Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ARSENE LUPIN CONTRA HERLOCK SHOLMES
A 8 de dezembro do ano passado, o sr. Gerbois, professor de matemática no liceu de Versalhes, descobriu, na confusão de um antiquário, uma pequena escrivaninha de acaju que lhe agradou pela multiplicidade das gavetas.
— Era o que eu precisava para o aniversário de Suzanne — pensou.
E como se esforçava, na medida de seus modestos recursos, em dar prazer à filha, discutiu o preço e desembolsou sessenta e cinco francos.
No momento em que dizia seu endereço, um jovem de aspecto elegante, e que já estava a remexer há tempo de um lado e outro, notou o móvel e inquiriu:
— Quanto?
— Está vendido — replicou o comerciante.
— Ah!... ao senhor, talvez?
O sr. Gerbois o cumprimentou e, muito feliz por ter adquirido o móvel que outro comprador cobiçava, retirou-se.
Não deu, porém, dez passos na rua e o jovem veio a ele, de chapéu na mão e lhe dizendo num tom de perfeita cortesia:
— Peço-lhe perdão, senhor... Quero lhe fazer uma pergunta indiscreta... Procurava essa escrivaninha mais especialmente que outra coisa qualquer?
— Não. Procurava uma balança barata para algumas experiências de física.
— De modo que não faz muita questão dela?
— Faço, claro.
— Por ser antiga, talvez?
— Por ser cômoda.
— Nesse caso consentiria em trocá-la por uma escrivaninha igualmente cômoda, mas em melhor estado?
— Está em bom estado e a troca me parece inútil.
— No entanto...
O sr. Gerbois é homem facilmente irritável e de caráter sombrio. Respondeu secamente:
— Peço que não insista.
O desconhecido se colocou diante dele.
— Ignoro o preço que pagou, senhor... lhe ofereço o dobro.
— Não.
— O triplo?
— Oh! fiquemos por aqui — exclamou o professor, impaciente —, o que me pertence não está à venda.
O jovem o olhou fixamente, de um modo que o sr. Gerbois não deveria esquecer; depois, sem dizer nada, deu meia-volta e se afastou.
Uma hora após, levaram o móvel à casinha que o professor ocupava na estrada de Viroflay. Ele chamou a filha.
— É para ti, Suzanne, se gostares.
Suzanne era uma bonita criatura, expansiva e feliz. Lançou-se ao pescoço do pai e o beijou com tanta alegria como se ele lhe tivesse dado um presente régio.
Na mesma noite, tendo-a colocado em seu quarto com a ajuda de Hortense, a empregada, limpou as gavetas e arrumou com cuidado seus papéis, caixas de cartas, correspondência, coleções de cartões postais e algumas furtivas lembranças que conservava em homenagem a seu primo Philippe.
No dia seguinte, às sete e meia, o sr. Gerbois foi para o liceu. Às dez, Suzanne, segundo costumava, esperava-o na saída, e era um grande prazer para ele notar, na calçada oposta ao portão, seu vulto gracioso e seu sorriso de criança.
Voltaram juntos.
— E tua escrivaninha?
— Pura maravilha! Hortense e eu lustramos os cobres. Parecem ouro.
— Então estás contente?
— Se estou! Nem sei como pude passar sem ela até aqui. Atravessaram a praça antes da casa e o sr. Gerbois propôs:
— Podíamos dar uma olhada nela antes do almoço?
— Oh! sim, é uma boa idéia.
Ela subiu primeiro, mas, chegando ao umbral da porta, deu um grito de susto.
— Que houve? — balbuciou o sr. Gerbois.
E entrou por sua vez no quarto. A escrivaninha não estava mais ali.
O que impressionou o juiz de instrução foi a admirável simplicidade dos meios empregados. Na ausência de Suzanne, e enquanto a empregada fazia as compras, um transportador com a sua licença em ordem — os vizinhos a notaram — tinha parado seu carro diante do jardim e tocado a campainha duas vezes. Os vizinhos, ignorando que a empregada estivesse fora, não suspeitaram de nada, de modo que o indivíduo desincumbiu-se de sua tarefa na mais perfeita quietude.
É de observar que nenhum armário foi forçado, nenhum objeto mexido. Mais que isso: o porta-moedas de Suzanne, que ela tinha deixado sobre o mármore da secretária, achava-se em cima da mesa próxima com as peças de ouro que continha. A razão do roubo estava, pois, claramente determinada, o que o tornava ainda mais inexplicável, já que, enfim, por que correr tantos riscos por tão pouco?
O único indício que o professor pôde fornecer foi o incidente da véspera.
— Diante da minha recusa, o rapaz demonstrou imediatamente uma viva contrariedade, e tive a impressão nítida de que me deixava sob uma ameaça.
Era bem vago. Interrogaram o comerciante. Não conhecia nem um nem outro dos dois senhores. Quanto ao objeto, comprara-o por quarenta francos em Chevreuse, numa venda depois de um falecimento, e julgava que o revendera por seu justo valor. O inquérito prosseguiu, mas sem avançar mais nada.
O sr. Gerbois, porém, persuadiu-se de ter sofrido um prejuízo enorme. Uma fortuna devia estar escondida no fundo duplo de uma gaveta, e esse era o motivo por que o jovem, conhecendo o esconderijo, tinha agido com tanta decisão.
— Pobre pai, o que teríamos feito dessa fortuna? — repetia Suzanne.
— Como! Com um dote semelhante, poderias te candidatar aos melhores partidos.
Suzanne, que limitava suas pretensões ao primo Philippe, um partido miserável, suspirava amargamente. E na casinha de Versalhes, a vida continuou menos alegre, menos despreocupada, ensombrecida por lástimas e decepções.
Passaram-se dois meses. De repente, um depois do outro, os acontecimentos mais graves, uma série imprevista de felizes oportunidades e catástrofes!...
A lo de fevereiro, às cinco e meia, o sr. Gerbois, que voltara para casa com um jornal da tarde na mão, pôs os óculos e começou a ler. A política não o interessava, virou a página. Em seguida uma matéria lhe atraiu a atenção.
Intitulava-se: "Terceira extração da loteria das Associações da Imprensa.
O número 514 — série 23 ganha um milhão..."
O jornal lhe escorregou dos dedos. As paredes vacilaram diante de seus olhos, seu coração parou de bater. O 514 — série 23 era o seu número! Tinha-o comprado por acaso, para ser gentil com um de seus amigos, pois não acreditava nos favores do destino, e eis que ganhava!
Rápido, pegou sua caderneta de apontamentos. O número 514 — série 23 estava ali, como lembrete, na página de fora. Mas e o bilhete?
Correu ao gabinete de trabalho para procurar a caixa de envelopes entre os quais tinha metido o precioso bilhete, e já na entrada se deteve, titubeando de novo com o coração apertado: a caixa dos envelopes não estava ali e, fato aterrador,' subitamente se dava conta de que havia semanas que não estava ali! Há semanas não a divisava diante de si nas horas em que corrigia os deveres de seus alunos!
Um ruído de passos no cascalho do jardim... Chamou:
— Suzanne! Suzanne!
Ela veio correndo, subiu precipitadamente. Ele gaguejou com uma voz sufocada:
— Suzanne... a caixa... a caixa dos envelopes?...
— Qual?
— A do Louvre... que eu trouxe uma quinta-feira... e que estava na beira desta mesa.
— Mas recorda, pai... nós a arrumamos juntos...
— Quando?
— De noite... sabe... na véspera do dia...
— Onde?...
— Na secretária.
— Na secretária que foi roubada?
— Sim.
— Na secretária que foi roubada!
Repetiu essas palavras baixinho com uma espécie de espanto. Depois, pegou-lhe a mão e, num tom ainda mais baixo:
— Ela continha um milhão, minha filha...
— Ah! pai, por que não me disseste? — murmurou ela ingenuamente.
— Um milhão! — Ele continuou. — Tinha o número premiado dos bilhetes da Imprensa.
A enormidade do desastre os esmagava, e por muito tempo mantiveram um silêncio que não tinham a coragem de quebrar. Por fim Suzanne pronunciou:
— Mas pai, te pagarão assim mesmo.
— Por quê? Baseados em que provas?
— É preciso então provar?
— Deus nos salve!
— E não tens provas?
— Sim, uma.
— Então?
— Estava na caixa.
— Na caixa que desapareceu?
— Sim. E há de ser o outro que receberá.
— Seria uma ignomínia! Vejamos, pai, não poderás te opor?
— Vou eu saber! Vou saber! Esse homem deve ser tão forte! Dispõe de tais recursos!... Lembra... o caso desse móvel...
Ergueu-se num ímpeto de energia e, batendo com o pé:
— Pois bem, não, não! Não há de pegar este milhão, não há! Por que o faria? Enfim, por hábil que seja, nem ele pode fazer nada. Se se apresentar para receber, o prendem! Ah! vamos ver isso, meu rapaz!
— Tens então uma idéia, pai?
— A de defender nossos direitos, até o fim, aconteça o que acontecer! E triunfaremos!... O milhão é meu: hei de tê-lo!
Minutos depois, mandava este telegrama:
PRESIDENTE CRÉDITO IMOBILIÁRIO, RUA CAPUCINES, PARIS, SOU POSSUIDOR DO NUMERO 514 - SÉRIE 23. ME OPONHO POR TODAS VIAS LEGAIS QUALQUER RECLAMAÇÃO ALHEIA. GERBOIS.
Quase ao mesmo tempo chegava ao Crédito Imobiliário este outro telegrama:
O NUMERO 514 — SÉRIE 23 ESTA EM MINHA POSSE. ARSÈNE LUPIN.
Cada vez que procuro contar alguma das inumeráveis aventuras de que é feita a vida de Arsène Lupin, me vejo embaraçado por me parecer que a mais banal de suas façanhas é conhecida por todos os que me vão ler. De fato, não há um gesto do nosso "ladrão nacional", como o chamaram tão gentilmente, que não tenha sido assinalado do modo mais ressonante, não há uma proeza sua que não tenha sido estudada sob todos os aspectos, um ato que não fosse comentado com esta abundância de detalhes que se costuma reservar à narrativa das ações heróicas
Quem não conhece, por exemplo, esta estranha história da Dama Loura, com seus curiosos episódios que os repórteres intitulavam em tipos grandes: O número 514, série 23!... O crime da avenida Henri-Martin!... O diamante azul!... Que barulho em torno da intervenção do famoso detetive inglês Herlock Sholmes! Que efervescência após cada uma das peripécias que marcaram a luta desses dois grandes artistas! E que alarido nas avenidas no dia em que os jornaleiros vociferaram: "A prisão de Arsène Lupin!"
Minha desculpa é o que eu trago de novo: a chave do enigma. Sempre alguma sombra fica em torno de suas aventuras: eu a dissipo. Reproduzo notícias lidas e relidas, recopio antigas entrevistas: mas coordeno tudo isso, classifico e submeto à exata verdade. Meu colaborador é Arsène Lupin, cuja complacência comigo é inesgotável. E é também, conforme o caso, o inefável Wilson, o amigo e confidente de Sholmes.
Hão de recordar a grande risada que acolheu a publicação dos dois telegramas. Só o nome de Arsène Lupin representava uma garantia de imprevisto, uma promessa de diversão para a galeria. E a galeria era o mundo inteiro.
Das pesquisas realizadas em seguida pelo Crédito Imobiliário, soube-se que o número 514 — série 23 tinha sido vendido, por intermédio do Crédito Lionês, sucursal de Versalhes, ao comandante de artilharia Bessy. Ora, este morrera numa queda de cavalo. Por camaradas de armas a quem ele contara, ficou conhecido que, pouco antes de sua morte, cedera seu bilhete a um amigo.
— Este amigo sou eu — afirmou o sr. Gerbois.
— Prove — objetou o presidente do Crédito Imobiliário.
— Provas? É fácil. Vinte pessoas lhe dirão que eu tinha com o comandante freqüentes relações e nos encontrávamos no café da praça de Armas. Foi lá que um dia, numa gentileza com ele, num momento de aperto, que fiquei com o seu bilhete pela soma de vinte francos.
— Tem testemunhas dessa transação?
— Não.
— Nesse caso, em que baseia o seu pedido?
— Na carta que ele me escreveu a esse respeito.
— Que carta?
— Uma carta que alfinetei ao bilhete.
— Mostre.
— Mas estava na escrivaninha roubada!
— Ache-a.
Arsène Lupin a trouxe a público. Uma nota de L'Echo de France, que tinha a honra de ser o seu órgão oficial e de que era, parece, um dos principais acionistas, anunciou que ele deixaria em mãos de Detinan, seu advogado particular, a carta que o comandante Bessy lhe tinha escrito, a ele pessoalmente.
Foi uma explosão de alegria: Arsène Lupin tomava um advogado! Arsène Lupin, respeitando as regras estabelecidas, designava para representá-lo um membro da Ordem!
Toda a imprensa acorreu à casa de Detinan, influente deputado radical, homem de elevada probidade, ao mesmo tempo que de espírito fino, um pouco cético, facilmente paradoxal.
Detinan não tinha tido o prazer de encontrar Arsène Lupin — e o lamentava vivamente — mas acabava com efeito de receber instruções suas e, tocado por uma escolha de que sentia toda a honra, contava defender vigorosamente o direito de seu cliente. Abriu, pois, o dossiê novo e, sem delongas, exibiu a carta do comandante. Provava claro a cessão do bilhete, mas não mencionava o nome do adquirente. "Meu caro amigo...", dizia apenas.
"'Meu caro amigo não é outro senão eu, Arsène Lupin — constava numa nota anexa à carta do comandante. — E a melhor prova é que possuo a carta."
A nuvem de repórteres se abateu em seguida sobre a casa do sr. Gerbois, que não pôde mais que repetir:
— "Meu caro amigo" não é outro senão eu. Arsène Lupin roubou a carta do comandante com o bilhete de loteria.
— Prove! — respondeu Lupin aos jornalistas.
— Mas se foi ele que roubou a escrivaninha! — bradou o sr. Gerbois diante dos mesmos jornalistas.
E Lupin:
— Prove!
E foi um espetáculo de encantadora fantasia esse duelo público entre os dois possuidores do número 514 — série 23, as idas e vindas dos repórteres, o sangue-frio de Arsène Lupin diante do desatino do pobre sr. Gerbois.
A imprensa se encheu dos lamentos do infeliz. Narrava seu infortúnio com comovente ingenuidade.
— Compreendam, senhores, é o dote de Suzanne que este safado me subtrai! Por mim, pessoalmente, não estou me importando, mas por Suzanne! Pensem, um milhão! Dez vezes cem mil francos! Ah! eu sabia que a secretária continha um tesouro!
Não adiantava lhe opor que o seu adversário, ao levar o móvel, ignorava a presença de um bilhete de loteria e que ninguém, de qualquer forma, podia prever que esse bilhete ganharia o grande prêmio; gemia:
— Vamos, ele sabia!... Senão por que se daria ao trabalho de pegar esse miserável móvel?
— Por motivos ignorados, mas não certamente para se apossar de Um pedaço de papel que valia então a modesta soma de vinte francos.
— Um milhão! Ele sabia... Sabe tudo! Ah, não conhecem este bandido!... De vocês não tirou um milhão, de vocês não!
O diálogo poderia durar muito tempo. Mas no décimo segundo dia, o sr. Gerbois recebeu de Arsène Lupin uma carta qüe trazia a indicação "confidencial". Leu, com crescente inquietude:
"Senhor, o povo se diverte à nossa custa. Não crê que chegou o momento de ser sério? De minha parte, estou firmemente resolvido a isso.
A situação é clara: possuo um bilhete que não tenho o direito de receber, e ao senhor açode c direito de ter um bilhete que não possui. De modo que nada podemos um sem o outro.
Ora, nem o senhor consentirá em me ceder o SEU direito, nem eu em lhe ceder o MEU bilhete.
Que fazer?
Só vejo um meio, dividir. Meio milhão para o senhor, meio milhão para mim. Não está eqüitativo? E essa sentença salomônica não satisfaz a necessidade de justiça que existe em cada um de nós?
Solução justa, mas solução imediata. Não se trata de uma oferta que tenha tempo de debater, mas de uma necessidade a que as circunstâncias o obrigam a se dobrar. Dou-lhe três dias para pensar. Sexta de manhã, quero crer que lerei, entre os pequenos anúncios de L'Echo de Trance, uma discreta nota dirigida ao sr. Ars. Lup. e contendo, em termos velados, sua adesão pura e simples ao pacto que lhe proponho. Mediante o quê entrará na imediata posse do bilhete e receberá o milhão — enviando-me quinhentos mil francos pelo meio que posteriormente lhe indicarei.
Se recusar, tomei disposições para que o resultado seja o mesmo. Mas, além dos graves aborrecimentos que lhe causará uma tal obstinação, sofrerá uma retenção de vinte e cinco mil francos por gastos suplementares.
Queira receber, senhor, a expressão de meus sentimentos mais respeitosos.
Arsène Lupin."
Exasperado, o sr. Gerbois cometeu o grande erro de mostrar essa carta e deixar tirarem cópia dela. Sua indignação o impelia a todas as tolices.
— Nada! ele não receberá nada! — gritava ante a turma de repórteres. — Dividir o que me pertence? Nunca. Que rasgue o seu bilhete, se quiser!
— No entanto, quinhentos mil francos é melhor do que nada.
— Não se trata disso, mas do meu direito, e vou estabelecer esse direito ante os tribunais.
— Processar Arsène Lupin? Ia ser engraçado.
— Não, mas o Crédito Imobiliário. Deve me entregar o milhão.
— Contra a exibição do bilhete, ou pelo menos contra a prova de que o adquiriu.
— A prova existe, já que Arsène Lupin confessa que roubou a secretária.
— A palavra de Arsène Lupin bastará aos tribunais?
— Não importa, faço o processo.
A cidade delirava. Apostas foram feitas, uns sustentando que Lupin anularia Gerbois, outros que pagaria suas ameaças. E havia uma espécie de apreensão, tanto as forças eram desiguais entre os dois adversários, um tão duro na luta, outro em desatino como um animal encurralado.
Na sexta, os leitores arrancavam uns dos outros L'Echo de France à procura febril do lugar dos pequenos anúncios na quinta página. Nenhuma linha estava dirigida ao sr. Ars. Lup. Às injunções de Arsène Lupin, o sr. Gerbois respondia com o silêncio. Era a declaração de guerra.
À noitinha, se soube pelos jornais do seqüestro da senhorita Gerbois.
O que nos diverte no que se poderia chamar os espetáculos Arsène Lupin, é o papel eminentemente cômico da polícia. Tudo se passa alheio a ela. Ele fala, escreve, prevê, comanda, ameaça, executa, como se não existisse nem o chefe da Süreté, nem agentes, nem comissários, ninguém enfim que pudesse embaraçá-lo em seus desígnios. Toda essa gente é considerada como nula e desinformada. Um obstáculo inexistente.
E no entanto ela se mexe, a polícia! Quando se trata de Arsène Lupin, de alto a baixo dos escalões, todo mundo se apaixona, ferve, espuma de raiva. É o inimigo, e o inimigo que a afronta, provoca, despreza ou, ainda pior, a ignora.
Que fazer contra um inimigo semelhante? Às dez menos vinte, segundo o testemunho da empregada, Suzanne saía de casa. Às dez e cinco, deixando o liceu, seu pai não a viu na calçada em que tinha o hábito de esperá-lo. Portanto tudo se passou durante a caminhada de vinte minutos que teria conduzido Suzanne de casa ao liceu, ou ao menos até perto deste.
Dois vizinhos afirmaram ter passado por ela a trezentos metros da casa. Uma senhora vira andando pela avenida uma moça cuja descrição correspondia à dela. E depois? Depois nada se sabia.
Investigou-se de todos os lados, empregados das estações e da alfândega foram interrogados. Nada tinham notado aquele dia que pudesse se relacionar com o seqüestro de uma moça. Em Ville-d'Avray, porém, um merceeiro declarou que fornecera óleo a um automóvel fechado que vinha de Paris. No banco da frente, um motorista, atrás uma dama loura — excessivamente loura, precisou a testemunha. Uma hora mais tarde o automóvel voltava de Versalhes. Um problema no carro o obrigou a ir devagar, permitindo ao merceeiro observar, ao lado da dama loura já entrevista, a presença de outra dama, envolta em chalés e véus. Sem dúvida era Suzanne Gerbois.
Mas então era preciso supor que o rapto se dera em plena luz do dia, numa estrada com muito movimento, no centro mesmo da cidade!
Como? em que lugar? Nem um grito foi escutado, nem se notou qualquer movimento suspeito.
O comerciante deu a indicação do automóvel, uma limusine de 24 cavalos da Peugeot, com carroçaria azul-escuro. Na falta de melhor, se informaram com a diretora da Grande-Garagem, a sra. Bob-Walthour, formada em raptos por automóvel. Com efeito, na sexta de manhã, alugara para o dia uma limusine Peugeot a uma senhora loura que, de resto, não voltara a ver.
— E o motorista?
— Chamava-se Ernest e tinha sido empregado na véspera, apresentando as melhores referências.
— Está aqui?
— Não, trouxe o carro de volta e não foi visto mais.
— Não poderíamos lhe seguir a pista?
— Sim, com as pessoas que o recomendaram. Eis os seus nomes.
Foram à casa dessas pessoas e nenhuma delas conhecia o tal Ernest.
Assim, todo o rastro que se seguia para sair das trevas levava a outras trevas, outros enigmas.
O sr. Gerbois não estava à altura de sustentar uma batalha que começava para ele de maneira tão desastrosa. Inconsolável desde o desaparecimento da filha, castigado por remorsos, capitulou.
Um pequeno anúncio apareceu em L'Echo de France, comentado por todo mundo, apresentando sua submissão pura e simples, sem segundas intenções.
Era a vitória, a guerra terminada em quatro vezes vinte e quatro horas.
Dois dias depois, o sr. Gerbois atravessou a esplanada do Crédito Imobiliário. Levado ao presidente, passou-lhe o número 514 — série 23. O homem pulou.
— Ah! tem o bilhete? Lhe devolveram?
— Tinha se extraviado; ei-lo aí — respondeu Gerbois.
— No entanto pretendia... era questão de...
— Tudo isso não passou de boatos e mentiras.
— Precisaríamos de qualquer forma de algum documento em apoio.
— Não basta a carta do comandante?
— Por certo.
— Está aqui.
— Perfeito. Vai ter a bondade de nos deixar essas peças em depósito. Concedem-nos quinze dias para verificação. Avisarei quando possa se apresentar na caixa. Daqui até lá, senhor, penso ser do seu interesse não fazer declarações e encerrar este assunto no maior silêncio.
— É a minha intenção.
O sr. Gerbois não falou, nem o presidente. Mas há segredos que se desvelam sem que nenhuma indiscrição seja cometida, e se soube de repente que Arsène Lupin tinha tido a audácia de devolver ao sr. Gerbois o número 514 — série 23! A notícia foi recebida com uma admiração estupefata. Sem dúvida era um bom jogador quem atirava na mesa um trunfo da importância do precioso bilhete! Certamente dele não se desfizera sem plena consciência e por algum outro trunfo que restabelecesse o equilíbrio. Mas se a moça fugisse? Se tivessem êxito em retomar a refém que ele detinha?
A polícia sentiu o ponto fraco do inimigo e redobrou os esforços. Arsène Lupin desarmado, espoliado por si mesmo, preso na engrenagem de suas conspirações, não ficando com nenhum traidor centavo do cobiçado milhão... Na hora, os que gostam de rir passaram para o outro lado.
Mas era preciso achar Suzanne. E não a achavam, e muito menos ela fugia.
Vá, dizia-se, lavrou um tento, Arsène Lupin ganha a primeira mão. Mas o mais difícil está por fazer. A srta. Gerbois está com ele, concedemos, e não a devolverá senão contra quinhentos mil francos. Mas onde e como se fará a troca? Para que tenha lugar, cumpre que haja um encontro, e então o que impede o sr. Gerbois de advertir a polícia e, assim, retomar a filha guardando o dinheiro?
Entrevistaram o professor. Muito abatido, sequioso de silêncio, permaneceu impenetrável.
— Nada tenho a dizer; espero.
— E a srta. Gerbois?
— As buscas continuam.
— Mas Arsène Lupin lhe escreveu?
— Não.
— Garante?
— Não.
— Então escreveu. Quais foram suas instruções?
— Nada tenho a dizer.
Sitiaram o advogado Detinan. Idêntica discrição.
— O sr. Lupin é meu cliente — respondeu fingindo gravidade —, entendem que sou forçado à reserva mais completa.
Esses mistérios irritavam a galeria. Os planos, evidentemente, eram tramados à sombra. Arsène Lupin punha suas redes e apertava-lhes as malhas, enquanto a polícia organizava em torno do sr. Gerbois uma vigilância de dia e noite. E o público encarava os três únicos desfechos possíveis: a prisão, o triunfo, ou o fracasso ridículo e lastimável.
Aconteceu que a curiosidade popular não foi satisfeita senão parcialmente e é nestas páginas que, pela primeira vez, a exata verdade será revelada.
Terça, 12 de março, o sr. Gerbois recebeu, num envelope de aspecto comum, um aviso do Crédito Imobiliário.
Na quinta, a uma hora, tomava o trem para Paris. Às duas, as mil notas de mil francos lhe foram entregues.
Enquanto as repassava uma a uma, trêmulo — não significava este dinheiro o resgate de Suzanne? —, dois homens conversavam num carro parado a alguma distância do grande portal. Um deles tinha cabelos começando a embranquecer e um rosto enérgico que contrastava com sua roupa e maneiras de pequeno funcionário. Era o inspetor Ganimard, o velho Ganimard, o inimigo implacável de Lupin. E Ganimard dizia ao cabo de esquadra Folenfant:
— Não vai tardar... antes de cinco minutos, vamos rever o nosso velhote. Está tudo pronto?
— Prontíssimo.
— Quantos somos?
— Oito, dois de bicicleta.
— E eu, que conto por três. É suficiente, mas não demais. Que o Gerbois não nos escape a nenhum preço... senão adeus: encontra Lupin no lugar que devem ter combinado, troca a moça pelo meio milhão e o golpe está dado.
— Mas por que, diabo, o velho não vem junto conosco? Seria tão simples. Pondo-nos na sua jogada, guardaria o milhão inteiro.
— Sim, mas tem medo. Se tentar meter o outro nas grades, não terá a filha.
— Que outro?
— Ele.
Ganimard pronunciou a palavra numa gravidade um tanto receosa, como se falasse de um ser sobrenatural de que já tinha sentido as garras.
— É engraçado — observou judiciosamente o cabo Folenfant — estarmos reduzidos a proteger este senhor contra si mesmo.
— Com Lupin, o mundo vira de pernas para o ar — Ganimard suspirou.
Passou um minuto.
— Atenção — fez ele.
O sr. Gerbois saía. No fim da rua dos Capucines, passou às avenidas do lado esquerdo. Prosseguia lentamente, ao longo das lojas a olhar as vitrinas.
— Tranqüilo demais, o cara — dizia Ganimard. — Um sujeito que leva no bolso um milhão não anda com esta calma.
— Que é que ele pode fazer?
— Oh! nada, claro... Não importa, fico desconfiado. Lupin é Lupin.
Neste momento Gerbois se dirigiu a um quiosque, escolheu jornais, contou o troco, abriu uma das folhas e, com os braços estendidos, continuando em passos curtos, pôs-se a ler. Súbito, num pulo, meteu-se num auto parado à beira da calçada. O motor estava aceso, pois partiu rapidamente, dobrou na igreja Madeleine e desapareceu.
— Demônios! — exclamou Ganimard —, ainda outro golpe à sua moda!
Saiu correndo, e outros homens também ao mesmo tempo, dando a volta na Madeleine.
Mas caiu na risada. Na entrada da avenida da Malesherbes, o auto estava parado por um defeito no motor e o sr. Gerbois dele descia.
— Ligeiro, Folenfant... o motorista... é talvez o tal Ernest.
Folenfant ocupou-se dele. Chamava-se Gaston e era empregado na sociedade de autos de aluguel; dez minutos antes, um senhor tomara seu carro e lhe dissera para esperar de "motor ligado", perto do quiosque, até que outro senhor viesse.
— E o segundo cliente — perguntou Folenfant —, que direção lhe deu?
— Nenhuma... "Avenida Malesherbes... com a de Messine.— Gorjeta dupla"... Foi tudo.
Enquanto isso, sem perder um minuto, o sr. Gerbois tinha pegado o primeiro carro que passava.
— Cocheiro, ao metrô da Concorde.
O professor saiu do metrô na praça do Palais-Royal, correu a um outro carro e se fez conduzir à praça da Bolsa. Segunda viagem de metrô, depois avenida de Villiers e terceiro carro.
— Cocheiro, rua Clapeyron, 25.
Separa esse prédio da avenida Batignolles a casa da esquina. Subiu ao primeiro andar e bateu. Um senhor lhe abriu.
— É aqui que mora o advogado Detinan?
— Sou eu mesmo. O sr. Gerbois, sem dúvida.
— Isso.
— Estava esperando o senhor. Faça o obséquio de entrar.
Quando Gerbois entrou no gabinete do doutor, a pêndula marcava três horas; imediatamente ele disse:
— É a hora que ele fixou. Não está aí?
— Ainda não.
Gerbois sentou-se, enxugou a testa, olhou seu relógio como se ignorasse a hora, e retomou ansioso:
— Ele virá?
O doutor respondeu:
— Me pergunta sobre a coisa do mundo por que estou mais curioso de saber. Nunca tive essa impaciência. De qualquer forma, se vier, vai correr um grande risco, pois esta casa há uns quinze dias vem sendo muito vigiada. Desconfiam de mim.
— De mim ainda mais. Nem posso afirmar se os agentes que me seguiam perderam a minha pista.
— Mas então.....
— A culpa não será minha — gritou com vivacidade o professor —, e não podem me censurar. Prometi obedecer às suas ordens e, bem, as obedeci cegamente, peguei o dinheiro na hora marcada por ele, e vim à sua casa da maneira que ele prescreveu. Responsável pela infelicidade da minha filha, cumpri minhas promessas com toda lealdade. Cabe a ele manter as suas.
E acrescentou, com a mesma voz aflita:
— Ele trará a minha filha, não é?
— Espero.
— No entanto... o senhor o viu?
— Eu, mas não! Simplesmente me pediu por carta que recebesse os dois, despachasse os criados antes das três horas, e não admitisse ninguém em meu apartamento entre a sua chegada e a sua saída. Se discordasse disso, pediu-me que o prevenisse por duas linhas em L'Echo de France. Mas estou feliz em servir Arsène Lupin e consinto em tudo.
Gerbois gemeu:
— Ai, como vai acabar tudo isso?
Tirou do bolso as notas, abriu-as na mesa e fez dois montes com igual número delas. Calaram-se. De ora em ora, o sr. Gerbois afinava o ouvido: teriam chamado?
Sua angústia aumentava com os minutos e o próprio Detinan experimentava uma impressão quase dolorosa.
A certa altura, o advogado perdeu o sangue-frio. Ergueu-se brusco:
— Não aparecerá... Como pode querer isso? Da parte dele, seria uma loucura. Que tenha confiança em nós, vá, somos gente honesta incapaz de traí-lo. Mas o perigo não está apenas aqui.
E Gerbois, esmagado, com as duas mãos em cima das notas, balbuciou:
— Que apareça, meu Deus, que apareça! Darei tudo isso para recuperar Suzanne.
A porta se abriu.
— A metade chega, sr. Gerbois.
Alguém surgiu no umbral, um jovem, elegantemente vestido, em que o sr. Gerbois reconheceu na hora o indivíduo que o abordara perto da loja de segunda mão, em Versalhes. Correu a ele.
— E Suzanne? Onde está a minha filha?
Arsène Lupin fechou a porta com cuidado e, tirando as luvas do modo mais tranqüilo, disse ao advogado:
— Querido doutor, não poderia lhe agradecer em excesso a boa vontade com que concordou em defender os meus direitos. Não a esquecerei.
Detinan murmurou
— Mas não bateu... não ouvi a porta...
— Campainhas e portas são coisas que devem funcionar sem que ninguém ouça. Enfim, estou aqui e é o essencial.
— Minha filha! Suzanne! que fez dela? — repetia o professor.
— Meu Deus — falou Lupin, — como é apressado! Ande, se acalme, num instante a sua filha estará consigo.
Andou uns passos e articulou no tom de um superior que distribui elogios:
— Sr. Gerbois, felicito-o pela habilidade com que agiu há pouco. Se o auto não tivesse tido aquele defeito absurdo, estaríamos simplesmente em Etoile e pouparíamos ao dr. Detinan o embaraço desta visita... Enfim, estava escrito.
Percebeu os dois montes de dinheiro e exclamou:
— Ah! perfeito! o milhão está aí... Não vamos perder tempo. Permite?
— Mas — objetou Detinan, pondo-se à frente da mesa, — a srta. Gerbois não chegou ainda.
— E daí?
— Daí? Sua presença não é indispensável?
— Entendo, entendo! Arsène Lupin inspira apenas uma confiança relativa. Embolsa o meio milhão e não devolve a refém. Ah! meu caro patrono, eu sou um grande desconhecido! Porque o destino me levou a atos de natureza um pouco... especial, se suspeita da minha boa fé... de mim! de mim que sou o homem do escrúpulo e da delicadeza! Aliás, meu caro, se tiver algum receio, abra a janela e chame. Há pelo menos uma dúzia de agentes na rua.
— Acha?
Arsène Lupin ergueu a cortina.
— Acho o sr. Gerbois incapaz de despistar Ganimard... O que eu dizia? Ali está o bravo amigo!
— Será possível! — bradou o professor. — Lhe juro no entanto...
— Que não me traiu?... Não duvido, mas os rapazes são hábeis. Olhe, Folenfant que estou vendo!... E Gréaume!... E Dieuzy... todos meus bons camaradas, ah!
Detinan o fitava com surpresa. Que tranqüilidade! Ele ria um riso feliz, como se se divertisse com um jogo infantil e nenhum perigo o ameaçasse.
Mais ainda que a presença dos agentes, essa falta de cuidado serenou o advogado. Afastou-se da mesa em que estavam as notas.
Arsène Lupin pegou um e outro dos dois montes e aliviou cada um de vinte e cinco notas, estendendo a Detinan as cinqüenta assim obtidas:
— A parte de honorários do dr. Gerbois, caro doutor, e a de Arsène Lupin. Bem lhe devemos isso.
— Não me deve nada — replicou Detinan.
— Como? e todo o trabalho que lhe causamos!
— E todo o prazer que tenho em me dar esse trabalho!
— Quer dizer, doutor, que não deseja aceitar nada de Arsène Lupin. Eis no que dá — suspirou — ter má reputação.
Estendeu os cinqüenta mil francos ao professor.
— Sr., como lembrança do nosso bom encontro, permita que lhe entregue isso: será o meu presente de núpcias à srta. Gerbois.
Gerbois pegou com vivacidade as cédulas, mas protestou:
— Minha filha não está para casar.
— Não está, se recusar seu consentimento. Mas deseja muito.
— Que sabe disso?
— Sei que as moças muitas vezes têm sonhos sem a autorização dos papais, Felizmente ainda existem gênios bons que se chamam Arsène Lupin e que no fundo das secretárias descobrem os segredos dessas almas cativantes.
— E não descobriu ali outra coisa? — perguntou o advogado. — Me confesso curiosíssimo para saber por que esse móvel o preocupou tanto.
— Motivo histórico, caro doutor. Embora, contra a opinião do sr. Gerbois, não contivesse outro tesouro além do bilhete de loteria — e isso eu ignorava —, fazia questão dele e o buscava há tempos. Esta escrivaninha, em madeira de teixo e acaju, decorada com capitéis de folhas de acanto, foi encontrada na discreta casinha em que morava em Bolonha Maria Walewska, e traz numa das gavetas a inscrição: Oferecido a Napoleão I, Imperador dos franceses, por seu fiel servidor, Mancicn. E em cima estas palavras gravadas a ponta de faca. "Para ti, Maria." Posteriormente, Napoleão fez uma cópia do móvel para a imperatriz Joséphine — de maneira que a secretária que se admira em Malmaison * não passa de uma imperfeita reprodução da que de ora em diante faz parte de minhas coleções. O professor gemeu:
* Essa secretária se acha atualmente no Guarda-Móveis.
— Ai de mim! se soubesse disso lá na loja, como teria me apressado em cedê-la ao sr.!
Arsène Lupin disse rindo:
— E teria tido, por acréscimo, a considerável vantagem de conservar, só para o sr., o número 514 — série 23.
— O que não o teria levado a raptar minha filha, que tudo isso deve ter transtornado.
— Tudo isso?
— Este rapto...
— Mas, caro sr., cai num erro; a srta. Gerbois não foi raptada.
— Minha filha não foi raptada!
— Em absoluto. Quem diz rapto, diz violência. Ora, foi por deliberação própria que serviu de refém.
— Por deliberação própria! — repetiu o sr. Gerbois, confuso.
— E quase a seu pedido! Como! uma moça inteligente como a srta. Gerbois e, o que é mais, cultivando no íntimo uma paixão inconfessa, iria recusar-se a obter o seu dote! Ah, juro-lhe que foi fácil fazê-la compreender que não havia outro meio de vencer a sua teimosia.
O advogado se divertia muito. Objetou:
— O mais difícil é imaginar você se entendendo com ela. É inadmissível que a srta. Gerbois tenha se deixado abordar.
— Oh, por mim não. Não tenho mesmo a honra de conhecê-la. Foi uma de minhas amigas que se prontificou a entabular as negociações.
— A dama loura do automóvel, sem dúvida — interrompeu o advogado.
— Justamente. Desde o primeiro encontro diante do liceu, tudo ficou combinado. Desde aí, a srta. Gerbois e sua nova amiga viajaram, visitando a Bélgica e a Holanda, da maneira mais agradável e instrutiva para um moça. De resto, ela mesma lhe explicará.
Bateram à porta do vestíbulo, três golpes seguidos, um isolado e mais um final.
— É ela — disse Lupin. — Caro doutor, se nos faz o obséquio...
O advogado se precipitou.
Duas jovens entraram. Uma lançou-se aos braços do sr. Gerbois. A outra acercou-se de Lupin. Era de elevada estatura, harmonioso busto, o rosto pálido, e os cabelos louros, de um louro cintilante, se dividiam em dois bandos ondulados e bem frouxos. Vestida de preto, sem mais adorno que um colar de jade de cinco voltas, parecia porém de requintada elegância.
Arsène Lupin lhe disse algumas palavras, depois, cumprimentando a srta. Gerbois:
— Peço-lhe perdão, srta., por todas essas atribulações, contudo espero que não tenha sido muito infeliz...
— Infeliz! Teria sido antes muito feliz, se não tivesse havido meu pobre pai.
— Então, tudo saiu pelo melhor. Beije-o de novo e aproveite a ocasião, que é excelente, para lhe falar do primo.
— O meu primo... que significa?... não entendo...
— Mas sim, entende... O seu primo Philippe... o jovem de que guarda preciosamente as cartas...
Suzanne enrubesceu, perdeu o aprumo e enfim, como lhe aconselhava Lupin, novamente se atirou aos braços do pai. Lupin observou enternecido aos dois.
— Como recompensa fazer o bem! Espetáculo tocante — feliz pai, feliz filha. E dizer que tanta felicidade é obra tua, Lupin! Esses seres mais tarde te abençoarão... Teu nome será piedosamente lembrado a seus netos... Oh, a família... a família!...
Foi até a janela.
— Continuará aí o bom Ganimard?... Ele gostaria tanto de assistir a estas encantadoras efusões!... Mas não, não está mais... Ninguém... nem ele, nem os outros... Diabo! a situação se torna séria... Não é de surpreender que já estejam na porta do prédio... falando com o porteiro talvez... ou mesmo na escada!
O sr. Gerbois deixou escapar um gesto. Agora que sua filha lhe fora devolvida, o sentimento da realidade lhe voltava. A prisão de seu adversário representava para ele meio milhão. Instintivamente deu um passo... Como por acaso, Lupin se atravessou no seu caminho.
— Onde vai, sr. Gerbois? Me defender contra eles? Muito amável! Mas não se incomode. Juro-lhe que estão mais embaraçados do que eu.
E prosseguiu refletindo:
— No fundo, o que sabem? Que o sr. está aqui e talvez que a srta. Gerbois também, pois devem tê-la visto chegar com uma dama desconhecida. Mas de mim não desconfiam. Como me teria metido numa casa que revistaram de manhã da adega ao sótão? Não, segundo todas as probabilidades, me esperam para me pegar em flagrante... Pobres anjos!... A menos que adivinhem que a dama desconhecida foi enviada por mim e a suponham encarregada de realizar a troca... Caso em que se aprestam para prendê-la na saída...
A campainha soou.
Num gesto brusco, Lupin imobilizou o sr. Gerbois e, com a voz seca, imperiosa:
— Alto lá, sr., pense em sua filha e seja sensato, senão... Quanto ao sr., dr., tenho a sua palavra.
Gerbois ficou plantado no lugar e o advogado não se mexeu. Sem qualquer pressa, Lupin pegou o chapéu. Um pouco de pó o maculava e limpou com a manga.
— Caro dr., se alguma vez tiver necessidade de mim... Meus melhores votos, srta. Suzanne, e transmita minha amizade ao sr. Philippe.
Tirou do bolso um pesado relógio com tampa dupla de ouro.
— Sr. Gerbois, são três e quarenta e dois; às três e quarenta e seis, o autorizo a sair deste salão... Nem um minuto antes das três e quarenta e seis, ouviu?
— Mas vão entrar pela força — não pôde se impedir de dizer o advogado.
— É a lei que está esquecendo, caro doutor! Ganimard nunca ousaria violar a casa de um cidadão francês. Teríamos tempo de jogar uma partida de brigde. Mas perdoem, parecem os três um tanto emocionados e não queria abusar...
Pôs o relógio sobre a mesa, abriu a porta da sala e, se dirigindo à dama loura:
— Está pronta, querida amiga?
Passou diante dela, fez um último gesto de respeitosa saudação à srta. Gerbois, saiu e fechou a porta atrás de si. No vestíbulo, o ouviram dizer em voz alta:
— Bom dia, Ganimard, como é que isso vai? Me recomende à sra. Ganimard... Um desses dias, vou lhe pedir para almoçar lá... Adeus, Ganimard.
Um toque de campainha ainda, brusco, violento, logo outros repetidos e ruídos de vozes no patamar da escada.
— Três horas e quarenta e cinco — balbuciou o sr. Gerbois.
Após uns segundos, resoluto, passou ao vestíbulo. Lupin e a dama loura não estavam mais lá.
— Pai!... Não deve!... espere!... — gritou Suzanne.
— Esperar? Estás louca?... Considerações com este velhaco... e o meio milhão?
Abriu,
Ganimard arremeteu.
— Aquela senhora... onde está? E Lupin?
— Estava aqui... aqui. Ganimard deu um grito de triunfo:
— Vamos pegá-lo... a casa está cercada. O advogado Detinan observou:
— E a escada de serviço?
— Vai dar no pátio que só tem uma saída, a porta principal, que dez homens estão guardando.
— Mas ele não entrou por essa porta... nem irá por ali.
— Então por onde? — ripostou Ganimard. — Pelos ares? Afastou uma cortina. Surgiu um comprido corredor que levava à cozinha. Ganimard seguiu por ele correndo e verificou que a porta da escada de serviço estava fechada à chave com duas voltas.
Da janela, chamou um de seus agentes:
— Ninguém?
— Ninguém.
— Então — bradou, — estão no apartamento!... se esconderam num dos quartos!... É materialmente impossível que tenham escapado... Ah, meu pequeno Lupin, zombaste de mim, mas desta vez tiro a revanche.
Às sete da noite, o sr. Dudouis, da Süreté, admirado por não ter notícias, compareceu à rua Clapeyron. Interrogou os agentes que vigiavam o imóvel e, a seguir, subiu à casa do advogado, que o conduziu ao seu quarto. Viu aí um homem, ou antes duas pernas a se agitarem sobre o tapete, enquanto o torso que pertenciam se metera nas profundezas da chaminé.
— Oi... oi!... — grunhia uma voz sufocada.
E uma voz mais distante que vinha do alto respondia:
— Oi!... oi!...
O sr. Dubois exclamou rindo:
— E agora, Ganimard, deste para limpador de chaminé? O inspetor se desenterrou das entranhas da lareira: o rosto enegrecido, as roupas tapadas de fuligem, os olhos febris — irreconhecível.
— Estou à procura dele — rosnou.
— Quem?
— Arsène Lupin... Arsène Lupin e sua amiga.
— Ah isso! Mas como imaginou que tenham se escondido no cano da lareira?
Ganimard ergueu-se, aplicou na manga de seu superior cinco dedos encarvoados, e surda, raivosamente respondeu:
— Onde deseja que estejam, chefe? É forçoso que estejam em alguma parte. São seres como o sr. e eu, de carne e osso. Seres que não evolam-se na fumaça.
— Não, mas vão-se embora assim mesmo.
— Por onde? por onde? a casa está cercada! há agentes no telhado.
— E a casa vizinha?
— Não há comunicação com ela.
— Os apartamentos dos outros andares?
— Conheço todos os inquilinos: não viram ninguém, não escutaram ninguém.
— Tem certeza de conhecer a todos?
— Todos. O porteiro responde por eles. Além disso, para maior precaução, pus um homem em cada um desses apartamentos.
— É preciso, porém, pôr a mão neles.
— É o que eu digo, chefe, o que eu digo. É preciso, e será feito, porque estão aqui os dois... Não podem deixar de estar. Fique tranqüilo, chefe, se não for esta noite, amanhã os terei... Dormirei aqui!... Dormirei aqui!...
De fato dormiu, e no dia seguinte também, e no seguinte ao seguinte igualmente. E quando três dias inteiros e três noites se passaram, não apenas não descobrira o impegável Lupin e sua não menos impegável companheira, como não tinha sequer dado com o menor indício que lhe permitisse estabelecer uma mínima hipótese.
Por isso não variava sua opinião do primeiro momento.
— Já que não há nenhum traço de fuga, é que estão aqui!
Talvez, no fundo da consciência, estivesse menos convencido. Mas não queria se confessar isso. Não, mil vezes não, um homem e uma mulher não se evaporam como os duendes dos contos infantis. E sem perder a coragem, continuava a revistar e investigar como se esperasse descobri-los, escondidos nalgum impenetrável canto, incorporados às pedras da casa.
Na noite de 27 de março, na avenida Henri-Martin, 134, na pequena mansão que herdara de seu irmão há seis meses, o velho general barão d'Hautrec, embaixador em Berlim sob o Segundo Império, dormia numa confortável poltrona, enquanto a dama de companhia lia para ele, a irmã Auguste aquecia sua cama e lhe preparava a lamparina.
Às onze horas, a religiosa, que, por exceção, devia voltar aquele dia ao convento de sua irmandade e passar a noite junto com a irmã superior, preveniu a dama de companhia:
— Srta. Antoinette, meu trabalho terminou, vou indo.
— Bem, irmã.
— Mas não esqueça que a cozinheira teve folga e a srta. está só em casa com o criado.
— Não receie pelo sr. barão; durmo no quarto pegado, como se combinou, e deixo a porta aberta.
A religiosa se foi. Pouco depois, Charles, o criado, veio receber as ordens. O barão tinha despertado e ele próprio respondeu.
— Sempre o mesmo, Charles: verificar se a campainha elétrica funciona bem no teu quarto e, ao primeiro chamado, descer e correr em busca do médico.
— O general está sempre preocupado.
— Isso não vai... não vai bem. Srta. Antoinette, onde estávamos na nossa leitura?
— O sr. barão não vai então para a cama?
— Não, não, me deito tarde e além disso não preciso de ninguém.
Vinte minutos depois, o velho cochilava de novo e Antoinette se afastou na ponta dos pés.
Nesse momento Charles fechava com cuidado, como de hábito, todos os postigos do térreo.
Na cozinha, correu o ferrolho da porta que dava para o jardim, e na entrada, de um batente a outro da porta, pôs a correia de segurança. Foi para sua mansarda no terceiro andar, deitou-se e adormeceu.
Talvez uma hora tinha transcorrido quando, de repente, pulou fora da cama: a campainha soava. E longamente, sete ou oito segundos talvez, de modo firme, ininterrupto.
— Bem — pensou Charles, recobrando o ânimo, — um novo capricho do barão.
Enfiou a roupa, desceu rápido a escada, parou diante da porta e, por costume, bateu. Não houve resposta e entrou.
— Ah— se disse, — sem luz... Por que, diabo, apagaram?
Em voz baixa, chamou :
— Senhorita?
Nenhuma resposta.
— Está aí, senhorita?... Que é que há? O sr.'barão está doente?
O mesmo silêncio em torno de si, um silêncio pesado que acabou por impressioná-lo. Deu dois passos à frente; seu pé bateu numa cadeira e, tateando-a, sentiu que estava caída. Sua mão logo topou no chão com outros objetos, uma mesa, num biombo. Preocupado, se aproximou da parede e, às apalpadelas, procurou o botão elétrico. Alcançou-o e acendeu.
No meio da peça, entre a mesa e o armário de vidro, jazia o corpo do patrão, o barão d'Hautrec.
— Quê!... Será possível?... — gaguejou.
Não sabia o que fazer e, sem mexer-se, com os olhos enrugados, contemplou a desordem das coisas, as cadeiras derrubadas, um grande lustre de cristal quebrado em mil pedaços, a pêndula tombada no mármore da lareira, tudo a revelar uma luta espantosa e selvagem. O cabo de um estilete de aço cintilava, não longe do corpo. Da lâmina escorria sangue. Do colchão pendia um lenço sujo de marcas vermelhas.
Charles gritou aterrorizado: o corpo tinha-se espichado num esforço supremo e depois contraído sobre si mesmo... Duas ou três sacudidas, e foi tudo.
Inclinou-se. Por um fino talho no pescoço, escorria o sangue, a mosquear o tapete de manchas negras. O rosto conservava uma expressão louca de susto.
— Mataram ele — balbuciou, — mataram.
E estremeceu à idéia de um outro crime provável: a dama de companhia não dormia no quarto ao lado? e o assassino do barão não a teria também matado?
Empurrou a porta: a peça estava vazia. Concluiu que Antoinette tinha sido raptada ou então que partira antes do crime.
Voltou ao quarto do barão e, tendo seus olhos deparado com a escrivaninha, notou que o móvel não tinha sido forçado.
Mais ainda, viu em cima da mesa, perto do molho de chaves e da carteira que o barão ali punha todas as noites, um punhado de luíses de ouro. Charles pegou a carteira e abriu suas bolsas. Uma continha cédulas. Contou: treze notas de cem francos.
E foi mais forte que ele: instintivamente, mecanicamente, sem que seu pensamento sequer participasse do gesto da mão, pegou as treze notas, escondeu na jaqueta, precipitou-se pela escada, abriu o ferrolho, tirou a correia, voltou a fechar a porta e fugiu pelo jardim.
Charles era homem honesto. Não tinha fechado o portão quando, refeito pelo ar livre, o rosto esfriado pela chuva, se deteve. O ato cometido lhe surgiu na sua realidade e teve um horror súbito.
Passava um fiacre. Chamou o cocheiro.
— Camarada, corre ao posto-policial e traz o comissário... A galope! um homem foi morto.
O cocheiro chicoteou o cavalo. Mas quando Charles quis entrar, não pôde; tinha fechado o portão, e este não se abria por fora.
Era inútil soar a campainha, já que não havia ninguém na mansão.
Andou ao longo dos jardins que dão à avenida, do lado da Muette, uma ridente moldura de arbustos verdes e bem talhados. E apenas depois de uma hora de espera pôde enfim contar ao comissário os pormenores do crime e lhe entregar as treze cédulas.
Enquanto isso, foi chamado um serralheiro que, com muito trabalho, conseguiu forçar o portão do jardim e a porta da entrada. O comissário subiu e em seguida, ao primeiro olhar, disse ao criado:
— Veja, você me disse que o quarto estava na maior desordem.
Virou-se. Charles parecia pregado no chão, hipnotizado: todos os móveis tinham retomado o lugar habitual! A mesa se erguia entre as duas janelas, as cadeiras estavam de pé e a pêndula no meio da lareira. Os detritos do candelabro tinham desaparecido.
Articulou, boquiaberto de estupor:
— O cadáver... O barão...
— Com efeito — bradou o comissário, — onde está a vítima?
Avançou para a cama. Sob um grande lençol que afastou, repousava q general barão d'Hautrec, ex-embaixador da França em Berlim. Seu capote de general o cobria, ornado com a cruz de honra.
O rosto estava calmo. Os olhos, fechados.
O criado balbuciou:
— Alguém veio cá.
— Por onde?
— Não sei, mas alguém veio durante a minha ausência. Tinha ali no chão um punhal muito fino, de aço... E um lenço com sangue... Não há mais nada... Levaram tudo... Arrumaram tudo...
— Quem?
— O assassino!
— Encontramos todas as portas fechadas.
— É que ele ficou na mansão.
— Estaria ainda aqui, já que você não abandonou a calçada.
O doméstico refletiu e pronunciou lento:
— De fato... de fato... e não me afastei do portão... No entanto...
— Qual foi a última pessoa que viu junto ao barão?
— A srta. Antoinette, a dama de companhia.
— Que fim levou ela?
— Segundo acho, como sua cama não foi mexida, deve ter aproveitado a ausência da irmã Auguste para também sair. Não me surpreende, é bonita... jovem...
— Mas como terá saído?
— Pela porta.
— Você tinha posto o ferrolho e a correia!
— Bem mais tarde! Àquela hora, já devia ter deixado a casa.
— E o crime teria ocorrido depois da saída dela?
— Naturalmente.
Buscou-se de alto a baixo no prédio, mas o assassino tinha escapado. Como? em que instante? Teria sido ele ou um cúmplice que julgara adequado voltar à cena do crime e fazer desaparecer tudo o que poderia comprometê-lo? Tais eram as questões que se punham para a justiça.
As sete horas veio o médico-legista e às oito o chefe da Sûreté. A seguir, foi a vez do procurador da República e do juiz de instrução. E havia também, enchendo a casa, agentes, inspetores, jornalistas, o sobrinho do barão d'Hautrec e outros membros da família.
Revistou-se, estudou-se a posição do cadáver segundo a memória de Charles, interrogou-se, desde que chegou, a irmã. Não se fez qualquer descoberta. Quando muito, a irmã Auguste se admirou com o desaparecimento de Antoinette Bréhat. Tinha empregado a moça doze dias antes, à vista de excelentes referências, e se recusava a crer que tivesse podido abandonar o enfermo que lhe confiara, para andar, sozinha, de noite.
— Tanto mais que nesse caso — apoiou o juiz de instrução, — ela já teria regressado para casa. Voltamos, pois, ao mesmo ponto: que foi feito dela?
— Para mim — disse Charles, — foi raptada pelo assassino.
A hipótese era plausível e concordava com certas aparências. O chefe da Süreté considerou:
— Raptada? Palavra, não é inverossímil.
— Não apenas inverossímil — disse uma voz, — mas em absoluta oposição com os fatos, o resultado do inquérito, em suma, com a própria evidência.
A voz era rude, o acento brusco, e ninguém se surpreendeu quando Ganimard foi reconhecido. Aliás só a ele era perdoável esse modo um tanto insolente de se exprimir.
— Ah, é você, Ganimard? — exclamou o sr. Dudouis. — Não o tinha visto.
— Estou aqui há duas horas.
— Então já consegue ter algum interesse fora do bilhete 514 — série 23, o caso da rua Clapeyron, a Dama Loura e Arsène Lupin?
— Eh! eh! — caçoou o velho inspetor, — não afirmaria que Lupin seja de todo estranho ao caso que nos ocupa... Mas deixemos de lado, até nova ordem, o assunto do bilhete de loteria e vejamos do que se trata aqui.
Ganimard não é um desses policiais de envergadura, cujos métodos fazem escola e os anais judiciários conservam o nome. Faltam-lhe os relâmpagos de gênio que iluminam os Dupin, os Lecoq e os Sherlock Holmes. Mas tem excelentes qualidades médias, de observação, sagacidade, perseverança e mesmo intuição. Seu mérito é trabalhar com a mais completa independência. Nada, se não talvez a espécie de fascinação que Arsène Lupin exerce sobre ele, o confunde ou influencia. Não faltou brilho, enfim, ao seu papel naquela manhã, e sua colaboração foi das que um juiz pode agradecer.
— De saída — começou, — pedirei ao sr. Charles que precise um ponto: todos os objetos que viu da primeira vez derrubados ou fora de lugar, estavam, da segunda, exatamente no lugar costumeiro?
— Exatamente.
— Então é evidente que não podiam ter sido arrumados senão por quem tinha familiaridade com a colocação desses objetos.
A observação impressionou os assistentes. Ganimard continuou;
— Outra pergunta, sr. Charles... Foi despertado por um toque de campainha... Quem julga que o estava chamando?
— O sr. barão, ora.
— Vá, mas em que momento teria tocado?
— Depois da luta... na hora de morrer.
— Impossível, já que o encontrou a jazer inanimado num ponto a mais de quatro metros do botão da chamada.
— Então, soou durante a luta.
— Impossível, pois a chamada, disse, foi regular, ininterrupta e durou sete ou oito segundos. Acredita que o seu agressor lhe teria dado tempo de tocar assim?
— Então foi antes, no momento de ser atacado.
— Impossível, nos contou que entre o sinal da campainha e o momento em que entrou no quarto se teriam passado no máximo três minutos. Se o barão tivesse tocado antes, seria preciso que a luta, o assassinato, a agonia e a fuga ocorressem nesse breve período de três minutos. Repito, impossível.
— Porém — disse o juiz de instrução, — alguém chamou. Se não o barão, quem?
— O matador.
— Com que objetivo?
— Ignoro, mas ao menos o fato de ter chamado nos prova que devia saber que a campainha comunicava com o quarto de um criado. Ora, quem poderia conhecer tal pormenor, senão uma pessoa da própria casa?
O círculo das suposições se restringia. Nalgumas frases rápidas, claras, lógicas, Ganimard punha o problema em seus verdadeiros dados; o pensamento do velho inspetor surgia nítido e pareceu natural que o juiz de instrução concluísse:
— Em suma, em duas palavras, suspeita de Antoinette Bréhat.
— Não suspeito, acuso.
— De ser cúmplice?
— Acuso-a de ter morto o general barão d'Hautrec.
— Essa não. Qual a prova?
— Este punhado de cabelos que descobri na mão direita da vítima, metido na sua carne, onde a ponta das unhas o afundou.
Mostrou os cabelos; eram de um louro vivo, irradiantes como fios de ouro, e Charles murmurou:
— São bem os cabelos da srta. Antoinette. Não dão lugar a engano.
E acrescentou:
— Depois, há outra coisa... Creio que a faca.... a que não voltei a ver na segunda vez... lhe pertencia... Servia-se dela para abrir as páginas dos livros.
O silêncio foi demorado e penoso, como se o crime ganhasse em horror por ter sido cometido por uma mulher. O juiz de instrução observou:
— Admitamos, até melhor informação, que o barão foi suprimido por Antoinette Bréhat. Falta explicar ainda que caminho teria ela tomado para sair depois do crime, entrar depois ?o sr. Charles deixar o local, e sair novamente antes da chegada do comissário. Tem Uma opinião sobre isso, sr. Ganimard?
— Nenhuma.
— E então?
Ganimard pareceu embaraçado. Por fim pronunciou, não sem um visível esforço:
— Tudo o que posso dizer é que encontro aqui um procedimento semelhante ao do caso do bilhete 514 — 23, o mesmo fenômeno que se poderia chamar de faculdade de desaparição. Antoinette Bréhat aparece e desaparece nesta casa tão misteriosamente quanto Arsène Lupin entrou no apartamento do advogado Detinan e dele fugiu em companhia da Dama Loura.
— O que quer dizer?
— O que quer dizer que não posso me impedir de pensar nessas coincidências pelo menos extraordinárias: Antoinette Bréhat foi contratada pela irmã Auguste há doze dias, isto é, no dia seguinte àquele em que a Dama Loura me escorria entre os dedos. Segunda: os cabelos da Dama Loura têm precisamente esta cor violenta, este brilho metálico de reflexos de ouro destes achados aqui.
— De modo que, segundo o sr., Antoinette Bréhat...
— Não é outra senão a Dama Loura.
— E que Lupin, em conseqüência, maquinou os dois casos?
— É o que penso.
Houve uma risada. Era o chefe da Süreté que se divertia.
— Lupin! sempre Lupin! Lupin em tudo, Lupin por toda parte!
— Ele está onde ele está — silabou Ganimard, ofendido.
— Mas é preciso que tenha motivos para estar em alguma parte — observou o sr. Dudouis, — e, na espécie, os motivos me parecem obscuros. A escrivaninha não foi arrombada, nem a carteira roubada. Ficou até ouro em cima da mesa.
— Sim — bradou Ganimard, — mas e o famoso diamante?
— Que diamante?
— O diamante azul! o célebre diamante que fazia parte da coroa dos reis da França e foi dado pelo duque de A... a Léonide L..., e, quando essa morreu, comprado pelo barão d'Hautrec em memória da brilhante atriz que tinha passionalmente amado. É uma dessas coisas que um velho parisiense como eu não esquece.
— É claro — disse o juiz de instrução — que, se o diamante azul não for encontrado, tudo se explica... Mas onde procurar?
— No próprio dedo do sr. barão — respondeu Charles.
— O diamante azul não saía de sua mão esquerda.
— Olhei essa mão — afirmou Ganimard se acercando da vítima — e como poderão confirmar não há nela mais do que um simples anel de ouro.
— Veja do lado da palma — interveio o criado. Ganimard abriu os dedos crispados. O engaste tinha sido virado para dentro e no coração dele resplendia o diamante azul.
— Droga — exclamou Ganimard, absolutamente desapontado, — não entendo mais nada.
— E desiste, espero, de suspeitar desse infeliz Lupin — brincou o sr. Dubois.
Ganimard se deu um tempo, pensou e respondeu de forma sentenciosa:
— É justamente quando não entendo mais que suspeito de Arsène Lupin.
Tais foram as primeiras constatações feitas pela justiça no dia seguinte a esse estranho crime. Constatações vagas, incoerentes e às quais a seqüência da instrução não trouxe nem coerência nem certeza. As idas e vindas de Antoinette Bréhat permaneceram de todo inexplicáveis, como as da Dama Loura, e nada mais se soube sobre a misteriosa criatura de cabelos de ouro que matara o barão d'Hautrec sem lhe tirar do dedo o fabuloso diamante da coroa real da França.
Mais que tudo, a curiosidade inspirada por ela dava ao crime o relevo de grande maleficência, a exasperar a opinião pública.
Os herdeiros do barão d'Hautrec só podiam se beneficiar com semelhante publicidade. Organizaram na avenida Henri-Martin, na própria mansão, uma mostra dos móveis e objetos que deviam ser vendidos na sala Drouot. Móveis modernos e de um gosto banal, objetos sem valor artístico... mas no centro da peça, sobre um pedestal coberto de veludo roxo, protegido por um globo de vidro e guardado por dois agentes, cintilava o anel do diamante azul.
Diamante magnífico, enorme, de uma incomparável pureza e desse azul indefinido que a água clara adquire ao refletir o céu, desse azul que se adivinha na brancura do linho. A assistência admirava, se extasiava... e olhava com susto o quarto da vítima, o lugar em que jazera o cadáver, com o soalho despido de seu tapete ensangüentado, e as paredes sobretudo, as paredes infranqueáveis, através das quais tinha passado a criminosa. Verificavam se o mármore da lareira não cedia, se a moldura do espelho não escondia uma mola destinada a fazê-lo girar. Imaginavam buracos abertos, orifícios de túneis, comunicações com os esgotos, as catacumbas...
A venda do diamante azul teve lugar na sala Drouot. A multidão se comprimia e a febre dos lances chegou à loucura.
Estava lá toda a Paris das grandes ocasiões, todos os que compram e todos os que desejam fazer crer que podem comprar, homens da Bolsa, artistas, damas das mais diversas categorias, dois ministros, um tenor italiano, e um rei no exílio que, para consolidar seu prestígio, se deu ao luxo de ir, com muito aprumo e uma voz vibrante, até os cem mil francos. Cem mil francos! podia oferecê-los sem se ver abalado. O tenor italiano arriscou cento e cinqüenta, um membro do Teatro Francês, cento e setenta e cinco.
Aos duzentos mil francos, porém, os amadores desanimaram. Aos duzentos e cinqüenta mil, só ficaram dois: Herschmann, o célebre financista, rei das minas de ouro, e a condessa de Crozon, a riquíssima americana, cuja coleção de diamantes e pedras preciosas era notória.
— Duzentos e sessenta mil... duzentos e setenta mil... setenta e cinco... oitenta... — proferia o leiloeiro, interrogando sucessivamente com o olhar os dois competidores... — Duzentos e oitenta mil para a senhora... Ninguém diz alguma coisa?...
— Trezentos mil — murmurou Herschmann.
Um silêncio. Observavam a condessa de Crozon. De pé, sorrindo, mas numa palidez que denotava sua perturbação, apoiava-se nas costas da cadeira à sua frente. Na realidade sabia, e todos os assistentes também sabiam, que o fim do duelo não era problemático: lógica e fatalmente devia terminar a favor do financista, cujos caprichos eram servidos por uma fortuna de mais de meio bilhão. No entanto ela articulou:
— Trezentos e cinqüenta mil.
Outro silêncio. Viraram-se para o rei das minas, na espera do inevitável sobrelance. Era certo que iria ocorrer, forte, brutal, definitivo.
Não ocorreu. Herschmann permaneceu impassível, com os olhos fitos numa folha de papel que tinha na mão direita, enquanto a esquerda guardava os restos de um envelope rasgado.
— Trezentos e cinqüenta mil — repetia o leiloeiro. — Uma vez?... duas vezes?... há ainda tempo... alguém diz alguma coisa?... Repito: uma vez?... duas vezes?...
Herschmann não se mexeu. Um último silêncio. O martelo bateu.
— Quatrocentos mil — bradou Herschmann, estremecendo, como se o ruído do martelo o tivesse arrancado de seu torpor.
Tarde demais. A venda era irrevogável.
Afluíram à volta dele. Que tinha acontecido? Por que não falara mais cedo? Pôs-se a rir.
— Que aconteceu? Palavra, não sei. Tive um minuto de distração.
— Será possível?
— Mas sim, uma carta que me entregaram.
— E esta carta bastou...
— Para me perturbar, sim, de momento.
Ganimard estava lá. Tinha assistido à venda do anel. Acercou-se de um dos rapazes da casa.
— Foi você, não, que entregou uma carta ao sr. Herschmann?
— Foi.
— Da parte de quem?
— De uma senhora.
— Onde está ela?
— Onde está?... Veja, sr., ali... Aquela de véu fechado.
— E que vai indo?
— Sim.
Ganimard correu para a porta e viu que a dama estava descendo já a escada. Tentou se apressar, mas uma onda de gente o deteve na entrada. Ao chegar lá fora, não a encontrou.
Voltou à sala e abordou Herschmann. Fez-se conhecer e o interrogou sobre a carta. Herschmann passou-a a ele. Continha, escritas a lápis às pressas, numa letra que o financista desconhecia, estas simples palavras:
"O diamante azul traz desgraças. Lembre-se do barão d'Hautrec."
As atribulações do diamante azul não tinham terminado; já conhecido pelo assassinato do barão d'Hautrec e pelos incidentes da sala Drouot, iria, seis meses mais tarde, alcançar a grande celebridade. No verão seguinte, com efeito, roubaram à condessa de Crozon a preciosa jóia que teve tanto trabalho em conquistar.
Resumamos esse curioso caso, cujas peripécias emocionantes e dramáticas nos apaixonaram a todos e sobre o qual me é permitido enfim lançar alguma luz.
Na noite de 10 de agosto, os hóspedes do sr. e da sra. de Crozon estavam reunidos no salão do magnífico castelo que domina a baía do Somme. Fez-se música. A condessa se pôs ao piano e deixou, num pequeno móvel perto do instrumento, suas jóias, entre as quais estava o anel do barão d'Hautrec.
Ao fim de uma hora, o conde se retirou, bem como seus dois primos, os d'Andelle, e a sra. de Real, uma amiga íntima da condessa de Crozon. Esta ficou sozinha com o sr. Bleichen, cônsul austríaco, e sua mulher.
Conversaram; logo a condessa apagou uma grande candeia sobre a mesa do salão, enquanto o sr. Bleichen apagava as duas do piano. Houve um instante de treva, um certo susto, mas o cônsul acendeu uma vela e os três foram para seus quartos. Mas ao chegar ao seu, a condessa se lembrou das jóias e mandou sua criada de quarto ir buscá-las. Esta voltou e as deixou sobre a lareira sem que a patroa as examinasse. No dia seguinte, a sra. de Crozon verificou que faltava um anel, o anel do diamante azul.
Advertiu o marido. Concluíram de imediato que, estando a criada de quarto acima de qualquer suspeita, o culpado só podia ser o sr. Bleichen.
O conde preveniu o comissário de Amiens, que abriu um inquérito e, discretamente, organizou a mais ativa vigilância para que o cônsul austríaco não pudesse nem vender nem despachar o anel.
Dia e noite agentes cercaram o castelo.
Transcorreram duas semanas sem o menor incidente. Anuncia a sua partida o sr. Bleichen e no mesmo dia uma queixa é feita contra ele. O comissário intervém oficialmente e ordena a revista das malas. Num pequeno saco, cuja chave o cônsul mantém sempre consigo, há um vidro de pó de sabão; nesse vidro, o anel!
A sra. Bleichen desmaia. O marido é preso.
Lembram o sistema de defesa adotado pelo acusado. Não podia se explicar — dizia — a presença do anel senão por uma vingança do sr. de Crozon. — O conde é brutal e torna sua mulher infeliz. Tive uma longa conversa com ela e lhe aconselhei vivamente o divórcio. A par disso, o conde se vingou pegando o anel e, na minha partida, introduzindo-o no meu conjunto de toalete.
O conde e a condessa mantiveram energicamente sua queixa. Entre a explicação que davam e a do cônsul, ambas igualmente possíveis e até igualmente prováveis, o público podia escolher. Nenhum fato novo veio fazer pender um dos pratos da balança. Um mês de mexericos, conjeturas e investigações não trouxe sequer um elemento de certeza.
Aborrecidos com todo aquele ruído, incapazes de produzir a prova evidente da culpa a justificar-lhes a acusação, o sr. e. a sra. de Crozon pediram que lhes enviassem de Paris um agente da Süreté apto a desembaraçar o fio do novelo. Enviaram Ganimard.
Durante quatro dias, o velho inspetor principal remexeu, mexericou, passeou no parque, teve longas palestras com a criada de servir, o chofer, os jardineiros, os empregados dos postos de correio vizinhos, visitou os apartamentos ocupados pelo casal Bleichen, os primos d'Andelle e a sra. de Real. Depois, uma manhã, desapareceu sem se despedir de seus hospedeiros.
Mas uma semana depois, recebiam este telegrama:
PEÇO-LHES VIREM AMANHA SEXTA, CINCO HORAS TARDE, AO CHÁ JAPONÊS, RUA BOISSY-D'ANGLAIS. GANIMARD.
Às cinco exatamente, na sexta, o auto deles estacionou diante do n.° 9 da rua Boissy-d'Anglais. Sem uma palavra de explicação, o velho inspetor que os aguardava na calçada guiou-os ao primeiro andar do Chá japonês.
Acharam numa das salas duas pessoas, que Ganimard lhes apresentou:
— O sr. Gerbois, professor no liceu de Versalhes, a quem, devem lembrar, Arsène Lupin roubou meio milhão; o sr. Léon-ce d'Hautrec, sobrinho e herdeiro universal do barão d'Hautrec.
Sentaram. Minutos depois, veio o chefe da Süreté.
O sr. Dudouis estava de mau humor. Cumprimentou e disse:
— Que é que há, Ganimard? Me deram na Central o seu recado telefônico. É coisa séria?
— É, chefe. Antes de uma hora, as últimas aventuras que venho acompanhando terão seu desfecho aqui. Pareceu-me que sua presença fosse indispensável.
— E a de Dieuzy e Folenfant também, não? Vi-os lá env baixo, perto da porta.
— Sim, chefe.
— E por que indispensável? Trata-se de prender alguém? Que encenação! Vamos, Ganimard, quero escutá-lo.
Ganimard hesitou uns instantes e logo articulou com a visível intenção de impressionar os interlocutores:
— De saída, afirmo que o sr. Bleichen nada teve a ver com o roubo do anel.
— Oh, oh! — fez Dudouis, — se trata de uma simples afirmação, e bem grave.
O conde perguntou:
— Apenas... a essa descoberta chegou o seu trabalho?
— Não, sr. Dois dias após o roubo, os acasos de uma excursão de auto levaram três de seus convidados até a vila de Crécy. Enquanto duas dessas pessoas iam visitar o famoso campo de batalha, a terceira foi às pressas ao posto de correio e despachou uma caixinha atada, lacrada segundo os regulamentos, com um valor declarado de cem francos.
O sr. de Crozon interveio:
— Nada de mais natural.
— Talvez lhe pareça menos natural que essa pessoa, em vez de dar o seu verdadeiro nome, tenha feito a expedição sob o de Rousseau, e que o destinatário, um sr. Beloux, residente em Paris, mudou-se na mesma tarde em que recebeu a caixinha, isto é, o anel.
— Foi talvez — interrogou o conde — um de meus primos d'Andelle?
— Não foram esses cavalheiros.
— Então a sra. de Real?
— Sim.
A condessa irrompeu, estupefata:
— Acusa a minha amiga, a sra. de Real?
— Uma pergunta simples, sra. — cortou Ganimard, — a sra. de Real assistiu à venda do diamante azul?
— Sim, mas do seu lado. Não estávamos juntas.
— Ela lhe aconselhou que comprasse o anel?
A condessa concentrou suas lembranças:
— Sim... de fato... Creio mesmo que foi ela a primeira que me falou.
— Anoto a sua resposta. Fica estabelecido que foi a sra. de Real a primeira que lhe falou nesse anel e que a induziu a comprá-lo.
— No entanto... minha amiga é incapaz...
— Perdão, perdão, a sra. de Real é uma amiga sua ocasional e não íntima como os jornais imprimiram, o que afastou dela as suspeitas. Conheceu-a neste inverno. Ora, me obrigo a lhe demonstrar que tudo o que lhe contou sobre ela mesma, seu passado, suas relações, é inteiramente falso, e que a sra. Blanche de Real não existia antes de se encontrar com a sra. e não existe mais neste momento.
— E daí?
— Daí! — fez Ganimard.
— Sim, toda essa história é bem curiosa, mas em que se aplica ao nosso caso? Se for certo que a sra. de Real pegou o anel, o que não está de modo algum provado, por que o teria escondido no pó dentifrício do sr. Bleichen? Que diabo! quando alguém se desse ao trabalho de furtar o diamante azul, seria para conservá-lo. Que tem a responder a isso?
— Eu, nada, mas a sra. de Real há de responder.
— Existe então?
— Existe... sem existir. É isto, em poucas palavras. Há três dias, lendo o jornal como faço diariamente, vi no alto da lista dos itinerantes em Trouville: "Hotel Beaurivage: Sra. de Real, etc." Compreendem que à tarde estava em Trouville interrogando o diretor do Beaurivage. Pela descrição e alguns indícios que obtive, essa sra. de Real era bem a pessoa que eu procurava, mas tinha partido, deixando seu endereço em Paris: rua do Coliseu, 3. Anteontem me apresentei nesse endereço e soube que não havia sra. de Real, mas mais simplesmente uma tal Real, que morava no segundo andar e comerciava com diamantes, ausentando-se seguidamente. Ainda na véspera, tinha chegado de viagem. Ontem bati à sua porta e ofereci a ela, sob um falso nome, meus serviços como intermediário junto a pessoas em situação de comprar pedras de valor. Hoje nos encontraremos aqui para um primeiro negócio.
— Como! está esperando-a?
— Às cinco e meia.
— E está certo de?...
— De ser a sra. de Real do castelo de Crozon? Tenho provas irrefutáveis. Mas... ouçam... o sinal de Folenfant...
Soara o trilo de um apito. Ganimard se ergueu.
— Não há tempo a perder. Sr. e sra. de Crozon, tenham a bondade de passar à peça ao lado. O sr. também, sr. d'Hautrec... e o sr. também, sr. Gerbois... A porta ficará aberta e, ao primeiro sinal, pedirei que intervenham. Fique, chefe, por favor.
— E se chegam outras pessoas? — observou o sr. Dudouis.
— Não. Este estabelecimento é novo e o patrão, um de meus amigos, não deixará subir ninguém, fora a Dama Loura.
— A Dama Loura? que está dizendo?
— Ela mesma, chefe, a cúmplice e amiga de Arsène Lupin, a misteriosa Dama Loura, contra quem tenho provas seguras, mas contra quem quero além disso, e diante do sr., reunir os testemunhos de todos os que ela espoliou.
Debruçou-se na janela.
— Aí vem... está entrando... Já não tem meio de escapar: Folenfant e Dieuzy guardam a porta... A Dama Loura é nossa, chefe!
Quase imediatamente, uma mulher parou no umbral, alta, delgada, com o rosto muito pálido e os cabelos de um louro violento.
Tal emoção sufocava Ganimard que ficou mudo, incapaz de articular uma palavra. Ali estava ela, à frente dele, à sua disposição! Que vitória sobre Arsène Lupin! E que revanche! Ao mesmo tempo essa vitória lhe parecia alcançada com tanta facilidade que se perguntava se a Dama Loura não ia lhe escapar das mãos, graças a um desses milagres em que Arsène Lupin era contumaz.
Ela esperava, porém, surpreendida com aquele silêncio e olhava em torno sem esconder sua preocupação.
— Vai partir! Vai desaparecer! — pensou Ganimard assustado.
Bruscamente se interpôs entre ela e a porta. Ela se virou e quis sair.
— Não, não — fez ele, — por que ir embora?
— Mas, enfim, sr., não estou entendendo essas maneiras. Deixe-me...
— Não há nenhuma razão para que se vá, sra., e muitas a0 contrário para que fique.
— No entanto...
— É inútil. Não sairá...
Muito pálida, ela se deixou cair numa cadeira e balbuciou:
— O que deseja?...
Ganimard triunfava. Pegara a Dama Loura. Senhor de si, pronunciou:
— Apresento-lhe o amigo de que lhe falei e que apreciaria comprar jóias... sobretudo diamantes. Conseguiu o que tinha me prometido?
— Não... não... não sei... não me lembro...
— Mas sim... Tente... Uma pessoa do seu conhecimento deveria nos enviar um diamante matizado... "algo como 'o diamante azul', eu disse rindo, e a sra. me respondeu: 'Precisamente, farei talvez o seu negócio.'" Lembra-se?
Ela calava. Um saquinho que levava na mão caiu. Apanhou-o com rapidez, apertando contra si. Seus dedos tremiam um pouco.
— Vamos — disse Ganimard, — vejo que não tem confiança em nós, sra. de Real. Vou lhe dar o bom exemplo e lhe mostrar o que possuo, eu.
Tirou da carteira um papel que desdobrou, mostrando uma mecha de cabelos.
— Em primeiro lugar, eis alguns cabelos de Antoinette Bréhat, arrancados pelo barão e recolhidos na mão do morto. Estive com a srta. Gerbois e reconheceu positivamente a cor dos cabelos da Dama Loura... da mesma cor dos seus aliás... exatamente da mesma cor.
A sra. Real o contemplou com um ar atontado, como se realmente não pegasse o sentido de suas palavras. Ele prosseguiu:
— E agora eis dois frascos de cheiro, sem etiqueta, é verdade, e vazios, mas ainda bem impregnados de odor para que a srta. Gerbois tenha podido, ainda esta manhã, neles distinguir o perfume da Dama Loura que foi sua companheira de viagem durante duas semanas. Ora, um desses frascos vem do quarto que a sra. de Real ocupou no castelo de Crozon; o outro, do quarto que você usou no hotel Beaurivage.
— Que está dizendo!... A Dama Loura... o castelo de Crozon.
Sem responder, o inspetor alinhou sobre a mesa quatro folhas.
— Enfim — disse, — eis, nestas quatro folhas, uma mostra da letra de Antoinette Bréhat, uma outra da mulher que escreveu ao barão Herschmann quando da venda do diamante azul, um outro da sra. de Real, em sua estada em Crozon, e o quarto... de você mesma, sra... é o seu nome e endereço dados pessoalmente ao porteiro do hotel Beaurivage em Trouville. Ora, compare as quatro letras. São idênticas,
— Mas está louco, sr! está louco! que significa tudo isso?
— Significa, sra. — bradou Ganimard num grande gesto, — que a Dama Loura, a amiga e cúmplice de Arsène Lupin, não é outra senão você.
Empurrou a porta da sala vizinha, precipitou-se sobre o sr. Gerbois e, pegando-o pelo ombro, trouxe à frente da sra. de Real:
— Sr. Gerbois, reconhece a pessoa que raptou sua filha e que viu em casa do advogado Detinan?
— Não.
Houve como que uma comoção de que cada um recebeu o choque. Ganimard vacilou.
— Não?... será possível?... Vamos, pense...
— Está pensado. Esta senhora é loura como a Dama Loura... pálida como ela... mas não se parece com ela de forma alguma.
— Não posso crer... um erro semelhante é inadmissível... Sr. d'Hautrec, reconhece Antoinette Bréhat?
— Vi Antoinette Bréhat em casa do meu tio... Não é ela.
— E esta senhora não é tampouco a sra. de Real — afirmou o conde de Crozon.
Era o tiro de misericórdia. Ganimard ficou atordoado e não mais se moveu, com a cabeça baixa, os olhos fugidios. De todas as suas combinações não restava nada. O edifício desmoronava.
O sr. Dudouis se levantou.
— Vai nos desculpar, sra., houve uma lastimável confusão que lhe peço o obséquio de esquecer. Mas o que não entendi bem foi a sua perturbação... sua atitude estranha desde que chegou.
— Meu Deus, sr., tive medo... Há mais de cem mil francos de jóias neste saco, e a atitude de seu amigo não era nada tranqüilizadora.
— Mas suas ausências contínuas?...
— Não é minha profissão que exige?
O sr. Dudouis nada tinha a contestar. Virou-se para o seu subordinado.
— Colheu suas informações com uma leviandade deplorável, Ganimard, e há instantes se conduziu em relação à sra. do modo mais desajeitado. Irá se explicar em meu gabinete.
A entrevista tinha terminado, e o chefe da Süreté se dispunha a ir embora quando ocorreu um fato realmente desconcertante. A sra. de Real se acercou do inspetor e lhe disse:
— Ouvi que se chama sr. Ganimard... Me enganei?
— Não.
— Nesse caso, esta carta deve ser para o sr. Recebi-a de manhã com o endereço que pode ler: "Sr. Justin Ganimard, aos cuidados da sra. de Real." Pensei que se tratasse de uma brincadeira, pois não o conhecia sob esse nome, mas sem dúvida este correspondente desconhecido sabia do nosso encontro marcado.
Justin Ganimard, por uma singular intuição, esteve prestes a pegar a carta e destruí-la. Diante de seu superior, não ousou e rasgou o envelope. A carta continha estas palavras que leu em voz apenas audível:
"Havia uma vez uma Dama Loura, um Lupin e um Ganimard. Ora, o malvado Ganimard queria fazer mal à bonita Dama Loura, mas o bom Lupin não queria que ele fizesse. Assim, o bom Lupin, desejando que a Dama Loura entrasse na intimidade da condessa de Crozon, fez que usasse o nome de sra. de Real, que é o mesmo, ou quase, de uma honesta comerciante cujos cabelos são dourados e o rosto pálido. E o bom Lupin se dizia: 'Se alguma vez o malvado Ganimard seguir a pista da Dama Loura, quão útil poderia me ser desviá-lo para a da honesta comerciante!' Prudente precaução e que dá seus frutos. Uma notinha enviada ao jornal do malvado Ganimard, um frasco de cheiro voluntariamente esquecido pela verdadeira Dama Loura no hotel Beaurivage, o nome e o endereço da sra. de Real escritos por essa verdadeira Dama Loura nos registros do hotel, e a peça está pregada. Que diz disso, Ganimard? Quis lhe contar a aventura em pormenor por saber que, com o seu espírito, será o primeiro a rir. De fato, ela é picante e confesso que, de minha parte, me diverti muitíssimo.
Obrigado, portanto, a você, caro amigo, e as melhores lembranças ao excelente sr. Dudouis.
Arsène Lupin."
— Mas ele sabe tudo! — gemeu Ganimard, que nem sequer sonhava em rir, — sabe coisas que eu não disse a ninguém! Como poderia saber que lhe pediria que viesse, chefe? Como saberia da minha descoberta do primeiro frasco?... Como pôde saber?...
Batia os pés no chão, arrancava os cabelos, presa de trágica exasperação.
O sr. Dudouis teve piedade dele.
— Vamos, Ganimard, resigne-se, buscaremos agir melhor na próxima vez.
E o chefe da Süreté saiu, acompanhado pela sra. de Real.
Transcorreram dez minutos. Ganimard lia e relia a carta de Lupin. Num canto, o sr. e a sra. Crozon, d'Hautrec e Gerbois palestravam animados. Enfim o conde avançou para o inspetor e lhe disse:
— De tudo isso redunda, caro sr., que não estamos mais adiantados do que antes.
— Perdão. Minha pesquisa estabeleceu que a Dama Loura é a indiscutível heroína dessas aventuras e que Lupin a dirige. É um grande passo.
— E que de nada serve. O problema se fez talvez até mais obscuro. A Dama Loura mata para furtar o diamante azul e não o furta. Rouba-o, para se desembaraçar dele em proveito de outrem.
— Que é que eu posso fazer?
— Nada, mas alguém talvez poderia...
— Que quer dizer?
O conde hesitou, mas a condessa tomou a palavra e foi clara:
— Existe um homem, um único depois do sr., segundo creio, que seria capaz de combater Lupin e de fazê-lo pedir misericórdia. Sr. Ganimard, lhe seria desagradável que solicitássemos a ajuda de Herlock Sholmes?
Ele se perturbou.
— Mas não... apenas... não entendo bem...
— Isto: estes mistérios todos me irritam. Quero ver claro. O sr. Gerbois e o sr. d'Hautrec têm o mesmo desejo e nos pusemos de acordo em nos dirigir ao célebre detetive inglês.
— Têm razão, sra. — disse o inspetor com uma lealdade que não era sem mérito. — Têm razão, o velho Ganimard não está à altura de lutar contra Arsène Lupin. Herlock Sholmes terá êxito? É o que desejo, pois tenho por ele a maior admiração... No entanto... é pouco provável...
— Que tenha êxito?
— É o que penso. Acho que um duelo entre Herlock Sholmes e Arsène Lupin é algo decidido de antemão. O inglês vai ser batido.
— Em todo caso, poderá ele contar consigo?
— Inteiramente, sra. Ele pode contar comigo sem reservas.
— Sabe o seu endereço?
— Sim, Parker Street, 219.
Na mesma tarde, o sr. e a sra. de Crozon desistiam de sua queixa contra o cônsul Bleichen e uma carta coletiva era dirigida a Herlock Sholmes.
Herlock Sholmes abre as hostilidades
— Que desejam os senhores?
— O que você desejar — respondeu Arsène Lupin, como homem a quem os detalhes da alimentação interessam pouco. — O que desejar, mas nem carne nem álcool.
O garçom se afastou com desdém. Exclamei:
— Como, ainda vegetariano?
— Cada vez mais — afirmou Lupin.
— Por gosto, crença ou hábito?
— Por higiene.
— E nunca uma infração?
— Oh, sim... quando vou a festas... para não me excetuar. Jantávamos os dois perto da estação do Norte, no fundo de um pequeno restaurante a que Arsène Lupin me chamara. Diverte-se assim, de tempos em tempos, em me marcar de manhã, pelo telefone, um encontro em algum canto de Paris. Mostra-se então sempre de uma verve inesgotável, feliz de viver, simples e bom menino; e sempre surge alguma inesperada anedota, alguma lembrança, a narrativa de uma aventura que eu ignorava.
Nessa noite me pareceu mais exuberante ainda que em geral. Ria e conversava com ímpeto incomum e a ironia fina que lhe é característica, ironia sem amargura, leve e espontânea. Era um prazer vê-lo assim e não pude deixar de lhe exprimir a minha satisfação.
— Ah, sim — exclamou, — tenho destes dias em que tudo me parece delicioso, em que a vida está em mim como um tesouro infinito que nunca conseguiria esgotar. E Deus sabe que vivo sem fazer economias.
— Talvez demais.
— Mas se lhe digo que o tesouro é infinito! Posso gastar e desperdiçar, posso atirar forças e juventude aos quatro ventos, que dou lugar a forças mais vivas e mais jovens... Enfim, minha vida, em verdade, é tão bela!... Basta querer, não é?, para me tornar de hoje para amanhã, que sei!, orador, dirigente de fábrica, homem político... Pois bem, lhe juro, a idéia nunca me viria! Arsène Lupin sou, Arsène Lupin permaneço. E busco em vão na história um destino comparável ao meu, mais rico, mais intenso... Napoleão? Sim, talvez... Mas o Napoleão do fim da carreira imperial, durante a campanha da França, quando a Europa o esmagava e ele se perguntava a cada batalha se não seria a última que dirigiria.
Falava sério ou brincava? O tom de sua voz se aqueceu e ele continuou.
— Tudo, veja, está no perigo, a ininterrupta impressão do perigo! Respirá-lo como ao ar, vê-lo em torno de si a soprar, rugir, espreitar, acercar-se... E no meio da tempestade, conservar-se calmo... não recuar!... Senão se estaria perdido... Só há uma sensação comparável a essa, a de quem guia numa corrida de auto. Mas essas corridas duram uma manhã e a minha dura a vida inteira!
— Que lirismo! — clamei... — E vai querer que eu acredite que não tem um motivo especial para essa exaltação...
Sorriu.
— Vá, tem finura psicológica. Há de fato outra coisa. Encheu de água fresca um copo grande, bebeu e me disse:
— Leu Le Temps de hoje?
— Ah, não.
— Herlock Sholmes deve ter atravessado esta tarde o canal da Mancha e chegado pelas seis horas.
— Diabo! E por quê?
— Uma viagenzinha que lhe oferecem os Crozon, o sobrinho do d'Hautrec e o Gerbois. Encontraram-se na estação do Norte e dali foram juntar-se a Ganimard. Neste instante os seis conferenciam.
Apesar da grande curiosidade que me inspira, nunca me permito interrogar Arsène Lupin sobre os atos de sua vida privada antes que ele próprio me fale deles. Da minha parte há aí um ponto de reserva sobre que não transijo. A esta altura, aliás, o seu nome não tinha ainda sido pronunciado, pelo menos oficialmente, a propósito do diamante azul. Tive, pois, paciência. Ele prosseguiu:
— Le Temps publica também uma entrevista do excelente Ganimard, pela qual uma certa dama loura, que seria minha amiga, teria assassinado o barão d'Hautrec e tentado subtrair à sra. de Crozon seu famoso anel. E, claro, ele me acusa de ser o instigador desses crimes.
Tive um leve tremor. Seria verdade? Deveria eu crer que o hábito do roubo, seu gênero de existência, e a lógica mesma dos acontecimentos tinham conduzido este homem até o crime? Observava-o. Parecia tão calmo, seus olhos tinham tal franqueza!
Examinei-lhe as mãos: possuíam um contorno tão delicado, eram de fato inofensivas, mãos de artista...
— Ganimard é um alucinado — murmurei. Protestou:
— Não, não, tem requinte... às vezes até espírito.
— Espírito!
— Sim, sim. Essa entrevista, por exemplo, é um golpe magistral. Primeiro, anuncia a chegada do seu rival inglês para me pôr de sobreaviso e lhe tornar a tarefa mais difícil. Segundo, precisa até que ponto levou o assunto, para que Sholmes não se beneficie mais que das próprias descobertas. Luta leal.
— Seja como for, ei-lo com dois adversários à frente, e que adversários!
— Oh! um não conta.
— E o outro?
— Sholmes? Oh, esse é de respeito. Mas é justamente o que me apaixona e o motivo por que me vê de tão bom humor. De saída, é uma questão de amor-próprio: imaginam que o célebre inglês sobra para me vencer. Em seguida, pense no prazer reservado a um lutador da minha espécie à idéia de um duelo com Herlock Sholmes. Enfim, vou ser obrigado a me empregar a fundo! Pois conheço o moço: não recuará um centímetro.
— Ele é forte.
— Muito. Como policial, não creio que tenha existido ou venha a existir outro parecido. Tenho apenas uma vantagem sobre ele: o fato de ele atacar e eu me defender. Meu papel é mais fácil. Além disso...
Sorriu imperceptivelmente e acabou a frase:
— Além disso, conheço seu modo de lutar e ele ignora o meu. E lhe guardo em segredo algumas estocadas que o farão meditar...
Batia na mesa com os dedos e largava suas frases curtas com ar maravilhado.
— Arsène Lupin contra Herlock Sholmes... A França contra a Inglaterra... Enfim Trafalgar será vingado!... O pobre!.. não desconfia que estou preparado... e um Lupin preparado...
Interrompeu-se de repente, sacudido por um acesso de tosse, e escondeu o rosto no guardanapo como alguém que se engasga.
— Miolo de pão? — perguntei. — Beba um pouco d'água.
— Não, não é isso — disse em voz sufocada.
— Que é então?
— Falta de ar.
— Quer que abram a janela?
— Não, vou sair, rápido, me dê meu sobretudo e o chapéu, vou embora...
— Que significa isso?...
— Estes dois caras que acabam de entrar... repare no maior... Quando sairmos, ande à minha esquerda de modo que ele não possa me ver.
— O que sentou atrás de você?
— Este... Por motivos pessoais, prefiro... Lá fora eu lhe explico.
— Mas quem é?
— Herlock Sholmes.
Fez um grande esforço sobre si mesmo, como se tivesse vergonha de sua agitação largou o guardanapo, bebeu um copo d'água, e me disse sorrindo, refeito:
— Engraçado, hem? Não me comovo fácil, mas esse imprevisto aparecimento...
— O que receia, já que ninguém pode reconhecê-lo através de todas as suas transformações? Eu mesmo, cada vez que o encontro, parece que estou diante de um novo indivíduo...
— Ele me reconhecerá — disse Arsène Lupin. — Só me viu uma vez,* mas senti que me via para o resto da vida, e enxergava, não a minha aparência sempre mutável, mas o ser mesmo que eu sou... E depois... depois não esperava por isso... que encontro extraordinário! Neste pequeno restaurante...
* "Arsène Lupin, ladrão de casaca", capítulo IX "Herlock Sholmes chega tarde demais". Publicado pela Nova Fronteira.
— Bem, vamos sair?
— Não... não...
— Que vai fazer?
— O melhor será agir francamente... me dirigir a ele.
— Nem pense nisso.
— Mas sim, penso. Além de que teria vantagem em interrogá-lo, em conhecer o que sabe... Ah, veja, tenho a impressão de que seus olhos fitam a minha nuca, meus ombros... que procura... se lembra...
Ele refletia. Percebi-lhe um sorriso de malícia no canto dos lábios. Logo, obedecendo, creio, a uma fantasia de sua natureza improvisadora mais que às necessidades da situação, ergueu-se de súbito, fez meia volta e, inclinando-se alegremente:
— Que acaso! É realmente sorte... Permita que lhe apresente um de meus amigos...
Um segundo ou dois, o inglês se perturbou, tendo a seguir um movimento instintivo, pronto a se lançar sobre Arsène Lupin. Este sacudiu a cabeça:
— Seria um erro... sem contar que o gesto não seria elegante... e tão inútil!...
O inglês se virou de um lado a outro, como se buscasse socorro.
— Isso também não — disse Lupin. — E tem certeza de estar qualificado para me prender? Vamos, mostre-se bom jogador.
Ser bom jogador no momento não era muito atraente. É provável, porém, que esse tenha sido o partido que pareceu melhor para o inglês, pois se semiergueu e apresentou friamente:
— O sr. Wilson, meu amigo e colaborador. O sr. Arsène Lupin.
O estupor de Wilson provocou hilaridade. Seus olhos encarquilhados e a boca toda aberta riscavam com dois traços o seu rosto cheio, brilhante e liso como uma maçã, em torno do qual o cabelo à escovinha e uma barba curta cresciam como ervas espessas e vigorosas.
— Wilson não esconde bastante o seu pasmo diante dos acontecimentos mais naturais do mundo — zombou Herlock Sholmes com algum sarcasmo.
Wilson balbuciou:
— Por que não o prende?
— Não reparou, Wilson, que este cavalheiro está colocado entre mim e a porta, a dois passos dela. Não teria tempo de levantar o dedo mínimo e ele já estaria lá fora.
— Não seja por isso — disse Lupin.
Fez a volta à mesa e se sentou de modo a que o inglês ficasse entre a porta e ele. Era se pôr à disposição do outro.
Wilson fitou Sholmes para saber se tinha o direito de admirar esse golpe de audácia. O inglês permaneceu impenetrável. Por fim, chamou:
— Garçom!
Esse veio e Sholmes ordenou:
— Sodas, cerveja e uísque.
A paz fora assinada... até nova ordem. Em pouco, os quatro sentados à mesma mesa, palestrávamos tranqüilamente.
Herlock Sholmes é um homem como não se topa todos os dias. Com uns cinqüenta anos, parece-se a um bom burguês que tivesse passado a vida numa escrivaninha, atualizando livros de contabilidade. Nada o distingue de um honesto cidadão de Londres, nem as suíças arruivadas, nem o queixo raspado, nem o aspecto um tanto pesado — nada, a não ser os olhos terrivelmente agudos, vivos, penetrantes.
Logo, é Herlock Sholmes, isto é, um fenômeno de intuição, observação, clarividência, engenhosidade. Dir-se-ia que a natureza se divertiu em pegar os dois tipos de policial mais extraordinários produzidos pela imaginação, o Dupin de Edgar Poe e o Lecoq de Gaboriau, para com eles fazer um novo, mais extraordinário ainda e mais irreal. E quando se ouve a narração dessas façanhas que o tornaram célebre no mundo inteiro, a gente se pergunta se ele mesmo, este Herlock Sholmes, não é um personagem lendário, um herói saído vivo do cérebro de um grande romancista, de um Conan Doyle, por exemplo.
Quando Arsène Lupin o inquiriu sobre a duração de sua estada, ele pôs a conversa em seu eixo real.
— Minha estada depende do senhor.
— Oh! — Lupin riu —, se dependesse de mim, lhe pediria o favor de voltar a tomar o barco esta noite mesmo.
— Esta noite é um pouco cedo, mas espero que dentro de oito ou dez dias...
— Tem tanta pressa assim?
— Estou com tanta coisa em andamento, o roubo do Banco Anglo-Chinês, o rapto de Lady Eccleston... Vejamos, sr. Lupin, crê que uma semana bastará?
— Com folga, se se limitar ao duplo caso do diamante azul. É, de resto, o período de tempo que preciso para tomar minhas precauções, se a solução desse duplo assunto lhe trouxer sobre mim vantagens perigosas para minha segurança.
— O certo — acrescentou o inglês — é que conto tomar essas vantagens no espaço de oito ou dez dias.
— E me fazer prender no décimo primeiro, talvez?
— No décimo, como último limite.
Lupin pensou e moveu a cabeça:
— Difícil... difícil...
— Difícil sim, mas possível, portanto certo...
— Absolutamente certo — afirmou Wilson, como se distinguisse claramente a longa série de operações que ia conduzir o seu colaborador ao resultado anunciado.
Herlock Sholmes sorriu:
— Wilson, que sabe do que fala, está aí para confirmar.
E continuou:
— É evidente que não tenho todos os trunfos na mão, por se tratarem de casos de já vários meses. Faltam-me elementos, os indícios em que costumo apoiar minhas pesquisas.
— Como manchas de lodo e cinzas de cigarro — articulou Wilson com importância.
— Mas além das notáveis conclusões do sr. Ganimard, tenho por mim todas as notícias dadas a propósito, todas as observações escolhidas, e, em conseqüência de tudo isso, algumas idéias pessoais sobre o tema.
— Alguns pontos de vista que nos foram sugeridos tanto pela análise como pela hipótese — acresceu Wilson sentencioso.
— Seria indiscreto — ousou Lupin no tom deferente que usava para falar a Sholmes — lhe perguntar a opinião geral que chegou a se formar?
Era de fato apaixonante ver estes dois homens na presença um do outro, de cotovelos na mesa, a discutir com grave tranqüilidade, como se tivessem de resolver um árduo problema ou entrar em acordo sobre um ponto controvertido. Era também de uma superior ironia, da qual ambos usufruíam a fundo, como diletantes e artistas. Wilson, então, vibrava de contente.
Herlock Sholmes encheu devagar o cachimbo, acendeu-o e falou:
— Considero este caso infinitamente menos complexo do que parece à primeira vista.
— Muito menos, de fato — juntou Wilson, eco fiel.
— Digo caso, no singular, porque para mim só há um. A morte do barão d'Hautrec, a história do anel e, não esqueçamos, o mistério do número 514 — série 23 não passam de aspectos diversos do que se poderia chamar o caso da Dama Loura. Ora, a meu ver, se trata simplesmente de descobrir o elo que une esses três episódios da mesma história, o fato que mostre a unidade dos três processos. Ganimard, cujo julgamento é um pouco superficial, vê essa unidade no poder de desaparição, ou de ir e vir permanecendo invisível. Tal ingerência do milagre não me satisfaz.
— E então?
— Então, segundo creio — enunciou Sholmes com nitidez —, a característica dessas três aventuras é o seu desígnio manifesto, embora até aqui não percebido, de levar o assunto a um terreno previamente escolhido por você. De sua parte, haveria nisso mais que um plano, uma necessidade, uma condição sine qua non de êxito.
— Poderá entrar em alguns detalhes?
— Fácil. Assim, desde o início do seu conflito com o senhor Gerbois, não era evidente que o apartamento do advogado Detinan era o lugar escolhido por você, o lugar inevitável em que cumpria que as pessoas se reunissem? Não haveria outro que lhe parecesse mais seguro, ao ponto de marcar ali, pode-se dizer publicamente, o encontro com a Dama Loura e a srta. Gerbois.
— A filha do professor — precisou Wilson.
— Agora falemos do diamante azul. Procurou apropriar-se dele desde que entrou na posse do barão d'Hautrec? Não. Toma o barão a casa do irmão: seis meses depois, surto de Antoinette Bréhat e a primeira tentativa. O diamante lhe escapa e a venda se organiza com grande ressonância na sala Drouot. Será livre essa venda? O colecionar mais rico pode estar certo de adquirir a jóia? Em absoluto. Na hora em que o banqueiro Herschmann vai levá-la, uma dama lhe faz passar uma carta de ameaça e é a condessa de Crozon, preparada, influenciada por essa mesma dama, que compra o diamante. Irá ele desaparecer em seguida? Não: faltam meios a você. Há um intervalo. Mas a condessa se instala em seu castelo. É o que estava esperando. O anel desaparece.
— Para reaparecer no pó dentifrício do cônsul Bleichen, estranha anomalia — objetou Lupin.
— Ora vamos — bradou Herlock, batendo com o punho na mesa —, não será a mim que contem tais balelas. Que tolos por elas se deixem levar, vá, não a velha raposa que eu sou.
— O que quer dizer?
— Quer dizer...
Sholmes deu-se um tempo, como a preparar seu efeito. Enfim disse:
— O diamante azul achado no pó dentifrício é falso. O verdadeiro, você guardou.
Arsène Lupin ficou um instante em silêncio e disse a seguir com simplicidade, de olhos fitos no inglês:
— Você é um temível homem.
— Temível, não é? — sublinhou Wilson, boquiaberto de admiração.
— Sim — afirmou Lupin —, tudo se esclarece, tudo toma seu verdadeiro sentido. Nem um só dos juízes de instrução, nem um dos jornalistas do setor que se dedicaram a esses casos foram tão longe na direção da verdade. Está milagroso de intuição e lógica.
— Bah! — fez o inglês, lisonjeado com a homenagem de um tal perito —, bastava pensar.
— Bastava saber pensar, e poucos sabem! Mas agora que o campo das suposições se restringiu e o terreno foi limpo...
— Bem, agora tenho apenas de descobrir que as três aventuras se desenrolaram na rua Clapeyron, 25, na avenida Henri-Martin, 134, e entre as paredes do castelo de Crozon. Todo 0 caso está aí. O resto são ninharias e charada pueril. Não pensa assim?
— Penso.
— Nesse caso, sr. Lupin, erro em repetir que dentro de dez dias a minha tarefa estará acabada?
— Em dez dias, sim, saberá toda a verdade.
— E você será preso.
— Não.
— Não?
— Para que eu fosse preso teria de se dar um concurso tão inverossímil de circunstâncias, uma série tão estupefaciente de azares, que não chego a admitir essa eventualidade.
— O que não podem nem as circunstâncias nem os azares, a vontade e a obstinação de um homem poderão, sr. Lupin.
— Se a vontade e a obstinação de outro homem não opuserem a esse desígnio um obstáculo invencível, sr. Sholmes.
— Não há obstáculo invencível, sr. Lupin.
O olhar que trocaram foi profundo, sem provocação nem de um nem de outro, mas calmo e audaz. Como a batida de duas espadas antes do duelo, soava claro e franco.
— Enfim! — bradou Lupin —, eis alguém! Um adversário, que pássaro raro, e tinha de ser Herlock Sholmes! Vamos nos divertir.
— Não tem medo? — perguntou Wilson.
— Quase, sr. Wilson, e a prova — disse Lupin se levantando — é que vou apressar minhas ordens de retirada... sem o que me arriscaria a ser pegado em casa. Digamos então dez dias, sr. Sholmes?
— Dez dias. Hoje é domingo. Quarta, às oito, tudo estará terminado.
— E eu detrás das grades?
— Sem a menor dúvida.
— Ih, logo eu que gozava a minha vida pacífica. Sem problemas, uma boa seriezinha de negócios, a polícia extraviada, e a reconfortante impressão da simpatia universal que me cerca... E vai ser preciso alterar tudo isso! Enfim é o outro lado da medalha... Depois do bom tempo, a chuva... Já não se trata de rir. Adeus.
— Ande — disse Wilson, muito solícito com um indivíduo a quem Sholmes inspirava tanta consideração —, não perca um minuto.
— Nem um minuto, sr. Wilson; apenas o tempo de lhes dizer quanto me alegrou este encontro e quanto invejo o mestre por ter um colaborador precioso como o senhor.
Saudaram-se cortesmente, como dois adversários a que não separa qualquer ódio, mas que o destino obriga a se baterem sem mercê. E Lupin, me pegando pelo braço, me levou para fora.
— Que achou, meu caro? Eis uma ceia cujos incidentes farão bom efeito nas memórias que prepara sobre mim.
Fechou a porta do restaurante e, parando uns passos à frente:
— Fuma?
— Não, mas você também não, me parece.
— Eu também não.
Acendeu um cigarro com a ajuda dum fósforo-Vela que sacudiu várias vezes para apagar. Mas em seguida jogou fora o cigarro, atravessou veloz a rua e se reuniu a dois homens que surgiram da sombra como chamados por um sinal. Falou uns minutos com eles na calçada oposta e voltou a mim.
— Peço-lhe perdão, este endemoninhado Sholmes vai me causar dificuldades. Mas lhe garanto que não acabou com Lupin... Ah, o danado, vai ver de que estofo sou feito... Até logo... O inefável Wilson tem razão, não posso perder um minuto.
Afastou-se ligeiro.
Terminou assim a estranha noitada, ou ao menos a parte dela a que estive presente. Pois ocorreram durante as horas seguintes muitos outros acontecimentos, que as confidencias dos convivas daquela ceia felizmente me permitiram reconstituir em pormenor.
No próprio instante em que Lupin me deixou, Herlock Sholmes tirou o relógio e por sua vez se levantou.
— Nove menos vinte. Às nove, devo encontrar o conde e a condessa na estação.
— Em marcha! — exclamou Wilson, engolindo em duas goladas duas porções de uísque.
Saíram.
— Wilson, não se vire... Talvez estejam nos seguindo; nesse caso, nos comportemos como se isso não nos importasse... Diga, Wilson, me dê sua opinião: por que estava Lupin neste restaurante?
Wilson não hesitou.
— Para comer.
— Wilson, quanto mais trabalhamos juntos, mais percebo a continuidade de seus progressos. Palavra, você surpreende.
Na sombra, Wilson enrubesceu de prazer e Sholmes continuou:
— Para comer, vá, e em seguida, provavelmente, para se certificar se vou a Crozon como anunciou Ganimard na sua entrevista. Vou, portanto, a fim de não contrariá-lo. Mas como se trata de ganhar tempo em relação a ele, não vou.
—Ah! — fez Wilson estupefato.
— Você, amigo, siga por esta rua, tome um carro, dois, três carros. Mais tarde volte para buscar as malas que deixamos no depósito e, correndo, vá até o Elysée-Palace.
— E ali?
— Peça um quarto, onde se deitará e dormirá profundamente, aguardando minhas instruções.
Wilson, orgulhoso do importante papel que lhe era atribuído, foi embora. Herlock Sholmes pegou sua passagem e dirigiu-se ao expresso de Amiens, em que o conde e a condessa de Crozon já estavam instalados.
Contentou-se em cumprimentá-los, acendeu um segundo cachimbo e fumou calmamente, de pé no corredor.
O trem partiu. No fim de dez minutos, veio sentar-se ao lado da condessa e lhe disse:
— Tem aí o seu anel, senhora?
—Sim.
— Tenha a bondade de me emprestar.
Pegou-o e examinou.
— É bem o que pensava, diamante reconstituído.
— Diamante reconstituído?
— Um novo processo, que consiste em submeter poeira de diamante a uma temperatura enorme, de modo a obter a fusão e reconstituí-la numa só pedra.
— Como! Mas o meu diamante é verdadeiro.
— O seu, sim, mas este não é o seu.
— Onde está o meu?
— Nas mãos de Arsène Lupin.
— E este aqui?
— Este foi substituído pelo seu e metido no frasco do senhor Bleichen, onde o acharam.
— Então é falso?
— Perfeitamente falso.
Atônita, transtornada, a condessa se calou, enquanto o marido, incrédulo, girava e regirava o anel em todos os sentidos. Ela acabou balbuciando:
— Será possível! Mas por que não o roubaram simplesmente? E como o pegaram?
— É justamente o que vou procurar esclarecer.
— No castelo de Crozon?
— Não, desço em Creil e volto a Paris. É ali que se dará a partida entre Arsène Lupin e mim. Os golpes vão valer para um lugar e outro, mas é preferível que Lupin me julgue em viagem.
— Mas...
— Que lhe importa, senhora? O essencial é o seu diamante, não é?
— É.
— Pois bem, esteja tranqüila. Tomei há pouco um compromisso bem mais difícil de cumprir. Palavra de Herlock Sholmes, lhe devolverei o verdadeiro diamante.
O trem diminuía a marcha. Pôs o falso diamante no bolso e abriu a porta. O conde gritou:
— Está descendo do lado errado!
— Desse modo, se Lupin mandou me vigiar, vão perder o meu rastro. Adeus.
Um empregado protestou em vão. O inglês dirigiu-se ao escritório da estação e, cinqüenta minutos depois, saltava dum trem que o trouxera de volta a Paris.
Faltava um pouco para a meia-noite. Atravessou rápido a estação, entrou no refeitório, saiu por outra porta e pegou às pressas um carro.
— Cocheiro, rua Clapeyron.
Tendo obtido a certeza de não ser seguido, fez parar o veículo no começo da rua e se entregou a um minucioso exame da casa do advogado Detinan e dos dois prédios vizinhos. Com passos regulares, mediu algumas distâncias, inscrevendo notas e cifras na sua caderneta.
— Cocheiro, avenida Henri-Martin.
Na esquina da avenida com a rua Pompe, pagou o homem e seguiu pela calçada até o 134, recomeçando as mesmas operações diante da mansão do barão d'Hautrec e dos dois imóveis de aluguel aos lados, medindo a largura das respectivas frentes e calculando a profundidade dos jardinzinhos que precedem a linha das fachadas.
A avenida estava deserta e muito escura com suas quatro filas de árvores, entre as quais, de longe em longe, um bico de gás parecia lutar em vão contra a densidade das trevas. Um deles projetava uma pálida luz sobre uma parte da casa e Sholmes viu o cartaz "aluga-se" preso ao portão, as duas aléias descuidadas em torno do pequeno gramado e as amplas janelas vazias da mansão matutada.
— É fato — pensou —, depois que o barão morreu, não houve inquilinos... Ah, se eu pudesse entrar e fazer uma primeira visita!
Bastou a idéia lhe aflorar para que quisesse pô-la em execução. Mas como? A altura do portão impossibilitava uma tentativa de escalá-lo. Tirou do bolso uma lanterna elétrica e uma chave universal que tinha sempre consigo. Para sua surpresa, viu que um dos batentes estava entreaberto. Deslizou para o jardim, tendo o cuidado de não fechá-lo. Não deu três passos, se deteve. Por uma das janelas do segundo andar passara um clarão.
E voltou a passar por uma segunda e uma terceira janela, sem que pudesse ver mais que a sombra de um vulto nas paredes dos quartos. Do segundo andar a luz desceu ao primeiro e, por bom tempo, andou de peça em peça.
— Quem, diabo, pode estar andando a uma da manhã na casa em que o barão d'Hautrec foi morto? — se indagou Herlock, interessadíssimo.
Não havia outro meio de saber senão entrando. Não hesitou. Mas no momento em que, para chegar à escada da entrada, passou pela faixa de claridade lançada pelo bico de gás, o homem decerto o notou, pois o clarão se extinguiu de repente e Herlock Sholmes não tornou a vê-lo.
Suavemente, empurrou a porta da entrada. Estava também aberta. Não ouvindo qualquer ruído, arriscou-se no escuro, deu com o corrimão da escada e subiu um andar. E sempre o mesmo silêncio, a mesma escuridão.
Do patamar da escada penetrou numa peça e se acercou da janela, branqueada um pouco pela luz da noite. Percebeu lá fora o homem que, tendo sem dúvida descido por outra escada e saído por outra porta, se esgueirava à esquerda, ao longo dos arbustos do muro de separação entre os dois jardins.
— Arre — se disse Sholmes —, vai escapar! Precipitou-se pela escada e saiu para lhe cortar a fuga.
Mas não viu mais ninguém e precisou de alguns segundos para discernir entre os arbustos uma massa mais sombria não inteiramente imóvel.
Refletiu. Por que o sujeito não tinha tentado fugir quando lhe era tão fácil? Tinha ficado ali para vigiar por sua vez o intruso que viera perturbar sua misteriosa tarefa?
De qualquer modo, pensou, não é Lupin. Lupin seria mais destro. É alguém do bando.
Longos minutos transcorreram. Herlock não se mexia, de olhar fito no adversário que o espionava. Como este também não se mexia, e o inglês não era homem de mofar na inação, verificou se o tambor de seu revólver funcionava, tirou seu punhal da bainha, e caminhou direto ao inimigo com essa audácia fria e esse desprezo ao perigo que o tornam tão temível.
Um ruído seco: o sujeito engatilhava o revólver. Herlock se atirou bruscamente na espessura verde. O outro não teve tempo de se desviar, já o inglês estava sobre ele. Houve uma violenta, desesperada luta, durante a qual Herlock adivinhava o esforço do homem para tirar a sua própria faca. Mas Sholmes, vibrando com a idéia de sua próxima vitória, no louco desejo de se apoderar na primeira hora desse cúmplice de Arsène Lupin, sentia em si forças irresistíveis. Derrubou o adversário e largou todo seu peso em cima. Imobilizando-o com os cinco dedos plantados na garganta do infeliz como os dentes de uma serra, com a mão livre pegou a lanterna elétrica, apertou o botão e projetou a luz sobre o rosto do cativo.
— Wilson! — bradou, aterrorizado.
— Herlock Sholmes! — balbuciou uma voz estrangulada, cavernosa.
Ficaram muito tempo um diante do outro sem falar, ambos anulados, de cérebro vazio. A buzina de um auto rasgou o ar. Uma brisa agitou as folhas. E Sholmes não se movia, com os cinco dedos cravados na garganta de Wilson que exalava um estertor cada vez mais débil.
Súbito Herlock, tomado de cólera, largou o amigo, mas para pegá-lo pelos ombros e sacudir com exaspero.
— Que está fazendo aí? Responda. O quê? Será que eu lhe disse que se metesse entre as folhagens para me espionar?
— Espionar você — gemeu Wilson. — Mas não sabia que era você.
— Então o quê? Que está fazendo aqui? Devia ir se deitar.
— Deitei.
— Dormisse!
— Dormi.
— Não se acordasse!
— A sua carta...
— Minha carta?...
— Sim, a que um mensageiro me levou ao hotel de sua parte.
— De minha parte? Está louco?
— Juro.
— Onde está essa carta?
O amigo lhe estendeu uma folha de papel. A luz de sua lanterna, leu com estupor:
"Wilson, fora da cama, e corra à avenida Henri-Martin. A casa está vazia. Entre, inspecione, desenhe uma planta exata e volte a se deitar. — Herlock Sholmes."
— Estava medindo as peças — disse Wilson — quando percebi uma sombra no jardim. Só tive uma idéia...
— Apoderar-se da sombra... A idéia era excelente. Apenas, veja — disse Herlock, ajudando o companheiro a se erguer e andar —, de outra vez, Wilson, ao receber uma carta minha, certifique-se primeiro que a minha letra não foi imitada.
— Mas então — Wilson começou a entrever a verdade —, a carta não era sua?
— Ai, não.
— De quem era?
— De Arsène Lupin.
— Mas com que fim a escreveu?
— Ah, isso não sei e é justamente o que me preocupa. Por que teria se dado o trabalho de incomodá-lo? Ainda se fosse a mim era compreensível, mas você... Me pergunto que interesse...
— Tenho pressa de voltar para o hotel.
— Eu também, Wilson.
Chegavam ao portão. Wilson, que ia à frente, pegou uma grade e puxou.
— Oh — disse —, você fechou?
— Em absoluto, deixei o batente bem aberto.
— No entanto.
Herlock puxou por sua vez e, assustado, lançou-se sobre a fechadura. Uma praga lhe escapou.
— Com todos os demônios, está fechada! fechada à chave! Sacudiu o portão com toda força. Entendendo a inanidade de seus esforços, deixou cair os braços, desanimado, e pronunciou em voz áspera:
— Agora me explico tudo, é ele! Previu que eu desceria em Creil e me armou aqui uma bonita ratoeirinha para o caso de eu vir começar minha pesquisa por cá esta noite. Teve além disso a gentileza de me enviar um companheiro de prisão. Tudo isso para me fazer perder um dia e também, sem dúvida, para me provar que andaria melhor se tratasse só dos meus assuntos...
— Quer dizer que somos seus prisioneiros.
— Disse a palavra. Herlock Sholmes e Wilson são os prisioneiros de Arsène Lupin. A aventura começa esplendidamente... Mas não, não, não é admissível...
Uma mão caiu no seu ombro, a de Wilson.
— Lá em cima, olhe lá em cima... uma luz...
De fato, uma das janelas do primeiro andar estava iluminada.
Ambos correram, cada um por sua escada, e se acharam ao mesmo tempo na entrada do quarto com luz. No meio da peça ardia um coto de vela. Ao lado havia um cesto, de que emergiam o gargalo de uma garrafa, as coxas de um frango assado e a metade de um pão.
Sholmes deu uma risada.
— Que maravilha, nos dão a ceia. É o palácio dos encantos, um espetáculo mágico! Vamos, Wilson, não faça esta cara de enterro. Tudo isso é muito engraçado.
— Tem certeza de que é muito engraçado? — gemeu Wilson, lúgubre.
— Se tenho! — exclamou Sholmes, com uma alegria excessiva para ser natural. — Nunca vi nada de mais engraçado. Da melhor comédia. Que mestre da ironia este Arsène Lupin!... Passa-o para trás, mas com tanta graça!... Não daria meu lugar neste festim por todo o ouro do mundo... Wilson, velho amigo, você me preocupa. Me enganei e você não tem essa nobreza de caráter que ajuda a suportar o infortúnio? De que se lamenta?... Neste momento poderia estar com o punhal na garganta... ou eu com o seu na minha... pois era o que tentava, meu amigo.
A força de humor e sarcasmos, conseguiu reanimar o pobre Wilson e fazê-lo engolir uma coxa de frango e um copo de vinho. Mas quando a vela terminou e tiveram, para dormir, de se estender no soalho e tomar a parede como travesseiro, o aspecto penoso e ridículo da situação se evidenciou e foi um sono triste.
De manhã Wilson despertou cansado e transido de frio. Um leve ruído atraiu sua atenção: Herlock Sholmes, de joelhos, curvado em dois, observava com a lente os grãos de pó e acentuava marcas de giz branco, quase apagadas, a formar cifras — cifras que anotava na caderneta.
Secundado por Wilson, a quem esse trabalho interessava de modo especial, examinou cada peça e em duas outras constatou os mesmos sinais a giz. Anotou ainda dois círculos em almofadas de madeira, uma flecha num lambri e quatro cifras em quatro degraus da escada.
No fim de uma hora Wilson lhe disse:
— As cifras são exatas, não é?
— Não tenho idéia — respondeu Herlock, a quem essas descobertas tinham devolvido o bom humor. — De qualquer forma, significam alguma coisa.
— Alguma coisa bem clara — disse Wilson —, representam o número de tábuas de soalho.
— Ah!
— Sim. Quanto aos dois círculos, indicam que as almofadas são ocas, como pode se certificar, e a flecha está dirigida no sentido da subida do elevador de pratos.
Herlock Sholmes fitou-o maravilhado.
— Meu bom amigo, como sabe tudo isso? Sua clarividência me deixa quase com vergonha.
— Oh, é simples — disse Wilson, inchado de satisfação. — Fui eu que fiz estas marcas ontem de noite, seguindo suas instruções... ou antes seguindo as de Lupin, já que a carta que você me mandou é dele.
Talvez neste instante Wilson tenha corrido um perigo maior do que durante a luta nos arbustos com Sholmes. Teve este um desejo feroz de estrangulá-lo. Dominando-se, esboçou uma careta que queria ser um sorriso e falou:
— Perfeito, perfeito, eis uma excelente tarefa e que muito nos adianta. Seu admirável espírito de análise e observação aplicou-se a outros pontos? Quero aproveitar os resultados obtidos.
— Não deu, fiquei nisso aí.
— Que pena! O início prometia. Mas, já que é assim, não temos mais do que ir embora.
— Ir embora! Como?
— Pelo modo habitual das pessoas que se vão: pela porta.
— Está fechada.
— Vão abri-la.
— Quem?
— Chame aqueles dois guardas que passam pela avenida.
— Mas...
— Mas o quê?
— É humilhante... O que vão dizer quando souberem que Herlock Sholmes e eu, Wilson, fomos prisioneiros de Arsène Lupin?
— Que quer, meu caro, vão rir sem freio — respondeu Herlock com a voz seca e o rosto contraído. — Mas não podemos fixar domicílio nesta casa.
— Não vai tentar nada?
— Nada.
— No entanto o homem que nos trouxe o cesto de provisões não atravessou o jardim nem ao chegar nem ao partir. Existe portanto outra saída. Vamos procurá-la e não teremos necessidade de recorrer aos guardas.
— Bem pensado. Apenas esquece que essa saída toda a polícia de Paris procurou durante seis meses e que eu próprio, enquanto você dormia, percorri a mansão de alto a baixo. Ah, meu bom Wilson, Arsène Lupin é uma presa a que não estamos acostumados. Esse não deixa nada atrás de si...
Às onze horas, Herlock Sholmes e Wilson foram liberados... e conduzidos ao posto policial mais perto, onde o comissário, depois de interrogá-los severamente, os soltou com um exasperado fingimento de consideração.
— Estou mortificado, senhores, pelo que lhes aconteceu. Vão ter uma triste opinião da hospitalidade francesa. Meu Deus, que noite devem ter passado! Ah! este Lupin devia ter mais respeito.
Um carro os levou ao Elysée-Palace. Na portaria, Wilson pediu a chave do quarto.
Após algumas buscas, o empregado respondeu, muito surpreso:
— Mas, senhor, já entregou este quarto.
— Eu! E como?
— Por sua carta desta manhã, que o seu amigo veio trazer.
— Que amigo?
— O que nos trouxe a sua carta... Olhe, seu cartão de visita veio junto. Veja.
Wilson pegou os papéis. Era de fato um de seus cartões de visita e, na carta, lá estava a sua letra.
— Magnânimo Senhor! — murmurou — outro golpe baixo. E continuou, ansioso:
— E as bagagens?
— Mas o seu amigo as levou.
— Ah!... e deu a ele?
— Claro, sua carta autorizava.
— Realmente... realmente...
Partiram os dois sem rumo pelos Champs-Elysées, silenciosos e lentos. Um belo sol de outono clareava a avenida. O ar era doce e leve.
Na praça circular em que vão dar várias ruas, Herlock acendeu o cachimbo e voltou a caminhar. Wilson clamou:
— Não o entendo, Sholmes, é de uma calma! Zombam de você, brincam com você como um gato com um rato... E não diz nada!
Sholmes se deteve.
— Estou pensando, Wilson, no seu cartão de visita.
— E daí?
— Daí termos um homem que, prevendo uma possível luta conosco, conseguiu mostras de sua letra e da minha e possui, prontinho na carteira, um de seus cartões. Pense no que isso representa de precaução, vontade perspicaz, organização, método.
— Quer dizer?...
— Quer dizer, Wilson, que para combater um inimigo tão armado, tão maravilhosamente preparado, e para vencê-lo, é preciso ser... é preciso ser eu. E ainda assim, como vê, Wilson — acrescentou, rindo —, não se tem êxito na primeira tentativa.
Às seis horas, L'Echo de France, na edição vespertina, publicava esta nota:
"Esta manhã, o sr. Thénard, comissário de polícia do XVIo Distrito, liberou os srs. Herlock Sholmes e Wilson, encerrados por solicitude de Arsène Lupin na mansão do falecido barão d'Hautrec, onde passaram uma noite excelente.
Aliviados além disso de suas malas, ingressaram com uma queixa contra Arsène Lupin.
Arsène Lupin que, desta vez, se contentou em lhes infligir uma pequena lição, suplica a ambos que não o forcem a medidas mais graves."
— Bah! — fez Herlock Sholmes, amarrotando o jornal —, puerilidades! É a única censura que tenho a fazer a ele... excessiva criancice. A galeria conta demais para Lupin... Há algo de menino neste homem!
— De modo, Herlock, que continuas na mesma calma?
— Sempre a mesma calma — replicou Sholmes num tom em que fervia a maior cólera. — De que serve me irritar? ESTOU TÃO CERTO DE QUE TEREI A ULTIMA PALAVRA!
Por firme que seja o caráter de um homem — e Sholmes era dos que a adversidade não desencoraja — existem, porém, circunstâncias' em que o mais intrépido experimenta a necessidade de reunir forças antes de afrontar outra vez os azares de uma luta.
— Hoje faço feriado — disse.
— E eu?
— Você, Wilson, comprará ternos e roupa interior para refazer o nosso guarda-roupa. Durante esse tempo eu descanso.
— Descanse, Sholmes, que eu sigo vigilante.
Wilson disse isso com a importância de uma sentinela de vanguarda exposta aos maiores perigos. Encheu o peito e retesou os músculos. Com olhar agudo, perscrutou o espaço do quartinho de hotel onde tinham fixado domicílio.
— Vá vigiando, Wilson, que aproveitarei para preparar um plano de campanha mais adequado ao adversário que temos pela frente. Pois veja, nos enganamos sobre Lupin. É preciso retomar as coisas desde o início.
— Antes mesmo, se possível. Temos tempo?
— Nove dias, camarada! São cinco de sobra.
O inglês passou a tarde a fumar e a dormir. Só no dia seguinte começou suas operações.
— Wilson, estou pronto, agora iremos para frente.
— Iremos — ecoou Wilson, cheio de ardor marcial. — Por mim confesso que sinto as pernas já formigar.
Sholmes teve três longas entrevistas. Primeiro, com o advogado Detinan, cujo apartamento estudou nos menores detalhes. Logo com Suzanne Gerbois, a quem por telegrama pediu que viesse vê-lo e interrogou sobre a Dama Loura. Enfim com a irmã Auguste, em retiro num convento da Visitação desde o assassinato do barão d'Hautrec.
Nas visitas, Wilson esperava fora e cada vez perguntava:
— Satisfeito?
— Muito satisfeito.
— Contava com isso, estamos no bom caminho. Marchemos. Marcharam bastante. Foram aos dois imóveis que ladeiam a mansão da avenida Henri-Martin, depois seguiram para a rua Clapeyron; e ao examinar a fachada do número 25, Sholmes observou:
— É evidente que existem passagens secretas entre todas essas casas... O que não entendo...
Pela primeira vez, Wilson no íntimo duvidou da onipotência do seu genial colaborador. Por que falaria tanto e agiria tão pouco?
— Por quê? — respondeu Sholmes à dúvida visível do amigo — porque com este demônio do Lupin trabalha-se no vazio, às apalpadelas, e em vez de extrair a verdade de fatos precisos, tem-se de tirá-la do próprio cérebro, para a seguir verificar se se adapta aos acontecimentos.
— E as passagens secretas?
— Daí? Mesmo que as conhecesse, e conhecesse quem permitiu a Lupin entrar em casa de seu advogado ou por onde passou a Dama Loura depois do assassinato do barão, estaria mais adiantado? Isso me daria mais armas para atacá-lo?
— Ataquemos sempre — bradou Wilson.
Não tinha acabado de falar e recuou, com um grito. Algo acabara de cair a seus pés, um saco cheio de areia pela metade e que teria podido feri-los seriamente.
Sholmes ergueu a cabeça. Acima deles, operários trabalhavam num andaime preso à sacada do quinto andar.
— Bom, tivemos sorte — disse — um passo a mais e receberíamos na cabeça o saco de um desses incapazes. Em verdade se diria.
Interrompeu-se, correu ao prédio, subiu os cinco andares, bateu na porta, irrompeu no apartamento e, com grande susto do criado, foi à sacada. Não havia ninguém.
— Os operários que estavam aqui?... — dirigiu-se ao criado.
— Acabam de ir embora.
— Por onde?
— Pela escada de serviço.
Sholmes se inclinou e viu dois homens que saíam do prédio e pegavam suas bicicletas. Montaram nelas e desapareceram.
— Há muito que vinham trabalhando neste andaime?
— Esses, desde esta manhã. Eram novos.
Sholmes foi ao encontro de Wilson e voltaram melancólicos para o hotel.
O segundo dia terminou em morno mutismo.
No dia seguinte, o programa foi o mesmo. Sentaram no banco costumeiro da avenida Henri-Mártin e, para o desespero de Wilson que não se divertia nada, houve uma interminável contemplação dos três imóveis.
— Que aguarda, Sholmes? Que Lupin saia de uma dessas casas?
— Não.
— Que a Dama Loura apareça?
— Não.
— Então?
— Aguardo que um fato se produza, qualquer pequeno fato que me sirva de ponto de partida.
— E se não se produz?
— Nesse caso, há de se produzir algo em mim, uma faísca que ateie fogo ao madeirame.
Apenas um incidente quebrou a monotonia desta manhã, mas de modo antes desagradável.
O cavalo de um senhor, que ia pela aléia entre os dois pavimentos da avenida, desembestou e veio bater no banco em que estavam sentados, aflorando com os quartos o ombro de Sholmes.
— Eh, eh! — defendeu-se este —, um pouco mais e me quebra o ombro!
O senhor se debatia com o cavalo. O inglês puxou o revólver e mirou. Mas Wilson lhe pegou o braço com viveza.
— Está louco, Herlock! O que é isso!... Vai matar este cavalheiro?
— Largue-me, Wilson... Largue!
Houve um desforço, durante o qual o senhor dominou o animal e tomou distância.
— Atire agora — exclamou Wilson triunfante, quando o cavaleiro já estava longe.
— Mas não entende, imbecil, que era um cúmplice de Arsène Lupin?
Sholmes tremia de cólera. Wilson, lastimável, balbuciou:
— Que está dizendo? Este cavalheiro?...
— Cúmplice de Lupin, como os operários que nos atiraram o saco na cabeça.
— Será crível?
— Crível ou não, havia um meio de obter uma prova.
— Matando o cavalheiro?
— Apenas abatendo o cavalo. Sem você, tinha pegado um dos cúmplices de Lupin. Compreende a idiotice que fez?
A tarde se arrastou. Não se dirigiam a palavra. As cinco, como vagueassem pela rua Clapeyron, com o cuidado de se manterem afastados das casas, três jovens operários, que vinham de braços dados cantando, chocaram-se com eles e quiseram seguir caminho sem se separar. Sholmes, que estava de mau humor, se opôs. Houve um pega rápido. Sholmes meteu-se na postura de um boxeador, deu um soco num peito, outro num rosto e demoliu dois dos três jovens que, sem insistir mais, se afastaram junto com o terceiro.
— Ah, isso me fez bem... Estava com os nervos tensos... excelente ação...
Notou Wilson se apoiando na parede:
— Que é que há, camarada? Está pálido.
O camarada mostrou o braço a pender inerte e murmurou:
— Não sei o que tenho... uma dor no braço.
— Uma dor no braço? Forte?
— Sim... sim... no braço direito...
Apesar dos esforços, não conseguia movê-lo. Herlock o apalpou, com delicadeza no início, logo com mais energia "para ver — disse — o grau exato da dor". O grau exato da dor foi tão alto que, preocupado, entrou numa farmácia perto, onde Wilson se viu na necessidade de desmaiar.
O farmacêutico e seus auxiliares se apressaram. Verificou-se que o braço estava quebrado e se falou em médico, cirurgia, casa de saúde. Enquanto isso, despiram o paciente que, batido pelo sofrimento, dava uivos.
— Bom... bom... assim — dizia Sholmes que se encarregara de manter o braço na melhor posição. — Um pouco de paciência, camarada... Em cinco ou seis semanas, não há de se notar nada. Mas hão de me pagar, os velhacos! Está ouvindo? Ele especialmente, pois foi ainda este desgraçado Lupin que arranjou a coisa... Ah! lhe juro que se alguma vez...
Interrompeu-se de repente, largou o braço, o que causou a Wilson uma tal pontada de dor que o infeliz desmaiou de novo, e batendo na testa falou:
— Wilson, tenho uma idéia... será que por acaso?
Não se mexia, de olhos fitos, mastigando pedaços de frases.
— Mas sim, é isto... tudo se explicaria... Procura-se longe o que está junto da gente... Oh, que diabo, eu sabia que bastava pensar... Ah, meu bom Wilson, creio que irá ficar contente!
E deixando sem mais o velho amigo, saiu à rua e correu até o número 25.
Acima e à direita da porta, estava inscrito numa das pedras: Destange, arquiteto, 1875.
No 25, a mesma inscrição.
Natural até aí. Mas lá, na avenida Henri-Martin, o que leria?
Passava um carro.
— Cocheiro, avenida Henri-Martin, no 134, e a galope.
De pé no carro, incitava o cavalo, oferecia gorjetas ao cocheiro. Mais depressa!... Ainda mais depressa!
Que ânsia sentiu na esquina da rua Pompe! Seria um pouco da verdade o que entrevira?
Numa das pedras da mansão, estavam gravadas estas palavras: Destange, arquiteto, 1874.
Nos dois imóveis vizinhos, a mesma inscrição: Destange, arquiteto, 1874.
O contragolpe dessas emoções foi de tal ordem que se deixou cair no banco do carro, tremendo de alegria. Enfim, uma luzinha vacilava em meio às trevas! Na grande floresta escura em que mil caminhos se cruzavam, eis que recolhia o primeiro sinal de uma pista seguida pelo inimigo.
Numa agência postal, pediu uma comunicação telefônica com o castelo de Crozon. A própria condessa atendeu.
— Alô! Ah, é a senhora?
— O sr. Sholmes, não é? Tudo vai indo?
— Vai, mas, depressa, tenha a bondade de me dizer... alô?... uma palavra apenas...
— Estou ouvindo.
— O castelo de Crozon foi construído em que época?
— Foi sinistrado há trinta anos e reconstruído.
— Por quem? Em que ano?
— Uma inscrição sobre a escada de entrada diz: Lucien Destange, arquiteto, 1877.
— Obrigado, senhora, meus cumprimentos. Saiu murmurando:
Destange... Lucien Destange... esse nome não me é desconhecido.
Notando um gabinete de leitura, consultou um dicionário biográfico moderno e copiou o verbete consagrado a "Lucien Destange, nascido em 1840, Grande Prêmio de Roma, oficial da Legião de Honra, autor de obras muito apreciadas sobre arquitetura..., etc".
Voltou à farmácia e daí foi à casa de saúde para onde tinham transportado Wilson. Em seu leito de tortura, com o braço preso numa armação, tiritando de febre, o velho camarada divagava.
— Vitória! vitória! — clamou Sholmes —, peguei uma ponta do fio.
— De que fio?
— Do que nos levará ao objetivo! Vou andar num terreno sólido, onde haverá pegadas, indícios...
— Cinza de cigarros? — perguntou Wilson, que o interesse da situação reanimava.
— E muitas outras coisas! Pense, Wilson, destaquei o elo misterioso que unia as diferentes aventuras da Dama Loura. Por que os três imóveis em que transcorreram as três aventuras foram escolhidos por Lupin?
— Sim, por quê?
— Porque os três, Wilson, foram construídos pelo mesmo arquiteto. Era fácil de adivinhar, dirá. Sem dúvida... De modo que ninguém pensou nisso.
— Ninguém, fora você.
— Sim. Por isso sei agora que o mesmo arquiteto, combinando projetos semelhantes, tornou possível a realização de três atos, na aparência milagrosos, na realidade simples e fáceis.
— Que alegria!
— E não era sem tempo, velho camarada, começava a me impacientar... É que já estamos no quarto dia.
— De dez.
— Oh! no entanto...
Não parava no lugar, exuberante e jovial contra seu hábito.
— Não, mas quando penso que há pouco na rua esses safados teriam podido quebrar meu braço como quebraram o seu.. • Que me diria disso, Wilson?
Wilson se contentou com um arrepio de susto a esta horrível suposição.
Sholmes continuou:
— Que essa lição nos aproveite. Veja, Wilson, nosso grande erro foi o de combater Lupin de rosto descoberto, complacentemente nos oferecendo a seus golpes. Se bem que só houve um prejuízo pela metade, pois só conseguiu atingir você...
— E mesmo assim só me quebrou um braço — gemeu Wilson.
— Quando podiam ter sido os dois. Mas chega de fanfarrices. De dia e vigiado, sou vencido. Na sombra, com os movimentos livres, levo vantagem, sejam quais forem as forças do inimigo.
— Ganimard poderia lhe ajudar.
— Nunca! No dia em que puder dizer: Arsène Lupin está ali, seu retiro é este e este o modo de pegá-lo, é que irei chamar Ganimard num dos dois endereços que me deu, na sua casa na rua Pergolèse ou na taverna suíça da praça do Châtelet. Daqui até lá, ajo sozinho.
Acercou-se da cama, pôs a mão no ombro de Wilson — no ombro enfermo, naturalmente — e lhe disse com grande afeição:
— Cuide-se, meu velho camarada. Seu papel de ora em diante consiste em ocupar dois ou três homens de Lupin, que para encontrar o meu rastro vão aguardar inutilmente que eu venha saber notícias suas. É um papel de confiança.
— Um papel de confiança que lhe agradeço — replicou Wilson, cheio de gratidão. — Tomarei todo o cuidado para desincumbir-me conscienciosamente. Mas, pelo que vejo, não vai voltar mais?
— Para quê? — perguntou friamente Sholmes.
— Certo... certo... vou indo tão bem quanto é possível. Só um último obséquio, Herlock: não poderia me arranjar algo para beber?
— Beber?
— Sim, morro de sede, e com a minha febre...
— Mas como não! Em seguida...
Juntou umas garrafas, mas notou um maço de fumo, acendeu o cachimbo e, súbito, como se não tivesse sequer ouvido o pedido do amigo, foi-se embora, enquanto o velho camarada implorava com o olhar um inacessível copo d'água.
— Sr. Destange!
O criado mediu o indivíduo a que acabara de abrir a porta da magnífica mansão da esquina da praça Malesherbes e rua Bontchanin e, à vista do homenzinho de cabelos cinzentos, mal barbeado e cuja longa sobrecasaca preta, de duvidosa limpeza, se conformava às estranhices de um corpo que a natureza tinha especialmente descuidado, respondeu com o desdém que convinha:
— O sr. Destange está ou não está, depende. O senhor tem o seu cartão?
O senhor não tinha, mas entregou uma carta de apresentação e o criado teve de levá-la ao sr. Destange, o qual deu ordem a que conduzissem até ele o recém-chegado.
Fizeram-no entrar numa imensa peça circular, que ocupa uma das salas da mansão e cujas paredes estavam cobertas de livros, e o arquiteto lhe disse:
— É o sr. Stickmann?
— Sim, senhor.
— Meu secretário avisa que está doente e o envia para continuar o catálogo geral dos livros que começou sob a minha direção, e mais especialmente o catálogo dos livros alemães. Tem prática dessa espécie de trabalho?
— Sim, senhor, longa prática — respondeu Stickmann com forte sotaque germânico.
Nessas condições, houve concordância logo e o sr. Destange, sem tardar, passou ao trabalho com o novo secretário.
Herlock Sholmes estava onde queria.
Para escapar à vigilância de Lupin e entrar na mansão em que Lucien Destange morava com a filha Clotilde, o ilustre detetive- teve de dar um mergulho no ignoto, acumular estratagemas, atrair para si, sob os mais diversos nomes, as boas graças e as confidencias de uma série de personagens, em suma, viver, durante quarenta e oito horas, a vida mais complicada.
Como informação, sabia que o sr. Destange, de saúde precária e querendo descanso, se retirara dos negócios e vivia entre as coleções de livros que reunira sobre arquitetura. Nem um prazer mais o interessava além do espetáculo e manuseio de velhos tomos poeirentos.
Quanto à filha Clotilde, passava por excêntrica, sempre encerrada com o pai, mas noutra parte da mansão, não saía nunca.
— Tudo isso — dizia-se, inscrevendo num registro títulos de livros que o sr. Destange lhe ditava —, tudo isso não é ainda decisivo, mas que passo à frente! É impossível que eu não descubra a seleção de algum destes problemas importantes: o sr. Destange estará associado a Arsène Lupin? Continua a vê-lo? Existem papéis relativos à construção dos três imóveis? Esses papéis não me darão o endereço de outros imóveis, igualmente preparados, e que Lupin teria reservado para si e seu bando?
O sr. Destange, cúmplice de Arsène Lupin! Este homem venerável, oficial da Legião de Honra, trabalhando junto com um ladrão, era uma hipótese inaceitável. Aliás, admitindo essa cumplicidade, como o sr. Destange teria podido prever, trinta anos antes, as evasões de Arsène Lupin, então ainda de fraldas?
Não importa! O inglês se obstinava. Com seu faro prodigioso, com o instinto que lhe era característico, sentia um mistério girando à sua volta. Isso se adivinhava por pequenas coisas que não podia precisar, mas de que sofria a impressão desde que entrou na casa.
Na manhã do segundo dia, não tinha ainda feito qualquer descoberta interessante. Às duas horas, viu pela primeira vez Clotilde Destange, que vinha buscar um livro na biblioteca. Era uma mulher de trinta anos, morena, de gestos lentos e silenciosos e cujo rosto mantinha a expressão indiferente dos que vivem muito ensimesmados. Trocou algumas palavras com o sr. Destange e saiu sem mesmo ter olhado a Sholmes.
A tarde se arrastava, monótona. Às cinco, o sr. Destange avisou que sairia. Sholmes ficou sozinho na galeria circular fixada a meia altura do recinto. A luz decrescia. Dispunha-se também a ir embora, quando ouviu um estalido e teve a sensação de que havia alguém na peça. Longos minutos se somaram uns aos outros. Súbito arrepiou-se: uma sombra emergia da semi-obscuridade, partindo dele, na galeria. Era de crer? Há quanto tempo este personagem invisível fazia-lhe companhia? E de onde vinha?
E o homem desceu os degraus e se dirigiu a um grande armário de madeira. Escondendo-se atrás das fazendas que pendiam do" corrimão da galeria, de joelhos, Sholmes observou e viu o homem a mexer nos papéis que enchiam o armário. Que buscaria?
Eis que súbito a porta se abriu e a srta. Destange entrou ligeira, dizendo a alguém que a seguia:
— Resolvesse então não sair, pai?... Nesse caso, acendo a luz... Um instante... não se incomode...
O homem fechou as portas do armário e se escondeu no vão de uma larga janela, puxando as cortinas sobre si. Como não o viu a srta. Destange, nem o ouviu?! Calmamente, acionou o botão da eletricidade e deu passagem a seu pai. Sentaram-se um ao lado do outro. Ela pegou um volume que tinha trazido e começou a ler.
— Teu secretário não está mais aí? — disse depois de um momento.
— Não... estás vendo...
— Continuas satisfeito? — prosseguiu, como se ignorasse a doença do verdadeiro secretário e sua substituição por Stickmann.
— Continuo sim.
A cabeça do sr. Destange oscilava para um lado e outro. Adormeceu.
Passou um momento. A moça lia. Mas uma das cortinas da janela foi afastada e o homem deslizou ao longo da parede para a porta, movimento que o fazia passar por trás do sr. Destange mas diante de Clotilde, e de tal modo que Sholmes pôde vê-lo distintamente. Era Arsène Lupin.
O inglês tremeu de alegria. Seus cálculos estavam certos, tinha penetrado no coração do misterioso caso e Lupin se achava no lugar previsto.
Clotilde, porém, não se moveu, embora fosse inadmissível que lhe escapasse qualquer gesto desse homem. Lupin chegava à porta e estendia o braço para o trinco, quando caiu um objeto de uma mesa, deslocado por sua roupa. O sr. Destange despertou num susto. Arsène Lupin já estava à sua frente, de chapéu na mão, sorrindo.
— Maxime Bermond — disse Destange com alegria —, querido Maxime! Que bons ares o trazem?
— A vontade de vê-lo e também à srta. Destange.
— Então voltou da viagem?
— Ontem.
— E janta conosco?
— Não, vou a um restaurante com amigos.
— Amanhã, então? Clotilde, insiste para que venha amanhã. Ah, o meu caro Maxime... Andei pensando em você ultimamente.
— Verdade?
— Sim, estava arrumando meus papéis antigos neste armário e encontrei nossa última conta.
— Que conta?
— A da avenida Henri-Martin.
— Como! guarda esses papéis inúteis... para quê? Instalaram-se os três num salãozinho ligado à galeria por uma ampla vidraça.
— Será Lupin? — pensou Sholmes, tomado por súbita dúvida.
Sim, evidentemente, era ele, mas era também um outro, parecido em certos aspectos com Lupin, mas conservando sua individualidade diferente, seus traços pessoais, seu olhar, sua cor de cabelos...
De casaca, gravata branca, a fina camisa a modelar-lhe o torso, falava alegremente, contando histórias que faziam rir do fundo ao sr. Destange e levavam um sorriso aos lábios de Clotilde. E cada um desses sorrisos parecia um prêmio que Arsène Lupin buscava e se rejubilava em conquistar. Crescia em espírito e alegria e, insensivelmente, ao som desta voz feliz e clara, o rosto de Clotilde se animava e perdia a expressão de frieza que o tornava menos simpático.
— Amam-se — pensou Sholmes —, mas que diabo poderá haver de comum entre Clotilde Destange e Maxime Bermond? Saberá que Maxime é Arsène Lupin?
Até as sete, escutou ansiosamente, buscando tirar proveito das menores frases. Depois, com muita precaução, desceu e foi para o lado da peça em que não corria o risco de ser visto do salão.
Lá fora, Sholmes constatou que não havia nem um automóvel nem um fiacre estacionado e se afastou manquejando pela avenida Malesherbes. Numa rua adjacente, porém, pôs nos ombros o sobretudo que trazia no braço, abriu o chapéu, se endireitou e, assim metamorfoseado, voltou à praça, onde aguardou, fitando a porta da mansão Destange.
Arsène Lupin saiu quase em seguida, dirigindo-se, pelas ruas de Constantinopla e Londres, ao centro de Paris. Com passos atrás dele, ia Herlock.
Minutos deliciosos para o inglês! Inspirava ávido o ar, como um bom cão que sente a pista fresca. Parecia-se algo infinitamente doce seguir o adversário. Não era mais ele o seguido, mas Arsène, o invisível Arsène Lupin. Tinha-o por assim dizer na ponta do olhar, como preso por um anzol impossível de extrair. E se aprazia em fitar, entre os que passavam, a presa que lhe pertencia.
Um estranho fenômeno veio perturbá-lo: em meio à distância que o separava de Arsène Lupin, outros indivíduos seguiam na mesma direção, especialmente dois fortões de chapéu, na calçada esquerda, e dois outros, na direita, de boné e cigarro nos lábios.
Talvez fosse apenas um acaso. Mas a suspeita de Sholmes aumentou quando Lupin entrou numa tabacaria e os quatro homens se detiveram; e tornou a aumentar quando continuaram caminho ao mesmo tempo que Lupin, mas separados, cada um por seu lado da Chaussée d Antin.
— Maldição — pensou Sholmes —, o pegaram!
A idéia de que outros estavam no rastro de Arsène Lupin, que outros lhe arrebatariam não a glória, que o preocupava pouco, mas o imenso prazer, a volúpia ardente de dominar sozinho o mais temível inimigo que já encontrara, essa idéia o exasperava. Mas o erro não era possível: os homens tinham este ar distante, este ar demasiado natural dos que, regulando sua marcha pela de outro, não querem ser notados.
— Ganimard saberia mais do que disse saber? — murmurou Sholmes. — Teria brincado comigo?
Teve vontade de emparelhar com um dos quatro indivíduos e combinar algo com ele. Mas perto da avenida, a multidão se tornou mais densa; receou perder Lupin e apressou o passo. Ao chegar nela, Lupin subia os degraus da entrada do restaurante húngaro, na esquina da rua Helder. A porta estava aberta de tal modo que Sholmes, num banco da avenida, do outro lado do pavimento, viu-o ocupar uma mesa luxuosamente servida, com flores, e onde estavam já três senhores de casaca e duas senhoras de alta elegância, que o acolheram com demonstrações de simpatia.
Herlock procurou com o olhar os quatro sujeitos e os viu espalhados pelos grupos que escutavam a orquestra cigana de um café pegado. Coisa curiosa, não pareciam se ocupar com Arsène Lupin, mas muito mais com as pessoas à volta.
De repente um deles pegou do bolso um cigarro e abordou um senhor de sobrecasaca e cartola. Esse estendeu o charuto e Sholmes teve a impressão de que conversavam, e muito mais tempo do que o necessário para acender um cigarro. Enfim, o senhor galgou os degraus da entrada e deu uma olhada na sala do restaurante. Percebendo Lupin, adiantou-se, falou uns instantes com ele, escolheu a seguir uma mesa próxima, e Sholmes constatou que esse senhor não era outro senão o cavaleiro da avenida Henri-Martin.
Entendeu então. Não apenas Arsène Lupin não fora pilhado, mas esses homens faziam parte do seu bando! Vigiavam por sua segurança, eram sua guarda pessoal, seus satélites, sua atenta escolta. Onde o patrão corresse um risco, ali estavam os cúmplices, prontos a adverti-lo ou defender. Cúmplices os quatro sujeitos, cúmplice o senhor de sobrecasaca!
Um arrepio o percorreu. Conseguiria um dia lançar a mão sobre esse ser inacessível? Que poder ilimitado devia representar uma associação assim, dirigida por tal chefe!
Rasgou uma folha da caderneta, escreveu a lápis umas linhas, Pôs num envelope e disse a um rapazinho de quinze anos que tinha se deitado no banco:
— Toma, meu filho, pega um carro e leva esta carta à caixa da taverna suíça, na praça do Châtelet, rapidamente.
Deu-lhe uma moeda de cinco francos e o rapaz desapareceu.
Passou uma hora e meia. O movimento aumentava e Sholmes só de tempos em tempos distinguia os ajudantes de Lupin. Alguém o roçou e uma voz lhe disse ao ouvido:
— Bem, que é que há, sr. Sholmes?
— Ah, sr. Ganimard?
— Sim, recebi o bilhete na taverna. O que há?
— Ele está ali.
— Que está dizendo?
— Ali, ao fundo do restaurante, se incline para a direita... Viu-o?
— Não.
— Serve champanha à senhora a seu lado.
— Mas não é ele.
— É ele.
— Lhe garanto que... Ah! talvez... Poderia ser... Ah! o malandro, como se parece com ele mesmo! — murmurou Ganimard ingenuamente... — E os outros, são cúmplices?
— Não, sua vizinha é Lady Cliveden, a outra é a duquesa de Cleath e à sua frente está o embaixador da Espanha em Londres.
Ganimard deu um passo. Herlock o reteve.
— Que imprudência! Está sozinho.
— Ele também.
— Não, há homens na avenida montando guarda... Sem falar nesse senhor, dentro do restaurante...
— Mas quando puser a mão no colarinho de Arsène Lupin gritando o seu nome, terei toda a sala por mim, todos os garçons...
— Preferia alguns agentes.
— Mas os amigos de Arsène notariam logo... Veja, senhor Sholmes, não temos escolha.
Tinha razão, Sholmes sentiu. Mais valia tentar o golpe, valendo-se das circunstâncias incomuns. Recomendou apenas a Ganimard:
— Busque ser reconhecido o mais tarde possível...
E ele próprio foi para trás do quiosque de jornais, sem perder de vista Arsène Lupin que, lá dentro, inclinando-se para a sua vizinha, sorria.
O inspetor atravessou a rua com as mãos nos bolsos, como quem vai direto à frente. No que chegou à calçada oposta, desviou-se e subiu num pulo os degraus do restaurante.
O trilo estridente de um apito... Ganimard foi de encontro ao chefe dos garçons, num instante plantado na frente da porta, e que o empurrou com indignação, como a um intruso cuja aparência equívoca teria desprestigiado o luxo da casa. Ganimard quase caiu. Ao mesmo tempo, saía o senhor de sobrecasaca. Tomou partido pelo inspetor e os dois, ele e o chefe dos garçons, discutiram violentamente, ambos aliás agarrando Ganimard, um retendo, o outro empurrando, e de tal modo que, apesar de seus esforços e furiosos protestos, o infeliz foi expulso até o sopé da escada.
Houve de imediato um amontoamento. Dois agentes da polícia, atraídos pelo barulho, tentaram fender o aglomerado, mas uma incompreensível resistência os imobilizou, sem que conseguissem se livrar dos ombros que os premiam, das costas que lhes barravam o caminho...
De repente, como por encanto, a passagem ficou livre... O chefe dos garçons, admitindo seu erro, se confundia em desculpas, o senhor de sobrecasaca desistia de defender o inspetor, a multidão se separou, os agentes passaram, e Ganimard se precipita para a mesa de seis convidados... Havia só cinco! Olha em torno de si... nenhuma outra saída além da porta.
— A pessoa que estava neste lugar? — grita aos cinco convivas estupefatos. — Sim, eram seis... Onde está o sexto?
— O sr. Destro?
— Mas não, Arsène Lupin! Um garçom se aproximou:
— Esse senhor acaba de subir ao andar de cima. Ganimard corre. O andar é constituído de salas particulares e tem uma saída própria para a avenida!
— Procurá-lo agora! — gemeu Ganimard. — Está longe.
... Não muito longe, a duzentos metros no máximo, no ônibus Madelèine-Bastille que, a rodar calmamente no trote de seus três cavalos, atravessava a praça da Ópera e seguia pela avenida Capucines. Na plataforma, dois aguerridos rapazes de chapéu conversavam. Na parte de cima, ao alto da escadinha, cochilava um velhinho inofensivo: Herlock Sholmes.
Com a cabeça a balançar, embalada pelo movimento do veículo, o inglês monologava:
— Se meu caro Wilson me visse, como ficaria orgulhoso do seu colaborador!... Ora, era fácil prever que quando apitaram a partida estava perdida e o melhor a fazer era vigiar as cercanias do restaurante. Mas, em verdade, não falta interesse à vida com o diabo deste homem!
No fim da linha, Herlock, inclinando-se, viu Arsène passar diante de sua guarda pessoal e ouviu murmurar: "À Etoile."
— Na Etoile, perfeito, nos encontramos lá. Não faltarei. Deixemos que vá neste auto de aluguel e sigamos de carro aos dois companheiros.
Esses dois prosseguiram a pé até a Etoile e bateram à porta de uma estreita casa, o no 40 da rua Chalgrin. Num ponto dessa pequena rua pouco freqüentada, Sholmes pôde se esconder na sombra de uma reentrância.
Uma das duas janelas do térreo se abriu e um dos rapazes de chapéu fechou os batentes. Acima deles, a cornija se iluminou.
No fim de dez minutos, um senhor veio bater à mesma porta e, em seguida, um outro. Enfim, um auto estacionou e Sholmes viu descer duas pessoas: Arsène Lupin e uma dama envolta num casacão e com um véu fechado.
— A Dama Loura, sem dúvida — se disse Sholmes, enquanto o auto se afastava.
Deixou passar um instante, se acercou da casa, subiu ao bordo da janela e na ponta dos pés pôde, pela cornija, dar uma olhada na peça.
Arsène Lupin, apoiado à lareira, falava com animação. De pé em volta dele, os outros escutavam atentos. Entre eles, Sholmes reconheceu o da sobrecasaca e julgou identificar também o chefe de garçons. Quanto à Dama Loura, dava-lhe as costas, sentada numa poltrona.
— Fazem um conselho — pensou. — Os acontecimentos desta noite os deixaram preocupados e têm a necessidade de deliberar. Ah! prender a todos ao mesmo tempo, numa batida só!...
Tendo um dos cúmplices se deslocado, desceu ao chão e se afundou na sombra. O senhor de sobrecasaca e o chefe de garçons saíram da casa. Em seguida o primeiro andar se iluminou e alguém puxou os batentes das janelas. Fez-se escuro em cima como em baixo.
— Ela e ele ficaram no térreo — se disse Herlock. — Os dois cúmplices moram no primeiro andar.
Aguardou uma parte da noite sem arredar pé; temendo que Arsène Lupin fosse embora durante sua ausência. Às quatro, vendo dois agentes da polícia no fim da rua, foi a eles, explicou-lhe a situação e lhes confiou a vigilância da casa.
Foi até Ganimard na rua Pergolèse e o fez despertar.
— Ainda o tenho.
— Arsène Lupin?
— Sim.
— Se o tem como há pouco, o melhor era eu voltar para a cama. Enfim, vamos ao comissariado.
Foram à rua Mesnil e daí à casa do comissário, sr. Decointre Logo, acompanhados por meia dúzia de homens, voltaram à rua Chalgrin.
— Alguma novidade? — perguntou Sholmes aos dois agentes de sentinela.
— Nenhuma.
A madrugada começava a aclarar o céu quando, dispostas as coisas, o comissário bateu e se dirigiu ao balcão da porteira. Assustada pela invasão, trêmula, a mulher respondeu que não havia inquilinos no térreo.
— Como não há inquilinos! — protestou Ganimard.
— Mas não, são os do primeiro andar, os srs. Leroux... Mobiliaram embaixo para os parentes do interior...
— Um senhor e uma senhora?
— Sim.
— Que vieram com eles ontem à noite?
— É possível... eu estava dormindo... Mas não creio porque a chave está aqui... não pediram.
Com essa chave o comissário abriu a porta que se achava do outro lado da entrada. O térreo só continha duas peças: estavam vazias.
— Impossível — proferiu Sholmes —, eu os vi, ela e ele. O comissário caçoou:
— Não duvido, mas não estão mais aqui.
— Subamos ao primeiro andar. Devem estar ali.
— O primeiro andar é ocupado pelos irmãos Leroux. Subiram todos a escada e o comissário bateu. Na segunda vez, um indivíduo, um dos da guarda pessoal, surgiu de mangas arregaçadas e ar furioso.
— Que barulho é este!... Acordar as pessoas assim... Mas se deteve, confuso:
— Deus me perdoe... será que estou sonhando? É o sr. Decointre!... e o senhor também, sr. Ganimard? Que é que há aqui para terem vindo?
Uma grande risada explodiu. Ganimard gargalhava, numa crise de hilaridade que o curvava em dois e lhe congestionava o rosto.
— Mas é você, Leroux — gaguejou. — Oh, que engraçado!... Leroux, cúmplice de Arsène Lupin... Ah, esta me mata... E seu irmão, Leroux, está visível?
— Edmond, estás aí? É o sr. Ganimard que rios visita. Adiantou-se o outro capanga, duplicando a alegria de Ganimard.
— Será possível! Disso não se tinha idéia! Ah, meus amigos, estão em maus lençóis... Quem iria pensar! Felizmente o velho Ganimard está vigilante e tem sobretudo amigos para ajudá-lo... amigos que vêm de longe!
E virando-se para Sholmes, apresentou:
— Victor Leroux, inspetor da Sûreté, um dos bons entre os melhores da esquadra de choque... Edmond Leroux, principal encarregado do serviço antropométrico...
Herlock Sholmes não se abalou. Protestar? Acusar os dois homens? Inútil; sem as provas que não tinha e não queria perder tempo procurando, ninguém acreditaria nele.
Crispado, de punhos cerrados, só pensava em não demonstrar, diante de Ganimard vitorioso, sua raiva e decepção. Cumprimentou respeitosamente os irmãos Leroux, sustentáculos da sociedade, e se retirou.
Na entrada, deu uma voltinha perto de uma porta baixa que levava à adega e apanhou uma pequena pedra de cor vermelha: era uma granada.
Fora, tendo se voltado, leu, perto do no 40 da casa, esta inscrição: Lucien Destange, arquiteto, 1877.
Havia a mesma inscrição no n.o 42.
— Sempre a saída dupla — pensou. — O 40 e o 42 se comunicam. Como não pensei nisso! Devia ter ficado junto com os dois agentes esta noite.
Disse a eles:
— Duas pessoas saíram por esta porta durante minha ausência, não é?
E indicava a porta da casa vizinha.
— Sim, um senhor e uma senhora.
Pegou o braço do inspetor principal e o chamou à porta:
— Sr. Ganimard, riu em excesso por me querer mal pelo pequeno incômodo que lhe causei...
— Oh, não lhe quero mal de modo algum.
— Não é? Mas as melhores brincadeiras têm sua hora e ia minha opinião é preciso terminar.
— Concordo.
— Estamos no sétimo dia. Dentro de três é indispensável que eu esteja em Londres.
— Oh! oh!
— Lá estarei e lhe peço se mantenha de sobreaviso na noite de terça para quarta-feira.
— Para uma expedição do mesmo gênero? — Ganimard gracejou.
— Sim, senhor, do mesmo gênero.
— E que vai terminar?
— Com a captura de Lupin.
— Pensa assim?
— Lhe dou a minha palavra, senhor.
Sholmes se despediu e foi descansar um pouco no hotel mais perto; após que, revigorado, confiante em si, voltou à rua Chalgrin, pôs dois luíses na mão da porteira, se certificou de que os irmãos Leroux tinham saído, soube que a casa pertencia a um sr. Hermingeat e, com uma vela, desceu à adega pela portinha perto da qual apanhara a granada.
Ao pé da escada, descobriu outra pedra igual.
— Não me enganava — pensou —, é por aqui a comunicação... Vamos ver se a minha chave geral abre a adeguinha reservada ao inquilino do térreo? Sim. ótimo... examinemos estas estantes de vinho... Ah, eis os lugares em que a poeira foi levantada... e no chão marcas de passos...
Um leve ruído o pôs atento. Rápido, encostou a porta, apagou a vela e se escondeu atrás de uma pilha de caixas vazias. Após uns segundos, notou que uma das estantes de ferro girava suavemente, levando junto todo o trecho da parede a que estava pregada. O clarão de uma lanterna se projetou. Um braço apareceu. Entrou um homem.
Curvou-se como alguém que procura algo no chão. Com a ponta dos dedos remexia a poeira e às vezes se erguia, atirando alguma coisa numa caixa de papelão que segurava com a mão esquerda. Em seguida, apagou a marca de seus passos, tanto quanto as deixadas por Lupin e a Dama Loura e se acercou da estante.
Deu um grito rouco e caiu. Sholmes tinha saltado sobre ele. Foi questão de um minuto, e da maneira mais simples do mundo, o homem se achar estendido no chão, de tornozelos e punhos atados.
O inglês se debruçou sobre ele:
— Quanto queres para falar, dizer tudo o que sabes?
O homem respondeu com um sorriso tão irônico que Sholmes compreendeu a inutilidade da sua pergunta.
Satisfez-se em explorar os bolsos do cativo, mas não lhe valeram mais que um molho de chaves e um lenço, e a caixinha de que o indivíduo se servira, a qual continha uma dúzia de granadas semelhantes às que Sholmes recolhera. Magro saque.
Além disso, que ia fazer deste homem? Esperar que seus amigos viessem socorrê-lo e entregá-los todos à polícia? De que serviria, que vantagem podia tirar disso contra Lupin? j Hesitou, mas o exame da caixa o decidiu. Trazia este endereço: "Léonard, palheiro, rua da Paix."
Resolveu simplesmente abandonar o homem. Reencostou a estante, fechou a adega e saiu da casa. De um posto do correio, avisou o sr. Destange, por carta pneumática, que só poderia ir no dia seguinte. Logo foi ao joalheiro, a quem entregou as granadas.
— A senhora me mandou por estas pedras. Desfiaram de uma jóia que comprou aqui.
Sholmes acertou. O comerciante respondeu:
— De fato... A senhora telefonou. Passará depois por aqui.
Mas só às cinco horas, Sholmes, postado na calçada, viu uma dama envolta em espesso véu e cujo aspecto lhe pareceu suspeito. Pela vidraça, pôde reparar que punha no balcão uma jóia antiga ornada de granadas.
Em seguida saiu, fez várias voltas a pé, subiu para o lado de Clichy e voltou por ruas que o inglês desconhecia. Ao cair da noite, entrou atrás dela, e sem que a porteira o visse, numa casa de cinco andares, construída em dois blocos, portanto com inumeráveis inquilinos. No segundo andar, ela se deteve e entrou. Mais dois minutos e o inglês tentava a sorte, experimentando uma após outra as chaves do molho que tinha pegado. A quarta fez a fechadura girar.
Apesar do escuro que já fazia, viu peças inteiramente vazias como as de um apartamento desocupado, e com todas as portas abertas. Mas no fim de um corredor, discerniu o halo de uma lamparina e, se acercando na ponta dos pés, viu, pelo espelho sem estanho que separava o salão de um quarto contíguo, a dama de véu a tirar o casacão e o chapéu, deixando-os na única cadeira do quarto e enfiando um chambre de veludo.
Também a viu avançar para a lareira e apertar o botão de uma campainha elétrica. E a metade da superfície à direita da lareira tremeu, deslizou pelo próprio nível da parede e entrou na espessura da superfície vizinha.
Quando a abertura foi suficiente, a dama passou... e desapareceu, levando a candeia.
O sistema era simples, Sholmes usou-o.
Caminhou no escuro, tateando, mas em seguida seu rosto bateu em coisas moles. Com a chama de um fósforo, verificou achar-se num pequeno reduto cheio de vestidos e roupas em cabides. Abriu uma passagem e parou ante o vão de uma porta fechada por uma tapeçaria, ou ao menos o avesso de uma tapeçaria. O fósforo apagou e viu a luz que passava pelo trançado frouxo e gasto do velho tapete.
Olhou.
A Dama Loura estava ali, sob seus olhos, ao alcance de sua mão.
Ela apagou a candeia e acendeu a luz elétrica. Pela primeira vez Sholmes pôde ver o seu rosto em plena claridade. Estremeceu. A mulher que terminara alcançando depois de tantos desvios e manobras era Clotilde Destange.
Clotilde Destange, a assassina do barão d'Hautrec e a ladra do diamante azul! Clotilde Destange, a misteriosa amiga de Arsène Lupin, a Dama Loura enfim!
— Sim, com os diabos — pensou —, sou um asno chapado. Porque a amiga de Lupin é loura e Clotilde morena, não aproximei as duas uma da outra! Como se a Dama Loura fosse permanecer loura depois da morte do barão e o roubo do diamante!
Sholmes via uma parte da peça, elegante quarto feminino, ornado de tapeçarias claras e bibelôs preciosos. Uma cadeira de descanso em acaju estendia-se sobre um degrau baixo. Clotilde aí estava sentada e permanecia imóvel com a cabeça entre as mãos. Ao fim de um tempo, notou que ela chorava. Grandes lágrimas corriam por suas faces pálidas, deslizando para a boca e caindo gota a gota no veludo do seu corpete. E outras lágrimas as seguiam indefinidamente, como a vir duma fonte inesgotável. E era o mais triste espetáculo esse desespero suave e resignado a se exprimir pela lenta queda das lágrimas.
Atrás dela, uma porta se abriu. Arsène Lupin entrou.
Fitaram-se muito tempo sem dizer nada; logo ele se ajoelhou ao pé dela, apoiou a cabeça contra o seu peito e a envolveu com os braços; havia no gesto com que enlaçou a moça uma ternura profunda e bastante piedade. Não se moviam. Um doce silêncio os uniu e as lágrimas se tornaram menos abundantes.
— Gostaria tanto de fazê-la feliz! — murmurou.
— Eu sou feliz.
— Não, já que chora... Suas lágrimas me devastam, Clotilde.
Apesar de tudo, ela se deixava levar por aquela voz acariciante e escutava ávida de esperança e felicidade. Um sorriso lhe enterneceu o rosto, mas um sorriso ainda tão triste! Ele lhe implorou:
— Não fique triste, Clotilde, não deve. Não tem o direito de fitar.
Ela lhe mostrou as mãos brancas, finas, delicadas, e disse grave:
— Enquanto estas mãos sejam minhas, hei de ser triste, Maxime.
— Mas por quê?
— Elas mataram. Maxime reagiu:
— Cale-se! não pense nisso... O passado morreu, o passado não conta.
E beijava as longas mãos pálidas, e ela o olhava com um sorriso mais claro, como se cada beijo apagasse um pouco da horrível lembrança.
— É preciso que me ame, Maxime, é preciso porque nenhuma mulher o amará como eu. Para lhe agradar, agi e ainda ajo nem mesmo segundo suas ordens, mas segundo seus desejos secretos. Fiz coisas contra as quais todos os meus instintos e toda minha consciência se revoltam, mas não posso resistir... tudo o que faço, faço maquinalmente, para lhe ser útil e porque você quer... e estou pronta a recomeçar amanhã... e sempre.
Ele disse com amargura:
— Ah, Clotilde, por que fui associá-la à minha vida aventureira? Devia ter permanecido o Maxime Bermond que amou há cinco anos e não lhe ter feito conhecer... o outro homem que sou.
Ela falou baixinho:
— Amo também esse outro homem, e não me arrependo de nada.
— Sim, tem saudade de sua vida passada, da vida às claras.
— Não tenho saudade de nada quando você está presente — respondeu com paixão. — Não existe mais erro nem crime quando meus olhos o vêem. Não importa que longe de você eu seja infeliz, nem que sofra, nem que chore e tenha horror do que fiz: seu amor apaga tudo... aceito tudo... Mas precisa me amar!...
— Não a amo por ser preciso, Clotilde, mas pela simples razão de que a amo.
— Tem certeza? — disse ela confiante.
— Tenho certeza de mim como de você. Apenas minha existência é violenta e febril e nem sempre posso lhe dedicar o tempo que queria.
Ela se preocupou de imediato.
— Que é que há? Um novo perigo? Fale, ligeiro.
— Oh, nada de grave ainda. Porém...
— Porém?
— Bem, ele está no nosso rastro.
— Sholmes?
— Sim. Foi ele que lançou Ganimard lá no restaurante húngaro. Foi ele quem deixou de sentinela esta noite os dois agentes da rua Chalgrin. Tenho a prova. Ganimard revistou a casa esta manhã e Sholmes estava com ele. Além disso...
— Além disso?
— Bem, há outra coisa: um de nossos homens está faltando, Jeanniot.
— O porteiro?
— Sim.
— Mas fui eu que o mandei de manhã à rua Chalgrin, para recolher as granadas que tinham caído do meu bolso.
— Então não há dúvida; Sholmes lhe armou uma cilada e prendeu.
— Que nada! As granadas foram levadas ao joalheiro da rua da Paix.
— E o que foi feito dele depois?
— Oh, Maxime, tenho medo.
— Não há o que recear. Mas confesso que a situação é grave. Que sabe e onde se esconde ele? Sua força reside no seu isolamento. Nada pode traí-lo.
— Que devemos fazer?
— Ter a maior prudência, Clotilde. Há tempos estou decidido a mudar minha instalação, transportando-a para aquele inviolável retiro que você sabe. A intervenção de Sholmes apressa as coisas. Quando um homem como ele segue uma pista, deve-se imaginar que fatalmente chegará ao fim dela. Assim preparei tudo e depois de amanhã, quarta, se fará a mudança. Ao meio-dia estará terminada. Às duas, eu próprio poderei abandonar o lugar, depois de retirar os últimos vestígios da nossa instalação, o que não é tarefa fácil. Daqui até lá...
— Até lá?
— Não devemos nos ver e ninguém deve vê-la, Clotilde. Não saia. Nada receio por mim, mas receio tudo quando se trata de você.
— É impossível que este inglês chegue até a mim.
— Com ele tudo é possível e tenho as minhas desconfianças. Ontem, quando quase fui surpreendido pelo seu pai, tinha ido revisar o armário que contém os velhos papéis do sr. Destange; havia um perigo aí. Há perigo em toda parte. Adivinho o inimigo a andar na sombra e a acercar-se cada vez mais. Sinto que nos vigia... que estende suas redes em nossa volta. É uma dessas intuições que nunca me enganam.
— Nesse caso, vá embora, Maxime, e não pense mais nas minhas lágrimas. Serei forte e esperarei que o perigo seja afastado. Adeus, Maxime.
Beijou-o longamente e foi ela quem o empurrou para fora. Sholmes ouviu o som a afastar-se das vozes dos dois.
Audazmente, excitado pela necessidade de agir a despeito e contra tudo que desde a véspera o estimulava, foi para um vestíbulo que tinha no fim uma escada. No momento em que ia descer, o ruído de uma conversa veio do andar inferior e julgou preferível seguir por um corredor circular que o conduziu a outra escada. Ao pé dela, surpreendeu-se em ver móveis de que conhecia a forma e a posição. Uma porta estava entreaberta e penetrou numa grande peça redonda. Era a biblioteca do sr. Destange.
— Perfeito, admirável — murmurou, — entendo tudo. O quarto de Clotilde, isto é, da Dama Loura, se comunica com um dos apartamentos do prédio vizinho, prédio que tem saída não à praça Malesherbes, mas numa rua adjacente, a rua Montchanin, tanto quanto me lembro... Maravilha. Me explico como Clotilde Destange vai se juntar ao amado conservando a reputação de alguém que não sai nunca. Me explico também como Arsène Lupin surgiu perto de mim, ontem de noite, na galeria: deve haver uma outra comunicação entre o apartamento vizinho e esta biblioteca... E concluiu:
— Ainda uma casa preparada. Outra vez sem dúvida Destange arquiteto! Agora é aproveitar a minha passagem por aqui para olhar o conteúdo do armário... e me documentar sobre as outras casas preparadas.
Sholmes subiu à galeria e se escondeu atrás das fazendas do corrimão. Ali ficou até o fim do serão, quando um criado veio apagar as lâmpadas elétricas. Uma hora depois, fez funcionar o botão de sua lanterna e se dirigiu ao armário.
Como sabia, ali estavam papéis do arquiteto, projetos, orçamentos, livros de contabilidade. Em segundo plano, havia uma série de registros, classificados por ordem de antigüidade,
Pegou alternadamente os dos últimos anos, examinando a página de recapitulação, especialmente a letra H. Enfim, tendo achado o nome Harmingeat, seguido do número 63, foi à página 63 e leu:
"Harmingeat, rua Chalgrin, 40."
Seguia-se a pormenorização dos trabalhos executados para esse cliente, a fim de instalar uma lareira em seu imóvel. Na margem esta nota: "Ver o dossiê M. B."
— Já sei — murmurou, — o dossiê M. B. é o que me falta. Por ele saberei o atual domicílio do sr. Lupin.
Mas só de manhã, na segunda metade de um registro, descobriu o difícil dossiê.
Tinha quinze páginas. Uma reproduzia a dedicada ao sr. Harmingeat da rua Chalgrin. Outra enumerava os trabalhos feitos pelo sr. Vatinel, proprietário, à rua Clapeyron, 25. Outra estava reservada ao barão d'Hautrec, à avenida Henri-Martin, 134, outra ao castelo de Crozon, e as onze seguintes a diferentes proprietários de Paris.
Sholmes copiou essa lista de onze nomes e endereços, repôs tudo no lugar, abriu uma janela e pulou para a praça deserta, tendo o cuidado de encostar os batentes.
No seu quarto no hotel, acendeu o cachimbo com a seriedade costumeira e, envolto em nuvens de fumaça, estudou o que se podia concluir do dossiê M. B., ou, para dizer melhor, do dossiê Maxime Bermond, ou seja, Arsène Lupin.
Às oito horas, enviou a Ganimard esta carta pneumática:
"Vou passar sem dúvida de manhã na rua Pergolèse e lhe entregar uma pessoa cuja captura é da maior importância. De qualquer modo, esteja em casa esta noite e amanhã, quarta-feira, até o meio-dia, e tome providências para ter uns trinta homens à sua disposição..."
A seguir, escolheu na avenida um auto de aluguel, cujo motorista o agradou pela boa cara feliz e pouco inteligente, e foi para a praça Malesherbes, parando a uns cinqüenta metros da mansão Destange.
— Meu filho, feche o carro — disse ao homem, — levante a gola da japona que o vento está frio, e espere com paciência. Dentro de hora e meia, ponha o motor em marcha. Quando eu voltar, siga para a rua Pergolèse.
No instante de entrar na casa, teve uma última hesitação. Não seria um erro ocupar-se com a Dama Loura enquanto Lupin findava seus preparativos para ir embora? Não seria melhor procurar primeiro, com a ajuda da lista dos imóveis, a residência do seu adversário?
— Ora — pensou, — com a Dama Loura minha prisioneira, serei senhor da situação.
E bateu.
O sr. Destange já estava na biblioteca. Trabalharam um momento e Sholmes procurava um pretexto para subir até o quarto de Clotilde, quando a moça entrou, disse bom dia ao pai, sentou-se no salãozinho e começou a escrever.
Do seu lugar, Sholmes a via, curvada sobre a mesa e a meditar de tempos em tempos, com a pena no ar e o rosto pensativo. Esperou; logo, agarrando um volume, disse ao sr. Destange:
— Está aqui o livro que a srta. Destange me pediu que lhe levasse quando desse com ele.
Foi para o salãozinho e se postou diante de Clotilde para que o pai não pudesse vê-la, e falou:
— Sou o sr. Stickmann, o novo secretário do sr. Destange.
— Ah — fez ela sem se preocupar. — Meu pai então mudou de secretário?
— Sim, srta., e desejaria lhe falar.
— Queira sentar-se, sr., já terminei.
Acrescentou algumas palavras à carta, assinou, lacrou o envelope, afastou seus papéis, pegou o telefone e obteve comunicação com sua costureira, solicitando que terminasse logo um casacão de viagem de que tinha urgente necessidade, e enfim se virou para Sholmes:
— Às suas ordens, sr. Mas nossa conversa não pode ter lugar diante de meu pai?
— Não, srta., peço-lhe mesmo que não alteie a voz. É preferível que o sr. Destange não nos ouça.
— Para quem é preferível?
— Para você.
— Não admito uma conversa que meu pai não possa ouvir.
— Esta precisa admitir.
Ergueram-se um e outro, cruzando olhares. Ela disse:
— Fale, sr.
Sempre de pé, ele começou:
— Me perdoará se me enganar sobre alguns pontos secundários. O que asseguro é a exatidão em conjunto dos incidentes que exporei.
— Nada de frases, lhe peço. Fatos.
Pela brusca interrupção, sentiu que a moça estava na defensiva. Continuou:
— Vá, irei direto ao objetivo. Há cinco anos, o sr. seu pai teve a oportunidade de encontrar um sr. Maxime Bermond, que se apresentou a ele como empresário... ou arquiteto, não saberia precisar. Aconteceu que o sr. Destange se encheu de afeto por esse jovem e, como seu estado de saúde não lhe permitia mais tomar conta de seus negócios, confiou ao sr. Bermond a execução de algumas encomendas que aceitara da parte de velhos clientes e que pareciam na medida das aptidões do seu colaborador.
Herlock parou. Julgou que a palidez da moça se acentuara. Foi, porém, com a maior calma que ela pronunciou:
— Não conheço os fatos de que trata, sr., e especialmente não vejo em que poderiam me interessar.
— Nisto, srta.: o verdadeiro nome de Maxime Bermond, sabe tanto quanto eu, é Arsène Lupin.
Ela caiu na risada.
— Não é possível! Arsène Lupin? O sr. Maxime Bermond se chama Arsène Lupin?
— Como tenho a honra de lhe dizer, srta., e já que se recusa a me entender por meias palavras, acrescento que Arsène Lupin achou aqui, para realizar seus planos, uma amiga, mais que uma amiga, uma cúmplice cega e... apaixonadamente dedicada.
Ela se levantou e, sem emoção, pelo menos com tão pouca que Sholmes se impressionou com o seu autodomínio, declarou:
— Ignoro o fim desta sua conduta, sr., e desejo ignorar. Peço-lhe assim que não diga mais uma palavra e saia daqui.
— Nunca tive a intenção de lhe impor a minha presença indefinidamente — respondeu Sholmes, tão calmo quanto ela.
— Somente decidi não sair sozinho desta casa.
— E quem o acompanhará, sr.?
— Você.
— Eu?
— Sim, srta., sairemos juntos da mansão e me seguirá sem um protesto, uma palavra.
O que havia de estranho nessa cena era a calma absoluta dos dois adversários. Mais que um duelo implacável entre duas vontades poderosas, se diria, pela atitude dos dois e o tom de suas vozes, o cortês debate de duas pessoas não da mesma opinião.
Na galeria, pela vidraça bem aberta, via-se o sr. Destange a manusear seus livros com gestos comedidos.
Clotilde voltou a se sentar, erguendo um pouco os ombros. Herlock puxou o relógio.
— São dez e meia. Em cinco minutos, sairemos.
— Senão?
— Senão vou ao sr. Destange e lhe conto...
— O quê?
— A verdade. A vida mentirosa de Maxime Bermond e a vida dupla de sua cúmplice.
— Cúmplice?
— Sim, da que chamam a Dama Loura, da que foi loura.
— E que provas dará a ele?
— Levo-o à rua Chalgrin e lhe mostro a passagem que Arsène Lupin, abusando de obras de que tinha a direção, fez realizar por seus homens entre o 40 e o 42, a passagem que vocês dois usaram anteontem à noite.
— Depois?
— Depois, levo o sr. Destange à casa do advogado Detinan e vamos descer a escada de serviço que você e Lupin desceram para escapar a Ganimard. E ambos procuraremos uma ligação semelhante que sem dúvida existe com a casa vizinha, cuja saída dá para a avenida Batignolles e não para a rua Clapeyron.
— Depois?
— Conduzo o sr. Destange ao castelo de Crozon, e lhe será fácil, a ele que sabe a espécie de trabalhos feitos por Arsène Lupin quando da restauração deste castelo, descobrir as passagens secretas que Lupin fez seus operários executarem. Verá que tais passagens permitiram à Dama Loura entrar de noite no quarto da condessa e pegar aí sobre a lareira o diamante azul; logo, duas semanas mais tarde, entrar no quarto do conselheiro Bleichen e esconder esse diamante azul no fundo de um frasco; ato bem estranho, admito; talvez uma pequena vingança de mulher, não sei, mas isso não importa.
— Depois?
— Depois — a voz de Herlock se fez mais grave, — levo o sr. Destange à avenida Henri-Martin, 134, e veremos como o barão d'Hautrec...
— Cale, cale — balbuciou a jovem com repentino susto. — Proíbo-o!... então ousa dizer que fui eu... me acusa?
— Acuso-a de ter matado o barão d'Hautrec,
— Não, não, é uma infâmia.
— Você o matou, srta. Foi servi-lo sob o nome de Antoinette Bréhat com o fim de lhe furtar o diamante azul, e o matou.
De novo ela murmurou, vencida, reduzida à súplica:
— Cale, sr., lhe peço. Já que sabe tantas coisas, deveria saber que não assassinei o barão.
— Não disse que o assassinou, srta. O barão d'Hautrec era sujeito a acessos de loucura, que apenas a irmã Auguste podia dominar; ela própria me informou. Na sua ausência, ele deve ter se lançado sobre você e durante a luta, para defender sua vida, o abateu. Espantada com tal ato, tocou a campainha do criado e fugiu sem sequer tirar do dedo da sua vítima o diamante azul que tinha vindo pegar. Pouco depois, trouxe um dos cúmplices de Lupin, criado na casa vizinha; puseram o barão na cama e deixaram o quarto em ordem... mas sempre sem que ousasse agarrar o diamante azul. Eis o que se passou. Repito, não assassinou o barão. No entanto foram as suas mãos que o feriram.
Tinha cruzado na testa as longas mãos finas e pálidas, e assim as conservou por muito tempo, imóveis. Enfim, abrindo os dedos, mostrou o rosto doído e pronunciou:
— E é tudo isso que tem a intenção de dizer a meu pai?
— Sim, e lhe direi que tenho como testemunhas a srta. Gerbois, que reconhecerá a Dama Loura, a irmã Auguste que reconhecerá Antoinette Bréhat, a condessa de Crozon que fará o mesmo com a sra. de Real. É isso o que lhe direi.
— Não ousará — disse, recuperando o sangue-frio ante a ameaça de um perigo imediato.
Ele se ergueu e deu um passo para a biblioteca. Clotilde o deteve:
— Um instante, sr.
Refletiu, já senhora de si mesma, e muito calma lhe perguntou:
— É Herlock Sholmes, não é?
— Sim.
— Que deseja de mim?
— O que desejo? Iniciei contra Arsène Lupin um duelo de que tenho de sair vencedor. Na espera de um desfecho que não deve tardar, considero que uma refém tão preciosa como você me dará sobre o adversário uma apreciável vantagem. Assim, irá comigo, srta., e a entregarei a um de meus amigos. No que atingir meu objetivo, estará livre.
— É tudo?
— Tudo. Não faço parte da polícia do seu país e em conseqüência-não me atribuo qualquer direito de justiceiro.
Ela parecia decidida. Exigiu, porém, ainda um momento de trégua. Fechou os olhos enquanto Sholmes a fitava — tão tranqüila, quase indiferente aos riscos que a cercavam!
— Será até — pensou o inglês — que imagina esses riscos? Nem isso, já que Lupin a protege. Com ele, nada pode lhe acontecer. É todo-poderoso, é infalível.
— Srta. — disse, — falei em cinco minutos, passaram mais de trinta.
— Me deixe subir ao quarto para pegar as minhas coisas.
— Se quiser, vou esperá-la na rua Montchanin. Sou um bom amigo do porteiro Jeanniot.
— Já sabe... — teve um susto visível.
— Sei muitas coisas.
— Está bem. Chamo a criada.
Trouxeram-lhe o chapéu e o casaco. Sholmes lhe disse:
— Tem de dar ao sr. Destange um motivo que justifique a nossa saída e, se necessário, sua ausência durante uns dias.
— Inútil. Logo estarei de volta.
De novo se desafiaram com o olhar, ambos irônicos e sorridentes.
— Como confia nele! — disse Sholmes.
— Cegamente.
— Tudo o que ele faz está bem, não é?, tudo o que quer se realiza. E aprova tudo e está pronta a tudo por ele.
— Amo-o — disse ela, vibrando de paixão.
— Julga que ele a salvará?
Ela deu de ombros, foi até o pai e o preveniu:
— Roubo-te o sr. Stickmann. Vamos à Biblioteca Nacional.
— Voltas para jantar?
— Talvez... ou antes não... mas não te preocupes. E declarou com firmeza vindo a Sholmes:
— Sigo-o, sr.
— Sem segundas intenções?
— De olhos fechados.
— Se tentar fugir, chamo, grito, vão detê-la e será a prisão. Não esqueça que a Dama Loura tem mandado de captura.
— Dou-lhe a palavra de que não farei nada para fugir.
— Acredito. Andemos.
Juntos, como ele tinha previsto, os dois deixaram a mansão.
Na praça, estava o auto, mas virado em sentido contrário. Viam-se as costas do motorista e seu boné, cujas abas quase cobriam a gola do casacão. Aproximando-se, Sholmes ouviu o ronco do motor. Abriu a porta, pediu a Clotilde que subisse e sentou a seu lado.
O carro partiu em seguida e ganhou as avenidas exteriores, a Hoche, a da Grande-Armée.
Herlock, pensativo, fazia planos.
— Ganimard está em casa... deixo a moça com ele. Digo-lhe quem é? Não, punha-a em prisão preventiva, o que estragaria tudo. Uma vez sozinho, consulto a lista do dossiê M. B. e me ponho à caça. E esta noite ou, o mais tardar, amanhã, busco Ganimard, como está combinado, para lhe entregar Arsène Lupin e seu bando...
Esfregava as mãos, contentes de ver a meta ao seu alcance e que nenhum obstáculo sério dela o separava. Cedendo a uma necessidade de expansão que contrastava com a sua natureza, irrompeu:
— Desculpe, srta., se me mostro contente. A luta foi penosa e o êxito me é especialmente agradável.
— Um êxito legítimo, sr., que tem o direito de gozar.
— Lhe agradeço. Mas que caminho é este? Será que o chofer não entendeu?
Neste momento, saíam de Paris pela porta de Neuilly. Que diabo! A rua Pergolèse não ficava além das defesas da cidade. Sholmes baixou o vidro divisório.
— Que é que há, rapaz? Está enganado... Rua Pergolèse! O homem não respondeu. Ele repetiu mais alto:
— Lhe disse para ir à rua Pergolèse. O outro continuou não respondendo.
— Ah, é surdo! ou de má fé?... Nada temos a fazer por aqui... Rua Pergolèse!... Lhe ordeno que volte, e rápido.
Sempre o mesmo silêncio. O inglês fremiu de irritação. Olhou Clotilde: um sorriso indefinível franzia os lábios da moça.
— Por que está rindo? — resmungou ele. — Este incidente não tem relação... não muda nada de nada.
— Absolutamente nada — ela disse.
De repente uma idéia o assaltou. Semi-erguendo-se, examinou com mais atenção o homem que dirigia. Os ombros eram menores, a atitude mais ágil... Veio-lhe um suor frio, suas mãos se crisparam, ao passo que a mais assustadora certeza se impunha ao seu espírito: este homem era Arsène Lupin.
— Bem, sr. Sholmes, que nos diz deste passeiozinho?
— Uma delícia, meu caro, uma verdadeira delícia — replicou Sholmes.
Nunca talvez teve de fazer sobre si um tal esforço como para articular essas palavras sem um frêmito na voz, sem nada que pudesse indicar a devastação do seu ser. Em seguida, por uma espécie de reação descomunal, uma onda de raiva e ódio quebrou os diques, arrebatou-lhe a vontade e, tirando o revólver num gesto brusco, apontou-o à srta. Destange.
— Pare neste segundo, Lupin, ou atiro na srta.!
— Recomendo que mire na face, se quiser atingir a têmpora — respondeu Lupin sem virar a cabeça.
Clotilde falou:
— Maxime, não vá tão depressa, a estrada está escorregadia e sou muito medrosa.
Ela seguia sorrindo, com os olhos fitos na estrada que se descortinava diante do carro.
— Que ele pare! pare de uma vez! — lhe disse Sholmes louco de indignação, — está vendo que sou capaz de tudo!
O cano do revólver tocou nas ondas do cabelo. Ela murmurou:
— Este Maxime é tão imprudente! Nesta velocidade é certo que vamos derrapar.
Sholmes guardou a arma no bolso e pegou o trinco da porta, pronto a se atirar, apesar do absurdo de um tal ato. Clotilde lhe disse:
— Cuidado, sr., há um auto atrás de nós.
Virou-se. Um carro de fato os seguia, enorme, feroz de aspecto com sua frente pontuda, cor de sangue, e os quatro homens com peles de animal em cima dela.
— Vá — pensou, — me montam guarda, há que ter paciência.
Cruzou os braços no peito, com a orgulhosa submissão dos que cedem e esperam quando o destino se volta contra eles. E enquanto atravessavam o Sena e passavam por Suresnes, Rueil, Chatou, imóvel, resignado, controlando sua cólera e sem amargura, só pensava em descobrir por que milagre Arsène Lupin tinha trocado de lugar com o chofer. Que o bravo rapaz que escolhera de manhã na avenida pudesse ser um cúmplice ali colocado de antemão, não admitia. Mas era preciso que Arsène Lupin tivesse sido prevenido e não podia ter sido senão depois do momento em que ele, Sholmes, ameaçara Clotilde, já que ninguém antes suspeitava do seu plano. Ora, desde aquele momento ele e Clotilde não tinham se separado.
Uma lembrança lhe veio: a ligação telefônica pedida pela moça, sua conversa com a costureira. Súbito entendeu. Antes mesmo que falasse, ao simples anúncio do entendimento que pedia como novo secretário do sr. Destange, ela farejara o perigo, adivinhando o nome e o objetivo do interlocutor e com fria naturalidade, como se de fato realizasse o ato que parecia realizar, chamou Lupin em seu socorro, sob o disfarce de insistir numa encomenda e se servindo de fórmulas combinadas entre os dois.
Como Arsène Lupin veio, como o auto parado de motor ligado lhe pareceu suspeito, como subornou o motorista, tudo isso importava pouco. O que apaixonava Sholmes, ao ponto de acalmar seu furor, era aquele instante em que uma simples mulher, apaixonada é certo, domando os nervos, calcando o instinto, paralisando os traços do rosto, subjugando a expressão dos olhos, tinha dado o troco ao velho Herlock Sholmes.
Que fazer contra um homem servido por auxiliares desse porte e que, apenas pela força de sua autoridade, insuflava a uma mulher tais provisões de audácia e energia?
Passado o Sena, subiram a costa de Saint-Germain, mas, a quinhentos metros depois dessa cidade, o auto diminuiu a marcha. O outro carro veio até ele e os dois pararam. Não havia ninguém nas imediações.
— Sr. Sholmes — disse Lupin, — tenha a bondade de mudar de veículo. O nosso é muito lento...
— Como isso! — clamou Sholmes, tanto mais empenhado quanto não tinha escolha.
— Me deixe também lhe emprestar este casacão — iremos bastante depressa — e lhe oferecer estes dois sanduíches... Sim, sim, aceite, quem sabe a que horas jantará!
Os quatro homens tinham descido. Um deles se acercou e, como tinha tirado os óculos que o mascaravam, Sholmes reconheceu o senhor de sobrecasaca do restaurante húngaro. Lupin lhe disse:
— Devolva este auto ao motorista a quem o aluguei. Ele está esperando na primeira loja de vinhos, à direita, da rua Legendre. Lhe fará a segunda entrega de mil francos combinada. Ah, esquecia, queira dar os seus óculos ao sr. Sholmes.
Falou umas palavras com a srta. Destange, se instalou na direção e arrancou, com Sholmes ao lado deles, tendo atrás de si um dos homens.
Lupin não tinha exagerado ao dizer que iriam "bastante depressa". Desde a saída foi uma marcha vertiginosa. O horizonte vinha ao encontro deles, como atraído por uma força misteriosa, e logo desaparecia como absorvido por um abismo para o qual outras coisas em seguida, árvores, casas, prados e florestas se precipitavam com a pressa tumultuosa de uma torrente que sente a aproximação da voragem.
Sholmes e Lupin não trocaram uma palavra. Acima da cabeça deles, as folhas dos olmos faziam um grande ruído de vagas, bem ritmado pela distância regular das árvores. E as cidades se evolavam: Mantes, Vernon, Gaillon. De uma colina a outra, de Bon-Secours a Canteleu e Rouen; com seus arredores, seu porto, seus quilômetros de cais, Rouen não parecia mais que a rua de uma vila. E passaram Duclair, Caudebec, a região de Caux de que roçaram as ondulações no seu vôo célere, e Lillebonn, e Quillebeuf. E eis que de súbito se acharam à margem do Sena, na ponta de um pequeno cais, em que estava um iate sóbrio e robusto de linhas com a chaminé a lançar espirais de fumaça negra.
O carro parou. Em duas horas, tinham percorrido mais de quarenta léguas.
Um homem se adiantou com jaqueta de marinheiro e um quepe com galões dourados, cumprimentando.
— Perfeito, capitão! — bradou Lupin. — Recebeu o telegrama.
— Recebi.
— L'Hirondelle está pronta?
— Está.
— Nesse caso, sr. Sholmes...
O inglês olhou em volta de si; viu um grupo de pessoas na esplanada de um café, um outro mais perto, hesitou um instante; logo, compreendendo que antes de qualquer tentativa seria agarrado, embarcado e expedido para o porão, atravessou a passarela e seguiu Lupin à cabina do comandante.
Era ampla, de uma limpeza meticulosa e iluminada pelo verniz de seus lambris e o fulgurar de seus cobres.
Lupin fechou a porta e sem preâmbulo, quase brutalmente, disse a Sholmes:
— Que sabe exatamente?
— Tudo.
— Tudo? Seja preciso.
Não havia mais na expressão de sua voz a polidez, um pouco irônica, que adotava em relação ao inglês. Era o tom imperioso do senhor que tem o hábito de mandar e de ver todo mundo dobrar-se diante dele, ainda que fosse um Herlock Sholmes.
Mediram-se com o olhar, inimigos agora, inimigos declarados e vibrantes. Algo enervado, Lupin continuou:
— Já diversas vezes topo com o sr. no meu caminho. Todas foram em demasia e estou farto de perder meu tempo em desarmar as armadilhas que me coloca. Previno-o, pois, que a atitude que tomar em relação a si dependerá de sua resposta: que sabe exatamente?
— Tudo, repito.
Arsène Lupin se conteve e, num tom áspero:
— Eu lhe direi o que sabe. Sabe que, sob o nome de Maxime Bermond, retoquei quinze casas construídas pelo sr. Destange.
— Sim.
— Dessas quinze, conhece quatro.
— Sim.
— E tem a lista das outras onze.
— Sim.
— Pegou essa lista na casa do sr. Destange, sem dúvida esta noite.
— Sim.
— E como supõe que, entre esses onze imóveis, há fatalmente um que conservei para mim, para o que eu e meus amigos necessitamos, confiou a Ganimard o cuidado de se pôr em campo e descobrir meu asilo.
— Não.
— O que significa?
— O que significa que ajo sozinho e ia me pôr em campo sozinho.
— Então nada tenho a temer, já que está em minhas mãos.
— Nada tem a temer enquanto eu estiver em suas mãos.
— Quer dizer que não pretende continuar?
— Não.
Arsène Lupin se aproximou mais do inglês e lhe pôs suavemente a mão no ombro:
— Escute, não estou disposto a discutir e o sr. não está, infelizmente para si, em condições de me pôr em xeque. Acabemos, portanto.
— Acabemos.
— Vai me dar a sua palavra de honra de não tentar fugir deste barco antes de estar em águas inglesas.
— Dou-lhe a minha palavra de buscar fugir por todos os meios — respondeu Sholmes, indomável.
— Raios! Sabe, no entanto, que me bastaria dizer uma palavra para reduzi-lo à impotência. Todos estes homens me obedecem cegamente. A um sinal meu, lhe poriam uma corrente no pescoço...
— As correntes se fendem...
—... e o jogariam n'água a dez milhas da costa.
— Sei nadar.
— Bem respondido — bradou Lupin rindo. — Deus me perdoe, estava irado. Desculpe, mestre... e terminemos. Admite que eu tome as medidas necessárias à minha segurança e à de meus amigos?
— Todas as medidas. Mas são inúteis.
— De acordo. Mas não vai me querer mal por tomá-las.
— É o seu dever.
— Vamos.
Lupin abriu a porta e chamou o capitão e dois marinheiros. Esses pegaram o inglês e, depois de revistá-lo, lhe ataram as pernas e o prenderam à pequena cama do capitão.
— Basta — ordenou Lupin. — Em verdade foi preciso a sua teimosia e a gravidade excepcional das circunstâncias para que eu ousasse me permitir...
Os marinheiros se retiraram. Lupin dirigiu-se ao capitão:
— Comandante, um homem da tripulação ficará aqui ao dispor do sr. Sholmes, e o sr. mesmo lhe fará companhia tanto quanto possível. Que tenham por ele toda a consideração. Não é um prisioneiro, mas um hóspede. Que horas tem no seu relógio, capitão?
— Duas e cinco.
Lupin consultou o próprio relógio e logo uma pêndula pregada no tabique da cabina.
— Duas e cinco?... estamos regulando. Quanto tempo precisa para chegar a Southampton?
— Nove horas, sem apressar.
— Faça por onze. Não deve tocar terra antes da partida do barco que deixa Southampton à meia-noite e que chega ao Havre às seis da manhã. Entende, não é, capitão? Repito: como seria muito perigoso para todos nós que esse sr. tornasse à França por esse barco, cumpre que não chegue em Southampton antes da uma da manhã.
— Entendido.
— Cumprimentos, mestre. Até o próximo ano, neste mundo ou no outro.
— Até amanhã.
Minutos depois, Sholmes escutou o automóvel que partia e em seguida, nas entranhas de L'Hirondelle, o vapor resfolegou com mais violência. O barco se fazia ao largo.
Pelas três horas, tinham ultrapassado o estuário do Sena e entravam no mar. Neste instante, estendido no beliche em que estava atado, Herlock Sholmes dormia profundamente.
Na manhã do dia seguinte, o décimo e último da guerra instaurada entre os dois grandes rivais, L'Echo de France publicava este delicioso anúncio:
Ontem um decreto de expulsão foi promulgado por Arsène Lupin contra Herlock Sholmes, detetive inglês. Comunicado ao meio-dia, o decreto foi executado à tarde. À uma da manhã Sholmes foi desembarcado em Southampton.
A segunda prisão de Arsène Lupin
Desde as oito, doze viaturas de mudança entupiam a rua Crevaux, entre a avenida do Bois-de-Boulogne e a avenida Bugeaud. O sr. Félix Davey estava deixando o apartamento que ocupava no quarto andar do n.° 8. E o sr. Dubreuil, um perito em decorações, que tinha reunido num só apartamento o quinto andar da mesma casa e o quinto andar de duas casas contíguas, despachava no mesmo dia — simples coincidência, pois esses senhores não se conheciam — as coleções de móveis pelas quais tantos estrangeiros o visitavam diariamente.
Foi observado no bairro, mas só falaram disso mais tarde, que nenhum dos doze veículos trazia o nome e o endereço do transportador, e que nenhum dos homens da mudança entrou nos botequins próximos. Trabalharam tão bem que às onze horas tudo tinha terminado. Não restava mais que esses montes de papel e trapo que as pessoas deixam atrás, nos cantos dos quartos vazios.
O sr. Félix Davey, jovem elegante, vestido pela moda mais requintada, mas que levava ,à mão uma bengala de ginástica cujo peso indicava no dono um bíceps pouco comum, saiu tranqüilamente e se sentou no banco da aléia transversal que corta a avenida do Bois em frente à rua Fergolèse. Perto dele, uma mulher, vestida à burguesa pobre, lia seu jornal, enquanto uma criança brincava de cavar com sua pá um monte de areia.
Um tempo e Félix Davey disse à mulher, sem virar a cabeça:
— Ganimard?
— Saiu, desde as nove da manhã.
— Onde?
— Para a Central de Polícia.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Nenhum telegrama esta noite?
— Nenhum.
— Continuam na casa tendo confiança em você?
— Continuam. Realizo uns servicinhos para a sra. Ganimard e ela me conta tudo o que o marido faz... Passamos a manhã juntas.
— Está bem. Até nova ordem, siga vindo aqui todos os dias, às onze.
Ele se levantou e foi para o Pavilhão Chinês, perto da porta Dauphine. Fez uma refeição frugal, dois ovos, legumes, frutas. Voltou depois à rua Grevaux e disse à zeladora:
— Vou dar uma olhada lá em cima e lhe devolver as chaves.
Terminou sua inspeção pela peça que lhe serviu de gabinete de trabalho. Ali, pegou na ponta de um tubo de gás, cuja dobra era articulada e pendia ao longo da lareira, tirou a tampa de cobre que o fechava, adaptou um pequeno aparelho em forma de cometa acústica, e soprou.
— Ninguém, Dubreuil?
— Ninguém.
— Posso subir?
— Sim.
Repôs o tubo no lugar, dizendo-se:
— Até onde vai o progresso... Nosso século pulula de invençõezinhas que tornam realmente a vida cativante e pitoresca. E tão divertida!... especialmente quando se sabe jogar com a vida como eu.
Fez girar uma das formas de mármore da lareira. A própria placa de mármore se mexeu e o espelho que a encimava deslizou sobre invisíveis encaixes, escancarando uma abertura em que descansavam os primeiros degraus de uma escada construída no próprio corpo da lareira; tudo isso bem limpo, em ferro cuidadosamente polido e azulejos de porcelana branca.
Subiu. No quinto andar, o mesmo orifício acima da lareira. O sr. Dubreuil esperava:
— Terminou, lá embaixo?
— Terminou.
— Tudo desocupado?
— Tudo.
— E o pessoal?
— Não ficaram mais que os três homens de guarda.
— Então vamos.
Um após o outro subiram pelo mesmo caminho até o andar dos criados, saindo numa mansarda em que se achavam três indivíduos, um deles a olhar pela janela.
— Nada de novo?
— Nada, patrão.
— A rua está calma?
— Completamente.
— Mais dez minutos e vou embora para não voltar. Vocês irão também. Até lá, se houver o menor movimento suspeito na rua, me avisem.
— Estou com o dedo em cima da campainha de alarma, patrão.
— Dubreuil, recomendou aos carregadores não tocarem nos fios dessa campainha?
— Por certo, está funcionando muito bem.
— Isso me deixa tranqüilo.
Os dois senhores tornaram a descer até o apartamento de Félix Davey. E este, depois de ter reajustado a moldura de mármore, exclamou alegre:
— Dubreuil, bem que eu gostaria de ver a cara dos que vão descobrir toda esta aparelhagem, campainhas de aviso, rede de fios elétricos e tubos acústicos, passagens secretas, tábuas de soalho que deslizam, escadas escondidas... Uma verdadeira maquinaria para um espetáculo de mágica!
— Que publicidade para Arsène Lupin!
— Uma publicidade que bem se podia dispensar. É uma pena abandonar uma instalação dessas. Temos de recomeçar tudo, Dubreuil... e sobre planos novos, claro, pois é preciso não se repetir nunca. Esta peste do Sholmes!
— Ele ainda não voltou?
— E como? De Southampton, só um barco, o da meia-noite. Do Havre, só um trem, o das oito da manhã que chega às onze e onze minutos. Se não tomou o barco da meia-noite — e não tomou, porque as instruções dadas ao capitão eram formais —, só poderá estar na França à noite, via Newhaven e Dieppe.
— E se ele voltar?
— Sholmes não desiste nunca. Voltará, mas tarde demais. Estaremos longe.
— E a srta. Destange?
— Devo me encontrar com ela dentro de uma hora.
— Na casa dela?
— Oh, não; só retornará à casa dentro de uns dias, depois da tormenta... e quando eu não tenha mais do que me ocupar que com ela. Mas, você, Dubreuil, tem de apressar-se. O embarque de todas as nossas bagagens vai ser demorado e sua presença é necessária no porto.
— Tem certeza de não sermos vigiados?
— Por quem? Só receava a Sholmes.
Dubreuil se retirou. Félix Davey deu uma última volta; apanhou duas ou três cartas rasgadas e, notando um pedaço de giz, desenhou um retângulo no papel escuro da sala de jantar, onde inscreveu, como se faz numa placa comemorativa:
"AQUI MOROU, DURANTE CINCO ANOS, NO COMEÇO DO SÉCULO XX, ARSÈNE LUPIN, LADRÃO CAVALHEIRO."
Essa pequena brincadeira causou-lhe aparentemente viva satisfação. Contemplou-a a assobiar uma canção alegre e discursou:
— Agora que estou em ordem com os historiadores das futuras gerações, escapemos. Despache-se, mestre Herlock Sholmes, que antes de três minutos terei deixado a minha cova e a sua derrota será total. Ainda dois minutos! o senhor me faz esperar!... Ainda um minuto! Não chega? Nesse caso, proclamo a sua decadência e a minha apoteose. E sobre isso, desapareço. Adeus, reino de Arsène Lupin! Não o verei mais. Adeus, meu pequeno quarto, meu austero quarto!
Uma campainha cortou rente seu acesso de lirismo, num toque agudo, rápido, estridente, que se interrompeu duas vezes, duas vezes prosseguiu e parou. Era o alarma.
Que teria havido, que perigo imprevisto? Ganimard? Mas não...
Estava à beira de correr para o escritório e fugir. Mas antes foi até a janela. Ninguém na rua. Já estaria o inimigo dentro de casa? Prestou atenção e julgou ouvir rumores confusos. Sem hesitar mais, correu para o gabinete e, ao entrar nele, distinguiu o ruído de uma chave que procuravam meter na porta da entrada.
— Diabo — murmurou —, há o tempo justo. A casa está decerto cercada... a escada de serviço, impossível! Felizmente a lareira!...
Empurrou com força a moldura: não se mexeu. Fez um esforço maior e continuou não se mexendo.
Teve ao mesmo tempo a impressão de que a porta estava sendo aberta e que passos ressoavam.
— Deus do inferno — praguejou —, estou perdido se este ridículo mecanismo...
Seus dedos se crispavam na moldura, pôs todo o seu peso, e nada. Nada! Por uma incrível falta de sorte, uma maldade realmente espantosa do destino, o mecanismo, que há apenas um instante funcionava, não funcionava mais!
Enfureceu-se e o bloco de mármore permanecia inerte, imutável. Maldição! Era admissível que esse estúpido obstáculo lhe barrasse o caminho? Bateu no mármore com os punhos enraivecidos, martelou-o, injuriou...
— Bem, sr. Lupin, algo não anda como gostaria?
Lupin se virou, sacudido de espanto. Herlock Sholmes estava à sua frente.
Herlock Sholmes! Fitou-o piscando os olhos, como perturbado por uma visão cruel. Herlock Sholmes em Paris! Herlock Sholmes, que tinha despachado na véspera para a Inglaterra como uma encomenda perigosa, ali diante dele, vitorioso e livre! Ah, para que esse impossível milagre se realizasse, a despeito da vontade de Arsène Lupin, era preciso uma reviravolta das leis naturais, o triunfo do ilógico e do anormal! Herlock Sholmes diante dele!
E o inglês pronunciou, por sua vez irônico e com aquela desdenhosa polidez com que seu adversário tantas vezes o castigara:
— Sr. Lupin, lhe avisei que, a partir da noite passada, nunca mais pensaria no que me fez passar na mansão do barão d'Hautrec, nem nas desventuras do meu amigo Wilson, nem no meu rapto de automóvel, nem nessa viagem que acabo de fazer, atado por ordem sua num beliche desconfortável. Este minuto apaga tudo. Não me lembro mais de nada. Estou recompensado. Regiamente recompensado.
Lupin manteve silêncio. O inglês continuou:
— Não pensa também assim?
Parecia insistir em reclamar uma aquiescência, uma espécie de quitação em relação ao passado.
Depois de refletir um instante, no qual o inglês se sentiu invadido, perscrutado até o fundo da alma, Lupin declarou:
— Suponho, senhor, que este seu comportamento tem uma justificativa séria.
— Seriíssima.
— O fato de ter escapado a meu capitão e marinheiros não passa de um incidente secundário na nossa luta. Mas o fato de estar aqui, diante de mim, sozinho — ouviu? — sozinho diante de Arsène Lupin, me faz crer que sua vingança é tão completa quanto seria possível.
— De fato.
— Esta casa?
— Cercada.
— Os dois prédios contíguos?
— Cercados.
— O apartamento acima deste?
— Os três apartamentos do quinto andar que o sr. Dubreuil ocupava, cercados.
— De modo que...
— De modo que foi pego, sr. Lupin, irremediavelmente.
Os mesmos sentimentos que agitaram Sholmes durante aquela corrida de auto, Lupin os experimentou, um furor concentrado e uma revolta semelhantes, mas também, no fim das contas, análoga lealdade o dobrou à força das coisas. Ambos igualmente poderosos, deviam aceitar a derrota de modo parecido, como um mal provisório a que tinham de se resignar.
— Estamos quites, senhor — disse Lupin limpamente.
Essa confissão pareceu maravilhar o inglês. Calaram-se. Já senhor de si e sorridente, Lupin prosseguiu:
— Nem zangado estou! Já me entediava ganhar todas as vezes. Só tinha de estender o braço para atingi-lo em pleno peito. Desta vez sou eu o atingido. Touché, mestre!
Ria com prazer.
— Enfim vão se divertir! Lupin na ratoeira. Como sairá dela? Na ratoeira!... Que aventura!... Ah, mestre, devo-lhe uma forte emoção. É isso a vida!
Apertou as têmporas com os punhos fechados, como para comprimir a alegria desordenada que fervia em si, e fazia também gestos pueris de quem está se divertindo além de suas forças.
Acercou-se, enfim, do inglês.
— E agora, o que espera?
— O que espero?
— Sim, Ganimard está aí com seus homens. Por que não entra?
— Pedi que não entrasse.
— E consentiu?
— Só usei seus serviços sob a condição formal de que se deixaria guiar por mim. Aliás ele pensa que o sr. Félix Davey não passa de um cúmplice de Arsène Lupin.
— Então repito minha pergunta de outra forma. Por que entrou sozinho?
— Quis primeiro lhe falar.
— Ah, tinha o que falar comigo!
Essa idéia teria agradado muito a Lupin. Há circunstâncias em que se preferem de longe as palavras aos atos.
— Sr. Sholmes, lamento não ter uma poltrona para lhe oferecer. Esta caixa velha meio quebrada lhe serve? ou o bordo desta janela? Tenho certeza de que um copo de cerveja seria bem recebido... Branca ou preta?... Mas sente-se, peço...
— Não é preciso. Falemos.
— Estou ouvindo.
— Serei breve. O objetivo de minha estada na França não era a sua prisão. Se fui levado a persegui-lo, foi por não se apresentar nenhum outro meio para atingir minha meta.
— Que era?
— Achar o diamante azul!
— O diamante azul!
— Sem dúvida, porque o descoberto no frasco do cônsul Bleichen não era o verdadeiro.
— Com efeito. O verdadeiro foi expedido pela Dama Loura; fiz que o copiassem exatamente e, como tinha planos sobre as outras jóias da condessa e o cônsul Bleichen já era suspeito, a Dama Loura, para não ficar sob suspeita, pôs o diamante falso entre as coisas do cônsul.
— Enquanto você guardava o verdadeiro.
— É evidente.
— Preciso desse diamante.
— Lamento muito, mas não pode ser.
— Prometi-o à condessa de Crozon. Vou obtê-lo.
— Como, já que está em minha posse?
— Vou obtê-lo justamente por estar consigo.
— Irei lhe devolver?
— Sim.
— Voluntariamente?
— Eu compro.
Lupin riu.
— É bem do seu país. Trata isso como um negócio.
— É um negócio.
— E o que me oferece?
— A liberdade da srta. Destange.
— Sua liberdade? Não sabia que estava presa.
— Darei ao sr. Ganimard as necessárias indicações. Privada de sua proteção, será agarrada, ela também.
Lupin riu de novo.
— Caro senhor, me oferece o que não tem. A srta. Destange está em segurança e não teme nada. Peço outra coisa.
O inglês vacilou, embaraçado, enrubescendo um pouco as faces. Súbito, pôs a mão no ombro do seu adversário:
— E se lhe propusesse...
— A minha liberdade?
— Não... mas enfim posso sair desta peça, combinar com o sr. Ganimard...
— E me deixar refletir?
— Sim.
— Ah, meu Deus, de que me serviria! Este endiabrado mecanismo não funciona mais — disse Lupin empurrando irritado a moldura da lareira.
Abafou um grito de surpresa: desta vez, capricho das coisas, inesperado retorno da sorte, o bloco de mármore cedeu a seus dedos!
Era a salvação, a fuga possível. Nesse caso, para que se submeter às condições de Sholmes?
Caminhou a um lado e outro, como a meditar sua resposta. Logo, pôs também a mão no ombro do inglês.
— Ponderando tudo, sr. Sholmes, prefiro fazer meus negocinhos só.
— Porém...
— Não, não preciso de ninguém.
— Quando Ganimard o pegar, será o fim. Não o largarão.
— Quem sabe!
— Vamos, é loucura. Todas as saídas estão ocupadas.
— Menos uma.
— Qual?
— A que escolherei.
— Palavras! Sua prisão pode ser vista como consumada.
— Não está.
— E então?
— Então conservo o diamante azul. Sholmes puxou o relógio.
— São três menos dez. Às três, chamo Ganimard.
— Temos portanto dez minutos pela frente para conversar. Aproveitemos, sr. Sholmes, e, para satisfazer uma curiosidade que me aflige, diga como achou meu endereço e meu nome de Félix Davey?
Vigiando atento Lupin, cujo bom humor o preocupava, Sholmes se prestou de boa vontade a essa pequena explicação que falava ao seu amor-próprio.
— O endereço? Obtive com a Dama Loura.
— Clotilde?
— Ela. Lembra-se? Ontem de manhã, quando pretendi levá-la de auto, ela tinha telefonado à costureira.
— Realmente.
— Bem, compreendi depois que a costureira era você. E esta noite no barco, num esforço de memória, talvez uma das coisas de que possa me orgulhar, consegui reconstituir os dois últimos números do seu aparelho: 73. Desse modo, com a lista de suas casas "retocadas", me foi fácil, ao chegar em Paris agora às onze horas, procurar e descobrir no catálogo telefônico o nome e o endereço do sr. Félix Davey. A par desse nome e endereço, pedi o auxílio do sr. Ganimard.
— Admirável, de primeira ordem! Tenho de lhe tirar o chapéu. Mas não entendo é que tenha tomado o trem do Havre. Como fez para escapar de L'Hirondelle?
— Não escapei.
— Mas...
— Deu ordem ao capitão para só chegar em Southampton à uma da manhã. Me desembarcaram à meia-noite e pude assim pegar o barco para o Havre.
— O capitão me traiu? Inadmissível.
— Não traiu.
— Então?
— Foi o relógio dele.
— O relógio?
— Sim, adiantei de uma hora o seu relógio.
— Como?
— Como se adianta um relógio, girando a corda. Conversávamos, sentados juntos, lhe contava histórias que o interessavam... Palavra, não notou nada.
— Bravos, bravos, bonito estratagema, estou anotando. Mas a pêndula, presa na divisão de sua cabina?
— Ah, a pêndula foi mais difícil, pois tinha as pernas atadas, mas o marinheiro que me vigiava durante as ausências do capitão prontificou-se a dar um toque de dedo nos ponteiros.
— Vamos! Prontificou-se?...
— Oh, ignorava a importância do ato. Disse-lhe precisar tomar a qualquer preço o primeiro trem para Londres, e se deixou convencer.
— Mediante...
— Mediante um presentinho... que o bom homem, aliás, tem a intenção de lhe passar lealmente.
— Que presente?
— Quase nada.
— Ainda assim?
— O diamante azul.
— O diamante azul!
— Sim, o falso, o que trocou pelo diamante da condessa e que ela me entregou...
Foi um acesso de riso, súbito e tumultuoso. Lupin ficou com os olhos cheios d'água.
— Deus, como é engraçado! Meu diamante falso devolvido ao marinheiro! E o relógio do capitão! E os ponteiros da pêndula!...
Nunca Sholmes sentira tão violenta a luta entre Lupin e ele. Com seu prodigioso instinto, adivinhava, sob essa alegria excessiva, uma formidável concentração de pensamento, uma mobilização de todas as faculdades.
Pouco a pouco, Lupin tinha se acercado. O inglês recuou e, distraidamente, enfiou os dedos no bolso do colete.
— São três horas, sr. Lupin.
— Já três? Que pena!... nos divertíamos tanto!
— Espero a sua resposta.
— A minha? Meu Deus, como é exigente! Jogamos o fim da partida, não é? E como prêmio, minha liberdade!
— Ou o diamante azul.
— Vá... Jogue primeiro. Que está fazendo?
— Xeque ao rei — disse Sholmes, dando um tiro de revólver.
— E eu marco o ponto — replicou Arsène, esmurrando o inglês.
Sholmes atirara para cima a fim de chamar Ganimard, cuja presença lhe soava urgente. O punho de Arsène Lupin foi direito ao estômago de Sholmes que empalideceu e cambaleou. Num pulo Lupin saltou à lareira e já a placa de mármore se movia... Tarde demais! A porta era aberta.
— Renda-se, Lupin, senão...
Ganimard, postado sem dúvida mais perto do que Lupin tinha julgado, estava lá, e dez, vinte homens se empurravam, rapazes sólidos e sem escrúpulos, que o abateriam como a um cão ao menor sinal de resistência.
Fez um gesto, bem calmo.
— Baixem as mãos, eu me rendo.
E cruzou os braços no peito.
Houve como um estupor. Na peça desguarnecida de seus móveis e tapeçarias, as palavras de Arsène Lupin se prolongavam que nem um eco. "Eu me rendo." Palavras inacreditáveis. Aguardavam que ele se desvanecesse de repente por um alçapão, ou que uma parede desmoronasse e o subtraísse ainda uma vez a seus perseguidores. E ele se rendia!
Ganimard avançou e, emocionado, com toda a gravidade que um tal ato comportava, estendeu devagar a mão sobre o adversário e teve o infinito prazer de pronunciar:
— Está preso, Arsène Lupin.
— Brr — se arrepiou Lupin —, você me impressiona, meu caro Ganimard. Que aspecto lúgubre! Dir-se-ia que está falando ante a cova de um amigo. Vamos, não fique com esta cara de enterro.
— Está preso.
— E isso o admira? Em nome da lei, de que é fiel executor, Ganimard, inspetor principal, prende o malvado Lupin. Minuto histórico, de que medem toda a importância... E é a segunda vez que se dá semelhante fato. Bravos, Ganimard, há de fazer uma bela carreira!
E ofereceu os punhos às algemas.
Toda a coisa ocorreu de modo bem solene. Os agentes, apesar da desenvoltura vulgar e do rancor contra Lupin, agiam com reserva, surpresos por lhes ser permitido chegar a este ser intangível.
— Meu pobre Lupin — suspirou o próprio —, que diriam teus amigos do bairro nobre, se te vissem humilhado deste modo!
Afastou os punhos num esforço crescente e contínuo dos músculos. Saltaram-lhe veias na testa. O aço dos elos lhe penetrou na pele.
— Vamos — disse.
Rompida, a algema caiu.
— Uma outra, amigo, que esta não vale nada.
Puseram-lhe duas delas. Aprovou:
— Bem pensado! Nenhuma cautela é demais.
Contou os agentes:
— Quantos são, amigos? Vinte e cinco? Trinta? É muito... Nada a fazer. Ah, se fossem apenas quinze!
Tinha aprumo, o aprumo de um grande ator que interpreta seu papel na base do instinto e da energia, com leveza e impertinência. Sholmes o contemplava como a um belo espetáculo de que sabia apreciar todos os valores e nuanças. E teve de fato a estranha impressão de que era uma luta igual a dos trinta homens de um lado, apoiados pelo formidável mecanismo da justiça, e de outro, aquele ser solitário, sem armas e algemado. As duas partes se valiam.
— Bem, mestre — disse Lupin —, esta é a sua obra. Graças a você, Lupin vai apodrecer na enxerga úmida dos calabouços. Confesse que sua consciência não está de modo algum tranqüila e o remorso o corrói.
Involuntariamente o inglês deu de ombros, como a dizer: "Dependia só de você..."
— Nunca, nunca! — clamou Lupin. — Entregar-lhe o diamante azul, ah, não. Já me custou muito trabalho, estou decidido a conservá-lo. Na primeira visita que terei a honra de lhe fazer em Londres, sem dúvida no mês que vem, lhe direi os motivos... Mas vai estar em Londres no outro mês, ou prefere Viena, São Petersburgo?
Estremeceu. Veio do teto um toque de campainha. Não era mais o alarma, mas o telefone, cujos fios iam até o seu escritório, entre duas janelas, e cujo aparelho não fora tirado.
O telefone! Ah, quem ia cair na cilada feita por um abominável acaso? Arsène Lupin teve um movimento de raiva para o aparelho, como se tivesse querido quebrá-lo, reduzi-lo a cacos, e assim silenciar a voz misteriosa que desejava lhe falar. Mas Ganimard agarrou o fone.
— Alô, alô... 648.73... Sim, é aqui.
Com energia e autoridade, Sholmes o afastou, pegou o fone e pôs o lenço na frente para tornar mais indistinto o som da sua voz.
Nesse instante ergueu os olhos a Lupin. E o olhar que trocaram lhes provou que o mesmo pensamento acudira aos dois e estavam prevendo até as últimas conseqüências da hipótese possível, provável, quase certa: era a Dama Loura que telefonava. Ela julgava estar ligando a Félix Davey, ou antes a Maxime Bermond, e era a Sholmes que ia falar!
O inglês silabou:
— Alô... Alô...
Um silêncio, e Sholmes:
— Sim, sou eu, Maxime.
De imediato o drama se desenhou numa precisão trágica. Lupin, o indomável e divertido Lupin, nem sequer pensou em esconder sua ansiedade e, com o rosto pálido de angústia, esforçou-se por ouvir, adivinhar.
Sholmes continuou, em resposta à voz misteriosa:
— Alô... alô... Mas sim, tudo terminou e me aprontava justamente para encontrá-la como combinamos. Onde? Mas no lugar em que você se acha. Não julgue que é ainda ali…
Hesitava, buscando as palavras, logo se deteve. Era claro que procurava interrogar a moça sem se expor demais e que ignorava inteiramente onde ela estava. Além disso, a presença de Ganimard parecia perturbá-lo. Ah, se algum milagre tivesse podido cortar o fio desse diabólico diálogo! Lupin o pedia com todas as forças, com todos os nervos contraídos.
Sholmes prosseguia:
— Alô... alô!... Não está ouvindo?... Nem eu... muito mal... mal consigo distinguir... Ouve agora?... Bem, veja... pensando... é preferível que vá para casa. Que perigo? Nenhum... Mas está na Inglaterra! Recebi um telegrama de Southampton confirmando a sua chegada.
A ironia dessas palavras! E Sholmes as disse num inefável à vontade. Enfim, ajuntou:
— De modo que não perca tempo, querida, vou ter consigo.
E desligou.
— Sr. Ganimard, peço três dos seus homens.
— Para a Dama Loura, não é?
— Sim.
— Sabe quem é e onde está?
— Sim.
— Puxa! bela captura. Com Lupin... o dia está completo. Folenfant, traga dois homens e acompanhe o senhor.
O inglês se afastou, seguido pelos três agentes.
Era o fim. A Dama Loura, ela também, ia cair em poder de Sholmes. Graças à sua admirável obstinação e à cumplicidade de felizes ocorrências, a batalha terminava em triunfo para ele e num desastre irreparável para Lupin.
— Sr. Sholmes!
O inglês parou.
— Sr. Lupin?
Lupin parecia abalado a fundo por esse último golpe. Rugas lhe sulcavam a testa. Estava cansado e sombrio. Aprumou-se no entanto num ímpeto de energia. E apesar de tudo, alegre, desprendido, falou:
— Há de convir que a sorte se encarniça contra mim. Há pouco me impede de sumir por esta lareira e me entrega a você. Agora se serve do telefone para lhe presentear a Dama Loura. Curvo-me às ironias dela.
— O que quer dizer?
— Que estou pronto a reabrir as negociações.
Sholmes tomou o inspetor à parte e lhe solicitou, num tom aliás que não admitia réplica, a autorização para trocar algumas palavras com Lupin. Logo retornou a este. Supremo colóquio! iniciado num tom seco e nervoso.
— Que deseja?
— A liberdade da srta. Destange.
— Sabe o preço.
— Sim.
— E aceita?
— Aceito todas as suas condições.
— Ah! — fez o inglês, surpreso —, mas... tinha recusado... para você...
— Tratava-se de mim, sr. Sholmes. Agora se trata de uma mulher... e uma mulher que amo. Na França, veja, temos idéias bem singulares sobre essas coisas. E não há de ser porque a gente se chama Lupin que irá agir diversamente... Ao contrário!
Disse isso com muita calma. Sholmes teve uma imperceptível aquiescência de cabeça e murmurou:
— Então o diamante azul.
— Pegue a minha bengala ali, no canto da lareira. Com uma mão aperte o castão e com a outra gire a argola de ferro na ponta oposta.
Sholmes pegou a bengala, girou a argola e foi vendo que o castão se desaparafusava. Dentro dele, havia uma bola de goma e nela um diamante.
Examinou-o. Era o diamante azul.
— A srta. Destange está livre, sr. Lupin.
— Livre no futuro como no presente? Não tem nada a recear de você?
— Nem de ninguém.
— Aconteça o que acontecer?
— O que acontecer. Não sei mais seu nome nem seu endereço.
— Obrigado. E até logo. Porque nos tornaremos a ver, não é, sr. Sholmes?
— Não duvido.
Houve entre o inglês e Ganimard uma explicação tumultuada, que Sholmes cortou de forma um tanto abrupta.
— Lamento muito, sr. Ganimard, não ser da sua opinião. Mas não tenho tempo de persuadi-lo. Parto para a Inglaterra dentro de uma hora.
— No entanto... a Dama Loura?...
— Não conheço essa pessoa.
— Há um instante ainda...
— É tomar ou largar... Já lhe entreguei Lupin. Eis o diamante azul... que terá o prazer de devolver o senhor mesmo à condessa de Crozon. Me parece que não tem do que se queixar.
— Mas e a Dama Loura?
— Ache-a.
Pôs o chapéu na cabeça e se foi rápido, como um senhor que não tem o costume de se demorar quando seus negócios terminaram.
— Boa viagem, mestre — gritou Lupin. — E acredite que não esquecerei as relações cordiais que tivemos. Minhas recomendações ao sr. Wilson.
Não obteve qualquer resposta e caçoou:
— É o que se chama sair à inglesa. Ah, esse digno habitante da Ilha não possui o verniz de cortesia que nos caracteriza. Pense um pouco, Ganimard, na saída que um francês faria em tais circunstâncias. Sob que requintes de polidez disfarçaria seu triunfo?... Mas, Deus me perdoe, Ganimard, o que está fazendo, uma batida? Mas não há mais nada, meu pobre amigo, nem um papel. Meus arquivos estão em lugar seguro,
— Quem sabe! Quem sabe!
Lupin se resignou. Mantido por dois inspetores e cercado pelos outros, assistiu pacientemente às diversas operações. Ao fim de vinte minutos suspirou:
— Mais ligeiro, Ganimard, assim não termina.
— Tem pressa?
— Se tenho! um encontro urgente.
— No Comissariado?
— Não, na cidade.
— Oh, e a que horas?
— Às duas.
— São mais de três.
— Justamente: chegarei atrasado, e não há nada que deteste tanto como me atrasar.
— Me dá cinco minutos?
— Nem um a mais.
— Que amável... procurarei...
— Não fale tanto... Este armário outra vez?... Mas está vazio!
— Eis umas cartas aqui.
— Contas velhas!
— Não, um maço atado com uma fita de seda.
— Uma fita de rosa? Oh, Ganimard, não abra isso pelo amor de Deus!
— É de uma mulher?
— Sim.
— Uma mulher da sociedade?
— Da melhor.
— Seu nome?
— Sra. Ganimard.
— Engraçado, muito engraçado! — rebateu o inspetor meio ofendido.
Neste instante, os homens mandados às demais peças anunciaram que as buscas não tinham chegado a qualquer resultado. Lupin se pôs a rir.
— Puxa! Será que esperava achar a lista dos meus amigos ou a prova das minhas relações com o imperador da Alemanha? O que devia procurar, Ganimard, são os pequenos mistérios deste apartamento. Veja, este tubo de gás é um tubo acústico. Esta parede é oca. E a confusão das campainhas! Olhe, Ganimard, aperte este botão... Ganimard obedeceu.
— Não ouve nada? — interrogou Lupin.
— Não.
— Nem eu, No entanto avisou o comandante do meu parque aéreo para preparar o balão dirigível que logo nos levará pelos ares.
— Vamos — disse Ganimard, que tinha terminado a inspeção —, chega de tolices e a caminho!
Deu uns passos, os homens o seguiram.
Lupin não arredou pé.
Seus guardiões o empurraram. Em vão.
— Bem — disse Ganimard —, recusa-se a andar?
— De modo algum.
— Nesse caso...
— Mas depende.
— De quê?
— Do lugar aonde me levará.
— Ao Comissariado, ora!
— Então não caminho. Não tenho nada a fazer lá.
— Está louco?
— Já não tive a honra de lhe avisar que tenho um encontro urgente?
— Lupin!
— Como, Ganimard, a Dama Loura aguarda a minha visita e me julga grosseiro ao ponto de deixá-la preocupada? Seria indigno de um homem galante.
— Escute, Lupin — disse o inspetor, a quem o motejo começava a irritar —, tive até aqui por você uma excessiva consideração. Mas há limites. Me siga.
— Impossível. Tenho um encontro e estarei lá.
— Pela última vez...
— Im-pos-sí-vel.
Ganimard fez um sinal e os dois homens suspenderam Lupin pelos braços. Mas o largaram em seguida com um gemido de dor; com cada uma das mãos Lupin meteu compridas agulhas na carne dos dois.
Loucos de raiva, os outros se precipitaram, com o ódio enfim liberado, ardendo por vingar os colegas e se vingar eles próprios de tantas afrontas, e bateram e bateram à vontade. Um soco mais forte lhe atingiu a têmpora. Caiu.
— Se o arruinarem — rosnou Ganimard, furioso —, vão se ver comigo.
Curvou-se, pronto a cuidar dele. Mas, vendo que respirava normalmente, ordenou que o pegassem pelos pés e pela cabeça, enquanto ele o susteria pelos rins.
— Devagar, hem! Nada de sacudidas... Ah, os selvagens, iam me matar o rapaz. Eh, Lupin, como vai isso?
Lupin abriu os olhos e balbuciou:
— Nada bonito, Ganimard... deixou que me demolissem.
— A culpa foi sua, inferno... com a sua teimosia! — respondeu Ganimard, aflito. — Está doendo muito?
Chegaram ao patamar. Lupin gemeu:
— Ganimard... o elevador... Vão me quebrar os ossos...
— Boa idéia, excelente idéia — aprovou Ganimard. — E a escada é tão estreita que não haveria meio...
Fez subir o elevador. Instalaram Lupin na cadeira com toda espécie de precauções. Ganimard ficou a seu lado e disse a seus homens:
— Desçam ao mesmo tempo que nós, e me esperem diante do balcão da entrada. Combinado?
Puxou a porta. Mas ela não tinha se fechado e gritos prorromperam. De um salto, o elevador subiu como um balão de que cortaram o cabo. Uma risada ressoou, sardônica.
— Poxa — berrou Ganimard, buscando freneticamente no escuro o botão da descida.
Como nada encontrasse, gritou:
— Ao quinto! guardem a porta do quinto.
Quatro a quatro, os agentes voaram pela escada, mas ocorreu um fato estranho: o elevador parecia furar o teto do último andar, sumiu aos olhos dos agentes, ressurgiu de repente no andar superior, o dos criados, e parou. Três homens na espreita abriram a porta. Dois deles dominaram Ganimard, que, coibido em seus movimentos, entontecido, quase não se defendeu. O terceiro levou Lupin.
— Tinha lhe prevenido, Ganimard... a fuga em balão... e graças a você! Outra vez seja menos compadecido. Sobretudo lembre que Arsène Lupin não se deixa bater e estropiar sem sérias razões. Adeus...
A cabina estava já fechada e o elevador, com Ganimard dentro, foi despachado para os andares inferiores. E tudo isso foi feito tão ligeiro que o velho policial chegou junto com os agentes ao balcão da zeladora.
Sem sequer se falarem, atravessaram o pátio correndo e subiram pela escada de serviço, único meio de chegar ao andar dos criados por onde a evasão ocorrera.
Um longo corredor, com diversos ângulos e margeado por pequenos quartos numerados, levava a uma porta que tinham simplesmente encostado. Do outro lado dessa porta, portanto em outro prédio, começava um novo corredor, igualmente quebrado em ângulos e com quartos semelhantes. No fim, uma escada de serviço. Ganimard a desceu, atravessou um pátio, uma entrada e saiu a uma rua, a rua Picot. Entendeu: os dois prédios, construídos em profundidade, se tocavam e suas frentes davam para duas ruas, não perpendiculares mas paralelas, distantes uma da outra mais de sessenta metros.
Entrou na cabina da zeladora, mostrando sua credencial.
— Quatro homens passaram por aqui?
— Sim, os dois criados do quarto e do quinto, e dois amigos.
— Quem é que mora no quarto e no quinto?
— Os srs. Fauvel e seus primos Provost... Hoje se mudaram. Só ficaram estes dois criados que acabam de ir embora.
— Ah — pensou Ganimard, abatendo-se num canapé —, que belo golpe podíamos ter dado! Todo o bando ocupava este conjunto de casas.
Quarenta minutos depois, dois senhores chegavam de carro à estação do Norte e se apressavam para pegar o rápido de Calais, seguidos de um carregador levando as malas.
Um tinha o braço numa tipóia e seu rosto pálido não demonstrava boa saúde. O outro ia jubiloso.
— Ligeirinho, Wilson, nada de perder o trem... Ah, Wilson, nunca esquecerei esses dez dias.
— Nem eu.
— Que-belas escaramuças!
— Magníficas.
— Apenas, aqui e ali, alguns incômodos...
— Poucos.
— Por fim, o triunfo em toda linha. Lupin preso! O diamante azul reconquistado!
— Meu braço quebrado!
— Quando existem tais satisfações, que importa um braço quebrado!
— Sobretudo o meu.
— Claro! Lembre, Wilson, foi exatamente no momento em que estava na farmácia, a sofrer como um herói, que descobri o fio que ia me conduzir no escuro.
— Que sorte!
Fechavam as portas do trem.
— Subam, por favor. Apressem-se, senhores.
O carregador dispôs as malas na rede de um compartimento vazio, enquanto Sholmes içava o infortunado Wilson.
— Mas o que é que você tem, Wilson. Não acaba com isso? Coragem, camarada.
— Não é coragem o que me falta.
— Que é?
— Só tenho uma mão disponível.
— E daí! — exclamou alegremente Sholmes. — Que história é essa? Parece que só você está nesse estado! E os mancos? Os verdadeiros mancos? Vamos, seu braço está aí, não teve prejuízo.
Deu ao carregador uma moeda de cinqüenta cêntimos.
— Bem, amigo. Para você.
— Obrigado, sr. Sholmes.
O inglês ergueu os olhos: Arsène Lupin.
— Você!... você! — balbuciou ele, pasmado.
E Wilson gaguejou, fazendo com a única mão gestos de alguém que demonstra um fato:
— Você, você! mas está preso! Sholmes me contou. Quando o deixou, Ganimard e seus trinta agentes o cercavam...
Lupin cruzou os braços, com ar de indignação:
— Então supuseram que os deixaria partir sem vir dizer adeus? Depois das grandes relações de amizade que não paramos de ter uns com os outros! Mas seria a última incorreção. Por quem me tomam?
O trem apitava.
— Enfim, lhes perdôo... Mas têm tudo o que precisam? Fumo, fósforos... Sim... E os jornais da tarde? Vão achar neles pormenores sobre a minha prisão, sua última façanha, mestre. E agora, até a vista, e encantado por conhecê-los... verdadeiramente encantado!... E se precisarem de mim, ficaria contentíssimo.
Saltou à plataforma e fechou a porta.
— Adeus — disse ainda, sacudindo o lenço. — Adeus... vou escrever... Vocês também, não é? E o seu braço quebrado, sr. Wilson? Fico aguardando notícias dos dois... Um cartão-postal de quando em quando... O endereço é Lupin. Paris... Basta... Não é preciso nem selar... Adeus... Até já...
Herlock Sholmes e Wilson estavam sentados à direita e à esquerda da grande lareira, com os pés na direção de um confortável fogo de coque.
O cachimbo de Sholmes, um toco curto com argola de prata, se apagou. Tirou as cinzas, encheu-o de novo, acendeu, puxou sobre os joelhos as abas do chambre, e deu grandes aspiradas no cachimbo, buscando lançar ao teto pequenos anéis de fumaça.
Wilson o fitava. Fitava-o como o cão enrodilhado no tapete da lareira olha o dono, com olhos redondos, sem pestanejar, olhos que têm apenas a esperança de refletir o gesto separado. Ia o mestre quebrar o silêncio? Ia lhe revelar o segredo de sua cisma momentânea e admiti-lo ao reino da meditação, cuja entrada parecia a Wilson lhe ser proibida?
Sholmes calava.
Wilson se arriscou:
— Os tempos andam parados. Nem um caso para mastigarmos.
Sholmes calava cada vez mais intensamente, mas seus anéis de fumaça iam melhorando, e qualquer um, que não Wilson, teria observado que ele daí extraía a funda satisfação que nos dão esses miúdos sucessos do amor-próprio, nas horas em que o cérebro está de todo vazio de pensamentos.
Wilson, desanimado, se ergueu e acercou da janela.
A triste rua se estendia entre as frentes mornas das casas, sob um céu negro de que caía uma chuva raivosa e sem piedade. Um cab passou, logo outro. Wilson registrou os números na sua caderneta. Nunca se sabe...
— Olhe — gritou — o carteiro.
O homem entrou, conduzido pelo criado.
— Duas cartas registradas, senhor. Quer assinar? Sholmes assinou, levou o homem até a porta e veio tirando o lacre de uma das cartas.
— Está com o ar tão contente — observou Wilson no fim de um tempo.
— Esta carta contém uma proposta interessante. Reclamava um caso e está aqui um. Leia...
Wilson leu:
"Senhor,
Venho pedir o socorro de sua experiência. Fui vítima de um roubo de vulto e as buscas, até agora feitas, não parecem ter êxito.
Mando-lhe por este correio um certo número de jornais que o informarão sobre esse caso, e, se concordar em acompanhá-lo, ponho minha casa à sua disposição e lhe peço grafar sobre o cheque anexo, assinado por mim, a quantia que lhe agrade fixar por suas despesas de viagem.
Faça-me a gentileza de telegrafar sua resposta e creia, senhor, na firmeza de meus sentimentos de alta consideração.
Barão Victor d'Imblevalle
Rua Murillo, 18."
— Eh, eh! — fez Sholmes —, isso se anuncia de modo esplêndido... uma viagenzinha a Paris, palavra, por que não? Desde meu famoso duelo com Arsène Lupin, não tive ocasião de ali regressar. Não hei de me aborrecer em ver a capital do mundo em circunstâncias um pouco mais tranqüilas.
Rasgou o cheque em quatro pedaços e, enquanto Wilson, cujo braço não tinha recuperado sua antiga destreza, pronunciava contra Paris palavras amargas, ele abriu o segundo envelope.
Um movimento de irritação lhe escapou de saída; uma ruga riscou-lhe a testa durante toda a leitura e, amarrotando o papel, fez uma bola que atirou com violência ao chão.
— Quê? Que havia aí? — fez Wilson assustado. Pegou a bola, desdobrou e leu com crescente pasmo:
"Meu caro Mestre,
Sabe a admiração que tenho pelo senhor e o interesse que tomo em sua reputação. Pois bem, me acredite, não se ocupe do caso a que solicitaram seu concurso. Sua intervenção causará muito mal, todos os seus esforços não levarão mais que a um lamentável resultado e será obrigado a fazer publicamente a confissão do seu malogro.
Desejando profundamente lhe poupar uma tal humilhação, lhe aconselho, em nome da amizade que nos une, a ficar quietinho ao canto da sua lareira.
As melhores lembranças minhas ao sr. Wilson e para o senhor, caro Mestre, a respeitosa homenagem do seu dedicado.
Arsène Lupin."
— Arsène Lupin! — repetiu Wilson, perplexo.
Sholmes começou a bater com os punhos na mesa.
— Ah, este animal já está me exasperando! Brinca comigo como se eu fosse uma criança! A confissão pública do meu malogro! Não o obriguei a devolver o diamante azul?
— Ele está com medo — insinuou Wilson.
— Não diga bobagens. Arsène Lupin nunca tem medo e a prova é que me desafia.
— Mas como teve conhecimento da carta do barão d'Imblevalle?
— Como é que eu vou saber? Faz perguntas burras, meu caro!
— Eu pensei... imaginei...
— O quê? Que sou um adivinho?
— Não, mas já o vi fazer tais prodígios!
— Ninguém faz prodígios... eu não mais que outro qualquer. Reflito, deduzo, concluo, mas não adivinho. Só os imbecis se metem a adivinhar.
Wilson ficou com o jeito modesto de um cão batido e se esforçou, a fim de não ser um imbecil, em não adivinhar por que Sholmes andava pela peça com grandes passos irritados. Mas tendo Sholmes chamado o criado ordenando que lhe preparasse a mala, Wilson se achou no direito, já que aí havia um fato material, de refletir, deduzir e concluir que o mestre ia viajar.
Novas operações mentais semelhantes lhe permitiram afirmar como quem não teme o erro:
— Herlock, você vai a Paris.
— Pode ser.
— E vai mais ainda para responder ao desafio de Lupin do que para ser gentil com o barão d'Imblevalle.
— Pode ser.
— Herlock, eu vou junto.
— Ah, querido amigo — bradou Sholmes, interrompendo o caminhar —, não tem medo que seu braço esquerdo partilhe a sorte do direito?
— Que pode me acontecer? Você estará lá.
— Em boa hora, é um homem decidido! Vamos mostrar a este cavalheiro que errou talvez nos atirando a luva com tal audácia. Rápido, Wilson, pegamos o primeiro trem.
— Sem aguardar os jornais remetidos pelo barão?
— Para quê?
— Mando um telegrama?
— Inútil, Arsène Lupin saberá da minha chegada. Não importa. Desta vez, Wilson, vamos jogar firme.
Depois do almoço, os dois amigos embarcavam em Douvres. A travessia foi ótima. No rápido de Calais a Paris, Sholmes se concedeu três horas de sono mais profundo, enquanto Wilson montava guarda à porta do compartimento e meditava, de olhar vago.
Sholmes despertou feliz e disposto. A perspectiva de um novo duelo com Arsène Lupin o arrebatava e esfregava as mãos com o ar satisfeito de um homem que se prepara para saborear muitas alegrias.
— Enfim — falou Wilson —, vamos nos desentorpecer! E esfregou as mãos com o mesmo ar satisfeito.
Na estação, Sholmes pegou os mantos de viagem e, seguido por Wilson que levava as malas — cada um com a sua parte —, entregou os bilhetes e saiu alegremente.
— Bom tempo, Wilson... Sol!... Paris está em festa para nos receber.
— Quanta gente!
— Tanto melhor, Wilson, diminui o risco de sermos notados. Ninguém há de nos reconhecer no meio desta multidão.
— Sr. Sholmes, não é?
Ele se deteve, um tanto embaraçado. Que diabo podia assim lhe chamar pelo nome?
Uma mulher estava a seu lado, uma moça, cuja roupa simples acentuava a figura distinta, tendo, porém, no bonito rosto uma expressão preocupada e dorida.
Ela insistiu:
— É o sr. Sholmes, não?
Como ele calasse, tanto por confusão como pelo hábito da prudência, ela repetiu pela terceira vez:
— É o sr. Sholmes a quem tenho a honra de falar?
— Que quer de mim? — disse ele com aspereza, julgando o encontro suspeito.
Ela se pôs à sua frente.
— Ouça-me, senhor, é grave, sei que vai à rua Murillo.
— Que está dizendo?
— Sei, sei... rua Murillo... número 18. Pois bem, não convém... não deve ir... Garanto que vai se arrepender. Se lhe digo isso, não julgue que tenho algum interesse. É pela razão, é de toda consciência.
Procurou afastá-la; ela insistiu:
— Oh, lhe peço, não se obstine... Ah,, se soubesse como persuadi-lo! Olhe em meu íntimo, veja os meus olhos... são sinceros... dizem a verdade.
Ofertava os olhos com ardor e eram desses olhos graves e límpidos em que parece se refletir a própria alma. Wilson oscilou a cabeça:
— A senhorita tem um ar de sinceridade.
— Mas sim — ela suplicou —, precisam ter confiança...
— Eu tenho, senhorita — replicou Wilson.
— Oh, como me deixa contente! e o seu amigo também, não é? eu sinto... posso afirmar! Que sorte! tudo vai dar
certo!... Que boa idéia eu tive!—_ Há, senhor, há um trem
para Calais dentro de vinte minutos... Vai tomá-lo... Rápido, venha comigo... o caminho é por este lado e tem justo o tempo...
Procurava arrastá-lo. Sholmes lhe pegou no braço e com uma voz que buscou fazer tão doce quanto podia:
— Desculpe, senhorita, não poder aceder a seu desejo, mas não desisto nunca de uma tarefa empreendida.
— Lhe peço... lhe peço! Ah, se pudesse compreender! Ele seguiu adiante com rapidez.
Wilson disse à moça:
— Tenha esperança... ele irá até o fim do caso... não há exemplo de derrota sua...
E teve de correr para juntar-se a Sholmes.
HERLOCK SHOLMES X ARSÈNE LUPIN
Estas palavras, a se destacarem em grandes letras negras, os chocaram aos primeiros passos. Chegaram perto; avançava uma linha de homens-sanduíche, uns atrás dos outros, a baterem nas calçadas com cadência com grossas bengalas ferradas e levando nas costas enormes cartazes em que se podia ler:
A PELEJA HERLOCK SHOLMES X ARSÈNE LUPIN. CHEGADA DO CAMPEÃO INGLÊS. O GRANDE DETETIVE PESQUISA O MISTÉRIO DA RUA MURILLO. LER OS DETALHES EM L'ÉCHO DE FRANCE.
Wilson abanou a cabeça:
— E agora, Herlock, logo conosco que nos gabamos de trabalhar incógnitos! Não me surpreenderá se a guarda republicana estiver nos esperando na rua Murillo e haja uma recepção oficial, com brindes e champanha.
— Quando se mete a ter espírito, Wilson, você vale por dois — rosnou Sholmes.
Avançou para um dos homens com a clara intenção de o tomar nas mãos potentes e reduzir a migalhas, o homem e seu cartaz. Os passantes, porém, se aglomeravam em volta dos anúncios, brincando e rindo.
Reprimindo um forte acesso de raiva, disse ao homem:
— Quando os contrataram?
— Esta manhã.
— Principiaram a andar?
— Há uma hora.
— Mas os anúncios estavam prontos?
— Oh, claro, sim... Quando fomos de manhã na agência, já estavam lá.
Assim, Arsène Lupin tinha previsto que ele Sholmes aceitaria o desafio. Mais: a carta escrita por Lupin demonstrava que queria a luta e entrava nos seus planos medir-se outra vez com seu rival. Por quê? Que motivo o levava a recomeçar a luta?
Herlock teve um segundo de hesitação. Era preciso que Lupin estivesse muito certo da vitória para mostrar tanta insolência, e não seria cair numa cilada acorrer assim ao primeiro apelo?
— Vamos, Wilson! Cocheiro, rua Murillo, 18 — gritou num despertar de energia.
E com as veias túrgidas, os punhos cerrados como se fosse tomar parte numa luta de boxe, pulou para o carro.
A rua Murillo possui luxuosas mansões particulares cuja parte posterior tem vista para o parque Monceau. O número 18 é um dos mais belos desses prédios, e o barão d'Imblevalle, que aí mora com a mulher e as filhas, mobiliou-o do modo mais suntuoso, como artista e como milionário. A frente da casa há o jardim principal, e outros à direita e à esquerda. Atrás, o jardim mistura os ramos de suas árvores com os das árvores do parque.
Tendo soado o sino do portão, os dois ingleses atravessaram o pátio e foram recebidos por um criado de companhia, que os levou a um pequeno salão na parte de trás.
Sentaram e deram uma olhada nos preciosos objetos que enchiam a peça.
— Bonitas coisas — murmurou Wilson —, de gosto e imaginação... Pode-se deduzir que quem teve tempo de achar tais objetos são pessoas de certa idade... cinqüenta anos talvez...
Não acabou. A porta se abriu e o sr. d'Imblevalle entrou, junto com a mulher.
Contrariando as deduções de Wilson, os dois eram jovens, elegantes e muito vivos de modos e palavras. Ambos se desmancharam em agradecimentos.
— Foi muito gentil da sua parte! um incômodo tão grande... Quase estamos contentes com o aborrecimento que tivemos, já que nos propiciou o prazer...
— Que encantadores estes franceses! — pensou Wilson, que não temia fazer uma observação profunda.
— Mas o tempo é dinheiro — disse o barão — seu tempo especialmente, sr. Sholmes. Assim, vamos ao objetivo. Que acha do caso? Espera resolvê-lo?
— Para resolver, preciso antes conhecê-lo.
— Não conhece?
— Não, e lhe peço que me explique as coisas com detalhes e sem omitir nada. De que se trata?
— De um roubo.
— Em que dia teve lugar?
— Sábado último — respondeu o barão —, na noite de sábado para domingo.
— Há seis dias então. Vá contando.
— Cumpre dizer de saída, senhor, que minha mulher e eu, nos conformando ao gênero de vida que exige nossa situação, saímos pouco. A educação de nossas filhas, algumas recepções e o embelezamento do interior de nossa casa são a nossa existência, e praticamente todos os nossos serões se passam aqui, nesta peça que é a de minha mulher e onde reunimos alguns objetos de arte. No sábado passado., pelas onze horas, apaguei a luz elétrica e minha mulher e eu fomos, como de costume, para o nosso quarto.
— Que se acha?...
— Ao lado, nesta porta que está vendo. No dia seguinte, o domingo, me levantei cedo. Como Suzanne, minha mulher, ainda dormia, passei por esta peça com todo cuidado para não acordá-la. Me surpreendi ao ver que esta janela estava aberta, quando a tínhamos deixado fechada na noite anterior.
— Um criado...
— Ninguém entra aqui de manhã antes de nós chamarmos. De resto, tomo sempre a precaução de empurrar o ferrolho desta segunda porta, que leva ao vestíbulo. De modo que a janela tinha sido aberta por fora. Tive aliás a prova disso: o segundo vidro da vidraça da direita — perto do fecho da janela — fora cortado.
— E esta janela?
— Como pode notar, dá para um pequeno terraço cercado por um muro de pedra. Estamos no primeiro andar e pode ver o jardim que se estende atrás da casa e o portão de ferro que o separa do parque Monceau. Há portanto certeza de que o homem veio do parque, pulou o portão com ajuda de uma escada e subiu até o terraço.
— Certeza, disse?
— Achou-se de cada lado da grade, na terra mole dos canteiros, buracos feitos por duas vigas de escada, e havia os dois mesmos buracos ao pé do terraço. O muro mostra enfim duas pequenas arranhaduras, evidentemente causadas pelo contato das vigas.
— O parque Monceau não é fechado de noite?
— Não, mas de qualquer forma há no número 14 uma casa em construção e seria fácil entrar por ali.
Herlock Sholmes pensou uns momentos e prosseguiu:
— E o roubo, teria sido feito na peça em que estamos?
— Sim. Havia, entre esta Virgem do século XII e este tabernáculo de prata cinzelada, uma pequena lâmpada judaica. Desapareceu.
— E foi tudo?
— Foi.
— Ah!... e o que é que chama uma lâmpada judaica?
— São dessas lâmpadas de cobre que se usavam antigamente, com uma haste e um recipiente em que se põe óleo. Do recipiente saem dois ou mais bicos destinados às mechas.
— Em suma, objetos sem maior valor.
— Realmente. Mas este continha um esconderijo em que costumávamos colocar uma esplêndida jóia antiga, uma borboleta de ouro, encastoada de rubis e esmeraldas, que era de alto preço.
— Por que tal costume?
— Palavra, não saberia precisar. Talvez pelo mero divertimento de utilizar um esconderijo desse tipo.
— Ninguém sabia dele?
— Ninguém.
— Salvo, claro, o ladrão da borboleta — objetou Sholmes —; sem o que, não teria se dado ao trabalho de surrupiar a lâmpada judaica.
— Sem dúvida. Mas como poderia estar a par dele, se foi por acaso que descobrimos o mecanismo secreto da lâmpada?
— O mesmo acaso o poderia revelar a qualquer um... um criado... um freqüentador da casa... Mas continuemos: a justiça foi chamada?
— Naturalmente. O juiz de instrução fez o inquérito. Os cronistas da polícia dos grandes jornais fizeram os seus. Mas, como lhe escrevi, parece que o problema não tem qualquer chance de ser resolvido.
Sholmes se ergueu, dirigiu-se à janela, examinou a vidraça, o terraço, o muro, serviu-se de sua lupa para estudar os dois arranhões na pedra, e pediu ao sr. d'Imblevalle que o levasse ao jardim.
Lá fora, Sholmes se sentou simplesmente numa poltrona de vime e fitou o teto da casa com olhar cismador. De repente foi às duas caixinhas de madeira com que tinham coberto, a fim de conservar as marcas originais; os buracos deixados ao pé do terraço pelas vigas da escada. Levantou as caixinhas, se pôs de joelhos no chão e, com as costas curvas e o nariz a vinte centímetros do solo, perscrutou e tomou medidas. Fez o mesmo ao longo do portão, mas mais depressa.
Estava terminado.
Retornaram os dois à peça em que os aguardava a senhora d'Imblevalle.
Por uns minutos ainda Sholmes calou, para enfim pronunciar estas palavras:
— Desde o início da sua narrativa, barão, me impressionou o aspecto demasiado simples do delito. Usar uma escada, cortar um vidro, escolher um objeto e ir embora, não, as coisas não se passam assim tão facilmente. Tudo isso é claro e nítido em excesso.
— De modo que...
— De modo que o roubo da lâmpada judaica foi cometido sob a direção de Arsène Lupin...
— Arsène Lupin! — saltou o barão.
— Mas foi cometido não por ele, e sem que ninguém entrasse nesta casa... Um criado talvez descesse de sua mansarda ao terraço, por uma calha que reparei do jardim.
— Mas em que se apoia?
— Arsène Lupin não sairia desta peça com as mãos vazias.
— Vazias! E a lâmpada?
— Pegá-la não o teria impedido de pegar também esta tabaqueira cravejada de diamantes, ou este colar de opalas antigas. Bastavam-lhe dois gestos a mais. Se não os fez, é que não viu estas coisas.
— Mas as marcas deixadas?
— Encenação para desviar as suspeitas.
— Os arranhões na balaustrada?
— Mentira. Foram produzidos com papel de vidro. Veja: uns pedacinhos desse papel que recolhi.
— Os buracos deixados pelas vigas da escada?
— Pilhéria. Examine os dois buracos retangulares ao pé do terraço e os dois perto do portão. A forma deles é semelhante, mas, paralelos aqui, lá embaixo deixam de ser. Meca a distância que separa cada buraco do outro: muda conforme o lugar. No terraço é de 23 centímetros, no portão de 28.
— Conclui disso?
— Concluo, já que a forma deles é idêntica, que os quatro buracos foram feitos com a ajuda de um só pedaço de madeira adequadamente talhado.
— Se se achasse esse pedaço de madeira, não haveria melhor argumento.
— É esse aqui — disse Sholmes —, o apanhei no jardim, debaixo da caixa de um loureiro.
O barão cedeu. Há quarenta minutos o inglês entrara naquela casa e não restava mais nada de tudo o que se acreditara até aqui, sobre o próprio testemunho de fatos aparentes. A realidade, uma outra realidade, principiava, fundada em algo bem mais sólido, o raciocínio de Herlock Sholmes.
— A suspeita que lança sobre o nosso pessoal é grave, senhor — disse a baronesa. — Nossos domésticos são velhos servidores da casa e nenhum deles seria capaz de nos trair.
— Se um não os traísse, como explicar que esta carta tenha podido chegar a mim no mesmo dia e pelo mesmo correio que a que me escreveram?
Mostrou à baronesa a carta que Arsène Lupin lhe dirigira. A sra. d'Imblevalle ficou pasma.
— Arsène Lupin... como soube ele?
— Não contaram a ninguém sobre a carta?
— A ninguém — disse o barão —; foi uma idéia que nos veio uma noite à mesa.
— Diante dos criados?
— Só de nossas duas filhas; e não, nem isso. Sophie e Henriette não estavam na mesa, não é, Suzanne?
A sra. d'Imblevalle refletiu e afirmou:
— De fato, tinham voltado para junto da senhorita. — A senhorita? — perguntou Sholmes.
— A governanta, srta. Alice Demun.
— Essa pessoa não faz as refeições com os senhores?
— Não, é servida à parte, em seu quarto.
Wilson teve uma idéia.
— A carta escrita a meu amigo Herlock Sholmes foi posta no correio.
— Naturalmente.
— Quem a levou?
— Dominique, meu criado particular há vinte anos — respondeu o barão. — Toda busca por esse lado seria tempo perdido.
— Nunca se perde tempo quando se busca — disse Wilson sentenciosamente.
O primeiro inquérito acabara. Sholmes pediu licença para se recolher.
Uma hora depois, no jantar, viu Sophie e Henriette, as filhas dos d'Imblevalle, duas bonitas garotas de oito e seis anos. Conversou-se pouco. Sholmes respondeu às amabilidades do barão e da mulher de modo tão áspero que optaram pelo silêncio. Serviram o café. Sholmes engoliu o conteúdo da xícara e se levantou.
Neste momento entrou um criado, trazendo-lhe uma mensagem telefônica. Ele abriu e leu:
"Testemunho-lhe minha entusiasta admiração. Os resultados obtidos por você em tão pouco tempo são atordoantes. Estou confuso.
Arsène Lupin."
Teve um gesto irritado e mostrou a folha ao barão:
— Começa a acreditar, senhor, que suas paredes têm olhos e ouvidos?
— Não entendo isso — murmurou o sr. d'Imblevalle perplexo.
— Nem eu. Mas o que entendo é que nem um movimento é feito aqui que não seja notado por ele. Não se pronuncia uma palavra que ele não ouça.
Esta noite, Wilson se deitou com a consciência leve de um homem que cumpriu o dever e não tem outra coisa a fazer senão dormir. Assim adormeceu logo e teve belos sonhos em que perseguia sozinho Lupin e ia prendê-lo pessoalmente, mas a sensação dessa cena foi tão nítida que despertou.
Alguém mexia na sua cama. Pegou o revólver.
— Mais um gesto, Lupin, e eu atiro.
— Diabo! como se deixa entusiasmar, meu velho camarada!
— Como, é você, Sholmes! precisa de mim?
— Preciso dos seus olhos. Levante-se. Levou-o até a janela.
— Olhe... do outro lado do portão...
— No parque?
— Sim. Não vê nada?
— Nada.
— Sim, vê algo.
— Ah, de fato, uma sombra... duas mesmo.
— Não é? contra a grade... Veja, se movem. Não percamos tempo.
Tateando, agarrando-se ao corrimão, desceram a escada e chegaram a uma peça que dava para o jardim. Através dos vidros da porta, viram os dois vultos no mesmo lugar.
— Curioso — disse Sholmes —, me parece ouvir ruído na casa,
— Na casa? Impossível. Todo mundo está dormindo.
— Mas ouça...
Neste instante um leve apito chegou do portão e perceberam uma vaga luz que parecia vir do interior.
— Os d'Imblevalle devem ter acendido a luz — murmurou Sholmes. — É o quarto deles que fica aqui em cima.
— Foram eles sem dúvida que escutamos — fez Wilson. — Talvez estejam vigiando o portão.
Um segundo apito, mais discreto ainda.
— Não compreendo, não compreendo — irritou-se Sholmes.
— Nem eu — confessou Wilson.
Sholmes girou a chave da porta, puxou o ferrolho e a empurrou suavemente.
Um terceiro apito, um pouco mais forte e modulado de outro modo. E acima deles o ruído aumentou, se acelerou.
— Antes se pensaria que é no terraço daquela peça — soprou Sholmes.
Meteu a cabeça pela porta entreaberta, mas em seguida recuou sufocando uma praga. Por sua vez, Wilson olhou. Perto deles, uma escada fora posta na parede, apoiada no muro do terraço.
— Demônios — fez Sholmes —, há alguém na peça! Era isso que se ouvia. Depressa, tiremos a escada.
No mesmo instante, uma forma deslizou lá de cima até embaixo, a escada foi tirada e o homem que a carregava correu a toda para o portão, no lugar em que o esperavam seus cúmplices. Sholmes e Wilson se aproximaram. Chegaram ao homem quando punha a escada contra o portão. Do outro lado, detonaram dois tiros.
— Ferido? — gritou Sholmes.
— Não — respondeu Wilson.
Este pegou o homem pelo corpo e tentou imobilizá-lo. Mas o outro se virou, o esmurrou com uma mão e com a outra lhe mergulhou a faca em pleno peito. Wilson exalou um suspiro, cambaleou e caiu.
— Maldição! — uivou Sholmes —, se o mataram, eu mato. Deitou Wilson na grama e se precipitou para a escada.
Tarde demais. O homem a tinha galgado e, recebido pelos cúmplices, fugiam encobertos por arbustos e ramos.
— Wilson, Wilson, não foi grave, hem? Um simples arranhão.
As portas da mansão de repente se abriram. Surgiu primeiro o sr. d'Imblevalle e logo criados com velas.
— Que é que aconteceu? — bradou o barão. — O sr. Wilson está ferido?
— Nada, um simples arranhão — repetiu Sholmes, procurando se iludir.
O sangue corria com abundância e o rosto estava lívido. O doutor, vinte minutos depois, verificou que a ponta da faca havia chegado a quatro milímetros do coração.
— Quatro milímetros do coração? Este Wilson sempre teve sorte — concluiu Sholmes num tom de inveja.
— Sorte... sorte... — resmungou o doutor.
— Ora, com sua robusta constituição, se recuperará....
— Com seis semanas de cama e dois meses de convalescença.
— Não mais?
— A não ser que ocorram complicações.
— Por que, diabo, quer que ele tenha complicações? Plenamente satisfeito, Sholmes foi ao encontro do barão na
peça feminina. Desta vez o misterioso visitante não tinha sido tão discreto. Sem pudor, tinha passado a mão na tabaqueira de diamantes, no colar de opalas, e de um modo geral, em tudo o que podia achar lugar nos bolsos de um honesto ladrão.
A janela ainda estava aberta, um dos vidros tinha sido limpamente cortado e, de manhãzinha, uma busca sumária, fixando que a escada provinha do prédio em construção, indicou o caminho que tinha sido seguido.
— Em suma — disse o sr. d'Imblevalle com certa ironia, — é a exata repetição do roubo da lâmpada judaica.
— Sim, se se aceitar a primeira versão adotada pela justiça.
— Ainda não a adota? Este segundo roubo não abala a sua opinião sobre o primeiro?
— Confirma-a, sr.
— Será possível! Tem a prova irrefutável que o assalto desta noite foi realizado por alguém de fora, e persiste em sustentar que a lâmpada judaica foi subtraída por alguém do nosso círculo?
— Por alguém que mora nesta casa.
— Mas como explica isso?
— Não explico nada, sr., constato dois fatos que não têm um com o outro senão relações de aparência, julgo-os isoladamente e procuro o laço que os une.
Sua convicção parecia tão profunda, sua maneira de agir fundada em motivos tão poderosos, que o barão recuou:
— Seja. Vamos avisar o comissário.
— De nenhum modo! — protestou o inglês, — de nenhum modo! Só pretendo me dirigir a essa gente quando tiver necessidade dela.
— No entanto, os tiros?...
— Não importa!
— Seu amigo?...
— Meu amigo está apenas ferido... Consiga que o doutor se cale. Do lado da justiça, eu respondo por tudo.
Transcorreram dois dias, vazios de incidentes, mas em que Sholmes continuou sua tarefa com um cuidado minucioso e um amor-próprio incentivado pela lembrança do audacioso assalto, executado sob seus olhos, a despeito de sua presença e sem que pudesse lhe impedir o êxito. Infatigável, revistou a casa e o jardim, palestrou com os criados e esteve longos períodos na cozinha e cavalariças. E embora não conseguisse qualquer indício que o esclarecesse, não perdeu o ânimo.
— Acharei — pensava, — e é aqui que acharei. Não se trata, como no caso da Dama Loura, de avançar a esmo e atingir, por caminhos que ignorava, uma meta que não conhecia. Desta vez estou no terreno mesmo da luta. O inimigo não é mais apenas o impegável e invisível Lupin, é o cúmplice de carne e osso que vive e se move nos limites desta mansão. O menor detalhezinho e fico sabendo.
Esse detalhe, de que tiraria tantas conseqüências, e com tão prodigiosa habilidade que se pode julgar o caso na lâmpada judaica como um dos em que mais brilha seu gênio de detetive, esse detalhe foi o acaso que lhe forneceu.
No início da tarde do terceiro dia, como entrasse numa peça situada em cima da assaltada e que servia de sala de estudo para as crianças, deu com Henriette, a menor das irmãs. Ela procurava a sua tesoura.
— Sabes — disse a Sholmes — eu também faço papéis como o que tu recebeste uma noite.
— Uma noite?
— Sim, no fim do jantar. Recebeste um papel com palavras coladas em cima... sabes, um telegrama... Bem, eu também faço.
Saiu. Para qualquer outro essas palavras não teriam mais sentido do que a insignificante reflexão de uma criança, e o próprio Sholmes as escutou sem atentar muito, continuando sua inspeção. Mas logo correu atrás da menina, cuja última frase o impressionara. Pegou-a no alto da escada e lhe disse:
— Então, tu também sabes colar palavras no papel? Henriette, orgulhosa, declarou:
— Mas sim, recorto as palavras e colo.
— E quem te ensinou a fazer isso?
— A srta... minha governanta... eu vi ela fazer. Pega palavras nos jornais e cola...
— E que faz com isso?
— Telegramas, cartas que manda.
Herlock voltou à sala de estudo intrigado com essa confidencia e se esforçando por extrair dela as deduções que comportava.
Havia um monte de jornais na lareira. Desdobrou-os e viu com efeito que faltavam grupos de palavras ou de linhas, regular e corretamente recortados. Mas lhe bastou ler as palavras que vinham antes e depois, para constatar que as que faltavam tinham sido subtraídas a esmo, evidentemente por Henriette. Talvez, no bolo de jornais, houvesse um tesourado pela própria senhorita. Mas como ter certeza?
Maquinalmente, Herlock folheou os livros de aula empilhados na mesa e logo outros nas estantes de um armário. Súbito teve uma exclamação de alegria. Num canto deste armário, sob um monte de velhos cadernos, tinha achado um álbum para crianças, um abecedário com ilustrações, e numa de suas páginas havia um vazio.
Tratava-se de nomenclatura dos dias da semana. Segunda, terça, quarta, etc. Faltava a palavra sábado. Ora, o roubo da lâmpada tinha ocorrido na noite de um sábado.
Herlock sentiu o pequeno aperto do coração que sempre lhe anunciava, da maneira mais nítida, que tinha tocado no nó mesmo de uma intriga. Esse aperto da verdade, essa emoção da certeza, não o enganavam nunca.
Febril e confiante, apressou-se & folhear o álbum. Mais adiante, outra surpresa o esperava.
Era uma página composta de letras maiúsculas, seguidas por uma linha de números.
Nove dessas letras e três desses números tinham sido subtraídos cuidadosamente.
Sholmes os escreveu em sua caderneta na ordem que ocupavam na página e obteve o seguinte resultado:
CDEHNOPRZ — 237
— Puxa — murmurou, — à primeira vista isso não significa grande coisa.
Misturando as letras e empregando-as todas, se poderia formar uma, duas ou três palavras completas?
Sholmes tentou em vão.
Uma só solução se impôs a ele, que sem cessar voltava à ponta do lápis e que, com o tempo, lhe pareceu a verdadeira, tanto por corresponder à lógica dos fatos, como por concordar com as circunstâncias gerais.
Dado que a página do álbum só trazia uma vez cada uma das letras do alfabeto, era provável, era certo que estávamos diante de palavras incompletas e por certo completadas com letras tiradas de outras páginas. Nessas condições, salvo erro, a charada ficava assim:
REPOND.Z — CH 237
A primeira palavra era clara: responda faltando um E porque essa letra, já empregada, não era mais disponível.
Quanto à segunda palavra inacabada, formava sem dúvida, com o número 237, o endereço dado pelo remetente ao destinatário da carta. Propunha-se primeiro fixar o dia no sábado e se pedia uma resposta para o endereço CH.237,
Ou então CH.237 era uma fórmula de posta restante, ou então as letras C e H faziam parte de uma palavra incompleta. Sholmes percorreu o álbum; nenhum outro recorte tinha sido feito nas páginas seguintes. Cumpria assim, até nova ordem, se apegar à explicação encontrada.
— É divertido, não é?
Henriette tinha voltado. Ele respondeu:
— Se é divertido! Apenas, não tens outros papéis?... ou palavras já recortadas que eu pudesse colar?
— Papéis?... não. E a senhorita não ia gostar.
— A senhorita?
— Sim, ela já ralhou comigo.
— Por quê?
— Porque eu lhe conto coisas... e ela disse que a gente não deve contar nunca as coisas das pessoas que a gente gosta.
— Tens razão.
Henriette pareceu maravilhada com a aprovação, tanto que tirou de um saquinho de fazenda preso a seu vestido uns trapos, três botões, dois tabletes de açúcar e, enfim, um pedacinho de papel que entregou a Sholmes.
— Toma, eu dou para ti assim mesmo. Era um número de fiacre, o 8279.
— De onde veio esse número?
— Caiu do seu porta-moedas.
— Quando?
— Domingo, na missa, quando ela foi pegar umas moedas para a coleta.
— Muito bem. E agora vou te dizer um jeito de não ser ralhada. Não diz para a srta. que falaste comigo.
Sholmes foi ao encontro do sr. d'Imblevalle e o interrogou sem reservas sobre a senhorita. O barão reagiu.
— Alice Demun! Será que pensa?... É impossível.
— Há quanto tempo está a seu serviço?
— Um ano apenas, mas não conheço pessoa mais tranqüila e em quem tenha mais confiança.
— Como se deu que ainda não a tenha visto?
— Ausentou-se dois dias.
— E hoje?
— Desde que voltou, quis se instalar à cabeceira do seu amigo. Tem todas as qualidades para cuidar de um enfermo... doce... previdente... O sr. Wilson parece encantado com ela.
— Ah! — fez Sholmes, que tinha negligenciado inteiramente de se informar sobre o estado do velho camarada.
Refletiu e indagou:
— E no domingo de manhã ela saiu?
— Sim.
— No dia seguinte ao roubo?
O barão chamou a mulher e lhe fez a pergunta. Ela replicou:
— A senhorita saiu como de costume para ir à missa das onze com as crianças.
— E antes?
— Antes? Não... Ah, mas eu estava tão transtornada pelo roubo... Contudo lembro que ela tinha me pedido na véspera permissão para sair domingo de manhã... para ver uma prima que passava por Paris, julgo. Mas não acredito que suspeite dela.
— Certamente não. No entanto, gostaria de vê-la. Subiu ao quarto de Wilson. Uma mulher, vestida como as enfermeiras com um vestido comprido de fazenda cinza, curvava-se sobre o doente e o fazia beber. Quando se virou, Sholmes reconheceu a moça que o abordou diante da estação do Norte.
Não houve entre eles a menor explicação. Alice Demun sorriu doce, com os olhos cativantes e claros, sem qualquer embaraço. O inglês quis falar, esboçou umas sílabas e se calou. Ela voltou à sua tarefa, andando calmamente sob o olhar surpreso de Sholmes, arrumou os frascos, desenrolou e enrolou ataduras de gaze e de novo lhe dirigiu seu diáfano sorriso.
Ele girou sobre os calcanhares, voltou a descer, viu no pátio o automóvel do sr. d'Imblevalle, meteu-se nele e se fez conduzir a Levallois, na agência de carros cujo endereço estava no bilhete de fiacre entregue pela criança. O cocheiro Duprêt, que guiava o 8279 na manhã do domingo, não estava. Sholmes mandou o auto de volta e aguardou até a hora da muda.
O cocheiro Duprêt contou que de fato tinha pegado uma dama nas imediações do parque Monceau, uma jovem de preto que usava um veuzinho grosso e parecia agitadíssima.
— Ela levava um pacote?
— Sim, bem comprido.
— E onde a levou?
— Na avenida Temes, na esquina da praça Saint-Ferdinand. Ela ficou ali uns dez minutos e depois voltamos ao parque Monceau.
— Reconheceria a casa da avenida Temes?
— Certamente! Posso conduzi-lo, agora?
— Me leve primeiro ao cais dos Orfèvres, 36.
Na central de polícia, teve a sorte de dar logo com o inspetor principal, Ganimard.
— Sr. Ganimard, está livre?
— Se se tratar de Lupin, não.
— Trata-se de Lupin.
— Então não me mexo.
— Como! renuncia...
— Renuncio ao impossível! Estou cansado de uma luta desigual, em que nós estamos certos de ficar por baixo. É covarde, é absurdo, tudo o que quiser... não estou me importando. Lupin é mais forte do que nós. Portanto, só temos de nos dobrar.
— Eu não me dobro.
— Ele o dobrará, ao sr. como aos outros.
— Será um espetáculo que não deixará de lhe dar prazer, hem?
— Ah, isso é verdade — disse Ganimard ingenuamente. — E já que ainda não recebeu a sua dose de bordoadas, vamos lá.
Subiram os dois ao fiacre. E ordenaram ao cocheiro que os deixasse um pouco antes do prédio que indicara, mas do outro lado da avenida, num pequeno café, em cuja esplanada se sentaram, entre loureiros e evônimos. A luz começava a declinar.
— Garçom — fez Sholmes, — dê-me com que escrever. Escreveu e, voltando a chamar o garçom:
— Me leve esta carta ao porteiro do prédio aí em frente. É naturalmente aquele homem de boné que está fumando na entrada.
Veio o porteiro e, Ganimard tendo declinado sua função de inspetor principal, Sholmes perguntou se no domingo de manhã tinha vindo uma jovem dama de preto.
— De preto? Sim, pelas nove horas, a que vai ao segundo andar.
— Vê-a seguido?
— Não, mas de uns tempos para cá bastante mais... Na última quinzena, quase todos os dias.
— E desde domingo?
— Apenas uma vez... sem contar hoje.
— Como! veio hoje?
— Ela está ali.
— Está ali!
— Faz mais de dez minutos. Seu carro espera na praça Saint-Ferdinand, como de costume. Cruzou por mim na porta.
— E quem é o inquilino do segundo?
— São dois, uma modista, a srta. Langeais, e um senhor que alugou dois quartos mobiliados há um mês, sob o nome de Bresson.
— Por que diz "sob o nome"?
— Uma idéia minha que é um nome emprestado. Minha mulher arruma os seus quartos; pois bem, não tem duas camisas com as mesmas iniciais.
— Como vive ele?
— Oh, sempre fora. Há três dias não volta em casa.
— Estava em casa na noite de sábado para domingo?
— Na noite de sábado para domingo? Esperem um pouco que eu me lembro... Sim, sábado de noite voltou pra casa e não saiu.
— E que espécie de homem é?
— Palavra que não saberia dizer. Muda tanto! É grande, é pequeno, é gordo, é delgado... moreno e louro. Nem sempre o reconheço.
Ganimard e Sholmes se olharam.
— É ele — murmurou o inspetor, — certo que é ele.
Houve mesmo no velho policial um momento de perturbação, a traduzir-se num bocejo e numa crispação dos dois punhos.
Sholmes também, embora muito mais senhor de si, sentiu um aperto no coração.
— Atenção — disse o porteiro, — aí vem a moça.
A senhorita com efeito surgiu no umbral da porta e atravessou a praça.
— E aí está o sr. Bresson.
— O sr. Bresson? Qual?
— O que leva um pacote debaixo do braço.
— Mas não dá atenção à moça. Volta sozinha para o seu carro.
— Ah isso, eu nunca vi os dois juntos.
Os dois policiais tinham-se erguido rapidamente. À luz da rua, reconheceram o vulto de Lupin, a afastar-se em direção oposta à praça.
— Quem prefere seguir? — perguntou Ganimard.
— Ele, puxa! é a presa gorda.
— Então vou atrás da senhorita — propôs Ganimard.
— Não, não — disse rápido o inglês, que não desejava revelar nada do caso a Ganimard, — a senhorita eu sei onde encontrar. Fique comigo.
À distância, e utilizando o abrigo momentâneo de passantes e quiosques, puseram-se no rastro de Lupin. Uma perseguição fácil, pois ele não se virava e caminhava ligeiro, puxando levemente da perna direita, tão levemente que era preciso o olhar de um observador experiente para notar. Ganimard comentou:
— Ele finge coxear.
E prosseguiu:
— Ah, se pudéssemos reunir dois ou três agentes e saltar sobre ele! Estamos correndo o risco de perdê-lo.
Mas nenhum agente apareceu antes da porta Temes e, passadas as defesas da cidade, não podiam mais esperar o menor socorro.
— Nos separemos — disse Sholmes, — o lugar é deserto.
Era a avenida Victor Hugo. Cada um pegou uma calçada e avançava pela linha das árvores.
Foram assim uns vinte minutos até o instante em que Lupin tomou a esquerda e costeou o Sena. Viram-no descer à beira do rio. Ficou ali uns segundos sem que fosse possível lhe discernir os gestos. Logo voltou a subir a escarpa e regressou pelo mesmo caminho. Eles se colaram aos pilares de um portão. Lupin passou diante dos dois. Não tinha mais o pacote.
E como se distanciasse, um outro indivíduo se destacou de um canto de casa e deslizou entre as árvores.
Sholmes disse em voz baixa:
— Parece que este aí também o está seguindo.
— Sim, me parece que já o tinha visto quando íamos. Recomeçou a caça, complicada pela presença desse outro.
Lupin refez o mesmo caminho, passou de novo pela porta Ter-nes e retornou à casa da praça Saint-Ferdinand.
O porteiro estava fechando o prédio quando Ganimard se apresentou.
— Viu-o, não é?
— Sim, estava apagando as luzes da escada e fechou o ferrolho da sua porta.
— Não há ninguém com ele?
— Ninguém, nenhum criado... não come aqui.
— Não existe escada de serviço?
— Não.
Ganimard disse a Sholmes:
— O mais simples é eu ficar na porta de Lupin, enquanto você traz o comissário de polícia da rua Demours. Vou lhe dar um bilhete.
Sholmes objetou:
— E se ele escapar durante esse período?
— Mas se fico eu!...
— Um contra um, a luta com ele é desigual.
— Não posso, porém, forçar seu domicílio, não tenho o direito, sobretudo de noite.
Sholmes deu de ombros.
— Quando tiver prendido Lupin, não vão inquiri-lo sobre as circunstâncias da prisão. Que é que há? Trata-se no máximo de bater na porta. Veremos então o que vai se passar.
Subiram. Uma porta de dois batentes se oferecia à esquerda do patamar da escada. Ganimard bateu.
Nenhum ruído. Bateu de novo. Ninguém.
— Entremos — murmurou Sholmes.
— Sim, vamos.
Permaneceram, porém, imóveis, irresolutos. Como quem hesita no instante de realizar um ato decisivo, receavam agir, e lhes parecia de repente impossível que Arsène Lupin estivesse ali, tão perto deles, atrás daquela frágil divisão que um murro podia abater. Um e outro conheciam demais o diabólico personagem para admitir que se deixaria pegar tão tolamente. Não, mil vezes não, ele não estava mais lá. Pelas casas do lado, pelo teto, por uma saída previamente maquinada, devia ter-se evadido, e uma vez mais era apenas a sombra de Lupin que se ia agarrar.
Estremeceram: um ruído mal perceptível, vindo do outro lado da porta, tinha como que roçado o silêncio. Tiveram a impressão, a certeza de que, apesar de tudo, ele estava ali, separado deles pela fina divisão de madeira, e que o escutavam, percebiam.
Que fazer? A situação era trágica. A despeito do sangue-frio dos dois escolados policiais, a emoção os transtornava ao ponto de imaginarem ouvir as batidas dos próprios corações.
Pelo canto do olho, Ganimard consultou Sholmes e logo, violentamente, com o punho, abalou o batente da porta.
Houve então um ruído de passos, um ruído que não procurava mais se esconder...
Ganimard sacudiu a porta. Num ímpeto irresistível, Sholmes com o ombro à frente a escancarou e ambos correram ao assalto.
Pararam de repente. Ressoara um tiro na peça vizinha. Logo outro e o barulho de um corpo que caía...
Ao entrarem, viram o homem estendido, o rosto contra o mármore da lareira. Teve uma convulsão e o revólver lhe escorregou dos dedos.
Ganimard se agachou e virou a cabeça do morto. O sangue a tapava, espumando dos dois ferimentos, um na face e outro na têmpora.
— Está irreconhecível — sussurrou.
— Diabo! — disse Sholmes, — não é ele.
— Como sabe? Nem sequer o examinou.
O inglês zombou:
— Então pensa que Arsène Lupin é homem de se matar?
— Mas lá fora acreditamos reconhecê-lo...
— Acreditamos por querer acreditar. Esse homem nos obceca.
— Então é um dos seus cúmplices.
— Os cúmplices de Arsène Lupin não se matam.
— Então quem é?
Revistaram o cadáver. Num bolso, Herlock Sholmes achou uma carteira de papéis vazia; Ganimard, em outro, alguns luíses. Nenhuma inicial na roupa interior nem na externa.
Nas malas, uma grande e duas pequenas, só coisas de uso. Na lareira, um maço de jornais. Ganimard folheou-os. Todos falavam do roubo da lâmpada judaica.
Uma hora depois, quando Ganimard e Sholmes se retiraram, não sabiam mais sobre a estranha figura que a intervenção dos dois tinha levado ao suicídio.
Quem seria? Por que se matou? De que modo se ligava ao caso da lâmpada? Quem o perseguira durante sua caminhada? Tantas questões, igualmente complicadas, tantos mistérios...
Herlock Sholmes se deitou de mau humor. Ao despertar, recebeu uma pneumática nestes termos:
"Arsène Lupin tem a honra de lhe participar sua trágica morte na pessoa do sr. Bresson, e lhe pede que assista às suas cerimônias fúnebres e enterro, que terão lugar, por conta do Estado, quinta-feira, 25 de junho."
— Veja, meu velho camarada — dizia Sholmes a Wilson, lhe brandindo a pneumática de Arsène Lupin, — o que me irrita nesta aventura é sentir continuamente postos em mim os olhos deste satânico cavalheiro. Procedo como um ator que tem todos os gestos regulados por uma direção rigorosa, que vai até um ponto e diz isso ou aquilo porque assim desejou uma vontade superior. Compreende, Wilson?
Wilson teria certamente compreendido, se não estivesse dormindo o sono profundo de um homem cuja temperatura varia entre quarenta e quarenta e um graus. Mas que ouvisse ou não, não tinha qualquer importância para Sholmes, que prosseguiu:
— Preciso reunir toda minha energia e empregar todos os meus recursos para não desanimar. Felizmente comigo estas pequenas implicâncias são outras tantas alfinetadas que me estimulam. Apagada a brasa da picada, fechada a ferida do amor-próprio, chego sempre a dizer: "Vai-te divertindo, meu rapaz. Uma hora ou outra tu mesmo te trairás." Pois enfim, Wilson, não foi o próprio Lupin quem, pela primeira mensagem e pela reflexão que sugeriu à pequena Henriette, não foi ele que me revelou o segredo de sua correspondência com Alice Demun? Você esquece esse detalhe, velho camarada.
Andava pelo quarto com sonoros passos, com o risco de acordar o velho camarada.
— Enfim, a coisa não vai tão mal e se os caminhos que sigo são um tanto escuros, começo neles a me orientar. De saída, vou me fixar no sr. Bresson. Ganimard e eu temos um encontro à beira do Sena, no lugar em que Bresson jogou o pacote, e o papel do homem há de ser conhecido. Quanto ao resto, é um jogo entre eu e Alice Demun. O adversário é de pouca envergadura, hem, Wilson? E não acha que dentro em pouco saberei a frase do álbum, e o que significam aquelas duas letras isoladas, o C e o H? Pois tudo está aí, Wilson.
A senhorita entrou a esta altura e, notando Sholmes a gesticular, lhe disse gentil:
— Sr. Sholmes, vou ralhar consigo se acordar o meu doente. Não deve perturbá-lo. O doutor exige uma tranqüilidade absoluta.
Ele a contemplou sem uma palavra, surpreso como no primeiro dia de sua calma inexplicável.
— Por que fica me olhando, sr. Sholmes?... Nada? Mas sim... Parece sempre com uma segunda intenção... Qual é? Responda, eu lhe peço.
Interrogava-o com todo o claro rosto, os olhos ingênuos, a boca que sorria, e com toda a atitude também das mãos juntas e do busto levemente curvado para a frente. E havia tanta candura nela que o inglês se encolerizou. Acercou-se e lhe disse em voz baixa:
— Bresson se matou ontem à noite. Ela repetiu, sem parecer entender:
— Bresson se matou...
Nenhuma contração em verdade lhe alterou o rosto, nada que revelasse o esforço da mentira.
— Está prevenida — lhe disse ele com irritação. — Se não, teria ao menos estremecido... Ah, é mais forte do que julguei... Mas por que dissimular?
Pegou o álbum ilustrado, que deixara há um instante numa mesa próxima, e abriu na página recortada:
— Poderá me dizer em que ordem se devem dispor as letras que faltam aqui, para saber o texto certo do bilhete que enviou a Bresson quatro dias antes do roubo da lâmpada?
— Em que ordem?... Bresson... o roubo da lâmpada?... Redizia essas palavras lentamente, como para tirar delas um sentido.
Ele insistiu.
— Sim. Estão aqui as letras utilizadas... neste pedaço de papel. Que dizia a Bresson?
— As letras utilizadas... o que eu dizia...
Súbito rompeu a rir:
— Isso, peguei! Sou a cúmplice do roubo! Existe um sr. Bresson que furtou a lâmpada e se matou. E eu, sou amiga desse senhor. Oh, como é divertido!
— Quem então foi ver ontem de noitezinha, no segundo andar de uma casa da avenida Ternes?
— Quem? Mas a minha costureira, a srta. Langeais. Será que ela e o meu amigo sr. Bresson eram uma só e mesma pessoa?
Apesar de tudo, Sholmes duvidou. Pode-se fingir a surpresa, o terror, a alegria, a preocupação, todos os sentimentos ativos, mas não a indiferença, não o riso contente e descuidado.
No entanto, ainda lhe disse:
— Unia última palavra: por que àquela noite, na estação do Norte, veio a mim? e por que me pediu para voltar imediatamente sem tratar desse roubo?
— Ah, o sr. é muito curioso, sr. Sholmes — respondeu, rindo sempre do modo mais natural. — Para seu castigo, não saberá nada e, além disso, ficará com o enfermo enquanto dou um pulo à farmácia... Uma determinação urgente... vou indo.
Saiu.
— Fui enrolado — murmurou Sholmes. — Não só não tirei nada dela, mas fui eu que me descobri.
E se lembrou do caso do diamante azul e do interrogatório a que submeteu Clotilde Destange. Não era a mesma serenidade que a Dama Loura lhe opusera e não estaria de novo diante de um desses seres que, protegidos por Arsène Lupin, sob a ação direta da sua influência, conservavam na angústia mesma do perigo a calma mais estupeficante?
— Sholmes... Sholmes...
Chegou-se a Wilson que o chamava e curvou-se para ele.
— Que é que há, velho camarada? está doendo? Wilson agitou os lábios sem poder falar. Por fim, após grandes esforços, gaguejou:
— Não... Sholmes... não é ela... é impossível que seja ela...
— Que é que me está dizendo? Lhe afirmo que é ela, eu! Só diante de uma criatura de Lupin, educada e preparada por ele, poderia eu perder a cabeça e agir tão tolamente... Agora ela sabe toda a história do álbum... Lhe aposto que em uma hora Lupin será avisado. Uma hora, que estou dizendo? imediatamente! A farmácia, o remédio urgente... histórias!
Saiu ligeiro, desceu a avenida Messine e viu a senhorita a entrar numa farmácia. Dez minutos depois, ela ressurgia com frascos e uma garrafa enrolados em papel branco. Mas enquanto voltava a subir a avenida, foi abordada por um homem que a seguia, de boné na mão e atitude obsequiosa, como se pedisse esmola.
Ela se deteve e lhe deu algo, retomando seu caminho.
— Ele lhe falou — pensou o inglês.
Mais que uma certeza, foi uma intuição, bem forte porém para que mudasse de tática. Abandonando a moça, lançou-se na pista do falso mendigo.
Chegaram assim, um atrás do outro, à praça Saint-Ferdinand, e o homem vagueou tempos em volta da casa de Bresson, às vezes erguendo os olhos às janelas do segundo andar e espreitando as pessoas que entravam no prédio.
Ao fim de uma hora, subiu à um bonde que ia para Neuilly. Sholmes subiu também e se sentou atrás do indivíduo, um tanto afastado, e ao lado de um senhor que se escondia com as páginas abertas do seu jornal. Na altura das fortificações, o jornal se abaixou e Sholmes fitou Ganimard, que lhe disse ao ouvido, indicando o indivíduo:
— É o nosso homem de ontem à noite, o que seguia Bresson. Há uma hora que passeia pela praça.
— Nada de novo sobre Bresson? — perguntou Sholmes.
— Sim, uma carta que veio esta manhã para o seu endereço.
— Esta manhã? Então foi postada ontem, antes que o remetente soubesse da morte dele.
— Exatamente. Está nas mãos do juiz de instrução, mas gravei os termos: "Ele não aceita nenhuma transação. Quer tudo, a primeira coisa tanto quanto as do segundo negócio. Senão, agirá." E sem assinatura — acrescentou Ganimard. — Como vê, essas linhas pouco nos adiantam.
— Não sou do mesmo parecer, sr. Ganimard, essas linhas me soam ao contrário muito interessantes.
— Por que, meu Deus?
— Por motivos que me são particulares — replicou Sholmes com a falta de cerimônia que usava com o colega.
O bonde parou na rua Château, fim da linha. O indivíduo desceu e foi embora calmamente.
Sholmes o escoltava de tão perto que Ganimard se assustou:
— Se se virar, estamos mal parados.
— Agora não vai se virar.
— Como sabe?
— É um cúmplice de Arsène Lupin, e o fato de um cúmplice dele andar assim, de mãos nos bolsos, prova primeiro que sabe estar sendo seguido e, em segundo lugar, que não teme nada.
— Mas estamos tão perto dele.
— Não o suficiente para que não possa escorregar de nossos dedos antes de um minuto. Está demasiado seguro de si mesmo.
— Vamos, vamos, me inspira uma jogada. Ali, na porta do café, há dois agentes de bicicleta. Se decidir convocá-los e abordar o homem, me pergunto como nos escorrerá das mãos.
— O personagem não parece se comover muito com essa eventualidade. É ele mesmo que os chama!
— O danado! — proferiu Ganimard, — tem peito!
O sujeito de fato se dirigiu aos dois agentes no instante em que se dispunham a subir nas bicicletas. Disse-lhes umas palavras e, de repente, pegou uma terceira bicicleta, que estava apoiada na parede do café, e se afastou ligeiro com os dois homens.
O inglês caiu na risada.
— Hem! não tinha dito? Um, dois, três, raptado! E por quem? Por dois de seus colegas, sr. Ganimard. Ah, Arsène Lupin sabe se preparar! guardas ciclistas a soldo! Quando eu lhe dizia que o nosso sujeito estava calmo demais!...
— O que se devia ter feito então? — reagiu Ganimard, contrariado. — Rir é fácil!
— Vamos, não se zangue. Ainda nos vingaremos. No momento, precisamos de reforços.
— Folenfant me espera no fim da avenida de Neuilly.
— Bem, pegue-o de passagem e venha se unir a mim.
Ganimard se foi, enquanto Sholmes seguiu o rastro das bicicletas, ainda mais visível no pó da estrada por estarem as máquinas munidas de pneus estriados. Logo notou que o levava à beira do Sena, e que os três homens tinham se desviado na mesma direção de Bresson na noite anterior. Chegou assim ao portão em que havia se ocultado com Ganimard e, um pouco além, constatou uma mistura de linhas estriadas a mostrar que os ciclistas tinham parado naquele lugar. Bem à frente havia uma pequena língua de terra a entrar no rio e, na ponta dela, um velho bote estava amarrado.
Foi ali que Bresson devia ter jogado o pacote, ou antes deixado tombar. Sholmes desceu a rampa e reparou que, sendo ela muito suave e estando baixa a água do rio, lhe seria fácil encontrar o pacote... a menos que os três homens já o tivessem pegado.
— Não, não — se disse, — não tiveram tempo... no máximo um quarto de hora... Contudo, por que teriam passado por ali?
Um pescador estava sentado no barco. Sholmes lhe indagou:
— Não viu três homens de bicicleta? O pescador fez sinal de que não. Ele insistiu:
— Mas sim... Três homens... Pararam a dois passos de você...
O pescador pôs o caniço debaixo do braço, tirou um caderninho do bolso, escreveu numa das páginas, arrancou-a e estendeu a Sholmes.
Um arrepio passou pelo inglês. Num golpe de vista percebeu, em meio à página que tinha na mão, a série de letras recortadas do álbum.
CDEHNOPRZEO — 237
O sol pesava sobre o rio. O homem retomara a sua tarefa, protegido por um vasto chapéu de palha, com o casaco e o colete dobrados ao lado. Pescava com atenção; a rolha de sua linha flutuava à tona d'água.
Passou-se um bom minuto, de solene e terrível silêncio.
— Será ele? — pensou Sholmes com uma ansiedade quase dolorosa.
A verdade o esclareceu:
— É ele! é ele! Só ele seria capaz de permanecer numa situação dessas sem um frêmito de inquietude, sem nada temer do que vai se passar... E que outro saberia essa história do álbum? Alice o preveniu por seu mensageiro.
De repente o inglês sentiu que sua mão, sua própria mão, tinha agarrado a coronha do revólver, e que seus olhos se fixavam nas costas do indivíduo, um pouco acima da nuca. Um gesto e todo o drama se desenlaçaria, terminava-se a vida do estranho aventureiro miseravelmente.
O pescador não se movia.
Sholmes apertou nervoso sua arma com o desejo feroz de atirar e acabar com aquilo e, ao mesmo tempo, o horror de um ato que lhe contrariava a natureza. A morte era certa. E encerraria tudo.
— Ah! — pensou, — que se levante, se defenda... senão pior para ele... Mais um segundo... e detono...
Um barulho de passos lhe fez virar a cabeça e viu Ganimard chegando com os inspetores.
Então, mudando de idéia, tomou impulso, saltou de um pulo na barca, cuja amarra se partiu pelo puxão muito forte, caiu em cima do homem e o apertou pelo meio do corpo. Os dois rolaram no chão do barco.
— E daí? — gritou Lupin, se debatendo, — que é que isso prova? Quando um de nós reduzir o outro à impotência, estará bem arranjado! Não saberia o que fazer de mim, nem eu de você. Ficaríamos aí como dois imbecis...
Os dois remos caíram na água. A embarcação se foi à deriva. Exclamações se entrecruzaram na margem, e Lupin continuou:
— Quantas histórias, meu Deus! Você perdeu a noção das coisas?... Tolices dessas na sua idade! e um rapaz crescido como você! Chi, que feio!...
Conseguiu se livrar.
Exasperado, decidido a tudo, Herlock Sholmes meteu a mão no bolso. Soltou uma praga: Lupin tinha lhe tirado o revólver.
Pôs-se de joelhos e procurou agarrar um dos remos a fim de ganhar a margem, ao passo que Lupin buscava o outro para fazer-se ao largo.
— Pegará... não pegará... — dizia Lupin. — Mas isso não tem importância. Se tiver um remo, não deixo que se sirva dele... E você não deixará a mim. Veja como na vida a gente se esforça por agir sem razão, já que é sempre a sorte que decide... Está vendo? a sorte... bem, decidiu-se por seu velho amigo Lupin... Vitória! a corrente está a meu favor!
A embarcação de fato tendia a se afastar.
— Cuidado! — gritou Lupin, — se proteja.
Alguém, na margem, apontava um revólver. Abaixou a cabeça, ressoou um disparo, um pouco d'água os borrifou. Lupin começou a rir.
— Deus me perdoe, é o amigo Ganimard!... Mas é muito errado o que está fazendo, Ganimard. Não tem o direito de atirar, a não ser em caso de legítima defesa... Este pobre Arsène o tornará selvagem ao ponto de esquecer todos os seus deveres?... Chi, vai começar outra vez!... Mas, desgraçado, é o meu querido mestre quem acaba ferindo!
Fez com o corpo uma defesa para Sholmes e de pé, no barco, enfrentou Ganimard:
— Bem, agora estou tranqüilo... Aponte, Ganimard, no coração!... Mais pra cima... agora à esquerda... Errou... que desajeitado... Um tiro ainda?... Mas você está tremendo, Ganimard... Siga o comando, hem! e sangue-frio... Um, dois, três, fogo!... Errou! Que diabo, o governo dá a vocês pistolas de brinquedo?
Exibiu um comprido revólver, maciço e chato e, sem mirar, atirou.
O inspetor levou a mão ao chapéu: uma bala o furara.
— Que acha disso, Ganimard? Ah, mas este vem de uma boa fábrica. Respeitem, srs., é o revólver de meu nobre amigo, mestre Herlock Sholmes!
E girando o braço, atirou a arma aos pés de Ganimard.
Sholmes não podia se impedir de sorrir e admirar. Que exuberância de vida! Que júbilo jovem e espontâneo! E como ele parecia se divertir! Dir-se-ia que a sensação do perigo lhe causava uma alegria física, e que a existência não tinha outra finalidade para este homem incomum fora da busca de perigos, que em seguida se divertia em conjurar.
Enquanto isso, de cada lado do rio, gente se juntava, e Ganimard e seus homens seguiam o bote que balouçava ao largo, docemente arrastado pela corrente. Era a captura inevitável, matemática.
— Confesse, mestre — bradou Lupin virando-se para o inglês, — que não daria o seu lugar por todo o ouro do Trans-val! É que está na primeira fila da platéia! Mas, em primeiro lugar e antes de tudo, o prólogo... depois do que pularemos ao quinto ato, a captura ou a evasão de Arsène Lupin. Portanto, caro mestre, tenho uma questão a lhe colocar, e lhe peço, para não haver equívocos, que resolva por um sim ou por um não. Renuncie a tratar deste caso. Ainda é tempo e posso reparar o mal que fez. Mais tarde, já não poderia. Está combinado?
— Não.
A face de Lupin se contraiu. Essa obstinação visivelmente o irritava. Continuou:
— Insisto. Por você, ainda mais do que por mim, insisto, seguro de que seria o primeiro a lamentar sua intervenção. Pela última vez, sim ou não?
— Não.
Lupin se agachou, deslocou uma das tábuas do chão e, durante uns minutos, executou um trabalho de que Sholmes não pôde discernir a natureza. Logo se ergueu, sentou perto do inglês e lhe falou:
— Acredito, mestre, que viemos à margem deste rio por idênticos motivos: repescar o objeto de que Bresson se viu livre. De minha parte, tinha marcado encontro com alguns camaradas e me dispunha — minha roupa sumária o demonstra — a fazer uma pequena exploração nas profundezas do Sena, quando meus amigos me anunciaram que você vinha vindo. Lhe confesso que não me surpreendo, já que vinha sendo avisado hora a hora dos progressos do seu inquérito. É tão fácil! No que se passa na rua Murillo a menor coisa suscetível de me interessar, depressa, um telefonema, e sou advertido! Compreende que, nestas condições....
Deteve-se. A tábua que afastara se erguia agora e por toda a parte filtrava água em pequenos jatos.
— Demônios! Ignoro o que fiz, mas sou obrigado a pensar que há um veio d'água no fundo deste velho bote. Não tem medo, mestre?
Sholmes deu de ombros. Lupin continuou:
— Vê portanto que, nestas condições, e sabendo de antemão que buscava o combate tanto mais ardentemente quanto eu me esforçava para evitá-lo, me seria antes agradável jogar com você uma partida cujo resultado era certo, já que eu tinha todos os trunfos na mão. E quis dar ao nosso encontro o maior brilho possível, a fim de que sua derrota fosse universalmente conhecida, e que uma outra condessa de Crozon ou um outro barão d'Imblevalle não fossem tentados a solicitar a sua ajuda contra mim. Não veja aí, aliás, meu caro mestre...
Interrompeu-se de novo e, servindo-se das mãos como lunetas, observou as margens.
— Puxa! fretaram uma soberba chalupa, um verdadeiro navio de guerra, e vão remar firme. Antes de cinco minutos, nos abordam e estarei perdido. Sr. Sholmes, um conselho: joga-se em cima de mim, me ata e entrega à justiça de meu país... Esse programa lhe agrada?... A menos que até lá não naufraguemos, caso em que não nos restaria mais que preparar nosso testamento. Que pensa disso?
Seus olhares se cruzaram. Sholmes se explicava a manobra de Lupin: tinha furado o fundo do barco. E a água subia.
Ganhou a sola de suas botinas. Cobriu-lhes os pés: não fizeram um movimento.
Ultrapassou-lhes os tornozelos: o inglês pegou sua bolsinha de fumo, enrolou um cigarro e o acendeu.
Lupin continuou:
— Não veja nisso, caro mestre, mais que a humilde demonstração de minha impotência em relação a você. É me dobrar a você aceitar as únicas batalhas em que a vitória já seja minha, para evitar aquelas em que eu não teria escolhido o terreno. É reconhecer que Sholmes é o único inimigo que receio e proclamar minha preocupação enquanto Sholmes não for afastado do meu caminho. Isso, caro mestre, faço questão de lhe dizer, já que o destino me concede a honra de uma palestra com você. Só lamento uma coisa: que essa palestra tenha lugar enquanto tomamos um banho de pés... pouco austera situação, confesso... E o que digo! um banho de pés? Antes um banho de assento!
A água de fato chegava ao banco em que estavam senta dos, e o barco afundava cada vez mais.
Sholmes, imperturbável, de cigarro na boca, parecia absorvido na contemplação do céu. Por nada no mundo, diante deste homem cercado de perigos, sitiado pela multidão, encurralado pela matilha dos agentes, e que no entanto conservava o bom humor, por nada no mundo consentiria em demonstrar, ele, o menor sinal de agitação.
Quê! tinham ambos o ar de pensar, vai a gente se comover com tais futilidades? Não ocorre cada dia que pessoas se afoguem num rio? Será essa uma ocorrência das que merecem que se preste atenção? E um pairava e outro cismava, ambos escondendo sob uma semelhante máscara de indiferença o formidável choque de seus dois orgulhos.
Mais um minuto e iam soçobrar.
— O essencial — formulou Lupin — é saber se afundaremos antes ou depois da chegada dos campeões da justiça. Tudo está aí, pois a questão do naufrágio nem mesmo se coloca mais. Mestre, chegou a hora solene do testamento. Lego toda a minha fortuna a Herlock Sholmes, cidadão inglês, encarregando-o... Mas, Deus, como avançam depressa os campeões da justiça! Ah, os bravos rapazes! dão prazer em ver. Que precisão nas remadas! Ah, mas é você, cabo de esquadra Folenfant! A idéia do navio de guerra foi ótima. Parabéns. Vou recomendá-lo a seus superiores, cabo Folenfant... É a medalha que quer? Certo... considere concedida. E o seu colega Dieuzy, onde está? Na margem esquerda, não é? em meio a uma centena de gentes da vizinhança... De modo que, se escapar do naufrágio, sou recolhido à esquerda por Dieuzy e sua turma, ou então à direita por Ganimard e o povo de Neuilly. Aborrecido dilema...
Houve um remoinho. O bote virou sobre si mesmo e Sholmes teve de se agarrar ao anel dos remos.
— Mestre — disse Lupin, — peço que tire o casaco. Estará mais à vontade para nadar. Não? Recusa? Então ponho de novo o meu.
Pôs o casaco, abotoou-o todo como o de Sholmes e suspirou:
— Que homem forte você é! e que pena que teime tanto num caso... em que sem dúvida deu a medida da sua capacidade, mas tão inutilmente! Em verdade desperdiça o seu gênio...
— Sr. Lupin — pronunciou Sholmes, saindo enfim de seu mutismo, — fala demasiado e não raro peca por excesso de confiança e leviandade.
— A censura é forte.
— Foi assim que, sem saber, me forneceu há um instante a informação que procurava.
— Como! buscava uma informação e não me disse isso!
— Não preciso de ninguém. Dentro de três horas darei a resposta da charada ao sr. e à sra. D'Imblevalle. Eis a única réplica...
Não acabou a frase. O barco tinha afundado de golpe, arrastando os dois. Em seguida emergiu, virado, o casco para o ar. Houve grandes gritos nas duas margens; logo um silêncio ansioso e de repente novas exclamações: um dos náufragos havia reaparecido.
Era Herlock Sholmes.
Excelente nadador, dirigiu-se em largas braçadas para a chalupa de Folenfant.
— Ânimo, sr. Sholmes — berrou o cabo, — estamos aqui... não fraqueje... trataremos depois dele... vamos pegá-lo na certa... mais um esforcinho, sr. Sholmes... agarre a corda...
O inglês pegou uma corda que lhe atiraram. Mas, ao içar-se para bordo, uma voz atrás de si o interpelou:
— A resposta da charada, caro mestre, vai obter por certo. Até me surpreende que ainda não a tenha... E então, de que lhe servirá? Será justamente aí que a batalha estará perdida para você...
Montado no casco, ao qual tinha subido discursando ainda, confortavelmente instalado agora, Arsène Lupin continuava sua fala com gestos solenes e como se esperasse convencer o seu interlocutor.
— Entenda bem, caro mestre, não há nada a fazer, absolutamente nada... Acha-se na deplorável situação de um senhor...
Folenfant lhe apontou a arma:
— Renda-se, Lupin.
— Mas que diabo, cabo Folenfant, a gente só se rende se está em perigo. Ora, não tem a pretensão de acreditar que eu corra o menor perigo!
— Pela última vez, Lupin, lhe intimo a se render.
— Cabo Folenfant, não tem de modo algum a intenção de me matar, no máximo de me ferir, tal o medo que tem de que eu fuja. Mas, se por acaso o ferimento for mortal? Não, pense em seus remorsos, infeliz! na sua velhice envenenada!...
O tiro partiu.
Lupin cambaleou, se agarrou um instante na madeira, logo a largou e desapareceu.
Eram exatamente três horas quando esses acontecimentos tiveram lugar. Às seis em ponto, tal como tinha anunciado, Herlock Sholmes, vestido com uma calça muito curta e um jaquetão demasiado estreito, que tinha tomado emprestados ao dono de um albergue de Neuilly, com um boné e uma camisa de flanela com cordão de seda, entrou na famosa peça da rua Murillo, depois de mandar avisar ao sr. e à sra. d'Imblevalle que lhes pedia uma conferência.
Quando entraram, ele andava de um lado para outro, e o acharam tão cômico com aquela roupa estranha que tiveram de dominar um forte desejo de rir. Com ar pensativo, as costas curvas, andava como um autômato, da janela à porta, e da porta à janela, dando cada vez o mesmo número de passadas' e cada vez girando no mesmo sentido.
Deteve-se, pegou um objeto, examinou-o maquinalmente, e continuou a andar.
Enfim, pondo-se à frente deles, indagou:
— A senhorita está aí?
— Sim, no jardim, com as crianças.
— Sr. barão, sendo definitiva a palestra que teremos, desejaria que a srta. Demun a assistisse.
— Será que insiste... ?— Tenha um pouco de paciência. A verdade sairá clara dos fatos que vou lhes expor com a maior precisão possível.
— Bem. Suzanne, por favor?...
A sra. D'Imblevalle se ergueu e retornou quase em seguida, acompanhada de Alice Demun. A senhorita, um pouco mais pálida que de costume, ficou de pé, apoiada a uma mesa e sem mesmo perguntar o motivo por que a tinham chamado.
Sholmes não pareceu vê-la e, se virando bruscamente para o sr. D'Imblevalle, articulou num tom que não admitia réplica:
— Depois de vários dias de pesquisa, sr., e embora certos acontecimentos tenham mudado por um instante a minha maneira de ver, repito o que lhe disse desde a primeira hora: a lâmpada judaica foi roubada por alguém que mora nesta mansão.
— O nome do culpado?
— Eu sei.
— As provas?
— As que tenho bastarão para confundi-lo.
— Não basta que fique confundido. Precisa ainda nos restituir...
— A lâmpada judaica? Está comigo.
— O colar de opalas? a tabaqueira?...
— O colar de opalas, a tabaqueira, em suma, tudo o que lhe foi subtraído da segunda vez está comigo.
Sholmes gostava desses golpes de teatro e dessa maneira um tanto seca de anunciar seus triunfos.
Realmente, o barão e a mulher pareciam estupefatos e o fitavam com uma curiosidade silenciosa que era o melhor dos elogios.
Ele continuou, a seguir, em detalhe, a narrativa do que tinha feito durante esses três dias. Contou a descoberta do álbum, escreveu numa folha de papel a frase formada pelas letras recortadas, logo narrou a expedição de Bresson à margem do Sena e o suicídio do aventureiro; e enfim a luta que acabara de sustentar contra Lupin, o naufrágio do barco e a desaparição de Lupin.
Ao terminar, o barão disse em voz baixa:
— Não lhe resta mais do que nos dizer o nome do culpado. A quem acusa?
— Acuso a pessoa que recortou as letras deste abecedário e se comunicou por meio dessas letras com Arsène Lupin.
— Como sabe que o correspondente dessa pessoa era Arsène Lupin?
— Por ele mesmo.
Mostrou um pedaço de papel molhado e amarrotado. Era a página que Lupin arrancara de sua caderneta, no bote, e em que grafou a frase.
— E observe — notou Sholmes, com satisfação, — que nada o obrigava a me dar esta folha, e em conseqüência se fazer reconhecer. Uma mera meninice de sua parte, e que me esclareceu.
— Que o esclareceu... — disse o barão. — Por mim não vejo nada...
Sholmes copiou a lápis as letras e as cifras:
CDEHNOPRZEO — 237
— E daí? — fez o sr. d'Imblevalle, — é a fórmula que o sr. mesmo nos tinha mostrado.
— Não. Se estudar essa fórmula em todos os sentidos, verá à primeira vista, como eu vi, que não é igual à primeira.
— E em que difere?
— Tem duas letras a mais, um E e um O.
— De fato, não tinha observado...
— Aproxime essas letras do C e de H que nos sobravam além da palavra "répondez" e verificará que o único termo possível é ECHO.
— O que significa?
— O que significa L'Echo de France, o jornal de Lupin, seu órgão oficial, a que reserva seus "comunicados". Répondez ao Echo, na seção de pequenas correspondências número 237. Era a solução da charada que tanto procurei e que Lupin me ofereceu tão gratuitamente. Estou voltando dos escritórios de L'Echo de France.
— E encontrou?
— A história detalhada das relações de Arsène Lupin e de... sua cúmplice.
E Sholmes desdobrou sete jornais abertos na quarta página, de que destacou as sete linhas seguintes:
1.ª ARS. LUP. Dama pede proteç. 540
2.ª 540. Aguardo explicações. A. L.
3.a A. L. Sob domín. inimigo. Perdida.
4.ª 540. Mande endereço. Farei pesquisa.
5.a A. L. Murillo.
6.a 540. Parque três horas. Videta.
7.a 237 Combinado sáb. Estarei dom. manhã parque.
— E chama a isso uma história detalhada! — reagiu o sr. d'Imblevalle.
— Santo Deus, sim, e por pouco que preste atenção a isso concordará comigo. De início, uma dama que se assina 540 pede a proteção de Arsène Lupin, ao que este replica solicitando explicações. A dama responde que está sob o domínio de um inimigo, de Bresson sem qualquer dúvida, e que estará perdida se não vierem em seu auxílio. Lupin, que desconfia, que não ousa se pôr em contato com essa desconhecida, exige o endereço e se propõe a fazer uma pesquisa. A dama hesita durante quatro dias — consultem as datas —, enfim, apressada pelos acontecimentos, sob as ameaças de Bresson, dá o nome de sua rua, Murillo. No dia seguinte, Arsène Lupin anuncia que estará no parque Monceau às três horas, e pede à desconhecida que traga um ramo de violetas como um sinal de senha. Há aí um intervalo de oito dias na correspondência. Arsène Lupin e a dama não necessitam se escrever por meio do jornal; se vêem ou escrevem diretamente. O plano está urdido: para satisfazer as exigências de Bresson, a dama furtará a lâmpada judaica. Falta fixar o dia. A dama que, por cautela, se corresponde com a ajuda de palavras recortadas e coladas decide-se pelo sábado e acrescenta: Répondez Echo 237. Lupin responde que está combinado e que estará domingo de manhã no parque. No domingo de manhã, o roubo tinha acontecido.
— Com efeito, tudo se encadeia — aprovou o barão, — e a história está completa.
Sholmes prosseguiu:
— O roubo tinha ocorrido. A dama sai domingo de manhã, dá conta a Lupin do que fez, e leva a Bresson a lâmpada judaica. As coisas então se passam como Lupin previra. A justiça, enganada por uma janela aberta, quatro buracos na terra e dois arranhões num muro, admite em seguida a hipótese do roubo por arrombamento. A dama está tranqüila.
— Seja — disse o barão, — admito essa explicação tão lógica. Mas o segundo roubo...
— O segundo foi provocado pelo primeiro. Tendo os jornais narrado como a lâmpada tinha desaparecido, alguém teve a idéia de repetir a façanha e se apoderar do que não tinha sido levado. E desta vez não foi um roubo simulado, mas um roubo real, com verdadeiro arrombamento, assalto, etc.
— Lupin, naturalmente...
— Não, Lupin nunca age assim brutalmente. Lupin não fere as pessoas por um sim ou um não.
— Então quem?
— Bresson, sem qualquer dúvida, e a despeito da dama que ele tinha obrigado a ser indiscreta. Foi Bresson que entrou aqui, ele que eu persegui, ele que feriu meu pobre Wilson.
— Tem certeza?
— Absoluta. Um dos cúmplices de Bresson lhe escreveu ontem, antes do seu suicídio, uma carta que prova que negociações foram feitas entre esse cúmplice e Lupin para a restituição de todos os objetos subtraídos da sua casa. Lupin exigia tudo, "a primeira coisa (isto é, a lâmpada) tanto quanto as do segundo negócio". Além disso, ele vigiava Bresson. Quando este foi ontem à noite até a beira do Sena, um dos companheiros de Lupin o seguia ao mesmo tempo que nós.
— Que ia fazer Bresson à margem do Sena?
— Avisado dos progressos da minha pesquisa...
— Avisado por quem?
— Pela mesma dama, que receava com razão que a descoberta da lâmpada judaica levasse à descoberta de sua aventura... Assim Bresson, avisado, juntou num só pacote tudo o que poderia comprometê-lo, e foi jogar num lugar em que poderia recuperar o pacote, uma vez passado o perigo. Foi na volta que, encurralado por Ganimard e por mim, tendo sem dúvida outros delitos na consciência, perdeu a cabeça e se matou.
— Que continha o pacote?
— A lâmpada judaica e seus outros objetos.
— Não estão então em sua posse?
— Logo depois do desaparecimento de Lupin, me aproveitei do banho que ele tinha me forçado a tomar, para ir ao lugar escolhido por Bresson e encontrei, envolto em roupa branca e oleado, o que lhe tinha sido tirado. Está aqui nesta mesa.
Sem uma palavra, o barão cortou os cordões, abriu o oleado e as roupas úmidas, tirou a lâmpada, girou uma porca sob o pé, apertou com as duas mãos o recipiente, o desparafusou, abrindo em duas partes iguais, e achou a borboleta de ouro, engastada de rubis e esmeraldas.
Estava intata.
Havia em toda essa cena, na aparência tão natural, e que consistia numa simples exposição de fatos, algo que a tornava temivelmente trágica: a acusação, formal, direta, irrefutável, que Sholmes lançava a cada palavra contra a senhorita, e também o silêncio impressionante de Alice Demun.
Durante esse longo, esse cruel acúmulo de pequenas provas acrescentadas umas às outras, nenhum músculo do rosto dela se contraíra, nem um reflexo de revolta ou de temor turbara a serenidade de seu límpido olhar. Que estava pensando? E sobretudo o que ia dizer no minuto solene em que tinha de responder, defender-se e romper o círculo de ferro em que Herlock Sholmes a aprisionara tão habilmente?
Esse minuto soara e a moça calava.
— Fale! Diga algo! — bradou o sr. d'Imblevalle. Não falou.
Ele insistiu:
— Uma palavra a justificará... Uma palavra de revolta e acreditarei em você.
Essa palavra ela não disse.
O barão atravessou com vivacidade a peça, regressou, andou de novo; por fim se dirigiu a Sholmes:
— Pois bem, não, sr.! não posso admitir que isso seja verdade! Há crimes impossíveis, e este se opõe a tudo o que sei, a tudo o que vejo há um ano.
Aplicou a mão no ombro do inglês.
— Mas o sr. mesmo está absolutamente seguro de não se enganar?
Sholmes hesitou, como um homem pegado de imprevisto e cuja resposta não é pronta. No entanto sorriu e disse:
— Só a pessoa que eu acuso poderia, pela posição que ocupa em sua casa, saber que a lâmpada judaica continha esta magnífica jóia.
— Não quero crer — murmurou o barão.
— Pergunte-lhe.
Era, com efeito, a única coisa que não tentaria, dentro da confiança cega que a moça lhe inspirava. Porém não era mais possível se subtrair à evidência.
Acercou-se dela e, com os olhos nos olhos:
— Foi você, senhorita? Foi você que pegou a jóia? você que se correspondeu com Arsène Lupin e simulou o roubo?
Ela respondeu:
— Fui eu, sr.
Não baixou a cabeça. Seu rosto não exprimia nem vergonha nem mal-estar...
— Será possível! — murmurou o sr. d'Imblevalle. — Não teria acreditado nunca... é a última pessoa de quem suspeitaria... Como fez isso, infeliz?
Ela disse:
— Como o sr. Sholmes contou. Na noite de sábado para domingo, desci a esta peça, peguei a lâmpada e, de manhã, levei-a... a esse homem.
— Mas não — objetou o barão, — o que afirma é inadmissível.
— Inadmissível por quê?
— Porque de manhã encontrei aferrolhada a porta desta peça.
Ela enrubesceu, perdeu aprumo e olhou Sholmes, como a lhe pedir conselho.
Mais ainda do que pela objeção do barão, Sholmes pareceu impressionado pelo embaraço de Alice Demun. Não tinha ela então nada a responder? As confissões que autorizavam a explicação que ele, Sholmes, tinha dado sobre o roubo da lâmpada judaica mascarariam uma mentira capaz de destruir de imediato o exame dos fatos?
O barão continuou:
— Esta porta estava fechada. Afirmo que encontrei o ferrolho como o deixara na véspera à noite. Se tivesse passado por esta porta, como pretende, seria preciso que alguém lhe abrisse do interior, isto é, desta peça ou do nosso quarto. Ora, não tinha ninguém dentro dessas duas peças... ninguém, a não ser minha mulher e eu.
Sholmes se curvou e cobriu o rosto com as duas mãos a fim de disfarçar seu rubor. Algo como uma luz muito viva o chocou, e permanecia deslumbrado, incômodo. Tudo se desvelava para ele, tal uma paisagem escura subitamente abandonada pela noite.
Alice Demun era inocente.
Alice Demun era inocente. Havia nisso uma verdade certa ofuscante, e era ao mesmo tempo a explicação do mal-estar que sentira desde a primeira hora em dirigir contra a moça a terrível acusação. Agora via claro. Sabia. Um gesto, e de imediato a prova irrefutável ia se oferecer a ele.
Ergueu a cabeça e, depois de uns segundos, tão naturalmente quanto pôde, virou os olhos para a sra. d'Imblevalle.
Estava pálida, dessa palidez inabitual que nos invade nas horas implacáveis da vida. Suas mãos, que procurava esconder, tremiam imperceptivelmente.
— Mais um segundo — pensou Sholmes — e ela se trai. Colocou-se entre ela e o marido com o imperioso desejo de afastar o espantoso risco que, por sua culpa, ameaçava este homem e esta mulher. Mas observando o barão, estremeceu no fundo de seu ser. A mesma súbita revelação que o tinha ofuscado de claridade, iluminava agora o sr. d'Imblevalle. O mesmo trabalho se fazia no cérebro do marido. Ele compreendia por sua vez, ele via.
Desesperadamente, Alice Demun se opunha à inexorável realidade.
— Tem razão, sr., me enganei... De fato não passei por aqui. Passei pelo vestíbulo e o jardim, e com o auxílio de uma escada...
Supremo esforço de dedicação... mas esforço inútil. As palavras soavam falsas. A voz estava insegura e a doce criatura não tinha mais os olhos límpidos e o grande ar de sinceridade. Baixou a cabeça, vencida.
O silêncio foi atroz. A sra. D'Imblevalle aguardava, lívida, enrijecida pela angústia e o espanto. O barão parecia ainda se debater, como se não quisesse acreditar no desmoronamento de sua felicidade.
Enfim, balbuciou:
— Fala! explica!...
— Nada tenho a te dizer — fez ela baixo e com o rosto retorcido de dor.
— Então... a senhorita...
— A senhorita me eximiu... por devotamento... afeição... e acusou a si própria...
— Eximiu de quê? de quem?
— Desse homem.
— Bresson?
— Sim, era a mim que mantinha sob ameaças... Conheci-o em casa de uma amiga... e fiz a loucura de escutá-lo... Oh, nada que não possas perdoar... no entanto escrevi duas cartas... cartas que te mostrarei. Resgatei-as... sabes como... Oh, tem piedade de mim... tenho chorado tanto!
— Tu! tu! Suzanne!
Ergueu para ela os punhos cerrados, prestes a lhe bater, a matá-la. Mas seus braços voltaram a cair, e de novo murmurou:
— Tu, Suzanne!... tu!... será possível!...
Em pequenas frases cortadas, ela narrou a pungente e banal aventura, seu despertar assustado ante a infâmia do homem, seus remorsos, seu suplício, e também o comportamento admirável de Alice, adivinhando o desespero da patroa, arrancando-lhe a confissão, escrevendo a Lupin e organizando a história do roubo para salvá-la das garras de Bresson.
— Tu, Suzanne, tu — repetia o sr. d'Imblevalle, curvado, derribado. — Como pudeste...?
Na noite do mesmo dia, o vapor Ville-de-Londres que faz a ponte entre Calais e Douvres deslizava lentamente na água imóvel. O céu estava escuro e calmo. Suaves nuvens se adivinhavam acima do navio e, a seu redor, leves véus de bruma o separavam do espaço infinito onde devia se irradiar a brancura da lua e das estrelas.
A maioria dos passageiros fora para as cabinas e os salões. Alguns, porém, mais intrépidos, passeavam na ponte ou cochilavam em grandes cadeiras preguiçosas debaixo de espessas cobertas. Viam-se aqui e ali brasas de charutos e se ouvia, misturado ao suave sopro da brisa, o sussurro de vozes que não ousavam se altear no grande silêncio solene.
Um dos passageiros, que andava com passo regular ao longo da pavesada, deteve-se junto a uma pessoa estendida num banco, observou-a e, como a pessoa se mexesse um pouco, lhe disse:
— Pensei que estava dormindo, srta. Alice.
— Não, não, sr. Sholmes, não tenho vontade de dormir. Estava pensando.
— Em quê? Será indiscreto lhe perguntar?
— Pensava na sra. d'Imblevalle. Deve estar tão triste! Sua vida foi arruinada.
— Mas não, não — reagiu ele. — Sua falta não é das que não se perdoem. O sr. d'Imblevalle vai esquecer essa fraqueza, lá quando partimos a olhava menos duramente.
— Talvez... mas o esquecimento será demorado... e ela está sofrendo.
— Gosta muito dela?
— Muito. Foi isso que me deu tanta força para sorrir quando tremia de medo, para olhá-lo de frente quando teria querido escapar a seus olhos.
— E está infeliz por deixá-la?
— Bastante. Não tenho parentes nem amigos... Só tinha a ela.
— Há de fazer amigos — disse o inglês, que o pesar da moça transtornava, — eu lhe prometo... tenho relações... muita influência... lhe asseguro que não terá saudade da situação que deixou.
— Talvez, mas a sra. d'Imblevalle não estará presente...
Não trocaram mais palavras. Herlock Sholmes deu ainda duas ou três voltas na ponte e voltou a se instalar junto à sua companheira de viagem.
A cortina de bruma se dissipava e as nuvens pareciam se apartar no céu. Estrelas cintilavam.
Sholmes tirou o cachimbo do fundo de sua jaqueta, encheu e riscou sucessivamente quatro fósforos sem conseguir acendê-los. Como não tinha mais, ergueu-se e disse a um senhor que se achava sentado a alguns passos:
— Tem fogo, por favor?
O senhor abriu uma caixa de fósforos e riscou. A chama saltou logo. Na sua luz, Sholmes viu Arsène Lupin.
Se não tivesse havido da parte do inglês um pequeno gesto, um imperceptível recuo, Lupin poderia supor que sua presença a bordo era conhecida por Sholmes, tanto este se conservou senhor de si e tão natural foi o à vontade com que estendeu a mão a seu adversário.
— Sempre de boa saúde, sr. Lupin?
— Bravos! — exclamou Lupin, a quem um tal autodomínio arrancou um grito de admiração.
— Bravo?... Por quê?
— Como por quê? Me vê reaparecer diante de si como um fantasma, depois de ter assistido ao meu mergulho no Sena — e por orgulho, por um milagre de orgulho que qualificarei de muito britânico, não tem um movimento de estupor, uma palavra de surpresa! Palavra, repito bravos, é admirável!
— Nem tanto. Na sua maneira de cair do bote, vi bem que o fazia voluntariamente e que não tinha sido atingido pela bala do cabo.
— E foi embora sem saber o que ia ocorrer comigo?
— O que ia ocorrer? eu sabia. Quinhentas pessoas dominavam as duas margens no espaço de um quilômetro. No momento em que escapasse à morte, sua captura era certa.
— No entanto, estou aqui.
— Sr. Lupin, há dois homens no mundo de quem nada me pode surpreender: eu primeiro e logo você.
A paz estava feita.
Se Sholmes não tinha tido êxito em suas empresas contra Arsène Lupin, se Lupin continuava o inimigo excepcional que cumpria em definitivo renunciar a prender, se durante as peripécias conservava sempre a superioridade, o inglês nem por isso deixara, pela formidável tenacidade de recuperar a lâmpada judaica como recuperara o diamante azul. Talvez agora o resultado tivesse sido menos brilhante, especialmente do ponto de vista do público, já que Sholmes estava forçado a silenciar sobre as circunstâncias em que a lâmpada fora descoberta e a proclamar que ignorava o nome do culpado. Mas de homem a homem, de Lupin a Sholmes, de policial a ladrão, não houvera, com plena eqüidade, nem vencedor nem vencido. Cada um dos dois poderia se gloriar de triunfos equivalentes.
Conversaram assim como adversários corteses que, depostas as armas, se estimam em seus justos valores.
A pedido de Sholmes, Lupin contou sua evasão.
— Se é que se pode — disse — chamar a isso uma evasão. Foi tão simples! Meus amigos estavam à espreita, já que tínhamos marcado encontro para reaver a lâmpada. Assim, depois de ficar uma boa meia hora debaixo do casco virado do bote, aproveitei um momento em que Folenfant e seus homens procuravam meu cadáver ao longo das margens, e pus a cabeça de fora. Meus amigos só tiveram de me recolher de passagem em sua lancha a motor, e sumir sob o olhar espantado dos quinhentos curiosos, de Ganimard e de Folenfant.
— Bonito! — vibrou Sholmes, — uma saída perfeita!... E agora tem o que fazer na Inglaterra?
— Sim, acertar umas contas... Mas estava esquecendo... O sr. d'Imblevalle?
— Sabe tudo.
— Ah, caro mestre, o que eu lhe tinha dito? Agora o mal é irreparável. Não teria sido melhor ter deixado que eu agisse à vontade? Ainda um dia ou dois, e retomaria de Bresson a lâmpada e os outros objetos, remeteria aos d'Imblevalle, e essas duas boas pessoas acabariam por viver tranqüilamente um com o outro. Em vez disso...
— Em vez disso — zombou Sholmes, — misturei as cartas e levei a discórdia ao seio de uma família que você protegia.
— Meu Deus, sim, que protegia! Será indispensável sempre roubar, enganar, fazer o mal?
— Então, você faz o bem também?
— Quando tenho tempo. Isso afinal me diverte. Acho graça que, na aventura que nos ocupou, eu tenha sido o gênio bom que socorre e salva, e você o mau que traz o desespero e as lágrimas.
— As lágrimas! as lágrimas! — protestou o inglês.
— Por certo! O lar dos d'Imblevalle está destruído e Alice Demun chora.
— Ela não podia mais ficar... Ganimard ia acabar descobrindo-a... e por ela chegaria até à sra. d'Imblevalle.
— Concordo consigo, mestre, mas de quem era a culpa? Dois homens passaram por eles. Sholmes disse a Lupin, numa voz cujo timbre parecia levemente alterado:
— Sabe que são estes cavalheiros?
— Julguei reconhecer o comandante do barco.
— E o outro?
— Não conheço.
— É o sr. Austin Gillet. E Gillet ocupa na Inglaterra uma posição que corresponde à do sr. Dudouis, o chefe da Süreté de vocês.
— Ah, que sorte! teria a amabilidade de me apresentar? O sr. Dudouis é um de meus bons amigos e ficaria contente se pudesse dizer o mesmo do sr. Austin Gillet.
Os dois senhores reapareceram.
— E se o pegasse pela palavra, Lupin? — disse Sholmes se levantando.
Tinha agarrado o punho de Arsène Lupin e o apertava com mão de ferro.
— Por que apertar tanto, mestre? Estou pronto a segui-lo. Deixou-se de fato arrastar sem a menor resistência. Os cavalheiros se afastavam.
Sholmes apertou o passo. Suas unhas penetravam na própria carne de Lupin.
— Vamos, vamos... — proferia surdamente numa espécie de pressa febril de arranjar as coisas o mais rápido possível. — Vamos, mais ligeiro que isso.
Mas parou,de repente: Alice Demun os seguira.
— Que está fazendo, srta.! É inútil... Não venha!
Foi Lupin quem respondeu:
— Peço que observe, mestre, que a srta. não está vindo deliberadamente. Aperto-lhe o pulso com uma energia semelhante à que emprega em relação a mim.
— E por quê?
— Como! mas faço questão fechada de apresentá-la também. Seu papel na história da lâmpada judaica foi ainda mais importante que o meu. Cúmplice de Arsène Lupin, cúmplice de Bresson, deverá ainda contar a aventura da baronesa d'Imblevalle — o que interessará muitíssimo à justiça... E você levará desse modo a sua benfazeja intervenção até os últimos limites, generoso Sholmes.
O inglês tinha largado o pulso de seu prisioneiro. Lupin liberou a senhorita.
Ficaram uns segundos parados, uns ante os outros. Logo Sholmes voltou a seu banco e sentou. Lupin e a moça retomaram seus lugares.
Um demorado silêncio os separou. E Lupin disse:
— Veja, mestre, seja o que for que façamos, nunca estaremos do mesmo lado. Está de um lado do muro, eu do outro. Podemos nos cumprimentar, apertar a mão, conversar um instante, mas o muro segue ali. Será sempre Herlock Sholmes, detetive, e eu Arsène Lupin, ladrão. E sempre Herlock Sholmes obedecerá, mais ou menos espontaneamente, com maior ou menor propriedade, a seu instinto de detetive, que é encarniçar-se atrás do ladrão e metê-lo nas grades se possível. E sempre Arsène Lupin será coerente com a sua alma de ladrão, evitando o pulso do detetive e dele zombando se encontrar ocasião. E desta vez, a ocasião chegou! Ah! ah! ah!
Rompeu a rir, um riso astuto, cruel e detestável...
Súbito, sério, inclinou-se para a moça:
— Esteja certa, srta., que, mesmo reduzido à última extremidade, não a teria traído. Arsène Lupin não trai nunca, especialmente a quem admira. E me permitirá que lhe diga que admiro a valente e doce criatura que você é.
Tirou de sua carteira uma cartão de visitas, rasgou em dois, estendeu uma metade à moça e, com a mesma voz emocionada e respeitosa:
— Se o sr. Sholmes não tiver êxito em suas providências, srta., apresente-se em casa de Lady Strongborough (achará facilmente seu endereço atual) e lhe entregue esta metade de cartão, dizendo-lhe estas duas palavras "lembrança fiel". Lady Strongborough lhe será dedicada como uma irmã.
— Obrigado — disse a moça, — irei amanhã à casa dessa senhora.
— E agora, mestre — clamou Lupin com o tom satisfeito de quem cumpriu o seu dever, — lhe desejo uma boa noite. Ainda temos uma hora de travessia. Vou aproveitar.
Estendeu-se ao comprido e cruzou as mãos atrás da cabeça.
O céu estava aberto para a lua. Em volta das estrelas e à tona do mar, sua radiosa claridade se expandia. Ela flutuava na água e a imensidade, onde se dissolviam as últimas nuvens, parecia lhe pertencer.
A linha da costa se destacou do horizonte escuro. Passageiros subiam. A ponte se encheu. O sr. Austin Gillet passou em companhia de dois indivíduos que Sholmes reconheceu como agentes da polícia inglesa.
Em seu banco, Lupin dormia...
Maurice Leblanc
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