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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS CASAS DE ARMAS / A. E. Van Vogt
AS CASAS DE ARMAS / A. E. Van Vogt

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS CASAS DE ARMAS

 

No ANO DE 4784 o Universo era inteiramente dominado pelo Império de Isher, governado com poderes absolutos pela bela e jovem Imperatriz Innelda. Mergulhada em jogos e prazeres, a ditadura de Innelda levou Isher à beira de um desastre cósmico. Para evitar a destruição de bilhões de seres humanos espalhados pelas colônias existentes nos outros planetas e luas, surgiram aparentemente do nada cadeias de inquietantes e misteriosas lojas de armas, que traziam na fachada um estranho lema: "O direito de comprar armas é o direito de ser livre". Essas lojas protegidas por uma enorme força energética, absolutamente intransponível, faziam parte de uma sociedade secreta de oposição à ditadura, que vendia suas armas aos cidadãos ameaçados.


 Prologo

MÁGICO ACREDITA TER HIPNOTIZADO A MULTIDÃO

Junho 11 — A polícia e a imprensa de Middle City foram avisadas da próxima chegada de um mágico e estão dispostas a fazer-lhe uma entusiástica acolhida se ele consentir em revelar-lhes como levou centenas de pessoas a acreditarem ter visto uma construção estranha, aparentemente uma espécie de loja de vender armas.

O edifício pareceu surgir no espaço ocupado antigamente e ainda agora pela Aunt Sally’s Lunch e pela alfaiataria Patterson. Havia somente empregados nas citadas lojas e nenhum notou nada. Uma enorme e brilhante tabuleta encimava a loja, tão miraculosamente saída do nada; e essa tabuleta indicava claramente que tudo não passava de uma habilíssima cena de ilusionismo. De qualquer lado que se olhasse, lia-se claramente as palavras:

 

ARMAS DE QUALIDADE

O DIREITO DE COMPRAR ARMAS É

O DIREITO DE SER LIVRE

 

A vitrine estava arrumada com uma quantidade de armas curiosas, fuzis e revólveres, e um letreiro luminoso dizia:

AS MELHORES ARMAS ENERGÉTICAS DO UNIVERSO CONHECIDO

O Inspetor Clayton, do Departamento de Investigações, tentou entrar na loja mas a porta parecia estar fechada. Alguns momentos depois, C. J. (Chris) McAllister, repórter do Gazette-Bulletin, empurrou a porta e, encontrando-a aberta, entrou.

O Inspetor Clayton tentou segui-lo mas verificou que a porta estava fechada outra vez. Parece que McAllister saiu pelos fundos, como vários espectadores afirmaram. Imediatamente após sua reaparição, o estranho edifício esfumou-se tão abruptamente quanto tinha aparecido.

A Polícia declarou não saber explicar como o mágico conseguiu criar uma ilusão com tantos detalhes e por tão longo tempo diante de tanta gente. Eles estão dispostos a recomendar a exibição do mágico calorosamente.

(Nota do Autor: A notícia acima não diz que a polícia, descontente com, o caso, procurou contatar McAllister para um interrogatório, mas não conseguiu localizá-lo. Passaram-se semanas; até agora ele não foi achado.

Que terá acontecido a McAllister desde o momento em que encontrou aberta a porta da loja de armas?)

Havia algo de estranho na porta da loja de armas. Bastara-lhe encostar a mão nela para que se abrisse. E quando a empurrou, parecia não ter peso. Era isso o que mais o espantava.

Ficou paralisado pela estupefação. Pouco antes, quando Clayton a sacudira, aquela porta estava trancada. Aquilo parecia uma advertência...

— Deixe comigo, McAllister — gritou o policial, atrás dele.

O interior da loja estava escuro e McAllister não conseguia enxergar além das trevas que reinavam na parte de dentro. Seu instinto profissional foi mais forte: deu um passo para dentro da escuridão. Com, o rabo do olho, via a mão do inspetor avançando para a maçaneta que ele acabara de largar. Se dependesse de Clayton, tinha certeza, nenhum jornalista entraria naquela loja. Sem perder o policial de vista, ia penetrar na escuridão da loja de armas quando aconteceu uma coisa incrível: a maçaneta esquivou-se da mão do inspetor.

Deformou-se curiosamente e desfez-se como se fosse, não de matéria, mas de energia. E a porta chocou-se com, o calcanhar de McAllister, num contato quase imaterial. Antes que pudesse refletir ou reagir, levado por seu próprio impulso, havia entrado. Assim que respirou a escuridão, teve a agoniante impressão de que seus nervos arrebentavam. A porta fechou-se. O mal-estar dissipou-se. À sua frente aparecia a decoração brilhantemente iluminada da loja. Atrás, coisas incríveis!

Incapaz de pensar, ficou imóvel, o corpo paralisado numa atitude desajeitada. Embora só tivesse uma vaga idéia do que o cercava, tinha, em compensação, uma exata consciência do instante em que se produziria a rutura: numa fração de segundo, no momento em que franqueara a soleira da porta, fora como que seccionado, isolado, do mundo exterior.

Não havia mais trevas impenetráveis, nem Inspetor Clayton. Ou a multidão embasbacada e barulhenta. Também haviam desaparecido as fachadas em mau estado das lojas existentes na rua. Na verdade, não havia mesmo mais a rim, mas um aprazível parque e, por trás dele, no luminoso sol do entardecer, o perfil de uma imensa cidade. Nas suas costas, uma voz cheia e musical de mulher disse:

— Vai querer uma arma?

McAllister virou-se. Seu movimento foi a reação automática a um som. E porque tudo ainda lhe parecia um sonho, a visão da cidade dissolveu-se quase instantaneamente; a sua mente focalizou-se na moça que vinha lentamente do fundo da loja. Por alguns instantes, não conseguiu pensar claramente. A convicção de que deveria dizer alguma coisa misturava-se com a primeira impressão causada pela aparência da moça. O corpo era esguio e bem feito e ela sorria agradavelmente. Os olhos eram castanhos e o cabelo ondulado também. Seu vestido e as sandálias simples pareciam tão normais à primeira vista, que ele não lhes deu maior atenção. Conseguiu dizer:

— O que eu não posso compreender é por que o policial que tentou me seguir não conseguiu entrar. E onde está ele agora?

Para surpresa sua, o sorriso da moça tomou um ar de desculpa:

— Sabemos que as pessoas acham ridículo nós ainda insistirmos neste feudo antigo.

Sua voz tornou-se mais firme.

— Sabemos até o quanto é inteligente a propaganda que sublinha a tolice da nossa posição. Enquanto isso, nunca permitimos a entrada de um dos homens dela aqui, Continuamos a levar nossos princípios muito a sério.

Fez uma pausa, como se esperasse compreensão de sua parte. Mas McAllister percebeu pela, expressão do rosto dela que sua aparência devia ser tão estupefata quanto os seus pensamentos. Os homens dela! A moça tinha pronunciado aquelas palavras como se se referisse

— O senhor quer dizer que não sabe nada disto, que não sabe que durante gerações, nesta época de energias devastadoras, existiu a liga dos Fabricantes de Armas, como única proteção contra a escravidão? O direito de comprar armas — parou, observando-o, depois continuou: — Pensando bem, há algo de muito peculiar no senhor. Essas roupas estranhas, o senhor não é um granjeiro das planícies agrícolas do Norte?

Ele sacudiu u cabeça silenciosamente e, a cada minuto que passava, ficava mais irritado com suas reações. A maça continuou mais vivamente:

— E pensando bem, é espantoso que o policial tivesse tentado abrir a porta sem que tenha havido alarma.

Sua mão moveu-se. Metal brilhou dentro dela, como alumínio na intensa luz do sol. Não havia mais um tom de desculpa na sua voz, quando disse:

— Fique exatamente onde está, senhor, até que eu chame meu pai. No nosso negócio, com as 7iossas responsabilidades, não podemos nos arriscar. Existe algo de muito errado nisto tudo.

Curiosamente, nesse momento, a mente de McAllister começou a funcionar com clareza. Seus pensamentos chegavam paralelos aos dela. Como havia penetrado naquele mundo fantástico? Existia realmente algo de errado naquilo tudo.

Era a arma que prendia sua atenção. Tratava-se de um objeto pequeno, com o formato de uma pistola. Mas uma pistola em miniatura, cuja culatra ligeiramente bulbosa estava ornada com três cubos alinhados em semicírculo. Ele começou a se sentir abalado, olhando a arma, porque aquele pequeno instrumento perigoso brilhando na sua mão morena era tão real quanto ela mesma. — Pelo amor de Deus — murmurou. — Que diabo de arma é esta? Abaixe essa coisa e vamos tentar esclarecer a situação.

Ela parecia não estar ouvindo. McAllister percebeu que ela estava fixando um ponto na parede, um pouco à sua esquerda. Seguindo seu olhar, chegou a ver acenderem-se sete pequenas luzes. Luzes estranhas. Ficou fascinado pelo jogo de luz e sombra, o aumento e diminuição da luz de um globo minúsculo para o outro, um movimento ondulado de variação de intensidade infinitesimal, um efeito incrivelmente delicado de reação a um barômetro super sensível. As luzes estabilizaram-se; voltou a olhar a moça. Para surpresa sua, estava guardando a arma. Ela devia ter notado sua expressão.

— Está bem — disse calmamente. — Os automáticos o estão vigiando. Se estivermos enganados a seu respeito, pediremos desculpas. Enquanto isso, se ainda está interessado em comprar uma arma, terei muito prazer em demonstrá-la.

Então os automáticos o estavam vigiando, pensou McAllister. Esta informação não lhe trouxe nenhum alívio. De qualquer maneira, aqueles automáticos não estariam do seu lado. O fato de a moça guardar a arma, apesar do seu tom de suspeita, dizia muito da eficiência dos novos cães de guarda.

— Sim, por favor, gostaria de ver. — Acrescentou: — Não duvido de que seu pai esteja aqui perto, fazendo uma espécie de estudo da minha pessoa.

A jovem não fez menção de mostrar armas. Em vez disso, olhava-o perplexa.

— Talvez o senhor não esteja percebendo — disse lentamente — mas já abalou toda a nossa instituição. As luzes dos automáticos deveriam ter-se acendido no momento em que meu pai pressionou os botões, como fez quando eu o chamei. E isto não aconteceu! Não é natural e no entanto — franziu as sobrancelhas — se o senhor é um deles, como conseguiu passar por aquela porta? É possível que os cientistas dela tenham descoberto seres humanos que não afetem as energias sensitivas? E que o senhor é apenas um de muitos, enviado para ver se é possível entrar ou não? Mas isto também não faz sentido. Se tivessem a menor esperança de sucesso não jogariam fora a possibilidade de uma surpresa esmagadora. Neste caso, o senhor seria a cunha que permitiria um ataque em grande escala. Ela é implacável, brilhante e tem um poder absoluto sobre pobres ingênuos como o senhor, que só pensam em adorar o esplendor de sua Corte Imperial.

Havia uma cadeira no canto. McAllister queria sentar-se. Sua mente estava mais calma.

— Olhe — começou — não sei de que está falando. Nem sei como entrei nesta loja. Concordo que tudo isto pede uma explicação, diferente da que eu possa dar.

Sua voz foi diminuindo. Estava sentando-se, mas em vez de se deixar cair na cadeira, levantou-se, lentamente, como uma pessoa muito idosa. Seus olhos fixaram-se num letreiro luminoso, situado em cima do mostruário de armas, atrás dela. Sua voz estava rouca:

— Isto é... um calendário?

Ela acompanhou seu olhar intrigada:

— Sim, é 3 de junho. Vejo errado?

— Não é isso, é... — teve que fazer um esforço — são os números em cima, é... que ano é este?

A moça parecia surpresa. Ia dizer alguma coisa, mas parou. Finalmente disse:

— Não tem nada errado, é o ano 4784 da Casa Imperial de Isher.

 

McAllister sentou-se muito lentamente, enquanto o espanto se concretizava. Os acontecimentos começaram a adquirir uma forma distorcida. A fachada do edifício superposta às das duas lojas; a maneira da porta agir. O grande anúncio luminoso exterior, estabelecendo uma estranha conexão entre a liberdade e o direito de comprar armas. As armas expostas na vitrine, as melhores armas energéticas do universo conhecido!... Percebeu que a moça estava falando com um senhor alto e grisalho que tinha entrado pela mesma porta por onde ela entrara anteriormente. Havia algo de muito tenso na sua conversa. As palavras, ditas em tom baixo, lhe chegavam indistintas, um som estranho e inquietante. McAllister não podia captar o seu sentido até que a moça perguntou:

— Como é o seu nome? McAllister disse-lhe.

A moça hesitou e depois falou:

— Senhor McAllister, meu pai deseja saber de que ano o senhor é!

O senhor grisalho aproximou-se.

— Sinto muito, mas não há tempo para explicar. Aconteceu o que nós, os Fabricantes de Armas, tememos há muitas gerações: que mais uma vez alguém viria, cobiçando um poder ilimitado e que, para alcançá-lo, teria necessariamente que nos destruir primeiro. A sua presença aqui é a manifestação da força energética que ela desencadeou contra nós — algo tão novo que nós nem suspeitávamos que estivesse sendo usado. Mas não tenho tempo a perder. Consiga todas as informações possíveis, Lystra, e previna-o do perigo pessoal que corre.

O homem se retirou e a porta fechou-se atrás dele silenciosamente.

McAllister perguntou:

— Que quis ele dizer com — perigo pessoal?

— É difícil explicai' — começou ela constrangida. — Antes de mais nada chegue até a janela e eu vou tentar esclarecer tudo. Imagino que tudo isto deve ser muito confuso para o senhor.

McAllister respirou fundo.

— Agora estamos fazendo algum progresso.

Não estava mais alarmado. O homem grisalho parecia saber do que estava falando. Isso significava que não devia haver problemas para a sua volta. Quanto ao perigo para a liga dos Fabricantes de Armas, isso era problema deles e não seu. Andou em direção à moça. Para seu espanto ela recuou como se a estivesse ameaçando. Quando ele a encarou, ela respondeu com um sorriso triste; finalmente disse:

— Não pense que estou sendo tola; não fique ofendido.. . mas pelo amor que tem à sua vida não toque em nenhum corpo humano.

McAllister sentiu um calafrio. Depois, repentinamente, sentiu uma onda de impaciência invadi-lo, diante do medo estampado na face da jovem.

— Olhe — disse — quero esclarecer este negócio. Podemos conversar aqui, sem perigo, contanto que eu não a toque ou chegue perto de você. Está certo ?

Ela fez que sim com a cabeça.

— O chão, as paredes, cada peça do mobiliário, a loja toda é feita de material não condutor.

McAllister tinha a sensação de estar se equilibrando numa corda em cima de um abismo sem fim.

— Vamos começar pelo começo — disse. — Como foi que seu pai e você souberam que eu não era... — fez uma pausa antes de terminar a estranha frase — deste tempo ?

— Meu pai o fotografou — disse a jovem. — Fotografou o conteúdo dos seus bolsos. Foi aí que descobriu o que estava errado. Veja, as energias sensitivas se tornam condutoras das energias com as quais o senhor está carregado. Era isto que estava errado. Foi por isso que os automáticos não o focalizaram, e...

— Energia... carregado? — perguntou McAllister. A moça olhou espantada.

— Não está compreendendo? — perguntou ofegante. — O senhor atravessou um período de sete mil anos no tempo. E de todas us energias do mundo, o tempo é a mais potente. Se der um passo fora desta loja, o senhor fará explodir a Cidade Imperial e mais de uma centena de quilômetros de terras em volta. O senhor — sua voz tornou-se hesitante — o senhor poderia, provavelmente, destruir a Terra!

 

Não havia notado o espelho antes. Engraçado, também, porque era bastante grande, com mais de dois metros de altura e bem na sua frente, na parede que um minuto antes (poderia jurar) era de metal sólido.

— Olhe-se — disse a moça para tranqüilizá-lo — nada acalma mais do que a nossa própria imagem. Para dizer a verdade, o seu corpo está suportando muito bem o choque mental.

Ele olhou fixamente a própria imagem. Seu rosto estava muito pálido. Mas o corpo não estava tremendo como sugerira o redemoinho em sua mente. Teve consciência novamente da presença da moça. Estava mexendo em diversos interruptores na parede.

— Muito obrigado — disse ele — eu estava mesmo precisando disto.

A jovem sorriu para lhe dar mais coragem. Agora ele estava em condições de ver o quanto era contraditória a personalidade dela. Por um lado, sua, incapacidade de mostrar o perigo, sua dificuldade de encontrar palavras para explicar a situação. No entanto, o detalhe do espelho demonstrava um profundo conhecimento da psicologia humana. Disse:

— O problema agora, do seu ponto de vista, é lograr essa mulher de Isher e conseguir me enviar de volta antes que eu faça explodir a Terra do ano... seja que ano for.

A moça aquiesceu.

— Meu pai diz que o senhor pode ser enviado de volta mas, quanto ao resto, veja!

Não teve tempo para sentir o alívio por saber que poderia voltar ao seu tempo. Ela apertou outro botão. O espelho desapareceu na parede metálica. Mais um botão e a parede desapareceu. À sua frente, estendia-se um parque igual ao que tinha visto através da porta de entrada, obviamente uma continuação da mesma paisagem.

O horizonte era dominado por um enorme edifício, tão alto quanto largo. Estava a meio quilômetro de distância e, inacreditavelmente, parecia ter essa mesma altura e comprimento. Em toda parte, havia evidência de trabalho dinâmico mas não se via ninguém nem havia o menor movimento. Mesmo as árvores estavam imóveis.

— Veja! — disse a moça em tom mais baixo. Desta vez não houve nenhum som. Ela ajustou um dos botões e a visão não era mais tão nítida. Não era a intensidade da luz solar que tinha diminuído. Ou que houvesse um vidro visível onde antes não havia nada. Não havia nenhuma substância aparente entre eles e o maravilhoso parque. Mas este não estava mais deserto.

Havia uma. multidão de homens e máquinas. McAllister olhava assombrado. A sensação de ilusão se diluiu mostrando a real ameaça que representavam estes homens e a sua emoção se transformou em temor.

Finalmente disse:

— Mas estes homens são soldados, e as máquinas são...

— Armas energéticas — disse ela. — Este sempre foi o problema deles: como conseguir aproximar suas armas de nossas lojas, para nos destruir. Não que suas armas não sejam potentes e de longo alcance. Mesmo os nossos rifles podem matar seres vivos sem proteção especial a quilômetros de distância. Mas as nossas lojas estão tão protegidas que, para nos destruir, têm que usar as armas mais potentes à queima roupa. No passado isto nunca foi possível porque o parque em volta da loja nos pertence e o sistema de alarme era perfeito... até agora. Esta nova energia que estão usando não afeta nenhum dos nossos instrumentos protetores; e, o que é infinitamente pior, propicia-lhes um perfeito escudo contra nossas -armas. Naturalmente que se conhece a invisibilidade há muito tempo, mas se o senhor não tivesse vindo, nós teríamos sido destruídos sem nem saber o que estava acontecendo.

—Mas — exclamou McAllister — o que é que vocês vão fazer? Eles ainda estão lá fora, trabalhando... Os olhos dela tinham um brilho intenso.

— Meu pai preveniu a liga. E diversos membros descobriram que as mesmas armas invisíveis estavam sendo montadas por soldados invisíveis em volta de suas lojas. O conselho se reunirá em breve para discutir as possibilidades de defesa.

McAllister observou em silêncio os soldados ligando o que deveriam ser cabos invisíveis e que vinham do imenso edifício. Cabos com mais de trinta centímetros de espessura atestando o poder titânico que deveria ser desencadeado contra a pequena loja de armas. Não havia nada a dizer. A realidade do que estava acontecendo lá fora dispensava palavras. De todos, ele era o mais desnecessário, a sua opinião a menos importante. Ele deve ter dito alto o que estava pensando, mas só percebeu quando a voz familiar do pai da moça soou ao seu lado.

— O senhor está muito enganado, Sr. McAllister. De todos aqui, o senhor é o mais importante. Foi por seu intermédio que descobrimos que Isher estava nos atacando. Além disso, nossos inimigos não sabem de sua existência e conseqüentemente ainda não sabem do efeito real produzido pela nova energia que estão empregando. O senhor, portanto, constitui o fator desconhecido. Devemos fazer uso imediato do senhor.

McAllister achou que o pai da moça subitamente lhe parecia mais velho. Havia profundas rugas em seu rosto e sua voz, quando se dirigiu à filha, era cortante:

— Lystra, n. ° 7l

Enquanto a moça apertava o sétimo botão, seu pai explicou rapidamente a McAllister:

— O Conselho supremo da liga está realizando agora uma sessão de emergência. Precisamos escolher o método mais conveniente para atacar o problema e nos concentrar, individual e coletivamente, nesse método... Debates regionais estão sendo efetuados mas, até agora, apenas uma idéia foi sugerida... ah! Senhores!"

McAllister virou-se assustado. Homens estavam passando pela parede sólida como se estivessem entrando por uma porta. Um, dois, três... trinta.

Eram homens austeros e todos, menos um que olhou para McAllister, passaram direto e então pararam sorrindo levemente.

— Não fique tão assustado. Como acha que poderíamos sobreviver durante todos estes anos se não fôssemos capazes de transmitir objetos materiais através do espaço? A polícia de Isher está sempre ansiosa por bloquear nossas fontes de abastecimento. O meu nome é Cadron... Peter Cadron!

McAllister respondeu mecanicamente com a cabeça. Não estava mais verdadeiramente impressionado pelas novas máquinas. Elas eram o resultado da era das máquinas; a ciência e a invenção estavam tão avançadas que o homem mal podia dar um passo que não afetasse ou não fosse afetado por uma máquina. Um homem ao seu lado disse:

— Estamos reunidos aqui porque é óbvio que a fonte desta nova energia é o edifício grande bem ao lado desta loja...

Fez um gesto em direção à parede, onde antes havia o espelho, e depois a janela pela qual McAllister havia visto a monstruosa estrutura em questão. O homem continuou:

— Nós sabíamos, desde que terminaram a construção, há uns cinco anos, que era um edifício poderoso e dirigido contra nós. E agora emana dele uma nova energia para subjugar o mundo todo, uma energia tão imensamente potente que conseguiu quebrar a própria tensão do tempo, felizmente porém, só aqui nesta loja de armas mais próxima. Aparentemente, ela enfraquece quando transmitida mais longe.

—Escute Dresley — interrompeu um homem pequeno e muito magro — para que todo este preâmbulo? Você já esteve examinando os diversos planos sugeridos pelos grupos regionais. Existe ou não um plano decente entre eles?

Dresley hesitou. Para surpresa de McAllister, os olhos do homem pousaram, indecisos, nele; depois de uma pausa, disse com voz dura:

— Sim, existe um método, mas implica em convencer este nosso amigo do passado a enfrentar um grande risco. Todos sabem a que estou me referindo. Nos faria ganhar o tempo de que necessitamos.

— Hein! — disse McAllister e ficou parado sentindo todos os olhares voltados para ele.

 

McAllister descobriu, espantado, que necessitava do espelho novamente para ver como seu corpo estava reagindo, se estava dando uma boa impressão. Observou os rostos dos homens. Os Fabricantes de Armas davam uma estranha impressão pela maneira como estavam sentados ou de pé, encostados nas vitrines de armas; parecia haver menos pessoas do que havia contado previamente. Um, dois... vinte e oito, incluindo a maça. Ele poderia jurar que havia contado trinta e dois. Seus olhos se moveram mesmo a tempo de ver a porta dos fundos fechar. Quatro dos homens tinham saído por aquela porta.

McAllister balançou a cabeça, intrigado. E depois, conscientemente, prestando atenção, começou a estudar os rostos dos homens que tinha à sua frente. Disse:

— Não entendo como algum dos senhores pode falar em convencer. De acordo com o que disseram, estou carregado de energia. Posso estar enganado, mas se qualquer um dos senhores tentar me enviar de volta no espaço, ou mesmo apenas tocar em minha pessoa, esta energia que existe no meu corpo provocaria uma devastação incalculável...

— O senhor tem toda razão — concordou um dos mais jovens, e depois, dirigindo-se a Dresley com irritação: — Como o senhor cometeu um tão grande erro psicológico? O senhor sabe muito bem que McAllister fará o que nós pedirmos para salvar a própria pele; e vai ter que fazê-lo depressa!

Dresley resmungou.

— Que diabo — disse — a verdade é que não temos tempo a perder com explicações e eu estava pensando que ele fosse ficar logo amedrontado. Mas vejo agora que estamos lidando com um homem inteligente.

McAllister encarou o grupo. Parecia um embuste. Disse com rispidez:

— Não me venham com esta história de que sou inteligente. Os senhores estão suando sangue. Seriam capazes de matar a própria avó e usariam qualquer artifício para me obrigar a agir porque acham que o mundo

Foi o mais jovem quem respondeu:

— O senhor vestirá uma combinação isolante e o enviaremos de volta no seu tempo...

Fez uma pausa. McAllister disse:

— Até agora tudo bem. Mas qual é o galho?

— Nenhum!

McAllister olhou para o homem.

— Escute — começou — não me venha com esta conversa. Se é tudo tão simples, como é que eu estarei ajudando os senhores contra a energia de Isher?

O jovem disse zangado a Dresley:

— O senhor está vendo? Ele ficou desconfiado com essa história de convencer.

Virando-se para McAllister:

— O Que nós temos em mente é uma aplicação do principio de um ponto de apoio e de uma espécie de alavanca de energia. O senhor seria o peso na extremidade de uma espécie de alavanca de energia que levantaria um peso bem maior na extremidade mais curta. O senhor regressará no tempo cinco mil anos; a máquina no edifício grande com a qual o seu corpo está afinado e que está nos causando todos estes problemas adiantar-se-á vários meses no tempo.

— Desta forma — interrompeu um dos outros, antes que McAllister pudesse dizer uma palavra — nós teríamos tempo de encontrar uma outra solução. Tem que haver uma solução, porque senão os nossos inimigos não teriam agido tão secretamente. Bem, o que ê que o senhor pensa?

McAllister dirigiu-se lentamente para a cadeira que havia ocupado antes. Sua mente estava girando furiosamente, mas sabia, por um pressentimento sombrio, que não tinha conhecimento técnico suficiente para se proteger. Disse lentamente:

— Pelo que eu entendo, isto deve funcionar como uma alavanca. O princípio da alavanca, a velha idéia de que tendo uma alavanca longa bastante, e um ponto de apoio conveniente, poder-se-ia deslocar a Terra de sua órbita.

— Exatamente! — disse Dresley. — Só que desta vez trabalha com o tempo. O senhor viaja cinco mil anos e o prédio...

Interrompeu-se ao ver a expressão do rosto de McAllister.

— Olhe! — disse este — não há nada mais deprimente do que ver um, grupo de homens honestos cometendo um ato desonesto. Os senhores são homens corajosos, do tipo intelectual, e levaram a vida toda impondo uma concepção idealista. Sempre acharam que se chegasse a ocasião não hesitariam em fazer sacrifícios drásticos. Mas não estão enganando

 

Subitamente, atiraram-lhe a combinação. Tinha notado os homens surgindo do fundo da sala; e sentiu um choque ao perceber que tinham ido preparar a roupa isolante antes de poder saber se ele a queria usar. McAllister encarou Peter Cadron com um ar sombrio, enquanto este lhe estendia a combinação cinzenta e disforme, dizendo tensamente:

— Vista isto, depressa! Agora é uma questão de minutos, homem! Quando esses canhões aí fora começarem a disparar energia, o senhor não estará vivo para discutir a nossa honestidade.

Ele ainda hesitou. 0 suor escorria-lhe pela face e sentia-se mal com a dúvida. No fundo da sala alguém dizia:

— Nossa primeira preocupação tem que ser ganhar tempo, por isso temos que instalar novas lojas em comunidades em que os ataques deles sejam mais difíceis. Simultaneamente, temos que entrar em contato com todos os imperiais, aliados em potencial, que possam nos ajudar direta ou indiretamente, e finalmente temos que...

A voz continuou, mas McAllister não estava escutando mais. Desvairado, o seu olhar encontrou a moça parada perto da porta de entrada, silenciosa e apagada. Andou em sua direção; seu olhar ou a sua presença eram assustadores porque ela empalideceu e encolheu-se.

— Olhe! — disse ele. — Estou metido nisto até a raiz dos cabelos. Qual é o risco? Tenho que saber quais são as minhas oportunidades. Diga-me exatamente: qual é o galho?

— É o atrito — murmurou finalmente. — Talvez não consiga fazer todo o percurso de volta no tempo. Veja, o senhor será uma espécie de "peso" e...

McAllister afastou-se dela violentamente. Vestiu a combinação, macia e muito fina, colocando-a, como um macacão, em cima de sua roupa.

— Envolve a cabeça também, não é? — perguntou.

— Sim — era o pai de Lystra que estava respondendo. — Assim que o senhor puxar o fecho, a combinação se tornará completamente invisível. Para os outros, parecerá que está com as suas roupas normais. A combinação é totalmente equipada. Com ela o senhor poderia viver na Lua.

— 0 que eu não estou compreendendo — queixou-se McAllister — é por que tenho de usar este traje. Cheguei aqui muito bem sem ele.

Franziu a testa. Tinha dito aquelas palavras automaticamente mas, abruptamente, teve um pensamento.

— Um momento — disse — o que vai acontecer à energia de que estou carregado, agora que estou dentro deste traje isolante?

Pela expressão dos presentes percebeu que tinha tocado num ponto crítico.

— Então é isso! — exclamou. — O isolamento é para impedir que eu perca qualquer parcela dessa energia. É isto que constitui o "peso". Não tenho mais dúvidas de que existe uma conexão entre este traje e aquela máquina. Bom, ainda não é tarde demais.

Com um movimento desesperado tentou fugir às mãos dos quatro homens que o agarravam. Mas eles o seguraram firmemente, de forma que ele não podia escapar. Peter Cadron Druion puxou o fecho e disse:

— Sinto muito mas, quando saímos daqui, também vestimos trajes isolantes. É por isso que o senhor não pode nos fazer mal. E lembre-se disto: não existe certeza de que o senhor esteja sendo sacrificado. O fato de não existir uma cratera em nossa Terra prova que o senhor não explodiu no passado, e que o problema foi resolvido de alguma maneira. Agora, alguém abra a porta, rápido!

Sem poder oferecer resistência, foi empurrado para fora. E então...

— Esperem!

Era a moça. Seus olhos faiscavam e na sua mão estava a pequena arma brilhante que anteriormente tinha apontado contra McAllister. O pequeno grupo que segurava McAllister parou imediatamente. Ele mal percebia. Para ele, existia apenas a moça e a maneira pela qual os músculos de seus lábios estavam trabalhando e como a sua voz surgiu de repente:

— Isto é o cúmulo do ultraje. Somos tão covardes... é possível que o espírito da liberdade só possa sobreviver por meio de um ato infame de assassinato e um grosseiro desafio aos direitos do indivíduo? Eu digo que não! O Sr. McAllister tem que ter a proteção do tratamento hipnótico; certamente uma tão pequena demora não será fatal.

— Lystra!

Era o pai e McAllister percebeu pelos seus movimentos rápidos que ele tinha apreendido todos os aspectos da situação. Adiantou-se e tirou a arma da mão de sua filha — era a única pessoa na sala, pensou McAllister, que podia ousar aproximar-se dela com a certeza de que ela não dispararia a arma.

Percebeu que Peter Cadron largara seu braço, afastando-se.

Seus olhos estavam calmos, a cabeça orgulhosamente erguida. Disse:

— Sua filha tem razão. Devemos nos colocar •acima de nossas apreensões e dizermos a este infeliz rapaz: tenha coragem. Nunca será esquecido. Não podemos garantir nada, nem mesmo lhe dizer exatamente o que vai •acontecer. Mas podemos dizer que, se depender de nós, tudo será feito para ajudá-lo! E agora, precisamos protegê-lo das pressões psicológicas devastadoras que de outra forma o destruiriam, simples mas efetivamente.

Tarde demais, McAllister percebeu que os outros tinham se desviado daquela parede fantástica, aquela que já tinha demonstrado a mais estranha versatilidade. Nem chegou a ver quem apertou os botões para o que devia se passar depois.

Primeiro, viu uma luz ofuscante; por um momento teve a impressão de que sua mente estava sendo dissecada e nesta sensação ouviu a voz de Peter Cadron, penetrante:

— Manter o seu autocontrole e a sua sanidade, esta é a nossa esperança; conseguiremos apesar de tudo! E, para sua própria segurança, só fale de sua experiência a cientistas ou àqueles investidos de autoridade em que possa confiar e que possam compreender e ajudar! Felicidades!

O efeito da luz ainda era tão intenso que mal percebeu que o empurravam para fora.

Sentiu que estava caindo.

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

De Noite, a aldeia tinha um ar curiosamente fora do tempo. Fara passeava satisfeito ao lado de sua mulher. O ar parecia vinho; estava pensando vagamente no artista que tinha vindo da Cidade Imperial, e tinha feito o que os telestates chamaram — ele se lembrava nitidamente — "uma pintura simbólica reminiscente de uma cena da idade elétrica de sete mil anos atrás. "

Enquanto andavam pela rua, Fara observou sua mulher de lado. À luz fraca do poste de iluminação mais próximo, o rosto ainda jovem e bondoso de sua mulher estava quase na sombra. Falou em voz baixa, em harmonia com os tons pastéis da noite:

— Ela disse, nossa Imperatriz disse, que a nossa aldeia de Glay parecia ter a integridade e a bondade que constituem as melhores qualidades do seu povo. Não é um pensamento maravilhoso, Creel? Ela deve ser uma mulher maravilhosamente compreensiva.

Chegaram a uma rua lateral, e o que ele viu uns cinqüenta metros adiante o fez parar.

— Olhe! — disse com voz rouca.

Mostrou a tabuleta luminosa que brilhava dentro da noite, uma tabuleta que trazia os seguintes dizeres:

 

ARMAS DE QUALIDADE

O DIREITO DE COMPRAR ARMAS É

O DIREITO DE SER LIVRE

 

Fara sentiu um estranho vazio dentro dele, enquanto olhava os dizeres luminosos. Viu que outros habitantes da cidade estavam se aproximando. Disse bruscamente:

— Já ouvi falar destas lojas. São lugares infames, contra os quais o governo da Imperatriz agirá um destes dias. São construídas em fábricas secretas e depois transportadas inteiras para cidades como a nossa e instaladas, desafiando grosseiramente os direitos de propriedade. Esta não estava aí uma hora atrás.

Seu rosto tornou-se duro, e sua voz tinha um tom áspero quando disse:

— Creel, vá para casa.

Ficou surpreendido porque Creel não se afastou imediatamente. Durante toda sua vida de casados, ela tivera o agradável hábito de obedecer e, por isto, a vida era maravilhosa. Viu que ela o olhava espantada e que era o medo o que a mantinha ali.

— Vá para casa! — o medo dela trouxe à tona toda a determinação de sua natureza. — Não deixaremos esta coisa monstruosa profanar nossa cidade. Pense nisto — sua voz tremia só de imaginar o que poderia acontecer — esta comunidade maravilhosa, tradicional, que nós resolvemos manter exatamente como a Imperatriz a tem em sua galeria de quadros, depravada, arruinada por esta... esta coisa. Mas nós não o toleraremos!

A voz de Creel soou suave, agora sem medo:

— Não faça nada apressadamente, Fara. Lembre-se de que não é o primeiro prédio novo na cidade desde que foi pintado o quadro.

Fara não disse nada. Esta era uma faceta de sua mulher que não aprovava, lembrá-lo desnecessariamente de fatos desagradáveis. Ele sabia exatamente a que ela estava se referindo. A gigantesca, tentacular, corporação Oficinas Automáticas de Manutenção de Motores Atômicos S. A., montada pelo Estado num edifício suntuoso contra a vontade do conselho da aldeia e que tinha já tirado metade do trabalho de sua própria oficina.

— É diferente! — disse finalmente. — Em primeiro lugar, descobrirão logo que estas oficinas automáticas novas não fazem um bom trabalho. Em segundo lugar, é competição franca. Mas esta loja de armas é um desafio a todas as qualidades que tornam a vida sob a Casa de Isher tão boa. Olhe só os dizeres da tabuleta: "O direito comprar armas... Aaaah!

Interrompeu a frase para dizer:

— Vá para casa, Creel. Vamos providenciar para que eles não vendam armas nesta cidade.

Ficou observando a delgada silhueta da mulher desaparecer nas sombras da noite. Ela já tinha atravessado a rua quando a chamou: — E se encontrar nosso filho pelo caminho, leve-o para casa. Ele tem que aprender a não ficar fora de casa a estas horas da noite.

A mulher não se virou. Fara ainda ficou observando-a por algum tempo e depois se dirigiu com decisão para a loja. A multidão estava aumentando a cada minuto e a noite vibrava com o som de suas vozes excitadas.

O letreiro luminoso da loja pareceu-lhe um caso simples de ilusionismo. De qualquer posição que se olhasse parecia estar sempre de frente. Quando parou diante da vitrine, viu que o letreiro estava novamente bem em cima da loja e lhe dava a impressão de o estar olhando sem piscar. Voltou sua atenção para um letreiro dentro da vitrine. Este dizia:

AS MELHORES ARMAS ENERGÉTICAS DO UNIVERSO CONHECIDO

Acendeu-se a fagulha do interesse dentro de Fara. Olhava, fascinado, as armas expostas na vitrine; fascinado contra sua própria vontade. Havia armas de todos os tamanhos, desde pequenas pistolas de gatilho até rifles automáticos. Fara sentiu um calafrio ao ver a quantidade de armas mortíferas em exposição. Tantas armas para a pequena cidade de Glay, onde só duas pessoas, ao que ele sabia, tinham armas, e estas somente para caçar.

Alguém atrás dele disse:

— Está bem no terreno de Lan Harris. Uma boa lição para o velho tratante. Ele vai armar um barulho!

Vários homens riram. Fara viu que o homem tinha falado a verdade. A loja de armas tinha doze metros de frente. Ocupava o centro do lote ajardinado do velho pão-duro Harris. Fara franziu a testa. Inteligentes, estes donos das lojas de armas, escolhendo a propriedade da pessoa mais detestada da cidade, divertindo assim os outros. Mas o importante era não deixar o truque ser bem sucedido. Foi nesse momento que notou a presença gorda do Prefeito Mel Dale. Fara conseguiu chegar perto dele e, tocando respeitosamente o chapéu, perguntou:

— Onde está Jor?

— Estou aqui — o chefe de polícia aproximou-se, atravessando a pequena multidão.

— Algum plano? — perguntou.

Os dois homens se olharam e depois olharam para o chão. Foi o grande policial que respondeu logo:

— A porta está trancada. E ninguém atende. Estava sugerindo justamente deixar as coisas como estão até amanhã de manhã.

— Não concordo! — Fara ficou impaciente. — Apanhe um machado e derrubaremos a porta. A demora só irá encorajar esta corja a resistir.

Todos os que estavam perto concordaram imediatamente. Talvez depressa demais. Fara olhou em volta intrigado e todos baixaram a cabeça diante do seu olhar decidido. "Eles estão com medo e não querem fazer nada!", pensou. Antes que pudesse dizer alguma coisa, o policial Jor replicou:

— Parece que você ainda não ouviu falar a respeito destas lojas. Pelo que se sabe, não podem ser arrombadas.

Fara percebeu com súbita angústia que era ele quem tinha de agir. Disse:

— Vou apanhar meu maçarico atômico na oficina. Ele dará um jeito na porta. Tenho sua autorização, senhor prefeito?

Iluminado pelo reflexo das luzes da vitrine, via-se que o prefeito estava suando. Disse:

— Talvez fosse melhor telefonar para o comandante da guarnição de Ferd e chamá-los.

— Não! — Fara percebeu a indecisão. — Devemos agir nós mesmos. As outras comunidades deixaram esta gente se estabelecer porque nenhuma ação decisiva foi tomada contra eles. Precisamos resistir ao máximo. A partir deste momento. Que é que vocês acham?

O "Sim!" do prefeito foi pouco mais que um suspiro. Mas era tudo o que Fara necessitava. Transmitiu em voz alta as suas intenções e, ao atravessar a multidão, avistou o filho, com alguns outros rapazes, examinando o que estava na vitrine. Fara chamou o filho:

— Cayle, venha ajudar-me com o maçarico.

Cayle não se moveu, nem se virou. Fara parou um instante, apressando-se em seguida, aborrecido mas evitando discutir.

A energia não tinha som e fluía, suavemente, sem faíscas e sem espocar. Brilhava com uma luz branca pura, quase acariciando o painel metálico da porta. Contudo, após um minuto, o metal não tinha sido afetado. Fara recusava-se a aceitar o fato e aplicava com insistência aquela energia potente e ilimitada à porta resistente. Quando, finalmente, desligou a máquina, estava suando por todos os poros.

— Não entendo — arquejava. — Mas como? Afinal, nenhum metal pode resistir a um fluxo constante de força atômica.

— Como Jor lhe disse, estas casas de armas são... poderosas. Estão se espalhando por todo o império, e não reconhecem a Imperatriz — disse o prefeito.

Fara ficou perturbado. Não estava gostando daquela conversa. Antes que pudesse falar, um homem na multidão disse:

— Ouvi dizer que a porta só se abrirá àqueles que não possam prejudicar os de dentro.

Fara impacientava-se. Disse com voz cortante:

— Isto é ridículo! Se existissem portas como esta, nós todos as teríamos. Nós...

O que fez com que parasse foi a súbita percepção de que não tinha visto ninguém tentar abrir a porta; com toda aquela agitação à sua volta, era bem possível que ninguém o tivesse feito. Adiantando-se, segurou a maçaneta e empurrou a porta. Esta abriu-se, com uma ausência de peso pouco natural, dando-lhe a impressão de que a maçaneta teria se soltado na sua mão. Firmemente, Fara empurrou a porta, que se abriu completamente.

— Jor, entre! — gritou Fara.

O policial fez um movimento indeciso, talvez por precaução, mas logo percebeu que não podia hesitar diante de todos. Constrangido, pulou em direção ã porta, mas esta fechou-se na sua cara.

Estupefato, Fara olhou a mão ainda agarrada à maçaneta. Sentiu um calafrio. A maçaneta se contraía, torcendo-se e fugia, viscosa, de sua empunhadura. Sentiu sobre ele o peso da atenção da multidão, que o observava silenciosamente. Tentou, outra vez, agarrar a maçaneta e torcê-la; desta vez, ela não cedeu. Este obstáculo despertou sua teimosia. Fez um gesto ao policial.

— Recue, Jor, enquanto eu abro.

O homem afastou-se mas não adiantou nada. Apesar de todo o esforço a porta não se abriu. Da multidão, alguém disse sombriamente:

— A porta decidiu deixar que você entrasse e depois mudou de idéia.

— Que tolice você está dizendo! Uma porta não tem vontade. Imagine, mudar de idéia! — disse ele, violentamente.

Fara olhou a loja, tristemente desanimado. O edifício, claro como o dia, erguia-se sob o céu noturno, alheio e ameaçador e não mais facilmente conquistável. Indagava-se o que fariam os soldados da Imperatriz se fossem chamados a agir. E, subitamente, compreendeu que mesmo os soldados seriam incapazes de fazer alguma coisa.

— A porta abriu para mim uma vez; abrirá novamente — disse, com raiva.

E abriu. Suavemente, sem resistência, com, a mesma sensação de ausência de peso, a estranha e sensível porta obedeceu à pressão de seus dedos. Lá dentro, um recinto grande e semi-escuro. Às suas costas o prefeito dizia:

— Fara, não seja louco. O que vai fazer aí dentro? Fara, admirado, percebeu que tinha entrado. Virou-

se, encarando a massa de rostos indistintos:

— Ora... — começou indeciso.

Depois exclamou, excitado: — Vou comprar uma arma, claro!

 

CAPÍTULO SEGUNDO

Dentro, havia um silêncio anormal. Nenhum som vinha da noite de onde chegara. Fara avançou cautelosamente, o chão atapetado abafando seus passos. Os olhos acostumaram-se à iluminação suave que parecia emanar das paredes e do teto. A familiar iluminação atômica foi como um tônico para seus nervos. Sentindo-se mais seguro, começou a olhar à sua volta. O lugar parecia bastante normal. Era uma loja e estava mobiliada escassamente. Havia vitrines nas paredes e no chão, muito bonitas mas nada de muito especial — e não eram muitas, uma dúzia talvez. Ao fundo, uma porta dupla que dava para uma outra sala.

Tentou ficar de olho naquela porta enquanto examinava as vitrines, cada uma contendo três ou quatro armas montadas ou expostas em caixas ou nos coldres. Fara pensava na possibilidade de agarrar uma destas armas e quando alguém viesse, obrigá-lo a sair para que Jor pudesse prendê-lo. Atrás dele, um homem perguntou calmamente:

— O senhor deseja comprar uma arma?

Fara virou-se de um salto. Uma súbita fúria apossou-se dele, pois a chegada do empregado da loja fizera fracassar seu plano. A raiva cedeu ao verificar que o empregado era um senhor de boa aparência, grisalho, mais velho do que ele mesmo. Isso era desconcertante. Fara tinha um respeito imenso e quase automático por pessoas mais velhas. Finalmente respondeu, desajeitado:

— Sim, sim, uma arma.

— Para que finalidade? — perguntou o homem com sua voz calma.

Fara sentiu-se incapaz de outra coisa, a não ser olhá-lo. Gostaria de dizer o que pensava deles. Mas a idade avançada do seu interlocutor travava-lhe a língua. Só com grande força de vontade conseguiu dizer:

— Para caçar — estas palavras plausíveis deram-lhe maior força. "Sim, exatamente, para caçar. Há um lago mais ao norte daqui — continuou — e...

Parou de falar, aborrecido; não estava preparado para este ato de desonestidade. Disse secamente:

— Para caçar.

Fara recuperara o autodomínio. Odiou o homem por tê-lo colocado numa situação tão desvantajosa. Ficou observando-o abrir uma das vitrines e retirar uma arma verde reluzente. Quando o homem se virou para ele, com a arma na mão, Fara estava pensando: "Muito espertos, usar o velho como fachada". Esta mesma esperteza os havia feito escolher o terreno do Sr. Harris. Estendeu a mão para pegar a arma, mas o homem não a entregou.

— Antes que eu possa deixá-lo experimentar esta arma, vejo-me obrigado a informá-lo, de acordo com os regulamentos das Casas de Armas, das condições sob as quais lhe é permitido adquiri-la. Nós, os Fabricantes de Armas, aperfeiçoamos um tipo de revólver que pode, dentro da sua especialidade, destruir qualquer máquina ou objeto feito do que se chama matéria. Desta maneira, quem quer que seja que possua uma de nossas armas é mais do que um páreo para qualquer soldado da Imperatriz. Digo mais, cada arma é centro de um campo de energia que age como um painel protetor contra forças destrutivas imateriais. Este painel não oferece resistência a clavas, lanças ou balas, ou outra substância material qualquer, no entanto seria necessária a potência de um pequeno canhão atômico para poder destruir a poderosa barreira levantada em torno do seu possuidor. Continuando, disse:

— O senhor compreenderá logo que tal arma não poderia cair em mãos irresponsáveis sem ser modificada. Assim sendo, nenhuma arma comprada em nossas lojas pode ser usada para agressão ou assassinato. No caso de um rifle de caça, apenas poderão ser abatidos os animais que constarem das listas que expomos regularmente em nossas vitrines. Finalmente, nenhuma arma poderá ser revendida sem a nossa aprovação. Está claro?

Fara aquiesceu. Quer dizer que a arma não pode ser usada para assassinato ou assalto. Só certos animais podem ser caçados. E quanto a revender, suponhamos... suponhamos que ele comprasse esta arma, viajasse com ela uns dois mil quilômetros e a oferecesse por dois créditos a um estrangeiro rico qualquer. Quem jamais viria a saber? Percebeu que a arma estava sendo estendida em sua direção. Ele a pegou e teve que combater o impulso de apontar a arma para o velho.

— Como funciona? — perguntou.

— É só mirar e puxar o gatilho. Talvez o senhor gostasse de experimentá-la em nosso alvo?

Fara apontou a arma.

— Sim — disse triunfante — e o senhor é o alvo. Dirija-se à porta da frente e saia.

Levantou a voz:

— E se alguém pensar em entrar por aquela porta dos fundos, ela também está sendo vigiada.

Empurrou o vendedor em direção à porta:

— Saia já! Mova-se, senão atiro! Juro que atiro! O homem conservava-se calmo:

— Não tenho dúvida de que o senhor o faria. Quando decidimos permitir que a porta se abrisse para o senhor entrar, apesar de sua hostilidade, levamos em conta sua disposição para o homicídio. No entanto, o senhor está em nosso território. Seria melhor ajustar-se a esta realidade e olhar para trás.

Fez-se silêncio. Dedo no gatilho, Fara permanecia sem se mover. Pensamentos confusos vieram-lhe à mente. boatos que ouvira sobre essas lojas de armas; que tinham representantes secretos em cada distrito; que tinham um governo oculto impiedoso e, uma vez em suas garras, a única possibilidade de escapar era a morte. Porém o que lhe veio mais nitidamente foi o quadro mental dele mesmo, Fara Clark, pai de família, súdito leal da Imperatriz, ali de pé na loja mal iluminada, tentando, deliberada-mente, combater uma organização tão vasta e ameaçadora. Forçando-se a reagir disse:

— Não pense que eu acredito que haja alguém atrás de mim. Vamos, saia!

O olhar do velho o atravessava. O homem disse calmamente:

— Então Rad, você tem as informações?

— Suficientes para uma preliminar — disse uma voz jovem atrás de Fara. — Tipo A-7 conservador. Inteligência média comum, mas com desenvolvimento monárico típico das pequenas cidades. Visão parcial exagerada da realidade, criada por freqüentar as escolas do Império. Extremamente honesto. Raciocinar seria inútil. Emocionalmente necessitaria de um prolongado tratamento. Não vejo por que nos incomodar. Deixemos que viva a sua vida como lhe convém. Com voz trêmula Fara disse:

— Se o senhor pensa que este truque da voz me fará virar, está louco. Eu sei que não há ninguém aí, é apenas a parede esquerda da loja.

— Concordo Rad — disse o velho. — Mas acontece -que ele foi o principal agitador da multidão lá fora. Acho •que deve ser desencorajado a tomar tais atitudes.

— Faremos com que saibam de sua presença — disse Rad. Ele passará o resto de seus dias negando a acusação.

A confiança de Fara na arma desaparecera de tal forma que, escutando intrigado a conversa incompreensível, acabou por esquecer mesmo o revólver.

O velho insistia:

— Acho que uma pequena emoção poderá ter um efeito bastante duradouro. Mostre-lhe o palácio.

A palavra palácio tirou Fara de sua paralisia. Começou:

— Veja como o senhor mentiu, este revólver nem está carregado...

Não havia mais revólver na sua mão.

— Então... — articulou vivamente e, de novo, calou-se.

Tentava combater a sensação de vertigem e, finalmente, tremendo, concluiu que alguém devia ter tirado a arma de sua mão; logo, alguém estava realmente às suas costas. A voz não era nada mecânica. Tentou virar-se e não conseguiu. Tentou lutar contra seus músculos paralisados. O recinto escurecia curiosamente mais e mais. Já mal enxergava o velho. Teria gritado, se pudesse. A loja desaparecera!

Fara flutuava no céu, sobre uma imensa cidade. Sua respiração estava solidamente bloqueada em seus pulmões. Sua sanidade mental retornou quando percebeu, gradativamente, que de fato estava pisando solo firme e que a cidade deveria ser uma imagem projetada de alguma maneira diretamente dentro de seus olhos.

Fara reconheceu imediatamente a metrópole em baixo. Era a cidade dos sonhos, a Cidade Imperial, capital da gloriosa Imperatriz de Isher. Daquela vertiginosa altura, via os jardins prateados do palácio, a própria residência Imperial. Os últimos tentáculos do medo que sentira já o soltavam, cedendo lugar a um misto de admiração e fascínio. O medo cedeu por completo quando Fara percebeu que o palácio se aproximava com uma velocidade incrível. "Mostre-lhe o palácio", tinham dito. O teto brilhante reverberou diretamente em seu rosto. Sua sólida estrutura metálica passou através dele.

Fara pressentiu logo a iminência de um processo de dissecação mental, à medida em que a imagem estacionou num enorme recinto onde um grupo de homens sentava-se à volta de uma mesa, à cabeceira da qual estava uma mulher jovem. As enormes e poderosas câmaras, indesculpáveis e sacrílegas, fotografavam a cena, focalizavam o rosto da mulher.

Era um rosto bonito, mas agora estava contorcido por fortes emoções, enquanto se inclinava para a frente; sua voz, que Fara ouvira tantas vezes, em tom calmo, nos telestates, estava distorcida. Distorcida pelo ódio e pela plena consciência do poder:

— Quero este traidor morto, ouviram? Não me importa como, mas amanhã ã noite quero ouvir a notícia de que ele está morto.

Aquela voz que cortava o silêncio do recinto era uma caricatura da voz amada. Fara a escutara tão nitidamente que era como se ele estivesse dentro da sala.

A imagem desfez-se e, instantaneamente, Fara viu-se de volta à loja de armas.

Por um momento, lutou para reacostumar os olhos à semi-obscuridade. Sua primeira reação foi um desprezo pela simplicidade do truque que lhe fora imposto. Um filme! Que tolo pensavam que ele era para engolir algo tão irreal?

— Corja! Vocês arrumaram alguém para representar o papel da Imperatriz, pretendendo...

— Basta! — disse a voz de Rad.

Fara estremeceu quando viu um rapaz enorme surgir à sua frente. Alarmado, pensou que gente que era capaz de insultar tão vilmente Sua Majestade Imperial, não hesitaria por um momento em ferir a ele, Fara Clark. O jovem continuava falando em tom cortante:

— Não estamos pretendendo que o que viu esteja acontecendo neste preciso momento no palácio. De fato, isso se passou há dois dias. A mulher era a Imperatriz. O homem que ela condenou à morte tinha sido um seu conselheiro que ela considerava um fraco. Ele foi encontrado morto em seu apartamento na noite passada. Seu nome, se você se der ao trabalho de verificar nas mais recentes notícias, era Banton Vickers. Bem, acabemos logo com isto, pois já terminamos com o senhor.

— Mas eu não terminei — disse Fara, violentamente. — Nunca escutei ou vi tanta infâmia na minha vida. Se vocês pensam que a cidade vai permitir que isto fique assim, estão muito enganados. Colocaremos neste local um guarda dia e noite e ninguém entrará ou sairá.

— Agora chega. O teste foi muito interessante. Como homem honesto, se algum dia estiver em dificuldades, pode apelar para nós. Saia pela porta lateral.

Era o velho grisalho que estava falando.

Forças impalpáveis empurraram Fara em direção a uma porta que aparecera miraculosamente na parede onde segundos antes estava o palácio. Encontrou-se de pé num canteiro de flores e, à sua direita, havia uma multidão. Reconheceu seus conterrâneos e sabia que tinha escapado.

Terminara o pesadelo. Quando chegou em casa, meia hora mais tarde, Creel perguntou-lhe:

— Onde está a arma?

— A arma? — Fara olhou a mulher, espantado.

— Disseram há alguns minutos no telestate, que você foi o primeiro freguês da nova loja de armas.

Fara lembrou-se de que o rapaz havia dito: "Faremos com que saibam de sua presença". Angustiado, pensou em sua reputação. Não que tivesse um grande nome mas acreditava, e se orgulhava disto, que a oficina de Fara Clark era conhecida e respeitada na aldeia e nos arredores.

Correu para o telestate e chamou o prefeito. Suas esperança caíram por terra quando ouviu o gordo prefeito dizer:

— Sinto muito, Fara. Mas não vejo como você pode conseguir tempo de graça no telestate. Vai ter que pagar. Eles o fizeram.

— Eles pagaram?

Fara se indagava se a sua voz soava tão vazia como se sentia.

— Eles também pagaram ao velho Lan Harris pelo terreno. Ele exigiu um preço muito alto e eles pagaram. Ele me telefonou para transferir o título.

— Oh! — o mundo de Fara estava se desmoronando. — Você quer dizer que ninguém vai fazer nada? E a guarnição imperial em Ferd?

Vagamente, escutou o prefeito murmurar qualquer coisa a respeito de os soldados da Imperatriz terem se recusado a interferir em assuntos civis.

Fara explodiu:

— Assuntos civis! Você quer dizer que será permitido a essa gente entrar e sair quando bem lhes aprouver, ainda que não queiramos, forçando ilegalmente a venda de terrenos porque tomaram posse deles?

Um pensamento o fulminou, deixando-o quase sem fôlego:

— Olhe, você não mudou de idéia a respeito do Jor ficar de guarda diante da loja, mudou?

O prefeito estava ficando impaciente:

— Escute, Fara, deixe que as autoridades constituídas tomem conta deste caso.

— Mas você vai deixar o Jor de guarda, não vai? O prefeito, cada vez mais impaciente disse:

— Prometi, não foi? Pois assim será. Agora, você ainda quer comprar tempo no telestate? São 15 créditos por minuto. Como seu amigo, acho que está jogando dinheiro fora. Nunca foram apanhados com uma declaração falsa até hoje.

Fara respondeu aborrecido:

— Ponha dois anúncios, um pela manhã e outro à noite.

— Está bem. Desmentiremos tudo. Boa-noite. Apagou-se a imagem do telestate. Fara continuou sentado. Um novo pensamento endurecia-lhe o rosto. "Esse nosso filho... vamos ter que pôr as cartas na mesa. Ou ele vai trabalhar comigo na oficina ou não recebe mais mesada. " Creel disse:

— Você está tratando o rapaz errado. Ele está com 23 anos e você o trata como se fosse uma criança. Lembre-se, com 23 anos você era um homem casado.

— Foi diferente — disse Fara. — Eu tinha senso de responsabilidade. Sabe o que ele fez esta noite?

Ele não entendeu muito bem a resposta. Por um momento, teve a impressão de que ela dissera:

— Não; de que maneira você o humilhou primeiro? Fara apressou-se a responder:

— Ele se recusou, em frente a toda gente da cidade, a me ajudar. Ele é mau, muito mau.

— Sim, é verdade — disse ela com amargura — ele é mau. Tenho certeza de que você não percebe o quanto ele o é. É frio como o aço, mas sem ter a sua resistência ou a sua integridade. Custou muito, mas agora está até odiando a mim, por ter ficado do seu lado mesmo quando sabia que você não tinha razão.

— O quê? — perguntou Fara espantado; depois disse: — Vamos, vamos, minha querida; estamos os dois perturbados. Vamos dormir.

Dormiu mal naquela noite.

 

CAPÍTULO TERCEIRO

Houve dias em que a convicção de que aquela era uma luta pessoal entre ele e a casa de armas, pesava fortemente sobre Fara. Ainda que estivesse fora de seu caminho, estabeleceu um trajeto, na ida e na volta do trabalho, que passava em frente à casa de armas, parando sempre para falar com o policial Jor. No quarto dia o policial não estava lá.

A princípio, Fara esperou pacientemente. Depois, começou a zangar-se. Finalmente, foi à sua loja e ligou para a casa de Jor. Jor não estava. Segundo a mulher dele, Jor estava montando guarda à casa de armas. Fara hesitou. Sua própria loja estava entulhada de serviço e ele teve um sentimento de culpa por ter negligenciado os seus clientes pela primeira vez na vida.

Já na rua, viu uma grande multidão aglomerando-se em frente à loja de armas. Fara apressou-se. Um conhecido falou-lhe, excitado:

— Jor foi assassinado, Fara!

— Assassinado!

Fara estacou, imóvel, e pela primeira vez deixou de ter plena consciência do pensamento que lhe percorria a mente: satisfação. Agora, mesmo os soldados terão que agir. Falou, vagarosamente:

— O corpo. Onde está?

— Lá dentro.

— Quer dizer que essa corja o matou e levou o corpo para dentro?

— Ninguém viu o assassinato — disse outro homem — mas ele desapareceu e ninguém o vê há três horas. O prefeito comunicou-se com a loja pelo telestate, mas eles afirmam que não sabem nada a respeito. Bem, eles não vão sair dessa tão facilmente. O prefeito foi telefonar para os soldados de Ferd, para que eles tragam alguns canhões bem grandes.

— Canhões? Sim, essa será a solução e os soldados terão que vir, é claro — disse Fara.

Fara balançou afirmativamente a cabeça em sua imensa certeza de que agora os soldados imperiais teriam que agir, pois não havia mais desculpa. Começou a dizer algo a respeito do que faria a Imperatriz quando soubesse que um homem perdeu a vida porque os soldados fugiram ao seu dever, mas suas palavras foram afogadas por um grito:

— Aí vem o prefeito. Ei, Sr. Prefeito, quando é que os canhões atômicos entrarão em ação?

Outros gritos da mesma natureza fizeram-se ouvir, enquanto o autoplano do prefeito aterrissava suavemente. Algumas das perguntas deviam ter chegado aos ouvidos de sua excelência, pois ele postou-se de pé em sua viatura aberta e levantou a mão, pedindo silêncio. Para espanto de Fara, o homem o fixou acusadoramente. Fara balançou a cabeça, perplexo ante aquele olhar, recuando involuntariamente, quando o prefeito apontou-lhe o dedo e disse numa voz trêmula:

— Aí está o homem, o responsável pelas encrencas que se abateram sobre nós. Dê um passo à frente, Fara Clark, mostre-se. Você custou a esta cidade setecentos créditos, que mal podemos despender.

Fara não podia mexer-se ou falar para salvar a vida. O prefeito continuou, com um tom de autocomiseração na voz:

— Todos nós sabíamos que não seria benéfico intrometermo-nos com a loja de armas. Se o próprio Governo Imperial os deixa em paz, que direito temos nós de vigiá-los ou agir contra eles? Foi isso o que pensei desde o começo... Mas este homem... este... este Fara Clark, ficou nos atiçando, nos forçando a agir contra a vontade, e agora temos uma conta de setecentos créditos para saldar e...

Terminou dizendo:

— Em resumo, eis o que houve: quando chamei a guarnição, o comandante riu e disse que Jor iria entrar em contato. Mal desliguei, houve uma chamada a cobrar de Jor. Ele está em Marte. — Esperou que amainassem os gritos de espanto, e concluiu: — Levará quatro semanas para voltar de espaçonave, e nós teremos que pagar por isso. E Fara Clark é o responsável.

O choque havia passado. Fara ficou frio, com a mente inflexível. Disse, afinal, com desprezo:

— Então você pretende entregar os pontos e culpar a mim, tudo ao mesmo tempo. Vocês estão todos doidos.

Ao afastar-se, ouviu o Prefeito Dale dizer que ainda não estava tudo perdido, que ele tinha ouvido dizer que a loja de armas se estabeleceu em Glay porque a cidadezinha era eqüidistante de quatro cidades maiores e que ela pretendia negociar com aquelas cidades. Aquilo traria turistas, além de aumentar as vendas paralelas dos comerciantes locais.

Fara não ouviu mais nada. Com a cabeça erguida, voltou para sua loja. Houve alguns gritos de provocação por parte da multidão, mas ele os ignorou. O pior de tudo, à medida que passavam os dias, era a consciência de que o pessoal da loja de armas não estava interessado nele. Pareciam distantes, superiores, invencíveis.

Fara não foi à estação do expresso para ver a chegada de Jor. Ele ouviu dizer que o conselho havia decidido multar Jor com a metade das despesas da viagem, sob a ameaça de perder o emprego, se não estivesse de acordo. Na segunda noite, após a volta de Jor, Fara esgueirou-se até a casa dele e entregou ao oficial cento e setenta e cinco créditos. Após o que, voltou para casa com a alma mais leve.

No terceiro dia depois desse fato, a porta de sua loja abriu com estrondo e um homem entrou. Fara franziu o sobrolho ao ver quem era: um joão-ninguém da cidade, Castler. O homem macaqueava um sorriso.

— Pensei que lhe interessasse, Fara. Alguém saiu da loja de armas, hoje.

Fara concentrou-se deliberadamente no pino de conexão da dura chapa do motor atômico que estava concertando. Imaginou com uma crescente sensação desagradável que o sujeito não lhe iria fornecer mais informações espontaneamente. Uma curiosidade progressiva o fez perguntar, por fim, grunhindo entre dentes:

— Espero que o delegado o tenha apanhado, não?

Ele não esperava coisa alguma, mas era uma forma de começar.

— Não era um homem. Era uma moça.

Fara franziu o cenho. Não lhe agradou a idéia de criar problemas para uma mulher. Aqueles salafrários! Usarem uma garota como antes usaram um velho. Mas era um truque destinado ao fracasso; provavelmente, era alguma boba que precisava de uma boa surra. Fara disse, asperamente:

— Então, o que aconteceu?

— Ela ainda está lá fora, insolente como o quê. E bem bonitinha, também.

— Fizeram alguma coisa?

— Nada. O delegado soube, mas disse que não tem vontade de ficar longe da família por mais um mês, e ainda por cima pagando as despesas.

Fara refletiu uns instantes sobre aquilo. Sua voz tremia quando disse, reprimindo a fúria:

— Quer dizer que eles os estão deixando sair da toca. Está tudo tão claro quanto o inferno. Não podem entender que não se deve ceder nem uma polegada ante esses... esses transgressores? É como dar proteção ao pecado.

Sentiu, com o canto dos olhos, que o rosto do outro abria-se num cínico sorriso. De repente, Fara foi atingido pela idéia de que o outro se divertia com sua raiva. E havia algo mais naquele sorriso — uma secreta sabedoria. Encarou o vagabundo.

— Naturalmente essa questão de pecado não o deve preocupar muito.

— Oh! — disse o homem sem se abalar — os duros golpes da vida nos fazem mais tolerantes. Por exemplo, depois que você conhecer melhor essa moça, você mesmo vai achar, provavelmente, que há um lado bom em qualquer um de nós.

Não foram tanto as palavras, quanto o tom de eu sei de que estou falando!, que fez com que Fara vociferasse:

— Quer dizer — depois que eu a conhecer melhor! Eu nem sequer falaria com essa descarada.

— Nem sempre se pode escolher — disse o outro com enorme naturalidade — suponha que ele a leve para casa.

— Quem vai trazer quem para casa? — perguntou Fara, irritado. — Escute, Castler...

Estacou de repente. O peso morto do terror abateu-se sobre seu estômago, e todo seu ser vacilou.

— Você quer dizer que... — balbuciou ele.

— O que eu quero dizer — replicou Castler com um triunfante olhar de esguelha — é que a moçada não costuma deixar uma beleza dessas sozinha. E, naturalmente, seu filho foi o primeiro a falar com ela. E concluiu:

— Eles estão passeando juntos, agora, na Segunda Avenida e vêm nesta direção.

— Fora daqui — rugiu Fara — e fique longe de mim, seu abutre! Fora!

Rígido, Fara deixou-se ficar ali, por um momento. Então saiu para a rua. Havia chegado o momento de pôr um fim àquilo tudo. Não lhe ocorria nenhum plano definido, simplesmente a determinação de acabar com a impossível situação o empurrava para diante. Sua raiva contra Cayle constituía um sentimento totalmente confuso. Como pôde ele ter um filho tão indigno, ele que pagava suas dívidas e trabalhava arduamente, tentando ser decente e viver dentro dos mais altos padrões da Imperatriz ?

E agora, Cayle e essa moça da loja de armas, que se deixou apanhar propositadamente — ele os avistou ao dobrar a esquina e sair na Segunda Avenida. Caminhavam em direção contrária à dele. Assim que os alcançou, ouviu a moça dizendo:

— Você tem uma idéia errada a nosso respeito. Uma pessoa como você não poderia conseguir trabalho em nossa organização. Você pertence ao Serviço Imperial, onde existem oportunidades para um jovem de boa aparência e ambição.

Fara estava absorvido demais por suas palavras, para poder pensar em alguma coisa.

— Cayle — disse ele, asperamente.

O casal voltou-se; Cayle, com a estudada ausência de pressa de um rapaz que lutou muito para obter nervos de aço; a garota foi mais rápida, mas ainda assim conservou a dignidade.

Fara teve a sensação de que sua fúria era autodestruidora, porém a violência de suas emoções afugentou aquele pensamento antes mesmo que ele se tornasse plenamente consciente. E disse, com voz rouca:

— Cayle, vá já para casa.

Percebera o olhar que a garota lançara sobre ele, estudando-o curiosamente com seus estranhos olhos cinza-verdes. Nem sinal de vergonha, pensou, e sua raiva aumentou ainda mais, fazendo-o esquecer-se do sinal de alarme proveniente do rubor que se alastrava pelas faces de Cayle.

O rubor transformou-se numa raiva crescente e cerrou os lábios quando ouviu Cayle dizendo à jovem:

— Este é o velho bobalhão com o qual tenho que estar sempre brigando. Felizmente, vemo-nos muito raramente. Nem sequer nos encontramos nas horas de refeição. Que acha dele?

A jovem sorriu impessoalmente:

— Oh! Nós conhecemos Fara Clark muito bem. Ele é o paladino da Imperatriz em Glay.

— É isto mesmo — zombou o rapaz. — Você devia ouvi-lo. Ele pensa que vivemos num paraíso e que a Imperatriz é o poder divino. O pior de tudo é que não há a menor possibilidade de que ele consiga jamais se desfazer desse ar de paspalhão.

Eles se foram, e Fara quedou-se ali. A extensão do que acontecera, fê-lo sentir uma raiva intensa, como nunca sentira antes. Tinha a impressão de ter cometido um engano. Mas não pôde compreender especificamente qual. Já havia muito tempo, desde que Cayle se recusara, a ajudá-lo na oficina, que ele sentia a aproximação deste clímax.

Por todo o resto do dia, em sua loja, Fara expulsava de sua mente os pensamentos, mas eles voltavam sempre à tona: era possível que perdurasse esta situação, como antes, com Cayle e ele vivendo na mesma casa, sem sequer olharem um para o outro quando seus caminhos cruzavam indo dormir em horas diferentes e acordando em horas diferentes, ele, Fara, às seis e meia e Cayle ao meio-dia? Era possível que isto continuasse, por todos os dias e todos os anos do futuro?

Creel estava esperando por ele quando voltou para casa. Disse-lhe:

— Fara, ele quer que você lhe empreste quinhentos créditos para que possa ir à Cidade Imperial.

Fara anuiu em silêncio. No dia seguinte de manhã trouxe o dinheiro para casa e o deu a Creel, que o levou para o quarto do rapaz.

Ela voltou um minuto depois.

— Ele pediu para lhe dizer adeus.

Quando Fara voltou para casa, naquela noite, Cayle já havia partido.

 

CAPÍTULO QUARTO

Cayle não pensou em sua partida de Glay como no resultado de uma decisão. Há tanto tempo desejava ir embora que aquele propósito lhe parecia parte de suas necessidades corporais, tais como beber ou comer. Mas o impulso foi crescendo, obscura e indistintamente. Frustrado por seu pai, tinha uma atitude hostil para tudo que fizesse parte da aldeia. E o seu desafio obstinado esbarrava a cada momento nas características indestrutíveis de sua prisão — isto até agora.

Não sabia exatamente por que se havia aberto sua prisão. Havia a garota da loja de armas, é claro. Esbelta, com olhos cinza-verdes inteligentes, rosto bem talhado, sua aura de pessoa que já tomou muitas decisões certas — havia dito, ele recordava as palavras como se ela as estivesse proferindo naquele momento: "Sim, mas claro, sou da Cidade Imperial. E voltarei para lá na terça de tarde. "

Nesta terça-feira ela estaria indo para a grande cidade, enquanto ele tinha que ficar em Glay. Não podia suportar esta idéia. Foi isso, mais do que sua desinteligência com o pai, que o fez pressionar a mãe no sentido de conseguir o dinheiro. Agora, estava sentado no aerônibus para Ferd, e estava apavorado por não encontrar a moça a bordo.

No Aeroporto Central de Ferd, esperando o transporte para a Cidade Imperial, procurara intensamente por Lucy Rall. Mas a multidão compacta que se concentrava em direção à constante torrente de aviões interestaduais tornou vãos os esforços de seus olhos atentos. E, logo, seu próprio transporte aéreo imenso surgiu, preparando-se para pousar.

Cayle foi tomado de uma tremenda excitação. A lembrança da jovem se apagou. Subiu a bordo febrilmente. Não pensou mais em Lucy até que o avião já estava planando sobre as terras verdes lá embaixo. Recostou-se então em sua confortável poltrona e pôs-se a tecer conjecturas: que tipo de pessoa era ela, essa garota da loja de armas. Onde viveria. Que tipo de vivência adquirira como membro dessa organização quase rebelde?... Havia um homem sentado uns três metros à sua frente. Cayle reprimiu um impulso de fazer-lhe todas as perguntas que ferviam dentro dele. Outras pessoas talvez não se apercebessem tão bem quanto ele de que, apesar de ter vivido toda a sua vida em Glay, não era um matuto. Era melhor portanto, não arriscar uma mancada. Um homem riu. Uma mulher disse:

— Mas meu querido, você tem certeza de que teremos recursos para um passeio pelos planetas?

Os dois passaram ao longo do corredor e Cayle reparou na grande naturalidade com que encaravam a viagem.

Sentiu-se muito autoconsciente a princípio mas também, gradualmente, foi se sentindo mais espontâneo. Viu as notícias no estate que encontrou em sua poltrona. Depois, preguiçosamente, estudou a paisagem que corria. vertiginosamente lá embaixo, ajustando a lente de aproximação de seu visor. Quando os três homens se sentaram à sua frente e começaram a jogar cartas, ele já estava se sentindo bem à vontade.

Era um jogo pequeno, de apostas baixas. E durante todo o jogo dois dos participantes nunca foram chamados pelo nome. O terceiro chamava-se Seal. Cayle achou o nome muito pouco comum. E o homem era tão pouco comum quanto o nome. Parecia ter trinta anos. Tinha os olhos amarelos como os de um gato. Seu cabelo era ondulado e estava displicentemente despenteado. O rosto era pálido, ainda que não parecesse doentio. Vários anéis dardejavam fogos coloridos de seus dedos. Quando falava, ele o fazia com tranqüila segurança. E foi ele quem finalmente se dirigiu a Cayle, dizendo:

— Vejo que está nos observando. Quer jogar conosco ?

Cayle havia estado atento, percebendo automaticamente em Seal o jogador profissional, mas ainda não se havia decidido quanto aos outros dois. O problema era saber qual deles era o "pato".

— O jogo ficaria mais interessante — acrescentou Seal.

Cayle empalideceu repentinamente. Compreendeu, agora, que os três formavam uma equipe. E que ele havia sido escolhido como vítima. Instintivamente, olhou em torno para ver se alguém havia notado sua reação. Para seu alívio, ninguém estava olhando. Não viu mais o homem que antes estava sentado a uns três metros de distância e uma mulher corpulenta e bem vestida que parará na entrada da seção virou-se e foi embora. Gradualmente, as cores voltaram ao rosto de Cayle. Então eles estão pensando que encontraram uma presa fácil, não é? Levantou-se sorrindo.

— Não se importam se eu entrar? — perguntou. Sentou-se na cadeira vazia em frente ao homem de olhos amarelos. Coube a ele dar as primeiras cartas. Em rápida sucessão, e honestamente, deu a si próprio um rei fechado e dois abertos. Jogou com aquela mão até o fim, e ainda que as apostas fossem baixas, eventualmente acabou empilhando quatro créditos, em moedas.

Das próximas oito rodadas, Cayle ganhou três, o que estava abaixo de sua média. Ele era um calistênico, embora nunca tivesse ouvido aquela palavra, com temporária habilidade com as cartas. Certa vez, há uns cinco anos, ele tinha, naquela época, dezessete anos, jogando com um grupo de quatro rapazes à base de vinte partidas por crédito, ele ganhara dezenove das vinte. Depois disso, sua sorte no jogo, que poderia ter-lhe dado os meios para sair de Glay, foi tão grande que ninguém mais da cidade queria jogar com ele.

A despeito de sua série de êxitos agora, não sentiu qualquer sensação de superioridade. Seal dominava o jogo. Havia um ar de comando que emanava dele, uma impressão de força incomum, não física. Cayle começou a ficar fascinado.

— Espero não ofendê-lo — disse finalmente — mas o senhor é um tipo de pessoa que me interessa.

Os olhos amarelos do homem o observavam atentamente, mas não disse nada.

— Deve ter rodado um bocado por aí, suponho — disse Cayle.

Sentiu-se pouco satisfeito com a pergunta. Não era assim que ele a queria. Tinha soado pouco madura. Seal, ainda que fosse um mero jogador, encarou com altivez uma abertura de diálogo tão primária. Mas desta vez respondeu.

— Um pouco — disse.

Seus companheiros pareciam achar aquilo muito divertido. Ambos caíram na gargalhada. Cayle corou, mas tinha um desejo muito grande de saber as coisas.

— Esteve em algum planeta? — perguntou. Nenhuma resposta. Seal estudou cuidadosamente as cartas descobertas, e apostou um quarto de crédito. Cayle lutou contra a sensação de estar-se fazendo de idiota. Então disse:

— Nós todos ouvimos muita coisa, e às vezes é difícil saber-se o que é verdade e o que não é. Vale a pena ir até algum dos planetas?

Os olhos amarelos o perscrutaram, agora divertidos.

— Ouça rapazinho — disse Seal de modo taxativo — não chegue perto deles. A Terra é o paraíso deste sistema, e se alguém lhe disser que Vênus está se tornando uma maravilha, mande-o para o inferno... que fica em Vênus. O inferno, estou lhe dizendo. Tempestades de areia sem fim. Um dia, quando eu estava em Venusburgo, a temperatura chegou a oitenta e quatro graus centígrados.. . — e concluiu: — Nada disso aparece nos anúncios, hein?

Cayle concordou a contragosto. A resposta o desiludiu. Pareceu-lhe muito volúvel, e um tanto jactanciosa. O homem parecia-lhe repentinamente menos interessante. Tinha ainda uma pergunta a fazer:

— O senhor é casado? Seal riu.

— Casado! Ouça meu amigo. Eu me caso em cada lugar aonde vou. Não legalmente é claro — riu novamente, de modo significativo. — Acho que vou acabar por influenciá-lo com estas idéias.

— Ora, são idéias que qualquer um pode ter sozinho

— respondeu Cayle.

Sua resposta fora automática. Não esperava uma revelação assim de seu caráter. Sem dúvida alguma, Seal era um homem de coragem. Mas o encanto havia se quebrado. Cayle reconheceu que estava sendo inspirado pela moral de sua pequena cidade, pela ética de sua mãe.

Seal estava falando de novo, animadamente:

— Este rapaz vai ser alguém na sempre gloriosa Isher, hein, amigos? — interrompeu-se e depois disse:

— Como todas essas cartas boas?

Cayle ganhara novamente. Tinha ganho um monte de dinheiro e hesitara. Havia ganho quarenta e cinco créditos, e achou melhor parar, para não causar animosidade.

— Sinto ter que deixá-los — disse — mas ainda tenho algumas coisas que gostaria de fazer. Foi um pra...

A última sílaba morreu-lhe na garganta. Um revólver, minúsculo e brilhante, o espreitava por sobre a borda da mesa. O homem de olhos amarelos falou, com uma expressão monótona:

— Então você acha melhor parar, hein?

Sem voltar a cabeça, dirigiu-se aos companheiros:

— Ele pensa que já é hora de se despedir, rapazes. Vamos deixá-lo ir?

A pergunta deve ter sido feita por mera questão de retórica, pois os seus asseclas limitaram-se a fazer uma careta.

— Pessoalmente — continuou o líder — sou completamente a favor de que ele se vá. Mas deixem-me ver — rosnou. — Pelo meu aparelho de transparência, vejo que sua carteira de notas está no bolso superior direito e há algumas notas de cinqüenta créditos pregadas com alfinete no bolso da camisa. E ainda há, é claro, o dinheiro que ele ganhou de nós, no bolso da calça.

Ele inclinou-se para a frente, seus estranhos olhos irônicos e escancarados.

— E então você pensou que nós éramos jogadores e que estávamos pretendendo limpá-lo, não foi? Não meu amigo, não é assim que trabalhamos. Nosso sistema é muito mais simples. Se você tivesse recusado colaborar, ou se tentasse atrair a atenção de alguém, eu dispararia esta pistola energética direta ao seu coração. Ela produz um feixe tão estreito que ninguém jamais perceberia o pequeno furo em sua roupa. E você continuaria a ficar sentado aí, parecendo um pouco sonolento, talvez, mas quem iria se incomodar com isto, nesta grande nave, com todos os passageiros atarefados e ensimesmados?

Sua voz tornou-se mais forte.

— Passe o dinheiro! E depressa! Que não estou brincando! Dou-lhe dez segundos!

A entrega do dinheiro levou mais de dez segundos mas, aparentemente, o que importava era a continuidade da obediência. Foi-lhe permitido recolocar a carteira vazia no bolso e várias moedas foram ignoradas.

— Você vai ter que comer algo antes de chegarmos. — disse Seal, generosamente.

O revólver desapareceu por baixo da mesa e Seal recostou-se novamente na poltrona, relaxando os músculos.

— Apenas no caso de você resolver se queixar ao comandante, deixe-me avisá-lo de que nós o mataríamos imediatamente, sem nos preocupar com as conseqüências. Nossa história é bem simples. Diremos que você bancou o idiota e perdeu todo seu dinheiro no jogo.

Riu e depois, levantando-se da poltrona, novamente misterioso e imperturbável, disse:

— Até a vista, companheiro. Desejo-lhe mais sorte da próxima vez.

Os outros homens já estavam se levantando. Os trêa caminharam lentamente em direção à saída e Cayle os viu entrar no bar que havia em frente. Cayle permaneceu sentado em seu lugar, inteiramente arrasado.

Procurou o relógio com os olhos — 15 de julho de 4784 da era de Isher, duas horas e quinze minutos após a partida de Ferd e ainda faltava uma hora para chegar à Cidade Imperial.

Com os olhos fechados, Cayle imaginou-se chegando à velha cidade, ao anoitecer. Sua primeira noite ali, que deveria ter sido tão excitante, ele ia ter que passá-la na rua.

 

CAPÍTULO QUINTO

NÃO conseguiu ficar sentado. Por três vezes, ao perambular pela nave, parou em frente aos grandes espelhos energéticos. Os seus olhos injetados de sangue, que naqueles espelhos pareciam ter vida independente, devolveram-lhe o olhar feroz. E acima da desesperada preocupação quanto ao que fazer agora, pairava a dúvida: Por que me escolheram eles para vítima? O que é que havia com ele que fez com que a quadrilha se lhe dirigisse direta e inequivocamente?

Ao virar as costas ao terceiro espelho, viu a garota da loja de armas. Seu olhar deteve-se nele, sem reconhecê-lo. Sem esperanças, Cayle moveu-se para fora de sua linha de visão e afundou numa poltrona.

Seu olhar desatento foi atraído por um movimento. Um homem, do outro lado do corredor, deixou-se cair sobre uma cadeira. Envergava um uniforme de coronel do Exército de Sua Majestade Imperial, e estava tão bêbado que mal conseguira sentar-se à mesa, e o mistério de como havia conseguido chegar até aquela cadeira devia ter as suas origens nas mais profundas leis do equilíbrio.

Virou a cabeça e seus olhos torvos esbarraram em Cayle:

— Você está me espionando, hein? — sua voz diminuiu de tom mas aumentou em intensidade. — Garçom!

Um garçom aproximou-se solícito.

— Sim senhor.

— O melhor vinho para mim e minha sombra. Assim que o garçom se foi, ele acenou para Cayle.

— Não quer sentar-se aqui? Poderíamos viajar juntos, não é mesmo? — sua voz adquiriu um tom confidencial. — Sou um pau-d'água, eu sei. Há muitos anos estou escondendo isto da Imperatriz. Ela não gosta — balançou a cabeça, denotando tristeza. — Ela não gosta disso nem um pouco. Mas então, o que está esperando? Venha cá!

Cayle aproximou-se, maldizendo aquele bêbado idiota. Mas também havia uma esperança. Ele havia esquecido, mas agora lembrava que a jovem da casa de armas lhe havia sugerido entrar para o Exército Imperial. Se ele conseguisse obter daquele alcoólatra as informações que precisava para ser rapidamente admitido, a perda do dinheiro já não seria mais tão importante.

Sorvia seu vinho atentamente. Estava muito mais tenso do que gostaria de aparentar. Ficou observando seu companheiro mais velho com olhares rápidos e disfarçados. O passado do homem começou a emergir por entre uma multidão de confidencias incoerentes. Chamava-se Laurel Medlon. Coronel Laurel Medlon, disse a Cayle, confidente da Imperatriz, íntimo da corte, e chefe de um distrito de arrecadação de impostos.

— Diabo, hic, e um bom distrito — disse com uma satisfação que deu às palavras um valor maior do que tinham por si.

Olhando sardonicamente para Cayle, disse-lhe:

— Então quer entrar nisto também, hein? — um soluço cortou-lhe a frase. — Bem, venha ao meu escritório, amanhã...

Sua voz tornou-se arrastada. Começou a murmurar para si mesmo, e quando Cayle perguntou-lhe algo, resmungou ininteligivelmente sobre a sua chegada à Cidade Imperial.

—... quando eu tinha a sua idade. Rapaz, como eu era inocente! — um espasmo de bêbada indignação o sacudiu: — Eu sei, esses malditos monopólios de tecidos têm diferentes padrões de fazenda que mandam para todo o país. Você vê logo quem vem do interior. Eu fui manjado logo...

Então era isso: suas roupas!

A injustiça desta história toda deixou-o alquebrado. Seu pai nunca lhe permitira comprar os ternos nem mesmo na cidade vizinha de Ferd. Fara havia protestado: "Como posso esperar que os comerciantes daqui entreguem a mim o que têm para consertar se a minha família não negocia com eles?" E tendo formulado esta pergunta irrespondível o velho considerava o assunto encerrado, não aceitando mais nenhum argumento.

"E aqui estou eu", pensou Cayle, "limpo por causa daquele velho". A raiva fútil cedeu. Porque cidades maiores, como Ferd, provavelmente tinham padrões especiais também, tão facilmente identificáveis como os de Glay. A injustiça disso, viu com clareza, não dependia só da estupidez teimosa de um homem.

Mas era uma coisa útil de se saber, se bem que um pouco tardia.

O coronel estava se animando. E, mais uma vez, Cayle perguntou:

— Mas como o senhor entrou para o exército? Como conseguiu se tornar oficial?

O bêbado disse alguma coisa sobre a Imperatriz estar sempre se queixando a respeito do recolhimento de taxas. Depois falou dos problemas decorrentes dos ataques feitos às lojas de armas. Mas falava desconexa-mente. Finalmente veio uma resposta à sua pergunta.

— Eu paguei cinco mil créditos pela minha patente — maldito crime... — continuou depois. — A Imperatriz agora insiste em dar as patentes de graça. Isto não vai funcionar. Todo homem tem seu preço.

Acrescentou com indignação:

— Eu paguei tanto!

— O senhor quer dizer — insistia Cayle — que agora se pode conseguir patentes sem ter que pagar?

Na sua ansiedade tinha segurado a manga do paletó do homem.

Os olhos do coronel se abriram subitamente. Olhou Cayle com suspeita.

— Quem é você? — perguntou secamente. — Vá embora.

Sua voz se tornou dura, quase sóbria.

— Por Deus — disse — não se pode mais viajar hoje em dia sem encontrar um parasita. Estou até pensando em prendê-lo.

Cayle levantou-se, pálido. Sentia-se à beira do pânico. Estava sendo atingido demais e com muita freqüência em pouco tempo.

A sua mente tornou-se clara novamente. Viu que estava parado à porta do bar dianteiro. Seal e os seus companheiros ainda estavam lá. Empertigou-se, agora sabia por que tinha voltado para olhá-los.

Virou-se e dirigiu-se diretamente ao local onde estava a moça da loja de armas. Estava sentada num canto, lendo um livro, uma moça esbelta e bonita, de aproximadamente vinte anos. Estudava seu rosto, enquanto ele lhe narrava o episódio do jogo, como havia perdido todo o seu dinheiro. Cayle havia terminado.

— O que eu queria saber é se devo ir falar com o comandante. Que acha?

Ela balançou a cabeça.

— Não — disse — eu não faria isso. O comandante e a tripulação recebem uma comissão de quarenta por cento nestas viagens. Eles apenas ajudariam a esconder o seu corpo.

Cayle afundou-se na poltrona. Sentia-se sem forças. Esta viagem, a primeira além de Ferd, estava roubando todas as suas energias.

Perguntou, sem circunlóquios:

— Por que não escolheram você? Está bem, eu sei que você não está usando roupas do interior, mas como é que eles escolhem?

— Estes homens nos sondam com aparelhos de transparência. A primeira coisa que descobrem é se você tem uma arma da loja de armas. Neste caso, eles o deixam em paz.

— Você pode emprestar-me a sua? — o rosto de Cayle estava sombrio. — Quero dar-lhes uma lição.

A jovem encolheu os ombros.

— As armas das casas de armas são reguladas individualmente. A minha não funcionaria em suas mãos, E além disso, elas só podem ser usadas em defesa própria e agora já é tarde para você se defender.

Cayle olhava tristemente a paisagem. A beleza das maravilhosas cidades que apareciam cada momento apenas aumentava mais sua depressão. Lentamente, o desespero voltou:

— O que é que as lojas de armas sabem fazer, além de vender armas?

A jovem hesitou.

— Temos um centro de informações — disse finalmente.

— Informações, como? Que tipo de informações?

— Oh, de tudo. Onde as pessoas nasceram. Quanto dinheiro têm. Os crimes que cometeram ou estão cometendo. Claro, não interferimos.

Cayle escutava ao mesmo tempo pouco satisfeito e fascinado. Não tinha a intenção de se deixar distrair mas, por outro lado, há muito tinha em sua mente dúvidas a respeito dessas lojas de armas.

E agora estava falando com alguém bem informado.

— Mas o que fazem? — perguntou com insistência. — Se têm todas essas armas maravilhosas, por que não derrubam o governo?

Lucy Rall sorriu sacudindo a cabeça.

— Você não compreende. As Casas de Armas foram fundadas há mais de dois mil anos por um homem que decidiu que a luta incessante pelo poder, travada por grupos diferentes era insana e que as guerras, civis ou outras, tinham que acabar para sempre. Foi numa época em que o mundo emergia de uma guerra na qual mais de um bilhão de pessoas tinha perecido e ele encontrou milhares de pessoas que concordaram em segui-lo. Sua idéia básica era nada menos que a seguinte: nenhum governo, qualquer que fosse, deveria ser derrubado. Mas deveria haver uma organização com uma finalidade primordial: impedir que o governo tivesse poder absoluto sobre o povo. O homem que se sentisse injustiçado deveria poder comprar uma arma defensiva. Você não pode imaginar o progresso que isto significou. Naquela época de governos tirânicos, era muitas vezes crime capital a simples posse de arma.

Sua voz estava adquirindo uma intensidade emocional. Via-se que acreditava no que estava dizendo. Continuou, com seriedade:

— O que deu ao fundador a idéia, foi a invenção de um sistema de controle atômico e eletrônico que permitia a construção de lojas de armas indestrutíveis e permitia também a fabricação de armas que só podiam ser usadas para defesa. Isto evitava que as nossas armas pudessem ser usadas por assaltantes ou outros criminosos e justificava moralmente o empreendimento. Para fins defensivos, as armas dessas casas são superiores às armas comuns do governo. Funcionam por controle mental e pulam para a mão quando é necessário. Proporcionam proteção contra armas explosivas mas não contra balas, mas são tão mais rápidas, que isso não é importante. "

Ela olhou para Cayle e seu rosto se tornou menos tenso.

— Era isso o que você queria saber? — perguntou.

— Suponhamos que armem uma emboscada — sugeriu Cayle.

Ela encolheu os ombros.

— Não há defesa para isso — balançou a cabeça, sorrindo de leve. — Você realmente não está compreendendo. Nós não nos preocupamos com indivíduos. O que conta é que milhões de pessoas sabem que podem ir a uma loja de armas se precisarem de proteção para si ou para suas famílias. E, o que é mais importante ainda, as forças que, normalmente, gostariam de escravizá-los, são desencorajados pela convicção de que é perigoso explorar o indivíduo.

Cayle estava desapontado.

— Quer dizer que a pessoa é quem tem de se salvar? Mesmo adquirindo a arma a pessoa terá que reagir, ou melhor, resistir sozinha? Ninguém vai ajudar?

Percebeu, subitamente, que ela lhe contara tudo aquilo para explicar porque não podia ajudá-lo. Lucy falou de novo:

— Vejo que está desapontado com o que lhe contei. Mas é assim. E você compreenderá que tem de ser assim. Quando uma pessoa perde a coragem de resistir a uma usurpação de seus direitos, também não pode ser salva por alguém de fora. Acreditamos que o povo tem o governo que deseja e que os indivíduos têm que enfrentar os riscos que a liberdade apresenta, mesmo ao preço de sua própria vida.

O rosto de Cayle estava tenso, refletindo seus sentimentos. Ela interrompeu-o.

— Olhe — disse — deixe-me sozinha por algum tempo. Quero pensar sobre o que você me contou, mas não estou prometendo nada. Darei minha resposta antes de chegarmos ao nosso destino. Está certo?

Ele pensou que era uma forma simpática de se livrar dele. Levantou-se sorrindo e foi sentar-se na sala ao lado. Quando virou-se, Lucy não estava mais lá. Novamente muito tenso, levantou-se e dirigiu-se ao bar.

Atacou Seal por trás, com um violento golpe no lado da cabeça. O homem caiu do tamborete e rolou no chão. Os dois companheiros levantaram-se imediatamente. Cayle golpeou o mais próximo sem piedade. O homem gemeu segurando o estômago.

Ignorando-o Cayle mergulhou em direção do terceiro que estava sacando a arma. Caiu sobre o homem com todo o peso do corpo e deste momento em diante a vantagem era sua. Era ele quem tinha a arma.

Cayle virou-se mesmo a tempo de ver Seal levantar-se. O homem estava esfregando o queixo com a mão e os dois se encararam.

— Devolva meu dinheiro — disse Cayle. — Vocês escolheram o homem errado.

Seal começou a gritar:

— Prendam este homem, estou sendo roubado! É o maior deslavado...

Parou. Devia ter percebido que não se tratava de ser inteligente e raciocinar. Levantou rápido as mãos e disse:

— Não atire, não seja louco! Nós também não atiramos.

Cayle, dedo no gatilho, conteve-se.

— Meu dinheiro?

Houve uma interrupção. Uma voz alta disse:

— O que está acontecendo aqui? Levante as mãos, você aí com a arma.

Cayle virou-se, ficando de costas para uma parede. Havia três oficiais do avião, com explosores portáteis, parados na porta, cobrindo-o.

Resumiu o caso e recusou-se a entregar a arma.

— Tenho minhas razões para crer — disse — que os oficiais de aviões onde ocorrem tais acidentes não estão fora de suspeita. Agora, depressa, Seal, meu dinheiro.

Não houve resposta.

O jogador desaparecera. Ele e os dois comparsas.

— Olhe — disse o oficial que parecia estar no comando — guarde essa arma e esqueceremos o assunto.

Cayle disse:

— Eu vou passar por essa porta, depois guardo a arma.

Os homens concordaram e Cayle não perdeu tempo, Procurou por todo o avião mas não encontrou sinal de Seal e seus homens. Furioso, procurou o Comandante.

— Seu bandido — disse friamente — deixou que partissem.

O oficial o encarou:

— Meu rapaz — disse finalmente com ironia — você está descobrindo que os anúncios não mentem. Viajar é altamente educativo. Como resultado desta sua viagem, você já está bem mais esperto. Descobriu dentro de si uma coragem insuspeitada. No espaço de poucas horas, você amadureceu mais um pouco. Em termos de luta pela sobrevivência, isto é de um valor incalculável. E em termos de dinheiro, até que pagou pouco. Cayle disse:

— Vou denunciá-lo à sua firma. O oficial encolheu os ombros.

— Formulários para reclamações estão à sua disposição na recepção. O julgamento será em Ferd e as despesas a seu cargo.

— Já estou vendo — disse Cayle, amargamente. — Tudo a seu favor, não é?

— Não fiz as regras — foi a resposta. — Só vivo de acordo com elas.

Agitado, Cayle voltou ao salão onde tinha deixado a jovem da casa de armas mas não a encontrou. Começou a se preparar para a aterrissagem. Faltava menos de meia hora.

Poucos minutos depois de Cayle a ter deixado, a jovem tinha fechado o livro e se dirigido sem pressa para uma cabine individual de telestate.

Tirou um dos anéis do dedo e o manipulou de forma a completar uma ligação com o estate fora do controle governamental. O rosto de uma mulher apareceu na tela dizendo:

— Centro de Informações.

— Quero falar com Robert Hedrock.

— Um momento, por favor.

O rosto do homem apareceu quase que imediatamente na tela. Os traços eram ásperos mas mesmo assim era um homem bonito, sensível e forte ao mesmo tempo, ressumando orgulho e vitalidade em cada gesto. Sua personalidade fluía de sua imagem como uma corrente magnética. Sua voz soava calma, mas sonora:

— Departamento de Coordenação.

— Aqui fala Lucy Rall, vigia do imperial em potencial, Cayle Clark.

Continuou descrevendo resumidamente o que acontecera a Cayle.

— As análises o qualificam como um prodígio calistênico e o estamos vigiando na esperança de que sua ascensão seja rápida e que possamos usá-lo em nossa luta para impedir que a Imperatriz destrua as Casas de Armas com sua nova arma. Isto está sendo feito de acordo com a diretiva de que não deve ser deixada de lado possibilidade alguma, contanto que haja alguém para executar a tarefa. Acho que ele precisa receber algum dinheiro.

— Sei — o rosto viril do homem estava pensativo. — Qual é o índice da sua aldeia?

— Médio. No começo, ele vai ter alguns problemas na cidade. Mas deve conseguir livrar-se das atitudes provincianas bem depressa. Esta enrascada em que está envolvido agora já o está endurecendo. Mas precisa de ajuda.

Havia decisão estampada no rosto de Hedrock.

— Em casos como este, quanto menos dinheiro se der, maior será a gratidão mais tarde — sorriu — esperemos. Dê-lhe quinze créditos como se fosse um empréstimo pessoal seu. Não providencie qualquer outro tipo de proteção. Deixe-o por sua própria conta. Mais alguma coisa?

— Nada.

— Então até-logo.

 

CAPÍTULO SEXTO

A primeira noite de Cayle Clark na Cidade Imperial foi horrível. Depois de uma refeição dispendiosa num restaurante automático, tinha voltado ao quarto que alugara. Estava pouco à vontade e dormiu muito mal, acordando no dia seguinte sentindo-se cansado e infeliz.

Saiu e ficou andando sem rumo pela cidade. Quando se viu defronte do Palácio dos Tostões, um estabelecimento de jogo famoso, na conhecida Avenida da Sorte, viu uma possibilidade de diminuir sua depressão e, cedendo à tentação, entrou.

De acordo com um guia da cidade, dedicado unicamente a esta avenida e às suas salas de jogo, os proprietários do Palácio dos Tostões colocaram "letreiros luminosos que modestamente declaravam que era possível qualquer um entrar com um tostão no bolso e sair com um milhão, de créditos, naturalmente". Se isto realmente já tinha acontecido, os letreiros não diziam.

O artigo terminava generosamente: "O Palácio dos Tostões se distingue por ter mais máquinas com uma oportunidade de cinqüenta por cento, que qualquer outro estabelecimento na Avenida da Sorte. "

Isto interessava a Cayle, isto e o fato de as apostas serem baixas. Os seus planos imediatos não incluem o propósito de sair com um milhão de créditos. Queria uns quinhentos créditos para começar. Depois... bem, depois talvez pensasse em alargar seus horizontes.

Fez a sua primeira aposta numa máquina que jogava as palavras par e ímpar num receptáculo iluminado profusamente. Depois de jogar dez de cada uma das palavras dentro do líquido, ou o que parecia ser uma substância líquida, aquele sofria uma transformação química, depois da qual apenas uma palavra ficava na superfície. As outras dezenove desapareciam por uma tela, depois de afundar.

As palavras vencedoras boiavam facilmente na superfície e de certa forma acionavam o mecanismo que pagava aos ganhadores, automaticamente. Cayle ouviu o clique da derrota.

Dobrou a aposta e desta vez ganhou. Separou a aposta inicial e continuou jogando só com o lucro. As luzes intrincadas dançaram, o líquido brincava com as palavras e depois só uma permanecia na superfície, par. O som agradável de dinheiro rolando em sua direção acariciava os ouvidos de Cayle. Ele iria ouvir aquele som muitas vezes na próxima hora e meia; apesar do fato de jogar cuidadosamente e somente com tostões, ganhou mais de cinco créditos.

Finalmente, cansado, dirigiu-se ao restaurante anexo. Quando retornou à sala de jogo, notou um jogo no qual o jogador tinha maior participação pessoal.

Colocava-se o dinheiro numa abertura e então aparecia uma alavanca. Quando esta era acionada, começava um jogo de luzes. Essa seqüência era muito rápida e finalmente se decidia entre o vermelho ou preto. No fundo era apenas uma variação do par e ímpar do jogo anterior e tinha as mesmas probabilidades de ganhar.

Cayle colocou meio crédito na abertura, acionou a alavanca e perdeu. Sua segunda aposta falhou igualmente e a terceira também. Na quarta vez, finalmente, sua cor venceu. As dez jogadas seguintes foram todas a seu favor, depois perdeu quatro. Na série seguinte, de dez ganhou sete. Em duas horas, jogando cuidadosamente, controlando-se muito mais do que forçando a sorte, ganhara setenta e oito créditos.

Procurou um dos bares próximos e ficou refletindo quanto ao que devia fazer agora. Havia tanta coisa para resolver — comprar uma roupa nova, guardar o dinheiro ganho, preparar-se para mais uma noite no Palácio dos Tostões e devolver o dinheiro que Lucy Rall lhe havia emprestado.

Ele agora estava se sentindo bem, seguro de si mesmo. Um momento mais tarde estava chamando Lucy Rall pelo telestate.

Ganhar dinheiro podia esperar, por ora.

Ela respondeu quase que imediatamente.

— Estou na rua agora. — Cayle fez um gesto de compreensão. O rosto dela ocupava quase toda a tela. As pessoas usavam isso na rua, mantendo-o ligado com o estate de casa. Uma pessoa que conhecia em Glay tinha um aparelho desses.

Antes que Cayle pudesse dizer alguma coisa, a moça falou:

— Estou a caminho do meu apartamento. Gostaria de ir encontrar-se comigo lá?

Que pergunta!

O apartamento tinha quatro peças e todas as facilidades eletrodomésticas imagináveis. Bastou um olhar para Cayle perceber que Lucy Rall não fazia trabalhos caseiros. O que o intrigou foi o fato de não ver nenhuma proteção especial. A jovem voltou do quarto vestida para sair. Deu de ombros quando ouviu seu comentário:

— Nós, das Casas de Armas — disse ela — vivemos como todos os outros. Geralmente em bairros melhores; apenas as nossas lojas e — hesitou um momento — algumas fábricas e, naturalmente, o Centro de Informações, são protegidos de interferências.

Ela mudou de assunto.

— Você disse qualquer coisa a respeito de comprar uma roupa nova. Se quiser, posso ajudá-lo a escolher. Mas só tenho duas horas.

Cayle abriu a porta para ela, radiante. O convite a seu apartamento tinha que ter um significado pessoal. Quaisquer que fossem suas tarefas nas lojas de armas, elas não podiam incluir um convite ao obscuro Cayle Clark para visitar o apartamento, mesmo que só por alguns momentos. Deduziu que ela estava interessada nele como pessoa.

Tomaram uma condução que Lucy chamou apertando um botão. A máquina desceu e os apanhou.

— Aonde vamos? — perguntou Cayle. A jovem sorriu e balançou a cabeça.

— Você vai ver — disse.

Um pouco mais tarde ela apontou:

— Olhe.

Viu uma enorme nuvem artificial que mudava de cor várias vezes e depois se formaram as letras: Paraíso Haberdashery.

Cayle disse:

— Ontem eu vi um anúncio deles.

Tinha esquecido mas agora lembrava-se. Os feixes luminosos que tinham varrido o céu quando voltava ao automático para o quarto que alugara. Um anúncio prometendo o paraíso. Avisando a homens de qualquer idade que ali era o lugar certo para comprar, que podiam fornecer qualquer peça do vestuário masculino, a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer lugar da Terra, Marte ou Vênus e, com um pequeno custo extra, em qualquer lugar habitado do Sistema Solar.

Este anúncio era um de muitos e, por isso, apesar de estar precisando de roupas, o nome não se gravara bem em sua memória.

— Vale a pena visitar esta loja — disse Lucy. Cayle teve a impressão de que ela estava se divertindo com a sua alegria. Isto fez com que se sentisse um pouco ingênuo — mas não demais. O importante é que ela estava indo com ele. Aventurou:

— É muito simpático de sua parte acompanhar-me.

O Paraíso Haberdashery ainda era mais impressionante que seu anúncio. O edifício ocupava a largura de três quadras e tinha oitenta andares. Foi Lucy quem deu estas informações.

— Vamos olhar as seções principais, depois escolheremos sua roupa.

A entrada da loja tinha a altura de trinta andares e quase cem metros de largura. Uma tela energética isolava o interior da loja do clima externo mas, fora disso, não havia nenhuma barreira. Era fácil passar a barreira energética. O Paraíso não só vendia roupa de banho como tinha uma praia de meio quilômetro com as ondas vindo de um horizonte nevoento para se quebrar numa praia maravilhosa onde não faltavam nem as conchas nem o cheiro característico do mar. O Paraíso não só vendia roupas para esporte de inverno como tinha montanhas cobertas de neve e uma pista de meio quilômetro, perfeita.

"O Paraíso é UMA LOJA COMPLETA", dizia um letreiro luminoso para o qual Lucy chamou sua atenção. "Se precisar de alguma coisa que estiver dentro do nosso slogan TUDO PARA O HOMEM, peça-nos. Nós o temos. "

— Isto inclui mulheres — Lucy disse calmamente. — Cobram, da mesma forma que cobram os seus ternos, de cinco a cinqüenta mil créditos. Você ficaria surpreso de ver quantas mulheres de boa família vêm se registrar aqui quando precisam de dinheiro. Naturalmente é tudo muito discreto. "

Cayle percebeu que ela olhava pensativa, esperando que ele fizesse algum comentário. Um tanto chocado com a nova informação, apressou-se a dizer:

— Nunca pagarei por uma mulher.

Isso pareceu satisfazê-la. Dali foram comprar o terno. Havia trinta andares de ternos, cada qual com seu preço. Lucy o levou ao andar de vinte a trinta créditos e mostrou-lhe a diferença entre o padrão de tecido dos ternos da "cidade" e o do seu próprio.

— Não creio — disse ela com seu espírito prático-

— que você deva comprar algo mais caro, por enquanto.

Ela recusou seu oferecimento de devolução dos créditos que lhe devia.

— Você poderá me pagar mais tarde. Acho preferível que você o deposite em um banco para ter algum dinheiro de reserva.

Aquilo significava que a veria novamente. Significava também que ela queria vê-lo novamente.

— É melhor mudar logo de roupa — disse ela.

— Eu esperarei.

Foi isso que o fez decidir-se a beijá-la antes que se separassem. Mas quando voltou, as primeiras palavras da moça o dissuadiram.

— Nem tinha reparado o quanto já é tarde — disse ela. — São três horas.

Ela parou para olhá-lo e sorriu.

— Você é alto e forte. Um belo homem, sabia? Bem, apressemo-nos.

Despediram-se na imensa entrada e Lucy correu para o ponto do aerônibus, fazendo-o sentir-se vazio depois que ela se foi. A sensação demorou a desaparecer e ele pôs-se a andar com passos rápidos.

Quando chegou ao lugar onde o Quinto Banco Interplanetário erguia-se pesadamente em seus alicerces, lançando para o alto etéreas torres que atingiam a altura de sessenta e quatro andares, a ambição voltou a surgir em sua mente. Era um grande banco, grande demais para depositar a minúscula soma de quinze créditos, mas o dinheiro foi aceito sem comentários, sem bem que tivesse de registrar suas impressões digitais.

Cayle deixou o banco mais tranqüilo que em qualquer outro momento desde que fora assaltado. Tinha agora uma conta no banco. Estava razoavelmente vestido. Restava ainda uma coisa a fazer, antes de começar a terceira fase de sua carreira de jogador.

De um dos aerônibus ele tinha avistado o anúncio multidirecional de uma loja de armas, instalada em seu parque particular, perto do banco. Caminhou animadamente pela alameda florida e já estava muito próximo da entrada quando percebeu um aviso que nunca tinha visto antes numa loja de armas:

TODAS AS CASAS DE ARMAS METROPOLITANAS

ESTÃO TEMPORARIAMENTE FECHADAS

AS DA ZONA RURAL, ANTIGAS OU NOVAS,

CONTINUAM FUNCIONANDO NORMALMENTE

Cayle recuou contrariado. Era uma possibilidade que ele não havia levado em conta, essa da fabulosa loja de armas estar fechada. Voltou-se, pensativo. Não havia, porém, nenhuma indicação sobre quando a loja reabriria, nenhuma data, nada a não ser aquele único aviso simples. Parou mal-humorado, com uma sensação de perda e incomodado pelo silêncio. Achou, entretanto, que esse último não deveria aborrecê-lo, uma vez que em Glay sempre havia aquele silêncio em volta da loja de armas.

A sensação de haver perdido alguma coisa e a confusão quanto ao que fazer depois cresciam dentro dele. Num impulso, experimentou a porta, porém esta permaneceu sólida e imóvel. Bateu em retirada pela segunda vez e atravessou a rua.

Parou num refúgio para pedestres, indeciso quanto ao botão que devia apertar agora. Pensou novamente nas duas horas e meia que passara com Lucy e elas pareceram-lhe um período curioso naquele espaço de tempo. Empalideceu ao lembrar-se quão pouco interessante ele havia conseguido ser. Mas, mesmo ela, a não ser por seu estilo um tanto direto e por seu espírito bastante prático, não lhe deixara recordações muito deslumbrantes.

"É isso", pensou, "quando uma garota consegue suportar um sujeito maçante por uma tarde inteira, é por que está sentindo alguma coisa. "

As pressões em seu interior cresceram ainda mais, a vontade de ação delineando seus planos e ele sentiu-se compelido a agir rapidamente. Pensara em visitar, durante o período de uma semana, a loja de armas, o salão de jogo novamente, e o Quartel General do Distrito Militar, comandado pelo Coronel Medlon. A loja de armas vinha em primeiro lugar, porque aos agentes imperiais era proibido entrar nelas, mesmo que fossem soldados ou simples empregados do Governo.

Mas ele não podia esperar por isso agora, e apertou o botão de chamada para o primeiro aerônibus que o levasse ao Distrito Número 19.

 

CAPITULO SÉTIMO

O Quartel-general do Distrito Número 19 era um edifício no estilo antigo, desenhado em forma de cascata. O modelo era exagerado, renovando-se a cada instante. Torrentes de mármore sucediam-se jorrando para frente a partir de aberturas ocultas, e terminando por fundir-se umas às outras.

Não era um grande edifício, mas era suficientemente imponente para fazer com que Cayle estacasse. Seus quinze andares e seus grandes escritórios, cheios de máquinas e de funcionários eram impressionantes. Não havia imaginado que o homem bêbado que encontrou na nave tivesse uma tão vasta autoridade. Um quadro, com uma lista de nomes na entrada do edifício, assinalava tanto as funções civis quanto as militares. Cayle presumiu que encontraria o Coronel Medlon em algum lugar indicado pela inscrição: Salas do Estado-Maior — Terraço.

Uma nota no fim do quadro de avisos dizia: Passes de segurança para o elevador para o terraço no balcão de recepção do 15. ° andar.

O departamento de recepção anotou seu nome, mas foi necessário fazer uma consulta antes que o homem acoplasse a ficha a um transmissor a fim de submetê-la ao exame de uma autoridade. Por fim, veio um homem de meia idade, em uniforme de capitão. Ao divisar Cayle fez uma carranca e disse:

— O Coronel não gosta de rapazes. Quem é você? O tom de sua pergunta não soava nada promissor.

Mas Cayle sentiu a teimosia crescer dentro de si. A longa experiência que tinha em desafiar seu pai deu-lhe forças para dizer com voz firme:

— Conheci o Coronel Medlon na viagem para a Cidade Imperial, ontem, e ele insistiu para que eu viesse vê-lo. Se o senhor fizer o favor de informá-lo de que estou aqui...

O Capitão o olhou durante meio minuto. Então, sem dizer uma palavra, tornou a entrar no escritório particular. Voltou a aparecer, balançando a cabeça, mas agora já com um ar mais amistoso.

— O Coronel disse que não se lembra de você, mas lhe concederá um minuto.

O homem baixou o tom de voz e perguntou:

— Ele estava, hum, alto?

Cayle fez que sim com a cabeça. Não se sentiu seguro para fazê-lo com palavras. O Capitão disse em voz baixa, denotando urgência:

— Entre e faça-o pagar, ele merece. Uma pessoa muito importante procurou-o duas vezes hoje e ele não a recebeu. Agora você o deixou nervoso. Ele está com medo do que possa ter dito quando estava sob a influência do álcool. Você sabe, ele não ousa tocar numa gota quando está na cidade.

Cayle seguiu o desleal capitão, possuindo agora uma imagem a mais do mundo de Isher. Ali estava um oficial inferior aparentemente manobrando para conseguir o cargo de seu superior.

Mas esta idéia desapareceu no momento em que ele saiu do elevador. Em seu lugar, surgiu a preocupação quanto à sua capacidade de lidar com uma situação como esta. Veio-lhe a desagradável sensação de que ela não seria suficiente. Bastou-lhe, porém, olhar o homem sentado atrás da grande escrivaninha, num dos cantos do grande salão, para que se evaporasse o receio de ser jogado fisicamente para fora do 19. ° Distrito.

Era o mesmo homem da nave porém, de algum modo, mais magro. Seu rosto, que parecera inchado enquanto estava bêbado, agora parecia menor. Seus olhos eram pensativos e ele tamborilava nervosamente sobre o tampo da mesa.

Disse para o capitão, com voz baixa e autoritária:

— Pode deixar-nos a sós, capitão.

O Capitão retirou-se com um olhar fixo em seu rosto. Cayle sentou-se.

O coronel disse:

— Creio que me lembro agora de sua fisionomia. Sinto muito; acho que andei bebendo um pouco.

Medlon sorriu, constrangido.

Cayle pensou que o que o outro havia dito a respeito da Imperatriz devia ser extremamente perigoso para alguém em sua posição. Em voz alta disse:

— Não percebi nada de anormal, senhor. Hesitou um instante.

— Ainda que, pensando a respeito, creio que o senhor foi bastante liberal em suas confidencias.

Cayle parou por um instante. Depois continuou:

— Acredito que tenha sido a sua posição que lhe tenha permitido falar de modo tão franco e livre.

Houve um silêncio. Cayle teve tempo para, cautelosamente, congratular-se por suas próprias palavras, mas não se deixou iludir. Aquele homem não tinha chegado à sua atual posição por falta de inteligência ou de coragem.

O Coronel Medlon disse finalmente:

— Bem. O que foi que... eh... combinamos? Cayle respondeu:

— Entre outras coisas, coronel, o senhor me disse que o Governo estava precisando de oficiais e me ofereceu uma patente.

O Coronel falou com voz dura:

— Não me recordo dessa oferta. De qualquer modo, se eu consegui ficar tão inconsciente a ponto de fazê-la, tenho, infelizmente, que informá-lo de que não tenho autoridade para fazer de você um oficial. Existe um procedimento legal a ser observado com respeito à obtenção de patentes, que se encontra totalmente fora de minhas mãos. E uma vez que há uma tão grande estima pela carreira militar, há muito que o governo a encara como uma fonte de renda. Por exemplo, o posto de tenente lhe custaria cinco mil créditos, mesmo com o apoio de minha influência. O de capitão o faria despender a enormidade de quinze mil créditos, o que é uma fortuna para um rapaz de sua idade e...

Cayle estivera ouvindo com um crescente desconforto. Revendo suas próprias palavras, pareceu-lhe ter feito o possível com o material à sua disposição. Ele simplesmente não estava em condições de tirar partido das indiscrições de Medlon. Sorrindo forçadamente perguntou:

— E quanto custa a de Coronel?

O oficial deu uma gargalhada. Depois disse muito jovialmente:

— Meu rapaz. Esta não se paga com dinheiro, e sim com a própria alma: uma mancha negra de cada vez.

Interrompeu-se, sério. Depois disse:

— Veja bem, sinto muito se ontem fui um tanto liberal com as patentes de Sua Majestade, mas você deve compreender como são essas coisas. E para provar-lhe que não sou um homem sem palavra, mesmo quando estou fora de controle, eu lhe direi o que fazer. Traga-me cinco mil créditos no prazo de, digamos, duas semanas, se lhe for conveniente, e eu praticamente lhe garanto a patente. Que lhe parece?

Para um homem que possuía menos de quarenta créditos, esta perspectiva de solução era bem impraticável. Se a Imperatriz havia ordenado que não se vendessem maia as patentes no futuro, esta ordem estava sendo totalmente ignorada por subalternos corruptos. Cayle teve assim o seu segundo vislumbre sobre a situação em que se encontrava o reinado da Imperatriz Innelda.

Ela e seus conselheiros não eram todo-poderosos. Ele sempre pensara que apenas as Casas de Armas restringiam o seu poder. Mas a rede que a havia envolvido era muito menos tangível. A grande massa de pessoas que a serviam tinha os seus próprios esquemas, seus próprios desígnios, que perseguiam com mais ardor do que o que dedicavam à mulher a quem haviam jurado fidelidade.

O coronel mexia nos papéis em cima da mesa. Estava terminada a entrevista. Cayle se preparava para dizer algumas palavras finais quando o telestate na parede atrás de Medlon se iluminou. O rosto de uma mulher jovem apareceu na tela. Ela disse sem rodeios:

— Coronel, com todos os diabos, onde tem estado?

O coronel retesou-se e voltou-se lentamente para a tela. Mas Cayle não precisou da reação intranqüila do coronel para saber quem era aquela mulher.

Ele estava vendo a Imperatriz de Isher.

 

CAPÍTULO OITAVO

Cayle, que estivera sentado, levantou-se rapidamente. Foi um movimento automático, motivado pela sensação de ser intruso. Já estava a meio caminho da porta quando percebeu que o olhar da mulher o seguia.

Cayle gaguejou:

— Coronel, obrigado pelo privilégio...

Sua voz pareceu-lhe extremamente desagradável e ele parou envergonhado. Então sentiu uma onda de dúvida, de descrença, a assaltá-lo sobre a possibilidade de que tal coisa estivesse ocorrendo com ele. Lançou um olhar que, momentaneamente, pôs em dúvida a identidade da mulher. Naquele momento, Medlon falou:

— É tudo por enquanto, Sr. Clark. A voz do coronel soava alto demais.

Agora não tinha mais dúvidas quanto à identidade dela. Aos vinte e cinco anos, a Imperatriz Innelda não era certamente a mais bela mulher do mundo. Mas não havia como deixar de reconhecer seu rosto longo e característico e seus olhos verdes. Era o semblante típico da dinastia de Isher. Sua voz, quando falou novamente, era a mesma que ouvira no telestate, familiar a qualquer um que alguma vez tivesse assistido a sua saudação de aniversário, mas como soava diferente, agora, ouvindo-a dirigida diretamente a ele:

— Qual é o seu nome?

Foi Medlon quem respondeu, apressadamente, com voz tensa porém calma:

— É um conhecido meu, Majestade. Depois, voltando-se para Cayle disse:

— Adeus, Sr. Clark. Foi um prazer conversar com o senhor.

Ela ignorou a interrupção.

— Eu perguntei qual é o seu nome.

A pergunta foi feita de modo tão direto que Cayle se encolheu. Mas disse seu nome.

— E porque está no escritório de Medlon?

Cayle percebeu o olhar de Medlon. Um olhar tenso, esforçando-se por captar sua atenção. Uma remota parte de seu cérebro havia admirado a habilidade das respostas anteriores do Coronel. A admiração desapareceu. O homem estava em pânico. Cayle sentiu surgir uma esperança, bem dentro de si, lá no fundo. Disse então:

— Estava perguntando sobre a possibilidade de obter um posto no Exército de Vossa Majestade.

— Foi o que pensei.

A Imperatriz falou num tom calmo. Interrompeu-se, olhou pensativamente de Cayle para Medlon e voltou a olhar para Cayle. Sua pele era macia, ligeiramente corada. Mantinha a cabeça ereta orgulhosamente. Parecia jovem, viva e gloriosamente confiante. Algo de sua experiência de lidar com os homens transparecia então. Ao invés de dirigir a próxima pergunta a Cayle, ela deu a Medlon a possibilidade de uma saída.

— E posso saber qual foi sua resposta, coronel?

O oficial estava rígido, transpirando. Mas a despeito disso, sua voz estava calma e havia mesmo nela uma ponta de jovialidade quando respondeu:

— Eu informei, Majestade, que sua patente iria requerer aproximadamente duas semanas para ser concedida. Como sabe Vossa Majestade, há um certo acúmulo de papelada burocrática.

Cayle sentiu-se cavalgando a crista da onda, levando-o cada vez mais para o alto. Esta situação só poderia trazer-lhe vantagens.

Sentiu uma extraordinária admiração pela Imperatriz. Ela era tão diferente do que ele havia imaginado! O fato de ser ela capaz de refrear-se a fim de não embaraçar um de seus oficiais, virtualmente apanhado em flagrante, surpreendeu-o profundamente.

Entretanto, sua voz não deixou de soar um pouco sarcástica quando disse:

— Sei, coronel. Sei disso muito bem. Estou por demais familiarizada com toda essa burocracia.

Quando continuou, o sarcasmo foi substituído pela paixão:

— De um modo ou de outro, os rapazes que normalmente procuram o ingresso no Exército, ouviram que há alguma coisa e por isso permanecem de fora, aos bandos. Estou começando a suspeitar de que existe uma conspiração favorável às Casas de Armas, no sentido de desencorajar os poucos bons candidatos que aparecem.

Seus olhos estavam faiscando. Era evidente que ela estava com raiva e que o seu autocontrole havia desaparecido. Dirigiu-se a Cayle, destacando bem as palavras:

— Cayle Clark, quanto lhe pediram pela patente? Cayle hesitou. O olhar de Medlon era agora algo de terrível, de tão sombrio. Sua cabeça, semivoltada para Cayle, parecia pouco natural. A mensagem contida no olhar tornava quaisquer palavras mais que dispensáveis. O coronel sentia remorsos por tudo o que havia contado àquele pretendente ao posto de tenente no Exército de Sua Majestade.

O apelo era tão gritante que Cayle se sentiu enojado. Nunca, anteriormente, tivera a experiência de ter um homem completamente à sua mercê.

A sensação o fez retrair-se. De repente, não lhe deu mais vontade de olhar. Disse:

— Majestade, conheci o Coronel Medlon no Interestadual, ontem, e ele ofereceu-me um posto sem qualquer condição prévia.

Sentiu-se melhor com estas palavras. Pôde ver que o oficial estava acalmando e que a mulher sorria satisfeita. Ela disse:

— Muito bem, coronel. Estou contente de ouvir isto.

E, uma vez que isso responde de modo satisfatório ao assunto que pretendia perguntar-lhe, dou-lhe minhas felicitações. É tudo.

A tela deu um estalo e apagou-se. O Coronel Medlon afundou lentamente na cadeira. Cayle deu um passo à frente, sorrindo. O Coronel então disse com uma voz despida de toda emoção:

— Foi um prazer conhecê-lo, meu rapaz. Mas agora estou muito ocupado. Espero realmente ter notícias suas nas próximas duas semanas, com os cinco mil. Até logo.

Cayle não se moveu imediatamente, mas o gosto amargo da derrota já o envolvia completamente. Da escuridão de sua mente lhe veio o pensamento de que tivera uma oportunidade sem igual. E que ele a tinha desperdiçado por ser fraco. Percebeu que o coronel o olhava divertido.

Depois disse, encolhendo os ombros:

— A Imperatriz não compreende as dificuldades que existem para liquidar o sistema de venda de patentes. Eu não tenho nada a ver com isso. Tentar mudar o estado de coisas ou cortar a minha garganta, produzirá o mesmo efeito. Quem se intrometer nesse assunto é um homem morto.

Hesitou, depois continuou, com um sorriso irônico:

— Espero que isto lhe sirva de lição sobre as leis econômicas do progresso pessoal. Bem. Bom-dia.

Cayle decidiu-se contra a idéia de uma agressão física ao homem. Aquele era um edifício militar, e ele não tinha a intenção de ser preso por agressão num lugar onde não podia defender-se convenientemente. Anotou o coronel na mente, a fim de cuidar dele com a devida atenção numa outra oportunidade.

A noite já havia descido sobre a cidade de Isher quando finalmente saiu do Quartel-General do 19. ° Distrito. Olhou as frias estrelas entre os anúncios luminosos e sentiu-se muito mais ambientado do que na noite anterior. Estava começando a achar o caminho nos labirintos deste novo mundo. E mesmo lhe parecia que estava indo bastante bem se se levasse em conta sua ignorância. Aos poucos, enquanto caminhava, foi adquirindo nova confiança. Tinha feito bem em atacar Seal sem pensar nas conseqüências e também tinha acertado em recuar no caso de Medlon. Seal era um indivíduo que agia sozinho como ele e, basicamente, ninguém se importaria com o que lhe acontecesse. Mas o Coronel era protegido pelo poder da lei de Isher.

Em princípio, não tivera a intenção de ir à Avenida da Sorte aquela noite, mas agora mudou de idéia. Se conseguisse ganhar os cinco mil créditos e comprar a patente, os tesouros de Isher começariam a vir em sua direção. E Lucy Rall.. . não podia esquecer Lucy.

Mesmo um só dia era tempo demais para esperar.

 

CAPÍTULO NONO

Cayle teve que forçar seu caminho através da multidão para conseguir entrar no Palácio dos Tostões. O tamanho da multidão o encorajava. Ele podia passar despercebido naquela massa de humanidade sedenta de dinheiro.

Cayle não hesitou. Havia examinado, antes, todos os jogos, por isso se dirigiu diretamente ao que ele queria para obter fortuna. O importante, pensou, é conquistar o lugar para jogar e mantê-lo.

Este novo jogo tinha possibilidade de até cem para um, sendo que a mais baixa era de cinco para um. Funcionava de uma forma relativamente simples, se bem que Cayle, que sabia um pouco sobre energia, tendo se distraído desde os quinze anos na oficina do pai, percebeu que havia um sistema complicado escondido atrás da aparência de simplicidade do esquema. O alvo era uma bola de energia. Tinha aproximadamente uma polegada de diâmetro e rolava dentro de uma esfera de plástico. Rolava cada vez mais depressa até que sua velocidade transcendia a resistência da matéria. Nesse momento, sendo energia pura, quebrava as barreiras de sua prisão. Mergulhava através do plástico como se não fosse nada, como se fosse um raio de luz prisioneiro por uma lei física antinatural numa prisão quase invisível.

No entanto, no momento em que se via livre, parecia ter medo. Mudava de cor, sutilmente, e diminuía a velocidade. E, apesar de sua imensa velocidade no momento da liberação, o medo era tão grande que poucos segundos depois diminuía tanto que começava a cair.

Enquanto caía, dava a ilusão de estar em toda parte. Uma ilusão que se formava na mente dos jogadores, produto da enorme velocidade e de alucinação mental. Cada jogador tinha a convicção que a bola voava em sua direção, que cairia no canal que ele atirava com um número. Inevitavelmente, ficavam decepcionados quando a bola, missão cumprida, caía num dos canais, acionando o mecanismo.

O primeiro jogo deu a Cayle um lucro de trinta e sete créditos. Queria aparentar calma mas o choque da vitória inundou seus nervos com espasmos de excitação. Colocou um crédito em quadro canais, perdeu e, depois, jogando os mesmos números de novo, ganhou noventa créditos. Durante a hora seguinte, ganhou numa média de um em cada cinco jogos. Tinha que reconhecer que era uma sorte fenomenal, até para ele e, mesmo antes de terminar aquela hora, já estava arriscando dez créditos em cada canal que escolhia.

Não chegou a contar o lucro. De vez em quando, jogava um monte de moedas numa trocadora automática e recebia notas grandes que guardava no bolso. Nem uma vez teve que jogar com a reserva. Depois de um certo tempo, sentiu um pânico estranho. "Devo ter uns três ou quatro mil créditos. É hora de parar. Não preciso ganhar o dinheiro todo numa só noite. Posso voltar amanhã e depois de amanhã e assim por diante. "

O que o confundia era a velocidade do jogo. Cada vez que o impulso de parar chegava, o jogo recomeçava e ele, apressadamente, fazia as apostas. Quando perdia, sentia-se irritado e surgia dentro dele a determinação avara de não deixar para trás nem um tostão de seu lucro.

Se ganhava, achava ridículo interromper no momento em que a sorte o favorecia tanto. Espere, dizia-se, espere até perder dez vezes seguidas... dez vezes seguidas... Teve a impressão vaga de quarenta ou cinqüenta mil créditos num bolso. E havia dinheiro nos outros bolsos também. Sem se dar conta, conscientemente, começou a jogar com notas de valor elevado. Não tinha importância, a máquina pagava os ganhos com toda honestidade.

Já estava cambaleando como um homem bêbado. O corpo parecia estar flutuando. Continuava jogando, como que envolvido numa névoa emocional, sem perceber os outros. Não reparou que muitos estavam acompanhando suas jogadas, ganhando com ele. Mas isto não era importante para ele. Só despertou de seu torpor quando a bola caiu, como uma coisa morta, no fundo de sua prisão. Ele ficou parado, esperando o jogo recomeçar, sem a menor consciência de que aquela parada tinha algo que ver com ele, até que um homem gordo, moreno, caminhou em sua direção.

O estranho falou, com um sorriso oleoso:

— Parabéns, rapaz. Agradecemos a preferência e estamos muito felizes com sua sorte. Mas para os outros jogadores temos más notícias. As regras desta casa, que estão afixadas na entrada de nosso magnífico estabelecimento, não permitem que se acompanhe a sorte evidente de outro jogador. É fora de dúvida que este afortunado rapaz está jogando de mãos dadas com a sorte, por isso todas as outras apostas devem ser feitas antes da sua. A máquina foi regulada nesse sentido e pedimos não nos obrigar a desapontá-los se fizerem apostas de última hora. Não dará certo. E agora, boa sorte senhores e senhoras, e sobretudo a você, meu rapaz.

Afastou-se sorrindo. Um momento depois a bola estava dançando novamente.

Foi durante a terceira jogada que Cayle percebeu: "Mas eu sou o centro de atenção". Ficou espantado. Tinha saído de sua letargia semiconsciente, mantida para poder continuar seguro de si no jogo. Pensou: "É melhor eu sair daqui e sem despertar atenção".

Quando tentou afastar-se, uma garota bonita abraçou-o e deu-lhe um beijo.

A garota dizia:

— Oh, por favor, deixe eu ter um pouco da sua sorte. Por favor, por favor, sim?

Conseguiu soltar-se, mas esqueceu sua intenção. Continuou jogando enquanto tentava lembrar-se: "Mas eu ia fazer alguma coisa". Percebia que cada vez chegava mais gente querendo jogar na mesma mesa, empurrando-se uns aos outros e mesmo brigando por um lugar. Ao escutar as discussões, novamente sentiu como que um aviso, a sua mesa era o centro de atenção de mil olhos ávidos.

Mas não conseguia lembrar-se do que queria fazer. Tinha a sensação de estar virtualmente cercado de mulheres que o tocavam, beijavam-lhe o rosto quando virava a cabeça, e sentia o excesso de perfume.

Não podia mover as mãos sem esbarrar com elas em braços nus, costas nuas e vestidos tão decotados que a sua cabeça mergulhava num mar de seios macios e perfumados. Quando, naturalmente, inclinava a cabeça um pouco, as mãos sempre presentes o puxavam o resto do caminho.

E ainda não tinha terminado sua noite de sorte. Sentia que era prazer demais, aplauso demais a cada nova vitória. E também quando perdia, era excessivo o consolo oferecido pelas mulheres que o abraçavam e beijavam. Até a música de fundo era animada demais. Quando havia ganho incontáveis milhares de créditos, fecharam-se as portas do Palácio dos Tostões e o mesmo homem gordo aproximou-se e disse secamente:

— Muito bem. Agora chega. Os clientes já saíram, podem acabar com esta idiotice.

Cayle olhava o homem espantado. Sentiu o alarme de perigo pulsando em seu corpo. Disse:

— Acho que vou para casa.

Alguém golpeou-o no rosto, com violência.

— De novo, ele ainda não voltou a si.

O segundo golpe foi ainda mais violento. Cayle finalmente percebeu claramente que estava em perigo. Gaguejou:

— Mas o que está acontecendo?

Seus olhos apelavam para aqueles que, minutos antes, estavam tão entusiasmados com ele... Impossível que algo de ruim pudesse lhe acontecer enquanto eles estivessem ali.

Virou-se para atacar o homem gordo. Mas foi imobilizado por mãos fortes que o seguravam, que esvaziavam os seus bolsos, tirando tudo o que tinha ganho. Como de muito longe, ouviu o homem falar novamente:

— Não seja ingênuo. Não há nada especial acontecendo. Os clientes foram empurrados para fora, não só os daqui de sua mesa como também os do salão de jogo. Os que estão aqui agora são contratados para estas ocasiões e nos custam dez créditos cada. Isto nos custará só dez mil, enquanto que você ganhou de cinqüenta a cem vezes esta cifra.

Encolheu os ombros e continuou:

— As pessoas não entendem o mecanismo econômico destas coisas. Na próxima vez não seja tão ambicioso. Se houver uma próxima vez.

Cayle recuperou a fala:

— E o que vão fazer?

— Você verá. Muito bem, levem-no para o caminhão aéreo e podemos reabrir o estabelecimento!

Cayle sentiu que o arrastavam através de um corredor escuro. Desesperado, pensava que, mais uma vez, estava numa situação em que os outros decidiam o seu destino.

 

INTERLÚDIO

McAllister percebeu que estava deitado numa calçada. Via um grupo de pessoas à sua volta olhando com curiosidade. Pôs-se de pé. Não via mais a cidade mágica, nem o parque do futuro. Em vez disso, uma fileira de casas de um andar, feias, de cada lado da rua.

Percebeu uma voz, no meio do murmúrio geral, dizendo:

— Tenho certeza de que é o repórter que entrou naquela loja de armas.

Então havia voltado ao seu próprio tempo. Talvez até ao mesmo dia. Enquanto se afastava lentamente ouviu a mesma voz dizendo:

— Parece doente. Gostaria de saber...

Não escutou mais nada. Mas estava pensando: "Doente!" Eles nunca saberiam o quanto estava. Mas em algum lugar do mundo devia haver um cientista que pudesse ajudá-lo. O importante era que não tinha explodido.

Agora estava andando mais depressa, longe da multidão. Olhando para trás viu o grupo dispersar como faz uma multidão quando perde o centro de interesse. McAllister virou uma esquina e os esqueceu.

— Tenho que me decidir.

As palavras soaram altas, muito perto. Precisou de um momento até perceber que as tinha dito.

Decidir? Não tinha pensado que sua situação requeria uma decisão. Ele tinha voltado. Agora, achar um cientista... Se isto era uma decisão, já estava tomada. A pergunta era, quem? Lembrou-se de seu velho professor de física. Automaticamente, procurou uma cabine telestática e pegou numa moeda. Então lembrou-se, com um profunda mal-estar, que estava vestido com a roupa invisível, e que o dinheiro estava dentro. Recuou, abalado. O que estava acontecendo?

Era de noite, numa cidade iluminada. Estava numa avenida larga, que se perdia na distância. O asfalto da avenida brilhava suavemente — uma estrada de luz, como um rio fluindo em direção de um sol invisível, um rio reto e suave.

Caminhou sem compreender, por alguns minutos, lutando para conter uma esperança vã. Finalmente, um pensamento forçou o caminho através de sua mente: Estaria novamente na época de Isher e dos fabricantes de armas? Podia ser. Pelo menos era o que parecia. E significaria que eles o trouxeram de volta. Apesar de tudo, não eram maus e o salvariam se fosse possível. Pelo que podia-perceber já haviam passado semanas do tempo deles.

Começou a correr. Tinha que achar uma loja de armas. Passou por um homem e o chamou. O homem parou, curioso, depois prosseguiu seu caminho. McAllister teve a breve visão de olhos intensos, escuros e a visualização de alguém a caminho de um maravilhoso lar do futuro. Foi isto que suprimiu o seu impulso de correr atrás do homem.

Mais tarde achou que devia tê-lo feito. Foi a última pessoa que viu em todas estas ruas quietas e desertas. Era talvez a hora do amanhecer, quando ninguém está na rua. O que estranhou mais do que não encontrar ninguém na rua, foi a ausência de lojas de armas.

Apesar disso, a esperança não o abandonava. Breve seria de manhã. Homens sairiam dessas casas estranhas e luminosas. Grandes cientistas, sábios de outras eras, o examinariam, não às pressas e com medo, mas calmamente, em superlaboratórios.

O pensamento terminou. Sentiu a mudança.

Agora estava no centro de uma tempestade de neve. Cambaleou, golpeado pela violência do vento. Lutava por manter a calma física e mental.

A cidade maravilhosa havia desaparecido. Também desaparecera a avenida luminosa. Tudo transformado naquele mundo selvagem e mortal. Era de dia. Através da nevasca, podia distinguir algumas árvores a uma pequena distância. Instintivamente, procurou caminhar na direção delas, em busca de abrigo. Pensava: "Um minuto no futuro distante; o próximo — onde?"

Não havia nenhuma cidade. Só árvores, uma floresta hostil e o rigoroso inverno. Não sabia quanto tempo ficara ali enquanto rugia a tempestade. Teve tempo para alguns pensamentos; por exemplo, que a roupa invisível o protegia do frio, que não estava sentindo o frio; e depois...

Desaparecera a tempestade. E as árvores. Estava numa praia, de pé na areia e à sua frente via o mar azul iluminado de sol, encrespando-se entre edifícios brancos, destruídos. Por toda parte, dentro do mar, na praia, nas encostas das colinas, estavam, as ruínas de uma cidade enorme. Sobre tudo isso estendia-se uma aura de idade incrível, e o silêncio milenar só era quebrado pelo marulhar das ondas.

De novo a transposição instantânea. Mais preparado desta vez, mesmo assim afundou duas vezes nas águas do caudaloso rio que o carregava. Era difícil nadar, mas a roupa invisível estava cheia do ar que fabricava, a cada minuto que passava. Depois de um momento, resolveu nadar em direção da margem à sua direita. Ocorreu-lhe um pensamento e parou de nadar. "Para quê?" A verdade era tão simples quanto terrível. Ele estava sendo jogado do passado para o futuro. Ele era o "peso" na extremidade mais longa de uma alavanca energética; e de certa forma estava sendo arremessado cada vez mais longe no tempo. Só isso podia explicar as catastróficas mudanças que já havia presenciado. Dentro de uma hora haveria outra mudança.

E veio. Estava deitado num gramado verde. Quando olhou em volta, viu meia dúzia de casas baixas no horizonte. Pareciam estranhas, pouco humanas. Uma pergunta o consumia: Gostaria de saber quanto tempo ficaria em cada uma dessas épocas.

Passou a controlar no relógio. A demora era de duas horas e quarenta minutos. Parou de se perguntar. Período após período, a gangorra o fazia dançar no tempo, porém ele mantinha uma só posição, na água ou em terra firme, era-lhe indiferente. Não lutava mais. Não andava, corria, nadava ou mesmo se sentava... Passado — futuro — passado — futuro...

Sua mente estava voltada para dentro. Tinha a sensação vaga de que devia fazer alguma coisa, dentro de si, não fora. Como uma decisão que devesse tomar. Estranho, não conseguia lembrar qual era.

Sem dúvida, os Fabricantes de Armas conseguiram a prorrogação de que necessitavam. Porque na outra extremidade desta alavanca, estava a máquina usada pelos soldados de Isher como força ativadora. Também ela dançava no passado, no futuro, nesta gangorra infernal.

Mas havia a decisão. Tinha que tentar, tinha que se lembrar...

 

CAPÍTULO DÉCIMO

16 de julho DE 4784. Era de Isher, 23h50m — Hotel Royal Ganeel.

Robert Hedrock saiu do Departamento de Coordenação e andou pelo corredor feericamente iluminado que se estendia a perder de vista. Seu andar tinha a leveza vigilante do de um felino mas, na realidade, seus pensamentos estavam bem longe do hotel onde estava instalado o quartel-general da liga dos Armeiros.

Há mais de um ano, ele pedira para ficar ali, argumentando que acreditava num iminente conflito com o governo e queria ficar ao lado dos Fabricantes de Armas quando a crise explodisse. Seus documentos estavam em ordem, o índice mental, físico e moral que a máquina ~Pp lhe atribuiu era tão elevado que seu dossiê foi imediatamente enviado à comissão executiva, que lhe confiou sem vacilar uma missão excepcional.

Hedrock não ignorava que muitos membros do conselho e inúmeras personalidades altamente colocadas, achavam que a rapidez de sua ascensão era contrária aos interesses superiores da organização. Alguns o achavam mesmo um tanto misterioso. Todavia, essas reservas não eram maldosas. Ninguém, na verdade, pensava em discutir o veredito da máquina Pp, o que fazia Hedrock ficar às vezes espantado. Um dia ele examinaria mais cuidadosamente a máquina para saber por que indivíduos normalmente desconfiados aceitavam suas decisões sem reclamar.

Enganar o mecanismo com uma história cuidadosamente elaborada, revelou-se de uma simplicidade infantil. Claro, ele possuía capacidade de controle psíquico fora do comum e seu conhecimento das reações das máquinas de processo biológico era excepcional. Além disso, as relações de amizade que ele mantinha com os Armeiros tinham desempenhado um papel preponderante na sua promoção. A máquina Pp, concluiu, era equipada com os mesmos circuitos de sensibilidade que permitiam às portas das lojas de armas perceber a hostilidade oculta. Além disso, ela dividia com as superarmas a faculdade de decisão, contida na sua estrutura: elas só matavam em legítima defesa; seus sentidos eletrônicos, incrivelmente afinados, estavam aptos a detectar as diferenças de reação mais tênues, manifestadas pelas pessoas submetidas ao seu exame. Esse aperfeiçoamento ainda não existia na época em que Hedrock juntou-se à liga, há uma centena de anos. Na medida em que a segurança dos Armeiros dependia exclusivamente da máquina, era indispensável que o coordenador, o único humano dotado do privilégio da imortalidade, tivesse a certeza de que a confiança dos Fabricantes de Armas, seus amigos, era justificada.

Mas cuidaria disso mais tarde. No momento, problemas mais urgentes o assaltavam. Precisaria determinar uma linha de ação num futuro ainda impreciso, sem dúvida, embora próximo — próximo demais para seu gosto.

A primeira ofensiva em grande estilo lançada pela Imperatriz obrigara a organização a fechar suas lojas nas grandes cidades. Mas isso não passava de coisa secundária em relação ao problema do "pêndulo" temporal. E Robert Hedrock era o único indivíduo qualificado para tomar uma decisão a esse respeito. Ora, por enquanto não tinha a menor idéia da maneira pela qual abordaria o assunto.

Parou diante de uma porta onde havia uma tabuleta: Particular — Entrada Reservada aos Diretores. Bateu, esperou alguns segundos e, sem mais formalidades, entrou numa sala estranha. Não muito grande, segundo as normas isherianas, mas notavelmente ampla e cuja porta era o elemento mais insólito, pois achava-se exatamente a trinta metros do chão e a trinta metros do teto. A soleira era uma espécie de plataforma, prolongada por um campo de energia. Bastava colocar os pés em dois isoladores, o que Hedrock não deixou de fazer, para ser imediatamente "carregado" pelo campo luminoso, que depositava o visitante no centro da curiosa sala..

Os sete conselheiros presentes, que rodeavam uma máquina engastada num estojo de plástico transparente, apenas o cumprimentaram, sem desviar a atenção. Hedrock olhou-os um instante. Pareciam anormalmente deprimidos.

— A próxima oscilação não vai demorar — murmurou Peter Cadron.

Hedrock fixou os olhos no estranho objeto que flutuava na sua bolha de vazio.

Era um cronograma, estriado por um montão de linhas misturadas, tão finas que pareciam vibrar como ondas calóricas no ar tórrido de verão.

Teoricamente, as estrias, que emergiam de um ponto comum, expandiam-se até o infinito no passado e no futuro, com a ressalva de que, no espaço geométrico utilizado, o infinito tinha um valor vizinho a zero. Mas quando se tratava de muitos milhares de bilhões de anos, a imagem se toldava e ficava difícil de observar. Nesse oceano de tempo, distinguiam-se duas sombras confusas, uma relativamente volumosa perto do centro e outra, não maior que a ponta de um alfinete. Esta última, sabia Hedrock, era uma imagem incrivelmente aumentada de um objeto real. 0 amplificador que revelava cada pulsação da mancha era ligado a separadores sensitivos de energia que se ajustavam automaticamente a cada novo observador.

Penalizado, Hedrock acompanhou aquelas palpitações, aqueles estremecimentos estranhos que não tinham paralelo no espaço macrocósmico. Embora o movimento não fosse especialmente rápido, as duas manchas desapareceram. Para onde? Mesmo os cientistas que estavam a serviço da liga não o sabiam. Desapareceram, pois, e pouco a pouco voltaram a se materializar. Mas, desta vez, haviam mudado de posição uma em relação a outra e a distância que as separava aumentou. A maior das duas tremia no ponto menos trinta e quatro dias do centro, no passado, e a outra achava-se a um mês, três dias e algumas horas no futuro. A pontinha de alfinete, depois de ter estado a 97 bilhões de anos no futuro, estava agora a cerca de 106 bilhões de anos no passado.

Aqueles números eram tão fantásticos, que Hedrock teve um estremecimento.

— Calcularam o potencial de energia?

Cadron, a quem fizera a pergunta, sacudiu a cabeça, com ar fatigado.

— Tem bastante para fazer explodir o planeta. Onde pois, vamos libertá-la?

Hedrock não estava entre os que haviam falado com McAllister, o homem do século XX. Suas informações sobre aquela entrevista eram fragmentárias e era, aliás, para saber mais que ele fora encontrar a comissão na sala da Temporal. Chamou Cadron para o lado e o interrogou copiosamente. O jovem conselheiro encarou-o com um pálido sorriso.

— Quer saber a verdade? Ei-la: todos nós temos vergonha da maneira pela qual agimos.

— Se não me engano, os senhores acham que McAllister não devia ser sacrificado.

— Não é isso o que quero dizer. Acho melhor contar-lhe a história toda. Nosso agente em Greenway viu entrar na loja um tipo estranho, com uma roupa esquisita. Resumindo, tratava-se de um jornalista vindo do século XX. Uma loja, afirmou ele, materializou-se na cidadezinha onde morava. Entrou nela facilmente. Evidentemente, não pertencia à polícia nem ao governo. No momento em que atravessou a porta, declarou, sentiu uma espécie de choque. Havia, na realidade, naquele instante, absorvido uma dose de energia temporal equivalente a mais ou menos sete mil anos. Imediatamente posto ao corrente, o agente fez os exames habituais e constatou que a Casa de Armas estava submetida a tensões energéticas colossais, cuja fonte localizou imediatamente: um edifício governamental instalado defronte da oficina. Convocou imediatamente o conselho. Era preciso tomar uma decisão urgente. McAllister estava recheado de energia. O bastante para explodir a cidade se saísse da loja sem estar isolado. Por outro lado, a geradora continuava a energizar a loja que, de um momento para outro, poderia ser projetada no espaço-tempo. Tínhamos igualmente boas razões para acreditar que outras lojas estavam sob a ameaça de um ataque iminente. Quem poderia prever o caminho que as coisas iam tomar? Em suma, o primeiro objetivo devia ser ganhar tempo. Para isso, era necessário concentrar sobre McAllister as ondas de energia derramadas pela geradora e devolvê-lo a sua época de origem. Fechamo-lo numa combinação isolada, que o impediria provisoriamente de explodir. Posteriormente, acertaríamos um sistema, para libertar aquela energia de maneira inofensiva. Sabíamos que, até lá, ele oscilaria para a frente e para trás no tempo, levando a geradora a reboque.

Prosseguiu, sacudindo a cabeça com ar sombrio:

— Mesmo agora não vejo o que poderíamos ter feito de melhor. Era preciso agir sem demora e num terreno onde nossos conhecimentos são poucos. Na verdade, pulamos da frigideira para a panela! Pessoalmente, não estou muito orgulhoso de mim mesmo.

— Acha que ele ainda está vivo?

— Está. Sua combinação é uma das mais perfeitas de que dispomos: auto-alimentação integrada, sintetizador de água, etc. Tudo automático — sorriu tristemente — achamos que ele próprio conseguirá se salvar.

Hedrock sentia-se deprimido. Tudo acontecera antes que ele fosse avisado do perigo. O jornalista era um apocalipse ambulante. Aquela energia que, a cada oscilação, acumulava-se nele... Nunca tinha havido nada igual no Universo. Se ele explodisse, o choque abalaria a própria textura do espaço. O eco ressoaria em todos os tempos e os tensores energéticos que criavam a ilusão da matéria, corriam o risco de serem pulverizados pelo choque.

— E a geradora?

O rosto de Cadron iluminou-se.

— Ela ainda está nos limites da zona crítica. É preciso tomar uma decisão antes que o ponto perigoso seja atingido.

"É", pensou Hedrock amargamente. "Mas que decisão?"

— Em que pé estão os trabalhos sobre o amortecimento das oscilações, a fim de trazer o pêndulo de volta?

Desta vez, um outro conselheiro respondeu.

— As pesquisas foram abandonadas. A ciência do ano 4784 não tem resposta para isso. Ainda temos sorte de poder fazer uma de nossas lojas de eixo. Estamos em condições de provocar a explosão a qualquer momento do passado ou do futuro. Mas qual escolher?

No mapa do tempo, as duas manchas estavam absolutamente imóveis.

 

CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

Os homens afastaram-se da Temporal conversando baixinho. Alguém notou que agora ou nunca era a ocasião de se documentarem sobre as possibilidades de exploração do tempo. A isso o conselheiro Kendlon retorquiu que, a se julgar por aquela acumulação de energia no corpo do viajante, a viagem no tempo tinha pouca possibilidade de se tornar popular.

— Senhores — disse finalmente Dresley, com sua voz nítida e precisa — senhores, o conselho nos deu a incumbência de tomar conhecimento do relatório do Sr. Hedrock sobre a ofensiva das forças imperiais. O Sr. Hedrock colocou-nos a par, numa comunicação datada de há algumas semanas, de um certo número de detalhes de ordem técnica e administrativa. Se bem me lembro, consideramos seu plano de organização de uma perfeita eficácia. Se seu autor quiser nos informar agora sobre o estado atual da situação...

Hedrock olhou-os um a um. O auditório estava atento e isso o estimulou. O problema estava claro: tomar uma decisão no que se referia às oscilações. Depois, tirar todas as conseqüências sem levar em conta a opinião de seus supostos superiores. Isso seria difícil.

— Assim que fui devidamente instruído — começou — procedemos à implantação de mil duzentas e quarenta e sete novas casas de armas, principalmente nas pequenas aglomerações, e três mil oitocentos e nove contatos foram estabelecidos com membros da administração imperial, tanto militar como civil. Contatos em certos casos muito sólidos.

Expôs sucintamente seu sistema de classificação: cada contato era destinado a uma categoria, em função da vocação do indivíduo, de sua importância hierárquica e de seu entusiasmo pela aventura na qual a Imperatriz atirava seus partidários.

— Graças aos cientistas que consideram as lojas de armas como um elemento inerente à civilização de Isher, recolhemos no espaço de dez dias todos os segredos concernentes à domesticação da energia temporal do conhecimento do governo. Descobrimos que, dos quatro generais encarregados de dirigir as operações, dois eram, desde o começo, francamente hostis à campanha. Um terceiro foi convencido quando viu a loja de armas desaparecer. O último, todavia, Doocar, que infelizmente é o comandante supremo, só desistirá se a Imperatriz lhe der ordem expressa. Seu senso de lealdade é mais forte que seus sentimentos pessoais ou suas opiniões.

Hedrock fez uma pausa, aguardando um comentário que não veio, o que era a melhor resposta.

— Milhares de oficiais desertaram — continuou — mas apenas um membro do Conselho Imperial opôs-se abertamente à ofensiva após a execução de Banton Vickers que, como sabem, havia criticado aquele plano de combate. Foi o Príncipe Del Curtin que, para manifestar sua desaprovação, deixou o palácio. O que nos leva novamente à Imperatriz.

Hedrock esboçou o retrato psicológico da soberana. Órfã aos onze anos, coroada aos dezoito. Está hoje com vinte e cinco.

— A idade crítica — acentuou amargamente — a idade onde se passa do animal ao humano.

A exposição de todos esses fatos do seu conhecimento espantava os conselheiros. Mas não estava nos planos de Hedrock abrir o jogo. Tinha seu ponto de vista sobre a maneira de vencer a Imperatriz e só queria torná-lo público no momento e na forma que julgasse mais adequados para servir seus desígnios.

— Innelda é uma emotiva, uma instável. Brilhante e implacável, suporta mal que alguém se levante contra sua vontade. No fundo, não gostaria de se ter tornado adulta. Depois de ter examinado milhares de relatórios, cheguei à conclusão de que o melhor método é deixar-lhe um porta, a fim de permitir-lhe uma saída honrosa no instante crítico.

Examinou seu auditório com ar interrogativo. Com aqueles homens não era prudente revelar seus pensamentos.

— Sou de opinião que o Conselho não deve levar a mal a tática que recomendo. Ela foi feita baseada num conjunto de circunstâncias que nos dará vantagem e bloqueará a máquina de guerra. Segundo penso, uma vez esta emperrada, a Imperatriz se ocupará de outra coisa e se apressará a esquecer as razões pelas quais o conflito começou.

Após um silêncio destinado a reforçar essas palavras, continuou:

— Meu serviço está à espreita dessa ocasião favorável. Eu os colocarei a par de qualquer fato novo. Agora, se querem fazer perguntas, estou à disposição.

A primeira foi sem importância. Depois, alguém levantou a mão:

— Tem alguma idéia sobre a forma de que se revestirá a ocasião a que acabou de se referir?

— É difícil examinar aqui todos os caminhos que exploramos — respondeu Hedrock, circunspectamente. — A jovem pessoa em causa é vulnerável por muitos lados. O recrutamento do corpo de oficiais causa-lhe sérias preocupações. Ela se debate no meio de uma rede de intrigas urdida pelos velhos que a rodeiam, os quais lhe escondem sistematicamente as informações que possuem Sem recursos, está presa na armadilha. Uma armadilha tão velha quanto a humanidade. Ela está separada do mundo real. Nossa tarefa é tirar partido desses pontos fracos.

— Isso é apenas uma fórmula!

— Tem razão. Mas uma fórmula que se apóia na análise, a que pessoalmente me dediquei, do caráter da Imperatriz.

— Não acha que seria preferível confiar essa espécie de estudos aos técnicos da máquina Pp e aos.. .

— Examinei minuciosamente a pasta Innelda antes de fazer esta proposta, falo da pasta que a própria liga organizou.

— Cuidado! Compete ao Conselho tomar decisões nesse terreno.

— Só fiz apresentar sugestões. Não tomei decisões. O outro não replicou. Hedrock tinha o sentimento de que o conselho havia descoberto sua verdadeira face. Uma assembléia de indivíduos humanos, tão humanos! Tão ciumentos de suas prerrogativas. Custariam a valiar as decisões que o coordenador seria finalmente levado a tomar para resolver o problema do "pêndulo".

O auditório se agitava. Involuntariamente, todos os olhos estavam atraídos pela Temporal. Cada um consultava a hora com inquietação. Hedrock não demorou mais.

As oscilações daquele pêndulo pouco comum agiam como uma droga. Vigiar um aparelho registrando o movimento espasmódico de corpos reais no tempo, criava uma tensão perigosa para o equilíbrio mental. Bastava a Hedrock saber que o homem e o edifício oscilavam com um movimento regular no continuum.

Voltou ao seu escritório na hora exata de ouvir o relatório que Lucy lhe enviava pelo telestate.

"... Apesar de todos os meus esforços, fui expulsa do Palácio dos Tostões. Quando eles tornaram a fechar as portas, percebi o que ia acontecer. Temo que o tenham enviado a uma Casa de Ilusões. E o senhor sabe o que isso quer dizer!"

Hedrock sacudiu lentamente a cabeça. A moça parecia emocionada:

— As energias de ilusão têm, entre outros, efeitos nefastos sobre as faculdades calistênicas. Não se pode saber previamente a natureza da modificação, mas é lícito pensar que ele nunca mais terá oportunidade nos jogos de azar.

— É uma pena que esse Clark se tenha deixado prender com tanta facilidade nas ciladas da cidade — disse ele examinando com atenção a expressão de sua interlocutora. — Enfim... nós nunca o consideramos mais que um trunfo eventual. Não há portanto razão para sentimentos muito intensos. Aliás — e nunca é demais insistir neste ponto — a mais ínfima interferência de nossa parte no curso de sua existência arriscará fazer nascer mais tarde suspeitas que anularão todos os benefícios que poderíamos esperar de sua ação. Em conseqüência, você pode se considerar isenta de toda a responsabilidade a respeito dele. Oportunamente, dar-lhe-emos novas instruções.

Esperou um pouco, antes de continuar:

— Então, Lucy, que está acontecendo? Uma fixação emocional?

Bastou olhá-la para não ter dúvida.

— Quando percebeu? — perguntou com fleugma.

Todas as resistências, todos os temores que ela poderia ter tido ao descobrir essa reação psicológica, desapareceram.

— Quando as outras mulheres o beijaram. Não que isso me tenha perturbado — apressou-se a acentuar. — Isso vai acontecer-lhe ainda muitas vezes antes que ele recupere o equilíbrio.

Hedrock olhou-a gravemente.

— Não tenho certeza. De acordo com minha experiência da vida e dos homens, posso assegurar-lhe que uma boa porcentagem dos que passaram pela Casas de Ilusões são tão duros como o aço, mas muito desligados das alegrias deste mundo.

Falara bastante. As atividades futuras de Lucy estavam, dai por diante, fixadas em suas linhas gerais. Bastava deixar os acontecimentos seguirem seu curso. Exibiu um sorriso cordial.

— Agora, Lucy, você está livre. Não se deixe abater. A tela tornou-se outra vez leitosa.

Na hora seguinte, Robert Hedrock, fechado em sua sala, atirou vários olhares impacientes para o outro lado da porta. Os corredores, a princípio fervilhantes de idas e vindas, voltaram pouco a pouco a ser calmos e depois tornaram-se desertos.

Chegara o momento de agir. O coordenador abriu o cofre embutido na parede e apanhou planos microfilmados da Temporal. O Centro de Informações, quando ele pedira esses documentos, não fizera nenhuma objeção, o que era, aliás, muito normal: responsável pelo Departamento de Coordenação, Hedrock tinha acesso a todos os arquivos da organização. Aliás, ele tinha uma explicação na ponta da língua para o caso de lhe fazerem perguntas. Não lhe era preciso estudar esses planos para achar uma solução para o problema do pêndulo? Quanto ao verdadeiro motivo de sua solicitação, isso não interessava a ninguém.

Meteu os microfilmes no bolso, caminhou para o primeiro lance de escadas, desceu cinco andares e entrou na parte do hotel ocupada só pelas Casas de Armas. Lá chegando, entrou num apartamento, fechando cuidadosamente a porta.

Encontrava-se numa suíte importante, exatamente o que convinha a um membro do estado-maior da liga: cinco peças e uma biblioteca enorme para onde se dirigiu sem hesitar e a qual inspecionou minuciosamente. Não. Não havia nenhum microfone clandestino, o que em nada o espantou: que soubesse, ninguém alimentava suspeitas a seu respeito. Mas Hedrock não era homem de deixar coisas ao acaso.

Com um gesto vivo, inseriu um de seus anéis num instrumento que poderia ser confundido com uma vulgar tomada elétrica. Surgiu um aro de metal, no qual enfiou o dedo. Puxou. Instantaneamente, o transmissor de matéria atirou-o a uns dois mil quilômetros de distância, num de seus inúmeros laboratórios particulares. O acontecimento, em si, nada tinha de extraordinário: o transmissor fazia parte do equipamento padronizado das Casas de Armas. Apesar disso — e isso sim era insólito — o conselho ignorava a existência da instalação de Hedrock. O laboratório fazia parte dos retiros arqui-secretos que ele preparara para seu uso pessoal.

Podia passar ali uma hora sem temer por sua segurança em perigo. Mas a única coisa que importava era reproduzir os planos. Para montar uma Temporal, precisava fazer outras visitas semelhantes. De fato, teve tempo de fazer uma cópia das plantas, que acondicionou num classificador blindado, junto com diagramas e desenhos que reunira por milhares de anos afora.

Quando findou a hora que se concedera, Hedrock, o único imortal que havia na Terra, o criador das Casas de Armas, o guardião de segredos ignorados pelos outros humanos, voltou à biblioteca do apartamento que lhe estava reservado no Hotel Royal Ganeel.

Alguns minutos mais tarde, entrava novamente na sua sala do quinto andar.

 

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

Lucy Rall deixou rapidamente a cabine do telestate e parou subitamente diante de um espelho de energia que captava sua imagem. As luzes palpitavam, as calçadas luminosas pareciam desafiar a escuridão. Mas Lucy só via sua imagem desfeita, seus olhos queimando de febre. "Foi este o espetáculo que dei ao Senhor Hedrock!"

Deu alguns passos vacilantes. A Avenida da Sorte nada perdera do seu brilho. Grupos iam e vinham, como enxames de borboletas, na luz mágica das ruas. Mas à medida em que o céu clareasse, a multidão pouco a pouco se dissolveria. Estava na hora de ir para casa. Lucy, apesar disso, não conseguia se decidir, embora sabendo que nada podia fazer. Nada. O conflito que a dilacerava era esgotador. Duas vezes, no espaço de uma hora, ela havia interrompido seu passeio para engolir um copo de energia.

Um sentimento penoso de derrota pessoal unia-se nela às preocupações que a atormentavam. Sempre tivera como certo que, um dia, acabaria por casar com um membro da liga. Na escola, na universidade, na época em que a sua candidatura já fora devidamente aprovada, os outros, as pessoas comuns, eram a seus olhos estrangeiros. "Foi no avião que aconteceu", pensou, num lampejo de compreensão. "E fiquei consternada. "

Clark estava naquela hora numa situação infinitamente mais grave que antes. Se conseguisse localizar o lugar para onde ele fora levado, ela... A idéia que jorrara em seu espírito tinha uma força tal que ela ficou arquejante. Era ridículo! Mesmo supondo que ela entrasse numa dessas casas, era preciso vencer uma ilusão, não apenas física mas também mental.

O simples fato de encarar uma coisa semelhante fazia com que corresse o risco de ser expulsa da organização, pensou, pouco à vontade. No entanto, pensando bem, o documento que havia assinado não continha nenhuma interdição formal. Na verdade, o parágrafo em letras miúdas do qual se lembrava, era bastante espantoso, à luz da situação atual:

".. -os membros da liga podem casar à vontade... participar, em caráter pessoal, de todos os deboches, conhecer todos os prazeres de Isher-.. A Organização permite a seus membros ocupar seu tempo livre como bem entenderem... "

"A liga considera como evidente que nenhum, de seus colaboradores poderá se entregar a atividades de natureza a desvalorizar sua desclassificação Pp. Os membros da Organização ficam advertidos de que sua filiação pode ser cancelada a qualquer momento se os exames Pp, aos quais são periodicamente submetidos, revelarem uma incompatibilidade com o fato de pertencerem à Organização. Se for descoberto que um filiado não mais satisfaz às exigências requeridas, a Organização apagará em sua memória todas as informações cuja posse por uma pessoa não responsável sejam de molde a prejudicar a liga.

"A experiência mostrou que entregar-se com excessivo ardor aos vícios e deboches cuja lista se segue, é o primeiro passo para a exclusão da liga... "

As mulheres, em particular, eram avisadas com relação às Casas de Ilusões. Uma chamada ao pé da página precisava que o perigo não residia no prazer em si, mas no fato de saber que os comparsas masculinos que eram encontrados nesses estabelecimentos estavam lá contra a vontade, na maioria das vezes. O que, no começo, nãc passava da procura de uma experiência sensual relativamente normal, acabava por exigir a participação do ego inteiro.

Lucy saiu do seu devaneio tomando bruscamente consciência de que se dirigia apressadamente para o anúncio piscante de uma estação de telestate. Assim que meteu-se na cabine, ligou para o Centro de Informações. Alguns minutos mais tarde, tinha na bolsa a cópia da lista de endereços de duas mil e dezoito Casas de Ilusões da cidade. "Agora", murmurou, "para o Palácio dos Tostões. "

Cayle, na sua inocência, não pôde ver o que lhe saltava aos olhos quando entrou no antro de jogatina, que retomara um aspecto quase normal: os aliciadores manejavam ostensivamente os aparelhos, prontos a se eclipsar discretamente assim que conseguiam juntar em torno deles um número suficiente de apostadores eventuais. Lucy caminhou para o fundo do vasto hall, parando freqüentemente, fingindo se interessar pelas diversas partidas em curso. Tinha um anulador na bolsa: por isso pôde se introduzir na sala do diretor sem desencadear os sinais de alarme que impediam a entrada. Seu anel indicador a avisaria da aproximação de quem quer que fosse. Antes de iniciar uma busca sistemática, ligou a automáquina. Mas por mais que apertasse o botão ilusão e depois o casa, a tela continuava branca.

Insucesso idêntico com o catálogo do telestate. O homem a quem pertencia a sala — um certo Martin, a julgar pelos documentos que havia examinado — tinha ligação apenas com algumas daquelas casas, das quais conhecia os endereços de cor? Era muito possível. E nesse caso, a tarefa de Lucy não ia ser muito facilitada.

Mas a moça não tinha a intenção de capitular tão depressa. Depois de ter dado uma olhada rápida no conteúdo da mesa, que só tinha coisas comuns, instalou-se confortavelmente numa poltrona e esperou.

Não por muito tempo. Seu anel de alerta não tardou picar-lhe o dedo. Ela o orientou sucessivamente para cada um das duas portas que davam acesso à sala. O detector indicou aquela por onde entrara um quarto de hora antes.

O personagem obeso que apareceu cantarolando não viu imediatamente sua visitante. Assim que a percebeu, seus olhos de um azul-claro piscaram quando pousaram na arma que brilhava entre as mãos de Lucy. Calmamente, examinou a desconhecida com curiosidade. Aquele homem há muito tempo havia esquecido o que era medo.

— Encantadora — murmurou. Lucy esperou a continuação.

— Que deseja?

Havia um traço de impaciência na sua voz.

— Meu marido.

Era, afinal de contas, a melhor maneira de se apresentar. A existência de uma Senhora Cayle Clark nada tinha de absurdo.

— Seu marido?

Seu espanto não parecia fingido.

— Ele estava jogando e ganhando. Eu esperava, olhando para ele. Aí a multidão me separou dele. Fui parar lá fora. As portas se fecharam. Quando consegui voltar, ele tinha desaparecido. Como sei que dois e dois são quatro, vim aqui ver o senhor.

O discurso, feito num tom monótono, era um pouco longo, mas Lucy dera vida a um personagem de esposa amorosa e sofredora, mas decidida, e que era bastante convincente. A menos que Martin desconfiasse de que as Casas de Armas se interessavam por Cayle Clark. E ela percebeu que a dúvida surgiu na cabeça do homenzinho de cara porcina.

— Sei de que está falando!

Teve um riso rápido, mas seu olhar vigilante continuava pregado ao de Lucy.

— Lamento muito, cara senhora. Apenas avisei um serviço aéreo de transporte com o qual tenho negócios. O que eles fazem das pessoas de quem se encarregam,, ignoro completamente.

— Se entendi bem, o senhor não conhece o lugar para onde levaram meu marido, mas sabe de que tipo de lugar se trata?

Ele a olhou com ar pensativo, como se estivesse formando uma opinião a seu respeito. Depois, sacudiu os ombros e deixou cair:

— As Casas de Ilusões.

A resposta, embora só fizesse confirmar a conclusão a que Lucy chegara, era interessante. Todavia, a aparente franqueza de Martin não significava que ele estivesse dizendo a verdade.

— Quer aproximar o Lambeth?

Ele obedeceu sem protestar, contentando-se em fazer notar:

— Repare que eu não resisto.

Sem comentário, ela apontou o instrumento sobre seu interlocutor.

— Seu nome?

— Harj Martin.

O Lambeth não oscilou. Era o nome dele.

— Eu lhe darei todas as informações que desejar — disse o homem, com um sacudir de ombros, antes que Lucy pudesse dizer uma palavra. — Que importância tem para mim? Nós somos protegidos. Se a senhora conseguir achar a casa para onde levaram seu marido, muito bem... vá até lá. Mas esses estabelecimentos têm métodos seguros para se livrar de seus pensionistas quando há uma batida da polícia. Imagino que sabe disso?

Seu nervosismo atraiu a atenção de Lucy.

— Tenho a impressão de que o senhor vai tentar modificar nossas posições respectivas. Dou-lhe um conselho: não tente. Não hesitarei em atirar.

— É uma arma das lojas — cuspiu ele, sarcástico.

— Exatamente. Ela só disparará se o senhor me atacar.

Não era estritamente verdadeiro. As armas pessoais dos agentes da liga não estavam sujeitas às limitações •das dos simples clientes.

— Perfeito — suspirou Martin. — Temos negócio. com a Sociedade de Transportes Aéreos.

O Lambeth confirmou a veracidade da informação.

— Não sei se o senhor percebe, mas está se saindo bem! — disse Lucy, enquanto, recuando, preparava a saída.

O gorducho passou a língua nos lábios secos. A última imagem que ficou no espírito da pseudo-senhora Cayle foi a de dois olhos atentos e intensos. Como se o homem não tivesse perdido a esperança de pegá-la de surpresa.

Trinta segundos mais tarde, a agente Lucy Rall estava na rua, inteiramente salva.

Anton Lowery, um gigante louro, levantou a cabeça do travesseiro ainda meio adormecido e olhou Lucy com ar perplexo, sem mesmo se dar ao trabalho de levantar.

— Não sei para onde o levaram — falou finalmente. — Nós apenas nos encarregamos do negócio, manjou?

O chofer liga para as tascas, ao acaso, uma após outra, até encontrar uma que se ocupe do cliente. Não queremos encrenca.

Parecia vagamente indignado. Como um honesto comerciante que, pela primeira vez, visse sua probidade profissional posta em dúvida. Era inútil para Lucy perder tempo discutindo.

— Onde posso encontrar esse chofer?

Segundo Lowery, o chofer tinha acabado de trabalhar às duas horas da madrugada e tinha direito a sessenta e seis horas de descanso.

— Foi o sindicato quem decidiu assim. Período de trabalho reduzido, salário alto e muito tempo livre.

O tom do homem deixara de ser indignado. Estava triunfante. Contentíssimo de dar esses esclarecimentos...

— Onde ele mora?

O gigante, que não tinha a menor idéia, sugeriu-lhe dirigir-se ao sindicato. Apenas ele não se lembrava, mas não se lembrava mesmo, do nome do sindicato em que seu empregado estava inscrito. O Lambeth, que Lucy tivera a precaução de tomar emprestado de Martin, confirmou a ignorância do seu interlocutor. Ela teve um momento de pânico. Dentro de três dias Cayle seria iniciado na vida sórdida das Casas de Ilusões.

— Imbecil! Assim que seu chofer vier trabalhar, você lhe pedirá o endereço do estabelecimento. Dez minutos depois, entrarei em contato com você. E olhe, é do seu máximo interesse ter a informação!

Seu tom e atitudes deveriam ter sido convincentes, pois Lowery apressou-se a garantir-lhe que teria a informação, que iria se ocupar pessoalmente, que...

Ele ainda engrolava suas promessas quando ela saiu do quarto.

No primeiro distribuidor, bebeu um copo de energia. A ração era insuficiente. Eram mais de cinco horas da manhã. Estava exausta, impunha-se um pouco de repouso.

Voltou para casa sem incidentes, despiu-se lentamente e deslizou entre os lençóis. "Três dias. " pensou ela antes de adormecer. "Três dias. Para quem o tempo passa mais lentamente? Para o homem submetido às solicitações ininterruptas do prazer, ou para ela, ela que sabia que o prazer a jato contínuo é a mais dilacerante das torturas?"

Foi seu último pensamento consciente. Mergulhou no sono como uma criança esgotada.

 

CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

Assim que ficou de posse do endereço, entrou em contato com Hedrock, que escutou seu relatório em silêncio.

— Trabalho excelente — disse ele, quando ela acabou — excelente. Vamos protegê-la. Um cruzador patrulhará o local, a grande altitude. Espero — continuou depois de uma hesitação — espero que compreenda que só há uma forma de justificar tal medida: Clark não deve duvidar um instante sequer de que só motivos pessoais a animam. Sente-se capaz de ir até o fim?

Pergunta inútil: bastava olhar a expressão desvairada de Lucy para conhecer seus sentimentos. Ela estava emocionalmente a zero. Hedrock sentiu o aguilhoar do remorso. Apesar disso, não era responsável pelos sentimentos de Lucy. Seu papel se limitara a tirar partido do conhecimento dos meandros psicológicos do ser humano. Cayle Clark podia ter importância para Isher; poderia infletir o curso da guerra existente entre o governo imperial e as Casas de Armas. Uma vez as faculdades calistênicas de Cayle orientadas no bom sentido, elas se ampliariam numa progressão geométrica. Que aconteceria então? Nenhum espírito humano era capaz de adivinhar.

Se somente se conseguisse prever sob que forma se revestiria sua ação? Hedrock reprimiu esses pensamentos. Não era homem de se abandonar a especulações. Seu papel era observar os fatos e os gestos de Clark, com a esperança de que chegariam a descobrir o instante crítico da mutação.

— Seu encontro é a que horas?

— Esta noite, às vinte e trinta. — Teve um sorriso sem alegria. — A recepcionista me recomendou chegar na hora. Eles parecem estar lotados!

— Imaginemos que ele não esteja... disponível naquela hora? Que fará?

— Imagino que haverá, nesse caso, ruptura de ilusão e que há então o direito de escolher seu par. Mas supondo que ele não esteja disponível, bem, eu também não estarei. Bancarei a esperta.

— Ele a reconhecerá?

Ela não compreendeu o que ele queria dizer.

— As ilusões deixam imagens alucinatórias residuais que alteram a percepção visual.

— Darei um jeito para que me reconheça, fique tranqüilo. — E ela empenhou-se em expor-lhe os diversos métodos que havia imaginado.

— Vê-se bem que você não tem o hábito de freqüentar esses estabelecimentos! Vai ter que enfrentar grandes dificuldades. Gente que está vigilante vinte e quatro horas por dia. Enquanto não estiver verdadeiramente em estado de ilusão, haverá poucas oportunidades para que uma só de suas palavras lhes escape. Eles só se desinteressam das coisas e gestos dos clientes a partir do momento em que estes estão sob a influência de neuroestimulantes. Você precisa lembrar sempre disto.

Lucy se reanimou. Lembrando-se da tarde que passara em companhia de Cayle, sentiu-se confiante.

— Ele me reconhecerá — disse, com voz firme.

Hedrock não insistiu mais. Quis apenas que os dados do problema que Lucy deveria resolver ficassem claramente expostos. Três dias e três noites de ilusões, era muito. Mesmo abstraindo as imagens residuais, seqüelas do tratamento, sai-se com o espírito perturbado; a energia vital atinge seu ponto mais baixo e não se tem mais o apoio necessário para reagir.

Agora queria me preparar, Senhor Hedrock.

— Desejo-lhe toda a sorte possível, minha menina. Mas só peça ajuda em caso de necessidade absoluta.

Hedrock não saiu da central depois desta conversa. Em período de crise, ele transportava suas coisas para um apartamento ao lado do seu escritório. Seu trabalho era sua vida e ele passava praticamente todas as horas de folga no escritório. Chamou imediatamente o estado-maior da frota das Casas de Armas, para pedir que preparassem um protetor para Lucy. Mas esta medida era bastante insuficiente. Com as sobrancelhas contraídas, procurou avaliar as oportunidades teóricas da moça e pediu aos arquivos secretos que lhe enviassem sua pasta. Ainda não haviam passado dois minutos quando a pasta pousou na sua mesa.

Compreensão: 110. Horizonte: 118. Pletora: 105. Domínio: 151. Ego: 120. Coeficiente emocional: 150.

Em outras palavras, uma moça inteligente, com uma emotividade superior à normal. Fora precisamente aquela qualidade que decidira os responsáveis a confiar a missão a Lucy. Quando, em conseqüência de uma sondagem de rotina à qual normalmente são submetidos os basbaques que se amontoam em frente às lojas recentemente abertas, identificaram em Cayle Clark um gigante calistênico, fora decidido estabelecer contato com ele através de uma mulher solteira, possuidora de forte índice afetivo. O conselho havia previsto que Lucy sofreria uma fixação emocional. Outros elementos, aliás, haviam desempenhado um papel na seleção — entre eles as defesas e o equilíbrio possuídos por Lucy — e que seriam indispensáveis, pois ela seria submetida a tensões pouco habituais. Era desejável, no interesse do próprio agente Rall, que a atração fosse mútua, pelo menos no começo. Num mundo em movimento, não seria possível, é claro, garantir a permanência...

Hedrock examinou, um a um, cada fator suscetível de modificar a situação. Deu um suspiro de resignação. Tinha pena de Lucy. Em princípio, a Organização nunca se metia na vida particular dos seus membros nem na de ninguém. Mas o caráter excepcional da situação atual, dessa crise sem precedentes, autorizava alterar a regra, justificava o fato de utilizar um ser humano como um pião. Hedrock devolveu a pasta ao Centro de Informações e começou a manipular seu telestate com uma atenção deliberada. Após ter eliminado inúmeras imagens, conseguiu o que procurava: a Temporal. A maior das duas manchas achava-se a seis semanas e um dia do futuro, mas a pequena foi mais difícil de localizar. Finalmente achou-a, ínfima pontuação perdida em alguma parte no meio do oceano do tempo. Estava aproximadamente a um bilhão de anos no passado. Hedrock fechou os olhos, tentando imaginar o que aquilo representava, mas a energia da qual McAllister era atualmente portador ultrapassava a imaginação.

Cortou o contato do aparelho. Sentiu-se invadido por súbito cansaço. Não tinha ainda a menor idéia da maneira pela qual seria possível resolver o problema da explosão, remediar a ameaça mortal que pesava sobre o sistema solar inteiro.

Consagrou a hora seguinte a examinar os relatórios do dia. Os agentes que não tinham o raro privilégio dado a Lucy de se comunicar diretamente com o coordenador a qualquer hora do dia ou da noite — os privilegiados eram apenas um punhado e ignoravam o favor a eles feito — ditavam seus relatórios a máquinas registradoras ou aos colaboradores de Hedrock, que se revezavam de oito em oito horas. De tempos em tempos, Hedrock encontrava um relatório sucinto que exigia uma pesquisa mais acurada. Trabalhava sem mau-humor, sem pressa, consagrando a cada relatório o tempo que considerava necessário.

Às dez horas e meia chamou o cruzador que vigiava no céu verticalmente sobre a Casa onde Lucy já devia ter entrado. Durante um instante, contemplou a imagem telescópica que lhe enviava seu interlocutor: uma casinha de boneca perdida na verdura.

E voltou a seu trabalho.

 

CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

Uma onda de calor envolveu Lucy quando ela empurrou a grade e, surpresa, a moça parou.

Sabia, é claro, que aquela sensação fora provocada artificialmente: era o primeiro passo no caminho que levava aos estranhos cumes da alegria sensual que a Casa de Ilusões oferecia. A partir de agora, até o momento de deixar aqueles lugares, seu sistema nervoso ia ser submetido de maneira quase permanente a manipulações insidiosas.

A hesitação que ela deixou transparecer servia a suas intenções. Recomeçou a andar a passos lentos. O parque, situado na frente da casa, fora admiravelmente concebido. Flores, moitas, surgiam cá e lá, rompendo a monotonia do lajedo. Uma cortina de fetos arborescentes encobria quase inteiramente a entrada da Casa. Lucy penetrou na abóbada vegetal. Havia, primeiro, uma clausura cuja folhagem, elevando-se progressivamente, acabava por formar um longo corredor de verdura brilhante, com teto em arcada.

Por duas vezes, num movimento mais forte que ela, Lucy parou. A primeira vez, quando alguma coisa suavemente acariciou sua face, como uma mão imantada, de dedos afetuosos. A segunda vez, foi mais surpreendente. Com a respiração cortada, o rosto vermelho, sentiu o corpo inteiro incendiar-se. Sentia-se ao mesmo tempo contrariada e feliz, intimidada e febril. Era isso o que sentia uma noiva na noite de núpcias?

Essas delicadezas eram a especialidade das Casas de Ilusões, onde os blasés dos dois sexos podiam recuperar as emoções perdidas, que seus corpos usados haviam há muito esquecido.

O corredor de verdura desembocava num caramanchão de espelhos. Seriam portas? Hesitante, temendo escolher a pior, Lucy esperou que uma delas se abrisse. Mas como, ao fim de alguns minutos, nada acontecesse, tentou empurrar os espelhos. Os seis primeiros continuaram imóveis, mas o sétimo cedeu. Era uma porta de vaivém dando para uma passagem tão estreita que mal deixava lugar para o seu corpo. Suas costas roçavam as paredes e ela tinha a penosa impressão de estar sufocando. Não era apenas um mal-estar físico: seu espírito associava esse desconforto aos terrores do confinamento, ao temor da ameaça desconhecida que surgia subitamente, quando não se podia avançar ou recuar.

Viria essa angústia de uma espécie de consciência culpada? Do fato de que os motivos de sua visita eram inteiramente estranhos aos negócios normais do estabelecimento? Ela era contra as Casas de Ilusões e procurava entravar seu andamento. Essa angústia, no fundo, podia perfeitamente ter como origem o terror de ser desmascarada antes de ter levado seu trabalho a bom termo. Indubitavelmente, a inconfortável passagem não devia inquietar os clientes habituais, que sabiam onde ela terminava.

Seus temores desapareceram tão prontamente quanto surgiram: bruscamente, ela foi envolvida por uma alegria sem limite ao pensar no que a esperava. Arque jante, empurrou a porta da parede que fechava a passagem e encontrou-se, aliviada, numa pequena peça agradavelmente decorada.

— Sente-se, por favor — disse a mulher sentada atrás da escrivaninha — é natural que queiramos ter uma entrevista com os novos clientes.

Lucy sentou-se, calada. Sua interlocutora, já não mais uma jovem, tinha um rosto amável, prejudicado, no entanto, pelos olhos estreitos e inquiridores e pela finura dos lábios.

— Tudo o que me disser fica entre nós. Esboçou uma sombra de sorriso e suas mãos de unhas manicuradas bateram na testa.

— Nada sairá daqui. Mas previno-a de que tenho uma excelente memória. Jamais esqueço um rosto ou uma voz.

Lucy, que conhecera muitas pessoas dotadas de uma memória fantástica, não pôs um só instante suas palavras em dúvida. Até onde ela podia saber, jamais foram encontradas listas de freqüentadores nas Casas de Ilusões. Os arquivos eram aparentemente registrados na memória de pessoas capazes de os conservar.

— Nós não fiamos, evidentemente. A quanto monta sua renda anual?

— A cinco mil créditos.

— Onde a senhora trabalha?

Lucy citou uma sociedade conhecida. Tudo estava previsto há muito tempo. Cada membro da Organização constava dos registros do pessoal de uma firma que pertencia secretamente à liga ou cujo proprietário era partidário dos Fabricantes de Armas.

— Quanto é seu aluguel?

— Cem créditos, por mês.

— Quanto gasta em alimentação?

— Entre cinqüenta e sessenta créditos, mais ou menos.

— Transporte, dez créditos. Roupa, vinte e cinco. Diversos, dez. Sobram dois mil e quinhentos. Se a senhora vier uma vez por semana, a sessão lhe sairá por cinqüenta créditos. Faremos, no entanto, um abatimento desta vez. Trinta e cinco créditos, por favor.

Lucy contou o dinheiro. A crueza desse cálculo espantou-a. Na verdade, ela tinha outras despesas; quando mais não fossem, seus impostos: mil créditos. E ela gastava muito mais de vinte e cinco créditos para se vestir. No entanto, se fosse preciso, se o desejo do prazer apertasse a ponto de esquecer toda a prudência, ela poderia frear suas despesas. Era evidente que as Casas de Ilusões partiam do princípio de que, uma vez engajados, os clientes viriam mais de uma vez por semana. Se Lucy devia enveredar por esse caminho, ela se mudaria para se instalar num bairro menos elegante, usaria roupas menos luxuosas, comeria menos. Havia mil maneiras de fazer economia. Meios tão velhos quanto o próprio vício.

A recepcionista colocou o dinheiro numa gaveta e levantou-se.

— Obrigada. Espero que nossas relações sejam duradouras e satisfatórias. Por aqui, por favor.

A saída dissimulada dava para um vasto corredor que desembocava numa suntuosa alcova. Desconfiada, Lucy parou antes de passar a soleira. "Lembra-te que estás numa Casa de Ilusões", falou consigo mesma. O que parecia real poderia não passar de um engano. Pondo em prática o conselho que Hedrock lhe dera para identificar os fantasmas de origem mecânica, esforçou-se, sem virar a cabeça, para olhar só com o rabo do olho e constatou que a cena estava curiosamente deformada no limite do seu campo de visão. Pareceu-lhe que a peça era maior do que aparentava.

Com um sorriso, caminhou ousadamente, atravessou a parede do fundo e encontrou-se numa espécie de salão imenso, com paredes de espelhos. Uma mulher correu ao seu encontro.

— Queira desculpar-nos, senhorita. Como era sua primeira visita, precisávamos nos certificar de que não conhecia nenhum dos nossos pequenos truques. Alguém falou-lhe desta ilusão ou a senhora já freqüentou outras Casas?

Lucy julgou melhor contornar a pergunta.

— Um amigo me falou — explicou descuidadamente, e era a pura verdade.

A resposta pareceu satisfazer à jovem e loura criatura.

— Se quiser mudar de roupa...

Abriu uma porta camuflada e Lucy penetrou num pequeno toucador. Um elegante vestido branco estava pendurado num cabide. No chão, havia um par de sandálias. E nada mais.

Lucy despiu-se lentamente. Cairá na engrenagem e lhe seria muito difícil sair. Se não conseguisse entrar em contato com Cayle a tempo, precisaria, quisesse ou não, experimentar o prazer artificial.

O vestido era de uma suavidade maravilhosa. O des-lisar do tecido sobre sua pele nua provocou-lhe um arrepio voluptuoso. Era um tecido especial cujo contato estimulava diretamente os centros nervosos do prazer.

Abandonou-se, feliz, à carícia envolvente que descia ao longo do corpo como se fosse uma onda. Uma espécie de vertigem deliciosa fê-la vacilar. "Azar! Aconteça o que acontecer esta noite, vou mesmo é me divertir!"

Calçou as sandálias, abriu a porta às apalpadelas e bateu as pálpebras à vista da sala. De um lado, havia uma fileira de homens, alguns sentados em mesinhas. Defronte, em mesinhas semelhantes, uma fileira de mulheres, simetricamente dispostas em relação aos homens. Ornamentos policrômicos alegravam as paredes. À sua frente, um enorme bar ocupava todo o comprimento da peça. A decoração era autêntica ou se tratava ainda de ilusão? Desistiu de verificar. Que importância tinha? O essencial era que ela estivesse lá, na sala de encontros. Com um pouco de sorte, breve encontraria Cayle. E se não o encontrasse, azar. Haveria outras noites, pensava num sonho enevoado.

Suas pernas tremiam um pouco, quando começou a andar. Olhou com desprezo as mulheres sentadas diante de bebidas servidas em copos minúsculos. A maioria era composta de velhas, muito mais velhas que ela. Desgostosa, voltou os olhos para os homens e então notou que havia duas salas. Uma tela transparente se interpunha entre o grupo de homens e o de mulheres. Quem sabe se aquela separação também era ilusória? Quem sabe se se dissolveria no momento da conjunção?

Porque a conjunção deveria acontecer, como Lucy não duvidava. Parando de se interrogar, passou os homens em revista. Eram jovens, na maior parte. E reconheceu Cayle. Mais exatamente, teve consciência de reconhecê-lo alguns segundos depois que seu olhar pousou nele Sentiu um choque, mas o reflexo de prudência impôs-se. Dominando sua emoção, caminhou com desenvoltura para uma mesinha, na qual sentou-se.

Acabara-se a agradável embriaguez de há pouco. Sentia-se infeliz, agora, ao recordar a fisionomia entrevista. Um Cayle de rosto desfeito. Esgaseado, esgotado, teria reparado nela? Duvidava. "Vou olhá-lo outra vez", pensou, "e desta vez procurarei chamar-lhe a atenção".

Olhou discretamente o relógio. Antes de mais nada, agir com calma. Passou-se um minuto. O ponteiro começou um novo circuito, os segundos continuaram a se suceder. Um... dois... três... quatro... cinco... Um homenzinho esguio levantou a mão. Lucy levantou a cabeça: Cayle devorava-a com os olhos e ela teve um choque.

— Tirem a barreira, rapazes — disse o magrela, alegremente — chegou o momento das apresentações.

Houve uma certa agitação no grupo das mulheres, algumas das quais correram para o lado oposto da sala. Vendo Cayle aproximar-se Lucy não se mexeu. Ele sentou-se na mesa dela.

— A senhorita é encantadora — disse, com voz afetada.

Demasiadamente agitada para emitir um som, ela só pôde responder de cabeça.

Uma recepcionista inclinou-se sobre seu ombro.

— A senhorita está contente? — perguntou, em voz baixa.

Lucy sacudiu o queixo de novo.

— Se quiser me seguir... Por aqui.

Lucy levantou-se. "Assim que estivermos sós, ele e eu, poderemos começar a preparar um plano de fuga", pensou ela.

Uma porta abriu-se com estrondo. A mulher que recebera Lucy na sua chegada apareceu e murmurou algumas palavras no ouvido do homenzinho. Uma campainha tocou. Lucy quis virar-se, mas uma estranha vertigem fê-la vacilar e ela sentiu-se mergulhar num poço sombrio.

A campainha do telestate soou. Eram onze e cinco. Hedrock ligou o aparelho e o rosto embotado de Lucy apareceu na tela.

— Não sei o que aconteceu — disse ela. — Tudo parecia estar andando direito. Ele me reconheceu. íamos ser levados a um canto sossegado. Depois... só escuridão. Quando voltei a mim, estava em casa.

— Não desligue, voltarei já a falar-lhe.

O coordenador chamou o cruzador e foi o comandante em pessoa quem respondeu.

— Ia ligar para o senhor. Houve uma batida, mas eles devem ter sido avisados em cima da hora. Carregaram as mulheres em autoplanos, doze por aparelho, e as levaram para as casas delas.

— E os homens?

Hedrock tinha a garganta seca ao fazer esta pergunta. Era sabido que as Casas de Ilusões tinham meios radicais para garantir sua proteção.

— Foi exatamente por isso que eu não o chamei antes. Eles foram amontoados num transporte que levantou vôo imediatamente. Tentei segui-los mas me tapearam lindamente.

Hedrock esfregou os olhos. O caso Clark ia mal. Nada mais havia a fazer. Nada, senão esperar.

— Obrigado, capitão. O senhor trabalhou bem! Contou a Lucy o que houve.

— Foi assim — concluiu. — É desolador, mas isso elimina Cayle definitivamente. Não podemos correr o risco de intervir.

— Que devo fazer?

— Nada. Esperar.

 

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

Fara trabalhava. Nada mais havia a fazer. E seria assim até a morte, pensava freqüentemente. Como um imbecil, continuava a esperar que, um dia, Cayle aparecesse no ateliê. "Aprendi a lição, papai, diria. Se me perdoares, se me ensinares o trabalho, poderás te aposentar e descansar. Tu o mereceste. "

Naquele dia — 26 de agosto — no fim do almoço, a voz mecânica de um telestate cantarolou de repente:

"Dívida a pagar... Dívida a pagar... "

O casal se entreolhou. O rosto de Creel endureceu.

— Patife — rosnou Fara.

Mas ele se sentia curiosamente aliviado. Cayle finalmente percebeu que os pais têm, às vezes, certa utilidade. Ligou a imagem.

Apareceu na tela a figura enrugada de um personagem bochechudo.

— Falando o caixa do Banco Número Cinco, sucursal de Ferd. Temos aqui um título de dez mil créditos emitido contra o senhor. Com as despesas, sua dívida se eleva a doze mil e cem créditos. Quando vai liquidá-la? Agora ou esta tarde?

— Mas... mas... quem?

Pelas explicações do estranho, ele compreendeu vagamente que os dez mil créditos tinham sido entregues naquela manhã a Cayle Clark.

Ele explodiu:

— O banco não tem o direito de debitar minha conta sem minha expressa autorização.

— Se o senhor quiser, avisaremos nossa sede de que se trata de uma falsificação. Nesse caso, é claro, uma ordem de prisão será emitida contra seu filho.

— Espere... espere...

Creel sacudiu a testa negativamente. Estava trêmula.

— Não te preocupes, Fara — murmurou com voz quebrada. — Devemos ser tão impiedosos quanto ele Deixa correr.

Fara tinha a impressão de estar vivendo um sonho absurdo.

— Eu... eu não... Posso liquidar... mais tarde?

— O senhor tem, naturalmente, a possibilidade de pedir um empréstimo. Ficaremos felizes em atendê-lo. Quando o título chegou, consideramos essa possibilidade e estamos dispostos a emprestar-lhe onze mil créditos a longo prazo, com a garantia de seus bens. Os documentos estão prontos. Se o senhor quiser, podemos registrá-los imediatamente e o senhor poderá assiná-los agora mesmo.

— Não, Fara! Não!

— Quanto aos mil e cem créditos restantes, o senhor os pagará em dinheiro. Está de acordo?

— Sim, claro. Tenho dois mil e quinhentos créditos... De acordo — reafirmou rapidamente. — De acordo.

Acertado o assunto, ele virou-se para Creel.

— Que quer ias dizer me pedindo para não pagar? — disse, com violência. — Quantas vezes me repetiste que sou responsável por ele ser como é? Aliás, sabes por que ele precisa de dinheiro?

— No espaço de uma hora ele liquidou as nossas economias. Friamente. Porque sabia que nós não podíamos fazer outra coisa, grandes imbecis que somos.

— Só sei de uma coisa: a honra do nosso nome está salva.

Seu sentimento de ter agido de acordo com seu dever durou até o meio da tarde. Exatamente até o momento em que um oficial de justiça da Ferd apresentou-se no ateliê para interditá-lo.

— A Sociedade de Reparação e Manutenção de Motores Atômicos pagou ao banco o seu empréstimo e ficou com seus títulos. Por ordem dela, suas instalações ficam sob seqüestro.

— O quê? Mas é a vigarice mais deslavada! Vou imediatamente me queixar! Ah! Se a Imperatriz souber... ela... ela...

 

Perdido nos cinzentos corredores do Palácio da Justiça, Fara sentia-se enregelado até os ossos. Tinha preferido não chamar um homem da lei. Essa decisão, quando a tomara na aldeia, lhe havia parecido a mais prudente. Mas agora, perdido no meio daquelas salas colossais, tinha a impressão de ter agido como o último dos imbecis.

Todavia, fez o que pôde para explicar seu caso à corte, denunciando o complô criminoso do banco e a ligação deste com seu principal concorrente.

— Estou convencido de que a Imperatriz desaprovaria essas manobras contra cidadãos honestos — disse, encerrando sua exposição.

— Como se atreve a cobrir a defesa de seus sórdidos interesses com o nome de Sua Graciosa Majestade? — exclamou uma voz seca e fustigante.

Fara estremeceu. Havia em Isher milhares de tribunais impessoais, semelhantes àquele, milhões de patifes, milhões de homens sem entranhas, postados entre a Imperatriz e seu bom povo. Se ela soubesse o que se passava, se ela fosse avisada da injustiça de que ele, Fara, era vítima, ela... ela...

Bom, que faria mesmo ela?

Desembaraçou-se da horrível dúvida que assolou seu espírito e estremeceu quando o escrivão pronunciou o veredicto:

— A queixa foi recusada e o queixoso condenado a pagar as custas. Não poderá deixar o recinto antes de pagar sua dívida para com a justiça, ou seja, quinhentos créditos para a corte e duzentos para o advogado da parte contrária. Caso seguinte.

 

Na manhã seguinte, Fara foi ao Restaurante do Granjeiro, de propriedade de sua sogra.

A sala já estava meio cheia, embora ainda não fosse meio-dia. Um bom negócio... A mãe de Creel estava na despensa, vigiando a pesagem dos sacos de trigo. Em silêncio, ouviu o genro.

— Não posso, Fara — disse secamente. — Eu mesmo tenho ido ao banco freqüentemente pedir dinheiro e, se ajudar vocês, breve terei a Sociedade de Manutenção nas minhas costas. Aliás, era preciso ser muito inocente para emprestar dinheiro a um homem que se deixou enganar pelo próprio filho! Isso prova que você não sabe defender seus interesses. E não lhe darei trabalho: tenho por princípio não empregar parentes. Gostaria muito que Creel viesse morar aqui. Mas nem penso em sustentar um homem.

Ao deixar a despensa, virou-se bruscamente:

— Por que não vai à loja de armas? Você nada tem a perder e não pode continuar como está.

Fara saiu. Estava um pouco tonto. Comprar uma arma e se suicidar? Era uma sugestão absurda, mas doía-lhe ser a sogra a fazê-la. Matar-se? Ridículo. Aos cinqüenta anos ainda se é jovem. Com um pouco de sorte, podia ainda ganhar corretamente a vida nesse mundo onde o automatismo era rei. Havia sempre um lugar ao sol para um homem consciencioso, com uma boa profissão, a qual conhece a fundo. Fara baseara toda a sua existência nesse credo.

Creel empacotava as coisas.

— A solução mais prudente é alugar a casa e viver num apartamento mobiliado — murmurou.

Ele contou-lhe o oferecimento da sogra. Ela sacudiu os ombros:

— Eu já tinha recusado ontem. Nem sei mesmo porque ela te falou nisso.

Fara aproximou-se da sacada e olhou o jardim, tentando imaginar Creel longe das suas moitas, do seu tanque, das pedras, arrancada do ambiente que ela amava, banida do seu lar. Creel num apartamento mobiliado. Agora ele compreendia o que a sogra queria dizer. Ficava-lhe um última esperança.

Assim que Creel subiu, ele chamou Mel Dale. O rosto do prefeito teve uma expressão de enfado quando viu quem o chamava, mas nem por isso deixou de ouvir com ar solene o pedido de Fara.

— Lamento, mas o conselho municipal não empresta dinheiro. E devo dizer-lhe uma coisa, Clark, embora, note bem, eu não tenha nada com isso, não lhe será dada licença para montar um novo negócio.

— Como?

— Lamento. Quer um conselho? Vá à loja de armas. Esses estabelecimentos têm, às vezes, sua utilidade.

Houve um clique e a tela ficou branca. Fara continuou a olhar fixamente. Não havia solução. Só lhe restava morrer.

 

CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

Fara e Creel transportaram suas coisas para uma única peça mobiliada. Fara levou dois meses a tomar essa decisão.

Naquele dia, quando as ruas ficaram desertas, ele foi à Casa de Armas, arrastando-se contra as paredes. Atravessou a avenida, percorreu um jardim florido e parou diante da porta da loja. Por um instante teve medo de que ela não se abrisse, mas sua apreensão durou pouco: ela abriu-se ao primeiro empurrão. O velho de cabeleira prateada, sentado numa poltrona, lia à luz de uma lâmpada velada. Ao ver Fara, pousou o livro e levantou-se.

— Mas é o Senhor Clark, não é verdade? Em que lhe podemos ser úteis?

As faces de Fara enrubesceram. Tinha a esperança de não ser reconhecido, que aquela humilhação lhe seria, pelo menos, poupada. Mas agora que aquela esperança se desfizera, sentia crescer nele a vontade teimosa de ir até o fim. Se ele se matasse, o enterro nada custaria a Creel. Agora só isso o interessava. Mas nem o punhal nem o veneno seriam usados.

— Quero uma arma capaz de desintegrar um objeto de seis pés de diâmetro. O senhor a tem?

O velho abriu uma vitrine e apanhou um revólver de cano curto, de reflexos dourados vibrantes. De plástico Ordin, evidentemente.

— Eis um artigo perfeito para ser usado num coldre sob o casaco — disse o vendedor, com uma voz precisa. — É extremamente rápido: corretamente sintonizado, pula diretamente para a mão do atirador. Olhe. Vou pô-lo no coldre. Neste instante ele está sintonizando comigo. Observe com cuidado...

Foi fantástico. O homem fez um gesto com os dedos e a arma, que estava a um metro dele, pulou para a sua mão. Fara não percebeu nenhum deslocamento. Exatamente como quando a porta havia sumido na sua mão e batera no nariz de Jor. Havia sido instantâneo!

Ele vira e manejara armas, vulgares armas de metal ou de plástico como as que os soldados usam. Jamais vira uma que fosse capaz de obedecer assim à ordem de seu proprietário.

Teve que fazer um esforço para voltar ao assunto.

— É bastante interessante. Mas e o feixe?

— Da espessura de um lápis, perfura não importa que corpo, salvo certas ligas de chumbo, num raio de quinhentos metros. O senhor poderá desintegrar um objeto de seis pés a menos de cinqüenta metros. O ejetor é regulado por esta molinha. Vira-se para a esquerda, para disparar o feixe e para a direita, para travá-lo.

— Quanto é?

O vendedor fez uma pausa.

— Já lhe expliquei nossas regras, Senhor Clark. Suponho que ainda se lembra.

— Hein? Quer dizer que elas são mesmo aplicáveis? Mas não são... O que eu preciso é de uma arma de defesa, mas que eu possa também virar contra mim, em caso de necessidade — ou se eu desejar.

O rosto do velho iluminou-se.

— Ah! É para um suicídio? Caro senhor, se o senhor deseja se suprimir, isso não nos diz respeito de modo algum. Destruir-se é um dos raros privilégios de que um indivíduo pode ainda se gabar num mundo onde os direitos são cada vez mais restritos. Quanto ao preço, quatro créditos.

— Só?

Era uma soma irrisória e Fara estava assombrado. Ordin, nem mais nem menos... E a arma era fina, artisticamente cinzelada. Fara teria achado barato vinte e cinco créditos.

O mistério das Casas de Armas pareceu-lhe de repente ter também uma importância igual à sua própria sorte.

— Se quiser tirar o casaco para fixar o coldre... Fara obedeceu. Dentro de alguns segundos, quando deixasse a loja, não teria mais problemas. Nada impediria sua morte. Sentiu-se curiosamente decepcionado. Contrariamente ao esperado, um débil luzir de esperança, que bruxuleava em algum lugar dentro dele, vinha de se apagar. A esperança de que os Fabricantes de Armas pudessem... pudessem...

— É preferível que saia pelos fundos, onde o risco é menor de se fazer notar.

Fara não resistiu quando o negociante o empurrou suavemente pelo cotovelo para o fundo da loja. Houve um clique e a porta se materializou. Atrás, havia flores. Fara caminhou como um autômato.

 

CAPITULO DÉCIMO SÉTIMO

Fara imobilizou-se no meio da aléia cuidadosamente traçada. Havia chegado o momento decisivo. Estava tentando se concentrar nessa idéia mas não conseguia disciplinar seus pensamentos. Qualquer coisa estava errada. Continuou a andar, para contornar a loja e, progressivamente, o vago mal-estar que o envolvia transformou-se num sentimento de estupefação. A evidência o dominou, cortando-lhe a respiração: não estava mais em Glay. A loja não estava mais em seu lugar.

Alguns homens passaram-lhe à frente, tomando lugar numa fila de espera, mas Fara não reparou, fascinado que estava pela máquina que se erguia no lugar onde deveria se encontrar a loja. Em seu lugar, um imenso bloco de metal destacava-se contra o azul-mediterrâneo de um céu sem nuvens. Cinco terraços, de cerca de trinta metros cada um, subiam, em direção ao céu, terminando por uma ogiva de luz, por uma flecha audaciosa cujo brilho rivalizava com o do sol.

E não era um edifício, era uma máquina. Todo o andar inferior palpitava de luzes cambiantes. Verdes, na maioria, mas que, às vezes, tornavam-se vermelhas, azuis ou amarelas.

O segundo terraço só comportava dois fogos: branco e vermelho; o terceiro: azul e amarelo; quanto ao quarto, liam-se as palavras:

 

Branco                    Nascimentos

Vermelho                 Mortes

Verde                       População ativa

Azul                         Imigração

Amarelo                   Emigração

                               

 

No último terraço, outras palavras ainda. E números:

 

POPULAÇÃO

Sistema Solar              11. 474. 463. 747

Terra                           11. 193. 247. 361

Marte                          97. 298. 604

Vênus                          141. 053. 811

LUAS                          42. 863. 971

 

Os números mudavam incessantemente. Pessoas morriam, nasciam, trocavam Marte por Vênus, as Luas por Júpiter ou pela Lua da Terra; outras tornavam a pousar em dezenas e dezenas de espaçodromos. A imagem que Fara tinha sob os olhos era o reflexo da imensa pulsação da vida.

— Será melhor o senhor entrar na sua vez — disse, perto dele, uma voz cheia de cordialidade. — Os casos individuais são difíceis de regularizar.

Fara encarou o homem que acabava de falar. Não percebeu o que ele quis dizer.

— Minha vez?

Não conseguiu falar mais. Um soluço contraiu-lhe dolorosamente a garganta. Afastou-se do desconhecido, apavorado pela idéia vertiginosa que acabara de assaltar-lhe o espírito: fora daquela maneira que Jor, o guarda campestre, tinha sido transportado para Marte. Um caso individual, dissera o outro.

O rapaz o observava com curiosidade.

— O senhor deve saber por que está aqui. O senhor tem um problema que os tribunais dos Armeiros devem resolver pelo senhor. Não há outro motivo para vir ao Centro de Informações.

Fara incorporou-se à fila que serpenteava inexoravelmente em volta da máquina. Avançava rapidamente e ele era, pouco a pouco, empurrado para uma porta.

Era portanto, um edifício e não apenas uma máquina.

Um problema? Evidentemente, ele tinha um problema. Um problema insolúvel, um problema sem esperança, um problema cujas raízes mergulhavam na própria estrutura da civilização isheriana. Para resolvê-lo, seria necessário derrubar as próprias fundações do império.

Finalmente, chegou diante da entrada. Com a boca seca, pensou que, em alguns segundos, seria presa de uma inexorável engrenagem. Mas ignorava qual.

 

CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

Fara e seu companheiro seguiam por um vasto corredor de paredes cintilantes.

— Há um corredor lateral praticamente vazio — notou seu companheiro.

Fara tremia ao entrar nele. No fim da passagem, uma dezena de moças sentadas diante de uma longa mesa, recebiam os visitantes. Vista de perto, a moça diante da qual parou não parecia tão jovem. Dirigiu-lhe um sorriso impessoal.

— Seu nome, por favor.

Fara declinou sua identidade, acrescentando com uma voz insegura que era originário de Glay.

— Obrigado. Vou pedir-lhe que espere um momento, o tempo de apanhar sua pasta. Apenas alguns minutos. Sente-se.

Deixou-se cair numa poltrona sem sequer reparar, com o coração batendo desabaladamente, a respiração faltando, os nervos esticados como cordas de violino; não conseguia concatenar dois pensamentos coerentes. Constatou, através da sua vertigem, que a recepcionista lhe falava e esforçou-se em concentrar a atenção, mas apenas palavras esparsas conseguiam perfurar aquela espécie de tela perturbadora que o envolvia.

— O Centro de Informações... serviço de estatística.. . Todos os nascimentos... registrados... nível de educação, mudança de endereço... profissão... momentos cruciais da existência. A organização... para entrega de... ligação oficiosa e discreta... Câmara imperial da Estatística... por intermédio de agentes... cada comunidade...

Fara tinha a desconfiança de que as informações principais lhe haviam escapado, que lhe era preciso disciplinar os pensamentos... Mas seus nervos não obedeciam mais ao seu controle. Quis interromper a moça, mas antes que uma palavra saísse de seus lábios exangues, um objeto chato e preto caiu sobre a mesa da recepcionista com um ruído seco. Depois de estudá-lo com ar impassível, levantou os olhos.

— Talvez lhe interesse saber que seu filho Cayle está em Marte?

— O quê?

Fara soergueu-se, mas sua interlocutora prosseguiu com voz firme:

— Devo informá-lo de que a liga tem por norma nunca intervir em conflitos particulares. Seu único objetivo é promover uma reforma da moral. Cabe às pessoas, às massas, agir nesse sentido, sem solicitações exteriores. Assim, peço-lhe agora que nos exponha brevemente seu problema.

Fara, que transpirava abundantemente, enterrou-se mais ainda na poltrona. Antes de mais nada, queria freneticamente ter notícias de Cayle. Mas, controlando-se, contou com voz trêmula o que lhe tinha acontecido.

— O senhor irá imediatamente para a Câmara de Identidade — disse a moça, quando ele terminou. — Assim que vir aparecer seu nome, dirija-se à sala 474. Não esqueça: 474. O seguinte, por favor.

Fara levantou-se quase sem ter consciência disso. Quando voltou-se, um homem idoso tomara seu lugar na poltrona.

Andou pelo longo corredor que lhe foi indicado. Um ruído confuso, que lhe chegava a intervalos, aumentava à medida em que ele progredia. O corredor terminava numa porta. Quando a empurrou, o barulho assaltou-o brutalmente, como um soco em pleno rosto. Um barulho monstruoso, titânico, que o pregou na soleira. E o espetáculo oferecido ao seu olhar era também tão incrível, tão surpreendente quanto aquele maelström.

Era um anfiteatro colossal, onde formigavam milhares de homens, amontoados em bancos, de pé, andando de um lado para outro, com uma febril impaciência. E todos pregavam o olhar no quadro dividido em casas que ocupava todo o fundo do auditório. Cada casa levava uma letra do alfabeto. Fara sentou-se depois de ter achado a casa dos C. Tinha a impressão de se ter metido num jogo de pôquer sem limite. Era vertiginoso, fascinante, esgotante. Era terrível.

As casas se iluminavam, uma a uma, compondo nomes. Pessoas berravam, outras se sentiam mal. O berreiro fazia tremer as paredes incessantemente, sem descanso, indescritivelmente. De minuto a minuto, um aviso brilhava em letras de fogo: VIGIE SUAS INICIAIS.

Fara não tirava os olhos do painel. Não agüentaria muito tempo. A cada segundo era mais intolerável. Tinha vontade de gritar pedindo silêncio, levantar, caminhar como um urso na jaula, ele também. Mas os que cediam a esse impulso eram atacados por insultos histéricos.

Bruscamente, aquela loucura o apavorou. "Não vou bancar o idiota, eu... "

Clark, Fara... Clark, Fara.

Seu nome. Era seu nome, o nome dele que piscava no painel.

— Sou eu — urrou. Mas ninguém se virou. Ninguém prestou-lhe a menor atenção.

Envergonhado, atravessou o anfiteatro furtivamente para atingir um novo corredor, onde incorporou-se a uma interminável fila de pessoas. Ali, tudo era silêncio. Um silêncio quase tão insuportável quanto o sabá de há pouco.

474. Era difícil concentrar a atenção em um número! 474. Iria enfrentar o quê, quando empurrasse a porta do número 474?

Era um escritório exíguo, sumariamente mobiliado com um par de cadeiras e uma mesa sobre a qual folhas de papel estavam regularmente dispostas em pilhas e no meio da qual imperava um globo feito de uma substância opalina e luminosa.

Uma voz ergueu-se.

"Fara Clark?"

— Sou eu.

"Antes de ser dado o veredito, queira apanhar uma folha azul. "

Era apenas a lista de todas as sociedades dependentes do Banco Interplanetário n. ° 5. Cerca de quinhentos nomes, colocados por ordem alfabética, sem um comentário. Fara colocou a folha no bolso.

"Todas as explicações lhe serão dadas em tempo útil", continuou a voz. "Foi constatado que o Banco Interplanetário n. ° 5 cometeu uma patifaria indiscutível com o senhor. Além disso, é culpado de fraude, de violência, de chantagem e, paralelamente, de conspiração criminosa. Um agente do banco, cujo papel é entrar em contato com rapazes e moças de boas famílias em dificuldades financeiras, travou conhecimento com seu filho. O cúmplice recebe 8 por cento do empréstimo concedido e a comissão é paga pelo solicitante. O banco declarou que seu filho recebeu dez mil créditos, quando lhe entregou apenas mil, e isso depois que o senhor assinou o reconhecimento de dívida. Disseram-lhe que seu filho corria o risco de ser preso por ter fraudulentamente pedido um empréstimo em seu nome e a ameaça foi feita antes que o dinheiro tenha mudado de mão. A transferência do seu crédito ao seu concorrente constitui, enfim, um delito de conspiração. Em conseqüência, o banco foi condenado a uma multa igual ao triplo da soma extorquida, ou seja, 36. 300 créditos. Não nos interessa dizer-lhe que meios usamos para obrigá-lo a pagar. Basta-lhe que saiba que a multa foi paga. A liga fica com a metade... quanto à outra... " Um maço de notas caiu sobre a mesa com um ruído surdo... "É sua". Com mãos trêmulas, Fara pegou o dinheiro. Foi com dificuldade que entendeu o resto do discurso.

"Suas dificuldades não terminaram ainda. Vai precisar de muita perseverança e coragem para refazer seu negócio. Seja discreto, bravo, resoluto e conseguirá. Não hesite em usar o revólver que adquiriu para defender seus direitos. Chegado o momento, lhe explicaremos nosso plano. Pode ir. Saia pela porta à sua frente. "

Fara precisou de um grande esforço de vontade para abri-la e sair.

Sem transição, estava outra vez no local familiar da Casa de Armas. O velho de cabelos de prata levantou-se da poltrona para ir ao seu encontro, com um sorriso cheio de gravidade nos lábios.

A inimaginável aventura tinha findado. Fara estava de volta a Glay.

 

CAPÍTULO DÉCIMO NONO

ELE NÃO conseguia eliminar sua perturbação. Aquela vasta, fascinante organização, implantada no próprio coração da impiedosa sociedade que, no espaço de algumas semanas, havia despojado a ele, Fara, de tudo o que possuía...

— O.. . juiz — acabou por dizer, dominando sua febre (e por falta de uma palavra mais apropriada) — o juiz me disse que para recuperar minha situação, preciso...

— Antes de abordarmos esse problema, gostaria que o senhor examinasse a lista que lhe foi entregue.

— A lista?

Precisou de um momento para entender o que o velho queria. Havia esquecido completamente a folha azul. Depois de tê-la tirado do bolso, examinou-a com cuidado. A Sociedade de Manutenção figurava nela em lugar de destaque.

— Não entendo — murmurou espantado. — São as sociedades contra as quais os senhores lutam?

Seu interlocutor sacudiu a cabeça.

— Essas firmas só representam uma fração das oito milhões de empresas cujas atividades vigiamos sem parar. — Sorriu sem alegria. — Eles sabem perfeitamente que é por nossa causa que seus lucros teóricos não têm nenhuma relação com suas receitas, mas ignoram quanto a margem representa. Preferimos deixá-los nessa ignorância. Nossa finalidade é promover uma melhoria da moral comercial, e não encorajar o excesso em matéria de fraude.

Fez uma pausa, antes de continuar, fixando em Fara um olhar escrutador:

— As companhias que figuram nessa lista têm um ponto em comum: todas pertencem à Imperatriz. Considerando tudo em que o senhor acredita, não espero que me creia.

Fara não se mexeu. E apesar disso, contrariando toda a expectativa, ele acreditava nas palavras do velho. Totalmente. Sem restrições. O espantoso, o imperdoável, era que durante toda sua vida vira homens levados à ruína, que soçobravam na miséria e no esquecimento e era neles que ele punha a culpa!

— Como eu fui insensato! Dizendo amem a tudo o que a Imperatriz e seus funcionários faziam... Eu recusava ter relações com quem não pensasse como eu. Suponho que, se começo a criticar a Imperatriz, não tardarei a ser despachado.

— O senhor não deve de maneira alguma falar mal de Sua Majestade. A liga opõe-se formalmente a tal atitude e deixa de dar seu apoio aos que praticam esse gênero de imprudência. A responsabilidade da Imperatriz na realidade, é atenuada. Da mesma maneira que o senhor, ela é, numa certa medida, levada pela corrente da civilização isheriana. Mas este não é o momento de dar-lhe um curso minucioso sobre a política dos Fabricantes de Armas. O período mais crítico das nossas relações com o poder situa-se há quarenta anos. Naquela época, todos os que estavam convencidos de que nossa ajuda era um benefício eram assassinados. Vou dizer-lhe uma coisa que o espantará: seu sogro foi uma das vítimas da repressão.

— O pai de Creel! Mas... Eu sempre pensei que ele havia fugido com outra mulher!

— Cada vez que um era liquidado, faziam correr boatos desse tipo. Para pôr um fima essa situação, nós mesmos executamos os três notáveis responsáveis pela hecatombe. Mas não queremos mais saber de novos banhos de sangue. Acusam-nos de aliança com os maus: isso nos deixa insensíveis. Recusamo-nos a criar obstáculos à evolução profunda da existência: é isso que precisam compreender. Nós reparamos as injustiças, agimos como um pára-choque entre os povos e seus cruéis exploradores. Em regra geral, só damos nossa ajuda às pessoas honestas, o que não quer dizer que recusemos sistematicamente nossa assistência aos que são menos escrupulosos. No entanto, nunca chegamos ao ponto de vender armas aos últimos. Ora, nossas armas são extremamente preciosas e é em parte por causa delas que o governo é obrigado a se reduzir a espertezas de ordem econômica para estabelecer sua ditadura. Há quatro mil anos, um brilhante gênio, Walter S. de Lany, inventou o processo vibratório que tornou possíveis as Casas de Armas e estabeleceu os princípios básicos de nossa filosofia política. E há quatro mil anos vemos o regime oscilar entre uma monarquia democratizada e a tirania absoluta. E compreendemos uma coisa: os povos têm invariavelmente o tipo de regime que desejam. Quando querem mudar, cabe-lhes meter a mão na massa. Nós somos um núcleo incorruptível (incorruptível no sentido literal: dispomos de uma máquina para a qual o caráter de um homem não tem segredos), um núcleo incorruptível de idealismo, tendo por tarefa atenuar os males que o governo inevitavelmente engendra, qualquer que seja a forma de que se reveste. Mas estamos nos afastando do seu problema pessoal. Ele é de uma extrema simplicidade: o senhor deve se bater como, milenarmente, os homens resolutos se bateram para defender o que há de valor aos seus olhos, para salvaguardar seus legítimos direitos. O truste Manutenção de Motores mudou sua oficina na hora em que houve o embargo e o material foi recolhido a um armazém longínquo. Nós o recuperamos e o colocamos no devido lugar. O senhor vai, portanto, retomar posse de suas coisas e...

Fara, com os dentes cerrados, ouviu atentamente as instruções. Finalmente concordou.

— Conte comigo — disse. — Sempre fui cabeçudo. Já não tenho as mesmas opiniões de antes mas continuo sempre obstinado.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO

A maioria das Casas de Ilusões estava fichada na polícia. Mas uma lei não escrita estava em vigor: cada vez que uma batida era dada, o proprietário era avisado. Todavia, o nome dos que tinham sido seqüestrados devia ser facilmente encontrado na gaveta de qualquer mesa. Nas semanas seguintes, as listas de emigrantes, inclusive os indigentes e os criminosos enviados para Marte, Vênus e as Luas, estavam controladas. Os empreiteiros do governo tinham sempre necessidade de mão-de-obra para os planetas. E as Casas, freqüentadas por mulheres abastadas, que não se podiam permitir escândalos, forneciam um contingente regular de trabalhadores.

O argumento de que somente os mortos não falam não era, porém, aceito pela polícia. Os proprietários que infringiam essa regra inexorável, eram impiedosamente perseguidos. Há milhares de anos o sistema provara sua eficácia: o vício podia ter curso livre desde que suas vítimas sobrevivessem à sinistra experiência.

Cayle fez instintivamente alto junto da passarela. O chão estava duro como pedra. O frio que se insinuava pelas solas penetrava-lhe até os ossos. Então isso é que era Marte? Olhou o triste aspecto da cidade e estremeceu. Não de frio: de raiva. Uma raiva em estado bruto, tão violenta que teve a impressão de estar habitado por uma vontade de aço.

— Tu, caminha um pouco — resmungou um dos guardas que vigiavam o desembarque. E sua voz era cava no ar rarefeito.

A ponta de um bastão cutucou o ombro de Cayle, que nem se virou, desprezando a ofensa. Acompanhou a lúgubre fila que se estendia interminavelmente. A cada passo, o frio invadia mais um pouco seu corpo. Agora ele o sentia até o fundo dos pulmões. Homens começaram a correr na frente dele. Outros o ultrapassaram, com a respiração rouca, os olhos fora das órbitas, gesticulando canhestramente; a débil gravidade à qual não estavam habituados, fazia-os tropeçar. Vários caíram gemendo, com o corpos dilacerados pelas pontas dos chuços. O chão gelado, o chão de ferro de Marte, estava tinto pelo sangue dos homens.

Cayle obrigou-se a conservar um ar normal. Sentia um enorme desprezo pelos que perdiam o sangue frio. Tinham sido avisados! E a vasta cúpula de plástico só estava a quatrocentos ou quinhentos metros dali. Por mais penosa que fosse a temperatura, era possível suportá-la durante o percurso de tão pequena distância. Quando chegou à cerca, seus pés estavam dormentes e todo seu corpo formigava. Mas sob a cúpula estava morno. Lentamente, o rapaz caminhou para a parte do edifício que dava para a cidade.

Shardl era uma cidade de mineiros, erguida no meio de uma planície pontilhada cá e lá de massas verdes: os jardins atômicos, densos, luxuriantes, cujo espetáculo in-congruente só fazia acentuar a desolação da paisagem.

Um grupo se amontoara diante de um painel de informações. Ele aproximou-se e conseguiu ler o título do cartaz:

Não Deixe Passar a Ocasião.

Intrigado, abriu caminho através da pequena multidão, leu o texto e afastou-se, com um sorriso. Faziam recrutamento para as fazendas marcianas!

"Aceite um contrato de quinze anos e Sua Graciosa Majestade, Innelda de Isher, lhe fornecerá uma fazenda inteiramente equipada com um termogerador atômico. Nenhum pagamento a vista. Reembolso em quarenta anos.

E o apelo acabava com este conselho insidioso: "Apresente sua candidatura, agora no serviço de divisão de terras — e não terá que trabalhar nas minas nem um minuto".

A tentadora proposta deixou Cayle insensível. Ele ouvira falar do sistema engendrado para colonizar o planeta frio e o planeta quente, Marte e Vênus. Cada hectare seria um dia loteado e ocupado e os planetas conheceriam, então, os benefícios da energia atômica. À medida em que os milênios fossem passando, os homens conseguiriam degelar todos os mundos glaciais do Sistema solar, esfriar os tórridos desertos de Vênus e de Mercúrio. Homens se esfalfando até o fim de seus dias, acabariam por criar cópias aceitáveis da Terra longínqua, do verde planeta de onde tinham vindo.

Era a doutrina. Quando ele estava na escola, ao evocarem diante dele o problema da colonização, nunca viera à idéia de Cayle que ele estaria, um dia, mergulhado na penumbra de Marte, vítima de uma implacável maquinação contra a qual a educação que recebera não o imunizara. Deixara de detestar o pai. Seu ódio ficara lá embaixo, nas brumas do passado, naquele mundo de nada onde se tinham dissolvido suas ilusões. Um pobre imbecil, só isso! No fundo, talvez fosse melhor que houvesse gente como ele, incapaz de compreender as realidades do império.

Seu problema pessoal seria, daí por diante, resolvido de maneira tão simples quanto eficaz. Antigamente tivera medo; seu medo estava morto. Por estranho que fosse, tinha sido honesto; sua honestidade estava morta. Embora, num certo sentido, ainda fosse honesto. Tudo dependia da maneira de encarar a vida: deveria adotar a teoria que afirmava que um ser humano devia ser bastante forte para enfrentar as exigências do momento?

Cayle estava disposto a enfrentá-las. O homem que ele havia sido não amoleceria em Marte! Em primeiro lugar, nada assinar que pudesse entravar seus movimentos. Precisaria ser prudente, mas saber apanhar instantaneamente todas as oportunidades que se apresentassem — e então se empregar a fundo, apostar tudo sem hesitação.

Uma voz cautelosa tirou-o do devaneio.

— É de fato a Cayle Clark, da aldeia de Glay, a quem estou me dirigindo?

Cayle não esperava que a ocasião se apresentasse com tanta rapidez. Voltou-se lentamente e viu-se frente a frente com um homem de pequena estatura, metido num sobretudo de suntuosa elegância. A despeito de seu rosto insignificante e sua pele endurecida, via-se que não era o gênero de pessoa a ter feito parte de um transporte de deportados.

— Represento o Banco Interplanetário n. ° 5. Talvez estejamos em condições de ajudá-lo a sair desta situação... insólita.

Com seu rosto descarnado e seu colarinho folgado, parecia um sapo. Seus olhos inquiridores luziam com um brilho sombrio como duas pérolas negras.

Cayle não pôde reprimir um estremecimento de nojo. Quando era garotinho, uma mulher ia muito à casa dele. Vivia coberta de jóias e peles. Tinha os mesmos traços, os mesmos olhos. Palmadas de nada adiantaram: ele não queria saber dela.

— Isso pode interessá-lo?

Cayle ia recusar a oferta quando uma palavra, na qual não prestara atenção, aflorou sua consciência.

— Qual é o banco, mesmo?

A caricatura sorriu com um sorriso confiante de quem se sabe portador de um dom precioso.

— O Banco Interplanetário n. ° 5. O senhor abriu uma conta na nossa sede há um mês. No decorrer da investigação que fazemos obrigatoriamente sobre os novos clientes, soubemos que o senhor havia partido para Marte em condições desagradáveis. Então tomamos a iniciativa de pôr à sua disposição nosso serviço de empréstimos.

— Estou vendo.

Cayle examinou com atenção seu interlocutor mas esse novo exame não lhe permitiu achar o menor detalhe capaz de lhe inspirar confiança. No entanto, a conversa devia prosseguir.

— O que é, exatamente, que o banco pode fazer por mim?

O outro pigarreou.

— O senhor é mesmo filho de Fara e Creel Clark? — perguntou, destacando as palavras.

Cayle hesitou um momento antes de aquiescer.

— Quer voltar para a Terra? Desta vez não hesitou.

— O preço básico da viagem é 600 créditos, quando a distância Marte—Terra permite realizá-la em vinte e quatro dias. Se a distância é maior, há um acréscimo de dez créditos por dia suplementar. Suponho que sabe disso.

Na verdade, Cayle ignorava esse regulamento, mas duvidava que o salário semanal de vinte e cinco créditos dado aos mineiros lhe deixasse alguma esperança de um repatriamento rápido. Um homem sem recursos estava de pés e mãos amarrados. Redobrou a atenção, adivinhando o que se seguiria.

— O banco — continuou o outro com grandiloqüência — o banco está em condições de lhe adiantar mil créditos se seu pai aceitar ser seu avalista e se o senhor assinar um reconhecimento de dívida de dez mil créditos.

Cayle sentou-se pesadamente. A esperança esfumou-se mais cedo ainda do que previra.

— Jamais ele avalisará um título de dez mil créditos — disse com desgosto.

— Nós lhe pediremos avalisar apenas até mil créditos. O senhor pagará o saldo com seus lucros futuros.

Cayle examinou o representante entrefechando os olhos.

— Sob que modalidade essa quantia me será entregue?

O outro sorriu.

— O senhor assina. Nós lhe damos a importância líquida. Quanto ao seu pai, não se preocupe. É o departamento de psicologia quem se incumbe de obter a assinatura dos avalistas e dos emitentes dos títulos. Para uns, usamos maneiras fortes, para outros...

Mas Cayle interrompeu:

— Quero o dinheiro antes de assinar qualquer coisa. O homem de cara de sapo deu uma risada e sacudiu os ombros.

— O senhor é duro nos negócios, estou vendo. Mas será feito como quer. Acompanhe-me até a sala do diretor.

Cayle, pensativo, seguiu-o. Tudo parecia fácil demais. Desconfiado, tinha a impressão de uma encenação muito bem arranjada. Diminuindo o passo, deu uma olhada ao redor. Havia uma completa série de salas onde homens bem vestidos conversavam com deportados.

Começou a compreender. Primeiro, o cartaz. Se não desse certo, se ninguém quisesse se tornar fazendeiro, o agenciador do banco entrava em cena. Se alguém assinasse, de duas uma: não recebia um tostão ou a importância entregue lhe seria imediatamente roubada. Então, com todos os recursos esgotados, presentes e futuros, uma pessoa era condenada a ficar em Marte pelo resto da vida.

"A pequena transação é feita diante de testemunhas", pensou. "Dois gorilas com suas armas, para garantir que ninguém fuja com a gaita. "

Bom meio de colonizar um planeta inóspito! O único, talvez, pois os terrenos não sentiam a menor vocação para pioneiros.

De fato, os dois homens estavam no escritório. Dois homens com roupas elegantes. Sorridentes. Verdadeiramente cordiais. O sapo apresentou-os a Clark como o diretor da mina e o empregado do banco, respectivamente. Quantos "diretores" estavam sendo apresentados nos escritórios vizinhos a outros ingênuos? Ter a possibilidade de conversar em particular com tão alto personagem, verificar que, apesar de tudo, também era um ser humano, devia ser extremamente impressionante.

Cayle apertou as mãos que se estendiam, refletindo sobre a situação. Em primeiro lugar, obter o dinheiro de maneira legal. Isto é, assinar um documento e ficar com uma cópia. Talvez isso, em si, não tivesse uma grande importância mas, apesar de tudo, era preciso não subestimar o valor da legalidade. O que era preciso evitar, a qualquer preço, era não pegar num tostão e se ver diante de um tribunal em presença de testemunhas que negariam friamente sua história.

O escritório, pequeno mas mobiliado agradavelmente, poderia perfeitamente ser de um diretor. Tinha duas portas, a por onde Cayle entrara e uma segunda em frente dela. Por onde, sem dúvida, desapareceria a vítima, depois de depenada, para que não pudesse contar sua aventura aos companheiros. Clark foi abri-la. Dava para uma esplanada. Viu dezenas e dezenas de barracas e, espalhados, grupos de soldados. Espetáculo que fazia pensar: supondo que conseguisse embolsar aquele dinheiro, nada de sair por ali.

Fechou a porta e voltou para o centro da sala.

— Brrr! Faz frio, lá fora! Quero voltar logo para a Terra!

Os três compadres responderam-lhe com um sorriso compreensivo e o personagem reptiliano estendeu-lhe um documento ao qual estava apenso um maço de notas de cem créditos que Cayle enfiou no bolso, não sem ter tido antes o cuidado de contar. Após, dedicou-se a ler o contrato que, muito claro, era feito aparentemente para infundir confiança nos espíritos que se perturbavam com a solenidade complicada de peças desse gênero. Havia três cópias: uma destinada à Terra, outra à agência marciana do banco e a terceira para ele. Todas estavam devidamente assinadas. Faltava só a sua assinatura. Cayle separou a cópia que lhe pertencia e os dois exemplares restantes foram inseridos no circuito de registro. Fez na primeira uma assinatura cheia de ornamentos, recuou um passo... e atirou a caneta, de ponta para a frente, na cara do "diretor", que deu um grito, levando a mão à face machucada.

Clark não esperou. Com um salto, aterrissou perto do sapo, agarrou-o pelo pescoço e apertou com toda a força. Com a boca aberta, o infeliz sacudia debilmente os braços no ar.

Por um breve momento, Cayle perguntou-se com angústia se seu plano iria ter sucesso. Ele partira, na verdade, da hipótese de que sua vítima tinha uma arma e que ele iria tentar pegá-la. Tudo dependia disso.

A mão de dedos finos penetrou no volumoso casacão e logo saiu apertando um pequeno explosor que foi logo empunhado pelo rapaz.

O "empregado" havia, também, sacado sua arma e girava para achar um meio de atirar sem ferir seu cúmplice. Clark atirou a queima-roupa, visando o pé do seu adversário. Um fino e cegante raio de energia jorrou do explosor. Um cheiro de couro carbonizado invadiu a sala, ao mesmo tempo em que volutas de fumaça azul espalhavam-se preguiçosamente no ar. O tipo berrou, largou a arma e caiu, torcido de dor. A uma ordem de Clark, o "diretor", completamente confuso, ergueu os braços. Cayle tirou-lhe o explosor, apanhou o do colega dele e caminhou, de costas, para a porta. Explicou rapidamente ao sapo o que esperava dele: ele o acompanharia, seria seu refém. Os dois iriam para a base mais próxima e voariam na direção de Mare Cimmerium, onde Cayle passaria para o primeiro navio de partida para a Terra.

— E se alguma coisa pifar — concluiu — haverá pelo menos um pilantra que morrerá antes de mim!

Nada pifou.

Isto aconteceu no dia 26 de agosto de 4784, era de Isher, dois meses e vinte e três dias depois que Innelda lançou sua ofensiva contra as Casas de Armas.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

Cayle refletia e fazia planos. Os dias se sucediam regularmente enquanto o foguete dirigia-se para a Terra. A hora marcada pelos relógios de bordo se aproximava pouco a pouco da hora de Isher. Mas, lá fora, o espaço continuava imutável: de um lado, a ardente claridade do sol; do outro, a escuridão vibrante de estrelas. Ele dormia, comia, sonhava, ia e vinha. Vivia. Seu pensamento se tornava mais claro, sua vontade mais aguçada. Não tinha mais dúvidas dentro dele: o homem que vencera o medo da morte não podia fracassar.

O brilho do sol aumentava. Sua espiral de fogo salpicava as vigias. Marte não era mais que um ponto vermelho no oceano da noite, difícil de distinguir entre os diamantes faiscantes que juncavam o céu. A Terra aumentava. Primeiro, foi uma esfera de luz; depois, uma incrível, uma monstruosa massa vaporosa que ocupava a metade do espaço. Os continentes tomaram forma e quando a nave contornou a Lua, as cidades brilharam no hemisfério noturno, rivalizando de brilho com os céus.

Cayle só olhava o planeta de vez em quando. A cinco dias da chegada, descobrira um jogo clandestino num dos porões. Perdeu a maioria das partidas, mas ganhos ocasionais lhe permitiam recuperar alguns créditos. No terceiro dia, cheio de inquietação, parou, voltou para a cabine e contou o que lhe restava: oitenta e um créditos. Tinha dado ao representante do banco os oito por cento do famoso empréstimo. Comprara com o resto um revólver, pagara sua passagem... e perdera no pôquer.

"O principal", pensou, "é que vou logo estar na Cidade Imperial com, apesar de tudo, mais dinheiro no bolso do que quando cheguei pela primeira vez".

Deitou-se. Seu azar no jogo não o afetava em nada. Não tinha a intenção de se refazer no Palácio dos Tostões. Agora via as coisas sob um outro ângulo. Não hesitaria em correr riscos, é claro. Mas... num alto nível. Não lhe seria fácil tornar a se apossar dos cinco mil créditos que lhe tinham tirado. Mas conseguiria. Sentia-se possuidor de tesouros de paciência, sentia-se preparado para todas as eventualidades. Assim que tivesse o dinheiro, iria procurar Medlon para obter sua comissão. Talvez devesse pagar, talvez não. Tudo dependeria do momento. Não tinha nenhuma idéia de vingança. Era-lhe indiferente a sorte de criaturas venais como o coronel ou o sujeito dos jogos. Aqueles indivíduos não passavam, para ele, de degraus, de ferramentas para realizar o plano mais ambicioso jamais urdido no império. Um plano tendo por pedra angular uma realidade que parecia haver escapado a todos os que tinham conseguido chegar ao cume da hierarquia isheriana.

Innelda queria o bem-estar do país. No decorrer do único contato que tivera com a soberana, havia compreendido que ela era um ser ferido, que sofria com a corrupção que a rodeava. Dissessem o que dissessem, a Imperatriz era honesta. De uma honestidade maquiavélica. Clark não duvidava de que ela fosse capaz de mandar executar um adversário. Mas isso era parte do seu ofício de governante. Ela, também, devia se curvar às necessidades impostas por sua situação. Como ele.

Sim, ela era honesta. Daria boa acolhida a um homem que, certo de sua autoridade, empreendesse a limpeza da casa. Há dois anos e meio que Clark refletia a respeito das palavras que a ouvira pronunciar no escritório de Medlon. Fizera francamente alusão ao fato de que oficiais não chegavam a fazer carreira porque souberam que certas coisas se tramavam na sombra. E ela havia acusado — ela havia abertamente falado de uma conspiração pró-Casas de Armas, ligada ao inexplicável fechamento das lojas. Sim, alguma coisa estava sendo preparada. E para um rapaz como Cayle, que entrara diretamente em contato com a Imperatriz, era uma oportunidade enorme.

Mas antes de passar à aplicação sistemática do seu plano, tinha que executar um outro: encontrar Lucy Rall. Pedir-lhe que fosse sua mulher.

Isso não podia esperar. Sua impaciência era demasiadamente grande.

Ainda não era meio-dia quando a astronave pousou no seu berço, mas havia as formalidades e Clark só saiu para o ar livre pelas 14 horas. O tempo estava soberbo; nem uma nuvem maculava o azul. Uma ligeira brisa acariciava as faces do rapaz enquanto ele olhava a cidade que cintilava ao longe. Um espetáculo de tirar a respiração. Mas Cayle não tinha tempo a perder. Mergulhou na primeira cabine que encontrou e compôs o número de Lucy. Mas foi o rosto de um homem que apareceu na tela.

— Sou o marido de Lucy. Minha mulher acabou de sair. Mas o senhor não tem nenhuma vontade de falar com ela! Olhe-me bem e verá que tenho razão.

Clark, embasbacado, piscou os olhos. Os traços do seu interlocutor lhe eram vagamente familiares.

— Ande — repetiu o outro. — Olhe-me bem.

— Não acho que...

Calou-se bruscamente, consciente do significado naquelas palavras incompreensíveis e recuou como se tivesse recebido uma bofetada. Sentiu o sangue fugir-lhe das faces e, vacilante, colocou a mão sobre os olhos, como se tivesse sido cegado por uma visão fulgurante.

— Sossegue — tornou a dizer a voz — e ouça. Encontro-o amanhã na praia do Paraíso Haberdashery. Olhe-me outra vez para que não haja dúvida. E chegue na hora.

Clark não tinha necessidade de olhar outra vez seu interlocutor mas seu olhar fixou-se instintivamente na tela. Não, não havia dúvida possível. Aquele rosto era seu próprio rosto.

Clark Cayle olhava para Clark Cayle.

Era o dia 4 de outubro de 4784 da era de Isher. Eram quatorze horas e dez minutos.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

Seis de outubro. Uma lembrança aflora a memória da Imperatriz, enquanto ela se vira no leito: decidira na véspera, tomar uma decisão ao acordar. Mas ao sair do sono, percebeu que continuava na mesma indecisão. Abriu os olhos, sentou-se e procurou compor o rosto para esconder o mau-humor à meia dúzia de camareiras que, de plantão atrás de um biombo contra ruídos, apressaram-se a atender sua patroa. Innelda pegou a taça de energia que lhe foi estendida; os projetores acenderam-se, inundando a vasta câmara com sua onda de luz. Uma nova manhã começava. Em seguida, a massagem, a ducha; a maquila-dora apossou-se dela. Logo depois, a penteadora substituiu-a... A rotina diária.

"É preciso agir", pensou ela, abandonando seu corpo às camareiras, "é preciso agir. Senão, a ofensiva vai abortar e como suportar a humilhação de um fracasso? Depois de quatro meses, eles não vão certamente demorar".

Assim que se vestiu, começaram as audiências. Primeiro, teve que receber Gerritt, o mordomo sempre assoberbado por um mundo de problemas. Problemas quase sempre de uma mediocridade impressionante. No fundo, era um pouco culpa de Innelda. Ela sempre exigira que todas as queixas referentes ao pessoal do palácio lhe fossem submetidas e que nenhum castigo fosse efetuado sem seu acordo. A insolência é hoje a falta de que são mais freqüentemente culpados os servidores. Desafiavam seus superiores e resistiam ao trabalho. Isso se tornara verdadeiramente um hábito.

— Mas se não agüentam o peso do trabalho, por que não se demitem? — exclamou a Imperatriz, com irritação. — Bons empregados não custam a achar trabalho, quando mais não seja porque supõem-se que conheçam minha vida privada...

— Por que Vossa Majestade não me deixa acertar essas coisas?

O eterno estribilho de Gerritt! Com o tempo, ela o sabia, o mordomo acabaria por ter razão nessa insistência. Mas certamente não no sentido em que ele pensava. Jamais um desses velhos conservadores teimosos dirigiria o incontável pessoal do palácio! Seriam eles e seus iguais, esses vestígios da regência, que teriam um dia que deixar seus lugares.

Innelda suspirou e dispensou o mordomo. Novamente o grande problema voltou a ocupar seu espírito. Que fazer? Dar ordem de atacar, sempre que fosse possível? Ou aguardar, na esperança de que um fato novo modificasse a situação? Mas esperava já há tanto tempo!

Um homem de elevada estatura, de olhos cinzentos, entrou e cumprimentou com cerimônia. Era o General Doocar.

— O edifício reapareceu na noite passada durante duas horas e quarenta minutos, senhora. Só houve um minuto de diferença para o tempo calculado.

Innelda sacudiu a cabeça. Agora não havia mais nenhuma surpresa a esperar daquele lado. O ritmo das materializações fora estabelecido na semana seguinte à primeira aparição. No entanto, a Imperatriz queria ser mantida ao corrente das flutuações do edifício, sem que soubesse, aliás, bem por que. "Estou me conduzindo como uma criança incapaz que quer se meter em tudo. " Novamente de mau-humor, fez alguns comentários pouco amáveis sobre a competência dos cientistas militares e voltou ao problema que a interessava, o da ofensiva.

— Não se deve nem pensar em lançar um ataque imediato, senhora — declarou firmemente o general. — Em cada uma das grandes cidades do planeta onde existe uma Casa de Armas, os geradores estão nos seus lugares, apontados para o objetivo. Mas onze mil oficiais desertaram em dois meses e meio e os guardas ignoram o funcionamento da arma.

— E os hipnotizadores? Em uma hora podem fazer com que aprendam.

— Podem, Majestade — disse o oficial, cujos lábios tornaram-se mais finos ainda, embora seu timbre não tenha mudado. — Compete a Vossa Majestade decidir se convém tornar pública essa informação. Basta ordenar. Será obedecida.

Innelda mordeu os lábios. Doocar levara vantagem.

— Os chamados simples soldados são aparentemente mais leais que meus oficiais. E mais bravos.

Ele sacudiu os ombros.

— A senhora deu aos recrutadores o privilégio de vender patentes. Com esse método, não se pode esperar que haja muitas pessoas instruídas. Além disso, um capitão que pagou dez mil créditos por seu galões não se arriscará. Não tem nenhuma vontade de se fazer matar.

Sempre aquele velho argumento! Quantas vezes não o ouvira repetir com palavras diferentes! No entanto, só há poucas semanas aludiam abertamente àquele problema. Não podia haver assunto mais desagradável! Uma lembrança quase esquecida veio-lhe à memória.

— Na última vez em que falamos desse assunto, pedi-lhe que investigasse junto ao Coronel Medlon sobre o que aconteceu a um rapaz que estava a ponto de obter uma patente. É raro que eu entre em contato direto com subalternos.

A cólera inflamou-a bruscamente.

— Já estou cheia dessa horda de velhotes incapazes de treinar uma tropa.

Dominou-se e continuou, mais calma:

— Então? E esse rapaz?

— O coronel me informou de que o candidato em questão não compareceu ao encontro marcado. Para Medlon, ele desconfiou de alguma coisa e mudou de idéia.

A explicação não pareceu convincente à Imperatriz.

Aquela atitude não combinava com o rapaz! Innelda conhecia todo o valor dos contatos pessoais. Seus encantos e a espécie de aura sobrenatural que envolvia o trono que ela personificava, agiam infalivelmente sobre todos os que ela encontrava. Era preciso mais que a palavra de um Medlon, indivíduo dúbio, suspeito de embriagues, para abalar tal certeza.

— General, queira informar o coronel de que se ele não me apresenta, hoje mesmo, aquele rapaz, enfrentará um Lambeth amanhã de manhã.

Doocar inclinou-se, mas um sorriso cínico encrespou seus lábios:

— Se Vossa Majestade pretende lutar contra a corrupção eliminando os desonestos, uns após outros, sua vida inteira não chegará para levar a cabo essa tarefa.

Essa linguagem, que não media palavras, feriu-a profundamente.

— É preciso começar de alguma forma, general — replicou ela num tom ao mesmo tempo ameaçador e triste. — Não compreendo mais nada. Antigamente o senhor também pensava que era preciso tomar medidas.

— Não lhe cabe tomá-las, Majestade. A família imperial deve encorajar a limpeza, mas não deve dirigi-la diretamente. E depois... e depois, acabei por admitir mais ou menos o princípio dos Fabricantes de Armas. Quando se impede os instintos aventureiros de se exprimir normalmente, os homens caem na corrupção.

Os olhos verdes de Innelda lançaram faíscas.

— A filosofia dos Fabricantes de Armas não me interessa em nada.

Estava estupefata de ouvir tais coisas na boca de um velho oficial. Mas suas reclamações não o comoveram.

— No dia em que eu chegar a me desinteressar da ideologia de um poder que existe há já três mil e setecentos anos, a senhora poderá pedir minha demissão, Majestade.

Para onde se virasse, a Imperatriz encontrava o mesmo respeito inconfesso pelos Armeiros. Quase um culto. Pior ainda: consideravam que sua organização era intrínseca à civilização de Isher, da qual era legitimamente um aspecto. "É preciso que eu me livre de todos esses velhos", pensou ela pela centésima vez. "Eles sempre me trataram e sempre me tratarão como menininha".

— Não me preocupo com a ética de um grupo responsável pela imoralidade que reina em todo o sistema solar, general — disse ela, glacialmente. — Na era em que vivemos, a produtividade é tal que ninguém mais passa fome. O homicídio, na medida em que é ditado pela necessidade, cessou de existir. Quanto ao crime psiquiátrico, é um problema fácil de resolver, com um tratamento apropriado. Mas que constatamos? O neurótico está em poder de uma superarma! E o proprietário da Casa de Ilusões tem uma, também ele. É verdade que neste último caso há um acordo com a polícia, que permite às forças da ordem fazer buscas. Mas se o possuidor de uma superarma decide resistir, é preciso um canhão de trinta mil ciclos para levá-lo ao arrependimento. É ridículo. E criminoso! Impossível por termo à perversidade de milhões de indivíduos que desprezam a lei sob o pretexto de que têm uma superarma nas mãos. Ah! Se a liga ao menos só vendesse suas armas a pessoas respeitáveis, seria diferente! Mas quando não importa que patife pode...

— São armas puramente defensivas.

— Precisamente: assassina-se o próximo... e depois nos defendemos da justiça! Não sei por que estou discutindo, general! Estamos em condições de destruir essas Casas de Armas, de uma vez por todas. Não se trata de aniquilar os membros da liga, mas de acabar com as lojas. Quando o senhor estará preparado para o ataque? Em três dias? Numa semana?

— Dê-me até o ano próximo, senhora. A atual onda de deserções atrapalhou tudo.

Era verdade.

— Capturou os desertores?

— Alguns.

— Quero interrogar um já.

O general concordou em silêncio. Innelda continuou:

— Estou esperando que a polícia militar pegue os outros. Assim que tivermos saído desse cipoal, instalarei tribunais especiais e os traidores aprenderão à própria custa o valor do juramento de fidelidade à Imperatriz.

— E se eles possuírem superarmas?

Innelda conseguiu controlar a fúria que a objeção fez ferver nela:

— Quando a disciplina militar é pulverizada por uma organização clandestina, os próprios generais deveriam compreender que é mais do que tempo de jugular a subversão, meu caro. — Fez um gesto pleno de autoridade. — Esta tarde irei visitar as instalações do Olympia Field para saber pessoalmente em que estado estão as pesquisas. Quero saber se os laboratórios descobriram como os Fabricantes de Armas fizeram para esconder a geradora. Torno a lembrar-lhe que o Coronel Medlon deve apresentar-me, amanhã de manhã o mais tardar, o rapaz sobre quem falamos. Se não for capaz, cairá mais uma cabeça de traidor. Talvez o senhor ache que meu interesse por um indivíduo é pueril. Já lhe disse, general: é preciso partir de alguma coisa e conheço esse rapaz, sei que posso controlá-lo. E agora o senhor, o admirador dos Armeiros, suma antes que eu faça alguma coisa terrível.

— Sou leal com a casa de Isher — retorquiu suavemente Doocar.

— Fico feliz ao ouvi-lo dizer isso.

E com essas palavras sarcásticas, Innelda saiu da sala sem um olhar para trás.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

Um discreto suspiro de alívio saudou a entrada da Imperatriz, que sorriu com ar ausente. O repasto só começava quando Innelda partia o pão ou mandava avisar que não compareceria. Não era indispensável fazer ato de presença, mas os que tinham o privilégio de se sentar à mesa da soberana não abririam mão, por nada deste mundo, desse costume.

Depois de um rápido bom-dia, Innelda sentou-se à cabeceira da mesa e bebeu um copo dágua. Era o sinal pelo qual os servidores aguardavam.

A maioria dos convivas, homens e mulheres, tinha a cabeça embranquecida. Nem bem uma meia-dúzia de secretários jovens misturava-se a esses parasitas da regência. Quando o Príncipe Del Curtin exilou-se voluntariamente, houve uma verdadeira debandada entre os cortesãos.

Depois de uma palavra de amável indiferença da Imperatriz, um silêncio tenso voltou a reinar na sala de jantar. Faltava alguma coisa aos seus familiares. Frivolidade, talvez? Mas até que ponto? Ela se lembrava ainda que, há um ano, um rapazinho lhe perguntara se era virgem. E como ela era, a lembrança do incidente ainda a perturbava.

A licenciosidade fora banida da corte. Instintivamente, Innelda sentia que deixar a porta entreaberta à imoralidade mancharia imediatamente a reputação da família imperial. Certo, e então? Que desejava ela exatamente?, pensava roendo uma torrada distraidamente. Pessoas que acreditassem em princípios mas que também soubessem ver a vida sob um ângulo de humor. Gente igual a ela. Positivos. A educação que recebera, severa e austera, lhe tinha dado espírito positivo, o que tinha importância capital. Mas isso não era razão para exibir uma solenidade afetada a todo instante. "É preciso que eu me livre desses santarrões e desmancha-prazeres. " Apiedando-se da própria sorte, dirigiu uma fervente prece aos seus deuses particulares: "Concedam-me uma boa piada por dia! Concedam-me um homem capaz de dirigir os negócios de Estado e que saiba também se divertir. Ah! Sc ao menos Del estivesse aqui!"

Franziu as sobrancelhas. Seus pensamentos começavam a ficar desagradáveis. O Príncipe Del Curtin, seu primo, era contra a ofensiva anti-Casas de Armas. Que choque ela sofrerá quando descobriu! E que mortificação quando os partidários do rapaz acompanharam o chefe no seu retiro, para frisar sua recusa a participar da aventura! Innelda, que mandara executar Banton Vickers quando este ameaçara revelar seus planos aos Fabricantes de Armas (traição que arruinaria seu prestígio, se ela não tivesse reagido), não podia subestimar a força da oposição. Lembrava-se da última conversa que tivera com o príncipe. Ele, gelado, protocolar, belíssimo em sua cólera; ela, ao mesmo tempo vacilante e determinada.

— Quando estiver calma, pode me chamar, Innelda. Mas não antes.

Ele a provocava para que ela lhe respondesse: "Pode ficar esperando!" Mas não teve coragem de pronunciar essas palavras.

Ela se portara como uma mulher, pensava amargamente, uma mulher ferida que se contém de medo que o marido aja ao pé da letra. Claro, não haveria mais possibilidade para ela de casar com o primo depois de semelhante desabafo. Mas seria bem agradável, se ele voltasse! Mais tarde. Quando as Casas de Armas tivessem sido destruídas.

Empurrou o prato, olhou o relógio e estremeceu. Nove e meia. O dia mal estava começando.

Às dez e trinta, tendo liquidado a correspondência urgente, mandou entrar o desertor. O dossiê informava que ele se chamava Gile Sanders, tinha quarenta e cinco anos, era de origem camponesa e tinha o posto de major. Apesar de seu sorriso um nada cínico, o homem parecia desmoralizado.

Innelda examinou-o com ar sombrio. A ficha indicava ainda que ele sustentava três amantes e havia juntado uma fortuna traficando com os fornecedores do exército. De certa maneira, um caso típico. Que um personagem tão corrupto tivesse sacrificado tudo, ultrapassava sua compreensão.

Foi o que Innelda fê-lo notar, sem circunlóquios inúteis:

— E não procure me fazer crer que o conflito determinou uma crise de consciência no senhor. Eu considerarei como um insulto que o senhor me atribua a ingenuidade de aceitar essa explicação. Diga-me simplesmente por que renunciou à situação que o senhor mesmo havia escolhido. No melhor dos casos, o senhor se arrisca a ser deportado, por toda a vida, para Marte ou Vênus. O senhor é um imbecil? Um covarde? Ou os dois ao mesmo tempo?

— Provavelmente um imbecil — disse ele, sacudindo os ombros.

Seu olhar não deixou o da Imperatriz, mas a resposta deixou-a insatisfeita. Depois de dez minutos de interrogatório, não conseguira arrancar-lhe uma explicação plausível para sua conduta. Talvez a noção de lucro ou de perda não tenha influenciado? Innelda tentou um outro caminho.

— Li no seu dossiê que o senhor recebeu ordem de se apresentar no edifício 800 A. Lá lhe informaram, por causa do seu posto, que fora estabelecida uma tática para destruir as lojas de armas. Uma hora mais tarde, depois de ter queimado seus documentos pessoais, o senhor saiu de seu escritório para se refugiar num chalé da costa, que o senhor comprara secretamente — pelo menos o senhor pensava assim — cinco anos antes. No fim de uma semana, quando ficou claro que o senhor havia abandonado o posto, o senhor foi preso e posto incomunicável. Está de acordo com esta versão da situação?

O desertor concordou em silêncio.

— Posso fazê-lo castigar à minha vontade — continuou Innelda com voz suave. — A morte, a deportação... Posso também comutar sua pena... e até anistiá-lo.

Sanders suspirou profundamente.

— Eu sei.

— Não compreendo! Se o senhor percebesse tudo o que significava a sua decisão... era pura loucura.

— Tive de repente — principiou o outro, com voz monótona, como se não tivesse reparado na interrupção — tive de repente a visão do mundo em que vivia. Um inundo onde um ser, e não obrigatoriamente a Imperatriz, deteria esse poder absoluto. Um mundo no qual não haveria onde alguém se agarrar. Um mundo sem consolo, um mundo sem esperança. Era então esse o motivo?

— Jamais ouvi dizer asneira igual — exclamou Innelda, estupefata. — Lamento pelo senhor, major. A história da família imperial deveria convencê-lo de que não é possível fazer mau uso do poder. O universo é grande demais para isso. A fração da raça humana sobre a qual estende-se a jurisdição do meu governo é tão insignificante que chega a ser ridículo. Cada decreto que promulgo desaparece como fumaça. Perde-se literalmente numa floresta de interpretações contraditórias à medida em que vai chegando às camadas executivas. Somente eu posso saber como a autoridade se deforma quando chega ao estado de aplicação, quando se tem onze bilhões de súditos para administrar.

Mas Sanders não parecia tocado por esta confissão. Ofendida, Innelda levantou-se. Era claro: o homem não passava de um imbecil. E um imbecil empedernido. Refreou a ira com dificuldade.

— Ouça, major; destruídas as lojas, nós teremos tempo para estabelecer leis sensatas, das quais ninguém poderá zombar. A justiça será mais uniformemente distribuída; as pessoas serão levadas a aceitar o veredito dos tribunais, pois seu único recurso será apelar para uma jurisdição superior.

— Exatamente!

O tom em que pronunciara essa palavra provava amplamente que o rebelde não se rendia aos argumentos da Imperatriz. Ela olhou durante uns segundos, sem nenhuma simpatia.

— Se o senhor é um tão caloroso partidário dos Armeiros, porque não lhes pediu uma arma protetora?

— Eu pedi. Ela hesitou.

— E então? Faltou-lhe coragem no momento da sua prisão?

Ela não deveria ter dito aquilo. Era como dar a Sanders um chicote para espancá-la.

— Não, Majestade. Agi como os outros... desertores. Tirei meu uniforme. Fui a uma loja de armas. Mas a porta não se abriu. Acontece que eu sou desses oficiais que acreditam que a família de Isher é, dos dois elementos da nossa sociedade, o que mais importância tem para a civilização de Isher.

Seus olhos, que brilharam à medida em que falava, voltaram a embaciar.

— Estou na situação em que a senhora quer que todos estejam. Não há saída. Devo curvar-me à sua lei, aceitar a guerra não declarada contra uma instituição tão legítima quanto a própria Casa de Isher, aceitar a morte se isso lhe agrada, sem poder arriscar honestamente minha vida em combate. Eu a respeito, senhora, e admiro-a. Os oficiais que desertaram não são canalhas. Apenas tiveram que fazer uma escolha e escolheram não participar de uma aventura que põe em discussão o estado de coisas atual. Creio ser impossível falar mais francamente.

Era também a opinião de Innelda. O homem que estava diante dela jamais compreenderia o realismo indispensável de sua política.

Quando mandou-o embora, anotou em sua agenda: "Tomar conhecimento do veredito da corte marcial".

Isso fê-la pensar no rapaz que Medlon devia apresentar-lhe dentro de 24 horas. Folheou a agenda: "Cayle Clark", leu em voz alta, depois de ter virado algumas páginas. "Cayle Clark, é esse mesmo. "

Estava na hora de ir ao Ministério da Fazenda para ouvir desfilar todos os motivos pelos quais era impossível um aumento de despesa. Sorriu com ar cansado, antes de entrar no elevador.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO

Relatório de Lucy ao Departamento de Coordenação.

"Casamos pouco antes do meio-dia, no mesmo dia da volta dele de Marte, sexta-feira. Sei que uma verificação ulterior revelou que ele só pisou o chão da Terra às 14 horas. Não sei como o fato pode ser explicado. Não comuniquei a ele essa informação e nem o farei, a menos que me seja dada ordem expressa.

"Entretanto, não tenho qualquer dúvida. O homem com quem casei é efetivamente Cayle Clark. A hipótese de um sósia que me tenha mistificado é inteiramente insustentável. Cayle acaba de me telestatar, como costuma fazer diariamente, mas não sabe que estou começando a redigir um relatório sobre ele e começo a pensar se não deveria recusar. No entanto, as coisas sendo como são, vou tratar de me lembrar de todos os detalhes dos acontecimentos, como me pediram. Como este relatório do momento em que recebi seu primeiro chamado.

"Eram quase dez e trinta da manhã. Nossa conversa foi brevíssima: depois de um rápido bom-dia, pediu-me para casar com ele. O chefe do Departamento de Coordenação conhece meus sentimentos com relação a Cayle, por isso o Sr. Hedrock não ficará surpreso ao saber que eu imediatamente aceitei a proposta. Assinamos os papéis e os registramos alguns minutos antes do meio-dia daquele mesmo dia.

"Em seguida, fomos para minha casa; só saímos na manhã seguinte. Todavia, ausentei-me às treze e quarenta e cinco a pedido de Cayle, que queria utilizar meu telestate. Embora nada me tenha dito a respeito, notei ao voltar que não tinha sido ele quem chamara: o telestatômetro indicava uma chamada de origem externa.

"Não lamento tê-lo obedecido: estava no meu estado normal. Ele nada me disse sobre esse chamado mas contou-me detalhadamente tudo o que lhe aconteceu desde nosso último encontro na Casa de Ilusões. Sua exposição, reconheço-o, era bastante confusa e mais de uma vez tive a impressão de que ele lembrava acontecimentos muito antigos.

"Na manhã seguinte, ele acordou cedo. Tinha muito o que fazer, disse-me, e como eu tinha pressa de falar com o Sr. Hedrock, não fiz nenhuma objeção. A declaração do nosso agente, que afirma tê-lo visto entrar num luxuoso autoplano estacionado nas proximidades, espantou-me. Sinceramente, não compreendo.

"Depois disso, Cayle não voltou mais para minha casa. Comunica-se comigo todas as manhãs. Não pode ainda falar-me de suas atividades, diz-me, mas garante que me ama da mesma maneira. E creio nele até prova em contrário. Não tenho o menor conhecimento de que ele seria, há um mês, capitão do exército de Sua Majestade. Ignoro como possa ter obtido esse posto. Se é verdade, como afirmam, que ele já está adido ao estado maior da Imperatriz, nada mais posso fazer além de exprimir minha surpresa.

"Concluindo, declaro que tenho confiança em Cayle. É-me impossível explicar seus atos, mas creio que seus resultados estarão de acordo com o seu senso de honra.

 Lucy Rall Clark -14 de novembro de 4784

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTO

Chegara a hora decisiva. Hedrock havia contemporizado durante um mês, esperando fatos novos. Depois de ter lido o relatório de Lucy, tinha finalmente certeza de uma coisa. Como previa, a situação tomara um aspecto inesperado. Mas ele não conseguia pegar o significado dos acontecimentos. A angústia o torturava; temia que elementos de importância vital lhe escapassem. Mas não tinha mais dúvida.

Releu o documento. Lucy parecia ter adotado uma atitude reservada em relação às Casas de Armas. Ela não havia, é verdade, agido contra os interesses delas, mas sentia-se, nas entrelinhas, que ela temia que sua atitude fosse mal interpretada e colocava-se na defensiva. O que, em si, era nefasto. A ascendência que a liga exercia sobre seus membros era de natureza psicológica. Em geral, quando um deles queria sair, apagavam-se certas lembranças de sua memória, dava-se-lhe um prêmio calculado sobre seu tempo de serviço e a porta lhe era escancarada. Mas Lucy desempenhara um papel determinante no decorrer de uma crise capital. Era preciso evitar que o conflito entre seu dever e sua vida particular se tornasse muito grave.

Hedrock discou o número da moça.

— Acabo de ler seu relatório, Lucy, e quero agradecer sua colaboração. Temos absoluta consciência da situação em que está metida. Encarregaram-me (era muito deliberadamente que ele empregava aquela fórmula, deixando supor que uma Comissão Diretora lhe havia ditado aquelas palavras), encarregaram-me de pedir-lhe que continue em ação, dia e noite, até o fim deste período. Em troca, a liga fará tudo o que estiver a seu alcance para proteger seu marido das conseqüências que puderem advir de sua atuação presente.

Não era uma promessa vã. Ele já havia alertado a brigada de proteção e, na medida em que um homem, gravitando na órbita da corte, era suscetível de ser protegido, a missão seria cumprida. Examinou discretamente a fisionomia de Lucy. Não obstante ser uma moça inteligente, jamais ela compreenderia totalmente a guerra entre as Casas de Armas e o poder. Era uma guerra secreta. Os canhões não haviam dado um só tiro. Ninguém fora morto. Supondo que as lojas de armas fossem destruídas, Lucy não perceberia imediatamente. Sua vida poderia não ser afetada e o próprio Hedrock, o imortal, era incapaz de prever o curso que a história tomaria, uma vez eliminada uma das forças constitutivas da cultura isheriana.

Suas garantias não tinham, visivelmente, satisfeito a moça.

— Senhora Clark, no dia do seu casamento, a senhora tomou as medidas calistênicas do seu marido e no-las transmitiu. Nunca lhe demos o resultado integral para não perturbá-la. Todavia, creio que ele é mais de natureza a interessá-la que a alarmá-la.

— São particulares?

— Particulares? As faculdades calistênicas de Cayle Clark eram naquele momento superiores a tudo o que o Centro de Informações registrara desde sua criação. Ignoramos que forma tomará o seu poder, mas de uma coisa ninguém pode duvidar: o universo inteiro de Isher vai ser afetado.

Lia-se a confusão nos olhos de Lucy. O que era terrível é que Cayle não fazia nada. Uma nuvem de espiões vigiava seus menores movimentos — enfim, quase todos. Por duas vezes ele havia ludibriado a vigilância dos seus anjos da guarda. Mas isso era coisa sem importância. O grande acontecimento, fosse ele qual fosse, estava a caminho. E ninguém, mesmo entre os homens da liga, era capaz de prever como evoluiria.

— Garante não ter esquecido nada, Lucy? Creia-me, é uma questão de vida ou de morte. E é sobretudo pensando nele que digo isto.

Ela disse não com a cabeça. Nada havia mudado em seu olhar, a não ser seus olhos, que haviam aumentado. A boca não tremera. Era bom sinal. Claro, as reações físicas são enganadoras. Mas Lucy Rall não aprendera as técnicas de dissimulação. Robert Hedrock podia mentir sem que qualquer reação nervosa o traísse. — Lucy ignorava como se controlam os músculos para reprimir os sinais inconscientes que eles exteriorizam.

— Sr. Hedrock, o senhor sabe que pode contar inteiramente comigo.

Era uma vitória. Não obstante, Hedrock estava descontente. Descontente com ele mesmo. Alguma coisa lhe escapava, seu espírito não tinha a sutileza necessária para penetrar fundo na realidade. Como no problema do pêndulo, um dado que devia ser ostensivo desafiava sua perspicácia. Não era mais a hora de remoer os fatos e os números na solidão da sua sala. Era a hora de lutar com o real. No campo de batalha.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTO

Hedrock subia a avenida da sorte, calmamente, saboreando a novidade do espetáculo. Não se lembrava mais de quando passeara pela última vez na famosa artéria. Há muito tempo, sem dúvida. Muitíssimo tempo. A proliferação dos salões de jogo, principalmente, o espantava. Quanto à estrutura dos edifícios, obrigada a se sujeitar a normas arquitetônicas muito estritas, pouco variara em um século e o plano de urbanismo da Cidade Imperial em nada evoluíra no seu conjunto. Só a decoração se havia modernizado. Para onde quer que olhasse, o coordenador só via fachadas brilhantes, concebidas para chamar a atenção.

Quando entrou no Palácio dos Tostões, não tinha ainda um programa de ação definido. Subitamente, quando ia entrar na Câmara do Tesouro, sentiu o picar de seu anel avisador: um aparelho de transparência ia sondá-lo. Continuou tranqüilamente seu caminho e só se voltou depois de alguns metros para observar os dois homens pelos quais passara. Eram empregados do estabelecimento ou... independentes? Hedrock tinha uns cinqüenta mil créditos. Sorriu ligeiramente.

— Olhem, rapazes, acho melhor vocês desistirem do que estão planejando.

Um dos personagens sacudiu os ombros e mergulhou a mão no bolso.

— O senhor não tem uma superarma. Nem mesmo uma clássica.

Hedrock olhou-o no fundo dos olhos.

— Se quiser experimentar, estou às ordens. Foi o outro quem desviou o olhar.

— Vamos cair fora, Jay. Não é o trabalho que eu imaginava.

Mas Hedrock parou-os antes que se fossem.

— Trabalham aqui?

— Não... se o senhor for contra.

A sinceridade da resposta arrancou um sorriso do coordenador.

— Quero ver o patrão de vocês.

— Era o que eu imaginava. Enfim, foi um trabalho bacana enquanto durou.

Desta vez, Hedrock deixou os bandidos irem embora. A reação deles não o surpreendia. A autoconfiança era o segredo do poder. Nunca um ser humano dispusera de defesas mentais, físicas, emocionais, nervosas e moleculares como as que possuía Hedrock e fora suficiente a Jay mergulhar seu olhar no dele, seguro e tranqüilo, para se convencer disso.

Sem hesitar, o homem da liga, que tinha na memória a descrição dos interiores feita por Lucy, dirigiu-se para o corredor que começava por trás da sala das máquinas de apostar. Mas no momento em que fechava a porta, uma rede caiu sobre ele, que sentiu-se bruscamente elevado nos ares.

Nada fez para se libertar. Na penumbra, via o assoalho a cinco pés abaixo dele, mas a indignidade de sua posição não o afetava em absoluto. Harj Martin tornara-se prudente e desconfiava das visitas inesperadas! Indicação interessante! Logo, ouviram-se passos. Uma porta abriu-se e Martin apareceu. Acendeu a luz e, com ar gozador contemplou seu prisioneiro.

— Então, quem é a presa do dia?

Mas quando enfrentou o olhar do cativo, sua alegria desapareceu.

— Quem é o senhor? Hedrock ignorou a pergunta.

— Na noite do dia 5 de outubro o senhor recebeu a visita de um rapaz chamado Cayle Clark. Que aconteceu?

— Quem faz as perguntas sou eu! Repito! Quem é o senhor?

Com um gesto, Hedrock fez girar um dos anéis que ornavam seus dedos: a rede fendeu-se, abriu-se sob ele com a facilidade de uma janela e o coordenador voltou a estar no chão.

— Trate de responder logo, meu caro, estou com pressa.

Ignorando a pistola que Martin empunhava, ele soube encontrar as palavras apropriadas, que levaram o proprietário do antro de jogo a capitular.

— Se são só informações o que quer, está bem. É verdade. Esse Clark veio cá no dia 5 de outubro pela meia-noite. Estava com o gêmeo dele.

Hedrock não deu atenção ao fim da frase. Não estava lá para discutir.

— Era uma dupla gozada, sabe? Um dos dois devia ter sido do exército: ele se empertigava... enfim, o senhor conhece a postura hipnótica que ensinam a eles. O cabeça era ele. Um cara duro, garanto-lhe! Eu quis protestar mas ele bateu-me com o explosor nas patas. Quando abri o cofre pra dar-lhe a gaita, fiz um gesto inesperado e o resultado é que ele me escalpou pela metade.

Com o dedo, Martin mostrou a linha clara no meio dos cabelos. Um atirador de primeira, sem dúvida. E o tiro fora dado por uma arma clássica, uma arma do exército.

— Ah! — gemeu Martin — a vida torna-se muito difícil. Se eu imaginasse que as defesas normais pudessem ser tão facilmente neutralizadas!

Hedrock já sabia o bastante. Deixou o barrigudo e saiu do estabelecimento. A existência de dois Cayle estava agora demonstrada. E no dia 5 de outubro, na manhã seguinte da volta do que estivera em Marte, o outro havia estado há bastante tempo no exército para ter recebido mais que uma formação preliminar. Ora, os relatórios assinalavam que Clark só pusera o uniforme no dia 6 e que possuía quinhentos mil créditos.

Uma quantia bastante interessante para uma rapaz que começa. Mas isso não bastava para explicar os acontecimentos. Levando em conta o capital calistênico de Clark, quinhentos mil créditos só representam um poder irrisório.

Hedrock interrompeu suas reflexões sem ter chegado a resolver esse problema. Seu autoplano chegou. Tinha que ver ainda alguém: o Coronel Medlon.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO SÉTIMO

Robert Hedrock voltou para o Hotel Royal pouco depois do meio-dia. Após ter examinado os relatórios que se tinham acumulado sobre a mesa, na sua ausência, teve, durante duas horas, uma conversa telestática secreta com um especialista em finanças do Centro de Informações da liga. Terminada a longa conversa, entrou em contato com o Conselho dos Armeiros.

Dez minutos mais, tarde, Dresley abria a reunião plenária do Conselho, solicitada com urgência pelo coordenador:

— Tenho a impressão, senhores, de que Robert Hedrock levantou uma pista muito recente. Não estou enganado, não é?

Hedrock sorriu. Quando da precedente reunião, dois problemas o afligiam: o do pêndulo temporal e o da Imperatriz. O primeiro ainda não estava resolvido e cada hora que passava a situação se agravava. Mas desta vez tinha uma solução.

— Senhores — começou, sem preliminares inúteis — em 27 de novembro, quer dizer, daqui a 12 dias, mandaremos um ultimato à Imperatriz de Isher, para intimá-la a acabar com a guerra. Os fatos e os números que lhe apresentaremos vão convencê-la de que não tem outra escolha.

Essas palavras provocaram a emoção com que ele contava. Os conselheiros sabiam que o coordenador não era homem de fazer brilharem falsas esperanças.

— Não nos mate de ansiedade! — exclamou Peter Cadron, impetuosamente. — Que foi que descobriu?

— Vou recapitular os acontecimentos, se me permitem. Na manhã de 3 de junho de 4784, era de Isher, um homem vindo de 1973, segundo o calendário cristão, surgiu na nossa loja de Greenway. Sua chegada nos permitiu saber que a Imperatriz estava de posse de uma arma energética desconhecida e acabava de lançar uma ofensiva contra as Casas de Armas. A geradora fora instalada num edifício recentemente terminado na Avenida Capital. O efeito sobre a loja de Greenway foi particular. Teoricamente, todo o elemento material da loja deveria ter sido instantaneamente destruído. Apenas nossos adversários ignoravam uma coisa: as Casas de Armas não são edificadas a partir do que se chama comumente matéria. Por isso as forças gigantescas que haviam sido libertadas, localizaram-se não no espaço mas no tempo. Foi assim que um homem pôde ser literalmente aspirado e atravessou um abismo de sete mil anos.

Depois de ter exposto em expressões puramente matemáticas as leis do movimento pendular ao qual o homem e a geradora estavam sujeitos desde que os Armeiros haviam projetado McAllister fora do presente, Hedrock continuou nestes termos:

— Há ainda 'pessoas que não conseguem entender essa pulsação temporal. No entanto, temos um exemplo desse fenômeno em escala macrocósmica: estou me referindo ao sistema solar. Os planetas se deslocam no espaço-tempo a mais de vinte quilômetros por segundo; ao mesmo tempo, cada um tem movimento orbital próprio. Por isso, a lógica nos diz que se somos atirados no passado ou no futuro, nos encontraremos num ponto do espaço afastado da Terra. É difícil de conceber que o espaço não passa de ficção, um resíduo da energia temporal fundamental e que uma tensão material, um planeta por exemplo, em vez de influir nos fenômenos ligados ao escoar do tempo, obedece às leis da energia temporal. Por que o período de pulsação é de duas horas e quarenta minutos? Não sabemos. Alguns emitiram a hipótese de que a natureza procura obrigatoriamente a instauração de um estado de equilíbrio. Quando a geradora desliza no passado, ocupa o mesmo "espaço" que no seu tempo normal, mas não há repercussões pelo fato de a similaridade ser uma função do tempo e não o produto de uma tensão. Na origem, McAllister era deslocado sete mil anos e a geradora, dois segundos. Hoje McAllister acha-se a vários quatrilhões de anos e o edifício a pouco menos de três meses. Com o eixo se deslocando positivamente em relação a nós, a geradora não pode retrogradar além de 3 de junho. Peço-lhes que conservem esses dados presentes no espírito enquanto expuser-lhes um outro aspecto deste assunto que, a despeito de sua complexidade aparente, é fundamentalmente simples.

Os homens ali reunidos eram pessoas de espírito atilado. No entanto, tudo em suas fisionomias, voltadas para Hedrock, refletia o desejo impaciente de conhecer a palavra-chave do enigma. E agora, que conhecia a verdade, o coordenador espantava-se de que eles ainda não a tivessem percebido.

— O Departamento de Coordenação detectou, há alguns meses, numa aldeia chamada Glay, um prodígio calistênico. Demos um jeito para que viesse à Cidade Imperial. Não houve maiores dificuldades, uma vez desencadeados nele certos impulsos profundos. Achávamos que ele poderia influenciar os acontecimentos de maneira apreciável, mas esquecemos de levar em conta um fator neutralizante: sua ignorância das realidades do mundo de Isher. Não entrarei em detalhes. Basta que saibam que ele foi deportado para Marte, condenado a trabalhos forçados. Mas ele pôde voltar para a Terra muito rapidamente.

Continuando sua exposição, Hedrock informou aos conselheiros que Lucy Rall havia casado com Cayle Clark poucas horas antes que este aterrissasse; explicou-lhes como os dois Clark tinham abocanhado a quantia de quinhentos mil créditos, como um deles visitara o Coronel Medlon, o que fora uma vantagem para este, uma vez que a Imperatriz lhe exigira exatamente a presença do rapaz por quem se interessara, sob pena de morte. Clark obteve na hora os galões de capitão e foi imediatamente submetido ao treino hipnótico reservado aos oficiais. Na manhã seguinte, ele foi apresentado à Imperatriz.

— Ela o colocou no seu estado-maior pessoal pensando ter obedecido a um simples impulso: na realidade, Clark usou sua capacidade calistênica para criar aquele impulso. Depois de ter sido nomeado, sua influência não cessou de crescer; ele se atribuiu o encargo de lutar sem cessar contra a corrupção que envergonha o regime, iniciativa que Innelda recebeu de maneira favorável. Mesmo se Clark não tivesse outros trunfos, estava desde o começo destinado a um brilhante futuro no serviço da Imperatriz. Na verdade — acrescentou Hedrock, sorrindo — na verdade, não é esse Cayle Clark que devemos vigiar, mas o outro, o que se esconde na cidade, pois é o segundo Clark que age na sombra desde 7 de agosto. E creiam, senhores conselheiros, o que ele fez é verdadeiramente incrível. Os senhores julgarão.

Depois que Hedrock descreveu minuciosamente a atividade do misterioso Clark, os conselheiros não se continham mais, de tal forma estavam excitados.

— Mas por que ele casou com Lucy Rall? — perguntou um deles.

— Em parte porque a amava, em parte... Hesitou, pensando em certa pergunta franca que fizera a Lucy.

— Ele tornou-se extremamente prudente e começou a pensar no futuro. Suas tendências profundas vieram à tona. Suponha que aconteça alguma coisa ao homem que realizou essa façanha milagrosa no espaço de algumas semanas? Ele queria um herdeiro. E Lucy era a única moça direita que ele conhecia. Sua união era definitiva? Não posso saber. A despeito de ser um revoltado contra a própria família, Clark é um rapaz de princípios e, seja como for, não creio que Lucy vá sofrer com isso. Ela terá um filho e a maternidade é uma experiência indispensável para uma mulher. Além disso, como esposa, é sua herdeira universal.

Peter Cadron levantou-se.

— Senhores, proponho que votemos uma moção de agradecimentos a Robert Hedrock pelos serviços prestados à liga. Proponho, ainda — acrescentou, quando os aplausos diminuíram — que ele tenha os mesmos direitos que nós na organização.

Ninguém opôs-se. Era mais que uma honra o que estavam dando ao coordenador. A partir desse instante, só a máquina Pp seria autorizada a examiná-lo. Não teria jamais que dar conta dos seus atos e gestos, teria o direito de utilizar todos os recursos das Casas de Armas como bens pessoais. É verdade que ele sempre os utilizara, mas agora não precisava temer que suspeitassem.

— Agora — continuou Cadron — peço respeitosamente ao Sr. Hedrock que tenha a bondade de se retirar. O Conselho vai discutir o problema do pêndulo temporal.

Hedrock saiu da sala. Estava carrancudo: esquecera momentaneamente que o perigo maior não tinha sido conjurado.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO OITAVO

Era o dia 26 de novembro. Véspera do dia escolhido pelos Fabricantes de Armas para advertir a Imperatriz de que ela havia perdido a guerra. Mas Innelda não tivera qualquer premonição. Preparava-se para ir ao terreno de pesquisas... talvez para agir no sentido que lhe fora sugerido pelo Capitão Clark. Apesar disso, hesitava em tomar aquela decisão. Não por medo, mas simplesmente porque suas responsabilidades lhe exigiam não se lançar estupidamente em aventuras insensatas.

Saiu rapidamente do autoplano. Ã sua frente, elevava-se uma cortina de neblina agitada por remoinhos preguiçosos: o nevoeiro artificial que, há vários meses, isolava o bairro da curiosidade dos basbaques. Ela andou lentamente para a tela impalpável, atenta à paisagem. Clark foi ao seu encontro e cumprimentou-a.

— Quando o edifício deve aparecer?

— Daqui a sete minutos, Majestade.

— Está tudo pronto?

Fora decidido que sete grupos de cientistas penetrassem no imóvel e Clark havia pessoalmente verificado a forma pela qual fora equipado cada grupo. Innelda sorriu:

— O senhor é um homem precioso, capitão.

Clark não respondeu. O cumprimento deixou-o insensível. Aquela moça, que era quase literalmente a dona do universo, acharia mesmo que alguns elogios e um salário comprariam a fidelidade incondicional das pessoas inteligentes? Nenhum remorso antecipado o estorvava. Aliás, o que ele estava projetando não prejudicaria Innelda. Era regra em Isher fazer o que fosse necessário. E, para Clark, não se tratava de recuar. O mecanismo que montara já estava em funcionamento.

A Imperatriz examinou atentamente os arredores. À sua direita, havia a escavação que determinava o local do edifício. À sua esquerda, a Casa de Armas de Greenway, no meio de seu cinturão de verdura. Era a primeira loja que ela via apagada. O espetáculo reconfortou-a. A loja parecia estranhamente abandonada, à sombra das árvores. Cerrou os punhos. "Se todas as Casas de Armas do sistema solar fossem subitamente eliminadas, poderíamos fazer o que quiséssemos com esses inúmeros parques. E no espaço de uma geração, os Fabricantes de Armas seriam esquecidos. Seu reinado não passaria de uma fábula para contar às crianças. "

— Por todos os deuses do espaço — disse, alto, com um fervor apaixonado — é isso o que vai acontecer!

O ar subitamente fremiu e, no lugar onde só havia uma profunda cavidade, surgiu de repente um edifício

— No minuto exato — murmurou Clark com satisfação.

Innelda estremeceu. Ela já vira o fenômeno no telestate mas, na realidade, não era a mesma coisa. Para começar, a dimensão do edifício era verdadeiramente imponente: quatrocentos metros de altura e outro tanto de largura. Era uma imensa massa de plástico e aço. Era indispensável que fosse vasto: as diversas células de energia estavam rodeadas de imensas câmaras de vácuo. Era precisa quase uma hora para visitar todos os níveis.

— Parece que as experiências não estragaram nada — notou Innelda, com satisfação. — E os ratos?

Havia posto ratos no edifício, quando de uma materialização precedente. Eles em nada pareciam afetados com a "viagem", mas era sensato confirmar o fato por método científicos. A Imperatriz esperou o resultado do laboratório, não sem olhar freqüentemente o relógio.

Constatou com aborrecimento que estava nervosa. No silêncio total que a envolvia, compreendeu claramente até que ponto era absurdo esse projeto de partir com os cientistas. Os homens que haviam aceitado acompanhá-la, no caso de ela se decidir a dar o passo, estavam fechados num mutismo anormal. De costas para a soberana, olhavam sombriamente a parede transparente do local.

Finalmente, Clark reapareceu, com um rato na mão. Sorria.

— Olhe, senhora. Salta como um peixinho! Quanta alegria nos olhos do oficial! Innelda olhou o animal com ar pensativo e, com um gesto incontrolável, agarrou-o e comprimiu o pequeno corpo contra a face.

— Que seria de nós sem vocês, maravilhosos ratinhos? — murmurou.

Depois, encarou Clark.

— A ciência confirmou?

— Fisiológica, emocional e psicologicamente, cada um deles esta cem por cento normal. Todos os testes são positivos.

Ela sacudiu a cabeça. O resultado só fazia confirmar uma quase certeza. Quando, no dia da ofensiva, o edifício desaparecera, reinara a maior confusão entre o pessoal que estava no interior. Todos os técnicos foram imediatamente isolados. Os exames a que foram submetidos revelaram que estavam todos em perfeitas condições.

Innelda teve uma última hesitação. Recusar participar agora da "viagem", daria má impressão. Mas outros fatores entravam em consideração. Se lhe acontecesse alguma coisa, talvez significasse o desabamento do regime. Ela não tinha herdeiro direto. Sua sucessão iria para o Príncipe Del Curtin, que era popular mas que todos sabiam estar em desgraça. A situação era ridícula. Innelda tinha a impressão de estar num impasse.

— Capitão, o senhor se apresentou como voluntário para fazer a... a viagem, quer eu o acompanhe ou não.

Decidi não acompanhá-lo. Saiba que lamento não poder segui-lo. Mas razões de estado me impedem de tentar a aventura. Desejo-lhe sucesso.

Uma hora mais tarde, o edifício dissolvia-se no nada. No autoplano, a Imperatriz tomou a refeição que lhe trouxeram e leu numerosos estatogramas. Fez-se noite pouco a pouco. Breve o edifício iria retornar.

Materializou-se na hora marcada. Os cientistas saíram. Um deles apresentou-se a Innelda:

— A viagem desenrolou-se de acordo com as previsões, Majestade — anunciou — entretanto, houve umfato lamentável. O Capitão Clark devia fazer uma exploração externa. Recebemos dele uma mensagem estatográfica, na qual informava que estávamos no dia 7 de agosto. Depois, não deu mais sinal de vida. Não voltou ao edifício. Com certeza aconteceu-lhe alguma coisa.

— Mas... Mas isso quer dizer que de 7 de agosto a 26 de novembro houve dois Cayle Clark... o verdadeiro e o que retrogradou no tempo?

Indecisa, calou-se por uns segundos. "O velho paradoxo temporal", pensou. "Um homem pode voltar ao passado e trocar um aperto de mão com ele mesmo?"

— Que aconteceu ao segundo Clark? — perguntou em voz alta.

 

CAPÍTULO VIGÉSIMO NONO

Sete de agosto.

O céu estava de um azul-suave, banhado de sol. Uma ligeira brisa passava pelo rosto de Cayle, que se afastava a passos largos do edifício que o havia conduzido ao seu próprio passado. Ninguém o incomodou. A insígnia vermelha indicando que ele pertencia à casa da Imperatriz, brilhava em seu uniforme. As sentinelas apresentavam armas à sua passagem.

Tomou um autoplano público que ia para o centro. Tinha mais de dois meses e meio para viver, antes de se achar no seu ponto de partida mas, considerando seus projetos, não era muito.

A despeito da hora já tardia, conseguiu alugar um escritório de quatro salas e contatou uma agência a fim de que lhe fornecessem, para as nove horas do dia seguinte, um grupo completo de estenógrafos e contabilistas. Passou a noite num leito de campanha que instalou no escritório, refletindo e dando um último retoque nos seus planos. Na manhã seguinte, cedinho, foi ao escritório de um corretor muito conhecido na cidade, levando no bolso grande parte dos quinhentos mil créditos que o "segundo" Cayle Clark lhe enviara.

No fim do dia, seu capital era de 3. 700. 000 créditos. Seu pessoal estava estourado e teve que contratar uma pessoa com a missão de completar os efetivos da contabilidade e do secretariado.

Esgotado mas alegre, roído de impaciência, Cayle passou a noite a organizar as atividades do dia seguinte, preparando suas ordens de compra e de venda, baseando-se nos jornais da bolsa de dois meses e meio no futuro, de que se munira antes de mergulhar no passado.

No decorrer do mês de agosto, ganhou noventa bilhões de créditos, obteve o controle de uma cadeia de estabelecimentos bancários, de quatro complexos industriais representando um capital fixo de quatro bilhões de créditos e tornou-se acionista majoritário de trinta e quatro outras sociedades.

Em setembro, sua conta atingia 330 bilhões de créditos; absorveu o colossal primeiro banco imperial, três estabelecimentos mineiros interplanetários e participou de duzentos e noventa companhias. No fim desse mês, era proprietário de uma loja de cem andares em pleno bairro comercial onde mais de sete mil pessoas trabalhavam para ele.

Em outubro, empregou todas as suas disponibilidades na compra de hotéis e edifícios residenciais. Seus investimentos representavam mais de três trilhões de créditos. Casou com Lucy Rall e encontrou-se com ele mesmo. Os dois Clark obrigaram Harj Martin a devolver-lhes as importâncias que o Cayle número um havia perdido no Palácio dos Tostões. Essa importância, agora, não passava de uma ninharia para o filho de Fara, mas sua recuperação era uma questão de princípios. Todos os que tentaram atrapalhar a vida do homem que estava a se tornar o dono de Isher, deviam pagar. Resolvido o caso Martin, só faltava a Clark visitar Medlon, receber seus galões de capitão... e preparar sua viagem para o passado.

Foi esta a exposição que Robert Hedrock fizera aos membros do Conselho Supremo da liga. Tal fora o formidável acontecimento que obrigava a Imperatriz a pôr fim às hostilidades, pelo temor de que Clark tivesse imitadores. Se isso acontecesse, significaria o desabamento da estrutura econômica do sistema solar inteiro.

 

CAPÍTULO TRIGÉSIMO

Tudo era silêncio na adormecida aldeia de Glay. Silêncio, calma e paz. No entanto, pensava Fara, esta aldeia é feia. Feia a não poder mais.

Estar armado é ser livre... Sua garganta contraiu-se e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Enxugou-as com as costas da mão. Não tinha vergonha de chorar. Quando se está com raiva, as lágrimas fazem bem.

O pesado cadeado não resistiu ao fino feixe de energia que jorrou, cegante, da sua pistola. Num relâmpago, o metal evaporou-se e Fara empurrou a porta da oficina. Seu primeiro gesto foi o de ligar o comando de invisibilidade das janelas. Só depois de tê-lo fixado nas "vibrações negras", acendeu a luz. Com a garganta contraída pela emoção, examinou o precioso material que o meirinho havia apreendido. Tudo estava ali, em ordem, pronto a funcionar.

Então, com passos vacilantes, foi até o telestate e ligou para Creel. Passou bastante tempo antes que a imagem de sua mulher aparecesse na tela. Creel acabara de amarrar o peignoir. Ao vê-lo, empalideceu.

— Fara... Oh! Fara! Pensei... Ele a interrompeu.

— Estive nos Fabricantes de Armas, Creel. Ouve. Vai ver tua mãe imediatamente. Estou na oficina e não sairei daqui. Mais tarde darei um pulo em casa para comer alguma coisa e mudar de roupa. Não quero que estejas lá nessa hora. Entendeste?

Creel voltara a si.

— Não precisas te incomodar, Fara. Eu me encarregarei. Vou pôr tudo que precisares, até mesmo um leito de campanha, num autoplano. Nós nos instalaremos na oficina, na sala dos fundos.

Pelas dez da manhã, uma sombra projetou-se na soleira da porta escancarada e Jor, o guarda campestre, entrou na oficina. Não se sentia à vontade.

— Fara, foi expedido um mandado de prisão contra você.

— Diga aos que o enviaram que estou disposto a resistir. Tenho o que preciso para isso.

A arma surgiu com tal rapidez entre seus dedos que Jor estremeceu. Contemplou o objeto brilhante, o engenho mágico apontado para ele.

— Olhe... Devo entregar-lhe uma citação para comparecer ao Tribunal de Ferd esta tarde. Você a recebe?

— Claro.

— Você virá?

— Meu advogado irá. Ponha a citação no chão e diga-lhes que a recebi.

O homem da Casa de Armas lhe dissera: "Não zombe da autoridade imperial se uma ação legal for intentada contra o senhor. Contente-se em desobedecer. "

Jor tinha um ar satisfeito quando foi embora.

Uma hora mais tarde, o prefeito também se manifestou, sempre afetado.

— Preste atenção, Fara Clark! — gritou com voz tonitruante. — Está errado se pensa que pode sair facilmente, enganando a lei impunemente.

Fara ficou calado e o prefeito entrou. Curioso que aquele homem, que cuidava tão delicadamente de sua rotunda pessoa, ousasse se arriscar daquela maneira!

— Bem representado, Fara — disse ele, baixando o tom. — Somos dezenas a apoiá-lo. Saiba disso. Agora, não desista. Desculpe a comédia que fui forçado a representar: lá fora há uma verdadeira multidão. Você me prestaria um bom serviço se me xingasse em voz alta e clara. Mas antes devo avisá-lo de que o diretor do truste de Manutenção está a caminho para visitá-lo. Está acompanhado por dois guarda-costas.

Aproximava-se o instante crítico. Fara contraiu o maxilar. "Ora, que venha", pensou, esforçando-se por dominar seu tremor, "que venham... "

Tudo aconteceu mais facilmente do que ele esperava: quando os intrusos perceberam sua arma, empalideceram. Depois de uma rajada de invectivas homéricas, baixaram o tom.

— Temos um reconhecimento de dívida de doze mil e cem créditos. Afinal, o senhor não vai desmentir sua palavra.

— Pago-lhes mil créditos e nem mais um níquel — respondeu Fara sem se impressionar. — Foi essa a quantia que realmente emprestaram a meu filho.

O homem de focinho grosso encarou-o durante bastante tempo.

— De acordo — terminou por dizer.

— Queiram assinar um recibo de quitação total.

O primeiro cliente foi Lan Harris e, à vista do ancião, Fara compreendeu num instante porque os Armeiros tinham escolhido o terreno do velho para instalar a loja. A seguir, chegou a sogra.

— Então, conseguiu, não? — exclamou, depois de ter fechado a porta. — Bom trabalho! Lamento ter sido tão dura com você no outro dia. Mas os partidários dos Fabricantes de Armas não têm o direito de correr riscos. Enfim, não falemos do passado! Vim aqui para levar Creel para casa. O importante agora é que tudo volte ao normal o mais rápido possível.

Estava acabado. Incrível, mas verdade. Quando, de noite, Fara voltou para casa, ia pensando se tudo aquilo não passara de um sonho. O ar estava capitoso como vinho. Glay voltara a ser um paraíso circundado de verdura, um ancoradouro de paz, um asilo fora do tempo.

 

CAPÍTULO TRIGÉSIMO PRIMEIRO

— Senhor De Lany?

Hedrock inclinou-se. Havia modificado ligeiramente sua aparência e ressuscitado uma de suas antigas identidades a fim de não ser, mais tarde, reconhecido pela soberana.

— O senhor solicitou audiência?

— Como vê, Majestade.

Ela brincava com o cartão de visita. A brancura de seu vestido imaculado acentuava o moreno de sua pele. A sala lembrava um atol dos mares do Sul. Por todos os lados, palmeiras e bosquezinhos verdejantes, cercados por uma praia lambida por um mar tão verdadeiro quanto os naturais, um mar eternamente ondulado por uma brisa suave.

Ela olhou seu visitante com atenção. Um homem de fisionomia grave, com ar autoritário. Mas eram os olhos do desconhecido que a cativavam. Lia-se neles a força, a bondade, a bravura — uma bravura sem limites. Ela não esperara que aquele misterioso Sr. De Lany tivesse tal personalidade. Teve a sensação de que aquela entrevista tinha uma enorme importância. Tornou a olhar o cartão.

— Walter de Lany — repetiu, pensativa. Parecia se embalar com a sonoridade daquele nome. Como se ele tivesse um sentido oculto.

Finalmente, ergue a cabeça.

— Como chegou até aqui?

Hedrock não respondeu. Como muitos imperiais, o mordomo não fizera treinamento psicodefensivo. E a Imperatriz, embora tivesse feito, ignorava que a liga dispunha de métodos seguros para arrancar um consentimento imediato dos que não tinham o espírito protegido.

— É muito estranho.

— Descanse, senhora. Vim aqui apenas para solicitar-lhe que tenha a bondade de pôr fim aos sofrimentos de um infeliz.

Innelda levantou as sobrancelhas. A muito custo enfrentava o olhar intenso do interlocutor.

— A senhora pode, Majestade, realizar um ato de caridade sem igual em benefício de um homem perdido há cinco milhões de anos daqui, um homem que oscila entre o passado e o futuro, e que as forças libertadas pela sua geradora fazem derivar sempre mais longe no tempo.

Fora preciso que Robert Hedrock pronunciasse essas palavras. Mas só os íntimos da soberana e seus inimigos conheciam certos detalhes relativos ao edifício evanescente da Avenida Capital. Como previra, Innelda, instantaneamente, apreendeu todas as implicações de suas palavras. Viu-a empalidecer.

— O senhor é um agente dos Armeiros, não é? Levantou-se.

— Saia daqui! Saia imediatamente.

— Mantenha o sangue-frio, senhora. A senhora não corre o menor perigo.

Ele bem sabia que esta advertência agiria como uma chicotada. Depois de alguns segundos de imobilidade, a Imperatriz, com um movimento rápido, sacou o pequeno explosor branco escondido no corpete.

— Se não sair imediatamente, atiro.

— Um explosor comum contra um homem portador de uma superarma 7 Ora, minha senhora!... Se quiser me ouvir um momento...

— Não quero ter nenhum contato com os Fabricantes de Armas.

O coordenador começou a achar a situação exasperante; todavia, foi com voz calma que continuou:

— Fico espantado com uma declaração tão pouco realista, Majestade. Não só a senhora está em contato com as Casas de Armas há dias, mas também inclinou-se diante da liga. A senhora deveria ter posto fim à guerra e destruído sua máquina de energia temporal. A senhora aceitou abandonar as perseguições contra os oficiais desertores e se contentar com a demissão dos insubmissos. E concedeu, finalmente, imunidade a Cayle Clark.

Esses argumentos deixaram Innelda insensível.

— O senhor deve ter uma razão imperiosa para me falar nesse tom — disse ela, com o rosto petrificado.

Pareceu galvanizada pelas próprias palavras. Caminhou para a poltrona, conservando a pistola na mão crispada.

— Basta que eu aperte este botão, para chamar a guarda.

Hedrock suspirou. Pior! Ele esperara não precisar dar uma demonstração de seu poderio.

— Muito bem, aperte...

Era preciso que ela tivesse consciência da realidade das coisas.

— Pensa que não tenho coragem?

E, com um gesto firme, apertou o botão.

Só o encrespar das ondas e o suspiro abafado da brisa perturbavam o silêncio. Passaram-se dois minutos e Innelda, ignorando Hedrock, caminhou para uma árvore, sacudindo um ramo. Devia se tratar de um outro sinal: depois de uma breve espera, a Imperatriz atirou-se para a moita que dissimulava o elevador. Mas foi em vão que apertou o botão. Então, a soberana voltou a sentar-se na poltrona, em frente a Hedrock, que não se movera.

— O senhor tem a intenção de me assassinar? — perguntou, com calma.

Hedrock contentou-se em sacudir a cabeça. Lamentava profundamente ter sido obrigado a provar-lhe a que ponto ela era importante. Tanto mais que essa demonstração a incitaria a aperfeiçoar os meios de defesa, na certeza, aliás sem fundamento, de que assim se protegeria contra uma ciência superior. Ele entrara no palácio, no decorrer da tarde, para preparar tudo. Claro, seu poder não chegava a obrigar Innelda a agir como ele quisesse. Mas cada um de seus dedos estava carregado de anéis que eram outras tantas armas, umas defensivas, outras ofensivas. Ele vestira sua "farda de campanha" e os próprios cientistas da liga ficariam espantados com a diversidade de recursos de sua panóplia. Nenhum sinal de alarme podia tocar, nenhuma arma podia disparar na vizinhança. Naquele dia, o mais importante de toda a história do sistema solar. Hedrock nada deixara ao acaso.

Innelda olhava-o com ar sombrio.

— Que quer? E de que homem fala?

Ele contou-lhe a verdade sobre McAllister.

— É uma loucura! — murmurou, quando ele terminou. — Por que está ele tão longe, se a geradora só está a três meses de distância?

— É a massa do corpo que constitui o fator principal.

— Oh!... Que quer que eu faça?

— Esse homem merece caridade, senhora. Pense que ele está num vazio jamais visto por olhos humanos antes dele. Viu o nascimento da Terra e do Sol e viu sua agonia. Atualmente, nada mais se pode fazer por ele a não ser dar-lhe uma morte misericordiosa.

Innelda tentou imaginar as trevas onde McAllister errava, mas colocava o acontecimento numa perspectiva mais vasta.

— Que máquina é essa que o senhor trouxe?

— Uma reprodução da Temporal — respondeu, sem explicar que ele mesmo a havia montado inteiramente num dos seus laboratórios secretos. — Falta-lhe apenas o mapa cronográfico, que é demasiadamente complexo para ser construído rapidamente.

— Estou vendo...

Não era uma resposta, mas um automatismo verbal.

— Qual é o nosso lugar, meu e seu, lá dentro? Hedrock não estava preparado para esta pergunta.

Ele fora ver a Imperatriz porque ela tinha sido derrotada e porque, diante disso, era preciso que ela não ficasse muito amargurada com o fracasso. Essa era uma espécie de detalhe em que é preciso pensar quando se é imortal e quando nos metemos nos negócios dos mortais.

— Não há tempo a perder, senhora. A geradora deve reaparecer dentro de uma hora.

— Mas por que não deixar a decisão ao Conselho da liga?

— Porque ele poderia tomar uma decisão errada.

— Então qual é a boa?

— Olhe, vou dizer-lhe...

Cayle Clark bloqueou os comandos do autoplano para que o veículo descrevesse um amplo círculo em torno da casa.

— Nossa Senhora! — gritou Lucy. — Uma casa de nuvens!

Com os olhos arregalados, ela olhava a mansão, os jardins suspensos, a morada que flutuava entre o céu e a terra.

— Cayle, garantes que não é uma miragem? Ele sorriu.

— É a décima vez que me perguntas isso!

— Não estou pensando no dinheiro. Garantes que a Imperatriz não vai te arranjar encrencas?

— Mr. Hedrock deu-me uma superarma. Aliás, prestei grandes serviços a Sua Majestade. Serviços que ela apreciou. Em todo caso, foi o que ela me disse hoje no telestate. E não creio que ela tenha escondido alguma coisa. Aceitei continuar a trabalhar para ela.

— Mesmo?

— Não te preocupes! Tu mesmo me disseste: a liga é partidária de um governo único. Mais honesto esse governo, melhor para o universo. E podes confiar em mim — concluiu, com os traços subitamente tensos — as experiências pelas quais passei bastam para me dar vontade de purificar o regime.

O autoplano posou no terraço. Ambos desceram e ele levou-a para visitar o ninho onde viveriam para sempre.

Quando se tem vinte e dois anos, crê-se inevitavelmente que é para sempre.

 

EPÍLOGO

McAllister esquecera que devia tomar uma decisão. Era muito difícil pensar naquelas trevas. Quando abriu os olhos, só viu a escuridão do espaço onde estava mergulhado. Não havia chão sob seus pés. Os planetas ainda não existiam e a noite parecia esperar algum acontecimento colossal.

Parecia esperá-lo, a ele, McAllister.

Então, num relâmpago de compreensão, soube o que ia acontecer. E ficou maravilhado. Soube, também, qual a decisão que precisaria tomar: aceitar a morte.

E essa decisão, tomou-a com estranha facilidade. Estava tremendamente fatigado. Veio-lhe a lembrança agridoce daquele dia, perdido num espaço-tempo abolido, onde, deixado semimorto num campo de batalha do século XX, resignou-se a morrer. Pensou então que era justo perecer para que outros pudessem viver. E eis que sentia a mesma coisa. Mais intensa, porém. Mais grandiosa.

Como morreria? Não tinha idéia. A oscilação do pêndulo, amortecendo definitivamente num passado sem limites, liberaria então a prodigiosa energia temporal que se tinha acumulado em cada uma daquelas pulsações monstruosas.

Ele não seria testemunha do nascimento dos planetas. Mas contribuiria para a sua gênese.

 

                                                                                            A. E. Van Vogt

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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