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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS COISAS QUE ENCONTRAMOS / Denise Flaibam
AS COISAS QUE ENCONTRAMOS / Denise Flaibam

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

– Sente saudade da mamãe, Jer?
– Ela foi embora.
– Cala a boca. Sabe que não é simples assim.
– Eles deixaram a gente pra trás. É simples assim.
O barulho da corda se esticando foi quase o estouro de uma manada naquela madrugada gélida. O estalo e o impacto da pedra contra o crânio da criatura se seguiram e a ameaça despencou.
Na varanda, a garota espiou por cima da mureta de proteção e recebeu um aceno positivo do garoto; estavam a salvo. Por enquanto.
A tempestade trouxera uma horda. Mas, depois que a chuva passou, os mortos ficaram.
As pessoas na igreja tinham caído, devoradas pelos errantes. As criaturas entraram no prédio seguro depois de forçar as portas a ponto de estourarem as dobradiças, e nenhuma arma de fogo foi capaz de sustentar a avalanche que foi a invasão. Jeremy não perdera tempo pensando nas possibilidades nem em planos mirabolantes para ajudar as pessoas a resistir; ele segurara a mão de Abigail e a de Meredith, enquanto ela carregava a pequena Rebecca, e correra para fora da igreja pela porta lateral. Em direção à chuva torrencial, à incerteza e ao desconhecido, mas longe da ameaça, pelo menos.
Na cidade, a horda estava dispersa. Não havia sol para debilitar as criaturas, mas eles não tinham a quem perseguir. Nenhum barulho específico ou presa fácil. Portanto, conforme as crianças observavam e o tempo passava, os mortos começaram a atravessar a rua larga, sem rumo.
Jeremy correu até a varanda e apoiou-se na mureta de proteção oposta à da irmã, gesticulando para Meredith. Ela não precisava ouvi-lo para entender o que queria dizer. Desde que haviam nascido, os dois se comunicavam com olhares, toques ou gestos mínimos; eram a metade um do outro, sabiam o que pensavam e o que planejavam antes mesmo de terem tido a ideia.
A chuva deixara o cabelo preto de Jeremy uma bagunça de fios desgrenhados, e a pele parecia ainda mais pálida debaixo da luz cinzenta daquela tarde. Ele ainda vestia a jaqueta fardada que conseguiram do Exército, na época que a zona de quarentena estava instaurada na escola, e trazia o rifle pendurado no ombro; o estilingue numa mão e uma pedra na outra, só para o caso de outro errante solitário aparecer por ali.

 


 


Meredith virou-se para as irmãs, apertando o ombro da segunda mais nova. Abigail mirou nela os olhos amedrontados, olhos tão idênticos ao da mãe. Eram circundados por cílios grossos e longos e margeados por sobrancelhas finas, detalhes que Meredith sempre invejou na menina. Durante a quarentena, quando suspeitaram que Abigail pegara piolhos, levaram-na para a área hospitalar e rasparam toda a sua cabeça, e Meredith não a viu sorrir nenhuma vez desde aquele momento. Agora, seu cabelo caía sobre os olhos, e ela proibia qualquer um de tentar prendê-lo ou mexer nele.

– Vá até o Jer. – Meredith sussurrou, e a garota assentiu. Ela só tinha dez anos. Meredith e Jeremy tinham dezoito. Rebecca, Deus do céu, Rebecca tinha seis! Nenhum deles merecia estar vivendo aquele inferno.

Quando o garoto sinalizou, Abigail arrastou-se pelo espaço da varanda, alcançando o irmão mais velho em um abraço amedrontado. Ele apontou para a porta aberta da casa e mandou Abigail seguir até a sala; eles haviam vasculhado a casa no dia anterior, e correram até ali de propósito. Havia um bunker subterrâneo com comida, água e camas confortáveis. O pessoal da igreja não quisera ir até tão longe para vasculhar em busca de um estoque maior, mas Jeremy se arriscara. A casa tinha marcações em vermelho nas paredes, um X enorme cruzando sua entrada. Eles acharam se tratar de uma armadilha, mas era um lugar seguro. Agora, os irmãos estavam vivos e os outros não.

Meredith afastou as mãos de Rebecca de suas orelhas. Qualquer barulho fazia a menina ter essa reação, mas não era o momento para pânico. Eles precisavam se mover.

Alguns estalos e então uma sombra pairou na beira da escada de acesso à varanda. Meredith congelou onde estava.


– Você quer viver?

– Sobreviver.

– Não, seu idiota, viver. Você quer?

– Não sei. Não nesse mundo.

– Poderíamos fazer um mundo melhor.


Um morto-vivo atraía outros, era a regra que as crianças haviam aprendido. Hordas existiam porque eles sempre se encontravam, independente da direção que os passos errantes os levassem.

Quando Meredith espiou pela beira da mureta, avistou mais dois mortos seguindo na direção da criatura parada ao seu lado. Ela respirou fundo, silenciosamente, e assentiu na direção de Jeremy.

Meredith havia guardado um cartucho de espingarda para caso precisassem. Ela pegou a arma presa ao ombro e colocou Rebecca ao seu lado conforme se levantava, mantendo-se abaixada o suficiente para que a mureta protegesse sua silhueta. Jeremy, do outro lado, imitou a gêmea, quase com a mesma sequência de movimentos para se colocar de pé; ele encaixou a pedra no estilingue e crispou um sorrisinho trêmulo para Meredith. O sorriso que eles compartilhavam quando iam aprontar alguma coisa em casa ou na escola, o mesmo sorriso usado quando picharam o carro do vizinho rancoroso responsável por colocar duas baratas mortas no saco de doces de Halloween deles. O sorriso que existia nele tal como existia nela desde que ambos vieram ao mundo, e que continuou a existir depois que o mundo acabou.

A pedra e o tiro acertaram os dois mortos mais próximos. Quando os outros – uma dúzia deles – perceberam, os irmãos estavam fechando a porta da casa, disparando na direção oposta à do bunker.

Abigail já tinha alcançado a varanda de trás e correu para a cerca separando as propriedades. Ela atravessou depressa, e Meredith pensou ter visto um sorriso no rosto da mais nova quando o fez.

Jeremy estendeu as mãos e impulsou Meredith para cima. A garota saltou a cerca um pouco menos habilmente que a irmã, mas rápido o suficiente para ajudar Rebecca a atravessar. Ela pôde ouvir a porta da casa arrebentando no instante em que Jeremy escalou, e ele saltou quando os mortos chegaram aos jardins de trás.


– Abigail está mais sossegada.

– Também, depois de semanas fugindo da quarentena.

– Rebecca também.

– Meredith...

– Estamos a salvo. Eu não posso ficar feliz por isso?


Meredith puxou a mão de Abigail e Jeremy ergueu Rebecca em seu colo. Ela era pesada, mas o rapaz era alto e forte e sempre fora capaz de carregá-la pelas escadas de casa; estavam bombeados pela adrenalina. Alguns minutos de corrida até acharem um abrigo não o derrubaria. Abigail resmungou alguma coisa quando a cerca às costas dos quatro irmãos estremeceu. Não ia aguentar.

– Jeremy! – Ela guinchou amedrontada.

– Vamos voltar pra rodovia! – Ele gritou de volta. Havia pânico em seu olhar, do tipo que Meredith não se lembrava de ver desde a queda da quarentena, mas ainda assim Jeremy liderou, como o irmão mais velho que era. Apenas dois minutos os separavam, mas Meredith sentiu, naquele instante, que se tratava de bilhões de anos.

Ela apertou a espingarda em mãos quando tomaram a lateral de uma casa e lutou para ignorar os sons de corrida e grunhidos animalescos que os seguiam.

A rua foi alcançada, mas havia muitos carros e cadáveres e mortos-vivos andando por ali. Meredith estacou ao lado do irmão e, dessa vez, pensou mais rápido do que ele.

– Direita! – Ela puxou Abigail e viu a ideia estalando nos olhos escuros de Jeremy.


– A delegacia.

– Parece ser um bom lugar para se esconder.

– É, com essas grades e tudo mais.


Eles podiam escalar as grades. Podiam usar os fundos da delegacia para alcançar a rodovia. Quando os errantes conseguissem passar pela barricada, os irmãos já estariam longe. Era um bom plano. Meredith era a garota dos planos; Jeremy, das execuções. Eles pensavam individualmente e agiam em conjunto, e era assim que haviam sobrevivido ao apocalipse. Assim eles haviam conseguido fugir da quarentena. Assim Meredith seguia, dia a dia, esperando encontrar os pais.

Jeremy sempre se ressentia quando ela os mencionava. Seu rosto ficava mais sombrio, seu olhar amadurecia numa dor furiosa. Meredith entendia a agonia dele, mas ainda eram seus pais. Devia haver um motivo para eles não terem vindo buscá-los; o fim do mundo estava ao seu redor, afinal. Ela só rezava para que tivessem sobrevivido.


– A mamãe é durona. Ela e o papai sabem se proteger.


Jeremy tinha retrucado uma única vez, enquanto polia uma faca numa das madrugadas frias e sinistras que eles passaram na rodovia. Meredith assentira de volta, abraçando os joelhos.

A delegacia ficava relativamente próxima da casa onde haviam escolhido se abrigar, mas no caos de estrada molhada e mortos correndo atrás dele, parecia assustadoramente distante.

Meredith continuou agarrada à mão de Abigail, puxando-a e quase arrastando-a, mesmo quando a menina tropeçou e se queixou da dor nos pés. Ela tinha deixado os sapatos na igreja e não tivera tempo de recuperá-los quando fugiram; Meredith sentiria muito pela dor da garota quando parassem, mas agora não podiam parar.

Jeremy acelerou o passo, ergueu Rebecca e ajudou a menina a atravessar a cerca num gesto quase desesperado. Quando Abigail alcançou a grade de metal, Rebecca estava sentada lá em cima, aguardando ajuda para descer. O rapaz abaixou-se assim que Meredith passou por ele e apoiou o rifle em seus braços. O morto-vivo mais próximo caiu quando o primeiro tirou estourou seu joelho; Jeremy podia não acertar os tiros na cabeça, mas debilitar as criaturas já era suficiente para eles.

Meredith empurrou Abigail para terminar a descida e segurou as mãozinhas de Rebecca conforme ela imitava a outra irmã.

Era a sua vez de escalar, mas Jeremy ainda estava lá atrás com os mortos e ela tinha uma espingarda cheia de tiros.

– Jer! – gritou. – Eu te cubro!

Porque era isso que eles faziam. Eles protegiam um ao outro.


01. Eu serei bom

 

 


Meredith esfregou os olhos. Seu corpo era exaustão total, mas ela não conseguia dormir. Tentara havia algumas horas, quando ainda estava escuro o suficiente para não diferenciar o mundo sob suas pálpebras do que existia à frente, mas os pesadelos apareciam sempre que relaxava.

Da última vez que adormecera sem preocupações, gritos a acordaram. Desde então, não conseguia mais encontrar paz.

O amanhecer pálido riscava o horizonte naquele momento. Ao seu lado, a irmã caçula resmungou em meio ao sono pesado. Ela dormia como uma pedra sempre que paravam para descansar, e demorava a acordar completamente. Meredith precisava arrastá-la pela primeira meia hora de caminhada até a pequena dar-se por vencida e acompanhar o ritmo da mais velha. Culpa corroía os pensamentos de Meredith sempre que ela forçava a garotinha a seguir em frente, incentivando-a com mentiras, coisas como “estamos perto agora, você vai ver” ou “só mais dez minutinhos”.

Nunca estavam perto, nunca demorava apenas dez minutos.

Comumente, Meredith se perguntava se o mapa e suas noções de coordenada estavam corretos. Ela sempre precisava procurar por placas para ter certeza de que estava no caminho certo; a busca por um lugar seguro. Um dos muitos prometidos. A ideia era chegar até a Colônia como haviam planejado desde que a quarentena caiu, mas Meredith sabia que ficava longe demais. A esperança era de encontrar um forte militar ou um dos Complexos de segurança prometidos pelo governo antes disso, para se preparar até a viagem definitiva.

Três vezes, desde que deixaram tudo para trás, elas encontraram algum desses lugares.

Em uma delas, o forte estava em chamas. Na outra, o condomínio cercado por muros altos tinha os portões escancarados, e Meredith espiou uma horda perambulando sem rumo pelas ruas sujas. E, da última vez, quatro dias atrás, elas avistaram um prédio cercado por arame farpado, por carros destruídos e por vigas de madeira servindo como estacas para impedir os mortos de se aproximar da cerca – o lugar era vigiado por homens armados que não lhe passaram o mínimo de segurança, no que Meredith se forçou a mentir para sua irmã e dizer que não havia nada naquele edifício. Ela não arriscaria encontrar atividade hostil; os vivos eram mais perigosos do que os mortos.

– Vamos, Becky. – Meredith anunciou enfim. – Precisamos levantar.

A pequena aceitou a mão estendida e ficou de pé. Ajudou Meredith a juntar os sacos de dormir que roubaram de uma loja abandonada semanas atrás e guardou-os nas mochilas quase vazias.

Elas tinham três latas de comida para durar só Deus sabia quanto tempo. Meredith sabia caçar, mas não era tão fácil encontrar uma presa distraída, especialmente com o frio intenso que vinha se estendendo sobre a região.

A garota olhou para Becky, ainda sonolenta, abraçada à mochila. Quieta como ficava desde o último incidente. Nunca precisava se preocupar com barulhos quando se tratava da caçula.

Meredith olhou para a estrada e para a promessa de um lugar seguro e suspirou.

– Vamos embora daqui.


***


Primeiro, elas encontraram um veículo abandonado. A porta do motorista estava escancarada, mas não havia sinais de luta. Meredith não encontrou marcas de sangue e nenhum rastro indicando que um morto-vivo – ou vários – passara por ali. A chave não estava na ignição do carro, mas o tanque estava vazio. Dentro, a garota só encontrou algumas latas de ervilha vazias e uma garrafa de água seca. Nada de útil, como sempre.

Mais para frente, elas encontraram o rastro de alguém. Não era de um morto-vivo. Meredith aprendera a reconhecer as marcas dos passos arrastados, e a trilha na terra molhada à sua frente era perfeita. Passos firmes, as solas dos sapatos bem desenhadas. Eram maiores que seus pés; um adulto, talvez? Um garoto como Jeremy? Ou alguém tentando levá-las para uma armadilha?

Em meio à paranoia, Meredith puxou Becky para o caminho entre as árvores, preferindo se arriscar no desconhecido da floresta do que seguir pelo acostamento e dar de cara com o dono daquelas pegadas.

– Temos que andar rápido, Becky, mas você vai precisar ficar bem quietinha, ok? – Tolice pedir isso, mas ela precisava ter certeza. A menina assentiu.

Desde o incidente, Rebecca não costumava questionar suas ordens.

Por cautela, talvez.

A parte racional da consciência de Meredith dizia que era temor, e ela se odiava ainda mais por isso.

As duas seguiram em silêncio pela próxima hora. Meredith manteve o olhar atento, mas não havia ninguém na estrada e nem na floresta. Não havia ninguém em lugar algum. Talvez o rastro encontrado fosse paranoia. Ela se preocupava tanto com qualquer coisa que enxergava perigo onde não havia.

As pálpebras de Meredith pesavam quando as garotas pararam para descansar. Mesmo ciente de que os pesadelos viriam, ela sabia que precisava de repouso. Não conseguiria manter o ritmo e a atenção no próximo dia se passasse outra noite em claro. Não conseguiria proteger Becky se fosse tão relapsa com o próprio bem-estar – a segurança da garotinha dependia da força e da disposição da irmã mais velha e, naquele momento, Meredith era quase um peso morto.

Foi quando notou uma linha de pesca entre duas árvores, com alguns talheres pendurados nela.

Uma armadilha de som. Jeremy ensinara Meredith a montar várias daquele tipo; demarcava um perímetro de segurança e servia de aviso para caso alguma coisa o ultrapassasse.

Meredith gesticulou para Becky. A menina já sabia o que fazer dependendo da situação.

Quando Meredith ficou de pé, a pequena a imitou. Os passos foram lentos, cautelosos, e as guiaram em um cerco à área demarcada. O feixe da lanterna brilhou sobre outra linha mais à frente, com latinhas presas a ela. Havia pouca luz sobre aquela parte da floresta. Elas não estavam longe demais para correr até a estrada novamente, mas Meredith precisava ter certeza da situação. Com o que estariam lidando.

Metros à frente, as duas estacaram. Havia um pequeno acampamento montado no fim da sua linha de visão, bem distante das armadilhas de som – com o silêncio da floresta, a pessoa responsável teria tempo de fugir da ameaça.

Meredith apagou a lanterna e se escondeu atrás de uma árvore. Rebecca a imitou. Elas caminharam pelas laterais, mantendo-se à sombra, medindo os passos e tomando cuidado para não pisar em galhos caídos ou folhas secas. Jeremy as havia ensinado a rastrear, mas principalmente a não deixar rastros.

Rebecca parou de repente, espiando de trás da árvore. Meredith ergueu as mãos para ela voltar, mas a garotinha não parou; com um olhar desconfiado, ela deu alguns passos na direção do acampamento, onde as brasas restantes de uma fogueira soltavam fumaça.

Não havia ninguém ali, pelo menos não à vista. Podia ser uma armadilha.

Com certeza era uma armadilha.

Meredith não pensou; puxou a faca de caça do cinto e, em passos suaves e largos, avançou até a irmã, sombreando-a para protegê-la. Elas ainda não estavam no campo de visão do acampamento, mas estavam mais expostas do que antes.

Um gesto mandou Becky para trás. Ela negou com a cabeça, apontando para um ponto.

O lugar não estava vazio, afinal. Havia uma pessoa ali; um garoto. Meredith deu a volta em outra árvore, escapando de uma terceira armadilha de som, e parou para olhar. Um exame rápido mostrou apenas uma mochila e um saco de dormir – a mochila estava caída ao lado do rapaz desacordado, e o saco de dormir fora aberto pela metade. O desconhecido dormia no chão, com uma garrafa de vodca ao seu lado. Não estava vazia, mas também não estava cheia.

Meredith soltou a espingarda da mochila onde a amarrara. Não tinha nenhuma bala ali, mas o rapaz não sabia disso. Se ele acordasse, poderia ameaçá-lo.

O motivo pelo qual Rebecca avançara quase brilhava a luz da fogueira. Seis latas de comida caíam pela aba da mochila; eram grandes, o bastante para durar pelo menos um mês. Meredith entrou no acampamento, mantendo a espingarda em mãos, a faca de caça de volta ao cinto – de fácil acesso, caso o garoto acordasse.

Ela bateu a sola da bota em um pedaço de madeira. O barulho não foi alto, mas acordaria qualquer sentinela alerta. Com certeza acordaria Meredith, se a situação fosse contrária.

O solitário nem se mexeu.

O rosto dele estava meio virado contra o chão. Devia ter em torno de vinte anos, talvez um pouco menos; os cabelos pretos se soltavam de um coque atrás da cabeça. As vestes esfarrapadas, sujas de fuligem, poeira e sangue, eram do exército. Um desertor ou sobrevivente.

Meredith não encontrou outros rastros na clareira, só o dele. Estava sozinho ali – quase entregue à morte. Se ele realmente se embebedara até cair, as armadilhas de som não serviriam para nada. Só despertaria quando um morto-vivo o estivesse devorando.

Ela pouco se importava. Acordado, seria um problema para ela e para Rebecca. Se algum infectado resolvesse devorá-lo, que fizesse isso quando as garotas estivessem longe dali. A salvo.

Meredith pegou os enlatados e a mochila – encontrou uma pistola com o pente cheio de balas e prendeu a espingarda de volta à própria bolsa. A pistola ficou em suas mãos. Além dos enlatados, o soldado também carregava duas garrafas de água potável; ela e Rebecca tiraram a sorte grande.

– Você vai... Roubar? – Meredith se assustou com a pergunta. Becky estava parada próxima à armadilha de som, alerta aos arredores, mas consciente do que a irmã fazia ali.

A voz da garotinha tinha se tornado uma lembrança nevoada em sua mente.

– Ele teria feito o mesmo com a gente.

– Você não sabe disso.

– Olha, Becky... Ele está bêbado. Não parece estar se esforçando pra sobreviver. A gente sim, todos os dias. Só vamos chegar até o forte se tivermos comida e água. Agora nós temos.

Rebecca franziu as sobrancelhas. Continuou com o olhar fixo no corpo do soldado adormecido. A expressão ficou frágil, abalada; Meredith sentiu o peso da culpa caindo em seus ombros conforme os segundos se arrastavam. Rebecca sabia que tinha esse efeito na irmã. Sabia como bagunçar sua consciência com um mero olhar.

– Merda. Ok, vou deixar um enlatado e um cantil de água pra ele, pode ser? Dá pra chegar até a próxima cidade e conseguir comida por lá. – Era uma mentira descarada, mas Becky não precisava saber dessa parte. Só precisava deixar a irmã em paz. – Você fica feliz se eu fizer isso?

A garotinha negou.

– Precisamos esperar pra ver se ele está mesmo bem.

– Pelo amor de Deus, Rebecca. Ele pode ser perigoso.

– Você pegou as armas.

– Mesmo assim. Estamos sem comer direito há dias, ele com certeza é mais forte do que eu.

– Mas ele é um soldado, Meredith.

A expressão de Meredith foi severa sobre a da mais nova.

– Não confiamos em ninguém. Lembra? – replicou num fio de voz. – É assim que continuamos vivas.

– Jeremy disse que quanto mais pessoas tiver por aí, menos monstros vão aparecer.

Meredith sentiu uma pontada. Na consciência ou no coração, ela não soube dizer. O baque daquela fala, da quebra do silêncio da garotinha, o fato de ela estar usando palavras esperançosas naquele cenário... Meredith queria se sentar. Queria dar as costas para Rebecca e encontrar um canto para gritar contra alguma coisa; para chorar.

Em vez disso, desviou o olhar da irmã para o soldado adormecido. Ele poderia saber alguma coisa sobre a Colônia. Talvez estivesse seguindo naquela direção. Talvez tivesse mais suprimentos. Talvez tivesse surtado e matado todo seu regimento e fugido com o que sobrou das coisas que estocavam por lá.

Talvez era a palavra que mais cruzava a mente de Meredith nos últimos tempos; uma palavra perigosa, com infinitas possibilidades. Nenhuma certeza.

– Você costumava ajudar as pessoas.

Aquilo doeu mais do que um soco.

Meredith se odiou por pensar, em seguida, que preferia a irmã em seu silêncio mórbido.

– Não decepcione sua irmãzinha. – Ela sacou a arma no instante em que o soldado disse aquilo. Rebecca correu para trás, apertando as mãos sobre a lateral do corpo da irmã.

Com um gemido de dor, o desconhecido ergueu o corpo até se sentar.

– Parado. – Meredith apertou o dedo sobre o gatilho, tensão correndo por cada centímetro do seu corpo. Em resposta, o soldado arqueou uma das sobrancelhas em sua direção.

– Se fosse me matar, já teria feito isso.

– Não teste minha boa vontade.

Ele sorriu; um sorriso bem-humorado. Parecia errado, em todo aquele cenário. O absoluto oposto de tudo que Meredith e Rebecca viviam desde que fugiram da área de contenção.

– Imagino que você seja a Meredith e você... Rebecca? – ele apontou para a garotinha. Para desespero da mais velha, Rebecca se afastou, cruzando os braços ao encarar o rapaz.

– E qual seu nome?

– Becky. – Meredith chiou.

– Wade.

– Você é mau, Wade?

Meredith encarou o soldado quando ele desviou o olhar em sua direção. Não havia zombaria ou incredulidade na expressão dele. Nada que quebrasse a inocência da pergunta de Rebecca.

– Não sei.

– Você tem que saber – Rebecca replicou. – As pessoas são boas ou são más. É assim que funciona.

Wade riu. Baixou o rosto ao fazê-lo, escondendo o começo de um olhar sombrio. Meredith intensificou o aperto sobre a arma, movendo-se devagar para ficar próxima de Becky novamente.

– Nós deixamos alguns suprimentos. É o suficiente pra você chegar até a próxima cidade – A mais velha avisou, ganhando o olhar do soldado de volta. Ele não pareceu querer reagir, mas Meredith preferia não arriscar. Empurrou Rebecca para trás, em direção à saída do acampamento, e deu dois passos para se distanciar.

– Estão indo para Oz?

Meredith estacou.

– O que é isso?

– Um dos muitos complexos construídos pelo governo quando a crise começou, e um dos poucos que resistiu ao fim do mundo – Wade explicou. O olhar corria pelo rosto de Meredith, buscando alguma reação; ela fez o possível para se manter impassível. – Fica bem próximo daqui. É pra lá que eu estou indo.

– É seguro? – A pergunta escapou da garota. Quase um reflexo. A ideia de ter um abrigo para os próximos dias, de encontrar o que vinha procurando com tanto afinco, cegou sua desconfiança.

– Tanto quanto qualquer outro lugar no apocalipse.

Wade apontou para o casaco, mantendo as mãos à vista de Meredith, e esperou. Ela engoliu em seco antes de se aproximar. Não baixou a arma e nem o olhar.

Num dos bolsos, havia um walkie-talkie.

– Tenho falado com as pessoas do Complexo por aí. Captou o sinal há dois dias.

– Pode nos levar até lá?

– Rebecca!

– A gente nunca chega, Mer. Talvez ele saiba um caminho melhor.

Meredith engoliu em seco ao encarar a irmã. Com um suspiro, desviou a atenção para o soldado, só para encontrar um que de compreensão no olhar dele. Quase como se entendesse sua frustração; a impotência de toda aquela situação.

– Não precisa confiar em mim ainda – Wade comentou. – Eu também não confio em vocês.

– Temos suas armas.

– Exatamente por isso – Ele sorriu.

Meredith queria que Jeremy estivesse ali.

Queria que seus pais estivessem ali.

Mas todos eles tinham se perdido. Todos tinham ficado para trás. Ela era a própria esperança, a única chance de se colocar em segurança e garantir que a irmãzinha ficasse bem.

– Fale mais sobre o Complexo.


02. Campos do paraíso

 

 


Sherwood inspirou fundo. A dor de cabeça não tinha passado com as horas mal dormidas. Taylor insistira que a enxaqueca nascera com o cansaço do soldado, mas ele sabia que não. Talvez fosse culpa pesando depois de todos aqueles dias. Talvez fosse receio, para o caso de Beatrice ou Taylor terem visto suas anotações na torre do rádio. Talvez fosse até remorso, por olhar para todas aquelas pessoas e mentir tão descaradamente.

Mas ele não tinha outra escolha. Era incerto demais. Arriscado demais.

Perigoso demais.

Tudo, além dos muros do Complexo Oz, era de um risco mortífero. Atravessar as cercas e se afastar das armadilhas de som e luz, voltar para o que restara do mundo era suicídio. Ele já tinha cansado de avisar ao pessoal; eles insistiam por motivos compreensíveis – o racionamento de combustível não estava funcionando como o desejado, aquela terra nunca fora realmente útil para plantio e a horta estava a ponto de virar um jardim de ervas daninhas, a energia solar pouco ajudava quando mais chovia do que fazia sol, eles não estavam sobrevivendo direito ali, não como havia sido prometido.

Sherwood cansara de respondê-los a respeito disso. A tarefa dele sempre fora manter o Complexo de pé. Desde o início, quando o governo instaurara as áreas de quarentena, a ideia era de que grandes especialistas e estudiosos seriam enviados para cada forte a fim de torná-lo devidamente sustentável aos sobreviventes. Sherwood nunca vira o rosto de nenhum deles. Tal como muitos dos planos feitos às pressas, eles não contavam com a rapidez da devastação.

Ninguém tinha ideia de que o “depois” seria sobre sobrevivência, e não sobre reconstruir uma vida.

Sherwood apertou as têmporas. Ele detestava aquelas divagações; todas as lembranças a respeito dos erros e deslizes ingênuos de antes eram marteladas em seu emocional.

O grande e perturbador “e se”. E se tivessem se preparado melhor? E se tivessem prestado mais atenção ao paciente zero? E se tivessem temido, como a humanidade deveria fazer ao contemplar uma praga desconhecida?

Tantos “talvez” e “e se” levaram à situação atual. Ao cenário em que o soldado se via encurralado diante de uma decisão: contar aos outros sobre o sinal do rádio ou deixar que se dissipasse; dar a eles a escolha de escapar pelos muros de segurança direto para o inferno ou deixar que continuassem sobrevivendo naquele canto inóspito suficientemente protegido?

O som de alguém se aproximando o tirou de toda aquela perturbação. Sherwood grunhiu quando ficou de pé, só para perceber que a dor de cabeça se intensificara.

Taylor cruzou os braços na soleira da porta. A luz pálida na entrada do quarto contornava as feições joviais e delicadas do rapaz, a magreza que ganhara nas últimas semanas, com o novo racionamento dos alimentos estocados. Queimaduras discretas cicatrizavam em seus lábios depois daquela madrugada gélida em que uns poucos se arriscaram a manter vigília nos muros – Sherwood também as tinha.

– Imagino que minha prescrição para dormir e descansar não tenha ajudado muito?

– Eu dormi. – Sherwood rebateu, deixando-se sorrir pela careta do enfermeiro.

Taylor cruzou o pequeno espaço entre a entrada e a cama velha, passando o olhar minucioso pela organização milimétrica do soldado. Eles dividiam aquele quarto havia algumas semanas, mas Taylor ainda guardava suas coisas no depósito geral. Ele dizia que gostava da própria bagunça. Que não queria vê-la atrapalhando o espaço de Sherwood. O soldado desistiu de convencê-lo depois de algumas insistências.

Não era como se os dois tivessem muita tralha para juntar, afinal. Havia poucos objetos resgatados do mundo civilizado que valia a pena guardar; Sherwood adorava chaveiros. Tinha dezenas deles. Taylor era muito apegado aos livros e aos discos de vinil – ainda que os últimos fizessem mais pelo Doc do que pelo enfermeiro. A presença de Taylor era significativa, e era com ela que Sherwood se importava.

– O quê? – O rapaz parou à sua frente; era poucos centímetros mais baixo que o soldado. A pele marrom-avermelhada em contraste à pálida, os cabelos compridos e lisos um completo oposto ao corte quase zerado que Sherwood ainda fazia questão de usar. Os olhos de uma doçura que o soldado jamais conseguiria expressar.

– Você está com aquela cara de quem vai me mandar para a enfermaria.

– Eu estava pensando nisso. – Taylor crispou um sorrisinho. – Mas vim trazer outro problema pra você, na verdade.

Sherwood empertigou-se. Tudo de calmaria que a presença do rapaz trouxera se dissipou.

– O que aconteceu?

– Um comboio entrou em contato comigo há algumas horas, estavam procurando pelo Complexo. Cinco pessoas. Vão chegar em breve. – Taylor inspirou fundo. – Jake e Machete estão no furgão para cobri-los, caso a horda se disperse para cá.

Sherwood apertou a ponte do nariz. Uma horda incessante rodeava o Complexo havia semanas; trazida por uma tempestade numa das madrugadas gélidas, permaneceu na região como um constante lembrete do pesadelo que existia além dos muros.

Parte da mensagem do rádio ecoou na mente do soldado.

Frequência aberta para todos, a Colônia Teresa Hill está oferecendo comida e abrigo a quem quer que ouça esta mensagem.

Colônias. Esse era outro dos planos do governo.

– Sherwood? – ele piscou. Taylor inclinou a cabeça em curiosidade. – Ouviu alguma coisa do que eu disse?

– Não. Mas vou até lá. – Dois passos o afastaram do enfermeiro.

– Sou horrível por pensar no desespero de ter mais três bocas para alimentar?

Não, horrível é o mentiroso que você está encarando.

– Não. Você se importa, por isso se preocupa – Sherwood voltou até Taylor. Com o cuidado e gentileza que vinha usando sempre que o tocava, segurou o rosto dele e aproximou-se o suficiente para apoiar a testa sobre a sua. – Você poderia ter ignorado a mensagem, mas trouxe os sobreviventes para cá. Vai dar uma chance a essas pessoas.

Taylor sorriu. Apoiou as mãos sobre as do soldado, os dedos cálidos e carinhosos como Sherwood aprendera a reconhecer.

O enfermeiro ergueu o rosto e roçou os lábios contra os seus; ele agia daquela maneira desde que haviam se aproximado. Era calmo, cauteloso, gentil contra tudo de caótico que Sherwood conhecera naqueles últimos meses.

Antes que pudesse beijá-lo, batidas na porta afastaram Taylor dele.

– Desculpe. – Íris exibia uma careta de arrependimento, mas alguma coisa na sua postura indicava nervosismo. Não demorara mais do que algumas semanas para Sherwood aprender a reconhecer alguns traços na mulher. Ela era muito aberta em suas reações, com as reviradas de olhos já marcantes a comentários de Judith e a frieza que tomava conta sempre que Beatrice se aproximava.

Com Sherwood, Íris parecia menos ressentida. Talvez pelo fato de que o conhecia havia pouco tempo quando o incidente ocorreu, ou por saber que ele estava cumprindo ordens dentro do Complexo. Com Beatrice, a mágoa pendia para o emocional. Para a quebra de confiança. Para a brutalidade e falta de hesitação no momento em que o tiro fora disparado.

Taylor dissera que Íris e Clark tinham “alguma coisa”. Sherwood não se ressentia por tê-lo mantido fora dos muros; ele era um infectado como todos os outros e o soldado tinha ordens a cumprir. Tinha um protocolo a seguir. Mas ressentimento era tudo que pontuava o relacionamento da mexicana e da líder do grupo desde então.

– Alguma notícia da Dylan?

– Ela respondeu a mensagem agora pouco. Tem uma tempestade vindo, então eles provavelmente vão esperar pra voltar. Mas não é por isso que eu vim. – Íris batucou os dedos no batente da porta, impaciente. – O comboio chegou.

Sherwood assentiu, mas a atenção de Íris continuava em Taylor. O nervosismo também.

– Hermoso. Não são só três pessoas. Tem um ônibus inteiro de gente lá fora.


03. Cemitério no fim da rua

 

 


Dylan espiou pela brecha da janela bloqueada. Pensara ter ouvido passos lá fora, mas era só o vento.

A creche de dois andares tinha brinquedos espalhados pelo chão, papeis coloridos cheios de rabiscos e caixas de lápis de cor caídos por todos os cantos. Assim que Javier arrombara a porta, o cheiro de pó e abandono encheu os ares. Dylan hesitara ao pisar na entrada. A creche era desconhecida, mas tinha aquela aura familiar, a de um lugar que protegia e guardava e cuidava; um reduto de segurança nos dias comuns. Mesmo lacrado e destruído, o prédio de dois andares embutido em uma rua comercial estendia-lhes conforto.

A garota obrigara-se a avançar pelo cômodo, passando pela recepção. Não encontrou nenhum corpo abandonado ali, o que explicava só haver cheiro de mofo por onde quer que fossem. Harley fez um estardalhaço nas escadas para ver se atraía alguma criatura lá de cima, mas nenhuma resposta se fez ouvida. Aparentemente, estavam sozinhos.

Na meia hora que se seguiu, Javier ficou de vigia e Dylan e Harley assumiram a busca por tudo que Taylor havia pedido.

Os suprimentos do Complexo estavam se tornando escassos com uma rapidez assustadora. Oz parecera um recomeço, nas primeiras semanas. Com o tempo que passou, no entanto, se tornara uma coisa temporária. Mesmo Dylan, que buscava positividade em tudo, que tentava encontrar o lado bom da maioria das situações, não conseguia olhar para aqueles muros cinzentos e ver, atrás deles, o lar que fora prometido.

Ela não dividia isso com ninguém, é claro. Sabia que muitos pensavam daquela maneira, mas silêncio e tentativas de melhoria eram tudo que podiam fazer. Até por que: para onde iriam? Deixar Oz significava deixar o lugar seguro; havia dificuldades lá dentro, sim, mas o mundo era um completo nada além dos muros, um terror sem fim. Seriam eles e os mortos, e os mortos sabiam sobreviver ao inferno. Dylan experimentara muito dele para saber que não teria outra chance.

Aquela incursão era mais uma das tentativas dos líderes do Complexo para melhorar a vida dentro do lugar. As creches e escolas da região receberam caixas de mantimentos quando a quarentena fora instaurada. Embalagens de alimentos duráveis e vitaminas, estoque de remédios, baterias, lanternas, roupas, tudo que se fizesse necessário para ajudar.

Dylan tinha um mapa com marcações de todas as cidades já vasculhadas. Aquela ainda não fora; ficava um pouco mais distante de Oz, mas valia o risco.

– Acho que ainda tem gasolina em alguns carros! – Dylan ouviu o aviso de Javier; ele havia alcançado a rua, remexendo num dos veículos estacionados ali. – Vou até o caminhão pra buscar as bombas. Vão ficar bem sem mim?

– Na medida do possível. – Dylan replicou com um sorriso bem humorado.

A rua deserta onde estavam seguia para um beco sem saída. Atrás dele, só havia um cemitério. Nenhum perigo iminente por enquanto.

O barulho de um patinho de borracha sendo esmagado fez a loira pular de susto. Harley trazia uma caixa fechada em mãos; o logotipo de uma empresa farmacêutica estampava um dos lados.

– O escritório da diretora estava revirado, mas achei isso escondido atrás de um buraco na parede. Alguém tomou providências pra garantir que não encontrassem o estoque.

Harley franziu as sobrancelhas.

– Ei, cadê o grandão?

– Foi pegar combustível.

– Nós estamos precisando mesmo. – Harley resmungou, trazendo um tilintar de nervosismo aos pensamentos de Dylan.

As duas se dividiram para contabilizar e marcar a quantidade de frascos de vitaminas e saquinhos de sopa guardados na caixa. O suficiente para uma semana, com a quantidade de pessoas que havia no Complexo, se Judith cuidasse bem dos estoques – e ela sempre cuidava.

Harley inspirou fundo e então franziu o nariz. Dylan sorriu para a careta dela.

A garota aparecera em Oz um mês depois que o grupo se assentara lá. Sozinha, com uma mochila cheia de peças mecânicas e uma mancha de graxa na bochecha, ela contara pouco sobre a sua jornada até o Complexo. Ninguém a pressionou por todos os detalhes; havia muita solidão envolvida. Apesar disso, a aura da garota se mostrou carregada de entusiasmo e energia. Ela se aproximou de Dylan tão logo a conheceu, e a loira podia dizer, com tranquilidade, que Harley se tornara uma de suas melhores amigas no apocalipse.

Sob a touca cor-de-rosa, as tranças rastafári eram de um castanho escuro. A pele negra contrastava com os olhos cor-de-mel; ela tinha entre dezenove e vinte anos. Fizera aniversário em meio ao apocalipse e, tal como Dylan, nem ao menos notara isso – só quando fora perguntada a respeito.

– Você deveria dar uma olhada lá atrás. – Harley apontou para a porta dos fundos.

– O que tem lá?

– Acho que isso aqui era o jardim botânico antes de virar uma creche. Ou virou um jardim botânico depois que as pessoas fugiram daqui, porque tem muita planta pra todos os lados.

O quintal era gigante, e gritava abandono. Tinha uma diversidade imensa de cores em meio aos canteiros maltratados, e ervas daninhas que cresciam para todos os lados. A maioria já morrera havia muito tempo. Algumas, acolhidas por sombras estratégias, conseguiram sobreviver. Estavam debilitadas, mas resistiam. Quase como a humanidade.

– Devem ter deixado isso aqui assim que as quarentenas começaram. – Harley comentou, aproximando-se dos arbustos mais próximos. Eram de um verde vibrante, diferente da palidez da cidade vazia ou mesmo dos canteiros mortos em Oz. Dylan se lembrou do gramado de casa, das flores bem cuidadas e do carvalho gigantesco. A riqueza no jardim à sua frente memorou-a de situações mais simples, de sentimentos mais tranquilos.

Dylan notou que Harley a observava curiosamente.

– O quê?

– Sua cara. Você ficou triste por causa do jardim?

– Não!

– Parece triste.

– Foi besteira minha. – a garota deu de ombros, armando um riso de escárnio. – Sabe como é, aquelas lembranças que aparecem de repente e você não consegue frear.

– O apocalipse é uma merda. – Harley replicou, dando um tapinha amigável no ombro da loira. – Ei, vamos pegar algumas mudas. Quem sabe não dão certo lá na horta? Às vezes a Judith está usando as plantas erradas pra continuar a horta. – Dylan não retrucou, mas as duas sabiam que era mentira. Sabiam que a fala de Harley era mais para animar, não para se tornar uma verdade. A horta do Complexo morria a cada dia que passava e nada tinha a ver com os espécimes plantados ali. Nada prosperava em solo morto.

Harley aventurou-se mais para dentro do mato, pouco se importando com urtigas ou possíveis animais venenosos; eu não vou me preocupar com uma aranha quando tem mortos querendo me comer! Foi o que ela disse, arrancando risos de Dylan.

A loira permaneceu na área segura, pouco inclinada a enfiar a mão em meio às ervas daninhas. Um arbusto em particular chamou a sua atenção. Dylan não sabia exatamente onde havia visto ou como se lembrava, mas aquelas flor era uma íris. Um sorriso orgulhoso e divertido a lembrou da mulher com aquele nome.

Quando Dylan limpou as mãos sujas de terra num trapo largado perto da casa, percebeu que Harley não sairia dos jardins tão cedo. O céu começava a escurecer mais ao norte, indicando que uma tempestade se aproximava. Se fosse o mesmo tipo de tempestade que vinham encontrando, ficariam presos pela região até que a tormenta fosse embora. Javier estava com o rádio, então talvez fosse melhor enviar um aviso ao Complexo – só para o caso de realmente atrasarem.

– Harley, vem tempestade aí. Melhor nos reunirmos com os outros!

– Eu encontrei uma rosa intacta aqui. Uma rosa! Achei que nunca mais veria uma dessas na minha vida. – O sorriso no rosto da garota foi enaltecedor.

– Vou pedir pro Javier vir aqui te encontrar, tudo bem?

– Por quê? Aonde você quer ir?

– Preciso achar o Benji.

Harley voltou-se em sua direção com a expressão maliciosa. As sobrancelhas meio franzidas, os lábios estreitados em um sorriso zombeteiro.

– O quê? Ele ia para outro lugar antes de sairmos da cidade. Acho melhor chamar.

– E você sabe que lugar é esse?

– Harley.

– Só estou dizendo. – Harley ergueu os ombros, fingindo-se de inocente. Aproximou-se de Dylan com a muda de rosa delicadamente presa às suas mãos. Com a terra envolta às raízes e um pouco de água, a flor resistira ao fim do mundo. – Ele nem me desejou bom dia quando saímos na incursão, mas pra você ele conta até onde vai.

– Somos amigos.

– E eu sou o Batman.

– Harley. – de novo, o nome dela soou como um alerta. A mecânica não pareceu muito inclinada a perturbar-se por isso. Dylan não entendia porque suas palavras soavam tão defensivas quando não havia muito que defender. Ela nem entendia o porquê das provocações. Os motivos não existiam, Harley estava sendo dramática e exagerada como sempre. – Você fica bem sem mim?

– Acho que posso sobreviver, lindinha. – um sorriso enviesado e então um gesto para que Dylan andasse logo. – Eu tenho uma escopeta aqui comigo, não vou ter problemas.

A calçada da creche estava abarrotada de folhetos. Cartazes de “desaparecido” com dezenas de rostos tão diferentes e tão similares. Pessoas que existiram e então se foram.

Depois de avisar Javier sobre Harley e pedir que enviasse a mensagem ao Complexo, Dylan se afastou até a rua principal. Girou o cabo da flor entre os dedos, observando seus tênis velhos conforme caminhava pelo concreto; um buraco na frente do par direito fora costurado e tapado com fita adesiva, e ela sentia que a ponta do outro pé começava a rasgar também. Suas jeans tinham as barras sujas e desgastadas, e um rasgo na coxa desfiava lentamente, abrindo um rombo cada vez maior sempre que Dylan vestia a peça. Era seu uniforme para as incursões; com o pouco tempo para vasculhar cidades e a quantidade de pessoas que continuava a chegar em Oz, mesmo as roupas se tornaram itens de racionamento.

Em meio ao devaneio, a garota avistou a motocicleta de Benji estacionada ao fim da rua, em frente à entrada do cemitério. Viu que a mochila dele estava lá, carregada de qualquer coisa que tenha sido encontrada na sua busca. Ao passar pelo veículo, Dylan tocou o guidão, sorrindo pela familiaridade que aquilo passou a ela. A moto era parte das suas primeiras lembranças com aquele grupo; com aquele rapaz.

Os portões do cemitério estavam abertos, unidos pelo muro alto. Dylan avistou um errante solitário preso entre pedaços de ferro quebrados. Seus braços e pernas haviam sido enroscados nos ferrolhos de modo a aprisioná-lo, quase como uma armadilha. Os urros dele aumentaram quando a garota se aproximou; sangue escuro escorria do nariz, dos olhos e da boca, marcando a pele apodrecida. A criatura tinha um pouco de cabelo ensebado na cabeça, e as roupas eram frangalhos. Um ferimento a bala manchara todo o seu peito de sangue, mas não fizera muito para matá-lo. Dylan o fez. Ela pegou a faca presa ao cinto e manteve a atenção nos olhos pálidos e famintos do que antes fora uma pessoa. Cravou a lâmina contra a cabeça do morto, sentindo o impacto reverberar por todo o seu braço. Em um segundo, os gritos e grunhidos cessaram. Misericórdia.

As cercas de proteção tinham sido danificadas em algumas partes, e Dylan notou rastros de sangue assim que cruzou a entrada. Nem mesmo onde os mortos descansavam havia descanso.

O cemitério já era um lugar mórbido e abandonado nos dias comuns, mas tinha uma aura ainda mais pesada agora que o mundo se extinguira. O gramado alto e mal cuidado começava a encobrir as lápides no chão, alguns deles já se tornando ilegíveis pelo tanto que a natureza devorara.

Não foi difícil encontrar Benji. Seguindo pelo corredor principal, Dylan prendeu a atenção à silhueta do motoqueiro, certa de que os calafrios em sua espinha estavam sendo causados pelo cemitério.

Benji estava de costas para ela, parado em frente a uma lápide. Era impossível de ler o que havia nela, quem estava ali embaixo deles, a quem prestar homenagem. Dylan sabia que não era por isso que Benji a observava, no entanto; ele estava procurando um lugar decente para se despedir do irmão desde a tragédia no complexo Oz. Dissera isso em poucas palavras, mais com o olhar dolorido do que com a fala atormentada. Explicara à Dylan sobre os enterros dignos que os membros do seu clube recebiam, antes do mundo acabar, e como Clark merecia ter tido um daqueles. O túmulo tosco fora de Oz não representava o legado do irmão.

Ajoelhado em frente àquele pedaço de mármore envelhecido, Benji empertigou os ombros ao ouvir os passos de Dylan. Seus olhos azuis estavam marejados ao recaírem sobre os da garota, mas tudo o que encontrou nela foi compreensão. Da mais pura e gentil que Dylan conseguia expressar.

– Tudo bem? – Ela perguntou.

Benji apoiou as mãos sobre os joelhos e ficou de pé. Dylan caminhou até o seu lado, encarando os dizeres apagados em letras antes douradas, agora enferrujadas. Poderia haver Clark ali, e qualquer que fosse o primeiro nome dele. Poderia haver uma despedida para o herói e vilão e para o homem que vivera e protegera seu irmão mais novo até o fim.

A mão de Benji encontrou a sua. Seus dedos se entrelaçaram lentamente, como que pedindo permissão, e Dylan a concedeu ao aceitar seu aperto. Ele a estava procurando porque precisava dela, e ela sempre estaria ali.

Dylan deu um passo à frente e depositou a íris sobre o túmulo. Clark precisava mais do que ela.

– Adeus. – A loira sussurrou, mantendo os olhos sobre os inscritos esquecidos, a mão ainda presa ao toque quente e firme de Benji. Não era só para Clark que estava dizendo isso. Romero e Noah e Hannah e Eustace. E Max.

Dylan sentiu-se encarada, e ergueu o rosto para o motoqueiro, encontrando gratidão e um imenso alívio em suas feições. Havia tanto que aquele olhar dizia pelos dois. A garota se sentiu tocada e abraçada e acariciada, sentiu a respiração entrecortar e sua pulsação acelerar e sentiu-se apertando mais a mão dele contra a sua em resposta a isso.

– Você está bem? – Ele perguntou.

Dylan suspirou, incerta quanto à resposta.

O que pareceu o eco de uma trovoada chegou até os dois, estalando contra o momento de paz, reduzindo-o a um segundo incerto.

A garota se afastou primeiro, espiando por cima do ombro na direção das nuvens de chuva. A tempestade se aproximava depressa, mais rapidamente do que o esperado. Nuvens pesadas cobriam todo o horizonte às suas costas, carregadas por escuridão. Mesmo com o ar abafado, era possível notar as sutis mudanças no ar; o vento soprando mais forte, um uivo distante, o ressoar dos trovões entrecortando o silêncio ao longe.

– Dylan. – A voz de Benji se tornou um alerta preocupado. A garota seguiu a sua atenção e encontrou silhuetas disformes ao fim do cemitério; errantes formando uma pequena massa de corpos. Uma dúzia deles, provavelmente. Era dia, mas a tempestade se aproximava, e os mortos sempre seguiam as nuvens sombrias.

Quando os dois chegaram aos portões do cemitério, no lugar onde o errante fora morto pela menina minutos antes, uma fina garoa começou a desabar sobre seus corpos. O cheiro de chuva foi quase uma benção em resposta ao odor podre que os mortos-vivos traziam consigo, e sua aproximação se tornou menos débil e mais determinada conforme o sol se apagava pelas nuvens.

– Javier e Harley iam esperar no posto. – Dylan avisou, passando a mão pelos cabelos agora encharcados.

– Já avisou o pessoal do Complexo?

– Javier ia fazer isso. – ela respondeu, espiando os mortos-vivos por cima do ombro. – Acho que vamos demorar um tempo pra voltar.

Benji anuiu, dando a partida na moto. Dylan sentou-se atrás dele, já familiarizada com o espaço e com o conforto que o veículo e o dono dele passavam. Quando os infectados ultrapassaram os portões do cemitério, Benji arrancou com a motocicleta dali, só para dar à Dylan uma visão aterradora: havia mais mortos-vivos. Não apenas aqueles do cemitério, mas outros pequenos grupos vindos da rua principal e de outras travessas. Hordas dispersas que acompanhavam a tempestade e, tal como ela, haviam chegado.


04. O jogo da espera

 

 


Beatrice acordou com o barulho dos portões se abrindo. Levou um instante para se situar no espaço apertado do quarto escuro. Ainda vestia as roupas da vigília da noite passada porque nem ao menos se lembrava de ter voltado para o cômodo, tamanho sono que a guiou. Jake devia ter acordado havia um tempo, considerando que o espaço vazio na cama estava frio e arrumado.

Com um suspiro exausto, Beatrice deixou o cômodo, migrando seu olhar desconfiado na direção do pátio. Confusão vincou sua testa. Havia um ônibus escolar estacionado lá. As laterais, cobertas por placas de metal, não a deixavam ver quanta gente estava dentro do veículo, mas havia um homem desconhecido ao lado da porta, conversando com Sherwood e Judith. A postura de cada um deles descarregava tensão.

Se eles estavam dentro dos muros, não havia infectados. Era a única certeza que Beatrice tinha ao avaliar aquele cenário. Sherwood não deixaria nada escapar em seus exames; os meses haviam se passado e muita coisa no Complexo se adequara aos novos residentes, mas as regras para passar pelos portões eram as mesmas de quando se conheceram.

As mesmas regras que forçaram Beatrice a disparar contra Clark.

Ela estremeceu com a lembrança.

Era sempre assim. Todos os dias, tentava se convencer de que se não fosse sua escolha para lidar com a situação, as coisas teriam sido muito piores. Eles talvez nem tivessem sobrevivido.

E, por isso, culpa corroía sua mente e coração e a forçava a fechar os olhos para escapar da sensação sufocante.

-– Ei, achei que ia dormir por mais algumas horas. – ela virou-se com um sorriso grato para o marido. Jake abraçou sua cintura, pousando um beijo rápido em sua testa. – Tudo bem?

Jake, sempre tão querido e atencioso. Beatrice apoiou o rosto contra o ombro dele, aspirando o cheiro de sua pele, o calor da sua presença. Ele cortara o cabelo havia poucos dias, de modo que as laterais estavam mais rentes ao couro cabeludo do que a parte superior; Íris era uma péssima cabeleireira. A barba estava mais espessa e os olhos continuavam confiantes. Beatrice o amava por não ter mudado tanto depois que todo o mundo mudou.

– Quer me dizer o que está acontecendo lá embaixo?

Ele suspirou.

– Taylor respondeu a mensagem de um grupo de sobreviventes algumas horas atrás. Aparentemente, passaram o número errado de pessoas que viriam para cá.

– Quantos?

– Dezenove.

Beatrice deixou um riso entrecortado escapar. Dezenove. Eles mal tinham espaço e suprimentos para a quantidade que se encontrava refugiada no Complexo; mais dezenove bocas para alimentar e proteger...

– Puta merda, Jake. – Ela apertou as mãos contra a nuca, ciente de que o desespero e o egoísmo de seus pensamentos eram de uma problemática absurda. Aquelas pessoas precisavam de ajuda. Era para isso que Oz estava ali; era para isso que seu grupo havia atravessado tantos quilômetros, afinal. Para encontrar refúgio e ajudar outros a fazerem o mesmo.

Mas de nada adiantava oferecer um teto quando não havia com o que sobreviver debaixo dele. De nada adiantava se portar como a salvadora da pátria quando aquelas pessoas morreriam de fome – e acabariam sendo a morte de todos os outros ali dentro.

– Sherwood está conversando com o responsável pelo grupo, tentando entender porque mentiram quando Taylor perguntou a quantidade de pessoas que viria pra cá.

– Vai ver eles tinham medo da nossa exata reação de agora.

Jake dobrou um olhar humorado para a esposa, um contraste ao medo que tomava conta dela.

– O grupo da Dylan já voltou?

– Não. Estão presos pela tempestade.

– Mais isso pra ajudar. – A mulher resmungou.

Tempestade significava horda. Já bastava a que rondava a região do Complexo; uma adição traria complicações para o grupo. Quanto mais errantes, maior precisava ser seu cuidado ao sair para incursões. Um deslize em relação aos esquemas de segurança e uma invasão poderia acontecer.

Lá embaixo, o desconhecido responsável pelo ônibus ergueu a voz. Sherwood não recuou, mas Judith sim. O que antes era tensão se transformou em nervosismo, e tanto Beatrice quanto Jake não se demoraram em descer para ajudar.

– Ei. O que está havendo? – Jake se pronunciou, pulando os últimos degraus da escada para alcançar o pátio. Sherwood não se virou em sua direção, mas Judith dirigiu-lhes uma careta.

– Estávamos explicando a esse senhor porque precisamos de paciência e de tempo para instalar o grupo no Complexo e ele não está aceitando muito bem. – A mulher usou um tom incisivo ao explicar, virando a careta de desagrado na direção do desconhecido. O mundo podia acabar de diversas maneiras, mas Beatrice nunca se surpreenderia com a capacidade que o olhar de Judith tinha para aterrorizar outras pessoas.

Fato comprovado pelo homem ao lado do ônibus. Ele baixou um pouco a cabeça, engoliu em seco e finalmente encarou os recém-chegados.

– Seu nome? – Beatrice indagou, parando a uma distância segura.

O homem, de seus cinquenta e poucos anos, apresentou-se como Rafael.

– Rafael, espero que entenda que o Complexo não tem estrutura suficiente para colocar um grupo tão grande nos dormitórios em tão pouco tempo. – Jake tomou o lado da esposa, usando seu tom amigável que costumava ganhar os residentes facilmente. Sherwood, próximo deles, mantinha o olhar sério e ferino. – Pelo que soube, você passou uma informação errada a respeito da quantidade de pessoas que traria para cá.

– Achamos melhor assim. – Uma das viajantes se pronunciou. Estava parada num dos degraus do ônibus; as roupas esfarrapadas e a aparência magérrima talvez representassem o estado de todas as outras pessoas dentro do veículo.

Beatrice estremeceu. Não havia espaço para toda aquela gente.

– O que está acontecendo aqui? – com um suspiro pesado, a líder voltou-se para Machete. Atrás dele, outros quatro moradores observavam o ônibus e os desconhecidos com expressões de consternação. – Quem são eles?

– Novos residentes. – Judith explicou. – Taylor passou as coordenadas.

– Ele fez certo. – Jake dobrou um olhar sério na direção da idosa. Ela retrucou com a expressão azeda. – Temos espaço, só precisamos de uns dias para alocar todo mundo.

– Dias? – A mulher no ônibus guinchou. – Temos crianças entre os nossos. Idosos que precisam de comida e abrigo imediatamente. Não é para isso que esse Complexo foi erguido?

– Muita coisa foi construída para ajudar e acabou em ruínas. – Beatrice replicou. – Estamos fazendo o possível e o impossível com este lugar.

– Não deveriam mandar mensagens de rádio se mal tem espaço para os seus aqui. – A desconhecida retrucou, o tom de voz em uma fúria crescente.

– Ei, moça! Não precisa falar assim. Você está em segurança aqui dentro. – Machete se adiantou.

– Por nossa causa. – Judith completou, ganhando olhares de fúria das pessoas à sua frente. – O quê? Estamos fazendo um favor e ela só sabe reclamar.

– Judith, pelo amor de Deus... – Jake suspirou.

– Foi culpa minha. – Taylor, até então na sombra do pátio, prostrou-se próximo da idosa. A expressão era de um medo sem tamanho, e Beatrice desejou calar todos ao seu redor para garantir ao enfermeiro que não havia com o que se culpar. – Eu prometi segurança para essas pessoas, pode deixar sob minha responsabilidade. Vou preparar um comboio para viajar até uma das cidades vizinhas, eles ficam com o meu racionamento do mês até lá.

– Taylor. – Sherwood voltara-se para o namorado; toda a seriedade se desfizera em preocupação.

– São dezenove pessoas, não tem como dividir sua quantia de suprimentos com eles. – Machete comentou. – Teríamos que racionar a de todo mundo para dar certo.

– Nem fodendo. – Beatrice prendeu a respiração ao se virar para a pequena multidão que se formara às suas costas. Pelo menos metade dos moradores do Complexo se materializara naquele lugar.

A mulher desviou o olhar até Jake, que retribuiu com um que de frustração. De todos os lugares para ter aquela discussão, o pátio central de Oz não era o melhor deles.

– Beatrice, o que está acontecendo? – Do meio dos observadores, Sally caminhou até a líder. Lobo estava em seu encalço, seu novo protetor silencioso desde que chegaram a Oz. Quando não estava com Benji, o cachorro era visto à sombra da mulher.

– Nada digno de tamanha atenção, eu posso te garantir. – A irritação de Beatrice não era para Sally, mas acabou saindo em seu tom. – Gente, por favor. Nós fazemos tudo funcionar neste lugar, não importa a situação. Vocês sabem disso. Estão aqui a tempo suficiente para entender. Esse é um pequeno contratempo...

– Pequeno? – ao fundo, o homem que se pronunciara contra o novo racionamento ergueu a voz mais uma vez. – Tem quanta gente nesse ônibus, Beatrice? Vai tirar a sopa do prato da minha filha pra colocar no deles?

– São sobreviventes também.

– Que sobrevivam fora daqui.

– Ei! – Sherwood exaltou. – Nós não exilamos os nossos. Já tem mortos o suficiente lá fora pra deixar os vivos à própria sorte.

– Vai ter muitos mortos aqui dentro também se continuar desse jeito.

– Isso é uma ameaça, Bright? – Machete voltou-se para os moradores. Para Bright, o único que não baixou o rosto debaixo da voz retumbante do homem. – Nós somos uma comunidade aqui. Não damos as costas para quem precisa. Poderíamos ter fechado os portões na sua cara quando chegou, mas não fizemos isso.

A fala pareceu calar toda a multidão. Beatrice respirou fundo, passando os olhos pelos rostos dos conhecidos. Expressões conformadas e resolutas eram a maioria, mas havia olhares desgostosos também. Semblantes cansados e famintos, tais como o seu e o de seu marido e de qualquer outra pessoa vivendo o racionamento imposto nas últimas semanas, que não pareciam encontrar esperança no discurso de Machete.

Beatrice não os culpava. Tudo o que Bright havia verbalizado, um pedaço de sua consciência estava pesando. Não havia comida para toda aquela gente, mesmo que o grupo de Dylan voltasse com alguma boa notícia – e, por boa notícia, Beatrice só conseguia pensar em “encontramos um bunker com dezenas de caixas de alimentos não perecíveis para durar um mês no Complexo”; além disso, as alternativas mais animadoras seriam um problema com aquela quantidade de moradores.

Contudo, eles viviam em conjunto. Sobreviviam em conjunto. Seria um problema, mas teriam que remanejar, fazer dar certo.

Se dessem as costas para os vivos, como lutariam contra os mortos?

– Machete, Judith. Levem essas pessoas até o armazém vazio. Vou separar alguns sacos de dormir e depois podemos mostrar onde ficam os banheiros para que eles se lavem. Deixe o Doc avisado sobre os novos moradores, seria bom ter uma inspeção para ter certeza de que eles estão bem de saúde. – Não havia infectados, isso era certo, mas qualquer gripe ou resfriado em meio a tanta gente também podia ser um problema. Beatrice não queria nem imaginar ter que lidar com outro tipo de epidemia.

– Entende por que precisamos de tempo? – Jake voltou-se ao motorista. A mulher, atrás dele, havia se retirado para dentro do ônibus durante toda a confusão. – Não vamos abandoná-los, é só para garantir que todos tenham o mesmo tratamento aqui dentro. Temos regras e precisamos segui-las.

Quando o homem assentiu, Beatrice permitiu-se um sorriso aliviado. Os moradores se dispersaram em meio a murmurinhos pouco animados, e mesmo Judith se afastou com um olhar de poucos amigos; mas, por hora, a crise tinha sido abafada.

Parada sob a sombra de uma das varandas, Íris assistia tudo com uma expressão desconfiada. Beatrice observou a mexicana, que cumprimentou alguns dos residentes e saiu do caminho quando Judith passou por ela. Com um olhar conciso, Íris tomou a direção de Jake e Beatrice, e a líder conseguiu sentir, na postura dela, que outra crise estava para chegar.

– Eu esperei a poeira baixar, não vou mentir.

– Aconteceu alguma coisa?

– Além desse pequeno show de horrores? Não. – ela cruzou os braços. Deu mais um passo a frente, próxima o suficiente para poder sussurrar: – Mas é melhor se preparar. Dylan enviou outra mensagem, disse que a horda que está vindo com a tempestade é maior do que as últimas que passaram por aqui.

– Quanto tempo até alcançarem o Complexo?

– Meio dia, talvez? Um dia no máximo.

– E a Dylan?

– Presa na cidade com os outros. Ela disse que talvez consigam pegar outra estrada e chegar a tempo de despistar a tempestade por aqui, mas depende muito de como o tempo ficar por lá. – Íris bufou. – Como faremos com todas essas pessoas se nem podemos sair para buscar mais comida?

– Uma coisa de cada vez. Se a Dylan voltar a tempo, podemos organizar outro grupo pra sair pela região. – Beatrice replicou, recebendo um olhar enviesado da mexicana. Dificilmente conseguiriam mandar uma incursão para as cidades que não foram vasculhadas, não com outra horda tão próxima, mas precisariam planejar e se preparar e ter todas as possibilidades em mãos. Estava óbvio que uma crise se instaurara ali.

Com um suspiro, a líder se afastou, ciente de que todo o descanso daquela noite de nada valeria para o estresse que viria com as próximas horas.


05. O tempo vai te ensinar

 

 


– Tem certeza que esse lugar é seguro? – Harley sussurrou, movendo os pés com cuidado para não pisar nos cacos de vidro espalhados pelo chão.

– Tão seguro quanto um prédio abandonado no meio do apocalipse. – Javier replicou, inclinando-se sobre o balcão. Ali costumava ser o atendimento do hotel. No momento, o hall de entrada não passava de um monte de pó e peças quebradas. Dylan passou os olhos pelo lugar, desde os quadros caídos, que antes enfeitavam as paredes de madeira, até as cadeiras derrubadas e as malas que foram deixadas para trás. Às pressas, provavelmente, como muito do que encontravam em seu caminho.

Lá fora, era possível ouvir os grunhidos e gemidos altos em meio à chuva pesada. Sons da horda que atravessava a cidade junto ao temporal; trovões ribombavam de vez em quando, mas a onda de sons tenebrosos se tornara constante com o passar dos minutos. A chuva não parecia querer dar trégua, o que significava que levaria um tempo até os mortos-vivos seguirem em frente, para longe da cidade.

Até lá, Dylan e os outros estariam sentenciados ao hotel. O que restara dele. Podiam ter se arriscado pela rodovia, sim, mas sempre haveria algum contratempo – e a ideia de ter que parar para resolvê-lo com centenas de infectados às suas costas não animou nenhum deles.

– Ninguém vasculhou os outros andares? – Harley indagou.

– Não. Só o térreo pra ter certeza de que era seguro. – Javier apontou a lanterna para um dos corredores. Os elevadores dos hóspedes tinham as portas escancaradas, mas haviam parado em um andar superior.

Dylan se empertigou quando ouviu passos vindos do outro corredor e encarou Benji, que prendera a lanterna à boca para carregar duas malas de mão.

– O que achou de bom?

Depois de soltar as malas e se livrar da lanterna, ele deu de ombros.

– Enlatados.

– É claro. – Harley resmungou. – Nunca pode ser uma barra de chocolate que ainda não venceu ou quem sabe um aparelho de CD em pleno funcionamento. Deixa eu adivinhar, é sopa de ervilha?

– De tomate. – Benji parecia querer conter o sorriso e por isso desviou o rosto. Dylan riu de sua expressão; do momento leve em meio à tensão que permeava o ar. – Tem pouco, mas pode ser suficiente pra outra refeição.

– A Judith sempre pode colocar mais água pra aumentar a sopa. – Dylan brincou, mas havia um fundo de verdade.

– Eu voto pra gastarmos nosso tempo aqui vasculhando o hotel. – Harley anunciou. – Temos umas horas até a tempestade passar, então dá pra ver se tem algo bom pra salvar. Peças, roupas, qualquer coisa.

– Pode ser. – Benji levou as malas até o balcão e jogou a lanterna extra na direção da mecânica. Harley sorriu ao pegar o objeto no ar, acendendo na direção do motoqueiro só para iluminar a careta de indignação. – Duplas?

– Eu vou com o Javier. – Harley se colocou ao lado do grandalhão, e sorriso provocativo foi direcionado para Dylan, dessa vez. A garota engoliu em seco e desviou o olhar para qualquer coisa que não Benji, ainda que não houvesse motivo para o nervosismo. Ela sempre acompanhava Benji nos turnos de vigília, sempre estava próxima quando ele precisava de uma companhia para as incursões. Vasculhar o hotel não seria diferente.

– Dois cliques pra avisar sobre algum problema. – Benji avisou, apontando para o walkie-talkie que Harley prendera ao cinto.

Seus passos eram os únicos sons marcando a subida pelas escadas de serviço. Harley, aparentemente irritada com o silêncio, começou a assoviar qualquer canção esquecida pelo fim do mundo, e Dylan sorriu agradecida. A mais velha era um bálsamo de calmaria em meio a todo o pandemônio lá fora, como se estar cercada por uma horda de mortos-vivos não fosse nada demais.

Depois de tudo que vivera, devia não ser “nada demais”, Dylan pensou. Mas uma vida inteira em meio ao apocalipse jamais a acostumaria aos sons que os mortos faziam. À certeza da presença ameaçadora deles sombreando cada passo seu.

Dylan e Benji continuaram subindo até o terceiro andar, e um arrepio cruzou a espinha da garota quando confrontou o corredor abandonado, com o eco dos assovios de Harley desaparecendo ao fechar a porta.

– Ei. – Benji sussurrou. O olhar tranquilo sobre o seu. – Tudo bem?

Dylan assentiu, mas manteve-se próxima dele. Estava escuro demais ali dentro. Silencioso demais. Mesmo os barulhos da horda e da chuva lá fora pareciam abafados naquela parte do hotel.

Havia coisas abandonadas pelo caminho. Uma mochila vazia e um ursinho de pelúcia. Uma mala de rodinhas com a alça ainda erguida. O carrinho que as camareiras usavam para levar o serviço de quarto até os hóspedes, com copos quebrados em cima dele. Dylan observou tudo sob a pouca luz e se sentiu mais desolada do que amedrontada.

Benji estacou de repente, apontando a lanterna para o chão. A garota seguiu a direção do feixe de luz e franziu as sobrancelhas para os rastros marcando a camada de poeira. Três rastros diferentes.

Tem gente aqui. O olhar de Benji avisou, mas ela já havia entendido. Nos meses que se passaram, Dylan pediu que ele a ensinasse a rastrear, a lutar, que a preparasse para as muitas incertezas que havia fora dos muros do Complexo Oz. Com o aumento das incursões, suas habilidades de rastreamento e de sobrevivência, principalmente, se mostraram necessárias.

Dylan tirou um instante para apertar a bombinha de asma contra os lábios, e Benji manteve-se ao seu lado, sério e preocupado, enquanto esperava. Ele passou o feixe da lanterna por toda extensão do corredor, acompanhando os rastros de passos até estarem distantes demais para continuar iluminando.

– Devíamos voltar. – Dylan sussurrou.

– Volte e avise os outros.

A garota dobrou um olhar indignado para o motoqueiro, que respondeu com a expressão vazia.

– Nem pensar.

Benji estendeu a mão até a cintura dela e pressionou o botão do walkie-talkie duas vezes seguidas. O som do chiado pareceu um estouro em meio ao silêncio do corredor, mas seria impossível não tê-los ouvido chegar. O fato de ninguém ter vindo ao ataque podia significar que eram amistosos; ou que Benji e Dylan haviam caído em uma armadilha.

O corredor era grande demais e tinha portas demais para que se arriscassem, por isso resolveram esperar. O olhar de Dylan, no entanto, se prendeu ao carrinho de serviços a alguns metros dali e uma estranha silhueta se destacando atrás dele.

Ela pegou a lanterna da mão de Benji e migrou a luz para lá, só para ver uma menininha se assustando e correndo de volta para a escuridão.

– Benji.

– Dylan, pode ser uma armadilha. – ele segurou seu braço, ciente da preocupação em seu tom de voz. – Tem outros rastros aqui, lembra?

A garota desviou o olhar para o carpete empoeirado; um dos rastros era menor, realmente, e mais apressado. Os outros com certeza pertenciam a adultos, ou o mais próximo disso. Dylan não queria lidar com a própria impulsividade, não quando colocava outra pessoa em risco de novo, por isso permaneceu quieta em seu lugar.

Alguns instantes se passaram até ouvirem a aproximação de Harley e Javier. Os dois carregavam as armas – uma espingarda e um taco de beisebol, respectivamente – e olhares assustados.

– O que houve?

– Tem gente aqui. Vimos uma garotinha correndo até o fim do corredor.

– Tem certeza de que não foi um espírito? – Harley brincou, recebendo um olhar enviesado do motoqueiro. – Eu preferia lidar com espíritos, sinceramente.

Javier resolveu permanecer ali, próximo à saída do corredor, para impedir caso alguém tentasse fugir. Benji foi à frente, pistola e lanterna em mãos. Dylan apertou a bombinha de asma contra a boca mais uma vez, trêmula de nervosismo e curiosidade.

– Acha bom a gente se anunciar? – Harley indagou em voz baixa. – Quero dizer, essa gente pode ser perigosa, mas também pode estar morrendo de medo.

Benji ponderou por um instante, e então anuiu.

– Oi! – Dylan ergueu a voz. – Está tudo bem! Nós não vamos machucar vocês. Estamos nos abrigando aqui por causa da tempestade e da horda que chegou com ela. Fazemos parte de um grupo de sobreviventes.

Nenhuma resposta. As portas continuaram fechadas, o fim do corredor ainda engolido por escuridão. Harley deu de ombros.

– Valeu a tentativa.

– Tudo bem ter medo! – Dylan continuou, ganhando um rápido olhar de Benji. – Mas eu prometo que não vamos fazer nenhum mal. Meu nome é Dylan!

Uma porta rangeu próxima deles. Benji ergueu a arma e a lanterna na direção dela e iluminou um rosto infantil e assustado. A mesma garotinha de antes fechou a porta correndo. Pelo silêncio no lugar, os três conseguiram ouvir uma voz ralhando com ela.

Dylan adiantou-se até lá, apesar do chiado indignado de Benji. Bateu contra a madeira de leve e esperou, ouvindo passos e alguns sussurros ali dentro.

– Não precisa abrir se não quiser! – ergueu a voz. – Eu sei que é difícil confiar em estranhos nesse mundo bizarro, mas nós só queremos ajudar.

– E como podem ajudar? – Uma voz mais madura, de uma garota também, retrucou a pergunta.

– Viemos de um lugar seguro. – Dylan encarou Harley ao dizer aquilo, ganhando um aceno de concordância. – Se concordarem em conversar com a gente, podemos contar sobre ele.

– Fica perto daqui. Alguns quilômetros pra oeste. – Harley acrescentou.

– Está falando de Oz?

– Você ouviu a transmissão? – Dylan se empertigou, repentinamente animada.

A porta se abriu num rompante. Ela cambaleou para trás em susto, mas, à sua frente, só havia uma garota. Da sua idade, provavelmente, com o cabelo desgrenhado e o rosto sujo e as roupas esfarrapadas. Os olhos eram límpidos, no entanto. Sãos e desconfiados.

– Estávamos indo pra lá.


***


Meredith deixou que os três desconhecidos entrassem no quarto ocupado. Wade estava deitado na cama empoeirada, ardendo em febre, e Rebecca – a pestinha que chamara a atenção daqueles estranhos – se escondera no banheiro. Assim que fugiu deles e voltou para o quarto, tudo que ela sussurrou para a irmã mais velha foi um desculpe esganiçado seguido de “eles parecem legais”.

Realmente, as garotas passavam uma impressão amigável, mas o cara era um problema. Com a jaqueta de couro e o olhar sério, era o tipo de pessoa de quem Meredith não gostava de cruzar o caminho; se a garota loura gritava simpatia, aquele estranho exaltava perigo.

Ainda assim, eles baixaram e guardaram as armas quando Meredith abriu a porta, e permaneceram distantes dela, talvez para tentar passar segurança, enquanto ela se sentava na beira da cama.

– Ele foi mordido? – A garota com o macacão jeans indagou, apontando para Wade. A loura hesitou diante da pergunta.

– Não. Só está gripado. – Meredith garantiu. – Eu e a minha irmã encontramos com o Wade algumas semanas atrás. Era um resfriado e evoluiu pra gripe. Viemos até a cidade pra procurar remédios, mas, obviamente, não tinha nada. – Ela sorriu com amargura. Doía pensar que o quadro de Wade só tendia a piorar, mas Meredith já se arriscara demais por ele para melhora nenhuma. Não havia mais o que fazer.

– Temos um médico lá em Oz. E um enfermeiro ótimo. – a loura comentou. – Faz muito tempo desde que a febre aumentou?

– Não, ele estava bem hoje de manhã. Paramos aqui para prevenir e calhou de o quadro piorar. – Meredith apertou a ponte do nariz. Exaustão era tudo que existia em seu corpo sempre que se lembrava das semanas anteriores. Frustração também. – Estou usando a água da chuva pra fazer algumas compressas frias. – Apontou para a sacada, onde um espacinho entre as cortinas permitia ver algumas vasilhas.

Curiosa, ela assistiu enquanto as garotas trocavam um olhar e alguns sussurros, até que a loura se adiantou, puxando a mochila do ombro.

– Temos alguns medicamentos aqui, coisa emergencial. Pode ajudar a baixar a febre até que o Doc o examine. – ela explicou, tirando uma cartela de remédios de um dos bolsos. – Tem Paracetamol, Taylor me fez decorar que ajuda. – Ela comentou a última parte para a outra garota, recebendo um sorriso bem humorado de volta.

Eram um grupo, realmente, Meredith percebeu. Mesmo a seriedade do estranho atrás dela pareceu se dissipar enquanto assistia Meredith ajudando Wade a engolir os comprimidos e o ouvia sussurrar um “obrigado”.

– Javier! – a loura se adiantou até a porta e gritou. Meredith ergueu as sobrancelhas. – É nosso amigo. Ele está com o rádio. Eu sou a Dylan, aliás. Essa é a Harley e esse é o Benji.

– Meredith. – ela se apresentou. – Wade. – apontou para o soldado. – E a minha irmã, que vocês conheceram, é a Becky.

– Muito prazer. – Dylan sorriu, e era o tipo de sorriso que prometia que tudo ficaria bem. Meredith desejou ter alguma pontinha de esperança em sua mente para acreditar nisso, mas tudo se perdera.

Ela observou enquanto um homem grande e forte parava à porta do quarto, cumprimentando-a com um aceno simpático, e tirava um rádio de longo alcance de dentro da mochila. Como se fosse comum carregar um desses por aí; Meredith só se lembrava de ver um modelo daqueles numa delegacia abandonada no que parecia anos atrás.

– Vamos avisar o Complexo de que levaremos sobreviventes. E você pode ouvir a mensagem pra ter certeza de que estou dizendo a verdade. – Dylan explicou, e Meredith quase sorriu pela consideração dela.

Becky saiu do banheiro, finalmente. O quarteto desviou a atenção até ela, sua silhueta magérrima e assustada, os olhos grandes destacando-se contra a sujeira marcando seu rosto. Os cabelos um emaranhado de nós oleosos. Meredith tinha considerado tomar um banho de chuva com a irmã, mas o estado deplorável delas era melhor do que a febre e a fraqueza de Wade. Não podia lidar com três pessoas gripadas em um grupo.

– Judith, oi. – Meredith voltou a si quando Dylan estabeleceu contato com o outro lado. Os olhos claros da garota migraram em sua direção. – O sinal está bom?

– Chiando um pouco, mas sim, querida. O que foi? Vocês tiveram algum problema com a horda?

– Não, é só pra avisar que encontramos sobreviventes. Duas garotas e um cara. Pode deixar o Doc pronto pra receber um novo paciente? O amigo das meninas está gripado.

– Ah, não. Isso é ruim, Dylan. – Meredith notou quando Benji se empertigou, lançando um olhar desconfiado para Harley. – Estamos com um problemão aqui no Complexo, não pode trazer mais gente.

Dylan estacou.

– Como assim não posso levar mais gente? É o lugar seguro dessa região, Judith. Essas pessoas precisam de ajuda.

– O enfermeiro fez uma besteira e chegou um grupo enorme aqui, estamos realocando todo mundo, tem sido uma loucura. Ainda mais com o alerta de tempestade. Simplesmente não dá, minha querida.

Meredith sorriu em amargura com o tom condescendente.

Por que Oz prometia segurança se não podia oferecê-la?

– Tem alguém aí além de você? – frustração imperou o tom de voz de Dylan. – A Beatrice ou o Jake? Tenho certeza de que...

Um zumbido cresceu nos ouvidos de Meredith. Ela balançou a cabeça, desnorteada, como se alguém a tivesse girado dezenas de vezes e soltado para andar em linha reta. O mundo pareceu perder a gravidade, como quando o seu fim foi anunciado nas televisões, quando os policiais cercaram a escola e determinaram a quarentena.

– O que disse? – ela não percebeu que estava falando até que sua própria voz calou o zumbido. Os quatro voltaram-se em sua direção, Dylan ainda estarrecida pela conversa no rádio. – Quem... Quem você chamou?

– Judith? Ela é uma das moradoras...

– Não, as outras pessoas.

– Ah, Beatrice e Jake? Eles são nossos líderes. Boas pessoas. – Dylan hesitou. – Por quê? Conhece eles?

Meredith soltou um riso esganiçado. Sentiu vontade de gritar e de chorar, o soluço preso na garganta junto à gargalhada que se seguiu.

Não podia ser possível, mas, ao mesmo tempo, podia ser muito possível.

– Conheço um Jake e uma Beatrice sim. – ela sussurrou, furiosa. Amedrontada. Desesperada. – São meus pais.


06. Quando nós caímos

 

 


Íris achou que nada poderia ser pior do que a chegada daquele ônibus no Complexo, mas estava enganada. Pela primeira vez em muito tempo, a chegada de uma tempestade e de uma horda gigantesca junto a ela pouco consternou os moradores de Oz. Quase deu para ver a divisão entre os sobreviventes que viviam ali; de um lado, os poucos que apoiaram Beatrice e a permanência do grupo recém-chegado. Do outro, os muito insatisfeitos com a situação.

Se fosse bem sincera, Íris também não estava feliz com isso. Oz mal estava se sustentando com as muitas pessoas que já moravam entre seus muros. As últimas semanas se tornaram um inferno cheio de incerteza; Íris não se lembrava de ter sentido tanta fome e sede e tédio em muito tempo, e ainda assim não havia o que fazer. Os grupos de incursão eram poucos e ela já deixara o Complexo por vezes o suficiente para que Beatrice decidisse designar outras pessoas para vasculhar as cidades, vilarejos, postos, qualquer coisa que ainda não tivesse sido marcada no mapa.

Restava muito pouco para procurar. Poucos pontos que realmente valeriam a pena, que talvez tivessem suprimentos, munição, gasolina e remédios. Coisas sem as quais seria impossível continuar no Complexo.

Íris sabia que era questão de tempo até terem que abandonar aquele lugar, mas não nomeava isso. Cada um lidava com a crise à sua maneira e a dela exigia muitos olhares enviesados, silêncio e bebida. A tequila já não era mais essencial, Íris aceitava qualquer coisa que tivesse álcool. No momento, a garrafa escondida debaixo da sua cama estava cheia de um licor velho e ruim, mas que cumpria o serviço – velhos hábitos não morriam tão cedo.

Quando a tempestade chegou, a maioria dos recém-chegados já havia sido alocada para o dormitório leste; tinha camas confortáveis e mais espaço, o que forçou algumas famílias a migrarem para o oeste – que era mais frio, com as paredes cinzentas revestidas às pressas, e bem menos familiares.

Beatrice conversou com cada morador, usou seu tom condescendente para explicar a situação precária em que aquelas pessoas haviam chegado. Muitas estavam desnutridas ao extremo, fracas demais até para se mover, e outras pareciam ter medo da própria sombra. Só Deus sabia o que aqueles coitados viveram lá fora.

Rafael, o líder daquele grupo, comentou sobre terem fugido de um condomínio ao sul dali no instante em que o lugar foi tomado por mercenários. Íris sorriu com amargura; los muertos deixaram de ser o problema havia muito tempo, os vivos é que enchiam o saco.

A mexicana se inclinou sobre a grade de proteção do segundo andar, observando Doc guiar uma idosa na direção da enfermaria. Ao longe, outra idosa, bem menos simpática e acolhedora, assistia a cena com uma expressão de desagrado. Judith só não era a líder de toda aquela insatisfação coletiva porque Bright existia.

Íris não sabia muito sobre ele, só que era um cara mal-educado e solitário socorrido por Benji e Machete meses atrás. Desde então, ele fazia questão de dar sua opinião sobre tudo. A maioria dos moradores não gostava da sua presença, levavam os comentários carregados pelo sotaque sulista pouco a sério, mas, nas últimas horas, ele se tornara um representante da crescente histeria coletiva.

Se dependesse de Íris, aquele homem já teria levado um soco para aprender a calar a boca – ou pelo menos teria levado uma bela mordida do Lobo. Mas Beatrice ditava as regras e não queria mais problemas do que já haviam arranjado.

– Os trovões estão se afastando. – a mexicana sorriu sobre o ombro, voltando-se para Taylor. Com os braços cruzados e o olhar exausto, ele parou ao seu lado. – Jake acha que a horda vai começar a se afastar.

– Alguma notícia da Dylan?

– Ela falou com a Judith algumas horas atrás. Mas como fui eu quem perguntei, não recebi muita resposta além de “eles vão voltar quando a chuva passar”. – O enfermeiro sorriu rapidamente, mas não havia nada de alegre no gesto. Frustrado, com certeza.

– Hermoso. – Íris chamou. Os olhos castanhos dele, carregados em melancolia, recaíram sobre os seus. – Sabe que não é culpa sua. Você salvou a vida de muita gente.

– E o Complexo todo me odeia por isso.

– Ninguém se importa com a opinião dessa gente. Você não deveria, pelo menos. – Íris apoiou a mão sobre seu ombro, forçando-o a manter o contato visual. – Eu teria feito o mesmo. Beatrice e Jake fizeram, deixando essas pessoas ficarem aqui. Não vai haver mundo lá fora se dermos as costas para quem precisa de ajuda. Nós continuamos resistindo, por isso que sobrevivemos. Se não fizermos isso, los muertos vão vencer a guerra e a culpa vai ser toda nossa.

– Estamos competindo com infectados? – Taylor sorriu com bom humor. Íris respondeu com uma gargalhada. – E quem está ganhando?

– A gente. Com algumas ressalvas. – Uma pontada em seu peito a lembrou do motivo disso, mas ela soube disfarçar.

Os infectados tinham arrancado muita coisa daquele grupo; para Íris, a mais recente daquelas perdas ainda era uma ferida aberta, e o comentário, apesar de divertido, foi uma cutucada nem um pouco bem-vinda. Taylor, mesmo discretamente, pareceu notar, e puxou Íris para um abraço rápido por isso.

– Obrigado. – Ele sussurrou.

– Sempre que precisar.


***


Íris sentou-se na mesa vazia do refeitório. Ela não costumava se lembrar da época do colégio, pelo menos não desde que o mundo acabou, mas a semelhança daquela cena com as suas lembranças era nítida: num dos cantos do lugar, o grupo recém-chegado. Rafael estava claramente acuado. Ele podia ser o representante daquelas pessoas, mas não parecia confortável em ter que fazer isso.

No outro canto, Íris espiou Judith e Bright conversarem em voz baixa. Bright estava ladeado por dois homens que tinham o mesmo nível de carisma e simpatia que ele. Um pequeno grupo de moradores escolhera se sentar com eles. O cenário era parecido com o dos refeitórios escolares dos quais a mexicana fizera parte; havia muitos olhares desconfiados e irritados e outros amedrontados, uma tensão crescente que vinha da óbvia divisão entre os grupos.

Por isso ela se sentou longe e sozinha, para observar. Para manter vigília caso Bright ou mesmo Judith resolvesse fazer alguma coisa.

Na bandeja, mexeu a sopa rasa de cogumelos que estava sendo servida. Tinha gosto de nada, mas com certeza era melhor do que nada. Pela rapidez com que os recém-chegados comeram sua porção, isso era bem óbvio. Rafael dissera a Beatrice que nenhum dos sobreviventes no ônibus tinha expectativas de salvação. Quando ouviram a mensagem de Oz e conseguiram contatar Taylor, fora a única luz no fim do túnel que encontraram. Não queríamos causar nenhum problema com o seu Complexo, só... Queríamos escapar do inferno lá fora.

Seus olhos esbarraram numa das garotinhas do grupo. Ela puxou a manga da mãe, insistente, e Íris não precisou de muita leitura para entender que o prato de sopa não fora suficiente para saciá-la. Quase em um reflexo, ela se levantou, pegou a própria bandeja e caminhou até lá. Tinha ciência de que havia outras pessoas famintas ali também, a maioria não devia ter enganado o estômago com aquela miséria, mas a garotinha ganhara sua atenção e foi para ela que a mexicana ofereceu o prato de sopa.

Um olhar assustado da mãe em sua direção e então um aceno agradecido se seguiram; a menininha sorriu abertamente e Íris retribuiu, pelo menos até ouvir um resmungo atrás de si.

– O que significa isso?

Judith estava de pé, os braços cruzados em sua direção.

Íris soltou um riso amargurado. É claro que ela reclamaria da sua ação. É claro que Judith teria alguma coisa a apontar em como o que escolhera fazer era errado.

– Bom apetite. – A mexicana disse, se afastando em seguida. Passos longos e apressados para colocar uma boa distância entre ela e a sombra que Judith estava prestes a se tornar.

Quando alcançou o corredor fora do refeitório, sentiu a mão fria de Judith em seu cotovelo e finalmente se deu por vencida.

– Que é? – Íris chiou.

– Não pode fazer isso. Beatrice racionou nossos suprimentos a fim de deixar todo mundo com porções iguais. Se você escolher beneficiar alguém, pode dar problema com o outro grupo.

– E por que existem grupos, Judith? – Íris notou o nervosismo discreto na postura da idosa, a maneira com que o olhar dela disparou para longe do seu. – Por que estamos divididos se isso aqui deveria significar união?

– Eles não faziam parte de Oz antes.

– Fazem agora. – A mexicana deu um passo à frente e Judith recuou um para trás. – Está querendo dizer que eles não merecem fazer parte dessa merda de Complexo? Não é pra isso que viemos aqui? Pra ajudar outras pessoas a sobreviver?

– Não adianta nada ajudar os outros e morrer de fome junto!

Íris ergueu as mãos para o alto em frustração.

– Isso é ridículo. – ela apontou o indicador para Judith. – Você está sendo ridícula.

– Vai concordar comigo em algum momento. Abrimos os portões para um número maior de gente do que temos capacidade de receber.

– E por isso você quer jogá-los lá fora de novo?

– O enfermeiro deveria ter pensado melhor antes de... – Com um grunhido enfezado, Íris girou nos calcanhares e deixou Judith falando sozinha, ciente da voz dela se elevando enquanto tentava chamá-la de volta. Mais alguns segundos parada ali e ela teria sido obrigada a agredir aquela idosa.

Havia semanas que não passava por uma situação dessas, em que ideias tão contrárias bateram de frente pelo bem de Oz. Da última vez, tinha a ver com uma incursão mais longa, com a possibilidade do grupo se perder ou não retornar ou mesmo ficar sem combustível no meio do caminho. Parecia ínfimo e tolo quando Íris se lembrava; uma coisa humana.

O que estava em jogo ali era sua humanidade. Judith estava pensando com egoísmo e não havia porque salvar o mundo quando era isso que guiava as pessoas; pouco importava a Íris passar um pouco de necessidade, ela pouco se lixava em ter que dividir sua comida com aquelas pessoas. Eles dariam um jeito. Sempre davam. Haviam escapado do inferno dezenas de vezes desde que as cidades caíram, desde que os governos desmoronaram. Haviam sobrevivido à tragédia na escola e à incerteza nas estradas, sobreviveram às mortes abruptas que impactaram no grupo. Tudo isso para quê? Para ficar com tanto medo a ponto de dar as costas para outros como eles?

Quando Íris chegou ao pátio, parou debaixo da cobertura de um dos prédios. A chuva forte formara um pequeno córrego de água que seguia em direção aos encanamentos; ao menos em todo aquele cenário caótico, água não faltaria. A tempestade trouxera a horda, sim, mas também trouxera algumas semanas a mais para seu estoque de água.

Anoitecera havia pouco tempo, mas a penumbra já cobria todo Complexo. A mesma sensação tensa que corroera Íris enquanto estava no refeitório tomava os corredores. Com todas as luzes apagadas e a contenção de vigílias por causa da horda lá fora, os trovões e a chuva e os grunhidos dos muertos eram os únicos sons em meio a Oz.

Íris fechou os olhos, perguntando-se quando aquele lugar seguro se tornara uma prisão tão sufocante, e os abriu para a escuridão sem saber a resposta.


07. Pronto ou não

 

 


Dylan desceu da moto assim que Benji estacionou, lançando um aceno rápido para Sherwood, que acabara de verificar os recém-chegados. Benji, por sua vez, se afastou do veículo para cumprimentar seu cão, que vinha apressado e alegre até o motoqueiro.

Os portões laterais do Complexo levavam diretamente até a garagem subterrânea, onde Javier e Harley guiaram a van que dirigiam. Meredith, Becky e Wade ocupavam a parte traseira, já que o veículo que eles usaram para chegar até a cidade estava com pouquíssima gasolina e não resistiria à viagem toda.

Depois que a horda se dispersou, Dylan ajudou Meredith a levar as coisas que tinham na caminhonete até a van – também quase vazia, graças ao pouco que encontraram ao vasculhar o lugar. Honestamente, Dylan nem estava com cabeça para continuar a exploração. Sabia que havia outros prédios desabitados e que a horda talvez não tivesse arrastado seu caos por eles, mas queria voltar logo para o Complexo. Queria entender aquela mensagem absurda que Judith passou e queria... Deus, ela queria levar Meredith e Becky até seus pais.

A ideia desse reencontro remoeu seus pensamentos durante toda a viagem. Até mesmo a perturbou, considerando o cenário; considerando que perdera seus pais meses atrás, quando a quarentena caiu e seu mundo implodiu em caos.

Pensar que depois de todo aquele tempo, depois de toda aquela distância e de tantas coisas em seu caminho, ainda assim Meredith se colocou no caminho dos pais, isso era desnorteante. Com tantas possibilidades e tantas trilhas para tomar, ela escolhera justamente a que a guiava de volta para a família.

O tom na voz da garota, no entanto, não mostrou nem um pouco do alívio ou mesmo da alegria que Dylan esperara encontrar. O riso amargurado e o olhar vazio de Meredith também permaneceram em seus pensamentos, levando Dylan a se lembrar de um detalhe mórbido.

Quando perdera Max, Beatrice viera até ela. A mulher se sentara ao seu lado nos balanços daquela velha fazenda e, com o olhar perdido, comentara sobre seus filhos. Seus quatro filhos, que se perderam com o apocalipse. Eles ficaram para trás, Beatrice contara.

Meredith e Becky estavam ali. Mas e os outros dois? As outras duas crianças que Beatrice e Jake perderam?

Com a constatação, Dylan se afundou em nervosismo. Resistiu ao impulso de pedir que Benji parasse para conversarem a respeito, sem jamais considerar invadir a privacidade de Meredith daquela maneira. A dor da perda de Max ainda reverberava por todo o seu ser sempre que se lembrava do incidente; ela só conseguia imaginar o terror que Meredith e Becky tinham vivido – se é que as outras crianças realmente estavam mortas. Talvez tivessem se perdido de verdade; talvez não tivessem encontrado o caminho para Oz, como Meredith encontrara. Como Max, podiam estar esperando alguém guia-los até um lugar seguro.

Talvez esse alguém tenha falhado e agora estejam mortos, Dylan havia pensado, e o eco dessa ideia a fizera apertar as mãos na jaqueta de Benji. Sentira quando o motoqueiro se retesara; quando ele a espiou no espelho retrovisor da moto. Dylan escondera o seu olhar e seu medo.

Ainda havia muitos mortos-vivos desgarrados da horda ao redor de Oz, mas, numa das torres de vigia, Machete ligou uma das armadilhas de som, guiando os cadáveres até uma das cercas eletrificadas. Depois disso, os portões se fecharam atrás dos veículos e Dylan pôde suspirar em alívio.

Até Meredith e sua irmãzinha descerem da van, os olhares acuados para a quantidade de carros e caminhonetes e peças que ocupavam a garagem.

Dylan não tivera coragem de contar a Judith sobre as meninas. Avisou que resolveria tudo com Beatrice porque, de fato, seria ela a cuidar daquele assunto. Ela e Jake. Suas filhas estavam ali, abraçadas e perdidas em meio a toda segurança e grandiosidade de Oz, e Dylan não sabia se queria assistir ao reencontro ou correr para longe da cena.

– Quer que eu vá chamar o Taylor? – Harley indagou, ganhando a atenção da loira.

– Não. Pode deixar que eu vou, você tem que cuidar dos seus bebês. – Dylan brincou, apontando para os carros que Harley pegara para consertar. Com as peças que conseguira na cidade, talvez fizesse isso antes do que esperavam. Com um sorriso fraco, Dylan acenou com a cabeça para Meredith e se afastou em direção às escadas, mais apressada do que gostaria.

Ouviu passos atrás de si, mas não se virou. Subiu as escadas e apertou as mãos com firmeza no corrimão. Só parou ao alcançar o pátio; perdeu o fôlego e se recostou contra a parede, repentinamente alerta do desespero enervante que a movera para longe da garagem. Tateou os bolsos da calça, os dedos trêmulos desesperados para alcançar a bombinha guardada ali. A garganta travada a impedia de respirar, e seus olhos lacrimejaram conforme a dor em seu peito aumentou.

– Dylan. Ei. – alguém tocou seu ombro no instante em que alcançou a bombinha. Quando virou para encarar Benji, encontrou compreensão. – Está tudo bem.

Dylan não se lembrava de ter começado a chorar, mas o loiro a trouxe para um abraço em resposta a isso. Os soluços chegaram em meio ao choro desesperado, e a única coisa em que a garota conseguiu focar além disso foi o calor confortável do abraço de Benji. O fato de os braços dele a apertarem cuidadosamente, uma das mãos atrás de sua cabeça. Dylan afundou o rosto contra o peito do motoqueiro, sentindo-o retribuir ao pressioná-la mais.

Ela não sabia que precisava daquilo, daquele apoio, até experimentá-lo. Não sabia que queria chorar tanto até desabar em soluços. Não sabia que a situação de Meredith e Becky havia mexido tanto com seu emocional até que viu os olhares perdidos delas, lembrando-se de um garotinho que costumava encará-la da mesma maneira. Dylan prometera a si mesma que não deixaria a culpa por Max voltar à sua memória, não quando o futuro pedia por controle e esperança, mas ali estava, aquela parcela de desespero e de perdição. Aquela lembrança que jamais se dissiparia.

Duas garotas haviam encontrado seu lar e Dylan falhara em trazer um garotinho para esse mesmo lugar.

Suas mãos estavam apertadas contra Benji, assim como todo o seu corpo. Ela olhou para cima, encontrando o rosto calmo dele. Seus olhos azuis tão doces passearam pelo rosto dela, lendo seus temores, oferecendo compreensão a eles.

– Desculpe. – Ela notou um leve franzir entre as sobrancelhas claras do rapaz. – Eu... Me descontrolei. Max... – Outro soluço escapou entre seus lábios. Um tremor sacudiu seu corpo.

Aos seus pés, ouviu um ganido. Com a vista embaçada, Dylan desviou o rosto até encontrar Lobo; o cão abanou o rabo para a garota, apoiando o focinho em sua perna, e recebeu o carinho dela. Parecia oferecer o mesmo tipo de consolo de quando ela perdera Max, e por isso Dylan se despedaçou mais ainda.

– Dói tanto. Faz tanto tempo e ainda dói. Vai passar algum dia? – A pergunta foi desesperada, e o olhar de Benji perdeu-se naquilo.

– Eu... Não sei, Dylan. Mas espero que sim.

O tom na voz dele, repentinamente perdido, a fez perceber o próprio erro.

– Merda. Foi estúpido perguntar isso pra você. – Dylan murmurou, arrependimento moldado suas palavras. – Desculpe.

– Todo mundo aqui perdeu alguém, Dyl. – ela queria replicar. Queria dizer que Clark havia caído por causa dela também, mas Benji prosseguiu, quase como se soubesse para onde ela pretendia seguir: – Aquelas garotas encontraram o que estavam procurando. O fim do mundo não é só sobre as coisas que perdemos. Se focar nisso, não tem porque seguir em frente. E você, mais do que qualquer um aqui, sabe como continuar lutando.

Dylan tentou desviar o olhar. Benji sustentou, segurando seu rosto com leveza. Os dedos acariciaram a pele dela com cuidado, secando as lágrimas de suas bochechas. Com um suspiro trêmulo, a garota ficou na ponta dos pés e apoiou um beijo sob o queixo dele. Um gesto amigável, mas estranhamente íntimo naquele momento. A barba pinicou seus lábios e Dylan sentiu quando Benji engoliu em seco.

Ela não se afastou, no entanto. Passou um dos braços ao redor do pescoço dele e o trouxe para um abraço, escondendo o rosto contra o casaco do moto clube que o rapaz usava.

– Obrigada.


***


Taylor não visitava a garagem havia um tempo. Ele não gostava do ambiente cinzento e da temperatura gélida que fazia ali embaixo, mas um dos recém-chegados estava febril e Sherwood achou melhor não movê-lo até que fosse examinado. Dylan havia dado alguns medicamentos para o rapaz, conforme Taylor a instruíra, mas não fizera muito para baixar a febre.

Na garagem, o enfermeiro migrou seu olhar entre Harley e Javier, sentados no capô de uma caminhonete quebrada, que lançaram um sorriso rápido em sua direção. Dylan e Benji haviam chamado o enfermeiro e seguido em frente, alegando que “precisavam chamar Beatrice e Jake” para ir até lá também. O motivo, Taylor não sabia, mas talvez tivesse alguma coisa a ver com a adição de mais três sobreviventes ao Complexo.

Ele não duvidava que, durante a conversa pelo rádio, Judith tivesse dito várias besteiras a respeito do ônibus e dos novos moradores. Provavelmente culpando Taylor por todo aquele caos; você salvou todas aquelas pessoas, não vai deixar que ninguém o faça sentir culpado por isso. Fora o que Sherwood dissera para ele naquela noite, logo depois de todo o pandemônio. Deitado ao seu lado na cama, o soldado o abraçara e pousara um beijo carinhoso sobre sua testa, procurando o olhar hesitante de Taylor até encontrá-lo. Você é o herói de toda aquela gente.

Ele não se sentia assim, mas não retrucou. Não retrucou quando Íris ou Beatrice ou Jake vieram dizer a mesma coisa; deixou que falassem porque era mais fácil de despistar. Aquela culpa ele carregaria sozinho. Culpa por ter complicado a situação do Complexo e outra culpa, por se sentir culpado – se é que isso fazia sentido.

Taylor sentia falta de quando os mortos-vivos eram sua única preocupação. Aquele caos que viviam em Oz não era nada da “terra prometida” que buscaram ao vir para o Complexo.

Na van, um rapaz de seus vinte anos estava deitado com algumas cobertas sobre o uniforme fardado do exército. Taylor identificou uma dog-tag em seu pescoço; o cabelo era comprido, diferente do corte militar que Sherwood ainda usava. Estava pálido e suado e bastou um toque em sua testa para a temperatura preocupá-lo.

Sherwood parou junto à porta e ergueu uma sobrancelha em questionamento ao se ver encarado. Taylor indagou:

– Nenhuma mordida?

De questionador para indignado, Sherwood ganhou um sorriso do moreno.

– Só checando. – ele ergueu as mãos em rendição, voltando-se para as garotas que acompanhavam o soldado. – Ele se machucou? Algum corte, arranhão?

– Não. Wade já estava meio resfriado quando o encontramos, umas semanas atrás. – a mais velha explicou, a voz calma apesar das perguntas incisivas de um desconhecido. – Piorou de uns dias pra cá, por isso tivemos que parar naquela cidade onde seus amigos nos encontraram. Wade é que dirige na maior parte do tempo e mal estava conseguindo ficar acordado.

– Vou colocá-lo no soro enquanto o Javier vai buscar uma das nossas macas. Essa van é muito ruim de estacionar lá no pátio, é mais fácil levar pelas rampas. – Taylor se afastou para pedir a ajuda do grandalhão, que não resmungou em fazer o favor. Depois de espetar o soldado e arrumar o soro que trouxera na bolsa de mão, Taylor voltou-se para as meninas. – E vocês? Precisam de alguma coisa?

– Eu tô com fome.

– Becky. – A mais velha chamou em tom de alerta. Taylor sorriu por isso.

– Ela está certa. Vocês precisam comer e beber e descansar. Aproveitem que choveu bastante e tem água pra um bom banho quente. – o enfermeiro estendeu a mão. – Eu sou Taylor, aliás.

A mais nova aceitou o cumprimento com um sorriso animado.

– Rebecca. E essa é a Meredith, minha irmã.

Vozes alteradas calaram a garotinha. Taylor desviou o olhar para as escadas, preparando a paciência para o que estava por vir. Sherwood cruzou os braços, caminhando naquela direção. Mesmo Harley deixou seu posto solitário na caminhonete, aproximando-se da van com um olhar enfezado.

Judith foi a primeira a aparecer, resmungando sobre a falta de responsabilidade de Dylan e eu avisei que não deveria trazer mais gente enquanto não tivéssemos arrumado tudo, o sotaque pesado na voz sempre que ficava furiosa com alguma coisa. Dylan, atrás dela, só tinha olhares para a dupla que veio em seguida.

Beatrice e Jake, até então engajados em acalmar Judith, desviaram a atenção para o pequeno grupo próximo a van. Taylor franziu o cenho quando Jake arregalou os olhos, quando Beatrice recuou, como se um tapa tivesse acertado seu rosto. Harley baixou a cabeça, visivelmente perdida, mas foi para Dylan que o enfermeiro direcionou sua confusão. A expressão da garota era de completo nervosismo, quase como se soubesse o que viria a seguir.

– Becky? – a voz de Jake falhou em um soluço. Ele deu um passo à frente e então outro, hesitante a princípio.

Sherwood segurou o cotovelo de Taylor e o afastou das meninas no instante em que Jake correu até elas, caindo de joelhos em frente a mais nova.

– Becky? – Taylor estremeceu; não se lembrava de ter ouvido aquele tom na voz do líder desde que se conheceram.

Era perdição e medo, esperança e amor. Era um grito esganiçado junto às lágrimas que Jake derramava, e mesmo a garotinha pareceu assustada pela reação dele.

– Papai?

– Sou eu, minha querida. – Ele a trouxe para si, abraçando-a com força, embalando-a em meio aos soluços e tremores. Beijou o topo de sua cabeça e suspirou, o tipo de suspiro aliviado de quem estava às portas da morte e acabava de voltar à vida.

Aquele abraço e aquela expressão, Taylor nunca vira nada daquela intensidade. Havia tempos que pais perdiam suas filhas e jamais as reencontravam, havia meses desde que o apocalipse destroçara famílias e separara mães de suas crianças. E ali estava Jake, abraçando sua garotinha.

Beatrice, por outro lado... Quando Taylor a encarou, a palidez em seu rosto não se assemelhava em nada à que tomara a expressão do marido. O olhar estava mortificado, encarando as meninas como se contemplasse dois fantasmas. Dois cadáveres.

Enquanto Jake chorava sobre a filha mais nova, a mais velha contemplou Beatrice. Não moveu um dedo para se aproximar. Cruzou os braços numa postura resoluta, ainda que o olhar gritasse dor.

– Oi, mãe.


08. Os demônios ao seu redor

 

 


Beatrice sentia que a mente e o corpo haviam se desconectado desde o reencontro na garagem. Ela assistiu enquanto Jake abraçava Meredith, enquanto colocava um cobertor em volta de cada garota. Assistiu enquanto Javier e Machete traziam uma maca pela rampa de saída da garagem, ajudando Taylor a colocar o corpo do soldado desacordado sobre ela. Assistiu tudo à distância, ainda congelada onde havia parado. Seu marido não lhe dirigiu o olhar, estagnado demais pela presença das meninas.

Duas.

Era tudo o que Beatrice conseguia pensar.

Havia duas crianças à sua frente; quatro ficaram para trás.

Com os braços cruzados e a mandíbula trincada em tensão, Beatrice deixou que o grupo se afastasse, levando o soldado. Deixou que Jake abraçasse as meninas pelos ombros, sussurrando alguma coisa quando Becky olhou na direção da mãe, provavelmente para guiá-las até a enfermaria. Deixou que Sherwood passasse em direção à escada, retesando-se quando ele tocou seu ombro. Ela não queria um apoio; não queria olhares. Não queria atenção.

Dylan pareceu sentir isso. Ela dirigiu um aceno rápido para Harley, e as duas deixaram a garagem em silêncio. Os zumbidos das lâmpadas pálidas eram os únicos sons sobre a mulher. Os únicos sons em sua cabeça, uma vez que seus pensamentos se tornaram uma algazarra de terror.

Duas garotas. Beatrice havia perdido quatro filhos.

Fechou os olhos por um instante, sentindo os tremores do corpo se intensificarem.

– Jeremy, Meredith, Abigail, Rebecca. – Beatrice murmurou para si mesma. Ela testou a força dos seus nomes, o quanto ainda mexiam com suas emoções. Tentou se lembrar da última vez que os havia chamado.

– São os nomes deles? Dos seus filhos? – Judith ainda estava ali. Quieta como uma sombra, às costas da mulher. Beatrice estremeceu pelo susto, mas não se virou em sua direção. Não queria encará-la. Não queria a presença de ninguém. Queria ficar sozinha com seus fantasmas e pesadelos.

Duas filhas. Ela havia deixado quatro para trás.

– Sim. – Sua voz soou vazia, tal como a mente desde que pusera os olhos em Meredith; desde que a garota a encarara de volta, os olhos castanhos carregados em amargura.

Uma completa desconhecida.

Em um momento, seus filhos estavam mortos, esquecidos e enterrados, vagas lembranças perdidas no tempo, tão alheios e afastados do que estava vivendo quanto outros rostos mortos pelo seu caminho. Hannah e Noah e Romero e Eustace e Clark. Seus filhos eram como eles, silhuetas apagadas numa névoa incerta.

No outro, Meredith a estava encarando e Beatrice não conseguia reconhecê-la. Quando fora a última vez que tentara se lembrar do rosto dela? Como podia ter se esquecido dos olhos dela? Que inferno era aquele que estava vivendo onde sua filha havia chamado por ela, e Beatrice nem mesmo reconhecera a sua voz?

Ela não sabia o que isso queria dizer. Não queria entender.

Rebecca ainda era a mesma, mas tão diferente. Seus olhos eram grandes e tristes e desconhecidos.

Beatrice não se lembrava da última vez que havia dito que a amava.

Os olhos de Meredith eram frios e ressentidos.

Beatrice não se lembrava da última vez que a havia abraçado.

Sua mente afundou, seus pensamentos se afogaram. Ela havia deixado seus filhos para trás, havia se esquecido das vozes deles, dos rostos deles, da presença deles, e ainda assim, duas estavam de volta. Beatrice queria abraçá-las. Queria vomitar. Queria cair de joelhos e chorar até se esquecer daquela cena assustadora; o reencontro deveria ter sido um momento de esperança e ali estava ela, tremendo de medo.

Beatrice queria gritar.

– Ela se parece com você, Beatrice. – ela estremeceu com o comentário. Judith havia parado ao seu lado, estoica em sua calmaria. – Parece forte.

– Eu não me lembrava da voz dela.

A idosa voltou o rosto para o seu. Beatrice não conseguiu encará-la, temendo o julgamento.

– Também não me lembro dos meus. Às vezes, quando vou dormir, preciso me esforçar para me lembrar do rosto de Romero. – Ela confessou, a voz concisa. Não havia nenhum abalo em seu rosto; nenhum tremor em seu corpo.

– Judith, você sabe sobre a minha família. – Beatrice sussurrou furiosa. Seus olhos ardiam, mas ela se recusava a entender por que. – Você sabe... – as palavras falharam. – Sabe que eu tinha quatro filhos.

Judith permaneceu em silêncio. Beatrice finalmente baixou o olhar sobre o dela, buscando qualquer traço de irritação pelo retruco. Não havia nada; a expressão da mais velha era compreensiva, tudo que Beatrice não queria naquele momento. Tudo que ela não merecia.

– Eu tinha quatro filhos, mas só duas voltaram para mim.

– Só? – Judith franziu as sobrancelhas, os olhos claros impiedosos sobre os da líder. – Não está grata porque duas retornaram? Não está feliz porque suas garotas estão em seus braços novamente? Quem no mundo teve essa sorte?

– Onde estão minhas outras crianças, Judith? – Ela soluçou, apertando as unhas sobre os braços, desespero irradiando de sua voz.

– Eu perdi a minha família também, Beatrice. – a idosa replicou. Não com o mesmo tom arisco de Beatrice, mas muito mais melancólico. – Toda a minha família se foi. Meu marido, meus filhos, meus netos. Você ainda está aqui, seu marido está aqui, e agora duas filhas retornaram e você nem mesmo as abraçou. Deveria estar grata pela benção que foi concedida. Todo o resto da humanidade não pode fazer o mesmo.

Você nem mesmo as abraçou. Culpa corroeu cada centímetro da mulher, cada gota de controle que ela lutava para manter.

– Eu não quero... – ela soluçou mais uma vez. Beatrice não se lembrava da última vez que havia chorado. Da última vez que havia se deixado levar pelas emoções; toda a força que carregava para liderar aquelas pessoas se tornara cinzas diante do reencontro. Diante da incerteza. – Não quero saber onde estão Jeremy e Abigail.

Judith abriu a boca, mas não falou nada. Estendeu a mão para a líder e deixou que Beatrice viesse ao seu abraço; a mesma força que ela manteve durante todo aquele tempo se esvaiu nos soluços e tremores que se seguiram, no choro agoniado que ela deixou escapar. No silêncio da garagem, com uma única testemunha, Beatrice desmoronou.


***


Meredith não reagiu ao abraço do pai. Quando olhou para Jake, com os cabelos claros e a barba espessa, os olhos gentis cheios de lágrimas, a garota quase não o reconheceu. Era igual às suas lembranças, mas fazia tempo que se obrigava a não pensar nos pais.

Naquele momento, com o braço dele sobre seus ombros, a sensação que ela esperava ter era a de segurança, mas só conseguia encontrar estranheza.

Deveria se sentir em casa, próxima ao pai daquela maneira, mas ao encarar seu perfil e seu olhar, ao ouvir seus soluços e as palavras de conforto, Meredith só conseguia se lembrar das semanas de abandono. Dos meses os separando.

Ao encarar aquele Complexo e as pessoas pelas quais passaram, só conseguia pensar em como a situação era desesperadora. Seus pais comandavam aquele lugar, salvaram todas aquelas pessoas, mas não haviam feito nada para tentar resgatar os próprios filhos.

Ela se esquivou tão logo alcançaram a enfermaria. Se Jake notou o gesto abrupto, não se deixou abalar. Manteve Becky em seu abraço enquanto conversava com outro homem – de pele negra, com seus sessenta anos, provavelmente, tinha um semblante calmo e um olhar sereno. Meredith manteve-se firme quando ele a encarou, mas não usou o mesmo olhar frio que usara com Beatrice.

Sua mãe.

Ela não movera um músculo na direção de Meredith e, para sua surpresa, gratidão foi tudo que sentiu por essa escolha. Não aguentaria um abraço dela. Se caísse aos prantos em frente à filha, Meredith teria que recuar. Teria que demonstrar toda a amargura e a mágoa que sentia pelos dois. Ela conseguia aguentar o descontrole do pai, mas não suportaria a culpa da mãe também.

O silêncio foi um bálsamo. O choque, uma pequena faísca de retribuição. Quando chamou por Beatrice, uma parte de Meredith queria se vingar. Queria testá-la. Queria que Beatrice realmente chorasse, que implorasse por perdão; mas ela permaneceu quieta e distante e coube a Meredith fazer o mesmo.

Eles a haviam deixado para trás. Haviam deixado Jeremy, Abigail e Becky para trás. Não havia a mínima vontade de perdoá-los na garota, e por isso ficou grata pelo silêncio. Se eles implorassem, ela gritaria, apontaria o dedo e os acusaria de tudo que havia sofrido. Ela contaria a eles todos os terrores que carregava consigo desde que perdera seus irmãos.

– Meredith. – ela voltou a si com o chamado de Jake; seu coração batia forte contra o peito porque a voz era familiar demais, dolorosa demais. – Esse aqui é o Doc. Ele é o médico aqui do Complexo.

– Muito prazer, Meredith. – ela aceitou o cumprimento do mais velho, mas não retribuiu o sorriso. – Seu amigo vai ficar no soro por algumas horas, mas temos remédios suficientes pra que ele melhore logo. Precisa de alguma coisa da enfermaria, ou só da cozinha?

O humor simpático quase a fez sorrir, mas Jake estava sorrindo ao observá-la, o braço ainda ao redor de Becky. Meredith assistiu aquilo com um estalo de raiva; ele não tinha o direito de agir como se toda aquela situação não fosse nada demais. Como se todos os seus filhos estivessem ali, reunidos, um reencontro esperançoso como Meredith se permitira sonhar tempos atrás.

Ele não tinha o direito de sorrir quando Jeremy e Abigail haviam ficado para trás.

– Eu e minha irmã estamos bem. – Meredith explicou. – Obrigada.

– Você deveria mostrar o dormitório a elas, Jake. Taylor pode levar os pratos de sopa lá para cima. – Doc encarou o enfermeiro, que assentiu veemente. Prestativos e amigáveis; havia muito tempo desde que Meredith encontrara pessoas assim. Desde que vislumbrara um lugar como o Complexo, tão gigantesco e fortificado. Mesmo com os mortos-vivos lá fora, havia segurança ali dentro. A sensação de que nada passaria por aqueles portões.

Seu destino não era Oz, mas, por ora, serviria.

– Vocês ficam no meu quarto até rearranjarmos outro. – Jake começou, mas aquele estalo de raiva borbulhando no peito de Meredith fez com que ela desse um passo a frente.

– Podemos ficar aqui? – seu olhar estava em Doc. O médico encarou Jake, hesitante, antes de voltar-se para a garota. – Na enfermaria? Eu queria estar perto quando o Wade acordasse. – Mentira, mas ela não se importava em dizer. A verdade era que queria estar longe de Jake pelo tempo que pudesse. Longe de Beatrice.

– Claro. Mas não é tão confortável assim, essas macas...

–- Não tem problema. – Meredith o cortou. – Nós damos um jeito. – E sorriu para Becky, recebendo um aceno confiante da menininha. O gesto foi suficiente para dissipar a expressão animada de Jake; ele migrou seu olhar para algo de melancólico e, por isso, Meredith continuou sorrindo.


09. Quando o céu cai

 

 


Íris espreguiçou-se ao deixar o quarto. Fazia tempo desde que tivera uma noite ininterrupta de sono e, sinceramente, como ela sentira falta dessa sensação. Acordar meio molenga, mas disposta. A mente tranquila, sem enxaquecas ou exaustão forçando seus olhos a se fechar de novo. Ela não tinha ideia do motivo para não terem convocado o seu turno de vigília, mas agradeceu aos céus por isso.

Sob a pouca luz daquele amanhecer, Oz estava estranhamente silenciosa. O zumbido das cercas elétricas foi a única coisa que Íris ouviu conforme descia as escadas de metal para o pátio; enquanto vestia seu casaco, a mexicana procurou qualquer pessoa vagando pelos arredores, mas não encontrou ninguém. Com uma pontada de curiosidade e apreensão, apoiou a mão sobre a pistola presa ao cinto da calça, vagando os olhos em direção aos portões do Complexo. Só para o caso de ter havido uma invasão; ela era otimista sempre que podia, mas aquela possibilidade existia – e o silêncio macabro que contemplava no momento não era comum. Taylor ou Sherwood sempre estavam no pátio há essa hora. Dylan e Harley também. Ela nem mesmo avistava Beatrice ou seu marido numa das torres de vigia, e eles sempre ocupavam aquela posição ao amanhecer.

Havia uma pessoa ali, no fim das contas. Uma garota – jovem adulta, provavelmente da idade de Dylan. Sentada num dos bancos do pátio, com as pernas esticadas à frente do corpo e os pés cruzados, ela encarava o chão de cimento com uma fúria nítida. O semblante estava franzido com aquela emoção; Íris não se lembrava de tê-la visto antes. Uma das novas moradoras, talvez. Não conheceu todos os sobreviventes que chegaram com o ônibus com todo o caos e a contenção que Sherwood impôs para afastá-los dos residentes indignados.

– Ei, tá perdida? – Íris indagou, parando a alguns passos da desconhecida.

Ainda sustentando aquela expressão irritada, ela virou o rosto em sua direção. Havia alguma coisa familiar no olhar sério, no semblante, mas Íris não sabia apontar exatamente o quê.

– Não. Estou exatamente onde deveria estar.

– Uau. Começando bem o dia, hm? – A mexicana se sentou no banco ao lado, deixando aquela distância segura entre elas, só para o caso de a garota realmente estar de mau humor. – Você veio com a galera do Rafael?

– Rafael? – as sobrancelhas dela se franziram em confusão. – Não. Só eu e minha irmã, e um cara que a gente conheceu umas semanas atrás.

– Espera, chegou mais gente aqui? – Íris resfolegou. – Dios, a Judith deve ter tido um aneurisma. – um sorriso nasceu em seu rosto. – Queria ter visto.

– Você não soube?

– Que ela morreu?!

– Não. – a garota recuou exaltada. – Achei que ia virar fofoca por aqui. O fim do mundo acabou com isso também? – ela parou um instante, e Íris só conseguiu pensar em como aquela estranha era jovem demais para parecer tão amargurada. – Meu nome é Meredith. Sou filha da Beatrice e do Jake.

Íris arregalou os olhos, mas ficou em silêncio. Que mundo pequeno, ela pensou, porque de repente era mesmo; estava contemplando uma garota que, até mesmo para os pais, deveria estar morta. Íris não sabia muito sobre o passado de Jake e Beatrice, mas eles haviam comentado sobre os filhos que perderam. Quando mencionaram, ela supôs que as crianças haviam caído como as muitas vítimas da praga. Não imaginou, nem em mil anos, que haveria uma brecha para um reencontro.

Isso significava o quê? Que os dois haviam deixado os filhos para trás, literalmente? Não seus cadáveres enterrados ou mesmo seus corpos infectados, mas deram as costas para quatro crianças e nunca voltaram para buscá-los?

– Enfim uma reação aceitável. – Meredith comentou, ganhando o olhar da mexicana de volta.

Íris inclinou o corpo para frente, apoiando os cotovelos sobre as pernas. Queria dizer alguma coisa, mas as palavras pareciam ínfimas e perdidas demais. Não fariam sentido naquela situação. Aquela garota era uma completa desconhecida, o que poderia oferecer? Felicitações por ter encontrado seus pais? Pais esses que talvez a tivessem deixado para trás?

– Seus outros irmãos vão conseguir chegar aqui também? – a pergunta escapou, quase inconscientemente. Meredith se retesou, irritação caindo para alguma coisa entristecida. Abalada ao extremo. A resposta para a pergunta de Íris. – Ah. Que merda.

– É.

– Posso te oferecer minhas condolências?

Meredith ergueu os ombros. Não respondeu, mas também não retrucou à pergunta. Íris considerou um ponto positivo.

– Pelo menos você está em segurança agora. Você e sua irmã.

A garota continuou em silêncio, e foi essa brecha na conversa que fez Íris se empertigar. Um ruído estranho soou ao longe; estranho e familiar ao mesmo tempo. Vinha do céu, como um trovão à distância. Meredith também desviou o olhar na direção, mostrando que tinha ouvido a mesma coisa.

– O que é isso? – Íris sussurrou.

Avistou uma silhueta na varanda de um dos dormitórios olhando para o céu; duas mulheres vieram da direção da enfermaria, erguendo os rostos para cima. Íris ficou de pé, caminhando de costas pelo pátio enquanto tentava entender exatamente o ponto de onde vinha o barulho. Meredith a acompanhou, cobrindo os olhos com a mão para encarar o céu pálido.

O ruído se transformou num som sequencial forte, um rugido rasgando o ar. Alguma coisa no consciente da mexicana a avisava de que já ouvira aquele som dezenas de vezes no passado, que era fácil achá-lo nos céus quando o mundo ainda existia. Mas essa coisa era calada pelos meses de silêncio que permearam o apocalipse.

Meredith, ao seu lado, estreitou os olhos. Apontou para o objeto no céu, um ponto escuro em meio à palidez da manhã, mas Íris estava observando as muitas pessoas que se reuniram no pátio; a maioria ainda parecia adormecida, desperta pelo ressoar do barulho alto. Curiosidade e receio tomavam suas feições. Bright estava entre eles, e encarou o que Meredith apontava com desconfiança.

A mexicana seguiu o ponto escuro até que ganhou uma forma; distante em meio às nuvens, ficou impossível não reconhecer o helicóptero militar cruzando a região. Quando ofegos espantados e exclamações animadas se ergueram das pessoas no pátio, o helicóptero atravessou sua linha de visão, seguindo em direção ao sul; distanciando-se até desaparecer novamente, levando seu som característico e deixando um silêncio perturbador para trás.

Quando Íris se virou para a multidão, encontrou Sherwood entre eles. O soldado, no entanto, tinha o cenho franzido, olhando para onde o helicóptero desaparecera.

– Precisamos avisar de que estamos aqui! – Bright quebrou a quietude com o seu grito. Muitos concordaram imediatamente. – Ainda dá tempo de voltar pra cá!

– Não sabemos quem está pilotando, Bright. – Íris replicou, recebendo olhares enviesados de volta. Alguns anuíram.

– Foda-se. Pelo menos é um sinal de que tem ajuda lá fora!

– Ajuda? – Machete ergueu a voz entre os moradores ali presentes. – De novo, seu idiota, como sabe que não são hostis?

– São militares!

– Sherwood é um militar! – um homem concordou. – Ele salvou nossas vidas.

– Os militares mataram meus filhos! – uma senhora exaltou de volta, indignada. – Quando a quarentena caiu, foram eles que abriram fogo nas pessoas de lá.

– Não podemos nos precipitar, é só isso que eu... – Íris tentou, mas Bright voltou a erguer a voz a fim de interrompê-la.

– Faz dias que estamos conversando sobre isso, pessoal. Pode ser o sinal que precisávamos! – Ele tinha se voltado para algumas pessoas em específico; a mexicana não gostou de como aquela situação soava como um motim.

– Pode ser que tenha outros Complexos de pé.

– Seria bom viajar pra um lugar que consiga se sustentar.

– Espera aí. Viajar? – Íris correu os olhos pela multidão, procurando Beatrice e Jake desesperadamente. Nenhum dos dois se fazia presente, para sua frustração. E Sherwood não parecia tão disposto a entrar na conversa, com os braços cruzados e a expressão ranzinza. – Quem disse que vamos deixar Oz?

– Não estou falando de você. Estou falando da gente. – Bright gesticulou para o grupo atrás dele; quase vinte pessoas, determinadas tal qual seu representante. – Desde que dividiram esse Complexo, estamos pensando em tentar a sorte lá fora. Parece melhor do que morrer de fome aqui dentro.

– Ninguém vai morrer de fome. – Machete resmungou.

– Ah, não? Acabamos de adicionar mais três moradores ao condomínio! – Bright apontou para Meredith, que não fez mais do que estreitar os olhos em sua direção. – Olhe em volta, Íris. Esse lugar está caindo aos pedaços! Mal temos comida pra próxima semana, imagine para o resto do mês!

– Vamos fazer mais incursões. Temos planos de...

– E nós temos planos de evacuar esta merda de Complexo. – Bright sentenciou. Íris encarou Sherwood mais uma vez, esperando que ele se impusesse, que fizesse alguma coisa para mostrar como aquele maluco estava errado, mas o soldado continuou quieto.

– Você está com medo, eu entendo. Todo mundo aqui está com medo. Mas não podemos abandonar o Complexo por causa disso, não sem tentar tudo que tivermos disponível. Ainda tem muitas cidades ao nosso redor, muita coisa pra vasculhar. – Íris argumentou. A ideia de mandar outro grupo para vasculhá-las com a sombra da horda pairando sobre o Complexo era aterrorizante, mas não tão aterrorizante quanto o olhar insano no rosto de Bright.

– Isso é idiotice, Íris. – o homem resmungou. – Viu aquilo no céu? Tem gente pra nos ajudar lá fora, mas precisamos sair daqui.

– E o que você quer fazer? Pegar um carro e deixar Oz? Vai embora sem nenhum alimento, sem armas, sem outros planos além de vagar pelas ruas até encontrar ajuda?

Bright ficou em silêncio.

– Vocês estão deixando o medo falar mais alto, e o medo vai acabar matando todo mundo! – Íris exaltou. – Vamos convocar uma reunião para mais tarde. Sem exaltações, sem decidir nada antes de ver a opinião de todo mundo. Tudo bem pra vocês?

Eles não responderam, mas se dispersaram. Bright por último, lançando a mexicana uma tentativa de olhar furioso; ela ergueu as sobrancelhas em desafio porque sabia que ele não conseguiria refutar sua última fala.

Diabos, a mexicana vinha pensando em deixar o Complexo havia semanas. Com a adição de todas aquelas pessoas, a evacuação se mostrava realmente necessária, mas precisariam se preparar muito antes de fazer isso. Entrar em pânico e fugir definitivamente não era uma opção, e por isso ela bateu de frente.

Se eles decidissem deixar Oz, fariam isso em grupo. Não deixariam ninguém para trás.


10. Sem esperanças

 

 


Sherwood sabia que tudo desmoronaria em algum momento, mas não imaginou que fosse acontecer tão rápido. Com a passagem do helicóptero e o crescimento de toda a insatisfação entre parte dos moradores, foi decidido que uma reunião aconteceria naquela noite. Beatrice e Jake, ainda aéreos por causa da chegada das filhas, apenas concordaram quando Judith apontou os muitos motivos que forçavam o Complexo a encarar aquilo, quase como um conselho de guerra.

Enquanto a idosa falava, a mente de Sherwood vagava para longe dali. Para a mensagem do rádio que havia interceptado e escondido dos outros, a saudação de uma Colônia que prometia abrigo e um recomeço – talvez o lugar para onde aquele helicóptero seguira. Sherwood ainda tinha o mapa com as marcações dos Complexos e das áreas que seriam usadas para as Colônias; depois da mensagem, havia vasculhado para procurar por Teresa Hill e a encontrara ao sul, quase atravessando para o país vizinho. Um projeto que se estendia além das fronteiras artificiais, que prometia segurança para que a encontrasse, independente da nacionalidade; o mundo depois da queda não precisava mais de separações como as de antes. Os países não tinham mais um nome, os povos não tinham mais uma única casa. Seu lar era onde encontrasse uma maneira de sobreviver.

Sherwood achou que poderia sustentar Oz, mesmo com tudo que vinha acontecendo. Escolheu omitir a mensagem dos outros e, por isso, manteve-se quieto durante as discussões, medindo o quanto aquela informação fomentaria o medo e desespero dos moradores insatisfeitos.

Traria mais caos para Oz. Talvez fosse a ruptura que faltava para mandar todos para longe daqueles muros que pouco ofereciam; em meio ao próprio silêncio, Sherwood decidiu que contaria a verdade quando a reunião tivesse início.

Quando subiu até a torre de rádio, no entanto, se surpreendeu ao encontrar Beatrice ali. Ela estava de pé em frente à mesa com o equipamento, os braços cruzados e uma expressão séria em seu rosto. O soldado tentou entender, mas ela não deu brecha para que ele se pronunciasse:

– Vai contar a eles sobre a Colônia?

Sherwood lutou para não reagir, mas sentiu a observação de Beatrice e sabia que ela estava lendo seu choque.

– Também faço vigílias aqui, Sherwood. Vi suas anotações. Você não se esforçou muito para esconder isso.

– Não achei que alguém fosse bisbilhotar nas minhas coisas. – Seu tom saiu arisco e por isso Beatrice ergueu as sobrancelhas.

– Isso é informação sigilosa, então? É proibido compartilhar com os outros residentes?

– Entendeu o que eu quis dizer.

– Não, não entendi. Se você sabia sobre a tal Colônia desde antes de entrarmos nessa crise, por que não falou conosco? Comigo, com o Jake, com o Taylor? Ninguém aqui te deu o direito de esconder uma coisa tão importante assim.

Sherwood permaneceu em silêncio. Sabia que Beatrice estava certa, mas ele fizera uma escolha e lidaria com ela até o fim.

Beatrice suspirou em frustração. No fundo, o soldado imaginava que havia entendimento entre eles. A mulher também tomara decisões questionáveis pelo bem maior do seu grupo; também fizera coisas desagradáveis para proteger os seus. Sherwood não podia voltar atrás, para quando tudo estava sob controle, então precisava contar a verdade. Se isso faria com que todos deixassem Oz, só as próximas horas diriam.

– Benji está saindo. – Beatrice avisou. – Ele, Dylan, Harley e Javier de novo. Vão fazer uma viagem de dois dias, passar por algumas cidades. É uma região mais distante, então deve ter mais coisas por lá. Suprimentos, armas, tudo o que precisaremos usar pra uma viagem longa.

Sherwood ergueu o olhar até o dela.

– Acha que vão votar para abandonarmos Oz?

– Não vejo alternativa. A não ser que a gente esbarre num galpão com pelo menos um ano de suprimentos, não tem como continuar sustentando Oz.

– E a incerteza das ruas é melhor que essa?

– Pelo menos estaremos caminhando pra algum lugar sustentável. Se não a Colônia, alguma região em que o plantio funcione. Em que possamos recomeçar. – ela bufa em indignação. – Atravessamos estados e o inferno pra chegar aqui e descobrir que esse lugar não era exatamente o paraíso. Acho que podemos fazer isso de novo.

– Mandou a Dylan para a incursão por causa da esperança de achar suprimentos? Ou porque vai ter uma desculpa para fazer os grupos esperarem até partir de Oz?

O olhar da mulher respondeu sua pergunta.

– Não podemos sair agora, mas vamos sair. Se a Dylan e os outros ganharem alguns dias de vantagem já vai ser suficiente. – Beatrice baixou o rosto; o tipo de exaustão que Sherwood via nela, naquele momento, era diferente de tudo que aprendera a reconhecer na líder. Parecia ir além do físico, carregando seu emocional. Seu olhar.

Não havia nenhuma esperança em Beatrice, mesmo quando falava sobre buscar por um novo refúgio. Não havia um traço de fé na voz da mulher enquanto contava a Sherwood sobre os possíveis argumentos para a reunião daquela noite. Beatrice estava drenada até o último fio, completamente entregue ao vazio; Sherwood se lembrou da conversa que teve com Taylor, quando o trio recém-chegado foi devidamente instalado na enfermaria. Lembrou-se do olhar entristecido do namorado e de como ele sussurrara que Beatrice tinha quatro filhos antes do mundo acabar; só duas retornaram para ela.

Ele não precisava de muito para entender que ali estava o motivo da queda. O motivo pelo qual não encontraria esperança em sua voz, pelo menos não por um bom tempo.


***


Meredith estava sentada na cama, as costas apoiadas contra a cabeceira. Não era confortável, exatamente como Doc havia apontado, mas qualquer coisa era melhor do que dormir no chão ou em superfícies frias e empoeiradas. Depois de muito tempo, ela encontrava conforto só para não conseguir usufruir dele.

Sua mente estava a mil desde a confusão com o helicóptero. Desde antes disso, com o olhar abismado da mãe e a presença melancólica do pai, mas nessa parte Meredith não se permitia pensar. Ela não participou da reunião que os líderes de Oz organizaram junto aos moradores, mas ouviu os comentários insatisfeitos de parte deles quando teve fim; com um grupo fora dos muros, foi decidido que esperariam seu retorno para partir. Eles acham que somos idiotas? Tá na cara que já estão conversando com a tal Colônia faz tempo, só resolveram dizer agora porque a água tá batendo na bunda. Foi o resmungo do homem que começara todo aquele pandemônio; Bright, Meredith se lembrou.

A agitação do momento não tinha a ver com o resultado da reunião, no entanto. Tinha a ver com o fato de que aquele grupo pretendia fugir; Meredith os ouvira conversando e mostrara interesse em ajudar. Estava acordada esperando Doc deixar a enfermaria para poder roubar o que Bright havia pedido. Vamos deixar medicamentos para ele, doçura, não se preocupe. Ele havia comentado ao ver a expressão indecisa de uma das mulheres. Mas temos direito a metade, visto que somos metade de todo o Complexo.

Se Meredith se sentiria mal por aquilo, só o tempo diria. Ela não tinha tempo para deixar a culpa corroer seus pensamentos; a Colônia sempre fora seu destino, Oz era uma parada rápida.

A febre de Wade tinha baixado e ele estava em segurança, ela cumprira com o combinado de ajudá-lo a chegar ali. Agora cumpriria o que havia prometido ao irmão e alcançaria a terra prometida pelas mensagens de rádio; o fato de ter encontrado seus pais em nada alterava os planos. Eles nunca estiveram em suas buscas, afinal de contas. Meredith via esse reencontro quase como um contratempo, porque eles tentariam interferir. Falariam como se tivessem algum direito sobre suas escolhas, sobre as escolhas da Becky.

Eles as haviam abandonado à própria sorte. Meredith construía essa sorte desde então.

E pensar que meses atrás, teria caído nos braços de Jake e aceitado o conforto dele com todo o seu coração. Meses atrás, teria corrido até Beatrice como uma filha desesperada pelo colo da mãe; meses atrás, Jeremy e Abigail ainda estavam ao seu lado. Naquela época, Meredith cultivava esperança porque via esperança neles. Via uma maneira de alcançar o lugar seguro, procurar os pais, viver, como havia dito ao irmão gêmeo.

Naquele momento, quando pensava no reencontro, só sentia um vazio descomunal. A sensação de que nenhum abraço ou sorriso compensaria as peças que faltavam, nenhuma lágrima traria seus irmãos de volta. Ela ainda esperava pelas desculpas dos pais, mas eles não pensaram em dizer.

Meredith sorriu quando o médico se levantou de sua cadeira, guardando o relatório do dia numa escrivaninha. Para um homem vivendo no apocalipse, ele era extremamente organizado; desligou a vitrola que ressoava um disco antigo pela enfermaria e parou à frente da cama de Meredith, lançando um olhar solidário para a menininha adormecida ao lado dela.

– Insônia? – ele indagou, no que Meredith anuiu. Não precisava mentir sobre aquilo. – Posso pedir para a Judith preparar um chá. Infelizmente não temos nenhum remédio pra ajudar com isso.

– Tudo bem, Doc. Eu me viro. Já me acostumei. – ela ergueu os ombros, dispensando a ajuda com um sorriso rápido. Nunca se acostumaria com as madrugadas silenciosas e com os pesadelos que vinham quando o cansaço a obrigava a fechar os olhos, mas sobre isso podia mentir. – Boa noite.

Doc acenou com a cabeça e se afastou; Meredith esperou cinco minutos depois de ouvir os passos dele se afastando, atenta à respiração calma e pesada da irmãzinha e do ronco suave vindo de uma cama próxima. Ela não pretendia acordar Wade para avisar sobre a fuga. Não pretendia alertá-lo sobre seu plano. Ele ainda era um desconhecido que havia encontrado no meio da estrada, só calhou de ser de grande ajuda para as duas. A dívida estava paga.

De pé em frente ao armário de remédios, a garota suspirou. Tudo bem, a culpa tinha muito a ver com Doc e com o fato de ele e o enfermeiro a terem tratado tão bem. Mas a ideia é que todos deixariam aquele lugar em breve, de qualquer maneira, então não havia nada de errado em pegar metade dos frascos guardados ali. Era uma divisão justa; seria feita caso Bright avisasse aos outros sobre sua partida.

Estava pensando naquilo para aliviar a própria consciência, sabia disso, mas manteve a linha de raciocínio enquanto enchia uma mochila com parte do estoque. Dali algumas horas, Oz seria só uma lembrança e, Meredith esperava, amargurada e determinada, os pais também.


11. Aguente firme

 

 


Íris não pretendia assumir o posto de vigília daquela madrugada, mas acabou aceitando pela falta de sono – e de álcool. Ela se odiou por não ter pedido a Dylan para vasculhar os lugares pelos quais passasse; seu estoque, mais uma vez, se reduzira a um último gole que a mexicana não tinha coragem de sorver. Com o combinado de abandonar Oz quando o grupo de Benji voltasse, ela bem que poderia usar algumas doses de bebida, e só os céus sabiam quando encontraria outra garrafa em bom estado.

A mexicana permanecera quieta durante boa parte da reunião. Sherwood comentou alguma coisa sobre a Colônia, um dos projetos do governo que, aparentemente, dera certo no sul do país – e convenientemente entrara em contato havia alguns dias, informando sobre os portões abertos para novos moradores. Sobreviventes de todo lugar; se eles tinham uma frequência de tamanho alcance, provavelmente usando alguma geringonça militar que ainda orbitava o espaço lá fora, então tinham capacidade de receber um grupo daquele tamanho – foi o argumento de um dos moradores. Íris concordou com o ponto.

E, internamente, mesurou há quanto tempo o soldado vinha guardando aquela informação. Ele com certeza não recebera uma mensagem da Colônia bem na época em que Oz começou a desmoronar. Devia estar escondendo aquilo havia semanas, talvez meses. Íris não precisava saber muito a respeito de Sherwood para reconhecer a hesitação dele; os outros tinham comprado a mentira, mas ela não.

Beatrice saíra em apoio a Sherwood tão logo ele comentou sobre a Colônia, apontando para os contratempos; todos ali haviam viajado por dias, semanas, até meses – e, naquele momento, os olhos da mulher foram para as portas, o pensamento provavelmente vagando até as filhas na enfermaria – antes de chegar a Oz. Sabiam os riscos. Sabiam os infortúnios que os esperavam lá fora. Benji partiria com um pessoal exatamente para ter certeza de que toda a região fora vasculhada, para procurar até no último prédio abandonado; enquanto eles não voltassem, Beatrice e os outros começariam a preparar a partida.

Íris vagara o olhar da líder para o soldado e criara uma pequena teoria sobre o complô entre eles. Ou um ou outro havia descoberto sobre a Colônia, provavelmente compartilhado a informação, e, como a boa democracia fajuta que às vezes assumia a frente do Complexo, decidiram que o melhor era enganar os moradores a fim de dobrá-los à sua vontade.

Ela não gostava muito da manipulação, principalmente por ter sido deixada de fora do esquema, mas entendia o sigilo. Entendia a escolha dos dois, principalmente. Oz estava à beira da ruína e revelar sobre a Colônia fora uma escolha arriscada; mais arriscado ainda seria deixar que os grupos deixassem o Complexo no dia seguinte, quando havia tudo o que Beatrice apontara a considerar.

Mandar Benji e os outros para ganhar tempo fora uma boa estratégia. Arriscada, com o problema da horda, mas eficiente no momento. Mesmo relutantes, os insurgentes acataram ao pedido da líder. Decidiram esperar até o retorno do grupo para deixar a região.

Sentada na torre de vigília, a mexicana tentou afastar os pensamentos de toda aquela tensão e incerteza, mas, encarando o horizonte sombrio, os muertos que vagavam por todo o campo extenso além do Complexo, era impossível não se deixar abalar.

Em breve, voltariam para aquele inferno. Depois de tudo que fizeram, de terem atravessado tantos quilômetros para chegar a Oz, depois de tudo o que perderam... Mais uma rua sem saída. Mais um desvio.

Ela se lembrou do que havia dito para Taylor anteriormente, sobre estarem ganhando dos infectados. Estavam mesmo? Haviam se instalado em Oz para perceber que de nada adiantaria; quando começariam a viver? Era isso que significava resistir ao fim do mundo? Cultivar um pouco de esperança para vê-la escapar entre seus dedos?

Sua atenção estava presa aos cadáveres vagando em meio à escuridão do terreno lá fora quando o som de correias quebrou o silêncio. Discretamente, o som se elevou a um arrastar característico; difícil de ouvir se não prestasse atenção. Íris ficara de vigia por tempo suficiente para reconhecer o barulho dos portões laterais sendo abertos.

Ela se empertigou e buscou o rifle de precisão ao seu lado, com a mira infravermelha encaixada à frente do visor. Não conseguiu enxergar ninguém, nenhuma silhueta. Uma pequena brecha se fazia notável entre os portões e a cerca de proteção – o motivo do som que havia ouvido.

Íris testou dois bipes para chamar a atenção do vigia da torre oeste, só para saber se ele tinha alguma coisa a ver com aquela movimentação. Ao dirigir o olhar para lá, hesitou ao ver o canhão de luz apagado. Enroscou a alça do rifle no ombro e puxou a pistola do cinto, certa de que alguma coisa estava bem errada naquele cenário.

Cruzar o pátio naquela penumbra foi fácil, mas a tensão carregava cada passo da mexicana. Quando alcançou o galpão próximo aos portões, encostou-se à parede fria; o walkie-talkie chiou de novo, mas o vigia da torre continuou sem responder. Havia a chance de o pendejo ter pegado no sono, claro, mas o canhão deveria continuar aceso mesmo assim. Íris não tinha um bom pressentimento sobre aquilo. Era muito tarde para alguém estar mexendo nos portões, ainda mais de maneira tão discreta; ainda mais aqueles, que tinham as correias para serem movidos sem o auxílio dos comandos de Sherwood.

Com cuidado, Íris espiou pelo canto da parede. Feixes de lanternas recortavam a área atrás do galpão; a brecha nos portões dava saída para uma pequena área de estacionamento, com as cercas elétricas separando o espaço do terreno vazio fora do Complexo. Havia alguns cadáveres ali, grunhindo enquanto se penduravam sobre a cerca, esticando os braços em direção aos donos das lanternas.

Não havia um som, no entanto, e por isso Íris prendeu a respiração. A eletricidade tinha sido desligada; por isso a escuridão ao redor do galpão. Por isso os cadáveres. Eles não estavam chiando em contato com o metal eletrizado.

A mexicana contou quase vinte pessoas diferentes entrando e saindo do galpão. Um dos lugares usados para estocar gasolina e armamento – que, ela reparou, estavam sendo carregados em dois veículos diferentes. Uma das caminhonetes que Benji reforçara com placas de metal e espetos de ferro e um pequeno caminhão de carga; aqueles filhos da puta estavam roubando o Complexo para fugir.

Ela deu um passo para se afastar só para sentir o cano de uma semiautomática contra suas costas.

– Vai a algum lugar, bonitinha?

– Bright. – Íris rosnou.

– Abre a boca e o Tom aperta o gatilho. – O retruco dele não tinha tom de blefe e, pelo pouco que o conhecia, a mexicana não duvidava nem um pouco da ameaça. Por isso, ergueu as mãos, mantendo a pistola bem visível entre os dedos, e deixou que a pegasse, resmungando quando Bright puxou a alça do rifle com força demais. – Boa garota.

– Não seja idiota. – ela bufou, caminhando em direção ao galpão quando se viu forçada a fazê-lo. – Acha mesmo que vai conseguir sair daqui desse jeito? Sherwood vai ouvir.

– Ele não ouviu até agora, ouviu? – Bright replicou. – O lado bom de ter servido de vigia todo esse tempo é que deu pra aprender um pouco a mexer no sistema desse lugar. Coisas como desligar os alarmes e as sirenes, as cercas elétricas, os portões de entrada...

Íris girou nos calcanhares. Tom, um dos homens que Bright aparentemente adotara como seu capanga, pressionou a arma contra seu peito.

– Ficou maluco? Você desativou a cerca e os portões?

– Como acha que vamos sair daqui?

– Os mortos vão entrar!

– Foda-se, esse lugar já caiu de qualquer maneira.

– Bright, as pessoas vão...

– Ficar bem. – Íris notou o olhar dele desviando para alguma coisa às suas costas, e virou o rosto para encontrar Meredith em sua linha de visão. Com sua camisa xadrez e o cabelo preso em um rabo-de-cavalo alto, a garota não parecia tão culpada quanto a mexicana esperava; quase resoluta, na verdade, como se não houvesse outro jeito que não roubar e fugir.

– Isso é ridículo. – ela voltou-se para o homem. – Vai condenar Oz e todo mundo que vai deixar pra trás.

– Escuta. – Íris guinchou quando Bright agarrou seu braço, empurrando o corpo contra a parede para se assomar sobre ela. Tom permaneceu atrás do líder, o olhar sério e atento a qualquer movimento brusco que ela ousasse fazer. Íris não baixou os olhos, sustentando a atenção psicótica com toda força que tinha. – Oz já era. Esse Complexo caiu, vocês é que não querem aceitar. Tentaram atrasar a gente, mas nenhuma dessas pessoas aqui caiu na historinha de “só mais alguns dias”. Eu não sou suicida, não vou ficar para trás pra servir de comida pros infectados.

– E vai deixar os outros de refeição? – Ela sussurrou furiosa.

– Bright, tudo pronto! – Com um suspiro exasperado, Íris reconheceu a voz de Judith. Quando viu o olhar enfezado da mexicana, no entanto, a idosa não fez mais do que desviar o rosto.

– Seu bichinho de estimação vai ter que me matar se acha que eu vou deixar vocês saírem daqui assim, Bright. – Íris sentenciou, estreitando o olhar para Tom.

Foi Bright quem reagiu, no entanto. Ele puxou a pistola do próprio cinto; o silenciador na ponta dela foi o que fez a mexicana sorrir amargamente. É claro que ele tomaria esse cuidado, ela pensou, o coração batendo firme em seu peito.


– Traz ela. – chocada, a mexicana voltou-se para Meredith, que acabara de subir na caçamba do caminhão. – O combinado foi que ninguém seria morto. Então ela vem com a gente.

Antes que tivesse tempo de argumentar ou mesmo de chiar com a garota, o punho da pistola silenciada de Bright acertou sua têmpora e a pouca luz das lanternas desapareceu em um breu total.


12. Junte-se ao inferno

 

 


Íris sentia o corpo chacoalhando. Seus braços pareciam dormentes, o tipo de sensação que ela não sentia havia tempos. O corpo todo doía, na verdade, e foi essa constatação que a fez abrir os olhos.

Estava em movimento, ainda que não soubesse para onde. Deitada num canto gelado de uma caçamba, a mexicana resmungou e xingou enquanto movia as pernas para se sentar. Seu quadril doía, suas costas doíam, seus braços começaram a formigar e a sensação foi de uma agonia sem fim – principalmente pelo fato de que ela não conseguiu, realmente, movê-los. Só tirou parte do peso do corpo de cima deles; havia amarras firmes em seus pulsos, cordas roubadas do armazém de Oz.

Tal como tudo naquela caçamba. Caixas de suprimentos, armas, roupas. Metade de todas as coisas que os moradores do Complexo estocaram no passar daqueles meses, como ela imaginava que Bright faria.

O desgraçado não estava ali. Quando sua visão se acostumou com o breu, recortado parcialmente por vários buracos na estrutura de ferro da caçamba, Íris reconheceu alguns dos moradores rebeldes espalhados pelo espaço. Os capangas de Bright também não estavam ali. A maioria dormia, mas alguns estavam acordados – com exceção de uma pessoa, eles não olharam em sua direção. Covardes.

– Eu salvei sua vida.

Íris revirou os olhos ao virar o rosto para Meredith. Ela estava sentada à sua frente, recostada num amontoado de roupas. A irmãzinha dormia em seu colo, encolhida pelo frio – ainda que estivesse usando roupas boas. Uma rápida espiadela mostrou o soldado resgatado também adormecido próximo dali; Íris não se lembrava do nome dele e pouco se importava. Se concordara em se juntar ao grupo, merecia morrer de febre.

– Desculpe se eu pouco me importo com o gesto afetuoso. – Foi seu retruco.

O olhar de Meredith permaneceu impassível; a garotinha em seu colo se remexeu, mas não acordou.

– Ele ia te matar.

– Que se foda. – ela grunhiu. – Vocês deram uma facada nas costas de todo mundo naquele Complexo. Puta merda, chica, você deixou sua mãe para trás!

– Estamos quites.

– Para de ser tão birrenta. – Íris replicou. – Ela deve ter tido bons motivos pra não salvar os filhos, agora você com certeza não tem motivo nenhum pra ter feito essa escolha imbecil.

Meredith não respondeu e por isso a mexicana bufou.

Seu discurso não tinha grande empatia pela causa, se pensasse bem. Ela pouco se importava com Beatrice, ainda mais para defendê-la tão arduamente; no fundo da sua consciência, Íris tinha um nome para aquelas falas: culpa. Não pela garota ou pela líder, mas por ela mesma. Também havia deixado uma pessoa para trás. Também havia fugido quando deveria ter salvado alguém que amava – diferente da morte de Clark, Íris não se permitia pensar na da mãe com tanta frequência. Era muito mais brutal e dolorosa, uma ferida permanente.

E ali, à sua frente, havia uma menina julgando sua mãe por fazer o que Íris fizera. Medo a movera para longe da mãe; quem podia saber o que forçara Beatrice e Jake a não alcançarem os filhos? Algo mais digno, talvez, ou igualmente estúpido. Íris não estava ali para jogar pedras em uma história semelhante à sua, mas apaziguar os ânimos até que eles se confrontassem e se entendessem.

A sorte daquela família é que ainda estavam vivos para fazê-lo; despedaçados, sim, e magoados, mas vivos.

– Bright contou sobre a sabotagem?

Meredith se empertigou. Foi o suficiente para a mexicana saber que estava pisando em um terreno favorável.

– Disse que desligou os sistemas do Complexo e por isso foi tão fácil fugir?

Alguns olhares se dirigiram em sua direção; era o que ela precisava.

– Não deve ter sobrado ninguém vivo naquele lugar. – usou um tom pesado propositalmente; a verdade era que não acreditava nas próprias palavras porque Beatrice sempre dava um jeito. Mesmo nas piores situações, como aquela talvez se desenvolvesse. – Quanto tempo faz desde que pegaram a estrada?

– Está amanhecendo. – Uma das insurgentes se pronunciou. Íris dobrou um olhar enviesado para ela.

– Vocês roubaram um dos rádios de satélite?

– Pegamos um deles, sim. – A mulher replicou indignada.

– Se não foi uma decisão unânime, é roubo. – Íris sentenciou, desafiando-a a retrucar. A continuar a discussão. Poderia fazer aquilo o dia todo, só pelo breve olhar de culpa que passou no rosto dela. – Mande uma mensagem. Talvez ainda dê tempo.

– Bright disse que não podíamos.

Íris bufou e abriu a boca para discutir, mas Meredith a interrompeu:

– Ele está com o rádio. – Ela parecia resoluta. O olhar calmo e equilibrado, diferente do perdido que nascera com a constatação do que fizera. De toda a situação que criaram no Complexo.

– E vai deixar por isso mesmo? – Íris bufou. Os curiosos desviaram sua atenção, como se tivesse pisado no calo de cada um deles.

– É. – Meredith ajeitou a irmã sobre as roupas caídas, levantando-se para caminhar em direção à mexicana. Tinha um cantil em mãos e ofereceu para ela quase em sinal de paz; Íris relutou, mas aceitou pela certeza de que Bright não faria a mesma gentileza quando se encontrassem. – Vamos fazer uma parada assim que o sol nascer. – Meredith sussurrou, o olhar preso aos outros presentes na caçamba. Nenhum deles interessado na cena, distraídos demais com o rumo que a situação tomara, com a informação que Íris despejou como uma bomba. – Vou atrair a atenção dos capangas do Bright e você tenta o contato.


***


Taylor conhecia o padrão. Primeiro, as sirenes soariam – e só depois disso viriam os tiros. Quando o estalido característico o despertou, no entanto, ele correu; se enroscou nos lençóis para ficar de pé, vestiu o casaco apressadamente, terror movendo seus passos ao alcançar o facão de caça e a AK-47 próximos à porta.

Na grade de segurança, tirou um segundo para prender o fôlego.

Havia errantes por todo o pátio.

Alguns poucos riscos de luz começavam a ascender no horizonte, mas o brilho dos olhos dos muitos infectados infestando o Complexo foi o que o chocou.

Nenhum dos sistemas de emergência de Oz se acendeu com a entrada das criaturas. Nenhuma sirene soou. Nenhum facho de luz fluorescente recaiu sobre as áreas demarcadas; o Complexo estava morto, tal como os corpos que invadiam o lugar.

Passado o choque, Taylor encarou os moradores espalhados por toda varanda daquela área. Sherwood e Jake eram os responsáveis pelos tiros que ouvira, derrubando os mortos-vivos que se amontoavam nas escadas abaixo do dormitório. Taylor não localizou Beatrice ou Íris, mas acenou para Machete enquanto o grandalhão ajudava uma das famílias a se afastar das grades, guiando-os para um dos quartos mais afastados – para o caso de os mortos conseguirem subir as escadas; caso Jake e Sherwood não fossem suficientes para segurar a onda que se assomava pelo pátio.

Taylor abriu fogo tão logo apoiou a arma sobre a grade; o estouro dos tiros deveria perturbá-lo, mas sua mente vagava longe dali, tentando entender a situação, o motivo de não haver nenhuma sirene avisando sobre a invasão, a razão para nenhum dos muitos protocolos de segurança não terem sido ativados com a quebra da segurança. Acima de tudo: como os mortos conseguiram entrar?

Quando dezenas de corpos caíram no pátio, Taylor ainda conseguia contar muitos invadindo pela brecha nos portões; as cercas jaziam arrebentadas. Sem a eletricidade, e com o fim da madrugada ainda a seu favor, os infectados estavam fortes. Aquelas cercas não eram nada em seu caminho.

Uma silhueta passou correndo ao seu lado; quando reconheceu Beatrice, o enfermeiro não teve tempo de pará-la. A mulher usava o tipo de expressão fria e séria com a qual Taylor talvez nunca se acostumasse. Quando viu o caminho que ela estava para tomar, ele abriu fogo contra os cadáveres sob as escadas laterais. Ironicamente, elas deveriam servir como escape em caso de emergência – e era justamente através delas que Beatrice alcançava o pátio.

Machete, de volta ao seu lado, também começou a atirar. Quanto mais o barulho ressoava pelo Complexo, maior era a quantidade de infectados transpassando os portões escancarados.

Beatrice jogou alguma coisa num canto distante e Taylor se assustou quando os estalidos da bomba sonora começaram a estourar, atraindo a atenção dos cadáveres mais próximos – abrindo caminho para que a mulher seguisse para a torre de comando; Taylor e os outros a acompanharam de cima, seguindo pela varanda coberta, derrubando os infectados que apareciam em seu caminho.

O amanhecer ainda parecia distante, para completo desespero do enfermeiro; ainda havia escuridão demais em Oz, e nem todos os mortos ficavam mortos quando os tiros os acertavam. Àquela distância, não havia tanta precisão. Íris pegara o rifle de caça de Taylor para sua vigília na noite passada – e, em pânico, ele percebeu que não havia sinal da mexicana por ali.

– Acione as cercas, Beatrice! – Sherwood gritou enquanto recarregava a arma. – A gente segura a horda!

A maldita horda que os rodeara por tanto tempo finalmente conseguira entrar. Atraídos pelos poucos minutos de tiroteio, saídos diretamente do inferno – no caminho entre Beatrice e o sistema de segurança que ela precisava religar.


***


Jake se lembrava do dia em que a escola caíra, assim como se lembrava de todos os momentos mais assustadores de sua vida. As cenas ainda estavam em sua memória, vívidas e intensas e desgastantes.

Quando Íris não veio chamá-lo para assumir o novo turno, Jake soube que havia algo de errado. Quando acordou para a solidão do quarto escuro, conseguiu ouvir os grunhidos vindos do pátio, e a mesma onda de desespero dos piores dias de sua vida caiu sobre ele. Quando viu os portões abertos e a rede de energia desligada, pânico gritou em sua mente, forçando-o a destravar a arma e começar a atirar.

A enfermaria ficava no primeiro andar.

Suas filhas estavam lá; ele as havia deixado lá, assim como fizera antes, durante as quarentenas. Becky e Meredith estavam sozinhas, encurraladas, e não havia nada entre elas e os mortos-vivos além de algumas paredes. Por isso ele atirou, atraindo a atenção dos infectados para as escadas.

Por isso continuou atirando, mesmo quando Sherwood apareceu e tentou pará-lo, avisando furioso que o som só estava piorando a situação. Por isso não tentou impedir quando a esposa passou por eles e correu para o pátio.

Eles haviam falhado uma vez. Não falaram sobre isso desde que encontraram as meninas; nem ao menos dividiram palavras desde que Meredith e Becky desceram daquela van. Beatrice mal olhou em sua direção com exceção do momento na garagem. Ali, naquele momento, eles estavam fazendo o que não fizeram antes; estavam se arriscando, arriscando Oz e tudo o que tinham, porque precisavam tirar as filhas da enfermaria.

Jake se jogaria sobre aquela horda se fosse necessário, mas resgataria suas meninas. Não havia um pingo de racionalidade em sua consciência conforme recarregava a semiautomática e derrubava mais e mais mortos-vivos; não havia uma gota de cautela em sua postura enquanto seguia a mulher do andar de cima, sombreando seus passos, derrubando os infectados à frente dela, seus lados e costas. Garantindo que Beatrice chegasse até a torre, era isso que Jake estava fazendo. Morreria fazendo, se fosse necessário. Era só fechar aqueles portões e poderiam lidar com os cadáveres restantes; se eles continuassem entrando, o cartucho da semiautomática acabaria eventualmente. As bombas de som também. Beatrice seria alcançada e os mortos invadiriam a enfermaria e Meredith e Becky se tornariam lembranças como Jeremy e Abigail.

Pelo canto da visão, Jake viu Samanta assumir posição de defesa ao lado de Machete, o fuzil de precisão firme em suas mãos. Sally, agora próxima de Taylor, acendeu o pavio de uma dinamite e lançou em direção ao pátio, ao extremo oposto para onde Beatrice corria. Lobo estava ao seu lado, disciplinado em meio a todo aquele descontrole. Mais mortos-vivos se dispersaram com a explosão, dando ao grupo mais tempo de derrubá-los.

Foi então que Jake ouviu o grito.

Vinha do pátio; da direção da enfermaria. Humano, com absoluta certeza. Nenhum guincho dos infectados se assemelhava ao terror que irradiava daquele som.

Taylor desviou o olhar em sua direção, horror cobrindo suas feições.

– Duane!

Quando o enfermeiro correu, Jake o acompanhou. Se antes o nervosismo o movia, naquele instante era o instinto de proteção unido a adrenalina. Sherwood gritou por Taylor, mas o rapaz não parou; Jake conseguiu ouviu os tiros de uma metralhadora às suas costas e sabia que o soldado os estava cobrindo – o que significava que Beatrice estava sem cobertura.

Ele não tinha visão da esposa daquela área da varanda, muito menos quando iniciou a descida pela escada lateral, mas rezou para que ela tivesse alcançado a torre de comando. Rezou para que acendesse logo as luzes e desse aos sobreviventes uma vantagem maior; rezou, principalmente, para chegar a tempo de ajudar suas garotinhas.


***


Beatrice correu em meio ao caos; foi guiada pela sinfonia dos grunhidos animalescos dos cadáveres, mas não parou. Não havia um traço de medo em sua postura, nada de hesitante em seus passos. Ela precisava alcançar a torre de comando para recuperar Oz.

Se não religasse a energia, seria muito mais difícil alcançar a garagem. Precisariam gastar muito mais munição e se colocariam em risco se não tivessem a eletricidade funcionando a seu favor.

Beatrice correu como deveria ter feito quando a quarentena em que fora enclausurada caiu. Quando bombas cobriram o céu e ela soube que teria pouco tempo para alcançar a área de segurança instaurada no colégio das crianças. Ela não aceitava cair, ver Oz cair, sem ao menos ter conversado com as suas meninas. Sem pedir perdão a Meredith e Becky.

A torre de comando ficava dentro de uma pequena área cercada; segurança extra que, naquele momento, de nada adiantava. Havia mortos-vivos enroscados no arame farpado baixo, outros que conseguiram atravessar, mesmo deixando partes da pele apodrecida para trás. Foram poucos minutos entre chegar ao pátio e alcançar a torre, mas pareciam horas se arrastando sem nunca trazer a luz do amanhecer para ajudá-la.

A cobertura que recebia da varanda de nada adiantava naquele ponto. Jake e os outros não tinham mais um ângulo bom para derrubar os infectados à sua frente; só conseguiriam segurar os que vinham de trás.

Era suficiente.

Beatrice ergueu a pistola e disparou contra o primeiro cadáver. A bala atravessou o crânio e ele despencou, empurrando o segundo corpo – ainda preso ao arame – para trás. A mulher aproveitou para atirar contra ele, descarregando o cartucho de seis balas nas ameaças barrando a entrada da torre.

A passagem se abriu o suficiente para Beatrice se arriscar, e assim ela o fez. Movida por aquela energia desesperada, atravessou a área de proteção e se esquivou dos infectados caídos. Aqueles ainda enroscados na cerca não seriam problema por enquanto; os tiros vindos da varanda seguravam os demais. Ela só precisava de alguns minutos para entender o que havia cortado a energia de Oz, o que causara aquela queda brusca. Sherwood a ensinara o suficiente para entender todos os sistemas operacionais e, principalmente, como reativá-los.

O que ela não esperava, no entanto, era encontrar um vigia morto sobre o sobre o painel de controle das armadilhas. Um tiro contra a cabeça, sangue e miolos espalhados pelo painel de controle – a queda de energia não fora um acidente, mas uma armadilha.

Ela não precisava de muito para apontar os responsáveis. A insatisfação deles se exaltara durante a última reunião, e a aceitação surgira repentina demais para tudo que Oz vinha enfrentando; Beatrice sabia que, quando vasculhassem todos os dormitórios, não encontrariam Bright e os seus apoiadores.

O Complexo fora sabotado e eles ficaram para trás.


***


Taylor escorregou em sangue quando chegou ao corredor da enfermaria. Jake estava mais à frente, derrubando todos os infectados em seu caminho; uma máquina determinada, era o que o homem parecia. Tal como a esposa, ele corria como se sua vida dependesse disso – algo mais importante com certeza dependia.

O enfermeiro não se lembrava dos horários de Doc, mas ele definitivamente não deveria estar na enfermaria naquela madrugada. Talvez tivesse voltado para conferir o estado do soldado que Meredith e Becky ajudaram a chegar em Oz; talvez tivesse decidido que queria reorganizar os estoques. Taylor só rezava para que os gritos que ouvira fossem de susto, de horror por olhar pelas janelas e ver o pátio tomado por mortos.

Quando avistou as portas da enfermaria escancaradas, no entanto, gelo escorreu por sua espinha. Pânico silenciou os estouros dos tiros de Jake, o chamado desesperado pelas filhas. Medo irradiou em cada centímetro do corpo do enfermeiro e ele queria gritar por Doc, mas não encontrou a própria voz. Continuou correndo quase em reflexo, porque a consciência estava paralisada em terror.

A cama onde o soldado fora alocado estava vazia, assim como as camas de Meredith e Becky; havia um corpo caído na entrada do cômodo, um infectado morto com o que parecia um bisturi. Sangue escuro corria pelo chão e pegadas marcavam o caminho até uma das macas ao fim do corredor; Taylor escorregou na entrada e perdeu o equilíbrio, caindo de joelhos sobre o piso gelado.

Jake continuou. Havia outros corpos pela enfermaria, mas estava escuro demais para distingui-los. Talvez fossem residentes do primeiro andar, pobres coitados que procuraram segurança na enfermaria para serem encontrados pela onda de infectados. Talvez fossem errantes caídos, simplesmente. Mesmo na incerteza daquela penumbra, com os estouros dos tiros ressoando às suas costas, Jake revirou cada um deles, a voz abafada implorando em desespero o nome das filhas, tentando encontrá-las entre os caídos.

Taylor desviou o olhar para os fundos da enfermaria, para os armários caídos. Uma silhueta se ergueu ali no instante em que Jake alcançou outro corpo, caindo sobre o homem em um baque. Um abraço, o enfermeiro pensou ao apontar a arma; alguém o estava abraçando. A mulher podia ser uma jovem garota. A penumbra não permitia que distinguisse.

Aquela podia ser Meredith.

Então Jake esgarrou um grito e Taylor correu, empurrando homem e cadáver em direção à cama. Quando a morta arreganhou os dentes em sua direção, ele puxou o gatilho, fechando os olhos quando miolos e sangue escuro explodiram sobre o colchão sujo.

Ao seu lado, perto da cama, próximo ao corpo meio-devorado de Duane, Jake ergueu o olhar assombrado em sua direção.

Taylor tropeçou para trás, soluçando em horror; pela visão grotesca do cadáver de Doc, sentenciado a morte em meio à escuridão da enfermaria, e pelo talho que a mordida daquela infectada causara no braço de Jake.


PARTE 2

TERRA MORTA


13. Não há nenhum túmulo

 

 


Dylan foi a primeira a acordar. Não se lembrava de ter pegado no sono, mas fazia dias desde a última vez que repousara antes da exaustão desligar todo o seu corpo; fazia dias desde que Oz caíra.

Taylor e Sherwood foram os únicos que ficaram para trás, para esperar os outros. Era protocolo de segurança se abrigar nos túneis subterrâneos caso alguma coisa desse errado na superfície, e por isso Dylan seguiu até os caminhos memorizados, atravessando parte do distrito industrial em ruínas para alcançar uma das entradas. Taylor e Sherwood estavam lá, à sua espera. Os outros se foram.

Apoiada no banco da moto de Benji, suas mãos mexiam no tecido esfarrapado de uma antiga máscara. Estivera guardada no fundo da sua mochila até então, junto com as caixinhas de remédio para asma que ela levava para todos os lugares. Escondida. Protegida. Naquele momento, a garota a segurava em busca de algum conforto, algum traço de coragem que pudesse extrair do objeto.

Dylan contemplou a extensa rodovia que atravessavam. Haviam parado para descansar porque, honestamente, não havia uma pista exata para seguir. A explicação rasa de Taylor consistia na queda do Complexo por conta de alguns traidores – o grupo insurgente insatisfeito com o comando de Beatrice, ansioso para deixar os muros e buscar pela Colônia –, a partida de Beatrice, Jake, Machete e outros moradores que haviam permanecido ao seu lado, na vã tentativa de alcançar os traidores, e Taylor e Sherwood, que ficaram para trás.

O enfermeiro comentou com ela que não conseguiria descansar sem ter certeza de que Dylan e Benji e os outros estariam cientes de tudo que havia ocorrido. Céus, a garota pensou; se chegasse em Oz e contemplasse aquele cenário sem ninguém para explicar o ocorrido, só conseguiria pensar no pior. Aí sim eles se tornariam um grupo errante sem destino.

Ali, eles tinham um. A Colônia.

Em meio a tudo que perderam, eles continuavam encontrando esperança. Era irônico.

Outra promessa de lugar seguro. Outro ponto em um mapa distante, com um caminho extenso e perigoso a seguir para alcançar. Dylan já vivera aquilo uma vez; sonhara em não ter que fazê-lo de novo – mas, vasculhando as pequenas cidades da região, a certeza ao retornar para Oz era de que teriam de evacuar o Complexo.

Ela só queria ter tido tempo de fazê-lo devidamente. Sherwood comentou sobre os estoques, sobre os mortos-vivos terem invadido a garagem e o arsenal, sobre terem conseguido pouco armamento para se defender. Contou sobre a enfermaria e Taylor se afastou naquele momento, porque Sherwood avisou sobre a morte de Duane. Contou que tiveram que deixar o corpo dele caído na enfermaria porque mais e mais infectados se aproximavam do lugar; a torre de controle fora danificada. Não havia como ligar as sirenes e as armadilhas de luz, não havia como eletrocutá-los. Os sobreviventes tinham suas pistolas e metralhadoras e facões, algumas poucas bombas sonoras e de luz, e foi com isso que lutaram.

Algo de sombrio cobriu as feições de Taylor quando Dylan perguntou a respeito de quem escapou; sobre o grupo que partira com Beatrice. Ele não comentou nada com ela, mas a garota não precisava de muito para saber que mais perdas cairiam sobre o grupo. Não apenas Doc, mas mais alguém se ferira naquele incidente.

O som de passos a tirou do devaneio. Ao espiar por cima do ombro, Dylan não sorriu para Benji, mas o olhar dele foi suficiente para acalmá-la.

– Tudo bem? – Ela perguntou, e ele assentiu, apoiando o quadril no banco ao seu lado. Cruzando os braços em uma pose rígida.

– Estou preocupado com o Lobo.

– Sally não vai deixar nada acontecer com ele. Não se preocupe.

– Deveríamos sair logo. – o motoqueiro comentou. – A horda está no nosso encalço desde que deixamos Oz.

– Estamos fugindo da morte e a morte está nos acompanhando. – Dylan estremeceu ao comentar, apertando os dedos ao redor da máscara; o tom saiu mais amargo do que o pretendido, e por isso Benji desviou o rosto em sua direção. – Não queria ter que fazer isso de novo.

– O quê?

– Perder um lar.

O loiro permaneceu em silêncio, seus olhos claros intensos sobre os da garota.

– Não era exatamente um lar. Pelo menos não pra mim. – as palavras dele foram sinceras, e tamanha sinceridade surpreendeu Dylan. Ela se empertigou, esperando por mais. – Tem mais a ver com as pessoas, não acha? Com quem está ao seu lado.

Ela hesitou, pensativa. Em outro cenário, sim, mas eles estavam divididos. Não havia tanta gente ao seu redor; muitas das pessoas com quem ela se importava haviam partido. Sua família estava dividida e incerteza era tudo em seu caminho. Dylan nem ao menos sabia se a Colônia estaria lá para recebê-los; se todos os que deixaram para trás alcançariam o lugar em segurança. Ela não sabia se suas últimas palavras com Beatrice ou Íris ou Judith haviam sido, de fato, as últimas.

E essa ideia a aterrorizava. Fazia com que se lembrasse de Hannah e Noah, do padre Eustace e do querido Romero; de Max. Quais foram suas últimas palavras para o garotinho?

De repente, a máscara em suas mãos pesava mais do que deveria.

Uma promessa que não conseguiu cumprir.

– Não faça isso. – Benji a surpreendeu com um toque; o polegar dele roçou a lateral do seu rosto, delicado e cuidadoso, trazendo-a para que o observasse. – Está pensando no Max. Nas coisas ruins que aconteceram.

– Como posso não pensar?

– Dylan. – o toque dele permaneceu em seu rosto. Dylan se inclinou em sua direção, aceitando a carícia. Apoiando-se nela. – Sempre que você fala, eu ouço esperança. Eu vejo esperança. As coisas ruins ao nosso redor não podem apagar isso, você não pode deixar. De todas as pessoas aqui, de todo mundo que restou, você me fez olhar para frente e esperar por momentos bons. Ajudou a me encontrar. Eu estou aqui por você também, quando precisar de uma direção.

Dylan estremeceu ao respirar fundo; a bombinha de asma estava em seu bolso, mas ela não a usou. Não estava sem fôlego, apesar do medo. Não estava à beira de um ataque, apesar do nervosismo. Alguma coisa no tom de voz do motoqueiro, na presença dele ali, a afastou de todos os pensamentos sombrios.

Naquele momento, a garota não conseguia se lembrar da sensação de esperança. Não sabia como aquela emoção funcionava porque o horizonte parecia carregado em dor e perda, devastado pelos mortos como Oz. Mas, nos olhos de Benji, Dylan conseguiu alcançar um pouquinho daquele sentimento.

Quando se inclinou na direção do loiro, fechou os olhos. Apoiou sua testa contra a dele, sua presença calma e dócil, a carícia ínfima sob seu queixo. Abraçou as palavras dele, a faísca que o olhar entregara, e as aceitou. Levaria tempo até que elas se tornassem o foco; a bússola que Dylan usaria para seguir em frente. Com Benji tão próximo, no entanto, mostrando que o horizonte não estava tão sombrio assim, ela prometeu a si mesma tentar.


***


As palavras de Íris martelavam a cabeça de Meredith. Sentada na beirada da caçamba do caminhão, os olhos da garota vagavam entre as pessoas que resolveram abandonar Oz; entre os muitos rostos confusos, com seus olhares perdidos, seus passos incertos enquanto esperavam Bright se pronunciar.

A empreitada de Íris não fora bem sucedida. Mesmo tendo alcançado o rádio, estática foi tudo que recebeu de volta quando tentou as frequências usadas pelo Complexo. O resultado disso fora um olhar frio na direção de Meredith, e o eco da sua discussão com a mexicana.

Você deixou sua mãe para trás.

A garota esperava satisfação ao pensar nisso. Esperava sentir alguma justiça sobre suas ações, algum traço de retribuição. Ainda que falsear a expressão gélida tenha sido fácil, aguentar o olhar pesado de Íris não foi. Mentir novamente para irmã menos ainda; papai e mamãe estão vindo atrás da gente, Becky. Não se preocupe.

Meredith viu a incredulidade no olhar da menininha, pouco antes que ela se deitasse em seu colo e se calasse pelo resto da madrugada. Mesmo acordada, Rebecca não deixara a caçamba do caminhão. Estava sentada nos fundos, abraçada a um cobertor, o olhar amuado. Culpa minha, Meredith assumiu. Culpa dela por continuar mentindo. Por olhar para a irmãzinha e prometer que sua família estaria atrás delas; Jeremy e Abigail não voltariam. Seus pais provavelmente também não.

A garota não tinha ciência do plano de Bright quando se juntou a ele. Cumprira a sua parte, roubando os medicamentos, e recebera ajuda para colocar Wade no caminhão porque, ao olhar para o soldado, temera que os outros não o salvassem caso fosse necessário; salvara a vida de Íris pelo peso na consciência, então por que não se certificara de que isso aconteceria com o resto? Com todos os moradores que deixara para trás? Com Doc e Taylor, o soldado que comandava o Complexo? Com seus pais?

Meredith se via arrastada pela incerteza; de um lado, a culpa. Do outro, a resolução. Não podia fazer muito, realmente, mas podia ter feito alguma coisa. Podia ter questionado em vez de simplesmente se juntar aos insurgentes, podia ter avisado em vez de fugir.

Mas aí eles me fariam ficar. Beatrice e Jake agiriam como pais, os pais que eles não eram. Dariam ordens para as duas e elas seriam forçadas a obedecer; eles cuidariam delas como não haviam feito antes, e isso Meredith não podia permitir. Perdera seus pais quando a quarentena caiu e ninguém apareceu para salvá-la, para salvar seus irmãos. A decisão tomada naquela madrugada fora perigosa, arriscada, mas era sua como todas as outras.

A culpa se dissiparia com o tempo, ou traria mais pesadelos.

Meredith suspirou. Não deixaria que a corroesse por completo. Precisava proteger Becky e ficar ao lado dos pais não faria isso. Tudo o que sentira naquelas poucas horas, todo o medo e a angústia e a raiva, isso gritava alto e calava sua racionalidade. O desejo de confrontá-los, de derrubá-los, de machucá-los como eles fizeram; Meredith não conseguia lidar. Não queria.

– Ei. – ela se assustou quando Wade sentou-se ao seu lado; o rosto pálido, mas menos entregue do que quando o colocaram no caminhão. Todas aquelas horas de sono e descanso pareciam fazer bem a ele. – Por que não está lá com eles? – Indicou o grupo disperso, duplas e trios conversando entre si. Bright e seus capangas que ficavam mais medonhos cada vez que olhava para eles. Íris distante de todos, os braços cruzados com força, encarando a estrada pela qual vieram.

– Não quero. – Meredith disse simplesmente, recebendo um aceno compreensivo. – Como se sente a respeito disso? – Foi a vez da garota indicar o grupo. Wade franziu as sobrancelhas.

– Honestamente? Eu mal tive tempo de assimilar Oz antes de ser arrancado de lá. – um riso fraco escapou do soldado. – Mas se você achou melhor deixar o lugar, confio na sua decisão. – Ela tencionou dizer que, por um momento, pensara em deixá-lo para trás com os outros. Algum impulso estranho a movera a retribuir o favor que ele fizera ao guiá-las; algum traço de empatia que, curiosamente, não sentira pelos pais.

– Mal me conhece. – Meredith replicou.

– Você salvou minha vida, é o suficiente pra mim.

– Eu não salvei sua vida. Você estava bem. Roubei suas coisas e teria te deixado para morrer lá na floresta se não fosse pela Becky.

Wade franziu o cenho, desviando o olhar para a estrada.

– Eu menti. – o sussurro dele a surpreendeu. – Não estava indo para Oz. Pretendia passar bem longe de lá, na verdade. Como tudo que tenho feito desde o fim, só estava... Seguindo em frente, sem rumo.

– E de repente achou uma boa ideia ajudar duas estranhas que quase o condenaram a morrer de fome? – O sorriso dele quase a fez sorrir.

– Vocês me deram um propósito. É idiota dizer isso, mas de repente pareceu certo te ajudar.

Meredith se inclinou contra a parede da caçamba, encarando-o com um ínfimo traço de bom humor.

– Nós te fizemos rever sua vocação?

Dessa vez, Wade riu. Um riso fácil, espontâneo. Bem-vindo.

– Fazia semanas, talvez meses, desde que alguém tinha conversado comigo. Quando eu fugi da quarentena em que estava servindo, estava morrendo de medo. Queria ajudar, mas não daquele jeito.

Meredith estremeceu. Lembrou-se do terror da quarentena em que ficara encarcerada, da incerteza permeando cada hora de cada dia. O fato de Wade, do outro lado do tabuleiro, também ter vivido esse terror a confortava um pouco.

– Enfim... Eu agradeço por ter se lembrado de mim. – Wade se empertigou. – Se é para seguir em frente com alguma companhia, que seja uma familiar.

– Posso ter te condenado ao te trazer junto. – Um tilintar em sua mente a acusou da mentira; ela havia condenado as pessoas que ficaram no Complexo. Wade estava a salvo por ter sido tirado de lá a tempo.

– Pode ser. Mas a gente lida com riscos não importa pra que lado vá. Foi arriscado ir para Oz, foi arriscado sair de lá. – ele ergueu os ombros. – Tem muitas pessoas aqui, todo mundo disposto a sobreviver. Dá pra trabalhar com isso, a união que uma situação dessas cria.

– Não parecem unidos. – Meredith sussurrou.

– Você tem a Becky. E a mim. É união suficiente, se quer minha opinião. – Wade lhe dirigiu uma piscadinha, no que Meredith fingiu aceitar. Muito do que pensara nas últimas horas tinha a ver com fingimento; enganar Íris, sua irmã, agora Wade. A verdade era que estava enganando a si mesma, fingindo que sabia o que estava fazendo ali.


***


– Beatrice, deveríamos parar. – A voz de Machete soou como um eco. Distante e repetitivo e abafado. A mulher negou com a cabeça, mantendo os olhos na estrada. Não fazia ideia de qual seria o caminho tomado pelo grupo de Bright, mas se arriscara na direção que eles com certeza seguiriam.

Havia muitos caminhos para chegar até a região onde a Colônia fora erguida, a autoestrada e rodovias menores a tomar. Eles poderiam ter tomado a direção das cidades mais distantes, se arriscando entre os prédios abandonados e milhares de possibilidades que ofereciam. Poderiam optar pelo vazio, então se manteriam nas estradas subsequentes. Poderiam até mesmo fazer alguma loucura e se lançar ao desconhecido, áreas pouco exploradas que contavam com cidades menores, abrigos temporários reportados durante as quarentenas, hordas pequenas que rondavam esses lugares. O grupo que chegara a Oz com o ônibus viera de uma dessas comunidades pequenas, agora controlada por mercenários.

Bright podia estar caminhando direto para lá.

Meredith e Becky junto a ele.

– Beatrice. – Machete repetiu. – Precisamos parar.

– Não.

– Jake está mal.

Não.

Ela pisou no acelerador; atravessaram muitos quilômetros de autoestrada desde o amanhecer, desde que Taylor e Sherwood decidiram ficar para trás a fim de esperar Dylan e os outros.

Beatrice nem ao menos se lembrou do outro grupo.

Quando Taylor apareceu na varanda carregando Jake, algo dentro da mulher se rompeu. Enquanto Sherwood e Machete cuidavam dos mortos-vivos para Samanta e os outros alcançarem os veículos mais próximos, reunindo o que conseguiam no pouco espaço de tempo para escapar, Beatrice se ajoelhou ao lado do marido, apoiou testa sobre a dele e chorou.

Quebrada, era como ela se sentira. Completa e irreparavelmente quebrada. Suas filhas haviam voltado, mas Jeremy e Abigail não. Oz deveria ter resistido mais alguns dias, mas parte da comunidade resolveu abandonar tudo e condenar os que deixaram para trás. Jake só queria ter certeza de que suas meninas estavam bem e agora sangue escuro e uma ferida mortífera marcavam sua pele.

Ela sentira os dedos dele em seu cabelo; pensara ter ouvido palavras de conforto – e foi nesse instante que os ecos começaram, interrompendo a lembrança. Ecos da despedida de Sherwood e Taylor, enquanto rumavam para os túneis subterrâneos, ecos dos motores ligando e deixando Oz para trás. Ecos das promessas feitas naquele Complexo, de que tudo ficaria bem.

Ela parou a caminhonete no meio da autoestrada. Pensou ter ouvido Machete chamando seu nome, mas se livrou do cinto e saltou para fora do veículo, tropeçando nos próprios pés. Se antes sua visão estava presa ao horizonte, naquele instante ficou turva e ela se viu caindo de quatro no chão áspero; ralou as palmas das mãos no asfalto e agradeceu pelo breve momento de lucidez que acompanhou a dor.

Ouviu vozes das pessoas descendo dos outros veículos, mas permaneceu naquela posição até ser sombreada por alguém. Ergueu o rosto para o olhar compreensivo de Sally, as mãos apoiadas sobre a barriga proeminente; Deus do céu, Beatrice pensou. Eles não tinham um lugar seguro para o nascimento da criança. Os gritos da mãe e do bebê chamariam a atenção à distância.

– Beatrice. Jake quer falar com você. – Sally avisou; o olhar dizia tudo. De compreensão para melancolia, com uma única certeza para o fim daquela conversa.

Beatrice se pôs de pé. Limpou as mãos na calça jeans e caminhou com pressa em direção ao utilitário que Samanta dirigia. Atrás dele, outra caminhonete – tal como a primeira, carregada com tudo que conseguiram alcançar no pouco tempo de evacuação. Tinham mais armas que suprimentos; se por um lado era bom pela proteção, por outro era terrível pelo racionamento e por não saber quando encontrariam mais estoques para vasculhar.

Jake estava sentado no banco de trás do utilitário. Samanta dirigiu um olhar rápido para Beatrice, pena moldando todo o seu rosto, e se afastou. Não havia mais ninguém ali com eles; o grupo se dispersou para onde Machete e Sally estavam, distantes do casal.

Da despedida.

Jake jazia pálido contra o estofado escuro do carro. Sally improvisara uma atadura sobre o ferimento, usando os conhecimentos que adquirira com Taylor, mas de nada adiantava realmente; aquela mordida era o fim. Nenhum medicamento ou tratamento curaria Jake. Só havia uma saída para ele, e o peso da arma no cinto de Beatrice foi o que mais a perturbou em todo o cenário.

Quando ouviu sua aproximação, Jake abriu os olhos para ela. Íris claras, concisas, surpreendentemente calmas contra todo o desespero rondando a mulher. A cor intensificada pela vermelhidão crescente em seus olhos. Ele estendeu a mão esquerda e Beatrice a encarou por um instante, lembrando-se das vezes em que ele a tocou, a abraçou e a amparou. Lembrando-se de quando se casaram, de quando Jake segurou seus filhos pela primeira vez. Lembrando-se de quando seu apoio foi tudo que sustentou Beatrice, que a impediu de desmoronar.

– Não me olhe assim. – Jake sussurrou.

Beatrice se sentou ao lado dele, aproveitando um pequeno espaço no banco. Estava próxima o suficiente para notar o calor febril de sua pele, as veias escuras sob a pele. O tremor leve em todo seu corpo.

Desde que deixaram o Complexo, sua situação deteriorara absurdamente; ele não duraria muito tempo mais. Não levaria mais do que algumas horas para a febre destruí-lo, para que os tremores se tornassem convulsões.

A mão dele cobriu a sua, familiar com cada detalhe; Beatrice acompanhou o gesto e fechou os olhos quando Jake a beijou, os lábios quentes contra sua pele fria.

– Faça. – ele pediu. – Por favor.

Beatrice soluçou. Aproximou-se para apoiar a testa contra a dele, com cuidado para não tocar o ferimento ao abraçar seu corpo. Ouviu Jake suspirar e o manteve ali, impedindo que se afastasse em definitivo; não podia perdê-lo, mas ele estava escorregando entre seus dedos naquele exato instante.

– Beatrice, olhe para mim. – Jake tocou seu rosto, e ela abriu os olhos para fazer o que ele pedia. – Tem que achar nossas meninas.

– Deveríamos fazer isso juntos.

– Eu sei, amor. Mas não vou muito longe. – o sorriso triste dele a estraçalhou; deveria ter checado a enfermaria antes de correr para a torre. – Meredith e Becky precisam de você.

– Precisam de nós, Jake. O que eu vou dizer a elas?

– Que eu não as deixei. – ele sussurrou arrependido. – Que, diferente da última vez, corri para elas, para salvá-las. Que fiz o melhor para protegê-las.

– Não pode se culpar pelo que aconteceu antes.

– Se não aceitar a culpa, nunca vai superá-la. – Jake beijou o canto da sua boca, o gesto doce e amoroso. – Nós erramos em desistir, mas ganhamos uma segunda chance. Não desista, por favor. Encontre as duas, peça perdão. Proteja a nossa família.

– Não é justo. – Beatrice murmurou; sentia o descontrole em sua voz, o tom de alguém que implorava por ajuda.

– Eu vi Jeremy e Abigail, amor. – o coração da mulher se partiu. Milhões de pedaços espalhados pelo caos do mundo. O olhar de Jake desviou para o outro lado da rua, para um ponto vazio. – Eu falei com eles, pedi perdão. Eles prometeram que vai ficar tudo bem.

– Jake.

A mão livre dele alcançou a arma em seu cinto. Lágrimas turvaram a visão de Beatrice enquanto o marido a colocava sobre suas mãos.

– Eu vou para fora. Não quero que suje o carro. – Um leve tom descontraído depois de toda aquela melancolia; Beatrice não conseguiu sorrir, independente da tentativa. Jake pareceu entender a sombra que recaia sobre a mulher, e por isso a beijou. Um último gesto de cuidado e carinho.

Beatrice se levantou e deu espaço, ajudando Jake a cambalear para fora do carro. Ele se soltou dela e alcançou a traseira do veículo, apoiando as costas ali ao se sentar. Não queria nenhuma plateia e os outros respeitaram isso. Nenhum deles interrompeu o momento, mesmo quando um prolongado silêncio se seguiu. Mesmo quando o tiro estourou a bolha de quietude, ressoando por toda a autoestrada. Mesmo quando Beatrice gritou e gritou até a voz falhar; eles respeitaram e se mantiveram distantes.


14. Império de sujeira

 

 


Íris precisava deixar algum rastro. Qualquer marca ou mensagem para mostrar que estava entre eles, que estava viva. Que seguiam por aquele caminho. Ela pouco se importava com o fato de não ter alcançado as frequências de rádio; em seu coração, sabia que seu grupo havia sobrevivido. Sabia que Taylor e Sherwood conseguiram escapar, que Beatrice e Jake, Machete e Sally estavam bem. Que Dylan, Harley, Benji e todos os outros os encontrariam e dariam um jeito de vir atrás desses desertores.

Se não acreditasse nisso, se pensasse em todos os cenários catastróficos que podiam ter resultado daquela traição, ela enlouqueceria. E não havia uma maldita gota de álcool em todos os suprimentos roubados por aqueles desgraçados, o que significava que enlouqueceria em dobro.

Sentada no meio fio, Íris massageava os pulsos doloridos. Depois de muita insistência, Bright decidira deixá-la livre; sem armas de qualquer tipo ao seu alcance, mas pelo menos podia andar por aí sem aquelas amarras. Ele não descobriu sobre o incidente com o rádio. Meredith fora rápida e eficaz e Íris permanecera em silêncio quando ele a confrontou sobre a liberdade; você deveria estar amarrada dentro daquele caminhão. No que ela sorrira e mostrara o dedo do meio.

Nem um pouco madura, ela sabia, mas com aquele cara não tinha muito papo. Bright era psicótico e instável, mas reagia melhor a discussões. E tinha seus guarda-costas, o que obrigava a Íris a medir suas reações. Com o apoio de Meredith e de alguns membros do grupo – Íris ainda os odiava, mas ganhara um pouquinho de simpatia por terem ficado ao seu lado – a liberdade lhe fora entregue.

Estavam parados em um posto de abastecimento abandonado; a loja de conveniência ganhava flashes das lanternas do trio que a vasculhava, em busca de qualquer coisa que com certeza não encontrariam. Benji já viajara para aquela região; o grupo do ônibus chegara através dessas estradas.

Tudo que havia à sua frente era um grande nada – se dessem sorte. E eles não costumavam contar muito com isso.

Passos a alertaram de uma aproximação, e Íris fechou a cara ao se virar e encarar Judith. Os cabelos brancos estavam presos em um coque firme atrás da cabeça, o colar de pérolas ainda intacto em seu pescoço; mesmo com a calça jeans esfarrapada e a camiseta velha, a mulher caminhava com uma postura firme – como se não tivesse deixado o seu grupo para trás covardemente. Como se não tivesse traído a confiança de todos que salvaram sua vida.

– Posso? – Ela indicou o espaço ao lado da mexicana, que ignorou para desviar o olhar. Judith se sentou mesmo assim.

– Se veio fazer drama pro meu lado, saiba que eu pouco me importo com o que tem a dizer.

– Não vim. – a idosa replicou. – Só queria uma companhia.

– Seus novos amigos não são tão agradáveis assim?

– Eles não são meus amigos. Só tinham opiniões parecidas com as minhas.

– E por isso resolveu trair todo mundo?

Judith suspirou pesadamente.

– Eu estava exausta, Íris. E Beatrice não parecia disposta a realmente fazer alguma coisa para mudar o cenário que estávamos vivendo.

– Íamos deixar o Complexo logo, Judith.

– Tem certeza? E se Dylan e os outros voltassem com alguns suprimentos a mais? Acha que Beatrice não postergaria a partida só pela falsa sensação de segurança que tínhamos ali?

– Era melhor do que isso. – Íris gesticulou para a estrada vazia; para o horizonte incerto. – Preste atenção, Judith: vamos morrer antes de alcançar o que quer que seja aquela Colônia.

– Não pode ter certeza.

– Você parecia bem certa de que o Complexo estava acabado. – Íris lançou um sorriso de escárnio, no que Judith desviou o olhar. – Bright também não te contou sobre o sistema de segurança, né? – Involuntariamente, seu tom de voz caiu para um tom mais cauteloso, menos acusativo.

Judith negou com a cabeça.

– Ninguém sabia. Bright disse que ele e seus capangas cuidariam de tudo, e usou o pouco tempo que tínhamos para criar essa aura de tensão. Nem percebi as cercas desligadas. Achei que a escuridão tinha a ver com o plano, um blecaute temporário. Devia ter percebido.

– Se serve de consolo, eu também não me toquei. – Íris deixou escapar, resoluta. – Quando percebi já era tarde demais pra fazer alguma coisa.

– Acha que eles escaparam? – Judith cruzou os braços; sua postura confiante caiu para desconforto. – Acha que tem alguma maneira de contatá-los?

– Eu tentei. – quando confessou, seus olhos recaíram sobre Bright; o desgraçado tinha arranjado cigarro em algum buraco do inferno. O cabelo ensebado sombreava seu rosto, mas ela conseguiu ver as espirais de fumaça escapando da boca. – Mas não adiantou nada. Aquele pendejo deve ter feito alguma coisa com os rádios também.

– Mas ainda tem o da Dylan. – Judith comentou, ganhando a atenção da mexicana de volta. – Eles levaram o rádio via satélite, Javier sempre carrega na mochila.

– Talvez. – Íris não se deixou ter mais esperanças do que as que já cultivava. – Precisamos deixar um rastro.

– Como é?

– Se eles escaparam de Oz, vão para a Colônia também. Não tem outro lugar seguro em quilômetros. Podem até mesmo seguir o mesmo caminho que o nosso. – não havia nada hostil na expressão de Judith, por isso Íris continuou: – Quero deixar algum rastro pra saberem que passamos por aqui, caso usem essa estrada. Tem que ser alguma coisa óbvia.

– Bright não vai gostar.

– Bright que se exploda. – Íris resmungou. – Você deve isso ao grupo, Judith. Mais do que qualquer um aqui. Estamos juntas desde que a merda toda começou, não pode dar as costas em definitivo.

– E o que seria óbvio?

Ela parou e pensou. Beatrice e os outros combinaram marcas e sinais para deixar em lugares vasculhados, símbolos fáceis de desenhar com carvão ou sangue de morto-vivo; mas era uma autoestrada muito aberta e eles talvez não fizessem paradas como o grupo estava fazendo, ansiando por alcançá-los.

– Um bloqueio, talvez? Não passamos por nenhuma horda no caminho pra cá, e a única na cola deles vai estar em desvantagem por causa das horas de viagem.

– Está calculando tudo de acordo com o que acha que eles estão fazendo, Íris. Pode ser que nem tenham pegado essa rota.

– Mas, se pegaram, vão saber que estamos por aqui. E eu vivi com a Beatrice o suficiente para conhecer um pouco sobre ela, dá pra medir as possíveis decisões que ela vai tomar.

Judith fez uma careta, mas não discordou. Depois de todos aqueles meses de convivência, depois de conhecer Beatrice em seus extremos, Íris tinha quase certeza de que, livre de Oz, ela escolheria a autoestrada. A direção das cidades era muito perigosa; as outras rotas muito incertas. Aquela era uma linha reta em direção ao destino, com poucas paradas e uma única ameaça – Bright ouvira a história sobre os mercenários. Pelo menos nisso a mexicana esperava que ele fosse sensato o suficiente para desviar o caminho.

Depois de convencer Judith, Íris se afastou para analisar a autoestrada.

Havia dezenas de veículos parados por toda ela. Quatro dos mais próximos seriam o suficiente; tinha spray e tinta entre as coisas que Bright roubara, nas mochilas usadas em incursões. Mesmo se não tivesse nada disso, ela ainda poderia trabalhar com a poeira que cobria os carros.

Quando se aproximou do primeiro deles, no entanto, Íris ouviu um grito indignado e se virou para o traidor.

– O que pensa que está fazendo? – Bright avançou em sua direção com a pistola em mãos; seus capangas no encalço, as semiautomáticas bem mais ameaçadoras que a pistola.

– Deixando uma mensagem para os outros.

– Nem fodendo!

– Abaixa esse tom pra falar comigo! – ela retrucou. – Beatrice não é sua inimiga, as filhas dela estão nesse grupo. Eu vou deixar um recado para o caso de passarem por aqui.

– Eles só vão causar problema pra gente.

– E você acha que eles não estão viajando pra Colônia? – Íris cruzou os braços. – Acha que Beatrice não vai te encontrar lá eventualmente? Qual era sua ideia, Bright? Sabotar o Complexo e matar todo mundo que ficou para trás, assim não teria dor de cabeça durante a viagem?

Ela não recuou quando o homem ergueu a arma em sua direção. O cano estava na linha da sua testa, mas Íris se resignou a soltar um riso debochado.

– Atira em mim. Vai ganhar a confiança de todo mundo, com certeza. – indicou o grupo atrás dele com a cabeça, e Bright soltou um grunhido frustrado ao avistar os observadores. – Pode me proibir de carregar uma arma, mas não vai me proibir de ajudar minha família.

– Vamos partir em dez minutos. Você tem esse tempo pra fazer essa porra e voltar com a gente, ou te deixamos pra trás.

Íris engoliu em seco; não havia blefe na voz dele. Assim como ele parecera determinado a tirar sua vida antes de deixarem Oz, ali ele parecia igualmente certo de que partiria sem a mexicana.

Judith passou ao lado do homem e se dirigiu até onde Íris estava parada; vestira luvas de jardinagem, que costumava usar no Complexo antes que as hortas morressem, e gesticulou para que a morena desse as ordens. Com um aceno rápido, Íris posicionou-se na lateral de um dos carros – o menor e mais próximo que conseguiu encontrar. Judith pôs-se ao seu lado.

– Eu realmente não sabia sobre Oz. – a idosa murmurou, o cenho franzido em consternação. – Se soubesse, teria... Tomado outra decisão.

– É tarde demais pra voltar atrás agora. Mas pelo menos ainda dá pra fazer alguma coisa.

O esforço das duas para começar a mover o carro foi ridiculamente em vão; os observadores, por sorte, não permaneceram impassíveis. Uma prova de que o desespero realmente os havia movido a tomar aquelas decisões impulsivas, que não houvera maldade no fato de terem abandonado Oz.

Só medo.

O soldado resgatado por Meredith – Wade – foi um dos primeiros a se prostrar próximo da mexicana. Mesmo ainda abatido pela febre, ele colocou força e junto a mais duas mulheres, conseguiram empurrar a lateral do primeiro carro para o meio da estrada. Antes que Íris alcançasse o segundo, Meredith e mais alguns homens fizeram o mesmo, arrastando o sedan empoeirado para ficar de frente com o outro.

O olhar da garota encontrou o da mexicana, e havia mais suavidade e simpatia do que antes. Íris meneou a cabeça em agradecimento, no que Meredith desviou o olhar para Judith e Wade e sorriu. Outra parte dos sobreviventes se moveu em direção ao terceiro veículo, no que Íris guiava seu grupo para empurrar o quarto.

– O que podemos escrever?

Íris pensou, mas foi Meredith quem buscou a mochila e alcançou a lata de spray; tinta vermelha que Benji costumava usar para fazer as marcações nas casas vazias pelas quais haviam passado.

O grupo se dispersou quando Bright os chamou, deixando apenas Íris e a garota para trás. Wade esperou por Meredith, uma mão sobre o ombro de Rebecca, e Judith, mais atrás, parou para observar a cena. A garota pichou a lataria dos carros com rapidez, como se as palavras estivessem martelando sua mente; como se a mensagem já estivesse formada e ela tivesse aguardado o momento certo para escrevê-la. Simples e curta, mas identificável. Beatrice saberia que eles haviam passado por ali.


15. Consegue sentir meu coração?

 

 


Taylor fechou a porta do carro com cuidado. Sherwood estava do outro lado, encostado à lateral, esperando pelo retorno de Benji. Apesar da horda que os seguia desde Oz, um contratempo estava à frente deles. Um grupo de infectados, consideravelmente ameaçador, zanzava pelos dois lados da estrada pela qual deveriam seguir. A cena foi quase idiota; ambos os veículos frearam com tudo ao seguir por uma curva fechada. Ao fim dela, muitos corpos apodrecidos andavam sem rumo. Mais alguns metros e eles teriam sido notados. Estariam no meio de uma batalha, não esperando para ver se ela iria acontecer.

Tiveram sorte de encontrar com o grupo durante o dia; à noite, o barulho dos motores teria sido suficiente para despertá-los daquele torpor, mas a luz continuava a afetar os infectados. Nenhum dos mortos havia se movido na direção dos veículos.

Eles tiveram tempo de estacionar e observar, tentando encontrar um caminho alternativo. Benji seguiu sozinho pelo meio fio; queria ter certeza de que não havia como atravessar.

Taylor contou pelo menos trinta deles, mas com certeza havia mais. Sempre haveria mais. Eram como formigas; mate algumas e mais aparecem. E com a ameaça da horda maior às suas costas, eles não podiam perder tempo.

Benji parecera querer atacar. Quando desceram do carro para conversar em voz baixa, o motoqueiro sugeriu atrair os mortos-vivos para perto, usá-los como barricada, aproveitar que as criaturas se moviam débeis e pouco ameaçadoras, mas Sherwood e Javier apontaram os problemas. Gastariam muita munição, com o risco de ganhar mais companhia desagradável. Perderiam um tempo precioso para limpar a estrada dos corpos a fim de continuar seu caminho.

Só... me deixe ter certeza de que não tem outro caminho.

Benji não queria voltar. Taylor ouvira sobre as rotas e considerara a autoestrada, mas o loiro ainda preferira aquele caminho. A autoestrada os levaria ao condomínio apontado pelos sobreviventes do ônibus; o lugar ocupado por mercenários. Beatrice não seria louca de seguir por lá – a estrada em que estavam agora com certeza era a mesma tomada pelo grupo dela. O outro... Bem, Taylor não podia falar por Bright. Ele fora louco o suficiente para derrubar a rede de segurança do Complexo e condenar todo mundo à morte, talvez fosse louco o suficiente para se arriscar por lá também.

Dylan estacou ao seu lado, apertando a bombinha de asma contra os lábios. Um olhar da loira mostrava que a incerteza sobre o que fariam não preocupava apenas o enfermeiro.

– Não sobrou nada do arsenal do Clark? – Ele indagou.

– Não. Benji tem certeza de que o Bright roubou a bolsa com as bombas. Talvez a Beatrice e o grupo dela tenham conseguido levar um pouco com o que sobrou. – Dylan soltou um muxoxo indignado. – Harley acha melhor a gente desviar e seguir pela autoestrada.

– É tão arriscado quanto derrubar esses caras e seguir por aqui.

– Pode ter mais cadáveres lá na frente. Esses podem ter desgarrado de outra horda.

– Benji não parecia tão disposto a dar as costas, Dyl. – Taylor gesticulou para onde o loiro seguira. Fazia muito tempo desde que vira o motoqueiro com aquela postura calma e ofensiva, com o rosto frio em determinação. O olhar que Benji usara ao pedir que esperassem era um dos que havia mantido Taylor afastado dele no início; o tipo de olhar que costumava colocar os Clark em problemas.

– Se você e o Sherwood concordarem, eu falo com ele. – Dylan sussurrou, apertando sua mão em apoio. Taylor quase sorriu pelo gesto, pela tranquilidade na voz da garota.

Eles aguardaram. Tensão irradiava de cada centímetro de Dylan, os olhos claros presos à guia divisória entre as estradas, por onde Benji seguira escondido. Nenhum infectado se manifestara, então o motoqueiro estava bem; se tinha alguém ali para lidar com situações caóticas, esse alguém era Benji.

Não tirava o nervosismo da garota, claro, e por isso Taylor comentou:

– Você consegue se lembrar da última vez em que se preocupou só com os mortos?

Ela franziu o cenho, confusa com a pergunta.

– Digo... Consegue se lembrar da última vez em que seu único medo eram os infectados? Não o fato de eles estarem bloqueando seu caminho ou ameaçando um lugar seguro, mas só por existirem?

Dylan hesitou. Permaneceu quieta por um instante, pensativa.

– Acho que nunca analisei dessa maneira. Eles sempre foram um ameaça a alguém ou alguma coisa importante pra mim. Sempre estiveram no meu caminho. Não me lembro de ter sentido medo por eles serem... Monstros medonhos ou coisa do tipo. Só me lembro de temer que machucassem alguém que eu amava. Ou que me impedissem de chegar até alguém com quem eu me importava. Faz sentido?

Um estalido soou próximo dali, ganhando a atenção dos infectados. Sob a sombra da guia, Benji manteve-se abaixado para chegar até o grupo; Taylor não perguntou, mas sabia que o som de distração fora obra dele.

– E então?

– Tem mais. – o motoqueiro passou a mão pelo rosto em frustração. Sherwood, parando ao lado de Taylor, cruzou os braços. – Estão espalhados pela próxima curva, não faço ideia do número de infectados além dela.

– Tudo bem. – Dylan comentou. – Pelo menos você tentou.

O olhar do loiro ficou mais suave com a fala da garota; alguma coisa entre eles, a maneira com que se apoiavam e se encaravam, fazia Taylor querer sorrir.

– Ok, então plano B? – Harley ganhou a atenção deles. – Ou já estamos no C?

– Provavelmente D. – Javier riu baixinho.

– Benji... – Sherwood prolongou o nome do motoqueiro; a voz soava apreensiva. – Quais os riscos? Se seguirmos pela autoestrada?

– Os mesmos que tivemos vindo aqui. Pode haver uma horda menor bloqueando o caminho, pode não ter nada. Beatrice ou Bright podem ter escolhido seguir por lá. – ele parou um instante. – Devem ter seguido por lá. Não tem nenhuma indicação de que tenham tomado essa estrada, e o melhor caminho depois dela é pela autoestrada. As cidades ainda são a pior rota.

– Bright é maluco, mas nem tanto. – Javier argumentou. – A outra rota é um caminho certo, pelo menos. É só seguir uma linha reta e a Colônia está no fim dela.

– Mas tem o condomínio. – Dylan replicou. – O pessoal que foi pra Oz estava fugindo de lá.

– É só a gente tomar cuidado. – Harley sorriu, mas ninguém a acompanhou. – Qual é, nós sabemos do risco. Não vamos entrar atirando nos caras e chamando a atenção de todo mundo. Além do mais, temos uma horda de estimação no nosso rastro. Podemos levá-la até lá.

– Não é como se os infectados fossem nos obedecer tão fácil assim, Harley. – Sherwood retrucou. – Javier, você tentou o rádio?

– Sem resposta nenhuma, jefe. Todas as frequências estão em silêncio.

– A gente tem certeza de uma coisa: tanto a Beatrice quanto o Bright vão seguir para a Colônia. Eles obviamente não vieram por aqui, ou esses mortos estariam caídos no acostamento. – Taylor suspirou ao fim. – A autoestrada é um problema, sim, mas o menor deles dentro do cenário que temos. Eu voto para irmos por lá.

Javier e Harley concordaram imediatamente. Dylan relutou, mas assentiu; Sherwood e Benji não se pronunciaram. Eles com certeza sabiam que era o melhor caminho, mas, assim como os outros, estavam pesando a tensão que o grupo carregaria nos próximos dias; quando se aproximassem do tal condomínio.

Eles continuaram em silêncio conforme voltavam aos veículos e deixavam aquele caminho para trás. Alguns poucos infectados pareceram notar o barulho dos motores e a movimentação, mas não fizeram mais do que começar a sua lenta caminhada quando foram deixados para trás.


***


Sherwood sentia a exaustão em cada parte do seu corpo, mas não queria parar. Seus olhos pesavam, implorando por algumas noites de sono, mas ele não podia parar. Se dormisse, os pesadelos viriam.

Quando ele e Taylor permaneceram em Oz para aguardar o retorno do grupo de incursão, as poucas horas de descanso que teve foram carregadas pelos ruídos animalescos dos mortos-vivos e os gritos de Jake. Ele viu e reviu o olhar mortificado de Beatrice quando Taylor trouxera o homem de volta, o horror estampado nos rostos de Machete e Sally enquanto ajudavam seu líder a chegar a um dos carros. Viu a dor abismal na expressão de Taylor quando perguntara a respeito de Duane e recebera as palavras “ele se foi” em resposta.

Naquela noite, antes de dormir, Sherwood havia tentando alcançar o enfermeiro, mas a mente dele parecera divagar para um canto distante e solitário; o soldado sabia bem o peso que o luto descarregava, ainda mais com o tipo de perda abrupta que Taylor havia sofrido. Por isso beijou sua testa e murmurou que estaria ao lado dele para o que precisasse e deixou que o rapaz tivesse o seu momento.

Os dias se foram e, mesmo próximo, Taylor parecia distante. Uma espiadela pelo canto do olho mostrou a expressão amuada que o enfermeiro usava, o olhar perdido na paisagem deserta lá fora.

E, ainda assim, nas horas que se passaram, Sherwood não soube o que dizer. A exaustão chegava mais e mais forte e, com ela, a frustração. Deveria fazer alguma coisa pelo enfermeiro, falar alguma coisa. Deveria estender a mão e segurar a dele; isso se tornara tão comum quando Oz ainda estava de pé, por que parecia complicado agora?

Taylor não dissera nada a respeito da sua inquietação. Ele dormira ao seu lado quando pararam para descansar, ouvira Sherwood se remexer e abrira os olhos quando um susto o despertou – mas não comentara a respeito. A conversa em grupo fora o máximo de diálogo que dividiram desde a queda do Complexo, e Sherwood se odiava por não saber como alcançá-lo. Por não saber o que dizer.

Anoitecia quando seu pequeno comboio alcançou a autoestrada; ela se estendia até o horizonte, uma única trilha em direção à incerteza.

Sherwood bocejou pelo que deveria ser a décima vez em meia hora e, ao seu lado, Taylor se empertigou. Quando desviou o olhar para o enfermeiro, teve a atenção retribuída.

As íris castanhas dele se tornaram um dos muitos detalhes pelos quais Sherwood se apaixonara; era o tipo de olhar tenro e pacífico que alcançava seu coração. Depois de tanto tempo sozinho, o soldado encontrou em Taylor uma companhia compreensiva e cuidadosa e extremamente importante. O tipo de companhia sem a qual ele não conseguiria continuar lutando.

Sherwood ainda não pronunciara tais palavras, mas amava o rapaz. Aprendera a amar cada detalhe dele, cada gesto e sorriso, cada postura e escolha. Ao encará-lo naquele instante, era a única certeza que tinha; com todas as possibilidades para as quais seguiam, com todos os riscos que estavam assumindo, era aquilo que o guiava.

Antes que dissesse alguma coisa, no entanto, Taylor indagou:

– Quer descansar?

Sherwood balançou a cabeça, ainda desnorteado pelos próprios pensamentos.

– Podemos trocar, se quiser. Não estou com sono, você com certeza está. – Um sorriso rápido de reconhecimento, no que Sherwood dobrou um olhar indignado.

Sinalizou com os faróis para Benji, que dirigia a moto à frente, e Harley com o sedan, e esperou que eles estacionassem para fazer o mesmo. O ar gélido daquele início de noite foi quase um calmante para a mente entorpecida de Sherwood.

– Tudo bem aí? – Dylan havia se inclinado para gritar.

– Trocando os turnos! – Taylor respondeu.

Sherwood ficou parado ao lado da porta do motorista até que o enfermeiro o alcançou. Taylor usou sua expressão contemplativa, analisando o rosto do soldado como um profissional.

– Quer conversar? – A pergunta dele o surpreendeu; Taylor é quem com certeza precisava conversar, e Sherwood não soubera estender essa ajuda para ele.

– Sinto muito.

– Pelo quê?

– Por Doc. – dor cruzou a expressão calma do enfermeiro, mas ele conseguiu driblá-la. – Por Oz. Por... Não ter falado nada esse tempo todo. Nem mesmo alguma coisa para confortar.

– Você não é bem um homem de muitas palavras, Sherwood. – o sorriso de Taylor, naquele instante, era a coisa mais bonita em todo o apocalipse. – Esteve ao meu lado quando eu precisei, é mais que o suficiente para mim. – ele inspirou fundo, cruzando os braços em frente ao peito. – Honestamente, ainda não sei conversar sobre isso também. Não sei se quero.

– Como “homem de poucas palavras”, só quero que você saiba que pode conversar comigo quando estiver pronto. – Sua fala arrancou uma risada rápida do rapaz, e por isso Sherwood se aproximou.

Parecia fazer anos desde a última vez em que o havia abraçado. Anos desde que Taylor erguera o rosto para o seu e aceitara seu toque; anos desde que Sherwood o havia encarado, assim tão próximo, e acariciado a ponta do nariz dele com a sua pouco antes de beijá-lo. Tranquilidade foi tudo que tomou o coração do soldado quando Taylor entreabriu os lábios; a certeza de antes, de que amava o rapaz, moveu o beijo e seu toque e Sherwood poderia viajar pelas estradas mais traiçoeiras daquele fim dos tempos, contanto que o enfermeiro estivesse ao seu lado.

Quando se afastou, Taylor apoiou a testa em sua bochecha. A respiração quente um contraste contra sua pele fria.

– Taylor, eu...

– Você vai dormir agora. – ele murmurou sem encará-lo; algo de amedrontado moldando sua voz. – Temos um longo caminho pela frente.


16. O lado errado do céu

 

 


Íris se empertigou quando alguém parou ao seu lado; estava exausta, mas não queria dormir. Sabia que Bright esperaria pelo seu silêncio para poder se reunir com os outros e decidir até onde iriam. Sabia que ele não permitiria sua participação na reunião – e que a única maneira de realmente impedi-la era esperando que adormecesse.

Aquela era a segunda parada que o grupo fazia desde que deixaram a mensagem para Beatrice. Desde que Meredith se encolheu em um silêncio perturbado, quebrado apenas por algumas conversas com Wade e Rebecca. Íris entendia o afastamento da garota; talvez o peso de suas decisões estivesse caindo sobre ela, enfim, considerando as palavras que deixara para os pais. Talvez Meredith só tivesse medido as consequências da traição ao pessoal do Complexo quando rabiscou a mensagem no carro empoeirado.

Desculpe por ter partido. Venham nos encontrar na Colônia, por favor.

Ao seu lado, naquele momento, Íris contemplou os olhos grandes e curiosos de Rebecca; a garotinha vestia um moletom muito maior do que o seu corpo, as mangas dobradas escorregando sobre as mãos. O cabelo preso em uma trança era da mesma cor que o de Meredith.

– Oi. – A mexicana cumprimentou, sem saber exatamente o que fazer.

– Posso sentar aqui?

Com estranheza, ela deu espaço para a menina.

– Ela não queria escrever aquela mensagem. – a confissão de Becky a pegou de surpresa. – Eu a convenci.

– Por quê? – Havia uma eloquência na fala da garotinha que incitou Íris a perguntar; com um aperto em seu coração, ela se lembrou de outra criança que costumava conversar com tanta facilidade. Um menininho que se escondia atrás de uma máscara quando tinha medo.

– Meredith é meio teimosa. Eu sei que ela queria se desculpar, mas também sei que ela não falaria isso sem que eu pedisse. Ela faz o que eu peço. – Becky sussurrou, abraçando as pernas junto ao corpo. – Desde... Desde que o Jeremy deixou a gente, a Mer fez tudo pra me manter a salvo. Acho que é por isso que ela não quis conversar com a mamãe e o papai.

Íris hesitou; isso mudava um pouco a maneira com que Meredith se portava naquele momento. Se não era por culpa, então talvez aquele ressentimento de antes? O que Íris interpretara em sua fala e expressão frias?

– O que aconteceu com seu irmão? – a garotinha estacou, os ombros tensos e a expressão assustada. – Ok, não precisa falar.

– Eu não sei. – Rebecca respondeu. – Ela não me contou.

– E você não tem nenhuma suspeita? – os olhos grandes recaíram sobre os seus, assombrados em alguma lembrança. Íris engoliu em seco; aquele não era o tipo de olhar que esperava encontrar no rosto de uma menina. Não era o tipo de expressão que um coração tão inocente merecia carregar. – Podemos falar sobre outra coisa. Eu só queria ajudar.

– Eu queria ajuda. – Becky confessou; o medo em seu rosto se dissipou com a mudança de assunto. – Pode conversar com a minha irmã?

– Que tipo de conversa?

– O mesmo que a gente tá tendo – a garotinha ergueu os ombros. – Só pra ela se distrair. Meredith não gosta muito de falar com as pessoas, só com Wade e comigo. Mas acho que ela gosta de você.

– Tá aí uma surpresa.

– É só que... Ela disse uma coisa na noite passada. Que você era confiável. – Rebecca hesitou. – Você é?

– Não gosto de me gabar nem nada, mas todo mundo lá no Complexo gostava de mim. Seus pais, principalmente. – Exceto da vez em que sua mãe matou o homem pelo qual eu estava apaixonada, pensou com uma pontinha de amargura.

– Então pode ajudar minha irmã?

– Olha, Becky... – Íris encarou a mais velha acuada e então a garotinha, com seu olhar ansioso e esperançoso. – Eu vou conversar com ela, sim. Mas não sei até que ponto posso ajudar. Talvez seja uma coisa para os seus pais resolverem, quando a gente se reencontrar.

– Acha que eles vão nos achar?

– Tenho certeza.

– Eles não vieram antes. – Becky baixou o rosto. – Abigail me achava burra por acreditar, mas eu esperei mesmo assim. E eles nunca vieram.

– Eu disse isso para a sua irmã e vou te dizer também: não dá pra julgar sem ouvir os dois lados, e seus pais têm toda uma história pra contar. Quem sabe agora, sem a tensão de Oz, Meredith esteja disposta a ouvir.

– Por isso você vai falar com ela. – a menina se animou. – Eu a convenci a deixar a mensagem, você pode convencer a Mer a falar com os dois quando nos encontrarmos.

Íris inspirou fundo; aí estava o problema de lidar com crianças. A esperança intrínseca na voz de Rebecca era animadora. Perigosa, a mexicana diria.

Depois de confrontar Meredith, sabia que não seria tão fácil quanto a pequena queria que fosse. Mas Íris não tinha exatamente uma rotina programada para seguir nos próximos dias, e Meredith se mostrara aberta ao diálogo. Talvez pudesse ajudá-la, como Becky sugeriu. Convencê-la de que o que havia falado antes sobre Beatrice e Jake era verdade; guiar a garota até um caminho menos ressentido, onde o perdão estivesse mais alcançável.

Não seria fácil, mas Íris não era o tipo de mulher para situações simples. Deus sabia que lidar com Clark nunca fora moleza; com Meredith com certeza seguiria pela mesma trilha. E poderia valer a pena, no fim das contas. Trazer um sorriso para o rosto da garotinha ao seu lado valeu.


***


Beatrice manteve a atenção sobre a mensagem pichada no carro enquanto Machete, Samanta e outros sobreviventes moviam um dos veículos para abrir passagem.

Um buraco se abrira em seu peito com a perda de Jake. Um rasgo irreparável que doía cada vez que a mulher se permitia pensar no último olhar do marido; cada vez que se lembrava das últimas palavras dele, da maneira gentil com que segurou sua mão enquanto observava a outra apontar a arma para a cabeça dele. Pelas horas que se passaram, Beatrice desmoronou. Machete e Samanta a ajudaram a chegar até o carro e depois daí, ela não se recordava de nada. A mente mergulhou naquele torpor agonizante, uma espiral de desespero e melancolia que parecia devorar cada pingo de sanidade que ela ainda tinha.

As pessoas tentaram falar com ela e Beatrice ignorou. Tentaram oferecer comida e água e ela ignorou. Avisaram sobre o dia que havia passado, sobre a distância percorrida, e ela ignorou.

E então Machete parou o carro bruscamente, atraindo a atenção da mulher – um olhar dele em sua direção no banco de trás avisou sobre alguma coisa importante; do lado de fora, contemplando a autoestrada, Beatrice entendeu o motivo.

A mensagem pichada num dos carros bloqueando a passagem era recente; diferente de outras que já haviam encontrado. Talvez de um dia atrás, a julgar pela cor vibrante.

Meredith.

Beatrice não precisava de muito para saber a quem pertencia. Palavras sucintas e diretas; um pedido de perdão e de ajuda. Ela duvidava que a filha, de fato, houvesse pensado naquela mensagem. Ela não dirigira um olhar a Beatrice no Complexo, precisaria de mais do que uma separação como aquela para aproximá-las. Mas a garota deixara as palavras para trás e os pensamentos da líder migraram para algo além da dor.

Uma determinação sutil. A lembrança do pedido de Jake para proteger as suas meninas; encontrá-las e mantê-las a salvo. Ele morrera por isso. Fora mordido e condenado para tentar alcançar as filhas. Beatrice devia isso aos três; à Meredith e Becky, que estavam longe e à sua espera, e a Jake, que se fora.

Ela se moveu para ajudar Machete quando o grupo começou a empurrar o segundo carro, aquele que recebera as pichações. Deixou uma das mãos tocar a primeira letra da mensagem e fechou os olhos enquanto fazia força para mover o veículo. Lembrou-se do olhar gélido da filha mais velha, do silêncio desesperador que viera dela. Lembrou-se da dor e da impotência e de não ter reunido coragem para ir até ela; para falar com ela. Para pedir desculpas.

Beatrice tinha mais coisas para se desculpar. Precisava implorar pelo perdão das filhas pelo abandono e pela morte do pai. Por não ter alcançado Jake a tempo, por não ter estado ao lado dele quando precisou – assim como não fizera com Jeremy e Abigail.

– Ei. – Machete tocou seu ombro; os olhos castanhos brilhando em compreensão. – Vamos encontrá-los. Agora sabemos que estamos no caminho certo.

Ela anuiu, sem retribuir o sorriso rápido que o grandalhão lhe dirigiu. Sally estendeu um cantil de água para ele quando voltaram, encarando Beatrice com uma expressão preocupada. As mãos estavam cruzadas sobre a barriga. Aos seus pés, Lobo tinha o focinho apoiado sobre as patas, assistindo toda a cena com atenção.

– Vamos encontrar o Taylor em breve. – Beatrice garantiu. Sally se tornara muito próxima do enfermeiro desde que chegaram a Oz. Aquela fala era uma maneira de garantir a si mesma que também alcançaria o grupo. Não só Meredith e Becky, Beatrice precisava encontrar sua comunidade. Precisava garantir que os sobreviventes de Oz se reunissem novamente.

– Quero saber de você, Beatrice. Como está?

A líder não respondeu. Sabia que seu estado era terrível; o emocional refletia no físico. Apesar de todos ali estarem alertas e exaustos, Beatrice se sentia em pedaços.

– Sei que isso não significa grande coisa, mas eu realmente sinto muito por sua perda. – Sally murmurou, tocando a mão da mulher em apoio. Beatrice aceitou, retribuindo o gesto. – Jake era maravilhoso. Você e ele mereciam mais do que esse apocalipse.

– Todos merecíamos, Sally. – Beatrice olhou para o rosto magro e abatido da ruiva, para a barriga proeminente que ela abraçava com cuidado.

Sally e aquele bebê, Machete e todo o grupo, todos os grupos, todos eles mereciam muito mais do que aquele apocalipse.

Mas o cenário caótico era tudo o que tinham e tudo o que teriam enquanto vivessem, então Beatrice seguiria em frente para que as coisas ficassem bem para eles.


***


– Então... – Íris começou, sentando-se ao lado de Meredith. – Sua irmãzinha me pediu pra falar contigo.

– Achei que tentaria ser discreta.

– Começar com um papo aleatório? Não, não é comigo. – A mexicana sorriu, mas não teve o gesto retribuído. O sacolejar do caminhão se movendo pela estrada se tornara familiar o suficiente para ela não sentisse enjoos ou desconforto, não mais do que já tinha com uma viagem tão longa e cansativa como aquela. A maioria dos sobreviventes que se espalhava pelo interior da caçamba caíra no sono havia horas, mas Íris remoera as palavras da garotinha pelo tempo que se seguiu.

Sua abordagem anterior com Meredith não fora exatamente bem-sucedida, mas também não se tornara um fracasso total. Havia algumas brechas a explorar, detalhes da personalidade da jovem que Íris conhecia bem; que reconhecia em si mesma. Ao encarar Meredith sozinha em seu canto, a mexicana se viu meses atrás, antes de encontrar Beatrice e os outros, antes que estendessem uma mão para ajudá-la.

Talvez Meredith só precisasse disso, como a própria Rebecca havia dado a entender.

– Vocês por acaso não pegaram nenhuma garrafa de tequila antes de sair de Oz, pegaram? – Meredith desviou o olhar em sua direção rapidamente. A expressão dela foi uma resposta. – Uísque? Qualquer coisa com um pouquinho de álcool?

– Você veio aqui pra fazer sessão de terapia em grupo comigo?

– Dios, não. Eu não tenho problema com bebidas.

Meredith arqueou uma sobrancelha. Íris recuou indignada.

– Não tenho. – manteve o tom de voz baixo, mas bradou com convicção. – É só um escape, mas não do tipo “vou beber até cair”. Mais do tipo “vou beber até que o Bright não soe como um babaca prepotente”.

– Teria que entrar em coma alcoólico para isso. – Meredith retrucou em meio a uma risada, e estacou em surpresa tão logo deixou a reação escapar. Íris respondeu com o riso bem-humorado, mas a garota não parecia menos chocada consigo mesma. Como se o tom leve e sarcástico fosse uma raridade.

– Quanto tempo faz?

Meredith se mostrou confusa.

– Desde que você riu.

Ela baixou o rosto, repentinamente perdida. Tudo de maduro em sua expressão e postura se desfez em uma jovialidade amedrontada; o olhar que Íris encontrara em Becky estava em sua irmã agora.

O apocalipse era terrível, mas especialmente cruel com os jovens. A mexicana se lembrava das expressões de pânico de Dylan e Max, das perdas horrendas de Hannah e Noah. Eram parte dos pesadelos que nunca teriam fim, memórias que nenhuma gota de álcool conseguiria apagar. Eram sobreviventes, e carregavam as lembranças como cicatrizes. Algumas doeriam para sempre.

– Não me lembro.

– Bom, pode começar a contar a partir de hoje. – Íris esbarrou em seu ombro, contente por encontrar um olhar mais suave no rosto da garota. – Já brincou de vinte perguntas?

Meredith fez uma careta rápida.

– Acho que sim. No colégio.

– Ok, suas companhias de conversa não vão acordar tão cedo – gesticulou para Wade e Becky, deitados ali perto. – e eu estou entediada. Vamos jogar uma versão diferente. Vinte perguntas sem entrar em terrenos perigosos, só curiosidades. Como conhecidas fariam pra se aproximar.

A garota se empertigou, apoiando-se melhor contra a parede de metal da caçamba. Íris virou de lado para ela, usando uma das caixas atrás de si para se encostar.

– Ok. – Meredith a surpreendeu ao se pronunciar; ela ainda carregava aquela aura sombria, o olhar amuado, o tipo de expressão que levaria tempo a se dissipar, mas aquela atitude era uma faísca para escapar disso. – Você começa.


17. Clube de golfe

 

 


Dylan se aproximou do infectado por trás. O dia estava nublado e frio – as nuvens escuras que se aproximavam pelo leste indicavam uma tempestade para as próximas horas – mas, com sorte, ainda havia claridade suficiente para que os mortos-vivos espalhados pelo estacionamento do clube de golfe vagassem sem rumo, desnorteados o bastante para que o grupo os derrubasse sem fazer barulho.

Taylor e Sherwood atravessaram a cerca de segurança e abriram passagem para os outros. O grupo carregara todos os seus pertences nas mochilas que usavam, pouco inclinados a deixar armas e suprimentos para trás. Mesmo com os veículos escondidos sob a sombra de várias árvores, aquilo era tudo que tinham; não podiam arriscar.

Quando Dylan ultrapassou a cerca, tirou um instante para observar os arredores. O campo de golfe se estendia para longe à sua esquerda. Havia alguns carrinhos abandonados pela extensão, e o que pareciam cadáveres apodrecidos caídos nas proximidades. Alguns infectados rondavam à distância, mas os que ofereciam ameaça foram derrubados pelo grupo.

– Parece agradável. – Harley comentou ao seu lado, ganhando um sorriso rápido de Dylan.

– Com a tempestade que está vindo, vai ser suficiente. – Sherwood replicou.

– O que acha, Benji? – Taylor encarou o motoqueiro. – Limpamos tudo ou deixamos esses errantes soltos aqui fora?

– Eu sugiro matar essas coisas. – Javier interviu. – Se a tempestade trouxer uma horda, é bom não ter nenhum cadáver aqui dentro pra atrair os outros.

Benji deixou a mochila cair no chão em concordância, puxando o facão do cinto em seguida. Dylan se adiantou para acompanhá-lo, mas Sherwood e Taylor tomaram a dianteira.

– Ei, e a gente? – Harley se indignou.

– Podemos cuidar do clube. – Dylan sugeriu, ganhando um aceno animado da amiga. Benji pareceu arredio, encarando o prédio gigante ao fundo da propriedade; afastado o suficiente para esconder uma horda ou coisa mais perigosa. Pessoas, talvez.

– Não me dê esse olhar, Clark. – Harley retrucou. O tom foi divertido, mas o brilho no olhar do motoqueiro passou longe disso. Dylan observou a dor óbvia no semblante de Benji; o gatilho que aquela simples palavra disparou nele. A lembrança do irmão acima do sobrenome. – Ninguém aqui vai invadir pela porta de entrada.

– Vamos tomar cuidado. – Javier garantiu.

– Se precisarem de ajuda, disparem um tiro. – Sherwood apontou para as pistolas que carregavam; as armas brancas eram prioridade para aquele tipo de abordagem, e por isso Dylan soltou o bastão de beisebol da mochila que carregava. Quando o encaixou entre os dedos, quase sorriu ao se lembrar de duas figuras que costumavam caçar mortos-vivos com aquele tipo de arma; quase, porque a lembrança foi tão nostálgica quanto dolorosa.

Harley liderou quando eles se separaram. Dylan caminhou apressada, procurando sinais ou rastros que indicassem a presença de alguém – a grama alta e as folhagens que cresciam sobre as placas e carros abandonados no estacionamento davam ao clube uma aparência mórbida.

O prédio de dois andares já começava a ruir; a pintura branca estava desgastada e as muitas janelas gigantescas da fachada, em ambos os andares, mostravam lascas e estilhaços, como os muitos detalhes do mundo de antes que desmoronara com o fim.

Dylan esperou Harley derrubar um dos infectados no estacionamento para avançar até o outro; com o taco em mãos, acertou a lateral do crânio da criatura, cravando a faca em sua testa quando ele despencou. Não havia mais nenhum errante pelas proximidades, o que podia ser um mau sinal – talvez estivessem presos dentro do prédio. Talvez tivessem se dispersado para trás dele e só se aproximassem com a chegada da tempestade.

A garota só torcia para que aquela chuva não trouxesse uma nova horda até eles; que a de Oz fosse a única em seu encalço. Já tinha infectados demais em sua sombra, e ela não queria lidar com mais deles. Não conseguiriam sair do clube enquanto as criaturas não se dispersassem – era melhor estar ali do que na estrada, como Taylor havia apontado para convencer o grupo a parar, mas ainda era perigoso.

E havia os outros; Beatrice e o comboio que ela devia estar seguindo. Também teriam problemas com a chegada da chuva, se passasse por eles.

– Dyl. – Harley sinalizou; na entrada do prédio, um cadáver grunhia em sua direção, os olhos brilhantes debaixo da penumbra do hall. As pernas pareciam ter sido atropeladas, e ele se arrastava para tentar alcançar o trio. Javier tomou a dianteira, acertando a cabeça da criatura com a faca que trazia em mãos.

Depois de espiar todo o hall e se certificar de que não havia mais nenhuma companhia indesejada, Dylan estilhaçou uma das janelas menores com o bastão de beisebol.

O barulho foi alto suficiente para atrair mais grunhidos do interior do prédio. Os três permaneceram em posição enquanto infectados cambaleavam para fora; alguns vestiam uniformes de funcionários, sangue escuro escorrendo pelo queixo. Alguns usavam roupas que, um dia, tinham sido de grife, mas agora não passavam de pedaços inúteis de pano.

Quando se afastaram da sombra do prédio, seus passos ficaram mais lentos. Os grunhidos, mais agoniados; mesmo a pouca luz era vantagem.

Javier avançou sobre os dois primeiros, usando a fraqueza deles para esfaquear seus crânios. Dylan acertou o que se aproximou pela esquerda com o bastão. Harley cobriu a direita. Pouco a pouco, os mortos saíam. Pouco a pouco, os vivos os derrubavam.

Dylan tremia quando o último cadáver tombou aos pés de Harley. Um olhar para a garota mostrou que aqueles minutos foram suficientes para exauri-la também; mesmo Javier respirava pesadamente.

A loira buscou sua bombinha de asma no bolso, fechando os olhos quando um pouco de calma recaiu sobre seus sentidos.

– Querem dar uma olhada lá dentro? – Javier indagou. Harley se afastou para espiar o campo, mas não encontrou sinal do trio; Dylan não se permitiu consternar com aquilo. Se houvesse perigo, eles teriam atirado.

– Sem se separar. – Harley avisou. – Como diz o Machete, isso sempre dá problema pra galera do Scooby Doo.

Dylan sorriu, apesar do nervosismo. Eles se mantiveram próximos, Javier na retaguarda, Harley liderando. Os três tinham lanternas, mas a luz externa se fazia suficiente na entrada.

Dois corpos estavam caídos sobre o balcão de atendimento, o que explicava o cheiro rançoso e desagradável; tacos de golfe sujos de sangue próximos deles. Dylan espiou atrás só para encontrar outro cadáver – este quase completamente devorado. Manchas de sangue escuro se espalhavam pelo piso de madeira e paredes.

– Ei, lembra pessoal do ônibus? – Harley sussurrou. Dylan franziu o cenho em confusão, até notar que a garota apontava para alguma coisa. Para a placa sobre o balcão de atendimento.

Clube de Golfe Theodore Roosevelt. Exclusivo para moradores.

– Merda.

– É. Merda grande.

– A gente sabia que a autoestrada nos traria nessa direção, mas... Achei que veríamos o condomínio antes.

– Bom, pulamos um muro e uma cerca gigante. Acho que invadimos o condomínio pelo outro lado. – Harley argumentou, ganhando um aceno da loira.

– Vamos continuar. Se tivesse alguém aqui, já teria nos ouvido. – Javier mostrou as placas que indicavam a direção dos banheiros, sauna, piscina e loja, além do refeitório e da área de lazer. As escadas também tinham alguns cadáveres espalhados pelos degraus – clientes, Dylan pensou, considerando as vestimentas. Talvez pessoas tentando fugir com pressa que não tiveram muito que fazer quando foram interceptados por algum infectado. Um dos corpos tivera todo o torso devorado; o outro, as pernas. Enquanto passava ao lado deles, com cuidado, a garota prendeu a respiração – quase esperando que os olhos vítreos ganhassem vida.

Harley estacou ao fim da escada, em frente a um par de portas de vidro fechadas. Dylan firmou o aperto sobre o taco de beisebol, com medo do que estavam para confrontar; o cenário de um massacre foi tudo que encontrou através da superfície embaçada. Nenhuma ameaça, só desolação.

– Dios. – Javier sussurrou, fazendo o sinal da cruz.

Corpos e mais corpos estavam espalhados pelo chão do salão fechado. Sobre as poltronas, uma pintura pitoresca contra as cores cinzentas do horizonte ao fim do cômodo. As janelas panorâmicas lançavam luz e sombra sobre as dezenas de pessoas caídas ali.

Aterrorizada, Dylan percebeu que havia poucas marcas de mordidas e pouco sangue escuro entre o mar vermelho que manchara o chão – a maioria tinha buracos de bala em suas cabeças. Homens, mulheres e crianças; não infectados, sobreviventes. Todos mortos.

Mais uma vez, apertou a bombinha de asma contra os lábios, a mente indo e voltando em todo o perigo de estar ali, tão próxima do lugar do qual tantas pessoas haviam fugido, pesando a possibilidade de voltar para os veículos e se arriscar na estrada, mesmo com a tempestade e a horda que viria com ela. Não havia ninguém no clube, mas por quanto tempo? E se os responsáveis por aquele massacre resolvessem voltar?

– Ei, calma. – Harley pareceu notar o desespero da garota, por isso apoiou a mão em seu ombro, afastando a atenção de Dylan da pilha de corpos. – Vamos nos reunir e decidir o que fazer, tá bem? Como você disse, não tem ninguém aqui. Estamos a salvo.

– Você se lembra se a gente escondeu bem os carros? – Pânico tomou conta da voz da loira. Se aqueles malucos estivessem mantendo o condomínio sob vigilância, poderiam encontrar os veículos. Encontrariam seus rastros também.

– Estão bem escondidos, chica. – Javier garantiu.

– Dyl, tem uma horda chegando e talvez outra acompanhando a tempestade, não podemos voltar pra estrada por enquanto. – Harley soltou seu ombro para segurar sua mão, um gesto gentil que trouxe um sorriso ao rosto de Dylan. – Vai dar tudo certo. A gente já passou por muita coisa, dá pra lidar com isso.


18. Caminho da raiva

 

 


Enquanto caminhava na direção de Bright, com os olhos dos capangas acompanhando cada passo seu, Íris lutava para controlar as ondas de irritação que cresciam em seus pensamentos. Ela queria socá-lo. Queria enterrar a cara dele contra o asfalto da autoestrada, fazer com que o chão o engolisse. Queria gritar em sua direção e apontar o suicídio daquela decisão; mostrar todas as pessoas que dependiam dele e obrigá-lo a entender como aquilo era insano.

Se a mexicana soubesse qual caminho ele havia tomado, teria invertido. À sua frente, naquele momento, Bright sorria para uma placa: Residencial Theodore Roosevelt.

Trovoadas ressoavam ao longe, anunciando a chegada de uma tempestade, e aquele imbecil os havia colocado em um beco sem saída.

Assim que Bright virou em sua direção, Tom – o branquelo idiota que parecia ter visto algum traço de liderança em Bright – avançou contra ela, a semiautomática firme em suas mãos ao se colocar no caminho do homem. Ele não apontou a arma para não criar nenhuma cena, mas Íris sabia que qualquer movimento seu poderia resultar em um tiro. Por isso, só chiou:

– Ficou maluco?

O comboio havia parado para reagrupar, para que Bright pudesse comunicar sua decisão estúpida de invadir o território dominado pelos mercenários; o mesmo lugar do qual o grupo de Rafael havia fugido.

Bright sabia dos riscos, ouvira a história daquelas pessoas, e ainda assim arriscara tudo trazendo o grupo para aquele condomínio. Ela não sabia se isso havia sido combinado, mas, pelos olhares confusos com a parada, imaginava que se tratasse de outra artimanha daquele hijo de puta.

– Vai matar a gente.

– Cala a boca. – Tom retrucou, mantendo a voz baixa.

Os punhos fechados ao lado do seu corpo tremiam, a mente ansiosa para usá-los contra o nariz de Bright. Queria gritar para aquelas pessoas e apontar a insanidade de Bright, mas também não queria uma cena. Ela não duvidava que Bright mandasse abrir fogo contra um motim. A caçamba do caminhão, com todas as armas, fora fechada assim que estacionaram. Os únicos sobreviventes armados ali eram o líder e sua guarda de honra.

– Judith, me ajuda aqui. – virou-se para a idosa, que se aproximara ao perceber a comoção. Outros sobreviventes se afastaram, quase acostumados com a ideia de que as discussões entre Bright e Íris eram um problema. – Você sabe para onde ele nos trouxe.

– Não tem nada demais nesse lugar. – Bright interviu.

O aperto as mãos de Tom na arma se intensificou, e ela não se surpreenderia se ele a apontasse na direção do pessoal.

– Bright, esse lugar é perigoso. – Judith replicou. O tom de voz era de uma tranquilidade alarmante. Ela não parecia minimamente alerta como Íris gostaria que estivesse. – Aquelas pessoas não estavam mentindo sobre os criminosos.

– Vai acreditar naqueles malucos ou em mim? – Bright retrucou.

Íris inspirou fundo, buscando razão. Espiou o canto da estrada enquanto o homem argumentava com Judith, onde Wade e Meredith tinham os cenhos franzidos, e Rebecca abraçava a cintura da irmã em busca de apoio.

Todas aquelas pessoas, por mais idiotas que tivessem sido em abandonar Oz, buscavam esperança. E Bright os estava levando a um matadouro.

– Eu contatei os caras. – Ela voltou a si com a fala dele.

– Você o quê? – Gelo escorreu pela espinha de Íris. Medo do mais puro. Mesmo Judith se empertigou em surpresa.

– Usei o rádio que trouxemos do Complexo. Abri a frequência e encontrei a deles. Disseram o nome do condomínio, então expliquei que tinha ouvido falar por causa daqueles babacas... Enfim, eles são confiáveis.

– Ah, dios. Era só o que me faltava. – Íris apertou a ponte do nariz. – Acredita no Papai Noel também?

– Eles disseram que houve um mal-entendido com o tal Rafael, que ele enganou todo mundo pra fugir, que roubou muito do que os caras tinham. – Tom comentou em seguida, usando um tom mais ameno. Quase como se quisesse ganhar onde o olhar feroz de Bright estava perdendo.

Judith não reagiu mais do que com um arquear de sobrancelhas.

– E você tem certeza de que esse condomínio está em pleno funcionamento? Eles garantiram que conseguem comportar todo o nosso grupo? – A idosa prosseguiu; Íris resistiu ao ímpeto de gritar para que se calasse. A pergunta pareceu inspirar alguma coisa em Bright, uma emoção que ela considerou perigosa.

– Eles me garantiram que sim. Disseram que vão nos encontrar aqui e nos ajudar com as acomodações. Tem energia e suprimentos pra muita gente, agora que o grupo do Rafael foi embora.

– E quanto à Colônia? E quanto ao maldito helicóptero que causou a sua rebelião? – Íris cruzou os braços, lutando para encontrar algum argumento, qualquer coisa racional para enfiar na cabeça daquele homem. – Você deixou Oz para viajar pra lá, mudou de ideia tão rápido assim?

– Eu disse pros caras que tinha uma informação valiosa. – se qualquer argumento estivesse prestes a surgir para Íris, a fala de Bright o dissipou. Ela descruzou os braços em incredulidade, terror inundando seu olhar. Judith finalmente reagiu com mais do que concisão, estreitando os olhos ao encarar a mexicana. – Quando chegarmos lá, vou falar sobre o helicóptero que vimos e sobre a mensagem da Colônia. Eles soaram razoáveis, tenho certeza de que podemos conseguir apoio pra chegar lá.

– Até porque a gasolina tá acabando. – Tom apontou. – Pode ser uma boa ideia.

Íris tentou buscar algo para dizer, mas nada surgia. Indignação e frustração e completo desespero eram tudo em seus pensamentos; Bright agira por impulso ao deixar Oz, mas fora relativamente inofensivo para as pessoas sob seu comando. Aquilo era diferente. Aquilo era assinar a própria sentença.

– Judith. – Íris a chamou. Um último apelo; uma última tentativa. Os olhos claros perscrutaram o rosto da mexicana, mas não exibiram nada além de resolução.

Ela havia perdido Romero para loucos como os homens que controlavam aquele condomínio, como podia permanecer impassível naquele momento? Aquele breve questionamento bastara para ela?

De Judith, o olhar dela escorregou até Meredith e Rebecca; com o todo o caos que vivera nos últimos dias, sua única certeza é de que seguira em frente para protegê-las.

Com a tempestade se aproximando, ficar na estrada era suicídio, ela bem sabia. De nada adiantava confrontar Bright mais uma vez. Ele podia muito bem enfiar uma bala em sua testa e dizer que estava com a razão; com os capangas ao seu lado, as pessoas não questionariam – ou levariam tiros caso o fizessem. Sua melhor opção, sem seguir em frente pela autoestrada, estava no condomínio. O começo de um plano, era isso que Íris tinha.

Se Bright queria acreditar neles, a mexicana tomaria o dobro de cuidado. Não baixaria a guarda até que Meredith e Becky estivessem em segurança novamente.


19. Sua gravidade

 

 


Eles colocaram armadilhas na entrada do prédio. Enquanto Javier e Benji carregavam móveis para reforçar as saídas laterais, Dylan, Harley e Taylor ajudaram Sherwood com os estilhaços das muitas janelas quebradas, usando cortinas para proteger as mãos. Usaram as ferramentas que Harley sempre trazia em sua mochila para pregar os pedaços de janelas quebradas às superfícies de madeira dos móveis, empilhando-os frente às portas para barrar a passagem.

Não tinham estacas ou pedaços de ferro, mas o vidro serviria para ferir e, quem sabe com sorte, derrubar os mortos que tentassem avançar contra a barricada. Depois de arrumar as duas mesas no espaço das portas, reforçaram a entrada do prédio com tudo que encontraram. Empilharam móveis e empurraram a bancada de atendimento para servir de suporte; Dylan estava suando quando Sherwood se deu por satisfeito, mas ainda havia mais a fazer.

A tempestade estava quase sobre eles, os estrondos dos trovões ressoando pela penumbra do clube. Taylor sugeriu economizar as baterias das lanternas o máximo possível, por isso trabalharam com os últimos focos de luz vindos do céu tempestuoso; era pouco, mas ainda não era escuridão total.

Com as saídas laterais e a entrada reforçada, eles cuidaram das janelas nos três cômodos que poderiam usar pelas próximas horas – a cozinha, o banheiro dos clientes e a área de serviço. Benji ainda tinha um spray de tinta guardado, que eles não precisaram usar durante suas incursões, então aproveitou para cobrir as janelas de vermelho, escondendo tudo que havia dentro do cômodo. Sob a escuridão da tempestade, os monstros lá fora conseguiriam encontrá-los com o menor movimento.

Quando a chuva desabou sobre eles, o silêncio dentro do prédio era tamanho que Dylan ouvia os grunhidos dos mortos-vivos e os estrondos dos trovões dentro daquelas paredes. Quase esperava espreitar a porta da cozinha e encontrar um par de olhos brilhantes anunciando seu fim.

As primeiras horas foram marcadas por tensão. Pela crescente de sons lá fora, pelo desespero sempre que uma batida soava contra a barricada, ou mãos se arrastavam sobre a superfície de uma janela.

O grupo permaneceu na cozinha. Harley e Dylan se sentaram no chão, as costas contra a parede de piso frio. Javier escolheu um espaço próximo à porta – o último vislumbre que tivera dele mostrara o grandalhão abraçado à submetralhadora. Sherwood e Taylor estavam juntos na parede oposta; Benji era o único de pé. Permanecera assim quando tudo ficou escuro e, com as horas que se passaram, foi o único a não se mover.

Dylan fechou os olhos e manteve a bombinha de asma em mãos, ciente de que precisaria usá-la caso o pânico continuasse se alastrando sobre cada pensamento distrativo que tentava alcançar.

Quando tempo demais pareceu passar sem uma mudança brusca ou aterrorizante no cenário, Dylan ouviu Sherwood ficar de pé. Taylor se permitiu bocejar; ele e Javier trocaram alguns sussurros, e a garota pensou ouvir uma pergunta sobre “comida”. Seu estômago roncou em resposta.

– Acho que estamos seguros, né? – Harley murmurou ao seu lado. – Tô cansada dessa escuridão toda, podemos acender uma lanterna, pelo menos?

Em resposta, um clique veio da direção de Benji, que lançou um sorrisinho rápido ao ouvir um “obrigada” aliviado de Harley.

Com os minutos, o grupo começou a fazer pequenos barulhos; Javier moveu algumas panelas e esperou, mas nada aconteceu. Taylor procurou utensílios para abrir as latas de sopa e nada aconteceu. Sherwood acendeu outra lanterna e ajudou o enfermeiro a arrumar os pratos; Dylan observou a cena e um sorriso sutil nasceu em seu rosto porque havia civilidade e familiaridade naquilo, depois de tantos dias de caos.

Quando desviou o olhar, encontrou Benji a encará-la e manteve o sorriso. O feixe da lanterna contornava seus traços e seus olhos e, naquele instante, o motoqueiro era o detalhe mais bonito do apocalipse – a garota desviou o olhar em reflexo, quase como nas situações bobas de antes, quando via um rapaz no shopping e sorria na direção dele. Dylan nem ao menos imaginava ser capaz de vivenciar aquela sensação novamente, não em meio ao fim dos tempos. Era fácil e trivial e bem-vinda, com todo o pandemônio que viviam.

Benji sentou próximo de Harley quando Taylor os serviu. Antes que Javier tomasse a palavra para contar sobre outra de suas histórias mirabolantes, Harley se adiantou:

– Taylor, o que acha que estaria fazendo numa realidade alternativa onde não haveria infectados pelas ruas?

O enfermeiro hesitou, surpreso com a pergunta.

– Hã... Que dia é hoje?

– Vamos fingir que é uma quinta-feira à noite.

– Uau, ok. – Taylor parou e pensou, e Dylan sorriu pela concentração no semblante dele. – Eu provavelmente estaria cumprindo um dos turnos de trinta e seis horas no hospital onde trabalhava.

– Tudo isso?

– Às vezes mais. Dependia muito da época e da quantidade de gente pra assumir os outros turnos. – ele ergueu os ombros, mas deixou um sorriso nostálgico escapar. Sherwood o observava com um olhar tranquilo e admirado, um espelho das expressões que ele sempre usava ao olhar para Taylor. – Era meio bagunçado e eu tinha vontade de sair correndo de vez em quando, mas era bom trabalhar com as pessoas. Ajudar as pessoas.

– Que é o que você continua fazendo, basicamente. – Harley pontuou, ganhando uma piscadinha do rapaz. – Ok, Sherwood? Qual o seu primeiro nome?

Sherwood manteve a máscara de seriedade no rosto, bem diferente daquela pacífica enquanto ouvia Taylor falar, para retrucar:

– Só por cima do meu cadáver.

– Não pode dizer que eu não tentei. – a garota rebateu para Javier, no que o grandalhão fez uma careta. Dylan não duvidava que houvesse algum tipo de aposta entre eles pela informação. – Ok, Benji, e você? O que estaria fazendo numa quinta-feira à noite?

Por um instante, o silêncio tenso de antes recaiu sobre cada um deles. Até mesmo Harley pareceu se arrepender da pergunta. Se o passado de alguns sobreviventes era difícil de alcançar, o de Benji era terminantemente proibido de ser mencionado. Dylan, tão próxima dele, sabia o mínimo sobre quem ele fora e o que vivera; conhecia o moto clube e seu irmão, tinha ouvido sobre algumas peripécias e já tivera chance de observar a tatuagem magnífica e assustadora que representava a lealdade ao clube.

Perguntar diretamente, isso ela nunca havia feito. E, para sua surpresa, não havia nada de tenso ou inalcançável no loiro quando se virou para ele. Benji só franziu as sobrancelhas, o olhar perdido tentando alcançar alguma lembrança.

– Em reunião, talvez. O presidente do meu clube gostava de se reunir as quintas porque deixava as sextas-feiras livres pra fazer... Qualquer coisa. – ele lançou um olhar conciso para Sherwood; o extremo oposto de um fora da lei, o soldado replicou com um sorriso bem humorado. – Eu gostava de ir até o fliperama da minha cidade, gastar o tempo lá.

– Você? Um nerd?

Benji riu baixinho da indignação de Harley, e tudo em que Dylan conseguiu focar foi na sonoridade suave e calmante que a risada dele tinha.

– Ok, Dylan com certeza estaria de babá pra uma das duzentas famílias que ajudava... – Harley brincou, ganhando um empurrão de leve da loira.

– Quinta-feira era o dia do Tod. Ele tinha três anos e me odiava.

– Alguém conseguia odiar você? – Taylor se fingiu abismado.

Ela sorriu para o chão, usando aquele instante de bom humor para canalizar tudo de positivo que havia em suas lembranças; não cairia em melancolia naquele momento.

– Ele gritava e esperneava sempre que eu aparecia, mas não tinha muito que fazer porque eu fui a única que não pediu demissão depois da primeira semana de teste.

– Dinheiro pra faculdade? – Harley indagou, recebendo um aceno enfático da garota. – Ele te odiou pra sempre ou percebeu que você era incrível e acabou se tornando seu fã?

– Ele me odiou pra sempre. Mas pelo menos tinha TV a cabo na casa da família dele, então eu conseguia assistir umas séries legais enquanto o Tod dormia e a mãe não chegava.

– A moral da história é que o capitalismo e a mídia foram razões suficientes para esta guerreira aguentar meses de sofrimento, senhores. – O tom de Harley fez Dylan gargalhar; não só ela, mas os outros aproveitaram o momento de descontração, e foi suficiente para que o clima se tornasse mais leve novamente.

– E você? – Javier inquiriu. – Eu vivo contando minhas histórias, mas o que você estaria fazendo numa quinta-feira à noite?

– Tentando ir até o cinema com a minha namorada, provavelmente. – Harley respondeu; Dylan não encontrou tristeza no rosto dela, para sua surpresa. Quando Harley continuou a história, sorriu: – Isso meio que salvou a minha vida quando o surto dessa epidemia começou, sabe? Se eu estivesse em casa, os soldados teriam me levado pra quarentena. Em vez disso, fugi com ela.

Ninguém pareceu querer fazer a pergunta pairando pelo fim da fala. Um olhar de Dylan bastou para que Harley se sentisse confortável para continuar:

– A gente se separou. Ela queria encontrar os pais, mas eles moravam muito longe e eu não estava com coragem pra cruzar o país. Estávamos com um comboio no estilo do de vocês, então ela seguiu em frente e eu fiquei pra trás. Sempre me virei sozinha em casa, deu pra fazer isso até achar Oz.

Dylan segurou sua mão e entrelaçou seus dedos em apoio, recebendo o aperto dela em resposta. Taylor e Javier sorriam quando Harley parou de falar – e, mesmo com a solidão e as perdas, a história pareceu acender a última faísca que faltava para dissipar o medo do grupo.

– Ok, estamos a salvo e eu estou entediada. – Harley se pôs de pé, puxando Dylan com ela. – Vamos explorar e ver se ainda tem alguma roupa legal na loja de artigos esportivos, cansei desses trapos aqui.

– Tomem cuidado. – Sherwood alertou. – E sem muito barulho.

– Prometo que não vamos começar uma balada.


***


Dylan gargalhou quando Harley saiu do provador vestindo o que ela chamara de “o uniforme oficial do clube de golfe” – a camiseta, bermuda e tênis que haviam encontrado na loja do prédio.

– Só falta um boné e eu já posso sair derrubando os infectados com estilo.

– Pra quem diz que detestava esportes, você sabe bastante sobre a moda dos golfistas.

– Eu detestava esporte, mas vestimenta é uma coisa diferente. – Harley pontuou, voltando ao provador para livrar-se da bermuda empoeirada. De volta à calça jeans velha, ela ainda manteve a camiseta e o tênis; estavam em melhor estado do que suas peças.

Dylan aproveitou a deixa para trocar a própria camiseta. Adoraria usar as duchas do banheiro dos clientes, mas aquele era um barulho que nenhum deles queria arriscar – e, além do mais, as araras da loja estavam repletas de peças de cores variadas e modelos variados. Quando tivessem tempo de tomar um banho, todo mundo poderia fazer, como Harley dissera, “uma repaginada no visual”.

Curiosa, Harley seguiu pelo corredor do segundo andar até a área dos funcionários; uma das portas estava trancada, mas a do escritório se abriu com um empurrão – vazia, para a surpresa das duas. Dylan esperava encontrar corpos ou um cenário destruído como o resto do clube.

– Será que tem coisa boa por aqui?

– E o que seria isso? – A loira brincou, passando o feixe de luz pelas paredes claras, os retratos de jogadores com figurões importantes de antes. Harley se adiantou até a escrivaninha; onde deveria haver papéis e cadernos sobre o tampo, não havia nada. Nem mesmo um porta-retratos. Talvez o dono ou a dona daquele escritório tivesse fugido a tempo de levar suas coisas junto.

– Ah! – a exclamação de deleite da garota ganhou a atenção de Dylan; Harley ergueu uma garrafa, com líquido pela metade. Estava tombada sobre o tapete, mas o tampo meio fechado impedira toda a bebida de vazar. – Champanhe, baby.

– Não sei se é uma boa ideia. – Dylan recuou.

– Por que não seria? – como se quisesse provar um ponto, Harley sorveu um longo gole, revirando os olhos em alegria ao terminar. – Delícia!

– Não deveríamos ficar sóbrias para o caso de algum... Incidente?

– Ninguém fica bêbada com champanhe, Dyl. Nem você. – ela piscou um olho em brincadeira, recebendo uma careta desgostosa da loira. – Vai, um brinde.

– Ao apocalipse? – Relutante, Dylan recebeu a garrafa. Cheirou o conteúdo só pela estranheza, lembrando-se da alegria nos olhos de Íris sempre que as incursões chegavam com alguma bebida.

– Ao apocalipse.

Quando bebeu, Dylan esperava qualquer coisa, menos a simplicidade do momento. Foi um gole rápido, com a sensação efervescente esquisita em sua boca, e acabou.

Harley ergueu as sobrancelhas, questionadora, mas caiu na risada quando Dylan repetiu a dose.

– Falei que era bom.

Ironicamente, Dylan precisou esperar o fim do mundo para experimentar uma bebida alcoólica. Ela vivera suas aventuras durante o colégio, sim, e a expectativa da mudança até a universidade enchera sua imaginação de situações inéditas e emocionantes, mas o fim de todos os seus anseios chegou rápido demais. Ali, naquele instante, estava vivendo um deles.

Antes de devolver a garrafa para Harley, bebeu uma última vez.

As duas passaram um tempo naquele escritório, conversando sobre trivialidades, ignorando a tempestade e os grunhidos da horda gigantesca atravessando o terreno do clube. Dylan quase conseguia imaginar um cenário diferente, onde ela e Harley estariam numa festa da faculdade falando sobre a vida e seus sonhos e expectativas e não um mundo onde eram obrigadas a lutar para sobreviver.

Quando Harley se pôs de pé, de repente, a loira a encarou com curiosidade.

– Vou levar o champanhe pro Taylor. Acho que ele vai gostar de saber que a gente pensou nele na hora de dividir.

– Ignorando o fato de você ter bebido mais da metade sozinha?

– Shh, ele não precisa saber disso. – Harley sorriu e Dylan a imitou e a gargalhada que escapou dela foi espontânea. – Além do mais, você não vai ficar sozinha. – O feixe da lanterna que Harley levava em mãos recaiu sobre Benji, que acabara de parar na porta do escritório.

– Tudo bem por aqui? – Ele ergueu uma das sobrancelhas, analisando os sorrisos cúmplices que as garotas trocavam.

– Só papeando. – Harley garantiu, passando por ele com uma piscadela. – Cuida da Dyl por mim. – Antes que ela se fosse, Benji pescou a garrafa de sua mão e, com um olhar divertido, virou um longo gole da bebida. Harley se fingiu de indignada conforme ele bebia, e teve que interromper antes que não sobrasse champanhe para o enfermeiro.

Benji balançou a cabeça e entrou no cômodo, deixando a própria lanterna sobre a escrivaninha para se apoiar ali. Com os braços cruzados, ele encarou Dylan de cima.

– Tudo bem? – a garota ecoou sua pergunta, contente por notar a suavidade no olhar do motoqueiro. – Senta aqui. – Ela se arrastou para o lado e sinalizou para o espaço onde Harley estivera sentada; Benji o fez, esticando as pernas longas à frente do corpo e apoiando a cabeça na parede atrás de si.

– Harley podia ter deixado o champanhe. – Benji comentou, ganhando um sorriso aberto da loira em resposta.

– O Taylor tem prioridade.

Ele reagiu com uma careta indignada.

– Eu nunca tinha bebido antes. – Dylan deixou a confissão escapar. Benji virou o rosto em sua direção, o olhar atento e intenso como sempre. – Ficava a maior parte do tempo com a cabeça enfiada nos livros, pensando “quando eu for pra faculdade vai ser diferente, vou ter tempo de me divertir, vou ter as festas da irmandade pra participar”. – Ela ergueu os ombros, resoluta. Quase entregue à situação.

Benji hesitou, como se quisesse dizer alguma coisa, mas não o fez.

– Achei que a bebida fosse azeda, mas era bem doce. Aí agora fico me perguntando o que mais não faz jus ao que eu imaginava. As coisas que deixei de viver achando que tinha tempo de tudo, e no fim não deu tempo pra nada. – Dylan desviou o olhar para a parede do outro lado do cômodo, para os porta-retratos com imagens de artistas e jogadores, pessoas que viveram e se foram. Pensativa, ela deixou aquela confissão se assentar; usou o silêncio que Benji estava mantendo para pesar suas próprias palavras, o significado delas.

O apocalipse roubara muitas primeiras vezes suas. Roubara momentos que Dylan jamais conseguiria viver, experiências que nunca alcançaria. Roubara de todo mundo; mas, ao mesmo tempo em que tomara tanto dela, aquele fim dos tempos também trouxera coisas boas. Dera uma família nova para Dylan. Um significado novo à ideia de sobreviver, de viver. Mostrara o pior da humanidade, mas também o seu melhor. Ela perdera pessoas, mas ganhara companhias novas também.

A balança parecia em equilíbrio, conforme se permitia pensar com calma. Oz se fora, mas eles estavam lutando para encontrar um novo lugar seguro. Os grupos se dividiram, mas ela tinha fé de que cada sobrevivente guerreava para proteger os seus. Max morrera, mas estava em paz agora – e Dylan tinha outras pessoas ao seu lado para ajudá-la a seguir em frente.

Naquele momento, Benji estava ao seu lado literalmente. Quieto e tranquilo, como se sentisse que a garota precisava do momento de reflexão. Como se soubesse que ela alcançaria a conclusão para as dores que tomavam sua esperança e não permitiam que Dylan a alavancasse.

O apocalipse estava ali; era escolha dela continuar vivendo. Dependia dela beber e se divertir, construir um novo lar, proteger sua família. Dependia dela viver aquelas “primeiras vezes” na nova realidade. O gosto do champanhe ainda estava em sua boca quando Dylan sorriu para o nada, quando virou esse sorriso na direção do motoqueiro ao seu lado.

Benji era uma novidade. Uma companhia inesperada que se mostrara tão essencial; um coração grandioso, cheio de coragem e de altruísmo, ao qual Dylan se entregara. O ribombar em seu peito conforme o observava era óbvio porque fazia parte das sensações que ela esperara viver antes do fim.

Dylan nunca tinha se apaixonado antes, mas ali estava.

Ela não se lembrava de ter visto tamanha abertura no olhar dele. Não se lembrava de tê-lo lido com tanta facilidade. Quando aproximou seu rosto, ela temeu vê-lo se retesar, mas Benji fechou os olhos, calmaria cobrindo suas feições. Dylan beijou sua têmpora, apreciando o calor da pele dele sob seus lábios. Benji inclinou o rosto em sua direção, aceitando sua presença. Dylan beijou o canto de sua boca, levemente, e o rapaz entreabriu os olhos só para contemplá-la. Para se entregar completamente ao momento.

Ela o beijou. Acariciou seus lábios sobre os dele, sentindo a barba pinicar sua pele, e o trouxe para si; não sabia o quanto precisava daquilo, da entrega e de se entregar, até sentir-se imersa no que dividiam.

Dylan se ergueu devagar, sentindo o coração bater forte contra seu peito, e passou as pernas em volta da cintura dele, sentando-se em seu colo; a naturalidade daquilo, a forma leve com que Benji aceitou sua presença, o toque firme dele em sua cintura, tudo isso fez Dylan sentir que estava vivendo o momento da maneira certa.

Ela não estava bêbada, longe disso. Estava determinada. Quando segurou o rosto do motoqueiro entre as mãos, seus dedos tremiam em nervosismo; quando Benji entreabriu os lábios e roubou todo o seu fôlego, Dylan estremeceu. As mãos dele escorregaram até seu quadril, ajudando a garota a se arrumar em seu colo, apertando seu corpo contra o dele, arrancando um arquejo dos lábios de Dylan. Tudo parecia certo naquele instante. A forma lenta e intensa com que o beijo se estendia, o calor da pele de Benji sob suas palmas, o desejo na maneira com que os dedos dele exploravam a curva da sua cintura e erguiam a barra da camiseta e tocavam a pele das suas costas.

Se Dylan pudesse congelar um momento, seria aquele. O gosto de champanhe na boca do motoqueiro, a sensação arrepiante de que cada toque dele parecia venerá-la. A garota se sentia de volta a um cenário comum, como se o mundo ainda existisse, como se estivesse vivendo o fim de um encontro, com direito a beijos no banco de trás do carro. Tudo ali era certo e Dylan sorriu com essa certeza.

E então, de repente, um som estourou aquela redoma de normalidade que se estendera sobre os dois. Dylan se afastou e Benji franziu o cenho ao olhar na direção da porta.

O som se repetiu e continuou. Um tiroteio, ela percebeu.

Vinha do lado de fora.


20. Impérios

 

 


Beatrice usou a falta de iluminação para se esconder. Machete e Samanta estavam junto com ela, abaixados atrás da carcaça de um carro desmontado; o muro da entrada do Residencial Theodore Roosevelt se erguia do outro lado da autoestrada, alto e imponente com proteção de arame farpado e uma guarita reforçada por placas de metal e estacas.

– Tem pelo menos sessenta homens lá dentro. Se não mais. – Rafael avisou, parado ao seu lado. Em seu ombro, a mochila com as poucas bananas de dinamite que haviam conseguido recuperar do arsenal de Oz. Ironicamente, parte do estoque de bombardeio de Clark poderia ser a salvação de Beatrice.

Rafael insistira em acompanhá-la como forma de retribuição; o resto do grupo partira pela autoestrada até um ponto seguro. Qualquer construção ou prédio que fosse. A tempestade os alcançaria em breve e a horda com ela. Sally garantira que esperariam pelo seu retorno, mas Beatrice a fizera jurar que partiria para a Colônia assim que a chuva passasse. Se ela e os outros estariam de volta, era uma incógnita.

A líder não solicitara a presença do trio. Machete e Samanta escolheram vir, assim como Rafael. Depois de encontrar o caminhão do comboio de Bright abandonado à beira da estrada, Beatrice contornara com os seus veículos, seguindo por uma intersecção da autoestrada; Sally e os outros estariam seguros se fossem por lá – demoraria mais, mas era só continuar em frente e ignorar a horda às suas costas. Tinham combustível suficiente para pelo menos mais dois dias de viagem.

E a ideia de Beatrice era manter a atenção da horda sobre aquele condomínio.

Com a alça da submetralhadora presa ao ombro e duas pistolas recarregadas no cinto, ela sabia que tinha pouca chance contra os mercenários – e por isso aceitara a ajuda dos outros. Ainda estavam em terrível desvantagem, mas era melhor que nada; a visão do caminhão vazio a assombrava até o momento. A ideia de que só encontraria os corpos das suas filhas quando invadissem o condomínio a mandava seguir em frente e ignorar a cautela; um pingo de razão, era tudo que impedia Beatrice de avançar.

As trovoadas da tempestade estavam quase sobre eles. Nuvens escuras e pesadas descarregavam sua fúria a alguns quilômetros do residencial; o grupo tinha pouco tempo para entrar e encontrar os outros.

– Tem certeza de que a vigilância na guarita ainda é a mesma?

– Eles não mudaram antes, por que teriam mudado agora? Nunca foram os caras mais cautelosos do apocalipse, só violentos o suficiente pra deixar todo mundo lá dentro com medo. – Rafael replicou, apontando para a torre. – Tem dois caras dentro e um rondando a entrada dos veículos. Eles bloquearam tudo com placas de madeira e reforçaram com caçambas de lixo e veículos quebrados. Da última vez que uma horda passou perto do condomínio, o vigia de fora abandonou o posto pra se abrigar.

– Vamos torcer pra esse aí fazer o mesmo. – Machete sussurrou, desviando o rosto para Beatrice. – Você manda, chefe.

A ideia era simples e por isso parecia tosca, mas era a única que tinham. Ela sinalizou para Samanta e se afastou em direção ao ponto cego da guarita; já conseguia ver o enxame se aproximando pela direita, no horizonte onde a chuva desabava.

– Socorro! Por favor! A horda está vindo, alguém me ajude! – Samanta berrou a plenos pulmões; ergueu as mãos quando notou alguma coisa na guarita, longe da visão de Beatrice, e moveu a cabeça em sinalização para a líder.

Beatrice ouviu um ranger de metal e então passos se aproximando com calma, apesar das trovoadas e da aproximação da horda.

– O que você está fazendo por aqui, bonitinha?

– Eu... Eu estava fugindo da horda, mas meu carro quebrou na intersecção da estadual. – Samanta balbuciou, fingindo-se amedrontada. Beatrice conseguia ver o perfil do homem que conversava com ela; a sombra de uma escopeta em suas mãos. – Preciso de abrigo. Por favor. É só até a tempestade passar.

– Ei, John! Vem cá ver. Acha que podemos ajudar essa moça? – O tom era provocativo, e passos indicaram a aproximação de outro homem; mais alto, mas desarmado, pelo menos.

– Se perdeu de um grupo, é, gracinha?

– Sim! – Samanta soluçou. – Eu estava com um comboio, viemos do norte. Eles por acaso passaram por aqui?

– Não sei... – O tal John prolongou a fala, desviando o rosto para a estrada da direita.

– Bright, Bright é o nome do líder! Magrelo e alto. Você deve ter visto!

– Ah, sim. Ele está aqui sim, ele e toda a sua gente. – algo na maneira com que o mercenário explicou aquilo trouxe um arrepio para a espinha de Beatrice. – Olha, a gente não costuma confiar em estranhos e você, sozinha aqui... Vai ter que fazer igual o seu “líder” e oferecer alguma coisa muito boa pra te deixarmos entrar.

– Qualquer coisa!

Beatrice ergueu a pistola silenciada quando o primeiro vigia abaixou a escopeta; sabia que Machete tinha o outro no ângulo, mas queria derrubá-los sem causar alarde. Tiros atrairiam tanto humanos quanto infectados e ela precisava do elemento surpresa antes de causar o pandemônio pretendido.

– Acho que posso pensar em uma ou duas coisinhas pra você fazer enquanto espera a horda passar. – John respondeu, dando um passo à frente. A mão no cotovelo de Samanta; a proximidade perfeita.

Quando ela ergueu o outro braço e cravou a faca em seu pescoço, Beatrice atirou no outro homem. O som abafado e baixo mal ressoou até a mulher, com toda a balbúrdia da tempestade.

Samanta se afastou e deixou o corpo de John tombar no chão, apertando a sola da bota contra sua boca para impedi-lo de falar. Com gorgolejos, ele morreu, e Beatrice e os outros avançaram até a torre da guarita, cuidadosos ao mover a placa de metal pela qual os homens haviam passado.

Como Rafael bem dissera, um terceiro vigia estava ali; de costas para a entrada, cantarolando uma canção country enquanto folheava um livro.

– Ei, John, trouxe aquela gostosa pra...

Samanta cravou a faca contra a nuca dele, atravessando o pescoço até o outro lado. O homem tombou de cara contra a mesa, derramando a bebida da caneca ao lado.

Beatrice aproveitou para espiar a sala; uma rede desligada, com computadores inutilizados e um microfone pifado. Eles haviam dado um jeito de instalar uma sirene – talvez para avisar em caso de invasores – e, para o avanço do seu plano, ela viria a calhar.

– Ok, vamos precisar dessa sirene. – seu olhar passeou entre os três. – Não posso pedir pra nenhum de vocês ficar aqui. É muito perigoso, com a horda lá fora.

– Com aquela barricada, duvido algum infectado se aproximar da torre. – Samanta pontuou. – Eu posso esperar aqui. Quando os tiros começarem, soo a sirene e dou no pé.

– Tem certeza?

– Já fugi de hordas de tantas maneiras que tenho minhas próprias estratégias, não se preocupa. Encontro vocês, aqui ou na autoestrada. – ela sorriu. – Vai salvar suas filhas.


***


Foi instintivo. Quando o tiroteio começou lá fora, Dylan e Benji se levantaram e correram até o andar de baixo, trombando com um assombrado Taylor no caminho.

– Eles estão tentando invadir. – O sussurro dele gelou a espinha de Dylan; ela tinha certeza de que não era sobre os mortos-vivos que o enfermeiro estava se referindo.

Sherwood empurrava outra cadeira na direção da porta de entrada, ainda que isso não fosse fazer grande diferença. Javier havia apagado a própria lanterna, deixando apenas a de Benji e a de Taylor para iluminar o lugar; Dylan estremeceu ao ouvir um baque contra a saída de emergência, ao fim do corredor.

Mesmo com as trovoadas e a chuva forte caindo lá fora, conseguiu entender o eco de um grito:

– Abre essa porra!

Não sabia se a pessoa estava gritando para eles ou para quem quer que estivesse com ela, mas outro baque se seguiu, e um terceiro. Taylor e Sherwood trocaram um olhar tenso; todos pareciam esperar alguma ordem do soldado, ainda que ele não se mostrasse certo do que fazer.

– Melhor a gente abrir. – Javier sugeriu.

– Não! – Taylor estalou de volta. – Pode ser perigoso.

– Eles vão ficar mais putos se conseguirem entrar pra ver que ninguém aqui ajudou. – O grandalhão retrucou, ganhando silêncio de volta.

Outro estrondo soou contra a barreira na porta; Benji colocou-se à frente do grupo, puxando a pistola do cinto. A proteção fora erguida para segurar mortos-vivos irracionais, não humanos. Quando a primeira tábua se desprendeu de onde Javier e Benji a haviam enroscado, as outras acompanharam. Dylan só conseguiu ouvir, mas imaginou a cena conforme passos ressoavam pelo piso do corredor escuro. Apertou a mão sobre a faca guardada no bolso e segurou a mão livre de Harley.

Os uivos do vento calavam a discussão entre os invasores, mas uma silhueta começou a ganhar formas conforme se aproximava do grupo. Um homem alto e atarracado com cara de poucos amigos. Dylan avistou um arranhão em sua bochecha e um rasgo na manga da jaqueta, onde um ferimento recente arruinara a pele do seu braço.

– Mas olha só, Jude, o que nós temos aqui!

Estavam em território inimigo, e o inimigo havia chegado.


21. Jim

 

 


Quando os mercenários chegaram, Íris confirmou a certeza de que não haveria papo com aqueles caras. Dava pra ler o perigo na postura e nos olhares, no tom de voz quando avisaram que o caminhão não seguiria até o condomínio – quando obrigaram os sobreviventes do comboio a esvaziar e encher seu próprio caminhão com os suprimentos e armas, entregando tudo o que tinham de mão beijada porque Bright se achara esperto o bastante para negociar com aqueles homens. Havia armas demais apontadas para os que fugiram de Oz; mesmo os capangas de Bright sofreram aquele destino.

A mexicana manteve-se próxima das garotas, surpresa com a própria preocupação. Meredith e Becky não tentaram se afastar; a mais velha lançou um olhar conciso, ciente do problema que estavam para enfrentar, e permaneceu em silêncio. Rebecca segurou a mão de Wade com força – e foi para o rapaz que os mercenários olharam feio enquanto seguiam até os veículos.

Íris não precisou reparar muito para ver que estavam separando as mulheres dos homens – precisou mesmo foi segurar a vontade de revirar os olhos com a obviedade da cena. Mal sabiam eles que havia pelo menos dez oponentes à altura no grupo feminino, fora as que serviriam de suporte. Se aqueles homens achavam que o plano de separação era a melhor maneira de enfraquecer o grupo, fizeram isso da maneira errada.

Wade e Meredith trocaram algumas palavras em voz baixa antes que o líder da incursão o apressasse de volta ao carro; a tempestade desabava sobre o horizonte quando chegaram ao condomínio.

Antigamente, um lugar de luxo e ostentação, com casarões altos e pálidos, as varandas sustentadas por pilares gregos, janelas frondosas e portas da altura do teto. O tipo de lugar do qual Íris nunca se aproximara; naquele momento, a maioria das casas jazia em ruínas. Algumas ruas tinham luzes vindas de dentro das casas, veículos estacionados na rua à frente, algumas pessoas curiosas espiando os recém-chegados, mas era isso.

Um esqueleto da grandiosidade de tempos atrás, com plantas trepadeiras crescendo sobre as paredes, algumas casas destruídas até o chão. Sob a luz dos faróis dos carros, era uma visão macabra como muito do que Íris já vislumbrara. Não a surpreendia, mas fazia nascer uma apreensão. Com os muros gigantescos ao redor do condomínio e aquela quantidade de mercenários cuidando do lugar, talvez precisasse pensar mais em um plano para escapar da merda em Bright os enfiara.

O carro em que estavam estacionou em frente a um dos casarões, esse ainda intacto. Íris espiou os guardas ladeando a entrada e imaginou que, se aqueles mercenários tinham um líder, era ali que ele estava.

Não precisou de muito para comprovar sua teoria.

Uma trovoada soou próxima dali quando o homem saiu da mansão. De seus cinquenta, talvez sessenta anos, era atarracado e tinha um semblante franzino; careca, usava calça jeans e uma camiseta branca. Seus passos ressoavam pela calçada por causa das esporas nas botas de cowboy.

Ele deu uma boa olhada nas mulheres descendo dos carros estacionados ali, demorando-se em algumas de tal maneira que Íris se viu trincando a mandíbula.

Ela não sabia para onde tinham levado os veículos com os homens. Com exceção de Wade, pouco se importava se os mandasse direto para a horda.

Judith parou ao seu lado, o olhar severo sobre o mercenário à frente. Íris queria gritar com ela, empurrá-la e socá-la e apontar a culpa em sua direção, mas não podia se deixar levar por aquelas emoções. Precisava manter a calma, pensar racionalmente. Precisava de toda ajuda que pudesse alcançar – e Judith, apesar dos pesares, seria de grande auxílio.

Rebecca, abraçada à cintura de Meredith, recuou quando o líder se abaixou para encará-la. A irmã mais velha permaneceu estática, mas o rosto era de uma fúria crescente.

– Relaxe, garotinha. Ninguém aqui vai te machucar. – o sorriso do homem era amarelo; perverso, Íris pensou. – Tem outras crianças no Complexo. Tenho certeza de que vão se tornar amigas em breve.

Quando ele ficou de pé novamente, dirigiu seu olhar a Íris.

– Meu nome é James, mas o pessoal me chama de Jim. Vim aqui para garantir que as senhoras sejam devidamente instaladas nos dormitórios separados para o seu grupo. – A fala concisa e formal irritou a mexicana mais ainda.

– Bright não nos explicou direito o que viemos fazer aqui. – uma das sobreviventes se adiantou, o olhar amedrontado diante de todos aqueles homens. – Vamos ficar por quanto tempo? Achei que íamos...

Não a deixe falar sobre a Colônia. Isso era tudo na mente de Íris quando deu um passo à frente, ganhando o olhar do mercenário.

– Ei, Faith. Relaxa. Bright sabe o que está fazendo. – uma piscadela na direção dela e então um de seu sorriso mais farsante para Jim. – Escuta, seria legal se pudéssemos descansar um pouco. Estamos na estrada faz um tempo.

– É claro. Ainda mais com essa horda chegando, aproveitem pra dormir bastante. Nada vai perturbar vocês aqui. – A mexicana sustentou o sorriso, mas a vontade era de quebrar os dentes daquele cara.

Quando Jim fez um sinal e diversos capangas dele se adiantaram até o grupo, Íris tomou a mão de Rebecca, puxando a garotinha para ela. Meredith franziu as sobrancelhas em confusão, no que a mais velha meneou a cabeça.

– Confie em mim.

Começou a chover quando chegaram à mansão vizinha, ladeadas por soldados de Jim. Íris observou os relâmpagos iluminando o céu e, mesmo à distância, pensou ouvir os grunhidos da horda que passava atrás dos muros. Só rezava para que los muertos não conseguissem atravessar; já era ruim o bastante ter que lidar com os vivos, com um exército de infectados junto seria bem pior.

Um instante, foi tudo o que Íris teve enquanto o grupo avançava pela entrada da mansão e os soldados se distraiam apontando os cômodos.

– Becky, quando eu beliscar sua mão, peça para ir ao banheiro, ok?

– Mas...

Ela beliscou. A garotinha arregalou os olhos, perdida, mas fez o que a mexicana pediu. Havia seis mercenários junto ao grupo daquela mansão; armados com rifles e semiautomáticas. Mas as armas estavam travadas e os olhares dos homens nada tinham a ver com temor.

– O banheiro desse andar tá interditado, tem que ir no segundo. – um deles avisou, gesticulando para a escada. Quando Íris se adiantou para acompanhar a menina, ele ergueu a arma em sua direção. – Onde pensa que vai?

Olhares confusos vieram das outras mulheres. Íris reprimiu um sorriso.

– Vou com ela até o banheiro.

– Não precisa disso. A garota é grandinha. – Becky apertou sua mão entre as dela; Íris manteve-se ao seu lado.

– Nós não oferecemos nenhum perigo pra você. – Íris acenou na direção da arma. Na posição ofensiva em que o homem se colocara quase em reflexo; ao notar a plateia, ele recuou, engolindo em seco. – Pode ir com a gente e ficar de vigia, se achar melhor.

– Só pela segurança.

Judith, do outro lado da sala, lançou um olhar sério para Íris.

– Claro. – a mexicana manteve a atenção sobre a mais velha. – Só por segurança.

O segundo andar era gigantesco, mas estava vazio. Ninguém, além do vigia, as seguiu. Íris sorriu para Rebecca e a colocou dentro do banheiro em segurança, prostrando-se do lado de fora, em frente à porta.

O barulho da chuva passara de sutil para um estardalhaço; ela não queria disparar nenhuma arma, mas, com sorte, o tiroteio não seria ouvido lá fora caso acontecesse.

Íris só esperava que Judith tivesse pensado melhor. Esperava que a idosa reconhecesse seu olhar, que soubesse a loucura que estava prestes a cometer; Judith convivera com a mexicana por bastante tempo. Devia entender seus trejeitos.

– Então... – Íris se recostou contra o batente. – Como funcionam as coisas por aqui?

– Vocês vão descobrir em breve. – O mercenário não desviou o olhar em sua direção, mas Íris mudou de postura, arqueando uma sobrancelha com o máximo de charme que conseguia falsear.

– Ah, qual é. Pode ser nosso segredinho. Eu gosto de saber sobre as coisas com antecedência, pra me preparar, sabe?

Um olhar de soslaio, rápido e curioso. Íris sorriu e prendeu a atenção dele.

Deu um passo à frente, calma e cuidadosa.

– Faz muito tempo que eu não tenho uma companhia pra conversar. – quando o vigia engoliu em seco, ela soube que estava lidando com um daqueles. Era só fingir um pouco de manha para dobrá-lo. – Conta alguma coisa pra mim.

– Vocês... Vão ser muito bem recebidas aqui.

– Ah, mas isso eu já percebi.

– Jim quer que saibam que esse lugar vai ser um lar pra todas vocês.

Íris parou a alguns centímetros dele; o peito do rapaz subiu e desceu, os olhos acompanhando a proximidade dela com mais e mais desejo.

O dedo já se soltara do gatilho da arma.

– Diz pra mim que ele não tem planos pros caras do meu grupo, por favor. – ela fingiu desespero. – Não quero mais vê-los nem pintados de ouro.

– Ah, isso com certeza. – o sorriso convencido dele arrastou medo pela espinha da mexicana, mas ela se manteve firme. – Jim já deu um jeito nos seus amigos. Eles não vão te importunar mais.

– Meu herói.

Em um instante, estava usando seu tom jocoso e sedutor. No seguinte, os dedos se fecharam ao redor do cabo da faca no cinto do vigia, cravando a lâmina de encontro ao pescoço dele. Íris tapou sua boca e chutou seu joelho, segurando o corpo quando ele despencou, gorgolejando.

A demora para o rapaz morrer pareceu infinita. Quando conseguiu desenroscar o rifle do seu pescoço, percebeu que as mãos não tremiam. Não havia nervosismo em seu coração, nenhum descompasso; Íris se sentiu tranquila como nunca antes, e por isso um sorriso rápido cruzou seus lábios.

Clark ia adorar participar desta merda toda.

– Íris? – Becky abriu a porta e encarou o corpo caído. Íris hesitou, esperando por alguma reação histérica, por choro ou por um grito. Rebecca, no entanto, só desviou do cadáver e apontou em sua direção. – Tem sangue na sua jaqueta.


22. Passos no corredor

 

 


Dylan pensou que morreria. Quando os mercenários forçaram seu grupo para fora, esperava a morte; havia dezenas de cadáveres pelo chão, mas mais centenas se aproximando por todos os lados – e, ainda assim, aqueles homens obrigaram o grupo a sair do esconderijo seguro e avançar até a caminhonete estacionada próxima da saída de emergência.

Ela viu a morte em todos os olhares pálidos que viraram em sua direção. Imaginou que aqueles homens fossem malucos e estivessem prestes a ofertar o grupo como sacrifício para a horda – porque, honestamente, estavam próximos disso. Mas as laterais da caminhonete eram equipadas com faroletes potentes e os feixes pesados de luz lerdeavam qualquer infectado que se aproximasse demais.

Uma vez dentro do veículo, Dylan pensou que a companhia dos mortos talvez fosse melhor do que daqueles vivos.

– Como acharam a gente? – Harley ergueu a voz.

– Nós fazemos rondas pelos muros do condomínio, só para o caso de algum espertinho tentar se esconder aqui sem falar com o chefe. – o tal de Jude respondeu, apontando o rifle diretamente para Benji. – Não é que a gente acertou?

– Seus carros estacionados perto do clube não estavam tão bem escondidos assim.

– Olha, a gente não quer problema com ninguém. – Taylor se pronunciou. – Só precisávamos de um abrigo.

– Por causa dessa horda de merda? Nem tem infectado nela direito!

– Da última vez a caçada foi muito mais legal.

– Caçada? – Dylan sussurrou.

– Essa belezinha aqui... – Jude bateu contra a porta da caminhonete. – Aguenta uma tempestade dessas. A gente não tem mais como caçar do modo tradicional, sabe como é? Então arranjamos outro jeito de nos divertir.

Silêncio recaiu sobre eles. Conforme atravessavam o campo gramado, alguns trancos empurravam e balançavam a caminhonete; em uma das vezes, Dylan pensou ter visto um corpo tombando contra a lateral. As placas de metal e os faroletes com certeza faziam muito para ajudar aqueles homens, mas mesmo com tantos preparativos e todas as armas possíveis, avançar em meio a uma tempestade era suicídio.

E, aparentemente, não era a primeira vez deles.

– Quando a gente chegar, vocês vão conversar com o chefe. Sugiro já começar a pensar em um jeito de pedir perdão, porque ele vai ficar puto.

Dylan e Harley trocaram um olhar consternado, no que Jude caiu na gargalhada.

– Relaxem. O máximo que vai acontecer é vocês receberem misericórdia antes da hora.


***


Um dos vigias estava de costas para Meredith quando ela alcançou a faca escondida em sua bota. O outro, parado na porta, observava a tempestade; grandes mercenários eram aqueles homens.

Íris e Rebecca ainda estavam no segundo andar, mas a breve cena da mexicana com o rapaz fora suficiente para despertar alguma coisa no grupo; uma desconfiança crescente. As mulheres estavam espalhadas pela sala, algumas já ocupando os colchões onde dormiriam – a maioria se mostrava inquieta.

Era o que Meredith precisava. Os outros vigias cairiam facilmente, mas o problema estava lá fora. Quando começassem aquilo, não teria como parar. Havia uma horda atrás dos muros, mas os monstros estavam dentro; elas só poderiam contar com a própria força contra eles.

Meredith esperava que Wade estivesse bem. Não conseguia ver um destino bom para os homens do comboio.

Quando ficou de pé, a faca bem escondida entre seus dedos, o vigia da porta virou em sua direção.

– Ei, sentada.

Ela não obedeceu. O homem apontou a arma em sua direção, ganhando ofegos indignados das mulheres do grupo.

– Ela só quer andar um pouco! – uma delas exaltou. – Não somos prisioneiras aqui.

– Ou somos? – Judith rebateu, ganhando um esgar furioso do outro mercenário.

Meredith olhou para a escada; para o silêncio que vinha do segundo andar. Terror inundava seus pensamentos com a possibilidade de algo ter acontecido com Becky, mas ela não se permitiu pensar nisso enquanto o alvoroço começava entre as mulheres.

– Chama o seu líder, queremos falar com ele!

– É, essa história tá muito mal contada. O Bright não disse nada sobre nos colocar em regime fechado. – O tom exultante e furioso cresceu entre elas; quando o vigia abandonou a porta para gritar com uma das mulheres, Meredith avançou. Caiu sobre as costas dele e apertou a lâmina contra seu pescoço, fazendo pressão suficiente para que um movimento cortasse sua garganta.

– Solta a arma.

– Abaixa essa porra, garota! – Do outro lado da sala, a voz do mercenário saiu alta, mas a chuva estava estrondosa lá fora. O estardalhaço indignado não fora ouvido, esse também não seria.

– Mandei soltar. – pressionou mais um pouco. A arma fez um baque ao cair contra o chão. – Chuta pra longe.

O rifle rolou até os pés de uma das sobreviventes, que recebeu a arma com familiaridade.

– Que merda, Henry! – Apesar do cenário, o outro vigia não baixou a própria arma. Judith estava próxima dele, sob a mira, mas também não recuou. – Me deixa sair daqui ou eu estouro os miolos de meia dúzia de vocês!

Um tiro estourou no ar. Íris surgiu no canto da escada, a jaqueta manchada de sangue. Becky ao seu lado, sã e salva.

Lá fora, o estouro forte e contínuo de um trovão se seguiu. Não, é alto demais para ser um trovão. Demorado demais. Meredith percebeu.

Sua hesitação foi um problema; Henry se soltou do aperto e se jogou sobre a mulher com o rifle. Quando ela apertou o gatilho, os disparos ricochetearam pelo corpo dele e para além dele; Meredith caiu para trás com o susto, protegendo a cabeça até os tiros cessarem.

Um zumbido incessante encheu seus ouvidos, calando os estouros e os gritos e turvando sua vista quando uma figura se aproximou dela apressadamente. Ao erguer o rosto, Meredith encarou Íris, que tinha os olhos arregalados em sua direção.

Ela não entendeu porque a mexicana tirou a jaqueta e se ajoelhou ao seu lado, pelo menos não até que Íris amarrasse a peça ao redor do seu ombro. A dor foi o que trouxe Meredith de volta à consciência; aos sons das mulheres se reunindo e da tempestade lá fora e alguém gritando foi uma explosão!

– Ei, chica. Chica. Olha pra mim. – Íris deu um tapinha no canto do seu rosto, atraindo o olhar da garota de volta. – O tiro pegou de raspão, mas está sangrando muito e a gente não tem tempo de fazer um curativo. Melhor ficar aqui até a gente entender o que está acontecendo lá fora.

– Não, eu... Posso ajudar.

– Meredith, por favor. – Becky, atrás da mexicana, tinha o rosto lavado por lágrimas. – Eu cuido de você.

– Eu fico com as garotas, Íris. – as três voltaram-se para Judith, que carregava o rifle de assalto do último vigia em suas mãos. – Vamos estar aqui esperando.

Ela ficou de pé, lançando um aceno determinado na direção da mulher.

– Ei, Íris? – Judith engoliu em seco. – Cuidado lá fora. A explosão veio da direção do muro. – pânico se arrastou pelo corpo da morena. – Os mortos vão entrar.


***


Beatrice não conseguiu ver a explosão, mas o estouro ressoou em seus ossos. Ela estava escondida na varanda de uma das casas arruinadas, acompanhada de Machete, quando Rafael acendeu as dinamites. Aquele canto do muro ficava suficientemente afastado das casas habitadas pelos mercenários – e tinha visão da estrada. Quando a explosão silenciou até mesmo as trovoadas, Beatrice quase conseguiu ver a horda debandando na direção do condomínio.

Minutos. Eles tinham minutos até que os infectados invadissem.

Beatrice poderia ter esperado e encontrado Meredith e Becky primeiro, mas Rafael garantira que, se elas estivessem no condomínio, o líder dos mercenários as teriam colocado em uma das casas principais. Era onde as rondas aconteciam com maior frequência; o lugar onde o próprio comandante dormia. O caminho até lá era um só, e eles teriam que lidar com toda a atenção dos mercenários caso não criassem uma distração.

Bem, ali estava a distração. O olhar de Machete foi determinado, ainda que o de Rafael carregasse terror.

Um primeiro carro passou voando pela rua à frente da casa em que estavam, direto para onde a explosão danificara o muro.

– Nada de se dividir. – Machete avisou. – Já sabe como eu me sinto a respeito disso.

Beatrice anuiu, inspirando fundo em busca de controle. As mãos tremiam como nunca antes, mas aquele era o momento que ela não podia hesitar.

Pense em Jake. Pense na promessa que fez a ele.

Quando outro carro passou pela casa, Beatrice correu. Usando a penumbra da rua, manteve-se às sombras das ruínas, avançando na direção que Rafael havia apontado – onde havia luz, havia perigo. Mas Meredith e Becky estariam ali também.

Às suas costas, tiros começaram a soar. Tiros e gritos esgarrados que nem mesmo a tempestade conseguiria calar.

Os mortos haviam entrado.


***


Não foi um trovão que estourou ao longe. Dylan aprendera a reconhecer uma explosão quando ouvia uma. Ela escorregou no banco quando o motorista freou a caminhonete bruscamente, inclinando-se sobre o volante para enxergar alguma coisa na penumbra lá fora.

– Mas que merda foi essa, Jude?

O mercenário que ocupava o banco do carona – o mesmo apontando a mira de um rifle para o rosto de Benji – se virou para o outro; Sherwood e Benji reagiram quase ao mesmo tempo. Dylan se abaixou, cobrindo a cabeça com os braços, quando Sherwood chutou a mira do rifle para o lado, em direção à janela. Benji avançou, o punho fechado contra a lateral do rosto do inimigo. Puxou a arma das mãos dele, usando o desnorteio do homem a seu favor, e acertou a coronha do rifle contra seu rosto uma segunda vez – tamanha força que empurrou o corpo do mercenário para frente.

Taylor empurrou Harley para baixo quando Benji virou a arma, protegendo-a da explosão de tiros que ele disparou contra o banco da frente. Ambos os corpos tombaram, o do motorista acertando em cheio a buzina do veículo.

Dylan estendeu os braços e fez força para puxá-lo, encostando o cadáver contra o banco novamente. Javier, na parte traseira, tinha os olhos arregalados quando Dylan se virou para ter certeza de que estava bem; as mãos da garota tremiam descontroladamente enquanto buscava a bombinha de asma escondida em seu bolso.

– Dá licença. – Harley atropelou Benji e Taylor para pular o banco, alcançando o espaço do motorista com surpreendente destreza. Dylan prendeu a respiração quando ela abriu a porta e empurrou o cadáver para fora; mas, assim como nenhum infectado se aproximara do carro com os tiros ou com a buzina, nenhum os alcançou quando Harley se livrou dos corpos. As luzes continuavam acesas. Uma barreira de segurança em torno deles.

– Quais as chances de ter sido um dos nossos explodindo aquela bomba?

Sherwood hesitou. Taylor encarou Benji, quase esperando que o motoqueiro apontasse aquela explosão como familiar.

– A horda toda está entrando naquele condomínio, gente. O que eu faço?

– Dá ré. – Sherwood sentenciou. – Vamos voltar pra estrada. Não tem nada aqui.

– Mas e se...

– Não podemos fazer nada por eles, Harley. A horda está toda ali. É suicídio. – Benji concordou, o olhar soturno carregado em arrependimento. – Vamos torcer pra não ter sido um dos nossos.


***


Meredith recebeu a ajuda de Judith para chegar ao segundo andar. Outras sobreviventes escolheram ficar ali – sem armas, não fariam muito para ajudar Íris.

Quando a mexicana se foi, acompanhada de metade do grupo, o silêncio que se instaurou sobre a mansão foi mórbido. Desesperador.

Judith fechou a porta do quarto depois de se abrigarem ali, sentando-se na cama empoeirada com a mira da arma na direção da entrada.

Meredith conhecia aquela mulher havia pouco tempo, mas se surpreendeu com a firmeza da postura dela. A maneira calma com que ela inspirava e respirava, o olhar cheio de foco sob a pouca luz que vinha da janela.

– Acha que a Íris vai ficar bem, Mer? – Becky sussurrou, ganhando de volta o olhar da irmã. – É culpa minha ela ter ido lá fora.

– Como assim culpa sua?

– Eu pedi pra ela te ajudar. Pra cuidar de você. Achei que você precisasse de uma amiga, e agora ela vai morrer por causa disso.

Meredith recuou, rangendo os dentes quando o ferimento no ombro espalhou dor por cada pensamento coerente.

– Se alguém tem culpa aqui sou eu. – ela baixou o rosto para se aproximar da garotinha, usando o tom cauteloso como das poucas vezes que vira Rebecca tão abalada. – A gente devia ter continuado em Oz. Era mais seguro lá, com a mamãe e o papai. – Becky a encarou, quase surpresa pela confissão. – Eu errei em achar que podia tomar essas decisões. Não sou o Jeremy. Nunca fui.

– Ei. – Judith chamou. O tom de voz sério, carregado. Ambas as garotas desviaram a atenção para ela, para sua expressão taciturna. – Vocês são jovens demais pra carregar tanta culpa. Deixem isso com os mais velhos. Tudo que você fez, Meredith, foi para sobreviver. As pessoas erram, mesmo com a melhor das intenções. Eu errei. – ela pareceu querer continuar, mas se interrompeu. A expressão ficou amarga. Diferente de quando se despedira de Íris, ali Judith era a imagem do arrependimento. – Vocês vão sair daqui e vão chegar até a Colônia e todo esse pesadelo vai ficar para trás.

Tiros ressoaram na rua à frente da casa. Rebecca se encolheu junto à irmã e Meredith fez um esforço para passar o braço ileso sobre seus ombros, trazendo-a para si. A dor foi tamanha que sua vista escureceu.

Judith espiou a janela e fez um sinal para uma das sobreviventes. Ela anuiu, colocando-se de pé, à sombra da porta.

Alguém estava entrando.

– Pode ser a Íris. – Rebecca avisou.

Meredith fechou os olhos, exausta como não se sentia havia muito tempo. A chuva estava abrandando lá fora, então os sons dentro da mansão pareciam ecoar por cada cômodo. Ouviu movimentação lá embaixo, algumas vozes abafadas.

Judith se posicionou em frente à porta, o rifle preparado para atirar.

Os sons ficaram mais altos e os passos ecoaram pelo corredor do segundo andar; uma porta se abriu próxima dali.

Uma das vozes chamou por alguém, mas ainda estava distante demais para se fazer reconhecível. Podia ser um dos mercenários; Jim tentando encontrar os vigias que as mulheres haviam escondido no banheiro.

Os passos pararam em frente à porta do quarto. Meredith prendeu a respiração, lutando contra a dor para permanecer desperta. Elas poderiam precisar lutar para escapar; Judith talvez não fosse páreo para a pessoa lá fora.

– Meredith? Becky? Vocês estão aí?


23. O último a cair

 

 


Os infectados tomaram a primeira rua quando Beatrice deixou a mansão; não havia ninguém. Machete se afastara até os fundos para garantir que o lugar realmente estava vazio, mas o olhar da líder já vagava sobre os casarões da outra esquina, com dois furgões estacionados em frente.

Rafael, parado ao seu lado, era a imagem da inquietação.

– Relaxe. – ela pediu. – Os tiros e a quantidade de gente que estão pra lá vão manter os infectados distraídos por um tempo. – Naquele instante, os mortos não pareciam um problema. Os vivos podiam ser sua ruína.

– Beatrice! – Machete surgiu atrás da cerca lateral, o rosto tomado por pânico. – Venha ver isso.

Eles correram; o tom dele não indicava uma tragédia, mas tudo que tomou os pensamentos da mulher foram imagens de um tempo anterior – quando ela e Jake invadiram a escola abandonada, quando encontraram as centenas de corpos carbonizados no ginásio principal.

Uma pilha deles fora erguida sobre a vala da piscina no quintal daquela casa; quando Rafael passou o feixe da lanterna sobre os cadáveres, Beatrice rezou. Segurou-se na cerca branca para não despencar, com medo de encontrar os olhos vazios das filhas ali. Com medo de viver o mesmo terror de meses, anos, uma vida atrás, quando observou os corpos sem rosto e não soube dizer se suas crianças estavam entre eles.

– Só tem homens. – Rafael comentou. Machete anuiu, estendendo a mão para tocar o ombro de Beatrice.

– As meninas estão bem.

A luz da lanterna recaiu sobre o rosto de Bright, os olhos vidrados, um buraco de bala no meio da testa.

– Deus tenha misericórdia desses pobres coitados. – Machete sussurrou.

– Não. – Beatrice manteve o olhar sobre Bright; o traidor que trouxera toda aquela desgraça sobre eles. – Dele não.


***


Íris queria os veículos. Queria roubar os dois furgões estacionados em frente à mansão usada por Jim. Assim que saiu para o quintal, sob a chuva fria, e avistou as silhuetas dos furgões, voltou ao plano original; precisava fugir do condomínio e os furgões eram a melhor opção. Não havia outro jeito, não com los muertos enchendo a entrada do condomínio, um enxame de morte sem fim.

Quando chegou à mansão principal, de onde vira Jim sair e para onde os mercenários levaram o carregamento do comboio, pouco se importou em ser discreta. Abriu fogo contra os dois vigias montando guarda no furgão blindado – Jim provavelmente pretendia usar aquela merda para fugir.

Ouviu um alvoroço dentro da casa e se escondeu atrás do veículo; as mulheres que a acompanhavam a seguiram, dividindo-se entre os cantos protegidos do quintal da casa.

O primeiro mercenário passou pela porta carregando duas malas de mão – Íris disparou e o derrubou na varanda. O segundo saiu atirando para todos os lados, forçando a mexicana a se proteger.

Tinha dois rifles e pouca munição. Só esperava que Jim tivesse mandado a maioria dos seus homens para o matadouro lá na frente, que tivesse escolhido poucos para fugirem com ele.

À sua esquerda, Dana aproveitou enquanto o homem recarregava a arma para atirar – atrás dele, de uma das janelas, outro atirador surgiu. O tiro dele estourou contra a cabeça da mulher, lançando o corpo dela de encontro ao asfalto. Íris recostou-se contra a lateral do capô, impedindo-se de encarar o olhar vítreo de Dana.

A companheira de esconderijo dela, Helena, alcançou a alça da arma e a puxou para si, conferindo o pente e a trava antes de lançar a Íris um aceno determinado.

Juntas, elas atiraram. Helena acertou o atirador da janela – não foi fatal, mas suficiente para tirá-lo do jogo. O outro havia se escorado num dos pilares, protegido pelo desenho da varanda.

– Os infectados estão chegando! – uma voz veio da entrada da mansão. Jim, Íris reconheceu com asco. – Vamos todos morrer se vocês continuarem com essa merda!

– Que seja! – ela disparou outra saraivada, ouvindo o clique do pente quase vazio. Pelo canto do olho, viu o grupo à sua direita avançar até o extremo da varanda, sombreadas por um carvalho alto; o ponto cego do atirador. – A gente derrubou todos os caras no caminho pra cá, Jim! Você é que tá num beco sem saída.

Silêncio. Íris quase sorriu por isso.

Quando pensou em se levantar, alguns tiros rasgaram o ar acima dela; o mercenário na pilastra tinha o ângulo perfeito para derrubá-la, bastava um deslize da sua parte.

Ela já não tinha mais visão das mulheres na sua lateral – Helena era o único reforço.

– Quando eu avisar, você atira. – Íris avisou, engatinhando até ficar a um passo do campo de visão do atirador. Ela precisava avançar; precisava distrair aquele cara por tempo suficiente. Los muertos chegariam em breve e não havia cenário positivo para escapar deles se não andassem logo.

Helena disparou e Íris correu; a distração foi suficiente para alcançar uma das estátuas do jardim. Quando se escorou nela, as balas do rifle de Helena acabaram. O atirador da varanda se posicionou – mas os tiros que recortaram o ar não vieram dele. Vieram do outro lado da rua; Íris não conseguia ver a quem pertenciam porque o furgão estava bem na frente, mas derrubaram o mercenário e abriram caminho para que as mulheres avançassem.

Jim estava sozinho – o egoísta devia ter mandado todos os seus capangas para a linha de frente contra os mortos-vivos.

Íris correu até a varanda quando as sobreviventes o renderam, colocando-o de joelhos. Duas delas pegaram as malas e mochilas e começaram a carregar no furgão – Helena prostrou-se ao lado de Íris depois de usar o pente do atirador para recarregar seu rifle.

– O que quer fazer com ele?

Íris não costumava ser a voz de comando. Não gostava dessa sensação; era boa em desobedecer ordens, não estabelecê-las.

– Amarre e deixe para os mortos. – Todas elas se voltaram para a voz às suas costas; Íris quase soltou um suspiro de alívio.

– Timing perfeito, Beatrice.

A líder estava encharcada, como elas, mas as olheiras e a palidez diziam muito sobre o que os últimos dias haviam sido para o seu grupo. Machete, logo atrás, tinha a submetralhadora apoiada sobre o ombro, e sorriu na direção de Íris como um velho amigo se reencontrando depois do que parecia tanto tempo.

Foi então que ela viu o primeiro infectado. Ele cruzou o quintal da casa onde Meredith e Becky estavam escondidas, seguido por outros.

As mulheres se abaixaram, usando a murada da varanda para se esconder. Quando o primeiro infectado alcançou o quintal, foi sobre o corpo de um dos mercenários mortos que ele caiu, o foco distante do tiroteio quando havia um cadáver à sua disposição.

– Precisamos voltar pelas outras! – Helena sibilou.

– Não, todo mundo não. Vai ser muito pior. – Outra das sobreviventes replicou.

– Íris. – Beatrice chamou, tocando seu braço com firmeza. – Onde estão minhas filhas?

– Na casa. Vamos ter que passar pelos muertos.

– Podemos nos esconder e esperar. Eles não vão entrar lá.

– Não dá pra saber. – Machete retrucou. – Temos que avançar, chefe.

– Você lidera, a gente segue. – Íris sentenciou, mantendo os olhos sobre o semblante exausto de Beatrice. Rafael, ao lado dela, encarou o furgão por um longo instante, enquanto a líder parecia medir seus próximos passos. O homem correu naquela direção e, por um instante, Íris pensou que o maluco estivesse prestes a fugir e deixá-las para trás. Para sua surpresa, ele seguiu até o porta-malas, onde as mochilas de Jim foram guardadas.

– Uma lanterna pra cada um! – Rafael exaltou, atirando contra o morto-vivo que se ergueu do gramado para alcançá-lo. – Jim estocava tudo que pudesse usar para cegar os infectados! A fraqueza deles é a nossa vantagem. – uma das sobreviventes atirou no infectado seguinte e então no outro. – Usem sinalizadores, encham a rua com eles.

Quando a pequena horda se tornou um enxame, Helena se posicionou na escada da varanda, derrubando cada um deles com tiros precisos. Isso atraiu mais e mais, mas ela os segurou enquanto facões e bastões e tacos de golfe foram tirados das malas de mão, enquanto as mulheres se posicionavam para formar uma barricada; Íris acendeu o primeiro sinalizador e os muertos mais próximo chiaram e gritaram quando a luz queimou sua vista. Iluminados pelo brilho avermelhado, eles caíram conforme as sobreviventes os atacavam, facões se enterrando em seus crânios, tacos destruindo suas cabeças.

Beatrice lançou um dos sinalizadores para longe, em meio ao asfalto. O enxame de infectados que se reunira ali, tentando chegar nelas, recuou. Seus urros de dor ecoaram pela rua quando Helena subiu no furgão, com a ajuda de Machete, e disparou com a precisão de antes, matando os cadáveres mais distantes para abrir caminho. Rafael prostrou-se ao lado da mulher, usando a submetralhadora de Machete para derrubar os cadáveres mais próximos.

Íris lançou seu sinalizador até a calçada do quintal da mansão. Los muertos caíam e os vivos avançavam e a mexicana se permitiu um sorriso rápido, quase insano, pelo cenário à sua frente; a tempestade abrandara em um chuvisco, as nuvens pesadas se afastavam à distância – ainda havia tiros e gritos ao longe, os mercenários continuavam a segurar a onda de infectados que ocupava os muros -, mas o grupo estava quase lá.

Beatrice foi à frente, esfaqueando e empurrando os cadáveres como se não oferecessem grande perigo. Com a lanterna firme em sua mão e o facão na outra, a mulher parecia muito com a líder em que Íris depositara sua confiança uma vida atrás.

Elas mantiveram os flancos protegidos e se prostraram diante da varanda da mansão quando a alcançaram. Íris pediu para Machete seguir com ela, e as mulheres se organizaram para cobrir os espaços quando os dois acompanharam Beatrice para dentro do casarão.

– Meredith!

Silêncio. Um segundo de silêncio, e o coração de Íris se apertou ao pensar no pior.

Então passos apressados soaram no andar de cima e uma silhueta pequena e exaltada desceu correndo pelas escadas.

– Íris! O Wade nos achou! – Becky arregalou os olhos ao contemplar a mãe.

Beatrice avançou até ela, erguendo a filha em seus braços num abraço devastado. Íris queria dar tempo as duas, especialmente pela expressão tranquila que cobriu o rosto da garotinha, mas tempo era uma coisa que ainda não tinham.

– Temos que sair daqui agora, Becky. Cadê a Meredith?

– Wade! – Judith desceu as escadas em seguida, dando espaço para que o soldado trouxesse Meredith em seus braços. As outras mulheres a acompanharam, gratidão tomando suas feições.

A expressão de Beatrice foi de alívio para horror em um instante, mas a idosa segurou seu ombro, apertando com firmeza.

– Ela está bem. Não é uma mordida.

– Por mais que essa reunião familiar esteja tocante, chefe, melhor darmos no pé. Os tiros lá no muro pararam. – Machete avisou, ganhando um aceno de concordância da líder.

Íris estacou ao avistar a quantidade de infectados ao fim da rua. A primeira onda fora o mínimo que aquela horda trouxera; o pior estava chegando.

– Sinalizadores! – Ela berrou, pegando a mochila no ar quando jogaram em sua direção. Machete cobriu sua retaguarda enquanto Íris atravessava o meio fio, colocando-se entre a horda e o caminho que precisavam seguir.

Acendeu e lançou um, dois, três, quatro, cinco sinalizadores, espalhando-os pela estrada, criando um bloqueio ínfimo de luz para o enxame que se aproximava. Ouviu os grunhidos e o recuo da horda e sorriu. Acertou a mochila na cara de um dos infectados e assistiu quando ele caiu sobre o asfalto. Correu até o grupo enquanto as sobreviventes derrubavam a última leva de cadáveres.

Tudo parecia bem. Bem até demais, Íris deveria ter percebido.

Quando alcançaram o furgão, ela notou uma silhueta se escorando na pilastra da varanda da mansão.

Hijo de puta. Ela pensou. O corpo da sobrevivente responsável pela vigília estava caído. Jim, de pé, com sangue escorrendo pela lateral da cabeça, abriu fogo contra eles.

Os disparos do rifle de assalto foram para todos os lados. Íris caiu de encontro ao meio fio, sem tempo para ver o estrago que os tiros haviam causado. Eles vieram da sua direita também, de cima; do teto do furgão.

Quando ergueu o rosto, viu o mercenário cambalear e cair de joelhos. Três tiros rasgaram seu peito, e ele despencou de encontro ao chão no instante seguinte.

Íris se arrastou para ficar de pé; o corpo de Rafael estava caído sobre o capô do veículo. Helena segurava o lado do ombro e sangue escorria de um ferimento ali. Ao observar o grupo, Íris encontrou mais cadáveres do que sobreviventes.

E, às suas costas, a barreira de luz falhara.

Ela tropeçou para trás quando o primeiro infectado tentou alcançá-la. Acertou a têmpora dele com a mochila, chutando-o para longe.

– Me ajuda com a Meredith! – A mexicana ouviu o grito de Beatrice; próximo, mas ao mesmo tempo distante.

Uma espiadela mostrou Machete correndo até a líder, passando por cima do corpo de Judith. Rebecca estava no colo do grandalhão, o olhar horrorizado para toda a cena.

Íris empurrou o segundo infectado que caiu sobre ela, se enroscando nos próprios pés para pular o capô e chegar até os outros.

– Leva a Becky! Tira a Becky daqui, Machete! – Beatrice berrou, empurrando-o em direção ao furgão mais distante.

Helena chutou as mãos que tentavam alcançá-la no teto do veículo, escorregando pela traseira para chegar até Machete. Deixando dezenas e mais dezenas de mortos-vivos às costas de Íris.

As mãos da mexicana tremiam quando acendeu o último sinalizador. Muitos infectados recuaram, mas ainda não era o suficiente.

Eles continuavam andando. Continuavam com as mãos estendidas, as bocarras famintas abertas para ela.

Quando Machete colocou Becky em segurança, Íris tomou uma decisão.

Deu as costas aos monstros e avançou até Meredith, segurando o braço livre dela para ajudar Beatrice a colocá-la de pé.

Mesmo com o sinalizador, um infectado cambaleou sobre a mexicana.

Íris acertou o pavio contra o rosto da criatura, ouvindo o chiado que fogo e fumaça fizeram contra a pele apodrecida. O morto-vivo atrás dele, no entanto, a alcançou.

Quando Beatrice empurrou Meredith para dentro do furgão, os dentes do infectado se fecharam sobre o ombro da mexicana.

Íris berrou. Machete estava ao seu lado no segundo seguinte, cravando a lâmina do facão contra o morto-vivo, empurrando o corpo dele sobre os outros, agarrando a cintura da mulher para colocá-la dentro do carro. Íris caiu sobre Meredith e Becky e gemeu pela dor; Beatrice pulou do banco do passageiro para o do motorista e Machete manteve a porta aberta, matando os infectados para que a barreira de corpos impedisse os outros de se aproximar.

Quando o furgão ligou, a líder acendeu todos os faróis, ganhando gritos e grunhidos de dor dos infectados à frente. Deu ré, seguindo até o fim da rua, afastando-se da onda de muertos que tentava alcançá-los.

– Tem várias saídas. A entrada não é a única passagem. – Beatrice avisou, a voz abafada em meio ao zumbido crescente que acompanhava Íris.

E assim eles seguiram, se afastando do terror para a escuridão.

E assim Íris inspirou fundo, deixando a escuridão engoli-la.


PARTE 3

TERRA DE NINGUÉM


24. Fim da caçada

 

 


Qualquer traço da tempestade se fora com a madrugada, mas Harley continuou pela estrada, distanciando-se daquele condomínio como se o próprio inferno estivesse nele; em algum momento da noite, Benji segurou a mão de Dylan e ela respondeu ao entrelaçar seus dedos. Eles não trocaram nada além de um olhar rápido, mas a garota aproveitou a abertura para se inclinar na direção dele, apoiando o rosto contra seu ombro. Nem ao menos percebera o quanto estava exausta, mas bastou fechar os olhos para cair no sono.

Despertou com uma conversa baixinha entre Harley e Taylor – que fizera o mesmo que a garota e pulara para o banco da frente. Javier e Benji estavam dormindo; Sherwood tinha o rosto encostado contra a janela do carro, mas Dylan não soube dizer se ele também adormecera.

– Acho que é via satélite. – o enfermeiro comentou. – Ou talvez funcione igual os que a gente tinha instalado nos carros lá do Complexo. Mas não sei se dá pra consertar.

– Eu consigo consertar qualquer coisa. Só preciso de um tempo.

– Você também acha que eles estavam lá? – Taylor sussurrou melancólico. Dylan engoliu em seco. Sabia sobre o que ele estava falando; sobre quem. – Acha que deixamos Beatrice e os outros pra trás?

– Não tinha como saber, Taylor. – Harley soava igualmente entristecida, mas de maneira mais irritada. A mesma emoção que remexia os sentimentos de Dylan; impotência por não ter avançado, medo pelo que encontrariam. – A gente acabaria morrendo se entrasse lá.

Os dois ficaram em silêncio depois disso. Dylan fechou os olhos, aconchegando-se ao abraço de Benji, e tentou relaxar; o cansaço era a única coisa impedindo-a de reviver os terrores da noite passada, por isso deixou que a exaustão a levasse de volta ao sono.

Eles pararam quando os primeiros raios de sol começaram a riscar o horizonte.

Benji tocou seu rosto e chamou por Dylan e ela pulou em susto com o baque de uma porta se fechando. Javier acabara de sair da parte traseira e se espreguiçava ao ar livre; não havia nuvens no céu. Ironicamente, o dia amanhecera lindo.

– Tudo bem? – O motoqueiro indagou, os olhos claros passeando pelo rosto da garota como fizeram no escritório. A cena parecia ter ocorrido anos atrás, e não na noite passada.

– Vai ficar. – Ela garantiu, apertando os dedos dele sob os seus.

O olhar dele prometia a mesma coisa, por isso Dylan encontrou calma. A resolução que sentira ao beijá-lo, ao abraçá-lo, ao encontrar seu lar em Benji, isso não se perdera com a tormenta. O fato de estarem todos ali, bem, era um sinal de que a garota se encontrara. Coisas terríveis poderiam entrar em seu caminho, mas ela não se deixaria baquear novamente.

Esse era o fim do mundo. Terrível e glorioso ao mesmo tempo.

Benji beijou sua testa com leveza antes de abrir a porta, puxando Dylan pela mão para que saíssem. Harley tinha se deitado no chão de terra seca e tinha os olhos fechados, mas a expressão surpreendentemente serena.

– Acho que todos merecemos uma hora de descanso. – Taylor comentou, o olhar perdido sobre a figura distante de Sherwood.

Harley havia estacionado à beira da estrada; um longo caminho se estendia à frente e outro igualmente longo seguia por onde tinham vindo. Uma única direção, com a promessa de um recomeço ao fim dela.

Com todo o horror da noite passada, Dylan quase se esquecera do motivo da viagem. Do destino que queriam alcançar. Depois de descansar, precisavam reagrupar e coordenar o restante do trajeto para ter certeza de que não fariam outro desvio perigoso.

Benji se sentou sob a sombra da lateral do carro e Dylan o acompanhou, encostando-se à lataria reforçada com um suspiro. Passeou os olhos pelos carros estacionados no meio fio e, com o cenho franzido, deixou um pensamento repentino ganhar voz:

– Sua moto. – Para outra pessoa, podia não significar nada. Mas a moto era mais do que um meio de atravessar estradas ou cidades infestadas por infectados; era parte de Benji.

Por isso sua surpresa quando ele ergueu os ombros.

– Era importante antes. Agora, nem tanto. – A mão dele estava sobre a sua, o polegar desenhando uma carícia delicada em sua pele. Dylan acompanhou o gesto, mesurando as palavras do motoqueiro; algumas coisas ficavam para trás. Outras coisas entravam em seu caminho. Era assim que funcionava o fim do mundo.

– Alguém aí a fim de uma sopa de tomate? – Javier chamou sua atenção, pairando sobre os dois para ganhar um olhar bem-humorado da loira em resposta.

Seu olhar escorregou para Taylor, no entanto, enquanto ele se afastava em direção ao soldado solitário em outro canto da estrada.


***


Taylor ainda não conseguira processar as últimas horas. Dificilmente o faria nos próximos dias. Ele já deveria ter se acostumado com a brusquidão que aqueles tempos ofereciam, aquela sensação de que estavam em segurança para logo em seguida não estarem mais – mas, ainda assim, sua mente não conseguia aceitar o cenário.

Eles mal haviam escapado de um terror ao se abrigar no clube para dar de cara com um ainda pior em seguida. Mortos e vivos em uma batalha eterna para ver quem conseguia aterrorizar mais; o enfermeiro tinha uma opinião própria a respeito daquela disputa.

Íris havia dito que os vivos estavam ganhando, e era a mais pura verdade. Estavam ganhando por todo o caos que conseguiam espalhar mesmo quando o mundo confrontava a sua pior realidade. Estavam ganhando pelo terror que instauravam com tanta facilidade.

Por isso ele se afastou do grupo em direção a Sherwood; com aqueles pensamentos, Taylor só conseguia se lembrar do seu último momento com o soldado. De como se esquivara dele, certo de que Sherwood estava para entregar seu coração ao enfermeiro. Taylor ousara achar que fugir era mais fácil, que ignorar a verdade o faria se sentir melhor caso alguma coisa ruim acontecesse.

Mas, quando os mercenários apareceram, quando colocaram uma arma contra a cabeça de Sherwood, o rapaz só conseguira se arrepender por não ter aceitado a fala do soldado e retribuído com a verdade – com todo o seu coração.

– Ei. – Sherwood desviou o olhar até o seu. O amanhecer riscava o horizonte límpido com cores pálidas, e desenhava as feições do soldado com toda delicadeza. Taylor o contemplou em silêncio, admirando os olhos claros e o leve franzir entre suas sobrancelhas e cada centímetro que aprendera a amar.

Aquele não era um momento para os terrores; não mais.

– Eu te amo. – Taylor sussurrou ao dar um passo à frente, temendo ter sido repentino demais. Para seu alívio, não houve surpresa no rosto do soldado, nada além de atenção. – Deveria ter dito isso antes, mas achei que... Se não nomeasse, seria mais fácil para nós dois. Faz sentido?

Ele sabia que Sherwood entendia. Ele perdera alguém importante antes, parte do seu coração – e demorara a encontrar um caminho para se distanciar do luto. Taylor não tinha ninguém quando o apocalipse começou, mas seu coração se despedaçara de maneiras diferentes nos últimos meses.

Na noite passada, ele achou que viveria aquilo. Que perderia parte de todos os sentimentos bons encontrados com Sherwood, que restaria a ele algumas memórias e a dor trazida por elas.

– Também amo você. – Sherwood respondeu, e foi tão aberto e honesto, carregando seus olhos claros com um tipo de entrega que Taylor não experimentara antes; o rapaz sorriu por isso.

Aquele não era um momento para as coisas que haviam perdido. Era um momento para as coisas que encontraram – para as que ainda encontrariam.

Quando Sherwood o beijou, Taylor se sentiu em casa. Perdido naquela estrada deserta, distante do grupo, incerto quanto ao destino da sua família – mas com um detalhe ao qual podia se agarrar. Um coração pelo qual podia lutar. Por isso eles seguiriam em frente; encontrariam a Colônia e fariam tudo dar certo.


25. Dentro da escuridão

 

 


Quando Meredith despertou, um incêndio parecia se alastrar por seu braço, começando exatamente onde o tiro havia acertado. Ela se moveu e se arrependeu amargamente por isso, grunhindo e prendendo um grito pela dor que se espalhou por seu tronco; sentiu uma mão tocar sua testa, impedindo-a de se levantar, e só então notou que sua cabeça estava apoiada no colo de alguém. Ergueu o olhar para encontrar Rebecca, o cabelo seco indicando que horas haviam se passado desde o incidente no condomínio.

Com calma, Meredith se afastou da dor para procurar foco. Estava em movimento – conseguia sentir o carro ou o que quer que fosse balançando sob seu corpo. Apesar da agonia, tateou o ombro para sentir uma bandagem improvisada; não era mais a jaqueta de Íris segurando o sangue, mas uma camiseta dobrada e amarrada da maneira certa a fazer às vezes de uma atadura.

– Foi só um arranhão. – Becky sussurrou como um segredo. – Mamãe disse que você vai ficar bem. A gente parou pra fazer o curativo e depois voltou pra estrada.

Meredith suspirou; a noite se tornara um borrão depois que Wade as encontrara. A garota sabia que havia perdido a consciência entre o reencontro e a fuga, então a força para se levantar e se sentar veio da mais pura curiosidade. Da necessidade de preencher as lacunas vazias em sua memória.

Logo ao seu lado, servindo como parte do seu travesseiro, Samanta desviou um sorriso rápido para a garota, para voltar a observar a paisagem lá fora em seguida, o semblante sério e concentrado.

No banco da frente, Beatrice tinha manchas de sangue nos dedos. A tensão estava evidente na maneira com que apertava o volante, mas o olhar que ela desviou para Meredith no retrovisor foi de alívio.

No assento do passageiro, Machete – Meredith se lembrou – parecia adormecido. A cabeça estava tombada para o lado, contra a janela, e o corpo balançava e pulava junto com a estrada.

Com um susto, a garota procurou ao seu lado só para encontrá-lo vazio.

– Cadê o Wade e a Judith? – voltou o rosto para Rebecca, que prendia o choro. – Cadê a Íris?

– Aqui atrás, chica. – Meredith se virou com uma careta de dor. A placa traseira que separava os bancos do porta-malas fora retirada e Íris estava meio-sentada, meio-deitada ali; a aparência era de quem vivenciava o inferno.

– O que aconteceu? – Meredith a examinou; seus olhos varreram o rosto pálido da mexicana, os olhos vermelhos, os lábios trêmulos. A resposta já se formava em sua mente, mas ela não queria aceitar. A lembrança de Jeremy e Abigail ameaçava substituir a imagem de Íris, mas Meredith lutou contra aquilo.

– Um maldito muerto aconteceu. – Ela sorriu ao dizer isso, e foi então que Meredith viu: uma mordida. A pele em carne viva, o sangue que nunca parava de escorrer, as manchas escuras de sangue e baba do morto-vivo.

Infectada.

A garota não precisava de respostas para saber o destino de Wade e Judith. Se eles não estavam no carro, haviam se perdido também. Com sorte, teriam sofrido pouco. O azar estava logo atrás dela, sorrindo como se o apocalipse fosse uma grande piada.

– Vamos descansar assim que encontrarmos meu grupo. – Beatrice anunciou, o tom solene estourando o momento tenso. – Sally disse que procuraria um dos motéis à beira da estrada na autoestrada, já sabemos para onde ir.

– Não sobrou mais ninguém? – Meredith sussurrou; odiou-se pelo tom melancólico. Pela dor em sua voz.

– Não. – Íris retrucou. Afiada como a garota não se lembrava de ter ouvido antes. – Todo mundo que seguiu o Bright morreu.


***


Beatrice caminhou entre os seus. Recebeu sorrisos e condolências, felicitações por ter retornado e pêsames por não ter conseguido trazer os outros de volta.

Mesmo depois que Machete e Samanta limparam o motel, o grupo preferiu continuar na estrada. Havia um novo tipo de emoção no ar, uma que Beatrice não reconhecia; era tensa e incerta, mas carregava a leveza que pouco experimentara desde a queda de Oz. Quando as pessoas falaram com ela, seus tons não soaram desamparados. Seus olhares eram concisos, resolutos.

Como se tivessem aceitado as perdas e os ganhos. Como se aquela viagem os houvesse aproximado mais, usando a situação para se tornar mais uma família e menos desconhecidos sobrevivendo juntos. Vivendo juntos, buscando outras razões para seguir em frente.

Sally sorriu em sua direção, o semblante exausto totalmente compreensível, e gesticulou para Rebecca se aproximar; a garotinha se afastou da irmã, lançando um olhar incerto para Meredith antes de fazê-lo, e aceitou.

– Imagino que você esteja com muita fome. O Lobo com certeza está. – Sally acariciou as orelhas do cão. – Pode vir comigo e ficar de olho nele enquanto eu pego as coisas?

Becky anuiu veemente, ganhando um sorriso da ruiva. Beatrice assistiu enquanto a garotinha se prostrava ao lado do cachorro, ganhando a simpatia dele de imediato. Cruzou os braços para ocupar as mãos trêmulas enquanto Sally se afastava com os dois.

Meredith, sentada sob a sombra do furgão, não olhou para a mãe, mas também não tentou afastá-la quando se aproximou. Ela estava sozinha ali, diferente do grupo – mesmo Íris encontrara refúgio próxima à Samanta e Machete.

Beatrice se sentou, tirando um instante para observar o curativo recém-feito no ombro da filha. Sally dizia não ser tão boa quanto Taylor, mas fizera o suficiente ao costurar e desinfetar e garantir que as dores de Meredith diminuíssem com os remédios. Naquele momento, a palidez da garota se fora; os cabelos castanhos estavam amarrados em um rabo-de-cavalo, deixando o perfil exposto para Beatrice. Tão parecido com o seu, com exceção de alguns detalhes. Alguns traços que eram Jake por completo.

– Eu nunca pedi desculpas a você. – A mulher sussurrou. Viu o corpo da filha se retesar em tensão e esperou alguma reação dela, mas Meredith se manteve estática depois disso. – Eu não mereço seu perdão por não ter me desculpado – um sorriso amargo escapou de Beatrice. – Sei que o que eu e seu pai fizemos foi horrível e imperdoável, mas reencontrá-la e permanecer em silêncio foi ainda pior.

– Eu também não falei nada. – a garota reagiu, finalmente. Os olhos ainda estavam presos ao asfalto. – Nunca achei que nos veríamos de novo, para ser sincera, mas criei essas cenas na minha cabeça de que, quando encontrasse vocês, faria com que se sentissem culpados. Faria com me implorassem perdão. Faria com que soubessem tudo o que eu e meus irmãos vivemos só pelo gostinho de vingança.

Meredith riu; o amargor do sorriso de Beatrice refletido em seu riso.

– Fui ridícula. – a garota continuou. – Fiquei tão focada nessa retribuição que nem percebi o quanto estava me cegando. Deveria ter aproveitado... – um soluço escapou entre seus lábios. – Deveria ter aproveitado enquanto o papai estava aqui.

– Desculpe, Dit. – o apelido parecia enferrujado em seus lábios. Ela nem se lembrava da última vez em que havia chamado Meredith assim. – Eu não estava lá por você. Não estava lá pelo Jeremy, pela Abi e pela Becky. Não estava lá pelo pai de vocês. – Não importava o quanto lutasse, Beatrice sentia que nunca chegaria a tempo de salvar sua família.

Meredith finalmente a encarou. Os olhos lacrimejavam, avermelhados pelo choro. A ponta do nariz também. Naquele momento, sua expressão era como todas as lembranças que Beatrice tinha de tempos mais tranquilos.

– Eu precisei de vocês antes. Quando o mundo acabou, achamos que vocês viriam, mas nunca vieram, e eu os odiei por isso. – Meredith murmurou. – Eu odiei vocês quando Jeremy foi mordido e não consegui dar misericórdia a ele. Odiei vocês quando Abigail foi mordida e tive que matá-la enquanto ela dormia, porque só conseguia me lembrar do medo no olhar do Jer e de como eu o decepcionei ao fugir. Eu odiei vocês quando Rebecca passou fome e frio e quando a morte parecia um destino melhor do que o que a gente estava enfrentando. Eu odiei vocês quando descobri que tinham salvado tanta gente, mas tinham deixado seus filhos para trás.

Beatrice aceitou suas palavras; aceitou a dor que cada uma delas cravava em seu peito. Aceitou a angústia e a fúria na fala e no olhar da garota porque sabia que merecia. Sabia que não descansaria em paz enquanto não ouvisse aquilo.

– Não consigo encontrar um jeito de te perdoar, mas cansei de te odiar. – Meredith suspirou. Seus lábios tremiam, lágrimas escorriam por seu rosto. – Por que vocês não voltaram pela gente? Por que não vieram nos salvar?

Beatrice cruzou as mãos em frente ao corpo. Deixou que as lembranças que tanto refreara voltassem à sua mente, que os horrores do passado ganhassem forma em seus pensamentos. Meredith merecia aquilo.

– Havia corpos na sua escola. Centenas de corpos carbonizados. – a garota a observava, atenta e ansiosa. – Quando eu e seu pai chegamos, o lugar estava em ruínas. Nós vimos as silhuetas e então as pilhas de cadáveres irreconhecíveis deixados no pátio. Centenas de crianças sem rosto, Meredith. Eu olhei para todos aqueles corpos e achei ter visto você em dezenas deles. Os rostos de Jeremy, Abi e Becky também.

Beatrice se lembrou dos próprios gritos; conseguia ouvir o eco da sua voz como se fosse de uma pessoa à distância.

– Seu pai me tirou de lá. Eu me enfiei entre aquelas pilhas e tentei... Tentei achar vocês. Queria encontrá-los ali porque não conseguia conceber a ideia de tê-los sozinhos no horror lá fora. Eu rezei, Meredith, para encontrar vocês entre os mortos, porque o que restou para os vivos era terrível demais. Devastador demais.

Meredith não respondeu. Compreensão e revolta estavam óbvios em sua expressão.

– Paramos de procurar porque não havia onde procurar. Não havia para quem pedir ajuda, uma trilha ou indicação para acompanhar. Vocês desapareceram, filha.

– Era mais fácil achar que estávamos mortos do que tentar nos encontrar. –Beatrice a encarou profundamente.

– Era mais fácil achar que estavam mortos do que torcer para estarem vivos em todo aquele inferno.

– Jeremy morreu, mãe. Abigail morreu. – Meredith estremeceu, os ombros trêmulos conforme os soluços ganhavam força. – O papai também.

– Mas você está aqui, Dit. Você sobreviveu. Becky também. – Beatrice ousou segurar o rosto da filha entre as mãos, e agradeceu aos céus quando ela não se afastou. – Nós sobrevivemos. Isso importa. Dói, minha querida, mas isso importa.

Entre o choro e a tremedeira, Meredith assentiu e, para surpresa da mulher, se deixou cair em seus braços. Beatrice a recebeu, abraçando-a com cuidado pelo ferimento, mas embalando-a como sonhara em fazer desde que tudo havia acabado; sussurrando palavras de conforto e proteção como ansiara fazer desde que o fim do mundo os dividiu. Prometendo que não deixaria o lado das suas garotas como devia ter feito havia tanto tempo.


26. Promessa

 

 


Quando Machete e Samanta se afastaram para conversar com Beatrice, Íris ficou sozinha para focar na dor e no desconforto de ter aquela praga se alastrando por seu corpo. Era misericórdia, de fato, o que davam aos infectados, porque o que ela estava sentindo era difícil de mesurar.

A mexicana não entendeu porque Machete e Samanta pegaram o furgão e se afastaram, de volta à estrada pela qual haviam vindo. Não entendeu porque Beatrice começou a falar com os outros membros do grupo – a voz da líder estava distante e soava abafada demais para que Íris compreendesse qualquer palavra, por isso pouco se importou.

Quando se ajeitou onde estava sentada, sua visão ficou pontilhada por estrelas. Íris daria qualquer coisa – seus braços, seus pés, suas armas, qualquer coisa mesmo – por uma garrafa de tequila; os detentos no corredor da morte não costumavam ter direito a uma última refeição antes de serem mortos? Ela merecia isso também. Não havia feito nada de errado para ser colocada numa cadeira elétrica, mas estava vivendo o equivalente a isso dentro do apocalipse; o corpo inteiro sendo devorado por uma praga devastadora. Sem cura. Sem escapatória. Um único fim para livrá-la do cárcere daquela mordida.

Sally havia lhe dado anti-inflamatórios para ajudar com a dor, mas a mexicana só fingira que tiveram efeito. Não serviram para aliviar o comichão ardente na mordida e tampouco para livrá-la das dores que se espalhavam pelo corpo; eram tantas e tão dispersas que Íris se tornara parte delas. Quase conseguia ver sob sua pele, acompanhar o caminho que a doença fazia enquanto se espalhava em sua corrente sanguínea. Enquanto infectava cada cantinho do que fazia de Íris uma pessoa sã e saudável.

Ela achou que sentiria raiva; achou que amaldiçoaria céu e inferno – ainda que não acreditasse que existiam – e todo mundo ao seu redor por aquele incidente. Ninguém tinha culpa, no fim das contas. Só os muertos.

Por isso Íris se viu mais sorrindo do que se culpando ou culpando os outros.

Havia uma pontinha de razão em sua mente enevoada pela dor, e essa razão apontava o óbvio: se não tivesse feito isso, Meredith estaria morta. E Íris sobrevivera e seguira em frente para ajudar os outros como eles a haviam ajudado. Se isso significara uma mordida, bom, era uma infelicidade. Seu azar.

Esse mesmo azar havia encontrado outros antes; havia levado Hannah e Noah, Max e Romero, Judith e Wade. Havia levado Clark também.

– Eu não fui levado. Beatrice atirou em mim. – Ao seu lado, a voz familiar, que Íris imaginava estar se esquecendo, não a fez se sobressaltar. Quando se virou para encarar Clark, a mexicana sabia que aquilo não era real; que a forma física e perfeita dele, com seus olhos claros translúcidos e seu sorriso arrebatador, era parte de todos aqueles pensamentos unidos à febre e aos delírios.

– Qualquer um teria atirado em você. – ela replicou. – Assim como vão atirar em mim, eventualmente.

– Essa é a merda do fim do mundo.

– As pessoas matam os infectados ou eles nos mordem e nos transformam em novos muertos. – ela riu e estremeceu pela dor do movimento. – Por que está aqui, Clark?

– Eu sou um fruto da sua imaginação. Me diga você.

– Acho que é difícil te esquecer. – Íris sorriu, ganhando um sorriso dele de volta. O gesto dolorosamente familiar, todo debochado e carregado em emoção. – Você e esse rosto perfeito. Eu te odeio por ter morrido sem se despedir.

Clark permaneceu em silêncio. O sorriso desvaneceu e a expressão migrou para outra igualmente familiar, carregada em seriedade. Como era possível se lembrar dele com tanta clareza? Como era possível saber cada ínfimo detalhe daquele homem?

– Eu estava me apaixonando por você. Talvez já estivesse perdidamente apaixonada. – Íris continuou. – E nunca tive a chance de dizer. Deve ser por isso que a febre te trouxe aqui.

– Pra você dizer que me amava?

– E que queria ter vivido com você em um mundo normal. Queria que tivéssemos nos encontrado antes, quando você era um bandido sobre duas rodas e eu era só a dona de um bar velho numa quadra qualquer. Teria sido mais fácil.

– Eu nunca gostei de coisas fáceis. Você também não.

Íris anuiu em silêncio, fechando os olhos quando um estranho cansaço se abateu sobre ela. Tão devastador quanto a dor ou o incômodo, quase obrigou seus olhos a se fecharem; fez todo o seu corpo desligar, como se tivesse corrido por quilômetros sem parar.

– Sinto sua falta, cariño.

– Cariño? – ela entreabriu os olhos para encarar Sally, que tinha um enlatado aberto em mãos. O sorriso da ruiva era de bom humor. – Não achei que eu fazia o seu tipo, Íris.

– Não vai desperdiçar isso comigo. – a mexicana empurrou o enlatado para longe, ainda mais quando Sally se sentou à sua frente. Uma careta de dor ganhou o rosto da mulher, no que Íris se empertigou. – Tudo bem?

– Sim, sim. – ela dispensou com as mãos. – É so cansaço por causa de todo esse caos. Queria poder deitar e não me levantar por pelo menos uns três dias.

– Eu vou fazer isso em breve. – Íris tentou, mas recebeu um único olhar incisivo da ruiva e dissipou o sorriso bem humorado.

Sally estendeu a latinha em sua direção, mas a morena negou.

– Eu estava falando sério. É desperdício.

– Tem o suficiente para a viagem até a Colônia, aquele furgão estava bem abastecido.

– Pra onde eles foram, aliás? Machete e Sally?

– Conferir a estrada. Ver a que distância a horda está da gente.

– Esses merdas não pararam?

– E eles param em algum momento? – o retruco foi enfezado, no que Íris concordou com um suspiro exausto. Sally a observou com cuidado; traços de tristeza pareciam moldar suas feições naquele momento. – Queria que não tivesse sido você.

– Eu também queria. – Íris dobrou um sorriso para a ruiva. – Mas até que me saí bem em todos esses meses, hm? Quando essa praga estourou, não achei que sobreviveria à primeira semana.

– Eu também não. Principalmente depois... – Sally apoiou a mão livre sobre a barriga. Franziu a testa de repente, e Íris respondeu com uma expressão consternada: – Ah, não.

– O quê? – A mexicana baixou o olhar para acompanhar o dela; sob os pés da ruiva, havia uma pequena poça de água. – Bom... Uma hora tinha que acontecer.


***


Passava do meio-dia quando Harley desistiu de contatar alguém pelo rádio. A garota estava certa em relação ao conserto e fizera isso magistralmente, mas o chiado que veio em resposta só serviu para lembrá-los da frustração de antes; durante horas, eles se revezaram em testar as frequências e disparar mensagens aleatórias, procurando por seu grupo. Durante horas, Dylan esperou ouvir uma resposta, algum sinal de que Beatrice e os outros ainda estavam por aí.

Nada. Não encontraram nada.

Quando Taylor desligou o rádio naquele início de tarde, os olhares entre o grupo diziam muito sobre sua situação.

– Eu deveria ter parado naquele motel. – Harley comentou, sentando-se sobre o capô do carro. – Poderíamos ficar lá até o fim do dia, talvez até amanhã, só pra ver se nenhum comboio ia seguir pelo viaduto.

– Se eles estão atrás de nós, vão nos alcançar em algum momento. – Sherwood replicou. – Não podemos voltar agora. Mal temos suprimentos para chegar até a Colônia, se dermos meia-volta vai ser pior.

– Eu sei. – a garota soltou um muxoxo decepcionado. – É só que... Parece que não tem nada na nossa frente, nem nas nossas costas. Nada nem ninguém. Eu tô começando a ficar desesperada.

– Tem uma coisa à nossa frente sim. – Dylan buscou o olhar dela antes de continuar: – A Colônia. Estamos quase lá agora. Sherwood está certo, não dá pra ficar esperando ou voltando atrás. O que vamos fazer é chegar até o lugar seguro e, de lá, tentar encontrar os outros. Depois de reabastecer e ter certeza de que teremos reforço.

– Podemos continuar com as mensagens. – Taylor acrescentou, um brilho de animação tomando seu rosto. – Enquanto o sinal estiver bom, continuamos tentando contato. Se a Beatrice ou a Íris ou qualquer pessoa tiver um rádio por perto, com certeza vão fazer o mesmo. Nós não decoramos todas essas frequências à toa.

– Se eles já tiverem alcançado a Colônia, nos encontraremos lá. Mas, se ainda estiverem tentando chegar... – Benji vasculhou a mochila e tirou a lata de spray usada no clube de golfe; havia um resto de tinta quando ele chacoalhou, e por isso Dylan sorriu. – Vamos seguir o protocolo do Complexo. Deixar uma mensagem para saberem que passamos por aqui.


***


No instante em que Sally teve outra contração, Meredith avistou a silhueta do veículo que Machete e Samanta usaram para checar a distância da horda. Quando desceram, suas expressões não eram das mais animadoras, mas qualquer comentário sobre o que viram se perdeu ao avistarem Sally.

– Timing horroroso, eu sei. – A ruiva brincou. O cabelo estava preso, afastado do rosto, e Meredith e outro sobrevivente se dividiam em abaná-la e mesurar o tempo entre as contrações; segundo a própria Sally, ainda levaria algumas horas para a situação começar a ficar complicada.

Beatrice, com os braços cruzados, chamou Machete de lado, só para ser interrompida pela pergunta de Meredith:

– É o que sobrou do condomínio?

– E provavelmente mais. Esses desgraçados surgem de todos os cantos possíveis. – Machete resmungou, a testa vincada em preocupação conforme parava à frente da líder. – O que vamos fazer?

– A Colônia é o melhor lugar para levar a Sally, mas não sei em quanto tempo conseguimos alcançar. – Beatrice começou, a voz firme e precisa. – Se não fosse a horda, poderíamos continuar aqui.

– Vai anoitecer em algumas horas e a gente precisa se manter em movimento se quiser fugir daqueles infectados. – Samanta contrapôs. – É igual às outras hordas, Beatrice. Gigante, barulhenta e perigosa, mas dá pra escapar.

– Eles nunca vão parar de nos seguir. – Meredith comentou, ganhando a atenção de todos eles. Sally agarrou sua mão quando uma nova contração surgiu, e a garota esperou e contou os segundos até que a mulher relaxasse. – Mesmo que a gente chegue até a Colônia, não vai demorar para que os mortos façam isso também.

Sua fala pareceu surtir um efeito sombrio sobre os outros. Quase como se a constatação não tivesse caído ainda; como se tivessem se esquecido do que rodeava os muros do Complexo Oz. Com a Colônia não seria diferente – eles talvez tivessem a própria horda particular, e aquela se tornasse uma adição. Esse era o apocalipse que viviam, e desconsiderar os riscos era tão perigoso quanto aceitá-los sem fazer nada.

– Podemos usar o rádio. – Samanta argumentou. – Chamar qualquer ajuda que tiver por perto, todas as frequências possíveis. Quem sabe o pessoal da Colônia responde.

– É uma tentativa válida. – Machete concordou. – O máximo que vai acontecer é não ter ninguém do outro lado.

– Não é uma solução rápida como a gente precisa agora. – Meredith replicou ansiosa.

– A garota tem razão. – Íris se aproximou, estranhamente silenciosa. Meredith prendeu a respiração ao vislumbrar a aparência da mulher, ainda mais acabada pela praga do que uma hora antes. Havia círculos vermelhos ao redor dos seus olhos, a pele fantasmagoricamente pálida. Dava para ouvir o tique-taque do relógio que levaria a vida da mexicana embora; cada vez mais acelerado. – Estamos fugindo desde que o Complexo caiu. Eu tô cansada disso.

– Íris, você nem deveria estar de pé. – Beatrice replicou. Havia consternação em seu olhar; não do tipo furiosa, mas cheia de carinho. O tipo que faria seu coração partir quando a mexicana se fosse. – Vamos dar um jeito nisso.

– Beatrice, você se lembra daquela mochila que o Clark sempre carregava? – Meredith encarou a mãe, esperando uma reação. A única coisa que encontrou foi um discreto franzir entre as sobrancelhas. Íris sorriu por isso. – Você estava com ela?

A líder negou. Reconhecimento pareceu surgir em Machete, e mesmo Sally se virou para observar a mexicana.

– Bright roubou. O desgraçado deve ter dado de bom grado para os mercenários. Se eu tivesse que apostar, diria que estava em meio ao arsenal daquelas malas e mochilas que os mercenários queriam guardar no furgão... – Íris prolongou o fim, dando espaço para Beatrice se manifestar.

– Algo me diz que eu não vou gostar dessa ideia. – Machete murmurou; havia medo em sua voz, e por isso Meredith se empertigou. Quem era Clark? O que ele tinha guardado que parecia tão importante para aqueles três?

– Você está pensando e não quer nomear. – Íris prosseguiu, incitando Beatrice com seu tom de voz. Uma provocação leve, cautelosa. – Clark tinha guardado carga suficiente pra causar alguns estragos, se eu me lembro bem. Tem uma ponte entre uma parte da autoestrada e essa. Um rio bem largo debaixo dela. É só juntar A mais B.

– Íris... – Machete deu um passo à frente, mas ela negou.

– Vou morrer em algumas horas. Eu decido a minha misericórdia. – o olhar de Íris recaiu sobre Sally, doce e amigável. Passou por Meredith, simpático e compreensivo. E parou em Beatrice numa expressão resoluta. – Não tenho muito tempo antes dessa merda me consumir, então ou você me dá esses explosivos ou eu meto uma bala na minha cabeça agora mesmo. Decide.

Beatrice encarou a filha, quase como se esperasse um aval dela.

Meredith engoliu em seco.

A situação toda era terrível. O fato de só haver uma saída era pior ainda; mas Íris estava certa, no fim das contas, como sempre esteve. Era surpreendente pensar que tinha se afeiçoado tão facilmente à mulher, mas ali estava: a mesma sensação de quando perdera Jeremy e Abi, de quando descobrira sobre a morte do pai. Estava prestes a perder outra figura importante, outra pessoa que a ajudara e se tornara tão próxima só para desvanecer com facilidade.

– Eu dirijo. – Beatrice sentenciou enfim, ciente do que se passava por trás do olhar perdido da garota. Sally lutou para se sentar, no que Íris ergueu as mãos, arrastando os pés sobre o asfalto para se afastar.

– Não. Sem despedidas, por favor, Sally. – o olhar amuado da ruiva implorava por uma resposta diferente, mas a mulher não recuou em sua fala. – Eu não estou pronta para dizer adeus e não quero que essas sejam as últimas palavras que vamos trocar.

– O que você quer, então?

– Se for menina, pode dar meu nome em homenagem. – Íris sorriu quando Sally gargalhou. Machete se aproximou dela e a mexicana se retesou, prestes a afastá-lo com a mesma desculpa, mas ele passou e seguiu em direção ao furgão, deixando bem claro que aquele ainda não era seu adeus.

Samanta abraçou os próprios braços, a expressão hesitante ao encarar a mulher à sua frente.

– Não pare seu plano por mim. – Íris apoiou a mão sobre o ombro da mulher, uma careta de dor contorcendo seu rosto pelo movimento. – Tente todas as frequências, inclusive as que Sherwood usava em Oz. Pode ser que os outros tenham escapado também, talvez tenham alcançado a Colônia e estejam esperando por vocês.

– Vamos levar esse grupo até o lugar seguro. – Um último sorriso de Samanta e ela se afastou.

Quando Meredith encarou Íris pela última vez, a mexicana piscou um olho; como se tudo não passasse de uma brincadeira. Como se o fim não estivesse se aproximando dela.

– Cuida dos outros por mim, chica. E diz pra Becky que eu cumpri minha promessa.

Quando o trio deixou o lugar, o silêncio que ficou foi quebrado por passos curtos e apressados e pela expressão assustada de Rebecca, que estivera com Lobo até então. Ela encarou o carro se afastando e a irmã mais velha, buscando as respostas que Meredith relutava em dar. Por isso, murmurou o que fora pedido:

– Íris me pediu pra avisar que ela cumpriu a promessa que te fez. – Compreensão e então tristeza se abateram sobre a garotinha, que procurou conforto no abraço da irmã. Meredith a recebeu com cuidado, esperando a melancolia e a devastação que viriam com o entendimento dela.

Para sua surpresa, Rebecca não desmoronou. O sussurro dela foi carregado de esperança:

– Agora é minha vez de te proteger.


27. Corredor da morte

 

 


Íris ouvia o barulho do motor do carro. Sentia o balanço conforme Beatrice desviava de tudo que havia na estrada, sabia que a mulher acelerava cada vez mais. Estava com os olhos fechados porque a luz do dia os machucava – e sabia, com uma certeza infernal, que a praga a aproximava do fim.

Teve a impressão de ouvir Machete e Beatrice conversando qualquer coisa sobre a quantidade de explosivos que Clark carregava e os “extras” que encontraram no arsenal dos mercenários – quem diria que Jim seria de tamanha ajuda, no fim das contas. Quando alcançaram a ponte, Íris não sabia dizer se haviam deixado o comboio havia horas ou se fazia poucos minutos, só sabia que sua cabeça parecia prestes a explodir.

– Fica aí, Íris. – Machete se virou para falar. A mexicana entreabriu os olhos; tudo parecia saturado demais, absurdamente exposto à luz. Ela sabia que não havia tanta claridade lá fora, mas parecia que o sol havia se tornado vizinho da Terra. Quase sentia pena dos infectados pelas vezes em que haviam usado a luz contra eles. – Vamos arrumar tudo lá na ponte.

Arrumar tudo, como se não estivessem prestes a posicionar os explosivos de modo a explodir aquela merda. Como se Íris não estivesse prestes a ser explodida.

Ela assentiu para o grandalhão, franzindo o cenho pelo barulho alto produzido pelas portas e então pelos passos deles lá fora. Era assim, então, que funcionavam os sentidos dos muertos. Se a infecção já estava tão potente em seu organismo, significava que ela já havia morrido? Quanto tempo até perder os sentidos e seu coração falhar? Quanto tempo até seu cérebro reativar em busca de carne humana?

– É injusto que você esteja adoecendo tão rápido. – Clark estava ao seu lado novamente. Íris se obrigou a abrir os olhos, lutando contra a claridade infernal para observar o homem.

Inclinado sobre o banco do carona, ele tinha os braços cruzados sobre o apoio de cabeça. Displicente como ela se lembrava, mas com uma expressão séria que costumava ser difícil de encontrar.

– Todo mundo morre eventualmente. – Ela retrucou, usando o deboche que ele fingia tão bem.

– Acha que seu plano vai funcionar?

– É melhor do que nada. – Íris deu de ombros, rangendo os dentes pela dor que acompanhou o movimento. – A horda vai encontrar um jeito de chegar ao outro lado, isso é certo. Mas meu pessoal vai ter mais tempo pra se ajeitar até lá, não vão precisar sair correndo pra alcançar a Colônia.

– Seu pessoal. – Clark sorriu. Infernos, como Íris sentia falta daquele sorriso. – Você foi uma boa líder enquanto conseguiu, se quer minha opinião.

– Eu não liderei ninguém.

– Dar ordens e comandar as pessoas não são as únicas coisas que um líder faz. Tem muito a ver com empatia e se colocar no lugar dos outros. Eu nunca funcionei assim, por isso ficava nas sombras. – Clark parou, o olhar pensativo. – Mas você leva jeito pra coisa.

– Levava. – Ela corrigiu com amargor.

– Não está morta ainda, Íris. – Mesmo com toda a luz e com todas as dores, ela se permitiu sorrir. Não pela paranoia envolvendo Clark e sua presença fantasmagórica ali, mas porque, realmente, a morte ainda não havia chegado. E ela não era mulher de sentar e ficar se lamuriando como fizera até então.

Por isso, abriu a porta e se colocou de pé, as pernas trêmulas sob o corpo febril. Inspirou fundo enquanto esperava a vista turva se normalizar, e usou a lateral do carro como apoio para começar a andar. Seus passos eram lentos e arrastados, um eco do que se tornariam caso ela não recebesse misericórdia. A dor acompanhava cada movimento, e ainda assim Íris foi em frente.

Alcançar o ponto da ponte onde Beatrice e Machete estavam trabalhando foi uma odisseia. A mexicana caminhou com todas as suas forças, ora tropeçando e se apoiando em carcaças de carros abandonados, ora obrigando-se a seguir em frente, resmungando consigo mesma pela fraqueza. A morte não ia levá-la como havia levado os outros. Ela salvaria seus amigos antes de cair.

Machete ergueu o rosto em sua direção, o suor sobre a careca brilhando com a luz intensa que cobria o lugar. Beatrice se virou ao avistá-la e Íris estranhou o medo repentino que encontrou no semblante dela; até se lembrar de que estava mancando e se arrastando com a aparência de uma morta-viva.

– Ainda sou eu. – Ergueu uma das mãos, recebendo o suspiro aliviado deles em retorno.

Machete rodeou sua cintura com o braço quando ela tropeçou próxima dele, e recebeu um olhar enfezado da mexicana por isso.

Beatrice se afastou quando esvaziou os explosivos da mochila. Íris ficou surpresa pelo esquema que eles conseguiram montar, espalhando gasolina e as dinamites pelo centro do viaduto.

– Queria ter tempo de fazer um bom trabalho com esses explosivos, mas é o que dá. – Machete comentou. – Não tem como derrubar a estrutura toda, mas com essa quantidade de dinamite dá pra abrir um rombo.

– Nós ligamos todos os fios dos explosivos. – Beatrice continuou, apontando para o monte de dinamites à sombra de um dos carros.

– O esquema é que o rastro de gasolina vai chegar até aqueles explosivos nas duas pontas da ponte, e aí é outro BOOM. – Machete explicou orgulhoso. – Se os mortos tentarem atravessar, caem direto no rio.

– Você trabalhava pra máfia ou algo do tipo? – Íris brincou.

– Eu era do esquadrão antibombas. Aprendi os esquemas tendo que... Desligar todos eles. – Machete sorriu pelo sorriso da mexicana. – De qualquer maneira, é só acender as trilhas de gasolina com o isqueiro antes de acender o pavio principal.

– E aí tudo vai fazer BOOM.

Ele abaixou o rosto para fugir do riso dela, no que Beatrice cruzava os braços, claramente incomodada.

– Íris. Você tem certeza de que quer fazer isso?

– Alguém tem que ficar pra trás pra acender essas coisas. E só tem uma pessoa prestes a morrer aqui. – Íris engoliu em seco; o olhar de Beatrice tinha o estranho poder de abalar sua confiança, principalmente naquele momento. Ela morreria sozinha. Explodiria sozinha. Era uma maneira terrível de partir, mas ainda estaria salvando os outros. Daria uma chance para que Meredith e Becky chegassem ao lugar seguro com sua mãe. Daria uma chance para Sally ser uma mãe. Garantiria que Taylor, se ele tivesse escapado como ela gostava de acreditar, construísse uma vida ao lado de Sherwood. Permitiria que Dylan espalhasse sua esperança para os outros.

– Não vou dizer adeus. – Machete a trouxe para um abraço cuidadoso, apoiando o rosto sobre o topo da sua cabeça. Íris inspirou fundo, mandando ao inferno as dores ao retribuir o gesto. – Foi uma honra lutar ao seu lado, Íris.

– Garanta que a Sally chame a filha dela de Íris. – Usou seu tom mais bem-humorado para falar, sorrindo ao ouvir a gargalhada dele.

Machete se afastou, enfim, dando espaço para Beatrice. A mulher deu um passo à frente; o semblante forte e sério. Os olhos carregados em melancolia. Apesar de tudo, de todas as perdas e ganhos, Íris sentiria falta dela.

– Não tenho como agradecer tudo o que fez pelas minhas meninas. – a líder começou. – E nem tenho como me desculpar por tudo que causei a você.

– Não quero agradecimentos e nem desculpas, Beatrice. – Íris respondeu. – Só quero que você viva, e garanta que nosso pessoal vai viver também.

Beatrice a abraçou. Desculpou-se baixinho ao ouvir o gemido de dor da mexicana, mas teve o abraço retribuído com a mesma emoção. O coração de Íris se partia pela despedida, mas não era uma despedida em vão. Eles seguiriam em frente e aquela certeza era suficiente para tranquilizá-la. Beatrice e os outros precisavam viver. Mereciam viver. Por ela e por todos que perderam; por todas as coisas que encontraram.

Íris permaneceu de pé enquanto eles se afastavam. Esperou para ver se olhariam para trás – implorou a qualquer divindade lá em cima para que não o fizessem – e suspirou aliviada quando os viu partir.

O isqueiro estava preso entre seus dedos trêmulos. O único barulho rondando os arredores era do vento forte sobre o viaduto. Nada além da natureza, com suas cores vibrantes e saturadas.

Íris fechou os olhos e ergueu o rosto para o céu, para o sol escaldante que parecia cegá-la cada vez mais. Respirou fundo e se permitiu gritar; em frustração e raiva e alívio. Permitiu que sua voz calasse o vento e se espalhasse pelo mundo, que levasse todas as suas emoções embora. Que a deixasse só.

– Não. Você não está realmente sozinha, doçura. – Clark apareceu ao seu lado, com a mesma aparência de quando ela o perdeu. Com a jaqueta de couro e o olhar marcado por exaustão, a palidez excessiva e os sinais de que sua hora também estava chegando.

– Por que eu estou te vendo assim? – Íris irritou-se.

– Talvez alguma coisa em você queira acabar nossa história da maneira certa.

– Nós tivemos uma história, é? – A irritação se foi, substituída por um sorriso trêmulo. Clark retribuiu, estendendo a mão até a dela; Íris não sabia a quantas andava sua paranoia, mas pareceu sentir o toque dele. A maneira familiar com que os dedos do motoqueiro desenhavam sua pele.

Clark ficou ao seu lado enquanto Íris mancava em direção ao carro com as dinamites. Quando ela se sentou, ele se sentou também; um fantasma, uma alucinação, uma presença. A mexicana pouco se importava com o nome para aquilo.

Ela tirou um instante para apreciar o toque dele. Fechou os olhos quando Clark trilhou os cantos do seu rosto, a carícia tão familiar que trouxe lágrimas aos seus olhos. Era real. Tinha que ser.

Íris entreabriu os lábios e suspirou quando ele a beijou. Tudo ali era vívido; a maciez da boca, a firmeza do beijo, a sensação tranquilizante que a presença dele trazia. Clark a beijou como se o fim não tivesse chegado para os dois. Íris o beijou como se não o tivesse perdido. Em meio ao sol quente e à certeza do finito, a mexicana sorriu sob os lábios do motoqueiro e se afastou para acender o isqueiro.

– Obrigada por não me deixar sozinha. – Dobrou um olhar carinhoso na direção dele e encontrou outro igual.

– Obrigado por não se esquecer de mim.

Íris acendeu os rastros de gasolina e o pavio em seguida. Pensou em assistir enquanto as chamas se distanciavam até os explosivos, corroendo os fios de pólvora e as linhas de combustível, mas preferiu olhar para o céu. Clark apoiou a testa contra seu ombro, e essa foi a única sensação real em meio ao vazio que veio em seguida. As dores pareciam ter cessado. Ela nem ao menos conseguia sentir a mordida que a colocara naquela situação.

Fechou os olhos quando os pavios nas laterais do viaduto se acenderam, como Machete havia planejado. Um pendejo brilhante, aquele homem.

Com um sorriso para o horizonte, Íris se despediu.

Quase ao mesmo tempo, as dinamites explodiram, despedaçando o centro do viaduto, lançando destroços pelo ar. Carros caíram em direção ao rio, outros explodiram junto.

O caminho estava bloqueado. Missão cumprida.


28. O motel

 

 


Talvez tenha sido o destino. Alguma intervenção divina. Ou mesmo a maior das coincidências; Dylan não sabia realmente em que acreditar. Enquanto eles arrumavam suas coisas e Benji deixava a mensagem em um dos carros, o rádio de Harley chiou. Todos estacaram onde estavam, os olhos arregalados para o aparelho sobre o capô do veículo.

– Se alguém... Oz está ouvindo esta frequência... Resp... – Harley disparou até o comunicador, apertando para fazer soar o chiado de resposta.

– Aqui é a Harley! Quem tá aí?

A voz estava esquisita e difícil de identificar, até mesmo de entender, mas Taylor se aproximou, apertando a mão sobre o ombro da garota para que ela ligasse o comunicador.

– Aqui é o Taylor. Eu era enfermeiro em Oz. Com quem estou falando?

– Taylor! – a exclamação pareceu surtir algum tipo de reconhecimento no rapaz. – Precisamos... aqui... Ela não es... Bem...

– Tem muita interferência. – Harley avisou. – Nós estamos seguindo a autoestrada em direção à Colônia. Onde vocês estão?

–... Beira da estrada... caminho... da Colônia...

– Qual das estradas? – Taylor exaltou. – Quem não está bem?!

– Diz algum ponto pra gente usar de referência. – Harley continuou, rápida e precisa. Quando desligou o comunicador, silêncio se seguiu. O chiado da outra frequência pareceu silenciado, como se tivessem perdido o contato.

Dylan aproximou-se dos dois, os braços cruzados em nervosismo. Ao seu lado, Benji carregava a mesma expressão.

– Estão aqui, provavelmente. – Sherwood argumentou. – Talvez um pouco à nossa frente. Eles tinham vantagem de tempo, conseguiram escapar da tempestade.

– E se estiverem atrás? Podem ter tido algum imprevisto. Podem estar no condomínio e precisam da nossa ajuda. – Dylan deixou a preocupação escapar. – Quem você acha que estava no rádio, Taylor?

– Parecia a Samanta. – O enfermeiro se empertigou enquanto Harley mexia nos fios e nos botões, tentando estabilizar o alcance mais do que já havia feito. O problema estava do outro lado, no rádio deles.

– Acha que eu devo tentar as outras frequências? – Ela se virou para Sherwood. O tom de voz descarregava tensão; estavam a um passo de conseguir a localização dos outros, perto demais para desistir.

– Se a gente esperar, talvez... – Taylor começou, mas o chiado o fez se calar novamente.

– Est... Sul do est... Motel... – Foi a única coisa compreensível em todo o alvoroço de palavras que ela deixou escapar depois disso. Foi o suficiente. Beatrice havia seguido pelo mesmo caminho que eles; provavelmente haviam se desencontrado em algum momento nos últimos dias. Era um mundo imenso, mas pequeno ao mesmo tempo.

– Vamos voltar. – O enfermeiro sentenciou. Não havia um traço de hesitação em sua voz, nada que indicasse receio. Mesmo seu olhar era de pura determinação. – Não me importo se gastarmos toda a gasolina e tivermos que andar até a Colônia, eles precisam da gente.

Sherwood estava sorrindo quando Dylan a encarou. O tipo de sorriso orgulhoso e admirado que ele com certeza reservava para o enfermeiro. Um arrepio estranho percorreu a pele da menina ao pensar que, se o grupo estava atrás deles, então eles também estavam no condomínio quando deram as costas e fugiram de lá; mas, contemplando o olhar suave de Taylor, ela não ousou nomear sua preocupação.

Apesar dos pesares, estavam voltando para o seu grupo. Estavam voltando para casa.


***


Taylor se perdeu em tantos pensamentos a respeito daquela mensagem, mesurando quem, em meio ao grupo, poderia não estar bem – e as teorias sempre apontavam para a única pessoa que, eventualmente, acabaria precisando de assistência. Tamanho caos se instaurara sobre o enfermeiro nos últimos dias que ele nem se lembrou de Sally. Nem se lembrou da promessa que havia feito a ela, de que estaria ao seu lado quando ela precisasse.

Nem ao menos se perturbou com a ideia de tê-la deixado sozinha, sem um apoio. Sally não havia se importado ou mesmo argumentado quando Taylor resolvera ficar para trás, em Oz. Lobo vai cuidar de mim, relaxe. Ela havia brincado. O enfermeiro sabia que a mulher era forte, que podia se cuidar, mas também sabia, pelas conversas que Sally tivera com Doc, que ela não queria ter o bebê sem um apoio. Sem o médico ou o enfermeiro ao seu lado.

Doc se fora, mas Taylor ainda estava ali. Estava voltando e pediria desculpas por tê-la deixado para trás; por ter descumprido a promessa.

Ele nem ao menos notou que estava tremendo até sentir a mão de Sherwood cobrindo as suas. Desviou um olhar rápido para o soldado, que tinha a atenção fixa à estrada, desviando dos carros abandonados em meio ao asfalto.

– Estamos quase lá. – Sherwood murmurou para não atrair os outros passageiros. Harley e Javier conversavam qualquer coisa sobre as outras frequências de rádio e as infinitas que se perderam, desligadas ou inutilizadas durante as quarentenas. Taylor já se desgastara pensando sobre isso, tempos atrás. Na quantidade de pessoas perdidas que poderiam receber ajuda se tivessem onde pedir, como eles tinham. – O que quer que esteja acontecendo lá, vai ficar tudo bem.

Taylor apertou a mão dele entre as suas, apreciando o toque familiar e a delicadeza dele, o fato de, horas atrás, Sherwood havia entregado seu coração e o enfermeiro fizera o mesmo. Tivera coragem de fazer o mesmo.

– Vai ficar tudo bem. – Eles sorriram quase ao mesmo tempo.

No instante seguinte, um estouro distante fez Sherwood frear bruscamente. O som veio abafado e sequencial, resultado de mais de uma explosão. Taylor hesitou ao se virar e encarar os outros; onde Dylan e Javier eram choque, Benji era uma fria curiosidade e Harley, cautela em absoluto. De onde estavam, com as árvores ladeando a estrada, não havia como saber a exata direção do estouro – só que estavam seguindo diretamente para ele.

O coração de Taylor se apertou com a ideia de algo ruim acontecendo com o grupo. Independente de se tratar daqueles com quem Beatrice se reunira ou mesmo os que acompanharam Bright, eram a sua comunidade. Sua família. O enfermeiro não queria conceber a ideia de alguma coisa terrível caindo sobre eles, não com todo o terror que experimentara desde a saída de Oz. Não quando estavam tão perto de se reunir outra vez.

Enquanto Sherwood engatava o carro e colocava mais velocidade, Taylor rezava para que a distância fosse maior. Para que a explosão não tivesse vindo do motel, mas de algum lugar, qualquer lugar antes dele.

Naquele momento e pelos próximos que se seguiram, nem mesmo Sherwood prometeu que tudo ficaria bem.


***


Havia dois vigias estrategicamente escondidos nas proximidades do motel. Quando avistaram a construção solitária em meio ao terreno arborizado, com seus muros altos e aparência decrépita, Sherwood desacelerou. Um furgão estava estacionado em frente aos portões de entrada; era muito bem fortificado, com placas de metal nas laterais e cobertura nas janelas, uma grade de segurança nos vidros frontal e traseiro.

Parecido com o que os mercenários usaram para sequestrar seu grupo.

Foi nesse instante que as duas figuras saíram de trás do esconderijo – uma das carcaças empoeiradas e enferrujadas espalhadas pela estrada. Poderiam parecer uma ameaça a quem não as reconhecesse, mas Dylan aproveitou o instante em que Sherwood parou o furgão para saltar para fora. Samanta e Meredith baixaram os rifles de assalto, surpresa e alívio cobrindo suas feições.

Dylan disparou e abraçou as duas ao mesmo tempo; Meredith não reagiu além de estacar e soltar um gemido de dor, mas Samanta retribuiu o gesto. Quando se afastou para encará-las, Meredith tinha a mão apoiada sobre o ombro – e só então Dylan notou a atadura feita ali.

O cabelo castanho da garota estava preso em um rabo-de-cavalo frouxo e embaraçado, evidenciando cada traço de exaustão em todo o seu semblante. As olheiras fundas indicavam que aqueles dias não foram nada fáceis para o grupo dela – e, considerando que Samanta se encontrava ali, Beatrice as havia encontrado. A história de como isso ocorrera já ganhava a curiosidade de Dylan.

– Onde vocês estavam? – Samanta sussurrou, apoiando a mão livre sobre o ombro da loira. – Faz tão pouco tempo desde que deixamos Oz e, ainda assim, parece uma eternidade.

– Nem me fale. – às suas costas, Harley exaltou. – Caramba, Samanta, você tá só o pó. Dormiu alguma vez nesses últimos dias?

– Se dormi, nem lembro. – O riso da mulher foi evasivo. Doloroso, Dylan percebeu.

O olhar de Samanta recaiu sobre os outros, passando por Benji e Javier e Sherwood e estacando em Taylor.

Primeiro, pareceu carregado em uma agonia mais profunda. Dylan só conseguiu pensar em tragédias e perdas e na mensagem que os havia colocado no caminho do motel; alguém não estava bem.

– É a Sally. – Samanta explicou, pigarreando para retomar o controle. Ao falar sobre a ruiva, a dor desapareceu, curiosamente. Havia preocupação em seu tom de voz, mas nada daquele flash devastado de antes. – Ela começou a ter contrações. Estamos nos revezando para ajudar, conseguimos arrumar um dos quartos do motel pra ficar mais... Organizado. Vou te levar até lá.

Taylor sussurrou alguma coisa para Sherwood, algo que Dylan não conseguiu entender, e o soldado assentiu. Juntos, os dois avançaram até Samanta e deixaram que a mulher os guiasse para o motel, distanciando-se com pressa.

– Por que pareceu que ela ia dar uma notícia ruim pra gente? – Javier indagou curioso. – Num primeiro momento, achei que alguém tinha morrido.

Meredith hesitou. Foi ínfimo, mas suficiente para Dylan notar.

Automaticamente, o olhar da loira passeou pelas figuras distantes; conseguiu reconhecer vários rostos de Oz, todas as pessoas que seguiram Beatrice para fora do Complexo. Para seu terror, Dylan não encontrou a líder entre os sobreviventes. Jake, Machete, Judith, Íris. Nenhum deles estava ali. Havia muitas pessoas e ela estava grata por isso, feliz por terem conseguido escapar de quaisquer terrores que os tenham perseguido, mas sua família, aqueles com quem ela criou seus laços mais importantes, eles não estavam ali.

E Meredith permaneceu em silêncio, apesar da obviedade de uma tragédia que seu olhar carregava.

Benji se aproximou de Dylan, protetor e cauteloso. Abraçou seus ombros e a trouxe para si, quase como se sentisse, se soubesse que ela precisava disso. Não houve falta de ar ou tremedeira, nada além de uma frieza em sua voz ao perguntar:

– Quem?

Meredith fechou os olhos. Dylan deu a ela esse espaço, entendendo a dor em suas feições. Seu coração disparou conforme pensava em todas as possibilidades, todos os horrores, todas as perdas possíveis.

– Todo o grupo que fugiu com Bright morreu na noite passada.

Benji apertou os dedos sobre seu ombro. A reação foi mínima, mas suficiente para mostrar abalo.

Dylan se lembrou do Complexo e de todas as pessoas que lotaram os dormitórios e os corredores, uma comunidade inteira de sobreviventes lutando para seguir em frente; havia rancor quando pensava neles antes. Por terem abandonado Oz, por terem abandonado o grupo. No momento, pesar recaiu sobre ela.

– Meu pai e a Judith se foram.

Não fosse pelo apoio de Benji, Dylan poderia muito bem ter desmoronado.

Próximo deles, Javier apoiou as mãos sobre a nuca, erguendo o rosto para o céu em total frustração.

Meredith baixou o olhar, perdida com o peso daquela notícia.

Estática em choque, ou talvez terror, Dylan desviou a atenção para Benji. Encontrou a mesma perdição de Meredith no rosto dele, a mesma dor indescritível e irreparável. Como a de alguém que perdera um familiar. Uma peça importante da sua vida.

A garota apoiou um beijo sobre a mão dele, buscando forças para os passos que deu até Meredith. A reação inicial dela foi de confusão, e por isso Dylan a abraçou. Com cuidado ao se lembrar do ferimento, mas colocando naquele gesto o máximo de conforto e apoio que conseguia estender. Desejando que alguém tivesse feito isso por ela quando os familiares que amava ficaram para trás. Ela quase estendeu seus sentimentos em palavras, mas sabia que nada do que dissesse valeria para compensar a agonia que tomava Meredith.

Dylan fechou os olhos, recebendo o abraço também como consolo.

Jake.

Judith.

Ela não tivera chance de se despedir – suas últimas palavras para eles foram irrelevantes, insignificantes no cenário que contemplava naquele momento. Não valiam como um adeus para quem significara tanto, para quem fizera tanto por ela.

Tal como Max, foram arrancados da sua realidade subitamente. Tal como Max, permaneceriam em seu coração. Por tudo de bom que conquistaram para aquele grupo, por todos os sacrifícios e por toda sua luta para seguir em frente, independente das dificuldades. Eram parte da família. Sempre estariam ao lado de Dylan, guardando suas conquistas e suas lutas.

Como todos os outros que Dylan guardava em seu coração, não permitiria que fossem esquecidos. Eram parte do lar que encontrara, parte de sua esperança. Sempre seriam.

– Dylan... – Meredith chamou, sem se afastar. A voz não passava de um sussurro. – Íris também se foi.


29. Teoricamente

 

 


Quando Beatrice e Machete retornaram, foi decidido que a morte de Íris só seria informada a Taylor quando Sally tivesse o bebê. Em meio às lágrimas, Dylan aceitou a decisão, ciente de que era melhor para ambos que o enfermeiro não estivesse abalado enquanto cuidasse da mulher; a própria Sally permaneceu quieta a respeito do incidente, como se soubesse o impacto que tal notícia teria sobre Taylor. Era uma decisão egoísta, Dylan sabia, mas de nada adiantaria contar para ele quando estava tão determinado a ajudar mãe e bebê a ficarem bem.

Sherwood, ao lado do rapaz, também não ficou sabendo. Isolados no motel, estavam mergulhados em sua missão, assim como as pessoas lá fora. Beatrice informou, vagamente, que a decisão de Íris viera para proteger o grupo, para garantir que eles tivessem vantagem de terreno e de tempo para chegar até a Colônia – e, para honrar o sacrifício dela, precisavam se organizar. Sally não podia ser movida, mas eles podiam preparar a incursão. Descansar e se preparar para a viagem.

Beatrice, com a voz de comando, pediu às pessoas que se separassem e vasculhassem todos os carros da região; se ainda havia gasolina, deveriam estocá-la. Armas e roupas e qualquer outra coisa que pudessem usar seriam bem-vindas. O motel também passaria por uma inspeção, bem mais cautelosa desta vez. Não havia mortos-vivos no lugar, mas talvez houvesse itens para guardar.

Dylan quase sentiu a intenção por trás das ordens da líder; manter o grupo ativo, unido nos preparativos para a partida. Garantir que todos tivessem algo a fazer, mesmo que minimamente, mesmo que só para se afastar do terror das últimas horas.

Para Dylan, Beatrice não pediu nada – e por isso a garota se manteve de pé, quieta em um canto, a espera dela.

Antes de dizer qualquer coisa, Beatrice a abraçou. Apertou-a em seus braços em silêncio, um gesto extremamente bem-vindo depois de todos aqueles baques. O de Íris, particularmente, era o mais difícil de aceitar.

Enquanto chorava, Dylan se lembrara de uma conversa tida com a mexicana alguns meses atrás, quando chegaram a Oz e as coisas pareceram estáveis, finalmente. Quando a promessa de um futuro grandioso pairava no horizonte; de todas as coisas que perdemos, do que você mais sente falta? Dylan havia perguntado. E a lista se mostrou interminável, com coisas banais ou importantes, coisas que importavam para as duas. No fim, Íris havia prometido que arrumariam o mundo devagar, do seu jeito. Naquele momento, Dylan fechou os olhos e imaginou se, para Íris, o que encontraram fora suficiente. Esperou, pela mexicana, por todas as coisas grandiosas que ela merecia, que tivesse aproveitado sua estadia no apocalipse.

– Eu vou até a Colônia sozinha, Dyl. – Beatrice sussurrou sem se afastar. A garota se retesou pelo absurdo, mas ficou quieta quando a mulher prosseguiu: - Eu sei que parece perigoso, mas depois de tudo que vivemos... – Beatrice se afastou. – Quero ter certeza de que não é mais uma mentira. De que não é mais uma armadilha, de que aquele helicóptero não foi um sinal solto no céu. Temos muito a arriscar; muito a perder, se levarmos o grupo todo de uma vez.

Dylan pensou em retorquir. Pensou em argumentar com ela sobre os riscos que estava aceitando para si mesma, os perigos que enfrentaria na estrada lá fora. Mas, no fim, desistiu – era a verdade. Distante de um lugar seguro, estavam se arriscando o tempo todo; o que fazia esses riscos valerem a pena era o motivo pelo qual se arriscavam. Aquele era nobre, importante. Protegeria sua comunidade, seu futuro, caso a Colônia desse certo. E salvaria a vida de todos ali caso se mostrasse outra terra morta.

– Eu vou com você. – Dylan sentenciou. – Tenho certeza de que Benji e Harley vão querer ir também.

– É pra ser uma viagem curta e rápida.

– Eu sei. Mas você não está sozinha, Beatrice. Nunca esteve. – A garota estendeu a mão e segurou a dela, sorrindo ao ver um pouco da seriedade se dissipar no rosto da líder. – Nós somos uma família. Ficamos juntos, lutamos juntos.

– Vou avisar minha decisão aos outros. – Beatrice comentou, passando os olhos pelos sobreviventes se movendo para lá e para cá. – Quero ter certeza de que essas pessoas encontrarão um lar lá, Dylan.

– Vamos nos certificar disso.


***


Benji não estava sozinho em sua vigília. Sentado sobre o capô do carro, o motoqueiro fizera Lobo subir para ficar ao seu lado. A imagem do motoqueiro e do cão contra o pôr-do-sol fez Dylan sorrir; havia calmaria em cada detalhe dos dois, na maneira com que olhavam para o horizonte vazio.

Quando se aproximou e foi ouvida, ambos desviaram os olhares em sua direção. Lobo desceu do veículo e veio saltitando até a garota, recebendo o carinho dela antes de voltar para a companhia do dono. Benji, por sua vez, lançou um sorriso receptivo, estendendo a mão para a garota para que sentasse ao seu lado.

No motel, Beatrice conversava com os outros membros do grupo. Dylan se mantivera em um canto, com os braços cruzados, assistindo enquanto a líder explicava sua ideia e o motivo de querer fazer aquilo. Pelos olhares exaustos, a resposta não seria diferente do que Beatrice esperava.

Ao lado da mulher, suas filhas não reagiram em oposição. Meredith nem ao menos se mostrou surpresa pela posição escolhida pela mãe, quase como se soubesse, quando a reunião foi convocada, quais caminhos Beatrice queria tomar.

Havia um enlace novo entre as três. Algo que Dylan não se lembrava de vislumbrar quando as meninas chegaram ao Complexo; em poucos dias, o gelo se dissipou em união. A garota só se sentia mal por notar tão nitidamente a falta que Jake fazia no conjunto, quase vendo o espaço em branco pela partida dele. Por isso se afastou; porque Beatrice estava falando sobre esperança, sobre garantias de um lugar seguro, e não queria deixar que aqueles pensamentos sombrios sobre perdas irrecuperáveis ganhassem espaço.

Ao lado de Benji, encarou a estrada que levaria para a Colônia. Teoricamente, Dylan se corrigiu. Como bem dissera Beatrice, era necessário ter certeza de que havia alguma coisa lá. Para Sally e seu bebê. Para Meredith e Rebecca. Para Sherwood e Taylor e Harley. Para todas aquelas pessoas.

– Queria ter me despedido deles. – Dylan sussurrou. Não porque ele havia vivido aquela situação também; ela não conversaria com ele se não tivesse ouvido tantas palavras sobre superação e esperança vindas do próprio motoqueiro – mas porque suas emoções conversavam em sintonia. Onde havia esperança havia melancolia, onde havia raiva havia calma. Onde havia medo havia amor. A compreensão que a garota buscava ia além de palavras; estava no olhar que Benji usou para encará-la, na maneira cuidadosa e carinhosa com que ele segurou sua mão e acariciou sua pele.

– Íris não quis se despedir.

Dylan franziu as sobrancelhas com a resposta.

– Conversei com Machete. Ele disse que ela foi até o fim com a cabeça erguida. Destruiu a ponte pra salvar a vida de todo mundo, pra que a gente tivesse tempo. A horda não vai conseguir alcançar esse lado da estrada, não tão cedo.

– Beatrice tinha me dito isso, mas não a parte sobre a despedida. – Dylan sorriu sem querer. – Pensando bem, Íris não era o tipo de mulher que simplesmente diria adeus. Ela só... Seguiria em frente.

Silêncio pairou entre os dois; o tipo de quietude tranquila, um contraste marcante à agitação de antes, ao nervosismo. Dylan encostou a cabeça ao ombro de Benji, inspirando fundo enquanto deixava as emoções se assentarem. Passara pelo choque e pela crise de choro mais cedo. Naquele instante, depois daquela conversa rápida, a dor da perda parecia menor. Ainda existia e permaneceria ali por muito tempo, mas era menos um baque e mais o caminho para a árdua trilha do luto.

Não apenas por Íris, mas pelos outros. Mesmo os que não conhecia tão bem; um sobrevivente a menos era uma vitória para o fim dos tempos, e Dylan não permitiria que isso acontecesse novamente tão cedo.

– Não vamos deixar que sejam esquecidos. – murmurou aleatoriamente, dando voz ao pensamento de antes. Benji apoiou os lábios sobre o topo da sua cabeça em um beijo gentil, rápido. Seu apoio silencioso. – Nenhum deles, Benji.

– Enquanto continuarmos lutando, eles não serão esquecidos, Dyl.


***


Meredith passou boa parte da noite se revezando com Samanta e outros sobreviventes para ajudar Sally; Taylor e Sherwood mostraram tranquilidade, tal como a mulher, bem diferente do que Meredith esperara num primeiro momento.

Sally não tinha nem um traço de medo ou pânico em seu olhar. O semblante, embora cansado, estava carregado em controle. Quando as contrações passavam, Taylor e ela conversavam, desenhando um cenário tranquilo tão contrário ao caos do mundo em que aquele bebê nasceria. Eles transformaram um momento repentino e chocante em uma experiência pacífica, e por isso Rebecca pareceu se encaixar tão bem. Os olhares e os sorrisos e a ajuda da menininha ganharam Sally, e ela pediu a Meredith para deixá-la ali enquanto ela se retirava.

Becky, parada próxima à Samanta, sorriu na direção da irmã mais velha; uma garantia de que estava bem. De que tudo ficaria bem.

Meredith ainda não se acostumara a ver a irmã sorrir. Quando fechou a porta, pensou na quantidade de vezes em que o gesto tomara o rosto dela nas últimas horas. Na facilidade que Rebecca encontrara para trazê-lo à tona. Depois de todos aqueles meses de terror, depois de todas as alegrias que perderam, ela se encontrara em meio aos outros. Voltara a ser o reflexo da tranquilidade de antes.

Ao seguir pelo corredor principal, com as paredes vermelhas vibrantes e o chão sujo de poeira, Meredith avistou uma silhueta contornada pela luz de uma lanterna. Beatrice estava sentada atrás do balcão da recepção, inclinada sobre a mesa.

Depois que retornou da viagem até a ponte, ela não se calou. Não se escondeu. Não buscou, na solidão, a compensação pela perda de Íris.

Para surpresa de Meredith, sua mãe se levantou e ergueu a voz e fez com que todos se movessem, afastando-os daquela solidão perigosa para a força que a união carregava. Meredith assistiu, com orgulho, enquanto Beatrice os ajudava, enquanto sorria para algum comentário de um dos moradores, enquanto suava ao ajudar outro a carregar alguma peça para o seu estoque.

Quase parecia o que imaginara para Beatrice como comandante daquele Complexo; sem o sentimento de rancor e abandono. Depois da conversa que tiveram, Meredith não conseguia mais olhar para a mãe com aquelas emoções. Ainda havia dor e haveria por muito tempo – talvez nunca se dissipasse -, mas também havia alívio; por poder olhar para sua família e encontrar conforto nela, enfim.

Por isso, Meredith caminhou até a mulher, apoiando os braços sobre o balcão para espiar o que ela estava fazendo – o mapa velho que Beatrice examinava mostrava todas as rotas da região; um X não marcava o lugar da Colônia, mas Meredith sorriu ao imaginar que faria sentido. O tesouro a ser encontrado; podia ser uma lenda ou podia ser verdade.

– Por que está sorrindo? – Beatrice a encarava e tinha traços de bom humor no semblante concentrado.

– Por um motivo bobo.

A mulher permaneceu em silêncio, observando a filha com atenção.

– Senti falta do seu sorriso. – Em resposta a isso, Meredith acabou sorrindo ainda mais. O rosto pareceu doer, como se o gesto fosse estranho; como engrenagens enferrujadas repetindo um movimento há muito perdido. Como da vez em que Íris a fizera rir por uma piada qualquer e todo o seu cérebro congelou em choque ao perceber que caíra na gargalhada.

Beatrice também sorria quando voltou a si. Meredith suspirou porque, por um instante, havia se esquecido do fim dos tempos. Havia se preocupado com sorrisos e bobagens unicamente, e queria mais daquilo.

O amanhã era incerto, mas tinha um momento para aproveitar. E perdera momentos demais para deixar aquele escapar.

– Sabe... Eu e a Íris inventamos um jogo. – Beatrice inclinou-se contra a cadeira, arqueando as sobrancelhas em curiosidades. – Enquanto estávamos viajando. Foi ideia da Becky, provavelmente. Ela tinha pedido a Íris pra cuidar de mim.

O sorriso de Beatrice vacilou. Meredith manteve o seu; manteve a expressão alegre, o olhar animado como sabia que Íris também o faria caso a situação fosse contrária. Podia ter conhecido muito pouco sobre a mexicana, mas ainda se lembrava dos detalhes que ela comentara durante as perguntas. Sobre como amava tequila porque o gosto era sensacional; como se apaixonara por alguém e se esquecera de dizer até ser tarde demais; como sentia falta da mãe e da sensação de segurança que ela passava; como o mundo antes tinha coisas maravilhosas, mas esse novo também.

Se pudesse voltar no tempo e mudar alguma coisa, você voltaria? Meredith havia perguntado em curiosidade. Sua penúltima pergunta para a mulher. Não. Mesmo se um muerto me mordesse agora, mesmo se eu soubesse que estaria condenada a morrer tão subitamente, eu não mudaria nada. Minha história aconteceu e importa da maneira exata como aconteceu. Íris parara, encarando Meredith em desafio. E você, chica? Mudaria alguma coisa?

Meredith havia respondido uma coisa melancólica e amargurada. No momento, depois do que vivera, responderia outra. Mais esperançosa, com certeza.

– Qual é o jogo? – Beatrice indagou, inclinando-se para frente a fim de ganhar o olhar da filha de volta. Ela sorriu em agradecimento antes de começar a explicar.


30. A Colônia

 

 


Não havia placas como nas proximidades da Colônia. Nenhuma sinalização óbvia apontando o lugar exato onde encontrariam segurança. Quando Beatrice estacionou o furgão, Dylan e os outros desceram e olharam em volta, quase esperando por uma emboscada. A garota encarou Lobo, que tinha as orelhas erguidas e farejava o ar. Ele não parecia eriçado como quando encontravam algum perigo eminente, mas também não havia nada de simpático no rosnar discreto que nascia no cão.

Estavam na entrada de um extenso túnel; do outro lado, de acordo com as coordenadas, deveriam encontrar a Colônia. A região costumava abrigar uma penitenciária de segurança máxima. A teoria de Harley era de que, quando o mundo começou a entrar naquela onda de caos, o governo dera um jeito de sumir com todos os presos para transformar o lugar em um abrigo.

– Dá pra ouvir os infectados. Estão bloqueando o caminho. – Machete avisou, apoiando o rifle sobre o ombro. Eles não trouxeram muita munição; a ideia não era entrar em confronto, até porque Sherwood e os outros que ficaram para trás precisavam do máximo de proteção.

– Tem outro caminho? – Benji indagou, passando o olhar atento pela extensão da montanha recortada pelo túnel; havia floresta de ambos os lados da estrada.

– Se você tiver um helicóptero, sim. – Harley apontou para cima.

– Aqueles desconhecidos que passaram por Oz podem ter feito isso. – Beatrice sugeriu pensativa. – Nós não temos outra opção além do túnel.

– Tem cara de armadilha. – Machete comentou. A expressão não era a das mais animadas. – Depois dos últimos dias, chefe, parece arriscado demais.

– É isso ou dar meia volta e ficar naquele motel pra sempre. – Harley cruzou os braços. – E eu preferiria ter um muro grande e bem fortificado entre a gente e aquela horda que vai nos encontrar em algum momento.

Eles ficaram em silêncio depois disso. A verdade era que Harley tinha razão; não vieram até aquele lugar para desistir a alguns quilômetros de distância dele. Precisavam ver a Colônia, ter uma resposta para os sobreviventes que os esperavam lá no motel. Fosse uma resposta positiva ou negativa, mas pelo menos alguma coisa para tirá-los do mar de incerteza.

– Precisamos de luz. – Benji ergueu a voz enfim, desviando sua atenção até a penumbra que cobria o túnel. Não dava para ver o fim dele de onde estavam, só esperar que não houvesse nenhum perigo grandioso demais em seu caminho.

– Eu vou com o furgão atrás de vocês. – Harley avisou. – Se ligar todas as luzes dessa belezura, não vai ter infectado que aguente.

– Vai acabar com a bateria do carro. – Machete replicou. – Não vamos poder voltar.

– Taylor e Sherwood ficaram com gasolina suficiente pra trazer todo mundo pra cá, caso a Colônia dê certo. – Beatrice parou um instante; dava pra ver a consternação em suas feições. – Se tiver algum problema por lá, nós daremos um jeito.

– Não vai ter. – Dylan murmurou com firmeza, ganhando a atenção de todos. – Vamos fazer isso dar certo.

Beatrice sorriu rápido, em agradecimento. Harley se afastou em direção ao furgão, esperando enquanto os quatro se armavam com os facões e bastões de beisebol. Enquanto pudessem, economizariam munição.

– Vamos em frente. – Beatrice avisou, sinalizando para Harley acompanhá-los. Mantendo-se à velocidade mínima, a garota acelerou. Acendeu todas as luzes do carro, usando os esquemas que os mercenários construíram no veículo para iluminar o túnel quase inteiramente.

Dylan avistou os cadáveres tão logo a luz os tocou. Havia uma dúzia nas proximidades, talvez um pouco mais. A maioria devia estar se abrigando ali à espera do anoitecer, quando seria seguro se afastar da penumbra; quando a luz não os encontraria – Harley, no entanto, fez com que os encontrasse.

O ronco do motor e a aproximação dos sobreviventes despertaram os infectados, mas a luz intensa os impediu de avançar. Grunhidos e gemidos vieram em resposta, no que Beatrice, próxima de um deles, desceu a lâmina do facão contra o crânio da criatura. Dylan observou a própria sombra enquanto caminhava, o desenho da sua silhueta com a faca na mão, a luz dourada intensa cobrindo seus companheiros de luta; observou o túnel à frente, com os cadáveres vagando a esmo e algumas poucas carcaças de metal pelo caminho.

Dylan imaginou que uma emboscada os prenderia ali. Haveria alguma barreira, qualquer coisa para impedir que quem quer que atravessasse o túnel seguisse em frente. Além dos infectados, nada impediria o furgão de avançar.

Essa certeza de que não havia nada ali para impedi-los de continuar foi o que moveu Dylan. Foi o que com certeza moveu os outros; Beatrice e Machete e Benji não pararam, assim como a garota. Um a um, eles derrubaram os mortos – que nem ao menos se prostravam como ameaça, considerando o nível de desnorteio por causa da iluminação. Dylan se afastou do último cadáver quando ele caiu, estreitando os olhos para frente. Havia mais alguns vagando em sua direção, vindos da saída – e a luz no fim do túnel, literalmente, depois da curva.

Uma única construção gigantesca se destacava em meio ao terreno vazio. A estrada principal seguia à distância, levando para longe dali – uma segunda via fazia caminho até o que antes abrigara a penitenciária.

Além da região, muito além das cercas altas que marcavam o perímetro da prisão, árvores cobriam o terreno até o horizonte. Próximo à cerca, só grama alta indicando o abandono. Terra cobria toda a extensão que levava ao muro alto e, então, os prédios – a Colônia ao alcance dos seus olhos.

Era estranhamente semelhante à Oz, e por isso o coração de Dylan se apertou. Muito maior, com certeza, com o perímetro entre as cercas e o muro cobrindo uma distância enorme – mas a aparência rústica e o vazio dos arredores a lembravam do Complexo. Da promessa de segurança que houvera lá. Tinha muitas árvores nas proximidades, o que podia indicar um solo muito fértil. Era isolada e extremamente protegida e estava logo ao seu alcance.

Benji parou ao seu lado. Havia um leve franzir entre as sobrancelhas dele, o tipo de expressão de desagrado que não fazia sentido naquela situação.

Dylan assistiu enquanto ele alcançava o rifle de precisão preso ao ombro e apontava a mira na direção da Colônia. Beatrice e Machete pararam para observar o motoqueiro, curiosidade e preocupação marcando suas expressões.

– Os portões estão abertos. – ele avisou. Ao baixar o rifle, havia tensão em seu olhar. – Parece vazio, Beatrice.


***


Conforme foi ordenado, Dylan manteve a espingarda desengatilhada, pronta para disparar caso avistasse qualquer ameaça. Ainda era dia quando eles chegaram aos portões de cerca alta, quando passaram pela guarita abandonada e pelo vazio de rastros de pneus ou de passos; a poeira que se levantou por onde o furgão passou deixou um rastro para trás, e Dylan inclinou-se sobre o banco do carona para observá-lo, a espera de alguma silhueta aparecer para surpreendê-los.

Ninguém veio.

Nem quando atravessaram o muro principal, com os portões de ferro escancarados – o cenário era assustadoramente idêntico ao de quando abandonaram Oz; a diferença era que não havia mortos-vivos dentro da Colônia.

Não havia nada.

Harley estacionou o veículo e ficou em silêncio. Nenhum deles se pronunciou enquanto observavam o lado de fora; todo o vazio estranho e perturbador que parecia haver ali.

Beatrice foi a primeira a sair. Seus passos pelo terreno se mostraram cautelosos, a arma em riste para qualquer possível ameaça; Dylan a imitou e foi acompanhada por Benji, que se prostrou ao seu lado de maneira cuidadosa.

Harley e Javier vieram em seguida. O grupo caminhou com calma, cada um prestando atenção aos diversos pontos vazios da área de entrada. O prédio principal – provavelmente da administração, antigamente – tinha a fachada toda de tijolos vermelhos. Duas janelas estavam quebradas, mas a porta da frente jazia fechada.

Dylan se aproximou, apesar do chiado de advertência que Harley soltou para ela. Havia várias placas de avisos presas pelo lado de dentro do vidro; uma delas falava sobre a Colônia, com capacidade para mais de quinhentos residentes em suas dependências. O lugar recebera reformas apressadas durante o estouro da epidemia e “mais ajustes serão feitos com o passar do tempo para garantir o conforto e a segurança dos nossos moradores”.

Outra placa avisava sobre os horários de agendamento de visitantes – Dylan se surpreendeu com essa parte. Aparentemente, havia liberdade suficiente fora das quarentenas para que famílias ligassem e agendassem visitas. Houvera civilidade para que o governo disponibilizasse o lugar para ser apreciado antes que alguém decidisse se instalar ali; enquanto famílias eram dizimadas nas zonas de quarentenas, outras tinham a sorte de estar distantes das áreas de risco.

Ironicamente, a garota saída de uma daquelas zonas atravessara território suficiente para encontrar abrigo ali.

– Acho que devíamos nos anunciar. – Harley comentou. Sua expressão era de pura frustração e Dylan entendia bem o motivo.

– Como quer fazer isso? – Beatrice se virou para a garota.

Harley apontou para o carro.

– A buzina pode ser uma boa ideia.

Com um suspiro longo, a líder deu permissão. Eles assistiram enquanto ela corria de volta ao furgão e apertava a mão sobre a buzina, deixando o som estridente ecoar pelo pátio e além. Dylan manteve a atenção nas janelas dos andares superiores do prédio, procurando qualquer sinal de movimento ou de alguma presença.

– Alô! – Harley berrou a plenos pulmões. – Viemos buscar abrigo!

– Tem alguém aí? – Dylan a acompanhou, ganhando um sorriso animado da amiga pela atitude.

– Viemos pela mensagem! – para surpresa das garotas, Beatrice deu sequência aos gritos. – Só queremos um lugar para ficar!

Nada. Absolutamente nada além dos seus próprios ecos. Se os portões abertos foram um sinal, aquela era a resposta. A Colônia estava vazia.


***


Beatrice caminhou pelo extenso salão reformado; havia poeira e mofo pelas paredes e superfícies, mas estava bem claro que aquele cômodo fora um dos que recebera um trato do governo para a instalação da Colônia.

Antes, provavelmente a sala onde os detentos e os visitantes se encontravam. Naquele momento, o protótipo de um gigantesco refeitório; as mesas ainda estavam cobertas por plástico. As cadeiras eram modelos simples, mas estendiam conforto para quem chegasse ao lugar em busca de um novo lar.

As portas ao fundo do salão provavelmente levavam a uma cozinha ou a outro corredor largo e extenso como os que o grupo havia atravessado para chegar até o salão.

Diferente do Complexo Oz nos últimos meses, espaço era tudo que a Colônia mais oferecia. Em contrapartida, a sensação de solidão era gritante; passava a ideia de que nada nem ninguém havia atravessado aqueles muros em muito tempo, provavelmente desde que as quarentenas falharam e o mundo se tornou aquele eterno pandemônio.

– O que faremos agora? – Javier havia arrastado uma das cadeiras para o centro do salão e se sentara ali. Atrás dele, Harley e Dylan trocaram olhares curiosos, enquanto Benji cruzava os braços e apoiava o quadril numa das mesas. Todos esperavam por Beatrice. Por uma decisão ou a abertura de uma discussão; ela engoliu em seco, lembrando-se de que assumira a voz da liderança ao guiar o grupo para a Colônia.

– Aquele helicóptero que passou por Oz deve ter seguido em outra direção. Seguimos uma pista vazia. – Ela suspirou.

– Mas e a mensagem? – Harley inquiriu. – Acha que era uma daquelas frequências fantasma?

– Provavelmente. Sherwood a encontrou sem querer. Ainda deve alcançar alguns satélites.

– Conseguiu enganar a gente direitinho. – Javier soltou um riso decepcionado.

– Enganar? – Dylan retorquiu. As sobrancelhas claras estavam franzidas em confusão. – Nós encontramos outro lugar seguro. Não era mentira.

– Era pra ter gente aqui, Dyl. – Harley argumentou. – Comida, água. Segurança.

– Tem um muro ao nosso redor. Tem um terreno gigantesco lá fora para tentarmos o plantio, como fizemos em Oz, e parece bem mais próspero do que o do Complexo. – Dylan ergueu a voz; não soava brava ou descontrolada, mas animada. Um tom que Beatrice sentira falta de ouvir nela. – Eu sei, é difícil. Muito mais complicado do que a gente esperava. Mas seríamos obrigados a deixar Oz eventualmente e acabaríamos chegando aqui. Encontraríamos a mesma coisa. Só porque fugimos do Complexo e enfrentamos todo esse caos não significa que não haja esperança para esse lugar.

Harley e Javier não retrucaram. Benji foi o único a se mover, caminhando com calma até parar ao lado de Dylan; Beatrice observou a sintonia entre eles, o carinho com que o motoqueiro encarara a garota e absorvera as palavras dela. A esperança no tom da loira pareceu desenhar os olhares dos outros; acender alguma coisa que a chegada à Colônia apagara neles.

– Ok, a Dyl tem um ponto. – Harley comentou. – A gente estava com problemas lá, tivemos problemas na estrada. Vamos ter problemas aqui. Mas não dá pra desistir tão facilmente. Quero dizer... Olha o tamanho desses muros. Podemos usar isso a nosso favor, certo?

– Temos que ter certeza de que esse lugar está mesmo vazio. – Benji respondeu. Não havia nada de sério ou frio nele, nada além do comprometimento que ele já mostrara antes ao ajudar o grupo. Quando encarou Beatrice, pela primeira vez em muito tempo, não estendeu para ela nenhuma emoção negativa ou dolorosa, nada que a lembrasse dos horrores de meses atrás. Talvez estivesse mostrando perdão da sua maneira; talvez tivesse entendido que o passado ficara para trás, e o futuro seria construído sem remorso. Sem maiores dores. – Dá pra fazer esse lugar funcionar, se trouxermos todo mundo pra cá. Se todo mundo ajudar.

– Eles vão. – Dylan estava sorrindo ao concordar com o rapaz. – Sherwood e Taylor e todos os outros vão ajudar. Essa Colônia pode não ser o lugar seguro que a mensagem prometia, mas com certeza é um começo.

Beatrice sorriu junto com a garota. Com certeza era um recomeço.


Epílogo. Recomeço

 

 


Quando o comboio liderado por Sherwood passou pelos portões, Dylan estava preparada para olhares indignados e embasbacados. Enquanto ajudava os outros a vasculhar pela Colônia, antes mesmo de avisar sobre terem encontrado aquele lugar seguro, Dylan pensara em diversos argumentos para usar quando o grupo enfim alcançasse aquela região; quando olhasse para o terreno vazio, para os prédios abandonados e vivenciasse a sensação devastadora que o lugar passava em um primeiro momento.

Não estava preparada para os sorrisos. Para as exclamações animadas e para os olhares brilhantes apontando para os muros e para o tamanho daquela área de segurança; não estava nem um pouco preparada para o abraço que recebeu de Sherwood e para os olhos marcados em lágrimas de Sally quando apresentou o pequeno Valentim – a mulher sorriu quando Dylan pegou o bebê no colo, sorriu enquanto encarava o prédio da administração e sorriu ainda mais quando murmurou “estamos em casa”, recebendo Valentim em seus braços para seguir Machete até os dormitórios.

A Colônia era um protótipo, Beatrice avisou aos outros. Nunca fora usada ou habitada. As coisas foram abandonadas como estavam; as pessoas que cuidavam daquele lugar não encontraram esperança ou vontade de fazê-lo funcionar, mas eles fariam. Cada sobrevivente daquele grupo se ergueria e lutaria para fazer da Colônia um novo lar, para oferecer abrigo e segurança às muitas outras pessoas vagando sozinhas pelo mundo lá fora.

Dylan sorriu para Samanta e para os outros membros do grupo enquanto eles se afastavam, seguindo a líder em direção ao prédio principal; Benji estava na torre de vigia, e Dylan queria ir até lá para conversar com ele antes do anoitecer. Seu olhar, no entanto, esbarrou em uma figura solitária, a silhueta familiar de Taylor parada em meio ao terreno vazio, encarando as cercas à distância. Ele fora o único a não atravessar os portões de entrada. O único a não seguir para dentro da Colônia em definitivo.

Sherwood estava a meio caminho de lá quando Dylan tocou seu ombro; o soldado entendeu a expressão dela, o silêncio confortável que a garota estendeu.

– Eu falo com ele.

Quando se aproximou o suficiente de Taylor, Dylan sabia o motivo do afastamento. Parou ao lado do enfermeiro com calma, mesurando as palavras que poderia usar. Fazia dois dias desde que havia chegado à Colônia. Dois dias desde que ela e os outros limparam alguns cômodos, arrumaram o que puderam arrumar, mapearam tudo para ter certeza de que saberiam como guiar os recém-chegados pelo lugar. Nenhum infectado se aproximou da região; levaria tempo até que eles começassem a chegar, atraídos por barulhos ínfimos ou pela necessidade de que sempre estariam onde os vivos estavam. Por enquanto, ao encarar o horizonte, Dylan encontrou esperança no isolamento.

– Uns tempos atrás, Íris me disse que estamos em competição com os mortos-vivos. – Taylor sussurrou; a voz estava embargada. – Ela disse que estávamos ganhando, mas com algumas ressalvas.

– Acho que ela ainda daria mais pontos para os vivos, mesmo agora. – Dylan comentou, erguendo o rosto até encontrar o olhar do rapaz. Lágrimas marcavam a poeira e a exaustão que cobriam a pele dele. – Mesmo depois de tudo.

–- Eu não consegui me despedir. – Ele soluçou, os ombros trêmulos pelo choro. – Eu amava ela, Dyl.

– Eu também, Taylor. – A garota estendeu as mãos, abraçando o enfermeiro pela cintura. Apoiando o lado do rosto sobre seu ombro. Estendendo a ele todo conforto que conseguia encontrar. – O mais importante é se lembrar dos momentos que nunca tiveram fim. Precisamos nos lembrar da Íris como uma presença constante, que nunca diria adeus. Que nunca nos deixaria realmente.

– Ela ainda está aqui conosco. – Taylor a apertou em meio ao abraço. – Enquanto sobrevivermos, enquanto vivermos, ela estará ao nosso lado.

– Seguimos em frente por nós e por eles. É assim que vai ser o nosso recomeço.


***


Meredith perdera a conta de quanto tempo se passara desde sua chegada à Colônia. Dormia cedo para levantar mais cedo ainda e nunca se sentira tão exausta e satisfeita do que no passar daqueles incontáveis dias. Tudo o que sabia é que Beatrice e os outros estavam trabalhando para tornar a Colônia a terra prometida de antes; e, lentamente, estava funcionando.

Os campos externos começavam a ganhar ares de um extenso campo de plantio. Os dormitórios pareciam mais com quartos cheios de personalidade e menos com celas abandonadas conforme cada morador cuidava do seu cantinho; a primeira incursão deixou a Colônia em uma manhã e retornou ao amanhecer – para oeste, o extremo oposto de onde eles haviam vindo, havia mais cidades. Pequenos postos de abastecimento esquecidos. Carros abandonados pela estrada; um mar de possibilidades para explorar.

O apocalipse, para Meredith, era feito de padrões. Todos ali pareciam entender e aceitar isso; a quebra desses padrões era o que tornava sua vivência significativa. Eles sempre encontrariam um lugar seguro para reconstruir, sempre precisariam lutar para manter o território em segurança. Sempre enfrentariam mortos e vivos e batalhariam para continuar vivendo. Haveria incursões o tempo todo até que construíssem um ambiente autossustentável. Haveria incerteza em tempos ruins. Haveria esperança. Haveria vida e morte.

A quebra dos padrões estava em meio àquelas coisas comuns; como no dia-a-dia antes do fim dos tempos, quando um passeio de bicicleta quebrava a rotina de estudos e deveres de casa. Quando um encontro no cinema atrapalhava os preparativos para uma prova importante. Quando uma sessão de filmes em família a fazia se esquecer de levar o lixo para fora, como seus pais pediam que fizesse todas as noites.

Na Colônia, sorrisos e gargalhadas e brincadeiras quebravam a rotina. Conversas prolongadas entre vizinhos de dormitório atrapalhavam os afazeres. Uma reunião inesperada para discutir a sopa com caldo extra da noite levava a argumentações sobre como o gosto de cebola era uma das piores coisas que o mundo e o apocalipse já experimentara.

Pouco a pouco, a sobrevivência dava espaço à vida. A luta diária cedia lugar para o conforto. O medo era apagado pela esperança.

Por isso eles estavam ali. Por isso continuariam lutando.

Naquele fim de tarde, a garota encontrou Becky e Beatrice deitadas no beliche do seu dormitório. Becky adormecera no colo da mãe, e Beatrice lutava contra a pouca luz para enxergar as palavras de um livro encontrado na biblioteca daquele lugar – uma das muitas surpresas que a Colônia apresentara à comunidade. Uma que Harley queria dar sequência, determinada a realizar incursões para encontrar exemplares esquecidos pelo mundo; hora de salvar a cultura, ela dissera.

Beatrice ergueu o olhar para a filha. Meredith saíra do banho havia pouco tempo. Os cabelos estavam presos em um rabo-de-cavalo firme, a roupa leve e confortável recém-trocada. Ao encarar a mãe, ela se sentiu em casa; sentiu que entrava na sala de estar confortável durante uma das noites em família. Jake e Jeremy e Abi estariam no outro sofá, mas Beatrice sempre ficava com a caçula. E sempre deixava um espaço para Meredith.

A garota se aproximou cautelosa a princípio. Sorrindo quando a mãe apontou para o espaço vago ao seu lado.

Ela se deitou sem fazer grandes alardes, mas Becky nem ao menos se mexeu, tamanha exaustão. Mesmo a garotinha vinha ajudando com as reformas e arrumações, animada como nunca antes.

Beatrice abraçou os ombros da mais velha, deixando que Meredith se acomodasse. Quando apoiou o rosto sobre o ombro da mãe, a garota respirou fundo. Essa era exata sensação de antes; conforto e carinho e união. O apocalipse estava lá fora, longe. Ela estava em segurança, enfim.

– Como foi o seu dia hoje? – Beatrice sussurrou; a mesma pergunta que costumava fazer.

– Foi tranquilo. – Meredith sorriu.


***


Taylor se virou na cama ao ouvir um barulho; nada brusco ou assustador, só os passos de alguém se aproximando do seu quarto. Sherwood entreabriu a porta com cuidado – como casal, eles ganharam algumas regalias com a distribuição dos cômodos. Ficaram com um dos escritórios e, com o passar dos dias, começaram a transformá-lo mais em um quarto e menos em um armazém de papéis e poeira.

O enfermeiro assistiu enquanto Sherwood se livrava das botas e da jaqueta e bocejava pelo cansaço; eles haviam trocado os turnos de trabalho naquele dia porque Taylor passara boa parte da tarde ajudando Sally com Valentim – o bebê era calmo e dócil, mas, quando entrava em suas crises de choro se transformava em uma sirene. Apenas brincadeirinhas e sorrisos e cantos do enfermeiro e da mãe em conjunto eram capazes de acalmá-lo.

– Como está com o sistema de segurança?

– Harley continua trabalhando sem parar. Ela vai resolver isso ou não se chama Anne Marie. – Sherwood sorriu ao se sentar na beirada da cama, inclinando-se sobre o enfermeiro para pousar um beijo suave sobre os lábios dele.

– Harley se chama Anne Marie? – Taylor exaltou em meio ao beijo, afastando-se em choque. A gargalhada que ganhou de Sherwood o fez sorrir de volta.

– Também fiquei surpreso.

Sherwood trilhou as mechas soltas do cabelo de Taylor com cuidado, os olhos claros acompanhando os dedos. A expressão era a da mais pensativa possível, por isso o enfermeiro esperou.

Tal como Beatrice, a chegada à Colônia reacendera algo no soldado. Uma faísca de liderança e organização que parecia fazer muito bem a ele. Quando estava lá fora, ajudando e sendo ajudado, Sherwood se movia para todos os lados, gritava e recebia ordens, fazia com que a Colônia fervesse em energia. Diferente dos comandos estáticos e da solidão lá em Oz, ali ele parecia ter encontrado outro propósito.

Um que envolvia se unir e se aproximar mais das pessoas. Que envolvia mais do que apenas Taylor e uns poucos sobreviventes; aos poucos, durante aquela viagem, Sherwood parecera encontrar o seu lugar. E Taylor estava grato e feliz por isso.

– Você está feliz aqui, Taylor?

– Aqui, neste lugar? Ou aqui, com você?

Sherwood deu de ombros.

– Estou muito feliz por ter encontrado um abrigo seguro e por ver todo mundo lutando para transformá-lo em um novo lar. – Taylor se ergueu, colocando o rosto na altura do soldado. Deixando que Sherwood absorvesse seu olhar. – E estou ainda mais feliz por poder fazer isso ao seu lado.

Doía quando se lembrava das pessoas que perdera, mas a dor se equilibrava a necessidade de seguir em frente. De fazer todos aqueles sacrifícios valerem a pena, de garantir que os acidentes jamais seriam esquecidos.

O soldado sorriu; delicada e timidamente, apoiando a testa contra a do enfermeiro em um gesto amoroso, carregado com todos os sentimentos que eles haviam exposto um para o outro.

– Quanto tempo até eu ter que ir lá para fora? – Taylor sussurrou, deixando a malícia delinear suas palavras. Sherwood fechou os olhos para rir.

– Pelo menos uma hora. Por quê?

– Só pra saber. – No instante seguinte, Taylor o estava beijando com toda força, deixando que ele entendesse suas palavras em meio aos gestos, aos toques e à entrega.


***


– Ei, garotão. – Dylan se abaixou para cumprimentar Lobo, que abanou o rabo em animação ao receber seu carinho. – Onde ele está? – Quase como se entendesse o objetivo da pergunta, o cão se afastou dela e se apressou em direção ao pátio vazio, bem próximo aos portões do muro.

A garota não tivera chance de conversar com Benji na noite passada. Ele já estava dormindo quando ela chegou ao seu dormitório, então Dylan preferiu se apressar para debaixo das cobertas, abraçando-o e sorrindo ao ser abraçada, pensando em como se acostumara com a sensação de tê-lo ao seu lado o tempo todo. Apreciando o retumbar do coração dele sob seu rosto conforme pegava no sono.

Ao despertar, Benji já havia saído para cumprir seu horário de vigia – e ali estava ele, arrastando as folhas dos portões de ferro para abrir caminho até o pátio, onde Harley construía e esquematizava sistemas de segurança “mais velhos que o tempo”, segundo a própria, uma vez que ainda não sabiam como religar a energia da Colônia. Precisavam se virar com o que tinham, e a mente genial da garota com certeza sabia o que fazer.

Benji se virou ao ouvir a aproximação de Dylan. Afastou uma mecha de cabelo que se soltara do coque, estendendo a mão para segurar a dela quando a garota finalmente o alcançou.

Ao encará-lo naquele momento, com todas aquelas emoções abertas expostas em seu olhar, Dylan se lembrava do seu primeiro encontro; da sensação perigosa que Benji passara quando o confrontara pela primeira vez.

Era estranho pensar em como tantas situações caóticas os aproximaram, como aquele apocalipse os empurrou por abismos perturbadores e os obrigou a viver tanta dor e tantas provações só para, no fim, apontar o companheirismo e o amor que nascera em meio a elas.

Benji era parte do pandemônio tal como era do recomeço. Ele representava, para Dylan, tudo o que alcançara e conquistara naqueles meses de luta e sobrevivência. Benji era parte do seu coração e do seu lar; um dos muitos significados da sua esperança.

– Tudo bem com você? – Dylan indagou, apertando os dedos dele entre os seus. Benji a trouxe para um abraço, apoiando um beijo delicado sobre sua testa, trazendo um sorriso tranquilo para o rosto da garota.

– Tudo bem.

 

 

                                                                  Denise Flaibam

 

 

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