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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS CATARATAS DA LUA / Anne Mather
AS CATARATAS DA LUA / Anne Mather

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Ele é alérgico a envolvimentos emocionais"- foi o que lhe disseram assim que ela conheceu Patrick Hardy. Infelizmente, Ruth se apaixonou por ele assim mesmo. E como não conseguia lutar contra seus sentimentos, armou um plano para obrigá-lo a se casar com ela. O plano acabou dando certo, mas quando já estavam do outro lado do mundo, ele percebeu que tinha sido enganado e não foi capaz de perdoá-la. Desesperada, Ruth fez o que pôde para reconquistá-lo, e quase teve sucesso no dia em que ele a levou para conhecer "As cataratas da Lua". Então, houve toda aquela tragédia. E agora? Será que perderia Patrick para sempre?

 

 

 

 

Ruth reparou nele assim que entrou na sala. Não era especialmente atraente, pelo menos não mais atraente que os outros jovens com quem ela dançara naquela noite; mas era mais velho, tinha olhos mais profundos e ar mais experiente, além de um bronzeado que chamava a atenção.

Estava parado na entrada do salão, ao lado de James Stephenson, pai de Julie, e Ruth imaginou que inspecionavam o ambiente. Tinha sido uma boa festa, mas não podia ser comparada às reuniões anteriores de James Stephenson. Quanto ao outro homem, não se preocupou em analisá-lo.

Alguns minutos mais tarde eles desapareceram novamente e, com uma sensação de desapontamento, Ruth afastou-se de seu parceiro, abrindo caminho entre os jovens que giravam no salão até o lado de Julie. Levando a amiga até um canto, perguntou, curiosa:

— Quem é o homem que estava com seu pai agora mesmo?

Julie era uma morena atraente, de cabelos encaracolados e expressivos olhos azuis. Ela e Ruth se conheceram no ginásio, e desde então eram grandes amigas. Julie costumava dizer que uma realçava a beleza da outra — ela tão morena e Ruth tão clara —, mas, nos últimos anos, teve que admitir que Ruth não precisava desse contraste para valorizar a própria beleza nórdica. Sorriu e disse:

— Refere-se a Patrick? Patrick Hardy, o primo de papai?

— Se era ele quem estava com seu pai agora mesmo. . . — Ruth estava um pouco impaciente. — Quem é ele? Nunca o vi antes.

— Nem podia — concordou Julie. — Ele acaba de voltar da Venezuela. Trabalha lá. É uma espécie de químico, ou físico, ou qualquer coisa assim. Trabalha para uma das maiores companhias de petróleo. Por quê?

— Curiosidade! — Ruth encolheu os ombros esbeltos.

— Qual é o problema? Já se cansou de Michael? — Julie olhou-a de soslaio.

Ruth deu um sorriso meio forçado.

— Você sabe perfeitamente que Michael Freeman e eu somos apenas bons amigos. — Suspirou. — Não é nada disso   Ele é bem. . . ele é diferente.

— É maduro — comentou Julie. — Céus, deve ter pelo menos trinta e cinco anos.

Ruth ajeitou uma longa mecha de cabelo loiro acinzentado.

— Não é muito.

— Para nós, sim. Ruth, você tem só vinte e um. Não pode estar interessada em alguém tão velho.. .

— Não disse que estava interessada.   — Claro, mas. ..                          

— Mas o quê? É casado ou qualquer coisa assim?

— Que eu saiba, não. Parece que vive para o trabalho. Não tem mais casa aqui na Inglaterra, por isso está conosco.

— Entendo. — Ruth sorriu e seus olhos verdes brilharam. — Não fique tão preocupada, Julie. Não posso me interessar pelo homem?

— Ele não tem dinheiro! Vive do seu salário, claro.

— Isso tem importância?

— Para seu pai pode ter.

— Santo Deus, Julie, por quê? Não estou envolvida com ele.

— Não — concordou Julie. — Mas conheço esse seu olhar. Já o vi antes. Não!

— Não o quê?

— Apenas não, mais nada.

Julie olhou em torno, tentando se interessar de novo pela festa. A vitrola continuava tocando numa altura ensurdecedora, fazendo com que a conversa das duas amigas passasse despercebida. Julie queria que jamais tivessem falado sobre aquilo. Gostava muito de Ruth, mas conhecia sua natureza rebelde, que muitas vezes a metera em complicações na escola. Sempre fora popular entre os funcionários, professores e alunos, mas, a não ser Julie, seus amigos mais chegados eram do sexo oposto. Alta e bem feita, ficava bem com qualquer roupa e atraía os homens como um imã.

Mas Julie culpava o pai de Ruth por uma certa irresponsabilidade do caráter da amiga. Joseph Farrell era um milionário que subira na vida às próprias custas, lutando impiedosamente para sair da obscuridade de uma pequena loja de Liverpool até chegar a proprietário de uma rede de supermercados. Seu deus era o dinheiro e não poupava esforços para dar o melhor para a família. Depois da morte da esposa, treze anos antes, canalizara todo seu amor em direção à única filha, dando-lhe tudo que desejasse.

Apesar disso, Ruth não era mimada e não fora estragada pelo dinheiro. Tinha um coração generoso e desprendido e o que desejava da vida com mais intensidade era que as pessoas gostassem dela.

 

A história de Julie era totalmente diferente. Sua família jamais fora rica, pelo menos não tão rica quanto Joseph Farrell, o que talvez fosse socialmente mais justo. Por causa disso, embora fosse apenas alguns meses mais velha que a amiga, sentia-se responsável por ela, talvez porque Ruth não tivesse uma mãe em quem se apoiar. Virou-se para Ruth e disse:

— Vamos comer alguma coisa? Quero tomar alguma bebida gelada.

— Como queira! — concordou Ruth, dando o braço a Jalie, enquanto se dirigiam à mesa de frios, localizada na sala ao lado. — Foi uma festa maravilhosa, agradeço por ter me convidado para o fim de semana. Acho que papai não concordaria que eu voltasse para casa dirigindo de madrugada.

— Não, especialmente se Michael Freeman a acompanhasse — observou Julie. — Por falar nisso, onde é que ele está?

— Mike? Deve estar por aí — respondeu vagamente. — Ele não vai voltar para a cidade esta noite. Reservou um quarto num hotel da vila. — Olhou para o relógio masculino no pulso delicado. — Espero que não tranquem as portas à meia-noite, senão o pobre Mike não terá onde dormir.

— Acho que mamãe não se importaria se ele dormisse no sofá. Já aconteceu antes. Vai voltar para casa de manhã ou fica para o almoço? Se ficar, podemos andar a cavalo.

— Vou ficar — respondeu Ruth imediatamente. — Quem sabe posso até ser apresentada ao executivo do petróleo!

— Ruth! — Júlie irritou-se. — Pensei que tivesse esquecido Patrick! Ruth olhou para a amiga e deu seu sorriso mais encantador.

— Como poderia? — provocou, rindo.

Apesar das brincadeiras, mais tarde, quando se preparavam para dormir, Ruth tentou descobrir a razão da curiosidade que sentia pelo primo do pai de Julie. Talvez se interessasse por ele apenas porque não tinham sido apresentados. Ou talvez por causa de sua aparência diferente: o bronzeado pouco comum, o olhar experiente que raramente encontrava nos rapazes que conhecia,

Fosse qual fosse a razão, esperava a manhã com ansiedade, feliz porque a monotonia do domingo seria quebrada.

Acordou bem cedo na manhã seguinte, Tomou um banho rápido e vestiu uma calça comprida vermelha e uma blusa sem manga. Como sempre, deixou solto o cabelo liso e volumoso que chegava até os ombros.

Passava um pouco das nove quando desceu para o vasto salão onde uma criada recolhia cinzeiros sujos e varria os restos da festa. Respondeu ao cumprimento de Ruth com um sorriso educado e continuou seu trabalho, enquanto a convidada caminhava até as janelas amplas para observar a paisagem gelada de Wiltshire.

O pai de Julie possuía terras e, embora atualmente ele próprio precisasse fazer grande parte do trabalho da propriedade, tinham uma vida confortável. A casa, por exemplo, tinha quase trezentos anos e ainda mantinha aquela aura de passado, apesar das modernizações que sofrera. Antigamente devia ser a sede de um condado, pensou Ruth, embora hoje em dia esses títulos tenham pouco significado.

Virou-se para perguntar à criada sobre o café, mas ela havia desaparecido. Com um suspiro, encolheu os ombros e colocou as mãos na cintura. Conhecia a senhora Morris, cozinheira dos Stephenson. Podia procurá-la e pedir alguma coisa para comer.

Quando se decidiu, caminhou apressadamente pela sala vazia e entrou no vestíbulo no momento em que um homem surgia na porta. Quase colidiram e ele estendeu as mãos frias para segurá-la.

— Desculpe... — começou com um sorriso e só então percebeu quem era ele.

— Acho que não estava prestando atenção por onde andava — respondeu uma voz profunda e masculina. Ruth podia sentir a respiração dele em seu rosto.

— Senhor Hardy? — perguntou, com os olhos presos no rosto fino e atraente. — Vi o senhor ontem à noite com o pai de Julie.

Patrick Hardy franziu a testa.

— Você me deixou em desvantagem, senhorita. . .

— Farrell. Ruth Farrell. Sou amiga de Julie. Ela me convidou para o fim de semana.

— Estou vendo. — Seu sorriso era ligeiramente zombeteiro. — Bem, muito prazer, senhorita Farrell. Desculpe, mas não conheço mais as amigas de Julie. Quando fui para o estrangeiro ela ainda estava na escola.

— Claro. Ouvi dizer que o senhor trabalha na Venezuela. — Ruth sustentou seu olhar. — Alguma coisa relacionada com petróleo. Parece muito interessante.

— Não para um leigo, posso garantir. — Patrick Hardy contraiu os olhos.

— Não, mas o senhor... isto é, é um trabalho muito técnico, ao que parece.

— De certa maneira. — Seu tom era seco.

— Vai voltar para lá?

— Sim, dentro de poucas semanas. — Ele deu um passo, tentando afastar-se.

— Nunca estive na América do Sul. É muito quente?

— Onde trabalho, sim. E agora, se me desculpa...

— Claro, à vontade.

Com relutância, Ruth afastou-se para deixá-lo passar. Não conseguia pensar em nada para dizer. Ele fez uma inclinação de cabeça e afastou-se, atravessando o amplo salão em direção às janelas onde Ruth estivera há poucos minutos observando a paisagem gelada. Deve ser muito diferente daquilo a que está acostumado, pensou Ruth, imaginando as florestas escaldantes da América Central. Não estaria estranhando o frio? Janeiro não era um mês dos mais agradáveis.

Ele usava uma calça escura, camisa azul e colete, tinha cabelo escuro e um corpo musculoso apesar de esbelto. Ruth sentiu prazer em observá-lo.

Ela encolheu os ombros com impaciência. Estava sendo muito fantasiosa. Só porque ele não demonstrou interesse imediato nela, estava lhe atribuindo qualidades que não possuía.. Por que se preocupar?

Virando nos calcanhares, caminhou em direção à escada, pensando em procurar Julie, quando viu novamente a criada com quem se encontrara antes.

— Senhorita Farrell, falei com a cozinheira e ela perguntou se pode servir o café na sala de jantar. As outras pessoas da casa geralmente tomam café em seus quartos nas manhãs de domingo.

Ruth parou nos primeiros degraus da escada.

— Sabia que o senhor Hardy está no salão?

— Não, senhorita. — A criada parecia surpresa. — Talvez deva chamá-lo também.

— Sim, faça isso. — Ruth sorriu de leve, inclinando-se sobre o corrimão.

A moça desapareceu e voltou alguns momentos mais tarde.

— O senhor Hardy também quer o café, senhorita. Posso arrumar a mesa para dois?

— Por que não?

Ruth parecia divertir-se. Se Julie chegasse agora imaginaria que tudo tinha sido planejado por ela.

A criada saiu para falar com a cozinheira e Ruth decidiu esperar na sala de jantar. Pegando um dos jornais do dia, abriu a porta e entrou na sala ensolarada. Esta era a sala onde a família normalmente fazia suas refeições e a mesa já estava coberta por uma toalha imaculadamente branca.

Sentou-se ao lado da janela e folheou distraidamente o jornal, esperando inconscientemente a chegada de Patrick Hardy. Quando ele finalmente apareceu, Ruth fingiu não vê-lo, procurando demonstrar um profundo interesse pelo artigo que lia.

— Com licença — disse ele, antes de sentar-se do lado oposto. Ela olhou para ele com ar de surpresa.

— Claro, à vontade! — Voltou à leitura, sem perceber o leve sorriso que se desenhava nos lábios dele.

A criada voltou para saber o que desejavam, e Ruth pediu apenas suco de frutas e torradas. Patrick Hardy pediu uma sopa, ovos mexidos com presunto, salsichas e tomates. Ruth, para quem essa refeição matinal era levemente repugnante, observava-o em silêncio. Estava admirada com seu apetite e imaginava como se mantinha naquela excelente forma, enquanto seu pai, que comia muito pouco, exibia um estômago cada vez mais saliente.

Quando ele chegou às torradas e à geléia, ela já tinha terminado a refeição, mas continuava na mesa, observando a borra de café que sobrara no fundo da xícara.

— Não posso colocar defeito no café escolhido por Marion — disse ele inesperadamente, limpando a boca no guardanapo. — No lugar de onde venho há muitas variedades.

Ruth levantou os olhos.

— Há plantações de café na Venezuela?

— Sim, mas o Brasil fica literalmente às nossas portas e é o maior produtor de café do mundo.

— Sim — Ruth concordou. — Já esteve no Brasil?

— Muitas vezes. — Retirou do bolso uma caixa de charutos. — importa-se que eu fume? Lamento não poder oferecer-lhe um cigarro.

— Não fumo — respondeu Ruth, descontraindo-se. — Mas não me importo que fume, gosto do perfume de um bom tabaco.

Ele mordeu um charuto longo e fino e acendeu-o com um pequeno isqueiro de ouro. Inspirou profundamente, virando-se na cadeira e colocando o braço sobre o encosto. Ruth percebeu então que os olhos dele não eram negros, como pensava, mas cinzas, e que os cílios eram longos e espessos. Para evitar a profundidade perturbadora daqueles olhos, ela começou a falar.

— Acho que deve conhecer muitos lugares da América do Sul.. . — começou, ligeiramente nervosa.

— Muitos! — concordou ele. — Mas ainda há muitos que não conheço e que pretendo visitar. Houve tantas civilizações por lá, tantas culturas. Acho fascinante a História da região.

— Mas seu trabalho se relaciona com História? Ele sorriu com ironia.

— Não, meu trabalho é um produto do século XX, no verdadeiro sentido da palavra. O que não me impede de passar todo meu tempo livre revolvendo o passado.

— Tudo que me lembro de ter aprendido sobre a Venezuela é a origem de seu nome — confessou Ruth. — Cristóvão Colombo, ao ver os índios que viviam em choças dentro da água, achou que o lugar fazia lembrar Veneza, não é isso?

Patrick jogou a cinza do charuto dentro de um cinzeiro de bronze que estava no centro da mesa.

— Você se lembra dos fatos, mas confundiu-os um pouco. Como disse, Colombo descobriu a América, mas foi um outro espanhol, Alonso de Ojeda, que descobriu o lago de Maracaibo e as choças dentro da água. Chamou o lugar de Pequena Veneza, que hoje é conhecido como Venezuela. Sabia que a primeira colônia espanhola da América do Sul localizava-se em uma ilha chamada Cubagua, situada nas costas da Venezuela?

— Cubagua! — Ruth repetiu lentamente o nome. — Que lindo som!

— Hoje em dia é um centro produtor de pérolas.

— Os homens mergulham à procura de pérolas? — Sua voz revelava excitação.

— Não é tão simples assim — respondeu secamente.

— Como é o lugar onde trabalha? Existe vegetação tropical e florestas cerradas? — Os olhos dela brilhavam e ele deu uma baforada no charuto, antes de responder:

— Há florestas no extremo sul dos lagos. Mas não são lugares tão românticos quanto você imagina. Nessas áreas geralmente o índice pluviométrico é muito elevado e, aparentemente, não há épocas secas, chegando a 90° a umidade relativa do ar.

Ruth apoiou o queixo nas mãos e suspirou.

— Mas o senhor vive lá — observou.

— Não na floresta — explicou ele com um sorriso. — Durante a maior parte do tempo trabalho em Maracaibo, a segunda maior cidade da Venezuela, onde existem arranha-céus e os mesmos problemas de trânsito que no resto do mundo.

— Parece fascinante! — Ruth estava maravilhada. Tinha viajado por todo o continente e pelos Estados Unidos com o pai, mas os lugares descritos por Patrick pareciam pertencer a uma civilização totalmente diferente. Ouviria aquela voz agradável durante todo o dia sem se cansar.

Patrick parou de falar e observou o rosto encantado da moça, por alguns minutos. Em seguida, levantou-se e, inclinado sobre a mesa, apagou o charuto no cinzeiro. Ruth perturbou-se com a sensação que ele tão inconscientemente produziu nela.

— Mora em Londres, senhorita Farrell?

— Sim! — Ruth deixou que as mãos pousassem sobre o colo.

— E vai embora hoje?

— Depois do almoço. Julie e eu vamos andar a cavalo esta manhã. Sabe montar, senhor Hardy?

— Sabia — disse flexionando os másculos das costas.

— Então por que não se junta a nós? — perguntou, levantando-se. Embora fosse alta, Patrick era bem mais alto e, consequentemente, precisava olhar para cima para encará-lo. Ele parecia estar pensando seriamente no convite e um calafrio de expectativa percorreu a espinha dela.                                                          

— Acho que Julie não concordaria com a sua sugestão — disse por fim, com um leve sorriso.

— Isso tem importância? — Ruth inclinou a cabeça numa atitude de desafio.

— Acho que sim — comentou ele secamente. — Diga-me uma coisa: o inverno é sempre tão rigoroso como agora? Estava observando os campos cobertos de neve e os rios congelados. Não imagina como essa paisagem atrai as pessoas que vivem em clima tropical.

Ruth cerrou os punhos. Ele tinha o poder de fazê-la sentir-se terrivelmente jovem e inexperiente. Não compreendia por quê. Os homens que conhecia, tanto os jovens quanto os mais velhos, pareciam ansiosos pelas atenções dela, enquanto que Patrick Hardy a tratava com completa indiferença. Por quê? Os anos que passara na Venezuela o teriam afetado tanto que não sentia mais necessidade de uma companhia feminina? Julie dissera que ele era totalmente devotado a seu trabalho. Estaria certa? Ou haveria alguma mulher esperando por ele na Venezuela? Ruth percebeu que considerava essa idéia totalmente inaceitável.. .

Prendendo os polegares no cinto, ela bateu os calcanhares com impaciência. Ele se virou para ela.

— O que há? Ficou ofendida porque recusei seu convite? O cílios escuros de Ruth ergueram-se.

— E se ficasse?

Ele passou a mão distraidamente pela orelha.

— Pediria desculpas, é claro.

Tinha a nítida impressão de que ele estava zombando dela, o que a enfurecia. Mas antes que tivesse oportunidade de responder, a empregada voltou para tirar a mesa. Virando-se para ela, Ruth perguntou:

— Sabe se Julie já levantou? Vamos andar a cavalo. A empregada colocou a bandeja sobre a mesa.

— Levei o café da senhorita Julie há meia hora, mas ela não se sente bem. Está com uma terrível dor de cabeça por causa da festa de ontem. Não sei se tem condições de andar a cavalo.

Ruth suspirou, irritada, e sem olhar para trás caminhou para a escada e subiu, de dois em dois, os degraus. Diante da porta do quarto da amiga parou um momento para recompor-se e, em seguida, bateu de leve e entrou, fechando a porta atrás de si.

— Oi, Ruth! — exclamou Julie, colocando a mão na cabeça.

— Esperava que você viesse logo. Estou me sentindo tão mal!

— A empregada me disse. O que foi? Não dormiu bem?

— Sim, dormi muito bem. É essa minha enxaqueca. Acho que foi provocada pelo barulho de ontem à noite.

Ruth colocou as mãos nos bolsos.

— Quer dizer que não vamos andar a cavalo?

— Acho que não. Desculpe, Ruth.

— Não seja tola. Não é culpa sua. Mas a manhã está gloriosa, apesar de fria, e o sol está uma beleza.

— Vá sozinha, se quiser — sugeriu Julie. — Peça a Mike que a acompanhe. Ele pode usar meu cavalo.

— Duvido que Mike já esteja acordado — replicou Ruth, com voz desanimada. — Não se preocupe, Julie. Não faço questão de ir. Talvez volte agora cedo para a cidade.

— Agora de manhã?

— Por que não? Não há muita coisa para fazer.

— Não! — Julie apoiou-se nos cotovelos e levantou. — Não faça isso, Ruth. Já tomei meus comprimidos e provavelmente estarei boa na hora do almoço. Por que não fica até amanhã? Não tem nada que a prenda lá, e pode telefonar para seu pai.

— Não sei. . .

— Pense no assunto — pediu Julie. — Mas, de qualquer maneira, não vá antes do almoço.

— Está bem. — Ruth sorriu para o rosto preocupado da amiga. — Não vou. — Caminhou até a porta. — Agora vou sair e deixá-la descansar um pouco. Mais tarde conversamos.

— Maravilhoso!

Julie deitou novamente, parecendo pálida e abatida, e Ruth saiu silenciosamente do quarto.

Quando descia a escada viu Patrick Hardy no vestíbulo. Diminuindo os passos, sentiu vontade de voltar para trás sem que ele a visse, mas já era tarde. Ele veio até o pé da escada e, apoiando a mão no corrimão, perguntou:

— Como está Julie?

Ruth parou dois degraus antes dele.

— Está com enxaqueca.

— Então não pode andar a cavalo?

— Não.

— Você vai?

— Sozinha? Não, obrigada. — Sua voz soou ríspida.

Patrick observou com paciência o rosto rebelde e disse, com voz baixa mas clara:

— Não disse sozinha. Vou com você, se ainda está em pé o convite.

Ruth encarou-o e sentiu que seu rosto ficava vermelho.

— Não precisa fazer isso.

— Sei que não preciso. Quer ir ou não?

— Adoraria! — respondeu com simplicidade.

— Ótimo! — Ele se afastou. — Então sugiro que vista uma roupa mais quente, enquanto espero você na sala.

— Está bem.

Ruth inclinou a cabeça, afirmativamente, e subiu a escada. O sangue latejava nas suas veias e uma sensação de expectativa completa-mente despropositada invadiu-a. A proposta fora totalmente inesperada, mas nem por um minuto pensou em recusá-la.

Enquanto vestia um casaco azul tentou acalmar-se. Ia apenas andar a cavalo com um primo do pai de Julie, por que tanta excitação? Patrick Hardy apenas tentava ser educado. Sentiu pena dela porque Julie não poderia ir. Na verdade não sentia vontade de acompanhá-la, mas foi forçado pelas circunstâncias.

Estava trémula quando entrou novamente na sala, onde Pairick a esperava, vestindo um casaco de pele de carneiro que acentuava sua masculinidade.

— Disse à cozinheira onde vamos. Aparentemente, não há mais ninguém aqui.

Ruth fez um sinal de aquiescência e ambos dirigiram-se para o vestíbulo. Aparentemente havia informado também o criado da estrebaria de que pretendiam sair a cavalo, pois, quando chegaram à frente da casa, um menino já esperava com dois cavalos selados.

Ruth sentia-se feliz com o vento que desmanchava seu cabelo durante o galope estimulante através dos campos. O frio espalhara sobre a grama uma fina camada de gelo que se quebrava com um ruído gostoso sob as patas dos cavalos.

Não falaram muito durante o passeio. Patrick não demonstrava pressa e admirava a paisagem com atenção, permitindo que sua montaria cavalgasse num ritmo tranquilo. Ruth, ao contrário, como já conhecia bem aquela região, instigava o cavalo a um galope veloz, acompanhando os movimentos do animal com displicente graça.

Ele a alcançou e ambos diminuíram o ritmo para atravessar um cinturão de árvores que terminava num gramado de onde se avistava um vilarejo encravado em um vale; o repique dos sinos da igrejinha enchia o ar.

— Em nenhum outro lugar do mundo o som dos sinos numa manhã de domingo me pareceu tão encantador — comentou Patrick, parando ao lado dela e retirando do bolso a caixa de charutos. Protegendo o isqueiro contra o vento, acendeu um deles e deu uma longa baforada. — Temos igrejas em Puerto Roca, mas seus sinos não soam como estes.

— Puerto Roca? — Ruth franziu a testa. — É nesse lugar que o senhor vive?

Patrick fez um sinal afirmativo.

— Sim. — Desmontou. — Vamos caminhar?

Caminharam em agradável silêncio por algum tempo, puxando os cavalos pelas rédeas, até que Ruth perguntou:

— Pretende ficar muito tempo na lnglaterra?

— Seis ou sete semanas, ainda não decidi. Por quê? Foi muito direto e Ruth corou.

— Curiosidade. Talvez aceite jantar com papai e comigo um dia desses, antes de partir.

— É muita gentileza sua.

A resposta foi delicada mas indiferente e Ruth olhou para ele com certa impaciência. Não conseguia decifrar seu olhar; ele era um enigma, e isso não a agradava.

Caminhavam por um pequeno bosque quando Ruth tropeçou em uma raiz e enroscou os cabelos nos galhos salientes e secos de um arbusto. Deu um grito desesperado e tentou em vão libertar-se, pois os cabelos emaranhados embaraçavam-se mais quando tentava soltá-los. A dor era grande e seus olhos encheram-se de lágrimas.

Imediatamente Patrick estava a seu lado, desembaraçando as mechas prateadas com movimentos delicados. De repente estavam muito próximos, as respirações se confundiam e a mão dele tocou a face de Ruth, que sentiu um estranho calafrio. Conseguindo libertá-la, Patrick ajudou-a a levantar-se. Ela ajeitou o cabelo despenteado e fez um gesto impotente.

— Obrigada — disse com um sorriso caloroso. — Não sei o que teria feito sem você.

— Não sabe mesmo? — Seu tom era irônico, e ele parecia observá-la com atenção.

— Não.

— Estou certo de que alguém surgiria no momento exato para ser o cavaleiro andante diante de uma dama em perigo!

— O que quer dizer?

Ele deu de ombros novamente, virando-se para pegar as rédeas do animal.

— Apenas que você é o tipo de garota que tenta envolver-se em dificuldades no momento apropriado.

Ruth não sabia como interpretar isso. Ele falara da maneira delicada de sempre, mas em sua voz havia uma nota de reprovação. Por quê? Colocando-se diante dele, disse:

— Importa-se de explicar melhor essa observação?

— O sentido está óbvio.

— Não para mim. — Ruth sentiu um frio no estômago.

— Muito bem, senhorita Farrell. — Sustentou com firmeza o olhar dela. — Que quer de mim?

— Não sei o que quer dizer.

— Acho que sabe. Mas posso explicar novamente. — Tirou as luvas dos bolsos e começou a vesti-las. — Por alguma razão, que você conhece melhor que ninguém, quer que lhe dirija minha atenção, que me interesse por você!

— Como... como ousa? — engasgou ela, mas Patrick continuou como se ela não tivesse falado.

— Você me convida para andar a cavalo, chega a me convidar para jantar com seus pais, apesar de me conhecer há apenas duas horas. Finalmente, quando percebe que não está obtendo sucesso, usa o mais velho dos truques: o da fraqueza feminina diante da adversidade!

— Não é verdade! — Ruth estava indignada. — Não pensa realmente que tropecei naquela raiz de propósito. Acha que prendi meu cabelo naquela árvore só para que me salvasse?

— E não prendeu?

— Claro que não.

Ruth olhou para ele, furiosa, agarrando com violência as rédeas do cavalo. Seu primeiro impulso foi montar e voltar para casa tão depressa quanto fosse capaz. Chegando lá recolheria suas coisas e partiria sem olhar novamente para aquele homem pretensioso.

Mas esse comportamento apenas fortaleceria a crença dele em sua infantilidade, o que não podia acontecer. Armando-se de toda sua frieza e dignidade, disse em tom cortante:

— Ao menos minha pretensão jamais será igual à sua, senhor Hardy!

Pensou que ele fosse se zangar e fazer alguma observação indelicada que desse a ela a oportunidade de descarregar a raiva reprimida. Mas estava enganada: ele apenas caiu na gargalhada.

Seus olhos se encheram de lágrimas. Ninguém jamais rira dela antes e essa era uma experiência humilhante. Agarrando com força as rédeas, montou abruptamente e disparou em direção a um grupo de árvores. Não se preocupou em verificar que direção estava tomando, queria apenas colocar a maior distância possível entre ela e aquele homem detestável.

 

Quando finalmente voltou para casa já passava muito da hora do almoço, e Julie a esperava no vestíbulo com ar preocupado.

— Ruth! — exclamou. — Onde esteve? Estávamos preocupadís-simos!

— Desculpe. — Ruth tentou sorrir. — Acho que fui mais longe do que pretendia.

— Não devia ir tão longe sozinha — reprovou Julie. — Acho que não devia mais sair a cavalo quando eu não estiver com você.

— Bem.. . serviu para passar o tempo.

— Sim. — Julie concordou e Ruth percebeu que ela não sabia sobre Patrick Hardy. — A comida já esfriou. Quer que peça à cozinheira para preparar uma omelete ou qualquer outra coisa?

— Por favor, não! — Ruth tirou o casaco e caminhou em direção à escada. — Comerei um sanduíche na cozinha. — Olhou em torno. — Onde... onde está todo mundo?

— Mamãe, papai e Patrick estão tomando café na biblioteca. Eu estava esperando você. Patrick disse que se não chegasse dentro de cinco minutos iria procurá-la.

— Muita gentileza dele. — O tom de Ruth era seco, mas Julie não notou.

— Vamos até a cozinha. Podemos conversar lá. Mike esteve aqui esta manhã antes de viajar para Londres. Acho que esperava encontrá-la, mas disse que não podia esperar porque precisava estar no colégio esta noite.

— É, ele precisa. — Ruth acompanhou a amiga até a cozinha deliciosamente perfumada. — Fico contente que tenha ido embora. Mike às vezes é muito insistente.

A senhora Morris, cozinheira dos Stephenson, preparou para Ruth um prato de salada e presunto e um bule de café que as duas moças compartilharam. Enquanto conversavam, a sra. Morris fazia tricô ao lado do fogão, e aos poucos uma sensação de calor e segurança foi tomando conta de Ruth, fazendo-a esquecer o frio no estômago. Não contou nada a Julie. O breve contato com Patrick Hardy não merecia análise, pelo menos não por enquanto.

— Vai ficar até amanhã, não vai? — perguntou Julie. — São quase três horas, dentro de uma hora já estará escuro.

Ruth hesitou. Não queria ficar, mas não via outra alternativa já que nao gostava de dirigir à noile.

— Está bem — concordou. — Mas preciso telefonar. Enquanto se vestia para o jantar, Ruth não pôde evitar que os

acontecimentos do dia lhe viessem à lembrança. Havia dito a Patrick Hardy que partiria ao entardecer e, depois do que ele dissera naquela manhã, estava preparada para acreditar que ele pensaria que ficara apenas para vê-lo novamente. Pensou em inventar uma desculpa para não descer, mas descartou a ideia. Não era covarde. Desceria para o jantar e mostraria a ele que estava completamente enganado a respeito dela.

Não tinha muita escolha em matéria de roupa. Veio para ficar apenas uma noite e, além do vestido que usara na festa, não tinha nada apropriado para a ocasião. Como ele não a vira durante a festa, poderia usar o mesmo vestido, que lhe caía muito bem. Era de veludo creme, preso sob o busto e caindo solto até os pés, com mangas longas presas no pulso e decote redondo que revelava a pele macia de seu pescoço. Enfim, o complemento perfeito para a intensa beleza de Ruth.

Mesmo assim tremia um pouco quando desceu a escada e atravessou o vestíbulo atapetado em direção à sala onde os pais de Julie costumavam tomar um aperitivo antes do jantar.

Foi a última a chegar, como se tivesse planejado sua entrada, o que não era verdade. Apesar de tudo, sua aparência atraiu todas as atenções, mas Ruth procurou dirigir-se sempre à mãe de Julie, evitando olhar para Patrick Hardy.

A senhora Stephenson ignorava que já haviam sido apresentados e, para tristeza de Ruth, levou-a até ele, dizendo:

— Conhece Ruth, Patrick?

Patrick estava perturbadoramente masculino com seu terno de noite, realçado pelo bronzeado magnífico. Os dois homens vestiam ternos escuros. Imperturbável diante da situação, ele disse:

— Já nos conhecemos, Marion. Tomamos o café da manhã juntos, não é, senhorita Farrell?

Ruth sentiu-se gelar.

— Sim, é isso mesmo — concordou, sentindo-se pouco à vontade ao notar o olhar surpreso de Julie.

— Ótimo, então todos nos conhecemos.

Ruth voltou para perto de Julie e aceitou um cálice de licor. O jantar foi anunciado e todos se dirigiram à sala de refeições, onde as mesas do bufê tinham sido colocadas na noite anterior. Para alívio de Ruth a conversa foi geral e não houve silêncios desagradáveis. Também os pais de Julie achavam fascinantes as experiências de Patrick na América do Sul, e, apesar da antipatia que sentia por ele, Ruth ouvia com crescente interesse.

Num momento de distração, olhou para cima e encontrou os olhos de Patrick voltados para ela, hipnotizando-a com aquele cinza penetrante. Nesse instante o pai de Julie disse alguma coisa que chamou a atenção do convidado, mas o pequeno incidente perturbou Ruth, que não tirou mais os olhos do prato até o fim da refeição.

Terminado o jantar, todos se dirigiram à sala de estar para tomar o café e Ruth sentou-se ao lado de Julie, numa poltrona. O pai de Julie e Patrick Hardy conversavam perto de uma das janelas. A conversa girava em torno de questões agrárias e a senhora Stephenson se reuniu às moças, suspirando com resignação.

— Seu pai sempre acaba dirigindo a conversa para assuntos relacionados com agricultura ou criação de gado — comentou, sentando-se ao lado delas. — Pobre Pat. Tenho certeza de que não se interessa por essas coisas. — Suspirou. — Talvez eu não tenha motivos para me queixar. Já foi uma grande coisa James não ter mencionado o tratamento à base de hormônios que está pensando em fazer!

Julie riu e Ruth não pôde deixar de lançar um olhar disfarçado em direção à janela. Mas os dois homens pareciam tão envolvidos com o que diziam que nem sequer notaram os comentários irônicos da senhora Stephenson.

Quando a mãe começou a folhear uma revista, Julie aproximou-se de Ruth e disse, em voz baixa:

— Você não me contou que tomou café com Patrick.

— Esqueci — Ruth encolheu os ombros com indiferença.

— Aposto que ele não correspondeu às suas expectativas — comentou Julie.

— Não foi bem assim. — Ruth procurou demonstrar indiferença. Julie franziu a testa.

— Ontem à noite você parecia fascinada por ele...

— Não seja ridícula! — Ruth lançou um olhar preocupado em direção à mãe de Julie, mas felizmente ela parecia não ter ouvido nada.

— Estava curiosa para saber quem ele era, só isso.

— Está bem. — Julie analisou o rosto vermelho da amiga com atenção. — Está bem, se é isso que diz. — Deu de ombros. — Vamos ouvir discos na biblioteca?

Ruth exultou com a possibilidade de afastar-se de Patrick Hardy,

mas a sra. Stephenson interrompeu a leitura, quando as moças se levantaram, para perguntar onde iam.

— Ouvir discos — respondeu Julie. — A senhora se importa?

— Não exatamente. — Olhou na direção do marido e Patrick Har-dy. — Mas James não pode monopolizar a atenção de Pat durante toda a noite. O coitado vai se aborrecer mortalmente. Por que não trazem alguns discos para cá? Os menos barulhentos, claro, assim vocês jovens podem dançar um pouco.

— Ora, mamãe, que idéia! — Julie não se sentia muito disposta. — Não tem graça dançar aqui na sua frente.

— Por que não? Os jovens hoje em dia parecem não precisar mais de parceiros para dançar.

Julie suspirou e Ruth sentiu uma pontada de impaciência. Parecia que elas não conseguiriam escapar com facilidade.

— Está bem — disse Julie, por fim. — Vou buscar os discos.

— Ótimo. — A mãe sorriu para Ruth. — Sente-se de novo e conte-me onde foi esta manhã.

— Esta manhã? — Ruth deixou-se cair na poltrona.

— Sim, em seu pasesio a cavalo.

— Claro. . . meu passeio. — Ruth tentou recompor-se. — Tinha me esquecido.

Julie voltou com vários discos. Ruth aproximou-se da amiga e tentou sorrir animadoramente.

— Não se preocupe — sussurrou. — Tenho certeza de que seus pais logo se cansarão dessas músicas.

— Espero que sim. — Julie estava emburrada mas, antes que tivesse tempo de colocar o primeiro disco na vitrola, o ruído de um carro que se aproximava chegou até eles.

— Eu atendo! — exclamou Julie precipitadamente, e correu para a porta antes que alguém tivesse oportunidade de protestar.

— Não imagino quem possa ser — comentou a senhora Stephenson, pondo de lado a revista ao mesmo tempo que os homens interrompiam a conversa.

— Talvez seja Hayes — respondeu o marido. — Disse que viria assim que tivesse novidades.

Nesse momento Julie voltou acompanhada de um rapaz que Ruth reconheceu como Peter Forrester, um dos convidados da festa da noite anterior.

A senhora Stephenson deu um sorriso de boas-vindas.

— Olá, Peter, que surpresa agradável!

Peter Forrester era um rapaz magro e atraente, de quase trinta anos. Seu pai possuía terras ao Norte da propriedade do pai de Julie e, agora que terminara o curso de agronomia, Peter trabalhava como intendente de outro proprietário do distrito. Ruth sabia que ele gos-lava muito de Julie e era muito provável que acabassem casando algum dia. Julie era intimamente uma camponesa e, embora gostasse de ir à cidade passar alguns dias com Ruth e o pai, preferia viver no campo. Peter olhou para o grupo um tanto embaraçado e disse:

— Senhora Stephenson, não sabia que Ruth ia ficar aqui hoje. Pensei que Julie estivesse sozinha e ia convidá-la para dar um passeio. — A expressão de Julie iluminou-se, mas a mãe apenas disse:

— Não tem importância, Peter. Agora que já está aqui pode ficar. Julie ia mesmo colocar alguns discos na vitrola, não é, querida?

Julie hesitou, ficou um instante em silêncio e por fim concordou. Ruth sentiu-se um pouco culpada.

— Se quiser sair com Peter, Julie, não se preocupe comigo.

— Bobagem. — O pai de Julie entrou na conversa.

— Tenho uma sugestão. — A voz de Patrick Hardy era convincente. — Por que não saímos todos? Podemos ir de carro até Devizes e parar em algum lugar para tomar uns drinques.

A senhora Stephenson olhou interrogativamente para o marido.

— Gostaria de sair, James?

Ruth cravou as unhas nas palmas das mãos. Ninguém pediu sua opinião, e a última coisa que queria era passar várias horas ao lado de Patrick Hardy.

James Stephenson ficou pensativo durante alguns instantes. — Bem, a idéia não me atrai muito — admitiu. — Pretendia passar uma noite tranquila.

— Ótimo. — A esposa pareceu alegrar-se com a resposta. — Também não me sinto muito disposta para sair. Mas nada impede que saiam vocês quatro.

Ruth quis morrer. Não podiam colocá-la naquela situação!

— Eu... também não tenho muita vontade de sair.

— Não seja boba, Ruth! — O senhor Stephenson não aceitou o protesto. — É claro que tem. Nós já estamos muito velhos, mas vocês não.

Ruih dirigiu um olhar suplicante a Julie, mas ela estava feliz demais com o rumo tomado pelos acontecimentos para pensar em ajudá-la. Não restava outra alternativa senão concordar.

— Ótimo. — Era Patrick Hardy novamente. Caminhou até o lugar onde estavam os três jovens. — Sugiro que você e Julie vão em seu carro, Forrester, e a senhorita Farrell e eu, no meu.

Ruth olhou furiosa para ele, tentando fazer com que olhasse para ela e percebesse sua frustração. Mas ele parecia completamente indiferente e não restou outra alternativa senão acompanhá-los.

Todos se dirigiram ao vestíbulo para apanhar os casacos. Na verdade Ruth não tinha um casaco, apenas uma capa de tweed que usava em qualquer ocasião. Mas pelo menos era quente e vestiu-a sem a ajuda de ninguém.                          

— Há um ótimo lugar perto de Sharning — disse Peter, ajudando Julie a vestir o casaco. — O Beeswing, conhecem?

— Acho que não. — Patrick vestiu um casaco cinza-escuro com gola de pele. — Mas iremos onde você nos levar.

— Muito bem. — Peter parecia satisfeito. — Ruth conhece a estrada de Sharning, é logo depois da vila.

— Está certo.

Patrick fez um sinal afirmativo e todos se dirigiram aos carros. Os dois partiram e Ruth precisou esperar que Patrick tirasse o Mini da garagem, estacionando ao lado dela. Sem descer, Patrick abriu a porta, Ruth entrou rapidamente, ajeitando o vestido longo.

— Espero que não ache isto muito apertado — comentou friamente, enquanto ela imaginava como ele conseguia acomodar-se por trás da direção. — Precisava de um meio de transporte e, como não pretendo fazer distâncias muito grandes, achei que este carro seria ideal.

Ruth não podia ignorá-lo completamente.

— Também tenho um Mini — disse, com voz tensa.

Sharning era uma vila próxima a Cupley, onde os Stephenson tinham sua propriedade, e não demorou muito para que surgissem as primeiras luzes das casas. Aproximaram-se do carro de Peter Forrester e, logo em seguida, atravessaram os portões de um hotel todo iluminado. Estacionaram os carros e as duas moças caminharam na frente até o edifício.

— Você não se importa, não é, Ruth? — murmurou Julie ansiosamente. Ruth não podia desapontá-la.

— Claro que não — mentiu.

Era um hotel maior do que Ruth esperava, com vários bares e uma pista de dança. O salão estava lotado e um conjunto de três elementos tocava animadamente. Patrick sugeriu que primeiro tomassem uma bebida e depois voltassem ao salão de danças e os outros concordaram.

Por causa da multidão e do barulho Ruth pôde relaxar um pouco. Peter tornou-se uma companhia agradável depois que perdeu um pouco da timidez e Patrick tinha muito senso de humor. O silêncio de Ruth parecia não ter sido notado, o que a deixou muito feliz.

Então Patrick sugeriu que voltassem ao salão e todos se dirigiram para lá. Não estava mais tão cheio quanto antes e Peter conduziu Julie com determinação até a pista de dança. Sozinha com Patrick, Ruth entrou em pânico.

— Desculpe, mas preciso ir ao banheiro... Os dedos de Patrick prenderam-lhe o braço.

— Por quê?                                                                    

— O que você acha? — Ruth corou.

— Não pode esperar?

A surpresa silenciou-a por alguns segundos. — Se quer mesmo saber, não!

— Não acredito — murmurou ele, observando o rosto vermelho da moça. — Está querendo apenas não ficar sozinha comigo.

— Vai me deixar ir? — pediu em tom ríspido.

— Não. Pelo menos agora, não. Venha, quero dançar com você. Foi obrigada a segui-lo. A mão dele a prendia com força e, além

disso, ela não queria provocar um escândalo. Na pista de dança ele apertou-a contra si, ao contrário dos outros casais, que dançavam afastados.

Depois de alguns minutos ela não queria mais que ele a soltasse. Era delicioso estar assim tão próxima a ele, com a mão presa contra a camisa de seda, sentindo o calor do peito dele e as batidas do seu coração. Seus braços a envolviam pela cintura e se moviam ao ritmo da música.

— Não é assim tão mau, não é? — perguntou suavemente contra o cabelo dela.

— Não — Ruth concordou rispidamente.

— Desculpe-me — disse ele.

— Desculpar? — Ruth levantou a cabeça para olhar para ele. Seu rosto estava muito próximo e ela se afastou rapidamente. — Desculpar por quê?

— Por esta manhã — respondeu, em voz baixa. — Acho que fui muito grosseiro.

— Está bem. — Ruth tremeu.

— Muito obrigado. Eu me portei com grosseria. Normalmente não ajo assim, mas tive minhas razões.

— As mãos de Ruth estavam cobertas de suor.

— É mesmo? — Dizendo isso, deixou seu corpo completamente relaxado.

Imediatamente ele se afastou. E, quando falou novamente, foi num tom tão amigável quanto antes.

— Tentarei explicar. Da última vez que estive na Inglaterra, Marion passou todo o tempo tentando me casar com uma prima distante.

— Suspirou, relembrando o passado. — Célia.. . este era o nome dela. Por sinal, uma moça encantadora que, sem dúvida nenhuma, seria uma esposa maravilhosa, mas não para mim!

Ruth sabia que ele esperava uma resposta, por isso assumiu uma indiferença que não sentia e disse:

— E você pensou que eu fosse outra candidata.

— Exatamente — e lhe deu unysbrríso perturbador. — Mas Ma-rion me explicou quem você era e me senti um verdadeiro tolo.

— Quem. . .   quem eu era? — Ruth estava confusa. — Quem eu sou?

— Não sabe? — Os olhos dele brilharam maliciosamente.

— Diga você.

— É filha de Joseph Farrell, é claro. Nada menos que uma herdeira e, portanto, não precisa agarrar o primeiro homem sem compromisso que lhe apareça na frente. Além disso, estou certo de que seu pai deseja para você um marido que possa lhe oferecer mais que um salário de físico-químico!

— Compreendo.

— Por isso sugiro que esqueçamos o que aconteceu esta manhã e comecemos tudo novamente — continuou. — O incidente me ensinou a não ser tão pretensioso, como você disse.

Sem saber por que, Ruth sentiu uma necessidade imperiosa de tomar alguma coisa. Colocando a mão contra o peito dele e afastando-se, disse:

— Importa-se que sentemos novamente? Aqui está muito quente.

— Nem um pouco. — Soltou-a imediatamente. — Vamos tomar alguma coisa. Os outros nos encontrarão mais tarde. Confesso que estou exausto.

Encontraram uma mesa livre no bar e Ruth tomou sua quarta vodca com tônica como se fosse a última. Algo desagradável acontecera e não queria pensar sobre isso.

Livre da pressão de imaginar que estava sendo induzido a casar, Patrick relaxou e se tornou encantador, na verdade, a companhia perfeita, embora Ruth não conseguisse mais apreciá-la. Quando ele estava distraído, ela o examinava com atenção, notando cada detalhe, do atraente formato do maxilar até os dedos longos e fortes que seguravam o copo. Os pulsos eram peludos e bronzeados como o rosto e ela imaginou se passava muito tempo exposto ao sol quente da América do Sul.

Olhando o copo vazio, tentou não pensar coisas como essa. Era ridículo. Ali estava ela imaginando-se capaz de conseguir o impossível. Não podia durar. Estava entusiasmada porque, no momento, ele era diferente de todos os homens que conhecia. Uma novidade, e, como toda novidade, logo perderia o encanto.

 

A refeição da manhã seguinte foi uma ocasião familiar, ao contrário da do dia anterior. Era o primeiro dia de trabalho da semana para os pais de Julie e cada qual estava preocupado com as próprias ati-vidades. A senhora Stephenson dirigia vários comitês comunitários, enquanto que o marido tinha o trabalho da propriedade para supervisionar.

Patrick não apareceu e Ruth se convenceu de que estava satisfeita com isso. Recusou o convite de Julie para ficar para o almoço e decidiu partir antes de vê-lo. Sentiu certo alívio ao sentar-se no seu Mini depois de dizer adeus a toda a família. Julie ficou triste, naturalmente, mas Ruth prometeu telefonar assim que chegasse a Londres, para que fosse passar uns dias com ela.

A casa do senhor Farrell ficava perto de Eaton Square. Janelas altas e estreitas ladeavam a porta principal, protegida por uma coberta de acácias. Primitivamente fora utilizada como estábulo, mas, depois de reformada por um arquiteto amigo do pai de Ruth, transformara-se numa soberba morada. O andar inferior abrigava as garagens e os quartos dos empregados e ligava-se ao andar superior por uma escada de madeira. A habitação era espaçosa e elegantemente mobiliada, pois seu pai jamais fazia as coisas pela metade. Mas embora todos os objetos fossem raros e muito caros, o ambiente geral era acolhedor e bastante pessoal. Era um lar, em todos os sentidos da palavra.

O pai não estava em casa a essa hora do dia, como Ruth previa, mas a senhora Lawson, a governanta, subiu para perguntar se ela havia almoçado.

— Não, não almocei — disse Ruth, retirando a capa, desnecessária naquela atmosfera aquecida. — Mas não precisa preparar nada de especial para mim, senhora Lawson, pois não sinto muita fome.

A governanta apertou carinhosamente as mãos da moça.

— Teve um fim de semana agradável, senhorita?

— Sim, muito agradável, obrigada. — Ruth estendeu-se num sofá de couro macio. — Papai vai jantar em casa esta noite?

— Pelo que sei, sim, senhorita. Por que não lhe telefona? Ele ficará contente. Sente muito a sua falta, sabe?

— Acha mesmo? — Ruth correu os dedos pelo couro do sofá.

— Claro. — A senhora Lawson contraiu os lábios. — Não passa todo o tempo trabalhando.

— Sim, eu sei. — Ruth estendeu a mão para o telefone. — Bem, senhora Lawson, obrigada.

O escritório de Joseph Farrell ficava em uma rua perto de Bayswater Road. A recepcionista que atendeu reconheceu imediatamente a voz de Ruth e disse:

— Creio que o senhor Farreil saiu, mas vou confirmar para você. Alguns minutos mais tarde Ruth ouviu a voz do pai.

— É você, Ruth? Então já está de volta.

— Sim. Ia sair? Atrapalhei você?

— Nada importante. Ia apenas tomar uma cerveja com Andy.

— Esse ia ser seu almoço? — exclamou Ruth em tom de reprovação.

— Acho que sim. Isso e uma torta, imagino.

— Bem, que tal mudar de planos e me levar para almoçar? — pediu Ruth, de bom humor.

O pai hesitou.

— Bom, acho que posso — concordou com relutância. — Mas tenho uma reunião às duas horas.

— Ah, papai! — Ruth deu um suspiro. — Então não tem muito tempo.

— Não muito.

— Está bem, esqueça. A que horas estará em casa esta noite?

— Não muito tarde. Lá pelas seis. Quer que a leve para jantar?

— Não. Não tem importância. — Lembrou-se de que o pai gostava de relaxar depois de um dia de trabalho. — Vejo-o à noite, então.

— Ótimo. Teve um bom fim de semana? Deu lembranças a Jim?

— James, papai, James! O pai de Julie não gosta de ser chamado de Jim!

— Ora! — O pai não pareceu impressionar-se. — Jim era um bom nome para seu avô e é bom também para ele.

— Está bem. Está bem. Até depois.

— Até mais tarde.

Ruth colocou o fone no gancho e ficou olhando para o telefone com uma sensação de orgulho. Joe Farrell não se preocupava com a arrogância de ninguém. Não tinha tempo para esnobismo e pretensão. Não podia permitir-se tais luxos, como ele mesmo costumava dizer, e esse comportamento era em parte responsável por seu tremendo sucesso. Conversava com qualquer pessoa e qualquer pessoa podia conversar com ele. Ninguém na empresa Farrell podia dizer que não conhecia o patrão, pois ele considerava parte de seu trabalho conhecer todo mundo.

Pegando a mala e subindo mais um lance de escadas, Ruth chegou a seu luxuoso quarto azul e branco. Deixando a mala sobre a colcha de seda, entrou no banheiro e abriu as torneiras. Um banho a relaxaria, e talvez a aliviasse do peso da depressão que se apoderara dela desde que saíra da casa de Julie...

 

Três dias depois Ruth estava sentada na cama tomando o café da manhã quando entrou a senhora Lawson dizendo que alguém queria falar com ela no telefone. Ruth olhou para o relógio.

— Ainda não são nove horas — exclamou. — Quem é? Tem certeza de que não é para papai?

— Tenho, senhorita. É o senhor Hardy. Vai falar? Ruth empurrou para o lado a bandeja com o café.

— Senhor Hardy? Foi isso mesmo que disse?

— Sim, senhorita. Quer que peça a ele que telefone mais tarde?

— Não! Não faça isso. Vou atender. — Ruth saltou da cama, procurando seu robe. — Obrigada, senhora Lawson.

Só quando descia correndo a escada para atender o telefone é que percebeu que a senhora Lawson tinha estranhado seu comportamento. Normalmente recusava-se a atender telefonemas antes das dez horas, preferindo tomar banho e vestir-se antes de enfrentar os compromissos do dia. Mas este chamado era especial, embora nem mesmo ela soubesse por quê. Quase sem fôlego, ergueu o fone.

— Ruth Farrell falando.

— Oi, Ruth. Tirei você da cama?

— Para falar a verdade, sim. — Ruth tentou controlar a respiração.

— Não há extensão na casa?

— Não, pa. . . meu pai não gosta. Acha que acordar com o toque do telefone é a pior coisa do mundo.

— Talvez ele esteja certo. — Patrick parecia bem-humorado. — Desculpe acordar você tão cedo, mas queria convidá-la para almoçar comigo.

— Hoje? — Ruth sentia-se excitada como uma colegial.

— Sim, hoje. Está livre?                                                 Ela lembrou-se que marcara um almoço com Lucy Fielding, esposa

de um dos diretores da empresa do pai, mas imediatamente decidiu desmarcar o compromisso.

— Sim, acho que sim. — Hesitou. — De onde está telefonando?

— Do meu apartamento.

— Seu apartamento? — Ela não conseguiu conter a surpresa. -4 Não sabia que tinha um apartamento.

— E não tinha. .. até ontem. Acabo de alugá-lo.

— É em Londres? — Ruth engoliu em seco. Sua voz era indiferente.

— é claro. Queen Anne Gardens.

— Sei onde fica. É perto de Marylebone Road.

— Parece que você conhece Londres muito bem.

— Moro aqui há treze anos — respondeu prontamente, reagindo à ironia levemente sugerida pela voz dele.

— É mesmo? Não parece ter tanta idade.

— Não diria isso se me visse agora — respondeu, com um sorriso malicioso.

— Não sou tão carente de imaginação — respondeu no mesmo tom, fazendo com que Ruth sentisse uma estranha fraqueza nas pernas. Deixou-se cair na cadeira mais próxima e alisou o tecido transparente do penhoar.

— A que horas vamos almoçar? — ela perguntou, mudando com-pletamente de assunto.

— Diga onde mora e passarei aí para apanhá-la às... digamos ao meio-dia.

— Está bem. — Ruth ditou o endereço e esperou que ele o anotasse. — Vejo você mais tarde, então.

— Ótimo! — Ele parecia contente. — Até logo.

Ruth colocou o fone no gancho com a mão trêmula. Durante os últimos dias ela conseguira afastá-lo para o fundo da mente e quando o som da sua voz vinha perturbar seus sonhos atribuía isso a uma obsessão passageira. Mas agora Patrick estava em Londres, e ela ia almoçar com ele, e esse pensamento a enchia de expectativa.

Primeiro, pensou, precisava telefonar a Lucy Fielding e inventar alguma desculpa para cancelar o almoço. Depois voltou para o quarto e examinou com cuidado o conteúdo do guarda-roupa. A senhora Lawson subiu logo depois e ficou parada na porta, parecendo preocupada.

— Vai sair. senhorita?

— Mais tarde, senhora Lawson. Meu pai já saiu?

— Sim, senhorita. Saiu um pouco antes das dez.

Ruth murmurou qualquer coisa incompreensível e continuou examinando o guarda-roupa.

— É hoje que vai almoçar com a senhora Fielding? — A senhora Lawson tinha uma excelente memória. . . infelizmente.

— Ia — admitiu com relutância. — Mas mudei de planos. Agora vou almoçar com o senhor Hardy. Se a senhora Fielding telefonar para saber como estou passando, diga-lhe que ainda estou na cama. A senhora Lawson olhou-a com estranheza.

— Por quê? Está doente?

— Estou com enxaqueca.

— Você não sofre de enxaqueca.

— Ela não sabe disso. — Ruth sorriu maliciosamente. — Não vai me denunciar, não é, senhora Lawson?

— Acho que não. — A senhora Lawson deu um sorriso de reprovação. — Mas quem é esse senhor Hardy? Seu pai o conhece?

— Não. Mas não se preocupe, ele é totalmente respeitável.

— É mesmo? — O tom da senhora Lawson era seco.

— É. Não se preocupe, pois logo vai conhecê-lo. Vem me buscar ao meio-dia.                                                            

— Está bem, senhorita. — Virou-se para sair. — Vai jantar em casa esta noite?

— Acho que sim. — Ruth não queria pensar no jantar. Na hora do jantar o almoço já teria terminado.. .

Já estava pronta quando ele chegou. Escolhera um vestido de jérsei, cor de pêssego, e um casaco de pele. O cabelo estava solto, como sempre, e caía graciosamente sobre o rosto.

A senhora Lawson conduziu Patrick até a sala de estar, onde Ruth o esperava. Era evidente que a governanta estava intrigada. Patrick não correspondia às suas expectativas e, sem dúvida, ela estava tentando descobrir como tinham se conhecido.

— Algo mais, senhorita? — perguntou delicadamente, cruzando as mãos.

— Não, obrigada, senhora Lawson. — Ruth sorriu para Patrick.

— Muito bem, senhorita.   — A senhora Lawson saiu e   Ruth relaxou.

— Quer tomar alguma coisa antes de sair? — perguntou, com voz ofegante. A idade lhe dava maturidade e era isso, mais que qualquer outra coisa, que a fazia sentir-se em desvantagem.

— Não, obrigado — respondeu ele, observando a sala com interesse. Ruth apanhou o casaco e começou a vesti-lo.

— Estou pronta. Achei que você preferia tomar um drinque aqui, antes. . .

Ele se virou para ela.

— Você quer um drinque?

Na verdade, necessitava urgentemente de um, mas balançou a cabeça negativamente e disse:

— Não. Vamos, estou com fome.

Conseguiram estacionar bem perto do restaurante que ele escolheu, localizado em Soho. Era um restaurante pequeno e exclusivo e Ruth, estranhou que Patrick soubesse da existência dele, até que ficou sabendo que pertencia a um amigo seu.

Foi imediatamente reconhecido, é claro, e muito bem-recebido. No bar, suavemente iluminado, Ruth foi apresentada ao dono e ao bar-man, que na verdade era o filho do proprietário. Em seguida Patrick contou o que havia feito nesses últimos dias e reprovou-a por não ter voltado a visitá-los. Bebericando um Martini, Ruth sentia aquela familiar sensação de desconforto, como sempre acontecia diante dele. Não sabia por quê. Ele não tinha um passado ilustre, não possuía títulos ou heranças que pudessem intimidá-la, nem mesmo possuía dinheiro; no entanto, conseguia fazê-la sentir-se a intrusa, a estranha.

É claro que ela sabia a resposta. Era a espécie de homem que não se intimidava diante de lugares e pessoas. Era inteligente, interessante, e sabia que o que estava fazendo valia a pena, não era uma maneira de encher o tempo. Trabalhava porque essa era sua carreira, seu ga-nha-pão. De repente ela lamentou não ter um objetivo na vida.

Por outro lado, se fosse uma simples trabalhadora talvez ele não a tivesse convidado para almoçar. Ou talvez o estivesse julgando mal. .. Terminando o Martini, afastou o copo.

— Posso tomar outro?

Patrick interrompeu o que estava dizendo para olhar para ela.

— O quê? Ah, sim, claro. Frank, o mesmo, outra vez.

— Obrigada. — Percebendo o aborrecimento dela, Patrick terminou seu uísque e levantou-se.

— Vamos para o restaurante? — sugeriu. — O que tem de bom hoje, Marco?

Sentindo-se completamente infantil, Ruth seguiu-os até o pequeno restaurante adjacente. Como de costume, ele mentalmente a colocara em seu lugar, fazendo com que o apetite dela diminuísse alarman-temente.

Depois de uma consulta a Marco, Patrick decidiu-se por lagosta a Thermidor e Ruth, para poupar um exame do menu, pediu a mesma coisa.

Quando Marco se afastou para providenciar os pedidos, Patrick acendeu um charuto e disse:

— Desculpe se achou que fui grosseiro, mas há cinco anos que não via Marco e os italianos são muito sociáveis.

— Não tem importância. — Sentia-se tão miserável o pedido de desculpas significava pouco para ela..

— Gosta deste lugar?

— Nunca estive aqui antes.

— A comida é excelente.

— Ótimo. — Ruth brincava com o copo, evitando o olhar dele.

— Qual é o problema? — Ele contraiu a testa. — Está mau-humorada. Por quê? Pensei que quisesse sair comigo. Parecia entusiasmada quando lhe telefonei.

— Estou perfeitamente bem. E não teria saído com você se não quisesse.

— Ótimo. Então vamos agir como se estivéssemos nos divertindo. Que vinho prefere?

— Qualquer um. Escolha você.

Ele estudou a lista de vinhos com séria compenetração. Ela sabia que o estava aborrecendo com sua atitude, mas não conseguia evitá-lo. Era ridículo comportar-se assim. Ansiara tanto por esse almoço e estava deixando que a própria estupidez' o estragasse. Se continuasse agindo assim ele não teria dificuldade em encontrar outra moça que estivesse mais do que disposta a aceitar o que ele tinha para oferecer. E a idéia de vê-lo com outra moça era insuportável. Afastando o copo, disse:

— Sinto muito.

— Sente mesmo? — Ele olhou para ela com curiosidade.

— Sim. Acho que estou me comportando como criança. Perdoe-me.

— Por que está agindo como criança? — Eíe ergueu as sobrancelhas.

— Pode atribuir meu comportamento a puro mau humor — respondeu imediatamente, mas sentiu que não o convencera.

— Muito bem. Agora podemos decidir sobre o vinho?

A refeição foi deliciosa e Ruth fez o possível para desfrutá-la, mas tudo o que conseguiu foi empurrar a comida pelo prato e engolir umas duas porções. O vinho ajudou-a a engolir a comida, e tentou distrair a atenção dele falando da Venezuela e dos problemas da vida em países estrangeiros.

Saíram do restaurante um pouco antes das três. Um vento frio soprava e havia algumas partículas de neve no ar. Era um dia apropriado para descansar ao lado da lareira e ela imaginou o que ele pretendia fazer em seguida.

— Vamos — disse ele, segurando-a pelo cotovelo. — Vou levá-la para casa. Tenho um encontro com um colega de trabalho às quatro.

Ruth tentou ignorar a sensação de vazio no estômago.

— Posso tomar um táxi, se preferir.

— Tenho tempo — respondeu ele com firmeza, conduzindo-a até onde o Mini estava estacionado.

O trânsito exigiu toda a atenção de Patrick e eles mal conversaram até o portão da casa de Ruth. Quando ele parou o carro, Ruth agradeceu delicadamente.

— Obrigada pelo almoço. Foi delicioso.

— Achou mesmo? — Seu sorriso era irónico. — Fico feliz. Tam-bém achei.

Ruth abriu a porta e saiu, esperando que ele fizesse o mesmo, o que não aconteceu.

— Até logo.

— Até logo.                  

Ele se inclinou para fechar a porta e, em seguida, partiu. Ela ainda avistou as luzes traseiras do carro quando chegou ao portão, desa-parecendo em seguida. Respirando fundo, abriu a porta e correu para o quarto, sem se deter. Alguns minutos mais tarde, quando ouviu uma batida na porta, Ruth estava com o rosto afundado travesseiro, chorando desconsoladamente.

A porta se abriu e o rosto bondoso da senhora Lawson apareceu.

— Senhorita Ruth? O que aconteceu?

— Nada — mentiu. — Por favor, senhora Lawson, me deixe sozinha...

Se a senhora Lawson informou ao pai de Ruth de que ela voltava do almoço bastante aborrecida, ele teve tato suficiente para não fazer comentários, o que a alegrou. Na hora do jantar, já estava mais calma e a última coisa que queria era relembrar o almoço.

Dedicou toda a noite ao pai, falando de vários assuntos a fim de afastar Patrick Hardy do pensamento. No fim do jantar o pai acendeu o cachimbo e perguntou:

— Que tal uma viagem aos Estados Unidos?

— Estados Unidos? Por quê?

— Don Hamilton me convidou para dar uma olhada na operação, lá. É uma grande organização, por isso será uma viagem longa. Gostaria de ir?

— Não sei. Quanto tempo ficaríamos fora?

— Três ou quatro meses. Talvez pudéssemos tirar umas férias no México, já que estamos lá perto. Você sempre quis visitar o México.

— Sim, acho que sim. — Ruth passou a língua pelos lábios. — Mas, três ou quatro meses! É tempo demais!

— Acha que vai se aborrecer porque teria de trabalhar todo o tempo? Que tal convidar Julie para fazer-lhe companhia?

— Julie?

Ruth estava atordoada e não conseguia evitá-lo. A idéia de deixar Londres no momento era completamente indesejada, embora recusar talvez fosse uma loucura.

— Posso pensar sobre o assunto? — perguntou, finalmente. — Não quero ser ingrata, mas o senhor sabe que não me importo de ficar aqui sozinha enquanto estiver fora.

— Sei disso, querida. E sei também que a senhora Lawson é perfeitamente capaz de cuidar de você, mas você me parece um pouco triste desde que voltou de Wiltshire. por isso pensei que a idéia de uma viagem seria bem-recebida.

— Estou perfeitamente bem. — Ruth levantou-se. — É o tempo, só isso.

— Bem, pense sobre o que lhe disse — acrescentou o pai, tirando uma longa baforada do cachimbo. — Há tempo de sobra, preciso partir somente daqui a dez dias.

Ruth pensou. Ficou noites acordada pensando sobre o que fazer. Fazia quase uma semana que almoçara com Patrick Hardy e cedo ou tarde, precisaria tomar uma decisão. Transmitira o convite a Julie, que ficou maravilhada. Mas, também ela, não queria ficar fora tantos meses, justamente agora que estava se envolvendo mais profundamente com Peter Forrester.

Então, certa tarde, quando a senhora Lawson estava fora fazendo compras e seu pai estava no escritório, soou a campainha. Quando Ruth atendeu, pensando tratar-se de um amigo do pai, encontrou Patrick Hardy diante da porta.

Imediatamente pensou na sua aparência, pois vestia jeans desbotados, uma malha antiga e usava o cabelo preso por um elástico.

— Olá! — disse ele, com a mesma voz atraente. — Posso entrar?

— Claro. — Ruth afastou-se e ficaram muito próximos no vestíbulo minúsculo, enquanto ela fechava a porta novamente. — Não quer subir?

Foi na frente, esperando que a parte traseira da calça não estivesse muito gasta. Tinha-a desde que estava na escola e sentia um certo apego sentimental por ela. Frequentemente seu pai lhe comprava roupas das quais não precisava, e quem acabava se beneficiando eram as sobrinhas da senhora Lawson, que ficavam com as roupas usadas. Mas recusava-se terminantemente a desfazer-se da calça e usava-a sempre. Na sala de estar, indicou-lhe uma cadeira.

— Não quer sentar?

Patrick não respondeu imediatamente. Observava-a com aparente interesse, até que perguntou:

— Estou interrompendo alguma coisa?

Ruth retirou o elástico do cabelo e balançou a cabeça.

— Nada importante — respondeu. — Quer um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

— Nada por enquanto, obrigado. — Patrick parou diante de uma pintura cubista. — É de Picasso?

— É uma cópia. Papai guarda o original em lugar seguro.

— Que desperdício! — Patrick sacudiu a cabeça.

— É uma pintura muito cara. A seguradora só faria o seguro se instalássemos um complicado sistema de alarme, e como papai não estava disposto. . . — Deu de ombros. — Como vai?

— Muito bem. —; Virou-se para ela. Vestia calça escura, malha de lã e um casaco de couro negro e parecia mais atraente que nunca. — E você?

— Também estou ótima. — Ruth procurou desesperadamente alguma coisa para dizer e acabou caindo no óbvio. — Tempo horrível, não? — Ele olhou para a janela.

— Acho que sim, mas me agrada.

Ruth concordou, dando um sorriso nervoso. Ele continuou:

— Deve estar imaginando por que estou aqui.

— Tem alguma razão especial?

— Claro. Ou pensa que não tinha o que fazer e vim apenas para passar o tempo?

— Podia ser.

— Mas não é. Telefonei hoje de manhã. Mas, como ninguém atendeu, resolvi vir sem avisar.

— A senhora Lawson e eu estávamos fazendo compras.

— Foi o que imaginei. — O tom era indiferente. Então ele suspirou. — Quer jantar comigo esta noite?

— Eu. . . eu... — A surpresa foi um choque.

— Sei que parece estranho, mas. . . bem, na verdade não pretendia vê-la novamente.

— Não? — Ruth tremeu.

— Não. Depois do último encontro ficou mais ou menos obvio

que nosso relacionamento não daria em nada.

— Por que não?

Patrick moveu os ombros com impaciência.

— Você. . . parecia esperar mais de mim do que eu podia oferecer — respondeu, e ela ficou vermelha como um pimentão.

— E... e agora?

— Acho que essas coisas não funcionam como a gente quer.

— O que quer dizer? — Ruth tremia. Ele olhou para ela com expressão sombria.

— Apenas que precisava vê-la novamente.

— Entendo. — Ela percebeu que sua respiração estava agitada como se tivesse subido vários lances de escada. Ele passou a mão pela gola do casaco.

— Tem todo o direito de recusar. Você deve ter uma vida social muito intensa e certamente não tem muito tempo a perder, mas mesmo assim gostaria que fosse jantar comigo.

Ruth virou-se. O que ele queria dizer? Apenas que se sentia atraído por ela; provavelmente, nem era emocionalmente. Havia diferentes níveis de atração, tanto física como mental. Por que ele viera perturbar sua já tão difícil luta por um pouco de paz de espírito?

Na verdade estava livre aquela noite. Desde que voltara de Wiltshire vinha recusando convites que normalmente teria aceito, de modo que estava levando uma vida comparativamente tranquila. Mas ele não sabia disso e poderia facilmente inventar uma desculpa para não ir jantar com ele. Mas era isso mesmo que queria? Virando-se para ele, disse:

— Tenho um compromisso esta noite. — Imediatamente sentiu pena da expressão de desapontamento que se espalhou pelo rosto dele. Sentiu vontade de desmentir e concordar com tudo que ele pedisse, mas precisava ser sensata!

— Devia ter adivinhado — disse ele, com voz apagada.

— Estarei livre amanhã à noite. Por que não vem até aqui e janta com papai e comigo?

— Ele não se opõe?

— Céus, claro que não! Estou certa de que ele gostará de conhecê-lo.

— Está bem. Obrigado. A que hora devo vir?

— Lá pelas sete e meia. Geralmente jantamos às oito. Podemos tomar alguma coisa antes.

— Ótimo. — Dirigiu-se para a porta. — É melhor que vá embora e deixe você continuar o que estava fazendo.

Ruth tentou sorrir. Não queria que ele se fosse. Sentiu um desejo louco de correr até ele, abraçá-lo e pedir que ficasse. Jamais experimentara tal explosão de sentimentos antes e sentiu que corava.

Depois que ele saiu, ela perdeu totalmente o controle de suas ações. Derrubou vários objetos na escrivaninha e não conseguia concentrar-se. Então decidiu entregar-se à deliciosa sensação de apenas pensar nele. ..

O senhor Farrell não ficou surpreso quando a filha lhe disse que teriam um convidado no dia seguinte. Ruth frequentemente trazia amigos para jantar, e ele era a espécie de homem que encorajava essa sociabilidade e geralmente fazia sucesso entre os amigos. Joe ficou ainda mais interessado quando ela explicou como conhecera Patrick e falou sobre seu recente regresso da América do Sul.

— Um primo do pai de Julie — comentou enquanto tomavam licor. — Então é bem mais velho que você.

— Deve ter uns trinta e cinco anos — disse Ruth, com calculada indiferença. — Por quê?

— É mais velho que os rapazes com quem sai geralmente. — O pai parecia pensativo. — Ruth, o que significa esse homem para você?

Ruth procurou demonstrar um profundo interesse pelas próprias unhas.

— Eu.. . nada — mentiu. — E não precisa pensar que ele está interessado em mím, porque não está. Somos apenas amigos. Ele é alérgico a envolvimentos emocionais.

— Como sabe disso? — Joe Farrell parecia intrigado.

— Ele me disse — respondeu Ruth com sinceridade.

— Disse isso? — O pai sorria. — Parece um sujeito interessante. Estou ansioso para conhecê-lo.

De fato, seu pai e Patrick deram-se muito bem desde o princípio. Eram parecidos em muitos aspectos, percebeu Ruth durante o jantar. Ambos capazes de tratar as pessoas como seres humanos, ambos profundamente interessados em suas profissões.

Ruth vestia uma túnica negra presa à cintura por uma faixa larga e usava o cabelo preso num coque, com algumas pequenas mechas encaracoladas soltas sobre o rosto.

Mas, a não ser por um primeiro olhar de admiração de Patrick, Ruth percebeu que não precisava ter se preocupado em caprichar na aparência. Desde o momento em que os dois homens começaram a conversar, sentiu-se uma intrusa e não fez nada além de rodar pela sala servindo bebidas, invadida por um sentimento de solidão e isolamento.

Só quando a noite já ia adiantada é que pareceram se lembrar da presença dela e Patrick pediu desculpas por tê-la negligenciado.

— Incrível! — exclamou o senhor Farrei! com entusiasmo. — Foi uma noite, agradabilíssima. Precisamos nos encontrar novamente quando eu voltar dos Estados Unidos.

— Vai para os Estados Unidos? — Patrick demonstrou grande surpresa.

— Sim. Partimos na próxima terça. Ruth não lhe disse? Não? Bem, talvez ela não vá. Ainda não decidiu. Pretendemos ficar fora durante dois ou três meses.

— Nesse caso, acho que não nos veremos mais — disse Patrick com expressão contrariada. — Volto para a Venezuela em menos de seis semanas.

— Que pena! — O pai de Ruth sacudiu a cabeça. — Não importa, visite-nos da próxima vez que vier à Inglaterra.

— Daqui a cinco anos — murmurou Ruth aborrecida, incapaz de ocultar sua tristeza.

— Faz tanto tempo que partiu? — exclamou o pai, admirado. — Deve gostar de lá.

— Eu gosto. — Patrick olhou para o relógio. Passava bastante das onze. — Preciso ir. Obrigado por esta noite muito agradável.

— O prazer foi todo nosso. — Joe Farrell levantou-se e sorriu calorosamente. — Leva Patrick até a porta, Ruth? — Os dois homens começaram a tratar-se pelo primeiro nome desde o início, mas Ruth ainda o chamava de senhor Hardy.

— Claro.

Lá embaixo, antes que ela abrisse a porta, ele fechou o casaco e

levantou a gola.

— Foi uma noite excelente — disse, observando-a intensamente.

— Eu me diverti muito.

— Que bom! — Ruth mostrou-se forçadamente indiferente.

— Você não se divertiu, não é?

— Isto tem importância? — Ruth desejou que ele saísse logo. Estava começando a sentir-se absurdamente emotiva de novo.

— Para mim, sim — continuou Patrick. Suspirou. — Vai para os Estados Unidos com seu pai?

— Não sei. Como ele disse, ainda não decidi.

— Gostaria que não fosse. — Os olhos dele de repente ficaram sombrios.

— Gostaria? — Ruth tremeu.

— Sim. — Ele olhou para cima com impaciência, como se o pai dela pudesse ouvir cada palavra da conversa. — Este fim de semana vou para o Norte visitar alguns parentes e só volto terça. Se você viajar, não nos veremos mais.

— Isto também tem importância? — Ruth sentiu uma dor no

coração.

O rosto dele se contraiu por um instante. Depois, sem uma palavra,

abriu a porta.

— Boa noite! — murmurou quando entrava no Mini.

 

O pai de Ruth partiu para Nova Iorque na terça de manhã, acompanhado apenas por seu assistente.

Ruth acompanhou-o até o aeroporto e sentiu um aperto no coração ao ver o enorme avião decolar, pois não veria seu pai ao menos durante dois meses. Consolou-se pensando que havia telefones e que ele não desprezava esse meio de comunicação.

O almoço foi muito solitário e ela chegou a pensar que tinha sido uma tola em não viajar também. Por que insistira em ficar? Quem mais teria recusado uma viagem de costa a costa dos Estados Unidos apenas por causa de um homem que praticamente no primeiro encon-tro tinha declarado que não queria envolvimentos emocionais? Além disso, depois da maneira como se despediram da última vez, quem garantia que entrariam em contato novamente?

O telefone não tocou durante o jantar e Ruth vagou sem rumo pela casa, chegando a irritar a senhora Lawson.

— O avião deve estar pousando agora, senhorita — exclamou a governanta, exasperada, quando Ruth entrou pela terceira vez na cozinha. Ela percebeu então, com uma sensação de culpa, que a senhora Lawson pensava que estava preocupada com o pai.

Voltando à sa!a, ficou parada diante do telefone.

Se ao menos ele telefonasse, pensou desesperada. Por que não telefonava? Será que não tinha vontade de saber se ela viajara?

Depois de fazer um tremendo esforço para comer um pouco da comida que a senhora Lawson lhe preparara, Ruth avisou a governanta de que ia sair um pouco.

— Vai sair, senhorita? — A senhora Lawson estava parada na porta, com uma bandeja cheia de pratos sujos. — O que vou dizer a seu pai se ele telefonar?

— É mesmo! — Ruth mordeu os lábios. Esquecera que o pai às vezes telefonava quando estava viajando. — Talvez ele não tetefone esta noite. Mas, se telefonar, diga que fui visitar uma amiga, por favor. Acho que não vai se importar.

— Sim, senhorita. — A expressão da senhora Lawson era de desaprovação. — Vai voltar tarde? Preciso esperar acordada?

— Acho que não chegarei tarde, mas não precisa me esperar, senhora Lawson. Não se preocupe comigo, eu mesma preparo qualquer coisa quando voltar.

— Sim, senhorita. — A senhora Lawson ficou observando, enquanto Ruth se levantava com movimentos graciosos, caminhava até o espelho colocado sobre a lareira e examinava criticamente a própria imagem. Então, fez um gesto de impotência e saiu.

Quando ela se foi, Ruth afastou-se do espelho e suspirou. Dizer despreocupadamente à senhora Lawson que ia visitar uma amiga era uma coisa; outra bem diferente era colocar em prática o que estava planejando.

Patrick tinha dito que vivia em Queen Anne Gardens, mas isso era tudo o que sabia. Certamente havia uma infinidade de prédios de apartamentos em Queen Anne Gardens e, nesse caso, o que faria? Não podia perguntar de porta em porta se conheciam um certo senhor

Hardy, recentemente chegado da Venezuela. Seria ridículo. Não era tola e nem queria chamar atenção sobre si.

Olhou para a própria roupa. Tinha que servir, não queria provocar ainda mais a curiosidade da senhora Lawson, trocando-a por outra mais elegante. Além disso, a calça verde e o colete de couro combinavam muito bem com a blusa vermelha que estava usando; o casaco de pele completaria o traje.

Estava nevando um pouco quando tirou o Mini da garagem e fazia um frio cortante. Ruth parou um instante para pensar no ato irresponsável que estava praticando. O que será que a estaria levando a procurá-lo? O que faria se batesse no apartamento dele e fosse recebida por outra mulher?

imediatamente tratou de reprimir tais pensamentos. Enfrentaria os problemas quando eles surgissem e não antes. E, depois, podia inventar uma desculpa qualquer, talvez um recado para o pai de Julie. Podia dizer que tinha tentado entrar em contato com ele, mas os telefones estavam mudos. Era incrível como a imaginação conseguia criar justificativas para determinadas ações. É claro que precisaria telefonar a Julie depois e pedir-lhe que confirmasse a historia, mas quanto a isso não haveria problemas.

Às nove horas da noite, mesmo com tempo ruim, o trânsito era intenso, e Ruth precisou atravessar vários cruzamentos difíceis para chegar até Marylebone Road. Encontrar Queen Anne Gardens foi questão de minutos.

O Mini derrapou perigosamente quando deu sinal para à esquerda e virou na Bassett Street, mas logo em seguida encontrou a rua procurada. Era um beco sem saída e ela olhou em volta com

curiosidade.

Para seu alivio, havia apenas dois blocos de apartamentos. Um à direita, outro à esquerda; a área restante era ocupada por um gramado e algumas árvores, o que possivelmente dera origem ao nome da rua,

e garagens.

Fechou o carro e se dirigiu ao prédio mais próximo. Respirou fundo antes de   subir os degraus   que   levavam   à   entrada   do enorme arranha-céu.

Como esperava, havia um porteiro noturno, que veio atender a porta com relutância.

— O que deseja, senhorita? — perguntou com voz carregada. —

Está procurando alguém?

— Sim, o senhor Hardy — explicou, um pouco constrangida.

— Ele. . . ele. . . alugou um apartamento há mais ou menos uma semana. Por acaso o conhece?

O porteiro tirou o chapéu e coçou a cabeça.

— Hardy? — Sacudiu a cabeça. — Neste edifício?

— Sim, acho que sim.

O homem fez um esforço de memória.

— Inglês, senhorita, ou estrangeiro?

— Inglês. — Esclareceu e, em seguida, acrescentou: — Mas é bem moreno. Passou cinco anos na Venezuela.

O porteiro olhou para ela fixamente e seus olhos se iluminaram.

— Venezuela! — repetiu pensativo. Esfregou o queixo. — Sim, acho que estou me lembrando. Espere um minuto.

Voltou ã portaria e remexeu nas gavetas da sua mesa. — Voltou carregando um papel.

— Achei — disse ele. — Senhor James Patrick Hardy? As unhas de Ruth cravaram-se na palma da mão.

— Sim — respondeu, com ar indiferente. — É ele mesmo.

— Apartamento quarenta e três, quarto andar — explicou o porteiro. — O elevador é ali.

— Obrigada. — Ruth estava excitada. Colocou uma nota nas mãos do homem, que olhou para ela surpreso.

— Mas. . . bem, obrigado, senhorita.

— De nada. — Ruth fez um aceno de despedida com a mão e caminhou rapidamente em direção aos elevadores.

O elevador estava frio e úmido. Obviamente ninguém ouvira falar de elevadores aquecidos por ali. O corredor do quarto andar também estava frio e escuro, e não se parecia nem um pouco com os corredores acarpetados dos apartamentos dos seus amigos.

Contraindo-se por causa do frio, caminhou examinando os números dos apartamentos. Quarenta e um, quarenta e dois, quarenta e três. . . era aquele! Sem parar para pensar, estendeu a mão e tocou a campainha. Sabia que se tivesse parado um pouco para analisar a situação teria feito meia volta e regressado ao carro sem olhar para trás.

Como não ouviu nenhum ruído lá dentro, começou a pensar que não havia ninguém. Essa suposição lhe deu coragem para tocar a campainha de novo, só que desta vez escutou alguns ruídos por trás da porta, que se abriu em seguida. Patrick em pessoa atendeu.

Alto e esbelto, vestindo uma camisa imaculadamente branca, ficou imóvel durante um instante, sem entender o que estava acontecendo. A camisa estava aberta quase até a cintura, deixando à mostra o peito coberto de pêlos encaracolados. Evidentemente não esperava visitas e Ruth sentiu a boca seca.

— Boa noite — disse ela, com voz quase inaudível. Ele passou a mão pelo cabelo, sacudindo a cabeça.

— O que está fazendo aqui? Como descobriu onde moro? — Sua voz revelava uma leve impaciência.

Ruth olhou por cima do ombro dele para dentro do apartamento.

— Não vai me convidar para entrar? Assim posso dizer o que acho do seu apartamento.

Durante um instante pensou que Patrick fosse recusar. Mas ele pensou melhor, afastou-se um pouco e fez sinal para que Ruth entrasse. Depois, fechou a porta novamente.

Conduziu-a até uma sala ampla e iluminada, que se não era tão elegante quanto a casa de Ruth ao menos era bem mais atraente que o corredor. E bem aquecida, também, e perfumada pelo cheiro agradável de ervas e tabaco. A porta da cozinha estava aberta e de lá vinha um cheiro gostoso de comida.

Patrick não lhe disse que sentasse, mas pediu que desculpasse um minuto enquanto dava uma olhada na comida que estava preparando. Durante o tempo em que esteve ausente, Ruth observou a sala, notando os papéis espalhados sobre a mesa baixa, a confusão de revistas e jornais que cobriam parte do sofá e um copo sujo que enfeitava o televisor desligado.

Patrick voltou abotoando a camisa e enrolando as mangas. Ruth sentiu vontade de dizer a ele que não se preocupasse, que gostava dele como estava, mas não teve coragem. Em vez disso, forçou um sorriso e disse:

— Meu pai foi para os Estados Unidos esta manhã.

— Foi? — Patrick não parecia nem um pouco interessado.

— Sim. — Ruth tentou esconder sua decepção. — Seu apartamento é muito simpático. Teve sorte. . .

— Por que veio aqui? — Sua voz firme interrompeu-a. Apanhada de surpresa, ela não teve a presença de espírito de

mentir.

— Pensei que fosse me telefonar para saber se tinha viajado!

— Por que deveria telefonar?

Detestava a frieza da expressão dele, a sensação que provocava nela de ser uma intrusa aproveitando-se de um conhecimento superficial para invadir a intimidade de seu apartamento.

— Tem coragem de me perguntar isso?

Ele inclinou a cabeça, colocando a mão na nuca.

— Olhe, Ruth, desculpe se...

— Não me lembro de ter lhe dado permissão para me chamar de Ruth! — explodiu, com voz tremula. — E acho que já disse o suficiente.

Girando nos calcanhares, deu um passo em direção à porta. Mas ele segurou-a por trás, pelos ombros, e puxou-a junto de si.

Foi uma ação impensada, porém precisava impedi-la de sair e tentar explicar. Mas não estava preparado para o toque de seda daqueles cabelos que roçaram em seu rosto, nem para a suave fraqueza, do corpo que se desequilibrou e caiu contra o dele, despertando sua masculinidade com aquele contato perturbador. Deixou que as mãos descessem pelo corpo dela até a cintura e, com um gemido, beijou a pele clara do pescoço delicado.

Ruth, consciente apenas de sua raiva e sem imaginar o que estava provocando nele, sentiu a exploração possessiva daquelas mãos num estado de perplexidade, e então o contato dos lábios dele em seu pescoço apagou todos os pensamentos coerentes da sua mente. Entregou-se complelamente quando Patrick girou-a nos braços e fechou seus lábios com um beijo.

Já havia sido beijada antes, muitas vezes e de várias maneiras, pois em seu círculo de amizades isso não tinha muita importância. Costumava beijar os amigos ao chegar e ao partir estava habituada a que os rapazes tentassem obter dela reações mais intensas, sem resultado. Algumas vezes preocupava-se por não sentir desejo de aceitar carícias mais íntimas dos homens com quem se relacionava, mas tinha chegado à conclusão de que não era desse tipo de mulher. Era fria, não exatamente frígida, mas fria.

Agora percebia como estava enganada. Quando Patrick a beijou, quando sentiu cada músculo do seu corpo, percebeu que isso ainda não era suficiente. Desejou estar mais próxima, muito mais próxima. Desejou sentir novamente os lábios dele, abraçá-lo e não deixá-lo mais partir...

Mas esse contato não podia prosseguir indefinidamente e foi Patrick e não ela quem tomou consciência disso. Respirou fundo, retirou os braços dela de seu pescoço e afastou-a um pouco asperamente.

Sentindo-se rejeitada e ferida, Ruth olhou para ele. Patrick sacudiu a cabeça, murmurando selvagemente:

— Pelo amor de Deus, Ruth, não me olhe assim ou não me responsabilizo por minhas ações.

Essas palavras fizeram com que o sangue colorisse as faces já quentes de Ruth. Ele precisou afastá-la, não porque quisesse, mas porque precisava.

— Patrick. . . as costas.

— Pelo amor de Deus, Ruth, não diga nada! Por favor, não diga nada!

Ruth olhou para seu casaco, que havia desabotoado quando chegara. Com os dedos trêmulos tentou abotoá-lo de novo, mas simplesmente não conseguia encontrar as casas. Soltou um muxoxo de irritação, que o fez virar-se, revelando o tormento que agitava o rosto fino e inteligente.

— Ruth! — murmurou, aproximando-se dela e impedindo-a de continuar a luta com os botões. Durante um momento observou o rosto perturbado da moça. Em seguida, estendeu as mãos e tirou o casaco de pele dos ombros dela, deixando que caísse no chão. Continuou ali, parado, percorrendo com os olhos toda a extensão daquele corpo bem-feito, sem esconder sua admiração.

— Não devia ter vindo, Ruth — disse, por fim.

— Por quê? — ela murmurou, com os lábios trêmulos.

— Porque. . . porque isso não podia ter acontecido. — respondeu

rispidamente.

— Você me pediu para não ir para os Estados Unidos.

— Sei disso. — Ele fechou os pulsos. — Foi um erro! Ruth sentiu uma dor no coração.

— Por quê? Por que? — perguntou, desesperada.

— Porque eu não tinha o direito de lhe pedir tal coisa.

— Isto sou eu quem decide — exclamou ela.

— Não. Sou eu. — Ele sacudiu a cabeça, desconsoladamente. — Sabia.. . soube no instante em que a vi que não devia me envolver com você.

— Entendo. — Ela quase desfaleceu.

Os olhos cor de aço de Patrick fixaram-na com intensidade. Então estendeu os braços e colocou as mãos nos ombros dela.

— Não — disse rispidamente. — Não entende.

— É melhor eu ir.

— Não quero que vá — murmurou com irritação. — É isso que você não entende. — Seus dedos moviam-se ritmicamente no pescoço dela. — Quero que fique.. . quero fazer amor com você. — Sacudiu a cabeça. — Não uma maneira fria e destrutiva de amor, mas amor real. Quero realmente amar você.

Ruth tremia tanto que mal conseguia falar.

— Patrick. . . — respirou fundo e tentou aproximar-se mais, mas as mãos dele a impediram, contraindo-se cruelmente.

— Não — disse em tom duro. — Não.

— Não entendo.. .

Ruth sentiu que seu corpo flutuava no espaço, subindo e descendo num tumulto de emoções. Como é que ele podia ficar ali parado, a dizer que a desejava, seduzindo-a com palavras perturbadoras, e depois afirmar simplesmente que não tinha intenção de realizar esses desejos, que eram dela também?

— Patrick — insistiu docemente. — Por que fala assim?

Os lábios dele se contraíram.

— Entendo que em seu mundo minha conduta e minhas idéias podem parecer fora de moda, mas é por essas regras que dirijo minha vida.

— O que quer dizer?

— Que não faço amor com uma mulher apenas porque ela me convida.

Ruth quase engasgou e levou a mão à boca.

— Que tolice!

— Não, não é. É a verdade. Ruth, estando consciente disso ou não, e é difícil para mim acreditar que não, está me convidando a fazer amor com você. Não diretamente, é claro, mas existem muitas maneiras.

Ruth estava horrorizada. Será que ele pensava que ela estava acostumada a essa espécie de corportamento?

— Você está enganado.. .

— Não. Quem está é você — a voz dele era fria. — Desejo você, admito isso. Saiba que nunca desejei outra como a você, embora seja muito mais nova que eu. Mas... — contraiu as sobrancelhas escuras —, como lhe disse em Wiltshire, não tenho intenção de me casar, de levar uma mulher comigo para a Venezuela. Não quero ligações emocionais, e alguma coisa me diz que qualquer relacionamento entre nós seria emocional, pelo menos de sua parte, e não posso assumir esse risco.

— Seu porco. — Gritou quase em lágrimas.

— Pensa mesmo assim? — Ele deu de ombros e soltou-a. — Talvez seja melhor para você pensar assim do que se arrepender.

Ruth inclinou-se e pegou o casaco do chão. Sentia-se humilhada e queria afastar-se daqueles olhos penetrantes. Jogando o casaco sobre as costas, caminhou para a porta, mas a voz dele fez com que parasse.

— Suponho que vá tomar o primeiro avião para Nova Iorque — disse.

Vestindo o casaco, ela sacudiu os ombros com indiferença.

— Acho que não — respondeu friamente. — Apesar de tudo, você não é a única razão pela qual fiquei em Londres.

Ele que interprete isso como quiser, pensou ela com um sentimento de tristeza, enquanto fechava a porta atrás de si.

No íntimo, desejava que ele a seguisse, mas ficou desapontada quando ouviu apenas o eco de seus próprios passos no corredor vazio.

Julie veio passar a sexta-feira e o sábado na casa da amiga. Aguardava com ansidedade uma proposta de Peter e falou com entusiasmo sobre os lugares onde foram e o que fizeram. Não demorou muito a notar a palidez de Ruth e seu silêncio.

— Alguma coisa errada? — perguntou, passando os dedos pelas olheiras de Ruth. — Parece cansada. Não tem dormido bem?

Ruth tentou desconversar, mas Julie não se deixou convencer. Eram amigas há muito tempo e conheciam-se muito bem.

— Não é por causa de algum homem, é? — perguntou, desconfiada. — Nunca vi você assim antes, Ruth. Nunca a vi demonstrar um interesse especial por algum homem.

A frustração de Ruth revelou-se num suspiro..

— Minha querida Julie, só porque está apaixonada por Peter Forrester e não pode conceber a vida sem ele, não imagine que minha aparência cansada possa ter outras causas além do fato de ter ido dormir tarde algumas noites.

— Ruth, quando você começa a falar assim sei que existe algum

problema. Quem é? Eu o conheço?

— Julie, por favor.. . — Era difícil manter-se nessa posição falsa. Sentia-se emocionalmente abalada desde aquela noite no apartamento de Patrick, mas tinha decidido resistir e não se deixar derrubar por ele.

— Ruth! — Julie demonstrava compreensão. — Pode me dizer. Precisa dizer a alguém. Seja o que for, está acabando com você.

Ruth deixou-se cair sobre uma cadeira, puxando nervosamente os fios da saia bordada que estava usando. A tentação de contar tudo a Julie era grande, mas poderia esperar compreensão da amiga que a ' tinha prevenido contra um envolvimento com Patrick? Como teria adivinhado? Será que possuía um sexto sentido, uma capacidade de percepção extra-sensorial que lhe permitia ver coisas que ela própria não via? Sem erguer o rosto, disse:

— Está bem, Julie. Existe um homem, mas isso é tudo que posso

lhe dizer.

— Por quê? — Julie inclinou-se para a frente e tocou a mão da amiga. — Querida, por que um homem a deixaria nesse estado? — Inclinou a cabeça para o lado. — Sempre pensei que você fosse capaz de se sair bem de qualquer situação.

— Bem, ao que parece, não sou — comentou Ruth, com voz fraca. Houve silêncio durante alguns minutos; depois Ruth ergueu a cabeça

e encontrou o olhar penetrante de Julie.

— Ruth. — exclamou ela. — Tive um pensamento horrível! Não é Patrick, é?

Ruth controlou-se o quanto pôde,

— Patrick? Que Patrick?

— Ruth, você sabe que Patrick. . . — Fez um gesto de resignação. — Meu Deus, é Patrick, não é?

— E se for? — Ruth deu de ombros com indiferença.

— É ou não é?

45lia

— Já que insiste, é. Sim, é ele. — Ruth levantou-se de repente começou a caminhar pela sala. — Queria contar a você, mas tive medo que me dissesse: "Não lhe disse?" Por favor, não diga isso, acho

que não suportaria.

— É claro que não vou dizer, mas... — Julie estendeu as mãos.

— Por Deus, como aconteceu? Onde se encontraram?        

— Várias vezes. — A voz de Ruth era insegura. — Ele... ele me telefonou. Depois que mudou para o apartamento.

— Patrick telefonou para você? — Julie estava surpresa. — E o que disse?

— Convidou-me para almoçar.

— E você foi?

— Claro, por que não?

— Mas pensei... isto é, naquela noite em que saímos os quatro juntos você agiu como se não gostasse muito dele.

— Tinha minhas razões. — Ruth deu de ombros.

— Está bem. Então almoçaram juntos. E depois?

— Depois nada. . . pelo menos por algum tempo. Alguns dias depois ele veio aqui em casa.

— Não parece Patrick. Nunca o vi correr atrás de uma mulher.

— E como poderia, Julie? Você ainda era uma criança quando ele

veio à Inglaterra pela ultima vez.

— Tinha dezessete anos. — exclamou Julie, indignada. — Idade suficiente para perceber uma coisa dessas. Houve uma prima de ma-

mãe...

— Ele me falou isso — interrompeu Ruth.

— Patrick lhe disse?

— Disse.

— Mas por quê?

— Por razões óbvias. — Ruth engoliu com dificuldade. Parecia haver uma bola na sua garganta. — Deixou claro como cristal que não tem intenção de se casar com ninguém.

— Pobre Ruth! — O rosto de Julie refletia seu desgosto.

Ruth tentou sorrir.

— Sim. Boa idéia a dele, não acha?

— Mas por que veio à sua casa?

— Convidou-me para jantar. Menti, dizendo que não podia, que já tinha outro compromisso. Mas perguntei se queria vir jantar com papai e comigo no dia seguinte.

— E ele veio?

— Veio. Ele e papai deram-se maravilhosamente bem, provavelmente porque os dois têm apenas um objetivo na vida — acrescentou com amargura.

— Vocês se encontraram depois disso?

— Fui ao apartamento dele na terça à noite. No dia em que meu pai viajou para os Estados Unidos.

— Não! — Julie estava chocada.

— Sim, fui. Pensei que ele fosse ligar para saber se eu tinha viajado ou não, mas não telefonou.

— Então foi por isso que não quis ir? Por que queria vê-lo de novo? Oh, Ruth, devia ter ido com seu pai! Logo esqueceria Patrick, com

as emoções da viagem!

— E se fosse você? Teria esquecido Peter?

— Não. Mas é diferente.

— Diferente por quê?

— Peter e eu nos amamos.

— Pois lamento dizer que também amo Patrick — disse Ruth,

com voz quase inaudível.

— Como é possível? — Julie balançou a cabeça, com impaciência. — Mal o conhece! Encontraram-se apenas algumas vezes. Parece que que gosta de sua companhia, caso contrário não a teria procurado, mas.. . estar apaixonada por ele... não confunda amizade com outro

sentimento.

— Sei disso — retrucou Ruth, com convicção.

— Quer dizer que.. . não me diga que quando foi ao apartamento

dele.. .

— Perdi minha virgindade? — perguntou Ruth com sarcasmo forçado. — Não, nada disso. Mas por outro lado nosso relacionamento

não foi exatamante de amigos.

— Ruth, avisei você... — A expressão de Julie era solene.

— Prometeu que não diria isso!

— Sei que prometi, mas.. . Ruth, o que deu em você para se envolver com um homem como ele? É muito mais velho e já viveu muito mais. Não quero dizer que seja um conquistador, mas é muito mais experiente que você.

— Ele não pensa assim.

— Por que diz isso?

— Pelo que disse sobre a sociedade onde vivo. Tenho certeza de que me considera muito experiente e avançada em matéria de sexo.

— Ruth! — Julie levantou-se. — Que situação! Não percebe os riscos a que está exposta se ele pensa realmente assim? E se ele resolver... — Fez uma pausa constrangida. — Você sabe o que quero dizer.

— Gostaria que ele resolvesse! — exclamou Ruth com sinceridade.

Julie quase perdeu a fala.

— Não está falando sério!

— Julie. Você não sabe como me senti! — Com grande esforço conseguiu controlar as lágrimas quentes que lhe enchiam os olhos. — Eu o amo. Eu o amo e dentro de quatro ou cinco semanas ele vai voltar para a Venezuela e Deus sabe lá se nos veremos novamente!

Incapaz de controlar-se por mais tempo, Ruth escondeu o rosto nas mãos e deixou que as lágrimas corressem livremente. Julie abraçou-a e deixou que chorasse a vontade.

Depois de algum tempo, afastou-a com determinação e disse:

— Vamos, Ruth! Não adianta ficar assim. Cedo ou tarde isso tinha de acontecer.

— O quê? — Ruth olhou para ela através de uma nuvem de lágri-

mas.

— Cedo ou tarde você seria ferida. Você é tão inocente às vezes! Tive medo disso desde o começo. Sempre fez o que lhe dava na cabeça. As pessoas sempre fizeram tudo por você. Era inevitável que um dia encontrasse alguém que fosse uma exceção. É uma pena que dê mais valor a Patrick que aos outros.

— Não é isso, Julie — disse Ruth enxugando os olhos. — Ele é diferente. Percebi isso assim que o vi. Só que naquele dia eu não admitiria.

— E o que vai acontecer agora? — Julie era prática. — O que   ele sente por você?

— Não sei.

— O que quer dizer com isso?

— Quer dizer que não sei. Eu... o atraio, quanto a isso não há dúvida. Fisicamente, pelo menos.

— Quer dizer que ele tocou em você — perguntou Julie seca- mente.

— Sim. — Ruth relutava em discutir esse aspecto do relaciona- mento deles. — Ele me pediu que não fosse para os Estados Unidos.

— Quando? — Os olhos de Julie arregalaram-se.

— Na noite em que jantou aqui em casa. Disse que se eu viajasse não poderíamos nos ver novamente.

Julie levantou-se e começou a andar pela sala, esfregando as mãos nervosamente.

— Estranho comportamento, o dele.

— Também achei. Por isso fui a seu apartamento.

— E o que aconteceu? — Julie suspirou. — Pareço uma bisbilho-teira, mas é que me preocupo com você. Ficou contente em vê-la?

— Nem um pouco. Na verdade ficou furioso. E logo vim embora.

— E não o viu mais?

— Não.

Julie deixou-se cair na cadeira outra vez.

— Gostaria de poder fazer alguma coisa. — Fez uma pausa. — Quer que peça a mamãe para convidá-lo para um fim de semana?

— Não! Não quero vê-lo novamente.

— Mas não pode continuar como está —- protestou Julie. — Vai ficar doente, Ruth!

— Talvez lambem viaje para o exterior. O sul da França é muito agradável nesta época do ano.

— Faz muito frio — comentou Julie, com um calafrio.

— Assim mesmo é agradável — insistiu Ruth, esfregando o rosto com as mãos. — Não vamos mais falar de mim. Fale-me de você. Quando vão ficar noivos? E onde pensam morar depois de casados?

Para seu alívio, Julie concordou em mudar de assunto. Depois do jantar ouviram discos e falaram sobre velhos amigos.

Só quando estava sozinha no quarto é que Ruth desabafou toda sua dor, molhando o travesseiro antes de cair num sono agitado...

 

Julie voltou para Wiltshire no sábado, depois de fazer algumas compras. Ela e Peter tinham uma festa no domingo e precisavam de roupas para a ocasião. Embora Ruth não estivesse muito disposta a peregrinar pelas lojas com a amiga, fez um esforço e acompanhou-a até uma butique da Oxford Street.

Quando entrou no carro para voltar para casa, Julie parecia ansiosa.

— Querida, cuide-se bem. Procure o doutor Phil Corcoran, ele lhe dará algum remédio para dormir. — Philip Corcoran era um especialista amigo do pai de Ruth.

— Não se preocupe comigo — protestou Ruth, procurando demonstrar força. — Estou muito bem.

Julie não parecia convencida, mas não podia fazer mais nada.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Michael Freeman telefonou. Tinha ligado várias vezes desde o fim de semana em Wiltshire, mas Ruth sempre dava uma desculpa para não sair com ele. Agora queria convidá-la para uma festa, e, embora não se sentisse muito inclinada a aceitar, a idéia de passar a noite de sábado sozinha não era muito atraente. A senhora Lawson tinha ido passar o dia com uma irmã em Edgware e só voltaria no domingo de manhã, por isso a casa parecia muito vazia.

Concordou em sair com Michael e passou algum tempo decidindo o que vestir. Por fim resolveu usar um conjunto de calça branca e blusa preta de croché, curta, presa logo abaixo do busto. Era a roupa ideal para uma festa, mas isso não a entusiasmava muito.

Michael, por outro lado, estava satisfeitíssimo.

— Estava começando a pensar que estava com alguma doença contagiosa — comentou, olhando-a com admiração. — Acho que há outro em sua vida.

— Não seja bobo, Mike — exclamou, com impaciência. — Vamos embora. Onde é essa festa?

A festa era na casa de duas amigas de infância de Mike. Havia muito barulho, quantidades enormes de comida e bebidas e música agitada. Tinham sido instaladas luzes psicodélicas e não faltavam can-tinhos escuros para os casais apaixonados. Ruth evitou os tais cantinhos pois não estava interessada em conversas românticas e dançou até sentir o corpo moído. Com certeza dormiria bem depois de todo esse exercício.

A seu pedido, Michael levou-a para casa logo depois da uma hora. Ele tentou protestar, dizendo que ainda era cedo, mas Ruth foi inflexível. Quando parou o carro diante da casa dela, mostrou intenção de passar algum tempo conversando.

— Não, Mike — disse, quando ele tentou beijá-la. — Esta noite não. Estou cansada.

— Ruth, não a vejo há semanas! Não seja indelicada!

— Não estou sendo indelicada, Mike. Só não gosto que me forcem, Ela abriu a porta e saiu, mas ele não tentou impedir.

— Posso vê-la um outro dia? — perguntou.

— Claro. — Ruth esforçou-se para sorrir e esperou que o carro dele desaparecesse antes de entrar.

Inclinando a cabeça, começou a remexer a bolsa à procura da chave. De repente achou o jardim muito escuro e silencioso e arrependeu-se de não ter entrado antes que Mike partisse. Mas teria sido difícil descartar-se dele se ele percebesse que estava sozinha em casa.

Deu as costas para a casa e, nesse instante, uma sombra escura surgiu do meio das árvores. Conteve um grito quando percebeu que era Patrick. Olhou-o como se não acreditasse nos próprios olhos e perguntou, num sussurro:

— O que está fazendo aqui?

— Boa pergunta! — A voz de Patrick era fria. — Onde esteve?

— Não é da sua conta! — A indignação superou a fraqueza

— Não concordo. — Estava bem perto dela agora. — O que está fazendo? — Percebeu seus dedos trêmulos mexendo na bolsa.

— Procurando minha chave — respondeu. — Já achei.

Antes que ela tivesse tempo de protestar ele tomou-lhe a chave da   mão, abriu a porta e entrou na frente para acender a luz.

— Vai ficar aí fora?

— Não tem o direito de entrar em minha casa sem permissão — exclamou com raiva, sem vontade de entrar.

— Por quê? Por que está sozinha? — Ele fechou a porta com decisão — Desculpe, mas está frio demais para continuar a conversa ao

ar livre! Ruth notou uma palidez pouco comum nele e sombras escuras ao

redor de seus olhos. — Como sabe que estou sozinha?

— Nem o diabo continuaria dormindo com as pancadas que dei nessa porta — respondeu com bom humor. — Vamos subir?

— Se faz questão... Ruth fez um gesto de impotência.

Não ousava tentar explicar a presença dele ali a essa hora da noite. Por que ele sentia tanto frio? Será que estava esperando há muito tempo?

A sala de espera representava o retorno à normalidade, mas ela hesitou em tirar a capa, pensando na barriga descoberta. Ele ficou parado na porta, observando a sala acolhedora e bem iluminada, Através de seu casaco aberto via-se a calça escura e a camisa de gola role.

— Tem alguma coisa para beber? — perguntou. Ruth colocou a capa sobre uma cadeira.

— Claro. Uísque, licor ou café?

— Uísque está bem. — O tom de sua voz era irónico. — Não quero lhe dar o trabalho de preparar café.

— Sei fazer café, se é isso que está insinuando — exclamou, indignada.

— Sabe mesmo? Que boa surpresa! — Deu alguns passos para dentro da sala enquanto ela servia as bebidas. — Onde esteve?

Ruth pegou a garrafa com as mãos trêmulas, tentando não derrubá-la.

— Aqui está — estendeu o copo, evitando roçar seus dedos nos dele.

Ele tomou quase metade do uísque de uma só vez e insistiu:

— Eu fiz uma pergunta,

— E eu também — respondeu Ruth, depressa. — O que está fazendo aqui a esta hora da noite?

— Acreditaria se dissesse que estava esperando você?

— Por quê? — Os olhos dela estavam muito abertos.

— Não sabe?

— Claro que não.

Ele terminou de beber e estendeu o copo.

— Posso tomar outro? Ruth suspirou e foi até o bar.

— Por que estava me esperando? — Estendeu-the o copo. Patric pegou o copo e tomou tudo de uma vez.

— Julie telefonou — disse, como voz pausada. — Às oito horas. Estava preocupada com você.

O sangue subiu ao rosto de Ruth. O que será que Julie teria dito para fazê-lo vir até aqui?

— Ela esteve aqui até hoje de manhã, não é?

— Sim. Dormiu aqui a noite passada.

Ele pensou um pouco, examinando-a com admiração.

— Disse que você estava muito abatida, dormindo mal, que parecia cansada... — Mordeu o lábio inferior. — Talvez venha dor-mindo tarde nas últimas noites...

— É exatamente isso. Foi o que disse a Julie. — Ruth ergueu a cabeça.

— É mesmo? — O olhar dele tornou-se mais penetrante. — Pela sua aparência estou começando a entender a preocupação dela.

— Garanto que estou perfeitamente bem. — Suspirou. — Ainda não explicou por que está aqui a esta hora. Se Julie telefonou às oito. ..

— Claro! — Sorriu com ironia. — Devia ter chegado mais cedo, não é? E se lhe disser que cheguei logo em seguida, às oito e meia, e que quase derrubei a porta quando vi que ninguém atendia? Depois da história que Julie me contou, imaginei o pior, como vidros vazios de tranquilizantes e coisas do gênero. Subi no telhado e olhei em seu quarto e tudo que vi foram vidros de perfume e uma camisola sobre a cama.

— Ninguém viu você? — Ruth corou.

— Felizmente não. Deviam ter um alarme contra ladrões. Podia ter entrado facilmente. — Deu um suspiro. — Quando vi que não estava em casa, voltei para meu apartamento, mas não consegui dormir. — Parecia constrangido em admitir isso. — Então telefonei, mas como não houve resposta fiquei nervoso e vim até aqui outra vez. Isso foi mais ou menos há uma hora. — Fez uma pausa e olhou-a enigmaticamente. — Então você chegou.

Decepcionantemente saudável. . . e acompanhada. Ia mesmo despedir-se dele no carro ou fez isso porque me viu entre as árvores?

— Não tinha visto você! — declarou ofendida. — Céus, quase morri de susto quando apareceu.

— Então me diga onde esteve. — Irritou-se, cansado de dar explicações e de não ouvir nenhuma.

— Fui a uma festa.

— Onde?

— Na casa de uma amiga. Duas, melhor dizendo. São enfermeiras amigas de Mike.

— Imagino que Mike seja o indivíduo que a trouxe.

— Não é um indivíduo... mas foi ele quem me trouxe para casa. — Tentou manter a voz firme. — Por que não devia ter ido? Não sabia que Julie ia telefonar e que você ia demonstrar essa preocupação fraternal...

— Diabos, não é preocupação fraternal o que sinto — interrompeu ele. — é um sentimento muito mais destruidor. A respiração dela acelerou-se.

— Não sei o que quer dizer. Mas acho melhor ir embora.

— Por quê? — perguntou rispidamente. — Por que é melhor eu ir? Não é isso o que você quer. Também não é o que eu quero. Ruth.. .

— Não! — Ela se afastou, balançando a cabeça. — Não pode ficar aqui!

— Ruth, não me mande embora. Não entende que fiquei quase louco enquanto a esperava? Não pude dormir! Tenho rondado sua casa desde terça-feira, mas não tive coragem de entrar e pedir para vê-la.. .

Ruth olhou-o, incrédula. A voz dele era áspera, mas havia uma expressão estranha nos seus olhos, que fez Ruth imaginar o quanto ele tinha bebido antes de sair do apartamento.

— Como pode dizer isso? — Porque é verdade!

E imediatamente a abraçou sem se preocupar com as mãos ásperas e sujas, consequência da escalada ao telhado. Apertou-a com violência e colou seus lábios nos dela.

Ruth tentou lutar, mas foi inútil. Ele era mais forte e, além disso, ela não queria resistir. Comprimida contra o calor das roupas dele, sentiu o perfume masculino que vinha de seu corpo. Instintivamente, ela se aconchegou mais e enfiou a mão embaixo da malha, sentindo a suavidade da pele morena por baixo dela.

— Ruth — ele gemeu de prazer, acariciando-a com mãos ansiosas. — Fui um tolo! Desculpe, vamos aproveitar as semanas que me restam ...

Essas palavras foram como uma ducha de água fria para Ruth. Era óbvjo agora o que ele queria, e, apesar de tudo que tinha dito a Julie, Ruth descobriu que era capaz de ir até o fim. O problema era como livrar-se dessa situação perigosa.

Com toda delicadeza, para não despertar suspeitas, disse: — Patrick, assim não. Suas. . . suas mãos estão sujas, e você nem tirou o casaco Por que não sobe e se lava um pouco? Encontro você daqui a pouco. Patrick permitiu que ela se afastasse um pouco.

— Quer dizer que podemos dormir lá em cima? — Uma chama brotou dentro dela. Não era fácil recusar suas carícias, pois o amava.

Tentando manter a voz calma, acrescentou:

— Por que não? Estamos sozinhos aqui.

— Está bem.

Deixou que Ruth se soltasse e tirou o casaco. Então foi até a porta parando um instante para olhar para ela.

— Não está pensando em fugir de mim, está?

— A está hora da noite? Para onde iria? — Ruth sacudiu a cabeça — E, depois, por que faria isso?

— Tem razão. — Seus olhos eram ardentes. — Não vou desapon-tá-la, Ruth.

— Sei... — Ruth estava vermelha. — Sei que não vai. — Deu as costas a ele — Vá. Vou levar este copo até a cozinha.

Patrick hesitou um pouco mas acabou subindo. Ela ouviu a porta do banheiro abrir-se e logo em seguida a água começou a jorrar. Só então respirou aliviada. Mas o perigo ainda não tinha sido eliminado

Ele estava no banheiro pegado ao dela. Quando teve certeza de: que não a ouviria, correu para o quarto. Retirando a chave da porta, correu novamente para baixo.

Com o coração aos saltos, esperou até que a porta do banheiro se abrisse e ele entrasse no quarto dela. Mordeu os lábios com força. Havia outra porta! Por que não lembrou disso antes?

Parada na sala, ouvia os passos dele no quarto. Pelos ruídos ele parecia estar se despindo. Logo em seguida fez-se silêncio.

Esperou alguns minutos e voltou ao vestíbulo, olhando apreensivamente para a escada. O silêncio era ameaçador. E se Patrick estivesse esperando por ela?

Olhou novamente para a porta da frente e deu de ombros. Correr para fora e pegar o carro levaria tempo e ele certamente a alcançaria. Era inútil tentar fugir. Nenhuma pessoa em seu juízo perfeito andaria pelas ruas de Londres a essa hora.

Com um suspiro trêmulo, decidiu-se e subiu a estada. Se conseguisse fechar a porta do quarto sem que Patrick ouvisse, podia entrar no banheiro pelo vestíbulo e fechar a porta antes que ele tivesse tempo de impedi-la. As portas dos banheiros não tinham chave, mas se con-. seguisse chegar até a porta interna.. .

A porta do seu quarto continuava aberta, da maneira que tinha deixado ao retirar a chave, na tentativa de levá-lo ao quarto certo. Por que não tinha tido a idéia de fechá-la, por que não se lembrara, de que ele podia entrar no quarto pelo banheiro? Agora era difícil fechá-la sem que ele percebesse.

Continuou parada no penúltimo degrau, olhando para aquela passagem com frustração angustiante. Jamais seria uma conspiradora. Tinha destruído estupidamente a única chance de escapar. Só lhe restava agora entrar no quarto, passar para o banheiro e tentar fechar a porta sem que ele percebesse. A menos que. . . Sim, a menos que simplesmente entrasse no quarto e fechasse a porta, sem levantar suspeitas, e em seguida pegasse casualmente uma camisola e entrasse no banheiro para tomar um banho. Será que conseguiria? Suspirou. Que diabo, tinha que tentar. . .

Subiu o último degrau e entrou no quarto. O macio tapete branco estava iluminado pela luz suave do abajur. Estendido entre os lençóis azuis estava Patrick, de calças mas sem o casaco, a camisa e os sapatos. Parecia adormecido.

Seria possível que estivesse mesmo dormindo?

Mal ousando respirar, entrou silenciosamente, parando diante da cama e olhando com desconfiança. E se estivesse fingindo? E se fosse um truque para que ela se aproximasse e ele pudesse agarrá-la?

Ele se mexeu e fez alguns ruídos. Ruth pulou para trás, quase derrubando o abajur. Mas não havia necessidade de alarmar-se. Ele estava só se acomodando na cama.

Ela olhou em volta, desconsolada. Agora que o perigo estava afastado, não sabia o que fazer. Tinha que dormir também, é claro, mas não ali. . .

Olhou novamente para o homem adormecido. O peito descoberto era másculo, recoberto de pêlos negros. Uma estranha sensualidade tomou conta dela. Alguma coisa lhe dizia que Patrick era um amante magnífico. Tudo que tinha a fazer era acordá-lo. . .

Com grande esforço afastou do pensamento essas idéias, pegou a camisola estendida na beirada da cama, apagou a luz e saiu depressa. Ele não se mexeu, como Ruth esperava. Com certeza tinha bebido muito antes de vir, além dos dois uisques que tomara com ela, por isso dormia tão profundamente. Não conseguiu conter um sorriso. Que situação estranha! Quem diria que ia terminar assim?

Não tinha pensado em dormir na cama do pai, mas estava tão cansada que não teve outro jeito. Seu sono, contudo, foi perturbado por pesadelos terríveis, que a fizeram despertar várias vezes durante a noite. No dia seguinte acordou exausta.

Eram oito horas quando se levantou, sentindo-se profundamente agitada. Hesitou um momento antes de vestir o penhoar violeta, do mesmo tom da camisola. As duas peças eram quase transparentes e Ruth pensou que, embora o pai estivesse acostumado a vê-la nesses

55trajes, Patrick Hardy não estava. Mas, como ele ainda não tinha levantado, ela decidiu tomar uma xícara de chá.

Desceu até a cozinha, pôs a água para ferver e folheou os jornais do dia enquanto esperava. A cozinha era limpa e brilhante graças à senhora Lawson, e Ruth fez o possível para não sujar nada.

Estava despejando a água quente no bule quando ouviu um ruído atrás de si. Patrick Hardy estava parado na porta da cozinha, com a camisa jogada nos ombros, o rosto sombreado pela barba da noite e um ar de auto-reprovação.

O choque que sentiu ao vê-lo fez com que derramasse a água quente sobre a mesa de fórmica. Patrick aproximou-se, tomou-lhe a chaleira das mãos e afastou-a delicadamente da poça que se formara no chão.

Durante um breve momento, seus corpos se tocaram e ela olhou involuntariamente para o rosto moreno. Mas, se imaginou que as roupas transparentes teriam algum efeito sobre ele, suas esperanças logo se desfizeram. Patrick afastou-a com indiferença, apanhou um pano sobre a pia e enxugou a água da mesa.

Ruth tremia, apesar do calor da cozinha. Terminando de limpar a mesa, Patrick torceu o pano e colocou-o de volta no lugar, olhando para Ruth com olhos frios e expressão pouco encorajadora.

— Está bem?

Ruth confirmou com um sinal de cabeça.

— Sim, obrigada. Que estupidez a minha!

Ele não a contradisse e ela fingiu estar interessada no bule com água, preocupada com o cabelo solto e o rosto sem maquilagem.

Felizmente havia água suficiente para duas xícaras de chá. Viran-do-se para ele, perguntou:

— Gostaria.. .   isto é. ..   — Limpou a garganta. — Quer um pouco de chá?

Ele pensou um pouco.

— Se você quer. — Comprimiu a cabeça com as mãos. — Tem uma aspirina? Estou com dor de cabeça.

— Acho que sim. — Ruth abriu uma das gavetas do armário. — Geralmente a senhora Lawson guarda alguns remédios aqui para as emergências.

Estendeu o vidro para ele, que retirou três comprimidos e tomou-os com um pouco de água. Só então Ruth percebeu que deveria estar preparando o chá.

— Quer açúcar? — perguntou, sem jeito.

— Duas colheres, por favor.

Ruth pegou outra xícara no armário, adicionou leite e duas colheres de açúcar. Em seguida despejou o chá e entregou-a a Patrick.

O olhar dele deixou-a numa agonia, imaginando o que podia estar pensando.

— Quer tomar o chá aqui ou prefere subir?

— Não vai sentir frio aqui? — Indicou a roupa transparente de Ruth e ela corou.

— Não, nem um pouco. — Sentou numa das cadeiras altas que rodeavam a mesa e convidou-o a sentar também.

Patrick preferiu ficar de pé, andando agitado de um lado para outro, examinando um ou outro objeto. Finalmente parou diante dela e explodiu:

— Pelo amor de Deus, não fique aí tomando chá como se nada tivesse acontecido.

Ruth quase deixou cair a xícara.

— O quê?

Patrick cerrou os dentes.

— Ruth. — Sua voz era áspera. — Pare de bancar a esperta. — Apoiou as mãos espalmadas sobre a mesa, com a respiração irregular. — Nem sei por onde começar.

Nervosa, Ruth agitou-se na cadeira.

— Não sei o que quer dizer. — Levantou-se e levou a xícara até a pia. Como o comportamento dele estava diferente esta manhã!

Patrick esperou que ela depositasse a xícara e então agarrou-a pelos ombros, obrigando-a a olhar para ele.

— Claro que sabe — murmurou entre dentes. — Ou está tão acostumada que incidentes como esse já não significam nada para você?

Ruth olhou espantada para aquele rosto contraído. Era difícil acreditar que aquele mesmo homem a tinha beijado, abraçado e acariciado na noite anterior. Teria sido o álcool o responsável por tudo? Ou tinha simplesmente dado a ele a confiança de que necessitava?

Qual a razão de tanta raiva? Se alguém devia sentir raiva, esse alguém era ela, pois ele tinha chegado lá sem ser convidado, entrando praticamente à força e, além de tudo, desrespeitando-a. Não tinha cabimento! Era a reputação dela que estava em jogo, não a dele!

— Se já terminou seu chã acho melhor ir embora — disse ela. — Eu... a senhora Lawson vai chegar logo e não quero que o encontre

aqui.

— Está bem, está bem, já vou. Peço desculpas pelo que houve, embora você pareça ter achado muito normal.

— Desculpas? — Abismada, Ruth olhou para ele e compreendeu o que estava querendo dizer.

Tinha passado a noite lá, na cama dela, e agora de manhã encon-trava-a fazendo chá, vestida apenas com uma roupa transparente. Era possível que não se lembrasse muito bem do que acontecera na noite anterior e pensasse que tinham dormido juntos. . .

Antes que ela pudesse dizer alguma coisa,, ele virou as costas e saiu da cozinha. Sentia que devia chamá-1o ou ir atrás dele para explicar que não tinha acontecido nada, mas não conseguiu sair do lugar.

Seu orgulho a impedia de dar satisfações a ele. Afinal de contas Patrick tinha vindo com intenções bem claras e não foi nada respeitoso com ela. A verdade é que ele pensava que tinham dormido juntos e se desprezava por isso, como desprezava também a ela, sem dúvida.

Ficou parada no meio da cozinha. Estava num dilema e não sabia o-que fazer. Se ele fosse embora, será que voltaria? E ela, será que gostaria que ele voltasse, apesar de tudo? Se q que Patrick desejava era só uma aventura, não era melhor mantê-lo afastado? O amor que sentia por ele seria capaz de destruir a resistência que ainda mantinha?

Com passos lentos subiu para a sala de estar. Abriu as pesadas cortinas azuis e olhou para os jardins lá embaixo. Tudo estava silencioso e apenas o rumor distante do trânsito indicava que estavam no coração da cidade.

Ouvindo passos na escada, virou-se e viu Patrick parado na porta.

— Onde está meu casaco? — Com a mão trémula ela apontou para uma cadeira.

Ele parecia mais calmo, mas mais distante também. Alguma coisa se agiíou dentro dela.

— Vamos nos ver outra vez?

— Isso depende de você. — Ele enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

— Como assim?

— Como disse antes, não há nada que possa alterar a situação. — Baixou os olhos. — Gostaria que não tivesse acontecido.

— Quer dizer. . . preferia não ter me conhecido?

— Não, não foi isso que quis dizer. Ruth... — Fez um gesto de impotência. — Ruth, quero que saiba que é muito atraente, não posso negar, mas.. .

— ... Mas não tem intenção de se envolver emocionalmente — completou ela, com voz trêmula.

Ele deu um passo em direção a ela e parou.

— Já estou emocionalmente envolvido! — disse, quase gritando. Uma onda de esperança invadiu-a, mas foi logo desfeita. — Não. . . o que eu queria dizer é que casamento não está nos meus planos. A Venezuela não é lugar para uma mulher como você e, além disso,

não posso me casar!

— Por.. . por quê? Fora a hipótese de que eu não queira me casar com você, por que não pode se casar? — Tentou controlar a história que começava a tomar conta dela. Patrick pareceu não perceber. Deu de ombros.

— Você sabe por quê — respondeu. — Você não é uma moça qualquer. É filha de Joseph Farrell e, com certeza, não sou o homem que ele quer para marido de sua única filha.

— Como sabe o que ele quer para mim?

— Ruth, seja sensata! Sabe muito bem que seu pai é um milionário e certamente vai querer um genro nas mesmas condições. Além disso, você foi educada para ter um certo padrão de vida que eu

não posso lhe dar!

— É bem conveniente para você pensar assim, não? — explodiu. — Nenhum laço, nada. Só a satisfação de saber que conseguiu o que queria sem precisar se prender!

— Ruth! — Ele estava pálido. — Pare com isso!

— Por quê? Por que preciso parar? Foi tudo muito fácil para você até agora!

— Já pedi desculpas. . .

— Claro, Desculpe, senhorita Farrell, mas acho que dormi com você em um momento de fraqueza. Perdoe-me. Não vai acontecer outra vez!

— Pare! — Patrick estava furioso. — Pare de me fazer sentir

tão. . .

— Sórdido? Era essa a palavra que estava procurando? Mas não deixe que isso o preocupe depois que voltar para a selva!

— Ruth! — Agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a com violência. — Pare, pelo amor de Deus! Que quer que eu diga?

— Não espero nada de você — replicou, com voz magoada. Os dedos dele se contraíram com mais força.

— Quer que a peça em casamento, não é?

— Largue-me! — Livrou-se dele com violência. — Por que tem tanta certeza de que quero me casar com você? O que tem para me oferecer?

— Oh, Ruth! Por que não é honesta com você mesma e comigo? Sabe muito bem que não quer casar comigo! Não sou o marido com quem sonha. Sou um simples químico que trabalha em um país subdesenvolvido, com um clima capaz de arrasar o mais forte dos homens. Sou muitos anos mais velho que você. Não tenho dinheiro. Você não conseguiria viver na casa onde moro. Não há divertimentos nem qualquer outro atrativo. É um inferno. .. mas é a minha vida.

Ruth respirou fundo.

— É melhor você ir embora — disse com voz insegura. — Preciso tomar um banho e me vestir antes que a senhora Lawson volte.

Patrick hesitou, frustrado.

— Mas. .. entende o que quero dizer?          

Ruth não respondeu.

— Vá embora — repetiu em voz baixa, e ele obedeceu.

 

Uma semana mais tarde, Ruth voou para Nova Iorque. Tinha tido uma semana terrível, de lágrimas e recriminações, e chegou à con- clusão de que não poderia continuar fingindo que Patrick voltaria. Não voltaria. Se o quisesse de volta teria que procurá-lo, mas procurá-lo para quê? O que conseguiria dele?

O pai foi esperá-la no aeroporto e levou-a para o hotel. Seus negócios em Nova Iorque estavam demorando mais do que tinha planejado, por isso ficou encantado com a chegada da filha. Apesar do ar alegre de Ruth, o pai percebeu imediatamente que alguma coisa estava errada. Joseph Farrell jamais interferia na vida da filha. Não fez perguntas pois sabia que cedo ou tarde ela contaria o que a estava aborrecendo. Ruth, por sua vez, explicou apenas que estava se sentindo sozinha sem ele e por isso tinha vindo.

Durante os dias que se seguiram Ruth visitou os pontos turísticos da cidade, enquanto o pai trabalhava; e à noite ia com ele para a casa dos amigos. Estavam morando numa linda casa alugada especialmente para eles pela companhia Hamilton, e Ruth anfitrionava as reuniões oferecidas pelo pai. Durante algum tempo as festas de Long Island, os teatros, os passeios e os compromissos sociais ocuparam sua cabeça, fazendo-a esquecer os próprios problemas. Mas, às vezes aborrecia-se com essas atividades e sentia medo de que Patrick, sozinho em Londres, pudesse encontrar outra mulher.

Certa noite, enquanto se aprontavam para jantar fora, foi ao quarto do pai e encontrou-o lutando com a gravata. Afastou as mãos agitadas dele e começou a ajeitá-la com paciência, dizendo: — Temos tempo de conversar um pouco antes de sair? O pai olhou-a, compreensivo.

— Claro. E se não houver tempo, arranjaremos. Vai me contar por que veio?

Ruth terminou de fazer o laço da gravata e deixou cair as mãos.

— Você sabia que havia uma razão.

— Geralmente há... para tudo. — Sorriu com carinho. — O que aconteceu? É alguma coisa relacionada com Hardy?

— Como descobriu? — Ruth encarou-o, surpresa.

— Querida, os trinta anos de trabalho me ensinaram alguma coisa sobre a natureza humana. E, sendo minha filha, posso compreendê-la melhor que aos outros.

— O que... o que achou dele?

— Hardy? Gostei dele. Mas você já sabia disso. É inteligente e entende do trabalho que faz. Aprecio o profissionalismo, não suporto amadores.

— Ele não tem dinheiro. — Ruth suspirou.

— Não? E isso tem importância?

— Pode ter. Eu... o amo.

As palavras escaparam da sua boca sem que ela sentisse. Houve um momento de silêncio antes que o pai respondesse.

— Quer casar com ele, é isso? — Foi até a mesa e pegou o

cachimbo.

Ruth fez um sinal negativo com a cabeça. O pai assustou-se.

— Qual é o problema, então? Ele já é casado?

— Não, claro que não! — Ela umedeceu os lábios secos. —Não é casado.

O pai estava ficando impaciente.

— Então qual é o problema?

— Ele não quer casar comigo,

— O quê? — Surpreso, tirou o cachimbo da boca. — Não quer casar com você? — repetiu. — Por quê?

Ruth baixou a cabeça.

— Ele diz que não pode levar uma mulher como eu para a Venezuela, que o clima é insuportável. E parece me ver como um luxo que não teria condições de sustentar.

— Ele pode estar certo — comentou o pai, friamente.

— Não, não está. — Ruth foi categórica. — Não sou nenhuma bonequinha de açúcar que se derrete com o calor. E depois não sou tão estúpida a ponto de imaginar que a vida na Venezuela é tão fácil quanto na Inglaterra!

— As palavras são impressionantes! — comentou o pai com certa

ironia, mordendo a ponta do cachimbo.

— Papai, eu o amo! Nunca senti isso antes. Seria capaz de viver

numa floresta se ele estivesse comigo!

— E o que ele sente por você? Além da aversão ao casamento, quais as outras razões que oferece?

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer que não estou convencido de que ele está dizendo a verdade, Pode ser que espere que eu lhe ofereça um contrato aqui na Inglaterra.

— Papai! — Ruth estava indignada. — Patrick não é disso!

— Como sabe? — retrucou o pai, em tom objetivo. — Não respondeu minha pergunta.

— Não posso responder. Não sei.

— Afinal ele ama ou não ama você? É só isso que quero saber.

— Sente-se atraído por mim, disso tenho certeza.

— É mesmo? — O pai suspirou e a voz saiu seca. — Que interessante. Agora que tal me falar dos verdadeiros motivos de sua vinda?

— Papai!

Ruth deu as costas ao pai e contou com voz entrecortada tudo que acontecera. Contou que Patrick tinha dormido lá e o que tinha dito antes de ir embora.

Não teve coragem de encarar o pai. Ouviu-o riscar um fósforo para acender o cachimbo e sentiu o perfume agradável do tabaco.

Já estava começando a pensar que o pai estava zangado demais para falar quando ele disse:

— Bom, Ruth, acho que só há duas coisas que se possa fazer. Virou-se. Ele fumava tranquilamente e não demonstrava o menor sinal de reprovação.

— O quê? — murmurou. — O que posso fazer?

— Pode esquecê-lo completamente, o que talvez seja a melhor solução... ou tentar encontrar um jeito de convencê-lo de que o casamento é a única solução.

— Aceitaria que eu me casasse com ele?

— Sim, com algumas condições. — Que condições?

— Que você me dê autorização para oferecer-lhe um projeto no país de sua preferência.

— Papai! — Ruth estava revoltada.

— é a única solução. Ruth. Quer que a deixe se casar com um caça-dotes?

— Patrick não é um caça-dotes! — Ruth estava aborrecida. — Como vai lhe fazer uma proposta dessas se ele nem mesmo quer casar comigo?

— Mais uma razão para que eu faça a proposta. Vou ser sincero com você, Ruth. O homem me interessou, e se não fosse essa viagem para os Estados Unidos gostaria de tê-lo encontrado outra vez. Meus negócios estão indo bem, os supermercados estão dando lucro e a idéia de financiar um projeto de pesquisa me agrada.

— Mas, papai, isso é praticamente uma chantagem! Não percebe que ele vai aceitar?

— Nesse caso não serve para você.

Joe Farrell voltou para a Inglaterra dois dias depois, deixando Ruth em Nova Iorque. Durante os quatro dias que passou sozinha foi incapaz de se divertir. No dia da chegada do pai foi esperá-lo no aeroporto, ansiosa por conversar com ele.

— O que ele disse? — perguntou, quando o chofer tomou a direção da cidade.

O pai tinha um ar solene e pensativo.

— Ele me desconcertou.

— Desconcertou? — Ruth sentiu uma pontada de esperança.

— É. Disse que não queria nada de mim e que era perfeitamente capaz de desenvolver seus próprios projetos de pesquisa. Disse também que não sabia de onde tirei a idéia de que ele queria casar com você. Vai voltar para a Venezuela dentro de duas semanas e duvida que se vejam outra vez.

A esperança morreu na hora e Ruth sentiu-se profundamente desiludida.

— Isso é tudo?

O pai observou-a durante alguns segundos com ternura e acrescentou:

— Não, não é tudo.

— Como assim?

— As palavras podem ter vários sentidos, dependendo da maneira como são ditas.

— O que quer dizer? — Ruth olhou-o ansiosa.

— Pela aparência dele parece que não está dormindo bem e muito menos alimentando-se regularmente. Posso estar enganado, mas acho que está apaixonado por você.

— Papai! — Ela conseguiu dizer, mas ele deu de ombros.

— Não sei. . . notei pela expressão dele enquanto eu falava, enquanto lhe oferecia o projeto. Recusou depressa demais. Perguntei a mim mesmo se alguém em seu juízo perfeito recusaria uma proposta assim a menos que estivesse envolvido de alguma maneira. Se não se importasse com você, por que não aceitaria uma oportunidade tão atraente?

— Eu tinha avisado. Patrick é um homem honrado.

— Acredito. Mas existe algo mais, tenho certeza.

— O que faço, então? — Ruth hesitou. — Não lhe falou sobre...

— Sobre suas dúvidas se vocês dormiram juntos ou não? Claro que não. Por que deveria?

Ruth não dava sossego à alça da bolsa.

— Disse que ele não está bem. Será que está doente?

— Vai sobreviver, se é isso que quer saber. Os homens não costumam morrer de amor, embora possam sofrer muito. —- Tentou fazê-la sorrir. — Ruth, por que não escolheu um entre os muitos rapazes que adorariam ser meus genros?  

— Saiba que fiz essa pergunta a mim mesma milhares de vezes! — exclamou Ruth com sinceridade. — Como gostaria de não ter ido passar aquele fim de semana em Wiltshire! Como seria bom se não tivesse conhecido aquele homem. — Mas o brilho de seus olhos desmentia aquelas palavras.

Na ausência do pai os negócios tinham se acumulado, por isso ele passou o dia seguinte ocupado em resolvê-los. À noite teve uma folga e jantou com a filha. Depois do jantar, enquanto tomavam café com licor, Ruth anunciou:

— Acho que vou voltar para a Inglaterra amanhã.

— Vai mesmo? Por quê?

— Quero ver Patrick.

— Sabia que ia dizer isso. — O pai pegou o cachimbo na mesa e colocou-o entre os dentes. — E se ele se recusar a falar com você?

— Acha que ele vai fazer isso? — Ela estava apavorada. O pai hesitou um pouco e encolheu os ombros.

— Não, acho que não. Mas não entendo por que não o esquece,

— Papai! — Ruth torcia as mãos. — Se eu conseguisse convencê-lo ã se casar comigo o senhor não impediria?

— Não, embora não ache provável que ele concorde.

Ruth levantou e caminhou até a janela para que o pai não visse seu rosto.

— Não sei. Talvez haja um jeito.

O pai esvaziou o cachimbo na lareira vazia.

— Quando... ou melhor, se isso acontecer quero que me conte.

— Está bem. — Ruth voltou para seu lugar, tentando não revelar os sentimentos que iam dentro dela. — Importa-se que eu telefone para o aeroporto para saber os horários dos vôos?

O avião pousou no aeroporto de Heathrow no começo da noite e Ruth tomou um táxi para a cidade. A senhora Lawson ficou contente com a volta e insistiu em preparar uma refeição leve para Ruth, embora ela já tivesse jantado no avião.

Mais tarde telefonou para o apartamento de Patrick.

A idéia que tinha tido na noite anterior germinou na sua cabeça

até tomar forma definida. Recusou-se a pensar nos aspectos éticos do que ia fazer e não parou para reconsiderar.

Patrick atendeu o telefone e as pernas dela tremeram ao ouvi-lo.

— Oi! — Ela tentou parecer à vontade. — Como vai?

— Ruth, Ruth, é você?

— Sim, sou eu! — Deu uma risada forçada. — Está doente? Houve um instante de silêncio antes da resposta.

— Pensei que estivesse na América. Seu pai. . .

— Estava — interrompeu com voz nervosa. — Voltei esta noite.

— Voltou? — repetiu, incrédulo.

— Está ocupado?

— Ocupado? Não, acho que não, estava fazendo uma omelete.

— Então vai me convidar para a ceia? Outro silêncio.

— Por que está telefonando, Ruth? Pensei que depois do que disse a seu pai...

— Faz três semanas que não vejo você.

— Sei disso. E só tenho mais duas semanas.

— Sei que tem pouco tempo, por isso quero falar com você. — Ruth estava decidida como nunca estivera antes na vida.

— Para quê?   Nós   só   nos ferimos um   ao   outro.   — Patrick relutava.

— Preciso falar com você, Patrick. — Ruth apertou com mais força o telefone.

— Por quê?

— Não posso dizer por telefone. Novo silêncio.

— Está bem, vou até aí.

— Prefiro ir à sua casa.

— Não!

— Por que não? — Os ciúmes assaltaram-na. — Há alguém com você?

— Claro que não. — Parecia impaciente. — E então?

— Está bem. — Desistiu de tentar convencê-lo. — Vou pedir à senhora Lawson que faça alguns sanduíches para nós.

— Obrigado, mas não quero comer nada. — Desligou violentamente o telefone. Com um suspiro ela desligou também e examinou a roupa que estava usando.

Subiu até o quarto, trocou o conjunto creme que tinha usado na viagem por um vestido solto, e depois escovou os cabelos até que ficassem soltos como seda.

Quando Patrick chegou, procurou no seu rosto algum sinal de contentamento por revê-la.

Seu pai estava certo. Parecia muito abatido, mas não estava menos atraente. O cabelo estava mais longo e a pele mais clara, devido ao inverno londrino. Olharam-se em silêncio, no pequeno vestíbulo, e Ruth não conseguiu decifrar o que se passava no fundo daqueles olhos.

Com um gesto nervoso, fez sinal a ele para que a seguisse e subiu na frente para tentar recuperar a confiança abalada.

— Não quer tirar o casaco? — perguntou, ao chegarem à sala.

— É preciso? Não vou ficar muito tempo. Ruth, por que telefonou? Pensei... quando seu pai me disse que estava na América. .. achei que não fosse vê-la mais antes de voltar para a Venezuela. Já estava resignado. Agora... — Passou a mão nervosamente pelo cabelo. — Por que quis me ver?

— Sente-se e tome alguma coisa, depois conversamos. — Foi até o bar. — O que quer tomar? — Admirou-se com a própria calma.

— Não quero tomar nada, Ruth! Nem quero continuar aqui com essa conversa tola. Diga o que tem para dizer e vou embora. — Fez uma pausa. — Mas aviso que se tem alguma relação com o que seu pai disse.. .

— Meu pai não sabe de nada!

— Não sabe de quê?

Ruth passou a língua pelos lábios.

— Estou grávida!

Patrick emudeceu, como se não conseguisse acreditar nos próprios ouvidos. Correu os olhos pelo corpo dela como se procurasse uma prova.

— Tem certeza? — perguntou, por fim.

— Claro que tenho. — Sua voz era firme. — Caso contrário não teria dito nada.

— Mas... tão depressa!

— Fiz um teste e deu positivo. — Olhou em volta como se procurasse alguma coisa. — Quer ver? — O risco foi calculado e ela prendeu a respiração até ele responder.

— Pelo amor de Deus, não! Ela enxugou o suor das mãos.

— Está muito zangado?

— Zangado? — respondeu, exasperado. — Como posso estar zangado? — Andava inquieto de um lado para o outro. — Meu Deus, que situação!

Ruth apontou para o bar.

— Quer tomar alguma coisa agora?

— Sim, um licor! Preciso de algo para me acalmar. — Jogou-se em uma cadeira, passando as mãos furiosamente pelo cabelo. — Deus, que situação!

Ruth foi até o bar com passos inseguros e voltou trazendo um cálice. Quando estendeu a mão para entregá-lo, Patrick agarrou seu pulso com agressividade.

— Tem certeza de que sou eu o pai? — perguntou, friamente. Ruth puxou o braço, esfregando a mancha vermeíha.

— Como tem coragem de me fazer essa pergunta?

— Por quê? — Sorriu com ironia1. — Estamos em Londres, não?

— Sim, mas não costumo dormir com qualquer um — respondeu Ruth, ferida pelo desprezo da voz dele.

— Não? — Olhou para o rosto vermelho durante alguns instantes, depois levantou o copo num brinde irónico. — Está bem, me desculpe a pergunta.

Ruth afastou-se. Sentia que o odiava pela maneira indelicada com que a estava tratando. Como se sentiria se estivesse mesmo grávida? Será que ele não se importava? Virando-se para ele disse:

— Acho que agora entende por que queria falar com você. Patrick terminou de beber e olhou para o copo vazio.

— Disse que seu pai não sabe de nada.

— Não sabe. — Pelo menos isso era verdade.

— Então por que veio me oferecer aquele projeto louco?   , — Disse a ele que queria casar com você.

— Disse o quê? — Patrick encarou-a sombriamente. — Por quê?

— Disse a ele que o amava. — Ruth tremeu. Patrick ouviu em silêncio, o rosto impenetrável.

— E o que ele vai dizer quando souber que está grávida?

— Não pretendo contar a ele.

— Não? — Patrick contraiu as sobrancelhas.

— Não. Isto é, se você estiver disposto a. . .

— ... A fazer a única coisa decente, não é? — Seu tom era irônico. — Uma espécie de chantagem moral!

— Não! — Ruth estava trémula e com o coração apertado. — Como pode ser tão. . . tão grosseiro?

Como se só agora compreendesse o sentido das palavras dela, seu rosto mudou e sua expressão perdeu a agressividade. levantou-se e foi até ela, puxando-a contra si.

— Está bem, está bem. — Olhou para o corpo colado ao seu. — Não diga mais nada. Eu me conheço, sei o que sou, o que fiz! — Inclinou a cabeça e mordeu o lóbulo da orelha dela. — É que foi tudo tão rápido, tão inesperado! Dê-me um pouco de tempo para que me acostume à idéia de que você está esperando um filho meu!

Ruth tremeu quando ele a abraçou, possessivo.

— Não — murmurou ele. — Perdoe-me. Fui um idiota de submetê-la a esse interrogatório. — Passou a mão suavemente pelo cabelo dela. — Precisa contar a seu pai.

— Não. — Ruth deu um passo para trás e olhou-o nos olhos. — Não, não posso fazer isso.

— Quero que conte — ele insistiu. — Vai estar aqui, talvez sozinha, quando tiver o bebê e quero ter certeza de que seu pai cuidará de você até que eu volte. . .

— O que quer dizer? — Ruth afastou-o.

— Ruth, escute. — Palrick estava calmo. — Não importa o que existe entre nós, ainda não tivemos tempo de explorar, mas não posso viver às custas de seu pai...

— Ninguém está pedindo. . .

— Espere! — Ele suspirou. — Esse projeto que seu pai me ofereceu. . . essa... — Seus olhos desceram pelo corpo de Ruth. — Nossa situação não muda o que eu disse sobre aquilo. Não quero trabalhar na Inglaterra. Meu trabalho é na Venezuela e não pretendo interrompê-lo.

— Sei disso e. . .

— Ruth, escute! — Deu de ombros. — Está grávida. Aceito toda a responsabilidade e vou preparar tudo para o casamento, se é isso que quer. Mas vou voltar sozinho para a Venezuela.

— Não! — Ruth cerrou os punhos pequenos. — Se vou ser sua esposa quero viver a seu lado. . .

— Na Venezuela? — Ele ergueu os olhos. — Ruth, ser minha esposa vai ser muito diferente do que ser a filha mimada de Joe Farrell. E ser minha esposa em Puerto Roca... Bom, é absurdo! Você não aguentaria o calor, as moscas, a vida de lá! E ainda por cima ter um bebê. . . — Tentou convencê-la com este úítimo argumento. — Ruth, tente compreender!

— Então o que tenho que fazer? Casar com você e ficar na Inglaterra?

— Sim.

— E vê-lo a cada cinco anos?

— Claro que não. — Ele se movia, agitado. — Tenho uma folga a cada seis meses. Nos últimos anos aproveitei para conhecer um pouco da América   do Sul,   mas   nada   me   impede   de   voltar   à Inglaterra.

— Que bom! — A decepção a machucava, — Não concordo. Não pode me obrigar a ficar aqui!

Patrick passou a mão pela nuca com impaciência.

— Ruth, seja sensata! Você é uma mulher, e ainda por cima uma mulher que jamais precisou trabalhar. Para qualquer um seria difícil, mas para você será um inferno!

Ruth   afastou-se com uma sensação de impotência. Não conseguiria convencê-lo. A não ser que. . .

— Se não me levar para a Venezuela então não caso. A expressão de Patrick era de grande frustração.

— Não está falando sério!

— Estou. — De repente Ruth percebeu o poder que possuía. Nenhum homem concordaria que seu filho nascesse ilegitimamente.

— Acha que seu pai permitiria isso?  

— Ele me sustentaria. — Ruth falava com confiança, mas interiormente rezava para que ele não aceitasse o desafio. O rosto de Patrick estava carregado novamente. — Sempre consegue tudo o que quer?

— Não... não necessariamente.

— Acha que seu pai vai deixá-la ir para a Venezuela sabendo que está grávida?

— Não! E por isso que não quero dizer a ele.

— Eu posso dizer.

— Se disser não haverá casamento.

— Sua pequena. . . — Ele engoliu o que ia dizer. — Está bem. Quem vai se arrepender é você.

O rosto dela iluminou-se.

— Quer dizer. . . que posso ir para a Venezuela com você?

— Não exatamente comigo — replicou e, antes que ela tivesse tempo de protestar, acrescentou: — Há muitos detalhes para providenciar, vacinas que você precisa tomar, e duvido que tudo isso possa ser feito em duas semanas. É claro que o casamento tem prioridade.

— Sim. — Ruth não conseguiu sustentar o olhar dele. — Quero me casar na igreja.

— Levaria tempo para organizar tudo, é melhor casarmos apenas no cartório.

— Não! — Ruth estava irredutíve!. Mesmo que esse casamento estivesse destinado ao fracasso, não aceitaria uma cerimônia fria num cartório poeirento qualquer. — Além do mais. meu pai poderia suspeitar de qualquer coisa.

— Mais cedo ou mais tarde ele vai acabar descobrindo — exclamou Patrick com impaciência.

— Por quê? Muitos casais têm filhos logo que se casam. — Ruth sentiu o sangue subir ao seu rosto.

— Na Venezuela? Vai pensar que estamos loucos!

— Por favor! Não comece de novo.

— Está bem, está bem! — Patrick começou a andar pela sala.

— O que faz alguém numa situação como essa?

— As pessoas geralmente estão preparadas para aceitar todas as consequências de um relacionamento. Em alguns casos é uma passagem quase natural de amantes a pais.

— Não está querendo dizer que algumas pessoas ficam satisfeitas numa situação dessas.

— O que quer dizer, Patrick? Que não se casaria comigo se... Patrick parou ao sentir o desespero da voz dela.

— Ruth — começou com hesitação —, não fique assim! Não percebe que estou dizendo tudo isso para seu próprio bem? Tivemos vidas tão diferentes até agora. Levá-la para a Venezuela é puro egoísmo de minha parte!

O que será que ele queria dizer? Ruth não entendia.

— Patrick. . . — Ele se aproximou, envolvendo-a nos braços e afundando o rosto nos cabelos dela.

— Ruth — suspirou dolorosamente. — Você foi uma tentação muito grande para mim desde que a vi pela primeira vez na casa de James.

— Mas você foi tão ríspido comigo! — disse ela, incrédula.

— Sei disso, mas naquela época estava decidido a não me deixar envolver pelas tramas de Marion. Mais tarde descobri quem você era e cheguei à conclusão de que não poderia haver nada entre nós...

— Mas por quê?

Ele se afastou e olhou-a com intensidade.

— Ruth, você sabe a resposta tão bem quanto eu. Sempre achei que seu pai não me aceitaria como genro. Além do mais, trabalho em um lugar tão primitivo que tinha quase certeza que nenhuma mulher em seu juízo normal aceitaria casar-se comigo para viver num lugar como aquele. Muito menos a filha de Joseph Farrell. Por isso tentei me afastar de você. . . sem muito sucesso.

Ruth envolveu-lhe o rosto com as mãos.

— Patrick — murmurou. — E eu que pensei que você me odiasse!

— Gostaria de poder! — murmurou.

— Está falando sério?

— Não sei. — Havia uma expressão estranha em seus olhos.

— Ruth, quero que saiba que se casar comigo não poderá voltar atrás. Se chegar à conclusão de que não gosta da vida na Venezuela, não sei se terei forças para deixá-la partir. — E olhou para a barriga de Ruth, o que a fez corar violentamente.

— Não vamos falar dessas coisas,— disse precipitadamente, perturbada pela intensidade daqueles olhos.

— Precisamos falar dessas coisas! — insistiu ele. — Essa criança é meu filho e você vai ser minha esposa. Não são assuntos para serem discutidos descuidadamente. Não penso como a sua geração, que o divórcio é a solução satisfatória para um relacionamento infeliz.

— Por que está me dizendo tudo isso?

— Porque,   apesar   de   tudo,   apesar   do   amor   que   diz   ter por mim, acho que está encarando isso como uma grande aventura. Fique certa de que não é. Nos meus trinta e cinco anos de idade já vi o desmoronamento de muitos casamentos feitos impensadamente, já presenciei o fim de muitos relacionamentos provocados pelo tédio da esposa. Nosso casamento é um contrato que deve durar toda a vida. É preciso que isso fique bem claro.

Ruth sentiu um calafrio na espinha. Ele parecia tão frio, tão calculista! Quais seriam seus verdadeiros sentimentos? O que será que sentia por ela? Procurando controlar o nervosismo, disse:

— E você, como se sente?

Patrick sorriu.

— Para mim é simples: você vai ser minha esposa e a mãe do meu filho. Farei tudo que estiver ao meu alcance para que seja feliz.

Mas você me ama?, quis gritar, porém as palavras ficaram presas na garganta. E se tudo desse terrivelmente errado, se depois de algum tempo de casamento não conseguisse mais esconder a farsa da gravidez? Como ele reagiria?

Não queria pensar. Sabia que o amava e tinha certeza de que Patrick também a amava e que depois do casamento não iria desapontá-lo.

 

Ruth recolheu suas bagagens com gestos nervosos. Estava finalmente na Venezuela e sua nova vida logo começaria.

Era estranho pensar que em poucos minutos ia encontrar o marido. Não se sentia casada, mas nas presentes circunstâncias isso talvez não fosse surpreendente. Tinha vivido as quatro últimas semanas com uma sensação de irrealidade.

Depois   que   Patrick   tomava   uma   decisão   não   perdia   tempo.

Enquanto Ruth entrou em contato com o pai, comunicando-lhe que ela e Patrick iam mesmo casar-se, ele tomou todas as providências necessárias para o casamento.

Viram-se muito pouco durante as duas semanas que ainda restavam a Patrick e quase não houve tempo para pensamentos tentadores. Patrick estava tão preocupado, não só com os preparativos mas também com seus próprios negócios, que não pôde dedicar muito tempo a ela, e assim foi impossível contar-lhe a verdade e pedir seu perdão. Os largos períodos de tempo que passavam separados não contribuíam para que os encontros fossem mais íntimos e agradáveis; pelo contrário, os noivos pareciam cada vez mais distantes. O pai veio para o casamento e não pareceu surpreso com a súbita mudança nos acontecimentos. Ruth esperava-o com ansiedade, mas quando chegou achou tão difícil comunicar-se com ele como estava sendo com Patrick. Estava consciente da farsa que estava representando e isso lhe produzia um peso imenso na consciência. Estava enganando a todos, inclusive a si mesma, e tentava acalmar a própria culpa dizendo-se que depois do casamento tudo mudaria e que não decepcionaria Patrick, mesmo porque o amava. . .

Apenas Julie percebeu que as coisas não corriam como seria de esperar. Veio para ficar alguns dias antes do casamento e, como, conhecia Ruth há muito tempo, logo percebeu as dúvidas e a indecisão da amiga. Mas sempre que tentava conversar sobre o assunto Ruth se fechava como uma concha, recusando-se a falar sobre o que a afligia.

Como Patrick previa, ela não poderia viajar com ele para a Venezuela. As vacinas e os exames médicos levariam mais tempo que o previsto, por isso a viagem precisou ser adiada. Tudo somado, foi um período frustrante, especialmente porque Ruth vivia perseguida pelo medo de que Patrick descobrisse que não estava grávida.

Como ele não esteve presente aos exames e o pai não tinha conhecimento da trama da filha, o assunto não foi mais discutido. Ruth tentava se convencer de que tudo não passava de um sonho mau e de que Patrick estava se casando com ela por amor, mas inevitavelmente a realidade voltava sempre para atormentá-la, fazendo-a às vezes ansiar e às vezes temer pelo momento decisivo na igreja de São Marcos.

O casamento foi marcado para dois dias antes da partida de Patrick e ficou decidido que passariam a noite e o dia seguinte na casa de Ruth. Como não havia possibilidade de terem uma lua-de-mel normal, o pai decidiu passar aqueles dois dias no clube para permitir que os noivos tivessem um pouco de privacidade.

Para complicar ainda mais as coisas, já por si só tão difíceis, Patrick recebeu uma comunicação do aeroporto de que haveria uma greve no dia marcado para a viagem e ele precisava partir antes do que estava previsto. Isso significava que ele teria que viajar imediatamente após o casamento, pois era esperado no trabalho e não queria arricar-se a um atraso.

Se por um lado Ruth via esse fato como uma espécie de trégua, por outro considerava-o mais uma frustração entre tantas outras. Quanto mais tempo ficassem distantes, maior seria sua tensão, à espera do dia em que aquele casamento começasse realmente a funcionar. E se houvesse outros atrasos? E se algum fato inesperado a impedisse de ir para a Venezuela?

Mas não podia fazer nada para mudar a situação, não podia expor seus medos a ninguém. Pelo contrário, tinha que ficar calada e suportar sozinha seus medos e ansiedades.

Patrick parecia decepcionado, e na noite anterior ao casamento tinha passado pouquíssimos minutos com ela. Nesse tempo restrito, expressou seu aborrecimento pelo rumo tomado pelos acontecimentos.

— Talvez seja melhor assim — comentou. — Muita agitação pode ser prejudicial para você e para o bebê. Quero cuidar bem de você e tenho medo de não saber me controlar, se houver uma oportunidade. — Ruth corou e ele acrescentou: — Desculpe se a estou deixando constrangida, mas quero que entenda que não sou um animal. Não quero aborrecê-la com minhas exigências, O que aconteceu, a situação que precipitou esse estado de coisas aborrece-me profundamente, ainda mais porque não consigo lembrar-me de quase nada.

— Podíamos começar tudo outra vez — sugeriu Ruth —, como se nada tivesse acontecido.

— Impossível — observou ele friamente, olhando para a barriga dela. — Mas se quer dizer que nossa primeira noite como marido e mulher vai representar a verdadeira consumação de nosso casamento, então concordo com você. Espero que seja um novo começo para nós dois.

Relembrando as palavras de Patrick enquanto soltava o cinto de segurança, Ruth sentiu medo de sua própria vulnerabilidade. Um novo começo! Ele nem imaginava como seria novo!

Quando a porta do avião se abriu, Ruth sentiu um súbito mal-estar em consequência da onda de calor que a atingiu. O efeito inesperado do clima tinha feito com que ela esquecesse temporariamente o nervosismo por ver Patrick novamente, mas agora que já estava se recuperando olhou em volta com ansiedade, procurando a figura alta e morena do marido.

Mas não havia o menor sinal dele. Via dezenas de rostos morenos, naturalmente, mas nenhum que se parecesse com ele. A maioria dos homens, por sinal, tinha a pele mais escura que a de Patrick e não deixava de demonstrar interesse pela imensa beleza de Ruth. Com urn suspiro ela recebeu de volta as malas, depois de examinadas pelos funcionários da Alfândega, mas recusou a oferta de ajuda considerando tolice deixar o aeroporto. Além de estar mais fresco ali dentro, com certeza era lá que Patrick iria procurá-la. Onde ele estaria? Por que não teria vindo esperá-la? Uma pontada de ressentimento agitou-se dentro dela. Afinal de contas, ele achava que ela estava grávida e devia ter pensado que não ia lhe fazer bem ficar ali parada naquele calor escaldante.

Pensamentos diversos rodavam pela cabeça de Ruth. E se ele tivesse tido um acidente, quem a avisaria?

Todos os passageiros do seu vôo já tinham se dispersado, o que acentuou ainda mais seu desespero. Mordeu os lábios. Devia haver um reservado para senhoras ou um bar onde pudesse esperar sem atrair os olhares curiosos. Então sentiu que alguém lhe tocava o braço, dizendo em inglês.

— A senhora deve ser a senhora Hardy. Como vai? Meu nome é John Howard e fui encarregado por Pat de vir esperá-la.

Senhora Hardy! Ruth saboreou o som dessas palavras antes de se virar e olhar para o homem parado atrás dela. Alto, quase tão alto quanto Patrick, era um dos homens mais atraentes que ela já tinha visto e, em outras circunstancias, teria ficado lisonjeada pela admiração que via nos olhos dele. Tentando controlar a decepção, forçou um sorriso educado e respondeu:

— Como vai? Sim, sou Ruth. . . Hardy.

— Bem-vinda à Venezuela, senhora Hardy. — John Howard sorriu desculpando-se. — Desculpe se a fiz esperar, mas acho que me confundi com os horários.

— Onde está meu marido, senhor Howard?

— Por favor, pode me chamar de John, madame. O chefe convocou uma reunião para hoje e Pat precisava estar presente. Tudo aconteceu inesperadamente e ele mandou dizer que lamenta muito por não ter podido vir pessoalmente.

— Entendo. — Ruth deu um suspiro. — O que vamos fazer agora?

— Vamos no meu carro para Caracas, onde há uma suíte fresquinha à sua espera no hotel.

— Hotel! — Ruth estava cada vez mais confusa.

— Sim madame. Pat achou que seria muito cansativo para a senhora ir direto para Puerto Roca e então reservou uma suíte no hotel. Pretende levá-la para lá amanha. Por enquanto terá que aceitar minha ajuda apenas.

Como não havia outra solução, dirigiram-se à saída. Não podia ser indelicada com John Howard porque as coisas não estavam correndo como ela esperava. Já devia estar acostumada, pois nenhum dos seus planos estava saindo como ela tinha previsto.

Desejou ardentemente que Patrick estivesse ali, assim poderiam estar sozinhos durante algum tempo. Suspirou. Bem, amanhã seria outro dia, não adiantava lamentar-se. . .

O carro de John Howard era um caminhão coberto de poeira, mas apesar de sua aparência castigada funcionava magnificamente. Depois de ajeitar as malas na parte traseira, John conduziu o caminhão até uma estrada íngreme que subia a montanha. A temperatura era assustadora, uma espécie de calor úmido que Ruth não conhecia, e ela desejou ardentemente que pudesse suportá-lo. Apesar de manterem as janelas abertas, o ar que entrava era insuficiente para refrescá-los e Ruth abanava-se com as mãos.

John Howard olhou para ela com simpatia.

— Não se preocupe, senhora Hardy. Caracas tem um clima agradável durante a maior parte do ano. É só na faixa costeira que o calor fica tão intenso, mas à medida que formos subindo a montanha a temperatura vai ficando mais agradável.

— E. . . Puerto Roca? — perguntou, com voz fraca.

— Lá também é muito quente. Mas o calor é insuportável só no começo, logo a senhora vai estar acostumada.

Em pouco tempo chegaram a altitudes muito elevadas, de onde se via o mar apenas como uma mancha azul. Então, avistou-se Caracas. Era quase inacreditável encontrar uma cidade com imensos edifícios, avenidas largas e arborizadas, uma verdadeira metrópole industrial e comercial, encravada no seio de uma das montanhas mais altas do mundo. Na periferia da cidade, contrastando fortemente com os edifícios modernos do centro, espalhavam-se os casebres da população pobre. John explicou que se chamavam ranchos, mas que aos poucos estavam sendo substituídos por blocos de edifícios que proporcionariam moradia decente para todos os habitantes.

A área industrial por onde haviam passado deu lugar a uma larga avenida ocupada por edifícios de escritórios. O tráfego ali era mais intenso e, mesmo com o calor escaldante da tarde, multidões imensas inundavam as ruas. Quase todas as pessoas usavam chapéus e Ruth lembrou que não podia esquecer de comprar um sombrero. Ficou aliviada ao ver que a temperatura não se elevou quando o carro diminuiu a marcha. Observou com interesse as diferentes tonalidades de peles e os variados modelos de roupas da população. Algumas índias carregavam nas costas seus bebês, e algumas estudantes, acompanhadas de uma freira, viraram-se para admirar o belo cabelo loiro de Ruth, rindo e fazendo comentários entre si. À distância, do lado Norte da cidade, viam-se as sombras azuis das montanhas, que desapareceram assim que John deixou o principal corredor de trânsito, parando diante de um hotel imponente.

Um recepcionista uniformizado veio abrir a porta do carro. Assim que pisou no chão de mosaico Ruth sentiu novamente o calor sufocante e entrou rapidamente no vestíbulo refrigerado.

John retirou as malas do carro e, depois de entregá-las ao carregador, virou-se para Ruth.

— O quarto já está reservado. Tome um banho e logo se sentirá mais à vontade.

Ruth hesitou. Embora tivessem falado pouco durante a viagem, John era o único elo que a ligava a Patrick e não queria perdê-lo de vista,

— Para onde vai?

— Tenho alguns compromissos, madame, mas estarei de volta mais tarde para jantarmos juntos.

— Não vai ficar hospedado aqui?

— Não. — John olhou significativamente para a suntuosa fachada do hotel. — Não, madame, mas a senhora estará bem servida aqui.

— Não duvido — concordou, olhando meio sem jeito para o recepcionista. — Mas prefiro ficar no seu hotel.

— Não. Recebi instruções para trazé-la para cá, madame, e foi o que fiz. Como expliquei, logo voltarei...

Sem ouvir o resto, Ruth inclinou-se e pegou as malas, lançando um sorriso de desculpas ao recepcionista.

Escandalizado, John tentou tomar as malas dela.

— Não devia fazer isso, madame! — exclamou exaltado. — Não nas suas condições!

— Minhas condições? — Ruth olhou-o zangada. Pensou que Patrick fosse manter segredo sobre sua suposta condição. Sem coragem de protestar, deixou que ele pegasse as malas. — Está bem — concordou. — Pode levar as malas, mas não pretendo passar a noite aqui.

Sentiu pena da confusão de John, mas foi irredutível. Sem dúvida pensava que ela era louca por se recusar a ficar num hotel de tanta categoria. E talvez fosse mesmo, mas não queria começar a vida ali na Venezuela em padrões tão superiores aos que teria depois. Incapaz de convencê-la, John pediu desculpas ao confuso recepcionista e levou as malas para o carro.

— Pat não vai gostar disso.

— Desculpe, explicarei a ele que a culpa foi minha.

— Não é isso! — John deu partida no carro com violência. — Só quero que a senhora pense melhor.

Ruth pousou sobre ele os olhos verdes.

— Por quê? Vou deixá-lo embaraçado?

— Não, claro que não. Vamos então para meu hotel?

— Se não tem nenhuma objeção.

— Nenhuma. — E deu de ombros.

O hotel ficava na parte mais antiga da cidade e sua antiga arquitetura espanhola não era mais que uma lembrança. Tinha sido quase que completamente destruído pelos violentos terremotos que assolaram a cidade nos séculos XVIII e XIX.

Seu quarto, simpático e acolhedor, dispunha de um ventilador para suavizar um pouco a temperatura ambiente e ficava voltado para um jardim localizado na parte traseira do hotel. As flores que Ruth pôde identificar, tais como jasmim e buganvílea, eram obscurecidas por outras mais exóticas e pelos cachos amarelos que pendiam de uma árvore próxima. Pequenos pássaros coloridos voavam livremente pelo jardim, enchendo o ar com o som do seu canto alegre.

Depois de certificar-se de que o quarto era do gosto de Ruth, John saiu para cuidar dos negócios, deixando-a livre para tomar um banho refrescante e deitar um pouco. Mais tarde ela vestiu uma túnica verde -água e foi encontrá-lo no restaurante para o jantar.

Durante a refeição fez perguntas sobre Puerto Roca.

— O que quer saber? — perguntou ele, surpreso. — Com certeza Pat já lhe disse tudo.

— Bem.. , sim e não. — Tentou encontrar um bom argumento. — Gostaria de saber as suas impressões.

— É uma aldeia típica, sem aspectos que chamem muito a atenção. Existem casas para os que preferem maior intimidade, e os outros vivem no clube. Eu, por exemplo, vivo no clube.

Ruth ouvia com atenção. Imaginou que John ficaria surpreso se soubesse que Patrick não lhe tinha contado quase nada sobre a casa e as redondezas.

— Também há uma piscina no clube. — Ficou vermelho. — Mas não creio que a senhora tenha a intenção de nadar muito.

— Por que não?

— Bom, a senhora pode, isto é, a senhora nada?

— Refere-se a. . . à minha condição?

— Isso mesmo.

— Não se preocupe. Minhas atividades serão normais ainda durante alguns meses.

— Também temos uma loja que vende quase de tudo, um hospital e uma igreja. Além disso não há quase mais nada. É uma vida difícil, mas gostamos de lá.

— E   onde   fica   Puerto   Roca   exatamente?   Patrick   falou   de Maracaibo. . .

— O lago ou a cidade? Nossa aldeia fica no extremo Sul do lago, a alguma distância de Maracaibo. Os recursos são poucos, mas temos nossa própria refinaria, que atende a todas nossas necessidades, e um magnífico laboratório, que é onde Pat trabalha. A maior parte do óleo é levada para Maracaibo, mas o que resta é suficiente para nós.                                                                

— Então Pat poderia trabalhar em Maracaibo?

— Ele trabalha lá de vez em quando, mas sua pesquisa é feita principalmente em Puerto Roca.

A esperança de Ruth se desfez.

— E você, em que trabalha?

— Sou engenheiro, madame. Vai encontrar muitos por lá. Meu trabalho é fazer com que o óleo flua pelos canos. — Sorriu. — Mas não vamos falar de petróleo toda a noite.

— Está bem. — Ruth se descontraiu. — Pode me chamar de Ruth. Sinto-me uma anciã quando me chama de madame.

— Garanto que não parece uma anciã. Que tal achou seu quarto?

— Ótimo. Gostei muito. — Examinou o pequeno restaurante com evidente prazer. — Como são lindas essas divisões e essas flores. . .

— Suspirou satisfeita. — Não pensei que fosse tão bonito isso aqui. John tomou um gole de vinho e acrescentou:

— Mas não pense que Puerto Roca é como Caracas. Não há a menor semelhança.

— Está tentando me desanimar?

— Claro que não! — John parecia desconcertado. — É que geralmente as pessoas levam tempo para se acostumar. Mas você tem sorte. Sendo recém-casada tudo deve parecer maravilhoso.

— É verdade. — Ruth não estava tão certa.

— Conhece Pat há muito tempo?                                              

— Não, não muito. Mas acho que o tempo não importa muito.  

— Acho que não.

— O que é isso? — Ruth apontou para o prato, mudando de assunto.

— Chama-se hallaca. Gosta?

— Não sei. São folhas de banana?

— Sim. É uma mistura de carne de boi, porco e presunto. É um prato típico e um dos menos condimentados, por isso achei que seria ideal como introdução à comida venezuelana.

— Gosta da comida daqui? — Ela sorriu.

— O cozinheiro do clube é mexicano, mas viveu algum tempo na Europa, assim temos uma mistura de cozinha local e continental. Se você mesma vai cozinhar, naturalmente poderá escolher entre a comida européia e a venezuelana.

— Não estou com muita fome. — Ruth afastou o prato.

— Deve estar cansada por causa da viagem.

— Não, nem um pouco. — Se fosse para a cama agora não ia conseguir dormir. — Onde vamos depois do jantar?

— Acho que Pat gostaria que você descansasse.. .

— John, meu pai insistiu em que eu fizesse a viagem por etapas. Ontem voei para o Canadá, onde passei a noite com ele e hoje vím para Caracas. Não me sinto nem um pouco cansada.

— Está bem. Quer dar um giro pela cidade?

— Podemos? — Os olhos dela brilharam.

— Não vejo por que não. — Sorriu. — Muito bem, vamos visitar a cidade como um casal de turistas.

Foi uma noite maravilhosa. Estava muito mais fresco agora que durante o dia, por isso Ruth precisou colocar um xale nas costas. Caminharam quilómetros da cidade velha até o deslumbramento ultra-moderno da cidade nova. Visitaram o complexo de lojas e escritórios do Centro Simon Bolívar e depois subiram ao monte Ávila, de onde tiveram uma vista noturna da cidade. Tomaram um drinque no bar antes de retornar ao hotel.

— Durante o dia é possível chegar a Galípan caminhando pela floresta — disse John, quando desciam pelo teleférico.

— Galipan? — Ruth franziu a testa. — O que é isso?

— É um centro de flores muito bonito.

— E essa floresta que você mencionou? — Ruth sorriu. — Devo parecer terrivelmente ignorante, não, John?

— Claro que não! — Ele apressou-se a contestá-la. — A floresta está constantemente coberta por uma fina camada de névoa e é rica em musgos de toda a espécie,

— Obrigada por ser tão gentil comigo.

John tornou a ficar vermelho. Ruth percebeu que era fácil deixá-lo embaraçado.

— Não é nada. É fácil ser gentil com alguém como você.

De volta ao hotel, Ruth desejou boa-noite a John e foi para o quarto, mas não conseguiu dormir. Milhares de idéias giravam na sua cabeça enquanto ela caminhava de um lado para outro. Chegou até a janela e aspirou o perfume das flores, tentando imaginar onde estaria no dia seguinte àquela hora. Como seria a casa de Patrick? Como ele reagiria ao vê-la? Será que dormiriam numa cama de casal ou só haveria camas simples?

As perguntas se acumulavam em seu cérebro, deixando-a cada vez mais agitada. Se ao menos Patrick fosse mais previsível, mais parecido com John Howard!

Sacudiu a cabeça com impaciência. Que idéia mais sem sentido! Se Patrick fosse como John Howard ela nunca teria se sentido tão loucamente atraída por ele, tão ansiosa para tê-lo como marido. Se tivesse casado com alguém como John, seriam ambos infelizes,

tinha quase certeza.

Não. Amava Patrick pelo que ele era, mas será que ele a amava também?

 

Partiram no dia seguinte logo depois do café da manhã, chegando a Maracaibo no fim da tarde e a Puerto Roca no começo da noite. Ruth, embora estivesse usando roupas leves de algodão, sentia-se irritada por causa do calor e limpava a todo momento as enormes gotas de suor que lhe escorriam da testa. As janelas abertas do carro permitiam a entrada de um pouco de ar fresco, mas deixavam entrar também ondas de poeira.

— Logo estaremos lá — disse John confortadoramente, tentando atrair a atenção dela para a imensidão do lago. — Há centenas de córregos e rios que desaguam no lago, vindos da Serra de Perija e dos Andes. Muitos peritos afirmam que Maracaibo não é um lago, mas um rio, pois corre em direção ao mar do Caribe, coisa que não acontece com os outros lagos.

— A água é doce?

— Na parte Sul, sim. No ponto em que se une ao mar está sujeito às marés e suas águas se misturam à água salgada.

A floresta de torres de petróleo que se espalhava pelo lago parecia vagamente ameaçadora à luz fraca do entardecer. Embora fossem apenas seis horas já era quase noite. Essa foi uma amostra das grandes diferenças a que Ruth teria que se acostumar.

Já estava completamente escuro quando chegaram a Puerto Roca. Das janelas iluminadas das casas vinha o som dos rádios ligados.

Era difícil formar uma idéia sobre o local e, na verdade, Ruth sentia-se cansada demais para isso. Sonhava com um belo banho e uma cama macia onde pudesse descansar o corpo exausto.

Notando o cansaço de Ruth, John não a perturbou mais com explicações e perguntas.

As luzes do caminhão iluminaram as fileiras de bangalôs iguais que ladeavam a estrada. John finalmente parou diante de um deles.

— Cá estamos! — anunciou sorrindo, antes de tocar a buzina e saltar do carro.

Ansiosa, Ruth olhou na direção do bangalô, esperando que Patrick saísse para saudá-los com alegria. Como não apareceu ninguém, ela abriu a porta e saiu com passos meio vacilantes.

Suas pernas estavam rígidas e suas costas doíam terrivelmente, mas tudo isso era nada diante da decepção que sentia por não ver Patrick.

Também um pouco decepcionado, John subiu a escada com passadas rápidas e bateu na porta. Devia haver alguém em casa, pois as luzes estavam acesas.

A porta se abriu logo em seguida e Ruth parou, petrificada, ao ver aparecer uma garota esbelta e de cabelo escuro. Quem seria ela? Será que John tinha se enganado de casa? Virou-se para o seu acompanhante, mas ele apenas sacudiu a cabeça e disse friamente:

— Oi, Elena. Onde está Pat?

A moça morena hesitou um pouco. Quem seria e o que estaria fazendo na casa de Patrick?

— Patrick foi para Maracaibo — respondeu com voz pouco amigável. — Foi procurar vocês!

— Procurar-nos? Por quê? — perguntou John, surpreso.

— Estava preocupado porque a. . .   senhora não passou a noite no hotel.

— Meu Deus! — John passou a mão pelo cabelo molhado de suor. — Como ele soube?

— Telefonou para lá, é claro. — A moça olhava para Ruth com insolência e admiração ao mesmo tempo. — E ela não estava.

— Posso explicar... — disse Ruth meio sem jeito, mas John a interrompeu.

— Não há necessidade, Ruth. Quando Pat voltar explicamos a ele. — Virou-se para a garota venezuelana. — Quanto tempo faz que ele saiu?

— Pouco tempo, mas deve voltar logo.

— Está bem. — John apoiou-se no batente da porta. — Muito obrigado, Elena. Pode ir agora.

Elena não se mexeu. Era muito bonita, mas seu rosto estava contraído de raiva,

— Patrick pediu que eu ficasse até ele voltar.

— Ele não sabia que íamos chegar antes — explicou John com frieza. — Olhe, a senhora Hardy está cansada e com calor. Se quer ser útil, ponha uma chaleira no fogo para fazer um pouco de chá. Ruth ia replicar quando Elena disse:

— Não sou empregada e não faço café na casa de outra mulher! — precipitou-se escada abaixo sem ao menos lançar um olhar para Ruth.

Sentindo-se uma estranha em sua própria casa, Ruth virou-se para John:

— Desculpe. . .

— Eu é que tenho que pedir desculpas — exclamou, fazendo um sinal para que ela entrasse. — Diabos, que acolhida!

O primeiro cômodo era uma sala imensa, dividida em sala de estar e uma pequena sala de jantar ao fundo. O mobiliário consistia em um sofá grande, duas poltronas e algumas esteiras pelo chão. A mesa e as cadeiras também eram muito simples e aparentavam não receber polimento há muito tempo. Embora Ruth tivesse poucos conhecimentos sobre trabalhos caseiros, a escola cara que tinha frequentado dera um curso detalhado sobre manutenção de uma casa, e a maneira de verificar se os criados estavam fazendo o serviço adequadamente. Ao pensar nisso não pôde deixar de sorrir, apesar da dramaticidade da situação. Aqui, é óbvio, se quisesse que o serviço fosse feito teria que fazê-lo ela própria, mas não permitiu que essa idéia a deprimisse mais do que já estava por causa de Elena.

John tinha acabado de colocar as malas no chão quando ouviram o som de um carro lá tora. Uma porta bateu e passos soaram na escada antes que Patrick surgisse na porta.

— Elena... — Nesse momento viu Ruth e lançou-lhe um olhar que a deixou gelada.

— Oi, Patrick! — murmurou ela, olhando para John em busca de apoio. — Estou aqui!

— Estou vendo... — Patrick olhou-a com perturbadora intensidade e depois disse ao outro homem: — Diabos, onde foi que vocês estiveram? Fiquei quase louco de preocupação!

— Eu sei, eu sei. — John estendeu a mão conciliadoramente. — Elena nos disse. Desculpe, Pat, mas nunca pensei que você fosse telefonar para o hotel.

— Foi culpa minha — interrompeu Ruth. — Não queria ficar sozinha naquele lugar e fiz John me levar para o hotel dele.

— Sei. — Patrick lançou um olhar frio e cortante para a esposa.

— Diabos, Pat, não sei o que dizer. — John estava visivelmente aborrecido. — Tudo que posso fazer é me desculpar.

— Está certo, John. Desculpe se ofendi você, acho que estou um pouco cansado

— Não tem importância. Agora vou indo. Vocês devem ter muita coisa para conversar. . .

— Não, fique, John... — disse Ruth, assustada com o olhar de Patrick. — Fique e tome alguma coisa conosco. . .

— Não, obrigado, preciso ir. — Caminhou até a porta. — Vejo vocês amanhã.

— Boa noite. .. e obrigada novamente.

Ruth deu um sorriso meio apagado e ele se afastou depressa.

Finalmente estavam a sós. Sem saber o que dizer, Ruth olhou para o marido. Ele ficava muito bem com a calça justa e as botas de cano longo. Tinha a camisa aberta no peito mas não parecia sentir tanto calor quanto ela e sua atitude não contribuía nem um pouco para esfriar o ambiente.

— Como vai? — disse ela, por fim.

Ele jogou as chaves do carro sobre a mesa.

— Bem — respondeu sem entusiasmo, mas percebendo que estava sendo grosseiro acrescentou — Você deve estar cansada e com calor. Por que não toma um banho enquanto faço um chá?

— Seria ótimo. — Ruth passou a língua pelos lábios secos. Será que ele não ia ao menos dar-lhe as boas-vindas, demonstrar algum gesto carinhoso de alegria pela sua chegada?

À direita do vestíbulo de entrada havia um corredor que conduzia ao fundo da casa. Patrick indicou uma porta no fim do corredor.

— O banheiro é ali. Pode tomar banho quente ou frio, como preferir. Temos nosso próprio sistema de aquecimento da água, mas não a coloque na boca nem mesmo para escovar os dentes. Para beber, deve ser sempre fervida.

— Está bem. — Ruth pegou sua maleta. — Onde fica nosso quarto?

— Aqui. É aqui que vamos dormir. O cômodo ao lado é uma espécie de quarto de vestir. Há uma cama lá para as emergências.

Ruth pensou que espécie de emergência seria aquela, mas não ousou perguntar.

O quarto era mobiliado com tanta simplicidade quanto a sala. Havia um guarda-roupa grande e antigo, uma penteadeira e uma cama de casal. Uma grande proteção de filó branco cobria a cama e Ruth sentiu um calafrio ao pensar na sua utilidade.

Depois de examinar o quarto foi para o banheiro, mas quando parou na porta e olhou para trás Patrick não estava mais lá.

O banheiro não era uma maravilha, mas podia ser usado sem repugnância. O chuveiro era uma peça de plástico que levava algum tempo para ser regulada, mas a pouca água que saía dele foi suficiente para refrescar o corpo de Ruth, fazendo desaparecer aquela sensação pegajosa.

Vestiu a túnica que tinha usado na noite anterior, sem se preocupar em maquilar-se. Escovou vigorosamente o cabelo e em seguida colocou o pente e a escova sobre a penteadeira, ao lado da escova de Patrick.

Voltando à sala, encontrou a mesa posta para dois e sentiu o cheiro gostoso de omelete vindo da cozinha. Seguindo o cheiro chegou à cozinha, relativamente moderna, com fogão a gás e até uma pequena máquina de lavar.

Patrick estava ocupado retirando a omelete da frigideira e ajeitando-a numa travessa enfeitada com salada. Ruth ficou parada na porta, sem saber o que fazer, até que ele levantou os olhos e viu-a ali parada.

— O que conteceu a noite passada? — perguntou, com voz áspera.

— John já disse. Fui para o hotel dele. Ela encolheu os ombros.

— Desde quando o chama de John?

— Patrick, francamente! — Fez um gesto de impaciência. — Por que não posso chamá-lo de John? Pensei que fosse seu amigo. Até contou a ele sobre. . . sobre.. .

— Sobre a sua gravidez? Claro! Não queria me arriscar a que ele... — Olhou-a fixamente. — O que fizeram depois?

Ruth ficou vermelha e respondeu com raiva: — Fomos conhecer a cidade. O que esperava, que ficássemos a noite toda olhando para as paredes?

— Não, não esperava isso. — Patrick enxugou as mãos.

Ruth suspirou. O que estaria acontecendo agora? Por que ele a estava tratando dessa maneira?

— Você parece muito nervoso! E eu, como acha que me senti quando cheguei aqui e encontrei outra mulher?

— Outra mulher? — Os olhos de Patrick contraíram-se. — Está falando de Elena?

— Como ela foi a única mulher que vi por aqui desde que cheguei, é claro que estou falando de Elena!

— Elena não é uma mulher, é uma criança!

— É mesmo? — Ruth lutou para manter a calma, mas as lágrimas ameaçavam explodir nos seus olhos. Tinha tido um dia tão exaustivo! — Mas não pode negar que ela fala de você com muita familiaridade.

— O que quer dizer com isso?

Ruth não conseguiu dizer mais nada, Ficou ali parada, com uma sensação de frustração e impotência, imaginando como podia continuar a amá-lo depois de ser tratada com tanta grosseria. Que começo!, Estavam juntos há menos de uma hora e já tinham começado a gritar um com o outro.

Respirou fundo e voltou para a sala de jantar. Tinha esperado, tanto por esse momento, pelo reencontro com Patrick! Nem mesmo os conselhos do pai e a garantia de que podia voltar para casa se tudo desse errado tinham diminuído seu desejo de ver o homem que amava. E agora.. .

— Ruth! — O grito de Patrick fez com que ela olhasse para trás. Ele estava parado na porta e seus olhos brilhavam de raiva. — Não me vire mais as costas quando estiver falando com você!

— Por que não? — perguntou com voz trêmula. — Por que sou obrigada a ficar ouvindo você me acusar por ter sido gentil com o homem que você mandou para representá-lo?

— Mandei-o para buscá-la, não para me representar!

— Não seja tolo! — Continuou de costas para ele e inclinou a cabeça, sem se importar com o cabelo que caiu sobre seus olhos. — Ele foi muito delicado comigo. . . muito mais do que você está sendo!

Sua voz morreu na garganta e ela precisou fazer um esforço sobre-humano para não chorar na frente dele.

— Ruth. . .

— Por favor, não fale mais nada! — gritou. — Saia e deixe-me sozinha!

Mas Patrick não saiu. Atravessou a sala e parou a seu lado. Ela podia sentir a respiração dele na nuca.

É agora, pensou, com o coração batendo furiosamente.

— Desculpe — disse ele finalmente, com voz quase inaudível. — Fui um estúpido.

— Foi sim. — Ruth não olhou para ele.

— Você me perdoa?

— Por que devia perdoá-lo? — Recusava-se a ceder tão facilmente.

— Ruth, por favor!

Esse gemido atormentado provocou calafrios na espinha de Ruth. As mãos de Patrick fecharam-se sobre os ombros dela, descendo possessivamente pelos braços e apertando-a contra o próprio corpo com uma força a que ela não procurou resistir. Beijou a pele clara do pescoço delicado, sem conseguir esconder a urgência do desejo que o consumia. As mãos dela, estendidas ao longo do corpo, encontraram os músculos rijos das coxas do marido. Ele a virou nos braços e procurou-lhe a boca com sofreguidão, pressionando o corpo contra o dela. Cessou todo o desejo de lutar e ela se entregou completamente, oferecendo os lábios abertos e famintos. Desapareceram todos os pensamentos coerentes e restou apenas o desejo sensual que só aquele homem podia satisfazer.

Ele estava trêmulo quando se afastou um pouco e a olhou com os olhos em chamas.

— A comida... — murmurou, devorando-a com os olhos.

— Não estou com fome. . .

— Eu estou. . . mas de você! — Ergueu-a nos braços. — Queria feri-la porque estava com ciúmes! Sinto ciúme de qualquer homem que olhe para você! Meu Deus. . . Ruth, ajude-me. . . deixe-me amar você...

Carregou-a até o quarto e colocou-a delicadamente sobre a cama, inclinando-se para beijá-la outra vez. Tornou a levantar e, quando ela protestou, respondeu:

— Espere um pouco.

Ruth ficou ali deitada num estado de torpor até que ele voltou com os cabelos malhados pelo banho e um roupão em volta do corpo nu. Ele deitou ao lado do corpo palpitante e afundou o rosto nos cabelos macios e sensuais da esposa.

Quando Ruth acordou o quarto estava escuro e por alguns instantes não conseguiu lembrar onde estava. Então subitamente seu cérebro clareou e estendeu a mão à procura do corpo macio de Patrick.

Mas ele não estava. Estava sozinha na cama, envolta em um lençol branco. Levantou assustada e procurou distinguir a figura dele no escuro. Estava parado perto da janela e na sua mão via-se o brilho fraco da ponta de um charuto.

Por alguns instantes ficou parada adorando-o. Tinha sido tão delicado com ela, tão compreensivo, e apesar disso tão exigente na posse. Para ela tinha sido uma experiência dolorosa que, de repente, milagrosamente, se transformara em algo muito bom e muito belo. No princípio sentiu medo, ansiedade e foi incapaz de relaxar, mas aos poucos Patrick despertou nela uma força desconhecida que neutralizou a dor e a fez entregar-se totalmente, fundindo-se com ele, seu marido, o homem que a possuíra pela primeira vez.. .

Estendeu a mão em busca do penhoar, afastou o cortinado e desceu da cama. Ouvindo o ruído, Patrick se virou para olhá-la, mas ela não pôde ver a expressão do rosto dele.

— Querido? — chamou. O que está fazendo? Não consegue dormir? Patrick caminhou até a parede ao lado da porta e acendeu a luz.

O brilho deixou-a cega por uns instantes, mas logo ela pôde ver novamente e percebeu o desprezo no olhar dele.

— Por que fez isso? — perguntou ele, — Imaginou que eu não descobriria a verdade?

De repente, sem a menor razão, Ruth sentiu-se envergonhada pela transparência da camisola.

— Eu. . . eu não sei do que você está falando. . .

— Sabe sim. Estou vendo no seu rosto. Peto amor de Deus, Ruth, não entende que um homem sabe quando está fazendo amor com. . . com uma virgem?

— Sim. . . sei. . . — Ruth cerrou os pulsos.

— Então por que fez isso?                                                  

— Queria. . . casar com você.

— Meu Deus! E pensar que fui um estúpido em acreditar! Ruth tentou convencê-lo.

— Isso tem tanta importância?

— Diabo, claro que tem! — Estava furioso. — Você me fez de idiota!

— Não fiz...

— Sim, fez. Então era por isso que não queria que mencionasse o fato a seu pai. Ou ele sabia de tudo?

— Não!

— Você me surpreende. Ele certamente faria qualquer coisa para dar a sua preciosa filha o que ela desejava!

— Patrick! — gritou desesperada.

— É isso, não é? — Começou a andar de um lado para outro, agitado. — Meu Deus, e pensar que acreditei em você! Pensei realmente que estivesse grávida!

— Porque achava que eu era capaz de qualquer coisa. Jamais teria acreditado que não estive com outros homens, não é?

Patrick parou e olhou fixamente para ela.

— E acha que isso justifica o que fez?

— Não justifica?

— Não! — Aproximou-se dela de dedo em riste. — Obrigou-me a casar sob falsos pretextos. Sabia que em outras circunstâncias eu não teria concordado.

— Patrick! — As palavras eram uma terrível agonia depois da sensação maravilhosa que experimentaram juntos. — Não diga isso!

— Por que não? É a verdade, e você sabe disso.

— Então por que você não. . .

— Por que eu não o quê? Por que não parei assim que suspeitei da verdade? É isso que quer saber? Meu Deus, Ruth, sou um homem, não uma máquina. E você é uma mulher bonita e desejável! Não sabe que existe um ponto depois do qual não se pode voltar? Pois fique sabendo que existe!

— Por favor — pediu. — Não seja assim!

— E como espera que eu seja? — Afastou-se dela com violência.

— O que pretende fazer? — A voz dela era inaudível.

— Não sei ainda. Não sei o que posso fazer.

— Vou voltar para a Inglaterra. — Ruth respirou agoniada.

— Não! — Virou-se para ela, com os olhos faiscantes. — Não, isso você não vai fazer.

— Mas. . . mas por quê? Se está arrependido de ter se casado comigo...

— Meu arrependimento não tem nada a ver com isso. Você me fez de idiota, Ruth, mas garanto que não vai me transformar em motivo de riso para os outros.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que as pessoas daqui. . . meus amigos, meus colegas. O que acha que vão pensar se você arrumar as malas e partir um dia depois de chegar?

A decepção tomou conta de Ruth. Ele não se importava com ela. Importava-se apenas com o que as pessoas iam pensar.

— Não me importo com as pessoas — declarou, revoltada.

— Talvez não. — Veio em direção a ela. — Mas avisei-a antes do casamento de que não tinha intenção de me divorciar. Estamos casados e vamos continuar assim.

— Não pode me obrigar a ficar aqui. — A voz dela tremia.

— Acha que não? — Olhou-a com desprezo. — Fique avisada: se for embora vou buscá-la onde estiver, à força se for preciso. Uma boa surra é o que você devia ter levado alguns anos atrás, mas seu pai foi muito condescendente com a filhinha.

Incrédula, Ruth olhou para ele.

— Não tem o direito de falar assim comigo!

— Aqui neste lugar o tempo não passa. Saiba que sou de cumprir o que prometo.

Ruth respirava com dificuldade. Não tinha outro remédio senão acreditar nele. A raiva que via em seus olhos convencia-a de qualquer coisa. Mas não conseguia deixar de amá-lo, apesar da maneira que ele a estava tratando...

— Patrick... — insistiu, mas ele não quis ouvi-la.

— Volte para a cama — disse com voz ríspida, apagando a luz e acedendo o abajur.

— Não — respondeu, com trêmula dignidade. — Não pode me dar ordens.

— Não mesmo?

Alarmada, Ruth tentou afastar-se quando ele se aproximou. Ignorando a fraca resistência, Patrick a ergueu nos braços e levou-a até a cama, onde a colocou, sem a delicadeza da vez anterior.

Tentou endireitar o corpo, mas os braços de Ruth envolveram firmemente seu pescoço, e quando tentou protestar ela lhe fechou a boca com um beijo. Durante um momento ele resistiu, mas seu roupão se abriu e ele sentiu o calor do corpo macio que se apertava contra o seu.

— Ruth! — gemeu cheio de prazer e então foi ele quem a abraçou, comprimindo-a contra os lençóis macios, incapaz de rejeitar aquele corpo que lhe pertencia. . .

 

Ruth acordou na manhã seguinte com uma estranha sensação de lassidão e ficou deitada durante muito tempo relembrando os acontecimentos da noite anterior. Só então percebeu que estava muito calor e que os raios do sol chegavam até a interior do quarto, embora as persianas estivessem fechadas.

Ao perceber que estava sozinha na cama foi invadida por uma sensação de desamparo e estendeu a mão para pegar o relógio no criado-mudo. Ficou horrorizada quando descobriu que já eram dez horas. Tinha intenção de levantar junto com Patrick todas as manhãs e preparar ela própria o café, mas a essa altura ele já devia estar trabalhando.

Levantou-se depressa e correu a abrir as janelas. Sofreu um choque ao receber um jato de ar quente, mais logo se recuperou e deu a primeira olhada no povoado de Puerto Roca.

Parecia uma vila como qualquer outra, com a única diferença de que as casas eram pré-fabricadas e comparativamente modernas na arquitetura. O bangalô de Patrick ficava no alto de um caminho que John tinha percorrido na noite anterior e era ladeado por outros bangalôs iguais. Logo abaixo da janela viu um jardim exótico e percebeu imediatamente que alguém tinha se dado ao trabalho de manter certa ordem no crescimento desordenado das flores e da vegetação.

Não havia ninguém por ali, mas umas roupas estendidas no varal da casa da frente fizeram-na lembrar que de agora em diante todo o serviço da casa ficava por sua conta.

Escovou apressadamente os cabelos e saiu descalça para o corredor.

— Patrick! — chamou, pensando que talvez ele ainda estivesse em casa. — Patrick, onde eslá você?

Não ouvindo resposta, suspirou e foi até a cozinha.

Por onde começar? Parecia haver tantos pratos e panelas e eles nem sequer tinham comido no dia anterior!

Estava juntando os pratos na pia quando ouviu uma batida na porta. Esperançosa de que fosse Patrick para verificar se ela estava bem, correu até a porta, mas ficou decepcionada ao ver uma mulher estranha. Devia ter uns quarenta anos e arregalou os olhos ao ver a camisola transparente de Ruth. Protegendo-se do sol com o braço, abriu a porta.

— Bom dia.

— Bom dia. — A mulher deu um passo adiante e Ruth teve que abrir a porta para que ela entrasse. — Deve ser a senhora Hardy. Sou Judith Cárter. Meu marido é colega do seu.

— Colega? — Ruth franziu a testa.

— Sim. — Judith lançou um olhar curioso pela sala. — Imagino que cheguei em má hora...

Ruth sabia que precisava fazer um esforço para ser gentil.

— Não, de maneira alguma. Entre, por favor. Sente-se. Quer tomar um café? — Enquanto dizia isso rezava para que a outra recusasse, pois ainda não sabia onde Patrick guardava as coisas.

Suas preces foram ouvidas, porque Judith realmente recusou. Com um sorriso muito branco, disse:

— Não, obrigada. Não quero atrapalhar seu trabalho...

As palavras, pensou Ruth, tinham sido mal escolhidas, pois a mulher certamente percebeu que ela estava acabando de se levantar. Ruth tentou sorrir e Judith continuou:

— Como estava dizendo, não quero interrompê-la. Vim apenas convidar vocês dois para uma festinha hoje à noite no clube. Uma pequena comemoração de casamento. Um pouco atrasada, talvez, mas antes tarde do que nunca.

Ruth esfregava as mãos nervosamente.

— É muita gentileza sua, mas. . .

— Mas nada. Pat não pode guardá-la só para ele. Não é todo dia que temos uma mulher nova no acampamento. Há poucas de nós aqui e estamos todas morrendo de vontade de conhecê-la.

— Não sei o que meu marido vai fazer esta noite.

— O mesmo que faz todas as noites. Ficar em casa ou ir até o clube. Não se preocupe, porque ele não deve ter nenhum compromisso.

— Acho que não. — Ruth revirou a memória à procura de uma desculpa convincente, mas não encontrou. — Vou transmitir seu convite a ele.

— Bertie vai fazer isso, não se preocupe. Quando voltar para casa já estará sabendo da festa.     — Bertie?

— Meu Bertie.   Herbert Cárter.   Vai conhecê-lo esta noite. — Judith passou a mão pelo cabelo castanho. — É melhor eu ir. Você deve ter muita coisa para fazer. Mas não se exceda, está bem? — Ruth não entendeu.

— Por quê?

— Ora, não quer sofrer um desmaio por causa do calor, não é mesmo?

— Não, claro que não. — Ruth sentiu-se ridícula, mas por um momento pensou que essa mulher sabia das razões pelas quais se casara com Patrick.

— Bem, já vou indo. Vejo você mais tarde.

— Espero que sim. — Ruth fechou a porta à chave assim que a visita indesejada saiu e foi tomar um banho.

Não tinha a menor idéia sobre o horário de Patrick, pois ele não lhe contara nada sobre sua rotina de trabalho, e ficou em dúvida se devia preparar alguma coisa para o almoço.

Na hora do almoço sentia-se fraca e com muito calor e só então percebeu que não tinha comido nem bebido nada durante toda a manhã. Tinha estado tão ocupada tentando colocar um pouco de ordem na cozinha antes da chegada de Patrick, que esqueceu completamente de si própria. Nas atuais circunstâncias não era de estranhar, pois estava acostumada a que as outras pessoas atendessem a todos os seus desejos.

Colocou a chaleira no fogo e esperou com impaciência até que fervesse. Estivera ocupada toda a manhã e não tinha tido tempo para pensar, mas agora sentia uma profunda ansiedade. Não adiantava fingir que a situação entre ela e Patrick estava como queria. O fato de ele tê-la amado com paixão na noite anterior não significava que a tivesse perdoado.

Foi até a janela e olhou para o fundo do bangalô. Não havia muita coisa para ver, pois a casa de Patrick era uma das últimas e pouco adiante começava a floresta. Suspirou. O que iria acontecer agora? Patrick tinha dito que não daria o divórcio a ela, que não a deixaria voltar para a Inglaterra, mas por quê? Com certeza para humilhá-la, pois não parecia homem de se importar com a opinião das outras pessoas.

Passou a mão pela testa e sentiu-a queimar. Respirou fundo, tentando aspirar um pouco da frescura do ar, mas tudo que conseguiu sentir foi a umidade da atmosfera e uma sensação de desconforto.

Sentiu um desfalecimento e agarrou-se à pia, que era o objeto mais próximo, tentando acalmar-se. Não havia razão para preocupar-se, disse a si mesma. Era o calor, mais nada. Além do estômago vazio, é claro, mas se ficasse calma o mal-estar logo passaria.

Mas não passou. Ao contrário, ficava cada vez pior, mas não conseguia vomitar porque não tinha nada no estômago. A auto-piedade não era um de seus defeitos, mas naquele momento sentiu muita pena de si própria. O que faria ali sozinha?

Então ouviu um barulho na porta, como se alguém estivesse querendo entrar, e lembrou-se de que fechara o trinco de segurança depois da saída de Judith Cárter.

Cambaleando, tentou chegar até a porta da cozinha, mas não conseguiu. O lugar girava de forma alarmante, como o convés de um navio durante uma tempestade, e ela não conseguiu evitar que lágrimas de frustração lhe escorressem pelo rosto.

A pessoa que tentara entrar foi embora. Se fosse Judith Cárter, novamente, talvez percebesse que havia algum problema. Se fosse Patrick com certeza não desistiria tão facilmente, sabendo que ela estava lá.

Um som fora da casa assustou-a e ela se apoiou contra a porta, apavorada. Patrick entrou e ao vê-la sua expressão mudou da raiva para a preocupação.

— Ruth! — exclamou, segurando-a pelos ombros. — Meu Deus, você parece doente!

— Estou me sentindo terrivelmente mal — murmurou, com voz fraca. — Patrick, acho que vou vomitar...

— Não, não vai. — A voz calma transmitia segurança. Ergueu-a nos braços e levou-a até a cama ainda desfeita.

O rosto dela estava quase tão branco quanto o lençol e o cabelo, empapado de suor. Depois de colocá-la na cama, Patrick não conseguiu mais esconder sua impaciência.

— O que fez para ficar nesse estado?

— Nada. — Ruth limpou o suor da testa com a mão insegura. — Estava colocando um pouco de ordem na cozinha.

— Com esse calor?! — Patrick não conseguiu conter uma exclamação. — Ruth, não percebe que precisa primeiro se acostumar ao clima? Comeu alguma coisa hoje de manhã?

— Esqueci.

— Ora, Ruth! — exclamou com impaciência.

— Desculpe. — Seus olhos encheram-se de lágrimas. — Queria só limpar um pouco a casa. . .

Patrick passou a mão pelo cabelo.

— Devia ter deixado tudo como está.

— Alguém tem que fazer isso. É obrigação minha...

— Não seja tola. — Patrick afastou-se impulsivamente. — Estou tentando convencer a mulher que faz limpeza aqui a vir todos os dias, em vez de só uma vez por semana.

A tontura já estava passando e Ruth ergueu-se.

— Eu posso fazer isso, Patrick.

— E desde quando você sabe cuidar de uma casa? — Seu tom não era delicado.

— Fiz um curso de serviços domésticos!

— Serviços domésticos! — Patrick ergueu a cabeça. — E o que ensinaram lá? Como dirigir os criados?

Ruth deixou-se cair sobre o travesseiro outra vez.

— Não seja sarcástico!

Patrick ia dizer mais alguma coisa, mas virou-se e saiu do quarto, Ruth ouviu-o preparando um chá na cozinha. Ficou ali deitada, sentindo-se totalmente inútil. A calça e a blusa de algodão colavam em seu corpo, dando a impressão de uma segunda pele.

Movendo-se bem devagar, colocou as pernas para fora da cama e levantou-se. Para seu alívio a tontura parecia haver passado completamente.

— Fique onde está!

A voz áspera não admitia desobediência. Virou-se e viu Patrick entrando com uma bandeja contendo duas xícaras. Colocou a bandeja na cama ao lado dela e serviu chá para os dois, indo em seguida sentar-se numa banqueta ao lado da cama.

Ruth sentia-se grata pelo chá, mas ao mesmo tempo envergonhava-se por não ter sido capaz de fazer nem mesmo esse pequeno serviço. Amanhã ele teria um café da manhã decente e nunca mais a veria naquele estado.

— Está se sentindo melhor?

— Sim, obrigada. Você costuma vir almoçar em casa?

— Depende.

— Depende de quê?

— Até agora fazia   minhas   refeições no clube.   Quando tenho muito trabalho, venho em casa tomar um lanche.

— Você não me contou muita coisa sobre sua rotina de trabalho.

— Não houve muito tempo — comentou, com indiferença.

— É, não houve. — Ruth mordeu o lábio inferior. — Mas talvez seja melhor contar agora. Detestaria que alguém me fizesse uma pergunta a qual não saiba responder.

— Sobre o quê? — Patrick olhou-a com dureza.

— Sobre você, é claro. — Ruth não escondia o nervosismo. — Tive uma visita esta manhã.

— Visita? Quem?

— Judith Cárter. Acho que você conhece o marido dela.

— Conheço os dois muito bem. — Patrick terminou de tornar o chá e colocou a xícara no chão. — Bert mencionou qualquer coisa sobre uma festa no clube esta noite, mas não pensei que Judith fosse fazer um convite oficial.

— Você não vai? — perguntou, esperançosa.

— Eu pretendia mesmo levá-la para jantar no clube esta noite — respondeu Patrick, laconicamente. — Acho que seria melhor se jantássemos lá todas as noites, como eu fazia até agora.

— Não! — Ruth ficou revoltada. — Podemos comer aqui. Eu sei cozinhar.

— Sabe? — Patrick parecia cético. — Pelas suas palavras parece que decidiu ficar, então.

Ruth sentiu vontade de vomitar outra vez.

— Quer que eu vá embora?

— Já lhe disse ontem que não vou permitir que faça isso — replicou Patrick, levantando-se. — Só quis dizer que você parece ter aceito a situação.

Ruth não sabia o que dizer. Ele tinha o dom de fazê-la sentir-se totalmente incompetente.

— Onde vai?

— Verificar o que há na cozinha — respondeu, friamente. — Imagino que você queira comer alguma, coisa.

— Eu mesma posso fazer um almoço para nós dois — protestou ela, levantando-se sem muita firmeza.

Patrick começou a recolher as xícaras, ignorando-a.

— Sugiro que você aproveite o dia de hoje para acostumar-se com as coisas aqui — aconselhou. — Posso passar perfeitamente sem uma mulher doente para me atrapalhar.

— Seu. . . seu imbecil! — explodiu ela. Patrick deu de ombros.

— O que esperava de mim? Que a tratasse como futura mamãe? Já esqueceu que não está mais grávida?

Ruth cerrou os punhos, mas não disse nada. Em momentos como esse ela sentia vontade de feri-lo tão profundamente quanto ele a feria. Ele era cruel e desprezível!

Acompanhou-o até a cozinha e ficou olhando enquanto ele abria a geladeira para examinar o que havia lá dentro. Voltou com uma tigela cheia de hervido, nome que a princípio não significou nada para ela, até que descobriu que não passava de sopa com pedaços de carne e vegetais. Patrick pôs a sopa em uma panela e, depois de ligar o fogo, olhou para ela.

— Há uma loja aqui perto que vende quase tudo.

— Eu sei, John me disse. — Assim que viu o rosto dele Ruth arrependeu-se de ter falado.

— Bom, sugiro que façamos algumas compras lá hoje à tarde.

— Está bem — concordou Ruth.

— Que tal usar alguma coisa menos. . . reveladora para sair? — perguntou com ironia, olhando com visível admiração a silhueta que a calça e a blusa de algodão modelavam.

Ruth sentiu que corava, mas recusou-se a deixar que ele percebesse seu embaraço.

— Por quê? Só os homens usam calças aqui?

— Aposto como nenhum homem teria coragem de usar uma calça como essa! — replicou com ironia. — Além disso não são os homens que vão fazer objeçòes.

Ruth cravou as unhas nas palmas das mãos.

— Por que preciso me preocupar com o que as outras mulheres vão pensar de mim?

— Porque eu me preocupo — respondeu Patrick com aspereza.

— Isso se aplica também às roupas que uso em casa? — perguntou com sarcasmo. — Porque saiba que não estava vestida quando a senhora Cárter chegou esta manhã.

Patrick contraiu os maxilares.

— Vá arrumar a mesa! — ordenou, estendendo a ela dois pratos de sopa. Embora quisesse rebelar-se, fez o que ele mandou.

A sopa estava deliciosa e Ruth tomou tudo sem dificuldade. Depois da refeição Patrick deixou que ela fizesse o café. A essa altura o calor tinha aumentado tanto que ela precisou sentar-se, completamente exausta.

Ele começou a examinar alguns papéis que tinha trazido numa pasta. Ruth, procurando manter a voz normal, perguntou:

— Fale-me sobre o lugar onde você trabalha. Posso,ir até lá com você?

Patrick levantou os olhos dos papéis.

— Não, não vou voltar à refinaria hoje. Ruth inclinou a cabeça, pensativa.

— Com certeza acham que quer estar a sós com sua esposa.

— Acho que sim. — O comentário foi seco.

— E você não quer?

— Não me provoque, Ruth. No que me diz respeito, nosso relacionamento está morto, fui claro?

Ruth ficou rígida ao ouvir isso.

— Não está falando sério!

— Estou.

— Mas a noite passada. . .

— A noite passada eu fui um idiota. Não vai acontecer outra vez.

— Mas você me desejou... — disse, quase sem fôlego. Os olhos dele eram frios como gelo.

— É verdade, desejei você. Como disse antes, sou um homem. Mas, da próxima vez que sentir desejo, vou a algum lugar onde possa pagar sem perder minha liberdade.

Ruth ficou terrivelmente ofendida.

— Como tem coragem de me dizer coisas como essa?

— Olhe, Ruth, vamos esclarecer alguns pontos. Estamos casados, e vamos continuar assim, mas, no que me diz respeito, você não é mais que uma pessoa paga para cuidar da casa.

— E se eu me recusar? — Ruth deu um salto, furiosa.

— Acho que já falamos sobre isso a noite passada. — Ele parecia inabalável.

— Não espere que eu concorde em viver assim!

— Por que não? Muitas mulheres vivem.

— Não sou uma das muitas mulheres. — Sou eu!

— Devia ter pensado nisso antes de provocar toda essa confusão. Não tenho pena de você, pois foi você mesma quem procurou sua desgraça.

— Como odeio você! — Ruth engoliu, dolorosamente. — Julie bem que avisou que eu não devia me envolver com você!

— E ela estava certa.

— Patrick, por favor. . .

— Não implore, Ruth. Se tem uma coisa que detesto é ver uma mulher implorando!

Ruth correu para o quarto e atirou-se na cama desfeita, explodindo de auto-piedade. Oh, Deus, pensou, desesperada. Ele realmente a desprezava!

Exausta de tanto chorar, dormiu e só acordou quando Patrick a sacudiu.

— Se quer ir ao armazém é melhor arrumar-se.

Ruth virou de costas na cama, ainda tonta de sono e com os lábios abertos, convidativamente.

— Patrick? — murmurou confusa, estendendo a mão e tocando o braço dele, que se afastou abruptamente, com uma expressão de raiva no olhar.

— Ruth! — exclamou, selvagemente. Ela piscou algumas vezes antes de retirar a mão, já completamente acordada. Mas nesses poucos segundos viu nos olhos dele uma coisa muito diferente da indiferença que procurava demonstrar.

— Não vai se levantar?

Levantou-se depressa, sentindo-se mais disposta e achando o ar muito mais fresco. Espreguiçou-se antes de tirar a roupa e ir para o banheiro.

Quando ela entrou Patrick pôs de lado os papéis e se levantou sem ao menos dirigir-lhe um olhar.

— Vamos. Espero que não se importe de andar.

Antes de chegarem ao armazém encontraram muitos amigos, a quem Patrick a apresentou. Ruth esqueceu quase todos os nomes, mas ficou contente por ter conhecido Pauline Desney, uma jovem americana casada com um dos técnicos do laboratório. Já estava começando a achar que era a única mulher jovem do acampamento. Patrick concordou em vê-los à noite no clube e Ruth desejou ardentemente encontrar forças para agir com naturalidade, agora que sabia dos verdadeiros sentimentos do marido em relação a ela. Patrick não tinha exagerado quando disse que o armazém vendia praticamente de tudo e Ruth ficou em dúvida a respeito de quanto podia gastar. Afinal de contas, era o dinheiro dele que estava gastando, e não o seu próprio, e sentia que o marido jamais aceitaria dinheiro dela. Percebendo sua indecisão, Patrick disse:

— Compre o que quiser, desde que ache necessário. Não sou tão pobre quanto pensa.

Ruth ficou um pouco constrangida, mas logo adquiriu maior confiança e começou a percorrer as prateleiras, enquanto Patrick conversava com o gerente, um venezuelano chamado António Gomez.

Quando voltou à caixa, a cesta estava cheia, e Gomez, olhando maliciosamente para Patrick, comentou:

— Vejo que sua esposa tomou suas palavras ao pé da letra, senor.

— Como vamos levar tudo isso para casa? — perguntou, preocupada.

— Antônio tem um serviço de entregas muito eficiente, querida — respondeu Patrick com suavidade, com tanta suavidade que ela se espantou. Infelizmente logo percebeu a zombaria no olhar dele.

Quando iam saindo, Patrick pegou da prateleira um sombrero e colocou-o na cabeça de Ruth, gritando ao gerente que acrescentasse na conta. O sol ainda brilhava intensamente, mas Ruth já sabia que dentro de uma hora seria noite fechada. Ao menos isso tinha aprendido.

— E então? — perguntou Patrick, quando notou que ela não tinha feito comentário.

— Então o quê?

— Está satisfeita com as facilidades? Ruth deu de ombros.

— Acho que estou. Mas isso tem alguma importância?

 

As atividades proporcionadas pelo Clube Esportivo de Puerto Roca eram muitas e variadas. Além do bar e do restaurante, havia uma enorme piscina, provida de iluminação para os que gostavam de nadar à noite, quadra de tênis, mesas de pingue-pongue e campo de futebol. Às vezes havia bailes no salão de esportes e, duas ou três vezes por semana, projeção de filmes. Era o centro social e cultural do acampamento e geralmente estava lotado.

Para Ruth tudo era novo e excitante e sentia-se tão feliz com a acolhida calorosa dos outros membros da comunidade que chegou mesmo a esquecer um pouco seus próprios problemas. Além disso, Patrick era tão gentil com ela diante das outras pessoas que valia a pena intensificar os compromissos sociais.

Arrumou-se com muito cuidado para aquela noite, tomando outro banho antes de pôr o vestido de chifon creme que lhe dava um ar exótico.

Quando terminou de se vestir, teve impressão de que o olhar de Patrick se demorou sobre ela mais do que de costume, mas estava tão preocupada em parecer natural que não conseguiu prestar muita atenção às reacões dele.

No restaurante do clube várias mesas foram unidas para o jantar e Patrick e Ruth eram os convidados de honra. O ambiente estava muito alegre e descontraído e Ruth ficou feliz por ver que Patrick parecia divertir-se.

O único rosto realmente familiar era o de John Howard, embora Judith Cárter também estivesse na festa, além de outras pessoas a quem Ruth tinha sido apresentada naquela tarde. Como ela e Pauline Desney eram as mais jovens do grupo, logo estavam entretidas numa conversa animada. Pauline contou que estava casada há pouco mais de dois anos, mas que ainda não tinham filhos.

Quando o jantar terminou todos passaram para o salão de descanso, enquanto Patrick foi buscar bebidas. Ruth sorriu quando viu John sentado ao lado dela.

— Não é casado, John? — perguntou para provocá-lo, pois Pauline já tinha lhe dito que ele era solteiro.

John ficou vermelho, e pareceu ainda mais jovem.

— Não — respondeu com voz tímida.

— Não se sente muito sozinho aqui sem uma companheira?

— Aqui existem mais solteiros e separados do que casados. As mulheres não conseguem viver aqui.

— Por quê? — Ruth estava curiosa.

— Por causa do calor, eu acho. E das moscas, das doenças, da necessidade de ferver cada gota de água antes de colocar na boca. Nem tudo é tão divertido quanto está sendo hoje.

— Eu sei. Mas acho que a mulher precisa estar disposta a acompanhar o marido onde quer que ele vá.

— Tente dizer isso a algumas das esposas que foram embora. Vão lhe dizer que são mulheres emancipadas e não escravas; que merecem um padrão decente de vida em algum subúrbio decente, com todas as comodidades que a vida moderna pode oferecer. Vão lhe dizer que esperam que seus maridos trabalhem em horários normais e estejam em casa ao entardecer, prontos para vestir a melhor roupa e levá-las para passear. Não querem maridos suados e exaustos depois de um dia de trabalho estafante em locais cuja temperatura é realmente incrível. Os homens aqui chegam em casa desgastados, tanto física quanto mentalmente, incapazes às vezes até mesmo de manter uma conversa superficial com as esposas.

— Mas é nessa hora que um homem mais precisa da esposa!

— Talvez, mas não há muitas que pensam assim.

— Acho que você está exagerando. E Pauline?

— Existem exceções, é claro. Pauline ama Pete, e não a conta bancária dele.

Ruth ergueu as sobrancelhas escuras.

— Você não tem uma opinião muito boa sobre mulheres, não é John?

— Depende da mulher — replicou em voz baixa.

— Está monopolizando minha mulher, John? — O tom de Patrick   era   brincalhão   e   só   Ruth   percebeu   o   significado   daquela observação.

John olhou para ele, meio sem jeito.

— Desculpe!

— Não se preocupe — disse Ruth. — A conversa estava muito agradável. — Seus olhos desafiavam Patrick. — Quer alguma coisa comigo, querido?

— Quero, ou melhor, queria. — A expressão dele endureceu. — Meu superior, o professor Randall, acabou de chegar com a esposa e queria que os conhecesse.

— Claro. — Ruth lançou um olhar pesaroso na direção de John. — Até daqui a pouco.

John fez uma inclinação de cabeça e levou o copo aos lábios numa espécie de brinde mudo, seguindo-os com o olhar até que desaparecessem de vista.

O professor Randall era um homem encantador, Devia ter quase setenta anos, mas movia-se com a agilidade de um homem muito mais jovem e tinha um aperto de mão forte e seguro. A esposa, que devia ser uns dez anos mais moça, era alta e elegante. Pela roupa que usava podia-se imaginar que estava em uma recepção do London Hilton e não numa fesfinha de um clube perdido no meio das florestas venezuelanas.

Ruth simpatizou imediatamente com eles e aceitou um convite para tomar chá com a senhora Randall naquela semana. Tinha sido aceita, e não conseguiu conter um olhar de triunfo.

Já era tarde quando voltaram ao bangalô. O efeito da champanha já estava começando a passar, embora continuasse a sensação de desconforto provocada pelo calor. Sentiu vontade de expor seus sentimentos a Patrick, mas ele estava frio e distante. Não tinham trocado uma só palavra durante o caminho de volta e Ruth imaginava o que aconteceria agora.

: O que Ruth não esperava era que Patrick, depois de acompanhá-la até a sala, desaparecesse. Como estivesse demorando para voltar, foi procurá-lo e encontrou-o no quarto de despejo. Sentiu um frio no estômago quando abriu a porta e viu que ele estava se trocando para dormir.

— O que está fazendo? — perguntou, com voz sumida.

— O que você acha? — perguntou, com ironia.

— Mas por que está se trocando aqui?

— Porque vou dormir aqui — respondeu, friamente.

— Está brincando!

— Não, não estou.

— Não podemos viver separados!

— Não vamos viver separados, vamos apenas dormir em quartos separados!

— Por favor, Patrick! — Olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas. — Não faça isso!

— Vá dormir, Ruth. — Ele parecia aborrecido.

— Por quanto tempo pretende manter esta situação? — gritoil inconformada.

— Quanto tempo? — Deu de ombros, colocando a camisa sobre uma cadeira e começando a abrir a calça — Quanto tempo temos de vida? Quem sabe?

Incapaz de compreender tanta grosseria, tanta crueldade, Ruth saiu batendo a porta, sem se importar com as lágrimas que rolavam pelo seu rosto.

Que tola tinha sido! Que idiotice pensar que poderia enganá-lo. Correu para o outro quarto e atirou-se na cama. O que fazer agora? Apesar de tudo, ela o amava desesperadamente e, depois de conhecer o êxtase do amor que compartilhara com ele na noite anterior, não podia suportar a idéia de que nunca mais experimentaria essa sensação outra vez.

As lágrimas aliviaram sua alma e ajudaram-na a dormir.

 

Era incrível, pensou Ruth duas semanas depois, como a mente humana se adapta a qualquer situação. Se alguém lhe tivesse dito, antes do casamento com Patrick, que duas pessoas podiam viver juntas na mesma casa, conversando apenas sobre assuntos impessoais e agindo como um casal apaixonado em público, não acreditaria.

Mas era exatamente isso que estava acontecendo com ela e Patrick.

Tinha sido muito duro, a princípio, mas as pessoas estavam sendo tão gentis com ela que essa amizade lhe dava forças desconhecidas. Além disso, estava tão envolvida com as novas experiências e com a nova vida que esquecia um pouco os pensamentos tristes.

O tempo que passava a sós com o marido era pouco. Saía para a refinaria às seis horas da manhã, todos os dias, exceto aos domingos, e só voltava às duas da tarde, quando a maioria das pessoas costumava fazer a sesta. Mais tarde tomava um banho e ia para o clube jogar uma partida de tênis com um dos colegas ou nadar um pouco. Ficou implícito que Ruth não o acompanharia nessas atividades, mesmo porque ela tinha o resto do dia para ir ao clube. Depois que conheceu Pauline Desney e Judith Cárter, não lhe sobrava muito tempo livre. Pela manhã geralmente encontravam-se no clube ou na casa de uma delas, ou então iam nadar ou jogar tênis. O marido de Pauline, Pete, que Ruth havia conhecido na recepção da primeira noite, trabalhava nos mesmos horários de Patrick e, assim, as duas amigas podiam passar muito tempo juntas. Ruth jamais falava sobre Patrick e Pauline nunca fez perguntas indiscretas. Com certeza imaginava que o casal estivesse passando pelas dificuldades normais de um casamento em tal ambiente, mas respeitava seu silêncio e não demonstrava curiosidade.

As dificuldades em administrar uma casa nas condições oferecidas por Puerto Roca não se incluíam entre seus maiores problemas mas, mesmo assim, de vez em quando precisava pedir a ajuda de Patrick. Como no dia em que resolveu limpar o armário da cozinha, pois não tinha tocado mais nele desde que chegara. Por toda parte havia percevejos que precisavam ser eliminados, Estava retirando a última lata do armário quando percebeu que alguma coisa se movia lá dentro. Pensando que fosse uma barata, retirou a mão imediatamente, mas o que apareceu foi uma enorme aranha, preta e peluda.

Horrorizada, deu um pulo para trás. Nunca tinha visto nada tão horrível na vida e não tinha a menor idéia de como se livrar dela. Pensou em esmagá-la com o pé, mas a idéia fez seu estômago virar. Aproximando-se com cuidado, tornou a fechar a porta do armário para que o animal não fugisse e ficou ali parada sem saber o que fazer.

Olhou no relógio. Era quase uma hora. Patrick logo estaria em casa para o almoço, mas a idéia de ficar na cozinha junto àquele bicho repelente era demais para Ruth.

Ficou andando pela casa durante quase meia hora antes de voltar à cozinha para examinar o armário. E pensar que, se não tivesse tido a idéia de limpar o guarda-louças, aquela coisa nojenta continuaria lá durante dias ou mesmo semanas, podendo até picar alguém!

Começou a suar frio. Não ousava abrir a porta outra vez. Tinha mesmo que esperar a volta de Patrick.

Quando ele chegou, ela estava parada na porta da sala, suando por todos os poros por causa do nervosismo. Patrick percebeu imediatamente que havia aiguma coisa errada e, por um momento, deixou cair a máscara da indiferença.

— O que aconteceu? — perguntou, preocupado.

Ruth sacudiu a cabeça devagar. Apesar de todo o corpo estar molhado de suor, sua garganta estava estranhamente seca.

— Ainda não fiz seu almoço — murmurou.

— Não precisa ficar assim por causa disso.

— Eu sei. Mas não fiz a comida porque há uma aranha na cozinha.

— Aranha? E ela picou você? — Patrick assustou-se.

— Não, isso não. — Engoliu com dificuldade. — é um bicho horrível, preto e peludo.                                                              

Sem uma palavra, Patrick foi para a cozinha. Ela ouviu o som da porta que se abria, os passos dele até o quintal e sentiu uma pontada no estômago quando percebeu que a aranha estava sendo esmagada contra o chão de terra.

— Pronto, a aranha está morta.

— Graças a Deus! — Sentia as pernas bambas. — Desculpe.

— Não fale bobagens. Era venenosa.

— Quer dizer que podia matar um ser humano? — Ruth quase desfaleceu.

— Não. Um ser humano não, mas podia deixar você bem doente.

— Ai, Patrick! — Ruth tremia incontrolavelmente e, com uma exclamação, ele se aproximou e a envolveu nos braços.

— Acalme-se — disse com voz suave. — Graças a Deus não é todo dia que você encontra uma viúva negra!

Ruth agarrou-se a ele. Tinha perdido totalmente o controle de suas ações. Mas, gradualmente, o calor do corpo dele foi tomando conta do seu e substituindo o medo por outra sensação. Parecia que há anos ele não a abraçava assim e Ruth queria que esse contato continuasse.

Percebendo que ela não tremia mais, Patrick retirou os braços que lhe envolviam a cintura e afastou-a.

— Agora está segura. — O cinismo estava de novo na voz dele. — Pode ir fazer o almoço e, daqui por diante, deixe que Manuela faça essa espécie de serviço.

O problema estava solucionado e sua momentânea delicadeza tinha desaparecido. Eram inimigos novamente.

A única pessoa em Puerto Roca que parecia não gostar da presença de Ruth era Elena Formentes. Ruth soube que ela era filha de Juan Formentes, um dos pioneiros nas perfurações, e que cuidava do pai e da casa, trabalhando no hospital nos momentos livres.

Pauline contou também que aparentemente a mãe tinha morrido durante o parto e, por isso, a garota vivia só com o pai. Pouco tempo depois de ter chegado a Puerto Roca, Patrick salvou-a de um bando de trabalhadores bêbados e, daí em diante, a moça, que agora tinha dezessete anos, apegou-se a ele de maneira possessiva.

— Sabe como é! — explicou Pauline certa manhã na piscina. — As crianças são muito leais e quando admiram determinada pessoa são muito possessivas. Foi o que aconteceu com Patrick e Elena, só que, para infelicidade dela, Patrick sempre a viu como uma criança divertida.

Ruth passou bronzeador nas pernas longas e bem-feitas.

— A verdade é que ela não gosta de mim — observou, tentando dar à voz um tom de indiferença.

— Não devia se preocupar com isso — tranquilizou-a Pauline, estendendo-se preguiçosamente sobre o colchão de ar onde estavam deitadas. — Pat não está interessado nela. Basta ver a maneira como ele olha para você.

— Por que está dizendo isso? — Ruth ficou vermelha. Pauline observou-a por cima dos óculos escuros.

— Está brincando? Deve saber como ele olha para você. Basta que o pobre John chegue a dois metros de você para que Patrick comece a tremer de ciúmes.

— Ora, não seja boba, Pauline.

— Não sou, estou dizendo a verdade. Jamais pensei que Pat fosse assim, mas é.

Ruth deitou de barriga paia baixo e apoiou o queixo nos braços cruzados.

Se fosse verdade, pensou, desesperada. Mas o que Pauline confundia com ciúme era simplesmente a raiva que ele sentia por ver que havia alguém que a fazia sentir-se feliz. A amizade de John a ajudava a suportar melhor a indiferença de Patríck. O horário de trabalho de John era diferente do de Patrick e, às vezes, ele as encontrava na piscina de manhã. Ruth sentia que ele a admirava e gostava dessa admiração, mas nunca dera motivos para que o marido sentisse ciúme.

Mas será que conseguiria fazê-lo sentir ciúme? Era uma idéia tentadora.. .

Teve uma oportunidade de fazer um teste dez dias depois. Ela geralmente se levantava depois que Patríck já tinha saído para a refinaria, o que tornava as coisas mais fáceis para ambos, pois só se viam à íarde. Normalmente se levantava às oito, tomava uma xícara de café ou chá e rodava um pouco pela casa antes de se vestir. Manuela costumava chegar lá pelas nove, quando Ruth já estava pronta para sair.

Nos últimos dias, contudo, vinha sentindo uma letargia fora do comum, e nesta manhã tinha acordado com forte dor de cabeça. Até o processo de fazer chá foi custoso e ela imaginou se estaria tomando muito sol. Tomou uma aspirina, mas continuou sentindo-se mal a ponto de não conseguir tomar nem uma xícara de café.

Não querendo preocupar Manuela, foi para o clube. Tinha combinado encontrar-se com Pauline às dez horas e, até lá, podia ficar sentada na varanda do clube observando a piscina. Estava lá há mais ou menos dez minutos quando John Howard chegou e sentou-se numa cadeira ao lado dela.

— Finalmenie sozinha — comentou, com um sorriso. — Quer que lhe traga um suco ou um café?

Ruth controlou-se para não fazer uma careta.

— Não, obrigada. Vai nadar?

— Talvez mais tarde. E você? — John olhou com admiração o corpo esbelto de Ruth, modelado por um vestido cor-de-rosa com listras brancas.

O olhar de John não a embaraçava tanto quanto o de Patrick. Sorriu e disse:

— Não sei. Depende de como estiver me sentindo.

— Por quê? Algum problema?

— Não sei. — Ruth deu de ombros. — Não estou me sentindo muito bem desde que acordei.

— Patrick sabe? — O olhar de John foi bastante significativo e ela de repente sentiu-se culpada. Ele imaginava que ela estava grávida.

— Não — respondeu evasivamente. — Claro que não. Não é nada disso. Acho que foi alguma coisa que comi ou então excesso de sol.

— Deve cuidar melhor de sua saúde — exclamou.

Ruth pensou, com angústia, que John demonstrava maior preocupação com ela do que o próprio Patrick.

— Estou bem — insistiu. — Não vai trabalhar hoje?

— Só á tarde, hoje de manhã estou livre. Por quê? Quer que faça alguma coisa para você?

Ruth acariciou a mão dele.

— Você é um amor, John — disse impulsivamente. A reação de John deixou-a perplexa. Segurando a mão dela entre as suas, perguntou com emoção:

— É feliz aqui, Ruth? Às vezes acho que Pat não cuida bem de você!

— Ora, John! — Sentiu-se desamparada.

— É verdade! Ele passa as tardes aqui jogando tênis ou nadando com os amigos em vez de estar em casa com você. Devia demonstrar mais consideração por seus sentimentos.

Ruth retirou a mão com determinação.

— Por favor, John, não diga mais nada.

— Está bem. Sei que não é da minha conta, mas esta manhã você parece tão. . . tão frágil. Precisa de um descanso e de um pouco de ar fresco. Que tal ir comigo até as Cataratas da Lua amanhã?

— Cataratas da Lua? — repetiu. — O nome é lindo. Onde fica?

— As quedas da Lua ficam no sopé da cordilheira de Merida, a mais ou menos duas horas de carro. O lugar é maravilhoso, a água cai de uma altura de três mil metros, é nossa atração mais bonita, embora poucas pessoas se animem a ir até lá.

— Gostaria de ir — murmurou —, mas não sei o que Patrick vai dizer.

— Não conte a ele. — John encolheu os ombros.

— Não posso fazer isso. — Ruth falou com firmeza.

— Não pode fazer o quê? Perdi alguma coisa? — Pauline veio sentar-se ao lado dela e olhou para ambos com curiosidade, — Estão conspirando pelas minhas costas?

John olhou para ela com resignação.

— Estava só sugerindo que Ruth conhecesse as Cataratas da Lua.

— É verdade, devia conhecer as quedas. Pete e eu estivemos lá umas duas vezes fazendo piquenique. — É tão lindo e fresco o lugar, parece o paraíso. — Abanou-se com o enorme sombrero. — Não se parece nada com isto aqui.

— Não acha que seria ótimo? — John olhou para Ruth.

— Acho, mas preciso falar com Patrick antes. — Ruth sustentou o olhar dele.

— Está bem. — John levantou-se de repente. — Vou nadar um pouco. Até já.

Depois que ele saiu, Pauline brincou com Ruth.

— Acho que John está caído por você, querida.

— Ora, Pauline! — Ruth fez um gesto de impaciência.

— Pode escrever o que digo. Ele nunca demonstrou esse interesse por qualquer outra moça.

— Não é para menos. As moças, como você diz, já estão um pouco passadas para ele.

Pauline riu.

— Talvez tenha razão. — Ficou séria. — Vai às cataratas com ele?

— Se Patrick não fizer objeções.

— Então pode esquecer o passeio, porque Pat não vai concordar!

— Por que não?

— Deixar você passar um dia inteiro com outro homem? Além disso um homem que sente o que John sente por você? Ora, Ruth, Pat não é masoquista!

— Acho que está exagerando. Por que se importaria? Ele não. . — inierrompeu-se abruptamente. Quase tinha dito o que não devia. Pauline aproveitou a deixa.

— O que há com vocês dois? — exclamou, sem conseguir controlar-se. — É visível que Pat é louco por você, mas. . . — Suspirou. — Desculpe, sei que não é da minha conta.

Ruth sentiu-se tentada a confiar na amiga. Seria um alívio poder desabafar com alguém, mas sempre havia o perigo de que outras pessoas viessem a saber e Ruth não queria mais problemas do que já tinha.

Voltou para o bangalô logo depois do meio-dia. Manuela já tinha ido embora e a casa estava vazia, felizmente. Não sentia fome, mas fez alguns tequenos, círculos de massa envolvidos em queijo e fritos na hora, que Patrick gostava tanto. Preparou um prato de salada, guardou na geladeira e foi sentar-se na sala.

Tinha combinado com John que mais tarde daria a ele a resposta de Patrick, mas, à medida que se aproximava a hora do marido voltar sentia-se cada vez mais nervosa.

Recriminou-se por estar deixando que as palavras de Pauline influenciassem. Por que não podia sair com John? Era simplesmente um passeio inocente e, se Patrick tinha ciúme, pior para ele. Não sentia nada por John e ele não sentia nada por ela, embora Pauline pensasse o contrário.

Estava fritando os tequenos quando Patrick chegou. Ouviu-o jogar a pasta sobre a mesa e sentar-se numa poltrona. Foi até a porta e observou-o com carinho. Às vezes, como agora, ele parecia tão tenso e cansado ao voltar do laboratório, que tinha vontade de aproximar-se dele e acariciar seu rosto exausto.

— Sua comida está quase pronta — disse.

— Ótimo. — Ele se levantou e foi buscar um charuto.

— Teve um bom dia?

— Mais ou menos. E você?

— Também. — Passou a língua pelos lábios secos. — Importa-se se eu não estiver aqui para preparar seu almoço amanhã?

Patrick imediatamente ficou tenso. Terminou de acender o charuto e perguntou:

— Por quê? — A camisa molhada de suor estava colada a seu corpo, realçando o peito musculoso e os ombros largos.

— Fui convidada a passar o dia fora.

— É mesmo? — Sua expressão não era muito encorajadora. — Por quem?

Ela sentiu o cheiro dos tequenos e correu para a cozinha, com medo que se queimassem. Patrick chegou até a porta.

— Perguntei quem a convidou!

— Já ouvi. — O cheiro das frituras fez com que o estômago de Ruth revirasse e ela imaginou por que estaria se sentindo tão nauseada. — O que importa quem me convidou?

Os olhos de Patrick brilharam de raiva.

— Pela sua resposta só posso concluir que foi John Howard! — respondeu com frieza.

— E se for? — Ruth suspirou.

Patrick mordeu a ponta do charuto com impaciência.

— Por que será que ele resolveu convidar minha esposa para passar o dia com ele?

Ruth encolheu os ombros.

— Imagino que vocês se encontram às vezes no clube. Você o está encorajando?

— Não, não o encorajei — negou com firmeza.

— Entào me diga por que ele convidou você e não Pauline Desney, por exemplo. — Os olhos de Patrick estavam duros como aço.

Ruth perdeu a paciência.

— Talvez ele perceba que você não me dá atenção! — disse, sem pensar.

Patrick ficou furioso.

— É mesmo? E o que quer dizer com isso? Andou fazendo confidências a ele?

— Claro que não! Não discuto nosso...   relacionamento com ninguém!

— Então voltamos à primeira questão: por que resolveu convidar justamente você?

— Ele gosta de mim. Esta manhã não me sentia muito bem e ele sugeriu que eu devia tomar um pouco de ar fresco nas montanhas.

— Entendo. — Patrick sorriu, com ironia. — Claro. — Ele pensa que você está grávida, não é? Pobre idiota. Preciso dizer a ele que está enganado.

— Como vai fazer isso? — Os lábios de Ruth tremeram.

— Darei um jeito. Posso até usar a fraqueza que sentiu esta manhã como desculpa de que as coisas não vão bem. John é solteiro e duvido que entenda de abortos.

Ruth sentia-se impotente diante dele.

— Não perde uma oportunidade, não é?

— Oportunidade de quê?

— De me ferir!

— Pensei que já estivesse acostumada. — Patrick pegou o prato de salada e os tequenos. — Isto parece muito apetitoso. Vamos almoçar?

Ruth fez um sinal negativo com a cabeça.

— Não tenho fome. Você me dá náusea.

— Você quem sabe. Estou morto de fome. — Deu de ombros e foi até a mesa. — Por falar nisso, acho que vai precisar desculpar-se com seu amigo Howard por não poder acompanhá-lo amanhã. Diga que resolvi levá-la às montanhas. Imagino que queria mostrar-lhe as Cataratas da Lua, estou certo? Vamos um outro dia qualquer. Talvez na semana que vem,

— E se eu não quiser decepcionar John?

— Não me obrigue a fazer ameaças, Ruth — avisou, com ar carregado. — Agora vá se deitar um pouco. Você não parece nada bem.

Ruth saiu. Mas, em vez de ir para o quarto, foi até o banheiro e inclinou-se sobre o vaso sanitário. Um suor gelado inundou sua testa. Só percebeu a presença de Patrick quando sentiu as mãos dele em torno de sua cintura. Ele a ergueu nos braços e levou-a até o quarto. Apoiada junto ao peito dele, sentindo a força dos seus músculos e o cheiro másculo do seu corpo, Ruth se aconchegou mais, procurando um pouco de compaixão, mas ele não cedeu. Colocou-a na cama e olhou-a com intensa ironia.

— Não sabia que tinha a capacidade de deixá-la fisicamente doente — disse, friamente. — Desculpe, mas não posso permitir que vá com John Howard. Eu mesmo vou levá-la assim que tiver algum tempo livre.

Ruth estendeu-se desamparada na cama, deixando correr as lágrimas de auto-piedade. Um terrível pressentimento começou a nascer dentro dela e, embora dissesse a si mesma que não podia ser verdade, não conseguiu conter um calafrio de medo.

Com tudo que vinha passando desde o casamento, não tinha tido muito tempo de prestar atenção a seu próprio corpo. Mas agora que conferia as datas percebeu que alguma coisa, que devia ter acontecido não aconteceu, embora, já estivesse na Venezuela há cinco semanas. . .

 

No final da semana seguinte as suspeitas de Ruth foram confirmadas. Tinha todos os sintomas de gravidez: enjôo pela manhã, moleza e profunda aversão por coisas que até então lhe davam prazer.

Quanta ironia, pensou. A história que ela havia inventado e que causara tantos problemas entre Patrick e ela agora se transformava em realidade sem ele saber.

Nem pensou em dizer a ele logo no início, pois duvidava que lhe desse crédito, apesar de todos os sinais. Seu estado era de extrema vulnerabilidade e a menor contrariedade a levava às lágrimas, por isso não queria se expor ainda mais ao desprezo do marido. Pensou em escrever ao pai contando-lhe sobre a gravidez, mas desistiu da idéia. Afinal de contas tinha dito a Patrick que não queria preocupar o pai, o que era verdade. Ele certamente ficaria desesperado ao saber que a filha ia passar os momentos mais difíceis da gravidez em circunstâncias tão desfavoráveis. A tentação de contar tudo a ele para ter alguém que a apoiasse era grande, mas não era uma covarde e não fugiria do compromisso assumido com Patrick. Prometera compartilhar da vida dele até o fim e o faria.

Apesar de toda sua determinação e coragem, muitas vezes Ruth não conseguia conter as lágrimas. Deitada na cama, pensava que nunca teria imaginado que o relacionamento com Patrick ia deteriorar daquela maneira.

John Howard era a única pessoa com quem podia contar. Dele não precisava esconder a cintura que engrossava e as náuseas repentinas que sentia. Podia até mesmo falar sobre sua depressão sem receber desprezo de volta.

Sabia que ele se preocupava com ela, com a maneira como Patrick a tratava e que não compreendia por que Patrick nunca falava sobre o bebê.

Certa manhã, três semanas depois de ter tomado consciência do seu estado, estava sentada ao lado da piscina com John e Pauline Desney quando Patrick surgiu inesperadamente.

— Parece que a reunião está agradável — disse.

A ironia estava visível na voz dele e Pauline lançou a Ruth um olhar de eu-não-lhe-disse?

— Voltou cedo para casa, Pat. Por acaso a refinaria explodiu. — brincou Pauline.

Patrick ajoelhou-se ao lado dela e retribuiu o sarcasmo:

— Não posso tirar uma folga de vez em quando? Pauline estranhou seu tom de voz.

— Claro! Mas, escute, Pat, quando é que você e Ruth vão fazer uma reunião para os amigos? Já estão aqui há dois meses e ainda não nos convidaram para um drinque.

Ruth ficou sem jeito mas Patrick não se perturbou.

— Um dia desses. Você sabe como são os recém-casados.

— Não, Pat, eu não sei. — John desafiou-o abertamente e Ruth prendeu a respiração.

Os lábios de Patrick contraíram-se.

— Um dia vai descobrir — respondeu com ironia. John levantou-se, olhando significativamente para Ruth.

— Eu acho que o casamento é um negócio unilateral. . . pelo menos é assim que algumas pessoas pensam. Eu, pessoalmente, se fosse casado com uma moça como Ruth anunciaria aos quatro ventos a minha sorte.

Foi a vez de Patrick se levantar, encarando-o com raiva.

— Acontece que você não é casado com Ruth, John. Gostaria muito que não esquecesse isso!

— O que está querendo dizer? — John cerrou os punhos e Ruth, assustada, colocou-se entre eles.

— Parem com isso! — exclamou. — John, por favor, não piore, as coisas!

— Reparou como minha esposa apela a você, e não a mim? perguntou Patrick furioso.

— Talvez ela já tenha alguma experiência em apelar para você! — declarou John, no mesmo tom.

— Ou talvez ela tenha percebido que é você o culpado por este incidente! — replicou Patrick.

Agora era Pauline quem se levantava.

— Isto é ridículo! — exclamou. — Dois adultos discutindo como crianças mimadas! John, estou com sede. Vá buscar uma limonada e pare com essa discussão!

Os dedos de Patrick prenderam o pulso de Ruth.

— Vamos! — ordenou num tom que não admitia recusa. — Vou levar minha esposa à Cataratas da Lua.   Ruth o encarava, surpresa.

— Não sabia disso.

Patrick ia dizer um palavrão, mas controlou-se.

— Não tinha que saber, era surpresa. — Abaixou-se e pegou a bolsa dela. — Trouxe mais alguma coisa?

— Não... — Ruth olhou para os outros sem saber o que fazer. — Bom... até depois.

Os olhos de John suavizaram-se.

— Cuide-se bem!

Patrick levou-a até o bangalô para que se trocasse. Ela vestiu uma calça azul e uma bata bordada, feliz de que a moda agora fossem as roupas largas. Suas calças já estavam ficando apertadas e logo não conseguiria mais fechá-las.

— Comprei sanduíches no clube — anunciou Patrick, quando subiam no carro. — Acho que vai ser bom fazer um piquenique.

— Parece ótimo. — Não adiantava tratá-lo com indiferença. Tinha aprendido com a experiência que jamais venceria Patrick numa discussão, por isso seria melhor fazer como ele e esquecer o que havia acontecido no clube. A última coisa que queria era que esse passeio se transformasse num desastre. Era a primeira vez que Patrick se oferecia para levá-la a algum lugar.

Ruth sofreu durante a viagem, pois a estrada em alguns trechos estava em péssimo estado. Patrick dirigia muito bem, mas mesmo assim às vezes não conseguia evitar os buracos da estrada, ou para evitá-los precisava aproximar-se perigosamente dos precipícios que margeavam a estrada. Foi uma experiência arrepiante, mas Patrick tentava acalmá-la.

À medida que subiam o ar ficava cada vez mais fresco. Embora altíssima, essa região não podia ser comparada às gigantescas alturas da cordilheira dos Andes.

Chegaram a uma vila encravada nas encostas da montanha, passando por rebanhos de cabras que levantavam a cabeça com curiosidade para observá-los. Para surpresa de Ruth, Patrick parou no centro daquele conjunto rústico de casas e desceu do carro.

— Onde vai? — exclamou, surpresa.

— Não demoro. — Bateu a porta. — Espere aqui.

Ruth não tinha intenção alguma de descer. Sentia-se arrebentada depois daquela viagem horrível através das montanhas e a dor nas costas não lhe permitia encontrar uma posição confortável.

Felizmente a temperatura ali era agradável. Havia até mesmo uma brisa suave que espalhava as folhas mortas pela pequena praça e fazia com que as saias se colassem ao corpo das mulheres escuras como barro que apareciam à porta das casas para observá-los com curiosidade.

Quase desmaiou de susto ao ver Patrick voltando ao lado de um camponês que conduzia dois cavalos.

— Desça — disse Patrick, com voz alegre. — Tenho uma surpresa para você. As quedas não ficam longe daqui e achei que gostaria de ir a cavalo até lá, mesmo porque seria difícil conserguirmos atravessar aquela região de carro.

Ruth ficou horrorizada. Sentia dores por todo o corpo e considerava inaceitável a idéia de fazer um passeio a cavalo nas suas condições. Ficaria imensamente grata se ele decidisse fazer o piquenique ali mesmo e passar o resto do dia descansando no assento traseiro do carro.

Mas sua decisão esmoreceu ao ver a expressão de Patrick. Ele a olhava como naquela primeira noite em Puerto Roca, antes de descobrir que ela o havia enganado. Percebeu que ele desejava agradá-la e que havia planejado o passeio com antecipação. Não sabia que estava grávida e conhecia o amor dela por cavalos. Não podia destruir o entusiasmo dele, simplesmente não podia! Desceu do carro com determinação e foi até a parte traseira pegar o sombrero.

— Qual deles é o meu? — perguntou, tentando agradá-lo. Apesar do desconforto físico, Ruth gostou da viagem até as Cataratas da Lua. O animal que Patrick tinha escolhido para ela era tranquilo e tinha passos firmes, como todo animal das montanhas.

Seguiram por uma trilha que contornava um desfiladeiro no fundo do qual corria um rio que Patrick explicou ser a confluência dos vários afluentes que formavam as Quedas da Lua. Era quase uma hora quando começaram a ouvir o rugido que indicava a aproximação das cataratas. Saíram da região de árvores esparsas, por onde cavalgavam para um platô alto de onde se avistava a massa branca de água caindo em meio a um redemoinho de espuma. O som era ensur- decedor, mas valia a pena suportá-lo para ver aquele deslumbramento quebrando o cinzento monótono das cordilheiras. Em volta deles erguiam-se as montanhas em esplêndidas formações dirigidas para o céu, lugar ao mesmo tempo magnífico e aterrorizador, onde já tinham morrido muitos homens e animais.

Ruth tremeu. Não se sentia totalmente à vontade naquelas alturas sombrias e ficou contente quando Patrick a levou até uma pequena ravina de onde a vista era igualmente bela, mas onde o ruído das águas não impedia que conversassem.

Aliviada, Ruth desceu do cavalo e estendeu-se na grama macia, feliz por poder relaxar um pouco. O mal-estar, contudo, continuava, e a idéia de comer não a atraía nem um pouco no momento. Patrick ajoelhou-se ao lado da cesta para examinar seu conteúdo.

— Frango, presunto, salada, tomates, doces, pão. frutas e queijo — anunciou. — O que quer?

— Por enquanto nada, obrigada — respondeu Ruth, virando de lado e dando as costas a ele. Esperou que Patrick não notasse sua falta de entusiasmo.

Durante alguns segundos houve silêncio, depois ela ouviu-o mover-se. Ao abaixar-se, seu corpo roçou o dela, que se contraiu numa atitude defensiva.

— Desculpe por ter sido grosseiro no clube — disse, com voz suave. Ruth rolou na grama e olhou para ele espantada. Tentando parecer indiferente, ela disse:

— É melhor esquecermos tudo.

— Você vai esquecer? — Os olhos dele percorreram seu corpo.

— E isso tem importância para você?

Patrick arrancou do chão uma folha de capim e começou a cortá-la em tiras.

— Muita.

Ruth ficou sem saber como interpretar essas palavras. Será que ele estava pedindo desculpas? Ou seria apenas outra maneira de derrubar suas defesas para humilhá-la ainda mais? Encolheu os ombros, desconsolada e virou-se outra vez para as quedas d'água.

Ele começou a acariciar o braço nu de Ruth com as pontas dos dedos, provocando-lhe calafrios pelo corpo. As dores que sentia por todo o corpo cessaram completamente para dar lugar a uma sensação deliciosa de excitação. A mão dele desceu lentamente e deslizou por dentro da bata à procura da pele macia da barriga dela, acariciando-a com perturbadora insistência.

Encontrando os olhos dele não pôde deixar de receber a mensagem. Ele a desejava. Queria fazer amor com ela ali mesmo, ao ar livre, nessa ravina perfumada, sobre o macio colchão de grama, Os lábios dela se abriram e sua respiração acelerou-se. Ela também o desejava. O rosto de Patrick aproximou-se do dela.

— Fui um animal — murmurou, com os lábios colados aos dela, num beijo ansioso. — Tem todo o direito de não deixar que a toque.

— Patrick, querido — sussurrou. — Jamais faria isso. — Envolveu-o com os braços.

Os lábios de Patrick tornaram-se mais exigentes e ele rolou na grama com o corpo de Ruth colado ao seu.

— Preciso de você — gemeu, com os olhos semi-cerrados. — Toda vez que vejo John Howard perto de você tenho vontade de matá-lo. . .

Nesse instante uma onda súbita de dor explodiu dentro dela, espalhando-se pelo estômago e descendo até as extremidades do corpo. Ela empalideceu e sua testa ficou inundada de suor.

Percebendo que havia algo errado, Patrick colocou-a de costas sobre o gramado e inclinou-se sobre ela com ansiedade, acariciando suavemente os cabelos loiros caídos sobre a face pálida.

— Ruth! — exclamou assustado. — O que foi? O que aconteceu? — Envolveu-lhe o rosto com as mãos. — Não tenha medo de mim!

Ruth balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro.

— Não estou com medo. . . ai!

Deu um grito de agonia quando outra pontada pareceu rasgá-la por dentro. Apertando a barriga com a mão, tentou levantar-se para ver se a dor diminuía, mas teve a sensação aterrorizante de que a realidade lhe fugia.

Patrick agarrou a mão estendida, apertando-a com desespero.

— Ruth! Pelo amor de Deus, Ruth, o que está acontecendo?

— Eu. . . oh, Patrick.. . eu.. . segure-me! Não me solte.. . — Depois disso a escuridão desceu sobre ela.

Voltou a si diversas vezes durante a atribulada viagem de volta a Puerto Roca, Numa das vezes percebeu que estava sobre o cavalo, entre as pernas de Patrick, que a segurava com cuidado e ternura. Mas a dor ainda a torturava e impedia-a de falar antes de desmaiar novamente. Nos poucos momentos de lucidez ela adivinhava o que estava acontecendo e seus olhos se enchiam de lágrimas de desespero.

Patrick dirigiu como um louco montanha abaixo, sem que com isso a sensação de desconforto aumentasse. No seu desespero para chegar logo e para evitar os buracos, aproxímava-se perigosamente das bordas do precipício. De tempos em tempos olhava para ela.

Num dos momentos de lucidez ela abriu os olhos e viu o desespero estampado no rosto dele. Quis dizer que ele não tinha culpa, que ela é que devia tê-lo avisado sobre a gravidez antes de saírem de Puerto Roca, mas não teve forças.

Quando o veícuío parou ela teve a sensação de haver passado horas e horas ali dentro. Entre gritos e vozes, via o rosto de Patrick invadido pela dúvida. Compreendeu que até aquele momento ele não tinha percebido a verdade.

Ao abrir os olhos novamente, viu paredes brancas dançando em volta dela. Estava sendo conduzida em uma maca e a dor parecia ter adormecido seus membros inferiores. Talvez lhe tivessem dado uma injeção, pensou, mas de repente tudo ficou escuro e ela não voltou mais a si...

Quando tornou a abrir os olhos achava-se em um quarto branco iluminado apenas por uma pequena lâmpada de cabeceira. No início sentiu a mente vazia, mas aos poucos as lembranças voltaram, trazendo consigo a certeza terrível de que havia perdido o bebê de Patrick.

Com lágrimas nos olhos, passou a mão pelo ventre agora vazio. Apesar da atitude de Patrick em relação a ela, de toda sua frieza e indiferença, queria desesperadamente aquele bebê, aquele ser pequenino que dependeria dela e para o qual poderia desviar o amor que sentia pelo marido. Agora ele não existia mais e sabia Deus se Patrick a perdoaria por essa segunda decepção.

A porta se abriu e uma enfermeira venezuelana se aproximou ao perceber que Ruth estava acordada. Com ar de reprovação, pegou um lenço de papel e limpou as lágrimas que insistiam em correr.

— Chorar não adianta, senhora Hardy. Essas coisas acontecem. O que precisa é superar tudo e começar novamente.

— Perdi o bebê?

A enfermeira fez que sim com a cabeça.

— Acho que a senhora sabe a resposta. Ruth ficou calada.

— O que lhe passou pela cabeça para andar a cavalo no seu estado?

— Não queria desapontar meu marido.

— Mas o bom senso devia ter dito a ele que. . .

— Ele não sabia — respondeu Ruth num impulso. — Eu não tinha contado ainda.

— O quê? — A enfermeira não podia acreditar no que ouvia. — Por que não?

Ruth sacudiu a cabeça, desconsolada.

— É uma longa história.

A enfermeira colocou o termômetro sob a língua de Ruth e tomou-lhe o pulso. Depois de verificar a temperatura, perguntou:

— Como está se sentindo?

— Acho que estou bem. Até quando preciso ficar aqui?

— Dois ou três dias, no máximo. Depende do que o doutor Gonzales achar do seu estado.

— Que horas são? Não encontro meu relógio.

— Está aqui. — A enfermeira apontou para a mesa de cabeceira. — Deixa ver. . . meia-noite e meia.

— Meia-noite? Tão tarde? — Ruíh admirou-se.

— Você foi anestesiada na sala de operações.

— Sala de operações? Ah, sim, claro. — Ruth umedeceu os lábios secos. — E Patrick? Meu marido, onde está?

— Acho que foi para casa. Esteve aqui até dez e meia, mas o doutor Gonzales achou que ele precisava dormir um pouco, por isso mandou-o para casa. O pobre homem parecia exausto.

— Estava muito zangado?

— Zangado? — A enfermeira admirou-se. — Por que ficaria zangado? — Balançou a cabeça. — Parecia muito abalado!

Ruth sentiu uma pontada de culpa.

— E ele ficou aqui todo o tempo?

— Quase todo o tempo. Assim que a senhora foi para a sala de operações, o doutor Gonzales sugeriu que ele fosse até o clube tomar alguma coisa. Pobre homem, precisava de uma bebida.

Ruth mexia-se na cama, inquieta.

— Não quer tomar uma sopa ou uma xícara de chá?

— Talvez uma xícara de chá — concordou.

— Ótimo, vou buscar. Procure relaxar e não se preocupe. A senhora é jovem e pode ter outros bebês, tenho certeza.

Ruth não se sentia tão otimista. Afinal de contas, Patrick tinha se casado com ela pensando que estava grávida e, com certeza, não a perdoaria por ter arriscado deliberadamente a vida do bebê.

Deliberadamente não, pensou, jamais faria isso. Queria desespera-damente aquele filho. . .

A enfermeira trouxe o chá e uns comprimidos sedativos. Quando o sono chegou, Ruth sentiu-se aliviada e entregou-se sem resistência.

Com a luz do dia tudo pareceu mais claro. Pensou na delicadeza de Patrick antes que as dores começassem, nas palavras dele, no desejo que sentiu por ela. Mas que espécie de desejo seria aquele? Puramente sexual ou seria algo mais profundo? Como podia ter certeza de que ele não a estava usando apenas para satisfazer uma necessidade física? Afinal ele nunca negou que a achava uma mulher desejável. . .

Levantou-se com a permissão do médico para ir ao banheiro e, embora tivesse as pernas trêmulas, de maneira geral sentia-se bem. Preocupou-se só com o camisolão pouco atraente com que a tinham vestido na noite anterior. Queria que Patrick a visse com uma roupa mais feminina.

Depois de tomar o café da manhã, às oito, recebeu a visita do médico. Era um homem simpático e o exame foi breve.

— Dentro de dois dias estará em forma outra vez — tranquilizou-a. — Hoje mesmo já pode se levantar e caminhar pelo quarto. Não há necessidade de ficar na cama.

— Obrigada, doutor. — Ruth sorriu. — Obrigada por tudo.

— Bobagem, bobagem! Mas no futuro procure ter mais cuidado. Você é uma mulher jovem e saudável e ainda vai ter muitos bebês. Mas não se arrisque assim novamente.

— Prometo, doutor. — Ruth falou com convicção.

Depois que o doutor saiu ela se recostou nos travesseiros, com impaciência. Onde estava Patrick? Por que não vinha? Será que tinha ido para a refinaria sem vir vê-la primeiro?

Quando a porta se abriu Ruth ergueu os olhos ansiosamente, mas teve um choque ao ver a jovem enfermeira que entrou no quarto. Era Elena Formentes, que trabalhava lá nas horas de folga.

— Bom dia, sehora.

Elena aproximou-se da cama com expressão pouco amistosa.

— Bom dia. — Ruth procurou não mostrar-se intimidada. — Tinha me esquecido de que você trabalhava aqui.

Elena tinha o cabelo preso na nuca e protegido por um lenço branco. Parecia distante e calma, a não ser pelos olhos brilhantes de paixão.

— Por que não volta para casa, senora? — perguntou, inesperadamente. — Já não tem mais nada que a prenda a Patrick.

Ruth se retraiu ante esse ataque inesperado.

— O que foi que disse? — murmurou, com voz fraca.

— Perguntei por que não volta para casa, para a Inglaterra — repetiu, com insolência. — Patrick me disse que só se casou porque a senhora estava esperando esse bebê. Pois bem, o bebê agora está morto! — Seus olhos faiscavam. — Portanto não tem mais nada que o prenda à senhora.

Ruth mal podia crer no que ouvia.

— Patrick disse a você. . .

— Que estava grávida? Claro! É compreensível. Depois de tantas semanas na Inglaterra, e sendo um homem de verdade, é natural que...

— Saia daqui! — explodiu Ruth. — Saia deste quarto! Elena sorriu com ar superior.

— E se eu não sair, o que vai fazer? Pretende me expulsar à força? Já está assim tão forte, senora?

— Saia! — gritou com todas as suas forças, mas antes que qualquer uma das duas pudesse dizer mais alguma coisa, entrou a enfermeira de plantão.

— Senorita Formentes! — repreendeu-a. — O que está fazendo aqui? Não pode visitar os pacientes sem permissão.

Elena foi em direçâo à porta.

— Já ia embora, enfermeira.

Saiu sem olhar para trás, deixando Ruth truêmula. A enfermeira aproximou-se, preocupada.

— Algum problema, senora? O que fez a senhorita Formentes para aborrecê-la tanto?                           Ruth balançou a cabeça devagar.

— Nada. Só não quero que ela entre aqui novamente.

— Claro que não. — A enfermeira tranquilizou-a. — Falarei disso ao doutor Gonzales.

— Não, não faça isso. — Ruth não queria causar mais problemas a ninguém. — Só não quero vê-la de novo.

— Está bem, senora. — A enfermeira sorriu. — Agora descanse um pouco. Não é bom excitar-se dessa maneira.

Ruth obedeceu sem protestar.

— Meu marido ainda não chegou?

— Não, senhora. Mas ainda é cedo.

— São dez horas! — Ruth lançou-lhe um olhar suplicante.

— Vou perguntar, senora, não se preocupe. Ele virá.

Se tudo estivesse bem ele já teria vindo, pensou Ruth. O que será que estava acontecendo?

A lembrança das palavras de Elena atormentava-a. Não esperava que Patrick tivesse falado a outras pessoas sobre a gravidez. Como Elena saberia se Patrick não tivesse dito nada? Então uma idéia reanimou-a. Elena poderia ter tirado conclusões por ela própria. Afinal todo mundo sabia do aborto.

As hipóteses giravam em seu cérebro, mas mesmo assim Ruth não acreditava que Patrick se interessasse por Elena, Ele não era homem de se aproveitar de uma menina de dezessete anos, talvez tudo não passasse de ciúmes infundados.

O almoço foi uma espécie de cozido que não atraiu Ruth. Mas a essa altura nada a atrairia. Patrick não tinha aparecido e ela imaginou que, com certeza, tinha ido para a refinaria e telefonaria mais tarde. Essa ausência só podia significar uma coisa: ele estava zangado com ela. Ou talvez zangado fosse uma expressão muito suave.

A enfermeira voltou às três horas, quando Ruth já estava à beira das lágrimas.

— Tem visita — anunciou. — Quer que ajeite os travesseiros?

Ruth não conseguiu falar e deixou que a enfermeira arrumasse a cama. Embora desejasse que fosse Patrick, pensou que também poderia ser Pauline Desney ou John Howard. Ficou pasma quando a porta se abriu.

— Pa. . .   papai! — murmurou, incrédula. — Papai!

Joe Farrell sentou-se ao lado dela na cama e abraçou-a sem dizer nada, deixando que chorasse à vontade.

Quando os soluços diminuíram de intensidade, ele afastou-a um pouco e enxugou com um lenço as lágrimas que ainda restavam.

— Vamos, querida, isso não é jeito de receber seu pai. Não vai me dar um sorriso?

Os lábios de Ruth tremeram.

— Como. . .   como chegou aqui? Como sabia que eu estava no hospital?

— O que você acha?

— Palrick?

— Claro.

— Mas. . . mas como. . .

— Patrick me telefonou ontem à noite. Tirou-me da cama às duas horas da manhã.

— Não!

— Sim. E tivemos uma longa conversa.

— E como veio para cá?

— Arrumei um vôo. Nessas horas é bom ter um amigo como Don Hamilton.

Ruth sentia-se envergonhada e confusa.

— O que Patrick lhe disse?

— Tudo.

— Tudo? — Ruth ficou horrorizada.

— Exatamente. Sei como persuadiu Pat a se casar com você e o que aconteceu depois.

— Oh, não! — Ruth escondeu o rosto nas mãos,

— E por que não? Então não tenho o direito de saber o que minha filha está fazendo da vida dela?

— O senhor não entende. . .

— Como pode dizer isso? Não fiz julgamentos. . .   ainda.

— Sei disso, mas. . .

— Mas nada. — Joe Farrell sacudiu a cabeça. — Mas essa última loucura supera todas as outras. — Seus olhos estavam sérios agora. — Não percebe que arriscou sua vida, além da do bebê?

— Queria agradar Patrick. — Ruth baixou os olhos.

— E por acaso conseguiu? — perguntou o pai secamente.

— Não. — Olhou para ele. — Ele está muito zangado?

— Patrick... — O pai explodiu. — Meu Deus, Ruth, não percebe o que foi que fez?

— Claro que percebo. — Ruth quase chorou outra vez e o pai procurou controlar a impaciência.

— Está bem, está bem. Não vamos mais falar disso por enquanto. Vim até aqui para saber o que você pretende fazer agora.

— O que quer dizer com isso? — Sentiu um frio no estômago.

— Bom, depois disso tudo. . . Ruth, você precisa de tempo para se recuperar.

— Por quê? Não há nada errado comigo.

— Fisicamente, talvez não, mas mentalmente acho que há muita coisa errada.

Ruth deixou-se cair sobre o travesseiro.

— Por que veio aqui? Foi Patrick quem pediu? O pai encolheu os ombros.

— O que importa? Estou aqui para levá-la para a Inglaterra comigo.

— Não! — Ruth encarou-o. — Mas o senhor estava em Nova Iorque, . .

— Quando recebi o recado estava em Filadélfia, mas cancelei a viagem e vou voltar para casa.

— Por minha causa?

— Se prefere ver as coisas dessa maneira. . . Podemos ir quando você quiser.

— Mas Patrick, . .

— Deixe Patrick comigo.

— Por quê? O que foi que ele disse?

— Ele concorda comigo. Você precisa de uma pausa, querida.

— Mas sou esposa dele, papai. . .

— Já lhe disse que Patrick concorda. — O pai suspirou. — Sei que não é fácil, mas ele entendeu que, apesar da sua mentira naquela noite, ele foi lá em casa com a intenção de seduzí-la, o que podia perfeitamente ter acontecido. — Seus olhos ficaram sombrios. — O que não posso aceitar é a maneira como vem tratando você desde o casamento. O comportamento dele foi abominável e eu lhe disse isso.

— Papai! — exclamou horrorizada. — Por que fez isso?

— Alguém tinha que fazer, É a verdade e você sabe disso. Ruth, querida, escute, podemos fazer uma viagem à Europa. A Grécia é linda nesta época do ano. . .

— Papai, não quero voltar à Inglaterra! O senhor não entende. Esta é a minha casa. Meu lugar é ao lado de Patrick.

O pai levantou-se, exaltado.

— Não vou aceitar isso, Ruth.

Os dedos de Ruth cerraram-se com força.

— Quero ver Patrick. Por que ele não veio?

— Ruth, se você gosta de mim faça o que digo.

— Por que está me pedindo isso?

— Porque acho que você cometeu um erro. Se voltar comigo poderei provar isso.

Ruth sacudiu a cabeça com firmeza.

— Por favor, papai, quero falar com Patrick. Peça a ele que venha aqui.

O pai beijou-a e saiu sem dizer mais nada. Ruth ficou ali deitada, à espera do marido.

Mas a noite caiu e ele não deu notícias.

 

Ruth não conseguiu dormir. Agitou-se tanto na cama do hospital que seu corpo ficou empapado de suor. Nos poucos momentos em que conseguiu cochilar, teve pesadelos horríveis com Patrick e Elena. Às três horas Ruth acordou de um desses sonhos com o coração batendo furiosamente e um frio no estômago.

Sem parar para pensar no que ia fazer, desceu da cama e procurou o roupão de banho que tinham lhe dado no dia anterior. Vestiu-o apressadamente e prendeu-o com o cinto. Em seguida abriu a porta e deu uma espiada no corredor.

A essa hora da noite só havia uma luz acesa no fim do corredor, ao lado da mesa da enfermeira de plantão. Olhou nessa direção durante algum tempo, mas depois percebeu que do lado oposto havia uma janela. Se conseguisse chegar até lá sem ser vista poderia fugir.

A sorte parecia estar do seu lado. No momento em que Ruth saiu para o corredor a enfermeira se afastou para examinar a outra ala e, assim, não a viu pular a janela.

Sentiu os pés doloridos em contato com os pedregulhos do caminho e parou um instante para localizar-se. Sabia que o bangalô de Patrick não era longe. Tinha feito esse caminho muitas vezes quando ia para o clube e, embora fosse noite, saberia chegar até lá. As pedras cortavam seu pé, mas isso não tinha importância diante da necessidade urgente de ver Palrick e saber por que não tinha ido vê-la.

Para sua surpresa havia luz na sala de Patrick. Um medo repentino assaltou-a. Talvez seu pai estivesse hospedado lá, apesar da desavença com o genro. Mas não ouviu som algum ao aproximar-se da porta e concluiu que, se o pai estava lá, já tinha ido para a cama.

Girou a maçaneta e, para seu alívio a porta estava aberta. Viu Patrick imediatamente, mas ele não a viu. Estava sentado no sofá, com as pernas abertas e o rosto apoiado nas mãos, numa atitude de completo desespero. Uma lâmpada iluminava o peito nu, destacando as manchas de suor,

— Patrick! — sussurrou, e imediatamente ele levantou a cabeça, incrédulo.

— Ruth? — perguntou, com voz quase inaudível. — Ruth, o que está fazendo aqui?

— Como você não foi me ver eu tive que vir — respondeu, com suavidade. Com um gemido ele se aproximou e envolveu-a nos braços, escondendo o rosto entre os cabelos soltos da mulher.

— Ruth, Ruth, Ruth! — repetiu o nome muitas vezes, queimando-lhe o pescoço com beijos ardentes. — Santo Deus, Ruth, quer dizer que não vai me deixar?

— Deixar você? — Ruth tentou pensar coerentemente. — Quem disse que eu ia deixá-lo?

Patrick não respondeu. Continuou abraçado a ela como se não quisesse deixá-la partir nunca mais, apertando-a contra o corpo de maneira que não deixava dúvida quanto ao que sentia naquele momento.

Por fim percebeu que ela estava descalça.

— Veio do hospital até aqui assim?

— Não havia ninguém para me trazer... — sussurrou, desabotoando a camisa dele e aconchegando-se ao peito másculo do marido. — Posso ficar aqui com você?

Patrick encolheu os ombros.

— Acha que ia deixá-la ir embora? — perguntou docemente. — Mas primeiro vou lavar seus pés. Não quero que apanhe uma doença infecciosa.

Levou-a até o sofá e foi buscar um pouco de água quente. Voltou e ajoelhou-se diante dela, esfregando-lhe os pés sem olhar para cima, pois sabia que se olhasse não conseguiria concluir a tarefa.

Terminando o serviço, levantou-se e olhou para ela, que se sentiu terrivelmente embaraçada com esse olhar, desejando ter se apresentado diante de Patrick com uma roupa mais atraente que o roupão de banho do hospital.

Patrick, contudo, parecia não ter as mesmas inibições. Segurou-lhe as mãos com firmeza.

— Agora — disse —, enquanto ainda me resta um pouco de auto-controle, diga-me por que veio aqui.

— Por que não foi me ver? — perguntou ela, com voz trêmula. Patrick olhou para as mãozinhas entre as suas.

— Seu pai não explicou?

— Explicar? Explicar o quê?

Patrick suspirou.

— Não sou a pessoa que seu pai mais admira no momento. Ele deve ter lhe dito isso. Ele me despreza, mas não tanto quanto me desprezo a mim mesmo, acredite.

— Patrick! — Havia reprovação nos olhos dela.

— É verdade, Ruth, e não sei como pedir que me perdoe!

— Perdoar? Eu?

— Claro. Pela maneira como tenho tratado você nesses últimos dois meses, por tê-la assustado tanto que nem ao menos teve coragem de me contar que estava grávida. A mim, seu marido! O pai da criança que você levava no ventre! Meu Deus, quando penso como fui cego. . .

— Eu o enganei para que se casasse comigo — relembrou Ruth, com ar sério.

Patrick inclinou a cabeça e beijou-lhe os dedos.

— Minha querida Ruth, se eu não quisesse casar com você, nada poderia me obrigar!

— Mas. . . e. . .

— O bebê? — Ele deu de ombros. — Não teria sido o primeiro homem a fugir das suas responsabilidades. Eu simplesmente teria negado tudo. — Sorriu. — Mesmo que tivéssemos dormido juntos, como provaria que o filho era meu?

Ruth olhou-o sem entender.

— Mas quando soube que eu era virgem ficou tão zangado. . .

— Claro que fiquei. Homem algum gosta de ser feito de tolo. — Suspirou. — Decidi fazê-la sofrer um pouco para pagar o que tinha me feito. Uma estupidez egoísta, reconheço, mas como podia saber que era tão fácil engravidá-la? — Sorriu ao ver que Ruth corava. — Devia ter tomado precauções, mas você me tira do sério! — Fez uma pausa. — Já lhe disse alguma vez que é deliciosa?

Ruth retirou uma das mãos e levou-a ao rosto.

— Por favor, Patrick — murmurou.

— Está bem, — Havia ternura nos seus olhos. — Então ontem, ou melhor, anteontem, decidi levá-la às cataratas e provar-lhe que não era o animal que você pensava. Santo Deus, já estava quase perdendo a cabeça e quebrando o pescoço daquele maldito John, que não saía de perto de você. Tinha que dizer a você o que sentia, ou acabaria ficando louco, e achei que o passeio às cataratas era a ocasião ideal. Estava tentando dizer quanto a amo e como preciso de você quando se sentiu mal. Ruth, não imagina como me senti naquele momento, sem saber o que estava acontecendo com você e a quilómetros da civilização.

— Patrick, querido!

— Mesmo depois de deixá-la no hospital continuei sem saber o que estava acontecendo. Pensei que pudesse ser um apêndice perfurado ou qualquer coisa assim. Quando o vetho Gonzales me mandou tomar alguma coisa no clube sentia-me imprestável. — Suspirou. — E imagine justamente quem encontrei no clube? John Howard.

— John?

— Sim. Eu precisava falar com alguém e ele estava lá. Preciso confessar que ele até que foi muito tolerante em vista das circunstâncias. E foi ele quem sugeriu que parecia tratar-se de um aborto. — Segurou com mais força o pulso da esposa. — Ele sabia... e eu não.

— Sabia porque você lhe disse.

— Quer dizer que ele ainda pensava que fosse a outra gravidez.

— Claro.

— Meu Deus, por que não pensei nisso? Voltei imediatamente para o hospital e perguntei. Quando me disseram que você estava na sala de operações, fiquei quase louco. Andei de um lado para outro naquele corredor até que o doutor Gonzales saiu e disse que estava tudo bem. Fiquei tão aliviado que senti vontade de beijá-lo.

Ruth acariciou-lhe o rosto com carinho.

— Pensei que estivesse zangado.

— Zangado? Eu? A única coisa que queria, Ruth, era que minha esposa sobrevivesse. Claro que fiquei triste pelo bebê, mas você significava tudo para mim.

Inclinou-se e beijou-a na boca. Ruth correu os dedos pelo cabelo dele.

— Foi então que telefonou para meu pai?

— Mais ou menos. Telefonei do clube e tive que esperar que fizessem a ligação. Resolvi contar tudo, talvez com a intenção de ficar livre do sentimento de culpa, mas ele não levou isso em conta e ficou furioso. Disse que eu não era digno de atar as correias dos seus sapatos e que um homem que ia até a casa de uma moça com a intenção de seduzi-la merecia tudo que passei. Garantiu que faria o possível para que eu não tivesse outra chance de feri-la.

— Patrick! — exclamou horrorizada.

— Entendo a reação dele. Você é sua filha única, sua criança, a menina dos seus olhos! Estava perfeitamente certo que você fizesse o que fez, mas que eu tentasse fazer as coisas a meu modo já era outra conversa.

— Foi por isso que não voltou ao hospital?              

— Em parte. De certa forma dava razão a ele e já havia decidido que lhe daria a liberdade se você quisesse.

— E agora?

Patrick olhou-a por um momento e em seguida tomou-a nos braços.                                                                            

— O que quer que faça com você? — perguntou emocionado.

— Gostaria de ir para a cama — murmurou ela. — E você?

Patrick inclinou-se outra vez e apagou a luz antes de leva-la para o quarto.

 

 

 

                                                                  Anne Mather

 

 

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