Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AS DESENCANTADAS
Nessa manhã desmaiada de Primavera, André Lhéry, conhecido romancista, abria o correio com uma negligência cansada, na vivendazita das margens do mar da Biscaia, onde, desde o Inverno precedente, o retinha o último capricho da sua fantasia, numa quase definitiva instalação.
"Tantas cartas hoje", murmurou ele, suspirando de enfado.
E certo, porém, que nos dias em que a correspondência aparecia menos volumosa não ficava bem disposto, já a imaginar-se completamente isolado na vida. Eram, na maior parte, cartas de mulheres: umas assinadas, outras não, turíbulando o escritor com o incenso das galantes adorações intelectuais. Começavam quase todas assim: "Vai ficar certamente admiradíssimo de que lhe escreva uma mulher que não conhece." Admirado ele, isso sim! Como essas coisas já iam longe! Cada correspondente que se sucedia, e inevitavelmente se supunha sempre a única com audácia bastante para tal cometimento, não deixava nunca de dizer: "A minha alma é uma irmã mais nova da sua; ninguém, posso certificá-lo, ninguém o compreendeu melhor do que eu." Aqui já André não sorria, apesar da falta de imprevisto de tal afirmação; pelo contrário, sentia-se tocado, abalado no íntimo. De resto, a consciência que tinha do seu domínio sobre tantas criaturas dispersas, eternamente longínquas, essa consciência da sua quota-parte de responsabilidade na evolução delas, fazia-o muitas vezes meditar.
E depois havia entre essas cartas algumas tão espontâneas, tão comunicativas, verdadeiros gritos suplicantes, como que erguidos para um irmão mais velho, que não podia deixar de ouvir e de condoer-se! Essas, punha-as de lado e guardava-as com a firme intenção de responder; as outras, as pretensiosas e banais, iam para o cesto dos papéis. Mas, suprema desconsolação, o tempo faltava sempre, e as pobres cartas preferidas amontoavam-se e subvertiam-se na onda crescente das que iam chegando, até ficarem de todo no esquecimento.
Na correspondência desse dia viera uma com o selo da Turquia e o carimbo do correio, onde se lia nitidamente este nome que perturbava sempre André: Istambul.
Istambul! Que sortilégio evocador nesta única palavra!... Antes de rasgar o sobrescrito da carta, que podia muito bem ser como outra qualquer, André deteve-se, trespassado subitamente por esse estremecimento, sempre igual e sempre li inexprimível na essência, que vibrava nele cada vez que Istambul emergia de improviso do fundo da sua memória, por detrás dos dias longínquos já vividos e esquecidos. E, como tantas vezes lhe sucedera em sonhos, uma silhueta da cidade esboçou-se diante dos olhos que tinham visto toda a Terra, que tinham contemplado a infinita diversidade do mundo: a cidade dos minaretes e dos zimbórios, majestosa e única, sem rival apesar da decrepítude irremediável, altaneiramente perfilada sobre o céu, com o círculo azul do Mármara fechando o horizonte...
Uns quinze anos atrás contara André entre as suas correspondentes desconhecidas algumas belas ociosas dos haréns turcos. Umas queriam-lhe deveras, outras amavam-no com pesar por ter ele ousado, num livro da adolescência, narrar as suas aventuras galantes com uma delas. Eram páginas íntimas, enviadas clandestinamente e adoráveis no seu francês incorrecto. E tudo terminara da parte delas depois da troca de algumas cartas, tornando ao inviolável mistério, confusas da leviandade que haviam cometido, como se tivessem caído em pecado mortal.
André rasgou enfim o sobrescrito marcado com o carimbo do saudoso longínquo. O conteúdo fez-lhe a principio encolher os ombros. Eis uma dama que estava a divertir-se com ele. Aquela linguagem moderna, aquele francês castiço e muito em dia não o enganava. Citasse ela embora o Alcorão e assinasse Zahidé Hanun, pedindo resposta para a posta-restante com precauções de pele-vermelha rapinante, aquilo havia de ser de qualquer europeia de passagem por Constantinopla ou da mulher de algum adido de embaixada, quem sabe Talvez, com mais probabilidade, de uma levantina educada em Paris.
A carta tinha todavia qualquer coisa de dominador, um encanto inexprimível que o subjugou, levando-o irresistivelmente a responder no mesmo instante. De resto, era preciso fazer ver a quem quer que fosse que lhe tinha escrito que ele conhecia muito bem o mundo muçulmano e dizer-lhe, não sem cortesia: "A senhora, uma dama turca! Não, nessa não caio eu!..."
Incontestável o encanto dessa carta, apesar da sua inverosimilhança... Até o dia seguinte, em que, já se vê, o caso deixou de o preocupar, André teve o pressentimento vago de que alguma coisa começava na sua vida, alguma coisa que teria continuação, mas uma continuação dolorosa, de perigo e de tristeza.
E depois era também como que um apelo da Turquia àquele que outrora a amara tanto e que não voltaria lá. O mar da Biscaia, nesse dia, um dia de Abril indeciso na luz ainda hibernal, pareceu-lhe de repente melancòlicamente intolerável, mar verde-pálido, com as grandes volutas da vaga quase eterna e arcanos distantes sobre imensidades infinitas
que atraem e inquietam. Quanto mais amorável, no seu murmúrio vago e sonolento, não era o Mármara evocado nos longes da memória, com esse mistério do Islame errando nas margens! O país basco, que tanto o havia seduzido outrora, já não oferecia encantos que o satisfizessem; o espirito do passado que dantes se lhe afigurava viver ainda nos campos pirenaicos, nas antigas aldeias circunvizinhas - até defronte das suas janelas, lá adiante, nessa antiga cidade de Fonterabia, apesar da invasão das casas de campo indiscretas e imbecis-, o velho espirito basco, não, não era já possível encontrá-lo. Oh, lá longe, nessa meridional Istambul, aí sim, aí acharia a alma errante do passado, o velho sonho humano perpassando na sombra das altas mesquitas, no silêncio angustioso das ruas e na região ilimitada dos cemitérios, onde à noite milhares de lâmpadas com luzinhas amarelas ardem piedosamente por alma dos mortos. Oh, essas duas margens que se defrontam, a Europa e a Ásia, mostrando uma. à outra os palácios e os minaretes a todo o comprimento do Bósforo, com perspectivas súbitas de magia nos caprichos da luz oriental! Ao lado da fantasmagoria do Levante, como era taciturno e áspero esse golfo da Gasconha! Como é que ele continuava, pois, ali Que insensatez estar a perder naquele canto triste os dias poupados da vida, quando lá longe, sob outros céus, o esperava o país dos encantos frívolos, dos devaneios melancólicos e esquisitos que nos fazem esquecer a fuga do tempo!...
Mas fora aqui, na orla deste golfo incolor, fustigado pelas rajadas e aguaceiros do oceano, que os seus olhos se haviam aberto ao espectáculo do mundo; aqui lhe fora dada a consciência, durante algumas vileglaturas furtivas; portanto, todas as coisas que eram daqui, amava-as ele desesperadamente com todas as forças, sabia que elas lhe faltariam quando estivesse noutra parte.
Então, nessa manhã de Abril, André Lhéry sentiu mais uma vez o irremediável sofrimento de se ter dispersado em todos os povos, de ter sido nômada sobre a Terra, prendendo-se numa parte e noutra pelo coração. Para quê, meu Deus, para que havia de ter ele agora duas pátrias: a sua própria e a outra, a pátria do Oriente?...
Um sol de Abril, desse mesmo Abril, mas na semana seguinte, penetrava, tamisado por estores e musselinas, no aposento de uma jovem adormecida - um sol matutino que irradiava, mesmo através dos cortinados, das persianas e das redes de arame das janelas, essa efêmera alegria, essa falaciosa e eterna mentira das primaveras terrestres, que perturba e arrasta desde o princípio do mundo as almas complicadas e as almas simples das criaturas: almas de homens, almas de animais, pequeninas almas de aves que cantam.
Vinha do exterior o ruído vivo das andorinhas recentemente chegadas e, de longe em longe, entre as pancadas surdas de um tambor soando ao ritmo oriental, grandes mugidos enchiam o espaço, como expelidos por animais monstruosos. Eram vozes de paquetes na última hora da partida, sibilos de sereias a vapor, significando que devia ali existir um porto, grande porto ruidoso e febril. Mas esses brados dos navios sentiam-se vir de longe e de baixo, o que levava a crer que se estava numa zona de tranquilidade, nalguma colina sobranceira ao mar.
Elegante e branco esse aposento, onde penetrava o boi e dormia esta mulher moça; muito moderno e mobilado com a falsa simplicidade e o pretensioso arcaísmo que representavam ainda nesse ano (1901) um dos últimos requintes da nossa decadência e a que se dava o nome de "arte nova". Num leito laçado de branco -onde flores vagas tinham sido esquissadas, misto da inabilidade primitiva e de preciosidade japonesa, por qualquer decorador de Londres ou de Paris -, a jovem continuava a dormir numa desordem de cabelos louros, o rosto muito pequeno, de oval esquisita, tão rigorosa, que se diria estatueta de cera, demasiadamente linda para ser verosímil. O nariz era curto, de asas finas e delicadas, imperceptivelmente curvado em bico de falcão, e os olhos, imensos, olhos de madona com as longas sobrancelhas curvadas para as fontes, como as da Virgem das Dores. Tinha talvez demasiadas rendas nos lençóis e nas almofadas e excessivos anéis, fulgurantes nas mãos finas, abandonadas sobre a coberta de cetim - riqueza de mais para uma criança daquela idade, como se diria entre nós; fora isto, tudo estava em harmonia com as mais recentes concepções do nosso luxo ocidental. Contudo, havia naquelas janelas grades de ferro e ainda rótulas de madeira - certo ar de coisas inertes, feitas para não se abrirem nunca - que despertavam nesta elegância clara um mal-estar inquietante, quase uma angustia de prisão.
Era para admirar que a jovem dormisse ainda, com esse sol tão luminoso e o delírio radiante das andorinhas lá fora; mas o seu sono era pesado, desses sonos em que mergulhamos profundamente depois de muitas noites de insónia; e os olhos tinham um círculo sombrio, como se na véspera tivessem chorado muito.
Sobre uma pequena secretária laçada de branco ardia ainda a vela esquecida, entre papéis manuscritos e cartas prontas já encerradas em sobrescritos com monogramas dourados. Via-se também papel de música, com algumas notas rabiscadas na febre de quem quer compor, e alguns livros, ao acaso, entre frágeis bugigangas de Saxe, o último da condessa de Noailles emparceirando com poesias de Baudelaire e de Verlaine, a filosofia de Kant e a de Nietzsche... Sem dúvida faltava nessa casa a mãe para disciplinar as leituras e moderar a ebulição daquele cérebro adolescente.
E, coisa estranha, nesse aposento, onde a mais exigente e galantinha parisiense se encontraria à vontade, via-se, por cima do leito, no-lugar onde entre nós é costume colocar o crucifixo, uma inscrição em caracteres árabes bordados a ouro sobre veludo verde-emir e entrelaçados com intenção de arte antiga e requintada. Era uma passagem do livro de Maomet.
Os trilos veementemente apaixonados de duas andorinhas audazes pousadas no parapeito da janela fizeram-lhe de súbito abrir os grandes olhos, no rosto pequeno e de contornos juvenis, olhos de largas pupilas verde-escuras que, indecisos e assustados a principio, pareciam implorar a vida e suplicar à realidade que afastassem o mais depressa possível algum sonho intolerável.
Certamente que a realidade estava em muito boas relações com o mau sonho, porque o olhar se tornava cada vez mais sombrio, à medida que o pensamento e a memória iam voltando, e entenebrecia, como de quem se submete sem esperança à fatalidade, encontrando alguma coisa que significava a realidade convicta e incontestável... Em um escrínio aberto, um diadema emitia fulgores penetrantes, e, estendido sobre cadeiras, via-se um vestido de seda branca, vestido de noiva, com flores de laranjeira de alto a baixo e a todo o comprimento da sua longa cauda...
Sorrateiramente, sem fazer ruído, entrou uma mulher magra, de olhos ardentes e sedutores, vestida de preto, com um grande chapéu da mesma cor, criatura simples, distinta, severa, mas Um tudo nada extravagante. Parecia já entrada em anos, sem o ser contudo ainda; alguma preceptora, decerto, com muitos diplomas e de boa família pobre.
- Cá está ela, querida menina! Cá está ela! -disse a recém-chegada em francês, mostrando, com gesto de pueril triunfo, uma carta fechada que acabava de trazer da posta-restante.
E a pequenina francesa, deitada, respondeu na mesma língua, sem o menor acento estrangeiro:
- Não, não é verdade!
- Mas é verdade, sim!... De quem queria a menina que fosse senão dele Está ou não está escrito Zahidé Hanum neste sobrescrito Quero crer que não deu tal nome a mais ninguém...
- Ah, lá isso, sabe muito bem que não...
- Pois bem, então...
A jovem tinha-se erguido, com os olhos muito abertos agora e um clarão rosado nas faces - como criança a quem houvessem dado, depois de algum grande desgosto, um brinquedo tão extraordinário que por um minuto tudo o mais esquecesse. O brinquedo era a carta. Observava-a, dava-lhe
voltas nas mãos, ansiosa de a ler, mas ao mesmo tempo assustada, como se praticasse alguma acção condenável. E, quando ia para rasgar o sobrescrito, deteve-se para suplicar com meiguice terna:
- Boa Esther, minha adorável Esther, não se magoe com o que lhe vou dizer. Ê uma fantasia... Desejava ficar sozinha para a ler.
- Olha que esquisita lembrança havia de ter a pequena! com efeito, não se pode ser mais excêntrica, minha amiga!. Mas mostra-ma depois, não é verdade? Parece-me que isto, pelo menos, ainda lhe mereço!... Sim?... vou tirar o chapéu e volto num instante...
Muito excêntrica na realidade esta pequena, aliás de um escrúpulo excessivo, parecendo-lhe agora que as conveniências a obrigavam a levantar-se, vestir-se e cobrir os cabelos antes de abrir pela primeira vez na sua vida uma carta de homem. Depois de enfiar rapidamente um penteador azul-pastel, vindo da Rua da Paz, de casa conceituada, e de ter envolvido a cabeça loura num véu de gaze, bordado outrora na Circássla, rasgou por fim o sobrescrito, trêmula e receosa.
Muito breve a carta. Uma dúzia de Unhas escritas com simplicidade - tendo uma passagem imprevista que a fez sorrir, não obstante a desventura de nada encontrar de íntimo e de profundo; resposta atenciosa e gentil, um agradecimento em que transparecia um pouco de cansaço, e eis tudo. Mas a assinatura lá estava, bem legível, bem real: André Lhéry. Este nome, escrito pela mão dele, perturbava-a e causava-lhe uma sensação de vertigem. E, do mesmo modo que ele, ao receber o sobrescrito timbrado de Istambul, tivera a Impressão de que alguma coisa começava, também ela pressagiava não sei quê de delicioso e de funesto, por causa de esta resposta chegar precisamente num tal dia, na véspera do maior acontecimento da sua vida. Este homem que havia algum tempo ocupava os seus sonhos, este homem tão separado dela, tão inacessível como se cada um deles habitasse planetas diferentes, acabava de entrar irresistivelmente na sua vida, nessa manhã de Primavera, só pelo facto de algumas palavras escritas e assinadas por ele e a ela destinadas.
E nunca se sentira tão prisioneira e revoltada, tão Ávida de independência, de espaço, de divagações pelo mundo desconhecido... Deu um passo para as janelas, onde muitas vezes se encostava a olhar para fora: mas não, lá estavam as rótulas de madeira e as grades de ferro que tanto a desesperavam. Retrocedeu então para uma porta entreaberta, afastando com o pé a cauda do vestido de noiva exposto sobre o sumptuoso tapete - a porta do seu quarto de vestir, branco de mármore, com as janelas muito largas e sem grades, deitando para o jardim sombreado de plátanos centenários. Sempre com a carta na mão, encostou-se a uma das janelas, para contemplar o céu livre, as árvores, a maguificência das primeiras rosas, e expor as faces à canela do ar e do sol. E, todavia, que enormes aqueles muros que circundavam o jardim, como os que se erguem em torno dos pátios das prisões celulares! De longe em longe havia contrafortes para os agüentar, desconformes, propositadamente feitos assim, para que das mais altas casas vizinhas não pudesse ver-se quem andava no jardim...
Apesar da tristeza de tal clausura, era adorável este jardim por ser muito velho, com musgos e líquenes envolvendo as pedras e áleas comidas de ervas que corriam entre paredes de buxo. Um jacto de água cantava numa bacia de mármore à moda antiga e um pequeno quiosque, empenado da chuva, pousava, convidando ao sonho, na penumbra dos plátanos nodosos e torcidos, cheios de ninhos. Havia sobretudo, neste jardim antigo, como que uma alma nostálgica e meiga, alma que se lhe tivesse criado, pouco a pouco, com os anos, à força de se impregnar de nostalgias das jovens enclausuradas, de nostalgias de belezas adolescentes, submissamente cativas.
Tinham vindo naquela manhã quatro ou cinco homens - negros, de cara rapada -, que trabalhavam em mangas de camisa nos preparativos para o grande dia seguinte. Um estendia toldos entre os ramos; outro desenrolava no chão admiráveis tapetes de procedência asiática.
Tendo dado pela jovem que os observava da janela, dirigiram-lhe, depois de piscarem os olhos maliciosamente, um cumprimento ao mesmo tempo familiar e respeitoso, a que ela tentou retribuir com sorriso alegre, sem receio dos seus olhares. Mas subitamente retirou-se, assustada, por causa de um campónio de bigode louro que viera trazer canastras de flores e quase que encarara com ela...
A carta! Tinha nas mãos uma carta de André Lhéry, uma, real e palpável. Era ela agora que ocupava tudo. Na semana que findara cometera a leviandade de lhe escrever, tão desorientada a punha o terror desse casamento que ia realizar-se dentro de vinte e quatro horas. Quatro páginas de confidencias inocentes que lhe tinham parecido coisas terríveis e no final o pedido, a súplica de responder imediatamente, posta-restante e para um nome convencional. com receio de que a reflexão a detivesse, expediu-a mal acabou de escrever, um pouco ao acaso, sem endereço seguro, com a cumplicidade e por intermédio da sua antiga preceptora (Melle Esther Bonneau - Bonneau de Saint-Míron, se faz favor -, agregada da Universidade, oficial da Instrução Pública), que lhe tinha ensinado o francês - com um poucochinho de gíria colhida nos livros de Gyp, no fim das lições, para rir...
E chegara ao seu destino o grito de angústia de uma frágil criatura, pois que o romancista respondera logo, talvez com uma pontinha de dúvida e de gracejo, mas, em suma, com toda a gentileza, carta que podia ser lida pelas suas companheiras mais finórias e de que elas iam, quem sabe, ter
ciúmes... Então, subitamente, assaltou-a o desejo impaciente de a ler a suas primas (para ela como irmãs), que haviam declarado que o romancista não responderia. Ficava ali próximo a casa delas, no mesmo bairro altivo e solitário. Para não perder tempo, iria de penteador. Apressadamente, com uma languidez imperiosa de criança que fala a uma serva dócil, a uma velha ama, chamou: "Dadi/" que repetiu pela segunda vez, mais vivamente, habituada sem dúvida à solicitude carinhosa da serva, sempre disposta para os seus caprichos. Como a dadi não aparecesse, carregou o botão de uma campainha eléctrica.
Apareceu finalmente a dadi, mais extraordinária ainda num tal aposento do que o versículo do Alcorão bordado a letras de ouro por cima do leito, Era uma escrava etíope chamada Kondja-Gul (Botão de rosa), com o rosto negro e a cabeça envolta num véu lantejoilado de prata. Estabeleceu-se então diálogo numa língua longínqua, língua da Ásia, de que certamente pasmavam as tapeçarias, os móveis e os livros.
- Kondja-Gul, já não estás nunca quando te chamo!
Mas isto era dito em tom tão afectuoso e dolente que atenuava muito a censura. De resto, censura iníqua, porque Kondja-Gul estava sempre no seu posto, numa fidelidade submissa de cão dócil, com esse zelo ultra-excessivo, que aliás tanto afligia a jovem, usado no seu país, que não admite fechaduras nas portas, que permite a entrada das criadas em todos os aposentos e a toda a hora e impede de todas as maneiras possíveis o gozo de um instante de solidão. KondjaGul tinha vindo já umas vinte vezes, nos bicos dos pés, espreitar se a sua menina estava já acordada. E que tentação de soprar a vela que ardia sempre! Mas era-lhe formalmente interdito colocar as mãos nessa secretária que lhe parecia cheia de mistérios e receava que, apagando a pequenina chama, fosse desfazer algum encanto.
- Kondja-Gul, traze-me depressa o meu trharrhaf'. Preciso de ir ter com as minhas primas.
Kondja-Gul começou a cobrir a jovem de véus negros.
A espécie de saia que lhe vestiu sobre o elegante penteador era negra como a longa romeira em que lhe envolveu os ombros e a cabeça, à laia de capuz, ao qual prendeu com alfinetes um espesso véu, negro também, que deixou cair sobre o rosto a fim de o esconder como sob uma casula. Nestas idas e vindas para assim amortalhar a jovem, KondjaGul, com o ar de quem canta ou fala para si. Ia dizendo na sua língua coisas embaladoras e infantis, como quem não tomava a sério a dor da noivazinha:
É tão louro e lindo o jovem bei que amanhã virá buscar a minha boa menina! Quando formos ambas para o seu belo palácio, que felizes seremos então!
Cala-te, dadi, não sei já quantas vezes te tenho proibido de me falares em tal. - E no mesmo instante: - Dadi, tu estavas aqui no dia em que ele veio falar com meu pai; ouviste-lhe decerto a fala. Que tal é a voz Suave, um pouco
Suave como a música do teu piano, quando com a tua
mão esquerda, sabes, vais lá ao fim, onde o som se esvai... Suave assim! Oh! Como é loiro e lindo!
- Tanto melhor! - interrompeu a jovem em francês, com o tique de um gracejo quase parisiense. E, continuando na língua asiática, perguntou: - Sabes se minha avó já está levantada
- Não, a senhora disse que se levantaria mais tarde, para estar mais linda amanhã.
- Então, quando ela acordar, que lhe digam que estou em casa de minhas primas. Previne o velho Ismael para me acompanhar. Hoje levo apenas comigo tu e ele.
Entretanto, lá em cima no seu antigo quarto, que retomara para a festa do dia seguinte, Melle Esther Bonneau (Saint-Miron) não estava conscientemente tranquila. Não fora ela, é verdade, que sobre a secretária envernizada de branco colocara o livro de Kant, nem o de Nietzsche, nem mesmo o de Baudelaire. Havia mais de dezoito" meses que, dada por finda a educação da jovem, ela se retirara para casa de outro paxá, onde ia educar duas pequenitas e só então a sua primeira discípula se emancipara assim nas suas leituras, não tendo quem lhe repreendesse a fantasia. Todavia, ela, preceptora, sentia-se responsável pelo arrojo daquele espírito juvenil. E a correspondência com André Lhéry, que ela tinha favorecido, até onde chegaria? Dois entes que nunca se veriam, decerto, disso podia ela estar certa; os usos e as grades bem no garantiam. Contudo...
Quando, enfim, desceu, encontrou-se na presença de uma Pequena personagem, qual negro fantasma, que, com ar apressado, se dispunha a sair: - Onde vai, minha amiguinha?
- A casa de minhas primas mostrar-lhes isto. ("Isto? era a carta. ) Naturalmente, vem também, para lermos juntas. Vamos, a galope!
- A casa de suas primas? Seja!... vou pôr o véu e o chapéu.
- Vai pôr o chapéu Então temos para mais de uma hora, zut!
- Então, menina!...
- Então, porquê Não diz também, quando lhe parece, zut... zut para o chapéu, zut para o véu, zut para o jovem bei, zut para o futuro, para a vida, para a morte, para tudo, zut!
Melle Bonneau pressentiu que naquele momento uma crise de lágrimas estava iminente. A fim de provocar diversão, juntou as mãos e baixou a cabeça na atitude com que em cena se exprime o remorso trágico.
- E pensar que a sua desgraçada avó me pagou e sustentou sete anos para uma educação destas!
Por trás do véu, o pequeno fantasma negro desatou a rir e, num abrir e fechar de olhos, toucou Melle Bonneau com uma mantilha e, tomando-a pela cintura, disse-lhe:
- Que eu ponha véus, vá, pois a lei me força, mas a senhora, que a isso não é obrigada... E para mais são dois passos, num bairro onde se não encontra vivalma!
Desceram a escada a correr. Kondja-Gul e o velho Ismael, eunuco etíope, esperavam-na em baixo para a acompanhar. Kondja-Gul ia embrulhada da cabeça aos pés numa seda verde ornada de prata e o eunuco muito apertado numa casaca preta à europeia, que, sem o fez, o faria passar por qualquer oficial de justiça da província. Abriu-se a pesada porta. Apenas transposta, encontraram-se ao ar livre, sobre uma colina iluminada pelo sol já alto e em face de campos de um dourado pálido, bosque fúnebre plantado de ciprestes que em suave declive desciam até profundo golfo, onde navios pousavam calmos. E para lá daquele braço de mar que se estendia a seus pés, do lado de lá, sobre a outra margem, meio escondida pela ramaria doce e triste dos ciprestes, erguia-se altaneira, na languidez do céu, a silhueta da cidade que havia vinte anos enchia de nostálgica obsessão o espírito de André Lhéry; erguia-se Istambul, que ali dominava, com o ar vago e envolta na luz crepuscular, como nos sonhos do romancista, mas precisa, real e luminosa. Real e como que envolvida ainda em quimérico nevoeiro azulado no meio de um silêncio e esplendor de visão. Istambul lá estava bem presente, tal como a haviam contemplado os velhos califas e como Solimão-o-Magnífico outrora a imaginara, fixando-lhe as grandes linhas com a elevação de cúpulas mais altivas.
No meio daquela profusão de domos e minar"ítes, vistos em conjunto àquela hora da manhã, nada parecia em ruínas, e no entanto havia sobre aquilo tudo uma indefinida impressão que o tempo deixara; e, apesar da deslumbrante luz e da distância, a velhice patenteava-se com bastante evidência. Não se enganavam os olhos. Era um fantasma, um majestoso fantasma do passado, esta cidade, de pé ainda, com inúmeros fustes de pedra, tão esbeltos e delgados que maravilhava sua longa duração.
Minaretes e mesquitas, com o andar dos tempos, tinham-se tornado brancos, desbotados ou de um grisalho impreciso.
Aquelas Inumeráveis casas de madeira amontoadas à sua sombra tinham a cor de ocre ou de castanho-encarniçado, tons estes atenuados sob o nevoeiro azulado que o mar espalha em redor; Este conjunto admirável reflectia-se no golfo como em soelho imenso. As duas mulheres, uma velada qual fantasma e a outra com mantilha posta ao acaso sobre os cabelos, caminhavam apressadamente, escoltadas pelo negro, mal reparando naquela prodigiosa decoração, que para elas não oferecia interesse por ser a que diariamente observavam. Seguiam sobre a colina um caminho mal calçado, entre antigos e aristocráticos palacetes mumificados sob as grades que os envolviam e o cemitério na descida de Khassim-Paxá, que deixava ver, através das suas sombrias árvores, a magia encantadora que lhes ficava fronteira.
As andorinhas, que construíam os ninhos por baixo de todas as sacadas fachadas e gradeadas, cantavam com delírio. Do velho solo cheio de ossadas emanava um aroma primaveril e os ciprestes cheiravam bem a resina. Não encontraram ninguém durante o trajecto, aliás curto, a não ser um apuadeiro em traje oriental, que viera encher o cântaro a uma velha fonte de mármore que havia no caminho, ornada profusamente de esquisitos arabescos. Chegaram por fim a uma casa, cujas janelas estavam severamente gradeadas, residência de paxá, onde certo homem que mais parecia um diabo, com vestes vermelhas e douradas e um punhal à cinta, lhes abriu a porta em gesto mudo.
Entraram e, como de costume, dirigiram-se para a escada que conduzia ao harém, silenciosas, sem palavra. No primeiro andar, logo à entrada, havia um quarto espaçoso e claro, de onde saíam vozes e risadas de raparigas.
Divertiam-se e falavam o francês ali dentro, certamente porque discutiam garridices de vestuário. Tratava-se de saber se certo ramo de rosas ficaria melhor colocado de uma forma ou de outra num corpo de vestido.
- Tanto faz de uma maneira como de outra - dizia uma.
- Dar-lhe na cabeça como na cabeça lhe dar - dizia outra, muito branca e loura, cujos olhos revelavam penetrante finura.
Era o quarto de suas "primas", duas irmãs, uma de 16 anos e outra de 21, a quem a futura noiva reservava a primazia da sua primeira carta, a carta de um homem célebre.
Pertencentes às duas jovens, viam-se no quarto dois leitos brancos, tendo ambos um versículo árabe bordado a ouro sobre a almofada de veludo verde que pendia da parede, e, Pelo chão, camas improvisadas, colchões e cobertas de cetim cor-de-rosa ou azul, para quatro jovens convidadas que assistiam à festa nupcial. Sobre as cadeiras (pintadas também de branco e com estofo de seda Pompadour, onde sobressaíam Pequeninos ramos) ostentavam-se vestidos frescos e claros Para o grande casamento, acabados de chegar de Paris. Desordem própria das vésperas de grandes festas; poder-se-ia dizer acampamento de ciganas moças, mas de ciganas ricas e elegantes. (Como a lei muçulmana proíbe às mulheres saírem depois do sol-posto, estabeleceram elas o gracioso costume de assim se instalarem em casa umas das outras, dias e até semanas, a propósito de tudo, muitas vezes mesmo para uma simples visita, e daí o hábito de organizarem alegremente dormitórios improvisados. ) Arrastavam-se aqui e além véus orientais, enfeites de flores, jóias de Salique...
As grades de ferro e as rótulas de madeira que defendiam as janelas davam aspecto clandestino a esse luxo espalhafatoso. E todo aquele aparato, destinado a deslumbrar e encantar outras mulheres, homem algum tinha o direito de presenceá-lo. A um canto, duas escravas negras em traje asiático, sentadas à sua moda, cantavam para si cantigas do seu país, tamborilando em surdina. (Os nossos ariscos democratas ocidentais podiam receber lições de fraternidade neste afável país, que, não reconhecendo castas nem distinções sociais, trata sempre os mais humildes servos ou servas como pessoas de família.)
A entrada da noiva causou estranheza e sensação. Não a esperavam naquela manhã. Por que motivo viria? Que misteriosa e lúgubre parecia, entre aquelas sedas e cassas brancas, azuis e cor-de-rosa! Que viria ela fazer, assim de improviso, a casa das damas de honor? Levantando o véu de luto, a jovem descobriu o rosto lindo e fino e, num tom desprendido, disse em francês, que decididamente era língua vulgar nos haréns de Constantinopla:
- Uma carta que venho comunicar-lhes!
- De quem
- Adivinhem...
- Da tia de Andrinopla; aposto que te manda um adereço
de brilhantes?
- Não.
- Da tia de Egrivan, que te promete um casal de gatos
angorá como prenda de noivado?
- Também não. É de uma pessoa estrangeira... É... de
um homem...
- De um homem? Que horror! Um homem! Ês" um pequenino monstro!...
E, como ela mostrasse a carta, contente pelo seu efeito, duas ou três cabeças louras - louro falso e louro verdadeiro - se precipitaram juntas para verem a assinatura.
- André Lhéry!... Não pode ser... Então respondeu?. Ê dele?... Não é possível.
Toda aquela pequena sociedade entrara na confidencia da
carta escrita ao romancista.
Entre as mulheres turcas actuais há tal solidariedade de revolta contra o severo regime dos haréns, que não só são incapazes de se atraiçoar, mas ainda guardam o maior silêncio e discrição, tanto por uma falta grave, como por uma coisa inocente, como esta, por exemplo.
Disputavam entre si o papel, muito juntas, tocando-se com as cabeças, entrando também no grupo Melle Bonneau de Saint-Miron. À terceira frase desataram a rir:
- Vês?... Não acredita que sejas turca!... Impagável, esta agora!... Está tão certo disso, parece, que o afirma em tom de convicção.
- Mas eis o que se chama um êxito, minha querida dizia-lhe Zeyneb, sua prima mais velha. - Isto prova que a delicadeza do teu espírito, a elegância do estilo...
- Um êxito! - contestou a pequena ruiva, cujo rosto era còmicamente trocista. - Um êxito Mas se ele te julga uma perota, obrigada por tal êxito!
Só ouvindo se perceberia a intenção com que era dita a palavra perota (habitante do bairro de Pera). Só o modo de a pronunciar exprimia por si todo o desdém de pura filha de osmanlins pelos levantinos ou levantlnas (armênios, gregos ou judeus), cujo protótipo é representado pelos perotas'.
- Este pobre Lhéry - acrescentou Kerimé, uma das jovens convidadas-, como ele anda atrasado!... Imagina a Turquia certamente ainda do tempo dos romances de 1830, fumando o narguilé e comendo guloseimas, todo o dia deitada num sofá!
- Ou simplesmente - replicou Mélek, a pequena ruiva de nariz trocista-, ou simplesmente a Turquia do tempo da sua mocidade, pois não sei se sabes que o teu poeta já deve ter os seus primeiros cabelos brancos!...
Era pois certo que André Lhéry não deveria ser muito novo já. E pela primeira vez a verdade deste facto se impunha ao espírito da sua desconhecida enamorada, que até então não pensara em tal. Aquela inesperada decepção viera assombrear-lhe o sonho, velando de melancolia o culto que lhe votava... Apesar dos ares risonhos e trocistas, todas elas amavam aquele homem longínquo e quase Impessoal; sim, todas as que ali estavam eram suas apaixonadas por ter ele falado com amor da sua Turquia e com respeito do seu Islame.
Uma carta dele, escrita a qualquer delas, era grande acontecimento na vida enclausurada que levavam, onde nada de anormal se passa até à catástrofe fulminante do casamento. Releram-na em voz alta.
Todas desejavam pegar naquele bocado de papel em que ele havia tocado. E depois, como eram grafólogas distintas, queriam sondar os mistérios da caligrafia.
Mas apareceu uma mamã, a mãe de duas delas; num instante rápido, a carta desapareceu e mudaram de conversa. Não porque fosse muito severa aquela mamã de rosto calmo.
1Posto que de acordo com os Turcos sobre a geração dos perotas, reconheço, contudo, ter encontrado entre eles homens distintos e mulheres que em qualquer parte do mundo seriam encantadoras.
Em todo o caso, teria ralhado, e sobretudo não compreenderia bem o que se passava. Era de outra geração. Lera apenas Alexandre Dumas, pai, e falava pouco francês.
Um abismo se cavara entre suas filhas e ela, abismo de mais de dois séculos pelo menos, tanto na Turquia de hoje andam depressa as coisas. Fisicamente falando, não se pareciam nada. Os belos olhos da mamãzinha reflectiam uma paz muito serena e cândida que os olhos das admiradoras de André Lhéry estavam longe de possuir. É que ela limitara a sua missão terrestre a ser mãe carinhosa e esposa impecável, sem de mais nada se importar. Vestia-se mal à europeia; os vestidos muito enfeitados não lhe ficavam bem, ao passo que as filhas já sabiam ser elegantes e distintas com os mais simples trajos. Entrou no quarto, por sua vez, a preceptora da casa, francesa também, no género de Esther Bonneau, mais nova e mais romântica ainda. E, como o quarto estivesse muito atravancado com tanta gente, os vestidos sobre as cadeiras e os colchões pelo chão, passaram para o quarto a seguir, mais largo e espaçoso, moderne style, que era a sala do harém. Apareceu então, sem se anunciar, pela porta sempre aberta, uma senhora alemã, de lunetas, nutrida, com um chapéu muito cheio de plumas, trazendo pela mão Fahr-el-Nissa, a mais nova das convidadas. E no circulo das jovens puseram-se a falar alemão com a mesma facilidade com que havia pouco falavam francês. Era a professora de música aquela senhora gorda, de um talento incontestável. Acabara de tocar com Fahr-el-Nissa, já artista, uma nova composição de Bach, para dois pianos, em que ambas tinham posto toda a alma. Falavam alemão, mas sem qualquer trabalho teriam falado inglês ou italiano, pois estas jovens turcas liam Dante, Byron ou Shakespeare no texto original. Mais ilustradas que entre nós, a maioria das meninas daquele mesmo meio, devido certamente ao seu encarceramento e às longas noites solitárias, haviam devorado os antigos clássicos, bem como os desequilibrados modernos. Na música, tanto se apaixonavam por César Frank como por Gluck ou Wagner, chegando até a decifrar as partituras de Vincent d'Indy. Talvez beneficiassem também das longas tranquilidades e sonolências mentais das antepassadas. Nos seus cérebros, compostos de matéria nova e onde esta repousara longamente, tudo florescia por milagre, como as grandes ervas bravas e as bonitas flores venenosas em terreno virgem. Ia-se enchendo naquela manhã a sala do harém.
As duas negras tinham-nas seguido com o tamborim. Depois delas entrou uma senhora idosa, diante da qual todas se levantaram com respeito.
Era a avó. Começaram então a falar em turco, pois que a ela eram-lhe completamente desconhecidas as línguas ocidentais. E que se importava aquela avòzinha com André Lhéry!
Vestia à antiga um vestido bordado a prata e envolvia-lhe os cabelos brancos um véu de Circássia. Entre ela e as netas, que insondável e incompreensível abismo! Quantas vezes, às refeições, não se escandalizara ela com o antigo hábito, que conservara, de comer o arroz com os dedos! Apesar disto tudo, era sempre a fidalga que se impunha.
Puseram-se pois a falar turco por deferência para com a avó, e subitamente o murmúrio das vozes tornara-se mais harmonioso, tão doce como se fora uma música suave.
Apareceu uma mulher esbelta e ondulante, que chegava da rua e se parecia, claro está, com um negro fantasma. Era Alimé Hanum, professora formada em Filosofia e inscrita no liceu de meninas, fundado por Sua Majestade Imperial o sultão.
Vinha habitualmente três vezes por semana ensinar a literatura árabe e persa a Mélek. Escusado será dizer que não daria lição hoje, véspera de casamento, um dia enfim em que as cabeças andavam no ar. Mas, quando levantou o véu e mostrou o bonito rosto grave, a conversação recaiu sobre os velhos poetas do Irão, e Mélek, tornando-se repentinamente séria, recitou um passo do País das Rosas, de Saadi. Nem uma sombra sequer de odaliscas ou guloseimas neste harém de paxá, composto de avó, mãe, filhas e sobrinhas e respectivas preceptoras. De resto, à parte duas ou três excepções, todos os haréns de Constantinopla são como este. O harém de nossos dias é simplesmente a parte feminina de uma família constituída como a nossa - e como a nossa educada, salvo o enclausuramento, os véus espessos para a rua e a impossibilidade de trocarem um pensamento com homem que não seja seu pai, marido, irmão ou primo muito próximo com quem as pequenas tivessem brincado. Tinham recomeçado a falar francês e a discutir vestidos, quando uma voz humana, tão límpida que parecia celeste, se fez ouvir lá fora, como que caindo do ar. Era o imã da mesquista mais próxima que chamava os fiéis à oração da sesta.
Então a noivazinha, lembrando-se de que sua avó almoçava ao meio-dia, fugiu qual gata-borralheira com Melle Bonneau, mais sobressaltada ainda do que ela com a ideia de que podia fazer esperar a respeitável senhora.
Foi silencioso o último almoço em família, entre aquelas duas mulheres secretamente inimigas, a avó severa e a preceptora.
Findo o almoço, retirou-se para o quarto, com um grande desejo de se fechar à chave; mas os aposentos das mulheres turcas não possuem fechadura, e teve de se contentar com uma senha dada a Kondja-Gul, para esta passar a todas as criadas ou escravas que de dia e noite estão de vigia, conforme o costume oriental, nos vestibulos e nos compridos corredores dos aposentos, como outros tantos cães de guarda familiares e discretos.
Durante aquele supremo dia que lhe restava, queria preparar-se para a morte, arranjar os seus papéis e mil pequenas recordações, queimar principalmente, queimar tudo, com medo dos olhares do homem que não conhecia e que em poucas horas seria seu senhor.
Não conhecia alívio a sua alma angustiosa e o seu pavor e rebelião tornavam-se imensamente maiores. Sentou-se defronte da secretária, onde acendeu a vela para comunicar o fogo a tantas pequenas e misteriosas cartas que nas gavetas envernizadas de branco há tanto dormiam! Cartas de amigas casadas de pouco tempo e de outras que temiam um casamento amanhã; cartas em turco, francês, alemão ou inglês, gritando todas revolta e envenenadas todas elas do pessimismo que hoje em dia devasta os haréns da Turquia. Algumas vezes relia um passo que mais a prendia, hesitava tristemente, mas por fim, apesar das doces lembranças que a ela a prendiam, aproximava a folha da pequena chama pálida, que, devido ao sol, mais se via brilhar! E tudo aquilo ia ardendo, todos os pensamentos secretos daquelas jovens e belas mulheres, as refreadas indignações, os vãos queixumes, tudo aquilo se tornava em cinza, se amontoava num fogareiro de cobre, único móvel oriental que havia no quarto. Despejadas as gavetas e destruídas as confidencias, restava apenas diante dela uma pasta de cantos dourados onde se amontoavam cadernos escritos em francês... Queimar isto também Na verdade, não se sentia com coragem. Ali resumira toda a vida passada, era o seu jornal íntimo, começado no dia em que fizera 13 anos - o dia fúnebre em que tomara o tcharchaf, como dizem no seu país, isto é, no dia em que fora necessário esconder a cara ao mundo, em que fora obrigada a enclausurar-se, tornando-se um dos inúmeros fantasmas negros de Constantinopla.
Anterior à data em que pela primeira vez tivera de usar véu nada o jornal anotara. Nada igualmente da infância bárbara, passada lá longe, nos extremos das planícies da Circássia, num território perdido, onde havia dois séculos sua família imperava. Nada tão-pouco do tempo de menina mundana, quando, tendo pouco mais ou menos 11 anos, os pais vieram com ela fixar residência em Constantinopla, onde recebera de Sua Majestade o sultão o título de marechal da corte. Fora este um período de estranhezas e admirações, completamente dedicado a acomodar-se às elegâncias, tendo igualmente estudos a fazer e lições a dar.
Durante dois anos tinham-na visto em festas, partidas de tênis e saraus da legação.
Valsara com os mais distintos valsistas da colônia europeia, tal qual uma menina de 18 anos, sempre muito convidada, tendo o seu pequeno canhenho cheio de nomes. Encantava pela graça e luxo, pela deliciosa carinha e, mais que tudo, por certo ar que nenhuma outra poderia igualar, ar vingativo e doce e, ao mesmo tempo, muito altivo e muito tímido. Mas um belo dia, num baile da Embaixada Inglesa oferecido à juventude, haviam perguntado: "Onde está a pequena circassiana?" E os seus compatriotas tinham simplesmente respondido: "Pois não sabem? Tomou o tcharchaf. "-Tomou o tcharchaf era o mesmo que dizer: Tudo acabou. Desapareceu como por encanto. Nunca mais a tornarão a ver, e, se por acaso a encontrarem passando numa carruagem fechada, nada mais verão que um vulto negro, impossível de reconhecer. Está como morta... com 13 anos feitos tinha pois entrado, segundo a regra inflexível, no meio velado que em Constantinopla vive ao lado desse outro que em todas as ruas encontramos e roçamos levemente, mas para o qual se não deve olhar e que, mal chega o pôr do Sol, se recolhe por detrás das rótulas. E aquela gente que por toda a parte sentimos a nosso lado, perturbadora e insinuante, mas impenetrável, observa-nos, conjectura e critica, vê muita coisa através do seu eterno véu de gaze negra e, além de tudo isto, adivinha o que não viu.
Repentinamente cativa aos 13 anos, entre o pai constantemente ausente, de serviço no palácio, e a avó tão rígida que nunca lhe manifestara um ar de ternura, assim sozinha na residência de Khassin-Paxá, no meio de um bairro de velhos palacetes principescos e de cemitérios, onde à noite tudo era pavorosamente silencioso, não admirara que ela se entregasse apaixonadamente ao estudo. E isto durara até aos 22 actuais, esta ardência de aprofundar todas as coisas: história, literatura e até filosofia transcendente. Entre tantas mulheres novas, amigas, superiormente educadas no mesmo indulgente sequestro, tornara-se como que pequena estrela, citando-se-lhe a erudição, as opiniões, as inocentes audácias, ao mesmo tempo que lhe copiavam as elegâncias caras. Era sobretudo como que o porta-estandarte da insurreição feminina contra as severidades do harém.
Decididamente, não queimaria aquele jornal começado no dia em que pela primeira vez pusera o tcharchaf Mais depressa o confiaria a qualquer amiga de confiança, bem lacrado, a uma amiga que fosse um tanto independente e cujas gavetas não corressem o risco de ser remexidas por um marido. E quem sabe se, para o futuro, lhe não seria possível Possuí-lo de novo e continuá-lo?... Queria-lhe muito, principalmente por ter fixado nele as coisas da sua vida, dessa vida que ia acabar amanhã, os felizes instantes de outrora, dias de Primavera muito mais luminosos que os outros, noites da mais deliciosa nostalgia passadas no velho jardim cheio de rosas e dos passeios sobre o Bósforo fascinador em companhia das primas ternamente queridas. Tudo isto lhe pareceria irremediavelmente perdido no abismo do tempo se destruísse o pobre memorial. Não oferecera a princípio aquela escrita grandes recursos contra as melancolias da jovem prisioneira? E eis que lhe vinha o desejo de continuar naquela ocasião mesmo, para enganar a angústia e a dor daquele último dia...
Conservou-se pois sentada à secretária e retomou a caneta, que era de ouro com rubis. Se tinha adoptado a língua francesa desde o começo do jornal, desde as primeiras páginas, já lá iam nove anos, fora principalmente para se assegurar de que nem a avó, nem outra qualquer pessoa da casa, se divertiriam a lê-lo. Mas havia aproximadamente dois anos que aquela língua, que se esforçava o mais possível por cultivar e aperfeiçoar, era destinada a um imaginário leitor. (Um jornal de mulher nova é sempre destinado a um leitor real ou fictício, e desta última forma, necessariamente, quando se trata de uma mulher turca.) E o leitor aqui era uma longínqua, uma muito longínqua personagem, para ela quase sem existência, o romancista André Lhéry!...
Escrevendo agora somente a ele, e imitando-lhe, mesmo sem querer, o estilo, os seus escritos tinham tomado a forma de cartas que lhe eram endereçadas e nas quais, para ser mais completa a ilusão de que o conhecia, o invocava pelo seu nome, André, simplesmente, como verdadeiro amigo, um Irmão.
Ora, naquela noite, eis o que ela, com a pequena mão muito carregada de lindos anéis, escreveu:
"18 de Abril de 1901
Nunca lhe falei da minha infância, não é verdade, André? E no entanto necessário é que saiba que, apesar de lhe ter parecido extremamente civilizada, sou, no intimo, uma pequena selvagem.
Conservarei sempre em mim alguma coisa da filha dos livres espaços, que galopava outrora ao tinir das armas, ou dançava à luz do fogo, ao tilintar dos cintos de prata.
E, apesar de todos os aperfeiçoamentos da ilustração europeia, quando minha alma, esta alma nova da qual me orgulhava, alma de ser que pensa, consciente, quando ela sofre demasiadamente, são sempre as recordações da infância que voltam a enfeitiçar-me.
E reaparecem-me imperiosas, muito cheias de luz, coloridas e brilhantes, mostrando-me um paraíso perdido, para o qual não mais poderei nem quererei voltar!
E essa terra, esse paraíso perdido, é uma pequena aldeia circassiana, bem distante, ainda para lá de Koniah, chamada
Karadjiamir. Ali governa minha família desde que veio do Cáucaso. Os meus antepassados eram no seu país cãs de Kiziltépé, e o sultão desse tempo deu-lhes em feudo a terra de Karadjiamir. Lá vivi até à idade de 11 anos, livre feliz. As raparigas circassianas não andam veladas, dançam, conversam com os rapazes livremente e entre eles escolhem noivo, segundo as inclinações do coração.
A nossa casa era a mais bela da aldeia, e até ela longas ruas de acácias se dirigiam em rampa por todos os lados. Depois, as acácias envolviam-na num grande círculo e, ao menor sopro do vento, balouçavam os ramos como que em homenagem, deixando bastas pétalas perfumadas.
Revejo em sonhos um rio que corre...
Da sala ouvia-se um murmúrio das pequeninas vagas impacientes.
Oh! Como elas se precipitavam em carreira louca para os ignotos longínquos!
Quando eu era criança, ria-me vendo-as em fúria de encontro aos rochedos!
Do lado da aldeia, defronte de casa, estende-se um vasto campo liberto. Era ali que dançávamos no ritmo circassiano, ao som das nossas velhas baladas, duas a duas, ou formando cadeias, vestidas de sedas brancas e os cabelos engrinaldados de flores. Revejo as minhas companheiras de então... Que será feito delas? Todas tão meigas e bonitas, olhos grandes, sorrisos cândidos...
No Verão, ao findar do dia, os circassianos de meu pai e todos os jovens da aldeia deixavam os trabalhos e partiam a cavalo através da planície. Meu pai, antigo soldado, punha-se-lhes à frente e comandava-os como que para uma investida. Era a hora dourada, quando o Sol vai adormecer.
Quando era pequena, um deles levava-me na sela, e eu embriagava-me com aquela velocidade e com a paixão que durante todo o dia se evolava da terra ardente, em surdina, para à noite explodir no barulho das armas e nos cantos selvagens. A hora mudava em seguida de cambiantes, parecendo então tornar-se da purpurina cor das tardes de batalha. e os cavaleiros soltavam ao vento cantos guerreiros. Depois, vinha a hora rosada e opalina..."
Tinha chegado à hora "opalina" e perguntava a si mesma se a palavra não seria demasiadamente preciosa para agradar a André, quando Kondja-Gul, bruscamente, e apesar da proibição, entrou no quarto precipitadamente:
- Ele está ali, minha menina! Ele está ali!...
- Ele quem?
- O jovem beü... Veio falar com o paxá seu pai e vai sair agora. Depressa, corra à janela, vê-lo-á montar a cavalo!
A pequena princesa respondeu sem o menor movimento e com uma tranquilidade tão gelada que aniquilou por completo a pobre Kondja-Gul:
- E é por isso que me vens incomodar? Esse vê-lo-ei sempre cedo de mais! Não contando que até à minha velhice terei tempo de vê-lo à saciedade!
Dizia isto principalmente para fazer notar bem entre os servos o seu desdém pelo jovem senhor. Porém, mal KondjaGul partiu, muito embaraçada, aproximou-se trêmula da janela. O bei acabava de montar, com o seu belo uniforme de oficial, e partia a trote largo ao longo dos ciprestes e dos túmulos, seguido de uma ordenança.
Teve ainda tempo de observar que, efectivamente, o bigode do jovem bei era louro, talvez muito louro para o seu gosto, mas vira também que era rapaz bonito e de porte bastante altivo. Nem por isso deixava de ser um adversário, o senhor que lhe haviam imposto e que ela jamais admitiria na intimidade da alma. E, não querendo ocupar-se mais dele, voltou a sentar-se à sua secretária - bastante corada no entanto para continuar o jornal, isto é, a carta ao incerto confidente:
"... a hora rosada (hora cor-de-rosa somente, decididamente; opalina era pretensioso), a hora rosada, quando despertam as recordações e os circassianos se lembravam do país dos seus antepassados; um deles entoava uma cantiga de exílio e os outros moderavam o andamento para escutar aquela voz solitária e lenta.
Agora o horizonte tornava-se cor de violeta, muito terno e doce, e a planície inteira entoava um hino de amor...
Os cavaleiros voltavam as rédeas e, novamente a galope, apressavam-se para regressar. À sua passagem morriam flores exalando um derradeiro perfume. Falseavam e parecia trazerem, sobre eles e as suas armas todo o fluido argentino espalhado no crepúsculo do Verão.
Ao longe, na frente, um clarão de incêndio marcava o pequeno ponto onde as acácias de Karadjiamir se agrupavam, no meio da estepe lisa e silenciosa.
Aumentava o clarão e de repente tornava-se foco de labaredas altas que tocavam nas primeiras estrelas, pois os que tinham ficado na aldeia acendiam grandes fogueiras, e em redor dançavam raparigas, entoavam-se cantares ritmados pelo esvoaçar das gazes brancas e dos véus ligeiros. Os novos divertiam-se, enquanto os homens feitos, sentados cá fora, fumavam e as mães, através das janelas, espreitavam a vinda do amor para as filhas.
Nesse tempo era eu rainha. Tewfik-Paxá, meu pai, e Seinha, minha mãe, adoravam-me acima de tudo, pois que os outros filhos tinham morrido.
Era eu a sultana da aldeia; nenhuma tinha vestidos tão belos, nem cintos de ouro e prata tão preciosamente cinzelados, e, se por acaso por lá passava um destes mercadores vindos do Cáucaso, que trazem sacos cheios de pedrarias e fardos de finas sedas bordadas "de ouro, todos nos arredores sabiam que era em nossa casa que ele primeiro entrava. E ninguém ousaria comprar uma simples écharpe sem que a filha do paxá tivesse escolhido os seus enfeites.
Minha mãe era boa e prudente. Meu pai, excelente e sabiam-no justo. Qualquer estrangeiro de passagem podia bater-nos à porta; estava em sua casa.
Pobre, acolhiam-no como ao próprio sultão. Prescrito, fugitivo - eu vi -, bastava a sombra da nossa casa para defendê-lo até à morte dos que a habitavam. Mas desgraçado daquele que procurasse servir-se de Tewfik-Paxá para o ajudar em qualquer acção vil ou suspeita: meu pai, tão bom, era igualmente um terrível justiceiro. Vi-o eu.
Tal foi a minha infância, André. Um dia perdemos minha mãe, e meu pai, não querendo continuar a viver sem ela em Karadjiamir, levou-me com ele para casa de minha avó, em Constantinopla, perto de minhas primas.
Presentemente é meu tio Arif-Eei que lá governa. Mas quase nada tem mudado naquele desconhecido canto do mundo, onde os dias se sucedem, tecendo em silêncio os anos!
Creio que construíram sobre o rio um moinho, e as pequenas vagas que se divertiam a parecer terríveis aprenderam agora a tornar-se úteis, e a mim, de longe, parece-me ouvi-las chorar a sua antiga liberdade. A casa, essa, continua elevando-se dentre as árvores, e esta Primavera ainda, as acácias terão juncado com suas flores os caminhos por onde eu em pequena brincava. E certamente outra qualquer pequenita irá cavalgando em meu lugar com os cavaleiros...
Quase onze anos são passados sobre tudo isto.
A criança descuidada e alegre tornou-se uma adolescente que muito tem chorado já. Seria ela mais feliz continuando a sua primitiva vida?... Mas estava escrito que ela a abandonaria, porque era preciso que fosse transformada num ser pensador e que mais tarde o seu pensamento encontrasse o vosso. Ah! Quem nos dirá o porquê, a razão superior destes encontros, onde as almas, roçando-se levemente apenas, não mais se esquecerão. Pois vós, André, jamais também me esquecereis..."
Estava cansada de escrever. Entretanto, a passagem do bei tinha-lhe tornado a memória confusa.
Que fazer para terminar este dia? Ah, o jardim, o querido jardim coberto de relva mimosa! Para lá ia até à noite... Bem ao fundo, sentada num banco, debaixo dos plátanos centenários, encostada ao muro do jardim coberto de musgo, era ali que ela ia isolar-se até ao cair daquele dia de Abril, que lhe parecia o último da vida. Ia tocar, chamar Kondja Gul para dar o sinal que a sua vinda exigia: aos jardineiros, cocheiros, domésticos e a todos os outros, para desaparecerem das áleas e não profanarem com os seus olhares a pequena deusa que passeava sem véu...
Mas não; reflectiu e não desceu; teria de encontrar, com muita possibilidade, eunucos e serventes, todos com sorrisos de cumprimento à noiva, e ela era obrigada perante eles a mostrar um ar alegre, pois que a etiqueta o exigia. E depois a exasperação de ver estes preparativos de festa, as mesas postas debaixo das árvores e os bons tapetes deitados sobre a terra...
Em seguida refugiou-se numa pequena sala, perto do quarto, onde tinha o piano de Êrard. Faltava-lhe dizer adeus a este género de música, porque na sua nova casa não ia tê-lo. A mãe do jovem bei - uma 1320 tal como as damas de velha moda são designadas pelas pequenas flores de cultura Intensa, nascidas na Turquia moderna -, uma pura 1320, tinha, não sem dificuldade, permitido a biblioteca de livros novos, de língua ocidental, as revistas e as gravuras; mas o piano tinha-a magoado e não ousara insistir.
A velha senhora viera muitas vezes visitar a noiva, enchendo-a de mimos e de cumprimentos antiquados que muito a incomodavam: cravava na jovem o seu perscrutador olhar, para poder, em casa, dizer ao filho como era a sua futura noiva. De modo que não teria piano na sua nova casa, situada no outro lado do golfo, no coração da velha Istambul... Sobre o teclado, as pequenas mãos nervosas, maravilhosamente exercitadas, começaram a improvisar coisas extravagantes, sem pés nem cabeça, acompanhadas de sons secos, cada vez que os exagerados requintes sustinham as teclas. Deixou os apuros e pensou uns momentos, começando a tocar uma transcrição de Wagner por Liszt; então, pouco a pouco, deixou de ser a que no dia seguinte ia casar-se com o capitão Hamdl-Bet, ajudante-de-campo de Sua Majestade Imperial; converteu-se em noiva de um jovem guerreiro, de longa cabeleira, que habitava um castelo. Ia no alto, na obscuridade das nuvens, em cima de caudaloso e trágico rio; ouviu a sinfonia dos velhos tempos lendários nas profundas florestas do Norte.
Quando, porém, cessou de tocar, quando tudo se apagou com as últimas vibrações das cordas, notou que os raios do Sol, já vermelhos, entravam quase horizontalmente pelas grades das janelas. Era o fim do dia; de repente assustou-se ao ver-se só, naquela tarde, a última da sua vida de solteira, apesar de ter desejado tal solidão - como tinha sonhado naquela última tarde. Rapidamente, foi ter com a avó, para
Quer dizer, uma pessoa que só admite as datas da Hêgira. em vez de empregar o calendário europeu. (N. do T.)
esta lhe dar licença - que obteve - de escrever a suas primas, para que viessem fazer-lhe companhia; a noiva manifestava-lhes a sua angústia, suplicava-lhes que viessem fazer-Lhe companhia, mas só as duas, sem as outras damas de companhia; só Zeyneb e Mélek, amigas eleitas, confidentes, irmãs de alma. Temia que a mãe das primas se opusesse, para não deixarem a' sós as convidadas; receava que fosse já tarde, que estivesse já muito baixo o Sol, por não poderem as mulheres turcas sair depois do pôr do Sol. E, da janela gradeada, olhava o velho Ismael, que corria quanto podia para chegar depressa com a mensagem.
Havia alguns dias que a jovem guardava reserva impenetrável sobre os graves assuntos que a preocupavam, mesmo com as primas, que por tal se mostravam penalizadas; até àquelas amigas queridas ela ocultava o pudor do seu sofrimento; porém, já não podia mais; queria tê-las ao lado para as abraçar e chorar com elas.
Como baixava depressa o Sol naquela sua última tarde de liberdade relativa!... Haveria tempo suficiente para elas virem Inclinava-se para a rua, para ver mais longe, tanto quanto lhe permitiam as grades e as rótulas dissimuladoras!
Chegara "a hora púrpura das tardes de batalha", como ela dizia no seu jornal de criança, em ideias de fugida e de manifesta revolta da cabecita indomável e deliciosa. Que imobilidade serena naquela paz fatalista e resignada que a rodeava! Um perfume de plantas aromáticas saía daquele extenso bosque funerário, tão tranquilo diante das janelas, perfume da velha terra turca, perfume da erva rasa e das pequeninas plantas que todo o dia se tinham aquecido àquele sol de Abril. Os tons verde-negros das árvores, dispostas ao poente, que se incendiava, pareciam trespassados pela luz dos raios do Sol. Os dourados antigos brilhavam no alto das colunas monolíticas das sepulturas postas ao acaso, distantes umas das outras, debaixo dos ciprestes. (Na Turquia, os mortos não inspiram terror; até no centro das cidades repousam em paz.) Através daquelas coisas melancólicas mais próximas, por entre os escuros ciprestes direitos como torres, e nos intervalos de tudo aquilo, a grande e incomparável decoração de toda a Istambul aparecia radiando nas tardes puras. Em baixo, muito em baixo, a água do Corno de Ouro, até onde se estendiam os próximos cemitérios, estava vermelha, incandescente como o céu, sulcada por centenas de caiques, vaivém secular ao fechar dos bazares; porém, lá do alto não se ouvia o ruído que faziam cortando a água nem os esforços dos remadores; pareciam grandes insectos desfilando sobre um espelho. A margem da frente, a margem de Istambul, ia-se transformando a olhos vistos; todas as casas próximas do mar, todos os andares inferiores duma prodigiosa quantidade, acabavam de ofuscar-se como se fugissem debaixo daquela espessa escuridão da tarde. Istambul transformava-se como uma sombra; não ficavam pormenores de nada; nem da decadência, nem da miséria, nem da falta de arte dalgumas construções modernas.
Agora só era uma silhueta dum avermelhado profundo bordado de oiro, um colossal recorte de cidade coalhada de agulhas e de cúpulas, posta em pé como um guarda-fogo para ocultar o céu incendiado. E as mesmas vozes que ao meio-dia chamavam os osmanlins fiéis, vozes claras, vozes celestes, cantavam de novo a quarta oração do dia: o Sol desaparecia.
Então, a pequena e formosa prisioneira, um tanto acalmada, a pesar seu, por tão magnífica paz, mostrava-se inquieta por Mélek e Zeyneb. Conseguiria vê-las, não obstante ser tarde Fixava cada vez mais a sua atenção no extremo do caminho, limitado de um lado pelas velhas moradias gradeadas e do outro pelo delicioso domínio dos mortos...
Ah! Lá vinham elas em baixo, esses diminutos fantasmas negros, sem cara, saídos duma grande porta que pareciam abrir com receio. Apressavam o passo, seguidas de dois negros armados de sabre... Tinham-se resolvido com presteza, as pobres pequenas! Ao reconhecê-las, vendo que tão resolutamente vinham ao seu chamamento angustioso, a noiva sentia humedecerem-se-lhe os olhos; doces lágrimas que desta vez correram pelas faces.
Apenas entraram, tiraram os tristes véus e a noiva caiu-Lhes nos braços.
As duas estreitaram-na de encontro ao coração, demonstrando-lhe a mais terna mágoa,
- Não duvidávamos de que não eras feliz... Como nada dizias, nada também nos atrevíamos a dizer-te. Há alguns dias que te encontramos muito reservada e muito fria connosco.
- Então não sabem como eu sou Ainda que pareça doidice, envergonho-me que me vejam sofrer.
Agora chorava e soluçava.
- Mas porque não disseste que "não", querida?
- Já tenho dito que não tanta vez! Grande é já o número dos que recusei!... Por outro lado, tenho já 22 anos; sou quase uma solteirona... E dir-lhes-ei que este ou outro, pouco me importa; porque afinal terei de casar com um.
Muitas vezes tinha ela ouvido amiguitas suas falarem assim em vésperas de casamento; tanta passividade repugnara-lhe, e agora também ela dizia... "Pois que não é aquele que eu escolheria", dizia uma, "pouco me importa que se chame Mehemec ou Ahmed! Não terei eu os filhos, para me consolarem da presença do meu marido?" Outra, que tinha aceitado o primeiro que se lhe apresentou, escusava-se desta maneira: "Porque preferir o segundo ao primeiro? Não encontro nisso vantagem!... Que dizer para o recusar? Desde que tudo isso traz rixas e desgostos..." A apatia destas meninas tinha-lhe parecido incompreensível: deixarem-se casar como escravas!... E eis como ela tinha de consentir num negócio semelhante, no dia seguinte, o dia terrível do seu vencimento. Por muito ter lutado e recusado sempre sistematicamente, acabara por dar o sim, que a perdia, em vez do não, que a teria salvo ao menos por algum tempo. Era já tarde para se desdizer, chegara à borda do abismo; amanhã casava-se!
Agora choravam juntas as três; choravam lágrimas que a altivez da noiva retivera durante muitos dias; choravam como se chora no momento da separação definitiva, como se alguma delas estivesse para morrer.
Mélek e Zeyneb, bem entendido, não voltaram naquela tarde a casa e ficaram em companhia da prima, como é costume quando se visitam mulheres ao anoitecer, coisa que já não faziam há dez anos. Sempre juntas as três jovens, como irmãs inseparáveis, tinham-se acostumado a dormir, com muita frequência, tão depressa em uma casa como em outra, e sobretudo em casa da circassiana.
Mas desta vez, quando as escravas, sem esperar por ordens, acabaram de estender sobre os tapetes os colchões de seda das convidadas, afigurou-se-lhes que estavam reunidas as três para uma velada fúnebre. Tinham pedido e obtido licença para não descer a cear com a família, e um negro imberbe com cara de macaco, demasiado gordo, acabava de trazer-lhes, sobre uma bandeja de prata dourada, o jantarinho, em que não tocaram.
Em baixo, na sala de jantar, a avó de todas, o paxá, pai da noiva, e Melle Bonneau de Saint-Miron ceavam sem conversar, num silêncio glacial. A avó, mais do que nunca irritada pela atitude da neta, sabia bem a origem disso; acusava a educação nova e a professora dessa pequena neta de impecável sangue muçulmano; sua neta era para ela como filha pródiga, que não voltaria mais às tradições hereditárias; apesar de lhe ter carinho, julgou dever mostrar-se sempre severa para com ela, e hoje, perante essa rebelião surda e incompreensível, queria exagerar sua frieza e sua dureza. Quanto ao paxá, que sempre a tinha amimado como filha unica, como sultana das Mil e Uma Noites, e que tantas provas Qe carinho recebera dela, pensava o mesmo que sua antiquada sogra 1320, e também se indignava realmente, porque era excessivo este último capricho: fazer-se pequena mártir no momento de lhe darem um senhor que lhe tinham escolhido, belo rapaz, rico, de notável família e que gozava de prestígio Junto de Sua Majestade Imperial.
Finalmente, a pobre professora, que se sentia inocente por aqueles preparativos de noivado, que sempre fora a confidente e a amiga, mantinha-se dolorosamente em silêncio, se bem que a sua querida discípula lhe tivesse pedido que voltasse àquela casa para presenciar o seu enlace. Porque lhe não admitia a companhia lá em cima, naquela última noite.
Mas não, as três caprichosas não julgavam fazer-lhe tanta pena; tinham desejado estar sós na véspera de tamanha separação.
Acabadas estavam para sempre as muitas horas nocturnas passadas pelas três naquela habitação, que amanhã ficaria vazia e de que era preciso despedirem-se. Para que fosse menos triste a velada, acenderam todas as velas dos candelabros e a lâmpada grande em forma de coluna, cuja túlipa, segundo moda nova naquele ano. era maior que um girassol e feita de pétalas de flores, e passaram revista, guardando ou destruindo, a uma porção de objectos que desde há muito conservavam como preciosa recordação. Entre eles havia adornos de prata e de ouro que era de uso meter no cabelo das noivas e que as amigas mais intimas conservam sempre, até que lhes chegue a vez de noivas; alguns desses adornos brilhavam, atados com laços de fita, no alto dos espelhos e nas paredes brancas, evocando lindos e pálidos rostos e amigas que sofriam ou que tinham falecido. Viam-se bonecas num armário que recordavam horas felizes, brinquedos encangalhados. flores secas, pobres e ternas relíquias da infância, da primeira juventude passada em comum entre as paredes daquela velha casa. Também havia ali quadros pintados ou bordados por elas, na maioria fotografias de esposas de diplomatas e de jovens muçulmanas em trajes de sarau, a quem se teria tomado por elegantes parisienses se não fossem algumas palavras escritas por baixo em caracteres árabes, pensamentos ou dedicatórias.
Finalmente, havia objectos ganhos, nos precedentes Invernos, em lotartas de caridade que as damas turcas organizavam durante as noites do Ramadão; não tinham valor tais bugigangas; todavia, recordavam momentos felizes dum género de vida cuja próxima conclusão constituía o seu motivo de angústia. Quanto às prendas de casamento, algumas sumptuosas, que Melle Esther Bonneau expusera numa sala vizinha, pouco lhes importavam.
Mal terminada a melancólica revista, ouvia-se ainda por cima da casa ressoarem as belas vozes claras que chamavam os fiéis à quinta oração do dia.
Então as jovens, para melhor as ouvirem, foram sentar-se a uma janela aberta, onde se respirava a frescura da noite, que cheirava a cipreste, a plantas aromáticas e a água do mar. Aberta a janela, mas gradeada e reforçada pelas eternas rótulas de madeira, sem as quais nenhuma mulher turca tem o direito de ver o que se passa na rua, ouviam as vozes aéreas que continuavam cantando em volta, e ao longe outras semelhantes que respondiam, e um sem-número de outras que caíam dos altos miranetes de Istambul e atravessavam o golfo, adormecidas, ecoadas pelo marulhar sonoro do mar; parecia até que vinham do Céu, naquela repentina exaltação de vozes puras que se ouviam em palavras muito ligeiras de todos os lados ao mesmo tempo.
Mas aquilo durou pouco; e, quando todos os cantores lançaram aos quatro ventos a frase religiosa e imemorial, sucedeu-se grande silêncio. Istambul agora, pelos intervalos dos negros e próximos ciprestes, recortava-se em forma azulada sobre o céu impregnado da vaga claridade da Lua; uma Istambul vaporosa, maior ainda, Istambul de cúpulas realmente gigantescas; sua silhueta secular, imutável, estava crivada de luzes que se reflectiam na água do golfo. As jovens olhavam por entre as rótulas e as grades que as prendiam e perguntavam se as formosas cidades do Ocidente (que elas só conheciam pelas fotografias e que nunca veriam, dado que as muçulmanas não têm o direito de deixar a Turquia), Viena, Paris, Londres, podiam dar semelhante impressão de beleza e de grandeza. Também lhes lembrava passar os dedos pelas rótulas, coisa que todas as cativas se entretêm a fazer para se distraírem, e sentiam-se tomadas de repentinos desejos de viajar, de conhecer o mundo, ainda que fosse só passear uma vez, numa bela noite como aquela, pelas belas ruas de Constantinopla, ou mesmo ir só até àquele cemitério em frente de casa... Mas, à noite, uma muçulmana não podia sair...
O silêncio, o absoluto silêncio, envolvia gradualmente o antigo bairro de Khassim-Paxá, com suas casas fechadas. Tudo se imobilizava em volta delas. O rumor de Pera, onde há uma vida nocturna como nas cidades da Europa, apagava-se muito antes de ali poder chegar. Os estridentes apitos dos numerosos navios reunidos ao pé da Ponte do Serralho deixavam de se ouvir ainda antes da quinta oração, porque a navegação do Bósforo termina logo ao escurecer. Naquela paz oriental, desconhecida nas nossas cidades, só um ruído se ouvia de tempos a tempos, ruído característico das noites de Constantinopla, ruído que não tem igual e que os turcos dos séculos passados conheceram o mesmo; tac-tac-tac-tac! sobre as velhas lajes, um tac-tac amplificado pela sonoridade fúnebre das ruas, onde já não passava ninguém. Era o guarda-nocturno do bairro, que, no decorrer do seu lento andar em sandálias, acompanhava cada passo de uma pancada sonora dada nas lajes com a ponta de ferro do chuço. E, ao longe, outros guardas-nocturnos respondiam, fazendo o mesmo; isto repetia-se de quando em quando, por toda a imensa cidade, desde Eyub até às Sete Torres e, no Bósforo, desde o mar de Mármara ao mar Negro, para dizer aos habitantes: "Dormi, dormi tranquilos, aqui estamos vigiando até pela manhã, de olho à mira, espiando os gatunos e os incêndios."
As pequenas, por instantes, esqueciam-se de que este encontro era o último. Como na véspera dos grandes acontecimentos da vida, deixavam-se iludir pela tranquilidade das coisas que há muito tempo lhes eram conhecidas, e naquele Quarto tudo ficava no mesmo sítio, conservando o aspecto de sempre. Mas a recordação, de vez em quando, fazia-as estremecer, dando-lhes arrepios de morte; amanhã, a separação, o fim da sua intimidade de irmãs, o desmoronamento de todo o querido passado!
Oh! e que amanhã aquele para a noiva!... O dia inteiro, esse dia da comédia, como manda o costume; e ter de desempenhar bem o seu papel, custe o que custar. Estar todo o dia a distribuir sorrisos, como um ídolo; sorrir às numerosas amigas e sorrir aos inumeráveis curiosos que na ocasião dos grandes casamentos invadem as casas. Era preciso encontrar palavras amáveis, receber bem as felicitações; desde manhã à noite, mostrar a todos um ar muito satisfeito; ter sempre o sorriso nos olhos e nos lábios, apesar do despeito e do terror. Oh! sim, saberia sorrir! Demais, a sua altivez exigia-o: aparecer ali como vencida seria deveras humilhante para ela, a insubmissa, que tantas vezes tinha dito que só a seu gosto casaria e que tanto tinha propagado entre as outras a cruzada feminista. Mas que duro e irônico dia seria o de amanhã!... "E se ao menos à noite acabar o tormento", dizia ela... Mas não, depois daquele insuportável dia, ficava por meses, por anos, ou por toda a vida, possuída, magoada e desflorada por aquele senhor desconhecido! "Oh! pensar que já não poderei dispor de um só dos meus dias ou das minhas noites, e tudo isso pela fantasia que esse homem teve em desposar a filha dum marechal da corte!"
As primas, amáveis e gentis, vendo-a bater rápida e nervosamente o pé, pediram como diversão um pouco de música pela última vez. Juntas, foram para o gabinete onde o piano estava ainda aberto. Via-se aí um montão de objectos sobre as mesas, as estantes e os tapetes de seda, que mostravam o estado de espírito da muçulmana moderna, ávida de possuir tudo e conhecer tudo na sua reclusão. Até um fonógrafo havia naquele quarto (um fonógrafo dos melhores então", que durante alguns dias muito as divertiu, fazendo-lhes ouvir trechos de peças de teatro ocidental, coisas insulsas de opereta e nulidades de café-conceito. Mas nenhuma recordação as ligava àquelas bugigangas, onde o acaso as tinha colocado, como coisas desprezadas, para divertimento dos eunucos e das criadas.
A noiva sentou-se ao piano, hesitou um pouco, mas depois pôs-se a tocar um Concerto por ela mesma composto. Estudara harmonia com excelentes professores e tinha inspirações que não devia a ninguém; às vezes um pouco excessivas e sempre esquisitas, como recordações longínquas, em que se encontrava de vez em quando, como que o galope dos cavaleiros circassianos no campo natal. Ao Concerto seguiu-se um Nocturno ainda por acabar, composto durante a velada da véspera; a princípio, uma espécie de sombria tormenta, a que por fim se havia imposto a soberana paz dos cemitérios vizinhos. O particularíssimo ruído de Constantinopla que vinha do exterior de vez em quando, servia de acompanhamento àquela música; eram, na sonoridade sepulcral da rua, as pancadas do chuço do guarda-nocturno.
Zeyneb aproximou-se para cantar, acompanhada por sua irmã mais nova, Mélek; como quase todas as mulheres turcas, tinha uma voz quente, uma voz trágica, que fazia vibrar com paixão, sobretudo nas belas notas graves. Depois de um pouco de hesitação, tirou ao acaso uma partitura de Gluck e entoou soberbamente as imortais imprecações: Divindades do Styx, Ministros da Morte!
Os turcos de outrora que repousavam nos cemitérios em frente - os da antiga Turquia -, entre as raízes dos ciprestes, haviam de admirar-se daquela janela iluminada, já tão tarde, que projectava no meio do seu escuro domínio aqueles raios de luz; as grades indicavam que era janela de harém, donde vinham melodias tão estranhas para eles.
Zeyneb terminou a frase sublime: "Não evocarei a vossa cruel piedade"... Sua irmã deteve-se, dando uma nota falsa... Uma forma humana, que ela tinha sido a primeira a ver, acabava de chegar junto do piano; uma forma grande e magra, vestida de escuro, apareceu sem ruído, como se fosse um fantasma.
Se bem que não fosse divindade do Styx, nem por isso era mais simpática; uma kif-kif, segundo a expressão habitual da pequena Mélek de cabelos vermelhos. Era a Sr." Husnugul, o terror da casa, que disse: "Vossa avó manda-vos apagar as luzes e deitar-vos." E afastou-se sem ruído, como viera, deixando as três geladas. Tinha uma especial astúcia para aparecer em qualquer lado sem ser esperada, o que é mais fácil do que em qualquer outro lado, porque as portas interiores dos haréns nunca se fecham.
A Sr." Husnugul (Beleza de Rosa) era uma velha escrava circassiana que há trinta anos se considerava da família, por ter tido um filho do cunhado do paxá. O filho morreu e casaram-na com um feitor das propriedades rurais da família. O feitor faleceu mais tarde, e um belo dia ela reapareceu como de visita, mas trazendo muitos sacos de lã com roupa, ao uso antigo.
Ora esta "visita" há mais de vinte e cinco anos que durava. A Sr." Husnugul, meio dama de companhia, meio serva e espia da juventude, convertera-se no braço da avó e, como tinha alguma educação, fazia visitas de conta própria às senhoras da vizinhança, sendo recebida nas casas da alta-roda, em vista da indulgência igualitária da Turquia. Uma grande Quantidade de famílias de Constantinopla têm no seu seio uma Siv Husnugul - ou Hulchinasse (Servente de Rosa), ou Chemsigui (Rosa Solar), ou Purkiemal (A Perfeita), ou qualquer outra neste género, que é sempre um disparate. Mas as velhas senhoras apreciam os serviços dessas matronas que acompanham a passear as jovens pequenas, contando na volta tudo quanto se passou.
Não tinham que discutir a ordem transmitida pela Sr." Husnugul. As três pequenas, desoladas, fecharam o piano e apagaram as luzes.
Mas, antes de se deitarem, caíram nos braços umas das outras, como para despedida suprema, chorando mutuamente, como se no dia de amanhã se separassem para sempre. Por medo de ver reaparecer a Sr." Husnugul, que sem dúvida estava escutando atrás da porta, apenas encostada, não se atreviam a falar, não podiam dormir, e de vez em quando ouvia-se um soluço ou um suspiro levantar aqueles peitos juvenis.
A noiva, no meio deste profundo silêncio nocturno, propício ao abandono e à angústia, sentia-se como que enlouquecida, sentindo que cada hora e cada minuto que passavam a aproximavam da irreparável humilhação, do desastre final. Agora exasperava-a aquele estranho, com sua violência de "bárbaro", cuja cara ela mal entrevira e que amanhã seria dono da sua pessoa e para sempre. Nada estava feito ainda de definitivo; sentia uma tentação mais forte do que nunca para empregar qualquer supremo esforço, para lhe escapar, mesmo com risco de tudo... Mas quê?... Que socorro humano podia pedir? Quem teria piedade dela?... Era já tarde para se arrojar aos pés de seu pai, além de que não conseguiria demovê-lo. Meia-noite, e a Lua, com a sua luz espectral, alumiava o quarto; os raios entravam, desenhando sobre a brancura das paredes as rótulas de madeira das janelas. Também alumiavam por cima da cabeça da princesa um versículo do Alcorão que cada muçulmana deve ter à cabeceira, que a segue desde a infância e que é como contínua oração protectora da sua vida. O versículo estava inscrito sobre o fundo de veludo verde-escuro, numa antiga e admirável bordadura de ouro, desenhada por um célebre calígrafo do tempo antigo, e dizia esta frase tão doce como as do Evangelho: "Os meus pecados são grandes como o mar, mas o teu perdão é maior ainda, oh! Alá!" Durante muito tempo, depois que a jovem deixara a crença religiosa, a santa inscrição guardara o seu sono, continuara a actuar na sua alma, e uma vaga confiança lhe restava numa suprema bondade, num supremo perdão. Porém, tudo acabara já; nem antes nem depois da morte, a jovem esperava misericórdia, nem dela precisava; não, só, para sofrer, só, para defender-se, e só a responsável! Naquele momento sentia-se disposta às extremas resoluções.
Mas, ainda assim, que partido tomar?... De que modo e para onde A meia-noite, fugir ao acaso, e pelas ruas desertas?... E em que morada encontrar asilo para não ser devolvida à casa paterna?...
Zeyneb, que não era capaz de dormir, atreveu-se a falar em voz baixa. Acabava de se lembrar que estavam em certo dia da semana a que os Turcos chamam Bazar-Guni (correspondente ao nosso domingo), em que se deve velar e rezar pelos mortos, assim como na velada de Tcharchembé (que corresponde à nossa sexta-feira). O caso é que nunca tinham faltado àquele dever, era até um dos poucos costumes religiosos do Islame que elas observavam ainda fielmente; porque, de resto, estavam como a maior parte das muçulmanas da sua idade e da sua classe social; Darwin, Schopenhauer e muitos outros tinham-nas transformado quase por completo. Sua avó dizia-lhes: "O que mais me entristece na velhice é ver que vos tornastes piores do que se vos convertêsseis ao cristianismo, porque, em suma, Deus ama todos os que têm uma religião. Mas vós... vós sois verdadeiras infiéis que o Profeta sabiamente predisse que o tempo traria." Infiéis sim, e mais céptica. e desesperadas que a média das donzelas da nossa terra. No entanto, rezar pelos mortos era um dever a que elas se não atreviam a subtrair-se, além de que era dever muito grato; durante os passeios de Verão nas aldeias do Bósforo, que têm esquisitos cemitérios à sombra dos ciprestes e dos carvalhos, rezavam juntas sobre qualquer túmulo desconhecido.
Acenderam sem ruída uma lamparina que dava luz baça; a noiva abriu o Alcorão que descansava sobre uma pequena mísula junto ao Jeito arte nova (cate Alcorão sempre envolvido num pano de seda de Meca e perfumado com sândalo, que cada muçulmana deve ter à cabeceira da cama, especialmente para as orações que se rezam de noite) e as três começaram em voz baixa, num progressivo apaziguamento: e pouco a pouco a reza acalmava-as, como a água fresca acalma a febre.
Daí a pouco, uma alta mulher vestida de negro chegou, como sempre, sem ruído e, como fantasma, ergueu-se diante delas.
- A avó manda que se apague a lamparina.
- Está bem, Sr. Husnugul. Mas faça o favor de a apagar, porque estamos deitadas, e tenha a bondade de explicar à avó lue não é por desobediência, mas porque desejamos rezar pelos mortos.
Eram quase 2 horas da madrugada. Logo que foi apagada a lamparina, as três jovens, vencidas pelas emoções, pelo desgosto e pela revolta, adormeceram ao mesmo tempo, tranquilamente, como os condenados à morte na véspera da manhã suprema.
Quatro dias depois, a recém-casada, no fundo da casa muito antiga e senhorial do seu jovem senhor, estava só na parte do harém que lhe tinham dado como sala particular: uma sala à Luís XVI, de branco, ouro e azul-pálido, recentemente decorada para ela. O seu vestido cor-de-rosa, vindo duma das mais afamadas casas de Paris, da Rua da Paz, era feito de tecidos impalpáveis que pareciam nuvens envolventes, como o exigia o capricho da moda naquela Primavera; o penteado, feito segundo a última invenção. A um canto havia uma secretária pintada de laca branca, parecida com a do seu quarto em Khassim-Paxá, e as gavetas tinham fechadura, o que a entusiasmava.
Dir-se-ia uma parisiense na sua própria casa, se não fossem as grades, as rótulas e as inscrições do Islame - bordadas em antigas sedas preciosas, que aqui e ali decoram os lisos das paredes -, o nome de Alá e algumas sentenças do Alcorão. Nessa sala havia também um trono de casada, precedido dum estrado de dois ou três degraus, encimado por dossel, donde caíam cortinas de cetim, magnificamente bordadas de flores de prata. Para complemento, tinha ainda consigo a boa Kondja-Gul, cujo aspecto não era muito parisiense e que, sentada junto de uma janela, cantava baixinho uma área africana.
A mãe do bei, a senhora de 1320, não era má, com suas maneiras de gata inofensiva, mesmo dócil, e até poderia ser excelente, se não fosse a cega idolatria pelo filho. Seduzida, de resto, pela graça da nora, tudo lhe fazia, a ponto de na véspera lhe ter oferecido o piano tão desejado; correndo em trem fechado e escoltado por um eunuco, passou a ponte do Corno de Ouro, para escolher um no melhor estabelecimento de Pera, e quatro moços de pau e corda com padiola foram contratados para o levar de manhã àquele elevado bairro de acesso difícil.
Quanto ao jovem bei, o inimigo - o capitão mais elegante do exército turco, onde há tantos indivíduos que sabem vestir bem o uniforme -, era decididamente um belo rapaz. com a voz doce que Kondja-Gul tinha anunciado e o sorriso um pouco felino herdado da mãe - que até agora se tinha mostrado duma delicadeza extrema -, faz a sua mulher, a quem compreendeu a superioridade, uma corte discreta, meio galanteadora, meio respeitosa, como é uso no Oriente entre as pessoas da alta sociedade que se esforçam por conquistar antes de possuir. (Porque, se o matrimônio muçulmano é brusco e mal julgado antes da cerimônia, depois, em compensação, tem respeitos e delicadezas que se não parecem com os nossos hábitos ocidentais.)
Hamdi-Bei está de serviço todos os dias no Palácio de Ildiz e volta à noite a casa, a cavalo; faz-se anunciar a sua mulher e conversa com ela como se fosse uma simples visita. Depois de cear, senta-se num sofá ao lado dela, com intimidade, a fumar cigarrilhas de tabaco oriental; e ambos então mutuamente se observam e se espiam, como adversários em guarda: ele terno e adulador, com silêncios significativos; ela espiritual, cheia de brio, enquanto conversam, porém desarmando-o repentinamente com afectada resignação de escrava, tão depressa ele tenta atraí-la ao peito e abraçá-la. Logo que soam as 10 horas, retira-se ele, beijando-lhe a mão... Se ela o tivesse escolhido, provavelmente amá-lo-ia, mas a pequena princesa, da estatura de Karadjiamir, não se dobra ante o amo imposto... De resto, ela sabia que era próximo e inevitável o tempo em que aquele senhor, em vez de a saudar cortêsmente à noite e afastar-se, a acompanharia até ao seu quarto. Ela não tentaria nenhuma resistência nem sobretudo nenhuma súplica. Tinha feito da sua personalidade uma espécie de duplicidade costumeira num grande número de jovens turcas da sua idade e da sua roda, que dizem: "O meu corpo foi entregue por contrato a um desconhecido e reservo-lho, porque sou honrada; mas a minha alma, que não foi consultada, pertence-me ainda e conservo-a zelosamente fechada, guardando-a para algum amante ideal. que talvez nunca encontre, mas que em todo o caso ignorará a quem a destino."
A recém-casada só está em casa durante a noite.
Hoje, antes de o inimigo voltar ao Palácio de Ildiz, vem-lhe a ideia de continuar o seu diário interrompido com André, recomeçando-o com a data postal de 25 de Zil-hidgé 1318 (da era maometana), dia do seu casamento. As folhas até ali já escritas ser-lhe-iam trazidas no dia seguinte pela amiga a quem as confiara, por lhe parecer o seu novo escritório bastante seguro para as guardar. E começou a escrever:
"28 Zil-hidgé 1318 (19 de Abril de 1901 do calendário romano)
(Minha avó em pessoa que vem despertar-me. (Era já tão tarde quando adormeci naquela noite!.) Despacha-te! toe disse ela. Esqueces-te que hás-de estar pronta às 9 horas! Não se dorme assim no dia do casamento.
Que dureza na voz! Era aquela a última manhã que eu estava em sua casa, no meu querido quarto de solteira. Não podia ela abster-se de ser severa, ainda que fosse só durante um dia? Ao abrir os olhos, vi as minhas primas, que se tinham já levantado sem ruído e que estavam pondo o tchnrchaf para começar a sua toilette, que seria longa. Nunca mais tornaremos a despertar-nos juntas neste quarto, e uma vez mais nos despedimos como se nos separássemos para sempre. Ouvem-se as andorinhas cantar doidamente; adivinha-se que lá fora resplandece a Primavera; um magnífico dia de sol é testemunha do meu sacrifício. Sinto-me como náufrago a quem ninguém quer prestar socorro.
Daí a pouco, na casa, há um ruído infernal. Portas que se abrem e que se fecham; passos apressados; ruídos de caudas de vestidos de seda. Vozes de mulheres, seguidas de vozes de falsete de eunucos negros. Prantos e risos, sermões e suspiros. No meu quarto, entradas e saídas contínuas: os parentes, as amigas, as escravas, multidão que vem dar o seu parecer sobre a maneira de pentear a noiva. De tempos a tempos, um grande negro que está de serviço chama à ordem e suplica a todos que se despachem.
Nove horas da manhã, chegam os coches. O acompanhamento compõe-se da minha sogra, minhas cunhadas e convidados. A noiva, porém, ainda não está pronta. As damas que me rodeiam apressam-se a oferecer-me os seus serviços. Mas é a presença destas que tudo complica. Por fim, peço-Lhes que me deixem. Penteio-me só e ponho febrilmente o meu vestido adornado com flores de laranjeira, com os seus três metros de cauda; ponho as minhas jóias, o véu e as largas madeixas de fios de ouro no penteado. Há uma coisa só em que eu não tenho o direito de tocar: é no diadema.
Esse pesado diadema de brilhantes, que entre nós substitui as flores das europeias, requer o uso que, para o colocar, se escolha, de entre as amigas presentes, uma mulher jovem que se tenha casado uma só vez, que se não haja divorciado e que se saiba que é feliz com o marido. Deve a eleita rezar uma curta oração do Alcorão e em seguida coroar com suas mãos a nova esposa, desejando-lhe felicidades, e sobretudo que esta coroação lhe seja feita uma só vez na vida. (Por outros termos - compreendeis bem, André -, nem divórcio nem segundo casamento.)
Entre as mulheres presentes, havia uma que parecia tão indicada que foi escolhida por unamimidade: Djavidé, minha muito querida prima. Que faltava a essa? Moça, bela, imensamente rica e casada havia dezoito meses com um homem reputado, solícito e simpático.
Mas, ao aproximar-se para depor a sua felicidade sobre a minha cabeça, vi duas grossas lágrimas brotar das suas pálpebras: Porque haviam de escolher-me, minha pobre querida?... Ainda que não seja supersticiosa, nunca poderei estar satisfeita de ter dado a minha felicidade. Se o futuro te reserva tantos sofrimentos como os meus, parecer-me-á ter cometido um crime e que sofres por minha causa... De modo que aquela que parecia a mais feliz de todas também tem o seu tormento!... Oh! sou uma desventurada!. Antes de sair desta casa, ninguém ouvirá os meus gritos, clamando socorro
Mas o diadema já está colocado e digo: Estou pronta. Um grande negro avança para pegar na cauda do meu vestido e, pelos corredores, encaminho-me para a escada. (Estes longos corredores, noite e dia pejados de escravos e criadas, André, para que as nossas habitações se tornem ratoeiras.)
Conduzem-me a baixo, à maior das salas, onde encontro reunida toda a família. Primeiro meu pai, de quem me despeço beijando-lhe as mãos. Diz-me coisas relacionadas com o caso, que nem sequer ouço. Recomendaram-me muito que lhe agradecesse ali publicamente por todas as suas bondades passadas, e sobretudo pela de hoje, no matrimônio que me faz contrair. Mas isto não; não posso; é mais do que as minhas forças permitem. Fico perante ele, muda e gelada, sem uma palavra, desviando o olhar. Foi ele quem fez o contrato; foi ele quem me perdeu; é ele o responsável de tudo. Agradecer-lhe quando do fundo do meu ser o maldigo!. Não acreditava que fosse possível esta possível coisa: sentir-se de repente que se odeia de morte o ser a quem mais se amava!... Oh! que minuto atroz, em que se passa da mais terna afeição ao ódio mais implacável...
E eu, André, sorria sempre, porque parece que neste dia é preciso sorrir...
Enquanto os meus velhos tios me davam a bênção, as damas do acampamento que estavam tomando refrescos no jardim, debaixo dos plátanos, começavam a pôr os seus tcharchafs. Só a noiva pode deixar de pôr o seu, porém, os negros levam despregados panos de seda de Damasco, que fazem uma espécie de corredor para a ocultarem das vistas das pessoas da rua, desde a porta de casa até ao landó que tem os cristais cobertos de tabuinhas separadas por pequenas juntas. Ê a hora de partir, e eu atravesso o corredor de seda tornado prisão. Zeyneb e Mélek, minhas damas de honor, "Je dominó azul sobre os vestidos, seguem-me e sobem comigo, e eis-me metida numa caixa cerrada, impenetrável como uma tumba.
Depois de entrar na carruagem, que me produziu o efeito da entrada no ataúde, passa-se um grande momento. Minha sogra e minhas cunhadas, que tinham vindo buscar-me, não haviam esvaziado ainda o seu copo "le xarope, retardando assim a despedida...
Tanto melhor! com isso vou ganhando um quarto de hora, que dou de menos ao outro.
Por fim pôs-se em marcha a longa fila de carruagens, todo a minha à frente. Começam os solavancos sobre o pavimento das ruas. Nem uma só palavra trocámos, e as minhas companheiras. Dentro da nossa célula móvel, vamos em silêncio e sem ver nada. Oh! tive vontade de abrir as portinholas e de gritar aos transeuntes: Salvai-me, que me roubam a minha juventude, a minha felicidade e a minha vida! E as mãos convulsionavam-se, a fronte empalidecia e as lágrimas brotavam, enquanto as minhas pobres damas estavam como que aterrorizadas do meu enorme sofrimento.
Agora o ruído modifica-se; caminhamos sobre madeira; estamos na interminável Ponte do Corno de Ouro... com efeito, vou ser uma habitante da outra margem... E depois da ponte começa a calçada, da grande Istambul, e sinto-me horrivelmente cada vez mais prisioneira, pois devemos estar cada vez mais próximo do meu novo claustro, que já odeio sem o conhecer E como ele está afastado da cidade! Por que ruas nos fazem passar, por que impossíveis rampas! Meu Deus, como está longe esse claustro e como vou ser sinistramente exilada! Chega-se, enfim, e abrem a portinhola da minha carruagem. Como se fosse à luz de um relâmpago, vejo uma multidão que espera junto a um portal sombrio: negros de sobrecasaca, funcionários recamados de ouro e de condecorações, intendentes, até o sereno do bairro, com o seu largo chuço. De repente tudo se acabou; os panos de Damasco envolvem-me, como à saída, tornando-me invisível; não vejo nada. Começo a andar como louca por aquele corredor de seda, ao fim do qual vejo um vestíbulo cheio de flores, donde um jovem com uniforme de gala de capitão de cavalaria sai a receber-me. Ambos, com um soi-riso nos lábios, trocámos um olhar de interrogação e de desafio supremo: está tudo feito; vi o meu dono e o meu dono viu-me.
Inclina-se, oferece-me o braço, conduz-me ao primeiro andar, aonde subo como arrastada, leva-me ao fundo de uma espaçosa sala, até a um estrado de três degraus, onde me sento, saúda-me de novo e desaparece; o seu papel terminou até à noite Vejo-o desaparecer: tropeça com um grupo de senhoras que pejam as escadas e as salas, cobertas de gazes ligeiras, de pedras preciosas, com as espáduas nuas, sem um véu sobre os rostos e sobre aquelas cabeleiras cheias de brilhantes; todos os tcharchafs foram tirados ao entrar a porta; dir-se-ia que eram europeias em traje de Verão, e o noivo, que nunca tinha visto nem nunca mais voltava a ver semelhante apresentação, parece-me um pouco acanhado, mau grado a sua desenvoltura, ao ver-se o único homem envolto por esse mar feminino, ao notar que é alvo de todos aqueles olhares que o observam.
Para ele terminou já a pesada tarefa; porém, a mim resta-me ficar durante horas convertida em animal raro e curioso sobre o meu estrado. Junto de mim tenho, de um lado, M.elle Esther e, do outro, Zeyneb e Mélek, também sem tcharchafs, com vestidos cobertos de flores e de diamantes. Pedi-lhes que me não abandonassem durante o desfilar diante de mim que é interminável: as parentas, as amigas, as simples relacionadas, dirigindo-me cada uma a exasperante pergunta: Então, que tal vos parece o noivo?
E eu sei como ele me parece! Um homem a quem apenas ouvi falar, cuja cara mal vi e que não reconheceria na rua... Nem uma só palavra me ocorre para lhes responder, só um sorriso, pois é de rigor uma contracção de lábios que se lhe assemelhe. Algumas, ao fazerem-me aquela pergunta, têm uma expressão irônica e mal-intencionada: são as desesperadas, as revoltadas. Outras, julgam conveniente tomar um certo ar de encorajamento ao fazerem-me a pergunta: são as acomodatícias, as resignadas. Porém, nos olhos da maioria leio sobretudo a incurável tristeza; cheias de piedade por uma irmã que hoje cai no abismo comum, tornando-se sua companheira de humilhação e de tortura. E os meus lábios continuam parecendo sorrir. O que eu pensava do casamento sai-me certo; tenho a certeza disso porque o leio nos olhos de todas. Então começo a pensar sobre o meu estado de casada, que tenho um meio de livrar-me, de retomar posse dos meus actos, dos meus pensamentos e da minha vida; um meio que Alá e o profeta permitiram! Sim, é divorciar-me!... Como tal ideia me não ocorreu antes?. Isolada presentemente da multidão, ainda que não cesse de sorrir, encerrada em mim mesma, combinarei ardentemente o meu plano de campanha, e conto já com o divórcio favorável; apesar de tudo, os casamentos no nosso país desfazem-se quando nos convém!...
Mas que bonito é esse desfile! Muito me interessaria, se não fosse eu a triste idiota que essas mulheres vêm ver... Só mantos de gazes, cores claras e alegres, sem uma nota escura que o manche, exactamente como nas vossas galas europeias. E demais, André, dir-vos-ei, pelo pouco que tenho visto nas embaixadas, que não creio que nas vossas festas se reúnam tão lindas figuras como nas nossas. Todas essas turcas, invisíveis aos homens, são tão finas, graciosas, elegantes, flexíveis como as gatinhas - falo das turcas da presente geração, naturalmente; as menos graciosas têm sempre alguns atractivos, e à vista todas são agradáveis. Também há aqui, entre esta juventude de olhos deliciosamente melancólicos e atormentados, as velhas 1329, as boas velhas, tão estranhas para nós, com o rosto pálido e grave, a magnífica cabeleira entrançada que o trabalho intelectual não branqueou, o turbante de gaze bordado de flores a croché e as Pesadas sedas sempre compradas em Damasco, para não dar ganho algum aos comerciantes de Lião, que são infiéis De tempos a tempos passa uma convidada de distinção; então tenho de levantar-me e cumprimentá-la' tão profundamente
O timénah. (N. do T.)
como ela me cumprimentou e, se é nova, devo pedir-lhe que se sente um pouco a meu lado.
Na verdade, creio que é agora que começo a achar tudo Isto bom, como se esta gente desfilasse ante outra que não fosse eu. De repente, a festa muda de aspecto e, do alto do meu estrado, posso não deixar perder um único pormenor. Acabam de abrir de par em par as portas da rua, de modo que todas as mulheres, convidadas ou não, que tenham vontade de ver a noiva podem subir. Vêm muitas e, entre elas, algumas tão extraordinárias, e todas desconhecidas, de tcharchaf ou de yachmak, todas fantasmas, de cara oculta, segundo a moda de uma ou outra província. As antigas casas dos arredores, gradeadas, despejam os moradores e hóspedes de ocasião e os trajes antigos saem das arcas. Aparecem mulheres dos pés à cabeça envoltas em sedas asiáticas, estranhamente guarnecidas com prata ou ouro.
Sírias com cores carregadas e persas vestidas de negro; até recebo a visita de velhas que só podem andar em muletas. A galeria dos costumes', diz-me baixinho Mélek, que também se diverte.
Às quatro horas da tarde chegam as damas europeias; é este o episódio mais penoso deste dia. Detidas por muito tempo no bufete, a comer pastéis e a beber chá, algumas mesmo fumando cigarros, vêm agora, formando cortejo, até ao estrado do animal curioso.
Ê preciso dizer-vos, André, que quase sempre, entre elas, vem uma estrangeira imprevista que se desculpam de ter trazido, uma turista inglesa ou americana, que está de passagem, muito excitada pela festa do casamento turco. Aparece a estrangeira em traje de viagem e às vezes com botas altas de alpinista. Dedica à noiva o mesmo olhar curioso e um pouco admirado que dedicou à Terra no cume do Himalaia, ou ao sol da meia-noite no alto do cabo Norte... Para cúmulo, a viajante que o destino me reservou foi uma jornalista que trazia ainda nas mãos as luvas com que tinha saído do navio, indiscreta, anotadora, ávida de assunto palpitante para um artigo duma publicação nascente, assediando-me de perguntas assombrosas, sem tino. A minha humilhação não pode ser maior.
Muito desagradáveis e muito feias, as senhoras do bairro Ppra, que vêm todas empenachadas. Pelo menos têm visto já cinquenta casamentos e sabem como tudo se passa, o que as não impede, antes pelo contrário, de fazer perguntas néscias e mal-intencionadas.
- Não conhece ainda seu marido, não é verdade Como tudo isto é o mesmo! Que estranho uso!... Mas, minha cara amiga, haveis de fazer batota, muito simplesmente. E a senhora não o fez, não é verdade? Pois teria dito que não, nem mais nem menos.
E, enquanto me dizia isto, trocava olhares de troça com uma' senhora grega, sua vizinha, também de Pera, que se sorria com complacência... Também eu sorria forçadamente. Contudo, parecia que sentia essas duas mulheres a esbofetear-me. Por fim saíram todas as estranhas, umas de tcharchaf outras de chapéu, ficando só as convidadas.
As lâmpadas e os lustres que acabam de acender não alumiam trajes e toucados de grande luxo; não há uma única mancha negra, nem homens; nada sombrio, um conjunto deliciosamente colorido e adornado. Eu, André, não creio que no Ocidente tenham reuniões que produzam semelhante efeito; pelo menos o que vi nos bailes da Embaixada, quando era pequena, não se assemelha a este brilhantismo.
Ao lado das admiráveis jedas asiáticas, ostentadas pelas avós, uma quantidade de vestidos parisienses, mais diáfanos ainda, parecendo feitos de neblina azul ou cor-de-rosa; todas as últimas criações das vossas grandes costureiras (para falar como essas imbecis), idealmente envergadas por essas mulheres jovens, a quem as professoras converteram em francesas, suíças, inglesas e alemãs, mas que ainda se chamam Kadijia, Geripa, Fatma ou Hijia e que nenhum homem jamais viu.
Agora posso descer do meu estrado, ao fim de cinco ou seis horas de tormento. Encontro sobretudo as- avós, as fanáticas e desdenhosas de 1320, de espírito são e rígido, com o seu penteado de virgem coberto com um turbante. Dá-me vontade de me confundir com as raparigas desequilibradas como eu, que desde há pouco se reuniram num salão vizinho, onde toca uma orquestra.
Uma orquestra de cordas, acompanhada por seis cantores que tocam estrofes de Zia-Paxá, de Hafiz ou de Saadi. Sabeis, André, o que há de melancolia e de paixão na nossa música oriental, que por certo já sentiste, ainda que indizivelmente. Os músicos - homens - estão hermèticamente envoltos num imenso véu de seda de Damasco, como se fosse escandaloso que algum deles nos visse!... Quando cheguei, acabavam as minhas amigas de organizar uma sessão de boa ventura cantada, é este um jogo que se faz em dias de casamento, em volta da orquestra. Uma rapariga diz: A primeira canção será para mim'; outra diz: A segunda ou a terceira Para mim', etc, E ca, da uma considera como proféticas para si as palavras da canção escolhida.
- A noiva toma a quinta - digo eu ao entrar.
E, quando a quinta canção começa, todas se aproximam de ouvido à escuta; para nada perderem, comprimem-se de encontro à seda do isolamento, com risco de o fazerem cair.
Então ouve-se a voz do cantor invisível:
Eu que sou o amor, meu gesto é muito abrasador, Ainda que eu só a faça roçar pelas almas, Toda a vida é pouca para cicatrizar a vida que nelas deixo. Eu passo, e o meu rosto fica eternamente.
Eu que sou o amor, meu gesto é muito abrasador
Como é vibrante e bela a voz desse homem, que eu sinto tão perto de mim, que permanece oculto e de que adivinho o aspecto, a cara e os olhos que me querem ver!... Veio ali para me divertir um pouco como às mais. A predição, se sabe sugerir uma interpretação chistosa, é acolhida com risos, apesar da beleza da sua forma. Mas desta vez, sem dúvida, o homem cantou com muita e demasiada paixão e nenhuma daquelas mulheres se riu, nenhuma, e todas me olharam. Já não penso como pensava esta manhã; hoje fica enterrada a minha juventude. Não, de uma ou de outra forma, separar-me-ei desse homem a que me entregam e viverei a minha vida em outro sítio, não sei onde, e acabarei por encontrar o amor de gesto muito abrasador Então tudo me pareceu transfigurado nesse salão, em que já não vejo as companheiras que me rodeavam. Todas aquelas flores saídas dos jarrões exalam perfumes que me transtornam e as arandelas de cristal brilham como astros. Será a consequência do cansaço ou do êxtase? Não sei; o que é certo é que a minha cabeça parece esvair-se; já não vejo ninguém, nem o que em volta de mim se passa; tudo me é indiferente, porque tenho agora a certeza de que um dia, no caminho da minha vida, encontrarei o amor, e, se morrer dele, pouco me importa.
Um momento depois - um momento, ou muito tempo, não posso precisar -, minha prima Djavidé, que de manhã depôs a sua felicidade sobre a minha cabeça, aproximou-se de mim.
Benki arhkim ritfchim íjaklachma
tabim pek hadia Dourmavoub tchikinichda
obsam liirdigaim dildcns egudr lanmasi guctchmcz o
caólin gunleT itnteklj guzer Ach zail olsadtí, andan calour
moutlak terá,
Benki, etc.
- Mas tu estás só! Já todos desceram para cear e esperam-te. Que é que te absorve tanto?
- E é verdade que estou só e que está vazia a sala... De modo que já desceram todas?... Quando, que nem em tal tinha reparado?...
Djavidé vem acompanhada pelo negro que me há-de pegar na cauda do vestido e gritar (por onde vamos: Passagem! para que toda a gente se afaste. Minha prima toma-me o braço e, enquanto descemos a escada, pergunta-me em voz baixa:
- Dize-me a verdade, querida... em que pensavas quando subi?...
- Em André Lhéry.
- Em André Lhéry ... Será possível Ou estás louca ou te enganas... Em André Lhéry, será possível... Pelo visto, é certo o que me contaram dessa tua fantasia... (Agora já ria, tranquilizada de todo. ) Enfim, com esse não é de temer nenhum encontro... Eu, em teu lugar, sonharia com alguma coisa melhor; por exemplo, têm-me dito que na Lua há homens muito simpáticos; pensa bem, querida, um habitante da Lua é que te está indicado.
Temos vinte degraus a descer e olham-nos muito as mulheres que nos esperam em baixo, ao fim da escada; as nossas caudas, uma branca e outra malva, estão agora amarfanhadas nas mãos viscosas do negro que nos segue. Por fortuna, a lembrança da minha querida Djavidé - sobre o habitante da Lua - provoca-nos hilaridade, que claramente nos transpareceu no rosto, o que foi conveniente para a nossa entrada nas salas da ceia.
Atendendo os meus pedidos, colocaram mesas à parte para as raparigas e em torno de mim umas cinquenta comensais, todas de menos de 25 anos e quase todas bonitas. Também segundo o meu desejo, a toalha está cheia de cravos brancos, sem haste, tocando uns nos outros.
O André não ignora que aqui já se não usa a mesa à turca; há o serviço de prata à francesa, com cristais da Boêmia e porcelana de Sèvres, tudo ostentando as minhas novas iniciais; o nosso antigo fausto oriental em festas de casamento só aparece na profusão de candelabros de prata, todos semelhantes, colocados em grinalda em volta da mesa e tocando-se com as flores. Esquecia-me de dizer que esse fausto aparece também na quantidade de escravos que nos servem, cinquenta pelo menos só na nossa sala - a das raparigas; são todas circassianas e de belo aspecto, belezas puras e tranquilas, movendo-se com uma espécie de majestade nata, como as princesas.
Entre as jovens turcas que estão sentadas à minha mesa, Quase todas de estatura média e de olhos pardos, encontram-se as damas do palácio imperial, saraylis que se distinguem pela sua estatura de deusas, pelos ombros admiráveis e olhos de cor do mar; também estas são circassianas, circassianas da montanha ou do campo, filhas de lavrador ou de pastor, compradas pela beleza em pequenitas; durante alguns anos foram escravas de um serralho, e logo de repente se transformaram em grandes damas, mas damas verdadeiras, por terem casado com algum camarista ou qualquer outro senhor. As formosas saraylis olham com desdém as raparigas das cidades, de corpo frágil, de testa de neve, com grandes olheiras, a quem chamam degeneradas; o papel dessas formosas mulheres e de milhares de irmãs suas, que todos os anos são vendidas em Constantinopla, consiste em trazer à antiga cidade, já cansada, o tesouro do seu sangue puro.
Égrande a alegria entre os comensais; falam e riem de tudo. Uma festa de casamento para os Turcos é sempre uma ocasião de esquecer, de desabafar e de aturdir.
Demais, somos alegres por temperamento. O André pode crer: uma coisa, ainda que insignificante, distrai-nos da nossa sujeição, das continuas humilhações e dos sofrimentos; rimo-nos como crianças. Já me disseram que o mesmo sucede nos claustros do Ocidente: que as freiras submetidas a uma rigorosa clausura têm às vezes diversões que interessariam a meninas de escola primária. Uma princesa da Embaixada, na véspera de regressar a Paris, dizia-me:
- Nunca mais tornarei a rir-me com tanta satisfação, nem tão inocentemente por certo, como nos haréns de Constantinopla.
Terminada a ceia por brindes e champanhe em minha honra, as raparigas da minha mesa propuseram que descansasse a orquestra turca e que se tocasse música europeia. Quase todas são hábeis executantes e algumas são verdadeiras notabilidades; os seus dedos, que tantos e tão longos dias tiveram para se exercitar, conseguiram alcançar perfeição impecável. Tocam e cantam música dos maiores gênios musicais.
Beethoven, Grieg, Liszt e Chopin são-lhes familiares. Cantam Wagner, Salnt-Sagns, Holmés e até Chaminade.
E vejo-me obrigada a declarar que em minha casa não há piano. Isto causou estupefacção entre as minhas cunhadas, que me olham com ar de dizer: Pobre pequena! Quem sabe que 1320 terá em casa de seu marido!... Não promete ser divertida a existência nesta casa!
Onze horas. Estende-se pelo pavimento perigoso o mantéu dos cavalos atrelados a magníficas carruagens, e a velha rua está cheia de negros de libré, de lanternas na mão. As convidadas põem de novo os seus véus e dispõem-se a sair. A hora é já demasiado adiantada para os Muçulmanos; se não fosse a circunstância de ser um casamento de gente excepcional, não estariam fora de sua casa. Começam a despedir-se, e a noiva, em pé indefinidamente, deve saudar e agradecer a cada convidada, por sua vez, por se ter dignado assistir àquela humilde festa. Adianta-se, por seu turno, minha avó, para se despedir: o seu ar exprime claramente: Enfim, casámos esta caprichosa! Magnífico negócio!
Saem, deixando-me só na minha nova cadeia. Não há já nada que possa aturdir-me; de novo compreendo que se está cumprindo o irremediável.
Zeyneb e Mélek, minhas bem-amadas irmãs, são as últimas; aproximam-se agora para me abraçar, mas não nos atrevemos a trocar um olhar, com medo de rompermos em pranto. Elas também saem, deixando cair os véus sobre o rosto. E o fim; parece-me descer ao fundo dum abismo de solidão e de desconhecido... Porém, nesta noite, sinto vontade suficiente para sair dele, com mais energia do que nessa manhã; estou pronta para a luta: depois lembra-me ter ouvido o canto: Amor com seu gesto abrasador...
Nisto vêm dizer-me que o jovem bei, meu esposo, está em cima, na sala azul, e que já há alguns minutos espera o prazer de conversar comigo. (Chegou de Khanim Bajá, de casa de meu pai, onde tinha sido a ceia dos homens.)
bom, também eu tenho pressa em vê-lo de novo e afrontá-lo.
E aproximo-me dele, de sorriso nos lábios, armada de astúcia, decidida a assombrá-lo e a deslumbrá-lo, mas com a alma cheia de projectos de vingança."
Um ruído de seda atrás dela, já muito próximo, fê-la estremecer; era a sogra que se aproximava sem ruído, como uma gata velha. Felizmente que não percebia nada de francês, absorvida pela sua antiquada educação, e demais não tinha trazido os óculos.
- Basta, querida, que já é escrever de mais! Há quase três horas consecutivas que está sentada... porque fique sabendo que já várias vezes a tenho vindo espreitar nos bicos dos pés... Dentro em pouco, o nosso Hamdi voltará do Palácio de Ildiz, e os vossos lindos olhos estão cansados Para o receber... Basta, basta! Descanse um pouco, guarde esses papéis até amanhã...
Sem se fazer esperar, guardou os papéis dentro dum cofre e fechou-o à chave; era tempo porque acabava de aparecer à porta da sala uma mulher que lia o francês e que olhava com curiosidade: era a bela Durdané (Grão de Pérola), prima de Hamdi-Bei, recentemente divorciada e de visita havia dias. Olhos pintados, cabelos anelados, cara bonita, mas de mau sorriso. A recém-casada tinha já pressentido nela uma Pérfida. Era inútil recomendar-lhe que se apresentasse bem Para a chegada de Hamdi, porque ela era a personificação da galantaría, sobretudo na presença do seu belo primo.
- Tome, querida - disse a sogra, apresentando-lhe um estojo já sem cor-, trago-lhe uma jóia da minha juventude; como é oriental, não poderá dizer que passou de moda, e há-de ficar-lhe muito bem sobre o vestido que hoje traz.
Era um colar antigo; a própria sogra depôs-lho sobre o belo colo; eram esmeraldas cujo verde dizia muito bem com o cor-de-rosa do vestido.
- Oh! que bem lhe está, minha filha, que bem lhe está!... O nosso Hamdi, que aprecia as cores, achá-la-á esta noite irresistível!...
Ela própria gostava que Hamdi a encontrasse bonita, pois contava com os seus atractivos como principal meio de luta e de vingança; mas o que mais a humilhava era aquela constante mania de a adornar continuamente.
"-Querida, levante um pouco essa madeixa de cabelo que tem sobre a orelha; assim o nosso Hamdi encontrá-la-á mais sedutora... Meta no cabelo esta rosa-chá; é a flor que ele prefere." Sempre assim tratada como odalisca, qual boneca de luxo para gozo do senhor!...
Ruborizada, mal tinha agradecido o colar de esmeraldas. Um negro de serviço veio dizer que o bei estava à vista, que vinha a cavalo e que voltava a esquina da mesquita mais próxima. Em seguida a sogra levantou-se.
- Retiremo-nos, Durdané - disse -, não perturbemos os noivos...
Fugiram como duas gatas borralheiras, e Durdané, voltando-se, enviou-lhe o seu mau sorriso.
A jovem aproximou-se do espelho. Tinha chegado a casa de seu marido tão branca como a cauda do vestido, tão pura como os seus brilhantes; durante a sua vida anterior, inteiramente consagrada ao estudo, longe do contacto de homens novos, nunca pela sua mente tinha passado uma imagem sensual. Porém, as carícias cada vez mais significativas daquele Hamdi, o odor são que o seu corpo exalava, o fumo das suas cigarrilhas, começavam a fazer-lhe palpitar a carne, num alvoroço até então desconhecido...
Ouviu na escada o tilintar dum sabre de cavalaria; era ele que chegava; estava já perto!... E ela sentia iminente a hora em que os seus dois seres se uniriam numa comunhão intima, que decerto só antevia de uma maneira imperfeita... Pela primeira vez, a jovem sentiu o desejo inconfessável da presença do marido, ao mesmo tempo que na sua alma se manifestava o desabrochar duma nova revolta e dum novo ódio.
Três anos mais tarde, em 1904, André Lhéry, que de vez em quando fazia parte de uma ou outra embaixada, acabava de pedir e obter, depois de muitas hesitações, um posto na Embaixada de Constantinopla, pelo prazo de dois anos.
Tinha hesitado, em primeiro lugar, porque toda a posição oficial representava uma cadeia, e ele tinha empenho em gozar a liberdade, e também porque dois anos longe do seu país lhe pareciam mais compridos, quando tinha diante de si quase toda a sua vida, e por fim, e sobretudo, porque temia ficar desencantado da Turquia dos nossos dias.
Decidiu-se, afinal, e num dia de Março, com o tempo nevoado e frio, um navio desembarcou-o sobre o cais da cidade que tão saudosa lhe tinha sido noutro tempo.
Em Constantinopla o Inverno é interminável. O vento do mar Negro soprava naquele dia furioso e gelado, despedindo blocos de neve. No ignóbil bairro cosmopolita, onde atracavam os navios é qe parece estar ali para aconselhar aos recém-chegados que desapareçam depressa, as ruas eram cloacas de lodo nauseante, em que chafurdavam levantinos de mistura com cães vadios.
André Lhéry, angustiado e aborrecido, tomou um trem de praça, que o levou, por ladeiras quase intransitáveis, ao mais vulgar dos hotéis, chamado Palace.
Pera era o lugar onde a sua situação o obrigava a viver. Ê um lamentável arremedo da cidade europeia, separada por um braço de mar e também por alguns séculos da grande Istambul das mesquitas e do oceano. Foi ali onde, apesar do seu desejo de fugir, teve de se resignar a tomar casa. No bairro mais humilde alugou o andar mais alto, não só para se afastar mais das elegâncias pérolas que predominavam em baixo, mas também para gozar duma vista imensa, para ver de todas as suas janelas o Corno de Ouro, com a silhueta de Istambul erecta para o céu e no horizonte a Unha sombria dos ciprestes, os extensos cemitérios onde repousa há mais de vinte anos a humilde circassiana que foi a amiga da sua juventude.
O traje das mulheres turcas não era já igual àquele que lhes conhecera da primeira vez que ali estivera; foi esta uma das coisas que logo lhe chamaram a atenção. Em lugar do antigo véu branco que deixava ver os dois olhos e a que elas chamavam yachmak, em lugar do longo cabeção claro a que chamavam feradjé, usavam agora o tcharchaf, espécie de dominó, quase sempre escuro, com um véu negro que cai sobre o rosto e o tapa por completo, excepto os olhos. verdade que uma vez por outra levantavam o véu, mostrando a cara, o que parecia a André Lhéry uma inovação subversiva. Fora disto, continuavam a ser os mesmos fantasmas que se encontravam a cada passo, mas com quem a menor comunicação era proibida, mesmo um simples olhar. Eram as mesmas enclausuradas de quem nada se pode saber; as desconhecidas, as não existentes, podia dizer-se, mas, no entanto, sempre o encanto e o mistério da Turquia. André Lhéry, em outro tempo, por favorável casualidade impossível de se repetir numa existência, pôde, com a temeridade de uma criança que ignora o perigo, aproximar-se de uma delas, tão de perto que lhe levou um pedaço da sua alma apaixonada. Mas, desta vez, renovar a aventura era impossível, porque razões poderosas se opunham, e, ao passar pelas mulheres, André via-as como se vêem as sombras nas nuvens.
Durante as primeiras semanas não cessou de soprar o vento do mar Negro e de cair uma chuva fria de neve. André recebeu convites para jantares e para saraus dados em cercles; porém, compreendeu que semelhantes relações e semelhante género de vida não só lhe tornariam vazia e agitada a nova estada no Oriente, mas também o expunham a inutilizar para sempre as impressões de outrora, até mesmo esquecer a imagem da pobre pequena adormecida. Desde que estava em Constantinopla, sentia que as suas recordações se iam tornando imprecisas, afogando-se na vulgaridade que o rodeava; parecia-lhe que a gente do seu convívio profanava cada dia essas recordações.
Quinze dias depois da chegada, vários motivos sem importância tinham-no impedido de passar as pontes do Corno de Ouro para ir a Istambul. Esta grande cidade que ele via de sua casa, geralmente envolta na névoa persistente do Inverno, continuava sendo para ele tão alheia e tão irreal como antes de voltar à Turquia. Agora estava resolvido a ir vê-la, passando a ponte. Era só permanecer um momento lá em baixo, junto dos ciprestes, onde estava o túmulo de Nedjibia, e, abandonando tudo, tomaria de novo o caminho da França, em respeito ao saudoso passado e por deferência religiosa para com ela; sairia completamente desencantado.
O dia em que pôde ir a Istambul foi um dos mais desesperadamente gelados e escuros de todo aquele ano, se bém que fosse um dia de Abril.
Depois de passar a noite do outro lado da água, assim que se encontrou à sombra da grande mesquita, sentiu que outra personalidade parecia renascer nele: um André Lhéry que há muitos anos parecia morto e que de repente retomava a consciência e a juventude. Só, livre, ignorado de todos entre aquela multidão, ia conhecendo os mais insignificantes recantos da cidade, como se recordasse coisas de uma existência passada. Palavras turcas já esquecidas voltavam-lhe à lembrança; na sua cabeça juntavam-se-lhe as frases; de novo era alguém dali, alguém de Istambul.
De repente sentiu-se molestado e quase ridículo com o chapéu europeu. Menos pela crítica do que pelo receio de chamar a atenção de algum guarda do cemitério, comprou um fez, que foi, segundo o costume, esmeradamente passado e ajeitado à sua cabeça, numa das numerosas tendas da rua. Também comprou um rosário para levar na mão, como um bom oriental. E, cheio de impaciência, desejoso de chegar a esse túmulo, meteu-se num trem de praça dizendo ao cocheiro:
tEdirmé kapoussouna guéturh (Leve-me à Porta de Andrlnopla!)
Era longe, muito longe mesmo, esta Porta de Andrinopla, aberta na grande muralha bisantina, no fim dos bairros que se despovoam e de ruas mortas pela imobilidade e pelo silêncio. Era preciso, atravessar quase toda a Istambul e começar a subir as ladeiras, onde os cavalos esbarravam. Primeiro os bairros que pareciam formigueiros humanos, cheios de gritos e de transacções comerciais, vizinhos do bazar e frequentados pelos turistas. Depois as avenidas bordadas de túmulos, de quiosques funerários e de fontes esquisitas, avenidas antigas, nas quais nada tinha mudado; uma após outra, passaram as grandes mesquitas, com as numerosas cúpulas, de cor cinzento-pálida por aquele céu de Inverno, os vastos recintos cheios de mortos e as praças cercadas de pequenos cafés à antiga, em que se juntam os devaneadores depois da oração. Era aquela hora a que os cantores chamavam a da terceira reza do dia. Ouviam-se suas vozes cair de cima, das frágeis galerias aéreas, vizinhas das frias e obscuras nuvens... Istambul ainda existia. Ao achá-la tal como até ali, André, invadido por indizível e ansiosa angústia, sentiu como que uma nova juventude. Cada vez mais lhe parecia estar revivendo ao cabo de anos de esquecimento e de afastamento... E era ela, a pequena circassiana, cujo corpo estava agora desfeito pela terra, que conservara o poder de o enfeitiçar por este país; era ela a causadora do que naquele momento triunfava.
À medida que o trem se aproximava da Porta de Andrinopla, que se encontrava no fim do vasto mundo dos cemitérios, a rua ia-se tornando mais tranquila, apesar das velhas casas meio derruídas, de janelas gradeadas. Por causa daquele vento do mar Negro, não estava ninguém sentado diante dos humildes cafés quase em ruínas. Porém, as pessoas do bairro, os poucos homens que passavam meio gelados, levavam ainda os trajes talares e os turbantes antigos. Uma tristeza de morte universal emana naquele dia das coisas terrestres; baixava do céu pardacento, saía de toda a parte, uma tristeza inigualável que provocava o choro.
Por fim, apenas chegou debaixo da espessa abóbada arruinada daquela porta da cidade, André, por prudência, despediu o cocheiro e saiu só para o campo, o que equivale a dizer para a imensa ruína das sepulturas abandonadas, ladeadas por ciprestes seculares. À direita e à esquerda, ao longo desta muralha colossal, cujas ameias meio derrubadas se alinham a perder de vista, só túmulos nos cemitérios sem fim, envoltos na soledade, no letargo e no silêncio. Depois de se certificar de que o cocheiro tinha saído e de que ninguém seguiria os seus passos por curiosidade, André tomou à direita e começou a descer até Eyub, andando por debaixo dos altos ciprestes de ramagens brancas como ossadas secas e de folhagem escura.
Na Turquia, as pedras das sepulturas são colunas monolíticas com turbantes ou flores no alto, que ao longe nos dão a Impressão de um vago espectro humano, parecendo que têm cabeça e ombros. Logo depois de colocadas, conservam-se direitas, mas os séculos, os tremores de terra e as chuvas desencaixam-nas; então inclinam-se em todos os sentidos e, apoiando-se umas sobre as outras como moribundas, acabam por cair sobre a erva, onde ficam ao acaso. Os antiquissimos cemitérios por onde André passava apresentavam um horrendo destroço, semelhante a um campo de batalha no dia seguinte à derrota.
Não se via quase ninguém ao longo desta muralha, naquela vasta região dos mortos. Fazia muito frio. Um cabreiro com suas cabras, alguns cães sem dono, dois ou três velhos mendigos à espera de algum enterro para pedirem uma esmola, nada mais; nenhum olhar indiscreto para temer. As sepulturas, aos milhares, semelhavam multidões; multidões de pequenos seres cinzentos, recurvados e desfalecidos. Os corvos, que depenicavam na erva, começavam a grasnar, açoitados pelo vento frio.
André, por meio de pontos que tinha de memória, dirigiu-se para a morada daquela a quem chamara "Medjé", que se encontrava entre tantas outras que de um extremo ao outro cobriam aquele deserto. Era ali; num grupo que viu perto reconheceu a disposição e a forma dos ciprestes. E, com efeito, era a sepultura, apesar de parecer ter um século; era aquela cujas colunas monolíticas desencaixadas jaziam agora pelo chão. Que rápida tinha sido a destruição desde a última vez que ele a vira, havia apenas cinco anos!... O tempo nem aquelas humildes pedras quis deixar à pobre morta, fundida no nada, que seguramente não tinha naquele país um único ser que se recordasse dela. Só na memória de André persistia ainda a engraçada imagem; e, quando ela morreu, não ficou nenhum reflexo do que foi a sua beleza, e em parte nenhuma do mundo o traço de que foi a sua alma ardente e cândida. Na monolítica coluna caída sobre a terra ninguém viria ler o seu nome, o seu verdadeiro nome, que nada já evocaria... Durante anos, várias vezes se tinha acusado a si mesmo de ser um profanador, por ter revelado, ainda que baixinho, sob um nome suposto, um pouco dela a milhares de indiferentes, num livro muito íntimo que nunca deveria ter publicado; hoje, ao contrário, agradava-lhe muito ter assim procedido, em virtude da compaixão que o livro despertou em benefício dela, e que aliás continuava manifestando-se de vez em quando, e em vários sítios durante alguns anos, no fundo de almas desconhecidas. Agora estava arrependido de não ter dito como a jovem se chamava; depois de ter revelado aquele nome, parecia-lhe que as compassivas simpatias dos leitores iam mais directamente para o querido fantasma; e, demais, quem sabe. ao passar ao pé da coluna caída, talvez alguma das suas irmãs da Turquia, por casualidade, lesse aquele nome e se detivesse pensativa...
Naquela tarde, as trevas baixavam rapidamente sobre os cemitérios imensos, porque o céu estava coberto de nuvens cerradas sem um ponto claro. Perante aquela muralha, resto duma muralha sem fim de cidade morta, a solidão acabava por aterrorizar e amedrontar; uma extensão cinzenta dominada por poucos ciprestes e povoada toda como que por pequenas personagens caducas, algumas ainda em pé, outras quase a cair e outras caídas, os monólitos funerários. Era ali que repousava já há alguns anos a pequena circassiana que acreditou no regresso do seu amigo; já tinham passado alguns Verões e Invernos, e ali ficava para sempre decompondo-se, só, no silêncio, durante as largas noites de Dezembro, debaixo do sudário de neve. Presentemente já não devia ser nada... André pensava com terror o que ela podia ser, tão perto dele, debaixo daquela capa de terra; sim, sem dúvida, já não era nada; só alguns ossos que acabaram por esmigalhar-se no meio das profundas raízes, e também essa espécie de bola que representa a cabeça, caixita redonda, morada que foi da sua alma e dos seus pensamentos queridos.
O mau estado em que se encontrava aquela sepultura aumentava o seu desolado amor e o seu remorso; não podia tolerar que continuasse assim a última morada da sua amiga. André sabia os perigos que a empresa apresentava, embora ali estivesse e conhecesse o país - um cristão tocar na sepultura duma muçulmana, num cemitério santo... A que astúcias de malfeitor tinha de recorrer, não obstante a piedosa intenção! Apesar de tudo, resolveu levar a cabo a empresa; ficaria em Constantinopla quanto tempo fosse necessário para a realizar, meses até se fosse preciso, e não se iria embora enquanto não ficassem repostas as pedras caídas, numa obra que ficasse para durar.
Voltando a Pera, à noite, encontrou em sua casa Jean Renaud, um dos seus amigos da Embaixada, muito novo ainda, que se entusiasmava por tudo naquele país. André dedicava-lhe verdadeiro carinho, por causa da adoração que ambos sentiam pelo Oriente.
Também achou sobre a mesa um volumoso maço de cartas de França e um envelope selado de Istambul, que abriu logo.
A carta dizia:
Meu caro senhor:
Recordai-vos de que uma mulher turca vos escreveu uma vez para vos dizer as emoções que em si produziu a leitura de Medjé, pedindo-vos algumas palavras de resposta, traçadas pela vossa mão
Pois bem: essa mesma turca, hoje ambiciona mais alguma coisa ainda. Quer ver-vos; quer conhecer o amado autor desse livro, lido cem vezes e sempre com mais emoção. Quereis que nos encontremos sexta-feira, às duas horas e meia, no Bósforo, na costa da Ásia, entre Chiboukli e Paxá-Bagtchéf Podeis esperar-me no pequeno café perto do mar, junto ao fundo da baía.
Levarei um tcharchaf escuro e irei de tallka'; quando eu descer do trem, seguir-me-eis; deveis, porém, esperar que eu seja a primeira a falar. Conheceis muito bem o meu país e o perigo que corro. Por minha parte, sei que me dirijo a um cavalheiro e confio na sua reserva.
Mas pode ser que vos tenhais esquecido de Medjé e que as suas irmãs vos não interessem mais...
Entretanto, se desejais ler na alma da Medjé de hoje, respondei-me, e até sexta-feira.
Senhora Zahidé
Posta-restante, Gaiata.
André estendeu a carta ao seu amigo e passou a ler as seguintes.
- Permita-me que o acompanhe na sexta-feira! - suplicou Jean Renaud assim que acabou de ler a carta. - Serei muito prudente - ajuntou em tom infantil -, muito reservado, não olharei sequer...
- Afígura-se-vos que vou satisfazer o convite, meu pequeno amigo?
- Oh!... Perder semelhante ocasião?... Não hesite, vá!
- De qualquer maneira, isso é uma partida preparada... A desconhecida deve ser tão turca como o amigo e como eu.
Se André se mostrava de certo modo com pouca vontade, era para se fazer rogar pelo seu jovem confidente, pois, no fundo, enquanto continuava lendo a correspondência, preocupava-o a epístola mais do que queria aparentar. Por inverosímil que fosse o convite, obedecia à mesma atracção irracionada que três anos antes, ao receber a primeira carta daquela desconhecida, o tinha impulsionado a responder-lhe. Por outro lado, não havia coisa mais estranha do que aquele apelo que lhe dirigiam em nome de "Medjé", e justamente naquela tarde, depois do regresso do cemitério, com a alma tão presa pela recordação da sua querida morta!
1 Trem turco de alqullador, do modelo usado no campo. Também se diz mohadjir. (N. do T.)
Na sexta-feira 14 de Abril, André Lhéry e Jean Renaud achavam-se sentados junto do café, que tinham reconhecido sem dificuldade, à beira-mar do lado da Ásia, a uma hora de Consta"ntinopla, entre os dois lugarejos indicados pela misteriosa "Zahidé". Era aquele um dos escassos recantos solitários e selvagens do Bósforo, porque quase por toda a parte ele é marginado por casas e palácios; a dama soubera escolher. Povoavam o prado quase deserto alguns plátanos de três ou quatro séculos - desses plátanos da Turquia com ramagem de baòbá - e mais perto, baixando da colina até à tranquila praiazita, uma ponta avançada das selvas da Ásia Menor, que conservam ainda seus bandoleiros e seus ursos.
Um lugar verdadeiramente ideal para encontros clandestinos. Achavam-se sós diante da pequena casa, meio demolida e completamente isolada, onde estava instalado aquele café, cujo dono era um pobre velho de barba branca. Os plátanos tinham em volta apenas algumas folhas abertas, mas o fresco prado estava já tão coberto de flores e o céu estava tão formoso, que era inexplicável aquele vento do mar Negro que estraga todas as Primaveras de Constantinopla. Ali, na costa da Ásia, estava, como sempre, um pouco abrigado, porém não parava um minuto na costa da Europa, que se via defronte, com os seus milhares de casas com os baixos metidos na água.
Esperavam nesta solidão, fumando por cachimbos que o pobre velho turco do café lhes tinha servido, quase estranho e receoso daqueles bem-postos senhores de chapéu, que se tinham detido num mísero café, onde os fregueses eram só barqueiros ou pastores, naquela estação tão incerta e com tal vento.
- Grande amabilidade a sua em aceitar a minha companhia - dizia Jean Renaud.
- Não tenha pressa em agradecer-me, senhor inexperiente. Compreenda que, se o trouxe comigo, foi para ter alguém com quem desabafar o mau humor, se a desconhecida não vem, ou se nos sai mal a aventura.
- Nesse caso tenho de procurar que saia bem. (Dizia isto fazendo-se assustado, com um daqueles sorrisos
de jovem que revelavam nele uma alma gentil de criança.)
- Veja acolá atrás. Aposto que é ela que vem ali. André voltou a cabeça. com efeito, dum renque de árvores
saia uma talika, dando solavancos pelo caminho escangalhado. Entre as cortinas movidas pelo vento percebiam-se duas ou três formas femininas vestidas de negro e de cara tapada.
- Pelo menos são doze - objectou André. - Parece-lhe razoável, meu amigo, virem tantas para uma entrevista?...
A talika ia a passar quase junto deles... Quando estava mais perto, uma pequena mão enluvada de branco saiu dos obscuros véus e fez um sinal... Pelo visto, eram elas... E eram três! Três, que estranha aventura!...
- Bem, delxo-o - disse André. - Seja prudente como me prometeu, não olhe. E pague também a despesa a esse homem.
E pôs-se a seguir de longe a talika, que, rodando por um caminho deserto, não tardou em deter-se ao lado dum grupo de plátanos. Três fantasmas negros, negros da cabeça aos pés, desceram sobre a erva; eram ligeiros, muito esbeltos, com caudas de seda, e caminhavam contra o vento frio que soprava em silêncio, fazendo-os baixar a cabeça, andando cada vez mais devagar para deixar aproximar o cavalheiro que os seguia.
Ê preciso ter vivido no Oriente para compreender o assombro e a comoção de André e a sua estranha emoção ao aproximar-se assim de turcas veladas, quando desde sempre se tinha acostumado à ideia de que era impossível aproximar-se daquela classe de mulheres. Porém, não estava sonhando! Tinham-no chamado e esperavam, e elas iam falar-lhe!
Quando o viram muito próximo, voltaram-se:
- É o Sr. André Lhéry, não é verdade - perguntou uma, com voz infinitamente doce, tímida, fresca e trêmula.
Ele respondeu-lhe acenando com a cabeça. Então, dos três tcharchafs viu sair três pequenas mãos de luvas com muitos botões, que se lhe estenderam e sobre as quais se inclinou sucessivamente.
Elas tinham pelo menos um duplo véu sobre si; eram três enigmas enlutados, três Parcas impenetráveis.
- Desculpai-nos - disse a voz que já tinha falado - se não lhe dissermos nada ou se lhe dissermos parvoices: estamos mortas de medo. - De sobra se lhes notava.
- Se o senhor soubesse - disse a segunda voz - que astúcias foram precisas para estarmos aqui!... Deixámos no caminho toda a nossa gente para nos perderem a pista: negros e negras.
- E esse cocheiro a quem não conhecemos e que pode denunciar-nos - disse a terceira.
Um silêncio. O vento gelado tinha trespassado as roupas e cortava as respirações. A água do Bósforo, que se via por entre os plátanos, estava branca de espuma; as folhas das árvores, apenas se abriam, caíam logo. Se não fossem as floritas do caminho, que se dobravam debaixo das caudas dos vestidos, dir-se-ia que se estava no Inverno. Maquinalmente, iam e vinham todas juntas, como amigas que passeiam; mas aquele lugar afastado, naquele tempo tão mau, tinha alguma coisa de lúgubre, e mais ainda de triste presságio para aquele encontro.
A que primeiro falara, e que-parecia a organizadora daquele perigoso encontro, falou de novo, dizendo qualquer coisa para romper o silêncio embaraçador:
- Ojsenhor vê que somos três...
- Com efeito, vejo - respondeu André, sorrindo-se.
- O senhor não nos conhece; todavia, é nosso amigo há alguns anos.
- Vivemos com os seus livros - disse a segunda.
- Dir-nos-á se é certa a história de "Medjé" - perguntou a terceira.
Agora falavam todas a um tempo, depois do mutismo do principio, como quem está com pressa de fazer muitas perguntas, numa entrevista que tem de ser rápida. A facilidade e a correcção com que se expressavam em francês surpreendiam André, assim como a sua audácia, apesar do medo visível que as fazia tremer.
O vento levantou um pouco os véus que encobriam um dos rostos e o novelista surpreendeu o extremo de um rosto e o alto de um colo, coisas que depressa se vêem na mulher e que aqui aparecem adoràvelmente jovens, sem o prenuncio de uma ruga.
Falavam todas a um tempo e as suas vozes pareciam de música; é verdade que o vento e os espessos véus as temperavam como se fossem buzinas, mas o timbre, por si mesmo, era um pouco esquisito. André, que ao princípio suspeitou que estava sendo mistificado por três levantinas, já não duvidava estar tratando com autênticas turcas; a doçura das suas vozes era um seguro certificado de origem, porque, de contrário, falando ao mesmo tempo, lembrariam três catatuas num jardim zoológico!.
- Há pouco notei que o senhor se riu quando anunciei que tínhamos vindo três - disse a que mais interessante se tornava para André. - E assim o senhor não me deixou terminar. Queria dizer-lhe que hoje somos três; três na próxima vez, se o senhor responder aos meus chamamentos; seremos sempre três inseparáveis, como esses periquitos - o senhor já sabe a quais me refiro-, que decerto são mais de dois... Outra coisa: nunca vereis as nossas caras... Somos três pequenas sombras negras e mais nada.
- Almas, só almas, ouviu - disse outra. - Para o senhor seremos almas e mais nada: três pobres almas apenas que têm necessidade da vossa amizade.
- É inútil querer distinguir umas das outras; e, por capricho, veja o senhor se é capaz de adivinhar qual de nós lhe
**- com muito gosto reconheço e afirmo que há amáveis excepções.
escreveu e se chama "Zahidé"... Vá, diga, divertir-nos-emos um pouco.
- A senhora mesmo - disse André sem parecer hesitar. Assim era; por detrás dos véus ouviam-se exclamações
turcas, estranhando o acerto.
- bom, nesse caso - disse "Zahidé" -, visto que já nos conhecemos do passado, o senhor e eu, cumpre-me apresentar-lhe minhas irmãs. Uma vez isto feito, teremos cumprido os deveres da mais perfeita correcção. O segundo dominó negro, de estatura mais elevada, chama-se "Néchédil"; é mau. O terceiro, que neste momento está um pouco afastado de nós, chama-se "Ikbal"; é sonso: desconfie dele. Desde já, procure certificar-se do nome e das particularidades das três.
É inútil dizer que estes três nomes eram fingidos; André suspeitava-o. O segundo tcharchaf ocultava a cara simétrica, de olhar visionário, de Zeyneb, a mais alta das primas da recém-casada. Quanto ao terceiro, qualificado de sonso, se André lhe pudesse levantar o véu de luto, teria visto o nariz arrebitado de respingona e os olhos risonhos de Mélek, a jovem turca de cabelos avermelhados, a mesma que anos antes não acreditava que o escritor fosse novo. Uma Mélek muito mudada, por certo, desde então, por sofrimentos precoces e por noites passadas chorando; porém, uma Mélek tão alegre por natureza, que os seus desgostos, apesar de muitos, não tinham apagado a graça do sorriso.
- Que ideia fará o senhor de nós?-perguntou "Zahidé", depois do silêncio que se seguiu às apresentações. - Que espécie de mulheres se lhe afigura que somos, de que classe social, de que roda?... Vamos, diga!
- Meu Deus... mais tarde lhes direi, com mais precisão. Porém, desde já lhes digo que não me pareceis donzelas de trabalho.
- Ah!... E a nossa idade?... Decerto que isto pouca importância tem, é verdade, visto que só almas queremos ser. Enfim, por dever temos de fazer-vos uma confidencia: somos velhas, muito velhas mulheres, senhor Lhéry.
- Isso já eu tinha suspeitado.
- É verdade que sim!... Ê verdade que sim!... -interveio "Ikbal" (Mélek) num tom repassado de melancolia, com um bem imitado tremor na voz. E acrescentou: -Por mais precauções que se tomem, é impossível dissimular a velhice, conhece-se logo. Em todo o caso, faça-nos a fineza de nos dar o seu parecer sobre a nossa idade, para vermos se é fisionomista.
Por causa dos impenetráveis véus, a palavra fisionomista foi pronunciada com gracejo.
- Não se zangarão comigo pelos anos que eu disser
- De modo nenhum... Estamos tão acostumadas a abdicar... se o senhor soubesse... Vá, ânimo, Sr. Lhéry.
- Pois bem, as senhoras logo me pareceram avós cuja idade varia, pelo menos, entre os 18 e os 24 anos.
Elas riram-se por debaixo dos véus, pois as alegrava que ele as não julgasse velhas, porque eram autenticamente moças e não podiam ocultá-lo.
Açoitados pelo vento cada vez mais forte, sob o céu limpo e claro, passeavam como velhos amigos; apesar daquele vento que cortava a palavra, do ruído daquele mar que perto se agitava até à beira do caminho, começavam a manifestar-se todos os seus verdadeiros pensamentos, pondo de parte o tom meio cerimonioso, meio trocista, do qual tinham ocultado a cortesia das primeiras palavras. Andavam devagar e de olho alerta, obrigados a inclinar-se ou a voltar-se quando uma rajada soprava com força. André estava maravilhado com o desenvolvimento intelectual daquelas jovens, tratando-se já uns aos outros com relativa confiança, apesar de se conhecerem há poucos minutos.
Julgando-se em segurança pelo mau tempo e no meio desta solidão propícia, foram surpreendidos repentinamente, numa curva da estrada, lá em baixo, por dois soldados turcos que caminhavam para eles, vindos de passeio, como soldados da guarnição, de varinha na mão, tomada nalguma paliçada. Não podiam os quatro novos amigos ter um pior encontro, pois aqueles bons moços, mas de velhos princípios, que em geral vêm dos confins da Turquia asiática, eram capazes de usar de violências extremas em presença de uma coisa tão criminosa a seus olhos: muçulmanas com um homem do Ocidente. Os soldados detiveram-se um pouco, como petrificados, e, depois de trocarem algumas bruscas palavras, deitaram a correr quanto podiam, sem dúvida para avisarem companheiros seus, ou a polícia, ou para amotinarem o povo vizinho... As três pequenas figuras negras, terrifiçadas, subiram apressadas para o trem, que marchou a todo o galope, ao mesmo tempo que Jean Renaud, que tinha visto a cena de longe, corria para prestar socorro; apenas o trem desapareceu por entre as árvores, os dois amigos meteram por um sítio que conduzia a um pequeno bosque.
- Que tal lhe pareceram - perguntou Jean Renaud um pouco depois, quando, passado já o perigo, caminhavam tranquilamente pelo bosque.
- Assombrosas - respondeu André...
- Assombrosas em que sentido? Simpáticas, amáveis?...
- Muito... Porém, outro adjectivo qualificá-las-á melhor; Pois são almas, segundo elas dizem, só almas... Meu caro amigo, pela primeira vez na minha vida conversei com almas.
- Almas?... Mas, enfim, sob que capa?... De mulheres honestas!...
- Oh! Sem dúvida. Se o senhor tinha imaginado alguma aventura amorosa em meu favor, ponha-a de reserva para outra ocasião.
André estava deveras preocupado com a retirada das jovens. Muito extravagante era o que acabavam de fazer aquelas pequenas turcas, em contrário a todos os usos do Islame; mas, no fundo, não era de uma pureza de açucena a sua acção; conversaram as três, sem a mais ligeira incorrecção; conversaram de coisas de alma com um homem a quem nem sequer mostraram os olhos!... André teria dado muito para saber se já tinham voltado com segurança a suas casas, de novo encerradas detrás das grades do harém... Mas o que podia ele intentar em favor delas?... Fugir, desaparecer como acabavam de fazê-lo, e nada mais; toda a intervenção directa ou indirecta lhes teria sido fatal.
No dia seguinte, à noite, André Lhéry recebeu misteriosamente em sua casa a seguinte carta:
O senhor disse-nos ontem que conhece a mulher turca dos nossos dias; nós duvidamos: quem pode conhecê-la, se ela mesma se ignora
Por outro lado, que estrangeiros poderiam penetrar o mistério da sua alma com mais facilidade lhes mostrariam elas o rosto. Quanto às mulheres estrangeiras, algumas têm chegado até nós; porém, só têm visto os nossos salões, que são hoje em dia iguais aos da Europa - o lado exterior da Mossa vida.
Pois bem: quer o senhor que o ajudemos a decifrar-nos, se isto é possível? Rapidamente, demos prova mútua de que podemos ser amigos; saiba que queremos certificar-nos se há alguma coisa mais do que talento debaixo das suas cinzeladas frases... Ter-nos-emos enganado ao imaginar que, no momento de o senhor se afastar daqueles fantasmas negros que corriam tanto perigo, batia mais depressa o seu coração, movido pela curiosidade, pela decepção, ou por compaixão? De qualquer forma, sentiria alguma coisa mais do que a habitual indiferença que se segue a um encontro banal? Demais, tínhamos a certeza de que o senhor compreenderia que aqueles vultos sem forma nem graça não eram mulheres, mas só almas - uma alma, a da muçulmana nova, cuja inteligência se libertou e que sofre, mas amando o sofrimento libertador-, e que foram até vós, seu amigo de ontem.
Agora, para o senhor conseguir ser seu amigo de amanhã, é preciso aprender a ver nela alguma coisa mais que uma amável aventura de viagem, uma linda figura que represente uma etapa encantada da vossa vida de artista. Que deixe de ser para o senhor a criança que desejou, tanto por curiosidade como por inclinação verdadeira, a amante que tão feliz faria a esmola da vossa ternura. Ser-lhe-á preciso, se por ela deseja ser amado, recolher as primeiras vibrações da sua alma, que por fim desperta,
A sua "Medjé" está no cemitério. Obrigada em seu nome, e em nome de todas, pelas flores que o senhor deitou sobre a sepultura da terna escrava. Naqueles dias da sua juventude, o senhor não teve mais do que estender a mão para recolher sem esforço a sua felicidade. Mas a circassianazita que, arrebatada, caiu nos seus braços, essa já não existe; chegou o tempo em que, até para a muçulmana, o amor de instinto e o amor de obediência cederam o passo ao amor de eleição.
Também para o senhor chegou o momento de buscar e de descrever o amor, com alguma coisa mais que o lado pitoresco e sensual. Procurai, por exemplo, exteriorizar o vosso coração, até fazer-lhe sentir a amargura do sofrimento supremo que é o nosso: não poder amar senão em sonho. Pois todas estamos condenadas a não amar de outro modo.
Sabeis de que maneira nos casam?... É sem dúvida um arremedo de matrimônio à europeia, instalado há uma geração nas nossas casas ocidentalizadas, onde antes disso reinavam os divãs de cetim e as odaliscas; representa já um progresso que nos alegra. Casam-nos sem nos pedir parecer, como se fôssemos ovelhas ou éguas. É certo que o homem que nos dão é, com relativa frequência, sensível e bom; todavia, não fomos nós que o escolhemos. com o andar do tempo, cria-se-Lhe afeição, mas esta afeição não é amor; então nascem em nós sentimentos que voam e vão pousar muito longe, às vezes, mas sempre ignorados de todos, excepto de nós mesmas. Amamos, porém, amamos com a nossa alma, com outra alma; o nosso pensamento liga-se a outro pensamento, o nosso coração faz-se escravo de outro coração.
Este amor não passa de um sonho, porque somos honradas e, mais ainda, porque esse sonho nos é muito agradável, para que corramos o risco de o perder ao tentar realizá-lo. esse amor fica inocente como o nosso passeio de ontem, a Paxá-Baztché, com aquele vento terrível. Tal é o segredo da alma da muçulmana na Turquia, no ano de 1322 da Hégira. A nossa educação produziu a duplicidade do nosso ser.
Mais extravagante que o nosso encontro há-de parecer-vos esta declaração... Divertimo-nos muito pensando na surpresa que o ia tomar. Primeiro pareceu ao senhor uma mistificação. Depois veio à entrevista, e, indeciso ainda, tentando acreditar numa aventura, e desejando-a, tinha o senhor uma vaga esperança de encontrar-se com uma "Zahidé" escoltada Por escravos complacentes, desejosa de ver de perto um autor célebre e pouco escrupulosa em levantar o véu. Porém, encontrou-se com almas. E essas almas serão amigas do senhor, se o senhor souber ser amigo delas.
Zahidé, Néchédil e Ikbal
Eis a história de "Zahídé" depois do seu casamento até à chegada de André Lhéry.
As carícias do jovem bei, que se tornavam cada vez mais doces, tinham pouco a pouco adormecido os seus projectos de rebelião. Embora reservasse a sua alma, o corpo tinha-o dado todo a esse belo senhor, apesar de este não ser mais do que um belo menino cheio de mimo, de um dissimulado egoísmo debaixo de uma distinção mundana e de muita simpática galantaria.
Era para André Lhéry que guardava a sua alma? Ela mesma nem sequer o sabia, porque com o tempo tinha compreendido quão infantil era aquele sonho. Dia a dia pensava menos nele. Tinha-se quase resignado ao seu novo claustro; a vida ser-lhe-ia ainda tolerável se este Hamdi, no fim do segundo ano de casado, não casasse também com Durdané, o que o tornava marido de duas mulheres, situação que ao presente já se não usa na Turquia.
Então, para evitar qualquer cena desagradável, ela simplesmente pediu, e obteve licença para se retirar por dois meses para Khassim-Paxá, para casa da sua avó, no intuito de examinar a sua nova situação e preparar-se com descanso para o que mais lhe convinha fazer.
Uma tarde partiu sem dizer nada, decidida a tentar tudo para não voltar mais àquela casa, para não desempenhar o papel de odalisca a que queriam submetê-la.
Também Zeyneb e Mélek voltaram a Khassim-Paxá. Mélek, depois de alguns meses de tortura e de lágrimas, acabou por se divorciar dum marido atroz. Zeyneb ficou livre do seu, pela morte, ao fim de ano e meio de coabitação lamentável com um libertino que repugnava em todos os sentidos. Irremediavelmente feridas quase ao mesmo tempo na flor da sua juventude, desfloradas e cansadas, como que desiludidas da vida, tinham podido, no meio de tanta tristeza, estreitar mais a intimidade de irmãs.
A notícia da chegada de André Lhéry a Constantinopla, reproduzida pelos jornais turcos, foi para elas um facto sensacional; porém, o antigo deus tinha caído do pedestal; de modo que aquele homem era como todos os outros; era o empregado duma embaixada, que tinha uma ocupação, e sobretudo tinha uma idade!... E então Mélek entretinha-se a pintar a sua prima a personagem dos seus velhos sonhos como sendo um velho senhor, calvo e naturalmente obeso.
- André Lhéry - respondia-lhe alguns dias depois uma das suas amigas da Embaixada de Inglaterra, que tivera ocasião de encontrar e a quem ela interrogava sobre ele com insistência - pois André Léry é quase sempre insuportável; cada vez que descerra os dentes parece fazer um favor. Na sociedade aborrece-se com a ostentação... Nem obeso, nem calvo; vejo-me obrigada a reconhecer que tem bom cabelo e que não tem o ventre demasiado...
- A sua idade
-... Não tem idade... Varia vinte anos duma hora a outra... com os excessivos cuidados que tem consigo e com a sua elegância, consegue aparentar juventude: sobretudo se se consegue fazê-lo divertir, tem riso e gengivas de criança... Até tenho notado nesses momentos que tem olhos de criança... Porém desses minutos de distracção, é altaneiro, muito pegado à sua pessoa e quase sempre nas nuvens... A imprensa diz dele o pior possível.
Apesar de tais informações, as jovens acabaram por se decidir em o procurar, tentando a enorme aventura para romper a monotonia desesperada dos seus dias.
No fundo da sua alma persistia ainda um pouco da adoração de outrora, do tempo em que ele era para elas um ser doutro planeta, um ser das nuvens. E, por outro lado, para darem a si mesmas um motivo razoável que legitimasse a aventura, diziam: "Pedir-lhe-emos que escreva um livro em favor da mulher turca de hoje; assim, pode ser que sejamos úteis a nossas irmãs, oprimidas como nós."
Pouco depois da arrojada entrevista de Tchiboukli, voltara a Primavera súbita, encantadora e de pouca duração, que tão característica é em Constantinopla.
O interminável vento glacial do mar Negro acabava de cessar de repente. Surpreende descobrir que aquele país, meridional como o centro da Itália ou da Espanha, pode ser também, em certas épocas, deliciosamente luminoso e fresco. No Bósforo e sobre os cais de mármore dos palácios, ou sobre as velhas casitas de madeira sempre dentro de água, caía um imenso e repentino banho de sol. E Istambul, com o ar seco e límpido, retomava a sua indizível languidez oriental. O povo turco, sonhador e contemplativo, recomeçava a viver fora, sentado diante dos milhares de pequenos cafés silenciosos, em volta das mesquitas, perto das fontes, debaixo das latadas, debaixo das glicinias e sob os plátanos; milhares e milhares de chaminés, ao longo das ruas, exalavam seu fumo vago e as andorinhas deliravam de júbilo em volta dos ninhos. As velhas sepulturas de cúpulas cinzentas lá estavam numa paz sem nome e inalterável. Os pontos mais longínquos que a vista alcança - quer do lado da costa da Ásia, quer do imóbil Mãrmara - resplandeciam.
André Lhéry afeiçoava-se outra vez ao Oriente turco, com mais melancolia do que no tempo da sua juventude, porém com a mesma paixão. E um dia que estava sentado à sombra, entre centenas de sonhadores, de turbante, muito longe de Pera e das agitações modernas, mesmo no centro, no coração fanático do velho Istambul, Jean Renaud, companheiro da Turquia, perguntou-lhe de chofre:
- Não há notícias dos três pequeninos fantasmas de Tchiboukli
Passava-se isto em frente da Mesquita de Mehmet-Fatih numa grande praça antiquíssima onde os europeus nunca vão, e no momento em que os muezins chamavam à oração, do alto dos gigantescos fusos de pedra que são os minaretes, vozes longínquas por virem de muito alto, a perderem-se na limpidez do azul do céu.
- Ah! As três turcas - respondeu André. - Não, nada mais depois da carta que lhe mostrei... Imagino que a aventura acabou e que já nem pensam nela.
Ao dizer isto afectava indiferença, mas o caso tinha-lhe turbado a paz contemplativa; cada dia que passava sem um novo convite das desconhecidas tornava-lhe mais dolorosa a ideia de nunca mais ouvir a voz de "Zahidé", de um timbre tão estranhamente doce, debaixo do véu... Já ia longe o tempo em que estava seguro de produzir boa impressão; nada o angustiava tanto como o desaparecimento da sua juventude e dizia tristemente: "Se julgavam ver um homem novo, que desenganadas haviam de ter ficado!"
A última carta das três turcas terminava com estas palavras: "Seremos suas amigas se o senhor quiser." Para ele era uma satisfação. Mas onde encontrá-las agora? Num labirinto tão imenso e confuso como é Constantinopla, procurar três mulheres turcas, cujo nome se não conhece e cuja cara nunca se viu, vale tanto como procurar levar a cabo uma daquelas impossíveis e irônicas tarefas que os maus gênios sabiam propor aos heróis dos contos da fábula...
Ora, neste mesmo dia e a esta mesma hora, a pobre pequena, misteriosa que tinha organizado a entrevista em Tchiboukli
1 Mehmet-Fatih, ou sultão Fatih (Maomet-o-Conquistador). Maomet II. (N. do T.)
dispunha-se a transpor o temível portal de Ildlz, para jogar uma suprema partida naquele palácio imperial. Do outro lado do Corno de Ouro, em Kassim-Paxá, detrás das opressoras grades do seu antigo quarto de solteira, agora novamente por ela ocupado, estava muito absorvida diante de um espelho. Um trajo de seda cinzenta e preta, com cauda de corte, chegado recentemente de uma casa de fama de Paris, tornava-a mais esbelta que de costume. Queria ser muito bonita naquele dia, e as duas primas, tão preocupadas como ela pelo resultado da visita, ajudavam-na a enfeitar-se em silêncio. Decididamente, o vestido ficava-lhe muito bem, como bem lhe ficavam os rubis sobre o cinzento do vestido. Eram horas... A cauda ficou-lhe segura à cintura por uma faixa que na Turquia é uma regra de etiqueta para as senhoras se poderem apresentar no palácio. Não obstante a cauda ser obrigatória, nenhuma mulher, excepto as princesas de sangue, tem direito de a arrastar pelos sumptuosos tapetes do palácio. Depois cobriram a cabeça da jovem com um yachmak, ou véu de musselina branca, que as senhoras da alta sociedade usam ainda em certas ocasiões especiais e que é exigido, como a cauda, para entrar em Ildiz, onde nenhuma mulher seria recebida indo de tcharchaf.
Eram horas. "Zahidé", depois de beijar suas primas, desceu a escada, tomou acento no seu coupé negro de lanternas douradas, puxado por cavalos pretos com ferragens de ouro nos arreios, e partiu, de cortinas descidas. Ao lado do cocheiro ia o inevitável eunuco.
Eis de que desgraça, fácil de prever, se achava hoje ameaçada; tinham terminado os dois meses de licença autorizados pela sua sogra, ao mesmo tempo que Hamdi reclamava imperiosamente sua mulher. Questão de fortuna podia ser, mas também questão de amor, porque ele tinha compreendido muito bem que ela era o verdadeiro encanto de sua casa, apesar do império exercido pela outra sobre os seus sentidos. Queria ter as duas.
A única solução era o divórcio. Mas a quem recorrer para o obter?... Seu pai, a quem a pouco e pouco tinha devolvido a sua ternura, protegê-la-ia junto do sultão, mas ele repousava já há mais de um ano no santo cemitério de Eyub. Restava-lhe a avó, muito velha para tais empresas, e sobretudo muito 1320 para compreender; do seu tempo, nenhuma mulher muçulmana estranhava ver duas, três ou mesmo quatro esposas compartilharem do carinho do dono de todas. Foi a Europa que, com as professoras e a livre crença, trouxe a moda nova: para cada homem uma mulher!...
Desesperada, pensou em ir rojar-se aos pés da mãe do sultão, conhecida pela sua bondade, sendo-lhe concedida a audiência como filha de Tewfik-Paxá, marechal da corte.
Uma vez franqueado o grande recinto dos parques de Ildiz, o coupé negro chegou ante uma grade fechada, que era a dos jardins da sultana. Um negro com uma grande chave na mão veio abri-la e o coupé entrou, seguido por um grupo de eunucos, de libré de valide, que corriam agora para ajudar a visitante a descer; penetrando nas avenidas orladas de flores, deteve-se em frente da porta de honra.
A formosa suplicante conhecia o cerimonial de introdução, porque tinha vindo muitas vezes às grandes recepções do Bairam, a casa da boa princesa. No vestíbulo encontrou, como esperava, trinta escravas muito moças e formosas, vestidas todas com fato igual, colocadas em duas fileiras para a receber; depois de se terem inclinado ao mesmo tempo para saudar a recém-chegada, as escravazitas rodearam-na precipitadamente, como vôo de pássaros acariciadores e ligeiros, levando-a à sala dos yachmáks, onde cada senhora visitante há-de entrar primeiro para tirar o véu. Ali, num abrir e fechar de olhos, com uma ligeireza consumada, as escravas, sem dizerem uma palavra, desembaraçaram-na das envolventes musselinas que estavam seguras por muitos alfinetes; sem lhe desalinhar sequer uma madeixa dos cabelos, puseram-lhe o turbante de gaze em forma de diadema, muito alto e que é de rigor na corte; só as princesas de sangue têm o direito de se apresentar de cabeça descoberta. O ajudante-de-campo veio saudá-la, conduzindo-a a uma sala de espera; era uma mulher, bem entendido, porque em casa da sultana não há homens; uma jovem escrava circassiana, sempre escolhida pela sua estatura e pela sua impecável beleza, vestindo jaqueta de pano militar com alamares de ouro, grande cauda presa à cintura e um pequeno boné de oficial agaloado" de ouro. Na sala de espera foi a tesoureira, que era também circassiana, que, segundo o ritual, lhe veio fazer companhia; devemos dizer que não se aceita nenhuma turca para o serviço do palácio sem ser circassiana de boa família, para ocupar um cargo altamente elevado; e, como a visita pertencia à alta sociedade, era preciso conversar com ela... Mortais resultavam todas aquelas minuciosas e maçadoras cerimônias, e, à medida que o tempo ia passando, ia minguando a sua esperança e resolução...
Quase a entrar no salão, tão dificilmente penetrável, onde estava a mãe do califa, ela tremia como se tivesse grande febre.
Uma sala de um luxo muito europeu, salvo os maravilhosos tapetes e as inscrições do Islame, uma sala alegre e clara dominando da sua altura o Bõsforo, que se percebia luminoso e resplandecente por entre as rótulas das janelas. Cinco ou seis pessoas em trajo de corte e ao fundo, sentada, a boa princesa, que se levantou para receber a visitante. As três profundas saudações como para as majestades ocidentais, mas a terceira numa prostração quase completa, com a cabeça quase inclinada, como que para beijar a dobra do vestido da senhora, que em seguida, com um franco sorriso, lhe estendia as mãos para que se levantasse. Também ali estava um dos filhos do sultão (os quais, como seu pai, têm o direito de ver as mulheres com a cara descoberta). Estavam também duas princesas de sangue, miúdas e graciosas, de cabeça descoberta e de cauda solta. E, por fim, três senhoras com um pequeno turbante colocado sobre a cabeleira muito loura, com a cauda presa à cintura; três saraylis, escravas em outro tempo naquele mesmo palácio, transformadas em grandes senhoras depois do seu casamento, e que estavam alguns dias de visita em casa da sua antiga ama e benfeitora, tendo conquistado o direito, por serem saraylis, de visitar todas as princesas, mesmo sem serem convidadas, como quem vai ver a sua própria família. (Ê assim que na Turquia se entende a escravidão; e mais duma esposa dos nossos intransigentes socialistas podia vir com proveito educar-se nos nossos haréns, para tratar a criada de quarto ou a professora como as senhoras turcas tratam as escravas.)
Um dos atractivos das verdadeiras princesas é serem afectuosas e simples; mas nenhuma, sem dúvida, excede as de Constantinopla em simplicidade e doce modéstia.
- Minha querida pequena - disse alegremente a sultana de cabeleira branca -, bendigo o bom vento que a trouxe. E saiba que já se não vai embora senão de tarde; há-de pagar a sua contribuição tocando-nos alguns trechos de música; é muito artista para que nos privemos de tal prazer.
Ternas belezas que se não tinham ainda mostrado, as moças escravas dedicadas aos refrescos) entraram trazendo, sobre bandejas ricas, caixas de ouro com café, xaropes e doces de rosas, e a sultana encaminhou a conversação para um dos assuntos mais recentes, que nunca deixam de chegar até ao fundo dos serralhos, ainda os mais hermèticamente fechados.
Mas "Zahidé" não podia dissimular a sua agitação. Tinha necessidade de falar, de implorar; a sultana percebia muito bem. com simpática reserva, retiraram-se o príncipe, as princesas, as formosas saraylis. Sob o pretexto de ver alguma coisa ao longo do Bósforo, encaminharam-se para uma das grades das janelas de uma sala próxima.
- Que se passa, minha querida menina - perguntou muito baixo a sultana, inclinando-se maternalmente sobre "Zahidé", que se deixou cair de joelhos.
Os primeiros minutos foram de cruel e crescente ansiedade, quando a pequena revoltada, que procurava avidamente no rosto da sultana o efeito das suas confidencias, notou que não compreendia e que se assustava. Os olhos, cheios de bondade, não diziam que não, mas pareciam dizer: "Um divórcio muito pouco justificado! Que difícil questão!... Farei o que puder... Mas, em tais condições, nunca meu filho cederá..."
E "Zahidé", perante aquela recusa meio oculta, julgava sentir o tapete e o pavimento abrirem-se-lhe debaixo dos joelhos, julgando-se perdida, quando, de repente, alguma coisa, comparada com um calafrio de terror religioso, percorreu todo o palácio; corriam os vestíbulos, em passos leves; todas as escravas, ao longo dos corredores, pisando sedas, se dobravam prostradas... E um eunuco precipitou-se no salão e anunciou com uma voz que o medo tornava mais aguda que de ordinário:
- Sua Majestade Imperial!...
Apenas feito este anúncio, que fez baixar até ao chão todas as cabeças, apareceu à porta o sultão. A suplicante, que seguia de joelhos, encontrou e susteve por espaço de um segundo aquele olhar e depois perdeu os sentidos, caindo, pálida como morta, envolvida pela nuvem prateada do seu formoso vestido...
O homem que acabava de aparecer àquela porta era o mais desconhecido da massa das almas ocidentais, era o califa, de responsabilidades sobre-humanas, o homem que sustem na mão o imenso Islame e que tem de defendê-lo tanto contra a coligação'encoberta dos povos cristãos, como contra a corrente de fogo do Templo; o homem que até nos confins dos desertos da Ásia se chama "a sombra de Deus".
Neste dia vinha simplesmente visitar sua venerada mãe, quando encontrou a ardente e angustiada súplica na expressão da jovem ajoelhada. E aquele olhar penetrou no seu misterioso coração, por vezes endurecido ao peso do grande sacerdócio, mas que, em troca, se não cerra a íntimas e esquisitas compaixões, tão ignoradas de todos.
com um gesto, indicou a desmaiada a suas filhas, que estavam inclinadas numa saudação profunda e não a tinham visto cair; as duas princesas, de grandes caudas soltas, levantaram a jovem nos braços, ternamente como irmã, que, sem saber, acabara de ganhar a sua causa com os olhos.
Quando "Zahidé" voltou a si, havia já algum tempo que o califa desaparecera. Recordando-se de repente, olhou em volta, incerta de ter visto na realidade ou em sonho a terrível presença. Não. O califa não estava ali. Mas a sultana mãe inclinou-se para ela e, tomando-lhe as mãos afectuosamente, disse-lhe:
- Tranquilize-se, minha filha, e seja feliz: meu filho prometeu-me assinar amanhã um iradé que lhe dará a liberdade.
Ao descer a escada de mármore, sentia-se ligeira, vibrante e como que ébria, como o pássaro a quem acabam de abrir a gaiola. Sorria às pequenas escravas dos yachmaks, que se tinham aproximado para lhe porem o véu e que num minuto reconstruíram com muitos alfinetes, sobre os cabelos e o rosto, o tradicional edifício de gaze branca.
Novamente no coupé de negro e ouro, e enquanto os cavalos trotavam majestosamente a caminho de Khassim-Paxá, a jovem sentiu uma nuvem empanar-lhe a alegria. Estava livre, sim, e o seu orgulho vingado. Mas agora notava que um desejo a tinha presa a Hamdi, de quem se julgava livre para sempre.
"Isto é uma coisa baixa e humilhante", disse ela, "pois, se esse homem não teve nunca ternura nem lealdade para mim, não o amo. "É preciso que me tenha profanado e envilecido sem remédio, para me lembrar com gosto das suas mais intimas carícias. Sei o que devo fazer; já não lhe pertenço completamente, se bem que seja atacada dessa lembrança. E, se mais tarde encontrar no meu caminho outro homem a quem ame, só me resta a minha alma para lhe oferecer com dignidade; e nunca lhe darei outra coisa, nunca..."
No dia seguinte escreveu a André:
Se na sexta-feira estiver bom tempo, quer o senhor que voltemos a encontrar-nos em Eyub? Às duas horas chegaremos de caíque aos degraus que descem, pela água dentro, no fim da avenida com piso de mármore que conduz à mesquita. Do pequeno café que ali está pode ver-nos desembarcar, e suponho que o senhor reconhecerá as suas' novas amigas, os três fantasmas negros do outro dia. Visto que o senhor sabe pôr o fez, ponha-o nesse dia, porque será sempre menos perigoso. Nós iremos direitas à mesquita, onde nos ãeteremos por um momento. O senhor esperar-nos-á no pátio e depois sairá e nós segui-lo-emos. O senhor, que conhece Eyub melhor do que nós, procurará um recanto (nas alturas do comércio) onde poderemos conversar em faz.
Aquela sexta-feira era muito formosa, sob um céu muito azul. O calor tinha-se manifestado com rapidez, depois daquele longo Inverno, e os perfumados odores do Oriente, adormecidos com o frio, despertavam novamente. Era inútil recomendar a André que pusesse o fez para ir a Eyub, pois, recordando o passado, nunca tinha querido apresentar-se de outra maneira naquele bairro onde tinha vivido. Depois do seu regresso a Constantinopla, era aquela a primeira vez que ali voltava; e, ao sair do caíque, pondo os pés sobre aquelas Pedras, que eram ainda as mesmas, com que emoção reconheceu todo aquele recanto escondido que conservava ainda a sua forma. O velho café, casita de madeira já apodrecida que se adiantava até à água tranquila, não fora transformado desde a época da sua juventude. Jean Renaud, levando também fez, acompanhava-o com a condição de não falar; entrou na antiga salita banhada por todos os lados do ar puro e da frescura do golfo; havia ali, sobre os humildes divãs cobertos de chita bem lavada, gatos muito mansos que dormiam ao sol e três ou quatro personagens com trajo talar e turbante que contemplavam o céu azul. Naquelas proximidades, e em todos os recantos, reinava aquela imobilidade, aquela indiferença do tempo, aquela sabedoria resignada, e muito doce, que só se encontra no país do Islame, na irradiação isoladora das mesquitas santas e dos grandes cemitérios.
Sentou-se sobre o divã, com o seu cúmplice da perigosa aventura. Rapidamente o fumo dos seus cachimbos se misturou com o dos outros sonhadores. Os imãs saudaram-nos à turca, não os julgando estrangeiros; convinha a André aquele equívoco, que era favorável aos seus projectos.
Dali viam bem todo o tranquilo desembarcadouro, onde, sem dúvida, elas estariam prestes a chegar; um muçulmano de barba branca, que era o vigilante, fazia uma fácil polícia; com a ponta do croque dirigia a abordagem dos raros caíques, e via-se marulhar suavemente a água do golfo muito estreito, sem marés, banhando continuadamente os degraus seculares.
O fundo do Corno de Ouro parece o fim do mundo; não se faz caminho por ele. Pelas margens não se pode ir longe; tudo acaba naquele sítio: o braço de mar e o movimento de Constantinopla; tudo ali é velho e desleixado ao pé das colinas áridas duma cor parda, de desertos cheios de sepulturas.
Ao pé deste pequeno café onde esperavam havia ainda algumas casitas de madeira meio caídas, um velho convento de dervixes dançarinos e depois mais nada; só pedras de sepulturas naquela solidão.
Eles observavam os caíques ligeiros que abordavam de vez em quando, vindos da margem de Istambul ou da de Khassim-Paxá, trazendo fiéis para a mesquita, para as sepulturas, e também habitantes daquele desassossegado arrabalde. Viram desembarcar dois dervixes, depois das duas senhoras fantasmas vestidas de negro, andando curvadas e lentamente, e em seguida piedosas velhas de turbante verde. Por cima da cabeça dos dois amigos, reflexos do sol sobre a superfície revolta da água vinham dançar no tecto de madeira, como que desenhando rendas ondeadas, cada vez que um novo caíque feria o espelho da água.
Enfim, ao longe, alguma coisa aparecia que se parecia muito com as jovens esperadas; num caíque, sobre o azul luminoso do golfo, apareciam três pequenas silhuetas negras que, mesmo de longe, se mostravam esbeltas e elegantes.
Com efeito, eram elas. Desceram muito perto deles - e decerto reconheceram-nos através dos seus triplos véus -, encaminhando-se lentamente, sobre as lajes brancas, para a mesquita.
Eles não fizeram um movimento, atrevendo-se a segui-las com o olhar, naquela avenida quase sempre deserta, sempre sagrada e sempre rodeada de eternas recordações.
Muito tempo depois, sem pressa, com ar indiferente, André levantou-se lentamente, como elas tinham feito, e tomou pela bela avenida dos mortos, que é bordada de um e outro lado de quiosques funerários, uma espécie de rotundas de mármore branco, de arcarias fechadas por grades de ferro... Quem se detenha diante daqueles quiosques, olhando pelas janelas, verá no interior, no meio da penumbra, numerosos ataúdes verdes adornados com bordados antigos. Por detrás das grades da arcaria há sepulturas a céu descoberto, que se percebem numa confusa multidão, sepulcros magníficos, de altas colunas monolíticas de mármore, tocando-se umas nas outras, de formas misteriosamente esquisitas e cobertas de arabescos e de inscrições douradas, no meio da verdura, de rosas, de flores silvestres e de ervas altas. Também nas juntas das lajes da sossegada avenida crescem ervas, e próximo da mesquita há uma penumbra verde feita pelos ramos das árvores, que formam uma abóbada.
André, quando chegou, olhou em volta do santo adro, procurando ver se elas ali estavam. Mas não, ninguém. Muito sombrio aquele adro, pelos arcos e pelos plátanos seculares. Os antigos azulejos brilhavam aqui e além sobre as paredes, pelo reflexo do sol filtrado por entre as folhas; pela terra passavam pombos e cegonhas dos arredores, com muita confiança naquele lugar calmo, onde os homens só pensam em rezar. Por fim, a larga cortina que tapava a porta de entrada foi afastada, aparecendo os três pequenos fantasmas negros.
"Caminhe, que nós o seguiremos", tinha escrito "Zahidé".
Passou adiante com passo indeciso e meteu por carreiros fúnebres e suaves, sempre entre arcos gradeados que deixavam ver as múltiplas pedras tumulares, numa porta mais humilde, mais antiga e mais desmoronada do cemitério, onde os mortos estão um pouco como em floresta virgem. E, chegando enfim ao pé da colina, começou a subi-la. A vinte passos seguiam os três pequenos fantasmas e um pouco mais longe Jean Renaud, encarregado da vigilância e de dar o alarme.
Subiam sem sair dos infinitos cemitérios que povoam as alturas do Eyub. E, pouco a pouco, um horizonte das mil e uma noites se desenrolava em volta, donde podiam ver toda Constantinopla, que surgia ao longe por cima das pontas das árvores, como que para subir com elas. Aquilo já não era um bosquezinho, assim como em baixo, em volta do santuário, mas um amontoado de plantas e de arbustos; sobre aquela colina, a erva era curta e não havia entre as inumeráveis sepulturas senão ciprestes gigantes, que deixam entre si muito ar e muita vista.
Estavam os quatro no alto daquela tranquila solidão; André deteve-se e as três esbeltas figuras veladas rodearam-no.
- O senhor pensava que nos tornaríamos a ver - perguntaram elas quase ao mesmo tempo, com as suas lindas vozes feiticeiras, estendendo-lhe a mão.
Ao que André respondeu, um pouco melancòlicamente:
- Sabia eu se voltariam
- Pois aqui estão outra vez as suas três almitas, que são extremamente audazes... E para onde nos leva?
- Para aqui mesmo, se lhes parece... Olhem essas quatro sepulturas, parecem estar aqui de propósito para nos sentarmos... Não vejo ninguém em parte nenhuma... E depois eu estou de fez e falaremos turco; se passar alguém, julgará que passeais com vosso pai...
- Não! - rectificou vivamente "Zahidé"-, nosso marido é que deveis dizer...
E André agradeceu ligeiramente.
Na Turquia, onde os mortos são envolvidos pelo maior respeito, ninguém hesita em sentar-se em cima deles, mesmo sobre os mármores, e um grande número de cemitérios são lugares de passeio e de descanso, à sombra, como nos jardins públicos da Europa.
- Desta vez - disse "Néchédil", sentando-se sobre uma coluna que jazia sobre a erva - não quisemos dar-lhe entrevista muito longa, como no primeiro dia, porque a sua cortesia podia acabar por se cansar.
- É um pouco fanático este Eyub para uma aventura como a nossa - observou "Zahidé" -, mas o senhor ama-o e está como em sua casa... E nós também o amamos e esta será a nossa casa mais tarde; quando chegar a nossa hora, é aqui que nós desejamos dormir.
André olhava-as surpreendido. Parecia-lhe incrível o que ouvia a estas três pequenas criaturas, cujo extremo modernismo tinha-já notado; que liam M. de Noaüles e podiam em qualquer ocasião falar como jovens parisienses, e muito treinadas nos livros de Gyp. Estas pequenas do século XX tinham nomes muçulmanos e eram muçulmanas, sem dúvida de família notável; viriam repousar um dia neste bosque sagrado, lá em baixo, entre todos os mortos de turbante dos velhos séculos da Hégira; em alguns desses inquietantes quiosques de mármore teriam o seu esquife, forrado de pano verde, coberto com um véu de Meca, sobre o qual não tardaria a acumular-se a poeira e onde viriam de noite acender-Lhe, como aos outros, a pequena lamparina...
Oh! sempre este mistério do Islame pelo qual aquelas mulheres estavam envolvidas, mesmo em pleno dia, quando brilhava o sol da Primavera!...
Conversavam sentadas sobre antigas sepulturas, com os pés metidos numa erva fina, salpicada de floritas delicadas, que são amigas dos terrenos secos e tranquilos. Tinham para conversar um sítio maravilhoso, um sitio único no mundo e consagrado por todo o passado. Uma grande quantidade de precedentes gerações, de imperadores bizantinos e de califas magníficos trabalharam durante séculos a compor para eles esta decoração incomparável; todo o Istambul recortado pelas suas mesquitas, por entre as quais se via todo o azul do mar, um Istambul visto em fiada de mesquitas e minaretes, que sobem uns sobre os outros, em profusão confusa e soberba e tendo como fim a superfície imóvel do Mármara, desenhando o seu vertiginoso círculo de lápis-lazúli. E nos primeiros planos, muito perto deles, havia milhares de colunas monolíticas, umas direitas, outras inclinadas, mas todas estranhas e formosas, com os seus arabescos, as suas flores, as suas Inscrições, tudo dourado; os ciprestes de quatrocentos anos, de troncos como colunas de igreja e duma cor de pedra, de folhagem tão escura, pareciam negros campanários debaixo daquele céu formoso.
Neste dia estavam quase alegres as três almitas sem rosto, alegres porque eram jovens, porque tinham conseguido escapar-se, porque se sentiam livres no espaço dalgumas horas e porque o ar ali era suave e ligeiro, com odores de Primavera.
- Repita o senhor os nossos nomes, a ver se não se confunde - pediu "Ikbal".
E André, apontando-as uma após outra, pronunciou, como um aluno que dá lição: "Zahidé, Néchédil, Ikbàl."
- Está bem!... Mas saiba que esses nomes não são os nossos.
- Já o suspeitava... Tanto mais que Néchédil é nome de escrava.
- Néchédil... Ê realmente assim... Ah!... Não sabia que estava tão inteirado.
O radioso sol caía em cheio sobre os espessos véus das jovens e André, em virtude desta luz, procurava descobrir alguma coisa dos seus rostos. Mas não, nada. Três ou quatro véus de gaze tornavam-nas indecifráveis...
Por um pouco não se deixou convencer pelos modestos tcharchafs de seda negra desbotada e pelas luvas um pouco usadas também, que tinham posto para não chamar a atenção. "Depois de tudo", disse de si para si André, "as pobres pequenas não serão senhoras da alta sociedade como eu julgava!" Mas os seus olhos caíram em seguida sobre os sapatos muito elegantes e as finas meias de seda... E aquela alta cultura de que faziam gala bastava para o convencer.
- Do outro dia para cá, não procurou o senhor Informes para nos "identificar" - perguntou uma.
- Se essas pesquisas fossem possíveis!... E demais pouco me importo... Sei que tenho três encantadoras amigas, isso sei-o positivamente, e contento-me com essa indicação...
- Oh! presentemente - propôs "Néchédil"-, nós podemos bem dizer-lhe quem somos. Temos confiança absoluta...
- Não, eu amo-as melhor assim - interrompeu André.
- Guardemo-nos bem - disse "Ikbal". - Todo o nosso encanto a seus olhos é o nosso mistério... Esteja certo, Sr. Lhéry, de que, se não fôssemos muçulmanas veladas, se não tivéssemos de jogar a vida em cada uma das nossas entrevistas, o senhor também diria: "Que me querem estas néscias?", e não viria.
- Não... não...
- Sim, sim. O inverosimil e o perigo da aventura é sem dúvida o que o atrai ao senhor.
- Não, digo-vos com franqueza!
- Seja! Não profundemos mais - concluiu "Zahidé", que estava calada desde há pouco -, não esclareçamos mais o debate; é preferível. Mas, Sr. Lhéry, sem o pôr ao corrente do nosso estado civil, permita que lhe digamos os nossos verdadeiros nomes; e, continuando no nosso incógnito, parece-me que ele nos tornará mais suas amigas
- com muito gosto - respondeu ele -, e parece-me que acabaria por lhes pedir esse favor... Os nomes de empréstimo são como uma barreira.
- Pois começo: "Néchédil" chama-se Zeyneb; é o nome de uma piedosa e sábia dama que em outro tempo explicava teologia em Badgdade, e este nome está-lhe muito bem. "Ikbal" chama-se Mélek1; e como ousou usurpar um nome assim, sendo ela uma pequena peste... Quanto a mim, "Zahidé", chamo-me Djénana -2, e se alguém souber a minha história, verá que sarcasmos oculta tal nome!... Vamos, repita agora: Zeyneb, Mélek, Djénana.
- é inútil, não me esquecerei. Depois de ter dito tanto, resta dizer uma coisa essencial: quando vos falar, é senhora que devo dizer?.
- Não tem mais que dizer-nos: Zeyneb, Mélek, Djénana.
- Oh! entretanto...
- O quê, desagrada-lhe Como vê, somos três pequenas bárbaras... Está bem; se o senhor entende que deve ser senhora, tem de chamar senhora a todas três Mas as nossas relações são já totalmente contrárias a todos os protocolos!... Um pouco mais ou um pouco menos, que importa? E veja como a nossa amizade está em riscos de acabar amanhã: um perigo terrível acompanha os nossos encontros e não sabemos mesmo, ao separar-nos, se nos tornaremos a encontrar. E durante este instante, que pode bem não se repetir na nossa existência, porque não havemos de dar-nos a ilusão de que somos para o senhor íntimas amigas?
1 Anjo. (N. Do T.)
2 Bem-amada. (N. do T.)
Por estranho que isso fosse, era apresentado duma maneira perfeitamente honesta, franca, com desembaraço e uma pureza intangível, como de alma para alma. André lembrou o perigo que corriam naquele lugar adorável, com tantas aparências de paz e de segurança, neste doce dia de Primavera; lembrou-lhes o próprio valor, esquecendo-se da sua coragem de estar ali, e a sua audácia de desesperadas; e, em vez de sorrir-se de tal desejo, sentiu toda a ânsia e toda a ternura que ele encerrava.
- Direi como quereis - respondeu, agradecendo-lhes. Mas em troca suprimireis para mim o senhor, não é verdade
- Ah! E como diremos nós?
- Meu Deus, não sei... Não vejo outro recurso do que chamarem-me só André.
Mélek, a mais nova das três, disse:
- Saiba que Djénana não é a primeira vez que o trata assim, sem mais cortesia.
-Minha querida Mélek, por favor!
- Sim; deixe-me contar-lhe... O senhor não imagina quanto temos já vivido consigo, sobretudo Djénana! Num jornal da sua juventude escreve-lhe em forma de carta, chamando-lhe sempre só André.
- Ê uma terrível criança, Sr. Lhéry; exagera muito, asseguro-lho.
- Ah! e a fotografia?-respondeu Mélek, passando dum assunto a outro.
- Que fotografia - perguntou André.
- O senhor com Djénana. Ê como uma coisa irrealizável, como compreende, mas ela tem desejo de a possuir... Aviemo-nos, que pode ser que a ocasião nunca mais se proporcione... Coloca-te a seu lado, Djénana.
Djénana, com a sua graça lânguida e a sua flexibilidade harmoniosa, levantou-se para se aproximar.
- A senhora sabe com o que se parece - disse-lhe André.
- com uma elegia, com todo esse negro ligeiro que arrasta e com a cabeça inclinada, como a vejo aí entre as sepulturas.
Até a sua voz era de elegia; assim que pronunciava uma frase um pouco melancólica, o timbre da voz tornava-se musical e infinitamente doce, um pouco requebrado e como que longínquo.
Mas esta pequena elegia viva podia de repente tornar-se muito alegre e jocosa e fazer reflexões inesperadas, e então sentia-se que era capaz de troçar e de fazer rir como uma criança.
Pôs-se gravemente ao lado de André, sem fazer o mais leve movimento para tirar os véus.
- Então a senhora vai ficar assim, toda de negro e sem cara?
- Bem entendido! Uma silhueta. O senhor sabe que as almas não têm necessidade de ter figura...
E Mélek tirou debaixo do seu tcharchaf de austera muçulmana um pequeno kodak do último modelo e, dirigindo a sua objectiva para o par, carregou: tac, uma prova, tac, segunda prova...
Não suspeitavam sequer que mais tarde, com o correr do tempo, se lhes tornariam caros e dolorosos esses pequenos retratos, tirados perigosamente num lugar como aquele, no momento em que o sol estava em festa, renovando a natureza...
Mélek, por precaução, dispunha-se a tirar mais um clichê, quando viram surgir dois grandes bigodes debaixo dum gorro vermelho, por detrás deles, de entre os mausoléus; era um passeante estupefacto de ouvir falar uma língua desconhecida e de ver turcas tirarem fotografias dentro de um cemitério santo.
Afastou-se sem protestar, mas como quem diz: "Esperem um pouco, que eu já volto; vai esclarecer-se o caso... -" Como da primeira vez, a entrevista terminou pela fuga precipitada dos três gentis fantasmas. Era tempo, porque aquela personagem em baixo, na colina, amotinara a gente que por ali se encontrava.
Uma hora depois, quando André e o seu amigo se asseguraram de que as três pequenas turcas se encontravam já longe, ganhando, por desencontrados caminhos, um dos embarcadouros do Corno de Ouro, também eles tomaram um caíque com outro rumo, para se afastarem de Eyub.
Agora os dois amigos gozavam com segurança e paz, recostados naquela barca ligeira, segundo o costume de Constantinopla, descendo esse golfo encravado na imensa cidade, na hora em que radiava o esplendor da tarde. O barqueiro remava direito à margem de Istambul, na sombra colossal projectada pela multidão das casas e das mesquitas, ao declinar do Sol, durante séculos, por aquela água sempre cativa e tranquila. Istambul, diante deles, começava a sombrear-se e a unificar-se, ostentando, como todas as tardes, a magnificência das suas cúpulas, no poente ébrio de luz. Istambul tornava-se dominador, cheio de recordações, opressor como nas famosas épocas do seu passado, e sobre aquela formosa superfície espelhenta do mar adivinhavam-se no fundo os cadáveres e os despojes de duas sumptuosas civilizações... Se Istambul estava sombrio, ao contrário, os bairros que se alongavam sobre a margem oposta: Khassim-Paxá, Tershané e Gaiata, tinham o aspecto de incêndio; até mesmo o banal Pera parecia, lá no alto, envolvido de raios de cor de cobre, desempenhar o seu papel naquele maravilhoso espectáculo de fim de dia. Não há no mundo outra cidade que chegue a esta em magnificências próprias e brilhantes fogos que produzem de repente um soberbo espectáculo e uma brilhante apoteose.
Para André, aqueles passeios de caíque ao longo da margem, na sombra de Istambul, tinham sido quase diários em outro tempo, quando vivia na Ponte do Corno de Ouro. Neste momento parecia-lhe que aquele outro tempo era de ontem, e todavia já se tinham passado vinte e cinco anos; recordavam-lhe coisas insignificantes, pormenores esquecidos; custava-lhe acreditar que, se voltasse a Eyub, não encontraria a sua antiga casa clandestina e as caras outrora conhecidas. E, sem saber eXplicar porquê, ansiava um pouco a humilde e pequena circassiana que repousava debaixo da monolítica colunazita já caida e esta Djénana aparecida na sua vida; parece que tinha o sentimento sacrílego de que era esta uma continuação da outra, e nesta hora mágica em que tudo era bem-estar e beleza, e"ncantos e esquecimento, não sentia remorso nenhum de as confundir um pouco... Que queriam dele as três pequenas turcas de agora?... Como acabaria este encontro que o encantava e que parecia tão cheio de perigos. Elas não tinham dito senão coisas genéricas e infantis, e no entanto já se tinham apoderado dele por um afectuoso laço que os unia a todos... Talvez fossem as vozes delas que o seduzissem, sobretudo a de Djénana, uma voz que parecia vir do infinito, do passado, que diferia, não se sabia porquê, dos habituais sons terrestres.
Avançavam sempre, iam como que estendidos sobre a água, tanto se está perto dela naqueles delgados caíques quase sem borda. Já tinham passado a Mesquita de Solimão, que se destaca de todas as outras no ponto culminante de Istambul, dominando-o todo com as suas cúpulas gigantes. Tinham passado aquela parte do Corno de Ouro onde sempre havia muitos navios de vela, velhos tipos, altos mastros pontiagudos, inextricável floresta de paus delgados, ostentando todos a meia-lua do Islame sobre as bandeiras vermelhas. O golfo começava a abrir-se diante deles, na extensão mais larga do Bósforo e do Mármara, onde os inumeráveis navios pareciam transfigurados, devido ao afastamento. Agora entravam em cena bruscamente: a costa da Ásia, com todo o seu esplendor; outra cidade ainda. Escutári fazia cintilar ao longe os seus minaretes e as suas cúpulas, que, duma só vez e rapidamente, pareciam de coral. Escutári dava esta ilusão; parecia que todas as tardes havia fogo nos velhos bairros asiáticos; os vidros das janelas turcas, os pequenos vidros aos milhares reflectiam, cada um, a suprema fulguração do Sol, próximo a desaparecer. Parecia ao observador que todas as casas ardiam por dentro.
André Lhéry, na semana seguinte, recebeu com três assinaturas a carta que segue:
Quarta-feira, 27 de Abril de 19 H
Só nos sentimos contentes quando estamos na vossa presença, e, logo que nos encontramos sós, temos tanto desespero de não nos havermos mostrado amáveis, que pouco tempo estamos sem chorar. Não recuse vir ver-nos uma vez, ainda que seja a última. Temos tudo preparado para sábado; e se soubesse a que maquiavélicas astúcias temos de recorrer! Porém, a nossa entrevista será a de despedida, porque vamos sair.
Sem perder o fio, siga bem tudo isto:
O senhor vem a Istambul e pára em frente de SultãoSelim. Chega a esta mesquita e volta à direita pela ruazita que parece abandonada, entre um pequeno cemitério e o convento de dervixes. Ao fim de cem metros está o adro da pequena mesquita, Tossoun-Agha. Uma vez chegado ao dito adro, encontrará uma grande casa, muito antiga e de velha pintura, dum vermelho um tanto pardo; contorne-a e verá por detrás dela um beco sem saída e um pouco escuro, ladeado de casas gradeadas com muros na frente; do lado esquerdo, a terceira casa, a única que tem duas meias portas com aldraba de cobre, é onde o esperamos. Ê conveniente não trazer o seu amigo; venha só. Ê mais seguro.
Djénana
A partir das duas horas e meia estarei à espreita detrás da dita porta, que estará entreaberta. Traga o fez: e, se lhe for possível, uma capa parda. Mais que modesta é essa pequena casa da nossa última despedida. Procuraremos deixar-Lhe uma grata recordação das três sombras que tão rápidas e ligeiras passam na sua vida, que até pode ser que o senhor dentro em breve duvide da sua própria realidade.
Mélek
E, apesar de passarem ligeiras, não "foram penas que o vento leva" espalhadas pelo senhor, por um capricho fútil. Terá sido o primeiro que sentiu que a pobre turca também tem uma alma, e é em nome dela que os três fantasmas lhe agradecem.
E esta inocente aventura, tão curta e quase irreal, não lhe terá deixado tempo para se enfastiar. Isto será na sua vida uma página escrita numa folha em branco.
Sábado, antes de desaparecer para sempre, dir-lhe-emos muitas coisas, sim, duma vez, sem interrupção, e não como em Eyub, por um susto e por uma fuga precipitada. Está tudo pronto, amigo nosso.
Zeyneb
Eu, que sou a grande estratega do grupo, fui por ele encarregada de desenhar esta bela planta que junto à carta, para que se não engane no caminho. Ainda que o sitio pareça uma guarida de malfeitores, não se assuste, porque não há nada mais honesto nem mais tranquilo.
Mélek (Mélek outra vez)
29 de Abril de 190
Depois de amanhã, sábado, às duas e meia, com o traje indicado: fez e capa parda, estarei defronte da porta de aldraba de cobre às ordens dos três fantasmas negros.
Vosso amigo, André Lhéry
Jean Renaud, que augurava mal da aventura, em vão tinha pedido a André para o seguir.
André limitou-se a conceder-lhe que iriam antes da hora indicada fumar juntos um último cachimbo em certa praça de que conservava grata recordação e que distava um quarto de hora, a pé, do lugar fatal.
Era em Istambul, bem entendido, que se encontrava esta praça, no próprio coração dos bairros muçulmanos, e diante da grande Mesquita de Mehmed-Fatih, que é uma das mais santas.
Depois de passar as pontes, ainda fica uma encosta de longo percurso para lá chegar; está-se em plena Turquia dos velhos tempos; nem europeus, nem chapéus, nem construções modernas; atravessam-se lugares de pouco valor, do estilo dos de Bagdade, ou ruas ladeadas de pontes esquisitas, de quiosques funerários, cercados de grades com sepulturas, onde se sentia o descer pouco a pouco a escala das idades e retrógradas para os séculos passados.
Tinham ainda uma hora quando saíram das ruazitas ladeadas de casinhotos, achando-se em frente da colossal mesquita branca, de minaretes como melas-luaa de ouro que se perdiam no infinito azul do céu.
A alta ogiva da entrada dava para a praça onde eles vinham passar um bocado, uma espécie de vestíbulo ao ar livre, frequentado sobretudo por piedosas personagens fiéis ao costume do passado, de túnica e turbante. Gafes centenários abriam-se em volta, apenas frequentados por fregueses que falavam sonhando. Junto às árvores viam-se, sentados em pequenos divãs, os que querem fumar na rua, gozando à sombra.
Em gaiolas penduradas nas ramagens cantavam passaritos, fazendo a música daquele lugar cândido e pachorrento.
Os dois amigos sentaram-se a uma mesita de onde os imãs se levantaram com delicadeza, oferecendo-lha. Vieram ter com eles pequenitas que pediam esmola, gatos afáveis em busca de carícias, um velho de turbante verde que oferecia coco, "tão fresco como gelo", duas pequenas boêmias, muito lindas, que vendiam água-de-rosas e que dançavam - todos sorridentes, discretos e pouco incômodos. Depois, sem se ocuparem dos dois amigos, deixaram-nos a fumar e a ouvir o canto dos pássaros. Passavam mulheres, umas de dominó negro, outras envolvidas em véus de seda de Damasco, um vermelho e outro verde, com grandes desenhos em ouro; passavam vendedores de bofe, e então alguns bons turcos, bem vestidos e de aspecto distinto, compravam gravemente um pedaço para levar ao seu gato, pondo-o ao ombro espetado na ponta do guarda-chuva. Passavam árabes de Hedjaz, de visita à cidade do califa, e também dervixes cantores, de cabeleira comprida, que voltavam de Meca. Um velhote de 100 anos, pelo menos, por meio centavo fazia dar a pequenitos turcos duas voltas à praça numa caixa com rodas que ele trazia magnificamente pintada, mas que saltava muito sobre as pedras da calçada tortuosa. Depois destas mil pequenas coisas, que indicam o lado moço, simples e bom do povo turco, destacava-se a mesquita, tornando-se maior, majestosa e calma, soberba de linhas e de brancura, com as suas duas flechas no alto, para aquele céu puro de 1." de Maio.
Oh! que doces e honrados olhos debaixo daqueles turbantes; que formosas caras de confiança e de paz, adornadas por barbas negras e louras! Que diferença faziam dos levantinos de casaco que àquela mesma hora se agitavam sobre os passeios de Pera, ou das multidões das nossas cidades orientais, com os olhos de cupido, irônicos, queimados pelo álcool!
E como se sentiam bem no meio dum mundo desconhecido, na idade de ouro, por terem sabido sempre moderar os seus desejos, evitar as trocas e guardar a sua fé! Entre aqueles indivíduos que estavam sentados debaixo das árvores, satisfeitos com a minúscula chávena de café que custa um centavo e o cachimbo que transporta o pensamento ao mundo dos doces sonhos, a maioria era de artífices que trabalhavam por conta própria, cada um no seu pequeno ofício antigo, na sua casita ou ao ar livre. Que diferença entre estes e os pobres operários estropiados dos nossos países de "progresso", que esgotam as forças na oficina abominável para enriquecer o patrão! Como lhes pareceriam surpreendentes e dignas de piedade as vociferações avinhadas nas nossas bolsas de trabalho, ou as inépcias dos palradores políticos, entre dois copos de absinto à mesa de uma taberna!
A hora aproximava-se. André Lhéry deixou o companheiro e encaminhou-se só para o bairro mais afastado de SultãoSelim, sempre em plena turcaria, através de ruas cada vez mais desertas, onde se sentia o abandono e a ruína. Velhos muros de jardins, velhas habitações fechadas, casas de madeira, como as outras pintadas em outro tempo com as mesmas cores pardas, que dão a todo o Istambul a sua cor sombria, fazendo destacar com mais brilho a brancura dos minaretes.
Entre tantas e tantas mesquitas, a de Sultão-Selim é das maiores, com cúpulas e meias-luas que se vêem do mar largo, mas é também a que está mais abandonada. Na praça que contorna não há cafés nem fumadores; e naquele dia ninguém por ali estava diante da ogiva da entrada; era um completo deserto. André viu à direita a ruazita indicada por Djénana, "entre um pequeno cemitério e o convento de dervixes": bem sinistra esta ruazita, onde a erva tornava verde o pavimento. Ao chegar junto da humilde Mesquita de TossounAgha, reconheceu a grande casa, certamente abandonada, que era preciso contornar; nem vivalma nesta praça, só o cantar das andorinhas celebrando o bom mês de Maio; uma glicínia formava sombra, uma dessas glicinias como só se vêem no Oriente, com hastes tão grossas como mastros de navios e que começavam a tingir-se de cor violeta. Por fim, o beco sem saída, coberto de erva, com o pavimento muito escuro por baixo dos velhos muros de impenetráveis grades. Ninguém, nem sequer as andorinhas; o silêncio era absoluto. O lugar tinha um pouco o aspecto de "guarida de malfeitores", como Mélek escrevera.
Quando se é um falso turco, é muito perigoso passar debaixo de tais muros, donde tantos olhos invisíveis podem observar. André caminhava lentamente, passando as contas do seu rosário, e, olhando tudo disfarçadamente, contava as portas fechadas. A casa "que tem duas meias portas com aldraba de cobre". Ê esta!... De resto, acabavam de a entreabrir, e pela fenda passava uma pequena mão enluvada que tamborilava sobre a madeira, uma pequena mão com uma luva de muitos botões, fora do usual naquele pouco simpático bairro.
Ele não falava, parecia indeciso, receando olhares indiscretos; mas, com resolução, empurrou a porta e entrou.
O fantasma negro emboscado detrás da porta, e que era a boa e terna Mélek, fechou-a à chave, correu o fecho e disse alegremente:
- Ah! o senhor encontrou o sítio?... Pois saiba que minhas irmãs estão lá em cima à sua espera.
Subiu uma escada sem tapete, escura e pouco cuidada. Lá em cima, num pobre e pequeno harém muito simples, de paredes nuas, coando-se uma meia luz baça por entre as grades de ferro e as rótulas de madeira das janelas, encontrou os outros dois fantasmas, que lhe estenderam a mão... Pela primeira vez na sua vida estava dentro dum liarem, coisa que, segundo o costume do Oriente, lhe pareceu impossível; estava por dentro daquelas rótulas da habitação de mulheres, aquelas rótulas tão impenetráveis que os homens, excepto o senhor, só viam de fora. Em baixo, a porta estava fechada, e a aventura corria mesmo no coração do velho Istambul, e naquela misteriosa habitação!... Ele perguntava a si mesmo com certo terror: "Que faço eu aqui?" Todo o lado infantil do seu temperamento, todo o prazer de sair de si mesmo, desejando variar de países e de emoções, era o bastante para se contentar.
E, todavia, pareciam espectros de tragédia as damas do seu harém, tão veladas como dias antes em Eyub, e mais indecifráveis do que nunca, pois se até faltava o sol desse dia! Quanto ao harém, em vez do luxo oriental, não passava duma decente miséria.
Fizeram-no sentar num divã de pano desbotado, enquantto ele lançava um olhar em volta de si. Por muito pobres que fossem as senhoras que viviam naquela casa, tinham gosto, simplicidade, tudo era harmonioso e oriental; em parte nenhuma se denotavam as bugigangas alemãs que por desgraça começavam a invadir o interior dos haréns turcos.
- Estou em vossa casa - perguntou André.
- Oh! não - responderam elas, num tom que indicava por detrás dos véus um vago sorriso.
- Perdoai-me; a minha pergunta é absurda, por umas poucas de razões: a primeira é que estou convosco; o resto pouco me importa.
Observava-as. Traziam os mesmos tcharchafs do outro dia, de seda preta já manchada nalguns sítios, porém calçadas como pequenas rainhas. Depois, ao ver-lhes tirar as luvas, notou que tinham os dedos adornados com pedras preciosas. Quem eram estas mulheres e que casa era esta em que se encontravam
Djénana perguntou na sua voz de pequena sereia que vai morrer:
- Quanto tempo pode dispensar-nos
- Todo o tempo que quiserdes.
- Nós dispomos de duas horas de segurança, mas achareis talvez muito?
Mélek trouxe uma dessas mesas de pé só usadas em Constantinopla, para os refrescos que sempre se oferecem às visitas: café, bombons e doce de rosas. A toalha era de cetim branco bordada a ouro, com violetas de Parma naturais postas em cima; era de filigrana de ouro, o que completava toda aquela inverosimilhança.
- Eis as fotografias de Eyub - disse ela, servindo-o com doçura de escrava -, mas saíram mal. Tiraremos outras hoje mesmo, visto que não nos veremos mais; há pouca luz, é preciso estar mais tempo diante da objectiva... E, dizendo isto, apresentava duas diminutas figuras confusas e pardas, onde a silhueta de Djénana apenas se desenhava. André aceitou-as sem entusiasmo, muito longe de suspeitar o interesse que haviam de ter para ele mais tarde.
- É verdade que ides partir - perguntou ele.
- Ê certo.
- Mas voltareis... e encontrar-nos-emos outra vez
Nesta altura, Djénana respondeu com esta palavra imprevista e fatalista com que os Orientais explicam todas as coisas de futuro: "Inch'Allah!..." Partiriam realmente, ou queriam pôr termo à audaciosa aventura, por medo de se enfastiarem todos, ou pelo terrível perigo que corriam? E André, que, em resumo, nada de positivo sabia delas, sentia-as fugidias, como visões impossíveis de reter, ou de reencontrar, no dia em que a sua fantasia as levasse a não querer vê-lo mais.
- E será dentro em pouco a partida - arriscou-se ele ainda a perguntar.
- Dentro de dez dias, sem dúvida.
- Todavia, ainda nos resta tempo para me concederem outra entrevista.
Elas consultaram-se em voz baixa num turco elíptico, muito misturado de palavras árabes e difícil de compreender por André.
- Sim, no próximo sábado - disseram elas - procuraremos fazer-lhe a vontade... e obrigadas pelo desejo. Mas o senhor sabe bem a astúcia que temos de empregar e todas as cumplicidades que é preciso comprar para o receber.
Pareceu-lhes conveniente fotografarem-se novamente, aproveitando um raio de sol que a triste casa defronte projectava na pequena sala gradeada, mas que subia já para o tecto, prestes a desaparecer. Djénana, sempre com André, fotografaram-se em diversas posições; porém, Djénana sempre envolta nos seus véus negros de elegia.
- Vós apresentai-vos bem - disse-lhes ele. - O que para mim é novo, estranho e inquietante é conversar com seres tão invisíveis. As vossas vozes parecem de máscara por causa desses véus tão espessos. Em certos momentos, as senhoras produzem-me um vago receio.
- Lembre-se de que ficou convencionado que nós para o senhor só seríamos almas.
- Sim, mas as almas revelam-se à outra alma, sobretudo pela expressão dos olhos Os vossos olhos nem sequer Imagino como são. Eu creio que são límpidos e francos; porém, ainda que sejam perversos, eu não os conheço. Não, asseguro-vos que a vossa obstinação em os ocultar me gela, me intimida e me afasta. Ao menos fazei uma coisa: dai-me os vossos retratos sem véus... Pela minha honra juro que vo-los devolverei em seguida e, se algum drama nos separar, queimo-os.
Ficaram por momentos silenciosas. com os seus longos hábitos hereditários, muçulmanas, mostrar o rosto parecia-Lhes uma coisa muito feia, tornando-se imprópria da sua amizade por André... Finalmente, Mélek foi a que se decidiu em nome de suas irmãs a satisfazer-lhe o pedido, mas com um certo acento zombeteiro que dava que pensar.
- As nossas fotografias sem tcharchaf nem yachmak Está bem; tirá-las-emos, e na próxima semana lhas mandamos... E agora sentemo-nos. Falará Djéoana, que tem um pedido a fazer-lhe. Fume um cigarro, aborrecer-nos-emos assim menos...
- Ê da nossa parte este pedido - disse Djénana - e também da parte de todas as nossas irmãs da Turquia... Tome a nossa defesa; escreva um livro em favor da pobre muçulmana do século xx!... Diga ao mundo inteiro, como sabe, que nós temos uma alma e que não é já possível tratarem-nos como coisas... Se fizer isto, seremos milhares a bendizê-lo... Quer?
André ficou silencioso, como elas há pouco a propósito dos retratos; este livro, não o via na sua imaginação, porque tinha prometido a si próprio fazer-se oriental em Constantinopla, vaguear e não escrever...
- Como é difícil o que me pedis!... Um livro com que queira provar alguma coisa; vós, que pareceis conhecer-me e ter-me lido, julgais que isso é da minha competência E depois conheço eu a muçulmana do século XX
- Fornecer-lhe-emos documentos...
- Mas ides partir...
- Escrever-lhe-emos.
- Oh! Sabeis o que são cartas, coisas escritas. Não posso nunca contar bem o que não tenha, visto bem...
- Nós voltaremos!.
- Mas comprometem-se... Indagarão quem me forneceu os documentos e acabarão por descobrir o mistério.
- Estamos dispostas a sacrificar-nos por esta causa!. Que melhor emprego poderemos dar às nossas pequenas actividades, desgostosas e sem fim determinado? Queríamos consagrar-nos as três a aliviar misérias, a fundar obras de caridade como as europeias, mas até isso nos recusam; resta -nos ficar ocultas detrás das grades das nossas janelas. Pois bem, queremos ser as inspiradores do livro em que falamos; será essa a nossa obra de caridade, ainda que tenha de custar-nos a liberdade ou a vida. André procurou ainda defender-se.
- Pensai que não sou independente em Constantinopla, ocupo um lugar numa embaixada... E depois, ainda outra coisa: recebo da parte dos Turcos uma hospitalidade muito dedicada!... Entre esses a que chamais os vossos opressores tenho amigos muito queridos...
- Basta! Ê preciso escolher: ou eles ou nós! Decidi.
- Até a esse ponto Mas nesse caso obedeço.
- Enfim!...
E Djénana estendeu-lhe a sua pequena mão, que ele beijou respeitosamente.
Conversaram durante duas horas, numa tranquilidade que não tinham ainda conhecido.
- Não são as senhoras uma excepção - perguntou ele, admirado daquele cúmulo de desespero e de revolta.
- Nós somos a regra. Tome ao acaso vinte mulheres turcas (mulheres do mundo elegante), e não encontrará uma que não fale como nós!... A educação que recebemos faz de nós crianças-prodlgios, bonecas que tocam piano, objectos de luxo e de vaidade para o nosso pai e o nosso dono, e depois tratadas como odaliscas e escravas, como as nossas avós de há cem anos!. Não, não podemos mais, não podemos mais!.
- Acautelai-vos; patrocinar eu a vossa causa, como?, se me sinto tão bem com os velhos costumes... sou muito capaz de fazer guerra às professoras, aos professores transcendentes e a todos os livros que ampliam o sofrimento humano. Voltemos à paz ditosa dos nossos avós.
- Está bem, nós contentamo-nos em rigor com essa maneira de advogar a nossa causa... tanto mais que é impossível retroceder e não podemos opor-nos ao andar do tempo. O essencial para que o público se comova e para que, por fim, sinta piedade de nós é que saiba que somos mártires, nós as mulheres de transição entre as de ontem e as de amanhã. É isto a que é preciso chegar e fazer compreender; depois disso sereis nosso amigo e amigo de todos...
André ainda esperava qualquer coisa imprevista que o dispensasse de escrever o seu livro; porém, deixava-se conquistar pelo calor das suas belas indignações e pelas lindas vozes que vibravam de volta contra a tirania dos homens.
Habituava-se pouco a pouco a vê-las sem rosto. Para lhe darem o lume com que acender os seus cigarros e lhe servirem a chávena microscópica onde se bebe o café turco, iam e vinham em volta dele, elegantes, ligeiras, exaltadas, mas sempre fantasmas negros, e, quando elas se curvavam, o véu pendia, como a longa barba dum capuchinho que por troça tivesse sido posta naqueles seres de graça e juventude.
A segurança nesta casa era para ele somente aparente, naquele beco sem saída que, em caso de surpresa, era uma perfeita ratoeira. Se por acaso ouviam passos fora, sobre a calçada coberta de erva minúscula, olhavam logo inquietas por entre as rótulas protectoras; era algum velho de turbante que regressava a casa, ou o aguadeiro do bairro com o odre sobre os ombros.
Tinham combinado tratarem-se pelos nomes próprios, sem mais nada. Porém, nenhum deles ousava começar, de sorte que não se chamavam.
Uma vez tiveram grande susto; o batente de cobre da porta exterior retiniu, tocado por mão impaciente, produzindo um ruído terrível no meio do silêncio das casas mortas; imediatamente se precipitaram todas para as rótulas das janelas; era uma senhora de tcharchaf de seda preta, apoiada a um bastão; tinha a aparência de muita idade.
- Não é nada de grave - disseram elas -, o incidente estava previsto. O que tem é de passar por aqui.
- Então escondo-me
- Não é necessário. Vai Mélek, abre-lhe a porta e diz-lhe o que está combinado. Ela só passa e não volta a aparecer... Ao passar junto de vós, é possível que vos pergunte em turco: Como vai o pequeno doente?, e vós só tendes que responder-lhe em turco: Está um pouco melhor desde esta manhã.
Um instante depois passou a velha senhora com o véu caído, tacteando os modestos tapetes com a ponta do bastão. Não deixou de perguntar a André:
- Então vai melhor o querido rapaz
- Muito melhor - respondeu ele -, sobretudo desde esta manhã.
- Bem, obrigada, obrigada!...
Depois desapareceu por uma pequena porta ao fundo do harém.
André não pediu nenhuma explicação. Achava-se naquela casa, em plena inverosimilhança de conto oriental; se as jovens lhe tivessem dito que de debaixo do divã ia sair uma fada que tocaria com a sua varinha mágica nas paredes daquela casa e que a converteria num palácio, ele acreditaria sem comentários.
Depois da passagem da velha senhora restavam-lhes poucos minutos para conversar. Quando chegou a hora, elas despediram-no, prometendo-lhe que se veriam ainda uma vez com risco de tudo.
- Adeus, amigo nosso, ande com passo lento e sonhador, correndo o seu rosário, que nós as três, pelas rótulas da janela, observaremos a dignidade da sua saída.
Na sexta-feira seguinte, um velho eunuco, furtivo e mudo, levou a André um aviso de entrevista para o dia seguinte, no mesmo sítio e à mesma hora, e ao mesmo tempo uns grandes cartões num envelope bem lacrado.
"-Ah! - disse ele-, as fotografias que me prometeram!"
E, impaciente por conhecer enfim os olhos delas, rasgou o envelope.
Eram com efeito três retratos, sem tcharchaf nem yachmak e devidamente assinados em francês e em turco, um por Djénana, outro por Zeyneb e o terceiro por Mélek. As suas amigas tinham escolhido toilette para se lhe apresentarem em belos trajes de sarau, decotados e à moda de Paris. Porém, Zeyneb e Mélek estavam de costas, só deixando ver uma parte das orelhas; só Djénana se mostrava de frente, mas tinha diante de si um leque de penas que tudo lhe ocultava até mesmo os cabelos.
No dia seguinte, sábado, na casa misteriosa onde se reuniam pela segunda vez, não se passou nada de misterioso, nenhuma fada lhes apareceu.
- Estamos em casa da minha boa tia - explicou Djénana -, que nunca soube recusar-me coisa alguma: a criança doente é seu filho, a velha senhora é sua mãe, a quem Mélek vos anunciou como um novo médico. Compreende a trama?... Tenho remorsos de o fazer desempenhar um papel tão perigoso... Mas se este é o nosso último dia...
Conversaram duas horas, não falando desta vez no livro; sem dúvida temiam cansar André, falando-lhe sobre este assunto. Demais, já tinha dado a sua palavra que o escrevia.
E depois tinham muitas outras coisas a dizer, há tanto tempo guardadas, pois que, se bem que há muito vivessem com o escritor, era somente por intermédio dos seus livros, e era este um dos casos raros nele, que sentia tédio, em geral, quando descobria os segredos íntimos da sua alma. Depois de tudo, que lhe importava o gesto de indiferença dos que não compreendiam, ao lado desses afectos ardentes que despertam uma obra, nas duas extremidades do mundo, em almas de mulheres desconhecidas, e sem dúvida a única razão que o levava a escrever!
Agora já existia confiança, entendimento e amizade entre André Lhéry e os três pequenos fantasmas do harém. Elas conheciam-no bem pelos seus livros, e, como ele as não conhecia, escutava mais que falava. Zeyneb e Mélek contaram-lhe o seu infortunado matrimônio e o inferno sem esperança do seu futuro.
Djénana, pelo contrário, não revelou nada do seu intimo.
Além das simpatias confiantes que os aproximavam, uma real surpresa para todos era a alegria que os dominava quando estavam juntos. André deixava-se encantar por aquela alegria de raça e de juventude, que, apesar de tudo, lhes estava arreigada e que elas agora melhor mostravam, desde que ele as intimidava menos. E ele, que elas tinham imaginado sombrio e que lho tinham anunciado como sendo altivo e glacial, eis que aparecia, pelo contrário, muito simples, rindo-se a propósito de tudo; no fundo, muito mais jovem que a sua idade indicava, engraçado e trocista. Era a primeira vez que falava com mulheres turcas da alta sociedade. E nunca na sua vida elas tinham conversado com um homem, fosse ele qual fosse. Nesta pequena casita vetusta e sombria, perdida no coração do velho Istambul, rodeado de ruínas e sepulturas, realizavam o impossível, reunindo-se para trocar impressões. Surpreendia-os, decerto, sendo ainda uns para os outros elementos tão novos; surpreendia-os não se encontrarem muito dessemelhantes; mas não, ao contrário, estavam em perfeita comunhão de ideias e de impressões, como amigos que se conhecessem há muito. Elas, tudo quanto sabiam da vida em geral e das coisas da Europa e da evolução dos espíritos no Ocidente, tinham-no aprendido na solidão, com os livros.
E hoje, por milagre, conversavam com um homem do Ocidente, e um homem de nome conhecido, encontrando-se ao nível dele, e ele tratava-as como iguais, como inteligências, como almas, o que lhes produzia uma espécie de embriaguez do espírito até ali desconhecida.
Zeyneb era quem neste dia fazia o serviço de refrescos sobre a pequena mesa, desta vez coberta com uma toalha de cetim verde e prata, sobre a qual havia rosas vermelhas naturais. Quanto a Djénana, estava cada vez mais imóvel, sentada à porta, como uma estátua. Tinha conversado mais que as outras duas, e sobretudo interrogava com mais profundeza, porém sem um gesto sequer, como se tivesse prometido a si mesma ser a mais intangível das três, fisicamente falando, e a mais inexistente. Uma vez, ao levantar o braço, o tcharchaf deixou entrever uma manga do vestido, muito largo, em forma de balão, em moda naquela Primavera, feito de gaze de seda cor de limão, com desenhos em verde-claro - duas cores que deviam ficar na mente de André como sinais para o dia seguinte.
Em volta deles era tudo mais triste que na semana anterior, porque o frio tinha voltado, embora em pleno mês de Maio; ouvia-se sibilar, de encontro às portas, o vento do mar Negro, como se fosse de Inverno; todo o Istambul tiritava debaixo dum céu coberto de nuvens escuras e no pequeno e humilde harém, gradeado, parecia já noite.
De súbito, o batente de cobre da porta da rua assustou-as.
- São elas - disse Mélek, que tinha ido à janela. - São elas! Estou muito contente de ver que se puderam escapar!
Desceu a escada a correr, para abrir a porta, e voltou acompanhada por mais dois dominós negros, de véus impenetráveis, que também pareciam elegantes jovens.
- O Sr. André Lhéry - disse Djénana. - Apresento-lhe duas das minhas amigas, os seus nomes pouco lhe importam, suponho...
- Duas senhoras fantasmas, simplesmente - acrescentaram as recém-chegadas, acentuando esta palavra de que André tinha quase abusado num dos seus últimos livros.
Ao mesmo tempo estendiam-lhe as suas pequenas mãos enluvadas de branco. Falavam francês, numa voz muito doce e com desembaraço, essas duas novas sombras.
- As nossas amigas disseram-nos - notou uma - que o senhor ia escrever um livro em favor da muçulmana do século XX, e nós lembrámo-nos de lhe agradecer.
- Como se chamará - disse outra, sentando-se com graça, lânguidamente, num desbotado divã.
- Meu Deus, ainda não pensei nisso. Ê um projecto muito recente e que de certo modo me foi imposto... Se quereis, vamos submeter o título a concurso... Eu proponho As Desencantadas.
- "As desencantadas" - repetiu lentamente Djénana. Só se é desencantada quando se vive, mas nós, que, ao contrário, nunca vivemos!... Não somos desencantadas, mas sim aniquiladas, sequestradas e asfixiadas...
- Está bem, encontrei o título! - exclamou Mélek, que estava naquele dia muito alegre. - Que lhes parece este: As -Asfixiadas Este, sim, que traduziria o estado da nossa alma debaixo dos espessos véus que pomos para o receber, Sr. André! Nem sequer calculais quanto nos custa respirar debaixo deles!...
- Precisamente agora ia perguntar-lhe porque é que os põem. Não podiam as senhoras, em presença do seu amigo, apresentar-se, como todas as que cruzam Istambul, veladas sim, mas com uma certa transparência, que deixa ver alguma coisa do perfil, o nariz, às vezes a testa e até os olhos? Ao contrário, as senhoras nada.
- E sabeis como nos falta de todo o ar, andando assim tapadas?... Regra geral, quando encontrais na rua uma misteriosa, de véu cerrado, podeis dizer: esta vai onde não devia ir. (Como nós por exemplo. ) E isto é tão vulgar que as outras mulheres, quando vêem passar uma dessas muito veladas, sorriem e voltam-se a observá-la.
- Vamos, Mélek - relembrou docemente Djénana -, não estejas com chistes de criança garota... "As desencantadas", sim, a palavra soa bem, mas o sentido não lhes corresponde.
- Eis como eu entendia. Recordem-se das velhas lendas e dos velhos tempos da valquiria que dormia no seu burgo subterrâneo, ou da princesa encantada que dormia no seu castelo, no meio duma selva. O feitiço desfez-se e desertaram. Pois bem, as senhoras, as muçulmanas, dormiam há muitos séculos um sono muito tranquilo, guardadas pelas tradições e pelos dogmas!... Porém, de repente, o perverso feiticeiro que é o sopro do Ocidente passou por vós e rompeu o encanto, e todas ao mesmo tempo despertaram pelo mal de viver e pelo sofrimento de saber...
Djénana só estava meio vencida. Visivelmente, notava-se que tinha pensado num título, mas não queria dizê-lo ainda.
As recém-chegadas eram também revoltadas até ao cúmulo. Falava-se muito em Constantinopla, naquela Primavera, duma mulher jovem da alta sociedade que se tinha evadido para Paris. A aventura esquentou as cabeças das mulheres nos haréns e estes dois pequenos fantasmas sonharam com alguma coisa parecida.
- Vós - disse Djénana -, é possível que encontrásseis a felicidade naquele país, porque tendes nas veias o sangue ocidental. (Saiba, Sr. Lhéry, que a avó destas amigas era uma francesa que veio a Constantinopla, desposou um turco e abraçou o islame. ) Mas eu, Zeyneb e Mélek, deixar a nossa Turquia? Não, para nós três é impossível pensar nesse meio de libertação. Mais humilhações ainda se for preciso, mais escravidão. Mas morrer aqui e repousar em Eyub!...
- E como tendes razão... -concluiu André.
Diziam sempre que iam ausentar-se por algum tempo. Mas André, ao despedir-se delas, desta vez possuía quase a certeza de que lhe concederiam outra entrevista; tinha-as muito interessadas por aquele livro e por alguma coisa mais, um laço de ordem ainda indefinível, mas já resistente e doce, que começava a formar-se, sobretudo entre ele e Djénana.
Mélek, que estava encarregada de ser a porteira da casa, foi incumbida de o despedir. E, durante o pouco tempo que esteve com ele no escuro e descolorido corredor, André reprovou-lhe amargamente a mistificação das fotografias sem rosto; ela nada lhe respondeu, continuando a segui-lo até ao meio da velha escada sombria, para ver dali se ele era capaz de abrir a porta exterior.
E quando ele, lá em baixo, se voltou para lhe dizer adeus, viu-a em cima, sorrindo-lhe com todos os seus formosos dentes brancos, sorrindo-lhe com o seu nariz de revoltada trocista, mas bondosa, com os seus grandes e belos olhos pardos e todo o seu delicioso rosto de vinte anos. com as duas mãos tinha levantado os véus até aos caracóis avermelhados que lhe emolduravam a fronte. O seu sorriso dizia: "Está bem, sim, sou eu, Mélek, a vossa pequena amiga Mélek que se vos apresenta. Não sou como as outras, como Djénana, por exemplo, isto para mim não tem nenhuma importância. Adeus, André Lhéry, adeus."
Isto foi o tempo dum relâmpago, e o véu negro caiu novamente. André disse-lhe docemente "obrigado", falando em turco, por estar já fora da porta, perdendo-se no beco fúnebre.
Fora fazia frio debaixo daquelas espessas nuvens e daquele vento da Rússia. O calor do dia tornava-se lúgubre como em Dezembro. Aquele triste dia recordava-lhe da maneira mais pungente a sua juventude, pois que as horas de ilusão que vivera em Eyub, outrora, decorreram em pleno Inverno. Quando ele atravessou a praça deserta, diante da grande Mesquita de Sultão-Selim, recordou-se de repente, com cruel clareza, de a ter atravessado a essa mesma hora, e nessa mesma solidão, com um igual vento do norte, uma tarde pardacenta, havia já vinte e cinco anos. Então foi a imagem da Qlaerida morta que varreu por completo do seu espírito a de Djénana.
No dia seguinte passava por acaso pela maior rua de Pera, em companhia de pessoas amáveis da sua Embaixada, os Saint-Enogat, com quem começava a ter intimidade. Cruzou-se com eles um coupé negro, dentro do qual ele percebeu distraidamente a forma duma turca trazendo tcharchaf; a. Sr. Saint-Enogat saudou indiscretamente a senhora velada, que logo correu um pouco nervosamente o estore da carruagem, e neste rápido movimento André percebeu debaixo do tcharchaf uma manga de seda cor de limão e desenhos verdes que ele estava seguro de ter visto na véspera.
- O quê, saúda uma senhora turca na rua? - disse ele.
- É bem incorrecto, com efeito, o que acabo de fazer, sobretudo estando convosco e meu marido.
- E quem é?...
- Djénana Tewfik-Paxá, uma das flores de elegância da jovem Turquia.
- Ah! Formosa?
- Mais do que formosa, encantadora.
- Ê rica, a avaliar pela equipagem.
- Diz-se que possui na Ásia o valor de uma província. Ê justamente uma das vossas admiradoras, meu querido mestre. - Ela acentuava, um pouco chistosa, o "meu querido mestre", por saber que este título o incomodava. - Na última semana, na Legação de... depois do meio-dia, todos os criados (homens) foram passear, na intenção de darem chá sem homens a que as senhoras turcas pudessem assistir... Ela veio... E uma convidada dizia coisas do senhor, mas que coisas.
- A senhora
- Oh! Deus, não; dizer mal do senhor só me diverte quando está presente... Foi a condessa de A... e a ST.a Tewfik-Paxá tomou a sua defesa, mas com um calor... Aproveito a ocasião para lhe dizer que me parece que ela lhe interessa muito...
- A mim Como pode parecer-lhe tal coisa Sabe muito bem que uma mulher turca não existe para nós, os homens... O que há é a coincidência de me encontrar com essa carruagem tão elegante.
- Pois tem o senhor sorte, essa senhora não sai nunca.
- Mas sim, sim! Eu geralmente tenho visto outras duas mulheres de porte juvenil acompanhá-la.
- São suas primas, as pequenas Mehmed-Bei, filhas do antigo ministro.
- E como se chamam essas pequenas Mehmed-Bei
- Uma é Zeyneb e a outra Mélek. creio eu.
A Sr." Saint-Enogat tinha suspeitado alguma coisa, porém era muito amável e muito segura para que tivesse de temer alguma indiscrição da sua parte.
Elas deixaram Constantinopla e André Lhéry, alguns dias depois, recebeu de Djénana, selada de Salonica, a carta seguinte:
18 de Maio
Caro amigo: o senhor, que tanto ama as rosas, porque não está connosco? O senhor, que tanto sente o Oriente e o ama como nenhum outro ocidental, porque não há-de poder penetrar no antigo palácio onde estamos instaladas por algumas semanas, por detrás dos altos muros sombrios e atapetados de flores?
Estamos em casa de uma das minhas avós, muito longe da cidade, em pleno campo. Em volta de nós é tudo velho: seres e coisas. Aqui só há a nossa juventude, com as flores da Primavera e as nossas três pequenas escravas circassianas, que se contentam com a sua sorte e não compreendem os nossos lamentos.
Há já cinco anos que cá não vínhamos, e nem sequer nos lembrávamos da vida daqui; em comparação, a nossa vida de Istambul é mais fácil e livre. Mandadas bruscamente para este meio, onde toda uma geração nos separa, sentimo-nos como estranhas. Amam-nos, mas ao mesmo tempo odeiam em nós a nossa alma nova. Por deferência, por desejo de paz, fazemos o possível por nos submeter a fórmulas, por aparentar modos e atitudes alheias. Mas isto não basta; debaixo desta atitude há uma alma ontem nascida, que se escapa, que palpita e vibra, e não lhe perdoam ter-se libertado, nem sequer que viva.
Todavia, com quantos esforços, sacrifícios e dores temos pago essa libertação, Mas o senhor não conhece estas lutas, porque é ocidental; a sua alma, em todo o tempo, tem podido desenvolver-se na atmosfera que lhe convém, e por isso o senhor não pode compreender o que nos aflige...
Oh!, amigo, quão incoerentes e harmoniosas ao mesmo tempo havíamos de parecer-lhe aqui! Se o senhor pudesse ver-nos, no fundo deste jardim de onde lhe escrevo, debaixo deste quiosque de madeira, muito sossegado, ornamentado com azulejos, onde a água canta num tanque de mármore, rodeado de divas à moda antiga, cobertos de seda cor-de-rosa desbotada, onde cintilam ainda alguns fios de prata. Ao pé florescem essas rosas pálidas que brotam profusamente e que na sua terra se chamam "ramos-de-noiva". As suas amigas não trazem trajes europeus, nem modernos tcharchafs; voltaram ao atavismo da sua avó. Pois saiba, Senhor André, que temos despejado malas velhíssimas para tirar delas roupas que tiveram belos dias no harém imperial, no tempo de Abdul-Medjib. (A dona do palácio, que nos deu tais vestidos, é nossa bisavó O senhor conhece estes vestidos São grandes túnicas que arrastam pelo chão e que é preciso levantar para podermos andar. As nossas foram cor-de-rosa, verdes, amarelas, cores desvanecidas, como as flores que se conservam entre as folhas dum livro, tintas que não são mais que reflexos, a ponto de desaparecerem.
Envoltas nestas túnicas impregnadas de tantas recordações, e debaixo destes quiosques à borda de água, é que nós lemos o seu último livro: O País de Kabul - o nosso exemplar, que o senhor mesmo nos deu. O artista que o senhor é não podia sonhar para esta leitura um quadro mais sedutor. As rosas inumeráveis que de todos os lados crescem formam-nos nas janelas radiosas cortinas e a Primavera desta província meridional transtorna-nos com o seu tépido ambiente... Agora já vimos Kabul.
Por todos os aspectos, gosto menos deste livro que dos antecessores; não há nele, suficientemente, a personalidade do autor. Não chorei como quando li tantas outras coisas que o senhor já escreveu, que nem sempre são tristes, mas que, todavia, me comovem e me entristecem cada vez que as leio. Oh. não escreva mais somente com o espírito! Parece-me que o senhor não quer transparecer já no seu trabalho... que importa o que os outros possam dizer Escreva mais com o coração; tornou-se ele impassível presentemente, a ponto de já se não sentir bater nos livros como outrora!...
A tarde aproxima-se, e a hora é tão bela nestes jardins silenciosos que, em chegando este momento, até as próprias flores parecem pensativas e sonhadoras. Elas ali ficam eternamente a escutar a voz do pequeno fio de água; no lago de mármore, ainda que o seu cantar não seja vanado, exprime a monotonia dos dias. Este lugar talvez pudesse ser um paraíso! Sente-se que nele, como em volta dele, tudo poderia ser belo! A vida e o bem-estar com a liberdade podiam ser uma só e a mesma coisa!
Voltamos a entrar no palácio; é preciso dizer-lhe adeus, amigo. Já ai vem um grande negro em nossa procura, porque se faz tarde... - e as escravas começaram a cantar e a tocar o alaúde para entreter as senhoras velhas.
A toda a hora nos obrigam a dançar e proibiram-nos de falar o francês, o que não impede que cada uma de nós adormeça com um dos vossos livros debaixo do travesseiro.
Adeus, amigo nosso. Pense por vezes nas suas três pequenas sombras sem rosto!
Djénana
No cemitério, lá em baixo, diante das muralhas de Istambul, a reedificação da humilde sepultura estava acabada, graças à cumplicidade de amigos turcos. E André Lhéry, que não se tinha atrevido a passar por lá enquanto os canteiros trabalhavam, ia hoje, 30 de Maio, fazer a sua primeira visita à pequena morta que repousava debaixo de pedras novas.
Ao chegar ao bosque funerário, viu de longe a sepultura, clandestinamente reparada, que tinha um brilho de nova, no meio de toda a velhice que a rodeava. As duas pequenas colunas de mármore, tanto a que estava aos pés como a que estava à cabeceira, erguiam-se direitas e brancas entre todas as outras da vizinhança, destroçadas, meio caídas umas, caídas de todo outras. Também tinham renovado a pintura azul entre as letras em relevo da inscrição, que brilhava de ouro vivo; aquelas letras diziam, depois de uma curta poesia sobre a morte: "Pedi pela alma de Nedjibé, filha de AliDjianghir Effendi, morta em 18 de Moharrem 1297." Já não se percebia muito bem que ali tinham trabalhado operários, porque em volta da sepultura crescia a erva forte e própria dos terrenos pedregosos, excitada pelo sol de Maio. Quanto aos grandes ciprestes que tinham visto passar os reinados dos califas e os séculos, estavam tal qual como André os vira pela primeira vez, e sem dúvida tal como há cem anos, com as mesmas atitudes, os mesmos gestos petrificados da sua ramagem cor de ossadas secas, que se levantavam para o céu, como braços de mortos. E as antigas muralhas de Istambul seguiam a perder de vista a sua linha de bastiões e de seleiras rectas nesta solidão sempre igual, mais abandonada que nunca.
Fazia um tempo muito limpo. A terra e os ciprestes cheiravam bem; a resignação nestes cemitérios era naquele dia doce e persuasiva; dava-lhe vontade de se demorar muito tempo ali, sonhando, e de participar da paz dos que ali repousavam, debaixo das pedras e das ervas.
André foi-se embora serenado e quase feliz por ter, enfim, podido cumprir este piedoso dever, de tal maneira difícil que muitas noites lhe tinha tirado o sono durante alguns anos, no curso das suas viagens e das agitações da sua existência errante, mesmo muito longe. Quantas vezes, nas suas insónias, tinha pensado nisto, que se assemelha às impossibilidades dos maus sonhos: levantar os mármores humildes, que se faziam em pedaços, no meio de um cemitério de Istambul. Agora lá estava cumprida a tarefa. Demais, parecia-Lhe muito sua a querida pequena sepultura, agora que novamente estava posta de pé, pela sua própria vontade, e que tinha sido ele que a tinha feito consolidar para que durasse.
Como sentia a alma muito turca, nesta bela tarde, límpida e suave, próximo ao escurecer, quando a lua cheia ia brilhar sobre o mármore! Voltou já de noite a Istambul e subiu até ao coração dos bairros muçulmanos, para se ir sentar fora, na esplanada que se lhe tinha tornado familiar, diante da Mesquita do Sultão Fatih. Queria sonhar ali, ao ar puro e fresco da noite, na deliciosa paz oriental, fumando narguilés, envolto por uma atmosfera tépida e mórbida, de quebrantamento, de silêncio religioso e de oração.
Quando chegou à praça, já todos os pequenos cafés que a cercavam tinham acesas as suas modestas lâmpadas e as lanternas penduradas nas árvores - velhas lanternas de azeite que alumiavam com uma luz baça os bancos e os tamboretes em que os sonhadores de turbante fumavam, falando pouco e em voz baixa; ouvia-se o borbulhar especial dos seus cachimbos, que eram às centenas, na água que se agita no recipiente, pela aspiração profunda do fumador. Trocaram-Lhe o seu, com brasas vivas sobre as folhas de tabaco persa, começando para ele, como para todos os outros que o rodeavam, um deleite cerebral muito doce, inofensivo e favorável aos pensamentos. André sentou-se debaixo daquelas árvores, onde estavam penduradas as lanternas de luz fraca, em frente da mesquita, dela separado somente pela esplanada. A praça solitária e meio escura, em que brotavam da terra, aqui e ali sem pedras, as dálias, tinha ao fundo a alta, grande e majestosa fachada da mesquita, severa como uma fortaleza, com uma só entrada, a ogiva que mede trinta pés de alto, por onde se entra para o adro santo. Depois, para a direita e para a esquerda, na negra confusão da noite - as árvores, vagas sombras de ciprestes, indicando a região dos mortos -, a obscuridade mais estranha de todas da paz misteriosa de Islame. A Lua, que uma hora depois se levantou detrás das montanhas da Ásia, começava a despontar no alto da fachada de Sultão Fatih, e lentamente ia subindo redonda, cor de prata um pouco azulada, tão livre, tão alta, por cima da maciça crosta terrestre, que dava bem a impressão do seu isolamento e da sua longitude...
A claridade azul ia pouco a pouco banhando o espaço e cobria de luz os sábios e piedosos fumadores, ao passo que a praça deserta tinha a sombra das grandes paredes sagradas. Ao mesmo tempo, esta claridade lunar impregnava uma fresca brisa nocturna exalada pelo Mármara, brisa que ainda ninguém tinha notado e que era de tal maneira diáfana
- mas que também se tornava de um azulado-claro que tudo envolvia - que até dava um aspecto vaporoso a essa parede de mesquita sempre tão pesada. E os dois minaretes que se erguiam para o céu pareciam transparentes; dispostos a reflectir os raios da Lua, davam a vertigem de os olhar, naquela neblina de luz, tão grandes, inconscientes e ligeiros eram...
Aquela mesma hora, do outro lado do Corno de Ouro
- que na realidade não era muito longe dali, mas que parecia estar a uma distância incomensurável-, vivia uma cidade chamada europeia, com o nome de Pera, que começava a sua vida nocturna. Havia levantinos de todas as raças (e alguns jovens turcos), julgando-se elevados a um grande grau de civilização por vestirem à europeia, que a pouco e pouco enchiam as cervejarias, os estúpidos cafés-concerto ou as mesas de jogo dos clubes da alta elegância perense... Que seres tão pequeninos o mundo contém!...
Pobres seres, os dali, agitados, desequilibrados, vários e mesquinhos, já sem ideal e sem esperança! Seres pobríssimos, comparados com os simples e os sábios de Istambul, que esperam que lá do alto dos minaretes os chamem à oração, para irem, cheios de confiança, ajoelhar-se perante o desconhecido Alá, e que mais tarde, com a alma tranquila, morrem como quem parte para uma bela viagem!
As vozes por eles esperadas já entoaram o seu canto de chamada; algumas personagens que vivem lá no alto dessas flechas perdidas no vapor luminoso do céu, os hóspedes do ar, que neste momento se avizinham da Lua, vocalizam de repente, como pássaros, numa espécie de êxtase vibrante por que se deixam possuir. Ê preciso procurar homens de garganta especial para se fazerem ouvir do cimo desses prodigiosos minaretes, donde se não perde um som; nada do que eles dizem se confunde, descendo até nós, preciso, límpido e fácil...
Um agora, logo outro, os sonhadores levantam-se, fundem-se na sombra que envolve a esplanada e atravessam-na, dirigindo-se à porta santa. Pequenos grupos de três, de quatro e cinco, de turbantes brancos e longas túnicas, vão rezar. Depois vêm outros, de diversos sítios, da obscuridade das ruas e das casas fechadas. Aparecem em sandálias, silenciosos, marchando calmos, recolhidos e graves. A alta ogiva que os atrai a todos, aberta na grande parede, é como que um antiquíssimo farol destinado a alumiá-la; pendida do arco com a pequena flâmula, torna-se amarelenta e morta, debaixo da soberba luz lunar que enche o céu. Enquanto as vozes lá no alto cantam sempre, as cabeças envoltas em musselina branca, como que em procissão, vão fundir-se cã em baixo, sob o imenso pórtico.
Quando os bancos da praça ficaram sem ninguém, André Lhéry dirigiu-se também para a mesquita; era o último e o mais miserável de todos e não ia rezar. Entrou e encostou-se à ombreira da porta. Dois ou três mil turbantes que tinha diante de si acabavam de formar várias fileiras iguais em frente do mihrab. Elevou-se no silêncio uma voz suave como um queixume, e de uma melancolia sem igual, que vocalizou em notas muito altas como os cantores, notas que pareciam morrer lentamente, reanim ando-se em seguida, e que, vibrando de novo, ecoavam sob as vastas cúpulas, arrastando-se como numa lenta agonia de morte, para se elevarem depois. É ela, é esta voz, que regula as orações dos dois mil fiéis; atentos ao som do seu apelo, ajoelham-se e depois prostram-se em maior humildade ainda, baixando a fronte sobre o solo, todos ao mesmo tempo, como que enebriados pelo encanto triste e doce que passa sobre as suas cabeças, que fraqueja e desaparece pouco a pouco, a ponto de não ser mais do que um murmúrio, mas que ecoa ainda na imensa nave.
O vasto santuário tem pouca luz. As velhas lamparinas dependuradas do tecto da abóbada, em longas correntes muito finas, que descem abaixo muito sonoras, sem a pura brancura das paredes, nada alumiariam. Às vezes ouvia-se o ruído de asas; eram os pombos familiares, aos quais deixam fazer ninho lá em cima, no alto das tribunas, que despertavam por causa daquelas pequenas luzes e pelo ruído ligeiro de todas aquelas túnicas; voando, iam e vinham sem medo de todos aqueles turbantes. A paz é absoluta e profunda a fé; quando as frontes se curvam sobre o encanto da pequena voz que lá do alto treme, a oração daqueles fiéis é silenciosa e suave como o fumo do incenso...
Oh! Possa Alá e o califa proteger e isolar por muito tempo o povo turco, religioso e sonhador, leal e bom, um dos mais nobres deste mundo e capaz de terríveis energias e de sublimes heroísmos sobre os campos de batalha, quer seja a causa a terra natal, quer seja o islame e a fé!
A oração acabou e André voltou com os outros fiéis a sentar-se a fumar fora, à luz da bela Lua, que subia sempre. Pensava, com um contentamento muito calmo, na sepultura reparada que a esta hora devia estar muito branca, direita e formosa, nesta noite clara e cheia de luz. Estava cumprido o seu dever; podia deixar o país, pois que outrora tinha dito que não. faria mais do que isto. Mas não, o feitiço oriental tinha-se pouco a pouco apoderado dele, e depois queria ouvir as lindas vozes das três pequenas misteriosas, que voltariam no Verão. Ao princípio tivera remorsos da aventura, por causa da hospitalidade que lhe davam os seus amigos turcos; porém, agora, agora já não pensava da mesma forma. "Em suma", dizia ele, "eu não atentei contra a honra de nenhum deles; entre Djénana, que podia ser minha filha, e eu, que nunca a vi e que sem dúvida jamais a verei, como poderá haver, de qualquer de nós dois, mais que uma gentil e estranha amizade?"
De resto, acabava de receber uma carta dela, que colocava decididamente as coisas no seu lugar:
Um dia de capricho - escrevia ela do interior do seu palácio de bela encantada que não a impedia de se revelar -, um dia de capricho e de pior solidão moral, irritadas contra esta barreira infranqueada contra a qual sempre nos revoltamos e que nos humilha, parti-mos com ardor para a descoberta da personagem que o senhor é. O nosso primeiro desejo de entrevista foi pela curiosidade.
Encontrámos um André Lhéry muito diferente do que nós imaginávamos. E agora, do verdadeiro André, a quem o senhor nos permitiu conhecer, desse nunca mais nos esqueceremos. Mas é preciso explicar esta frase, que, duma mulher para um homem, tem o ar duma galantaria de mau gosto. Não o esqueceremos porque, graças ao senhor, nós conhecemos o que deve fazer o verdadeiro encanto da vida das mulheres ocidentais: o contado intelectual com um artista. Nunca mais nos esqueceremos do senhor porque nos testemunhou um pouco de simpatia afectuosa, sem saber se somos novas ou máscaras velhas; o senhor interessou-se pelo melhor que há em nós, a nossa alma, que os nossos donos até agora têm sempre considerado como não merecendo atenção; fez-nos entrever quão preciosa podia ser uma pura amizade de homem.
Justamente o que ele tinha pensado: um amável encontro de almas, e mais nada; um encontro de almas com muito perigo em volta, mas um perigo material e nada moral. E tudo isto ficava branco como a neve, branco como as cúpulas das mesquitas à luz do dia.
No bolso tinha a carta de Djénana, recebida momentos antes em Pera, e tirou-a para a tornar a ler com mais tranquilidade, à luz duma lanterna pendurada numa árvore:
E agora - dizia Djénana -, agora que não temos o senhor ao pé de nós, que tristeza a nossa ao voltar a cair no antigo letargo! A sua existência, que é colorida e palpitante, permite-lhe conceber as nossas, tão pálidas, constituídas por anos que se arrastam sem deixar recordações. De antemão sabemos sempre o que amanhã nos espera, que é o nada, e sabemos também que todos os dias até à nossa morte deslizarão com a mesma doçura aborrecida e no mesmo tom impreciso. Vivemos os dias, por mais formosos que sejam, com nostalgia, e com a cabeça coroada de espinhos.
Nos romances que nos chegam da Europa vemos sempre indivíduos que no declinar da vida choram ilusões perdidas. Perderam-nas, mas ao menos tinham-nas e conheceram uma vez o prazer arrebatador duma ida até à miragem! Enquanto a nós, André, nunca nos deixaram a possibilidade duma só ilusão, e, quando a nossa velhice vier, até nos faltará melancólica distracção de chorar. Oh! com quanta mais acuidade sentimos estas coisas desde que o conhecemos!
Que horas aquelas, passadas em sua companhia, na velha casa do bairro de Sultão-Selim!... Realizámos ali um sonho de que outrora não ousámos ter esperança: possuímos só as três André Lhéry e fomos tratadas por ele como seres pensantes e não como joguetes, e mesmo um pouco como amigas, a ponto de ele descobrir para nós os lados secretos da sua alma! Por pouco que conhecêssemos a vida europeia e os usos do vosso mundo, compreendemos toda a confiança com que respondeis às nossas indiscrições. Oh! disto, por exemplo, estamos bem conscientes; e saiba que sem os nossos véus não teríamos sido tão audazes.
Agora, com toda a simplicidade do coração, vamos preparar-lhe uma coisa. O senhor falou-nos o outro dia da sepultura que lhe é querida e tivemos todas três a mesma ideia, que o mesmo sentimento de temor nos impediu de lhe exprimir. Mas ousamos dizer-lhe por carta... Se soubéssemos onde é a sepultura da vossa amiga, podíamos ir lá rezar algumas vezes, e, quando se retirasse, velaríamos por ela e dar-lhe-íamos noticias. Supomos que lhe seria muito grato pensar que neste rincão de terra onde dorme uma parte do seu coração alguém olharia por ela. nós ficaríamos muito satisfeitas por este laço um pouco real consigo, e, quando estivesse longe, a lembrança da sua amiga doutrora protegeria contra o esquecimento as suas amigas de hoje...
E, nas nossas rezas por essa que o ensinou a amar o nosso país, também rezaríamos pelo senhor, porque sobejamente conhecemos a incurável nostalgia de que sofre!... Surpreende-me que sinta uma esperança depois que o conheço, eu que já nada esperava! Hei-de ser eu quem lhe recorde que não tem o direito de limitar à sua vida a sua esperança e o seu ideal, quando tem escrito certas páginas dos seus livros...
Djénana
Há muito tempo que tinha sonhado isto: recomendar a sepultura de Nedjibé a alguém que cuidasse dela; e sobretudo tinha sonhado com isto, aparentemente muito irrealizável, de confiar a sepultura a mulheres turcas, irmãs da morta, pela raça e pelo islame. De modo que a proposta de Djénana não só estabelecia laços mais estreitos entre ambos, mas também acalmava o seu desejo e tranquilizava a sua consciência a respeito da questão do cemitério.
E naquela noite admirável relembrava o passado e pensava no presente; em geral parecia-lhe que, entre a primeira fase tão infantil da sua vida turca e o período actual, o tempo tinha cavado um abismo; e esta noite, pelo contrário, era um dos momentos em que ele via os dois períodos mais próximos, como que numa série não interrompida. Ao sentir-se ali, ainda tão vivo e jovem, quando há muito tempo não era mais do que um pouco de terra entre outra terra, na obscuridade de baixo, tão depressa sentia remorso e vergonha como um veemente amor pela vida e pela juventude, que era quase um sentimento de triunfo egoísta...
E pela segunda vez nesta noite associava as duas na sua memória. Nedjibé e Djénana eram do mesmo país e ambas circassianas; a voz de uma, em muitas ocasiões, tinha-lhe lembrado a voz da outra; havia algumas palavras turcas que pronunciavam da mesma forma
De repente lembrou-se que devia ser muito tarde ao ouvir, do lado das árvores, chocalhos de mulas, esses chocalhos sempre tão argentinos e claros nas noites de Istambul, à chegada dos hortelãos com cestos de frutas, de flores, de favas, de alfaces e de todas essas coisas de Maio que, "de manhã muito cedo, as mulheres do povo, de véu branco sobre o rosto, vêm comprar ao pé das mesquitas. De súbito, olhando em volta, viu que era o último fumador que tinha ficado na praça. Quase todas as lanternas dos pequenos cafés se tinham apagado. A geada caíra-lhe sobre os ombros, humedecendo-os; e um rapaz por detrás dele, encostado a uma árvore, esperava docemente que ele acabasse de fumar para fechar a porta.
Perto da meia-noite levantou-se para descer até às pontes do Corno de Ouro e passar para a outra margem, onde morava. Nenhuma carruagem àquela hora. Antes de sair do velho Istambul adormecido debaixo da Lua tinha de fazer um grande trajecto, no silêncio, no meio de uma cidade de sonho, com casas solitárias e cerradas, onde tudo parecia petrificado pelos raios duma grande luz espectral e muito branca.
Tinha de atravessar os bairros em que as ruas desciam e subiam, emaranhando-se, como que para enganar o pensamento retardatário que não tinha encontrado ninguém que lhe ensinasse o caminho; porém, André conhecia muito bem aqueles sítios. Também encontrava praças em completa solidão, em volta de mesquitas que confundiam as suas cúpulas e que a Lua cobria de imensos sudários brancos. Muitos cemitérios fechados, com grades antigas de desenhos árabes, onde se viam lamparinas sobre algumas sepulturas.
Aqui e ali entrevia-se uma vaga luz de lamparina pelas janelas dos quiosques de mármore, mas esta luz era também para os mortos, e não valia a pena olhar pelas janelas, porque o observador não via mais do que caixões roídos pelo caruncho, como cobertas de cinza. Fora, no chão, dormiam, em grupos, cães da cor de leões, enroscados como novelos, cães da Turquia, tão bons como os muçulmanos que os deixam viver em paz e muito incapazes de se zangar mesmo que os pisem, apesar de não compreenderem que é por descuido. Nenhum ruído além daquele que o chuço dum vigia fazia, batendo nalguma laje descaldeada. O velho Istambul, com todas as suas sepulturas, dormia na sua paz religiosa, nessa noite como há trezentos anos.
Depois dos cambiantes do céu, no mês de Maio, em que o sopro do mar Negro se obstina em trazer ainda tantas nuvens carregadas de chuva muito fria, o mês de Junho desdobra de repente sobre a Turquia o azul profundo do Oriente meridional. Tinha terminado o êxodo anual dos habitantes de Constantinopla para o Bósforo. Ao longo desta água, quase todos os dias agitada pelo vento, cada embaixada tinha tomado posse da sua residência de Verão, sobre a costa da Europa, e André Lhéry viu-se obrigado a subir a corrente, indo instalar-se em Therapia, uma espécie de vila cosmopolita desfigurada pelos monstruosos hotéis, onde gritam à noite as orquestras de café-concerto; porém, vivia adiante, na costa da Ásia, que continuava a ser deliciosamente oriental, cheia de sombra e de paz.
Voltava também frequentemente ao seu querido Istambul, de que estava separado somente por uma hora de caminho, pelo Bósforo, povoado da multidão de navios e de barcas que sem cessar sobem e descem.
No meio do estreito, entre as duas margens sem fim, cheias de pequenas casas e de palácios, vê-se o desfilar sem interrupção dos navios, velhos veleiros do passado e grandes vapores modernos, que navegam aos grupos desde que se levante um vento propício. Tudo o que se produz no país do Danúbio eles exportam do Sul da Rússia e mesmo da Pérsia longínqua e de Bukhara, navegando por esse verde passeio, com a perpétua corrente de ar que vem das estepes do Norte até ao Mediterrâneo. Mais perto das margens, o vaivém das embarcações de todas as formas: canos, caíques ligeiros, cujos remadores trazem vestimentas bordadas a ouro, moscas eléctricas, grandes barcos, pintados e dourados, de pescadores que remam em pé e estendem grandes redes que apanham todo o peixe na sua passagem. Atravessam esta multidão contínua barcos de rodas, que, de manhã à noite, transportam de costa a costa, da Europa à Ásia e desta àquela, homens de fez vermelhos e mulheres veladas.
À direita e à esquerda, ao longo do Bósforo, a 20 quilômetros de distância, encontram-se casas que, por entre as árvores e os jardins, espreitam pelas suas janelas livres as janelas gradeadas dos haréns impenetráveis. Casas de todos os tempos e de todos os estilos. Do lado da Europa, algumas vilas barrocas de levantinos atacados de delírio, de frentes compósitas e mesmo de arte nova, incoerentes, ao lado das harmoniosas habitações da velha Turquia, mas que todavia se não notam muito naquele belo conjunto. Do lado da Ásia, onde só habitam turcos, ciosos do silêncio e desdenhosos do baratismo moderno, pode-se, sem decepção, costear perto da terra, porque está intacto o encanto do passado e do Oriente que ainda envolve todas as coisas.
Em cada saliência da margem e em cada clareira, no fundo das colinas cobertas de árvores, só se vêem aparecer coisas doutrora, grandes árvores, pedaços do mistério oriental. Nem um caminho à borda de água; cada casa, segundo o antigo costume, tem o seu pequeno cais de mármore, separados uns dos outros e fechados, para onde as mulheres do harém têm o direito de ir de véu ligeiro olhar, a seus pés, os barcos gentis, sempre velozes, e os finos caíques que passam, de feitio arqueado, em forma de meia-lua.
Por detrás, os santos cemitérios, onde as colunas douradas parecem estar ali para verem também os navios que passam e o movimento compassado dos remadores. Mesquitas à sombra de plátanos veneráveis muitas vezes centenários. Praças de aldeia onde se vêem redes a secar, penduradas nos ramos das árvores, como se estivessem formando toldo, debaixo das quais sonhadores de turbante estão sentados em volta de alguma fonte de mármore, inalteràvelmente branca, com piedosas inscrições e arabescos de ouro.
Quando se desce da Therapia e da embocadura do mar Negro para Constantinopla, a lendária beleza do Bósforo desenrola-se pouco a pouco, num crescendo de magnificência, até à apoteose final, que é no momento em que se abre o Mármara, aparecendo da esquerda Escutári da Ásia e da direita, por detrás dos grandes cais de mármore e dos palácios do sultão, o alto perfil de Istambul, que se levanta com a sua multidão de cúpulas e de agulhas.
Tal era a decoração de cambiantes surpresas em que André Lhéry tinha de viver até ao Outono e esperar as suas amigas, as três pequenas sombras negras que lhe tinham dito: "Nós passaremos o Verão no Bósforo." Mas havia já muitos dias que não davam sinal de vida. E como saber presentemente se elas tinham voltado, se não havia palavra de passe para o velho palácio, perdido nos bosques da Macedónia?
Djénana a André
Bunar-Bachi, junto de Salonica, 20 de Junho de 1904 (à franca)
A sua amiga pensa no senhor, mas durante algumas semanas tem sido muito guardada e não tem podido escrever.
Hoje vai contar-lhe a pálida e pequena história do seu matrimônio. O senhor, que escutou com tanta benevolência a de Mélek e de Zeyneb em Istambul, se se lembra, na casita da minha boa tia, escute também a minha.
O desconhecido que meu pai me deu por marido não era brutal nem doente, pelo contrário, era um belo oficial louro, de maneiras elegantes e doces, que eu podia ter amado. Se logo o execrei, como senhor imposto pela força, presentemente não lhe tenho nenhum rancor. Eu não soube admitir o amor como ele o entendia, um amor que só era desejo, ficando indiferente à prece do seu coração.
Entre nós, as muçulmanas, o senhor sabe já muito bem como os homens estão separados das mulheres na mesma casa. Decerto que esse costume tende a desaparecer, e conheço privilegiadas cuja existência é passada verdadeiramente com seu marido. Mas não sucede assim com famílias como as nossas, fiéis aos velhos costumes e à religião; nestas, o harém onde nós estamos e o selamlike onde estão os homens nossos senhores são habitações completamente distintas e separadas. Eu habitava um grande harém principesco, com a minha sogra, duas cunhadas e uma prima de Hamdi, chamada Durdané, muito linda, de uma brancura de alabastro, com cabelos de cor ardente, de olhos verdes e pupilas fosforescentes, cujo olhar nunca se encontrava.
Hamdi era filho único e a sua mulher foi muito mimada. Deram-lhe um andar todo do velho e imenso palácio; eu tinha só para mim quatro luxuosas salas à antiga moda turca, onde me sentia bem; os móveis do meu quarto de dormir tinham vindo de Paris, assim como os duma sala Luís XVI e do meu quarto de toilette, onde me tinham permitido guardar os livros. Recordo-me que, ao guardá-los em pequenos armários de lata branca, me sentia angustiada ao pensar que a minha vida de mulher terminava onde tinha começado e não me dera tudo quanto eu havia esperado dela... De modo que o casamento gerou só beijos e caricias que não procuravam a minha alma e longas horas de solidão e de encerramento, sem interesse e sem fim, em seguida a outras horas em que ele me fazia desempenhar um papel de boneca, ou ainda pior.
Procurei tornar o mais agradável possível o meu quarto para decidir Hamdi a passar nele suas horas de liberdade. Lia os jornais e conversava com ele sobre coisas do palácio e do exército. Procurava saber quais os assuntos que o interessavam para aprender a falar deles. Mas não, isto transtornava as suas ideias hereditárias, eu bem via. "Tudo isso", dizia ele, "é muito bom para as conversas dos homens no selamlike." Só me pedia que fosse bonita e amorosa... E tanto insistiu que me pareceu demasiada exigência.
Uma que devia saber ser amorosa era Durdané! Entre a família era admirada, pela sua graça - uma graça de jovem pantera que fazia ondular todos os seus movimentos. De noite dançava e tocava; falava pouco, mas sorria sempre, e o seu sorriso era prometedor e cruel, deixando ver os seus pequenos dentes pontiagudos.
Frequentemente, ia para os meus aposentos com o pretexto de me fazer companhia. Olhava com desdém os meus livros, o piano, os cadernos e as minhas cartas! Fora isto, levava-me sempre para uma das salas à turca, para se estender sobre um divã e fumar cigarrilhas, revendo-se a um espelho que, trazia consigo. E julgava poder-lhe contar as minhas mágoas, porque já tinha sido casada e era nova. Mas ela abria os grandes olhos cor de água e desatava a rir. "De que podes tu queixar-te? Tu és moça, bonita e tens um marido a quem já vais amando. Que te importa o que ele pensa. Dá-se todo e a ti só!" E apoiava estas últimas palavras com um mau olhar.
Um verdadeiro desgosto para a mãe de Hamdi era que eu não tivesse um filho ao fim de um ano de casada. Dizia que me tinham enfeitiçado, mas nunca conseguiu levar-me a tomar águas especiais, a ir às mesquitas, ou a procurar as dervixes tidas como capazes de conjurar tais malefícios. Um filho, não, de forma nenhuma. Se por desgraça fosse fêmea, como havia de educá-la À oriental, como Durdané, sem outro fim na vida do que as canções e as carícias Ou então como nós fomos, Zeyneb, Mélek e eu, condenando-a assim a sofrer cruelmente
Eu bem sei, André, que é inevitável o nosso sofrimento; nós somos o degrau, nós e sem dúvida as que venham logo atrás de nós, o degrau pelo qual as muçulmanas da Turquia são chamadas a subir para a sua emancipação. Não me sentia com coragem de votar ao sacrifício uma pequena criatura do meu sangue e que eu teria de embalar nos meus braços.
Hamdi, nesta época, tinha decidida intenção de pedir um posto no estrangeiro, em qualquer embaixada. "Levar-te-ei à Europa", dizia-me ele, "e aí viverás a vida das ocidentais, como a mulher do nosso embaixador em Viena ou como a princesa Êminé na Suécia." Eu pensava que depois, sós numa casa mais pequena, a nossa existência se tornaria forçosamente mais intima. Pensava também que no estrangeiro ele ficaria contente e até orgulhoso de ter uma mulher cultivada e sabedora de todas as coisas. E com que persistência eu estudava para estar em dia! Eu lia todas as grandes revistas francesas, todos os grandes jornais, os romances e as peças de teatro. Foi então, André, que eu comecei a conhecê-lo duma maneira mais profunda. Ainda pequena, tinha lido Medjé e mais alguns dos seus livros sobre o nosso país do Oriente. Reli-os durante este período da minha vida e compreendi melhor ainda porque nós todas, as muçulmanas, vos devemos reconhecimento e vos amamos mais do que todas as outras. Ê que nós encontramo-nos em intima comunhão de alma convosco, pela vossa compreensão do islame. Oh! o nosso islame, falseado e desconhecido, mas a que nós continuamos fiéis, porque não é ele que quer os nossos sofrimentos. . Não foi o nosso profeta que nos condenou ao martírio que nos aflige. O véu que ele nos deu era uma protecção, e não um sinal de escravidão. Nunca, nunca ele quereria que fôssemos bonecas de prazer; o piedoso imã que nos ensinou a nossa doutrina, do nosso santo livro, disse-no-lo claramente. Digo-o também, André, digo-o para honra do Alcorão e para vingança dos que sofrem. Digo-o, enfim, porque vos amamos.
Depois de ler os seus livros sobre o Oriente quis ler todos os outros. Sobre cada uma das suas páginas deixei uma lágrima... Os autores muito lidos, ao escrever, pensam na infinita variedade das almas até onde o seu pensamento se prolonga Para as mulheres ocidentais que vêem o mundo que vivem, as impressões do escritor penetram nelas menos que em nós. Mas nós, as eternamente enclausuradas, temos na mão do senhor o espelho que nos reflecte o mundo, que só conhecemos por intermédio dos escritores. E é através dos escritores que nós sentimos e vivemos; não lhe parece que o escritor amado se torna uma parte de nós mesmas Eu segui o senhor por todas as partes, em volta da Terra; tenho os álbuns cheios de recortes dos jornais que falam a seu respeito; tenho ouvido dizer muito mal do senhor, mas não tenho acreditado. Muito antes de o haver encontrado tinha exactamente pressentido o homem que o senhor devia ser. Quando por fim o vi, havia já muito tempo que o conhecia. Quando me deu os seus retratos, havia já muito tempo, André, que eu os tinha todos guardados no fundo dum cofre secreto, num saquinho de cetim!... E depois de semelhante confissão quer o senhor ver-nos outra vez? Não, estas coisas só se disem ao amigo que nunca mais se verá
Meu Deus, a minha pequena história de casamento já vai alongada!... Estamos, creio, no fim do Inverno, a que se seguiu a bela festa do meu casamento.
Foi grande aquele Inverno, deixando Istambul dois meses debaixo de neve. Eu tinha empalidecido muito. A mãe de Hamdi, Êmiré Hanum, via bem que eu não era feliz. Inquietou-se, ao que me parece, por me ver muito branca, tanto que um dia chamou vários médicos e, segundo os seus conselhos, me mandou passar dois meses nas ilhas', onde as nossas amigas Zeyneb e Mélekc já estavam.
Julgo que o senhor conhece as nossas ilhas e a doçura da sua Primavera. o amor da vida, o amor do amor que aí se respira. Nesse ar puro, perfumado pelos pinheiros que me envolviam, sentia-me renascer. As tristes lembranças e as notas falsas da minha vida de mulher, tudo se fundia numa languides terna. Julgava-me louca por ter sido junto de meu marido tão complicada e exigente. Aquele clima de Abril tinha-me transformado. à noite, ao clarão da Lua, no belo jardim da nossa vila, passeava só, sem outro desejo, sem outro prazer Ao que ter perto de mim o meu Hamdi, sentindo o seu braço comprimindo a minha cintura, sem ser mais do que uma apaixonada. Sentia muito pesar pelos beijos que não soube devolver e pela nostalgia das caricias que me tinham incomodado.
Antes do prazo fixado, sem prevenir ninguém, parti para Istambul, seguida somente pelos meus escravos,
O navio que me levou, retardado por avarias, não chegou ao cair da noite, e o senhor sabe que nós, as muçulmanas, não temos o direito de estar fora de casa depois do pôr do Sol. Eram bem nove horas quando eu cheguei e entrei sem ruído na nossa casa. Hamdi, a esta hora, devia estar no selamlike com seu pai e os amigos, como habitualmente; minha sogra, sem dúvida, estava recolhida a meditar no seu Alcorão, e a minha prima escutando as profecias dalguma escrava hábil em interpretar o que dizem as borras do café.
Subi em direcção ao meu quarto e, ao entrar, vi Durdané nos braços do meu marido...
O André dirá que é bem banal a minha aventura e muito em uso no Ocidente; porém, só a conto pelas consequências que teve.
Estou cansada, amigo; não voltará a ver-me e eu continuarei amanhã.
Djénana
Entretanto passou todo o mês de Julho sem que André Lhéry recebesse a prometida continuação; nem a mais leve notícia das três pequenas sombras negras.
Como todos os ribeirinhos do Bósforo naquela estação, vivia muito sobre a água, no vaivém de cada dia, entre a
1 As ilhas dos Príncipes, no mar de Mármara. Em Constantinopla
diz-se: "as ilhas". (N. do T.)
Europa e a Ásia. Estava pelo menos tão oriental como um turco; tinha o seu caíque e os remadores traziam o traje tradicional: camisas de gaze de Brussa com mangas soltas e jaquetas de veludo bordadas a ouro. O caíque era branco, afilado, agudo como uma flecha, e o veludo das librés era encarnado.
Uma manhã, costeava a margem asiática, percorrendo num olhar distraído as velhas habitações de paredes na água, as janelas fechadas dos haréns e as plantas que as rodeavam por detrás das grades dos misteriosos jardins, quando viu vir para ele uma barca ligeira remada por três mulheres vestidas de seda branca e acompanhadas por um eunuco de sobrecasaca correctamente abotoada, sentado atrás delas; as três remadoras remavam com toda a força, como que para ganhar um prêmio. Passaram perto de André, voltando a cabeça para ele; notou que tinham mãos muito elegantes, mas que os véus de musselina que estavam caídos sobre o rosto não deixavam ver nada.
André não duvidou que eram as suas três pequenas sombras negras que se tinham tornado, com o Verão, em fantasmas brancos.
No dia seguinte escreveram-lhe:
3 de Agosto de 1904
Há dois dias que as suas amigas estão novamente instaladas no Bósforo, na costa da Ásia. Ontem de manhã iam de barca, remando elas mesmas, como é hábito seu, para ir a Paxá-Bagtché, onde há amoras nas silvas e floritas azuis na erva.
Remávamos. Em lugar do tcharchaf e do véu negro, levávamos um yeldirmé de seda clara e uma écharpe de musselina em volta da cabeça, o que só nos consentem no Bósforo ou no campo. Dia formoso, parece que havia juventude, um verdadeiro tempo de amor e de vida. O ar era fresco e ligeiro e os remos pareciam-nos plumas. Em vez de gozarmos descansadas a bela manhã, não sei que fúria nos deu para remarmos depressa, e fazíamos voar a nossa barca sobre a água, como em procura do bem-estar ou da morte.
Nem a morte nem o bem-estar alcançámos naquela correria, mas o nosso amigo, que parecia um paxá, num belo caíque, de remadores vestidos de encarnado com bordados de ouro. Os seus olhos e os meus cruzaram-se num grande olhar, mas os seus não viram os meus.
Desde que voltámos, estamos como que embriagadas, como cativas recém-saídas do estreito calabouço, para de novo voltar a ele; se o senhor soubesse, apesar da magnificência das rosas, que sítio é aquele donde vínhamos. . Sendo o senhor do Ocidente, febril e livre, é capaz de sentir o horror das nossas existências mortas, dos nossos horizontes, onde só uma coisa apetece, ir dormir à sombra dos ciprestes do cemitério de Eyub, depois de o imã dizer as orações do ritual
Djénana
Vivemos como cristais preciosos; sabe que nos têm embalado em caixas cheias de farelos? Imaginam evitar-nos assim todos os choques, mas chegam com certeza as sacudidelas, e então as guebraduras vivas, com os bocados em perpétuo contado, fazem-nos um mal surdo, profundo e horrível...
Zeyneb
Eu sou a única pessoa de bom senso, entre nós três, amigo André; o senhor certamente que já o percebeu. As outras duas - isto aqui para nós - estão um pouco maboul. Sobretudo Djénana, que quer continuar a escrever-lhe, mas que não quer voltar a vê-lo. Mas, por fortuna, estou eu aqui para regular as coisas. Responda-nos com a antiga direcção: (8.o Zahidé, lembra-se?) Depois de amanhã uma amiga, de confiança irá buscar à posta-restante.
Mélek
André respondeu logo. A Djénana dizia: "Não a ver mais - ou, melhor dito, não ouvir mais a sua voz, porque eu nunca a vi-, e tudo isso por me ter feito uma gentil declaração de amizade intelectual! Que infantilidade! Recebo muitas declarações, e pode crer que não me alterava." Intentava tomar a coisa como gracejo e confinar-se num papel de amigo antigo, de muito mais idade e um pouco paternal. No fundo, estava inquieto pelas extremas resoluções que esta pequena alma altiva e obstinada era capaz de tomar; não se fiava e sentia entretanto que ela lhe era já muito querida, e não a ver entristecê-lo-ia durante todo o Verão.
Na carta reclamava ele a continuação da história prometida e no fim contava, por escrúpulo da consciência, como por acaso as tinha "identificado" a cada uma de per si.
Dois dias depois responderam:
Ê uma grande desgraça que o senhor nos haja identificado; estas amigas a quem nunca conheceu a cara interessam-lhe ainda, agora que o seu pequeno mistério está desvendado?
A continuação da minha história, nada mais fácil, tê-la-á.
Voltar a ver-nos, André, é menos simples, deixe-me reflectir...
Djénana
Está bem. Eu vou identificar-me a fundo, indicando-lhe onde é a nossa casa. Quando descer o Bósforo do lado da costa da Ásia, na segunda calheta depois de Tchiboukli, há uma mesquita, e depois da mesquita uma casa de estilo muito antigo, muito gradeada, pomposa e triste, onde está sempre sobre o estreito cais um negro de sobrecasaca que o guarda: é essa a nossa casa. No primeiro andar, do lado do mar, as seis janelas da esquerda, defendidas por grades fortes, são as dos nossos quartos. Visto que o senhor ama esta casa da Ásia, passe por lá de preferência e olhe para as nossas janelas sem se demorar; as suas amigas, que reconhecem de longe o seu caíque, meterão um dedo pela rótula em sinal de amizade, ou então a ponta do seu lenço de assoar.
Vamos arranjando as coisas com a Djénana, e conte com uma entrevista em Istambul, na próxima semana.
Mélek
Não se fez rogado para passar defronte da casa das suas amigas. No dia seguinte era uma quinta-feira, dia de passeio elegante nas Águas Doces da Ásia, onde nunca deixava de aparecer, e encontraria no caminho a velha morada de Djénana, sem dúvida muito fácil de reconhecer.
Estendido sobre o seu caíque, passou tão perto quanto o autorizava a discrição. O iali, todo de madeira, segundo o antigo costume turco, um pouco derreado pelo tempo e pintado de amarelo-sombrio, tinha um imponente aspecto, mas muito triste e secreto. Na base, a casa era banhada pelo Bósforo, e as janelas das suas amigas cativas salientavam-se sobre a água marinha, sempre agitada pela corrente. Atrás eram os jardins, de muros muito altos, que subiam a perder-se nos bosques da encosta vizinha. Por baixo da casa abria-se uma espécie de túnel de abóbada, que servia no tempo antigo para guardar os barcos das senhoras. André, ao aproximar-se, viu sair um belo caíque, preparado para passeio, de remadores vestidos de veludo azul, bordado a ouro, e um grande tapete do mesmo pano, com iguais bordaduras, arrastando pela água. Iriam também as pequenas amigas às Águas Doces? Parecia que sim.
Passou olhando as rótulas indicadas e viu dedos delicados cheios de anéis saindo por elas e uma ponta do lenço. Só pela maneira desenvolta de mover os dedos e de fazer dançar o lenço André reconheceu Mélek.
Em Constantinopla há as Águas Doces da Europa: é entre árvores e prados que corre um pequeno rio, onde vem muita gente todas as quintas-feiras, na Primavera. Há também as Águas Doces da Ásia, um rio ainda mais pequeno, quase uma miniatura de rio, que cai das colinas asiáticas para o Bõsforo e onde se reúne muita gente nas quintas-feiras de Verão.
À hora a que André ali chegou, uma grande quantidade de caíques desciam as duas margens, uns trazendo senhoras veladas e outros homens de fez vermelno. Ao pé de uma fantástica cidadela da Idade Média, sarracena, eriçada de torres e de ameias, e próximo de um sumptuoso quiosque com cais de mármore, propriedade do sultão, abre-se essa pequena corrente de água, que todas as semanas atrai tantas belas misteriosas.
Antes de entrar no rio, André voltou-se para ver se também iam as suas amigas, e julgou reconhecer ao longe as três silhuetas de tcharchaf negro e a libré azul e dourada dos barqueiros.
Havia já muita gente sobre as águas, em embarcações de todas as cores e de todas as formas, quando ele chegou; pelas margens, a erva muito fina e muito bonita, em tabuleiros em forma de anfiteatro, como que disposto para que a gente possa, sentada, ver passar os barcos. Aqui e além, grandes árvores, à sombra das quais tinham posto pequenos cafés, onde fumadores indolentes, de cachimbo, haviam estendido esteiras sobre a erva, para descansarem à oriental. Dos dois lados, colinas cobertas de florestas fechavam tudo isto entre declives deliciosamente verdes. Eram sobretudo mulheres que guarneciam o alto das grades natura's, sobre as duas lindas e pequenas margens. Não há nada tão harmonioso como uma multidão de mulheres turcas no campo, sem tcharchaf negro como na cidade, mas com grandes dominós de uma só cor - rosa, azul, pardo e vermelho -, tendo a cabeça envolta uniformemente por um véu de musselina branca.
A particularidade saliente no passeio é este ocultamento sobre uma água tão tranquila, tão encerrada e tão envolvida de verdura, com tantos pares de olhos lindos, que observam em volta pelas fendas dos véus.
De vez em quando as embarcações não avançam; os remos cruzam-se, misturam-se e os remadores gritam; os caíques tocam-se e os passeantes podem olhar-se por largo tempo. Há senhoras veladas que ficam uma hora encostadas à margem, com o caíque metido entre o junco e as flores da água, observando os que passam, com a face apoiada a uma das mãos. Há ainda outras que não temem meter-se entre as embarcações, sempre impassíveis e enigmáticas, de véu caido, enquanto os seus remadores, recamados de ouro, se esforçam por abrir passagem. Há só quinhentos ou seiscentos metros rio acima, na espessura das ramagens, entre as árvores que pendem sobre os barcos, os quais, tocando o fundo, têm de voltar para trás; então custa muito voltar, e segue-se outra vez a corrente para subi-la de novo e depois descê-la, como de passeio por uma alameda.
Ao dar a volta ao caíque, no sítio onde termina a água navegável, André pensou: "com certeza que vou encontrar-me com as minhas amigas, pois devem ter chegado às Águas Doces minutos depois de mim." Já se não preocupou com as mulheres sentadas aos grupos sobre a erva, nem com os pares de olhos negros, pardos, ou azuis que mostravam todas essas cabeças envolvidas de branco; só lhe interessavam os barcos de mulheres que vinham ao seu encontro. Um desfilar muito bonito no seu conjunto, se bem que não seja como nos velhos tempos, e a que é preciso por vezes voltar as costas, para não ver as pretensiosas embarcações norte-americanas das jovens turcas que seguem a moda, nem as vulgares barcas de aluguer, onde as levantinas exigem chapéus de sol que assustam. Todavia, os caíques ainda dominam, e naquele dia havia muitos e notáveis, com os seus belos remadores vestidos de veludo muito dourado, levando dentro senhoras meio estendidas, de tcharchafs mais ou menos transparentes, algumas da alta sociedade de yachmak, como para ir a Ildiz, deixando ver a fronte e os olhos negros. Decerto estranhou que as suas amiguinhas, flores de elegância, viessem de yachmak, em vez de virem todas de negro, impenetrável, como as tinha percebido ao longe; sem dúvida, isto era por causa da obstinação de Djénana em continuar invisível para ele.
A uma volta da margem elas apareceram enfim. Eram bem as três: esbeltos fantasmas, sobre um tapete de veludo azul que roçava as algas, metendo na água as suas franjas de ouro. Três é muito para um caique; duas estavam realmente sentadas sobre um banco forrado de veludo, do mesmo veludo do tapete e das vestes dos remadores, e a terceira, a mais nova, tinha-se sentado aos seus pés. Passaram os caíques, tocando-se. Reconheceu perto de si, debaixo da gaze negra que naquele dia não era tripla, os olhos risonhos de Mélek, entrevistos um dia numa escada, e depois olhou as outras duas. Uma tinha um véu semitransparente que permitia ver-lhe o rosto todo jovem, de uma finura e de uma regularidade esquisita, mas deixando todavia os olhos na imprecisão. Não hesitou em reconhecer Zeyneb, que se resolvia enfim a ser menos reservada, e a terceira, completamente indecifrável como sempre, era Djénana.
É inútil dizer que não trocaram um sinal, nem um cumprimento. Só Mélek, a menos severamente velada, lhe sorriu, mas tão discretamente que era preciso estar muito perto para o notar.
Cruzaram-se ainda duas outras vezes, e em seguida afastaram-se. O sol já dava no cume das colinas e dos bosques, sentindo-se uma frescura deliciosa da água com a tarde. O pequeno rio e os seus contornos despovoavam-se pouco a pouco, para ficar tudo solitário até à próxima semana, e os caíques dispersavam-se por todos os pontos do Bósforo, comduzindo a suas casas as belas e elegantes mulheres, que antes do cair da noite deviam estar de volta, melancòlicamente fechadas em todos esses haréns disseminados ao longo da costa. André deixou partir as suas amigas muito antes dele, para não parecer que as seguia, e depois meteu também pela margem asiática, muito lentamente, para deixar descansar os seus remadores e ver subir a Lua.
Danara a André
de Agosto de 1904
O André deseja verdadeiramente o seguimento da minha pequena história. É uma pobre aventura que eu comecei a contar-lhe.
quanto mal faz um amor que morre! Se ele ao menos morresse duma vez! Mas não, ele luta e debate-se nesta agonia, que é cruel.
Caiu-me o saquito da mão e partiu-se um frasco de essência; com o ruído, Durdané voltou-se para mim. Não se alterou. Os seus olhos da cor da água abriram-se e enviou-me o seu sorriso de pantera. Sem uma palavra, ela e eu olhámo-nos. Hamdi não via nada: ela tinha-o preso de encontro ao colo por um dos braços; suavemente, fez-lhe voltar a cabeça, dizendo com voz indiferente: "Djénana!"
Não sei o que Hamdi fez, porque me afastei para não o ver mais. Instintivamente, fui refugiar-me ao pé de sua mãe. Ela lia o Alcorão e molestou-se por a interromper na sua meditação; depois levantou-se assustada, afastou-se para ir ter com eles, deixando-me só. Quando voltou, não sei quantos minutos depois, disse-me: "Vai para o teu quarto, minha pobre pequena, que eles já lá não estão."
No meu quarto de toilette, só, com as portas fechadas, deitei-me sobre uma poltrona e chorei, chorei até adormecer extenuada. Que despertar no dia seguinte! A repentina recordação da véspera; recomeçar a pensar, porque era preciso tomar um partido. Queria odiar Hamdi, e não tinha em mim mais do que dor, nada de ódio; só dor e amor.
Era manhã, o dia ia começar. Ouvi passos junto da porta, apareceu a minha sogra e vi que tinha chorado. "Durdané saiu", disse-me ela, "mandei-a para longe daqui, para casa de uma das nossas parentes." Depois, sentando-se ao pé de mim, disse-me que estas coisas acontecem todos os dias na nossa vida; que os caprichos dum homem têm menos consequências que os do vento; que eu devia voltar ao meu quarto e fazer-me muito bela. sorrir a Hamedi de tarde, quando ele voltasse do palácio; ele estava muito desgostoso, parecia-lhe, e não queria aproximar-se de mim antes de eu ser consolada.
Depois do meio-dia trouxe-me blusas de seda, rendas e aventais.
Então pedi-lhe, que me deixasse só no meu quarto. Ia procurar ver claro dentro de mim mesma. Veja que eu tinha voltado ao harém toda vibrante dum sentimento novo; tinha passado toda a Primavera nas ilhas, saturada dos seus perfumes, das suas canções e dos beijos que o ar me tinha dado, e, sentia toda a impressão dum despertar amoroso,
À tarde, Hamdi veio ter comigo, tranquilo e um pouco pálido. Já tranquilizada, pedi-lhe que me dissesse a verdade; se me amava ou não. Eu voltaria a casa da minha avó para o deixar em liberdade. Ele sorriu e tomou-me nos braços. "Que criança tu és", disse-me, "poderei eu deixar de te amar!" E cobriu-me de beijos e enlouquecia-me com carícias.
Perguntei-lhe como podia ele amar outra, se me amava ainda... Então pude aprender a julgar os homens-pelo menos os nossos; este nem sequer tinha coragem para confessar o seu amor! Não queria a Durdané, era só um capricho excitado pelas suas pupilas verdes e pelo seu corpo ondulante, quando bailava. Ela pretendia corhecer subtilesas para conquistar os homens, e até tinha querido ver se era certo. E terminou, dizendo-me que, se eu não entrasse de surpresa, nunca o saberia.
Que nojo, que piedade e que desgosto, no fundo de mim mesma, por ela, por ele e por mim, que queria perdoar! Sofria -menos desde que sabia que aquelas pupilas verdes e aquele corpo flexível era tudo o que Hamdi tinha amado na outra! bom, eu sabia que era mais bonita do que a outra; eu também tinha olhos verdes, de um verde-mar mais escuro e mais raro do que o seu, e se, para ser amada por aquele homem, bastava ser bonita e amorosa, eu era as duas coisas.
No campo recomeçou a conquista, que não foi longa; a lembrança de Durdané não pesou mais na memória do seu amante... Mas nunca na minha vida conheci dias mais lamentáveis. Eu sentia desfolhar tudo quanto em mim havia de grandioso e puro, como as rosas que murcham perto do fogo. Não tinha outro pensamento senão este: esquecer o amor da outra, oferecendo-lhe eu um ainda maior.
Mas com que horror logo me apercebi de que, com o desprezo crescente que por mim mesma sentia, ia odiando cada vês mais aquele por quem me envilecia, porque saiba, André, que eu mesma me tinha convertido numa boneca de prazer. Só pensava em ser bela e ser cada dia duma maneira diferente. Caixas e mais caixas vinham de Paris cheias de vestidos de noite, de vestidos de trazer por casa, de perfumes; todos os artificias de coqueteria do Ocidente e os da nossa coqueteria oriental se tinham tornado a minha única preocupação. Nunca mais entrei no meu quarto de trabalho, por temer as reprovações mudas dos meus livros; ali flutuavam pensamentos tão diferentes dos do presente!
A Djénana amorosa só tinha de chorar a Djénana doutrora, que tinha procurado ter uma alma. E como exprimir-lhe a tortura, quando eu senti, enfim, bem nitidamente que as minhas carícias eram falsas, que os meus beijos mentiam e que em mim já não havia amor
Mas agora era ele que me amava com um ardor para mim espantoso; que partido tomar para escapar aos seus braços? Que fazer para não prolongar esta vergonha Eu não via outro recurso senão a morte, e quis tê-la sempre preparada perto de mim, sobre a mesa de toilette, ante a qual eu passava muitas horas; uma morte muito doce e rápida, ao alcance da mão, num frasco de prata semelhante aos meus outros frascos de perfume.
Tais eram os meus pensamentos quando uma manhã, ao entrar na sala da minha sogra, Emir e Hanum, encontrei duas visitas que punham os seus tcharchafs para saírem: Durdané e a tia afastada que cuidava dela. Durdané sorria como sempre, mas neste dia com um pequeno ar de triunfo, enquanto as duas andas pareciam preocupadas. Eu, pelo contrário, sentia-me muito calma. Reparei que o seu traje era mais largo que de costume; que a sua cintura parecia mais grossa e os seus movimentos mais pesados; lentamente, acabou de pôr o tcharchaf e o véu e, saudando-nos, saiu.
"Que veio ela cá fazer", perguntei eu simplesmente quando ficámos sós. Émiré Hanum fez-me sentar perto dela e, tomando-me as mãos, hesitou antes de responder; vi as lágrimas que brotavam dos seus olhos; Durdané ia ter um filho e era preciso que meu marido a desposasse; uma mulher da sua família não podia ser mãe sem ser casada, e demais um filho de Hamdi tinha direito a um lugar na casa.
Ela dizia-me isto chorando, e tinha-me abraçado. Mas com que tranquilidade eu a escutava! Era a liberdade que vinha até mim, quando eu a julgava perdida! Respondi que tudo aquilo me parecia muito bem; que Hamdi era livre e que estava pronta a divorciar-me, sem rancor para ninguém.
"Divorciar! ", repetiu ela, com uma explosão de lágrimas. ". Divorciar! Tu vais divorciar-te! Mas o meu filho adora-te... Mas nós amamos-te todos aqui!... Mas tu és a alegria dos nossos olhos!"
Pobre mulher! Ao sair daquela casa só ela me preocupava... Para me reter, começou a citar-me o exemplo de esposas do seu tempo que sabiam ser felizes em situações semelhantes. Ela mesma, não teve de compartilhar com outras o amor do paxá? Desde que começou a ser mais tolerante, não viu ela sucederem-se uma, duas e três mulheres no harémf Chamava-lhes suas irmãs, e nunca nenhuma teve para ela maus modos, sendo sempre com ela que o paxá vinha ter quando queria fazer uma confidencia, quando necessitava dum conselho, ou quando estava doente. E quanto sofreu ela por isto? Só um desgosto recordava da sua vida: foi quando morreu a pequena Sahida, a última das suas rivais, confiando-lhe o filho! Sim, o irmão mais novo de Hamdi, o pequeno féria, não era filho dela, mas sim da pobre Sahida. Só naquela ocasião soube de semelhante coisa...
Durdané devia entrar no dia seguinte no harém. Que me importava aquela mulher na situação em que me encontrava? Demais, Hamdi já não a amava, só a mim queria. Mas aquela mulher era o pretexto que convinha não perder por preço algum. Para abreviar, por horror a cenas desagradáveis, e mais ainda por temer Hamdi, que se poria furioso, fingi uma meia submissão. De joelhos diante daquela mãe que chorava, só lhe pedi que me deixasse ir passar dois meses a KhassimPaxá, no meu quarto de solteira; tinha necessidade disto, dizia eu, para me resignar; depois voltaria.
Saí antes que Hamdi voltasse do Palácio de Ildiz.
Foi nesta ocasião, André, que o senhor chegou a Constantinopla.
Acabados os dois meses, meu marido quis que eu fosse para o pé dele; fiz-lhe saber que me não possuiria viva. O pequeno frasco de prata acompanhava-me sempre: e foi uma luta atroz até ao dia em que Sua Majestade o Sultão se dignou assinar o decreto que me deu a liberdade.
Confesso-lhe que nas primeiras semanas sofri muito. Contra a minha vontade, a imagem daquele homem, as suas caricias tão desejadas e tão aborrecidas, perseguiram-me durante algum tempo.
Agora tudo se acalmou. Perdoei-lhe ter feito de mim quase uma cortesã; ele- não me inspira desejo nem ódio, acabou-se. Resta-me um pouco de vergonha por ter julgado encontrar amor num belo moço, porque me apertava nos seus braços. Mas reconquistei a minha dignidade, reencontrei a minha alma e volto a tomar o meu vôo.
Responda-me, André, para eu saber se o senhor me compreende ou se, como tantos outros, me julga uma pobre desiquilibrada à busca do impossível.
Djénana
André respondeu-lhe que o seu Hamdi era como todos os homens, quer os ocidentais, quer os da Turquia, e que era ela que formava a excepção, o escol. E depois pedia-lhe que notasse - o que não é novo - que tudo foge com o tempo e que os dois anos da sua estada em Constantinopla já tinham começado a fugir e não mais voltariam; por isso eles deviam aproveitá-los para trocarem os seus pensamentos, os quais, como nos outros indivíduos, não tardariam a desaparecer nos abismos da morte.
Depois recebeu um aviso de entrevista para a segunda-feira seguinte, em Istambul, a Sultão-Selim, na velha casa do beco silencioso.
No dia marcado desceu o Bósforo de manhã num barquito a vapor e encontrou em Istambul o pleno Verão, que parecia ter-se aproximado da Arábia, tal era o calor; as mesquitas estavam brancas debaixo do sol ardente de Agosto. Como imaginar, naquele dia, que uma cidade como aquela pudesse ter Invernos tão compridos e persistentes nevadas? As ruas estavam mais desertas, por causa de a sociedade elegante ter emigrado para o Bósforo ou para as ilhas do Mármara. Os odores orientais exacerbavam-se com o calor.
Para fazer horas, foi para a Praça do Sultão Fatih sentar-se debaixo das árvores, à sombra, em frente da mesquita. Os imãs que ali estavam, e que já havia muitos dias o não viam, dispensaram-lhe um acolhimento cordial, recaindo novamente nas suas orações. E o dono do café, tratando-o como um freguês habitual, trouxe-lhe, com o cachimbo, a Tékir, a gata da casa, que tantas vezes tinha sido sua companheira na Primavera, instalando-se perto dele com a cabeça sobre os seus joelhos para ser acariciada. Em frente, as paredes da mesquita deslumbravam com a reverberação branca; crianças tiravam água duma fonte e espalhavam-na sobre a calçada, perto dos fumadores. Porém, o calor era tanto que os melros e pintassilgos engaiolados debaixo das árvores continuavam mudos e sonolentos. Já caiam algumas folhas velhas, anunciando que este Verão depressa teria o seu fim.
A Praça de Sultão-Selim, onde chegou pelo tremendo calor das duas da tarde, inquietava pela solidão. Por detrás da porta de aldraba de cobre encontrou Mélek, que o esperava e lhe sorria como uma boa camaradita satisfeita de voltar a vê-lo. O seu véu era tênue, como o de uma europeia de luto, de modo que lhe deixava ver a cara. Zeyneb vestia do mesmo modo, e pela primeira vez viu brilhar as suas pupilas negras, encontrou o olhar desses dois olhos graves e doces. Djénana, como ele já supunha, persistia em ser uma esbelta aparição negra, absolutamente velada. Apenas André se sentou no diva descolorido, Djénana perguntou-lhe com certa graça:
- Como vai o seu amigo Jean Renaud?...
- Perfeitamente, obrigado - respondeu ele. - A senhora conhece esse nome?
- Sabe-se tudo nos haréns. Por exemplo, posso dizer-lhe que o senhor ontem comeu em casa da Sr." Saint-Enogat, ao lado duma pessoa vestida de cor-de-rosa, e depois o senhor mais ela isolaram-se, sentando-se num banco do jardim, e ela aceitou um dos seus cigarros à luz da Lua. E demais, tudo quanto o senhor fez e lhe acontece, tudo nós sabemos... E ainda me afirma que vai bom de saúde o Sr. Jean Renaud?
- Sim, já vos disse...
- Nesse caso perdeste o tempo, Mélek!
André sabia que Mélek, havia alguns dias a esta parte, orava e procurava feitiços para conseguir a morte de Renaud, primeiro de brincadeira e depois a sério, porque imaginava que o rapaz influenciava André para que desconfiasse delas.
- Veja - disse Djénana, rindo-se -, o senhor quis conhecer as orientais; mas, apenas se lhe tira a capa de verniz, reaparece a barbárie!
- Em todo o caso, a respeito de Jean Renaud, as senhoras enganam-se; ele só sonha convosco a todos os momentos... Ainda mais: se não fosse ele, não nos conheceríamos; a nossa primeira entrevista em Paxá-Bagatché, num dia de muito vento, foi devida a ele...
- bom Jean Renaud! - exclamou Mélek. - Pois leve-o na próxima quinta-feira às Águas Doces, no seu belo caíque, que eu hei-de sorrir quando passarem...
No pequeno harém, triste e semiobscuro, onde o esplendor deste dia de Verão apenas se antevia, Djénana, mais ainda do que da última vez, parecia uma esfinge, muda e imóvel. Notava-se que estava mais tímida, mais constrangida por causa das suas confidencias e das suas últimas cartas; ao vê-la assim, André tornava-se nervoso e quase agressivo.
Neste dia ela tratava de subordinar a conversa ao livro.
- Será um romance, não é verdade
- Como se eu soubesse fazer outra coisa! Mas ainda não vi a forma de fazer esse livro.
- Permita-me que eu lhe diga o que penso. Um romance, sim, e em que o senhor desempenhe algum papel.
- Isso não!
- Deixe-me explicar-lhe. Suprime o seu eu, porque sei que assim o quer. Mas pode simular um europeu de passagem pelo nosso país, um entusiasta das coisas do Oriente, que veria com os seus olhos e sentiria com a sua alma...
- Depois me conheceria, esteja segura.
- Quer ver o que pode fazer? Pois deixe-me continuar... Ele teria encontrado, através de mil perigos, uma das nossas irmãs da Turquia e amar-se-iam.
- E depois
- E depois o europeu desaparece, como é fatal que aconteça!...
- Semelhante intriga será um facto novo na minha obra...
- Perdão, poderia haver aqui alguma coisa de novo: é que o amor entre os dois ficaria sempre puro e oculto.
- Ah!... E depois da sua partida, que faria ela?
- Ela!... Que quer que ela faça? Morre!
Morre foi pronunciado com tal convicção que André não pôde dizer nada, recebendo como que um choque.
Em seguida começou Zeyneb a falar.
- Dize-lhe, Djénana, o título com que sonharas, que nos pareceu muito bonito: O Azul de Que Se Morre... Não? Ele parece não gostar.
- Sim, é simpático - disse André. - Parece-me um pouco... como direi... romântico.
- Vá - disse Djénana -, confesse que lhe parece um pouco das rançosas modas de 1830... Não insistamos.
- Um título que tem papelotes - acrescentou Mélek. Então André compreendeu que havia desgostado Djénana,
ao refutar com certa troça as suas ideias literárias, que ela tinha adquirido só, com muito esforço, e por vezes com intuição maravilhosa. Acabava de vê-la tão cândida e tão jovem, ele que a julgava à primeira vista saturada de leituras! Ficou desconsolado por tê-la ofendido, embora muito ligeiramente e logo em seguida mudou de tom, tornando-se doce e quase terno.
- Mas, minha querida amiguinha invisível, esse título não é rococó nem ridículo, nem nada do que imagina... O que não devemos é meter a morte no livro, quer? Tenho matado tanta gente nos meus livros... Não supõe que me podem tomar por Barba-Azul? Não, nada de morte nesse livro, mas, ao contrário, se for possível, muita juventude e muita vida... Posta esta restrição, procurarei escrevê-lo sob a forma que melhor lhe agrade, trabalharemos juntos como dois colaboradores, bem de acordo e bem camaradas, não é verdade?
E separaram-se muito mais amigos do que nunca.
Djénana a André
16 de Setembro de 1904
Eu estava entre as flores do jardim e sentia-me tão só e tão cansada da minha solidão! Na noite da véspera tinha passado uma tempestade que estragara as roseiras. As rosas jaziam por terra. Ao pisar aquelas pétalas, parecia-me estar sonhando.
Ê neste jardim, no Bósforo, que, desde a minha chegada a Karadjiamir, tenho passado todos os Verões da minha mocidade e da minha infância, em companhia das amigas Zeyneb e Mélek. Nesse tempo afastado da nossa existência nunca pensei que havíamos de ser desventuradas. Tudo nos sorria. Nesta doce mansão saboreava-se esse prazer negativo em que cada um se contentava com a paz do momento que passa e com a segurança para o futuro. Nunca tínhamos visto sangrar corações. E os nossos dias, que deslizavam doces e lentos, entre os nossos estudos e os pequenos prazeres, deixavam-nos como que adormecidas, neste torpor que nos produzem os nossos Estios sempre quentes; nunca pensámos que poderíamos ser dignas de compaixão. As nossas professoras estrangeiras tinham sofrido muito no seu país. Sentiam-se bem entre nós; esta pás: era para elas como que um porto de salvação depois da tempestade. E quando nós por vezes lhes contávamos os nossos sonhos e os desejos imprecisos de viver como as europeias, de viajar e de ver como elas, respondiam-nos exaltando a tranquilidade e a doçura que nos rodeavam. Tranquilidade, doçura da vida das muçulmanas, só isto ouvíamos na nossa infância. Por isso nada do exterior nos mostraram para nos prepararem para sofrer. A dor nasceu em nós mesmas. A inquietação e o insaciável desejo nasceu em nós também. E o meu drama começou verdadeiramente no dia do meu casamento, quando os fios de prata do meu véu de casada me envolveram.
Oh! André! O senhor pensou, quando do nosso primeiro encontro, num dia de muito vento, que seria tão depressa para nós um amigo muito querido E o senhor, eu bem vejo, começa a querer muito a estas três turcazitas, apesar de terem já perdido o atractivo do seu mistério. Sinto em mim alguma coisa de infinitamente doce, depois da nossa última entrevista, desde o momento em que a sua voz e os seus olhos mudaram; quando receou ter-me molestado, então compreendi que é bom e que consente em ser meu confidente, e ao mesmo tempo meu amigo. Que bem me faria dizer-lhe, ao senhor, que deve compreender-me, tantas coisas graves que ninguém ainda ouviu, coisas do meu destino que me transtornam. O senhor, que é homem e que sabe, expücar-nos-ia.
Tenho aqui o seu retrato, muito perto, sobre a minha mesa de escrever, que me olha com os seus olhos claros. Sei mesmo que o senhor não está muito longe daqui. Até à outra margem só nos separa o traço do Bósforo, e entretanto entre nós dois, que distância medeia, que abismo de dificuldades, com uma contínua incerteza de nos não vermos mais. Mau grado tudo isto, desejaria, quando o senhor tiver deixado o nosso país, não ser somente uma vaga sombra na sua memória; queria ao menos ficar nela como uma realidade, uma pobre, triste e pequena realidade.
As rosas sobre que eu caminhava há pouco, sabe o que me recordavam Um desfolhamento igual, nas áleas deste mesmo jardim, há uns dois anos. Mas dessa vez não era a borrasca do Verão; dessa vez a causa era o Outono. O Outubro tinha amarelecido as árvores, fazia frio, e nós devíamos voltar no dia seguinte à cidade, a Khassim-Paxá. Estava tudo emalado e a casa em desordem. orno-nos despedir do jardim e colher as últimas flores.
Um vento agreste gemia nas árvores. A velha Yriané, uma das nossas escravas, um pouco feiticeira, que sabe ler nas borras do café, pretendia que este dia era favorável para ler o
nosso destino. Trouxe-nos café, que era preciso beber; passava-se isto ao fundo do jardim, num recanto abrigado pela colina, e parece que ainda a vejo sentada aos nossos pés, entre folhas mortas, ansiosa por ver o que descobria. Nas chávenas de Zeyneb e Mélek só viu divertimentos e presentes: eram tão novas ainda! Mas baixou a cabeça ao ler a minha. "Oh! O amor vela", disse, "porém o amor é pérfido. Passará muito tempo antes que voltes ao Bósforo, e, quando voltares, terá voado a flor do teu bem-estar. Pobre criança, pobre criança! No teu destino só há amor e morte." com efeito, só este Verão aqui voltei, depois do meu triste casamento. Todavia, foi a flor do meu bem-estar que voou, posto que o bem-estar nunca o conheci... Não é verdade lias nunca a sua predição final me chamou tanto a atenção como agora: "No teu destino só há amor e morte."
Djénana
Encontraram-se muito durante aquele delicioso fim de Verão. Nas Águas Doces da Ásia, pelo menos uma vez por semana, os seus caíques roçavam-se sem que eles se dessem a conhecer; só Zeyneb e Mélek, cujas feições se viam um pouco, ousavam sorrir através dos véus de gaze negra. Também voltaram a ver-se em Istambul, em casa da excelente tia; eram mais livres no Bósforo do que nas grandes casas de Inverno em Khassim-Paxá. Encontravam mil pretextos para vir à cidade e, como os escravos enchiam o caminho, em cada nova entrevista necessitavam de audácias e de astúcias que sempre pareciam malograr-se, transformando-se em drama de aventura inocente, mas que acabavam sempre em bem, quase milagrosamente. E o êxito dava-lhes mais segurança, fazendo-as imaginar mais temerárias empresas. "O senhor pode contar isto na alta sociedade de Constantinopla, que ninguém o acreditará", diziam elas a André.
Na pequena casa de Istambul, quando estavam juntos a conversar como velhos amigos, Zeyneb e Mélek levantavam agora os véus, mostrando todo o oval do rosto; só os cabelos ficavam cobertos pelo véu negro, e assim pareciam freiras novas e elegantes. Só Djénana não transigia; nada se podia adivinhar das suas feições tão fúnebremente envolvidas de negro no primeiro dia; e André não se atrevia a insistir, temendo alguma negativa que lhe roubasse a esperança de conhecer-lhe os olhos.
Às vezes atrevia-se, depois de ter combinado com elas, a ir ouvi-las tocar piano, nas noites imóveis e pérfidas do Bósforo, sem um sopro de ar, macias e tentadoras, mas que nos enchem em seguida de um penetrante orvalho frio. Todos os dias de Verão corre o ar violento do mar Negro, que passa pelo estreito e o bloqueia de espuma, mas que nunca deixa de desaparecer ao pôr do Sol, como se de repente fechassem as comportas do vento. Depois do crepúsculo nada se move, nem mesmo as árvores das margens; tudo se imobiliza e se recolhe; a superfície do mar torna-se espelho sem rugas, para as estrelas, para a Lua e para as mil luzes das casas e dos palácios; uma languidez oriental dispersa-se com a obscuridade sobre essas margens extremas da Europa e da Ásia que se defrontam, e a contínua humidade daquelas paragens envolve as coisas no vácuo, harmonizando-as e engrandecendo-as, tanto as coisas próximas como as afastadas, as montanhas, os bosques, as mesquitas, as cidades turcas e as gregas, as pequenas baías asiáticas, mais silenciosas que as da costa europeia e mais imóveis de noite, na paz absoluta.
Entre Therapia, onde André habitava, e a casa das suas três amigas gastava-se de barco coisa de meia hora.
Pela primeira vez ao tomar o caíque se sentiu encantado em passear de noite, tocando quase a água e como que estendido sobre aquele belo espelho azul-pálido cor de prata que tornava a superfície sossegada. A margem da Europa, à medida que se afastava dela, impregnava-se também de mistério e de paz; todas as suas luzes traçavam sobre o Bósforo inumeráveis e pequenos raios luminosos que pareciam descer até às profundezas; as músicas do Oriente, nos pequenos cafés ao ar livre, e as estranhas entoações dos cantores seguiam-no transmitidas e embelezadas pela sonoridade do mar; até mesmo as desagradáveis orquestras de Therapia se tornavam doces pela longitude e pela magia nocturna, até serem agradáveis ao ouvido. E lá ao fundo, em frente, estava a margem da Ásia, para a qual André se dirigia voluptuosamente recostado; as colinas atapetadas de árvores e sua verdura formavam massas negras que pareciam muito grandes por cima dos reflexos do mar; quanto às suas luzes, mais discretas e mais raras, eram projectadas pelas janelas guarnecidas de grades, por detrás das quais ele pressentia mulheres que não podia ver.
Desta vez André não se atreveu a passar com o caíque pelas janelas iluminadas das suas amigas e seguiu o seu caminho. Os remadores, cujos bordados das vestimentas brilhavam muito à luz da Lua, e porque podiam despertar suspeitas a algum negro de guarda, eram turcos, e, mau grado a dedicação, eram capazes de o trair indignadamente se suspeitassem a menor convivência entre o seu patrão europeu e as mulheres daquele harém.
Nas outras noites veio na mais humilde das barcas de pesca, que se contam por milhares, todas as noites, sobre o Bósforo. E assim pôde deter-se muito tempo, fazendo que deitava redes, e conseguiu ouvir a voz de Zeyneb, acompanhada ao piano por Mélek ou Djénana; conheceu a voz daquela,
quente e fresca, uma voz muito bela e bem afinada, sobretudo em notas graves, e em que por momentos se notava uma imperceptível tremura que a fazia mais impressionante, como que um agoiro de morte próxima.
Estavam em meados de Setembro e atreveram-se a uma coisa enorme: subirem os quatro uma colina cheia de arbustos e passearem num bosque. E ali foram por cima de Beiços, a ponta da costa da Ásia em frente da Therapia, que André escolhera para vir todas as tardes ao pôr do Sol. Como narrar o encanto daquele Beiços, que foi mais tarde um dos seus lugares de reunião e um dos mais queridos e mais seguros?... Therapia, tão nèsciamente agitada com as suas pretensões mundanas, era o contraste daquele lugar, de um silêncio colossal, com grandes árvores, na paz reflectida do tempo passado. Um pequeno desembarcadouro, onde há muitas dálias brancas, e a seguir uma planície edênica cheia de plátanos de quatrocentos anos que não parecem pertencer aos nossos climas, pois que, com os séculos, tomaram a forma de algumas imensas árvores da índia. Ê um chão perfeitamente unido, coberto no Outono de uma erva mais fina que a dos canteiros dos nossos jardins bem cuidados. Um lugar que parece ter sido criado para passeios de meditação e de sábia melancolia e que tem justamente a extensão necessária (meia légua) para ser íntimo, sem que ninguém se sinta preso nele. É fechado de todos os lados por colinas solitárias cobertas de bosques; os Turcos, impressionados pelo seu encanto sem igual, puseram-Lhe o nome de Vale do Grande Senhor. O transeunte não suspeita de que ali perto está o Bósforo com o seu vaivém que impediria a meditação, porque as colinas o ocultam. Ali está-se isolado de todo, e não se ouve outro ruído que não seja, ao cair da noite, as avenas dos cabreiros recolhendo as cabras nas montanhas vizinhas.
Os majestosos plátanos estendem sobre a terra as raízes como enormes serpentes, formando à entrada desta planície uma espécie de bosque sagrado; mais longe espacejam-se, formando fileira, para deixar livres as grandes áleas, onde passeiam lentamente, à tarde, as muçulmanas de véu. Há também no Vale do Grande Senhor um riozito muito fresco, habitado por tartarugas e atravessado por pequenas pranchas que servem de pontes; nas margens, à sombra dalgumas velhas árvores, instalam-se no Verão, em cabanas, os vendedores de café turco; é aí que os homens vão sentar-se para fumar o cachimbo; à quinta-feira, sobretudo, vêm de longe as mulheres veladas, que passeiam sobre aquele prado propício aos sonhos. Estas mulheres caminham aos grupos de três, quatro e dez, um pouco desorientadas, um pouco perdidas, naquele prado pisado por elas, que se assemelha a um vasto tapete! Os seus vestidos são duma só peça e duma só cor, às vezes de seda de Damasco, cor-de-rosa ou azul, bordados a ouro, e caem em pregas, à antiga; e as musselinas
brancas que envolvem todas as cabeças. Semelhante vestuário, no meio deste sítio muito particular, e a paz elegante que elas têm nos movimentos fazem-nos pensar, quando se aproxima o crepúsculo, nos umbrais bem-aventurados do paganismo e que passeamos nos Campos Elíseos...
André era um dos fiéis frequentadores do Vale do Grande Senhor; vivia ali diariamente, depois que se domiciliara em Therapia.
À hora fixada desembarcava em companhia de Jean Renaud, encarregado ainda de fazer de sentinela, não se envergonhando de semelhante papel. André deixara os remadores muçulmanos na costa da Europa, acompanhado somente dum fiel servidor francês, que lhe levava habitualmente um fez num saco de viagem.
Depois das novas intimidades, era costume esta troca de chapéu, que tinha até ali conjurado o perigo e que se fazia não importa onde, num fiacre, numa barca, ou simplesmente numa rua deserta.
Viu chegar as três em talika e depois descerem; e, como pequenitas que vão inocentemente, tomaram pela planície, que já nalguns sítios estava cor de violeta, pela floração dos cólquicos do Outono. Zeyneb e Mélek levavam yeldirmé ligeiro, como se tolera no campo, e o véu de gaze branca, que deixava ver os olhos; só Djénana levava o tcharchaf negro de trazer na rua, para tornar a ser estritamente invisível.
Ao chegarem a um carreiro já combinado, um carreiro que se mete para dentro da montanha, pararam e André aproximou-se, apresentando-lhes Jean Renaud - a quem elas tinham desejo de tocar na mão, para se desculparem de lhe terem desejado a morte -, o qual depois foi mandado adiante como explorador. Gozando a bela tarde, subiram alegremente por entre castanheiros e carvalhos; a erva em volta estava cheia de escabiosas. Depois seguiram-se estevas, tornando-se o solo cor-de-rosa. Do lado de cá do Bósforo, costa da Ásia, apareciam florestas sobre florestas; a perder de vista sobre as colinas e as montanhas, estendia-se este soberbo e selvagem manto verde que abriga ainda bandoleiros e ursos. Em seguida, o mar Negro apareceu infinito a seus pés, dum azul mais descolorido e mais setentrional que o do Mármara, seu vizinho; parecia docemente tranquilo e pensativo ao sol destes últimos belos dias de Verão, como se meditassem já os seus contínuos furores e o seu estrondo do Inverno, para quando começasse a levantar-se o terrível vento da Rússia.
No fim do passeio estava uma velha mesquita dos bosques, lugar de peregrinação meio abandonado sobre um planalto, dominando este mar de tempestades e batida em cheio pelos ventos do Norte. Havia ali, numa casa meio derruida, um pobríssimo café bem pequeno, pertencente a um bom homem já todo branco. Sentaram-se diante da porta para olharem essa imensidade pálida que dormia por detrás deles. As poucas árvores que havia ali inclinavam-se todas na mesma direcção, tendo cedido às refregas do alto mar, que podiam mais que a sua força. O ar era vivo e puro.
Não conversavam do livro, mas de coisas vagas. Só Zeyneb conservava certa gravidade. Djénana e Mélek sentiam-se exaltadas pelo perigo do passeio, todas na contemplação desta áspera magnificência das montanhas e das fragas que desciam dos seus pés até ao mar. Para estarem ali sós com André, as pequenas revoltadas tinham deixado nas aldeias do caminho dois negros e duas negras, cujo silêncio elas pagavam muito bem; mas as suas audácias tinham sido coroadas de bom êxito e acabaram por não se assustar. E o bom homem de barba branca servia-lhes o café em velhas chávenas azuis, fora da porta, em frente do triste mar Negro, persuadido de que estava com um bei autêntico, de peregrinação com as mulheres do seu harém.
Porém, o ar ali tornava-se muito fresco em comparação com o calor do vale, e Zeyneb foi atacada por uma tossezita que procurava dissimular, mas que indicava a mesma coisa que a tremura da sua linda voz. Pelo olhar trocado entre as outras duas, André compreendeu que já há tempo a esta parte as preocupava a saúde da jovem; quiseram elas fechar-Lhe mais as pregas do vestido sobre o peito, mas a enferma, ou somente a ameaçada, encolheu os ombros.
- Não se incomodem - disse ela, no tom da indiferença mais tranquila. - Ah! meu Deus, que é que isto poderá fazer?
Aquela Zeyneb era das três a que André julgava conhecer um pouco, uma desencantada nos dois sentidos da palavra, uma descoroçoada da vida que não desejava mais nada, que não esperava nada mais, resignada com uma doçura inalterável, uma criatura toda de paz e de ternura, exactamente a alma indicada pela sua deliciosa cara regular e pelos seus olhos, que sorriam sem esperança. Mélek, que parecia ter bom coração, não cessava de se mostrar caprichosa até ao excesso, violenta e infantil, capaz de mofar e de rir de tudo. Quanto a Djénana, a mais esquisita das três, continuava sendo misteriosa, debaixo do seu eterno véu preto, tão complicada e adornada de todas as literaturas, e contudo desigual, ao mesmo tempo submissa e altiva, abrindo-se por momentos com uma confiança desconcertada, para em seguida se encerrar na sua torre de marfim, para se tornar mais afastada.
"Esta", pensava André, "não sei o que ela quer de mim, nem porque me é já querida; dir-se-ia por vezes que há entre nós lembranças em comum dum passado qualquer. Só começarei a decifrá-la no dia em que veja enfim os seus olhos; mas o pior é que ela não mos mostra nunca."
Foi preciso voltar depressa à planície de Beiços, a fim de ter tempo de reunir os escravos e de voltarem a casa antes da noite. Tornaram a sumir-se pelos carreiros do bosque e quiseram que André desse a cada uma um ramo daquelas mói129
tas que tornavam a montanha cor-de-rosa; queriam, por bravata infantil, ter esses raminhos junto ao peito durante a comida em companhia dos avós e das velhas tias rígidas.
Chegados à planície, ele deixou-as por prudência, mas seguiu-as com os olhos, caminhando a certa distância atrás delas. Pouca gente, neste dia, naquele Vale do Grande Senhor, onde o sol tomava já as douradas cores da tarde; somente algumas mulheres de cabeça velada de branco estavam sentadas no chão, em grupos espaçados uns dos outros. As três pequenas audaciosas afastavam-se num passo lento e harmonioso. Zeyneb e Mélek, vestidas de seda de um pequeno tom escuro mas quase branco, iam com Djénana no meio, lembrando uma elegia negra. Os seus vestidos arrastavam pela erva curta e fina, friccionando as flores violetas dos cólquicos e pisando as folhas cor de ouro, caídas dos plátanos. Pareciam três sombras elisianas atravessando o vale do grande repouso; a do meio era sem dúvida uma sombra ainda inconsolada de amor terrestre.
André perdeu-as de vista quando chegavam debaixo dos grandes plátanos, no bosque sagrado que fica do outro lado daquele terreno fechado. O Sol descia por detrás das colinas, desaparecendo lentamente deste éden. O céu tomava a limpidez verde das belas tardes de Verão e as pequeninas nuvens que o atravessavam pareciam inflamadas de cor de laranja. As outras sombras felizes que tinham ficado por muito tempo sentadas aqui e acolá, sobre a erva florida de cólquicos, levantaram-se todas para se irem embora também, mas muito suavemente, como é próprio das sombras. As flautas dos cabreiros que se ouviam ao longe começavam a música do tempo passado, para fazer recolher as cabras. E todo este lugar se preparava para se tornar infinitamente solitário, ao pé destes grandes bosques, sob uma noite de estrelas.
André Lhéry dirigia-se com pena para o Bósforo, que aparecia como uma toalha de prata de um tom cor-de-rosa, entre as silhuetas já negras dos plátanos gigantes da margem. Recomendou aos remadores que não se apressassem; não tinha vontade nenhuma de voltar à costa da Europa, a Therapia, com os grandes hotéis alumiados pelos focos eléctricos, onde se afinavam para o serão chamado elegante suas orquestras de feira.
Cartas que André recebeu no dia seguinte
18 de Setembro de 1904.
Amigo nosso: Sabe um tema que deve desenvolver e que dará bem a página mais "harém" de todo o livro E o sentimento da vida que predomina nas nossas existências; é a obrigação de só conversar com mulheres, de ter só mulheres por intimas, de nos vermos sempre entre criaturas iguais a nós pelo sexo. As nossas amigas Mas, meu Deus, elas são tão infelizes e abandonadas como nós. Nos nossos haréns, a infelicidade e as infelizes, sempre assim reunidas e irmanadas, sofrem na sua alma, e é-lhes muito penoso serem o que são e pedem uma força. Oh! alguém com quem essas pobres criaturas esquecidas e humilhadas poderão falar, trocando suas pequenas concepções, as mais das vezes temerosas e inocentes! Temos tanta necessidade dum amigo homem, duma mão firme, masculina, sobre que possamos apoiar-nos, que seja muito forte para nos segurar se estivermos prestes a cair. Um pai, um marido, um irmão, não, um, amigo, repito-lhe, um ser que julguemos muito superior a nós, que seja ao mesmo tempo severo e bom, terno e grave, e que nos dedique uma amizade sobretudo protectora...
Encontram-se homens assim no Ocidente, não é verdade
Zeyneb
Existências em que não há nada! O senhor sente todo o horror disto Pobres almas que já têm asas e que estão presas; corações onde brota o saber novo e a que é interdita a expansão, que não podem fazer nada, nem mesmo o bem, que se devoram ou se gastam em sonhos irrealizáveis. Imagine a tristeza das suas três amigas por o senhor as não vir consolar; os seus dias todos iguais sob a tutela vigilante de velhas tias, de mulheres velhas que deixam transparecer constantemente a desaprovação muda dos nossos actos.
Do drama do meu casamento, que já lhe contei, resta todo o fundo de mim mesma, o rancor contra o amor (pelo menos o amor como entre nós o entendem), o cepticismo pelas suas alegrias e a indelével amargura nos meus lábios. Todavia, eu já sabia, com mais ou menos exactidão, que o amor no Ocidente é de outra forma; aquele amor que tão desenganada me tinha deixado que me levou a estudar com paixão a literatura e a história, e, como eu o tinha pressentido, vi que inspirava loucuras, e também coisas notáveis; foi nele que encontrei no meu coração tudo quanto há de mau neste mundo, mas também tudo quanto há de bom e de sublime. A minha tristeza tornou-se mais amarga à medida que percebi melhor o raciocínio da mulher latina. Ah! que feliz é nos vossos países esta criatura, por quem, depois de séculos, tanto se tem pensado, lutado e sofrido, que pode amar livremente e escolher e que, para se dar, tem o direito de exigir que a mereçam. Ah! que lugar ela tem entre vós na minha vida e quanto é incontestada esta realidade secular!
Ao passo que nós, as muçulmanas, parece que de todo dormimos ainda. A consciência de nós mesmas e do nosso valor mal se divisa, e em volta de nós somos voluntariamente ignorantes e supremamente desdenhosas pela evolução que começa.
Nenhuma voz se elevou ainda para gritar a sua revolta a estes homens, que estão cegos apesar de bons, e às vezes ternos, nossos pais, nossos maridos e nossos irmãos! Para o mundo inteiro, a mulher turca ainda é a escrava comprada pela sua beleza, ou a odalisca pesada e muito branca que fuma cigarros e que vive num kieff perpétuo!
Mas o senhor veio e sabe o resto. E nós estamos todas três às suas ordens, como fiéis secretárias, e outras tantas nossas irmãs, se nós não formos suficientes; eis-nos prestando os nossos olhos aos seus, o nosso coração ao seu, e a nossa alma oferecemo-la toda inteira para o servir...
Podemos voltar a encontrar-nos uma vez ou duas, aqui no Bósforo se nos for possível, antes da época de regresso à nossa casa da cidade. Temos muitas amigas, muito seguras, disseminadas ao longo desta costa e sempre prontas a ajudar-nos a estabelecer as nossas entrevistas.
Mas tenho medo... Não da sua amizade, porque o senhor mesmo já nos tranquilizou; o que eu temo é a saudade... mais tarde, quando o senhor se for embora.
Adeus, André, nosso amigo, meu amigo, que a felicidade o acompanhe!
Djénana
Djénana não lhe contou. Quem no outro dia, em casa de Saint-Enogat, fumava cigarrilhas suas era a senhora de Durmont. Não quis nomeá-la. Ela passou esta tarde por nossa casa, sob o pretexto de cantar com Zeyneb, e falou do senhor com tal entusiasmo que uma rapariga russa nossa amiga estava também entusiasmada. Receámos que suspeitasse alguma coisa e que nos quisesse armar alguma cilada; dissemos do senhor tais horrores, que tivemos de morder os lábios para não soltar uma gargalhada. Ela caiu e defendeu-o com violência, o que equivale a dizer que a sua visita foi uma confrontação e um interrogatório a propósito dos nossos respectivos sentimentos a respeito do senhor. Que feliz mortal é!
Acabamos de imaginar e de combinar muitos projectos deliciosos para o futuro. O seu criado, que o senhor diz ser de confiança, saberá guiar
Levando o senhor e ele um fez, podemos dar um passeio todos em carro fechado, indo ele na boleia. Mas tudo isto é preciso combinar de viva voz, na primeira vez que nos encontrarmos.
As três amigas enviam-lhes muitas coisas lindas e ternas.
Mélek
Não falte ao menos um dia nas Águas Doces; procuraremos ir também. Como das outras vezes, passe com o caíque do lado da Ásia, debaixo das nossas janelas.
Se o senhor vir a ponta dum lenço branco metido por um buraco das rótulas, quer dizer que iremos, se o pano for azul, quer dizer: "catástrofe, suas amigas estão fechadas."
M...
Até ao fim da estação estiveram ainda nas Águas Doces da Ásia; suas entrevistas eram mudas e dissimuladas. Cada vez que o céu estava bom, às quartas e quintas-feiras, que são todos os dias de reunião sobre a linda ribeira sombria, o caíque de André cruzava com o das suas três amigas, porém sem o mais ligeiro sinal de cabeça que mostrasse a sua amizade a casas centenas de olhos femininos pelo entreaberto das musselinas brancas, que estavam aos grupos sobre a margem. Se o momento era azado, Mélek e Zeyneb arriscavam um sorriso através da gaze negra. Quanto a Djénana, continuava fiel ao seu triplo véu, tão perfeitamente dissimulador como uma máscara. As mulheres dos outros caíques estranhavam um pouco aquilo, mas ninguém ousava fazer mau juízo, porque o lugar era impróprio para qualquer empresa culpável; e as que conheciam a libré dos remadores limitavam-se a dizer sem maldade: "Esta pequena Djénana TewfikPaxá, tem sido sempre original."
Djénana a André
28 de Setembro de 1904
Que impressão nova é para nós sabermos que entre a multidão das Águas Doces está um amigo!
Entre esses estrangeiros que nunca conheceremos, que nos consideram animais curiosos, é agradável sabermos que um olhar nos pode procurar - o nós em particular, e não às outras, como nós igualmente veladas -, que um homem nos envia um pensamento de afectuosa compaixão!
Quando os nossos caíques se abeiram, o senhor não me vê, escondida pelo meu espesso véu, mas, no entanto, eu ali estou, feliz por ser invisível e sorrindo aos seus olhos, que olham em direcção aos meus.
Isto é por o senhor ter sido bom e simples, o amigo tal como eu o desejava o outro dia, lá no alto, em frente do mar Negro, durante a nossa entrevista, que foi quase sem palavras por eu ter sentido, enfim, sob o laconismo das suas cartas, um pouco da afeição verdadeira e emocionada? Não sei, mas o senhor não me parece já tão estranho. Oh! André, se o senhor soubesse o que é um sentimento ideal feito de admiração e ternura, nas almas por tanto tempo comprimidas como us nossas!...
Djénana
Eneontrarain-se com frequência naquele final de estação, em entrevistas sempre perigosas. Puderam ainda, com muita facilidade, fazer passar as suas cartas por algum negro fiel que ia de barca a Therapia, ou que vinha encontrá-lo à tarde no esquisito Vale do Grande Senhor. Porém, ele, que só dispunha da posta-restante de Istambul, respondia o mais rápido possível, por um sinal secreto, ao passar no seu caique diante das janelas fechadas das suas amigas. Era preciso aproveitar aqueles últimos dias do Bósforo, antes de voltar a Constantinopla, onde a vigilância seria mais severa. Já se sentia a chegada do Outono, sobretudo pela tristeza das tardes. Grossas nuvens escuras vinham do mar do Norte, com o vento da Rússia, e começavam a cair aguaceiros que reduziam a nada as suas combinações, por vezes o mais engenhosamente preparadas.
Perto do Campo de Beiços, numa depressão solitária e ignorada, tinham eles descoberto uma pequena floresta virgem, em volta de um pântano cheio de nenúfares. Era um lugar de melancólica segurança, entalado entre rochas abruptas e inextricáveis verduras; tinha um só carreiro de entrada vigiado por Jean Renaud, que trazia um apito de alarme. Já ali se encontravam, com aquela, duas vezes, à beira daquela água verde e adormecida, entre os juncos e os fetos imensos, à sombra de árvores que se desfolhavam. Esta flora não diferia em nada da de França, e aqueles fetos gigantes eram a grande osmonda dos nossos pântanos; tudo mais desenvolvido por causa da atmosfera mais húmida e dos Verões mais quentes.
As três pequenas sombras negras circulavam no meio daquele matagal, um pouco embaraçadas pelos vestidos e pelos sapatos, sempre muito finos, e nalgum sitio propício rodeavam André, por um instante de conversa profunda, ou de silêncio, inquietas por verem passar por cima delas as nuvens de Outubro, que por vezes escureciam tudo e ameaçavam grande chuvada.
Zeyneb e Mélek, de tempos a tempos, levantavam os véus para sorrirem ao amigo, olhando bem os olhos dele com um ar de franqueza e de confiança. Mas Djénana nunca.
André, com todas as suas viagens por países exóticos, durante muitos anos, tinha quase esquecido a intimidade das plantas dos nossos climas. Ora estes caniçados, estas escolopendras, estes musgos e belos fetos lembravam-lhe certos pântanos do seu país onde, durante a sua infância, ele se isolava durante muitas horas, para sonhar com as florestas virgens até ali não vistas. O sonho doutrora era tal qual aquele pântano asiático, a ponto de se julgar na sua terra, transportado ao primeiro período da juventude... Mas agora tinha estas três pequenas orientais, veladas, cuja presença constituía um anacronismo estranho e delicioso...
A 7 de Outubro de 1904 era a última quinta-feira das Águas Doces da Ásia. As embaixadas regressavam na semana seguinte a Constantinopla, e, com as três turcazitas, André dispunha-se a fazer como de costume. De resto, todas as casas do Bósforo iam fechar portas e janelas por seis meses de vento, de chuva e de neve.
André e suas amigas tinham dado a sua palavra de que fariam o possível por se ver neste dia nas Águas Doces, pois que seria a última vez até ao próximo Verão, tão cheio de incertezas.
O tempo não estava seguro e, ao sair do caíque, André pensava: "com o vento que se levanta não as deixarão sair." Mas, logo que ele passou debaixo das janelas, viu sair pelas rótulas a ponta do lenço branco que Mélek fazia agitar e que significava o sinal combinado: "Navegue sempre. Deram-nos licença. Segui-lo-emos."
Hoje não havia nenhuma afluência na pequena margem nem nos prados circunvizinhos, onde os cólquicos do Outono floresciam entre o amontoado de folhas mortas. Nenhuns europeus: só turcos, e sobretudo mulheres. E nos seus pares de belos olhos que se anteviam debaixo dos véus brancos, como no campo, lia-se muita melancolia, sem dúvida por causa da aproximação do Inverno, a estação em que a austeridade dos haréns é absoluta e onde a reclusão é quase contínua.
Cruzaram-se duas ou três vezes. Até mesmo o olhar de Mélek, através do véu descido, o véu negro de trazer na rua, exprimia tristeza, dessa que produzem universalmente as estações ao declinar e todas as outras coisas que estão próximo do fim.
Quando chegou a hora de se afastarem, o Bósforo, à saída das Águas Doces, reservava-lhes aspectos de beleza trágica. A fortaleza sarracena da margem da Ásia, junto da qual era preciso passar, toda avermelhada pelo sol-poente, apresentava as ameias cor de fogo. Pelo contrário, a outra fortaleza, mais colossal, que estava defronte, na margem da Europa, parecia mais sombria, com as muralhas e as torres, escalonadas, Ugadas até ao alto da montanha. A superfície da água, toda branca de espuma, era açoitada pelas rajadas de vento frio. Por cima de tudo isto via-se um céu de cataclismo, com nuvens cor de bronze ou cor de cobre, muito atormentadas e dispersas sobre um fundo lívido.
Felizmente, as turcazitas não tinham grande caminho a percorrer, seguindo pela margem asiática para chegarem ao velho cais de mármore, sempre muito bem guardado, onde os negros as esperavam. Mas André, que teve de atravessar o estreito e de subi-lo com vento pela proa, só chegou à noite; os remadores estavam repassados de suor e de água do mar; os fatos de veludo e bordados de ouro estavam lamentavelmente sujos. Ao mudar de estação, quando se volta das Águas Doces, têm-se surpresas que são as primeiras agressões do vento da Rússia e que cortam o coração, como o Inverno com os dias curtos.
Em casa, onde rapidamente levou os remadores transidos de frio para que se reanimassem, ouviu, ao chegar, uma música estranha, parecida com a dos pastores à hora do sol-posto, nos bosques defronte e nos vales de Beiços da Ásia; sobre notas graves, um tom monótono e rápido, muito mais vivo que uma balada ou uma fuga lúgubre, dava vontade de chorar. Era um dos seus criados turcos que soprava a plenos pulmões numa longa flauta, revelando de repente um grande artista selvagem.
- Onde aprendeste a tocar - perguntou André.
- No meu país, nas montanhas, perto de Eski-Chéhir. Assim tocava ao escurecer, quando recolhia as cabras de meu pai.
- Está bem, só faltava semelhante música para completar a angústia sem causa e sem nome duma tarde como a de hoje.
E, por muito tempo, aquele som da flauta, que André lhe mandava tocar ao crepúsculo, conservou o poder de evocar para ele todo o índizível destas coisas reunidas: a volta das Águas Doces pela última vez; os três fantasmazitos negros, sobre um mar agitado, voltando ao cair da noite para se sepultarem no triste harém ao pé das montanhas e dos bosques; a primeira rajada de vento do Outono; os prados da Ásia semeados de cólquicos, violetas e folhas amarelas: o fim da estação no Bósforo, a agonia do Verão...
André voltara a instalar-se em Pera havia quinze dias e conseguira tornar a ver em Istambul, na velha casa do bairro de Sultão-Selim, as suas três amigas, que lhe tinham apresentado uma gentil desconhecida, uma pequena pessoa dissimulada pelos espessos véus negros que afogavam o som da voz. No dia seguinte, André recebeu esta carta:
Sou a pequena dama-fantasma de ontem, Sr. Lhéry; não soube falar-lhe, mas, pelo livro que o senhor nos prometeu a todas, vou contar-lhe em que passa o tempo no Inverno uma mulher turca.
Levanta-se tarde, muito tarde, pode mesmo dizer-se. Faz a toilette lentamente, com indolência. Tem sempre extensos cabelos, muito espessos e fartos, para arranjar. Depois olha-se a um espelho de prata e, vendo-se bonita, moça e encantadora, lamenta-se por isso.
Em seguida passa uma silenciosa revista às salas para verificar se está tudo em ordem; toca nos menores objectos amados, lembranças e retratos, cuja conservação tem para ela uma grande importância. Depois vai almoçar, quase sempre só, numa grande sala rodeada de negras e de escravas circassianas; sente frio nos dedos ao tocar nos objectos de prata dispersos sobre a mesa, tem sobretudo frio na alma ao falar com as escravas, em questões de que não ouve nunca as respostas...
E, entretanto, que fazer até à noite? Os haréns dos tempos passados, com muitas esposas, eram menos tristes: as mulheres acompanhavam-se umas às outras. Que fazer, pois Pintar a aguarela? (Nós somos todas distintas aguarelistas, Sr. Lhéry, temos pintado muitos biombos, ventarolas e quadros! ) Tocar piano, tocar alaúde Ler Paul Bourget ou André Lhéry Bordar, continuando algum dos nossos intermináveis bordados a ouro, interessando-nos sozinhas em ver correr nas nossas mãos, tão finas e tão brancas, os fios que cintilam!...
Estamos sempre desejando, mesmo sem esperança, alguma coisa nova e imprevista que seja notável, que vibre, que faça ruído; porém essa coisa nunca vem... Também quer passear, apesar da lama e da neve, por não ter saído há quinze dias, mas é proibido sair só. Nada pode imaginar como pretexto para sair, nada. Falta-lhe um espaço ao ar livre; até as que têm jardim parece que não respiram, por os muros serem altos em demasia.
Chamam! Que bom que era se pudesse ser uma catástrofe, mas é somente uma visita!
Uma visita! uma visita, porque se ouvem passos precipitados de escravas na escada. Levanta-se e vai ao espelho para compor os olhos, febrilmente. Quem poderá ser? Ah! uma amiga jovem e deliciosa casada há pouco tempo. Entra. Demonstrações carinhosas e apertos de mão, beijos de lábios vermelhos sobre faces dum pálido-mate.
- Vais bem Que fazias, minha querida
- Aborrecia-me.
- Bem, venho convidar-te para darmos um passeio a qualquer lado.
Um instante depois, um trem fechado leva-as. Sobre a almofada, ao lado do cocheiro, vai um negro; Dilaver, o inevitável Dilaver, sem o qual não há o direito de sair e que na volta contará em que foi empregado o tempo.
As duas mulheres conversam.
- O quê, amas Ali Bei?
- Sim - responde a recém-casada -, mas parece que é preciso que eu ame um qualquer, estou sedenta de carinho. Porém, isto é de ocasião; até mais tarde encontrar a quem mais ame...
- Pois eu não amo o meu, nem nada! Amar à força, não, eu não sou das que se dobram...
O trem roda ao largo trote de dois magníficos cavalos. Não devem descer porque assim o exigem as conveniências; e as duas pobres mulheres invejam as livres mendigas que as olham ao passar.
Chegam à porta do bazar, onde gente do povo compra castanhas.
- Tenho fome a valer - diz uma. - Há dinheiro
- Não.
- Dilaver tem.
- Dilaver, compra castanhas assadas!
Onde pô-las? Têm os seus lenços bordados, todos perfumados, e neles lhes traz as castanhas, que já cheiram a heliotrópio. E é este o maior acontecimento do dia; umas poucas de castanhas que duas senhoras da bela sociedade comem juntas, como mulheres do povo, porém debaixo do véu e num trem fechado.
À volta, ao separarem-se, beijam-se ainda e trocam entre si essas eternas frases das mulheres turcas.
- Vá, nada de quimeras, nada de sonhos vãos. Reagi!
Porém, isto fá-las sorrir; tão gasto está já o conselho.
A visita saiu. Era já noite. O harém alumia-se cedo, porque a luz do dia falta-lhe uma hora antes do escurecer, por causa das rótulas e das grades das janelas.
A sua nova negra sombra de ontem, Sr. Lhéry, encontra-se só. Mas está de regresso o bei, entra o senhor anunciado pelo ruído do sabre na escada. A pobre turca sente ainda mais frio na alma. Por hábito, olha-se a um espelho; a imagem reflectida parece-lhe verdadeiramente bonita e ela pensa: "Toda esta beleza para ele, que desgosto!"
Insolentemente estendido sobre uma montanha de coxins, ele começa uma história.
- vou contar-te, querida, o que se passou hoje no palácio...
Sim, no palácio imperial, os camaradas, as espingardas e as novas armas, é tudo quanto o interessa, nada mais.
Ela não escuta, tem vontade de chorar. Então ele chama-Lhe "desequilibrada".
Ela pede licença para se retirar para o quarto, ali chora e soluça com a cabeça deitada sobre a almofada de seda guarnecida de ouro e prata, enquanto as europeias de Pera vão ao baile e ao teatro, são belas e amadas debaixo de torrentes de luz...
Pela segunda vez depois de voltar do Bósforo, André e as suas três sombras estavam reunidos na casa clandestina situada no coração do velho Istambul.
- O senhor não sabe - disse Mélek -, a próxima entrevista será noutro sítio, para variar. Uma amiga nossa, que vive em Mehmed-Patih, o bairro de sua eleição, ofereceu-nos a casa para ali nos reunirmos. A casa, toda turca e onde não há nenhum senhor, é um verdadeiro achado, tranquila e segura. Preparo-lhe uma surpresa, um harém mais luxuoso do que este e pelo menos tão oriental como este. O senhor verá.
André não a escutava, decidido a tentar o impossível para conhecer hoje os olhos de Djénana e muito preocupado pela aventura, pois compreendia que, se cometesse uma torpeza, tinha de abandonar toda a esperança, dado o caracter inflexível da jovem. Ora este eterno véu negro, sobre esta figura de mulher moça, era para ele uma inquietação que lhe fazia crescer o desespero. Queria saber o que havia debaixo daquele véu, ainda que fosse só por um momento; queria conhecer o aspecto desta sereia de voz celeste, para o fixar na sua memória... E, por outro lado, porque é que ela se ocultava e suas irmãs não? Que diferença havia ali? A que distinto sentimento podia obedecer aquela alma altiva e pura?... Uma explicação atravessava-lhe por vezes o espírito, mas em seguida punha-a de parte, por absurda e fátua. "Não! ", dizia André, "podia ser minha filha. O que suponho carece de senso comum."
E ela estava ali muito perto dele: não tinha mais do que levantar a mão e erguer aquele pedaço de gaze, que mal passava do queixo. Porque é que esse gesto tão tentador e simples podia ser impossível e odioso como um crime?
O tempo passava e a hora de as deixar aproximava-se. Os raios do Sol de Novembro subiam até ao tecto - sempre os mesmos raios sobre a parede da frente, cujo reflexo dava ao humilde harém um pouco de luz.
- Escute-me, boa amiga - disse ele bruscamente -, é preciso em absoluto que eu conheça os seus olhos; não posso mais, asseguro-lhe; não posso continuar mais como até aqui... Como vê, a situação é desigual, pois que a senhora vê os meus quando quer, através da gaze dupla ou tripla, que é sua cúmplice. Em lugar do seu desolante tcharchaf negro, venha de yachmak na próxima entrevista; um yachmak tão austero quanto queira, que só deixe ver as suas pupilas e as sobrancelhas, que concorrem para a expressão do olhar. o resto da figura, oculte-ma para sempre, mas os olhos não... A-tenda, peço-lhe, suplico-lhe... Porque procede assim, porquê?
Suas irmãs não o fazem... Da sua parte ê desconfiança, e eu julgo não merecer que me trate assim.
Ela ficou interdita e silenciosa uns momentos, durante os quais André sentia latejar as próprias frontes.
- Veja - disse ela no tom das graves resoluções -, veja se eu desconfio, André.
E, levantando o véu para trás, descobriu inteiramente o rosto, cravando nos olhos do seu amigo os seus olhos admiráveis da cor do amor profundo.
Era esta a primeira vez que ela se atrevia a chamar-lhe pelo nome, a não ser em carta. E o seu gesto tinha alguma coisa de decidido e solene, porque as outras duas sombrazitas estavam mudas pela surpresa, enquanto André retrocedia imperceptivelmente sob o brilho fixo daquele olhar, como quem tem um pouco de medo ou fica deslumbrado sem querer parecê-lo.
Ê no coração de Istambul, debaixo do céu de Novembro, o dédalo das velhas ruas completamente silenciosas, de pavimentos cobertos de erva fúnebre, debaixo das nuvens baixas e escuras, sob a confusão das casas de madeira, todas pintadas de amarelo-escuro, todas velhas, com suas janelas duplamente gradeadas e impenetráveis ao olhar. Tudo aquilo, todas aquelas ruínas, era o que, visto de longe, parecia no céu uma grande cidade de contos de fadas, mas que, vista minuciosamente, teria desiludido muito os turistas das agências. Para André e para alguns outros como ele, estas coisas, mesmo de perto, conservavam o seu encanto, um encanto feito de imobilidade, de conhecimento e de oração. E, de tempos a tempos, um pormenor esquisito: um grupo de sepulturas antigas finalmente cinzeladas numa encruzilhada, debaixo dum plátano de trezentos anos, ou uma fonte de mármore com arabescos de ouro já quase sem brilho.
André, com um fez turco, metia-se nestes bairros segundo as indicações duma planta feita por Mélek, com notas explicativas. Uma vez parou para contemplar uma dessas ninhadas de cães vadios que pululam em Constantinopla, dos quais as boas almas da vizinhança tinham feito a esmola de uns farrapos para lhes servirem de cama e duma cobertura de tapete velho. Ali estavam, agachados, com os seus focinhos amáveis. Não os acariciou com medo de se descobrir, pois os Orientais, embora piedosos para os cães, não gostam de lhes tocar, reservando para as carícias os gatos. Mas a mãe veio logo arrastar-se diante dele, fazendo-lhe festas e abanando-lhe o rabo, como que para lhe fazer ver que estava contente pela sua atenção.
"A quarta casa à esquerda, depois dum quiosque fúnebre e dum cipreste" era o lugar para onde o convidava hoje o capricho das suas três amigas. Um demônio negro e de véu descido, que parecia não ser o de Mélek, esperava-o atrás da porta entreaberta e fê-lo subir sem dizer nada, deixando-o só numa pequena sala muito oriental e sombria por causa das rótulas do harém. Decoravam as paredes inscrições do islame e divãs encostados. Elas rodeavam a casa. Perto ouvia-se cochichar, passos ligeiros e o ruído especial dos fatos de seda. E, quando o mesmo desconhecido demônio voltou a aparecer e com um sinal o convidou a entrar na mais próxima sala, ele julgou-se Aladino entrando no seu serralho.
Estavam ali os três fantasmas negros doutrora, estavam ali metamorfoseados em três odaliscas deslumbrantes e recamadas de ouro e lantejoulas, com uma adorável e antiquada magnificência. Antigos véus de Meca, de gaze branca e cheios de lantejoulas, caindo-lhes pelas costas e envolvendo os cabelos penteados em longas tranças. De pé, com a cara de todo descoberta, inclinadas para ele como para um deus, sorriam-Lhe com a sua franca juventude, deixando ver as gengivas rosadas.
Eram os vestidos e os enfeites das avós, exumados das caixas de cedro. Decerto que elas tinham sabido, com o tacto de modernas elegantes, fazer uma atilada combinação entre os cetins docemente passados e as arcaicas flores de ouro, bordados em relevo, para compor conjuntos particularmente esquisitos. Ofereciam um espectáculo que nunca ninguém do Ocidente tinha visto e que os seus olhos de europeu nunca ousaram sequer sonhar. Por detrás delas, mais na sombra, sobre divãs, cinco, seis cúmplices de confiança estavam sentadas imóveis, uniformemente negras, em tcharchaf e de véu negro descido, aumentando o mistério com a sua silenciosa presença. Tudo isto, que se não fazia por nenhum outro, era duma audácia assombrosa e dum inconcebível desafio ao perigo.
Sentia-se em volta desta reunião proibida a tristeza enfeitiçada de um Istambul envolvido pela bruma do Inverno e a muda reprovação dum bairro cheio de mesquitas e de sepulturas.
Divertiram-se a tratá-lo como a um paxá e dançaram diante dele um bailado das bisavós, dos campos de Radjiamir, dança muito casta e lenta, com gestos de braços nus, pastoral da Ásia, tocada num alaüde, no fundo sombrio da sala, por uma das mulheres veladas. Ligeiras, vivas e falsamente lânguidas, tinham-se tornado, debaixo daqueles trajes, puras orientais, estas três pequenas extracultivadas, de alma Inquieta, que tinham meditado Kant e Schopenhauer.
- Porque é que o senhor não está alegre - perguntou Djénana, muito baixo, a André. - Desgosta-o isto que imaginámos para si'.
- Pelo contrário, isto é delicioso e nunca mais verei coisa igual. Não, o que me entristece, eu vo-lo direi quando as senhoras negras se tiverem ido embora, e, ainda que a faça pensar, estou certo de que a não farei desgostar.
As senhoras negras só estiveram mais uns momentos. Entre estas invisíveis - que eram todas revoltadas -, André reconheceu a voz, desde que começou a conversar, das duas jovens que vieram um dia a Sultão-Selim, essas que tinham uma avó francesa e sonhavam com a evasão. Mélek instava-as para que levantassem também os véus, por bravata contra a regra tirânica, mas elas recusaram, dizendo com riso gentil:
- Seis meses levastes vós para levantar o vosso! Também ali estava uma mulher muito moça a quem o livro de André apaixonava muito, que falava o francês como se fosse parisiense e que perguntou ao escritor:
Sem dúvida que o senhor quer, e nós queremos também,
tomar a mulher turca do ponto de vista actual da sua evolução? Pois bem, e perdoe o senhor que uma ignorante e pequena oriental dê o seu parecer a André Lhéry, se o senhor escrever um romance impessoal, fazendo-o girar em volta duma heroína ou dum grupo de heroínas, não se arrisca a não continuar a ser o escritor de impulsão que nós amamos tanto? Se pudesse ser uma espécie de continuação de Medjé, na sua volta ao Oriente, a alguns anos de distância?...
- Eu disse-lhe já exactamente isso - interrompeu Djénana-, porém, fui tão mal acolhida que não me atrevo mais a expor-lhe as minhas modestas ideias sobre esse livro...
- Mal acolhida, sim - respondeu ele, rindo-se -, mas, mau grado isto, eu não lhes prometi que, salvo eu meter-me em cena, faria tudo o que quisesse? E, sendo assim, exponha-me bem, hoje mesmo, as suas ideias e as senhoras-fantasmas que nos escutam dirão também as suas...
- O romance ou o poema de amor duma oriental é quase o mesmo - disse a senhora velada que já tinha falado. Sempre se trata de numerosas cartas e de entrevistas furtivas. O amor mais ou menos completo, e no fim a morte, e às vezes, mais raramente, a fuga. Eu falo, bem entendido, do amor com um estrangeiro, só o amor de que é capaz uma oriental cultivada do presente, que tem a consciência de si mesma.
- Como a revolta as torna injustas para com os homens do vosso país - procurou dizer André. - Só entre aqueles que eu conheço, podia citar-lhes alguns mais interessantes do que nós, e muito mais...
- A fuga não - interrompeu Djénana -, ponhamos somente a morte. Insisto no que propunha o outro dia ao Sr. Lhéry. Porque não procura empregar uma forma que lhe permita, sem estar absolutamente em cena, traduzir as suas próprias impressões? Esta por exemplo: "Um estrangeiro que se parecesse com o senhor como um irmão", um homem preparado para a vida, e um escritor muito lido pelas mulheres, volta um dia a Istambul, que outrora tinha amado. Encontra de novo nesta cidade a sua juventude e os seus entusiasmos?... (Responda, Sr. Lhéry! ) Encontra uma das nossas irmãs, que lhe tinha escrito precedentemente, como Juntas outras pobres pequenas deslumbradas pela sua auréola. k. então, o que há vinte anos chegou a ser amor não é mais nele do que curiosidade artística. Bem entendido, eu não farei aquele um desses homens fatais, ridículos depois de 1830, mas somente um artista a quem divertem as impressões novas e raras. Aceita ainda sucessivas entrevistas, porque são perigosas e ficam desconhecidas. E que pode resultar disto senão o amor?... Mas nela não; nele, que não é mais do que um diletante e não vê em tudo aquilo mais do que uma aventura... Ah! não - diz ela rapidamente, levantando-se com uma impaciência infantil. - Escutais-me todos, deixando-me falar sem tino... Já me sinto ridícula. Visto isso, vou dançar ainda uma dança da minha aldeia; estou vestida de odalisca e ficarei bem... Tu, Chahendé, faze favor, vai tocar essa ronda de pastores que repetíamos antes da chegada do Sr. Lhéry; sabes a que me refiro?...
E veio tomar as suas duas irmãs pela mão, para dançarem. As assistentes protestaram, reclamando o fim. Para a fazerem sentar, foi preciso virem todas, tanto as outras duas pequenas mulheres do paraíso de Maomet cobertas de ouro, como os fantasmas enlutados.
- As senhoras assustam-me... Enfadam-me... O fim da história?... Pois parece-me que está acabada... Não dizemos nós a toda a hora que o amor duma muçulmana não tem outra solução senão a fuga ou a morte?... Pois bem... A minha heroína é muito altiva para ir para o estrangeiro. Morrerá, não precisamente em consequência da desaparição desse homem, mas pelas exigências inflexíveis do harém, que lhe não deixam o meio de se consolar pela acção do seu sonho e do seu amor.
André olhava-a ao ouvi-la falar assim. Neste dia, o seu aspecto de odalisca, com roupas e adornos que tinham cem anos, tornava mais inesperada a sua linguagem; as suas pupilas, dum verde sombrio, estavam obstinadamente levantadas para o velho tecto complicado de arabescos, e ela dizia tudo isto com a serenidade de uma pessoa que inventa um bonito conto no qual essa pessoa não intervém para nada... Estava insondável...
Depois de as senhoras vestidas de negro se terem ido embora, ela aproximou-se dele, muito simples e confiante, como boa companheira:
- E agora, que elas já se foram embora, que tem o senhor a dizer-me?
- Que tenho a dizer-lhe? Suas primas podem ouvir-nos, não é verdade?
- Certamente - respondeu ela meio ferida. - Que segredos podemos nós os dois ter para elas? Não lhe tenho dito, desde o princípio, que nós as três não somos mais para si do que uma só alma?
- Pois bem! O que tenho é que, ao olhá-la, estou encantado e quase espantado por uma semelhança. Já o outro dia, quando a senhora levantou o véu pela primeira vez, não me viu recuar? Encontrei o mesmo rosto oval, o mesmo olhar, as mesmas sobrancelhas que ela tinha o costume de juntar com uma linha de henné. E ainda daquela vez eu não conhecia os seus cabelos iguais aos dela, e que hoje mostra entrançados como ela costumava trazer...
Ela respondeu numa voz grave:
Pareço-me eu com a sua Nedjibé, eu!... Creia que a
minha emoção não é menos profunda que a sua!... Se eu lhe dissesse, André, que era esse o meu sonho mais querido há cinco ou seis anos...
Olharam-se profundamente, mudos, um em frente do outro; as sobrancelhas de Djénana tinham-se levantado ligeiramente, como que para deixarem os olhos abrirem-se mais, e ele via luzir as suas pupilas da cor do mar sombrio, enquanto as outras duas jovens que estavam naquele harém, onde o crepúsculo começava, permaneciam afastadas, respeitando aquela confrontação melancólica.
- Fique como está, não se mova, André - disse ela, de repente. - E vós ambas, vinde ver o nosso amigo; colocado e iluminado como está, ninguém lhe dará mais de 30 anos!
Então ele, que esquecera a sua idade, coisa que lhe sucedia frequentemente, e que neste momento tinha a ilusão de ser realmente jovem, recebeu um golpe cruel e lembrou-se de que tinha começado a descer na vida, a única descida que nenhuma energia podia fazer subir. "Que faço eu aqui", perguntou ele a si próprio, "ao pé destas estranhas pequenas que são a própria juventude? Por inocente que possa ser a aventura onde elas me meteram, não é uma aventura para a minha idade..."
E deixou-as mais friamente talvez que de costume, para ir só pela imensa cidade, onde baixava um dia de Outono. Tinha de atravessar muitos bairros diversos, muitas multidões diferentes, ruas que desciam e ruas que subiam, e um braço de mar, antes de chegar à altura de Pera, a sua morada de ocasião, que lhe parecia mais detestável e mais vil do que nunca naquela noite que descia...
Porque não tinham acendido a luz e o fogão? Chamou os criados turcos encarregados desse serviço. O criado de quarto, que era francês e que apareceu para os substituir, levantando os braços, disse:
- Foram divertir-se. Esta noite começa o Carnaval dos Turcos; impossível retê-los.
com efeito, tinha-se esquecido. Estava-se a 8 de Novembro, que correspondia este ano com a abertura do mês de Ramadã, durante o qual há jejum austero todos os dias, Porém diversões modestas, iluminações todas as noites. Chegou-se a uma das janelas que olhavam Istambul para saber se as grandes festas que ele vira na juventude, um quarto de século antes, eram iguais a estas do ano 1322 da Hégira. Sim, estava tudo tal e qual; nada mudara; a incomparável silhueta da cidade lá ao fundo, na imprecisão nocturna, começara a brilhar em muitos pontos, iluminando-se rapidamente ao mesmo tempo. Todos os minaretes que acabavam de acender as suas duplas ou triplas coroas luminosas se assemelhavam a gigantescos fusos de sombras, adornados em diferentes alturas com argolinhas de fogo. Por cima das mesquitas, traçavam-se no espaço grandes inscrições árabes, sustentadas por fios invisíveis, que ao longe, por entre a bruma, pareciam compostas com estrelas como as constelações. Então lembrou-se de que Istambul, a cidade do silêncio que era em todo o ano, se tornava durante as noites do Ramadã cheia de músicas, de cantos e de danças, entre a multidão, onde nem uma mulher se via, mesmo na forma de fantasma, que é ainda bonita, pois que todas, depois do sol-posto, deverão estar por detrás das suas grades; mas havia mil trajos em todos os recantos da cidade asiática, cachimbos, teatros antigos, fantoches e sombras chinesas. Por outro lado, já por medo de possíveis maus encontros, já por inepta incompreensão, não se via ninguém de Pera. Por conseguinte, esquecendo uma vez mais o número dos seus anos, que há pouco o tinha entristecido, pôs o fez e, como os criados turcos, foi para essa cidade iluminada, do outro lado da água, tomar parte na festa oriental.
A 21 de Novembro, 4 de Ramadã, foi enfim o dia de visita dos quatro à sepultura de Nedjibé, visita que projectavam havia já meses, mas que era uma das mais perigosas empresas; até ali tinham-na transferido por causa da própria dificuldade e por via das muitas horas de liberdade que exigia a Ida ao cemitério, que estava muito longe.
Na véspera, Djénana, ao dar-lhe as últimas instruções, escrevia-lhe: "O dia de hoje está tão formoso e tão azul que espero do fundo do meu coração que amanhã também nos sorrirá." Quanto a André, tinha sempre imaginado esta peregrinação juntos, por um desses dias imóveis e nostálgicos de Novembro, quando o sol tem uma temperatura de estufa, neste país, em suma, muito meridional, que dá uma ilusão' de Verão e que ao pôr do Sol torna Istambul cor-de-rosa e mais maravilhosamente rosado ainda do lado da Ásia, que está em frente, à hora do Moghreb, por um instante fugitivo antes da noite, que em seguida traz o frio do Norte.
Mas não, quando, no dia seguinte, abriram as janelas de sua casa, pela manhã, viu o céu carregado e sombrio; era o vento do mar Negro que soprava sem esperança de acalmar. Adivinhava que, àquela mesma hora, os bonitos olhos das suas amigas enclausuradas deviam estar a interrogar o tempo com ansiedade através das rótulas das janelas.
Não havia que hesitar; contudo, foi muito difícil de combinar, com a ajuda de cumplicidades pagas e gratuitas que talvez não voltassem a encontrar. A hora combinada, uma hora e meia, de fez e rosário na mão, André estava em Istambul, Sultão Fatih, diante da porta da casa misteriosa onde quatro dias antes fora recebido por elas em trajes de odalisca. Encontrou-as prontas, todas de negro, impenetràvelmente veladas. Chahendé Hanum, a senhora desconhecida, dona da casa, tinha querido também acompanhá-las. Eram quatro fantasmas que se dispunham a segui-lo, quatro sombras um pouco emocionadas, um pouco trémulas de audácia pelo que iam fazer. André, a quem competia tomar a palavra durante o caminho, quer com os cocheiros quer com qualquer transeunte imprevisto, preocupava-se pela sua linguagem e pelas suas hesitações de acento estrangeiro, o que os fazia correr um grave risco.
- Convém que o senhor tenha um nome turco - disseram elas -, para o caso de termos necessidade de lhe falar.
- Bem, chamar-me-ei Arif - disse ele, sem procurar mais. - Divertia-me muito fazer-me chamar Arif Effendi; hoje posso muito bem ter ascendido: serei Arif Bei.
Um instante depois, caso sem precedentes em Istambul, caminhavam na rua, o estrangeiro e as quatro muçulmanas: Arif Bei e o seu harém. Um vento ríspido amontoava nuvens cada vez mais negras, carregadas de humidade gelada; todos tiritavam com frio. Só Mélek mostrava a sua habitual alegria e chamava ao seu amigo: "Jki yuenzoum beyim effendim" ("Sr. Bei, meus dois olhos", locução corrente que significa: "Sr. Bei, sois-me tão querido como a vista"). E André sentia-se molestado por aquela alegria, porque este dia trazia-lhe à lembrança a imagem da pequena morta, como se estivesse ali posta diante dele.
Chegaram a uma praça onde estacionavam fiacres e tomaram dois, um para o bei e outro para as suas quatro sombras; as conveniências não permitiam que um homem fosse na mesma carruagem com as mulheres do seu harém.
Um grande percurso; sempre um trem atrás do outro pêlos velhos bairros fanáticos, para chegar enfim fora da cidade, à solidão fúnebre dos grandes cemitérios cheios de corvos, naquela estação do ano sobre os negros ciprestes.
Entre a porta de Andrinopla e Eyub, antes de chegarem às imensas muralhas de Bizâncio, desceram das carruagens por o caminho não ser transitável. A pé, costearam uns momentos estas fortificações em ruínas; pelas fendas e buracos viam-se de tempos a tempos coisas de Istambul, como que para melhor impor ao espirito o pensamento no islame, ali dominador e exclusivo, que estava mais ou menos ao longe, em qualquer das soberanas mesquitas de cúpulas sobrepostas em pirâmide e de minaretes brancos debaixo do céu negro, apontados ao Sol como um feixe de fusos.
Neste lugar de imponente desolação, onde André passeava com as quatro veladas mulheres da peregrinação, estava exactamente como um quarto de século antes. Nedjibé e ele tinham ido passear em pleno dia; era ali que os dois, muito jovens e enamorados um do outro, tinham ousado vir como duas crianças que troçam do perigo; foi ali que eles se detiveram uma vez, ao pálido sol de Inverno, para ouvir cantar um passarinho esquecido da estação; ali, diante dos seus olhos, viram enterrar uma grega com cara de cera...
Já tinha passado mais de um quarto de século sobre estas coisas íntimas, únicas nas suas existências e não esquecidas na memória dele, que continuava vivendo.
Deixaram o caminho que contorna as muralhas de Bizâncio, para se internarem no pleno domínio dos mortos, debaixo dum céu de Novembro, singularmente obscuro no meio dos ciprestes, entre a extensão sem fim das sepulturas. O vento da Rússia não os poupava, açoitando-lhes a cara e enchendo-os de humidade cada vez mais fria. Diante deles, os corvos fugiam sem pressa, saltitando.
Apareceram as estalas de Nedjibé, essas colunas ainda muito brancas que André indicou às suas companheiras. As inscrições douradas de novo, na Primavera, brilhavam ainda.
A alguns passos dos mármores humildes, os gentis fantasmas visitadores estavam imobilizados e, espontaneamente, tinham-se posto a rezar na atitude consagrada do islame, que é com as duas mãos abertas e quase estendidas, como para pedir um perdão - em oração fervente pela alma da querida morta. Era tão imprevisto e terno o que elas estavam fazendo, que André sentiu os olhos húmidos de lágrimas e, para esconder a sua emoção, se conservou um pouco afastado, ele que não rezava.
Assim tinha realizado este sonho que lhe parecia impossível: fazer restaurar aquela sepultura e confiá-la a mulheres turcas, capazes de venerá-la e de conservá-la. Os mármores estavam bem erguidos e bem sólidos, com os seus dourados frescos; as mulheres turcas estavam ali também, como fadas de recordação, rodeando aquela pobre sepulturazinha muito tempo abandonada, e ele mesmo ali estava com elas em íntima comunhão de respeito e de piedade.
Quando acabaram de recitar a fathia, aproximaram-se para ler a inscrição que brilhava. Primeiro a poesia árabe, que começava no alto da coluna, a descer em linhas inclinadas até à terra. Depois, em baixo, o nome e a data. "Uma oração pela alma de Nedjibé Hanum, filha de Ali-Djianghir Effendi, falecida em 18 de Chabaan de 1927." Os Circassianos, ao contrário dos Turcos, têm um nome patronímico, ou, melhor, um nome de tribo. com uma íntima emoção, Djénana, soube o nome da família de Nedjibé.
- Mas - disse ela - os Djianghir habitam na minha al deia! Há muito tempo que vieram do Cáucaso com os meus antepassados, há já duzentos anos que vivem em nossa companhia.
Isto explicava melhor ainda a parecença das duas, e que era mais alguma coisa do que um sinal de raça; sem dúvida, elas eram do mesmo sangue, devido ao capricho de algum príncipe doutrora. E que misterioso antepassado, há muito tempo reduzido a pó, tinha ligado, através de quantas gerações, as duas jovens mulheres, de raça tão distinta, com aqueles olhos persistentes, raros e admiráveis
Estavam imóveis no cemitério, onde fazia um frio mortal naquele dia. E, de repente, o peito de Zeyneb, encoberto pelos véus negros, foi sacudido por uma tosse seca.
- Vamos embora - disse André alarmado-, vamos por favor, e agora andemos depressa...
Antes de se afastarem, cada um apanhou um raminho de cipreste de que a sepultura estava juncada; quando Mélek se baixou para apanhar o seu, ele entreviu os seus olhos cheios de lágrimas e perdoou-lhe do fundo da alma a alegria de há pouco na rua.
Chegados ao pé dos trens, separaram-se para não prolongarem o perigo de estarem juntos. Depois de terem prometido dar-lhe o mais depressa possível notícias da sua chegada ao harém, coisa que o preocupava por ser já tarde, ele foi por Eyub, enquanto elas foram pelas portas de Andrinopla.
Seis horas depois, André entrou em sua casa, em Pera. Oh! que sinistra tarde! Através dos vidros das janelas, olhava na obscuridade da noite o imenso panorama, que lhe dava desta vez maiores recordações e das mais dolorosas que tinha sentido, da Constantinopla da sua juventude. Era o fim do crepúsculo, mas não ainda a hora em que os minaretes acendem todas as suas coroas de fogo para a festa de uma noite no Ramadã; neste momento eram apenas indicados pelo cinzento-sombrio sobre o cinzento quase igual ao do céu. Istambul mostrava-se com uma silhueta tão esfumada e incerta como nos seus sonhos, quando ele viajava muito longe dali. No extremo horizonte, do lado do Oeste, havia como que uma franja negra, muito nitidamente recortada sobre um pouco de rosa, produzido pelo reflexo do solposto; eram os contornos dos grandes ciprestes. Ele meditava de olhos fixos naquele sítio adormecido, no meio daquele silêncio de infinito abandono, onde estavam as humildes lousas de mármore que por piedade mandara levantar e redourar
Ainda bem; a sepultura fora reparada e confiada a muçulmanas que lhe fariam piedosas visitas durante alguns anos ainda, visto que eram novas. E depois? O que impediria este Período da sua vida, esta lembrança de juventude e de amor, de se tornar longínqua, caindo cada vez mais no tempo passado e nas coisas que são esquecidas por todos Demais, esses cemitérios muito velhos e muito venerados, que fim podiam ter Quando o Islame, ameaçado de todos os lados, se limitar à Ásia vizinha, que farão os novos possuidores daquele amontoado de velhas sepulturas? As colunas de Nedjibé desaparecerão, como tantos milhares de outras... E eis que lhe parecia entretanto que, pelo facto de ter cumprido este dever, por tanto tempo impossível, e de não ficar em dívida para com a querida morta, acabava de rasgar o último laço com aquele passado querido, que estava a finalizar irremediavelmente.
Naquela noite havia na Embaixada de Inglaterra jantar e baile a que devia ir. Teria de se vestir depressa. O criado acendeu as luzes e preparou o fraque. Depois da visita ao cemitério cheio de ciprestes, com as turcazitas de tcharchafs negros, que mudança absoluta de época, de meio e de ideia! No momento de deixar a janela para se ir vestir viu flocos de neve que começavam a cair; era a primeira neve... Nevava ao longe, na solidão dos grandes cemitérios.
No dia seguinte de manhã recebeu a carta que solicitara para ter notícias da volta ao harém.
4 de Ramadam, nove horas da noite
Voltámos sãs e salvas, amigo André, mas não sem atribulações. Era já muito tarde, justamente, o limite permitido, e depois uma das nossas amigas cúmplices disse descuidada alguma coisa que devia ocultar. Tudo se arranjou, mas as velhas senhoras da casa e os não menos velhos senhores estão alerta.
Obrigadas de todo o nosso coração pela confiança que o senhor nos testemunhou. Agora essa sepultura também nos pertence um pouco, não é verdade? Iremos lá rezar quando o senhor tiver deixado o nosso país.
Esta noite sinto-o muito longe de mim, quando o senhor está tão perto! Da minha janela posso, lá ao longe. no alto de Pêra, ver as salas da Embaixada onde o senhor está, e... eu pergunto como se pode distrair quando nós estamos tão tristes. O senhor dirá que eu sou muito exigente; sou na verdade, não por mim, mas por uma outra.
O senhor, neste momento, está sem dúvida, alegre, rodeado de mulheres e de flores, o encanto do espírito dos olhos, enquanto nós, num harém mal alumiado e muito sombrio, choramos.
Choramos sobre a nossa vida.
Oh! que triste e que vazio é este serão! Nesta noite, mais do que nas outras. Será por senti-lo tão perto e tão longe que nos tornamos mais desventuradas?
Djénana
E eu, eu, Mélek, sabe o que lhe digo? Como pode o senhor distrair-se com as luzes e as mulheres, quando nós, diante de três raminhos colhidos de um cipreste, choramos? Estão esses raminhos num cofre santo, de madeira de Meca; têm um cheiro acre e humilde que nos penetra, e entristece. O senhor sabe onde nós os apanhámos?...
Oh, como pode o senhor estar num baile esta noite, sem se lembrar das saudades que cria e das existências que tem desfeito no seu caminho? Não posso imaginar que o senhor não pense nestas coisas quando nós, que só somos irmãs estrangeiras e afastadas daquelas desgraçadas, choramos...
Mélek
Elas tinham-lhe dito que o Ramadã as tornava mais cativas, por causa das orações, das leituras dos livros santos, do jejum de todo o dia, e sobretudo por causa da vida mundana da noite, que toma uma importância excepcional durante este mês de Quaresma; há aparatosas e grandes comidas chamadas iftars, que são para compensar a abstinência do dia e para as quais se convida uma quantidade de pessoas.
Pelo contrário, este Ramadã parecia facilitar o seu projecto mais fantástico: receber uma vez André Lhéry em Khassim-Paxá, mesmo nos aposentos de Djénana, a dois passos da Sr." Husnugul!
Istambul, na Quaresma do islame, não se reconhecia. À noite, festas e milhares de lanternas, ruas cheias de gente, mesquitas coroadas de luzes, grandes círculos luminosos em todas as partes, no ar, sustentados por minaretís que mal se divisam, de tal forma tomam a cor do céu e da noite.
Mas, em compensação, sono geral durante o dia; a vida oriental fica paralisada nos inumeráveis pequenos cafés, que de ordinário nunca se despovoam. Não há cachimbos nem conversas, somente alguns fiéis estendidos sobre bancos, meio fatigados pelas vigílias e pelo jejum. E dentro das casas, até ao sol-posto, o mesmo descanso que cá fora. Em casa de Djénana, particular, onde os criados são velhos como os patrões, toda a gente dorme, negros imberbes ou guardas de grandes bigodes com pistolas à cinta.
A 12 de Ramadã de 1322, dia fixado para a extravagante empresa, a avó e os tios velhos estavam de cama com gripe e, circunstância inesperada, a Sr.a Husnugul há dois dias que estava de cama também, por causa duma indigestão produzida por um iftar.
André devia apresentar-se às duas horas precisas. Tinham-Lhe recomendado que fosse encostado às paredes, para não ser visto das janelas da sacada, e que não entrasse pela porta principal, se não visse através das rótulas do primeiro andar a ponta do lenço branco - o sinal habitual.
Na verdade, desta vez ele tinha medo, por elas e por ele mesmo, não do perigo imediato, mas do escândalo europeu, universal, que não deixaria de produzir-se se se deixasse apanhar na ratoeira. Aproximou-se lentamente, de olho à mira. A casa de Djénana oferecia uma disposição favorável; não tinha outra na frente e dava, como todas as outras daquele sítio, para o grande cemitério desta margem. Em frente, só os velhos ciprestes e as sepulturas: nenhum olhar podia vir desse lado solitário, envolvido naquele dia pela bruma de Novembro.
O sinal branco estava no seu lugar: não era possível já recuar. Entrou de cabeça baixa, como quem se atira a um abismo. Era um vestíbulo de estilo oriental antigo, onde naquele dia não havia guardas armados e dourados. Só Mélek de tcharchaf negro, que por detrás da porta lhe gritou na sua voz risonha:
- Venha, venha! Corra!
Juntos, subiram a escada a quatro e quatro degraus, atravessaram rápidos como o vento os longos corredores e entraram no quarto de Djénana, que esperava palpitante, fechando a porta à chave depois de eles entrarem.
Em seguida, os três riram-se com um riso de troça que eles costumavam lançar como um desafio a tudo e a todos, cada vez que um perigo mais sério acabava de ser conjurado. E Djénana mostrava com gracioso ar de triunfo a chave que tinha na mão. Uma chave, uma fechadura, mas que inovação subversiva num harém! Tinha conseguido aquilo mesmo na véspera, e ainda lhe parecia mentira tal coisa. Djénana, Zeyneb e depois Mélek, lestamente desembaraçadas dos seus tcharchafs, estavam mais pálidas do que de costume, por causa do severo jejum. Depois apresentaram-se diante de André num aspecto novo para ele, porque até ali só as tinha visto de odaliscas e de fantasmas: agora estavam penteadas e vestidas à europeia, muito elegantes só com um pormenor que as tornava ainda um pouco orientais: uns pequenos véus da Circássia de gaze branca e prata, postos sobre os cabelos e que lhe caíam pelas costas.
- Julgava que em casa as senhoras não punham véu disse André.
- Sim, sim, sempre. Mas só estes pequenos véus. Primeiro fizeram-no entrar para a sala de música, onde
o esperavam três outras mulheres convidadas para a perigosa aventura: M.elle Bonneau de Saint-Miron, M'elle Tardieu, ex-professora de Mélek, e, finalmente, uma senhora fantasma, Ubeydé-Hanum, diplomada pela Escola Normal e professora de Filosofia num liceu de meninas em qualquer cidade da Ásia Menor. As duas francesas estavam um pouco sobressaltadas, porque se tinham visto muito tempo indecisas entre a ttentação e o medo de vir. M'elle Salnt-Miron parecia dizer a si mesma: "Sou eu a causa deste inenarrável desastre. André Lhéry em pessoa nos aposentos da minha discípula!" Conversavam porque morriam por isso, e pareceu a André que aquelas duas solteironas tinham ao mesmo tempo a alma altiva e cândida, de resto distintas e superiormente instruídas, mas com uma exaltação romântica um pouco velha em 1904. Falaram-lhe do seu livro, cujo título elas conheciam e que as excitava muito:
- Tem já muitas páginas escritas das suas Desencantadas, não é verdade, mestre?
- Meu Deus! Não, nem uma só! - respondeu ele, rindo-se.
- Prefiro que assim seja - disse Djénana a André, na voz que o surpreendia sempre como música extraterrestre, mesmo depois de outras vozes já muito doces. Compô-lo-á quando se tiver ido embora. Assim, ao menos, ele servirá ainda de laço entre nós durante alguns meses; quando tiver necessidade de o documentar, será obrigado a escrever-nos...
André julgou dever, por polidez, dirigir uma vez a palavra à senhora velada, e perguntou-lhe no tom mais banal se estava contente com as discípulas turcazitas da Ásia. Previa uma resposta de pedagogo, tão banal como a sua pergunta, mas a voz séria e doce que vinha de debaixo do véu negro disse-lhe em puro francês o que ele não esperava:
- Muito contente, com pesar meu!... Aprendem com facilidade e são muitíssimo inteligentes. Lamento ser um dos instrumentos que inoculam o micróbio do sofrimento a estas mulheres de amanhã. Compadeço-me de todas essas florinhas que hão-de murchar mais depressa que as cândidas avós...
Em seguida falaram do Ramadã. Jejum todo o dia, bem entendido, pequenas obras e leituras piedosas para os pobres no decorrer daquele mês lunar. Uma muçulmana deve reler todo o Alcorão sem omitir uma linha. Não faltavam a essa leitura as três pequenas, que, mau grado o desequilíbrio e a descrença, veneravam com admiração o livro sagrado do Islame e os seus Alcorões estavam marcados com uma fita verde na página do dia.
Logo ao sol-posto são os iftars. No selamlike, o iftar dos homens, seguido duma oração para a qual convidados, donos e servidores se reúnem em comum na sala grande, cada um ajoelhado sobre o tapete; parece que em casa de Djénana a oração era cantada cada noite por um dos jardineiros, o que fosse moço e cuja voz de cantor ecoasse por toda a casa.
No harém, o iftar das mulheres.
- Estas reuniões das jovens turcas - disse Zeyneb - raramente são frívolas no mês de Ramadã; ainda que o misticismo se revele no fundo das nossas almas, as questões que abordamos são de vida e de morte. Sempre o mesmo ardor e a mesma febre ao princípio e sempre a mesma tristeza no fin, e o mesmo desencorajamento que nos absorve; depois de duas horas de discussão sobre todas as filosofias encontramo-nos no mesmo ponto, com a consciência de não sermos mais que fracas, impotentes e pobres criaturas! Mas a esperança é um sentimento tão tenaz que, mau grado a falência das nossas tentativas, nos resta a força de tomar no dia seguinte outro caminho, para tentar ainda chegar ao inaproximável fim...
- Nós, as jovens turcas - ajuntou Mélek -, somos um punhado de sementes de uma muito má planta que germina resiste e se propaga, mau grado a falta de água, os frios e mesmo os repetidos cortes.
- Sim - disse Djénana -, podemos dividir-nos em duas espécies. As que, para não morrer, aproveitam todas as ocasiões para se aturdir e esquecer e essas, melhor dotadas, que se refugiam na caridade, como por exemplo Djavidê, nossa prima. Eu não sei se em França as Irmãzinhas dos Pobres fazem mais bem do que ela, com maior desinteresse pessoal que nos nossos haréns; não é a única, muitas a igualam. Ê verdade que são obrigadas a fazer isto em segredo, e quanto a formar comissões de beneficência, é-nos absolutamente proibido, porque os nossos senhores desaprovam o contacto com as mulheres do povo, julgando que lhes comunicamos os nossos pessimismos, os nossos desarranjos e dúvidas.
Mélek, em quem as interrupções bruscas constituíam uma especialidade, propôs que experimentasse André o esconderijo que tinham feito para o caso de grande alarme, o qual estava por detrás de um grande cavalete que suportava um quadro coberto de brocados.
- É um excesso de precaução - disse ela -, porque nada haverá. O único varão válido da família, neste momento, é meu pai, e não volta de Ildiz senão depois do tiro de canhão de Moghreb...
- Sim, mas enfim - objectou André -, se alguma coisa imprevista o traz antes da hora?
- Está bem, num harém não se entra sem se ser anunciado. Mandamos-lhe dizer que está de visita uma senhora turca, Ubeydé Hanun, e ele não virá aqui. com um pouco de manha tudo pode resolver-se... Não, só o que há de verdadeiramente delicado é a sua saída a qualquer hora.
Sobre o piano estavam as folhas manuscritas de um nocturno que Djénana acabava de compor, e André gostava que ela própria o tocasse para ele ouvir, ele que só as ouvira de longe, passando pelo Bósforo, debaixo das janelas. Não pode ser porque durante o Ramadã não se pode tocar E depois a imprudência de acordar a grande casa adormecida num sono que neste momento era tão necessário!
Quanto a Djénana, desejava que o seu amigo se sentasse uma vez para escrever na sua secretária de solteira, a secretária sobre a qual, no tempo em que ele era para ela só uma personagem de sonho, escrevia o diário que lhe dedicava. Levaram-no para a sala grande, onde tudo era branco, luxuoso e muito moderno. Teve de ver, em companhia delas, as persíanas com rótulas sempre fechadas, e essas perspectivas familiares da infância, perante as quais, sem dúvida, envelheceriam, murchando a pouco e pouco como as flores; teve de olhar os ciprestes, as colunas e todos os anjos; em baixo, como num precipício, a água do Corno de Ouro, hoje escura e densa, semelhante a uma chapa de estanho, e para lá Istambul envolto na bruma do Inverno. Também teve de olhar pelas janelas livres que davam para o interior dos velhos jardins, de muros muito altos, que Djénana já lhe tinha descrito nas suas cartas: "Um jardim tão solitário", dizia-lhe ela, "que se não pode passear sem véu, porque cada vez que lá vamos os negros correm a afastar os jardlneiros."
com efeito, lá no fundo, onde os plátanos cruzavam as enormes ramadas despidas de folhas, tristemente pardos, o jardim tomava o aspecto de floresta prisioneira; podiam passear por debaixo sem que ninguém as visse.
André bendizia o concurso de audácias que lhe permitiam conhecer aquela moradia tão proibida aos seus olhos... Pobres amizades de alguns meses, encontradas no declinar da sua vida errante e que ele tinha fatalmente de deixar para sempre! Ao menos, quando se lembrasse delas, o quadro do seu sequestro aparecer-lhe-ia nítido na memória...
Era chegada a hora de se retirar, a hora grave. André, no meio delas, quase esquecera o inverosímíl da situação; agora, que se tratava de sair, tinha a consciência de se ter metido muito vivo dentro duma ratoeira, cuja saída, depois da sua passagem, ficava eriçada de espinhos.
Elas fizeram muitas rondas de exploração; estava tudo bem; a única personagem de mais era um certo negro chamado Vousouf, que guardava com obstinação o grande vestíbulo. Era preciso imaginar para ele uma caminhada grande urgente.
Encontrei - disse de repente Mélek. - Entre no seu esconderijo, André. Vamos mandá-lo vir aqui mesmo, o que era o cúmulo!
O negro apresentou-se.
- Meu bom Vousouf - disse Mélek -, vais a Pera, a correr, compra-nos um livro novo, cujo nome eu vou escrever-te num papel; se for necessário, corre todas as livrarias das ruas principais, mas não venhas sem ele! E escreveu sem se rir o que segue: "As Desencantadas, último romance de André Lhéry." Uma ronda ainda nos corredores, novas ordens dadas a uns e a outros, para ocuparem outros sítios, e logo, tomando a mão de André, o levou a correr até abaixo e um pouco nervosamente empurrou-o para a rua.
Caminhou encostado às velhas paredes, perguntando a si próprio se aquela porta fechada com ruído não voltaria a ser aberta, para dar passagem a um grupo de negros armados de revólveres e de paus que o perseguiriam.
No dia seguinte, elas mandaram-lhe a confissão da sua mentira acerca dos véus da Circássia. Dentro de casa não punham véu. Porém, para uma muçulmana, mostrar a um homem todos os seus cabelos, mostrar-lhe a sita nuca sobretudo, era pior ainda do que mostrar a cara, e elas não se tinham atrevido a tanto.
Djénana a André
11, de Ramadã de 13Z2 (22 de Novembro de 1905)
Amigo nosso. Sabe que amanhã é o meado de Ramadã e que todas as senhoras turcas saem a passeio. Não irá o senhor das duas às quatro horas passear a Istambul, de Bayzid a Chazidé-Baché
Neste momento estamos muito ocupadas com os nossos iftars, mas tratamos de organizar uma bela escapada à costa da Ásia. A invenção é de Mélek, e verá como é bem imaginado.
Djénana
Naquela "manhã" fazia vento do sul e bom sol de Outono; muita luz e temperatura amena; tempo ideal para as formosas veladas, que têm no ano só dois ou três dias de tal liberdade. De carro fechado, bem entendido, era o seu passeio, com um eunuco na boleia, junto do cocheiro. Tinham o direito de correr as cortinas, de baixar as vidraças e de parar muito tempo para se verem umas às outras, o que é proibido nos dias ordinários. De Bayzid a Chazidé-Baché, no centro de Istambul, dista aproximadamente um quilômetro, em plena turcaria, pelas ruas antigas ladeadas de mesquitas colossais, de recintos sombrios e fechados, para os mortos, e de fontes santas.
Nestes bairros habitualmente solitários e nada feitos para as elegâncias modernas, que anomalia produziam aquelas filas de trens em meados de Ramadã! Contam-se por centenas os coupés e os landaus, parados ou rodando lentamente, que vinham de todos os bairros da imensa cidade e, mesmo dos palácios dispersos ao longo do Bósforo. E dentro deles só mulheres muito adornadas; o yachmak que tapa até aos olhos, muito transparente, para deixar ver o resto da cara; todas as belezas dos haréns estavam quase visíveis naquele dia por excepção: as circassianas coradas e loiras e as turcas morenas e pálidas.
Poucos homens em volta das portinholas abertas e nem um europeu; do outro lado das pontes, em Pera, ignora-se sempre o que se passa em Istambul.
André procurou as suas três amigas, que parece vinham muito bem vestidas para lhe agradarem; procurou-as por muito tempo e não pôde descobri-las, tal era a multidão. À hora em que os passeantes retomavam o caminho dos zelosos haréns foi-se embora também, um pouco desgostoso por ter encontrado o olhar de tantos olhos belos que sorriam de bem-estar neste dia amável e que experimentavam cãndidamente o prazer de espairecer uma vez por acaso. Então compreendeu melhor do que nunca, naquela tarde, o aborrecimento moral dos sequestros.
Elas conheciam na margem do Mármara, do lado asiático, uma pequena praia solitária, muito abrigada, diziam, do vento que desola o Bósforo e tépida como um laranjal. Uma das suas amigas habitava nas proximidades e comprometia-se a encontrar um pretexto muito aceitável, afirmando com toda a seriedade que tinham passado todo o dia com ela. Tinham decidido ir lá as três em último passeio com André, antes da próxima separação, que poderia muito bem ser a última e definitiva. André contava ir passar dois meses a França e Djénana devia ir com a avó passar a estação dos frios ao seu domínio de Bonnar-Bachi; só voltariam a ver-se na Primavera do ano seguinte, e dali até lá muitos dramas podiam passar-se.
No domingo 11 de Dezembro de 1904, dia escolhido para este passeio - depois de mil combinações e de astúcias -, estava um destes dias esplêndidos, que neste clima variável vêm de repente em pleno Inverno, entre dois períodos de neve, e que parecem trazer o Verão. Sobre a ponte do Corno de Ouro, donde partem os pequenos vapores para os portos da Ásia, encontraram-se ao sol do meio-dia como viajantes que se não conhecem; embarcaram como que por acaso no mesmo vapor, indo elas instalar-se correctamente no sítio reservado às muçulmanas, depois de mandarem embora os negros e as negras.
Em virtude daquele belo céu, havia neste dia muita concorrência de passeantes à costa da Ásia. com elas iam cinquenta senhoras veladas e, quando o vapor acostou ao cais de Escutári, André meteu-se entre todos aqueles véus negros, que desembarcaram também, e tomou uma falsa pista seguindo três senhoras que não eram as suas amigas, a ponto de dar quase um escândalo. Por felicidade, estas tinham o aspecto menos elegante que aquelas e, por fim, aproveitando um recanto do caminho, ele abandonou a pista e conseguiu encontrar quem queria.
Alugaram um trem de alquilador para os quatro, o que é tolerado no campo. Ele, como era o bei, sentou-se no lugar principal, ao contrário dos nossos costumes ocidentais. Djénana ao lado dele, Zeyneb e Mélek em frente. Os cavalos trotavam e as três riam-se por baixo dos véus, por causa da boa combinação da partida e pela liberdade conquistada naquela tarde, porque eram moças e porque o tempo convidava à alegria. Eram, de resto, muito adoráveis e cheias de alegrias infantis, entre as crises sombrias, até mesmo Zeyneb, que sabia esquecer o seu mal e o desejo de morrer. E, com uma sorridente ausência de medo, expunha-se a tudo: ao sequestro absoluto, ao desterro, ou até mesmo a algum castigo mais severo ainda.
À medida que avançavam ao longo do Mármara, cada vez sentiam menos a perpétua corrente de ar do Bósforo. A pequena praia era longe, mas banhava-a um ar tépido como tinham previsto e calmo na solidão, muito agradável para elas pela absoluta tranquilidade. Dava para o sul esta praia e um rochedo em miniatura rodeava-a como um abrigo feito de propósito. Sobre a areia fina estavam como nos vedados jardins do seu harém. Só se via o Mármara, sem um navio e sem uma ruga, somente com a linha das montanhas da Ásia no extremo horizonte, um Mármara imobilizado como nos belos dias de Setembro, mas dum demasiado azul-pálido, porque aquela palidez, apesar do sol, lhe dava uma tristeza de Inverno, como um cadinho cheio de prata derretida. E as montanhas lá ao longe viam-se coroadas de neve.
E no alto daquela pequena rocha não se via vivalma, nem na planície um pouco nua em volta. As três levantaram os véus até aos cabelos para se saturarem de ar puro; os seus rostos juvenis, um pouco pálidos, nunca se tinham sentido com tanta segurança; jamais André as vira assim, mau grado os riscos da empresa e os perigos do regresso.
Primeiro sentaram-se sobre a terra para comer os bombons comprados num confeiteiro de fama em Istambul; depois passaram em revista todos os recantos da gentil baía, tornada seu domínio clandestino naquela tarde. Um estranho concurso de vontades, circunstâncias e audácias tinha-os reunido ali naquele dia de Dezembro, tão estranhamente cheio de sol, parece que Inquietante de ser tão belo e tão furtivo entre duas correntes de vento da Rússia, àqueles hóspedes que vinham de meios muito diferentes e que pareciam votados pelo seu destino a nunca mais se encontrar. E André, olhando os olhos e os sorrisos desta Djénana que dias depois ia partir para o seu palácio de Macedónia, apreciava tudo que naquele instante havia de raro e que não voltaria a encontrar; as impossibilidades que tinha sido preciso vencer para se reunirem ali perante a palidez do Inverno daquele mar, impossibilidades que reapareceriam ainda amanhã e sempre, quem sabe Era quase certo que nunca mais se tornariam a ver, pelo menos com tanta confiança e sem sobressaltos; era uma hora na vida para anotar, gravar e defender quanto possível contra um rápido esquecimento.
Em volta, cada uma subia às pequeninas rochas para espreitar os perigos ao longe: uma vez Zeyneb, que estava de vigia, anunciou um turco que vinha pela praia, em companhia de três mulheres de véu levantado. Julgaram que não era perigoso afrontar o encontro e somente baixaram por momentos a gaze negra sobre a cara. Quando o turco passou, sem dúvida algum bei autêntico passeando com as senhoras do seu harém, estas tinham igualmente baixado os véus por causa de André; mas os dois homens olharam-se distraidamente sem desconfiança de parte a parte. O desconhecido não hesitou em tomar as pessoas desconhecidas encontradas naquela baía por membros duma mesma família.
Alguns seixozitos muito lisos, como que feitos de propósito e que a corrente tranquila do Mármara tinha por acaso posto em linha sobre a areia, lembraram de repente a André uma brincadeira da infância. Ensinou às suas amigas a maneira de os lançar, para que dessem saltos na superfície polida da água, e elas olharam-se com tristeza por não terem jeito... Meu Deus! Que crianças simples e risonhas eram neste dia as três pobres pequenas muito complicadas! Djénana, que fizera tanto mal para entregar a sua própria vida!
Depois desta hora única foram-se embora em procura do trem que os esperava lá em baixo para os levar a Escutári. No barco não se conheceriam mais. Mas durante a curta travessia puderam ainda ver a reaparição maravilhosa de Istambul alumiado pela luz das tardes serenas. Um Istambul visto de frente, em fileira: primeiro as ameias da fortaleza do Velho Serralho banhada pela toalha rosa-prateada do Mármara e por cima os inúmeros minaretes e cúpulas perfilados sobre um cor-de-rosa menos pálido que o do mar, atirando Para a cor de ouro.
Djénana a André, no dia seguinte
Salvas mais uma vez! Tivemos dificuldades terríveis ao voltar, mas agora está tudo tranquilo em casa... Reparou ao chegar como o nosso Istambul estava belo!
Hoje chove; a neve, açoitada pelo vento, bate nas vidraças e o vento glacial toca como que uma flauta triste debaixo das nossas portas. Como seriamos desventuradas se este tempo se tivesse desencadeado ontem! Presentemente, que o nosso passeio já passou e que nos resta só a lembrança dum bonito sonho, podem soprar todas as tempestades do mar Negro...
André, já não voltaremos a ver-nos antes da minha partida; as circunstâncias não nos permitem mais organizar uma entrevista em Istambul. É ainda o meu adeus que lhe mando, sem dúvida até à Primavera. Mas quer fazer uma coisa que eu lhe peço, por favor? Daqui a um mês, quando for para França, visto que vai por mar, leve consigo um fez e escolha a linha de Salonica; o navio pára ali umas horas e sei de um meio para nos vermos. Um dos meus negros levar-lhe-á a bordo uma carta minha.
Não me recuse isto.
Que a felicidade o acompanhe, André, no seu país!...
Djénana
Depois da partida de Djénana, André ficou ainda cinco semanas em Constantinopla, onde viu ainda Zeyneb e Mélek. Na ocasião de tomar a sua licença de dois meses passou pela linha indicada levando o fez, mas em Salonica não lhe apareceu nenhum negro da parte dela. Aquelas horas de descanso foram para ele muito melancólicas, por causa desta decepção e também da lembrança de Nedjibé, que pairava ainda sobre aquela cidade e sobre as áridas montanhas que a rodeavam. Partiu sem saber nada da sua amiga.
Alguns dias depois de ter chegado a França recebeu esta carta de Djénana:
Bonnar-Bachi, perto de Salonica, 10 de Janeiro de 1905
Quando e por quem farei deitar no correio o que lhe vou escrever, guardada como estou aqui?
O senhor está longe e não há a certeza de voltar para cá. As minhas primas contaram-me a sua despedida e a tristeza delas desde que o senhor lhes falta. Que estranha coisa, André, quando se pensa que há seres cujo destino consiste em arrastar consigo a dor, uma dor que irradia sobre as pessoas e as coisas que lhe estão próximas! O senhor é assim, mas a culpa não é sua. O senhor sofre tormentos infinitamente complicados, ou infinitamente simples, pode ser. Mas sofre, e as vibrações da sua alma acabam sempre na dor. Quem se aproxima de si, ou o ama ou o odeia. Quem o ama, sofre consigo, para si e de si. Para as pequenas de Constantinopla o senhor foi este ano um raio de sol na sua vida, um raio de sol efêmero, elas já o sabiam. Presentemente sofrem a noite em que caíram.
Para mim, o que o senhor é pode ser que eu um dia lho diga. O meu sofrimento é mais por se ter ido embora do que por tê-lo conhecido.
Sem dúvida que me não quer mal por não lhe ter preparado a entrevista à sua passagem para Salonica. A coisa, em si era possível no campo, que é deserto como no tempo da sua Nedjibé. Teríamos uns dez minutos para trocar algumas palavras de despedida e um aperto de mão. Ê verdade que a minha pena não desapareceria por isso, antes pelo contrário. Por motivos particulares, abstive-me. Mas não foi o medo do perigo que me releve, longe disso; se para ir até junto de si eu soubesse que a morte me esperava emboscada, não hesitaria e levar-lhe-ia o adeus do meu coração, tal como o meu coração quisesse dizê-lo. Nós, as mulheres turcas de hoje, não tememos a morte. Não ê para ela que o amor nos impele Quando é que para nós o amor é sinônimo de vida?
Djénana
E Mélek, encarregada de fazer chegar esta carta ao seu destino, ajuntara dentro do mesmo sobrescrito as seguintes reflexões:
Pensando largamente em si, amigo nosso, julgo ter dado com várias causas do seu sofrimento. Oh, agora conheço-o bem! Depressa quer o senhor eternizar tudo e nunca goza coisa nenhuma; parece que o senhor diz: "Isto há-de acabar." E depois a vida tem-no mimado muito, tem tido tantas coisas boas nas mãos, das quais uma só faria feliz qualquer outro homem, e todas tem desprezado porque tem tido muitas. Mas o seu grande mal é que o têm amado muito e confessado o amor; têm-lhe feito sentir que é indispensável às existências de a quem aparece, e elas vêm sempre até o senhor. Nunca teve necessidade de dar um passo para conquistar um sentimento; tem sido sempre esperado! Presentemente, o senhor sente que tudo é efêmero, porque só ama a sua pessoa, mas deixa-se amar. Creia-me, ame qualquer das suas inumeráveis enamoradas e verá como depressa se cura.
Mélek
André não gostou da carta de Djénana, por não lhe parecer de todo natural. "Se a sua afeição é tão profunda, teria desejado antes de tudo, e mau grado tudo, dizer-me adeus em Istambul ou em Salonica; nesta carta havia literatura a mais." A sua confiança na jovem diminuía e sentia por isto penosa decepção. Esquecia-se que era uma oriental, mais excessiva em tudo do que uma europeia e por isso muito mais indecifrável.
Esteve a ponto de a tratar na sua resposta como a uma criança, o que às vezes lhe lembrava. "Um ser que arrasta consigo a dor! Eis que aparece o homem fatal que haveis declarado fora de moda depois de, 1830..." Mas receou Ir demasiado longe e respondeu-lhe num tom sério, dizendo-lhe quão desgostoso foi para ele ter-se ela ido embora sem que lhe desse o último adeus.
Não era possível nenhuma comunicação directa com ela para Bonnar-Bachi, no palácio da bela encantada; tudo devia passar por Istambul, pelas mãos de Zeyneb ou de Mélek e ainda de outras cúmplices.
Ao fim de três semanas recebeu algumas palavras numa carta de Zeyneb.
André: é possível que lhe cause mágoa o que eu possa dizer ou fazer, eu que sou nada ao pé do senhor
Não sabe que todo o meu pensamento, toda a minha afeição é uma coisa humilde que os seus pés podem pisar, um grande tapete antigo, com desenhos talvez bonitos, sobre que os seus pés podem andar Eu sou isto; pode o senhor portanto enfadar-se comigo e ter-me rancor?
Djénana
Manifestava-se a oriental mesma inteiramente nesta carta.
André respondeu-lhe em seguida, movido por um arranco de doce carinho, tanto mais que Zeyneb ajuntava: "Djénana está doente, tem uma febre muito nervosa que inquieta a nossa avó e o médico não sabe o que pensar."
Algumas semanas depois, Djénana agradeceu-lhe por meio duma pequena carta que segue, ainda muito curta e oriental como a primeira:
Bonnar-Bachi, 21 de Fevereiro de 1905
Há uns dias perguntava eu a mim mesma: onde está o bom remédio que deve curar-me? Chegou o bom remédio e os meus olhos, que se tornaram muito grandes, devoraram-no. Os meus pobres dedos pálidos comprimem-no neste momento. Obrigada! Obrigada por me fazer a esmola dum pouco de si mesmo, a esmola do seu pensamento. Seja bendito pela pás que a sua segunda carta me trouxa!
Desejo-lhe muita felicidade, amigo, em agradecimento pelos momentos de júbilo que acaba de me dar. Desejo-lhe um bem-estar profundo e doce, um bem-estar que seja para a sua vida como um jardim perfumado numa clara manhã de Verão.
Djénana
Doente, vencida pela febre, a pobre pequena enclausurada tornava-se como na planície de Karadjiamir - tornava-se criança. E sob este aspecto anterior, de assombrosa cultura intelectual, que tanto a orgulhava, André amava-a ainda mais.
Esta vez ainda, junto às palavras de Djénana, vinha um post-scriptum de Mélek. Depois de algumas recriminações por causa da escassez das cartas de André, que eram sempre curtas, dizia:
Admiramos a sua actividade e perguntamos-lhe como havemos de nos arranjar para estarmos também assim ocupadas, estufadas e sem um momento para escrever às nossas amigas. Ensine-nos o meio, por favor. Nós, pelo contrário, em todo o dia temos tempo de escrever, por desgraça nossa e sua...
Mélek
Quando André, terminada a licença, voltou à Turquia, nos primeiros dias de Março de 1905, Istambul tinha ainda a sua copa de neve, mas nesse dia fazia um céu admiràvelmente azul. Em redor revoluteavam milhares de gaivotas e de andorinhas-do-mar; o Bósforo estava crivado de pássaros, com uma espécie de neve em grandes flocos, pássaros que voavam como loucos, inumeráveis, uma nuvem de penas brancas que agitava ante uma cidade branca o esplendor dum sol meridional.
Zeyneb e Mélek, que sabiam em que navio ele havia de voltar, mandaram-lhe naquela mesma tarde, pelo negro mais fiel, os cumprimentos de boas-vindas e, ao mesmo tempo, uma grande carta de Djénana, que, diziam elas, estava convalescente, mas que tinha de prolongar mais ainda a sua estada no velho palácio longínquo.
Uma vez convalescente, a pequena bárbara da planície de Karadjiamir tinha-se tornado voluntária e complicada, pouco padecida com a "coisa humilde que o seu amigo podia pisar aos pés". Oh! não, ela agora escrevia com rebelião e violência. É que ainda havia por detrás das grades dos haréns incoerentes tagarelices sobre uma mulher nova que apenas ele entrevira e somente debaixo dos espessos véus negros. E parece que se tinha vangloriado de ser sua amiga e inspitadora da obra projectada. E Djénana, a pobre sequestrada lá ao longe, enlouquecida dum ciúme um pouco selvagem:
André, o senhor não compreende qual a nossa fúria, quando pensamos que outras podem passar entre nós e o senhor, sobretudo quando a distância nos separa? é pior ainda quando esta rivalidade se exerce sobre o nosso domínio.
com as suas recordações e impressões do Oriente. O senhor não sabe ou esqueceu-se que nós temos jogado a nossa vida (sem falar do nosso repouso}, e isto unicamente para lhe dar completas impressões do nosso país, porque não foi mesmo para ganhar o seu coração (porque o sabíamos fechado), foi para impressionar profundamente- a sua sensibilidade de artista e procurar, pode dizer-se, uma espécie de sonho meio real. Para conseguir isto que nos parecia impossível, para lhe mostrar o que sem nós o senhor não poderia imaginar, arriscamo-nos de olhos abertos, abrindo na nossa alma uma dor e um sofrimento eternos. Julga, que há muitas europeias capazes de fazer como nós?
Sim, há momentos em que é uma verdadeira tortura pensar que outros pensamentos seus encobrirão a lembrança de nós, que outras impressões lhe serão mais querida? que as da nossa Turquia, vista através de nós e em nossa companhia. E eu queria que, depois de escrito, esse livro fosse o último e que o senhor não escrevesse mais nenhum, que não pensasse mais, que os seus olhos claros e duros não se adoçassem mais para outras. E quando a vida for para mim intolerável - calculo que não há-de durar muito -, e se eu for primeiro, se é possível às almas libertas influenciar as dos vivos, a minha alma apoderar-se-á da sua para a atrair, e onde quer que a minha esteja, estará a sua também.
Daria o que me resta de vida para ler em si durante dez minutos. Queria ter força suficiente para fazê-lo sofrer; e saber eu que há uns meses teria dado esta mesma vida para sabê-lo feliz.
Meu Deus, André, o senhor é tão rico em amizades que as destrua sem tino gostoso, para o senhor, causar tantos desgostos a quem o ama há tanto tempo, com tão desinteressada ternura? Não desperdice uma afeição que pode ser um pouco exigente e ciumenta, mas que é verdadeira e que pode ser a mais profunda que o senhor tem encontrado na sua vida.
Djénana
André sentiu-se nervoso depois da leitura. A resposta era infantil e carecia de fundamento, pois que ele não tinha entre as mulheres turcas outras amigas senão as três.
O que o molestava ainda mais era o tom geral. Desta vez ele não podia dissimular. E disse: eis uma verdadeira nota discordante no meio destas três amizades tão irmãs, em cuja inalterável harmonia eu me obstinava em acreditar. Pobre Djénana... Será possível?...
Procurou investigar esta nova situação, que lhe pareceu insolúvel. Isto não pode ser - disse ele -, isso não será nunca, porque não quero que seja. Pela parte que me diz respeito, está a questão fechada. E quando se tomam duma forma tão clara resoluções para connosco mesmo, fica-se bem protegido contra pensamentos equívocos e abandonos pérfidos.
Decerto que não era muito meritório falar assim, porque ele tinha a convicção absoluta de que Djénana, mesmo amando-o, ficaria sempre intangível. Presentemente conhecia esta criaturinha ao mesmo tempo confiante e altiva, audaciosa e imaculada; era capaz de se entregar de longe a um amigo a quem julgasse decidido a não sair do seu papel de amigo fraternal, mas sem dúvida nunca mais levantaria o véu da cara, com irremediável decepção, só por um aperto de mão prolongado e trêmulo...
A aventura não lhe parecia menos cheia de ameaças. Recordava-se de frases ditas por ela outrora, com grave ressonância e que ele então não fixara:
"O amor da muçulmana por um estrangeiro não tem outra solução senão à fuga ou a morte."
Mas no dia seguinte, ao notar que a temperatura era quase primaveril, tudo aquilo lhe pareceu menos sério. Como da outra vez, disse que naquela carta havia muita literatura e sobretudo o exagero oriental. De resto, há já alguns anos que, para fazê-lo acreditar que o amavam, era preciso provarem-lho até à evidência. Tão adiantada era a sua idade que ele a tinha presente no espírito como decepção cruel...
E, de coração mais leve que na véspera, foi a Istambul, a Sultão-Selim, onde o esperavam Zeyneb e Mélek, a quem desejava ver depressa. Istambul, que era sempre diversamente soberbo, mesmo de longe, estava neste dia muito desagradável ao pé, devido à humidade e ao lodo do degelo. O beco onde estava a casita das entrevistas tinha ainda bocados de neve ao longo das paredes, nos sítios sombrios.
No pequeno e humilde harém, onde fazia frio, elas receberam-no de véu levantado, confiantes e afectuosas, como se recebe um irmão mais velho que volta de viagem. Em seguida admirou-se da alteração do seu parecer. A cara de Zeyneb, que era sempre a finura e a perfeição, tinha adquirido uma palidez de círio, os olhos estavam inchados e os lábios descorados; o Inverno, este ano, fora muito rude no Oriente e tinha-lhe agravado o mal de que desdenhava tratar-se. Quanto a Mélek, estava também pálida, com uma ruga na fronte que denotava toda a sua tristeza, e sentia-se concentrada, quase trágica, disposta para alguma suprema resistência.
- Querem casar-me outra vez - disse ela asperamente, sem acrescentar mais, respondendo a uma pergunta muda que viu nos olhos de André.
- E vós - perguntou ele a Zeyneb.
- Oh! eu... tenho a liberdade aqui debaixo da minha mão - respondeu tocando no peito, que arfava por momentos, com uma tosse sinistra.
As duas preocupavam-se com a carta de Djénana que haviam recebido na véspera e que vinha fechada, coisa sem precedente até ali, pois entre elas nunca tinha havido um mistério.
- Vejamos, que dizia Djénana?
- Meu Deus!... Nada... Criancices... Algumas absurdas tagarelices de harém de que ela está bem cheia...
- Ah! sem dúvida a história dessa nova inspiradora do seu livro que terá surgido fora de nós?...
- Justamente. E isso é absurdo, asseguro-lhe, porque, além das três e de alguns vagos fantasmas a quem vós mesmo me apresentastes...
- Nós nunca acreditámos, nem minha irmã nem eu... Mas ela, lá longe, longe de tudo... Na reclusão nunca se sabe onde se tem a cabeça...
- E ela parece que a não tem boa, pois me quer seriamente.
- Não, até à morte - interrompeu Mélek -, pelo menos é o que parece... Aqui tem, veja o que ela me escreveu esta manhã...
E mostrou-lhe o passo que segue duma carta, depois de ter dobrado a folha sobre a continuação, que sem dúvida ele não podia ler:
Dizei-lhe que eu penso nele sem cessar, que o meu único júbilo no mundo é a sua lembrança. Daqui as felicito, é tudo quanto posso fazer; felicito-as pelos momentos que passam juntas em companhia dele, felicito-as por estarem tão perto dele, a quem podem ver o seu olhar e a quem podem apertar a mão. Não se esqueçam de mim quando estiverem juntos; quero a minha parte das vossas reuniões e do seu perigo.
- Evidentemente -concluiu André, dobrando a carta- essa linguagem não parece inspirada por ódio mortal.
Esforçava-se por falar num tom ligeiro, mas algumas frases comunicadas por Mélek deixaram-no mais convencido e mais preocupado que a longa carta violenta que Djénana lhe mandara. Aqui, sim, não havia "literatura", nada mais sensível nem mais claro. E com que candura ela escrevia às primas essas frases transparentes, ao mesmo tempo que fechava a carta para André, que continha exaltações amorosas!
Assim se tinha transformado, contra o que ele esperava, aquela estranha e confiante amizade do último ano, com três mulheres, que ao princípio só formavam uma indissolúvel trindade, uma alma só, sempre sem rosto. Este resultado espantava-o e ao mesmo tempo enchia-o de gozo. E neste momento ele sentia-se incapaz de dizer se a preferia assim ou não...
- Quando volta ela? - perguntou.
- Nos primeiros dias de Maio - respondeu Zeyneb, Devemos instalar-nos, como o ano passado, na casa da costa da Ásia, Os nossos humildes projectos são passarmos juntas ainda um último Verão, se a vontade dos nossos senhores nos não separar por algum casamento antes do Outono. Eu digo o último Verão porque a mim o inverno leva-me, e, em todo o caso, as outras duas, para o próximo Verão, já estarão casadas.
- Veremos - disse Mélek, em tom de trágico desafio.
Para André seria igualmente o último Verão no Bósforo. O seu posto na Embaixada findava em Novembro e ele estava decidido a seguir em paz o seu destino, um pouco por fatalismo - e depois parece que há coisas que mais vale não se prolongarem, sobretudo quando só têm soluções dolorosas ou culpáveis.
Entrevia com muita melancolia a volta daquela estação encantada do Bósforo, onde se passeia de caíque sobre a água azul, ao longo das margens ladeadas de casas gradeadas, então no Vale do Grande Senhor e nas montanhas da costa da Ásia atapetadas de moitas rosadas. Tudo isto voltava uma suprema voz, mas para finalizar em seguida, sem esperança de voltar. Sobre as entrevistas com as suas três amigas pesaria, como no ano pretérito, o contínuo perigo das delações, das espionagens capazes em um minuto de o separar delas para sempre, e, depois, a certeza de não estar ali no Verão seguinte tornaria mais angustiosa a rápida passagem dos formosos dias de Agosto e de Setembro à floração dos cólquicos violetas, ao tapete de folhas secas dos plátanos, à primeira chuva de Outubro. Demais, tinha este elemento novo e imprevisto, o amor de Djénana, que, mesmo incompletamente declarado e mesmo reprimindo-o, como seria capaz, com a sua mãozita de ferro, vinha tornar mais exuberante e mais cruel o fim deste sonho oriental.
Estava-se a 10 de Abril. O criado particular de André, ao acordá-lo de manhã, anunciou-lhe em voz alegre, como um acontecimento que havia de alegrá-lo:
- Já vi duas andorinhas. Oh! elas cantam, mas como cantam!...
Já havia andorinhas em Constantinopla! E que sol tão quente entrava naquela manhã pelas janelas! Meu Deus, os dias passavam ainda mais depressa que outrora! Começava já a Primavera; começava depressa, em lugar de vir mais tarde, como a André se afigurava na véspera, mesmo por causa do tempo sombrio que fazia, e antes de aparecerem as andorinhas! E o próximo Verão, que vinha no dia seguinte, ou depois, seria o último, irrevogàvelmente o último da sua vida no Oriente, e sem dúvida o último da semijuventude... Voltar à Turquia mais tarde, no declinar da vida... podia ser que sim... Mas para quê? Quando se volta a um sítio depois de muito tempo, o que se encontra das coisas de então e das pessoas que se amaram? Que desconsoladora aventura ao voltar, quando se encontra tudo mudado e as pessoas mortas! E depois, dizia, quando eu tiver escrito o livro de que estas pobres pequenas me arrancaram a promessa, não encontrarei fechado para sempre este país, não terei perdido a confiança dos meus amigos turcos e o direito de estar no meu querido Istambul?
O mês de Abril passou como um dia. Para André passou em peregrinações e sonhos, em Istambul, em Eyub ou em Sultão Fatih, em fumadelas ao ar livre, mau grado o tempo incerto e as recaídas do frio, do vento e da neve.
Passou o primeiro de Maio e Djénana não falava em deixar o velho palácio inacessível. Ela escrevia menos do que no ano antecedente e as cartas eram mais curtas. "Desculpe o meu silêncio", dizia-lhe ela uma vez. "Veja se o compreende, ele encerra tantas coisas..."
Todavia, Zeyneb e Mélek afirmavam sempre que ela voltaria depressa e pareciam ter isto como certo.
Também a estas André via menos que no último ano. Uma estava mais retirada da vida e a segunda muito transformada, por causa da ameaça dum casamento. Além disto, neste ano a vigilância tinha redobrado em volta de todas as mulheres em geral, e podia ser que em particular em volta destas, coisa que não supunham, ou, se o supunham, era muito vagamente; mas elas ainda faziam idas e vindas ilícitas. Escreviam muito ao seu amigo, que lhes queria imenso e se contentava por vezes em responder-lhes coisas passadas juntos. E então elas dirigiam-lhe censuras com uma certa reserva:
Khassim-Paxá, 8 de Maio de 1905
Que se passa, querido amigo Estamos inquietas, nós, as suas pobres amiguitas humildes e tão longe de si. Quando os dias se passam uns sobre outros sem recebermos cartas suas, um grande manto de tristeza cobre o nosso rosto e tudo se torna sombrio, o mar, o céu e os nossos corações.
Não nos queixamos, asseguramos-lhe, e isto é só para lhe dizer mais uma vez uma coisa já velha e que o senhor sabe: é que o senhor é o nosso grande e único amigo.
Ê feliz neste momento" Os seus dias estão cheios de flores
Segundo o que a vida nos oferece, o tempo passa depressa ou devagar. Para nós, arrasta-se. Eu não sei verdadeiramente para que estamos cá neste mundo... Talvez seja para termos o único júbilo de sermos suas escravas, muito dedicadas, muito fiéis, até à morte e depois dela...
Zeyneb e Mélek
Há 8 de Maio!... André leu esta carta à sua janela, à luz dum belo crepúsculo que convidava a estar ali diante do imenso horizonte e do céu. A casa dele não parecia ser em Pera; muito afastada da ruidosa "rua maior", dali se dominava o bosque dos velhos ciprestes aromáticos, que está encravado na cidade e que se chama o pequeno cemitério, donde se via Istambul com as suas cúpulas, estendendo-se em frente e enchendo o horizonte.
A noite caía a pouco e pouco sobre a Turquia, uma noite sem lua, mas muito estrelada. Istambul, na obscuridade, envolveu-se de magnificência, tornando-se, como nas outras noites, um recorte de sombra debaixo do céu. E o ladrar dos cães e as pancadas do ferro do chuço dos guardas-nocturnos começavam a ouvir-se por entre o silêncio. Em seguida foi a hora dos muezins. De toda aquela cidade fantástica, por baixo dos minaretes, elevou-se a habitual sinfonia, num leve tom fácil e puro, com notas altas que pareciam aladas como a própria oração.
Naquele ano era a primeira noite de languidez e de encanto. André, da janela, acolhia-a com menos prazer e mais melancolia; era o seu último Verão que começava...
No dia seguinte anunciaram-lhe na Embaixada, para muito breve, a instalação, como nos outros anos, na Therapia. Para ele isto equivalia quase à sua saída de Constantinopla, pois que só lá voltaria por alguns tristes dias no fim da estação, antes de deixar definitivamente a Turquia.
Demais, os Turcos e os Levantinos mexiam-se já para a emigração anual para o Bósforo ou para as ilhas. Por todos os lados, ao longo do estreito, do lado da Europa e da Ásia, as casas voltavam a abrir-se: sobre os cais de pedra ou de mármore iam e vinham os eunucos, preparando tudo para a vinda das patroas, trazendo para os caíques, pintados com arabescos e dourados, as tendas de seda, as almofadas para os divas e os coxins bordados. Era o Verão, que para André vinha mais depressa do que de costume, que fugiria certamente mais veloz ainda, pois que tudo parece durar menos à medida que a vida vai passando.
Estava-se no primeiro dia do mês de Junho. Maio tinha passado sem se sentir. Djénana não voltara e as suas cartas eram agora ainda mais curtas e não explicavam nada.
Era o primeiro dia do belo mês de Junho. André, que tinha ocupado de novo a casa na Therapia, à beira de água, à entrada do mar Negro, despertou do esplendor da manhã de coração mais opresso pelo facto de estar já em Junho; esta mudança de data dava-lhes a impressão de mais um passo a caminho do fim. Demais, o seu mal incurável, que era a angústia pela fuga dos dias, não deixava mais de exasperá-lo no espanto extralúcido do despertar. O que ele desta vez sentia fugir era a Primavera oriental, o que o arrebatava como no tempo da sua juventude e que nunca mais tornaria a ver... E pensava: "Amanhã acabará tudo isto, acaba-se para mim este sol: as horas são-me estritamente contadas antes da velhice e do nada..."
Mas, como sempre, quando se encontrou bem desperto, reapareceram no seu espírito as mil coisas agradáveis e bonitas da vida quotidiana, as mil miragens que fazem esquecer o decorrer do tempo e a aproximação da morte. Para começar, lembrou-se do Vale do Grande Senhor, que se apresentava na sua memória e que estava ali diante dele, por detrás daquelas colinas cobertas de árvores da costa da Ásia, que era a primeira coisa que via de manhã ao abrir os olhos e para onde iria à tarde sentar-se, como no ano antecedente, à sombra dos plátanos, para fumar narguilés e olhar de longe as mulheres veladas que passeiam como sombras elisianas. Em seguida foi a preocupação pueril do seu novo caíque; disseram-Lhe que acabava de chegar debaixo das janelas, todo dourado de fresco, vindo de Istambul, e os remadores desejavam estrear as librés novas. Para o seu último Verão a passar no Oriente, queria apresentar uma bela equipagem, todas as quintas-feiras, nas Águas Doces, e imaginara uma combinação de cores muito oriental: os fatos dos barqueiros e o grande tapete que arrastava pela água, eram de veludo amarelo-escuro bordado a ouro, e sobre este tapete, o criado, vestido à turca, muito perto da proazita afilada, levava fato azul-celeste, bordado a prata. Quando os remadores estavam vestidos, André desceu para ver o efeito que produziam sobre a água. Neste momento, a água do Bósforo, habitualmente agitada, era um espelho de ondulações imperceptíveis. Paz infinita no ar, festa de manhã de Junho nas verduras das duas margens. André ficou contente com o ensaio: pareceu-lhe bonito o contraste daquele belo homem vestido de azul e prata majestosamente sentado sobre o veludo amarelo-escuro com bordaduras douradas que reproduziam um velho poema árabe consagrado à perfídia do amor. E depois estendeu-se no caíque, para ir dar um passeio até à Ásia antes que o sol aquecesse.
À noite recebeu uma carta de Zeyneb a marcar-lhe entrevista para o próximo dia de passeio às Águas Doces, somente uma passagem em frente delas, de caíque, bem entendido. Tudo se tornava mais perigoso, dizia ela, pois a vigilância redobrava e até acabavam de proibir-lhes de passearem ao longo da costa, como no ano antecedente, na barca ligeira que elas mesmas remavam, cobertas com um véu de gaze branca. Todavia, nunca havia amargura nas queixas de Zeyneb; era uma criatura muito dócil para se irritar e depois muito saturada de sofrer e muito resignada, à espera da boa e próxima morte que tinha dentro do peito... No post-scriptum contava que o pobre velho Mevlut (eunuco da Etiópia) acabava de morrer com 83 anos; e era uma verdadeira desgraça, porque ele queria-lhes muito por as ter criado desde pequenas e não as trairia por dinheiro nenhum. Elas também o amavam; era, por assim dizer, da família. "Tratámo-lo nós mesmas", dizia ela, "como a um avô." Mas esta última palavra tinha sido apagada e no seu lugar, por cima, na sua letra agitada, Mélek tinha escrito "tio".
Na quinta-feira seguinte, André foi às Águas Doces pela primeira vez naquela estação, com a sua equipagem de cores mais extravagantes que no ano antecedente. Cruzou-se e tornou a cruzar-se com as duas amigas, que tinham feito mudar a libré azul para verde e ouro e que vinham de tcharchaf preto, véu semitransparente e caído sobre o rosto. Outras senhoras, belas também e igualmente veladas, voltavam a cara para olhá-lo: senhoras que passeavam, como que estendidas sobre aquela água, naquele dia coberta de mulheres enigmáticas, entre as margens cheias de fetos e de flores. Quase todas essas invisíveis se ocupavam dele por terem lido os seus livros e o conheciam por lhes ter sido mostrado por outras ou porque tinha conversado com algumas delas no Outono passado, sem lhes ter visto a cara, no decorrer das aventurosas visitas às suas heroinas. Recebia olhares demorados e sorrisos amáveis, apenas perceptíveis por debaixo das espessas gazes negras. Além disso, elas aprovavam o conjunto de cores que ele tinha imaginado e que deslizava sobre o riozito verde, entre os prados verdes e os ramos sombrios das árvores, manifestando estranha simpatia por aquele europeu que tinha afeições de puro oriental.
E ele, ainda tão criança em certos momentos, divertia-se por prender a atenção das bonitas desconhecidas e ter por vezes imperado secretamente nos seus pensamentos, por causa dos seus livros, que elas liam muito este ano nos haréns. Aquele céu de Junho era profundo e de adorável tranquilidade. As espectadoras de véus brancos, que observavam, sentadas em grupos na relva das margens, mostravam pelo entreaberto das musselinas os bonitos olhos calmos. Sentia-se o bom cheiro dos fenos e o de todos os cachimbos dos que fumavam à sombra.
Sabia-se que o Verão duraria ainda bem três meses; sabia-se que a estação das Águas Doces começava agora e que havia ainda muitas quintas-feiras. E tudo Isso teria uma pequena duração, tudo acabaria daí a pouco tempo...
Quando André encalhou por algum tempo o seu belo caíque nas ervas da margem, para ir fumar cachimbo à sombra das árvores e olhar, por seu turno, toda a gente que passava na água, estava em plena ilusão de juventude e de esquecimento.
Carta que André recebeu de Djénana na semana seguinte
22 de Junho de 1905
Voltei ao Bósforo, como lhe prometera, e tenho pressa de tornar a vê-lo. Quer vir a Istambul na sexta-feira, às duas horas, a Sultão-Selim, a casa de minha boa tia Estou melhor ali do que na da nossa amiga em Sultão Fatih, porque é o lugar dos nossos primeiros encontros...
Ponha o fés e precavenha-se como outrora, mas não entre sem o nosso sinal habitual - a ponta do lenço branco - por entre as rótulas duma das janelas do primeiro andar. Se não fieer assim, a entrevista não se dá e talvez por muito tempo. Caminhe até o fim do beco e depois volte no mesmo passo, como se se tivesse enganado no caminho.
Este ano tudo é mais difícil, e nós vivemos em contínuas indecisões...
Sua amiga
Djénana
Naquela sexta-feira ele sentia mais do que nunca, desde a estada ali, o seu aspecto ínquietante. "Há um ano a esta parte", dizia ele, "tenho envelhecido sensivelmente; aparecem-me alguns cabelos brancos na barba, coisa que se não via ainda quando ela se foi embora." Teria dado muito para nunca desmanchar o descanso da sua amiga, mas a ideia de decair fisicamente a seus olhos era-lhe insuportável.
Os seres como ele, que podiam ser grandes místicos, mas que não encontram em parte nenhuma a luz procurada, e que se inclinam com todo o seu ardor para o amor e para a juventude, desalentam-se desesperados quando os sentem fugir. E, logo que começam os pueris e lamentáveis desesperos, parece que os cabelos branqueiam mais depressa e que os olhos perdem o brilho; sente-se terror infinito no momento em que as mulheres envolvem outros no seu olhar.
Na sexta-feira, André atravessou as desolações do velho Istambul, debaixo do belo céu de Junho; encaminhou-se para Sultão-Selim com desejos de voltar a vê-la e, mais ainda, de voltar a ser visto por ela...
Ao chegar ao beco fúnebre, levantou os olhos e percebeu logo o pequeno sinal branco indicativo que se destacava sobre o escuro e as cores sombrias das casas. Por detrás da porta encontrou Mélek, que estava à espreita.
- Elas estão lá? - perguntou ele.
- Sim, as duas, e esperam-no.
À entrada do pequeno harém, cada vez mais pobre e estradado, Zeyneb tinha a cara descoberta.
Ao fundo, muito na sombra, estava Djénana, que veio ao encontro dele, com um desembaraço muito espontâneo e muito jovem, dar-lhe a mão. Ela estava ali, ele ouvia a sua voz de música celeste. Mas os olhos, cor de água límpida, não se viam, as suas sobrancelhas, inclinadas como as das madonas da dor, também não, nem o oval puro do rosto, nada; o véu era impenetrável como nos primeiros dias; tomada de terror por ter avançado muito, esta branca princesa encerrava-se no seu castelo de marfim... E André compreendeu desde logo que todo o pedido seria inútil, que aquele véu nunca mais se levantaria, a não ser que sobreviesse alguma circunstância trágica e suprema. Teve o pressentimento de que aquela afeição tão casta passara o período doce e ligeiro. Caminhavam, a partir daquele dia, para o drama inevitável.
Todavia, parece que lhe estavam ainda reservados dias de paz.
Passou o mês de Julho sem que lhe fosse possível voltar a vê-las, mesmo de longe, nas Águas Doces. Julho, que é em Constantinopla um mês de muito vento, um período em que o Bósforo se cobre de manhã à noite de espuma branca, neste mês Djénana mal pôde escrever-lhe, de tal maneira estava guardada por uma velha tia-avó, rabujenta, vinda de Erivan numa visita interminável e que não queria passear de caíque desde que a água não estivesse lisa como um espelho.
Mas a senhora, a quem André e as três amigas chamavam "Peste Hanum", foi-se embora no começo de Agosto, e o resto do Verão, do seu último Verão, não deixou de estar sempre bom. Agosto, Setembro e Outubro formam no Bósforo uma estação deliciosa, onde o céu tem limpidez edênica, onde os dias declinam, desaparecem e aparecem sempre com o mesmo esplendor.
Tornaram-se novamente frequentadores das Águas Doces da Ásia e preparavam entrevistas na casita de Sultão-Selim, em Istambul. Exteriormente, entre Djénana e André, tudo corria como em 1904. Ela trazia o mesmo véu negro caído sobre a cara; mas havia nas suas almas sentimentos novos, sentimentos ainda inexprimíveis, que não eram de facto todos certos e que entretanto faziam por vezes cortar por silêncios profundos suas conversas.
E depois no ano precedente eles diziam: "Temos outro Verão de reserva diante de nós." André deixaria a Turquia no próximo Novembro e constantemente eles pensavam na separação, que lhes parecia definitiva, como uma queda na sepultura. Como velhos amigos, tinham já lembranças em comum e formavam projectos para recomeçar, antes do irrevogável fim, coisas de ocasião, passeios e peregrinações feitas pelos quatro. "Falta ver ainda uma vez na vida, juntos, a nossa pequena floresta virgem do Outono passado, em Beiços... A sepultura de Nedjibé, falta voltar pela última vez. nós todos.
Para André, que aquele ano era o último em que revivia a pequena morta, cada vez que se lembrava do nome do mês, a manhã do primeiro de Setembro marcava um grande período na descida da sua vida, que se acelerava como uma queda. Pareceu-lhe que desde a véspera o ar tinha repentinamente retomado a limpidez e a frescura de Outono e que estava mais sonoro, como de hábito sucede quando passa a estação de Verão; melhor do que na véspera, ouviam-se os clarins turcos, de timbre grave, que soavam defronte, na costa da Ásia, onde havia um posto militar à sombra dos plátanos de Beiços. O Verão desaparecia decididamente, dando lugar ao frio, que fazia florir os cólquicos violetas entre as folhas mortas no Vale do Grande Senhor.
Todavia, estava tudo radioso naquela manhã. E que calma inalterável no Bósforo! Nem um sopro, e, à medida que o Sol subia, sentia-se uma frescura deliciosa. Sobre a água passava uma longa caravana de navios veleiros rebocados por um vaporzito; navios turcos antigos, de castelos de popa com pinturas arcaicas, navios que só se vêem nestas paragens. De velas ao vento, subiam docemente para o mar Negro, cuja entrada se percebia lá ao longe, entre dois grupos de abruptas montanhas, e que parecia um mar muito tranquilo e inofensivo para quem o não conhecesse. Directamente, por detrás das janelas, André olhava o pequeno cais sombrio, ao longo do qual esperavam belos caíques, entre outros o seu, que naquela tarde o conduziria às Águas Doces.
Águas Doces!... Ainda podia ir cinco ou seis vezes, como um oriental, àquele riozito bordado de verdura, onde ele exercia uma pequena realeza efêmera e onde as mulheres veladas reconheciam de longe a libré dos seus remadores. E, muitos dias ainda, iria ao pôr do Sol sentar-se debaixo dos plátanos gigantes do Grande Senhor, a fumar narguilé, no meio duma paz sem nome, olhando o lento passeio das mulheres, "sombras venturosas" no passado longínquo da planície elisiana...
Faltavam pelo menos trinta a trinta e cinco dias de Verão, um bocado verdadeiramente aceitável antes do grande fim que o não tornava já imediato. As colinas da Ásia, por cima de Beiços, estavam esta manhã inteiramente rosadas pela floração das moitas, mas rosadas como as fitas cor-de-rosa. As casitas das moradias turcas que avançavam pela água, os grandes plátanos verdes, em cujas peruadas os pescadores penduram as redes desde há trezentos anos, tudo isto e o céu azul se reflectia tranquilamente na transparência do Bósforo, que tinha a originalidade inalterável dos dias bons. E estas coisas juntas pareciam de tal modo confiantes da duração do Verão, da tranquilidade da vida e da mocidade, que André mais se deixou prender e, esquecendo a data, não sentia já a ameaça dos dias próximos.
Depois do meio-dia foi para as Águas Doces, onde em tudo reinava uma luz ideal; cruzou-se com as suas três amigas e colheu olhares de mulheres veladas. Voltou numa tarde incomparável, pela costa da Ásia; velhas casas mudas, onde nunca se sabe os dramas que passam; velhos jardins secretos, encobertos pela verdura; velhos cais de mármore muito guardados, onde belas invisíveis estão sempre à espera, todas as quintas-feiras, da volta dos caíques. Entretido pela cadência viva dos remadores, fendia o ar acariciador e suave; respirar era um prazer. Sentia-se repousado, tinha a consciência de jovem de aspecto nesse momento e dele se evolava o mesmo ardor de viver que no tempo da sua primeira juventude e a mesma sede de não perder nada do que se passa. A sua alma, que não era senão um obscuro abismo de aborrecimento, podia transformar-se sob o voluptuoso engano das coisas exteriores, ou diante de qualquer fantasmagoria sonhada pelos seus olhos de artista - mudar-se, tornar-se novo e sentir-se para todo um caminho de aventuras e de amores.
Trazia no seu caíque Jean Renaud, que, com as faces avermelhadas, lhe confiava o seu tormento por estar enamorado duma bela mulher das embaixadas, muito amàvelmente indiferente ao seu desejo, e de amar ao mesmo tempo Djénana, que nunca tinha visto, mas de quem a silhueta e a voz dificultavam o seu sono. E André escutava estas confidencias sem encolher os ombros, porque estavam bem nesta tarde e se sentia bem com este rapaz, preocupado unicamente com as mesmas questões. O amor estava portanto no ar. Confidência por confidencia, tinha vontade de lhe gritar com uma espécie de triunfo: "Está bem! Eu, ouviste, sou mais amado do que tu!..."
Continuaram o caminho sem falar mais, cada um egoistamente ocupado com os seus pensamentos, em que dominava o amor; e o esplendor da tarde de Verão sobre o Bósforo tornava magnífico o seu sonho. Perto deles continuavam a desfilar os cais interditos das velhas moradias; as mulheres, postas muito à borda, olhavam-nos nos raios cor de cobre vermelho e eles orgulhavam-se por saber que, para as espectadoras veladas, a sua passagem e o seu caíque, com as suas cores raras, deviam fazer-lhes bem no melo daquela apoteose de sol-posto.
Setembro acabava de passar! Ao mesmo tempo, a bela cor rosada das moitas sobre as colinas da Ásia morria dia a dia e transformava-se numa cor de ferrugem. No vale de Beiços, os cólquicos violetas floriam profusamente entre a relva fina dos prados; por toda a parte se via o chão juncado de folhas de plátanos cor de ouro.
A tarde estava boa para fumar o narguilé junto da tenda de qualquer dos humildes cafèzitos que ainda ali estavam, mas que dentro em pouco desapareceriam em busca duma praça onde houvesse sol para apanhar o calor do Verão que findava. Logo que os raios do Sol começam a encobrir-se se vê como que o reflexo rubro do Incêndio sobre a firme ramada dos plátanos, sente-se uma frescura repentina que nos penetra e que é triste e os passos sobre a erva fazem Atolar as folhas mortas. Presentemente, as grandes chuvas do Outono, que deixam a planície toda lavada, são alternadas com estes dias ainda quentes estranhamente claros; as abelhas pousam ainda nas escabiosas da passada estação, mas, quando o Sol declina, exalam-se dos bosques e da terra frios ásperos.
Todas estas folhas caídas por terra... André já conhecera igual situação, naquele mesmo vale, no ano anterior; era um lugar onde vira duas vezes o cair das folhas. Para ele era sofrimento deixar para sempre aquele pequeno lugar pastoril da Ásia, onde fora todos os dias durante dois radiosos Verões. Sabia também que aquele sofrimento, como tantos outros passados noutro lado, lhe esqueceriam depressa em face das cores cada vez mais sombrias dum futuro próximo...
Em todo aquele ano, André e as suas três amigas tinham-se visto na impossibilidade de voltar ali em passeio juntos. Porém, tinham combinado dois, custasse o que custasse, para 3 e 5 de Outubro, os últimos e os supremos.
O sítio fixado para o dia 3 era a pequena floresta virgem descoberta por eles em 1904. E ali se encontravam todos juntos à beira desse pântano, dissimulado, como que de propósito, num recanto da montanha. Tomaram os lugares do costume sobre as mesmas pedras musgosas, perto daquela água parada donde saíam roseiras muito grandes 6 fetos muito altos que lembravam a flor tropical.
André viu logo que as pobres pequenas não estavam como habitualmente; pareciam mais nervosas e preocupadas, cada uma da sua forma; Djénana com uma afectação de frieza, Mélek com violência.
Para romper o silêncio, disseram que as iam casar a todas novamente para desmanchar aquela tríplice revolta. Tinham modos muito independentes, ao que parece, e precisavam de maridos que acabassem de as matar.
- Quanto a mim - precisou Mélek -, a coisa foi resolvida em conselho de família no sábado. Designaram para meu carrasco um tal Ornar Bei, capitão de cavalaria, um presumido de olhar duro, que não duvidaram em me mostrar um dia da minha janela, donde me retirei logo.
Batia o pé, com os olhos encolerizados, e desfazia nos mimosos dedos todas as folhas ao seu alcance.
Ele nada encontrou para lhe responder e olhou as outras duas.
A Zeyneb, que estava mais perto dele, ia para perguntar: "E a menina? Mas já sabia a resposta que receberia, o gesto doce e magoado que ela faria indicando-lhe o peito.
Foi a Djénana, como de costume, de véu descido sobre o rosto que ele perguntou:
- E a menina?
- Oh! eu! - respondeu ela com a indiferença um pouco resignada que tinha havia uns dias. - É questão de me tornarem a dar a Hamdi...
- E depois que fará
-Meu Deus, o que quer que faça? Ê provável que me submeta. Pois que é preciso um, tenho de ir até ele porque já foi meu marido; o desgosto parecer-me-á menor que junto de um desconhecido...
André ouvia-a pasmado. O espesso véu negro impedia-o de ler nos olhos dela o que havia de sincero ou não debaixo daquela resignação súbita. O inesperado consentimento em voltar para Hamdi era o que ele podia desejar de melhor para resolver uma situação intrincada; todavia, não acreditava; percebia que era um meio de o fazer sofrer.
Não disseram mais nada sobre esta questão que os entristecia, seguindo-se um silêncio cheio de pensamentos. Foi a voz doce de Djénana a primeira a ouvir-se naquele lugar tão sereno, que até se ouviam cair as folhas uma a uma. Num tom bem acentuado e tranquilo, voltou a falar do livro.
-Ah! é verdade, o livro-disse ele, com ar de gracejo.
- Há bastante tempo que não pensamos nisso... Vejamos: que vou eu contar? Que as senhoras frequentam os saraus e as festas nocturnas e usam de dia belos chapéus com muitas rosas e plumas, como as senhoras de Pera?
- Não, não esteja a caçoar, André. Neste dia tão perto do nosso último dia...
Ele escutou-as ainda em silêncio. Sem aludir ao que podia fazer por elas, queria ao menos não as apresentar a uma luz de fantasia, nem escrever nada que não fosse conforme às suas ideias. Parecia-lhe que elas estavam presas aos costumes do Islame e que amavam infinitamente o véu, com a condição de o levantarem às vezes diante dos amigos preferidos para experiência. O máximo das suas reivindicaçães era que as tratassem como seres pensantes, livres e responsáveis; que lhes fosse permitido receber certos homens, mesmo veladas, se lho exigissem, e conversar com eles, sobretudo desde que se tratasse dum noivo.
- Só com essas concessões - insistiu Djénana - nos sentiríamos satisfeitas, nós e as que vierem depois de nós, durante pelo menos meio século, até um período mais avançado da nossa evolução. Digo-o, amigo nosso, que nós não pediríamos mais a fim de que não nos julgassem loucas e revolucionárias. Demais, desafio quem quer que seja a encontrar no livro do nosso profeta um texto que formalmente se oponha a isto.
Quando se despediu delas, entardecia e sentiu que a mãozita que Mélek lhe estendeu ardia em febre.
- Oft! disse ele assustado - a senhora tem muita febre!
Desde ontem, sim, uma febre que aumenta... Tanto pior
para o capitão Ornar Beü... E esta tarde não me sinto bem, tenho um peso na cabeça, um peso... Creia que, se não fosse para voltar a vê-lo, não me teria levantado hoje.
E apoiou-se ao braço de Djénana. Chegados à planície, haviam de proceder como se não se conhecessem - na planície atapetada de flores violetas e juncadas de folhas de ouro -, pois que ali havia outros passeantes e grupos de mulheres, sempre estes grupos harmoniosos e lentos que vinham de tarde povoar o vale de Beiços! Como de costume, André viu-as desaparecer a distância, mas com o pressentimento, desta vez, de que não voltaria mais a vê-las à hora dourada pelo Sol de Outono, a estas três pequenas criaturas de transição e de sofrimento. Afastavam-se já ao fim daquele Vale do Repouso, sobre a fina relva que não parecia natural, uma com véu negro e as outras duas de véus brancos...
Quando desapareceram, dirigiu-se ele para as tendas dos cafèzitos turcos que estavam ali debaixo das árvores e pediu um cachimbo, se bem que já começasse a fazer frio. Num último raio de sol, sentou-se, para reflectir, debaixo de um dos plátanos gigantes. Acabava de sentir como que um desmoronamento; aquela resignação de Djénana vinha destruir o seu sonho do Oriente. Sem reparar, tinha julgado que aquilo duraria mesmo depois da sua saída da Turquia; uma vez separada dele e não o vendo envelhecer, esperava que ela se lembrasse muito tempo. Imaginara uma espécie de amor ideal, que assim ficaria ao abrigo das decepções que matam o amor ordinário Mas não, possuída de novo por Hamdi, que era moço e que sem dúvida não tinha deixado de a desejar, ia ficar de facto perdida para ele. "Não me ama tanto como eu supunha, sou muito ingênuo e presunçoso! Muito bonito era isto; porém, não é mais do que literatura'. Já se acabou, ou, melhor, nunca existiu tal carinho... Isto prova que eu tenho a idade que tenho e amanhã nem para ela nem para outra serei cousa alguma.
Era ele o único fumador debaixo dos plátanos. Decididamente, estava passada a estação das belas tardes amenas que atraíam àquele vale tantos sonhadores dos arredores; o sol oblíquo e rosado já não tinha força, fazia frio. "Obstino-me em querer passar aqui o meu último Verão, dizia André, "mas isto é tão vão e absurdo como querer prolongar a minha juventude; o tempo destas coisas passou para sempre..."
Agora o Sol ocultava-se por detrás da Europa e ao longe ouviam-se os gritos dos cabreiros recolhendo o gado; em volta dele, a planície estava deserta e debaixo daquelas grandes árvores amarelentas tomava um aspecto tristemente selvagem que já conhecia do Outono anterior... Tristeza do crepúsculo e das folhas acamadas sobre a terra, tristeza de partida, tristeza por ter perdido Djénana e de estar no declinar da vida, tudo isto junto era intolerável e mostrava bem a morte universal...
Havia alguns dias que tinham imaginado um meio muito engenhoso de se corresponderem em caso de urgência. Uma das suas amigas, chamada Kiamouran, autorizara André a imitar a sua letra, muito conhecida dos criados perspicazes, e a assinar em nome dela. Tinha também fornecido sobrescritos com as suas iniciais e o endereço de Djénana feito pela sua própria mão. Desta maneira, podia ele escrever-lhe palavras encobertas com medo das indiscrições. O seu criado, que se habituara ao fez e ao rosário, ia directamente levar as cartas a casa das três pequenas culpadas; por vezes mesmo, André mandava a correspondência à hora prefixa de antemão combinada; uma das suas três amigas encontrava-se como por acaso no vestíbulo donde os negros tinham de sair e podia dar uma resposta verbal àquele mensageiro tão seguro.
No dia seguinte arriscou-se a escrever umaxdaquelas cartas firmadas por Kiamouran, para saber da febre de Mélek e perguntar se sempre se realizaria o passeio à mesquita da montanha. Naquela mesma noite recebeu umas palavras de Djénana dizendo que Mélek estava de cama com muito mais febre e que ela e Zeyneb não podiam separar-se da doente.
André resolveu dar só o passeio combinado para o dia 5 de Outubro, dia que haviam fixado para lá irem juntos.
Estava um tempo maravilhoso de Outono meridional; os bosques exalavam odores agradáveis e as abelhas zumbiam. Naquele dia julgou-se menos unido às suas amiguitas turcas, até mesmo a Djénana, e tinha a consciência de que voltaria a prender-se à vida, em outro lugar onde elas não estivessem. Também lhe parecia que, depois da partida, a sua recordação seria mais do Oriente que delas mesmas, aquele Oriente imóvel que ele amava havia muitos anos, desde a primeira juventude, e do belo Verão dali, que terminava por aquele recanto pastoral da Ásia, onde acabava de passar dois Estios na paz do tempo antigo, à sombra das árvores e aspirando o odor das folhas e do musgo... Oh! que claro sol ainda! E aqueles carvalhos, aquelas escabiosas e os fetos de cores arroxeadas e douradas recordavam-lhe os bosques de França, a tal ponto que de novo encontrava as mesmas impressões desse tempo no fim das férias de paz, quando era preciso deixar o campo, naquela mesma época do ano em que brincara tanto no mês de Setembro...
À medida que subia pelos carreiritos bordados de líquenes e de moitas, à medida que se descobria o espaço longínquo, ia desaparecendo a sua ilusão da França; não o preocupava mais porque a noção do país turco ocupava o seu lugar; os meandros profundos do Bósforo abriam-se-lhe aos pés, mostrando as casitas ou os palácios das margens e as caravanas de navios navegando. Para o interior das terras também se lhe apresentavam aspectos estranhos, uma sucessão infinita de colinas cobertas de espesso manto de verdura, florestas muito grandes e tranquilas, como em França se não conhecem.
Quando chegou, enfim, ao planalto, por todos os ventos do largo, que serve de peristilo à velha mesquita solitária, estavam ali sentadas sobre a erva uma grande quantidade de mulheres turcas vindas em peregrinação nos primitivos carros de bois. Apenas o viram, baixaram os véus de musselina sobre o rosto, tornando-se uma muda companhia de fantasmas velados que se destacavam com graça arcaica sobre a imensidade do mar Negro, que rapidamente acabava de aparecer rodeado pelo horizonte.
André disse então de si para si que, para ele, o encanto daquele país e daquele mistério resistiria a tudo, mesmo à decepção causada por Djénana e aos desencantos do declinar da vida.
No dia seguinte, que era uma quinta-feira, não quis deixar de ir às Águas Doces da Ásia, por ser aquela a última das últimas vezes. Naquela mesma tarde expirava o contrato com os remadores e o caíque e as embaixadas voltavam todas a Constantinopla na semana seguinte: a temporada do Bósforo dava-se por finda.
E nunca em pleno Verão houvera dia mais luminoso e mais calmo do que aquele: é certo que havia menos barcas ao longo da margem, já um pouco abandonada; podia julgar-se uma quinta-feira do belo mês de Agosto. Por hábito, e também por afeição, fez passar o caíque por baixo das janelas fechadas da casa das suas amigas... Estava no seu posto o pequeno sinal branco! Que inexplicável surpresa! Aquilo quereria dizer que vinham
Lá em baixo, nas Águas Doces, os prados estavam cor de ouro em volta da gentil ribeira, tanto se viam juncados de folhas mortas, e as árvores indicavam bem a chegada do Outono. Entretanto, a maior parte dos caíques elegantes deste lugar entravam uns depois dos outros, trazendo as belas dos haréns, e André recebeu à sua passagem, ainda uma vez para o adeus final, sorrisos recatados por debaixo dos véus.
Esperou durante muito tempo, olhando para todos os lados, mas as suas amigas não chegavam. A tarde avançava e os passeantes começavam a retirar-se.
Dispunha-se também a ir-se embora e parece que estava já na saída da ribeira, quando viu aparecer um belo caíque de remadores de libré azul e ouro, trazendo uma mulher só com a cabeça envolvida num yachmak branco que deixava ver os olhos; sem dúvida que alguns coxins a elevavam porque parecia muito grande, sobressaindo das águas, como que de propósito, para ser bem vista.
Cruzaram-se e olharam-se fixamente: Djénana!... Aqueles olhos da cor do bronze verde e aquelas sobrancelhas louras que há um ano ela lhe ocultava não se pareciam nem se confundiam com outras! André estremeceu ante a inesperada aparição que se erguia a dois passos dele; porém, era preciso dissimular por causa dos remadores. Passaram imóveis sem trocar um sinal.
Fez voltar ainda o caíque para se cruzar com o dela quando descesse o riozito. Quase que não havia já ninguém quando se encontraram perto um do outro, naquele rápido cruzamento. E, neste segundo encontro, a figura envolvida pelo yachmak de musselina branca tomou relevo sobre os ciprestes sombrios e as colinas dum velho cemitério que está ali à beira da água - pois naquele país os cemitérios estão em muitos sítios, sem dúvida para manter mais vivo o pensamento da morte.
O Sol baixava cor-de-rosa e foi necessário abalar. Os dois caíques saíram ao mesmo tempo da estreita ribeira e começaram a subir o Bósforo na magnificência da tarde, seguindo André a cem metros de distância de Djénana... Viu-a de longe pôr os pés no cais de mármore e entrar na sua casa sombria.
O que ela acabava de fazer tinha muita significação; fora só às Águas Doces e de yachmak para mostrar os olhos e para que o seu amigo gravasse na memória a expressão deles. Mas André, que sentiu tudo quanto havia de particular e de tocante naquela acção, recordou-se dum passo de Médjé, onde contou alguma coisa análoga àquela a propósito de certo olhar solene trocado numa barca no momento da reparação: "É muito gentil o que ela acaba de fazer", disse tristemente, "mas isto é ainda um pouco literário'; quer imitar Nedjibé... Isto não a impedirá, dentro de alguns dias, de voltar a abrir os braços ao seu Hamdi."
Continuou a subir o Bósforo, costeando de muito perto a margem da Ásia; havia já muitas casas vazias e hermèticamente fechadas; muitos jardins com as grades cerradas, debaixo da confusão das vinhas-virgens cor de púrpura; por todos os lados aparecia o Outono, a partida, o fim. Aqui e além, sobre os pequenos cais onde é proibido abordar, algumas mulheres aferradas ao campo tinham vindo sentar-se à beira da água naquela última quinta-feira da estação; mas os seus olhos (só o que se via da sua cara) exprimiam a tristeza da volta muito próxima ao harém da cidade e o medo do Inverno. O Sol baixava, alumíando toda aquela melancolia como um fogo de Bengala encarnado.
Assim que André entrou na casa da Therapia, os remadores vieram fazer-lhe as despedidas; tinham retomado o vestuário humilde e cada um trazia-lhe, cuidadosamente dobradas, a bela camisa de gaze de Brousse e a jaqueta de veludo amarelo-escuro. Traziam também o grande tapete de veludo da mesma cor, recomendando cândidamente que o fizessem secar bem, porque estava impregnado da humidade salina. André olhou aqueles pobres trapos em que os bordados de ouro tinham começado a tomar o tom das coisas velhas e preciosas por causa da humidade e do sol. Que fazer deles? Destruí-los não seria menos triste do que levá-los, para dizer mais tarde, num futuro triste, au encontrar estas relíquias cada vez mais estragadas: "Esta era a libré do meu caíque no tempo agradável em que eu habitava no Bósforo..."
Chegava o crepúsculo. Pediu ao criado turco, que fora pastor em Eski-Chahir, que tomasse a flauta e tocasse, no tom do ano anterior, uma espécie de ária selvagem que naquela ocasião exprimia para ele todo o indizível dum fim de Verão, neste lugar e em circunstâncias especiais. Depois, apoiando-se à janela, viu partir o caíque, cujos remadores se haviam transformado em pobres barqueiros que deviam alugar-se a um novo patrão. Por muito tempo seguiu com os olhos aquela longa coisa branca que vogava sobre a água, cada vez mais da cor da noite e cuja desaparição no escuro do crepúsculo representava para ele a fuga de dois Verões no Oriente.
Sábado 7 de Outubro, último dia do Bósforo, André recebeu umas linhas de Djénana a dizer-lhe que Mélek tinha cada vez mais febre, que as avós estavam inquietas e que naquele mesmo dia voltavam para a cidade, para a levarem a uma consulta de médicos.
Todas as embaixadas faziam os preparativos de regresso. André precipitou os seus para ter tempo de passar ainda uma vez na costa da Ásia, antes do cair da noite, a fim de dizer adeus ao Vale do Grande Senhor. Chegou tarde, sob um céu de grandes nuvens sombrias que deixavam ao passar alguns pingos de chuva. O vale estava deserto e desde a véspera que se tinham ido embora os pequenos cafés debaixo das árvores. Disse adeus a duas ou três humildes almas de turbante que habitavam ali em tendas e depois a um bom cão amarelo e a um gato de cor de cinza, também alminhas daquele vale, que conhecera durante duas estações e que pareciam compreender a sua partida definitiva. Depois, a passo lento, percorreu aqueles prados fechados e desertos naquela tarde, mas onde os véus das suas amigas já tinham roçado as ervas finas e as flores cor de violeta dos cólquicos. E este passeio deteve-o até ao cair da noite, quando as estrelas aparecem e começam a ouvir-se os primeiros latidos dos cães vagabundos. Na volta desta peregrinação, quando se encontrou debaixo dos enormes plátanos da entrada, que formavam ali uma espécie de bosque sagrado, era já noite e os seus pés tropeçavam contra as raízes saídas da terra, que pareciam serpentes debaixo de enorme quantidade de folhas mortas. Na obscuridade voltou ao pequeno embarcadouro, onde cada degrau de granito lhe era familiar, e subiu ao caíque para voltar à costa da Europa.
O vento bramiu toda a noite sobre o Bósforo, esse vento do mar Negro, cuja voz lúgubre se ouve duma maneira contínua durante quatro ou cinco meses de Inverno.
Nesta manhã redobravam as rajadas que vinham sacudir a casa de André, tornando mais triste o seu último despertar na Therapia.
- Ah, que tempo! - disse o criado ao abrir as janelas.
Em frente, sobre as colinas da Ásia, viam-se nuvens baixas e escuras, quase a tocar nas árvores emaranhadas.
E foi debaixo da sinistra tormenta e dos aguaceiros que naquele dia, pela última vez, ele desceu o Bósforo, passando em frente da casa das suas amigas, onde estava tudo já fechado e calafetado; redemoinhos de folhas mortas dançavam loucamente sobre o cais de mármore.
A noite reinstalou-se em Constantinopla, mas por pouco tempo antes da saída definitiva. Resolvera que justamente dali a cinquenta dias voltaria a França por mar, torrando o paquete de 30 de Novembro, data fixada com antecipação, data irrevogável a que teria de submeter-se.
Ao cair da noite recebeu outra carta de Djénana, dando-lhe conta do diagnóstico dos médicos: febre cerebral gravíssima; a pobre Mélek ia sem dúvida morrer vencida por tanta sobreexcitação nervosa, de revolta e de espanto, causada pelo seu novo casamento.
As duas semanas do fim de Outubro que durou a agonia de Mélek foram de bom tempo, quase inalterável, e de um sol melancólico. André, cada noite, à maneira dos estudantes riscava num calendário o dia passado, calendário em que a data de 30 de Novembro estava marcada com uma cruz. Vivia o mais possível em Istambul aquela vida turca tão próxima do fim para ele. Mas ali, como no Bósforo, a tristeza do Outono juntava-se à da partida muito próxima e já fazia frio para os sonhos e para as fumadelas ao ar livre, diante das santas mesquitas, debaixo das árvores que se desfolhavam.
Naturalmente, nunca mais veria as suas amigas, porque Djénana e Zeyneb não se afastavam da que ia morrer. Por fim, mantinham nas grades duma janela um imperceptível sinal branco, que significava: ela ainda vive, e estava combinado que também um sinal azul significaria: morreu. Logo de manhã, e depois duas vezes no dia, ele, ou o amigo Jean Renaud, ou o criado, passavam pelo cemitério de KhassimPaxá, para olhar ansiosamente aquela janela.
Durante este tempo, em casa da pequena moribunda, onde reinava um profundo silêncio, alguns imãs, a pedido das avós, estavam continuamente a rezar. O Islame, o velho Islame, tornava-se berço das agonias, envolvendo cada vez mais a criança revoltada que cedia gradualmente à sua influência, adormecendo sem terror; de resto, a dúvida nela era mal curável, enxerto ainda recente sobre largas hereditariedades de tranquilidade e de fé. E eis que, pouco a pouco, as observações cândidas que são para o Alcorão o que em França as práticas de Lourdes são para o Evangelho, e mesmo as superstições das duas veneráveis avós, não chocavam mais aquela incrèdulazita da véspera, que aceitava que lhe pusessem os amuletos e que os seus fatos fossem esconjurados pelos dervixes ou que fizessem benzer na mesquita de Eyub as suas camisas de elegante, que vinham duma casa de fama parisiense, ou que as mandassem ainda mais longe, a Escutári, à casa das Santas Invocadoras, onde o sopro tem o dom de curar enquanto estão no êxtase, depois dos seus grandes gritos por Alá.
Quando acabou o mês de Outubro, já havia dois dias que ela não falava, e provavelmente estava sem conhecimento, vivendo numa espécie de sono ardente e pesado que os médicos diziam muito próximo da morte.
A 2 de Novembro, Zeyneb, que velava num turno, assustou-se de repente, porque do fundo do quarto meio escuro se elevou uma voz entre aquele continuado silêncio, voz muito doce e fresca que rezava. Ela não vira chegar aquela rapariga de véu caído. Porque estava ela ali com o Alcorão na mão? Ah! sim, compreendeu: era a oração dos mortos! Ê de uso na Turquia, quando em qualquer casa está alguém agonizante, as raparigas ou as mulheres do bairro virem umas atrás das outras ler orações; entram como em sua casa, sem dizer quem são, sem levantar o véu, anônimas e fatais. A sua presença é sinal de morte, como entre nós a presença do padre levando a extrema-unção.
Mélek assim o compreendeu, e os seus olhos, há muito tempo fechados, abriram-se. Chegara àquele ponto cheio de mistério que entre os moribundos sobrevém quase sempre. Levantou um pouco a voz, que podia ter-se julgado desaparecida para sempre.
- Aproxime-se mais - disse ela à desconhecida -, não ouço bem... Não julgue que me incomoda a sua presença... Leia mais alto... que eu não percebo nada...
Em seguida confessou a fé muçulmana e, abrindo, na atitude da oração, as mãos brancas da cor dos círios, repetiu as palavras sacramentais:
"-Há só um Deus e Maomet é o seu eleito..."
Depois desta confissão rápida e leve como um sopro, as pobres mãos, que estavam estendidas, caíram. Então aquele anjo cujo nome se não conhecia reabriu o Alcorão para continuar a ler... Oh! que doçura ritmada no balanço destas orações do islame, sobretudo quando são ditas por lábios de criança, debaixo de um véu espesso!. Até a uma hora avançada da noite, as piedosas desconhecidas sucederam-se, entrando e saindo silenciosas como sombras, sem interrupção na harmoniosa melopeia que ajuda a morrer.
Sentem-se outras pessoas que, vindo nos bicos dos pés, se inclinam sem dizer palavra para o leito da morta. E a mãe, criatura passiva e boa, sempre retraída, com quem ela mal contava. São as duas avós dificilmente resignadas, mudas e duras na concentração do seu desespero.
Depois o pai, Mehmed-Bei, com a cara transtornada pela dor e talvez pelo remorso; no íntimo adorava a sua filha Mélek e, pela implacável observância dos velhos costumes, levara-a à morte... Faltava ainda a pobre M.elle Tardieu, que entrou trêmula, a ex-professora chamada nos últimos dias, porque Mélek o quisera, mas tolerada com hostilidade como responsável e nefasta.
Os olhos da criança agonizante estavam fechados; à parte, às vezes, uma tremura das mãos ou uma crispação de lábios, não dava já sinal de vida.
*"La illahé lllallah Mohammedum Ressoulallah. Ech hedu en la illahé illallah vé ech hedu en le Mohammedul alihé hou ve ressoulou hou." (N. do T.)
Eram quatro horas da manhã. Agora velava Djénana. Depois de um instante, a visitadora velada, cuja oração enchia aquele quarto do harém, forçava a voz no meio do silêncio mais solene e lia com exaltação, como se tivesse o sentimento de que alguma coisa se passava, alguma coisa de supremo. E Djénana, que tinha sempre entre as suas uma das mãozitas brancas de Mélek, sem reparar que ela esfriava, sobressaltada de terror, como se lhe gelassem as costas, sentiu duas pequenas pancadas de prevenção com uma discrição sinistra... Oh! que atroz figura a da velha nunca vista que acabava de surgir por detrás dela, entrando sem ruído por aquela porta sempre aberta, uma grande velha larga de ombros, mas descarnada, lívida e que, sem dizer nada, lhe fez um sinal: "Vá-se embora!" Ela tinha estado muito tempo à espreita no corredor, e depois, certa, pelo seu tacto profissional, de que tinha chegado a sua hora, aproximou-se para começar o seu papel.
- Não! Não! - disse Djénana, abraçando-se à pequena morta. - Ainda não! Não quero que a levem!
- Vá, vá - disse a velha mulher, chamando-a de parte com autoridade -, não lhe faço mal.
De resto, não havia nenhuma desconfiança na sua fealdade, mas muita compaixão, meio fria, e sobretudo uma grande naturalidade. Tantas e tão bonitas flores ceifadas nos haréns, todas elas tinha amortalhado aquela velha de braços robustos, aquela "-máquina de morte", como se lhes chama.
Ela pegou-lhe ao colo como a uma criança doente, e a bela cabeleira loura despenteada caiu sobre as suas costas horríveis Duas ajudantes - outras velhas suas conhecidas, ainda mais medonhas - esperavam na antecâmara com algumas luzes. Djénana e a que rezava puseram-se a seguir, pelos corredores e vestibulos mergulhados no frio silêncio da madrugada, o grupo macabro que se afastava, dirigindo-se para a escada para a descer.
Assim, a pequena Mélek-Sadhia-Saadet, aos 20 anos e meio, morreu de terror por quererem lançá-la pela segunda vez nos braços de um senhor imposto...
Depois de descerem a escada, as velhas com o seu fardo chegaram à porta de uma sala do rés-do-chão, nas casas comuns daquela antiga moradia, uma espécie de casa dos criados, de pavimento de mármore, onde havia no meio uma mesa de madeira branca, uma celha cheia de água quente ainda a ferver e uma mortalha pendurada sobre uma tripeça; a um canto, um caixão - um ligeiro caixão de tábuas delgadas, como se faz na Turquia - e, enfim, no chão, um xale antigo enrolado em volta de um bastão, um desses xales Valide que servem de mortalha para os ricos; todas estas coisas preparadas com antecipação, porque nos países do Islame um funeral deve ser rápido.
Quando as velhas estenderam a pequena sobre a mesa, que era curta, os seus belos cabelos louros, sempre despenteados, caíram até ao chão. Antes de começarem, fizeram um gesto a Djénana e à desconhecida velada para que as deixassem. Entretanto já elas se haviam retirado, esperando fora. E Zeyneb, desperta pela intuição do que se passava, viera juntar-se a elas - uma Zeyneb que não chorava, mas que estava mais branca do que a morta e com os olhos mais azulados. As três ficaram ali imóveis e silenciosas, seguindo em espírito as fases da toilette suprema, escutando os ruídos sinistros da água que escorria e dos objectos que se partiam naquela sala sonora; e, quando isto acabou, a grande velha chamou-as:
- Vinde, podeis vê-la.
Estava estendida no seu estreito caixão e toda envolvida de branco, menos a cara, ainda descoberta para receber os beijos da despedida; não lhe tinham podido fechar completamente as pálpebras nem a boca; mas ela era tão moça, os dentes tão brancos, que continuava sendo deliciosamente bonita, com uma expressão de criança e uma espécie de meio sorriso doloroso.
Agora vinha toda a gente beijá-la, o pai, a mãe, as avós, as velhas tias rígidas, que havia alguns dias a não viam, os criados e os escravos. A grande casa enchia-se de luzes que alumiavam, de sustos, de passos precipitados, de suspiros e soluços.
Quando chegou uma das avós, a mais violenta das duas, essa que era a avó de Djénana e que havia alguns dias estava na casa, quando chegou aquela velha cadina 1320, muçulmana intransigente e fula, e naquela manhã tão exasperada contra a evolução nova que lhe levava as suas pequenitas, estava ali juntamente M.elle Tardieu, de joelhos junto do caixão. E as duas mulheres olharam-se um segundo em silêncio, uma terrível e a outra humilde e espantada:
- Vá-se embora! - disse-lhe a avó, na sua língua turca, num trêmulo de rancor. - Que é que tem ainda a fazer aqui A sua obra está acabada... Compreende-me: vá-se embora!
Mas a pobre menina, recuando diante dela, olhava-a com tanta candura e desespero, com os olhos cheios de lágrimas, que a velha cadina teve de repente piedade: sem dúvida que compreendeu o que desde havia alguns anos se recusava a admitir: que a professora, em tudo aquilo, não era mais do que um instrumento irresponsável ao serviço dos tempos... Agora era ela que lhe estendia as mãos e lhe gritava: "Perdão!..." E estas duas mulheres, até ali inimigas, choravam em soluços, nos braços uma da outra. Algumas incompatibilidades de ideias, de raças e de épocas tinham-nas separado durante muito tempo, mas as duas eram boas e maternais, capazes de se enternecer e de se unir espontaneamente.
Entretanto, um pouco de luar pálido através dos vidros anunciava o fim daquela noite de Novembro. Djénana, então, lembrando-se de André, subiu a escada para pôr um bocado de fita azul, como estava combinado, e, tirando o outro sinal, pôs este nas rótulas da mesma Janela.
Foi o criado de André que veio ver ao despontar do dia e voltou todo ofegante a Pera:
- A menina de Mélek deve estar morta - disse ele ao patrão, acordando-o. - Puseram o sinal azul, que acabei de ver...
Tivera ele ocasião de falar àquela pequena Mélek, por qualquer fenda da porta, quando ia levar perigosos recados de André; até lhe tinha mostrado gentilmente a cara, dizendo-lhe obrigada. E para ele ficara a menina Mélek, tanta era a mocidade que lhe encontrara.
André, informado uma hora mais tarde por Djénana de que a levariam à mesquita próximo do meio-dia, desceu a Khassim-Paxá antes das onze horas. Pôs um fez e vestiu-se como homem do povo para estar mais seguro de que o não reconheceriam; queria, num momento dado, aproximar-se muito e procurar cumprir um piedoso dever do Islame para com a sua pequena amiga.
Oculto, " esperava a saída no cemitério vizinho da casa. Pouco depois viu sair o ligeiro caixão, levado às costas por indivíduos desconhecidos, como é de uso na Turquia; um velho xale envolvia-a, um xale Valide riscado de verde e vermelho e de minuciosos desenhos em caxemira, e um pequeno véu branco, posto por cima do lado da cabeça, indicava que era uma mulher, e, inovação surpreeendente, levava também um modesto ramo de rosas pregado com alfinetes no xale.
Entre os Turcos sabe-se bem melhor que entre nós enterrar os mortos; não se enviam cartas de participação a ninguém. Vem quem quer: os parentes, os amigos, os criados e os vizinhos e quem sabe a noticia. Nunca há mulheres nestes cortejos improvisados e sobretudo nada de padres convidados. São os que passam que encomendam o morto.
Um belo sol de Novembro, um belo dia luminoso e tranquilo. Istambul resplandecia lá em baixo, tomando o seu grande aspecto imutável, por cima do tênue nevoeiro do Outono que envolvia a seus pés o Corno de Ouro.
Pelo caminho, os indivíduos que passavam tomavam às costas o caixão de Mélek, todos na intenção de fazerem uma acção piedosa, levando por alguns minutos aquela pequena morta desconhecida. Adiante iam dois padres de turbante verde, uma centena de homens atrás, homens de todas as classes; iam também velhos dervixes com os barretes de magos, que salmodiavam uma marcha em voz alta e lúgubre - como os gritos dos lobos nos bosques pelas noites de Inverno.
Entraram numa mesquita antiga afastada das casas, quase no campo, numa cova selvagem. A pequena Mélek foi deposta sobre as lajes do pátio e os imãs, em vozes de falsete, muito suaves, cantaram as orações dos mortos.
Demoraram-se apenas dez minutos e em seguida puseram-se em marcha, descendo para o golfo, para tomarem as barcas e alcançar a outra margem, onde estão os grandes cemitérios de Eyub, que seriam a sua última morada.
Quando chegaram aos bairros baixos antes do Corno do Ouro, onde havia muita gente, o cortejo tornou-se mais lento por causa de todos os que queriam saber quem era.
A pequena Mélek foi então levada de mão em mão por uma quantidade de barqueiros e de marinheiros. André, que tinha hesitado até àquele momento, aproximou-se enfim, confundido por aquela multidão, onde estava como que perdido, e tocou com a mão o velho xale Valide, chegou o ombro e sentiu o peso da sua pequena amiga apoiar-se um pouco sobre ele, o tempo suficiente para dar vinte passos para o mar.
Depois afastou-se para evitar que a sua obstinação em segui-la fosse notada...
Uma semana mais tarde, as duas que restavam, Djénana e Zeyneb, chamaram-no a Sultão-Selim. Na pequena casa, sempre humilde, isolada e sombria, encontraram-se pela penúltima vez da sua vida, indo elas todas negras e invisíveis, com véus igualmente espessos e caídos.
Entre eles não se tratou doutro assunto senão dessa que tinha partido, dessa que estava "libertada", como elas diziam, e André escutou todos os pormenores do seu fim. Pareceu-Lhe que as vozes delas não tinham lágrimas; debaixo das máscaras de gaze negra, ambas se mostravam graves e sossegadas. Da parte de Zeyneb, tudo era normal naquele desinteresse; ela já não pertencia, por assim dizer, a este mundo. Mas Djénana era admirável por estar tão tranquila. Num dado momento ele julgou fazer bem, dizendo-lhe com doçura afectuosa: "Apresentaram-me Hamdi-Bei, na última Quinta-feira, em Ildiz; distinto, elegante e de bonita figura." Mas ela, observando, animou-se pela primeira vez: "Se quer, André, não falemos desse homem." Ele soube então por Zeyneb que a família se aterrou por causa da morte de Mélek e que não pensava neste momento nesse novo casamento.
Era verdade que vira Hatndi-Bei e que lhe tinha parecido como dissera. Depois André esforçou-se em dizer: "Estou muito satisfeito de ser assim o marido da minha amiguita." Mas isto soava falso, porque, pelo contrário, sofria muito por o ter visto, por ter verificado o seu encanto exterior, e sobretudo a sua juventude.
Depois de as ter deixado, quando andou, como tantas outras vezes, o grande caminho entre aquela casa e a sua. Istambul produziu-lhe mais do que nunca o efeito de uma cidade que se vai, que se ocidentaliza de uma maneira lamentável, vulgar e banal; depois daquelas ruas imóveis em volta de Sultão-Selim, quando chegou aos bairros baixos próximos das pontes, sentiu repugnância no meio do bulício da multidão, que ali nunca acaba, entre o lodo, na obscuridade das vielas estreitas e no frio da tarde; todos aqueles apressados que vendiam e compravam milhares de coisas pobres, deploráveis e imundos comestíveis, não eram já turcos, mas uma amálgama de todas as raças levantinas. Salvo o fez vermelho que ainda traziam, metade deles não tinham a dignidade de respeitar o trajo nacional e estavam ataviados com esses farrapos europeus, restos das nossas grandes cidades que chegam ali em carregamentos. Nunca, como desta vez, ele vira as fábricas que fumegavam já em certos sítios, nem as grandes casas monótonas, cópias em gesso dos bairros de Paris. "Obstinava-me em ver Istambul como já não é;;, disse André, "o Istambul que se desmorona e não existe. Todavia, é preciso fazer uma complacente e contínua selecção do que se vê, dos recantos que se não frequentam; nos altos ainda existem as mesquitas, mas todos os bairros baixos estão já minados pelo progresso', que chega depressa com a miséria, o álcool, a desesperança e os explosivos. O mau sopro do Ocidente passou também pelas cidades dos califas; ei-la desencantada, no mesmo sentido que o serão bem depressa todas as mulheres dos seus haréns..."
Em seguida pensou ainda mais tristemente: "Mas, afinal, que me pode importar tudo isto? Já não sou daqui; depressa chegará a data fatal, 30 de Novembro, que me levará sem dúvida para sempre. A parte os humildes mármores de Nedjibé lá em baixo, cujo futuro ainda me inquieta, que me importa o resto? E eu mesmo, daqui a pouco, dentro de cinco ou dez anos, que serei eu senão um destroço de homem? A vida não passa do seu termo e a minha já vai longa; dentro em pouco cessarão para mim as coisas deste mundo. O tempo Pode continuar na sua carreira vertiginosa, transformando todo este Oriente, que eu amo, e todas as belezas da Circássia, com os seus grandes olhos da cor do mar; transformar todas as raças humanas, o mundo inteiro e o cosmos imenso, que me importará tudo isso, pois que eu não verei mais, eu que estou presentemente quase acabado e que amanhã terei perdido a consciência do meu ser?..."
Em certos momentos, pelo contrário, parecia-lhe que a data de 30 de Novembro jamais podia chegar, porque estava em sua casa, em Constantinopla, preso naquela cidade, e mesmo preso na sua casa, onde ainda coisa nenhuma estava preparada para a partida. E, continuando a caminhar entre aquelas multidões, ao mesmo tempo que se acendiam inumeráveis lanternas, no meio dos gritos, dos apelos e dos regateios em todas as línguas do Levante, sentia-se flutuar à mercê da corrente entre impressões contraditórias.
Novembro ia terminar e estavam juntos pela última e suprema vez. Era sempre o mesmo raio de sol sobre a casa em frente que lhes enviava, por um momento ainda, antes da noite, no pequeno harém tão pobre e solitário, no coração de Istambul, a sua luz de fictícia claridade. A pálida Zeyneb, com o rosto descoberto, e a invisível Djénana, perdida no negro das suas roupas, conversavam com o seu amigo André, tão tranquilamente como no decorrer das entrevistas ordinárias; dir-se-ia que aquele dia ia ser seguido de outros, que a data de 30 de Novembro, designada para interromper aquelas reuniões, não estava próxima, ou que nunca chegaria mesmo; verdadeiramente, nada indicava que nunca mais, depois daquela vez, eles ouviriam soar as suas vozes sobre a Terra.
Zeyneb, sem emoção aparente, combinava os meios de se escreverem quando ele estivesse em França:
"A posta-restante é agora muito vigiada; neste tempo de terror que atravessamos, ninguém tem o direito de entrar nos escritórios sem dar o seu nome. A nossa correspondência irá muito segura pelo caminho que eu imaginei, que é somente um pouco comprido; não se admire pois se algumas vezes tardarmos quinze dias sem lhe respondermos."
Djénana expunha com sangue-frio os seus planos, para ao menos ver de longe o seu amigo, na própria tarde de 30 de Novembro: "Às quatro horas no relógio de Tophané, que é a hora em que largam os paquetes, passaremos as duas pelo cais. Iremos no mais ordinário trem de praça, tome sentido. Passaremos tanto quanto possível junto da margem; o senhor, do convés onde estará, veja bem os fiacres, para que se não vá embora sem nos ver; ali há sempre muita gente, o senhor bem sabe, e, como as mulheres turcas nunca têm o direito de parar, a nossa despedida durará o tempo de um relâmpago..."
Naquela tarde, o raio de sol que dava sobre a casa da frente marcava o momento preciso da separação; quando ele desaparecesse de todo, André levantar-se-ia para se ir embora; estavam todos convencidos disto desde o princípio das entrevistas; tinham combinado este limite extremo, depois do qual tudo se acabaria.
André, que antecipadamente se lhe tinha afigurado que Iria encontrá-las dolorosamente vibrantes, naquela derradeira entrevista, ficou confundido diante da sua tranquilidade. E depois tinha contado ver os olhos de Djénana, naquele último dia; mas não, os minutos passavam, e nada; nem uma ruga no composto do seu tcharchaf severo, nem nas pregas daquele véu, sem dúvida descido para sempre, como se fosse de bronze sobre uma cara de estátua.
Eram três horas e meia e, enquanto falavam do "livro" para dizer alguma coisa, uma quase repentina penumbra invadiu o pequeno harém e todos três ao mesmo tempo ficaram silenciosos.
- Vamos!... - disse simplesmente Zeyneb, na linda voz dolente, apontando com a mão as janelas gradeadas, que já não deixavam ver o reflexo do sol sobre a casa vizinha... O raio de sol acabava de desaparecer por cima dos velhos telhados; era a hora e André levantou-se. Durante o minuto supremo, de pé uns em frente dos outros, teve tempo para pensar: "Desta vez era ela só, só ela, que eu poderia olhar ainda, antes que os seus olhos e os meus se tornem em poeira..." Estar tão absolutamente seguro de nunca mais a encontrar, e entretanto partir assim, sem a tornar a ver; não, não esperava semelhante coisa. Sem uma palavra, sofreu tamanha decepção e tão angustiosa melancolia. Inclinou-se cerimonioso somente para a pequena mão que ela lhe estendia e beijou-a com a ponta dos lábios. Foi toda a despedida.
Agora eram as velhas ruas mortas, as velhas ruas desertas, por onde ele caminhava só.
"Terminou bem a coisa", dizia ele. "Pobre pequena enclausurada, isto não podia acabar melhor!... E eu que imaginava enfatuadamente que seria dramático..."
Estava até mesmo muito bem este fim, e André afastava-se com um sentimento de solidão e de vácuo!... Teve uma tentação de voltar atrás, até à porta de aldraba de cobre, enquanto elas ali estivessem. A Djénana teria dito: "Não nos separemos assim, querida amiga; a senhora, que é gentil e boa, não me cause este desgosto; mostre-me os seus olhos pela última vez e depois aperte a minha mão com mais força; ir-me-ei embora menos triste..." Bem entendido, não fez nada disto e continuou o seu caminho. Mas a esta hora amava com ânsia tristíssima todo aquele Istambul, onde milhares de luzes começavam a reflectir-se no mar. Qualquer coisa o prendia desesperadamente àquela cidade, e não definia bem o que era, qualquer coisa que flutuava no ar, por cima da cidade imensa e diversa, sem dúvida uma emanação de almas femininas - na verdade, parece que é sempre isto que nos prende aos lugares e aos objectos -, almas femininas que ele tinha amado e que se confundiam; era a de Nedjibé ou a de Djénana, ou as duas ao mesmo tempo? Nada sabia de positivo...
Duas cartas no dia seguinte
Zeyneb a André
Verdadeiramente não acreditava que nos víssemos ontem pela última vez; se o soubesse, ter-me-ia arrastado como uma pobre desgraçada a seus pés e ter-lhe-ia suplicado que nos não deixasse assim... Oh! o senhor deixa-nos perdidas nas trevas do espírito e do coração. O senhor vai à luz, à vida, e nós vegetaremos os nossos lamentáveis dias, sempre iguais, no torpor dos haréns...
Depois da sua partida temos chorado como desesperadas. Zérichteh, a boa tia de Djénana, desceu e repreendeu-nos e, tomando-nos nos seus braços; mas também ela, a pobre boa alma, chorou de nos ver chorar.
Zeyneb
Esta manhã mandei a sua casa humildes recordações turcas. O bordado é de Djénana; é o ayete, o versículo do Alcorão, que desde a sua infância está por cima do seu leito. Aceite os véus, são meus; esse bordado de rosas é um véu circassiano que me foi dado pela minha avó; o bordado a prata estava nas caixas da nossa casa do Bósforo; ponha-os num sofá, na sua casa de França.
Djénana André
Eu queria ler no senhor quando o navio dobrar a ponta do Serralho, quando a cada volta da hélice fugirem os ciprestes dos nossos cemitérios, os minaretes e as cúpulas... o senhor olhará tudo isso até ao fim, bem o sei. E depois, mais longe, já no Mármara, os seus olhos procurarão ainda perto da muralha bizantina o cemitério abandonado onde nós um dia estivemos. E, enfim, para os seus olhos tudo se ofuscará, os ciprestes de Istambul, todos os minaretes, todas as cúpulas, e no seu coração bem depressa as recordações...
Oh! que elas se ofusquem e que tudo se confunda: a pequena casa de Eyub que foi a do seu amor, e a outra humilde casa no centro de Istambul, perto duma mesquita, e a grande moradia triste onde o senhor entrou uma vez fraudulentamente. E que também se confundam todas estas silhuetas: a amada doutrora que a seu lado passeava, com o feredjé cinsento, ao longo da muralha, entre as pequenas margaridas de Janeiro (tenho seguido o seu caminho e evocado o seu nome), e estas três outras que mais tarde vieram a ser suas amigas. Confunda-as a todas, confunda-as bem e guarde-as juntas no seu coração (na sua lembrança não é suficiente). Também as do presente o amaram mais do que o senhor imaginou... Eu sei que os seus olhos verterão lágrimas logo que desapareça o último cipreste... e eu quero uma lágrima para mim...
E lá longe... quando chegar, como pensará nas suas amigas? Uma vês desfeito o encanto, sob que aspecto se lhe apresentarão elas? Ê atroz dizer-se que nada ficará e que o senhor encolherá os ombros e sorrirá ao relembrar tudo isto...
Como desejo e como temo ler esse livro em que o senhor fale das mulheres turcas - de nós!... E aí encontrarei eu o que procuro em vão descobrir depois que nos conhecemos: o fundo da sua alma, o verdadeiro íntimo dos seus sentimentos, tudo que nno revelam nem as suas breves cartas nem as suas raras palavras. Já senti em si, por algumas vezes, a emoção, porém depressa reprimida, tão furtiva! Tem havido alguns momentos em que de boa vontade lhe abriria a cabeça e o coração, para saber o que havia por detrás dos seus olhos frios e claros!...
Oh! André, não diga que divago! Sou desventurada e vejo-me só... sofro e debato-me nas trevas!... Adeus. Compadeça-se. Ame-me um pouco, se pode.
Djénana
André respondeu:
Não lhe falta grande coisa para descobrir por detrás dos meus olhos "frios e claros". Eu sei bem menos o que se passa por detrás dos seus, querido pequeno enigma...
A senhora reprova sempre a minha maneira silenciosa e fechada; sou assim porque já vivi muito; quando lhe suceder o mesmo, compreenderá melhor...
E, acredite, ontem foi para mim muito glacial no momento de nos deixarmos!...
Então, até amanhã, às quatro horas, no triste cais de Gaiata. No meio da confusão das partidas, estarei atento; não terei outra preocupação, asseguro-lhe, senão ver quando passa a sua querida silhueta neyra... pois que é só isso o que a senhora me deixa ainda ver...
André
Chegou a sexta-feira 30 de Novembro, rápida e sem espera, como chegam depressa todas as datas decisivas ou fatais, não somente para cada um de nós aquela em que tenhamos de morrer, mas também essas que fazem cair os últimos dias da nossa geração, o acabar do Islame e o desaparecer das raças decrépitas; depois delas, a consumação dos tempos, a destruição e o esquecimento dos turbilhões de sóis nas soberanas trevas
Rápida, rápida chegou aquela sexta-feira 30 de Novembro, data qualquer e despercebida para a maioria dos seres tão diversos que Constantinopla vê agitar-se nas suas multidões; mas para Djénana, para André, data que marca uma dessas mudanças bruscas, dando nova direcção à vida.
Ao raiar a aurora, fria e enovoada, parece que ambos despertaram quase ao mesmo tempo, debaixo do mesmo céu, na mesma cidade por algumas horas ainda, separados somente por um vale cheio de habitações e por um bosque de ciprestes cheio de mortos - mas, na realidade, muito longe um do outro por causa das barreiras invisíveis. Sentiu-se invadido pela impressão da partida assim que abriu os olhos, pois já não habitava a casa, ocupando agora o hotel. Estava, de resto, instalado o mais alto possível, para fugir ao ruído de baixo, às boinas dos glob-trotters norte-americanos e às elegâncias dos sírios suspeitos; e sobretudo para ver ainda Istambul, com Eyub ao longe.
E ambos, Djénana e André, interrogavam o horizonte, a espessura das nuvens, a direcção do vento do Outono, um da sua janela largamente aberta e outro através das opressivas e eternas rótulas de madeira, que transformam os haréns em prisões.
Tinham sonhado para este um tempo luminoso e o raiar nostálgico daquele Sol de fim de estação que vem por vezes derramar sobre Istambul uma frescura de Inverno. Ele fora para levar nos seus olhos ávidos e desvairados pelas cores uma última visão magnífica da cidade dos minaretes e das cúpulas e ela para estar mais segura de vê-lo pela última vez, nesse cais de Gaiata, ao passar ao lado do navio que ia levá-lo, pois nada lhe causava mais íntima melancolia que essas pálidas iluminações cor-de-rosa das belas tardes de Novembro. Havia muito tempo que ela tinha dito a si mesma que, depois de ele se ir embora para sempre, lhe custava mais sepultar-se em sua casa num daqueles ocasos do Sol lânguidos e coalhados de ouro do que com o crepúsculo triste e chuvoso. Mas com o tempo mau tudo se complicaria e se tornaria incerto; que pretexto inventar para um passeio e como escapar à espionagem redobrada dos eunucos negros e dos criados?...
Ora a chuva ameaçava cair durante todo o dia. Um céu escuro revolto e atormentado pelo vento da Rússia; grandes nuvens que corriam baixas, quase a tocar na terra, ocultavam o horizonte e inundavam todas as coisas de frio e de humidade.
E Zeyneb, pela sua janela de vidraças abertas, olhava também o céu, indiferente à sua própria conservação, aspirando à vontade a humidade gelada dos Invernos de Constantinopla, que já no ano precedente tinham desenvolvido no seu peito os germes da morte. De súbito pareceu-lhe que esbanjava os minutos úteis; era certa naquela tarde, às quatro horas, a partida de André, e ela tinha de não se demorar a ir a casa de Djénana, como lhe prometera na véspera; as duas tinham de rever juntas os seus planos e combinar as mais infalíveis astúcias, a fim de passarem exactamente à hora combinada naquele cais dos paquetes. Ele ainda ali estaria quase todo o dia; a agitação causada pela sua presença e o perigo continuavam sustendo-as; sentiam-se activas e febris; ao passo que depois, oh! depois seria a imersão repentina na tranquilidade em que já nada haveria...
Para André, ao contrário, o dia começava numa melancolia muito tranquila. O imenso tédio de ter vivido muito, amado muito, e de tantas vezes ter dito adeus, adormecia a sua alma na hora da partida, que antecipadamente se lhe tinha apresentado mais cruel. com surpresa e quase com remorso, verificava já em si mesmo uma espécie de indiferença ainda antes de estar a caminho... "Demais, era preciso acabar com esta situação", dizia ele; "quando eu estiver longe, será melhor para ela; tudo se arranjará com as caricias de Hamdi..."
Mas que céu desolador para aquele último dia! Ele tinha contado, num gozo triste e doce de Sol de Novembro, chegar ainda até Istambul. Mas não, era impossível com aquele tempo de Inverno; acabaria por levar imagens muito descoloridas... Não passaria as pontes para o outro lado -nunca mais - e ficaria naquele Pera insipido e cheio de lama, aborrecendo-se enquanto não chegava a hora.
Duas horas. Era tempo de deixar o hotel e dirigir-se para o mar. Antes de descer sofreu a infinita tristeza do último olhar da sua janela para Eyub e para o grande campo dos mortos, que já não veria debaixo, nem de Gaiata, nem de parte nenhuma, muito longe na névoa por trás de Istambul, alguma coisa como que uma cabeleira negra erguida no horizonte, uma cabeleira formada por mil ciprestes, que, mau grado a distância, naquele dia se via mexer pela força do vento que os sacudia.
Depois de olhar desceu para o bairro baixo de Gaiata, sempre coberto de uma vil populaça levantina e que é a parte de Constantinopla mais ulcerada pelo perpétuo contacto dos paquetes, pelos indivíduos que eles trazem e pela pacotilha moderna que vomitam sem cessar pela cidade dos califas.
Céu sombrio, vielas cobertas de lama peganhenta, tabernas imundas empestando com o fumo e o álcool anisado da Grécia, tropel de moços de pau e corda e grupos de cães sarnosos. Em tudo aquilo, o sol mágico consegue às vezes pôr traços de beleza; mas naquele dia, que horror, debaixo da humidade do Inverno!
São quatro horas; sente-se sempre baixar o dia de Novembro, por detrás da espessura das nuvens. Ê a hora oficial da partida, a hora em que devia passar lentamente o carro de Djénana para a última despedida. André fechara o beliche, arrumara as bagagens e viera para o convés rodeado de pessoas amáveis das embaixadas que tinham vindo acompanhá-lo, umas vezes distraído do que lhe diziam por estar à espera do trem e outras vezes esquecendo as que iam passar para responder um pouco aos que lhe falavam.
O cais, como sempre, cheio de gente. Não cabe ninguém. O espaço está. cheio do ruído das máquinas, dos guindastes a vapor e dos apelos, dos gritos lançados pelos carrejões e pelos marinheiros em todas as línguas do Levante. Esta multidão encharcada que berra e se atropela é uma misturada de vestimentas turcas e de farrapos europeus; só o fez muito vermelho em todas as cabeças lhe dá um conjunto oriental. Ao longo da rua, por detrás de tudo aquilo, os cafés regorgitam de levantinos; algumas figuras de bonés vermelhos estão à janela das casas de madeira, continuamente cheias de músicas orientais e de fumo dos cachimbos. E esta gente olha, como sempre, o navio que parte. Mas do outro lado deste bairro suspeito e daquela mixórdia de trajos e daquele ruído, do outro lado, separado pelas águas de um golfo que suporta uma floresta de navios, o grande Istambul levanta na bruma as inúmeras mesquitas; sua silhueta, sempre soberana, intercepta os ruídos próximos e domina com o silêncio o grande tumulto... Não virão as pobres pequenitas? Parece que André as esquecia naquela confusão inevitável das partidas, ocupado como estava a distribuir apertos de mão e a responder a alguns gracejos que lhe dirigiam. E, depois, não estava certo se era ele mesmo que se ia embora, tantas vezes tinha subido àqueles navios, em frente daquele mesmo cais e daquelas mesmas multidões, vindo acompanhar ou esperar amigos, como é de uso em Constantinopla. De resto, aquela cidade de Istambul, perfilada lá em baixo, era de tal modo sua, quase sua havia mais de um quarto de século; era possível que ele realmente a deixasse? Não, parecia-lhe que no dia seguinte voltaria, como de costume, a encontrar os lugares muito familiares e as caras muito conhecidas...
Acabava de soar a segunda badalada da sineta da partida; os amigos que o tinham acompanhado foram-se embora lentamente; só os que devem seguir viagem é que ficam em frente uns dos outros e se observam. Não há nada mais a dizer; tilintou um pouco lugubremente a segunda badalada, a última, e André caiu então em si...
Ah! Aquele trem que vem acolá, deve ser ela. Um coupé de aluguer - sim, um qualquer, como ela tinha dito -, o que avança com a lentidão que o incógnito exige. Vai passar muito perto, a vidraça desce e dentro aparecem duas mulheres vestidas de preto... E uma levantou bruscamente o véu: Djénana!... Djénana quis ser vista; Djénana que o olhou só durante um segundo, com uma destas expressões de angústia que nunca mais se esquecem.
Seus olhos resplandeciam entre lágrimas, mas agora já eles se não mostravam... O véu caíra e desta vez André sentiu que era alguma coisa de definitivo e eterno, como quando se vê esconder uma pessoa amada debaixo da tampa de um caixão... Ele não se chegou à amurada, não fez um sinal de adeus com a mão; nada mais do que olhar, que era de resto o suficiente para pôr em grave risco uma mulher turca. E o coupé de aluguer continuava lentamente a marcha, afastava-se através da multidão apressada...
Aquele olhar tinha penetrado mais no coração de André que todas as palavras e todas as cartas. Sobre o cais, os grupos de indivíduos que lhe diziam adeus com a mão ou com o chapéu não existiam para ele; no mundo, neste momento, só havia aquele trem que voltava lentamente para um harém. E os seus olhos, que queriam ao menos segui-la, de repente humedeceram-se, vendo as coisas oscilantes e trêmulas...
Mas quê? Sonha porventura? O trem, que caminhava sempre a passo, dir-se-ia que se afastou rapidamente e num sentido diferente daquele em que os cavalos marchavam! Vai-se, desaparece como imagem arrebatada e tudo desaparece com ele, os indivíduos, o reboliço do povo, as casas e a cidade... Ah! Ê o paquete que partiu!... Sem um ruído, sem uma sacudidela e sem que se ouvisse girar a hélice... O grande paquete, arrastado pelos rebocadores, afastou-se do cais sem se sentir; dir-se-ia que era o cais que fugia, que se ocultava muito depressa, com a sua fealdade, com as suas multidões, enquanto o grande Istambul, mais alto e mais longínquo, permanecia imóvel. O clamor das vozes perdia-se; não se distinguiam já as mãos que diziam adeus nem a caixa negra daquele trem no meio dos mil pontos vermelhos que são os turcos.
Insensivelmente e num silencio quase completo, sem se ouvir nada a bordo, o próprio Istambul começou a ofuscar-se pela névoa da tarde; toda aquela Turquia se afastava com uma espécie de majestade fúnebre, na longitude e bem depressa no passado.
E André não cessou de olhar, por muito tempo, um vago contorno de Istambul que restava desenhado no escuro da noite. Para ele, do lado do horizonte, persiste um encanto de almas e de formas femininas - das que se afastam naquele trem e das outras que a morte já levou...
Caía a noite no Mármara...
André pensava: "A esta hora devem ter chegado a casa." E ele revia o que devia ter sido aquele caminho de volta, depois a entrada em casa sob os olhares inquisitoriais e, enfim, o seu encerramento e solidão naquela mesma noite.
Estava ainda muito perto o farol que acabava de se acender a pouca distância e que brilhava na obscuridade do mar; era o da ponta do Serralho. Mas André teve a impressão de estar já infinitamente longe; a sua partida cortou de um golpe os liames que o prendiam na hora presente à sua vida turca, e agora este período, tão próximo na realidade, mas que nada retém já, desprende-se e cai, cai pouco a pouco no fundo do abismo, onde se guardam as coisas absolutamente passadas...
Assim que chegou a França recebeu algumas palavras de Djénana:
Quando o senhor estava no nosso país, André, quando nós respirávamos o mesmo ar, parecia-nos que o senhor ainda nos pertencia um pouco. Mas presentemente o senhor está perdido para nós; tudo por onde passa e tudo que o rodeia nos é desconhecido... e cada vez mais o seu coração e o seu pensamento distraído nos escapam. O senhor foge - ou, antes, somos nós que esvaecemos, até desaparecermos bem depressa. Isto é medonho de tristeza.
Por algum tempo ainda, o seu livro obrigá-lo-á a recordar-se. Mas depois? Eu tenho um pedido a faser-lhe: mandn-me as primeiras folhas manuscritas, não é verdade Mas depressa. Elas não me deixarão nunca mais; mesmo até debaixo da terra; levá-las-ei comigo. Oh! a triste coisa do romance deste romance; é somente hoje o único terreno onde me sinto segura de voltar a encontrar o senhor. Começará amanhã um período que nunca mais acabará
Djénana
André mandou-lhe as folhas pedidas. Mas nunca mais teve resposta, mais nada, durante cinco semanas, até esta carta
de Zeyneb:
Khassim-Paxá, 15 Zilkada de 1321
André, é amanhã de manhã que devem conduzir a nossa querida Djénana a Istambul, a casa de Hamdi-Bei pela segunda vez, com o cerimonial usado para os casamentos. Foi tudo feito singularmente depressa, aplanadas todas as dificuldades; as duas famílias combinaram as idas junto de Sua Majestade Imperial para que o iradé de separação fosse revogado; ela não tem ninguém que a defenda.
Hamdi-Bei mandou-lhe hoje magníficos ramos de rosas de Nice; mas ainda não voltaram a ver-se; ela encarregou Emiri Hanum de lhe pedir o favor de esperar até depois da cerimónia, de amanhã. Ela está rodeada de flores; se o senhor pudesse ver o seu quarto, onde entrou uma vez! Mandou-as para lá todas, dir-se-ia um jardim de encanto. Esta noite encontrei-a cheia de tranquilidade, mas sei bem que isto não é senão alheamento e resignação. Na manhã de hoje, que estava boa, sei que ela pôde sair, acompanhada somente de Kondja-Gul, para ir às sepulturas de Mélek e da sua Nedjibé e àquele monte de Eyub, àquele canto do cemitério onde a minha pobre irmãzita os fotografou juntos, lembra-se? Queria, passar já noite junto dela; eu e Mélek já assim fizemos na véspera do seu primeiro casamento; mas compreendi que ela preferia estar só e retirei-me por isso antes de anoitecer com o coração mortificado de angústia.
E agora vejo-me retirada no isolamento, reentrada em casa; sinto-a mais perdida que da primeira vez; parece que a minha influência é suspeita para Hamdi, que me desviará dela, e não a verei mais... Não julgava, André, que se pudesse sofrer tanto; se o senhor fosse daqueles que rezam, eu dir-Lhe-ia que rezasse por mim; todavia, digo-lhe: tenha piedade, uma grande piedade das suas humildes amigas, das duas que vivem.
Zeyneb
Oh! não julgue que ela o esquece; em 22 de Ramadã, nosso dia dos mortos, ela quis que fôssemos juntas à sepultura da sua Nedjibé depor-lhe flores. e as orações que nos restam da nossa fé já perdida. Se o senhor não recebe cartas há muitos dias, é porque ela sofre muito e é torturada; mas eu sei que lhe quer escrever muito, esta noite antes de se deitar; quando a deixei, disse-mo.
Z.
No dia seguinte chegou a participação' manuscrita, na qual André, logo que rasgou o envelope, julgou reconhecer a letra de Djaridé Hanum:
Alá!
Feridé-Azâdé-Djénana, filha de Tewfik-Paxá Daríhan Zâdé e de Seniha Hanum Kerissen, acaba de falecer, a 14 Zilkada de
ises.
Nasceu em 22 Redjeb de 1291, em Karadjiamir.
Segundo sua vontade, foi intimada na Turbe das venei andas Sivassi d'Eyub, para ali dormir o último sono.
Seus olhos, que eram puros e belos, estão cerrados e Deus, que ela muito amou, dirigiu o seu olhar para os jardins do Paraíso, onde Maomet, o nosso profeta, espera os seus fiéis.
Nós todos que morremos, a nossa oração é para ti, Djénana-Feridé-Agàdé, e pedimos-te que não te esqueças no teu apelo. E nós, tuas humildes amigas, seguiremos o caminho luminoso que nos traçaste.
Djénana-Feridé-Azâdé, que o rahmetJ de Alá desça sobre ti.
Khassim-Paxá, 15 Zilkada de 1323
Ele leu com pressa e com perturbação, porque a forma oriental daquela nota não lhe era familiar; e depois todos aqueles nomes diferentes que Djénana tinha e que ele não conhecia, à primeira vista desorientavam-no... E esteve alguns minutos sem compreender que se tratava dela...
Três dias depois recebeu uma grande carta de Zeyneb, contendo um sobrescrito fechado, no qual vinha o seu nome: "André", escrito ainda pela mão de Djénana:
1 Na Turquia não se mandam cartas de convite para os enterros. Previnem-se os amigos afastados por um anúncio de jornal, ou por uma nota manuscrita, sempre pouco mais ou menos na forma descrita. (N. do T.)
2A suprema misericórdia, o grande perdão divino que esquece tudo. Diz-se sempre por um morto cujo nome é citado: "Allah rahmet eylésun!" (Deus lhe deu o seu rolimef. ), como entre nós se diz: "Que Deus tenha a sua alma!" (N. do T.)
Carta da Zeyneb
André, todos os meus sofrimentos, todas as minhas aflições, se transformavam em júbilo quando o seu sorriso os iluminava; todos os meus negros dias se enchiam de luz que dela imanava. Compreendo-o presentemente, quando ela já não é nada...
Vai fazer uma semana daqui a pouco que está deitada debaixo da terra...
Nunca mais verei os seus olhos profundos e graves, onde lhe transparecia a alma, nunca mais ouvirei a sua voz, nem o seu rir de criança; tudo ficará quase frio em volta de mim, até o fim; Djénana está deitada de baixo da terra... Quase que ainda não acredito, André, e todavia toquei as suas pequenas mãos frias, vi o seu sorriso parado e os seus dentes nacarados entre os lábios de mármore... Fui eu a primeira a chegar ao pé dela e apanhei a suprema carta que ela escreveu para si, amarfanhada e torcida nos dedos... Ainda não o creio, e contudo eu vi-a hirta e branca; tive nas minhas mãos as suas mãos de morta... Ainda o não acredito, mas é assim, eu vi, vi o seu caixão envolvido no xale Valide com um véu verde de Meca, e ouvi o imã rezar por ela o oficio dos mortos...
Na sexta-feira, no próprio dia em que devíamos reconduzi-la a Hamdi-Bei, recebi umas palavras dela muito cedo com a chave do seu quarto... (Aquela chave que ela estava muito contente de ter obtido, lembra-se?) Foi Kondja-Gul que ma trouxe, e porquê, àquela hora Estava arrepiada ao abrir o sobrescrito. E li: "Vem, encontrar-me-ás morta. Serás a primeira a entrar, mas só, no -meu quarto; junto de mim encontrarás uma carta; guarda-a no seio e em seguida manda-a ao meu amigo."
Fui logo a correr e entrei no seu quarto... Oh! André, que horror ao entrar! Horror do primeiro olhar lançado em volta!... Onde estará ela? Em que posição... caída ou deitada?... Ah! na poltrona diante da sua mesita, de cabeça inclinada, toda branca, como quem olha o dia nascente... E eu não devia chamar nem gritar... Não, a carta, devia procurar a carta... Algumas cartas, via cinco ou seis já fechadas sobre a mesa junto dela; sem dúvida eram as suas despedidas. Mas havia também folhas dispersas, deviam ser aquelas com o sobrescrito preto que tinha o seu nome, André... E a última folha, essa que verá amarrotada, tirei-a da mão esquerda, que tinha crispada... Guardei tudo isto e, quando já tinha feito como ela, queria, gritei com toda a força dos pulmões para que acudissem.
- Djénana. minha única amiga, minha irmã... Para mim, já não há mais nada; nem em volta dela nem perto dela; nem júbilo, nem ternura, nem luz do dia; ela está bem no fundo da sepultura, onde será posta bem depressa uma pedra verde, lá em baixo, sabe, em Eyub, que o senhor e ela tanto amavam...
E ela teria vivido se continuasse a ser a pequena bárbara, a princesita das planícies da Ásia! Não teria sabido nada das coisas... Foi o muito pensar e o muito saber que a apaixonaram um pouco cada dia... Foi o Ocidente que a matou, André... Se a tivessem deixado primitiva e ignorante, somente bela, vê-la-ia ainda perto de mim e ouviria a sua voz... E os meus olhos não sentiriam este desespero, André, se ela continuasse sendo a princesita das planícies da Ásia...
Zeyneb
André sentia um piedoso respeito ao abrir a carta de Djénana.
Isto não era como a participação tirada distraidamente do sobrescrito. Desta vez ele estava precavido; depois de alguns dias tomara luto por ela; a tristeza de a ter perdido entrava nele pouco a pouco com uma penetração lenta e profunda. Tivera tempo de meditar na parte de responsabilidade que lhe coubera naquele desespero.
Ainda antes de abrir a carta fechou-se só, para não ser incomodado por coisa nenhuma na sua meditação por ela.
Muitas folhas E a última, a que estava por detrás, com efeito, percebia-se que os dedos a tinham amarfanhado e amarrotado.
Viu bem que era a letra das cartas habituais, sempre a sua mesma letra muito nítida. Ela fora bem senhora de si diante da morte! Começava pelas frases um pouco ritmadas que eram da sua forma; frases todavia tão tranquilas que André quase duvidou que alguém a tivesse visto "hirta e branca", ele que não tinha tido o contacto da sua "mão morta?.
A carta
Meu amigo, soou a hora de nos despedirmos. O iradé pelo qual eu me julgava protegida foi revogado; Zeyneb deve tê-lo prevenido. Minha avó e minhas tias preparavam tudo para o meu casamento e amanhã vão dar-me ao homem que o senhor sabe.
Ê meia-noite, e na paz da casa fechada não há outro ruído senão o deslizar da minha pena; ninguém vela além do meu sofrimento. Para mim, o mundo desvaneceu-se já; já me despedi de tudo que me é querido; já escrevi as minhas últimas vontades e as minhas despedidas. Já desembaracei a alma de tudo que não é essência, pus de parte todas as lembranças para que nada fique entre o senhor e eu, para só lhe dar as últimas horas da minha vida e para que seja só o senhor a sentir bater a última pancada do meu coração.
Porque, meu amigo, eu vou morrer... Oh! duma morte lenta semelhante o um sono e que me deixará ficar bonita. O repouso e o esquecimento estão aqui num frasco, ao alcance da minha mão. Ê um tóxico árabe muito doce que, dizem, dá à morte a ilusão do amor.
André, antes de deixar a vida fiz uma peregrinação à pequena sepultura que lhe é querida. Fui lá rezar e pedir a essa que o senhor amou que me ajudasse na hora da partida e permitisse também que a minha lembrança tenha lugar no seu coração. E, como estava em Eyub só, sem a minha velha escrava, pedi aos mortos acolhimento. Errei entre as sepulturas, procurando o meu lugar. Naquele recanto onde estivemos juntos quero repousar só. Naquele dia de Inverno, com doçuras de Abril, foi naquele lugar mesmo que lhe dei a minha alma... No Corno de Ouro, na volta, parecia choverem rosas do céu. Oh. meu país, tão bonito na tua púrpura da tarde! Tenho os meus olhos fechados para levar a visão para a outra vida. .
Zeyneb aconselhou-me a fuga quando nos anunciaram a anulação do iradé. Todavia não pude resolver-me. Podia ser que encontrasse debaixo doutro céu o amor para me acolher... Mas eu só tinha o direito de pretender uma piedade afectuosa. Amo mais a morte, estou cansada.
Uma estranha tranquilidade reina em mim... Mandei trazer para o meu quarto - o meu quarto de solteira, onde o senhor entrou um dia - todas as flores que as minhas amigas me mandaram para a "festa" de amanhã. Coloquei-as em volta do leito e da mesa em que escrevo, e é em si, meu amigo, que eu penso. Evoco-o. Esta noite o senhor é meu companheiro. Se fecho os olhos, vejo-o aqui frio e imóvel; mas esses seus olhos - esses olhos de que eu nunca sondei o mistério - penetram as minhas pálpebras fechadas e queimam-me o coração. E, se reabro os olhos, o senhor ainda ali está entre as flores e a sua expressão olha-me.
E o livro - o nosso livro -, além destas folhas que me deu e que amanhã me acompanharão, vou-me sem o ter lido! Assim não saberei o seu pensamento exacto. Sentiria o senhor bem a tristeza da nossa vida? Compreendeu o senhor bem o crime de acordar as almas que dormem e, depois de as quebrar, se elas se elevam, a infâmia de reduzir as mulheres à passividade das coisas f... Diga que as nossas existências estão como que enterradas na areia e iguais a agonias lentas.
Oh! diga que a minha morte serve ao menos as minhas irmãs muçulmanas! Eu quis fazer-lhes tanto bem quando vivia!... Tinha acariciado o sonho doutrora de as despertar a todas... Oh! não, dormi, dormi, pobre alma. Não, nunca vos lembreis que tendes asas!... Mas essas que já tomaram o seu vôo e que entreviram outros horizontes além do harém, oh! André, confio-lhas; fale delas e fale com elas. Seja seu defensor no mundo onde se pensa. E que as lágrimas de todas e a minha angústia deste momento comovam enfim os pobres cegos, que nos amam, é certo, mas que nos oprimem!...
A letra agora transformava-se de repente, tornando-se insegura, quase trêmula.
São três horas da madrugada, retomo a carta. Chorei, chorei tanto que já não vejo bem. Oh! André! André! ê possível ser jovem, amar e todavia ser lançada à morte Oh! qualquer coisa me cerra a garganta e me sufoca... Eu tinha o direito de viver e ser feliz... Um sonho de vida e de lua vagueia ainda em volta de mim... Mas amanhã, ao sol da manhã, impõem-me o dono e são os seus braços que vão enlaçar-me... E onde estão os braços que eu teria amado?
Um intervalo testemunhava mais um bocado de espera; a hesitação suprema, sem dúvida, e depois o cumprimento do acto irrevogável. E a carta, por alguns segundos ainda, retomou a sua tranquilidade; mas esta tranquilidade causava calafrios...
Acabou-se, era só um pouco de coragem. O pequeno frasco do esquecimento está vazio. Sou já uma coisa do passado. Num minuto deixarei a vida, só me resta um gosto amargo à flor dos lábios.
A terra parece-me longínqua e tudo se enevoa e se desmancha - tudo, excepto o amigo que eu amava, que eu chamo e que vejo junto de mim até ao fim.
A letra começava a inclinar-se em demasia, como a das crianças. Depois, no fim da nova página, as linhas atravessavam-se umas nas outras. A pobre mãozita não guiava, não sabia, as letras repetiam-se muito, e de repente tornavam-se grandes, espantosamente grandes... Era a última folha, essa que tinha ficado presa durante a convulsão da morte, e ante as rugas daquele papel aumentava o horror de o ier.
o amigo que eu chamo, que eu vejo perto de mim até ao fim... Meu bem-amado, venha depressa, porque eu quero dizer-lhe... O senhor não sabia que eu lhe queria com toda a força do meu ser Quando se morre, pode dizer-se tudo. Já não há regras no mundo. Porque, partindo, não se admire que lhe declare que o tinha amado.
André, no dia em que o senhor esteve diante da mesita onde lhe escrevo as minhas despedidas, o acaso, como calcula, fez que o tocasse; então fechei os olhos, e detrás dos meus olhos fechados, que belos sonhos passaram de repente! Os seus braços apertavam-me de encontro ao seu coração e as minhas mãos, cheias de amor, tocavam docemente nos seus olhos, tirando-lhe a tristeza. Ah! a morte poderia ter vindo, e ela viria ao mesmo tempo que para si o aborrecimento, mas como ela teria sido doce e que alma venturosa e reconhecida ela teria levado... Ah! tudo se enevoa e tudo se escurece... Tinham-me dito que dormiria, mas não tenho ainda sono, somente tudo se move, tudo se desdobra, tudo dança, as minhas veias são como sóis, as minhas flores engrandecem tanto que me vejo numa floresta de flores gigantes...
Vem, André, vem junto de mim. que fazes tu aí entre as rosas Vem junto de mim enquanto te escrevo; vejo os teus braços em volta de mim e os teus queridos olhos junto dos meus lábios... Aqui, meu amor, é assim que eu vou dormir, muito perto de ti, para te dizer que te amo... Aproximo de mim os teus olhos, porque na outra vida onde estou pode ler-se nas almas através dos olhos... eu sou uma morta, André... Nos teus olhos claros, onde eu não soube ver, há, para mim, uma lágrima!... Não te ouço responder, parece que estou morta... Por isso te escrevo, tu não ouvirás a minha voz longínqua.
Amo-te, ouves tu ao menos isto, amo-te...
Oh! sentir assim como junto a si aquela agonia! Ser ele a quem ela se tinha obstinado a falar durante os momentos do grande mistério em que a alma desaparece...
Recolher o último traço do seu querido pensamento, que vinha já do domínio dos mortos...
Vou-me, evolo-me, abraça-me!... André!... Oh! amar-te-á outra ainda com um amor tão terno... Ah! o sono vem e a pena está pesada.
Nos teus braços... meu bem-amado...
As últimas palavras perdiam-se, ilegíveis. De resto, nem o fim nem o que precedia podia ler já... Sobre a folha amarrotada pela pobre mãozita que já não sabia o que fazia, ele apoiou os lábios piedosa e apaixonadamente. Foi este o seu grande e único beijo...
Pierre Loti
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