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AS CAVERNAS DO SONO / William Voltz
AS CAVERNAS DO SONO / William Voltz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dois mil estranhos no Império Solar! Era a cabeça-de-ponte da invasão galáctica...

Uma espaçonave arcônida encalhada na Lua, descoberta por Perry Rhodan, foi o ponto de partida para a unificação política da Humanidade e a pedra angular do Império Solar.

O fato de que este Império — minúsculo em comparação com as demais potências do Universo — ainda continua existindo e ainda não se transformou num inferno atômico, ou não foi degradado a uma simples colônia de Árcon, só pode ser atribuído às magistrais jogadas dos terranos, aglutinados em torno de Perry Rhodan, no grande xadrez das Galáxias — e também à sorte, que como fato permanente é exclusiva dos fortes.

No entanto, a fantástica linha da sorte, que, conjugada com os inteligentes esforços de Rhodan, conseguiu até hoje ocultar a posição da Terra nas Galáxias, parece ter chegado ao ponto de ruptura iminente...

E qual será o mistério que está por trás, ou melhor, no interior das Cavernas do Sono?

 

Bem acima de Dunbee, ouvia-se o burburinho constante e enervante do plasma celular. Se ele quisesse tocar nos recipientes, bastaria estender a mão. Porém, ao tentar, seus dedos cravaram-se no chão arenoso, tatearam trêmulos por cima da terra entrecortada e recuaram assustados, diante da frieza de uma pedra lisa.

Maurice Dunbee gemeu. Esforçou-se em vão para reprimir o sentimento de pavor que dominava sua mente. Mais uma vez procurou tirar o corpo dolorido e cansado de baixo da caixa. A vontade de fugir tornava-se cada vez mais intensa. Respirando com dificuldade, rastejou alguns metros. Em algum lugar — a seu lado ou atrás — ouvia o borbulhar do líquido contido no grande recipiente de plástico.

Haviam desligado a luz; a caverna estava mergulhada na escuridão. Era só uma questão de tempo para que o prendessem e levassem de volta. Sabia que estava muito fraco para lutar. Rastejou mais um pouco, embora estivesse cônscio da inutilidade de seus esforços. Um cheiro forte e corrosivo enchia o ar abafado da caverna. Talvez tivessem introduzido um gás sonífero na mesma, a fim de dominá-lo sem qualquer risco. Dunbee sorriu. Era apenas mais um fracasso na série de insucessos que marcara sua vida.

Aqui está encolhido Maurice Dunbee, o fraco!”, pensou.

Apoiou-se sobre os braços e perscrutou a escuridão.

Será que já estão chegando? Será que o próximo segundo trará o fim? Será que utilizarão armas paralisadoras?”, voltou a refletir.

Subitamente um ruído diferente cortou a escuridão. Dunbee sentiu-se estarrecido. Uma voz metálica, estridente, soou em meio à escuridão:

— Dunbee! Qualquer resistência será inútil! Desista, Dunbee! Dois funcionários da CIS irão buscá-lo!

Dunbee levantou-se de um salto. Bateu com o ombro contra a borda do recipiente e cambaleou. Saiu correndo, dominado por um medo selvagem. A caverna parecia tomada pelo barulho. Ouviu as pisadas dos homens que corriam, o arfar de pulmões cansados e vozes que gritavam seu nome, pedindo-lhe que parasse.

Esbarrou numa rocha saliente e recuperou a plena consciência de si mesmo. Exausto, encostou-se à pedra. Não havia ninguém por perto. Seu corpo débil tremia como se estivesse sendo sacudido por uma febre.

— Tenha juízo, Dunbee! Viemos para ajudá-lo!

Pois é”, pensou Dunbee. “O problema é justamente este. Durante toda vida deixei que os outros me ajudassem sem nunca fazer nada por minha conta.”

Resignado, fechou os olhos. Seus pensamentos recuaram ao dia em que pela primeira vez solicitara o auxílio da Companhia Intertemporal do Sono.

 

— Entre, Mr. Dunbee — disse Curteen, dirigindo-se ao homenzinho que se encontrava na ante-sala. — Agora tenho tempo para falar com o senhor.

Um tanto constrangido, Dunbee levantou-se e largou a revista ilustrada tridimensional. Curteen fez um gesto para convidá-lo a entrar no escritório.

Lester Curteen era vice-diretor da S/A Sabonetes de Pó Estelar. Era alto e esbelto. Seus olhos eram cobertos por lentes de aderência.

— Faça o favor de sentar-se — disse Curteen, enquanto mexia distraidamente em alguns papéis sobre sua mesa.

Depois de algum tempo, exclamou em tom de satisfação:

— Ah, está aqui! O senhor já está trabalhando há mais de dez anos em nossa firma, Mr. Dunbee. Sempre ficamos muito satisfeitos com o senhor. Nunca tivemos problemas.

Dunbee engoliu em seco e acenou com a cabeça. No seu íntimo admirava o desembaraço de Curteen.

— Ficamos muito gratos por sua colaboração — afirmou o vice-diretor. — Naturalmente fazemos votos de que conserve seu emprego por muito tempo.

Dunbee esfregou nervosamente as mãos.

Em tom hesitante observou:

— Na semana passada, Mr. Vadelange saiu da firma, Mr. Curteen. Foi o chefe da Seção de Recrutamento. Eu... Até agora sempre se adotou o costume de promover o funcionário mais antigo, quando há um cargo vago.

Curteen fitou-o por cima da mesa. Havia em seus olhos uma expressão estranha, um brilho suave que logo se apagou. Finalmente só restou a voz gentil de Curteen.

— É verdade, Mr. Dunbee. Normalmente o senhor seria o sucessor de Mr. Vadelange — hesitou um instante. — Mas asseguro-lhe que no momento é totalmente impossível encontrar uma pessoa que possa fazer seu trabalho. Por isso temos de pedir-lhe que continue no mesmo posto. Mr. Priest ocupará o lugar de Vadelange enquanto não encontrarmos um elemento que possa desincumbir-se dos trabalhos que estão sendo realizados pelo senhor.

— Compreendo — disse Dunbee em tom amargurado. — Então será Priest!

Curteen levantou-se, contornou a mesa e deu uma palmadinha no ombro de Dunbee.

— Naturalmente o senhor passará a receber imediatamente o ordenado de chefe de seção — anunciou.

— Naturalmente — repetiu Dunbee em tom automático.

— Sabia que poderíamos contar com sua compreensão face à situação em que se encontra nossa Seção de Recrutamento — disse Curteen com um sorriso.

Dunbee levantou-se devagar.

— Peço minha demissão — disse em tom inseguro.

No mesmo dia escreveu à Companhia Intertemporal do Sono e formulou uma solicitação para uma sonoterapia de trezentos anos.

A CIS fora fundada cerca de um ano antes pelo comerciante Cavanaugh. Geralmente era conhecida como Companhia do Sono. Cavanaugh, que se intitulava como salvador da vida de pessoas desiludidas, descobrira com o auxílio de vários cientistas um novo método de sonoterapia profunda. Autorizado pelo Ministério do Interior, adquiriu uma área de terras situada em Wyoming, nas proximidades do Parque Nacional de Yellowstone, na qual havia várias cavernas vulcânicas de milhares de anos. Não existia lugar mais adequado para um sono biológico tranqüilo.

Num prazo curtíssimo, Cavanaugh mandou adaptar as cavernas. Instalaram-se gigantescos recipientes, nos quais se guardava o plasma celular dentro do qual mais tarde os “fregueses” de Cavanaugh dormiriam à espera de um futuro melhor. Uma campanha publicitária sem precedentes convenceu outras pessoas a aderirem à idéia de Cavanaugh.

Por que um homem fracassado não poderia atravessar alguns anos mergulhado num sono profundo, a fim de, no futuro, dispor de novas energias para realizar coisas espantosas?

O governo não viu qualquer motivo para intervir nessa atividade, pois Cavanaugh seguia estritamente as normas médicas. A CIS estava em condições de submeter-se a qualquer tipo de fiscalização pelos funcionários do Ministério do Interior. E a imprensa também prestou sua contribuição para popularizar a idéia desse empresário. No dia da inauguração das cavernas do sono, algumas centenas de pretendentes se acotovelaram junto à recepção.

Dunbee estava lembrado de uma entrevista que Cavanaugh concedera a um repórter de televisão. Quando este pediu a Cavanaugh que se manifestasse sobre as críticas formuladas contra suas atividades, o empresário respondeu com a maior tranqüilidade:

— Não sei por que criticam minha idéia. Ofereço um futuro feliz a pessoas infelizes. Será que há algum mal nisso?

Dunbee era um homem infeliz. De seu matrimônio com Jeanne não haviam resultado filhos. E com a idade de 48 anos não era de esperar que alcançasse maiores êxitos em sua profissão. Sentiu-se incompreendido pela esposa. O mundo lhe parecia frio e cruel.

Quinze dias depois de ter formulado sua proposta, Dunbee recebeu um convite da CIS para apresentar-se em Wyoming, a fim de ser submetido aos exames preliminares.

E foi assim que Maurice Dunbee desapareceu de Dubose, tão silenciosa e discretamente como havia vivido.

 

Seu nome era M'Artois. Os cabelos pretos e ondulados estavam entremeados de fios prateados. Quando ria, inúmeras rugas surgiam nos cantos dos olhos. Sua voz era sonora. Tinha um jeito peculiar de prender o polegar da mão direita no cós das calças. Usava paletó branco, muito bem talhado, com uma camisa colorida por baixo do mesmo.

— O senhor sabe por que veio até aqui? — disse, dirigindo-se a Dunbee. — Em sua carta diz que quer ser mantido em sono profundo durante trezentos anos. É o maior tempo admissível. O tempo mínimo de sono por nós proporcionado é de cinqüenta anos. O senhor está em condições de arranjar a soma de três mil solares?

Embora a quantia fosse relativamente reduzida, representava boa parte da poupança de Dunbee. Não fora sem um certo sentimento de culpa que retirara certa quantia de sua conta. A viagem para Wyoming não contribuíra para aumentar seu sentimento de segurança. Tinha a impressão de ter traído Jeanne. Talvez estivesse satisfeita por ele ter saído de sua vida. Na carta de despedida pedira-lhe que tivesse compreensão pela sua atitude.

— Tenho o dinheiro comigo — disse. M'Artois — sentado sobre um ridículo artefato de plástico que, sob o peso de seu corpo, ameaçava desmoronar a qualquer momento — acenou com a cabeça.

— Sou psicólogo, Mr. Dunbee — disse.

— A palestra que estou mantendo com o senhor faz parte de meu trabalho. A empresa não pretende martirizá-lo com perguntas. Porém, temos de adotar certas precauções. Acontece que não podemos assumir qualquer risco.

Dunbee respondeu com certa impaciência:

— Estou pronto.

Um sorriso de compreensão surgiu no rosto de M'Artois.

— O senhor já relatou minuciosamente a situação em que se encontra — observou. — Acredita que é um indivíduo instável, que falhou na vida. As dificuldades profissionais e os problemas conjugais desgastaram seu corpo e seus nervos. A firma em que trabalhava não deu valor a seu serviço, e sua esposa não demonstrou muita paciência com o senhor. Não tem filhos. Quase não nos contou nada de positivo que tenha feito — o tom de sua voz tornou-se mais insistente. — Apesar de tudo acredito, Mr. Dunbee, que o senhor deveria tentar mais uma vez.

— Constantemente procurei controlar esta minha vida com as fracas forças de que disponho — disse Dunbee em tom de desânimo. — Estou no fim.

O colaborador da CIS refletiu por um instante.

— Quem sabe se o senhor não é sensível demais? — conjeturou. — Não acha que deveria procurar reconhecer os aspectos positivos de sua existência? Seu padrão de vida não foi nada mau. Procure chegar a um acordo com sua esposa, descubram interesses comuns e façam uma viagem.

— A viagem até aqui foi a última — respondeu Dunbee em tom decidido.

M'Artois respondeu em tom preocupado:

— Está bem! Parece que sua decisão é definitiva. Levá-lo-ei ao Dr. Waterhome, que cuidará dos exames médicos. O senhor há de compreender que só poderemos aceitá-lo se for fisicamente são.

Saiu do escritório juntamente com Dunbee. Atravessaram uma sala grande e dirigiram-se ao corredor principal do edifício situado em Cheyenne, no qual funcionava a CIS. Encontraram-se com alguns funcionários e um robô, que carregava uma pilha de pastas. Dunbee procurou olhar pela janela. Era um dia chuvoso. As vidraças estavam embaçadas pela chuva e pela neblina.

Subitamente, M'Artois perguntou sem qualquer motivo aparente:

— O senhor nunca sofreu nenhuma amputação, Mr. Dunbee?

Dunbee parou.

— Não, por quê?

O sorriso de M'Artois, que desaparecera por alguns segundos, voltou.

— Uma das normas deste estabelecimento determina que não se aceitam pessoas que tenham sofrido amputações. Esqueci de mencionar isso durante nossa palestra — explicou o psicólogo.

Dunbee perguntou a si mesmo por que motivo um homem ao qual faltasse uma parte do corpo não poderia ser posto a dormir. Mas preferiu não manifestar a indagação.

— Isso tem certa relação com as funções orgânicas — comentou ligeiramente o psicólogo, depois de algum tempo. — O Dr. Waterhome poderá explicar melhor, caso esteja interessado.

Abriu uma porta e convidou Dunbee a entrar numa minúscula sala. Uma mulher loura, muito jovem, cumprimentou-os com um gesto de cabeça. Estava sentada atrás de uma mesa redonda e, ao que parecia, não tinha muito o que fazer, pois Dunbee sentiu que ela o fitava intensamente.

— Este é Mr. Dunbee — disse M'Artois, fazendo a apresentação. — Por favor anuncie-o ao Dr. Waterhome, Miss Laura.

Apertou o braço de Dunbee.

— Desejo-lhe boa sorte.

Antes que Dunbee pudesse responder, o homem desapareceu. A loura disse, falando devagar:

— Há alguém na sua frente.

— Não tenho pressa — respondeu Dunbee.

Pensou em Jeanne. Sentiu uma angústia interior. Se a CIS o deixasse dormir por trezentos anos, sua esposa estaria morta quando voltasse para Dubose. Para Dubose, aquela cidade miserável, com o pomposo edifício da S/A Sabonetes de Pó Estelar. Como seria dentro de trezentos anos?

Imaginou como teria ficado Jeanne depois de encontrar sua carta. Teve a impressão de ver seus olhos sérios e escuros, e ouvir sua voz: “Oh, Maurice, por que fez isso?

Na verdade, ouvira apenas um zumbido vindo da mesa em que estava sentada a moça. Dunbee levantou os olhos e a jovem apontou para uma porta acolchoada.

— Pode entrar para falar com o Dr. Waterhome — disse.

Dunbee tropeçou ao levantar-se e sentiu-se embaraçado ao perceber que, enquanto abria a porta, a moça o seguia com os olhos.

 

O exame durou mais de duas horas. O Dr. Waterhome pediu a Maurice que voltasse no dia seguinte. Até lá, os resultados seriam interpretados e então lhe diriam se poderia ser aceito pela CIS.

Dunbee voltou ao hotel e, por meio do álcool, anestesiou os nervos excitados. Pensou em escrever uma carta a Jeanne. Mas acabou não o fazendo. Dormiu completamente vestido.

Acordou muito cedo. Seu corpo parecia entrevado e sentiu um sabor desagradável na boca. Nem mesmo a ducha-massagem o fez sentir-se melhor.

Seu estado só se modificou dali a algumas horas, quando M'Artois lhe comunicou que seria levado para as cavernas da CIS e por lá ficaria durante trezentos anos. Sentiu-se como um morto...

 

Todos os pintores do mundo pareciam ter-se reunido a nordeste de Wyoming, a fim de dar um colorido todo especial à paisagem. Bem embaixo de Dunbee, o Yellowstone River corria que nem uma serpente azul, entre os gigantescos desfiladeiros.

O piloto fez o helicóptero descer um pouco.

— Daqui a instantes chegaremos ao parque nacional — disse, dirigindo-se a Dunbee. — É lá que ficam as covas da Companhia do Sono.

Dunbee estremeceu ao ouvir a palavra cova. Apenas para dizer alguma coisa perguntou:

— O senhor nasceu em Wyoming?

O piloto riu.

— O senhor talvez não acredite, mas o fato é que nasci na Lua. É uma coisa espantosa, não acha?

Dunbee concordou em tom amável. Gostaria de conversar sobre seus problemas pessoais, mas receava que aquele homem não fosse demonstrar a necessária compreensão pelos mesmos.

— Por que faz isso? — perguntou o outro de repente. — Por que vai deixar que o ponham para dormir?

Agora, que tinha oportunidade para falar sobre isso, Dunbee não soube o que dizer.

— Não precisa contar — disse o esbelto acompanhante de Dunbee. — Sempre tenho uma sensação estranha ao levar gente como o senhor.

— Que sensação? — perguntou Dunbee.

O condutor do pequeno veículo fitou-o de lado. Estava muito sério.

— Acho que há algo de errado com aquilo — disse. — Não pense que quero meter-lhe medo. Afinal, a CIS me paga muito bem. Já notou o preço muito baixo que eles cobram?

— O que quer dizer com isso? A sociedade opera racionalmente e calcula seus custos com muito rigor. É perfeitamente normal que pratique preços razoáveis, a fim de conseguir clientes.

— Acontece que o tal do Cavanaugh é um negociante muito sagaz — disse o piloto. — Nunca fará um negócio para sair perdendo. Pense bem. Recebo quase quarenta solares por cada vôo. Ainda há o custo dos exames, as despesas administrativas e a manutenção das cavernas. Não vejo como pode sobrar algum lucro. Às vezes chego a pensar que alguém financia Cavanaugh pelas experiências que realiza.

— Pelas experiências? — perguntou Dunbee em tom de perplexidade.

— Talvez tudo isso não passe de uma experiência que, se for bem sucedida, será ampliada para dar um bom dinheiro.

Dunbee respondeu em tom indignado:

— Assinei um contrato cujos termos foram autorizados pelo Ministério do Interior. As cavernas são regularmente inspecionadas por competentes funcionários. É verdade que a responsabilidade por eventuais erros médicos cabe a mim mesmo, mas isso é perfeitamente compreensível.

O piloto preferiu não prosseguir na discussão. Para ele, o assunto parecia liquidado. Dunbee, que gostaria de conversar mais, teve de contentar-se com observações relativas à paisagem. Depois de algum tempo, o piloto da CIS apontou para um grande complexo rochoso.

— É ali — disse.

— Não vejo nada... nenhum edifício — comentou Dunbee em tom de decepção.

Procurou esticar o pescoço.

— Com exceção do campo de pouso, o restante das instalações se encontra no interior das cavernas — explicou o piloto. — O senhor se admirará ao ver quanto espaço existe no interior das escavações.

O helicóptero foi perdendo altura.

À esquerda deles, surgiu o campo de pouso, incrustado na mata. O homem vindo de Dubose viu um caminho que levava do campo até a rocha. Era lá que deviam ficar as câmaras de dormir.

Um nervosismo inexplicável apoderou-se de sua mente. Seu coração começou a bater mais depressa e suas mãos esfregaram-se nervosamente. Logo atrás do mato, uma bandeira vermelha tremulava ao vento. As iniciais da companhia estavam impressas nela em letras amarelas. Dunbee teve a impressão de que se tratava do último cumprimento vindo desse mundo banhado pelo sol. Só retornaria à superfície dali a trezentos anos.

As dúvidas começaram a roê-lo. Será que realmente não haveria outra saída para o dilema?

De repente lembrou-se dos dias de verão, nos quais ficava sentado juntamente com Jeanne sobre a cobertura de sua casa. Uma brisa suave soprava das montanhas, mexendo com o cabelo de sua mulher e trazendo o cheiro da terra molhada. Vez por outra costumava fumar seu cachimbo ou tomar uma cerveja.

São estas as coisas insignificantes do dia-a-dia”, pensou. “Por que só agora compreendo quanto significavam para mim?

Procurou controlar-se e sacudiu as idéias. Não poderia voltar atrás.

O helicóptero pousou com um solavanco. Dunbee teve uma sensação de torpor. O piloto saiu. Dois homens com jalecos azuis vieram correndo pelo campo de pouso. As iniciais CIS haviam sido bordadas na altura do peito.

— É seu comitê de recepção que está chegando — disse o piloto.

Dunbee foi cumprimentado com muita cortesia. Mostrou o cartão amarelo que lhe fora entregue por M'Artois. Esse cartão lhe dava o direito de entrar nas cavernas e ocupar um lugar para dormir, uma vez cumpridos todos os requisitos.

Os dois colaboradores da CIS deram a entender que pretendiam levá-lo o quanto antes até as cavernas. Dunbee despediu-se do piloto e seguiu os dois homens.

Dali a pouco, Dunbee constatou que havia três entradas separadas que levavam para os subterrâneos. Mostravam um bom acabamento e estavam bem construídas. O chão era liso e muito limpo. O tamanho das aberturas na rocha variava. Pela menor delas não poderiam entrar mais de quatro pessoas de cada vez. Evidentemente essa circunstância não permitia qualquer conclusão sobre a extensão das cavernas.

— A porta do centro leva às câmaras de dormir — explicou um dos homens. — As outras dão para as salas de recepção e o setor administrativo. Nós moramos junto ao setor administrativo, pois durante os exames seríamos apenas um estorvo. Só os médicos costumam ficar nas proximidades dos recipientes.

Dunbee gostaria de obter outras informações, mas naquele instante chegaram à entrada atrás da qual, segundo as explicações que acabavam de ser fornecidas, ficava o setor administrativo. Uma porta automática de correr escorregou para o lado e escondeu-se na rocha trabalhada, deixando livre a vista para um corredor muito bem iluminado. As paredes e o teto eram lisos e estavam revestidos de placas.

— O salão de dormir não é tão confortável — disse um dos acompanhantes.

Dunbee ouviu a leve ironia que vibrava em sua voz. Não sabia por quê, mas aquele homem queria gozá-lo.

O corredor desceu ligeiramente até terminar num recinto amplo, apoiado em colunas redondas. Umas trinta pessoas estavam sentadas atrás de escrivaninhas, de máquinas de escrever ou de calcular ou ainda junto a arquivos. Havia várias divisões separadas por paredes de vidro inquebrável. As pessoas podiam trabalhar sem que ninguém as perturbasse. Dunbee teve a impressão de que a temperatura era agradável. O ar puro penetrava incessantemente por alguma abertura invisível.

Suas observações foram interrompidas pelo aparecimento de um homem alto e forte. Era o único que usava jaleco. Dunbee teve a impressão de que a pele de seu rosto tinha algo de murcha. Quase chegava a lembrar uma maquilagem mal sucedida de sua esposa. O homem movia-se muito devagar, como se a cada passo tivesse de refletir sobre o que fazer em seguida. Seus olhinhos quase chegavam a desaparecer atrás das pestanas sem cílios. Dunbee sentiu certa repulsa instintiva diante do aspecto desse homem.

— Olá, Mr. Dunbee — disse o homem a título de cumprimento. — Meu nome é Dunc Clinkskate. Sou, por assim dizer, o chefe deste escritório.

Sorriu.

Dunbee teve de esforçar-se para continuar a olhar para ele.

Empurrou delicadamente Dunbee entre duas paredes de vidro e fechou a porta, que também era transparente. Quando pôde sentar-se, Dunbee sentiu-se aliviado. Tinha a impressão de que todos interromperam o trabalho para fitá-lo. Pigarreou de constrangimento.

Clinkskate disse:

— É meu dever lembrar-lhe mais uma vez o contrato assinado pelo senhor. Deve ser obedecido por ambas as partes. Espero que tenha lido com a necessária atenção. Quaisquer erros médicos não serão de responsabilidade da CIS. No entanto, garantimos seu bem-estar durante o tempo em que estiver dormindo. O senhor assinou um contrato pelo prazo de trezentos anos. Durante esse tempo as funções de seus órgãos serão reduzidas a um mínimo quase imperceptível. Seu corpo boiará num líquido que costumamos chamar de plasma celular. O efeito desse líquido é duplo.

“De um lado garante que, durante o tempo de sono, o senhor não estará sujeito a qualquer influência perturbadora. Além disso tem um efeito rejuvenescedor sobre as células; pode ser considerado um tipo de substância nutritiva. Vários eletrodos serão aplicados em seu corpo, e estes transmitirão a intervalos regulares certos estímulos aos seus órgãos, a fim de que não se debilitem nem atrofiem. Desde logo devo chamar sua atenção para as primeiras semanas que se seguirem ao momento do despertar. Serão muitíssimo desagradáveis, pois seu corpo terá de acostumar-se lentamente ao desempenho das suas funções primitivas. Quando isso acontecer já terei morrido, mas o senhor se lembrará do que estou lhe dizendo. Mesmo então, o senhor poderá contar com a assistência ininterrupta dos nossos médicos.”

Dunbee achou que essas palavras não eram nada consoladoras. Agora, que estava prestes a realizar seu desejo, a vida que até então levara lhe parecia muito atraente.

Clinkskate, que não tomou conhecimento da nova disposição de ânimo de seu interlocutor, abriu os braços, como se quisesse apresentar um país das maravilhas.

— O processo de adormecimento virá acompanhado de alguns fenômenos colaterais que lhe poderão parecer absurdos, Mr. Dunbee. Naturalmente seu corpo terá de ser preparado. Inúmeras providências tornam-se necessárias. Não se assuste. Sua cabeça será raspada e o senhor será submetido a alguns testes extremamente desagradáveis. É claro que por ocasião das providências que eventualmente possam provocar dores, o senhor estará inconsciente. E antes do início do adormecimento, propriamente dito, o senhor será anestesiado.

Clinkskate soube formular esses esclarecimentos como se aludisse a favores especiais, que representariam um alívio para Dunbee. No ânimo deste surgiu uma voz de advertência, que a partir da palestra com o piloto se tornava cada vez mais insistente. O antigo técnico de propaganda não conseguiu identificar o mal-estar que sentia. A CIS e seus colaboradores causavam em Dunbee uma impressão que poderia transformar-se em verdadeira desconfiança. Lembrou-se dos funcionários do Ministério do Interior que fiscalizavam a empresa. Sem dúvida as investigações eram dignas de confiança.

— Pode mudar de roupa, Mr. Dunbee — disse Clinkskate, interrompendo as reflexões sombrias de seu interlocutor. — Receberá uma vestimenta especial.

Quem dera que eu estivesse em Dubose”, pensou Dunbee.

 

O ruído fez com que Dunbee retornasse imediatamente ao presente. Reteve a respiração e aguçou o ouvido. Não havia a menor dúvida. Em algum lugar, no interior da caverna, alguém batera uma porta. Agarrou-se firmemente à rocha e procurou romper a escuridão total com os olhos ardentes. O ruído monótono do líquido no recipiente chegou ao seu ouvido. Alguém entrara na caverna para prendê-lo. A idéia de que uma mão implacável, vinda da escuridão, pudesse agarrá-lo, levou-o a um estado próximo ao pânico.

Alguém não estava tateando nas proximidades? Uma sombra não vinha em sua direção?

Uma lufada de ar passou sobre o rosto de Dunbee. Seu grito de dor refletiu-se num eco múltiplo nas inúmeras curvas da caverna. Estendeu as mãos para a frente, mas não havia ninguém.

Ter-se-ia assustado com uma pedra que rolara? Estendeu as mãos e saiu tateando. Depois que haviam desligado as luzes, só conseguia orientar-se pelos ruídos dos recipientes. Em algum lugar a água pingava do teto. A rocha era fria e áspera. Esforçou-se para não pensar naquilo que vira há algumas horas. Fugira apavorado.

— Ploc, um; ploc, dois; ploc, três.

Dunbee descobriu que estava contando os pingos que caíam. Bateu com o queixo numa rocha saliente e o traje disforme em que o haviam metido rasgou-se.

Que dose de medo o homem poderia suportar, antes de enlouquecer?

Dunbee tinha certeza de que estava próximo ao seu limite de tolerância. Pensou em pegar uma pedra grande e abrir um furo no recipiente, mas não dispunha da energia psíquica para um ato dessa espécie.

Teve a impressão de que a luz era uma flecha chamejante. Cambaleou. Estreitou os olhos doloridos e teve de fazer um esforço tremendo para formar esta idéia: “Alguém acendeu uma lanterninha e dirigiu a luz sobre mim!

Caiu de joelhos, choramingando de desapontamento. A luz deslizou sobre seu corpo, sobre aquele montículo indefeso de tragédia humana.

— Olá, Dunbee! — disse uma voz indiferente de trás da lanterninha.

Um vulto saiu da escuridão. Era um guarda. A luz girou no espaço, atingiu rochas e pedras cinzentas, tremeu por cima do chão arenoso e voltou para Dunbee.

— Vamos! — disse o guarda laconicamente.

Indicou o caminho que tomariam, e que os levaria de volta à sala de preparativos. De repente, a vontade de resistir surgiu na mente de Dunbee. Ao levantar-se, sua mão fechada segurou uma pedra. Precisava tentar! Sabia que sua situação era desesperadora. De qualquer maneira acabariam pondo as mãos nele. Restava saber como e quando isso aconteceria.

Enquanto caminhava junto ao guarda, pensou que já deveria ter voltado bem antes, quando Clinkskate o levou para junto dos médicos que se encontravam na sala de preparativos...

Recordou-se mais uma vez da cena...

Trajava uma vestimenta especial de cor branca, da qual Clinkskate lhe falara. Era feita de duas peças e estava presa ao corpo com faixas largas. Esperara que no caminho para o próximo setor fosse retornar ao ar livre, mas as cavernas estavam ligadas por corredores subterrâneos.

— Talvez tenha cometido um erro ao resolver submeter-me ao processo de adormecimento — disse, dirigindo-se a Clinkskate, que caminhava uns cinqüenta centímetros à sua frente.

O homem olhou por cima do ombro e parou.

— Em certo momento todos os clientes chegam a este estado — disse. — É antes o medo do desconhecido que saudades ou o desejo de voltar à vida anterior. Não leve isso muito a sério, Dunbee.

Subitamente, um quadro surgiu na mente de Dunbee. Viu Jeanne sorridente, correndo por um prado de flores — em sua direção. Naturalmente nunca a vira assim, mas Dunbee tinha certeza de que ela faria isso, se ele voltasse e lhe comunicasse haver desistido. Aliás, deveria ter conversado muito mais com ela.

— Não — disse em tom resoluto. — Quero voltar para Dubose.

— Tolice — gritou Clinkskate em tom contrariado. Virou-se e agarrou o braço de Dunbee com força, a fim de arrastá-lo. — O senhor tem de superar isso. Se voltar a Dubose, todo o sofrimento começará de novo.

Dunbee deixou-se arrastar meio a contragosto. Ao que parecia, Clinkskate não estava disposto a aceitar suas ponderações. Talvez estivesse com a razão. Dunbee resolveu não resistir mais.

— Pois então — disse Clinkskate. Sacudiu a cabeça de Dunbee, a fim de animá-lo. — Entregá-lo-ei ao Dr. Le Boeuf, que certamente saberá alegrá-lo. E ainda poderá contar com o Dr. Piotrowski e seus ajudantes. Além disso, encontrará algumas enfermeiras...

Dunbee não compreendeu o que havia de tão alegre nisso, mas o fato é que Clinkskate sorriu. Acontece que na CIS todo mundo sorria, sempre que havia oportunidade para isso.

São pessoas muito amáveis”, pensou Dunbee. “Talvez sejam amáveis demais.”

De repente, o corredor terminou. Clinkskate mexeu no fecho de uma grande porta de correr. O recinto abobadado que surgiu atrás da porta era estranho sob todos os pontos de vista. Estendia-se em todas as direções — inclusive para baixo. Havia elevadores que ligavam os diversos pavimentes. Tudo que pudesse fornecer uma indicação de que a pessoa se encontrava embaixo da terra fora cuidadosamente removido.

— Nesta sala, as pessoas são preparadas para serem colocadas nos grandes recipientes de plástico onde serão postas a dormir — disse Clinkskate. — É imponente, não acha?

Pelo que Dunbee pôde ver, as instalações eram limpas e modernas. Havia inúmeras máquinas e aparelhos cujas finalidades dificilmente se conseguiria adivinhar.

— Dispomos de geradores próprios — disse Clinkskate em tom de orgulho. — O senhor vai constatar que possuímos a mesma autonomia de uma grande cidade. Nós mesmos fornecemos a energia com que trabalhamos. O senhor está vendo todas as instalações técnicas. As cavernas de dormir também são controladas a partir daqui. Julgamos conveniente não colocar perto das pessoas adormecidas qualquer tipo de equipamento que possa perturbá-las. Neste pavimento encontram-se todas as máquinas necessárias ao suprimento energético das câmaras de dormir e outras dependências. Um pouco abaixo do lugar em que nos encontramos trabalha o Dr. Le Boeuf e sua equipe. O senhor logo travará conhecimento com ele. Faça o favor de acompanhar-me até o elevador.

O elevador levou-os para baixo. Dunbee percebeu que por ali havia principalmente instalações médico-sanitárias.

— Aí vem o doutor! — exclamou Clinkskate.

Dunbee viu um pequeno homem sardento que se aproximava a passos curtos e rápidos.

— Este é o Dr. Le Boeuf — disse Clinkskate a título de apresentação.

Dunbee ficou fascinado ao ver que as sobrancelhas espessas do médico se contraíam.

— O senhor não parece nada sonolento — observou Le Boeuf.

Dunbee ficou perguntando a si mesmo se era esse tipo de humor que, na opinião de Clinkskate, deveria alegrá-lo. Clinkskate retirou-se discretamente, deixando Dunbee entregue ao seu destino que, por enquanto, sob a forma do humor grosseiro do Dr. Le Boeuf, ainda se mostrava misericordioso para com o homem de Dubose.

 

O guarda sacudiu a lanterna e desviou-se de uma pedra. Dunbee espantou as recordações. Não podia perder mais tempo. A arma primitiva que trazia consigo pesava fortemente em sua mão.

— Cuidado! — gritou com a voz rouca. — Lá na frente!

O homem estacou de repente e dirigiu a luz para a frente. Dunbee avançou com o braço levantado e golpeou. Sentiu a resistência, quando o punho fechado atingiu o alvo. Por um momento sentiu-se desesperado, pois pensou que seu plano tivesse fracassado.

Mas o guarda caiu ao chão. Deixou cair a lanterna, que se quebrou. A luz apagou-se. O silêncio voltou a reinar. Dunbee abaixou-se. Seus dedos tateantes sentiram o corpo frouxo do guarda. Dunbee tinha certeza de que aquele homem não ficaria inconsciente por muito tempo. Deveria dar-lhe mais alguns golpes. Mas ao levantar a mão, esta recusou-se a obedecer. Mesmo na situação em que se encontrava, Dunbee, que nunca fora capaz de agir com brutalidade, era um prisioneiro de sua consciência.

Viu o rosto pálido e desconhecido na escuridão. Era um rosto marcado pela brutalidade e pela violência, mas não conseguiu golpear de novo. Procurou imaginar que quem estava à sua frente era Clinkskate. Esforçou-se para retirar aquele rosto do anonimato, a fim de enfileirá-lo entre seus inimigos, mas não conseguiu.

Ao mexer-se e fazer menção de levantar-se, o guarda resolveu todos os problemas. Dunbee não perdeu mais tempo: golpeou.

Depois disso não se sentiu aliviado. Tinha a boca ressequida e a língua inchada. Sua cabeça retumbava. Deixou cair a pedra e saiu às apalpadelas, afastando-se do homem inconsciente.

O que diria Jeanne se me visse assim? Jeanne!”, refletiu e sentiu-se dominado pela amargura.

Encontrou a parede da caverna. A superfície áspera e fria tranqüilizou-o.

— Ploc! Um! Ploc! Dois! Ploc! Três! Quatro, cinco, seis...

Eram os pingos de água.

Se conseguisse encontrar o lugar em que caíam os pingos, poderia esfriar o rosto ardente. Não havia mais nada que pudesse fazer.

Apenas esperar.

Não demorariam a impacientar-se e querer saber o que havia acontecido. Chamariam o guarda pelo alto-falante, e a falta de resposta lhes diria o suficiente. Da segunda vez não teriam tanta consideração.

Avançou aos tropeços junto à parede. Era um vulto gigantesco com roupas sujas. As calças rasgadas esvoaçavam em torno de um par de joelhos finos e ossudos.

O que fariam com ele quando conseguissem agarrá-lo de novo? Seria possível que os nervos superexcitados lhe tivessem pregado uma peça? Quem sabe se a CIS não era uma organização correta e decente?

Lembrou-se do que havia visto e sentiu náuseas. Não e não! Fosse qual fosse o jogo, o mesmo era mau e cruel. Quando, durante o exame, sua mente experimentou uma reação instantânea, por certo sentira instintivamente que a CIS não era aquilo que alegava ser...

 

Eles o haviam medido e pesado. Examinaram a pressão sangüínea, atividade cardíaca, freqüência das vibrações cerebrais, funcionamento do fígado e dos pulmões. Encheram-no de medicamentos, enquanto estava deitado sobre a mesa, quase inconsciente, com o rosto do médico diante dos olhos. Às vezes era o Dr. Le Boeuf, outras vezes o Dr. Piotrowski. Depois vieram os ajudantes e as enfermeiras. Viraram-no pelo avesso.

Eletrodos foram conectados ao seu corpo, fios e sondas foram introduzidos no mesmo.

Ouviu a voz do Dr. Piotrowski, estridente como a de uma criança:

— O que acha, doutor?

Seguiram-se risadas, outras vozes, o ruído de objetos que eram empurrados sobre vidro, o tilintar de instrumentos, o zumbido misterioso de aparelhos desconhecidos.

O Dr. Le Boeuf disse:

— O soro K 46!

Uma voz feminina:

— Será que ele agüenta?

A risada infantil de Piotrowski. Um carrinho de direção automática zumbiu no chão e aproximou-se deles.

Uma voz de homem:

— Pobre idiota!

Dunbee sobressaltou-se. Revirou os olhos. Pretendia perguntar o que estavam fazendo com ele. Sentiu uma picada na coxa. As vozes transformaram-se em ruídos confusos e desapareceram de vez...

De repente despertou. O Dr. Le Boeuf inclinou-se sobre ele. Estava sorrindo.

— Muito bem — disse em tom tranqüilizador. — Daqui a pouco estará tudo liquidado.

Dunbee surpreendeu-se ao contorcer o rosto num sorriso amável.

— O senhor ainda está um pouco fraco — disse o Dr. Piotrowski, que se encontrava junto ao pé da cama. — Isso logo passará. Daqui a quatro horas o senhor estará dormindo... por trezentos anos.

Mais quatro horas... e depois? As enfermeiras mexiam com alguma coisa nos fundos da sala. Quando estivesse na sua câmara não ouviria mais nenhum barulho. Seria como a morte, mas uma morte a prazo certo. Passaria trezentos anos num esquife, num estado de coma total. Não ouviria nada, não veria nada, não sentiria nenhum cheiro, nenhum sabor, não experimentaria a sensação de tato. Absolutamente nada! Mas, pelo que diziam, de certa maneira estaria vivo, enquanto boiasse no líquido viscoso de que lhe haviam falado.

Mais quatro horas!

Dunbee sentiu certa repugnância pelo lapso de tempo que lhe fora indicado. Seriam apenas quatro horas? Por que não poderiam ser sete, dez ou três dias?

Ergueu-se cautelosamente. Os médicos haviam saído da sala. Duas enfermeiras estavam de pé junto a uma prateleira e limpavam os instrumentos.

Subitamente ouviu que o Dr. Le Boeuf estava voltando. Seus ouvidos perceberam o som de seus passos curtos e apressados no chão de plástico. Parecia que a capacidade auditiva de Dunbee aumentara para várias vezes o nível anterior. O som tateante foi crescendo, retumbava em seu crânio, martirizava seus nervos e lançou-o no pânico.

Arrancou a coberta de cima do corpo. Uma das mulheres gritou. Instrumentos foram atirados para o alto.

Mais ao longe, ouviu-se a voz do Dr. Le Boeuf:

— Dunbee! O senhor ficou louco? Pare!

As enfermeiras correram em sua direção. Os aventais abertos esvoaçavam como se fossem asas gigantescas.

— Dunbee! — gritou Le Boeuf.

Dunbee fugiu sem pensar em nada. Derrubou uma prateleira. Vasos caíram ao chão. Seus olhos viram uma porta. As mulheres interpuseram-se em seu caminho, já estavam quase no lugar em que se encontrava. Sentiu suas mãos que queriam agarrá-lo, ouviu sua respiração pesada e a voz do médico que não cessava de gritar:

— Dunbee! Dunbee! Dunbee!

Parou e empurrou-as para trás. Em seus olhos devia estar escrita a loucura, pois largaram-no com os rostos apavorados. Chegou à porta sem que ninguém o impedisse. Viu-se num corredor estreito. Seus pulmões doíam, mas continuou a correr.

Até então movera as pernas mecanicamente, sem pensar em nada. Mas agora começou a refletir. Prestou atenção ao lugar em que se encontrava. Ao que parecia, penetrava cada vez mais profundamente no interior da terra, pois as paredes e o chão já não traziam nenhum revestimento, mas exibiam seu aspecto natural e grosseiro. A iluminação mostrava-se constante. Fosse qual fosse o lugar ao qual levaria aquele corredor, ele não o conduziria à liberdade.

Em vários lugares havia escoras que seguravam o teto. Provavelmente, o caminho fora aberto à força de explosivos. Dunbee continuou a correr. Passou por cima de um pedestal, esgueirou-se entre duas colunas e prestou atenção às pedras afiadas de ambos os lados.

Não prestara atenção ao chão: Aquela galeria parecia a goela de um monstro voraz. Atirou-se desesperadamente para trás. Os pés perderam o apoio. Escorregou para dentro do buraco. Atirou as mãos para os lados, mas estas só agarraram o vazio. Cascalho e pedras acompanharam-no na queda, sua boca encheu-se de pó. Perdeu totalmente a sensação do tempo. Foi resvalando para baixo e sentiu-se incapaz de fazer qualquer coisa para impedi-lo.

Quando atingiu o solo uma eternidade parecia ter passado. Numa reflexão momentânea pensou que talvez tivesse caído no poço de ventilação de um recinto de grandes dimensões. Abriu os olhos, que ardiam devido à areia e à sujeira. Seu corpo maltratado doía.

Viu-se numa gigantesca caverna escassamente iluminada. O buraco pelo qual tinha descido ficava a seu lado, pouco acima do chão. Subia num ângulo de aproximadamente quarenta e cinco graus.

Foi então que Dunbee viu os recipientes pela primeira vez. Estavam encostados à parede que nem esquifes superdimensionados. Fez um esforço e arrastou-se para junto dos mesmos. As caixas de formato trapezoidal repousavam sobre suportes cônicos. Estavam cheias de um liquido amarelento e oleoso. Estreitas escadas de metal subiam por suas paredes. Inúmeros cabos e contatos terminavam em suas faces longitudinais. E ruídos fantasmagóricos vinham de seu interior.

Dunbee aproximou-se o suficiente de um dos recipientes para olhar para dentro do mesmo. Encostou a palma das mãos ao plástico.

Subitamente estremeceu. Boquiaberto, fitou a massa gordurosa.

O recipiente estava vazio!

Nenhuma pessoa dormia no interior do mesmo.

Onde estavam as pessoas que foram postas a dormir pela CIS? Dunbee esqueceu as dores e continuou a correr. Também no segundo esquife não viu ninguém. Nem se deu ao trabalho de examinar o terceiro.

Provavelmente, em outra caverna também havia recipientes. Deviam estar lá. A garganta de Dunbee estreitou-se. Indeciso, olhou em torno. Percebeu que a cova em que se encontrava também era acessível de maneira normal, pois nos fundos da sala viu portas entalhadas na rocha.

Suas idéias formaram um estranho modelo. Aos poucos foi-se acalmando. Sentou-se numa pedra a fim de descansar. Não poderia ficar ali para sempre. Seria preferível chamar alguém.

Não sabia por quanto tempo estivera sentado, refletindo, quando ouviu o chiado forte e malvado. Levantou os olhos.

Só o viu por um instante, mas esse instante bastou para fazer nascer o pavor em sua alma. Dunbee sentiu-se incapaz de gritar. Sacudiu-se num medo indizível.

No mesmo instante a escuridão envolveu-o. As luzes apagaram-se. Dunbee ficou sentado na pedra, soluçando.

— Então é esta a coisa má da CIS! — balbuciou.

Mudo e apático de medo, Dunbee enfiou-se embaixo de um dos recipientes.

— Dunbee! O senhor derrubou o guarda — disse a voz em tom de recriminação.

— Derrubei, sim — respondeu Dunbee em tom obstinado.

— Aqui fala Clinkskate! — disse outra voz. — Seja razoável, Dunbee! A companhia será generosa e esquecerá esse ato de nervosismo. Não haverá qualquer prejuízo para o senhor.

Dunbee soltou uma gargalhada selvagem.

— Sabe o que pensei quando coloquei esse sujeito fora de ação? Imaginei que ele tivesse seu rosto, Clinkskate! Pensei que tivesse esse maldito rosto de criminoso!

— O senhor está louco — gritou Clinkskate em tom nervoso.

— Nada disso! — Dunbee mantinha os punhos cerrados. — Já descobri tudo sobre sua linda companhia. Onde estão as pessoas que deveriam dormir nestes recipientes? Onde estão, Mister Clinkskate?

— O senhor representa um perigo para a CIS — disse Clinkskate. — Sua mente está confusa. Não vê que há anteparos de plástico que não permitem que alguém veja as pessoas que dormem nos recipientes?

Dunbee sacudiu ameaçadoramente os punhos.

— Venham buscar-me! — disse. — Lutarei, Clinkskate!

Não houve resposta. As luzes débeis voltaram a ser acesas.

Dunbee manteve-se longe dos recipientes.

Quando se aproximaram, encontrava-se no centro da caverna. Segurava uma pedra em cada mão.

Eram seis!

Usavam os jalecos azuis da CIS. A expressão de seus olhos era resoluta e cruel.

Naquele instante, o indivíduo fraco que havia dentro de Dunbee morreu muitos metros abaixo da terra. E nessa hora de derrota nasceu um novo homem: Maurice Dunbee, o lutador!

 

A escada que levava ao escritório estava coberta por grossos tapetes, que abafavam todos os ruídos. Era um dia fresco e límpido do mês de abril do ano de 2.044. Da rua vinha o ruído abafado do tráfego.

Mrs. Jeanne Dunbee viu-se diante da placa cujo dono naquele instante corporificava todas as suas esperanças:

 

RICHARD D. KENNOF

Detetive Particular

 

Face ao aspecto exterior da agência, a designação de esnobista ainda seria muito suave. Um puxador de campainha antiquado, feito de cobre trabalhado, encontrava-se junto à porta. Vitrais com figuras grotescas impediam a visão para o interior do escritório. A caixa do correio era uma cabeça entalhada na madeira, cuja boca representava a fenda de entrada.

Qualquer observador só poderia supor que o dono desses objetos deveria ser um louco ou um convencido.

Mrs. Jeanne Dunbee não pensava assim. Sua mente estava ocupada exclusivamente com os problemas que a atormentavam.

Sua figura esguia parecia quebradiça. A maquilagem mal conseguia disfarçar as profundas olheiras. Um grampo de madrepérola muito simples prendia o cabelo levantado em coque. Para o observador objetivo, ela devia ter pouco mais de quarenta anos.

Acionou a campainha e assustou-se com o barulho. Uma morena magra, que usava uma peruca moderna, abriu a porta. Lançou um olhar contrariado para Mrs. Dunbee.

— Tenho hora marcada — disse Jeanne.

— A senhora deve ser Mrs. Dunbee — constatou a morena. — Faça o favor de entrar. Mr. Kennof deseja falar imediatamente com a senhora. Está muito interessado pelos seus problemas.

Jeanne lembrou-se de que não revelara suas preocupações a Kennof. Apenas lhe perguntara se hoje tinha tempo para ela, pois sabia que Kennof era um homem muito ocupado.

Provavelmente era uma das fórmulas de cortesia que a morena costumava usar.

A falta de gosto do interior do escritório excedia em muito a da escadaria. Três homens e duas mulheres estavam sentados atrás de mesas que imitavam o formato de um rim. Tapetes vermelhos com desenhos horríveis estavam pendurados nas paredes. O teto achava-se coberto de pinturas. Jeanne Dunbee teve a impressão de encontrar-se numa espécie de galeria de pintura. Alguns quadros, que só depois de um exame mais detido eram identificados como tais, desfiguravam a parede dos fundos daquele panorama, que era um misto de conforto e vulgaridade.

O cúmulo de tudo era representado por um vaso monstruoso, de uma feiúra a toda prova. No interior do jarro, as flores pareciam sentir a mesma coisa, pois estavam murchando. Ao menos eram naturais e não de plástico.

Jeanne, que não julgara possível um aumento desses aspectos anormais, teve de rever sua opinião assim que foi introduzida no gabinete de Kennof.

De início, seus olhos caíram sobre o próprio Kennof, vestido com um robe amarelo e refestelado numa poltrona. Depois de tudo que Jeanne ouvira sobre suas façanhas, achou-o decepcionante em toda linha.

Era corpulento, quase inchado. Os olhos quase desapareciam sob as pálpebras de buldogue. O cabelo de Kennof estava cuidadosamente repartido. O detetive era um homem alto. Dava a impressão de ser um tipo esquisitão.

Segundo os boatos que corriam, aquele homem já fora funcionário do governo. Naquele momento, Jeanne estaria disposta a jurar o contrário.

Um gato de orelhas pontudas estava deitado sobre uma almofada florida ao lado de Kennof. O animal estava enrolado e ronronava gostosamente.

A sala era um pesadelo de cores berrantes e mau gosto. Uma atração toda especial era representada por um elefante de bronze, com olhos brilhantes e uma tromba cujo tamanho não guardava a menor proporção com o resto do corpo. O aspecto desse objeto, que provocaria um sorriso irônico em qualquer outra pessoa, deveria constituir um regalo indispensável para Kennof, pois ele o colocara sobre a mesa, bem à sua frente.

Mais tarde, Jeanne constatou que aquela figura era um isqueiro.

— Bom dia, Mrs. Dunbee — disse Richard Kennof com uma voz cheia e agradável.

Levantou-se para cumprimentá-la. Ofereceu-lhe uma cadeira que se destacava por certo grau de normalidade.

Kennof apontou com o dedo polegar para o gato.

— É Buster, um animal extraordinário — disse em tom amoroso.

Buster espreguiçou-se, fez uma corcova, bocejou e virou ostensivamente as costas. Jeanne esforçou-se em vão para descobrir o que havia de extraordinário em Buster, com exceção de uma coleira de ouro.

— O que posso fazer pela senhora? — perguntou o detetive depois que Jeanne se havia acomodado.

Jeanne refletira muito bem sobre o que pretendia dizer. Mas agora, que havia chegado o momento de falar, só conseguiu dizer uma coisa:

— Meu marido desapareceu.

Kennof lançou-lhe um olhar cheio de compreensão. Entrelaçou os dedos e fez estalar as juntas.

— A senhora quer que eu verifique se existe outra? — disse em tom objetivo:

Pegou uma caixa de cigarros muito enfeitada.

— A senhora fuma? — perguntou. Jeanne recusou. O detetive serviu-se e ficou manipulando seu desajeitado isqueiro até que conseguiu pôr fogo no cigarro.

— O motivo não tem nada a ver com outra mulher — disse Jeanne em voz baixa.

— Foi para Wyoming, para que a CIS o pusesse para dormir por trezentos anos.

Kennof soltou um assobio.

— A Companhia do Sono — constatou.

— Os amigos dos sofredores.

Jeanne colocou uma folha de papel sobre a mesa.

— É uma carta de despedida. Não pretendia mostrá-la a ninguém, mas é bom que conheça os motivos de Maurice.

Kennof leu cuidadosamente a carta, sem dizer uma palavra.

— É um homem muito infeliz — disse em tom de compaixão. — Teve aborrecimentos no serviço e sentiu medo de que a senhora não pudesse amá-lo e respeitá-lo, tudo isso misturado com uma boa dose de complexo de inferioridade.

Jeanne passou a mão pelos olhos.

— Sempre pensou que tivesse que realizar algo de especial para impressionar-me. Quando não conseguia, muitas vezes ficava por alguns dias num estado em que ninguém podia falar com ele. Pensou que eu ficaria zangada por causa dos seus insucessos. Naturalmente deveria ter feito mais para ajudá-lo a atravessar essas provações.

— A senhora ama seu marido, Mrs. Dunbee? — perguntou Kennof em tom sério.

— Amo — respondeu Jeanne convicta.

O famoso detetive fez um gesto afirmativo. Inclinou-se para o lado a fim de acariciar as orelhas de Buster.

— O que posso fazer pela senhora? — perguntou.

— Encontre-o — pediu Jeanne com a voz trêmula. — Vá a Wyoming e tire-o da CIS. Tenho certeza de que a esta hora já está arrependido do que fez.

Kennof deu uma tragada profunda e soprou a fumaça para o teto.

— Ajudo qualquer pessoa que me procure, Mrs. Dunbee, mas preciso de alguma base legal para agir. A Terra, que é a célula-máter e uma das componentes do Império Solar, tem um regime democrático. Qualquer cidadão tem o direito de dispor de seu destino da forma que lhe pareça mais adequada. Desde que deseje, qualquer pessoa pode recorrer aos meios bioquímicos para colocar-se num estado de sono profundo. E ninguém pode impedi-lo de agir assim.

“Seu marido assinou um contrato. Nada posso fazer pela senhora, pois isso iria contrariar o livre arbítrio de seu marido. Ele pagou à CIS e aceitou as condições formuladas pela mesma. O que posso fazer num caso destes? Só poderia obter esclarecimento, mas este pode ser solicitado à própria Companhia. Será que Mr. Dunbee já foi posto a dormir?”

Fez uma pausa e depois concluiu:

— Compreendo seu problema, mas nada posso fazer para ajudar.

Jeanne Dunbee tirou um maço de notas do bolso.

— Saquei além de nossa conta — disse. Colocou as notas sobre a mesa. — São mais de mil solares. Será que por essa quantia o senhor não estaria disposto a fazer alguma coisa que contrarie a lei?

Os olhos cinzentos do detetive fitaram o dinheiro com uma expressão pensativa.

— Se a senhora fosse um homem, eu a atiraria daqui para fora — asseverou Kennof sem levantar a voz.

Passou a mão pela mesa e afastou o dinheiro.

Jeanne falou com a voz sufocada pelas lágrimas:

— Pensei que o senhor talvez pudesse solicitar a aplicação do processo de adormecimento. Assim poderia entrar nas cavernas sem chamar a atenção de ninguém. Não haveria qualquer infração à lei. E o senhor poderia entrar em contato com meu marido.

Kennof parou de alisar o pêlo do gato. Fitou Jeanne como se a visse pela primeira vez. Finalmente bateu com o punho fechado na mesa.

— É isso! — gritou em tom de entusiasmo. — É uma ótima idéia!

Buster soltou um miado indignado. A mulher observou o estranho comportamento de Kennof sem compreender nada.

— Há três meses um dos meus clientes solicitou a aplicação do tratamento dispensado pela CIS — explicou o detetive em tom mais calmo. — A Companhia recusou, porque ele havia perdido ambas as pernas num acidente. Perguntei a um médico muito conhecido. Trata-se de um especialista nas áreas de prolongamento da vida e sonoterapia futurística. E esse homem afirma que para o processo de adormecimento não tem a menor importância que a pessoa tenha sofrido um processo de amputação ou não. Não compreendo por que a CIS não aceita um pobre coitado como este. E como se explicam os preços baixos cobrados pela organização de Cavanaugh? Acho que são irreais. Será que não são praticados apenas para atrair o maior número possível de pessoas? Por que tudo isso? Tenho certeza absoluta de que Cavanaugh não é nenhum benfeitor.

Apagou o toco de cigarro dentro de um objeto que mais se aproximava da concepção kennofiana de cinzeiro. Depois recostou-se muito satisfeito.

— O caso Maurice Dunbee ocupa um lugar prioritário no escritório de detetive de Kennof — observou. — Guarde o dinheiro. O velho Dick — sem dúvida estava aludindo a si mesmo — tem um interesse pessoal no assunto.

— Muito obrigada! — um grande peso saiu de cima do coração de Jeanne.

O velho Dick pigarreou fortemente. Pela primeira vez a esposa de Dunbee reconheceu o conteúdo humano que havia sob o disfarce arbitrário daquele homem. Percebeu intuitivamente que não poderia ter encontrado elemento melhor para a tarefa.

Kennof levantou o braço num gesto de advertência.

— Tenho uma condição, Mrs. Dunbee!

— Aceito qualquer condição — disse Jeanne.

— Ninguém poderá saber disso. O assunto tem de ficar em segredo. Não poderei dar início ao jogo se correr perigo de que a senhora dê com a língua nos dentes. Diante das outras pessoas faça de conta que a senhora se conformou com o destino.

— Farei isso — prometeu a mulher.

Kennof levantou-se. Buster miou por sentir-se aborrecido com a nova perturbação ao seu sossego.

— Existe outro detalhe que o senhor deve conhecer — lembrou Jeanne. — Pouco depois do momento em que meu marido desapareceu para ir a Wyoming, dois indivíduos da CIS andaram em Dubose, fazendo investigações sobre Maurice. Suponho que as informações por ele fornecidas tenham sido conferidas. O senhor terá muito trabalho para enganá-los.

— Esse fato é muito interessante — disse Kennof em tom pensativo. — Quando iniciar o jogo, não me esquecerei dele.

Jeanne disse em tom cordial:

— Não é por puro egoísmo que lhe desejo boa sorte.

— Vou precisar mesmo! — confessou o detetive. — Avisarei assim que tiver descoberto alguma coisa.

Ao despedir-se, Jeanne sentia-se muito grata. A débil esperança reacendeu-se. Sem dúvida haveria uma chance para que Maurice — ou melhor, os dois — se redimissem dos velhos erros. Assim que fechou a porta, Kennof passou a desenvolver uma atividade de que ninguém o julgaria capaz. Inclinou-se sobre o pequeno micro fone:

— Benny, desligue o gravador. Quero ter uma conversa particular.

Aguardou a confirmação. Depois pegou o telefone.

O jogo começou. Kennof nem desconfiava de que a taça era a Terra.

 

Demorou algum tempo até que Kennof conseguisse a ligação. Ao contrário de outras pessoas, cujos telefones estavam equipados com uma tela de vídeo, o detetive particular contentava-se com um antiquado aparelho. Não fazia muita questão de ver seus interlocutores.

— Aqui fala o velho Dick — disse Kennof.

— Acho que ainda acabo enlouquecendo — disse a voz saída do fone. — Será que você já se fartou de sua atividade, que o obriga a rastejar atrás de maridos infiéis? Está arrependido e quer voltar para junto da família? O chefe ainda sonha com você e suas façanhas. Tenho certeza de que o receberá de braços abertos.

Kennof juntou as pontas do robe. Buster parecia entediado; lambia as patas e não deu a menor atenção ao dono.

— Nem penso em sujeitar-me novamente a qualquer tipo de disciplina, meu caro Shane — disse Kennof. — Além disso, você logo se convencerá de que, além das investigações familiares, ainda me preocupo com outras coisas.

Shane disse em tom gelado:

— Conte logo de que se trata.

— Pois não — confirmou Kennof. — Desta vez o alvo do meu trabalho é a Companhia Intertemporal do Sono, também conhecida por CIS ou Companhia do Sono. Por enquanto a operação baseia-se apenas em elementos de suspeita puramente sentimentais. E, para reforçar esses elementos, quero fazer-lhe alguns pedidos...

— Um momento! — interrompeu o interlocutor invisível. — O velho Dick já conhece sentimentos quando se trata de suas atividades criminalísticas?

— É por causa da vida mole de paisano — disse Kennof.

— Ainda há outro detalhe — prosseguiu Shane. — A CIS é um ferro quente no qual você queimará os dedos. Você se lembra do Snyder, um sujeito alto e magro do Ministério do Interior, que nos deu aquela reprimenda por causa da questão dos tóxicos?

— Acredito que sim — respondeu o detetive em tom azedo.

— Pois foi Snyder em pessoa quem realizou a última inspeção nas cavernas da CIS. Você acredita que, se houvesse alguma falha, a mesma lhe teria escapado?

— Quem passará vergonha serei eu — ponderou Kennof. — Apenas gostaria que, quando me apresentar para ser posto a dormir, você me arranjasse certos elementos sem os quais não poderei fazer muita coisa.

O homem que se encontrava do outro lado da linha soltou uma exclamação de surpresa.

— Você pretende formular uma proposta para ser posto a dormir?!

— Sem dúvida. Será a maneira mais rápida e segura de atingir meu objetivo.

O homem, que Kennof tratava como Shane, manifestou certas dúvidas.

— Você não será aceito, Dick — profetizou. — Você não tem problemas psicológicos nem dificuldades financeiras. Você é um homem feliz e satisfeito, e além do mais é um detetive.

Kennof enrolou o fio do telefone em torno do dedo e deixou-o cair sobre Buster.

— Você me subestima — disse. — Daqui a algumas horas, terei um encontro com Gaston Hartz, que é o maior gênio financeiro da cidade. Pedirei a ele que prepare imediatamente a ruína econômica do detetive particular Richard Kennof. Requererei minha falência, os concorrentes esfregarão as mãos de contentes e Gaston brincará com meu dinheiro. Não acha que estes problemas bastariam para que uma pessoa desejasse dormir por alguns anos?

Buster procurou atingir o fio telefônico que balançava diante de seus olhos.

— Não acredito que seja suficiente — respondeu Shane em tom pensativo.

— Sei perfeitamente que não é suficiente — disse Kennof em tom sério. — É por isso que preciso do endereço da Célia.

— Não! — a voz de Shane assumiu um tom duro.

— Célia, sim! — insistiu Kennof. — Preciso de seu endereço.

Quase parecia que Shane iria desligar, mas depois de uma pausa prolongada Kennof ouviu sua voz:

— Célia saiu do negócio, e não vamos mexer com isso. Você encontrará outra pessoa.

— Célia é a única que me serve. Está zangada comigo por causa da história do Fainer, porque acredita que eu a tenha denunciado. Shane, não houve ninguém que lamentasse tanto quanto eu a demissão de Célia.

— Ela nunca foi demitida — respondeu Shane em tom enfático.

— O quê?

— Foi reabilitada e saiu espontaneamente.

— E qual é seu endereço? — perguntou Kennof.

— Acho que se eu não lhe disser onde mora, você farejará sua pista. E estou interessado em evitar que isso aconteça.

Forneceu alguns dados a Kennof.

— Obrigado — disse Kennof com um suspiro de alívio. — Prometo-lhe que a tratarei com muito cuidado. Faça o favor de contar isso a seu chefe.

Houve uma interferência na linha, que quase fez desaparecer a voz de Shane quando este indagou:

— Deseja mais alguma coisa?

— Acredito que conseguirei arranjar-me — disse o grande detetive em tom modesto.

— O que me parece mais importante é o micro defletor, pois só com ele poderei andar pelas cavernas sem ser visto. Além disso, você talvez poderia arranjar-me um aparelho de localização. Deve ser uma versão bem discreta, talvez em forma de anel.

— Só isso? — gritou Shane em tom de espanto. — Como acha que eu deva fazer isso?

— Talvez possa entregar tudo no meu escritório, juntamente com um pequeno aparelho de rádio — disse Kennof sem o menor constrangimento.

— Para que o aparelho de rádio? Acha que haverá problemas?

— Acho. Pretendo mantê-lo informado sobre a situação, a fim de que eventualmente possa convencer seu nobre chefe a intervir.

Kennof refletiu por alguns segundos.

— Naturalmente precisaremos de uma palavra-código.

— Qual será? — perguntou Shane em tom curioso.

— Whisky — disse Kennof em tom esperançoso. — Whisky puro!

 

Foi dali a quatro dias.

Os preparativos de Kennof desenvolviam-se a toda força. Depois de uma palestra com Gaston Hartz, o gênio das finanças aceitara a incumbência de apresentar a situação de Kennof de tal forma que pareceria que o detetive se arruinara em virtude de compras de ações. Hartz fez questão de que os papéis realmente fossem adquiridos, a fim de que a situação parecesse real.

Os possuidores dos títulos sem valor sentiram-se felizes por se verem livres dos mesmos e, em troca do preço, prometeram que se esqueceriam da identidade do comprador. Dessa forma, Kennof transformou-se em acionista de certas empresas, embora o valor de seu investimento fosse igual a zero.

Hartz adotou inúmeras cautelas. Depois de algum tempo, até mesmo Kennof achou perfeitamente crível que ele tivesse adquirido os papéis no curso do tempo por preços absurdos e agora não conseguisse comprador para os mesmos. Depois de um exame confidencial dos livros de Kennof, Hartz descobriu que o detetive costumava desperdiçar grandes somas na compra de antiguidades. Arranjou notas de venda, documentos e recibos. Quando leu as cifras escritas nos papéis, Kennof quase irrompeu em lágrimas.

— Hartz — disse, dirigindo-se ao francês. — O senhor é um homem simpático, mas é mais esperto que um armênio. Não gostaria de ser seu inimigo.

Hartz sorriu e “provou” a Kennof que o mesmo teria de pagar uma dívida de 26 mil solares.

 

O sol da primavera iluminava os telhados da cidade. Kennof saiu da sombra da grande casa e dirigiu-se para a rua. Do lado oposto ficava o Bar do Tommy, imprensado entre grandes edifícios.

Embora fosse de manhã, o proprietário acendera a propaganda luminosa instalada em cima da vitrine. A mesma realizava uma luta desesperada contra a luz ofuscante do sol.

A fim de ver o carro estacionado junto ao meio-fio, Kennof virou a cabeça. Gostaria de olhar para dentro do bar, mas as cortinas do mesmo estavam fechadas.

O detetive entrou pela porta que se fechou, automaticamente, atrás dele. Em uma das cinco mesas havia um homem que descansava a cabeça nos braços. À sua frente havia uma garrafa pela metade e um copo.

Atrás de um balcão, uma mulher estava fazendo sanduíches. Não percebera a entrada de Kennof.

O detetive tomou lugar numa das grandes banquetas que havia junto ao balcão e tirou o chapéu.

— Olá, Célia! — disse.

A mulher largou a faca e levantou a cabeça. Era jovem. Devia ter pouco mais de vinte e cinco anos, mas em seu rosto viam-se ligeiros sinais de cansaço.

Fitou Kennof.

— O que é que você quer? — perguntou.

Em sua voz não havia raiva, mas certa indiferença. Seus cabelos compridos estavam amarrados. Célia não era muito bonita, mas não deixava de ser atraente.

— Uma cerveja — pediu Kennof. — Não quero muito gelada.

Enquanto a mulher se abaixava para tirar a cerveja da geladeira, disse inesperadamente:

— Shane me disse que você viria. Não quis dizer o motivo.

Kennof lançou um olhar para o homem embriagado.

— O que houve com ele?

— Está dormindo — respondeu, enchendo o copo de Kennof.

O detetive fitou-a calmamente. Depois de algum tempo, falou em tom indiferente:

— Estou procurando uma colaboradora.

Os olhos escuros de Célia pousaram nele.

— Você vê que já tenho um emprego.

— Isso não é um trabalho para você — disse Kennof em tom penetrante. — Talvez, por algum tempo, consiga convencer a si mesma de que está gostando do serviço. Mas, mais tarde, ele a corroerá por dentro.

Tomou um gole.

A mulher respondeu em tom sarcástico:

— Você quer proteger-me contra isso, Dick?

Kennof levantou ambas as mãos, num gesto negativo.

— Sei que você é muito orgulhosa, Célia. O que lhe ofereço não representa nenhuma caridade. Peço seu auxílio.

Ao que parecia, Célia aguardava outras explicações, pois Kennof não obteve resposta. Ficou bebericando sua cerveja e piscou com os olhos.

— Que sentimento lhe inspira a idéia de ser minha noiva, Célia?

— Tendências suicidas — respondeu a mulher.

Kennof deu uma risadinha.

— Isso me lisonjeia bastante — disse. — Mas você não demorará a gostar. Você não será uma noiva muito boa. Além de ser infiel, desperdiçará meu dinheiro e arruinará meu bom nome. Seu comportamento me fará ficar furioso. Tentarei matá-la, e só com grande dificuldade conseguirão impedir-me de realizar meu intento.

— Para que tudo isso? — perguntou Célia, sem demonstrar maior interesse.

— Para convencer a Companhia do Sono de Wyoming de que, face ao meu estado psíquico, não lhe restará outra alternativa senão aceitar-me como cliente para ser posto a dormir — disse Kennof em tom seco. — Além de uma noiva que me engana tenho muitas dívidas. Acho que isso deve bastar.

Célia parecia cada vez mais interessada.

— Se você tiver dívidas, eles o recusarão. Não tenha a menor dúvida.

— Acho que você subestima o Hartz. Depois que tiver sido posto a dormir, afirmará que eu o incumbi de vender meus bens. Com isso, minhas dívidas estarão liquidadas e a CIS não assumirá qualquer risco. Antes que Hartz inicie as vendas, saberei o que há atrás dessa Companhia, e voltarei arrependido. Anularei a ordem. Hartz se fará de ofendido, mas a CIS terá sido enganada. Nem sequer terei necessidade de pedir desculpas à Companhia do Sono. Mas se minha suposição de que há algo de errado com essa companhia for correta, Hartz e eu receberemos uma medalha. Hartz venderá sua medalha, e eu...

Célia fê-lo calar com um gesto.

— Dick, existe alguma base legal para seu procedimento?

Os olhos de Kennof fitaram-na tristemente por cima do balcão.

— Você ainda não aprendeu — disse ela.

— É verdade — confessou o detetive.

— E vai tentar, mesmo que eu não ajude — conjeturou a moça. — Você enfiou isso na sua cabeça dura.

— Perfeitamente — respondeu Kennof.

Célia apresentou uma garrafinha.

— É a melhor bebida que temos — disse com um sorriso. — Vamos brindar ao sucesso.

Muito animado, Kennof inclinou-se por cima do balcão.

— Será como antes, quando ainda estávamos... — principiou.

— Esqueça-se disso — respondeu Célia em tom áspero.

Kennof percebeu que ela nunca se conformaria com a perda do trabalho que tanto apreciava. Ao abrir seu escritório de detetive, ele mesmo criara certa compensação. Mas muitas vezes sentia vontade de enfrentar uma das tarefas às quais estava acostumado. Talvez fosse por causa do treinamento extraordinário que havia recebido. Em sua totalidade, os conhecimentos adquiridos estavam ociosos. E para Célia, seria ainda mais difícil conformar-se com a nova situação.

Kennof, que era um individualista empedernido, não conseguira conformar-se com a disciplina implacável. Não pertencia à classe de homens que gostam de receber ordens. Por causa disso tirara suas conclusões: pedira demissão e obtivera uma licença de detetive particular.

E agora estava reunido com sua antiga colega.

Richard Kennof há anos fora agente de um destacamento especial do Serviço de Segurança Solar!

 

Dali a vinte dias, julgou chegado o momento de entrar em contato com a CIS. Pediu que o pusessem a dormir por 150 anos. Disse que o pedido era motivado pela ruína financeira e pela tendência de matar a amiga infiel.

Gaston Hartz garantiu-lhe que não fora cometido nenhum erro, e que mesmo num exame rigoroso, feito por parte dos funcionários da CIS, não surgiria qualquer falha. Célia desempenhou seu papel com o brilhantismo que era de se esperar. E Jeanne Dunbee, que continuava em Dubose, recebeu a notícia sobre o progresso da tarefa de Kennof.

Depois de uma forte resistência, Célia encarregou-se de cuidar de Buster. De um dia para outro, o detetive esperava o convite da CIS para apresentar-se em Cheyenne a fim de submeter-se aos exames médicos de rotina.

Quando fez uma visita secreta ao Ministério do Interior, todos os homens que o cercaram acharam-no um ser digno de pena, pois, além de inúmeros credores, possuía uma noiva desprezível.

 

Snyder lançou um olhar de espanto para Kennof.

— O fato de o senhor ter conseguido chegar a mim já o faz merecedor de certo respeito — disse no tom afetado que lhe era peculiar. — É verdade que guardo recordações nada gloriosas do senhor. Mas, apesar disso, estou disposto a ouvi-lo por alguns minutos.

Kennof preferiu não informar Snyder sobre as características reais da luta que travara, juntamente com Shane, contra os negociantes inescrupulosos que contrabandearam drogas do setor de Vega para a Terra.

Limitou-se a dizer:

— O senhor chefiou a equipe que pela última vez fiscalizou as cavernas da CIS. Permite que formule algumas perguntas a este respeito?

— Poderei dar-lhe apenas informações oficiosas — ponderou Snyder. — Não espere dados oficiais.

Kennof preferiu não dizer que, como contribuinte, lhe cabiam certos direitos. Os funcionários do Ministério do Interior geralmente não eram dotados de muito senso de humor, e não havia a menor dúvida de que Snyder era o caso mais difícil.

— Naturalmente — respondeu o detetive em tom delicado. — Gostaria de saber se o senhor chegou a ver alguma pessoa que estivesse dormindo dentro do bioplasma.

Snyder levantou as sobrancelhas até o ponto em que as mesmas formavam um ângulo bem estudado, a partir do qual o gesto poderia ser interpretado como manifestação de uma emoção.

— Examinamos atentamente os recipientes, Mr. Kennof — disse. — Vimos perfeitamente as pessoas, pois as paredes externas das câmaras de dormir são transparentes.

Pigarreou.

— Constatamos que na caverna se encontravam exatamente as pessoas cujos nomes constam das cópias dos contratos arquivados no Ministério. A CIS é obrigada a enviar-nos cópia de todos os contratos que celebra, a fim de que possamos verificar a qualquer momento se certos elementos não recorrem aos seus serviços para subtrair-se à ação punitiva do Estado.

— O senhor notou qualquer coisa que pessoalmente lhe parecesse estranho ou incompreensível? — perguntou Kennof, prosseguindo no seu interrogatório.

— Bem, todo o projeto da CIS não é coisa corriqueira — começou Snyder em tom comedido. — Não sou nenhum perito no setor, e por isso é apenas natural que para mim certas coisas sejam inexplicáveis. Acontece que nossos especialistas são de opinião que os serviços da Companhia do Sono são exemplares e que não existe motivo para qualquer tipo de interferência. Será que o senhor dispõe de dados que contrariem esta opinião, Mr. Kennof?

— De forma alguma — asseverou o ex-agente. — Meu interesse pela CIS é de natureza exclusivamente particular.

— Não me venha dizer que o senhor quer adquirir um lugar para dormir.

— Será fácil descobrir, Sir — disse Kennof em tom tranqüilo. — Basta examinar as cópias dos contratos.

Ao sair do Ministério do Interior, teve uma sensação nada agradável. Será que seu trabalho se revelaria inútil? Ao que parecia, todos achavam que não havia nada de errado com a CIS, inclusive Snyder. Kennof não estava interessado em desperdiçar seu tempo. Ainda não havia recebido qualquer resposta de Cheyenne. Por enquanto o pedido ainda poderia ser retirado.

Se Edmond Cascane, um colaborador ao qual Kennof pedira que realizasse uma investigação minuciosa do passado da CIC, não obtivesse elementos concretos, o detetive abandonaria seu plano.

Kennof enxotou alguns meninos que cercavam seu carro estacionado. As crianças estavam fascinadas pela pintura futurista. Muito pensativo, deu partida no motor. Virou a cabeça e olhou para o Ministério do Interior. Tratava-se de um edifício imponente, feito de vidro, aço e concreto. Ao partir, nem desconfiava de que Cascane guardava uma grande surpresa para ele.

Edmond Cascane — um homem quase completamente calvo, de olhos ágeis — colocou um montão de papéis à frente de Kennof. Fungava e enxugou um suor imaginário do rosto. Kennof brindou-o com um olhar de compaixão e começou a remexer o monte de papéis.

— A maior parte disso não oferece o menor interesse — observou Cascane no tom de quem reserva uma enorme sensação. Com um olhar atento mirou Kennof enquanto este afastava os documentos.

— Fale logo, Ed — disse o ex-agente.

Cascane tirou uma folha solitária do bolso da jaqueta e agitou-a à frente do nariz do chefe. Kennof, que já estava novamente envolto em seu robe amarelo, conseguiu apossar-se do segredo de Cascane.

— Este documento apenas diz que um certo Fedor Piotrowski foi reprovado vergonhosamente nos exames de doutor em medicina — disse Kennof em tom de decepção, depois de ter lido o documento.

— Pois é este mesmo homem que se encontra no Parque Nacional de Yellowstone, alguns metros abaixo da terra, e cuida dos clientes da CIS, sob o nome de doutor Piotrowski — disse Cascane em tom enfático. — O que acha disso?

Num gesto pensativo, Kennof esfregou o queixo volumoso.

— É possível que posteriormente tenha passado no exame.

O auxiliar do detetive sacudiu a cabeça.

— Não fez nada disso, Dick. Eu vasculhei sua vida. Piotrowski deve ter conseguido documentos falsos para arranjar a colocação na CIS.

— Ou então a CIS fabricou-os para ele — disse Kennof.

— O falso doutor vem do Canadá — prosseguiu Cascane. — Quebrou todas as pontes atrás de si. Em sua terra ninguém sabe para onde foi.

Kennof deu uma forte pancada na mesa.

— Isso decide a questão — disse. — Vou a Wyoming.

— O resto são recortes de jornais — disse Cascane, numa tentativa débil de chamar a atenção do chefe para a pilha de papéis. — Além disso, você encontrará relatos de palestras travadas com pessoas que já tiveram relações com a CIS.

Mas naquele momento, Kennof já estava refletindo sobre como esconder seus preciosos aparelhos no interior das cavernas, quando chegasse lá.

Dois dias depois, quando a CIS entrou em contato com o detetive, a fim de pedir a este que se apresentasse em Cheyenne, o problema tornou-se agudo.

 

M'Artois estava parado junto à janela, de costas para Richard Kennof. O detetive não se sentia muito à vontade. O psicólogo conhecia todas as artimanhas ligadas à sua profissão. Atrás de sua benevolência escondia-se uma extraordinária compreensão, além da excelente capacidade de combinação. Só no último instante, Kennof reconhecia as perguntas-armadilha do colaborador da CIS. O detetive só conseguiu ludibriar o psicólogo porque havia recebido o treinamento psicológico especial na Segurança Solar.

Kennof foi-se convencendo de que não se tratava tanto de um esforço da sociedade para interessar as pessoas cansadas pelas belezas deste mundo, mas antes de um verdadeiro interrogatório. M'Artois penetrava em todas as áreas da vida privada inventada por Kennof. Nem mesmo diante das perguntas mais indiscretas, recuava. Por várias vezes Kennof chegara a transpirar, ou então acreditara que o outro tivesse descoberto seu jogo. Mas até então tudo dera certo.

M'Artois lançou um olhar atento para Kennof.

— O senhor me falou num tal de Mr. Hartz — disse. — Como foi que um financista tão esperto pôde conformar-se em ver o senhor empatar seu dinheiro em ações sem valor?

— Acontece que estava saturado de ver meus atos supervisionados por Hartz — disse Kennof. — Queria provar a esse sujeito convencido que sabia arranjar-me sem ele. Infelizmente não deu certo.

— Esse procedimento corresponde ao seu caráter — admitiu M'Artois, e Kennof suspirou às escondidas. — Talvez fosse conveniente recorrer a Mr. Hartz a fim de trilhar novo caminho que o faça subir novamente na vida.

Kennof, que via suas chances se desvanecerem de novo, disse:

— Não é tanto pelo dinheiro. O senhor já está informado sobre o problema que houve com minha noiva. Quando me lembro com que falta de escrúpulos ela me tem enganado, não consigo controlar-me.

— Apesar de tudo o senhor ainda a ama?

Kennof acenou com a cabeça, como quem se sente muito envergonhado.

Tornei-me um perfeito ator”, pensou.

O psicólogo pregou-lhe um longo sermão para convencê-lo de que seria preferível manter-se fiel à vida. Kennof não teve a menor dúvida de que essas palavras só tinham por fim despertar o espírito de contradição das pessoas que a CIS considerava inofensivas.

Enquanto M'Artois exaltava as belezas do mundo, criava no subconsciente de seu interlocutor uma aversão pelo mesmo. Apesar de tudo, o procedimento de M'Artois não infringia a lei e também não permitia a Kennof tirar qualquer conclusão sobre o trabalho da companhia.

— Ainda está disposto a celebrar um contrato com a companhia? — perguntou M'Artois depois de concluídas suas considerações.

— Sem dúvida — confirmou o novo candidato.

— O senhor será submetido a um exame por meio do qual verificaremos seu estado de saúde. Quero perguntar desde logo se o senhor sofreu alguma amputação.

Kennof respondeu que não. Já estava convencido de que havia algo de errado com a CIS. Mas, por mais que se esforçasse, não descobriu o que poderia ser.

Seriam apenas alguns membros corruptos da companhia que seguiam um plano bem definido, ou será que Cavanaugh e os outros também participavam do mesmo? Em caso afirmativo, qual seria a finalidade da empresa? Será que seus interesses eram puramente comerciais?

Naquele momento, o homem, que poderia ter esclarecido até certo ponto as dúvidas de Richard Kennof, encontrava-se submetido a um poder do qual o detetive nunca poderia suspeitar.

Maurice Dunbee já sabia tudo, mas seu saber não lhe adiantava nada, pois não se encontrava na Terra, nem em qualquer outro planeta desta Galáxia.

 

Pequenas gotas de suor apareceram na testa de Kennof. Clinkskate não poderia desconfiar de que o homem à sua frente transpirava de medo de ser descoberto. Achou que fosse um sinal do nervosismo, que costumava apossar-se de qualquer pessoa que entrava nas cavernas da CIS, a fim de ser colocada nos grandes recipientes de plástico.

Kennof foi levado de helicóptero juntamente com dois outros homens. Um deles era um tipo nervoso, de cabelos muito ruivos e uma cicatriz profunda do lado direito do rosto.

Naquele instante estava sentado à frente de Kennof. Seu nome era Jubilee. Não contou o motivo por que desejava ser posto para dormir. Kennof achou que se tratasse de um ébrio contumaz.

O terceiro homem estava sentado bem atrás de Kennof. Tratava-se de um antigo político, cuja vida se frustrara em falsos ideais. Apesar de tudo, Lester Duncan costumava escolher muito bem as palavras. Kennof sentiu uma débil simpatia por ele. Jubilee era-lhe totalmente indiferente.

No momento, Kennof não tinha muito tempo para interessar-se pelos companheiros de viagem. Teria de encontrar um lugar seguro para o rádio e o micro defletor. Mais tarde também teria de livrar-se do localizador embutido no anel. Mas este era tão discreto que seria fácil tirá-lo normalmente. Teria de encontrar uma maneira de colocar esses objetos num lugar em que pudesse encontrá-los assim que precisasse deles.

— Em primeiro lugar entregarei Mr. Duncan aos cuidados do Dr. Le Boeuf — disse Clinkskate. — Depois será a vez dos senhores.

Kennof compreendeu imediatamente.

— Poderia fazer o favor de mostrar-me onde fica o banheiro? Gostaria de lavar-me.

— Faça o favor de acompanhar-me — disse Clinkskate.

Quando saíram da grande sala em que funcionava o escritório, Kennof sentiu-se aliviado. Acompanhou Jubilee e o colaborador da CIS, até que Clinkskate apontasse para duas portas. Kennof agradeceu. Só desejava que a toalete não estivesse ocupada.

Teve sorte. A porta podia ser trancada por dentro. Kennof não perdeu tempo. Acionou a fechadura. Tirou do bolso o micro defletor e ligou-o. O aparelho desviava os raios de luz e fazia com que seu portador se tornasse praticamente invisível.

A visibilidade resulta exclusivamente da reflexão dos raios luminosos. Como naquele momento Kennof não pudesse ser atingido pelos raios de luz, não poderia refleti-los.

No entanto, qualquer aparelho de localização, mesmo de potência reduzida, logo teria registrado sua presença. Além disso tinha que ter cuidado para não causar ruídos.

Que bom é o velho Shane”, pensou Kennof num assomo de gratidão e saiu do lavatório.

O corredor estava vazio e abandonado. Sem hesitar, Kennof seguiu na direção em que Clinkskate havia desaparecido juntamente com o ébrio. Logo encontrou uma porta aberta. Viu-se num gigantesco recinto abobadado, subdividido em vários pavimentos. Os olhos treinados de Kennof perceberam imediatamente que se tratava de instalações energéticas e equipamento médico.

Olhou em torno e pôs-se a refletir.

Naquele instante, Clinkskate saiu do elevador a quatro metros do lugar em que Kennof se encontrava. Este apressou-se para se colocar numa posição segura. Clinkskate passou por ele sem desconfiar de nada. O detetive acreditou que só disporia de alguns minutos para encontrar um esconderijo.

Seria muito arriscado pegar o elevador para descer um andar. O micro comunicador devia ser guardado aqui em cima. Pelos seus cálculos, naquele momento Clinkskate estaria chegando às toaletes. Kennof descobriu uma prateleira na qual, segundo parecia, havia peças gastas. Escondeu cuidadosamente o rádio atrás de alguns rolamentos. A seguir, desligou o defletor e também o guardou na prateleira. Se aparecesse alguém, poderia dizer que se perdera. O anel, que abrigava um minúsculo aparelho de localização, continuou no seu dedo. Tratava-se de uma obra de precisão dos micro técnicos, os swoons. Os seres em forma de pepino, que Perry Rhodan trouxera à Terra numa missão arriscadíssima, eram espetaculares.

Kennof olhou pelo corredor. Sentiu-se triste ao pensar no Serviço de Segurança Solar. Era este o tipo de trabalho de que precisava. E a Segurança Solar poderia ter-lhe dado este tipo de missão. Porém, atrás dela havia a cadeia de comando e a rígida ordem militar, que não correspondiam ao gosto de Kennof.

Voltou correndo e chegou ao setor administrativo quase no mesmo instante que Clinkskate.

Você ainda está em forma, velho Dick”, pensou, enquanto sorria para Clinkskate. “Poderá dar muito trabalho a essa gente.”

Naquele momento não poderia saber que seriam eles que lhe dariam muito trabalho. Se soubesse, não se sentiria tão otimista.

 

Durante sua vida agitada, Kennof nunca adquirira uma idéia precisa de como o corpo humano é preparado para um prolongado sono, que se assemelha à morte. E aquilo que o Dr. Le Boeuf e seu auxiliar Piotrowski haviam feito com ele em nada contribuiu para tornar mais compreensível o estado de hibernação bioquímica.

Se sua noção de tempo não tivesse sido prejudicada pelas repetidas anestesias, o detetive calculava que devia estar no fim da tarde. O Dr. Le Boeuf encontrava-se ao lado da mesa dos exames e, num gesto de cansaço, passou a mão pelo rosto.

— Esse idiota do Jubilee nos tomou muito tempo — disse, dirigindo-se a Piotrowski. — Sugiro que ainda tiremos a freqüência das vibrações cerebrais de Kennof e deixemos o resto para amanhã.

— Está certo — concordou seu auxiliar.

Kennof suspirou aliviado. Já receara não ter oportunidade para uma inspeção discreta. Tudo dependia de que fosse deixado só. Ergueu-se ligeiramente e olhou para os médicos. Atendendo à ordem de Piotrowski, as duas enfermeiras trouxeram um aparelho grande e oval para perto de Kennof.

— O que é isso, doutor? — perguntou Kennof, em cuja mente surgiu uma suspeita vaga.

Le Boeuf mexeu nervosamente em alguns cabos.

— Um aparelho destinado a medir a freqüência de suas vibrações cerebrais — informou. — Não tenha medo.

Kennof esforçou-se para sorrir.

Infelizmente, para o Dr. Le Boeuf, Kennof sabia perfeitamente como era um medidor de freqüências cerebrais fabricado na Terra. Enquanto o sorriso de Kennof se desfazia e as batidas de seu coração se aceleravam, o médico iniciou os preparativos.

Um novo olhar bastou para que Kennof não tivesse mais a menor dúvida: o aparelho não era de fabricação terrana. O ex-agente não conseguiu impedir que um sopro de pavor lhe tocasse a mente.

Como foi que a CIS arranjou um aparelho que, sem a menor dúvida, não era conhecido sequer ao Serviço de Segurança Solar? Seria pura coincidência? Em hipótese alguma!

— Incline-se ligeiramente para a frente — resmungou o Dr. Le Boeuf em tom contrariado.

Passou uma faixa bem apertada em torno da cabeça de Kennof. Inúmeros fios saíam da tal faixa.

Piotrowski, que se encontrava atrás do aparelho e, segundo parecia, estava lendo os resultados, disse em tom de espanto:

— O senhor deve ter muitos problemas na cabeça.

— Não deixe o homem confuso — gritou Le Boeuf. — Anote os resultados.

Piotrowski lançou um olhar zangado para o colega. Nos fundos da sala, as enfermeiras mantinham-se em atitude de expectativa. Kennof esforçou-se para reprimir as idéias exaltadas. Não deveria cometer qualquer tolice que pudesse traí-lo.

— Pronto! — resmungou Piotrowski, depois de algum tempo.

A faixa foi tirada da cabeça de Kennof. As enfermeiras afastaram o misterioso aparelho.

— Tente dormir até amanhã — disse o Dr. Le Boeuf. — Acho que não será difícil, pois nos próximos anos sua ocupação principal será esta.

Soltou uma estrondosa gargalhada. Piotrowski também riu.

— A irmã Marion ficará com o senhor — prosseguiu o médico. — Se desejar, ela lhe dará um calmante.

A enfermeira... Deveria ter desconfiado de que não o deixariam só. Apesar disso fez uma tentativa ligeira de modificar as idéias do médico:

— A irmã Marion pode dormir, doutor. Saberei arranjar-me.

— Ela ficará com o senhor — disse Le Boeuf em tom decidido.

Kennof calou-se. Deixou que o levassem à cama. Cobriu-se cuidadosamente. Dali a meia hora, os dois médicos e uma das enfermeiras saíram da sala.

A mulher, que deveria velar pelo descanso de Kennof, puxou uma cadeira e sentou ao lado da cama. Manteve-se em silêncio. Era alta e esbelta e seu rosto era muito bem formado.

Não é possível que fique sentada aí toda a noite”, pensou Kennof desesperado. “Acabará saindo ou adormecendo.”

Dali a duas horas, a situação continuava a mesma. A enfermeira mantinha-se imóvel a seu lado. Finalmente Kennof teve uma idéia.

— Irmã Marion — pediu. — Será que poderia arranjar alguma coisa para beber?

— Naturalmente — respondeu a enfermeira em tom amável.

Kennof sentia-se exultante. Mas logo viu-se diante de uma dolorosa decepção. A enfermeira abriu um armário, tirou uma garrafa e encheu um copo.

Chá”, pensou Kennof amargurado. “Logo chá!

Sorveu o líquido com um agrado fingido. Provavelmente também havia comida guardada por perto. Seria inútil pedir-lhe que fosse buscá-la. Dessa forma, nunca se livraria dela.

Quando Kennof teve a impressão de que mais duas horas se haviam passado, brincou com a idéia de fingir-se de doido. Passou a observar mais atentamente a mulher. Até então, ela não fechara os olhos uma única vez. A sala estava debilmente iluminada.

Será possível que essa mulher não dorme?”, pensou. “Nem sequer pisca os olhos!

Kennof sentiu um calafrio.

Era isso!

Fitou-a intensamente. As pupilas olhavam para a frente sem que as pálpebras se movessem.

A irmã Marion não era nenhuma enfermeira!

Nem sequer era uma mulher!

Era um robô!

Num gesto instintivo, Kennof enfiou-se mais profundamente embaixo das cobertas. Como antigo agente, sabia muita coisa a respeito de robôs.

De robôs terranos!

Acontece que talvez a máquina, que corporificava a irmã Marion, não fosse um robô terrano, tal qual o medidor de freqüências, que não fora construído na Terra.

Kennof sabia perfeitamente que sem arma nunca poderia arriscar uma luta. Havia uma única possibilidade. Teria de provocar um curto-circuito no cérebro positrônico do robô. Com a lógica dos homens-máquina terranos, isso não seria difícil. Mas se aquela máquina tivesse sido construída por outra raça, seria perfeitamente possível que se guiasse por uma lógica estranha. As possibilidades eram tantas que Kennof nem se atreveu a pensar nelas.

Mãos à obra, velho Dick”, pensou Kennof. “O que está esperando?

Se o robô tivesse sido construído segundo os princípios terranos, praticamente não havia qualquer dúvida de que a ação seria bem sucedida. Mas se agisse de acordo com alguma lógica desconhecida, muitas coisas imprevisíveis poderiam acontecer.

— Irmã Marion — principiou Richard Kennof, em tom suave. — Acabo de descobrir que a senhora é um robô.

A enfermeira fitou Kennof. Este abaixou-se.

— Avisarei o Dr. Le Boeuf — disse a máquina.

— Devagar, “meu caro” — gritou Kennof apressadamente. — O Dr. Le Boeuf não mandou que você me vigiasse ininterruptamente?

O robô manteve-se calado por algum tempo.

— A ordem é esta — disse finalmente.

Kennof levantou a mão direita.

— De qualquer maneira, é indispensável que o médico seja avisado imediatamente sobre a minha descoberta, pois esta poderá causar conseqüências sérias — advertiu.

— É o que devo fazer — confirmou a máquina e pôs-se a andar.

— Pare! — berrou Kennof. — Você vai desobedecer a uma ordem, deixando-me sem vigilância?

— Em hipótese alguma — disse o robô.

Kennof disse em tom grosseiro:

— Vá logo e traga o doutor antes que aconteça alguma coisa. Não se esqueça de cuidar de mim. Você não poderá deixar-me só; compreendeu? Foi a ordem que lhe deram. O que está esperando? Vá! Cuide! Fique aqui! Vá! Fique! Vá! Fique!

Quando o dispositivo de segurança do cérebro positrônico entrou em ação e provocou um curto-circuito, o detetive ainda estava repetindo as ordens. O robô não conseguiu coordenar as instruções contraditórias. O êxito da pretensão de Kennof só se deu porque o Dr. Le Boeuf realmente havia dado ordem para que a irmã Marion permanecesse constantemente em companhia do detetive.

Kennof saltou da cama. Nenhuma memória positrônica pode ser alimentada com duas ordens de igual urgência. Nesse caso, o único recurso que restava à máquina era a fuga para uma espécie de “esquizofrenia mecânica”.

Num ligeiro exame, Kennof certificou-se de que realmente se tratava de um robô terrano. Nesse ponto não havia mais nenhum perigo. Na manhã seguinte, os dois médicos poderiam quebrar a cabeça para descobrir como sua enfermeira fora colocada nesse estado.

O que importava a Kennof era apoderar-se do micro defletor e do micro comunicador, e inspecionar as cavernas. O lugar em que escondera os aparelhos ficava um andar acima. Preferiu não usar o elevador, pois receava que o ruído dos motores pudesse atrair a atenção dos homens da CIS. Não havia escada. O elevador corria num poço aberto. Kennof resolveu subir pelos cabos. Subiu à cobertura da pequena cabina. Se alguém tivesse a idéia de usar o elevador enquanto se encontrasse ali, estaria morto. Kennof arrastou seu pesado corpo para cima com a agilidade de um macaco. Em certos lugares, o cabo estava danificado. As pontinhas de metal feriram as mãos de Kennof.

Finalmente chegou ao destino e voltou a pôr os pés no chão. Rastejou para junto da prateleira em que guardara os aparelhos.

Kennof agiu depressa. Dali a alguns segundos, estava voltando. Limpou as mãos numa toalha e atirou-a na lixeira.

As idéias de Kennof sobre os passos seguintes eram mais que vagas. Teria que sair ao sabor da sorte ou do azar, pois não possuía a menor indicação.

Faltava pouco para a meia-noite. Passou pela mesma porta através da qual, poucas semanas antes, Dunbee iniciara a fuga. Ligou o micro defletor, a fim de estar protegido se houvesse um encontro imprevisto. Kennof chegou ao poço no qual Dunbee caíra e parou. O corredor prosseguia, mas a intuição de Kennof decidiu-se pelo buraco. O detetive entrou e deixou-se escorregar lentamente.

Kennof certificou-se de que os preciosos aparelhos que Shane lhe dera não haviam sido danificados. Olhou em redor e seus olhos defrontaram-se com um cenário impressionante. Uma luz pálida iluminava o grande recinto abobadado. As sombras grotescas de rochas gigantescas estavam desenhadas no chão. E três grandes recipientes de plástico pareciam monstros adormecidos num esconderijo.

Kennof aproximou-se.

Finalmente, ele os viu: os adormecidos!

Boiavam que nem peixes no interior das câmaras. Nus e de olhos fechados, descansavam no líquido amarelento. Eram inúmeros corpos, um ao lado do outro. Rostos para cima e rostos para baixo. Dedos entrelaçados, dedos abertos. Mãos de trabalhadores e de sábios, de mulheres e de homens.

Kennof estremeceu. Esses homens haviam fugido do sofrimento do mundo em que viviam, a fim de procurar a felicidade num futuro distante. E aqui estavam eles, depois de terem adormecido, esperançosos e confiantes. Havia neles algo de deprimente e algo de vergonhoso. Kennof pensou na tentativa mil vezes repetida de enganar o destino. Não conseguiriam seu intento. Quando despertassem, descobririam que tinham transportado para o futuro as mesmas personalidades que os martirizavam no passado.

Nada mudaria!

Kennof fez um esforço e chegou ainda mais perto de um dos recipientes.

As pessoas adormecidas repousavam sobre apoios pneumáticos. As câmaras estavam separadas por grades. Junto ao lugar em que dormia cada pessoa, terminavam numerosas mangueiras e contatos. O plasma celular mantinha-se em movimento constante, o que provava que estava sendo renovado ou tratado ininterruptamente. As pessoas adormecidas só poderiam ser alcançadas pela parte de cima dos recipientes. E ali Kennof viu tubos, cabos e outros contatos.

O antigo agente do Serviço de Segurança Solar suspirou aliviado. Confessou a si mesmo que esperara encontrar neste lugar algo de extraordinário. Não quisera acreditar que a única coisa existente ali eram homens e mulheres adormecidos.

Era possível que, sob outros pontos de vista, a ação da CIS fosse incorreta e violasse a lei. Porém os homens que recorriam a ela estavam bem guardados.

Nem desconfiava de que, dali a algumas horas, mudaria de opinião.

 

Richard Kennof estava ofegante ao sair do poço. Não teria outra alternativa senão voltar ao santuário do Dr. Le Boeuf e explicar ao médico, assim que este aparecesse, que mudara de opinião e estava disposto a enfrentar a vida.

Quando o instrumento de localização, embutido no anel, deu um sinal, Kennof estava fazendo uma limpeza provisória das vestes. Surpreso, o detetive parou em meio ao trabalho.

Pela intensidade da reação do aparelho concluiu que, nas imediações do lugar em que se encontrava, acabara de ocorrer uma descarga energética de grandes proporções. Kennof examinou o anel.

— Este aparelho aponta as formas de energia convencionais, e também as da quinta dimensão — explicara Shane. — O pequenino indicador está dividido em dois setores. O setor vermelho revela a existência de uma descarga sobreposta, ou seja, de uma descarga da quinta dimensão.

Ao rememorar estas palavras, Kennof despertou de vez. Voltou a certificar-se.

Não se enganara. Em algum lugar, acabara de ocorrer uma descarga energética da quinta dimensão.

Kennof trincou os dentes. Sua desconfiança, que fora abafada, voltou a fortalecer-se.

Como é que nas instalações da CIS havia fontes de energia superdimensionais? Segundo todos os cálculos humanos, isso seria impossível. Tinha certeza de que o instrumento de localização estava em perfeitas condições. Antes de entregá-lo, Shane mandara revisá-lo cuidadosamente.

Não podia pensar mais em descansar. Avançou pelo corredor que seguia atrás da entrada do poço, penetrando terra adentro. O anel não indicou outras descargas.

Uma tensão quase insuportável apoderou-se de Kennof. Será que afinal havia algo de errado com a Companhia do Sono? Como ninguém pudesse vê-lo, não agiu com muita cautela.

O corredor terminou no platô metálico, situado dentro de outra caverna. Kennof entrou imediatamente. Bem ao lado da abertura havia outra, que voltava a penetrar na rocha. Fora construída com tamanha habilidade que Kennof logo imaginou que seria fácil de ser camuflada por ocasião de uma inspeção. Algumas rochas grandes, que se encontravam junto à entrada, reforçavam essa suposição.

Qualquer fiscal deixaria de notar essa entrada natural, ainda mais que teria sua atenção desviada pelo platô metálico. Mas agora, que a CIS não esperava qualquer fiscalização, a entrada permanecia aberta.

Kennof soltou um assobio. Fosse o que fosse que a Companhia Intertemporal do Sono tinha a esconder, ele poderia encontrá-lo se seguisse por esse caminho.

Kennof enfiou-se pela entrada secreta. Também estava iluminada, o que levava à conclusão de que era usada com certa freqüência. Mais ao longe, o detetive percebe ruídos indefiníveis. Apressou-se. A galeria foi ficando cada vez mais clara. Ouviu vozes humanas. Seu coração começou a bater mais depressa. Kennof reprimiu o nervosismo.

O caminho descreveu um ângulo reto. Procurando evitar todo e qualquer ruído, Kennof percorreu os últimos metros e entrou num recinto de grandes dimensões.

A caverna na qual penetrou era pouco menor que as outras. Avistou de pronto seis homens que envergavam as vestes da CIS. Logo viu um outro, que já conhecia. Era Jubilee.

Kennof reprimiu um grito. Jubilee estava nu e deitado no chão; ao que parecia, estava inconsciente. Atrás do beberrão, que viera a Wyoming com Kennof, alguns bastões metálicos saíam verticalmente da rocha. Formavam um semicírculo de cerca de dez metros de diâmetro. Kennof teve a impressão de que lembravam o picadeiro de um circo. Bem em cima dos bastões metálicos, junto ao teto, uma esfera metálica vermelha e brilhante flutuava no ar, desafiando a lei da gravitação.

Kennof quase se esqueceu de respirar. Tudo parecia estranho e ameaçador. Nunca vira nada semelhante e não podia imaginar do que se tratava.

Dois homens levantaram Jubilee. Sem a menor contemplação arrastaram-no para o interior do picadeiro. Depois retiraram-se apressadamente.

Só e abandonado, Jubilee estava deitado a quinze metros de Kennof.

Você não pode fazer nada por ele, velho Dick”, pensou Kennof, a fim de tranqüilizar-se.

De repente, Jubilee desapareceu!

Num tempo zero, seu grande rosto vermelho dissolveu-se diante dos olhos de Kennof. Até parecia que jamais um ser vivo estivera deitado entre os bastões metálicos.

Só agora percebeu que, no momento em que Jubilee desapareceu, seu instrumento de localização voltou a reagir.

Já sabia o que vinha a ser aquele estranho aparelho. Tratava-se de um transmissor de matéria. E era de um tipo não utilizado pelo Império Solar.

Os pensamentos de Kennof atropelaram-se. Não se atreveu a fazer o menor movimento.

Os seis homens foram caminhando em silêncio em direção à saída.

Até parecia que o terrível acontecimento lhe suspendera os pensamentos. Apavorado, Kennof deu-se conta do significado da primeira reação do aparelho de localização. O transmissor de matéria acabara de levar Lester Duncan, o político, a um lugar desconhecido.

Se a CIS procedia assim com todas as pessoas postas a dormir, de quem eram os corpos que se encontravam nas câmaras?

Kennof, que poderia ser tudo, menos sensível, não conseguiu livrar-se do sentimento de pavor.

Não teria oportunidade para refletir sobre isso.

No momento em que o último dos seis homens se encontrava ao lado do detetive, o micro defletor entrou em pane. Kennof tornou-se visível. O transmissor devia ter afetado o funcionamento do aparelho.

Kennof não esperou até que o descobrissem. Deu um enorme salto e atirou-se sobre o homem mais próximo. O treinamento recebido no Serviço de Segurança Solar ensinara-lhe os métodos mais modernos de luta corpo a corpo. Com dois golpes bem dirigidos, colocou o adversário fora de combate.

Os outros homens já haviam desaparecido no corredor. Kennof devia sair o quanto antes da caverna em que se encontrava. Esta possuía um único acesso, e por isso era uma armadilha muito perigosa. Os cinco homens da CIS voltariam dentro de poucos minutos para verificar o que havia acontecido com o colega. Kennof examinou o homem estendido no chão para ver se trazia uma arma. Não teve sorte.

Saiu correndo da estação do transmissor. Já não se tratava de investigar a Companhia, a fim de averiguar se a mesma exercia atividades ilegais. Naquele momento, a vida de Kennof estava em perigo. Não acreditava que a CIS o deixaria sair depois que sabia tanta coisa.

Chegou são e salvo ao poço que levava à caverna onde estavam as criaturas adormecidas. Foi quando ouviu a voz dos cinco homens. Provavelmente já estavam voltando. Não perdeu tempo. Voltou a enfiar-se no buraco e foi descendo pelo poço. Por enquanto estava em segurança.

Podia imaginar perfeitamente o que aconteceria a seguir. Assim que encontrassem o homem inconsciente, avisariam Clinkskate e os médicos. Uma rápida investigação revelaria que ele, Kennof, saíra do lugar e desativara o robô. Não havia necessidade de uma elevada dose de fantasia para estabelecer uma ligação entre o robô e o homem inconsciente, estendido perto do transmissor. E o elemento de ligação seria Richard Kennof, que desaparecera sem deixar qualquer vestígio. Passaria a ser o inimigo número um da CIS. Lançariam mão de todos os recursos para encontrá-lo. Kennof não esperava nenhuma compaixão.

Haveria uma luta, e esta significaria seu fim. Quando o encontrassem, o resto seria apenas uma questão de tempo. Apesar disso, hesitou em transmitir o sinal de emergência para Shane. Queria uma prova irrefutável, que pudesse levar a tropa de Shane a agir, logo que chegasse ao local.

Kennof examinou as portas que havia por lá. Estavam todas fechadas. Praguejou. Olhou em torno, à procura de um esconderijo.

— Richard Kennof! — disse uma voz.

O detetive estremeceu e virou-se abruptamente.

Devagar, velho Dick”, pensou. “É apenas um alto-falante instalado por aqui.”

Haviam dado por sua falta e esperavam que fosse revelar o lugar em que se encontrava. Não lhes faria este favor. Correu e subiu pela escada, que ficava junto a um recipiente. Lá em cima podia ficar de olho sobre toda a caverna. Rastejou até a borda e enfiou o corpo embaixo de uma tubulação.

— Kennof! — o detetive reconheceu a voz de Clinkskate. — O senhor é um homem inteligente. Sabe que acabará sendo encontrado. Apresente-se voluntariamente, pois assim evitará medidas mais rigorosas. Concedo-lhe três minutos para que informe onde fica seu esconderijo. Se não aparecer até o fim deste prazo, começaremos a procurá-lo.

Kennof esperou. O radiotransmissor estava ao alcance de sua mão. Não era maior que uma caixa de cigarros.

Depois de algum tempo, voltou a ouvir a voz de Clinkskate.

— O prazo terminou, Kennof.

A dança vai começar, velho Dick”, pensou Kennof.

A noite devia estar quase no fim. Ali, embaixo da terra, não havia possibilidade de saber. Por enquanto não sentia-se cansado.

Subitamente dois homens entraram por uma das portas. Os dois traziam pistolas de gás. Kennof observou-os tranqüilamente. Começaram a revirar os cantos.

— Todas as portas estavam fechadas, St. Cloud — disse um deles. — Não pode estar aqui..

St. Cloud respondeu em tom contrariado:

— Talvez tenha entrado pelo poço.

— Como Dunbee?

St. Cloud fez que sim.

Kennof ouvia atentamente. Ao que parecia, Dunbee também desconfiara de alguma coisa e fugira. Mas pelas palavras do colaborador da CIS era de supor que voltara a ser preso.

— Quando o encontramos, lutou que nem um doido. Vamos dar uma olhada embaixo dos recipientes.

Kennof ouviu-os rastejarem por lá.

Depois de algum tempo, voltou a ver St. Cloud. O outro homem também apareceu. Acendeu um cigarro. St. Cloud soltou uma exclamação zangada.

Kennof desejou ardentemente também poder fumar.

— Já que não está embaixo dos caixões, talvez esteja em cima — disse St. Cloud.

— Acho que sua loucura não chega a tanto — objetou o outro. — Vamos procurar em outro lugar.

— Está bem — concordou St. Cloud a contragosto. — Vamos embora.

Assim que se retiraram, Kennof desceu cautelosamente pela escada. Deixou de usar os últimos degraus e saltou ao chão.

Viu-se bem à frente do Dr. Le Boeuf, que mantinha uma pistola apontada para ele.

— Olá, Kennof. — disse o pequeno médico.

 

— Não agüento mais esta espera — disse Célia Mortimer, dirigindo-se a Shane, que se encontrava de pé à sua frente. — Por que não chama?

Shane Hardiston era um homem alto e musculoso com olhos azuis e delicados. Um observador superficial seria levado a acreditar que era um homem bondoso e tranqüilo. Mas seus inimigos conheciam a selvageria que se ocultava sob toda aquela tranqüilidade.

— Talvez já esteja dormindo — disse Shane em tom indiferente.

— Devemos fazer alguma coisa — exigiu Célia.

— Isso mesmo — concordou Hardiston. — Devemos esperar.

Célia lançou-lhe um olhar furioso, mas não disse nada. Encontravam-se no gabinete de Kennof, que se transformara numa espécie de quartel-general.

Hartz entrou e atirou um maço de papéis sobre a mesa. Havia uma expressão matreira em seus olhos.

— Acho que já nos livramos do pessoal da CIS. Cascane informa que desapareceram da cidade — esfregou as mãos. — Está funcionando tudo às mil maravilhas.

Seu rosto assumiu uma expressão séria.

— Coitado do Dick. Tem uma porção de dívidas e, além de tudo, a senhora, Miss Célia... — disse em tom queixoso.

— Pois bem — prosseguiu quando viu que ninguém ria. — O estado de ânimo aproxima-se do zero absoluto. Que importa? Não será fácil derrotar o velho Cavanaugh. Cascane constatou que ele, o presidente da CIS, tem uma alta soma depositada nos bancos.

— Se o interrogarmos a respeito, saberá apresentar uma explicação convincente para sua fortuna — disse Shane.

— Naturalmente — admitiu Hartz. — Aliás, o tal do Cascane, que agora está na recepção, assume uma atitude cada vez mais insistente. Só a muito custo conseguimos convencê-lo a não ir a Wyoming para ajudar Kennof.

— Pelo menos tem mais espírito de iniciativa que certos outros homens — observou Célia em tom irônico.

— Isso é comigo — disse Shane, dirigindo-se ao financista. — Esta jovem também é de opinião que já está na hora de intervirmos nos acontecimentos.

— Ora, Miss Célia — disse o francês em tom indignado. — Logo agora, que tudo corre tão bem? Se Dick precisar de auxílio, ele chamará. Não tenha a menor dúvida. Não é nenhum menino inexperiente que não saiba o que fazer.

— Eu o conheço melhor que o senhor — disse a antiga agente. — Se existe um homem que costuma tropeçar de um perigo para outro, este homem é Dick. E geralmente ele gosta disso.

— Ela está exagerando — disse Shane com um sorriso.

 

— De onde veio? — perguntou Kennof, em tom de surpresa.

Levantou as mãos, para dar a entender que nem pensava em esboçar qualquer defesa.

O Dr. Le Boeuf encostou o dedo indicador da mão livre aos lábios.

— Quando o senhor apareceu, eu já estava aqui — disse em voz baixa. — Não fale tão alto. Por aqui existem vários micro fones.

Para enorme espanto de Kennof, o médico guardou a arma. O detetive deixou cair os braços.

— Farei o que puder para ajudar o senhor — disse Le Boeuf. — A CIS é uma grande fraude. Já está na hora de o público tomar conhecimento disso. Infelizmente liguei-me a Cavanaugh e seus comparsas porque precisava de dinheiro. A esta hora, já reconheço que foi um erro gravíssimo. Quase todos os colaboradores da CIS foram subornados com quantias elevadas. Os guardas são criminosos procurados pela polícia, que se sentem satisfeitos por terem encontrado um esconderijo. Seus documentos são falsos. Clinkskate é o elemento mais perigoso. Provavelmente é o indivíduo mais baixo que já encontrei.

Kennof esforçou-se para digerir as impressões que desabavam sobre ele. Não tinha a menor dúvida de que o médico estava sendo sincero.

— Qual é o jogo da Companhia? — perguntou Kennof.

— É a Terra — respondeu Le Boeuf laconicamente.

Kennof sentiu uma leve tontura. Será que já estava dormindo num dos recipientes?

Não! O chão duro e frio e o rosto colérico de seu interlocutor pertenciam ao mundo real.

— Suba ao “caixão” comigo — pediu o médico. — Mostrar-lhe-ei uma coisa de que o senhor nunca se esquecerá, mesmo que viva cem anos.

Fossem quais fossem as intenções do Dr. Le Boeuf, ele não teve oportunidade de levá-las avante. Três homens saíram do poço e vieram correndo em sua direção. Kennof virou-se, disposto a defender-se. Uma expressão triste surgiu no rosto do médico.

— Tome — disse, entregando a pistola a Kennof.

Este sentiu o cabo frio e liso da arma em sua mão.

— Doutor! O que está fazendo? — gritou um dos homens que se aproximavam.

Outro homem disparou um tiro da pistola de gás. Kennof procurou prender a respiração e respondeu ao fogo.

— Afaste-se do nosso caminho, doutor — gritou um dos homens.

O Dr. Le Boeuf atirou-se à sua frente. Kennof não se atreveu a atirar, pois receava acertar no médico. Acontece que os empregados da CIS não conheciam esse tipo de escrúpulo.

Kennof abrigou-se atrás do recipiente de plástico.

— Está aqui — gritou uma voz. — Na grande caverna, Clinkskate; nós o encontramos.

— Agarrem-no! — disse a voz saída dos alto-falantes.

O cheiro de gás começou a tornar-se insuportável. Os olhos de Kennof começaram a lacrimejar. Teve um forte acesso de tosse e retirou-se apressadamente. Outros tiros foram disparados em sua direção.

— Clinkskate! — gritou Kennof em tom de desespero. — Tenho uma arma. Retire seus homens, senão atiro nos recipientes.

— É verdade — disse um dos atacantes. — Ele tem uma arma, Clinkskate.

Sombras escuras desfilaram diante dos olhos de Kennof. A partir do estômago, um terrível mal-estar espalhou-se por todo o corpo. Teve de agarrar-se a um tubo para não cair.

Dois homens acreditaram que tivesse chegado a hora de aproximar-se. O detetive viu seus contornos confusos surgirem na neblina leitosa. Disparou. Não pôde concentrar-se o suficiente para acertar. Mas os atacantes afastaram-se.

A mão tateante de Kennof encontrou uma das escadas. Subiu pela mesma. Mal conseguia respirar.

— Tomem cuidado para que não danifique as câmaras de dormir — advertiu Clinkskate.

Os homens mantiveram-se afastados, em atitude indecisa. Kennof conseguiu puxar-se para cima do caixão. Respirava com dificuldade e teve a impressão de que iria morrer sufocado. Conseguiu arrastar-se para o outro lado, onde o ar ainda não estava tão saturado de gás.

Arriscou uma olhadela para baixo. Aproximadamente uma dezena de homens estava reunida na sala. Todos usavam máscaras contra gases.

O Dr. Le Boeuf estava deitado entre eles. O rosto de Kennof assumiu uma expressão zangada. O aperto na garganta diminuíra. Os olhos voltaram a enxergar direito.

Kennof resolveu arriscar tudo numa única carta.

— Introduzi uma carga explosiva nesta caverna — gritou de cima do caixão. — Olhem!

Exibiu cautelosamente o micro defletor defeituoso.

— Posso demolir toda a caverna — afirmou em tom enfático. — Sou policial. Ofereço o perdão a qualquer pessoa que me apóie na ação.

Esperava que o aspecto estranho do defletor infundisse certa insegurança nos homens.

— Está blefando! — gritou Clinkskate com a voz rouca. Os alto-falantes retumbavam. — Como é que ele poderia conservar um objeto destes depois de ter sido revistado?

— Alguns homens viram que o Dr. Le Boeuf me apoiou — lembrou Kennof. — O doutor me ajudou a ficar com as armas.

— Não é nenhum policial — berrou Clinkskate fora de si. — Não se deixem enganar. Prendam-no!

— Se o senhor tem tanta certeza de que ele não tem nenhuma carga explosiva, por que não vem até aqui e nos ajuda a prendê-lo, Clinkskate? — perguntou um dos homens em tom irônico.

Kennof ouviu Clinkskate praguejar.

— Desliguei o robô — gritou para os homens. — Como poderia ter feito isso se não dispusesse de um treinamento de policial?

— Isso parece bem plausível — confessou o homem que assumira as funções de porta-voz do grupo. — Prometemos que nada lhe acontecerá se o senhor se entregar.

Os alto-falantes transmitiram as pragas proferidas por Clinkskate.

Kennof soltou uma risada amarga.

— Não sou criança — disse em tom penetrante. — Sei perfeitamente que a CIS não me soltará em hipótese alguma. Já sei demais a respeito de suas patifarias. Minha situação é desesperadora. Não tenho nada a perder. Passarei a formular minhas condições.

— Agarrem-no logo — ordenou Clinkskate, que apareceu na porta. Seu rosto estava transformado numa terrível careta. Em seus olhos brilhava o ódio. — Ele não pode impor condições.

Kennof fez pontaria e atirou. O projétil penetrou no ombro de Clinkskate e atirou-o ao chão. Não foi um impacto mortal. Kennof nem pretendia que fosse. Não queria enfurecer ainda mais os homens. Dois deles levaram o ferido, que gemia fortemente.

— Fale logo! — gritou alguém para o detetive.

— Retire-se com seus homens por doze horas. Prometo-lhe que, depois disso, lhe entregarei minhas armas.

Kennof subestimara o homem com quem estava falando.

— Isso não tem lógica. Daqui a doze horas, sua situação será exatamente a mesma. O senhor não ganharia nada; apenas retardaria nossa ação.

Naturalmente Kennof não poderia dizer-lhe que, dentro desse prazo, Shane e seus homens apareceriam por ali.

— Levem o Dr. Le Boeuf como refém — disse. — Se daqui a doze horas eu não aparecer com minhas armas para entregar-me, utilizem-no para exercer pressão contra mim.

O porta-voz do grupo lançou um olhar preocupado para Kennof.

— Não vai danificar os recipientes?

— Garanto-lhe que não!

O colaborador da CIS fez um gesto afirmativo.

— Vamos aceitar — disse, fazendo um sinal para os outros e abandonou a área.

 

Kennof pegou o rádio. Agora tudo dependia de que Shane estivesse prestando atenção.

Perdera algum tempo para descobrir aquilo que o médico pretendia mostrar-lhe.

 

Clinkskate soltou uma praga e afastou Piotrowski, que estava muito pálido. A atadura pendia frouxamente de seu corpo.

— Traga o telefone — ordenou. — Faça uma ligação com Cavanaugh. Ande depressa!

O médico manipulou o aparelho com os dedos trêmulos.

— O senhor perdeu muito sangue — disse em tom cauteloso. — Seria preferível que me deixasse terminar logo a atadura.

— Ande logo! — gritou Clinkskate. — Enquanto eu estiver falando no telefone, pode aplicar o tratamento.

Deixou-se cair no sofá e colocou a mão sobre o ombro dolorido. Acompanhou os esforços de Piotrowski com um ar impaciente.

— Sim — disse o médico. — Um momento, por favor.

Passou o fone a Clinkskate.

— É Cavanaugh — cochichou.

Clinkskate repeliu-o com um movimento do braço sadio.

— Aqui, Clinkskate — disse, falando para dentro do telefone. — O diabo está às soltas, Mister Cavanaugh. Seria bom que o senhor viesse imediatamente.

— Não — prosseguiu depois de algum tempo. — Um homem fugiu da sala de preparativos. Ao que parece contava com o apoio do Dr. Le Boeuf. Não; Piotrowski está a meu lado, aplicando-me uma atadura. O fugitivo atirou contra mim. Está lá embaixo, no pavilhão das câmaras de sono. Seu nome é Richard Kennof; era detetive particular. Afirma estar de posse de uma carga explosiva. Disse aos homens que é policial. Conseguiu ‘arrancar’ doze horas, durante as quais apenas pretende permanecer na caverna. O senhor sabe perfeitamente o que significa isso. Kennof viu o transmissor...

Aguardou a resposta e disse:

— Farei o possível para convencer os homens a atacarem. Espero-o.

Desligou.

— Cavanaugh virá o mais rápido possível — disse, dirigindo-se a Piotrowski. — Até lá devemos tentar resolver o assunto por conta própria. Tenho certeza de que o tal do Kennof andou blefando.

— De qualquer maneira parece que tem coragem — objetou Piotrowski. — Tenho a impressão de que ainda nos reserva uma surpresa...

— Tolice. Quanto tempo ainda vai levar para colocar essa maldita atadura?

— Já está pronta — respondeu o médico.

Clinkskate lançou-lhe um olhar pensativo.

— Tenho uma idéia, Piotrowski — disse. — Já sei como poderemos enganar esse sujeito.

— Pode falar — disse o outro em tom de expectativa.

— O senhor irá para onde está ele — principiou Clinkskate.

Piotrowski empalideceu. Um sorriso inseguro surgiu em seu rosto. Levantou ambas as mãos, num gesto de recusa.

— Não brinque — disse em tom medroso. — Então quer que eu enfrente Kennof sozinho?

— Procure puxar pela cabeça, homem! O senhor aparecerá diante dele como quem não quer nada. Conte-lhe que sentiu remorsos, que nem Le Boeuf. Dirá que resolveu juntar-se a ele. Assim que ele deixar de desconfiar, o senhor poderá subjugá-lo.

— É realmente muito simples — disse Piotrowski em tom sarcástico. — Procure outra pessoa para levar avante essa linda idéia.

Clinkskate gemeu enquanto se levantava num movimento apressado e caminhou em direção a Piotrowski. Seu rosto estava rubro de raiva.

— O senhor se esquece de quem o tem ajudado, meu caro. Lembre-se do Canadá, onde viveu um certo Fedor Piotrowski. Exijo que cumpra minha ordem.

O médico recuou. O suor começou a gotejar em sua testa. Falando com a voz rouca, disse temeroso.

— Não irei...

Clinkskate golpeou-o.

— O senhor irá! — gritou.

 

Acima de cada uma das câmaras havia uma tampa com uma fechadura. Esta poderia ser aberta a tiro de pistola, mas o ruído poderia atrair os homens.

Kennof examinou as dobradiças e ficou satisfeito ao constatar que estas não seriam capazes de resistir à sua habilidade. Utilizou algumas peças retiradas do defletor e levantou a tampa.

Puxou-a para o lado e olhou para dentro da câmara. Viu um velho de bigode e cabeça calva. Era a imagem da paz. Kennof não pôde imaginar o que esse velho estaria esperando do futuro que comprara por bom dinheiro.

Quando penetrou na câmara, Kennof teve a impressão de que, de um momento para outro, seu ocupante poderia abrir os olhos e perguntar em tom áspero o que desejava.

O plasma celular era mantido a uma temperatura agradável. Os pés de Kennof tocaram o fundo, quando um terço do corpo ainda estava fora do líquido. Foi caminhando para junto do homem adormecido. O corpo do velho balançava ligeiramente. Kennof, que já passara por inúmeras situações estranhas, não se sentiu muito à vontade. Mas já que começara com aquilo, iria até o fim.

Seus dedos tocaram cuidadosamente o peito do homem — e recuaram abruptamente.

A pele era fria como gelo!

Kennof sentiu um misto de repugnância e medo. A fazenda molhada da calça grudava nas pernas. Fechou os olhos por um instante, a fim de concentrar-se. Pegou a orelha do homem adormecido e puxou-a. Foi um gesto puramente intuitivo. O órgão auditivo era de uma estranha moleza e elasticidade.

De repente, a orelha desprendeu-se da cabeça!

Kennof soltou um grito de pavor e cambaleou para trás. O líquido borbulhante fechou o vazio deixado por seu corpo.

Aos poucos, o cérebro, que fora paralisado pelo pavor, voltava a funcionar. Seus dedos continuavam a segurar a orelha, que não sangrava. Da ferida aberta na cabeça do homem também não saía sangue. Kennof fez um esforço sobre-humano para examinar o “objeto” que segurava na mão.

A iluminação fraca não permitiu que percebesse muita coisa.

A orelha não era feita de carne humana. Ao que parecia, não era constituída sequer de uma substância natural. Esse fato não produziu o menor alívio em Kennof.

Será que todo o corpo do homem era feito de material bioplástico? Ou será que aquilo era apenas uma máscara destinada a ocultar alguma coisa?

Na vida de qualquer homem sempre surge um momento em que se sente dominado pelo pânico. Neste instante, Kennof sentia-se abalado até a medula dos ossos. Sua estabilidade psíquica, que era muito superior à média, ameaçava desmoronar.

Num gesto puramente instintivo, saiu da câmara. Por algum tempo ficou deitado junto à entrada, totalmente imóvel. Poças foram surgindo em torno dele.

Assim que refez-se do susto, rastejou para junto da abertura e olhou para dentro da câmara.

Antes não o tivesse feito!

O velho fazia estranhos movimentos de nadador. De certa maneira as funções dos membros eram inumanas, tão inumanas como qualquer coisa que Kennof já tivesse visto. Perplexo, contemplou o espetáculo fantasmagórico.

Seus olhos arregalaram-se, pois de repente a pele do rosto do homem começou a desprender-se!

Kennof não estava em condições de continuar a olhar para verificar o que havia embaixo da pele humana. Pegou a tampa e cobriu a abertura. Totalmente abatido, ficou estendido. O disparo de gás deixara um gosto de podre em sua boca.

Não saberia dizer por quanto tempo permaneceu imóvel até que, de repente, alguma coisa embaixo dele procurou levantar a tampa...

 

Aos poucos, Fedor Piotrowski foi-se familiarizando com a idéia de que deveria matar um ser humano.

Com as próprias mãos!

Sua vida era um rastro de maldades e baixezas. Um olhar retrospectivo fez com que o médico reconhecesse seu passado sombrio. Sabia que era mau, e acreditava que essa qualidade representava algo do qual jamais poderia afastar-se.

Sua maldade era de tipo diferente da de Clinkskate. Enquanto os atos deste eram marcados pelo egoísmo e pela brutalidade, Piotrowski conseguia avaliar objetivamente o seu procedimento. Em seu cérebro as noções do bem e do mal estavam nitidamente delimitadas. Suas concepções a este respeito correspondiam exatamente às de um homem decente. Toda vez que Piotrowski infringia a lei, uma voz interior lhe dizia:

— Você está cometendo uma injustiça! Tratava-se de uma constatação fria, que não envolvia nenhuma auto-recriminação ou sentimento de culpa. O médico conseguira certo distanciamento de si mesmo, e por isso considerava-se uma terceira pessoa. Sua objetividade quase chegava a ser uma espécie de autonomia em relação a si mesmo. Tratava-se de uma forma estranha e inofensiva de cisão da personalidade. A autonomia não favorecia nem o bem nem o mal, que coexistiam em seu interior. Apenas estabelecia as distinções e fazia as constatações.

Naquele instante, a voz interior constatou com uma objetividade total:

— Fedor Piotrowski está prestes a matar um homem chamado Richard Kennof! A pistola com que será praticado o ato está enfiada na bota direita.

Piotrowski sabia que era perfeitamente possível que quem poderia ser morto era ele, pois aquele fugitivo parecia ser um sujeito muito astuto. Tudo dependeria de quem fosse mais rápido e esperto.

Piotrowski chegou à caverna em que se encontravam as câmaras do sono e entrou. Fez o barulho necessário para que Kennof não acreditasse que quisesse entrar às escondidas.

— Fique onde está — gritou Kennof do lugar elevado em que se encontrava. — O que deseja?

— Quero ajudá-lo — disse Piotrowski. — Sou o colega do Dr. Le Boeuf. Os outros não sabem que estou aqui.

Kennof respondeu em tom sarcástico:

— Agora já sabem, pois o senhor berrou para dentro dos micro fones.

Que diabo”, pensou Piotrowski. “Como pude esquecer isso?

Kennof levantou a pistola.

— Não cairei num truque idiota como esse, doutor — disse. — Dê o fora.

Os alto-falantes transmitiram a voz de Clinkskate, desfigurada por uma raiva impotente:

— Piotrowski, seu amador maldito!

Piotrowski percebeu que Kennof se agarrava desesperadamente ao lugar em que se encontrava. E logo percebeu por quê. O detetive jogava todo o peso do corpo sobre uma das tampas que fechavam as câmaras.

O médico estremeceu.

Acordou um dos monstros!”, pensou instintivamente.

Atirou-se ao chão e, no mesmo instante, tirou a arma do cano da bota. Kennof encontrava-se numa posição difícil. Não podia sair do lugar, pois se o fizesse teria diante de si um atacante muito mais terrível que Piotrowski e sua pistola.

Os dois atiraram ao mesmo tempo. O eco transformou a chicotada dos tiros num rugido que parecia sair das paredes rochosas.

Assim que o ruído cessou, a voz de Clinkskate interrompeu o silêncio:

— Acertou nele, doutor?

— Não — disse Kennof em tom enfático. — Fui eu que acertei nele.

 

Owen Cavanaugh foi ao último andar e desceu do elevador. Acima dele, o helicóptero esperava na área destinada ao pouso. Cavanaugh abriu a porta de vidro e saiu para a parte inferior da cobertura. Sentiu-se atingido por uma brisa fresca, que arrastou alguns pedaços de papel atrás dele.

Cavanaugh subiu a escada que dava para a área de pouso. Quando viu o piloto sair de trás da carlinga, parou num súbito espanto.

— Quem é o senhor? — perguntou em tom autoritário. — Onde está Ben?

— Ben adoeceu de repente — disse o homem. — Estou aqui para substituí-lo.

Cavanaugh lançou-lhe um olhar desconfiado.

— Nunca o vi — disse em tom áspero. — Quem contratou o senhor?

O substituto de Ben sorriu.

— Foi Mister M'Artois — respondeu.

— Tomara que o senhor saiba pilotar tão bem quanto Ben — disse Cavanaugh, aparentemente mais tranqüilo.

— O senhor logo terá oportunidade de verificar — disse o homem.

— Qual é seu nome? — perguntou Cavanaugh com um débil interesse.

— Jacó — disse o novo piloto.

— É um nome horrível — disse Cavanaugh, enquanto entrava no aparelho. — Chamá-lo-ei de Ben. Por uma questão de hábito.

— Pois não, Sir — disse Jacó em tom reverente e acomodou-se no assento do piloto.

Ligou o motor e as pás da hélice começaram a rodar cada vez mais depressa.

— Conhece o destino? — perguntou Cavanaugh.

Teve de berrar, pois o ruído do motor sobrepujava-lhe a voz.

Jacó limitou-se a acenar com a cabeça.

— Preciso chegar o mais depressa possível — disse Cavanaugh.

Encontravam-se acima da cidade. Outros aparelhos surgiram em torno deles.

— O senhor sabe pilotar muito bem — disse Cavanaugh. — Mas receio que haja divergências sobre a hora e o local do pouso.

— É possível — concordou Jacó.

Cavanaugh comprimiu um pequeno objeto contra seu quadril.

— Sabe o que é isto, Jacó?

O piloto respondeu sem virar a cabeça:

— Deve ser uma pistola de agulha.

— Adivinhou, meu filho. E agora vá diretamente ao Parque Nacional de Yellowstone, seja lá quem for o senhor.

Jacó perguntou com a melhor calma:

— Como foi que o senhor descobriu tão depressa?

Cavanaugh sorriu.

— Acontece que M'Artois não tem o direito de contratar quem quer que seja. Quem preenche os empregos na CIS sou eu e Mr. Clinkskate. Somos nós que fazemos a seleção.

— Essa informação nos poupa uma série de perguntas — disse Jacó. — Não quer contar tudo?

Cavanaugh sorriu. Parecia divertir-se a valer.

— Sua insolência não o salvará — disse em tom suave. — Gostaria de saber quem é o senhor e quem o mandou.

— Sou o homem que vai prendê-lo. Ainda haverá outra pessoa, que no momento nem o senhor nem eu conhecemos. E o homem que o condenará.

Jacó olhou para trás e acenou com a cabeça para reforçar o efeito de suas palavras.

— É da polícia?

— Não diretamente — esclareceu Jacó. — Sou um agente do Serviço de Segurança Solar.

A pressão da pistola reforçou-se. O rosto de Cavanaugh cobriu-se de uma palidez cadavérica.

— Conte logo o que há realmente atrás da Companhia do Sono — pediu Jacó.

— O senhor não vai saber de nada — gritou Cavanaugh em tom selvagem. — Quer exercer pressão contra mim, a fim de obter alguma informação. Não se esqueça de que é o senhor quem está num aperto.

Jacó mudou o curso do helicóptero.

— Desista, Cavanaugh — disse. — Neste momento, quatro helicópteros do Serviço de Segurança Solar estão a caminho de Wyoming. Neles viaja uma dezena de especialistas que não demorarão a descobrir a verdadeira finalidade da CIS. Por uma questão de cautela, a polícia estadual de Wyoming foi notificada e enviou um forte contingente de tropas, a fim de apoiar nossos homens em caso de necessidade.

O presidente da CIS gritou em tom histérico:

— Isso não adiantará nada. Não existem provas contra nós. Podemos enfrentar qualquer tipo de inspeção. O senhor sabe perfeitamente que vou matá-lo. E ninguém se interporá no meu caminho. Um dia dominarei o mundo. Quer saber de uma coisa, Jacó? Sou o futuro administrador do Império Solar. Rhodan logo estará liquidado. Com o auxílio dos meus amigos alijá-lo-ei do poder. E juntamente com eles governarei o mundo.

— O senhor está doente — constatou o agente em tom indiferente. — Se me matar, o helicóptero cairá. Não pode fazer nada contra mim.

— Posso obrigá-lo a levar-me a Wyoming — disse Cavanaugh.

— O senhor não me pode obrigar a coisa alguma — objetou Jacó. — Irei a um posto do Serviço de Segurança, onde cuidarão do senhor.

Enquanto falava deixou o helicóptero cair subitamente. No mesmo instante, Cavanaugh levou uma pancada no antebraço que o fez gritar de dor. Disparou. Jacó foi atingido de raspão. Segurou a mão de Cavanaugh e virou-se. Cavanaugh atirou o maciço crânio contra o tórax de Jacó. O agente curvou-se com o impacto da cabeçada. Mesmo assim conseguiu afastar a arma de Cavanaugh.

O aparelho foi descendo rapidamente.

Passou raspando sobre alguns telhados da cidade.

Cavanaugh não conseguiu segurar mais a arma. Com uma força irresistível, Jacó puxou-o para a frente. O presidente da CIS defendeu-se que nem um louco. O espaço reduzido não permitia grande liberdade de movimentos.

O helicóptero desgovernado se inclinou para o lado. Jacó viu os telhados das casas numa proximidade ameaçadora. Os ocupantes de outros veículos tiveram a atenção despertada para eles. As estridentes sereias de alarma da polícia aérea aproximaram-se velozmente.

Jacó imaginava que, a fim de acompanhar o espetáculo com o coração palpitante, grandes multidões se aglomeravam nas ruas. Cavanaugh lutava que nem um animal selvagem, mas o agente conseguiu compensar a maior força física de seu antagonista por meio da experiência e da habilidade.

Segurou a alavanca da direção com uma das mãos, enquanto com a outra afastava Cavanaugh.

— Pare com isso — gritou. — Desse jeito nos espatifaremos num telhado.

— E daí? — disse Cavanaugh e redobrou seus esforços.

Num movimento inesperado, Jacó soltou a direção e bateu com a mão aberta no ouvido de seu adversário.

Em cima deles surgiu um helicóptero da polícia. As sereias silenciaram. Um megafone transmitiu a voz do policial:

— O senhor está bêbedo? Controle seu “pássaro”.

Cavanaugh caiu com um gemido. Seu rosto parecia murcho e vazio. Sonhara um sonho curto, mas perigoso, impregnado de poder. Jacó não poderia saber que o homem inconsciente que se encontrava a seu lado era um traidor da Terra.

— Pouse imediatamente! — berrou o policial. — Essa sua pilotagem é um perigo para o tráfego.

Em poucos segundos, Jacó conseguiu imprimir uma rota segura ao helicóptero. Abriu ligeiramente o quebra-vento lateral e exibiu uma plaqueta, de tal forma que o ocupante do aparelho, que voava acima dele, tinha de vê-la.

Num espanto indizível, o policial dirigiu-se ao colega que estava sentado a seu lado.

— É um agente da Segurança Solar — disse em tom de perplexidade. — Não acredito que missões importantíssimas sejam confiadas a pessoas tão incompetentes como esta!

— É sempre a mesma coisa — disse o outro. — Pessoas competentes como nós nunca recebem uma chance. De qualquer maneira, você deveria cuidar da pilotagem. Estamos a apenas trinta metros do solo.

 

— Será que não poderíamos ir mais depressa? — perguntou Célia em tom de impaciência.

— Há uma porção de coisas que ainda poderíamos fazer — disse Hardiston. — Geralmente o Serviço de Segurança Solar é mais rápido, mas no caso não se trata propriamente de uma missão oficial. Um simples chamado não pode levar o coronel a oferecer combate a um inimigo que nem conhecemos. Só permitiu que fôssemos porque gosta do velho Dick. Se Kennof tiver cometido um engano, o ‘velho’ se terá metido numa boa. A prisão de Jacó poderá custar-lhe o emprego, se posteriormente se constatar que tudo não passou de um falso alarma.

— Dick enviou o pedido de socorro — disse Célia em tom impertinente. — O coronel pode confiar nele.

— Está certo — disse Shane com uma suave ironia. — Esse Dick é um sujeito e tanto, que vai tropeçando de um perigo para outro.

— Seu monstro desalmado! — chiou Célia.

Hardiston inclinou-se para a frente, a fim de falar com o piloto.

— O que acha? — perguntou em tom azedo.

— Não sei de nada — disse este. — Apenas piloto o aparelho.

Riram, sem desconfiar de que naquele momento Richard Kennof iria entrar numa luta de vida e morte.

 

A pressão exercida contra a parte interna da tampa tornou-se cada vez mais forte.

Talvez sejam apenas minhas forças minguantes que não me permitam deter o prisioneiro”, pensou Kennof.

Certa vez, o desconhecido conseguira levantar a tampa por alguns centímetros. Uma mão surgira na borda do caixão. Kennof golpeou-a com a coronha da pistola. O material bioplástico esfacelou-se. Era do mesmo tipo daquela orelha que o detetive segurara poucas horas antes. A mão foi retirada apressadamente. Seria mesmo uma mão? Ou uma pata? Uma garra? Um tentáculo? Uma ventosa?

Kennof não conseguiu distinguir. A aparição fora tão ligeira que apenas conseguiu ver algo de fugidio.

Mas uma coisa era certa: não se tratava de uma mão humana!

De repente, a visão de Kennof parecia desanuviar-se. Compreendeu a finalidade das providências minuciosas e daquilo que se dizia ser o preparo dos corpos dos candidatos da CIS. Não se tratava de adaptar o corpo dos mesmos a um sono de vários anos. A verdadeira finalidade era outra. Por meio desses preparativos, os criminosos que integravam a Companhia tinham oportunidade de estudar tranqüilamente o rosto e a estatura das pessoas. Dessa forma, as máscaras de bioplástico eram cuidadosamente preparadas e colocadas nos corpos dos indivíduos que se encontravam nos recipientes.

Nenhum dos fiscais do Ministério do Interior jamais tivera a idéia de entrar nas câmaras, a fim de realizar um exame mais minucioso. Atrás das lâminas de plástico transparente, os seres que dormiam no líquido amarelento eram iguais às pessoas mencionadas nas cópias de contratos, arquivadas no Ministério.

Acontece que o estranho transmissor transportava os respectivos signatários a um lugar desconhecido.

Nas câmaras de dormir não havia um único ser humano.

Que seres seriam estes que a CIS guardava na caverna? Seriam mutantes? Ou as vítimas de alguma experiência condenável?

Para onde eram levados os seres humanos colocados no transmissor? Qual era a finalidade que Cavanaugh e seus comparsas pretendiam atingir por meio de sua ação fraudulenta? O que lhes conferia coragem para cometer um crime tão grave em pleno coração do Império Solar?

O homem solitário, que se encontrava em cima da chapa de metal, não encontrou resposta a estas perguntas. Mas seria fácil descobrir uma coisa: quem se encontrava nas câmaras.

Bastaria sair de cima da tampa.

Gostaria que Snyder estivesse por lá para ver o que estava acontecendo. Em algum lugar de Wyoming, um grupo de homens estava a caminho para ajudá-lo. Um grupo de homens e uma mulher.

Chegariam tarde!

Kennof sentiu-se fraco e cansado. A roupa estava secando no corpo. Já por duas vezes sentira calafrios. Em compensação, sua mente trabalhava muito bem. O medo cedera lugar a uma certa resignação.

A criatura presa embaixo da tampa lutava com uma força incrível pela liberdade. Mais uma vez a tampa levantou-se. Kennof encostou os pés numa tubulação, a fim de comprimi-la para baixo.

Entre o detetive e seu inimigo havia apenas uns quatro milímetros de chapa de aço. No momento, a tampa formava um ângulo de trinta graus com a superfície do líquido.

A mão voltou a aparecer.

Kennof observou-a fascinado, sem fazer nada. A poucos centímetros de seu rosto, a mão tateava em busca de um apoio.

Kennof viu dedos estranhos.

Eram delicados e esguios; pareciam ter sido criados por um grande artista. A pele escura, quase negra, era atravessada por linhas e sulcos suaves.

O detetive sentiu-se atirado para o lado por uma forte pancada. Foi arrancado subitamente de suas reflexões. Perdeu o apoio e teve de soltar a tampa. A lâmina redonda foi empurrada para longe, desceu por cima da borda do recipiente e caiu ao chão.

Kennof retirou-se apressadamente do lugar onde estava e segurou firmemente a pistola do Dr. Le Boeuf.

Ouviu o burburinho do líquido. O plasma celular agitou-se. Alguns esguichos caíram aos pés de Kennof. Pareciam gotas de sangue.

De repente surgiu outra mão.

Estava molhada. Deixou sua marca junto à borda do caixão. Parecia um número enorme de impressões digitais.

Com os olhos arregalados e a arma apontada, Kennof mantinha-se a três metros do caixão. O estranho ser parecia hesitar um pouco. Kennof sentiu uma tendência irresistível de fugir. Até mesmo a voz horrível de Clinkskate, caso o xingasse pelo alto-falante, representaria um alívio para o ex-agente.

Kennof soltou um grito.

A cabeça da estranha criatura apareceu. Era formada por placas bioplásticas. Era uma coisa tremendamente apavorante. Os remanescentes da máscara davam certo aspecto humano àquele crânio. Parecia a caricatura de uma cabeça humana. O bigode estava quase perfeito. Completamente molhado, parecia uma centopéia colada ao rosto da estranha criatura.

O resto do corpo apareceu. O monstro foi saindo para a liberdade.

Num instante, Kennof compreendeu a verdade. O conhecimento que adquiriu era tão terrível e inacreditável que ameaçava subjugá-lo. Mas recuperou a força de decisão.

Esvaziou o pente de balas e não esperou para ver o resultado. Quase chegou a cair escada abaixo.

Clinkskate voltou a chamar. O tom de sua voz demonstrava temor.

— Contra quem foram disparados esses tiros, Kennof?

Kennof correu em direção ao poço de ventilação.

— Contra um membro jovem da raça à qual a CIS quer entregar a Humanidade — gritou o detetive em tom indignado.

— Contra um druuf!

 

Agora ele descobriu”, pensou Clinkskate apavorado.

Praguejou contra a moleza de seus homens. Kennof teria de ser eliminado o mais depressa possível.

A ferida do ombro doía. Deixou-se cair para trás e apoiou-se com o braço do ombro são contra o encosto do sofá. Será que o plano concebido por Cavanaugh e por seus amigos, vindos de um outro universo, tinha alguma falha?

Clinkskate refletiu intensamente sobre a situação global.

De certa forma, durante um processo de superposição, que se realizasse numa área próxima, o plano temporal dos druufs ficava praticamente nas vizinhanças. Na época em que a Terra começou a utilizar os transmissores no transporte regular de matérias-primas, destinadas à sua base lunar, os druufs conseguiram uma localização da frente de superposição típica para a feição instável de sua estrutura espaço-temporal. Os descendentes de insetos ficaram refletindo sobre como aproveitar-se da intensa atividade dos transmissores. Viram nela uma boa chance não só de determinar a posição da Terra, mas de avançar até o terceiro planeta do sistema solar.

Mas todos os esforços foram em vão, até que foram ajudados pelo acaso. Durante um salto de transmissão, que visava a outra finalidade, um druuf ficou sujeito à influência dos transmissores terranos. Em vez dele, um saco de feijão foi parar na estação de integradores dos seres de Druufon. Por um ligeiro instante houvera uma interseção na quinta dimensão, causada pelo funcionamento simultâneo dos transmissores. Enquanto os druufs ainda se espantavam com a presença do saco de feijão, o acaso veio em seu auxílio pela segunda vez. O druuf — transportado à Lua, em vez da leguminosa — não foi descoberto. Em virtude de um retardamento no controle do transmissor, sua vida foi salva.

Os cientistas dos druufs possuíam bastante fantasia para reagir imediatamente. O saco de feijão foi atirado para trás, antes que se apagasse o rastro energético que o transmissor deixara na quinta dimensão. O alimento foi colocado no caminho correto, e sua massa foi suficiente para arrancar o druuf do satélite da Terra, antes que qualquer homem tivesse percebido sua presença.

Os cálculos realizados pelos peritos dos druufs revelaram que a probabilidade da ocorrência de um segundo salto desse tipo era muito reduzida. Não era apenas a extensão da zona de superposição que interferia no fenômeno, mas também o local e o tempo do acionamento dos dois transmissores. Além disso, a massa dos dois corpos devia ser aproximadamente igual, pois só assim se tornaria possível o intercâmbio superdimensional de energia.

Clinkskate não tinha a menor idéia da atividade febril que passou a ser desenvolvida pelos druufs, quando estes viram uma chance de chegar à Terra. Apesar de todas as experiências, não houve como repetir à força aquilo que o acaso lhes proporcionara.

Não seria possível enviar uma nave dos druufs à Lua, a fim de informar os combatentes experimentados do Império Solar de que só deveriam acionar seus transmissores num tempo determinado e com uma carga prefixada. Os terranos teriam transformado a nave dos druufs num pequeno sol e se divertiriam a valer com a ingenuidade do inimigo.

Os chefes dessa raça de insetos sabiam que seu plano só poderia ser levado avante se contassem com o auxílio de um ser humano. Tornava-se necessário estabelecer contato com alguns homens influentes, que se mostrassem dispostos a trabalhar para eles em troca de uma paga adequada.

Uma nave robotizada foi introduzida com todas as cautelas possíveis no Universo einsteiniano. Sua tarefa era perfeitamente conhecida, mas extremamente difícil. Deveria trazer um ser humano.

Trouxeram Lewis Shirreff, um homem que infringia a lei ao voar num barco espacial na área dos asteróides. Shirreff era um sonhador entusiasmado pela astronáutica, que gastara sua fortuna não desprezível com o pequeno veículo espacial em que estava viajando. Antes que a Frota Solar pudesse apreender a embarcação de Shirreff, este foi preso pela nave robotizada. Em Marte foram presos alguns funcionários que acobertavam o procedimento ilegal daquele homem, e uma nave espacial lançou-se ao espaço a fim de prender Shirreff. Mas o infrator desaparecera. Porcuraram em vão. Não se atribuiu maior importância ao acontecimento, pois supunha-se que a nave de Shirreff tivesse sido submetida à gravitação de Júpiter. Finalmente as buscas foram encerradas e o assunto caiu no esquecimento.

Os druufs constataram que Shirreff não era o homem que pudesse ajudá-los. Mas, uma vez submetido a um tratamento especial pelos seres de Druufon, mostrou-se disposto a levá-los ao homem de que precisavam.

A Owen Cavanaugh.

Quando entre os colonos de Marte já não havia mais ninguém que apostasse um solar pela volta de Shirreff, a nave deste surgiu nos céus do planeta.

A opinião pública, que festejou Shirreff como um herói, evitou que ao mesmo fosse imposta pena de prisão pela prática não licenciada da navegação espacial. O juiz concluiu que o acusado não era inteiramente capaz de entender a natureza de seu ato, e por isso aplicou uma pena extremamente suave.

Lewis Shirreff teve de pagar uma multa. Dali a quinze dias viu-se diante de Cavanaugh. O inescrupuloso e rico negociante reuniu um grupo de homens dos quais se poderia esperar que fariam tudo para adquirir riqueza e poder num espaço de tempo muito curto.

Em comparação com as dificuldades já vencidas, o resto foi uma brincadeira para os druufs.

Cavanaugh adquiriu as cavernas do Parque Nacional de Yellowstone. Bem sob as vistas do Ministério do Interior, criou a Companhia Intertemporal do Sono. Agiu de modo aberto e assim evitou que os druufs perdessem mais tempo e se expusessem a um afastamento maior da área de superposição. Cavanaugh e seus comparsas não fizeram maior segredo ao prepararem as cavernas para suas finalidades.

Por paradoxal que pudesse parecer, o fato de Cavanaugh agir em público na execução dos seus planos conferia-lhe uma segurança que nunca poderia ter alcançado num trabalho secreto. Sob o disfarce da CIS, os druufs começaram a transportar seu destacamento avançado para a Terra.

Uma vez instalado o transmissor dos druufs e recebidas as primeiras pessoas que seriam postas a dormir, o resto foi quase automático. Os seres de Druufon mataram dois coelhos de uma cajadada. Puderam preparar a invasão sem que ninguém os percebesse e puderam manter constante a substância orgânica de seu universo, já que para cada druuf enviado à Terra um ser humano ingressava em sua dimensão temporal.

E isto era imprescindível. Para chegar à Terra por meio de um transmissor, tornava-se necessário que simultaneamente um ser humano vivo fosse enviado ao mundo dos druufs. Era só por meio desse intercâmbio constante de energia e de matéria que se conseguia preparar a invasão com a necessária segurança.

Os druufs e os gângsteres de Cavanaugh só tinham um problema: O que fazer com os invasores que iam chegando à Terra? Foi o próprio Clinkskate quem descobriu a solução. Um druuf adulto tinha uma altura de três metros. No entanto, a altura de um jovem dessa raça de descendentes de insetos correspondia à de um homem adulto. Uma vez revestido com material bioplástico e colocado no líquido, que para ele era agradável, não havia como distingui-lo de um terrano.

Enquanto os druufs cresciam no interior dos recipientes, os homens da CIS teriam tempo para construir recintos secretos no subsolo, onde os invasores poderiam esconder-se. O lugar de cada druuf adulto seria ocupado por uma boneca de bioplástico, que seria igual ao ser humano adormecido atrás das lâminas de plástico.

Sem desconfiar de nada, os homens entregues à Companhia do Sono encontravam-se na dimensão temporal dos druufs.

Estes informaram que os terranos enviados em troca dos seres-toco continuavam vivos.

Mais de dois mil candidatos ao sono já tinham chegado ao nordeste do Wyoming e caído na cilada da CIS. E igual número de druufs encontrava-se nos recipientes.

Não”, pensou Clinkskate muito zangado. “Menos dois...”

Ainda não haviam prendido Kennof, e este acabara de matar um dos extraterrenos.

De repente, suas reflexões foram interrompidas por uma barulheira.

St. Cloud e Tober entraram precipitadamente.

— Quatro helicópteros estão circulando em cima do campo de pouso — gritou St. Cloud. — Ao que parece, querem pousar.

— Não parece que sejam da equipe de televisão — acrescentou Tober.

Seu rosto mostrou um sorriso estúpido. Clinkskate levantou-se de um salto e empurrou-os para o lado. Saiu de seu gabinete, seguido por St. Cloud e Tober.

Quando se encontravam do lado de fora, viram que o pessoal da CIS estava reunido e observava o pequeno campo de pouso.

Quatro helicópteros grandes descreviam curvas.

Clinkskate sentiu-se tomado pelo pânico. Esqueceu o ombro dolorido.

— Estefano — disse a um dos homens parados por ali. — Pegue dois homens e arrume a caverna do sono. Esse maluco do Kennof matou um dos extraterrenos. Os restos mortais deverão desaparecer. Sei lá quem são os nossos visitantes.

Estefano, um homem de cabelos louros desgrenhados e nariz aquilino, disse em tom de repugnância:

— O senhor se esquece da carga explosiva de Kennof.

O rosto enrugado de Clinkskate transformou-se numa máscara implacável.

— Se os ocupantes desses helicópteros forem um grupo de fiscais, que nos faz uma visita de surpresa, o senhor logo saberá o que é mais perigoso — disse em tom gelado. — Kennof ou estes homens.

Tober pôs a mão em concha na testa, a fim de enxergar melhor. O sol se encontrava próximo à linha do horizonte.

— Estão pousando — disse em meio ao barulho.

— Ande depressa, Estefano — gritou Clinkskate em tom nervoso.

Esperou que Estefano escolhesse mais dois homens.

— St. Cloud — prosseguiu. — Acompanhe-me até o campo de pouso. Vamos cumprimentar os visitantes. Espero que, neste meio tempo, o lugar seja arrumado e recupere seu bom aspecto.

Os membros do grupo saíram correndo em várias direções.

— Vamos andando, St. Cloud — disse Clinkskate em tom decidido.

— Quem será? — perguntou St. Cloud um tanto preocupado.

— Não é ninguém cuja visita nos deva alegrar — afirmou Clinkskate.

Atingiram o bosque e seguiram pelo caminho que levava ao campo de pouso. Também Clinkskate sentia-se inseguro. Os quatro helicópteros roubaram-lhe toda segurança. Evidentemente era possível que acabassem sendo inofensivos.

Talvez fosse um grupo de topógrafos, que muitas vezes costumavam aparecer nas montanhas. Ou um grupo de caçadores do governo, pretendendo abater algum urso hidrófobo no parque nacional. Havia inúmeras possibilidades...

Quando haviam percorrido metade do caminho, um grupo de homens aproximou-se deles. Clinkskate viu que eram onze homens e uma mulher. Traziam um equipamento estranho... e possuíam armas.

Clinkskate engoliu em seco. Fez um esforço e prosseguiu na caminhada. St. Cloud soltou um rugido, que nem um animal acuado. Num gesto automático, Clinkskate estendeu o braço e cumprimentou amavelmente o grupo que se aproximava.

Pararam. Para Clinkskate, no momento, estes eram os homens mais perigosos de todo o universo. Admirou-se por conseguir ficar parado tranqüilamente.

— Este terreno é particular — disse. Sua voz era amável, mas firme. — Vejo-me obrigado a indagar pelo motivo da visita de vocês.

Um homem alto, de aspecto melancólico, deu alguns passos em sua direção. St. Cloud recuou instintivamente.

— Meu nome é Shane Hardiston — disse o homem.

Em seu cinturão estava pendurada uma arma. Jamais Clinkskate poderia imaginá-la ali. Em suas costas havia uma caixa presa a correias de couro.

Clinkskate disse seu nome.

— Sou um dos diretores da CIS — disse. — Ali ficam nossas cavernas do sono. Nenhuma pessoa não autorizada pode entrar nelas.

Hardiston tirou alguma coisa do bolso e mostrou-a. St. Cloud, que olhava por cima do ombro de Clinkskate, soltou um grito assustado.

Clinkskate umedeceu os lábios.

— Então são do Serviço de Segurança Solar — disse com um sorriso. — Sentimo-nos honrados!

O agente olhou para além dele, como se esperasse que a qualquer momento fosse aparecer alguém no caminho.

— Estamos à procura de um homem — falou Hardiston, depois de algum tempo. — Seu nome é Richard Kennof.

Clinkskate se fez de pensativo.

— Será que se refere a um dos nossos clientes? — perguntou. — Acho que me lembro de uma pessoa com esse nome.

Dirigiu-se para St. Cloud.

— Sabe alguma coisa a respeito dele, Davi?

— Não sei — gaguejou St. Cloud. — Isto é...

— Parece que a visita dos senhores está deixando o coitado do Davi totalmente confuso — disse Clinkskate em tom complacente.

Nos olhos de St. Cloud estava escrito o medo.

Que vá para o inferno”, pensou Clinkskate. “Por que é que esse molóide não procura controlar-se?

Fez um gesto convidativo e, dirigindo-se a Hardiston, disse:

— Poderemos verificar logo se esse Kennof está por aqui. Se quiser fazer o favor de acompanhar-me até as cavernas, tudo ficará esclarecido.

Sua voz assumiu um tom confidente.

— Será que Richard Kennof é um criminoso procurado pela polícia, que recorreu à CIS para atingir suas finalidades escusas?

— É um policial — disse Hardiston em tom seco.

Fez um sinal aos seus homens, e o grupo pôs-se em movimento.

— Que aparelhos esquisitos eles trouxeram! — cochichou St. Cloud.

— Cale-se, seu idiota! — respondeu Clinkskate.

Vez por outra, a luz do sol irrompia entre a densa folhagem, desenhando sombras fugazes sobre os rostos dos homens. Seus pés levantavam folhas secas que eram atiradas para o lado e esvoaçavam por algum tempo acima do chão. Às vezes, os aparelhos e instrumentos, que os agentes traziam, tilintavam.

Clinkskate lançou um olhar de esguelha sobre os rostos angulosos desses homens. Dessa escolta não poderia esperar qualquer contemplação, se esta descobrisse o que havia no interior das cavernas.

E eles descobririam!

A única saída seria a luta e a fuga.

Um plano começou a adquirir concretude no cérebro de Clinkskate.

Quando saíram do bosque, Tober encontrava-se na área livre que ficava à frente das cavernas. Fitou Clinkskate com um misto de preocupação e curiosidade. Clinkskate teve o cuidado de manter-se à frente do grupo.

Só a entrada do edifício da administração estava aberta.

— Vamos entrar aqui — disse Clinkskate em tom amável.

— Se for uma armadilha, o senhor não terá muito tempo para regozijar-se — anunciou Hardiston com a voz fria.

Clinkskate fitou-o como se não entendesse.

— O que quer dizer com isso? — perguntou em tom indignado.

Enquanto falava, agarrou St. Cloud e empurrou-o contra Hardiston. Os dois homens esbarraram um no outro. Clinkskate viu o agente pôr a mão na arma. Correu para dentro da caverna. Antes que Hardiston conseguisse desvencilhar-se, Clinkskate fechou os grandes portões.

Saiu apressadamente pelo corredor a fora. Os primeiros funcionários da CIS apareceram à sua frente.

— Vamos embora! — gritou. — O Serviço de Segurança Solar está no nosso encalço.

Seu braço escorregou para fora da tipóia preparada por Piotrowski. Ao que parecia, a ferida se abrira no momento em que empurrou St. Cloud.

— Vamos todos para a estação do transmissor — gritou. — Coloquem barricadas nas galerias e introduzam gás nos corredores.

Estava cercado por homens apressados e suarentos, que investiam contra ele com um arsenal de perguntas. Ouviu-os correrem a seu lado.

— Distribuam as armas — ordenou. — E não se esqueçam de ligar as armadilhas. Há apenas onze homens lá fora.

Em poucos minutos, o setor administrativo estava vazio.

Uma explosão ensurdeceu Clinkskate. Alguns homens ficaram parados. O chão estremeceu e pedras caíram do teto e das paredes.

— Vamos! — Clinkskate tangia os homens sem a maior contemplação. — Querem dinamitar a entrada. Devemos dar o fora antes que consigam.

De repente sentiu o cheiro de algo que queimava. Um incêndio devia ter irrompido em algum lugar. Lembrou-se de Estefano e de seus dois acompanhantes, que pretendiam dominar Kennof. Onde estariam?

A unidade energética estava envolta em densas nuvens de fumaça. As chamas erguiam-se à entrada, situada em nível mais elevado. No pavimento inferior devia lavrar um incêndio muito forte. Kennof devia estar lá, ou então Estefano. Provavelmente tinham sido os causadores do incêndio.

Os olhos de Clinkskate começaram a lacrimejar. Ao seu lado homens tossiam enquanto se deslocavam em meio à fumaça.

Clinkskate ordenou em tom enérgico:

— Temos de passar! Tragam panos... As palavras foram tragadas por uma explosão. O ar comprimido atravessou o corredor. A respiração ali tornou-se difícil. Procurou controlar-se e fez um esforço para ordenar as idéias. A essa altura, os agentes já deviam ter aberto o portão. Mas teriam de avançar com a maior cautela pelos corredores, pois não sabiam em que ponto teriam de enfrentar uma resistência.

Alguém colocou um pano úmido nas mãos de Clinkskate. Comprimiu-o contra o rosto e correu para dentro das nuvens de fumaça.

 

As fúrias do inferno pareciam estar às soltas em torno de Kennof. Este rastejou. Do lado oposto do recinto, as chamas subiam. Há uma hora, três homens apareceram por ali e procuraram caçá-lo. Com o último tiro disparado da pistola de Piotrowski, Kennof conseguiu pôr um deles fora de combate. Quando os outros responderam ao fogo, uma máquina foi atingida atrás de Kennof. Fagulhas azuis caíram ao chão, e o fogo logo se espalhou. Na confusão, o detetive conseguiu escapar mais uma vez. Os inimigos deviam estar atrás da cortina de fogo. Provavelmente só podiam cuidar de si mesmos. Kennof sabia que só podia salvar-se por meio de uma ação rapidíssima.

Depois de sair do poço, dirigira-se imediatamente à caverna destinada aos preparativos. Ali, onde ficavam os grandes geradores, ainda teria uma pequena chance de causar dificuldades à CIS.

Acontece que o aparecimento dos três guardas estragou seus planos. Kennof ouvira as duas explosões, mas não sabia dizer do que se tratava.

Por que não aparecia ninguém para apagar o fogo?

Enquanto rastejava, o detetive tossia. À sua frente, em meio à cortina de fogo, fumaça e cinzas, um objeto queimado caiu ruidosamente ao chão.

Um homem saiu cambaleando em meio às chamas. Suas roupas estavam chamuscadas em alguns lugares. Segurava uma arma.

Kennof atirou-se contra as pernas do outro. Sentiu que este perdeu o apoio e caiu ao chão. O detetive virou-se, respirando com dificuldade. Um pedaço de madeira queimada passou por eles que nem um fogo-fátuo. Quando se concentrava no inimigo, ouviu uma voz rouca vinda do lado:

— É você, Estefano?

— Rápido — gritou o homem deitado embaixo de Kennof. — Aqui!

Numa clareza súbita, Kennof viu outro homem parado bem perto dele. Alguma coisa tocou seu quadril. Tratava-se de algo que passou num abrir e fechar de olhos, deixando em Kennof uma dor martirizante.

A sala começou a girar em torno do detetive, e este caiu para trás. Quando ouviu o homem que se encontrava a seu lado sair rastejando, estava quase inconsciente.

— Este está liquidado — disse uma voz. — Vamos dar o fora.

Os druufs”, pensou Kennof com as últimas forças que lhe restavam. “Preciso deixar um aviso para Shane.

O fogo crepitante ia-se aproximando...

 

As enormes mãos de Hardiston cerraram-se em torno de uma barra de ferro oculta e puxaram-na para o lado.

— Célia e Zekizawa ficarão aqui — ordenou. — Os outros irão comigo para dentro da caverna. Payne, encarregue-se do aparelho de localização. Não se esqueça de que podemos encontrar armadilhas pela frente.

Passou por cima dos destroços do portão e saltou agilmente um buraco.

— Não atirem se não for necessário — ordenou Hardiston. — Não queremos atingir pessoas inocentes. Fiquem com as máscaras preparadas, pois é possível que encontremos gases. Maliverney, não se esqueça de verificar constantemente a pressão atmosférica. Lohnert e Adams, venham comigo.

Esperou até que os dois agentes se encontrassem a seu lado.

Por um instante Célia viu a figura enorme de Hardiston na entrada aberta a dinamite, mas logo sumiu no corredor escuro.

Os outros seguiram-no...

 

A cabeça de Clinkskate parecia girar. O corpo fustigado pelas dores só conhecia um objetivo: a estação do transmissor.

— Todas as instalações estão queimando! — gritou alguém que se encontrava atrás dele.

Clinkskate tinha certeza de que este incêndio representava o fim de mais de dois mil druufs. Os descendentes de insetos ainda eram muito jovens e achavam-se indefesos para escapar com suas próprias forças do inferno desencadeado em torno deles. Os condutos, que levavam aos recipientes, já haviam sido interrompidos. Em algum lugar, o líquido nutritivo se entranhava no solo das cavernas. E os tubos de oxigênio deixariam de conduzir ar respirável, para levar fumaças sufocantes.

Um homem puxou seu braço.

— Não conseguiremos passar — gritou para Clinkskate.

Este reconheceu o rosto desfigurado de Eberhard. Provavelmente seu aspecto não era muito melhor.

— Temos de chegar ao transmissor — gritou. — É a única chance de sairmos daqui.

— O fogo está em toda parte — gritou Eberhard em tom de desespero. — Não conseguimos chegar aos equipamentos de combate ao incêndio. Deveríamos tê-los espalhado por toda parte.

Clinkskate chutou uma peça de plástico em chamas.

— Acredita que isso adiantaria alguma coisa? — perguntou em tom irônico.

Viu uma fresta entre duas máquinas. Atrás dela, o fogo ainda não se espalhara.

Por alguns segundos o cheiro de óleo lubrificante misturou-se ao fedor causticante. Como se estivesse paralisado, o braço ferido pendia ao lado do corpo de Clinkskate. Continuou a avançar. Ouviu atrás dele o grito de um homem atingido por uma peça em chamas. Fazia votos de que nem todos os homens conseguissem chegar ao transmissor com ele. Se o aparelho funcionasse, apenas poucos poderiam escapar.

Um vulto estava estendido à sua frente. As vestes achavam-se tão queimadas que Clinkskate não saberia dizer quem era. Inclinou-se sobre o vulto. Eberhard juntou-se a ele.

— Vire-o — ordenou Clinkskate.

Eberhard colocou o corpo de costas. Era Estefano. Ainda respirava. Clinkskate sacudiu-o.

Estefano abriu os olhos.

— O que é feito de Kennof? — perguntou Clinkskate.

Houve uma reação débil nas pupilas do homem quase inconsciente.

— Conseguiu liquidá-lo?

Estefano abriu a boca para dizer alguma coisa, mas as cordas vocais recusaram-se a obedecer. Clinkskate sacudiu-o brutalmente.

— Vamos logo! Fale! — gritou.

— Deixe-o em paz — disse Eberhard em tom de repugnância. — Vamos embora antes que seja tarde.

Clinkskate levantou-se. Chamas azuis começaram a levantar-se atrás das máquinas. A tinta começou a formar bolhas.

— Atenção!

Seu braço estendido apontava para a frente. O caminho, que levava ao corredor da estação do transmissor, estava em chamas. Não poderiam prosseguir sem arriscar a vida.

— Estamos cercados pelo fogo — disse Clinkskate em tom apático.

À sua frente estava o inferno... E atrás deles havia outro!

 

Apesar de todo o cuidado, não perceberam a primeira armadilha.

Subitamente Maliverney, que ia à frente dos outros, soltou um grito e cambaleou para trás. Hardiston segurou-o. Os objetos metálicos que Maliverney trazia no corpo emitiram um brilho estranho. Hardiston não perdeu tempo: arrancou o equipamento de cima do corpo do agente. Em todos os lugares em que o metal tocara diretamente a pele de Maliverney, havia queimaduras graves.

— O contato deve ficar nestas paredes — disse Hardiston em tom zangado. — Provavelmente instalaram um aparelho de localização. Assim que surge qualquer tipo de metal em sua área de influência, dá-se a radiação e o aquece ao ponto de ficar incandescente.

Maliverney cochichou com o rosto desfigurado pela dor:

— Ainda bem que Pounds não estava no meu lugar. Ele tem três dentes de ouro.

Pounds resmungou alguma coisa em tom indignado e os outros obrigaram-se a rir.

— Se não conseguirmos destruir a instalação, só nos restará uma saída: prosseguir sem armas e equipamento — disse Shane.

— O que devemos fazer? — perguntou Adams em tom deprimido.

— Isto! — Hardiston puxou a arma e disparou contra a parede de rocha.

Os outros seguiram seu exemplo.

— Pelo menos vamos danificar o aparelho de localização — disse Lohnert em tom esperançoso.

Fecher tirou uma pá de ferro de seu equipamento e atirou-a na direção da perigosa barreira, que, apesar de sua invisibilidade, quase teria feito uma vítima.

Não aconteceu nada.

— Isso está liquidado — disse Adams em tom de satisfação e saiu correndo.

— Pounds, fique com Maliverney. Procure levá-lo para junto de Célia. Ela cuidará dele. Adams levará sua bagagem.

Adams voltou correndo para cumprir a ordem.

— Como será que a CIS consegue fazer armadilhas como esta? — perguntou Fecher em tom de espanto.

Hardiston fez sinal para que prosseguisse. Alguns metros adiante, uma parede metálica interpôs-se no seu caminho.

— Temos que dinamitar de novo — disse Lohnert.

Baixou seu equipamento e começou a desenrolar vários cabos.

— Espere aí! — ordenou Hardiston. — Imagino que com a detonação seremos esmagados pela montanha. Temos que descobrir outro meio.

— Poderíamos usar o explosivo para abrir uma passagem lateral — sugeriu Adams.

— O resultado seria praticamente o mesmo — objetou Shane. — Poderíamos utilizar cargas reduzidas, mas nesse caso levaríamos algumas horas para chegar ao corredor principal.

Fecher bateu com a pá contra o obstáculo. Lohnert ouviu atentamente.

— Pelos meus cálculos tem cinco centímetros de espessura — disse.

— Vamos abrir isso a maçarico — decidiu Hardiston. — É a única maneira de prosseguirmos sem risco.

— A parede não é de lata; tenho certeza absoluta — observou Benson, um homem pequeno e calado, de olhos negros e cabelo rebelde.

— A garrafa de oxigênio — ordenou Hardiston. — Monte o maçarico, Adams.

— Quem dera que tivéssemos uma queimadora termonuclear — disse Lohnert com um suspiro.

— Teremos de arranjar-nos sem ela — Hardiston colocou uma mangueira no bocal do queimador e prendeu-a com um grampo. — Mande o gás.

Dali a pouco a mistura de oxigênio e acetileno foi acesa. Na ponta da chama reinava uma temperatura de cerca de 1.600 graus.

Hardiston colocou o queimador. Um feixe de chamas foi jogado para trás.

— Não adianta — disse o agente em tom resignado. — A parede consiste em várias camadas entre as quais há espaços ocos de menos de um milímetro. Nestas condições é quase impossível atravessá-la. Levaríamos uma eternidade.

Fechou o suprimento de oxigênio e a chama apagou-se com um leve estalo. Os homens observavam-no em silêncio.

— E agora? — perguntou Fecher.

— A parede avança um bom pedaço para o interior da terra — anunciou Lohnert.

— Se dentro de três minutos não nos ocorrer uma idéia melhor, teremos de usar dinamite — sentenciou Hardiston.

Sete homens fitaram-no. Em seus olhos brilhava a decisão firme de romper a barreira, fosse como fosse.

 

O Dr. Le Boeuf ficou atento para ouvir o que se passava na escuridão. Antes que recuperasse a consciência, um fato decisivo acontecera.

Tateou até a porta do cubículo em que fora preso. Ao notar que não estava trancada, ficou espantado. Saiu cautelosamente para o corredor. Também aqui a escuridão era completa. Parou por um instante para orientar-se. Sentiu o cheiro de fumaça. À frente dele, devia ficar o poço de ventilação da caverna do sono.

O médico prosseguiu com as mãos estendidas para a frente, a fim de facilitar sua orientação. Pela primeira vez seu subconsciente deu um sinal de que houvera uma modificação naqueles subterrâneos.

Le Boeuf não tinha um plano definido. Avançou aos tropeções, e seus pés encontraram a borda da abertura capaz de dar passagem a um homem. Esteve prestes a entrar na mesma, quando teve outra idéia. Lembrou-se do transmissor. Se conseguisse sabotar a estação, poderia desferir um golpe duro contra a CIS e os druufs. Os traidores teriam dificuldades quase insuperáveis para construir outro transmissor.

Acontece que pouca coisa poderia fazer com as mãos desarmadas. Mas subitamente lembrou-se de algumas palavras de Clinkskate.

— Em hipótese alguma, o transmissor deve ser acionado se no plano dos druufs não for enviada simultaneamente uma massa correspondente. Qualquer infração a esta regra poderá causar uma catástrofe.

O que aconteceria se ele, Le Boeuf, acionasse o transmissor sem que os druufs soubessem disso? Será que seu corpo se dissolveria e desapareceria para todo o sempre em alguma dimensão sobreposta?

Mas o equilíbrio energético entre o plano dos druufs e o Universo einsteiniano, que era mantido automaticamente, levaria a outra conclusão.

O espaço de cinco dimensões o atiraria para trás. O médico não sabia formar uma idéia precisa do volume de energia que seria liberado com isso. Mas tinha certeza de uma coisa: essa energia seria suficiente para destruir o transmissor.

E destruiria também outras coisas.

Durante a execução do plano o Dr. Le Boeuf encontraria a morte. Não sentiu medo nem remorsos. Caminhava apressadamente pela escuridão. Era um homem baixo e sardento que, nas últimas horas de vida, adquiriu a consciência de sua responsabilidade perante a raça a que pertencia.

 

Lohnert soprou uma mecha de cabelo. Na testa de Benson, o suor porejava. Tiveram de ligar suas lanternas, já que as luzes se apagaram de repente. Vez por outra, o rosto de um homem surgia num feixe de luz.

— O tempo passou — disse Shane Hardiston.

Seu corpo projetava uma sombra gigantesca contra a parede.

Adams e Fecher dirigiram as luzes de sua lanterna para o detonador eletrônico de Lohnert. O agente mexia nos fios.

— Atenção! — gritou Benson de repente.

A luz de suas lanternas iluminava a barreira metálica, que ia subindo lentamente. Os membros do destacamento especial do Serviço de Segurança Solar pegaram as armas. Uma nuvem de fumaça passou por baixo da parede divisória. Espalhou-se rapidamente.

— Gás! — gritou Fecher e pegou a máscara.

Hardiston não se abalou. Farejou o ar. Depois de algum tempo, sacudiu a cabeça.

— Lá dentro há um incêndio — disse.

A barreira parou a cerca de cinqüenta centímetros de altura, rangendo fortemente. A fumaça amarela continuava passando pela abertura.

— Deve estar empenada — disse Thatcher. — O caminho está livre.

Quando o primeiro colaborador da CIS passou pela abertura, avistou um vulto. Hardiston baixou o cano do paralisador. Esse homem já não seria capaz de pensar, embora segurasse uma faca. Em alguns lugares, as vestes totalmente queimadas deixavam entrever pedaços de pele chamuscada.

— Ajudem-no — ordenou Hardiston. Agindo com a maior cautela, Adams e Lohnert puxaram o ferido para fora da abertura. O homem gemia de dor.

— Ali vem mais gente — disse o grandalhão. — Receiam que atirem contra eles.

Hardiston colocou a máscara e inclinou-se para falar através da abertura.

— Saiam e entreguem-se — gritou para dentro das nuvens de fumaça. — Não atiraremos.

Dali a pouco, suas mãos agarraram alguma coisa e outro corpo foi arrastado para o lado de cá da parede metálica. Alguns minutos depois, quarenta homens, que apresentavam queimaduras leves e graves, encontravam-se em poder dos agentes do SDS.

Um desses homens era Clinkskate...

— O que é feito dos homens adormecidos? — disse Hardiston, superando o gemido dos prisioneiros. — Serão queimados!

Clinkskate abriu as pálpebras vermelhas. Seus cílios estavam chamuscados.

— Não se preocupe — disse com a voz rouca. — Não há mais ninguém lá dentro.

A atadura de Clinkskate estava transformada numa crosta gosmenta feita de fuligem, sangue e sujeira. O corpo atingira o estágio de esgotamento em que o homem se torna incapaz de sentir dor.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Hardiston em tom insistente. — Onde estão as pessoas adormecidas?

— As pessoas adormecidas estão ali mesmo — disse Clinkskate em tom apático. — Acontece que não se trata de gente. São druufs. As pessoas, que o senhor procura, encontram-se num planeta situado no plano dos druufs.

— Está fantasiando — ironizou Fecher.

— Não, é verdade — opôs-se um dos colaboradores da CIS que se encontrava agachado ao lado de Clinkskate. — Quando o fogo cessar, o senhor mesmo poderá ver. É bem verdade que, quando isso acontecer, os monstros já estarão mortos. O fogo destruiu os dutos que levam aos recipientes.

— O que houve com Richard Kennof? — perguntou Hardiston em tom apressado.

— Ele fugiu — respondeu alguém. — A esta hora deve estar morto.

Hardiston levantou-se.

— Preciso de dois voluntários para procurar o velho Dick — disse em tom tranqüilo. — Os outros ficarão aqui para cuidar destes homens.

Todos se ofereceram.

— Thatcher e Lohnert — decidiu Hardiston.

Colocaram as máscaras.

— Ninguém deverá seguir-nos — disse Shane. — Nem agora nem depois.

 

O Dr. Le Boeuf segurou a barra de metal e passou por ela. A estação do transmissor era totalmente independente das outras cavernas. Se houvesse cabos que saíssem da unidade energética e levassem para ela, isso poderia provocar suspeitas. Nesse caso, um belo dia, algum funcionário mais curioso teria a idéia de seguir esses cabos e acabaria fatalmente na caverna secreta.

O Dr. Le Boeuf não sabia quanto tempo se passaria antes que o transmissor entrasse em funcionamento. E isso pouco lhe importava. Sentado no chão frio, mantinha-se à espera. Mais de dois mil homens estiveram no mesmo lugar antes dele... e contra sua vontade.

E ele ajudara a cometer esse crime.

Um sorriso amargo surgiu em seu rosto. O ato, que estava prestes a cometer, lhe restituiria o auto-respeito. Era só o que importava. Será que sentiria dores?

Foi atingido por uma sensação que não passou de um ligeiro sopro, mas que o desvencilhou de todos os problemas. A metamorfose provocada pelo transmissor teve início. A estrutura atômica do médico foi convertida num impulso hiperenergético e atirada para uma dimensão inconcebível.

Normalmente ali teria penetrado na área de influência do transmissor dos druufs. Acontece que estes ignoravam o Dr. Le Boeuf e seus planos temerários. Dessa forma permaneceu por um tempo que, para as concepções humanas, não tem correspondente numérico.

Depois disso, foi atirado de volta.

Mas o que surgiu no transmissor não foi o Dr. Le Boeuf.

E sim um volume de energia indômita!

 

Célia Mortimer não tirava os olhos da entrada aberta a dinamite. Zekizawa, que percebia a direção de seu olhar, não disse nada. Ficou de olho em St. Cloud e Tober, empenhados numa discussão acalorada. Pounds levara Maliverney ao campo de pouso, a fim de colocar o homem ferido numa cama de dobrar.

O sol já desaparecera atrás do bosque. Um vento fresco soprava por cima das copas das árvores. Bem no alto, uma águia descrevia círculos.

Para esta criatura, não tenho a menor importância”, pensou Célia. “Seu olhar atinge o infinito e sua vida é feita da luta e da caça.

Subitamente o chão começou a tremer.

Dois punhos gigantescos pareciam sacudir a montanha, a fim de rasgá-la em duas. Um rugido surdo saiu das cavernas. Uma fina nuvem de pó surgiu acima da rocha. Grandes pedaços de rocha pareciam levitar no ar.

Célia viu Zekizawa abrir a boca para dizer alguma coisa, mas o barulho foi tamanho que abafou as palavras. As entradas das cavernas, que ainda estavam fechadas, fenderam-se. A montanha parecia rachar.

Zekizawa atirou-se ao chão e arrastou Célia consigo.

O fenômeno terminou tão de repente como havia começado. Uma poeira cinzenta saiu das cavernas. Célia choramingava baixinho.

Zekizawa ouviu Tober dizer a St. Cloud:

— Só pode ter sido o transmissor.

Deve ter enlouquecido de medo”, pensou o agente.

Subitamente, alguns vultos escuros e irreconhecíveis saíram das cavernas.

— Estão vivos — gritou Zekizawa e correu ao encontro dos homens.

Célia reconheceu Fecher, Hardiston e Benson.

Alguma coisa comprimiu sua garganta. Onde estava o velho Dick?

Lohnert arrastava Thatcher, que parecia ferido. Os homens da CIS seguiram-nos. Era um grupo de pessoas cambaleantes, exaustas, semimortas.

— Célia — gritou uma voz rouca.

Uma das figuras cobertas de pó e fuligem levantou o braço.

— Ali está ele — disse Zekizawa no tom indiferente que lhe era peculiar. — O velho Dick.

Estas palavras representaram um alívio para Célia.

Kennof aproximou-se cambaleando. Em seus olhos cansados surgiu um ligeiro brilho, que mal e mal foi percebido por Célia.

— Como vai Buster? — perguntou com a voz rouca.

Tombou para a frente e teria caído ao chão, se Zekizawa não o tivesse segurado.

 

 

                                                                  WilliamVoltz

 

 

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