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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS BRUMAS DE ÉBANO / Denise Flaibam
AS BRUMAS DE ÉBANO / Denise Flaibam

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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TUDO CORRIA BEM. SANZUR havia viajado vários quilômetros em poucos dias, agraciado pela força das Trevas. Alcançou o Reino do Sul para contemplar auroras sombrias e crepúsculos duradouros. A escuridão estava chegando. Prova disso era o poderio nas mãos de Morzyon, que controlava a Fortaleza do Dragão. O centauro que ousara enfrentar o demônio das sombras fora morto em poucos minutos, afogado no ébano.
Até o momento, havia acontecido da maneira como ela desejava. Serafine não fora capturada, mas as sombras se esgueiravam em seu espírito. A garota estava ligada às Trevas.
Maltrus cumprira sua parte no plano, assim como o demônio Morzyon e a bruxa, ainda que Nayara tivesse falhado. A Rainha tinha quase tudo em mãos para ressuscitar seu corpo, vagar por aquele mundo e dominá-lo, sem medo da luz. As Trevas abraçariam Warthia e a Profecia se cumpriria.
O Amaldiçoado observou o castelo de pedras cinzentas e aumentou o ritmo da corrida. As portas de ferro apareceram, iluminadas pelos últimos resquícios de luz. Em minutos, o Lobisomem percorria o grande salão. Sua respiração arfante ecoava pelas paredes, a expiração se condensava em contato com o ar gélido. Seu andar era o único sinal de que alguma coisa viva caminhava por aquele cômodo, ainda que não estivesse sozinho. As sombras reinavam em cada canto, tentáculos vivos se arrastavam pelas paredes, teto e chão; o frio entre as brumas negras era amedrontador, mesmo para ele.
Viera por ordem dela. Sua Rainha exigira que seguisse até o Sul. O queria por perto para designar uma nova missão, de vital importância para o ritual de ressurreição.
Sanzur se curvou assim que passou pelas portas. Sharowfox estava naquele recinto, consciente e atenta. Ela era parte da escuridão.
– Guerreiro. – O sussurro veio do trono como uma carícia, no fundo do salão.
O lobo se apressou. Os olhos não se ergueram do chão. Parou à frente do assento de mármore negro e curvou-se em respeito. Fumaça escorria dele e misturava-se aos tentáculos de sombras.
– Minha Rainha. – Sua resposta gutural transbordou júbilo.
O guerreiro aguardou enquanto as sombras tocavam seu corpo; a dor cortante do contato fortalecia sua paixão. Podia aguentar, era uma agonia que tinha prazer em sentir.
– Erga-se, fiel súdito. – A voz melódica soou como uma brisa de inverno. – Viajou muito para chegar até mim. Que notícias traz do Oeste?
– Um presente, majestade, e um alerta. – Sanzur mostrou a bolsa de couro. – Morzyon disse que Vossa Graça ficaria satisfeita ao ver o que ele encontrou.
A Feiticeira o viu desembrulhar uma estranha pedra. Se Sharowfox tivesse um rosto naquele momento, exibiria surpresa. As Trevas ondularam ao redor dela, cientes do poder que emanava do fragmento nas mãos do guerreiro. O pedaço de algo muito maior, que Sharowfox ansiava tocar.
– Cílion. – A palavra saiu como um sibilo. Qualquer um teria ficado amedrontado com o som, mas não ele. Sanzur abriu um sorriso satisfeito. – Estava com Serafine?
– Foi encontrada em seus aposentos.
– Mariska! – As portas abriram-se e uma figura curvada entrou. Uma das filhas da Rainha, aprendiz das artes sombrias. – Leve a pedra, minha criança. Guarde-a em segurança.
– Sim, majestade. – Mariska caminhou até o Lobisomem com a cabeça baixa, as sombras roçando levemente seu corpo. A pele ficou vermelha nos pontos tocados, como queimaduras. Sanzur conhecia os rituais de iniciação das Feiticeiras. Aquela garota ainda não havia aceitado a escuridão por completo.
A claridade exterior que acompanhou a entrada de Mariska não alcançou o trono. Parou antes, impedida de se aproximar. A escuridão estava se tornando uma força maior que a luz.
As portas do salão se fecharam atrás da garota e o guerreiro voltou-se para a Rainha, os olhos escuros brilhantes. Ele estava com medo.
– Tolinho... Eu já sei sobre tudo. – Ela soltou uma risada estranha. – Nayara foi útil e fiel pelo tempo que conseguiu resistir; agora que está de volta ao verdadeiro corpo, cuidarei de minha filha. Em algumas semanas, estará restaurada. – Fez-se silêncio. – Quanto à Escolhida... Tenho acompanhado Serafine de perto. As sombras me mostram seus passos. Sei o que ela está sentindo, todo o medo e a confusão. – Por um instante, parou de falar. O recinto mergulhou em silêncio. Algo de gentil em sua voz, uma fragilidade rápida e surpreendente, pareceu escapar. – Tenho uma nova tarefa para você, Sanzur.
– Diga, e eu a farei.
– Preciso que guie um de meus seguidores até as Catacumbas. Lá, encontrarão uma pessoa. Comprem a lealdade dele, por ouro ou por medo. – Um rugido ecoou acima do palácio. – Considere uma adesão ao seu bando; meu presente por seu esforço. Acho que verá um aliado interessante no draconiano que despertei.
Sanzur sabia ao que ela se referia. Dragões.
Monstros alados saídos de lendas e pesadelos se espalhavam sobre os céus de Warthia, representando o terror e a supremacia do que, em breve, seria o domínio das Trevas.
– Devo trazer o homem das Catacumbas?
– Não. Ele será mais útil onde está. – Sharowfox soou fraca; a conversa parecia esgotá-la. – Mas garanta que meu protegido se encontre com ele. Deixe que Luke convença o senhor das Catacumbas a se aliar a mim.

 


 


O grupo liderado por Jon havia deixado os complexos caminhos dentro das montanhas para se aventurar em Mídria; dali, seguiram para a Planície, a vastidão central daquele continente mágico. A região fora abandonada desde que Demetrius decidira separar os Reinos. Nenhum aventureiro ousava tomar aquelas trilhas; temiam se perder na monotonia e solidão do terreno, quase tão inóspito quanto o próprio Deserto. Tinham medo das histórias sobre ilusões mágicas e fantasmas que vagavam pela Planície de Warthia. A região era palco de horrendas memórias; quando Sharowfox e Neo ainda eram vivos, ou mesmo quando os leviatãs marcharam por Warthia e a semideusa Cílion incitou a rebelião, as batalhas tiveram início na Planície.

O centro enérgico de Warthia. Um cemitério de lembranças e poder.

Numa das noites, Jon transportara o grupo quilômetros adiante, na direção desejada. Lembrou-se de Ývela quando o fez. A ondina retornara ao seu Reino da mesma maneira. Viajar pela Luz exigia esforço e concentração, e foram vários dias de murmúrios mágicos e resgate de memórias até o monarca ter certeza de que a magia funcionaria. Aquilo abreviou a caminhada em quase duas semanas, aproximando-os do Norte. Todos agradeceram ao Rei com aplausos e vivas. Jon desmoronara no instante em que o feitiço teve fim e dormira por dois dias seguidos.

O grupo só viajara pela Planície porque um Mago os acompanhava. Jon erguera escudos sobre eles e vigiara as madrugadas. Ao cruzarem por terrenos cobertos de névoa, vislumbraram o que pareciam ser rostos esquecidos; quando ouviram sussurros vindos de longe, Jon os protegera.

Para o grupo, tê-lo era uma benção. Para Jon, a viagem era uma maldição.

A vastidão da Planície o deixava inquieto. Mesmo protegidos, havia o medo. E o medo dos viajantes inflava alguma coisa na mente de Jon, uma escuridão que ainda não entendia.

O Mago sabia que a Planície se estendia para o Leste e que uma fissura ao final dela dava acesso ao mar, na fronteira com o Reino das Montanhas. Não sabia exatamente o que estava acontecendo nos domínios de seu irmão Red, mas não confiava no silêncio dele. A quietude do Norte significava problemas, a do Leste falava sobre abandono. Quando a guerra estourasse, Jon tinha alguma ideia de qual lado seu irmão escolheria.

Desde que a Fortaleza do Dragão fora tomada e as Trevas haviam dominado seu Reino, Jon estava sobrecarregado. Tinha dito a Serafine que mantivesse a esperança, mas ele mesmo não o fazia. Os Sturian eram fortes, e isso servia para animar o resto do grupo. Leyona os havia liderado mais de uma vez, a pedido de Jon. O Rei ficara para trás, perdido em pensamentos, nas vozes em sua cabeça.

Ele queria demonstrar força. Contudo, se os viajantes o observassem bem, encontrariam medo. Do mais puro e perturbador.

No dia em que havia conversado com Serafine, Jon sentira seu ânimo se elevar, como se aquela viagem fosse fortalecê-lo. Com o passar do tempo, porém, a realidade despencara à sua frente. Ele era um exilado, fugindo de seu próprio Reino. Em busca de uma ajuda que nem sabia se existia, visto que algo estava acontecendo no Norte. Podia ter seus poderes e a companhia de alguns súditos, mas a coragem lhe faltava.

Jon Tytos temia o que estava por vir.

E ele era sábio em fazê-lo. Era sábio ter medo das sombras. Isso não fazia dele um homem fraco, mas o preparava, deixava alerta. O temor que Jon considerava parte de sua fraqueza era, na verdade, um elemento de força.

Ao alcançarem as colinas que separavam o Grande Deserto do Reino das Florestas, Jon viu o incêndio. Arquejou. Seus companheiros vinham logo atrás, liderados por Leyona, que os incitava a continuar. A mulher tinha fé de que logo chegariam à vila próxima à fronteira.

– Majestade. – Jon voltou os olhos para Percival, o único arqueiro sobrevivente. Veloz como um pássaro, o menino havia corrido à frente deles para alcançar o Rei. Quando viu a fumaça, pânico e descrença tomaram seu rosto. – A aldeia...

Jon enrijeceu a postura. A pequena vila, chamada Faísca, ficava quase no fim do Grande Bosque do Norte. O Castelo de Tytos estava há poucos dias dali.

A distância entre os viajantes e a cidadezinha era gigantesca, mas o incêndio ainda ardia, estendendo-se em direção à floresta.

– Foi destruída. – Jon completou, incapaz de sustentar o olhar de Percival.

Os Sturian correram pelas colinas que marcavam a divisa. A força sobrenatural guiava seus passos. Jon poderia segui-los, mas, ao encarar os humanos, resolveu acompanhar seu ritmo.

Ao chegarem aos muros, encontraram enormes rombos por onde os invasores haviam passado. Jon pediu aos nobres que esperassem do lado de fora; numa luta, eles pouco fariam para ajudar. Avançou pelo portão, ladeado pelos Sturian. Antes, inimigos exilados. Ali, aliados poderosos.

Quatro Sturian flanquearam o Rei, e Leyona seguiu atrás dele. Ela não conseguiu convencer Percival a esperar. O menino se encontrava à frente de Jon, com o arco em riste. Mynna também se recusara a ficar; a audaciosa filha da líder Sturian carregava uma faca consigo, e os olhos azuis refletiam o brilho do incêndio.

Lá dentro, havia o calor das chamas, o cheiro acre de fumaça, mas nenhuma vida. Ninguém ficou decepcionado pela falta de inimigos, mas o desaparecimento dos moradores de Vila Faísca os preocupou. Havia poucos corpos espalhados pelas ruas. Poucas vítimas para um provável massacre. Para onde haviam fugido? Ou teriam sido levados?

O comércio fora estraçalhado e as casas, destroçadas. As labaredas lambiam os poucos telhados ainda em pé e se estendiam pelas árvores. Um incêndio em tons sombrios. Seu poder pertencia à escuridão.

– Jon? – Leyona tocou seu ombro, a expressão assustada. O semblante sempre tranquilo do Rei, e ultimamente entristecido, estava marcado por fúria. A claridade das chamas destacava a ferocidade no olhar.

Ele ergueu as mãos. Leyona e os outros recuaram. Os olhos do Mago se acenderam junto ao feitiço que lançou sobre as árvores; casulos de cor púrpura cobriram as chamas, rodearam galhos e troncos, casas e destroços. Onde havia fogo, de repente, restara apenas fumaça.

– Foi uma Feiticeira. – Jon murmurou. Havia raiva em seus olhos, e as sombras debaixo deles deixaram suas feições assustadoras. – Precisamos ir embora.

– Não há nada que possamos salvar? – Percival indagou ansioso. – Pode haver armas ou...

– Não. – Ira marcou a decisão do Rei. As íris de Jon queimavam tanto quanto o fogo que ele extinguira. Leyona deu um passo em falso. Percival vacilou diante do tom do monarca. – Nós vamos partir. Agora. A Feiticeira ainda está no Grande Bosque e pode sentir nossa presença.

– Sim, majestade. – O menino não discutiu. Com uma reverência, rumou para a saída. Mynna lançou ao Rei um olhar insolente e partiu atrás do arqueiro, com quem criara uma relação afetuosa naqueles exaustivos dias de viagem.

Leyona sinalizou aos guerreiros que seguissem para os portões e esperou o último deles se afastar para voltar-se ao Rei. Jon estava agachado diante de um escudo caído, coberto por cinzas. O Sol do Norte fora maculado por garras. Lobisomens! A Sturian estremeceu.

Havia muito a ler no rosto do Rei, e pouco a ser compreendido. Por isso, ela cruzou os braços e aguardou, lançando um olhar questionador.

No passado, aquela expressão teria gerado controvérsias. Leyona parecia uma mãe repreendendo o filho. No momento, Jon a respeitava, e por isso ficou surpreso.

– O que foi?

– Majestade, o que está havendo? – inquiriu, preocupada. – Anda solitário e pensativo desde nossa partida. Seu olhar muda de melancolia para o desespero... E agora isso? Esse ataque de fúria repentino?

– Não quis falar daquele jeito. – Ele demonstrou frustração, puxando o cabelo longo para trás. – Foi só... Estresse. Não vai se repetir.

– Apenas fiquei preocupada por causa do seu olhar. – Leyona explicou assim que começaram a andar.

– Por quê?

– Pareceu... Sombrio demais.


Capítulo 1

Cidade das Areias

 


A PAISAGEM ERA DE devastação. O terreno árido cobria tudo, estendendo-se até o horizonte e além dele. O céu, um manto sem estrelas nem Lua, era apenas densa escuridão. Diferente das noites sombrias, no entanto, havia ali algo de anormal. Perverso.

Não foi difícil reconhecer o pesadelo. Serafine já estivera ali, semanas antes. Ou mesmo meses antes. Nos últimos dias, aquele era o cenário do seu subconsciente. Quando adormecia, Serafine se via tragada à paisagem devastada e sombria.

A voz desconhecida a provocava. Ecoava com onipresença. O céu se partia e despencava sobre a Escolhida, e não havia nada que ela pudesse fazer. Nenhum lugar para onde fugir, ninguém a quem recorrer. Aquele pesadelo era seu; ele se arrastava sobre seu coração, bombeava horror nos pensamentos. Certa noite, durou tanto que Serafine se viu soterrada pelos cacos do mundo, incapaz de se mover ou respirar, definhando devagar. Em outras, a garota foi puxada para o horizonte, onde uma massa de ébano se erguia em meio a brumas e silhuetas disformes. Risadas monstruosas ribombavam pelos céus, mesclando-se à voz que drenava a coragem de Serafine.

Em todas essas noites, despertou ofegante, trêmula, com o coração descompassado e dolorido. Uma dor forte, aguda como um ferimento que não cicatrizara.

Não gritara nenhuma vez, diferentemente da sua experiência nos pesadelos. Lá, Serafine berrara até sua voz se tornar incompreensível.

Na madrugada anterior, enquanto Jarek e Guillian dormiam e Sibila vigiava, Serafine arquejou ao retornar do mundo dos sonhos. Encarou a guardiã, do lado oposto da fogueira, e notou sua postura irrequieta. Sibila pôs-se de pé, caminhou até a protegida e se sentou ao seu lado.

– Você sonha com as sombras?

– Faça elas irem embora. – A garota implorara.

– Se fosse tão simples, querida, minha vida não seria marcada por tantos horrores. – Sibila era uma Feiticeira, afinal. As marcas apagadas em seus braços a separavam de sua ligação com Sharowfox, mas não da herança mágica em seu sangue. – Não tema seus sonhos. Eles falam sobre o que ainda virá.

Serafine suspirou, exausta demais para questionar e tentar entender.

– Conhece uma peculiaridade sobre a magia? Muito do futuro é entregue através de sonhos. – Sibila sorriu. – Minhas irmãs e antepassadas escreviam o futuro com sangue. Minhas profecias nada mais são do que encantamentos fortificados daquilo que já está em meu espírito. Você não é exceção, Serafine. Se parar de refrear esses sonhos, talvez contem coisas importantes.

– Não estou pronta para isso. Não agora, com tanta coisa acontecendo. Ainda faltam dois elementos para dominar, não quero... Ver o que está por vir.

Sibila anuiu, compreensiva.

– Toda magia tem seu preço, querida. Mas, se estiver disposta e confiar em mim, posso tentar ajudá-la.

– Claro.

– Permite que eu use minha escuridão para afastar a sua?

A garota hesitou.

– É um feitiço simples. Não vai durar muito, mas a ajudará a descansar. Você precisará de forças para encarar o que temos pela frente. – Sibila ergueu as mãos, mas esperou. Serafine fitou as marcas nos braços da mulher e o rosto que jurara aos Deuses protegê-la. Deu permissão e fechou os olhos quando os dedos de Sibila desenharam símbolos em sua testa. Calor se espalhou pelo corpo de Serafine, a sensação confortável, apesar do seu receio. E então acabou, rápido como havia começado.

– O que você fez?

– Calei o pesadelo em sua mente. Os Deuses afastaram os espíritos que a assombram; eu posso parar as sombras, pelo menos por enquanto. – Serafine tivera o mesmo tremor que sempre a acompanhava ao despertar dos pesadelos. A sensação de que alguma coisa maculara tudo o que ela era e tudo o que seria. – Você ficará bem, criança. Com o tempo, tudo se resolverá.


***


A terra estremeceu em resposta ao comando. Serafine olhou por cima do ombro, para onde os guardiões a aguardavam, e voltou-se para a passagem. “Não deixaremos rastros”, dissera Sibila no início da jornada. Toda manhã e final de tarde, Serafine despertava seus poderes para criar túneis e trajetos diferentes, e bloquear as passagens pelas quais haviam seguido. Um labirinto talhado no interior das montanhas. Se algum servo das Trevas os procurasse a partir dos túneis da Fortaleza do Dragão, dificilmente os encontraria. Mesmo exausta, Serafine controlava a Terra com facilidade; o elemento respondia ao chamado e se moldava à sua vontade.

As rochas se agitaram e a pressão sobre sua mente foi poderosa. Assim como a Água se mostrara familiar quando completamente dominada, a Terra era agradável ao toque. Serafine adorava a sensação que corria pelo braço ao usar a segunda força. A cor azulada de suas espirais se mesclava ao verde e cobria os desenhos anteriores. Ela percebeu tal detalhe na noite seguinte à fuga da Fortaleza do Dragão, em seu horário de vigília. As marcas haviam recebido a cor do elemento.

Uma vez bloqueada a passagem, eles seguiram por horas até a previsão de Jarek se provar real. Serafine quase chorou de alívio ao avistar os muros da cidade ao longe, onde colinas altas marcavam a divisa com o Reino do Sul. Logo alcançariam a Cidade das Areias.

Suas pernas tremiam em exaustão. A força que usara na jornada fazia os passos de Serafine vacilarem, mas ela queria sentir o Sol na pele outra vez, e não apenas vê-lo no céu durante o meio do dia.

Sibila e Guillian conversavam sobre a Cidade das Areias. Ambos tinham assuntos em comum, e não haviam parado de falar desde que a viagem começara. A princípio, não foi nada demais para Serafine; com o passar dos dias, no entanto, os risos e palavras se tornaram irritantes. Altos demais, estrondosos e incessantes. Serafine tentava ignorá-los, sem muito sucesso.

Ela também ignorava os olhares discretos que Jarek lhe lançava vez ou outra. Era difícil desviar a atenção quando ele fixava os olhos em seu rosto, desviar o pensamento das linhas marcantes de sua face, o contorno dos lábios e a saudade do toque.

– Por que paramos? – Serafine voltou-se. Jon havia dito que encontrariam hospedagem na Cidade. E armas dignas para prosseguirem a jornada.

Seus companheiros haviam se sentado no sopé da montanha, o último resquício rochoso antes de adentrarem o terreno de dunas. A cidade ficava mais distante do que a garota imaginava, depois de duas travessias pelo Rio Turvo, mas ela não se importava. Queria alcançar a civilização.

– Precisamos descansar. – Jarek explicou.

– Meia hora atrás você reclamou quando pedi uma pausa. – Serafine cruzou os braços. – E agora quer tirar um cochilo?

– Ele tem razão, Serafine. – Sibila, em sua eterna calma, murmurou. – Não é seguro caminhar pelo Deserto à noite. Aqui, temos abrigo. Prosseguiremos pela manhã.

– Quem se importa? Perdemos o Oeste, não há segurança em lugar algum. – O tom foi ácido, mas Sibila não se importou. Dirigiu-lhe um sorriso vago e pôs-se a encantar os arredores para protegê-los. Jarek cingiu as sobrancelhas para Serafine, mas ela tinha dado as costas e, afagando os cabelos num gesto frustrado, afastou-se para um canto distante. Cruzou as pernas e fechou os olhos, mas nenhuma calma a alcançou.

Desde a fuga da Fortaleza do Dragão, estava inquieta. Os pesadelos eram a causa principal. Mesmo após o feitiço de Sibila, Serafine ainda se deixava assombrar pelas lembranças dos sonhos. Encontrava escuridão em lugares onde não deveria existir sombra alguma. Horrendos reflexos da tormenta que habitava seu subconsciente.

A mente encobria-se por tormentas das quais não conseguia se livrar, não importava o que fizesse.

– Milady? – Guillian trazia um odre de água, a última reserva, e o oferecia. – Aceita?

– Não, obrigada.

– Não bebe há horas, Serafine. Deve se hidratar.

– Eu estou bem. Beba você. Precisa mais do que eu.

– Não, Serafine, eu estou... – A garota arqueou a sobrancelha, e os olhos do guerreiro fugiram dos seus. Guillian concordou. O odre estava pela metade quando o orelhudo o tampou, pendurando-o no ombro.

– Milady, não se ofenda com a pergunta, mas... Está tudo bem? – Guillian hesitou. – Anda tão irrequieta. E, se me permite dizer, seus comentários estão ficando meio afiados.

Ela suspirou.

– Não queria ter respondido à Sibila daquele jeito. E nem a você. É só que... Eu estou confusa. E estressada. Deve ser exaustão. Vou tentar me controlar, prometo.

– Sabe que pode conversar comigo se precisar, não é?

– Sim, eu sei. – Serafine aproveitou para desviar a atenção. – E sua orelha, ainda dói? – Ela fitou a queimadura provocada pela quimera. Guillian tocou o curativo e deu de ombros.

– A dor vai e vem. Aquela mostrenga foi quem sofreu por ter me deixado sem pelos. – O felpudo bufou. – Se meu topete tivesse sido afetado, aí sim o assunto teria sido pessoal. – Serafine sorriu, a sensação de solidão diminuiu subitamente.

– Não tem sono, Gui?

Como resposta, ele bocejou.

– Então vá dormir. Eu vigio.

Guillian não protestou. Deu um tapinha carinhoso na mão da garota e juntou-se ao demais. Jarek roncava e Sibila... Era sempre difícil saber se estava ou não dormindo. Serafine aprendera que suas cobras ficavam quietas se a Feiticeira pegava no sono.

Depois de observar os companheiros por um tempo, olhou para o horizonte; os muros da cidade, iluminados por piras de fogo, pareciam convidá-los a entrar.

Com o coração reconfortado, ela buscou a flecha mestra na bolsa. Vinha usando sua mágica desde a queda da Fortaleza, ignorando a própria exaustão para tentar repará-la. Ainda que a madeira parecesse se regenerar, Serafine tinha a sensação de que não conseguiria restaurar por completo o encantamento de Theodore. A dor em seu coração retornava ao fitar a arma, mas havia a determinação de honrar o centauro. Usar o controle da Terra para recuperar o último presente dele parecia uma boa maneira de se provar.

Horas depois, cansada demais para continuar, perdeu-se em pensamentos até o Sol riscar o céu. Era o momento de a viagem continuar.


***


– Esconda o rosto. – Jarek avisou, cobrindo a boca com um pano. Serafine havia recebido a capa de Sibila e ocultou a face com o capuz. A guardiã cobria o rosto com partes do tecido da saia e improvisara um turbante para esconder as cobras.

Jarek achou melhor se separarem em duplas para entrar na Cidade sem chamar atenção. Jon advertira que as sombras poderiam caçá-los, e nenhum deles era exatamente fácil de camuflar.

Serafine espiou por cima do ombro enquanto Jarek era revistado por um dos guardas. A Cidade das Areias era muito semelhante à Miragem: muros guarneciam o entorno e a entrada era bem vigiada. Quando os guardas quiseram revistá-la, Serafine grunhiu e agiu como o combinado: agarrou-se à camisa de Jarek e baixou o rosto, fingindo-se “assustada e ansiando pela proteção do marido”.

O efeito foi eficaz; o soldado ergueu as mãos e pediu desculpas respeitosamente. Serafine travou a mandíbula. Como queria mostrar a donzela indefesa para ele!

– O que desejam? – Um dos guardas indagou.

– Trocar joias por alimentos para prosseguirmos nossa viagem. – Jarek foi sucinto. – Podem nos deixar passar? Minha mulher está cansada.

– Por que carregam armas?

– O Deserto é perigoso. Nós viemos em paz.

Depois da revista e das perguntas, os portões rangeram e abriram o suficiente para que entrassem.

– Obrigado, senhor. – Jarek espiou a fila de viajantes que desejava entrar e acenou para Guillian.

O guarda responsável pelo portão lançou um olhar desconfiado a Jarek e Serafine e deu-lhes passagem.

– Estranhos com armas não são bem vistos aqui. – Ele avisou, observando a bainha da espada de Jarek.

– E viajantes despreparados não são bem vistos por mim – replicou o guardião num sussurro, dando ao guarda um olhar entediado. – Só vamos permanecer por algumas noites. Partiremos logo que possível.

Jarek pôs-se à frente de Serafine e outro soldado os revistou. Alguma coisa tilintou na mente da garota, um aviso. Observou o homem e se retraiu: havia algo de sombrio nos olhos dele. Reconhecimento, como se ele soubesse quem ela era. Mas foi rápido demais. Serafine podia ter imaginado; outra de suas alucinações.

No instante seguinte, o soldado os deixou passar.

A Cidade das Areias havia sido construída na parte baixa do terreno. A entrada, na parte mais elevada da colina, descia até as primeiras casas, cujas cores exuberantes lembravam as de Vila do Sol.

As construções seguiam padrões arquitetônicos semelhantes, com janelas pequenas e portas muito altas, e não havia uma moradia com menos de três andares. O comércio, ao centro, vendia desde animais exóticos até tecidos caríssimos.

A dupla escondeu-se num beco, aguardando Guillian e Sibila. Estavam longe o suficiente para não serem percebidos, mas tinham plena visão da entrada. Serafine encostou-se à parede, baixando o pano para respirar.

Seus ombros pesavam em cansaço. Não do tipo que a faria despencar na cama, no entanto. Era uma fragilidade quase doentia, como se seus nervos e músculos queimassem. Serafine entrelaçou as mãos, sentindo-as tremer, e um estranho formigamento nos braços a fez arranhar a pele por baixo da capa.

Ela inspirou e expirou várias vezes, mantendo os olhos nos portões.

– Serafine? – Jarek se aproximou, preocupado. – Tudo bem?

– Sim – Ela fugiu de seu olhar, dando graças aos céus ao avistar Guillian. Jarek não deixou de vigiá-la pelos momentos seguintes, mesmo que a atenção dela tenha se afastado do guerreiro.

Uma vez reunidos, encontraram uma hospedaria de preço acessível e escolheram dois quartos. Jarek usou seu charme com a atendente e conseguiu permissão para descansarem antes do pagamento. Deixou uma das adagas de Guillian como garantia, até que penhorassem as joias. O Atyubru não gostou nem um pouco. Ambos acharam prudente visitar o comércio somente após o entardecer. Seria mais fácil passarem despercebidos.

Após se livrarem dos disfarces, eles se entreolharam.

– Não vai ser difícil nos reconhecerem, mesmo durante a noite. – Guillian pontuou. – Sibila e eu já bastamos para chamar atenção. Serafine é uma jovem notável... E imagino que o mesmo possa se dizer de você, Jarek. – O Sturian fez uma careta.

– Precisamos nos esconder. – Sibila sussurrou.

– O que sugere que façamos?

Sibila postou-se ao lado de Serafine, e suas mãos magras alcançaram a trança bagunçada da garota.

– Não. – Serafine se afastou. – Não vou cortar o cabelo.

– Não posso vê-la, querida, mas imagino que um pouco de maquiagem e um corte seriam suficientes para camuflá-la. Suas marcas não devem ser vistas, tampouco um rosto familiar.

Jarek e Guillian não argumentaram em contrário.

– Mas... – Serafine tocou a trança, lembrando-se da mãe. Mégara adorava seu cabelo, trançá-lo, penteá-lo e exaltar como a filha tinha madeixas tão brilhantes e macias.

– Você também, Jarek.

– É, imaginei que diria isso. – Ele bagunçou os fios já desgrenhados. – Temos de deixar algumas coisas para trás.

– São seus detalhes que vão chamar a atenção. – Sibila explicou. Serafine encarou seus guardiões, solenes e decididos, e sentiu o ribombar acelerado no peito. – Guillian e eu teremos de ficar escondidos por mais tempo. Você e Serafine podem ir lá fora, contanto que não sejam os mesmos. Um passo em falso e essa fuga terá sido em vão. Lembrem-se de que as Trevas estão nos observando.

De repente, Serafine caiu na cama, alarmando os guardiões. O caos inundou seus pensamentos, um pandemônio sem sentido. Serafine não conseguia se concentrar em uma coisa; milhares rondavam sua mente. O ar do quarto foi sugado. As palavras de Sibila traziam de volta o medo e a angústia da batalha na Fortaleza do Dragão. A possibilidade de estar sendo vigiada por Sharowfox naquele momento a desnorteou.

Recordou-se da possessão, quando a bruxa tomara seu corpo e movimentos. De quando a escuridão percorrera suas veias e tomara seu coração. A agonia correu por seu tronco e rosto, escurecendo a visão, lançando-a num mar de desespero.

Sharowfox estava chegando perto tão perto tão perto tão perto.

– Ei, ei. – Ela arfou. Jarek estava ajoelhado, segurando suas mãos. – Respire fundo.

– Sharowfox não pode nos achar! – A voz saiu esganiçada. Apertou os dedos de Jarek. O rosto diante dela estava embaçado, e temeu que as sombras a estivessem devorando, afogando sua consciência e pensamentos. – Ela não pode.

– Ela não vai. – O guerreiro observou Guillian e Sibila com temor, e voltou os olhos púrpura para Serafine. – Está segura aqui, princesa. Eu prometo. – Ela respirou fundo de novo e de novo, e Jarek só a soltou quando Serafine suspirou, mais calma. O olhar ainda estava desfocado, no entanto, como se a mente vagasse longe.

Jarek avisou que buscaria algo para que ela bebesse e se afastou, tenso. Sibila permaneceu no quarto, diante da protegida, segurando sua mão. Guillian prostrou-se à porta. Havia pena no olhar do Atyubru.

Ele sentia pena da fraqueza dela, do descontrole e loucura que se alimentavam de sua mente. Serafine estava ficando louca por causa das Trevas. Por causa do medo.

A garota fechou os olhos com força; não podia se deixar atingir por aquilo. Não podia cair. Precisava ser forte, impedir que mais batalhas fossem perdidas e mais criaturas morressem por lutar ao seu lado.

Fitou a mão de Sibila. A mulher era calmaria e silêncio, as marcas vermelhas apagadas contrastando com as de Serafine.

As mãos de Serafine, contudo, tremiam descontroladamente. Como quando o espírito tomava conta dela. O espírito, porém, repousava quieto, imperturbável. O que estava tentando dominá-la, então?

As sombras.

– Sibila... Fale comigo.

– O que a aflige, querida?

– As Trevas... Não podem nos achar.

– Elas não vão, tomaremos cuidado. Juramos protegê-la e faremos isso. – Sibila acariciou sua mão. – O que quer fazer?

– Como sabe disso?

– Não é mulher de sentar e esperar pelo socorro, Serafine. Não quer se deixar paralisar pelo medo que sinto em seu coração. – Sibila baixou o tom de voz. – Sei que ele está aí, drenando pensamentos e sonhos. Você também sabe. A marca das sombras faz isso com você, assim como faz comigo. A escuridão vai tentá-la, querida. Não pode cair perante ela.

– Estou ficando louca?

– E não somos todos loucos?

– Pode fazer outro de seus feitiços? Como o que usou contra o pesadelo?

Guillian empertigou-se. Serafine fingiu não notar.

– Temo que não, Serafine. A marca sombria precisa se dissipar com o tempo. É uma luta só sua. Nenhum feitiço poderia rebater o que ela está fazendo com seu espírito. Deve se esconder das sombras o máximo que puder e deixar que a marca enfraqueça.

Serafine ficou de pé. Sibila não tentou detê-la. O rosto desfigurado da mulher a acompanhou; havia tristeza em seu semblante. Mesmo sem vê-la, Sibila compreendia o que movia Serafine.

A menina pegou uma das facas de Jarek sobre a cômoda. Seus olhos, antes perdidos, se tornaram determinados. Se Sibila não podia fazer nada contra a marca das sombras, Serafine faria.

A lâmina refletiu os olhos dourados da garota. Você não vai me encontrar, ela pensou, desejando que Sharowfox pudesse ouvi-la. Não vou permitir.

Serafine encaixou a faca sob a trança e puxou. Os fios caíram sobre o piso. Relembrou sua casa, os anos de cuidado da mãe, os vínculos com o passado. Lembrou-se do carinho com que Mégara penteava seu cabelo e de como nunca a deixara aparar mais do que as pontas, alegando ser belo demais para cortar.

Por que a esperança precisava se esconder?

– Serafine. – Parado à porta, Jarek tinha um mar de emoções indecifráveis nos olhos. Guillian estava entristecido. – Nós poderíamos ter feito isso. Você não precisava...

– Sim. Eu precisava. – Ela suspirou. Sibila meneava a cabeça devagar, com orgulho. – Não vou deixar que Sharowfox nos encontre. – Seus dedos tremiam quando largou a faca, mas o coração batia calmo. Sibila passou por Guillian e o Atyubru a acompanhou, não sem antes segurar as mãos da protegida e beijá-las, em reverência. Demonstrando que estava ali por ela.

Jarek se aproximou. Serafine baixou o rosto e sentou-se à beirada da cama; os cabelos roçaram em suas bochechas. A sensação era estranha. Os pensamentos mergulharam novamente no pandemônio de memórias e vozes e confusão de antes. As emoções se transformaram em tudo e nada. Se aquilo não era loucura, então o que seria?

O guardião ajoelhou-se, mas não buscou suas mãos. Jarek segurou o rosto dela com firmeza e cuidado, para que o fitasse. A garota não compreendeu o motivo do sorriso do guerreiro.

– Serafine. – Seu nome, naquele momento, dizia mais do que qualquer outra coisa. Jarek apoiou a testa sob a dela e Serafine fechou os olhos. Cobriu as mãos dele com as suas e as apertou suavemente, indicando que estava tudo bem.

– As sombras não vão nos encontrar, Jarek. Eu prometo – sussurrou, firme e concentrada. Novamente, desejou que Sharowfox a estivesse ouvindo. Que a temesse.

– Acredito em você.

Jarek se distanciou, examinando o cabelo aparado.

– Esse corte fica bem em você, princesa. – Serafine baixou o rosto, sorrindo agradecida. – Se importa de eu arrumá-lo?

– O quê?

– Bom, tive duas irmãs pequenas e uma mãe que adorava cortar meu cabelo. Acho que aprendi um pouco com isso. – Ele ergueu os ombros, e a ideia de Jarek com sua família aliviou o coração de Serafine.

– Tudo bem. – Serafine não olhou a trança no chão nem o espelho na parede. Jarek, de pé ao seu lado, pediu licença para arrumar alguns fios. Os dedos do guerreiro acariciaram seu pescoço e rosto. Ela fechou os olhos e os manteve assim enquanto Jarek aparava as mechas irregulares. Ficou agradecida pela delicadeza e cuidado; grata pelo silêncio repentino da mente.

– Pronto. – Ele a ajudou a ficar de pé. Serafine abriu os olhos e o contemplou. Jarek a observava da mesma forma com que havia encarado a família, uma vez. Tão honesto, aberto e cheio de emoções que desnorteou Serafine.

Do outro lado do quarto, o espelho embaçado mostrou uma jovem mulher encontrou a atenção de Serafine. O cabelo estava um pouco abaixo do queixo. Os fios circundavam o rosto e deixavam as feições maduras, enigmáticas. Os olhos pareciam destacados e as bochechas, evidentes. Serafine quase não se reconheceu.

– Pode me ajudar? – Jarek sorriu.

– Com o quê?

– Meu cabelo. – Ele apertou os lábios. – Eu poderia pedir ao Guillian ou Sibila, mas acho que não são qualificados para lidar com isso.

– Claro.

Jarek tocou seu pulso antes que ela se afastasse demais e usou seu olhar mais denso e caloroso antes de sorrir.


***


Estava frio, mas ainda não tanto quanto o Sul prometia ser. Depois de descansarem durante a tarde e reencontrarem forças com uma refeição generosa e banhos quentes, a dupla deixou o estabelecimento para a rua movimentada, sempre atentos. Em meio à estranheza dos viajantes, entretanto, Serafine e Jarek pareceram normais.

A garota encarou a nuca do guerreiro exposta com o novo corte. Tivera medo de tirar demais, mas ele preferiu daquele jeito. O estilo deixava as feições mais sérias, fortes e poderosas. Algo do deboche que o sorriso dele possuía havia desaparecido. Jarek estava mais sombrio.

Encontraram uma costureira que poderia aprontar roupas dentro do prazo solicitado, contanto que recebesse o pagamento adiantado.

Jarek afastou-se após ter certeza de que o lugar era seguro, procurando uma casa de penhores para trocar a joia, e Serafine permaneceu para que tirassem suas medidas. Pediram trajes quentes, adequados a longas viagens e exercícios exaustivos. Se necessário, Serafine e os outros lutariam. Em resposta, a costureira apresentou um tecido firme e confortável, um couro raro exportado do Sul. Era cinzento, e se camuflaria facilmente nas brumas que cobriam o Reino.

Serafine havia tirado as medidas para a calça quando Jarek apareceu com o pagamento. O Sturian depositou oito moedas de ouro no balcão. A costureira arregalou os olhos.

– Era o combinado, certo?

– Oh, sim. – Ela sorriu significativamente para o guerreiro e ele recuou no ato. – Agora é sua vez, querido. Deixe-me medi-lo.

– Quer privacidade? – Serafine sussurrou ao passar por ele. Jarek olhou-a, desesperado. A garota riu.

– Nem pense nisso.

– Tire a camisa, não consigo medir seu tronco direito. – A velha resmungou enquanto esticava a fita métrica. Relutante, Jarek livrou-se da peça com lentidão. – Quantas cicatrizes. – Ela pareceu abismada. – Já entrou em muitas brigas, querido?

– Algumas.

Serafine sentiu-se atraída a avaliá-lo. Admirou a força, as marcas que maculavam o bronze da pele. Muitas haviam sido causadas pela última batalha. Alguns poucos hematomas restavam ali.

Enquanto a velha passava a fita pelo braço de Jarek, Serafine acompanhou seus movimentos. Sentiu inveja ao vê-la contornar aqueles músculos com as mãos. Hesitou ao lembrar-se da inquietante sensação que a vinha dominando, da voz que sussurrava em seu subconsciente, obrigando-a a ficar longe do guerreiro. Recordou a doçura no toque e de como ele a livrara do pandemônio de vozes no dia anterior.

Deuses, qual era o melhor caminho? O que sentia?

Uma pontada fraca de dor alastrou-se por seu peito e foi preciso esforço para ignorá-la.

A costureira fez Jarek virar-se e ele encarou Serafine. Ela o avaliava. Abriu um sorriso mais desafiador.

– Gosta do que vê, princesa? – Serafine não caiu no jogo e apenas ergueu os ombros.

Jarek ia vestir a camisa quando a mulher passou a fita métrica por seu quadril, demorando-se de propósito. Serafine engasgou ao tentar esconder a risada.

– Precisa de uma calça também? Posso fazer um preço especial para você se...

– Não é necessário. – O rapaz deu um salto à frente, distanciando-se. – Obrigado pelo seu tempo, voltaremos amanhã para buscar tudo.

Ele seguiu como um furacão em direção à porta, não se livrando do riso descontrolado de Serafine logo que alcançaram a rua. A garota observou-o abotoar a camisa de maneira exasperada, errando os botões, e se ofereceu para ajudar.

Jarek resmungava sobre a costureira e sua mão leve. Serafine concentrava-se em fechar a camisa.

– Acho que você tem uma admiradora, Jarek.

– Não comece...

– Os olhos dela estavam tão brilhantes. – A garota falseou um sorriso sonhador.

– Havia olhos brilhantes naquele lugar, mas não foram os daquela senhora. – Ele parou de repente. Suas mãos tocaram as de Serafine. O olhar de Jarek incendiou o dela. – Estava encantada comigo, princesa?

– Olhar não mata. – Serafine quis parecer indiferente, ignorar a curta distância que os separava. Tentou ignorar o desejo de beijá-lo e tocá-lo, e também o medo do que aquilo podia trazer à sua mente. Jarek estava ansioso para se aproximar, por alguma resposta. Mas Serafine não podia... Não conseguia entender a si mesma. – Seu irritante.

– Eu sou irritante? – ele reclamou. Serafine recomeçou a andar. – Irritante é sua atitude.

– Ah, quer falar sobre atitudes? – Ela voltou-se e apoiou as mãos nos quadris. – Não sou eu quem sai beijando por aí sem permissão!

– Sem permissão? – Jarek bufou indignado. – Você me beijou da primeira vez.

– Não senhor!

– Sim senhora! E gostou bastante das outras – Jarek resmungou. – Você poderia usar uns bons beijos.

– Eu preferia beijar um Lobisomem!

– Posso arranjar isso!

Algumas pessoas pararam para observá-los, e Jarek não gostou da atenção. Serafine deu-lhe as costas, marchando de volta à estalagem.


***


O baque do prisioneiro contra o chão reverberou nos ossos de Luke, sentado sobre um trono de pedra rústica. O organizador da arena havia oferecido o lugar de honra ao ilustre visitante, de modo que o rapaz pudesse observar do alto o desenrolar da cena.

Seus olhos incomodavam-se com os raios do Sol, e ele agradeceu quando nuvens acinzentadas obscureceram o dia.

A multidão vibrou com o urro de horror que veio da arena.

A animação era animalesca; moedas de ouro e notas para troca de mercadorias voavam para as mãos dos apostadores. Luke imaginou a confusão que se alastraria quando a atração do dia terminasse. A plateia era controlável até certo ponto; depois, tudo se tornava um caos.

Luke havia deixado o Castelo alguns dias antes, incumbido de duas missões. A primeira era entregar um valioso prisioneiro ao dono das Catacumbas: Demetrius. Ele se tornara um fantoche frágil e sem forças depois de ter a maior parte da magia drenada pela Rainha das Trevas. Luke não sabia do motivo, mas tinha a ver com o espetáculo; deixar Demetrius com um pouco de tudo que fizera dele tão grandioso, o suficiente para humilhá-lo até o fim. Ver o Grande Rei cair diante das Catacumbas. Demetrius lutava na arena naquele momento; um Mago, mesmo com tão poucos poderes, era um oponente poderoso. Luke desejou que seu pai estivesse ali para contemplar a força do irmão, ver que as humilhações não dobravam o Grande Rei mesmo desprovido de esperança.

Em troca do prisioneiro, soldados seriam enviados à legião do Sul. Nenhum voluntário havia se apresentado para a guarda de Maltrus, e o Rei fora obrigado a optar por escravos – os mais capazes seriam recolhidos ao palácio. Aqueles que resistissem seriam persuadidos por Magia Negra. De um jeito ou de outro, o exército sulista cresceria e marcharia sob o comando da escuridão.

Sanzur e seu bando haviam guiado o príncipe até as Catacumbas por ordem de Sharowfox. Arrepios cobriam a pele de Luke ao pensar nisso. Enquanto cuidava das negociações com o senhor das Catacumbas, Sanzur e um dos dragões da Rainha das Trevas estiveram nos arredores. O rapaz experimentara o terror ao vislumbrar a fera draconiana tão de perto. Pela primeira vez em muito tempo, agradeceu por estar sob a proteção de Sharowfox, e enojou-se com aquele pensamento.

O comandante das Catacumbas curvou-se a uma promessa de sangue e se tornou parte dos aliados das sombras.

Luke suspirou enquanto observava a multidão exaltada, desejando retornar à solidão de sua moradia. Somente lá, se sentia confortável.

Da última vez que presenciara uma reunião com os convidados do pai, ouvira notícias sobre o Oeste, a terra dominada. Lorde Hammel era o conselheiro do demônio que controlava a Fortaleza do Dragão. Um grande contingente de soldados estava se formando no Reino desértico. Dragões sobrevoavam as terras áridas e o reino gelado, estendendo-se na direção do Leste conforme novos acordos eram regidos. O Rei Red estava ao lado de Maltrus na guerra; por ganância e pela oferta de um tesouro imensurável, Red havia traído Demetrius e a delegação nortenha. Luke pouco sabia sobre os prisioneiros feitos além do Grande Rei, ou mesmo sobre cadáveres descartados, mas as Trevas estavam satisfeitas. As sombras construíam seus soldados, usando o poder de Morzyon e seu dragão.

As Tropas de Arqueiros formadas por Jon haviam desaparecido nos confins do Deserto. Fugiram da força do exército sombrio, provavelmente. Eram sensatos ao se esconderem.

As legiões nortenhas estavam presas no Leste, impossibilitadas de marchar para salvar seu Rei. Um monarca que, aos olhos do continente, desaparecera.

Não demoraria muito mais para a marcha da escuridão. Mesmo sem Sharowfox à frente dos exércitos, eles tomariam a Planície e drenariam a energia do Norte até derrubar Warthia.

O tempo corria contra as forças da Luz. Contra Serafine.

– Irmão? – Ao menos Luke não estava sozinho ali. O pai mostrara clemência e permitira que Elyna o acompanhasse. Segundo Maltrus, a princesa deveria se familiarizar com a crueldade para aprender a amá-la. Luke sabia que o desejo de seu pai era ver Elyna servir às Trevas. O príncipe queria encontrar uma maneira de salvar a irmã do caminho pelo qual seguira.

Luke observou as próprias mãos. As veias escuras, tomadas por sombras, se destacavam sob a pele pálida. Consequências da marca sombria imposta. Ele passara noites em claro por causa das Trevas, madrugadas assombrosas divididas com milhares de vozes que sussurravam em sua mente. Não entendia o motivo, mas um de seus olhos perdera a cor prateada. Ébano cobria a íris direita.

– Sim?

– Não gosto deste lugar. – Elyna não olhava para a arena desde a chegada. Luke não a culpava.

– Pode retornar aos seus aposentos, se quiser. Ficarei por mais algumas horas.

– Os homens e mulheres que convocou estão lá fora. – A expressão da princesa era desconfiada. – Quem são?

– Aliados, se forem espertos. Prisioneiros, se não.

Elyna lançou um olhar intenso e se retirou.

Luke sentia falta da paz, de olhar a irmã e sorrir com calmaria, como se nada mais importasse. Sentia falta de quando viajara para o Oeste e pudera aproveitar algumas semanas de quietude, antes de tudo estourar em desordem. Sentia falta... Deuses, sentia falta dela. Dos olhos de âmbar. Da presença calorosa. Sentia falta de Serafine.

Como aquela garota havia conquistado tanto de sua atenção com aquela facilidade? Luke entendia, claro, o motivo do seu fascínio. Serafine era a Escolhida. A esperança. Porém, ainda assim... Para que cultivar aquela tola fé? Qual a finalidade de se apaixonar, se o sentimento jamais seria recíproco? Luke era um filho das Trevas; ela, a herdeira da Luz.

– Alteza. – Um dos soldados adentrou o recinto. Vestia a armadura de ébano do exército sulista, os olhos sombrios, dominados pela escuridão, sob a viseira do elmo. A capa pálida contrastava contra o metal escuro, como o Reino do Sul. – Os caçadores, como requisitado.

Três pessoas passaram pela porta, escoltadas por mais dois guardas. Luke os dispensou com um aceno. O que tinha a dizer não podia ser ouvido por curiosos, ainda que os soldados estivessem tão dominados pelas sombras que jamais seriam um problema.

– Estão aqui pela recompensa. – Luke cruzou as mãos atrás das costas. O rapaz à frente do trio manteve a postura relaxada, mesmo sob a mira do príncipe de gelo. Luke ficou surpreso por seu olhar curioso: alguém que não temia a frieza da escuridão.

– Príncipe Luke, eu suponho?

Luke meneou a cabeça.

– Sou Diel, a seu dispor. – Uma reverência sutil e um sorriso charmoso seguiram-se. Luke gostaria de dizer que não se importava, mas manteve o silêncio. Era o seu traço mais marcante aos olhos dos desconhecidos.

Os olhos de Diel eram parecidos com os de Elyna. Da cor da grama que só verdejava nos reinos abençoados pelo verão, das árvores vivas e ricas que existiam no Norte e no Leste. Eram sombreados por cílios dourados e sobrancelhas arqueadas, e exibiam um brilho curioso e um tanto perturbador. Olhos de verão contra os de prata e sombras.

Luke empertigou os ombros.

A multidão continuava a berrar e gesticular, ansiosa para ver quem alcançaria a última antessala primeiro. As arquibancadas inclinavam-se sobre os labirintos de pedra, dando uma visão panorâmica ao banho de sangue. Diel esticou o pescoço para contemplar a arena e Luke o observou; a pele bronzeada era marcada por runas negras de um dialeto antigo. Cobriam boa parte das laterais do pescoço. Delineavam seus contornos, descendo pela gola esfarrapada da camisa cinza.

Um dos prisioneiros alcançou a antessala e estatelou-se contra o chão. Morto.

O príncipe de gelo respirou fundo, e sentiu os olhos de Diel acompanhando o gesto. A segunda missão era mais complexa, e o príncipe perturbava-se a cada hora que passava...

– A tarefa é bem simples. – Luke sussurrou. – Tragam a Escolhida viva até mim, e o ouro será seu.


Capítulo 2

Os Estranhos

 


GUILLIAN, OCULTO PELA CAPA de viagem, ficou de tocaia enquanto Serafine ia até a taverna da estalagem em busca de um prato de sopa para Sibila. Assim como a garota enfrentava seus terrores, a Feiticeira possuía os dela.

Serafine desceu as escadas ansiosa, pensando que talvez nem ali estivessem seguros. Seu rosto estava coberto de maquiagem, encontrada a muito custo no mercado da cidade. Escondia as marcas, mas, mesmo assim, parecia arriscado. Ao passar por Guillian, tentou ignorar a vigília do guardião. Concentrou-se apenas no fato de ele estar lá para sua proteção.

Guiou-se pelo burburinho de vozes no primeiro andar e encontrou o refeitório. Guillian seguiu para uma mesa vazia num dos cantos, e ela correu os olhos sobre os clientes.

Diferente da estalagem de Mégara, aquela era abarrotada. Os viajantes apertavam-se nas mesas, bêbados o suficiente para gritar coisas sem sentido. Mais ao fundo, uma bancada de madeira velha e gasta separava os fregueses das bebidas.

Serafine passou pelas pessoas com rapidez

– Oi, boneca. – Um rapaz, apoiado ao balcão de bebidas, cumprimentou-a assim que ela parou ao seu lado. Estava na companhia de uma moça. As feições eram atraentes e a postura, descontraída. Vestia uma camisa aberta, expondo várias runas tatuadas no peito. Seu olhar era de um verde cristalino e o sorriso extremamente pretensioso. Ela revirou os olhos. – Vem sempre aqui?

– Não.

– Gosto das difíceis.

– Vai gostar ainda mais quando meu punho acertar sua cara. – Serafine retrucou, dirigindo-se ao atendente para solicitar a sopa. Espiou Guillian; o Atyubru estava atento.

– Gosto dela. – A jovem ao lado do estranho comentou.

Serafine a cumprimentou com um aceno.

Tinha um físico esguio, alguns centímetros menor que Serafine. Sua pele era da cor do bronze também, os lábios eram finos, com um sorriso largo. Os olhos escuros, contornados fortemente de preto, eram estreitos e brilhavam com travessura. O cabelo preto como azeviche caía liso e longo sobre seus ombros. As laterais eram trançadas desde a raiz.

– Sou Ian. – O rapaz estendeu a mão. – E esta é Aria, minha irmã.

O tronco de Aria era tatuado com mais sutileza. Havia riscos, desenhos, símbolos e palavras. Ela era linda.

– E então, doçura... – Ian apoiou o corpo forte na bancada, de frente para Serafine. Ela recuou. – Quanto tempo vai ficar na cidade?

– Não me recordo do momento em que isso passou a ser da sua conta, amigo.

– Negócios importantes a serem tratados? – Aria indagou.

– Não interessa. – Serafine abriu um sorriso lânguido. A garota respondeu com o mesmo.

– Você tem olhos muito bonitos, sabia? – Ian elogiou descaradamente. – É um tom raro esse âmbar.

Serafine recebeu a bandeja e sinalizou discretamente para Guillian.

– É a minha deixa. – Ela avisou, ansiosa para dar um fim naquela situação. Ian percebeu o Atyubru sob a capa de viagem, mas disfarçou bem a curiosidade.

– Você nem me disse seu nome – retrucou ele, com falsa mágoa.

– Mahiry. – Serafine mentiu e se afastou. Guillian a acompanhou, murmurando qualquer coisa sobre desconhecidos enxeridos.

A garota espiou o balcão outra vez. Os estranhos não estavam mais lá.


***


Jarek não queria visitar a costureira sozinho, e Serafine não o culpou. Porém, não deixou de zombar da covardia do guerreiro, recebendo resmungos de volta. Guillian ficou para investigar a respeito dos estranhos.

Depois de pegarem as roupas, seguiram para um dos ferreiros da cidade, determinados a gastar o ouro restante em armas úteis. Guillian fizera exigências específicas sobre o que queria. Serafine encontrou uma ótima aljava para guardar o que restara de sua flecha mestra e encomendou vinte flechas comuns. Para seu azar, nenhum dos arcos parecia adequado. Lembrou-se daquele em que quase havia colocado as mãos, pouco antes de o demônio invadir a Fortaleza, e sentiu-se decepcionada. Ele havia sido moldado para a garota.

Uma vez que Jarek não achou nenhuma espada que lhe servisse, voltaram a vagar pelas ruas. Uma vendedora indicou outra ferraria, bem recomendada entre os viajantes, distante algumas quadras. Estavam próximos dela quando Serafine estacou; arrepios deslizaram por sua espinha e um espasmo a fez virar para um dos becos. Não havia nada sombrio naquele lugar, no entanto. A energia que a garota sentia era familiar, amigável. Jarek parou, os olhos presos ao local. A expressão dele era desconfiada, mas Serafine deteve a mão que ele levou a uma das facas.

– Não. Não é ruim. – Ela adiantou-se; o guardião manteve-se próximo. Atrás do beco, uma ruela dava passagem para um estabelecimento caindo aos pedaços. A palavra “Ferreiro” fora pintada sobre a madeira e o tempo a desgastara. – Um sinal? – Serafine brincou para Jarek. Ele arqueou uma das sobrancelhas.

– Se for uma armadilha, não pode dizer que seu espírito não avisou.

– Não é. – A sensação era diferente de todas que tivera, como se houvesse algo a investigar ali. Alguma coisa esquecida.

A ferraria cheirava a poeira e fumaça. A forja ficava nos fundos, ao ar livre, e havia mostruários com espadas e facas. Os olhos de Jarek se arregalaram. Serafine passeou pelo aposento apertado, curiosa com os arcos dependurados na parede.

– Ei, princesa. – Jarek chamou. Serafine olhou para o alto.

Um arco simples de madeira, ainda sem corda, estava ali. Não havia entalhes na madeira clara, mas Serafine poderia esculpir com o tempo. Poderia torná-lo seu.

– Tem alguém para nos atender?

– Está pensando em roubar? – Jarek brincou.

– O quê...? Não! Claro que não. – Ela inclinou-se sobre o balcão. Um homem alto e robusto vinha dos fundos e os cumprimentou, limpando as mãos sujas de fuligem no avental.

– Em que posso ajudar?

– Aquele arco, quanto custa?

– Não está à venda. – O homem limpou a testa marcada de suor e lançou um olhar de esguelha. Serafine tentou esconder a decepção. – Meu pai o fez há muitos anos, mas a mulher que o encomendou nunca apareceu para pegá-lo. Ele o guarda como recordação.

– Se está aí há tanto tempo, ela obviamente nunca virá buscar. – Jarek retorquiu.

– Já disse que não.

– Eu realmente apreciaria se ouvisse minha oferta. Aquele arco é... Perfeito.

Ele correu os olhos do arco para Serafine, avaliando a expressão da garota e a bolsa de moedas em sua mão, e concordou:

– Muito bem. Mas vai custar caro. – Puxou uma escada e alcançou o arco, entregando-o a Serafine. Ela recebeu um choque ao tocá-lo, uma avalanche de energia. Era diferente de tudo que tinha sentido até então. Ouvia a voz do ferreiro distante, abafada. – Vou ajeitá-lo para você essa noite. Venha buscá-lo pela manhã. A espada também, rapaz. Não vou conseguir afiá-la a tempo hoje. É uma arma pequena e delicada, vai acabar custando algumas moedas de prata a mais.

Enquanto o homem se afastava com a espada, o guardião notou a expressão da protegida.

– Ei, o que aconteceu?

– Tem alguma coisa... mágica nesse arco. – Ela o virou nas mãos, perturbada pela energia. Nada havia, porém, de extraordinário nele. Era um arco como qualquer outro. – Acha que Sibila pode descobrir?

– Não custa tentar. – Jarek parecia curioso e cauteloso ao observar a arma. Quando o ferreiro retornou, Serafine adiantou-se:

– O senhor sabe para quem seu pai pretendia vender o arco?

– Ele nunca me contou.

Ambos seguiram pela ruela até a rua principal. Jarek pediu que Serafine esperasse do lado de fora da casa de ervas enquanto ele comprava os itens da lista de Sibila. A garota apoiou as costas à parede e observou as pessoas que passavam por ela. A falta de excentricidade delas a intrigou. Não havia rostos com mais de dois olhos, ou um só, criaturas cujos corpos fossem metade humano e metade animal, como nas redondezas do Oeste. Não se sentia bem ali, entre tanta normalidade. Como se o diferente fosse errado e devesse ficar escondido. Se aquela era uma prévia do que o Sul lhe reservava, não gostava dele.

A distração foi tamanha que se assustou quando Jarek parou ao seu lado:

– Se estivéssemos em Líriel, receberíamos todo esse material de graça. – O vendedor havia cobrado demais por ervas de menos.

Rumaram para a estalagem, resolutos. Sibila repousava em meditação, e suas cobras estavam silenciosas. Serafine preferiu não a incomodar com a questão do arco. Falaria com ela quando o tivesse em mãos.

– Não encontrei rastros daqueles desconhecidos. – Guillian avisou, ganhando a atenção dos recém-chegados. – Rondei esse quarteirão, mas desapareceram.

– Sentiu algo de estranho quando conversou com eles? – Jarek fitou a protegida.

– Fora a petulância, não. – Serafine deu de ombros.

– De qualquer maneira, vamos ficar atentos. Não gosto desse lugar. – Guillian abriu a sacola para separar as ervas.

Serafine pegou a bolsa com as vestes novas e as distribuiu. As suas caíam com perfeição. Um corpete de couro fervido, justo, dos seios até o quadril, de mangas compridas para o clima do Reino do Sul, e o casaco que serviria para aquecê-la. A calça era solta e maleável. As botas velhas cobriam suas pernas. Amarrou tiras de tecido nos braços para impedir que as mangas frouxas expusessem as marcas, e um lenço ocultou seu colo e pescoço.

Estava escondida novamente, como em Vila do Sol.

A garota recolocou o colar dado por Theodore e arrumou o pingente de pedra verde na curva dos seios, escondido sob as vestes. Deixou as roupas velhas de molho numa bacia e ergueu as mãos para prender o cabelo. Hesitou então. Não precisava mais trançá-lo.

– Milady? – Guillian havia entreaberto a porta do quarto. – Tem certeza de que quer ir buscar nossa comida? Não prefere descansar?

– Não se preocupe, Gui. Tenho tudo sob controle.

O orelhudo pareceu convencido ao segui-la, mas nem por isso deixou de analisar o corredor aos fundos.

– O que foi? – Ela indagou.

– Velhos hábitos desconfiados.


Capítulo 3

Ladrões

 


AO ENTRAR NA TAVERNA abarrotada, Serafine experimentou a conhecida sensação de inquietação. Diferentemente da visita ao ferreiro, aquela avisava sobre problemas. A garota espreitou os arredores, mas não encontrou a causa.

O motivo para a inquietação, no entanto, estava lá, em algum lugar. Não desejou arriscar como da última vez, sem saber o que significavam aquelas bruscas mudanças nas emoções. O espírito tomara conta da sua consciência ao ser ignorado.

Observou o ponto final do aposento. Em frente ao balcão, avistou duas figuras familiares. A sensação foi a mesma que Benídia costumara causar. Ou Luke. Desconfiança.

Ela não deveria se expor ao risco daquela maneira, assim como aos amigos. Havia algo errado, e Serafine precisava comunicar aos seus guardiões.

Ia retornar para Guillian quando alguém a interceptou. Serafine levou um susto. O homem era enorme, tinha feições sérias e olhar determinado, o canto da boca curvado num sorriso malicioso; Serafine viu a faca na bainha de seu cinto.

– Quero ouro, garota – ele sussurrou, fedendo a álcool.

– Problema seu. – Outro frequentador foi detido por um brutamontes semelhante. Serafine bufou. O ladrão era o motivo da sensação inquietante.

Ele agarrou seu pulso para empurrá-la em direção a um grupo de bêbados. A garota reagiu, ultrajada e furiosa, com um soco. O nariz do homem estalou sob seus dedos e Serafine sorriu vitoriosa ao vê-lo vacilar.

– Ladrão! – berrou esganiçada, fingindo-se indefesa.

O seu grito gerou a desordem.

Numa taverna repleta de homens embriagados e com os nervos abalados, não foi prudente soar o alarme. Não que Serafine se importasse.

O ladrão, ainda tonto, despencou sobre uma mesa; os apostadores do carteado que ali acontecia viram suas moedas de ouro rolarem pelo chão.

Em outra mesa, alguns homens até então silenciosos ergueram-se furiosos.

Houve um momento de tensão e os berros preencheram o recinto, extinguindo a baderna festiva com socos, tapas, chutes e ofensas.

Havia gente demais tentando sair ao mesmo tempo e dois brutamontes bloqueavam a entrada; confinados, os clientes começaram a lutar entre si, sem ter certeza sobre quem era o inimigo. Os ladrões desapareceram, aproveitando a confusão para roubar o que pudessem.

Serafine arregalou os olhos e se abaixou quando uma caneca foi arremessada e atingiu um rapaz magro e cambaleante. Guillian, do lado oposto do salão, atirou outra caneca na cabeça do oponente, abrindo caminho para Serafine. Dois homens altos tentaram interceptar sua fuga, mas a garota deu uma rasteira em um deles, sorrindo ao perceber que as táticas aprendidas no Oeste seriam úteis ali. Espalmou a mão sob o nariz do outro, suficiente para fazê-lo arquejar e sair da frente.

Ela correu, mas alguém a deteve antes que fosse atingida por um terceiro oponente. O reflexo de Serafine foi rápido como o da sua salvadora.

– Oi! – Aria, abismada, esquivou-se da cotovelada. – Fique calma. Estou tentando ajudar!

Ergueu as mãos em rendição e puxou Serafine para o balcão, onde Ian se mantinha escondido. O rapaz estava um pouco alterado, animado demais em um pandemônio daqueles.

– Que luta fenomenal! – Ian exclamou. – Vimos você derrubar aqueles homens.

– Foi... necessário.

– Foi excelente! – Ian riu. – Nunca vi uma moça tão elegante exibir tamanha força.

– Hã... – Serafine não soube o que dizer. Guillian tentava abrir caminho sem chamar a atenção e ela decidiu analisar a confusão.

Os grandalhões nas portas lidavam com um grupo escandaloso de prostitutas desesperadas para fugir. Elas usavam as unhas e dentes para arrancá-los da saída.

– Não recebíamos ladrões aqui há mais de uma semana. – O atendente comentou, escondido próximo ao trio. Não aparentava medo, apenas cansaço. – O maior problema é quando eles se vão.

– Achei prudente avisar. – Serafine desculpou-se.

– Na maioria das vezes eles só roubam; nunca causam confusão demais. – Ele franziu os lábios em indignação.

– Que tal sairmos daqui? – Ian bateu as mãos, animado. – Um dos guardas da entrada fugiu.

Nem ele nem Aria tiveram medo de atravessar a multidão. Serafine ficou admirada com a dupla de desconhecidos e a maneira como que eles lidavam com os baderneiros: Aria se esquivava dos golpes com rapidez. Ian era força bruta até o último fio de cabelo. Avançaram tanto que acabaram deixando-a para trás, cercada pelo que restara dos invasores.

– Saiam da minha frente! – Serafine abaixou-se e, tal como aprendera, usou força e velocidade a seu favor. Nada de movimentos felinos ou precisos como os de Aria. Serafine nocauteou os homens com o mesmo poder com que o espírito o faria; seus punhos doeriam quando a adrenalina se fosse, tal como seus joelhos e pés, mas ver os bandidos no chão faria tudo valer a pena.

– Serafine! – Ela parou ao constatar que se tratava de Jarek. – Ei!

Um dos ladrões, que estava à porta, correu para Jarek de espada em riste. Outro homem surgiu por detrás do seu guardião, encoberto por um capuz. Serafine gritou e Jarek virou-se, apenas para ser golpeado no rosto com o punho da espada e cair. Ian e Aria haviam sumido, e a maior parte dos criminosos se fora.

Guillian alcançou Serafine e ela se livrou do último oponente. Correram para Jarek, nocauteado pela força do golpe. Um hematoma se formava em sua cabeça.

Serafine trocou um olhar preocupado com o felpudo, mas ele deu de ombros.

– Jarek vai ficar bem. Só vai ter uma grande dor de cabeça quando acordar.


***


– Ei! – Jarek soltou um gemido, afastando-se da mão cuidadosa de Sibila. O guerreiro havia acordado há alguns minutos, irritado. Serafine o fitou, exausta, mas nada disse. Não estava com paciência para começar uma discussão. – Isso dói!

– Foi só uma pancada, Jarek. – Serafine cruzou o olhar com ele. – Dá para dizer que estamos quites. – Ele fez um bico indignado, mas não respondeu.

Sibila molhava um pano no líquido esverdeado de uma pequena bacia. Assegurara que ajudaria a curar o hematoma, mas ele grunhia sempre que a mulher tocava sua têmpora.

– Vai doer muito mais se não me deixar curá-lo.

– Precisamos viajar agora, e não perder tempo com um curativo.

– Vai anoitecer em breve, Jarek. – Guillian estava sentado à janela, os olhos atentos a qualquer coisa suspeita atrás das frestas. – É perigoso.

– Também é perigoso ficar aqui.

– Os soldados patrulharam a rua. – Serafine argumentou. – Não encontraram ninguém. Os ladrões se foram.

– Quem garante? – Jarek gemeu quando Sibila encostou o pano úmido no ferimento, mas a mulher insistiu. O rapaz continuou a resmungar entre dentes.

– Ele tem razão. – Os lábios de Sibila estavam franzidos. – Chamaremos muita atenção se partirmos agora, e estaremos vulneráveis sob a escuridão. Vamos deixar a cidade com a aurora, é mais seguro. – Ela foi até Guillian. Serafine imaginou que, se pudesse enxergar, Sibila estaria olhando o céu. – Espere um pouco de luz para adentrar o Reino sombrio.

Serafine estremeceu. Jarek a observou, suavizando a expressão dolorida. Guillian concordou com a Feiticeira.

– Partimos ao amanhecer.


Capítulo 4

Herdeiro de Morzyon

 


APROVEITARIAM AS ÚLTIMAS HORAS de comércio para se abastecerem. Sibila ficou incumbida de empacotar o restante dos pertences, mas havia uma exaustão fora do comum em sua voz. Serafine se perguntou o quanto a marca das sombras a estava afetando; se sua guardiã tinha pesadelos, se via sombras onde não deveria. Antes que pudesse questionar, no entanto, Sibila a dispensou, garantindo que tinha tudo sob controle.

O ferreiro, depois de muita insistência, concordou em entregar tudo, mesmo as lâminas não tendo sido trabalhadas. Guillian poliria e afiaria sua espada, e Serafine poderia cuidar do próprio arco. Quando o ferreiro foi buscar as armas, um velho magro e pálido passou pelo balcão. Seus olhos se arregalaram, e estacou ao ver Serafine. Ela recuou e esbarrou em Jarek. Baixou mais o capuz, escondendo a testa e os olhos. Jarek encarou o idoso com um olhar perigoso.

– Foi para a senhorita que meu filho vendeu o arco? – O homem perguntou.

– Sim.

– Recordo-me do dia em que o encomendou.

– Como é? – Serafine ergueu o tom.

– A senhorita me pediu que o fizesse e prometeu buscá-lo no dia seguinte, mas o dia seguinte nunca veio! Finalmente resolveu aparecer.

– Desculpe, senhor, mas eu...

O ancião, porém, já se adiantava para o interior da ferraria. Passou por uma grande mesa de madeira e voltou com o arco. Trêmulo por causa da idade, demorou a estendê-lo para a jovem, mas, quando o fez, foi com um sorriso.

– Foi minha obra-prima. Nunca tinha trabalhado com tanto afinco em um arco quanto nesse. Espero que o use com sabedoria.

– Certamente, mas não fui eu quem... Espere. O senhor usou magia neste arco?

– Continua sensitiva como da última vez. – Ele sorriu, manejando a arma com habilidade. – Imbuí a madeira com cânticos de proteção e pontaria, como meus ancestrais costumavam fazer. Magia da Luz, como me pediu. Esse arco vai servi-la bem.

– Senhorita? – Serafine voltou-se para o ferreiro, que retornava. – Vejo que encontrou meu pai. – Ele encarou o velho, indignado pela indiscrição.

– Estávamos conversando. Ele me confundiu com alguém, porque nunca o vi antes.

– A memória dele já não é mais a mesma. – O velho ferreiro se distraía examinando as espadas do mostruário.

O arco nas mãos da garota carregava o peso e a energia do dia anterior, causava arrepios, mas a ideia de que tinha alguma coisa a ver com o passado a perturbava. Uma mulher o encomendara, pedira por encantamentos de proteção, e nunca voltara para buscá-lo. Havia várias lacunas naquela história, e ainda assim Serafine se sentia ligada a ela.

Antes de deixar o estabelecimento, sua audição aguçada encontrou uma discussão sussurrada entre pai e filho. Ela parou.

– Pai, não podemos pedir para ver o rosto da cliente.

– Mas e se ela tiver as marcas?

– Isso não provaria nada.

Serafine saiu. Chocada demais para falar, acompanhou os guardiões até um celeiro em outra rua; pretendiam comprar cavalos, quantos pudessem pagar. O criador tinha poucos corcéis velozes, a maioria do Leste, mas arranjara alguns do Oeste há pouco tempo. Estava prestes a fechar, mas uma moeda de ouro o convenceu a atender Jarek.

Serafine e Guillian examinaram alguns cavalos treinados para viagens curtas e cargas pesadas, mas a mente da garota estava longe. A pergunta do idoso reverberava em sua cabeça, um aviso de que algo importante havia sido revelado: mas e se ela tiver as marcas?

Em um mundo mágico, a quais marcas ele se referiria? As ondinas tinham espirais azuis em resposta ao domínio sobre a Água, e havia outra raça que também as ostentava. Não tão bem aceita e querida naquele mundo, mas... existiam. E Sibila era uma delas. Ela as possuía, fracas, mas memoráveis; mágicas.

A garota franziu o cenho. Feiticeiras.

Arregalou os olhos para Guillian:

– Preciso voltar ao ferreiro.

– O quê? Por quê?

– Apenas alguns minutos. – Prendeu o arco ao ombro e esperava pela permissão do felpudo. Indeciso, Guillian fitou Jarek a alguns metros de distância. – Por favor!

– Certo. – Ele gritou para Jarek os esperar e se apressou em acompanhar Serafine. – Por que estamos correndo?

– Tenho que descobrir uma coisa.

– Não está abalada por causa do velho, está? – Guillian soou indignado. – Milady, ele está maluco! Confundiria um Atyubru com um coelho. – Serafine não replicou que a diferença entre ambos seria mínima; Guillian inflaria de raiva.

As portas da ferraria estavam fechadas. Serafine ficou decepcionada.

– Minhas desculpas, senhorita. – Ela saltou de susto. O ancião estava sob a sombra da ruela, sentado nos degraus da ferraria.

– Desculpas?

– Fui muito tolo, momentos atrás. Sou velho e minha memória está cheia de fios soltos, mas deveria ser capaz de diferenciar mãe e filha. – Serafine prendeu o fôlego, extasiada pela resposta. E, incrivelmente, não muito surpresa.

– Ela pediu os encantamentos no arco para o senhor?

– Ah, sim. Disse que viajaria para o Oeste. Estava deixando as terras amaldiçoadas, e precisava de um arco poderoso para enfrentar o Grande Deserto. Prometi que faria o melhor de todos, mas ela nunca retornou.

– Quanto tempo faz?

– Uns dezoito anos. – Serafine engoliu em seco. Guillian ficava mais tenso a cada nova palavra dita. – Ela era bem jovem e escondia o corpo sob uma capa escura. Parecia... amedrontada, se minha memória me permite lembrar. Mas sou um velho caduco, minha querida, não confie em tudo que digo.

– Qual era a aparência dela? O senhor consegue se lembrar disso?

O idoso franziu as sobrancelhas, forçando a recordação. Serafine aguardou, o coração retumbando nos ouvidos.

– Muito parecida com a senhorita. Alta, feições fortes. Ela tinha marcas nas mãos e no rosto, símbolos mágicos. Meu filho garantiu que eram dizeres amaldiçoados, mas ela foi gentil e civilizada. Não havia nada de ruim em sua presença.

– O senhor se lembra da cor dessas marcas?

– Senhorita, eu... – Ele hesitou.

– Lembra-se? – Serafine insistiu.

– Eu posso estar errado, mas eram vermelhas. Como sangue.

– Muito obrigado pelo seu tempo, senhor. – Guillian puxou a protegida pelo pulso. Com um zumbido crescente ecoando em meio aos pensamentos, Serafine se afastou do Atyubru, lançando uma última pergunta:

– O senhor... Consegue se recordar do nome dela?

– Ela não me disse. Sinto muito. – O homem contemplou o rosto oculto de Serafine. – Espero que consiga encontrá-la, onde quer que esteja. Se o arco a trouxe até aqui, senhorita, as linhas do destino com certeza vão levá-la até aquela mulher.

– Vamos. – Guillian empurrou a garota. Serafine recostou-se à parede do beco com o coração descompassado.

– Minha mãe... minha mãe encomendou este arco – ela sussurrou, os dedos apertados contra a madeira. – E você a conhece.

– Serafine. Sinto muito. – Ele desviou o rosto. Serafine não o culpava; depois de vivenciar, junto a Ývela, as tormentas de um juramento de sangue quebrado, não desejaria que Guillian passasse pelo mesmo. No entanto, a sensação sufocante permaneceu. Serafine fantasiou a imagem de uma mulher parecida com ela mesma, que acabou por lhe dar à luz. Ela teria pele escura e marcas avermelhadas.

Deuses...

– Guillian? Se eu perguntar, você tem permissão de me responder?

– Eu jurei segredo, milady.

– Sei disso, mas... Seus olhos não podem mentir. Dá para ver a verdade neles. Se eu disser um nome, pode me ajudar?

O Atyubru engoliu em seco. Serafine estava sendo imprudente, mas a resposta estava em suas mãos, escorregando entre os dedos. Se pudesse pegá-la e fazer da suposição uma verdade, ao menos muito das suas visões fariam sentido.

– Podemos tentar. – Guillian endireitou os ombros, resoluto.

– Ravenne?

Os olhos dele brilharam, orgulhosos, talvez alegres. O peso das costas de Serafine diminuiu. A energia vibrante do arco pareceu responder à sensação de alívio.

– Ravenne – repetiu com um sorriso. A misteriosa mulher de seus sonhos, a Feiticeira que salvara sua vida. Sua mãe.


***


– Por que demoraram tanto? – Jarek inquiriu impaciente.

– Tivemos alguns contratempos. – Guillian usou um tom complacente, encarando Serafine perdida em devaneios e resoluções. – Comprou os cavalos?

– Vocês não vão acreditar... – O rosto do Sturian se iluminou em um sorriso. Ele assoviou. O dono do celeiro trazia dois corcéis pelas rédeas, mas um terceiro trotava com um ar sábio. Serafine franziu o cenho ao vislumbrar um antigo conhecido.

– Darius?! – concluiu, abismada. – Como chegou até aqui?

– Inteligentíssimo esse animal! – O vendedor deu um tapinha no pescoço do cavalo, que lhe lançou um olhar nada amigável. – Fugiu de uma guilda de ladrões. Encontrei-o vagando do lado de fora da muralha. O rapaz aqui queria pechinchá-lo pelo simples fato de ter sido seu, tempos atrás! – O homem fitou Jarek num misto de indignação e raiva. O Sturian respondeu com frieza.

– O corcel é meu! Não havia nada a ser negociado. Ele me reconheceu. – O vendedor deu de ombros.

– Não importa. Eu o encontrei, você o havia perdido. O ouro serviu para uni-los novamente. – Seu discurso acabou com um largo sorriso; fez um aceno respeitoso para Serafine e Guillian, e se foi. Jarek continuou a observá-lo com ferocidade até o homem desaparecer na curva da estrada.

– Darius, ainda pode falar? – Serafine tinha estranhado o silêncio do corcel.

– Claro que sim! – O cavalo resmungou. – Mas não falaria diante daquele humano avarento. O tempo que passei com os ladrões não foi tão ruim comparada a minha estadia com ele.

– Fico feliz por vê-lo bem. – A garota sorriu.

– Agradeço. – Darius balançou a cabeça.

– Como foi encontrado pelos ladrões? – Guillian se encheu de curiosidade. Darius relatou com animação sobre sua heroica travessia pelo Deserto, onde cruzou com o grupo nômade de assaltantes próximo à Cidade Miragem. Como era um corcel resistente, os ladrões cuidaram dele para carregar o produto dos roubos. Pretendiam viajar até outra vila, mais para Leste, quando Darius escapou numa noite. Nos arredores da muralha o vendedor de cavalos o viu e o trouxe para dentro. Era um cavalo elegante e belíssimo, mas nenhum dos possíveis compradores conseguira cobrir o preço pedido. Jarek o fez.

Serafine ficou grata pela distração, mas desviou a atenção depois de um tempo. A ideia de que sua mãe, de que Ravenne passeara por aquela cidade era forte o bastante para deixá-la desnorteada. O que mais teria feito? Por que encomendara o arco e não voltara para buscá-lo? Ela dissera ao ferreiro que estava fugindo das terras amaldiçoadas. Do Sul? De outras Feiticeiras? Serafine desejou mais informações, mas imaginou que o velho não se lembraria.

Com um suspiro, voltou aos aposentos na hospedaria e arrumou seus pertences para a partida ao amanhecer.


***


O céu escuro tingia-se com alguns poucos raios de Sol. Pesada névoa cobria as ruas da cidade, tornando suas silhuetas disformes. Serafine observou a tempestade que cobria o horizonte. Não havia uma alma pelas ruas; nem mesmo o dono da estalagem estava desperto quando o quarteto deixara o local. Guillian escondera uma bolsa com o pagamento sob o balcão e riscara seus nomes falsos no livro de registros.

O cavalo de Serafine, um animal jovem de pelagem escura, carregava todos os pertences dela. Serafine enroscou o arco em um apoio da sela, mas prendeu a aljava ao ombro, com a flecha mestra escondida em meio às comuns. Garantiu a si mesma que descobriria algum encantamento para consertá-la, mais poderoso do que os tentados até então. Esperava que os Deuses guiassem o seu caminho dali para frente; não sabia o que esperar do Reino onde as Trevas repousavam, não imaginava como encontraria o Mestre, mas, principalmente, temia o que a aguardava naquela parte da jornada.

– Pronta? – Ela voltou-se para Guillian, que dividia o corcel com Sibila. Não, desejou dizer, mas sorriu. O pequeno guerreiro trazia no cinto duas facas afiadas. Em uma bainha às costas, a espada encomendada com o ferreiro.

Sibila carregava apenas uma adaga de lâmina curva e cabo enfeitado por safiras. A mulher a prendera ao calcanhar, oculta pela longa saia. Uma Feiticeira era a própria arma.

Jarek carregava a sela de Darius. O guerreiro trazia às costas duas espadas, uma longa, com cabo de tecido escuro, e outra de lâmina serrilhada. Também possuía facas pequenas, fáceis de arremessar. Dois punhais escondidos nas botas e outros cinco sob o casaco. A inseparável adaga, claro, continuava no cinto.

– É melhor usarmos o portão Sul, há menos guardas na muralha – Darius sugeriu. Jarek e os outros trocaram um aceno de concordância.

– Fiquem atentos – avisou Guillian. Darius relinchou e iniciou a cavalgada; os outros o seguiram.

As ruas estavam silenciosas. O Sol ainda não despontara no horizonte, mas alguns raios cortavam a madrugada. Ao Sul, nuvens cinzentas cobriam a linha de visão, cada vez mais próximas.

Serafine avistou um grupo de soldados cruzar o beco, apressados, em direção à mesma entrada pela qual o grupo passara há alguns dias. Fitou novamente as nuvens que vinham do Reino das Brumas e um arrepio conhecido cruzou sua espinha, a sensação inquietante de que algo estava errado. Um alerta a incitou a parar. Os guardiões fizeram o mesmo.

Estava quieto demais.

– Jarek, estou com um mau pressentimento.

Os sinos badalaram ao longe. Serafine respirou fundo. O som incessante fez rostos curiosos e amedrontados saírem às portas e janelas. Famílias acenderam lampiões e tochas, procurando o que quer que estivesse alarmando os soldados nos portões.

Foi então que alguém gritou:

– Tem uma sombra no céu!

Serafine o viu antes de todos. Em meio à penumbra, um dragão envergou as asas e mergulhou, descendo para a rua central. A criatura gritou; o som reverberou pela Cidade das Areias, e labaredas jorraram de sua boca no instante seguinte, como uma cascata, fervendo o ar.

Serafine levantou o punho e o espírito respondeu. As pedras da rua se ergueram acima das pessoas ao seu redor, desviando as chamas. O calor a fez lacrimejar, e Guillian tossia quando ela moveu a terra novamente.

Os moradores da cidade gritaram e correram. Um segundo sopro despencou sobre as casas, desmoronando telhados e destruindo corpos. Serafine desmontou. Sibila posicionou-se ao lado de sua protegida, assim como Guillian.

– Darius! Leve os cavalos para as estradas do Sul! Nos encontraremos lá! – Jarek exclamou. O corcel não se demorou em seguir o caminho indicado.

O dragão curvou-se no céu e voou até outra área da cidade. O baque dele contra os muros silenciou repentinamente os sinos. Então vieram novos gritos apavorados. Alguma coisa acompanhava o dragão, e Serafine não queria ficar para descobrir o quê.

Porém, as pessoas... Havia muitas correndo em círculos, chorando, abraçadas aos familiares sem saber o que fazer.

– Jarek! – Voltou-se para o guardião. – Precisamos levar todos para o portão sul!

O rapaz encarou os muros destruídos. Suas sobrancelhas cingiram-se e, usando modos nada sutis, ordenou:

– Para o sul, se quiserem sobreviver! Corram! – Guillian posicionou-se sobre um amontoado de caixas para ficar visível. Serafine os viu hesitar e entendeu a desconfiança, mas aquele não era o melhor momento para isso.

Alguns soldados apareceram pela rua lateral. Um deles tinha o cabelo chamuscado, e o companheiro parecia tão perdido quanto todos os outros. Ele viu Jarek e Guillian incitarem as pessoas a fugir e reagiu:

– O que estão fazendo? Voltem para suas casas!

– Para as casas? – Serafine retrucou. As pessoas pararam a correria. – Não escutem! Vão para o portão sul, precisam evacuar a cidade!

– Fiquem em suas casas! Nós temos tudo sob controle! – O provável líder da guarda respondeu, furioso. As pessoas pareciam prestes a obedecer quando Serafine avançou contra ele.

O homem não teve tempo de recuar quando a Escolhida despertou seus poderes. O espírito ainda repousava, mas a força e velocidade sobrenaturais a guiaram. Fechou os punhos ao redor da gola do casaco do soldado e o empurrou contra a parede de tijolos. Tinha certeza de que o brilho da possessão estava em seus olhos, pois o homem a fitou com expressão amedrontada.

– Tem um dragão destruindo a cidade! Vocês não têm nada sob controle. Para os portões! – Serafine vociferou, tomada por fúria. Sua visão periférica escureceu e focou-se no medo no rosto do soldado. Seu poder causou comoção ao desconhecido e trouxe energia ao seu corpo. Tema a minha força, sua mente ecoava.

– E-eu tenho ordens a seguir! – o soldado gaguejou.

O rosnado do dragão soou acima deles. Serafine ergueu a cabeça ao vê-lo sobrevoar as casas, mas a fera não a atacou. Ela a reconheceu.

A esperança não podia se esconder da escuridão.

O dragão abriu a boca, Serafine largou o soldado e clamou seus poderes. A reverberação do chamado estremeceu as ruas, soltando as pedras do calçamento, amontoando-as em formações maiores. O dragão rugiu e recuou ao entender o que ela pretendia. Serafine ergueu o braço e as pedras voaram como flechas, em uma sequência que acertou as membranas das asas. O monstro perdeu o equilíbrio. Dobrou o corpo e mergulhou.

– P-para... Para os portões! – O soldado finalmente reagiu, empurrando as pessoas. Serafine ficou para trás.

– Filha da Luz. – A garota se assustou ao ouvir a voz do dragão, que se postara ao fim da rua. Guillian estava sobre um telhado ao lado do monstro, e Jarek, sobre a casa do lado oposto. Sibila, no beco, tinha as mãos juntas, os lábios sussurravam um encantamento. – As Trevas vão tomá-la.

– Quem é você?

– Eu sou a sombra. – O dragão cravou as unhas afiadas no solo e deu dois passos adiante. Ele não era grande, não como aquele que invadira a Fortaleza. Ocupava a rua, mas não intimidava. O horror estava em seu olhar, nas íris azuis vibrantes e escamas da cor da noite. Os chifres na cabeça pareciam pedaços de gelo e dobravam-se para trás. Tal como os espinhos que cobriam suas costas, eram um escudo. – Sou um dos filhos de Morzyon.

– O seu pai é um idiota – Serafine retrucou. O dragão abriu a bocarra. Serafine vislumbrou o brilho escarlate por detrás dos dentes afiados e Guillian e Jarek saltaram sobre ele. A garota ergueu o punho e braços feitos de terra arrastaram a criatura para o chão. Sibila abriu as mãos e chamas azuladas enroscaram-se nas asas e no focinho, prendendo-o no encantamento. Fumaça escapou dos lábios da criatura, mas nenhuma chama saiu.

O filho de Morzyon se debateu. Guillian cravou a espada entre os espinhos e as escamas, arrancando urros abafados do monstro. Um estalo encheu o ar e as chamas de Sibila se dissiparam ao redor das asas. A Feiticeira caiu de joelhos, enfraquecida pelo próprio poder. Uma das asas lançou longe o Atyubru, mas Jarek se segurou. Enquanto Serafine sustentava a magia e ajudava Guillian a se levantar, o Sturian enfiou a espada entre os espinhos das costas, arrancando um silvo agoniado do dragão.

Os braços de Sibila tremiam, mas o feitiço que prendia o dragão ao chão permanecia. Jarek se aproveitou disso e escalou os espinhos menores sobre o pescoço da besta. Deu um olhar para Serafine e ela entendeu. O guerreiro desceu a lâmina em duas estocadas que cortaram fora um dos chifres.

– Agora seria uma boa hora para sua pontaria, milady. – Guillian sugeriu. Serafine inspirou fundo, canalizando seu poder. A terra continuou sob comando, mas as mãos da garota ficaram livres. Encaixou duas flechas no arco e tensionou a corda, focalizando um dos olhos do dragão. A madeira e a magia presente nela deixaram seu corpo mais leve e firme. A visão pareceu se ajustar ao cenário.

Em meio aos urros, o tiro foi certeiro no olho da fera. O dragão ergueu a cabeça bruscamente, batendo o corpo numa das casas, que desabou. O feitiço de Sibila desapareceu.

O filho de Morzyon abriu a mandíbula e o brilho escarlate explodiu em uma labareda fervente. Mesmo preso ao chão, o dragão fez o inferno cair sobre Cidade das Areias. Fogo chovia pela rua conforme ele se debatia.

Serafine não vira Jarek se afastar da fera. Recuara em busca de abrigo e no instante seguinte o guerreiro caiu à sua frente, as mãos estendidas, levando o incêndio para longe dela e de Guillian.

– Tempo perfeito, amigo. – O Atyubru sorriu. Jarek piscou um olho para Serafine.

– Vão!

Serafine e Guillian correram até o beco. Sibila não fora atingida pelos escombros, mas estava caída, fraca demais, e por isso os dois a ergueram e ajudaram a andar.

– Escuridão. Há tanta escuridão. – A mulher sussurrou. Serafine apertou a mão sobre a dela, um apoio silencioso.

O fogaréu atrás do trio se dissipou subitamente, como se algo tivesse parado o grito do filho de Morzyon. Ele se ergueu aos céus, a asa ferida ainda apta a carregá-lo, e sua silhueta sombria ascendeu sobre o amanhecer. Serafine esperou por um novo ataque, mas a criatura ganhou altitude, desaparecendo na direção do Reino do Oeste com a mesma rapidez com que surgira.

– Ele... desistiu? – Guillian soou confuso.

Serafine olhou para as casas em chamas. Com exceção do crepitar do fogo, o que quer que acompanhasse o dragão provocara um silêncio nas ruas.

– Tem alguma coisa errada. – Serafine comentou. Jarek a fitou à distância e a expressão desconfiada desabou em choque. Ele não teve tempo de alcançá-la.

Uma flecha zuniu ao lado da garota, raspando seu braço. Guillian puxou a espada no instante em que as cobras de Sibila silvaram.

Uma figura encapuzada surgiu das ruas laterais. Uma segunda saltou de um dos telhados intactos, seguida de uma terceira. Serafine arquejou, contabilizando doze estranhos em um cerco.

Mesmo com a dor, a garota manteve a concentração. Ergueu uma mão e a terra vibrou sob os estranhos. Antes que concluísse a magia, no entanto, um dos atacantes veio do telhado. Serafine foi jogada ao chão com uma faca contra sua garganta. A Escolhida não podia ver Guillian, mas ouviu seus grunhidos e o tilintar de lâminas.

– Boa noite, doçura. – Ela reagiu à voz conhecida do atacante. Aria sorriu sob o capuz e soprou um pó esverdeado sobre Serafine. Exaustão a cobriu, arrastando-a para a escuridão.


Capítulo 5

A Tormenta das Águas

 


– RECUAR! – A VOZ DA Rainha trovejou sobre seus soldados. Tritões e sereias, subordinados e aliados que vieram de águas longínquas obedeceram ao comando, deixando que a correnteza repentina os levasse para longe no instante em que a escuridão avançou. A massa se transmutou em um rosto, os olhos vermelhos familiares à herdeira das Águas. O estouro de uma gargalhada ressoou em sua mente antes de tudo se apagar.

Ývela arquejou e as águas a ergueram da cama improvisada. Dor excruciante respondeu ao movimento. O ferimento estava em processo de cicatrização, mas nem por isso deixava de torturá-la com a sensação de mil facadas.

A queimadura fora causada pela explosão de sombras que devastara parte do campo de batalha dias atrás; por causa dela, a Rainha das Águas havia sido obrigada a se retirar do combate. Perdera mais de mil soldados e não podia permanecer ao lado dos que restaram.

Era uma tortura para Ývela ficar em repouso. As ações mais significativas vinham de seu espírito, a força vital da qual o oceano se alimentava. Era sua energia que mantinha os leviatãs submissos à prisão; Ývela impedia a destruição da última fronteira entre Warthia e o renascimento da escuridão. A vida da mãe havia garantido que aqueles monstros não deixassem a prisão por milênios. Ývela deveria fazer o mesmo.

Entretanto, ela era uma Rainha derrubada por um ferimento e não podia se juntar aos seus soldados. Estava confinada àquela tenda, com sereias armadas guardando as portas e os arredores, dispostas a sacrificarem as vidas para manter sua monarca a salvo.

Ývela se remoía em culpa. Aquelas guerreiras deveriam estar ao lado das irmãs em campo de batalha, não ali.

A ondina havia discutido diversas vezes com Maya nos momentos de lucidez. Implorou para que a levassem até alguma das cavernas próximas aos campos de batalha; quase não sentia a aura de seus soldados àquela distância. A queimadura continuava a arder mesmo com os encantamentos de cura e, pela demora no processo de cicatrização, Maya refutou qualquer argumento seu. A proteção da Rainha era essencial. A teimosia de Ývela parecia uma idiotice, rebeldia sem razão, mas permanecera tempo suficiente na companhia de humanos teimosos. Ter de se dobrar as leis das Águas era uma tortura.

Aliadas às dores, alucinações e pesadelos com as cenas da batalha a atormentavam no sono; havia também a preocupação com Warthia, Serafine, Jon e todos que habitavam seu coração e pensamentos. Desde seu retorno, Ývela não conseguira contatar nenhum deles. Uma nuvem sombria cobria a magia de Warthia, prendendo-os à própria sorte.

Ela escondeu o rosto entre as mãos. Os pensamentos incoerentes haviam-na deixado instável. Tantos sentimentos conflitantes em sua mente, tanta angústia e desespero e dor.

Conteve um gemido quando o ferimento ardeu. Levou as mãos ao local, pressionando-o, e a água a guiou até o unguento. Uma sereia deveria aparecer em minutos para reaplicar a pasta gosmenta e anestesiante. Ývela retirou as bandagens, imaginando a bronca que receberia da curandeira, e estremeceu ao ver a queimadura.

A pele se transformara em uma extensa mancha vermelha. Ao redor, um hematoma arroxeado se espalhava pela barriga e costas; segundo a curandeira, marcava a área atingida pelas sombras como um dano físico, tal como seria com uma lâmina. A magia das águas curava sua Rainha, mas Ývela se aterrorizava ao pensar no alcance do poder das sombras.

Com isso, seus pensamentos voltavam para Warthia. O Reino das Águas era sua responsabilidade, seu dever, mas o continente era seu coração. Ývela lutava contra as contradições, contra a sensação de traição em sua consciência por se preocupar com Serafine, Jon e os outros. Ela precisava mantê-los longe da mente, mas o terror a inundava com o avanço das sombras. A ignorância sobre o que acontecia em Warthia a atormentava.

Lembrou-se do silêncio ao tentar contatar Jon, da quietude que o encantamento transportara até seus pensamentos. Lembrou-se do vazio que respondera ao seu chamado por Serafine, Jarek e Guillian. Warthia era escuridão.

Ývela mordeu o lábio inferior, lançando uma olhadela para a entrada da tenda. A ondina fechou os olhos, derrotada pela ansiedade, e esvaziou a mente. Primeiro, tentou Serafine, e o bloqueio interferiu. Uma parede impediu Ývela de prosseguir o contato, de alcançar a Escolhida. Só encontrou densa penumbra.

Ao quebrar o encantamento, abriu os olhos e contemplou a curandeira. A expressão severa dela mesclava-se a outra, mais tensa. Um calafrio percorreu a espinha da ondina.

– O que aconteceu? – O tom imponente da Rainha estava de volta, mas havia complacência nele.

– Majestade... Houve uma aliança entre os grupos a noroeste. Eles se uniram às Trevas. Os números são exorbitantes. Com o ataque da escuridão e o avanço dos inimigos, nosso exército precisou abandonar o campo de batalha.

– O quê? – A voz de Ývela soou estridente. – Perdemos território?

– É pior, majestade. O Castelo de Nêmesis foi tomado. – Uma construção ancestral, tal como o palácio que pertencia à Rainha. Um forte até então impossível de derrubar. – As mensagens que recebemos disseram que... – Ela engoliu em seco. – Que nossos exércitos serão encurralados no Reino do Sul. As correntezas os estão guiando para uma armadilha.

– Isso não é possível. Eu as controlo – Ývela sussurrou. Depois da explosão de sombras, a ondina não sentia mais seus soldados. Se a escuridão fora capaz de dobrar as correntes marítimas, o poder da Rainha das Águas estava sendo drenado.

– O ferimento a está exaurindo, majestade. – A sereia explicou, cheia de culpa. – E, com a exaustão, o poder maior triunfa.

Ývela se sentou.

As Trevas estavam criando uma barreira entre o continente e a prisão dos leviatãs ao sul do Reino das Águas. Se o exército que batera em retirada não conseguisse escapar da provável armadilha, as perdas seriam devastadoras. As correntes já não respondiam mais à sua controladora; quanto tempo até Ývela sucumbir?

– Maya estava entre as legiões?

– Não, majestade. Ela conseguiu escapar. Enviou uma mensagem telepática, deve chegar aqui em algumas horas.

– Traga-a para mim. – Ývela engoliu em seco. A queimadura ardia com mais força a cada segundo, como se o triunfo das sombras trouxesse dor. – Eu vou para o Sul. Convocarei os gigantes.


Capítulo 6

Aliança com os orelhudos

 


O GRUPO QUE ACOMPANHAVA o Rei do Oeste escolheu uma clareira para descansar. O crepúsculo se fora, deixando-os sob um céu estrelado. Não havia nuvens ou sombras; nada que pudesse perturbá-los.

A viagem prosseguia numa estranha calmaria desde o incidente em Vila Faísca. Jon procurara por Percival, e o jovem arqueiro compreendeu e aceitou as desculpas do Rei. Mesmo assim, remorso pesou nos ombros do jovem Mago. Com um suspiro exausto, Jon retornara ao seu posto adiante do grupo e prosseguira em silêncio pelos dias que se seguiram, tentando entender o que se passava, como a ira o dominara tão facilmente.

O cansaço dos viajantes, principalmente dos nobres, os fez parar. Jon os manteve protegidos sob sua magia. Leyona encontrou um lugar seguro para repousarem numa clareira próxima a um córrego de águas límpidas; pediu a Jon que descansasse, e se retirou junto a outros Sturian para caçar.

Jon caminhou entre eles, ouvindo agradecimentos e recebendo sorrisos cansados. Os Sturian que ficaram para trás montaram guarda ao redor da clareira, e os mais jovens se reuniram em um círculo para esperar o retorno dos outros. A mente de Jon se perdeu na geografia daquela região.

Em meio aos pensamentos sobre o Castelo de Tytos, um detalhe chamou sua atenção. Jon franziu as sobrancelhas e avançou para uma árvore, erguendo o rosto conforme se aproximava. O objeto amarrado num dos galhos balançou à brisa. A cor escarlate das penas vibrara ao luar.

– Percival? – Jon usou um tom polido para chamar o menino, que vigiava um dos caminhos escolhidos pelos Sturian. Não recebera permissão de acompanhá-los na caçada, mas Mynna, a destemida filha de Leyona, deixou que montasse guarda com ela. A garota o seguiu quando Percival foi até o Rei. – Vê aquilo?

– Sim, majestade. – Os olhos claros dele encontraram o objeto. – O que é?

– Um sinal. – Diferentemente do tratamento frio dos dias anteriores, Jon falou com gentileza. Percival se surpreendeu com o sorriso no rosto do monarca. – Já ouviu falar dos Atyubrus, Mynna? – Jon fitou a menina.

– São guardiões da floresta.

– Mais do que isso, são exímios guerreiros. Moram nestas terras há séculos. – Jon lembrou-se das palavras do pai na época em que conheceu o governante da raça curiosa. – São criaturas teimosas, mas com grande amor por esse mundo. Vivem em uma região protegida dos olhos curiosos. Poucos foram escolhidos a conhecer a localização de sua moradia.

– E Vossa Majestade chegou a conhecer?

– Não. Mas meu irmão mais velho sim. – Demetrius retornara da viagem, ansioso por contar os detalhes, mas sem poder fornecer nenhum. – Esse povo costuma marcar o território proibido com penas vermelhas no alto das árvores. Qualquer um que ultrapasse a área está violando suas fronteiras, e acreditem: não se deve, em hipótese alguma, invadir o território estabelecido por esses orelhudos.

– Guillian é um Atyubru, não é?

– Sim, Percy.

– O coelho que andava com a Serafine? – Jon não conseguiu conter o riso.

– Não é um coelho, é um Atyubru. – Percival revirou os olhos.

– Vermelho é a cor oficial do reino deles – Jon explicou.

– E nós estamos invadindo seu território? – Mynna cruzou os braços, questionadora.

– Não sei, na verdade. – A testa do monarca encheu-se de vincos. – Achei que seu reino ficava ao Norte. Estamos muito longe de lá.

– Majestade! – Um dos vigias exclamou. Das sombras, parte dos Sturian retornava acompanhada. Jon arregalou os olhos.

Leyona, que liderara a caçada, vinha com as mãos atadas às costas e uma lança sob o queixo. O Mago ergueu uma das mãos e faíscas roxas estalaram entre seus dedos, mas Leyona sinalizou para que não tentasse.

Criaturas pequenas e de aparência amigável, com grandes olhos e topetes coloridos, pararam sob a luz. Os olhares eram desconfiados e hostis. Apesar do semblante sério de Leyona, Jon avançou cautelosamente.

– Quem vem lá? – O líder dos pequenos guerreiros adiantou-se. Uma cicatriz descia pelo lado direito de sua face, expondo a pele rosada sob pelos escuros.

– Sou Jon Tytos, Rei do Oeste. – A voz amigável do monarca não pareceu convencer o felpudo.

– Ah, claro, e eu sou a Deusa Ímani.

– Não brinque com isso, Urir. – Jon voltou-se para a Atyubra que apontava a lança para Leyona; tinha grandes olhos alaranjados, assim como o topete. A expressão era de seriedade, mas certa simpatia cruzou seu olhar ao observar Jon mais de perto. – Eu reconheço esse rosto.

– Já nos vimos antes?

– Não, majestade. Mas é parecido com seu irmão, o Grande Rei. – A fêmea sorriu e baixou a arma. – São seus amigos?

– Sim.

– Sabe que são Sturian, não? – Urir franziu o nariz redondo.

– São meus soldados e guarda pessoal. Confio minha vida a eles. – Jon manteve a voz cordial, mas encarou o Atyubru com um olhar severo.

– Pois bem, então. – A orelhuda não replicou. – Jon Tytos, eu, Jill, concedo a você e aos seus companheiros passagem até nosso acampamento. Serão meus convidados e nenhum mal lhes acontecerá, ou darei minha vida para protegê-los. – Seu tom era solene e os demais Atyubrus assentiram. Leyona ainda estava chocada ao se aproximar de Jon.

– Acampamento? – O Mago indagou.

– Ah, sim. – O olhar de Jill pesou. – Nosso território foi atacado há algumas semanas. Lobisomens encontraram o refúgio com a ajuda de uma Feiticeira, e tivemos de fugir. Buscamos abrigo em uma das vilas destruídas e lá ficamos quando outros ataques avançaram pelo Reino.

– E quanto ao Castelo?

– Dominado. – A palavra fez as estranhas do Rei se revirarem. A confirmação, enfim. O Norte havia caído. – Ninguém sabe o destino do Grande Rei ou de seus lordes. A Rainha consorte está desaparecida. Descobrimos que os lobos tomaram o Castelo após derrubarem as vilas próximas, mas não nos arriscamos a ir até lá. Restaram poucos desde o ataque. – Ela baixou os olhos.

– Sinto muito. – Jon sussurrou. O coração acelerou ao pensar no destino da mãe e do irmão, de todas as criaturas daquele Reino. Condenados como os que viviam no Oeste.

– Estamos fazendo o possível para proteger a vila – Urir adiantou-se. – Jill e eu somos os líderes e organizamos os humanos mais capazes para construir o muro. Não é uma fortificação excelente, mas conseguimos criar armadilhas para manter os predadores longe. Os Lobisomens não parecem interessados nos sobreviventes, ou realmente não descobriram sobre nós. De qualquer modo, estamos seguros. Há mulheres, idosos e crianças abrigados nas casas... Muitos são refugiados de outras vilas.

– Os corpos desaparecidos! – Percival exclamou animado. Jill e Urir encararam-no com curiosidade e indignação; um menino intrometendo-se na conversa de adultos era novidade para os orelhudos. – Foram para lá, então?

– Nem todos. – Jill respondeu. – Muitos serviram de alimento para o fogo que sempre acompanha as Trevas. Há uma Feiticeira com eles, majestade. Nós a vimos durante o ataque à nossa morada. As chamas controladas por ela têm roubado a energia do Grande Bosque, devastando tudo em seu caminho para se alimentar da vida. Ela comanda o Castelo; quais planos maléficos está orquestrando por lá, só os Deuses sabem.

– Ela não exalava tanto poder quanto a última, no entanto. – Urir acrescentou.

– A qual se refere? – Jon indagou.

– A que atacou Líriel, meses atrás. Quando o avatar em chamas da Rainha das Trevas batalhou contra a Escolhida.

– Vocês conheceram Serafine? – A pergunta de Jon os surpreendeu. Jill endireitou os ombros, fechando o punho sobre o peito.

– Tive a honra de lutar ao lado dela e de seus guardiões, majestade. – Emoção brilhou nos olhos laranja. – O senhor... a encontrou? Ela estava bem? E seus companheiros?

– Eles ficaram em meu palácio por um tempo. Conseguiram escapar quando a Fortaleza foi dominada. Estavam bem. – Jon perdeu o sorriso ao se lembrar de Ývela. A dor o dilacerou. – Eles estão no Sul agora, buscando pelo terceiro Mestre.

– Graças aos Deuses. – Urir louvou. Jon não concordou, no entanto. Pensar em toda a escuridão que ameaçava cobrir Warthia o enchia de temores em relação ao destino de Serafine. Ela partira para o lado mais sombrio daquele continente. Que ruínas encontraria nas Brumas?

– A Rainha das Trevas conseguiu colocar mais uma peça no tabuleiro, majestade. Está tentando devastar o Norte – Jill sussurrou.

Jon apertou os lábios. A fúria que sentia não era descontrolada como na Vila; era uma raiva crescente que nascera na queda do seu palácio. Saber que o Norte perdia forças para uma filha da escuridão destruía toda calma que o Mago possuía.

– Me falem mais sobre o Castelo de Tytos. – O Mago adiantou-se. – O que sabem sobre os monstros que o tomaram? E quanto aos exércitos de meu irmão? O que aconteceu com este Reino?

Os orelhudos prosseguiram seus relatos sobre o que haviam conseguido observar. A segurança no Castelo não era grandiosa. Sharowfox não estava interessada em mandar grandes batalhões até o longínquo Norte, talvez pelo simples fato de estar exaurindo o Reino das Florestas. O Sul era o ninho de víboras, e os territórios laterais, seu futuro cerco. As Florestas estavam isoladas o suficiente para não representarem grande perigo ao domínio das sombras.

Sabiam que Demetrius convocara seus exércitos para marchar, semanas atrás. No entanto, os Atyubrus que saíram para acompanhar as legiões nortenhas nunca voltaram, assim como o Grande Rei. Seu paradeiro era desconhecido. Caberia a Jon investigar.

O palácio nortenho provavelmente ainda guardava documentos oficiais emitidos por Demetrius, caso os lobos não os tivessem destruído. Pergaminhos diriam a Jon onde procurar pelas legiões, ou, pelo menos, entender porque tantos soldados simplesmente desapareceram.

O fato de os Lobisomens e a Feiticeira terem liquidado boa parte da população do Norte também contava, restando apenas os elfos em seu refúgio isolado. Desde que Serafine enfrentara o avatar de Sharowfox, o guardião de Líriel protegera a cidade sagrada com uma série de novos feitiços, colocando-a de volta no casulo mágico restrito aos conhecidos. Líriel fora, definitivamente, apagada do mapa.

Jon desejou encontrar maior ajuda, mas tudo o que tinha era a aliança com aqueles orelhudos. Poucos, mas capazes.

O trajeto foi demorado, mas ainda era noite quando alcançaram uma estrada de terra. Os Atyubrus seguiram à frente com suas lanças em riste, ladeados pelos Sturian, desamarrados e armados.

– Aquele é nosso novo refúgio, majestade. – Jill trouxe Jon de volta à realidade, apontando na direção de uma curva. – Era território dos Hunnas antes das sombras aniquilarem todos que viviam aqui. Foi ocupado e reconstruído por nós e pelos outros sobreviventes.

O muro erguido nas margens do rio que circundava a vila – Águas Claras, se Jon se recordava bem – não tinha mais que três metros de altura e era feito de pedaços de madeira; qualquer ataque contra ele seria devastador. Por isso, estacas afiadas estavam fincadas no chão, assim como lanças estrategicamente posicionadas no portão de entrada, que se ergueu com um solavanco quando Jill sinalizou para o Atyubru de vigia. A ponte bamba que atravessaram estava sob a vigilância de cinco arqueiros, posicionados em uma torre sentinela ao fim da passagem.

Jon foi recebido por alentos de alegria. Conforme os refugiados reconheciam seu rosto e ouviam o aviso de Jill sobre a chegada do Rei, mães, pais e filhos se curvavam para o Mago. Crianças pediram que ele relatasse as histórias vindas de outros Reinos e idosos choraram por suas famílias perdidas. Jon viu em seus olhos a destruição que os ataques haviam causado. Mais do que em suas moradas, em seus espíritos. As Trevas estavam drenando a esperança das pessoas. E um mundo sem esperança era o lar da escuridão.

O Mago hesitou. Ansiou por dizer qualquer coisa, mas as palavras pareciam insuficientes para aquele momento. Urir o salvou da indecisão, insistindo em mostrar as plantas que ele e outros Atyubrus haviam feito sobre o cerco no Castelo de Tytos.

Jon partiu até o forte reconstruído pelos Atyubrus, onde os soldados guardavam suas armas e mapas. Uma antiga construção edificada em ouro puro que se tornara um monte de ruínas destruídas, o trono da guardiã daquela vila estraçalhado pela força das sombras.

Jill colocou alguns pergaminhos sobre o tampo da mesa e esticou-os para que Jon os examinasse. Os olhos negros do Rei cruzaram com os de Leyona, que não dissera uma palavra desde o encontro com os orelhudos; ambos dividiram a mesma ideia.

O Castelo precisava ser recuperado.


Capítulo 7

Aprisionados

 


O BARULHO E O solavanco foram fortes o suficiente para tirá-la da inconsciência. A luz a cegou de imediato e Serafine ergueu as mãos para cobrir os olhos. Sentiu o peso em seus pulsos: estava presa.

Seus pés estavam algemados também. Ao olhar para o lado, encontrou Jarek. Além dos ferrolhos, uma mordaça cobria sua boca. A expressão do guerreiro era a mais rabugenta possível.

Os acontecimentos da noite retornaram à sua memória: O dragão, as sombras, o ataque à Cidade das Areias e a emboscada. Aria... Ela era uma deles! O pó que ela soprara em seu rosto havia nocauteado Serafine. Quanto tempo havia se passado?

Acostumando-se com a luz, a garota observou em torno. Estava numa jaula puxada por cavalos. Árvores altas, de troncos pálidos e galhos secos ladeavam a estrada de terra; o terreno era irregular, mas, pela inclinação da jaula, Serafine compreendeu que estavam subindo.

O frio era absurdo. Serafine nunca havia sentido aquilo antes. Nuvens cinzentas passeavam pelo céu esbranquiçado, e flocos de neve caíam. Neve. Serafine jamais a vira, mas as histórias falavam sobre como o Reino do Sul era coberto por aquele manto de gelo, por colinas e cumes montanhosos irregulares, florestas pálidas de galhos afiados. Eles estavam nas Brumas.

Ansiosa, examinou a jaula, encontrando outro de seus guardiões – Guillian estava no canto direito, afastado – e havia mais dois homens e duas mulheres, três deles com expressões hostis. O quarto estava desmaiado, com a cabeça pendendo para frente.

Onde estava Sibila? Para onde estavam sendo levados? Quem era Aria e por que os havia sequestrado? Era o que se perguntava.

Seus nervos estavam em chamas, e pinicavam seu corpo, como agulhas. Ela precisava se soltar, sair dali, salvar seus amigos.

Com as pernas e braços dormentes e uma forte dor na cabeça, Serafine dava indícios de que sua paciência estava por um fio. Jarek percebeu e intensificou o olhar incisivo.

A caravana parou quando o terreno se tornou menos íngreme, e Serafine pôde ver os responsáveis pela captura. Seis se aproximaram da jaula, vestidos de cinza dos pés ao pescoço; suas roupas pareciam tão confortáveis quanto seus sorrisos. Serafine franziu o cenho e encarou aquele que carregava um cantil.

– Ian?

– Na verdade, amor, o nome é Diel. E olá. – O rapaz abriu o sorriso sedutor, mas permaneceu afastado das grades, protegido de qualquer reação que Serafine pudesse ter. Ela estava amarrada, não impossibilitada. – Está apreciando a viagem? Você dormiu bastante. – O tom de voz perdera o charme e abusava do sarcasmo. Parecido com Jarek no início da jornada.

Na verdade, ele lembrava Jarek em quase todo o seu tempo de convivência.

– Por que fez isso?

– Pelo dinheiro, é claro. – Outra voz soou em resposta. Aria sorriu e se aproximou da grade. – Você é linda, e acho um desperdício, mas nós somos piratas sem um oceano, graças às malditas Trevas e à batalha que travam com o Reino das Águas. O que mais podemos fazer? – Aria deu de ombros. Diel esticou a mão e o homem ao seu lado estendeu as chaves da jaula. – Escravos são valiosos no Sul.

A revelação veio como um soco.

– Vocês não têm o direito! – rebateu, enfurecida. Diel revirou os olhos.

– Não temos mesmo. – Aria concordou. – Mas estamos fazendo.

– Se eu ganhasse uma moeda de ouro para cada vez que escuto alguém dizer isso... – Diel comentou, analisando Jarek. O guerreiro o encarava como se Diel fosse uma presa prestes a ser abatida. – Estaria mais rico que o Rei do Leste. E agora vou ficar. Afinal de contas, encontramos uma carga muito preciosa.

Serafine hesitou.

– Achou que um corte de cabelo a esconderia, Escolhida? – Diel sorriu. – A recompensa pela sua captura é absurda. Ah, o espetáculo nas Catacumbas... Vai ser maravilhoso. O príncipe vai ficar satisfeito.

– Luke? – O nome escapou num sussurro. Diel a fitou.

– Conhece?

Ela apertou os lábios, recusando-se a responder. Luke havia colocado um preço em sua cabeça?

– Estou curioso sobre suas marcas. – Diel prosseguiu, sem se incomodar com o desconforto da garota.

– Marcas? – A maquiagem que Sibila a ajudara a fazer havia sumido, e imaginou que seu rosto deveria estar exposto também.

– Como as está escondendo? – Os olhos de Diel brilharam. Flocos de neve enroscavam-se em seus cílios. – A situação lá na cidade foi tão caótica e ninguém além da Escolhida poderia ter feito tudo aquilo, mas precisamos ter certeza.

– Pode tentar. – Serafine retrucou. O rosto do pirata se fechou. Aria gargalhou como se a provocação da morena a animasse.

– Quem sabe não a irritamos até que use seus poderes? Parece um ótimo teste.

Jarek rosnou.

– Ah, Jarek. Sempre estressado. – Diel ergueu a mão. – Seus nervos continuam um poço de sutileza, pelo que vejo.

– Vocês se conhecem?

– Claro que sim. – Diel replicou. – Ariane e eu o conhecemos muito bem.

Serafine percebeu a malícia naquelas palavras.

– Interessante nunca ter contado essa história a ela. – Diel brincou. – Jarek já viajou com o nosso grupo. Na época estava caçando o irmão Amaldiçoado. Ficou conosco por uns três meses. – Diel estendeu o cantil para uma das prisioneiras, que aceitou desesperadamente. – Depois que fugiu na calada da noite, levando muito do nosso ouro, bem... As memórias felizes foram apagadas, por assim dizer. – Um sorrisinho malicioso cresceu no rosto de Diel. – E Jarek não tem um rosto fácil de esquecer.

Serafine bufou.

– Água? – Diel estendeu o cantil e ela recuou com um olhar furioso. – Beba. Ninguém aqui quer ver a Escolhida desidratada. Precisamos de sua força na arena.

– Arena?

– As Catacumbas. – Diel explicou pacientemente, oferecendo o cantil. Serafine aceitou ainda que relutante; só percebeu quão sedenta estava quando ele afastou a bebida. – Os escravos escolhidos e comprados pelo dono da arena são jogados lá, e então é aquela história... O mais forte sobrevive. – Ele piscou. – Soube que Cornélio ofereceu uma recompensa maravilhosa pelos guardiões da Escolhida. Imagine nosso lucro ao entregar todos de uma só vez!

O nome Cornélio reverberou pela mente da garota. Aquele era o homem que iria ajudá-la? O dono das Catacumbas a quem deveria pedir auxílio? O homem que sacrificava vidas inocentes por diversão?

Diel notou a falta de atenção da garota e parou de falar.

– Muito bem. – Ele se virou para Jarek. – Você teve sua cota de água e já falou demais também. – Apontou para a mordaça. Jarek franzia as sobrancelhas com força.

– Eu dei um jeito nisso. – Apoiada contra a entrada da grade, meio encoberta pelas sombras, Aria lembrava uma predadora. Os olhos sombreados e o sorriso de canto a deixavam ainda mais bonita, e mortífera também.

– Onde está Sibila?

– Ah, a Feiticeira com as cobras? Nós demos um jeito de prendê-la para não causar problemas. E para ter uma garantia caso você e seus poderes resolvam fazer alguma coisa. – Serafine grunhiu. Exausta como estava, os poderes sequer responderiam ao seu chamado. A ideia de restaurar as energias para aniquilar aqueles bandidos se dissipou. – Sua guardiã não é exatamente o espécime perfeito para as Catacumbas, mas talvez sobreviva o suficiente para alguns minutos de diversão. – Diel recuou, e a garota sorriu. Ele não imaginava que mantinha prisioneira a única criatura a sobreviver ao terror daquela arena.

– Quanto tempo até chegarmos? – Serafine indagou. Cornélio os ajudaria. Se Jon confiava nele, então estariam a salvo.

– Em uma semana. – Diel notou seu nervosismo. – Não fique com medo, doçura... Você tem que sobreviver, ou não vai conseguir salvar o mundo.

Com uma despedida rápida, ele se afastou da jaula. O grupo voltou à viagem. Serafine afundou num abismo de medo e ansiedade, e principalmente de incerteza. Sua salvação dependia de um desconhecido.

Estavam perdidos.


Capítulo 8

Sombras nas Brumas

 


CINCO DIAS E MUITOS solavancos depois, ainda não haviam alcançado a cidade das Catacumbas. De cara amarrada, Serafine mantinha o olhar fixo à frente, alheia a tudo; a jaula balançava, subindo colinas e atravessando estradas encravadas entre cumes montanhosos. A neve não cessara, mas impedira o grupo de viajar durante uma tempestade de ventos furiosos numa manhã.

Na primeira noite de viagem, quando os sons do acampamento se dissiparam e a madrugada foi coberta por calmaria, ainda que relutante por causa da própria fraqueza, Serafine buscou pelo espírito. Não havia nenhum vigia, nenhum olhar perscrutando a garota. Mesmo seus guardiões se perdiam em seu sono. A facilidade com que seus poderes apareceram no embate com o dragão desaparecera. Era quase como se o espírito não pudesse ouvi-la. Até o Sol raiar e Serafine bufar em exaustão e frustração, o espírito se manteve em silêncio. Talvez por toda a escuridão ao seu redor, pela fraqueza que ainda crescia na garota ou simplesmente porque não era seu desejo se erguer e destruir todos ao seu redor, o espírito não respondeu. Serafine ficou de mãos atadas. Literalmente.

Guillian e Jarek não tentaram conversar com ela. Mesmo depois que a mordaça foi retirada, Jarek permaneceu num torpor de raiva e impotência. E Sibila... Serafine só a vira uma vez; a mulher parecia bem. Cavalgava em Darius, com os lábios franzidos e as serpentes vermelhas silvando em desgosto. As mãos amarradas às costas e um ferrolho de espinhos ao pescoço a impediam de gesticular ou murmurar encantamentos. A custódia de Serafine e dos outros eram a garantia de que a Feiticeira não tentaria nenhuma besteira.

Com o silêncio do espírito e a exaustão crescente, Serafine só podia esperar. Eles os estavam levando até as Catacumbas, e Jon garantira que Cornélio era de confiança. Poderia convencê-lo a ajudar.

O Sul era de fato coberto por brumas. Serafine espreitou a paisagem; a névoa perolada estava por toda a parte. Rareada ou intensa, ao ponto de impossibilitar o vislumbre de um palmo à frente, ela rastejava por encostas e colinas, por estradas e pelo gigantesco bosque de árvores brancas. A jaula recebera uma cobertura de couro e cobertores contra a neve, mas Serafine tremia. O inverno nunca acabava ali no Sul, e a neblina jamais cessava.

No final daquela tarde, o grupo parou quando uma sombra surgiu no céu.

O grito que recortou o silêncio foi o primeiro sinal.

Serafine e os outros ergueram os rostos para as frestas não cobertas da jaula. Jarek e a garota trocaram um aceno: tinham ouvido o mesmo som na Fortaleza, e depois na Cidade das Areias.

Segundos depois, o grito se repetiu com mais intensidade. Apesar da floresta densa e da névoa, a sensação de exposição deixou os piratas inquietos. Eles arrastaram os corcéis e a carroça para as laterais da estrada, escondendo-os.

O ar tremulou com novo grito. Serafine se espremeu contra a grade para observar e os prisioneiros se encolheram com medo. Em meio às cores do fim de tarde, grandes asas recortaram as nuvens.

Um dragão passou por eles.

Não era o mesmo da Fortaleza, nem o da Cidade das Areias. Vinha do Sul, em direção ao Norte. Naquela velocidade, alcançaria o Deserto em poucas horas. Serafine viu a cor avermelhada das escamas, suas asas de sangue iguais ao crepúsculo. Era enorme, muito maior que aquele que destruíra o castelo do Oeste. Tinha uma cauda imensa e a envergadura das asas pareceu cobrir o céu.

Ele planou baixo e soltou um esgar, gerando uma rajada de vento furiosa. Diel ordenou que erguessem o acampamento ali, seguros pelas copas das árvores, e não se ouviu uma palavra pelo tempo que se seguiu.


***


Os guardas escoltaram os presos, entre eles Jarek e Guillian, até um local afastado para que pudessem se aliviar. Diel e mais dois vigiavam as prisioneiras. Serafine mantinha os olhos fixos do lado oposto das grades, ciente de que Diel a encarava; não daria a ele o gostinho de receber sua atenção.

– Ei, doçura. – Ela ergueu o queixo. – Sua vez.

– Não quero.

– Tem certeza? Não vamos acordar na madrugada para levá-la até um arbusto. – Ele fitou uma das mulheres com desgosto. – Só houve uma exceção.

– Não me importo. – Serafine resmungou.

– Que seja então. – Diel sinalizou para as prisioneiras, e elas obedeceram.

Serafine voltou o olhar irritado para as brumas, buscando calmaria, e estacou. Cingiu as sobrancelhas num primeiro momento, e perdeu o foco num segundo.

De repente, depois de todos aqueles dias de silêncio, foi como se o espírito despertasse em sua consciência, desnorteando-a; sua visão rodopiou e os sentidos esmaeceram antes de ganharem força total. O coração acelerou, tão rápido que silenciou todas as conversas ao redor, deixando apenas o eco do retumbar frenético em seu peito.

Tinha alguém ali. Uma pessoa feita de sombras e horror. Uma criatura das Trevas. Um demônio. Ele a espreitava, seguia. As sombras tinham chegado.

Conforme Jarek se aproximava da jaula, viu o pânico nos olhos da sua protegida, e correu. Os captores saltaram sobre ele, detendo-o contra a grade.

O impacto despertou Serafine e ela fitou um Sturian assombrado. O rosto do guerreiro comprimia-se contra o ferro.

– Eu só queria ver se ela estava bem!

– Quieto!

– Serafine, o que houve? – Guillian indagou com seu olhar preocupado.

– Eu... não sei.

– Como assim?

– Havia uma sombra lá. – Serafine tentou explicar, mas não encontrou uma descrição adequada. Tinha mesmo visto aquela sombra? Era uma sombra, afinal, ou um demônio? Um monstro? Alguma coisa saída dos seus pesadelos? O olhar inquieto de Guillian a questionava sobre isso.

Algo tilintou no fundo de sua mente. Junto às dúvidas, uma presença estranha e disforme, curiosamente familiar, desenhou hesitação e temor em sua consciência. A presença sussurrou sobre medo. Medo de que os guardiões duvidassem, de que estivesse exagerando. Serafine estremeceu e a presença a incitou a medir as palavras. A força era intensa demais para ser ignorada, como um eco ou uma lembrança.

– Só uma sombra? Não se lembra de mais nada? – Jarek estava surpreso. – Você pareceu horrorizada, Serafine.

– Eu não sei explicar – ela rebateu na defensiva. – Só... Deve ter sido por causa do dragão.

Guillian e Jarek discutiam com os bandidos, argumentando que talvez vasculhar a área fosse uma medida apropriada, mas eles riram.

A garota estremeceu. Jarek percebeu e ergueu uma sobrancelha, inquirindo o motivo. Serafine fechou os olhos em resposta, e permaneceu assim até ter certeza de que ele tinha se afastado.

Ela enroscou os braços por dentro do casaco, afundando as unhas na pele. Com os pensamentos turbulentos e o olhar perdido, Serafine não notou o movimento que fazia até sentir a ardência dos arranhões. Olhou para as mãos. Havia sangue sob as unhas roídas.

Amedrontada, a garota observou os raios de Sol desaparecerem no horizonte e engoliu em seco, ciente de que a noite seria muito pior. As brumas ficavam densas, altas o suficiente para esconder o céu, e tudo o que restava aos viajantes era fechar os olhos em silêncio.

A névoa congelante passeou sobre a pele da garota, lambendo seu rosto. Serafine apertou as mãos sobre a face, tentando ignorar a terrível sensação que crescia em seu coração – a presença de antes se aproximava.

Ela se assustou quando alguém sentou ao seu lado.

– O que faz aqui? – sussurrou.

– Vim fazer companhia. – Jarek olhou para vigias da jaula, mas eles estavam ocupados demais preparando uma fogueira. – Quer falar sobre o que viu?

– Já falei.

– Você mente tão bem quanto finge que não gosta dos meus beijos.

– Cale a boca. – Serafine rosnou, buscando esconder o pequeno sorriso.

– Princesa... – O apelido causou um arrepio, mas ela o ignorou. – Eu só quero ajudar.

Serafine encarou-o de soslaio. Os olhos azuis eram parte da escuridão, mas confortáveis. Familiares. A garota sabia que podia, devia confiar naquele olhar.

– Só fique perto de mim, por favor – ela pediu. – Para o caso de eu surtar novamente. – Serafine baixou o rosto. Jarek rodeou seu ombro com o braço num gesto reconfortante, abraçando-a.

O Sturian fitou Guillian, ambos preocupados. Algo comum desde a fuga da Fortaleza.

Qualquer que fosse a batalha interna pela qual sua protegida estava passando, ela queria enfrentá-la sozinha.


***


Serafine acordou no meio da madrugada. Observou a escuridão, acostumando-se com a falta de estrelas. Só havia brumas.

E sombras.

Sombras por toda a parte.

Mesmo encostada à Jarek, Serafine foi tomada por um terror tão grande que a impediu de se mover ou falar.

Acordada e imóvel, olhou as formas distorcidas que se moviam ao redor, diferentes e ao mesmo tempo semelhantes aos fantasmas que encontrara. Havia rostos embaçados em caretas de horror e desespero, olhares de desamparo torturados pelas brumas de ébano.

O corpo de Serafine não respondeu aos comandos; seus olhos passearam pelas figuras sem formas, pelos rostos sem contornos, pelas criaturas moldadas em escuridão.

Ela queria gritar, correr, fugir, mas só podia contemplar o horror.

As sombras cruzaram a jaula e encobriram tudo, escondendo-a de seus companheiros de cela, de seus guardiões e do mundo.

Serafine sentiu-se engolida, arrastada para um tormento infinito, mutilada e destroçada por garras negras.

O espírito não respondeu. Continuou adormecido, longe do caos que a cercava. Em desespero, Serafine tentou recorrer aos poderes, mas nem uma fagulha se acendeu.

Estava cega e surda; muda e paralisada. Perdera o controle sobre si, afogada pelas sombras.


***


O ar gélido soprava mais forte do que nos outros dias. Não estava nevando, mas em breve começaria. Jarek podia apostar que era influência das sombras. O inverno nunca abandonava o Sul, mas o guerreiro conhecia o suficiente do clima para saber que aquilo não era natural. Aquele frio vinha das Trevas, do poder ascendente de Sharowfox.

Ele comprimiu a mão livre contra o rosto, soprando os dedos trêmulos para se esquentar. Tombada contra a lateral de seu corpo, Serafine estremeceu. Jarek fitou-a com suavidade, pressionando a mão em seu ombro para trazê-la mais perto; o corpo de Serafine ficou rígido de repente. Jarek arqueou as sobrancelhas e os olhos dela se abriram.

As íris douradas estavam vidradas em névoa esbranquiçada. Ele se afastou, mas manteve Serafine presa às suas mãos.

Ela começou a gritar, despertando todos na carroça. O grito gelou a espinha do guerreiro como nenhuma tempestade seria capaz de fazer, paralisando-o. Ela estava a poucos centímetros de distância, mas pareceu, a Jarek, uma distância inalcançável.

Serafine estava perdida dentro da própria mente.

Guillian correu para ajudá-los e a garota escapou de Jarek. A mão de Serafine estapeou o orelhudo. Jarek assistiu, com assombro, Guillian voar para o fundo da cela.

– Se afaste de mim! – ela esbravejou colérica, avançando contra o Sturian. Suas unhas afundaram no rosto de Jarek, empurrando-o para longe. Com o cabelo bagunçado e o olhar possuído, Serafine estava assustadora. – Não me toque! – O chão começou a estremecer, e Jarek temeu que Serafine despertasse o espírito em toda a magnitude. Não haveria como pará-la.

Ela baixou o rosto, apertando-o entre as mãos.

– Afaste-as – choramingou, desamparada. O ar ficou pesado, como se uma tempestade se aproximasse, e as brumas se aproximaram mais da menina. Jarek observou fenômeno em confusão. – Tire as sombras de mim, por favor!

Angustiado pela dor na voz da garota, Jarek se aproximou para tentar ajudá-la. A fúria de Serafine caiu sobre ele.

O guerreiro segurou seus pulsos, afastando-a, buscando algum fio de sanidade nos olhos dela, algo em que se agarrar, uma esperança de que Serafine ainda estivesse ali. Mas só sentiu desespero ao ver uma névoa vazia e sobrenatural, extremamente poderosa. Serafine estava longe, em seu próprio inconsciente, aprisionada pelas sombras.

O chão sacudia com a força de um terremoto, e o ar se condensou em chuva, que desabou sobre o acampamento. A pele de Serafine começou a ferver sob as mãos de Jarek. O espanto inicial deu espaço para o terror. Aquele surto era diferente de todas as situações com as quais sabia lidar.

A chuva pesou sobre as peles que cobriam a carroça, a terra tremeu com mais força; a jaula sacolejou a ponto de quase tombar.

– Serafine, por favor! – Jarek implorou amedrontado.

A garota paralisou como se recebesse um tapa. Arqueou as costas e ofegou, arregalando os olhos conforme focava a visão no pandemônio.

Jarek ignorou a presença dos piratas e dos prisioneiros que comentavam aquela loucura. Diminuiu o aperto ao redor dos braços da menina, mas certificou-se de mantê-la próxima; Serafine ofegou. O guerreiro rememorou ecos sussurrados para ele no passado. Uma voz que revelava as verdades terríveis sobre a garota e o futuro reservado a ela.

O Sturian respirou fundo, ansiando por esconder Serafine do mundo. Queria abraçá-la e sussurrar que tudo ficaria bem – como fizera em Líriel e depois da tomada da Fortaleza do Dragão – mas algo o impediu. Estava congelado, preso às vozes que advertiram para ficar longe da esperança de Warthia.

Jarek, no entanto, não queria. Não podia.

Os Deuses sabiam que aquilo era verdade. Jarek não conseguia mais afastar o olhar de Serafine, ficar longe de seu sorriso mordaz, de seus olhos dourados sempre irritados. Tendo em vista o futuro da garota, o risco era absurdamente grande. Lutar contra o destino poderia soar como loucura para algumas pessoas, mas Jarek gostava de se arriscar.

Focou a atenção em Serafine. A chuva cessou e o terremoto também. Como ocorrera na execução na Vila do Sol Poente, Serafine voltou a si, encarando o caos que criara. Buscou respostas no rosto de Jarek, mas só encontrou medo. O guerreiro queria explicar que o temor era por ela, não dela, mas não teve tempo.

Serafine se afastou, arrastando-se pela cela, fitando-o, devastada.

– Que merda acabou de acontecer aqui? – Um dos piratas exclamou com assombro.

Serafine olhava do homem para Jarek. Depois as próprias mãos, trêmulas, e gaguejou:

– Eu... não sei... – Conteve as lágrimas. – Jarek, Guillian... Desculpem-me.

Abismados demais para dizer alguma coisa, eles se entreolharam; o Sturian tentou se aproximar, mas ela o afastou.

– Não me toque, por favor. – Seu tom foi choroso. – Não quero machucá-lo. – Jarek queria dizer que ela não o machucaria, que nada do que fizesse poderia causar-lhe dor.

– Milady. – Guillian havia se adiantado, mas os piratas o impediram de alcançá-la. A jaula foi aberta com brusquidão e a menina foi arrancada dali. Jarek rangeu os dentes, mas não se moveu ao ver uma espada ser apontada para o pescoço do Atyubru.

– Não se mexa, orelhudo. – Diel ameaçou. – Tenho ordens para levá-la até Nicolau.

O Sturian observou impotente os piratas escoltarem a garota para longe da carroça. Sentou-se com um baque, observando Guillian.

– Como vai o olho?

Guillian massageou o local atingido.

– A dor é absurda, mas meu medo em relação à Serafine é maior. – O felpudo havia se sentado ao seu lado com um de seus olhares questionadores. – Viu os olhos dela, Jarek? Como ela se perdeu na névoa? O espírito está ficando forte demais. Nem mesmo Lonel imaginava que aconteceria tão rápido. Ela falou das sombras... Acha que tem alguma coisa a ver com a marca que o verme colocou? – As perguntas sussurradas tiraram o fôlego do Atyubru. – Deuses, o que faremos para ajudá-la?

– Iremos mantê-la sã. – Jarek retrucou.

– Mas e se... Você sabe... – Guillian baixou ainda mais a voz. – Vier a acontecer antes do que imaginávamos?

– Não vai. – Jarek travou a mandíbula. – Serafine é forte, não vai sucumbir. Farei o que for preciso para isso. – Ele passou a mão pelo cabelo curto. – Ela não pode...

– Meu jovem amigo... – Guillian murmurou com melancolia. – Está se apaixonando pela menina, não está?

– Não. – Eu já me apaixonei.


***


Enquanto os bandidos a escoltavam pelo acampamento, Serafine analisou o que havia causado, assustada. Todos estavam encharcados. Alguns piratas encontravam-se caídos, outros desnorteados, e todos pareciam aterrorizados. Deram passagem para ela, afastando-se conforme Serafine se aproximava.

O que havia consternado o espírito a ponto de finalmente despertar? E de tomar o controle com tanta facilidade? Ela se perguntou, e temeu a resposta.

Parou em frente a uma tenda de couro de tons esbranquiçados – uma camuflagem em meio às brumas. Uma das poucas no acampamento a não despencar.

Um dos homens deu passagem para a garota, não ousando tocar em Serafine. Ela observou o interior aconchegante da tenda antes de focar em duas figuras sentadas confortavelmente no chão.

Ariane, armada até os dentes, ergueu seus olhos vibrantes para Serafine, que recuou com a intensidade do olhar.

O homem ao lado dela fitava Serafine como quem observa um raro espécime; os olhos escuros como o ébano, contornados por tinta preta, percorreram o rosto da garota com interesse. Ele não se demorou em suas marcas, o que foi estranho.

Aparentava ser o líder do grupo, e reconheceu-o do incidente na hospedaria: alto e esguio, pele cor de bronze, feições fortes e sobrancelhas franzidas numa expressão não muito gentil. Os olhos eram iguais aos de Ariane. Trazia nos ombros a pele alaranjada de algum animal.

Quando ficou de pé, Serafine deu um passo para trás.

– Serafine. – O tom rouco e grave ressoou pela tenda. – Que belo susto nos deu.

– Você é maluca, por acaso? – Ariane inquiriu, sem sutilezas. – Do tipo que acabaria internada num daqueles palácios gélidos abarrotado de pessoas insanas?

– Não. – Serafine respondeu com convicção demais. A pergunta de Ariane trouxe receio; estava louca, não estava?

– Deve ser coisa da Escolhida então, Nicolau. – Ariane não se aproximou demais, a postura indicava precaução. – Você quase arrancou os olhos de Jarek... Gritou para afastarem as sombras. E aquele terremoto... Deuses, nunca senti nada tão forte. Achei que o mundo estivesse acabando. – Ariane olhou de maneira preocupada para o líder, que analisava Serafine com expressão indecifrável. – Todos achamos.

– Foi o espírito. – Serafine explicou. – A entidade dentro de mim. É muito poderosa. Às vezes foge do controle.

– Imaginei que se tratasse disso, criança – Nicolau coçou o queixo. – Acho que teremos de redobrar a atenção sobre você.

– É perigoso. – Serafine rebateu, ansiosa. – Deveria me deixar em ir embora antes que seja tarde.

– Não tenho medo do sobrenatural. Você ainda vai para as Catacumbas.


***


Jarek se empertigou quando avistou Diel, que trazia Serafine consigo. A garota tinha a cabeça baixa, os cabelos caindo sobre o rosto.

– Calminha aí, amigo. – Diel ergueu a espada contra Jarek no instante em que ele ficou de pé. – A prisioneira está bem, não precisa se preocupar. – O pirata sorriu e afastou, deixando que Serafine entrasse.

Os outros prisioneiros se amontoaram ao fundo da jaula, encarando a garota com horror. Serafine viu o pânico deles; cambaleou pela lateral da grade e apoiou as costas ali, escorregando até se sentar.

Ignorando seus apelos, Guillian a abraçou. A menina olhou para Jarek, toda a preocupação que ele carregava, e a dor de seus olhos dourados o deixou atordoado.

– Vai ficar tudo bem, milady – Guillian garantiu, mas a pouca certeza em sua voz não convenceria ninguém. O orelhudo se afastou, sorrindo, e incitou Jarek a se aproximar. Ele o fez, hesitante, e sua cautela foi entendida como medo. Serafine cruzou os braços, encolhendo-se. Seus olhos imploravam para que Jarek mantivesse distância, mas ele não conseguiu.

– Eu não vou machucá-la, princesa. – O Sturian agachou-se à sua frente.

– Não, Jarek. Eu vou. – Ela apontou para os arranhões. – Já machuquei.

– Não foi você. – Jarek arrastou-se para o lado, sentando-se a uma distância curta. Serafine encolheu-se mais e escondeu as mãos no casaco, impedindo que ele a tocasse. – Esse surto não foi seu. Foi o espírito.

– E o que é o espírito senão parte de mim? – ela retrucou baixo, vendo os prisioneiros amedrontados. – Essa força avassaladora, essa... coisa que me habita, sou eu. E as sombras sabem disso. Elas estavam por toda parte, Jarek. – Serafine descruzou os braços e afundou o rosto nas mãos. Os dedos da garota tremiam e as espirais peroladas pareciam, naquele momento, marcas de uma maldição. – Eu não quero perder o controle de novo, mas o espírito está ficando mais forte.

– Serafine...

– Não. – Ela se esquivou contra a lateral da grade. Seus olhos se arregalaram, avaliando a mão estendida do guerreiro. – Fique longe, por favor.

– Não vou tocá-la, mas não vou te deixar sozinha. – Jarek murmurou com suavidade. – As sombras não vão voltar, Serafine, eu prometo.


Capítulo 9

Mercado de Escravos

 


– NÃO ESPERAVA REALMENTE CONHECER esta cidade. – Guillian soou bem-humorado, apesar do ar rabugento. Estava apoiado nas grades de ferro para enxergar melhor. – As circunstâncias é que não são agradáveis.

Serafine não sentia curiosidade em ver o lugar, e ignorava os comentários.

O frio se tornara insuportável com o crepúsculo. O casaco não era suficiente para extinguir a tremedeira. A garota abraçara as pernas e afundara o rosto nos joelhos, escondendo-se do vento cortante.

Apesar de ter tentando evitar, foi impossível não observar a cidade. Construída em um vale, as casas baixas eram pintadas em tons suaves e claros, com telhados inclinados por causa das fortes nevascas.

Ao fim do vale encontrava-se a medonha construção que trazia fama à cidade. Serafine viu os muros colossais que rodeavam as Catacumbas, cobertos por uma redoma de ferro. O que quer que houvesse lá dentro, estava devidamente enclausurado. E, logo, Serafine também.

Quando se aproximaram do mercado de escravos, a garota percebeu pessoas dependuradas na redoma. Uma multidão ensandecida gritava do lado de fora dos muros e outra igualmente exaltada observava o que acontecia dentro deles.

Sibila já havia vivido os horrores guardados ali, mas não estava próxima para conversar com os prisioneiros e explicar o que era aquele alvoroço. Serafine desejou perguntar o que acontecia na arena, mas hesitou. A resposta logo chegaria até ela.

O mercado de escravos era um pandemônio. A construção ocupava um quarteirão inteiro em meio às casas. O interior era largo e uma ruptura no teto deixava o céu à vista. No geral tinha aparência gasta e medíocre, assim como os transeuntes.

Os vendedores ficavam em diversos palcos com os prisioneiros e um leiloeiro. Um deles era alto e com uma proeminente barriga saltando da camisa de seda vermelha; os cabelos rubros e emaranhados caíam sobre o rosto redondo e a barba mal aparada possuía um aspecto sujo.

– Vendido para a senhora de vestes azuis! – O ruivo gritou a plenos pulmões. Um rapaz de dezessete anos foi arrastado do palco por dois guardas robustos e desapareceu entre os compradores.

Serafine cerrou os punhos. Ariane cruzou olhares com a garota e apontou para Guillian, passando o próprio polegar sobre a garganta. Serafine entendeu o recado: tente alguma coisa e seus amigos morrem. Não relaxou a postura.

Foram levados à parte de trás do mercado, onde carruagens e carroças descarregavam. Diel e Ariane prenderam os prisioneiros com correntes de ferro e os puseram numa fila única. Nicolau conversava com um dos guardas, que observava as recém-chegadas mercadorias com curiosidade.

Guillian grunhiu quando suas orelhas foram amarradas para trás.

– Inspeção! – O homem que estava com Nicolau gritou a plenos pulmões. Jarek e Guillian trocaram um olhar exasperado. Serafine fitou Nicolau, mas o homem havia lhe dado as costas. Se ele informasse ao vendedor que tinha a Escolhida nas mãos, as Trevas poderiam capturá-la naquele momento.

– Trouxe ótimas ofertas hoje, Nicolau. – O homem ergueu o rosto de Jarek com um bastão, avaliando suas feições. – Uma pena enviá-los para as Catacumbas... – Ele parou em frente à Serafine; o guardião ficou tenso. Porém, não houve reação às marcas, nada que alterasse sua expressão. Tal como Diel dissera, alguma coisa estava escondendo os desenhos no corpo de Serafine. – Um desperdício. – Ela esquivou-se quando o vendedor tentou segurar seu rosto, rosnando. – Ou nem tanto assim. – Ele retrucou e afastou-se irritado, liberando-os.

Serafine marchou, flanqueada por piratas.

Passaram por um corredor lateral e ouviram os gritos dos leiloeiros. O espírito se agitou sob sua consciência, ansioso pela libertação. Pensou no estrago que poderia causar, na destruição que infringiria a cidade, às pessoas presas. Destruiria aquele submundo criminoso, mas, e os inocentes que cairiam? Era muito arriscado.

Sentiu um toque reconfortante no ombro e virou-se para Jarek.

– Vai ficar tudo bem. – Ele sussurrou e foi repreendido pelos piratas.

Ao contrário do esperado, nem todos foram levados a um dos palcos. Nicolau guiou Serafine, Jarek e Guillian até uma antessala, onde uma mulher os aguardava. Fez questão de deixar Sibila sob a lâmina de Ariane, para o caso de alguém tentar alguma coisa. A negociadora era muito velha, com grandes olhos ofensivos.

– Cornélio não pôde comparecer. – Ela explicou num tom arranhado, ignorando a gritaria além da porta. Serafine aprumou os ombros. Cornélio era sua maior esperança para fugir dali.

– Não vai ter esses prisioneiros se eu não tiver a minha recompensa.

– As regras mudaram. – A velha não se deixou abalar. – Cornélio ofereceu lugares de honra para que assistam ao espetáculo. Quer conversar com vocês.

Diel franziu os lábios, mas Nicolau aceitou com cordialidade.

– Foi-nos prometido outro tipo de recompensa. – Diel deu um passo à frente, autoritário. A velha encarou-o com desconfiança. – O selo real diz algo à senhora? – Ele estendeu um pergaminho. Serafine tentou espiar o que estava escrito dele, mas sem sucesso. Diel ergueu os olhos verdes para a garota e lhe deu um sorriso divertido.

– Você diz que ela é a garota que o príncipe de gelo procura. Eu pergunto: onde estão as marcas?

– Como é? – Nicolau replicou.

– Onde estão as marcas? – Serafine sorriu convencida. Diel a fitou com raiva.

– Algum encantamento as está escondendo, provavelmente. Tem a minha palavra de que é a fugitiva procurada pelas Trevas. – Nicolau rebateu. – Nós a vimos possuída pelo espírito.

– Sua alteza vai querer provas mais concretas antes de entregar-lhes o ouro. – A anciã observou Serafine.

– Pois sua alteza pode comprovar ele mesmo. – Nicolau apontou para seus homens. – Escoltem os prisioneiros até as Catacumbas e nos encontrem na hospedaria da cidade.

– Vejo você em breve. – Diel fez uma reverência para Serafine. Ela avançou contra ele bruscamente, mas o rapaz não pareceu abalado ao piscar e sair. Jarek foi empurrado e Serafine deu um tranco no ladrão que tentou empurrá-la também; seguiu o guardião, mas seus olhos estavam em Diel.

Um furioso instinto de vingança se apoderou dela.

Assim que saísse das Catacumbas, o pirata seria seu alvo.


Capítulo 10

O plano do Rei

 


JILL HAVIA ACABADO DE acordar e se dirigia para a ronda quando Mynna a interceptou. Depois de alguns dias, a guerreira Atyubra acabara se acostumando às constantes perseguições.

Mynna informara à Jill que a mãe não queria que ela se tornasse uma espadachim. Tal informação surpreendera Jill. A menina, porém, ansiava por aquilo mais do que qualquer coisa. Queria seguir os passos de Jarek. A Atyubra se lembrava da maneira determinada e centrada com que ele lutara na batalha de Líriel. Em como os liderara habilmente até a armadilha criada pelos lobos, e se portara com racionalidade ao descobrirem que não havia acampamento algum para ser atacado.

Mynna ostentava em seus olhos azuis o mesmo espírito guerreiro do irmão.

No entanto, Jill descobrira o receio de Leyona: deixar a filha escapar de seus braços novamente. Soube dos acontecimentos que a família Hargon suportara. A tragédia envolvendo Sanzur, o desaparecimento do pai, a irmã gêmea assassinada brutalmente. Era óbvio que Leyona não queria correr riscos com sua preciosa menina.

Por isso, Jill relutara a princípio. Quando se ofereceu para ensinar Mynna a se defender, no entanto, recebeu um sorriso genuíno. Passava a maior parte do tempo contando histórias para a pequena Sturian, mas tirava algumas horas para ensiná-la a se proteger. Mais do que lutar, Mynna precisava saber quando se defender e quando fugir.

Naquele início de manhã, não foi diferente. Jill havia se posicionado no alto da cerca de proteção, e Mynna pediu para acompanhá-la na vigília. A Atyubra reconheceu um segundo acompanhante: Percival, o arqueiro da Tropa de Jon.

A orelhuda fez sinal para que subissem as escadas.

– Bom dia. – Jill cumprimentou com um sorriso.

– Mynna me disse que você tem muitas histórias de guerra. – Percival foi direto. Jill já havia se acostumado com os trejeitos do garoto.

– Ela disse?

– Sim, e que você conheceu Serafine. – Percival deu um sorriso largo. – E seus guardiões. O que significa que conheceu Guillian, o Bravo. – Jill franziu o focinho, remoendo-se para falar de Guillian, mas assentiu.

– Sim, eu conheci Guillian. – Percival e Mynna entreolharam-se animados, esperando. – Mas, me perdoem, não quero falar sobre ele.

– E por quê?

– Assunto de adultos.

– Eu sou quase adulto! – Percival reclamou.

– Mas poderia contar sobre quando quase fui morta por um grifo... – Ela ficou satisfeita em ver que o interesse deles cresceu. As perguntas sobre o guardião de Serafine foram esquecidas logo que Jill começou os relatos sobre aquela aventura.

Enquanto falava, mantinha a atenção na paisagem fora da cerca. Nada passou despercebido aos seus olhos; não havia perigo algum se aproximando. Como fora informado a Jon, os Lobisomens não abandonaram o Castelo de Tytos desde a tomada. Todas as vilas do Norte caíram sob o poder dos grupos enviados pelas Trevas, e uma Feiticeira se estabelecera na região para drenar a energia do Grande Bosque. Jill imaginava que o Castelo fosse o reduto da bruxa, seu local de descanso, onde os lobos a protegiam para que alimentasse a escuridão.

Se havia uma maneira de recuperar o Reino era retomando aquele palácio.

Assim que outro Atyubru veio assumir a guarda, Jill acompanhou as crianças até o templo do vilarejo, o centro de reuniões e refeições. Quando encontraram aquele lugar, o que era ouro e história havia se transformado em poeira e ruína. Águas Claras se tornara um eco de outrora, e os Atyubrus pouco puderam fazer para reviver o que restara.

Logo que passaram pelas portas, viram a multidão que ocupava diversas mesas. O chão de madeira rangia sob seu peso, e do teto pendiam dois candelabros vazios. A iluminação vinha do exterior, proporcionada pelo céu ensolarado. Jill avistou Jon e Leyona, sentados ao lado do sacerdote, um dos poucos cultistas do grande deus do Norte que ainda vivia na região, e pediu licença aos seus acompanhantes.

Percival e Mynna estavam tão mergulhados em suas divagações sobre a aventura da Atyubra que mal notaram quando ela se foi. Jill ficou satisfeita por tê-los impressionado e vê-los radiantes à sua vitória. Contudo, o sorriso da Atyubra murchou assim que alcançou o Rei. Os olhos escuros de Jon pareciam aflitos; ele estava para revelar alguma notícia séria.

O Mago havia feito a barba, e os dias de alimentação regular e bom descanso deixaram suas feições menos doentias. Jon cortara o cabelo bem curto e, para um humano, a nova aparência o deixava admirável. Mas havia muita dor e pesar em seu olhar. Isso roubava sua juventude e o deixava frágil como um caco de vidro. Jill temia que seu comandante não tivesse a força necessária para as circunstâncias.

– Majestade – ela o cumprimentou, assim como a Leyona e o sacerdote. – Bom dia.

– Bom dia. O plano foi traçado, Jill.

– Perdão, majestade, mas eu...

– Vamos invadir o Castelo – Leyona explicou com suavidade. As orelhas de Jill mexeram-se inquietas. – Os mapas e documentos que nos mostraram contêm informações valiosas. Aquele Castelo foi abandonado, é pouco vigiado, e a quantidade de soldados nas redondezas não são tão perturbadores. Independentemente de haver uma Feiticeira ali, temos um Mago conosco. Jon pode reaver o que pertence à sua família.

– Com tão poucos guerreiros? – Jill se indignou. O plano de invasão existia desde antes da chegada do Rei, mas não passava de rabiscos num pergaminho. Ela não tinha fé de que conseguiriam realizá-lo.

– Vamos aproveitar o elemento surpresa. – Jon cruzou as mãos sob o queixo, observando as pessoas que conversavam, sem suspeitar dos novos planos. – O Castelo fica em uma área isolada, pode facilitar nosso cerco. Os Sturian concordaram em ajudar e, se pudermos contar com o auxílio de seus guerreiros, teríamos vantagem sobre os monstros que vigiam o palácio de meu irmão. – Ele suspirou. – Demetrius guardava pergaminhos importantes naquele lugar, documentos oficiais que me ajudariam a localizar as tropas nortenhas. Precisamos de todos os números com os quais pudermos contar, Jill, ou a batalha contra a escuridão estará perdida. Somos a única força capaz de derrubar as sombras que habitam minha antiga morada.

Jill permaneceu quieta por instantes, analisando as linhas exaustas no rosto do Rei. O monarca enfrentava crises muito maiores do que a compreensão da guerreira conseguia alcançar. Jon estava distante e evasivo, mais do que um governante deveria. Havia uma sombra em seu olhar, algo que a Atyubra não conseguia entender.

Se não fosse por Leyona, Jill tinha certeza de que o Rei desmoronaria.

Esperava que aquela invasão não fosse a gota que faltava para a taça transbordar.

Com um suspiro, a Atyubra pediu que explicassem a estratégia criada pela Sturian e o Mago.

– As defesas externas são falhas, como vocês apontaram. – Leyona trouxera um mapa, e o estendera sobre a mesa. Era novo, feito com as informações reunidas de outros pergaminhos, rabiscos apressados de uma guerreira esperançosa.

– Sim, estou ciente. – Jill o examinou.

– O melhor a fazer é aproveitar essas falhas. – Leyona apontou uma brecha no muro que guardava o Castelo. Um dos Atyubrus havia avistado, dias antes, um lobo deixar aquele local por um túnel subterrâneo. Jon suspeitou que se tratasse de uma estrutura semelhante à do Oeste, com corredores ocultos sob a construção. O Castelo de Tytos era, afinal, ainda mais antigo que a Fortaleza caída. Se o palácio do Oeste guardava segredos, o do Norte também o faria.

Leyona mandou alguns de seus homens para examinar a brecha e descobriram que a segurança externa era fraca. Os lobos não se preocupavam em rondar o bosque que cercava o Castelo, nem mesmo os muros externos. Aquele comportamento fez Jon acreditar na presença de uma Feiticeira. Se havia uma bruxa no palácio, os Amaldiçoados não precisavam vigiar o lado de fora. A magia dela era suficiente para proteger seu domínio.

O maior problema havia sido descobrir exatamente para onde aqueles corredores subterrâneos levavam. Jon morara no Castelo, mas não tivera conhecimento de qualquer passagem secreta. Ele imaginou serem passagens para portas ocultas atrás de estátuas e quadros. Tentou uma série de feitiços para transferir sua consciência a algum dos lobos, mas Leyona o proibiu. Aquelas tentativas só o estavam exaurindo, especialmente com o risco de ser interceptado pela Feiticeira. Se ela suspeitasse da presença do Rei do Oeste, nem mesmo os mais corajosos Sturian conseguiriam enfrentar o poderio da bruxa.

Precisavam colocar o Rei de volta no trono. A magia de Jon estava se perdendo; sua esperança, se esvaindo. Jill temia que logo seria tarde demais para o retorno do herdeiro.


***


Entender o cerco armado no Castelo de Tytos era fundamental para o plano. Jon conhecia a arquitetura do lugar, mas não suas sentinelas. Queria encontrar uma falha nas rondas, alguma passagem que os lobos não tivessem averiguado. As lembranças que Jon possuía do palácio do Norte eram vagas, mas as informações conseguidas pelos Atyubrus iluminavam as brechas em sua mente. Os corredores entre as paredes de pedra bruta, passagens que levavam a andares inferiores abandonados, eram sua melhor chance. Os caminhos conduziam para dentro do Castelo sem colocá-los na mira dos Lobisomens.

Se conseguissem entrar, passar pelas sentinelas e avançar pelo palácio, Jon conjuraria um escudo de proteção e estilhaçaria todos os sombrios nos arredores. Se sua força fosse suficiente, a barreira mágica poderia ser expandida pelo Grande Bosque – uma muralha contra a escuridão que devorava o Norte.

Jill chamou Urir para explicar o plano, e os Atyubrus se reuniram a seguir. Leyona expôs as ideias aos Sturian; ninguém tentou contradizer as ordens do Rei.

Jon pediu licença ao sacerdote enquanto as reuniões se formavam e deixou o templo, inspirando o ar frio da manhã. Ignorando os olhares indagadores e distribuindo sorrisos vagos e acenos displicentes, vagou até o limite da vila, alcançando a cerca de proteção. Seus pensamentos eram desconexos, em desarmonia com o clima de esperança que enchia os ares. Não era nervosismo ou medo, mas terror. Jon sentou-se no chão de terra, buscando controle. Apoiou o rosto entre as mãos, frustrado, e fechou os olhos para relaxar. Usou aqueles instantes de quietude para expandir sua energia e testar seus poderes. Precisaria de força para quebrar a escuridão no coração do Castelo de Tytos, e sua mente era o oposto da calmaria necessária para conjurar a barreira mágica.

Estalidos púrpura brilharam entre seus dedos, faíscas familiares e acalentadoras que nasciam do controle, da paz em seu espírito. Ainda que estivesse sobrecarregado por uma energia desconhecida, afundando corpo e mente em um limbo assustador, Jon respirou fundo e deixou as faíscas crescerem e cobrirem sua pele e consciência. Uma rara tranquilidade, como uma onda suave sobre o lago após uma grande agitação, se formou.

Assim que a sensação acalmou sua consciência, Jon viu-se transportado. Estava dentro de uma visão, e reconheceu as vibrações delicadas.

Ývela.

A ondina ofegou, levando as mãos à boca. Incrédula e chocada, e em seguida emocionada, os olhos azuis transbordaram em lágrimas. Sentada num grande trono coberto por algas coloridas, usava um vestido moldado em ondas e espuma. Trêmula, correu até Jon, jogando-se contra ele com tanta força que o desequilibrou. As pernas magras da ondina rodearam sua cintura, os braços prenderam-se aos seus ombros, e ela enterrou as lágrimas e um riso frágil em seu pescoço.

– Eu consegui!

Estarrecido, Jon retribuiu ao abraço, apertando-a contra si e inspirando o perfume que vinha de sua pele.

– O que quer dizer? – sussurrou com rouquidão.

– Achei que tinha perdido você, Jon. – Ývela se afastou o suficiente para fitá-lo. As mãos suaves acariciaram a barba rala. Jon fechou os olhos. Era apenas uma visão. O toque fazia parte do feitiço; não era real.

– O que a impedia de me alcançar?

– Não sei, mas senti tanto medo. Achei que... – Ela mordeu o lábio e se pôs em pé. – Sempre que tentava encontrá-lo, vislumbrava uma parede escura. Não havia como ultrapassá-la. Serafine, Jarek, Guillian, todos estão inalcançáveis. Nem sei como consegui encontrá-lo aqui, neste momento. Ainda existe escuridão ao nosso redor. Consegue vê-la?

Jon respirou fundo. Ývela franziu as sobrancelhas, mas o monarca se esquivou de seu olhar. Envergonhado e temeroso.

– Há uma marca das sombras em mim, Ývi. – O olhar da ondina entrou em desespero. – Em Warthia também. Nuvens sombrias se ergueram no Sul e avançam pelo continente.

– Uma marca das sombras...? Quando?

– Na invasão à Fortaleza. Um demônio possuiu minha consciência por tempo demais. Quando me deixou, seu rastro ficou para trás. – Jon examinou as mãos tremerem em medo pelas lembranças da possessão, na dor inexplicável que se espalhara por seu ser. Ývela cobriu-as com as suas, trazendo-o para si. Ela beijou seus dedos, ficou na ponta dos pés e apoiou a testa contra a dele. Mesmo distante por dimensões, o toque parecia real.

– Como posso ajudá-lo?

– Já está ajudando. – Jon sorriu docemente.

Ývela o examinou. Um sorriso triste iluminou suas feições.

– Você cortou o cabelo.

– Pareceu apropriado. – Ele esticou a mão para os fios curtos, mas a ondina os acariciou antes. O sorriso permaneceu em seu rosto, mesmo devastado.

– Queria estar aí por você.

– Você está comigo. Todos os dias, em todas as horas. – Jon apertou a mão dela sobre seu peito, mas a ondina suspirou.

– Há tanto acontecendo. Tantas preocupações e tanto caos.

– O que está enfrentando, Ývi? – Jon correu os olhos pelo salão de cristal materializado por magia. O trono era o único objeto ali. O Mago não conseguia ver a escuridão mencionada pela ondina, mas sentia sua energia pesada. Muito mais intensa do que a que cobria o Grande Bosque.

– Estou perdendo o controle, Jon. – Ývela deixou seus braços e andou de um lado para outro. A expressão dela carregava o mesmo sentimento do Rei: indignação. Não poder fazer mais pelas pessoas que buscavam esperança. – Perdemos muito território graças às Trevas. Depois que o castelo dos sereianos foi tomado, decidi viajar até os gigantes.

– Está com eles agora?

– Sim. – Ela bufou. – Mas são teimosos e interesseiros. Não querem fazer um acordo se eu não aceitar reinvindicações absurdas. Querem mais terras além das que já possuem, e títulos que de nada lhes serviriam. A escuridão avança sobre o horizonte, mas tudo que lhes importa são riquezas e poder!

– Você precisa da ajuda deles. – Jon contrapôs, e a ondina concordou.

– É por isso que estou usando toda a minha paciência. – Ela sorriu bem-humorada, mas brevemente. – Deixei meus generais com o exército e pretendo retornar para lá em dois dias, caso os gigantes recusem a aliança. – Ývela fechou os olhos, e Jon aproveitou para admirar os contornos de seu rosto. – Sinto tanto medo.

– Eu sei. – Num instante ele a havia trazido para os braços, apertando-a de forma protetora. – Entendo perfeitamente.

– Queria que nada disso estivesse acontecendo. Que minha mãe estivesse viva e eu pudesse ter continuado em terra. – Ývela confessou. – Há momentos em que me vejo perdida em meio ao oceano, Jon. As emoções que aprendi a cultivar em Warthia muitas vezes me sufocam... Eu não deveria continuar sentindo, mas elas estão aqui. Fortes. Atormentadoras. Estranhas. Eu não faço mais parte das Águas.

O coração do monarca se apertou. Ele a queria de volta, cuidar dela, amá-la com todas as forças, sem se importar com o tempo e a guerra. Tomá-la para si com cuidado e paixão, entregar-se a ela com a alma. Queria sua noite de amor de volta. Que pudessem voltar a ser somente Ývela e Jon.

Desejava que Ývela nunca tivesse desfeito o juramento de sangue a Serafine, implorava aos Deuses para que a ondina fosse perdoada e sua alma mortal fosse salva quando a guerra acabasse. Era egoísmo, mas ele precisava da ondina ao seu lado.

– Pare de se preocupar comigo. – Ývela se afastou. – Mantenha o foco em suas próprias batalhas.

– Você é uma Rainha digna, Ývi, mas nunca vou deixar de me preocupar.

– Ainda há esperança, não é? Mesmo com a escuridão cobrindo Warthia, com o medo em nossos corações, a esperança... Ela ainda existe.

– O peso dela não recai apenas em Serafine, mas em todos nós.

A ondina anuiu.

– Se encontrá-la, diga a Serafine que mandei forças. Que sempre serei sua guardiã, não importa o que aconteça.

– Ela sabe disso, Ývi.

O cenário ao redor tremeluziu.

– Preciso ir. Não sei... Não sei quando conseguirei encontrá-lo novamente, Jon. – A ondina segurou seu rosto entre as mãos pequenas. – Seja forte.

Jon abriu os olhos e ofegou. Não havia ninguém próximo a ele, mas a posição do Sol indicava que muito tempo havia se passado. Estava de volta ao Norte, à incerteza do mundo real.

Resignado, o monarca se levantou para se juntar a Jill e os outros.

As últimas palavras de Ývela reverberavam em um eco perturbador. Seja forte.

Com um suspiro, ele avistou seu povo. As pessoas por quem lutaria. As famílias e seus sorrisos; sua esperança.


Capítulo 11

Visita Inesperada

 


A ARENA DAS CATACUMBAS era colossal, amedrontadora e chamativa. Ainda que perturbada, Serafine se viu observando cada detalhe.

Deixou o mercado de escravos e foi levada para a rua apinhada, atrás do prédio onde os leilões eram realizados, e seguiu para a colina da arena. Sibila foi conduzida por Nicolau em outra direção, como uma garantia, e a garota temeu pela guardiã.

Serafine espantou-se com a quantidade de pessoas que escalava os muros das Catacumbas para alcançar a redoma de ferro: a única maneira de o povo assistir aos espetáculos. O interior era destinado a espectadores com dinheiro suficiente para pagar por suas cadeiras, os lordes de todas as regiões do Sul que apreciavam a carnificina. A redoma existia para dois fins: entreter os desafortunados e impedir que os monstros das Catacumbas fugissem.

Os soldados escoltaram os prisioneiros por um dos muitos túneis subterrâneos. Engolida pela escuridão do corredor, Serafine recordou-se dos corredores que havia debaixo da Fortaleza do Dragão. Acima, os urros da multidão arrepiaram-na.

Imergir os prisioneiros nas sombras os levava ao pânico. Quando a tocha iluminou as grades de ferro, criaturas encolhidas e outras ensandecidas ficaram visíveis. A garota parou para observar um homem cujo único braço esticava-se na direção da tocha. O rosto estava tomado pelo desespero. Os soldados a empurraram adiante.

Serafine queria ajudar, fazer qualquer coisa por aquele homem. Mas, impotente, só pôde baixar a cabeça e continuar.

O chão era irregular e mais de uma vez ela tropeçou nas pedras pontiagudas. Espiou Jarek por cima do ombro, mas só enxergou os contornos de seu rosto. A chama estava longe demais para iluminá-lo completamente.

O grupo parou. Os soldados abriram uma das celas e atiraram os prisioneiros para ela depois de desamarrá-los. Serafine avaliou uma possível fuga, mas percebeu a tolice. As Catacumbas eram um labirinto de horror e escuridão. Sibila estava longe, à mercê dos sequestradores. A vida dela dependia do bom senso dos companheiros.

Serafine observou os guardas com raiva quando as portas foram fechadas. Aproveitando os resquícios de luz, examinou a cela e encontrou rocha pura; eram esculpidas na parede. Não havia janelas. A ventilação provinha do túnel além das grades, escuro como um poço sem fundo.

Jarek esperou os passos se afastarem e estalou os dedos para produzir uma chama. Guillian examinou as grades, buscando alguma brecha para que pudessem fugir. Uma pessoa arfou nesse momento.

Uma garota. O outro prisioneiro da cela estava afastado, curvado na escuridão.

Perceberam, por seu estado, que a garota já estava ali havia certo tempo. Serafine reparou que seus braços eram tatuados como os de Ariane e Diel. Linhas negras corriam por sua pele, marcando símbolos e escritos em uma língua desconhecida.

– Novos companheiros de cela, finalmente! Eu estava enlouquecendo com esse homem. Ele é muito quieto. – Ela se animou, assustando-os. – Ah, meus Deuses! Esse seu coelho é tão fofinho!

– Coelho? Moça, mostre o devido respeito! – Guillian se aborreceu.

– Guillian. – Jarek alertou.

– Essa voz... – A prisioneira murmurou de repente. – Eu conheço essa voz!

– Como? – Jarek não escondeu a surpresa.

– Viajamos juntos por um tempo, guerreiro. Ariane e Diel se encantaram por você.

– Deuses eternos. – Jarek estava boquiaberto e deu um passo à frente para iluminar o rosto da garota. – Selina? – Ele pronunciou com incerteza. – O que faz aqui?

– Me perdi do grupo. – Os olhos dela lacrimejaram. – Estávamos mais para o Sul, próximos à nossa aldeia, quando Amaldiçoados atacaram o acampamento. Eu e mais algumas garotas fomos capturadas, mas acabei sendo trazida para cá, em vez de ir para o Rochedo Sombrio.

– Por quê?

– Precisavam de guerreiros aptos, as outras eram jovens demais. Foram levadas até as Feiticeiras. – Ela fungou e desviou os olhos para Serafine. – Quem é você?

– Não interessa. – Serafine retrucou desconfiada. A aura sentimental da prisioneira desvaneceu em um olhar animado. O rosto se transformou, ficou mais jovem e altivo.

– Estão prontos para o espetáculo? Soube que os soldados trouxeram novos monstros.

– Monstros? – Serafine arquejou.

– Ah, sim, vários! – Os olhos de Selina eram grandes, verdejantes, e pareciam vidrados. Ela tinha um rosto magro, aparente pela carne afundada nas bochechas, e a tez queimada de Sol. – O pobrezinho ali enfrentou um deles ontem à noite. – Apontou para o prisioneiro desacordado. – Está naquele canto faz um tempo. Só os Deuses sabem o que ele foi forçado a encarar.


***


Serafine encostara-se às grades de ferro havia horas. Não sabia se era dia ou noite, mas fora poupada das sombras pelo poder de Jarek. O guerreiro estava com Selina e tomava informações. Guillian estava atento à conversa, à distância, e ao homem num canto da cela. O Atyubru parecia curioso sobre ele. Serafine podia ouvir os murmúrios, desde segredos sobre a arena até dicas para sobreviver aos seus perigos. Selina perguntou sobre as chamas que Jarek produzia, mas o Sturian não era um controlador. Não podia usar o fogo como arma, apenas defender-se dele e com ele. Era contra as Leis. Manipular as chamas era poder das Trevas.

A cada palavra, Serafine ficava mais apavorada. Entendia a quietude do homem do outro lado da cela. Ela também buscaria a escuridão e o silêncio da mente se fosse corajosa o suficiente, mas a escuridão e o silêncio eram seus inimigos. A garota se afogava em desespero; em terror. Subjugada pelas sombras.

Abraçou os joelhos e escondeu o rosto neles, criando um ambiente imaginário mais confortável. Viu a grama verde balançando com a brisa fria, mas não tão gélida quanto o interior daquela cela assustadora; o Sol sobre o paraíso cheio de vida, diversos lugares e rostos familiares, que traziam uma gloriosa sensação de paz ao seu coração.

E, subitamente, foi arrancada dele.

Alguém havia trombado contra as grades. Serafine saltou e arregalou os olhos. Uma figura estava a poucos centímetros de distância.

Ela reconheceu o sorriso discreto, uma curva pequena no canto direito dos lábios cheios. Ele usava um longo casaco cor de ébano, calças e botas escuras. E uma máscara de frieza.

Uma sombra pairava sob seus olhos. Um deles prateado, como o metal abençoado pelos Deuses. O outro, escuro como uma noite sem estrelas. O semblante era gélido como só o inverno conseguia ser.

Serafine estremeceu. Até então, havia contado com a sorte e com os disfarces, mas Luke a reconheceria em qualquer lugar.

Ao lado do príncipe de gelo, Diel deu um passo e sorriu, lânguido e divertido.

– Desculpe interromper, gracinha, mas você tem um compromisso agora. O príncipe quer conversar.


Capítulo 12

Um alerta da Realeza

 


SERAFINE FOI CONDUZIDA POR corredores, avançando por escadas longas e cansativas e passando por galerias macabras nos andares superiores das quais mal se deu conta, mas ela só tinha olhos para a figura à sua frente. Ignorou os olhares de Diel, certa de que o jogaria contra as paredes se tivesse a oportunidade. E ela poderia, mas seus amigos estavam à mercê do inimigo, e os riscos de despertar o espírito eram grandes demais.

Alguma coisa atraía seus olhos para Luke, uma força incompreensível. O sentimento que fez seu coração palpitar a surpreendeu: pena. Por quê? Luke havia traído Jon e os outros, ajudara uma Feiticeira a tomar o corpo de Benídia. Por culpa dele, o Oeste pertencia às Trevas.

A inquietante indecisão se apoderava dela. Como se houvesse mais a compreender, e Luke fosse mais do que aparentava. Serafine se lembrou da última conversa que tivera com o príncipe. Ele parecera tão sereno e gentil, pedira desculpas alegando um motivo, embora parecesse haver outro.

Obrigou-se a ter raiva. Tantas vidas haviam sido perdidas na Fortaleza por causa dele.

Como se sentisse a observação, Luke a espiou por cima do ombro. A fisionomia enigmática e doentia era inquietante; as olheiras estavam escuras. As maçãs do rosto, mais fundas, como se alguma doença o consumisse lentamente. A cicatriz parecia mais evidente. Serafine não precisaria de explicações para saber que a íris negra era parte da marca das Trevas.

Luke caminhava com os ombros ligeiramente curvos. Não portava armas – os soldados que o acompanhavam tinham suficientes – nem roupas elegantes. O casaco longo terminava nos joelhos e a gola encobria o pescoço. Serafine avistou qualquer coisa desenhada contra a pele ali, mas Luke arrumou a vestimenta e a cobriu.

Quando o príncipe parou, os guardas e Diel fizeram o mesmo.

A porta adiante fora cravada na pedra bruta; havia tochas nos batentes laterais. Luke dispensou os soldados com um olhar e eles se postaram no fim do corredor. Diel o fez com relutância. Deixar a prisioneira parecia um risco. Ela era sua garantia da recompensa, afinal.

– Sabe por que a trouxe aqui? – Serafine o encarou. O brilho perturbador em seus olhos era mais intenso do que antes. Ela não demonstrou medo, mas curiosidade.

– Não.

– Tenho uma mensagem para entregar.

– Ah, é? Não acho que eu tenha o direito de escolha, mas, de qualquer maneira, não quero ouvir. – Serafine cruzou os braços, tentando impedi-los de tremer.

Luke se aproximou, centímetros separaram seus corpos. Serafine pensou em se afastar, mas resistiu em desafio.

– Você precisa ouvir.

A garota suspirou. Luke pareceu surpreso.

– O que houve com você? – A pergunta o perturbou. – Luke, seu olho... Seu olhar... – Luke recuou como se ela o tivesse esbofeteado. Serafine engoliu em seco, mas manteve a postura. – Você mudou. Está mais sombrio.

Em silêncio, ele abriu as portas.

Estavam num camarote. Arquibancadas ocupavam as laterais, lotadas de espectadores. Os urros e uivos chegaram como uma grande onda, e Serafine se encolheu. Do lado de dentro, não era possível ouvi-lo.

O camarote fora construído no muro ao redor da arena. Bastava Serafine se inclinar para enxergar as Catacumbas.

Um trono de pedra vazio ficava próximo à balaustrada. Luke provavelmente se sentaria nele quando terminassem de conversar. Um assento simples, sem ornamentos, mas cheio de poder.

Pessoas passavam pela galeria nobre. Luke as ignorou enquanto conduzia Serafine.

Os nobres cessaram as conversas e voltaram-se para a recém-chegada, aproximando-se do príncipe. Uma garota, em particular, com trajes elegantes e uma gargantilha de brilhantes, fitou-os desconfiada. Serafine memorizou suas feições, os olhos amuados e os cabelos negros. Analisou Luke, e a discreta semelhança entre eles evidenciou o parentesco.

– Saiam. Todos. – O príncipe rosnou, e a ordem foi obedecida rapidamente. Gesticulou para os soldados e eles ladearam o trono, formando uma barricada contra a balaustrada.

A garota de olhos verdes permaneceu próxima. Diel fechou a expressão ao ser dispensado, mas se manteve atrás do círculo de soldados. Cruzou os braços, encarando Serafine.

Um urro horrendo veio da arena. Ao inclinar-se, avistou a redoma acima apinhada de pessoas. Elas gritavam xingamentos exaltados contra os que lutavam por suas vidas.

As Catacumbas eram um labirinto. Diversos corredores de muros altos escondiam o caminho dos lutadores, levando-os a vagar em busca de uma saída; o chão e as paredes se moviam, dificultando ainda mais a localização, e uma névoa pesada cobria à distância.

A movimentação das paredes e das pedras tornava impossível distinguir o que havia dentro delas. Espalhavam-se por toda a imensa extensão da arena, mas Serafine vislumbrou e ouviu monstruosidades aguardando cada um dos lutadores. Quando um dos prisioneiros encontrou uma saída, despencou em uma galeria mais baixa.

– Como está fazendo isso? – Ela virou o rosto.

– O quê?

– Que tipo de magia está escondendo suas marcas? – Serafine hesitou, mas optou por manter a expressão impassível. Se Luke achava que ela tinha controle sobre aquilo, não desmentiria.

– Você me encontrou sem elas. Por que lhe interessa?

Um rápido sorriso curvou os cantos dos lábios dele. Frustração, Serafine percebeu. Ao passar os olhos pelo rosto da garota e então por sua silhueta, deteve a observação sobre o colar enroscado na gola do casaco. Pareceu ter encontrando a resposta para sua dúvida.

O sorriso se foi. Seriedade foi tudo que restou.

– Você vai para a arena amanhã. – Luke desviou a atenção para o labirinto. – Não será atacada ou perseguida, não importa o que faça. Os monstros não serão ameaça.

– Então por que me mandarão para a arena?

– A Rainha quer medir a força do seu espírito, ver o alcance de seus poderes. – Serafine gelou dos pés à cabeça. – Achei que já tinha entendido, Serafine... Sharowfox está aqui, junto à escuridão, neste momento.

A garota avaliou os cantos escuros. A respiração ficou pesada. Sharowfox estava ali. Depois de todo o esforço, ela a havia encontrado e queria testá-la. Não seria um alvo na arena, então...

– Meus amigos – sussurrou. – Eles vão para a arena comigo.

– Sim.

– Vai matá-los.

O sorriso enviesado e perturbado retornou ao príncipe. Serafine desejou que ele caísse do camarote, que seu corpo estilhaçasse contra o chão como uma taça de cristal, se partisse como gelo.

– A intenção é que você os salve... Mas estaria disposta a assumir o risco? Ambos sabemos o que acontece quando perde o controle.

– Por que está fazendo isso? – ela implorou. Luke se esquivou de seu olhar. – Benídia e tantos outros morreram por sua causa. – A garota de olhos verdes e Diel eram os únicos atentos à cena; algo no rosto da menina surpreendeu Serafine. Uma gratidão silenciosa. Diel estava curioso.

Trêmula, mas confiante, Serafine aproximou a mão da de Luke, tentando demonstrar simpatia, resgatar o menino de sorriso doce que encontrara na Fortaleza do Dragão. Deixou seus dedos se tocarem e ele não se afastou. Um calafrio deslizou pelo braço dela, uma sensação familiar e ao mesmo tempo inexplicável. O príncipe tinha mãos delicadas, dedos longos e frágeis e a pele fria de veias escuras.

Ele baixou o olhar. Sua expressão, aquela intensa e dolorosa fragilidade que escondia tão bem, ao alcance de Serafine. O menino que as Trevas dobraram talvez pudesse ser salvo.

O ar ficou mais ameno. O vento desapareceu por instantes.

– Luke, não precisa ser assim. Deixe-me ajudá-lo... – O rapaz travou a mandíbula. Afastou-se com brusquidão; o toque da garota o perturbava.

– Guardas! Levem-na. – Diel enrijeceu a postura e se aproximou, mesmo que o chamado não o incluísse. – Boa sorte amanhã.

Serafine foi arrastada. Luke não respondera. O que quer que o movesse para as Trevas, provavelmente o amedrontava.

Sharowfox está onde as Trevas estão. E havia tanta escuridão nas Catacumbas; naquele Reino.

Luke desabou no trono, escondendo o rosto. A irmã se aproximou do príncipe, mas sua atenção estava em Serafine.

De volta à cela escura, desnorteada demais para responder às perguntas de seus guardiões, Serafine tremia. Sombras estavam em sua mente e corpo, arranhando seus braços, pernas e coração.

Jarek parou de questioná-la e segurou seu rosto, preocupado e carinhoso. Serafine não conseguiu encontrar foco; entendendo o que se passava na mente dela, o guerreiro a trouxe para si. Serafine enterrou o rosto no peito dele, respirando profundamente, prendendo-se ao seu cheiro e presença.

A escuridão lançava sombras sobre Serafine. Sharowfox a observava naquele instante.


***


Selina estava dormindo. Guillian tinha cansado de andar de um lado para o outro e conversava em voz baixa com Jarek, ao lado de sua protegida.

O prisioneiro desconhecido acordou nesse momento, arfando como se despertasse de um pesadelo. Jarek desviou a atenção para ele, erguendo a chama entre os dedos.

O rosto do prisioneiro era forte, poderoso, mas estava muito abatido. A barba, grande e desgrenhada, mostrava que o homem estava vivendo em condições precárias há muitas semanas. Seu cabelo também era um emaranhado de nós e fios sujos. Mas os olhos... Os olhos cor de âmbar vibrantes e vivos, chamas alaranjadas que gritavam poder, e que se prenderam à Serafine logo que a cela foi iluminada. Num primeiro momento, houve choque. Depois, ansiedade.

Serafine se afastou.

– Não é possível... Não você.

– Perdão?

Ele se arrastou para ela e Serafine se encolheu junto à parede. Jarek bloqueou o caminho, mas estranhou quando Guillian não reagiu. O Atyubru estava em choque.

– Você desapareceu depois da fuga. Não tive mais notícias de Guillian. – Ele fitou o felpudo, que baixou o rosto ligeiramente. – Disseram-me que ter arriscado tudo por você e pela criança tinha sido em vão. – Os olhos dourados se prenderam ao rosto de Serafine.

– Do que está falando? Conhece Guillian?

– Ravenne, sou eu. Demetrius. – Serafine ergueu as sobrancelhas, atônita. Estava diante do Rei dos Reis? Por que ele a confundia com Ravenne? Com sua mãe? – Não se lembra de mim?

– Sinto muito, senhor, mas... Meu nome não é Ravenne. – Ela olhou Jarek em busca de apoio, mas o guardião estava pasmo demais. Guillian também. Ambos olhavam para o prisioneiro como se vissem um fantasma.

– Qual é seu nome? – O homem inquiriu num tom grave e imponente, uma ordem.

– S-serafine. – A garota gaguejou.

– Meus Deuses. Eu nunca acreditei... que Ravenne estivesse certa, mas era você. Você era a Escolhida.

– Do que está falando? – Serafine ficou de pé quase em reflexo. No fundo de sua mente, a resposta se formava.

– Serafine, Ravenne a abandonou para protegê-la. Ela nunca me revelou sua localização por medo que os outros descobrissem. E não me procurou depois do seu nascimento. – Os olhos dele estavam carregados de emoção. De amor. O Rei dos Reis se ajoelhou perante Serafine, devastado. – Eu sou seu pai, querida.

A informação caiu como um raio.

Serafine bateu o corpo contra as grades. Jarek e Guillian a chamaram, mas soaram distantes como ecos. Seus olhos não desgrudavam da figura de Demetrius, um grandioso Rei aprisionado e castigado pela crueldade das sombras. Seu pai.

E Ravenne... Tal como ela suspeitara. A dona dos desenhos vermelhos, uma Feiticeira. Sua mãe.

Serafine não era uma Delay, como sempre se obrigou a acreditar.

Era uma Tytos.

Herdeira de um poderoso Mago, nascida do ventre de uma perigosa Feiticeira. Fruto da relação mais proibida daquela Era.

Pontos pretos piscaram sobre sua visão. O chão estremeceu em resposta e Guillian tocou seu pulso, pedindo que se acalmasse.

– Como você... Por que mencionou Guillian? – Encarou o guardião.

– Ele ajudou sua mãe a escapar. – Demetrius usou um tom ameno e manteve distância. – Guillian protegeu Ravenne e a escondeu durante a gravidez. Ele foi exilado da tribo por isso.

A traição... Essa havia sido a traição.

Embasbacada, Serafine fitou Guillian.

Ele havia condenado a si mesmo para mantê-las vivas; fora contra todos que amava para salvar duas vidas inocentes, e nunca pôde revelar por conta da promessa feita à Ravenne.

– Guillian... – Serafine não conseguia formular a frase.

– Milady, lamento profundamente não ter contado nada, mas sabe que fiz um juramento, e juramentos não devem ser quebrados. Ravenne me fez prometer que essa verdade pertencia aos seus pais, e apenas eles poderiam contar. – O olhar melancólico a desnorteou. – Ajudei sua mãe a escapar dos soldados que caçavam uma Feiticeira vista nas redondezas do Castelo de Tytos, e fugi de meu povo. Ravenne e eu nos ajudamos até que você veio ao mundo. Fiquei encarregado de levar a mensagem até o Grande Rei e assim o fiz. Naquela noite, Ravenne foi avistada e precisou fugir. E a levou. Eu nem tive tempo de vê-la, Serafine. – O Atyubru baixou as orelhas tristemente. – Ela me deixou uma carta informando o seu paradeiro, mas o juramento me proibia de compartilhá-lo. Você estaria a salvo até seu aniversário. De nada adiantaria tirá-la do desconhecido para o perigo do mundo mágico. A mera possibilidade de revelar essa informação antes do tempo era um risco à sua segurança.

O silêncio prosseguiu por minutos.

– Se há um momento para perguntas, Serafine, é agora. – Guillian incentivou-a, esperando que sua protegida ralhasse com ele.

– Não – ela sussurrou. – Eu não consigo. Preciso... De tempo. E espaço. – Serafine viu-se incapaz de olhar Demetrius. Um estranho cuja ligação com ela era profunda e poderosa. Seu pai.

Serafine nunca quisera encontrar as respostas para o abandono, o motivo que levara seus verdadeiros pais a deixá-la sozinha no mundo. Saber que eles o fizeram por necessidade deveria soar como um alívio, mas doía pensar que o que a tornava especial levara sua mãe a fugir, a deixá-la na porta dos Delay quando era tão pequena. Que a Profecia de Mídria obrigara seus progenitores a darem-lhe as costas, a nunca vê-la crescer; que Demetrius sequer chegara a saber se Serafine havia vivido ou morrido. E Ravenne... Estivera presa até pouco tempo, sentenciada às torturas, ao sofrimento.

Era isso que os Deuses haviam lhe reservado quando prometeram que as verdades chegariam? Essa dor?

Soldados se aproximaram, impedindo Serafine e os demais de continuar. As Catacumbas estavam acordando. Era hora do espetáculo.


Capítulo 13

Cornélio

 


SERAFINE FOI SEPARADA DE Jarek e Guillian. Demetrius também, mas a garota não conseguiu encará-lo; havia tanto a pensar, a considerar. Estava prestes a encarar a arena, as sombras de Sharowfox e um possível despertar do espírito... Ela precisava respirar fundo e encontrar paz, ou perderia o controle.

Selina e ela foram para outro recinto bem iluminado. Havia algumas mulheres ali, vestindo farrapos, com expressões entristecidas. Havia também um homem parado de costas para a entrada, que se virou logo que as prisioneiras chegaram.

– Aquele é Cornélio. – Selina murmurou para Serafine.

A garota arregalou os olhos. Teria tempo de falar com ele sobre Jon? Conseguiria convencê-lo a tirá-los dali?

Cornélio poderia ter quarenta ou vinte anos; era difícil de medir. Alto e muito magro, a carne se enterrava em suas bochechas ossudas. Tinha olhos de ébano grandes e muito expressivos. Seu cabelo era acinzentado e curto. A pele era tão branca quanto a neve, mas doentia e estranha. Quase sobrenatural.

Vestia trajes elegantes e um tanto chamativos. A calça de couro e as botas eram escuras, a camisa de seda amarela estava encoberta por um casaco esmeralda. Havia dezenas de brincos em sua orelha direita e o sorriso era o mais amigável possível. O gesto, contudo, possuía certa tensão. Os lábios tremiam, como se o riso fosse forçado.

– Bom dia, minhas guerreiras. – A voz era rouca. Fez sinal para as mulheres, e as prisioneiras foram divididas. Serafine foi arrastada até um canto para ser despida. As servas tentaram, pelo menos. A garota se esquivou e empurrou uma das mais velhas para longe quando ela tentou desabotoar seu corpete.

– Deixem-na se banhar sozinha. – Cornélio ordenou.

Serafine cerrou a mandíbula. Cornélio havia parado à sua frente, examinando-a com um semblante profissional. A palidez do homem era ainda mais assustadora de perto. O lorde era translúcido como um espectro.

Os olhos dele pararam sobre a joia que lhe fora dada por Theodore, em seu pescoço. Com agilidade, Cornélio a puxou. O toque tão suave que Serafine quase não o sentiu. Ele olhou da joia para a garota com expressão de pavor e reconhecimento.

– Bem, aí está. A Escolhida, como dizem as histórias vindas do Oeste.

Serafine cruzou os braços, sentindo-se exposta sem o colar.

– Pode devolver?

Cornélio se aproximou e apoiou a joia sobre a palma da mão da garota. Olhou em volta como se suspeitasse de alguma plateia, e sussurrou contra sua orelha: – Lute contra a Feiticeira, minha querida. Se conseguir escapar, vou ajudá-la a encontrar seu Mestre.


***


Serafine olhou para as roupas que vestira e soltou um suspiro exasperado. A calça era muito justa, de couro maleável, de modo que não encontrava dificuldades para se movimentar. O colar pendia sobre seu busto; um reconforto depois da cena estranha com Cornélio. O colete ia até o pescoço, firme contra o tronco. As mangas compridas eram quentes para suportar o frio cortante, forradas com alguma pele aconchegante. Num primeiro momento, sentiu dificuldade de encontrar estabilidade e flexibilidade naquela peça, mas bastaram alguns passos para Serafine constatar que era um traje de guerra; o couro leve e resistente cobria o seu corpo com perfeição.

Selina e as demais usavam uma peça semelhante. Haveria justiça nas lutas, pelo menos.

Elas aguardavam pelos outros prisioneiros. Serafine cruzou as mãos, enterrando as unhas nas espirais pálidas. Elas continuavam ali, apesar do que Cornélio e Luke haviam dito. Aos seus olhos, sempre estiveram ali. Serafine não conseguia entender de onde vinham aquelas dúvidas, aquela estranha camuflagem, mas sentia que a resposta estava ao seu alcance.

Uma brisa entrou pela larga janela do recinto e transformou-se num sopro de ar quente, rodeando a garota com o conforto de um abraço. Obrigada. Ela sussurrou ao elemento, afastando as mãos, ansiando por seu Mestre.

A porta foi aberta. Jarek, Guillian e mais alguns homens foram empurrados para dentro. Serafine observou os desconhecidos. O mais assustador deles deveria ter em torno de trinta anos e era gigantesco, no quesito músculo e altura, mas parecia tão perdido que não se encaixava como uma ameaça. Deu por falta de Demetrius.

– Onde está... O Rei? – Serafine sussurrou para Jarek.

– Foi levado para outra antessala. Acho que não o querem sozinho conosco. Ele é uma espécie de atração nas Catacumbas.

– Que ousadia! – Guillian resmungou quando a porta se fechou. – Aquela jovem me apalpou de maneira descarada! E apararam meus pelos! Meu topete quase foi extinto! – Serafine conteve o riso. – Onde já se viu? Não existe mais respeito nesse mundo?

– Gostei do novo visual, Gui. Ficou mais fofo. – Selina brincou.

Serafine aproveitou os instantes seguintes para detalhar o ocorrido com Cornélio e Jarek se mostrou curioso. Ele pediu permissão e retirou a joia de seu pescoço. Quando afastou a pedra, não pareceu encontrar qualquer anormalidade na garota.

– E então?

– Não tem nada de diferente.

– Meus Deuses! – Voltaram-se para Selina, que havia levado as mãos à boca após a exclamação. Os demais também observaram Serafine. – O que houve com você?

– Por quê?

– Essas marcas no seu rosto... – A pirata estava com os olhos arregalados. – De onde surgiram?

– Ora essa, sempre estiveram aí. – Guillian cruzou os braços.

– Não, não estiveram – Selina retrucou. – Acha que eu não teria visto esses espirais antes? Que tipo de... – Ela pigarreou. – O que é você?

Serafine hesitou diante do questionamento de Selina, referindo-se a ela como uma coisa. A pirata imediatamente se retratou, mas havia assombro em seu olhar. Serafine ainda era uma aberração. Haveria estranheza quando Selina a olhasse novamente, a sensação de que não pertencia à realidade da garota.

Jarek recolocou o colar e Selina se empertigou.

– As marcas desapareceram.

– Quando essa joia foi encantada? – Guillian indagou.

– Recentemente. Ela não a escondia as marcas antes da queda da Fortaleza. – Jarek coçou o queixo, curioso.

– Foi Theodore. – Serafine finalmente entendeu. – Ele enfeitiçou meu colar pouco antes do palácio ser tomado. – Reconhecimento desenhou as feições de Guillian. O coração da garota apertou ao se lembrar do Mestre. – Deve ser por isso... Diel não viu as marcas depois que a maquiagem dissipou. Esse foi o motivo para os piratas desconfiarem da minha identidade. Luke e Cornélio perceberam antes de mim. A pedra está me escondendo.

– Bastante inteligente da parte do seu Mestre. – Jarek sorriu. – Mas, e quanto a nós? Por que não notamos o encantamento?

– Não deve funcionar conosco. Estamos ligados ao espírito, à magia de Serafine. – Guillian ponderou. – Através do sangue e de magia antiga. Theodore fez um escudo para escondê-la dos outros. Ele sabia que viríamos para o Sul, então também sabia que encontraríamos mais inimigos do que aliados.

Serafine anuiu; a saudade em seu peito foi eclipsada por gratidão.

– Continue usando esse colar, está bem? – Jarek pediu. – Vamos garantir que o último presente do seu Mestre venha a calhar sempre que necessário. Os sulistas na arena verão uma guerreira, não a Escolhida.

– Se o príncipe não usar isso a favor dele. – Guillian replicou desanimado.

– Ele não vai causar esse alvoroço todo. Estamos no Sul, mas pode haver apoiadores da Luz entre os nobres ou plebeus. Ele pode começar uma revolução se disser que tem a escolhida dos Deuses como prisioneira. – Jarek contrapôs.

– Em outras circunstâncias até seria bom colocar um pouco de medo ou mesmo admiração nesses palermas, mostrar que a guerreira dos Deuses está entre eles, mas... – Guillian hesitou. – O anonimato pode ser nosso escape. Vamos torcer para que sua alteza real não estrague nossos planos mais do que já fez.

Serafine não os corrigiu alertando que Sharowfox sabia da sua presença ali. Não teve coragem de informar aos guardiões que as Trevas a observavam e a testariam nas próximas horas. Que eles acreditassem na pouca esperança. Era melhor do que a verdade.

A porta do aposento foi aberta. Cornélio estava à frente de um grupo de soldados.

– Preparados para o espetáculo?


***


Serafine foi empurrada para uma das jaulas e grunhiu pela violência. O soldado trancou a porta e afastou-se. A garota encontrou Demetrius ao lado, e não soube como reagir.

As portas de madeira rangeram, dando passagem aos túneis que levariam à arena. Serafine ofegou em pânico. Não queria seguir em frente. Lutar, despertar a força assustadora presa em seu corpo. Não podia perder o controle novamente.

– Vai ficar tudo bem, querida. – Demetrius a olhava com carinho. Ele apoiou uma das mãos na grade que os separava. – Você é forte.

Serafine engoliu em seco. Sharowfox o usaria contra ela também? Colocaria a vida do Grande Rei em risco para atormentar o espírito?

Demetrius compreendeu o silêncio. Fez um aceno e se afastou para o túnel. A garota desejou dizer algo, um boa sorte que fosse, mas ele trazia ecos das verdades à sua consciência. Aquele homem marcado por torturas e pelo horror da escuridão, um Rei destronado e enfraquecido, um Mago de poder imensurável que existia nas histórias com as quais Serafine cresceu, era seu pai.

Ela avançou pelo túnel com rapidez, ansiosa para livrar-se da escuridão. Havia luz à frente.

Na saída, Serafine ergueu o rosto para a redoma de ferro; centenas de pessoas penduravam-se e urravam como animais, tão distantes que não passavam de pontos insignificantes contra o céu.

Diante dela havia um corredor cercado por altas paredes de pedra. Demetrius devia estar num local semelhante, mas qual direção haveria tomado? Qual o trajeto correto para encontrar seus amigos e garantir que estivessem a salvo?

A garota inspirou fundo e deu um passo à frente, cautelosa. Quando nada aconteceu e nenhuma parede se moveu, ela avançou mais. Precisava achar os outros e ajudá-los. Não podia deixá-los à própria sorte.

Caso Luke tivesse dito a verdade, Serafine estaria invisível para os monstros. Não se importava com Sharowfox no momento; tinha de proteger os amigos.

Um estrondo ecoou pelo labirinto, o chão estremeceu e a garota cambaleou. Amedrontada, Serafine se dirigiu para a direção do som.


Capítulo 14

As Catacumbas

 


SERAFINE VAGOU PELA ARENA. Vira as Catacumbas do alto antes e se lembrava de como aquele labirinto parecia interminável, dos prisioneiros caminhando feito insetos entre as passagens, sem nunca chegar a um destino. Ela fazia o mesmo.

Havia uma névoa pesada no chão, uma presença que a deixava paranoica. Serafine não via onde pisava, não enxergava o fim dos corredores. Não encontrava sentido nos próprios passos; o medo era tudo em seus pensamentos.

Luke podia ter mentido. E se encontrasse algum monstro numa das antessalas, e ele a atacasse? O espírito responderia? As Catacumbas se tornariam ruínas, e todos estariam mortos antes que Serafine pudesse se livrar do domínio. Ela não despertara o espírito desde antes da queda da Fortaleza do Dragão; não buscara a totalidade dos poderes depois que a marca das sombras recaiu sobre sua alma. O que mais acordaria com ele, caso tentasse usá-lo? E se esse fosse o real desejo de Sharowfox? Testar o alcance da marca da escuridão no poder da Luz?

Os sons da multidão acima não alcançavam a garota. Ela só ouvia o eco de sua respiração.

Indecisa quanto a direção a tomar, parou diante de uma bifurcação. O Sol estava se pondo à direita, lançando raios alaranjados sobre as paredes de pedra bruta. Logo, as Trevas reinariam. Não havia tochas nos corredores do labirinto. Não haveria luz.

A neblina se condensou, arrastando-se para a menina. Esgueirando-se por suas pernas, tronco e braços, prendendo, puxando-a para baixo.

Serafine desvencilhou-se e escorou as costas à parede, em pânico. Levou uma das mãos ao peito, ergueu os olhos para a redoma, e usou a visão sobrenatural para encontrar diversos olhares animalescos sobre ela. O horror deu espaço à ira e o chão estremeceu em resposta.

Agora não, por favor!

Ela caiu de joelhos. Uma dor excruciante veio de trás de seus olhos, apagando o mundo. Algo ou alguém tentava romper seu cérebro. A pressão afetava sua sanidade, seus pensamentos. Uma força invisível dentro de sua mente toldava seus sentidos.

A sensação passou tão repentinamente quanto havia começado e a dor se foi. Serafine caiu de bruços. Uma voz ecoou em sua cabeça:

– Levante-se. – O tom masculino se mesclava a uivos de vento e sussurros de brisas.

– Quem é você? – A garota perguntou em sua mente. Fraquejou ao tentar se erguer. Seus braços tombaram e o rosto bateu contra o chão duro.

– Erga-se. Seu guardião está próximo, mas não conseguirá encontrá-la. Vá até ele.

– Quem é você? – Ela repetiu em voz alta.

– Seu Mestre, Serafine. Estou preso e não posso alcançá-la, mas posso guiá-la, se permitir.

– Como posso confiar em você? Há mentiras demais em minha mente. – Serafine colocou-se de joelhos e aguardou a resposta. Não sairia dali enquanto não tivesse a explicação.

– O Ar não mente, Serafine. – A desconfiança diminuiu quando uma brisa calorosa a abraçou e seguiu adiante, empurrando a névoa que cobria o solo. Abrindo caminho para a Escolhida. – Siga-a. Seu guardião está com problemas, ele encontrou uma das antessalas. – Serafine queria perguntar ao Mestre como ele sabia aquilo, mas a conexão se perdeu. A garota seguiu em frente.


***


Momentos antes.


Jarek parou ao contornar o mesmo corredor. O labirinto e as brumas estavam brincando com o guerreiro, confundindo seus sentidos. Ele precisava encontrar Guillian e Serafine. A protegida, especialmente. Se o espírito despertasse naquele lugar, Jarek imaginava as ruínas em que as Catacumbas e a cidade se tornariam.

O guerreiro apressou-se e contornou uma esquina, frustrando-se ao perceber a bifurcação. A névoa se ergueu em espirais. O medo cresceu em seu coração. Estava se aproximando de alguma coisa e temia descobrir o quê. Segundo os relatos de Selina, criaturas hediondas, saídas dos pesadelos, estavam enjauladas naquela arena. Monstros insaciáveis, sedentos por sangue.

Aquele era um momento maravilhoso para estar desarmado.

Jarek alcançou uma saída e, ao pisar na gigantesca galeria, um estrondo o empurrou contra o chão. Desnorteado, virou-se para a rocha que bloqueou o caminho pelo qual viera. Estava preso.

Praguejando, voltou-se para o tilintar arrepiante ao fundo.

O guerreiro caíra em uma das antessalas. No alto estavam as arquibancadas e a redoma de ferro, onde os humanos dependuravam-se e gritavam. A névoa rareava ali, mas ainda existia e empurrava a coragem de Jarek para longe.

Pior ainda era a visão da imensa criatura cadavérica ao fundo da antessala. Aquilo viera de algum buraco do Abismo.

O monstro tinha braços e pernas muito longos. As mãos, de dedos esguios e unhas afiadíssimas, arrastavam-se pelo chão conforme caminhava. Correntes prendiam seus pulsos e o tilintar delas crescia em ecos. A cabeça era achatada e desproporcional. No lugar da boca havia um rasgo, com dentes pontiagudos como os de um Lobisomem. Não existiam olhos nas cavidades vazias. O monstro tinha cortes, hematomas e arranhões pelo corpo.

A neblina rodeou sua silhueta e, num instante, o monstro tinha desaparecido. Um golpe lançou Jarek contra a parede, e o impacto arrancou seu fôlego. O monstro se materializou à sua frente e as garras da criatura se projetaram adiante. O guerreiro atirou-se ao chão, e as unhas afiadas atingiram a parede. Jarek rolou, buscando qualquer coisa que pudesse usar como arma.

Apesar de enorme e perigoso, o monstro certamente não era ágil. A névoa, no entanto, ganhava vida ali, e escorregou traiçoeira até Jarek. A paralisia foi imediata; de bruços, linhas de gelo deslizaram por sua pele, atravessando as mangas do casaco. O monstro o agarrou pelas pernas e as unhas fincaram em suas panturrilhas.

Aquela não era uma arena de competição. Era um matadouro.

Sua visão escurecia. A paralisia e o pânico prenderam Jarek ao horror. Ele podia lutar, mas não encontrava forças; a mente era um turbilhão. O monstro estava sobre seu corpo, a bocarra aberta. Alguns centímetros a mais e ele devoraria o Sturian.

As paredes moveram-se e o chão sacudiu. Do outro lado da antessala, o bloqueio da entrada foi movido, abrindo caminho para uma silhueta. Jarek não reconheceu quem era. O monstro, no entanto, ignorou Serafine.

Jarek gritou quando as presas afundaram em seu ombro, feito serras. No instante seguinte, a criatura foi arremessada dali, estatelando-se contra a parede oposta.

A dor foi uma benção. Jarek conseguiu livrar-se da paralisia, retomando controle sobre o corpo e os pensamentos.

Serafine examinou o guardião e ele observou a tremedeira dela de volta. Algo em seu olhar não era natural. Não havia o brilho pertencente ao espírito, mas uma sombra que crescia sob suas feições. O tremor no chão abrandou, mas a expressão permaneceu.

Jarek cobriu o ombro ferido com a mão e correu até a garota; atrás do guerreiro, o monstro grunhia, erguendo-se com dificuldade. Jarek agarrou Serafine e a puxou pela abertura, que desmoronou e lacrou a antessala.

– Serafine. – Ela não retribuiu o olhar do guardião. Trincando os dentes pela dor, Jarek ficou diante da garota, amparando seu rosto trêmulo com a mão livre. – Princesa, olhe para mim.

– As brumas estão envenenadas. – A voz saiu rouca. O corredor era de escuridão, mas as brumas ainda estavam ali. – Ela está aqui, Jarek. – Serafine finalmente o fitou, apavorada. – Sharowfox.

– Vamos escapar antes que ela nos encontre.

– Jarek. Ela está aqui, agora. Ao nosso redor.

– Então precisamos continuar. – Ele segurou sua mão, determinado. Serafine olhou do gesto para o guardião.

Entrelaçou seus dedos com firmeza em resposta, deixando que o guerreiro seguisse em frente.


***


Guillian conseguira encontrar Selina, a simpática e pouco respeitosa pirata – se considerasse o problema que os Atyubrus tinham com as palavras fofo e adorável. Ela vagava por um dos corredores pelo qual o orelhudo passou. Considerando-a confiável o bastante, seguiram juntos.

Não conversaram muito. A paisagem aterradora da arena não ajudava qualquer diálogo, e a névoa perturbava até os pensamentos mais triviais. Selina preferia que ficassem em silêncio. O labirinto funcionava de acordo os medos. A neblina transformava pequenos pavores em montanhas de horror.

A pirata se mostrava muito precavida em relação às armadilhas. Ela conhecia algumas passagens através de marcas puídas nas rochas – manchas de sangue ou runas que outros prisioneiros haviam esculpido.

O sol desaparecera, e os corredores estavam escuros.

Guillian e Selina tiveram mais cautela quando um urro e um estrondo ribombaram próximos dali. Nuvens escuras surgiram repentinamente nos céus, seguidas de relâmpagos. Um raio estourou em direção à arena. O silêncio tenso recaiu depois, indicando que algo de ruim acabara de acontecer.

Selina soltou um grito abismado quando Guillian avançou; ele não tinha armas, mas punhos e muita coragem. Era o Bravo, afinal de contas. Um Atyubru. Não se curvaria perante o medo que as Catacumbas tentavam impor.

O orelhudo continuou em frente com Selina em seu encalço. Fumaça saía da antessala onde o raio surgira, e ambos se guiavam por ela. Quando Guillian hesitou, Selina cutucou seu ombro e apontou uma das direções. Ele decidiu acreditar nela. Minutos se passaram e uma passagem surgiu em uma das bifurcações.

Atrás dela, um troll – criaturas gigantes e descerebradas que viviam nas montanhas geladas daquele Reino – jazia morto, o corpo carbonizado. Próximo dele, outro corpo tombara. Guillian o reconheceu. Apesar da aparência desleixada e da fraqueza evidente, o Grande Rei sempre seria uma figura memorável.

– Eu disse que ele costuma fazer espetáculos aqui na arena. – Selina sussurrou, abaixando-se para examinar o prisioneiro. Guillian suspirou aliviado ao encontrar os batimentos do coração.

– Majestade. – A pirata observou o orelhudo com um olhar assustado. Guillian a ignorou. – Precisa se levantar. Temos que tirá-lo dessa arena.

Demetrius resfolegou. Ao abrir os olhos, as íris de âmbar eram sofrimento.

O chão vibrou. Guillian reconheceria aquele tipo de tremor em qualquer lugar. Pertencia à Escolhida.

– Demetrius. – Guillian sentenciou. – Serafine precisa de nós.

A dor e o desespero se foram. O Grande Rei se pôs de pé.


***


Serafine tropeçou outra vez. Suas pernas pareciam desligadas do corpo, e o esforço para manter-se de pé exigia todo seu controle. A garota se perdia em pensamentos, vozes desconexas que não pertenciam a ela; nem mesmo a brisa acalentadora de antes conseguia dissipar a tormenta mental.

Ao sair da antessala, Serafine sentira a presença de Jarek, seu olhar e toque, e o aceitara. Então tudo desvaneceu.

Estava correndo em meio à neblina, e a escuridão os engolia. Sabia que estava condenada.

Sharowfox drenava sua sanidade, empurrando-a ao descontrole do espírito, provocando a força ancestral a acordar e tomar sua consciência. O medo fluía por Serafine. Ela corria, mas estava presa.

– Serafine! O que está fazendo?

No primeiro momento, ela não entendeu a pergunta do guardião. Então percebeu que o chão tremia; as paredes próximas desmoronaram e as pedras sumiram nas brumas. Ela mandou o poder para a quietude, mas o estrago já estava feito. O tremor abriu caminho para uma antessala.

Maior do que a anterior, guardava uma criatura familiar.

Atrás dela, uma construção se erguia, semelhante à entrada do labirinto. Aquela era a saída.

– Tem alguma coisa sombria neste lugar. – Serafine sussurrou. Seus poderes reagiram ao medo pela escuridão crescente.

Ao fundo, a silhueta se moveu das sombras. Ganhou tamanho e formas e seus olhos se acenderam. Chamas poderosas envolveram o corpo de uma Feiticeira. Parte humana, parte sombras vivas; os olhos eram labaredas vermelhas.

Jarek e Serafine recuaram. A Feiticeira ainda estava distante, mas, junto às brumas, sua presença incitava medo. Apesar disso, Serafine quase sorriu quando Jarek resmungou:

– Claro que vai ter uma Feiticeira bloqueando a saída.

– Sharowfox? – A menina tremeu.

– Ainda não. – A voz da bruxa era desconhecida. Nenhum traço da Rainha das Trevas. – Apenas uma de suas filhas.

– Serafine. – A garota ouviu a voz enigmática do Mestre abafar os pensamentos caóticos. – Precisa usar seus poderes.

– Não posso.

– Deixe-me ajudá-la. – Serafine arfou pela dor em sua cabeça. – O Ar vai protegê-la, mas só se você permitir.

Ela gritou, cobrindo os olhos com as mãos. A dor era tamanha que sua visão escureceu.

Uma explosão estourou na antessala. Jarek ergueu os punhos, defendendo Serafine das labaredas que a Feiticeira lançava. O calor cresceu, tornando-se insuportável.

– Alguma coisa está bloqueando sua mente. Uma penumbra. A marca.

– Como sabe sobre ela?

– Sei que está com medo, Serafine, mas precisa liberar seus poderes. A Feiticeira foi enviada para fazer a marca das sombras crescer, para fortalecer a escuridão da arena. Lute contra ela.

– É o que Sharowfox quer.

– Mostre a Sharowfox que ela tem o que temer.


***


Diel desviou quando o soldado desceu a lâmina contra seu ombro. Com o arco em mãos, agarrou a flecha do chão e a disparou na fresta da armadura. O soldado caiu, agarrado à panturrilha, dando a Diel a oportunidade de chutar seu rosto.

Um a menos.

O tremor vindo da arena dizia que o espírito despertara. Cornélio os avisara de que aquilo aconteceria, mais cedo ou mais tarde, por isso a campanha quase suicida para libertar todos os prisioneiros sob as Catacumbas. Diel gesticulou para Aria e ela seguiu em frente; os últimos lutadores daquele corredor foram soltos, e seguiram a pirata para a saída.

O trato com o príncipe de gelo fora cumprido ao trazer Serafine e seus guardiões para a prisão. O trato com o dono das Catacumbas começava naquele momento. Cornélio procurara Nicolau para negociar a libertação da Escolhida, com a desculpa básica de qualquer warthiano: “explicarei meus motivos depois”. O dinheiro fora suficiente para Nicolau não o questionar. A liberdade dos prisioneiros foi sugestão de Diel e Ariane. Se Cornélio estivesse certo e Serafine realmente fosse liberar seus poderes, não restaria arena ou cidade para contar a história.

Diel desceu as escadas até a última passagem. Havia mais alguns prisioneiros no subsolo, e bastaria libertá-los para escapar. Sairia por onde haviam entrado ao trazer Serafine.

Nesse instante, um segundo sacolejo estremeceu a construção. Mais forte e perturbador.

Desesperado, Diel parou, esperando o tremor se dissipar. Saltou os três últimos degraus da escadaria e esbarrou contra dois soldados.

Um deles caiu, mas o segundo se recompôs e puxou a espada da bainha. Diel foi mais rápido. Armou uma flecha e disparou, fazendo o soldado tombar. Avançou sobre ele e cravou outra seta em seu pescoço.

Diel preparou o disparo para o outro, mas hesitou ao reconhecê-lo. Luke tremia descontroladamente, e murmurava palavras difíceis de discernir. O cabelo cobria suas feições; ele se ajoelhou, cravando os dedos na terra. Seus olhos encontraram os de Diel, e o pirata fraquejou.

Ele baixou o arco e encarou o príncipe. Um turbilhão de emoções estranhas tomou as feições do nobre. Havia agonia em seu olhar, solidão e horror. Era um pedido silencioso de socorro.

Um estrondo acima sacolejou a estrutura da construção, e não demoraria até que destroços cobrissem aqueles calabouços.

Diel fez o que poderia ser considerado um ato tolo e impensado: ergueu o príncipe de gelo e o apoiou sobre seus ombros. Luke o segurou, e Diel fitou seus olhos multicolores.

– Me mantenha consciente.

– O quê?

– Não deixe que eu desmaie. Não até estarmos a salvo. Prometa.

O pirata grunhiu, mas concordou. E salvou o inimigo da própria morte.


***


Guillian e Selina chegaram a tempo de ver as línguas de fogo serpenteando na direção de Jarek e Serafine. O Sturian bloqueou o incêndio, mas a proteção não parecia suficiente contra a energia vibrante da Feiticeira.

Demetrius avançou. A exaustão estava em seus passos, postura, em seu olhar. O pouco de seus poderes que restava, aquela mísera faísca de energia antiga que Sharowfox manteve em seu corpo para humilhá-lo, naquele momento poderia significar seu triunfo.

A Feiticeira direcionou uma onda de chamas para eles, e o feitiço de Demetrius respondeu à altura. Um estouro púrpura arremeteu contra a bruxa, e o fogo se apagou quando ela foi jogada contra a parede.

Guillian correu até Jarek e sua protegida; o Sturian estava de joelhos, ofegante. Guillian notou bolhas e pele queimada descolando de seus dedos. A Magia das Trevas avançara além do conhecimento que os elfos haviam passado ao garoto.

– O que fazemos agora? – Selina indagou em um sussurro.

Serafine ergueu o rosto para as arquibancadas, e todos pararam ao contemplar a fúria em suas feições. Guillian respirou fundo, ciente do que estava por vir. Os olhos dela se acenderam, prateados, e o solo tremeu. A força descomunal vinha das profundezas da terra. Um segundo e todos estavam no chão.

Um corpo despencou sobre a antessala, o baque alto em meio aos sons da natureza. Guillian contemplou os olhos arregalados e sem brilho de um dos nobres. Conforme a intensidade do tremor crescia, mais corpos caíam sobre as Catacumbas.

Fissuras irromperam nas paredes da arena. O domo de ferro rangeu. Uma forte ventania açoitou a arena, uivando furiosa dentro da estrutura. Alguém estava controlando o Ar, e não era o espírito.

As fissuras se expandiram e pedaços da arena começaram a cair.

Distraídos, ninguém percebeu a Feiticeira se levantar. Ela ergueu uma das mãos e fogo e escuridão se condensaram em uma explosão. Em resposta, um redemoinho engoliu as labaredas e sua controladora. O estouro de chamas e trevas foi abafado pela manifestação do Ar, que soprou o corpo da bruxa para as ruínas.

Alguém estava protegendo Serafine.

A combinação de tremor e tempestade lembrava o fim dos tempos. Demetrius ergueu a voz de Grande Rei, e mandou que Jarek seguisse em frente. Ao carregar Serafine, o guerreiro grunhiu pelas mãos queimadas.

– As portas! – Selina gritou. – Estão se abrindo!

Demetrius invocou um escudo de energia ao redor do grupo; frágil e quase esgotada, sua magia estalava em pequenas faíscas. As Catacumbas desmoronavam, e não demoraria para a redoma desabar.

Eles correram. Havia uma luz avermelhada à espera deles nas portas.

– Mais rápido! – Guillian incitou e olhou para o alto. A redoma estremecia e o rangido alto se intensificava. Apenas alguns filamentos ainda a sustentavam.

Jarek tropeçou na saída e alguém o amparou. O pânico e a adrenalina o impediram de questionar a presença de Ariane. O Sturian simplesmente aceitou o auxílio. Outros piratas vieram e carregaram Demetrius pelo corredor.

– Estou segurando. – Jarek se assustou com a voz de Serafine; era o espírito falando. – Estou sustentando as Catacumbas.

O grupo se apressou pelos corredores subterrâneos. Jarek notou as celas abertas e vazias; teriam os piratas libertado os prisioneiros?

Assim que o último deles saiu para o ar frio da cidade, a redoma despencou, reduzindo as Catacumbas, seus monstros e qualquer outra coisa ali a ruínas. O estrondo os derrubou, arremessando poeira e destroços pelos arredores. Somente então os olhos de Serafine se apagaram e ela caiu na inconsciência.


Capítulo 15

Incerteza insana

 


HAVIA MUITA ESCURIDÃO ANTES, então a súbita luz cegou Luke por instantes.

Tentou erguer uma das mãos para cobrir o rosto, mas o braço latejou. Gemendo, Luke moveu o corpo, mas cada nervo doía. Era um príncipe de gelo, mas suas dores queimavam como um incêndio.

Minutos se passaram e a mente começou a clarear. Ele avistou galhos retorcidos acima de sua cabeça, e o céu cinzento de nuvens pardacentas. Estava amanhecendo. Quando virou o rosto, avistou mais árvores pálidas pelo extenso bosque do Reino. O barulho fraco de água corrente indicou que estava próximo de um córrego, ou mesmo do rio principal que cortava a região. A geografia das redondezas das Catacumbas estava embaçada em suas lembranças.

Respirou fundo duas vezes antes de se sentar bruscamente. O mundo se tornou um borrão e o príncipe caiu para trás. Alguém o sustentou. Uma mão forte repousou entre suas omoplatas.

Luke inclinou o corpo para frente e se aprumou.

Diel se sentou displicentemente, cruzando os braços sobre os joelhos, curvando-se adiante para encarar o nobre rapaz.

– Bom dia, alteza. – Ele brincou, mas havia preocupação em suas feições.

– Onde estou? – A voz de Luke era rouca e exausta.

– De nada por ter salvado sua vida.

– Onde? – O príncipe apertou os lábios em uma expressão furiosa. Diel não reagiu como o esperado, limitando-se a dar de ombros.

– A algumas horas de distância das Catacumbas. Não permiti que ninguém me visse salvando um filho das Trevas. Tenho minha reputação, afinal de contas. – O pirata estendeu um cantil para Luke. O rapaz hesitou. – Não tem veneno nem nada do tipo, alteza. Eu poderia tê-lo deixado soterrado se quisesse vê-lo morto.

Ainda hesitante, o príncipe aceitou. Bebeu toda a água e fechou os olhos. Havia escapado das Catacumbas, mas em que momento? Ele se lembrava com clareza de Diel e dos corredores, mas o resto era incerto.

– Eu... estava consciente quando deixamos a arena?

– Muito pouco, mas sim. Murmurou um monte de coisas estranhas. O que eram?

– E minha irmã? – Diel fez uma careta ao ser ignorado. – Os soldados levaram minha irmã para fora?

– Não prestei atenção em nada além do que me interessava, príncipe. Sinto muito. – O horror percorreu Luke. Elyna estava no camarote quando Serafine fora levada à arena, mas se retirara logo depois. Conseguira sair antes de tudo desmoronar? Luke tinha certeza que o espírito transformara as Catacumbas em ruínas.

– Eu o levo de volta. – Surpreso, o príncipe fitou o pirata. – Não está em condições de andar sozinho, alteza. Sem ofensas.

– Por que está me ajudando? Por que salvou minha vida?

– Chame de motivos egoístas. – Sem entender o sorriso rápido de Diel, Luke se empertigou quando o pirata ficou de pé e estendeu a mão. – Não quer descobrir o paradeiro de sua irmã?

Luke estudou os olhos dele. Intensos e sinceros, tão fascinantes quanto da primeira vez em que os vira. O rosto de Diel aparentava serenidade, apesar das linhas franzidas em sua testa; ele contemplava o príncipe de gelo da mesma maneira, estudando cada detalhe de sua expressão e olhar.

Embora fosse um completo desconhecido, um criminoso, Diel salvara sua vida. Luke não era melhor do que ele para julgá-lo. Era muito pior, na verdade. Um filho das Trevas, como o pirata nomeara.

Por esse motivo, aceitou a ajuda. O apoio do pirata o sustentou quando suas pernas vacilaram.

– Tem que tomar cuidado com os soldados. – O aviso escapou de Luke. Diel soltou um riso de escárnio.

– Não pretendo chegar perto deles. Só vou deixá-lo sem segurança e voltar para o meu pessoal.

Diel passou o braço do príncipe sobre o ombro para firmá-lo. Luke deu um passo adiante, tomado pelas dores, mas também por uma sensação reconfortante.

– Obrigado.

Diel ficou tenso. Luke esperou por uma resposta ácida ou sarcástica, mas recebeu um sorriso gentil.


***


Serafine abriu os olhos para contemplar um local desconhecido, longe de onde se encontrava antes de perder a consciência. Pensar sobre a arena a fazia recordar da terrível dor de cabeça, o contato com o Mestre e o vazio. A sensação de esquecimento era sufocante.

Ergueu o tronco com dificuldade, exausta. O manto de pele que a cobria escorregou; o frio tomou seu corpo. Ela vestia roupas de tecido quente, mas não eram suficientes para o inverno.

Seus nervos estavam agitados e Serafine correu as unhas sobre a pele para acalmar a sensação.

Era o espírito. Mais precisamente, o efeito por ter usado seus poderes. A garota não fazia ideia do estrago que causara, mas, ao perceber quão distante estavam das Catacumbas, temeu o pior. O pôr do Sol pintava o céu. Não nevava, mas o frio era cortante. Árvores esbranquiçadas se espalhavam ao redor do pequeno acampamento.

Sentinelas montavam guarda em pontos estratégicos, mas ela não conseguiu discernir os rostos devido ao cansaço. Serafine ficou de pé, cambaleante, e percebeu um grupo sentado próximo de uma fogueira. A luz alaranjada das chamas destacava as feições de Diel. Sangue subiu à cabeça da garota; avançou em passos trêmulos, mas velozes. Diel só notou o furacão que se aproximava quando Serafine já estava em cima dele.

O punho da garota acertou seu nariz antes que ele dissesse algo. Diel caiu para trás e sangue escorreu do golpe. Ele arregalou os olhos.

– Por que fez isso? – grunhiu.

– Ainda pergunta? – Serafine avançou, mas alguém a impediu. Braços fortes rodearam sua cintura e a afastaram para que se acalmasse. Livrou-se com um empurrão e Jarek se curvou, apertando a lateral do corpo. Apesar do golpe que recebera, havia um sorriso em seu rosto. Jarek parecia bem, exceto pelo flanco que pressionava com a mão. As roupas eram novas, como as que Diel usava.

– Bem-vinda de volta, princesa – ele brincou. – Agora se acalme, por favor, e deixe-me explicar.

– O quê? – Ela não se sentou nem se acalmou; cruzou os braços, aguardando. Jarek sorriu e falou:

– Cornélio ofereceu ouro aos piratas para tirá-la da arena. Eles libertaram todos os prisioneiros e deixaram o caminho aberto para nossa fuga.

– E por que ele queria nos tirar de lá?

– Cornélio disse que só vai explicar a você, mas tem alguma coisa a ver com um acordo. Algo que só a Escolhida pode prover. – Jarek coçou o queixo. – Algo a acrescentar, Diel?

– Nem todo o ouro do mundo paga a dor que sinto agora, mas eu a perdoo, doçura. – Diel rosnou baixo. Jarek baixou o rosto para rir. Serafine manteve a expressão furiosa. – Nicolau aceitou o ouro de Cornélio para tirarmos vocês daquele lugar. A salvo, é claro. Quando você teve o surto, aproveitamos a deixa. Pretendíamos invadir as Catacumbas, mas seus poderes facilitaram tudo.

– Como sabe que eles não estão mentindo? – Serafine indagou ao guardião.

– Eles nos trouxeram aqui em segurança. – Jarek deu de ombros. – E Guillian colocou uma faca contra a garganta de Nicolau quando o encontramos e o fez jurar a verdade. Parece suficiente para mim.

– Jarek, e quanto a Sibila? Vocês...

– Ela está bem, descansando. – Diel anunciou. – Aria a tirou do calabouço a tempo.

– Ouro compra qualquer aliança. – Eles voltaram-se para Cornélio, que caminhava em sua direção. Serafine estreitou os olhos, desconfiando de sua vestimenta: uma capa longa por cima da roupa preta, o capuz encobrindo a cabeça por completo.

Não havia Sol, mas a claridade provocou um chiado alto em sua mão quando a esticou para a garota.

– Ah, perdoe meus modos. Mortos-vivos não deveriam andar a luz do dia, mas gosto de alguns riscos.

– Morto-vivo? – Serafine repetiu.

– Fui amaldiçoado por uma Feiticeira semanas atrás. Eu me curvava às forças da Luz e das Trevas em equilíbrio até Sharowfox ressurgir e tentar me usar como peão em seu jogo de poder. Agora, busco um só caminho: a ajuda da Luz.

Serafine recuou.

– Morto-vivo em que sentido? – Ela perguntou. Jarek segurou o riso.

– No pior. – Cornélio retrucou. Sob a sombra da capa, os olhos eram brilhantes e assustadores.

– Explique por que nos salvou.

– Preciso de sua ajuda. Em troca, ofereço seu Mestre. – Ele abriu um sorriso. – Sei que está à procura dele e não faz ideia de como encontrá-lo, mas eu faço. Ele a contatou nas Catacumbas, não? Conheço uma maneira de rastrear o elo entre vocês. Sua guardiã mágica certamente desconhece isso, ou já o teria feito, e não acho que o Grande Rei será de muita serventia no estado em que se encontra. – Serafine procurou por Demetrius e não o encontrou. Jarek tocou seu ombro. Um apoio silencioso, uma garantia de que ela não precisava se preocupar. – Essa informação é valiosa demais para ser solta ao vento. Peço, então, que a Escolhida ouça minha oferta e a pondere.

– Quer negociar uma informação que poderia salvar a vida de todos em benefício próprio? – Serafine ralhou.

– Sim. – Cornélio sorriu.

– E espera que a Luz o ajude?

– Ela é minha única esperança. Convivi com seres de ambos os lados durante todos esses anos e nada jamais fugiu de meu controle. Há luz e trevas dentro de nós, e quero continuar em equilíbrio com elas. – Cornélio caminhou com leveza para diante de Serafine. O impacto daquele olhar foi desconfortável. – Conheço um ritual para encontrar seu Mestre. Mas, para fazê-lo, preciso que recupere uma coisa para mim.

– O quê?

– Minha alma.

– Quer que eu encontre... sua alma? – A garota soou incrédula.

– Está presa em um receptáculo mágico, fora do meu alcance. Sob o oceano. As Trevas disseram que apenas a Escolhida poderia libertá-la, e tenho esperado por você desde então.

– Parece uma armadilha.

– Sharowfox queria que traísse você. Que a levasse para a armadilha. Estou oferecendo a verdade e pedindo sua ajuda. Não é para isso que está aqui? Para ser a esperança?

Serafine encarou Jarek; o guardião analisava Cornélio com um olhar frio. Tensão irradiava dos dois, contrária à calmaria do amaldiçoado.

– Temos um acordo?

– Como vou saber se essas artimanhas não são parte do plano dela?

– Faça-o jurar. – Jarek cruzou os braços ao lado da protegida. – Jure pela alma que Serafine vai recuperar. Jure que sofrerá uma morte terrível caso nos traia. Se estiver falando a verdade, não se importará em nos dar uma garantia.

– Um juramento de sangue. Vai me mostrar onde está o terceiro Mestre quando eu recuperar o receptáculo. – Serafine ordenou. Cornélio não aceitou a requisição imediatamente, irritado. Serafine aguardou. Aquele amaldiçoado oferecia o caminho até seu Mestre, mas exigia muito em troca. Estavam no Reino das Brumas, cercados pela escuridão. A garota não podia confiar em ninguém.

Cornélio enfim puxou uma faca do cinto e passou a lâmina sobre a palma da mão. Sangue escuro gotejou.

– Juro pelo meu sangue e pela minha alma perdida que cumprirei o acordo, Escolhida, se cumprir o seu. Vai me guiar até o mausoléu esquecido onde repousa o receptáculo, e eu a levarei para seu Mestre. Não haverá traição. Que meu sangue arda no Abismo caso isso aconteça.

Serafine não confiou nas palavras, mas que escolha tinha? Seus guardiões não faziam ideia de quem era o tal Mestre, e ele mesmo não parecia disposto a se revelar. O tempo corria contra eles.

– Como conheceu Jon? – Ela perguntou, atenta à ferida que cicatrizava com a magia do juramento. – Ele me disse para confiar em você, e agora me diz que servia às Trevas esse tempo todo.

– Já disse: eu servia a ambos os lados. Permanecer no meio do tabuleiro sempre fez bem para mim. – Cornélio hesitou. Sua expressão fria se dissipou por instantes, deixando-o quase humano. – Jon via meu lado bom. Espero fazer isso valer.

Serafine respirou fundo, mas não disse nada. Quaisquer que fossem as consequências de aceitar o juramento, enfrentaria todas ao lado de seus protetores.

Sharowfox a queria no Sul, presa em uma armadilha; ciente disso, talvez tivesse uma chance contra a Feiticeira. Talvez pudesse inverter o jogo e trazer um pouco de Luz para o Reino sombrio.

Fitou os rostos ao redor e encarou Diel. Lembrou-se das brumas pregando peças em sua consciência, arrastando-a em dúvidas. Em quem confiar, quando nem mesmo o espírito se mostrava estável? Há Luz e Trevas dentro de cada um de nós, Cornélio havia dito. Serafine não podia deixar de concordar.


***


O acampamento improvisado consistia em duas fogueiras, várias sentinelas alertas e muito espaço para desconfiança. Ariane apareceu pouco depois que Cornélio fez o juramento, e gesticulou para Serafine, apontando para onde Sibila, Guillian e Demetrius a aguardavam. Guillian levantou-se para abraçar sua protegida, mas o Grande Rei e a guardiã estavam em sono profundo. Ninguém mencionou o incidente nas Catacumbas, mas o estado de Demetrius deveria ser uma consequência direta. Sibila entrara em meditação e permanecera assim. Provavelmente perturbada demais com toda a comoção das Trevas e a presença da Feiticeira na arena.

A madrugada ia alta quando Serafine desistiu de dormir. O grupo repousava, com uma exceção. Sentado próximo às brasas da fogueira, Jarek estava de costas quando a garota se aproximou.

– Jarek? – Ele enrolava uma faixa ao redor do ombro, e Serafine viu o ferimento. Começava ali e seguia até as costas, criando uma linha vermelha na pele morena. Alguém o havia costurado antes de Serafine despertar. A magia no sangue do guardião agia e a cicatrização avançava mais rápido do que no corpo de um humano, mas ainda era um ferimento horrendo e provavelmente muito doloroso. Faixas menores rodeavam seus dedos e mãos; e havia hematomas, também. O maior estava nas costelas, onde ele mantivera a mão apoiada quando Serafine despertou. Uma mancha arroxeada cobria a pele naquele local.

– Você devia ver como ficou o outro cara. – Jarek observou a protegida ao brincar, mas ela não se convenceu pela fala bem-humorada.

– Deixe que eu faço. – Ele parou e esperou, os olhos azuis ansiosos pela atenção. Serafine se sentou e suas mãos tremeram ao sustentar a bandagem. Evitou o olhar do guardião durante o processo.

– Foi aquela criatura, não? – A garota indagou, observando o formato do ferimento no ombro.

– O desgraçado tinha uma mordida forte. – Jarek tentou brincar, mas ela não retribuiu o sorriso.

Quando terminaram, Serafine o ajudou a ficar de pé e a vestir a camisa e o casaco. O guerreiro se encolheu diante da dor, e apertou os dedos contra o tecido conforme fechava os botões.

– Eu devia ter chegado antes naquela antessala. Poderia ter te ajudado.

– Ei. – Jarek replicou, mas Serafine não lhe deu ouvidos.

– Quantos ferimentos recentes não foram minha culpa? – Ela murmurou sem pensar, entristecida.

Jarek encaixou os dedos em seu queixo e tentou sustentar o olhar sobre o dela. A evasiva da garota o fez hesitar.

– Olhe para mim, princesa. – O guardião pediu e ela o fez. A intensidade do olhar a desconcertou, mas a sombra em sua consciência ainda ditava os pensamentos. – Nada disso foi culpa sua. Foi uma armação de Sharowfox. Ela queria que isso acontecesse.

– Ela estava lá por mim.

– E você nos salvou. – Jarek acariciou o canto de seu rosto.

– O que houve nas Catacumbas? – Jarek se retesou e Serafine temeu o pior, tecendo teorias sobre as atrocidades que o espírito havia cometido. Pensou em morte, destruição, caos e sangue.

– Você salvou nossas vidas. Foi isso que aconteceu. – Jarek segurou-lhe o rosto com suavidade. As pontas dos dedos estavam geladas, em contraste com as bandagens que cobriam suas mãos, mas o toque era agradável. Seus olhos a examinaram preocupados, tentando desvendar a batalha interna de Serafine. Ela se afastou.

– Quantos morreram?

– Serafine...

– Quantos? – Ela insistiu. Sua voz estava trêmula, cheia de dor e desamparo, mas principalmente impotência. Subjugada pelo espírito mais uma vez.

– As Catacumbas desabaram. Parte da cidade foi destruída. – Jarek tentou se aproximar, mas Serafine se esquivou, temendo tocá-lo. – Você acabou com um reduto de crimes e crueldade, Serafine.

– A que custo? – Jarek não respondeu. Não precisava. Mesmo com a postura confiante, havia medo em seu olhar. Medo do espírito, do descontrole da sua portadora.

Serafine lembrou-se da cena na carroça e seus dedos tremeram. Recordou dos rostos das pessoas na arena e apertou as unhas contra os braços novamente, com tanta força que a dor a cegou.

Como algo tão abençoado, poderoso e magnífico como o espírito podia fazer aquilo? Reduzir tantas vidas às cinzas? Não houvera outra maneira de escapar? Uma que não condenasse tantos a morte?

– Serafine... – O guerreiro soou ansioso. Ela se esquivou. Jarek tentou se aproximar, gemeu e apoiou a mão sobre o flanco. Serafine tropeçou nos próprios pés, a expressão desesperada. – Olhe para mim, por favor.

– Não. – Havia tanta culpa e sombras em sua mente que Serafine ficou à deriva da própria consciência. – Não me siga. – Ela ordenou antes de seguir para a tenda.

Jarek parou, observando sua silhueta desaparecer na névoa. O olhar de Serafine estava assustadoramente insano.


***


– Por que precisei ser abandonada? – Demetrius paralisou ao ouvir aquela voz e encontrou o olhar perdido de uma menina. Sua menina.

Ele estava sentado com as costas contra uma árvore, assistindo o amanhecer. O Sul era a terra do gelo e da solidão, coisas que, no momento, o Grande Rei apreciava. Ainda estava exausto das Catacumbas, e um dia inteiro de sono não fora suficiente para repor suas energias, mas sabia que se sentiria melhor com o tempo. Os poderes... eram a parte mais preocupante, e Demetrius não queria pensar neles por enquanto.

Ao ver Serafine, sua expressão séria suavizou-se em um sorriso. A filha estava ali, depois de anos de incerteza corroendo a consciência do Mago.

– Por que Ravenne fugiu comigo? – Ela se aproximou de Demetrius. – O que havia de errado em me criar como sua filha?

– Tudo – ele explicou suavemente. – Ravenne e eu... O simples fato de termos nos apaixonado transgredia as Leis de nossos antepassados. E imagino que saiba, Serafine, o peso das Leis antigas. Neo as criou através da magia ancestral, e quebrá-las traz maldições e horrores. Mesmo assim, nós ousamos. Ravenne, uma filha das Trevas. Eu, um filho da Luz. Ela, treinada pelas seguidoras de Sharowfox; eu, com o sangue de Neo. Um amor proibido que poderia condenar nossas linhagens ou mesmo o equilíbrio do mundo. Parece fácil de entender, mas acredite, não é. Ela seria morta, eu, amaldiçoado, e uma balança de energia construída durante séculos estilhaçaria. – Demetrius suspirou. – As Leis antigas são cruéis, querida. A magia delas é quase impossível de quebrar.

– Isso... é horrível. – Demetrius deu espaço para que Serafine se sentasse, e a garota o fez. Havia mais confusão em seu rosto do que medo, e o Rei ficou feliz por isso.

– Eu aceitei o risco. Ravenne também. Durante o ano em que ficamos juntos, ela frequentava o Castelo, disfarçada, e nos encontrávamos sempre que podíamos... E então, numa noite, ela me confessou estar esperando um bebê. – Demetrius passou a mão pelos cabelos desgrenhados. – Me arrependo de minha reação inicial. Gostaria de voltar atrás e dizer a Ravenne que estava tudo bem, mas meu desespero foi maior. Os meses que se seguiram foram complicados para nós. Mesmo que eu desconhecesse, as Trevas sentiam que a Escolhida estava para nascer... Aos meus olhos, você seria resultado da maldição do meu antepassado, por termos ousado ignorar suas Leis. Os ataques envolvendo monstros e Feiticeiras aumentaram. Sharowfox começou a mobilizar seu exército para encontrar você.

Serafine estremeceu. Demetrius aproximou-se da filha, alerta quanto a qualquer reação negativa. Serafine, no entanto, aceitou a proximidade, erguendo os olhos dourados, olhos de uma Tytos, para ele.

– Jon sabia sobre nosso relacionamento, mas nada além disso. Ele me convenceu de que o melhor seria tirar Ravenne e a criança do palácio antes do nascimento. Fez o possível para ajudar Ravenne a escapar. Jon também temia e imaginava que seu nascimento seria... Um infortúnio à magia da Luz. – Havia dor e culpa na voz do Grande Rei. – Sua mãe, querida, nunca duvidou que você nasceria para trazer esperança. Por isso ela fugiu sozinha.

Um instante de silêncio se seguiu.

– Eu estava reunido com Jon, planejando tudo, sem saber que Ravenne já tinha partido. Foi quando minha mãe trouxe Lonel até o grande salão. – Serafine estreitou os olhos. O tilintar de uma lembrança que não era sua surgiu em sua mente. – Sharowfox falou através dele. Clamou que o espírito tinha se perdido, que era tarde demais.

“Farei desse mundo uma dominação do caos.” Serafine se lembrou. A visão mostrada através do livro em Líriel, afinal, pertencia ao seu passado. Os Deuses mostraram seu pai à garota antes que ela tivesse conhecimento de sua real identidade.

– Foi Guillian quem realmente ajudou sua mãe. Ele a encontrou e aceitou protegê-la a todo custo. Eu permaneci no escuro, sem respostas, com o temor da fala de Sharowfox ecoando em minha mente. Voltei a ver o Atyubru depois, mas, tal como o juramento de Ravenne ordenava, Guillian não pôde confirmar seu nascimento, nem mesmo eliminar meus medos a respeito do seu destino. – Demetrius hesitou. – E Ravenne... desapareceu.

– Eu a vi. – Serafine disse de repente.

– Como? – Demetrius não escondeu o choque.

– Para ser sincera, também não sei. – Ela sorriu. – Ravenne apareceu em visões, quando eu estava no Oeste. Ela... – A menina hesitou, fitando o Rei com preocupação. Demetrius lutou para manter a expressão neutra, mas o simples fato de Ravenne ter conseguido contatar sua filha enchia seu coração de esperança. – Estava presa. – A informação foi um baque contra a calmaria do Mago.

– Onde?

– Não sei. – Serafine franziu as sobrancelhas e baixou a cabeça. – Mas... Luke estava lá. O príncipe do sul. – O rosto do Mago se encheu de fúria. Serafine se encolheu àquela visão, mesmo ciente de que não era alvo daquele sentimento. Demetrius estava frágil e debilitado, mas ainda era o Grande Rei.

– Maltrus. – Ele apertou os olhos com as mãos, buscando controle. – Ela estava... Ravenne estava presa no mesmo lugar que eu, e não consegui senti-la.

– Pode ser que ela já não estivesse lá. Ravenne fugiu no dia do ataque à Fortaleza do Dragão. – Esperança cintilou nos olhos de Demetrius, e Serafine sorriu. – Ela teve tudo sob controle, se quer saber. Nunca mostrou medo.

– Ficaria surpresa em saber quanta coragem cabe em sua mãe. – Demetrius estendeu a mão. Serafine recuou. Porém, ao ver a mágoa nos olhos do Rei, pensando em toda a dor e desespero que ele vivenciara nos últimos tempos, que ela havia experimentado também, Serafine deixou o medo de lado e apoiou o rosto ali. Demetrius sorriu. Lágrimas brilharam nos olhos dourados.

– Vejo sua mãe em você, minha filha. – Serafine fechou os olhos e, num ímpeto, o abraçou. O pai que não conhecia, um estranho em sua vida, alguém que ela jamais imaginou encontrar. Serafine apertou-o com força, despejando a frustração, o desespero e o pavor da solidão. Lembrou-se de Alanor e Mégara. O abraço de Demetrius foi também o de seus pais adotivos, e, quem sabe, de Ravenne. Algo tão poderoso que a menina chorou sem perceber, apoiada nos ombros do Grande Rei.


Capítulo 16

O Retorno do Herdeiro

 


JON ACABARA DE VESTIR a armadura quando Leyona apareceu. A Sturian envergava uma placa de peito, braçadeiras de couro e carregava um elmo que pertencera a um soldado do Norte. Os Atyubrus haviam conseguido as peças no arsenal de uma das vilas atacadas.

O Mago embainhou a espada que recebeu de Leyona e encarou a mulher por alguns instantes; o clima tenso se estabelecera desde a decisão de invadir o Castelo. Um grupo o aguardava do lado de fora. Outro já se fora, comandado por Urir – eles derrubariam as defesas do lado oeste do Castelo, garantindo a retaguarda. O maior medo de Jon residia dentro do lugar. Havia uma Feiticeira guarnecendo as forças sombrias, assim como uma marca de escuridão no espírito do jovem Rei. Quanto mais pensava nas consequências de confrontar a bruxa, maior era seu temor a respeito do que o encontro causaria em seus poderes e sua consciência.

– Majestade. – Leyona fez um sinal para a porta. – Estamos prontos. – A mulher aparentava força. Ao contrário dele, que sentia sua energia e esperança esvaírem, Leyona permanecia firme. A iminência da batalha não tirava o poder de seus olhos púrpura.

O Rei assentiu. Seguiu-a, encontrando os soldados prontos para a invasão. O Sol se punha e o céu nublado anunciava uma noite sem estrelas. Ao longe, nuvens escuras se aproximavam do Sul, cobrindo o Reino das Brumas, ansiosas para tomar o continente.

Jon observou os guerreiros, Sturian em sua maioria. Alguns poucos civis, homens e mulheres que se voluntariaram. As armaduras encontradas serviram a eles. Os Atyubrus nada vestiam além de seus trajes comuns. Jill estava no comando do grupo que ficara para trás. Seu rosto ostentava pinturas tribais, representando símbolos de proteção. Não eram mágicas, mas ditavam esperança.

O Mago ergueu o queixo. Tirou um instante para olhar o céu acinzentado, e optou pelas palavras mais reconfortantes que vieram à sua mente; ele se preocupou em mostrar o poder num primeiro momento, mas também queria deixar claro que estaria ao lado deles como homem e soldado. Como filho de Warthia.

Não podia dividir o medo e a insegurança que se escondiam em seu coração.

– Não vamos encontrar um caminho fácil esta noite, provavelmente nem mesmo uma luta justa. O que habita o Castelo de meus ancestrais responde ao mal que se ergue contra nós, e por isso lutamos. – Jon bradou. Leyona sorriu ao seu lado. – Eu estarei ao seu lado. Não só para que recuperemos o palácio, mas para que ofereçamos a Warthia mais uma esperança. A escuridão não vai devorar o Norte, e não vai tomar nossa liberdade. Warthia se ergue nessa batalha, e o coração de cada um de vocês responde pelo nosso lar.

– Por Warthia! – Leyona ergueu a voz. Todos os guerreiros responderam em uníssono.

Os Sturian levantaram suas espadas e os Atyubrus, as lanças. Os humanos fizeram o mesmo com seus machados, martelos e punhos. Foi o suficiente para demonstrar a energia de seus corações; a certeza de que lutariam pela esperança.


***


Jon e Leyona estavam em silêncio, escondidos pelas sombras. Os Atyubrus se moviam acima deles, de árvore em árvore, usando agilidade e leveza. Nenhum barulho ecoava na floresta. Passos e respirações eram abafados por um feitiço de Jon. Jill os liderava até um dos postos de sentinelas; havia cinco lobos ali, o que restava a ser derrubado. Jon passara por vários corpos degolados, um rastro deixado pelo avanço dos orelhudos.

O ar ficava carregado conforme se moviam. Jon sentia olhos observarem seus passos, mesmo escondido. Não dividiu sua certeza com Leyona, mas ela o perturbava: a Feiticeira sabia da sua aproximação. O elemento surpresa não existiria.

Jill saltou da árvore como uma flecha, aterrissando sobre o ponto calculado. A orelhuda cravou a lança no pescoço de um Lobisomem, e a carne chiou em contato com a prata. Os Atyubrus a seguiram, derrubando os lobos um a um.

Jon dissipou seu feitiço assim que o último deles tombou. Leyona seguiu com o monarca e seus guerreiros, os Atyubrus à frente.

Jon correu até a entrada do túnel subterrâneo, uma falha escondida sob o muro do Castelo. A passagem era estreita e escura. Todos tiveram bastante dificuldade pelo caminho claustrofóbico. Jill e seu bando espreitavam as passagens laterais, buscando qualquer sinal de perigo.

– Majestade. – O sussurro de Leyona o parou. – Consegue sentir?

A energia vibrante se expandia no início do túnel, e aumentava conforme se aproximavam do Castelo. Jon sentiu um arrepio. A força se esgueirava por seus pensamentos discretamente.

– Majestade?

Ele balançou a cabeça.

– Estamos próximos.

– Não sinto nada. – Jill murmurou. Um suspiro de alívio escapou do monarca. Ele e Leyona foram afetados pela Feiticeira, e carregavam suas marcas por causa disso. Uma ligação perturbadora com a escuridão. Mesmo poderosa, a bruxa ainda não era capaz de afetar a todos. Os guerreiros estariam a salvo quando chegassem ao palácio.

– Leyona, talvez seja melhor...

Ela seguiu em frente, ignorando o alerta do Rei.

Longos minutos de caminhada se passaram até os Atyubrus encontrarem uma saída. Escalaram a pequena escada até um alçapão; um chiado os alertou a ficarem quietos. Momentos depois Jill avisou que o caminho estava livre. Como Jon suspeitara, a passagem levava a um corredor bifurcado oculto entre as paredes. Nem ele e nem Leyona acharam prudente se separar, pelo menos não até que Jon tivesse noção de onde se encontravam.

Dentro do Castelo de Tytos, a energia sombria era quase palpável. Parecia escorregar entre os dedos do Mago, serpenteando sob seu olhar. Sombras vivas que não demorariam a retaliar os invasores.

Ao fim da passagem, Jill avistou uma alavanca. Acionou-a, um quadro se moveu e deu acesso a um corredor familiar a Jon. Ele quase sorriu, contemplando os degraus rústicos e as estátuas do salão da ala leste. Seu antigo quarto ficava alguns andares acima. A sala do trono, ao fim da escadaria do lado de fora.

Não havia sentinela alguma no recinto, por isso os soldados aguardaram. Leyona assumiu o comando ao notar o silêncio tenso do Rei; Jon deu espaço para que ela prosseguisse. A energia tenebrosa sobre sua antiga casa o tentava e perturbava.

– Majestade?

– Preciso de tempo. Guarneçam o salão do trono quando eu for até lá. A Feiticeira terá sua atenção em mim, mas a escuridão vai tentar derrubá-los. Vocês precisam aguentar até a barreira mágica ser restaurada.

– Ela já sabe que estamos aqui, não é? – Jill firmou a ponta da lança no chão, o olhar determinado sobre o do Rei.

Jon não respondeu. Não precisou.

– Nós o guiaremos até lá, majestade. E o protegeremos enquanto lutar. – Leyona sentenciou. Todos os guerreiros concordaram, corajosos contra a escuridão crescente.

Jon avançou, guerreando contra a fraqueza que o ameaçava. Ladeado por soldados, seguiu pela escadaria de pedra. Não havia luz sobre os degraus, mas ele os havia memorizado quando criança. Apesar de tomado pelas sombras, o Castelo era seu lar. E Jon o resgataria.

Leyona era seu escudo, a espada em riste e a seriedade no rosto cansado. Jon desejou entregar suas forças a ela, certo de que o peso da escuridão também era avassalador contra a mulher, mas buscou fazer dela um incentivo. Leyona não caía perante as Trevas e ele também não.

A Sturian sinalizou a quatro de seus homens para que seguissem à direita. A sala do trono ficava ao fim de um extenso corredor. Ali, as sombras eram silhuetas disformes sobre as portas fechadas. Não havia Lobisomens nem feitiços – não eram necessários, Jon concluiu. A escuridão era o escudo da Feiticeira.

De altura colossal, as portas tinham entalhes belíssimos e antigos, datando dos reinados dos primeiros Magos. A Fênix guardava a sala do trono do Grande Rei, com as asas abertas e sua majestosa face esculpida como descreviam as antigas histórias. Mesmo na escuridão, o olhar da Fênix era poderoso.

Jon escancarou as portas e quase caiu sob o peso do eco sombrio que respondeu à sua chegada.

As paredes e o teto de mármore estavam repletos de gosma e fumaça preta, expandindo-se para fora das janelas. Vibrando com vida. Jon cambaleou e foi sustentado por um guerreiro; Leyona tinha os olhos arregalados.

Uma figura próxima ao trono se levantou; ela não se sentava nele, pois o trono pertencia à Sharowfox. Jon engoliu em seco. A bruxa se aproximava, e a pouca luminosidade das varandas iluminava seu rosto.

A pele era branca, e os olhos, escuros. As marcas de sangue em seus braços contrastavam com a fumaça escura escorrendo por sua silhueta, cobrindo curvas e pernas, como se ela fosse moldada a partir daquilo.

– Herdeiro de Neo. – A bruxa anunciou. Ela era jovem, mas linhas negras cruzavam o rosto. – Consegue sentir a energia que se ergue sobre sua casa? A força que cresce no coração de Warthia?

Ele conseguia. Vil e grandiosa demais para ser subestimada. Os olhos da Feiticeira liam o medo no rosto do Mago e de seus protetores, e seu sorriso cresceu.

Jon fechou os olhos e se ajoelhou.

– Curve-se perante o poder da minha Rainha.

Ele invocou a magia, toda a energia que havia em seu espírito, o poderio crescente em seu coração. Jon paralisou quando a escuridão tentou drená-lo, respondendo ao primeiro ataque do Mago, mas uma barreira encantada parou o avanço da marca sombria.

Havia muitas maneiras de conjurar barreiras mágicas. Jon escolheu uma vinda de um livro antigo, um presente inesperado entregue pela esperança de Warthia. Um tomo que ele estudara durante meses, onde encontrara encantamentos que nem mesmo Demetrius conhecera. Um deles talvez fosse sua salvação naquela noite; era sua última chance para retomar o controle do Norte.

Jon ouviu a Feiticeira guinchar, escutou seus passos junto a dezenas de outros. Ouviu o raspar de lâminas desembainhadas, os urros de seus protetores, e o clangor de metais. O Mago manteve os olhos fechados, murmurando e dando vida aos símbolos do feitiço. A escuridão fazia o Abismo ascender sobre o salão, mas, mesmo assim, Jon não vacilou.


***


Leyona degolou o monstro feito de penumbra e voltou-se para a bruxa. A imagem dela vacilava em meio às brumas, como se não estivesse realmente ali. O Rei continuava ajoelhado, murmurando o feitiço com esforço. As mãos, estendidas à frente, emitiam runas pálidas que se espalhavam pelo salão, destronando as Trevas lentamente.

Não era suficiente.

Jon era forte, mas não o bastante. Não com as sombras drenando sua energia, avançando cada vez mais. Os guerreiros lutavam contra as silhuetas sombrias, erguiam lâminas de metal contra as de ébano, mas não estavam em número suficiente para confrontar as criaturas que a Feiticeira invocava. Um sombrio caía e outro se levantava, ganhando vida a partir da bruxa.

A Feiticeira atacou o Rei. Leyona lutava contra um sombrio e não teve tempo de protegê-lo. Jon recebeu o golpe e o feitiço se desfez; um grito de agonia escapou de seus lábios e Leyona temeu vê-lo subjugado pelas sombras mais uma vez.

Jill urrou. A ponta de prata de sua lança caiu sobre a perna da inimiga, e a teoria de que a Feiticeira fosse mera ilusão se provou falsa. O berro da filha das Trevas ecoou pelo salão, e os sombrios se desvaneceram por um instante. Dois guerreiros correram até a Atyubra, lançando-se contra a Feiticeira. Prata e escuridão duelaram o suficiente para que a atenção dela se desviasse do Rei.

Leyona olhou ansiosa para Jon antes de ajudar seus companheiros. Todos os filhos de Warthia contra a Feiticeira.


***


Majestade. A voz ecoou no fundo da mente do Rei, uma fresta de luz emergiu da escuridão. Era um timbre doce, tilintante como um sino.

Jon.

Estava imerso nas sombras, subjugado pelo ataque e pela marca em seu espírito.

Lute. Havia devoção e confiança naquele sussurro.

Divida seu fardo comigo. Deixe-me ajudá-lo.

Ele entregou parte de sua dor e de seu medo à voz.

Respirou fundo e abriu os olhos. Ao fundo do salão, homens e mulheres lutavam contra a Feiticeira. Alguns corpos caíam em baques secos e olhares vazios, mas outros continuavam retornando para a batalha. Leyona estava entre eles. Jill também, todos guiados pela coragem e esperança.

Jon ficou de pé e ergueu a voz. Deixou o poder tomar conta dele, se expandir além do próprio controle. Criou uma redoma de luz e energia; as Trevas recuaram com o estalo de poder. A voz desconhecida sustentou o medo e o terror do Rei, dando-lhe coragem.

Leyona brandiu a espada acima da cabeça e tentou golpear a bruxa, mas ela esquivou-se. Outro soldado afundou a lâmina do machado na panturrilha da filha das Trevas. Em fúria, ela quebrou seu pescoço com uma torção.

Leyona golpeou a lâmina de prata contra o braço da Feiticeira, um pouco abaixo do ombro. Toda a estrutura do Castelo estremeceu, mas não pelo ataque. O tremor era graças à Jon, envolvido por uma luz púrpura que cresceu em uma explosão. Ela arrastou-se velozmente pelas paredes e teto, avançando por todo Castelo de Tytos. Não restou escuridão que aquela energia não alcançasse.

A Feiticeira caiu de joelhos, cuspindo gosma escura. Ela gritou, apertando as mãos sobre o peito. Sua forma desapareceu em uma combustão de fumaça negra, dispersa em um sopro de vento.

Leyona despencou exausta. Seus companheiros de luta fizeram o mesmo. Jill cobriu os olhos com as patas pela intensidade da luz.

Ouviram as últimas palavras pronunciadas por Jon. Contemplaram a vida crescer sobre as paredes e janelas e o céu por detrás delas. Curvaram-se em alívio diante da certeza de que o herdeiro havia retornado ao seu lar e restabelecido a proteção sobre ele.

Jon dobrou os joelhos com a conclusão do feitiço. Aos pés do trono de pedra, com o Sol do Norte entalhado na parte superior, o jovem Mago respirou fundo.

Leyona cambaleou até ele.

– Quantos mortos? – ele quis saber.

– Nós não lamentamos os mortos agora, majestade. Agradecemos a eles por sua luta.

– É hora de o herdeiro tomar o seu lugar de direito. – Jill ergueu a voz.

Um a um, os guerreiros ficaram de pé, contemplando seu Rei.

Jon fitou o trono que pertencera a seu pai, seu irmão e aos ancestrais. Um símbolo de poder e lealdade à Warthia.

Subiu os degraus com lentidão e sentou-se sobre a pedra bruta. Ninguém ousaria dizer que seu semblante não era o de um Rei. Os raios do feitiço banharam o corpo exausto, porém poderoso, do jovem Jon Tytos.

A Lei dizia que um dos herdeiros sempre assumiria o trono de Warthia na ausência do Grande Rei. Jon aceitou aquela responsabilidade no instante em que deixou o Oeste. Responderia pelo comando do continente e das forças de resistência. Ergueria o próprio poder para retomar e guardar o Norte. A batalha final se aproximava, e as forças de Warthia seriam necessárias para a guerra. Trevas e Luz se enfrentariam uma última vez.


Capítulo 17

Ecos da Escuridão

 


– NÃO SINTO NADA. – SIBILA se sentou em frente ao Grande Rei. O grupo se juntara a um assentamento de piratas a oeste das Catacumbas, e montaram acampamento ao anoitecer. Serafine soube que viajariam para o extremo sul, parando apenas para deixar em segurança os que não se voluntariaram para a campanha. A cidade dos piratas ficava a seis dias de caminhada; dois já haviam se passado.

Demetrius não questionou quando a Feiticeira desistiu de buscar seus poderes. Mesmo fraca, Sibila conseguia produzir encantamentos sem perder as energias. O Mago, no entanto, compartilhara seu temor quanto à exaustão vivenciada nas Catacumbas. Os poderes do Grande Rei foram reduzidos ao mínimo graças à Sharowfox, mas, de repente, se tornaram inúteis. Demetrius não conseguia conjurar sequer um escudo de energia. Feitiços elaborados eram impossíveis.

– Suas forças voltarão, majestade. – Guillian ainda era otimista. – Estamos no Reino das sombras e a escuridão não descansa. O senhor só precisa encontrar um pouco de Luz e paz e voltará ao normal.

Serafine, um pouco distante, recebeu o olhar do Mago. Retribuiu, concordando com o Atyubru. No entanto, Luz e paz eram as últimas coisas a serem encontradas naquela região. O dia anterior fora sombrio, e a noite, atormentadora a ponto de nem mesmo as fogueiras abrasarem tamanha penumbra.

A sombra que crescia ali estava em seu ápice. Serafine temia não haver mais tempo para derrubar o que Sharowfox fora capaz de erguer. Quando a Feiticeira ressuscitasse de fato, a Luz não teria o Grande Mago para enfrentá-la. Nem mesmo a esperança.

A garota era um fantoche de seus medos, sentenciada ao silêncio sepulcral dentro da própria cabeça. Desde as Catacumbas, não havia vozes. Nem alento. O espírito se tornara uma presença arrepiante, espreitando Serafine sem nunca se revelar.

Ela não sabia por quanto tempo aguentaria; a sensação de possessão sem estar possuída. A pressão sob sua consciência, mostrando que havia alguma coisa ali. A certeza de que, com as sombras, haveria pouco espaço para a Luz.


***


Era a terceira noite de viagem e o desjejum acabara de ser servido. Haviam capturado dois cervos durante a caçada, que serviriam para alimentar o grupo. Serafine ocupava um canto afastado, com a tigela fumegante de ensopado, inebriada pelo delicioso cheiro, mas sem a menor vontade de comer.

Seus olhos pesavam de sono, o corpo doía. Ela não dormia bem há dias, perdida em pesadelos sem sentido. Vira o céu desabar tantas vezes que acordava com medo de encontrar o mundo em pedaços.

Um dos piratas começou a dedilhar um instrumento musical e ela ergueu a cabeça. Outra pirata sorriu e desatou a cantar, acompanhada por mais quatro mulheres.

Ariane foi a primeira a entrar na roda de dança, puxando a sorridente Selina. Serafine passara a gostar da jovem pirata com os dias que se seguiram, principalmente por estar sempre ao lado de Selina quando vinha conversar. Aria, como gostava de ser chamada, era forte e destemida, com um enorme senso de humor. Era apaixonada pela liberdade e pelo inverno, e Serafine suspeitava que por Selina também.

Diel, sentado ao lado de Jarek, foi puxado para a dança. Jarek recebeu um sorriso de convite.

Guillian arranjara um par para rodopiar e Sibila sorria, balançando a cabeça ao ritmo da canção. Jarek se levantou e uma garota o tomou. O Sturian pegou o ritmo com facilidade, deixando-se levar pela canção. O sorriso do rapaz era alegre e animado. Algo dentro de Serafine se quebrou.

Dor inundou seu peito.

O silêncio em sua mente deu lugar a um eco familiar. Ele nunca será seu.

Sem que ela percebesse, Jarek havia parado à sua frente. O guerreiro estendeu a mão, incitando-a a entrar na roda. Tomada pelas sensações ruins, Serafine negou e correu para longe dali.

Com o eco da cantoria às suas costas e o silêncio à frente, Serafine disparou em meio às árvores baixas, esquivando-se dos galhos que bloqueavam seu caminho. A ardência de um estalo contra sua bochecha quase trouxe lucidez aos pensamentos, mas não a salvou do pandemônio. Haviam acampado próximos a um lago e seus joelhos cederam diante da margem. Sua expiração condensou-se, e a visão escureceu.

Só havia frio e solidão.

Ela arfou e afundou os dedos na terra molhada, tentou extrair forças dela. Sombras se ergueram e deslizaram para Serafine. Grunhindo seu nome.

Súbito, um sopro de ar quente, confortável e aconchegante, rodeou seu corpo, erguendo os galhos secos do chão; acariciou o rosto da garota, numa garantia de que tudo estava bem.

Serafine respirou fundo. Suas mãos tremiam, mas a comichão nos nervos foi se dissipando com o passar dos segundos.

O que há de errado comigo? Pensou assustada, lembrando-se da dor que sufocou sua respiração quando olhou o sorriso de Jarek.

– Serafine?

As sombras se avolumaram sobre a garota ao ouvir a voz dele. Presenças poderosas, cheias de energia.

Fique longe daquele que jamais será seu.

– Ei. – Serafine virou-se e Jarek recuou. O movimento foi rápido, mas suficiente para que a garota hesitasse e temesse o que ele havia visto. – Sei que não quer conversar sobre o que vem incomodando você... – Jarek esperou que Serafine desconversasse ou usasse alguma desculpa, mas ela apenas moveu a cabeça. Queria que ele entendesse o porquê da sua relutância, mesmo que ela não conseguisse. – O que está sentindo agora?

– Medo – confessou com receio. – Tudo o que vem acontecendo está destruindo minha sanidade. Eu não queria, mas estou com medo do futuro. – Apertou as mãos. Jarek viu os arranhões sobre as costas delas, que se estendiam aos braços. Houve incompreensão e depois dor no rosto do guardião. Ele segurou seus dedos delicadamente.

– Todos estamos, Serafine. É parte da nossa força – Jarek sussurrou, sem desviar a atenção dos machucados.

– Tem alguma coisa se alimentando da minha força. Uma presença rastejando na minha consciência.

Jarek tomou sua mão, fitando-a com intensidade, acariciando-a com o toque cuidadoso. Rasgou um pedaço de tecido do braço do casaco para enfaixar as mãos da garota; Serafine observou a cautela que ele usou ao tocá-la, e percebeu que a dor desapareceu sob o toque do guerreiro.

– Isso dói? – Ela baixou o olhar para seus dedos entrelaçados assim que ele terminou os curativos. Meneou a cabeça negativamente. – E isso? – Jarek usou a mão livre para trilhar uma das espirais de seu braço, contornando-a com delicadeza, até alcançar o ombro. Serafine prendeu o fôlego.

– Não – sussurrou.

– E isso? – Jarek enlaçou sua nuca com calma, cauteloso e cheio de preocupação.

Os olhos azuis não se desviaram dos dourados. Ele trouxe Serafine para perto e suas testas se tocaram. Cobriu os lábios dela com os seus. Cálido e suave, carinhoso e cuidadoso. Serafine desabou. O aperto no peito voltou, avassalador.

– Jarek...

– Desculpe – disse ele, ansioso. – Me desculpe, eu...

– Não é você. Sou eu. O que está acontecendo comigo? O que há em mim que anseia por tanta escuridão?

– Você passou por coisas demais. Qualquer pessoa no seu lugar já teria desistido, desmoronado. Mas você continua lutando, de pé. Continua esperançosa. A escuridão pode ser poderosa, mas sabe o que a desbrava? A natureza. E você é uma força da natureza, Serafine.

Ela respirou fundo, fitando o guerreiro com tanta intensidade que ficou surpresa ao vê-lo desviar o olhar. Serafine apoiou a testa contra a dele novamente. O aperto no peito retornou. Ela inspirou dolorosamente, mas resistiu. Franziu a testa e lutou, abraçando a dor e expulsando-a dos seus pensamentos. Jarek percebeu aquilo e apertou os braços em torno de sua cintura, embalando-a com cuidado enquanto ela buscava a própria força. Serafine passou os braços sobre os ombros dele. Fechou os olhos quando a boca do guerreiro se encaixou ao seu pescoço. A respiração quente passeou ali, aconchegante como os contornos de seu corpo.

– Me diga algo sobre você.

– Como assim?

– Não vou deixar que se perca. Minha mãe costumava fazer isso quando eu tinha pesadelos. Ela me abraçava e falava comigo sobre coisas que me acalmavam, me fazia perguntas cujas respostas me traziam à realidade. Você está se sentindo perdida. Só precisa encontrar um caminho para retornar.

Serafine se afastou um pouco para olhar o guardião.

– Que tipo de coisas?

– Coisas sobre você. Cenas que se recorde e façam bem. Rostos, cores, lugares... Qualquer coisa que a prenda a realidade.

Ela ponderou sobre suas memórias.

– Lembro-me de correr livre pela fazenda durante a chuva, quando tudo era mais simples.

– Imagino que tenha dado muito trabalho aos seus pais.

– Discutia com minha mãe sobre isso. – O rosto de Mégara a feriu, mas era uma dor boa; de saudade, amor.

– Você era a alma rebelde da família. – Jarek brincou, pousando um beijo suave na bochecha dela.

– Eu era. – Serafine afirmou. – A encrenqueira da minha vila.

– Está brincando comigo? – O Sturian não escondeu o choque.

– Não.

– Não posso dizer que estou surpreso.

– As pessoas me achavam esquisita. Diziam que eu tinha personalidade demais. – Jarek tremeu com a gargalhada. – Mamãe me ensinou a ler e escrever, já que me mandar para o colégio seria... complicado.

– Você acabaria matando alguém.

– Ou quase. – Serafine sorriu mais, a mente distraída. – Uma vez, uma garota zombou das minhas roupas, dos lenços que usava para esconder as marcas, e eu... Bem, meio que soquei o nariz dela e puxei a trança que usava. Chamei-a de sacripanta bestial, apesar de não saber bem o significado daquelas palavras. Mamãe me proibiu de ler certos livros depois do incidente.

– Meus Deuses. – Jarek sorria. A dor pela presença do guerreiro tinha desaparecido. O toque, a presença, o apoio dele a deixavam calma. – Eu me apaixonei por uma encrenqueira.

A garota perdeu o fôlego.

– O que disse?

Jarek apoiou a boca sob sua orelha, a respiração trazendo cócegas e arrepios. O abraço em sua cintura ficou mais firme e ansioso.

– Disse que me apaixonei por você, encrenqueira.

Ele beijou seu pescoço, devagar. Serafine fechou os olhos em deleite. Jarek passeou a boca até o ombro da garota, baixando a alça da camisa para prosseguir a carícia. Ela apertou as unhas contra ele, ansiosa, trazendo um sorrisinho ao guerreiro.

– A dor que sentia... Ela voltou?

Serafine respirou fundo para responder:

– Não.

Ele repetiu os beijos vagarosos em seu ombro. Os lábios e o arranhar da barba por fazer bambearam as pernas de Serafine. Era uma sensação poderosa. Fazia a garota se sentir viva.

– Por que está fazendo isso? – Ela sussurrou.

– Beijando você? – Ele usou um timbre rouco insuportavelmente atraente.

– Me torturando – Serafine retrucou. Jarek gargalhou. A sensação contra o corpo da garota era viciante.

– Estava esperando uma bronca, princesa. – Os olhos púrpura pareciam tão tomados por desejo quanto os dela.

– Vou socar seu nariz se não me beijar logo, idiota.

Jarek não demorou um segundo para obedecê-la.

Serafine apertou as unhas em seu couro cabeludo, inebriando-se pela carícia da boca. Seu coração batia com tamanha força que chegava a doer; mas era aquela dor agradável, e não importava o quanto Jarek a beijasse, nenhuma voz viria até sua consciência para atrapalhá-la.

O Sturian escorregou as mãos até o quadril da garota. Serafine apertou-se a ele, ansiando por mais. Jarek afastou-se com um olhar descontrolado.

– Quem está torturando quem agora, princesa?

– Pare de sorrir assim – Ela retrucou, lutando contra o próprio sorriso.

– Por que eu deveria?

– Isso foi... Esse beijo foi... – Serafine passou a mão pelos cabelos.

– Enlouquecedor? Absolutamente necessário? Eu diria que acabou rápido demais.

– Jarek. – Seus olhos dourados vasculharam os dele. Não havia aquele muro que Jarek sempre erguia. Ela encontrou uma explosão de sentimentos poderosos. – Você falou sério?

– Acho que o problema de ser tão sarcástico o tempo todo é que nunca me levam a sério quando estou sendo sincero. – Jarek brincou. O canto de sua boca curvou-se num sorriso gentil, doce e entregue. – Sim, princesa. Eu estava falando a verdade. Quer que eu repita? Estou... – Jarek beijou o lado direito de seu rosto – apaixonado... – Os lábios escorregaram até a bochecha esquerda – por você – sussurrou, puxando-a para outro beijo. Rápido como um suspiro, intenso o suficiente para tirar seu fôlego. – E ficaria feliz em saber que o sentimento é recíproco.

– Ficaria? – A morena abriu um sorriso debochado, como não fazia há tempos. – Não sei se posso afirmar isso.

– Ah, princesa, você é muito cruel comigo.

Serafine descansou a testa sobre a dele.

– Não existem dúvidas, senhor Hargon, de que meu coração é seu.

Um farfalhar seguido de passos apressados os assustou. Serafine não se soltou de Jarek, mas arregalou os olhos. Demetrius estava do outro lado da clareira. Ele parou, encarou o casal e franziu as sobrancelhas grossas.

– Estou... atrapalhando alguma coisa?

Jarek deu um passo para o lado, surpreendendo Serafine. Algo em sua expressão demonstrava medo.

– Não, senhor.

Silêncio recaiu sobre o trio. Serafine mordeu o lábio para impedir a gargalhada; a situação era estranha. O Grande Rei, seu pai, analisava o guardião, seu amor, como se estivesse prestes a iniciar um interrogatório.

– Aconteceu alguma coisa? – A garota indagou, atraindo os olhos dourados do Mago.

– Sibila me disse que você tinha deixado o acampamento e achei... – ele hesitou. A consternação fez Serafine sorrir. – Fiquei preocupado.

– Estou bem agora – ela garantiu.

– Posso falar com você à sós? – Demetrius desviou o olhar para Jarek e o guardião concordou sem pestanejar. Segurou as mãos de Serafine entre as suas e dirigiu-lhe um sorriso rápido e constrangido antes de deixar a clareira. A garota apertou os dedos sobre os lábios, inchados e quentes depois dos beijos, e não pôde conter o riso: Jarek estava com medo de seu pai.

– O que é tão engraçado? – Demetrius se aproximou, sentando-se na beira do lago.

– Nada. – Serafine o imitou, abraçando as pernas em frente ao corpo. – Tem certeza que está tudo bem?

– Fiquei preocupado, só isso. – Ele sorriu, o olhar calmo e sincero.

A quietude que se seguiu foi confortável. Uma benção depois do turbilhão que a desnorteara. Serafine deixou o olhar vagar sobre a superfície da água, as ondulações e os sussurros que vinham do elemento. Durante o surto, as vozes não estavam lá, mas naquele instante falavam com a garota, tranquilizando-a.

– Também sente a escuridão em você? – Serafine indagou. Olhou para o rosto do Rei, mas ele hesitou em retribuir.

– O tempo todo. – A honestidade não a surpreendeu. Era quase um alívio saber que o Mago experimentava da mesma incerteza. Saber que não estava sozinha. – Desde o incidente com a Feiticeira, alguma coisa se remexe dentro da minha cabeça. Uma presença...

– Tentando vir à tona? – Demetrius assentiu. – Ouço vozes, também. – Ele pareceu curioso. Serafine se arrependeu de confessar. Era óbvio que o pai não sofria do mesmo. – Elas só ecoam nos meus pensamentos, como se fossem parte de mim, mas igualmente distantes. Não sei se isso faz sentido, mas nada parece fazer em toda essa situação.

– Você tem medo, Serafine?

– O tempo todo.

– Tem o direito de sentir. Estamos vivendo um período instável. As forças que regem o nosso mundo não são mais as mesmas, querida, e temo que daqui para frente essa instabilidade só vá piorar. Com o tempo, aprenderemos a conviver com elas. A impedir que nos abalem tanto quanto vêm fazendo.

– Você fala sobre a escuridão? Acha que teremos de viver junto com as Trevas?

– A guerra que se aproxima vai mudar Warthia ou destruí-la. Da mesma maneira que fizemos com a Luz, talvez precisemos entender as sombras para não sucumbir.


Capítulo 18

Prisioneira da Névoa

 


NA TARDE SEGUINTE, CHEGARAM à cidade dos piratas. Não tinha um nome, mas era seu lar. Nicolau comentou com Serafine e os demais que escolheram locais fixos por terem perdido território nos mares; ainda eram piratas, mas seus amados navios foram destruídos pelas sombras. Algum dia eles retornariam ao oceano que lhes pertencia.

A cidade ficava próxima ao mar. Serafine o observou por um longo tempo no horizonte. Ela nunca havia visto o oceano antes, só em sonhos e na própria imaginação. Estar perto dele trouxe suavidade à sua mente, ultimamente tão perturbada. O poder da Água clamava sua dominadora. Aquele era seu território.

Quando o grupo passou por ela, Serafine acompanhou-os com o olhar; lá embaixo, no vale incrustado por árvores brancas, estavam as cabanas. Os piratas dividiram-se em grupos e puseram-se a arrumá-las, divididos por tarefas. Alguns foram buscar lenha, outros reuniram a pilhagem da jornada, e alguns arrumaram seus lares.

Serafine desmontou do cavalo parado ao lado de Diel. Os piratas eram muito bem organizados e agiam como uma verdadeira comunidade. Eram muito mais unidos do que a população de sua antiga morada.

Diel notou seu olhar e abriu um sorriso, apoiando o braço no dorso do corcel.

– Lugar bacana, não é?

– Parece bom para um antro de criminosos.

– Uh, essa pegou bem no coração. – Ele apoiou a mão sobre o peito, falseando mágoa. – Jarek gosta muito daqui.

Serafine grunhiu, mas a curiosidade falou mais alto.

– Como sabe?

– Ele me contou. – O sorriso se ampliou e o olhar irritado da garota mudou. Havia melancolia neles, como se a ideia de Diel saber mais sobre Jarek do que ela a incomodasse. O pirata notou sua expressão. O sorriso ficou menos zombeteiro e mais compreensivo. – Ei, pode parecer estranho, mas o garotão ali é um cara simples. Muito ligado à família, você já deve ter percebido. Ele só quer um lugar pacífico para fugir do mundo.

– Eu não...

– Gracinha, relaxe. Viu o jeito como ele olha para você? Eu sei dessas coisas, mas você vai saber muito mais. – Diel piscou. – Fazer o quê? Eu perdi para a concorrência. Desta vez.

– Você realmente gosta dele?

– Gosto. Mas não amo. Acho que essa é a diferença entre você e eu. – Serafine encarou Diel. Pela primeira vez sentia simpatia e confiança por ele.

– Por que não vai buscar água para apagar esse seu fogo, Diel? – Jarek trazia Darius pelas rédeas. Serafine conteve um sorriso.

– É você quem coloca fogo nas coisas aqui, Jarek. – Diel brincou; fez uma reverência brincalhona para o Sturian e se retirou. Serafine segurou a manga do casaco de Jarek.

– Por que esse olhar ciumento? – ela indagou. – Eu é que deveria ter ciúme.

Jarek fez um bico indignado, mas não retrucou.

– Calma, nós chegamos a um consenso. Ele vai recuar. – Serafine estreitou os olhos. – Eu disse a Diel que já roubei seu coração. – O sorriso de Jarek seria capaz de acender os sóis de novos mundos.

Serafine passou o restante do dia ajudando os piratas com suas cabanas, recolhendo lenha para as fogueiras. Quando terminou, afastou-se para treinar um pouco de arco e flecha com Guillian, uma vez que suas armas foram devolvidas. Não havia em Serafine forças ou sequer criatividade para pensar em restaurar a flecha mestra, mas ela continuava guardada em segurança para quando tivesse tempo e paz para se dedicar à arma.

Mais tarde, Sibila a tirou do treino para meditar; junto a Demetrius, Serafine se sentou à entrada da floresta e deixou os pensamentos se conectarem à energia elemental. O Grande Mago buscava a serenidade, uma conexão com a própria magia adormecida. Sibila comentou sobre a meditação ser útil para mentes atormentadas.

Pensar em boas lembranças ajudava Serafine.

Recordar-se da família, dos amigos, deixar que a mente evocasse a figura de Jarek – que passara algumas horas caçando na floresta – qualquer coisa auxiliava.

Ao menos até a primeira noite.


***


Nicolau resolveu contar algumas histórias; foi curioso observar como os piratas pararam seus afazeres para o ouvirem falar. Jarek, que estivera num posto de vigia, aproximou-se e sentou-se ao lado de Serafine. Deu-lhe um sorriso e ela retribuiu.

A noite estava fria e o vento, cortante, mas a fogueira servia para espantar as tremedeiras. Serafine vestia um casaco de pele e não se incomodou em ficar para ouvir Nicolau. Demetrius estava do outro lado da fogueira, sentado ao lado de Guillian e Sibila. Os guardiões pareciam entretidos no que quer que o Grande Rei lhes contasse, aguardando Nicolau tomar a palavra.

Ele pigarreou:

– Vocês decidem.

Serafine olhou em volta. O líder a fitou, e ela se espantou ao receber a atenção de todos. Jarek sorriu.

– Serafine, sobre o que gostaria de ouvir?

– Ah... – balbuciou confusa, e buscou o auxílio de Jarek. – Alguma... lenda antiga?

– Esse mundo foi construído sobre muitas lendas. – O homem coçou o queixo enquanto pensava.

Sibila ficou de pé; pediu que Nicolau contasse sobre a mais antiga lenda de Warthia, da época em que apenas Deuses, elfos e criaturas esquecidas vagavam pelo continente:

– Fale sobre a lenda de Cílion.

Serafine congelou e Jarek retesou o corpo. Trocaram um olhar significativo, tenso, mas estava claro que ninguém ali conhecia os motivos do choque. Ninguém ali sabia que Serafine estava diretamente ligada à história.

Nicolau fez uma careta e tomou seu lugar à roda.

– Não conheço muito bem essa história. Cada canto do nosso mundo tem um meio e um final diferentes para ela.

– Permita-me. – Cornélio se aproximou, sombrio e sinistro. Serafine se empertigou. – Na era dos Deuses, quando a magia era anciã e viva e presente em todas as criaturas, quando humanos não eram simples humanos e os Elementais primordiais andavam por terra, houve uma grande guerra. Muito maior do que a ocorrida entre Magos e Feiticeiras; maior do que qualquer outra. Uma guerra onde os próprios Deuses caminharam pelos campos de batalha.

Serafine e Demetrius se entreolharam. Ele meneou a cabeça num apoio silencioso.

– O motivo foi apenas um: poder. Os Deuses cometeram um erro, e por isso marcharam com seus exércitos pelos campos de Warthia. Seu erro foi sua própria criação, um ser celestial agraciado com poderes imensuráveis e semidivinos. Foi dada a essa criatura a missão de livrar o continente do mal, interferindo onde os Deuses não podiam. Porém, todo aquele poder a consumiu. Cílion era o nome dessa semideusa. Algumas histórias dizem que sua mente foi usurpada pelas sombras, e que Cílion sucumbiu ao caos, espalhando-o por onde passava. Criou maldições poderosas e soprou vida sobre os leviatãs. Construiu seu exército a partir da própria força.

– Por que os Deuses a criaram? – Uma das crianças indagou. – Eles nunca a temeram?

– Eles eram Deuses, querida. E os Deuses não temem – Nicolau explicou suavemente. Cornélio prosseguiu:

– Cílion era a criatura perfeita, mas sucumbiu ao desejo por mais poder. Não importa qual sua força, sempre vai querer mais. Quando se rebelou, a grande batalha teve início. Dizem os antigos que os exércitos foram dizimados e que a esperança se perdeu por tempo indeterminado, até que uma luz foi acesa. Os Deuses encontraram uma falha na armadura do espírito de Cílion e se aproveitaram. Por acidente, durante sua criação, ao lhe darem tanta força, acabaram por construir sua maior fraqueza. A Natureza era a nêmesis de Cílion. Água, terra, ar e fogo uniram-se para aprisionar a criatura. A semideusa teve sua consciência perdida no Abismo e sua existência desapareceu naquela prisão. Os Deuses a esconderam em segredo. Os leviatãs, fracos pela perda de sua mestra, sucumbiram ao poder da Luz, lançados nas profundezas do oceano e lá aprisionados, submissos à Rainha dos mares.

Cornélio parou, contemplando os rostos assustados.

– Dizem algumas lendas que a prisão de Cílion vibra com o poder adormecido. – Seus olhos correram pela multidão. – Que Cílion nunca morreu, mas está à espera o momento certo para se libertar.

Serafine ofegou sem querer. Por sorte as crianças fizeram o mesmo. Exclamaram perguntas animadas ao contador de histórias, que recuou antes que precisasse respondê-las.

– Cílion quer se libertar? – Serafine sussurrou. Jarek segurou sua mão, entrelaçando os dedos de maneira protetora.

– Ela não vai escapar, os Deuses garantiram isso – o guerreiro afirmou. – Assim como os elementos se uniram para aprisioná-la, uma vez mais se unirão para expulsá-la desse mundo.

– Os mesmos Deuses que criaram esse monstro? Por que não a destruíram quando tiveram chance?

– Precisavam de outro espírito, puro e poderoso, para realizar essa tarefa. Você, Serafine.

Ela engoliu em seco, tomada pela pressão, ansiedade e temor; precisava se afastar. Tentar dormir. Precisava calar a própria mente antes que todos os sussurros e ecos aterrorizantes despertassem, precisava impedir que a história contada ali devorasse sua atenção. Antes que Jarek dissesse alguma coisa, ela se despediu e rumou para a cabana, ciente da observação de Demetrius.

Perturbada pela história e por tantas semelhanças, Serafine relutou em fechar os olhos. Mas a cama macia, os cobertores quentes e a cabana confortável foram incentivos para que descansasse, pelo menos por algumas horas. Para poder esvaziar a mente e impedir que os temores ganhassem força em seus pensamentos.

Quando o sonho a abraçou, Serafine caiu em um poço infernal. Contorceu-se sob as cobertas enquanto a pele ardia nas chamas que coloriam seu sonho.

Havia fogo e escuridão em um mundo arruinado. Brumas de ébano cobriam o terreno, abraçando Serafine. Prendendo-a a sua podridão. Vultos vagavam entre as labaredas imensas, silhuetas perturbadoras. Rachaduras surgiam aqui e ali no céu e pedaços dele caíam como cristais. O oceano rugia ao fundo, avançando contra a costa. Ondas gigantes se estendiam como tentáculos em direção à garota.

Uma voz familiar retornou dentro da cabeça de Serafine e sussurrou pelos quatro cantos do mundo destruído:

– Pare de fugir de mim, criança.

– Não estou fugindo. Estou indo até você, Sharowfox.

– Ah, querida – A voz gargalhou. – Eu gosto da sua fúria. Gosto da sua tormenta, do calor do seu coração quando se deixa levar pela marca sombria. Deixe que a penumbra a domine. É a única maneira de cumprir sua profecia.

– O que quer dizer com isso?

– Me encontre, Serafine, e descobrirá.

O mundo desabou sobre Serafine; estilhaços de vidro, sombras e labaredas ferventes reduzindo-a ao nada.

A garota saltou na cama. A cantoria continuava alta do lado de fora. Estava encharcada de suor, seu peito ardia, subia e descia conforme a respiração se estabilizava. A pele de Serafine era quente sob a palma da mão.

Tinha certeza de que as chamas do sonho haviam provocado aquilo. Não era febre; não havia sido uma alucinação. Aquela voz era real. Real demais para ser ignorada.

Deixou a cabana em passadas trêmulas, o corpo dormente pelo medo. Encontrou seus companheiros reunidos em volta da fogueira, rindo e assistindo enquanto uns poucos casais dançavam próximos às chamas.

Serafine sentiu-se impelida a voltar e se esconder na cabana para não interromper aquele momento de paz, mas Jarek a avistou. O sorriso em seu rosto sumiu.

Pares de olhos voltaram-se para a escolhida, seguidos de murmúrios estupefatos. Em um instante, Guillian estava ao seu lado. Segurou a mão de sua protegida e viu os cortes profundos seguindo a extensão dos braços da garota – como se unhas tivessem rasgado sua pele. As próprias unhas, ela constatou horrorizada. A dor correu por seu rosto também. Serafine o tocou e fitou o sangue em suas mãos; percebeu que havia machucado mais do que os próprios braços.

– Milady, o que houve? – Guillian questionou.

– Eu... tive um pesadelo. – A voz saiu fraca.

Há pouco tempo estivera tão bem... Por que aquilo tinha que acontecer?

– Deixe-me ver sua mente. – Sibila inquiriu; havia esquecido o vinho e as risadas.

Serafine, relutante, estendeu a mão para a guardiã, gemendo pela dor. De seus lábios saíam encantamentos. A garota não sentiu a estranha mulher invadir sua mente, pois seus olhos estavam fixos em Jarek, Guillian e no Grande Rei, impacientes, ansiosos e preocupados por ela. Demetrius parecia mais um homem dobrado pelo medo do que um governante para o qual o mundo se curvava.

– Preciso de você – ela pediu ao pai, desesperada, os olhos lacrimejantes. Ajude-me a ter paz. O Mago estendeu os braços e tomou a filha em um abraço cuidadoso. Serafine encostou a cabeça em seu peito, repentinamente aliviada.

– Serafine... – Sibila sussurrou. Se seus olhos não fossem mutilados, haveria pânico neles. – Eu não entendo a escuridão em sua mente, minha querida. É diferente de tudo que conheço, até mesmo daquela que existe em mim.

– E quanto ao pesadelo? – Jarek perguntou, cheio de preocupação.

– Temo que não haja qualquer criatura viva nesse mundo que possa responder a essa pergunta.


Capítulo 19

O alerta de Lonel

 


JON TYTOS EXAMINOU O aposento. O quarto que lhe pertencera na infância estava destruído, mas mesmo as ruínas eram familiares ao jovem Rei. A cama fora reduzida a pedaços de madeira. As prateleiras de livros estavam estraçalhadas, os exemplares provavelmente queimados ou destroçados.

O Mago caminhou para a varanda, avistando o horizonte. O Sol surgia, riscando o céu. A paisagem da floresta abaixo do Castelo era paradisíaca, um contraste a toda destruição deixada pelas Trevas. Jon logo estaria viajando por ela, rumo a uma construção ainda mais antiga.

Muitos dias se passaram, mas estava satisfeito, ainda que preocupado, por poder oferecer ao povo um lugar seguro.

Os calabouços estavam lotados de prisioneiros – homens, mulheres e crianças, moradores das vilas atacadas. Muitos soldados, também, antes enfraquecidos pelo poder das sombras, dispostos a lutar pelo Rei. Jon passou horas observando suas auras, cuidando para que tivessem atenção e descanso. Os guerreiros foram designados a Leyona, que recebera o cargo de general. Vigílias e grupos de treinamento tomaram os salões e pátios do Castelo. A barreira mágica os guarnecia, mas seria necessária força para garantir que as sombras não retornassem. Além de tudo, Jon precisaria de um exército para marchar contra a escuridão, e todo homem ou mulher disposto a lutar era bem-vindo.

No dia anterior, o Mago estivera no salão de reuniões, cuja velha mesa exibia mapas e pergaminhos cheios de estratégias de guerra, anotações de Demetrius deixadas para trás. Uma mensagem chegou, por meio de um eco mágico. Ao ver o brilho cintilante tomar o centro do salão, Jon soube que a voz pertencia a um aliado. Um velho amigo. O mesmo que o ajudara a erguer o escudo sobre o Castelo de Tytos.

– Majestade, é com grande alegria que despertei para sentir a energia das Trevas fugindo para o Sul. E com ansiedade o chamo para vir à morada dos elfos o mais rápido possível. O exército da Luz está em menor número, mas podemos reverter isso. Envie um feitiço em resposta o quanto antes para que eu prepare a reunião para sua chegada. O tempo urge. Tenho tido visões aterradoras em relação a nossa Escolhida, e creio que o futuro dela dependa da nossa resistência.

Jon deixou o burburinho assombrado de seus conselheiros para trás e dirigiu-se até as grandes janelas do salão; fitou a escultura em ouro do símbolo do Norte, o grande Sol com oito raios espiralados, e invocou sua magia. Da palma da mão, uma esfera flutuante de energia branca surgiu com sua resposta.

Ao virar-se, Leyona meneou a cabeça e sorriu em acordo. Jon mandou que reunisse um pequeno grupo de soldados. Partiria para Líriel ao amanhecer do dia seguinte.

Na varanda, ele esperava o Sol despontar. Leyona tocou seu ombro; a preocupação do Rei excedia limites, mesmo quando não havia motivos para tanto.

– Está tudo bem, majestade?

– Na medida do possível. – Jon foi sincero e sorriu. – Acho que as coisas finalmente estão correndo bem.

– É. – Ela não retribuiu o sorriso. Jon estranhou a reação.

– Algo a incomoda, Leyona?

– Estou preocupada com Jarek. – Ela cruzou os braços. – Preocupação boba, na verdade. Sei que ele pode se cuidar. Só gostaria de saber o que vem se passando com Serafine para que o tal elfo tenha soado tão preocupado...

– Tenho certeza de que estão bem. – Jon segurou seu ombro de maneira reconfortante, sorrindo com a mesma confiança que havia em sua voz. – Se deixarmos nossas mentes vagarem para aqueles que amamos e estão longe de nós, jamais conseguiremos nos concentrar em nossos deveres. – Ele suspirou. Desde o contato, nunca mais recebera mensagens de Ývela. Como ela descrevera, buscar pela mente da ondina era uma tarefa impossível. Jon encontrou uma parede escura e vazia e nem mesmo um eco de que Ývela estava por perto.

A marca das sombras em si parecia insignificante, principalmente depois da explosão de poder ao retomar o Castelo, mas talvez ainda influenciasse e o impedisse de encontrar um pouco de paz nos olhos daquela que possuía seu coração.

– Está pensando nela, majestade? – Leyona abriu um sorriso compreensivo ao receber um aceno afirmativo. A general descobrira sobre Ývela ao questionar Jon sobre seus devaneios. – A distância é um grande inimigo do amor, mas não é fatal a ele. Kórmon se foi há muito tempo e ainda o sinto em meu coração.

Ela comentara sobre o marido durante a mesma conversa. Kórmon partira depois de Jarek, quando Sanzur se juntou às Trevas, mas nunca retornara. A única pista sobre seu destino eram os portos do Leste de Warthia.

– Você é um bom homem, Jon. E tem um coração magnífico. É injusto que tenham se separado, mas o destino revela muitas surpresas. Sei que os Deuses estão guardando algo de bom para seus corações.

– Obrigado, Leyona.

– Majestade! – Eles se voltaram para o soldado que adentrava o aposento. – O grupo está a sua espera para partir.

– Cuide de tudo em minha ausência. – Ele meneou a cabeça para Leyona, que retribuiu com uma reverência.

– Conte comigo.


***


Dois Sturian e três humanos foram designados para proteger o monarca, um guerreiro orelhudo e Jill, como a conselheira pessoal do Rei. Leyona regeria o comando em sua ausência.

Jon sabia do incêndio que havia devastado o Grande Bosque, mas a vida renascia ali desde então. Flores brotavam, as árvores sobreviventes criavam sombra e um ambiente agradável onde sementes germinavam. Não havia mais a destruição que as Trevas tentaram causar; a magia renascia no Reino do Norte.

O Mago sorriu em alívio ao avistar as torres altas e imponentes do Castelo das Quatro Luas, cuja estrutura de mármore branco resplandecia à luz do Sol. Lonel havia baixado a barreira mágica, possibilitando aos visitantes alcançar o palácio. Estavam próximos do fim da tarde do sexto dia de viagem e as nuvens indicavam que uma tempestade se aproximava.

Quando Jon e seus soldados chegaram à entrada do palácio, foram recebidos por alguns elfos. Lonel, o guardião do Castelo, estava à frente deles usando uma túnica longa e esverdeada. O cabelo prateado caía sobre os ombros e rugas de preocupação marcavam sua pele.

O imortal recebeu Jon com um abraço amigável. Jill também teve o carinho do elfo, feliz por reencontrá-lo após tanto tempo.

Ele pediu que os viajantes fossem escoltados até seus aposentos, mas Jon recusou. Queria tratar do assunto importante e receber notícias concretas da situação em que se encontravam.

Lonel então guiou o monarca até um grande salão. Havia outros elfos ali, com expressões solenes. Eles se curvaram respeitosamente para receber o Rei. Jon dirigiu-lhes um sorriso sutil e se sentou, sendo imitado pelos presentes.

– Majestade. – Lonel permaneceu de pé, as mãos apoiadas no tampo da mesa. Os olhos claros melancólicos. – Acredito que há muito a ser contado e pouco a ser entendido, visto que as Trevas agem de maneira caótica. Temos sorte por elas terem abandonado o Norte, ainda que Sharowfox vá buscar pelo Castelo de Tytos logo que ascender. – Lonel suspirou pesadamente. – Desde o desaparecimento de Demetrius, não sabíamos como lidar com as sombras no Reino... Conseguimos mantê-las afastadas de Líriel com muito esforço. Quando nossa barreira foi destruída, as Trevas batalharam para chegar até este local sagrado.

– O que sabe sobre o Oeste? Alguma notícia?

– Talvez queira ver com seus próprios olhos... – A expressão do elfo quebrou a fé de Jon. Ele aceitou ser guiado ao paço central do palácio, onde ficavam os entalhes encantados que representavam os quatro Reinos. Sem se ater aos detalhes daquela magia, Jon invocou a sua. Sob seus olhos, uma visão macabra ganhou vida.

Jon viu Mídria devastada; cidades consumidas por areia, sombras e sangue de inocentes. Escorpiões Gigantes marchavam entre escombros, escravos eram escoltados para a Fortaleza do Dragão. Acima dela, espiralada no céu, uma nuvem negra assombrosa. De uma torre outrora usada por sentinelas saíam raios e sons ensurdecedores. Dois dragões sobrevoavam a construção. Um era o mesmo que havia atacado a Fortaleza. Estava maior, fortalecido pelo poder das Trevas.

A visão mudou para o Sul com suas brumas de ébano, uma barreira natural a qualquer magia que tentasse invadir o território sombrio. Jon se perguntou em que parte dele estaria Serafine e preocupou-se ao imaginar a situação; talvez por isso o contato com Ývela fosse impossível. O Sul era um Reino de Trevas, uma barreira contra o resto do mundo.

Por fim, o Leste. O mais perturbador.

Jon viu miséria e escassez. O Reino das Montanhas estava abandonado à sombra de seus reinos vizinhos, embrenhados em suas próprias tormentas. Sua visão percorreu a região da Muralha, uma construção mágica responsável por separar a cadeia de montanhas do Reino. Sua atenção recaiu sobre a barreira criada para proteger a civilização caso o vulcão despertasse; ela tremeluzia, fraca. Por detrás dela, a escuridão que havia sobre os céus do Oeste vagava para Leste, tentando alcançar a montanha adormecida.

Jon voltou a si. Lonel estava ciente do que o Rei havia encontrado.

– O vulcão...

– Sim, majestade. As forças sombrias estão trabalhando para que exploda. Se o Leste sucumbir, perderemos a planície. Sharowfox não pode ascender junto a essa tormenta. Ela usaria o poder do vulcão a seu favor, transformaria o incêndio em um pandemônio sobre a terra.

Jon respirou fundo, lutando para controlar a mente alvoroçada.

– Têm alguma notícia do meu irmão...?

– Não. – Lonel respondeu com melancolia.

– Como Demetrius desapareceu dessa maneira? – Jon bateu o punho fechado contra a mesa. – O que Sharowfox... O que ela fez com meu irmão para que a energia dele deixasse de fluir?

– Temo que Demetrius seja parte de um complexo quebra-cabeça, jovem Rei. Um que envolve nossa Escolhida. – Lonel fitou os outros imortais. Jon arregalou os olhos ao entender ao que ele se referia. – Você ajudou a montá-lo, tempos atrás. Salvou a mãe da Escolhida de um destino terrível.

– A Feiticeira por quem meu irmão tinha se apaixonado... – Jon sussurrou, sentando-se em um baque. – Era mãe de Serafine?

– A filha de um amor proibido carrega o espírito mais poderoso dessa era. – Lonel anuiu.

– A Rainha sombria já possui uma alma inocente sacrificada. Ela fará seu ritual na próxima Lua Cheia. Estamos tentando contatar Serafine ou qualquer um de seus guardiões, mas a escuridão os abraçou. – Lonel suspirou, respondendo à pergunta silenciosa de Jon. – O quebra-cabeça precisa de todas as peças. Seu irmão era uma delas. Serafine é a principal.


Capítulo 20

A benção élfica

 


– JON? – SOBRESSALTADO, ELE SENTOU-SE num pulo. A imagem de Ývela, menos translúcida do que da última vez, piscou repetidas vezes e sorriu.

Em um primeiro instante, tudo se dissipou em alívio. Então Jon notou os ferimentos em seu rosto.

Um grande hematoma cobria a bochecha magra em direção ao olho. Havia cortes por toda a extensão descoberta do corpo da ondina. Ývela percebeu o exame abriu um sorriso triste.

– Não tive forças para mudar minha aparência durante o sonho. – Jon estava chocado demais para dizer qualquer coisa. Puxou-a para os braços e a apertou. Ývela afundou o rosto em seu peito, com um soluço aliviado.

– O que houve? – Jon indagou.

– Uma batalha. – Ývela se afastou para que seus olhares se encontrassem. – Tivemos que recuar novamente. Deixamos o território dos gigantes há poucos dias.

– Mas achei que a questão com eles estivesse resolvida.

– Também achávamos. – Ývela suspirou, concentrando a atenção num botão da blusa do Rei. Sua figura tremeluziu. – Tudo parecia certo. A aliança com os gigantes tinha sido conquistada, mas então as Trevas surgiram. Numa noite, a morada deles foi atacada e suas mentes acabaram seduzidas pelo poder oferecido pelas sombras... Não tivemos chance.

– Sinto muito, Ývi.

– Eu também. – A frustração estava em sua voz. – O ataque nos pegou desprevenidos. Não esperávamos, ou não queríamos acreditar, que os gigantes nos trairiam. Os leviatãs estão sugando minha força de tal maneira que, se não fosse por Maya, eu estaria morta. – Jon estremeceu com a possibilidade.

– Onde você está agora?

– Em meu palácio. O único lugar seguro nas Águas. Minhas legiões estão cercando a região, e estou me recuperando para marchar com elas. – A ondina levou as mãos ao rosto. – Não há mais forças em meu Reino. Somos tudo que restou entre o continente e a escuridão.

– E quanto aos leviatãs?

– Continuam presos, mas não sei por quanto tempo ainda posso aguentar. É tão doloroso, Jon. Sinto minha magia sendo sugada pelas barreiras e não encontro forças para sair da cama – confessou. – É perigoso. Faço o possível para criar mais barreiras e mantê-los nas profundezas, mas nunca parece suficiente. As sombras aumentam e sua magia corre pela prisão. Quando os leviatãs se levantarem, Warthia vai precisar de toda a Luz para derrubar tamanha escuridão.

Jon fechou os olhos. O que mais temia estava acontecendo. Sharowfox tinha as peças necessárias para o ritual, os leviatãs continuavam se erguendo e as Águas perdiam território. Tinha medo pela vida de Ývela e de seus companheiros, mas temia ainda mais pelos seres terrestres. O que seria deles caso os titãs se erguessem?

As palavras de Lonel, ditas horas antes, reverberaram pela mente de Jon, e então o Rei soube o que fazer. Não havia como hesitar quanto àquela proposta. Se era o único jeito, ele arriscaria.

– Ývela, me escute com atenção. Lonel tem um plano para reunir um grande exército em favor da Luz, mas é perigoso. Muito arriscado. Estou disposto a aceitar esse risco, se me prometer uma coisa.

– Jon, de que risco estamos falando? – Ela ficou desconfiada.

– Preciso viajar até as Terras Desconhecidas.

– Está louco? Não há chance de encontrar um exército capaz nas terras longínquas.

– Não há? – ele contrapôs, deixando que ela reavivasse um detalhe da história daquele mundo. Boquiaberta, a Rainha das Águas constatou que poderia ser verdade. – É insano, sim, mas também uma grande chance. Se eu conseguir cruzar a fronteira e alcançar a terra deles, poderia convencê-los a lutar por Warthia mais uma vez.

– Mas eles abandonaram esse continente há tanto tempo, Jon – Ývela murmurou indecisa. – Aqueles elfos não são mais os mesmos. Tornaram-se neutros às forças que regem Warthia, esqueceram-se de nós. Por que voltariam?

– Há entre eles uma criatura adormecida ligada à Serafine, que vai procurar pela Escolhida quando ela precisar dominar o último elemento – Jon confidenciou. Ývela arqueou as sobrancelhas, surpresa, mas repentinamente esperançosa.

A visão estremeceu. Ývela segurou a mão de Jon, o toque mágico tão carinhoso.

– Ývela, me prometa que virá com um batalhão para a terra caso seu Reino caia. Sereias e tritões podem adquirir características humanas quando necessário. Se for necessário, prometa que intercederá por nós. Não se sacrifique para segurar os leviatãs. – Ele cobriu as mãos da garota e apertou os dedos sobre a pele de porcelana. – O exército da Luz vai precisar da Rainha das Águas na grande guerra.

Ývela mordeu o lábio inferior no instante em que a visão sacudiu novamente. Sua figura desapareceu por um momento, mas retornou com um olhar obstinado. Um sorriso leve desenhou os lábios do jovem Rei.

– Conversarei com meus generais. – Não houve uma promessa. Ele segurou seu rosto com delicadeza, passeando os dedos pelos contornos. Ývela fechou os olhos e a tensão se esvaiu de sua postura. O Mago se aproximou, mas a visão se desfez.


***


A mensagem que chegou até Leyona foi surpreendente. Jill e Jon viajariam por tempo indeterminado, e caberia a Sturian comandar os homens e mulheres capazes de lutar para a batalha quando recebesse o sinal. Os soldados deveriam estar preparados para marchar até a Planície, e acampariam na fronteira do Grande Bosque para esperar; seria necessário todo o contingente que ela conseguisse recrutar. Guerreiros e guerreiras que se esconderam quando as Trevas chegaram marchariam para a batalha. Leyona rezava para que fossem suficientes.

Sozinha na sala do trono, Leyona recebeu Mynna, que vinha com Percival lhe trazer uma carta. Mynna sorriu para a mãe, mas foi retribuída com um sorriso exausto. Cansada de tanto ler pergaminhos e examinar mapas, redigir cartas e exaltar mensagens de coragem, Leyona analisou as poucas linhas escritas em uma letra apressada. Uma única frase redigida por Jon que fez suas mãos tremerem.


Você saberá quando a hora chegar. Mantenha nossas legiões na fronteira, e marche assim que receber meu sinal.


Leyona respirou fundo, e a tremedeira em suas mãos ficou mais forte. Mynna sentou-se no colo da mãe e segurou suas mãos; suas feições eram tudo de doçura. A Sturian agradeceu o gesto de apoio, abraçando-a com força. Fitou Percival, deslocado pelo momento familiar, e acenou.

São só crianças, pensou desolada. Crianças jogadas num mundo em guerra. Percival se aproximou hesitante, mas ficou confortável quando recebeu o abraço.

Sentindo as lágrimas em seu rosto, Leyona deixou-se fraquejar. Mynna a abraçou e Percival também. Ambos compreenderam o descontrole emocional e serviram de pilares para que Leyona não desabasse.

Longe dos olhos curiosos, a general e protetora do trono de Warthia, uma Amaldiçoada, caiu em prantos, desesperada com a incerteza do futuro.

Uma pergunta ecoava pela mente de Leyona: o que esperaria por Jon além das montanhas?


***


Tudo dependia de Jon, de Jill e de sua coragem.

Sentado no pátio principal do Castelo das Quatro Luas, o Mago aguardava pacientemente que Lonel retornasse com os suprimentos que levariam. Jill, mais afastada, observava a bola de cristal que iluminava o ambiente. A atenção de Jon estava focada no desenho mágico que representava os quatro Reinos. Sua mente se embrenhava em um único pensamento; uma única certeza que ribombava seu coração desde que se encontrara com Ývela.

Sim, ele arriscaria a vida naquela louca empreitada para salvar Warthia e consertar o que as Trevas tentavam destruir.

– Majestade? – Lonel surgiu acompanhado de dois elfos. Jill aproximou-se. Portava uma bolsa de couro ao corpo com tudo o que necessitava para a viagem. – Algo que lhe pertence retornou.

– O quê?

– Aparentemente, o livro o reconheceu como seu guardião e o encontrou em Líriel. – Lonel estendeu o tomo. Uma obra familiar aos olhos minuciosos do monarca.

– Achei que as sombras não o tivessem poupado.

– O livro encontrou Serafine quando ela esteve aqui, e agora o achou. É um tomo mágico, Jon. Seu ancestral se certificou de que só caísse nas mãos certas. Foi abençoado para receber ensinamentos, dos mais simples aos mais perigosos, para ser passado apenas para seres com o sangue puramente mágico, sabe disso. Seus antepassados estão enviando sinais para que continue lutando.

Jon alisou a capa com delicadeza. Ele, de fato, havia aprendido muito com aquela relíquia. Havia reconquistado o Norte graças a ela. Contudo, havia poder demais ali dentro. Encantamentos antigos que Jon não ousava entender – com um sorriso, ele pensou em alguém que poderia fazê-lo.

Se resgatasse Demetrius, passaria a obra para ele. Seu irmão precisaria de toda sabedoria e força ali contidas.

– Por que o livro nunca apareceu para Demetrius? – Jon indagou repentinamente. – Ou mesmo para os outros Reis?

– Talvez por não se tratar da alma certa, ou do momento certo. O poder vem de nosso espírito, majestade, prova disto é que Serafine foi capaz de encontrá-lo. – Lonel pegou uma grande bolsa de couro das mãos do imortal ao seu lado e sorriu. – Leve-o até os elfos para lá das montanhas. Mostre a eles a que veio e explique pelo que estamos passando. Acredito que, ao vislumbrarem esse livro e o que ele tem a dizer, entenderão que nosso tempo é curto.

Lonel suspirou ao entregar a bolsa para o Rei.

– Confie em minha irmã. – Os olhos cristalinos do ancião brilharam com algumas lágrimas. – Ela deve receber a carta que está nesta bolsa. A Ordem precisa estar ciente de que o equilíbrio do mundo resiste a duras penas. – Jon sabia que seria difícil convencer os conselheiros daquela ordem. Eles haviam escolhido os guardiões de Serafine, guiados pelo poder ancestral dos Deuses, sua última ligação com a magia de Warthia, mas não se envolviam mais do que isso.

Lonel estendeu um último presente: seu cajado. Jon recuou.

– Não posso aceitar isso.

– Majestade, não vamos começar com dramas. – Lonel replicou com humor. – A força que este cajado carrega o auxiliará, e será uma prova de que está adentrando território proibido em paz. Se, com a graça dos Deuses, os elfos aceitarem lutar ao nosso lado, precisará desse poder para trazer todo um exército através da Luz.

O Rei aceitou, ainda que relutante, e examinou o objeto. Com a pedra cintilante em sua ponta, era magnífico. As luzes do pátio refletiam sobre a superfície polida da joia, assim como nos olhos de Jon.

Jill sorriu pela bravura que encontrou no Rei.

– E para você, minha amiga felpuda, deixo minha benção de que guie nosso Rei com sabedoria por essa jornada. – Ela assentiu solenemente e curvou-se em respeito.

Quando alcançaram a margem do rio, acompanhados unicamente por Lonel, o imortal inclinou o corpo em uma rápida reverência.

– Boa sorte, majestade.

Do outro lado da margem, em um caminho obscuro, encontrariam a trilha que os levaria até as montanhas. Haveria uma grande caverna e um túnel. Depois, mistérios. Dos mais antigos e tenebrosos que havia em Warthia. Mesmo os mais sábios e corajosos temiam passar por lá.

Ainda que tomado pelo medo do desconhecido, Jon não recuou. A marca das sombras sobre sua alma estava quieta. Fosse por influência das visitas de Ývela ou pela ascensão do próprio poder, as energias de Jon tinham se renovado.

A força de um Mago estava intacta. E a sua jornada até as Terras Desconhecidas começava.


Capítulo 21

Sob a luz da lua

 


JAREK SORRIU QUANDO SERAFINE abriu a porta da cabana. Era madrugada, mas ele havia implorado para que Serafine não dormisse; queria lhe mostrar um lugar enquanto ainda estavam na cidade pirata. Vendo o sono no rosto da garota, teve certeza de que ela quase declinara seu pedido. Segurando sua mão, guiou-a pelas ruas silenciosas.

– Aonde vamos? – Serafine indagou curiosa. Jarek lançou um olhar misterioso, pedindo que fizesse silêncio. Sentinelas vigiavam a cidade, e nenhum deles desejava explicar a escapada noturna para Nicolau. Ou para Demetrius.

Ele a levou na direção do lago, embrenhando-se na floresta. Sua mão estava entrelaçada à da garota e, com habilidade, Jarek serpenteou pelas trilhas. A paisagem era bela, e a luz da lua cobria tudo.

Jarek parou de repente, e Serafine trombou contra seu corpo.

Estavam à margem das águas. Do outro lado havia um amontoado de rochas arrumadas de maneira perfeita pela natureza. Jarek voltou-se para a garota curiosa às suas costas. Com um sorriso, o guerreiro começou a tirar as botas.

– Vamos dar um mergulho? – Serafine cruzou os braços.

– Melhor do que isso. – Ele gesticulou para as pedras. – Há uma caverna ali.

– Debaixo da água?

– A entrada é submersa. O resto você vai ver. – Ele piscou. Serafine sorriu.

Ela retirou as botas e as deixou próximas a uma árvore. Despiu o casaco, parando ao vê-lo desabotoar a camisa.

– Quanta roupa eu devo tirar? – Serafine usou o humor para esconder a timidez. Jarek gargalhou.

– O quanto quiser, princesa. – Abriu um sorriso malicioso. Ele reuniu as roupas e as colocou próximas a uma pequena rocha.

Jarek segurou sua mão outra vez, inebriado com a familiaridade do toque. A água estava morna, contrária ao ar gélido que soprava entre as árvores. Eles nadaram até o fundo do lago deixar de ser alcançado por seus pés. Jarek pediu que ela esperasse enquanto averiguava a distância e voltou segundos depois, garantindo que não demorariam a chegar. Serafine sorriu. Quando mergulharam, ela fez um movimento com a mão, criando uma bolha de ar ao redor dos dois. Jarek respondeu com um olhar impressionado.

Ele manteve-se próximo, ainda segurando uma das mãos da menina.

Ao emergirem, os olhos dourados da garota percorreram o cenário paradisíaco com fascinação.

– Nossa. – Ela sussurrou.

Uma pequena lagoa ocupava a entrada da caverna. As paredes esculpidas pelo tempo tinham detalhes coloridos nas pedras. O chão era de terra macia e o clima, agradável. Havia uma abertura estreita no teto da caverna que deixava a luz irradiar.

Serafine fez um movimento com as mãos para afastar os pedregulhos. Jarek sorriu para ela.

Jarek sentou-se na beirada da lagoa, sorrindo para Serafine. O encantamento dela pela beleza natural do lugar era semelhante ao seu pela presença da garota.

Serafine saiu da água, admirando cada detalhe. Quando a luz da lua tocou sua pele, cobrindo as marcas prateadas, Jarek perdeu o fôlego.

– Como descobriu esse lugar? – O cabelo molhado de Serafine estava preso as laterais do rosto; tão linda.

– Quando caçava Sanzur. – Jarek não demonstrou a mesma amargura de sempre ao mencionar o irmão. Dessa vez, havia contentamento. – Estava mergulhando e achei sem querer.

– Na época em que viajou com os piratas?

– É. – Serafine franziu os lábios. Jarek avaliou a expressão dela e sorriu, revirando os olhos. Havia ciúme, coisa que ele reconheceu com facilidade. Aproximou-se, rodeando seu corpo por trás, os braços apertando-se às curvas familiares. – E eu nunca trouxe ninguém aqui, se é o que a está irritando, rabugenta. – O guerreiro sussurrou à sua orelha. Serafine desfez a careta e riu envergonhada. – Este era um lugar de sossego, de solidão. Algo só meu.

– E quis dividir comigo? – Jarek enrolou uma mecha do cabelo da garota com os dedos, afastando-a de suas feições. Serafine parecia quase uma divindade à luz da lua. Uma semideusa que poderia curvar o mundo à sua vontade, se quisesse.

– Qualquer coisa que eu tiver para dividir será com você, Serafine – O tom foi intenso. Ela segurou seu rosto entre as mãos, os dedos contornando as linhas, a barba rala em seu queixo. O Sturian fechou os olhos, inebriado.

Aproximou-se mais e beijou-a suavemente. Os lábios dela eram doces, macios e inesquecíveis. Deixou as mãos escorregarem pelas laterais do seu corpo. Serafine apertou-se a ele, afastando o rosto e sorrindo, cúmplice.

Deuses, ele a amava.

Serafine examinou seu rosto com os olhos dourados e Jarek sentiu-se amedrontado.

Ela era o tesouro dos Deuses. Uma peça poderosa do jogo de poder em Warthia, mas também o coração daquela futura batalha. Pura, preciosa e grandiosa demais para ele.

Jarek lembrou-se do pai falando sobre os Hargon serem um clã indestrutível, cuja força e fraqueza estavam embrenhadas na paixão. Quando caíam nas garras do amor, amavam apaixonadamente. Ele achou tolice, na época. Naquele momento, observando Serafine, sentia o peso daquelas palavras.

A garota o interpretava muito bem, Jarek lembrou-se tarde demais. Um segundo olhar foi suficiente para ela recair em doçura.

– O que foi? – Jarek havia se ajoelhado à sua frente, separado por uma distância mínima. O coração da morena retumbava próximo ao dele.

– Serafine. – Ela se aproximou mais, cingindo as sobrancelhas. Ele estendeu a mão, mas sem tocá-la.

– Jarek. – O tom delicado quase o fez sorrir. – O que há de errado?

– Estou pensando demais – sussurrou, amargurado.

– Ei. Você me convidou para cometer uma loucura hoje, senhor Hargon. – A mão da jovem deslizou por seu tronco como o toque de uma pluma, traçando uma antiga cicatriz, as curvas do abdômen, a linha do quadril. – Pare de pensar. – Seus lábios murmuraram a pouca distância. Jarek examinou seu rosto, os olhos ardentes pela decisão dela.

– Você realmente quer isso?

– Não estaria aqui se não quisesse. – Ela sorriu, maliciosa. Jarek poderia beijá-la infinitas vezes por aquilo.

– Quero dizer... Se realmente quer a mim. – Fique longe da garota, a voz de Lonel o assombrou. Havia tanto em sua mente, tantas responsabilidades e medos, tanto do futuro e do passado, quando sua atenção deveria pertencer única e exclusivamente àquele momento.

Serafine beijou o canto de seus lábios, e se afastou. Jarek sorriu ao contemplá-la. As marcas divinas cobriam cada centímetro de seu corpo, símbolos, letras e dizeres de uma profecia cruel, marcando-a como a criatura mais poderosa daquele mundo e de tantos outros.

Serafine segurou seu rosto. O guardião a beijou com fervor, deixando que as mãos, mesmo cheias de nervosismo, a arrebatassem.

Quando jurara sua fidelidade aos Deuses e prometera proteger e servir à Escolhida, Jarek nunca imaginara que seu coração e alma também o fariam. Que sua mente se embrenharia em tanto desejo e paixão que se veria sorrindo sob o beijo, anestesiado contra o mundo só por poder tocá-la.

– Uma vez, ouvi meu pai comentar que ele pertencia a minha mãe, e ela pertencia a ele. – Serafine apoiou a testa à do guerreiro, analisando-o com interesse. – Achei que nunca entenderia o que disse.

O sorriso dela tinha poder de edificar novos mundos.

– Eu estava enganado.

O guardião beijou uma das espirais de seu rosto, seguindo o contorno até o pescoço e braço, e mais além, ansioso por tê-la, por se entregar a ela. Seus olhos faiscaram e Serafine o trouxe para si.

Sob a luz da lua, dois apaixonados se deixaram amar; dois jovens, destinados a grandezas e feitos perigosos, entregaram-se, esquecendo-se do mundo.


***


– Em que está pensando? – Serafine levantou os olhos para o guerreiro. Deitada ao seu lado, apoiou o rosto em seu peito. A expressão distraída da jovem chamara a atenção de Jarek. Ele a examinou, contornando as marcas nas costas da garota com uma carícia.

– Em nada, na verdade. – Ela sorriu.

– Quer dizer que não estou em seus pensamentos? – Ele falseou mágoa. Serafine riu.

– Não no momento. – Colocou o rosto de frente para o do guerreiro. Jarek acariciou seu cabelo, prendendo algumas mechas entre os dedos. – Mas costuma estar.

– Ah, algo gratificante de se ouvir. – Jarek sorriu com malícia. Serafine o observou, atenta e curiosa. Ele queria entendê-la, mas a garota conseguiu se mostrar bastante enigmática.

– Não se vanglorie tanto. Antes você só estava na minha mente quando eu o ofendia em silêncio. – Serafine retrucou bem-humorada.

– Isso parte o meu coração, princesa.

– Não negue que merecia.

– Talvez... eu tenha sido insuportável num primeiro momento.

– E num segundo momento, terceiro... – Ele a beijou antes que Serafine prosseguisse a fala zombeteira, girando seus corpos. Os cabelos dela espalharam-se, cacheados e revoltos, iluminados pela lua. Seus olhos eram rios de ouro, brilhando com a intensidade de um sol.

– E mesmo assim você ficou caidinha por mim. – Jarek arqueou uma sobrancelha, incitando-a a responder, mas Serafine ficou pensativa.

– Um conjunto de detalhes me encantou. Seu humor irritante definitivamente não foi um deles.

– Sabe que eu só fazia aquilo para provocá-la, não é?

– Você adora me provocar – Serafine sussurrou contra seus lábios, distanciando-se antes que Jarek a beijasse novamente.

– Vamos falar sobre como te conquistei, então... – Ele propôs, brincalhão. A garota revirou os olhos, indignada.

– Você e seu ego são impossíveis, sabia?

– Imagino que meu charme tenha sido o primeiro detalhe daquele conjunto... – ele prosseguiu, ignorando o comentário. – Não?

– Definitivamente não.

– Minhas aulas de sedução de nada valeram, então?

– Contribuíram um pouquinho. – Ela enroscou as pernas nas dele e rolou o guerreiro, ficando sobre ele. Jarek sorriu. – Mas a profundidade de seu olhar e a maneira corajosa com que lida com a vida chamaram mais a atenção. Seu sorriso sincero e raro era mais atraente do que o charmoso. Quando afastava as sombras do seu coração e se expunha. – Jarek retesou-se com as palavras, lembrando-se do pai explicando sobre a paixão que guiava os Hargon. – Provocativo ou não, você sempre estava ali quando eu precisava.

O guardião se sentou, ela também. Segurou a mão da garota, encaixando-a a sua. Guiou-a até seu peito, deixando que repousasse onde as batidas de seu coração podiam ser sentidas. Serafine fitou-o com interesse.

– Sente? – O guerreiro indagou com suavidade. A palpitação ficou mais intensa. Jarek a acariciou a lateral do rosto de Serafine com a outra mão, e coração bateu ainda mais forte. – Isso é o que você causa em mim, princesa – sussurrou, apreciando a serenidade da expressão dela. – Nós poderíamos ficar aqui. – Serafine, riu bem-humorada.

– Nesta caverna?

– Poderíamos esquecer o mundo lá fora. Os deveres e promessas. A Profecia. – O olhar de Serafine ficou suave, compreensivo; e ansioso, principalmente. Ela desejava ardentemente o que Jarek sugeria. – A guerra... Poderíamos fugir para longe. Deixe que os Deuses façam o trabalho, que lutem.

– Não seria justo com aqueles que contam conosco. – Não havia como virar as costas a tudo. Aquela noite, aquele momento, lhes pertencia. O resto era incerteza.

– Toda essa história é injusta. – Jarek sussurrou. Apoiou a testa à dela, fechou os olhos.

– Eu sei. Mas escolhi lutar, Jarek, e você, me proteger. Mesmo que os Deuses ou a escuridão estendam sua crueldade sobre nós, nossas escolhas nos trouxeram até aqui. Nunca vou me arrepender disso.

Um silêncio confortável recaiu, marcado apenas por suas respirações. Jarek contemplou Serafine e ela o olhou com igual intensidade, como se tê-lo e tocá-lo não fosse o suficiente.

– Você é tão fascinante, arrebatadora. O maior mistério de Warthia.

– Um mistério bom?

– O melhor deles. O mais belo e mortal.

– Não sou mortal. – Serafine brincou. Jarek a examinou com o sorriso de antes.

– É para mim.

– É perigoso que eu fique perto de você, então?

– Gosto do perigo.


Capítulo 22

Onde repousa a escuridão

 


O MAR ESTAVA A um passo de distância, mas, mesmo assim, Serafine esperou. O horizonte era marcado pela escuridão crescente. As nuvens pesadas não traziam uma tempestade, mas sombras e tormenta. As águas se estendiam além da linha entre o céu e o mar. Era lindo. A pequena porção de areia pálida, os rochedos chicoteados pelas ondas, as marolas suaves que escorriam para seus pés. O vento cortante empurrava seu cabelo para longe do rosto. Serafine fechou os olhos, aceitando a presença da terra sob seus pés, a água e o vento. Fortificou-se através deles.

Sibila sussurrava uma canção melancólica próxima à garota, embalada pelo clima gélido e pelas sombras que se acercavam.

Os piratas estavam ocupados montando acampamento nos limites do bosque, e um grupo se preparava para viajar até a ilha próxima das cavernas submersas. Demetrius se afastara de Serafine havia pouco, mas seu olhar horrorizado para as nuvens e o poder que traziam aos Quatro Reinos ficou na mente da garota.

– Está sentindo? – Sibila indagou. As cobras em sua cabeça silvaram, assustadas.

Serafine sentia o retumbar das forças sombrias desde a noite passada, quando se aproximaram o suficiente da praia para ouvir a rebentação das ondas. A escuridão sussurrara seu nome, clamando-a em direção ao horizonte coberto pelas Trevas.

– De onde isso vem? Essa energia? – Serafine especulou.

– Além do território warthiano. Provavelmente do Reino das Águas. – O coração da garota se apertou. Ývela estava lá havia semanas. Lutava contra o que quer que fossem os leviatãs, segurando-os para dar mais tempo à Serafine. – Muito dela também vem das terras em que pisamos. É o local onde repousa a escuridão.

– As Trevas já estiveram tão perto assim do continente? Tão vivas?

– Uma vez, centenas de anos atrás. – A voz da guardiã era cautelosa. – Quando uma rainha sem coroa ergueu um exército contra seu irmão. Houve pouca luz para destronar a escuridão que varreu Warthia.

Serafine espiou as ilhas de pedra no Oeste, e respirou fundo.

Cornélio a queria naquele local. Precisava encontrar a alma perdida do novo aliado em troca da localização do seu Mestre perdido. Apesar da presença do elemento ao seu redor, nenhum contato acontecera desde as Catacumbas. O Mestre permanecia em silêncio.

– Milady? – Guillian a chamou. – Estamos prontos.

Um bote iria até as proximidades da primeira ilha de pedra e lá permaneceria até o pôr do sol. Serafine precisava abrir caminho para alcançar as cavernas perdidas sob o mar revolto. Nenhum de seus guardiões aprovou aquela ideia; que movesse o oceano para isso, com alguém por perto para protegê-la.

Demetrius caminhou até a garota, preocupado. Encarar o Grande Rei era como ver seu próprio rosto. Ainda mais assustador era perceber que Demetrius lhe parecia mais familiar a cada dia que passava.

– Tem certeza de que não devo acompanhá-la? – ele inquiriu.

Serafine negou. O Mago ainda estava fraco. As Catacumbas haviam drenado o que restara do poder dentro dele. Mesmo com as meditações e os encantamentos de restauração que Sibila conseguiu conjurar, nada retornara.

– Meus guardiões estarão comigo.

– O lugar para onde está indo...

– É uma armadilha, provavelmente. – A garota o interrompeu. – Eu sei. Gostaria que fosse conosco, mas Sibila tem razão. Não podemos arriscar o Grande Rei.

– Não deveríamos arriscar a esperança.

Serafine sorriu. Abaixo da força dos elementos, a energia sob seus pés era poderosa. Ancestral. E errada. A escuridão de fato repousava nas cavernas submersas, e Serafine teria de enfrentá-la para encontrar seu Mestre.

– Em último caso, o espírito vai me ajudar. Não estou realmente em perigo, sabe disso. Só... – ela hesitou. – Fique preparado para um maremoto ou qualquer catástrofe do tipo.

Demetrius sorriu.

– As cavernas são antigas. Deve haver muita energia sombria nelas, forças tentadoras. Fique bem, minha querida. E a salvo. Você é forte e o espírito também.

– Voltarei em breve.

– Ei. – Jarek gesticulou para ela, não ousando se aproximar enquanto Demetrius estivesse ali. – Tome cuidado. – O pedido do guardião a fez sorrir. Ela segurou sua mão tempo suficiente para lhe passar segurança.

– Sibila vai manter os escudos de proteção sobre nós, e Guillian e os outros...

– Eu sei. – Ele espiou Cornélio com o canto dos olhos. O morto-vivo estava ansioso para aquela viagem. – Mas não é com o espírito ou suas visões que me preocupo no momento.

– Cornélio jurou pela própria existência. Os Deuses vão dizimá-lo caso quebre essa promessa, especialmente quando envolve a campeã deles. – Serafine não conteve o sorriso convencido, tentando arrancar de Jarek a expressão sombria. Por um instante, funcionou, e ele riu. – Cuide bem do Rei, mas tome cuidado também.

– Não há perigo aqui, princesa. Continuo achando inútil ficar.

– Alguém precisa estar aqui por Demetrius e pelo grupo. Se não voltarmos até a hora combinada, você tem que ir nos ajudar. – Ela cutucou seu peito e puxou-o pelo casaco. – Só para garantir.

– O quê?

– Um beijo de boa sorte. – Jarek sorriu, enlaçando sua cintura com força. Serafine recordou-se da noite passada e suas emoções fervilharam. O Sturian deslizou uma das mãos pelas costas dela, escorregando até o quadril. Ela se afastou com um olhar descontraído pela ousadia.

– Nos vemos mais tarde? – Serafine indagou.

– Nos vemos mais tarde – ele garantiu.

Selina e Aria aguardavam próximas ao bote, prendendo as espadas e facas ao cinto.

– O que podem dizer sobre essa região? – Serafine perguntou ao encontrá-las.

– Nunca navegamos aqui. O mar é instável. É quase suicídio, se quer minha opinião. – Aria recebeu um cutucão de Selina. – De qualquer maneira, eu era a melhor comandante das missões de reconhecimento, então sei impedir um bote de naufragar.

– Não me gabaria muito da sua posição como capitã do bote. – Diel surgiu com alguns cobertores, esquivando-se quando a irmã tentou acertar uma cotovelada em sua cabeça. – Tenha cuidado lá fora, gracinha. Mas não se preocupe, vou proteger o seu namorado até você voltar.

– Já falou isso para o Jarek? – Serafine zombou. – Acho que ele não vai gostar da insinuação de que não sabe se cuidar sozinho.

– Deuses, essa escuridão. – Selina sussurrou, atraindo a atenção do trio. – Não consigo parar de olhar o horizonte, mesmo com todos os arrepios que tem me causado.

Diel e Ariane voltaram-se para Serafine, buscando uma resposta, uma ponta de esperança de que aquilo acabaria em breve.

– Podemos? – Cornélio quebrou o silêncio.

Guillian e Sibila sentaram-se ao lado da protegida. O Atyubru não gostava de oceanos e agarrava as beiradas do bote com força demais, especialmente durante os sacolejos. Selina e Ariane remavam junto a outros piratas, e Cornélio escolhera o assento mais distante. Com o rosto coberto pelo capuz, o morto-vivo olhou para Serafine uma única vez. Ela pensava nos Deuses destruindo o traidor. O arrependimento estava no semblante dele.

– Dizem que as sombras nasceram nas cavernas dessa região. – Selina comentou em meio ao vento. – Que a primeira Feiticeira veio até aqui, séculos atrás, e vendeu sua alma para os demônios adormecidos.

Serafine analisou o mar escuro.

– É seguro? – Guillian indagou.

– Nada no Reino das Brumas é seguro. – Cornélio retrucou. – Mas, se quer a localização do Mestre, vai pegar minha alma de volta.

– Não podemos prendê-lo a um Escorpião Gigante até que revele a informação? – Guillian sussurrou para a protegida. Serafine riu, sem confessar a tentação.

Cornélio a estava levando para uma armadilha, mas a avisara com seus olhares e menções às Trevas. Serafine era a única capaz de desbravar a escuridão sob as ondas, a esperança do amaldiçoado. Fazia aquilo pelas respostas, sim, mas lutar para salvar alguém dava um quê de satisfação. Cornélio era um aproveitador, mas também uma vítima das Trevas. Todos eram.

As brumas deram visão a uma ilha de rochas pontiagudas. A paisagem era mórbida e perigosa, margeada por rochedos altos. Serafine sussurrou pela proteção do elemento e o oceano respondeu, guiando o barco em ondas suaves até um declive. Selina prendeu a embarcação e o grupo seguiu pelo caminho íngreme. Cornélio tomou a frente, apertando os braços ao redor do corpo magro. Serafine o acompanhou. Tentou ler sua expressão, mas as rajadas de vento e os esguichos das ondas a atrapalharam.

– Ali. – Ele apontou. A ilha se curvava sobre o oceano; as águas cobriam parcialmente a rocha escura e depois engoliam a trilha formada pela natureza. Antes que o mar avançasse, aquele deveria ter sido um caminho bem desenhado para o que quer que houvesse abaixo. Uma rota para uma caverna submersa. Diferentemente daquela que Serafine visitara na noite anterior, essa não guardava nada de bom ou esperançoso.

A escuridão descansava naquele lugar. A energia pairava suave acima do nível da água, mas Serafine já conseguia imaginar o que enfrentaria ao afastar o elemento e abrir caminho para o desconhecido.

– O que devemos procurar? – Guillian indagou.

– Já encontrei. – Serafine apontou. – Aquela passagem deve levar às cavernas.

– Não vejo nada, milady.

– Não há escuridão em você. – Cornélio desviou do Atyubru para se aproximar dos rochedos. Guillian manteve o semblante desconfiado. O morto-vivo espiava as ondas deslizando sobre o caminho. – Imagino que sua guardiã também possa vê-lo.

– As Trevas edificaram essa trilha. – Sibila sussurrou. Serafine ficou surpresa ao notar o medo na voz dela. – Só aqueles que foram tocados por elas podem atravessar.

– E você sabia disso. – Serafine voltou-se para Cornélio.

– Tinha minhas desconfianças. Nenhuma certeza.

– O que faremos? – Selina cruzou os braços. A maioria do grupo já estava encharcada pelas ondas e tremia sob as brumas e a incerteza.

– Esperamos. – Guillian anunciou, olhando para Serafine. – Não podemos segui-la, Serafine. Mas podemos guardar a ilha e a entrada para as cavernas, garantir que nada nem ninguém... – Virou-se para Cornélio. – Apareça.

– Temo que a ameaça está abaixo de nós, meu amigo. – Sibila sorriu. As cicatrizes repuxaram seu rosto numa careta de desgosto. – Contudo, um acordo é um acordo. De nada adianta desafiar a escuridão se nossa Escolhida não puder enfrentá-la devidamente.

– Guillian. – Serafine pediu. – Se... Se o espírito se manifestar, você vai saber. Saia daqui. Chame o grupo e deixe essa ilha, abandone a praia se tiver tempo. Não sei o que há lá embaixo e vou lutar contra o que encontrar, mas...

– Estarei pronto, milady. – O Atyubru sorriu.

Serafine ouviu um sussurro abaixo deles. Melódico e doce, igualmente rouco e sepulcral. Uma voz desconhecida e estranhamente familiar. Uma tentação e um horror. Clamava sua presença, expulsava-a para longe. Uma canção antiga impossível de traduzir, palavras sem significado e, ainda assim, cheias de importância.

– Consegue ouvir? – Sibila murmurou. Cornélio sinalizou que sim, enquanto os outros buscavam aquilo que os perturbava. – Ela sabe que estamos aqui, Serafine.

– Deixe que saiba. – A garota foi firme. – Estou cansada de me esconder. Deixe que Sharowfox e sua escuridão saibam que cheguei.


***


O oceano se curvou à sua vontade. As ondas se espalharam, abriram caminho para a Escolhida e seus acompanhantes. O mar deu passagem à sua controladora; a trilha de pedra escura e escorregadia era tão sombria quanto as cavernas, bocarras escavadas nas rochas, marcadas por estalactites e estalagmites pontiagudas. Serafine fechou os olhos. A luz por detrás deles foi engolida pelas águas represadas à entrada. Restou a escuridão e o som de suas respirações.

Sibila conjurou um globo de luz suave para iluminar seu caminho. Cornélio manteve-se próximo, um tanto abalado conforme adentravam o lar das sombras.

Sharowfox estivera naquele lugar. Pisara o mesmo chão que Serafine, tocara a parede afiada e mergulhara na penumbra. A escuridão era pesada, viva, sussurrava em sua mente. Os ecos chamavam por ela, Sibila e Cornélio.

– Faz algum tempo desde que a vi pela última vez. – Serafine sabia a quem a voz pertencia. O globo de luz flutuou ao redor de uma silhueta feminina; disforme, porém muito mais presente do que da última vez. – Sinto mais poder em você, criança.

Serafine não respondeu.

– Sua alma, Cornélio. Consegue senti-la?

– Está fragmentada pela caverna, mas alguma parte dela... Mais poderosa, sim. – Ele gesticulou para o corredor. – À frente.

– Eles não podem me ouvir nem sentir – Sharowfox prosseguiu. – Estou ligada a você e somente a você.

A marca sombria em suas almas era diferente. Sibila e Cornélio foram amaldiçoados por outras entidades, filhas da Feiticeira. Serafine carregava a voz da própria Rainha.

– Aqui, Serafine, repousava parte de meu poder. Parte do que eu era. Agora, resta muito pouco do que a escuridão um dia foi. Ela está em mim, aguardando para despertar. – As paredes se estreitaram antes de se abrirem para uma passagem larga, com teto alto. Uma câmara recortada na pedra bruta. – Sabia que eu estaria esperando, não é?

– Sim. – Sibila virou-se para a garota. Cornélio estremeceu. – Mas você ainda não está aqui. Não retornou completamente.

– Consigo sentir – Cornélio sussurrou. – Minha alma.

– Entregue. – Serafine ordenou para o nada. Sharowfox gargalhou.

– Criança tola. Eu não a tenho. Ela tem. – Passos ecoaram. – Senti seu poder nas Catacumbas, mas quero experimentá-lo nas cavernas, provar o alcance da força do espírito. Destrua este lugar, minha querida. Mostre à escuridão porque devemos tê-la ao nosso lado.

– Serafine...

A luz pálida cobriu a presença que se aproximava. A criatura era alta e esguia. Um véu cobria seu rosto. A boca esgarrada gritou sobre os três com intensidade. Um estouro agudo e desnorteante.

– Lâmia é particularmente faminta por almas fracas, e a de Cornélio era coisa de dar pena. – Sharowfox recitou. – Destrua-a e terá seu prêmio. E eu terei o meu.


***


Jarek estava na praia, os olhos vigiando a névoa. Andava de um lado para o outro analisando a paisagem. Imaginava que haveria fios de sombras arrastando-se na névoa, disfarçados.

Deveria ter ido junto. O guerreiro pensou com frustração. De nada servia ao seu propósito ficar para trás, protegendo o Grande Rei. Demetrius sabia se cuidar, ainda que tão fraco.

Encarou os piratas espalhados pela fronteira do bosque, e encontrou expressões de preocupação em seus rostos. Mesmo sem terem ligação com a magia, conseguiam perceber a força antiga que emanava daquelas terras. A energia adormecida sob seus pés.

Demetrius foi o único a olhar o Sturian; havia compreensão no semblante cansado do monarca. Por isso, Jarek se aproximou. Sentou-se ao seu lado, vendo as ondas arrebentarem na praia.

– Você se preocupa? – A pergunta escapou do guerreiro.

– Com o quê, exatamente?

– Com a guerra. Com Warthia. Com sua filha.

– Com tudo? – Demetrius sorriu, mas o sorriso se dissipou rápido. – O tempo todo. Tenho medo do que a escuridão está trazendo, do que vamos enfrentar quando ela se erguer definitivamente. Tenho medo pelas vidas que se perderão e pelas que continuarão lutando. Tenho medo de não ser forte o suficiente pela coroa que carrego, pelas pessoas que esperam ver em mim o poder de um líder.

– Só porque está sem seus poderes não significa que está fraco, majestade.

– Longe do campo de batalha, isso pode ser verdade.

– A força não está na magia, mas em tudo o que somos, tudo pelo que lutamos. – Demetrius encarou o Sturian. Seus olhos eram idênticos aos de Serafine. Menos intensos, mas ainda assim iguais.

– Quando chegar a hora, Jarek, espero que esteja certo.

Um assovio discreto chamou a atenção do guerreiro. Ele olhou por cima do ombro e encontrou Diel a alguns metros de distância, um dedo sobre os lábios pedindo silêncio. Jarek franziu as sobrancelhas. Diel apontou o bosque e desembainhou o sabre; alguma coisa estava se aproximando.

Jarek pôs-se de pé com agilidade.

– Majestade...

– Não vou tentar ajudar. – Demetrius sussurrou, afastando-se, derrotado, em direção à praia.

Respirando profundamente, Jarek deixou que Diel o guiasse.

Outros piratas seguiam o encalço da dupla, desviando do caminho para cobrir as laterais. Um estalo foi ouvido em meio ao silêncio do bosque. Nicolau encarou Diel, à sua esquerda, e fez um sinal para seguir em frente. Depois desapareceu atrás das árvores, engolido pelas sombras e quietude.

A névoa serpenteava pela vastidão do bosque. As árvores brancas misturavam-se às brumas. Uma emboscada se formava, mas o maior inimigo ainda era a incerteza.

A sensação de estar sendo observado queimava a nuca de Jarek, e diversas vezes ele olhou ao redor, esperando encontrar alguém.

Um grito cortou o silêncio. Jarek seguiu o som, mas não havia nada além de sombras. Buscou Diel com o olhar, mas um segundo de distração bastou para o pirata desaparecer entre as brumas.

Jarek procurou por rastros no chão, caminhou entre as árvores. Os outros haviam desaparecido.

Outro grito estalou no ar, logo atrás dele. A voz era familiar.

Jarek avançou com cautela e hesitou ao avistar uma silhueta no chão. Era Diel.

Sombras arrastavam-se pelo corpo do pirata, prendendo-o ao chão. Estava paralisado, os olhos arregalados em pavor, a boca aberta.

Diel encarou o Sturian e tentou balbuciar, mas Jarek não precisava de aviso. Alguma coisa se aproximava por trás.

Voltou-se a tempo de aparar a espada que retiniu contra a sua; a lâmina inimiga, maior e mais grosseira, tinha o metal marcado por sangue. Jarek fez uma careta furiosa ante a figura que acabara de se materializar das sombras.

– Olá, irmão. – Sanzur sorriu. – É melhor acabarmos com isso antes que sua protegida destrua toda a costa.


Capítulo 23

A voz na penumbra

 


A CRIATURA AVANÇOU NO instante em que Sibila expandiu o globo de luz. Serafine protegeu o rosto, Cornélio caiu para trás e cobriu as orelhas quando o monstro berrou. A silhueta da Lâmia não era familiar. Aquela criatura saíra de um pesadelo, de alguma parte sombria do Abismo.

Sibila recuou ao ser atacada. A criatura se jogou contra ela, as garras visíveis nos dedos de ossos. Serafine estendeu a mão e a ergueu no ar; a terra a obedeceu e interceptou a Lâmia. Um guincho de fúria escapou do monstro, que voltou o rosto vazio e gritou para a garota. O som agudo e desorientador colocou Serafine de joelhos. Apertou as mãos sobre as orelhas, mas a voz da criatura estava em sua mente. Eclipsava seus pensamentos e poderes.

– Não tente derrotá-la sozinha – Sharowfox disse. – Você pode destruí-la em poucos segundos, se quiser.

– Saia da minha cabeça! – A ordem da garota e o estrondo de uma rocha que se partiu calaram o grito da Lâmia. A criatura caiu com o impacto da pedra e rolou pela câmara. Sibila se levantou e espalmou as mãos em frente ao corpo. Não houve explosão de luz, no entanto. A penumbra se moveu ao seu comando; a escuridão se condensou feito uma bolha e estourou sobre a Lâmia, prendendo-a ao chão.

– Sharowfox quer despertar o espírito? – A guardiã indagou.

– Ela quer que eu destrua a caverna.

– Ela deseja seus poderes fora de controle. Quer que sua consciência se perca novamente. A marca das sombras fica mais poderosa quando você não está no comando. – Serafine não perguntou sobre o que estava implícito ali. O motivo pelo qual as sombras eram incitadas quando o espírito tomava conta.

Mesmo abalada pelo golpe de Sibila, a criatura lutava para se libertar. Sibila não parecia capaz de aguentar muito tempo mais.

– Tem mais de onde esse monstro veio. – Sharowfox provocou. A voz estava mais próxima. – Posso conjurar um exército inteiro nessas cavernas. Mais cedo ou mais tarde, você vai depender do espírito.

– Cornélio! – a garota gritou. – Mate a Lâmia.

– Eu não posso. – O morto-vivo estremeceu. – Precisa ser a Escolhida. Você deve matá-la.

Serafine fechou os olhos. A terra estremeceu, e estalactites caíram sobre o monstro. Ela se debateu por instantes e então desvaneceu em uma nuvem de escuridão.

A silhueta da Lâmia tornou a reaparecer de onde viera, acompanhada de outra. Duas monstruosidades arrastando-se para eles.

– Eu a matei!

– A Escolhida. – Cornélio retrucou. – O espírito!

Serafine gritou e rochas pontiagudas empurraram as criaturas; elas desapareceram em outra nuvem e logo retornaram.

– Posso fazer isso o dia todo.

Sibila lançou uma explosão de energia. As Lâmias foram arremessadas para os fundos da caverna. O som de ossos quebrados encheu o ar, mas não demorou muito para que elas retornassem, estalando as garras afiadas.

– Não ceda. – Sibila grunhiu, batendo as mãos. Serafine estava próxima o suficiente para ver o suor escorrer do rosto da guardiã. As explosões mágicas a estavam exaurindo. Havia horror nos olhos de Cornélio.

– O espírito – ele murmurou. – Tem que ser o espírito. Eu disse a você. Eu a trouxe aqui por isso. Ela quer o espírito.

– Me deixe ver seu poder e estarão livres, criança. Desperte para mim.

Alguma coisa se revolveu no fundo da mente da garota. Uma presença até então adormecida. Serafine lutou, mas, quanto mais ajudava Sibila, quanto mais lutava contra as criaturas e esgotava suas energias, mais a presença se expandia. Vinha de um poço de poder sem fim, da entidade furiosa que buscava destruição; a Escolhida, de fato. A alma que carregava força sem fim.

– Serafine, resista. Não é o momento para cair sob o espírito.

Ela tentou, mas seu corpo parecia esgotado. As Lâmias continuavam a renascer; dezenas delas, com seus gritos ensurdecedores e feições demoníacas. Sibila estava no limite, Cornélio não podia ajudar, enclausurado pela maldição do medo. Se Guillian e os outros viessem até a caverna, não aguentariam muito mais.

Serafine fechou os olhos. Seus ouvidos zumbiam e a cabeça girava em náusea. A voz de Sibila era um alento distante e sem sentido.

As Trevas moldaram dúzias de monstruosidades. Elas cercaram o corredor e sombrearam a passagem da câmara. Sibila caíra de joelhos, as cobras em alerta. Cornélio recuara para perto da guardiã, abraçado ao próprio corpo. Esperando.

– Seus amigos lá fora já caíram, esperança. Vai deixar que Cornélio e sua guardiã caiam também?

– Do que está falando?

– Isso é um cerco, Serafine. Você sabia quando aceitou vir para cá, mas achou que tinha poder suficiente para derrubá-lo. Agora, pode aceitá-lo ou lutar contra ele. Não carrega a esperança? Deixe que ela destrua por você.

O tilintar na mente se tornou uma voz; muito menos notável que a de Sharowfox, mas ainda assim presente. Era o timbre dos pesadelos e sussurros amedrontadores que Serafine ouvira durante aquelas semanas. A voz da Fênix e a dos Mestres que se foram e a voz de uma coisa que não pertencia completamente ao seu mundo e nem às outras dimensões. Era a sua própria voz.

– Deixe-me lutar.

E ela deixou.


***


Guillian estava familiarizado o suficiente com situações assim para saber que não era um tremor qualquer aquele que se iniciara. Vinha de sob o mar.

Era um alerta do espírito.

– Para o bote, agora! – ele exigiu.

– Como é, orelhudo? – Aria ficou de pé.

– O espírito está se manifestando. Quer estar aqui quando ele acordar?

– Achei que a Serafine ia finalizar essa missão sem grandes problemas – Selina sussurrou, desamarrando as cordas do bote. Guillian olhou para o local onde o trio seguira. Ele não conseguira ver nada depois que Serafine pisara as sombras, como se ela tivesse sido transportada para outra dimensão. Aquele não era o Abismo, mas carregava um eco dele.

Sua Escolhida estava enfrentando a escuridão e ele não podia fazer nada além de fugir.

– Precisamos alertar os outros e trazer ajuda. Serafine vai ficar bem, mas... – Sibila e Cornélio talvez estivessem condenados. Guillian estremeceu com a ideia.

Outro tremor, dessa vez rápido e bastante notável. As ondas o acompanharam, erguendo-se sobre a ilha e derrubando algumas piratas.

Guillian lembrou-se das Catacumbas, do pandemônio causado. Nas ruínas deixadas para trás. O grupo na ilha não sobreviveria para contar a história se permanecesse.

– Depressa. – O Atyubru apressou os outros até o bote. – Temos que voltar para a praia antes que todo esse lugar desapareça do mapa.


Capítulo 24

A Queda do Reino

 


TAMBORES RESSOAVAM A APROXIMAÇÃO do inimigo.

As tropas remanescentes do Reino das Águas guarneciam a fortaleza de cristal; além do território, a escuridão era uma massa crescente, viva e pulsante. Uma entidade furiosa que conquistara quase todas as terras da Rainha das Águas. Inúmeras batalhas perdidas, milhares de vidas desperdiçadas, alianças malogradas. O que restava de energia mágica na ondina era sua jogada final. Ývela sabia que, quando as sombras chegassem, não teriam o que fazer. Seu exército era mínimo se comparado ao que fora semanas atrás. O avanço das Trevas era gritante, e a força exercida sobre a prisão dos leviatãs, imensa.

Mais algumas horas e não haveria como impedir sua liberdade. O poder das criaturas crescia junto ao das sombras. Elas dominavam o horizonte e o Reino do mar. A Fortaleza de Cristal era a derradeira barreira entre o inimigo e o continente; Ývela, o último bastião de esperança entre o exército sombrio e as terras que jurara proteger.

Maya adentrou o salão do trono. A general trajava sua armadura de batalha, o peitoral danificado graças à última batalha contra os gigantes. As cicatrizes e ferimentos recentes, porém, não eram capazes de encobrir a força que emanava de sua figura.

Com dificuldade, Ývela ficou de pé em frente ao trono. Maya nadava de um lado para o outro.

– Se as notícias são ruins, Maya, é melhor despejá-las logo. – A governante murmurou.

– O inimigo cruzou a fronteira.

Mas os tambores parecem tão distantes, pensou Ývela, culpando-se pela própria ingenuidade. Suas frentes de batalha os segurariam pelo máximo de tempo, mas talvez não tanto quanto a Rainha esperava.

As águas a levaram até os vitrais do lado oposto do salão. A massa negra rumo ao palácio se expandira enormemente na última hora. Cobria até aonde os olhos da ondina alcançavam.

Ývela respirou profundamente. Fechou os olhos por instantes. Seu próximo plano era arriscado, mas poderia dar a Warthia mais algumas semanas de resistência.

Se sua magia precisasse ser sacrificada, então que fosse. Sua mãe sustentara a prisão dos leviatãs até o fim da existência. Ývela entregaria a magia às Águas para dar-lhe mais tempo.

– Maya, mande nossos exércitos recuarem para as fendas de que lhe falei. Viajei por uma delas até Warthia. As tropas chegarão em segurança ao continente; a magia cuidará para que se adaptem.

– Mas, majestade... Vai sozinha até a prisão dos leviatãs?

– Não vou pedir que atravesse a escuridão comigo, Maya. – Ývela sorriu ante o olhar determinado da guerreira.

– Majestade, com todo o respeito, mas não deixarei o seu lado. Já fez sacrifícios demais por este Reino e está prestes a realizar o maior deles. Permita que eu a ajude.

– Posso sair de lá quando finalizar o encantamento.

– Tem certeza? Nem ao menos sabe o tamanho do poder daquelas monstruosidades. Pode ficar presa no território maculado. – Maya cruzou os punhos sobre o coração em sinal de respeito. – Ainda resta em mim magia suficiente para nos transportar de lá até uma das fendas quando seu feitiço estiver concluído.

A Rainha sorriu e concordou com a cabeça. Não entregaria a vida tão facilmente. Sua magia deixaria de existir, mas Ývela ainda poderia lutar. Desde que aceitara se tornar uma guardiã, o caminho fora marcado por sacrifícios; a honra de sua família, sua alma imortal e, talvez, tudo que fazia dela uma criatura mágica. Ela ainda poderia combater, portar uma espada, arco e flechas. Poderia caminhar pelo campo de batalha quando chegasse a hora.

– Mande os soldados baterem em retirada. O escudo do palácio vai proteger a retaguarda. – Seu olhar recaiu sobre o horizonte e a prisão dos leviatãs.


***


Ali reinavam o silêncio e a sombra. O oceano a guiava, mas as Águas não tinham poder naquele lugar. A energia era errada, grotesca. Morta. Diferentemente das semanas anteriores, os leviatãs se tornaram uma entidade presente. Uma só voz, uma só presença. Não gritavam, mas Ývela conseguia escutá-los. Seus sussurros na Língua Antiga, as palavras clamando a vida da Rainha das Águas.

Maya e ela usavam um feitiço de proteção quando confrontaram a força da prisão dos monstros.

A ondina detestava o pânico; com ele vinha a fraqueza e a ansiedade. Não havia espaço para racionalidade ou cautela. Mesmo repetindo a si mesma que estavam seguras, que nada aconteceria a elas, Ývela engoliu em seco e rezou aos Deuses por piedade.

O que quer que alimentasse as sombras estava próximo. O Abismo enviara seu exército disforme. Mortífero. Ébano cobria o Reino das Águas e tudo que pertencera à linhagem de Ývela. O oceano coloria-se de ferrugem; sangue dos milhares de soldados mortos. Maya retraiu-se ao observar os arredores e não encontrar nada além do sangue e da sensação esmagadora que as Trevas impunham.

Todo um paraíso, outrora cheio de vida, derrubado pelas Trevas.

Guarnecer Warthia seria a última cartada do exército da Luz. Enquanto o continente resistisse, haveria esperança para a Escolhida. Os Reinos lutariam por seu território, impedindo o avanço da escuridão. Serafine teria uma chance. Onde quer que estivesse, Ývela rezava para que se apressasse, que estivesse preparada para o golpe que Sharowfox lançaria sobre o mundo.

– Majestade... – Maya murmurou, assustada.

Elas estacaram. A correnteza sacudiu o pouco de vida restante no elemento avisando sobre o perigo. Brumas negras escorregavam sobre a barreira mágica. Muito pouco da magia antiga restava sobre a prisão dos leviatãs; um resquício do poder que Ývela engrandecera com o passar das semanas.

– Chegou um pouco tarde, majestade – rosnou uma voz ao fundo do abismo. Ývela não respondeu. Maya tomou para si o comando do escudo de águas e deixou que sua governante desse voz à magia antiga. A energia pulsou em Ývela e a força ancestral explodiu em seu peito. A magia se esvaiu, recaindo sobre a prisão.

Sombras negras que escorregavam pela barreira desapareceram, afastadas pelos encantamentos iluminados. Ývela sorriu, assustada pela força do feitiço, pela sensação de que tudo que ela era estava sendo drenado pelo oceano. As espirais azuis em sua pele desapareceram.

O que fazia dela a herdeira daquele Reino escapava entre seus dedos. Sua força e história, aquilo que carregava em seu coração. A herança de sua mãe e dos antepassados, dos Deuses e do que viera antes deles. Ývela manteve-se firme, agraciada pelos gritos ensandecidos dos leviatãs, uma vez mais submissos à Luz. Maya permaneceu ao seu lado, aguardando a ordem para tirá-las dali. O tempo se passou, tanto que Ývela não soube dizer sua duração. Aquela magia era muito pouca se comparada à que carregara ao assumir o trono, mas seria suficiente pelas próximas semanas. Ou dias. De um jeito ou de outro, os leviatãs continuariam presos enquanto os sobreviventes das Águas deixavam o território. Não haveria ninguém no palácio para ser massacrado; nenhuma alma a ser absorvida ou devorada para dar-lhes poder.

Os fios de luz rarearam nas mãos de Ývela. A barreira brilhava com força entre o ébano – mais tempo, é tudo o que eu posso oferecer a este Reino. Ývela pensou conformada, baixando as mãos quando a força esgotou.

A ondina lançou um olhar duro para a escuridão, certa de que, em breve, os seres sombrios tomariam o que restava do Reino das Águas; destruiriam tudo.

A Rainha das Águas sinalizou para que Maya fizesse o encantamento.

– Prepare-se. – Maya avisou, tocando sua testa. Ývela sentiu um choque e então estava em outro lugar. Cavernas carregadas de magia emergiam por detrás dela. Runas na pedra bruta marcavam o portal. Forjada pela magia dos Primeiros Elementais na época em que sua mãe era uma jovem governante, a fenda encantada ligava os Reinos de terra e água.

Um grupo de tritões esperava por sua governante. Armas em riste, prontos para protegê-la. As sombras estavam ansiosas para impedi-la, destruir a Rainha antes que escapasse. Ývela olhou para trás uma última vez, para o Reino que fora seu lar, a banira e finalmente a recebera de volta. Sua antiga casa e a promessa de prosperidade que nunca chegou. Com uma reverência, despedindo-se da história e da magia antiga, sucumbiu.

Um dos soldados carregou a Rainha até a passagem por onde outros guerreiros já haviam atravessado, e Maya tocou a entrada da caverna. A rocha estremeceu ao pedido da sereia, desabando atrás deles enquanto seguiam para o continente.

As Águas ficaram para trás.


Capítulo 25

Pelas montanhas

 


JON ACORDOU SOBRESSALTADO. SEUS olhos demoraram a se acostumar à escuridão. A fogueira havia se apagado, e não havia fumaça entre as cinzas. Jill não estava em lugar algum.

Tentou não se alarmar. A Atyubra assumira o horário de vigília. Ela provavelmente está fazendo uma ronda, o monarca pensou. Jogou alguns gravetos sobre a fogueira e um encantamento para que uma faísca os queimasse. Permaneceu sentado pelos minutos seguintes, aproveitando o silêncio. Não, a quietude. Havia sons da natureza por ali. Corujas e outras aves noturnas, além do barulho suave produzido pelo rio que seguiam. As folhas das árvores farfalhavam e a paz fez o Rei relaxar.

Aquela penumbra não era ardilosa. Depois que retomou o Castelo de Tytos, Jon imaginou que ainda haveria escuridão a temer, mas o extremo norte do Reino não fora alcançado pelo poder obscuro. Ainda havia segurança ali.

O jovem Rei observou a bolsa de couro onde guardava os suprimentos para aquela viagem. Num dos bolsos estava a carta endereçada aos habitantes das Terras Desconhecidas. O selo do Norte fora gravado nela em cera vermelha. Jon desejou desvendar seu conteúdo, mas aquele texto deveria ser lido pela comandante do povo que buscara exílio. Não cabia ao Mago bisbilhotar.

Jon examinou o cajado cedido por Lonel, mas preferiu não investigar sua magia. Era um objeto poderoso demais para ser usado levianamente.

O som de galhos sendo quebrados o pôs de pé, a espada desembainhada. Jon baixou a arma ao ver Jill em meio às grandes árvores; achou graça da expressão esbaforida da felpuda.

– O que houve? – Ele usou bom humor. Jill estremeceu.

– Aranhas! Detesto aranhas, e acabei de passar por um lugar repleto de teias. Criaturas asquerosas.

Um pouco de distração até que ia bem, ele pensou descontraído ao se sentar.

– Está se sentindo bem, majestade? – Jill ficou alerta, os olhos laranja percorrendo a área com desconfiança.

– O suficiente. – Ele deu de ombros. – Ultimamente poucas horas de sono já são um milagre.

A orelhuda sorriu, sentando-se em frente à fogueira. O ar da noite estava frio e úmido, e algumas nuvens pesadas encobriam o céu.

– Não teve nenhuma sensação ruim? – a Atyubra perguntou. O Rei negou prontamente, sorrindo compreensivo. Ela se referia às Trevas, ainda que disfarçasse o temor.

Jon observou a montanha que atravessariam, o desenho disforme recortando o céu e além dele. Montanhas menores, mas igualmente gigantes, seguiam seus entornos. Marcavam o fim do território warthiano e escondiam as Terras Desconhecidas; uma fronteira que Jon jamais pensou em conhecer. Para ele, Warthia era tudo que existia. Além do continente, havia lendas e histórias para ninar. Nada que pudesse ser desbravado. E ali estava o Mago, contemplando uma trilha para o desconhecido.

Pediu aos Deuses que iluminassem seu caminho. Chegariam até o pé do titã de pedra em breve. De acordo com as suposições de Lonel, mais uma semana e, com ajuda de magia, talvez alcançassem o outro lado das muralhas naturais.

Ele não fazia ideia do que esperar e nem sabia se o povo de lá os ajudaria, mas faria o impossível para convencê-los. O horizonte sombrio se expandia a cada novo amanhecer. Jon via o tempo se esgotar conforme as nuvens se aproximavam dos outros Reinos.

– Se não se importa, majestade... – Jill bocejou e se espreguiçou. – Vou tirar algumas horas para dormir.

– Fique à vontade, Jill. – Jon pôs-se a caminhar pela área demarcada durante as horas seguintes. Acompanhado pelas sombras naturais não deturpadas e de seus pensamentos, Jon prosseguiu a ronda até o Sol despontar.

Era hora de prosseguir viagem.


***


A chuva caía sobre eles com uma fúria nada natural, tal como a sensação desnorteante sempre que olhava em volta, como se o cenário fosse parte de um sonho. Quase uma barreira mágica para afastar os indesejados da região, Jon pensou. Encharcados e tremendo de frio, prosseguiram pelos caminhos intrincados do Grande Bosque, tomando o cuidado de estarem sempre alertas; contudo, naquela parte do Norte, nem mesmo animais eram avistados. Tudo estava quieto e abandonado. Só havia a densa vegetação verdejante, o rio de águas cristalinas e a sombra das montanhas.

Ao pôr do sol, alcançaram o sopé da montanha. Uma área demarcada por rochas altas, onde a floresta acabava subitamente. À frente estava o pico encoberto de neve e nuvens densas.

Jon e Jill entreolharam-se com a intenção de parar e descansar quando o Mago observou o rio; ele surgia entre as rochas e mergulhava numa fenda, desaparecendo por um túnel entre as montanhas.

– Vai anoitecer em breve, majestade.

– Vamos investigar e então retornamos para montar acampamento. – Jon sugeriu. Com o cajado de Lonel, o Mago seguiu as águas. Jill manteve-se à sombra do Rei, os dedos sobre o cabo da espada.

A passagem era estreita. O rio ficava raso naquela parte e adentrava a passagem da montanha. Jon estalou os dedos e um orbe de luz surgiu, cobrindo o lugar com claridade. A fenda seguia por alguns metros e depois se curvava em uma descida. Jon manteve os passos cautelosos. Escorregou no limo e Jill segurou suas costas, impedindo-o de cair.

– Majestade – ela sussurrou, apontando adiante.

A passagem abriu-se, revelando paredes bem recortadas e estruturas semelhantes a pilastras. A arquitetura familiar remetia à Líriel; a mesma delicadeza nos detalhes, o cuidado com a aparência. Ainda que a natureza estivesse presente com o pequeno lago formado pelo rio, as estalactites e estalagmites, ficou claro que alguém deixara sua marca no lugar.

O ar era gélido. Doía respirar.

Jon moveu os dedos e o orbe de luz se dividiu, cobrindo a extensão da caverna. As pilastras sustentavam o teto e algumas ruínas; construções abandonadas há centenas de anos. Jon encontrou uma trilha do lado oposto do salão. Uma abertura discreta, camuflada por magia – mas toda magia esgotava em algum momento, e aquela estava no fim de seus dias.

Uma rocha escura e polida repousava diante da passagem, distinta das pedras do local. O monólito fora colocado naquele lugar com um propósito. Provavelmente era a fonte da magia que bloqueava a passagem, ou mesmo um obstáculo.

– Acha... que aquilo pertence às sombras? – Jill indagou em voz baixa. Jon surpreendeu-se com o temor em sua voz. – Esse frio não é natural.

A expiração do Mago se condensava. Seus músculos doíam pelo frio. Era semelhante à sensação experimentada sempre que visitava o Sul, mas não tão carregada de energia. Era uma reação mágica, natural. O lago não congelava, e não havia neve ou gelo sobre as rochas. Jon não estava disposto a parar.

– Não acho que seja magia das Trevas – ele respondeu. – Deveríamos investigar as ruínas para ver se encontramos alguma pista do caminho.

A Atyubra concordou, mas hesitou ao pular sobre o lago. Jon foi adiante e afundou até os joelhos na água gélida. Ele estremeceu e rumou para a primeira das construções.

Alguma coisa se moveu às suas costas. Um obstáculo, de fato, ele concluiu. Deixou o cajado de lado para conjurar o escudo no instante em que sombras caíram sobre ele.

Magia antiga e nova, ele percebeu com espanto. Escuridão, mas também Luz. A silhueta que se formou deixou claro que aquela não seria uma batalha simples.


Capítulo 26

As cores do inverno

 


SERAFINE DESPERTOU. ESTAVA EM um rochedo, deitada de bruços. Seu corpo doía; não uma dor familiar, dos exercícios e treinamentos, ou mesmo a que a acompanhava quando o espírito deixava sua consciência. Era contínua e excruciante. A garota fechou os olhos num primeiro momento, imersa na agonia.

O vento soprava furioso. A força do elemento parecia querer empurrá-la de volta à consciência, chamando-a para se levantar e se restabelecer. Trêmula, Serafine apoiou as mãos no chão. A dor foi avassaladora. Obrigou-se a continuar e ficou de joelhos; foi quando notou o zumbido. Não conseguia ouvir o vento ou qualquer coisa além do som incessante. Ao abrir os olhos, o mundo girou e ela se inclinou para vomitar – então percebeu o abismo abaixo do rochedo e o céu vermelho além dele.

Chocada, ficou em pé e recuou alguns passos, caindo em seguida pela fraqueza.

Toda a costa fora engolida pelo mar. As ilhas de pedra desapareceram. As ondas impiedosas estouravam nas laterais do rochedo e o céu era de um vermelho grotesco, sem nuvens, como se chamas consumissem o horizonte. Serafine piscou repetidas vezes, mas a paisagem não mudou.

Ela reconheceu o lugar pelas árvores e por destroços do acampamento que os piratas haviam montado. Não havia corpos, mas o mar poderia tê-los devorado. Talvez o espírito tivesse matado todo o grupo; aqueles que a acompanharam e os que ficaram para trás.

Guillian, Sibila, Aria e Selina. Diel, Demetrius e Jarek.

A tontura retornou mais forte.

Não havia sinal deles em lugar algum; o bosque era sombras e névoa. A praia e a costa se foram, arrebatadas. Serafine soluçou, o corpo tremendo em pânico.

O vento cessou subitamente. Transformou-se em uma brisa delicada, tocando sua pele.

A garota deixou-se abraçar pelo elemento; que ele espalhasse calma, aquietasse seu coração. Eles não estão mortos, pensou. Escaparam antes do cataclismo. Precisava encontrá-los. Provavelmente estariam esperando por ela. Talvez na Cidade Pirata ou em algum ponto antes dela, na trilha pela qual vieram.

Serafine ficou de pé. As pernas estavam bambas, mas a garota se obrigou a andar. Havia rasgos em suas roupas, arranhões, cortes, dores e hematomas. Serafine se lembrava da luta contra as Lâmias, e então havia um branco em sua memória. O espírito a controlara, destruindo a caverna e tudo próximo a ela; Sibila e Cornélio. Eles não estavam no rochedo, tampouco nos arredores. Talvez...

O estalo de um galho a fez erguer o rosto. O Ar soprou calor em sua pele, mas o coração batia forte pelo medo.

– Serafine. – Seu nome foi um sussurro perdido. – Não consegue me ver?

– Sharowfox?

– Não. Você já cometeu esse erro antes.

– Onde estou?

– Parte da sua consciência está em Warthia, outra, presa dentro de sua cabeça. Esta paisagem é meu mundo. Minha prisão. Parte de mim foi liberta em sua mente, outra está ligada a você.

Serafine parou. O céu lançava sombras vermelhas nas espirais pálidas. Ela quase parecia uma Feiticeira.

– Esse era o plano de Sharowfox: romper a muralha que me prendia em um canto obscuro da sua consciência.

A garota balançou a cabeça. A voz não estava ali, realmente, mas dentro de sua mente, forte e presente.

– Não tenha medo. Pertenço a você tanto quanto você pertence a mim.

O espírito a havia alcançado. Além de controlar seu corpo, habitava seus pensamentos. Uma segunda voz a tudo que Serafine era e fazia.

– Onde estão todos? O que fez com eles?

– Nada. As Trevas levaram seus amigos para longe antes que eu tomasse controle.

– E quanto a Sibila e Cornélio?

– Vai encontrá-los no tempo certo. O fio que nos conecta está fraco e eu desaparecerei por um tempo, mas queria deixá-la avisada de que Sharowfox tentará usá-la contra mim.

Serafine não respondeu. Naquele momento, com céu e terra destruídos, uma voz que antes pertencia a uma entidade silenciosa ecoando em sua cabeça e a certeza de que as sombras a alcançariam, a garota queria silêncio. Solidão.

– Resista à escuridão. Há mais em nossos poderes do que imagina, mais do que jamais alcançou.

– Não vou me curvar às Trevas. É para isso que estou lutando.

– Você não faz ideia...

A dor estourou atrás de seus olhos, como das vezes em que os fantasmas a encontraram. Serafine caiu de joelhos. Apertou as mãos sobre o rosto, em agonia.

E então se foi. Não havia mais voz, nenhuma presença fantasmagórica. O céu estava como devia ser. A costa ainda era um amontoado de ruínas, mas o cenário era mais natural, sem parecer parte de um pesadelo.

Ao redor dela, brumas de ébano. E uma legião de Amaldiçoados.

– Sanzur – Serafine disse assim que o viu. Parado diante do grupo, ele arreganhou os dentes num sorriso.

Guillian, Selina e Aria estavam amordaçados e ajoelhados junto a outros piratas. Serafine não avistou outros rostos conhecidos e seu coração acelerou. A paranoia por ter assassinado os que a aguardavam na praia foi maior.

– Seu namorado está vivo. Ele e todos os outros, caso considere minha fala um ato de piedade. – Sanzur ergueu a voz. – Eles serão convidados de minha Senhora, assim como você.

Serafine mesurou o estrago que faria caso libertasse o espírito outra vez. Sanzur deu um passo à frente, lendo seus pensamentos.

– Nem tente. Seu namorado é o primeiro a morrer caso faça alguma coisa. A Rainha está observando. – Ele gesticulou para as brumas. Gavinhas negras se ergueram, tentáculos se arrastaram pelo chão em direção à garota. Serafine recuou.

– Onde estão Cornélio e Sibila?

– O morto-vivo e a traidora? Mortos, se tiveram sorte. Devorados pelas Lâmias, se não. – Serafine hesitou. O espírito dissera que os encontraria no tempo certo, mas não estavam entre os prisioneiros. Serafine fitou Guillian em busca de alguma pista, mas o Atyubru moveu a cabeça em negação.

– O que quer de mim?

– Venha conosco até o palácio e minha Rainha responderá essa pergunta. Sou um mero guia. – Sanzur manteve o sorriso, mas os olhos brilhavam em impaciência.

Serafine procurou algum sinal dos elementos, mas mesmo as águas furiosas pareciam inertes ao seu chamado. O sopro reconfortante do Ar se dissipara. O espírito desaparecera. Ela estava sozinha.

Lembrou-se da caverna, de desistir de se esconder de Sharowfox, da certeza de que a Rainha das Trevas estava lá, esperando por ela. Lembrou-se da sua determinação em confrontá-la, e usou esse mesmo sentimento para dar um passo adiante e deixar que as brumas de ébano a guiassem.


Capítulo 27

Sentinela

 


JON RECUOU DIANTE DA silhueta formada de pedra bruta e gelo, e ficou assombrado ao reconhecê-la.

– Não é real, majestade – Jill avisou, distante dele.

Ývela estava parada em seu caminho. Os olhos eram de gelo, o corpo de obsidiana, mas se movia como a ondina.

A criatura olhou para si mesma e para o Mago. Inclinou a cabeça de lado e o estudou, depois observou a Atyubra. A lança que a orelhuda carregava congelou em suas mãos, e ela a soltou a tempo de impedir que o gelo alcançasse seus dedos.

– Nenhuma arma pode atravessar o véu – a criatura sussurrou. Sua voz era sepulcral, diversa da ondina. – Este rosto o incomoda, Jon Tytos?

– Você usurpá-lo, sim.

– É a imagem mais viva em sua mente, por isso a invoquei. Você invadiu terras mágicas sem permissão e eu deveria matá-lo, mas trouxe o cajado de um de meus criadores. Deixarei que diga a que veio.

Jon hesitou. Jill se aproximou, sempre alerta. Os olhos de gelo a acompanharam.

– Viemos para falar com seus comandantes – Jon anunciou. – Warthia precisa de ajuda.

– Precisamos chegar até as terras além das montanhas com urgência.

– O tempo não é um problema para mim – a criatura replicou. – Sou um feitiço e posso durar pela eternidade. Fiz muito em poupá-los. Nenhum warthiano deve atravessar o véu.

– Ora essa! – A voz abismada de Jill encheu a caverna. – Se é um feitiço, como pode saber que seus criadores não aceitariam ouvir o que temos a dizer?

– Lembre-se de que os poupei, Atyubra. E controle suas palavras. – Jill inflou o peito, mas manteve-se quieta. – As terras élficas renegaram Warthia como Warthia as renegou. São mundos distintos, depois de todos esses anos. O que busca além das montanhas?

Jon poderia dizer a verdade, mas os elfos buscaram exílio para escapar da guerra e da violência. Expor o motivo da viagem ao encantamento talvez fosse a sentença para que ele os matasse – ou, pelo menos, os impedisse de vez.

– Tenho comigo uma mensagem de Lonel, guardião da cidade de Líriel, e o cajado que pertence ao seu povo. E um pedido de ajuda que será entregue aos seus criadores quando nos encontrarmos – Jon respondeu. – A verdade não cabe a você.

– Você veio por causa da guerra.

Jon respirou fundo.

– O que preciso fazer para que nos deixe passar?

Os olhos da criatura se apagaram. Jon trocou um olhar com Jill, mas a Atyubra estava tão confusa quanto ele.

– Acha que ela se convenceu de que somos dignos? – Jon arriscou.

– Mas não fizemos nada – replicou a orelhuda.

O Mago apertou o cajado entre os dedos; aparentemente, era um item essencial e salvara suas vidas. Talvez devesse tê-lo em mãos quando a consciência da criatura retornasse.

O ar gélido cobria seu corpo e Jon nunca desejou tanto a presença de uma fogueira quanto naquele momento.

– Posso arriscar alguns passos na direção da passagem? – Jill perguntou.

– Não acho que seja muito seguro.

– Ela não está aqui para ver!

– É um encantamento, Jill. Vai saber caso ultrapassemos o tal véu.

Jill avançou mesmo assim. Dois passos e os braços da ondina de pedra ganharam vida, interceptando-a.

– Devia ouvir seu Rei.

A Atyubra grunhiu, livrando-se do aperto.

A criatura olhou para Jon.

– Meus criadores não podem desfazer a magia que me colocou aqui. Mas posso permitir que avancem se me entregarem parte do que são. Sem o cajado, eu os teria obliterado e transformado suas cinzas em partes da ruína desta caverna.

– Para um povo que buscou exílio para fugir da violência, você certamente carrega muito dela. – Jon aproveitou a deixa. Um sorriso rápido surgiu no rosto da criatura de pedra.

– De fato, Mago. Mas sou o fruto de um encantamento e cumpro o meu dever como tal. Entreguem algo de extremo valor, algo que pertença às suas almas, e as runas que me criaram se apagarão.

– Que tipo de coisa?

– Algo essencial, precioso, que venha de seus corações, do que faz de vocês quem são.

Jon desviou o olhar da Atyubra. Jill parecia igualmente consternada. Para entrar nas Terras Desconhecidas, teriam que deixar algo para trás. Alguma coisa mágica ou igualmente essencial?

– Uma lembrança, talvez?

Ambos se voltaram para a criatura. Os olhos de gelo avaliaram suas reações e ela pareceu satisfeita com o que encontrou.

– Sim, uma lembrança. Pertencerá a mim e desaparecerá de suas mentes. O preço a ser pago para adentrar o reino imortal deve ser sua memória mais querida.

O ar ficou mais frio. A escuridão se estendeu sobre a caverna, mais vívida e intensa do que antes. Os orbes de luz do Mago se dissiparam, engolidos pelo poder do outro encantamento.

– Essa escuridão não é ruim – Jill comentou. A voz estava próxima ao Rei, mas ele não conseguia mais vê-la.

– Nem tudo que vem das sombras pertence ao mal, assim como nem tudo que serve à Luz estende bondade. – A criatura parou um instante. Seus olhos de gelo iridescentes mostravam a magia antiga e intocada. Jon os encarou buscando por uma dúvida, alguma brecha de uma nova armadilha. Queria ter a certeza de que entregar sua lembrança mais preciosa não seria em vão. – Você foi traído vezes demais para um coração tão jovem, majestade. Não vai encontrar nada em mim além da palavra de que sirvo ao povo além da montanha, e estou aqui para abrir o caminho que deseja alcançar. Preciso da lembrança, ou sua viagem terá sido inútil.

– Pegue. – Jill anunciou, determinada. – Escolhi qual memória entregar. É sua.

– Jill... – Jon tentou, mas a pata da Atyubra tocou sua mão. Mesmo na penumbra, ele conseguiu ver o sorriso dela.

– Todos nós temos sacrifícios a fazer, majestade. Permita a essa Atyubra acompanhá-lo até o fim.

Não houve clarão ou murmúrio de feitiços. Os olhos de gelo se fecharam, a escuridão cresceu e depois se dissipou. Jill piscou, a expressão confusa.

– Tudo bem?

Jon tocou seu ombro. A Atyubra fez que sim, mas havia hesitação em seu olhar. Um espaço em branco na memória que jamais retornaria, perdido entre um suspiro e um encanto.

– Pode prosseguir, Atyubra. – A criatura gesticulou, e as pedras ao fundo da caverna desapareceram. Uma trilha surgiu. O caminho para as Terras Desconhecidas. – Sua vez, Jon Tytos.

Jon fechou os olhos. Havia muito em seu coração que ele prezava, lembranças importantes que não queria perder. Sua família, seus amigos, Theodore e tantos outros que passaram por sua vida. Uma, no entanto, cintilava intensa, e foi justamente a ela que o encantamento alcançou. Em um instante, Jon se lembrava dos olhos da ondina contemplando-o em seu quarto; Ývela, feita de sorrisos gentis, coragem e um coração grandioso, deitada na cama ao seu lado. A noite que pertencia somente a eles, onde suas coroas foram esquecidas e tudo que importara foram seus sentimentos.

No instante seguinte, a lembrança se fora. E a entidade de pedra também.

Jon piscou tal como Jill fizera. Havia um espaço vazio, a sensação de que alguém remexera, bisbilhotara em sua alma.

– Majestade. – A Atyubra o chamou, parada à porta da passagem. – Ficou para trás. Agora, precisamos seguir em frente.


Capítulo 28

Luz na escuridão

 


RAVENNE CONSEGUIA OUVIR OS passos das Desertoras atrás de si. Filhas da escuridão que seguiram o mesmo caminho que o seu, virando as costas para Sharowfox e todas as suas promessas feitas em sangue e crueldade. Semanas atrás, elas a haviam tirado da prisão, salvando também outras prisioneiras, e a levaram em sua busca por aliados. O horizonte sombrio era uma pequena amostra do que estava por vir. A Luz precisaria de todo homem e mulher que pudesse batalhar por ela.

Seguiam um caminho incerto graças ao sonho mais recente de Ravenne. Ela não sabia para onde estava indo, só se lembrava de partes de uma paisagem e do desespero nos olhos dourados da filha.

As Trevas se embrenhavam em meio à névoa, sussurravam entre as árvores. Ravenne já se acostumara a ouvi-las, mas o frio sobrenatural causado por elas ainda a perturbava. Quando Maltrus marcara Serafine, Ravenne fora marcada em consequência.

No passado, ela havia fugido da marca sombria. Nunca completara seu ritual. Nunca tivera a alma completamente conectada à escuridão. Ela deixara Demetrius viver quando se apaixonara por ele; completara a transição para as Trevas através de uma mentira. Quando Maltrus maculara o espírito de sua filha, a escuridão finalmente alcançou a Feiticeira. A ligação entre ambas diminuíra o impacto da marca sombria, por sorte. Do contrário uma delas teria sido levada à loucura completa. Aquele deveria ser o plano de Sharowfox: ter um pouco de sua influência na consciência da Escolhida, o suficiente para plantar dúvidas e anseios que não pertenciam verdadeiramente a Serafine.

Ravenne era forte o bastante para lutar contra a marca em seu próprio espírito, mas temia por Serafine. Quis buscar pela filha logo que encontrou a liberdade, mas as Desertoras não concordaram. O aliado de Ravenne na corte sulista vetou a possibilidade. Ele prometera à Feiticeira que a procuraria quando chegasse o momento de ajudar; a hora vai chegar, e preciso que responda imediatamente. Fora tudo que dissera. Ravenne jurou e aguardou.

Pelo tempo que se seguiu, sua atenção se voltara para a causa das Desertoras. Contudo, na noite anterior, ela sonhara com Serafine e outros prisioneiros, vira Demetrius e homens caídos no bosque. As Trevas abraçaram sua filha e a levaram para o palácio onde a senhora da escuridão a aguardava. Ravenne não conseguiu mais descansar depois daquela visão.

– Ravenne. – Terisa parou ao seu lado, observando o bosque. Ela fora uma das primeiras Desertoras, antes mesmo de Ravenne descobrir a liberdade. Ravenne ouvira histórias sobre Terisa, seus feitos vis contra a irmandade criada pela Rainha das Trevas. Depois de quebrar seus votos, procurou pela traidora e encontrou nela uma grande amiga. – Entendo sua pressa, mas nem todas têm a mesma energia que você. Especialmente depois de tantos dias sem um devido descanso.

Ravenne olhou por cima do ombro. Os passos estavam mais distantes do que o esperado; o grupo era formado por trinta mulheres. Algumas mais velhas, já marcadas pelo sangue. Desertoras do caminho sombrio ao entender suas mentiras. Outras muito jovens, que viram a escuridão e a temeram.

E as prisioneiras libertas. Humanas, em sua maioria, determinadas a se fortificarem – não exatamente prontas para o combate. Uma delas, meio-elfa, de expressão régia e postura firme, jamais dirigira uma palavra às outras. Fora cativa junto a Ravenne e, aparentemente, era a mais traumatizada com o que vivera por lá. Ravenne não sabia seu nome, mas via força mesmo nos olhares mais carregados. De pele e cabelos claros, era difícil saber sua idade, mas carregava poder.

A última resgatada era uma Hunna, que se chamava Grímena. Também de poucas palavras. Era a sábia de uma vila nortenha, mas estava ferida e se recuperava com lentidão; aparentemente, ela queria voltar para o Reino das Florestas o quanto antes, mas Terisa jamais deixaria que partisse sozinha.

– Estamos a um dia do palácio.

– Mas seu contato ainda não a procurou – Terisa replicou, os olhos escuros incisivos sobre os azuis da Feiticeira. – Estamos correndo contra as sombras, nos camuflando mais do que deveríamos, e você nem tem certeza de que o alvo está no Rochedo.

– Chame de intuição.

– Eu chamo de precipitação. – A mais velha baixou a voz quando as primeiras mulheres se aproximaram. – Não encontramos nenhuma pista ou sinal de que seu sonho era verdadeiro, Ravenne. Vamos parar pelo anoitecer e amanhã de manhã continuamos. Não seremos úteis à luta se estivermos esgotadas.

Ravenne concordou, desculpando-se pela própria ansiedade. O contato a chamaria quando fosse a hora; um sonho não significava que algo estivesse errado com Serafine. Estava se deixando levar pelo temor, e o medo era o caminho mais perigoso no mundo das sombras.

O grupo ergueu acampamento. Estavam próximas da costa sul, o ponto mais extremo do continente. Além dele havia o Reino das Águas e o desconhecido; algumas lendas falavam sobre cavernas submersas e o lar da escuridão em Warthia. Ravenne acreditava em todas elas, e por isso decidiu se manter distante. O que quer que houvesse por ali, de nada serviria à sua mente e energia. Devia manter distância das sombras. Já havia muitas espreitando seus passos, perturbando seu sono. Ravenne queria se afastar daquele Reino e de seu horizonte tenebroso o quanto antes.

As Desertoras preparavam suas barracas, e ela manteve a vigília junto a outras três sentinelas, mas nada além de penumbra se moveu entre as árvores. O frio ficou mais intenso quando o Sol se pôs. Nenhuma estrela brilhou; a Lua não apareceu. Era uma noite sombria.

– Agradeço aos Deuses por essa segunda chance. – Terisa ergueu a voz. Ravenne voltou-se para a mulher, sentada perto da fogueira. As chamas alaranjadas cobriam sua pele negra, as poucas rugas que marcavam o rosto feroz. Os olhos eram grandes e escuros. Em sua careca, símbolos marcados desciam à nuca. Runas de redenção, magia boa contra as marcas vermelhas em seus braços. Um encantamento de cura que demoraria anos até cicatrizar e livrá-la da mácula.

– Agradeço a mim pela coragem. – Outra Desertora se pronunciou. Terisa respondeu com um sorriso.

– Agradeço às minhas companheiras de luta por me apoiarem. – Uma jovem murmurou, mas o silêncio era tamanho que todas a ouviram.

– Os céus e as estrelas um dia aceitarão nosso perdão e ouvirão nossos agradecimentos, e por isso lutamos. – Terisa pronunciou e elas responderam com hurras calorosos. Ravenne as acompanhou.

Ela maculara suas marcas, anos atrás, com sangue de um animal. Escondera-se das Trevas até conseguir fugir com o homem que deveria ter assassinado, e encontrou em Demetrius um novo lar, uma nova causa. Esperança, acima de tudo.

A criança em seu ventre fora o fruto disso. Do amor e da fé em segundas chances. Ravenne sentiu o poder dela e Demetrius temeu por ambas. Desde então, Ravenne rezava para que pudesse reencontrá-los, para que os Deuses fossem justos por uma mulher que escolhera seus caminhos, por uma filha das Trevas que buscara a Luz. Ela implorava para rever a garotinha que abandonara naquela Vila, e para reencontrar o homem com quem deixara seu coração.

Ouvir a voz de Serafine depois de tantos anos fora um sonho e um pesadelo. A voz de uma mulher e da criança que abandonara na porta de um casal de estranhos. A voz de uma guerreira corajosa e de uma menina assustada, de uma desconhecida e de sua filha.

As mulheres ao redor da fogueira silenciaram e as sentinelas retornaram aos seus postos. Ravenne ergueu os olhos para o céu e rezou mais uma vez para que seu pesadelo fosse uma mentira e tudo que houvesse em seu futuro fosse a promessa de um reencontro; para vislumbrar Serafine, ouvir sua voz e entender que ela estava bem, que tudo ficaria bem.


***


– Consegue sentir a energia que vem do Sul? – Terisa estava de pé sobre a rocha onde Ravenne descansava. Acenou em resposta. – O que acha que está acontecendo lá?

– Tudo. O horizonte é um pouco do que as Trevas estão trazendo para Warthia, para derramar sobre nós. – Ravenne suspirou. Arrepios cruzavam sua espinha ao lembrar que aquela era a tormenta que sua filha deveria enfrentar. Que todos eles deveriam enfrentar, cada filho e filha do continente mágico.

– Não. Tem algo além disso. – Elas trocaram um olhar sério. – Alguma coisa recente desestabilizou o poder deste lugar.

– Uma batalha? – Ravenne se empertigou.

– Um embate, sim, mas com poucos soldados. – Terisa se abaixou. Apoiou a mão sobre a rocha e fechou os olhos. Deixou que as sombras serpenteassem, sussurrassem com sua magia oculta; as Trevas eram perturbadoras, sim, mas ainda davam poder àquelas mulheres. Elas renegaram o trono de Sharowfox e seu império horrendo, não o poder. – Não consigo entender. A energia do bosque parece fervorosa. Algo abalou a costa, um poder muito antigo.

Ravenne olhou por cima do ombro, para as companheiras de viagem adormecidas. Não pediria que se arriscassem mais, por isso deu um passo na direção do bosque.

– Ravenne.

– Se eu não voltar até o amanhecer, continue sem mim – pediu. Terisa negou com a cabeça e assoviou para uma das vigias.

– Voltaremos em algumas horas. Fique aqui e mantenha os olhos bem abertos. Algo aconteceu na costa, vamos tentar descobrir o que foi.

Com um sorriso grato, Ravenne a deixou tomar a dianteira. As árvores criavam trilhas estreitas e lançavam cor sobre as brumas sombrias do chão. Ravenne as sentia e ouvia, mas sua atenção estava adiante.

Cerca de duas horas depois, se afastaram do bosque. As árvores rarearam, o chão se encheu de pedregulhos e pedras maiores, pedaços de rocha que claramente não pertenciam àquele terreno.

Havia detritos na areia branca, nos arredores do bosque e, principalmente, onde uma força avassaladora criara um rombo nos paredões. O rochedo se abrira distante da praia e explodira sobre a costa. Ravenne e Terisa paralisaram, avaliando o local. Não havia ninguém ali, mas a energia ainda era pesada.

Um dia desde o incidente, talvez.

Ravenne só conseguia pensar em uma força capaz de usar a natureza para depois destruí-la. Um espírito.

– As sombras estão falando alguma coisa. – Terisa sussurrou de repente. – Está vindo dali. – Apontou o rochedo destruído.

– Acha que pode ser uma armadilha?

Terisa desembainhou as espadas duplas presas às costas. Ravenne pegou uma flecha na aljava e tensionou seu arco; caminharam em meio às sombras, camuflando-se com o poder da escuridão.

As vozes chamavam, de fato. Vinham do Leste, recortado pela explosão de magia. Ravenne fez um sinal para Terisa e se esquivou para dentro do bosque, buscando uma área para cercar o que quer que houvesse naquele lugar. Ela não se sentia em perigo, mas as Trevas tinham esse poder de fazer o horror parecer confortável. Tentavam suas filhas ao extremo.

Primeiro, Ravenne avistou um pedaço de tecido cinzento, preso a uma pedra. A capa esvoaçava com o vento furioso.

Depois, Terisa assoviou para chamá-la; parada à beirada do abismo, olhava para baixo com uma expressão assombrada.

Ravenne adiantou-se. Ondas violentas estouravam contra o paredão, mas não atingiam um trecho recortado na pedra onde dois seres repousavam. Um deles estava desacordado, coberto por um manto negro. O outro, uma mulher de rosto mutilado e serpentes vivas na cabeça; ela parecia familiar, como o toque e o sussurro do poder das Trevas.

– É uma Feiticeira – Terisa comentou.

Ravenne ajoelhou-se para enxergar melhor. A mulher ergueu uma das mãos para ela e as sombras imploraram por ajuda.

– Não. – Ravenne discordou. – É uma Desertora.


Capítulo 29

O Rochedo Sombrio

 


SERAFINE ESTAVA EM UMA cela. As brumas de ébano ao seu redor se dissiparam entre as grades. Uma tocha iluminava o corredor, onde dezenas de outras celas se espalhavam. O cheiro do lugar era acre e o ar, gélido, mais do que na costa. Serafine tremeu. A cela era pequena, com um recorte no teto muito alto para a garota alcançar. Permitia apenas que ela visse um rasgo de céu.

Inspirou. Precisava de calma. O rugido do oceano do lado de fora mostrava que talvez estivessem próximos da costa – ou talvez tivessem atravessado o Reino. Sanzur dissera que a Rainha aguardava Serafine no palácio; mas qual? Os mapas de Warthia não mostravam construção alguma tão ao sul do continente. Pelo menos não os que costumava consultar.

Ao fundo do corredor vieram gritos. Serafine recuou pelo susto, depois avançou até as grades. As sombras que a espreitavam não a amedrontavam tanto quanto antes; elas haviam se embrenhado em sua mente e espírito. Quanto mais poderiam perturbá-la?

Não havia prisioneiros nas celas que conseguia enxergar. Onde estavam os outros? O que Sharowfox fizera?

Onde estava Sibila? E Cornélio?

A dor estourou atrás de seus olhos, como antes. Serafine não conseguia mais diferenciar as manifestações do espírito e da marca das sombras; tudo parecia parte da mesma tormenta. Nenhuma voz ecoou, nenhuma sombra ou silhueta se ergueu na escuridão.

O Ar, no entanto, mudou. O elemento soprou sua presença calorosa e familiar. Serafine cambaleou, guiada pelo sopro, e se afastou das grades. Passos vieram em seguida. Uma tocha iluminou sua cela, e a garota deitou-se, fechando os olhos, rezando para despistar quem estivesse se aproximando.

– Ela ainda está imersa nas sombras. – Era Luke. Serafine travou a mandíbula, com ódio.

– Quanto tempo até que a marca a liberte? – Sanzur indagou.

– Em breve.

Chaves tilintaram, e Serafine prendeu o fôlego. Ele entrou na cela com um farfalhar de tecidos. Uma capa, provavelmente.

Luke ajoelhou-se. Suas mãos – cobertas por luvas de couro – afastaram alguns fios de cabelo do rosto da garota. Serafine desejou desafiá-lo com o olhar, mas não ousou testar a lealdade de Luke. Ele poderia levá-la até Sharowfox.

O príncipe de gelo, no entanto, não se afastou. Retirou a luva da mão direita e ordenou que Sanzur verificasse o prisioneiro da cela ao lado. Aparentemente, alguém que viajara com Serafine estava ali; seus dedos eram frios quando tocou o rosto da garota, ainda que a presença fosse mais calorosa do que o ambiente. Serafine estremeceu, mas manteve o rosto inerte, os olhos bem fechados.

Uma presença se agitou em sua mente.

O espírito, ela reagiu esperançosa.

Não. A voz de Luke respondeu. Seu Mestre.


***


Em um momento, estava na cela de um palácio sombrio. No outro, rodeada por um campo verdejante sem fim. O horizonte era iluminado por um céu do verão, com Sol radiante. Confusa, Serafine analisou a paisagem. Não havia escuridão, mas havia algo de familiar. Ela já visitara um campo como aquele, meses atrás. Seu primeiro Mestre vivia em uma ilusão parecida.

Serafine cerrou os punhos ao ouvir passos. Inflada pela desconfiança e crescente fúria, girou o corpo e derrubou o príncipe de gelo sobre o campo tão logo ele se aproximou. A expressão de Luke era chocada e conformada. Serafine não reagiu a nada disso. Pressionou seu pescoço com o braço direito e apertou os joelhos sobre seu corpo, prendendo-o ao chão. Luke não lutou nem tentou se defender. Manteve os olhos fixos nos da garota e aguardou que se acalmasse.

Um instante se passou. Serafine observava a prata e a escuridão nos olhos do príncipe. A paisagem pacífica tremulou, mas a garota não notou. Afrouxou um pouco o aperto apenas para ter certeza de que ele não estava sufocando.

– É meu cenário na dimensão dos sonhos. – Luke explicou, compreendendo a confusão dela. – Não dá para ser realmente afetado quando... Você criou o lugar.

Serafine ficou de pé e se afastou. Luke se sentou e espanou a grama da roupa de tons claros e acinzentados, diferentes das que costumava vestir. Serafine olhou para si mesma em um vestido azul simples, de corte modesto e tecido confortável. Seu cabelo estava comprido, também, preso na trança que comumente usara.

– Sinto muito. – Foram as palavras do príncipe.

– O que... – Serafine arfou. A confusão desnorteava qualquer pergunta racional. – Sente muito? Pelo quê, exatamente? Por ter condenado a Fortaleza do Dragão ao terror? Apunhalado Jon pelas costas? Aprisionado o Oeste ao terror da escuridão? Sente muito por... – ela vociferou, então baixou o tom. – Por ser meu Mestre?

– Por tudo isso. – A fala súbita calou a garota. Serafine estreitou os olhos, medindo a postura de Luke. Ele ficou de pé e ergueu as mãos em de rendição, afastando-se quando ela achou que se aproximaria. – Me dê a chance de explicar. Não sou um traidor. Não da maneira que imagina, pelo menos. Nunca dei as costas à Luz ou aos Deuses, mesmo quando as Trevas tentaram devorar minha alma e uma das filhas de Sharowfox colocou sua marca em mim. Aos seus olhos e da escuridão, eu me curvei. Mas minha lealdade permanece com a Luz, Serafine.

– Palavras jogadas ao vento.

– Dê-me suas mãos – ele pediu. Havia ansiedade em seu rosto, e os olhos brilhavam com honestidade. Serafine vacilou ao encará-lo, mas cruzou os braços e se afastou.

– Me conte sua história. Não quero visões ou imagens. Quero a sua verdade.

– Minha mãe foi escolhida pelos Deuses para guiá-la, Serafine. Era uma dominadora do Ar, e escondeu isso de meu pai o máximo que pôde. Mas uma mínima faísca de luz num Reino comandado pela escuridão vai se apagar, eventualmente. Ela foi... condenada por servir ao inimigo, por compactuar com os Deuses e sua fé. – Serafine engoliu em seco diante do tom melancólico do garoto. – Ela morreu por servir à Luz, e meu pai marcou meu rosto e minha mente com medo caso seguisse o mesmo caminho.

Ele se calou. A brisa se tornou espirais de vento. Folhas de grama contornaram Serafine.

– Um dia, acordei e podia fazer isso. Os Deuses falaram comigo em meus sonhos, pediram minha lealdade. Eu era só um garoto, nem tinha conhecimento da Profecia. A criança escolhida estava escondida, mas apareceria e ascenderia ao seu lugar como guerreira dos Deuses. Eu deveria guiá-la quando o momento chegasse. – Luke a encarou, e Serafine hesitou ao sustentar seu olhar. – Eu me curvei a eles. Por medo, também. Medo de ser punido por renegar meu dever, e a mínima esperança de que os Deuses talvez pudessem me esconder da fúria de meu pai. Eles fizeram isso, pelo tempo que se seguiu. E então boatos sobre a Escolhida nasceram no Norte e se espalharam até as sombras do Sul. Os lobos de Sharowfox foram enviados para caçá-la e retornaram de mãos vazias. Sua viagem para o Oeste foi a oportunidade perfeita de infiltrar as sombras na Fortaleza, mas eu também vi uma chance... Uma brecha em minhas mentiras. Uma razão de encontrá-la. Lembra-se das visões que teve envolvendo Ravenne? Eu sempre estava perto de você ou próximo a ela. Fui o intermediário. Eu conheci Ravenne quando foi capturada por meu pai. Ele sabia sobre a deserção dela como Feiticeira, sabia que ela tinha dado à luz a uma criança e a escondido do mundo. Quando meu pai aceitou se aliar com as Feiticeiras, Sharowfox revelou tudo isso a ele, e por isso Maltrus a caçou e a prendeu no nosso castelo. Ravenne aceitou minha história e achou prudente alertar você sobre o ataque que meu pai e as Feiticeiras planejavam contra o Oeste, mas as Trevas estavam vigiando sempre. Quando se aproximaram o suficiente para me perceber, quebrei as visões. – Ele suspirou. – Pedi a você para ficar atenta às suas visões, mas não podia ser direto. Não podia falar abertamente sobre o que estava acontecendo. Não podia criar esse ambiente seguro porque você ainda estava ligada ao Segundo Mestre... Precisa entender, Serafine, que havia uma marca sombria em mim. E ela se expandia com o tempo. Nunca pude nomear minhas crenças ou esperanças. Nem alcançar você. Se eu demonstrasse apoio a Luz, me eliminariam em um piscar de olhos.

– Ainda assim, entregou o colar a Benídia. Condenou vidas à morte e ao horror.

– Não estou pedindo perdão por meus atos. Eu precisei fazê-lo! – Luke estava frustrado. A serenidade vacilou e uma sombra de desespero recaiu sobre ele. – Você sentiu a compulsão da marca sombria, não? Como a escuridão fala com você? A faz ver coisas que não estão realmente ali? Isso estava em mim, Serafine. Se eu vacilasse, se hesitasse e meu pai invadisse minha mente para descobrir o que havia de fato ali, ele me queimaria como fez com minha mãe. – Serafine ofegou. A tragédia na voz do rapaz era genuína o suficiente. Luke passou a mão pelos cabelos. Seu controle se perdera.

– Nas Catacumbas – sussurrou a garota. Luke manteve os ombros curvados, como se esperasse por outra explosão. – Eu ouvi sua voz em minha cabeça. Você me ajudou.

– Quando me encontrar no mundo real, verá o custo daquilo. Manter contato com você, usar o elemento e camuflar minha mente para longe da marca sombria... Perdi todas as forças pouco depois disso. Um garoto me salvou dos corredores das Catacumbas, um dos piratas do seu grupo. Depois disso, foi impossível encontrá-la. E, graças à sua marca, também não havia como me alcançar. O mínimo contato entre nós já foi suficiente para despertar a atenção de Sharowfox sobre mim. Não podia arriscar novamente.

Serafine respirou fundo. Sua cabeça girava, mas a tontura era natural depois de todas aquelas informações. Verdades ou mentiras, ela ainda não sabia com certeza. O olhar de Luke era sincero, mas ele a havia traído antes. Podia estar blefando. Podia estar dizendo aquilo para arrastá-la a uma tormenta maior.

– Deixe-me ver você – ela pediu. Ele ficou tenso, assustado. – Deixe-me saber o que as Trevas fizeram.

Luke estremeceu, mas concordou. Sua palidez se tornou mais doentia. As olheiras, piores do que quando o encontrara nas Catacumbas. Os olhos de prata foram engolidos pela penumbra; veias negras subiam por seu pescoço e alcançavam o rosto. Serafine recuou assombrada; imaginou que as linhas negras tivessem tomado todo o corpo do garoto. Cada pedaço dele, maculado pelas sombras.

O príncipe baixou o rosto. Havia vergonha, mas também temor. Ela só viu o desamparo em sua figura frágil.

– Sinto muito – a garota sussurrou.

Serafine deu um passo à frente e ergueu o rosto de Luke com cuidado. A pele fria e delicada sob a sua.

– Sinto por ter enfrentado tudo isso sozinho.

– Não me importo com os sacrifícios. Você é a minha esperança, o motivo pelo qual continuo lutando. Não sou um filho das sombras.

Não havia mentiras. Na dimensão dos sonhos e ilusões, as palavras do príncipe de gelo eram uma única verdade. Sua devoção silenciosa, a lealdade jamais comprometida, mesmo vivendo sob o Reino das Trevas.

– Não – Serafine respondeu. – É o legado de sua mãe.

Luke sorriu e a aparência macabra se dissolveu. Aquele era o príncipe que não fora devorado pela penumbra.

– Quanto mais as Trevas podem machucá-lo?

– O poder dos Deuses é o que mantém minha sanidade e consciência intactos, mas as sombras lutam para estourar essa barreira. O Ar é forte e não vai deixar que eu sucumba. Ele lutará por você da mesma maneira.

Impulsionada por uma estranha energia, pelas palavras e verdades do príncipe, pelo olhar frágil e solitário dele, Serafine o abraçou. Afundou o rosto em seu peito, deixando-se levar pela sensação de calmaria que a paisagem e o elemento davam. Distante de tudo que vivenciara nas últimas horas, da voz do espírito e da escuridão, da incerteza e do medo. Aquele momento de paz era o que ela procurava. Luke reagiu com assombro, mas depois retribuiu, apertando-a com cuidado.

– Obrigada – Serafine disse.

Ele afastou o rosto com expressão igualmente grata.

– Vou tirar você e seus companheiros do palácio, Serafine. Tenho uma aliada lá fora. Sua mãe está vindo para ajudar.


Capítulo 30

Elurian

 


JON NÃO SABIA DIZER quanto tempo se passara desde que começaram a caminhar. O túnel se estendia sem fim; atravessavam a montanha, e as horas se arrastavam sem Sol ou Lua para indicar o passar dos dias. Usando o cajado de Lonel como apoio, Jon seguia firme pelo caminho. Sacrificara uma memória que jamais retornaria, deixara coisas importantes para trás, então não havia porque parar. Descansariam quando alcançasse a civilização, ou o que quer houvesse nas Terras Desconhecidas.

Os túneis de pedra bruta eram altos. Vez ou outra, a trilha ia para cima ou para baixo, depois se estabilizava novamente. Jon parou de contar o tempo de caminhada. Eles paravam para descansar, mas seus músculos doíam pelo esforço. A vista embaçava de exaustão. Jill exibia o mesmo cansaço, mas pôs força nos passos. Debaixo dos túneis de pedra, eles precisavam seguir em frente.

Repentinamente, a trilha terminou em um espaço aberto. A saída da caverna fora esculpida atrás de uma das grandes montanhas. Ao olhar para cima, Jon viu nuvens escondendo o topo. O declive adiante se tornava um abismo. O único caminho possível ficava na lateral da montanha, estreito e perigoso, nem um pouco convidativo.

O cajado de Lonel se iluminou. A pedra ganhou luz e um feitiço se expandiu a partir dela. Jon não conseguia enxergar bem por causa da neblina que cobria o horizonte, mas imaginou que a civilização estivesse naquela direção.

Jill ia tomar o caminho estreito à esquerda, mas uma silhueta de luz surgiu à sua frente.

A figura tinha um semblante sereno. Oposta à da aparição moldada em pedra que roubara o rosto de Ývela, aquela era desconhecida. O sorriso era simpático, apesar de os olhos estreitos darem uma expressão séria. Os cabelos estavam presos em uma trança elaborada, e o penteado deixava à mostra as orelhas pontudas características dos elfos imortais.

– Que surpresa agradável. – A elfa anunciou. Sua voz era melódica, um eco pelas montanhas. – Imaginamos que alguém do continente viria em busca de ajuda contra o horizonte sombrio que se aproxima, mas um Tytos? O que houve para abandonar o trono e marchar até aqui, jovem Rei?

– Lonel sugeriu que viéssemos. – Um instante de silêncio se seguiu. O sorriso da elfa vacilou. A dor cruzou seus olhos claros quando ela viu o cajado, reconhecendo-o. Lonel mencionara uma irmã; seria aquela? – É nossa última chance.

– Não é surpresa que ele esteja envolvido nisso, apesar das promessas de sigilo. – Seu tom foi sutil, mas havia um toque afiado. – Vou guiá-los a Elurian, e de lá os soldados os levarão ao palácio.

– Pode nos dar alguma esperança? – Jill se adiantou, ansiosa. – Seu povo vai ajudar?

A elfa a avaliou. Depois seus olhos se desviaram para Jon. A pergunta parecia tê-la perturbado mais do que o Mago gostaria.

– Depois da última batalha, ficou certo de que não nos envolveríamos mais na violência do mundo warthiano. Nós guardamos um dos seus, mas isso vem de um tratado antigo. – Jon cingiu as sobrancelhas, confuso. – Ainda que a ascensão das sombras seja perturbadora, nossas muralhas mágicas e encantamentos nos vedam para o que seu horizonte carrega. Sonhos e profecias são tudo o que temos ouvido a respeito do caos no continente. A Ordem da Chama Eterna é uma mensageira dos Deuses, mas não protege o mundo por eles. É para isso que vocês têm sua esperança. – Ela parou, os olhos incisivos avaliando o Mago com curiosidade. – Descansem primeiro. Ofereço abrigo pelo tempo que acharem prudente. O conselho se reunirá a primeira luz do próximo dia para recebê-lo, Jon Tytos, e então terá a chance de ser ouvido. Até lá, repouse e deixe seu coração se acalmar.

Jill e Jon se entreolharam em concordância; a silhueta de luz cintilou. Jon deu um passo à frente, mas a magia o abraçou antes que continuasse. Em um instante, estavam no topo da montanha, olhando para um horizonte nevoado sem fim. Em outro, surgiram aos pés de uma gigantesca muralha, com colinas verdejantes e um bosque infinito às suas costas. As montanhas que separavam aquelas terras de Warthia eram rabiscos à distância.


***


Elurian era um novo mundo. Foi o primeiro pensamento de Jon quando os portões de ferro se fecharam atrás deles.

Um gigantesco vale se estendia adiante. A cidade de Elurian o ocupava; ao fundo, um castelo cintilava à luz do fim de tarde.

Era o mesmo pôr do Sol que banhava Warthia e, ainda assim, parecia a pintura de um novo universo. O mesmo céu, mas carregava uma energia diferente. Jon viu Elurian, mas não encontrou nada que lembrasse o seu continente. As Montanhas que dividiam os territórios de fato eram uma fronteira mágica. Separavam dois mundos.

Um rio recortava a cidade. Caminharam por uma ponte de pedra reluzente e observaram a arquitetura do lugar. As construções lembraram Líriel em muitos pontos; claridade e perfeição, a simetria invejável. Casas, comércios e templos espalhavam-se pelo vale. A muralha separava a cidade do território selvagem, mas viajantes atravessavam os portões de ferro para se aventurar pelas colinas, pelo bosque e por outras partes que os olhos de Jon não conseguiram ver. As Terras Desconhecidas eram um local a ser explorado, e algo em seu coração o fez desejar seguir em frente. Atravessar Elurian e deixar que a natureza o levasse a novos universos a serem conhecidos.

Soldados chamaram sua atenção. Uma dúzia de guerreiros vestindo armaduras cinzentas, capas brancas e elmos os aguardavam ao fim da ponte. Um deles adiantou-se e saudou Jon.

– Com os cumprimentos de sua majestade, estamos aqui para guiá-los até o palácio. – Sem qualquer outra palavra, girou nos calcanhares e pôs-se a andar. Jon olhou para a Atyubra ao seu lado, mas ela era toda deslumbramento e pouca preocupação.

As casas seguiam o fluxo do rio, em harmonia com as árvores que sombreavam o vale.

Passaram pelo comércio, templos, praças e áreas livres. Rostos curiosos observaram a delegação. Peles de cores variadas, olhos estreitos ou oblíquos, sorrisos, sobrancelhas franzidas. As orelhas pontudas pertenciam aos imortais, mas Jon notou, com surpresa, alguns humanos. Herdeiros de Warthia que vieram depois da guerra? Ou estrangeiros nascidos além das Montanhas que encontraram em Elurian um novo lar? Ele ficou intrigado, mas manteve o caminhar para acompanhar os soldados.

As árvores que cresciam dentro e ao redor da cidade eram enormes; irmãs das florestas do Norte, provavelmente. Sombras dos titãs do Grande Bosque.

O Sol já se pusera quando se aproximaram do palácio. Atravessaram um arco de mármore e seguiram por um túnel, adentrando um pátio aberto e bem desenhado. Duas escadarias laterais seguiam a um balaústre, e depois para uma terceira escada, mais larga. As portas estavam abertas, e soldados montavam guarda. Não havia uma quantidade de guerreiros tão grande quanto no Castelo de Tytos ou na Fortaleza do Dragão.

Eles renegaram a violência, Jon pensou. Não precisavam de tanta segurança assim.

O mármore do palácio resplandecia a luz dos archotes do pátio e corredores externos; o rio serpenteava pela construção. As janelas tinham vitrais coloridos narrando a história daquele povo.

– Queiram seguir-me, majestade. – O soldado à frente da delegação os chamou. – Vou levá-los até seus aposentos.

Jon contou mais de cem degraus ao alcançar a entrada do palácio. As portas eram maiores de perto; a madeira branca tinha entalhes de um gigante draconiano em toda sua extensão. Aquele detalhe o lembrou da Fortaleza, e a pontada familiar de culpa e arrependimento perturbou sua consciência.

As paredes estavam enfeitadas com tapeçarias antigas retratando batalhas gloriosas e figuras místicas. Os Deuses e sua Fênix, dragões e outras criaturas sobrenaturais esquecidas pelo tempo. O rio recortava o salão principal; uma ponte de pedra ligava uma parte do castelo à outra. Escadas menores corriam pelos lados, levando aos andares superiores. Havia duas passarelas de cristal acima de suas cabeças, e diversas figuras passavam por ali. Uma claraboia se abria para o céu, onde as primeiras estrelas cintilavam.

– Bem-vindos ao palácio de Elurian. – Uma voz suave veio do alto das escadas. Jon avistou uma elfa e dois soldados se aproximarem.

A elfa era a mesma que os recebera na saída dos túneis. Tinha cabelos longos e prateados escorrendo até a cintura estreita, olhos estreitos da cor do gelo, semelhantes aos da estátua na caverna. Uma coroa feita de ramos de flores pendia de sua testa.

– Meu nome é Syla. Sou a Rainha e Conselheira deste Reino, líder da Ordem da Chama Eterna – a imortal anunciou, parada do outro lado da ponte. Jon e Jill caminharam até ela, ladeados pelos soldados. Curvaram-se respeitosamente, mantendo-se assim até Syla os dispensar. – Em nome do meu povo, desejo-lhes as boas-vindas às terras imortais.

– Majestade. – Jon sorriu em resposta.

– Jovem Tytos – Syla sussurrou, os olhos claros perscrutando seu semblante. – Faz muito tempo desde que senti uma energia como a sua. É bem diferente de seu ancestral, tem gentileza e harmonia, mas é igualmente poderosa. – Ela baixou o rosto para Jill. – E uma Atyubra. Que honra estar em sua presença.

– Chamo-me Jill, majestade. – A orelhuda disse, orgulhosa.

– Espero que Jon Tytos e Jill, do povo Atyubru, encontrem conforto em minha morada. – Syla ergueu a voz, e a fala reverberou pelas paredes.

Jon engoliu em seco. Syla observou seu nervosismo.

– Conversaremos sobre a guerra amanhã, jovem Rei. Hoje, vocês descansam.


***


Jon andava de um lado para o outro no quarto. O espaço era enorme, em tons claros, uma varanda extensa com vista para os fundos do palácio e a muralha à distância. A noite estava fria, mas isso não impediu Jon de afastar as cobertas e gastar tempo com os muitos pensamentos.

Não havia como descansar quando a preocupação o levava além das Montanhas, de volta para Warthia. O horizonte macabro era uma sombra ao sul, mas estava lá; a magia e as ilusões das Terras Desconhecidas podiam torná-lo uma mera mancha no céu, mas Jon vira o suficiente para temê-lo mesmo de longe. A cada hora que passava, mais próximo estava de cobrir o continente. Maior seria o preço a ser pago pelos exércitos que confrontariam as Trevas no campo de batalha.

O Mago apoiou as mãos no balaústre e inclinou o corpo. O vento soprou em seu rosto, fazendo cócegas. Ele massageou o queixo com a barba por fazer. Havia energia nele, uma ansiedade que mantinha seus nervos em alerta.

Jon fechou os olhos. Não conseguia dormir, mas talvez pudesse alcançá-la. Depois do encontro com o encantamento na caverna, Jon não tivera tempo de pensar na ondina. Alguma coisa dizia que a lembrança perdida envolvia Ývela, mas o vazio o impedia de ter certeza. Mesmo sem essa memória, ele ainda poderia encontrá-la, falar com ela e contar tudo que ocorrera nos últimos dias; tão pouco tempo, e ainda assim parecia uma eternidade.

Não havia nada do outro lado.

Jon lembrou-se do relato de Ývela, sobre a parede escura que a impedira de alcançá-lo. Porém, o que Jon achou foi a própria mente, como se a de Ývela nunca tivesse estado em contato com a sua. A visão não formou um impedimento. Ela simplesmente não existia.

Apavorado, o Mago tentou outra vez. Talvez estivesse fraco, exausto demais para estabelecer contato. Nenhum eco ou resposta; não havia nada.

O Rei cambaleou ao abrir os olhos. O pânico cobriu seu coração, levando-o a encarar o horizonte sombrio.

– Ývela, onde está você?


Capítulo 31

A Ordem da Chama Eterna

 


JON FOI GUIADO PELOS corredores do palácio. A elfa que o acompanhava prosseguiu em silêncio, e somente os passos dos soldados, visitantes e moradores eram ouvidos. A passarela era mais alta do que aparentava vista de baixo, e Jon inclinou o corpo para ver o rio e o desenho da ponte.

Desceram escadas e seguiram por passagens laterais, atravessaram um salão aberto na parte de trás do palácio e adentraram uma segunda construção. Um templo, Jon notou. As estátuas dos Deuses em suas representações mais antigas, já apagadas dos livros da história de Warthia, observaram o Rei de cima. Archotes iluminavam os semblantes humanoides; Jon se sentia mais confortável com a ideia da Fênix. Ver rostos tão... comuns ilustrando a presença dos Deuses lhe dava uma sensação de poder que não devia pertencer aos mortais. A ideia de serem semelhantes aos seus criadores o amedrontava.

Ao fim do corredor, uma porta entalhada com runas e espirais foi aberta. A elfa gesticulou para que o Mago seguisse adiante e retornou. As portas se fecharam, deixando Jon em um pátio iluminado.

Havia um dragão de pedra ali, uma criatura magnífica, esculpida com perfeição detalhista. A fera ocupava quase toda a lateral do pátio, suas asas dobradas nas costas, o rosto pousado no chão. Parecia adormecida; um gigante de fogo em tamanho real, esquecido pelo tempo.

Jon analisou a mesa que circundava a figura do dragão. De pedra escura como as escamas da estátua, comportava doze cadeiras onde elfos se sentavam. Havia uma pira de fogo feita em mármore no centro do pátio. As labaredas cor de safira bruxuleavam e coloriam o chão translúcido. Syla ficou de pé diante do assento principal. Os demais, com capas brancas por cima das túnicas, escondiam os rostos com capuzes.

– Jon Tytos. – Syla o chamou. – Pode se aproximar sem medo.

Ele o fez. Carregava o cajado de Lonel como fora instruído e o livro dos Magos na bolsa de couro. Não o mencionara a Syla, mas pretendia fazê-lo até o fim da reunião. Lonel avisara sobre a importância daquele objeto, de que poderia ser útil para convencer os imortais a ajudar o continente.

– Majestade. – Jon curvou-se. – Antes que prossiga, peço permissão para entregar a carta que Lonel endereçou à Elurian e, principalmente, à senhora.

Syla estendeu a mão e aguardou; não havia hesitação ou dor em seu semblante, não como no dia anterior, mas um discreto sorriso se formou ao receber o pergaminho.

A expressão da elfa não se alterou ao ler as palavras do irmão. Jon aguardou respeitosamente, espiando os outros membros do conselho. Nenhum deles lhe dirigiu o olhar.

– Quais as palavras de Lonel, majestade? – Um deles se pronunciou.

– Nada que já não saibamos – Syla respondeu. Pousou o pergaminho sobre a mesa e deixou que os outros passassem a carta entre eles. – Jon Tytos, você foi recebido com hospitalidade por nosso povo e, levando em consideração sua linhagem e nome nas terras warthianas, recebeu o privilégio de comparecer a este conselho. Estamos cientes do retorno das Trevas e do desejo daquela que se diz sua Rainha de retornar ao mundo dos vivos. Foi a nossa Ordem, afinal, que recebeu o sinal dos Deuses e escolheu os guardiões para proteger o espírito mágico. Demos as costas à violência do seu mundo, assim como à magia e às tradições, mas, mesmo assim, alguns vestígios de nossa herança ainda existem aqui.

– Há muito foi combinado que não interferiríamos no destino de Warthia. – Um dos elfos continuou. – Elurian é uma cidade livre, tal como as terras imortais. No passado, nós ajudamos Warthia quando foi preciso. Guiamos almas abençoadas até sua esperança. O que vai acontecer agora pertence somente a vocês.

Jon inclinou a cabeça em respeito. Syla permaneceu de pé. Havia familiaridade na maneira com que o observava; era o mesmo olhar investigador de Lonel.

– Tendo isso em mente, jovem Rei, peço que diga o motivo de sua visita. – Syla ordenou enfim.

Jon respirou fundo. Afastou o medo e as hesitações que a marca sombria e as batalhas perdidas trouxeram sobre o seu coração. Deixou que sua coragem e justiça falassem; que sua esperança por Warthia ditasse as palavras seguintes:

– Elurian era um segredo para mim, majestade. Seu irmão apresentou as terras imortais como uma nova possibilidade, um caminho nunca antes seguido por aqueles que permaneceram em Warthia. O horizonte de meu lar está tomado por uma escuridão crescente, sombras que vocês mesmo viram. Não há, em Warthia, muita esperança além daquela que Serafine, a guardiã do espírito mágico, carrega. E uma só pessoa não é suficiente para derrubar o império obscuro que Sharowfox está erguendo.

Silêncio. Jon apertou os dedos ao redor do cajado e prosseguiu:

– Sua raça escolheu deixar Warthia e em meu coração respeito essa decisão. Foi um recomeço. Depois de tantas perdas e sofrimento, recomeçar se faz necessário. – Seus olhos encontraram os da Rainha, e havia algum incentivo ali. Uma pontinha de esperança. – É egoísmo de minha parte vir aqui e pedir ajuda, mas Warthia não vai ter uma chance de se erguer e de reconstruir o que já foi destruído sem seu apoio. Gerações vivem e partilham das terras que outrora foram suas. A natureza reina soberana sobre o solo em que já pisaram. Como sua majestade disse, a herança de Warthia ainda reside aqui.

Alguns membros do conselho trocaram olhares entre si; Syla permaneceu imperturbável, a atenção fixa no Rei.

– O mesmo sangue mágico que corre em minhas veias corre também nas suas. A mesma coragem que reside nos corações de meus soldados também está presente nos seus. Eu... tenho medo, majestade, de não ser suficiente, de não ter a força necessária para proteger aqueles que não podem lutar. Sharowfox não quer reinar, mas destruir. Imperar sobre o caos. Precisamos da sua ajuda. Eu preciso. Um espírito é a esperança, mas todo warthiano carrega um pouco dela também. Mesmo aqueles que deixaram o continente para trás.

Suas mãos tremiam. Jon manteve a expressão firme, mas ficou ansioso pelo silêncio que se seguiu.

– É preciso coragem para admitir seus medos. – Syla encarou um dos conselheiros. – Infelizmente, jovem Mago, argumentos não farão com que nos arrisquemos.

– O Mago carrega um objeto que anseio.

Jon recuou quando uma voz reverberou pelo pátio. Vinha das chamas azuladas sobre a pira.

Syla encarou o Rei pacientemente. O choque se dissipou em confusão.

– O cajado?

– O livro.

Jon engoliu em seco. A curiosidade cintilou nos olhos da elfa; ela estendeu a mão e aguardou. Lonel dissera que o tomo seria útil além das Montanhas e ali estava ele, sendo chamado por uma voz mística.

– Foi encontrado pela Escolhida e carrega a sabedoria que desejo desvendar.

– Você ainda não despertou para fazê-lo – Syla retrucou em voz alta.

– Ainda assim, eu o vi ser composto pelo ancestral do Mago diante de você. Vi a magia antiga ser intrincada nas palavras e runas e adormeci sem saber o que mais seria gravado nessa obra.

– Não vamos à guerra só por um livro.

– Vocês irão por uma causa. – A voz mudou de suave a um trovejar furioso. Syla pareceu hesitar. Jon deu um passo para o lado, afastando-se das chamas que ganhavam intensidade. – Porque a magia que rege esse reino é filha daquela que deu origem a Warthia. Vocês guerrearão para proteger seus irmãos e irmãs que ficaram para trás.

– Não vai ser uma vitória – Syla argumentou. – Nem mesmo o começo de uma.

– Não. Mas vai mostrar à escuridão que não vamos nos render. – Jon respondeu, ganhando a atenção da Rainha. – Mostrará ao império de Sharowfox que Warthia não se curvará.

– Entregue o livro para mim, herdeiro de Neo.

Jon buscou o tomo na bolsa e o estendeu para Syla, mas ela gesticulou para as chamas. O Mago não se moveu ao contemplar as labaredas cor de safira. Elas tremularam e cresceram, lançando sua cor vibrante sobre o pátio.

– Não tema o fogo antigo, Jon. Ele não vai machucá-lo.

Jon estendeu o livro e o repousou na pira. O fogo deslizou por seus dedos e se enroscou em sua pele, mas não o feriu. As chamas correram pela capa e através das páginas, absorvendo seu conteúdo. Experimentando da magia ancestral.

– Vocês, warthianos... – Syla começou. – Senti falta de sua teimosia e obstinação.

Jon sorriu e se curvou. A esperança preencheu seu coração por um momento.

– Não há vitória em seu futuro, Jon Tytos. Pelo menos não agora – Syla prosseguiu, os olhos perdidos em algum ponto além do pátio. Talvez ela profetizasse sobre Warthia em sua mente, talvez estivesse vislumbrando as Terras Desconhecidas e a paz que guardaram em todos aqueles anos.

O Mago quis responder à fala da elfa. Demonstrar confiança como fizera antes.

– O horizonte sombrio é um pouco do que Sharowfox vai despejar sobre Warthia. – Um dos conselheiros completou. – A energia que vem do continente está além de nossa compreensão.

– Mas vocês lutarão?

– Não é uma promessa de vitória, precisa ter isso em mente. O tabuleiro ainda é incerto, e não pode contar conosco para fazer sua jogada final. Às vezes, tirar as peças do jogo e recomeçar pode ser a melhor opção.

Jon hesitou. A fala enigmática da elfa combinada ao clima tenso no pátio colocou o Mago em difícil posição. Leyona devia estar marchando naquele momento, reunindo suas legiões divididas. Talvez Demetrius, onde quer que estivesse, tenha conseguido aliados. Guerreiros.

O tabuleiro era incerto, de fato. Mas Jon não podia dar a palavra final quando tantas peças se moviam sozinhas; quando havia líderes em cantos diferentes do continente, cada qual dando sua cartada contra a ameaça sombria.

– A batalha está perdida, Jon Tytos, mas nós vamos à guerra.


Capítulo 32

A Ascensão de Sharowfox

 


SERAFINE FOI EMPURRADA BRUSCAMENTE. Algumas horas haviam se passado desde que Luke a visitara, e ela permaneceu acordada, deitada na cela, pensando sobre todas as verdades entregues. Quando sons de corrente e passos se aproximaram, ela ficou de pé e esperou. A silhueta de um Lobisomem cobriu a luz da tocha. Ele sorriu, mordaz, e destrancou a porta. Serafine não lutou, mas o monstro a algemou e empurrou mesmo assim.

O oceano rugia furioso do lado de fora. Serafine se lembrou dos gritos à distância e temeu pelo pior. O lobo a levou para uma escadaria estreita, os degraus cobertos por limo e água.

O som de uma cantoria melodiosa, murmúrios de palavras graves e perturbadoras – língua das sombras, Serafine reconheceu – a alcançou. Ecoava pelas paredes, por cada curva e nova escadaria. O castelo era um poço de escuridão e inverno, a energia densa pesava sobre seus ombros, e a intuição a mandava correr. Fugir daquele lugar.

Serafine observou o último corredor, com paredes feitas de pedra e tapeçarias grotescas. Feiticeiras montavam guarda ali, mas não lhe dirigiram o olhar. As portas rangeram e se abriram devagar.

Estava diante de um grande salão. Serafine inspirou e lutou para não estremecer. Brumas de ébano escorregaram para fora do cômodo em sua direção, mas a garota não reagiu. Deixou que a tocassem e guiassem. O Lobisomem vigiava cada passo.

O teto era sustentado por pilares altos feitos do próprio rochedo onde o palácio fora esculpido. Entalhes na pedra representavam mulheres poderosas em armaduras de batalha. Elas conjuravam encantamentos e cultuavam as sombras. As Feiticeiras de outrora.

Vitrais se espalhavam pelas altas laterais do salão, e as Feiticeiras se espalhavam pelo cômodo para cobri-los com cortinas grossas. Com exceção das tochas, logo não haveria outra fonte de luz.

A garota foi puxada pelo lobo; observou as figuras vestidas com capas negras, ajoelhadas pelo entorno: mulheres que entoavam o cântico macabro que ecoava pelo Rochedo. Serafine não precisava entender aquelas palavras para saber o que estava para acontecer.

Aproximou-se do púlpito, uma estrutura alta, com um trono de ônix coberto por runas no último degrau. Símbolos de poder variados, familiares a ela depois das visões envolvendo Ravenne: eram as marcas que as Feiticeiras ganhavam ao se curvarem às sombras. O idioma da escuridão.

Aquele era o trono da sua Rainha. O lugar de Sharowfox.

Serafine engoliu em seco, mas não recuou. Lembrou-se da promessa de Luke; sua mãe, de alguma maneira, estava vindo para salvá-la.

O cântico se intensificou quando as portas se abriram novamente. Amaldiçoados, liderados por Sanzur, conduziam uma fileira de prisioneiros. Serafine se virou para vê-los.

Guillian liderava o grupo, abatido. Jarek tinha as mãos presas a um dos lados do corpo, a cabeça baixa e o andar arrastado. Ariane era a única conhecida em meio a estranhos. Testemunhas do que estava para acontecer ou sacrifícios para as Trevas. Serafine não sabia ao certo, mas precisava ajudá-los.

– Não tente. – Uma figura encapuzada parou ao seu lado, o semblante desconhecido, mas a voz familiar. – Se der um passo, mato um deles. Temos o suficiente para fazer deste salão o cenário de um massacre, caso se comporte mal.

– Onde estão os outros?

– Paciência, Serafine. – A Feiticeira sorriu.

– Era você na Fortaleza do Dragão. Tomou o controle do meu corpo. – Serafine sussurrou, furiosa. As sobrancelhas da mulher se ergueram.

– Não achei que me reconheceria. Nós tivemos um ótimo momento juntas. – Serafine recuou quando a Feiticeira esticou a mão para ela. – Uma pena ter durado tão pouco.

Sanzur estacou ao seu lado, mantendo a atenção sobre os prisioneiros.

– Os lordes estão aqui.

– E o Rei?

Serafine perscrutou os prisioneiros e encontrou Demetrius, mas não sobre ele que Sanzur se referia ao apontar para as portas. Luke e a delegação sulista entraram. Lorde Hammel acompanhava o príncipe de gelo e um homem de aparência doentia os liderava. Serafine imaginou que se tratava do Rei Maltrus.

Soldados ladeavam a pequena corte do Reino das Brumas; não havia estranheza neles, como se aquilo fosse parte de seu cotidiano. Traidores da ordem que regia Warthia. Provavelmente se acostumaram ao que Sharowfox comandava.

Serafine analisou Maltrus e Luke. Com exceção da palidez sulista, não havia semelhança entre ele e o filho. Maltrus era mais robusto e aristocrático. O âmbar dos olhos do traidor era idêntico ao de Demetrius e Serafine. Maltrus era a representação viva de seu Reino: gélido, oco e sombrio.

Uma garota caminhava à sombra do príncipe, e Serafine a reconheceu de seu encontro com Luke nas Catacumbas. Com as mãos cruzadas à frente do corpo, cerca de um ano mais jovem que Luke, devia ser a princesa Elyna. Serafine ouvira falar nela; os olhos verdejantes estavam apavorados, talvez a única pessoa do séquito com uma reação coerente ao terror.

Maltrus encarou os lobos e as Feiticeiras. Depois fitou Serafine. Em resposta, confrontou a frieza das íris tão semelhantes às suas.

– Bem-vindo de volta, Maltrus Tytos. – Nayara meneou a cabeça. Um músculo na mandíbula de Maltrus tensionou pelo tratamento informal. Serafine quase sorriu.

– É uma honra. – Ele se curvou e seus acompanhantes o imitaram; Serafine observou Luke. Tentou encontrar alguma faísca do garoto que a visitara na dimensão dos sonhos.

– Estou aqui. – Luke sussurrou em sua mente. Ela prendeu um suspiro aliviado. – Não reaja.

– É fácil falar quando você está na cabeça dos outros.

– Quis ter certeza de que estava tudo bem.

A garota estudou o príncipe, impassível ao assistir o discurso de Nayara.

– Onde estão os outros que estavam comigo? Os piratas?

– Nicolau e Diel estão presos nas celas, outros prisioneiros foram sacrificados. – A garota lutou para não alterar a postura, ciente da atenção de Sanzur. – Vou cuidar para que sejam retirados daqui quando chegar a hora.

– Alguma notícia de Ravenne? – Ela indagou esperançosa.

A conexão desapareceu.

Sanzur jogou um dos prisioneiros, um dos piratas que sempre acompanhava Diel, aos pés da garota. Ela pulou em susto, mas tentou se aproximar para ajudá-lo. Com um sorriso, Sanzur arrastou Serafine para longe.

Ela assistiu, horrorizada, as sombras fluírem até o prisioneiro. Nayara sussurrou, e os tentáculos de escuridão abraçaram o desconhecido. O homem gritou e se debateu para escapar. As gavinhas negras escorregaram sobre a pele e sob ela, para dentro da boca, olhos e nariz. Sons gorgolejantes abafaram os gritos. Serafine desviou o olhar para Jarek, e ele retribuiu a atenção.

O guerreiro lhe entregou um instante de paz. Seus olhos estavam marcados por exaustão e dor, mas Jarek sorriu, uma promessa de que tudo ficaria bem.

– Chegou a hora. – A voz rouca que ela ouvira na caverna vibrou pelo salão. – Dê-me o sangue da garota.

Nayara puxou uma adaga do cinto. Sanzur esticou o braço de Serafine e a bruxa lutou para abrir sua mão; passou a lâmina sobre a palma e o sangue escorreu por sua pele, gotejando aos montes pelo piso. Serafine resmungou de dor ao ser libertada.

A canção ficou mais alta. Escuridão cresceu pelos cantos.

Serafine apertou o machucado e manteve o foco na dor para escapar ao horror de ser engolida pelas sombras.

– Uma alma inocente foi sacrificada por um seguidor da Luz. O sangue da Escolhida dos Deuses, do espírito puro agora maculado pela escuridão, marca o chão deste palácio. E através dele eu me erguerei.

Serafine se lembrou da conversa com Jon pouco depois de fugir da Fortaleza: É parte da lenda sobre o retorno da Rainha das Trevas. O Ritual que deve ser feito para que o condenado retorne do Abismo exige o sacrifício de uma alma inocente...

– Chame por ela, Serafine – Nayara sussurrou contra seu pescoço. – Precisa convocá-la para que o ritual termine.

– Não.

– Olhe ao redor. – As sombras se dissiparam. – Temos os seus amigos. Seu coração. Sua família. – Guillian balançou a cabeça em negativa. Jarek manteve o olhar altivo, mas percebeu o horror nos olhos da garota. Demetrius disse alguma coisa, mas Serafine nada ouviu; por fim, uma última figura. Um rosto curvado entre os prisioneiros. Alguém que Serafine não imaginara ver outra vez.

– Mãe?

– Serafine. – Mégara abriu um sorriso emocionado. A voz soou abafada, um sussurro difícil de alcançar. – Minha Serafine. – Mégara estendeu os braços algemados, mas as sombras a engoliram.

– Nós a tínhamos conosco esse tempo todo. Um trunfo para o caso se você hesitar como faz agora – Nayara explicou.

Serafine tentou avançar, mas foi interceptada por Sanzur. Os olhos púrpura do lobo recaíram sobre os dela e as unhas enterraram-se em seus ombros.

– Posso devolvê-la a você. Pode ter todos eles. É só chamar meu nome. – A voz da Feiticeira retumbou. – Salve seus amigos. Abrace a escuridão.

Serafine fechou os olhos. A mesma escuridão atormentadora a recebeu; silêncio em sua mente. A promessa do espírito desaparecera. Ele a deixara sozinha para confrontar aquele horror.

A presença mágica em sua mente dissera que aquilo aconteceria. Previra o que Sharowfox guardava para tentar Serafine; não poder ou força, mas seu coração. Todo aquele tempo, a Feiticeira esperou para tentá-la, e não havia um cenário onde Serafine pudesse dar as costas para aqueles que a contemplavam. Nem Ravenne, nem o espírito poderiam ajudá-la naquele momento.

Ela era a esperança daquelas pessoas.

– Sharowfox. – Serafine murmurou, e caiu de joelhos quando o Rochedo estremeceu.

O cântico parou de repente.

As sombras espalhadas pelo salão arrastaram-se em direção ao púlpito. Sanzur e Nayara recuaram, levando Serafine consigo.

Um vórtice de energia estourou sobre o trono. As Trevas se tornaram um redemoinho de poder, vivas como sua conjuradora. Serafine grunhiu quando um chiado estourou entre as paredes e ecoou por seus ossos, sua pele, sua mente. Outros pareceram afetados também. Mesmo Nayara caiu de joelhos e apertou as mãos sobre as orelhas.

A explosão de energia sombria se expandiu. Um cataclismo preso às paredes do palácio. Pedaços do teto desabaram, impelidos para longe pela mesma escuridão que os derrubava.

Serafine sentiu a chegada dela. Por medo e receio, mas principalmente por arrependimento, a garota fechou os olhos.

Sharowfox a faria carregar aquela culpa até o fim.

Houve um tilintar. O som de algo se quebrando e reconstruindo. Arrepios cruzaram a pele da garota, uivos de uma tempestade distante calaram seus pensamentos. O frio do inverno sulista foi eclipsado por um incêndio sem fim. Serafine ofegou, apoiando as mãos sobre o chão. Sentia a presença das labaredas como quando Sharowfox destruíra o Grande Bosque, seu abraço aterrorizante, sua presença sobrenatural.

Serafine ouviu gritos e os baques de corpos contra o chão quando a explosão reverberou pelo palácio. Cravou as unhas no chão; o impacto daquela explosão não a derrubou. Não chegou nem mesmo a afetá-la. A energia estava ali e era imperiosa, uma força de tempos antigos. Magia ancestral da mais amedrontadora. Ela desenhou todo o entorno do salão antes de se concentrar em um ponto à frente da garota.

O brilho que surgiu forçou Serafine a baixar a cabeça.

Tão abrupto quanto começou, o vórtice de escuridão se foi.

Uma carícia seguiu o canto de seu rosto; ardente com o toque das chamas.

– Não se curve para mim, filha da Luz e das Trevas. – Serafine não ousou se erguer para a voz a sua frente, nem contemplar a figura cercada de luz e sombras que tocara seu ombro. – Olhe para a nova era que se inicia graças ao seu chamado.


Capítulo 33

Coroa de Cinzas

 


SERAFINE IMAGINARA UMA CRIATURA monstruosa. Sua mente construíra horrendos pesadelos, feições demoníacas, sombras em cada traço. No entanto, diante dela havia uma semideusa bela e perigosa, com um olhar profundo e intenso. O sorriso era de uma amiga, irmã e mãe.

Sharowfox tinha a pele dourada. Uma aura mágica a cobria. O rosto de feições finas era altivo, os lábios curvados num sorriso cortês. Seus olhos, azuis como o oceano e o céu em um dia de verão, cintilavam com poder. Os cabelos louros ondulavam até a cintura delgada; ouro e escuridão a cobriam.

Sharowfox contemplou o salão. As sombras haviam se dissipado, as tochas voltaram a queimar e as cortinas foram abertas, deixando a luz da Lua cobrir os corredores. O lugar parecia menos macabro e mais acolhedor. Serafine arrepiou-se ao perceber.

– Minhas filhas. – Os lábios vermelhos da Feiticeira ergueram-se num sorriso alegre. – Sua devoção faz de mim mais forte. – As bruxas haviam se ajoelhado à sua chegada. – Meus súditos, nossa aliança será a ruína daqueles que não se curvarem à minha vontade. – Ela olhou para Demetrius e os demais prisioneiros. Jarek e Guillian estremeceram. O Sturian respirou fundo, os ombros tensos e a mandíbula cerrada. Guillian baixou o rosto em agonia.

– Pare! – Sharowfox virou-se para Serafine com surpresa. – Você me disse que os entregaria a mim quando a libertasse. Não vai machucá-los.

– De fato, não irei. – O rosto da Rainha sombria se cobriu de fascínio. Serafine deu um passo em falso quando Sharowfox se aproximou, mais perturbada pela entrega no olhar da mulher do que por sua presença assombrosa.

Era Sharowfox, afinal de contas. A lenda que assombrava pesadelos por toda Warthia, a criatura que construíra um império de terror. E, ainda assim, uma mulher inofensiva à sua vista.

A Rainha das Trevas parou diante de Serafine e segurou seu rosto com delicadeza. Virou-o para a luz, observando as marcas peroladas. O toque era uma carícia; a pele da Feiticeira, aveludada como seda.

Serafine retesou-se. Por tanto tempo temera a aproximação de Sharowfox e, naquele momento, o medo se foi.

– Quanto poder dado a uma pobre alma despreparada. – A bruxa balançou a cabeça. – Você o teme, minha querida? O que há dentro de você?

– Não. – Mentirosa. A voz ressoou e Serafine esforçou-se para não demonstrar surpresa. Sharowfox não notou; girou nos calcanhares, animada como uma jovem, e fitou o Amaldiçoado próximo de Serafine.

– Sanzur, meu querido... Venha até mim. – O lobo agia como um filhote amedrontado. Com a cabeça baixa em respeito, ajoelhou-se perante a Feiticeira.

– Houve somente um Sturian antes de você com tamanha devoção às Trevas. Apenas um, em tantos séculos, serviu a mim e às sombras de maneira exemplar. – Serafine olhou para Jarek, mas o guardião só tinha olhares para a cena. – Seu ancestral era um homem honrado e poderoso, Sanzur, assim como você. Ele viu a maldade em Neo e deu as costas a ele quando chegou o momento. A maldição de meu irmão foi uma resposta cruel, mas tudo que Neo sempre fez foi se fortificar através da crueldade. Hoje, meus Amaldiçoados, eu os liberto da tormenta. A forma lupina passará a ser não um fardo, mas um presente. Uma escolha. – Sharowfox colocou a mão sobre o peito de Sanzur. – Estão livres para se erguerem como homens e não monstros. Sua raça não mais se curvará à maldade de meu irmão.

As Trevas rodearam Sanzur e os Amaldiçoados. A forma animalesca desapareceu sob o poder da Feiticeira. Os pelos deram lugar à pele e aos cabelos cor de bronze; o rosto assumiu feições humanas, com um queixo forte e olhar poderoso.

O corpo musculoso estava marcado por suor. Em seu braço, Serafine avistou o bracelete da família Hargon, maltratado pelo tempo. Sanzur ficou de pé, nu. Sharowfox contemplou a ele e aos homens e mulheres que se ergueram. Com um gesto, os cobriu com armaduras sombrias.

– Minha Rainha. – Havia um tom frágil na voz humana de Sanzur. Sharowfox tocou seu rosto e sorriu satisfeita.

Serafine observou Jarek, que assistia a tudo abismado.

Ela se perguntou sobre o alcance dos poderes de Sharowfox. Se todos os lobos em Warthia, naquele momento, estavam sofrendo a mesma mutação. Sharowfox acabara de desfazer a maldição do Primeiro Mago; livrara os Sturian de uma tormenta injusta, e demonstrara mais poder do que os Quatro Reis juntos. Serafine ficou chocada por encontrar admiração e temor equilibrados em seus pensamentos.

– Não tão forte assim. – O espírito sussurrou, guiando a atenção de Serafine até a Feiticeira. Enquanto as sombras serpenteavam de seu corpo para o dos lobos, a palidez recaiu sobre suas feições. Sharowfox escondeu a fraqueza e Serafine ficou mais aliviada.

Ela não retornara com força total. Ainda precisava se restabelecer.

– O que achou disso, Demetrius? – Sharowfox caminhou para o Rei. Se havia ficado impressionado, Demetrius sequer demonstrou. Encarou a bruxa, cuja expressão jubilosa estremeceu em ira por segundos. Pela primeira vez desde o retorno, Serafine viu algo quebradiço no olhar da Feiticeira. – Posso desfazer o que seu ancestral criou, reconstruir esse mundo como sempre desejei.

Demetrius vacilou por um instante, buscando Serafine com o olhar. Sharowfox viu aquilo e sorriu.

– Ah, é mesmo. A Escolhida para me derrotar, impedir que eu alcance Cílion e me torne mais poderosa do que seus preciosos Deuses. Mas diga-me, Serafine, sabe tudo sobre seu destino? Todos os passos que a guiarão até a pedra? O que fazer quando contemplar o que os Deuses esconderam nas montanhas do Leste?

Serafine estremeceu. O espírito não se manifestou; curioso ou perturbado pela Feiticeira, ela não sabia dizer.

– Não quero suas mentiras.

– Acredita cegamente naqueles que a acompanham, Serafine? – A bruxa baixou a voz, as palavras seguintes não passaram de sussurros: – Colocaria sua mão no fogo por eles e suas verdades?

– Receberei minhas respostas quando for o tempo...

– Pare de mentir para essa garota! – Sharowfox gritou para todos e para ninguém em particular. Serafine estacou; havia fúria e frustração na postura da Feiticeira.

Sharowfox estava à sua frente e, no instante seguinte, surgiu atrás de Jarek.

Serafine deu um passo e Sanzur desembainhou a espada para pará-la.

Sharowfox contornou os ombros do guardião e descansou a mão ali. A outra escorregou pela lateral do rosto, forçando-o a erguê-lo e encará-la.

– Como pôde, Jarek? – O tom de falsa melancolia enojou Serafine. – Como conseguiu olhar nos olhos dessa garota e mentir todo esse tempo?

– Pare – Serafine murmurou entre dentes. Sharowfox sorriu e se dispersou até Guillian, abaixando-se à altura dele.

– Enquanto eu estava presa no Abismo, consegui ouvir seu querido elfo recitar a Profecia. Todas as palavras proféticas, na verdade. Injusto, não acha? – observou Serafine. – Que sua inimiga saiba seu futuro e você não.

– Pare.

– Todos os seus amigos mentiram. Seus Mestres sabiam a verdade sobre seu caminho, o que encontraria depois de despertar o espírito. Lonel nomeou as palavras divinas e não sentiu pena de quem deveria dar vida a elas.

O chão estremeceu. O sorriso de Sharowfox ficou mais animado.

– Me dê sua ira, Serafine. Deixe que ela fale. – A Feiticeira estacou, girando nos calcanhares para encarar os prisioneiros. – Vamos lá, guardiões. Vou lhes dar uma chance. – Jarek desviou o olhar, incapaz de encarar a protegida, e algo naquele gesto estilhaçou o coração da garota. Guillian abriu a boca, mas não conseguiu falar. – Olhe nos olhos da Escolhida, Demetrius, e diga o que os Deuses reservaram para ela. – O tom foi cortante.

Nenhuma palavra veio dos guardiões. Demetrius baixou o rosto; ao fundo do salão, Serafine viu Luke franziu as sobrancelhas, sem entender. Talvez o único, além da garota, a desconhecer seu destino.

A Feiticeira avançou pelo salão.

– Serafine... Seus amigos estão destinados a matá-la, quando chegar a hora. O homem a quem entregou seu coração será seu assassino.


Capítulo 34

A verdadeira Profecia

 


SERAFINE SE AFASTOU COMO se tivesse sido empurrada. Guillian não levantou a voz contra Sharowfox. Demetrius não ergueu o olhar. Jarek não precisou fazer nada para que a garota entendesse a verdade. Serafine havia aprendido a ler o olhar do Sturian e, naquele instante, odiou conhecê-lo tão bem. Odiou encontrar seu arrependimento e desespero.

Sharowfox andou até ela. Lentamente, esgueirou-se para o lado da garota, sabendo que ela estava prestes a colapsar. Serafine caiu de joelhos, perturbada; a Feiticeira a abraçou como uma mãe, uma amiga e confidente. Sharowfox, sua grande inimiga, a bruxa que Serafine deveria destruir, a apoiou, confortou e cuidou dela como nenhuma outra pessoa naquele recinto poderia fazer.

Serafine imaginou que deveria sentir repulsa pelo toque da Feiticeira, por tê-la tão próxima, algum sentimento negativo. Mas não havia nada além de um pouco de gratidão pelas revelações. Elas eram grandiosas e a machucavam, mas, depois de tantos mistérios, enfim a verdade.

– Acalme-se agora, criança. Vai ficar tudo bem. – Sharowfox passeou as mãos por seus cabelos. – O pior já passou.

– Eu não entendo – Serafine sussurrou.

– Tragam a pedra. – A Feiticeira exigiu. Nayara veio de cabeça baixa, temendo encarar a Rainha das Trevas. Sharowfox ajoelhou-se ao lado de Serafine novamente e abriu o embrulho de seda, expondo o fragmento de Cílion. Ela se afastou.

– Não tema a verdade. Eu a fortificarei para que não perca a consciência, a protegerei para que possa entender seu futuro. – Sharowfox estendeu-lhe a pedra.

Serafine olhou do rosto desesperado de Jarek para a serenidade da face da bruxa; lembrou-se das palavras de Sharowfox e da dor nos olhos de seus guardiões, de todas as vezes em que haviam virado o rosto quando exigira a verdade. Recordou-se das omissões, sussurros, conversas escondidas. Algo dentro dela se quebrou.

Furiosa.

Serafine estendeu a mão.

Sua mente foi sugada para lembranças desconexas.

Primeiro, havia um rosto semelhante ao seu. Uma menina; uma garota; uma mulher. Espirais brancas cobriam seu corpo; súbito, as espirais foram cobertas de sombras, assim como o céu e a terra. E então havia apenas escuridão.

Serafine viu o céu desabar sobre sua cabeça, como nos pesadelos. Um domo de vidro retumbou graças a uma poderosa voz que se erguia.

Serafine sentiu alguém arranhar seu corpo, lutar contra a própria carne, tentar escapar de dentro dela.

Viu um vulcão em erupção sob um céu de ébano; caos e batalhas, um império de fogo.

Voltou a si e encontrou os olhos azuis e calmos de Sharowfox. Com a voz semelhante à da Fênix, a Rainha das Trevas pôs-se a falar:


Das Profundezas surge

Profana e Meticulosa

Suas Conquistas provaram

Sua Alma ardilosa.


A Esperança marcada

Protegida pelo Guardião

Das Chamas ascende

Encoberta pela Escuridão.


Patronos primordiais

Revelam então

A Palavra final

Para o destino da Nação.


Seu Espírito tocado pela bondade Divina

Provará da dor e do pecado

Para realizar a sagrada Sina.


Um caminho guiado por aquele Liberto

Disciplinado pelo Salvador

Tocado pelo Herói

E ensinado pelo Adormecido.

Para que no fim a Condenada entenda então.


Sharowfox fez uma pausa, avaliando a garota. Serafine engoliu em seco, recusando-se a encarar seus amigos.

Uma tempestade se formava do lado de fora. Os uivos do vento eram furiosos como o coração da garota.

A voz da bruxa, até então baixa, ficou alta e profunda:


Ao nascido de uma relação proibida,

é dada uma jornada de coragem e de grande dor.


Sua alma, a metade de outra

Renegada e escondida.

Sangue deve ser derramado pela lâmina sagrada

Em frente ao templo da semideusa adormecida.


O Guardião escolhido

Carregará a tarefa perversa

Em meio ao império de caos e fogo

O mundo perecerá para uma nova Era.


– Serafine... – Demetrius sussurrou seu nome, implorando atenção. Guillian exibia profundo pesar.

– Lembra-se da adaga que seu precioso guardião carrega? A lâmina sagrada está marcada com símbolos que destruiriam parte da sua alma. – O destino esconde segredos terríveis, Serafine se lembrou.

– Por quê? O que quer dizer com... Parte da minha alma?

– O espírito abençoado pelos Deuses, o mesmo que a habita e fortifica, é um fragmento de Cílion. Você é Cílion, Serafine. – A Feiticeira explicou com suavidade, acariciando seus cabelos.

Serafine buscou pela voz em sua mente, mas o espírito não se manifestou.

– Quando Cílion se rebelou contra os Deuses e se tornou o Caos, eles a derrotaram. Usaram a natureza e a vida contra a morte que Cílion se tornara. Mas não a mataram. Ela era poderosa demais mesmo para eles. Escolheram, então, um pedaço daquele espírito, que não fora tocado pelos quatro elementos no momento de sua destruição, e guardaram-no. Um fragmento de Cílion que ascenderia ao corpo de uma criança escolhida quando chegasse o momento de derrotar as Trevas mais uma vez. Durante minha ascensão, busquei a pedra onde o corpo e parte da alma de Cílion repousavam, mas descobri a mentira, a divisão que os Deuses fizeram e mantiveram em segredo, quando era tarde demais para mim. Então, esperei.

Serafine apertou as mãos sobre a cabeça, desnorteada.

– Sempre que o espírito desperta e usa seus poderes, seus olhos mudam de cor. As marcas brilham com mais força. Sua consciência se dissipa e dá lugar a outra. Isso é Cílion, Serafine. Ela é parte de você como você é parte dela.

Na caverna, o espírito dissera aquela mesma frase. Lembrou-se do alerta, de que Sharowfox tentaria colocá-la contra ele. Sabendo sua real identidade, Serafine entendeu o motivo.

Observou as espirais peroladas e as odiou mais do que temeu.

– Dentro de você há uma parte incorruptível da essência de Cílion que foi domada para absorver o poder dos quatro elementos. Para, no fim, usá-los a fim de destruir sua gêmea, presa e adormecida no Leste.

– Mas... O sacrifício.

– Os Deuses não querem Cílion restabelecida, Serafine. Não querem que a entidade desperte em sua totalidade. Você carrega um fragmento, mas, unida a ela, colapsaria em uma única mente. Um único poder indestrutível. Durante o seu colapso... – Sharowfox olhou para os prisioneiros. Jarek fechou os olhos. – O guardião a sacrificaria. Das Chamas ascende, encoberta pela escuridão... Isso nunca foi sobre mim. Falava sobre a ascensão de Cílion, quando você seria forçada a unir-se a ela e à escuridão que habita a outra parte do espírito.

Os Deuses mentiram para mim, Serafine pensou. Sharowfox concordou, e só então a garota percebeu que havia verbalizado.

Estrondos ressoaram do mar e do céu, respondendo à ira da Escolhida.

– Eu não sou ameaça a este mundo. A escuridão é. E, querida, Cílion é a mãe de toda a escuridão.

Serafine estacou em choque.

– Os poderes de Cílion vêm da morte. Mais precisamente, dos espíritos menores. Imagino que já os tenha visto quando invoca seus poderes...? – Pelo olhar de espanto da garota, Sharowfox teve a resposta. – Cílion foi a criadora da necromancia, a voz do Abismo antes de ele ser o que é.

Serafine inspirou, incapaz de absorver a quantidade de ar necessária.

– Tudo o que ela disse... – A garota ergueu a voz e o olhar para Jarek, Guillian e Demetrius. – É verdade?

– Serafine... – o Grande Rei sussurrou.

– Nem tudo. – Jarek balbuciou; pela primeira vez desde que o conhecera, ele parecia frágil.

– Não acredito em você – Serafine rebateu. Se tivesse estapeado o guerreiro, ele teria sentido menos dor.

– Ývela também sabia. Sua querida mãe, Ravenne, teve acesso a toda profecia. O temor de Demetrius estava no fato de saber que você seria sacrificada. Que tragédia. – As palavras finais soaram afiadas.

A garota virou-se para o trono; no rosto estava uma máscara de frieza, a marca das sombras pulsando na alma. Seu olhar queimava pela dor, mas ela não chorou.

– E se eu oferecer um escape? – Sharowfox sorriu. – Há escuridão em você. As forças sombrias são suas, assim como a Luz. O espírito, no entanto, eclipsa esses poderes. Dentro dele já há força demais. Deixe-me tomar o fardo dado, possuir o espírito de Cílion e, assim, iniciar a Nova Era. A monarquia cairá e um império de força será erguido. A Magia das Trevas será soberana sobre uma Luz que engana os seus seguidores. Eu oferecerei ao povo o poder e eles aceitarão. Fique ao meu lado, querida Serafine. Seja minha.

O tom acariciou a mente da garota. Ela encarou os aliados que aguardavam sua palavra, os prisioneiros que temiam seu olhar furioso. Fitou Guillian, seu grande amigo, que destroçara sua confiança. Demetrius, seu pai, que se curvara à crueldade da Luz.

Olhou para Jarek. Seu coração; o homem a quem entregara tudo o que era. Um traidor.

– Filha. – Mégara estendeu a mão, mas ela era um borrão na ira crescente de Serafine. – Não se curve à escuridão.

Um burburinho ergueu-se pelo salão.

O vento ficou mais intenso e a chuva estalou contra os vitrais. Serafine observou os súditos erguerem as mãos em louvor à Rainha das Trevas. Seus olhos fitaram Luke rapidamente e encontraram um sinal de reconhecimento; com cautela, ele murmurava alguma coisa.

A tempestade.

Sharowfox fez um sinal e Nayara trouxe um arco e uma aljava repleta de flechas que ela reconheceu. Serafine olhou suas armas e as aceitou.

– Mate o homem que ama e pinte suas marcas com o sangue dele. Receba as sombras em seu coração e se entregue a mim, Serafine. – Sharowfox ficou de pé. Nos olhos havia um convite; no sorriso, a confiança.

Serafine analisou o arco forjado na Fortaleza do Dragão, e a flecha mestra, criada por Theodore e restaurada pelas Trevas. Encarou Sharowfox com seriedade.

Jarek foi posto de pé e empurrado diante da garota. Sanzur o segurou; havia um corte aberto no flanco de Jarek e o sangue manchava a lateral da camisa esfarrapada. As sombras que Serafine pensara ter visto eram hematomas em seu rosto. Marcas do que ele sofrera como prisioneiro.

Quando a fitou, Jarek estava resoluto. Quase entregue.

Ele a temia? Tinha medo que Serafine se curvasse à vingança e à traição, que cravasse a flecha em seu peito como Sharowfox a incitava a fazer? A garota pensou perturbada.

Serafine encaixou a flecha sobre a corda e a tensionou.

Os murmúrios vindos das figuras encapuzadas ficaram mais altos. Elas pareciam estar em maior número desde que Serafine as observara.

A tempestade rugia, uma tormenta poderosa.

As sombras estremeceram num alerta silencioso.

– Serafine – Luke chamou, liberto do bloqueio. – Sua mãe está aqui.

A agonia e frieza que a entorpeceram diminuíram sob o conforto da voz do príncipe de gelo. A garota desviou o olhar para a Rainha das Trevas.

– Me dê o coração do Sturian, Serafine. – Sharowfox clamou.

A flecha cruzou o ar e cravou-se no peito de Nayara, derrubando-a. Um instante se passou, e então o caos explodiu sobre eles.


Capítulo 35

Clamor das Sombras

 


SEMELHANTE AO QUE ACONTECERA nas Catacumbas, aquela tempestade carregava a destruição.

Sons de lâminas cortando o ar vieram das figuras encapuzadas que invadiram o salão. Serafine viu Feiticeiras e Amaldiçoados tombarem sob seu avanço e muitos outros avançarem contra eles. O grupo era formado por mulheres e a líder encarou a garota do outro lado do cômodo. Ela reconheceu Ravenne rapidamente; a semelhança entre ambas era assombrosa e reconfortante.

Ravenne trazia nas mãos duas facas curvas e longas, manchadas de sangue. O rosto de feições poderosas tinha olhos azuis como raios numa tempestade. A pele negra estava marcada por desenhos escarlate, runas e escritos que remetiam ao poder. Os cabelos escuros caiam sobre suas costas assim como os de Serafine, tempos atrás.

A postura, o formato do rosto, o brilho e a força em seu olhar. Serafine reconhecia isso em si mesma. Ao ver que Ravenne também a encarava, sorriu para ela.

O contra-ataque das Feiticeiras começou. Sharowfox estava protegida por um escudo de escuridão; fraca demais para combater as invasoras. Serafine usou aquele instante para se concentrar na bruxa. O escudo de energia das Trevas ao redor dela era pulsante e inquebrável, mas não era Sharowfox quem o estava fortalecendo. Caído aos seus pés, com as mãos erguidas e os lábios apertados em concentração, Maltrus sustentava a proteção da Rainha.

Serafine atacou.

Ergueu a mão e uma das pilastras do salão acompanhou o movimento, quebrando-se para lançar as rochas na direção do Rei. Amaldiçoados caíram sob as rochas, mas Maltrus rebateu o ataque no último instante. Manteve uma das mãos sobre o escudo sombrio e usou a outra para cercar o próprio corpo com uma rede de energia.

Ele dirigiu seu olhar até a garota. Feroz e mortífero, tão diferente do filho.

– Vai se arrepender disso.

Uma onda de chamas esverdeadas avançou sobre a garota, cortando o ar em um movimento rápido. Serafine ergueu os braços e as pedras ao seu redor formaram um muro falho à sua frente.

Um estalo de luz pálida bloqueou as labaredas.

Atrás de Ravenne, distante em meio ao caos daquele conflito, um rosto familiar comandou o contra-ataque. Grímena cobriu a retaguarda e Serafine quase perdeu a concentração, tamanho seu choque. A garota moveu as rochas na direção do Rei com força suficiente para abalar o escudo de escuridão. Grímena rebateu a defesa dele com outro chicote de luz; Maltrus quase foi ao chão, mas as Trevas que rodeavam Sharowfox abraçaram seu corpo.

Um Amaldiçoado saltou na direção de Serafine. Outra pessoa o interceptou. Diel piscou para a garota e chutou o Amaldiçoado para longe; suas espadas colidiram, um tilintar alto em meio aos uivos da tempestade.

Serafine se esquivou quando a espada de um soldado cortou o ar sobre ela. Diel o acertou no peito e lançou o homem ao chão.

– Como...? – Serafine balbuciou.

– Agradeça aos olhos prateados. Sua comitiva de salvação chegou – Diel sussurrou, quebrando a corrente da garota. – Vamos tirar todo mundo daqui, tem um Mago lá fora esperando para nos levar para um lugar seguro!

Demetrius olhou para Serafine. Ela não sentiu o descompasso causado pelas verdades de Sharowfox por um instante. Encarou o homem e buscou nele o conforto de um familiar. O Grande Rei curvou o rosto e puxou a espada do soldado morto, ciente de que o momento não pedia por aquilo.

Serafine ajudou Diel com os prisioneiros restantes, aparando os ataques dos Amaldiçoados enquanto o pirata os libertava. Aria cambaleou e foi erguida pelo irmão.

– Para os calabouços! Há uma saída para o Rochedo! A ponte de pedra; alcancem-na. – Diel ergueu a voz. As guerreiras ladearam os prisioneiros, segurando o avanço dos Amaldiçoados e rebatendo os feitiços das bruxas com encantamentos de igual poder. Eram filhas das Trevas também.

Serafine esquivou-se de um Amaldiçoado e Guillian o derrubou com uma facada na panturrilha, usando os punhos para nocauteá-lo.

– Não é tão forte sem a forma de lobo, não é, bobão? – zombou o Atyubru.

Jarek girou duas espadas no ar, acostumando-se ao peso das armas, e paralisou sob o olhar de Serafine. O momento foi congelado em meio à batalha, aos gritos e feitiços. Os olhos do Sturian chamaram por Serafine em desespero. Ela quis se aproximar e esbofeteá-lo, mas não se moveu. Jarek parou à sua frente.

– Por favor, Serafine. Quando sairmos daqui, vou contar toda a verdade. Tudo o que nos disseram, longe dos olhos de Sharowfox. – A garota desviou o olhar. Jarek baixou o rosto para ela. – Por favor. Diga que vai me ouvir.

– Quando tudo acabar – Serafine respondeu.

O guardião pareceu aliviado e quase sorriu.

– Meu coração e minha alma são seus, Serafine, e nem os Deuses ou um juramento de sangue podem destruir isso – o guerreiro sussurrou contra sua pele.

– Aqui. – Guillian segurava uma aljava e a flecha mestra, manchada pelo sangue de Nayara. – Vai servir.

Serafine encaixou a aljava no ombro e a flecha dentro dela; dezenas responderam e a magia antiga a fez sorrir.

Ela mirou a primeira flecha na direção de Maltrus. O Rei a encarou de volta.

O disparo acertou a bruxa parada próxima dele, dando vantagem para que outra das guerreiras aliadas seguisse para a saída.

Maltrus ergueu a mão para a garota e Serafine sorriu.

O teto acima dele desabou sobre o escudo mágico. Pedaços de rocha bruta enterraram o Rei; morto, não. Mas incapacitado. A energia ao redor de Sharowfox tremulou como uma cortina de fumaça, enfraquecida pela queda do aliado.

Em contraste com as brumas de ébano, uma fina linha de poder iluminado cobriu o lugar onde a Feiticeira se escondia. Não pertencia a Grímena – ela lutava com duas bruxas – ou Demetrius, ainda esgotado. Serafine se lembrou de Diel e do Mago que os aguardava fora do Rochedo; aquele feitiço era dele.

E não duraria muito tempo mais.

Eles avançaram pelo salão, em meio à cacofonia de gritos, desviando de estilhaços e encantamentos. Serafine derrubou dois Amaldiçoados com disparos certeiros no abdômen e pescoço. Próximo da saída, Luke estava caído sobre sua irmã, protegendo-a dos sopros de vento furiosos. Ao lado dele, Serafine avistou os lordes; dois deles tinham estilhaços por todo corpo. Outros, caídos de bruços, não se moviam. Mortos pela tempestade controlada por seu príncipe.

Ela e Luke trocaram um olhar rápido. Ele abraçou Elyna com mais força.

Serafine tensionou o arco e mirou no corpo de um dos lordes.

A flecha acertou seu pescoço.

– Ele estava se mexendo. – Os olhos de Luke ficaram mais suaves ao ouvir o seu sussurro.

A garota ofegou quando um corpo forte a empurrou para o chão. O olhar de Sanzur era faminto ao encará-la. Ele parecia ainda mais perigoso do que em sua forma lupina.

Jarek tomou sua frente. Quase tão perigoso quanto o do irmão.

– Serafine, siga os outros.

– Vou proteger a mim mesma, Jarek. – Ela ficou de pé. – Não tente bancar o herói agora.

Ela balançou a cabeça, surpresa pelo tom que usara; buscou seu olhar, mas Sanzur atacou.

Jarek e Serafine se esquivaram em sincronia. Ele atacou, ela defendeu. Como lobo, Sanzur era veloz, mas como humano, era parte do vento que soprava pelo salão.

Serafine se abaixou e disparou uma flecha. Sanzur desviou-se e atacou Jarek, baixando a espada sobre a do irmão. Jarek chutou suas costelas e Sanzur puxou uma faca da bainha; a lâmina por pouco não acertou o guardião.

A estrutura do castelo estremeceu violentamente; Serafine olhou para cima com assombro, e então para o príncipe caído. Tanta força contida em uma expressão fria, em um olhar cauteloso. Os poderes de Luke estavam destruindo o Rochedo.

Atrás deles, o escudo de Luz explodiu. Sharowfox ascendeu em meio às Trevas, furiosa.

Guillian agarrou a mão de Serafine, enquanto Jarek a puxava pelo outro braço. Sanzur avançou, mas uma rajada de vento o empurrou de volta. Serafine teve tempo de encarar Luke uma última vez.

O cenário era de devastação; algumas guerreiras ainda lutavam, mas Ravenne e a maioria do grupo seguiam para a saída.

A pele dourada da Rainha das Trevas estava pálida, os olhos eram buracos negros. Tudo de doce e angelical fora engolido por uma máscara horrenda.

– Tragam-na de volta! Eu quero a Escolhida! – Seu grito estourou pelos ares. As Trevas inflaram-se em sua raiva e Serafine as viu atravessarem o corpo das guerreiras que ficaram para trás, engolindo-as na tormenta.

Ravenne e outra mulher fecharam as portas. A magia de Grímena selou a passagem, mas não duraria muito tempo. Não quando o castelo desmoronava e a fúria da Rainha das Trevas os perseguia.

A caminho dos túneis, Serafine sentia os nervos em chamas, as pernas trêmulas e a mente num caos. O espírito estava ali e não estava; gritava com ela e se calava. Ela não conseguia alcançá-lo para que a ajudasse, mas também não podia pará-lo para que não a atrapalhasse.

Vez ou outra, olhava por cima do ombro. Esperava ver Luke, mas o príncipe ficara para trás.

Uma das celas estava aberta, longe de onde Serafine fora enclausurada. Havia um buraco na pedra, o fruto de uma explosão poderosa.

Ravenne ficou para trás, incitando os prisioneiros e as guerreiras restantes a seguir em frente. A chuva do lado de fora era menos tenebrosa do que no salão. A fúria da tempestade se condensara sobre Sharowfox. Luke permanecera no salão para garantir a fuga.

Serafine passou pela saída e Ravenne segurou seu braço. O sorriso tranquilo foi um paradoxo a tudo que as cercava.

– Vai gostar de saber que Sibila e Cornélio estão a salvo. Luke também vai ficar bem. – Ravenne garantiu. Serafine encarou-a e alívio iluminou suas feições. – Vamos encontrá-los quando a tempestade tiver fim.

– Para onde os túneis levam? – Guillian indagou enquanto auxiliava Mégara. Serafine se adiantou para segurar a mãe. Ravenne também a ajudou; um calor agradável cobriu o coração da garota ao contemplar as mulheres.

– Para a ponte de pedra. Jon está nos esperando do outro lado. – Ravenne explicou com rapidez, acelerando os passos. Serafine tropeçou nos próprios pés. Jon, no Reino das Brumas? E sua busca pelo Norte?

O recorte na lateral do Rochedo os levou até um túnel baixo e íngreme; não demorou muito para as vozes chegarem até eles. Os prisioneiros e as guerreiras avançaram por ali.

Uma caverna se estendia abaixo do Rochedo, sob a estrutura poderosa do castelo das Feiticeiras. Uma saída segura.

A ponte de pedra era uma construção da natureza. Ligava um pedaço de terra ao outro, e sobre ela estalavam ondas do oceano. A tempestade continuava; o vento uivava acima deles, castigando a fortaleza de pedra. Serafine não sabia quanto mais Luke conseguiria segurar aquela tormenta, e talvez por isso Ravenne e as outras incitassem seus passos.

Ravenne aguardou ao lado de Serafine e seus guardiões. Poucas pessoas podiam atravessar de cada vez. Serafine assistiu, apreensiva, os prisioneiros e as guerreiras tropeçarem em seu avanço. A passagem era estreita e curta, mas parecia imensa e sem fim. Demetrius estendeu a mão para ajudar Grímena; Guillian continuava a auxiliar Mégara. Ravenne gritou para Serafine e Jarek seguirem em frente e aguardou. Diel e Nicolau ainda estavam próximos; Selina e Aria haviam seguido para o outro lado, seguras enfim.

Diel deu uma piscadela para Serafine quando passou por ele. Um gesto amigável em meio a todo o desespero.

Dor estourou atrás dos olhos da garota. Com um grito agudo, caiu de joelhos, as mãos apertando as laterais da cabeça.

– Não. Não pode ir embora. Precisa confrontá-la.

– Me deixe em paz! – Serafine berrou. A agonia rachava seu crânio, estilhaçava cada pensamento.

Jarek correu ao seu encontro. Uma barreira de energia sombria se ergueu entre eles e os outros; Serafine ouviu os gritos de Diel, Nicolau e Ravenne, e lâminas cortando no ar; dentro da redoma sombria, o vento se dissipou e a tempestade tornou-se um chuvisco inofensivo.

O mar, no entanto, ainda era fúria. Ele respondia ao espírito na mente da garota, clamando sua libertação.

Serafine sentiu a energia pesada cobrir a passagem. Ao entreabrir os olhos, avistou os tentáculos de ébano deslizarem pela saída da caverna em sua direção. Jarek estava entre a garota e as sombras, conjurando chamas intensas para tentar quebrar a muralha de sombras que os cobria.

Do outro lado do escudo de energia, as sombras ganharam forma. Ergueram-se a frente de Ravenne, que levantou os braços para conter a onda de escuridão. Diel e Nicolau recuaram para a ponte. Guillian e Mégara haviam atravessado, Demetrius e Grímena também. Ravenne era a barreira impedindo que a escuridão alcançasse o grupo.

Faíscas estouraram contra a redoma, onde as chamas de Jarek tocavam. Um som ensurdecedor reverberou acima deles.

Serafine se arrastou para longe enquanto o Sturian atraía as sombras, usando a magia e uma espada para lutar contra as silhuetas guerreiras que se formavam. Elas rebatiam seus ataques e quebravam suas defesas facilmente; atrasavam o guerreiro para o que estava por vir. Serafine conseguia sentir a presença dela. Sharowfox não tinha pressa; a Escolhida estava em suas mãos.

– A barreira! – Jarek gritou de repente, esquivando-se para Serafine. À frente de Ravenne, uma brecha se abrira na parede de escuridão. Serafine avistou um rosto querido e familiar do outro lado da ponte. Um que deixara para trás nas montanhas do Oeste.

Jon. Era ele, moldado em Luz; um feitiço e uma presença, e estava abrindo caminho.

Jarek ergueu Serafine em seus braços. O guerreiro grunhiu pela dor; os chiados produzidos pelo embate de magias atrapalharam seus passos, mas ele seguiu mesmo assim.

– Vai ficar tudo bem, Serafine. – O guerreiro sussurrou, decidido. – Vamos tirar você daqui.

Um estalo cortou o ar e algo se chocou contra Jarek.

Sharowfox, parada à saída da caverna, abriu o mesmo sorriso doce, gentil e familiar de antes. Vil.

Jarek dobrou os joelhos com Serafine em seus braços. Serafine caiu sob ele, os olhos arregalados para o sangue que escapava dos lábios do Sturian. Três garras sombrias feitas de escuridão atravessavam seu peito.

O Sturian observou os ferimentos. Serafine gritou. As gavinhas negras recuaram em um puxão, deixando rastros escarlates.

Jarek despencou para o lado, mas Serafine o amparou antes que batesse contra o chão de pedra.

O coração... Ela quase não conseguia senti-lo.

– Serafine...

– Jarek, fique comigo – ela exigiu, tremendo descontroladamente. O Sturian ofegou, mas com esforço segurou sua mão entre as dele. – Jarek, olhe para mim! Vamos sair desse lugar, vai ficar tudo bem. Fique comigo, só mais um pouco, por favor – sussurrou, erguendo os olhos para Ravenne. A bruxa tinha sua própria batalha naquele instante. A brecha criada por Jon estava prestes a estilhaçar.

– Deixe-me sair. – O espírito oferecia sua fúria. Serafine conseguia senti-la.

– Você prometeu que sempre estaria aqui por mim. Por favor. – A garota se curvou sobre o guerreiro. Apoiou a testa contra a dele.

– Vai ficar tudo bem – ele murmurou. Seu dedo traçou o lábio inferior dela. O toque era caloroso contra todo o desespero que a devorava.

A carícia parou de repente.

– Jarek?

Serafine repetiu seu nome num mantra desamparado, mas não obteve resposta. Um suspiro escapou do guerreiro. Os olhos congelaram numa expressão pacífica. As mãos de Jarek despencaram sobre o corpo.

Dor rasgou o coração de Serafine, embrenhou-se em sua mente e espírito. A realidade arrebentou ao seu redor, arrastando-a para o caos. Diferentemente de quando quebrara a ligação com Ývela, aquilo era definitivo. Era uma explosão e então silêncio.

Jarek estava morto.

– Deixe-me sair.

Serafine ergueu o olhar até a Rainha das Trevas. Sharowfox sorriu.


Capítulo 36

Esperança aniquilada

 


– TSC, TSC, TSC. POBREZINHA. Se o tivesse matado quando eu sugeri, nada disso estaria acontecendo. – Sharowfox curvou-se para encará-la de cima. Serafine apertou o corpo de Jarek em seus braços, forçando-se a não fraquejar. – Não acho que sua mãe ou o jovem Rei vão aguentar por muito tempo mais.

Os pés de Ravenne escorregavam sobre a ponte de pedra, em direção ao oceano caótico. Conforme a explosão de energia avançava e ela a sustentava, mais próxima ficava do abismo. Ao fundo, Jon era um bastião de luz contra todo o pandemônio, mas sua magia falhava.

– Viu o que acontece quando tenta lutar contra mim? Seus amigos e familiares presos. Suas forças, despedaçadas. – A Feiticeira gesticulou para a garota. – E o amor de sua vida, morto.

– Você tem medo de mim. – Serafine se obrigou a murmurar. Sharowfox arqueou as sobrancelhas.

– Claro que sim. Você pode ser minha ruína. Por isso tomei cuidado. – Sharowfox tocou a testa da garota. – Me admira não ter tentado usar o espírito antes.

– Voltou dos mortos, mas continua fraca, majestade.

– E minha maior inimiga está aos meus pés. Não vejo o cenário como algo tão ruim. – Sharowfox se ergueu, o olhar de desprezo sobre Serafine. – Onde estão seus Deuses agora?

Serafine baixou o olhar para Jarek. Era verdade; ele estava morto em seus braços e nada mudaria isso. Onde estão vocês? Indagou numa prece. Onde estavam as divindades que a haviam condenado a um destino tão cruel? Onde estavam eles quando Serafine mais precisava?

– Uma pena ver um guerreiro poderoso cair por tão pouca coisa. – Sharowfox fechou os olhos. Serafine apertou o corpo de Jarek contra o seu.

Queria fugir da realidade, se livrar de Cílion, pular daquele penhasco e ir para longe, para além do continente. Para qualquer outra dimensão.

– Não, não, não, querida. – Sharowfox pareceu entender seus pensamentos. Com um puxão, Serafine foi posta de pé. Sanzur segurou seus braços atrás do corpo, mas a garota estava exausta e perturbada demais para reagir. – Que desperdício. – Sharowfox abaixou-se. A proximidade com o corpo do Sturian incendiou as emoções da garota.

– Não toque nele! – Serafine esbravejou.

– Pretendo fazer muito mais do que isso. – A Feiticeira deslizou as mãos pelo sangue no peito do guerreiro. – Quanto poder, quanta devoção. Quanta força. – Acariciou as feições de Jarek. Serafine arquejou ao vê-la tocar o guardião e inclinou-se na direção da Feiticeira para pará-la.

– Mais um passo e a sua mãe morre. – O tom irado de Sharowfox a deteve. – Os Deuses escolheram tão bem. – Seu tom era jocoso conforme saboreava Jarek com o olhar. – Que tal atrapalhar um pouco mais seus planos?

– O que quer dizer? – Serafine congelou.

– A necromancia é parte de mim. Morzyon me ensinou tudo sobre ela. – Controlar os mortos, lidar com espíritos. Serafine recordou-se. Ela debateu-se contra Sanzur, que observava a cena com relutância.

– Minha Rainha... Vai trazê-lo de volta? – Ele indagou com cuidado. Sharowfox não lhe deu tanta atenção quanto antes.

– Quando minhas sombras o mataram, não achei que me arrependeria. Mas mesmo longe de seu corpo, há tanta energia neste guerreiro. Eu o quero para mim. – A mão dela envolveu-se nas brumas de ébano. Sharowfox deslizou o toque sobre o peito do Sturian e, subitamente, atravessou sua carne.

Houve um momento de silêncio. Serafine sentiu as pernas sem forças sob o corpo.

Não, por favor. Tudo menos isso. Implorou aos Deuses.

E, novamente, os Deuses não responderam.

Jarek arfou ao abrir os olhos, como se emergisse de um longo mergulho. Sentou-se e parou por alguns instantes. Serafine caiu de joelhos em frente ao guardião. As emoções destroçadas foram reunidas numa pilha de cacos. Por um instante, sentiu felicidade.

E aquele instante foi sua ruína.

Sharowfox se afastou, com o sangue do Sturian na mão.

– Bem-vindo de volta.

As sombras rodearam Jarek. Como ocorrera com Luke, gavinhas negras deslizaram pela pele bronzeada do Sturian, embrenhando-se em seu corpo. Seguiram a extensão dos braços e descansaram sobre as três cicatrizes em seu peito. As marcas de sua morte e retorno.

– Erga-se. – Sharowfox comandou. Jarek obedeceu.

Riscos e runas cruzavam seu tórax. Símbolos sombrios; magia das Trevas. Cobriam desde as costas de sua mão até o ombro, dali para o peito, alcançando o tronco.

Sharowfox contornou Jarek, analisando-o com um olhar faminto. Serafine mantinha a atenção no rosto do guardião, buscando qualquer coisa familiar – mas só havia sombras e terror.

A Rainha das Trevas deslizou os dedos pela curva do braço forte de Jarek, correndo as unhas pelo abdômen.

Serafine tentou escapar de Sanzur, mas ele não a soltou.

Olhou para trás, ansiando por Ravenne, mas a muralha de escuridão havia desaparecido durante sua distração. A ponte se tornou destroços de ambos os lados.

O choque silenciou todos os seus pensamentos.

– Onde ela está? Onde eles estão? – Serafine curvou-se ao sussurrar. A dor ia além da compreensão do espírito e dela mesma.

– Longe. – Sharowfox cuspiu a palavra. – Para sorte deles.

Lágrimas embaçaram a visão da garota. Um mínimo de alívio clareou seus pensamentos. Eles tinham escapado.

A garota respirou com dificuldade e ergueu o rosto. Sharowfox a contemplava com o sorriso caloroso de antes, entregando falsa confiança à Serafine. A um gesto dela, Jarek se aproximou.

– Última chance, Serafine. Junte-se a mim, e lhe darei tudo. – A garota fitou Jarek, mas não viu nenhuma emoção nele. Nada do calor, dos sorrisos e do coração grandioso que ele costumava carregar. A linha que ligava seus destinos fora destroçada; restara um eco, lembranças que ficariam dolorosas com o tempo. Serafine inspirou profundamente durante instantes, buscando a calmaria. Lembrou-se dos treinos com seus Mestres, da voz de Luke, da promessa de esperança que carregava os warthianos para a guerra.

– Não.

– Se não vou tê-la ao meu lado... – Sharowfox tocou o ombro de Jarek. O guerreiro reagiu, enfim. Ao olhar para Serafine, ela quase desejou que ele não o tivesse feito; era um estranho. Um monstro. – Ninguém mais terá.

Jarek estendeu a mão. Sharowfox pousou uma adaga familiar sobre ela; naquele momento, a imagem do terror. Serafine bateu a cabeça contra Sanzur, lutou e esperneou, mas o Amaldiçoado era uma rocha. Jarek estava à sua frente, antes que ela reagisse novamente.

A respiração dela se alterou quando sentiu o toque da lâmina fria. Serafine forçou-se a não fraquejar ao encarar o guardião.

– Jarek. – Ela chamou. Odiou os Deuses mais do que qualquer entidade terrena; eles haviam trilhado seu caminho até a devastação. Por causa deles, Jarek se fora. – Por favor.

Por um segundo, pensou ter visto algo no olhar do guerreiro. Um brilho enclausurado na escuridão. Jarek havia adquirido um semblante curioso quando ela disse seu nome, e as íris azuis faiscaram em reconhecimento.

Ele ainda estava ali. Dentro daquele avatar dominado. A alma do guerreiro que amava.

– Bons sonhos, Serafine. – Sharowfox desejou.

Jarek desceu a lâmina sobre seu coração. O mundo explodiu em dor e luz, e Serafine caiu em direção à penumbra.


Epílogo

A árvore pálida

 


NO ACAMPAMENTO, SOLDADOS IAM e vinham pelas tendas, forjas e fogueiras. Os ferreiros trabalhavam dia e noite para preparar mais armas para o exército que se reunia. Generais instruíam jovens que se voluntariaram por Warthia; havia esperança, acima de tudo. Não tão forte e inabalável quanto deveria, mas estava ali.

As manhãs nasciam mais sombrias. Tempestades assolavam o acampamento quase todas as noites; a nuvem negra que nascera ao sul estava quase sobre eles. Era difícil erguer tanta luz para destronar aquela escuridão.

Os Reis repousavam. Leyona tomara a frente do exército e discursara pedindo paciência; Demetrius estava de volta graças a Jon, e ele falaria com todos os guerreiros e guerreiras em breve. No momento, no entanto, precisava de descanso.

Leyona não entendera muito do que aconteceu desde que Jon retornara das Terras Desconhecidas, mas o tempo de viagem foi justificado quando Jon e Jill apareceram nas portas do Castelo de Tytos acompanhados por uma legião de soldados imortais. Ambos passaram a noite explicando à Leyona sobre Elurian e o acordo feito com os elfos. Para Leyona, havia muita baboseira mística para pouca explicação racional. De um jeito ou de outro, no dia seguinte, a legião de mil soldados marchou para o sul, seguindo as instruções de Leyona – que se ofereceu para guiá-los até onde os exércitos warthianos estavam se reunindo.

A Planície seria o palco da grande batalha, como outrora.

Leyona e Jon avançaram até o acampamento; os elfos se estabeleceram como se pertencessem ao lugar, muito mais confortáveis do que os humanos que aceitaram lutar pelo continente. Leyona assumiu o comando das legiões, dividindo tarefas e delegando ordens. Jon permaneceu em meditação na maior parte do tempo. Algo a ver com o acordo feito com a rainha élfica. Ele precisava de toda energia que a Luz poderia lhe oferecer.

E então, numa das noites, uma figura sobrenatural atravessou o acampamento. Leyona estava de vigia e a notara, avançando para interceptá-la em frente à tenda de Jon. O Rei dispensou a preocupação da Sturian. Ela era parte de um encantamento feito pela rainha élfica, e ajudaria Jon a salvar um grupo preso no Reino das Brumas.

O jovem Rei quase morreu naquela noite.

Jon entrara em colapso; seu corpo esquentou e esfriou, os batimentos cardíacos fugiram do controle. Leyona gritara por socorro e soldados tentaram ajudá-lo. O coração do Rei parou em determinado momento, quando uma explosão de luz cobriu o acampamento.

Transportados por magia, tão poderosa que derrubara tendas e guerreiros, um grupo de pessoas moribundas e maltratadas, que pareciam ter saído do Abismo, surgiu no acampamento. Segundos depois da aparição, elas desmaiaram tal como o jovem Rei.

Leyona mandou os soldados os levarem para as tendas e chamou os curandeiros. Jon respirava normalmente, mas não despertou no dia seguinte nem no outro. Quando o fez, mal conseguiu ficar de pé.


***


– Serafine... Ficou para trás? – Leyona desabou na cadeira, o rosto devastado. Toda uma delegação ocupava o espaço de reuniões, antes vazio. Demetrius sentava-se numa das cadeiras. Jon ao seu lado. Uma mulher chamada Ravenne, trajada num vestido escuro, tinha as marcas vermelhas que mostravam a herança sombria.

Guillian e Jill ocupavam bancos menores; o Atyubru era a imagem da exaustão. Segundo Jon, vários guerreiros e aliados ficaram para trás no Sul. Enquanto o caos arremetia sobre o Rochedo Sombrio, eles escolheram escapar pela floresta a esperar pela magia do Rei. Com sorte, não seriam encontrados pelos soldados da Feiticeira. Sharowfox não teria interesse em nenhum deles, não com Serafine em suas mãos. Ravenne considerara um trunfo. Eles teriam aliados no Reino do Sul, guerreiros e guerreiras dispostos a se erguer em meio à escuridão. Suas companheiras de luta ficaram para trás; Ravenne garantiu que elas seriam capazes de proteger aqueles que precisavam – Sibila e Cornélio estavam entre eles.

– Não tive tempo de entender o que Sharowfox fez. Estava prestes a cair do abismo quando Jon nos tirou de lá – Ravenne explicou, as mãos trêmulas cruzadas sobre o tampo da mesa.

– Esperei o máximo que pude – o jovem Rei sussurrou. Havia desolação em seu rosto pela ideia de ter deixado a esperança para trás.

– Sabemos disso. – Demetrius apertou seu ombro em um gesto de apoio.

– O que faremos? – Leyona se ergueu. – Vamos lutar? Recuar? Tentar salvá-la?

– Ainda não podemos salvá-la – Jon interpôs. Todos se voltaram para ele. – A Rainha de Elurian me explicou que o quarto Mestre não pode despertar enquanto Serafine não aprender a controlar o terceiro elemento.

– O quarto Mestre está nas Terras Desconhecidas? – Ravenne cruzou os braços.

Jon fez que sim.

– Então espera que fiquemos aqui, sentados, esperando, enquanto Serafine sofre nas mãos da Feiticeira? – Guillian se revoltou. – E quanto a Jarek? Ele também ficou lá!

Leyona fechou os olhos em uma prece silenciosa. Desesperada. Eles não tinham certeza sobre o destino do Sturian, mas Ravenne e Jon viram as Trevas atacar e Jarek despencar atrás da muralha de ébano.

– Mesmo que tentássemos resgatar Serafine, seria impossível alcançá-la – Jill argumentou. – A tempestade engoliu o Sul. Vai engolir Warthia em breve, também. Não temos como avançar para aquela região. A não ser que vocês tenham um dragão em mãos...

Jon ergueu o olhar para ela, mas desfez a expressão curiosa tão rápido quanto surgiu.

– Luke... – Ravenne disse de repente. – Luke vai cuidar dela até chegar a hora.

– Luke é um traidor – Jon rebateu amargamente.

– Luke age dos dois lados, majestade. Foi marcado pelas Trevas, mas é um filho da Luz. – Ravenne respondeu com educação, mas de forma contundente.

– O fio do equilíbrio persiste – Demetrius murmurou. – Vamos à guerra.

– Não podemos falar sobre isso para mais ninguém. Se souberem que não temos Serafine ao nosso lado, não vai haver esperança.

Todos foram incapazes de discordar do jovem Rei.

Tempos sombrios estavam se iniciando.


***


Ravenne apertou o cobertor ao redor do corpo enquanto caminhava pelo acampamento. Os pés descalços sofriam com alguns pedregulhos, mas a mulher pouco se importava. A dor em seu coração era maior, e o desconforto físico servia para mantê-la presa à realidade.

Ela chorara e se desesperara por horas pela impotência em fazer algo por Serafine. Serafine, sua garotinha.

Tão poderosa e sozinha... Mesmo certa de que Luke não deixaria sua filha, que o príncipe de gelo a protegeria e cumpriria a missão dos Deuses, Ravenne experimentava uma enlouquecedora preocupação. O coração batia forte, lançando-a em incertezas quanto ao futuro.

Mais cedo, ela fora até a tenda dos curandeiros para encontrar Mégara. A mulher que criara Serafine. Sua outra mãe. Elas nada disseram, mas Mégara recebeu seu abraço e a confortou tanto quanto se deixou ser confortada.

Os Deuses eram impiedosos. Sua palavra era lei. E a Luz precisava de seu sacrifício para reinar sobre a escuridão.

Cruel, tão cruel.

A bruxa observou a tenda azul, iluminada no interior. Se o seu ocupante compartilhasse da mesma devastação que havia na mente da Feiticeira, ele não conseguiria dormir também.

Sem perceber, Ravenne havia parado à entrada, contemplando com olhos lacrimosos as íris douradas do Grande Rei.

Demetrius estava de pé no meio do aposento, os braços cruzados nas costas, numa pose que indicava desamparo, como Ravenne se lembrava. Ele era forte demais para se deixar tombar, mas ali, sozinho, podia cair no desespero.

– Majestade. – Ela baixou o rosto.

Demetrius se aproximou. Puxou Ravenne para si, escondendo o rosto na curva de seu pescoço.

– Diga-me que ela ficará bem – ele implorou.

– Eu não sei. – Os braços estavam trêmulos ao redor dos ombros largos do Rei. – Estou com tanto medo.

– Ela é só uma menina. Uma criança. – A respiração dele falhou por instantes e o abraço de Ravenne ficou mais firme. – O que nós fizemos, Ravenne?

O coração da mulher se abateu em culpa. O choro que vinha contendo escapou.

Ravenne se afogou em dor e no calor do homem que amava. O coração de Demetrius batia contra o seu, em agonia. Eram pais feridos por ver a filha em perigo. Luz e Trevas que geraram uma criança, o fruto do pecado e a vítima de uma profecia horrenda; nada podiam fazer senão esperar e rezar aos mesmos Deuses que haviam condenado sua herdeira.

Ravenne apertou os olhos. Agarrou-se à figura familiar de Demetrius, de quem sentira falta por tantos anos. Mergulhou em seu próprio coração estilhaçado, reunindo forças para colar os cacos e se fortificar por Serafine.

Sua filha precisaria da mãe quando retornasse. Ravenne estaria lá por ela.

***


O falcão que trouxera a mensagem sobrevoou o acampamento quando Jon o libertou. Os legionários do Oeste chegariam em algumas horas, depois de se aventurarem ao Leste para recrutar mais guerreiros. Percival estava entre eles; o capitão da Tropa relutara em levar o menino, mas Jon garantira que era um dos melhores soldados. Mynna fora forçada a ficar para trás por sua mãe, e permanecera emburrada desde então.

Eles viajaram até o extremo do continente, às cidades portuárias. A mensagem trazida fora vaga, mas o capitão prometera boas notícias e uma curiosa surpresa.

Red apoiava o Sul, mas não conseguia manter controle sobre todo o seu Reino. Não quando havia um exército crescente tomando a Planície para defender Warthia. Jon queria ter certeza de que nenhum cerco se ergueria sobre o Leste quando eles avançassem, e por isso enviou seus soldados.

Jon olhou para os poucos guerreiros no labirinto de tendas. A madrugada ia alta, mas o Mago não encontrou cansaço. Pelo menos não o suficiente para enfrentar seus sonhos.

As noites do jovem Rei eram assombradas por pesadelos, em sua maioria envolvendo a viagem ao Rochedo Sombrio e a pífia tentativa de tirar todos de lá. O número de pessoas que Jon conseguira transportar de volta ao acampamento era desolador, e a ideia de ter deixado Serafine, Jarek e tantos outros acabava com o pouco de paz que ainda havia em sua mente. Seus pesadelos eram sobre dor e devastação e, quando acordava, não encontrava um cenário melhor.

Jon buscava pelo conforto da mente de Ývela, mas há muito ela desaparecera de seu alcance. Não encontrara nenhuma conexão, mas seu coração dizia que ela ainda estava por ali. Ývela ainda vivia, ainda lutava. Onde quer que estivesse

Naquela madrugada, Jon sentou-se próximo a uma fogueira. Fechou os olhos e, instintivamente, como vinha fazendo desde seu retorno de Elurian, deixou a consciência vagar para as ondas de energia que permeavam o acampamento; havia muita vida ao seu redor, muitos pensamentos e corações. Era uma maneira de descansar. Jon usara toda sua energia para resgatar Demetrius e os outros, e quase não conseguia sentir os próprios poderes, mesmo depois do repouso e recuperação. Diferentemente de quando guiara os sobreviventes da Fortaleza do Dragão, aquilo havia exaurido o Rei. Ele visitara o lar das sombras e fugira de lá, mas toda magia tinha um preço.

As horas se passaram durante sua meditação. Não havia muito a fazer além de se acalmar e colocar os pensamentos em ordem. Pela manhã, Leyona o encontrou para acompanhá-lo ao curandeiro. Ela puxava suas orelhas como uma mãe e cuidava dele como uma melhor amiga. Jon aceitou o apoio e ela o colocou de pé, beliscando seu braço por ter ficado exposto ao frio.

As cornetas anunciaram a chegada dos legionários do Oeste. Homens da Tropa de Arqueiros que continuaram a servir Jon mesmo em sua ausência; ele sorriu ao observar que vinham das colinas do Leste e depois franziu o cenho ao notar a quantidade de cavalos e carroças. Muito mais do que o esperado.

– Talvez tenham se cansado do Rei deles. – Leyona sugeriu. Ambos tomaram o caminho das forjas, onde as carroças costumavam desembarcar. – Poderíamos usar mais civis para ajudar com as coisas por aqui.

Percival correu a procurar o Rei. Jon o cumprimentou com um abraço orgulhoso.

– Não vai acreditar em quem nós encontramos, majestade!

Antes que ele pudesse contar, o capitão dos legionários se apresentou ao Rei. Jon, no entanto, só tinha olhos para os guerreiros que o acompanhavam. Além da Tropa, havia mulheres e homens com tons de pele dos mais variados, azul e verde inclusive; eram humanoides, mas Jon reconhecia as características das raças aquáticas: orelhas pontudas e divididas, olhos grandes e expressivos, silhuetas esguias e feições finas.

– Recebemos o aviso de que as cidades portuárias tinham sido sitiadas. Foram tomadas dos soldados do Leste, e não há força capaz de derrubar o povo que se estabeleceu ali – o capitão explicou. Leyona desviou o olhar de Jon para o homem. – Quando chegamos para recrutar soldados, a maioria já estava preparada para a guerra.

– Eles esperavam por nós! – Percival exultou, animado.

– Não exatamente nós – o capitão corrigiu. – Esperavam pelos warthianos. Sabiam, de algum modo, que a resistência apareceria e seriam chamados para a guerra. Os civis da região têm sido treinados pelos soldados das Águas desde então.

– E por que eles estão em terra? – A mulher questionou. Percival ia responder, mas Jon o fez antes:

– O Reino das Águas caiu.

– Isso é tudo que restou? – Leyona sussurrou. Havia no máximo cem guerreiros espalhados pelas colinas; muito menos do que era esperado do exército das Águas. Muito mais poderosos que os mortais, sim, mas ainda uma quantidade ínfima.

– Não. Essa comitiva veio para conversar com nossos comandantes e oferecer ajuda.

Jon caminhou entre os recém-chegados. Os arqueiros da Tropa o cumprimentaram e saudaram, atraindo a atenção dos desconhecidos. Ele procurava por alguém; um rosto. Jon precisava encontrá-lo entre todas aquelas criaturas. O olhar que prometeria a paz que ele vinha buscando havia tempos.

– Majestade. – Percival segurou seu braço, compreendendo o que havia no rosto do Mago. – Ela está aqui.

Ao fim do acampamento, próxima às carroças com suprimentos e armas, Ývela parecia deslocada entre os que a observavam. Estava ladeada por quatro guerreiras altas e poderosas, ameaçadoras à primeira vista.

Jon estacou. Leyona pressionou seu ombro em apoio.

Ývela, o Mago pensou; como se o tivesse ouvido, a ondina virou-se.

O rosto estava marcado por cansaço e fraqueza. Seus olhos não brilhavam como antigamente. Ela parecia ter envelhecido anos em semanas. O peso do trono a tinha exaurido ao máximo; os cabelos não possuíam a cor vívida de antes, olheiras pesavam suas pálpebras. Ývela abandonara a coroa e vestia uma armadura despedaçada. Mas ainda havia força e gentileza, todas as emoções poderosas que a marcavam como o coração do jovem Rei.

Sua fragilidade se desfez repentinamente. Ývela riu e apertou as mãos sobre a boca, apressando-se na direção de Jon. Antes que ela o alcançasse, no entanto, os braços do jovem Mago contornavam a ondina, erguendo-a do chão com facilidade. Ela deitou o rosto em seu pescoço e inspirou profundamente, fazendo cócegas na pele do Rei.

Jon fechou os olhos. Ali estava o sentimento inconsistente e inalcançável nos últimos dias. A paz e a esperança que poderiam levar a caminhos um pouco menos sombrios.

Por um momento, esqueceu a tormenta que o cercava. Nada mais importava.

Ývela se afastou, o rosto tomado por uma expressão de dor. Jon ia questioná-la, mas ela ergueu a mão, pedindo calma. As mudanças eram perceptíveis; os braços de Ývela não apresentavam as espirais azuladas de antes. As feições não tinham o aspecto de jovialidade eterna. Ela estava quase... Humana.

Leyona se adiantou, assistindo a cena entre eles:

– Como chegaram até o continente, majestade?

– Nós fugimos – Ývela explicou para a Sturian. – Usamos passagens antigas no Reino das Águas, escapes de guerras ancestrais. Viajamos para o Leste tão logo confrontamos a escuridão crescente no Sul. Perdemos nosso Reino, mas ainda tínhamos forças e guerreiros o suficiente para ajudar as cidades pelas quais passamos. Tomamos as vilas portuárias porque muitos de meus soldados precisam da proximidade com o elemento para se fortificar. As outras vilas e cidades estão à mercê do Rei Red, pelo menos enquanto essa confusão durar. – Jon suspirou.

– O Leste está um completo caos – Percival confidenciou. – Os pescadores e comerciantes disseram que as sombras estão dominando aqueles que não se curvarem a Red.

Jon inspirou fundo; mesmo com a presença de Ývela, o momento de paz se dissipou. A realidade era uma incerteza. Ele não podia se dar ao luxo de escapar disso. Não quando havia uma coroa sobre a cabeça e poder em sua voz.

Ývela segurou sua mão. Leyona e o capitão trocavam informações sobre o número de soldados das Águas e de civis warthianos dispostos a ingressar nas legiões, mas Jon cingiu as sobrancelhas ao ver o olhar da ondina.

– Não havia mais o que fazer pelo oceano. Sacrifiquei o que restava de magia em mim para selar a prisão dos leviatãs, mas é questão de pouco tempo até Sharowfox livrá-los.

Jon entrelaçou seus dedos e trouxe a mão dela até seus lábios, pousando um beijo nela.

– Foi sábia ao sair de lá. Salvou todas essas vidas, Ývi. As Trevas estão muito poderosas. – Ele se lembrou da fala da rainha élfica: Às vezes, tirar as peças do jogo e recomeçar pode ser a melhor opção. Ývela sorriu. Não era o mesmo sorriso radiante de antes, mas iluminou seus olhos e feições e trouxe vida ao semblante exausto da ondina.

– E quanto a Serafine? Tiveram alguma notícia dela? – As feições do Rei se tornaram tensas. Leyona e ele se entreolharam.

– Falaremos sobre isso mais tarde. – Ývela não precisou ouvir mais uma palavra para que seus olhos caíssem em dor.


***


Era início da noite. O crepúsculo acompanhava a chegada dos novos soldados e a promessa dos que aguardavam nas cidades portuárias. Junto aos elfos das Terras Desconhecidas e os humanos, a esperança parecia uma faísca na escuridão. Poderia se tornar um incêndio caso a incitassem.

A ondina vinha se mostrando muito prestativa em tudo que podia. Fosse dando ordens ou seguindo-as, ela decidiu que o melhor a fazer seria manter a mente e o corpo ocupados. Jon sugeriu que Ývela dormisse por algumas horas, mas ela se recusou. Já havia descansado o bastante desde que seu povo alcançou o continente; a viagem para o Leste, a travessia perigosa da Planície para evitar as cidades dobradas pela escuridão, e então a tomada dos portos. Ývela tivera tempo demais para pensar e se ressentir. Ali, no acampamento, queria ajudar.

Depois de ouvir as histórias de Guillian – o Atyubru a poupou de muito sobre a viagem pelo Sul – saber do que ocorrera foi suficiente para atormentá-la. Serafine, Jarek, Sibila. Destinos incertos. Um único guardião ficara para trás, sozinho naquele caminho terrível. E a ondina não podia fazer mais do que abraçá-lo e consolar o orelhudo por não ter estado presente para ajudar.

Ývela parou diante da tenda de Jon quando a noite estava começando. Inspirou e correu os dedos pelo tecido escuro e empoeirado, entrando. Embora a Planície fosse um terreno hostil, certamente ainda era o melhor para montar acampamento. Cercada por Quatro Reinos, carregava a energia de antigas guerras. De embates entre titãs. Talvez por isso a ondina encontrara forças para se levantar e ajudar; talvez por isso estivesse ali, na tenda do Rei.

Ela parou e esperou. Jon afundara o rosto numa bacia de água fria e emergiu num ofego. As mãos apertavam o vasilhame com força; os ombros estavam tensos.

Ele secava o rosto e parou ao avistar Ývela.

As semanas de separação foram poucas e ainda assim ele havia mudado tanto. Os olhos carregavam mais força; a voz, mais poder. O cabelo curto e a barba rala eram diferentes do visual aristocrático que ele sempre usara. As linhas em seu rosto, os contornos de seu corpo. Tudo soava diferente.

Ele tinha se tornado um estranho? Ou a guerra fazia isso com todo mundo?

– Aconteceu alguma coisa? – A pergunta preocupada a fez sorrir.

– Está tudo bem – ela garantiu. Caminhou pelo aposento e pôs-se a examinar os detalhes com curiosidade.

Observou a espada, o escudo e o cajado. Viu a armadura arrumada em uma cadeira; o símbolo do Norte no peito da peça e o Sol do Oeste rabiscado rudemente ao lado. Um trabalho apressado, mas significativo.

– Senti sua falta, Jon. – A ondina confessou. Olhou por cima do ombro e o viu a contemplá-la com devoção, entrega e amor incondicionais.

Ývela chegou mais perto e passou os braços pelo corpo do Mago, deitando o rosto em seu peito. Inspirou e fechou os olhos sob a presença do Rei. Jon retribuiu ao gesto com força e cuidado.

Ela se afastou suavemente, sem deixar de tocá-lo.

– Estou sendo egoísta? – Ele não compreendeu a pergunta. – Por amá-lo? Dói em você? Com tudo o que vem acontecendo, mesmo a maldição de minha mãe não parece mais fazer sentido. Ela viu força em meu amor e eu, em minha vida terrestre. Senti a força no que vivi com você. Eu só temo...

– Ývela. – A maneira apaixonada com que ele sussurrou seu nome trouxe um calafrio ao seu corpo. – Não tenho medo disso. Eu a perdi tantas vezes. Há uma guerra sobre nós, não posso perdê-la de novo. – Ývela fechou os olhos quando Jon acariciou seu rosto. Ficou na ponta dos pés e passeou os lábios pelo queixo do Rei, alcançando sua boca num beijo rápido.

– Eu sou seu, Ývela. Desde o primeiro momento em que a vi. – Jon trilhou o pescoço da ondina com os dedos e a beijou, sorrindo ao vê-la relaxar sob o seu toque. Num gesto lento, Jon passou as mãos por baixo dos joelhos dela, erguendo-a para que se encaixasse ao seu quadril. Com os rostos na mesma altura, Rei e Rainha, homem e mulher, amigos e amantes, fitaram o amor refletido em seus olhares.

– Apenas uma vez, seremos Jon e Ývela.

– Mais uma vez – a ondina corrigiu, sorrindo sob o beijo. Jon se retesou. – O que houve?

Dor cobriu o semblante dele.

– Me lembre, Ývela – ele pediu, e havia desespero e melancolia em seu tom.

– O que quer dizer?

Jon fechou os olhos.

– Me ajude a lembrar como foi entregar meu coração a você.

Ývela sorriu, mas ele não retribuiu o gesto. Antes que ela o questionasse, Jon a beijou. Durante algumas horas, eles mergulharam em seus próprios sentimentos e deixaram que os corpos respondessem a todas as emoções que inundavam a alma. Eram apenas Ývela e Jon, como ela se lembrava.


***


A mensagem chegou uma semana depois. Em sua tenda, Demetrius preparava-se para dormir quando a visão surgiu em sua mente, e em todas as mentes naquele acampamento.

Os olhos de Sharowfox eram faróis incandescentes e perversos.

Filhos da Luz... Ao amanhecer do décimo dia, em frente à árvore pálida que habita a Planície, vocês verão, no horizonte, o poder da verdadeira Rainha.

Não demorou muito para Jon aparecer, seguido de Ravenne, Leyona e outros guerreiros.

Era uma armadilha, obviamente. Um chamado à luta da pior maneira possível; não havia como evitar aquela batalha a não ser que recuassem, e não fora para isso que reuniram aquele exército.

Quatro mil guerreiros. Dois mil marchariam para o local indicado – precisavam estar preparados para o pior, e esse pior falava sobre a Planície coberta de sangue.

Demetrius e Jon designaram legiões e assentamentos em todo mapa; dividiram seus soldados da melhor maneira possível. Ainda havia civis a serem protegidos, cidades a serem guardadas. O Sul se perdera, mas o Norte era uma fronteira contra as Trevas. Mesmo o Oeste e o Leste poderiam ser recuperados. Se um coração resistisse contra a escuridão, eles teriam chance.

A marcha iniciou ao amanhecer do terceiro dia de preparação. Os que não podiam lutar ficaram para trás, para seguir até um dos assentamentos quando o exército se distanciasse. O que antes fora o acampamento se tornou um rastro de poeira, cinzas e o resquício de suas presenças. Jon olhou para trás; dois mil guerreiros marchavam. Contemplou as colinas da Planície, com o Grande Bosque margeando o horizonte. À frente, a escuridão. Uma nuvem de ébano e tempestade que não cobria apenas o Sul, mas avançara para cantos remotos; além do continente e do oceano.

Ývela cavalgava ao seu lado. Trajava a armadura de batalha, o olhar coberto por determinação. À direita da ondina estava Maya, a sereia de semblante frio e presença imperiosa.

Leyona seguia à direita de Jon, com a característica expressão preocupada. Percival e Mynna foram despachados para um dos assentamentos; Leyona não arriscaria tê-los em campo de batalha. Um dia, lutariam por Warthia. Naquele, sobreviveriam.

Demetrius e Ravenne formavam um par notável; Jon entendeu o que os unia logo que os viu. Eram laços invisíveis, uma força mútua. Seus olhares transmitiam mais do que palavras.

Guillian e Jill ficaram responsáveis pelo assentamento do Norte. Urir cuidaria do Castelo de Tytos. Havia Atyubrus em meio às legiões, mas o principal motivo para Demetrius tê-los mandado de volta era o fato de que o Grande Bosque pertencia à espécie. Se havia uma raça disposta a defendê-lo, com força suficiente para fazê-lo pelo tempo que fosse necessário, eram os Atyubrus. E Guillian era um guardião, o último que restara com certeza. Sibila dependia dos piratas e das Feiticeiras Desertoras que ficaram no Sul. Jarek... Jarek dependia da bondade dos Deuses; Serafine se fora, mas não completamente. Quando retornasse, a resgatassem ou ela estivesse forte suficiente para escapar, precisaria de Guillian.

O local marcado pela Rainha das Trevas ficava próximo a uma árvore solitária, bem à leste do centro de Warthia. O exército da Luz se estabeleceu à distância; Demetrius dividiu os flancos, Jon despachou os arqueiros e os lanceiros para seus respectivos lugares. Se aquela era uma armadilha, eles a enfrentariam. Se houvesse justiça em batalha, lutariam o seu melhor.

Os raios da aurora riscaram o céu à esquerda.

Então vieram os tambores.

Ecoavam pelo ar, trazidos pelo vento da manhã. Sons paralisantes e poderosos.

Jon incitou seu corcel a permanecer parado; os soldados lutaram para fazer o mesmo. Olhou preocupado para Ývela, mas ela tinha o queixo erguido e o olhar atento. A expressão de uma guerreira experiente. De uma Rainha.

Uma tempestade se formou e a escuridão se espalhou pela Planície. Nuvens desceram em redemoinhos ao chão; raios espocaram pelo ar.

Os tambores se intensificaram. Vinham dos céus, da terra, do entorno. Não havia nenhum exército inimigo à vista, mas uma silhueta surgiu em meio ao tornado. Um rosto com olhos vermelhos vivos e garras.

Um leviatã.

Ývela ofegou ao lado de Jon, os olhos azuis arregalados.

Com dezenas de metros de altura, a criatura desprendia horror. Parou no topo da colina e aguardou. Era a única coisa entre o exército da Luz e o horizonte sombrio; a única legião de Sharowfox.

– Demetrius? – Jon o chamou. As sombras eram ardilosas e sua Rainha, uma supernova prestes a explodir. O leviatã representava a força e o terror que Sharowfox desejava estender sobre Warthia. – E agora?

– Agora nós lutamos.

 

 

                                                   Denise Flaibam         

 

 

 

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