Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS DESGRAÇAS DE UMA CRIANÇA / Martins Pena
AS DESGRAÇAS DE UMA CRIANÇA / Martins Pena

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Martins Pena

 

 

 

 

PERSONAGENS: ABEL (velho) RITA (sua filha) PACÍFICO (soldado de cavalaria) MANUEL IGREJA (sacristão da Capela Imperial) MADALENA (ama) Soldados.
A cena passa-se no Rio de Janeiro, no ano de 1846.


#
#
#

#
#


ATO ÚNICO
 
CENA I Sala: portas laterais e no fundo. Junto da porta da direita um berço, e além uma marquesa. Mesa e cadeiras. É noite. Haverá sobre a mesa um moringue, um copo e uma lamparina de porcelana acesa.
 
(Madalena, sentada junto ao berço, o embala)
 
MADALENA (cantando) Menino bonito Não dorme na cama, Dorme no regaço Da Senhora Santana. A senhora lavava, São José estendia, Chorava o menino Do frio que tinha.
 
Já dorme, graças a Deus! Triste vida é esta minha! Criar isto... Se ao menos fosse meu! Coitadinho, esse já lá está no céu, e a pobreza e necessidade aqui me têm presa. Que remédio? Criar filho alheio, para ao depois tomar-lhe amor e viver separado, às vezes nem reconhecimento... Que vida! Quando todos dormem estou eu acordada, mudando-lhe fraldinhas e cueiros... Agradável e aromáticas ocupação! Ai, que acordou! Dorme, dorme... que pertinho estou... (Canta) Senhora Santana... (Etc.)... Dorme, dorme... (Embala) Ah, não quer dormir? Pois espera. (Levanta-o pelo bracinho e dá lhe palmadas) Agora dorme. (A criança chora) Que goelinha de sapo! Anda, chora para aí. (Canta) Senhora Santana... (Etc.) E então não dormiu? Santo remédio para crianças são as palmadas! A estas horas já muitos têm dormido o primeiro sono e vestem-se para a missa do galo; só eu... Ah, quem me dera poder ir também! É perder a ideia daí, que lhe acho muitos impossíveis. Cá o velho? o velho (ri-se) e a senhora irão, e ainda dormem; e eu nem durmo e nem vou. Mas ficarei, e ficando, muito bem sei o que hei de fazer... O meu Pacífico não se esquecerá de mim. O que querem? Divertem-se, divirto-me também! Cada um como pode. (Batem à porta) Batem! (Levanta-se) Quem será? (Chegando-se para a porta do fundo) Quem é?
 
 
CENA II Aparece na porta do fundo Manuel Igreja, vestido de sacristão da Capela Imperial.
 
MANUEL (à porta)  Sou eu. Dá licença? 
 
MADALENA Ah, é o Sr. Manuel Igreja. (Abre) Entre. 
 
MANUEL Boa noite, Sra. Madalena. 
 
MADALENA O senhor a estas horas por cá e assim vestido? 
 
MANUEL Prometi ao Sr. Abel vir acordá-lo para que não perdesse a missa. 
 
MADALENA Ele ainda dorme. O senhor anda muito obsequioso... 
 
MANUEL Entre amigos...
 
MADALENA Só amigo? Eu cá o entendo... Não me logra; faço que não vejo, mas vejo muito.
 
MANUEL Ah, então o que tem visto?
 
MADALENA Quer saber?
 
MANUEL Quero sim.
 
MADALENA Namorico, namoro e, quem sabe, casamento por fim? Que diz, acertei?
 
MANUEL Senhora Madalena, já que adivinhou o meu segredo, quer agora lucrar com esta descoberta?
 
MADALENA Lucrar? Sim!
 
MANUEL Entregue esta carta a D. Rita.
 
MADALENA Oh, devagar! Quem julga o senhor que eu sou?
 
MANUEL Quem julgo? Julgo ser a feliz ama daquela inocente criancinha. Oh, Sra. Madalena, o que não daria eu para amamentar aquela criança e viver sempre junto de sua encantadora mãe!
 
MADALENA Oh, e que não daria eu também para ser sacristão, escorripichar galhetas, ganhar vela de cera e viver no meio de luzes e incenso, como os anjos!
 
MANUEL Como os anjos! Oh, é verdade, eu vivia como um anjo, mas esse tempo já lá se vai... Acender velas e apagar velas, ajudar missa e beber vinho das galhetas; encomendar defuntos e enterrar defuntos. Com que prazer não entoava eu junto com os padres e encomendação para sua alma! (Cantando) Leva o defunto para terra, venha à pataca mais a vela... Os defuntos é que davam que comer, ai, ai! Eram minhas doces ocupações! Feliz tempo! Quantos defuntos não levei eu à cova com sorriso nos lábios! Mas agora!
 
MADALENA Oh, está com cara de enterro!
 
MANUEL Pode ser, que há dois anos que sofro. Bem pudera estar morto e enterrado, mas a esperança, doce esperança... Sra. Madalena, quero-lhe contar como entrou-me no peito este amor, que me traz engasgado. Há dois anos...
 
MADALENA Pois já há dois anos? É antigo!
 
MANUEL Há dois anos, sim. Era eu então sacristão da Candelária. Uma tarde eu, meu companheiro e o vigário esperávamos por uns noivos para celebrarmos o seu casamento. Chegaram, enfim, em uma carruagem do major, puxada a quatro. Vinham guapos, e a noiva... Ah, Sra. Madalena, que moça, que paixão, que demônio bonito! Assim que a vi o coração subiu-me até as goelas e fiquei como sufocado. Nunca tal tinha sentido! Subiram os noivos para o altar, principiou-se a cerimônia, e eu, com a tocha na mão, não podia despregar os olhos da dita. Perturbaram-se-me as ideias, assaltou-me o frenético desejo te dar uma tochada na cara do noivo, outra no vigário e fugir com a moça.
 
MADALENA Que amor tão repentino, que frenesi!
 
MANUEL Ah, Sra. Madalena, nunca, junto do altar, fiquei mais levado do diabo!
 
MADALENA Foi uma tentação...
 
MANUEL Assim o creio. Porém fiz um esforço e contive-me. Continuou a cerimônia, sem que o vigário soubesse do que tinha escapado... mas na ocasião em que o noivo disse: "Eu te recebo a vós por minha legítima mulher", oh! fiquei cego, alucinado! Inclinei a tocha que tinha na mão e derramei uma torrente de cera quente sobre a sua cabeça. Ele deu um grito honroso e levantou-se. O vigário passou-me uma reprimenda, e ela, ela que a princípio se espantara, sorriu-se, vendo o noivo com ambas as mãos na cabeça, arrancando punhados de cera e cabelo...
 
MADALENA  E ela sorriu-se?
 
MANUEL  Sorriu-se, sim. Com um sorriso de anjo!
 
MADALENA Ou de mulher que vê o marido esfolado... Já dava esperanças.
 
MANUEL Não sei se ela dava esperanças, mas posso assegurar-lhe que eu me dava aos diabos.
 
MADALENA E como acabou-se o casamento?
 
MANUEL Como acabam todos: receberam as benções, meteram-se na carruagem e foram-se. E eu fiquei com cara de tolo, de apaixonado...
 
MADALENA É o mesmo.
 
MANUEL E desde esse dia achei-me outro. Não dei mais uma só cabeçada, não fiz a menor molecagem na rua, como era meu costume e de alguns meus companheiros; fazia tudo às avessas: Atirava com tocheiros e velas no chão, quebrava galhetas e banquetas... Se ajudava a missa e dizia o vigário: Per omnia secula seculorum, eu respondia; Et cum spiritu tuo, e se dizia: Dominus vobiscum, eu respondia: Amém. Enfim, o vigário, não podendo mais aturar-me, pôs-me no olho da rua, e eu, para não cortar uma carreira tão brilhante, fui ser sacristão do Carmo.
 
MADALENA Ia em progresso...
 
MANUEL Mas pensa a senhora que eu esquecia-me da tal noiva? Qual! Cada vez ia a pior. Quando dormia, só com duas coisas sonhava: com ela e com o vinho branco das galhetas.
 
MADALENA Ah, ah, ah!
 
MANUEL E nesses tormentos de saudades passaram-se quatorze meses. Uma tarde assistia eu a um enterro e rezava com os padres, como de costume, sem saber o quê. Por simples curiosidade, levanto-me na ponta dos pés e olho para o defunto que estava sobre a essa... E vejo... Oh!
 
MADALENA O que viu?
 
MANUEL O noivo, o noivo, que estava morto, defunto! E fiz logo este simples raciocínio: As desgraças de uma criança se ele está morto, ela deve estar viúva...
 
MADALENA Muito bem raciocinado!
 
MANUEL Pulei de contente, e nesse movimento dei com o turíbulo nas canelas de um padre. Oh, Sra. Madalena, com que prazer entoei eu o "Requiescat im pace"! Acompanhei seu corpo à sepultura e recomendei ao coveiro que fechasse quanto antes a catacumba, e dei-lhe meia pataca.
 
MADALENA Foi generoso...
 
MANUEL Daria mais, se tivesse, mas um sacristão não é um capitalista.
 
MADALENA Que dúvida!
 
MANUEL Que feliz morte!
 
MADALENA E que fez o Sr. Manuel Igreja, sabendo que ela estava viúva?
 
MANUEL O que fiz? Essa é boa! Namorei a viúva a bandeiras despregadas. Abandonei festas, enterros e missas para passar-lhe pela porta vinte, trinta vezes no dia. No primeiro mês chorou ela a morte do marido; no segundo, chegou à janela; no terceiro, reparou que eu passava muitas vezes; no quarto, sorriu-se para mim; no quinto, recebeu uma cartinha, no sexto, esqueceu-se completamente do defunto; no sétimo, veio à escada conversar comigo, e no oitavo...
 
MADALENA Basta! Não quero saber mais.
 
MANUEL No oitavo, prometeu que se casaria comigo, mas no entretanto fui despedido do Carmo pelo desmazelo com que diziam que eu servia.
 
MADALENA Mas lucrou.
 
MANUEL Lucrei, sim. Arranjei-me na Capela Imperial – melhor ordenado e mais bonito vestido. Isto faz vista e seduz! Não fico sedutor assim?
 
MADALENA Muito!
 
MANUEL E ainda recusará entregar esta carta?
 
MADALENA Não. Mas antes que eu o consinta, o que me dará o senhor?
 
MANUEL Dar-lhe-ei todos os bicos e velas que puder arranjar.
 
MADALENA Guarde seus bicos.
 
ABEL (dentro)  Madalena, com quem estás tu a falar?
 
MADALENA O velho acordou!
 
MANUEL Tome, tome a carta, tome. (Mete-lhe a carta na mão) Por quem é!
 
MADALENA (recebendo-a)  Está bom, entregarei.
 
ABEL (dentro)  Com quem falas Madalena?
 
MANUEL Sou eu, senhor Abel, é o Manuel Igreja. (Para Madalena) Sra. Madalena, conte com minha generosidade.
 
MADALENA Estava arranjada... Generosidade de sacristão...
 
MANUEL Dei meia pataca para enterrar o marido; dar-lhe-ei, para me casar com a mulher... 
 
MADALENA O quê?
 
MANUEL Esta sotaina para fazer um vestido. 
 
MADALENA Guarde-a para cueiros de seus filhos!
 
 
CENA III Abel, vestido de casaca e chapéu, e os ditos.
 
ABEL Senhor Igreja...
 
MANUEL Um criado. Vinha, como lhe prometi, acordá-lo para a missa do galo, mas já vejo que não era preciso. 
 
(Madalena, vendo entrar Abel, dirige-se para o berço e o embala)
 
ABEL Muito agradecido.
 
MANUEL E a Sra. D. Rita não vai também à missa?
 
ABEL Vai sim; já se está a vestir.
 
MANUEL Quer que espere para irmos juntos?
 
ABEL Oh, não se incomode, iremos sós.
 
MANUEL Não é incômodo.
 
ABEL Nada, nada, não consinto. Pode-se ir embora... (Empurrando-o com política)
 
MANUEL Está bem. Então, até mais ver.
 
ABEL Um seu criado. 
 
(Manuel sai)
 
 
CENA IV Abel e Madalena junto do berço.
 
ABEL Ora, eu já ando meio desconfiado que este Sr. Manuel Igreja tem rabo de palha cá por casa. Há apenas dois meses que meteu aqui de garra e mata-me com obséquios. Nada, já desconfio da amizade... Ou é pela menina, e essa não é para seu beiços, ou é pela Madalena, e a essa ponho eu embargos de terceiro. (Para Madalena, com ternura) Madalena?
 
MADALENA (à parte, embalando o berço)  Maldito velho! (Cantando) Menino bonito Não dorme na cama, Dorme no regaço Da Senhora Santana.
 
ABEL (chegando-se para ela enquanto canta)  Embalas esse menino com cantigas, assim como me embalas com esperanças. Não me ouves?
 
MADALENA Senhor?
 
ABEL Ah, fazes que me não ouves? Pois olha, não te iria mal se desses atenção...
 
MADALENA E o que lucraria eu?
 
ABEL Tudo. Minha filha alugou-te para criares o seu filho, porque sempre embirrou com amas negras, mas aqui te conservarás enquanto eu quiser.
 
MADALENA Irei alugar-me em outra casa.
 
ABEL Não acharás.
 
MADALENA Aposto que sim.
 
ABEL E se achares, perdes a tua fortuna.
 
MADALENA Por quê?
 
ABEL Porque meteu-se-me em cabeça fazer-te feliz logo que acabares a criação de meu netinho.
 
MADALENA Sapatos de defuntos...
 
ABEL (com ternura)  Madalena!
 
MADALENA (fugindo para outro lado do berço)  Senhor, deixe-me!
 
ABEL (estendendo-se por cima do berço para segurá-la)  Madaleninha!
 
MADALENA Olhe a senhora, que aí vem.
 
ABEL Deixá-la vir! (Estende os braços)
 
 
CENA V Entra Rita vestida de preto.
 
RITA (entrando)  Estou pronta.
 
MADALENA (para Abel)  Não lhe disse?
 
ABEL Oh, diabo! (Para disfarçar, principia a fazer festa à criança que está no berço) Psiu, psiu, negrinho! Olha vovô, cachorrinho! Psiu, psiu, galantinho! Bi, bi, bi! Ni, ni, ni! (Madalena ri-se, à parte)
 
RITA (encaminhando-se para o berço)  Lulu está acordado?
 
ABEL (no mesmo)  Olha vovô, mulequinho! Olha, bonito! Bi, bi, bi!
 
RITA (que está junto do berço)  Lulu... Está dormindo.
 
ABEL Ah, és tu? Julguei que estavas lá dentro.
 
RITA E meu pai a fazer-lhe festinhas.
 
ABEL Julguei que estava acordado.
 
RITA Qual! Não vê como dorme? Parece um anjo! (Dá um beijo no filho. Abel, enquanto ela tem a cabeça baixa, faz acionados para Madalena, como quem está zangado. Madalena ri-se) Madalena, tem muito cuidado nele, ouviste?
 
MADALENA Sim senhora.
 
RITA Vamos, meu pai.
 
ABEL Vou buscar o chapéu. (Sai)
 
RITA (para Madalena)  Nós voltamos já. Se o menino acordar, muda-lhe a camisinha e cueiros, que estão muito molhados. Não te esqueças.
 
MADALENA Não senhora. O Sr. Manuel entregou-me...
 
ABEL (entrando)  Vamos, filha. E tu, fecha a porta.
 
RITA (dando um beijo no filho)  Vamos. (Para Madalena) Julgo que não é preciso recomendar-te cuidado.
 
MADALENA Pode ir descansada.
 
RITA Pois bem. (Sai com Abel)
 
 
CENA VI Madalena, só, e depois Pacífico.
 
MADALENA E eu não tive tempo de entregar-lhe a carta! Vão-se divertir... Ah, que se eu também pudesse aqui não ficaria. E o velho a disfarçar com o pequeno! Pobres crianças! Também, ainda não vi inocente que mais velhacadas encubram... Uma criança é a melhor capa de namorados que se conhece. Ao menos levam para alguma coisa! Que aborrecimento ficar só em casa, quando os mais se divertem... E o meu tratante que hoje todo o dia se não lembrou de mim? Ah, se ele aqui estivesse, deixava-o tomando conta desta lesmazinha e ia ver a missa. (Dentro assobiam) Ai, que é ele! Que fortuna! Deus o traz! (Chegando janela) Oh, que felicidade! O velho e a senhora não voltarão nesta duas horas... Tenho tempo.
 
 
CENA VII Entra Pacífico de farda.
 
PACÍFICO (da porta)  Posso entrar?
 
MADALENA Pode, estou só.
 
PACÍFICO (entrando)  Um abraço.
 
MADALENA Não fala, bulha, que pode acordá-lo
 
PACÍFICO Abraços não fazem bulha. Dá cá.
 
MADALENA Espera, temos contas que ajustar.
 
PACÍFICO As contas ajustam-se no fim...
 
MADALENA Peio.
 
PACÍFICO O caso não vai de zangar, nem creio que me mandasses dizer que o velho ia à missa do galo para brigares comigo.
 
MADALENA Não, era para te dizer que já não estou bem nesta casa, que quero sair dela.
 
PACÍFICO E por que?
 
MADALENA O Sr. Abel persegue-me. Meteu-se-lhe nos cascos que eu...
 
PACÍFICO (rindo-se)  Ah, ah, ah,! Ele, velho baboso...
 
MADALENA Velho baboso... Fia-te nele!
 
PACÍFICO Não, mas fio-me em ti.
 
MADALENA E é o que te vale. Mas deixemos de graças; eu quero sair daqui.
 
PACÍFICO Deixa-te disso, Madalena; é preciso ganhar a vida! Que diabo, vinte milréis por mês não é marimba! Bem sabes o que nos tem custado a viver. Há um ano que viemos de São Gonçalo...
 
MADALENA Antes de lá nunca tivesse saído. Vivia tão bem com minha mãe! Tu é que me perdeste.
 
PACÍFICO Queixa-te da minha má fortuna. Se não fosse o diabo do recrutamento, que me deu com ossos na cidade, debaixo desta maldita farda, hoje podia estar casado contigo.
 
MADALENA E bem sabes que esse era o teu dever...
 
PACÍFICO Mas assim não quis o serviço do Estado. Quem recruta não quer saber se o homem está para casar-se. Vai agarrado a torto e a direito. É uma tirania! Olha, eu cá sou de parecer que não se devia recrutar não só os homens casados, como os que podem ser casados.
 
MADALENA Assim não se recrutava ninguém, e não haveria soldados
 
PACÍFICO O Estado precisa mais de filhos do que de soldados, e demais, a lavoura é quem perde com isso.
 
MADALENA A lavoura! Tu trabalhavas muito pela lavoura...
 
PACÍFICO Se não trabalhava, deixava a outros trabalhar; e de mais era porque meu pai não me deixou nem um palmo de terra. Que culpa tenho eu nisso?
 
MADALENA Tem muita. Vivias como um vadio; todo o santo dia com a espingardinha no ombro a caçar. Eras mesmo um canela verde, como nos chamam cá na cidade. Mais dia menos dia não podia escapar da praça. Eu bem te avisei; não me quiseste ouvir...
 
PACÍFICO Mas como? Era uma canela verde, vadio?
 
MADALENA Até que filaram-te. Vieste cá para a cidade, juraste bandeira e eu fugi de São Gonçalo para te acompanhar.
 
PACÍFICO Fizeste muito bem.
 
MADALENA Fi-la com a minha cara, para viver aturando uma mãe impertinente, um velho baboso e aquela pestinha que ali está deitada. Boa vida! Os mais a divertirem-se, e eu aqui presa.
 
PACÍFICO Diverte-te também.
 
MADALENA Sim hei de deixar aquela lesma só... Ah, se eu pudesse ir à missa do galo!
 
PACÍFICO Pois vamos; ele não morrerá por um instante que fique só.
 
MADALENA Não é possível. Ah, se tu quisesses ficar um instantezinho tomando sentido nele...
 
PACÍFICO Eu?
 
MADALENA Sim, enquanto eu volto.
 
PACÍFICO Eu, tomando sentindo em uma criança?
 
MADALENA E o que tem isso?
 
PACÍFICO Feito ama-seca, de espada à cinta!
 
MADALENA Pacífico, meu amor!
 
PACÍFICO Nada, é o que me faltava! Um soldado de cavalaria de linha, um defensor da pátria, feito ama de nenéns! Ah, ah, ah! E se ele chorar, quem lhe há de dar de mamar?
 
MADALENA Dá-lhe tu.
 
PACÍFICO Hein?
 
MADALENA Escuta, não me interrompas. Dá-lhe tu esta água com açúcar que está neste copo. Assim... (Tomando um copo que está sobre a mesa) Espreme-lhe este paninho na boca; estás vendo?
 
PACÍFICO Mas então tu pensas que eu hei de ficar...
 
MADALENA Penso sim.
 
PACÍFICO E quem te disse?
 
MADALENA O amor que me tens.
 
PACÍFICO Ah, queres-me pegar pelo fraco.
 
MADALENA Pacífico, meu rico Pacífico, tu não farás um sacrificiozinho por tua Madalena, que tanto te ama e que por ti tudo deixou? O que te custa isso? É um instante; só o tempo de eu chegar à igreja, espiar e voltar, sim? Meu soldado de amor, queres-me ver chorar, ingrato?
 
PACÍFICO Prometes-me que só espiarás?
 
MADALENA Sim, só espio e volto.
 
PACÍFICO Vê lá! Espiar e voltar. Não te demores; quando não, abandono a sentinela.
 
MADALENA Voltarei num pulo.
 
PACÍFICO Fazes de mim o que queres.
 
MADALENA (Tomando um xale que está pendurado na cabeceira da marquesa e pondo-o no ombro)  Embala-o bem, se ele chorar, e canta alguma coisa; não custa nada. E adeus, que vou depressa para voltar cedo. Não te esqueças: água com açúcar.
 
PACÍFICO Espera, olha... E... Foi-se! 
 
(Madalena sai)
 
 
CENA VIII Pacífico, só.
 
PACÍFICO E então? Deixou-me feito ama. E Que tal? Vejamos a minha cria. (Chegando-se para o berço) Dorme que é um regalo! Se dormisse assim sempre, muito bem íamos. Ora, ele é galantinho! Sempre gostei mais de ver as crianças que dormem; ficam tão sossegadinhas! Ai, que ele se mexe. Mau, mau! (Principia a embalar o berço devagar) Dorme, dorme! Xi, xi, xi! O demonhinho acorda; bole com os braços. (Embalando o berço) Xi, xi, xi! Oh, diabo, abriu os olhos! Embalemos mais forte a ver se dorme. (Embala o berço com força) Xi, xi, xi! (A criança principia a chorar) Ah, chora! Estou arranjado; agora é que são elas! (Embala com muita força. A criança continua a chorar) Nada! Como guincha! Ah, Madalena! Diabo, dorme! Diabinho! E então? Cada vez a melhor. (Continua a embalar desesperado) Não há remédio senão cantar; a ver se assim... mas que diabo contarei eu? Seja o que for. (Cantando e embalando)  Senhorinha, vá-se embora, Meu bem, Vá pra casa direitinho, Não faça como fez ontem, Que me deixou no caminho. Parece-me que não gosta de música... Olhem que goelas. Cala a boca! Qual! (Gritando muito) Bico calado! Cada vez mais abre os foles! Ai, que não me lembrava da água com açúcar. (Corre para junto da mesa e toma o copo, mas ao dirigir-se para o berço, com a presa que vai, tropeça e deixa cair o copo no chão) Bravo! Bonito! Fi-la como os meus focinhos! Foi-se a água com o açúcar, e o diabinho a gritar! Espera, que ainda posso aproveitar alguma coisa. (Assim dizendo, molha o paninho na água que corre pelo chão) Ainda serve. (Chega-se para o berço) Toma! (Dá à criança) Ah, ainda é pouco... (Torna a molhar o pano no chão) Toma mais. Não se farta; chupa e chora. Arre, que pestinha! Vejam lá que cara! (Arremedando a criança no chorar) Belo ofício! Vejamos se as palmadas fazem mais efeito; é santo remédio. (Dá palmadas na criança que redobra o choro) Foi Pior! Nem açúcar, nem palmadas... Que o leve o diabo! Que lhe direi? (Como que procura alguma coisa pela sala) Muito custa criar! Eu, só na última necessidade... E não vejo nada! Naquele armário, talvez. (Vai abrir o armário) Ah, garrafas! (Tira uma garrafa e cheira) Vinho! Belo! (Bota a garrafa na boca e bebe) Talvez também goste. (Vai para o berço) Assim, abre bem a boca; tome lá. (Dá vinho à criança, na garrafa) Oh, diabo, como ficou vermelho! É pequeno... Mas se morre? Melhor; ainda não ouvi defunto chorar. (O pequeno chora) Qual morrer! Dei-lhe mais forma para chorar. Leve-me o demo, se sei o que hei de fazer. (Tira uma espora do pé e dá à criança) Olha, bonito! Teteia, teteia! O diabo espetou-se com a roseta! Já não posso, vou-me embora. Arrebento! Para aí! Mas Madalena... ai, que isto agora faz-me lembrar de uma coisa: o pequeno está estranhando a farda, as calças e todo esse aparelho. Se eu achasse um vestido... (Vai para junto da cama de Madalena) Bravo, achei! (Tomando um vestido, um xale e touca que está nos pés da cama, veste-se com eles) Assim pode ser que não estranhe. Tem-me feito suar! Que bonita ama! Bem me podia alugar; havia de ganhar mais do que me paga a nação. Agora o xale... Muito bem! Venha o toucado... (Põe a toca, e assim vestido, chega-se para o berço e fala com a criança, afinando a voz) Nhonhôzinho, não chore; é Madalena. Ande cá. (Toma a criança nos braços) Não chore, durma, durma. Quer passear? Vamos passear. (Principia a passear, cantando e tendo a criança nos braços, muito sem jeito) Menino diabo, Tu, tu, ru, tu, tu; Não chore, que eu chamo, Que chamo o tutu. Menino bonito, Ao pé do murundu, Se não dorme já, Eu chamo o tutu. Não dizia que a farda o espantava? Estava acostumado a viver com saias! Parece-me que vai adormecendo. E eu pensava que não tinha jeito pra isto! O caso é que tudo está no principiar, depois vai mesmo por si. Já fechou os olhos. Ainda bem, que já estava disposto a tapar-lhe a boca com a rolha da garrafa. Ah, Madalena, não me metes noutra! Agora vou deitá-lo, mas cuidado... (Vai devagar para o berço e aí deita a criança com cuidado) Ora, anda lá que não foi mal ninada... Possas tu dormir aí até o dia do Juízo! Oh, mas a Madalena não me mete noutra! Safa, estou estafado! Enquanto ela não chega, deito-me um pouco. (Vai para a cama e deita-se; vai a voltar o travesseiro e dá com a carta que Madalena aí escondera) Olé, uma carta! De quem será? (Levantando-se) Querem ver que a bicha me logra... Ah! (Encaminha-se para a lamparina e principia a ler a carta, soletrando) "Minha querida". (Falando) Ah, sua querida! Boa vai ela... (Lendo) "Hoje preciso muito falar contigo. Quando voltares da missa do galo, em vez de te ires deitar, deixa o velho dormir, e espera-me. Isto te pede teu querido Manuel Igreja." (Falando) Ah, tu amas ao Manuel Igreja? Igrejinha te hei de armar eu! Ah, traidora! Ora, fiem-se em mulheres! Esta nem por ser da roça, quanto mais se fosse da cidade... Tomara eu que o tal Manuel Igreja por cá apareça, que lhe quero rezar a ladainha e repicar-lhe o sino no espinhaço. Ah, maroto! Parece-me que ouço passos. Talvez seja ele... Ou ele ou ela, quero ensiná-los! (Pega na lamparina e a põe debaixo da mesa)
MANUEL (dentro)  Madalena?
PACÍFICO (à parte)  É ele! Entra, entra que não sabes o que te espera... (Vai a senta-se junto ao berço)
 
 
CENA IX Manuel Igreja e Pacífico.
 
MANUEL (aparecendo na porta do fundo)  Madalena, eles já saíram? Posso entrar?
 
PACÍFICO (disfarçando a voz)  Pode.
 
MANUEL (entrando e encaminhando-se para Madalena)  Muito obrigado te estou eu. Verás que não serei ingrato; o meu amor servirá de fiança do que te prometo. O velho não pode tardar, não é assim? Assim que ele entrar, eu esconder-me-ei debaixo da tua cama, e depois...
 
PACÍFICO (que tem ouvido Manuel com a cabeça baixa, levanta-se repentinamente)  Ah!
 
MANUEL (recuando)  Que tens, Madalena? (Pacífico arregaça o vestido) Levanta o vestido!... (Pacífico puxa pela espada) Uma espada! (Pacífico caminhando para Manuel; Manuel recuando) Madalena... (Pacifico segurando-lhe pelo braço) Não é Madalena?
 
PACÍFICO Não, é o diabo que te parta!
 
MANUEL (aterrorizado)  Ah!
 
PACÍFICO Tratante, sacristão de uma figa! É, é sacristão, o patife... Ah, mau menino, pensavas que assim me havias surripiar...
 
MANUEL Mas, senhor, eu... mas quem é o senhor?
 
PACÍFICO Cinquenta pranchadas para principiar. (Dá-lhe uma pranchada)
 
MANUEL (gritando)  Ai, ai!
 
PACÍFICO Psiu, grita baixo, não me acorde a criança! Grita devagar... (Dá-lhe)
 
MANUEL (gritando)  Ai, ai!
 
PACÍFICO O pior é berrar. Não me acorde a cria!
 
MANUEL Senhor, se é por ordem do Sr. Abel...
 
PACÍFICO Qual Abel, nem Caim! Isto cá é por minha conta e de Madalena. 
 
MANUEL Da Madalena!
 
PACÍFICO Da Madalena Sim, sô sacristã das dúzias, a quem tu queres seduzir. Mas primeiro há de levar-me o diabo, ou eu não jurei bandeira!
 
MANUEL Mas, senhor, aqui há engano!
 
PACÍFICO Enganar-me queres tu, sô escorrupicha-galhetas!
 
MANUEL Eu não quero seduzir a senhora Madalena.
 
PACÍFICO Não? E esta carta?
 
MANUEL (examinando a carta)  Esta carta não era para ela.
 
PACÍFICO Então para quem era?
 
MANUEL Era para...
 
PACÍFICO Fale-me depressa, sô papa-bicos.
 
MANUEL Era... (À parte) Mas quem será este sujeito? Talvez amante de Madalena.
 
PACÍFICO Ah, estudas o que hás de dizer? Pois vai-te lembrando... (Dá-lhe)
 
MANUEL (muito depressa)  Ah, era para D. Rita, a filha do velho.
 
PACÍFICO (largando-o)  Ah, era para D. Rita?
 
MANUEL Tinha pedido à senhora Madalena que lhe entregasse.
 
PACÍFICO Ah, a Madalena tem mais essa prenda? E a senhora dona Rita lhe corresponde?
 
MANUEL (com fatuidade)  Sim senhor.
 
PACÍFICO Ora, bem se diz que as mulheres escolhem o pior.
 
MANUEL Nem todas. A Sra. Madalena, por exemplo, pelo que me parece, tem bom gosto. Pacífico?
 
PACIFICO  Achas?
 
MANUEL Oh, pois não!
 
PACÍFICO Dá cá um abraço. (Abraça-o) Muito bem; vieste pela Rita, e eu pela Madalena. Muito bem; temo-nos entendido, isto é, se o que disseste é verdade. Quando não, dou-me por desentendido e leva tudo a degola. Elas não tardam...
 
 
CENA X
 
ABEL (dentro)  Ó Madalena, alumia esta escada.
 
PACÍFICO Aí vem o velho! Com os diabos!
 
MANUEL Se aqui nos encontra, estamos perdidos!
 
PACÍFICO Toca a esconder!
 
MANUEL Eu vou para debaixo da cama.
 
PACÍFICO E eu para cima. 
 
(Fazem o que dizem. Manuel esconde-se debaixo da cama, e Pacífico, deitandose, cobre-se com os lençóis, tapando a cara, e finge que dorme)
 
ABEL (dentro)  Madalena? (Aparecendo à porta, seguido de Rita) Querem ver que saiu?
 
RITA (entrando)  Está dormindo.
 
ABEL E deixou a porta aberta. Forte estouvada!
 
RITA Madalena?
 
ABEL Não a acordes, que passa muitas noites em claro com teu filho.
 
RITA Para isso ganha meu dinheiro. Deixe mandar se o menino está molhado (Chegando-se para cama) Madalena? (Sacudindo-a) Madalena? Que sono!
 
MANUEL (debaixo da cama, puxa-lhe pelo vestido) 
 
Ritinha?
 
RITA (espantando-se)  Ah!
 
MANUEL Sou eu... (Esconde-se)
 
ABEL O que é?
 
RITA Nada, não senhor. Que imprudente!
 
ABEL Por que gritaste?
 
RITA Foi uma pontada que me deu aqui do lado.
 
ABEL É da umidade que apanhaste. As ruas estão incapazes, cheias de lama. Não só não nos deixaram ir à missa, como te fizeram doente. Vai-te despir e deitar, e afumenta-te...
 
RITA Julgo que será melhor... Como o pequeno está quieto. Deixemos a Madalena a dormir. Boa noite, meu pai. (Toma-lhe a bênção)
 
ABEL Até amanhã.
 
RITA E meu pai não se vai deitar?
 
ABEL Vou sim.
 
RITA Boa noite.
 
ABEL Boa noite, filha. (Vai fechar a porta do fundo)
 
RITA (à parte)  Eu voltarei... (Entra no seu quarto, à direita)
 
 
CENA XI Abel, Manuel e Pacífico, escondidos.
 
ABEL (espiando)  Estou só com ela. A Rita vai-se deitar, porém o mais prudente é voltar quando ela estiver dormindo. Não quisera que minha filha, por coisa nenhuma deste mundo, suspeitasse de meu amor por esta feiticeira ama. (Chegando-se para a cama de Madalena) Como dorme! Que tranquilidade! Como respira docemente! Parece que seu hálito embalsama este aposento! Ah, que se não fosse minha filha, casava-me contigo... (Chamando-a devagar) Madalena? Madaleninha? (Sacudindo) Meu anjinho... (Pacífico faz que espreguiça-se e dá com a mão na cara de Abel) Ai, ladrãozinho, que me bateste! Mas pancadas de amor não matam, não...
 
RITA (dentro)  Joana, ó Joana?
 
ABEL A Rita está chamando pela mucamba, para se despir. O mais prudente é eu voltar logo; porém primeiro hei de dar-lhe um beijinho nesta fronte tão cândida e tão pura. (Chega-se para Pacífico e dá-lhe um beijo na testa) Como é doce! Até já... (Sai pela esquerda, atravessa a cena, esfregando as mãos de contente)
 
 
CENA XII Pacifico e Manuel.
 
PACÍFICO O diabo do velho babou-me a testa!
 
MANUEL (espiando, debaixo da cama)  E que lhe parece o velho?
 
PACÍFICO Fiem-se em velhos! Se eu fosse a Madalena, estava arrumado.
 
MANUEL (rindo-se)  Ah, ah, ah!
 
PACÍFICO Você ri-se? O caso estava ficando sério. E ainda não sei o que será. Ele prometeu voltar. Que diabo de velhinho! Mas vê lá, se a tua vier, nem uma palavra sobre mim; quando não, mato-te.
 
MANUEL Cale-se, que aí vem gente! (Escondendo-se)
 
PACÍFICO (deitando-se e cobrindo-se)  Se é o velho outra vez e bole comigo, enfio-lhe a espada pela barriga antes que ele se adiante muito.
 
 
CENA XIII Entra Rita com cautela.
 
RITA (entrando)  É preciso falar-lhe! Assim se arrisca por mim! Como me ama! (Chegandose para junto da cama) Madalena dorme. (Chamando com cautela) Sr. Manuel?
 
MANUEL (aparecendo)  Ritinha!
 
RITA Saia para fora, mas devagar; veja, não acorde Madalena.
 
MANUEL (saindo de baixo da cama)  Ela não acordará.
 
RITA Que imprudência, assim esconder-se! Se meu pai o tivesse visto... Vá-se embora.
 
MANUEL A tanto não me arrisquei para ir assim.
 
PACÍFICO (diz, como à parte)  O que quererá o sacrista fazer?
 
RITA E que pretende você?
 
MANUEL  Pouca coisa: saber se te casas ou não comigo.
 
RITA Já te disse muitas vezes o que punha obstáculo à nossa união. Casei-me contra a vontade de meu pai e fui desgraçada. Dois anos estive casada e dois anos vivi martirizada, porque meu marido era um demônio de gênio. Deus o levou para meu sossego.
 
MANUEL E foi muito bem levado.
 
RITA Enquanto estive casada, meu pai abandonou-me, para castigar-me assim de minha desobediência, mas viúva, chamou-me ele para junto de si com meu filho. Esqueceu-se de minha ingratidão e acolheu-me com braços paternais, e eu, para reconhecer tanto amor, jurei não me casar de novo sem o seu consentimento.
 
MANUEL Isso não são coisas que se jurem, porque nesses negócios, quem jura, perjura.
 
RITA Nem todos. Eu cumprirei meu juramento. Hei de me casar, mas com a sua aprovação.
 
MANUEL Assim, já vejo que não arranjo nada. Teu pai não consentirá nunca que te cases comigo; não por mim, mas enfim, pelo meu ofício de sacristão... 
 
RITA Pois deixa de ser sacristão. 
 
MANUEL E o que hei de eu ser? 
 
RITA Empregado público.
 
MANUEL Lembras muito bem, e não vejo a razão porque hei de alcançar um bom emprego. Olha, eu conheço um sapateiro, dois alfaiates, dois marceneiros, um tanoeiro, um sirgueiro e um ourives que deixaram, todos, os ofícios, e todos estão muito bem arranjados! E eu lhes dou razão, porque enfim é melhor trabalhar das dez horas até as duas, e londrear toda a tarde, e namorar, do que suar todo o dia no ofício.
 
RITA E demais, fizeram muito bem. Quem tem padrinho...
 
MANUEL ...Não morre mouro. Assim é, e além disso, os ofícios cá na nossa terra já nada dão; a concorrência de estrangeiros é grande. Só os empregos públicos é que são para filhos de país, e isso mesmo... Enfim, está dito, vou pedir um emprego, e com empenho se faz tudo entre nós.
 
RITA E então não duvido que meu pai dê o seu consentimento. No entanto, se daqui até lá alguma circunstância nos favorecer...
 
MANUEL Nós aproveitaremos, e... 
 
(A criança chora) 
 
RITA Lulu está chorando. Espere, enquanto eu chamo Madalena para lhe dar de mamar. 
 
MANUEL Vai chamá-la.
 
RITA Sim. Não ouve o menino que chora. Meu pai pode acordar. (Caminhando para a cama) Madalena, Madalena? Vem dar de mamar ao menino. Como dorme!
 
MANUEL Aí vem o velho!
 
RITA Meu pai?
 
MANUEL Sim.
 
RITA Apaga a lamparina! 
 
(Manuel apaga a lamparina. Escuro)
 
PACÍFICO (à parte)  Já escapei de duas...
 
RITA (à parte para Manuel)  Saia, se puder... E silêncio! 
 
(Rita encaminha-se para a direita e, parando, escuta. Manuel dirige-se para a porta do fundo, que acha fechada. O menino continua a chorar)
 
 
CENA XIV Abel e os ditos.
 
ABEL (aparecendo à porta da esquerda)  Madalena? Apagou-se a lamparina e o menino chora. A Rita pode acordar.
 
(Passa por entre Rita, que está à direita, e Manuel, que está à esquerda, e vai ao berço e toma a criança nos braços)
 
RITA (à parte)  É meu pai! (Sai pelo seu quarto e fecha a porta)
 
MANUEL (à parte, ao mesmo tempo)  É o velho!
 
ABEL (com o menino nos braços)  Não chores. (Indo para Madalena) Madalena, acorda, dá de mamar ao pequeno. Levanta-te, ladrãozinho, vem dar mamar.
 
PACÍFICO (à parte)  Esta agora é melhor...
 
ABEL Levanta-te, toma o pequeno.
 
PACÍFICO (sentando-se na cama e espreguiçando-se)  Hum!
 
ABEL Pega, acalenta-o, enquanto eu vou buscar luz.
 
PACÍFICO (à parte)  Luz agora seria bonito! Melhor é dar-lhe de mamar no escuro... (Toma o pequeno e levanta-se)
 
ABEL (seguindo-o no escuro)  Espera, olha que te podes esbarrar com o pequeno.
 
PACÍFICO (à parte)  Não é graça; estou com medo do velho no escuro.
 
ABEL (procurando Pacífico no escuro)  Madalena, vidinha, escuta...
 
MANUEL (à parte)  Ah, é esse o caso!
 
RITA (à parte)  Meu pai namora a ama do meu filho, ah!
 
PACÍFICO (à parte)  Eu largo o pequeno no chão, e safo-me! (Vai abaixar-se para deitar a criança)
 
ABEL (nessa ocasião, encontra-se com ele)  Ah, por que foges de mim, feiticeira? Em casa todos dormem; nós estamos no escuro e ninguém nos vê.
 
PACÍFICO (à parte)  Sim, mas alguém nos ouve.
 
ABEL Olha, eu posso fazer muito por ti... posso fazer-te feliz, muito feliz; mas dá-me um abraço! (Quer dar-lhe um abraço)
 
PACÍFICO (empurra-o)  Devagar! (Encaminha-se para o lado aonde está Manuel)
 
ABEL Ingrata!
 
RITA (à parte)  Quem tal diria!
 
ABEL (procurando)  Hei de encontrar-te!
 
PACÍFICO (que se encontra com Manuel)  Quem é?
 
MANUEL Sou eu.
 
PACÍFICO É o sacrista? Toma o menino. (Dá-lhe o pequeno)
 
MANUEL Mas...
 
PACÍFICO Cálida!
 
ABEL (procurando)  Madaleninha, minha vida! 
 
(Pacífico dirige-se para o fundo)
 
MANUEL (à parte, com o pequeno nos braços)  No que dará isto?
 
ABEL (encontrando-se com Manuel, o segura pela sotaina)  Ah, pilhei-te! Cruel, por que me foges?
 
MANUEL (à parte e forcejando para livrar-se de Abel)  E então? Agora é comigo...
 
ABEL Não vês que estou mirrado por ti? 
 
MANUEL (à parte)  Eu dou-lhe com o neto pelas ventas!
 
ABEL Só um beijo, já que não queres ouvir, e vou-me embora. (Quer dar-lhe um beijo. Manuel suspende o menino nos braços e lho apresenta. Abel dá um beijo no pequeno, supondo ser em Madalena) Como é gostoso! Outro! Outro! (Vai dar outro beijo no pequeno, e querendo ao mesmo tempo abraçar ao que ele supunha Madalena, fica com o pequeno nas mãos)
 
MANUEL (à parte e caminhando para à esquerda)  Beija à tua vontade.   ABEL Que é isto? Ah, marota, assim me enganas! E dei um beijo... O que me vale é ser de criança... Deixaste-me com o pequeno, mas espera, que mesmo no escuro te acharei. Ai, ai, que esta pestinha molhou-me todo!
 
Faltava-me esta! (Manuel, Rita, Pacífico, ouvindo o velho assim falar, riem-se) Ah, você ri-se? Veremos quem se há de rir por fim. Mas é bem feito que tal me aconteça, porque bem diz o ditado: Quem dorme com criança, amanhece... Não preciso dizer como, porque cá o sinto. Madalena, toma tua cria, senão largo-o no chão, antes que faça pior...
 
RITA (à parte)  Meu filho no chão! (Dirige-se a encontrar-se com Abel)
 
ABEL Então? (Encontrando-se com Rita) Ah, brejeirinha! (Rita toma o filho dos braços de Abel e aparta-se com ele) Ah, assim mangas comigo? Vou buscar uma vela. (Aqui batem à porta com cautela) Batem! (Escuta, e tornam a bater) Não há dúvida!
 
RITA (à parte)  Quem será?
 
MANUEL (à parte)  Mau...
 
PACÍFICO (à parte)  É a Madalena! (Batem)
 
ABEL Quem é?
 
MADALENA (dentro, disfarçando a voz)  Sou eu.
 
ABEL Respondem! Quem será? Vou buscar a luz. (Sai pelo seu quarto)
 
 
CENA XV Rita, Manuel e Pacífico no escuro.
 
PACÍFICO Onde diabo me hei de eu esconder?
 
MANUEL Que farei?
 
RITA Madalena? Madalena?
 
PACÍFICO (à parte)  Temos a outro com Madalenas...
 
MANUEL Ó Ritinha? Ritinha?
 
RITA (encontrando-se com Manuel)  Silêncio, que meu pai aí vem. Toma o pequeno, entregue-o a Madalena. Que o deite no berço, e você esconda-se neste quarto à direita e adeus. (Entrega-lhe o pequeno e sai pelo seu quarto)
 
MANUEL Ó Ritinha, espera! Foi-se, e deixou-me com a lesma nos braços! Madalena? Qual Madalena! Camarada? Ó camarada?
 
PACÍFICO Que é lá?
 
MANUEL Onde estás? (Encontrando-se com ele) Ah, toma!
 
PACÍFICO O quê? 
 
(Manuel deixa-lhe o pequeno nos braços e afasta-se para a esquerda)
 
MANUEL Que lá se avenha. 
 
PACÍFICO Ah, tratante, pensas que eu sou ama de leite?
 
MANUEL Arranja-te como puderes, que aí vem o velho. (Entra no primeiro quarto à direita)
 
PACÍFICO (com o pequeno nos braços)  Eu largo a carga (deita o pequeno no chão) e safo-me. Mas para onde? Aquele quarto... (Dirige-se para o quarto aonde entrou Manuel)
 
 
CENA XVI Entra Abel com uma vela.
 
ABEL (vendo ainda Pacífico correr para o quarto)  Madalena? Meu netinho no chão! A desavergonhada... (Tomando nos braços o pequeno, que está no chão) Só para fugir-me... (Chegando-se para a porta por onde saiu Pacífico, a qual está fechada por dentro) Deixa estar, Madalena, que me hás de pagar! Amanhã boto-te pela porta afora. (Batem) Já vou! Verás se assim se despreza o meu amor... E se assim se trata do meu neto. (Vai para a porta do fundo) Quem bate?
 
MADALENA (dentro)  Sou eu.
 
ABEL Eu quem?
 
MADALENA (dentro)  Abra!
 
ABEL  E esta? A voz parece-me de mulher... Serão ladrões? Qual, não se atreveriam a andar pela rua às horas da missa do galo. Vejamos quem é. (Abre a porta)
 
 
CENA XVII Madalena e Abel.
 
MADALENA (entrando e vendo Abel, fica surpreendida)  Ah! (Abel, vendo entrar Madalena, de susto deixa cair o pequeno no chão e fica sem poder falar, ora olhando para Madalena, ora para a porta do quarto onde entrou Pacífico. Madalena, apanhando o pequeno no chão, que chora) Meu filhinho! (Embala-o nos braços) Estou perdida! Senhor, perdoai-me, se deixei o menino por alguns instantes. Não pude resistir; quis também ver a missa do galo. Juro que será a última vez este ano... Mas por que este espanto? Que quer isto dizer? Aponta para o quarto... Senhor!
 
ABEL (gaguejando de medo)  Madalena, tu não entraste por ali? (Apontando para o quarto)
 
MADALENA Não senhor, entrei por ali. (Apontando para o fundo)
 
ABEL Então foi minha filha. Que vergonha, que vergonha para um pai! Que vexame! Que dirá de mim a Ritinha? Quero-lhe pedir perdão. Dá cá este menino, que será o meu penhor. (Tira o pequeno dos braços de Madalena arrebatadamente) 
 
MADALENA Não mate o menino!
 
 
ABEL (Dirige com o pequeno nos braços para junto da porta por onde saiu Pacífico, e aí chegando, ajoelha-se com a cara voltada para a porta) 
 
Filha, ás vezes um pai deve humilhar-se diante de seus filhos, quando pratica uma ação que o rebaixa aos olhos daqueles a quem deve bons exemplos. Eis-me humilhado diante de ti. A natureza é fraca... Tomei-te por Madalena e disse-te coisas que me fazem agora corar de vergonha. Abre esta porta e vem abraçar teu pai em sinal de esquecimento. Aqui está teu filho, meu netinho, que me deveria fazer lembrar que estou velho para não praticar ações indecorosas. Perdoa-me, por amor dele! Abre, abre esta porta!
 
(Enquanto Abel está de joelhos junto da porta e fala, Rita entra pela porta de seu quarto, e depois de falar com Madalena em segredo, dirige-se para junto do pai)
 
RITA Meu pai! (Abel volta a cabeça e, vendo Rita atrás de si, dá um grito, levanta-se e deixa cair o pequeno no chão. Rita, apanhando o pequeno) Meu filho!
 
ABEL Rita! Rita por trás de mim, quando eu esperava por diante!
 
RITA (sem dar atenção ao pai e beijando o filho)  Meu amor, meu anjinho! Coitadinho!
 
ABEL (pegando no braço da filha com violência)  Rita!
 
RITA Não machuque o meu filho!
 
ABEL Tu não saíste por aqui? (Apontando para a porta)
 
RITA Não senhor, saí por ali.
 
ABEL Ah, todos saíram por todas as partes, menos por aqui, e no entanto eu vi... Já sei, é um ladrão, é um ladrão que se introduziu em minha casa vestido de mulher!
 
RITA Um ladrão!
 
MADALENA (ao mesmo tempo)  Um ladrão!
 
ABEL  Sim, um ladrão, que deu de mamar ao pequeno para me enganar! Mas hei de vingar-me! (Caminha nas pontinhas dos pés para junto da porta e, aí chegando, dá com rapidez uma volta na chave)
 
RITA (à parte, enquanto o pai dirige-se para a porta)  Pobre Manuel! 
 
MADALENA (no mesmo)  O que será de Pacífico?
 
ABEL (dando volta na chave)  Está preso! Ah, agora verás! Rita, Madalena, esperem aqui um instantinho, que eu já volto, e tenham olho na porta! Ele não é capaz de arrombá-la, nem o quarto tem saída. Vou chamar a primeira ronda que encontrar. Oh, não me há de escapar!
 
RITA Meu pai, ouça...
 
MADALENA (à parte, para Rita)  Deixá-lo ir.
 
ABEL Eu volto em um pulo. Olho na porta! (Sai correndo)
 
 
CENA XVIII Rita e Madalena.
 
MADALENA Minha ama, perdoe-me!
 
RITA Fizeste mal em deixá-lo entrar, mas agora é preciso salvá-lo.
 
MADALENA Oh, muito obrigado, minha boa senhora. Abramos a porta. Pobre Pacífico!
 
RITA (à parte)  Pobre Manoel! 
 
(Vão ambos a porta, e saem por ela Manuel e Pacífico já sem vestido)
 
RITA E MADALENA (espantando-se)  Ah, são dois!
 
PACÍFICO Madalena!
 
MANUEL (ao mesmo tempo)  Ritinha!
 
RITA O que é isto, Madalena?
 
MADALENA Senhora, um é meu...
 
PACÍFICO Sou eu. (Chegando-se para Madalena)
 
MANUEL (para Rita)  E o outro é teu. (Chegando-se para Rita)
 
RITA Mas...
 
MANUEL Não temos tempo para explicações.
 
PACÍFICO Demos graças a Deus, se o tivermos para nos pormos ao fresco.
 
MADALENA Eles têm razão, senhora. Seu pai não tarda com soldados, e se os pilha, estamos todos perdidos.
 
PACÍFICO A Madalena tem razão. Toca a debandada! (Toma a barretina e espada, que estão debaixo da cama e dirige-se para a porta do fundo)
 
MANUEL (para Rita, enquanto Pacífico tira a barretina de baixo da cama)  Ritinha, pede a Deus que morram de hoje para amanhã quatro oficiais de secretaria, que eu me encaixarei em um dos lugares... E adeus! 
 
(Dirige-se para a porta do fundo; aí chega junto com Pacífico e querendo empurrar a porta, a encontram fechada)
 
AMBOS  Está fechada!
 
RITA Fechada? Como há de ser?
 
MANUEL Isso pergunto eu.
 
PACÍFICO E eu também. O que havemos fazer?
 
RITA Não sei, não sei, meu Deus! E meu pai não tarda!
 
PACÍFICO (puxando da espada)  Não há remédio senão cutilar o velho.
 
MADALENA Pacífico!
 
MANUEL E eu, o que posso fazer é encomendá-lo e enterrá-lo...
 
RITA Senhor!
 
MADALENA Escutem. Não se aflija, minha senhora. (Para os dois) Entrem os senhores ambos por esta porta, (aponta para o quarto de Rita) passem o primeiro e o segundo quarto, tomem por um corredor que está à direita, no fim há uma janela que deita para rua; abram-na e saltem por ela.
 
PACÍFICO És uma pérola!
 
MANUEL (para Rita)  Adeus, até sempre!
 
PACÍFICO Anda, sacrista! 
 
(Saem ambos correndo pela direita)
 
 
CENA XIX Rita e Madalena.
 
RITA Madalena, e nós? Meu pai não tarda, e não achando ninguém no quarto.
 
MADALENA Tenho cá meu plano. Minha ama quer-se casar com o Sr. Manuel Igreja?
 
RITA Bem sabes quanto eu o amo.
 
MADALENA Então está tudo arranjado.
 
RITA Mas como?
 
MADALENA Seu pai mostrou-se há pouco muito envergonhado, e de joelhos diante daquela porta lhe pedia perdão, só porque supunha que a encontraria lá dentro. Alguma fez ele por cá...
 
RITA Tomou os dois por ti... E tudo eu ouvi.
 
MADALENA Tanto melhor. Agora é preciso envergonhá-lo mais.
 
RITA E para quê?
 
MADALENA Um pai, quando pratica uma ação vergonhosa diante de seus filhos põese debaixo de sua dependência e não tem remédio senão fazer-lhes a vontade. O ponto é saber-se tirar partido do segredo.
 
RITA E o que faremos?
 
MADALENA Entrarmos neste quarto e esperar que ele venha com os soldados e que nos encontre lá.
 
RITA Mas...
 
MADALENA Dê cá o menino, que ele não tarda. (Toma o pequeno nos braços de Rita e o vai deitar no berço)
 
RITA Não sei se devemos fazer...
 
MADALENA Pois eu sei que devemos; quando não passaremos por cúmplices de ladrões, porque lhe demos escapula, ficaremos desacreditadas. Silêncio, ouço ! É ele! Venha, venha. 
 
(As duas entram no quarto em que estiveram os amantes)
 
 
CENA XX Abre-se a porta do fundo e por ela entra Abel, seguido de Pacífico, Manuel e uma patrulha.
 
ABEL (à porta)  Entre, senhor Manuel. E seu amigo também pode entrar. (Encaminham-se para a frente) Muito estimei encontrá-los junto de minha casa.
 
MANUEL Vínhamos da missa, lá da banda de cima.
 
PACÍFICO (à parte, para Manuel)  Por pouco que não nos pilha saltando a janela.
 
ABEL Desculpe-me, se os interrompi no seu caminho; mas necessitava dos senhores, e entre amigos...
 
MANUEL Pode dispor de nós.
 
ABEL Obrigado. (Pegando na mão de Manuel) Meu amigo, tenho ladrões em casa!
 
MANUEL e PACÍFICO Ladrões em casa? 
 
ABEL Sim, e naquele quarto, que eu mesmo os fechei.
 
MANUEL e PACÍFICO Naquele quarto? Então vamos a eles. 
 
(Manuel arregaça as mangas e Pacífico puxa a espada – tudo isto com muito espalhafato e dirigem-se ambos para a porta do quarto)
 
ABEL (retendo-os)  Esperem, amigos.
 
MANUEL Nada, deixe-me, que os levo a cabeçadas. 
 
PACÍFICO E eu a fio de espada.
 
ABEL (retendo-os)  Por quem são, não se exponham assim! Agradeço-lhes o zelo. Eu disse um ladrão. Quem sabe se não é uma quadrilha inteira? É preciso prudência e tática. Olhe, o senhor (Pacífico) ficará aqui. (Coloca-o junto do ponto) Meu amigo Manuel, aqui. (Coloca-o junto de Pacífico) Os senhores oficiais, por aqui. (Coloca-os em semicírculo, desde a porta do quarto até junto de Manuel) E eu ficarei entre meu amigo e o senhor, mas como não tenho arma, o senhor (para um dos soldados) fará o favor de emprestar a sua espingarda. Eu é que estou mais exposto. (Toma a espingarda do soldado e mete-se entre Manuel e Pacífico) agora façam o favor de calar baionetas. (Os soldados calam baioneta) O camarada que está sem espingarda terá a bondade de abrir a porta e fazer-lhes a intimação para se entregarem. 
 
(O soldado dirige-se para a porta do quarto, e dando uma volta na chave e empurrando a porta, esta se abre)
 
SOLDADO  Quem quer que esteja aí dentro, saia para fora e nada de resistência!
 
ABEL Sentido, amigos!
 
SOLDADO  Então, não respondem? Em nome da lei, rendei-vos; quando não...
 
ABEL Quando não, faremos fogo! (Metendo a espingarda à cara)
 
 
CENA XXI Aparecem à porta do quarto Rita e Madalena.
 
RITA O que é isto?
 
MADALENA (ao mesmo tempo)  Então, o que temos?
 
ABEL Ah! 
 
(Deixa cair a espingarda no chão, de surpreendido, e fica estático como D. Bartolo no Barbeiro de Sevilha, conservando os braços na posição em que sustentava a espingarda)
 
PACÍFICO São estes os ladrões? Ah, ah, ah! (Ri-se às gargalhadas)
 
MANUEL Ah, ah, ah... (Rindo-se às gargalhadas, e o mesmo fazem todos os soldados)
 
RITA (caminhando para eles)  Meu pai, meu pai, o que temos?
 
MADALENA Oh, como ficou!
 
RITA Meu pai, volte a si! Sou eu! Meu Deus! Madalena, aí está o que fizeste!
 
MADALENA Ah, senhor! (Querendo abaixar-lhe o braço) Como está duro!
 
RITA Meu Deus, meu Deus! Senhor Manuel!
 
MANUEL (sacudindo-o)  Ah, senhor Abel!
 
PACÍFICO (o mesmo)  Então, o que é isto? Está galante! 
 
(Agrupam-se todos ao redor de Abel e principiam uns assoprarem-lhe a face, outros a sacudirem-no, etc.)
 
MANUEL Parece morto!
 
RITA Meu pai?
 
PACÍFICO Como diabo ficou ele estatelado!
 
MADALENA Vai mau isto!
 
RITA Meu pai, fui eu que lhe dei escapula do quarto; sou a culpada! Não era ladrão, era o Sr. Manuel que lá estava e que veio por mim. Diga-lhe, diga-lhe isto, senhor Manuel.
 
MANUEL Sim senhor, Sr. Abel, era eu. Vim para ver sua filha e o senhor tomou-me pela Madalena. (Abel abaixa os braços e como que vai tornando a si) Já se mexe...
 
RITA Meu bom pai, perdoai-me, fui eu a culpada! Por causa dela?
 
MADALENA E eu também, por causa dele...
 
MANUEL E mais eu, por causa dele...
 
PACÍFICO Creio que o remédio faz efeito... então, também eu, por causa dela... E fui o primeiro, tratei da criança, levei abraços... Não se lembra que me foi acordar naquela cama? Madaleninha!
 
ABEL (que tem tornado a si)  Oh, estou traído!
 
RITA (suplicante)  Meu pai!
 
ABEL (recuando enfurecido)  Deixa-me!
 
RITA Perdoai-me!
 
MADALENA (ao mesmo tempo)  Perdoai-me!
 
PACÍFICO (ao mesmo tempo)  Senhor!
 
MANUEL (ao mesmo tempo)  Senhor!
 
ABEL Deixai-me, deixai-me! (Vai recuando, enfurecido)
 
RITA, MADALENA, MANUEL, PACÍFICO e SOLDADOS  Senhor!
 
ABEL Deixa-me! 
 
(Todos o seguem suplicantes, e ele tão cego está de furor, que sem dar atenção ao berço, dá com as costas sobre ele e o atira no chão com o pequeno e cai por cima)
 
TODOS  Ah!
 
MADALENA (correndo para acudirem ao pequeno)  Meu filho!
 
(Manuel e Pacífico acodem Abel, o soldado levanta o berço; Rita e Madalena tiram o pequeno de baixo do velho e com ele caminham para junto da mesa e aí Rita se assenta, tendo-o nos braços)
 
RITA Meu filho, meu filho! Está sem sentido, morto!
 
MADALENA Meu Deus!
 
RITA Água fria, água fria, Madalena! 
 
(Madalena toma o moringue que está sobre a mesa e o derrama sobre a cabeça do pequeno, enquanto as duas estão ocupadas em fazerem o pequeno tornar a si, Manuel e Pacífico levantam Abel e, sustendo-o pelos braços, conduzem-no para frente da cena)
 
MANUEL Então, Sr. Abel, parece-se criança. Que é isto? Por tão pouco!
 
PACÍFICO O caso não é de matar crianças. Toma a coisa tão em grosso!!
 
RITA Está morto!
 
TODOS  Morto? (Encaminham-se para junto de Rita)
 
ABEL Meu neto morto! E fui eu, desgraçado!
 
MADALENA Está vivo, está vivo!
 
TODOS  Vivo! (Abel arrebata a criança dos braços de Rita e o cobre de beijos. Todos, para Abel) Não o mate!
 
ABEL Pobre inocente, que tanto tens sofrido esta noite pelos nossos desvarios! Que culpa tens tu, pobre anjinho, que sejamos todos loucos. Filha, o teu proceder foi criminoso, e só casando-te com este homem darás uma satisfação ao público.
 
MANUEL Ritinha! (Vai para junto dela) 
 
ABEL (para Madalena)  E tu, mulher vil, já desta porta para fora! 
 
RITA E quem há de criar meu filho?
 
ABEL Eu! 
 
(Pacífico e Madalena riem-se às gargalhadas; Abel, indo para Pacífico) Insolente! (Pacífico bota a mão à espada e quer desembainhá-la; Madalena retêm-lhe o braço. Abel, vendo Pacífico lançar mão da espada, levanta a criança nos braços e ameaça-o com ela, e que vendo Rita corre para ele)
 
RITA Meu pai!
 
PACÍFICO Há mais tempo que com esta cara e com estes anos devias-te empregar em desmamar crianças, e não em namorar.
 
ABEL Tem o senhor muita razão.
 
PACÍFICO (para Madalena)  Vamos, que terás muito onde te alugares. 
 
(Pacífico toma Madalena pelo braço e vai saindo)
 
ABEL (principia a passear de um para outro lado, embalando a criança nos braços e cantando) Menino bonito... (Etc.)
 
(Rita olha para ele sorrindo-se. Pacífico e Madalena param na porta do fundo e riem-se e nisso abaixa o pano)

 

 

                                                                  Martins Pena

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades