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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS CRUZADAS / Orlando Paes Filho
AS CRUZADAS / Orlando Paes Filho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

                                                Era o ano de Nosso Senhor de 1096...

Cavaleiros de França, Aquitânia, Lorena, de todo o Império Germânico, tomavam as armas em promessa de partir para a cruzada. Outros reinos do Ocidente como Itália, Castela e Aragão também se movimentavam no mesmo sentido. A pregação da batalha para defesa da cruz não ficou estéril nas várias regiões da Escócia e em toda a Inglaterra. Os habitantes das Highlands e das margens do Lochness, os povos da Strathclyde e Tayside, de Orkney e Grampian, preparavam-se para a Guerra Santa e deviam acompanhar Diarmait Uip Ru, o conde de Stirling, tio materno de Malcolm III, e os chefes dos clãs das Highlands. Os dalriatianos também tinham acorrido em massa para junto dos estandartes da cruz e seguiam seu conde, Ceann Mor, que já numa primeira peregrinação a Jerusalém tinha feito admirar sua bravura contra os infiéis. Até do vilarejo gelado das montanhas Cairngorns homens desciam contritos, na esperança de embarcar para a Palestina e defender a fé.

A cruzada foi pregada com o mesmo êxito na Inglaterra. A batalha de Hastings deixara novo rei; o normando da Bretanha Armoricana Guilherme, o Conquistador. Diante da obediência forçada, da rigidez do rei Guilherme, os saxões preferiam tomar a cruz. Milícias fyrd de cruzados ingleses embarcaram nos portos da Mancha e dirigiram-se rumo às costas da Espanha. Williperto, bispo auxiliar de Guilherme, notava que esses guerreiros partiram com espírito de humildade; por isso, predisse, produziriam maiores e mais nobres feitos do que os que acompanhavam os reis e os príncipes do Ocidente cristão. Mas isso era um tom mais saxão do que cristão.

 

 

 

 

 

 

Ano de Nosso Senhor de 1095... Em algum lugar da floresta dos Dalriatianos...

Um velho em farrapos deixou seu ermitério e partiu em direção às Highlands, à procura do clã MacLachlan.

O líder do clã, Sean MacLachlan, eu e meus irmãos, descendentes de Angus MacLachlan I, não esperávamos por aquela visita enigmática.

Andava displicentemente com meu irmão Sean pelo campo de centeio quando vi um vulto que se aproximava de forma soturna. Desviei para outro lado tentando saborear o vento. A figura tomou rumo novamente em nossa direção. Incomodou-se o espectro a perseguir-nos a passos arrastados. A figura quebradiça parecia arauto de todo mau agouro. Ele se aproximou mais. Fiquei alerta.

- Meu nome é Ian MacKollum! - disse o velho esquelético envolto em farrapos. - Trago comigo os manuscritos do Livro de Crônicas de Angus MacLachlan I, o fundador de seu clã.

Sean procurou o cabo de sua espada, embora o velho nos assustasse não como guerreiro. Entreolhamo-nos, pois os olhos do velho pareciam faiscar contra os nossos.

- O que quer, velho? - perguntou Sean, de forma severa, como que desconvidando qualquer aproximação.

- MacLachlans! - desdenhou o velho sem deter seus passos. - Sempre guerreiros ignorantes.

- O que quer, velho? - continuou Sean, demonstrando ainda mais irritação.

- O que quero? - perguntou o velho de forma irônica. - Quero que vocês saibam da importância de sua história como guerreiros. Quero que saibam do valor de suas futuras batalhas. Quero que se sentem para que eu possa apresentar-lhes os manuscritos de seu antepassado Angus MacLachlan "O Primeiro"! - O velho eremita possuía firmeza incomum em sua voz.

Sean me olhou. Dei de ombros, pois pareciam sinceras as palavras do ancião.

- Sentem-se, MacLachlans! Afinal são suas terras! Vou ler para que tenham a compreensão do significado da espada Gaoth Cerridwen, herança de seu ancestral. E principalmente dos embates que os seus descendentes terão de enfrentar. A leitura dessas crônicas é tão importante quanto a sobrevivência dos de sua estirpe. Terão de guardá-Ias como um tesouro de seu clã, pois todos os seus descendentes estarão envolvidos nessa batalha contra um grande mal.

Sean e eu ficamos surpresos e um pouco assustados com a veemência do velho e suas palavras fortes.

O velho pediu que nos sentássemos na relva e ouvíssemos a leitura do documento que possuía em suas mãos. E foi o que fizemos; afinal, que mal ele nos poderia fazer?

 

Partimos naquele dia do ano de 879 de Nosso Senhor com uma pequena tropa de homens, meus e de Alfred, pois, embora a paz já estivesse conquistada, ela ainda era frágil e recente e o melhor era nos prevenirmos. Depois de algum tempo de cavalgada, chegamos àquelas maravilhosas pedras que, para mim, ao mesmo tempo que pareciam altares naturais também podiam ser banquinhos para gigantes descansarem.

Apeamos do cavalo diante de um cenário grandioso, visto que o céu, com tom laranja-avermelhado, parecia em fogo. Junto das pedras, eu e o rei vimos grande quantidade de monges tonsurados, que formavam um círculo ao redor delas.

O ermitão estava lá, bem no meio do enigmático local prostrado de joelhos e com a cabeça encostada no chão. Eu e o rei nos entreolhamos curiosos e ao mesmo tempo surpresos com a presença daqueles muitos monges, que pareciam também estar numa oração silenciosa.

O ermitão beijou o chão e olhou-me novamente.

- Venha, Angus! E hora de receber o que é seu!

Alfred acompanhou-me até junto do eremita. Os monges prosseguiam em oração contínua, obviamente em latim, língua que Alfred falava e entendia. Olhei-o, tentando ler nele alguma expressão sobre o sentido que teriam aquelas orações e sobre qual seria meu envolvimento naquilo tudo. Era um momento por demais solene e misterioso. Fui até o velho.

- Fale, velho! O que quer de mim e qual é teu nome? - eu não tinha a mínima paciência para enigmas, não gostava daquele suspense todo. Para mim, a vida tinha de ser clara como a água. O próprio Nennius era um mestre e ao mesmo tempo o tipo de homem mais direto e sem rodeios que já tinha visto em minha vida. Cheguei bem mais próximo dele e pude ver que segurava uma espada, de brilho tão forte que se confundia com suas túnicas brancas e tão longa que, mesmo ele sendo alto e segurando-a na altura do peito, sua lâmina tocava o chão.

- Meu nome é Caillagh Patrick e esta espada é tua, Angus MacLachlan - disse-me, e naquele momento os monges aumentaram suas vozes orantes.

Olhei aquela maravilha de espada e pude ver melhor os olhos do velho. Eram olhos bravios, com expressão dura, e me inspiravam certo receio, como se eu estivesse na presença de alguém mais importante que um rei e devesse ser ainda mais cuidadoso.

- Esta espada, Angus - começou a me explicar a situação e a origem daquela maravilha -, foi forjada há mais de trezentos anos, quando esta ainda era uma ilha povoada por pagãos. E nessa mesma época veio para cá um homem santo chamado Columba. Sua missão era a de pregar o evangelho aos povos desta ilha abençoada. Ele converteu nações inteiras, reis, tinha visões de anjos, e recebeu a missão de forjar a espada sagrada e, visto que os celtas possuíam qualidades ancestrais nessa arte, procurou druidas ferreiros a fim de criar essa arma sagrada que será usada no futuro.

Observei a espada. Era muito grande e tinha cabo dourado todo esculpido.

- Esta é a Gaoth Cerridwen, aquela que traz a justiça, Angus. E de hoje em diante será a arma usada por ti e pelos teus descendentes.

Nesse momento, todos os monges caíram de joelhos. Alfred em respeito repetiu o gesto, enquanto eu, ainda surpreso, não sabia o que fazer, se tomava a espada ou se me ajoelhava diante daquele velho. O eremita começou a rezar em latim e Alfred, vendo que eu necessitava entender do que se tratava aquela cerimônia, levantou-se e veio colocar-se ao meu lado a fim de narrar-me tudo o que ouvia. Iniciou a tradução:

- Esta espada que, como a coroa do imperador Carlos Magno, contém nela um dos três Santos Cravos usados na crucificação de Nosso Senhor, é entregue agora ao homem que trará o combate justo contra a maldade e a injustiça. E, com a ajuda de Deus, dos anjos e santos, irá desmascarar todas as insídias enganosas e lutar e vencer a trama usada pela besta negra, que tentará pôr fim à humanidade, mergulhando-a nas trevas. O que vou lhes contar senhores, é extraordinário.

Ouçam com muita atenção:

- Certo dia me encontrava em retiro, orando em uma caverna próxima do monastério de lona, quando fui tragado pelas ondas do tempo e foi-me revelado o grande segredo da espada sagrada. Um verdadeiro turbilhão percorreu meu espírito e eu milagrosamente me encontrava por volta do ano de Nosso Senhor de 545 e em breve estaria na venerável presença de um grande campeão em Cristo, São Columba.

A floresta estava emudecida... Pássaros que cantavam alegres todas as tardes, naquele momento completamente mágico, estavam quietos como folhas sem vento. E era o vento o único a tocar sua música naquela tarde, suas notas cantavam e dançavam suaves por entre os carvalhos ancestrais, os velhos senhores da floresta que a todos abrigava, os pilares da terra, altares-mores dos druidas.

Senti o cheiro suave das ervas convidando-me a sentar junto a uma campina para observar o que aconteceria ali, naquele palco a um só tempo místico e natural.

À minha esquerda eu via, sentado onde eu misteriosamente fora levado, a fronteira entre o desfiladeiro de pedra que atingia o mar como um marco, uma barreira natural, uma fortaleza montada para futuros governantes, soberanos que ali ergueriam resplandecentes reinos e que desejariam sorte aos navegantes e zombariam de seus oponentes, tal a magnitude daquela inexpugnável encosta, e, à minha direita, a barreira da temível floresta dos carvalhos gigantes. Lá eu deveria aguardar por um dia e rezar pelo que já havia acontecido no passado no exato local onde me encontrava e seu resultado incerto no futuro, sempre à mercê da boa vontade de homens nem sempre virtuosos. Vi a Lua ganhar peso e brilho e subir ao céu como a jóia de prata que faz debutar a terra vestida de noite e, depois do ápice de seu movimento resplandecente, descer num suicídio inexorável, rumo às águas escuras do mar bravio que desafiavam eternamente a poderosa encosta. Aquele sacrifício da Lua não foi em vão, pois acendeu todo o céu dando nova vida às estrelas, e tudo se passava calma e tranqüilamente durante aquela noite luminosa... Olhei para o céu, abaixei minha cabeça imersa em mistério, e orei durante toda a noite.

Naquela clareira, os primeiros raios de sol acariciaram o tapete de relva verde e macia em que eu me sentava, onde se revelaria o grande mistério que fui convidado por Deus a presenciar e pude ver toda a borda enfeitada de botões-de-ouro e tormentilhas que formavam uma coroa dourada.

Os trovões provocados pelo mar quebrando contra a encosta diminuíram seu ritmo e se tornavam cada vez mais esparsos. O mar escuro também parecia se acalmar em respeito àquele dia especial. Pude ouvir um regato que marulhava manso, serpenteando através da mata, cantando sua música feita de pedras e cristais. O cheiro dos carvalhos gigantes, dos teixos rosas, dos azevinhos, dos pinheiros, das castanheiras, das folhas amareladas dos freixos, das acobreadas das tílias, das avermelhadas das sorveiras, dos cedros, das faias, das bétulas e dos antigos salgueiros convidavam ao novo, ao dia de amanhã que viria, e que chegaria em paz, prenunciando a nova era. E era justamente aquele poderoso conjunto de árvores que convidava aqueles anciãos vindos dos quatro cantos da Bretanha e de Erin. Aquele conjunto de árvores era a porta do paraíso, em que os magos dos tempos ancestrais revelariam suas habilidades lendárias.

 

Os animais foram os primeiros a se aproximar do grande portal. O pequeno javali correu floresta adentro seguido pelo cervo vermelho que Mider acabara de soltar da corda. Ele se aproximou e passou por mim montado em seu formoso cavalo branco bem de perto e pude perceber que eu não podia ser visto, pois pertencia a outro tempo e estava lá não para interferir, mas tão-somente para observar.

Mider era um ancião de barbas longas e brancas vindo de Strathclyde, um típico eremita eu diria, a não ser pelas vestes não tão surradas e sim brancas e bem conservadas; além do seu grosso colar de ouro envolvendo seu pescoço como uma corda grossa e retorcida, terminando em duas bolas que pareciam dois punhos de criança fechados em seu pescoço; uma peça-magnífica. Mider mergulhou no interior da floresta.

Outro membro se aproximava, só que este montava um pônei negro. Também usava barba e tonsura, tinha a idade aproximada de Mider e vinha da DaI Riata. Era Creidhne Transforma Elementos, outro poderoso e conceituado mago das armas, o maior mestre da imensa Ilha de Erin. Ele trazia sua sacola de couro com as ferramentas secretas com as quais forjava armas de reis há gerações. Sua veste era mais simples que a de Mider e era mais magro e alto, mas não menos austero, pude perceber. Demorou um tempo, o vento sussurrou em meus ouvidos que eu me mantivesse calmo e tivesse paciência.

O terceiro druida se aproximou, já saudando os colegas aos gritos. Era Lir, das Sábias Palavras, temido druida da Dumnonia. Este, mais alegre que os demais, revelou o antigo coleguismo que havia entre eles. A voz de Mider, vinda de dentro da floresta logo o advertiu a fim de não espantar os animais.

O quarto chegou logo depois, seguido do quinto membro. Os dois a cavalo, vestindo túnicas brancas: Finn, do Fogo Sagrado, vindo do UÍ Echan, e Fergus de Dinas Emrys, vindo de Gwynedd, sendo que o último trouxera sua cobra de estimação.

Conan Eocaid da Pictávia, o sexto elemento, foi o último dos druidas a chegar no local sagrado, e era quem havia convocado aquela assembléia, espalhando a notícia para seus irmãos. Conan era o que se poderia chamar de druida convertido, mas na verdade antes de sua conversão ele realmente era um vate, um mestre adivinho, conselheiro de reis pictos que queriam ler seu futuro e suas conquistas. Os cinco mestres druidas mais importantes atenderam ao seu chamado.

Sabiam que atravessavam uma época crítica, e o fato de Conan Eocaid, do conselho dos reis, ter convocado aquele encontro era prenúncio de novos tempos. Esperavam o sétimo membro, que, à exceção de Conan, todos desconheciam.

Conan avisou-os que se preparassem para uma reunião diferente das que eles já tinham presenciado.

Olhares ao mesmo tempo tenazes e curiosos se apresentaram nas faces enrugadas daqueles magos. O silêncio dos druidas unia-se ao da floresta. Ao longe, o barulho de pegadas sobre as folhas destacou-se, trazido pela brisa. O sétimo membro estava chegando.

Conan sorriu enigmdtico para os cinco companheiros no centro do círculo. Sem entender, eles olharam na direção do homem alto que se aproximava. Era mais jovem, e suas roupas, negras como a cor da morte, assim como a tonsura no alto da cabeça, indicavam que se tratava de um sacerdote da nova religião, que agora se alastrava pelas ilhas como fogo transformador.

Viraram-se espantados para Conan, como a buscar em seus olhos débeis alguma resposta. Aqueles templos naturais e o ritual encomendado eram reservados aos iniciados da sua ordem, e a ninguém mais. Por que Conan teria trazido um sacerdote cristão a um dos seus bosques sagrados? Dividir o ritual druídico com um romano era algo plausível, mas com um cristão não, jamais. Cristãos nunca permitiriam rituais em que crianças eram sacrificadas em homenagem a deuses pagãos. Os romanos, em raros momentos, dividiram sacrifícios com druidas poderosos, mas a nova religião era a firme inimiga dos deuses. Seus olhares se cruzavam mergulhados em perguntas que, sem mesmo serem ditas, abalavam como um terremoto a antiga amizade existente entre os magos.

 

Aproximava-se firmemente, a passos vigorosos como numa marcha romana, ciente de que entrava num círculo ancestral, mas nem por isso transbordante de paz e tolerância.

Tinha consciência da importância daquela reunião. E mais ainda do quanto aquele encontro representaria para o futuro. Sabia que trazia a esperança contra o Grande Mal. Não um mal de agora, mas o mal eterno que reside no coração dos fracos e que traz desgraça e morte aos inocentes, o Mal que desde sempre vinha sendo profetizado e que sempre atuara com vigor contra a humanidade. A arma que o sacerdote cristão trazia seria brandida no despertar dos justos.

 

O sacerdote diminuiu a marcha e aproximou-se respeitosamente do círculo, olhando nos olhos dos             magos.

- Mas isso é uma loucura! - exclamou Mider, lembrando aos outros suas obrigações.

- E, de fato! Como você, Eocaid, conselheiro dos reis, nos convida para uma esparrela dessas. Vamos depois nos sacrificar aos romanos também? - gritou, como sempre gritara o Lir.

- Nós viajamos muito para participar desse ritual que você dizia "ser de importância infinita, a ponto de as estrelas do céu morrerem”, Eocaid! Meu respeito por você é grande, mas ultrapassou os limites de nossa amizade! Antes dela vem nossa ordem! - vociferou com veemência Fergus de Dinas Emrys.

- Respeito, senhores! - irrompeu Eocaid, gritando ainda mais que Lir, olhando-o de forma ameaçadora. - Vocês estão diante de Crimtháinn do Uí Néill! - apontou ele para Columba.

Um verdadeiro assombro percorreu o ar, esfriando-o. Os druidas deram um ou dois passos para trás, olhando Columba com olhos arregalados. O tempo pareceu parar no círculo daqueles poderosos anciãos.

- Crimtháinn do Uí Néill!? Ele vai nos matar! Caímos numa cilada irmãos!... Caímos numa cilada de Eocaid! - desesperou-se Creidhne, aproximando-se dos outros magos e adotando uma posição defensiva.

- Tenham calma, irmãos! - tentou acalmá-los Eocaid, gesticulando com as suas mãos em movimentos suaves e olhando seus companheiros nos olhos.

- Crimtháinn do Uí Néill! Esse senhor da guerra derrotou com seus poderes o exército do grande rei! Não temos poderes suficientes para vencê-lo! - continuava Creidhne, exaltado e alertando os outros.

- Eu não vim lhes fazer mal mas ao contrário, pedir-lhes respeitosamente um grande favor - replicou calmamente Columba, aproximando-se deles.

- Afaste-se, Crimtháinn! Vamos lançar-lhe uma maldição para que tu não mais andes, mas rastejes como as serpentes! - irrompeu Lir, da Dumnonia.

- Não! - interrompeu Finn, erguendo seu cajado como a pastorear ovelhas. - A mágica de Crimtháinn é poderosa, Lir! Vi com meus olhos quando o grande rei de Erin veio com seu poderoso exército de Connaght atacar o clã de Crimtháinn do norte de Uí Néill e foi envolvido pela bruma que os cegou e conduziu para a desastrosa derrota. Crimtháinn já possuía o nome cristão de Columba, unindo poderes vindos da nova religião e sendo ele um temível príncipe da guerra. Não subestime Crimtháinn, Lir, pois um grande rei e seu exército já tombaram aos pés dele.

Todos os druidas olharam de forma ameaçadora para Columba, mas surpreendentemente foi Creidhne quem os tentava acalmar, além de Conan.

Mesmo assim, Lir iniciou a entonação de um encanto, seguido por Mider e Fergus. Lançando maldições ancestrais e quase esquecidas no oceano dos tempos.

Columba, perdendo um pouco de sua tolerância, riscou o chão com seu cajado.

Uma abertura profunda, como uma rachadura de terremoto, surgiu onde ele demarcara com seu cajado.

Os druidas ficaram abismados. Suas feitiçarias eram agora açoitadas a golpe de milagres.

- Olhem aí dentro! - ordenou-lhes Columba. - Vejam! - ordenou como a comandar seus soldados.

Arrastando os pés, os três druidas, seguidos pelos outros, espiaram para o interior da fenda. Ela parecia um enorme abismo.

- Vejam! - tornou a dizer Columba. - Olhem com atenção!

A fissura mais parecia um fosso, onde não se via. o fundo, mas aos poucos alguns contornos se tornaram visíveis pelos magos.

Enxergaram homens sendo queimados vivos enquanto outros, deitados no chão de barriga para baixo, mordiam a terra gemendo, ao mesmo tempo que eram açoitados por demônios. Apareceu uma enorme bola de ferro cheia de pontas vermelhas ardentes e, nela, homens eram atirados pelos demônios, fixados pelos membros e girados com tanta velocidade que as pontas da roda faiscavam. Todos choravam e urravam de dor e ódio e aquele mesmo ódio era realimentado em suas almas pelos demônios que não cessavam seus açoites.

As trancas das portas da morte se abriam, estendendo seus braços famintos; suas plumas negras espi gadas beiravam os leitos de morte. A ilusória luz dos murmúrios decadentes entristecia as perdidas almas que urravam sob a dor da desolação. Eram acordados de seu pesadelo com o grosso gole de suas lágrimas nas âmbulas malditas. Aquele pavilhão de homens orgulhosos deitados, imersos no pesadelo eterno dos mortos-vivos. Naquelas trevas andróginas repletas de fel, em meio às nuvens contrárias ao amor, o homem bebia seu próprio sangue inebriado, sob o aplauso insano das estrelas caídas...

De repente os anjos caídos olharam para fora do buraco, em direção a Columba.

- Esses feiticeiros são nossos, escravo do Cordeiro! Sempre nos serviram! São nossos, não podeis salvá-los!

Os druidas assistiam àquilo com desespero e horror.

- Ninguém é de vocês, a menos que queira ser, cães do inferno! Somente sua recusa a Deus os levará para sua morada infame, servos da cólera! - Columba olhou então para o céu e disse: - Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador e salva esses Teus filhos que estão diante de mim, Senhor.

A Terra imediatamente começou a tremer e o buraco se fechou como uma cicatriz.

Houve um silêncio sombrio... Um dos magos caiu sentado no chão suando frio, e foi socorrido pelos companheiros.

- Senhor? O que vimos?

- A morada dos ingratos, dos infames, dos traiçoeiros e covardes. Mas um mal ainda muito pior está para acontecer e assolar estas terras e toda a terra onde habita o homem - respondeu o monge, demonstrando-se fatigado como quem acabou de lutar em combate. - É realmente necessário que os senhores me ouçam... - pediu Columba com olhar paterno.

- O que significou aquela visão? - insistiu Mider.

- E a visão do inferno, para onde vão aqueles que conspiram contra Deus - respondeu Conan.

- Contra o Deus cristão?

- É, depois da morte. E eternamente lá vivem.

- Sob aquelas torturas?

- Sim, porque gostam e desejam odiar e ser odiados. O paraíso do caos às almas perturbadas e orgulhosas - pontificou Conan, como um monge em seu exercício doutrinário.

- Existem algumas considerações a fazer, antes de sair condenando as almas, Eocaid da Pictávia - interrompeu-o Columba. - Considerações às vezes difíceis de serem ponderadas por cristãos recém-convertidos. Meditei durante anos, pedindo iluminação para minha alma, limitada em inteligência e intelecto. E isso ocorreu durante uma linda tarde; eu me lembro bem porque era uma daquelas tardes em que o sol veste tudo de ouro, até as águas do mar, e era como se o que eu fosse ouvir viesse realmente do alto e a Terra deveria vestir-se de acordo, ou seja, de puro ouro. A primeira inspiração que me veio era que, às vezes, as Palavras de Deus parecem até um pouco pueris, mas era minha pequenez que exigia esse esforço do Pai, o de adaptar à minha pequenez Sua infinita sabedoria. Mas qualquer Palavra Dele, eu deveria lembrar, eram espírito e vida. E me vieram essas visões do inferno, e eu prestei atenção no que via e ouvia... E veio a mim a segunda inspiração - Columba fez uma breve pausa e prosseguiu: - Uma mãe, uma mãe verdadeira, por feio que seja o seu filhinho, não o vê assim; para ela é sempre lindo e como talo tem sempre em seu coração. E Deus me disse que era assim Seu Coração para com as almas: mesmo feias, mesmo enlameadas, mesmo imundas, o amor Dele as tinha sempre como belas.

Ouvindo aquilo, exatamente o que não queria ouvir naquele momento da minha vida, chorei como uma criança a pensar nos irmãos que minha falta de caridade havia condenado. - Columba suspirou com tristeza e continuou:

A inspiração prosseguiu: Que seria para eu compreender quanto fere seu Coração maternal tudo que fosse juízo severo, reprimenda ou condenação, mesmo que baseados na verdade. E, pelo contrdrio, quanto Lhe era alívio tudo que fosse compaixão, indulgência e misericórdia.

Pediu-me que O distraísse das suas profundas tristezas e decepções com o gênero humano com as indústrias da minha caridade. Que Ele sofre com fazer justiça e que eu usasse de piedosos enganos; que Ele tem necessidade de crer que não é verdade que as Suas criaturas sejam tão ingratas.

Que Ele, embora Senhor do visível e do invisível, preferia usar de misericórdia e não de justiça.

Que a justiça é feita em honra dos Seus justos e dos Seus inocentes. - Columba olhou nos olhos dos druidas e concluiu:

E, principalmente, que ninguém pode arrancar-Lhe uma alma. Essa pode, pela liberdade que lhe é concedida, atraiçoá-Lo, renegá-Lo, e passar assim, de própria vontade, para as mãos do demônio. Que Ele não nos criou para o inferno, mas para o paraíso! Que não nos havia criado para fazer companhia ao demônio, mas que Dele gozássemos no Amor eternamente.

Uma brisa gelada circundou os druidas... Aqueles palavras atravessaram os anciãos como uma espada afiada, ferindo-os no coração. Eocaid estava absorto em emoção e contemplação.

- Senhores, é preciso que me ouçam agora - interrompeu novamente Columba, dirigindo um olhar de doçura aos anciãos.

Toda a floresta calou-se para escutar suas palavras.

Conan lançou um olhar advertindo seus ex-irmãos de ordem, incitando-os ao silêncio. Mas seu olhar calou-se, como se tivesse visto uma sombra pairar diante de suas retinas. A compaixão que sentia pelos outros druidas, o coleguismo antes de sua conversão ao cristianismo, deu lugar a um sentimento obscuro que turvou seu coração. Suspirou, sabendo o que iria ouvir de seu novo mestre. Columba tocou no ombro de Lir e Fergus de forma a convidá-los a se sentarem na relva, o que foi seguido pelos outros, e iniciou sua narrativa.

- Tive uma visão aterrorizante, e a presença do Mal quando tive esta visão foi quase insuportável. Surgirá no futuro uma ordem poderosa feita da aliança entre homens poderosos e demônios por meio do Olho-Que-Tudo-Vê, a fim de escravizar todo o gênero humano. Espargindo ondas de desejo a corroer a alma dos homens, cegando-os, impedindo-os de sentir a beleza de enxergar estrelas; produzindo rios de enxofre que carregam toda sorte de bestas mortas, doenças e explosões de fogo lavrando a terra, semeando cadáveres aos montes. A poderosa ordem causará, em seu avanço faminto, a derrubada dos bosques sagrados, o sacrifício das matas, o desprezo dos animais. Seus líderes, que moram no topo da pirâmide, conspirarão para os justos serem esmagados e nascerem falsos ídolos. A mentira será aceita como verdade e a verdade será encarada como tolice ou fábula.

- Mas quando isso irá ocorrer, Crimtháinn? - indagou Fergus de Dinas Emrys.

- O Mal já está entre nós - continuou Columba. - Sua raíz espalha-se tenra e inofensiva como um broto, mas o tempo a fará muito forte. O homem não possui forças suficientes para combater esse Mal não somente com boa vontade. Precisará usar a 'Justiça de Deus': Na minha visão, havia uma arma, a materialização da Aliança, poderosa o suficiente para detê-lo. Ela reluzia no centro de um círculo de leões de pedra. Do seu gume, raios de luz brilhavam formando um grande halo, que se expandia por todo o círculo. Tinha sido forjada com o ferro do sacrifício do Filho do Homem. E seu punho guardava o sagrado. Ela emanava poder.

- Onde está essa espada? - questionou Finn, do Fogo Sagrado.

- Tem de ser forjada! - respondeu Columba, assustando a todos. - Por isso os convoquei. Preciso de seus formidáveis conhecimentos da forja de espadas agora! Hoje, a espada da Justiça de Deus será forjada.

Columba deixou que o silêncio que os assombrava os envolvesse. Seus olhos percorreram vagarosamente as mãos de cada um daqueles homens, que acompanharam essa trajetória tentando encontrar a resposta. Perceberam que cada um deles trazia um elemento correto para que a forja da arma fosse realizada.

As calejadas mãos de Mider apertavam uma barra de ferro cavada das entranhas da terra, contendo em si o poder do solo. Lir trazia uma bolsa de couro com a água retirada de uma fonte sagrada. Finn entendeu por que ele era um dos escolhidos, pois trouxera seu fole e o caldeirão, e Creidhne Transforma Elementos já sabia o que tinha vindo fazer e retirava suas ferramentas da sacola de couro. Fergus de Dinas Emrys, dando-se conta do que Conan Eocaid dizia com os olhos, ergueu o altar do renascimento, o caldeirão que derreteria os metais para forjar a arma.

Eles olharam para Columba. Se todos os elementos para a forja da espada já estavam ali reunidos, o que realmente ele trazia? Calmamente Columba abriu suas mãos. Os últimos raios de sol, que tinha começado a se pôr atrás do bosque, brilharam sobre aquele pequeno pedaço de metal, revelando a força que imbuiria de poder a espada.

Creidhne Transforma Elementos levantou-se, seguido dos outros. O dourado do sol banhava seus mantos, tingindo-os com raios de ouro. O vento trouxe para o centro do círculo o frio da noite que se aproximava. As primeiras estrelas apontavam no horizonte, espiando ao longe a forja, o antigo e detalhado ritual que se iniciava.

Creidhne posicionou-se no norte do círculo, em pé, de frente para os outros. Suas retinas refletiram as primeiras faíscas que Finn, do Fogo Sagrado, riscava para evocar o elemento da transformação. Seu apelido Fogo Sagrado lhe fora dado exatamente por ser sempre ele a produzir o melhor calor capaz de derreter metais, esses que se liquefaziam em verdadeiros rios de sangue, avermelhados e brilhantes, o elemento da transformação que se tornava o aço gelado da espada. O fogo logo tomou forma e foi respeitosamente saudado pelos druidas. Columba, com um misto de espanto e respeito, observava tudo atentamente, medindo cada movimento.

Mider, então, dirigiu-se ao caldeirão, depositando nele a barra de ferro que trazia. O metal parecia obedecer à sua vontade, avermelhando-se e derretendo rapidamente. O metal rígido rendia-se à força transformadora do fogo.

O ferro borbulhava como se estivesse chamando Columba a participar do ritual. O monge aproximou-se do caldeirão, ergueu aos céus o cravo sagrado evocando a força divina. Lentamente, deixou-o cair sobre a lava que ardia naquele altar de transformação. Enquanto o cravo girava no ar, visões desfilavam na mente do sacerdote, num turbilhão de imagens. Viu a cruz e Cristo coroado de espinhos sendo pregado a ela com os três cravos sagrados. Espetado na carne de Cristo, cada cravo foi permeado de um poder distinto. E um deles mergulhava agora naquele caldeirão fervente, impregnando com sua força o metal ao qual se fundia.

Lir, das Sábias Palavras, dirigiu-se a uma grande pedra especialmente plana, situada a pequena distância do círculo, recitando palavras que Columba não pôde compreender. Espargiu então a água da sua bolsa sobre a pedra, como a abençoá-la. Derramou o restante do conteúdo da bolsa em um côncavo que havia na pedra para evocar o poder daquele elemento com gestos e cantos.

O suave brilho da água sendo derramada remeteu Columba de volta ao Senhor no momento de Sua agonia. Viu o rosto do Filho do Homem pontilhado do suor que brotava do seu sofrimento. A água, escorrendo por todo seu corpo, era a força da Sua vida, esvaindo-se sob os açoites daqueles que Ele mais amava, em um brinde generoso que convidava à vida eterna, ao encontro do Pai, trocados por um pagamento torturante e irresponsável. O monge chorou. Aquele senhor da guerra havia se dobrado há muito tempo diante do Cordeiro.

Seguindo a sincronia daquele ritual circular, algo que há muitas eras havia sido estabelecido no âmago daqueles homens, Creidhne Transforma Elementos, da DaI Riata, tomou seu lugar na celebração. Juntou-se a Ian Mackollum no centro do círculo e, obedecendo ao ritmo das estrelas pelas quais alinhavam seus movimentos, os dois dirigiram-se à pedra-forja, cada qual segurando um lado da haste do caldeirão.

A cada passo medido, os dois entoavam cânticos, que calavam o sussurro do ar. Aqueles som tocaram Columba que, envolvido pela música, fechou os olhos para aproveitar melhor o momento. Quando os abriu, Ian e Creidhne começavam a derramar o conteúdo do caldeirão dentro do molde de espada que haviam colocado sobre a pedra-forja. A lava vermelha, ainda borbulhando, caminhava lentamente pela firma, tomando vida própria e desejando ocupar todos os espaços. Seu calor, tocado pelo frio do ferro que lhe dava forma, parecia render-se à nova condição. Ela queria ser espada.

Aquela missão, aquele desejo quase realizado, prostrou Columba, que caiu de joelhos, arrebatado, mãos erguidas para os céus, agradecendo. O fogo que brilhava no centro do círculo de pedra tramformou-se no sangue de Cristo que escorria das feridas rasgadas pelos cravos que O prendiam à cruz do seu sacrifício.

A música do martelo de Creidhne sobre o gume da espada trazia para Columba os gritos de dor e sofrimento dos que acompanhavam o Filho do Homem no seu holocausto, naquele fim de tarde de crucificação. O grito da lâmina virgem mergulhando na água invadiu a visão de Columba. Ele viu no líquido que agora envolvia a espada as lágrimas do lamento das mulheres que choravam a agonia do Redentor. Aquelas mesmas lágrimas também brotaram em seu coração, lentamente alcançando seus olhos, afogando na garganta a sua compaixão. Na cruz que Creidhne agora formava, encaixando a lâmina no punho trazido por ele, Columba viu a cruz do Salvador.

A lua tinha vindo testemunhar o nascimento daquele instrumento de poder, misturando seus raios à prata da lâmina que Creidhne Transforma Elementos erguia aos céus, consagrando-a como o elo de união das forças da Terra às do Céu. "És Gaoth Cerridwen, o Vento Gélido da Escócia, Aquela que Traz a Justiça.“

A espada luziu nas mãos do druida, ciente da sua missão. A luz da lua ficou mais intensa, como para revelar o leão moldado no cabo da arma.

O animal, desconhecido para Creidhne, que por anos o tinha acompanhado as suas visões proféticas de Columba era para ele, a derradeira revelação. A fera, que pousava sua pata sobre a cruz da espada, era o próprio Cristo, o Leão de Judá. Era também a coragem pousada sobre a fé.

Columba foi consumido pela visão que incendiava sua alma. Viu o Cristo soltar-se da cruz retirando suavemente os três cravos que o prendiam àquele altar de sacrifício e caminhar em sua direção. Columba viu Seus olhos contarem sobre as dores da humanidade, a redenção do sacrifício que não estava apenas na Sua ressurreição, como também na libertação de todos os justos que aguardavam desde o início dos tempos, arrebentando Ele as portas da morte, obrigando-a a vomitar aqueles que ela havia engolido. Essa mesma redenção jazia também ali mesmo, nas mãos que Ele lhe estendia, no poder daqueles três cravos santos. Neles residia a semente da eterna salvação, o remédio para a cura dos males da humanidade por todo o sempre: Justiça, Força e Sabedoria. Os olhos de Cristo revelaram a Força que iria expulsar do mundo o Mal, a Sabedoria que guiaria os homens nessa batalha e a Justiça que restauraria o equilíbrio na Terra devastada.

Cristo entregou o cravo da Justiça a uma mão que surgiu na escuridão. Esta passou o santo cravo para as mãos de dois anjos que o seguraram. Esse ato da entrega alçou vôo e seguiu no oceano do tempo até o lugar onde haveria de ser erguido o monastério de lona, erguido pelas mesmas mãos que agora seguravam o santo cravo; as mãos de Columba. Houve então uma revoada de todos os anjos do céu e os serafins partiram, prometendo voltar quando fosse necessário para proteger a espada.

E agora o cravo da Justiça, fundido à espada banhada de lua que Creidhne mantinha erguida, buscava a mão do guerreiro que o levaria a cumprir sua missão, "numa luta sem medo contra o mal”.

O sereno que caía suavemente envolvia Gaoth Cerridwen, revelando na retidão da sua lâmina o nome do guerreiro que a conduziria ao seu destino. As brasas que ardiam no centro do círculo de pedra iluminaram na espada a palavra em gaélico, escrita com pequenas gotículas do orvalho, que significa "Do Amor de Deus": Angus.

 

O velho eremita continuou, olhando para Sean:

- Que o senhor e todos os seus descendentes se conservem puros de coração, observem os dez mandamentos na graça de Deus e sejam sempre defensores da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua palavra.

Dizendo isso, ele beijou nossos pés e entregou-nos o manuscrito. Impedi-o de curvar-se a nós.

- Toma-os! Guarda-os como o maior tesouro de tua família.

Obedecendo à sua ordem, levantei e tomei os documentos em minhas mãos. Continuou o velho a explicar-nos os desenhos esculpidos no cabo da espada de nosso clã:

- O leão é uma besta poderosa que vive próximo das terras dos mouros. - Lembrou-me como o leão que havia no cabo da espada apoiava sua pata sobre uma cruz, como que a guardando. - O leão significa a força e a coragem, pois não existe besta mais corajosa em toda a criação. A pata sobre a cruz simboliza sua vigilância e fidelidade à Santa Cruz. Teus descendentes devem ser corajosos como essa besta, MacLachlans. Terão de observar as virtudes que Nennius tão esmeradamente ensinou a teu ancestral! Tua instrução sobre a essência das virtudes é de fundamental importância para a história da tua família e para o destino dos homens - quase gritou o velho eremita, dando de dedos.

Todas as frases que o velho dizia nos assustavam, pois comprometiam-nos e toda nossa descendência. Ele explicou ainda, frisando severamente, que deveríamos guardar muito bem os ensinamentos que estavam naquelas crônicas e repassá-Ios a todos nossos descendentes:

Sean e eu convidamos o eremita, vendo suas vestes surradas e sua aparência frágil pela penúria de seu ermitério, a ficar um tempo conosco em nosso clã e também para, assim, poder explicar aos nossos irmãos e familiares tudo o que nos revelara sobre o destino misterioso do clã.

Prosseguimos em nossa caminhada arrastada em direção ao vilarejo. Eu estava ansioso para transmitir as novas que o ancião havia revelado. Só não imaginava que tais revelações seriam transformadas em realidade mais rapidamente do que pensávamos, pois no ano seguinte partiríamos para a Terra Santa. No ano de Nosso Senhor de 1096, o clã MacLachlan partiria para A Cruzada.

 

                         ANGUS MACLACHLAN - O PRIMEIRO

Estávamos reunidos no vestíbulo principal, onde eram feitas as comemorações de nosso clã. Sabendo dos manuscritos que o eremita nos trouxera, todos estavam ansiosos para ouvir as histórias do fundador de nosso clã. Um MacLachlan do século IX.

- Vamos! Vamos saber o que temos nas crônicas do fundador de nosso clã, Angus MacLachlan I. São datadas do ano de 879! - apontou Conn, olhando o manuscrito com espanto.

- Leia-a para nós, Emerson. Leia! - suplicaram todos, ansiosos por saber dos atos heróicos de nosso ancestral.

Emerson MacLachlan tomou o manuscrito em suas mãos e iniciou a leitura...

 

Do Livro de Crônicas de Angus MacLachlan l,

Líder do clã MacLachlan

Os ferreiros trabalhavam dia e noite... As marteladas que forjavam nossas armas eram o som mais presente, calando até os pássaros, e sua cadência sinistra prenunciava a mais terrível das batalhas, na qual se amontoaria uma pilha de cadáveres. Eram grupos de três homens a cortejar o aço com seus açoites sincopados em um carinho titânico que somente o aço sabe absorver.

Mesmo assim, os guerreiros encheram-se de força e coragem e juraram lutar até a morte, se preciso fosse, para que se ouvisse o brado da vitória por todo o Reino, libertando toda nossa ilha. Os batedores vieram avisar que o inimigo estava muito próximo e Guthrum vinha com o grosso de seu exército. Obviamente não via ele a hora de tomar o Reino por completo e extirpar a última resistência que ali se apresentava; pictos, escotos, bretões e o exército saxão do rei Alfred. O rei ouviu com atenção os batedores e logo ordenou que nos puséssemos todos de joelhos e orássemos. Espada fincada no chão era nossa simples cruz, à qual dirigíamos respeitosamente uma última prece antes da grande batalha, mas Alfred fez algo ainda mais surpreendente. Ordenou a todos que formássemos, de joelhos, uma imema cruz. Era maravilha de se ver, aquela imema cruz humana, formada por incontáveis guerreiros, e Alfred pronunciou ainda as últimas palavras antes do combate: "Que todos nós formemos essa grande cruz em honra de Nosso Senhor e que essa seja nossa formação de batalha; e não haverá tática que nos faça sair destas terras porque nela fincamos nossos humildes pés com a bênção de Nosso Senhor, legítimo soberano deste mundo perturbado. E que nós sejamos o instrumento de sua paz e que esta ilha seja liberta do caos! Nós somos a última cruz vivente nesta ilha a ser tombada, homens! É hora de Deus reclamar toda a injustiça praticada nos quatro cantos da Bretanha!!".

Revestidos de uma força quase sobrenatural, incandescidos pelas palavras de Alfred, marchamos para o cerne da batalha em Ethandum, onde nos aguardavam Guthrum e seus milhares de homens ansiosos para nos vencer de vez...

Quando vimos o enorme exército nórdico, um murmúrio percorreu a multidão de soldados. Meus homens, pictos e escotos que eram, estavam com olhares escuros, e eu conseguia ler naqueles olhos sombrios duas coisas: a confiança que eu lhes conseguira transmitir diante dos nossos desafios anteriores e também uma certa sede ou, eu até diria, "amor pela batalha”. Senti que estava diante de homens indomáveis, guerreiros excelentes que me prestavam a honra de ser seu comandante.

As tropas de Guthrum formavam um belíssimo muro de impacto. Eram três fileiras de escudos em um longo e sólido bloco e nos bradavam seu convite à batalha, batendo suas lanças nos escudos e gritando por Thor e Odin. Era um contraponto até alegre diante de nossa oração silenciosa e melancólica. Lembrei de um fato ocorrido em uma distante estrada do tempo, onde meu pai lutou um duelo de morte com um gigante nórdico chamado Wulfgar e eu assistia àquele combate segurando a mão de minha mãe Briggid. Isso foi há muito tempo... E os homem do norte batiam os escudos da mesma forma... Vê-los agora me dava até um certo orgulho de meu sangue, pois eram conquistadores formidáveis esses homens do norte. Mas Alfred se apresentava abatido, principalmente por saber dos mosteiros, quase todos os da ilha, que haviam se transformado em pó e isso também me entristeceu muito no passado e também hoje, pois quantos monges como aqueles que me deram abrigo teriam perecido sob sangrentas espadas. Era também o eclipse da religião cristã na Bretanha, que corria nesse momento o grave risco de se tornar uma terra com leis nórdicas, de total servidão, e onde teríamos que adorar deuses como Thor e Odin, esquecendo com o passar do tempo a verdadeira fé. Onde nunca mais estaria nenhum homem diante da sabedoria e dos eminamentos de mestres como Nennius ou diante da caridade e da justiça de reis como Alfred. Ele temia exatamente isso e era para ele de vital importância vencermos nesse dia, de qualquer maneira. Lutaríamos então como leões; como a besta que não conhece medo.

Alfred franziu o cenho e ordenou o ataque imediato. Saltamos dos cavalos e empurramos os animais para a retaguarda. Eu passei para o outro extremo da tropa e cerramos fileiras. Trancamos escudos em escudos e investimos sobre as cabeças dos pagãos. Avançávamos unidos, como um só corpo, uma só alma e um só espírito. Éramos uma massa uniforme lutando para alcançar um objetivo único: a sobrevivência da Bretanha.

Meu machado parecia ser a arma mais mortal do terreiro da luta. Hagarth crescera em força e aumentava a paixão de suas investidas. Alfred parecia iluminado. Os corpos tombavam aos nossos pés. Uma luta renhida. Uma batalha corpo a corpo, como uma muralha humana empurrando outra para os braços de HeI, a morada dos mortos. Em breve, os daneses começariam a sentir o gosto amargo na boca. O fel se derramava em cada golpe de nossas lanças e era servido em taças de fúria que nunca se esvaziavam. Os inimigos já não conseguiam se manter em pé e começavam a recuar. Era visível o cansaço estampado na cara daqueles cães. Os arqueiros bretões continuavam a jorrar suas cargas de flechas sobre a retaguarda da tropa inimiga e com o tempo os dardos lançados sem interrupção começaram a cobrar seu preço. O assobio dos dardos, antes ignorados, faziam os daneses olhar para o céu e levantar seus escudos, enquanto a vanguarda era ainda um bem-composto bloco contra o qual nos batíamos. Os daneses são bons e fortes guerreiros, mas estávamos com uma fúria incendiada em nossas almas. Defendlamos nossas terras, nossas famílias e nosso maior tesouro: nossa fé.

Meu machado aumentou o sorriso confiante de alguns daneses, abrindo suas cabeças até a exposição de seus dentes e ossos e isso muito me agradava. Vê-los tombar aos meus pés me redobrava a confiança naquela decisiva batalha, onde apenas um povo sairia da contenda com vida. Guthrum não compartilharia poder com ninguém mais, com nenhum outro rei da Skania. Ninguém escaparia do seu jugo. Parecíamos ter a ciência exata das circunstâncias da derrota, redobrávamos a força de nossas investidas e percebi no meio daquela batalha furiosa que avançamos alguns passos, empurrando a vanguarda de Guthrum algumas braças para trás. Era um prenúncio de vitória, como ver um milagre diante de meus olhos. Um tremor me percorreu, assim como um estado de confiança. As espadas dos escotos arrebentavam os escudos daneses e os saxões avançavam sob os brados do rei. Os pictos eram como bestas circundando os inimigos, que pareciam vê-los atacando de todos os lados.

Tive novamente grande orgulho de ver meu exército servindo os daneses com tantas ganas.

O mesmo tremor que me percorreu a alma, de confiança, agradecimento e orgulho de meus bons homens e daquele grande rei de quem era aliado, percorria naquele momento, de uma forma um tanto diferente, a alma atormentada daqueles piratas daneses.

O medo de morrer os aterrorizava, e eu procurava ver neles a disposição para a morte em batalha tão alardeada em suas bravatas, mas essa não era uma constante, como pude constatar em outras derrotas que lhes havíamos infligido, e a vontade única do daneses era de bater em retirada, de fugir diante de nosso massacrante ataque.

Continuamos a apertar o que passou a ser um cerco total às forças de Guthrum.

Não posso e nunca poderia explicar em palavras o que aconteceu quando os daneses fugiram do campo de batalha. Nossos homens não pararam. Pelo contrário, perseguiram com ímpeto os que fugiam, matando todos os feridos que viam pela frente, apoderando-se de todos os cavalos, gado e provisões que encontravam pelos caminhos.

 

O dia todo, os cavaleiros dos saxões do oeste, seus corodeistum, mantiveram-se na perseguição dos inimigos, cortando os fugitivos por trás com suas espadas afiadas. As milícias fyrd perseguiram os nórdicos, montados em cavalos. Alguns thegns ultrapassavam com seus cavalos os daneses em fuga, desmontando bem em frente antes de atacarem os fugitivos e matá-los.

A perseguição não era uma simples necessidade militar. Ela tinha, na mente dos thegns leais a Alfred, conotação de vingança por sua terra devastada e assolada pelo medo por tanto tempo. Presenciei um gesith anglo que, depois de um embate furioso, se virou para seu prisioneiro quase triste, dizendo: "agora você terá que morrer porque todos os meus irmãos e parentes foram mortos na batalha". A vingança era uma dívida de obrigação entre os anglos e saxões. Ela tinha que ser cumprida quase de imediato, no calor do momento. Atrasar a retribuição por tempo indeterminado apenas aumentava a necessidade do ato.

Um efeito da batalha era o dano causado ao equipamento de um guerreiro. Nas contendas corpo a corpo, os escudos eram despedaçados, como registramos depois de uma batalha pesada, cantada posteriormente por formidáveis bardos.

 

Um herói ferido seguiu então seu caminho,

Dizem que seu byrnic estava quebrado,

Sua armadura imprestável e seu capacete perfurado.

 

Grande parte do equipamento seria consertada, pelos próprios homens ou pelos armeiros que acompanhavam o exército. As espadas de ferro que haviam sido entalhadas pelas lutas teriam que ser novamente afiadas depois da batalha. As lanças e dardos quebrados poderiam ser de novo encabados com facilidade. O conserto das camisas de malha, no entanto, exigia ferramentas especializadas e era feito por operários bem treinados em malha. Alguns outros equipamentos poderiam talvez ser substituídos pelos extras trazidos pelos próprios thegns, ou reabastecidos com os estoques do exército. Nosso exército estava bem formado.

A principal fonte de reabastecimento, pelo menos para nós os vitoriosos, era o campo de batalha. O despojamento do morto começava mesmo durante a batalha, mesmo quando a batalha estava no auge. Os itens valiosos, como as camisas de malhas e as espadas, eram os prêmios principais. Iniciava-se a remoção das camisas de malha, e as espadas eram empilhadas. É contra esta tela de fundo que precisamos ver os depósitos em massa dos equipamentos militares do tipo feito nos campos de Ethandum. Os equipamentos coletados de um exército derrotado eram um prêmio grande. E haveríamos de agradecer a Deus pela dupla dádiva: vitória e conquista das armas.

Continuamos a marcha, agora em direção a Chippenham, a quinze milhas dali, para onde Guthrum havia recuado com seus poucos homens, e sitiamos uma fortaleza na qual se esconderam. Parte do exército de Alfred foi chegando e se posicionando ao longo da amurada.

 

Ainda assim, as perseguições pareciam não ter sido empurradas ao extremo de nossas forças, uma vez que todos os homens simples do fyrd queriam explorar o campo de batalha por uma partilha dos despojos. Pareceu-me que algumas tropas vitoriosas que perseguiram o inimigo voltaram com uma pressa quase indecente para reivindicar a sua parte do saque, indisciplina que eu jamais permitiria em meus homens. Mas de fato estavam lá, diante de uma improvável vitória, homens simples portando armas rudimentares lutando por seu rei. E eram vitoriosos. Seria justo que tomassem boas armas para si e continuassem com melhores condições de manter seu juramento de lealdade ao rei Alfred. Era seu futuro que estavam buscando, servidos pelos cadáveres dos inimigos.

Os guerreiros voltaram por entre pilhas de corpos fedorentos. Eles agora tinham tempo de retirar de seus mais odiados inimigos, seus inimigos antigos agora sem vida, o butim ensangüentado e os ornamentos ricos, capas, escudos e as espadas de folhas largas, elmos reluzentes, enfim, os tesouros mais preciosos de uma batalha.

 

As bandeiras do corvo negro, antes desenroladas por Guthrum, ameaçando-nos no campo de batalha com seus perdulários terrestres, eram sua ameaça deliberada do destino que esperava os corpos de qualquer um que se opusesse a eles, mas agora eram as "feras da batalha” os animais que espreitavam ao redor dos combatentes, nossos estandartes naturais contra as tropas vencidas de Guthrum, as bestas escondidas nas nossas laterais desde o início do embate, esperando para se alimentar dos ossos dos que tombaram.

Os nórdicos deixaram para trás corpos para os corvos - bestas convocadas por seus próprios estandartes, com sua cor negra lustrosa e bicos de chifre - desfrutarem da carne tenra dos mortos e moribundos, e para as maravilhosas águias, de costas brancas e pardas se deitarem sobre seu sangue, e o gavião de guerra ganancioso se saciar, e para o lobo da floresta, aquela fera selvagem, cinza e nobre, escondida sempre no espírito da floresta a cantar aos homens sua canção de morte, cravar para sempre suas presas neles.

Retornei para a visão mais desejada por nós. Guthrum estava finalmente sitiado.

- Podemos invadir a qualquer momento, meu senhor - insinuei.

- Praticamente já temos a vitória nas mãos, é melhor aguardar pacientemente às margens da amurada, até que as forças de Guthrum sejam minadas pelo cansaço e pela fome - ponderou o rei, e passamos a esperar então o agrupamento total de nossas forças.

Tínhamos agora tempo para cuidar dos nossos feridos.

O tratamento dos feridos ficou sob responsabilidade dos companheiros dos thegns e dos seguidores de campo da sua unidade fyrd imediata. Não havia evidências de que "curadores" estavam presentes no exército anglo-saxão, mas presumi que tinham conhecimento básico da medicina, sobre cauterização e fechamento de ferimentos para evitar a morte pela perda de sangue. A maioria dos tratamentos tomou a forma de curas tradicionais, a medicina para curar feridas com ervas em que cataplasmas herbáceas eram usadas.

Foi montado um verdadeiro campo de tratamento com muitas tendas.

Caminhei com Alfred e o bispo de Asser por entre os enfermos, animando-os, pois ver-nos lhes trazia alívio de suas dores.

Pude ver que a perícia médica anglo-saxônica estava concentrada nas mãos dos monges e sacerdotes; isto, em grande parte, presumi, porque os clérigos eram as únicas pessoas que conseguiam ler ou copiar textos médicos que explicavam as técnicas dos romanos.

Um dos feridos delirava e gritava, suando em bicas, "ylfa gescot" - "atingido por um duende'' - e depois "waelperu” que o bispo me traduziu como "espada do inimigo”, uma dor aguda causada por um ferimento feito por uma seax forjada pelos "seis ferreiros de Satã”, uma antiga lenda saxã. Lembrei-me de Guthrum e retornei para a linha de sítio. Aquele, sim, era um demônio vivo.

Dentro da fortaleza, Guthrum só podia contar com suas runas. Desesperado, ele aguardava por tropas auxiliares que nunca chegariam. Mesmo assim, conseguiu nos manter em alerta por duas infindáveis semanas. Sentindo-se impotente diante do nosso exército, que não arredava pé e cercava toda a fortaleza, Guthrum rendeu-se com seus homens, devolveu a nós todos os reféns e implorou pela vida.

A primeira e natural reação dos guerreiros foi se lançar sobre aqueles miseráveis e matá-los sem dor na consciência. Porém, Alfred, num gesto de grandeza e misericórdia, parou frente ao inimigo e deixou-nos completamente perplexos:

- Guthrum, jura renunciar a seus deuses pagãos se for poupado juntamente com seus homens?

Nunca me esquecerei daquele momento em que o rei preferiu instalar a fé cristã naqueles corações a derramar sobre eles a mesma violência que os caracterizava.

Guthrum concordou e o rei prosseguiu:

- Jura aceitar o batismo e a religião cristã e somente procurar praticar o bem, sem espalhar mais mortandade por essas terras?

Guthrum demorou ainda um tempo antes de responder, não entendendo o objetivo final de seu adversário. Olhou para seus jarls, viu o nada que agora restava de seu poderoso exército, viu talvez a solidão profunda em que se encontrava naquele momento sem sentido algum. Os jarls o olharam de forma severa e ouvi um deles incitando os outros a uma morte em luta. Mas o rei Guthrum ordenou que se calasse. E jurou perante o grande rei de Wessex...

Eu jamais acreditaria em suas intenções e não via a hora de aquele cão sarnento sair para mandá-lo para o inferno com meu machado.

- Não peço por mim, Guthrum, mas pela justiça e por todos os filhos da Bretanha!

- Juro solenemente! - falou o rei danês...

- Venha cá para fora! - ordenou Alfred...

Quando o desconfiado tirano nórdico saiu da fortaleza, dei um passo em sua direção por puro instinto, já levantando meu machado.

O rei me deteve, segurando meu braço, como um pai detém um filho, apesar de termos a mesma idade. Naquele instante, ele pareceu muito mais velho que eu...

- Prometa, grande rei do norte, jure pelo que há de mais sagrado em tua alma de guerreiro, que nunca mais trará sofrimento a este Reino e a toda a Bretanha - disse o rei a Guthrum.

 

O que vi, então, deixou-me ainda mais impressionado: Alfred tombou sua cabeça solenemente, honrando a presença de seu antagonista. Fez o sinal-da-cruz, o que foi imitado por todos nossos homens, então tornou a olhar o líder danês nos olhos. Guthrum estava confuso... O rei Alfred então lhe deu as boas-vindas em nome da cristandade. Abraçou-o; chamou-o de filho... Atordoado com o gesto de seu     grande inimigo, o antes tirânico e todo-poderoso danês estremeceu por dentro e tombou de joelhos:

- Juro, majestade, em nome de tudo o que me é sagrado!

Eu não podia crer no que meus olhos presenciavam! Um rei fazer paz tão rápida com o inimigo vencido, um tirano que por pouco não devastara todo o seu reino... Minha pequenez espiritual me fez ainda menor e senti-me incapaz de praticar tal sujeição! Ou tal magnanimidade. Aquela situação me afligia... Procurava pelo silêncio e não o alcançava. Não estava preparado para ver um rei praticando o que Nennius me ensinara de mais profundo.

Impus-me uma certa penitência, a fim de enxergar com maior entendimento a atitude de Alfred. O vento soprava suave, o ar agora transportava alegria e esperança, mas eu estava pondo novamente em xeque meu espírito. Seria eu um homem da guerra? Teria de estar para sempre diante de algum inimigo? Não considerava mais a pujança da vida, mas somente a presença iminente da morte? Por que eu não aceitava a paz?

Minha mão segurava meu cabelo que insistia em tombar e tampar minha visão como um véu. Minha cabeça pendia para o chão.

Por um dia inteiro eu rezei e pedi esclarecimento do alto.

A imagem de meu velho amigo e mentor se tornou mais clara e forte. Senti uma brisa percorrendo minha alma, uma brisa gelada e gostosa. Minha cabeça, antes em brasa, aliviou e eu caí de joelhos.

O guerreiro não estava contrário ao santo!, pensei aos gritos. O guerreiro era um caminho de disciplina férrea e santidade! O santo pregava a paz e a qualidade daquela paz. O guerreiro a manteria segura. O santo declarava a justiça. O guerreiro era seu arauto. O santo segurava a fé. O guerreiro a buscava em todo lugar. O santo lutava pelo bem e para derramá-lo cada vez mais forte e longe. O guerreiro contra o mal, punha-lhe obstáculos cada vez mais rígidos e caçava-o onde estivesse. Lutávamos lado a lado, o santo e o guerreiro, pela mesma justiça. Pela justiça de Deus. Contra a maldade, não contra o homem!

Era isso! Era justamente isso que Alfred demonstrava!

O inimigo estava vencido! Estava esmagado!

Mas o homem não era seu inimigo! Era seu irmão!

Apertei meu coração e agradeci a luz de meu mestre Nennius e a Deus por me trazer um mentor daquela magnitude.

O segundo dia para mim foi como navegar em águas tranqüilas... Era o mesmo dia em que seriam enterrados os mortos.

 

A prática de deixar os corpos no campo de batalha era uma decisão estratégica consciente. Os corpos eram a prova mais clara da vitória, evidências incontestáveis não apenas do tamanho da batalha, mas também do fato de que a vitória havia sido tão decisiva que o derrotado não tinha conseguido recuperar seus mortos. Era meu princípio deixar que inimigos como aqueles apodrecessem, alertando novas matilhas de chacais que tentassem contra nós.

Para o rei era uma obrigação sagrada dar uma despedida apropriada para seus guerreiros: não fazer isso seria um crime contra o guerreiro e sua memória. O rei queria muito recuperar os corpos de seus thegns pessoais que foram mortos pelos nórdicos. Era uma medida que afetava e endossava sua autoridade. Esta obrigação, de recuperar os corpos dos abatidos, estava incrustada na mente anglo-saxônica. O enterro apropriado era primordial e foi realizado de forma solene.

 

Sobre o rei Alfred, posso apenas mencionar:

O que distingue os homens dos anjos é que eles foram criados muito menores do que os anjos. O que distingue os homens de outros homens é que eles firam criados em igualdade e poucos se igualam. O que distingue os santos dos homens é que os primeiros têm a humildade de servir a Deus e serem "menores" espiritualmente que os outros, mais humildes e caridosos... Pensei isso vendo a nobreza daquele rei.

Quando a maturidade atingir minha alma talvez eu consiga compreender que tipo de homem seria Alfred, o Grande.

 

No final da leitura estavam todos maravilhados, mergulhados na profunda satisfação por descenderem de um guerreiro que desempenhara papel tão importante para a história da Bretanha.

Nossa irmã Fianna mantinha os olhos mergulhados na história narrada. Seu espírito parecia             ausente, vagando nas profundezas daquela narrativa.

Nesse dia todo o clã foi reunido em festa. Bebeu-se muito hidromel.

Os risos dos MacLachlans pareciam não ter fim... Quando o sol se pôs no horizonte, as gaitas de fole soaram e todos brindaram a honra do fundador de seu clã, Angus MacLachlan, "O Primeiro Guerreiro".

 

                             IAN MACKOLLUM

Um ano havia passado e nós nos preparávamos para partir para a cruzada.

Sean, meu irmão mais velho, seria nosso líder e teria a graça de empunhar Gaoth Cerridwen, a espada de nosso clã. Minha irmã Fianna fizera os votos de cruzada e empunharia sua espada Kildare. Também levava consigo seu arco longo, arma que manejava como ninguém. Emerson partia em espírito de oração e penitência. Conn usaria machado e escudo. E eu, Darlugdach, estava armado como cavaleiro. Equipei-me. Possuía todas as armas da cavalaria:

A cavalaria era minha busca pessoal. O código da cavalaria, no mais alto grau. O eremita Ian MacKollum orientou meus primeiros passos nessa direção. Ele havia me ensinado e eu guardei seus segredos. Preparei armamento e vestes adequadas para meus irmãos. Guardei-os para somente os revelar antes de nossa partida. Mas guardei, principalmente, os ensinamentos do eremita. Lembro-me deles tirando-os não de manuscritos, mas do meu coração:

 

A espada e a bainha: o céu e a terra, a dualidade...

O fio da espada é a vontade celestial que corta e se introduz na matéria inerte. Na bainha, a espada é a vontade do céu em repouso. Erguida, é a vontade em ação.

Espada e lança também significam a verdade. Porque a verdade é reta como a espada que traspassa a carne. O punho da espada é a verdade exposta a todos, sem inibir-se pela falsidade e pelo engano. O elmo, a vergonha, a humildade. A armadura é a couraça contra os vícios capitais.

A calça de cota de malha e perneira de ferro seguram e protegem as pernas e pés do cavaleiro, porque ele deve ter proteção e segurança em todos os caminhos.

A clava significa força e coragem: defende dos vícios e fortifica as virtudes, os bons costumes e o caráter, por meio dos quais o cavaleiro pratica a justiça e mantém sua honra.

O escudo significa a proteção de seu ofício como guerreiro de Deus e sua justiça, pois protege o corpo físico do cavaleiro e também seu serviço a Deus, seu único Senhor.

O cavalo é a nobreza e a humildade: altivo como o valor do cavaleiro; humilde como o cavaleiro que serve a todos com generosidade. O freio do cavalo significa que o cavaleiro deve refrear sua boca, não proferindo mentiras ou palavras sem valor. As rédeas são o controle da razão, para que sua audácia não ultrapasse limites e escape ao seu controle.

A cruz do cavaleiro deve estar fixada em seu escudo, de modo a lembrá-Io a quem ele defende. Serve também para que seja louvado em seu ofício de cavaleiro com honra.

 

Enfim preparei meus paramentos e os de meus irmãos para que defendêssemos a justiça com diligência. Estava ansioso em minha busca pela honra do cavaleiro perfeito. E que cenário mais adequado para tal iniciação que na Terra Santa?

 

                         POR ÁGUAS TRANQÜILAS

Havíamos deixado as costas da amada Escócia com alegria e entuiasmo. Minha irmã Fianna MacLachIan observava nossa terra ficar minúscula no horizonte. Fianna era alegre, porém sóbria. Destituída de ornamentos desnecessários, tornava-se ainda mais admirável. Seus cabelos ruivos esvoaçavam ao vento gelado e ela cobria-se com uma capa azul acinzentada, tal a cor de seus olhos.

Viajávamos por mares pouco navegados por nós escoceses. Éramos sessenta, setenta soldados em nosso navio. Nossa viagem era acompanhada pela oração e sermões constantes de cinco padres e monges; um deles, meu irmão Emerson MacLachIan, mantinha-se silencioso.

Tive a oportunidade de acompanhar as discussões que travavam com dois monges nortúmbrios, vindos do monastério de Lindisfarne acompanhados por um grupo de soldados saxões do norte que se lhes juntavam. Falavam aqueles monges sobre os ataques mouros às cidades cristãs no Oriente e sobre Pedro, o Eremita, pregador da cruzada que havíamos abraçado.

- Foi depois da morte do Santo Padre Gregório que Vítor III, mesmo combatendo o antipapa, não perdeu a ocasião de fazer guerra aos exércitos muçulmanos - dizia Basílio, o Pequeno, sacerdote da comunidade do monastério das Grampians. - Os sarracenos da África atacavam os navios no Mediterrâneo e ameaçavam as costas da Itália. O Santo Padre convocou os cristãos a tomar as armas e prometeu-lhes a remissão de todos os pecados se combatessem contra os infiéis - continuava Basílio.

- Sim, irmão - interrompeu o monge Oswald de Lisdisfarne -, mas os genoveses e sicilianos não foram embalados pelo zelo da religião, e sim pelo desejo de defender seu comércio!

Oswald parecia ser o mais velho, mais culto e ponderado de todos eles. Meu irmão assistia à discussão em silêncio.

- Mas equiparam frotas, organizaram exércitos e fizeram uma expedição à costa da África, onde, se dermos crédito às crônicas do tempo, dizimaram um exército de cem mil sarracenos!

- Exagero dos italianos! - interrompeu novamente Oswald de Lisdisfarne. - Eles, por estarem próximos de Roma, fazem a política de amigos fiéis e defensores da Igreja, mas protegem mesmo seus baús, frutos de toda a espécie de saques e crimes!

- Acho um insulto aos soldados de Deus! - protestou o padre Basílio.

- Acho um insulto a Roma e ao Santo Padre, eles serem chamados de soldados de Deus! O senhor já esteve em Roma, irmão Basílio?

- Não. Não preciso ir a Roma para estar ao lado dos guerreiros da cristandade! Não preciso ir a Roma para apoiar os que defendem a causa de Nosso Senhor Jesus Cristo! - retrucou com veemência o irmão Basílio. - Naquele dia em que os italianos triunfaram sobre os inimigos de Cristo, a notícia foi milagrosamente levada para além dos mares. Incendiaram as cidades construídas no território de Cartago e obrigaram um rei mouro a pagar tributo à Santa Sé. Veja irmão! Após essa demonstração de zelo pela fé os genoveses, sicilianos e pisanos voltaram à Itália, onde os despojos dos vencidos foram empregados para ornamentar as Igrejas! - padre Basílio olhava Oswald com fúria. - Ornamentar as igrejas! - repetiu Basílio, pensando ter finalizado seu sermão dando uma lição ao irmão Oswald.

- Ornamentar suas igrejas, sim. Mas principalmente seus cofres! - gritou Oswald, perdendo a paciência, o que fez todos os homens que escutavam a conversa desabarem em risos e outros se aproximarem do embate verbal. Afinal, eram homens sábios que lá se digladiavam.

- Não é somente o zelo militar qne nos faz defensores dos cristãos, irmão Basílio. Veja o exemplo de Pedro, o Eremita! Ele procurou em todas as condições da vida a felicidade, e não a pôde encontrar. As letras, o ofício das armas, o celibato, o casamento, o estado eclesiástico, nada que se lhe oferecera lhe satisfazia a alma ardente. Desgostoso com o mundo e com os homens, retirou-se para junto dos cenobitas mais austeros. A oração, o jejum, a meditação e o silêncio exaltaram sua imaginação - continuava Oswald, tentando atrair os homens pelo exemplo de mansidão.

- Mas Pedro se julga instrumento do Senhor, depositário de sua vontade. Isso vai além da fé e se transforma em orgulho espiritual - repeliu Basílio diante do excesso de elogios a Pedro.

- Tem o fervor de um apóstolo, a coragem de um mártir - reforçou irmão Oswald. - Mesmo sem armas, seu zelo não conhece obstáculos. Seus gestos, suas palavras... nada resiste à força de sua   eloqüência.

- Mas ele prega a cruzada armada! - retrucou novamente Basílio.

Todos os homens observavam o embate verbal como quem assiste a um duelo. Ficavam divididos... O discurso de ambos fazia brotar aquela divisão.

- Tal é o homem extraordinário que deu o sinal das cruzadas! Por suas lágrimas de devoção ele conseguiu abalar o Ocidente e fazê-Io precipitar-se sobre a Ásia. Mas muitos se aproveitam desse ato de boa vontade para praticar a injustiça. Os roubos e o morticínio não encontraram berço mais propício! É esse o caso dos italianos!

- É uma infâmia! - Basílio ergueu o punho a Oswald como que o ameaçando.

Oswald franziu seu cenho e com a face rubra espargiu-lhe um olhar fulminante. Vi meu irmão Emerson baixar a cabeça e senti a divisão invadir o grupo sorrateira com suas presas obscuras. Dividia os cristãos antes mesmo de a cruzada iniciar. Parecia mau presságio para a nossa sagrada missão.

- Calma, irmãos! - interrompeu um outro monge mais jovem, chamado Domnall, que pertencia ao monastério de Cairgorn. - Pedro ficou chocado com as dificuldades dos cristãos do Oriente - continuou. - Seu ato é baseado na caridade e não na guerra contra nossos irmãos de outros credos.

Seus olhos eram de um azul transparente e seus olhar manso pareceu acalmar os dois monges antagônicos. E ele prosseguiu, com fala mansa:

- A fama das peregrinações ao Oriente fez Pedro sair de seu retiro para visitar os santos lugares. À vista de Jerusalém, sabe-se que ele ficou profundamente entristecido. - Domnall fez nova pausa. Suspirou... - Sentimentos vieram agitar a alma de Pedro. Depois de ter seguido seus irmãos ao sepulcro de Nosso Senhor, foi ter com o Patriarca de Jerusalém. A venerável figura de Simeão e a perseguição que ele havia sofrido mereceram toda a piedade de Pedro: eles choraram juntos os males dos cristãos. O Eremita, com o rosto banhado de lágrimas, perguntou se não se podia pôr um fim a tantas calamidades. "Ó, o mais fiel dos cristãos! Não vê que nossas iniqüidades nos fecharam o ingresso à misericórdia de Deus? Todo o Oriente caiu na escravidão; nenhum poder da terra nos pode socorrer".

Os irmãos Basílio e Oswald, assim como todos os outros, estavam absortos vagando na narração   de Domnall.

- A essas palavras - continuou o jovem monge -, Pedro interrompeu Simeão e disse-lhe que talvez um dia os guerreiros do Ocidente seriam os libertadores de Jerusalém. O Patriarca resolveu implorar ao Santo Padre, por meio de cartas, o socorro dos reis e príncipes do Ocidente cristão. Pedro, o Eremita, jurou que a partir daquele momento seria a voz dos cristãos do Oriente e armaria o Ocidente para sua libertação.

Os homens aquietaram-se diante daquelas palavras. Um silêncio triste contaminou o luar prateado e o deslizar silencioso do navio cruzado, impondo suas dúvidas e penetrando nas profundezas dos corações daqueles soldados que rumavam para batalhar pela fé.

O luto pesou sua capa sobre nós. Sean olhou os monges de esguelha. Pude perceber que reprovava aquelas discussões. Era o mais preocupado com o moral de nossa tropa. Era o único preparado e parecia antever o que nos aguardava.

 

                                 NOS PORTOS DE BORDEAUX

Atravessamos o oceano em grandes tempestades e com ventos generosos. Fizemos uma parada no território do Reino de França, próximos de Bordeaux. Apeamos no porto a fim de recarregar nosso navio com alguns víveres.

Um sacerdote e um administrador local vieram até nós para nos congratuIar por nossa causa. O sacerdote fazia questão de benzer o navio. Explicamos que trazíamos padres e monges em nossa viagem, mas mesmo assim ele insistiu. Padre Claremont era seu nome.

Pusemo-nos de joelhos, como manda a humildade, e recebemos a benção. Água benta foi aspergida no casco do navio.

Havia uma pequena hospedaria no porto e uma taberna, para a qual nos dirigimos após as bênçãos. O padre Claremont acompanhou-nos. Era uma figura gentil.

Bebemos um pouco de vinho de paladar agradável, produzido naquela região, e comemos um pouco de pão. O pão era tão fresco e macio que lamentei que nossa parada fosse tão breve.

Mesmo sendo nossa estadia de uma única noite, o que o padre nos contou sobre o envolvimento dos príncipes do ocidente na cruzada nos excitou. Soubemos por aquele sacerdote as palavras exatas, trazidas em manuscritos, que o Santo Padre dirigiu aos exércitos do ocidente. O padre Claremont iniciou sua leitura:

 

Seguido por seus cardeais, o Papa apareceu e ao seu lado estava Pedro, o Eremita, com o bordão de peregrino na capa rústica de lã. O apóstolo da guerra santa falou primeiro dos ultrajes feitos à fé de Cristo: recordou as profanações e os sacrilégios de que fora testemunha, os tormentos e as perseguições que sofriam àqueles que iam visitar os santos lugares. Ele tinha visto cristãos carregados de grilhões, levados à escravidão como animais de carga; ele tinha visto os opressores arrancar-lhes até o mesmo pão da miséria e atormentar a mesma pobreza para conseguir tributos; ele tinha visto os ministros do Todo-Poderoso tirados do Santuário e condenados a uma morte ignominiosa.

Principalmente nas mãos de Hakem, o tirano. Narrando as desgraças dos cristãos, Pedro tinha o rosto abatido e consternado; sua voz era entrecortada de soluços, sua emoção penetrava todos os corações.

Urbano falou depois de Pedro, o Eremita:

“Acabais de ouvir o enviado dos cristãos do Oriente. Ele vos disse da sorte lamentável de Jerusalém e do povo de Deus; ele vos disse de como a cidade do Rei dos reis, que transmite aos outros os preceitos de uma fé pura, foi obrigada a servir à escravidão. A impiedade vitoriosa espalhou suas trevas nas mais ricas regiões da Ásia: Antioquia, Éfeso, Nicéia, tornaram-se cidades muçulmanas; as hordas bárbaras dos turcos cantaram seus estandartes nas margens do Helesponto, de onde ameaçam todos os países cristãos. Se Deus mesmo, armando contra elas seus filhos, não as detiver em sua marcha triunfante, que nação, que reino, poderá fechar-lhes as portas do Ocidente?”

O soberano Pontífice dirigia-se a todas as nações cristãs; procurava excitar no coração dos cavaleiros que o escutavam o amor da glória, a ambição das conquistas, o entusiasmo religioso e principalmente a compaixão por seus irmãos, os cristãos do Oriente. A raiva ímpia dos sarracenos não respeitou nem as virgens do Senhor, nem o colégio real dos sacerdotes. Eles carregaram de ferros as mãos dos enfermos e dos velhos; crianças arrancadas aos braços maternos esquecem agora entre os bárbaros o nome do verdadeiro Deus; o templo do Senhor foi tratado como um homem infame e os ornamentos do santuário foram arrebatados como escravos. Que vos direi mais? No meio de tantos males, quem poderia reter em suas casas desoladas os habitantes de Jerusalém, os guardas do Calvário, os servidores e os concidadãos do Homem-Deus se não se tivesse imposto a eles a lei de receber e de socorrer os peregrinos, se eles não tivessem receio de deixar sem sacerdotes, sem altares, sem cerimônias religiosas uma terra toda coberta ainda pelo sangue de Jesus Cristo?

“Ai de nós, meus filhos e meus irmãos, que vivemos nestes dias de calamidades! Viemos então a este século reprovado pelo céu para ver a desolação da cidade santa e para vivermos em paz, quando ela está entregue nas mãos de seus inimigos? Não é preferível morrer na guerra do que suportar por mais tempo esse horrível espetáculo? Choremos todos juntos nossas faltas que armaram a cólera divina; choremos, mas que nossas ldgrimas não sejam como a semente lançada sobre a areia e a guerra santa se acenda ao fogo de nosso arrependimento; e o amor de nossos irmãos nos anime ao combate e seja mais forte que a morte, contra os inimigos do povo cristão.

Guerreiros que me escutais, vós que procurais sem cessar vãos pretextos de guerra, alegrai-vos pois eis aqui uma guerra legítima: chegou o momento de mostrar se estais animados por uma verdadeira coragem; chegou o momento de expiar tantas violências cometidas no seio da paz, tantas vitórias manchadas pela injustiça. Vós que fostes tantas vezes o terror de vossos concidadãos e que vendíeis por um vil salário vossos braços ao furor de outrem, armados pela espada dos Macabeus, ide defender a Terra Santa aos seus filhos. Não se trata mais de vingar as injúrias dos homens, mas as da Divindade; não se trata mais do ataque de uma cidade ou de um castelo, mas da conquista dos santos lugares.“

 

As palavras de Urbano penetravam todos os corações. A assembléia dos fiéis, levados por um entusiasmo que jamais a eloqüência humana tinha inspirado, ergueu-se totalmente e fez ouvir estas palavras: Deus o quer! Esse brado unânime foi repetido por muitas vezes.

Os barões e os cavaleiros que tinham ouvido as exortações de Urbano esqueceram-se de suas próprias questões e juraram combater juntos os inimigos da fé cristã. Todos os fiéis prometeram respeitar as decisões do concílio e ornaram suas vestes com uma cruz vermelha. Tomaram a partir dali o nome de cruzados e foi dada à guerra o nome de Cruzada.

 

Foi uma narração inquietante a do Padre Claremont. Mesmo assim senti um ar de intolerância no discurso do Santo Padre. Uma intolerância nada cristã. Mas ouvimos também o sofrimento dos nossos irmãos do Oriente. Batalharíamos pela justiça, não pela conquista. Lutaríamos pela honra e não contra todos os povos não-cristãos. Faríamos guerra contra aqueles que escravizam, estupram e matam, não contra povos de fé diferente da nossa. E não estávamos a caminho da Ásia armados como cavaleiros, portando a honra e a regra da cavalaria para tomar o que não era nosso, mas para libenar os cativos e devolver os que foram saqueados.

O discurso do Papa me inquietou, mas mantive silêncio, pois não sabia ao certo o que iríamos encontrar pela frente. A reação dos outros compatriotas parecia a mesma. O que nos motivava era a defesa da justiça e dos cristãos e imaginei nossos irmãos da Europa menos tolerantes para com os povos que deveríamos contagiar com a retidão de nosso exemplo.

Roguei no fundo do coração que essa minha desconfiança se dissipasse e que os méritos da cruzada se mostrassem elevados e suas conquistas trouxessem a marca da justiça.

 

                                  CÃES NORMANDOS

Enfim havia terra à vista. Chagávamos as costas do sul da Europa. Os homens estavam festivos, os monges se abraçavam. Tínhamos dado nosso primeiro grande passo em direção à Cruzada.

Fomos recebidos no porto de Messina, na Sicília, por um capitão normando chamado Arno Clrevignon. Os marujos normandos mais pareciam soldados de uma frente de infantaria, prontos para o combate. Mesmo estando em sua cidade, portavam armadura e elmo fechado. Inspecionaram nosso navio e questionaram sobre a quem servíamos e qual era o nosso soberano. Nossos sacerdotes responderam que nossa causa era a cruzada e tínhamos necessidades de reabastecimento de água e outros itens que eles comercializavam.

Aquela rigidez militar poderia se explicar pela proximidade da Sicília com os territórios do império Fatímida.

Apeamos do navio e fomos buscar outras provisões necessárias. Íamos à frente acompanhados de nossos sacerdotes e atrás de nós caminhavam os saxões que viajavam conosco.

Foi uma provocação feita por alguns soldados normandos aos saxões que fez rebentar a confusão. Um dos líderes dos saxões, nosso amigo, se chamava Aethelbald e era um homem de boa têmpera. Quando voltávamos do armazém, já próximos do navio, passamos diante dos soldados normandos quando um deles, que parecia um lugar tenente, ironizou:

- Andem, saxões! Só sobrou a Terra Santa com "rei" para vocês seguirem! - E os normandos explodiram em gargalhadas medonhas.

Não soube o que teria irritado mais Aethelbald: se o desrespeito para com Nosso Senhor ou a ironia sobre fato de o rei Harold ter perdido a batalha de Hastings, deixando os saxões com um soberano normando. De qualquer forma, as duas formas de ofensa eram graves e pediam resposta a altura.

Aethelbald pousou a mão sobre o cabo de sua espada, fitando o capitão normando como a um lobo. Seu silêncio dizia tudo. Os normandos se agruparam em torno de seu capitão em formação de combate. Nesse instante mandamos os monges se afastarem. Aquele insulto ao saxão também era dirigido a nós, e o clã MacLachlan defenderia seus irmãos de peregrinação. Notei, para meu espanto, que Emerson se manteve junto de nosso grupo. Apoiava a mão sobre o cabo da espada.

 

Sean era tido como um gigante sinistro; durante a viagem era notado por seu porte quieto e sua sobriedade. Viajava a maior parte do tempo em silêncio, escrevendo seu livro de crônicas. Na noite anterior tinha ajudado a puxar a âncora e quase o fizera sozinho. Sua força excepcional havia chamado a atenção dos marinheiros saxões. Agora ele observava do convés do navio o que se passava entre nós e os normandos. Os que nos ameaçavam notaram sua presença, principalmente a espada que já se encontrava em suas mãos. Inspirado na ira do gigante que se oferecia para a batalha, Aethelbald também sacou sua espada.

O capitão ordenou uma formação cerrada para nos bloquear e ainda ordenou a outros soldados formarem uma parede humana contra o nosso navio. Ele gritava, grasnava feito um ganso perto de posto de vigília. E ordenou à sentinela que soasse o alarme, o que atrairia ainda mais normandos. Vociferava maldades prometendo muitos cadáveres. Seus soldados se comportavam como se estivessem se preparando para um banquete. O ar estava incendiado. O capitão deu a ordem para seus homens nos atacarem. Estávamos unidos, Fianna, Emerson e eu, além de alguns guerreiros de nosso clã. Assimilamos o impacto e nos misturamos a eles.

Escoceses são mais difíceis para cães como esses normandos enfrentarem, pensei.

Sean saltou como um leão do convés do navio e se atirou com a força de um touro contra a parede de escudos. Foi seguido por outros que estavam no navio. Os normandos sentiram nosso baque e todos nos transformamos em uma massa aglomerada de armas, escudos e carne.

Conn girava seu machado e eu cravava minha espada em alguns inimigos. Emerson estava imerso na batalha. Eu me preocupava com ele, pois era um monge, apesar de viajar com sua espada. Mas ele pelejava. Até Fianna fazia boa morte no terreiro da batalha. Estávamos batendo pesado contra aqueles normandos e pude ver a aflição tomar conta de alguns deles, especialmente do capitão, que tentava se desviar dos golpes ininterruptos de Aethelbald.

Muitos outros normandos vieram, portando seus machados em gritos e uivos, como cães a defender sua carniça. Sean e os outros levavam vantagem e se agrupavam para receber a carga dos normandos que multiplicavam em resposta ao alarme dado e chegavam em socorro dos seus. Batemos contra eles com ainda mais vigor: arrancamos seus escudos e pisoteamos os que caíam.

Sean parecia um senhor da guerra estraçalhando os inimigos, benzendo-os com seu próprio sangue. Fizemos diferença no campo de batalha. Alguns arqueiros nossos lançavam dardos, posicionados no convés. Víamos o capitão normando tombar sob um baque seco. Seu olhar débil transmitia o chamado baço da morte e seus soldados perderam ainda mais o pouco entusiasmo que lhes restava. Batemos em retirada com a cobertura dos arqueiros e os saxões exigiram cobrir a retaguarda, em gesto de gratidão. Voamos para dentro do navio e partimos antes que toda a Sicília normanda se somasse atrás de nós.

 

                                 CAVALO A SER DOMADO

Após duas paradas, uma em Marselha e ouna na Sicília, rumávamos direto para Candie. De lá seguiríamos para Chipre e seria essa a última parada antes de chegarmos à Palestina. Nossa última parada na Sicília fora complicada...

Há doze dias navegávamos sem problemas, com ventos moderados. De repente, o céu escureceu. Estávamos ao sul do império dos gregos quando sobreveio um vendaval pesado. De certa forma estávamos preparados para uma tempestade. Tomamos as devidas precauções e, quando o vento refrescou, recolhemos as velas. O navio parecia excelente - enquanto as rajadas aumentavam o barco permanecia firme na rota. Batia o casco na água turbulenta como um cavalo a ser domado.

Após algumas horas, porém, a noite nos abraçou, o céu tornou-se escuridão e as rajadas, furacão. Nossa vela de popa rasgou e as ondas pareciam vagas de ataque contra a força do casco. Suplicávamos para que ele não se rompesse. Subíamos e descíamos as montanhas de água. Na cava das vagas éramos engolidos pela sucessão de ondas gigantes. Perdíamos homens que a cada seção eram arrebatados pelas águas escuras. Uma tristeza.

Afrontamos o mar por algumas horas e não havia sinal que a tempestade amenizasse. O mastro estava vergando e as cordas enrolando pelo baile fantástico do navio. Havia água no porão e a cozinha parecia destruída. Toda a nossa firmeza havia demolido e o desespero impôs suas condições. Lançamos ao mar o que não era indispensável e tivemos que cortar um dos mastros que tendia a arrebentar.

Ao nascer do sol, a tempestade diminuiu e as nuvens aos poucos se abriram. Procurávamos avaliar as perdas e os estragos. As velas estavam arruinadas em razão dos solavancos dos destroços. Estávamos à deriva.

Pensei comigo se estávamos realmente em uma abençoada missão. Nesse momento o mandamento "Não matarás" sacudia em minha cabeça tal qual a tempestade. Nosso destino era a guerra e a morte em nome da fé. Morte nossa e de muitos outros. Minha mente entrava no terror das dúvidas. Não existe terror maior para o guerreiro. Naquela manhã, estávamos completamente sem água e com algumas sacas de grãos, as quais deixamos secar no convés arruinado. Rezamos por nosso destino. E rezei pela cruzada, suspeitando que seu destino estivesse selado como o nosso.

O sol aparecendo manso por detrás das nuvens foi para nós grande alento. O sol e sua luz maravilhosa fizeram soerguer nosso espírito.

Secávamos todas as roupas e armas. Felizmente a sala de armas se manteve fechada e pouca água havia entrado. Secávamos tudo e Emerson em conjunto com os outros sacerdotes dirigiram uma oração de agradecimento, sossegando nosso espírito e fazendo o medido silêncio pelos mortos.

Poucos remos restavam intactos e, após o descanso, começamos a remar com lentidão em direção ao sol. Tentávamos improvisar uma vela e então encontramos destroços de outro navio. Demos graças por estar com vida e com nossa embarcação ainda boiando sobre o mar.

No horizonte apareceu o que para nós era uma visão: um barco ao longe, vindo em nossa direção.

- Vejam! - gritei.

Ficamos apreensivos e nos apressamos em içar a vela mesmo arruinada, de modo a sermos avistados e salvos. O barco se aproximava veloz e pudemos ver suas largas velas azuis.

Era um navio bizantino. Estávamos todos espantados com a velocidade daquela nave de guerra que soubemos depois se chamar "Dromunda". Possuía três velas longas e em sua proa uma torre de madeira, como a de um castelo, equipada com tubos. Esta era a arma mais poderosa existente em navios de guerra - o "fogo grego", capaz de lançar fogo nos navios inimigos. Uma torre ainda maior se erguia na popa. Aquele colosso dos mares com uma cabeça de dragão na proa possuía setenta marinheiros e trezentos remadores. Jogou sua ancora e emparelhou com nossa nave.

Seu capitão veio ter conosco. Chamava-se Alaxandrós Domniátes. Os bizantinos nos trataram com grande respeito e caridade cristã. E a esses irmãos em Cristo devíamos nossas vidas.

O capitão designou marujos experientes para ajudar a consenar as velas de nossa embarcação.

Trabalhamos por todo o dia e à noite o capitão Alaxandrós nos convidou para a ceia em seu navio.

Seria uma noite esplendida, não fossem as notícias que ele nos trouxe sobre o andamento da cruzada. O capitão mediu as palavras pela nossa aflição, mas os fatos possuíam o peso da desgraça. Ele iniciou a narrativa fiel dos fatos. Concentrados, todos ouvimos em silêncio.

- A cruzada de Pedro, o Eremita, encontrava-se na Hungria. Pedro ia montado em seu burro, alguns cavaleiros alemães iam a cavalo e a maior parte dos peregrinos, a pé. Os parcos recursos do exército eram transportados em carroças, e uma delas possuía uma arca com dinheiro, juntado por Pedro, para a longa jornada. Pedro atravessou a Hungria de forma pacífica sob as bênçãos do austero rei Coloman. Pouco depois, o exército recebeu reforços que vieram em navios e desembarcaram próximo ao porto de Zara. Continuaram a marcha em uma paz que, infelizmente, não iria durar. No dia 20 de junho, os peregrinos chegaram em Semlin. Disseram-me que o tamanho do exército assustou o governador da cidade, que reforçou as tropas de policiamento. O exército de Pedro, que acabara de atravessar em paz a Hungria, desconfiou da atitude do governante e bastou um incidente sobre uma venda de sapatos para criar uma briga, que logo virou uma batalha cerrada...

Um misto de suspiros permeou o ar. Reflexos de nossa aflição. O capitão Alaxandrós Domniátes prosseguiu:

- Os cruzados atacaram a cidade e conseguiram irromper pela cidadela. Quatro mil húngaros foram mortos e uma grande quantidade de provisões foram capturadas. Contariam com a terrível vingança do rei húngaro Coloman e todos se apressaram a atravessar o rio Save. Tiraram toda a madeira que puderam das casas para construir jangadas. Nicetas, o tranqüilo governador de Belgrado, tentou controlar a travessia do rio. Suas tropas eram compostas por mercenários pechenegs, guerreiros em quem se podia confiar que cumprissem cegamente suas ordens e foram despachados para ordenar a travessia e evitar algum problema, pois, como já se sabia, eclodiam em guerra. Nicetas partiu para Nish, onde se situavam os quartéis-generais militares da província, a fim de reunir mais tropas. Os habitantes de Belgrado deixaram a cidade deserta e refugiaram-se nas montanhas circunvizinhas. Pedro e seu exército forçaram caminho através do Save. Foi o suficiente para os bravos pechenegs restringi-Ios. Os cruzados atravessavam o rio em desordem e eclodiu nova batalha. Muitos pechenegs foram mortos e barcos cruzados incendiados e afundados. Soldados a bordo capturados e mortos. Mas era uma pequena parte do exército cruzado. O restante marchou para Belgrado pilhando-a e incendiando-a. Em Nish, o governador havia informado o imperador bizantino do ocorrido e aguardava antes da aproximação de Pedro oficiais e escolta militar bizantina, que haveriam de conduzir os ocidentais às portas do império em perfeita ordem. Possuía uma guarnição grande em Nish, e tinha-a fortalecido recrutando localmente mercenários pechenegs e húngaros locais. É provável que não pudesse dispensar qualquer homem para servir de escolta a Pedro até chegarem as tropas de Constantinopla. Por outro lado, era impraticável e perigoso permitir que tão vasta companhia permanecesse em Nish. Pediu a Pedro, enquanto reunia comida para os seus homens, para partir logo que possível. Tudo correu bem de início. Os habitantes locais permitiram não apenas aos cruzados que adquirissem os mantimentos de que precisavam, mas deram esmolas aos peregrinos mais pobres. Houve mesmo alguns que pediram para tomar parte na peregrinação. Próximo de Sófia, cruzados alemães atearam fogo a um grupo de moinhos junto ao rio. Nicetas enviou tropas para atacar a retaguarda dos cruzados. Pedro, montado no seu burro, não sabia do que se passava até que lhe informaram. Pedro desejava fazer recuar os cruzados, mas uma tropa de alemães resolveu tomar as fortificações da cidade. Nicetas ordenou que as suas forças atacassem os cruzados, que lutavam sem organização, sem tática. Muitos foram mortos, outros, capturados, homens, mulheres e crianças, e passaram o resto dos seus dias em cativeiro. Entre outras coisas, Pedro perdeu a sua arca com dinheiro. Ele mesmo, juntamente com os nobres Reinaldo de Breis e Gualter de Breteuil e um punhado de homens puseram-se em fuga, julgando serem os únicos a salvo, mas na manhã seguinte encontraram mais de dez mil cruzados e retomaram sua rota. Na cidade deserta de Bela Palanka se lhes juntaram ainda muitos cruzados fugitivos que perambulavam a esmo. Chegaram a Sófia a 12 de julho, onde se encontraram com os embaixadores e a pesada escolta enviados de Constantinopla. Duas formações de arqueiros Psilos se posicionavam numa elevação e contavam com mais de setenta dardos cada um. Uma tropa de kataphractos dava apoio pesado às tropas gregas. Consistiam em uma cavalaria especial pesada de lanceiros. Ameaçaram os bizantinos a soltar esquadrões de búlgaros e húngaros. Foi um cerco de tal ordem que os príncipes ocidentais ordenaram ao reagrupamento dos cruzados e dali seguiram quietos e em ordem rumo às portas de ConstantinopIa. As ordens era para mantê-Ios bem fornecidos em alimentos e para os não deixar demorar mais do que três dias em qualquer lugar. Daí em diante a viagem decorreu de forma amena. A vigilância dos soldados bizantinos foi severa, mas as populações locais eram amigáveis. Em Filipópolis, os gregos lhes doaram generosamente cavalos, mulas, carroças e alimentos. Um tom de arrependimento aparecia na face dos cruzados. Após os cruzados deixarem Adrianópolis vieram novos enviados oficiais de Bizâncio ao encontro de Pedro com uma mensagem caridosa do imperador. A expedição seria perdoada dos seus crimes, já que tinha sido castigada o suficiente. Pedro, o Eremita, chorou diante dos favores concedidos por tão grande senhor. A caridade do imperador não cessou com a chegada dos cruzados a Constantinopla a 1º. de agosto. Pedro foi convocado para uma audiência na corte imperial. O imperador compadeceu-se de seus sofrimentos e admirou sua humildade. Deu-lhe dinheiro, presentes e conselhos militares dos quais Pedro tinha pouca ou nenhuma compreensão. Aos olhos experientes de Aleixo Comeno, a expedição não era um exército poderoso como ele havia imaginado. Sabia que se ela passasse para a Ásia, depressa seria dizimada pelos turcos. A indisciplina dos ocidentais obrigou-o a afastá-Ia o mais rapidamente possível de Constantinopla. Gualter Sans-Avoir e seus homens, que haviam partido muito antes de Pedro, o Eremita, se encontravam em Constantinopla e se juntaram à expedição de Pedro. No início de agosto o conjunto das forças atravessou o Bósforo. Estavam finalmente na Ásia, às portas dos territórios turcos. Era lá que sua bravura seria testada ou transformada em bravata. Marchavam do mesmo modo desorganizado, pilhando casas e igrejas das pequeninas vilas em seu caminho e assim a cruzada prosseguiu.

Todos os homens estavam visivelmente afetados pela narrativa. Ficou claro a necessidade absoluta do apoio imperial para a jornada, e o poder do imperador bizantino. Naquele instante, notei que o objetivo do capitão bizantino era chamar a nossa atenção para a realidade terrível do comportamento dos cruzados, para que guardássemos a pureza de nossa intenção. Guardássemos os preceitos de Nosso Senhor e seus mandamentos. Os costumes da honra e a regra da cavalaria. E ainda para que nos resguardássemos de possíveis males futuros ainda maiores do que os narrados por ele.

Sean parecia ver rudo com frieza. Não deixou de anotar tudo o que ouvia em seu diário.

 

                                 KYPROS

Enfim, chegávamos ao porto de Famagouste, da ilha de Kypros, território do império bizantino.

Nosso navio, semi-destruído, tinha sido arrastado até lá pelos hábeis marinheiros bizantinos. Ao redor do porto pude ver o poder do império bizantino: lá estavam ancoradas muitas naves como aquela que nos socorreu. Homens severos andavam para todos os lados. Olhavam-nos com certa desconfiança. Vimos um grupo de monges com longas barbas e roupas negras, austeros como árvores mortas.

Ficamos hospedados em um quartel próximo do porto. Fomos muito bem alimentados e, sem que soubéssemos, nosso navio estava sendo totalmente reconstruído pelos gregos.

Nossos monges foram visitar uma pequena igreja bizantina e voltaram encantados com os cantos dos padres e os ícones. Fomos orar naquela capela onde residia paz e serenidade. Nenhuma imagem esculpida existia na capela, apenas ícones e as luzes tênues das velas. Os cantos eram maravilhas de se ouvir. Emerson aproveitou muito aquele momento da nossa jornada e julguei que para ele aquela era a jornada de um monge e não devia se engajar em batalha como fez na Sicília para nos apoiar. Apreciava ver meu irmão tendo seu momento de mansidão.

Nosso barco logo estaria pronto e partiríamos para finalmente nos unirmos à cruzada.

 

                              BRUMA PÁLIDA

Estávamos na Palestina. Que Deus abençoasse nossa missão e conduta. Os caminhos sagrados estavam diante de nossos passos. Era um bom momento para orar. Rezamos...

Soubemos por nossos batedores que outras tropas estavam a poucas horas de nossa posição. Eram cruzados. Partimos sem demora para nos juntarmos a eles.

Havíamos marchado por todo o dia debaixo do sol escaldante. Éramos agora um exército engrossado por tropas de saxões, frísios e flamengos. Os poucos genoveses e venezianos nos acompanhavam traziam consigo sua preciosa carga: as armas de sítio. Nosso objetivo era nos juntarmos ao exército cruzado que marchava para Antioquia. Os navios genoveses patrulhavam a costa porque soubemos da vinda de uma grande armada fatímida que havia partido do Cairo. Eram poucos navios, mas podiam ao menos dar o alarme da chegada da armada inimiga e avisar os cruzados.

Andávamos em grupos distintos, porém não separados e nos demos bem com todos soldados que formavam o grupo, em especial os saxões. Pareciam ser homens humildes e determinados. Mesmo exaustos, nunca nos separávamos do grosso do exército, pois poderíamos ser pegos em alguma emboscada.

Torcíamos para que o exército parasse, mas isso somente acontecia quando o sol desaparecia. Era como se saíssemos de perto da fogueira. O bafo quente nos exauria, forçava o extremo de nossa vontade, principalmente de nós, acostumados aos ventos gelados do norte.

Finalmente, depois de quase assarmos dentro de nossas malhas, o exército parou. Os ombros das colinas haviam mudado de tom. O vento soprava frio nos montes ao longe, onde cavalos brancos se tornavam invisíveis. A bruma pálida e as ondas de calor que brotavam da terra haviam cessado e o céu matizado de fogo ganhava corpo. O sol que queimava nossas faces e enfraquecia os braços do guerreiro e seus feitos fantásticos dava passagem a um insidioso vento, sob cuja ação as areias viravam caracóis, encolhendo-se em torno de nós, a nos espremer. Era hora de parar e descansar. Fechar os olhos, mergulhando a alma no medo mais profundo que o deserto sabe despertar.

Acendemos fogueiras, amarramos os cavalos e bebemos um pouco, apenas um pouco de água. Nos reuníamos sentados próximos das fogueiras, mas não o suficiente para que o fogo nos trouxesse mais calor. Mesmo assim a temperatura caía de forma brusca durante as noites e o fogo aos poucos se tornava convidativo.

- Conte-nos, irmão Oswald, conte-nos sobre a queda de Jerusalém - pediu Aestald Aellia, um nobre nortúmbrio que peregrinava conosco.

Todos o apoiaram, pois sabiam que Oswald tinha conhecimentos como nenhum outro sábio nos reinos da cristandade. Aestald parecia conhecer a reputação de seu compatriota de, como um bom líder, saber desanuviar a mente preocupada e desgastada dos soldados com histórias de triunfo e glória.

A cultura e sabedoria de Oswald nos foram mais uma vez demonstradas com sutileza e simplicidade.

- É uma longa história - disse. - Por onde começar? - iniciou Oswald, acariciando sua longa barba.

Aconchegamo-nos ao redor do monge, ansiosos por saber os motivos de nossa jornada, os detalhes que haviam marcado a história em arranhões irrecuperáveis. Os motivos reais de nossa luta, dentro do mundo espiritual. Ele pigarreou, cuspiu longe em direção às águas cinzentas e iniciou a narrativa:

- O demônio sempre tenta contra a humildade e a pequenez. O pai do orgulho nem sempre sai vencedor, apesar da atração que exerce sobre os homens de coração duro. Os falsos deuses haviam reaparecido, aquelas imagens falidas, marcas da teimosia do homem! - a ira demonstrada por Oswald contra os povos pagãos às vezes surpreendia. - O tempo do Imperador Hélio Adriano havia passado. Júpiter havia se apoderado do Gólgota; Adônis e Vênus eram adorados em Belém. Mas o reino profanador dessa mitologia que expirava devia passar bem depressa, sob a força e a justeza da espada de Constantino. Ele fez desaparecerem essas estátuas pagãs, que tanto entristeciam os olhos dos cristãos; a cidade sagrada que, pouco a pouco reconstruída por Hélio Adriano, tinha tomado o nome de Helia-Capitolina, retomou seu primitivo nome, Jerusalém. Uma Nova Jerusalém... Sob a força de Constantino os cristãos do Oriente tiveram paz e os do Ocidente podiam realizar as peregrinações que seus corações desejavam com tanto ardor.

Oswald era um monge de grande inteligência, pensei. Um homem a quem Deus revelava seu intelecto aos poucos. Como numa caminhada, descobríamos sua sabedoria em suas palavras, com calma.

Ele retomou a conversa:

- Mas no início do sétimo século, enquanto o Ocidente procurava em débeis apalpadelas o equilíbrio entre o barbarismo e a nova ordem que São Gregório Magno trouxe como Papa, o Oriente foi abalado por um golpe terrível. Nas províncias cristãs do Oriente entre a Síria e Bizâncio corria a notícia do desastre: Jerusalém acabava de cair!

Todos ouviam atentos, sob o crepitar ruidoso da fogueira, que aumentava à mesma medida que outros cavaleiros, soldados e monges que se somavam ao grupo.

- Mas foi muito antes que começaram as batalhas para a defesa da cristandade: as batalhas no Oriente contra o império Persa! - interveio irmão Luigi, um italiano da Ordem de São Bento.

- Verdade, irmão! Muito bem observado - concordou Oswald. - O melhor seria relembrar o que aconteceu cem anos antes da queda de Jerusalém e, de certa maneira, a preparou. Devemos lembrar a súbita aparição e expansão de um novo Império na Ásia central, o dos turcos, cujo Khagan, chefe supremo instalado no Tien-Chan, reinava em meio a imenso fausto, sentado num trono sustentado por quatro pavões de ouro. Ele provocava uma enorme agitação entre as tribos dispersas da China aos montes Urais. Como conseqüência das suas investidas, os lombardos lançaram-se contra a Itália e os ávaros, mongóis hostis ao domínio turco, foram instalar-se no sul da Rússia e, depois, no baixo Danúbio. Esses últimos eram guerreiros tão terríveis como haviam sido seus primos hunos, e levavam consigo a incansável infantaria dos eslavos, gente feroz como eles próprios.

- Ouvi dizer que eles não usavam prisões. Queimavam os prisioneiros ou esmagavam seus crânios - disse um dos cavaleiros.

- Nada vindo dessa gente seria de espantar - continuou irmão Oswald. - O fato é que Bizâncio teve que fazer frente a essas hordas, mas nenhum inimigo foi tão temível quanto aquele que se instalara em Ctesifonte: o rei Cósroes lI. No início do sétimo século, enquanto o Ocidente procurava o seu equilíbrio entre a anarquia bárbara e a nova ordem que, depois de São Gregório Magno, se encarnava e era conduzida pelo papa, o Oriente foi abalado por um terrível acontecimento. Por todo o Império de Bizâncio correu a notícia de um desastre sem igual: Jerusalém acabara de cair nas mãos dos infiéis! Havia dez anos que os persas do rei Cósroes tentavam sucessivas investidas nas fronteiras orientais do Império. Mais uma vez haviam invadido a Palestina. Sitiaram a Cidade Santa durante vinte dias. Os aríetes empurrados contra as portas, as muralhas forçadas, o fogo arremessado dia e noite, o ódio religioso, tudo contribuiu para o sucesso daquela investida. Muitas igrejas foram incendiadas, entre elas a basílica da Ressurreição, mandada construir pelo imperador Constantino.

- Ouvi falar em sessenta mil mortos, será verdade? - perguntou um outro cavaleiro, um bretão chamado Fernand Droites.

- Não seria um número exagerado - respondeu Oswald. - Sabemos com certeza que trinta e cinco mil cristãos foram levados em cativeiro, entre eles o próprio Patriarca. Os persas não respeitaram nada, ou quase nada. Curiosamente, deixaram intacta a basílica da Natividade, em Belém, segundo se dizia, por causa do mosaico representando a "Adoração dos Magos". Teriam reconhecido ali os seus costumes nacionais. Quanto ao resto... Inúmeros mosteiros foram destruídos, monges e monjas dispersados. Tesouros sagrados, tecidos preciosos, vasos de ouro e de prata foram roubados das igrejas e enviados às capitais sírias. A pior das ignomínias foi a que praticaram contra a Santa Cruz. Tiraram-na do Santo Sepulcro e levaram-na como troféu a Ctesifonte.

Oswald parou um instante, o rosto entristecido e, ao redor da fogueira, pairou um eco de dor como a que sentira toda a cristandade. O velho prosseguiu:

- Esse Cósroes lI, prestigioso "rei dos reis", como queria ser chamado, não era um homem de religião, mas um conquistador. "O céu serve aos meus desejos, meus tesouros são ilimitados e todos os povos trabalham somente para mim", ele costumava dizer, no auge da sua glória. Seu trono era ornado com os signos do zodíaco, rodeado no inverno por uma cortina de pele de castor e de zibelina e aquecido por esferas de ouro cheias de água fervente. As suas caçadas eram cercadas de um luxo prodigioso: cavaleiros com vestes de cetim e bordados deslumbrantes, um número incontável de falcoeiros, além de servos que seguravam pela trela guepardos domesticados... Quando acampavam, era estendido no solo um tapete do tamanho de uma fortaleza no qual estavam representadas todas as regiões do Império sassânida. Diz-se ainda que seu exército contava com novecentos elefantes e o seu harém com doze mil mulheres.

- Com tal poder, não é de admirar que esse rei quisesse governar o mundo! - exclamou um cavaleiro.

- Era o que ele pretendia - concordou Oswald -, mas Bizâncio erguia-se no caminho das suas ambições. O choque foi inevitável. Durante vinte anos, quase sem trégua, Cósroes II lançou suas tropas contra as fronteiras bizantinas. Uma após a outra, as províncias de Osroene, da Síria, da Anatólia e depois do Egito assistiram à invasão dos persas e das hordas mongóis utilizadas como tropas auxiliares. No início do século sétimo, preparavam-se para conquistar a Calcedônia, no mar de Mármara, em frente a Constantinopla. Porém, a tomada de Jerusalém, poucos anos depois, foi o mais doloroso episódio de toda essa larga provação para a cristandade.

- Foi nessa altura que surgiu Heráclio - disse meu irmão Sean MacLachlan.

Os cavaleiros estranharam que o escocês estivesse tão bem informado.

- Não se admirem! - exclamou padre Causantin. - Temos em nossa companhia alguém que considera o Imperador de Bizâncio um verdadeiro santo.

- Não está longe da verdade - disse Oswald. - Heráclio assumiu o poder aos trinta e seis anos de idade. Contam os cronistas que ele era um homem sério e de caráter bem formado. Um homem alto, dizem, de cabeleira avermelhada e barba espessa. Seu olhar era límpido mesmo quando encarava o inimigo. Falam também de sua bravura, uma bravura espantosa, pois não deixava a ninguém a honra de chegar primeiro ao coração da batalha. Um campeão no combate singular. Além do mais, era estrategista e diplomata, detentor de todos os dotes de um grande general e hábil em surpreender com seus argumentos a aliados e inimigos. Sobretudo era um cristão de fé ardorosa, entusiasta no serviço de Cristo e com o que ensinavam os Evangelhos. Pode-se bem dizer que foi o antepassado espiritual desses cavaleiros que, muito mais tarde, haveriam de desafiar todos os perigos para reconquistar o Santo Sepulcro.

- "O primeiro cruzado"! - exclamou Sean. - Aquele de quem ouvi sua história chamava-o assIm.

- É justo que o fizesse - confirmou Oswald. - Mas ele penou muito no início do seu reinado. Nada parecia poder deter as investidas dos persas. Num ponto ou noutro do Império Bizantino havia sempre uma região sendo atacada. No preciso momento em que Jerusalém caía, o inimigo aparecia outra vez em Calcedônia. As hordas dos ávaros, deixando os seus acampamentos na Hungria, invadiram a Trácia e vieram cercar Constantinopla. Com a Palestina e a Síria conquistadas, com Alexandria ocupada, Bizâncio sendo ameaçada por mongóis em terra e por persas pelo lado do mar, Heráclio chegou a pensar que deveria fugir para Cartago, do que foi dissuadido pelo patriarca Sérgio. Foi então que se deu a reviravolta, um verdadeiro milagre, e que tomou a forma de uma autêntica cruzada. Os exércitos responderam ao apelo do chefe da Igreja. Foram tomados pelo desejo de libertar o Santo Sepulcro e reconquistar a verdadeira cruz. O patriarca conclamou a todos: "Não tendes o direito de permitir que os magos ocupem a Cidade Santa - ele disse aos maiorais do Império -, como não tendes o direito de deixar que a Santa Cruz seja objeto de escárnio em Ctesifonte!". E mais, sob sua ordem, todos os tesouros da Igreja foram colocados à disposição do Imperador.

- Fala-se numa famosa carta que Cósroes teria escrito a Heráclio, uma carta insultuosa à sua honra e à sua fé - disse padre Causantin. E acrescentou: - Parece-me que o Imperador teve o bom senso de divulgá-Ia, o que fez com que cada bizantino se sentisse pessoalmente atingido.

- A carta foi lida dos púlpitos! - exclamou irmão Oswald. - Dizia, entre outras coisas: "Pretendes colocar em Deus a tua confiança? Então, porque ele não salvou Cesaréia, Jerusalém e Alexandria das minhas mãos? Se me aprouvesse, eu teria também destruído Constantinopla. Quanto ao teu Cristo, não te deixes embalar por uma vã esperança. Ele nem sequer foi capaz de salvar-se das mãos dos judeus que o crucificaram!".

- Ainda hoje essa carta parece insultar-nos a todos! - exclamou um cavaleiro.

- No ano do Senhor de 622, começou a guerra santa - prosseguiu irmão Oswald. - Uma cruzada que duraria dez anos ininterruptos de batalhas. Heráclio lançou-se contra as tropas persas na Galácia e na Capadócia, repelindo-as de volta ao rio Eufrates. Ele atravessou de um salto a Armênia, sem se deter para reconquistar as províncias ocupadas, mas lançou-se Pérsia adentro. Tomou Erivan e vingou o saque de Jerusalém incendiando o templo masdeu de Tabriz. Nessa altura, o Império sassânida estava ferido de morte.

- É estranho que o rei Cósroes II não tenha reagido - comentou o cavaleiro que pedira o relato.

- Ele reagiu, não há dúvida - contrapôs Oswald. - A prova é que depois de uma sucessão de vitórias bizantinas, nos três anos que se seguiram os exércitos de Heráclio tiveram que ficar apenas na defensiva. No quarto ano, os ávaros restabeleceram a sua aliança com os persas e lançaram nova investida. Houve uma verdadeira corrida contra Bizâncio, na qual mongóis, eslavos e búlgaros marchavam lado a lado com medos e persas. Diante do perigo iminente, o patriarca Sérgio, em cujas mãos estava a defesa da cidade, lutou com grande energia. Dizem que ele mandou passear a imagem da Santa Mãe de Deus sobre as muralhas, na primeira fila de combatentes. Deu-se o milagre: o inimigo recuou.

Oswald fez uma pausa, visivelmente cansado. Sua voz baixara de tom. Padre Causantin insistiu para que adiasse o relato, mas ele não quis.

- Ainda algumas palavras sobre o Imperador - acrescentou irmão Oswald, com humor. Heráclio havia se refugiado no Cáucaso, mas saiu do seu reduto e retomou a ofensiva após ter contratado contigentes mercenários.

- Os turcos pechenegs! - exclamou o padre Causantin, recordando-se daquela que era para ele uma estranha aliança entre cristãos e infiéis. - Sim, os pechenegs ou patzinaks - confirmou o padre depois de vasculhar os anais de sua memória, enriquecida nas bibliotecas de Cluny. - Eram de raça turca e, como muitos outros, haviam migrado das estepes para o oeste. Oito tribos ao todo, cujos nomes eram tirados da cor dos seus cavalos. Os pechenegs lutam como as outras raças dos estepes, com armaduras de couro, e atirando flechas dos cavalos. Os bizantinos fizeram alianças com eles, com o objetivo de manter os magiares e os rus afastados de seus territórios. Capítulos de “Administrando o Império”, livro de conselhos para o filho do imperador Constantino Porphyrogennetos, são dedicados à importância da aliança com os pechenegs. "Se esta aliança for mantida, o território bizantino estará seguro, o comércio com a Rússia será próspero e os inimigos em potencial do Império, que tremem perante os pechenegs, não se atreverão a atacar." - recitou o padre, demonstrando gosto em dividir a atenção gerada por Oswald.

- Recordo-me apenas de ter lido sobre uma das tribos das estepes: Qara-Bay, "a tribo da baía com cavalos cinzentos".

- Mas continuemos com Heráclio e os primeiros cruzados - brindou um soldado do grupo dos saxões, volvendo as atenções para Oswald.

- Foi o ano de 627 que viu a vitória mudar de lado. O Imperador tomou Tíflis, atravessou a Armênia, invadiu a Síria e esmagou o melhor dos exércitos persas, perto de Arbelos, exatamente no mesmo lugar em que Alexandre, o Grande, havia vencido outro rei dos reis. Esgotada, a Pérsia pediu misericórdia. Era a vez dos bizantinos invadirem em incursões fulminantes os quatro cantos do Império sassânida. As cidades sagradas dos masdeus arderam por toda parte. Por fim, no ano de Nosso Senhor de 628, espalhou-se a notícia que todos esperavam ouvir. O próprio Heráclio a anunciou: "Caiu o ímpio, o orgulhoso Cósroes! Aquele que insultou o Cristo e a Virgem está morto; escutai o fragor da sua queda. Já arde no inferno com os seus iguais!".

- Heráclio matou-o em pessoa? - perguntou um cavaleiro.

- Não, foi destronado pelo próprio filho - informou Oswald - e executado no recinto que eles chamavam de "casa das trevas". A Pérsia masdeísta deixou de existir para sempre. Quando Heráclio reconduziu a Santa Cruz para Jerusalém, carregando-a ele mesmo sobre os ombros, aquela que muitos consideram a verdadeira "primeira cruzada” foi realmente coroada com a mais brilhante das vitórias.

O relato agradara a todos os cavaleiros. Caminharam de volta às suas fogueiras comentando os feitos do passado dos quais haviam herdado a luta. A noite concentrara o frio naquele recanto pedregoso. As capas eram enroladas ao redor dos corpos aconchegados ao calor dos fogos. Rezávamos no silêncio de nossas almas para que a sensação do frio permanecesse nos dias seguintes e não entrássemos novamente na fornalha sem fim. Mas isso era uma clara ilusão.

No dia seguinte uma grave notícia pesou sobre nós. Sob o calor renovado do sol uma pequena multidão corria em nossa direção dizendo que a armada fatímida atingira a costa perto do porto de Latáquia. Os navios genoveses se haviam incendiado e afundado. Duas barcas saxônicas estavam em fuga, perseguidas por navios da armada fatímida. Muitas armas de sítio foram perdidas e não chegariam aos cruzados. Uma fortaleza próxima do porto de Latáquia fora tomada e era a nova base dos fatímidas. Lá estavam desembarcando soldados e muitas armas. Novas armadas estavam a caminho e o objetivo era atacar os cruzados quando estes atingissem as muralhas de Antioquia.

Ouvindo a narração dos fatos decidimos partir de imediato. Teríamos de forçar a entrada na fortaleza e tomá-Ia impedindo a chegada de novos exércitos do Egito.

Imediatamente iniciamos a marcha. Desenhamos várias estratégias no caminho, mas a real ação seria avaliada quando conhecêssemos os muros da fortificação e seu poderio.

Avistamos a fortaleza. Do alto das torres podiam ser vistas as lanças prateadas. Era uma fortaleza considerável. Muito bem guardada por sentinelas em todo o mural. O passadiço estava repleto de soldados. Portavam armaduras reluzentes, contrariando algumas de minhas fantasias com soldados menos equipados.

Começamos a discutir táticas das mais variadas. Franzíamos o cenho, as mãos dos nobres iam e voltavam dos queixos, coçavam suas barbas, mordiam os lábios... Nossos olhos estavam sedentos pela vitória em nossa primeira batalha na cruzada. Era de extremo valor aniquilarmos a força que se concentrava naquela fortaleza e ameaçava secretamente o êxito da cruzada. Os nobres e os capitães mantinham a mesma expressão concentrada.

Dividimos nosso exército entre alguns nobres e cavaleiros a fim de pôr em prática o estratagema aprovado de forma unânime. Dois pelotões serviriam como lanceiros, caso os soldados da fortaleza nos atacassem. Essa era a idéia mais plausível diante da reviravolta que os fatímidas montavam. É normal estar confiante quando aquartelado entre muralhas, ainda mais pertencendo a um império como o dos fatímidas do Cairo.

- Esses sarracenos são confiantes! - exclamava um cavaleiro frisão.

Nossa idéia era que eles, tomados de uma confiança demasiada, partissem para nos esmagar por dois fIancos. Simularíamos o pânico dos derrotados e aí entraria o grosso de nossos soldados. A vitória provável serviria uma apetitosa armadilha. O maior grupo de infantaria pesada seria dividido em quatro milícias e forjaria um possível cerco. Ao lançar dos dardos, deveriam forjar uma fuga. Três dos grupos seriam os primeiros a fugir dando a idéia de estar abandonando o grupo líder, onde os cavaleiros e estandartes estariam bem à vista. A presa mais importante daquela batalha estaria oferecida... Um quinto destacamento deveria enfrentar o avanço do exército fatímida a fim de atrasá-Ios. Era esse o momento de nos reagruparmos.

Nos aproximamos da fortaleza e nela atiramos duas salvas de dardos incandescentes, enquanto deixávamos que nos assistissem montar as armas de sítio, também falsas.

Soou o alarme no interior da fortaleza e os sarracenos revidaram suas cargas de flechas. Seu poderio era grande, logo, avaliando nossas forças e a montagem de nossas armas de sítio ainda em andamento, concluíram o que havíamos esperado: atacaram-nos de imediato antes que as armas estivessem prontas e nossas fileiras bem posicionadas. As portas da fortaleza se abriram e uma cavalaria sarracena saiu em nossa direção.

Dada a ordem, os cornos soaram o falso canto da nossa retirada. Nossos pelotões debandaram em diferentes direções, formando quatro enormes meias-luas, pois o inimigo avistaria o fundo dos destacamentos em fuga, enquanto as frentes retornavam para uma investida frontal.

As portas vomitavam cavaleiros fatímidas, que avançaram em gritos de triunfo. Era um ataque maciço. A glória era aparentemente toda deles. Ouvimos gritos de furor vindos da cidade. Os sitiados triunfavam.

Nossa cavalaria se distanciava e os sarracenos corriam em nosso encalço. O pelotão que ficou na retaguarda endossava nossa fuga, pois tentava detê-Ios e atrasá-Ios; demonstravam pânico, numa farsa muito bem posicionada entre duas mentiras: a fuga da nossa infantaria e a proteção das falsas armas de sítio.

O estratagema dera resultado. Nossa cavalaria estava bem posicionada, encoberta pela confusão. Partimos contra eles. Quando nos viram, era tarde para se prepararem contra o nosso choque. O impacto foi tão violento que derrubou toda a linha frontal dos fatímidas. Parecíamos um só bloco de rocha. A massa humana se atracou numa luta renhida. Suas cimitarras encontravam o aço de nossas espadas pesadas e nosso golpe era sentido em cada sarraceno.

Sarakénoí, era o nome que os gregos davam aos fatímidas e berberes, mas eles eram um povo distinto dos que habitavam a Síria e a Arábia, povos com quem posteriormente iríamos nos defrontar.

Os sarracenos do campo de batalha estavam mais dispersos e nossa infantaria já fazia a reviravolta, como uma lua nova. A cauda partia, mas a frente voltava. Era uma maravilha ver nossa união em batalha, pois os quatro pelotões contornavam sinistros em direção dos inimigos como quatro serpentes malignas. O novo cerco aos fatímidas vinha agora de todas as direções e eles começaram a demonstrar pânico. Atiramo-nos contra seus escudos e cavalos num choque que estremeceu a terra.

Pude comparar os rostos assustados dos soldados adversários e os nossos de predadores. Tudo seria arrasado.

Os soldados fatímidas tentaram nos bloquear, mas nossa cavalaria fez-Ihes um rombo irrecuperável. Sua vanguarda estava destruída. Entramos e dominamos a fortaleza. Muitos foram mortos e os que restaram foram feitos prisioneiros.

A fortificação era nossa. Encontramos muitas provisões e armamento pesado de sítio, nosso maior trunfo, já que a armada egípcia havia afundado os navios venezianos com nossas principais armas de cerco.

Fizemos grande comemoração e por várias vezes os soldados cumprimentavam Fianna por sua bravura em combate. Ela gozava austero respeito, imposto com justiça, pelo poder de sua espada.

Organizávamos nossa caravana para ir de encontro aos cruzados e nos unirmos ao cerco de Antioquia. Nossa posição seria de reforçá-Ios na vanguarda reforçando o cerco com as pesadas armas de sítio. Levávamos também comida, pois soubemos que os cruzados haviam passado imensas necessidades.

 

                                     ÀS PORTAS DE ANTIOQUIA

O padre Causantin parecia não entender a gravidade da situação. Orgulhoso em ver todo o exército cruzado montar rumo certo à tão magnífica cidade, suspirou como se estivesse em recreio e disse:

- Antioquia! A maravilha do mundo árabe. Cidade fundada no ano 300 antes do nascimento de Nosso Senhor. Na época do império romano era a terceira cidade mais importante do mundo... - gabava-se como se nossa conquista fosse simples e levasse apenas um único dia. - Para os cristãos é especialmente sagrada - continuou. - Lá fomos chamados de cristãos pela primeira vez.

Já era costume padre Causantin e irmão Oswald discutirem de forma antagônica.

- No entanto, Suleiman ibn Kurulmish invadiu-a com seus poderosos exércitos e a conquistou - cutucou então o monge Oswald. - Isso há mais de dez anos, meu senhor. E veremos se nosso cerco sairá vitorioso. Só se Deus assim o quiser - repeliu.

- Que nosso cerco seja vitorioso e curto, irmão! - devolveu-lhe o padre Causantin.

- Para que as aflições sejam menores, padre! E que Deus se apiede dos sofredores! - disse Oswald, chamando o padre à caridade e não ao entusiasmo da conquista.

Estávamos acostumados com aqueles repentes de contenda entre os dois religiosos.

Vários grupos de nobres cavaleiros estudavam as formas de invasão e procuravam obter todas as informações pertinentes à cidade, seus exércitos e seus líderes.

Soubemos que Antioquia havia passado para as mãos do sultão Malik Shah e que este instalara um governador. O turcomano Yaghi-Siyan era o homem que a governava quando acampamos diante de suas muralhas, naquele ano de Nosso Senhor de 1097. Este aliás, um ano que jamais irei esquecer.

A cidade estava e permaneceu sitiada. Pensando que se tratava de tentativa de restauração da autoridade dos gregos bizantinos com a cumplicidade da população local, Yaghi Siyan resolveu expulsá-Ia. Engrossou nossas linhas, pois acabava de expulsar a maioria de sua população. A cidade, para meu espanto, era de maioria cristã.

Sean observava tudo com cautela. Anotava tudo o que acontecia em seu livro de crônicas pessoais. Emerson orava pedindo bênçãos para os exércitos cruzados e que o suplício do sítio fosse curto.

Sem dúvida o governador de Antioquia tomava medidas para agüentar a chegada de reforços. Mas quando viriam? Antes de nossa chegada os líderes cruzados souberam que Yaghi Siyan havia enviado seu próprio filho aos emires da Síria à implorar pelo socorro dos exércitos muçulmanos.

Rezávamos para que nosso assédio fosse curto. Aguardávamos, esperançosos de que Antioquia caísse em nossas mãos antes da certeira chegada de reforços dos exércitos muçulmanos. Não seria bom sermos pegos entre as muralhas. Defenderíamos dois flancos. Melhor seria termos dominado a cidade e nos defendermos atrás das muralhas para depois atacar, contando com o cansaço dos sitiantes. Havíamos devastado tudo ao redor da cidade e não havia sobrado nada para alimentar um novo exército. Seria um cerco difícil.

Enquanto esperávamos, notei que alguns sacerdotes presentes em nosso exército estavam acolhendo monges que haviam sido expulsos de Antioquia. Sean e eu nos aproximamos e escutamos a conversa dos monges. Os cristãos expulsos eram arranjados em fileiras e seriam transportados para a retaguarda dos soldados. Um deles, um velho monge cristão de rito bizantino, trazia notícias alarmantes aos sacerdotes latinos.

- Yaghi Siyan sabe que tem seus domínios ameaçados! Soube que Chams ad-Dawla, o filho de Yaghi Siyan, foi enviado para pedir reforços para o emir da Síria. Se obtiver sucesso, o reforço estará aqui em uma semana de caminhada. - reforçou o velho monge, que se chamava Alexandrinos.

Nesse momento um capitão francês chamado Charles Pertignon, ouvindo a conversa, fez sinal para que outros cavaleiros se aproximassem dele. Mandou retirar o velho monge da fileira e este foi seguido por outros quatro monges mais jovens.

- Contem-nos tudo o que sabem sobre os planos do governador - interveio o capitão, olhando o monge bizantino de forma primeiro preocupada, depois ameaçadora. - Quais são os planos de Yaghi Siyan e a quem ele pedirá reforços, velho?

- Até às estrelas! - disse Alexandrinos. - Não falta a quem pedir reforços no Oriente, meu senhor!

- Seja específico, velho! - ordenou-lhe o capitão, como que a interrogar um prisioneiro. Arrastou-o pelos braços pedindo aos soldados que fizessem o mesmo com aquele pequeno grupo.

Os monges bizantinos, empurrados e intimidados pelos cruzados franceses, obedeciam à ordem dada. Já não sabiam se aqueles eram libertadores da cidade ou dominadores ferozes. O capitão chamou um dos cavaleiros líderes de seu exército. Um último baque no velho monge para que ele andasse rápido foi suficiente para ferver o sangue de Sean e o também o nosso.

Os franceses nos chamaram primeiro de flamengos, depois de alemands e por último de saxões.

- Somos escoceses, porco! - disse-lhe Fianna, olhando em fogo para o cavaleiro, desembainhando sua espada. - E não permitimos que sacerdotes sejam mal tratados! Damos a eles o respeito que merecem e daremos a vocês o mesmo!

Fianna bateu-lhe com um golpe que arrancou seu escudo. Os franceses se arvoraram e o cavaleiro, furioso, sacou sua espada e partiu em direção a Fianna. Conhecendo nossa irmã, não a ajudamos, pois sabíamos que ela daria conta do francês.

- Mulher! Hoje você morre! E sem martírio!

- Martírio é a sua pouca masculinidade!

O cavaleiro francês sacou sua espada, mas Fianna arrancou-a de suas mãos antes que pudesse erguê-Ia. Irritado, atirou-se contra nossa irmã e esta lhe deu uma espadada no topo da cabeça, o que provocou uma gargalhada geral no grupo de escoceses e saxões. O golpe foi dado com a folha de Kildare, mas a espada de Fianna era pesada e deixou grogue o francês por um instante. Ele tornou a ficar ainda mais furioso e pediu a espada de um de seus cavaleiros que lhe entregou de imediato. Partiu ele em direção a Fianna, e desta vez ela o acenou com um golpe mortal no pescoço com a lâmina de Kildare. Até aí ficamos alerta, mas não interferiríamos.

Outro cavaleiro, um gigante de cabelos amarelos, que parecia o mais temido do grupo, pegou uma clava e girou contra o rosto de Fianna. Ela desviou por duas vezes e se desequilibrou, quando outros cavaleiros avançaram na direção dela. Antes que esboçasse reação, Sean deu um golpe no gigante com seu escudo que o francês foi parar nos pés de seus soldados. Por tratar-se de um nobre, urrou a ordem de ataque.

Foi um desastre.

Rebentou uma contenda violenta entre nós e os franceses. Saltei de espada em punho e pude contar várias mortes. Emerson por uma segunda vez imergia no campo de batalha. Choviam franceses sobre nossas cabeças, mas o braço dos escoceses e saxões permaneceu firme.

Sean matou o cavaleiro francês com um golpe tirado de sua própria clava. Cuspiu em seu corpo débil. Girou a clava contra os franceses e estes forram derrubados como trigo, apesar de sua famosa ira em combate. Lutamos por algum tempo e os saxões fizeram boa semeadura no campo da morte.

Foram os alemães que conseguiram dissipar a batalha. Um dos seus principais líderes acorreu em nosso socorro com uma grande tropa de soldados. Fizeram todos cessarem a luta. Uma grande mortandade se fez naquela tarde infeliz. A maioria de franceses.

O líder alemão era um barão chamado Hugo Wolfenstein. Tivera problemas anteriores em disputas com os franceses e foi simpático a nossa causa. Fianna estava ensopada de sangue, mas dei graças pelo sangue ser dos nossos inimigos. Depois daquele gesto arrogante, assim os considerei. E pude ver que assim Wolfeinstein também os considerava.

Fomos acolhidos em seu acampamento. Água nos foi servida e os feridos foram tratados. O barão trazia também sua irmã e sua cunhada para a cruzada, e elas proveram roupas limpas para Fianna. Banqueteamo-nos com ele em sua tenda. Contamos-lhe todas as nossas aventuras e ele contou-nos as suas. Comemorou mais de uma vez a derrota que infligimos naqueles cavaleiros franceses e brindou a nossa irmã, cuja paixão na batalha foi notada. Providenciou para os MacLachlans cavalos e vestes de cavalaria. Disse que tínhamos merecimento para tais presentes. Insistiu para que aceitássemos, o que fizemos de bom grado. Permanecemos a partir daquele dia desastroso nas proximidades do acampamento alemão. Conversávamos com o barão sobre estratégias a serem adotadas, pois o sítio se prolongara.

 

Avaliávamos as táticas e o moral das tropas de Antioquia. A quem o governador pediria ajuda? Damasco era uma potência considerável, mas as disputas com Antioquia ainda eram frescas. Além do mais, Dukak, o emir de Damasco, se preocupava com seu próprio reino. Nutria ódio cego por seu irmão Ridwan, sultão de Alepo, a principal potência militar da Síria. Assim, esses eram antagônicos, para nossa bênção. A Síria estava dividida pela "Guerra dos Dois Irmãos". O emir de Damasco e o sultão de Alepo. O ódio entre Dukak e Ridwan era tão forte que nada, nem mesmo a ameaça ao Islã vinda do Ocidente poderia fazer com que pensassem sequer em uma trégua.

Wolfeinstein ainda comentava sobre o sultão Ridwan ser suspeito de usar membros da seita dos Assassinos. Perguntei-lhe sobre tal seita e ele explicou-me que eram mercenários contratados por reis que precisam eliminar seus adversários através de assassinatos, traições e até mesmo feitiçaria. Diziam que Ridwan estava sob o domínio de um "mago-astróIogo", o líder dessa seita recém-formada.

Os monges prestavam atenção nessa parte da conversa e evitavam novas discussões. Sean e eu fizemos uma breve pausa. Comentamos sobre as disputas que dividiram povos no Oriente e no Ocidente.

- O poder pode ser um instrumento para levar homens à loucura a ponto de destruírem a própria família - eu avaliava.

Mas essa diferença cega naquele momento nos ajudava. Ao menos essa era nossa esperança. Restava saber se Dukak teria coragem de trazer seus exércitos tão perto de Alepo, a cidade de seu irmão, o poderoso sultão. A última coisa que precisávamos no momento era um exército nos encurralando contra as muralhas de Antioquia. Eu sabia que meus irmãos também gostariam que a covardia de Dukak prevalecesse e que o sítio fosse o mais breve possível.

 

Dois meses se passaram. Em dezembro do ano de Nosso Senhor de 1097 passamos de sitiantes a vítimas da fome. Centenas de cruzados pereceram e tivemos que abater a maior parte de nossas montarias.

A chuva caía sem cessar sobre nós e a cidade, transformando o acampamento em um pântano lamacento. Além disso, a terra não parava de tremer. Os terremotos pareciam querer nos expulsar dos arredores da cidade, e assustaram ainda mais o exército quando os monges disseram que estávamos sendo vítimas de punição divina. Após essa revelação, jogos de dados e bebidas foram proibidos, as prostitutas afastadas do meio dos soldados e o jejum era solicitado por todos os monges e sacerdotes. Naquele momento sofríamos muitas deserções.

Por causa da fome que assolava o acampamento, foram feitas pequenas expedições nas redondezas, com o objetivo de encontrar carneiros, cabras ou até mesmo pilhar alguns celeiros.

 

No dia 31 de Dezembro, Sean e eu saímos em uma dessas expedições, mas, ao invés de provisões, encontramos o emir Durak, de Damasco, e seu exército, que cavalgava com Chams al-Dawla, filho do rei de Antioquia. O reforço tão desejado finalmente chegava a Antioquia.

A situação ficou desesperadora. O exército de Dukak era muito maior e o nosso agrupamento estava abatido pela fome. Os turcos conseguiram nos cercar sem dificuldades, mas o rei Dukak não deu a ordem de ataque.

Soube então que as palavras do monge estavam certas: Dukak havia desistido de ajudar Antioquia, pois temia seu irmão Ridwan mais do que os cruzados. Nosso agrupamento se aproveitou da hesitação dos turcos para se desvencilhar do cerco e atacar, infringindo pesadas perdas aos damascenos.

Essa foi nossa melhor estratégia. Intimidou os inimigos. Durante a batalha, nosso pequeno exército pode mostrar que nem mesmo abatido pela fome seria derrotado. Sean naquele momento empunhava Gaoth Cerridwen e estávamos todos vestidos como cavaleiros, graças à cortesia de nosso amigo, o barão Hugo Wolfeinstein. No final do dia, não havia nem vencedores e nem perdedores, mas as grandes perdas sofridas pelos guerreiros turcos já eram motivo suficiente para Dukak dar meia-volta e fugir para sua cidade.

Apesar da desistência de Dukak causar desespero aos sitiados, ela não ajudou a melhorar a situação em que nosso exército se encontrava.

Em janeiro do ano de Nosso Senhor de 1098, Antioquia ainda aguardava reforços e nós continuávamos a sofrer com a falta de provisões. Ficamos sabendo o rei de Antioquia, abalado pela covardia de Dukak, resolveu pedir reforços para Ridwan, em Alepo. Novamente, Yaghin Siyan enviou seu filho Chams para a difícil e perigosa tarefa. Pelo pouco que sabíamos sobre as relações entre Yaghi Siyan e Ridwan, podíamos imaginar que Chams preferia cortar sua mão a oferecê-Ia para Ridwan, mas a notícia nos preocupou. Na busca desesperada por provisões, fomos forçados a pilhar e devastar as terras nos arredores de Alepo. A falta de alimento em nosso acampamento havia chegado a um ponto crítico e Ridwan poderia aceitar a aliança não para proteger Antioquia, mas para proteger a si próprio, e essa era sua mais provável atitude.

E foi exatamente o que aconteceu. No dia 9 de Fevereiro, os sentinelas de Antioquia já podiam avistar os milhares de cavaleiros vindos de Alepo, mostrando o sucesso da missão de Chams. A fome também atingiu as nossas montarias e só podíamos contar com no máximo dois mil cavaleiros.

Podíamos ouvir a população de Antioquia celebrando a chegada de reforços atrás das muralhas, ansiosos para que o combate, que poria fim ao sítio de mais de cem dias, começasse imediatamente. Mas as tropas de Alepo montaram acampamento, para prepararem-se melhor durante a noite, e a ordem de batalha foi adiada para o dia seguinte.

Quando vimos o local de acampamento escolhido pela tropa de Ridwan, já sabíamos que a sorte estava a nosso favor. O sultão de Alepo, mesmo em vantagem numérica em relação a nós, decidiu proteger suas tropas e acamparam em uma estreita banda de terra entre o rio Oronte e o lago de Antioquia. Foi o temor de Ridwan pelo nosso exército, mesmo debilitado pela fome, que selou o seu destino. Lá eles não teriam como se defender de um ataque surpresa, e foi o que fizemos.

Decidimos avançar contra Ridwan durante a madrugada. Os alepinos estavam quase totalmente indefesos já que, naquela estreita faixa de terra, qualquer movimento lhes era proibido. Atacamos sem piedade: os alepinos não podiam usar seus cavaleiros arqueiros, suas montarias empinavam derrubando muitos soldados, que eram pisoteados sem ter a chance de se levantar. Foram obrigados a enfrentar os cruzados no combate corpo a corpo. Mesmo enfraquecidos, os cruzados e suas armaduras tinham uma enorme vantagem sobre o inimigo.

Ao ver a enorme carnificina que estávamos causando no seu exército, Ridwan só pensava em fugir da forma mais rápida e desordenada possível. Havíamos derrotado dois reis e seus poderosos exércitos em menos de dois meses. Eu já acreditava que nosso exército havia sido abençoado.

Quando amanheceu, foi a vez do exército de Antioquia fazer sua investida. Os defensores da cidade organizaram seu exército para sair de uma forma maciça, obrigando nossos homens a recuarem. Pouco antes do meio-dia, eles, em uma excelente posição, investiram contra nós. Mas, pouco tempo depois, o emir Yaghi Siyan manda seus homens recuarem; ele recebera a notícia de que Ridwan e todo o seu exército caíram aos nossos pés.

O exército de Antioquia mal conseguiam voltar para dentro da cidade quando meus irmãos e eu presenciamos uma cena macabra. Os cavaleiros que nos ajudaram a derrotar os alepinos voltaram carregando cabeças mutiladas, que foram atiradas para dentro da cidade com nossas catapultas. Antioquia foi dominada por um silêncio de morte.

Apesar das vitórias, nosso exército estava muito enfraquecido. Precisávamos manter a sórdida rotina de pilhagens e saques de territórios vizinhos para conseguir algumas poucas provisões. Mantínhamos o sítio em Antioquia, mas começava a imaginar por quanto tempo agüentaríamos essa situação.

Yaghin Syian e seu filho Chams defendiam a cidade mesmo após perder o apoio dos dois reis inimigos. A única esperança para o rei de Antioquia era o atabeg Karbuka, de Mossul.

Algumas semanas passaram e o sítio se tornava cada vez mais desesperador. A fome e o sofrimento transformava nossos homens em bestas selvagens. Sean e eu vimos como um espião de Antioquia havia sido morto, assado e devorado por soldados que um dia já haviam sido homens honrados.

Enquanto devoravam a carne do espião, gritavam para as muralhas da cidade que todo espião teria o mesmo destino. Esse fato com certeza assustou muitos aliados de Yaghin Siyan, fazendo com que o emir não conseguisse mais nenhuma informação sobre nosso exército. O bloqueio da cidade também havia se tornado mais rigoroso e o reabastecimento mais difícil. Sentia que o cerco começava a preocupar não somente o emir, mas toda a população. Mas as garras da morte e do desespero cravavam suas mãos dos dois lados da muralha.

 

Em junho do ano de Nosso Senhor de 1098, nosso exército e o inimigo estavam esgotados. Havíamos tomado a cidade, mas Chams resistia com heroísmo. Assim que invadimos a cidadela, no dia 3, Chams se entricheirou com alguns fiéis soldados no topo do monte Habib-na-Najjar e de lá atiravam flechas que derrubaram muitos cruzados. Todas as nossas tentativas de tirá-Ios de seu posto foram rechaçadas com pesadas perdas para nós. Chams também conseguiu a proeza de ferir o chefe de todo o exército cruzado, o franco-normando Bohémond de Taranto, outro gigante guerreiro de cabelos louros.

Ferido, Bohémond tentou negociar com o príncipe sua rendição em troca de um salvo-conduto para deixar Antioquia. Mas isso enfureceu Chams ainda mais, e ele vociferou do alto de seu posto:

- Vou lutar por minha cidade até meu último soldado! Este território herdei de meu pai! Não me faltam flechas ou provisões! Vocês, franjs, morrerão aos milhares!

Não pude deixar de admirar a determinação de Chams. Essa admiração cresceu ainda mais quando soube que o emir Yaghi Siyan havia fugido no momento em que havíamos invadido sua cidade e que coube somente a Chams defender Antioquia. Essa determinação nos obrigou a desistir de atacar a cidadela para apenas voltar a cercá-la.

Três dias se passaram sem que a situação mudasse, até que escutamos os urros de alegria de Chams e seus homens. Eles louvavam os céus, choravam e gritavam "Allahou Akbar!", que eu soube pelos monges que significava "Deus é grande!".

A alegria de Chams era proporcional ao nosso desespero: o grande exército do atabeg Karbuka havia chegado. Fomos forçados a nos abrigar atrás das muralhas e passar de sitiantes a sitiados.

Nosso exército estava extremamente enfraquecido, não somente pelas perdas causadas pelas flechas dos turcos, mas principalmente pela fome. Fora das muralhas ainda havia a possibilidade de conseguir provisões nos arredores, mas agora a situação era mais difícil. As reservas da cidade, com as quais estávamos contando, estavam praticamente esgotadas. Não havíamos comido nada desde a tomada da cidade, o que forçou os nobres a abater as montarias sobreviventes enquanto o restante do exército sobrevivia de restos de ervas. Agora era a nossa vez de sentir os horrores do sítio. Tudo o que nos restava era aguardar pela ajuda divina, que chegou mais cedo do que o esperado.

Ainda no mês de junho, um monge reuniu o exército e nos revelou que havia uma lança do Messias enterrada no Kussyan, o grande edifício de Antioquia.

- Se acharem a lança, lutem sem medo, pois vencerão qualquer exército inimigo, não importa seu tamanho! Se não a encontrarem, a morte é certa. Os turcos os esmagarão e a cidade estará perdida para sempre. Jejuem e façam suas penitências por três dias. Depois entrem no Kussyan e cavem em todos os lugares.

Aquela profecia parecia ser o milagre que estávamos esperando. Meus irmãos e eu obedecemos às instruções do monge e, dois dias depois, outra boa notícia chegava aos nossos ouvidos. Um de nossos espiões, que havia conseguido se infiltrar entre os turcos, descobriu que o enorme exército muçulmano estava dividido. Os emires que vieram na expedição de socorro junto de Karbuka estavam desconfiados que, se Karbuka conseguisse derrotar os franj e salvar Antioquia, seu poder e influência cresceriam e não haveria força na Síria capaz de se opor a eles. O temor dos emires uns pelos outros era muito maior do que qualquer outro. Sua desconfiança e inveja seriam nossa maior vantagem e sua união, a nossa morte.

 

Três dias depois, o monge nos reuniu em Kussyan para procurar pela lança do Messias. Escavávamos por todos os lugares. Em pouco tempo um dos monges a encontrou.

- Rejubilem-se, pois a vitória é certa! - exclamou, levando todos a urrarem de alegria.

Foi decidido que a batalha seria em dois dias. Enquanto esperávamos, Sean contou-nos o segredo do monge: ele viu quando o monge enterrou a lança durante a madrugada, tomando o cuidado de apagar seus rastros! Um plano simples de um monge astuto que conseguiu dar forças a toda uma tropa ora enfraquecida pelo cansaço e pela fome.

No dia da batalha sabíamos que os emires estavam envenenados pela discórdia e que um atraso na ordem de ataque de Karbuka podia pôr fim à frágil união. Aproveitando dessa discórdia, saímos pela porta da cidade em pequenos grupos. Essa manobra instigaria ainda mais a impaciência e a desconfiança de seus aliados, pois evitaria que Karbuka nos atacasse até que todo o exército estivesse fora da cidade, por medo que voltássemos para trás das muralhas e o sítio fosse ainda mais prolongado.

Enquanto o restante do exército saía aos poucos, podíamos ver claramente o grande número de deserções do lado inimigo. Os emires discutiam entre si, provavelmente acusando uns aos outros de traição e covardia. Karbuka logo ofereceu uma trégua. Respondemos sua oferta investindo com nosso exército antes que ele terminasse. Quando nos chocamos com os cavaleiros arqueiros de Karbuka, os outros emires abandonaram a luta e o deixaram sozinho no campo de batalha. A trégua pedida pelo atabeg de Mossul o desmoralizou, o que reforçou a nossa segurança na batalha.

 

Entre os emires desertores, foi reconhecido o rei louco Dukak, de Damasco, que saía tranqüilamente do campo de batalha. Senti um enorme desprezo por ele, pois era a segunda vez que, com enorme covardia, negava socorro aos muçulmanos.

Isolado e sofrendo pesadas perdas, o atabeg de Mossul recuou e iniciou uma fuga jamais vista por nós. Temendo uma armadilha dos turcos e sabendo que Karbuka estava abandonado pelos outros emires, decidimos não os perseguir e deixar o atabeg e suas tropas voltarem para sua terra. Antioquia finalmente era nossa.

Mas quando entramos em vitória, o que vimos foi uma tremenda derrota: Antioquia ardia em chamas. O sangue corria não somente de soldados, como mandam a honra e os códigos de guerra, mas principalmente de mulheres e de crianças. Todos tentavam fugir pelo labirinto de ruas, com as casas incendiando, porém, os cavaleiros francos alcançavam suas vítimas e ceifavam-lhes a vida. A vida, aliás, nunca teve valor tão baixo diante de meus olhos. O desejo de que uma força muçulmana irrompesse pelos portões pondo os cruzados francos para correr me assaltava naquele momento. Cruzados, aliás, era um título indigno para aqueles carniceiros.

 

Chorei ao ver meu irmão Emerson desabar sob o peso da extrema decepção diante daquela desgraça praticada contra tantos inocentes, desontando para sempre a história da cristandade. O ímpeto dos francos só cessou quando o mar de sangue envolvia os corpos inanimados.

Dizia adeus aos cornos de fumaça. Cumprimentei o nevoeiro enfurecido. Saudei o fogo do céu. Honrei a luz mortal da lua cheia. Supliquei aos corvos todo mau agouro. Que o nosso navio rodopiasse na esteira de sangue. Entrei em núpcias com a morte. Desejava as crias vigorosas da loucura. Justificava o turbilhão dos pesadelos vindouros. Estava presente na lapidação das injustiças. Dela éramos parceiros e cúmplices. E que nossa culpa fosse punida com severidade. Pois pesava sobre meus ombros o futuro da cristandade.

Revoltamo-nos, todos ao mesmo tempo. Lançamo-nos contra alguns soldados cruzados. Francos, na maioria. De sua embriaguez acordariam no inferno, no colo do demônio. Marcamos nossa indignação com sangue. Sangue esse que jorrou de francos, normandos, aquitanos e italianos, que, sem respeito algum pelos vencidos, pela cruzada, pelos reis e príncipes do Ocidente, prestaram em seu último ato o desrespeito total às leis de Deus. Nobre foi a intenção, mas vil foi a ação dos cruzados francos e normandos em Antioquia.

A cruzada para nós havia terminado. Seu ideal, corrompido; nossos sonhos, destruídos pela volúpia insana dos vermes embriagados.

 

Sean e Conn escolheram prosseguir acompanhando a cruzada, a fim de tentarem frear as injustiças que testemunhassem. Seriam novos arautos da morte para aqueles que exterminam a pureza e a verdade.

 

                                             OLHO DE LÚCIFER

Sean e Conn haviam permanecido no Oriente. Talvez tombassem como tantos outros mártires. Eu, Darlugdach, meu irmão Emerson, e minha irmã Fianna MacLachlan retornávamos à nossa tão amada Escócia.

Dos cinco irmãos, um havia partido como monge e quatro como guerreiros para a Terra Santa... De lá voltávamos abençoados: dois seriam mártires no reino dos céus. Emerson seguiria sua vida de monge em paz. Fianna voltava como a guerreira que lideraria o clã MacLachlan. O céu possuía novos combatentes... E a terra, novos cavaleiros e missionários.

 

Fomos recebidos com grande festa e galanteria por nossos conterrâneos... Muito se comemorou... Muito hidromel se bebeu.

No dia seguinte fomos visitar o nosso mestre espiritual, o eremita lan MacKollum em seu novo ermitério no nosso território. Ele demorou a aparecer fora da caverna, coberto com suas peles rústicas, mancando de uma perna, arqueado como um pássaro.

Subimos. Ele demorou a nos reconhecer. Estava muito velho e achamos que estivesse senil ou cego.

- Malditos MacLachlans! - gritou. Depois soltou uma gargalhada que ecoou nas Highlands.

Reconhecera-nos; talvez por nossos tartãs.

- Malditos MacLacWans!

Abraçamo-nos, num abraço afogado, parido de nossa alma. Emerson chorou em seus ombros.

Fianna beijou sua testa como a um saudoso pai.

Contamos ao velho eremita toda a nossa aventura na cruzada, nossa busca pelo sagrado e as tremendas dificuldades que havíamos passado. Sobre a nova missão de Sean e Conn, sua busca pela justiça e sua entrega pessoal ao martírio.

O velho ouvia tudo como se enxergasse as imagens em nossa memória. Como se as sorvesse... Como se as sentisse.

 

Depois de muito contarmos foi a vez dele falar, mais uma vez em tom profético e misterioso. Ele pôs-se de pé e olhou para nós que estávamos em volta da fogueira, o vento gelado soprando em seus cabelos longos e seus olhos adquirindo o brilho da noite...

- No futuro, surgirá uma ordem decrépita, feita da aliança entre homens poderosos e demônios por meio do Olho-Que-Tudo-Vê, o Olho de Lúcifer, a fim de escravizar todo gênero humano à sua servidão. Ninguém poderá comprar ou vender sem possuir a marca da besta sobre a fronte, isto é, ser maligno e corrupto de mente e no espírito; e também na mão, onde reside a ação do trabalho do homem. As ondas de desejo irão corroer a alma dos homens, cegando-os. A poderosa ordem causará, em seu avanço faminto, a queda da fé. O mundo evitará Deus. Irá esquecer-se Dele... Mas assim como os cavaleiros mais fortes são colocados na vanguarda de um exército, Deus ordenará seus guerreiros mais fortes, no tempo do Anticristo. Esses cavaleiros sofrerão as piores tribulações...Mas irão batalhar, não por glória sua, mas pela glória de Deus! E você, MacLachlan, preparem-se! Porque vocês novamente  irão batalhar!

A voz do velho soou como um trovão em nossa alma, e ele prosseguiu:

- Nos tempos da grande apostasia e da grande tribulação, o Coração de Deus será o único refúgio seguro. Mas vocês batalharão, MacLachlan! Como disse o profeta: "Nesta terrível luta sairá do mar, para ajudar o dragão, uma besta semelhante a uma pantera”. A seita do Olho-que-Tudo-Vê irá atuar na sombra, no escondimento, de modo a estar em toda parte, em todas as casas, trazendo suas blasfêmias e tormentos a todas as famílias. A besta negra soará, através de seus dez chifres, toda sorte de injúrias contra Deus e seus filhos! Os homens de fé e boa vontade serão perseguidos como criminosos. Os poderosos chifres da besta soarão como seus instrumentos de comunicação contra as leis de Deus. Atacará as virtudes que conduzem a humanidade pelo caminho do amor e da santidade. Atacará sem cessar a fé, a esperança, a caridade, a prudência, a fortaleza, a justiça e a temperança. A besta vomitará contra Deus e seus filhos toda a sua imundície. Combaterá de forma traiçoeira, mas tenaz, impedindo as almas de percorrerem o caminho indicado pelo Pai e pelo Filho, e iluminado pelo Espírito Santo. Contra as virtudes ela envenenará o coração dos homens difundindo, através de seus poderosos chifres, os sete vícios capitais. Entorpecer o coração dos homens com os vícios será sua principal tarefa. À fé ela opõe a soberba; à esperança a luxúria; à caridade a avareza; à prudência a ira; à fortaleza a preguiça; à justiça a inveja; à temperança a gula. Aos que se tornam vítimas dos sete vícios capitais, o afastamento de Deus é inexorável, pois prestarão culto exclusivo aos vícios.

- Quando isso irá ocorrer, MacKolIum? - indagou Emerson, chocado como todos nós.

- O Mal se esgueira entre nós - continuou Ian MacKolIum. - A raiz da pirâmide do poder está se formando através da soma da volúpia dos que desejam estar acima do Eterno. Edifica sua base com os pensamentos insanos dos mortos-vivos, que pousam seus corações sobre a pedra angular. O homem não possui forças suficientes para tal enfrentamento! Necessitará mais que nunca rogar a Justiça de Deus e sua força. E vocês, MacLachlan, preparem-se! Pois irão batalhar ao lado da Justiça Divina. Vocês, cavaleiros das virtudes, não se esqueçam de seu emblema! Lutem pelas virtudes e pela Justiça de Deus! Lutem pelas virtudes e pela Justiça de Deus! - gritou o ancião. - Lutem, MacLachlan!

As palavras ecoaram nas Highlands, em minha alma e na alma de meus irmãos. Lembraríamos para sempre da coerência da pregação de Ian MacKollum e as inscrições na cripta dos MacLachlan, as sete virtudes, e esperaríamos estar preparados para quando a profecia do eremita se cumprisse.

Mas tudo isso, pelo que o velho nos disse, ainda irá demorar à acontecer.

Mesmo assim Fianna MacLachlan ergueu-se, olhou nos olhos de todos, desembainhou sua espada Kildare, elevou-a aos céus e gritou:

- Não por glória nossa, mas pela glória de Deus! Não pelo reino da Terra, mas pelo Reino do Céu!

Levantamo-nos, erguemos nossas espadas e fizemos o mesmo, o que foi acompanhado pelo ancião, que ergueu aos céus seu rústico cajado. E nossos gritos ecoaram e viajaram como o som das gaitas de fole, para longe, carregados pelos ventos gelados da Escócia.

 

                               DEIXANDO OS VENTOS GELADOS

No ano de Nosso Senhor de 1147, Angus MacLachlan partiu da Escócia o rumou com seus irmãos e compatriotas em direção à Terra Santa.

Bertoldo, o Abutre, começou a subir a duna mais alta. As pernas curtas pediam um esforço dobrado. Ofegava à medida que subia e o coração batia acelerado. Chegando ao topo, enterrou o corpo na areia escaldante, limpou o suor da testa e aguçou o olhar para a entrada do desfiladeiro.

O silêncio era absoluto a não ser por sua respiração. Esperou que se acalmasse. O pequeno genovês aprendera a duras penas que a cada homem a Providência divina concedia uma virtude ou, o diabo, um vício, do qual tirar proveito para se acomodar na vida. Ele nunca passara de um guerreiro medíocre, sem precisão regular com um arco e sem força suficiente para rodar uma espada e decepar membros e cabeças. Mas estava ali, no cimo da duna, como um condestável com poder para determinar o momento em que um grupo de homens atacaria e, um outro, seria trucidado.

O que lhe valera na vida fora o seu dom de enxergar longe e sua habilidade em nunca se deixar enganar pelos efeitos de miragens. Agora já não tinha que se expor à morte como os companheiros, todos vivendo ou morrendo às ordens do mestre Girolamo Campanella.

Era ele quem primeiro enxergava o inimigo, quem calculava o seu número. Eram suas informações que estabeleciam a tática para o ataque. Depois da batalha, tinha permissão para percorrer o campo e oferecer o golpe final a qualquer inimigo que relutasse em morrer. Por esta função foi que lhe deram o apelido de Abutre. Bertoldo não ligava. Era o preço que pagava pela vantagem de um saque lucrativo. Usava uma adaga para o serviço com a mesma destreza com que ia enfiando na bolsa moedas ou mesmo alguma jóia que a morte desapropriava.

Sabia o que procurar no horizonte. O inimigo já fora avistado e examinado por espiões à beira do último oásis. Desta vez não haveria o alvo das cruzes vermelhas de cavaleiros cristãos, nem o brilho das cimitarras denunciando a presença de mouros. Era uma gente estrangeira ao lugar, liderada por um gigante ruivo. Alguns a cavalo, outros deixando as marcas dos pés na poeira dos caminhos. Todos armados, o que podia significar que guardavam mais do que o próprio corpo. O mais importante eram as duas carroças na retaguarda. Recomendara mestre Girolamo que as queria sem danos nas rodas ou no seu recheio. Tanto podia tratar-se de um grupo de cavaleiros peregrinos como de mercadores e, neste último caso, vinham com a intenção de usurpar uma rota comercial que não lhes pertencia. Só havia uma maneira de saber, e ele, Bertoldo, estava ali para dar o sinal assim que homens e animais se metessem pela garganta do desfiladeiro.

O inimigo surgiu entre ondas de calor. Já não progredia num grupo compacto como aquele que havia chegado ao oásis. Dos que iam montados, muitos haviam apeado e puxavam as montarias pelas rédeas, querendo poupar os cavalos, misturando-se aos que caminhavam. Bertoldo observava e, à medida que se aproximavam, sua boca seca ia se espichando num sorriso. Sabia que aquele grupo, malgrado estar todo ele armado, desconhecia ainda que uma marcha sob o sol escaldante do Oriente afrouxava os passos e as vontades, fazendo cada homem vaguear sem defesas para o seu destino.

Um silvo curto saiu dos seus lábios. Outro respondeu à distância. O inimigo fora avistado. O grupo avançava lentamente. Um duplo silvo devia enviar os arqueiros para o alto das dunas, mas Bertoldo hesitava, os olhos fixos no gigante ruivo. Ele parecia deixar-se conduzir pelo cavalo, a cabeça pendendo sobre o peito. Outros diriam mesmo que adoecera. Mas Bertoldo não se deixou enganar. Viu a mão direita que não abandonava o punho da espada e a esquerda que não afrouxava as rédeas da montaria. O gigante não dorme nem vagueia, Bertoldo murmurou para si próprio.

Antes de chegarem ao desfiladeiro, obedecendo a um sinal do chefe, os homens estancaram. Um cavaleiro que estava na retaguarda galopou para frente. Agora olhavam o desfiladeiro com desconfiança e argumentavam entre si. Bertoldo esperou sem acreditar que um grupo tão cansado e desgastado pela viagem se propusesse a contornar as dunas. No desfiladeiro havia zonas de sombra. O gigante hesitava. Por duas vezes alçou-se na montaria voltando o rosto para os homens na retaguarda. Via aquilo que Bertoldo já enxergara do alto. Ele arrastava atrás de si um grupo de homens exaustos. O cavaleiro ao seu lado tocou seu ombro de maneira amigável como se fora para lhe mostrar apoio num momento de difícil decisão. Então, o gigante fez novo sinal e o grupo avançou a passo lento na direção do desfiladeiro.

O Abutre lançou dois silvos curtos no ar. Os arqueiros começaram a subir as dunas. Homens a cavalo esperavam um terceiro sinal, divididos em dois grupos. O primeiro fecharia a saída, e o outro avançaria antes que as carroças lá entrassem, separando-as da retaguarda.

Quando a maior parte da coluna já se enfiara pelo desfiladeiro, o gigante ruivo fez novo sinal pedindo aos seus homens que apressassem o passo. Um bando de pássaros lançou-se ao ar numa súbita revoada, abafando os três silvos curtos que indicavam o momento do ataque. Os arqueiros escolheram seus alvos. As flechas voaram de todo lado acompanhadas por gritos ferozes que desciam das dunas. A boca do inferno se abrira. O gigante sacou a espada.

- Protejam-se! Para as escarpas! - ele gritou, e sua voz ecoou por todo o desfiladeiro calando as vozes infernais.

Os homens que ainda estavam em pé, atônitos, como se acordassem em novo pesadelo, olharam em volta, segundos antes de se lançarem para trás das rochas.

Na boca do desfiladeiro, enquanto durava a chuva de flechas, homens pularam de seus cavalos para as carroças e degolaram os seus condutores. Novos cocheiros atiraram os corpos para o chão e se afastaram com o saque, dando passagem aos que deviam investir contra a retaguarda. Os poucos arqueiros que se haviam refugiado entre as rochas dispararam, mirando abaixo dos escudos, As flechas que se cravaram nas coxas e nas pernas dos assaltantes não os faziam cair.

- Os cavalos! Acertem os cavalos! - gritou um dos arqueiros. Era tarde. Sem tempo para alcançar uma outra flecha, eles sacaram as espadas e se juntaram à luta dos companheiros. Cercados por homens a cavalo, tinham que escolher entre se abrigar das espadas com os escudos, ou revidar os golpes que desciam sobre as suas cabeças. O impacto lançava-os de joelhos na areia, à mercê dos golpes mortais.

O gigante ruivo cavalgara por duas vezes naquela direção para ajudar seus homens. Sua espada destroçava os escudos antes de atravessar os corpos. Os homens recobravam fôlego e do desespero brotavam gritos de guerra:

- Por Deus! Pela Escócia! Por Angus! - exclamavam, mesmo quando as areias já bebiam o sangue das suas feridas.

O inimigo se multiplicara à frente. O gigante lançou-se a galope, misturando-se aos que pelejavam a cavalo. Sua espada rodava assobiando no ar. Encontrava o inimigo onde quer que golpeasse. Deu-se conta de que eram em número suficiente para isolar cada um dos seus cavaleiros, intrometendo os cavalos para separá-los e atacando-os por todos os lados.

- MacAedan! - ele gritou, correndo os olhos pelos que lutavam. Este segundo de distração quase lhe valeu uma primeira estocada. Ele sentiu uma lâmina rasgar o couro da sela no seu flanco direito. Seu cavalo, treinado para manobras rápidas, recuou para logo depois saltar à frente do inimigo que recebeu o revide na garganta. O sangue espirrou no rosto do gigante.

- MacAedan! - ele voltou a gritar. Então viu o companheiro receber o golpe pelas costas enquanto uma lança feria seu cavalo. Ambos tombaram para frente. O gigante ainda tentou erguê-lo, dobrando-se sobre sua sela e puxando-o pelo braço, mas o outro não esboçou mais do que um olhar em sua direção, a cabeça estranhamente torcida e o corpo imóvel.

- Por MacAedan! - o gigante gritou, tomado pela fúria, logo que avistou aquele que abatera seu amigo. O ódio brilhou em seus olhos e percorreu seu corpo como um relâmpago. A visão do seu rosto, feroz, coberto de sangue e prometendo morte sem piedade, fez recuar o inimigo. Acovardado, ele puxou as rédeas e galopou para a saída do desfiladeiro. Decepando cabeças e braços de quem surgia entre ele e a sua presa, o gigante ruivo lançou-se em seu encalço.

Os arqueiros haviam abandonado o alto das dunas e somente o Abutre deslizava o olhar sobre os acontecimentos. Viu quando perseguido e perseguidor deixaram o desfiladeiro. Calou-se. Mais tarde iria à procura de quem tombara e faria o seu serviço.

 

As areias abafaram o som das patas dos cavalos. A distância entre eles diminuía. O corcel do gigante incorporara o seu ódio. Nenhum dos dois ouvia mais os sons da batalha. Nem uma vez o fugitivo voltou a cabeça para medir a distância entre ele e o gigante. Não era necessário. Podia senti-lo chegar como uma tempestade que se avolumava às suas costas.

Agora cavalgavam em terreno pedregoso. O cascalho voava e o som das patas se misturava ao sopro que saía das narinas dilatadas dos animais. De repente, o fugitivo freou a montaria, saltou do cavalo e galgou umas pedras à sua frente para colocar-se em terreno mais alto. Buscava alguma vantagem sobre o inimigo que pudesse minar a sua força.

O gigante ruivo pulou do cavalo. Sentiu que o ódio precipitava os seus movimentos e lutou para manter-se concentrado, pois ignorava a destreza do adversário. Avançou pelas pedras. O fugitivo deu o primeiro golpe quando ainda estava em terreno mais elevado, depois recuou para se livrar do revide. A espada do gigante ruivo assobiou cortando o ar, mas não encontrou o corpo do adversário e se partiu contra uma pedra. O fugitivo hesitou diante do inesperado. Vendo que o gigante se afastava na direção dos cavalos, pensou que o destino invertera os papéis e que era ele agora o perseguidor. Não convinha deixar que o inimigo escapasse. Saltou pelas pedras ao seu encontro, usando ambas as mãos para empunhar a espada, na intenção de um golpe poderoso e mortal. Entretanto, o gigante chegara ao seu cavalo. Ele arrancou o machado de uma bainha na sela. Voltando-se para o seu agressor, aparou o golpe. Era tarde demais quando o outro compreendeu que, enquanto durasse o ódio nos olhos do gigante, nenhuma força deste mundo seria capaz de detê-lo.

- Por MacAedan! - ouviu o gigante murmurar entre dentes, antes que o machado tocasse a sua testa e dividisse a sua cabeça em duas metades iguais. Seus joelhos cederam e ele caiu para frente com o machado cravado até o pescoço.

O gigante ruivo apanhou a espada do adversário e colocou-a na sua própria bainha. Depois, rolou o cadáver com o pé e recuperou o seu machado. Voltou a montar. Sentia que aquela morte não era pagamento justo para a perda do seu amigo. Compreendeu que a vingança era um dever de honra que não chegava para esvaziar todo o ódio e a amargura que podiam caber no coração de um homem.

O cavalo esperava que lhe fosse indicada uma direção, mas ele não sabia para onde fugir ao peso das suas perdas. Todos os seus companheiros haviam sido massacrados e ele levava os fantasmas em sua garupa.

Olhou para a luz inclemente nos céus e desejou que Deus tomasse as rédeas de suas mãos. Porém, na vastidão ao seu redor, tudo estava imóvel e Deus ausente. Sustentado pelo alento do seu ódio, pressionou os calcanhares nos flancos do animal, deixando que seguisse em frente.

 

Assávamos como pães, na fornalha do deserto. Enquanto as areias sedentas suplicavam sua cota de sangue, esperávamos que os céus nos olhassem com misericórdia. Naqueles dias do ano de graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1147, eu liderava uma tropa de sessenta irmãos. Galopávamos em direção a um vilarejo na rota dos peregrinos. Notícias davam conta de que estavam sendo atacados por um grupo cristão. Sabíamos tratar-se de aventureiros sem fé e escravos da cobiça, alimentada por relatos sobre as riquezas nos reinos do Oriente. Somavam aos seus delitos, outros igualmente graves, tanto contra peregrinos como contra a gente que os acolhia. Ao roubo, acrescentavam os crimes de violação e de estupro. Destes, nada lucravam, a não ser o fato de que, agindo dessa maneira, podiam dar vazão aos seus instintos mais torpes. Assim, acorríamos aos chamados de socorro, sendo missão primária da nossa Ordem militar lutar em prol dos injustiçados contra tais gentes.

Aos nossos olhos, não se tratando de infiéis, aquele falso testemunho constituía o pior dos pecados, pois não queríamos, nós próprios, ganhar fama de ladrões e estupradores, nós que caminhávamos por este mundo sob a cruz de Nosso Senhor. Parecia-me imperativo corrigir tais ignomínias e combater esses verdadeiros infiéis com o mesmo vigor que usávamos para enfrentar as potências muçulmanas.

Naquele dia, estávamos na região de Shaizar, situada nos limites do Império de Bizâncio. Aproximando-nos do vilarejo, cruzávamos já com os que fugiam assustados, tomados pelo desespero e correndo sem destino.

O jovem Gilbert du Bois, um cavaleiro da Ordem, sempre ansiando por demonstrar seu zelo em professar a fé como em se engajar numa batalha, alertou-me para a fumaça que saía por detrás de um rochedo, à direita do nosso caminho, assegurando-me que ali estava o inimigo. Pedi que refreasse o seu cavalo, pois a melhor tática seria a de um cerco bem ordenado. Assim, estabeleci as nossas posições e ordenei o ataque.

A visão do vilarejo arrasado aumentou o nosso ímpeto. O primeiro contato com os inimigos certificou-me de que eram normandos, reunidos em grande número e comandados pelo barão Henzen, cuja terrível fama já se espalhara por outras regiões. Transformara o vilarejo num acampamento. No momento em que lá chegamos, rodeado por sua guarda, ele assistia a uma forma cruel de execução. Quando deparamos com o espetáculo que havia preparado, por instantes sofreamos os cavalos tentando compreender o que se passava. Ele mandara amarrar em estacas os homens que ainda viviam e incitava os seus normandos munidos de lança, a atingir as cabeças a partir de uma linha demarcada no chão. Adiante, vimos mulheres escolhidas entre as mais jovens, chorando pelos seus parentes, enquanto assistiam às mortes e esperavam sorte igual ou ainda pior. A repulsa que senti diante daquele espetáculo organizado por gente de uma nação cristã levou-me a gritar aos meus homens: "Mostremos a eles como as areias preferem o sangue dos covardes!”.

 

O momento de surpresa pouco durou, e seu efeito foi de pouca valia. Os homens do barão Henzen estavam alerta e armados. Engajamo-nos numa luta feroz. Mas aquela haveria de ser uma batalha diferente das que lutara até então. Fomos todos surpreendidos por uma aparição misteriosa.

De repente, das colinas acima do vilarejo, para onde nos empurrara o combate, vimos surgir um cavaleiro a pleno galope. Descia como um anjo vingador. Comandava sua montaria com os joelhos enquanto uma das mãos brandia a espada e, a outra, empunhava um machado de lâmina dupla. Com todo o ímpeto que lhe permitiu o seu cavalo, avançou contra os normandos. Seus movimentos tinham uma rapidez fora do comum, como se as armas não lhe pesassem nem quando as brandia nem quando desferia seus golpes mortais.

O barão Henzen havia ordenado uma formação em cunha. Mesmo sendo apenas um, o estranho cavaleiro avançou com fúria crescente. Nesse momento, os nossos empurravam os inimigos para fora do vilarejo. O guerreiro desconhecido lançou-se sobre o grupo da guarda que protegia o barão. Eu não podia atinar com o que o levava àquela fúria nem que diferença podia ter com os normandos. Ele não parava, nem um momento que fosse, para recuperar o fôlego. Vi-o matar o capitão da guarda cujo elmo voou com uma parte da sua cabeça. Logo, outros três foram prostrados, e não sei que arma despachou cada um deles, pois o desconhecido alternava o uso da espada e do machado com igual maestria e efeito. A visão daquela esplêndida figura levava-me a compreender como surgiam as lendas que transformavam homens comuns em guerreiros míticos.

O barão também se apercebera daquele campeão que massacrava os seus homens. Vendo-se ameaçado de perto, pôs-se a gritar: "Lutem como leões, não como cães!"

De nossa parte, avançávamos para romper o cerco, pois da formação em cunha haviam passado à da meia-lua, tentando sustentar a sua posição e exortados a resistir pelo seu líder. Combatíamos com ardor contra uma canalha sem fé e fazíamos boa morte em nome de Cristo, pois, como afirmava o santo Bernardo de Claraval a todos os cruzados, "matávamos e morríamos bem em nome do Senhor”. Naquela hora eu me perguntava em nome de quem lutaria aquele estranho guerreiro ao nosso lado. Sozinho, ele semeava o chão de membros decepados, saltando sobre os cadáveres para chegar ao barão.

"Será que eu mesmo terei que matá-Io”?; gritava o verme, pois com seus atos renegava ter nascido homem. Ele tomou a lança da mão de um dos seus guardas e correu na direção daquele anjo vingador que continuava a ceifar seus homens. Mas no ardor da luta, o guerreiro acabou por abandonar a espada num ventre e deixar o machado encravado no peito do último soldado da guarda.

Ouvi o jovem Du Bois, ao meu lado: "O guerreiro está desarmado! O cão vai matá-Io!". Eu me apercebera da situação e jurei a mim próprio: "Ele não há de morrer!”. Gritei: "Cavaleiro!”. Minha espada descreveu um círculo luminoso no ar. O barão já desferia o primeiro golpe de lança nas suas costelas quando a espada chegou à sua mão. Ele a apanhou no ar de forma admirável, e espada e guerreiro soldaram-se num único ser. Mesmo ferido e deixando um rastro de sangue, ele se atirou contra o cão normando. Porém, não pôde evitar que a lança lhe abrisse um corte à altura do peito.

 

Então, assistimos atônitos a um desfecho memorável. Na sua terceira investida, o barão confiou demais na fraqueza do adversário que ferira por duas vezes, e desprezou a vantagem da distância que a lança lhe dava em relação à espada mais curta. Aproximou-se demasiado. O guerreiro esquivou-se e revidou, golpeando-o no ombro com quanta força lhe restava. A lâmina cortou a carne e separou os ossos chegando à espinha. Garantiu-me o jovem Du Bois que a ouvira estalar como um galho seco.

Ferido e exausto, o guerreiro cambaleou, tentou encontrar apoio num rochedo, mas seu corpo deslizou para o chão. Naquele momento os normandos depunham as armas, e outros, feridos, arrastavam-se a nossos pés implorando misericórdia.

O corpo do guerreiro estava estendido no chão ao pé do rochedo. Meus homens efetuavam as capturas, libertavam a gente do vilarejo e dispensavam a caridade aos necessitados. Eu permanecia ainda imóvel, envolto numa estranha sensação de serenidade, que não tinha a ver apenas com a experiência de alívio que experimentava quando a batalha tinha um, desfecho favorável.

A luz incidindo sobre o rochedo dava-lhe um brilho azulado e talvez a reverberação do calor fosse responsável por uma névoa que pairava suspensa sobre ele. As vozes dos homens e os sons da natureza se distanciaram dos meus ouvidos. Então eu tive a nítida visão de um leão, majestoso em tamanho e forma, acomodado sobre a pedra, a cabeça erguida e a pata direita, expondo as garras, agarrada ao rochedo como se guardasse o corpo do guerreiro. Não sei bem quanto tempo durou esta visão.

Peguei pelo braço um dos meus cavaleiros que passava, apontei-lhe o rochedo e perguntei: "Vê o animal ali no alto?': Ele olhou na direção que minha mão indicava e respondeu: "Não há nada no rochedo, mestre!”: Compreendi que ninguém mais testemunhara o fato.

Um homem guardado por um leão... Que sinal seria aquele e que enigma envolveria?

Considerei a visão um aviso dos céus que certamente protegiam aquele guerreiro, e compreendi também ser minha a obrigação de cuidar que não morresse. Ele estava inconsciente e seus ferimentos eram graves. Muitos dos nossos também estavam feridos e era prudente não tardar em procurar quem nos pudesse acolher e dispensar cuidados aos que necessitavam. Depois de enterrar os mortos, mesmo aqueles que não eram dos nossos, como mandava a caridade, ajoelhamo-nos e rezamos por suas almas irmanadas no seio do Pai.

Acomodamos o guerreiro com os outros feridos numa carroça e tomamos de imediato o caminho para o abrigo mais próximo, a fortaleza de Hosn-el-Akrad, o krac dos cavaleiros da Ordem Hospitalar de São João de Jerusalém.

 

                                       CRUZES VERMELHAS

A reluzente fortaleza erguia-se à frente. Debilitado pelos ferimentos, o guerreiro vagava no reino de semi-consciência e o mundo parecia-lhe construído com a matéria dos sonhos. Viajava entre os outros feridos, acomodado na palha. A cada balanço da carroça, alguém chamava por Deus e pelos santos. À frente cavalgavam os cavaleiros vestidos de branco, ao lado dos quais ele lutara, as longas capas marcadas com cruzes vermelhas. Pareciam seres alados, deixando aparecer o brilho das armaduras por baixo das asas.

O vento soprava levantando areia e uma nuvem envolvia a fortaleza. Vez por outra, surgia a brancura das muralhas. O guerreiro teve a impressão de que ela era tão alta quanto as montanhas da sua terra. Porém, dali se enxergava a vastidão desabitada e escaldante, em vez do mar gelado que banhava a nação escocesa.

O espectro branco fora plantado no seio do deserto. Teria nascido do desejo humano de atingir os céus colocando pedra sobre pedra. Aves pairavam ao redor das torres, tentando compreender aquelas árvores tão retas e monótonas. Estandartes negros fincados nos extremos rezavam seu credo ao vento. Àquela hora, o sol ainda aquecia o chão que devolvia o calor com juros.

Um barulho surdo tomou a planície e, na mente do guerreiro, ondas batiam contra os rochedos de uma costa distante. Mas o som desse trovão era o tropel de cavaleiros que vinham para conduzir o grupo à segurança.

Chegando à entrada da muralha, desmontaram e ajoelharam-se para agradecer aos céus, antes de entrar. Um ancião saiu e saudou o mestre templário com um abraço efusivo:

- Que a paz esteja consigo, mestre Everard, e com todos os que cavalgam em sua companhia!

- Encontraremos paz dentro dessas muralhas, irmão, e certamente alívio para os feridos, que são muitos.

- O barão Henzen? - ele perguntou.

- O braço de Deus fez justiça - assegurou-lhe o mestre.

- Gostaria de ouvir como tudo aconteceu, mas para isto teremos tempo. Agora há que socorrer os seus homens.

- Trago-lhe um guerreiro muito ferido que não é dos nossos revelou Everard.     

- Um prisioneiro? - perguntou o Grão-Mestre.

- Um mistério! - ele respondeu, acrescentando: - Creio não exagerar quando digo que foi sua intervenção que decidiu a batalha a nosso favor.

Encaminharam-se juntos para a carroça. O mestre apontou o guerreiro com as roupas encharcadas de sangue:

            - É um nórdico! - comentou o Grão-Mestre.

            - Logo saberemos quem é e de onde veio, se a habilidade dos irmãos conseguir arrancá-Io da agonia e da morte. Espero muito que seja salvo para que possa me dar a resposta a um enigma

            - Um enigma? - perguntou o Superior.

            - E muito intrigante. Prometo explicar-lhe do que se trata, caso o guerreiro viva.

- Faremos tudo ao nosso alcance, mestre Everard. Se a nossa arte não for o suficiente, pediremos às mãos divinas que façam o resto - disse o ancião, traçando o sinal da cruz sobre o corpo no fundo da carroça.

Os feridos foram sendo retirados e levados para o interior. Muitos braços sustentaram o corpo do guerreiro, seguindo as recomendações de Bernard de Charenton, o Grão-Mestre daquela fortaleza.

No interior, percorreram imensos corredores de um branco mais puro do que o das muralhas. Cruzes vermelhas, iguais às traçadas no peito e nas capas dos templários, marcavam algumas paredes. Cada cruz de sangue falava pelo sacrifício de algum cavaleiro em defesa da fé. A dor do crucificado também ardia no peito dos feridos. Estes sinais fortaleceram o ânimo do guerreiro, lembrando-lhe o significado real de ser um cruzado. Pensou que Deus talvez o quisesse poupar para o seu serviço. Mas, logo a seguir, deparou com outras bandeiras pendendo do teto, panos negros cortados por cruzes brancas e a idéia da morte rondou o seu espírito. Via-se morrer...

Sentiu medo, medo de que sua vida fosse interrompida quando havia tanto a fazer e a cumprir. Ainda não vivera o suficiente para ser recebido pelas mãos titânicas de anjos, como sempre imaginara. Aquele desenlace era uma esperança dormindo em cada alma, um desfecho espiritual que devia animar o homem nas suas tarefas de servo, de senhor ou de guerreiro. Na sua própria alma, o sonho final ultrapassava as mais loucas ambições terrenas.

Trouxeram-lhe água, mas não deixaram que bebesse mais do que uns poucos goles. Sua sede era lancinante. Foi colocado sobre uma mesa e os irmãos hospitalários retiraram sua cota de malha. Trapos da camisa se afundavam nas feridas. Ele continuava a se esvair em sangue.

O Grão-Mestre, que assistia a tudo, deixou o recinto e voltou, pouco depois, acompanhado de três outros monges, tão idosos quanto ele.

 

Os anciãos lavaram o corpo do guerreiro e beijaram seus pés, cumprindo o ritual de humildade que dispensavam tanto a reis e a cavaleiros como ao menor dos servos. Em seguida, limparam e costuraram as feridas, sem trocar palavras entre si.

O Grão-Mestre se afastara para um canto próximo. Seus lábios murmuravam Salmos. Ele pedia a Deus misericórdia para a alma do guerreiro enquanto os três monges cuidavam do seu corpo. Mas nem as orações, nem os cuidados foram suficientes para estancar o sangue.

O Grão-Mestre voltou a se aproximar e ordenou que fossem chamar outros irmãos. Ainda uma vez o guerreiro foi levado através do labirinto de corredores brancos. O caminho parecia não ter fim e o chão ia sendo marcado por gotas de sangue.

Desceram longas escadarias e entraram num corredor estreito. Os monges diminuíram o passo e pararam diante de uma porta de bronze. Àquela hora, a luz que vazava pelas seteiras na passagem não era suficiente para deixar ver mais que o contorno das coisas. O guerreiro não sabia se as suas dores seriam maiores que a sua sede, ou que limite haveria para ambas.

Dois cavaleiros de guarda abriram a porta ao Grão-Mestre e ele entrou sozinho, num passo medido, como se caminhasse para o mais santo dos lugares.

Em seu delírio, o guerreiro foi consumido pela luz que explodiu de dentro da câmara. Seus olhos custaram a aceitar uma claridade tão intensa. Enquanto permanecia ali banhado de luz e sustentado pelos monges, o tempo correu como um rio debaixo dos seus pés. Ouviu os sinos de São Patrício e São Columba que tocavam na igreja da sua aldeia chamando os fiéis. Pelos portões, uma procissão vinha ao seu encontro, da mesma forma como lhe chegava a luz que jorrava da câmara. Seu avô Sean, derrubado em combate no Oriente muito antes do seu nascimento, sua avó e muitos dos seus ancestrais caminhavam carregando o estandarte da nação escocesa.

De repente, o Grão-Mestre saiu da pequena igreja para juntar-se a eles. O guerreiro já não distinguia em qual mundo se encontrava. Viu quando São Patrício passou uma espada magnífica às mãos de São Columba, marcadas pelo tempo e pelo ascetismo. Outra explosão de luz consumiu a sua visão e ele voltou à realidade da fortaleza.

Os monges levaram-no para dentro da câmara. Havia muitos cavaleiros no recinto. A maioria usava o hábito preto e branco. A eles se misturava o grupo formado pelos seres alados.

A câmara abria-se para o salão de uma caverna e dali saíam túneis escavados por antigos rios subterrâneos. Uma grande quantidade de tochas iluminava a parede onde se erguia um gigantesco leão esculpido na pedra. Era de enormes proporções, parecendo conter em si a força e o mistério do deserto.

O guerreiro nunca havia se deparado com uma fera viva como aquela. Viu a sua juba incendiar-se à sua frente e o ouviu rugir. Sentiu o fogo do seu poder passar através do seu corpo. Conseguiu erguer a cabeça, de repente, consciente de tudo e de todos. Tentava inutilmente fixar a imagem gigantesca. A luz parecia sair da sua boca.

 

A um sinal do Grão-Mestre, os irmãos aproximaram o guerreiro. Dos olhos do animal, raios de prata chegavam aos seus. Ele percebeu que o objeto que chamejava entre suas presas era uma espada, e o animal, seu místico guardião. Pareceu-lhe tão maravilhosa quanto imaginava que seria Gaoth Cerridwen, aquela espada que seus ancestrais haviam possuído, e sobre a qual ele ouvira contar.

O Grão-Mestre retirou a espada e a ergueu. Um sopro gélido se desprendeu da lâmina azul. Atrás do Grão-Mestre o leão de pedra voltou a rugir, e seu fogo se misturou à gelidez metálica que emanava da espada. Uma névoa formou-se ante os olhos do guerreiro e ele viu os rostos daqueles que haviam combatido com ela. Giravam,ao seu redor estendendo a mão para alcançá-Ia. Também ele estendeu a sua.

O Grão-Mestre baixou a espada, tocando sua testa e sua boca. Nova onda de fogo percorreu seu corpo. As feridas arderam como se tocadas por brasas e o calor do sangue contido pulsou em seu peito. Ele se esforçava para ficar em pé. Os braços que o amparavam mal suportavam sua agitação. Então, o Grão-Mestre ordenou que ele fosse retirado.

Levaram-no a uma cela. Apesar da sua simplicidade, era um milagre no deserto. Havia um catre encostado à parede com colchão de palha macia, uma mesa que recebia luz da seteira, um banco e três ganchos na parede oposta. Uma candeia de azeite pendendo do teto e um castiçal com vela sobre a mesa eram suficientes para assegurar a claridade depois do sol posto.

O guerreiro dormiu um sono povoado de imagens confusas, de rostos que nunca vira, mas que podia reconhecer. Uma mulher ruiva tecia a bandeira do seu clã, o padrão axadrezado repetindo-se no pano entre trovões e relâmpagos; um guerreiro nórdico girava no ar o seu machado de lâmina dupla, os cabelos agitados pelo vento; viu um monge, cujos olhos transbordavam paz; duas mulheres guerreiras, ágeis e selvagens, combatiam um gigante, retalhando o seu corpo; dois reis, um saxão e o outro bretão, rezavam juntos diante de suas espadas, cravadas na terra como cruzes improvisadas. Muitas figuras desfilaram pelo seu sonho. Todas elas passavam de mão para mão uma espada igual àquela que ele vira na boca do leão e que tocara o seu rosto. Ele esperava no final de uma longa fila, tomado pelo sentimento de profunda contrição. Finalmente a espada chegou às suas mãos. Ele agarrou-a sem saber o que era esperado dele. Olhou em volta e seu olhar posou num rosto sereno por trás de longas barbas brancas. De repente, como se tivesse vontade própria, a espada deixou suas mãos e tocou seu peito. A dor fez com que gritasse.

Acordou assustado, banhado em suor. Sentiu que suas feridas começavam a fechar e permaneceu longo tempo acordado. Seu pensamento foi tomado de assalto por lembranças das batalhas que travara recentemente. Viu seus homens caírem crivados pelas flechas ou atravessados por lanças; reviu Dunmait MacAedan caído no chão, seu olhar perdido, os olhos injetados num misto de surpresa e pavor, aos poucos apagados pelo véu baço da morte. Um peso enorme pousou em seu peito e lágrimas caíram de seus olhos. Dunmait havia sido mais do que um companheiro. Fora o irmão que ele não tivera. O ânimo que havia recuperado o abandonou. Pensou no consolo da morte, tomado pela sensação de covardia por haver sobrevivido. Com toda a força que lhe restava desejou juntar-se aos seus companheiros, perguntando se não fora a morte que procurara, quando havia investido contra os cavaleiros normandos, na segunda batalha daquele dia.

Imagens dos acontecimentos recentes se multiplicavam em sua cabeça. Ainda fraco, voltou a adormecer e, dessa vez, apenas a escuridão e a misericórdia divina o envolveram.

O guerreiro não sabia bem por quantos dias dormira. Quando a angústia lhe tomava a alma e seu corpo se agitava no leito, um monge fazia com que bebesse goles de uma poção adocicada e ele afundava de volta ao esquecimento. Outros vinham colocar ungüentos em suas feridas.

Uma manhã, acordou sentindo fome. Os hospedeiros ficaram felizes com a sua disposição e aspecto. Foi lavado, alimentado e fizeram-no caminhar pelos corredores. Depois, deixaram-no entregue aos seus pensamentos. As feridas haviam cicatrizado, mas ele ainda sentia o domínio do cansaço sobre sua vontade. Recolhido à cela, voltou a adormecer.

Quando acordou, um monge cavaleiro usando a túnica branca o observava. O guerreiro reconheceu-o como aquele que lhe lançara sua           espada fazendo com que se resolvesse a batalha.

- Bem-vindo à vida, cavaleiro! - ele saudou.

- Uma vida que só me traz memórias amargas, senhor! - disse-lhe o guerreiro.

            Foi advertido com voz branda:

- Estamos na Terra Santa e aqui todas as amarguras devem ser colocadas ao pé da cruz de Cristo. Assim procedem os cruzados e por isso levam o seu sinal.

- Malditos e infelizes! - ele murmurou, remoendo a sua amargura. - Antes tivessem ficado em suas próprias terras! O que vi nesta empreitada não me faz arder em fé, senhor, mas suspeitar dos verdadeiros propósitos de minha missão. Tenho dúvidas quanto às razões que abracei para vir à Terra Santa. Comecei a duvidar vendo homens serem ceifados como trigo e engolidos por este maldito mar de areia. Confesso, agora, que desconheço os reais objetivos desta guerra.

Quando o monge falou, sua voz era imperativa e protetora:

            - Cavaleiro, dê sossego ao seu espírito. Se não é capaz de depor tudo aos pés da cruz, pelo menos tente esquecer aquilo que o atormenta. A divina Providência concedeu-lhe uma extraordinária destreza física que eu próprio testemunhei, e ela lhe dará igual habilidade para ordenar as paixões da alma. Falemos de coisas mais amenas. Gostaria de conhecer seu nome e saber onde fica sua terra.

- Eu sou Angus, do clã MacLachlan, e venho da Escócia - declarou; e acrescentou: - Por minha fé de cavaleiro, não esperava testemunhar tanto horror nesta Terra que é Santa!

Mestre Everard pensou que ele se referisse à crueldade dos normandos, e tratou de tranqüilizá-Io:

- O barão Henzen está morto e prestará contas a Deus. Pelo que realizou conosco e por nós, Angus MacLachlan, a Ordem do Templo sempre falará uma palavra a seu favor diante de Deus e dos homens.

- Pensava nos meus próprios companheiros que tombaram confessou. - Todos mortos num desfiladeiro dos infernos!

- Eram muitos? - perguntou o cavaleiro.

- Quando deixamos a Escócia, éramos quarenta homens. Alguns eu conhecia desde a infância, outros, de outras terras e outros clãs, fui conhecendo ao longo da viagem. As provações do caminho revelam o coração dos homens. Agora, apenas sou prova de que existiram. Uma leva infernal de aberrações derramou o sangue de meus homens! Afirmo que esta tragédia foi tecida por mãos de gente cristã!

O monge ofereceu-lhe sua visão dos fatos, primeiro de um modo severo, mas depois sua voz adquiriu um tom cordial:

- Cavaleiro - disse -, quem os atacou apenas aparentava ser gente cristã, já que não eram muçulmanos. Podiam ser sicilianos, genoveses ou mesmo normandos, como os que combatemos juntos; gente em sua maioria sem nenhuma fé. Foi somente a cobiça que os guiou à Terra Santa. Interessam-se apenas em adquirir, a qualquer preço, riquezas e poder e de assegurar as suas malditas rotas comerciais, sem nunca esboçar um gesto piedoso.

- Então, que as cimitarras nos arranquem as cabeças, senhor, já que consentimos que se cubra de vergonha os santos Evangelhos! Bêbado Ocidente, bárbaro imprudente, que tem levado aos cristãos a

vergonha enquanto colhe os frutos de sua peçonha, transformando em louros, sua sede por ouro; rouba e avilta em todo reino mouro, incriminando com sangue todo seu tesouro. Amplia a dor de Deus e sua paixão, que é o único e verdadeiro rei, e haverá de tomar mão, impedindo o homem de ampliar Sua mortalha e no calor de Sua santa batalha, pois Sua justiça nunca falha, há de julgar os homens severamente pela sua iniqüidade e punirá duramente por toda impiedade, a nossa frágil e pobre humanidade.

- Não posso julgar suas palavras, nem sua atitude cavaleiro, pois tens o fogo da paixão pela justiça de Deus - disse -, e fui testemunha de suas atitudes de cavaleiro e guerreiro. Deixe que eu também me apresente. Meu nome é Everard de Barres, mestre e cavaleiro do Templo. Somos monges e soldados, pobres e sem direito a uma vida devotada à contemplação. Não gozamos de um Paraíso na Terra. Somos rudes guerreiros, combatentes de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nome de quem defendemos os peregrinos, os fiéis e o Templo. Saiba, Angus MacLachlan, que não possuímos penas ou pincéis para copiar ou iluminar, somente a espada para cumprir nossa devoção.

- Sua Ordem, mestre Everard, é por todos conhecida e respeitada, mesmo nas longínquas montanhas altas da Escócia.

- Não procuramos a glória para nós - continuou -, somente para Deus. Não fazemos caso da honra mundana, mas da justiça divina. Segundo o venerável Bernardo de Claraval, nossa missão é abençoada, quando defendemos com nossos corpos a verdadeira fé.

Novamente o guerreiro o desafiou:

- Diga-me, senhor, o que realmente defendemos? É a pergunta que me faço desde que cheguei. Defendemos o Imperador de Bizâncio, o homem mais rico da Terra?

Era opinião corrente que o Imperador dos gregos possuía forças suficientes para sustentar e proteger seu Império e, portanto, a cristandade n Oriente.

O cavaleiro não se deixou abalar:

- Na verdade, defender a cruz é tomar a cruz, cavaleiro... e é isto o que está em questão. Esta missão pode assumir várias vestimentas. Umas são santas, outras mais mundanas. Porém, deixar de proteger os que fazem o caminho para Jerusalém seria uma vergonha para nós, cristãos, e uma demonstração de covardia. Diria mesmo... uma apostasia, tendo em vista os massacres que se repetem e as invasões do Islã.

Angus MacLachlan retrucou com energia:

- O que sofremos, eu e a minha gente, foi da parte de cristãos, senhor. Ainda não conheci a tirania dos mouros e quase não escapo com vida para constatá-Ia.

- Sir Angus, de fato os mouros não são tiranos, em sua maior parte, como não é piedosa a maior parte dos cristãos...

Suas palavras foram interrompidas pela entrada de um cavaleiro dos hospitalários que lhe entregou uma mensagem. Everard de Barres rompeu o lacre e dirigiu-se à seteira por onde entrava a claridade. Franzia o cenho à medida que lia as palavras.

Desculpou-se junto a Angus por ter que adiar aquela conversa e prometeu que voltariam a se encontrar assim que as circunstâncias permitissem.

 

O mestre templário deixou a cela acompanhado do cavaleiro que o levou por corredores e escadarias à parte superior da fortaleza. Ali ficavam os aposentos do Grão-Mestre. Os irmãos encarregados já acendiam as tochas ao longo das paredes. O mestre pensou que naquela parte do mundo a noite caía depressa e sem anúncio.

Entrou num salão amplo já iluminado. O Grão-Mestre estava sentado à mesa e, com ele, um jovem peregrino, a julgar pela capa e o cajado, não possuindo nenhum outro distintivo que pudesse revelar sua identidade.

Quando entrou, o jovem permaneceu sentado, o que o levou a supor que fosse alguém da sua condição.

- Agradeço-lhe por ter vindo com tanta presteza, mestre Everard, - disse o Grão-Mestre Bernard de Charenton.

- A mensagem que recebi fala sobre uma ameaça iminente - disse ele sem tirar os olhos do jovem que permanecia sentado. O superior da fortaleza apresentou-o:

            - Este é o cavaleiro Guy du Pin, oriundo de Chipre e um irmão seu.

            - Conheci Desmond du Pin quando entrei para a Ordem – disse Everard. - Era um homem honrado e destemido, não temendo senão       a Deus, a quem servia com humildade.

            - Era meu Pai, mestre Everard - revelou o jovem.

            - E o que faz o filho de Desmond du Pin, tão longe da casa paterna? - perguntou.

            - Viajo com o disfarce de peregrino cumprindo a missão de que fui incumbido pela Ordem.

            - É um espião da Ordem? - quis saber o cavaleiro, num tom de voz que demonstrava não aprovar aquele procedimento.

- Se assim quiser considerar o que faço, irmão, e se preferir ignorar o número de vidas que são salvas com esta atividade! Ensinou-me meu falecido pai, a quem o senhor diz ter conhecido, que a honra sempre tem por preço a vida, às vezes a nossa própria, às vezes a de outros - disse o rapaz com extrema altivez, levantando-se da sua cadeira.

Depois de um momento de silêncio durante o qual não deixaram de se encarar, o cavaleiro Everard voltou-se para o Grão-Mestre e exclamou:

- Pelos céus, reconheço o filho de Desmond du Pin ou, pelo menos, posso asseverar que o sangue daquele destemido corre em suas veias! A seguir, encaminhou-se para o jovem abraçando-o: - Que a sua vida seja longa e seus feitos sempre honrados, irmão! Mas que terrível ameaça é essa suspensa sobre as nossas cabeças?

Sentaram-se os dois e o Grão-Mestre ofereceu-Ihes vinho tirado de uma ânfora no canto do salão, para que brindassem a presença inesperada daquele irmão, apesar das notícias que trazia. Deixou-o falar:

- Faz algum tempo - contou o jovem -, chegou a Chipre um navio que sofrera danos durante uma tempestade. O capitão foi logo reconhecido como um homem que se vende a qualquer bandeira para todo tipo de empreitada. Vinha de Espanha e trazia consigo um carregamento de espadas, lanças e escudos, além de dois emissários turcos que tentavam passar despercebidos entre os marinheiros. O armamento fora fundido em Toledo, a julgar pela excelência do aço e, embora obedecendo aos desenhos que encontramos com os turcos, era provavelmente obra de artesãos judeus, pois sua arte não encontra rival.

- Descobriram a quem se destinava o carregamento? - perguntou mestre Everard.

- Não descobrimos e nem creio que os turcos o confessariam mesmo sob tortura. Além do mais, se morressem em nossas mãos, jamais saberíamos quem fizera a encomenda e com que propósito. Portanto, o carregamento foi apresado e guardado em nossa fortaleza, e o Capitão, levado com seus homens à masmorra. Quanto aos turcos, foram submetidos a longos interrogatórios e depois libertados...

- Libertados? - perguntou mestre Everard com surpresa.

- Sim, libertados, mas para logo serem embarcados num navio de peregrinos. Fui designado para segui-Ios e assim procedo desde o momento que o navio aportou à Terra Santa. Aquilo que conseguisse observar, deveria relatar ao superior dos hospitalários em Jerusalém. Posso agora dizer-Ihes que as armas que apreendemos pouca diferença farão para o exército turco que foi reunido com a intenção de promover um grande ataque contra esta fortaleza. Achei aconselhável trazer a notícia ao Grão-Mestre antes de levá-Ia a Jerusalém. Quis o bom Deus que o encontrasse aqui com seus cavaleiros, mestre Everard.

- Agiu com acerto, irmão - ele disse, para depois perguntar: Teria idéia de quanto tempo teremos para organizar nossa defesa?

- A julgar pela região onde ainda se encontram e a quantidade de homens que mobilizam, eu diria que o ataque não acontecerá antes da lua crescente.

- Duas semanas, quando muito! - murmurou o Grão-Mestre. - Ao raiar do dia, enviarei mensageiros às nossas fortalezas vizinhas - disse Everard. - Pode ser que o número de cavaleiros não seja maior do que o número de combatentes turcos, mas devemos apostar na habilidade dos nossos...

- ...e num favorecimento dos céus - completou Bernard de Charanton.

- Amém! - pronunciou Everard.

Um irmão acorreu ao chamado do Grão-Mestre para conduzir o jovem Ou Pin ao refeitório e depois à cela que lhe fora designada.

Quando ficaram sozinhos o Grão-Mestre comentou:

- Enfrentar um exército tão grande será tarefa difícil. Precisaremos de todos os cavaleiros de que possamos dispor.

- Os irmãos cuidaram tão bem dos meus homens feridos que posso garantir estarem outra vez em condição de empunhar a espada, salvo um companheiro que teve sua perna amputada, outro, o braço direito e, um terceiro, ferido na cabeça, que perdeu parte da visão e o dom da fala.

- Mandarei pintar uma cruz para cada um deles e seus nomes serão inscritos no livro de nossa Ordem com a descrição dos seus feitos. De resto, só Deus pode agora aliviar suas penas.

Everard calara-se. Pensava na probabilidade dele próprio, um dia, só encontrar em Deus o consolo das suas penas. Começava a sentir-se cansado de batalhas e de matanças. O Grão-Mestre fê-lo sair dos seus pensamentos:

            - Diga-me, irmão Everard, como está se recuperando o seu guerreiro misterioso?

            Chama-se Angus MacLachlan, é um escocês e, segundo pude entender, líder do seu clã. Vinha acompanhado de quarenta conterrâneos quando foram atacados de surpresa num desfiladeiro a meio dia de marcha daqui.

- Conheço o lugar! - disse Bernard de Charenton com um longo suspiro. - Faz poucos dias, alguns dos nossos tiveram que cruzar aquele caminho e depararam com os restos do massacre pouco depois que aconteceu. Deram sepultura aos corpos como manda a caridade. É por esse desfiladeiro que passam as caravanas dos comerciantes genoveses e as dos sicilianos. Tudo depende do entendimento entre os chefes. Por vezes, fazem a mesma rota, ou parte dela, mas cada pedaço de caminho tem seu dono e seu preço.

- Angus MacLachlan pagou um alto preço - comentou Everard -, e é possível que ainda esteja a pagar.

            - O que quer dizer? - perguntou o Grão-Mestre.

- O ódio, a revolta e agora as dúvidas... Todos estes sentimentos incendeiam a sua alma e ameaçam o seu zelo pelas coisas de Deus. Eu posso compreender. Ele veio para ser um cruzado e se deparou com uma realidade que ameaça demolir este ideal.

- Também nós, temos que lutar contra o mesmo mal! - exclamou o Superior, dizendo a seguir: - Deixe que lhe faça uma pergunta, mestre Everard. A que enigma se referia no dia da sua chegada? Prometeu revelá-Io, assim que o guerreiro se recuperasse. Talvez seja esta a hora.

            - Uma boa hora - concordou mestre Everard. - Posso lhe contar o enigma, mas não a sua solução, pois eu próprio não a encontrei    ainda. Tive uma visão...

            - Aqui na fortaleza? - perguntou o superior.

- Não aqui, mas lá no vilarejo quando a batalha foi decidida. O barão estava morto e Angus MacLachlan ferido. Ele tombara ao pé de um rochedo. Havia muita confusão ao redor, mas eu vi... - mestre Everard parou para escolher melhor as palavras. Bernard de Charenton se impacientou:

- Viu o quê, homem?

- Vi um leão sobre o rochedo, guardando o guerreiro - ele revelou. - - - Um leão? - perguntou o superior.

- Sim, um animal magnífico, com a cabeça erguida e a juba resplandecente. Poderia jurar que o leão de pedra tomara vida.

- Viu a espada? - o outro perguntou.

- Não havia espada entre as suas presas. De resto, apenas eu tive esta visão. Perguntei a um companheiro que passava se ele conseguia ver alguma coisa sobre o rochedo e ele negou que houvesse algo ali.

            Os dois se calaram, ruminando o enigma. Foi o Grão-Mestre quem rompeu o silêncio:

            - A visão que teve não nos leva a nenhuma conclusão ligando esse guerreiro à espada. Não posso agir com precipitação.

            - Ele é um homem fora do comum - disse Everard. - Devia tê-Io visto lutar.

- Durante a minha vida tenho me deparado com guerreiros extraordinários - disse o Grão-Mestre -, mas cuja força e destreza não foi duradoura, porque resultavam de um momento de fúria e desespero. Angus MacLachlan é um homem cheio de ódio, como você próprio me diz. Não sabemos o que na verdade move o seu coração. Convinha colocá-Io à prova.

A idéia não agradou a mestre Everard. Perguntou: - Que tipo de prova?

- Vamos ver se esse guerreiro, com poder nas mãos, se deixa levar apenas pelo ódio ou é capaz de ultrapassá-lo. Amanhã, ele ficará face a face com alguém que contribuiu para a sua tribulação mas, dessa vez, longe do campo de batalha. Poderá matar ou usar de misericórdia, entregando a justiça às mãos de Deus.

            - De que maneira espera realizar esta prova? - perguntou o templário.

-           Amanhã saberá, irmão - disse o Grão-Mestre. - Deixe que por esta noite eu guarde segredo.

Mestre Everard assentiu com a cabeça, mas sem lhe parecer que a prova fosse necessária. Ele saiu para escolher os mensageiros que deveriam alertar as fortalezas mais próximas e chamar os cavaleiros. Partiriam ao amanhecer.

 

A manhã ainda não raiava em todo o seu esplendor e Angus MacLachlan, do passadiço na muralha, olhava o movimento de cavaleiros que partiam em várias direções. O ar mais puro e fresco àquela hora revigorava seu corpo e espírito. Sentiu vontade de estar entre aqueles que partiam. Pensou no seu cavalo ágil e bem treinado do qual não sabia o destino. Continuou ali com os olhos presos na vastidão, mesmo quando os cavaleiros já haviam desaparecido no horizonte.

Voltou-se quando ouviu vozes no passadiço. Reconheceu o mestre Everard que vinha acompanhado de outro cavaleiro, um ancião de túnica negra. Pareceu-lhe que já o vira antes, mas não podia lembrar em que circunstâncias. O templário apresentou-o como o Grão-Mestre naquela fortaleza. Bernard de Charenton cumprimentou o guerreIro:

- Alegro-me em ver que está recuperado, Angus MacLachlan!

- Graças aos cuidados que tenho recebido desde que cheguei aqui e pelos quais sou devedor - disse ele.

O Grão-Mestre falou com serenidade:

- Soube do seu infortúnio e do lugar onde foram mortos os seus conterrâneos. Alguns dos nossos irmãos passaram pelo local e, mesmo ignorando o que sucedera, deram aos corpos um funeral cristão. Esta foi a vontade do Pai que nunca os abandonou e que agora os acolhe em sua infinita misericórdia.

            - Amém! - exclamou o cavaleiro, sentindo o peso da amargura retomar seu espírito. Ele confessou:

- Não consigo afastar de mim a visão dos meus homens sangrando enquanto eu me sentia impotente para salvá-Ios. Não há pior sentimento do que sentir-se desesperado, frágil e impotente...

O Grão-Mestre ponderou:

- É o deserto que aumenta o desespero, meu filho, revelando a nossa insignificância, sem nenhuma piedade. Ele é um gigantesco dragão de areia que esmaga os homens com os seus espasmos. Há que se familiarizar com esse dragão, aprender a montá-Io, entender suas intenções, suas mensagens. Ele esconde muitos segredos e são os mais bem guardados.

- O deserto! Senti a sua força maléfica, mas quem conhece seus segredos? - perguntou o guerreiro.

- Só são revelados a uns poucos escolhidos que passam por provas extremas. O deserto conhece seus cavaleiros e os elege. Os fiéis que se aventuram numa peregrinação a esta Terra Santa enfrentam perigos que só os mais fortes superam - disse Bernard de Charenton.

Angus deixou escapar outra confissão:

- Acreditei que minha fé nos protegeria...

- A fé sempre chama por Deus - disse mestre Everard -, mas a proteção divina não é maior na Terra Santa do que em outro lugar        qualquer, assim como os perigos estão por toda parte.

O Grão-Mestre concordou:

- Já nos primeiros séculos, os padres da Igreja chamavam a atenção para este fato. Gregório de Nissa, irmão do grande São Basílio, foi um dos que se ergueram com mais veemência contra as viagens a Jerusalém. O bispo de Nissa assegurava a todos que a graça divina não se difundia em Jerusalém mais do que em outras cidades da Terra.

O guerreiro ponderou em seu próprio coração o quanto era verdadeiro o que ouvira. Foi mestre Everard quem prosseguiu:

- Também Santo Agostinho dizia que o Senhor não havia exortado que se fosse ao Oriente para buscar justiça ou ao Ocidente para receber perdão, ou mesmo, ao Sul para praticar a caridade ou ao Norte para receber a purificação. Ora, devo crer e creio nas palavras dos Santos Padres, mas reconheço que contradizem completamente as ardentes exortações do venerável Bernardo de Claraval. Estamos, pois, diante da mais completa confusão a respeito da necessidade de guerrear pela fé e a própria vivência da fé. Nosso desafio é conhecer a vontade de Deus para proceder de forma justa.

O guerreiro sabia que os conselhos dos santos da Igreja nada podiam contra o ímpeto apaixonado da multidão; já força alguma, voz alguma, autoridade ou inimigo algum sobre a Terra podia fechar aos cristãos os caminhos para Jerusalém. Da longínqua Gália, das florestas da Germânia, de todas as regiões da Europa, viam-se chegar cada vez mais devotos, impacientes por visitar o berço da fé que haviam abraçado.

O Grão-Mestre leu seus pensamentos e disse:

- É vontade de Deus que seu povo peregrino seja protegido. Perdendo o domínio de si, o guerreiro deixou que a amargura guardada aflorasse à sua boca:

- Quem sabe o que Deus quer? O que fez Ele por Dunmait MacAedan? O que fez Ele por meus homens no desfiladeiro? Que Deus é este que abandona seus filhos no calor da batalha? Que Deus é este que dá a vitória ao inimigo?

Nesse momento, os olhos de Bernard de Charenton advertiram ao mestre que havia chegado o momento de pôr o guerreiro à prova.

- Se a vontade divina permitiu a morte dos seus companheiros, também deixou que vivesse. É preciso confiar nos desígnios de Deus - disse o Grão-Mestre sem alterar a voz.

O guerreiro guardou silêncio. Então, o ancião tirou uma bolsa que trazia à cintura e derramou seu conteúdo sobre uma pedra da muralha, dizendo:

- Acredito que tudo isto é seu por direito.

Diante dos olhos ele viu os anéis, colares e medalhões que haviam pertencido a seus homens, os que identificavam o clã a que pertenciam, os que possuíam valor afetivo ou fora herança passada de pai para filho.

- Como vieram às suas mãos? - perguntou ao ancião.

- Esta bolsa estava pendurada em outro cinturão - disse o mestre.

- E onde está o corpo que usava esse cinturão? - perguntou.

- Na masmorra, três andares abaixo de onde nos encontramos. Foi aprisionado quando ainda saqueava os mortos - explicou.

- Permita que eu decida sua sorte! - pediu o guerreiro.

- Permito que faça justiça! - disse o Grão-Mestre.

Ouvindo aquelas palavras, Angus MacLachlan levou instintivamente a mão onde deveria estar o punho da espada, mas deu-se conta de que estava desarmado. Seu gesto não escapou aos olhos de mestre Everard que pensou que o guerreiro lhe pediria a sua. Mas ele já se apressava pelo passadiço. Desceu as escadarias que levavam à masmorra.

 

Desde o momento em que fora capturado e lhe haviam tomado a bolsa, Bertoldo, o Abutre, não vira mais ninguém a não ser o carcereiro. Cada vez que o via, corria para as grades, alternando súplicas com insultos e palavrões. Mas o carcereiro chegava e partia como se ele não existisse. Passara por várias fases. Conduzido da luminosidade escaldante das areias para a escuridão da masmorra, começara por bater com a cabeça nas pedras, culpando a si mesmo por ter demorado o saque. A seguir, a raiva que sentia de si próprio foi diminuindo para dar lugar ao desespero, à medida que a fome e a sede aumentavam. Estranhou que cavaleiros cristãos lhe negassem pão e água. Mais valia morrer com a barriga cheia. Depois, pensou que não o terem matado e enterrado junto com os outros significava que o queriam vivo para alguma coisa. Por fim, sentindo-se fraco, procurou um canto e encolheu-se na mesma posição que usava para avistar o inimigo sem ser percebido. Mesmo na penumbra, seus olhos aguçados podiam perceber ao fundo uma polé com suas roldanas e ganchos, os ferros de todos os formatos que, aquecidos ao rubro, assavam as carnes dos condenados. Mas tudo estava silencioso e a forja apagada.

Nao saia se era dia ou se era noite, quando um milagre aconteceu bem diante dos seus olhos. Dois cavaleiros chegaram trazendo um prato de comida, além da caneca de vinho que encheram em sua presença.

- Se nos disser o seu nome, e nos revelar o que aconteceu no desfiladeiro, vai comer e beber até se fartar - disse um deles.

- E o que vai acontecer depois que eu me fartar? - ele quis saber.

- Não somos os juízes ou os carrascos - falou um dos cavaleiros. Esses virão depois, considerou Bertoldo. O melhor seria confessar seu crime, já que as testemunhas eram muitas, e negar o restante. Sem deixar seu canto, ele disse:

- Meu nome é Bertoldo, mas me chamam de Abutre, pelo que faço.

- E o que faz? - perguntaram.

- Todos sabem o que faço - respondeu. - Tiro dos mortos aquilo de que não vão mais precisar. São os vivos que têm necessidades.

- De que terra veio? - perguntaram.

- Sou genovês - respondeu.

- Aprendeu a saquear os mortos na sua terra? - perguntou um dos cavaleiros.

Bertoldo não respondeu. Seus olhos não largavam o prato de comida nem a caneca de vinho.

            - Posso comer agora? - quis saber.

- Poderá comer e beber quando nos contar o que se passou no desfiladeiro - disseram, acrescentando: - Conhece Girolamo Campanella?

- E por que deveria conhecer?

- É genovês e emprega gente da sua laia.

Bertoldo não se deixou intimidar:

- Ele terá os seus próprios abutres. Por que me chamaria para seu serviço, se o tamanho do meu braço não deixa que eu agüente uma espada, muito menos que possa rodá-Ia contra o inimigo?

Levantara-se e se aproximava para que os cavaleiros vissem com seus próprios olhos o que afirmava.

- Coma e beba - disseram finalmente.

O Abutre atirou-se ao prato, sem se preocupar com o que podia lhe acontecer depois que se fartasse. Nem ouviu quando os cavaleiros trancaram a grade.

Desse dia em diante, havia sempre um pote com água ao seu alcance e, duas vezes por dia, traziam-lhe comida. Agora me engordam, ele pensou. O que mais lhe podia acontecer? Talvez nunca viesse a ser julgado e acabasse por morrer ali mesmo, sem nunca mais avistar a luz do sol, ou talvez não... Bertoldo era um homem acostumado a esperar.

            Dormitava no seu canto, quando ouviu abrir a grade pela segunda vez. O carcereiro mandou que se levantasse.

            - Vão me deixar ir embora? - ele perguntou sem se mover de onde estava.

- De pé! - ordenou o carcereiro agarrando-o pela gola e empurrando-o para fora. Foi levado a uma sala da guarda, vazia naquele momento, a não ser pelo gigante ruivo que reconheceu de imediato.

Angus MacLachlan tivera a impressão de que atingia o fundo de seu ódio, à medida que descia as escadarias e entrava num mundo sem luz. Viera com permissão do Grão-Mestre para fazer justiça ao saqueador dos seus mortos.

Não encontrara ninguém de guarda, apenas o carcereiro. Pedira que fosse buscar o prisioneiro. Agora tinha-o diante de si e percebia que não necessitava de outras armas além das mãos para esmagar-lhe a cabeça. O que lhe faltava era o impulso para agir. Compreendeu que o ódio e a escuridão eram a mesma coisa.

- Eu conheço quem é - disse-lhe o Abutre sem medo.

O guerreiro foi assaltado pelo mesmo sentimento que tivera após matar o assassino de Dunmait MacAedan. Outra morte seria ainda muito pouco para apagar o que acontecera.

            No entanto, o Abutre se aproximara do guerreiro para lhe garantir:

- Seja lá para que venha, fique sabendo que me deve sua vida. Vi quando saiu do desfiladeiro para perseguir Luchino, aquele covardão idiota. Eu podia ter alertado alguém e seriam muitas espadas contra a sua, mas fiquei calado. Deve a mim, a sua vida! Tem que me tirar daqui! - repetiu.

Angus MacLachlan fez sinal ao carcereiro que levasse o prisioneiro de volta à masmorra. Bertoldo debateu-se gritando:

            - Deve-me a vida! É esta a minha paga?

- É isto que estou lhe dando, a vida - disse o gigante ruivo, e foram as únicas palavras que Bertoldo ouviu dos seus lábios. Foi empurrado para trás das grandes, sem compreender por que não encontrava nenhum consolo em saber que sua pena não seria a morte, mas a escuridão. Voltou a encolher-se em seu canto, iniciando uma nova espera enquanto o guerreiro subia para a luz.

 

Naquela mesma noite, Angus MacLachlan não jantou no refeitório, mas foi convidado pelo Grão-Mestre a partilhar a mesa nos seus aposentos. Quando chegou, o mestre templário e o cavaleiro Guy du Pin já faziam companhia ao superior dos hospitalários.

Embora a cela do Grão-Mestre não diferisse em tamanho ou simplicidade das outras na fortaleza, a sala onde recebeu seus hóspedes era de grande tamanho e podia acomodar muitos cavaleiros. O teto era alto e abobadado. Dele pendia sobre a mesa um lustre de velas e sua corda corria por toda a extensão do teto até um gancho à meia altura em uma das paredes. Noutra, em frente ao arco do portal, havia uma sucessão de seteiras intercaladas por archotes. Noutra ainda, pendia o brasão da ordem ladeado por armas tomadas ao inimigo, escudos com delicados desenhos mouriscos e cimitarras. À direita havia uma arca entre quatro nichos repletos de livros, revelando que a fortaleza estava dotada de uma biblioteca admirável. Num dos cantos, ânforas guardavam bom vinho do Ocidente, oferta de peregrinos ricos. No centro, a mesa comprida era ladeada por dois bancos em toda a sua extensão. Às cabeceiras havia dois cadeirões, cujo encosto de couro fora gravado com as armas da Ordem.

O Grão-Mestre já estava sentado numa das cabeceiras e os cavaleiros acomodaram-se nos bancos. Mestre Everard, seguido do jovem Guy à sua direita e Angus à sua esquerda. Um irmão trouxe um pernil de carneiro numa travessa de estanho e pratos de madeira. As facas estavam no lugar do Superior, pois mandava a caridade que ele próprio iniciasse o serviço dos hóspedes, cortando generosos pedaços da carne temperada com ervas. Numa grande tigela fumegavam legumes cozidos.

Durante o jantar, o guerreiro tomou conhecimento de que a fortaleza estava para ser atacada.

O jovem Du Pin, desconhecendo sua história, perguntou-lhe:

- O que veio buscar nestas terras, cavaleiro?

- Não foi a fé que me trouxe à Terra Santa - disse. - Ela me guiou, disto não tenho dúvida, mas o que me trouxe aqui foi o exemplo do imperador Heráclio.

O Grão-Mestre sorriu:

- Como Heráclio, você veio libertar a terra cristã das mãos dos muçulmanos. Depois de muitas batalhas, o imperador trouxe de volta a verdadeira cruz, aquela que todos consideravam a mais santa das relíquias. Conta a história que ele entrou em Jerusalém descalço e humilde, levando a cruz em seu ombro até o Calvário.

Mestre Everard comentou:

- Já não se ouvem contar histórias como essas. A paz de Heráclio foi varrida pela tempestade que desabou da Arábia e da Síria.

- A fragilidade da paz! - exclamou o jovem Guy. - Não é o que fornece assunto para a história de cada povo?

- É verdade - concordou Angus. - Quando estive entre os francos, eles lamentavam o quanto estava longe a época dourada de Carlos Magno.

- Bem lembrado, cavaleiro - disse o Grão-Mestre. – Naquela época dourada o poder de Carlos Magno se estendeu até a Ásia, protegendo a Igreja no Ooriente. Sim, houve paz novamente. As embaixadas do imperador e do califa Arun-Al-Raschid trocaram entre si os mais ricos produtos do solo e da arte dos seus reinos. Esta deveria ser a verdadeira relação entre nós e os mouros, se somos povos religiosos e tementes a Deus... Ao único e verdadeiro Deus!

            - Mas não quando nos atacam e nos passam a fio de espada! exclamou Guy du Pino

O Grão-Mestre ficou em silêncio durante alguns segundos, no esforço inútil de se manter no sonho de uma verdadeira fraternidade universal.

- Sim, é claro - ele acabou por concordar. - Temos que defender a Igreja com o nosso sangue todas as vezes que ela for atacada ou espoliada.

Angus MacLachlan sentiu a tristeza na voz do ancião. Voltou-se para ele e disse:

- Foi por esta razão que eu vim, reverendo Grão-Mestre, para colocar a minha espada a serviço do Senhor e de sua Igreja. Neste momento em que um ataque a esta casa que me acolheu parece iminente, mais razão terei para lutar.

- Louvado seja Deus! - exclamou Bernard de Charenton.

Mais tarde, quando o jovem Guy du Pin já se tinha retirado, Angus e mestre Everard foram convidados pelo ancião a acompanhá-lo à caverna. Fora para lá que o guerreiro havia sido levado quando estava morrendo. Diante do leão de pedra contaram-lhe como fora curado pela espada que o animal guardava entre as presas.

Angus aproximou-se para olhar de perto aquela espada cujo toque podia curar. Cheio de admiração, ele disse:

- Em toda a minha vida, nunca vi uma espada como esta. Parece tão antiga e pesada... e agora sei o quanto é poderosa.

- Sua presença entre nós recua até o tempo em que esta fortaleza foi ocupada por nossos irmãos durante a cruzada de Pedro, o Eremita - contou o superior. - Foi o primeiro Grão-Mestre quem a trouxe, recebida das mãos de um cavaleiro do Norte. Não lenho idéia de quem ele era. O meu antecessor encontrou-o à beira da morte. Só teve tempo para lhe dizer que a espada fora forjada na aurora dos tempos e tinha muitos poderes. Pediu-lhe que a levasse a um local consagrado e que a guardasse. No tempo certo, um descendente seu ouviria o chamado e viria reclamá-a.

- Meu avô, Sean MacLachlan, morreu durante a cruzada de Pedro, o Eremita - disse Angus. - Também ele perdeu Gaoth Cerridwen, a espada guardiã do nosso clã.

- Muitos morreram nessa cruzada. O dono da espada acompanhava Walter, o Sem-tostão, quando foram massacrados pelos turcos em Nicéia...

- ... No outono do ano do Senhor de 1096! - exclamou o guerreiro. - Foi quando meu avô desapareceu. Ele havia comandado cem homens, desde a Escócia até essas terras e juntou-se às forças de Walter de Belgrado. Meu pai contava que as últimas notícias que chegaram do velho Sean Barba-de-Fogo vinham de Nicéia e davam conta de que os nossos haviam travado a mais cruel das batalhas.

O Grão-Mestre argumentou serenamente:

- Angus MacLachlan - disse -, esta relíquia tem sido a guardiã desta fortaleza de São Miguel, por muitas décadas. É uma espada santificada como a do nosso Arcanjo protetor. Ela tem a força do próprio Leão de Judá e sua lâmina está destinada a aniquilar toda iniqüidade que aparecer em sua frente. Sabemos também que, no seu aço, ficou retido o último suspiro e o último desejo de um bravo guerreiro. Seu herdeiro, se algum dia aparecer tal candidato, deverá ter a força e a proteção do leão. O deserto o aclamará e então saberemos quem ele é.

O guerreiro pensou que as palavras do Grão-Mestre eram sensatas e cheias de sabedoria. Antes de se retirar da caverna, ele ainda lançou um último olhar à espada. Mesmo sem saber se aquela seria Gaoth Cerridwen, a guardiã do seu clã, com todo o coração, desejou provar que a merecia.

 

                                      VIRGENS INTOCÁVEIS

Angus MacLachlan ocupara o seu lugar nos preparativos para a batalha que se avizinhava. Era necessário impedir o avanço do exército turco até as muralhas. Sua honra pedia que estivesse pronto a participar dos acontecimentos em pé de igualdade com os outros cavaleiros. À gratidão pela acolhida que lhe haviam dado, ele somou o contentamento de encontrar o seu próprio cavalo, nas baias da fortaleza, descansado e alimentado.

Durante toda a semana, ajudou a escoltar as carroças de provisões, e outras mais, que vinham cheias de aldeões temendo por suas vidas. As muralhas também ofereciam abrigo seguro a essa gente. As provisões iam sendo empilhadas nas despensas, sob o olhar do ir

            mão responsável.

- Devemos esperar um cerco? - perguntou Angus a mestre Everard. O templário sorrira e dera de ombros dizendo que estavam ali duas Ordens militares unidas contra um inimigo comum, mas cada uma com a sua estratégia quanto à melhor maneira de enfrentar a situação. Disse que uma formação dos hospitalários deveria dar combate fora das muralhas, pois isto lhe garantira o Grão-Mestre. Quanto aos outros cavaleiros daquela Ordem, ficariam junto ao perímetro exterior para impedir a aproximação dos turcos e, se isto falhasse, outros usariam de todos os meios, do alto dos passadiços, tentando evitar que aríetes viessem de encontro às portas ou os assaltantes encostassem escadas nas muralhas.

- E os templários? - perguntou.

- Lutamos sempre em campo aberto - afirmou mestre Everard, acrescentando: - Não o fazemos de forma temerária, meu amigo. Os turcos têm sido observados à distância, o número de combatentes contados e o poderio das suas armas avaliado. Agiremos com a devida cautela, sabendo o que nos espera. O mais importante é examinar muito bem o terreno da batalha para decidir as manobras.

- O que há para ver, além das areias? - perguntou.

- As areias podem esconder surpresas e, se as conhecermos, poderemos usá-Ias a nosso favor.

- Mesmo assim - disse Angus -, não posso deixar de considerar o Grão-Mestre um homem previdente. Não é esta a sua opinião?

            Mestre Everard voltou a sorrir:

            - Se todas as providências tomadas por ele vierem a ser usadas, eu e os meus estaremos mortos e de pouco valerá minha opinião. E você, Angus, vai defender a fortaleza desde o passadiço ou vai enfrentar os turcos conosco?

- Eu sou o chefe do clã MacLachlan - disse -, e quando somos ameaçados, tenho que pensar nos que dependem de mim para proteção de suas famílias e de suas casas. O Grão-Mestre agiu com sabedoria. Mas também sou um cavaleiro treinado nas artes da guerra. Portanto, mestre Everard, que Deus não me olhe mais com misericórdia se eu não estiver entre os primeiros a chegarem aos turcos, pois isto é o que pede o meu coração.

- Deus não retira sua misericórdia de um guerreiro que defende Sua causa com o coração - garantiu.

Do alto da muralha, o guerreiro viu chegar um grande número de templários e, com eles, muitos cavaleiros que, embora não pertencessem à Ordem, vinham trazer o apoio das suas espadas. Nem os templários nem os cavaleiros se acomodaram na fortaleza, mas armaram suas tendas num lugar designado pelo Grão-Mestre.

Este não queria que acampassem no local que camuflava suas próprias armas de defesa. A principal delas consistia em longas toras de madeira com espigões de ferro, enterradas nas areias. Cordas, amarradas nos extremos e também enterradas, corriam até alguns metros das muralhas. Cavalos treinados puxariam essas cordas no momento certo, fazendo aflorar as toras e aparecerem os espigões, de maneira que a cavalaria dos turcos teria que sofrear sua carga. Do alto das ameias, os besteiros entrariam em ação contra alvos parados, completando o trabalho.

O guerreiro admirava os modos de agir das duas Ordens. Parecia-lhe que o Grão-Mestre mostrava-se previdente para o caso de um cerco e cauteloso se houvesse um assédio direto às muralhas. A seu convite, haviam feito juntos a inspeção dos fogareiros ao longo das ameias que jogariam brasas sobre os sitiantes, dos caldeirões de óleo fervente que escorreria das calhas sobre as escadas, e assistiria mesmo ao treinamento dos irmãos que manejavam as bestas. O átrio central deveria ficar desimpedido para que os monges cuidassem dos feridos. As mesas para as amputações estavam limpas e os instrumentos cirúrgicos polidos. Nada escapava ao olhar do Grão-Mestre. Se tinha algum reparo a fazer, falava como se fizesse um pedido, e não no tom de quem comanda.

O sol já baixava no horizonte dando um descanso aos homens e Angus MacLachlan assistia ao ocaso do alto das muralhas. Por alguns segundos, a paisagem mostrava-se mais serena. Mas, para ele, a luz enganadora do pôr-do-sol não escondia sua alma. As areias cobriam a superfície da Terra de forma a desconvidar o ser humano a fincar-lhe raízes, dar nome a seus vales, violentá-Ia, enfiando-lhe uma enorme variedade de árvores frutíferas, alisando-a, rebaixando-a, construindo por sobre ela seus casebres miseráveis, qualhando-a de crianças a brincarem felizes em seus domínios, e ainda pior, permitindo que as crianças que nascessem em seus sagrados domínios, se acostumassem e viessem certamente a calcar aos pés sua hostilidade, abrandando-a, quebrando sua feminilidade indomável. As areias para ele se assemelhavam a virgens intocáveis, assassinas por natureza que, mesmo aparentemente mansas, deitavam ao chão cadáveres aos montes em sua indocibilidade e fazendo-se respeitar, mesmo frente aos mais obstinados e temerosos seres da Terra.

Ao cair da noite, quando ia deixar as muralhas, Angus avistou dois cavaleiros galopando para a fortaleza. Sua intuição dizia que se tratava de um alerta. Caminhou pelo passadiço para as escadas mais próximas e foi descendo até chegar ao nível da entrada. Muitos cavaleiros haviam acorrido para ouvir da boca dos mensageiros que os turcos estavam a algumas horas de marcha.

- Acamparão nas proximidades, ainda esta noite - garantiram.

Do nosso lado, podemos contar com cerca de quatrocentos guerreiros experimentados nas artes da guerra - assegurou mestre Everard.

Os dois cavaleiros trocaram um olhar entre si.

- É bom que tenham a mão rápida e o golpe forte, pois serão cinco turcos para cada cavaleiro - disse um deles.

Embora os templários já estivessem cientes do número de combatentes nas fileiras inimigas, a informação pesou nos corações.

- Então o encontro será amanhã! - exclamou o superior dos hospitalários,

Mestre Everard era da mesma opinião. Angus esperava que todos se precipitassem para suas armas iniciando os preparativos, mas não viu nenhuma agitação. Os templários se retiraram em silêncio na direção do acampamento. Mestre Everard despediu-se do Grão-Mestre. Aquela noite seria passada entre os seus.

- Esta é a hora? - perguntou Angus MacLachlan sem saber se devia ou não seguir o templário.

- Esta é a hora das confissões - anunciou ao guerreiro, acrescentando: - Uma consciência tranqüila é tão importante numa batalha quanto ter a espada pronta.

Ele saiu acompanhado de dois sacerdotes. Confissões foram ouvidas também na fortaleza, Angus juntou-se aos que deviam se preparar de corpo e alma para combater até a morte. Antes que a batalha terminasse, ele assistiria a muitos acontecimentos surpreendentes, cuja lembrança ficaria gravada em sua memória para sempre.

A visão dos fogos que haviam brilhado no horizonte desde que a lua crescente atingira o segundo quadrante, trazia a certeza de que os turcos já haviam determinado o ponto de partida do seu ataque. Impaciente, e cansado de manter os olhos presos ao horizonte, Angus achou que o melhor que tinha a fazer era uma visita ao acampamento dos templários.

As fogueiras se espalhavam pelo terreno, cada uma servindo a quatro ou cinco tendas. O guarda de vigia pediu que declarasse o nome e a que vinha. Ele se aproximou o suficiente para ver que o jovem era um rapaz imberbe ainda, cuja voz não tinha a firmeza de quem estava habituado a comandar. Possivelmente ocupava um posto de controle pela primeira vez na vida.

- Sou Angus MacLachlan - o guerreiro disse -, e venho da Fortaleza. Não tema, rapaz; estou do seu lado nesta guerra.

- Não parece dos nossos - declarou o jovem, olhando o gigante ruivo.

- E, por acaso, estará me confundindo com um turco? - perguntou Angus,

            - A que vem? - insistiu o vigia.

            Angus pensou que seria difícil explicar ao jovem a impaciência que o fizera descer das ameias. O que procurava? Talvez o convívio das fogueiras a que estava acostumado em sua terra, tanto em noites calmas como nas que antecediam as batalhas.

-           Amanhã será um longo dia - disse -, e gostaria que a noite fosse mais curta. Umas palavras à beira do fogo podem bem encurtá-Ia.

- É possível - disse o vigia -, mas tudo vai depender da fogueira que escolhe.

- Indique-me uma - pediu Angus, dando chance ao jovem de mostrar que conhecia bem os seus pares.

- Para que a noite não pese muito, aconselho que procure onde o cavaleiro De Montalban convida a partilhar de bom vinho, além de participar de alguma das suas apostas.

- Que tipo de apostas? - ele quis saber.

- De todo tipo mesmo. Pode ser quem inventa a pior injúria ou conta a pior vergonha por que passou. Somente três disputam de cada vez e os outros escolhem o vencedor.

- Esse cavaleiro Montalban é um templário? - Angus perguntou.

- Certamente que não - respondeu o jovem -, mas costuma combater ao nosso lado.

- E você já é um deles, senhor...? - perguntou Angus.

- Sou Amedeo Toscanino e ainda um noviço na Ordem - ele se apresentou.

- Sua primeira batalha, mestre Amedeo?

- A primeira - confessou o jovem, acrescentando: - Mas tenho as armas prontas e estou bem adestrado. Além disso, já golpeei o inimigo tanto e tantas vezes em meu pensamento e nos meus sonhos, que é como se já o tivesse mil vezes derrubado e morto.

Angus ficou imaginando se o rapaz teria sido informado de que a proporção era de cinco turcos para cada cavaleiro cristão. Seus olhos brilhavam com a antecipação dos golpes sonhados, de maneira que o guerreiro apenas disse:

- Terei muito gosto em lutar ao seu lado amanhã, Amedeo Toscanino, e que Deus nos preserve a ambos para sua honra e glória.

O som de risadas chegou até eles e o rapaz indicou, alguns metros adiante, a fogueira onde o cavaleiro De Montalban oferecia seu odre para molhar as gargantas e aquecer as almas em boa companhia.

Angus aproximou-se da fogueira. Alguns cavaleiros estavam sentados ou reclinados, as selas sob as suas cabeças. Os escudos, uns a seguir aos outros, haviam sido encostados contra a tenda maior. Ele viu a diversidade de brasões e percebeu que todos ali eram cavaleiros leigos.

Alguma aposta estava em curso, pois todos escutavam um homem pequeno e magro, o rosto pálido e um cavanhaque negro e espetado que lhe davam o ar de quem jejuava com muita freqüência. Sua túnica surrada revelava que esse jejum era mais uma imposição da pobreza do que um hábito de devoção. Ele disputava com outros um odre cheio sob a guarda de um cavaleiro de aparência refinada. Sem saber qual era o jogo, Angus ouviu o que relatava o cavaleiro magro:

- ... e então eu disse: por Deus, Dagobert, não podemos enterrar

um tronco apenas, ou no dia da ressurreição ele dará por falta do resto. É o que digo, senhores, o barão havia sido retalhado de tal maneira que levamos a noite toda e mais um dia, meu companheiro e eu, à procura de cada pedacinho para enterrá-Io por inteiro.

- Sua história é espantosa, Martin, e desde já declaro que o odre é seu, pois aqui neste fogo ninguém contou ter praticado caridade mais difícil - disse um outro contendor.

Mas o terceiro não se conformava em perder a aposta e apelou para o cavaleiro que segurava o prêmio:

- Tenho que protestar, Montalban. Não vamos confundir caridade com um ato da mais extrema ignorância - disse.

- Enterrar um morto é caridade - insistiu Martin -, e um morto retalhado em pedacinhos é maior caridade ainda. Ora, cada pedaço...

- É ignorância, homem! Bastava enterrar o tronco, se a cabeça estava grudada nele. Estava ou não estava? - perguntou o inconformado.

- Estava - confessou Martin. - Mas era preciso pensar no dia da ressurreição dos mortos.

- O que tem o dia da ressurreição dos mortos? - insistiu o outro. - Não é um dedo ou um pedaço da coxa que impedirá um cristão de ressuscitar inteirinho. Ouvi isto de um sacerdote conhecido em toda a Bretanha. Passando por minha aldeia, meu pai pediu que ele enterrasse o que havia sobrado do nosso mestre carpinteiro atacado por ursos. Se Deus fez tudo que existe a partir do nada -, disse-nos o santo homem -, acham que ele não tem poder para completar um homem estraçalhado, no dia da ressurreição?

Alguns cavaleiros riam após cada argumento, outros tomavam partido de um ou de outro. Angus admirava-se de que homens às vésperas de uma batalha pudessem passar o tempo com apostas inúteis. Talvez aquela discussão tola fosse uma maneira que encontravam para compensar o temor do confronto que se avizinhava. Procedendo assim, asseguravam-se, uns aos outros, de que aquela era uma noite igual a todas as que tinham vivido à beira de um fogo e que viveriam ainda, depois que a batalha terminasse.

Ele deixou a fogueira e foi contornando as tendas. Ao redor de outros fogos ele viu homens que dormitavam e outros que mantinham os olhos abertos e fixos nas estrelas procurando a paz que lhes faltava; viu grupos de cavaleiros templários ajoelhados em oração, enquanto outros, ajudados pelos noviços, lustravam suas armas, escudos, elmos e cotas de malha. O maior fardo, ele sabia, era aquele que pesava sobre os ombros de mestre Everard. Reunido com seus imediatos na tenda central, e sem descrer em milagres, revia vezes sem conta as estratégias para a batalha.

 

Não era assim que se passava entre os de seu clã, ele pensou. À noite quando se reuniam ao redor de uma fogueira, os melhores lugares eram reservados aos anciãos para que se aquecessem enquanto contavam as histórias dos muitos guerreiros dos quais descendiam. Os feitos heróicos eram oferecidos para serem imitados e dar coragem aos mais jovens, uma coragem transmitida através do sangue, do nome e da memória.

A passo lento o guerreiro deixou o acampamento.

Quando surgiu o primeiro clarão da madrugada, ele estava no seu posto de observação, no alto das muralhas. Voltou a descer quando os cavaleiros vindos do acampamento já se aproximavam. Era a vanguarda dos templários liderada por mestre Everard e trazendo a sua escolta de estandartes. Formavam um longo rio de capas brancas e cruzes vermelhas sobre as armaduras. Eram seguidos por uma falange de cavaleiros peregrinos satisfeitos em incluir uma batalha no rol das suas devoções. Angus pensou que o seu lugar na batalha seria entre eles.

Quando chegaram às muralhas, cavalos e cavaleiros começaram a se exercitar com galopes curtos. Das ameias, os besteiros olhavam o

movimento.

A primeira surpresa de Angus aconteceu quando a falange dos hospitalários surgiu na entrada das muralhas. Os templários voltaram à formação dividindo-se em duas colunas, à direita e à esquerda. Para seu espanto, Angus viu que o Grão-Mestre assumira pessoalmente o comando dos seus. Os olhos do guerreiro buscaram o olhar de mestre Everard, mas não conseguiram perceber se o fato era para ele uma surpresa ou se já esperava por isso.

O ancião cavalgava à frente dos seus homens, o elmo posto, também ele rodeado pelos estandartes da sua Ordem. Seu ar de serenidade combinava com a claridade fria da madrugada. O superior refreou o cavalo e o mesmo fizeram os que o rodeavam. A falange dos hospitalários postou-se numa longa ala que ocupava a frente da fortaleza.

Fez-se um profundo silêncio que, aos cavaleiros de ambas as Ordens, parecia indicar uma disputa muda entre os superiores pelo privilégio de dar a ordem de ataque. Mesmo as muralhas estavam silenciosas.

De repente, Angus teve a segunda surpresa. Ele viu mestre Everard sair da frente dos seus homens e encaminhar-se num trote curto para onde se encontrava o Grão-Mestre. O noviço que levava seu escudo o acompanhou. Os templários permaneceram em seu lugar, mas acompanhavam a cena sem compreender. Mestre Everard apeou do cavalo, lançou as rédeas ao noviço e caminhou para o superior dos hospitalários.

- Peço sua bênção – disse ao ancião, inclinando a cabeça.

Depois de um momento de hesitação, o Grão-Mestre traçou uma larga cruz sobre ele. Naquele instante, ergueu-se das muralhas um estrondoso alarido e os gritos de: "Por Cristo, São Miguel e mestre Everard!". Vendo no gesto do mestre um ato de humildade e a aceitação de uma hierarquia de santidade como era usual entre monges, os templários receberam o seu comandante batendo com as espadas contra os escudos. Toda a região vibrou com os gritos dos cavaleiros de ambas as Ordens.

A seguir, calaram-se esperando que o mestre se pronunciasse. Mas o que se ouviu foi o alerta vindo das muralhas. Os vigias haviam percebido que o exército inimigo se pusera em movimento.

Everard começou a percorrer as linhas, primeiro na coluna do seu lado e depois, na coluna em frente. À medida que o poderio turco ia se tornando mais visível, e sua superioridade numérica mais evidente, palavras de encorajamento saíam de sua boca:

- Cavaleiros, o inimigo parece que se multiplica diante dos nossos olhos - ele dizia a uns -, mas a vitória é sempre obra de Deus! - E a outros: - Olhem em volta! O que lembrarão deste dia? Apenas a cor do céu e das areias? Pois eu digo o que lembrarão: do direito de usar a cruz no peito, porque neste dia, diante da Fortaleza de Hosn-el-Akrad vocês misturaram seu sangue ao sangue de Cristo! Quem pode desejar maior glória para a vida ou para a morte?

E suas palavras contagiavam os homens com um entusiasmo crescente. Enquanto isto, os hospitalários entregavam-se à oração interior, sem nada que demonstrasse o seu estado de alma.

Entretanto, a terceira surpresa logo alcançou Angus na pessoa do jovem Gilbert du Bois.

- O mestre pergunta se aceitaria cavalgar ao seu lado na batalha - disse.

- Será uma honra para mim cavalgar ao lado do mestre dos templários - Angus respondeu prontamente.

Então, Du Bois estendeu-lhe uma espada que trazia presa à sela:

- Com as bênçãos do Templo - disse o jovem.

Angus beijou o punho onde estava a cruz e murmurou:

- Por Cristo e por mestre Everard!

- Por Cristo e por mestre Everard! - repetiu o jovem.

Cavalgaram juntos para suas posições ao lado do comandante dos Templários.

 

No horizonte, os primeiros raios de sol faziam brilhar os escudos e as armaduras douradas do inimigo. Com suas roupas alaranjadas, eles formavam uma onda de fogo que avançava na direção da fortaleza.

Os templários colocaram os elmos e afivelaram os escudos. A um sinal de Everard, avançaram para o inimigo em passo contido. Ao todo, quinhentos cavaleiros cristãos estavam reunidos naquele dia contra dois mil e quinhentos combatentes turcos. A vanguarda era formada por lanceiros do Templo. Cavaleiros de ambas as Ordens vinham a seguir e, separando-os, havia a pequena formação dos leigos, uns aventureiros; outros peregrinos. Todos aguardavam a ordem de ataque, mas mestre Everard retardava o momento querendo uma aproximação maior.

- Atenção à vanguarda dos turcos! - ele preveniu Angus. - São arqueiros montados e disparam suas flechas de pouca distância para depois fugirem a todo galope. Fazem isto vezes seguidas, primeiro um grupo, depois outro.

- É uma maneira covarde de lutar - disse Angus.

- Mas muito efetiva - continuou Everard, pois assim causam grandes estragos num combate frontal, abrindo clareiras e enfraquecendo o adversário, que não tem tempo para se reagrupar.

- Minha espada cantará para eles - assegurou-lhe o guerreiro.

Era difícil refrear os cavalos. A distância entre os combatentes ia se tornando perigosa. Já se podia ouvir o clamor dos homens e o som das patas dos cavalos nos trechos pedregosos da vastidão. Os arqueiros turcos vinham semear a morte e a destruição.

Mestre Everard fez novo sinal. Os lanceiros passaram às laterais e os cavaleiros com a espada em punho tomaram seus lugares logo atrás do comandante. A manobra foi executada com extrema rapidez.

- Por Cristo! - gritou Everard.

De todas as bocas saiu o mesmo grito. As esporas fizeram os cavalos saltarem para uma corrida desenfreada. Angus jamais assistira a uma investida tão violenta. Notou que os lanceiros vinham numa marcha mais abrandada, enquanto os cavaleiros galopavam numa formação compacta, os escudos sobre as cabeças. À frente, Everard mantinha o seu à altura do corpo. Ele o imitou. Aquele aríete de templários continuou a avançar contra o inimigo mesmo quando a primeiras flechas choviam sobre eles, resvalando nos escudos ou nas cotas de malha.

Quando se deu o encontro, os arqueiros já não podiam recuar. Os templários baixaram os escudos e se atiraram ao inimigo. Angus ainda teve tempo para agradecer a Deus por estar com seu próprio cavalo que podia manobrar com uma simples pressão dos joelhos. Ele lutava sempre próximo a Everard. O inimigo, sem poder fazer uso dos arcos, tentava sacar as cimitarras, mas nem todos tinham tempo ou sorte.

Os arcos eram despedaçados pelos golpes dos cavaleiros. As cimitarras, mais curtas, só eram efetivas quando surpreendiam o oponente já cercado por três ou quatro. Muitos cavaleiros caíram, assim, golpeados pelas costas.

A segunda onda de arqueiros hesitava, pois a luta misturava turcos e cristãos, criando um alvo incerto. Quando um templário caía, parecia passar o seu alento aos que continuavam combatendo. Os arqueiros turcos esperavam sem poder socorrer os seus companheiros, mas certos de que uma nova chuva de flechas enfraqueceria o inimigo. Já poucos arqueiros da primeira onda ainda se mantinham sobre os seus cavalos. Os que tentavam fugir eram alcançados pelas lanças dos templários.

A nova onda, mais numerosa e tomada de ódio pelo fracasso da vanguarda, precipitou-se na direção dos cavaleiros. De repente mestre Everard gritou nova ordem aos seus homens. Seguindo seu comandante, eles abandonaram o combate e galoparam num grupo compacto, de novo formando um aríete. Atrás deles, numa perseguição sem trégua, galopavam os arqueiros turcos.

Angus não compreendia porque fugiam e mantinham aquela formação cerrada. Em dado momento, mestre Everard deu novo sinal e os cavaleiros frearam seus cavalos saindo da formação. Voltaram-se para enfrentar os turcos de frente. Então, Angus presenciou o que lhe pareceu um milagre de Deus ou de tática militar. Viu os turcos retesando as cordas dos arcos ao mesmo tempo em que tombavam arrastados pelos cavalos num extenso lodaçal. Os templários, conhecendo o lugar, haviam passado pelo terreno seco e estreito. Para isto servira a formação em aríete.

- Uma armadilha? - gritou Angus a mestre Everard.

- Uma surpresa do deserto! - o outro respondeu.

Os lanceiros rodearam o lodaçal esperando que os arqueiros caídos ousassem sair dele. Entretanto, a retaguarda havia evitado a armadilha e as flechas voaram visando os cristãos. Outra vez mestre Everard conduziu seu aríete humano pelo caminho seco no meio do lodaçal, indo de encontro ao inimigo. Assim que os alcançou, a formação se desfez e as espadas entraram em ação. Alguns usaram a maça, que se afundava nos crânios, para só depois usar a espada.

Angus, revoltado com a maneira covarde do ataque dos turcos, fazia estalar a madeira dos arcos antes de decepar as cabeças. O som da madeira se partindo agradava aos seus ouvidos. O arco era uma invenção demoníaca concebida para minar a coragem dos cavaleiros, ele pensou, enquanto quebrava mais um deles e rompia o peito de um turco expondo o seu coração.

De repente viu um cavaleiro cercado por um grupo que havia sacado as cimitarras. Uma pressão dos seus joelhos fez o cavalo saltar para frente. Derrubou por terra dois turcos e avançou para o terceiro. Só então reconheceu o cavaleiro ao seu lado. Era Amedeo Toscanino, o jovem vigia que batalhava em sonhos. Como Angus, ele fazia boa morte no terreno da honra e da devoção.

- Bravo, mestre Amedeo! - ele gritou, vendo o rapaz fazer voar a cimitarra das mãos de um turco.

O sangue corria de todo lado escurecendo ainda mais as águas represadas do lodaçal. Os cavalos pisoteavam os mortos ou, com suas patas, acabavam de matar os que escorregavam feridos das suas selas.

De uma elevação, o Emir que comandava o exército turco, contemplava a batalha cercado por uma poderosa guarda pessoal. Ele não usava armadura, apenas um manto franjado sobre uma túnica ricamente bordada. Trazia uma única proteção, no braço, à qual se agarrava um falcão. A seu lado, um servo segurava o pára-sol dando-lhe sombra.

O Grão-Mestre havia deixado os arqueiros por conta do mestre Everard e havia avançado com os hospitalários e os cavaleiros leigos diretamente ao núcleo do comando inimigo. A meio caminho, percebeu que uma boa parte dos lanceiros turcos galopava para a fortaleza. Eram seguidos por carros que levavam as escadas para o assédio. Num dos carros haviam instalado uma catapulta. O que eles pretendiam com aquela arma, o Grão-Mestre sabia, pois já a vira em ação, lançando bolas de fogo a longa distância sobre o madeirame dos telhados. Um grande número de combatentes a pé seguia os carros.

 

Os cavaleiros rodeavam o superior, esperando que ordenasse voltarem para fazer face àquela ameaça ou prosseguir direto ao coração do inimigo. Bernard de Charenton esporeou o cavalo para frente, ao encontro do Emir e de sua guarda. Estava confiante nas providências que tomara e no bom desempenho do seu prior, Pietro Moriondo, um monge originário do Piemonte. Agora no seu lugar, ele respondia pela segurança da fortaleza.

A guarda do Emir, com seus duzentos guerreiros, percebera a intenção dos hospitalários e criara uma barreira compacta ao redor do líder, mas esperavam sem avançar para o combate. Também o Grão-Mestre fez sinal aos seus que sofreassem as montarias. Pensava num meio de obrigá-los a descer da elevação para que o Emir ficasse ao seu alcance. Cerca de cem metros de distância separava os combatentes.

Nesse momento, Bernard de Charenton avistou o falcão agarrado ao braço do Emir. Também ele fora um amante dessas aves na juventude e adestrara algumas que se haviam tornado notáveis caçadoras. Ele comprimiu os lábios e deixou sair um silvo agudo. O falcão balançou-se no braço do Emir, seu corpo estremeceu e ele abriu as asas. O Emir não teve tempo de segurar a tira de couro que o prendia. O pássaro lançou-se gracioso no espaço, volteou sobre a falange dos hospitalários e, num vôo rasante, veio pousar no braço estendido do Grão-Mestre.        

A cena não durou mais que segundos. Tomado de raiva, o próprio Emir ordenou que seus guardas atacassem. Eles desceram da elevação brandindo as cimitarras. O Grão-Mestre havia conseguido o que desejara. Os guardas desciam sobre eles com ferocidade e eram em número muito elevado. Porém, os hospitalários e os cavaleiros Ieigos manejavam as espadas com mais eficácia.

O encontro das duas forças fez com que muitos turcos e cristãos fossem empurrados dos seus cavalos para o solo arenoso. Os que ainda estavam montados apearam para combater. Apenas o Grão-Mestre permaneceu em seu cavalo ladeado pelos que levavam os estandartes. Impulsionou o falcão de volta aos céus e galopou na direção do Emir. Seria um prisioneiro valioso que pagaria o resgate de muitos cruzados capturados. De espada em punho o Grão-Mestre foi atrás de sua presa que não se movia, certo de que a vitória dependia da vantagem numérica e não da destreza.

 

Da elevação, o Grão-Mestre lançou um olhar à fortaleza e deu graças a Deus porque as bandeiras da Ordem ainda tremulavam nos mastros.

Pietro Moriondo tinha os cavalos prontos, as pontas das cordas atadas às selas e os irmãos alerta ao seu sinal. A falange se aproximava na direção desejada. Os besteiros mantinham-se abaixados no passadiço para que o inimigo pensasse que apenas uns poucos haviam ficado para trás e que aquele seria um assalto rápido e fácil.

Quando a cavalaria turca se aproximou, o sinal foi dado e os cavalos esporeados na direção das muralhas. As toras saíram da areia como se subissem do inferno e os cavaleiros que vinham à frente foram atirados sobre os espigões pelos cavalos assustados. Seus corpos eram atravessados, as pontas aguçadas rasgando suas carnes. Novo sinal do Prior e os besteiros apareceram nas ameias. As setas choveram sobre os combatentes turcos. Alguns, para se proteger, apearam e se escudaram por trás das toras. Outros, tentaram um galope rápido para as muralhas, mas as setas do alto não davam trégua.

Os soldados que conduziam o carro com a catapulta receberam uma chuva delas. Os cavalos, sentindo que as rédeas afrouxavam, continuaram até às muralhas numa velocidade redobrada. Quando pararam abruptamente, a catapulta pendeu para um lado e o carro tombou, despedaçando o artefato que trazia.

No entanto, uma grande leva de turcos a pé, havia alcançado as muralhas. A uma ordem de Pietro Moriondo, as escadas, junto com os homens que já subiam por elas, receberam a sua carga de óleo fervente. Pelo areal em frente à fortaleza, muitos corpos se contorciam queimados e os gritos se misturavam aos sons do combate.

Outros mais tentavam a escalada. O Prior corria pelo passadiço despachando as suas ordens. Os fogareiros foram derramados sobre os que se aproximavam. Uma escada escapou à vigilância dos besteiros no passadiço e três soldados turcos saltaram para dentro das muralhas. Receberam o apoio de uma chuva de flechas vindas de arqueiros que se escudavam atrás dos carros. Um besteiro ferido despencou do alto para a morte, enquanto outros mais eram degolados pelos golpes das cimitarras. Mais cinco turcos saltaram para o passadiço.

Os hospitalários, que haviam acorrido de outro trecho do passadiço, investiram contra eles com as bestas armadas e dispararam de perto. Os turcos tombaram enquanto Pietro Moriondo, ajudado por outros irmãos, usava uma vara com forquilha na ponta para afastar a escada. Assim foram procedendo ao longo das muralhas.

Os arqueiros turcos concentravam seus disparos acima da entrada da fortaleza, enquanto um grande grupo, protegido pelos escudos, empurrava um aríete contra a porta. Novo caldeirão de óleo fervente foi puxado por cordas atadas a uma roldana e entornado sobre os que estavam logo abaixo. O aríete foi abandonado e prendeu alguns corpos que se debatiam inutilmente para livrar-se do seu peso.

Os poucos turcos que ainda estavam de pé, depuseram as armas, ajoelharam-se e inclinaram as cabeças. Os arqueiros não tiveram outra escolha senão a de jogar os arcos para longe e, em seguida, vir aumentar o número dos prisioneiros. Do alto da fortaleza o brado de vitória ecoou por toda a vastidão das areias.

 

Entretanto, a luta prosseguia no coração do comando turco. Muitos cavaleiros leigos jaziam mortos e outros lutavam pela vida. Os hospitalários mostravam a sua destreza mas eram acossados de todos os lados. Formaram um quadrado central dando as costas uns aos outros, de maneira a obrigar o inimigo a atacar de frente.

Na elevação, o Emir antevia a vitória dos seus. Pouco lhe imporlava a fortaleza. Se esmagasse os hospitalários, poderia retirar-se com honra. Ao seu lado o Grão-Mestre, com a espada pronta para derrubar quem viesse em seu socorro, começou a temer um desfecho infeliz para os seus.

- Velho disse-lhe o Emir -, se me entregar sua espada, darei ordem para que os meus homens poupem seus cavaleiros. Ser cativo é melhor do que estar morto. Não merecem viver, esses homens que estão lutando com bravura por seu comandante?

- Não é por mim que lutam - respondeu o Grão-Mestre -, mas por alguém muito maior do que eu.

- Seu Imperador esconde-se em Constantinopla e não virá socorrê-Ios - disse o Emir com desprezo na voz.

- Aquele por quem lutamos, luta conosco e não nos abandonará - afirmou Bernard de Charenton.

Nesse momento ouviu-se o som das patas dos cavalos. Um tropel se aproximava em meio a uma nuvem de areia. Do alto da elevação o velho e o Emir viram por sobre a nuvem oscilar o estandarte com a cruz vermelha dos templários.

Antes que o turco gritasse alertando sua guarda, o Grão-Mestre colocara a ponta da espada contra a sua garganta.

            Mestre Everard galopava com Angus ao seu lado.

- Que nossos atos permaneçam justos e nossas intenções puras! - Ele gritou aos seus homens, apeando para socorrer os hospitalários. Os cavalos foram abandonados e os cavaleiros lançaram-se contra os inimigos. A guarda turca, surpreendida pela chegada daquele reforço, ainda tentou reagir. Uma cimitarra assobiou, raspando o peito de Angus. Ele se esquivou e logo sua espada decepou a mão que a segurava. Mestre Everard golpeava à direita e à esquerda numa rapidez que não deixava tempo a contragolpes.

Os turcos começaram a recuar encarando sempre aquele grupo que não sabiam de onde surgira, mas que vinha tirar-Ihes uma vitória certa. Os cavaleiros continuaram a avançar até que o inimigo fosse deixando as cimitarras caírem na areia.

Tomando o gesto por uma rendição, mestre Everard fez sinal para que os templários cercassem o local e meteu sua espada na bainha. Mais rápido que o vento, alguns soldados da guarda que haviam jogado suas armas ao chão, sacaram os arcos das costas. Se não eram bons com as cimitarras, sua habilidade de arqueiros era um fato reconhecido em todo o Oriente.

As flechas foram atiradas visando mestre Everard. Tão rápido quanto aqueles homens haviam jogado sua última cartada, Angus MacLachlan saltara à frente do mestre templário. Seu escudo desviou algumas flechas, outras resvalaram na proteção do seu ombro, aquela pata de dragão que seus ancestrais haviam recebido de antigas rainhas. Uma flecha penetrou no seu ombro esquerdo. Com a flecha cravada, ele avançou contra os que haviam disparado sem lhes dar tempo de reagir.

Como já testemunhara uma vez, o jovem Du Bois viu Angus presa da fúria, abandonando o escudo e sacando o seu machado de uma bainha nas costas. Avançou fazendo justiça e a balança pendeu para o lado do guerreiro. Quando o último arqueiro caiu com o ventre aberto, ele deixou os braços penderem de cada lado do corpo, ofegante e tomado pela dor que lhe causava a flecha. Um hospitalário arrancou-a com extrema habilidade.

- Salvou a vida do mestre! - exclamou o jovem Du Bois para que todos ao redor guardassem o fato e o momento. Mas Angus não fez caso. Um olhar trocado com o mestre templário significara que a dívida que havia entre eles, desde que Everard lhe salvara a vida lançando-lhe sua espada, estava paga.

Os cavaleiros das fortalezas vizinhas olhavam o guerreiro ruivo com espanto e admiração. Compreendiam por que o mestre o escolhera para lutar ao seu lado. Quando ele passou por eles à procura do seu cavalo, inclinaram a cabeça como se já o conhecessem e um forte laço os unisse. Um cavaleiro passou por ele puxando o cavalo pela rédea. Seu rosto pareceu-lhe familiar, embora coberto de sangue.

Angus reconheceu o cavaleiro De Montalban. Ele atravessara um corpo decapitado sobre a sela do seu cavalo. Parecia alheio ao mundo que o rodeava, os olhos postos no chão, caminhando de um morto para o outro.

- O que procura, amigo? - perguntou Angus, colocando a mão sobre o seu ombro. O cavaleiro olhou-o com surpresa e depois disse:

- Procuro a cabeça deste corpo. É Martin, um amigo. Quero enterrá-Io inteiro.

Angus reconheceu a túnica esburacada do cavaleiro que disputara o odre de vinho.

- Sim, convém que encontre a cabeça - disse, acrescentando em seu ouvido: - Para o dia da ressurreição.

De Montalban encarou-o admirado de que aquele guerreiro ruivo tivesse lido seu pensamento e conhecido a causa dos seus cuidados.

Da mesma forma que haviam se dirigido à batalha, mestre Everard e Angus iam à frente dos cavaleiros. A eles havia se juntado o Grão-Mestre, trazendo o falcão pousado em seu braço.

            - É nosso o dia! - dissera o guerreiro ao ancião.

            - Mas é de Cristo a vitória, Angus MacLachlan! - afirmou o ancião ao guerreiro.

 

                                                   SANTOS GUERREIROS NO CÉU

Do alto das ameias, Pietro Moriondo via aproximarem-se as falanges vitoriosas dos cavaleiros. Ao redor da fortaleza ainda se podiam avistar sinais da tentativa de cerco. Seriam necessários muitos dias para que as coisas voltassem ao normal. As masmorras estavam cheias de prisioneiros e os soldados turcos mortos em combate empilhados num carro para serem enterrados fora das muralhas. Ali no perímetro da Hosn-al-Akkrad, onde a terra era santificada, somente os cristãos poderiam encontrar descanso final.

O átrio, no nível da entrada, estava todo ocupado pelos feridos de ambos os lados. Logo após a rendição, um médico que acompanhava o exército inimigo viera pedir ao Prior que o deixasse cuidar dos seus. Pietro Moriondo, sabendo da habilidade dos orientais na arte, achou que a ajuda não podia ter vindo em melhor hora. Assim, determinou que dois irmãos ficassem ao lado dele para o que fosse necessário. Os feridos eram atendidos conforme a gravidade do seu estado, independente de serem infiéis ou cristãos, de maneira que logo o médico turco estava prestando cuidados aos cavaleiros. Para muitos, às portas da morte, já não importava de quem eram as mãos que os ajudava; para outros, o médico infiel representava a salvação.

Quando viu aproximar-se o seu Grão-Mestre são e salvo, ao lado de mestre Everard e do guerreiro nórdico, foi que Pietro Moriondo rendeu graças a Deus pela vitória daquele dia. Um pouco atrás do cortejo de comandantes com seus estandartes, ele avistou o emir aprisionado. Estava cercado por cavaleiros hospitalários mas conduzia seu cavalo. Em meio aos combatentes cobertos por um misto de sangue suor e areia, o comandante turco parecia pairar acima dos acontecimentos. De seu rosto sumira toda expressão, mas ele cavalgava mantendo um porte altivo. O cavalo, um magnífico garanhão branco, acostumara-se aos arreios dourados trabalhados com pedras preciosas e às franjas que lhe acariciavam o corpo em movimento. Assim, apesar da cabeça empinada, dos olhos esgazeados e das narinas dilatadas, o animal obedecia às rédeas de quem o conduzia. Dali do alto das ameias, Pietro Moriondo pensou que o turco parecia mais ser um rei com seu cortejo do que um cativo. Pelo menos, não seria um prisioneiro comum como os que haviam sido conduzidos às masmorras e, quando estas lotaram, a um pátio interior, onde as portas pesadas e a altura dos muros dispensavam uma guarda permanente. O emir teria uma cela para se acomodar e tratamento de acordo com a sua condição.

Os olhos do Prior passaram à retaguarda. As carroças que enviara, assim que um emissário trouxera a notícia da vitória em campo, chegavam cheias de cavaleiros feridos e mortos. Alguns templários e hospitalários haviam colocado os companheiros atravessados nas selas das próprias montarias, unidos a eles por laços que a morte não desatava, como sua fé lhes assegurava. Eles vinham a pé, cabisbaixos, arrastando o lado pesado e amargo da vitória. O Prior pensou que o bom Deus apaziguaria as dores assim que os irmãos voltassem a entrar no seio materno daquela casa.

Enquanto descia as escadas, ele remoía na cabeça se haveria alguma providência que deixara de tomar. Mandara que os refugiados das aldeias próximas ocupassem o lugar dos irmãos das cozinhas, chamados para outras tarefas. Agora havia muita gente para comer e se refazer dos esforços do dia. As provisões eram abundantes, graças aos cuidados do Grão-Mestre. Também escolhera um grupo que permaneceria na cisterna para não deixar que baldes ou tinas ficassem vazios. Além da água necessária aos feridos, alguns cavaleiros iam querer lavar o sangue do rosto, dos braços e do corpo. A maioria, no entanto, dispensaria aquele luxo e iria direto à cela, atirando-se nos catres com todo o peso da sua exaustão. O Prior sabia, por experiência própria, que após uma batalha o sono era necessário mas nunca tranqüilo. O corpo podia se dobrar de cansaço e ainda assim a alma continuava durante algum tempo a gritar por sangue. Uma das regras mais sábias, para ambas as Ordens, era a que proibia aos cavaleiros deitarem-se nos catres com suas armas, uma adaga que fosse, evitando assim que causassem algum mal a si próprios.

O saque não era bem visto e o costume era apoderarem-se dos cavalos inimigos para compensar a perda de montarias. Ele já mandara levar às baias os cavalos deixados pelos turcos no perímetro da fortaleza. O Grão-Mestre e mestre Everard fariam a partilha quando a hora chegasse.

Uma grande parte dos templários e dos cavaleiros leigos que haviam saído sem ferimentos graves da batalha procurara o abrigo de suas tendas. Os superiores de ambas as Ordens esperavam junto a três sacerdotes o carro dos seus mortos. Angus MacLachlan permaneceu com eles. A palavra correu por toda a fortaleza de que o Grão-Mestre procurava alguém iniciado nas artes da falcoaria. Logo se apresentou um noviço e a ave lhe foi entregue.

- Não é presa de guerra nem prisioneiro como seu antigo dono, o emir, - disse-lhe o Grão-Mestre. - Ficar do nosso lado foi escolha da ave, Talvez por alguma sugestão da Providência soprada em seus ouvidos,

O noviço prometeu que velaria pelo pássaro como por uma relíquia e ofereceu a mão protegida com uma luva e tiras de couro. O falcão passou à sua guarda sem dificuldades, o que pareceu ao Grão-Mestre uma parte ainda da intervenção divina.

 

O cansaço e a fome dispensavam alguns cavaleiros, mas os superiores não arredavam o pé até que os mortos fossem retirados dos cavalos e dos carros e colocados em padiolas de madeira com quatro pegas. Sobre os corpos dos cavaleiros leigos, seus escudos davam testemunho de que terra os vira nascer e que condição de nobreza lhes coubera na vida. O escrivão dos templários anotava no Livro da Ordem o que dizia respeito àquelas mortes, louvando a conduta heróica e a mais santa das intenções, reproduzindo no pergaminho o brasão do cavaleiro. Assim, a batalha contra os infiéis igualava no mesmo odor de santidade aventureiros e devotos.

Três sacerdotes aspergiam água benta e entoavam orações pelo bom encaminhamento das almas. Os estandartes de ambas as Ordens eram encostados aos lábios dos respectivos cavaleiros, enquanto para cada um deles, os vivos repetiam em latim um agradecimento aos céus pela morte em combate e no final declaravam que aqueles que ali jaziam haviam passado a ser "santos guerreiros no céu".

Os corpos foram encaminhados à capela maior da fortaleza. Convinha que os enterros fossem efetuados ainda aquela noite, com a maior brevidade, pois o calor da região precipitava a decomposição dos corpos. A oração fúnebre seria pronunciada pelo monge Gualtier Drennis, um ancião reconhecido e venerado por sua santidade. A idéia agradou aos templários, pois muitos haviam estado presentes à visita feita à fortaleza pelo Superior Geral dos hospitalários em Jerusalém, Raymond Du Puis. Ele havia se referido ao ancião como "o homem mais santo em toda a Ordem, uma luz para os noviços e um guia para os cavaleiros veteranos". Depois, acrescentara que podia voltar com a alma tranqüila ao seu posto em Jerusalém; o Santo Ancião, como era chamado por todos, por ter na alma a virtude da fortaleza divina, era responsável por aquela fortaleza de pedra ser o que era. Os superiores decidiram que a cerimônia seria ao cair da noite, sob a luz dos archotes. Enquanto isto, Pietro Moriondo fizera deslocar as pedras no chão do claustro onde seriam sepultados os cavaleiros das duas Ordens.

Angus MacLachlan saiu da capela onde a atmosfera ia se tornando irrespirável. O odor da morte impregnava as paredes e os corredores. Ele desistiu do seu catre e subiu as longas escadarias que iam dar ao passadiço. Os sinais da batalha ainda estavam por toda parte. Os braseiros suspensos fumegavam. Ele se afastou até encontrar um vão de parede onde pudesse apoiar as costas. O céu mudara de azul ao violeta, tingido-se de manchas alaranjadas. O guerreiro fechou os olhos sem esforço e transportou-se para as suas montanhas altas. Ele largara o arado na planície e agora caminhava na direção do ocaso, sentindo o vento frio no rosto e antecipando o surgimento das estrelas. Sonhava com um dia diferente do que vivera. Suas mãos não tinham o cheiro de sangue mas de terra. Nos seus ouvidos não ressoavam gritos de guerra mas o riso das moças que atravessavam a aldeia com baldes cheios de leite fresco de ovelha.

De repente um pequeno ruído como o de arrastar da ponta de uma adaga na pedra fez com que subisse do sono profundo para um nível de alerta. Angus MacLachlan entreabriu os olhos o suficiente para medir a distância que o separava daquela ameaça. O intruso estava acomodado no espaço de uma ameia, à direita de sua cabeça. O guerreiro não voltou a cabeça, mas permaneceu com as costas coladas às pedras, exercendo pressão contra elas e preparando-se para transferir aquela força às pernas e impulsionar o corpo. Com dois movimentos ele estava de pé e havia agarrado o intruso pelos pés, empurrando-o para fora da ameia e deixando-o pendurado sobre o abismo das muralhas.

- Sou eu, cavaleiro, sou eu, não está me reconhecendo? - o intruso gritava.

- Eu quem? - perguntou Angus fazendo com que o corpo oscilasse como um pêndulo. - Diga o seu nome, se um verme tem nome!

- Bertoldo, o Abutre!

- Um abutre? Ora, ora, temos aqui um abutre! - disse o gigante ruivo, acrescentando: - Vamos ver se você tem asas para voar!

- Não tenho, meu comandante - ele afirmou depressa.

- Ah! você não é um abutre dos que voam sobre os mortos, é dos que saltam sobre eles com suas garras para arrancar os pedaços. Em pedaços vai ficar seu corpo!

- Pelo amor do Cristo, cavaleiro - gritava Bertoldo - pelo amor da Santa Maria mater misericordiae...

- Como ousa invocar a mãe de Deus com essa boca peçonhenta? Vou esmagar sua língua nas pedras lá em baixo! - disse o gigante, soltando-lhe um dos pés.

Bertoldo fez um último apelo:

- Cavaleiro, não deixe que um homem morra sem pelo menos pagar pelos seus pecados!

            - Por que deveria lhe dar ouvidos? - perguntou o gigante ruivo.

            - Porque tem um coração generoso! Quem me concedeu a vida na masmorra não pode agora me atirar destas muralhas!

            - Como veio parar aqui? Como foi que fugiu da masmorra? Angus quis saber, sacudindo-o ainda uma vez.

- Piedade, cavaleiro, eu não fugi. Os hospitalários mandaram que eu saísse quando os prisioneiros turcos chegaram. Um cavaleiro cristão não abandonaria, nem mesmo um abutre, ao vício abominável dos turcos. São todos sodomitas!

- É o que você merecia - disse Angus puxando Bertoldo de volta à ameia. - Agora, suma de minha frente! Que nem mesmo sua sombra miserável atravesse o meu caminho, ou voará desta muralha!

Bertoldo escorregou para o passadiço e saltou para as escadas, certo de que o guerreiro ruivo cumpriria sua ameaça. Muito ficara por ser dito, mas ele compreendeu que aquele não era o dia nem a hora.

            Angus voltou a olhar o céu de estrelas, muito acima de toda miséria humana, e pensou nos guerreiros mortos vagando entre elas, se reagrupando sob o comando de arcanjos. Talvez Dunmait MacAedan estivesse entre eles.

 

Os sinos da capela começaram a badalar pausadamente. Por toda a fortaleza soava o estalido contínuo das matracas, como se a própria Paixão de Cristo fosse anunciada, despertando os que ainda estavam nas celas e chamando-os para as orações fúnebres e o enterro dos companheiros. Pelos corredores ele viu passarem os cavaleiros vestidos de negro com as cruzes brancas e os templários também em seus uniformes. Antes de se dirigirem ao claustro, a cada um era dado um archote. Angus recebeu o seu. Olhou para além da luz que segurava e pôde ver que o claustro não era diferente dos que vira em mosteiros na sua terra ou ao longo de suas viagens. O centro era aberto às orações e as estrelas chamavam os mortos.

Ao lado da terra revirada ou das pedras levantadas, os corpos aguardavam a paz merecida. Um ancião, amparado por dois cavaleiros hospitalários, surgiu no extremo do claustro. O silêncio, que já era profundo, tornou-se reverente quando o santo monge Gualtier Drennis se aproximav:a. Chegando ao centro do claustro, fez u~ sinal com as mãos brancas e descarnadas. Todos encostaram um joelho na terra. Também o ancião pediu que o ajoelhassem, o que surpreendeu a muitos devido à sua visível fragilidade. Os dois cavaleiros que o acompanhavam não retiravam as mãos dos seus cotovelos. Depois de alguns minutos ajoelhado, ele se ergueu novamente e começou a fazer a ronda dos corpos. Beijou os pés de cada um dos guerreiros mortos enquanto os cavaleiros repetiam com voz forte: "Cavaleiros na Terra, santos guerreiros no céu!".

Os corpos foram depositados na terra ou sob as pedras do claustro, cada lugar assinalado no livro de ambas as Ordens para ser reconhecido e venerado para sempre. Quando o último corpo foi enterrado, o santo Gualtier Drennis saiu levado pelos cavaleiros. Exaustos e visivelmente entristecidos, os combatentes que haviam sobrevivido àquele dia se retiraram,

Mestre Everard despediu-se do Grão-Mestre e encaminhou-se para a saída da fortaleza, rodeado pelos seus, Dormiria nas tendas, partilhando a dor e o vazio das ausências. Muitos eram os cavaleiros templários e leigos que vieram de outros fortes e grandes foram suas perdas. Angus MacLachlan foi ao seu encontro. Estendeu-lhe a espada que o Superior lhe havia oferecido para o combate. Os cavaleiros se entreolharam surpresos não com o gesto do guerreiro mas com o fato de que o Superior a aceitou de volta:

- Fez bom uso dela, meu amigo - ele disse.

- As bênçãos do Templo deram-lhe força, não o meu braço reconheceu o guerreiro.

Angus permaneceu ainda algum tempo na entrada da fortaleza, vendo o grupo silencioso dos templários caminhar de volta ao acampamento. Sentia que uma parte de sua alma sempre estaria ao lado deles.

 

                                   O VÔO DO FALCÃO

Os cavaleiros, convidados aos aposentos do superior dos hospitalários, dividiam-se entre os que aceitavam a presença do inimigo e os que se mantinham afastados, reprovando aquele convívio.

O emir Barak Iben Youssef folheava com gosto o livro que o Grão-Mestre colocara à sua frente. Era cheio de ilustrações e, segundo ele, continha poemas de grande beleza. Quando jovem, conhecera o poeta Omar Iben Ibrahin EI-Khaiami. Era persa, nascido em Nishapur.

- Vejam aqui a grande diferença entre nós - dizia ele aos cavaleiros, apontando uma das ilustrações. Podia-se ver um homem tocando alaúde, outro flauta, enquanto outros, ainda, contemplavam pássaros pousados em delicadas flores que subiam pelo pergaminho. Seus livros, cavaleiros - ele prosseguiu -, nunca mostram grupos reunidos para cantar ou recitar poemas. São os torneios e as caçadas que enchem suas almas de felicidade. Não é o que se vê nas suas ilustrações? Não é assim que preferem ser lembrados nos bordados de suas damas? Agora, eu pergunto, como é que assuntos como esses podem contribuir para a descoberta do melhor em cada alma ou revelar como são os laços entre aqueles que se amam?

- O Ocidente tem seus poetas... e sabe cortejar as amadas – disse o Grão-Mestre conciliador.

- Mas torneios e caçadas estão em primeiro lugar - insistiu o emir.

- São também formas de arte - interveio mestre Everard. - E cada uma delas pede a dedicação de muitos anos da nossa juventude. Sem um treino contínuo, perde-se a destreza, a pontaria, a rapidez.

- Artes que só preparam para a guerra - disse o emir com desdém.

- Ou para a vitória - disse mestre Everard visivelmente contrariado, acrescentando: - As vitórias! Eis um ótimo assunto para os poetas!

- Não era o que pensava o jovem Omar. Nem vitórias e nem derrotas. Ele perguntava apenas: "Ó Allah! Como queres que proceda? No Livro do Destino escreveste todo o mal e todo o bem que esperavas de mim nesta existência. Ora, eu sou aquele mesmo, exatamente o mesmo ser que Tu criaste, e se tudo o que acontece estava escrito, e o sabias, - O que posso fazer? - O que devo fazer?”.

Angus MacLachlan ouviu o poema em silêncio, como os outros cavaleiros. Percebeu que o emir aceitava a derrota que sofrera mas não se via como responsável, e sim como vítima. Isto ele não podia aceitar e nem mesmo compreender. A vitória era um favor divino, mas a derrota podia ser obra do homem e dele apenas. No entanto, mestre Everard rompeu o silêncio:

- O seu poeta canta a fatalidade, mas são as artes da guerra ou a falta delas que decidem para onde se inclina o mal e o bem numa contenda.

O coração de Angus podia compreender aquelas palavras que saíam da boca de um guerreiro como ele próprio.

O Grão-Mestre, sentindo a tensão crescente na conversa, interveio perguntando ao emir:

- De que mais fala o seu poeta?

- De perdas... da juventude... dos pássaros... - respondeu o Emir.

- O que diz ele da juventude e dos pássaros? - perguntou o GrãoMestre, sabendo que o emir fazia menção velada ao seu falcão. Ouviu-o recitar:

"Que angústia! Já não sei mais em que época floriu a adolescência, aquele pássaro sensível a todas as emoções da alegria e do pesar." Ele escreve ainda: "Que coisa triste que a primavera leve a rosa!... O pássaro, cantando ainda ontem no ramo, de onde veio? Para onde foi?”.

O superior dos hospitalários compreendeu que o falcão representava mais do que uma ave de estimação. O seu vôo sereno e livre era a maneira que tinha o emir para lembrar um tempo feliz que se distanciava.

Quando foi reconduzido pelo prior à sua cela, o Grão-Mestre disse-lhe que podia levar consigo o livro do poeta Omar para ler durante o tempo em que permanecesse na fortaleza. O prisioneiro recusou dizendo:

- Não quero lembrar com os olhos aquilo que meu coração não guardou. Se não o fez, não era importante então. Por que seria importante agora?

 

Durante os dias que se seguiram ao combate contra os turcos, Angus MacLachlan procurou muitas vezes o refúgio do passadiço nas muralhas. Era capaz de suportar o calor e o ar abafado do deserto durante o dia, horas em que se sentia entorpecido demais para pensar nas coisas que sua alma pedia. Mas havia momentos, no início e no fim das jornadas de calor, quando precisava subir as escadarias, como se fossem colinas e montanhas, para chegar ao alto e dali descortinar o que se passava dentro dele mesmo.

Numa dessas manhãs, fazia dez dias desde que acontecera a batalha, ele se deixou ficar sentado à sombra das pedras, mesmo quando o sol já era um fruto vermelho e maduro acima do horizonte. Em seu pensamento estava na Escócia e percorria campos de aveia, de centeio e de sorgo, saltando sobre as muretas de pedra que os separavam. Era um rei saudoso dos seus domínios.

            Quando abriu os olhos, viu mestre Everard a alguns passos, olhando na direção do acampamento dos templários.

- Nossos irmãos logo estarão de partida - anunciou o superior.

- Tenciona lambém partir? perguntoll Angus.

- Muito em breve, mas tomarei outro rumo e, quem sabe, faremos juntos uma parte do caminho.

- É possível - disse Angus - Também eu devo seguir uma direção, embora tudo o que tem acontecido desde que cheguei a esta terra não me ofereça uma indicação de que caminho deva seguir.

- Pediremos a Deus que lhe mostre o que fazer - disse o mestre. Enquanto os desígnios do Altíssimo não forem claros, eu posso dizer o que esperamos que faça ainda por nós. Esta noite, deverá rezar o Ofício de Vésperas em nossa companhia. É desejo de todos os cavaleiros, templários e hospitalários. Queremos que saiba que o julgamos um dos nossos, não pela força dos votos monásticos, mas pela fraternidade de coração.

- Foi isto o que senti no campo de batalha - disse o guerreiro. Eu aprendi que não se está preparado para viver ou morrer em combate se aquele que luta ao nosso lado não for um irmão.

- Terá acolhida em nossas casas - continuou o mestre - e salvoconduto para viajar por todo o lado nesta Terra Santa onde os nossos guardarem as rotas, e por todos os reinos da cristandade.

- Não foi em busca de recompensas que lutei - disse Angus.

Everard fez um sinal com a cabeça para dizer que conhecia o coração do guerreiro.

Nesse instante, uma voz perto deles anunciou em altos brados:

- Mensageiros se aproximam da fortaleza!

Eles se voltaram e viram Bertoldo, o Abutre, de pé sobre a muralha, apontando o horizonte. Angus MacLachlan, num primeiro impulso, agarrou-o pelo tornozelo.

- Eu avisei! - disse entre dentes.

Mas logo sentiu a mão de mestre Everard sobre o ombro, detendo o seu gesto:

            - Aguarde um instante, ele pode estar falando a verdade.

            Angus olhou para o horizonte onde o calor espelhava e ondulava as colinas de areia:

- Ele mente! Não há ninguém se aproximando.

- Três cavalos e dois homens - insistiu Bertoldo, ainda sentindo a mão do gigante ruivo agarrada ao seu tornozelo. Um pequeno impulso, e ele voaria da muralha.

- Sei que tem poder de vida e morte sobre este homem - disse o superior dos templários -, mas peço-lhe que aguarde ainda uns instantes.

- Três cavalos e dois homens! - repetiu Bertoldo, acrescentando: - Logo verá que o que digo é verdade, mestre Angus, e então me deixará servi-lo para pagar os meus pecados.

Alguns instantes mais se passaram e de dentro da onda de calor no horizonte surgiram três pequenos vultos em movimento.

- O abutre estava certo! - exclamou mestre Everard. - Com os olhos que tem, eu não desprezaria os seus serviços.

            - Servirei para pagar os meus pecados! - assegurou-Ihes Bertoldo.

A mão do gigante ruivo deixou o seu tornozelo e ele tratou de saltar rápido para o passadiço.

            - Suma da minha frente! - disse Angus, mas sua voz já não continha ameaça.

            - Vou ser invisível, se me deixar servi-Io - garantiu-Ihe o Abutre, desaparecendo numa esquina da muralha.

Mestre Everard soltou uma gargalhada.

- Do que está rindo? - perguntou Angus.

- Eu lhe disse que Deus diria o que você deve fazer. Veja, até já lhe mandou um escudeiro!

- Um abutre! - disse Angus.

- Um abutre, é verdade - concordou o superior dos templários -, mas um abutre com olhos de águia!

Entretanto, a aproximação dos mensageiros fez com que descessem ao seu encontro. Mestre Everard reconhecera que um deles vestia a túnica de templário e o outro era Guy du Pin, ainda com a sua roupa de peregrino, puxando um terceiro cavalo pelo cabresto.

Foram conduzidos aos aposentos do Grão-Mestre, pois uma das mensagens era para ele e vinha aliviá-Io da guarda do emir.

- Templários e hospitalários deverão acompanhar o prisioneiro a Jerusalém, onde sua libertação será negociada - explicou Guy du Pino

- Uma viagem perigosa! - comentou o Grão-Mestre.

- Os soldados turcos irão em carroças. Convém que a escolta seja grande e esteja bem armada para evitar surpresas – continuou Guy du Pino

Na opinião de mestre Everard, a escolta poderia estar pronta em dois dias para iniciar a viagem.

- Talvez seja necessário esperar uns dias mais - disse o GrãoMestre, que lia uma carta enviada de Jerusalém pelo Superior geral Raymond du Puis. - Devemos aguardar a chegada do senhor bispo de Trípoli, que já está a caminho desta fortaleza.

- Que faz o bispo de Trípoli, tão longe dos seus domínios? - perguntou Everard.

- Por enquanto sabemos que vem. Ele próprio nos dará a razão da sua visita. Pelo menos, os cavaleiros terão a sua Missa de Purificação antes de viajarem a Jerusalém.

- Uma Missa de Purificação? - perguntou Angus MacLachlan a mestre Everard quando deixavam os aposentos do Grão-Mestre.

- Foi uma batalha sangrenta - disse o superior dos templários. - Será necessária uma missa para que possamos lavar o sangue da alma. Os mortos foram encaminhados aos céus. Agora há que cuidar dos vivos.

 

Do Livro de Crônicas de Everard de Barres

Cavaleiro e Mestre da Ordem do Templo

O que escrevo a seguir é parte do relato que eu mesmo fiz ao nosso escrivião. Sob minha recomendação, tudo foi transcrito no Livro da Ordem do Templo. A meu pedido, os cavaleiros presentes aos acontecimentos deixaram seus nomes como testemunho.

Os serviços que nos foram prestados pelo cavaleiro escocês Angus MacLachlan, senhor do seu clã, desde que resolvera usar as suas armas e destreza em nosso benefício, foram de grande valor, e a ele devo mesmo a minha vida. Assim, nada mais justo que fosse organizada uma cerimônia para que diante de Deus e dos homens pudéssemos mostrarlhe o nosso reconhecimento. A iniciativa juntou os cavaleiros de ambas as Ordens, e foi devidamente examinada pelo Grão-Mestre, que comigo discutiu a justiça da proposta, sua conveniência e a melhor maneira de realizá-Ia.

O cavaleiro escocês não havia mostrado desejo de fazer os votos de pobreza, obediência e castidade, iniciando um noviciado em qualquer das duas Ordens. Assim, com o acordo de todos, foi sugerida uma cerimônia na qual, diante da espada sagrada, relíquia nesta fortaleza, haveria um compromisso de que Angus MacLachlan seria reconhecido o direito do mesmo trato dado aos irmãos consagrados, acolhida em qualquer casa das duas Ordens, assim como salvo-conduto para ser usado em todos os caminhos nesta Terra Santa e nos reinos onde houver cristandade.

Ao cair da tarde, no Ofício de Vésperas, cavaleiros das duas Ordens formavam um círculo em volta da santa mesa, alternando-se na recitação dos Salmos e nas invocações aos santos e arcanjos. Entre nós encontrava-se Angus MacLachlan.

O ancião Gualtier Drennis, de quem, com justiça se diz, que "ilumina mais do que a própria luz”, rezava de olhos fechados, encurvado como um pássaro à mercê do frio. Cada vez que o vejo está se tornando mais magro e frágil. Seu manto parecia afogá-Io. Tinha as mãos finas como pergaminhos, a cabeça inclinada, e estava tomado pela humildade, deIa podendo fazer exemplo e dom para os seres na Terra e no céu. É um homem no limiar da eternidade.

Angus MacLachlan foi Ievado ao centro do círculo, diante da grande mesa, enquanto um hino era cantado por vozes graves. A nuvem de incenso retirava a nitidez dos rostos e das coisas. Quatro cavaleiros dos hospitalários caminharam solenes na direção do leão de pedra, guardião da espada sagrada. Ao meu sinal, quatro templários uniram-se a essa curta procissão. Ao pé do gigante de pedra, eu podia notar que suas expressões mostravam ansiedade e temor, como costuma acontecer a qualquer simples mortal quando se encontra face a face com o mistério.

O canto cessou, e o santo ancião fez rolar da garganta um trovão de voz que ecoou por toda a cripta. Embora pudéssemos ver que ele estendia os braços na direção da espada, nada do que dizia explicava a natureza da sua visão. E Gualtier Drennis assim falou:

"Luzes dos séculos! Sombras do Uno! Guardiões do céu e da Terra! Centuriões do Universo! Vinde romper as cadeias e expulsar os espíritos imundos! Trazei-nos a paz! Vinde seres alados, seres de fogo! Forjai com vossos raios nossos corações! Precipitai sobre o mundo a imensa luz! Desnorteai os mares, trazei os desmoronamentos, seres que renascem das cinzas... Ajudai-nos a pedir perdão pelas faltas do mundo! Seres de luminosa graça, deixai que vos vejam os que têm fé!"

Eram estranhas palavras, a não ser pelo seu poder de invocação, tão forte quanto imagino soarem nos céus o pedido dos santos. Pensei na voz dos profetas, homens sem títulos e sem armas, criando tormentas de fé no curso da história.

Todos nós sabíamos que apenas o Grão-Mestre era capaz de empunhar sozinho a espada. Apenas a ele fora passado o seu segredo e a sua guarda. Nas mãos de qualquer outro cavaleiro, ela pesava como se uma falange de anjos se mantivessem de pé sobre a sua lâmina. Eu mesmo fizera a experiência e posso assegurar que, até aquela noite, oito era o número de homens necessários para retirá-Ia da boca do seu guardião de pedra e colocá-Ia sobre a mesa.

Angus MacLachlan foi encaminhado para ela e curvou-se para tocar a lâmina com os lábios. Só me foi possível compreender o que se passou depois de ouvir as explicações do guerreiro, assim como o relato que me fez da sua visão o santo monge Gualtier Drennis.

"Lembro de ter caminhado para a espada" - disse-me Angus. "Percebi a figura do leão moldada no punho, sua garra sobre a cruz... Achei que era maravilhosa... Ajoelhei-me diante dela, curvei-me, beijei a lâmina... Senti a tontura de quem não tem nenhum ponto estável para fixar o olhar. Tudo girava ao meu redor... Fui transportado, carregado por um vento gélido como o que sopra no outono descendo das altas montanhas na minha terra. Os mares que singrei, entre blocos de gelo como montanhas colossais... Revi rostos que só me visitavam em sonhos... Uma mulher ruiva, um homem que era como um espelho diante de mim, em quem eu me via mais velho... um eremita, eu me lembro... um rei... Estavam todos ao redor da mesa esperando que eu erguesse a espada... Então estendi a mão e a segurei pelo punho... E não me pareceu mais pesada do que outras com que combatera... Durante o tempo em que durou o meu delírio, não tenho lembrança dos cavaleiros na cripta, do leão de pedra, ou de outra coisa qualquer que me indicasse estar na fortaleza. Quando voltei do delírio, percebi onde estava e dei conta de estar empunhando sozinho a espada sagrada”.

Foi o que depois ouvi da boca de Angus MacLachlan. Eu olhei em volta para saber se outros, como eu próprio, haviam presenciado aquele milagre. Os rostos iluminados pelos archotes estavam pálidos e revelavam um grande espanto. Então, me ajoelhei e os cavaleiros fizeram o mesmo. Uma voz iniciou o hino que todos acompanharam:*

 

Sanctus, Sanctus, Sanctus,

Dominus Deus Sabaoth.

Pleni sunt caeli et terra

Gloria tua.

Omnes unanimiter mundi nationes

Dicite suaviter iuvenes et senes.

Angeli, archangeli, dominationes,

Cherubim et seraphim, throni, potestates,

Principatus, virtutes circum clamitantes

Voce incessabili Christum venerantes.

Hosanna in excelsis,

Benedictus qui venit in nomine Domini.

Universi populi, omnes iam gaudete,

Deus trinum et unum hymnis collaudate.

De coelo pro homine descendit Messias

Quem praedixit Gabriel, vates Isaias.

Hosanna in excelsis.

 

* Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos Exércitos.

O céu e a terra estão cheios da Vossa glória.

O mundo, as nações, os jovens e os velhos cantam todos em   uníssono.

Anjos e arcanjos, dominações,

Querubins e serafins, tronos e potestades,

Principados e virtudes e tudo o que está junto deles veneram o Cristo com voz incessante.

Hosana nas alturas, bendito o que vem em nome do Senhor.

Todos os povos do Universo, tomados de alegria, louvam juntos com seus hinos o Deus Trino e Uno.

Do céu para os homens veio o Messias, anunciado por Gabriel, profetizado por Isaías.

Hosana nas alturas.

 

A última nota ainda soava na cripta, quando vimos o santo ancião Gualtier Drennis, com passos vacilantes, caminhar na direção de Angus MacLachlan. Com voz firme e o dedo apontado na direção do guerreiro, ele disse:

Vejo ainda os dois querubins que lhe entregaram a espada. Não os procure, pois seus olhos não poderiam contemplá-los ou a visão lhe incendiaria o coração e lhe traria a morte. Reconheço, diante de todos, que você é o herdeiro da sagrada relíquia! Ela agora lhe pertence, como antes  de seu nascimento pertenceu aos seus antepassados.

Angus MacLachlan olhou a espada em suas mãos e murmurou:

- Esta é Gaoth Cerridwen...

O ancião completou:

- ... forjada com um Santo Cravo da Cruz de Nosso Senhor!

A revelação nos surpreendeu a todos, menos a Angus que havia aprendido a saga do seu clã, e ao Grão-Mestre, que conhecia os segredos da espada.

O guerreiro voltou-se para a santa mesa, depositou a espada sobre ela e ajoelhou-se visivelmente angustiado.

Fiz um sinal para que os cavaleiros deixassem a Cripta e ficamos os três, o santo ancião, o Grão-Mestre e eu próprio, para ajudar o cavaleiro nórdico a lidar com aquela revelação.

- Ela está outra vez muito pesada! - disse, acariciando a sua lâmina.

- Devo chamar de volta os cavaleiros? - perguntei.

Ele levantou-se.

- Não é necessário! Posso bem empunhá-Ia - disse, voltando a retirar a espada do altar. - O peso que sinto é o da responsabilidade. O que será que Deus quer de mim? Como poderei responder a isto? Conheço a força que nasce em mim durante uma batalha, mas esta espada pedirá uma força que desconheço ainda.

            Ficamos calados, pois não podíamos deixar de considerar as grandes provações a que Angus MacLachlan estaria sujeito.

            Foi o santo ancião quem falou:

            - A nenhum homem Deus dá um dom ou uma missão que esteja além das suas forças, porque no instante mesmo em que se diz "Sim" a Deus, já se pode contar com a própria força divina. A força de Deus está na espada, Angus MacLachlan, e o que lhe é oferecido é muito mais do que lhe será pedido. Não tenha medo, meu filho! Seu avô era um homem sem medo!

            - Sean MacLachlan! - exclamou o guerreiro, acrescentando: - Foi ele quem deu Gaoth Cerridwen para ser guardada pelos hospitalários.

            - O último alento desse grande guerreiro é o seu alento agora disse o Grão- Mestre.

            Outra questão ainda perturbava o espírito de Angus:

            - Como poderei levar comigo a relíquia que protege esta fortaleza e dá ânimo aos cavaleiros?

- Não perturbe a sua alma com isto, meu filho! - disse Gualtier Drennis. - Eu olho para o leão de pedra e garanto-lhe que ainda posso ver a espada presa em sua boca.

Olhamos todos na direção do animal, mas não podíamos ver aquilo que o santo ancião afirmava.

- Outra espada? - perguntou Angus.

- A mesma que protege esta fortaleza e que dá ânimo aos cavaleiros - declarou o santo, explicando: - Ela nunca deixará de estar aqui, embora você a leve atada ao corpo, porque aqui permanece a nascente espiritual da sua força. Use-a bem e com justiça, Angus MacLachlan, para que essa força não desapareça nunca, nem em você e nem nos cavaleiros que vierem aqui a esta cripta e a invocarem com fé.

- Que inimigos deverei combater? - perguntou o guerreiro.

- Seus inimigos serão os inimigos da espada - disse Gualtier Drennis.

- O Mal luta contra ela desde o início dos tempos. Ela foi forjada para esse combate.

- Sou um guerreiro mas sinto medo - disse Angus MacLachlan. Medo de decepcionar meu Senhor, medo de que o meu coração não procure Suas virtudes. Gosto de ter Deus como Pai, mas temo enfrentá-Io como Juiz.

            - Então deixe que a espada seja a sua maior testemunha e fale a seu favor quando o momento chegar - disse o ancião.

As palavras do santo acalmaram o coração do guerreiro. Ele pediu para ser deixado na cripta sozinho aquela noite, com Deus e sua força. O Grão-Mestre consultou Gualtier Drennis com o olhar.

- Que assim seja - disse o santo ancião.

Saímos os três e, por ordem do Grão-Mestre, as portas de bronze foram cerradas e os guardas avisados que nenhum cavaleiro poderia ali entrar até que o sol voltasse a surgir no horizonte.

Enquanto caminhávamos pelo corredor a passo lento, levando pelo braço o santo ancião, o Grão-Mestre falou na possibilidade de Angus refletir sobre a sua nova situação e desistir de toda luta.

- Não creio - eu disse com veemência - ele é e sempre será um guerreiro em seu coração. Nada mudou!

- Tudo mudou - disse Gualtier Drennis - ele agora é um guerreiro de Deus!

Quando Angus MacLachlan ficou sozinho na cripta, voltou a empunhar a espada. Queria senti-Ia outra vez nas mãos. Sabia que era um ser vivo e misterioso. Ele caminhou pelo espaço vazio vibrando golpes em inimigos imaginários. Quanto mais rápidos eram os golpes, mais leve se tornava o seu peso.

- Gaoth Cerridwen - ele perguntou - deverei tratá-Ia como um anjo ou como uma mulher?

Surpreendeu-se a si próprio com a pergunta. Ignorava a natureza dos anjos ou das mulheres. Para ele, anjos eram os seres de bondade que haviam povoado a sua imaginação de criança e que surgiam em rostos santos nos seus sonhos. Quanto às mulheres, pensou que as de seu clã estavam unidas a ele por laços de sangue. As mais velhas e sábias haviam-lhe ensinado a necessidade da ternura e da misericórdia. Quanto às mais novas, sentira-se sempre na obrigação de velar por elas, O chefe de um clã responde por todos diante de Deus, esta era a crença geral. Não encontrara ainda mulher que o desafiasse

            com o mistério da sua natureza.

Passou a mão de leve sobre a lâmina brilhante e voltou a perguntar:

- Você é mulher, Gaoth Cerridwen? Pois foi profetizado que uma mulher esmagaria com o pé a cabeça do Maligno quando ele a ferisse no calcanhar.

Outra vez caminhou pela cripta vibrando golpes. De cada vez, parecia que o punho da espada se amoldava mais e mais à sua mão. Golpeou a chama de um archote e ele se apagou. Repetiu o gesto em outro e o mesmo voltou a acontecer. Viu que a espada ia se tornando incandescente à medida que a luz dos archotes morria.

- Eu aprenderei os seus segredos - ele disse.

Voltara ao centro da cripta e suas mãos erguiam a única fonte de luz que espalhava raios ao seu redor.

- Serei seu cavaleiro e a servirei até o fim dos meus dias – ele prometeu. - Nem força humana e nem a morte nos há de separar.

Voltou aos archotes e tocou em cada um com a ponta da espada. Eles voltaram a se acender. Ele sabia que assim seria, pois fora a espada que lhe dissera o que fazer, não com palavras mas com um impulso dado ao seu coração.

Foi tomado por imenso cansaço. Depositou a espada sobre a grande mesa sem deixar de segurá-Ia pelo punho. Ajoelhou-se, pois sabia que seria uma longa noite e deveria passá-Ia em oração. Mas parecia-lhe que esgotara as palavras do coração e não havia mais o que pudesse dizer.

Adormeceu de joelhos, e Gaoth Cerridwen assim o manteve, mergulhado num sono profundo, até que as portas de bronze da cripta voltaram a se abrir.

 

                                       DUAS ESPADAS

Ao amado irmão em Cristo e venerável Everard de Barres, mestre da Ordem do Templo.

Que o amor e a força do Senhor estejam no seu coração e nos corações de todos os cavaleiros desta santa Ordem.

O marechal da Ordem do Templo, Jacques Domaine, levará esta carta às suas mãos para que saiba daquilo que se passa no momento neste Reino de França. O rei Luís escreveu ao rei Rogério, soberano da Sicília, como a todos os príncipes cristãos da Europa, para comunicar sua intenção de peregrinar à Terra Santa, convidando-os a participar de sua expedição.

Embaixadores franceses foram enviados à corte de Constantinopla. O Imperador Manuel Comeno recebeu-os bem e referiu-se a nosso rei com os títulos de santo, amigo e irmão. Peço a Deus que estas palavras tenham nascido de um coração sincero. Infelizmente, só poderemos comprovar as suas verdadeiras disposições quando os exércitos do Ocidente baterem à porta de sua capital.

Portanto, é fato consumado que o rei Luís parte para a Terra Santa. A França sente-se iluminada. Durante a assembléia de Étampes, vários embaixadores vieram anunciar a intenção de seus príncipes de se unirem a nosso rei para empunhar a única bandeira da cruz; foram lidas cartas enviadas de reinos mais distantes, pelas quais um grande número de senhores e barões estrangeiros declaram a sua vontade de se unir aos franceses nesta cruzada contra os muçulmanos.

Entre os embaixadores em Étampes, estavam presentes aqueles enviados por Rogério. Em nome do seu soberano, eles ofereceram navios, víveres e a companhia do próprio príncipe herdeiro, caso resolvessem tomar a rota marítima para a Terra Santa. Não podemos avaliar com antecedência se nesses oferecimentos mostraram-se apenas zelosos pelo bom êxito da Cruzada, ou se escondiam outros interesses. Os embaixadores esforçaram-se para provar à assembléia que uma viagem por mar ofereceria menos dificuldades e perigos aos cristãos, enquanto que, por terra, a travessia de países desconhecidos forçaria os peregrinos a lutar contra a hostilidade do terreno e do clima sem esquecer a agressividade das várias nações bárbaras.

Discutiu-se durante longo tempo sobre o caminho a seguir para chegar à Palestina. A maioria dos barões e cavaleiros presentes mostrou grande confiança na proteção divina e nas suas armas. A viagem por mar parecia oferecer menos maravilhas à sua curiosidade e menos oportunidades de mostrar sua bravura. Além disso, a quantidade de navios oferecidos pelo rei Rogério era insuficiente para transportar o número cada vez maior dos ardorosos combatentes nessa Guerra Santa. Os embaixadores da Sicília não esconderam o seu pesar e retiraram-se da assembléia prenunciando os mais terríveis desastres em virtude daquela decisão.

Resolvida esta primeira questão, outra de igual importância ocupou a assembléia: quem escolheriam para administrar o Reino durante a ausência do rei? Bernardo de Claraval, falando em nome de barões e prelados, apontou ao rei o abade Suger e o conde de Nevers, com estas palavras: "Majestade, eis duas espadas e isto nos basta!”. Mas como bem sabe, essas escolhas deviam ter, além do acordo real, a aprovação do povo.

Ora, o abade de St.-Denis havia declarado abertamente sua oposição à nova cruzada. Suger aconselhou ao rei não abandonar os seus súditos. Disse-lhe que seus pecados seriam reparados de forma mais completa com uma sábia administração e não pelas conquistas no Oriente.

Aquele que ousou dar tal conselho ao seu soberano mostrava-se mais digno do que outro qualquer para ocupar o seu lugar. Mas, a princípio, o abade recusou tal cargo, de cujo peso e perigo o sábio tinha consciência. Por seu lado, a assembléia não quis escolher outro. A vinda do Santo Padre à França foi providencial e decidiu o impasse. Ele ordenou que Suger se submetesse à vontade do rei, da assembléia e do povo. Para facilitar ao abade de St.-Denis a execução da difícil tarefa que lhe é imposta, o Sumo Pontífice ameaçou com castigos divinos e penas eclesiásticas todos os que atentassem contra a autoridade real durante a ausência do soberano.

Quanto ao conde de Nevers, também ele recusou o cargo que lhe era oferecido. Vivamente rogado por alguns para que aceitasse o governo do Reino, declarou que havia feito voto de entrar na Ordem de São Bruno. Sua piedosa intenção foi respeitada como vontade de Deus.

O Reino se ocupa com os preparativos para a partida. Todas as províncias da França e da Alemanha se puseram em movimento. Os mesmos motivos que inflamavam Godofredo de Bulhões na Primeira Cruzada agora impulsionam os novos cruzados. Enfim, a guerra no Oriente continua a oferecer as mesmas esperanças tanto à piedade como às ambições.

O povo cristão é animado pela lembrança sempre presente da conquista de Jerusalém. As relações que tal conquista estabeleceram entre a Síria e a Europa aumentam o zelo e o ardor dos soldados da Cruz. Não há família no Ocidente que não tenha dado um defensor aos lugares santos ou um habitante para as cidades na Palestina. As colônias na Ásia são para os francos como uma nova pátria. Os guerreiros que tomam a cruz parecem armar-se para defender um outro Reino de França, amado por todos os cristãos e que bem se poderia chamar a França do Oriente.

Um grande número de senhores chamados praedones, cujos espíritos são turbulentos, possuem culpas a expiar. O espírito de cavalaria faz progressos conclamando a um alto ideal, e este é também um motivo de peso para a nobreza guerreira e para aqueles que desejam purificar-se de antigas faltas.

Muitas mulheres, influenciadas pelo exemplo de Eleonora da Aquitânia, tomaram a cruz e armaram-se de lança e espada. Uma multidão de cavaleiros seguem-nas. Uma espécie de vergonha fere todo aquele que, por uma razão justa ou não, é excluído do combate contra os infiéis.

Por toda parte onde Bernardo não pôde fazer ouvir a sua voz, suas cartas eloqüentes foram lidas do alto dos púlpitos e inflamaram de ardor os fiéis. Os oradores sacros repetem suas palavras e seguem os passos do seu labor apostólico. Nas províncias mais distantes onde não chegam os missionários da cruzada ou as palavras de Bernardo, os pastores lêem o breve do Soberano Pontífice incitando seus rebanhos a se armarem para a libertação da Terra Santa. Os que sentem a alma tocada chegam ao pé do altar, fazem o sinal-da-cruz na fronte, na boca e no peito, prometendo de joelhos combater no Oriente pela causa de Jesus Cristo. Os novos cruzados recebem o sinal-da-cruz feito pelo pastor, ao mesmo tempo em que ouvem declarar: "Que todos os vossos pecados sejam perdoados se fizerdes o que prometeis”.

O exército cristão está em marcha levando a socorro da Divina Providência aos que acodem os humildes e os inocentes, como fazem os dignos cavaleiros de sua Ordem. Isto é tudo o que lhe posso dizer no momento. O marechal responderá a questões que eu porventura não tenha abordado nesta carta.

Nosso mais vivo desejo é que em tudo Deus seja glorificado. Em Seu Santo Nome, Nosso Senhor Jesus Cristo, desejo-lhe a Paz.

Bertrand Dupreux, abade de Citeaux.

 

As notícias trazidas por Jacques Domaine, marechal da Ordem do Templo, sobre uma nova cruzada, provocaram grande agitação na fortaleza. Uma reunião foi convocada de imediato pelo Grão-Mestre e por mestre Everard. Nos aposentos do superior dos hospitalários foi colocado sobre a mesa um enorme tabuleiro no qual estava pintado um mapa mostrando os reinos da Europa, as regiões dominadas pelos bárbaros, o Império Bizantino e aquela parte do Oriente que interessava a todos os cristãos.

Angus MacLachlan ouvira junto com os cavaleiros a carta do abade de Citeaux dando conta da situação. Enquanto o mestre lia alto, seu marechal ia colocando pequenas peças de madeira para um melhor esclarecimento dos diversos lugares e personagens envolvidos, enquanto o senescal da Ordem, também presente, fazia cálculos sobre os gastos necessários para colocar em marcha tamanho empreendimento.

Duas outras cartas haviam sido entregues por Jacques Domaine a mestre Everard e ao Grão-Mestre. A visão do selo real não deixava dúvidas da sua procedência. Eram apenas umas frases curtas escritas pelo próprio rei Luís VII.

- Um pedido real para que juntemos os nossos esforços ao de toda a cristandade - dissera o Grão-Mestre.

- Um pedido real é sempre uma ordem - haviam sido as palavras de mestre Everard. A ele coubera a parte mais espinhosa. O rei queria-o em Constantinopla para sentir pessoalmente que repercussões tivera a notícia da nova cruzada junto ao imperador. Compreendeu que seu soberano desconfiava das disposições de Manoel Comeno.

O Grão-Mestre lembrou o que dizia a carta do abade de Citeaux:

- Os embaixadores do rei foram bem recebidos e o rei Luís lembrado com amabilidade.

- Sim - contrapôs o mestre -, mas Manoel Comeno ainda não sabia que seu Império estaria no rota dos cruzados. O rei Luís não tem permissão para invadir seu território com um exército, nem existe ainda acordo ou aliança neste sentido.

- Que melhor pessoa para garantir um acordo ou uma aliança do que o meu caro irmão? - perguntou o Grão-Mestre, inclinando-se na direção de Everard.

Angus MacLachlan ouviu o superior dos templários murmurar entre dentes:

- Todos nós sabemos que o basileu pensa ser o faraó dos cristãos!

Os cavaleiros começaram a discutir rotas alternativas, mas mestre Everard permaneceu em silêncio durante longo tempo. Ele ouvia as várias opiniões sem manifestar agrado ou desagrado, até que alguém propôs uma visita ao rei Rogério. Afinal, os seus embaixadores tinham certa razão quanto a uma rota mais segura.

- Ah! Os sábios conselhos dos sicilianos! - exclamara mestre Everard rompendo o silêncio. E acrescentou com veemência: - O rei Rogério oferece tudo! Sabemos bem onde ele quer chegar. Algum tempo antes da tomada de Edessa, os sarracenos da África atacaram a costa da Sicília, invadiram Siracusa e saquearam-na brutalmente. Não é um fato que se apague com facilidade das memórias. Rogério sabe que a passagem dos cruzados por seus Estados iria oferecer-lhe meios seguros para contra-atacar os muçulmanos. Esse governante é abençoado por sua astúcia. Pena que não o seja por sua dignidade. É mil vezes preferível enfrentar Manoel Comeno.

As últimas palavras do superior dos templários deram a todos a certeza de que ele estava resolvido a cumprir o que determinara o rei e que partiria para Constantinopla.

Após o Ofício de Vésperas, Angus MacLachlan acompanhou-o esperando uma oportunidade para que pudessem trocar algumas palavras a sós. Todos já haviam se dirigido ao refeitório.

- Uma palavra apenas, mestre - disse Angus antes que entrassem. Everard fez-lhe sinal e recuaram ambos para o claustro.

- O que acha de tudo isto que está acontecendo, meu amigo? - perguntou o mestre.

- Todo problema que envolve muitas respostas nunca é resolvido a contento de todos.

- Veja você, Angus - continuou o mestre - é mais fácil liderar uma carga sobre o inimigo do que cavalgar pelos labirintos da diplomacia.

- Pode recusar a missão a Constantinopla? - perguntou o guerreiro. Mestre Everard suspirou:

- É uma ordem do rei e somente ele pode mudar de idéia quanto à utilidade ou não dessa missão.

- Então partirá mesmo para Constantinopla?

- Sim, e o mais breve possível. Deverei viajar logo após a visita prometida do senhor bispo de Trípoli.

Então Angus MacLachlan declarou:

- O rei de França não é meu rei e, portanto, não lhe devo lealdade. Mas a causa que ele defende é de todos nós, porque é a causa de Cristo. Assim sendo, mestre Everard, se for do seu agrado, nós dois o acompanharemos nessa viagem a Constantinopla.

- Nós dois? - perguntou o superior sem compreender.

- Sim, nós dois, eu e... Gaoth Cerridwen, a santa espada – disse o guerreiro.

- Nada me agradaria mais neste mundo do que ter os dois ao meu lado nessa perigosa missão, Angus MacLachlan - declarou mestre Everard enquanto se encaminhavam para o refeitório, e Angus podia jurar que havia na sua voz um tom de verdadeira satisfação.

À noite, caminhando pelo passadiço das muralhas, com as estrelas sobre a sua cabeça, Angus pensava na decisão que tomara e tentava imaginar o que teria feito seu avô Sean. Depois que fora reconhecido como o legítimo dono da espada sagrada, estava certo de que tinha sua própria missão, mas qual seria esta? Talvez a resposta tardasse ainda por vontade divina, ou talvez fosse clara e ele incapaz de percebê-Ia. Acompanhando mestre Everard, ele tinha a certeza de que abraçava a causa de Cristo e que sua missão, fosse ela qual fosse, só podia ser parte desta santa causa.

 

Dentro da carroça e recostado em almofadas, Arnaud de Saint-Martin, o senhor bispo de Trípoli, deu graças aos céus quando lhe vieram dizer que já se podiam avistar as muralhas brancas de HosnEI-Akkrad, o Krak dos cavaleiros da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém. Ele afastou a cortina da carroça para certificar-se do fato com seus próprios olhos. Recebeu no rosto uma onda de areia e calor. Arrependeu-se mais uma vez de ter feito a maior parte da jornada na carroça, e não montado em seu cavalo, como agora esperava entrar na fortaleza.

- Posso lhe garantir que para o inferno faz-se a mesma viagem, Trambuy - ele disse ao secretário que fez ligeiro o sinal da cruz pedindo aos céus um destino melhor.

Conforme as instruções que recebera do bispo, o comandante da guarda deu ordem para que o séquito parasse. O cocheiro trouxe a escada móvel e abriu a porta. Arnaud de Saint-Martin pediu água. Trouxeram-lhe uma bacia e um jarro. Ele lavou o suor do rosto e do pescoço antes de abrigar-se sob o chapéu, compor a capa e calçar as luvas ricamente bordadas com as armas da sua diocese, repetidas nas carroças, nas túnicas da sua guarda e nas selas dos cavalos. Precavido quanto aos perigos daquela jornada e sabendo que importante refém ele representava para os muçulmanos, caso pudessem apanhá-lo, trouxera uma guarda de duzentos homens divididos em duas falanges, a dos lanceiros e a dos arqueiros.

Seu corpo pesado e suas pernas amortecidas pelas horas passadas na mesma posição dentro da carroça não o ajudaram quando quis montar. Foi necessário trazer os mesmos degraus, enquanto o comandante da guarda segurava o cavalo pelas rédeas.

 

- Apressem-se! Apressem-se! - pedia o bispo, sem perceber que era ele mesmo o motivo do atraso.

Um grupo de cavaleiros templários e hospitalários, acompanhados dos seus estandartes, galopava para dar as boas-vindas ao dignitário da Igreja. Já montado, Arnaud de Saint-Martin esperou que os lanceiros formassem duas colunas e esporeou seu cavalo para se distanciar das carroças. Os lanceiros o seguiram. Alguns metros adiante ele puxou as rédeas e continuou, desta vez num trote lento, pois não convinha que fosse ele a ir ao encontro dos cavaleiros, mas que estes viessem engrossar a sua escolta.

Quando se aproximaram das muralhas, os sinos na fortaleza começaram a tocar anunciando a sua chegada. O Grão-Mestre e mestre Everard esperaram que o visitante apeasse do cavalo para então trocarem o beijo da paz. "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, disse o bispo, ao que os superiores responderam: "Para sempre seja louvado". Numa só voz os cavaleiros de ambas as Ordens selaram o ritual de boas-vindas, repetindo por três vezes "Amém, Amém, Amém".

Arnaud de Saint-Martin foi levado a uma cela especialmente preparada para ele, próxima aos aposentos do Grão-Mestre. Seu corpo ansiava por descanso, mas seu ventre reclamava alimento e o reconforto de um bom vinho. Apenas o Grão-Mestre e mestre Everard fizeram com ele aquela primeira refeição.

Embora a convocação à Cruzada estivesse no pensamento dos três homens, o assunto não foi abordado senão para confirmar que os superiores das duas Ordens já estavam a par dos acontecimentos e, por parte do bispo, a necessidade de levantar os ânimos pela causa do rei.

- Hoje, durante a Missa de Purificação, direi aos cavaleiros qual é o pensamento da Igreja - ele prometeu.

Durante o resto do dia o bispo permaneceu na cela que lhe fora destinada, encontrando nas paredes grossas que o rodeavam um frescor que não sentira em nenhum momento da sua dolorosa jornada debaixo do sol inclemente.

Ao cair da noite ele voltou a ouvir os sinos da fortaleza anunciando o Ofício de Vésperas. A este se seguiria a santa missa. Chamou seu secretário e deixou-se paramentar enquanto repassava mentalmente os principais assuntos do seu sermão.

A igreja da fortaleza estava repleta de cavaleiros. O Grão-Mestre dos hospitalários ocupava a sua cadeira alta no coro à direita do altar e, à esquerda, o prior cedera a sua ao mestre dos templários. Levantaram-se quando o bispo entrou precedido pela cruz processional, três coadjutores e duas dezenas de acólitos.

A missa teve início com os ritos penitencial e de purificação. Com o joelho em terra e as cabeças inclinadas, os cavaleiros batiam no peito repetidas vezes, enquanto o Bispo invocava a misericórdia divina rezando o Salmo: "Do mais profundo abismo clamei a vós, Senhor...”

Angus MacLachlan, de joelhos, chamava para junto de si as almas de Dunmait MacAedan e dos outros companheiros. Penitenciava-se para cada um deles, nomeando-os um a um.

 

À acusação voluntária das culpas, seguiu-se a purificação. Já de pé, os cavaleiros foram profusamente aspergidos com água benta pelo bispo, que percorreu as cadeiras do coro alto, enquanto seus coadjutores desciam o corredor formado pelos homens das duas Ordens.

Por trás do altar, os acólitos balançaram os turíbulos mandando nuvens de incenso para a cúpula sobre suas cabeças. O perfume acariciou as almas arrependidas, dando-Ihes a certeza do perdão.

Após as leituras, Arnaud de Saint-Martin recebeu o báculo. Enquanto subia lentamente os degraus em caracol que levavam ao alto do púlpito e acima de todas as cabeças presentes, ia pensando que a oratória viera a revelar-se a sua arma preferida e que era capaz de brandi-Ia com tanta arte quanto, na sua juventude, brandira a espada. Um discurso e, neste caso um sermão, podia agravar ódios, formar exércitos e decidir batalhas. Bernardo de Claraval já provara a sua eficácia. Seguia a estratégia das palavras fortes, do tom veemente e das pausas nos momentos certos, dando tempo para que os ouvintes sentissem um abalo até aos alicerces da alma. Era necessário começar por levar os espíritos ao espanto, a seguir, empurrá-los para a indignação e, por fim, despertar neles um entusiasmo feroz.

Ele chegou ao alto sem dificuldades. Só deu início quando sentiu que aquele mar de olhos estava voltado em sua direção.

- Caríssimos irmãos - ele começou -, assim como uma rosa entre espinhos é ferida em cada uma das suas pétalas, ou um pequeno barco no meio da tormenta, para onde quer que navegue, é açoitado pelas ondas, ou ainda, uma cidade sitiada é atacada em toda a extensão das suas muralhas, assim também a nossa amada Igreja vem sendo ferida, açoitada e atacada por todos os lados. Mas... o que pensa nosso Deus a respeito disso tudo? Cavaleiros, sabemos o que Ele pensa! Pela boca do profeta Zacarias Ele diz: "Eu cercarei a minha casa com aqueles que lutam por mim!".

Angus MacLachlan fechou a mão em torno do punho da espada. Era como se o bispo de Trípoli conhecesse as dúvidas que lhe iam no coração e tivesse apontado para ele um lugar e uma missão nas muralhas da casa de Deus. Jamais em toda a sua vida ouvira uma voz tão poderosa e com propósitos tão claros. Olhou na direção de mestre Everard, mas este mantinha os olhos semicerrados, embora a cabeça estivesse voltada para o orador.

Arnaud de Saint-Martin continuou o sermão. Desta vez as frases saíram de sua boca com a rapidez dos golpes curtos:

- Os arianos atacam a fé na encarnação de Cristo; os hereges escondem a verdade das Escrituras; os cismáticos lutam contra a unidade da Igreja; os pagãos se recusam a reconhecer a Verdade; cristãos perversos escolhem ignorar o mandamento do amor, enquanto os sarracenos querem o fim da cristandade. A Igreja se defende dos hereges com a sabedoria dos seus doutores; dos cismáticos, com o governo dos prelados que apelam à obediência e à comunhão dos santos; dos falsos irmãos, com a espada espiritual; mas da violência armada de pagãos e sarracenos, com a espada material, essa mesma que os senhores todos que me ouvem trazem atadas à cintura.

Everard de Barres tentava concentrar-se nas palavras do bispo, mas tinha diante dos olhos a cascata de cabelos louros da jovem Heloísa de Goncourt. Ele entrara apenas na adolescência e ainda não havia sido armado cavaleiro. Na ocasião, assistia a um torneio pelo dia de São Lourenço, de quem sua família era devota. Os barões se sucediam na liça e o herói dos corações das damas era justamente Arnaud de Saint-Martin. Ele guardara a corpulência que tinha na época mas somara a ela um ventre redondo. O que diria dele Heloísa agora? A visão da bela dama fizera o jovem Everard experimentar um deslumbramento e um terremoto de alma que nunca viria a conhecer novamente, senão como um eco distante, na sua primeira caçada, quando enfiara a lança no javali que investia furioso contra o seu cavalo, e na sua primeira batalha, quando sentira a espada atravessar o corpo do inimigo e tirá-Io deste mundo. Agora, revia Arnaud de Saint-Martin galopando para onde estava Heloísa e estendendo-lhe a lança para que nela prendesse seu lenço. Odiou-o mortalmente. Teve esperanças de que algum outro cavaleiro o derrubasse do cavalo e do pedestal em que o via a dama. Mas, aquele dia, a vitória lhe estava destinada, e a favor de Heloísa. Por que a abandonara? O que o havia feito escolher o serviço da Igreja?

O bispo mantinha o báculo numa das mãos. Inclinara o corpo para frente e sua voz tinha a autoridade que lhe vinha do cargo:

- A Igreja tem duas espadas, o que o Senhor Jesus julgou ser "o suficiente". Uma deve ser brandida de forma espiritual pelo clero; a outra, pelos príncipes e militares cristãos. A primeira pelas lições dos prelados, a outra, coma sua aprovação. Foi o que escreveu Bernardo de Claraval ao Santo Papa Eugênio: O Senhor disse a Pedro, a respeito da espada material: "Embainhe a espada!”, e deveis fazer o mesmo. Ela deverá ser tirada da bainha sob o seu comando, mas não pela sua mão. As duas espadas são suas, mas uma é a espada da Igreja e a outra deve ser brandida em favor da Igreja. Uma estará na mão do sacerdote, a outra na do cavaleiro; se a aprovação é dada pelo clero, a ordem deverá vir do Imperador".

Angus MacLachlan pensou compreender em que sentido o santo ancião Gualtier Drennis dissera que, embora atada à sua cintura, a espada sagrada dos seus ancestrais permaneceria na cripta guardada pelo leão de pedra. Talvez, para tudo no mundo, houvesse um aspecto material e outro espiritual. Só que para as relíquias, como era o caso da espada, ele pensou, o material e o espiritual não podiam ser mais separados.

Arnaud de Saint-Martin fizera uma pausa mais longa em seu sermão, o que levou mestre Everard a pensar que iam finalmente saber a razão daquela visita.

- Os irmãos das Ordens militares são os que defendem a Igreja de Cristo com a espada material. Contra os turcos e sarracenos na Síria, contra os mouros na Espanha, contra os pagãos na Prússia, na Livonia, na Cumania, e o mesmo devem fazer contra os cismáticos na Grécia e contra os hereges onde quer que se encontrem. Pareceme ver estas Ordens prefiguradas numa visão de Zacarias. Diante dos olhos do Profeta surgem quatro cavalos: um vermelho, um branco, um preto e o último, malhado. O cavalo vermelho representa os irmãos da Ordem do Templo que trazem uma cruz vermelha em suas túnicas; o branco, os irmãos da Ordem do Hospital de São João que são marcados com uma cruz branca. Os cavalos preto e malhado certamente representam novas Ordens que surgirão em defesa da Igreja. Destas coisas o Senhor diz: "Eu cercarei minha casa com aqueles que lutarão por mim, saindo e voltando". Que significa esse movimento de partida e de regresso? Não podemos pensar senão nas Ordens Militares que deixam suas casas em tempos de guerra e voltam a elas trazendo a paz; que saem para lutar como cavaleiros e voltam para rezar como monges; que partem para a ação e regressam para a contemplação".

Everard de Barres não gostou da interpretação que o bispo dera à visão de Zacarias. A justificativa para a existência da Ordem, como o símbolo que levavam os cavaleiros, não tinha outra razão de ser fora da cruz de Cristo. Cruz vermelha como o sangue de Cristo e não como a cor de um cavalo, mesmo que o animal viesse descrito nas Santas Escrituras. Mas tinha certeza de que a comparação agradara ao Grão-Mestre, que dedicava todo o tempo que seu cargo lhe permitia a examinar passagens bíblicas, procurando o sentido espiritual por trás da letra.

Arnaud de Saint-Martin prosseguiu depois de nova pausa, desta vez, baixando o tom de voz:

- Em tempos de paz, os exercícios que preparam os cavaleiros para darem as suas vidas na defesa da cristandade são os jejuns, as preces, as purificações e as vigílias. Está escrito: "A minha vida está sempre em minhas mãos': O que podemos compreender destas palavras? Que cada um de nós deve estar pronto para oferecer a vida a Deus quando Ele a pedir. Mas, que vida Ele pede? Não uma vida qualquer, porém aquela que é fruto de uma consciência pura e segue com coragem uma causa justa. Diz o Livro dos Provérbios: "O homem honesto é valente como um leão sem medo” e, em outra passagem, “o leão, o mais forte de todos os animais, não temerá o ataque de ninguém”.

Pareceu a Angus MacLachlan que aquela referência feita duas vezes ao leão era um presságio divino. Entre os cavaleiros ali presentes, quem mais do que ele tinha o direito de reivindicar para si aquele símbolo? Não o levava gravado na espada? Não fora já usado pelos seus ancestrais desde a aurora dos tempos? A ele cabia aquilo que o animal representava, pois a coragem era a sua herança.

Após nova pausa, Arnaud de Saint Martin continuou:

- Diz o Livro do Deuteronômio: "Quando acamparem contra seus inimigos, procurem evitar qualquer coisa que vos torne impuros”. O que pode torná-Ios impuros? O orgulho, a vanglória, a vaidade, a inveja, a preguiça, a ganância, os desejos carnais. O cavaleiro de Cristo deve se proteger contra tudo isto. Não deve se orgulhar com a nobreza de sua família, com riquezas ou poder. Deve espelhar-se em Jó que declarava: "Eu disse à podridão: Você é meu Pai”. A verdadeira nobreza, cavaleiros, é a do coração. Não fomos todos advertidos pelo Salmista? "Aquele que age com orgulho não viverá na minha casa”. Todas as pessoas orgulhosas têm o diabo como seu rei. Foi o orgulho que transformou um anjo em demônio, que expulsou os nossos primeiros pais do paraíso, que confundiu as línguas de todas as raças. Vós sabeis que dois homens orgulhosos não conseguem cavalgar numa única sela!.

Um murmúrio de aprovação correu entre os cavaleiros templários cujo selo representava dois cavaleiros em um único cavalo.

O Bispo esperou que morresse o murmúrio, satisfeito pela forma como arrematara as advertências contra o primeiro dos vícios. Continuou:

- E que dizer daquele que está cheio de vanglória, que se envaidece atribuindo a si próprio o que vem de Deus? Diz o Salmista com sabedoria: "Não é em meu arco que eu confio, e não é a minha espada que me dá a vitória". Quem se vangloria e se envaidece alimenta contendas. O Apóstolo Paulo admoestava: "Não se julguem melhores do que realmente são. Pelo contrário, sejam modestos como os humildes", e, em outra passagem: "Também uma pessoa não se torna forte por sua própria firmeza, mas, sim, pela firmeza de Deus". Portanto, seja a vitória, seja a firmeza, devem ambas ser atribuídas a Deus e somente a Ele.

Pela primeira vez desde que a cerimônia começara, mestre Everard procurou Angus com os olhos. Podia jurar que, se havia ali entre os presentes alguém que não conhecia a vanglória, este homem era o guerreiro nórdico. Viu que estava atento às palavras do bispo e imaginou que no futuro ele reproduziria aquele sermão à beira da fogueira entre a gente do seu clã.

O bispo passou a outro vício:

- Sobre a inveja, escreveu longamente São Cipriano, o santo bispo de Cartago, chamando-a de "zelo que não tem fim”. E o santo descreve a pessoa tomada pelo ciúme como alguém que tem "uma expressão ameaçadora, uma aparência feroz, o rosto pálido, lábios que tremem, dentes que rangem, que está cheio de palavras furiosas, de protestos descontrolados e cujas mãos estão prontas para a violência. E se essas mãos não brandem uma espada, diz o santo, elas estão sempre armadas com o ódio que vem de uma mente enlouquecida".

Arnaud de Saint-Martin acompanhara as palavras de São Cipriano como se fosse a própria pessoa descrita pelo santo. Ele tinha a certeza de que sua mímica e os gestos de sua mão haviam feito parecer mais tenebroso o vício.

Everard de Barres voltara a pensar em Heloísa. Encontrara-a no jardim do castelo onde se refugiara para esconder as lágrimas. Sem denunciar a sua presença, adivinhou que a dama sofria as penas do amor. Permaneceu algum tempo sem que ela o visse, misturando suas lágrimas às dela, enquanto aprendia o quanto podia ser doloroso o amor. Como a dama não parecia conseguir sair da sua tristeza, ele havia engolido o ódio e o orgulho e saíra à procura de Arnaud de Saint-Martin decidido a trazê-Io para enxugar as lágrimas de Heloísa, nem que para isso fosse necessário usar a força. Foi informado de que logo ao amanhecer, o cavaleiro havia partido.

O bispo passou a outro vício:

- Que dizer da ambição desmedida e do pecado da ganância? Os ricos recebem as honras enquanto os pobres são desprezados. Assim, a fé cede lugar a um apego insano ao dinheiro e as virtudes equiparam-se ao número de moedas armazenadas num cofre. Que escreveu São Jerônimo a este respeito? A milícia de Cristo, ele declara, não deve buscar ganhos mundanos. E ouçam o que diz Bernardo de Claraval: "Filhos de Adão, filhos de homens avarentos e ambiciosos, escutem: o que desejam vocês com as riquezas do mundo e com a glória temporária que não lhes pertencem e tampouco são verdadeiras? Ouro e prata! Não se trata apenas de terra vermelha e branca que o erro humano quer fazer acreditar que são belos? Se vos pertencem, levem-nos com vocês. Porém, quando morrerem, nada poderão levar. A verdadeira riqueza não é feita de bens materiais mas de virtudes que são levadas pela consciência e representam uma riqueza perpétua”.

Que luxo vê ele nesta fortaleza? - perguntou-se mestre Everard, que conhecia o palácio em que vivia o bispo de Trípoli. A suntuosidade bizantina espalhava-se por todo o Oriente, muito além de Constantinopla. O ouro, a prata e as pedras preciosas com que a devoção queria reverenciar seu Deus através dos objetos do culto pareciam multiplicar-se para adornar também a classe sacerdotal, suas casas, suas vestes.

Como se tivesse ouvido o que pensava o mestre, Arnaud de SaintMartin chamou a atenção dos presentes para os vícios do clero:

- E assim a água do Egito virou sangue! - ele bradou com veemência. - Isto acontece quando o próprio clero encontra prazer em consumir as riquezas do século que lhe chegam às mãos, sem pensar em como gasta os bens doados à Igreja para o conforto dos pobres e a defesa dos humildes. São posses do próprio Deus, em nome de quem o clero deve administrar.

Outra pausa prolongada. O bispo cerrou os olhos e franziu a testa, enquanto a mão apertava o corrimão de madeira do púlpito. Preparou-se para o desfecho do sermão que devia ser grandioso e despertar o entusiasmo esperado.

- Mas para vós, que sois guerreiros de Deus pelos votos feitos diante do altar - ele prosseguiu, abrindo muito os olhos e inclinando-se para frente -, não há outro caminho senão o da perfeita pureza de vida e de intenções. Quando olho daqui de cima este exército de almas consagradas, parece-me avistar aquela mesma cena que descreve o santo Apóstolo João no Livro do Apocalipse: "Vi o céu aberto, ele diz, e apareceu um cavalo branco. Quem o montava chamava-se Fiel e Verdadeiro. Ele julga e combate com justiça. Seus olhos são como chamas de fogo... Ele queimará as almas dos turcos e sarracenos, dos árabes e de todos os que se levantam contra a Igreja, mandando-os aos braseiros do inferno. O que mais vê o Apóstolo? Ele está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome é Verbo de Deus". Eis o vosso comandante, eis o Verbo exterminador sobre quem falou o profeta Isaías. Quem o segue? João vê quem o segue, como eu próprio vejo neste momento daqui de cima: "Os exércitos do céu acompanham-no, montados em cavalos brancos e vestidos de linho... De sua boca”, diz o apóstolo, "sai uma espada para ferir as nações dos infiéis!”. São as vossas espadas que exterminarão ao comando da sua Palavra, para que reine apenas a Verdade sobre a Terra, aquela única Verdade proclamada pela única Igreja. É pela sua Igreja que Ele luta, pela sua Santa Madre Igreja! Quem ousaria não segui-Io? "Ele governará com cetro de ferro e pisará o lagar do vinho do furor da ira de Deus Todo Poderoso...". Eu vos pergunto, cavaleiros, quem nesta assembléia de guerreiros ousará não segui-Io?

As últimas palavras do bispo fizeram com que o Grão-Mestre se levantasse. O bispo esperou antegozando o momento, ciente do poder de manejar as palavras para levantar o entusiasmo dos ouvintes e, com maior razão, as passagens das Escrituras. Já intuíra o que faria o superior.

Bernard de Charenton sacou a espada, ergueu-a e exclamou com voz forte:

- No exército de Cristo, pela Santa Madre Igreja!

Num movimento perfeitamente orquestrado, os hospitalários ergueram suas espadas e repetiram diante do altar o novo grito de guerra:

- No exército de Cristo, pela Santa Madre Igreja!.

Arnaud de Saint-Martin tinha a certeza absoluta de que assim que os hospitalários se calassem, o mestre dos templários e os seus reagiriam da mesma maneira.

Everard de Barres permaneceu sentado, seu marechal de pé à sua direita, e o senescal da Ordem à sua esquerda. Seus cavaleiros, as mãos no punho da espada, esperavam o gesto do mestre. Angus MacLachlan, ao lado de Gilbert du Bois, não acompanhara o grito dos hospitalários, mas também ele aguardava a reação do superior dos templários.

No alto do púlpito, o senhor bispo de Trípoli, suando a veemência das últimas frases do sermão, também esperava. Em dado momento, começou a debater em sua cabeça se devia descer ou permanecer ali até que o mestre templário se erguesse da sua cadeira. Mas Everard de Barres estava decidido a oferecer também a sua pausa dramática, não como alguém que subitamente parasse de falar, mas prolongando o seu próprio silêncio.

Como numa batalha, seu coração gritou: "Por Heloísa!" E esperou um pouco mais. Arnaud de Saint-Martin achou que não podia ficar indefinidamente no alto do púlpito, aguardando uma reação que talvez não viesse. O sorriso morreu em seus lábios. O brilho e a paixão refletidos nos seus olhos se apagaram. Inclinou a cabeça na direção do Grão-Mestre dando o sermão por terminado. Cada um dos templários continuava com os olhos postos no mestre e a mão no punho da espada.

Quando o bispo desviou o olhar da assembléia e se voltou dirigindo-se às escadas, foi que ouviu o que tanto esperara. Mas era tarde para retroceder. De pé, Everard de Barres ergueu a espada e o grito saiu de sua boca:

- No exército de Cristo, pela Santa Madre Igreja!.

Desfeito o momento de prolongada tensão, a voz que ficara presa nas gargantas foi finalmente libertada, e os cavaleiros templários repetiram o grito do mestre com força redobrada, enquanto erguiam a espada na sua direção. Angus MacLachlan acompanhou-os com o mesmo entusiasmo e algum espanto, percebendo que, ao seu lado, Gilbert du Bois mantivera a mão no punho da espada, sem no entanto sacá-Ia, nem de seus lábios saiu qualquer som. No entanto, o bispo de Trípoli descia as escadas sem compreender no que havia desagradado a Everard de Barres, e perfeitamente consciente de que suas palavras já não eram mais a razão daquele entusiasmo.

 

À noite, após a ceia nos aposentos do Grão-Mestre, Arnaud de Saint-Martin pediu para ser levado à cripta, pois sabia que lá estava a santa espada, relíquia da fortaleza. Bertrand de Charenton anunciou-lhe, então, que a espada já não se encontrava ali, mas na posse de seu legítimo herdeiro, embora os cavaleiros continuassem a freqüentar o lugar, visto que o santo ancião Gualtier Drennis assegurara a todos que as virtudes da relíquia permaneceriam para sempre na cripta.

O bispo de Trípoli interessou-se pelo caso, perguntando a quem ela fora entregue, se a um cavaleiro dos hospitalários ou dos templários. - A um guerreiro nórdico, um escocês! - informara o Grão-Mestre. Visivelmente espantado, Arnaud de Saint-Martin exclamara:

- Um escocês? Mas é quase um bárbaro!

- É um guerreiro de Deus! - contrapôs Everard de Barres.

- Mas estão seguros de que é ele o herdeiro legítimo? - perguntou o bispo, acrescentando: Não preciso lembrar-Ihes de que a Igreja é responsável pelo destino das relíquias. A cair em mãos indignas, melhor seria que a espada fosse levada para a capela episcopal em Trípoli. Lá, eu garanto que seria venerada como merece. Que autoridade aprovou a legitimidade do herdeiro?

- Os querubins do Senhor! - disse Everard de Barres com meio sorriso.

- Os querubins do Senhor? - repetiu o Bispo sem entender.

O Grão-Mestre percebeu que o superior dos templários não estava disposto a esclarecer a questão. Foi ele próprio quem contou ao bispo toda a história. Começou pelo aparecimento de Angus MacLachlan e sua participação na batalha contra os normandos. Depois, contou como ele ficara gravemente ferido, estivera entre a vida e a morte e se recuperara graças à espada. Falou sobre a sua atuação heróica na batalha contra os turcos, e descreveu a celebração que haviam feito na cripta em sua homenagem, durante a qual ele erguera sozinho a Santa Espada. Finalmente, relatara a visão que tivera o monge Gualtier Drennis: querubins do Senhor haviam passado a relíquia ao guerreiro.

Mestre Everard notou que o superior dos hospitalários deixara de lado a revelação de que a espada fora forjada com um cravo da Santa Cruz de Cristo.

- É uma história de pasmar! Gostaria de conhecer esse homem exclamou o bispo.

O Grão-Mestre mandou que fossem procurar o guerreiro e o convidassem a vir aos seus aposentos.

Quando Angus MacLachlan entrou, Arnaud de Saint-Martin teve sérias dúvidas de que, mesmo em sua juventude, quando era considerado o mais hábil cavaleiro em todo o Reino de França, fosse capaz de vencer aquele gigante ruivo numa contenda com lança, espada, maça ou outra arma qualquer. Notou que o guerreiro não trazia a espada.

- Angus, senhor do clã MacLachlan! - apresentou-o o Grão- Mestre. Angus caminhou para onde estava sentado o bispo, considerando igualmente a sua força, mas uma força que vinha do cargo que ocupava. Era um príncipe da Igreja, e estava mais perto de Deus do que o próprio rei de França. Colocou um joelho em terra, curvando-se diante dele.

Além de tudo o que ouvira a respeito do guerreiro, Arnaud de Saint-Martin notou que nele a humildade era a face de uma nobreza inata, capaz de levá-Io a inclinar-se perante um representante da Igreja mas, segundo lhe haviam contado, não dobraria o joelho diante da injustiça. O rei certamente se interessaria pelo guerreiro e por sua história, além do fato de que uma espada com poderes miraculosos seria uma relíquia a ter por perto nos tempos conturbados que se aproximavam. Mas, para ele próprio apresentar aquele nórdico ao rei, precisava primeiro testar a sua obediência.

- Que a força do Todo-Poderoso esteja em seu coração e em seu braço pela causa de Cristo! - exclamou o bispo, traçando o sinal-dacruz sobre ele.

- Amém! - disseram a um só tempo o guerreiro e mestre Everard. Angus levantou-se e aceitou um copo de vinho que lhe foi oferecido. - Luís, o nosso bem-amado soberano - prosseguiu Arnaud de Saint-Martin -, é hoje o campeão da Santa Madre Igreja. A ele se uniram outros reis e cavaleiros de toda a cristandade. Estou a par de que o senhor é o herdeiro da santa espada e tem demonstrado ser digno de empunhá-Ia. Estaria disposto também a colocá-Ia a serviço do rei de França?

Angus MacLachIan trocou um rápido olhar com o mestre dos templários, que escutara impassível a pergunta do bispo. Os olhos dele diziam que devia responder como lhe ditasse a consciência.

- Não sou um súdito do rei de França - disse.

- Mas é um cristão e deve obediência à Santa Madre Igreja!

- É verdade - concordou o guerreiro.

- Pois aí está! - exclamou Arnaud de Saint-Martin. - A causa do rei, a causa da Igreja e a causa do Cristo são uma e a mesma coisa. Quem serve a um deverá servir aos outros. Portanto, eu volto a perguntar se estaria disposto a colocar a sua espada a serviço do rei de França.

Angus MacLachlan percebeu que o bispo tentava prendê-Io numa teia de palavras. Declarou com firmeza:

            - Minha causa é a causa do Cristo. Quanto ao vosso rei, já disse que não sou seu súdito.

            - E quanto à Igreja? Ela poderia ordenar que servisse ao rei de França! - disse o bispo.

Ouvindo as palavras de Arnaud Saint-Martin, Everard de Barres percebeu quanto a sinceridade de Angus podia ser interpretada contra ele. Levantou-se e respondeu pelo guerreiro:

- Angus MacLachlan já tem uma missão. Dentro de três dias estaremos a caminho de Constantinopla.

- Ah! Vai ajudá-Io a abrir os caminhos de Bizâncio para o nosso rei! - exclamou o bispo, pensando que, de uma maneira ou de outra, ninguém poderia participar daquela nova cruzada sem prestar serviço ao soberano de França, mesmo aquele rude guerreiro nórdico. E acrescentou: - É uma missão meritória, pois abrindo caminho para o rei, será como abrir caminho para o Cristo.

Angus MacLachlan compreendera a intenção de mestre Everard ao responder em seu lugar. Mas não deixou que o fizesse uma segunda vez. De olhos fixos no bispo, ele disse:

- Se for de Sua santa vontade, será o Cristo quem abrirá o caminho para o rei, e não o rei para o Cristo.

Arnaud de Saint-Martin, ouvindo aquela observação em tom cortante, pensou que tivera razão em considerar que a espada fora entregue a alguém que ainda era um bárbaro tanto nas suas atitudes como nas palavras.

 

A madrugada encontrou Angus no passadiço das muralhas. Ele observava o movimento dos cavaleiros organizando a escolta que levaria o emir e os outros prisioneiros a Jerusalém. Os soldados turcos enchiam muitas carroças. O emir surgiu ao lado do prior. Para a viagem, foi-lhe dado o seu próprio cavalo, com a sela e os arreios que haviam causado a admiração de Pietro Moriondo. Ao seu lado, o mesmo servo turco levava o pára-sol para a proteção do seu amo.

Quando o cavaleiro Guy du Pin, sempre disfarçado em peregrino, deu o sinal, cavalos e carroças colocaram-se em movimento. O grupo se afastava em marcha lenta na direção de Jerusalém.

O Grão-Mestre veio para ao passadiço se assegurar de que tudo estava conforme o previsto. Seus olhos não deixavam o emir que, até o último momento, sondava os céus sobre a fortaleza.

Também o prior se juntara a eles.

- Nossa parte está feita! - disse Pietro Moriondo.

Angus notou que o Grão-Mestre continuava de olhos postos no grupo, como se não tivesse a certeza de que tudo estivesse de acordo com o que fora planejado. De repente, ele virou-se para o seu prior e disse:

- Uma última providência ficou por tomar! Cuidarei eu próprio disso!

Pietro Moriondo quis segui-Io em direção às escadas, mas o Grão-Mestre mandou que permanecesse ali no passadiço e que vigiasse para depois ir dizer-lhe se as suas novas ordens haviam sido cumpridas. O prior obedeceu, sem saber o que deveria observar. As colunas se afastavam mas ainda estavam bem visíveis aos olhos dele e do escocês.

Algum tempo depois, os dois homens no alto da muralha viram partir um jovem a galope na direção dos viajantes. Ele levava um falcão agarrado ao braço. Quando alcançou o grupo da frente, foi dado o sinal para que as colunas parassem. O jovem encaminhou-se para o emir e entregou-lhe o seu pássaro.

Os dois homens ainda permaneceram no passadiço depois que o jovem emissário do Grão-Mestre retornou à fortaleza. Esperaram que cavalos e carroças se confundissem com as areias, engolidos pelo horizonte. A seguir, o prior desceu para dizer ao Grão-Mestre que suas ordens haviam sido cumpridas.

Em toda a sua vida, Angus MacLachlan pensou que jamais testemunhara um gesto de tamanha generosidade. Era uma nova atitude num mundo onde a honra pedia sangue, massacres, vinganças. O guerreiro aprendera que havia uma só lei, fosse para quem a Providência divina concedesse o papel de justiceiro, fosse a quem ela desse a condição de justiçado. O emir fora responsável pelas mortes de muitos cavaleiros e havia entre ele e o Grão-Mestre uma relação de inimigos que se transformara numa relação entre aquele que sai vitorioso e aquele que se torna um prisioneiro. No entanto, o Grão-Mestre parecia poder subir a um nível acima daquelas evidências e ver no emir apenas um homem que amava os poemas e os pássaros.

Uma voz tirou-o dos seus pensamentos:

- É verdade que partiremos em breve, mestre Angus?

Já era capaz de reconhecer a voz de Bertoldo, o Abutre, sem ter que encará-Io. Mas Angus voltou o rosto para ele e foi como se o visse pela primeira vez. Ali estava o pássaro que a Providência lhe havia destinado para que mantivesse sempre na lembrança o massacre dos seus companheiros e a profanação dos seus corpos.

Sem saber como o gigante ruivo reagiria à sua nova aparição, Bertoldo, o Abutre, lançara a sua pergunta encolhido contra a muralha e a dois passos da escada. Angus MacLachlan respondeu-lhe com outra pergunta:

            Por que deveria ser seu mestre?

            - É o único de quem espero perdão para o sossego da minha alma - respondeu o genovês.

O Abutre lhe pedia uma generosidade que ele não sabia ainda se seria capaz de mostrar. Sua mão pousou instintivamente na espada como a pedir-lhe conselho. Se a curta experiência da sua vida ainda não fora suficiente para que adquirisse a largueza de coração que testemunhara no Grão-Mestre, Gaoth Cerridwen estava ali para guiar seus passos como suas intenções a outro patamar.

Bertoldo vira o guerreiro tocar a espada, mas esperava ainda, os olhos amedrontados medindo a distância entre a muralha e as escadas. No entanto, Angus MacLachlan não avançou para ele. Voltou-se outra vez na direção do horizonte e disse apenas:

- É verdade, partiremos em breve.

 

                                   PRÍNCIPE DOS FIÉIS

No dia seguinte à partida do emir e dos prisioneiros, e quando pensou ter colocado uma distância segura entre os turcos e sua comitiva, Arnaud de Saint-Martin também deixou a fortaleza. Uma pequena escolta de cavaleiros acompanhou o bispo até ao lugar em que o tinham encontrado. Ele abençoou-os e prosseguiu no seu cavalo entre sua própria guarda. Cavalgou ainda por uma espaço de tempo. De repente, começou a sentir um sopro diabólico descendo do sol sobre sua cabeça. Mandou que parassem. Apeou do cavalo e procurou a sombra da carroça e a companhia de Trambuy. Deu-se conta de que não fora Deus, mas a idade, que lhe havia retirado a sua condição de cavaleiro capaz de suportar as árduas jornadas.

O ar dentro da carroça não era melhor do que o que circulava fora. Tirou as luvas, a capa e desatou os cordões da camisa. Sentia-se afogar em calor. Cerrou os olhos, o suor brotando de cada poro do corpo.

- O diabo é ferreiro - garantiu ao secretário - e tem sua bigorna nesta região. Posso ouvi-lo martelar!

Trambuy apurou o ouvido. As areias abafavam o som das patas dos cavalos, mas ele podia ouvir o sacolejar dos arreios e, de vez em quando, o chicote do cocheiro. Quanto às batidas do martelo do diabo, não havia ainda alcançado os méritos do bispo para distinguir o que era da terra do que subia do inferno.

Sem os muitos hóspedes que haviam ocupado os cavaleiros de ambas as Ordens durante os dias que se seguiram à batalha contra os turcos, Hosn-el-Akkrad tornara-se uma montanha silenciosa.

Angus MacLachlan fora avisado de que mestre Everard partiria na madrugada do dia seguinte. Pela manhã visitou a baia onde estava seu cavalo. Queria exercitá-lo antes da partida. Não o encontrou e percorreu toda a extensão das cavalariças que ocupavam a parte baixa da segunda muralha. Um jovem disse-lhe que seu criado havia levado o cavalo para o pátio da cisterna.

- Meu criado? - perguntou Angus, pensando que talvez o jovem estivesse enganado. - Não tenho um criado.

- Pois ele me garantiu estar encarregado de cuidar de tudo o que diz respeito à pessoa e às posses de mestre Angus.

- E onde está este meu criado agora?

O jovem apontou a portada que dava acesso à cisterna.

Angus imaginou que Bertoldo levara a sério as poucas palavras que dissera na muralha, indicando que estavam de partida. Encontrou-o quando já levava o cavalo pelo cabresto, segundo disse, para fazê-lo secar ao sol, depois do banho que lhe retirara do lombo um saco de areia. A seguir, pretendia escová-lo, dar-lhe a ração e, só depois, mestre Angus poderia exercitá-Io.

O genovês ora falava ao cavalo ora a Angus. O guerreiro disse-lhe que tivesse o cavalo selado e pronto antes do pôr-do-sol.

- Agradeço que cuide dele, mas nunca deve montá-lo - avisou o guerreiro.

O Abutre assentiu com a cabeça e saiu puxando o cavalo para dar voltas à muralha interna, àquela hora invadida pelo sol.

Outros cavaleiros circulavam com as suas montarias. Era o único sinal que indicava a partida. Angus dirigiu-se à cripta. Ele fora informado também de que, à noite, o Grão-Mestre e mestre Everard iriam se reunir para as últimas orações em conjunto antes da partida dos templários. Decidiu recolocar a espada entre as presas do leão de pedra, sabendo da devoção que animava a todos. Gaoth Cerridwen ali ficaria durante toda a noite, oferecendo o dom de sua força.

Encontrou a cripta deserta. Apenas as tochas ao redor do leão estavam acesas. O resto do espaço estava mergulhado na sombra. Ele soltou a espada da cintura e encaixou-a entre as presas do animal. Viu que a luz das tochas se multiplicavam com mais brilho ainda, refletidas na lâmina. Ela nunca deixaria de espantá-lo.

Quando se voltou, teve a impressão de que não estava sozinho. Aguçou o olhar para o lado das sombras, logo atrás do altar. Pareceu-lhe ver um corpo caído e encostado ao muro de pedra no ponto mais afastado. Caminhou naquela direção. Seus passos ecoaram na cripta mas o vulto não se moveu. Ele reconheceu a capa de templário. O homem tinha o capuz puxado sobre a cabeça. Os braços estavam inertes e as mãos com as palmas viradas para cima. Angus colocou um joelho no chão e aproximou-se querendo ter a certeza de que o cavaleiro não estava morto.

- Irmão! - ele chamou sem saber a quem se dirigia. Chamou outra vez e mais outra.

- Deixe-me só - disse finalmente o cavaleiro.

Angus reconheceu a voz:

- É você, Du Bois? O que aconteceu? Está ferido?

- Deixe-me só - pediu outra vez o cavaleiro.

- Não o deixarei antes que me diga quem o atacou ou de que mal padece - insistiu o guerreiro.

Gilbert Du Bois não respondeu. Angus levantou-se e foi buscar um archote. A súbita claridade fez com que o cavaleiro levasse a mão ao rosto. Angus notou que ele estava muito pálido e a barba muito crescida. Seus olhos brilhavam como carvões em brasa.

- Alguém o atacou, irmão? - perguntou o guerreiro.

O cavaleiro ergueu a cabeça e esboçou um sorriso sem alegria. Seus olhos, do fundo de órbitas que pareciam querer sugá-Ios, fitavam a escuridão em frente. Falou com voz rouca:

- É com a minha alma que eu batalho, Angus MacLachlan - afirmou Du Bois.

- Sua alma foi purificada como a de todos nós, por que essa atribuIação?

- Disse bem, ela foi purificada! Mas agora já não pode compreender se esta purificação foi para que deixasse de matar ou para continuar matando. É uma questão que devo decidir com ela.

- Nossas almas pertencem a Deus - disse Angus, pensando compreender porque Du Bois não sacara a sua espada na capela após o sermão do bispo e quando mestre Everard o fizera. Nem se lembrava de tê-Io ouvido repetir o grito de guerra. Acrescentou: - Quando não podemos decidir o que fazer, temos que esperar. Deus nos mostrará o caminho.

- Esperar! - retrucou Du Bois. - Eu sou capaz de esperar. É a minha alma que tem pressa, por isso luto com ela. Deixe-me em paz, eu lhe peço. Se me tem alguma amizade, deixe-me em paz!

O guerreiro afastou-se na certeza de que Deus conhecia melhor o que se passava entre o templário e sua alma. Já no portal, voltou-se ainda uma vez na direção da espada e seu coração pediu-lhe que estendesse a sua força àquele cavaleiro.

À noite, quando entrou na cripta com os monges, Angus MacLachlan viu que todos os archotes estavam acesos. O canto onde mais cedo encontrara Du Bois estava iluminado e vazio. Não falara a ninguém sobre aquele encontro, porém sentia-se apreensivo. Seu olhar percorreu os rostos até que deu com o de Gilbert, ainda pálido, mas voltado para o altar, o que o fez pensar que talvez o cavaleiro tivesse superado a crise e apaziguado a alma.

Logo, as vozes graves se elevaram salmodiando e Angus viu que também Du Bois participava das orações. Sentiu não ser possível que houvesse ali uma única alma que não fosse tocada pelo ânimo da espada ou a força divina, o que era uma só coisa.

 

A madrugada se anunciava com manchas alaranjadas no horizonte. Em frente à fortaleza, setenta tempIários organizavam-se em duas longas falanges. Entre os cavaleiros houve surpresa ao verem uma carroça puxada por uma parelha de cavalos. A surpresa subiu ao espanto quando viram surgir na entrada da muralha o Grão-Mestre, mestre Everard com o seu marechal Jacques Domaine e, entre eles, Gualtier Drennis acompanhado de um jovem noviço dos hospitalários, em cujo braço ele se apoiava. O santo ancião caminhava em passo vagaroso. Vestia a túnica de sua Ordem e a capa negra onde a cruz branca era visível mesmo naquele mundo ainda envolto em sombras. Já ninguém tinha dúvidas de que a carroça lhe estava destinada.

 

Angus MacLachlan pensou na temeridade que representaria aquela viagem. Além dos perigos trazidos pelos inimigos de Deus e dos homens de bem, deviam contar com um sol impiedoso e um terreno que tanto podia sacolejar a carroça como se fosse um potro selvagem, como fazer com que suas rodas afundassem e se partissem. Mas o que representava tudo isso diante da força interior do ancião que parecia ter no rosto a serenidade de quem confia apenas na vontade divina?

Everard fez sinal para que o escocês se aproximasse.

- Seu lugar será ao lado da carroça. Ela ficará em segurança se for guardada pela santa espada. - declarou o templário.

- Angus MacLachlan, deve me perdoar - disse o ancião, acrescentando: - Que pequena missão lhe confiam por minha causa, quando sei que o seu coração anseia por coisas grandiosas! Para mim já é honra acima da medida ser acompanhado por este bravo noviço, Benoit Pierron, meu filho espiritual.

            O guerreiro colocou um joelho em terra, para que o ancião o abençoasse, dizendo-lhe:

- Também eu sou seu filho, pois a posse da espada me fez renascer para um destino mais alto. Com a ajuda de Benoit Pierron, meu irmão, juro por esta espada que o guardarei com minha própria vida.

O santo ancião abençoou-o e a todos os que iniciavam a jornada. Angus recebeu o abraço e a bênção do Grão-Mestre, que lhe entregou o salvo-conduto prometido, assinado pelos superiores das duas Ordens. Ele o guardou no gibão, junto ao peito. Bertoldo segurava seu cavalo e ele montou-o indo colocar-se ao lado da carroça.

O Abutre seguiu as colunas um pouco afastado, mas não perdendo mestre Angus de vista. Haviam-lhe dado um cavalo e alimento para ele e o seu amo durante a primeira semana de viagem. Ele mesmo se encarregou de encher os odres. Haveria outros poços adiante e ele conhecia uma parte deles. Em sua cabeça, junto com os primeiros raios de sol, o Abutre teve a certeza de que uma pequena gota daquele mar de bênçãos sobre o seu mestre respingara nele. Era sinal seguro de que Deus estava de acordo com a forma que escolhera para se redimir dos seus pecados.

A meio da manhã, as colunas pararam. O marechal, a pedido de mestre Everard, galopou até a carroça, querendo saber como o ancião ia tolerando a viagem. Angus afastou a cortina da pequena janela e olhou para dentro. Gualtier Drennis tinha as mãos cruzadas no peito e os olhos semicerrados. Estava imóvel, não se podendo perceber se respirava ou não.

- Ele dorme, irmão? - perguntou ao noviço sentado ao lado. Num sussurro, Benoit Pierron explicou:

- Ele não dorme, está ausente. - Diante do espanto do escocês, ele acrescentou: - É como se dormisse, mas apenas o corpo dorme.

- Onde estará? - perguntou o guerreiro, pois julgava dever dar conta mesmo da alma do santo.

- Quem sabe? - Sussurrou o noviço. - Talvez converse com os anjos. Mas pode ser também que esteja ao lado de mestre Everard e vigie para que nada de mal aconteça aos cavaleiros. Ele deixa ao corpo o desconforto do sol, da carroça ou das areias, enquanto seu espírito nada sofre. De que outra maneira seria capaz de agüentar a viagem?

Angus MacLachlan transmitiu ao marechal o que ouvira do noviço. Mestre Everard foi informado do que se passava e não ficou surpreso. Fez sinal para que prosseguissem.

O sol baixava no horizonte quando chegaram a um pequeno oásis coroado por meia dúzia de tamareiras e um poço ao centro. A areia no fundo estava úmida, mas não havia água. Pelo chão, uma vegetação rasteira oferecia pasto aos animais. As sentinelas foram mandadas para as dunas mais próximas. O revezamento se faria quando a lua atingisse novo quadrante, dividindo a noite em quatro partes.

O poente avermelhava o céu e as areias num espetáculo deslumbrante. Olhando para cima, Angus notou que era como se tivesse sobre a cabeça uma imensa águia de um azul profundo, com as pontas das asas tingidas de vermelho. Ela parecia voar até o fim do céu. Sentiu que estava inserido naquele mundo que um dia lhe parecera tão distante, e que agora viajava ao seu centro nas asas desse imenso pássaro.

As fogueiras eram avivadas por um vento morno. Angus e Benoit Pierron haviam preparado um lugar para Gualtier Drennis, retornado de sua longa meditação. Declarara-se faminto e desejoso de contemplar as estrelas. Vendo-o sentar-se na manta que estendera ao pé do fogo, abrigado em sua capa de cavaleiro hospitalário, o guerreiro deixou de temer a fragilidade do ancião que fora encarregado de proteger. Compartilhou com o santo e o noviço a refeição que Bertoldo preparara.

Mestre Everard, seu marechal e alguns cavaleiros vieram se acomodar ao redor da mesma fogueira onde se aquecia Gualtier Drennis. Os cavaleiros comiam, fazendo menção da dieta imposta pelo superior que antecedera mestre Everard. Alguns lembravam ainda quando eram expostos a longos jejuns e o alimento oferecido apenas três vezes por semana, o que não mitigava a fome de quem cavalgava para batalhas e necessitava de força nos braços.

O santo ancião contou como tomara conhecimento do fato:

- Um dia, na fortaleza - disse ele -, recebi a visita de um cavaleiro da vossa Ordem, que chegara trazendo feridos de uma batalha recente. Ele me perguntou o que eu pensava de certos cavaleiros que se empenham tanto em jejuar, que ficam sem forças mesmo para aparar os golpes dos sarracenos, quanto mais para revidá-Ios. O que eu poderia responder? Lembrei-lhe que está escrito: "Não tentarás o Senhor teu Deus", acrescentando que todo fervor exagerado é sugestão do demônio e não divina. Contou-me, então, o que acabara de se passar entre ele e um outro cavaleiro dado a contínuos jejuns, na batalha em que haviam combatido. No primeiro embate com os sarracenos - disse-me - ele caiu do cavalo. Eu estava bem próximo e ajudei-o a levantar-se. Novo golpe de maça contra seu escudo atirou-o ao chão. Uma segunda vez, expondo-me ao perigo, revidei os golpes do sarraceno dando-lhe tempo para se recompor. Então eu não me contive e gritei: "Cavaleiro do pão e da água, cuide de si mesmo de agora em diante, pois, se cair novamente, não se levantará com a minha ajuda!". Ele o chamou de "pão e água" porque aqueles eram os alimentos que haviam tornado o seu corpo inútil para a batalha.

O santo ancião deixou que os risos morressem ao redor da fogueira e acrescentou:

- Não devemos tentar Deus, colocá-Io à prova, mas usar o bom senso para fazermos apenas as coisas de que somos capazes. Mesmo quando nos for dado receber a morte por Cristo, o céu é que deverá liderar o acontecimento e não o nosso orgulho, a nossa vaidade ou mesmo a nossa fome...

Surgiram outras histórias pitorescas que envolviam cavaleiros das duas Ordens. Era uma noite em que toda a criação parecia estar tomada de alegre camaradagem, tanto os homens na terra quanto, no céu, as estrelas. Angus pensou que talvez fosse a proximidade da ação que tocava o ânimo dos cavaleiros. Mas ele também sabia que a alegria era um dos dons do Espírito Santo e possivelmente a presença do venerável ancião contribuía para que aquela dádiva contagiasse a todos ao redor da fogueira. Mas o demônio, procurando almas enfraquecidas e atribuladas, haveria de semear a discórdia na noite seguinte, dividindo cavaleiros e trazendo uma ameaça ao santo ancião.

O lugar em que acamparam não era tão ameno quanto o da noite anterior. Nem poço e nem tamareiras. O sol parecia ter esgotado as suas energias, pois foi coberto por uma estranha névoa e a noite caiu de repente. As dunas baixas não chegavam para proteger da friagem da noite. Aos cavalos foi dada a ração tirada das reservas carregadas pelas mulas que cerravam as duas colunas.

O santo ancião não saíra da carroça, preferindo permanecer ali recolhido em orações. Ao redor da fogueira, falava-se na posição que o rei Luís assumira em relação à Aquitânia e à Bretanha continental, a pequena Bretanha. Teve início uma discussão entre Gilbert du Bois, que era bretão, e Arnault Saint-Juste, um lanceiro francês de reconhecida lealdade ao rei.

- Seu rei não merece crédito, Arnault! - Disse Du Bois com voz de desprezo. - Ele vai massacrar e saquear vergonhosamente. Já o fez uma vez e não lhe custará repetir a façanha.

- Onde quer chegar com esta mentira? - perguntou Saint-Juste.

- Não quero chegar a lugar algum - retrucou Du Bois, acrescentando: - Quem chegou onde não devia foi o seu soberano. Todos aqui sabem que o rei Luís pagou com duras penitências um ato da maior crueldade em seu próprio Reino: o massacre de Vitry. Não duvido nada de que esta cruzada faça ainda parte da penitência.

ArnauIt se levantou e também apelou ao testemunho dos cavaleiros:

- Quem, em sã consciência, pode duvidar da nobre intenção do nosso rei, que fez sua a causa de Cristo? Todos ouviram o que disse o bispo.

Angus notou que Du Bois não estava disposto a conceder trégua:

- Sim, todos sabem que aqui no Oriente ele espera combater uma guerra justa! Vem com a bênção do papa mas estará longe dos olhos dele. É um açougueiro, esse que usa a coroa de França!

O insulto não desencorajou o lanceiro. Ele deu mais um passo na direção de Du Bois, mas só com a pretensão de vencê-Io no terreno das palavras:

- Uns se fazem eunucos pelo Reino de Deus, outros, açougueiros. Por que não? Também nós, os monges soldados, massacramos pela causa de Cristo. Quem deveríamos defender? O sultão dos seljúcidas? Os emires almorávidas? Ou pensa, com suas palavras contra o rei, palavras de traição, eu afirmo, que melhor seria bandearmo-nos todos para o lado do califa de Bagdá e passar a perseguir os peregrinos?

Angus MacLachlan ouvia em silêncio e sem tomar partido, até que percebeu que aquelas últimas palavras de Arnault eram injustas. Viu no lanceiro a encarnação da eterna discórdia entre cristãos. Mais do que isto, a discórdia que dividia o Ocidente. Pensou que talvez fosse essa discórdia que tivesse levado o Papa a conclamar uma união contra os infiéis. Os mouros realmente ignoram essa divisão entre nós, o guerreiro ponderou em seu coração, e por isso devemos dar graças a Deus, ou bastaria que aguardassem até provocarmos nossa própria aniquilação. Ele estava convencido de que aquela discórdia faria o serviço dos infiéis com maior rapidez e precisão.

Arnault não deu tempo a Du Bois para que respondesse:

- Ou talvez prefira que cavalguemos todos para Leão e Castela e lutemos ali contra os cristãos. Assim, os califados do Ocidente perdurariam eternamente, e os mouros continuariam a atormentar a cristandade ainda por muitos séculos.

- Argumentos tolos, Saint-Juste, que só mostram a sua incapacidade de enxergar o que está em jogo - disse Du Bois, acrescentando: - É necessário ter uma consciência para perceber.

            Mestre Everard olhou na direção do seu marechal. Jacques Domaine levantou-se para intervir.

- Du Bois, as discussões estão se tornando constantes ao seu redor... Por esta noite é o bastante. Cavaleiros, temos uma longa jornada à frente.

Os homcns Ievantaram-se e retiraram-se em silêncio. Querendo demonstrar a opinião geral, caminharam ao lado de Arnault SaintJuste. Jacques Domaine os acompanhou. Gilbert du Bois não se moveu de onde estava. Sentados ao pé da fogueira permaneciam mestre Everard e o guerreiro.

O superior dos templários preferira manter-se em silêncio durante todo o tempo em que durara a discussão e Angus não sabia a qual dos homens ele apoiava. Arrependeu-se de não ter falado a mestre Everard sobre o encontro na cripta com o cavaleiro bretão. Compadecia-se do amigo.

- Gostaria de ouvir alguma coisa que explique a sua atitude pediu o superior dos templários. - Pode falar abertamente, pois estáagora entre amigos.

Gilbert du Bois aproximou-se e retomou seu lugar ao pé da fogueira.

- Minha alma me atormenta com perguntas e não vejo respostas em lugar algum - ele disse.

- Que agonia a perturba? - perguntou Everard.

- A incerteza do que faço...

- Incerteza?

Com os olhos fixos no fogo, Gilbert du Bois confessou o que Angus já ouvira dele:

- Não sei se matar é um ato que pode ser praticado em nome de Deus! Não sei se por matar um homem, qualquer homem, cristão ou infiel, serei jogado no inferno ou terei honras no céu. Realmente, não sei. Eu digo a mim mesmo: faz séculos que guerreamos contra os infiéis, o que são sua vida e suas dúvidas em face disso? Mas de nada adianta, pois minha consciência pede outros argumentos que desconheço - afirmou Du Bois a Everardo, o mestre.

- A insubordinação da consciência! Muitos conhecem estas crises, Du Bois. O meu conselho é que se agarre às suas obrigações de cavaleiro e aos seus juramentos. À medida que envelhecer vai notar que nesta vida temos poucas certezas. O dever a cumprir é o que nos pode salvar.

Gilbert du Bois continuou de olhos fixos no fogo. Angus sentia que era justo que o amigo procurasse a verdade para os seus atos e a sua alma. Não uma verdade que passa, mas a verdade eterna e absoluta. Talvez fosse também uma verdade voraz, capaz de devorar os corações dos homens e lançá-Ios na agonia, como ele via acontecer a Du Bois.

A fogueira emoldurou a beleza daquela conversa. Angus pensou que os cavaleiros caminhavam com suas frases inseguras para algum lugar. A inércia das dúvidas fora vencida pela agonia sincera de Du Bois... Talvez o levante de sua consciência ao sítio das precárias convicções dos homens.

Somente o crepitar do fogo interrompia o silêncio. Nenhum dos três homens percebeu a aproximação de Gualtier Drennis, a não ser quando ele já havia chegado junto ao fogo. Angus deu-lhe o seu lugar sobre a manta e sentou-se na areia.

Como se tivesse estado presente às discussões daquela noite, o santo ancião quebrou o silêncio dirigindo-se a Gilbert du Bois:

- Na verdade, a guerra justificada tem apenas a finalidade de ordenar o caos. Onde se encontrar a violência sem medida, as tiranias que massacram inocentes, o combate pode ser justo com o único objetivo de fazer reinar a paz... Mas uma paz duradoura, sustentada pela justiça. De nada adianta a substituição de corações gananciosos por outros com igual disposição. A opressão da gente simples permaneceria a regra.

- Muitos foram os santos que condenaram as cruzadas! - exclamou o cavaleiro bretão.

- Sim - concordou o ancião -, foram muitos os que pregaram contra o movimento... Mas Bernardo de Claraval sempre falou de outro modo às multidões... Ele sempre conseguiu ouvir os gritos de terror que vinham do Oriente... Mas nem sempre foi assim. No início era apenas o apelo de Deus que chamava a essas terras. São Jerônimo fala na multidão de peregrinos que vinha rezar junto ao Santo Sepulcro. No entanto, novos tempos se anunciavam. Os tronos de mármore do Império romano em decadência foram destruídos sob os golpes dos bárbaros. Braços poderosos de povos jovens martelavam e demoliam sem cessar as formas do mundo antigo... O tremor causado pela nova era abalou seus alicerces. Novos guerreiros, novo mundo. Por vezes, esses bárbaros assemelhavam-se a titãs furiosos, amassando o barro do mundo e fazendo as antigas civilizações escorrerem entre seus dedos. Mas Deus sempre foi melhor oleiro e muitos desses povos esqueceram seus antigos deuses e foram sendo cristianizados.

Gilbert du Bois continuava sempre a fixar o fogo, enquanto Angus bebia cada palavra do santo ancião. Naquele momento a conversa foi interrompida pela chegada do marechal e um cavaleiro que estivera de guarda nas dunas. Algumas palavras sussurradas a mestre Everard fizeram com que ele se levantasse e seguisse os homens sem dar explicações. Mesmo Du Bois levantou os olhos, pressentindo que algo de grave se passava.

Por todo o acampamento os cavaleiros jogavam areia nas fogueiras para apagá-Ias. Enquanto Du Bois procedia da mesma forma, Angus acompanhou Gualtier Drennis de volta à carroça. Um cavaleiro veio chamá-Io a mando de mestre Everard e ele pediu ao bretão que ficasse de guarda em seu lugar.

Uma curta subida levou-o ao alto da duna. Mestre Everard, o marechal e o sentinela olhavam na direção de um clarão distante que iluminava a noite.

- Um exército! - disse o marechal, considerando que seriam muitas as fogueiras para que o clarão fosse avistado de longe.

            - Logo saberemos quem são e o seu número.

            - Pretende enviar alguém? - perguntou o marechal - Teria que ser alguém capaz de enganar as sentinelas. O importante é que não chegue demasiado perto para não denunciar a nossa presença.

Mestre Everard e Angus trocaram um rápido olhar e falaram ao mesmo tempo:

- O Abutre!

O genovês, que fizera sua a missão de não perder mestre Angus de vista, foi encontrado facilmente.

- Queremos saber quem são e qual o seu número, apenas isto! - explicou mestre Everard apontando o clarão.

O genovês deixou-se escorregar duna abaixo e de repente foi tragado pela escuridão, sumindo diante dos olhos dos três homens que aguardavam no alto. Mestre Everard olhou na direção do acampamento e apenas pequenas nuvens de fumaça subiam das fogueiras mortas.

- Confiam nesse homem? - perguntou o marechal.

- Eu confio - disse prontamente o guerreiro. Mestre Everard pensou que era admirável como o escocês havia dominado o seu sentimento de vingança por uma causa maior.

- Ele já não terá a luz das nossas fogueiras para guiá-Io - considerou Jacques Domaine. - Espero que o homenzinho não se perca nestas dunas em seu caminho de volta!

- Ele enxerga no escuro, esse genovês - garantiu mestre Everard. Algum tempo depois, Bertoldo emergiu das sombras, outra vez, diante dos seus olhos.

- São turcos, os desgraçados! - anunciou ele.

- Quero o número! Viu quantos homens são? - perguntou mestre Everard.

- Uma grande tropa - respondeu o Abutre, acrescentando: - Eu diria que eles têm cerca de trezentos arqueiros e duzentos infantes.

- Somos apenas setenta cavaleiros, melhor é evitar um confronto - ponderou o marechal.

- Provavelmente uma tropa de fronteira - era a opinião de mestre Everard. - Sorte nossa não termos sido avistados. Eles vigiam os limites da Síria e principalmente o movimento de cavaleiros cristãos.

- Podemos nos desviar de nossa rota e tomar o caminho mais próximo da costa - sugeriu Jacques Domaine.

            - Seria sensato. A armada de Bizâncio vigia a costa - disse mestre Everard, apoiando a sugestão do seu marechal.

            - Terras de bandidos e assassinos! - sussurrou Bertoldo ao seu amo.

Antes que a madrugada anunciasse os primeiros sinais do dia, as duas colunas de templários já haviam iniciado o movimento em direção à costa. O ar tornara-se menos abafado e uma brisa ligeira chegou com os primeiros raios de sol. Porém, ainda haveria dias de penosa marcha, com areias e dunas a vencer antes que retomassem a direção para a capital bizantina.

No terceiro dia acamparam em terreno firme e rochoso. Ao redor, as escarpas escondiam a luz das fogueiras, o que tranqüilizou a todos, embora não temessem mais a tropa turca que ficara para trás. Apesar do cuidado em postar sentinelas para vigiar os quatro horizontes, Angus MacLachlan guardara no pensamento o aviso de Bertoldo de que aquela era terra de bandidos e assassinos. Desde que haviam escolhido a nova rota, passara a dormir a poucos passos da carroça, não se afastando senão à distância que lhe permitisse voltar com a rapidez do vento.

Outra vez haviam tido o espetáculo deslumbrante do ocaso. Manchas avermelhadas que iam ganhando a tonalidade de uma gigantesca safira preparou o surgimento das estrelas. Deitado sobre o braço e olhando para cima, o guerreiro escocês pensou que, de todas as maravilhas vistas e por ver, o céu claro e estrelado daquela região do Oriente jamais se apagaria da sua memória.

Gualtier Drennis deixara o refúgio da carroça e viera conversar com o guerreiro. Vendo-o absorvido na contemplação do manto de estrelas, disse:

- São testemunhas de tudo o que acontece sobre a face da Terra.

- Testemunhas mudas - disse o guerreiro.

O santo ancião sorriu:

- Alguns dizem que as estrelas possuem alma e inteligência. Outros, que elas produzem uma música tão maravilhosa que se um ser humano fosse capaz de ouvir esqueceria de comer ou beber, alimentando-se apenas com a melodia que descesse dos céus e lhe chegasse aos ouvidos.

- Parecem contos de criança, meu senhor - disse o guerreiro.

- Tudo sempre está na dependência de quem tenha "ouvidos para ouvir" - disse o velho. - Não é o que lemos nas Escrituras?

Mestre Everard, acompanhado de um grupo de cavaleiros, juntou-se a eles e partilharam o calor da mesma fogueira. Angus pensou que também aquela partilha seria, em tempos futuros, uma dádiva de sua memória.

- De que falavam? - perguntou o superior dos templários.

- De como os astros nos observam - disse Angus - mas não sabemos se algum dia falarão a nosso favor.

- Viram Jesus morrer e não protestaram - disse um cavaleiro.

- Viram Jerusalém cair nas mãos dos infiéis e permaneceram calados - disse outro.

- Têm sua própria maneira de falar. Sem os outros não ousaríamos atravessar os desertos - contrapôs Gualtier Drennis que tomara a si a defesa desses orientadores. - A questão é que Deus manda a chuva ou o sol sobre os bons e os maus, assim como os astros servem de guia a todos, aos fiéis e aos infiéis. O que queriam que eles dissessem quando morreu Jesus ou caiu Jerusalém? São úteis por outras razões.

- Conte-nos sobre a queda de Jerusalém - pediu um cavaleiro, no que foi apoiado por todos, pois sabiam que o santo ancião tinha conhecimentos como nenhum outro sábio nos reinos da cristandade.

- É uma longa história - ele falou. - Por onde começar? O melhor seria rever o que aconteceu cem anos antes desse desastre e que, de certa maneira, o preparou. Devemos lembrar a súbita aparição e expansão de um novo Império na Ásia central, o dos turcos, cujo Khagan, chefe supremo instalado no Tien-Chan, reinava em meio a imenso fallsto, sentado num trono sustentado por quatro pavões de ouro. Ele provocava uma enorme agitação entre as tribos dispersas da China aos montes Urais. Como conseqüência das suas investidas, os lombardos lançaram-se contra a Itália, e os ávaros, mongóis hostis ao domínio turco, foram instalar-se no sul da Rússia e, depois, no baixo Danúbio. Esses últimos eram guerreiros tão terríveis como haviam sido os seus primos hunos, e levavam consigo a incansável infantaria dos eslavos, gente feroz como eles próprios.

- Ouvi dizer que eles não usavam prisões. Queimavam os prisioneiros ou esmagavam seus crânios - disse um cavaleiro.

- Nada vindo dessa gente seria de espantar - continuou o ancião. - O fato é que Bizâncio teve que fazer frente a essas hordas, mas nenhum inimigo foi tão temível quanto aquele que se instalara em Ctesifonte: o rei Cósroes II. No início do sétimo século, enquanto o Ocidente procurava o seu equilíbrio entre a anarquia bárbara e a nova ordem que, depois de São Gregório Magno, se encarnava e era conduzida pelo papa, o Oriente foi abalado por um terrível acontecimento. Por todo o Jmpério de Bizâncio correu a notícia de um desastre sem igual. Jerusalém acabara de cair nas mãos dos infiéis! Havia dez anos que os persas do rei Cósroes tentavam sucessivas investidas nas fronteiras orientais do Império. Mais uma vez haviam invadido a Palestina. Sitiaram a Cidade Santa durante vinte dias. Os aríetes empurrados contra as portas, as muralhas forçadas, o fogo arremessado dia e noite, o ódio religioso, tudo contribuiu para o sucesso daquela investida. Muitas igrejas foram incendiadas, entre elas a basílica da Ressurreição mandada construir pelo imperador Constantino.

- Ouvi falar em 60 mil mortos, será verdade? - perguntou o cavaleiro que pedira o relato a Gualtier.

- Não seria um número exagerado - respondeu o ancião. - Sabemos com certeza que 35 mil cristãos foram levados em cativeiro, entre eles, o próprio Patriarca. Os persas não respeitaram nada, ou quase nada. Curiosamente, deixaram intacta a basílica da Natividade em Belém, segundo se dizia, por causa do mosaico representando a "Adoração dos Magos”. Teriam reconhecido ali os seus costumes nacionais. Quanto ao resto... inúmeros mosteiros foram destruídos, os monges e monjas dispersados. Tesouros sagrados, tecidos preciosos, vasos de ouro e de prata foram roubados das igrejas e enviados às capitais sírias. A pior das ignomínias foi a que praticaram contra a Santa Cruz. Tiraram-na do Santo Sepulcro e levaram-na como troféu a Ctesifonte.

O santo ancião parou um instante, o rosto entristecido e, ao redor da fogueira, pairou um eco de dor como a que sentira toda a cristandade. O velho prosseguiu:

- Esse Cósroes II, prestigioso "rei dos reis" como queria ser chamado, não era um homem de religião, mas um conquistador. "O céu serve aos meus desejos, meus tesouros são ilimitados e todos os povos trabalham somente para mim”, ele costumava dizer, no auge da sua glória. Seu trono era ornado com os signos do zodíaco, rodeado no inverno por uma cortina de pele de castor e de zibelina e aquecido por esferas de ouro cheias de água fervente. As suas caçadas eram cercadas de um luxo prodigioso: cavaleiros com vestes de cetim e bordados deslumbrantes, um número incontável de falcoeiros, além de servos que seguravam pela trela guepardos domesticados... Quando acampavam, era estendido no solo um tapete do tamanho de uma fortaleza no qual estavam representadas todas as regiões do Império sassânida. Diz-se ainda que o seu exército contava com novecentos elefantes e o seu harém com doze mil mulheres.

- Com tal poder, não é de admirar que esse rei quisesse governar o mundo! - exclamou um cavaleiro.

- Era o que ele pretendia - concordou Gualtier -, mas Bizâncio erguia-se no caminho das suas ambições. O choque foi inevitável. Durante vinte anos, quase sem trégua, Cósroes II lançou as suas tropas contra as fronteiras bizantinas. Uma após a outra, as províncias de Osroene, da Síria, da Analólia e depois, do Egito, assistiram à invasão dos persas e das hordas mongóis utilizadas como tropas auxiliares. No início do século sétimo, preparavam-se para conquistar Calcedônia, no mar de Mármara, em frente a Constantinopla. Porém, a tomada de Jerusalém, poucos anos depois, foi o mais doloroso episódio de toda essa larga provação para a cristandade.

- Foi nessa altura que surgiu Heráclio - disse Angus MacLachlan.

Os cavaleiros estranharam que o escocês estivesse tão bem informado.

- Não se admirem! - exclamou mestre Everard. - Temos em nossa companhia alguém que considera o Imperador de Bizâncio um verdadeiro santo.

- Não está longe da verdade - disse Gualtier Drennis. – Heráclio assumiu o poder aos trinta e seis anos de idade. Contam os cronistas que ele era um homem sério e de caráter bem formado. Um homem alto, dizem, de cabeleira avermelhada e barba espessa. Seu olhar era límpido mesmo quando encarava de frente o inimigo. De sua bravura também falam, uma bravura espantosa, pois não deixava a ninguém a honra de chegar primeiro ao coração da batalha. Um campeão no combate singular. Além do mais, era estrategista e diplomata, com todos os dotes de um grande general e hábil em surpreender com seus argumentos a aliados e inimigos. Sobretudo era um cristão de fé ardorosa, entusiasta no serviço ao Cristo e com o que que ensinavam os Evangelhos. Pode-se bem dizer que foi o antepassado espiritual desses cavaleiros que, muito mais tarde, haveriam de desafiar todos os perigos para reconquistar o Santo Sepulcro.

- "O primeiro cruzado"! - exclamou Angus. - Aquele de quem ouvi sua história, chamava-o assim.

- É justo que o fizesse - confirmou o santo ancião. - Mas ele penou muito no início do seu reinado. Nada parecia poder deter as investidas dos persas. Num ponto ou noutro do Império Bizantino, havia sempre uma região sendo atacada. No preciso momento em que Jerusalém caía, o inimigo aparecia outra vez em Calcedônia. As hordas dos ávaros, deixando os seus acampamentos na Hungria, invadiram a Trácia e vieram cercar Constantinopla. Com a Palestina e a Síria conquistadas, com Alexandria ocupada, Bizâncio sendo ameaçada por mongóis em terra e por persas pelo lado do mar, Heráclio chegou a pensar que deveria fugir para Cartago, do que foi dissuadido pelo patriarca Sérgio. Foi então que se deu a reviravolta, um verdadeiro milagre, e que tomou a forma de uma autêntica cruzada. Os exércitos responderam ao apelo do chefe da Igreja. Foram tomados pelo desejo de libertar o Santo Sepulcro e reconquistar a verdadeira cruz. O patriarca conclamou a todos: "Não tendes o direito de permitir que os magos ocupem a Cidade Santa - ele disse aos maiorais do Império, - como não tendes o direito de deixar que a Santa Cruz seja objeto de escárnio em Ctesifonte!". E mais, sob sua ordem, todos os tesouros da Igreja foram colocados à disposição do Imperador.

- Fala-se numa famosa carta que Cósroes teria escrito a Heráclio, uma carta insultuosa à sua honra e à sua fé - disse mestre Everard, acrescentando: - Parece-me que o Imperador teve o bom senso de divulgá-Ia, o que fez com que cada bizantino se sentisse pessoalmente atingido.

- A carta foi lida dos púlpitos! - exclamou o ancião. - Dizia, entre outras coisas: "Pretendes colocar em Deus a tua confiança? Então, porque ele não salvou Cesaréia, Jerusalém e Alexandria das minhas mãos? Se me aprouvesse, eu teria também destruído Constantinopla. Quanto ao teu Cristo, não te deixes embalar por uma vã esperança; Ele nem sequer foi capaz de salvar-se das mãos dos judeus que o crucificaram!”

- Ainda hoje essa carta parece insultar-nos a todos! – exclamou um cavaleiro.

- No ano do Senhor de 622, começou a guerra santa - prosseguiu o ancião. - Uma cruzada que duraria dez anos ininterruptos de batalhas. Heráclio lançou-se contra as tropas persas na Galácia e na Capadócia, repelindo-as de volta ao rio Eufrates. Ele atravessou de um salto a Armênia, sem se deter para reconquistar as províncias ocupadas, mas lançou-se Pérsia adentro. Tomou Erivan e vingou o saque de Jerusalém incendiando o templo masdeu de Tabriz. Nessa altura, o Império sassânida estava ferido de morte.

- É estranho que o rei Cósroes II não tenha reagido - comentou o cavaleiro que pedira o relato.

- Ele reagiu, não há dúvida - contrapôs Gualtier Drennis. - A prova é que depois de uma sucessão de vitórias bizantinas, nos três anos que se seguiram os exércitos de Heráclio tiveram que ficar apenas na defensiva. No quarto ano, os ávaros restabeleceram a sua aliança com os persas e lançaram nova investida. Houve uma verdadeira corrida contra Bizâncio, na qual mongóis, eslavos e búlgaros marchavam lado a lado com medos e persas. Diante do perigo iminente, o patriarca Sérgio, em cujas mãos estava a defesa da cidade, lutou com grande energia. Dizem que ele mandou passear a imagem da Santa Mãe de Deus sobre as muralhas, na primeira fila de combatentes. Deu-se o milagre: o inimigo recuou.

O santo ancião fez uma pausa, visivelmente cansado. Sua voz baixara de tom. Mestre Everard insistiu para que adiasse o relato, mas ele não quis.

- Ainda algumas palavras sobre o Imperador - acrescentou com humor - para que não deixemos o patriarca a batalhar sozinho, mesmo que ajudado pela força sobrenatural da Virgem Maria! Heráclio havia se refugiado no Cáucaso, mas saiu do seu reduto e retomou a ofensiva após ter contratado contigentes mercenários.

- Os turcos pechenegs! - exclamou o superior dos templários, recordando-se daquela estranha aliança entre cristãos e infiéis.

- Sim, os pechenegs ou patzinaks - confirmou Gualtier Drennis. - Eram de raça turca e, como muitos outros, haviam migrado das estepes para o oeste. Oito tribos ao todo, cujos nomes eram tirados da cor dos seus cavalos. Recordo-me apenas de uma: Qara-Bay, "a tribo da baía com cavalos cinzentos”. Mas foi o ano de 627 que viu a vitória mudar de lado. O Imperador tomou Tíflis, atravessou a Armênia, invadiu a Síria e esmagou o melhor dos exércitos persas, perto de Arbelos, exatamente no mesmo lugar em que Alexandre, o Grande, havia vencido outro rei dos reis. Esgotada, a Pérsia pediu misericórdia. Era a vez dos bizantinos invadirem em incursões fulminantes os quatro cantos do Império sassânida. As cidades sagradas dos masdeus arderam por toda parte. Por fim, no ano de Nosso Senhor de 628, espalhou-se a notícia que todos esperavam ouvir. O próprio Heráclio a anunciou: "Caiu o ímpio, o orgulhoso Cósroes! Aquele que insultou o Cristo e a Virgem está morto; escutai o fragor da sua queda. Já arde no inferno com os seus iguais!".

- Heráclio matou-o em pessoa? - perguntou um cavaleiro.

- Não, foi destronado pelo próprio filho - informou o ancião – e executado no recinto que eles chamavam de "casa das trevas”. A Pérsia masdeísta deixou de existir para sempre. Quando Heráclio reconduziu a Santa Cruz para Jerusalém, carregando-a ele mesmo sobre os ombros, aquela que muitos consideram a verdadeira "primeira cruzada" foi realmente coroada com a mais brilhante das vitórias.

O relato agradara a todos os cavaleiros. Caminharam de volta às suas fogueiras comentando os feitos do passado dos quais haviam herdado a luta. A noite concentrara o frio naquele recanto pedregoso. As capas eram enroladas ao redor dos corpos aconchegados ao calor dos fogos.

Angus MacLachlan reconduziu Gualtier Drennis à carroça onde o esperava o noviço. Depois, acomodou-se no chão, sobre uma manta que mal dava para cobrir seu corpo. Mas, para o guerreiro, aquele ar frio era bem-vindo e revigorava-lhe os músculos depois do calor intenso do dia. O silêncio caiu sobre o acampamento, parecendo apenas que este era povoado pelos fantasmas dos sonhos. O cansaço não deixava que ouvissem passos se dirigindo às proximidades da carroça.

O guerreiro dormia, a adaga ao alcance da mão. Ouviu um sussurro que confundiu com a brisa. Seu punho fechou-se ao redor do cabo. Uma mão tocou-lhe o flanco. A certeza percorreu-lhe a mente como um raio. Num gesto rápido, sua mão agarrou o visitante enquanto encostava a lâmina ao seu coração.

- Sou eu, mestre, sou eu, Bertoldo - sussurrou amedrontado o genovês, confrontando a morte certa.

            - Quer morrer, infeliz? - perguntou o guerreiro baixando a lâmina.

            - Nem quero morrer nem quero que morra, mestre, nem o senhor nem o velho sob sua guarda. Vim avisar que há perigo.

            - Que tipo de perigo?

- Bandidos assassinos rondam o acampamento - avisou Bertoldo. - Uma meia dúzia. Movem-se como hienas mas não escaparam aos meus olhos e certamente não vão escapar à espada de mestre Angus.

            - Alertou os vigias? - perguntou Angus.

            - Não trabalho para os templários - declarou Bertoldo - a não ser que meu mestre assim o ordene.

Angus MacLachlan retirou o machado da bainha da sela. A seguir abriu a cortina da carroça e despertou o noviço mandando que ficasse alerta. Depois foi à fogueira mais próxima onde dormiam cinco cavaleiros. Chamou-os e contou sobre o perigo que rondava o acampamento.

- Não devemos avisar a mestre Everard? - perguntou um dos cavaleiros.

- Se os bandidos desconfiarem que sabemos da sua presença, fugirão e nunca mais os apanharemos - disse o guerreiro.

Pediu que dois cavaleiros fossem montar guarda junto com Benoit Pierron. Os outros três seguiram-no para o local de onde Bertoldo tinha avistado os assassinos. Arrastaram-se para não serem ouvidos.

- Ali devia haver um sentinela - disse um dos cavaleiros apontando uma pedra adiante.

- É Crécy quem está de vigia na direção do Oeste. Talvez esteja escondido. Quando estou de vigia, escondo-me sempre - falou o outro.

            - Qual o seu nome? - perguntou Angus.

- Martignac, senhor.

- Cavaleiro Martignac, já que conhece as habilidades de um bom vigia, quero que vá alertar o seu companheiro para que não dê o alarme vendo-nos sair - pediu Angus. - Esperaremos até que retorne. Três homens podem lidar facilmente com meia dúzia de bandidos. Vamos apanhá-Ios de surpresa.

            Martignac contornou a pedra e começou a escalar o lugar onde sabia estar o vigia. Aproximando-se, sussurrou um chamado:

            - Crécy! Crécy!

            Não ouviu nada além da brisa. Subiu um pouco mais e voltou a chamar, temeroso de que a escuridão e a surpresa pudessem lhe valer um golpe do vigia. Sobre a pedra pairava a mais absoluta imobilidade. Quando chegou ao cimo, Martignac viu o corpo do companheiro encolhido numa cavidade. Parecia adormecido.

- Crécy! - chamou mais uma vez, aproximando-se.

O cavaleiro não se moveu. Martignac colocou a mão no seu peito para acordá-lo. Sentiu a túnica empapada de sangue ainda morno. Puxou o corpo. A cabeça de Crécy pendeu para traz expondo a traquéia aberta. Martignac largou-o e começou a descer saltando pela pedra até chegar ao lugar onde esperavam por ele. Estava ofegante, a própria túnica manchada com o sangue do companheiro.

- Degolaram Crécy! - disse com voz rouca.

- Ainda consegue enxergar os bandidos? - perguntou Angus. Bertoldo apontou a escuridão em frente:

- Na caverna rasa ao pé daquele rochedo!

- Todos os seis? - perguntou o guerreiro.

- Todos eles. Devem estar discutindo quem matarão a seguir. Poderia atraí-los para fora do covil, se mestre Angus quiser.

            O guerreiro concordou:

- Deve dar-nos algum tempo para chegarmos perto. Eu irei pela direita e os cavaleiros pela esquerda. Darei o sinal para que Bertoldo os faça sair da caverna. Mas devem aguardar novo sinal antes de atacar.

Os cavaleiros sacaram as espadas. Angus mantinha o machado numa mão e a adaga na outra.

            - Está armado? - perguntou ao Abutre.

            - Com minhas pernas, mestre Angus. Elas me prestam melhor serviço do que uma espada - respondeu o genovês.

O guerreiro pensou que fizera bem em deixar a espada na carroça. A lâmina de Gaoth Cerridwen não devia ser manchada com sangue tão indigno.

Ele contornou a pedra e tomou o caminho mais longo, esperando que os cavaleiros fizessem o mesmo. Embora fixasse o ponto onde Bertoldo dizia estarem os bandidos, em nenhum trecho do caminho conseguiu distinguir o que se passava na sombra do rochedo.

Chegou por trás e contornou a pedra apenas o suficiente para que fosse visto por Bertoldo. Foi então que ouviu as vozes sussurrando no escuro. Dali não podia avistar os cavaleiros, por isso esperou mais alguns momentos dando tempo para que chegassem ao outro lado do rochedo.

Então, ergueu o machado e brandiu-o no ar. Fazendo justiça ao seu nome, Bertoldo saltou de uma pedra direto à entrada da caverna. A seguir, ergueu-se e abanou a capa como se fossem asas, enquanto de sua boca saía uma enxurrada de palavrões. Os bandidos, espantados com aquela aparição, e vendo-o sozinho, lançaram-se sobre ele.

Angus apareceu de trás do rochedo, vibrando o machado e derrubou aquele que saíra por último, esperando que aquela investida chamasse os cavaleiros. Eles surgiram um pouco adiante, cortando o caminho aos perseguidores de Bertoldo. O Abutre saltava de pedra para pedra tentando escapar aos golpes das adagas. Martignac atravessou um bandido com sua espada enquanto o outro cavaleiro esgrimia contra dois. Martignac foi em seu socorro. Angus brandia o machado. Decepou um braço que queria apunhalá-Io pelas costas. De repente, Bertoldo pôs-se a gritar que um dos bandidos havia fugido. Angus viu apenas um vulto entre as pedras. Atirou sua adaga. O vulto deu ainda alguns passos, cambaleando como se estivesse bêbado e desabou no chão.

A luta não durara mais que alguns instantes. Os seis bandidos jaziam ainda sangrando entre as pedras. Bertoldo saltou para perto de um dos corpos e arrancou a bolsa presa à cintura. Sacudiu-a no ar e as moedas tilintaram. Angus aproximara-se dele, colocando a mão sobre o seu ombro:

- Não! - disse o guerreiro.

- São bandidos! - balbuciou Bertoldo. - É dinheiro roubado, dinheiro de ninguém. Se o deixarmos, quem tirará proveito?

- Sim, é dinheiro de ninguém - disse o guerreiro. - Se quiser, pode ficar com o que encontrar nesse corpo e nos outros. Mas terá que deixar o meu serviço pois não caminho com abutres!

Angus dera-lhe as costas e juntara-se aos cavaleiros. Bertoldo sentou-se numa pedra. Abriu a bolsa que tirara do corpo e deixou que as moedas escorregassem para um vão na pedra. Pareceu-lhe estar chutando a sorte, passando ao largo da fortuna. Suspirou incapaz de compreender que proveito podia trazer aquele desperdício. Depois, as mãos abanando, foi juntar-se aos cavaleiros.

Enquanto subiam de volta, puderam ver as luzes de archotes que os guiou na direção de mestre Everard. Angus fez um breve relato dos acontecimentos. Foi decidido que permaneceriam mais um dia acampados no local. Honras fúnebres deviam ser prestadas ao cavaleiro que morrera. Também aos bandidos seria dada sepultura.

A madrugada veio encontrar silêncio e tristeza no acampamento. Durante todo o dia, enquanto procediam às orações e enterro dos mortos, olhos e ouvidos atentos se multiplicavam no cimo das dunas. Em todos os corações havia o desejo de deixar aquele lugar. A noite sem lua prolongou o pesadelo. Muitos cavaleiros perambulavam de um fogo a outro, adiando o sono. Mas as fogueiras eram também lugar de silêncio. Ao raiar do dia, deixaram a região das escarpas para retornar ao areal.

Quando as colunas se puseram em movimento, Angus MacLachlan freou seu cavalo para olhar pela última vez o túmulo do vigia morto. Era um amontoado de pedras encimado por uma cruz. Embora não o tivesse conhecido, sentiu que estava deixando para trás um companheiro. Gilbert du Bois veio ter com ele, interrompendo seus pensamentos:

- Chamava-se Crécy - informou - era jovem e cheio de coragem. Uma morte inútil!

- Morreu pela mão da escória do mundo - disse o guerreiro. Não é esta a função dos templários, manter os caminhos livres dessa gente?

- Acredita mesmo que foi uma morte justificada? Uma morte inútil, é o que penso, como a de seus próprios compatriotas - disse Du Bois por cima do ombro. A seguir, esporeou o cavalo para alcançar a coluna.

A noite se aproximava e os raios dourados tingiam as dunas, os cavalos e os cavaleiros quando mestre Everard deu sinal para que se armasse novo acampamento. Havia menos ameaça, pensaram todos, naquele leito de areias que os ventos moldavam a cada dia, dando-lhes o mesmo aspecto de pureza que deviam ter na aurora dos tempos.

As fogueiras foram acesas. A noite fechou-se sobre os homens. Os corações permaneciam pesados.

- Desviamo-nos muito da costa - disse o marechal ao superior dos templários.

- Amanhã faremos novo desvio e rumaremos outra vez naquela direção - garantiu mestre Everard.

Gualtier Drennis não quis se juntar aos homens na fogueira e pediu ao noviço que fosse chamar Angus MacLachlan e o trouxesse à carroça. O guerreiro atendeu ao convite e acomodou-se no banco destinado ao noviço. Face a face com o santo ancião, deixou que ele lesse em seus olhos a mágoa que nascera com as palavras de Du Bois.

- Ontem ajudei a matar seis bandidos - disse - da mesma forma como massacrei genoveses e normandos. Eu pergunto, senhor, onde está a causa de Cristo?

- Heráclio, que tanto admira, encontrou essa causa e lutou por ela - respondeu o ancião. - Creio que está em toda parte e pertence a todos os tempos.

- Du Bois questiona a utilidade das mortes - disse Angus - não daquelas causadas por doenças ou as que se apresentam no fim da vida, mas das que acontecem de repente ao longo do caminho. O vigia Crécy, os meus compatriotas...

- Quem pergunta sobre a utilidade da morte também está perguntando sobre a utilidade da vida ou, pelo menos, sobre o direito à vida.

- Direito à vida? - perguntou o guerreiro confuso. - Quem, neste mundo de interesses mesquinhos e de confrontos de fé, estaria preocupado em resguardar a vida de quem quer que seja? Se eu sou cristão, declaro que todo infiel deve morrer, da mesma forma que, se fosse muçulmano, seria meu dever negar a vida a qualquer cristão. Não é por isso que estamos todos aqui?

Com voz branda, o santo ancião respondeu:

- As perguntas são sempre mais fáceis do que as respostas, e nem todas as perguntas simples podem ser respondidas da mesma forma. Todos nós vivemos num mundo em constante mudança. Muitas vezes é necessário ir buscar as respostas no passado distante. Veja, Angus, no mesmo momento em que o piedoso Heráclio, de pés descalços, subia o Calvário levando a Santa Cruz, os cavaleiros de Alá começavam a ganhar terreno, quatrocentas léguas para o Sul. Depois do tempo de Heráclio, infelizmente o islã e a cristandade entraram em conflito. O interessante é que os dois exércitos, tanto o cristão quanto o muçulmano e cada um por seu lado, haviam garantido com suas inúmeras guerras contra reinos pagãos justamente o direito à vida.

- Não posso compreender como isso fosse possível - comentou o escocês.

- Vai compreender - garantiu-lhe o ancião. - As antigas civilizações, potentados que possuíam uma cultura excepcional, concediam aos seus líderes o direito de decidir quem vivia e quem morria entre os seus. Reis, chefes e guerreiros tinham o direito de livrar-se, quando bem quisessem, dos velhos, dos doentes ou das crianças. Quantos foram trucidados em razão de uma herança, da casta em que nascera ou da má vontade na partilha de bens que apenas alguns possuíam. Quantos foram mortos em rituais macabros para apaziguar a ira dos deuses! Quantos foram atirados às feras para diversão das multidões e popularidade dos governantes! O Império Romano, apesar de toda a sua cultura, dormia no leito de morte dos mártires.

- Sim, é verdade - concordou o guerreiro - mas o que tem isso a ver com os muçulmanos?

- Na Arábia, as coisas não eram diferentes, antes de Mohamed, filho de Abdallah... Em Meca havia duzentos deuses a quem prestar culto. Meninas eram enterradas vivas logo ao nascer, pois davam preferência aos filhos varões, futuros guerreiros. Tanto no Ocidente quanto nessas terras, exércitos tiveram que lutar contra civilizações poderosas para fazer florescer o direito à vida. Não foi fácil vencer a obstinação dos reinos pagãos. Eles viam hostilidade na mensagem de uma nova fé. Os mandamentos iriam sacudir seus alicerces e fazê-Ios ruir.

- Então, não havia outro caminho senão as guerras... Mas, devem essas guerras ser chamadas de santas? - ponderou Angus.

- As chamadas 'guerras santas', apesar do nome conter uma contradição, não deixavam de ser um confronto entre aqueles que defendiam um direito para todos daqueles que se apegavam a costumes locais, defensores de leis mesquinhas, apesar de certos aspectos da sua cultura. Para eles, abdicar do seu modo de vida frente a um novo modelo era aceitar a auto destruição. Por isso exércitos cristãos e islâmicos empreenderam tais combates.

- Mas jamais lutaram unidos pela mesma causa! - exclamou o guerreiro.

- O demônio, inimigo da humanidade, sedento de tantos sacrifícios humanos perpetrados em seu nome, concebeu o plano de colocar cristãos e muçulmanos uns contra os outros. Foi o triunfo da divisão. Aquele que divide, que confunde, faz o serviço do demônio.

- Tudo está sempre mudando! - observou Angus. - É difícil entender um mundo que hoje vemos de uma maneira e amanhã veremos de outra.

- A verdade não é mutável, meu filho, mas ela vai se manifestando na medida em que ordenamos nossas mentes e nossos corações para nela podermos mergulhar. A verdade possui muitos níveis de compreensão. Por isso ela pede uma mente aguçada e um espírito aberto. Novos acontecimentos pedem uma nova compreensão.

As palavras de Gualtier Drennis soaram como uma perigosa revelação. Se não estivessem a sós, Angus MacLachlan não teria tido coragem para formular sua pergunta da maneira que o fez:

- O que diz não parece possível vir dos lábios de um monge cristão! Então, senhor, estaremos lutando contra uma fé que também é verdadeira? Em que confusão estamos metidos?

O santo ancião não se apressou a responder. Quando falou, sua voz guardava a mesma serena convicção que estava em tudo o que dizia, como se cada palavra tivesse sido longamente ruminada antes que a pronunciasse.

- Sou um monge-cavaleiro, é certo, mas devo também entender as circunstâncias e o momento em que acontecem as grandes mudanças. Em sua própria terra, Angus, o cristianismo foi aceito de forma mais suave e se espalhou de maneira esplendorosa. Os monges irlandeses civilizaram aquela parte do mundo. Aqui no Oriente as coisas sempre foram muito mais difíceis. Uma miríade de civilizações complexas vive para além das areias e das montanhas verdejantes. É lícito que nos defendamos se formos atacados. Viemos para proteger os peregrinos, dar-Ihes assistência e cuidados, não para exterminar a fé islâmica trucidando os seus adeptos. Esta é uma atitude que define a nossa Ordem.

- Então, nunca foi apenas uma questão religiosa - disse Angus.

- Mesmo antes que nos voltássemos uns contra outros, não havia união entre os cristãos - declarou o ancião com um profundo suspiro. - O Oriente cristão conheceu uma época confusa e de decadência. Sempre houve movimentos heréticos que foram sendo resolvidos pelos pronunciamentos dos padres da igreja e pelas decisões dos concílios. Depois, instalou-se o caos. As Igrejas cobriam-se reciprocamente de anátemas, excomungando-se umas às outras. Se pensarmos que o Império Persa, retalhado pelas guerras, havia perdido o seu poder, que os gregos enfraqueciam-se internamente, então podemos dizer que o Oriente estava morrendo. As tribos árabes, por sua vez, estavam divididas, cada uma seguindo uma crença, não tendo interesse em procurar a unificação. No meio desse caos, surgiu um homem com o sonho ousado de uma nova religião. Este sonho concebido no seio do deserto criaria um novo Império.

- E esse homem foi Mohamed - adivinhou Angus.

- Sim, Mohamed, filho de Abdallah, da tribo dos korechitas - confirmou Gualtier Drennis. - Fora um humilde condutor de caravanas nos primeiros tempos da sua vida. Talvez, durante as longas viagens pelo deserto, ele tivesse começado a meditar sobre todo um mundo a ser chamado à unidade. O filho de Abdallah era dotado de muitas qualidades que são apreciadas pelos orientais: tinha a imaginação fértil, uma energia contagiante mas, ao mesmo tempo, uma gravidade que impunha respeito. Seu espírito era muito vivo e firme, sabendo esperar. O próprio Deus, dizem os orientais, é pelos pacientes. Ele conhecia a fundo as populações da Arábia e teve o cuidado de canalizar os seus pendores belicosos para que partilhassem do seu sonho. Prometia aos discípulos, que saíam praticamente nus do deserto, transformar o mundo num único Império. As vitórias sempre foram milagres seus. O Corão, descendo lentamente do céu, revelava também que Mohamed era poeta, moralista e político. Trechos de grande beleza, escutados avidamente num país onde dominava o amor ao maravilhoso, recebiam o encanto supremo na língua árabe, da qual Mohamed conhecia a harmonia e os poderosos recursos. Tudo o que a imagem poética podia ter de sedução servia para pintar um paraíso criado para os sentidos e que devia responder aos sonhos mais ardentes do homem.

- Conhece bem o Corão, senhor? - perguntou Angus, outra vez surpreendido por aquela revelação.

- Tive-o muitas vezes diante dos olhos - confessou o santo ancião. - É interessante notar que, materializando os desejos humanos e, por vezes, tentando despertar o que há de mais violento nos corações, nem por isso deixa de pregar uma moral nobre e pura. Essa moral, no meio das tribulações daquele tempo quando o mundo ruía, levava a razão a verdades que haviam permanecido ocultas. Isso contribuiu para que vissem Mohamed como um enviado celeste, o único profeta de Deus. As leis prescritas no Corão estavam em completa harmonia com as necessidades e os costumes dos povos da Arábia. Sua política nada tinha de complicada, era a política da espada, a única aceita pelas diversas tribos acostumadas a resolver suas questões por meio dos combates. Assim eram Mohamed e o caráter da missão que empreendeu. É verdade que tomou às Escrituras e aos Evangelhos aquilo que podia melhor entrar no espírito dos seus; também tomou de cultos orientais o que poderia convir aos seus projetos de renovação. Dessa mistura de doutrinas ele compôs o livro que há tantos séculos se tornou o oráculo de metade do mundo.

- Um jovem e obscuro condutor de caravanas com um tal poder! - exclamou Angus.

- Já não era tão jovem quando começou a sua obra apostólica em Meca - esclareceu o ancião. - Ele teria quarenta anos então. Depois de treze anos de pregação, foi obrigado a fugir para Medina, para escapar da sua tribo que o perseguia. É difícil ser profeta entre os seus. Essa fuga para Medina aconteceu em 622 e marca o início da era muçulmana. O profeta apóstolo de Deus, como ele próprio se autodenominava, marchava à frente de discípulos fiéis à sua palavra. Em poucos anos a nova crença invadiu toda a Arábia. Ele sonhava continuar suas conquistas, mas o veneno veio encurtar seus dias. Morreu em Medina no ano de Nosso Senhor de 632.

- Suas idéias não morreram com ele, ou não estaríamos travando esta guerra santa até os dias de hoje - comentou Angus, curioso por ouvir o resto do relato.

- Ele deixou sucessores - informou o ancião. - Abu-Beker, seu sogro, que tomou o título de "lugar-tenente do apóstolo de Deus”, continuou a obra de conquista durante vinte e sete meses. Sucedeu-o Omar, que se fez primeiro chamar de "lugar-tenente do lugar-tenente do Apóstolo de Deus" e, mais tarde, "Príncipe dos fiéis". Ele se apoderou da Pérsia. A Síria e o Egito, pelo poder da espada, logo se deixaram conquistar. A nova crença ameaçava muitos potentados. As tropas muçulmanas espalharam-se pela África, plantaram seu estandarte sobre as ruínas de Cartago e levaram o terror até as praias do Atlântico. Desde a índia até ao estreito de Cádiz, desde o mar Cáspio até o Oceano, tudo mudou: a língua, os costumes, as crenças. Desapareceu o que restava do paganismo ou do culto dos magos. Mesmo o cristianismo subsistiu em meio a grandes dificuldades. Constantinopla, o baluarte do Ocidente, viu as hordas dos sarracenos, de repente, diante das suas muralhas. Sitiada várias vezes, por terra e por mar, a cidade de Constantino deveu a sua salvação ao famoso "fogo grego", aos búlgaros que acorreram em seu auxílio e à inexperiência dos árabes nas artes da navegação. Durante o primeiro século da hégira, as conquistas muçulmanas foram limitadas pelo mar que os separava da Europa. Mas depois que eles aprenderam a construir navios, nenhum povo ficou a salvo dos seus ataques. Eles devastaram as ilhas do Mediterrâneo, as costas da Grécia e da Itália. Podemos dizer que a fortuna ou a traição garantiu-Ihes êxito na Espanha, onde venceram a monarquia dos godos. Eles se aproveitaram da fraqueza dos filhos de Clóvis para penetrar nas províncias meridionais da Gália e só foram detidos em sua marcha destruidora quando tiveram que fazer frente a Carlos Martel.

- Espanta-me que os cristãos não se tenham logo unido para detê-Ios - exclamou Angus.

- Sim, é mesmo de espantar - concordou Gualtier Drennis. - Há muitas explicações para isso: a incapacidade de reunir um exército suficientemente forte para deter o inimigo, os interesses que diferiam de um reino para outro, as guerras internas que não favoreciam alianças. Foi necessário sofrerem uma terrível derrota para que os cristãos acordassem e reagissem.

- Uma batalha? - perguntou Angus.

- A batalha de Manzikert! Foi talvez o pior desastre em toda a história do Império de Bizâncio - disse o ancião. - O seu resultado foi tão devastador que, mais tarde, os cruzados ainda a lembrariam, e por essa derrota quiseram negar aos bizantinos o título de defensores da cristandade. Foi Manzikert que veio a justificar a intervenção do Ocidente. Os turcos não se aproveitaram de imediato daquela vitória. Alp Arslan havia conseguido o seu objetivo e tudo o que exigiu foi a evacuação da Armênia e um pesado resgate pela pessoa do Imperador. A seguir, ele marchou para uma campanha na Transsoxiana, lugar onde morreu. Nem mesmo o seu filho e sucessor Malik Shah, cujo Império se estenderia do Mediterrâneo às fronteiras da China, marchou sobre a Ásia Menor. Seus súditos turcomanos estavam a mobilizar-se e não lhe convinha deixá-Ios se estabelecer nas antigas terras do califado. Por outro lado, as planícies centrais da Anatólia estavam abandonadas e transformadas em campos de pastoreio para os fazendeiros bizantinos. Resolveu apoderar-se dessas terras para entregá-Ias aos turcos. Incumbiu o seu primo Suleiman ibn Kutulmish de conquistá-Ias.

- Como reagiram os bizantinos à prisão do seu Imperador? perguntou o guerreiro curioso.

- Quando chegou a Constantinopla a notícia do desastre e do cativeiro do Imperador, o enteado deste, Miguel Oucas, fez proclamar a sua maioridade e tomou as rédeas do governo. A chegada do seu primo Andrônico, com o que restava do exército, confirmou a sua posição. Miguel VII era um jovem inteligente e culto. Em tempos melhores teria se tornado um grande governante.

- É estranho que esse Miguel tenha assumido como Imperador, estando o outro ainda vivo - argumentou Angus.

- Quando Romano Diógenes, assim ele se chamava, regressou do cativeiro, estava deposto. Tentou ainda lutar para retomar sua posição, mas foi facilmente derrotado e levado preso para Constantinopla. O pior foi que lhe arrancaram os olhos com tal selvageria que ele veio a morrer alguns dias depois. Miguel não podia permitir que vivesse. Quanto aos parentes e partidários do infeliz Imperador, ficaram revoltados com seu fim brutal e passaram a fomentar intrigas. As invasões turcas na Ásia começaram por volta do ano de Nosso Senhor de 1070. Não eram feitas de maneira concertada. O próprio Suleiman desejava criar um sultanato ordenado que conseguisse governar sob a suserania de Malik Shah. Mas havia muitos príncipes turcos, como Danishmend, Chaka ou Menguchek, cujo objetivo era capturar qualquer cidade ou fortaleza de onde pudessem comandar assaltos para espoliar a população. Por trás deles, imprimindo força à invasão, estavam os nômades turcomanos. Eles viajavam com armas leves, montados em seus cavalos, levando suas tendas e famílias em direção às pradarias das terras altas. Os cristãos fugiam deles abandonando suas aldeias ao fogo e seus rebanhos aos invasores. Esses turcomanos evitavam as cidades, mas a destruição que causaram acabou por isolar os governadores provinciais, o que permitiu aos capitães turcos satisfazerem seus caprichos. Este isolamento foi crucial para tornar impossível qualquer tentativa de reconquista por parte dos bizantinos.

- E o Imperador Miguel, como reagia a essa situação? - quis saber o guerreiro.

- Ele havia tentado opor-se ao avanço turco - assegurou-lhe o ancião. - O problema foi a traição de Roussel de Bailleul. Foi o que permitiu às tropas franco-normandas sobreviverem ao desastre de Manzikert. O que aconteceu foi que, embora se revelando pouco digno de confiança, Miguel usou esse cavaleiro, associando às suas tropas um pequeno exército dos seus, sob o comando do jovem Isaac Comeno, sobrinho do falecido Imperador. A escolha de Isaac foi sábia. Ele e o seu irmão AIeixo que o acompanhava pertenciam à família que mais ódio votava aos Ducas. Mas AIeixo e seu irmão permaneceram fiéis a Miguel e revelaram-se bons generais. Contudo, a lealdade de Isaac Comeno ficou comprometida pela traição de Roussel de Bailleul. Antes do confronto com o exército turco, Roussel quebrou a aliança que havia feito Isaac, atacado por turcos e franconormandos, foi vencido e levado prisioneiro pelos seljúcidas.

- Não posso compreender essa traição nem o que Roussel de Bailleul tinha em mente - confessou Angus.

- A questão está justamente naquilo que ele pretendia - disse Gualtier Drennis. - Queria estabelecer um estado normando na Anatólia. É verdade que levava consigo apenas três mil homens, mas era gente muito devotada a ele e soldados bem treinados. Numa luta homem a homem, podiam vencer facilmente qualquer combatente turco ou bizantino. Aos olhos do Imperador, Roussel parecia ser um inimigo muito mais perigoso do que eram os turcos. Reunindo um grande contingente, ele mandou-os combater os normandos sob o comando do césar João Ducas. Roussel confrontou-os perto de Amorion e venceu-os com facilidade, aprisionando o comandante. Visando disfarçar sua ação sob um pretexto legal, proclamou o prisioneiro Imperador, contra a vontade deste, e marchou para Constantinopla. Chegou às costas asiáticas do Bósforo sem qualquer impedimento. A seguir, queimou os subúrbios de Crisópolis, acampando entre suas ruínas. O Imperador Miguel voltou-se para a única potência que o poderia ajudar naquele momento. Enviou um embaixador ao sultão seljúcida Suleiman que, com a aprovação do seu suserano Malik Shah, prometeu levar a sua ajuda em troca das províncias orientais da Anatólia. Na verdade, ele já as ocupava. Roussel fez meia volta para defrontá-Ia. Desta vez, sem sucesso. Suas tropas foram cercadas pelos turcos no monte Sophon na Capadócia.

- É justo que apanhassem o traidor! - exclamou Angus, em quem a figura de Roussel de Bailleul não encontrava simpatia.

- Não foi apanhado! Ele conseguiu fugir com alguns dos seus homens refugiando-se em Amasea, a noroeste. Miguel enviou AIeixo Comeno para acabar com ele. Desta vez, ele teve que se render. Apesar de tudo, e só Deus sabe por que, ganhou a estima dos cidadãos de Amasea, que tentaram salvá-Io, só desistindo diante da notícia de que o haviam cegado. Mas isto não era verdade e diz-se que o Imperador se alegrou sabendo que Roussel não tinha sofrido aquela indignidade.

- Então, qual foi o fim do traidor? - insistiu Angus, querendo saber se tão longa história teria um fim justo.

- Não tenho qualquer informação sobre a morte de Roussel confessou o ancião. - Ele desapareceu mas o episódio deixou marcas profundas nos bizantinos. Ensinou-os a desconfiar de franceses e normandos. Perceberam que muitos eram aventureiros e vinham ao Oriente para fundar principados.

- Vejo que mestre Everard terá uma missão espinhosa se pretende convencer o Imperador Manuel Comeno das boas intenções do rei Luís - disse Angus. - É bom que tenha ao seu lado alguém capaz de examinar os acontecimentos com tão grande lucidez. Agora compreendo porque se arrisca numa viagem tão longa e perigosa. Confesso nunca ter encontrado em minha vida quem me oferecesse tantos esclarecimentos.

Gualtier Drennis sorriu e disse:

- Angus MacLachlan, a História da cristandade me encanta desde a infância. No início, apenas os fatos me interessavam, mas depois fui me apercebendo da sua complexidade e comecei a adquirir algumas convicções. Uma delas é que não nos devemos precipitar em julgamentos fáceis, em conclusões apressadas, principalmente no que diz respeito aos muçulmanos. É lícito que nos defendamos, eu repito, mas não devemos atacar aqueles que pensam de maneira diferente da nossa, pelo simples fato de o fazerem. Somente uma compreensão profunda e interessada pode evitar as guerras, santas ou não, mas eu diria que principalmente as chamadas santas. Penso nas suas terras, Angus MacLachlan e nos selvagens pictos deliciando-se com as palavras do Santo Columba que os tornou irmãos em Cristo. Nestes dias e rodeado pelo calor do deserto, tenho sofrido a tentação de desejar sentir no rosto os ventos gelados da Escócia, terra que conheci tão bem em minha juventude.

Aquela última confissão era a mais surpreendente de todas. Angus olhava espantado para o ancião, sem poder evitar que os olhos se enchessem de lágrimas.

- Em lona, fui hóspede de um irmão muito querido, um irmão escocês - ele contou, acrescentando - Com esse irmão aprendi a venerar Santo Columba, São Ninian e São Patrício, verdadeiros pais do Ocidente cristão.

Depois daquela conversa que durara boa parte da noite, o guerreiro teria querido permanecer na carroça e implorar ao santo ancião que lhe falasse mais sobre aquela viagem à sua terra. Mas a revelação viera tarde e Gualtier Drennis cerrara os olhos como a dizer que há o momento para falar e outro para o silêncio.

 

                                               O SOPRO DE ALÁ

"Acampamento mouro da patrulha avançada de fronteira do Emir Ali Khersagh”.

Al Fatar afastou a cortina e saiu para a noite estrelada, dirigindo-se à tenda do seu discípulo. As sentinelas a cada lado da entrada moveram-se para prestar-lhe as honras costumeiras. Ele pensou que nunca haveria de se acostumar a isso. Aqueles homens rudes não conheciam o que havia nele que pudesse merecer uma saudação. Mas aceitava-a, não apenas por ser mestre e conselheiro do príncipe Aimiri, filho do Emir Ali Khersagh, mas porque era bom que aqueles homens pudessem sair da imobilidade e fazer que o sangue voltasse a animar as suas pernas amortecidas.

Haviam acampado no alto das escarpas, sobre um desfiladeiro para onde os ventos empurravam pequenas nuvens de areia que fustigavam homens e animais. Havia soprado durante todo o dia, e ele não sabia por que, aquele lugar à borda das escarpas, onde as areias eram lançadas desfiladeiro abaixo, havia agradado ao comandante. Abrigara-se na tenda, ocupado em traduzir uma obra de Platão, que o Emir havia confiscado a um prisioneiro e lhe enviara. O príncipe passara o dia cavalgando na companhia do comandante da tropa e seguido de sua guarda.

À entrada da tenda, as sentinelas informaram que Sua Alteza ainda não regressara da ronda. Al Fatar não entrou. O vento desaparecera por completo, o que o deixou aliviado, vendo panos das tendas imóveis e as chamas dos fogos apontando o céu. O preceptor caminhou entre as fogueiras, dirigindo-se ao local que fora designado para os cavalos. Era para ali que o príncipe se dirigiria em primeiro lugar. Talvez a sua presença lembrasse ao jovem que havia outras coisas com que se ocupar além dos cavalos e das artes da guerra.

- EI Sabir ainda não regressou - disse-lhe um servo.

AI Fatar estava decidido a não retornar à tenda senão levando o príncipe. Devia disputar a sua atenção com EI Sabir. Pensou na sua própria nomeação para o cargo de preceptor e nas circunstâncias daquela viagem do príncipe. Não sabia que critérios o Emir usara para arrancá-Io da biblioteca e escolhê-Io como mestre e conselheiro do príncipe. Haviam sido companheiros, ele e o Emir, durante algum tempo na juventude, ambos freqüentando o mesmo mestre na madrasa de Bagdá. Depois, o jovem príncipe de então havia deixado os estudos para cumprir o seu destino, enquanto ele, AI Fatar, permanecera na madrasa, passando da condição de aluno para a de mestre, havendo encontrado ali o seu lar e a sua razão para viver. De repente, acontecera aquela convocação ao palácio.

A caminho da audiência, soubera que havia outros candidatos para o mesmo cargo. Fora o último a ser entrevistado. Já diante do Emir, ouvira dele que o príncipe ia entrar no seu décimo quarto ano de vida e era necessário que recebesse permanente instrução. O jovem já era capaz de pensar por si, dissera-lhe o Emir, acrescentando que era tempo de oferecer ao seu pensamento alimentos dignos e ajudá-Io a colocar alicerces firmes para a torre de sabedoria que ele ergueria em seu interior. Terminara a entrevista, fitando-o nos olhos e declarando, talvez à maneira de sugestão, que a maior qualidade a incutir num jovem era a capacidade de fazer justiça. Ele pensara que os candidatos com os quais concorria haviam provavelmente aceito aquele princípio como base para o que deveriam ensinar ao príncipe. Viu que estava ali a sua oportunidade de ser dispensado daquele encargo que não desejava, e voltar à paz dos seus livros. Discordou do Emir, dizendo-lhe que era a capacidade de misericórdia e não a de justiça que poderia beneficiar qualquer jovem, pois a justiça devia sempre nascer da misericórdia. Aguardara na ante-sala que o mandassem de volta à madrasa, mas isto não aconteceu. Permitiram que regressasse apenas para ir buscar os seus pertences pessoais e os livros que julgasse necessários ao seu novo discípulo.

Agora, sentado num monte de palha, à espera do príncipe, AI Fatar, o sábio, como se referia a si mesmo em pensamento, sorria, pensando que fora a única vez na vida em que a sabedoria não lhe fora de nenhuma utilidade.

Vivia já há meses como a sombra do príncipe. A entrada do jovem no seu décimo quarto ano valera-lhe o magnífico presente, assim lhe declarara o próprio, de poder pela primeira vez participar de uma tropa sem a presença do pai. "AI Sabir será o meu comandante, AI Fatar" - comunicara-lhe no auge do seu entusiasmo. "Não será uma missão perigosa?" - ele perguntara temeroso. "Espero que seja" exclamara o jovem.

Ele pedira uma audiência ao Emir, curioso em saber que critérios usara ele para escolher AI Sabir como mentor militar do príncipe Aimiri. AI Fatar conhecia mal aquele comandante baixo e atarracado, com uma enorme cicatriz que lhe marcava a face esquerda, escorrendo da testa ao queixo e que mal conseguia disfarçar atrás da venda preta que lhe cobria o olho vazado. Era de trato difícil, de poucas palavras e modos rudes. Corriam rumores de que aqueles ferimentos de batalha haviam sido causados por um golpe de espada destinado ao emir.

Se o que diziam fosse verdade, é provável que ele estivesse disposto a fazer o mesmo pelo jovem príncipe, e esse pensamento agradava ao preceptor. Assim mesmo, quis ouvir da boca do próprio em ir qual era a causa daquela escolha, e decidido a se dar por satisfeito se lhe fosse dito que a escolha se devia àquele gesto de lealdade. Mas o Emir, depois de ouvi-Io propor o nome de três ou quatro outros comandantes de muita experiência e reconhecido valor, disse apenas: "Ah, meu amigo, o príncipe estaria bem entregue para ser treinado por qualquer um desses nobres oficiais que apontas e que foram nossos companheiros de infância e de juventude. Sei que AI Sabir é um homem rude e os seus ancestrais se perdem na massa do povo. Eu o escolhi porque, de todos os comandantes que me servem, é o único que cuida do próprio cavalo”.

AI Fatar havia saído da audiência, admirado com aquele sábio critério. O príncipe deveria ser resguardado da soberba que costuma encher o coração de quem tem o poder nas mãos e um exército às suas ordens. AI Khersagh erguia alto a sua torre de sabedoria.

O som do tropel e de vozes fez que se levantasse. Viu se aproximar o grupo montado. A guarda do príncipe mantinha uma certa distância, mas ele cavalgava ao lado do comandante e na companhia de meia dúzia de soldados. Vendo-o de longe, deu-se conta de que o rapaz não se diferenciava daqueles que o rodeavam, fosse pela sua estatura ou por sua maneira de se portar na sela. Mantinha a cabeça erguida, as mãos firmes no comando do garanhão branco que montava. Com agilidade, o príncipe saltou da sela para o chão, aguardando que o comandante desmontasse.

Al Fatar afastara-se do cercado, sabendo que aquele momento seria dedicado aos cavalos. Al Sabir conduziu o seu para dentro do cercado e o príncipe o seguiu. As selas e os arreios foram entregues aos servos, mas o alimento e a água colocados nos cochos e nos baldes, foram tarefas executadas pelos próprios donos. Pela manhã, voltariam para tirar-Ihes a poeira e escová-Ios, acariciando-Ihes as crinas com palavras doces.

Avistando Al Fatar, o comandante disse:

- Não devemos deixar que um mestre fique à nossa espera!

- Nunca tiveste um mestre, Al Sabir, tu mesmo me contaste.

- Talvez houvesse um mestre também para mim - ele disse - e eu não tenha sabido aproveitar os seus ensinamentos, deixando-o sempre à espera.

AI Fatar foi ao encontro deles.

- Dia proveitoso, Alteza? - perguntou.

- Dia terrível, Al Fatar - ele anunciou com a seriedade que a voz ainda de falsete lhe permitia. - Nossos espiões foram surpreendidos pelos templários - disse o príncipe num sussurro.

- Foram mortos? - perguntou o mestre.

- Assassinados! - informou o comandante. - Mas não eram dos nossos, embora tivessem sido contratados ao nosso serviço.

- Continuam a nosso serviço - disse o príncipe -, pois dois deles foram desenterrados para... para outro serviço.

- Desenterraram mortos? - perguntou o mestre, com voz de censura.

O príncipe notou o olhar trocado entre os dois homens e parou de falar, na dúvida de que estivesse contando ao mestre uma confidência do comandante.

- Coisas da guerra! - exclamou Al Sabir, acrescentando: - Já disse que não eram dos nossos. Estamos todos cansados e sua Alteza desejoso de descansar em sua tenda.

Sem alterar a voz, o comandante dissera a última frase com uma ordem implicada que o jovem príncipe compreendeu. Al Sabir fez-lhes uma ligeira reverência e caminhou na direção da sua tenda, seguido dos soldados. O chefe da guarda do príncipe Aimiri escoltou mestre e discípulo por entre as fogueiras. As sentinelas inclinaram-se, afastando os panos que tapavam a entrada.

O jovem estava faminto, mas lavou as mãos e o rosto e depois dobrou os joelhos e o corpo no tapete de orações, acompanhado pelo mestre.

Quando se acomodaram à mesa, AI Fatar não pôde deixar de voltar a murmurar com desaprovação:

- Desenterraram mortos!

- Coisas da guerra! - repetiu o príncipe, agarrando uma perna de cabrito.

Al Fatar maneou a cabeça, pensando o quanto era perigosa aquela expressão que o príncipe ouvira do comandante e que agora repetia. Era o reconhecimento de atos reprováveis que dispensava um julgamento sobre os mesmos.

Mas o jovem estava animado e pediu ao mestre:

- Conte-me, Al Fatar! Conte-me mais histórias sobre a primeira cruzada dos franj!

- Contarei, Alteza, contarei. Mas isso, para que esteja preparado para lutar contra esses temíveis inimigos e que jamais venha a subestimá-Ios. Também, para que saiba da fúria com que os franj lutam por sua fé e, principalmente, para que Vossa Alteza tenha a coragem necessária para empreender a Guerra Santa. Há que varrer os franj das areias do deserto!

Enquanto comia, o jovem inclinara o corpo na direção do mestre, querendo demonstrar sua atenção.

- O sultão Kilij Arslan tinha um pouco mais que a sua idade quando os cruzados chegaram - ele começou. - Foi o primeiro dos príncipes muçulmanos a ser informado daquela vinda. Era uma grande responsabilidade para o jovem sultão. Foi o que todos pensaram.

- Não é Kilij Arslan o nosso grande herói, Al Fatar? - Insistiu o príncipe, querendo que seu mentor fizesse uma narrativa exata sobre um dos seus preferidos. - Não foi ele quem derrotou os franj?

- Vou contar-lhe a história em detalhes, meu príncipe, e a noite e as estrelas serão testemunhas do que vou narrar - disse o preceptor. Não fui eu, mas o sábio Ibn al-Qalanissi quem deixou escrito que, naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara. O medo se alastrou no deserto como se fosse uma febre. Essas notícias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território estava no caminho desses franj. Foi no mês de julho do ano de 1096, que Kilij Arslan ficou sabendo que eles se dirigiam à capital do Império Bizantino. A princípio, ele temeu o pior. Mesmo sem saber seus reais objetivos, a vinda do exército franj ao Oriente já bastava para espalhar o terror por toda a Terra.

- Terror, Al Fatar?! - Terror?! - Heróis não sentem medo. Ainda ontem ouvi de sua boca que o terror é próprio de quem perdeu a razão e não consegue encontrá-Ia! Aqueles que defendem a nossa fé não podem sentir nem medo e nem terror! - Interrompeu o príncipe, irritado com o mentor, que abalava seus mitos. Ainda não estava maduro o bastante para ver nos heróis mais do que lhe pedia o coração.

- Não! Nada tinha a ver com terror, medo ou covardia! O temor de Kilij Arslan era justificável - contestou Al Fatar. - O suItanato que ele governava abrangia um grande território, que os turcos haviam conquistado aos gregos. Eles nunca aceitaram esta conquista. O Império da Rumânia, "o Bizantino”, por si só, já era uma ameaça que assombrava cada Emir, e mesmo cada grande sultão! Imagine, meu jovem príncipe, imagine a chegada de setenta a oitenta mil soldados de vários Reinos, vindos do Ocidente Cristão. Posso assegurar que eram muito mais aguerridos do que nossos poderosos vizinhos de fronteira, os rum, para os quais eles se dirigiam.

- Parece que prepara o cenário para a pior de todas as batalhas, Al Fatar - disse o príncipe com entusiasmo. Por um instante, o mestre pensou que podia também competir no ensino das artes da guerra, visto que a narrativa de uma batalha provocava no príncipe a mesma emoção que encontrava numa missão de patrulhamento.

- Está certo, meu príncipe, uma grande batalha estava para acontecer! Mas quando se enfrenta uma batalha, é necessário ter em mente todas as circunstâncias que levaram àquele momento, senão, por não compreendê-Io, pode-se chegar ao desastre.

- O que mais devo compreender? - perguntou o príncipe.

- Que foi justamente o pai de Kililj Arslan, o grande e venerável Suleiman, o primeiro que invadira o território dos rum e desafiara seu Império.

- Suleiman o Magnífico! O Pilar da fé! - interrompeu novamente o príncipe, para quem os títulos davam brilho aos seus heróis.

- Ele mesmo, meu príncipe! - retomou Al Fatar. - O poderoso, o grande Suleiman! Porém, na capital dessa nova nação muçulmana, a maioria da população reconhecia ainda, como único soberano, ao basileu Aléxis Comeno. O Sultanato de Suleiman estava então fundado sobre bases instáveis, que seu filho de dezessete anos iria defender ferozmente. A menos de três dias de caminhada de Nicéia estava a fabulosa Bizâncio, o império que assombrava Kilij Arslan e, ao mesmo tempo, lhe enchia a alma de desejo.

- Sem desejo e sem ambição não pode haver conquistas - exclamou o jovem, antevendo uma censura ao seu herói.

- Infelizmente - continuou o mestre -, o desejo de Kilij Arslan não era o desejo da glória do Islã, mas aquele mais comum que habita o coração dos homens: o desejo de conquistar o poder e apossar-se de riquezas, neste caso, a posse do império grego dos rum.

 

Al Fatar fez uma pausa para dar tempo ao discípulo de refletir sobre as duas espécies de desejos de glória que podem assolar o coração dos homens. O príncipe Aimiri nada comentou, pois enchera a boca de tâmaras. O mestre continuou:

- Estranhas são as situações que Deus nos apresenta. O mesmo tipo de assombro e desejo enchia a alma do basileu. O desejo de reconquistar a antiga cidade que sempre havia sido grega fazia ferver de ódio o seu sangue, embora temesse a proximidade dos nossos poderosos combatentes.

- Os invencíveis guerreiros celestes! - exclamou o jovem.

- Sim! - concordou o mestre, e prosseguiu: - Sabendo de nossa força, era muito arriscado para o império dos rum, ter-nos a tão curta distância de sua capital. Sentiam-se sempre ameaçados. A chegada dos franj pareceu-Ihes ser a grande oportunidade de nos afastar para sempre ou nos derrotar. Uma oportunidade caída do céu diretamente nos jardins de Constantinopla! Esses magníficos jardins de Bizâncio, com todas as suas maravilhas, injetaria o veneno da inveja bem no fundo do coração dos seus novos aliados. Vai aprender, Alteza, que a guerra nem sempre prossegue com as cores, bandeiras e alianças com que começou!

- Eu não entendo a necessidade de tantas alianças - exclamou o príncipe. - Ora os governantes se voltam para uns, ora para outros. Também Al Sabir não vê com bons olhos essa questão de alianças e nem as entende. Concordo com ele que não devemos ser fortes apenas porque nos aliamos a alguém que é forte. Devemos procurar a nossa própria fortaleza.

Al Fatar compreendeu que as questões políticas saíam daquela tenda e acompanhavam a ronda das patrulhas.

- Al Sabir é um comandante, não um sultão que deva decidir o que será melhor para seu povo - comentou o preceptor em tom severo.

- Quando eu for Emir não farei alianças - declarou o jovem, acrescentando, em defesa do comandante: - Não as entendo e nunca as entenderei.

- Entenderá, Alteza! Entenderá à medida que os anos forem passando pelas janelas de seu espírito - sentenciou o mestre em tom profético, e continuou: - Não era novidade os rum recorrerem aos famosos cavaleiros franj. Os velhos Emires contaram a Kilij Arslan que, anos antes de seu nascimento, um desses guerreiros ferozes de cabelos louros, chamado Roussel de Bailleul, marchara com seus cavaleiros para o Oriente, atacando inclusive Constantinopla. Os bizantinos não tiveram outra escolha senão apelar para Suleiman. O grande sultão ficara espantado ao ouvir o enviado especial do basileu suplicando o seu socorro. Os cavaleiros turcos haviam se dirigido rapidamente a Constantinopla. Foram batalhas gloriosas, que enfeitam como pedras preciosas o nosso império e trazem brilho à glória do Islã. Combates memoráveis, meu senhor. Com essa poderosa ajuda, Roussel de Bailleul foi derrotado e, por esse nobre feito, Suleiman foi ricamente recompensado. Essa aliança foi sempre honrada pelo Imperador. Depois deste episódio, os rum passaram a desconfiar profundamente dos franj, e das suas "nobres" intenções para com o Império. Dessa forma, os cristãos ficaram divididos entre si pela inveja, antes mesmo do nascimento de sua futura aliança.

- Cães do inferno! Isso era o prenúncio de suas derrotas! Mas conte-me tudo, Al Fatar, e não se demore em pequenos acontecimentos. Desejo ouvir os horrores e as glórias da grande batalha.

O preceptor notara a impaciência do jovem:

- Meu querido príncipe, na nossa gloriosa história tudo anda muito devagar e de acordo com a vontade de Alá. Só Ele determina o tempo em que as coisas devem acontecer. O tempo e a paciência serão seus aliados, ou a falta de ambos, seus piores inimigos.

- Serei paciente - prometeu o príncipe - assim que começar a me contar os feitos de Kilij Arslan.

O preceptor sorriu e assentiu com a cabeça, continuando o seu relato:

- Kilij Arslan, na sua infância, era mantido à força em Ispahan porque os domínios do seu pai estavam estilhaçados. Quando, em fins de 1092, o adolescente foi solto graças a uma contenda entre seus carcereiros, sua autoridade não se exerceu além das muralhas de Nicéia. Ele tinha então treze anos. Depois, foi graças aos conselhos de Emires do seu exército que pôde, por meio da guerra, do crime ou da astúcia, recuperar uma parte do legado paterno. Ele podia gabar-se de ter passado mais tempo sobre a sela de seu cavalo do que em seu palácio. No entanto, quando chegaram os franj, nada ainda estava definido. Na Ásia Menor seus rivais continuavam poderosos, ainda que, felizmente para ele, seus parentes seljúcidas da Síria e da Pérsia estivessem mergulhados em seus próprios conflitos. O reino dos turcos seljúcidas renascia e logo eles se tornariam senhores de um império. Quanto ao império dos rum, está fadado a cair aos nossos pés!

- Glória ao Islã, AI Fatar! - murmurou o príncipe, ouvindo aquela profecia.

- Que a glória de Alá seja levada ao coração dos infiéis! - disse Al Fatar, fazendo eco às palavras do príncipe, e prosseguiu: - Os exércitos imperiais dos rum viam-se de tempos em tempos obrigados a contratar mercenários do Ocidente.

- Mercenários? Bizâncio contratando mercenários? - perguntou o príncipe, incrédulo.

- Sim, Bizâncio - confirmou o mentor. - A busca de guerreiros contratados e pagos, Alteza, é um recurso sempre à disposição de reinos poderosos, e muito valioso em tempos de guerra. É sempre possível aprender outras formas de combate com guerreiros de terras distantes. Uma novidade em armas pode surpreender os inimigos e facilitar as nossas vitórias.

- E a cavalaria bizantina, não é ela a glória do império dos rum? - voltou a perguntar o príncipe.

- É, de fato, e continuará sendo por muito tempo. As tropas bizantinas são numerosas, mas com pouco apetite por batalhas, ao passo que os cavaleiros franj parecem sempre famintos de sangue e morte! Por isso os bizantinos contrataram mercenários desde a longínqüa Saxônia até as fronteiras vizinhas, como os temíveis pechenegs. Podiam-se mesmo ver numerosos guerreiros turcos sob as bandeiras do império cristão dos rum. Foi precisamente graças aos seus compatriotas recrutados pelo exército bizantino que Kilij Arslan ficou sabendo, no ano de 1096, que milhares de franj se aproximavam de Constantinopla. Foram seus soldados espiões, pagos generosamente em ouro, que trouxeram ao sultão detalhes dos movimentos dos cruzados franj.

- Qual era o tamanho do exército franj, meu senhor? - perguntou o jovem, desejoso de imaginar o poderoso exército de cavaleiros, tão numerosos quanto as areias do deserto, uma epopéia amplamente comentada pelos homens cultos e ilustres de todo o Islã.

- Ouvi bem esta história, Alteza, pois deveis aprender com os passos do jovem sultão, a avaliar e pesar vossas futuras decisões. Os relatos trazidos pelos espiões de Kilij Arslan, deixaram-no perplexo. Havia, entre os Ocidentais, algumas centenas de cavaleiros e uma tropa de infantaria, mas a quantidade de aldeões peregrinos constituía o grosso da comitiva. O temor do jovem sultão foi se dissipando à medida que ouvia os relatos, mas tratava-se de fatos mal avaliados por seus espiões. Um imã uma vez me disse: "Quando Deus se manifesta na montanha com um véu, torna as árvores, as flores e a relva belas, e, quando Ele se manifesta sem véu, destrói e pulveriza tudo”.

- Que significam estas palavras? - Perguntou o jovem, um tanto impaciente pelo caminho que havia tomado a narrativa de seu mestre.

- Isto significa, meu jovem, que quando Deus está sem véu, vê a extensão de nossas iniqüidades e nos expurga da face da Terra, e quando Ele usa um véu, não deseja olhar para nossa maldade, podendo assim ser mais complacente.

- Ah! - murmurou o príncipe, como se compreendesse o alcance das palavras do imã e tentando evitar que o assunto se desviasse ainda mais.

Porém, seu mestre insistiu em prolongar a explicação:

- Um rei, meu príncipe, quando usa um véu na cabeça, significa que ele não deseja ver e pode ser complacente. Mas, se ele quiser avaliar os malfeitores, covardes e ingratos, e trazer a ordem ao seu reino, terá de olhar para o mundo sem véu, avaliando-o como ele é!

- Hum... - suspirou o jovem, ainda confuso, desistindo de tirar conclusões.

- Kilij Arslan preferiu o alívio de acreditar em um mal menor, a avaliar seriamente o perigo que se aproximava de seu reino - prosseguiu Al Fatar, sentindo que a importante lição havia passado ao largo do interesse do seu discípulo. - Kilij Arslan acreditou, naquele momento de sua gloriosa história, estar enfrentando milhares de mulheres, crianças e velhos em andrajos; uma horda de simples peregrinos, protegidos por lropas insignificantes. Mas a sorte não abandona os líderes heróicos, meu jovem príncipe, e não abandonou Kilij Arslan. Seu pai, Suleiman, sabiamente havia dado bons conselheiros e estes alertaram-no para a ameaça evidente. Nos primeiros dias de agosto de 1096, os franj atravessaram o Bósforo, escoltados pela poderosa armada bizantina. Eles tinham o apoio total do Imperador dos rum... Foi a pior notícia que o jovem sultão recebeu em sua vida.

O mestre fez uma pausa, o olhar perdido, puxando os fatos da memória. Depois, pareceu achar o que procurava, pois seus olhos voltaram a fixar o príncipe, e ele retomou o seu relato:

- Mas Kilij Arslan era um verdadeiro filho da casa de Seljuk, educado na madrasa de Bagdá. Apesar de ser um sultão ainda jovem e no começo de seu reinado, ele tinha de encontrar forças e enfrentar os desafios com a bravura que Suleiman ibn Kutlumush lhe havia incutido nas veias. Ele colocou seu reino em estado de alerta. Teve início o vaivém dos espiões. Ele preparava seu exército para uma retaliação. Os espiões continuavam sempre a insistir na grande quantidade de peregrinos civis e no pequeno número de cavaleiros.

- Eram tão numerosos assim os civis? - perguntou o príncipe.

- Sim - confirmou Al Fatar - e o Imperador Aléxis Comeno instalara-os em Civitot, a menos de um dia de Nicéia. O palácio do sultão entrou em prontidão para o combate. Os cavaleiros turcos prepararam seus cavalos para um ataque imediato. Os espiões mostravam-se mais cuidadosos e relatavam que todas as manhãs tropas de franj deixavam Civitot para explorar os territórios vizinhos. Ali eles saqueavam as fazendas, a fim de levar alimento para a multidão faminta de peregrinos. Isso não atemorizou os soldados do sultão nem preocupou Kilij Arslan. A rotina de saques se repetiu por quase um mês. Em meados de setembro, os franj haviam esgotado os recursos da vizinhança. Tomaram o caminho de Nicéia, atravessaram vilarejos cristãos e se apossaram das safras estocadas, massacrando todos os camponeses que ofereciam alguma resistência. Esse comportamento com seus irmãos de fé demonstrou a Kilij Arslan com que fúria teria de combater os franj e que determinação precisaria ter para quebrá-los. Em toda parte ouvia-se que aquela multidão de cruzados havia chegado com o propósito de exterminar os muçulmanos. Ignorando esses sinais, Kilij Arslan acabou sendo apanhado de surpresa pela ousadia dos cruzados. Enquanto ele planejava um ataque maciço, eles já estavam às portas de sua capital, Nicéia, com suas muralhas de mais de um farsakh de extensão, protegidas rigorosamente por suas sentinelas de pedra, suas duzentas e quarenta torres. E a sudeste o lago Ascanios constituía uma proteção natural. Mas nem toda a imponência das muralhas, nem a segurança de suas torres brancas, nem as águas calmas do grande lago quebraram a agressividade dos franj, ou conseguiram impor resistência. Naquela noite tenebrosa, a fumaça dos incêndios sufocava os cidadãos da capital sejúlcida. Havia correria e pânico. As multidões vagavam sem direção. A segurança do povo podia ruir junto com as muralhas da cidade. Numa só voz, imploravam o socorro do sultão...E o que seria deles se esse socorro não viesse a tempo?..

Al Fatar lançara a pergunta, deixando-a no ar. Fez uma pausa querendo reter toda a atenção do príncipe.

- E o que fez Kilij Arslan? - perguntou ele.

Al Fatar sorriu, enquanto sua voz quase sussurrava o relato:

- Kilij Arslan não hesitou. Era um líder resoluto seguindo os caminhos traçados pelo pai. Lançou toda a sua cavalaria contra os franj. A carga soou como uma tempestade no deserto. O chão tremeu e a onda de cavaleiros atingiu os franj em cheio. E agora, ouça bem o resultado desta história, meu príncipe, porque ela está escrita no livro da verdade da vida e não há como inverter ou amenizar os fatos. Apesar de toda a bravura e autoconfiança dos cavaleiros do sultão, apesar de toda a magnificência da cavalaria turca, foi como um choque contra um rochedo. Todos os cavaleiros do sultão foram massacrados. Era algo inconcebível para a época. Mas o sultão teve de aceitar a realidade que naquele momento desfazia o seu sonho de absoluta supremacia. Poucos sobreviventes retornaram a Nicéia. Exauridos, feridos, relataram que a luta corpo-a-corpo com os franj era impossível. Eram cavaleiros descomunais e se lançavam na batalha com o fogo do ódio nos olhos. O sultão ficou numa situação complicada, pois antes daquele ataque absurdo, ele era a máxima potência militar, era filho de Suleiman, capaz de socorrer até o Imperador dos rum. Seu pai havia conquistado vastos territórios, mas por querer estendê-los até a Síria fora derrotado e morto por seus parentes. Havia o perigo real de perder todo o prestígio e ver-se cercado por inimigos.

- Um herói vive pelas suas vitórias, não pelas suas derrotas! exclamou o príncipe, contrariado com o que acabara de ouvir.

- Paciência, Alteza, paciência. Kilij Arslan era um inspirado, como aqueles que têm a coragem de refazer seu caminho, mesmo depois de uma derrota. Resolveu iniciar a guerra total contra os franj. O combate seguinte aconteceu poucas semanas depois. Um destacamento de cavaleiros dos franj, seguido por mais de cinco mil saqueadores a pé e praticamente desarmados, rumou em direção a Nicéia. Kilij Arslan e seu exército seguiram seus passos, desta vez com muita cautela. Os franj mudaram de rumo e atacaram a fortaleza de Xerigordon. Um ataque rápido arrasou todas as defesas da cidadela e os milhares de saqueadores entraram. Xerigordon estava nas mãos dos poderosos franj e era mais um sinal de vitória deles que abalava o sultão. Mais uma cidadela havia sido tomada...

- Ainda uma derrota! - queixou-se o jovem príncipe.

- O sultão ponderou com seus conselheiros dois pontos da maior importância naquele momento - prosseguiu o mestre. - O primeiro, era que os saqueadores certamente se entregariam à pilhagem e a uma bebedeira desenfreada. O segundo, era que as reservas de água ficavam fora das muralhas, e essa era a maior vantagem a seu favor. Assim, Kilij Arslan ordenou que o exército acampasse ao redor da fortaleza, deixando evidente sua superioridade militar. De lá não era necessário se mover, pois a ponta da espada na garganta dos franj seria a sede lancinante que os derrotaria aos poucos.

- A sede! - exclamou o príncipe. - Também Al Sabir vem usando a mesma tática para se apoderar da carroça dos templários. Agora mesmo eles atravessam o desfiladeiro a caminho da morte. Se não for pela sede, será pelo sopro de Alá.

- Há cavaleiros templários por perto? - o mestre perguntou, temendo pela vida do seu discípulo e por sua própria. O emir não considerara a possibilidade do filho se engajar em combates.

Outra vez o príncipe Aimiri se deu conta de que talvez estivesse comunicando ao mestre o que Al Sabir dissera no círculo dos soldados, do qual ele agora fazia parte.

- Os templários estão em toda parte - ele comentou.

- E eles trazem uma carroça? É estranho! O que Al Sabir espera encontrar?

O jovem deu de ombros. Se Al Sabir soubesse que havia armas na carroça e a quem elas se destinavam, não haveria necessidade de mandar espiões e nem usar a tática de envenenar as reservas de água ao longo da rota. E mais, não atrairia os tempIários para que sentissem de perto o sopro furioso de Alá.

Al Fatar ficara preocupado com o que ouviu e percebera que seu discípulo não estava disposto a explicar os comentários que fez.

- O que Vossa Alteza quis dizer quando falou no sopro de Alá? ele insistiu.

- Todos nós assistiremos à ira de Alá caindo sobre os infiéis - o príncipe prometeu, acrescentando: - Ainda não chegou o momento. Quero ouvir agora sobre a batalha em que Kilij Arslan saiu vitorioso.

Al Fatar pensou que, se pintasse a batalha em cores muito vivas, talvez o jovem se entusiasmasse e lhe fizesse as confidências que parecia ter recebido do comandante. Ele apertou os olhos chamando a si as imagens que ia descrever e retomou o relato:

Os dias foram se passando. Ao redor da fortaleza sitiada, o exército do sultão esperava a hora da vingança. Aos poucos, começaram a ouvir os lamentos dos sitiados. A princípio, eram vozes dispersas do lado de dentro da muralha, aqui e ali, trazidas pela brisa. Depois, os lamentos se transformaram em gritos. Os soldados do sultão já tinham ouvido o alarido provocado pela multidão embriagada. Desta vez era diferente. Gritos dolorosos atravessavam as muralhas e vinham atormentar os soldados turcos, como se saíssem da boca de uma legião de criaturas infernais. Quem esteve acampado em torno de Xerigordon pôde testemunhar o horror trazido pelas súplicas do inimigo torturado pela sede, implorando aos céus pela dádiva da chuva. Kilij Arslan foi avisado do desespero dos sitiados. Conta-se que eles bebiam a própria urina e mesmo o sangue de seus cavalos.

- Que Alá não permita nunca que eu me encontre numa situação tão desesperada... - disse o príncipe Aimiri, abatido com os horrores que ouvia sobre a guerra, mas que deviam fazer parte de seu aprendizado e de sua vida.

Al Fatar prosseguiu:

- A situação caótica parecia não terminar nunca. Dentro da fortaleza, muitos haviam enlouquecido e foram encontrados perambulando sem saber quem eram ou onde estavam. Outros haviam morrido sufocados pela própria língua, que a falta de água fazia inchar até o dobro de seu tamanho e volume, dentro da boca ressequida. Em algumas semanas, tudo estava terminado, com a capitulação total dos sitiados. Alguns deles, inclusive o líder franj chamado Renaud, se renderam, enquanto outros foram massacrados pelos soldados do sultão. Os prisioneiros juraram converter-se ao islamismo e foram deixados vivos para servirem como escravos em nossas cidades. A conversão e a escravidão foram o destino daquela primeira falange de seis mil corajosos franj - concluiu Al Fatar, com ironia.

- Seis mil homens... Seis mil cavaleiros franj vencidos pela sede e enviados para o inferno da escravidão! - exclamou o príncipe, perguntando a seguir: - E foi esta a maior das batalhas do grande Kilij Arslan?

- O nosso herói não era um homem que deixava as coisas pela metade, mas é o que teremos que fazer por hoje - concluiu Al Fatar. Foi um dia cansativo e Vossa Alteza deve descansar. Amanhã retomaremos o assunto se for de vosso agrado.

- Amanhã... Sim, amanhã... ouvirei o resto amanhã – concordou o príncipe.

Houve um longo silêncio, enquanto o mestre e o discípulo ruminavam em seus corações tantos acontecimentos do passado que ainda perturbavam quem contava e quem ouvia. Foi ainda o mestre quem quebrou o silêncio:

- O que pode aprender disso tudo? O sultão teve calma para ponderar suas decisões e escutou o conselho de seus emires experientes. Isso o preparou para os terríveis confrontos que encontrou em seu caminho. Mas o heroísmo de Kilij Arslan deve-se, acima de qualquer coisa, ao fato de que nenhuma das derrotas que sofreu puderam abalar seu ânimo ou fazê-Io desistir de lutar.

O príncipe Aimiri continuou a guardar silêncio. A narrativa de Al Fatar fora perturbadora e o levava a pensar que a guerra não era um feito que podia ser considerado a distância e nem todas as derrotas, uma fatalidade. Algum dia, ele teria que se cercar de conselheiros que não lhe permitissem experimentar humilhações. Os espiões nem sempre são confiáveis, ele concluiu para si próprio, decidindo que deveria ouvir o que Al Sabir tinha a dizer sobre o assunto.

- O que é o sopro de Alá? - perguntou o mestre, arrancando o príncipe dos seus pensamentos.

- Nunca o vi ou ouvi - ele respondeu -, mas Al Sabir garantiu-me que Alá o guardou no desfiladeiro abaixo dos nossos pés.

Al Fatar pensou que talvez fosse um mito ou uma lenda evocada pelo Comandante para manter a atenção e o interesse do príncipe. Afinal, uma tropa de fronteira tinha por única missão vigiar de longe

quem pudesse constituir uma ameaça, enviando mensageiros ao Emir para lhe dar conta da situação. Tinha certeza de que Al Sabir não se engajaria numa batalha, estando o jovem príncipe no acampamento.

- Que a proteção de Alá esteja com Vossa Alteza esta noite e sempre - disse o mestre com uma ligeira inclinação, retirando-se a seguir. O príncipe não respondeu à saudação, preso a um último pensamento. Teria que mergulhar suas mãos em sangue se quisesse algum dia se tornar Aimiri Al Mansur, o Vitorioso.

 

 

                                                                        CONTINUA

 

 

                                       ESTANDARTES NA AREIA

Quando amanheceu, um estranho nevoeiro cobria o sol e descia sobre o acampamento. Os vigias chegaram informando que de pouco adiantava estarem nos seus postos a olhar a névoa branca que não deixava que avistassem o que se passava a dois palmos dos olhos. Os cavaleiros perambulavam em meio à semi-escuridão, consultando os céus.

- É a proximidade do mar que nos traz o nevoeiro – explicou mestre Everard.

O marechal não estava convencido. Haviam se desviado muito da rota.

- Poderíamos ficar aqui um pouco mais e esperar que o nevoeiro desapareça - ele propôs.

            Os batedores conheciam bem a região e foram consultados.

            - Precisamos encontrar água para encher os odres - disse-lhes o

marechal.

- Adiante cruzaremos um rio - informaram.

 

 

 

 

Mestre Everard queria saber se poderiam conduzir as colunas através do nevoeiro.

Os dois batedores se entreolharam.

- Será melhor esperar - aconselharam.

Benoit Pierron foi para a carroça informar ao santo ancião que deviam permanecer um pouco mais no acampamento até que a visibilidade permitisse continuarem a viagem.

- Estranho nevoeiro - disse Angus que se acostumara a um amanhecer sempre claro e radioso.

O noviço disse-lhe o que ouvira de mestre Everard, que era a proximidade do mar que trazia aquela névoa toda.

Ao lado do guerreiro, Gualtier Drennis também ouvira o que dizia o jovem hospitalário. Ele se apoiou no braço de Angus e disse:

            - Caminhemos um pouco.

            Não foram muito longe. Depois de contornarem a primeira fogueira que morria aos poucos, o ancião pareceu de repente mudar de    idéia e disse:

- Voltemos à carroça.

Enquanto caminhavam de volta, Angus expressou a sua dúvida:

- Este nevoeiro - não me parece que venha do mar.

O ancião permaneceu calado, o que levou o guerreiro a perguntar:

- Acredita que seja essa a sua causa?

- Talvez... - disse o ancião, acrescentando: - O que lhe diz Gaoth Cerridwen?

Angus achou estranho que Gualtier Drennis perguntasse pela opinião da espada. Em seu pensamento ela estava sempre presente, da mesma forma que podia senti-Ia atada à cintura e encostada ao flanco, mas...

 

 

                                                                              

 

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