Biblio "SEBO"
Este é o terceiro livro da série Aves Feridas.
Compõe-se de vinte pequenos artigos.
Dez são Pedaços de Vidas e dez são Pedaços de Pensamentos. Todos eles enviados, aceitos e publicados anteriormente em jornais e revistas. Exatamente por isso resolvemos reuni-los em livro.
Esclarecemos que o objetivo é pedir a atenção dos leitores para o vôo das Aves Feridas.
— Sim. As Aves Feridas voam, mesmo na Terra.
Voar não está na dependência das máquinas ou dos paraquedas. Nem mesmo dos corpos. Nada tem a ver com asas.
Voar é capacidade do espírito. Mas só dos fortes!
A BOLINHA DE SOL
Ana Maria tentou alcançar com suas mãozinhas atrofiadas uma bolinha de sol que se refletiu no vidro da janela do ”Fusca”.
Essa foi a primeira manifestação aparente de seu relacionamento com o mundo exterior.
O acontecimento nos foi relatado justamente quando apresentávamos o ”relatório de reavaliação de caso” aos seus pais.
Ana Maria, menina linda, parecida com os anjos dos cartões de Natal, branca como um lírio, franzina em seus três anos de vida, apresentava quadriplegia e retardo mental em grau profundo. Dezoito meses de tratamento diário com Fisioterapia e Estimulação Geral não tinham conseguido resultados expressivos. Apenas haviam prevenido maiores deficiências, e conservado a movimentação passiva das grandes articulações.
ao nível psíquico, a situação parecia estacionada. Nenhuma iniciativa nem traços de reconhecimento e diferenciações tinham sido constatados. A afetividade não se exteriorizava. As respostas aos estímulos sensoriais eram fracas, quase inexistentes. A atenção, ausente.
Em vão se procurava encontrar um centro de interesse. A menina linda e suave não fixava seus olhos, exceto no ”vácuo”.
Foi quando o sol ofereceu a sua contribuição.
Na forma poética de brinquedo circular projetou sua miniatura num jogo de sombras no vidro do carro que conduzia a criança aos exercícios diários.
Deitada no colo do pai, como num leito almofadado de amor, de repente, inesperadamente, seus olhos se fixam em alguma coisa que dançava no vidro do ”Fusca”, aumentando e diminuindo de tamanho.
Um meio sorriso iluminou a expressão facial da menina, e um movimento voluntário, focalizado, dificílimo, conseguiu ser feito para conduzir as próprias mãos na direção do presente oferecido pelo sol.
Por que exatamente aquela bolinha dourada, intangível, inexistente, seria o centro do primeiro interesse, a primeira porta a se abrir para o aproveitamento da experiência na vida de Ana Maria?
Bolas grandes de plástico e de pano pintadas com cores berrantes, bolas pedagógicas, bolas de vários tamanhos, bolas tiliníando ruídos, borrachas e massinhas arredondadas colocadas sob pressão nas mãos da menina, tinham falhado em seus objetivos.
O sol viera nos relembrar uma lição freqüentemente esquecida: É preciso persistir sempre porque não há trabalho q«e não cause transformação, e transformar é a motivação da vida.
Era véspera de Natal. Os pais de Ana Maria, felíses como nunca desde três anos atrás, nos-disseram: A bolinha de sol foi nosso presente do céu!
É possível que muitos de nós, os normais, os adultos, os cultos, os técnicos, os espiritualistas, os estudiosos, os pesquisadores, nunca tenhamos reparado nas bolinhas de sol.
Imergidos nas ocupações e preocupações, repetindo conceitos-chaves, falando bem da natureza, procurando o belo e o puro, contudo, é provável que as bolinhas de sol tenham se jogado em vão sobre nossas mãos abertas.
Talvez, por isso, nossos corpos sem paralisias venham se movimentando mecanicamente produzindo cansaço, e nossa inteligência sem tropeços, em vez da auto-satisfação de poder assimilar a mensagem profunda das coisas, venha se desgastando em frustrações, e sinta-se afogada num oceano de palavras vazias.
O encontro de Ana Maria com a bolinha de sol foi o encontro da tristeza com a esperança e, por analogia, nos levou a refletir nos fundamentais problemas humanos, sintetizáveis na necessidade de, vivendo nas sombras, descobrir a luz refletida nelas, para atender, menos inconscientemente, aos imperativo da evolução.
HENRIQUINHO - o REJEITADO
Deixaram-no à porta da Instituição Beneficente ”Nosso Lar”, caprichosamente vestido como se
fosse a uma festa.
Manta cor-de-rosa envolvia o ”pacote” com a
técnica e os requintes dos berçários.
Na sala de enfermagem abrimos o ”pacote”. Dentro dele havia uma criança, com ralos cabelos loiros, pequenina, parecendo um prematuro. Olhos azuis abertos e pele ressequida sem viço. Sobre o paletozinho branco de tricô via-se uma corrente de ouro sem inscrições. Seus dedos estavam fletidos sobre as mãos brancas como se fossem pétalas de lírios.
Tiramos suas roupas de tecido fino bordadas à mão, peça por peça, todas muito grandes para seu corpinho magro.
Ficou desnudado diante dos nossos olhos. O tórax era saliente com as costelas visíveis, assimétricas e desproporcionais. O braço direito não se movia normalmente e a articulação da mão com o ante-braço não tinha firmeza. Os pés, brancos como cera de vela, tinham os dedos estendidos e não se fletiam como os das outras crianças. Cada respiração levantava as costelas, e o abdômen ficava tenso como se fosse arrebentar.
Estranhamos que não chorasse. Provocamos
alguma manifestação psíquica através de compres-
sões na pele. — Não! A criança não era muda, mas
o choro era como um gemido apenas audível por
quem estivesse muito próximo.
Era um menino. Estávamos na Instituição Nosso Lar comemorando a semana da Enfermagem. Recebeu o nome de Henrique em homenagem a Henry Dunant, o fundador da Cruz Vermelha Internacional.
As circunstâncias permitiam uma interpretação que talvez não fugisse muito da realidade.
Fora esperado, como a classe média espera um primeiro filho: roupas bordadas, tricôs talvez feitos pela mãe da mãe, jubilosa. Correntinha de ouro comprada antes do nascimento por um provável futuro padrinho ou mesmo pelo pai que esperava a continuidade de si mesmo no filho.
Talvez fosse esperada uma menina como indicavam a manta e os sapatinhos cor de rosa.
Pode ser também que o caso fosse outro.
Alguma mulher desamparada pelo noivo. Alguma filha obrigada, por imposições familiares, a se desfazer da carne saída de sua carne.
Mas, uma coisa estava clara. Ele fora rejeitado! Rejeitado, principalmente por ser uma criança excepcional.
Jogaram-no na porta do ”Nosso Lar”, de maneira diversa da que costuma acontecer por aí, nas portas de outras casas de órfãos.
Viera caprichosamente — carinhosamente — envolvido em lãs e cambraia, enfeitado com a corrente dourada, talvez, lavado com lágrimas...
Henriquinho ficou três meses em nosso convívio.
A vida para ele era muito penosa. Engasgava ao deglutir, não sugava o bico da mamadeira, e requeria presença constante pois sua única queixa era o leve gemido que hora por hora emitia.
Não assimilava a alimentação. Não crescia. Ou melhor, crescia minuto a minuto mas, espiritualmente, como crescem os que nascem sob o jugo das provas de redenção.
Mergulhado no amor da numerosa família do Nosso Lar, Henriquinho chegou a sorrir algumas vezes, mesmo no dia em que voltou à pátria espiritual.
Hoje, escrevendo sobre ele, queremos focalizar alguns alertas que parecem ter oportunidade para a época presente, dos quais Henriquinho foi símbolo.
Primeiro, o problema da rejeição da criança excepcional, com todas as suas conseqüências de ordem social e, principalmente, espiritual. Esse problema nos conduz a reafirmar que a humanidade precisa urgentemente do Espiritismo para entender os fundamentos, os mecanismos e as finalidades das existências terrenas. A reencarnação e a evolução são pré-requisitos para que se possa esperar a plena aceitação do excepcional na sua própria família, e a valorização dessa experiência para todo o grupo de seu convívio. O conhecimento da lei de causa e efeito, a certeza de que os elementos do núcleo familiar estão profundamente vinculados pelos séculos, e o significado da oportunidade reencarnatória em corpo limitado, são as únicas esperanças para a solução desse problema.
Numa época como a nossa, em que a ciência e a técnica abrem horizontes novos ao poder humano, e em que as opções estão sendo motivadas por perigosos e atrativos sofismas, é urgente a divulgação ampla da Verdade para fazer frente ao dilema que já começa a ser colocado, em nome do bem-estar humano, nestes termos: — O excepcional tem ou não o direito de nascer?
Henriquinho também representa os milhões, e milhões de crianças que trazem nos corpos um alerta para as responsabilidades de se viver em sintonia com as leis superiores.
Para a Instituição Nosso Lar, o ”pacote” jogado em sua porta foi um pedido de tarefas novas, um apelo de renovação na assistência, e um marco para os trabalhos de reabilitação do excepcional, que se iniciariam alguns anos após.
Se alguém estiver lendo este escrito, por favor, faça conosco uma prece pelos pais dos Henriquinhos que estão vivendo hoje nesta terra brasileira, ”coração do mundo e pátria do evangelho”. Por esses pais que não sabem porque dormem sono pesado, e não equilibram a saúde. Por esses pais que, possivelmente, enchem os consultórios dos psicanalistas para retirar o ”peso’ ou o ”complexo” que não identificam onde está. Esses pais que, talvez, se encontrem vitimados por perturbações ou obsessões, sem compreender a causa inicial da triste situação.
E, diante da magnitude da vida que o Espiritismo nos compele a analisar, oremos também por nós mesmos, os espíritas desse crepúsculo de século, para que saibamos o que fazer com as sementes de luz na imensa seara da Terra tão infestada pelos conceitos vazios de espiritualidade e, contudo, tão necessitada de Deus.
LÚCIA - A INDIAZINHA
Na pequena cidade do interior de Mato Grosso encontramos Lúcia — a indiazinha.
Estava internada num hospital de Clínica Geral, instalado precariamente, mantido em funcionamento graças ao heroísmo de dois médicos e à dedicação de cinco freiras enfermeiras.
Lúcia tinha três anos. Ninguém sabia informar detalhadamente como chegara até ali. Alguém a trouxera, em grave estado de desidratação, dois anos antes. Como fora atendida de emergência, não se anotara nomes ou endereços, e nunca fora visitada.
Seu nome foi um presente das enfermeiras. Era uma linda menina, com tipo indígena. Cabelos negros, brilhantes e lisos. Olhos escuros, tristes, chorosos, quase fechados.
Lúcia não andava, não falava, não sentava sozinha e não apresentava qualquer iniciativa. Mexia-se muito, mas com movimentos involuntários, espasmódicos, convulsivos, nos pés, nas mãos e no rosto.
Os joelhos permaneciam fletidos sobre as coxas, e a cabeça geralmente caída sobre o ombro direito. Parecia totalmente ”desligada” do ambiente.
Informaram-nos que tinha paralisia cerebral. Era uma criança irrecuperável, com grave defíciência física e mental. Não podia permanecer ali, em Clínica Geral, sem nenhum cuidado adequado.
— Quem sabe em São Paulo, numa obra assistencial para crianças sem recuperação...
Trouxemo-la conosco. Nossa equipe de reabilitação estava na fase inicial de suas experiências, mas já se alicerçava no princípio de que ”toda a criança excepcional deve ser transformada em criança reabilitante”; não aceitava a classificação de ”criança irreabilitável”, confiando no potencial restante; raciocinava assim: — Se a criança lesada sobreviveu é porque tem muitas possibilidades latentes, e capacidade para crescer e se desenvolver. — Se conseguisse mover um olho ou um dedo da mão, ali estava nosso ponto de partida para um amplo programa a ser traçado, começando exatamente nessa capacidade.
Foi planejado intenso programa estimulativo para a indiazinha, ocupando oito horas diárias de atividade. Uma vez por semana, um grupo de dedicados voluntários vinha oferecer a assistência espiritual.
Lúcia foi uma surpresa completa, e abriu novas perspectivas à nossa equipe que aprendia, com poucos livros e muitas experiências.
Aos oito anos de idade, nossa indiazinha tornou-se independente na higiene e locomoção, embora com o auxílio da cadeira de rodas. Tudo nos leva a crer que dentro de algum tempo conseguirá andar sozinha. Não era deficiente mental. Muito ao contrário. Aprendeu com facilidade o que lhe foi ensinado, sabe ler, e consegue escrever com pequena ajuda.
O mais empolgante é observar a mudança de sua expressão fisionômica. Seus olhos sorriem muito, irradiando alegria e felicidade comovedoras. Conseguiu um meio de se fazer entendida por gestos expressivos, e às vezes por frases curtas que, com grande esforço, consegue pronunciar.
Não somente se comunica, como também transmite aquilo que nós, espíritas, denominamos de ”boas vibrações” a todo o ambiente. Aprendeu — *e isso ela conseguiu por si mesma — algo que os sadios não conseguem facilmente: a apreciação do valor das pequenas coisas. Uma janela descerrada, um amigo que se aproxima, uma fatia de bolo, um quadro colorido, um perfume de flor, um copo de água oferecido... e Lúcia abre seus grandes olhos escuros num sorriso de alma.
Tudo isso estava oculto no interior de si mesma. Já existia na indiazinha triste, ”desligada”, que fora abandonada com desidratação no Hospital de Clínica Geral e rotulada como ”irrecuperável”.
Ela não sabe quanto lhe devemos em esperanças e júbilos. Não imagina quanto vem gratificando ao pessoal técnico, e aos companheiros da assistência espiritual. Ignora quanto aprendemos com ela, e como está fornecendo dados para que muitos outros sejam beneficiados.
O caso de Lúcia nos sugere a seguinte meditação: — Não há nenhuma prova ou expiação que não possa ser vencida através do encontro de dois esforços, desde que perseverantes e corretos: o dos que ajudam de fora para dentro, e o do próprio espírito em redenção, de dentro para fora.
CEGA, SURDA, MUDA E DÉBIL MENTAL
”Nasci a 22 de junho de 1880 em Tuscumbia — pequena cidade do norte de Alabama.” Assim começa sua autobiografia, uma das mulheres mais admiráveis dos últimos séculos: Hellen Keller.
Aos dezoito meses de idade ficou repentinamente cega e surda durante uma doença infecciosa.
”Meus primeiros dias de vida foram como os *de toda criança: como primogênita que fui, cheguei, vi
e venci.”
Na verdade, ”Chegou, Viu e Venceu”, aquela mulher cega, surda, tida como muda e como débil mental, antes de poder mostrar ao mundo sua personalidade ímpar, sua inteligência de super-dotada e seus característicos de espírito evoluído.
Hellen Keller viveu encarcerada na mais estreita prisão que se pode conceber — a sensorial — que lhe deveria causar completa incomunicabilidade. Contudo, rompeu barreiras até então intransponíveis, e abriu muitas portas aos excepcionais deficientes sensoriais.
Mas, não foi só isso. Independentemente de suas deficiências físicas, sua personalidade foi admirável. *A respeito, disse Mark Twain: ”As duas figuras mais interessantes do século XIX foram Napoleão e Hellen Keller”.
Aos sete anos de idade, extremamente nervosa com sua infinita solidão, tida como agressiva, difícil e retardada mental, começou uma fase nova. *”O dia mais memorável de minha vida foi aquele em que a professora, Ana Mansfield Sullivan, veio juntar-se a mim.”
Começou a descobrir, com a mestra dedicada, que as coisas tinham nome, e que os pensamentos e sentimentos podiam ser escritos com sinais. Entrou no horizonte da leitura e da escrita pelo processo dos dedos na palma das mãos.
Daí em diante a vida ficou ”maravilhosa”.
”Luz! Luz! Era o grito incompreendido da minha alma. Nesse dia o astro luminoso raiou para mim.”
Estudou, pesquisou *com o tato, o gosto e o olfato, escreveu livros e ensaios. Leu, no idioma original, entre outras, obras de Corneille, Alfred de Musset, *Molière, Goethe, Schiller e Milton. Aprendeu o latim e o grego. Formou-se no Colégio Universitário de Radcliff aos vinte e quatro anos de idade.
As palavras dos mestres iam-lhe sendo rapidamente transmitidas pelas mãos, através do alfabeto dos mudos, e seus exames eram feitos em máquinas datílográficas comuns. lia livros de letras gráficas em relevo, ou os livros em Braille que eram poucos.
Ouvia a linguagem oral dos outros colocando suas mãos nos lábios ou sobre as cordas vocálicas dos que falavam. E, por esse sistema, iniciou a própria fala.
Durante o estudo universitário, essa jovem solitária pela ausência da visão e da audição, contudo dizia: — ”A única coisa que me desgosta é a falta de tempo para as minhas introspecções espirituais”.
Fez críticas de grande finura e sensibilidade sobre o ensino da época: ”O cérebro sobrecarregado não pode gozar as riquezas intelectuais adquiridas a golpes de sacrifícios”.
Lendo a Ilíada, amou a Grécia.
Referiu-se à Bíblia dizendo: ”Ela me deu a convicção de que as coisas eternas são exatamente aquelas que escapam à percepção dos sentidos”.
Aos vinte anos de idade escreveu sua obra mais famosa: ”A História de Minha Vida”.
Pouco mais que adolescente, essa mulher conta ao mundo a sua magnífica experiência. Rememora, como raras pessoas puderam fazer, algumas ocorrências, de seus primeiros meses de vida até a Universidade. Confronta o mundo interior ao mundo exterior que pôde captar, identificando ressonâncias e dissonâncias. Traz à tona aspectos *inéditos de vivência, e modelos de tenacidade, com a espontaneidade dos simples e puros de coração.
Quem não leu sua autobiografia, traduzida para quase todos os idiomas, perdeu alguma coisa que ninguém mais lhe pode dar.
Depois desse livro, Hellen não se preocupou mais em descrever-se. Dedicou toda a sua vida ao bem, ajudando os inválidos e os desesperados, não só diretamente, através de incontável correspondência, como de conferências e trabalhos que promoveu em favor dos deficientes.
Em 1896, no V Congresso da Associação pelo Ensino da Linguagem Oral aos Surdos, fez uma impressionante palestra que terminava assim: ”No vencer as rudezas do caminho sentireis alegrias que não teríeis nunca, fosse a estrada confortável, e pudésseis caminhar direito...”.
Discutia-se sobre se o surdo deveria ou não ser introduzido na linguagem oral. Então ela lhes disse: ”Havemos de falar e havemos de cantar porque Deus quer nossas palavras e nossos cantos”.
Seus resultados foram obtidos a golpes de energia e inteligência sem par, diz um de seus comentadores.
Hellen costumava assistir a concertos musicais. Gostava principalmente de solos de corda. Pousava suas mãos sobre o instrumento e ”ouvia” a música. Contam que, certa vez, viram-na maravilhar-se quando tocaram o órgão de São Bartolomeu em sua presença, embora estivesse isolada no meio do templo.
Tivemos a ventura de, pessoalmente, conhecêla e ouvi-la falar. Ainda era uma mulher muito bela, aparentando setenta e poucos anos. Seus olhos sem óculos, azuis claros, um pouco esfumaçados, contudo pareciam ter vida, e seu rosto agradável, emoldurado pelos cabelos grisalhos cobertos por pequeno chapéu florido, era irradiante de luz. Corpo esbelto, postura elegante, e gestos discretos mas flexíveis.
No dia em que a conhecemos, Hellen, falava sobre a situação dos cegos, surdos-mudos, chamando a isso ”um dos pequenos problemas da humanidade. Há outros muito mais graves”. Respondeu a perguntas, e fez os ouvintes rirem descontraídos com seu senso de humor e suas respostas inesperadas. Nós, os do auditório, estávamos emocionados mas não apiedados. Entusiasmados, embora um pouco apequenados. Parecia-nos estar recebendo uma missionária de esfera superior, e de um tempo futuro. Não falou em estilo religioso ou filosófico, em alma, no bem ou em Deus mas tudo isso parecia estar ali, dentro dela.
É claro que o timbre de sua voz era específico, um pouco mais agudo e ritmado do que o dos falantes comuns. Ela aprendera a falar sem ter ouvido qualquer som, nem ter visto ninguém e nada, para que pudesse imitar.
Em 2 de junho de 1968, com a idade de oitenta e oito anos, Hellen Keller desencarnou em Westport, Connecticut, depois de um pequeno ataque cardíaco que a deixou de cama por uma semana.
Para os deficientes sensoriais do mundo, Hellen é um marco.
Para os estudiosos das potencialidades humanas, apresenta um rico material de estudo; provavelmente, também para os simpatizantes da teoria da percepção extra-sensorial.
Mas outra coisa nela é ainda mais importante: A Vitória do espírito sobre a matéria, e a mensagem transmitida integralmente.
André Luiz, através do médium Francisco Cândido Xavier, nos lembra que muitos ”Mensageiros” descem à Terra com tarefas específicas. Prometem vencer, e todas as facilidades lhes são proporcionadas,
A maioria regressa à Pátria Espiritual vencida, curvada pelos espinhos do caminho, envergonhada pelos fracassos, frustrada pela mensagem não transmitida.
A pequena de Alabama começou a desenvolver sua mensagem, justamente aos dezoito meses quando as mais importantes faculdades se trancaram em seu corpo e fecharam-na por dentro.
O espírito então despertou. A realidade interior venceu os obstáculos, curvou, talvez, o próprio destino com a vontade criadora da filha de Deus, e transmitiu a mensagem de esperança, a lição de ânimo, e a confiança na vitória da tenacidade, quando a direção é o progresso, e a meta é o Bem.
O PEQUENO IVANO
Nenhuma caridade é mais urgente do que aquela da divulgação da filosofia espírita no mundo.
”Esta foi uma semana de intensas dúvidas espirituais para milhares de romanos, pela tragédia de um jovem pai que lançou seu filho Ivano, um bebê deformado, de uma ponte do Rio Tibre.” — ”Meu filho nunca me teria perdoado se eu o tivesse deixado viver somente para sofrer.” (Publicado num Jornal de São Paulo, num mês de agosto.)
Desculpem-nos os leitores se transcrevemos, logo de início, uma notícia desagradável.
Nossa justificativa é a de que os fatos falam mais alto que os discursos, e que um ato concretizado na Terra tem um poder de influência inimaginável.
Por isso, os fatos devem ser analisados, para que o nosso subconsciente não receba, passivo, a mensagem neles contida.
Justamente quando no Brasil se comemorava a ”Semana da Criança Excepcional”, com palestras elucidativas procurando despertar a opinião pública para esse problema humano em termos de amor e de esperanças, surgia nos jornais, causando impacto, a manchete: ”Jogou o filho aleijado no Rio Tibre”.
Quando já se considerava ultrapassada a fase da ”eliminação” e até a da ”segregação” da criança atípica, para que a preocupação presente passasse a ser ”Reabilitar para Integrar”, vem de Roma não só um fato, mas principalmente ”intensas dúvidas espirituais” sobre se deve-se ou não matar aquele que nasceu ”somente para sofrer”.
Solícitos, os jornalistas europeus fizeram uma pesquisa de opinião. Os resultados foram publicados em ”II Messagero”, o principal jornal independente da Capital italiana e foram os seguintes: — em 100 pessoas entrevistadas, 29 disseram que teriam agido da mesma maneira que o pai de Ivano,
31 não teriam matado a criança, e 47 não sabiam como teriam agido.
Podemos daí concluir que unindo-se os 47 indecisos com os 29 decididos, temos a considerar que
76 pessoas entre 100 tendem à eliminação dos atípicos, porque pensam que a vida na Terra não é feita para sofrer. Aliás, é surpreendente que o homem ainda possua tantas ilusões a respeito!
Em 10 de maio de 1.912 em New York nasceu, filho de barbeiro imigrante italiano, um menino que se chamou Henry Viscardi Jr. Em lugar das duas pernas, Henry tinha dois cotos, exatamente como o Pequeno Ivano. Seus pais o abraçaram com duplicado carinho, e criaram-no da melhor maneira possível. Henry, até os 25 anos de idade, tinha apenas um metro de altura e andava graças a umas botas enormes que pareciam luvas de box. Freqüentava a Universidade, onde custeava os estudos atuando como juiz de basquetebol, garçon e repórter.
Aos 26 anos de idade foi operado, passando a utilizar-se de pernas artificiais.
O Dr. Yanover não cobrou a operação. Disse-lhe: ”Um dia faça alguma coisa por outros aleijados. E então a dívida estará quitada”.
Mais tarde Henry Viscardi Jr., casado e com filhos, tornou-se o Presidente de uma importante indústria de peças de automóvel, competindo com o grande mercado industrial de New York. O importante a salientar é que todos os que aí trabalhavam, desde o presidente até o faxineiro, eram deficientes físicos ou mentais. Tetraplégicos, em maças usavam alguns dedos das mãos. Senhoras com retardamento mental confeccionavam trabalhos, num perfeito desafio vivo à dignidade humana.
Henry escreveu um livro chamado: ”Nós poderemos vencer”, um verdadeiro ”best-seller” em todo o mundo. Na primeira página está escrita a dedicatória: — ”Para minha mãe”. A introdução é feita pela Senhora Elearior Roosevelt.
Quem sabe, o pequeno Ivano, lançado ao Tibre, teria nascido ”não somente para sofrer” mas, para fazer, na Europa, o que o seu colega Henry realizou nos Estados Unidos?
O caso de Ivano não é ímpar. Aqui, ali, acolá, os jornais noticiam que outros pais desesperados fizeram a mesma coisa e continuarão a fazer no futuro, até que sejam amplamente conhecidos e assimilados o sentido e a finalidade das vidas terrenas.
Não vamos aqui nos alongar, detalhando a visão plenamente clara que o Espiritismo nos oferece do assunto, e sua contribuição para o entendimento e a valorização de circunstâncias como essas. limitamo-nos a concluir, repetindo a frase inicial:
— Nenhuma caridade é mais urgente hoje, do que aquela da divulgação da filosofia espírita no mundo.
A CASA DAS TRÊS PORTAS
Não faltava conforto nem luxo naquela grande casa de bairro residencial tipo A.
Larga porta de ferro, pintada de branco, e ladeada por muitos metros de grade bem trabalhada, davam o toque refinado à entrada principal da mansão.
Na extremidade do lado esquerdo, um amplo portão deixava passagem livre para dois carros ao mesmo tempo.
No lado oposto, um discreto portãozinho estreito dava acesso à área de serviço nos fundos da residência.
Fomos visitar Selma, nossa pequenina cliente excepcional, estranhando sua prolongada ausência nos exercícios.
Pais e avós nos receberam cortesmente.
Gente fina, culta, de hábitos burilados e sorriso fácil.
Selma estava adoentada. Resfriado, gripe, sarampo, ninguém sabia ao certo.
Lembrando-nos de nossa formação de enfermeira, quisemos vê-la.
— Não é necessário se incomodar.
— Mas seria um prazer.
— É que ela está no outro lado da casa. A senhora sabe... os vizinhos, os amigos Temos vida social muito intensa. É mais fácil, e melhor para ela, que seja assim.
Insistimos.
Chamou-se uma das empregadas, por meio de elegante campainha disfarçada entre as dobras de uma cortina aveludada.
com surpresa, fomos conduzidas para fora da mansão através do portão central; encaminhadas, pelo lado de fora, até o inexpressivo portãozinho do lado direito, convidadas, por um gesto, a andar em fila indiana por extenso corredor sem nenum adorno, até chegar à área de serviço. Ali estavam instaladas a lavanderia, a passaderia, o cômodo de depósito de material de limpeza e dois quartos para empregadas.
Num desses quartos, exatamente o da empregada que nos acompanhava, estava Selma.
Era ali que residia a filha caçula dos donos da casa.
Selma sorriu, discretamente, ao nos reconhecer. Estava muito limpa e cuidada. Como emagrecera bastante e mostrava expressão dolorida no rosto, examinamos seu corpo procurando localizar a causa do sofrimento. Estava começando a ter escaras (lesões na pele causadas pelo atrito com a cama nos pontos de apoio do corpo), requerendo urgentes curativos e massagens preventivas.
— Quem poderia fazer isso?
— Eu mesma, respondeu a empregada. Basta que me ensinem. Tenho tanta pena dessa pobre menina!
A palavra ”pobre” ressoou estranhamente em nossos ouvidos.
Adaptamos uma bandeja para curativos, e orientamos a empregada que, infelizmente, tinha pouca habilidade para esse tipo de trabalho.
Exercitamos as articulações de Selma, massageamos seus músculos e beijamos sua testa. Depois, ficamos segurando suas mãos sem saber o que dizer.
Duas lágrimas ovais saíram de seus olhos, e foram rolando lentamente até aos meus dedos.
— Há uma televisão no quarto? Uma vitrola? Um quadro colorido? Qualquer coisa... qualquer outra coisa além das camas, armários e prateleiras fechadas?
— Não. Ah! Há ainda a cadeira de rodas especial colocada num dos ângulos do aposento, e um recipiente portátil para as necessidades fisiológicas.
Conversei um pouco com a empregada.
— Não. Não esteve doente. é que... não vão deixá-la mais ir aos exercícios. Dizem que não adianta, e que o motorista não tem mais tempo disponível para esse encargo.
Olhamos ao longo do seu pequenino corpo, todo atrofiado pela quadriplegia (paralisia nos 4 membros).
Ela não podia falar, mas ouvia e entendia bem tudo o que se dizia ao seu redor.
com muita cautela, para não magoá-la, falamos:
— Não tem importância que fique sem ir à escola. Aqui mesmo ela pode ser exercitada. Nós orientaremos, e logo estará melhor.
A empregada, então, desabafou:
— Não vai haver nada disso. Eles vão internála numa casa especial, ainda esta semana. Uma dessas casas para ficar a vida toda.
Selma tinha apenas 4 anos e era, fundamentalmente, uma criança como todas as crianças.
Iam despojá-la de tudo a que tinha direito: o lar, a segurança, o tratamento, o amor.
Olhando-a, parecia-me ver uma rosa sendo fechada à força, ou despetalada, arrancada da terra, pisada.
Recordei-me da outra Selma que havia nela e que, talvez, só os reabilitadores conheceram. Aquela que fazia ginásticas no chão esforçando-se por engatinhar. A Selma que estava melhorando dia a dia, embora um milímetro em cada semana. A Selma que não seria curada, mas teria sua chance de desenvolver ao máximo suas possibilidades latentes. A Selma que todos amavam na escola e da qual todos sentiam saudades.
Saímos da casa das três portas procurando, no pensamento, argumentos consoladores. — Cada filho tem os pais que merecem e vice-versa, foi o que nos ocorreu. Porém, o amor é uma porta aberta para todos... Como é possível que os laços consangüíneos, o apelo de proteção dos membros paralisados, a fragilidade infantil, o olhar sedento de afeições, falem menos forte que as conjunturas da vida social?
E pensar, que neste mundo triste, um dia os anjos se materializaram para cantar: ”Glória a Deus nas alturad e paz na terra aos homens de boa vontade”, porque nascera o mensageiro do amor, a luz nas trevas, a alegria dos homens...
O IMPACTO
No admirável casarão branco de tradicional alameda paulistana havia, naquela manhã, um ambiente de alegria expectante.
O casal idoso, de ilustre nome, e vultosos bens aguardava o nascimento do primeiro neto, com patriarcal felicidade.
Seu único filho, casado havia quatro anos, finalmente ia ser pai!
A nora, moça de fina educação, sensível e alegre já estava na maternidade. Talvez, a essa altura. ..
A essa altura, a criança, penosamente tentava nascer.
— Certamente seria um menino, pensava o pai, andando pelos corredores do grande hospital. O nome estava dado. Seria o mesmo do avô, acrescentando-se Neto. Mas não deixaria que o chamassem de ”Netinho” ou coisas desse tipo. O ”status” também estava fixado. Seguiria a tradição familiar. Estudaria, se formaria, e depois haveria de expandir os altos negócios iniciados há mais de meio século pelos tetra vós. Ele...
A moça reconduzia a jovem mãe ao apartamento.
Seu rosto estava luminoso apesar do cansaço. Anunciou a boa nova: — Nasceu, nasceu!
— Você o viu? Como é ele?
A jovem sorriu. — Não consegui vê-la. É ela. Desculpe-me, meu bem.
— Ah! Sim. Ela... Ela?
Trinta minutos depois a notícia correra. Da maternidade à casa da alameda, e desta para os parentes e amigos.
Quanto aos ilustres avós, o fato de ser menina não alterou em muito o júbilo do momento.
Havia o problema do nome. Até àquele dia, não se chegara a uma conclusão sobre qual o nome feminino mais digno, mais tradicional e mais bem sonante.
Três horas depois, a mãe já repousada, e o pai mais conformado, recebiam as primeiras visitas e as primeiras flores em cartões finalmente decorados.
As perguntas eram mais ou menos as mesmas: — com quem se parece? Quantos quilos pesou? É loira?
— Não. Ainda não a vimos.
— Sim. Fui ao berçário várias vezes, mas disseram que me chamarão mais tarde.
Ás despedidas, o pai, desvanecido, convidava:
— Dentro de uma semana, em nossa casa, o champanha... Estejam todos lá.
O pai agradecia, quando o pediatra responsável pelo berçário entrou no apartamento. Apresentou-se. Disse algumas frases corteses à mãe. Respondeu à sua indagação: — Sim. Está tudo bem com a criança.
Depois, solenemente tocou no ombro do pai: -- Preciso falar-lhe. Queira me acompanhar.
Foi então que o pai ficou sabendo do inacreditável: sua filha era uma criança excepcional!
— Não era paralítica, explicava o pediatra, não faltava nada em seu corpo, mas os dados clínicos estavam presentes, caracterizando um caso de ”mongolismo”. Cresceria diferente das outras crianças. Talvez viesse a falar, a andar, a entender algumas coisas, mas sempre com grande dificuldade. . — Não! Não! — gritava o pai. O senhor certamente está enganado. Minha filha, não. Não há ninguém, nenhum caso na família. Pelo menos na minha...
O médico, experimentado e condoído, antevendo problemas maiores, procurou explicar:
— O mongolismo” não é uma síndrome hereditária. É apenas genética. Não pode ser prevista. Ninguém tem culpa. Pode acontecer a qualquer um.
— Mas, falou revoltado o jovem pai, por que justamente eu? Responda-me, doutor. Por que exatamente a minha filha?
Foi o começo de um grande drama. Um impacto terrível; na verdade, o primeiro sofrimento íntimo daquele homem, para quem as mínimas vontades tinham sido sempre satisfeitas.
Não conseguia aceitar. Sentia dor, revolta, vergonha, medo.
O médico lhe aconselhou a dar imediatamente a notícia à mãe e aos familiares mais próximos, pois seria melhor agora, que mais tarde. Sugeriu que fossem chamados os avós e os tios. — é um problema de todos, atreveu-se a dizer.
— Não. Nunca! Ninguém irá saber. Essa criança nem sairá conosco da maternidade. Não deveria ter nascido. Direi que morreu. É isso! Nasceu morta! Doutor! Exigia o pai descontrolado. O senhor vai dar essa criança para quem quiser ou... fazer o que quiser. Entendeu? Pagarei quanto for preciso...
O médico olhou profundamente para aquele homem que tinha idade para ser seu filho, e procurou compreender.
— Vamos agir com calma. Primeiro, essa criança precisa ser registrada...
— Jamais com meu nome! Jamais! Durante uma hora, conversaram num doloroso
diálogo. Apesar de muita relutância, o pai concordou em explicar a situação à mãe da criança — só a ela— desde que o médico providenciasse a internação definitiva num credenciado estabelecimento na Suíça. Ele pagaria os custos. Quanto ao nome...
— Já sei, respondeu o médico. Vamos chamála... Maria de Jesus, por exemplo.
— Sim, sim... Filha de pais desconhecidos. Nenhuma noite foi mais terrível que aquela.
— Mongolismo? Mongolismo? Repetia atônita a mãe. Mas, que horror! O que é isso?
— O pediatra me explicou, dizia o pai. É uma monstruosidade. Os olhos ficam entortados para os lados, a boca aberta, a língua para fora. A criança não cresce, não entende nada.
Na mente da infeliz mãe, o quadro se fixou, tal como foi exposto pelo marido. Tinha dado à luz a um monstro!
— Sim. A Suíça é a nossa solução.
Seis anos se passaram. O ilustre casal não teve outros filhos. Sua riqueza material crescera, mas também haviam adquirido ricas experiências à custa de vários sofrimentos profundos.
Uma doença inexplicável debilitava a radiante saúde da esposa, obrigando-a a passar seus dias entre clínicas, farmácias e psicanalistas.
Em vão, viagens pelo estrangeiro... Oriente, Estados Unidos, América Latina, sempre se evitando a Europa. Não sentiam paz ou felicidade em parte alguma. O lar era agora um triste casarão onde o sol entrava e saía sem ser percebido.
O ano de 1974 estava em meio. O mundo corria como o gato das botas de sete léguas. Muitas coisas aconteceram, e a reabilitação de crianças excepcionais era um desses assuntos falados nos jornais, nas televisões, por toda a parte.
As campanhas das associações, e as promoções da Instituição Beneficente ”Nosso Lar” chegaram até o casarão da tradicional alameda, com farto material de divulgação.
Envolvidos por amizades sociais, viram-se forçados, de certo modo, a colaborar.
Na verdade, já não eram os mesmos. Haviam amadurecido. Preconceitos antigos tinham se quebrado, como os vasos de porcelana. Nomes, aparências, locais e até relacionamentos superficiais vinham se apagando como velas de pouca luz.
As consciências se comprimiam dentro do peito.
No sentimento, imensas saudades vagas. Na mente, grandes dúvidas.
Um pequeno livro com mensagens de Emmanuel, recebidas pelo psicógrafo Francisco Cândido Xavier estava se tornando um livro de cabeceira.
Tomaram um dia uma solene resolução.
Juntos, mãos dadas como nos tempos de noivado, mas trêmulas e frias, voltam ao hospital, e procuram pelo conceituado pediatra.
Três dias depois, estavam na Suíça.
No pátio destinado à recreação, várias crianças brincam. Correm. Pulam corda. Falam. Riem. Dão-se as mãos. Atendem às ordens dos professores.
— Onde está Maria de Jesus? Viemos adotá-la.
— Meu Deus! Que linda menina! Que linda menina! O casal estava chorando, ao impacto da surpresa.
Realmente, a menina era extremamente graciosa. Pele delicada, sorriso cativante, olhos amendoados, nariz bem feito, orelhas um pouco pequenas entre longos cabelos claros. Estatura talvez um pouco baixa para a idade. Gestos afetuosos. Dedos ágeis.
— Mas é linda! Repetia entre soluços a mãe que não se desfizera do quadro pintado pelo marido na maternidade.
— É linda! Murmurava comovido o pai.
A menininha graciosa não entendia o que eles falavam em língua estranha. Abraçou-os como se já os esperasse, e observou-os curiosa. Era a primeira vez que via gente grande chorando.
O casal ficou duas semanas naquela Instituição, aprendendo tudo o que havia de mais atualizado sobre a habilitação de crianças ”mongolóides”.
Quando regressaram a São Paulo com a filha adotiva houve regozijo de todos. Parentes e amigos se reuniram para o champanha comemorativo. Elogios se multiplicavam.
— Que bondade. Adotarem uma criança excepcional! Darem-lhe o próprio nome!
O casarão da tradicional Alameda paulistana se tornou um centro de encontros afetuosos.
Velocípedes e cavalinhos de pau, bonecas e joguinhos de armar se espalham por todos os cômodos e há, freqüentemente, junto aos risos infantis de Maria de Jesus, a presença de seus primos e amigos, nos domingos de sol.
ONDE É QUE MORA DEUS ?
Estávamos na sala de espera do oftalmologista.
Entrou uma jovem aparentando dezesseis ou dezoito anos, acompanhada de senhora de meiaidade. Pareceu-nos que alguma coisa se abrira no ambiente quando elas entraram. Marcaram sua presença pela simpatia, desde o primeiro momento. Olharam para nós, os que já estávamos ali sentados há cerca de meia hora, ao todo cinco pessoas, caladas e isoladas, sem interação, cada um encerrado dentro de si mesmo. Sorriram, e a sala ficou mais larga, como se tivessem aberto as janelas que, aliás, estavam fechadas e escondidas sob pesadas cortinas de cor e tecido neutros, indefiniveis.
A jovem tinha olhos azuis muito claros e apertados, meio escondidos atrás dos óculos grossos de armação moderna.
Esqueci de explicar. Nós, os cinco calados da sala, tínhamos um motivo sério para estarmos meio sem graça e um tanto desconfortáveis. É que haviam sido colocadas lentes de contato em nossos olhos, e haviam-nos aconselhado que piscássemos continuamente para a adaptação palpebral. Era, na verdade, um pisca-pisca constrangedor, e penso que cada um se sentia um tanto ridículo.
A senhora de meia-idade começou a conversar com a jovem. Falaram de coisas simples, triviais, de interesse geral, aos poucos nos envolvendo com discrição e delicadeza abordaram o que havia de comum entre as pessoas da sala: a deficiência visual.
Conseguiram quebrar o nosso gelo. Diminuíram as tensões, e os pisca-piscas até ficaram funcionando melhor.
Dentro de alguns minutos tínhamos nos tornado um grupo social estreitamente ligado.
Foi então que a jovem contou, com a simplicidade dos que cresceram nas pequenas cidades do interior (simplicidade que as megalopolis perderam) a linda estória de seu defeito visual.
— Eu quase fiquei cega aos oito anos de idade, mas hoje estou muito bem com esses óculos. Foi por causa de uma criancice. Imaginem que, desde que me lembro como gente, ficava muito preocupada em saber onde é que morava Deus. Nossa casa se localizava na mesma rua onde havia a mais linda igreja da cidade. Uma igreja cheia de estátuas douradas, de madeira e até de mármore! Todos me ensinavam que lá era a morada de Deus. Eu olhava as estátuas até me cansar, mas não conseguia entender como o Senhor da vida podia estar ali dentro, imóvel, frio, preso e sempre igual. Sobretudo os olhos das estátuas chamavam minha atenção. Seria possível ver tudo com aquela inexpressividade?
Quando nasceu meu irmãozinho me disseram: — Foi Deus quem o mandou para nós. Então fui correndo para a igreja porque, no meu pensamento
infantil, precisava ir visitar Deus e agradecer o presente.
Mas a morada de Deus chegou até a me parecer feia apesar dos dourados, das fitas e das flores de papel.
Na mesma semana, meu avô morreu. Eu o vi no caixão todo de preto. Os grandes me disseram: — Foi Deus quem o levou.
No fundo achava que era certo que nascesse a criança e morresse o velho, mas era meu avô e eu o amava.
Ele foi enterrado e eu corri de novo para a igreja. Queria reclamar, chorar, pedir uma explicação, conversar corn Deus.
Lembro-me que, naquele dia, tudo ali me pareceu também estar morto, só faltando enterrar.
Então eu pensei que Deus estivesse talvez escondido num lugar alto para poder observar melhor. Subi na torre da igreja, que era o ponto mais alto da minha cidadezinha. Ali havia um sino velho que nem sequer tocava sozinho e tudo era muito escuro. Não podia ser esse o lugar. Pensei, pensei e, afinal, cheguei a uma conclusão que me satisfez! Era isso! Deus só podia estar acima da Terra e tinha que ser iluminado, imenso e quente. Deus devia morar no sol. Senti uma felicidade imensa porque achei que havia descoberto a morada de Deus.
Desde então ficava horas e horas na torre, olhando diretamente o centro da casa de Deus. Tinha a esperança de vê-lo. Vê-lo com os meus próprios olhos.
— É verdade, comentou a mãe sem nenhuma afetação. Margarida passava as manhãs fora de casa, sozinha, embevecida, olhando o sol. Claro que nós não sabíamos disso. Pensávamos que estivesse brincando no parque. Voltava para casa com os olhos vermelhos como se fosse ter sarampo. Quando descobrimos seus passeios na torre não deixamos mais que ela fosse
E você encontrou Deus no sol? Perguntei.
A jovem sorriu ainda mais livre e simpática: — Não. Era uma infantilidade. Entendi isso quando fui para a escola, e aprendi que existem milhões de sóis iguais bem maiores que o nosso. Então achei que a morada de Deus é muito além do nosso sol e..
— Desistiu de procurá-lo?
— Não. Não. Continuo. Mas não somente com meus olhos.
A mãe, sem tom de queixa, até com bom humor, acrescentou:
— Pois é. O que conseguiu foi muita dor de cabeça e esses óculos enormes sem os quais quase não enxerga nada. E pensam que sossegou depois disso? Que nada! Agora tem a mania de ler. De ler e conversar com as pessoas sobre o assunto.
Um por um, fomos sendo atendidos pelo oftalmologista e liberados dos pisca-piscas.
As despedidas foram efusivas, como se todos já nos conhecêssemos há longos anos.
Margarida tinha nos enlaçado com sua estória.
Penso que cada um saiu de lá com a solene pergunta atravessada por dentro, como um espinho na garganta: Onde é que mora Deus?
Ficou-nos uma certa frustração por nossa infância sem procura. Talvez até porque não tivéssemos um motivo assim tão... tão profundo que justificasse nossas miopias ou nossos astigmatismos.
SENHORITA INDERMUHLE
Surda-muda de nascença, a Senhorita Indermuhle residia em Berna e tinha 32 anos de idade. Outros cinco irmãos também haviam nascido surdos-mudos.
Em 10 de fevereiro de 1860, em Paris, Allan Kardec realizava uma sessão mediúnica experimental. Estando presente um dos irmãos Indermuhle, Kardec solicitou ao guia espiritual:
”— Podemos entrar em comunicação com o espirito da Senhorita Indermuhle?
— Podeis.
Fazem uma evocação e após alguns momentos: ”— Aqui estou e o afirmo em nome de Deus.” Kardec indaga do guia:
”— Podeis dizer se o espírito que nos responde é mesmo o da Senhorita Indermuhle?
— Posso afirmar e vo-lo afirmo... Cabe-vos garantir uma boa comunicação, pela natureza e o móvel de vossas perguntas.”
Segue-se um diálogo entre Kardec e a comunicante que transcrevemos abaixo, tal como se encontra na ”Revista Espírita — Jornal de Estudos Psicológicos”, publicada sob a direção de Allan Kardec, em 1860.
”— Sabeis bem onde vos encontrais agora? — Perfeitamente. Pensais que eu não tenha sido instruída a respeito?
—- Como podeis responder-nos aqui, se vosso corpo está na Suíça? — Porque não é o corpo quem responde. Aliás, como bem sabeis, ele é perfeitamente incapaz de o fazer.
— Que faz vosso corpo neste momento?
— Cochila.
— Está com saúde? — Excelente.
— Quanto tempo levastes para vir da Suíça até aqui? — Um tempo inapreciável para vós.
— Vistes o caminho percorrido? — Não.
— Estais surpresa por vos achardes nesta reunião? — Minha primeira resposta vos prova que não.
— Que aconteceria se vosso corpo despertasse enquanto estais aqui? — Eu lá estaria.
— Existe um laço qualquer entre o vosso Espírito, que está aqui, e o corpo que lá está? — Sim. Sem isto, quem lhe advertiria que devo voltar a ele?
— Vêde-nos bem distintamente? — Sim. perfeitamente.
— Compreendeis que nos possais ver, mas que não vos vejamos? — Mas, sem dúvida.
— Ouvis o ruído que, batendo, produzo no momento? — Aqui não sou surda.
— Como vos dais conta, desde que, por comparação, não tendes lembrança do ruído em estado de vigília? — Eu nao nasci ontem.
— Escutaríeis música com prazer? -— com tanto mais prazer, quanto há longo tempo isto nào me acontece. Cantai algo para mim.
— Lamentamos não poder fazê-lo agora., e que não haja aqui um instrumento para vos proporcionar este prazer. Parece-nos, porém, que se desprendendo todos os dias durante o sono, vosso Espírito deve transportar-se a lugares onde podeis ouvir música. — Isto me acontece muito raramente.
— Como podeis responder em francês, desde que sois alemã e ignorais a nossa língua? — O pensamento nào tem língua: eu o comunico ao guia do médium, que o traduz para a língua que lhe é familiar.
— Qual este guia de que falais? — Seu Espírito familiar. É sempre assim que recebeis comunicações de Espíritos estrangeiros; e é assim que os Espíritos falam todas as línguas.
— Qual a causa da enfermidade que vos afetou? — Uma causa voluntária.
— Por que singularidade sois seis irmãos e irmãs igualmente afetados? — Pelas mesmas causas que eu.
— Assim, foi voluntariamente que todos escolhestes a mesma prova? Pensamos que esta reunião na mesma família deve ter ocorrido como uma prova para os pais. É uma boa razão? — Ela se aproxima da verdade.
— Vedes aqui o vosso irmão? — Que pergunta!
— Estais contente de o ver? — Mesma resposta.
— Quereríeis dizer-lhe alguma coisa? — Peço-lhe que receba a expressão dos meus sinceros agradecimentos, pelo bom pensamento que teve de me fazer chamar até aqui, onde muito felizmente me acho em contato com bons Espíritos, embora veja alguns que não valem muito. Ganhei em instrução, e não esquecerei o que lhe devo.”
A senhorita Indermiihie apresenta uma contribuição que excede ao simples prazer pessoal da sua libertação em vigília do corpo deficiente. Sua comunicação contribui para comprovar a tese da relativa interdependência físíco-espiritual dos encarnados.
Para o ”excepcional” essa tese é uma das bases tanto no aspecto de interpretação quanto na dinâmica reabilitatória.
As deficiências estão nos veículos e não no espírito, em sentido absoluto. As causas são sempre ”voluntárias” pois, como bem repisa Emmanuel, somos livres na semeadura, mas escravos na colheita.
Reforça a validade de todos os processos em favor do excepcional, mesmo nos casos mais graves, quer na reabilitação (desenvolver as capacidades restantes) como na habilitação (mobilizar o potencial existente). Ainda traz à tona a importância do concurso mediúnico, porque desse conjunto de recursos é que se chegará a modificar não só os efeitos como também as causas, sobretudo quando se solicita a participação e o esforço do próprio atingido.
ÔJE - O LOIRINHO BAIANO
Seu nome era Ôje, pronunciado em paroxítono.
Não sabemos se alguém lhe deu esse nome, ou se foi ele mesmo que o escolheu do fundo do seu pensamento preso.
Veio do Nordeste em ”pau de arara”.
Entre duas dezenas de gente ele foi incluído, não se sabe por quem.
Magrinho e calado, tão mal vestido como os outros meninos de sua idade — teria 6 ou 9 anos? — passou despercebido.
No caminho lhe deram pedaços de pão amanhecido.
Cada um dos adultos, a maioria homens, pensava que ele era do outro.
Foi assim que chegou a São Paulo. E só então, na divisão das pessoas, se deu conta de que ele não estava com ninguém, não era de nenhum, e nem sequer alguém o conhecia.
Uma ”polícia feminina” tentou interrogá-lo, sem resultado. Levou-o a um assistente social, a um comissário de menores,
Não adiantou. Ele não dizia nada. Olhava o ar como se estivesse vazio por fora e por dentro.
Não fixava as pessoas. Tudo lhe parecia indiferente, até o alimento que mastigava como se fosse um ”robô” e isso após longos intervalos de jejum.
Só reagia — e negativamente — quando era tocado, como se sua pele quisesse ficar só para ele, e se sentisse ofendida ou maculada pelos contatos.
Foi assim que o conhecemos quando foi levado para o Centro de Reabilitação onde trabalhamos.
Embora de procedência baiana (depois de lavado e escovado) era loiro, lembrando os invasores holandeses do Brasil nascente.
Perguntamos: — Qual o seu nome? Sem resposta.
Tentamos chamá-lo: João! Pedro! Antônio! Nada.
Cortamos, com grande dificuldade, seus cabelos loiros embaraçados, ficou de ”franjinha” e viuse que era bonito.
— Será mais bonito ainda quando conseguirmos que seu olhar marrom deixe de ficar curto e vago. Foi o que pensamos.
As pessoas, principalmente as crianças, são difíceis de serem compreendidas, mas é pelo olhar que podemos saber — não ”como são” mas ”como estão” naquele momento.
O excepcional, ou os que agem como tal por motivos vários, apresentam seu grau de ”status” interior pela expressividade do olhar.
No Evangelho de Mateus 7;22 é dito o seguinte: ”A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons todo o teu corpo terá luz”.
Depois de bem examinado pela nossa equipe de reabilitação, o prontuário deste menino se resumiu em observações exteriores. Ele não se abriu para ninguém.
Um resumo em linguagem popular seria este: Não era surdo, nem mudo, nem cego, mas estava trancado em si mesmo...
Houve um diagnóstico até complicado, e um prognóstico ”reservado”, o que é sempre um desafio.
No dia seguinte ao de sua chegada já foi colocado no programa de Desenvolvimento Integral de possibilidades, que é, em suma, um ambiente de oportunidades e motivações.
Fisioterapeuta, Psicólogo, Fonoaudiólogo, Terapeuta Ocupacional, nada conseguiram.
Na sala de socioterapia, cheia de miniaturas ligadas à vida social, nada o interessou.
Entretanto, uma tarde, quinze dias após sua chegada, estando no escritório, percebemos que o loirinho baiano passava pelo corredor no seu andar vago como folha ao vento.
E, como se o vento atendesse a uma predestinação, o menino entrou na nossa sala e parou em nossa frente.
De repente o telefone tocou.
íamos atender quando estacamos surpreendidos. O loirinho estremecera ao som do telefone. Tivemos a impressão subjetiva de que ele agia como quem esperasse um telefonema, uma chamada exatamente para ele.
Tocou de novo. Agora o menino olhava fixa e diretamente o aparelho preto. Terceiro sinal.
Pegamos o fone, e o colocamos em posição de atendimento sobre o ouvido do garoto.
com as duas mãos, suas próprias mãos, ele segurou fortemente o telefone e, como se respondesse a alguém, falou sua primeira e única palavra, num som que saiu como que do fundo de um túnel: Oje.
Pegamos aquele fiozinho de abertura solto de dentro para fora, e não o largamos mais.
Repetimos muitas vezes: ôje! ôje!, tentando uma interação olho no olho e, naquele mesmo dia, isso começou a ser conseguido.
A CARTA
Eu sou uma criança excepcional. Visivelmente, não me apresento igual às outras da minha idade. Minha expressão facial, bem observada, fala das minhas dificuldades. Meus olhos não se fixam facilmente nos objetos; meus movimentos são lerdos ou agitados, descoordenados e deselegantes. Quando vocês falam depressa ou usam expressões menos simples, eu não consigo acompanhá-los, e fico confusa. Se tento me expandir, dizer o que sinto e o que quero, geralmente não encontro as palavras, ou as pronuncio de forma que vocês ficam impacientes.
Contudo, me sensibilizam seus carinhos e atenções.
Comunicamo-nos através do amor.
Necessito do amor de vocês, do convivio, da presença de vocês, talvez mais do que as outras crianças.
Notem bem. Do amor e não da piedade.
Por favor, sem nenhuma gota de orgulho, repito-lhes: — Não quero a piedade porque ela apequena ainda mais a vocês do que a mim. A piedade é um disfarce de revolta para com a lei de nosso Pai.
Convençam-se: eu quis nascer uma criança excepcional. Quis porque precisava muito dessa experiência. Meu espírito foi consultado, e aceitou a situação, como quem recebe uma flor do céu, a flor da redenção.
Vocês se esqueceram, mas eu venho lhes lembrar: Também foram escolhidos e consultados por motivos bem definidos. Vocês aceitaram participar dessa prova, pois precisavam dela tanto quanto eu.
Não me rejeitem, enviando-me para um internato, sob o pretexto de que ficarei mais bem cuidada. Se fizerem isso, nosso plano de renovação conjunta cairá por terra.
Vocês não perceberam que eu, e todos os meus irmãos excepcionais, também temos que desempenhar uma tarefa específica em favor da cultura, da ciência e da tecnologia humana?
Não observam como os povos, os governos, os religiosos, os tecnólogos, estão interessados em estudar e resolver esse ”problema” da excepcionalidade?
Já refletiram que a nossa presença nas ruas, nas escolas, nos parques, nas oficinas, vem ajudar os homens a valorizarem suas possibilIdades livres, e abrir novos rumos às noções de variabilidade e até mesmo de responsabilidade?
Notaram como falam de nós atualmente, até coM simpatia?
Tudo isso porque, em vez de nos isolarem, pais corajosos nos mostraram aos laboratórios, nos integraram como seres humanos nos seus grupos de convivência, e pressionaram as inteligências dos estudiosos para atentar à nossa crescente população.
Não fiquem tristes coM minha exígua aparência. Nem pensem que não posso aprender, que vivo vegetando ou sofrendo, Nada disso! Creio mesmo que eu esteja aproveitando, mais do que vocês, desta existência.
Vocês, que conhecem a doutrina espírita, não podem me rejeitar, mas também não devem me superproteger.
Suplico-lhes: não façam para mim o que eu posso aprender a fazer sozinha.
Enquanto eu treino minhas poucas capacIDAdes físicas, treinem vocês a paciência para me AJUdarem a participar. Nasci membro de seus grupos. Tenho direito à posição que ocupo no lar, e não quero, nem preciso ser um peso. Ajudem-me a ajudar!
Não me deixem cair na acomodação, no silêncio, no aconchego minimizante. Posso me expandir tanto mais, quanto mais oportunidades vocês me derem.
Ah! Antes que me esqueça — Vocês, que conhecem a mediunidade, por favor, não me identifiquem coM os ”perturbados” ou ”obsediados” como se fazia na Idade Média quando o excepcional era chamado ”o endemoninhado”.
Tenho minhas perturbaçõezinhas, e recebo as influências dos desencarnados, tanto quanto vocês mesmos. Na verdade, dependo muito da faixa vibratória em que os ”normais” me envolvem.
Deus NãO ME DEIXARIA REENCARNAR PARA ESSA EXPERIENCIA difícil, sem uma grande assistência dos anjos de luz. Freqüentemente até os vejo, converso coM eles e sorrio feliz. (Vocês pensam que estou falando sozinha ou rindo à toa.)
Aproveito ainda para pedir-lhes que não me confundam coM os doentes mentais. Ser excepcional não é ser doente. É ser diferente, entenderam? Diferente dos padrões considerados percentualmente normais.
Não sou um alienado mental. Atualmente, os estudiosos falam que nós, os excepcionais, somos diferentes apenas no mecanismo receptivo-expressivo mas que, potencialmente, somos iguais aos outros.
Muitos de nós, na hora da fecundação de seus corpos, receberam uma interferência, e se desenvolveram atipicamente, passando a ser classificados como portadores de distúrbios genéticos. Outros, ao nascerem, demoraram para respirar e se tornaram lesados cerebrais.
Felizes ocorrências essas que nos proporcionaram a chance — nem imaginam quanto a suplicamos! de termos reencarnado assim, exatamente como somos.
Às vezes ouvimos alguém, apontando-nos, dizer: aí estão os grandes criminosos que voltaram.
Infelizmente, não são só grandes crimes que causam as lesões perispirituais que se refletem no corpo.
Soubemos que até os chamados ”pequenos deslizes” ligados às leis da saúde, como o abuso das bebidas ou do sexo e as ”leves irresponsabilidades”, planejadas pela mente, produzem efeitos morais só reversíveis através de reencarnes em situações de deficiência mental; às vezes graves, às vezes leves como aquelas que os entendidos chamam de ”disfunções cerebrais mínImas” e ”pequenas variações da inteligência”.
Em suma, queridos companheiros dos séculos, nossos encontros não são por acaso.
Vocês precisam me dar apoio e oportunidade, convivência ampla e amor. Em troca, eu lhes renovo o alerta à responsabilidade, e lhes dou a oportunidade de enriqucerem seus espíritos de virtudes.
Perdoem-me a ousadia e o paradoxo, mas gostaria de lhes dar um conselho: — Provem seu amor, educando-me. Procurem lugares especializados para dinamizar o meu desenvolvimento enquanto meu corpo cresce, porém deixe meu talher em suas mesas, e minha cama no seu quarto. Elucidem-se sobre o empolgante assunto da Reabilitação dos excepcionais. Unam-se a outros familiares e se sintam convocados à intercolaboração fraterna.
Peço licença ainda para relembrar a vocês um fato que me é bastante grato:
Em 1968, durante o congresso em Jerusalém, a Liga Internacional propôs a formulação dos Direitos do Retardado Mental, posteriormente aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
Esses direitos, etapa importante no progresso do assunto, estão expressos nos sete itens abaixo:
”1 — A pessoa mentalmente retardada tem, ao máximo grau de exequibilidade, os mesmos direitos que outros seres humanos.
”2 — A pessoa mentalmente retardada tem direITO ao tratamento adequado e à fisioterapia, à educação, treinamento, reabilitação e aconselhamento adequados a permitir o desenvolvimento máximo de suas habilidades e potenciais.
”3 — A pessoa mentalmente retardada tem direito à segurança econômica e a um padrão decente de vida. Tem direito a desempenhar trabalho produtivo, ou a dedicar-se a qualquer outra atividade significativa até o máximo potencial de sua capacidade.
”4 — Sempre que possível, a pessoa mentalmente retardada deverá viver cOM sua própria família ou coM pais adotivos, e participar das diversas formas de vida comunitária. A família coM quem vive deve receber assistência. Se for necessário cuidar dela em internato, este deve oferecer-lhe condições tão próximas quanto possível de vida normal.
”5 — A pessoa mentalmente retardada tem direito a um guardião qualificado, quando isto for necessário para protegê-la em seu bem-estar e interesses.
”6 — A pessoa mentalmente retardada tem direito à proteção contra a exploração, abuso e tratamento degradante. Se processada por algum crime, terá direito a procedimento judiciário legal, coM inteiro reconhecimento dado a seu grau de responsabilidade mental.
”7 — Sempre que uma pessoa mentalmente retardada for incapaz, em virtude da gravidade de sua deficiência, de exercer todos os seus direitos de maneira significativa, ou se tornar necessário restringir ou negar todos ou alguns destes direitos, precisa conter salvaguardas legais contra todas as formas de abuso. Este procedimento precisa ser baseado na avaliação da capacidade social da pessoa mentalmente retardada, por peritos qualificados e deverá ser, periodicamente, sujeito a revisão coM o direito de apelação à autoridade superior.”
Sabem o que mais me agradou nesses ”Direitos”?
— O fato de que eles elevam o ”problema” a um segundo grau, expandindo-o da família consangüínea para todo o povo da Terra. Torna ultrapassada a fase de assistência como um apêndice em nível de caridade optativa, para atingir a posição e a dignidade de direitos adquiridos, reconhecidos pelo consenso internacional.
Esta carta termina aqui. Desculpem se não fui tão ”desligada” e ”passiva” como pareço, dentro do veículo corporal. É imperiosa e até urgente, a minha participação (mesmo através de outros), pois sou parte de uma população que cresce dia a dia, e que hoje já atinge quase a dez milhões, só no Brasil!
Certa de sua compreensão, sou, humildemente,
A Criança Excepcional,
A CRIANÇA EXCEPCIONAL É: ANTES, ACIMA E APESAR DE TUDO, ESSENCIALMENTE, UMA CRIANÇA
Já faz tempo que a Criança deixou de ser ”um adulto em miniatura”, o que a tornava apenas sinônimo de infância, como fase germinativa da vida social humana, abrindo-se para as flores da juventude, mas destinada aos frutos (e aos espinhos) da maturidade.
A literatura poética periférica, que se referia à Criança como um anjo adornado de todas as belezas e de todas as virtudes, centro das expectativas de felicidade sentimental, superou-se, atingindo agora, uma visão realista e aprofundada, reapresentando-a como uma das mais graves e sérias responsabilidades da geração adulta.
A gravidade e a seriedade são identificadas pela linguagem nova das manchetes da comunicação social, que deslocou a Criança do anjo de outrora para a do ”trombadinha” de hoje.
A velocidade de ritmo do progresso das ciências, a concepção existencial do ser, a ousadia das experimentações tecnológicas, estão trazendo, para a cultura e para a operacionalização da vida humana, uma explosão nova e supreendente de oportunidades.
Tentando racionalizar e preservar a sobrevivência intelectual, ante o risco da confusão, as teorias se multiplicam, opostas entre si e convivendo mais ou menos especificamente, todas coM alguma validade, coM algum paradoxo, coM alguma contradição, mas apresentando-se, honestamente, ao pensamento e à eletividade, como opções transitórias.
As teorias sobre a Criança, pelo fato de não lhe ser possível optar, atingiram um nível dilemático repetitivo, que pede revisão, análise, resolução.
A diferenciação, os agrupamentos, as classificações que podem ser feitas como variáveis dos padrões humanos gerais, tornam clara a existência de uma programação.
O dilema se resume assim:
— É a Criança, no dinamismo de seu crescimento, o resultado da realidade do meio? Ou é o resultado imutável da programação genética?
O dilema é antigo e persistente embora inadequado à época de hoje, na qual os radicalismos somente são aceitáveis como reforços à idéia da interdependência de fatores e subfatores, induzindo toda a perspectiva de procura para a direção de um centro coordenador.
Em face da proliferação mundial do fenômeno mediúnico (coM os nomes que se lhe queira dar), das comprovações da vida após a morte do corpo (fora dos contextos religiosos) e das pesquisas psicotrônicas, está vindo à tona, inarredável e irreversível, a existência de uma formidável realidade transcendental, que será, sem qualquer dúvida, o principal objeto das ciências do amanhã.
A doutrina dos espíritos, descritas nos livros de Allan Kardec, antecipou-se à nova eclosão da fenomenologia mediúnica, tanto como se antecipou às mudanças culturais, filosóficas e religiosas do mundo, possibilitando, às comunidades que assimilaram seus princípios, desde 1857, a identificação dessa realidade como sendo a determinante da vida, sob a expressão de Espírito Imortal (individualização do princípio inteligente do Universo).
A Criança, como tudo o mais, entra em nova dimensão.
O dilema encontra resolução no equilíbrio.
A carga genética e o meio ambiente se apequenam sem perder suas importâncias. Tornam-se efeitos naturais, sob modelos superiores a si mesmos, causados pelo imperativo da evolução.
Os anos futuros serão frutuosos em favor da Criança, somente se não persistir a discriminação representada por duas omissões, imperdoáveis no atual estágio de maturidade da vida terrena: — A omissão da Realidade Espiritual, e a omissão das Crianças de Minorias (as Crianças marginalizadas, as abandonadas, as rejeitadas e as excepcionais).
Por maiores que sejam os esforços no sentido de beneficiar a Criança, sem a presença nela, de sua realidade espiritual, nenhum recurso e nenhum discurso alcançarão resultados positivos.
Por outro lado, se os direitos ao respeito, à educação, à saúde, ao lazer e à integração social forem discriminados, deixando à margem ou colocando na retaguarda qualquer tipo de Criança, também de nada adiantarão as homenagens e os louvores que lhe sejam feitas.
Já não há tempo para nova semântica sobre conceitos superados, o que seria ”colocar remendo novo em pano velho”. Estamos em tempo de avaliação honesta, e de renovação corajosa.
Quanto à renovação, só será possível sobre bases espirituais que ”enfrentem a razão face a face”, que valorizem todos os esforços humanos, em qualquer área, colocando cada coisa em seu próprio lugar no mapa da verdade.
Quanto à avaliação, deparamos, entre as omissões do passado a mais chocante, desumana e injusta de todas: — o desatendimento e a rejeição familiar, comunitária e científica da Criança excepcional.
Achamos que a certeza da realidade espiritual na base da vida é capaz de tornar aplicável, dentro da situação sócio-cultural de noso tempo, a frase do Mestre Jesus: — Deixai vir a mim as Crianças. Não as impeçais.
Todas as Crianças do mundo, sem exclusão de nenhuma.
A CRIANÇA DEFICIENTE TEM O DIREITO DE NASCER?
Essa pergunta parece absurda, e contudo não o é.
Parece superada como problema e como resposta. Entretanto, está hoje, dentro de um tema aberto ainda que por meio de portas indiretas.
Movimentando-se confusamente no turbilhão das novidades, o homem acha que precisa fazer uma urgente reciclagem mental para sobreviver no agora, adiando para um abstrato ”ano dois mil” a solução da dramaticidade da vida humana, só despercebida pelos distraídos ou superficiais.
Para os espiritualistas, essa dramaticidade é a carência de aperfeiçoamento espiritual.
Para os materialistas é a impossibilidade de evitar a morte.
Para os pragmatistas, que se baseiam na verdade do valor prático, o drama é a presença de problemas superpostos resultantes do próprio progresso, e a dificuldade e a demora das soluções práticas.
Entre as grandes questões de nossa atualidade, esta se tornou inevitável: A criança deficiente tem o direito de nascer?
Ela é menos perfectível que as demais.
Ela tem vida terrena menos plena.
Ela é um grande empecilho na roda da engrenagem humana buscando o bem-estar social.
Essas três afirmativas justificam a validade da perguünta, pois seus conteúdos tem relação coM o espiritualismo, o materialismo e o pragmatismo.
Além disso, hoje, essa é uma pergunta que pode ser feita coM objetividade porque já existem recursos bioquímicos, laboratoriais e tecnológicos aptos a interromper a vida que ameaça crescer atipicamente no ventre materno.
Já se pode detectar anomalias cromossômicas pela técnica da amniocentese. Outros processos coM o mesmo fim estão em acelerado estudo.
Já foram quebrados preconceitos que impediam a livre formulação e a livre discussão de assuntos como este.
Já se conscientizou, no campo da saúde, em sentido amplo, que a prevenção é a meta mais desejável, e nenhuma prevenção é tão eficiente quanto a que impede o aparecimento dos problemas ou diminui ao máximo o seu número.
Logo, impedir a sobrevida de um ser em formação que não atingiria a plena auto-realização humana, e incomodaria os grupos sociais, envolvendo muitos em seu problema pessoal, influindo desagradavelmente no quadro geral já por si pouco harmonioso, não será desejável?
A realidade da seleção das espécies e da vitória dos mais aptos, transposta do reino animal para o hominal, da luta física na selva para as situações conflitivas psico-sociais dão, aos recém-nascidos deficientes, pequenas chances de sobrevivência.
Não seria melhor para eles que não tivessem nascido?
Numa terra onde os considerados normais não resolveram suas próprias dificuldades, e inexistem os recursos necessários ao pleno desempenho, como enfrentar o enorme número de excepcionais deficientes que requerem super-esforço familiar, cultural, moral e sócio-econômico?
Nem sequer será necessário analisar as conclusões, relATANDO a estatística de casos, coM a previsão de custos.
Não está a ciência hoje, mais do que nunca, se voltando para servir ao homem nas suas requisições atuais, e na programação do futuro bem-estar geral?
Não é essa a suprema aspiração dos habitantes da Terra?
Há ponderáveis argumentos contra o chamado ”direito de nascer” da criança deficiente.
Convém recordar que o progresso parece seguir rotas circulares nas quais há aparente reencontro coM o passado antes de cada alargamento geométrico.
Outrora certos povos destruíam serenamente a vida das crianças defeituosas. Hoje, a mesma idéia e a mesma ação, coM sofisticações e novos recursos sentimentais, parece reviver aqui, ali, acolá...
Contudo, não deixa de ser chocante a negação do direito de nascer a uma vida que já está em desenvolvimento no ninho materno. Cremos que esse choque natural é muitas vezes vencido por argumentos verbais repetitivos, capazes de levar o intelecto, usado no relacionamento externo, a uma dicotomia coM a expectativa do aspecto espiritual e transcendental do ser que respeita a vida sob qualquer forma que se manifeste.
A dicotomia acima referida parece nos levar ao dilema seguinte: — Somos nós os senhores absolutos da vida e da morte, ou estamos submetidos a um plano de ocultas origens preexistente ao nascimento do homem e à própria formação deste nosso planeta?
Haverá uma causa, superior em força e poder, determinando os acontecimentos das vidas na Terra em seus detalhes e variações individuais com específicos propósitos, ou é o homem o auto-determinador de seu destino, e o manipulador de sua espécie dentro do mundo?
Na primeira hipótese, o indício embrionário de vida indica o direito inalienável de nascer.
Na segunda, o homem coM sua ciência e sua experiência, faz a opção, sem poder, contudo, abstrair completamente da solene questão: aquilo que é a resultante da fusão de duas células vivas, e está se multiplicando, coM características de vida humana em meio apropriado, tem ou não o direito de concluir seu processo, e manifestar-se externamente?
É mais válido arrancar a raiz, ou colocar estacas na planta que nasceu torta?
Lembramos a propósito uma fábula que lemos algures: Os homens mais sábios foram convocados para solucionar um grave problema da cidade. O problema consistia em que havia 10 cabeças mas apenas 9 chapéus. Ao fim de dias e noites de análises, pesquisas, discussões, estudos, etc., etc., os sábios concluíram: Corte-se uma cabeça!
Não cremos que seja fácil ao homem persistir na dicotomia, e desrespeitar pacificamente a manifestação da vida. Aos argumentos acomodatícios ele procura e espera encontrar a resposta certa, pressentindo internamente que deve haver uma verdade maior. Confia na vitória da vida e do amor, ambos antíteses da destruição.
A nosso ver, o Espiritismo, tal como foi codificado por Allan Kardec, tem a resposta a essa pro-
cura.
Apresenta o quadro de referência fundamental que estava faltando para se perceber o liame harmonioso das coisas, das situações e dos seres, na unicidade do plano divino.
A concepção das vidas terrenas como meios de aprimoramento através de reencarnações sucessivas vem romper as nuvens da confusão, esclarecer os dilemas e valorizar todas as experiências humanas. Torna possível que materialistas, pragmatistas e espiritualistas ofereçam à cultura preciosos subsídios, porque prevê que o homem do futuro será um homem ”prático”, capaz de solucionar acertadamente seus problemas terrenos e imediatos, apto a valorizar de forma adequada o mundo material, justamente porque estará certo da sua imortalidade, e entenderá o significado de cada circunstância.
O Espiritismo não supervaloriza o nascimento da criança deficiente, mas registra o fato como um reforço na comprovação de sua tese a respeito da finalidade evolutiva da vida.
Em relação à pergunta título deste comentário, a resposta, sob o prisma espírita, nos parece ser fácil, imediata e clara: Nascer é reencarnar, e quanto mais cedo um espírito se aprimora, se reajusta ou se redime pelas reencarnações, tanto melhor para ele, e ao mesmo tempo para toda a comunidade humana pois na verdade estamos estreitamente enlaçados uns aos outros.
Nossas necessidades, nosso destino e nossas falhas são muito parecidas, e no mecanismo das leis a reciprocidade tem sido regra geral. Quem obstruir um caminho encontrá-lo-á obstruído quando dele necessitar.
A PESSOA DEFICIENTE
1981 foi o Primeiro Ano Internacional da Pessoa Deficiente.
Digna de nota a expressão, intencionalmente escolhida: ”Pessoa deficiente”, proposta como objeto de reflexões para aquele ano, em dimensão mundial.
Por mais óbvia que possa ser, atualmente a noção de que todo o ser vivo humano deve tornar-se uma pessoa, ser aceito e respeitado como tal, os portadores de dificuldades nos processos habituais de receptividade e expressividade, na nossa realidade social, ainda são encarados como deficientes, e não como pessoas deficientes.
Parece quase a mesma coisa. Contudo, é muitíssimo diferente ser identificado como um deficiente — substantivo comum — ou como uma pessoa deficiente, adjetivo qualificativo que não anula a denominação básica.
O que precisa ser conscientizado pela sociedade, pelo poder público, pela legislação, pelas famílias, pelos técnicos e pelos próprios envolvidos, é que se trata de pessoas, na plenitude substancial do termo, com um acréscimo de requisições no quadro das necessidades básicas humanas, ou um decréscimo de aptidão em uma ou várias das características ou dos detalhes convencionados como ”normais”.
Vale a pena considerar a seguinte pergunta: — Haverá um parâmetro básico para a conceituação de ”Normalidade”, diante da variedade de apresentação dos seres humanos, tanto no campo biológico quanto no comportamento psico-social principalmente no atual contexto da vertiginosa mudança cultural e, conseqüentemente da necessidade de criatividade e adaptações para a sobrevivência?
Mesmo através de superficiais observações, ou simplesmente tomando conhecimento dos ”furos” do jornalismo noticioso, dos ”fantásticos” reais ou dos ”prodígios” das experiências nas áreas da genética, do mentalismo ou da paranormalidade, podemos deduzir que a amplitude da variedade se alargou em todas as direções como Uma explosão centrífuga, e todos os círculos de alargamento estão passando a fazer parte da realidade humana.
Considerando-se dessa forma, nada que ocorra em todos os lugares da Terra, com incidência que chegue a ser notada e anotada, deixa de dar contribuição no universo de experiências humanas, participando, portanto, da ”normalidade”.
Os indivíduos portadores de deficiências são uma imensa legião, calculada em dez porcento da população mundial. Constata-se que essa porcentagem cresce cada dia mais, como efeito de muitas causas desencadeantes, entre as quais se sobressaem as resumidas na palavra ”Progresso”.
Se fizermos uma listagem das deficiências, com certa meticulosidade, é provável que cheguemos à conclusão de que a maioria dos seres humanos as tem e, portanto, um critério estatístico para a normalidade fica plenamente prejudicado.
Para justificar essa afirmativa, lembremos a pergunta: Quem são as pessoas deficientes? o que se maturou e as perspectivas do futuro — também os portadores de deficiências estão entrando em novos rumos, embora arrastando as correntes que os aprisionaram no passado.
Um dos aspectos novos do nosso hoje, e um dos mais nítidos sinais de que se é uma ”pessoa”, está no assumir-se e, aceitar-se, no construir-se e, através de si mesmo, atingir a todos.
Os familiares e os técnicos, os afeiçoados e os pesquisadores, os voluntários e os especialistas repetiram com poucos resultados, nos quatro cantos da Terra, que os portadores de deficiências ultrapassaram a fase de caridade, adquirindo direitos e deveres promovidos por processos científicos, comportando os aspectos preventivos, curativos, habilitatórios, reabilitatórios e de integração social.
Em congresso mundial da Dinamarca foi enunciado o ”Princípio da Normalização” apresentando subsídios conceituais sobre as pessoas deficientes inteiramente novos ao pensamento humano.
Contudo, as idéias novas são como elásticos que costumam voltar ao comprimento comum, tão logo largados pelas mãos que os esticam.
Mas, agora, situação ímpar está se registrando. As mãos que esticam os elásticos são as dos próprios envolvidos. E eles não os largam.
Os portadores de deficiências não eram aceitos como pessoas, em parte, porque eles titubeavam na aceitação de si mesmos, e se apequenavam interiormente, pressionados pelas dificuldades externas.
Agora, são eles que se afirmam pessoas deficientes.
Aceitam suas incapacidades. Procuram compensá-las com os recursos técnicos à disposição, somados a um magnífico — às vezes, gigantesco — esforço próprio.
Enviam recados à sociedade humana, não mais pedidos de socorro. Recados que transmitem com humildade mas com dignidade, sem reclamações pelo passado, acreditando no crescimento conceitual do hoje. Alguns dos recados são estes: Estão se preparando para assumir papéis na vida familiar e na vida social, bastando que recebam uma chance, e que as portas não estejam previamente fechadas para eles. — Querem ser despojados do apelido de ”pesos” para a economia do país. — Estão nas escolas e nas oficinas de treinamento. Andam ou são conduzidos pelas ruas transportando suas malas com material de estudo ou com instrumentos de trabalho. — Conseguiram confiar em si mesmos, e estão dispostos a fazer duplo esforço para contribuir no desenvolvimento do seu potencial existente ou restante.
Se os seus direitos forem cumpridos no que cabe à sociedade e ao poder público realizar, não há qualquer dúvida que os resultados serão, como na palavra evangélica, ” a cento por um”.
A primeira condição é que eles possam ser considerados, respeitados e aceitos como ”pessoas” portadoras de deficiências.
Será tão difícil?
Pensando bem, nós outros, diante da harmonia das leis da vida, também não somos pessoas portadoras de deficiências?
A ORAÇÃO DO PARALÍTICO
Tomamos conhecimento da Oração do paralítico através do primeiro número da revista ”Reabilitação”, e achamos que seria bom divulgá-la em outros veículos de comunicação, pela singeleza da forma, e beleza do conteúdo.
É uma oração-depoimento, por isso equivale a muitas páginas de suposições ou a muitas dissertações escritas por ”faz de conta que sou eu”.
Salientamos antes um aspecto óbvio, mas que merece ser lembrado. O deficiente físico, sobretudo quando a incapacidade surgiu na idade adulta ou em plena juventude, enfrenta uma super-dificuldade: a consciência e a aquilatação da perda, do corte em sua vida, da limitação e apequenamento de suas aspirações e da destruição de seus planos. Sente-se emparedado e geralmente cai em profundo desânimo que leva à revolta. A doença ou o desastre causaram a sua desgraça, e ele pode achar-se como a vítima escolhida ao acaso.
Essa compreensível situação dura mais ou dura menos de acordo com inúmeros fatores, dentre os quais pesam mais a filosofia de vida, o apoio dos próximos, a influência dos reabilitadores e a reserva moral de que disponham.
Compensativamente, depois do período de mais aguda prostração, surge uma fase de revigoramento — imprescindível para a sobrevivência em equilíbrio — e se desenvolve a maturidade interior. Começa a procura de uma fresta no emparedamento, e pode ser encontrado um horizonte novo, desde que se procure na direção vertical. Porque é nessa direção que ele está.
A perda pode, paradoxalmente, gerar uma riqueza imponderável de imenso valor; dessa, a que se refere o Evangelho que ”a traça não rói e os ladrões não roubam”.
Sob o ponto de vista da doutrina espírita, esse é o fruto magnífico da difícil provação redentora porque é, nitidamente, um fruto de sabor evolutivo. A oração do paralítico, que transcreveremos abaixo, ilustra bem o que estamos procurando dizer. Durante a guerra civil americana um soldado foi ferido e ficou paralítico irreversivelmente. Após superar muitos meses de grandes sofrimentos, vislumbrou o novo horizonte. Escreveu uma oração que se transformou, desde aquela época, numa das mais belas páginas escritas por um deficiente físico. A tradução livre, do original em inglês é de Gustavo Joppert.
Eu pedi a Deus por força,
para tudo conseguir... Fui feito fraco para
aprender a obedecer. Eu pedi a Deus por saúde,
para realizar coisas grandiosas... Fui feito doente para
realizar coisas difíceis. Eu pedi a Deus por
riquezas, para comprar felicidade... Fui feito pobre, para vender sabedoria. Eu pedi a Deus por poder,
para que os homens necessitassem de mim...
Fui feito insignificante, para sentir a necessidade de Deus. Eu pedi a Deus por tudo isso, para poder gozar a vida... Foi me dada a vida para poder avaliar seu gozo. Eu não recebi nada do que pedi Mas obtive tudo aquilo que esperava ganhar. A despeito dos meus erros, as preces que não fiz foram atendidas.
E, dentre todos os homens, eu me considero O mais ricamente abençoado.
Em, lugar de tecermos alguns comentários a respeito dessa Oração, sugerimos aos leitores que usem o próximo minuto relendo as palavras do soldado ferido que se tornou um paralítico anônimo e só depois, exatamente através do que perdeu conseguiu sentir-se o mais ricamente abençoado entre todos os homens.
FALTA DE VAGAS
”não havia lugar para eles” — Lucas, cap.
2 Vers 7.
Na plenitude da noite, aquela família pertencente aos altos planos de espiritualidade, mas encarnada na Terra, viajava modestamente atendendo decreto de César Augusto. Todos deviam alistar-se, cada um em sua cidade natal.
Os primeiros sinais do parto já se apresentavam, e a preocupação do esposo era crescente.
Um lugar, qualquer lugar para passarem a noite, aquela noite, era imprescindível.
Bateram em várias portas. Tinham algumas economias. Precisavam alugar um quarto. Mas as pensões estavam repletas.
Uma criança estava prestes a nascer. Contudo, ”... não havia lugar para eles”.
Finalmente, condoído, alguém lembrou: Só no estábulo onde os animais se recolhem. Não é confortável, mas é o que se pode arranjar.
O homem, marceneiro de profissão, improvisou um berço, acomodou carinhosamente a esposa sobre o feno e, cansado, adormeceu.
Acordou com o choro do menino recém-nascido.
Os videntes puderam ver ”uma multidão dos exércitos celestiais cantando: ”Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens”.
A luz espiritual era grande, e eles se encheram de temor. Então um anjo lhes disse: ”não temais porque eis aqui vos trago nova de grande alegria que será para todo o povo. Pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”.
As primeiras visitas foram dos pastores videntes que, emocionados, relatavam as revelações do Alto.
A jovem mãe ”guardava todas essas coisas conferindo-as em seu coração”.
Ainda agora que o mundo cresceu em progresso, em experiência, em erros e resgates, em descobertas e tentativas de felicidade, ouve-se por aí a mesma frase que o evangelista Lucas, de forma simples e sentido dramático, colocou para focalizar a situação. Quando mais urgente se fazia a necessidade... ”não havia lugar para eles”.
Jovens sofridas, homens sem trabalho, velhinhos esquecidos, gestantes ansiosas, mães desesperadas, crianças desnutridas, vem batendo nas portas das casas de amparo social, às vezes como esperanças supremas e últimos recursos a serem solicitados antes de decisões fatais que já cultivam nas mentes desiludidas, porque nos núcleos familiares, no convívio consangüíneo, no meio dos mais íntimos e dos mais próximos... ”não havia lugar para eles”.
Mães que carregam nos braços filhos ”excepcionais” quase adolescentes chegam cansadas às clínicas de Reabilitação para as avaliações das possibilidades restantes, e saem desiludidas porque alguém lhes diz: — Agora, é muito tarde. Seu filho perdeu as oportunidades melhores de recuperação nos anos que se passaram.
Então, é freqüente ouvir-se a repetição simples e dramática da frase do Evangelista, saída amargamente dos lábios da mulher cansada: — Procurei. Procurei. Procurei, mas... ”não havia lugar para ele”.
Enquanto isso, outras crianças sadias e alegres, aprendem nas escolas no mês de dezembro a cantar e a dançar1 batendo palmas:
Bate o sino, pequenino sino de Belém,
Já nasceu Jesus menino para o nosso bem!
Pensamos que seria bom, ao rememorarmos para as gerações novas a história do importante nascimento, pararmos um pouco na frase: ”não havia lugar para eles”, com a intenção de motivar o impulso cristão para as atividades do amor, da intenção à ação, da atitude à conduta, do ideal à construção de pedra no mundo onde a vida é conjugação do espírito com a matéria mensurável. Porque é necessário que sejam criados objetivamente os recursos para responder a todas as situações humanas, a começar das mais urgentes, no sentido de que haja sempre o ”lugar preparado” em nome da fraternidade.
As situações difíceis são as mais solenes da vida, pois são as que mudam as rotinas do dia a dia, e movem a roda da evolução, tanto para os que estão dentro delas quanto para os que planejam soluções e constróem recursos benéficos.
A noite do nascimento do menino Jesus, longínqua no tempo, na sua seqüência de acontecimentos, projeta sobre a época de hoje uma realidade insofismável e um apelo direto.
A realidade é que Jesus nasceu em Belém, e o Cristianismo como organização estruturada tentou conquistar o mundo, mas não conseguiu conciliar a perspectiva horizontal da Terra com as finalidades verticais da mensagem evangélica. O apelo é para que todos, na família humana, tenham o lugar que necessitem, mesmo que seja na manjedoura simples onde possa ser adaptado um berço, para que o acontecimento do Natal se introjete, e o Cristo renasça efetivamente no coração e na mente dos homens, em simbiose de amor, sabedoria e ação, na plenitude da noite.
POLUIÇÃO
Poluição! Eis uma palavra das mais freqüentemente pronunciadas hoje em nosso Brasil.
O termo, já usado e abusado no singular e no plural, está tão consagrado que se tornou abrangente, generalizante: a poluição do globo terrestre! Também se usa como um substantivo abstrato e também como qualificativo. Fala-se por aí em poluição do ar, dos alimentos, da água. Poluição auditiva, visual, olfativa, gustativa e até tátil!
Poluição no pensamento e no sentimento, o que parece significar: intenção poluída, amor poluído e outras feiuras desse tipo.
Lemos, em um dos jornais diários, esta manchete: ”Poluição visual causada por crianças excepcionais em rua residencial”.
Tratava-se da impressão desagradável, colhida através dos olhos da vizinhança, por causa da existência de uma escola de excepcionais na mesma rua. Os causadores desse tipo de poluição eram crianças apoiadas em aparelhos ortopédicos ou em braços de adultos; com formas mal acabadas em relação aos modelos humanos comuns; com gestos descoordenados que teimavam em se tornar atetóides justamente diante dos estranhos, quando estes os observavam detidamente. Em horas determinadas entravam e saíam da referida escola, espalhando sua ”poluição” pelas calçadas, e contaminando as consciências alheias.
O que mais nos surpreendeu foi o inesperado tipo de comportamento humano contido na queixa, que desafiou as expectativas tradicionais diante de casos análogos. Esteve ausente a conhecida e repetitiva piedade. Ostensiva e humilhantemente ausente, como se ela tivesse morrido ou nunca tivesse existido; ausente aquele tipo de piedade sem raiz de antigamente, que apenas mascarava a acomodação, filha do sentimentalismo piegas que suspirava e lamentava alargando feridas e não ajudando em nada. Mas também ausente, a piedade produtiva que é silenciosa, observadora, passageira e rápida, não se expressando senão na intimidade da alma até gerar um plano de auxilio. As duas piedades estavam ausentes.
Estranha época, a nossa! Diálogos sem inibições, autenticidades sem reservas, opiniões sem diques, desestruturações de liberdade com ou sem discernimento. Por isso, fatos como esse evidenciam a convivência de duas idéias opostas defendendo seus direitos, protegendo-se, procurando impor-se, persuadir. Em jogo, duas pedras lançadas para direções diferentes, atiradas da mesma comunidade local, mesmo bairro, mesma rua.
Não sabemos como terminou esse caso. Como ficaram os relacionamentos entre os ”poluidores” e os ”poluídos”. Mas o tipo de comportamento apresentado, liberto e ousado, teve, com sua extrema rudeza, duas conseqüências que até nos parecem positivas: terminou com a farsa da piedade sem raiz, e agitou o assunto, movimentando, embora tentando destruir, uma das peças da problemática do excepcional; justamente aquela, de que tanto se fala hoje, a da integração social. Agitando, popularizou-a e, de certa forma, pressionou a tomada de posição.
Sob outro prisma, a frase em manchete conseguiu, sem querer, identificar uma nova correlação entre o que os olhos vêem, e o que a visão enxerga. O mestre Jesus, há vinte séculos, alertou as gerações para uma distinção significativa entre olhar e ver, e entre ver e enxergar. A mesma distinção, aliás, que há entre ouvir e entender, entre escutar e assimilar.
Sem dúvida, a parte externa visivel dos órgãos sensoriais (olho, nariz, orelha, boca e pele) são a periferia da maquinaria perfeita do organismo humano. Levam o mundo externo para dentro. Transmitem as mensagens das coisas, ou melhor, das características das coisas (forma, cheiro, ruído, gosto e consistência) para o interior, onde se realizam as sínteses e são geradas as idéias e as associações; das sensações à percepção, à captação, ao conhecimento. Do interior voltam para fora, através de habilidades de expressão que traduzem atitudes, o que podemos, simplificando todo um processo complexo e formidável, chamar de comportamento individual.
Estudiosos já sabem e nos ensinam que diante de um mesmo objeto com certa forma, cor, textura, etc, duas pessoas recebem essas características possivelmente de modo diverso, pois os órgãos sensoriais não são exatamente iguais, nem transmitem idênticas sensações. Os homens se diferenciam no receber e no devolver, no que vêem e no que entendem.
Um dos motivos dessa diferenciação está justamente nas aquisições do próprio espírito, latentes ou não na existência física, mas direcionadas a síntese, formando essa ou aquela atitude, determinando um ou outro tipo de comportamento.
Dessa multiplicidade exteriorizada é que se poderá um dia atingir o conceito global, com um centro nítido de significações interiores, que unirá os homens.
As coisas que vemos, ao se apresentarem, trazem uma mensagem verdadeira, embora simbólica. São convites para a curiosidade. Esperanças para o encontro com a Verdade.
Se as coisas fazem isso, que dizermos das pessoas, com suas variedades, suas tenacidades e a imensa versatibilidade de suas expressões, provando que a espiritualidade está individualizada no mundo!
Não serão mensagens vivas e concretas do próprio Deus, inatingivel de outro modo?
O Espiritismo, esclarecendo a mente, e libertando o sentimento das ilusões, projeta luz muito especial ao que nossos sentidos colhem do mundo externo, e abre novas clareiras na compreensão, na valorização e no relacionamento humano.
Longe da defensiva contra a ”poluição” visual diante do incomum, identifica a lastimável cegueira, e a triste surdez que constitui em se ver imagens e não enxergar significados, em se ouvir ruídos e não discernir conteúdos.
Talvez exatamente o incomum, o atípico, o chocante é que vem transmitir aos homens, como pequenas sombras, os apelos do sol da redenção que, afinal, é o sol que nos aquece, a todos, neste mundo.
O POTENCIAL HUMANO
Conclusões de estudos correlacionando quantidade e uso, atestam que somente 10% de nossas células cerebrais estão sendo postas a trabalhar. Isso significa que temos um enorme potencial cerebral a ser desenvolvido. Significa também que todos nós somos, de certa forma, mais ou menos lesados cerebrais.
Para compensar essa defasagem, é válido concluir que, provavelmente, no futuro, os seres humanos terão ultrapassado os mais altos índices de coeficientes intelectuais, e os superdotados de hoje estarão superados.
Enquanto eminentes estudiosos identificam novos detalhes no Universo, e audaciósos astronautas se dispõem a descobrir novos portos no Cosmos, também o corpo do homem vai sendo campo de pesquisas e de surpreendentes revelações.
Apesar de há muito, retalhado, examinado, conhecido estruturalmente, fala-se do ”universo” desconhecido que ele ainda representa. A bioquímica, a genética, o metabolismo interno, as relações psico-somáticas, as modificações inesperadas causadas por fatores desconhecidos, o desaparecimento de fenômenos previstos, o reequilíbrio espontâneo, etc, etc, constituem um desafio para os estudiosos.
Diante de fatos sem causas identificáveis, interroga-se de novo e se duvida de afirmativas generalizadas, tradicionais e repetitivas.
A parapsicologia que, segundo o Prof. J.B. Rhine, faz uma amostragem que pode levar ao continente espiritual, requer nova formulação de conhecimentos e induz à discussão da validade de conceitos estáticos.
Por outro lado, a incidência das curas espirituais pela imposição das mãos, das cirurgias mediúnicas, e da mediunidade em suas múltiplas formas, levitando objetos pesados, plasmando aparelhos de fonação, materializando formas palpáveis, requerem um atencioso retorno aos conhecimentos antigos, uma abertura de campo para a penetração na realidade imponderável e, também uma atenção maior para com o corpo físico, como veiculador do novo continente a ser conhecido pelo futuro.
Principalmente o cérebro centraliza o desafio.
A alta incidência de crianças deficientes cerebrais no mundo — calculada em 7% da população global — vem despertando a consciência científica, apresentando também o seu requerimento de solução ou, pelo menos, de explicação e atendimento. Estudiosos vem alertando para o crescimento anual do número dessas crianças, como um dos mais expressivos flagelos dos dias atuais.
Foi, principalmente, do interesse despertado pelos problemas dos lesados cerebrais, que se chegou a algumas das novas concepções a respeito do cérebro, inclusive a do seu potencial.
Novas perspectivas também se abrem no campo da reabilitação, baseadas justamente no ”potencial” desconhecido do cérebro.
Essas considerações nos levam a refletir sobre o quanto temos ainda a aprender a respeito do nosso veículo corporal para afirmarmos estar de posse do conhecimento periférico do nosso ser.
Que dizermos, então, do potencial espiritual? E dos outros veículos, ainda não admitidos pela ciência, que se interpõem entre o cume onde está o espírito e a encosta por onde o corpo se manifesta?
A física nuclear, a química, a astrofísica rasgam caminhos para o infinito. O conhecimento da imensidade das galáxias indicou à Terra a sua pequeníssima dimensão relacionada ao Universo, Para a filosofia da religião, Deus ficou maior, e Jesus mais nosso.
As modernas conquistas humanas, segundo dos lembra Humberto Mariotti, seguem na direção exata do mapa traçado pelo ”Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec.
Podemos presumir que a grande surpresa das ciências, hoje centradas no cérebro, será a descoberta de que ele é apenas um instrumento a serviço transitório do ser imortal, que as religiões chamaram de alma e que o Espiritismo identifica como o espírito evolutível e reencarnável. E, ainda, que, entre o cérebro-unificador orgânico — e o espírito, está o complexo denominado perispírito, que influencia na genética e na embriologia, determinando, em nível imperativo, os detalhes físicos para cada encarnação.
Para facilitar a caminhada humana, cujo destino é o pleno desenvolvimento do potencial espiritual, o Espiritismo se antecedeu conceptualmente à ciência tradicional que segue a linha continuista do tempo e da pesquisa. Não para desprestigiar o esforço humano, mas para propiciar o magnífico encontro entre o trabalho dos homens e o trabalho de Deus, o conhecimento terreno e a ciência divina.
É, geralmente, para reequilibrar esse potencial espiritual que muitos reencarnam temporariamente com cérebros lesados, e são solicitados, pelos processos de reabilitação, a executarem tarefas simples
com extremas dificuldades, e a usufruírem dos recursos terrenos com extensas limitações.
A ETERNIDADE E A CRIANÇA
Temos pensado que existe na criança pequena a evidente presença da Eternidade.
Envolvida mais pelas influências da vida espiritual do que pelas da nova existência, consegue espontaneamente aquilo que os antigos apontavam como características da verdadeira sabedoria: Sentir-se parte do todo.
O bebê move-se no espaço em semi-rotação, vagueia o olhar ensaiando a adaptação no claro e escuro, experimenta o uso dos dedos das mãos, estremece aos ruídos, e quando quer responder ou indicar uma necessidade, ”põe a boca no mundo”. Faz tudo isso (e muito mais) de uma forma que não se repetirá ao longo de sua vida terrena. Nos primeiros meses e nos primeiros anos o ser humano parece colocar a sua segurança, principalmente, na certeza de que tudo está no todo e de que ele ”é um coM o todo”. Em suma, está mergulhado na eternidade.
Eternidade é palavra de definição etimológica fácil, mas de conceituação abstrata e profunda, centrífuga e centrípeta ao ser interior. E por isso que, na medida do envolvimento nas solicitações do tempo e de espaço que o crescimento físico impõe, a realidade do ”eterno” vai ficando cada vez mais sutil, mais complexa, mais inabordável.
A criança comum permanece pouco tempo transmitindo essa mensagem, mas a criança excepcional, portadora de retardo no seu desenvolvimento, persiste nela por longo período, nunca chegando totalmente a perder o envolvimento na eternidade.
Sendo-lhe difícil adquirir a discriminação das coisas através de seus sentidos materiais, não conseguindo racionalizar facilmente, mas precisando sobreviver, entra dificilmente no amplo espaço do relacionamento. Suas experiências se expandem pouco para as exigências sociais, porém, movimentam-se mais livremente dentro de uma área coM predominante conteúdo espiritual. Quanto mais desligada nos contextos formais e usuais da estruturada vivência cotidiana, mais intenso parece ser esse conteúdo.
Fazemos essas ilações baseados na observação dos comportamentos das crianças excepcionais, principalmente comparando as fases posteriores coM as anteriores às ligações coM a vida concreta ou coM o concreto da vida. Como esse procesSo se passa em ritmo de câmara lenta pode ser mais detidamente observado.
Emergem traços de conduta ainda mal delineados, resquícios de fases anteriores à idade cronológica mas também, às vezes, vem à tona surpreendentes e inexplicáveis sinais de intensa vida interior. Isso nos sugere a idéia de que o espírito, não encontrando no veículo deficiente a adequação formal para a sua manifestação, está mais livre do que a criança comum para a vida espiritual, embora evidentemente, mais preso à legislação moral de causa e efeito.
Entre essa liberdade e essa prisão ele realiza uma estranha mas preciosa e intransmissível experiência que merece profícuo estudo, ainda porque pode vir a enriquecer o conhecimento da própria natureza humana.
Comprimida como em um túnel estreito, a cRiANça excepcional parece se colocar na posição ÚteriNA vertical, sem poder se dispersar da direção das suas primeiras raízes. Isso nos faz pensar no universo de estudos e pesquisas a serem feitos futuramente em torno dessa aberração que é o desenvolvimento fora dos padrões comuns de normalidade, tanto no sentido sincrônico e longitudinal da existência física, como no sentido do caminho e do posicionamento em face da Eternidade.
Pelo que temos podido observar em quase vinte anos de contato diário coM essas crianças diferentes, ousamos argumentar que a atitude dos retardados não é exatamente a de ”eterna criança” como vulgarmente se preconiza. Pode-se notar, em meio ao alheamento ou à dispersão, à quietude ou à hipercinesia, ao autismo ou à descontrolada agressividade, momentos de impressionante expressão que não se identificam coM padrões nem primitivos nem patológicos determinados, mas são ”sui generis”, como se a eternidade presente estivesse transbordando e transmitindo, sem anteparos, a sua mensagem.
Pensamos que nessas conjeturas não há subjetivismos nossos, ou forças de expressão, e sim a evidência da compensação natural que caracteriza as circunstâncias advindas da lei divina para os homens.
Tudo indica que essas leis são de justiça coM atenuantes, melhor dizendo, de justiça coM amor, de tal forma que há sempre utilidade evolutiva, tanto para o encarcerado no corpo deficiente quanto para os que o encontram em seus caminhos.
O BEBÊ ATÍPICO E A CRUZ
Esse pequenino ser, mirrado e disforme, carregado ao colo em situação de dependência, é, contudo, a mola central de profundas modificações no grupo familiar.
Modificações horizontais e verticais. Exatamente como as cruzes levadas ao Gólgota: a cruz do boM ladrão, a do mau ladrão e a do Mestre Jesus.
No primeiro momento de vida física começa a modificação. Acabou de nascer e frustrou todas as expectativas. Porque os seres humanos esperam situações, coisas e formas padronizadas, estereotipadas, repetitivas, e sempre subsiste, da parte dos expectadores, a espera da suprema superioridade quando se trata de coisas suas.
Então o bebê atípico é um choque tanto mais tremendo quanto maior seja o orgulho existente à sua volta.
Hora por hora ele, o bebê sub-gente, propulsiona a roda das transições e carrega para o movimento, sozinho, todo o seu ambiente.
Conhecemos muitas famílias que se desajustaram por causa dele, ou melhor, por causa da própria imaturidade da família, sendo ”ele” apenas o desencadeador ou o pretexto.
Pintemos o quadro: o pai ante a necessidade legal e moral de transmitir seu nome e seuS bens a esse herdeiro, de mostrá-lo como produto seu, desespera-se. Alguns se entregam à bebida. Outros escondem o filho ou se escondem. Outros abandonam O lar. Alguns chegam a matá-lo, como os jornais literalmente dão testemunho.
A mãe, ferida em seu amor próprio se artificializa atingindo a superproteção ou a neurastenia. Algumas provocam, por meios indiretos, reações orgânicas em si mesmas que desmoronarão a saúde, infernarão a convivência social e encurtarão o tempo de vida. Outras permanecem em estado de tensão, sempre em atitude defensiva, achando que a vida (ou Deus) as agrediu brutalmente. Perguntam a si mesmas: — Mas, por que justamente comigo? Outras fogem da realidade através da inércia nos dias, e dos comprimidos soníferos para as noites.
É a cruz jogada no chão. Os dois braços vergados sob o peso das angústias, e sob a compressão dos pés que pisoteiam o madeiro desprezível.
O eixo vertical fica deitado no solo, não sobe. O braço superposto na horizontaL se quebra porque é menor, e não tem por si mesmo a força de equilíbrio necessária. Então, o vento das alvoradas e o frio dos anoiteceres enterram aos poucos a cruz.
O pequenino ser de cinqüenta centímetros de comprimento, aquele que trouxe a cruz para vê-la de pé, só conseguiu o inverso: esmagou a experiência dos adultos — pais, avós, irmãos, — e todos se curvaram para o solo, se apequenaram e fecharam o próprio potencial interior.
Por falta de alimento afetivo é provável que o bebê volte à pátria espiritual precocemente, e então todos suspirarão aliviados sem entenderem o significado do acontecido.
Mas há outro tipo de cruz que o mesmo tipo de bebê pode oferecer a outro tipo de gente.
Conhecemos, também, muitos e muitos casos assim. São os que tem a maturidade suficiente para saber sempre que, aquilo que acontece no mundo a qualquer um, pode também acontecer a eles mesmos. Sentem a solenidade, a seriedade e a grandeza da vida. Sabem, conscientemente ou não, quais os fins das existências na Terra. Confiam na Sabedoria das situações. Encaram cada dificuldade como um desafio, e cada problema como um motivo de crescimento, porque acham que no esforço da solução está o cerne da vitória.
Sabemos de famílias que se ajustaram em níveis de profundidade afetiva, social e moral, exatamente coM a presença do bebê atípico. Substituíram a futilidade, a leviandade, a superficialidade, pela reflexão, pela decisão, pelo compromisso que dignifica.
Pintemos o quadro: o pai encontra um objetivo definido e uma motivação a mais para firmar sua posição no núcleo familiar. Aceita o desafio, e sente que cresceu para receber tal crédito de confiança. A mulher abre seu coração e refloresce para um amor mais amplo. Pensa nos outros. Valoriza sua função, e abre as portas de sua casa coM mais prontidão. Ambos, pai e mãe, se agradecem, mesmo tacitamente porque juntos tudo será fácil. Os irmãos aprendem desde pequenos a se ajudarem, e treinam suas possibilidades para tarefas mais amplas nos contextos sociais.
A cruz chegou trazida pelo bebê, e foi conduzida lentamente, pelo caminho estreito até o Gólgota. Nesse caminho houve às vezes desfalecimentos mas então foram procurados os Cireneus, e procurando eles foram achados.
Então, de repente a cruz se levanta, e seus braços estão nas direções certas: progresso na horizontalidade do convívio social em nível de fraternidade e expansão do sentido de família. Progresso na direção vertical em busca do encontro coM Deus.
Essas duas situações, ambas reais, tem como ponto propulsor, como núcleo central, a presença do bebê disforme, insignificante como pessoa, sub-gente e atípico.
Ressaltamos que, no mundo inteiro, as pessoas que colocaram a cruz de pé, são as que estão impulsionando a ciência, a técnica e o amor em favor dos milhares de atípicos da Terra.
A maioria dos hospitais especializados, das fundações científicas, dos institutos organizados, dos grupos de pesquisa e dos centros de reabilitação são formados ou foram iniciados por gente que tem envolvimento direto e afetivo corn esse tipo de bebês. São como que respostas à mensagem dos pequeninos.
As associações internacionais em favor do progresso científico dos excepcionais emergiram da pressão do amor dos que levantaram suas cruzes.
Então pensamos que a conclusão de tudo isso é a seguinte: embora marginalizados, sem posições definidas nos grupos sociais complexos, rejeitados e incapacitados para as participações plenas, eles, os bebês atípicos, estão também exercendo influência nos grupos em que nascem e, pela força inevitável dos entrelaçamentos grupais, em toda a família humana.
Nancy Pulmann
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