que estavam indo encontrar.

           Cerca de dez minutos antes, Tskany havia saído com o carro da estrada principal e entrado por um caminho de terra, que passava pelo meio da floresta. Finalmente saiu da estrada de terra e parou diante de uma pequena cabana de madeira.

           Uma caveira de vaca, embranquecida pelo tempo, pendia de uma das vigas de madeira que sustentavam o teto da cabana. Debaixo da caveira estavam penduradas várias faixas de pano coloridas, chamadas laços de oração, que o vento balançava no ar. Mulder reconheceu as cores das sagradas seis direções: amarelo para o leste, branco para o sul, negro para o oeste, vermelho para o norte, azul para o céu acima e verde para a terra abaixo. Mulder já havia visto um feiticeiro da nação lakota amarrando laços de oração na parte interior de uma cabana de oração como aquela. Toda vez que amarrava um desses laços dizia uma oração para os espíritos da direção correspondente.

           Havia uma pilha de troncos amontoada ao lado da casa, com certeza para alimentar a lareira e o fogão. Viam-se restos de automóveis e motocicletas jogados por toda a propriedade. O único veículo que parecia funcionar era uma velha picape.

           Tskany parou o carro ao lado da picape e desceu em companhia de Mulder, dizendo:

           - É aqui a casa de Ish.

           Antes que Mulder pudesse perguntar quem era Ish, abriu-se a porta da cabana.

           De dentro surgiu o índio alto, de cabelos prateados, com quem Mulder havia conversado no salão de bilhar. O homem olhou para os dois com uma expressão calma, e os olhos brilhando intensamente.

           Ish não parecia surpreso de ver os dois ali. Na verdade, Mulder seria capaz de apostar que ele estava esperando pela visita.

           Ish fez um sinal para que Tskany e Mulder entrassem. Do outro lado havia uma grande sala, com uma área funcionando como cozinha e outra como quarto de dormir. A cabana estava iluminada por algumas velas e pequenas lamparinas. Mulder sentiu o cheiro forte e agradável de incenso de cedro.

           Mulder observou que aquela era a casa de um homem que dava valor à sua intelectualidade. Havia livros por toda parte. Sobre a cama de casal estava estendido um cobertor de lã, tecido no padrão geométrico característico da nação navajo. Um escudo cerimonial dos feiticeiros indígenas, do mesmo tipo que era usado antigamente como proteção durante as batalhas, estava pendurado no teto.

           Em uma das paredes havia um quadro de Touro Sentado. O grande chefe Touro Sentado foi o líder sioux que assinou um tratado com o governo dos Estados Unidos em 1868. Quando o governo violou o tratado, algum tempo depois, Touro Sentado liderou os seus guerreiros no famoso ataque que derrotou e massacrou todo o exército do general Custer, na Batalha de Little Bighorn.

           Para Mulder aquele quadro representava outro lembrete da longa e amarga história do relacionamento entre os nativos norte-americanos e o governo dos Estados Unidos. Ele sabia que o governo havia traído os índios inúmeras vezes. Não podia culpar Ish por desconfiar dos agentes do governo. Só esperava que Ish o pudesse ajudar mesmo assim, considerando que o assassino que estava à solta vinha atacando tanto os homens brancos quanto os tregos. Ish ofereceu uma caneca de chá de ervas quente a Mulder e outra a Tskany. Depois sentou-se sobre o tapete desbotado que estava estendido sobre o piso de tábuas. Fez um sinal aos dois agentes da lei para que fizessem o mesmo.

           Não se preocupou em perguntar por que os dois haviam ido falar com ele. O velho já sabia a resposta.

           - Eu vi o bicho uma vez - começou ele. - Com meus olhos. Foi há muito tempo. Tanto tempo que até parece um sonho. Eu ainda era menino.

           Mulder começou a examinar o Arquivo X que trazia guardado na memória. E perguntou: - Foi em 1946? O caso Watkins?

           Ish fez que sim com um movimento da cabeça, mostrando-se bem impressionado. E disse:

           - Vejo em você uma pessoa diferente, FBI. Parece estar mais aberto às crenças dos nativos norte-americanos do que muitos nativos. Tskany virou o rosto para o outro lado. Aquela era claramente uma indireta para ele.

           O velho voltou-se de novo para Mulder:

           - Você tem até um nome indígena... Fox, a Raposa. Mas devia completar o nome: Raposa que Corre, ou Raposa Furtiva.

           Uma sombra de sorriso apareceu no rosto de Mulder. E ele disse:

           - Qualquer coisa. Desde que não seja Raposa Assombrada...

           - Você já ouviu falar sobre as seis direções? - perguntou Ish.

           Mulder fez um movimento com a cabeça, tentando adivinhar por que Ish mudara de assunto. Mas respondeu, identificando as direções na mesma ordem em que eram apresentadas numa cabana de oração:

           - Leste, sul, oeste, norte, o céu acima e a terra abaixo.

           - Isso mesmo - disse Ish. - Mas há uma sétima direção. É essa que você deve seguir, FBI. - Mulder olhou para ele com expressão de curiosidade. - A sétima direção é aquela que é mais difícil de encontrar. - Ish colocou a mão sobre o peito. - É o interior. O coração. É essa direção que você deve seguir.

           Mulder ficou em silêncio durante alguns instantes. Ele havia passado a vida inteira tentando seguir a sétima direção. Confiava nos próprios instintos, mesmo quando os outros diziam que ele estava louco. E a sétima direção o fizera ser ridicularizado. Mas também o havia levado até o Arquivo X. E até aquele lugar.

           - Diga-me, Ish - falou Mulder. - O que foi que você viu?

           Ish suspirou fundo, fechando os olhos para trazer à tona suas velhas lembranças. E explicou:

           - Watkins havia sido atacado antes por um animal, quando estava sozinho, na floresta. Suas cicatrizes sararam. E tudo foi esquecido. Até que começaram os assassinatos.

           - Nós, os tregos, percebemos que Watkins tinha sido atacado por uma entidade que os índios algonquinos chamam manitu. Manitu é uma palavra que identifica a grande e misteriosa força que está em toda parte na natureza. Mas também pode ser o nome de um espírito do mal, capaz de transformar um homem em animal. Aquele que é atacado por um manitu acaba se tornando ele mesmo um manitu.

           - As cicatrizes que havia no corpo de Joe Goodensnake – disse Mulder.

           Ish fez sim com um movimento da cabeça. E continuou:

           - Eram como as cicatrizes que havia no corpo de Watkins. Ambos foram atacados por um manitu e ambos se tornaram manitus. O manitu toma conta do homem durante a noite. Não em noite de lua cheia, mas quando a ira que há no sangue dessa pessoa atinge um nível incontrolável. Nesse momento, o homem muda, transformando-se em uma criatura doentia. E essa criatura mata, liberando toda a sua energia selvagem. O homem volta mais tarde ao seu verdadeiro ego, sem ter consciência a respeito do que aconteceu. O ciclo recomeça no dia seguinte. E esse processo continua, até a morte da pessoa.

           Mulder olhou para Tskany, tentando imaginar se o xerife acreditava no que o velho estava dizendo.

           Ish olhava para a frente enquanto falava, como se estivesse de olhos fixos no passado. E continuou sua narrativa:

           - Uma noite, quando eu tinha 16 anos, estava voltando de uma pescaria no riacho Cut Bank. Eu conhecia um atalho que passava por trás da casa de Watkins. Quando passei por lá ouvi um rugido... Não era um barulho humano, tampouco era um rugido de animal. Eu me aproximei da casa dele e olhei pela janela. Watkins estava coberto de suor e de sangue. Parecia estar sofrendo uma dor horrível. No seu braço... a pele estava arrancada. Um pedaço se desprendeu e caiu no chão... – Mulder lembrou-se dos pedaços de pele transparente que havia encontrado na fazenda. E Ish continuou: - Suas unhas haviam-se transformado em garras afiadas. De repente, ele virou para o meu lado, gritando. E me viu! Os olhos dele eram...

           O velho índio fechou os olhos, como se não suportasse a lembrança do que havia visto naquele dia. Ficou em silêncio durante bastante tempo, e Mulder temia que ele não quisesse terminar de contar a história.

           Finalmente, Ish abriu os olhos de novo. Quando falou, sua voz era calma, como se houvesse travado uma violenta batalha interior e conseguido vencer.

           - Watkins... Os olhos dele ainda eram humanos. Pareciam estar implorando para que eu o matasse. E eu confesso que, se estivesse caçando e tivesse minha arma comigo, eu teria disparado contra ele sem pensar duas vezes. Mas como ainda era um menino e tinha medo da morte... saí correndo daquele lugar.

           - E logo depois disso a polícia o matou - disse Mulder.

Ish balançou a cabeça e acrescentou:

           - Mas o manitu levantou-se de novo.

           - Oito anos mais tarde - disse Mulder. - Mas, com Watkins morto, como poderia ter-se registrado outro ataque de um manitu?

           - Watkins tinha um filho - explicou Ish. - A força maldita também pode ser transmitida pelo sangue.

           Mulder olhou para Tskany, que, pela primeira vez desde que entrara na casa de Ish, falou:

           - Gwen - disse ele, apreensivo.

           Era uma possibilidade em que Mulder não havia pensado ainda.

           - Se Joe Goodensnake era essa criatura - conjecturou Tskany -, então é provável que não tenha nascido nele, por ter sido atacado, mas transmitida pelo próprio sangue. Isso significa que Gwen também poderia ter essa força maldita. Gwen poderia ter assassinado Jim Parker.

 

           O barulho interrompido e intermitente de um motor de carro cortou como uma navalha o silêncio da cabana de Ish. Tskany foi o primeiro a puxar a arma. Mulder levantou-se de um salto, já com sua própria arma na mão. Ish estendeu o braço e, de baixo da cama de casal, tirou uma espingarda que parecia ter mais de 100 anos.

           Silenciosamente, os três homens saíram pé ante pé, pela porta de trás. Tskany dirigiu-se à área onde ficava o pequeno celeiro, enquanto Mulder fazia um sinal para que Ish ficasse para trás e caminhou ao redor da cabana, para sondar o que havia lá na frente.

           Mulder sentiu o coração acelerar. Talvez fosse por causa das histórias que Ish havia contado a respeito de espíritos que podem transformar um homem em animal. Ou talvez fosse pela visão que havia tido, pouco antes, do corpo mutilado de Jim Parker. O fato era que ele não conseguia se livrar da sensação de que estavam enfrentando um espírito que não poderia ser destruído. E esse espírito estava por perto.

           Seu olhar percorreu a confusão de velhos e apodrecidos carros e partes de automóveis que havia no quintal de Ish. Na verdade, naquele ferro-velho havia dezenas de lugares onde uma pessoa poderia se esconder.

           Todos os seus nervos ficaram tensos quando ele ouviu um barulho metálico e o inconfundível som de um motor de carro. Mulder virou-se de uma vez. Havia alguém agachado atrás do volante da picape de Ish. E essa pessoa estava tentando fazer uma ligação direta para dar partida no veículo.

           Mulder caminhou na direção da picape, com a arma levantada à sua frente. Uma nuvem branca de fumaça levantou-se do cano de descarga quando finalmente o motor da picape deu partida. A pessoa que estava ao volante se sentou.

           - Gwen! - gritou Tskany, correndo na direção do veículo em companhia de Mulder.

           Os olhos escuros de Gwen arregalaram-se de medo quando ela viu os dois oficiais da lei. Havia veículos demais naquele ferro-velho, o que tornaria sua fuga muito difícil. Em pânico, ela engatou a marcha à ré. As rodas traseiras da picape giraram em falso e o veículo se afastou um pouco, com a direção virada para um dos lados.

           Tskany chegou primeiro ao lado do carro. Ele saltou sobre o estribo e enfiou o corpo pela janela aberta, estendendo a mão para o câmbio e colocando a alavanca em ponto morto.

           - Não! - gritou Gwen, com voz de terror.

           Mulder observou que ela estava histérica, gritando, debatendo-se com os braços e as pernas, enquanto Tskany abria a porta e a puxava para fora, derrubando-a sobre o chão coberto de lama.

           Mulder apontou a arma para ela, certo de que a jovem índia iria tentar fugir.

           - Gwen, você está presa por tentar roubar a picape de Ish disse Tskany, segurando-a pelos braços.

           Gwen parecia uma mulher selvagem. Ainda estava usando as mesmas roupas com que fora vista na noite anterior durante os funerais do irmão. Sua calça jeans estava suja de barro. Os longos cabelos negros estavam desalinhados e sujos de pequenos galhos e folhas secas. Sua pele estava manchada de lágrimas e de suor.

           Ish aproximou-se da jovem, que tremia sem controle, e perguntou:

           - O que aconteceu, Gwen? Do que é que você está tentando fugir?

           Gwen estava de joelhos e soluçava convulsivamente.

           - Eu vi aquilo! Eu vi aquela coisa matar Parker.

           Tskany olhou para Mulder, com a arma apontada para a jovem índia.

           Lentamente, Mulder abaixou o revólver e disse:

           - Deixe que ela se levante.

           Tskany ergueu Gwen. Ela se levantou devagar, agarrando-se ao xerife, visivelmente aterrorizada. Durante algum tempo ela ficou apenas soluçando, com o rosto virado para a jaqueta do xerife, sem poder dizer coisa alguma.

           Finalmente, ela conseguiu controlar o choro e disse:

           - Eu fui até a fazenda. Depois dos funerais. Eu ia brigar com aquele rapaz. Então, fiquei esperando lá. O Sr. Parker estava sentado na varanda. Aí eu vi aquela coisa, aquele... aquele animal... - Ela cobriu o rosto com as mãos, enquanto soluçava. - Nunca tive tanto medo na vida.

Então eu saí correndo e me escondi na floresta. Fiquei lá o dia inteiro. Eu só queria cair fora. Eu quero cair fora daqui... - voltou a soluçar de modo convulsivo, sem poder dizer mais nada.

           Tskany olhou para Mulder, mas foi Ish quem assumiu o controle da situação.

           - Tragam-na para dentro - pediu o velho.

           Mulder seguiu os outros, confuso diante daquela situação toda.   “Estaria Gwen dizendo a verdade?” Ish havia afirmado que, depois que o manitu mata alguém, a pessoa dominada por essa força selvagem não se lembra de ter-se tornado um monstro nem de ter assassinado alguém. Mas Gwen estava dizendo que havia visto o monstro matar. E estava visivelmente aterrorizada, quase à beira da loucura.

           Tudo isso levava Mulder a acreditar que Gwen estava dizendo a verdade. E, se ela dizia a verdade, uma dúvida aterrorizante permanecia no ar: se Gwen não era o manitu, então quem seria?

 

           Ish levou Gwen para dentro da cabana. Ele colocou gentilmente um cobertor sobre os ombros da jovem assustada e lhe disse:

           - Sente-se aqui. Vou preparar uma xícara de chá.

           Charlie Tskany ajoelhou-se ao lado dela e disse:

           - Tenho de lhe fazer algumas perguntas. Sobre seu irmão Joe e sobre aquelas cicatrizes que ele tinha no peito.

           Gwen balançou a cabeça. Parecia estar um pouco mais calma. E respondeu:

           - Aconteceu algum tempo atrás. Joe subiu ao cume da Montanha Negra para uma hanbleceya.

           Mulder reconheceu a palavra indígena, da nação lakota, que significava “busca da visão”. Essa era uma das mais primitivas tradições daqueles nativos. Lançando-se a essa busca, Joe Goodensnake teria de passar quatro dias e quatro noites nas montanhas, sem se deitar, sem comer coisa alguma e tomando pouca água. Ele teria de tentar permanecer acordado o tempo todo, orando por uma visão espiritual.

           - Quando ele desceu das montanhas - continuou Gwen -, estava com três profundas cicatrizes no peito e o sangue ainda corria de seu ombro. Eu perguntei o que tinha acontecido e Joe deu uma gargalhada, dizendo apenas que havia lutado com um espírito.

           - E estava falando a verdade - disse Ish.

Mulder não perdeu mais tempo. Correu para o telefone e ligou para o hospital para onde Scully havia levado Lyle Parker. Queria que sua parceira ficasse sabendo o que Gwen tinha visto na fazenda na noite anterior. Queria lhe contar tudo o que Ish havia dito a respeito do caso Watkins. E também, é claro, o que tinha acontecido com Joe Goodensnake.

           - Estou tentando falar com a agente federal Dana Scully disse ele à telefonista do hospital. - Esta manhã ela levou ao hospital um rapaz chamado Lyle Parker.

Depois de ter ficado esperando na linha durante algum tempo, o que lhe pareceu uma verdadeira eternidade, Mulder finalmente ouviu o som de um telefone chamando e alguém atendeu.

           - Scully? - perguntou Mulder.

           - Aqui é o Dr. Josephs - disse uma voz de homem do outro lado da linha.

           - Ah, sim. Aqui é o agente Mulder, do FBI - explicou Mulder às pressas. - Eu fui informado de que poderia falar com a agente Scully nesse número.

           - Oh, claro - disse o médico. - Nós demos alta a Lyle Parker e ele já saiu do hospital. Ela o levou de volta para a fazenda.

           - Então acha que eu poderia ligar para a fazenda e falar com ela? - perguntou Mulder.

           - Acabaram de sair daqui - informou o Dr. Josephs.

           - Agente Mulder, há uma coisa que eu acho que o senhor precisa saber. Acabei de receber o resultado do exame de sangue que mandei fazer em Lyle Parker e descobri uma coisa bastante inquietante.

           - E o que foi? - perguntou Mulder.

           Ele tinha a horrível sensação de que já conhecia a resposta.

           - Encontramos partículas do sangue do pai dele - respondeu o médico. - Só poderia tê-las adquirido por meio de ingestão.

           Mulder ficou parado como uma estátua ao dar-se conta do significado das palavras do médico.   “Por meio de ingestão... Comendo...” Gwen estava dizendo a verdade. Não era ela quem mudava de forma. Era Lyle Parker.

           Ele havia sido atacado por um manitu e agora ele próprio era um manitu.

           Tinha sido Lyle Parker quem havia assassinado o próprio pai. Mulder percebeu que ainda estava com o telefone encostado à orelha.

           Muito obrigado por sua ajuda - disse ele ao médico. E desligou. Mulder olhou pela janela. No céu ocidental, a bola vermelha do sol começava a mergulhar no horizonte. E colocava dentro da cabana um brilho fantasmagórico.

           Mulder sabia que estaria escuro dentro de mais ou menos uma hora. Em sua mente, ele ouviu as palavras de Ish: “O Manitu toma conta do homem à noite... O homem transforma-se em uma criatura doentia... O monstro mata... O homem volta então à sua condição natural, inconsciente de tudo o que aconteceu. O ciclo todo recomeça no dia seguinte”.

           Lyle Parker havia assassinado na noite anterior. Na manhã daquele dia, não tinha a menor idéia do que havia acontecido. E naquela noite mataria de novo. E estava sozinho com Scully.

           Scully dirigia o carro por uma longa reta na estrada, indo na direção oeste. No banco do passageiro estava Lyle Parker, encostado à porta, dormindo. Scully sabia que todo o corpo dele ainda sentia muitas dores, resultado do ataque que havia sido praticado contra ele por alguma coisa ainda não explicada. E o coração do rapaz ainda havia sido machucado pela morte do pai. Olhando para a estrada, ela tentava imaginar o que iria acontecer com Lyle agora. Teria ele vontade de continuar com a fazenda? Tentaria administrá-la sozinho? Ou seria doloroso demais para ele continuar lá, em meio às lembranças do pai?

           Ao seu lado Lyle virou o corpo. Lentamente, seus olhos foram se abrindo. Ele olhou pela janela. Se ele estivesse olhando para Scully, ela perceberia a diferença. Os olhos de Lyle Parker estavam mudando. Alguma coisa nova estava tomando conta deles. Algo terrivelmente inumano.

           Mas Scully não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Continuava dirigindo o carro para a fazenda, de olhos fixos na estrada. Ao longe, o clarão vermelho do sol ainda iluminava o horizonte.

 

           O sol estava mergulhando atrás das montanhas. Os últimos raios alaranjados haviam acabado de desaparecer do céu quando Scully e Lyle Parker chegaram ao Rancho Two Medicine. Scully estava cansada, depois da longa viagem do hospital até a fazenda. Ainda assim, queria ter certeza de que Lyle ficaria em segurança em sua casa, antes de partir de lá para falar com Mulder. Ao seu lado, Lyle estava em silêncio. Scully esperava que ele ainda estivesse dormindo. Afinal, precisava descansar bastante depois de tudo o que havia enfrentado naquele dia.

           Ela, então, parou o carro diante da porteira da fazenda, desceu, abriu e passou com o carro. Desceu de novo e fechou a porteira com todo o cuidado.   “A luz azulada do crepúsculo faz a fazenda parecer muito assombrada”, pensou ela, enquanto dirigia o carro pelo caminho poeirento que levava até a casa. A lua estava nascendo no céu, na direção leste.

           Scully estacionou diante da casa. E sacudiu o ombro de Lyle, dizendo:

           - Acorde, Lyle. Você está em casa agora.

           - Uh-huhn - disse Lyle, com uma voz mole. Saiu do carro muito devagar e olhou ao redor, balançando a cabeça, como se ainda não acreditasse em tudo o que havia acontecido ali. Movendo-se lentamente como um velho, ele abriu a porta. Lá dentro, os últimos raios azulados da luz do crepúsculo enchiam os espaçosos aposentos. A casa parecia fria e vazia.

           Um raio de lua atravessou pela porta e iluminou a cabeça empalhada de um urso, pendurada no alto de uma das paredes. Sua boca aberta lançou uma sombra fantasmagórica no chão. Scully não via problema algum quando as pessoas caçavam para comer. Mas ficava muito perturbada quando via todos aqueles animais empalhados, que haviam sido caçados apenas para se transformar em troféus de caça. Ela sentiu um tremor no corpo. Não era por medo. E não a fazia “arrepiar-se”. Mas ela não estava se sentindo inteiramente à vontade. Bastava olhar para qualquer das paredes da grande sala de visita da casa da fazenda para encontrar provas de que, ali, as pessoas matavam por mero prazer.

           Lyle fechou a porta depois que os dois entraram. E ligou o interruptor das luzes. Nada aconteceu. A sala permaneceu escura e sombria.

           - Não temos eletricidade - disse Scully.

           - Isso mesmo - respondeu Lyle. Ele parecia estar muito cansado. - Acontece o tempo todo, quando a gente vive num lugar solitário como este. - Ele procurou por uma caixa de fósforos e acrescentou: - Vou pôr o gerador para funcionar.

           Mas Lyle nem dera três passos quando seus joelhos cederam. Seu corpo dobrou-se ao lado das escadas e ele gemeu de dor.

           Scully correu para o seu lado, perguntando:

           - O que foi? Você está bem?

           A testa do rapaz estava ensopada de suor. Ele tinha dificuldade para respirar, como se acabasse de participar de uma longa corrida. Scully ficou olhando, preocupada, enquanto ele se esforçava para se levantar.

           - Eu estou sentindo náuseas - disse Lyle. - Por favor, ajude-me a chegar ao banheiro...

 

Um jipe solitário atravessava a noite, com brilhantes luzes vermelhas e azuis piscando no seu teto. Ao volante ia Charlie Tskany, enquanto Mulder digitava um número em seu telefone celular.

           Mulder ficou ouvindo pacientemente, esperando tocar o telefone do Rancho Two Medicine. Ele ouviu um toque, seguido de uma forte estática.

Mulder fez uma careta e apertou o botão End. Depois tentou discar o mesmo número de novo. E só recebeu mais estática.

           Frustrado, Mulder desligou o telefone, dizendo ao xerife:

           - Não adianta. O telefone chama uma vez e desliga. Acho que as montanhas estão bloqueando o sinal. Quanto ainda falta para chegarmos?

           - Uns onze quilômetros - respondeu Tskany.

           E apertou mais o acelerador, fazendo o jipe correr bem mais do que o limite de velocidade permitido.

          

A única luz que havia na casa da fazenda era produzida pela lanterna de Scully. Ela estava em pé no corredor, do lado de fora da porta do banheiro. Lá de dentro vinha o barulho de Lyle, com ânsia de vômito.

           - Lyle - chamou ela -, deixe-me entrar.

           Não houve resposta, além da respiração ofegante do rapaz. Scully sabia que Lyle não estava se sentindo mal daquele jeito quando deixaram o hospital. O que teria acontecido pelo caminho? Teria ele entrado em estado de choque ao voltar para casa pela primeira vez, depois da trágica morte de seu pai? Ou haveria alguma coisa de errado com ele que o médico não havia descoberto?

           Ela ouviu Lyle vomitando de novo.

           Tornou a chamar, pedindo que ele a deixasse entrar. E uma vez mais não obteve resposta.

           Scully tentou abrir a porta. Estava trancada.

          

Lyle estava em pé, dentro do pequeno banheiro. Tinha o corpo curvado sobre o lavatório, apoiando-se em ambos os braços para poder manter-se em pé. Embora a casa estivesse bastante fria, todo o seu corpo estava molhado de suor. Ele ardia em febre. A cada segundo que passava, ficava mais difícil para ele respirar.

           Ele arrancou a jaqueta. Mas isso não adiantou. O suor corria de seu peito e das costas. Sentia a garganta tão seca que mal conseguia engolir. E agora começava a sentir dores violentas. As dores mais fortes que ele já tivera na vida. Tinha a impressão de que alguma coisa estava rasgando dentro do seu corpo.

           Ele ouviu a agente Scully batendo outra vez na porta do banheiro.

           - Lyle? - chamou ela.

           Ele levantou a cabeça. Arriscando-se a dar uma olhada no espelho, Lyle abriu os olhos. O brilho forte do luar entrava pela janela. A luz era suficiente para que ele visse que seus olhos estavam vermelhos como sangue, tanto as íris como as pupilas.

          

Scully permanecia na porta, esperando que Lyle respondesse. Agora ela estava muito preocupada com ele.

           Tentou chamar uma vez mais:

           - Lyle, responda, por favor!

           Ela decidiu que havia esperado demais.

           Ajoelhou-se e olhou bem para a fechadura da porta. Havia apenas dois parafusos de fixação. Scully enfiou a mão no bolso e tirou o pequeno canivete de utilidades que sempre levava consigo. Rapidamente começou a desparafusar a chapa de metal que havia ao redor da fechadura.

 

           Dentro do banheiro, Lyle tinha o corpo dobrado para a frente e gemia de dor. Seu estado parecia estar piorando mais a cada segundo que passava. Sentia pontadas de uma dor profunda e todo o seu corpo ardendo. Alguma coisa estava arrebentando suas entranhas.

           Ele levantou os olhos e viu que a chapa de metal da fechadura estava se movendo.

           Então ouviu a voz da agente Scully, do outro lado da porta.

           - Lyle, escute - disse ela -, eu vou abrir a porta e levá-lo de volta para o hospital, está bem?

           - Não, eu vou ficar bem - respondeu ele. E limpou o canto da boca com a manga da camisa. E abriu a torneira, deixando cair a água gelada. Voltaria a ficar bom em alguns instantes. Tinha de melhorar. Não podia ficar ainda pior do que já estava.

           Formando uma concha com as mãos debaixo da torneira, ele colocou água na boca seca.

           Bastante água.

           E fez uma pausa, com a mão sobre a boca. Estava se sentindo muito mal, e não compreendia por quê. Curvou o corpo sobre o vaso sanitário e tentou vomitar uma vez mais. Sentiu a pressão sobre o estômago, mas não saiu nada.

           Seu corpo estava tão quente que parecia estar diante de uma fogueira. Ele rasgou a camisa. As cicatrizes do seu ombro estavam cobertas por esparadrapo, mas ele sentia cada uma delas como se fossem fios de arame incandescente sobre sua pele.   “O que está acontecendo comigo?”.

           Fosse o que fosse, ele não tinha controle algum sobre a dor. Dobrou o corpo para a frente, e então se levantou, endireitando-se de repente.

Durante um par de segundos a dor diminuiu, e Lyle se levantou. Ou pelo menos tentou levantar-se. O que de fato ocorreu foi que sua cabeça tombou para trás e a boca abriu em uma terrível agonia.

           Mas não foi um grito que saiu dela. Foi um rugido baixo e gutural.

           - Lyle! - gritou de novo a voz da mulher que estava lá fora. – O que está acontecendo aí? Você está bem? Por favor, abra a porta!

           Pela última vez, Lyle pensou no que deveria dizer a ela. Em como explicar o que estava acontecendo dentro dele. Mas todos os seus pensamentos desapareceram nesse instante e uma força estranha tomou conta dele.

           O rapaz fez um esforço no sentido de olhar de novo no espelho. Um ronco nasceu em sua garganta e ele viu, em seu reflexo no espelho, os quatro longos e afiados caninos que havia em sua boca aberta.

           Lyle ouviu o barulho que vinha do outro lado da porta.

           E farejou outra criatura. Estendeu a mão na direção da janela e esfregou as unhas na cortina. As garras afiadas como navalha rasgaram o tecido de algodão.

           Lyle ouviu o seu rugido. Era como um leão-da-montanha ferido. Como um animal selvagem, enlouquecido pela dor.

Ele fechou os punhos e olhou para as mãos, horrorizado. A pele das costas das mãos havia se rasgado em duas metades.

E um pedaço de pele transparente caiu no chão.

 

O jipe de Charlie Tskany ia saltando pela estrada da fazenda. Eles estavam quase chegando. No entanto, Mulder sentia como se ainda estivessem muito longe. A noite já havia caído e uma nuvem escura cobriu a lua cheia. O panorama montanhoso de Montana ficou escondido na escuridão.

            “Isso significa que o espírito do manitu está tomando conta de mais uma vítima”, deduziu Mulder. Àquela altura, Lyle Parker não seria mais Lyle Parker. Talvez já houvesse se transformado em uma besta mortal, cujo único impulso era destruir a vida.

           Tskany parou diante da porteira que levava à casa da fazenda. Mulder saiu do jipe de um salto, abriu a porteira e tornou a entrar no veículo. Tskany passou pela porteira e parou.

           - Por que diabo tinha de parar? - perguntou Mulder.

           - Tenho de fechar a porteira - respondeu Tskany.

           - Esqueça a porteira! - gritou Mulder. - Scully está lá sozinha com Lyle!

Tskany olhou para ele com uma expressão de desgosto. Desceu do jipe, fechou rapidamente a porteira atrás do veículo e tornou a entrar.

           - Poderia me explicar por que era tão importante fazer isso? - perguntou Mulder, irritado.

           - Se a porteira ficar aberta, o gado vai sair e andar sem rumo pela estrada - explicou Tskany. - Não demora mais do que alguns segundos fechar a porteira. E isso acaba salvando o gado. Quem nasce e cresce nesta parte do país sabe que deve fechar as porteiras.

           Mulder sentiu vontade de dizer ao xerife que a salvação de algumas cabeças de gado poderia estar custando a vida de Scully. Mas Tskany estava pisando fundo no acelerador e trocando marchas como um piloto de corridas. O jipe disparou como uma bala pela estrada de terra e parou com as quatro rodas arrastando diante da casa da fazenda.

           Mulder sentiu o coração gelado quando olhou para o casarão. O carro que haviam alugado estava parado bem perto da escada. Scully e Lyle estavam mesmo lá dentro.

           E havia alguma coisa muito errada.

           A casa estava completamente às escuras.

          

No corredor, Scully trabalhava freneticamente para tirar o último dos parafusos que seguravam a maçaneta da porta do banheiro. O barulho que vinha lá de dentro era horrível. O que estaria acontecendo com Lyle? Parecia que o leão-da-montanha havia conseguido escapar de sua jaula e estava lá dentro do banheiro com o rapaz.

           O parafuso soltou e caiu no chão. Ela puxou a fechadura para fora e estava a ponto de abrir a porta.

           Mas não teve chance de fazer isso. Um rugido ensurdecedor encheu toda a casa, e a porta do banheiro arrebentou em mil pedaços. Scully percebeu que seu corpo estava voando para trás. Nem conseguiu ver a criatura enraivecida que saiu correndo pelo corredor. Sua cabeça bateu contra a parede. E tudo ficou escuro em seguida.

 

Não demorou mais do que alguns segundos para Mulder e Tskany saírem do jipe. O xerife desceu com a espingarda na mão e Mulder segurava sua automática já engatilhada.

           A casa estava em silêncio. Mulder não viu qualquer sinal de violência. Mas ele e Tskany trocaram olhares preocupados. Tudo estava silencioso demais. Eles deviam ser capazes de ouvir o barulho dos animais da fazenda. Coiotes. Corujas. Insetos. A impressão que tinham era de que todos os seres vivos da terra estivessem se escondendo. Ou mortos.

           Mulder fez um sinal para Tskany dar a volta por trás da casa. E foi rapidamente na direção da porta da frente.

           A porta abriu com facilidade. Estava destrancada. Com todo o cuidado e silenciosamente, Mulder entrou na casa da fazenda. Lá dentro a escuridão era total.

           Mulder ligou o interruptor da luz. Nada. Não havia eletricidade. Ele esperou alguns instantes até que seus olhos se acostumassem à escuridão. Não queria usar sua lanterna, a menos que não houvesse outro jeito. Se a criatura estivesse por perto, o facho da lanterna serviria para localizar Mulder e transformá-lo em comida fácil.

           Um fino raio de lua foi filtrado pelas persianas de uma das janelas. Não havia sinal algum de Scully ou de Lyle. E nada parecia ter sido derrubado. Tudo parecia estar nos seus devidos lugares. A sala estava na mais completa paz. No entanto, do mesmo modo que o silêncio lá de fora, aquela paz era perfeita demais.

           Mulder sentiu-se ao mesmo tempo perturbado e alerta. Ele tratou de lembrar-se de que o carro estava lá fora. Isso queria dizer que Scully e Lyle deviam estar em algum lugar.

           Ele passou direto pela escada, decidido a examinar primeiro o piso térreo da casa. Passou pelo corredor, tateando a parede com uma das mãos e segurando a arma com firmeza na outra.

           Mulder sentiu todo o corpo congelar quando seus dedos sentiram alguma coisa na textura do painel que dava acabamento à parede. Durante um segundo apenas ele acendeu a lanterna para ver o que seus dedos haviam tocado. Foi o bastante para que ele visse que a madeira havia sido cortada por três riscos fundos e paralelos.

           Mulder olhou em volta, de arma em punho, e caminhou pela sala. De repente, bateu contra alguma coisa, que o atingiu forte na canela. Ele acendeu de novo a lanterna para ver onde havia batido.

           Era um banquinho... com um pedaço de pele transparente pendurado em um dos seus cantos.

           O coração de Mulder estava a mil por hora. Ele foi na direção do banheiro. E o que viu então o fez levar um susto ainda maior do que aquele que havia levado ao ver o pedaço de pele: era um raio de luz. A lanterna de Scully estava caída no chão, iluminando a outra ponta do corredor.

           Mas ele não viu sinal de Scully.

           Uma visão do cadáver dilacerado de Jim Parker apareceu na mente de Mulder. Ele foi até onde estava a lanterna e a apanhou do chão. Quando chamou, sua voz saiu como um sussurro, baixo e rouco.

           - Scully...

 

           Mulder procurou por todo o corredor escuro, em busca de algo que indicasse o paradeiro de sua parceira. Queria encontrar alguma peça de roupa de Scully. ou alguns fios dos cabelos dela. Qualquer coisa que servisse para lhe dizer onde ela estava. Ou o que lhe havia acontecido. Um rosnado muito baixo e gutural fez com que Mulder parasse como uma estátua. Ele se virou para o lado de onde vinha o barulho. Ele era suficientemente informado para saber que, quanto mais baixo o tom do rugido, maior é o animal. O som que ele acabara de ouvir era bem mais grave do que o rugido de um leão-da-montanha. O animal que fizera aquele barulho devia ser muito maior e mais perigoso.

           Mulder caminhou lenta e cuidadosamente de volta pelo corredor. Sua lanterna iluminou a porta que dava passagem para a cozinha. Nada.

           Ele ouviu outra vez o mesmo rosnado. Mais alto dessa vez. Como se estivesse nascendo da própria terra. Mulder podia sentir o som vibrando ao longo de sua coluna vertebral.

           O manitu estava próximo. Muito próximo.

           Mulder não tinha alternativa. Ele precisava encontrar Scully o mais rápido possível.

           E continuou sua busca.

 

           Lá fora, Charlie Tskany andava de lanterna em punho, pela parte de trás da casa. Não via nada fora do comum. Exceto o silêncio exagerado.

           Tskany havia sido criado naquela parte do país, tinha vivido ali a vida inteira. Havia trabalhado em uma fazenda e como guarda florestal em um parque nacional antes de tornar-se oficial da lei. Havia passado mais noites ao relento do que seria capaz de contar. Mas nunca, em toda a sua vida, vira uma noite tão silenciosa como aquela. Aquilo não era natural.

           E ele estava aterrorizado.

           Ele se lembrou da história que Ish havia contado sobre o manitu. Era o tipo de história em que Tskany acreditava nos seus tempos de criança, mas que o fazia rir depois que se tornara adulto. Mas Ish nunca dissera uma única mentira na vida. E Tskany já havia visto a prova disso. Fosse o que fosse que ele estivesse caçando, não era homem nem animal, mas alguma coisa impregnada de maldade e extremamente perigosa.

           Tskany caminhou na ponta dos pés em direção ao curral. Seu corpo todo congelou quando ouviu um barulho. Fez força para ouvir de novo, e o que se espalhou pelo ar era algo que poderia ser um animal... ou talvez não.

           Era um rugido baixo, penetrante e assustador.

           No mesmo instante ele apontou a lanterna na direção do som. No centro do forte facho branco da lanterna apareceu a imagem de um leão-da-montanha dentro de uma jaula, com os dentes arreganhados e uma postura ameaçadora.

           Tskany sentiu-se quase aliviado; não seria dessa vez.

           O manitu estava bem perto. Ele podia sentir sua presença maligna. Em algum lugar, no meio da escuridão, o monstro esperava por ele.

 

           Mulder passou para a cozinha. Ouviu outro rugido misterioso, mas era impossível saber de onde vinha. Tampouco se podia saber quem estava caçando quem.

Ele deixou que o facho da lanterna passeasse pela cozinha: armários, gabinetes, pia, refrigerador, mesa de madeira e cadeiras. Nada fora do comum.

           Foi então que ouviu aquele barulho de novo. Era como um rugido baixo. Ele apontou o facho da lanterna na direção do som. E voltou-se justamente a tempo de ver a imagem indistinta de alguma coisa que atravessava rapidamente a sala de visita e desaparecia pela escuridão da porta. Era uma criatura de duas pernas. Enorme. Coberta com uma pele espessa.

           Mulder disparou imediatamente atrás da criatura, com a arma à sua frente.   “O que teria acontecido com Scully? “, pensou ele, enquanto seguia a criatura a caminho das escadas.

           Subiu as escadas, com pressa, mas de modo bastante cuidadoso. As tábuas da escada rangiam a cada passo que ele dava. Quando chegou aos últimos degraus, sentiu que havia alguma coisa atrás dele.

           O controle de seus movimentos passou a ser exercido pela experiência de muitos anos que tinha como agente do FBI. Em um movimento rápido e uniforme Mulder abaixou-se, virou o corpo para trás e atirou.

           Não ouviu barulho algum como reação. Nenhum grito de dor. Nem o som de um corpo caindo no chão.

           Mulder acendeu de novo a lanterna e viu exatamente contra o que havia disparado: caninos. Longos, amarelados, prontos para matar. Era a cabeça empalhada de um enorme urso cinzento, congelada na posição de ataque. E Mulder acabara de arrebentar com um tiro uma parte do queixo do urso.

            “Excelente!”, pensou Mulder. O FBI consegue uma estonteante vitória contra um animal empalhado...

           Recuperando a normalidade da respiração, ele ouviu de novo aquele rugido baixo. Era como o trovão antes da tempestade. E estava lá em cima. Não havia mais dúvida de que estava lá em cima.

           Mulder continuou a subir as escadas, chegando ao andar de cima da casa. Estava chegando mais perto daquela coisa. Podia sentir isso. E de repente viu-se tentando imaginar onde estaria Tskany. E onde diabos estaria Scully? Ainda estaria viva?

           O corredor do andar de cima ia para um lado e para o outro. E estava escuro como breu em ambas as direções. Mulder fez uma pausa e sentiu que seu coração batia muito depressa. Para que lado deveria ir? Onde estaria o manitu?

           Mulder decidiu ir para a direita. Deu apenas um par de passos quando alguma coisa saída da escuridão agarrou-se ao seu braço. Mulder percebeu instantaneamente que era uma mão humana que agarrava seu braço com uma força incrível. Surpreendido daquele jeito, ele perdeu o equilíbrio e foi puxado para dentro de um quarto escuro.

           Tentou livrar-se daquelas mãos e procurou apontar a arma na escuridão.

           - Mulder, sou eu! - sussurrou Scully. - Sou eu! Não atire!

Mulder sentiu raiva de si mesmo por um instante, por ter-se deixado assustar daquela maneira. Mas o sentimento que predominou foi a alegria por haver encontrado a parceira, sã e salva. Mas ele continuava preocupado com ela.

           - Você está bem? - perguntou ele.

           - Não sei o que aconteceu - respondeu Scully. - Fui atacada por alguma coisa lá embaixo. Acho que fiquei desmaiada durante alguns instantes. E não sei onde foi parar minha arma.

           - Eu ouvi a criatura subindo para cá - disse ele.

           Mulder caminhou para fora do quarto. Scully o acompanhou. Eles começaram a procurar pelo andar de cima da casa. Metodicamente os dois agentes foram de um quarto para o outro, na mais completa escuridão. Entraram em um quarto que parecia ser o de Lyle. E em outro que devia ter sido de Jim Parker. Examinaram os armários. Um guarda-roupa. O banheiro do andar superior.

           De repente, o barulho de alguém respirando com dificuldade atraiu a atenção de Mulder para uma porta no final do corredor.

           Ele e Scully aproximaram-se dessa porta. Estava entreaberta. Eles pararam, ouvindo alguém respirar de modo ritmado, com bastante dificuldade.

           Lentamente Mulder empurrou a porta. As dobradiças rangeram. Do mesmo modo que todo o resto da casa, aquele quarto estava muito escuro. Mulder fez um sinal para Scully, para que ela o seguisse enquanto entrava no quarto. Ele acendeu a lanterna e viu que estavam em um pequeno escritório. O facho da lanterna revelou uma escrivaninha e uma cadeira, perto da parede onde estava a porta. Do outro lado havia uma janela e outra porta, ambas cobertas por persianas. Mulder imaginou que aquela segunda porta deveria levar para uma varanda externa. Nas outras paredes havia uma estante de livros e mais cabeças de animais empalhados por toda parte.

           Os dois agentes separaram-se, tentando enxergar na escuridão. Os dois procuravam pela criatura que certamente havia matado Jim Parker.

           Mas nenhum deles conseguia enxergar a forma monstruosa que se escondia agachada na escuridão.

Nem os seus brilhantes olhos vermelhos.

 

           A criatura movia-se como um relâmpago. Em um instante o ambiente estava silencioso como a morte. No próximo, um furioso rugido irrompia atrás dos dois agentes. Mulder e Scully voltaram-se para enfrentar o animal. Mulder sentiu uma onda de descrença tomar conta de sua cabeça quando viu uma enorme criatura peluda, com dois olhos vermelhos e muito brilhantes, e as garras afiadas erguidas no ar, lançando-se na direção os dois.

           Mulder ergueu o revólver com as duas mãos e fez pontaria. Um clarão de luz rompeu a escuridão.

           E o barulho de um tiro ecoou pela casa vazia.

           O grito angustiado de um homem cortou o ar quando a força do tiro derrubou a criatura, lançando-a contra a parede. Ouviu-se o barulho surdo do corpo caindo no chão. E a criatura ficou amontoada no canto, já sem vida.

           Mulder voltou-se na direção da porta, surpreso. Ele não havia disparado o tiro que matara o manitu. Tinha sido outra pessoa. Charlie Tskany estava parado na porta, tirando os cartuchos vazios de sua espingarda de dois canos. Ele olhou para Scully e Mulder e entrou no quarto, perguntando:

           - Está tudo bem com vocês dois?

           Mulder fez que sim com a cabeça e disse:

           - Obrigado.

           Ele e Tskany apontaram suas lanternas para a coisa escura amontoada no canto, que havia sido o manitu.

           Mas não havia mais sinal da feroz criatura que havia atacado Mulder. O que eles viram no chão foi o corpo de Lyle Parker.

           O rapaz estava morto, com um ferimento de bala bem no peito. Era exatamente aquilo que Mulder e Tskany estavam esperando. Mas não Scully.

           - Oh, meu Deus! - gritou ela. E aproximou-se do corpo do rapaz. - Ele estava no banheiro, e parecia estar piorando... Aí, de repente, fomos atacados pelo leão-da-montanha... lá fora... Acho que o animal fugiu da jaula...

           Mulder e Tskany entreolharam-se, como se estivessem perguntando um ao outro: “como nós poderemos explicar a ela?”.

           Mulder aproximou-se de sua parceira e disse, com uma voz suave:

           - Scully, não foi o leão-da-montanha...

           A princípio ela não entendeu.

           - O puma ainda está preso na jaula, lá atrás da casa – disse Tskany.

           Scully balançou a cabeça, mas parecia aturdida. Ela não conseguia ou não queria acreditar na horrível realidade que se descortinava diante dos seus olhos.

 

           Na manhã seguinte, bem cedo, Mulder e Scully partiram da delegacia de polícia da tribo trego. Tinham acabado de preparar seu relatório escrito sobre as investigações daquele caso. Mulder olhou para cima ao descer pelas escadas. O céu estava cinzento. Parecia que ia chover de novo. Mas as coisas agora eram bem diferentes do que tinham sido da primeira vez que eles haviam visitado o escritório do xerife. Naquela ocasião, eles não sabiam se Charlie Tskany iria trabalhar com eles ou contra eles. Na noite anterior, Tskany salvara a vida de ambos.

           Agora o xerife os acompanhava até o carro que haviam alugado. E Mulder deu uma olhada em volta.

           - Onde está Gwen? - perguntou ele. - Ela disse que viria para se despedir de nós.

           - Ela foi embora ontem à noite - respondeu Tskany. - Deu tudo que tinha para os amigos e partiu.

           - Simplesmente pegou o que podia carregar e foi embora? Perguntou Mulder. - Por que teria feito uma coisa dessas?

           Tskany encolheu os ombros e respondeu:

           - Com a morte do irmão, ela ficou sozinha no mundo. Não tem mais família. E os problemas da tribo com Parker não existem mais... – Os olhos escuros do xerife voltaram-se para Scully. - Talvez ela tenha visto alguma coisa que não foi capaz de compreender.

           - É, talvez - disse Scully.

           Mulder estudou curiosamente a parceira. Scully tinha visto, com os próprios olhos, provas incontestáveis de pessoas que mudam de forma. E ficou imaginando se ela estaria disposta a admitir isso.

           Os dois agentes apertaram a mão de Tskany e caminharam para o carro.

           Quando Mulder abriu a porta para entrar, ouviu uma voz conhecida chamando:

           - Ei, FBI. - Vestindo uma pesada jaqueta de couro, Ish estava em pé junto à porta do escritório do xerife. E disse: - Vejo vocês de novo em uns oito anos...

           - Espero que não - respondeu Mulder.

           Sorrindo, Ish ficou observando o embarque dos dois.

           Mulder entrou no carro e deu a partida no motor. Então ele e Scully começaram a longa viagem de carro para fora da reserva, deixando para trás as montanhas, a neblina e o mistério daquela região.

 

                                                                              

 

                      

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