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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS DOUTORAS / França Júnior
AS DOUTORAS / França Júnior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

França Júnior

 

 

 

 

PERSONAGENS: MANUEL PRAXEDES (55 anos)  DOUTOR PEREIRA (25 anos)  MARTINS (bacharel, 28 anos)  GREGÓRIO (doente)  MARIA PRAXEDES (58 anos)  DOUTORA LUÍSA PRAXEDES (24 anos)  CARLOTA DE AGUIAR (bacharela, 23 anos)  EULÁLIA (criada, 50 anos)  Diretora do grêmio feminil sacerdotisas de euterpe PRIMEIRA DOENTE SEGUNDA DOENTE TERCEIRA DOENTE Sócias do grêmio, banda de música, povo, etc.
Rio de Janeiro – Atualidade (1887).


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ATO I Uma sala elegantemente mobiliada.
 
CENA I Manuel Praxedes, Eulália, Maria Praxedes e Doutora Praxedes.
 
MANUEL PRAXEDES (entrando pela porta da direita de calça e colete pretos, gravata branca, em mangas de camisa e segurando a casaca)  Eulália! Eulália!
 
MARIA (falando dentro) 
 
Oh! Eulália?
 
EULÁLIA (entrando apressada)  O que é, meu amo? Esta casa hoje está impossível, não sei para onde me virar.
 
MANUEL  Onde meteste a minha escova de roupa? Que horas são? Onde está a senhora? O carro já veio?
 
LUÍSA (falando dentro)  Eulália!
 
EULÁLIA  Lá está a outra a chamar-me! Jesus, fico doida!
 
MANUEL  O que direi eu então? O dia da formatura de minha filha.
 
MARIA (dentro)  Eulália!
 
MANUEL (segurando a mão de Eulália que quer sair)  A Luísa, lembras-te? Aquela criança que ainda ontem saltava no meu colo em fraldinhas de camisa, com as bochechas rosadas!
 
EULÁLIA  Pois não me hei de lembrar, meu amo! Parece-me que estou a vê-la a dizer adeus à gente com os dedinhos miúdos, assim (imita). Ai! que gracinha!
 
MANUEL  Pois bem. (Caindo num choro convulso)  Aquela criancinha, Eulália, é hoje a Doutora Luísa Praxedes, formada em ciências médicas e cirúrgicas pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. (Mudando de tom) Vai buscar a escova.
 
MARIA (entrando de vestido decotado e flores na cabeça, a Eulália)  Pois eu estou lá dentro a chamar-te há mais de meia hora... 
 
EULÁLIA  O culpado foi meu amo.
 
MARIA  Vai ver o que quer a Luisinha. (Eulália sai) 
 
 
CENA II Os mesmos, menos Eulália.
 
MANUEL  Luisinha! Luisinha!... A senhora é incorrigível.
 
MARIA  Como acha então o senhor que devo tratar a minha filha?
 
MANUEL  A Doutora Luísa Praxedes. A doutora, sim, senhora! A mim pareceme também um sonho; mas é o título a que ela tem direito, que foi ganho à custa do seu trabalho e que é uma honra para a família e para a sociedade.
 
MARIA  Havemos de ver em que dá tudo isto.
 
MANUEL  Há de dar em alguma coisa que a senhora com as suas vistas curtas não pode enxergar. (Vestindo a casaca) Onde diabo está a manga desta casaca?
 
MARIA  Tens adiantado muito com as tuas vistas largas.
 
MANUEL (sem conseguir vestir a casaca) 
 
Maldita manga... 
 
MARIA  Em todas as empresas em que te meteste tens dado com os burros n’água. Logo que nos casamos montaste uma grande fábrica de papel.
 
MANUEL  E não era uma boa ideia?
 
MARIA  Segundo os teus cálculos; mas o papel que fizeste foi tão ordinário que nem para embrulho o quiseram.
 
MANUEL  Fui infeliz, fui. Mas quem é que não erra? Afianço-te porém, que se eu conseguisse fazer ali alguma coisa, estava hoje com um fortunão.
 
MARIA  Tão grande como o que ganhaste com a exploração de mariscos, na linha de bondes para o Morro do Nheco, na iluminação de Valença à luz elétrica.
 
MANUEL  Isto prova, senhora, que sou um homem do progresso, que amo a minha pátria, que quero vê-la prosperar, engrandecer. (Sem encontrar a manga) Que diabo, não me dirás onde é que se meteu esta manga? (Maria ajuda-o a vestir a casaca) E a prova do meu patriotismo está nesta menina, laureada hoje com um título.
 
MARIA  Bem contra a minha vontade.
 
MANUEL  Bem contra a sua vontade, compreende-se; porque a senhora foi criada em uma casinha de rótula e janela na Rua do Aljube... 
 
MARIA  Onde recebi a educação a mais brilhante que se poderia ter naquele tempo. O que Luisinha, ou antes, o que a Doutora Luísa Praxedes sabe de francês, de inglês, de desenho e sobretudo de música, deveo a esta sua criada. Parece-me que não te casaste com uma analfabeta!
 
MANUEL  Sim, mas tudo quanto sabes foi aprendido no tempo das bananas a três por dois, do toque do Aragão, das vilegiaturas em Mataporcos, das toalhas de crivo, do junco do pedestre... Tempos em que o Rio de Janeiro era iluminado a azeite de peixe.
 
MARIA  Mas em que as mulheres não se lembravam de ser doutoras e limitavam-se ao nobre e verdadeiro papel de mães de família.
 
MANUEL Já tardava que não viesses com o chavão... a mãe de família. É sempre a figura de retórica já muito cheia de bolor com que o carrancismo pretende esmagar no nascedouro as aspirações grandiosas da emancipação do sexo feminino.
 
MARIA  É por estas e outras que tudo chegou ao estado de desorganização em que vivemos.
 
MANUEL  Isto que a senhora chama desorganização... 
 
MARIA  É a ordem, talvez?
 
MANUEL  Não é a ordem ainda, mas é a evolução da qual muito naturalmente ela há de surgir. O papel da mulher de hoje não é o da de ontem. Aquelas criaturas que viviam em casa trancadas a sete chaves, pálidas, anêmicas, de perna inchada, feitorando as costuras das negrinhas, começam por honra nossa, a ser substituídas pela verdadeira companheira do homem, colaborando com ele no progresso da grande civilização moderna. Nós, os homens, temos a política, a espada, as letras, as artes, as ciências, a indústria... Por que razão seres organizados como nós, mais inteligentes até do que nós, haviam de se mover eternamente no acanhado círculo de ferro do dedal e da agulha?
 
MARIA  Porque basta-nos o amor.
 
MANUEL  Mas a prova, senhora, de que o amor está no programa de vida da mulher moderna, é o casamento de nossa filha, hoje, no dia de seu grau, com o Doutor Pereira, seu colega de banco na Academia.
 
MARIA  E entra, por acaso, o amor na união de Luísa com este homem?
 
MANUEL  Certamente.
 
MARIA  Olha, Praxedes, podes gastar toda a tua retórica, mas nunca me convencerás de que o Doutor Pereira e Luísa se amem! Acompanhoos há 6 anos nas aulas, no anfiteatro, nos hospitais, nos exames.
 
MANUEL  E que tem isto?
 
MARIA  Nunca nos lábios daquelas duas criaturas ouvi a palavra amor. Sempre entre eles, como que a separá-los, a medicina, a cirurgia, a terapêutica, o diagnóstico, a hematose, a diátese, a idiossincrasia, a cefalalgia, os emolientes, os tônicos, a patologia e toda esta série de nomes arrevesados que me ficaram no ouvido à força de ouvi-los repetir constantemente. Esse sentimento que faz de dois corações um só!... 
 
MANUEL  Aí vem a pieguice.
 
MARIA  Sim, esta pieguice sublime nunca poderia nascer e desenvolver-se naquele meio infecto de moléstias hediondas ou diante do sangue coagulado de órgãos putrefatos expostos em indecente nudez.
 
MANUEL  Bravo! No fim de contas, parece-me que em vez de uma, tenho duas doutoras em casa. Falta-te só o grau.
 
MARIA  O que me falta sei eu, é a energia bastante para não ter consentido que as coisas chegassem a este ponto. (Vai a sair) 
 
MANUEL  Mas, vem cá Maria Praxedes, pensas tu, porventura, que os casamentos hoje fazem-se como foi feito o nosso?
 
MARIA  Os casamentos, em todos os tempos, são feitos do mesmo modo.
 
MANUEL  O namoro de passar pela porta, piscar o olho; levar com a janela na cara, a loja do barbeiro da esquina como centro de operações, o bilhete cheirando a almíscar, os olhos requebrados, o descante de violão: meu bem, meu amor, minhas candongas... tudo isso acabou... O que há presentemente... 
 
MARIA  É o pedido entre o diagnóstico de um catarro crônico e a aplicação de um vesicatório ou de uma cataplasma de linhaça... Já sei, já sei.
 
MANUEL  O que há presentemente é o casamento-contrato, isto é, o casamento propriamente dito como ele deve ser. O móvel de dois seres que se ligam é a conveniência.
 
MARIA  Então confessas com todo o cinismo que o casamento de Luísa... 
 
MANUEL  Confesso... 
 
MARIA  Mas onde está a fortuna do Doutor Pereira? Os pais são pobres... Forma-se hoje.
 
MANUEL  E a senhora sem querer compreender nada, a confundir tudo! O casamento de conveniência, sob o ponto de vista da evolução atual.
 
MARIA  Já tardava a evolução... 
 
MANUEL  Quer ou não quer ouvir-me?
 
MARIA  Fale.
 
MANUEL  O casamento de conveniência, sob o ponto de vista da evolução atual, não é o casamento de dinheiro. O homem sem ofício nem benefício que se liga a uma mulher de fortuna para viver à custa do que ela tem, deveria ser expulso da comunhão civilizada. O verdadeiro casamento de conveniência que é a aspiração da ideia Nova e de que a minha filha vai ser o exemplo edificante, consiste na união de dois seres, tendo cada um o mesmo modo de vida, a mesma profissão. O marido trabalha, a mulher trabalha.
 
MARIA  É uma sociedade comercial.
 
MANUEL  Sim, mas vê o alcance enorme desta sociedade. Não é só a formação do pecúlio do casal, mas muito principalmente o desenvolvimento das classes, a seleção delas. O marido médico, a mulher médica... todos os filhos médicos... O marido advogado, a mulher advogada... 
 
MARIA  Toda a prole bacharela em direito.
 
MANUEL  Justamente. O pintor ligar-se-á à pintora e desta união sairá uma família de pintores. Não vês o que a imprensa costuma dizer quando trata de um sujeito que faz alguma obra de arte importante? — "É um artista de raça!" Pois bem, esta frase vai deixar de ser doravante uma figura de retórica. Vamos ter médicos de raça, advogados de raça, a sociedade enfim toda de raça, desenvolvida e aperfeiçoada nos diversos ramos da sua vasta atividade. Compreendeste agora o alcance filosófico, político, moral e social deste casamento? Eis porque estou aqui radiante de alegria, cheio de emoções, quase doido.
 
MARIA  Podes tirar o "quase".
 
 
CENA III Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA  A menina já está prontinha, meus amos.
 
MANUEL  A menina, não, Eulália.
 
EULÁLIA  Desculpe-me, meu amo, a senhora Doutora Luísa Praxedes já pôs aquela vestimenta. Como é que se chama aquilo?
 
MANUEL  Beca.
 
EULÁLIA  Está muito engraçada! Ai! que reinação! Eu sempre punha-lhe uma anquinha ou um puff: para armar mais a saia.
 
MANUEL  Ela está contente, Eulália?
 
EULÁLIA  Muitíssimo, meu amo. Assim que eu lhe vesti a tal seca... 
 
MANUEL  Não é seca, é beca.
 
EULÁLIA  Como é mesmo?
 
MANUEL  Beca.
 
EULÁLIA  Olhem só o diabo do nome, beca! Pois assim que lhe vesti aquilo começou a passear de um lado para outro, no quarto... Assim, olhe... (Imita) muito séria. Parecia, mal comparando, o taverneiro ali da esquina, quando põe a casaca e a comenda.
 
MARIA  Está bem, está bem. Em vez de estar aí contando histórias é melhor que vá tratar do arranjo da casa.
 
EULÁLIA  Do arranjo da casa! Ora esta. Pois quem é que tem tratado disso até agora senão eu?
 
MARIA  Não responda, Eulália, vá.
 
EULÁLIA  Hei de responder, sim senhora. Estou aqui desde que cheguei da terra, há 25 anos e creio que a patroa não pode ter razão de queixa de mim.
 
MARIA  Certamente.
 
EULÁLIA  Enquanto a senhora andava o dia inteiro no meio da rua acompanhando a menina por toda a parte, eu ficava aqui a pé firme, como um cão de fila guardando-lhe a casa e a bolsa. A bolsa, sim senhora, porque se não fosse a Eulália dos Prazeres da Conceição de Maria, filha da Engrácia da Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja, a senhora era depenada por toda essa súcia de criados que entravam numa semana com as mãos abanando e saíam na outra levando tudo quanto pilhavam.
 
MANUEL  Tens razão, Eulália.
 
EULÁLIA  Que tenho razão, sei eu! Meu amo, não sabe da missa nem a metade.
 
MANUEL  Vai buscar a escova.
 
EULÁLIA  Olhe, quer ver como eu puxava pela fisiolostria da inteligência como diz o Antônio da venda, para não ser embaçada pelos tais criaditos?
 
MARIA  É a história do açúcar? Já a conheço de cor e salteada.
 
MANUEL  Vai buscar a escova.
 
EULÁLIA  E não era bem lembrada? Eles roubavam o açúcar, o que fazia eu?... Apanhava uma mosca, (fazendo menção de quem apanha uma mosca) abria o açucareiro, zás... (Menção de atirar) e tampava-o com todo o cuidado. De vez em quando ia verificar se a mosca ainda lá estava... Não é bem lembrado, meu amo? Aprendi isto na casa de um visconde no Porto.
 
MANUEL  Está bem, vai buscar a escova.
 
EULÁLIA  Na manteiga também não me passavam a perna. Fazia-lhe em cima com a faca uma porção de rabiscos. (Batem à porta) 
 
MANUEL  Estão batendo. Vai ver quem é. (Eulália sai. Para Maria) Eu vou lá dentro escovar-me. Esta maldita rapariga quando começa a falar... (Sai) 
 
 
CENA IV Eulália, Maria e o Doutor Pereira.
 
EULÁLIA (rindo)  Ah! Ah! Ah!
 
MARIA  O que é isto, Eulália, estás doida?
 
EULÁLIA  Ah! Ah! Ah!
 
MARIA  Quem está aí?
 
EULÁLIA  O Senhor Doutor Pereira de saias. Ah! Ah! Ah!... Minha ama não imagina como está engraçado! Olhe, aí está ele. (O Doutor Pereira entra) Ah! Ah! Ah!... 
 
MARIA  Eulália, passa para dentro.
 
DR. PEREIRA (a Eulália)  Não me conhecias?
 
EULÁLIA  Pois eu podia imaginar que era o noivo da menina! Ah! que reinação! Ah! Ah! Ah!
 
MARIA (empurrando Eulália para dentro)  Está bem, vai para dentro. (Eulália sai) 
 
 
CENA V Maria, Doutor Pereira e Luísa.
 
DR. PEREIRA (com alguns folhetos)  O Doutor Martins ainda não veio?
 
MARIA  Ainda não.
 
DR. PEREIRA  A cerimônia do grau está marcada para o meio-dia... 
 
MARIA  Devem ser 9 horas apenas. Aí vem Luísa.
 
DR. PEREIRA (a Luísa que entra e apertando-lhe a mão)  Colega!
 
LUÍSA (apertando a mão a Pereira)  Colega!
 
MARIA (à parte; imitando-os)  Colega! Colega!... E ali estão dois noivos!
 
LUÍSA  Que folhetos são esses?
 
DR. PEREIRA  São exemplares da minha tese que pretendo distribuir por alguns amigos que vão assistir ao grau.
 
LUÍSA  Ah! é verdade! Sabe que esta noite fui chamada para ver um doente de febre amarela.
 
DR. PEREIRA  Caso grave?
 
LUÍSA  Gravíssimo. Termômetro a 41 graus, ansiedade epigástrica e todo o aparato para romperem-se as hemorragias; compreende o colega a dificuldade de uma terapêutica apropriada para debelar-se o mal cuja patogenia é ainda desconhecida.
 
DR. PEREIRA  Patogenia desconhecida! Pois a colega não tem notícia do cryptococus xantogenicus... 
 
LUÍSA  O cryptococus... o cryptococus... 
 
MARIA (à parte)  Parece incrível! Isto contado ninguém acredita.
 
DR. PEREIRA  O cryptococus sim; revelado pelo microscópico nos luminosos trabalhos do Doutor Freire. Não sei como se possa ignorar os efeitos da vacinação pela cultura atenuada.
 
LUÍSA  Mas quem lhe disse que eu ignoro?
 
DR. PEREIRA  Pelo menos a colega... 
 
LUÍSA  O que eu sustento, com os conhecimentos profundos que tenho da matéria é que esta teoria microbiana, tratando-se de febre amarela, pode ser quando muito uma aspiração do futuro.
 
DR. PEREIRA  Uma aspiração do futuro, quando o presente nos está demonstrando todos os dias a verdade!
 
LUÍSA  Ora! colega!... Leia os trabalhos de Stemberg, de Gibier e convençase de que na clínica mais vale a sintomatologia do que teorias abstratas.
 
DR. PEREIRA  Abstratas, não; tenha paciência.
 
LUÍSA  Abstratas sim; porque não receberam a sanção das autoridades da nossa ciência.
 
DR. PEREIRA  Mas foram aplaudidas pela Sociedade Dosimétrica de Paris.
 
LUÍSA  Não foram tal.
 
DR. PEREIRA  Foram, sim, senhora.
 
LUÍSA  Não foram.
 
DR. PEREIRA  Foram.
 
MARIA (colocando-se entre eles)  Não acham que este cryptococus xantogenicus, na sua qualidade de micróbio, pode infeccionar dois corações que daqui a pouco terão de se unir à face da igreja e que aí deverão aparecer sem rancores, sem azedumes, ungidos de mística poesia?
 
LUÍSA  Aí vem mamãe com a sua poesia.
 
DR. PEREIRA  Os nossos corações, senhora Dona Maria Praxedes, não têm rancores nem azedumes. Estamos apenas discutindo um ponto de ciência.
 
MARIA (para os dois)  Então amam-se deveras?
 
OS DOIS  Certamente.
 
MARIA  É um amor singular.
 
LUÍSA  Não é como o de Julieta e Romeu, com balcão, escada de corda, cantos de cotovia.
 
DR. PEREIRA  Está visto!
 
MARIA  Pois olhem, meus filhos, eu tinha até aqui a ingenuidade de acreditar que aos 20 anos o coração é como o cálice perfumado de um lírio... 
 
LUÍSA  O coração, mamãe, é um músculo oco que tem as suas funções próprias como o baço, o fígado, os rins e outras vísceras do organismo.
 
 
CENA VI Os mesmos, Bacharel Martins e Carlota.
 
MARTINS (cumprimentando a todos)  Cheguei talvez um pouco tarde?
 
DR. PEREIRA  O meu amigo chega sempre em tempo.
 
MARTINS  Hão de permitir-me que lhes apresente a senhora Dona Carlota de Aguiar, estudante do 5° ano da Faculdade de Direito de São Paulo e futura bacharela em Direito.
 
CARLOTA (apertando a mão de Dona Maria e do Doutor Pereira)  Apresento à ilustre doutora a curvatura de meus respeitos. 
 
(Apertam-se as mãos) 
 
LUÍSA  Já a conhecia muito de nome como um dos mais brilhantes talentos da moderna geração.
 
CARLOTA  E o que direi eu da mulher duas vezes ilustre pela inteligência e pela coragem titânica com que acaba de abater a muralha ciclópica dos preconceitos tacanhos? Vossa excelência é o alfa desta conquista sociológica que veio desfraldar aos ventos sul-americanos a bandeira imaculada da nossa redenção.
 
MARTINS (para Maria Praxedes)  Fala admiravelmente bem.
 
MARIA  É uma canária!
 
MARTINS  Que talento!
 
MARIA  Está-se vendo que é de força!
 
LUÍSA  Entretanto o passo que acabo de dar tem sido por tal forma comentado pela opinião... 
 
CARLOTA  Não creia, minha senhora! Vossa excelência está supedânea no conceito público.
 
DR. PEREIRA  Eu assim o entendo.
 
CARLOTA A minha situação é que se vai tornando um amálgama acéfalo, incongruente e esfacelado de lutas de direito, com pequenos interesses masculinos.
 
LUÍSA  Como assim?
 
CARLOTA  Ainda não recebi a investidura do meu grau, ainda não tive a posse do tibi quo que e já o magnânimo Instituto dos Advogados levanta a questão de nós mulheres podermos exercer a advocacia e os demais cargos inerentes ao bacharelado em Direito.
 
LUÍSA  Parece incrível!
 
CARLOTA  Não se admire, doutora, não se admire. Já em Niceia reuniu-se um concílio para decidir se a mulher devia ou não fazer parte do gênero humano. Tentaram expelir-nos do posto que ocupamos na escala zoológica e pretendem agora com miseráveis subterfúgios de retórica e uma lógica anacrônica tirar-nos o talher a que temos direito na opípara mesa do banquete social.
 
LUÍSA  Como eles receiam a nossa concorrência.
 
CARLOTA  Em todos os pontos da atividade humana, ilustre doutora! Mas havemos de conquistar-lhes paulatinamente o másculo reduto.
 
 
CENA VII Os mesmos e Manuel Praxedes.
 
MANUEL (entrando e vendo Luísa de beca)  Luísa! De beca!... Minha filha! (Vai desmaiar) 
 
LUÍSA (indo agarrá-lo)  Papai, o que tem?!
 
MARIA (segurando-o)  Manuel Praxedes! Manuel Praxedes!
 
CARLOTA  Que lividez marmórea!
 
MARIA (gritando)  Eulália! Eulália!
 
LUÍSA  E melhor deitá-lo, deitá-lo já em decúbito dorsal.
 
 
CENA VIII Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (entrando)  Ai! o meu rico amo! O que é que ele tem, senhora?
 
MARIA  Traz lá de dentro qualquer coisa... água, vinagre... 
 
EULÁLIA  Vou correndo. (Sai) 
 
MARIA  O que é isto, minha filha, um ataque?
 
LUÍSA  Não, minha mãe, uma simples lipotimia.
 
DR. PEREIRA (tomando o pulso e examinando as pupilas de Manuel) 
 
Perdão, parece-me coisa mais grave. Vejo todos os sintomas de uma síncope cardíaca.
 
LUÍSA  Não se diagnostica por suposições. A patologia do coração, colega, é uma coisa hoje conhecida!
 
MARIA  Mas pelo amor de Deus, minha filha, deixa-te de discussões e trata de salvar teu pai. Manuel Praxedes! Manuel Praxedes!
 
 
CENA IX Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (trazendo um vidro de galheteiro e uma moringue)  Cá está o vinagre e a água. (Maria põe o vidro de vinagre no nariz de Manuel) O verdadeiro, minha ama, é atirar-lhe com o moringue de água à cara... Olhe que a água é um santo remédio para estas maleitas. Conheci uma senhora lá no Porto que teve um desses tremeliques e note-se que não era coisa cá de pouco mais ou menos, porque a mulher tinha cada olho esbugalhado deste tamanho e berrava que parecia mal comparando, um boi, com perdão dos senhores que me ouvem.
 
MANUEL (abrindo os olhos)  Onde estou? O que foi isto? (Abraçando Luísa) Luísa, minha filha, esta emoção me mata. 
 
(Maria dá o vidro a Eulália) 
 
EULÁLIA (cheirando o vidro)  Ai! que reinação! Ah! Ah! Ah!
 
MARIA  O que é isto, Eulália?
 
EULÁLIA  Em vez de vinagre, senhora, trouxe azeite... Ah! Ah! Ah! (Sai correndo) 
 
 
CENA X Os mesmos menos Eulália.
 
LUÍSA (apresentando Carlota)  A senhora Dona Carlota de Aguiar, estudante do 5º ano da Faculdade de Direito de São Paulo.
 
MANUEL  A futura bacharela em Direito de que os jornais se têm ocupado! Oh! quanto folgo em conhecê-la. 
 
(Ouve-se o som da música e foguetes) 
 
 
CENA XI Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA  Patrão!... Patrão!... Ai está à porta um bonde embandeirado, com música e uma porção de gente que grita: — Viva a Doutora Luísa Praxedes! Viva a Doutora Luísa Praxedes!... 
 
MANUEL  Uma manifestação!... Ainda esta emoção!... Meu coração!... Que aflição!... 
 
EULÁLIA  Vou buscar azeite, minha ama?
 
MARIA (a Manuel)  Outro desmaio?
 
 
CENA XII Os mesmos e a Diretora do Grêmio Feminino Sacerdotisas de Euterpe.
 
DIRETORA (entrando acompanhada pela banda de música de raparigas em cujo estandarte se vê a seguinte inscrição: G. M. Sacerdotisas de Euterpe)  A gratidão, senhora, é a moeda dos pobres. A sociedade musical Grêmio Sacerdotisas de Euterpe deixaria de cumprir com o mais sagrado dos deveres, se não viesse hoje, no dia em que se realizam os vossos sonhos dourados, dar-vos um público testemunho do quanto vos deve pelos serviços que generosamente tendes prestado a cada uma de nós, (Praxedes limpa as lágrimas) na epidemia que desgraçadamente está assolando esta cidade. (Entregando a Luísa um rolo de papel) Aceitai, portanto, ilustre doutora, como homenagem ao vosso brilhante talento (Praxedes soluça) e às qualidades morais que vos ornam, o diploma de sócia benemérita da nossa modesta associação. (Manuel soluça) Viva a Doutora Luísa Praxedes!
 
TODOS  Viva! (Toca a música) 
 
LUÍSA  Não tenho, infelizmente, recursos oratórios para responder à manifestação com que acabo de ser surpreendida e que assaz me penhora. Peço à senhora Doutora Carlota de Aguiar que com o seu verbo eloquente seja a intérprete dos meus sentimentos.
 
DR. PEREIRA e MARTINS  Muito bem!
 
CARLOTA  Minhas senhoras! (Conserta a garganta) Flutua-me no cérebro um ponto de interrogação: estará a mulher destinada nos últimos estertores do século que finda a devassar os arcanos de todas as atividades que lhe têm sido roubadas pelo monopólio sacrílego das aspirações e vaidades masculinas? Aquela que neste momento tão indignamente represento... 
 
TODOS  Não apoiado.
 
CARLOTA  Vós, as congregadas da harmonia, e eu, a mais humilde paladina desta conquista santa de direitos, poderemos responder à fatídica interrogação? Sim! A mulher caminha, a mulher conquista, a mulher vencerá. Um viva pois, à Doutora Luísa Praxedes que simboliza a consubstanciação da vitória brilhante do... 
 
TODOS (menos Luísa e Maria)  Viva. (Música) 
 
MANUEL (a todos)  Vindo assistir ao grau de minha filha, eu vos convido também, meus senhores e minhas senhoras, para que abrilhanteis com a vossa presença a cerimônia do casamento que terá lugar logo depois daquele ato na Igreja de São José.
 
A DIRETORA  Viva a Doutora Luísa Praxedes!
 
TODOS (menos Luísa)  Viva! (Toca a música e desfilam todos saindo pelo fundo) 
 
 
 
ATO II Gabinete da Doutora Luísa. À direita, estantes de livros. À esquerda, um sofá tendo ao lado uma cadeira de operações; sobre a estante diversos vidros com fetos e preparações anatômicas conservadas em álcool. Ao fundo uma mesa com tinteiro e penas, jornais e revistas espalhados e uma vitrine dentro da qual figura um esqueleto articulado. Sobre as paredes quadros com retratos de médicos e seções do corpo humano. Em cima da vitrine um quadro com o seguinte letreiro: — "Consultas pagas à vista." Ao lado do sofá o telefone.
 
 
CENA I
 
EULÁLIA (Só, falando ao telefone)  Allon!... Allon!... Quem fala? Quem fala?... Ah! É para o Doutor Pereira, ou para a Doutora Pereira? Não entendo... Fale mais alto. Doutor ou doutora? (Deixando o telefone) Isto é uma maçada! Todos os dias há uma briga de mil diabos nesta casa por causa dos malditos doentes.
 
 
CENA II A mesma e Maria Praxedes.
 
MARIA (entrando)  Sim, senhora! É o que se chama o cúmulo da tagarelice. Não tens com quem falar, falas sozinha.
 
EULÁLIA  Deixe-me, pelo amor de Deus! Olhe que se não fosse o amor que tenho à menina, já tinha voltado para a casa da patroa.
 
MARIA  Continuam as brigas?... 
 
EULÁLIA  Ora! Ora! Ainda ontem houve aqui um bate-boca tremendo.
 
MARIA  E sempre por causa dos chamados?
 
EULÁLIA Está visto, não brigam por outra coisa. E nestas brigas sai cada nome, patroa... 
 
MARIA  Meu Deus! Chegam então a descompor-se?
 
EULÁLIA  Eu não sei se aquilo é descompostura. Olhe, os nomes que eu ouço, se não são desaforos de arrancar couro e cabelo. Já muito bons para que digamos não são.
 
MARIA  O que é que eles dizem?
 
EULÁLIA  E symfostria pra lá, milogia pra cá, raboses, coloses, futrica. A menina muito vermelha a dar com os braços, o patrão de olhos esbugalhados a gesticular.
 
MARIA  Ah! São discussões científicas!
 
EULÁLIA  Pois olhe, senhora, eu sou solteira, em tão boa hora o diga e o diabo seja surdo, mas, se fosse casada, e meu marido me atirasse à cara todas aquelas ravoses, coloses e mitogias, e me chamasse futrica, sabe o que fazia a Eulália dos Prazeres da Conceição de Maria, filha da Engrácia da Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja?... 
 
MARIA  Não fazias nada, tagarela.
 
EULÁLIA  Arrumava a trouxa e ia procurar a minha vida.
 
MARIA  Mas fora destas discussões eles não conversam?
 
EULÁLIA  A que horas? A menina, de manhã muito cedo, vai ver doentes, o patrão mal acorda, veste-se a toda a pressa e toca pra mesma lida.
 
MARIA  Sim, mas quando estão em casa... à hora do almoço e do jantar... 
 
EULÁLIA  Quando estão em casa, se não estão brigando, a menina lê ou escreve, o patrão escreve ou lê. À mesa do almoço ou do jantar, cada um tem o seu livro. Comem de cabeça baixa. Não olham um para o outro!
 
MARIA  Luísa ainda toca e canta?
 
EULÁLIA  Qual, senhora, no outro dia fui abrir o piano para limpá-lo, estavam as teclas cheinhas de bolor. (Eulália tira o chapéu de Maria Praxedes) 
 
MARIA  Luísa há de vir jantar.
 
EULÁLIA  Certamente. E a senhora passa o dia conosco?
 
MARIA  Olha, Eulália, o meu desejo é que não abandones nunca Luísa.
 
EULÁLIA  Fique descansada, patroa. (Tocam o telefone) É verdade, com o diacho da conversa esqueci de dar a resposta ao homem. (Batendo no telefone e falando) Allon! Quem fala? É o Senhor Salazar da Rua do Hospício? Sim. Mas é para o Doutor Pereira, ou para a Doutora Pereira? (Fica algum tempo a ouvir, falando para Maria) Tenha paciência, patroa. Ponha o ouvido aqui e veja se distingue, doutor ou doutora?
 
MARIA (falando ao telefone)  É Doutor Pereira ou Doutora Pereira? (Deixa o telefone) Ouvi bem claro: doutora.
 
EULÁLIA  Ainda bem. Então é para a menina?
 
MARIA  Sim.
 
EULÁLIA  Vou ver lá dentro o que está fazendo a cozinheira. Nunca vi peste maior! 
 
(Maria senta-se à mesa e lê jornais) 
 
 
CENA III Maria Praxedes e Luísa.
 
LUÍSA (entrando)  Bom dia, minha mãe!
 
MARIA  Há uma semana que não me apareces, Luísa, vim ver-te.
 
LUÍSA  Não tenho um minuto de que possa dispor!
 
MARIA  Quando se quer, minha filha... 
 
LUÍSA  É que a mamãe não imagina, nem pode imaginar O que é a vida da médica. Estou visitando doentes desde as seis horas da manhã. (Puxando a lista) E veja a via-sacra que tenho de percorrer ainda hoje.
 
MARIA  És na verdade muito feliz na tua clínica!
 
LUÍSA  Estou formada há um ano e quatro meses, posso dizer com orgulho que neste curto espaço de tempo tenho feito mais que todos os meus colegas juntos.
 
MARIA  Pena é, entretanto... 
 
LUÍSA  Já sei a que vai se referir. Às lutas que se dão aqui nesta casa entre mim e meu marido. O que quer a senhora? Tenho eu porventura a culpa de que ele procure por todos os meios prejudicar os meus interesses, tomando doentes que são meus, exclusivamente meus?
 
MARIA  Mas minha filha, há porventura, meu e teu num casal que se estima?
 
LUÍSA  Há, sim senhora; quando esse meu e teu representa o esforço de cada um. Eu não sou uma mulher vulgar que veio colocar-se pelo fato do casamento sob a proteção de um homem. A minha posição no casal é igual, perfeitamente igual à de meu marido sob o ponto de vista do trabalho. Mas acima desse ponto de vista há ainda outra coisa que a senhora não quer compreender. Sabe qual é?
 
MARIA  Ignoro, minha filha!
 
LUÍSA  É a minha personalidade científica, a minha autonomia médica que meu marido tem tentado ofuscar; mas que eu hei de obrigá-lo a reconhecer, custe o que custar. Custe o que custar, ouviu minha mãe?
 
MARIA (à parte)  Meu Deus! (Alto) Mas vocês então não se amam?
 
LUÍSA  Amamo-nos, minha mãe, amamo-nos. É preciso porém que cada um se conserve no seu posto; que as nossas posições se definam; ou por outra, é preciso que meu marido se convença de que eu posso ganhar perfeitamente a minha vida sozinha e de que ele não é mais inteligente do que eu! (Pondo a mão na cabeça e sentindo como que uma vertigem) 
 
MARIA  O que tens?
 
LUÍSA  Nada.
 
MARIA (apalpando-lhe o pulso)  Mas estás em suores frios.
 
LUÍSA  Estou-me sentindo um pouco enjoada... Mas já passou! Já passou!
 
MARIA  É fraqueza talvez, minha filha. Saíste de manhã tão cedo, sem comer nada.
 
LUÍSA  Tomei ovos quentes e uma xícara de café.
 
MARIA  Não é bastante. Vou ver se há lá dentro alguma coisa. (Vai a sair) 
 
LUÍSA  Não é preciso. Diga a Eulália que mande entrar os doentes lá embaixo. (Maria sai. Luísa tirando uma lista do bolso e um lápis) Rua das Marrecas, já fui; Praça do Rocio Pequeno, Largo do Machado... (Senta-se à mesa, abre um livro e escreve assentamentos) 
 
 
CENA IV Luísa e o Primeiro Doente.
 
PRIMEIRO DOENTE (entrando com uma criança ao colo embrulhada em um cobertor)  Bom dia, senhora Doutora.
 
LUÍSA  Bom dia. Então como passou a pequena de ontem para cá?
 
PRIMEIRO DOENTE  Ah! senhora Doutora, não passou bem, não.
 
LUÍSA  Vamos ver isto, vamos ver isto! (Levanta-se e examina a criança) Ah! está muito melhor. (Apalpando-lhe o pulso) Já não tem febre. O que você deve fazer é mudar-se quanto antes do cortiço onde mora. Aquilo é um lugar terrível.
 
PRIMEIRO DOENTE  Já hoje estive à procura de casa, doutora.
 
LUÍSA  Continue com as pílulas que receitei.
 
PRIMEIRO DOENTE  O que é que ela pode comer, senhora Doutora?
 
LUÍSA  Tem fastio?
 
PRIMEIRO DOENTE  Muito.
 
LUÍSA  Pode comer tudo, somente é bom não abusar de apimentados e salgados. (Primeiro doente vai a sair) Espere. (Escrevendo) Para abrir o apetite tome em cada refeição meio cálice deste vinho que aí vai. (Entrega-lhe a receita) Mande fazer isto na botica do Nogueira, no Largo da Lapa.
 
PRIMEIRO DOENTE  Sim, senhora. Então passe bem. (Sai) 
 
 
CENA V A mesma e Segunda Doente.
 
SEGUNDA DOENTE (entra muito bem vestida)  Doutora!... 
 
LUÍSA (levantando-se)  Oh! como está, minha senhora?
 
SEGUNDA DOENTE  Muito melhor!
 
LUÍSA  Bem, isto é o que se quer. Vamos ver a garganta. (Segura um pequeno objeto de metal que deve estar em cima da mesa e abaixando com ele a língua da segunda doente, examinando a garganta) Aspire... (A segunda doente aspira) Não está de todo boa.
 
SEGUNDA DOENTE  É negócio grave, doutora? Será preciso fazer operação?
 
LUÍSA (sentando-se à mesa e escrevendo) 
 
Não, não, é uma coisa insignificante, um pequeno prolapso da úvula. (Entregando-lhe a receita) Tome uma colher de sopa deste remédio três vezes por dia, uma logo de manhã, assim que acordar, outra ao meio-dia e outra à noite, antes de se deitar. Mande fazer isto na botica do Nogueira, no Largo da Lapa.
 
SEGUNDA DOENTE  Adeus, doutora... 
 
LUÍSA  Adeus!
 
 
CENA VI A mesma e Terceira Doente.
 
TERCEIRA DOENTE  Ai! Ai! Ai! Estou que não posso.
 
LUÍSA  Descanse, descanse um pouco.
 
TERCEIRA DOENTE  Custa-me tanto subir esta escada.
 
LUÍSA  Então? Deu-se mal com aquele remédio que lhe receitei?
 
TERCEIRA DOENTE  Passei um pouco melhor, doutora. Ao menos, consegui dormir duas horas e deitada.
 
LUÍSA  Eu bem lhe disse. (Examinando as pupilas) Não vai mal, não. (Pondolhe as mãos no pescoço) Um bocado melhor.
 
TERCEIRA DOENTE  Eu estou sofrendo do coração, não é, doutora? Fale com franqueza.
 
LUÍSA  Qual coração! Esqueça-se disto.
 
TERCEIRA DOENTE  E estas palpitações que sinto, esta zuada constantemente nos ouvidos?
 
LUÍSA  O que a senhora tem é uma simples anemia que se pode facilmente debelar. (Senta-se e escreve) 
 
TERCEIRA DOENTE  O médico dizia a mesma coisa ao meu defunto e um belo dia quando ele acordou, coitadinho, estava morto.
 
LUÍSA (entregando-lhe uma receita)  Tome um cálice de duas em duas horas por espaço de 3 dias, descanse dois dias e depois venha cá! Mande fazer isto na botica do Nogueira no Largo da Lapa.
 
TERCEIRA DOENTE  Deus Nosso Senhor lhe ajude, Doutora. (Sai andando devagar) 
 
 
CENA VII Luísa e Eulália.
 
(Ao sair a terceira doente, Luísa toca o tímpano que está em cima da mesa) 
 
EULÁLIA (entrando)  A senhora quer alguma coisa?
 
LUÍSA  Diz ao Antônio que vá chamar-me um tílburi.
 
EULÁLIA  Vai sair?
 
LUÍSA  Vou.
 
EULÁLIA (vai saindo e volta)  Ah! é verdade. Recebi pelo telefone um chamado para a senhora.
 
LUÍSA  De quem?
 
EULÁLIA  Do Senhor Salazar, da Rua do Hospício.
 
LUÍSA  É uma casa onde meu marido está tratando. Ouviste bem: é para mim ou para ele?
 
EULÁLIA  Para a Doutora Luísa Pereira, ouvi bem claro. E a mãe da menina que estava aqui ouviu também: Doutora Luísa Pereira. Mas isto é fácil de verificar, senhora, temos ali o telefone... sim, porque eu não quero que venha o patrão depois cá dizer-me como aconteceu outro dia... 
 
LUÍSA  Está bom, vai chamar o tílburi.
 
EULÁLIA  Não senhora, é que as injustiças doem muito e não há neste mundo nada mais triste que pagar o justo pelo pecador... 
 
LUÍSA  Sim, sim... Mas vai chamar o tílburi.
 
EULÁLIA Eu nunca fui apanhada em mentiras. Graças a Deus tenho a minha consciência muito pura e a filha de Manuel Tibúrcio, que Deus haja, não é pra aí qualquer mulher à toa de cuja palavra se possa duvidar.
 
LUÍSA  Se não queres ir dar o recado, vou eu.
 
EULÁLIA  Vou, sim senhora, mas... 
 
LUÍSA  Está bom, está bom! (Empurrando-a para dentro) 
 
 
CENA VIII Luísa e Gregório.
 
GREGÓRIO (entrando com ar meio apalermado)  Não é aqui que mora uma doutora que tem anunciado nos jornais?
 
LUÍSA  Sim, senhor!
 
GREGÓRIO  Ainda que mal pregunte, é Vossa Senhoria?
 
LUÍSA  Uma sua criada.
 
GREGÓRIO  Uê, gentes! Tinham-me dito lá na roça que era uma muié véia e feia. Ora esta! (Pausa) Trata mesmo de moléstias de homens?
 
LUÍSA  Por que não?
 
GREGÓRIO Descurpe, mas eu pensava... 
 
LUÍSA  A consulta é para o senhor ou para alguém de sua família?
 
GREGÓRIO  E para mim mesmo, sinhá dona... 
 
LUÍSA  Conte-me lá o que sofre. (Manda-o sentar e senta-se a seu lado) 
 
GREGÓRIO  Em premero que tudo tenho muita farta de ar e muitas sufocações. Porém o que mais me avexa é uma dor forte aqui mesmo na boca do estambago. (Aponta para o lugar) 
 
LUÍSA  Mas esta dispneia e esta dor... 
 
GREGÓRIO  Na espinhela não tenho nada, não, sinhá dona.
 
LUÍSA  Não, não é isto. Pergunto-lhe se esta falta de ar costuma vir antes ou depois das refeições.
 
GREGÓRIO  De premero vinham antes... mas agora vêm ao despois... Já consurtei a halipatia, homopatia, adosometria, tudo, tudo. Afinal disseram-me lá na roça: — Você já foi ao Nascimento? Já foi ao caboclo da Praia Grande? Pra que não vai vê a Doutora? Tarvez ela te dê vorta. E aqui estou nas mão da sinhá dona.
 
LUÍSA  Tire o paletó. 
 
(Gregório tira o paletó, Luísa vai buscar uma toalha, coloca-a nas costas de Gregório e ausculta-o) 
 
LUÍSA  Conte, um, dois, três... 
 
GREGÓRIO  Um... dois... três... 
 
LUÍSA  Vá contando.
 
GREGÓRIO  Quatro... 5... 6... 7... 8... 9... 10... 11... 
 
LUÍSA  Respire. (Gregório toma aspiração) — Respire mais forte. (Gregório respira mais forte) Mais forte ainda. (Gregório fica de boca aberta tomando uma longa respiração. Luísa passou a auscultá-lo pela frente colocando a cabeça no peito.
 
GREGÓRIO  Que banha cheirosa tem sinhá dona na cabeça!
 
LUÍSA (levantando-se)  Deite-se ali naquele sofá. (Gregório deita-se de lado) Não, de barriga pra o ar. (Gregório deita-se de barriga para cima) Desabotoe-se.
 
GREGÓRIO (espantado)  Desabotoar-me?
 
LUÍSA  Sim, desabotoe o colete! (Gregório desabotoa o colete) Encolha as pernas. (Gregório encolhe as pernas. Luísa apalpa-lhe o fígado) 
 
GREGÓRIO (saltando do sofá) 
 
Ah! Ah! Ah!... Não faça isso, sinhá dona, que eu sinto coscas como quê... 
 
LUÍSA  Deite-se, desse modo não posso examiná-lo. (Gregório deita-se de pernas encolhidas. Luísa apalpa-lhe o fígado) Dói aqui?
 
GREGÓRIO  Ah! Ah! Ah! Que coscas!
 
LUÍSA (sentando-se à mesa)  Pode vestir-se! (Escreve a receita e entrega a Gregório) Tome as pílulas duas vezes por dia; uma ao deitar e outra logo pela manhã. O emplastro é para colocar sobre o fígado. Mande fazer isto na botica do Nogueira, no Largo da Lapa.
 
GREGÓRIO  A sinhá dona qué que eu pague já ou despois?
 
LUÍSA  Depois.
 
GREGÓRIO  Antão quando é que devo vortá?
 
LUÍSA  Para a semana. 
 
(Gregório vai saindo e encontra-se à porta com Pereira) 
 
 
CENA IX Luísa, Gregório e o Doutor Pereira.
 
GREGÓRIO (ao Doutor Pereira que entra)  Deus lhe sarve.
 
DR. PEREIRA  Adeus.
 
GREGÓRIO  Passe bem, sinhá dona. (Sai) 
 
 
CENA X Luísa e o Doutor Pereira.
 
DR. PEREIRA (vendo Gregório sair. A Luísa)  Moléstias de senhoras e crianças. Creio que é isto que está lá embaixo à porta em um grande letreiro!
 
LUÍSA  O que está lá embaixo é: Doutora Luísa Pereira, médica. Especialidade: — moléstias de senhoras e crianças.
 
DR. PEREIRA  Ou isto.
 
LUÍSA  Ou isto, não. São coisas muito diferentes.
 
DR. PEREIRA  De modo que a senhora... 
 
LUÍSA  Clinico em todos os ramos de medicina; ocupando-me com especialidade de moléstias de crianças e de pessoas do meu sexo.
 
DR. PEREIRA  O contrato então que fizemos logo que nos casamos... 
 
LUÍSA Esse contrato perdeu a razão de ser desde o dia em que o senhor se encarregou de dois partos e de um caso de coqueluche, que por direito me pertenciam.
 
DR. PEREIRA  Minha senhora, chegamos a um estado em que a nossa vida juntos vai-se tornar impossível. Ou eu hei de abdicar à minha autonomia profissional, ou, o que é mais triste ainda, à minha posição de chefe na família, ou a senhora conserve-se no lugar que lhe compete.
 
LUÍSA  A sua autonomia de profissional é igual à minha. Na família que constituímos não há chefes e o lugar que me compete é o que estou ocupando.
 
 
CENA XI Os mesmos e Maria Praxedes.
 
MARIA (entrando com uma xícara de caldo)  Toma este caldo, minha filha.
 
DR. PEREIRA  Então a senhora quer positivamente a luta?
 
LUÍSA  Estou preparada, não me arreceio dela.
 
MARIA  Meus filhos, pelo amor de Deus, por tudo quanto pode haver de mais sagrado neste mundo... 
 
DR. PEREIRA (a Maria)  Ah! minha senhora, estou cheio até aqui. (Indica a garganta) Acha que posso, que devo continuar nesta posição humilhante?
 
MARIA Toma o caldo, minha filha.
 
LUÍSA  Não quero, minha mãe. (Maria põe a xícara em cima da mesa) 
 
DR. PEREIRA  Perdi o meu nome como um galé. Deixei de ser o Doutor Pereira para ser o marido da Doutora Luísa Praxedes.
 
LUÍSA  Logo que nos casamos, passei a assinar-me Doutora Luísa Pereira. Tomei, por deferência, o seu nome de família do qual aliás, seja dito de passagem, não precisava. Com o seu nome tenho-me anunciado, com este tenho receitado. Se o público continua a conhecer-me pelo apelido antigo, é porque ainda estão bem vivos na sua memória os sucessos que alcancei na Academia e vai acompanhando pari-passu a marcha progressiva da minha carreira científica! Tenho eu porventura culpa disso?
 
DR. PEREIRA  Os sucessos da Academia!... A marcha progressiva da sua carreira científica! A sua pomada é que a senhora deve dizer!
 
LUÍSA  Pomadas são os agradecimentos de doentes, feitos nos jornais e à custa do médico que os tratou. São as estatísticas publicadas mensalmente nas folhas públicas com exagero escandaloso de cifra e mencionando pomposos nomes, para embair o público, as mais singulares operações.
 
DR. PEREIRA  Não me provoque, senhora, peço-lhe pelo amor de Deus que não me provoque... 
 
MARIA (entre os dois)  Acalmem-se, meus filhos.
 
 
CENA XII Os mesmos e Manuel Praxedes.
 
PRAXEDES (entrando e ouvindo a discussão)  Então o que é isto? estão brigando? Discussões científicas!... Bravo! muito bem.
 
LUÍSA  Pomada! O senhor era o menos competente para atirar-me ao rosto semelhante nome. A minha clínica... 
 
DR. PEREIRA  A sua clínica desaparecerá, minha senhora, no dia em que as mulheres formarem-se às dúzias e aos centos.
 
PRAXEDES  E este dia não está longe. Em todo caso, cabe à minha doutora a glória... 
 
MARIA (baixo a Praxedes)  Pois em vez de acalmar, estás a fomentar discussões!
 
PRAXEDES  Deixa, mulher, isto é muito bonito!
 
LUÍSA  No dia em que as mulheres formarem-se aos centos, a medicina terá tocado o zênite da sua glória; porque só assim entrarão nela as aptidões científicas que até aqui os senhores, egoisticamente, nos têm negado, e os sentimentos de caridade que são o mais belo apanágio do nosso sexo.
 
PRAXEDES  Muito bem!
 
DR. PEREIRA  Sinto não ter vontade de rir; porque o que acaba de dizer só pode ser respondido com uma gargalhada, senhora Doutora Luísa Praxedes... Note que eu digo Doutora Luísa Praxedes, e não Doutora Luísa Pereira.
 
LUÍSA  O grau que recebi foi de Doutor e não de Doutora! A Faculdade de Medicina não conhece Doutoras. Uma vez que toca neste ponto, fique sabendo que vou mandar tirar a placa que está lá embaixo, e declarar pelos jornais que doravante assinar-me-ei Doutor Luísa Praxedes porque foi este o nome com que me formei.
 
PRAXEDES (para Maria)  Sim, senhora! Lá isto é verdade!
 
DR. PEREIRA  Pois bem, senhora Doutora ou Doutor Luísa Praxedes, como queira, eu não estou disposto a representar por mais tempo o papel ridículo de marido de parteira, de professora pública ou de cantora lírica. Sou cabeça do casal. Tenho a minha posição definida em Direito perante a família e perante a sociedade. Ou a senhora muda de rumo ou... 
 
LUÍSA  Acabe o dilema.
 
DR. PEREIRA  Ou eu dou-lhe uma lição que lhe há de ser fatal. (Sai) 
 
 
CENA XIII Luísa, Manuel e Maria Praxedes.
 
LUÍSA  Lição fatal! Que lição fatal poderá ele dar-me?
 
MARIA  Minha filha, são tão feias essas brigas constantes entre seres que se devem estimar... adorar... 
 
PRAXEDES  Sim, podem discutir... acho isso até muito bonito. Da discussão é que nasce a luz. Mas... est de modus in rebus... 
 
LUÍSA  Desejava talvez que eu fosse uma mulher estúpida, ou vulgar, para que não ficassem na penumbra as prerrogativas da sua individualidade? Mas não, eu tenho uma missão a cumprir. Hei de cumpri-la. (Sentindo como que uma vertigem) 
 
MARIA  Outra vertigem, minha filha! Estás tão pálida!
 
LUÍSA  Não é nada.
 
PRAXEDES  Luísa! Luísa!
 
LUÍSA  Já passou! (Eulália entra e dirige-se a Luísa) 
 
 
CENA XIV Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (para Luísa)  Oh! senhora, o tílburi está aí na porta a roer há mais de um quarto de hora.
 
LUÍSA  É verdade, já nem me lembrava... Estou tão fatigada.
 
MARIA  Toma ao menos o caldo que ali está.
 
EULÁLIA  Este deve estar frio. Se a menina quiser, eu vou buscar outro. Olhe que está muito bom; a cozinheira tem o defeito de ser muito faladora e roubar um pouco nas compras, mas lá no que diz respeito a tempero de panela, justiça lhe seja feita, não há nada que se lhe dizer, e olhe, patroa, que eu não preciso estar-lhe em cima a repetirlhe que faça isto, ou faça aquilo.
 
LUÍSA (tomando o chapéu)  Está bem, está bem! Já sei! (Despedindo-se) Até já, minha mãe. (Abraça-a) Adeus, meu pai! (Sai) 
 
EULÁLIA  Coitadinha! Anda numa lida! (Sai) 
 
 
CENA XV Manuel e Maria Praxedes.
 
MARIA  Já viste a tua obra. Estás satisfeito?
 
PRAXEDES  Satisfeitíssimo. O que querias tu? Que um casal de doutores andasse a brigar por causa de arrufos ou questiúnculas de governo de casa?
 
MARIA  Os arrufos e questiúnculas do governo doméstico, meu caro marido, sempre existiram no nosso lar, mas nunca nos levaram, felizmente, ao excesso das cenas a que acabamos de assistir.
 
PRAXEDES  São discussões científicas, minha mulher, muito naturais. Antigamente brigava-se por ciúmes e faziam-se as pazes depois do clássico faniquito. Há ainda hoje quem faça disto, bem sei. Mas o nosso genro e Luísa não estão nas mesmas condições.
 
MARIA  Genro? Genro no nome, porque eu pelo menos, até aqui, sogra não tenho sido.
 
PRAXEDES  Não tens sido sogra?... Ora esta!
 
MARIA  Nas rixas que se dão constantemente nesta casa já viste envolvido o meu nome? Sou para o Doutor Pereira uma criatura completamente indiferente. Dos seus lábios ainda não partiu contra mim a mais pequena censura, ou uma palavra sequer que deixasse transparecer embora sutilmente o veneno do epigrama.
 
PRAXEDES  E queixaste por isso? Queria que ele te chamasse como costumam chamar as sogras: — víbora, jararaca, cascavel... 
 
MARIA  Queria ser uma sogra em regra, porque só assim teria a certeza de que minha filha era verdadeiramente feliz... 
 
PRAXEDES  Mas tu não vês, Maria Praxedes, que este casamento é uma coisa completamente nova? É a primeira experiência que se faz. As peças do maquinismo ainda não estão bem assentadas, não podem por conseguinte trabalhar com a regularidade de um maquinismo já experimentado. Espera um pouco, deixa a coisa entrar em seus eixos e verás que nisto que tu condenas atualmente está a família do futuro, a sociedade do futuro, a felicidade do futuro... 
 
MARIA  Havemos de ver este futuro.
 
 
CENA XVI Os mesmos e Carlota de Aguiar.
 
CARLOTA (entrando)  Entrei sub-repticiamente sem me fazer anunciar.
 
PRAXEDES  Ora, seja bem vinda, Doutora!
 
CARLOTA (inclinando-se diante de Maria)  Minha senhora, a curvatura de meus respeitos.
 
PRAXEDES  Sinceros parabéns pelos triunfos alcançados anteontem no júri. Li em todos os jornais a notícia da sua brilhante defesa.
 
CARLOTA  Foi um debate homérico; com réplica e tréplica, em que derroquei à luz da aurora bruxuleante do Direito moderno, os castelos carcomidos da vetusta legislação, crivados de teorias incongruentes e obsoletas.
 
PRAXEDES  E tratava-se de um caso completamente novo.
 
CARLOTA  A esposa que surpreende o marido com a amante e que resolve a situação trucidando os dois. Mas deixemos o júri, a minha defesa, os meus triunfos. O que me traz aqui é um motivo de ordem grandíloqua, elevada e arquicivilizadora. Senhor Manuel Praxedes, apresento-me candidato à Deputação Geral, pelo Município Neutro.
 
PRAXEDES  Bravo! Bravo! Muito bem!
 
MARIA  Pois as senhoras querem também ser deputadas?
 
PRAXEDES  Por que não? Nos Estados Unidos, as mulheres são caixeiras, empregadas nos telégrafos, nas estradas de ferro, nos correios... são até capitães de navios.
 
CARLOTA  Até bombeiras. Amanhã sairá em todas as folhas a minha circular. Nesta peça estereotipo o programa das reformas sociológicas femininas de que pretendo dotar o meu país. Vai ver, fica a mulher equiparada ao homem em tudo por tudo. É uma revolução.
 
PRAXEDES  Creio bem!
 
CARLOTA  O Brasil está atrasadíssimo na ciência do Direito. Basta considerar que esta ciência não corresponde às aspirações grandíloquas condóricas se é que posso exprimir-me assim... 
 
PRAXEDES  Perfeitamente.
 
CARLOTA  Do nosso progresso material. O telefone invade tudo, o telefone leva o pensamento às mais longínquas distâncias e entretanto ainda não temos o Direito Telegramático, a Jurisprudência Telefonética.
 
PRAXEDES  O telefone podia ter acabado com as precatórias... 
 
CARLOTA  Justo. Entrou perfeitamente no âmago do meu pensamento.
 
PRAXEDES Quando houvesse necessidade de deprecar de um juízo para outro, para uma avaliação por exemplo... 
 
CARLOTA  O juiz a quo ia ao telefone, o ad quem ouvia... 
 
PRAXEDES  Procedia à avaliação... 
 
CARLOTA  E gritava pelo telefone: está cumprida a diligência. Quanta economia de tempo... 
 
PRAXEDES  E de papel!... 
 
CARLOTA  Apoiado! (Tirando do bolso cartões e entregando a Praxedes) Aqui tem para distribuir pelos seus amigos. (O mesmo a Maria) Peço-lhe, minha senhora, que advogue também a minha causa; vai nela hasteada a flâmula da emancipação feminina, que hei de defender até a morte com o gládio incandescente do meu humilde verbo!
 
PRAXEDES (lendo os cartões)  "Para Deputado Geral pelo Primeiro Distrito da Corte: Bacharela Carlota Sinfrônia de Aguiar, advogada. — Telefone 2028." (A Carlota) Muito bem!
 
 
CENA XVII Os mesmos e Doutor Pereira.
 
CARLOTA (ao Doutor Pereira, que entra)  Venho fazer-lhe uma visita e um pedido.
 
DR. PEREIRA (apertando-lhe a mão)  Doutora. Estou às suas ordens!
 
CARLOTA (entregando os cartões a Pereira)  Leia! Dr. Pereira (Lendo) — Já o sabia. E a propósito, incomodou-me bastante o artigo que li ontem no Correio do Norte a respeito da sua candidatura.
 
CARLOTA  Uma publicação a pedido.
 
DR. PEREIRA  Sim. Que miserável!
 
CARLOTA  O meu amigo compreende que se eu fosse dar importância a todos esses cães que ladram nas vielas taludas do jornalismo insalubre.
 
DR. PEREIRA  Faz muito bem. Há coisas que não devem ser respondidas.
 
 
CENA XVIII Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (para Maria)  A senhora vá comer alguma coisinha, que o jantar hoje há de ser um pouco tarde. Venha também, patrão.
 
PRAXEDES (para Carlota)  Quando quiser aparecer por aquela nossa casa... 
 
CARLOTA  Vou vê-lo breve. (Aperta a mão de Manuel Praxedes, que sai) 
 
MARIA (apertando a mão de Carlota)  Doutora... (Sai) 
 
 
CENA XIX Eulália, Carlota e Doutor Pereira.
 
CARLOTA (ao Doutor Pereira)  Esta sua criada pode também prestar-me serviços! Como se chama?
 
DR. PEREIRA  Eulália... 
 
CARLOTA (a Eulália, que espana os trastes)  Vem cá, Eulália!
 
EULÁLIA Minha senhora!... 
 
CARLOTA  Eu sou a Bacharela Carlota de Aguiar.
 
EULÁLIA  Vosmecê é quem diz.
 
CARLOTA  Como? Vosmecê é quem diz? Duvidas?
 
EULÁLIA  Não duvido, não senhora; mas lá na minha terra costuma-se dizer quando um homem fala muito: é um bacharel. Ora, se um bacharel é assim, faço ideia o que não há de ser uma bacharela!
 
CARLOTA  Tens graça. Toma estes cartões! (Dá-lhos) 
 
EULÁLIA  Para que é isto?
 
CARLOTA A qualquer lugar onde fores, deixa dois pelo menos.
 
EULÁLIA  Não há dúvida; daqui a pouco vou à venda da esquina, posso deixálos lá todos. (Continua a espanar) 
 
CARLOTA (ao Doutor Pereira)  A sua senhora, não está?
 
DR. PEREIRA  Saiu. Há de vir logo.
 
CARLOTA  Vou então fazer uma visita ao meu colega ali defronte que pode darme grande parte da votação da Candelária e voltarei depois... Adeus! (Sai) 
 
 
CENA XX Doutor Pereira e Eulália.
 
DR. PEREIRA  Vem cá, Eulália. (Tira do bolso uma seringa) 
 
EULÁLIA  O patrão deseja alguma coisa?
 
DR. PEREIRA (mostrando a seringa)  Sabes o que é isto?
 
EULÁLIA  Sei, sim senhor; é uma seringa.
 
EULÁLIA  Sim, senhor.
 
DR. PEREIRA Mas o que tu não sabes é o que está dentro dela.
 
EULÁLIA  Aí dentro não vejo nada.
 
DR. PEREIRA  Pois olhe, aqui dentro está o micróbio da febre amarela.
 
EULÁLIA  Cruz!!... Credo, meu amo!... Abrenúncio! Arrede-se para lá. Mas o que vem a ser isto de sicróbio?
 
DR. PEREIRA  É um bichinho.
 
EULÁLIA  Então a febre amarela é um bicho? Ora esta!
 
DR. PEREIRA  O que tu não sabes ainda é que metendo-se este bichinho no corpo de uma pessoa fica ela livre de ter o mal.
 
EULÁLIA  Pois então a febre é um bicho; mete-se o bicho no corpo da gente e a gente não tem febre? Tenha paciência, patrão, eu não engulo esta.
 
DR. PEREIRA  É muito simples.
 
EULÁLIA  E como se apanha o bichinho?
 
DR. PEREIRA  Com um instrumento que nós temos, chamado chupete esterilizado.
 
EULÁLIA  Chupete esterelizado, sim, senhor. (Prestando muita atenção) 
 
DR. PEREIRA  Tira-se uma gota de sangue de um doente de febre amarela quase a expirar. Esta gota é deitada em caldo apropriado. Ai o bichinho prolifera!
 
EULÁLIA  O que vem a ser prolifera, patrão?
 
DR. PEREIRA  Procria, desenvolve-se.
 
EULÁLIA  Dentro do caldo! Tudo aquilo? (Faz um gesto com as mãos como indicando formigação) Jesus! que porcaria!
 
DR. PEREIRA  Depois mete-se uma porção daquele caldo dentro desta seringa e injeta-se em um porquinho da índia ou em um coelho.
 
EULÁLIA  Ai! O pobre bichinho, coitado, morre logo!
 
DR. PEREIRA  Não; daí a alguns dias.
 
EULÁLIA  E depois?
 
DR. PEREIRA  Depois tira-se uma gota de sangue deste porquinho da índia e põese em um caldo idêntico. Deste caldo injeta-se ainda outros porquinhos que vão morrendo até que injetado num, ele tenha apenas a febre com caráter benigno. Com o caldo deste então é que se vacina o homem.
 
EULÁLIA Quanto caldo e quanta porcaria, meu amo. Já sei que hoje não janto com o diabo da conversa. Se já estou aqui engulhando... 
 
DR. PEREIRA  Eulália, a epidemia está grassando com muita intensidade, tu és estrangeira, além disto forte e robusta. Estás sujeita de um momento para outro a ter a febre.
 
EULÁLIA  O que é que o patrão quer?
 
DR. PEREIRA  Vacinar-te.
 
EULÁLIA  O quê? Meter essa seringa no meu corpo? Com caldo de febre amarela? Em mim o senhor não mete isto, não, mas é o mesmo. Chegue-se para lá, patrão.
 
DR. PEREIRA  Mas isto não dói, é uma coisa à toa. Não vês; é uma pequena seringa de Pravat.
 
EULÁLIA  É seringa depravada ainda de mais a mais.
 
DR. PEREIRA  Dá cá o braço, deixa-te de histórias.
 
EULÁLIA (gritando)  Socorro! Socorro! Aqui del-Rei!
 
 
CENA XXI Os mesmos, Manoel, Maria e Luísa.
 
LUÍSA (entrando) 
 
O que é isto?
 
PRAXEDES  O que foi?
 
MARIA  Eulália?
 
EULÁLIA (para Luísa)  Oh! senhora, tire aquela seringa depravada da mão do patrão, ou arrumo a minha trouxa e vou-me embora.
 
DR. PEREIRA  Está bem; não te zangues.
 
LUÍSA (ao Doutor Pereira)  Acho pouco curial que o senhor queira estender até as flâmulas desta casa a aplicação das suas teorias microbianas quando sabe que as não aceito. (Pereira ri furioso) Venho de casa de um doente seu.
 
DR. PEREIRA  Está gracejando.
 
LUÍSA  De um doente seu. E vim correndo dar-lhe esta notícia, para dizerlhe que, declarando-me ele que não depositava confiança no tratamento, discordei do seu diagnóstico e receitei.
 
DR. PEREIRA  E quem é esse doente?
 
LUÍSA  O filho do Salazar, da Rua do Hospício.
 
EULÁLIA  O chamado foi para a senhora! Eu ouvi no telefone. (Voltando-se para Maria) E a patroa também ouviu!...
 
MARIA  Eu ouvi bem claro; Doutora Luísa Pereira.
 
DR. PEREIRA (com raiva concentrada)  Minha senhora! Eu disse-lhe que havia de dar-lhe uma lição. O que a senhora acaba de praticar é... 
 
LUÍSA  Diga.
 
DR. PEREIRA  Não digo. Tenho ainda a generosidade de guardar para com o respeito que se deve ao seu sexo, atenções que a senhora não teve para com a profissão que exerce. Depois do ato que acaba de praticar é impossível a nossa vida juntos. Vou deixar esta casa.
 
LUÍSA  Uma separação! Aceito-a! Mas quero que ela seja completa.
 
MARIA  Meus filhos!
 
LUÍSA  Vou mandar chamar meu advogado. (Sai) (Maria encosta-se à mesa) 
 
 
CENA XXII Os mesmos, Carlota, menos Luísa.
 
DR. PEREIRA (a Carlota, que entra)  Doutora, preciso dos seus conselhos profissionais.
 
CARLOTA  É uma prova de confiança que me eleva ao empyreo do desvanecimento. Estou às suas ordens... 
 
DR. PEREIRA  Espero-a, aqui, amanhã, às duas horas da tarde.
 
CARLOTA  Cá estarei. (Doutor Pereira aperta-lhe a mão. Carlota sai pela esquerda, Pereira pela direita) 
 
 
CENA XXIII Eulália, Maria e Manuel Praxedes.
 
EULÁLIA (chorando em altos gritos)  Ah! meu Deus! que desgraça! E tudo por causa daquela seringação da febre amarela! Pelo amor de Deus, senhores, me desculpem, que eu não sou culpada!
 
PRAXEDES (pensando)  Se eles ao menos tivessem um filho... 
 
EULÁLIA (ainda chorando)  Qual filhos, patrão! Se eles não têm tempo para isso... Se nunca pensaram nisso! (Sai a chorar pela esquerda) 
 
 
 
ATO III
 
CENA I Luísa e Eulália.
 
EULÁLIA (a Luísa)  Deste modo a menina está se matando. Não dormiu à noite, não comeu nada... Olhe que não vale a pena. A vida é tão curta que, quando a gente menos espera, está a viajar deitada, sem chapéu e de barriga pra o ar. Venha comer alguma coisita, sim?
 
LUÍSA  Não quero nada.
 
EULÁLIA  Olhe, vou preparar-lhe uma gemada, ou então um mingau de tapioca daqueles que eu costumava fazer quando a menina era pequena, lembra-se?
 
LUÍSA  Já te disse, não quero nada.
 
EULÁLIA  A senhora está zangada comigo?
 
LUÍSA  Não estou.
 
EULÁLIA  Aquela maldita seringa depravada é que foi a causa de tudo. 
 
(Batem) 
 
LUÍSA  Vai ver quem é. 
 
(Eulália vai mas volta logo) 
 
EULÁLIA  O Senhor Doutor Martins.
 
LUÍSA  Manda-o entrar.
 
EULÁLIA  Então a menina não quer tomar nada?
 
LUÍSA  Já te disse que não. Deixa-nos sós. 
 
(Eulália introduz Martins e sai) 
 
 
CENA II Luísa e Martins.
 
MARTINS (apertando a mão de Luísa)  Minha senhora!
 
LUÍSA (indicando-lhe uma cadeira)  Doutor, tenha a bondade de se sentar.
 
MARTINS  Recebi ontem a sua carta.
 
LUÍSA  Abusando das nossas antigas relações de família, relações que muito prezo e venero, tomei a liberdade de pedir-lhe que viesse a esta sua casa para tratar de negócio que me diz respeito.
 
MARTINS  Estou às suas ordens, minha senhora! Questões relativas talvez à profissão que tão brilhantemente está desempenhando. Algum executivo por honorários médicos... 
 
LUÍSA  Oh! por isto não valia a pena incomodá-lo.
 
MARTINS  Como não valia a pena? Invocando há pouco as nossas relações, creia que eu sentir-me-ia profundamente magoado se a senhora precisando de serviços da profissão que exerço, ainda os mais insignificantes, fosse bater à porta de outro advogado. Trata-se então de negócio grave?
 
LUÍSA  Trata-se do meu divórcio.
 
MARTINS  Do seu divórcio?
 
LUÍSA  Sim.
 
MARTINS  Vamos lá, minha senhora, está gracejando!
 
LUÍSA  A minha existência e a de meu marido tornaram-se incompatíveis. Vivermos juntos por mais tempo sob o mesmo teto, fora prolongar uma situação humilhante para a qual me não sinto com forças e que terminaria pelo aniquilamento completo da minha individualidade, é impossível.
 
MARTINS  Seja-me lícito dar-lhe um conselho, minha senhora; não como advogado, mas como amigo dedicado da casa.
 
LUÍSA  Se vem falar-me em reconciliação, doutor, digo-lhe que entre nós dois, ela é um impossível. Conhece-me há muitos anos. Sabe que sou uma mulher superior a caprichos e a paixões e que não daria semelhante passo se não tivesse calculado bem uma a uma todas as consequências.
 
MARTINS  É então do Doutor Martins advogado, e não do amigo, que precisa?
 
LUÍSA  Preciso de ambos, porém, mais do advogado que do amigo. Uma simples separação amigável não me convém. Amanhã reunir-se-ão os parentes, os íntimos, os oficiosos que costumam aparecer em tais ocasiões e viria depois a comédia da reconciliação! Não. Para que a nossa situação se defina por uma vez, é preciso que ela seja pleiteada, embora com escândalo, nos tribunais.
 
MARTINS  Bem. A sua resolução pois, é... 
 
LUÍSA  Inabalável.
 
MARTINS  Tenha a bondade então, minha senhora, de expor os fatos em que se baseia para dar este passo.
 
LUÍSA  Baseio-me apenas em um; mas este por si só é bastante para justificar o meu procedimento.
 
MARTINS  Qual é?
 
LUÍSA  A minha autonomia médica.
 
MARTINS  As causas do divórcio pelo nosso Direito, minha senhora, resumemse em duas: adultério e sevícias.
 
LUÍSA  Então fora deste antediluviano adultério e destas sevícias que deveriam antes fazer parte do Código Criminal, não existe para a mulher nas minhas condições outro recurso de desagravo de direitos?
 
MARTINS O legislador não conhecia Doutoras, minha senhora. Imaginava que as mulheres fossem sempre as mesmas em todos os tempos e lugares.
 
LUÍSA  Sou casada com um homem que exerce profissão igual à minha. Ele aufere os lucros do meu trabalho, alegando, como o Leão da fábula, a posição de chefe. Não satisfeito com isto, procura por meio de subterfúgios e tricas ignóbeis afastar-me do plano em que me coloquei pela capacidade de profissional. Pois bem: hei de cruzar os braços, sofrer resignada todas as humilhações, só porque não posso alegar contra este homem procedimentos brutais para com minha pessoa e ele não pode lançar-me em rosto a infâmia de haver manchado o leito conjugal? Que lei é esta, Doutor? A que vêm este adultério e estas sevícias para o caso em que eu me acho?
 
MARTINS  O caso em que Vossa Excelência se acha, minha senhora, é todo excepcional. O Direito não podia prever estas lutas de interesses e autonomias científicas nas sociedades conjugais. O amor foi sempre a base da família.
 
LUÍSA  O amor, sempre esse eterno amor a humilhar a mulher, a transformá-la em máquina de procriação.
 
MARTINS  Ah! minha senhora, por mais que inovem, por maiores larguezas que deem às aspirações do eterno feminino, ele há de girar fatalmente em torno do círculo do amor, porque não tem outro caminho a percorrer.
 
LUÍSA  Somos então as condenadas de Dante?! Fora desta órbita de ferro traçada por estúpidas convenções sociais — Lasciate ogni speranza... 
 
MARTINS Depende do ponto de vista, minha senhora!... O que Vossa Excelência chama Inferno, eu chamo Paraíso.
 
LUÍSA  Enfim, senhor, nesse Direito que o senhor estuda não há um remédio para o meu mal? Combatem-se as moléstias as mais violentas, o escapelo da cirurgia decepando partes gangrenadas do corpo humano, faz surgir das podridões dessa gangrena a vida, que é tudo quanto pode haver de mais precioso. Lutamos braço a braço contra a morte à cabeceira do doente e vencemos. E o senhor não tem na sua ciência um bálsamo, um alívio sequer para os meus sofrimentos. (Caindo num choro convulso nos braços de Martins) Ah! Doutor, Doutor!... Não pode avaliar que dor pungente é a humilhação.
 
 
CENA III Os mesmos e Maria Praxedes.
 
MARTINS  Acalme-se, minha senhora, acalme-se!
 
MARIA (entrando de chapéu)  Luísa! Luísa!... 
 
LUÍSA  Bom dia, minha mãe! (Maria abraça-a) 
 
MARIA  Estás tão fraca, tão abatida! Por que não vais descansar?
 
LUÍSA  Não tenho nada.
 
 
CENA IV Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (entrando)  Lá está no consultório um doente à espera da senhora!... Eu quis dizer-lhe que a menina não estava em casa, mas se não quer ir vê-lo olhe que ainda está em tempo. Graças a Deus até hoje ainda ninguém me pilhou em mentira; mas sendo preciso, prega-se uma e até duas. Lá por isso não seja a dúvida. Olhe, vou dizer-lhe que a patroa não está. Está dito?
 
LUÍSA  Não, vou vê-lo.
 
MARTINS (a Luísa, que se despede dele)  Calma e resignação.
 
LUÍSA  E o único remédio que me dá? Bem. Verei o partido que cumpre tomar. (Sai) 
 
EULÁLIA  Ai! meu Deus! que desgraça. (Sai) 
 
 
CENA V Maria Praxedes e Doutor Martins.
 
MARIA  Acabo de certificar-me pelas suas últimas palavras, Doutor, que procedeu como um verdadeiro amigo! Nem era de esperar outra coisa de sua inteligência e sobretudo do caráter nobre e elevado.
 
MARTINS  O fato que me foi comunicado, minha senhora, encheu-me das mais tristes apreensões.
 
MARIA  Não há então possibilidade de uma reconciliação, Doutor?
 
MARTINS  Se as rixas fossem da natureza daquelas que se dão naturalmente entre marido e mulher; se se tratasse de um desses temporais originados pelo ciúme e que se desfazem aos primeiros beijos em aguaceiros de lágrimas, compreendo que a felicidade pudesse raiar hoje mesmo debaixo deste teto, mas o que foi exposto por sua filha... 
 
MARIA  São rixas ocasionadas por choques de vaidade e interesses, bem o sei, Doutor!
 
MARTINS  E nestas rixas, minha senhora, não encontrei a mulher. Vi apenas uma criatura híbrida, que não é por certo a companheira do homem.
 
MARIA  Tem razão, Doutor!
 
MARTINS  E no entanto, eu, que assim penso e que assim falo, amo nas mesmas condições.
 
MARIA  A Bacharela Carlota de Aguiar! Já o tinha desconfiado!
 
MARTINS  Aquele demoninho pernóstico com os seus ares enfatuados de homem, mas em que a mulher transparece cheia de encantos, temme transtornado por tal forma a cabeça que, confesso, ainda mesmo vendo as barbas do vizinho a arder, não me sinto com forças de pôr as minhas de molho.
 
MARIA  Está então como vulgarmente se diz, chumbado?
 
MARTINS Chumbadíssimo. Amarrou-me para sempre, não há dúvida, aconteça o que acontecer.
 
 
CENA VI Os mesmos e Manuel Praxedes.
 
PRAXEDES (entrando)  Venho do seu escritório. Então, está resolvida a situação da minha doutora?
 
MARTINS  Uma situação daquelas não se resolve assim.
 
PRAXEDES  Aquilo não é nada, absolutamente nada! Minha mulher faz de qualquer coisa um bicho de sete cabeças e vê tudo neste mundo pelo lado pior.
 
MARIA  O divórcio! A desgraça de uma mulher. Não é nada?
 
PRAXEDES  Qual divórcio! Qual desgraça de uma filha! O que houve, Doutor, foi uma briga mais forte, mas uma briga muito natural. O rapaz, novo, formado há pouco tempo, a rapariga formada no mesmo dia... Ambos inteligentes, muito estudiosos e com o sangue na guelra. Um não quer ficar por baixo, a outra quer ficar por cima. Dizem-se muitas coisas reciprocamente. Engalfinham-se com todos aqueles termos técnicos; mas passada a trovoada voltam de novo à vida calma e serena do lar... como se nada tivesse acontecido.
 
MARTINS  O Senhor Manuel Praxedes é otimista!
 
PRAXEDES  Vejo as coisas como são.
 
MARIA  Como são? Como um verdadeiro doente; é o que tu deves dizer.
 
PRAXEDES  Ah! Ah! Ah! Pois minha mulher não está a fazer trocadilhos, Doutor?... Tem graça... Tem graça... Ora, pois, estamos todos alegres; isto é o que eu quero!
 
MARIA  Alegres?!... 
 
PRAXEDES  Alegres, sim! Deixa o divórcio! (A Martins) Sabe, Doutor, que tenho uma ideia, um ideão?
 
MARTINS  Não é para admirar, com o seu gênio empreendedor!... 
 
PRAXEDES  Chi!... Que empresa! que empresa, Doutor!
 
MARIA  Há de ser igual à da fábrica de papel.
 
PRAXEDES  Já tardava. A senhora em vez de me admirar... 
 
MARTINS  O que vem a ser então?
 
PRAXEDES  Imagine lá o que é.
 
MARTINS  Não sei.
 
PRAXEDES  Uma companhia galinocultora. (Abrindo um rolo de papel que traz na mão e mostrando a Martins) Aqui estão os modelos dos fornos. Segundo os cálculos feitos, com meia dúzia de capões apenas, um galo vigilante e dois procriadores, estou habilitado a inundar de galinhas os mercados de toda a América!
 
MARIA  E da Europa.
 
PRAXEDES  E não diga a senhora brincando; porque se até aqui temos importado ovos de Portugal, doravante, com a minha empresa, tomaremos a desforra exportando para lá galinhas. O lucro é certíssimo! Olhe, vou explicar-lhe. (Tirando do bolso um papel) 
 
MARTINS (tirando o relógio)  Esperam-me no escritório... 
 
PRAXEDES  Vai para baixo ou para cima?
 
MARTINS  Para baixo.
 
PRAXEDES  Acompanho-o.
 
MARTINS  Enganei-me, vou para cima!
 
PRAXEDES  Acompanho-o também. E indiferente. Em caminho mostrar-lhe-ei que isto é negócio que não falha. Está tudo calculado, muito bem calculado.
 
MARIA (a Praxedes) 
 
Pois então abandonas tua filha no estado em que ela está?
 
PRAXEDES  Que estado? Pois eu já te disse que isto não é nada. Eu volto logo. Adeus. 
 
(Despedem-se os dois de Maria e saem) 
 
 
CENA VII Maria e Eulália.
 
EULÁLIA  A senhora ainda de chapéu! (Tira-lho) A menina lá está a dar consultas, coitadinha! Olhe que é forte! Benza-a Deus! (Tocam a campainha) Estão batendo.
 
EULÁLIA  Há de ser algum doente. Vou dizer-lhe que a menina não está em casa. Isto assim não pode continuar. A coitadita passou a noite no sofá do consultório a dar de vez em quando suspiros, muito ansiada... (Tocam) Espere lá, não tenha pressa. Olhe, senhora, eu não devo meter-me nestas coisas, porque quem se mete nos negócios alheios sai sempre mal. O defunto meu pai, que Deus haja, costumava dizer: cada um deve tratar da sua vida, que já não faz tão pouco. Mas, se numa comparação, eu fosse casada com um homem que me estimasse como o patrão estima a patroa, não estava cá a brigar todos os dias por causa desta cambada de doentes. (Tocam) Espere lá, tem muita pressa? A senhora não acha que... 
 
MARIA  Vai ver quem bate! (Tocam) 
 
EULÁLIA  Lá vou, lá vou!... (Sai) 
 
MARIA (suspirando) 
 
Ai! Ai! (Segura o chapéu que Eulália pôs sobre a mesa e sai) 
 
 
CENA VIII Eulália e Carlota.
 
EULÁLIA  A senhora Bacharela tenha a bondade de assentar-se. Vou chamar meu amo. 
 
(Sai. Carlota que deve vir elegantemente vestida mira-se no espelho, endireita a rosa que traz no peito do casaco. Luísa entra, fica à porta a observá-la, por algum tempo. Carlota vendo-a pelo espelho volta-se para falar-lhe) 
 
 
CENA IX Carlota e Luísa.
 
CARLOTA  Apresento à ilustre Doutora a curvatura dos meus sinceros respeitos.
 
LUÍSA (secamente)  Bom dia, minha senhora!
 
CARLOTA  Recebi ontem uma intimação do meu amigo Doutor Pereira.
 
LUÍSA  O seu amigo já vem.
 
CARLOTA  Creio que se trata de negócio pertencente à minha profissão.
 
LUÍSA  Ou outro qualquer, a senhora deve sabê-lo melhor do que eu!
 
 
CENA X Os mesmos e Doutor Pereira.
 
DR. PEREIRA (a Carlota)  Doutora. Esperava-a ansiosamente. (Cumprimentando secamente Luísa) 
 
CARLOTA  Se fui serôdia, ou para servir-me da linguagem vulgar, se não cheguei à hora estipulada, peço-lhe mil desculpas.
 
DR. PEREIRA (para Luísa que não deixou de olhar Carlota)  Preciso conferenciar nesta sala com a minha advogada. 
 
(Luísa sai olhando sempre Carlota e esconde-se atrás da cortina da porta do fundo à esquerda, conservando-se ali durante o diálogo) 
 
 
CENA XI Doutor Pereira e Carlota.
 
DR. PEREIRA  Sentemo-nos.
 
CARLOTA  Trata-se... 
 
DR. PEREIRA  Do meu divórcio.
 
CARLOTA  Um divórcio!!
 
DR. PEREIRA Em duas palavras, resumo-lhe a situação! Sou médico da ponta dos pés até a raiz dos cabelos: minha mulher é médica da raiz dos cabelos até a ponta dos pés. Viver, para mim, é clinicar, clinicar, para ela, é viver. Não podemos clinicar juntos, o que quer dizer que juntos não podemos viver. Diga-me agora o que a sua ciência do Direito pensa a respeito.
 
CARLOTA  Difficelem rem postulasti. O nosso Direito, eivado de arcaísmos, não cogitou propriamente da hipótese.
 
DR. PEREIRA  Se não cogitou, estamos aqui a perder tempo.
 
CARLOTA  Perdão; eu disse não cogitou propriamente; mas a toda a lei se interpreta... 
 
DR. PEREIRA  Se torce, é o que quer dizer.
 
CARLOTA  Scire leges non est verba carum tenere sed vim ac potestatem. Para prosseguir na concatenação lógica das linhas de clinicar, originavam-se rixas ou doestos domésticos?
 
DR. PEREIRA  Constantes. E é por causa deles... 
 
CARLOTA  Bem. Nestas rixas trocaram-se talvez verbos incandescentes que escoriavam pelo menos a epiderme do amor próprio de cada um.
 
DR. PEREIRA  O amor próprio e os interesses.
 
CARLOTA O legislador assinalou apenas duas causas para o divórcio: adultério e sevícias. Há ainda uma causa que os canonistas chamam impedimentos derimentes, mas... está fora da questão.
 
DR. PEREIRA  Não posso alegar a primeira.
 
CARLOTA  Mas havemos de ganhar a demanda pela segunda. Pela segunda, sim, porque constituindo injúrias esses verbos incandescentes das rixas, o que são essas injúrias senão verdadeiras sevícias morais?... O seu caso é o que os canonistas cognominam no idioma vernáculo — incompatibilidade de caracteres.
 
DR. PEREIRA  Aconselha-me então... 
 
CARLOTA  Que proponha a ação. E havemos de ganhá-la.
 
DR. PEREIRA  Bem. (Levanta-se) 
 
CARLOTA  Que sucesso piramidal! Vai ver como vou aureolar de glória o meu nome. Hei de mostrar a esses miseráveis apedeutas o que há debaixo desta arcada craniana. (Bate na testa) 
 
DR. PEREIRA  Decidido porém o divórcio, ficarei numa posição anômala.
 
CARLOTA  Anômala?
 
DR. PEREIRA  Quero dizer que não serei nem solteiro, nem casado, nem viúvo!
 
CARLOTA  Pode casar perfeitamente.
 
DR. PEREIRA  E a indissolubilidade do contrato?
 
CARLOTA (com indiferença)  Desaparecerá... com uma simples mudança de religião.
 
DR. PEREIRA  Ah! (Fica pensativo) 
 
CARLOTA  E uma vez desembaraçado, o meu amigo escolherá para esposa não outra médica; mas sim uma engenheira... uma advogada... 
 
(Luísa tem um ímpeto de indignação, quer entrar em cena mas, arrependese, e esconde-se de novo) 
 
DR. PEREIRA  Então, Doutora, posso dar uma lição em minha mulher?
 
CARLOTA  Pode.
 
DR. PEREIRA  A que horas está amanhã no seu escritório?
 
CARLOTA  Amanhã é... Logo escrever-lhe-ei mandando dizer-lhe qual o dia e a hora em que deve procurar-me. (Apertando-lhe a mão) Adeus! (Pereira aperta-lhe a mão e ela sai) 
 
 
CENA XII Doutor Pereira e Luísa.
 
LUÍSA (sofreando a raiva)  Esteve com a sua advogada?
 
DR. PEREIRA  Sim, senhora.
 
LUÍSA  Uma advogada é sempre preferível a um advogado.
 
DR. PEREIRA  As mulheres são mais inteligentes que os homens.
 
LUÍSA  Obrigada... pela parte que me toca!
 
DR. PEREIRA  Não há de quê!
 
LUÍSA  Sobretudo quando a advogada vem à casa do constituinte toda coquete, de rosa ao peito.
 
DR. PEREIRA  Isto então é ouro sobre azul.
 
LUÍSA  E que sem o menor pudor ou respeito para com o decoro do seu sexo, aconselha ao cliente que mude de religião. (Pereira olha para ela admirado) Ouvi tudo daquela porta. E só Deus sabe o esforço que fiz, a luta que travei comigo para não esbofetear essa mulher e pô-la fora desta casa que ainda é minha.
 
DR. PEREIRA  A senhora esquece-se de que na posição em que nos achamos... 
 
LUÍSA Ah! ela queria vê-lo livre e desembaraçado... Para isto bastavam duas coisas apenas, duas coisas insignificantes, na opinião daquela miserável, torcer a lei e renegar as crenças!
 
DR. PEREIRA  A minha resolução está tomada, minha senhora, não posso nem devo ouvi-la neste terreno. (Sai) 
 
 
CENA XIII Luísa, Eulália e Maria.
 
(Luísa acompanha-o quase rompendo; detém-se e desce, caindo na cadeira à esquerda do sofá) 
 
EULÁLIA  Um chamado para a senhora! Creio que é negócio urgente! O homem está lá embaixo. É um sujeito gordo, coitado! Muito esbaforido, quase que nem pode falar.
 
MARIA (entrando e vendo Luísa a soluçar)  Minha filha! (Abraçando-se ambas) 
 
LUÍSA  Ah! minha mãe! minha mãe! Sou uma desgraçada!
 
EULÁLIA  O que é isto, a menina está a chorar?
 
LUÍSA  Passa-se dentro de mim qualquer coisa de estranho, de anormal, que eu não sei explicar!
 
EULÁLIA  Isto é flato, senhora: vou lá dentro, enquanto o diabo esfrega um olho, fazer-lhe um chazito de capim limão. Esfregue-lhe os pulsos, patroa, esfregue-lhe os pulsos enquanto eu vou preparar-lhe o chá! Ai! Ai! Meu Deus, que desgraça! O que há de acontecer mais nesta casa. (Sai) 
 
 
CENA XIV Maria e Luísa.
 
LUÍSA (agitada)  Meu marido tem uma advogada.
 
MARIA  A Carlota de Aguiar?
 
LUÍSA  Uma miserável, uma infame, uma mulher sem pudor.
 
MARIA (alegre)  Bravo, minha filha!... 
 
LUÍSA  Que lhe aconselha que se divorcie, que mude de religião, que se lhe oferece até para substituir-me. Ouvi tudo daquela porta, minha mãe... Não sei como não morri. A minha cabeça estala! (Senta-se à esquerda) 
 
 
CENA XV Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (entrando com o chá)  Aqui está o chazito. Tome, patroa, enquanto está quente.
 
MARIA  Leva isto para dentro!
 
EULÁLIA  Tome o chá que é muito bom.
 
MARIA  Leva, já te disse... (Eulália sai) 
 
 
CENA XVI Luísa e Maria Praxedes.
 
LUÍSA  Eu imaginava que não pudesse haver neste mundo sofrimento mais terrível que a humilhação. Todos os golpes, porém, que me feriram a vaidade, são mil vezes mais ligeiros do que este que me fere diretamente aqui. (Aponta o coração) É o coração da mulher, minha mãe.
 
MARIA  Não é um músculo oco, como dizias, Luísa?!
 
LUÍSA  Não: há dentro dele sentimentos que eu fingia ignorar. Eu enlouqueço! Ai! minha cabeça! minha cabeça!
 
 
CENA XVII As mesmas, Doutor Pereira e depois Eulália.
 
DR. PEREIRA (de chapéu na mão para Luísa)  Disse-me há pouco, minha senhora, que esta casa ainda era sua... Fique em paz nos seus domínios. Eu me retiro.
 
LUÍSA (tomando-lhe a frente)  Há então outra mulher que pretende substituir-me?
 
EULÁLIA (entrando)  Oh! patroa, que resposta devo dar ao homem que está lá todo esbaforido? Além deste chegaram mais dois com chamados urgentes.
 
LUÍSA (agitada)  Manda-os embora, todos, entendes? Vai lá embaixo, arranca da porta da rua a placa que anuncia o meu nome. Já não sou a Doutora Luísa Pereira. Sou uma miserável mulher que não tem a dignidade precisa para repelir um homem que a repudia. Vai. 
 
(Eulália sai) 
 
 
CENA XVIII Os mesmos, menos Eulália e Praxedes.
 
PRAXEDES (com uma carta)  Deram-me esta carta da Doutora Carlota de Aguiar para entregarlhe.
 
LUÍSA  Esta carta pertence-me. (Arranca-lhe a carta e lê) Espero-o amanhã no meu escritório à uma hora da tarde. Estarei só. (Atirando a carta ao chão; a Pereira) Saia, senhor... saia! (Desata em pranto convulso e tem um ataque) 
 
DR. PEREIRA  Luísa! (Segura-a e leva-a para o sofá) 
 
MARIA  Eulália! Eulália! (A Manuel) Vai ver qualquer coisa lá dentro depressa!
 
DR. PEREIRA  Não lhe deem nada. Ela está no seu estado interessante. (Ajoelha-se e beija-lhe a mão) Luísa!
 
MARIA (a Praxedes)  Ouviste? Ah! Praxedes! que alegria! Estamos salvos! (Segura-lhe o rosto e dá-lhe uma porção de beijos) 
 
 
CENA XIX Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (entrando com a placa onde se lê o seguinte letreiro. Doutora Luísa Pereira, médica. Especialidade: Moléstias de senhoras e crianças)  Aqui está a placa! (Vendo Maria beijar o marido, puxa o avental e tapa a cara) Oh! patroa!... Cruz! Credo!
 
 
 
ATO IV Sala regularmente mobiliada. Ao lado um berço.
 
ENA I Luísa e Eulália.
 
LUÍSA (ninando ao colo uma criança, cantarolando)  Tu, tu, ru, tu, tu, ru!.
 
EULÁLIA  Deixe-me carregá-lo um poucochinho, a senhora deve estar cansada!
 
LUÍSA  Não sei o que ele tem hoje, está tão impertinente!
 
EULÁLIA (tirando a criança do colo de Luísa e carregando-a)  Não é nada, patroa!... (Olhando-a) Como é bonitinho! Olhe, isto daqui para cima é a mãe, sem tirar nem pôr. (Mostrando o nariz e a testa) Daqui para baixo, é o pai, escarradinho, (mostrando a boca e o queixo) e as mãozinhas então, Jesus! Nunca vi nada tão parecido.
 
LUÍSA  De quem são as mãos?... 
 
EULÁLIA  Do avô, patroa. Até tem as unhas fêmeas como as dele.
 
LUÍSA  Neste andar acabarás por achá-lo parecido até com o meu defunto bisavô que nunca viste. (Segurando no queixo da criança e fazendo-lhe festas) Estão caçoando com você, não é, meu negrinho?
 
EULÁLIA  Olhe lá como ele ri!... Ai que gracinha!
 
 
CENA II As mesmas e Maria.
 
MARIA  Dá cá, dá cá este ladrãozinho, que ainda não segurei nele hoje! (Tirao do colo de Eulália e carrega-o) 
 
LUÍSA  Não o acha um pouco abatido, minha mãe?
 
MARIA  Qual, menina! Está tão coradinho!
 
EULÁLIA  A patroa permite que eu meta o meu bedelho onde não sou chamada?
 
LUÍSA  O que é?
 
EULÁLIA  Eu acho que dão banhos demais nesta criança!
 
MARIA  Querias então que ele não se lavasse?
 
EULÁLIA  Não, ora, mas é que esses banhos de corpo esfregado, zás, zás, que te zás, com uma esponja tiram muito a sustância duma pobre criatura. O que convém é um banho de sopapos.
 
LUÍSA  Mas que história é essa de banhos de sopapos?
 
EULÁLIA  Pois a patroa não sabe? Deita-se o pequenino dentro da bacia e a gente de longe, com a mão aberta, vai-lhe jogando água em cima. (Imitando o barulho d’água) Xoque! Xoque! Xoque!
 
LUÍSA  Tens cada lembrança.
 
EULÁLIA  Eu cá nunca tomei banhos senão de sopapos e olhe a senhora que tenho-me dado muito bem com eles!
 
 
CENA III Os mesmos e Praxedes.
 
PRAXEDES (entrando e querendo tirar a criança)  Vem para o colo de vovô, meu bem!
 
MARIA  Deixa-o aqui. Ele está tão bem!
 
PRAXEDES  Mas há dois dias que não lhe faço uma festinha.
 
MARIA (falando com a criança)  Com quem você quer ir? Com o vovô ou com a vovó?
 
EULÁLIA  Está rindo outra vez! Olhe que gracinha!
 
PRAXEDES  Se está rindo é por que quer vir comigo. (Tira-o e carrega-o) 
 
MARIA  És muito desajeitado! Não é assim que se carrega uma criança!
 
PRAXEDES  Então como é?! Quem é que carregava aquela quando era pequenina? (Indica Luísa) 
 
EULÁLIA  Lá isso é verdade, senhora! O patrão sempre teve muito jeito para ninar a menina. Todas as vezes que a carregava ao colo ela principiava a berrar que era um Deus nos acuda!
 
PRAXEDES  O que é isto lá?
 
EULÁLIA  A verdade manda Deus que se diga, patrão. De uma feita ainda me lembro que até lhe arranhou o nariz!
 
PRAXEDES  Não é tal, tu é que foste sempre muito bruta!
 
LUÍSA  Oh! papai, cuidado que está quase a cair. Não o segure assim.
 
 
CENA IV Os mesmos e Doutor Pereira.
 
DR. PEREIRA (entrando) 
 
Venha cá, seu Luizinho... (Tira a criança dos braços de Praxedes) Ainda não tomou hoje a bênção a seu papai. Como passou?
 
PRAXEDES  Não se pode estar aqui dois minutos com o menino.
 
MARIA  É verdade! Vem um puxa, vem outro pega, vem outra segura.
 
EULÁLIA  É a alegria desta casa, patroa!
 
DR. PEREIRA  O pior, é que ele já começa a ficar manhoso.
 
MARIA  Coitadinho.
 
DR. PEREIRA  E quem lhe está pondo as manhas é a senhora! (A Maria) A senhora, sim! Por que é que ele quando está chorando no berço, cala a boca apenas o carregam ao colo? Por que é que quando está no colo chora e sossega logo que a pessoa que o está ninando começa a passear?
 
MARIA  Ora, isto é próprio de toda a criança!
 
DR. PEREIRA  Não é tal. E porque a senhora habituou-o a dormir no colo e passeando.
 
MARIA  São os avós que perdem sempre os netos.
 
LUÍSA  Neste ponto, minha mãe, o Pereira tem razão!
 
DR. PEREIRA  Hoje foi isto; amanhã há de ser outra coisa.
 
LUÍSA (tomando a criança do colo de Pereira)  Deixa-me levá-lo para o berço!
 
MARIA (apontando para Luísa)  Aquela que ali está foi educada por mim!
 
DR. PEREIRA  Aquela não era neta, era filha. É muito diferente.
 
MARIA  Quer dizer que agora sou sogra!
 
DR. PEREIRA  Não se zangue comigo, minha mamãezinha, mas creia que daria o mais solene cavaco se a senhora, carinhosa e desarrazoada, como são em geral todas as avós, começasse desde já a contrariar o programa da educação que imaginei para o meu rapaz.
 
PRAXEDES  Então tem um programa já feito?
 
DR. PEREIRA  Por que não?
 
PRAXEDES  Bravo! Bravo!... Muito bem! Eu também assim o entendo. De pequenino é que se torce o pepino. Olhe, se eu não me metesse, é verdade que já foi um pouco tarde, na educação de Luísa... 
 
MARIA  Cala a boca, cala a boca, que é melhor!
 
EULÁLIA (ao lado de Luísa, junto ao berço) 
 
Não acha que a cabecinha dele está um pouco alta? coitadito, é capaz de ficar com o pescoço torto. (Endireita o travesseiro) 
 
DR. PEREIRA  Enfim o meu programa é fazer deste rapaz um verdadeiro homem.
 
PRAXEDES  Foi o que eu fiz com a Luísa.
 
MARIA  Lá isso é verdade. Felizmente porém, a Divina Providência meteu-se no meio e ela hoje é uma mulher.
 
DR. PEREIRA  Veja se tenho ou não razão. A senhora começa a habituá-lo agora a dormir no calor do colo, mais tarde quando ele quiser saltar, pular, desenvolver-se, cumprir enfim as justas reclamações da natureza, há de dizer: — menino, fica quieto, menino, passa para aqui, há de amarrá-lo ao pé da mesa, prendê-lo na sala de costura. E não satisfeita com isto, incutir-lhe-á o medo do papão do quarto escuro, do pobre cego, do saci, do zumbi!... A criança educada nesta escola, onde, infelizmente, aliás, se tem formado muita gente, acabará por tomar-se um verdadeiro poltrão. Não quero isto. Meu filho há de ser um homem; mas um homem no rigor da palavra, preparado para as lutas físicas e morais da vida.
 
PRAXEDES  Sim, senhor!
 
EULÁLIA  Parece-me que ele quer mamar, senhora.
 
LUÍSA (tirando-o do berço)  Vamos dar um passeio. (Vai saindo com Eulália) 
 
DR. PEREIRA  Até logo.
 
LUÍSA  Vais sair já?
 
DR. PEREIRA  Tenho dois doentes na vizinhança!
 
LUÍSA (falando para o menino)  Dá um beijinho em papai!
 
DR. PEREIRA (beijando-o)  Adeus seu Luís, veja lá como se porta.
 
LUÍSA (falando pelo menino)  Deixe estar, papai, que eu hei de portar-me muito bem. Eu já sou um homem de juízo. 
 
(Pereira sai) 
 
EULÁLIA (acompanhando Luísa, que vai a sair)  Olhe como ele abre a boca! Está-se espreguiçando, coitadinho. 
 
(Saem) 
 
 
CENA V Maria e Manuel Praxedes.
 
PRAXEDES  Deves estar contente. Já és sogra!
 
MARIA  Contentíssima!
 
PRAXEDES  Mas vamos a saber de uma coisa, e isto para mim é o mais importante: Luísa deixou definitivamente a clínica?
 
MARIA  Ainda o duvidas?
 
PRAXEDES  Pois então por um mero capricho, por uma fantasia, por uma caraminhola que se encaixou na cabeça, ela atira sem mais nem menos pela janela fora o seu futuro?
 
MARIA  Que futuro?
 
PRAXEDES  Ora que futuro! O futuro dela. Está visto que não há de ser o teu nem o meu.
 
MARIA  Mas o futuro dela é o presente que estamos vendo.
 
PRAXEDES  Carregar o filho e dar-lhe de mamar?... 
 
MARIA  Sim.
 
PRAXEDES  Mas, para amamentar uma criança não era preciso cursar seis anos uma Academia. Se eu a tivesse destinado para isso, tinha dado outra orientação à sua vida.
 
MARIA  Que queres? As leis da natureza são mais fortes que a vontade dos reformadores.
 
PRAXEDES Não! Isto não pode continuar assim. A menina tinha uma carreira brilhante diante de si. O seu nome principiava a ser conhecido, a clínica aumentava de dia para dia, e com ela o interesse do casal... 
 
MARIA  O que pretendes fazer?
 
PRAXEDES  O que pretendo fazer?
 
MARIA  Sim.
 
PRAXEDES  Vou ter uma conferência com Luísa.
 
MARIA  Para quê?
 
PRAXEDES  Para dizer-lhe que não seja tola, que mande recolocar a placa na porta da rua e continue a clinicar, porque este é o seu meio de vida.
 
MARIA  E quem dá de mamar ao filho, ao teu neto, pelo qual és um verdadeiro babão?
 
PRAXEDES  Ora, mulher, pois faltam por aí amas-de-leite para o netinho?
 
MARIA  E achas isso natural? Olha, meu amigo, se a galinocultura, com todos os seus galos vigilantes e procriadores não é bastante para satisfazer a tua atividade, trata de arranjar outra empresa. Há tanta coisa por aí. Um elevador para o Pão de Açúcar por exemplo, um túnel submarino para a Praia Grande, um restaurante no Bico do Papagaio, uma nova fábrica de papel, se quiseres... Mas pelo amor de Deus, deixa em paz a vida de Luísa.
 
PRAXEDES  Paz! Paz! A vida é a luta, senhora. E o que a senhora chama de paz, não é paz!
 
MARIA O que é então?
 
PRAXEDES  É pasmaceira. Não posso nem devo consentir que a Doutora Luísa Pereira, ou antes, que a Doutora Luísa Praxedes, como é conhecida, sacrifique a posição brilhante que já tinha conquistado.
 
MARIA  Aos deveres... de mãe!
 
PRAXEDES  Aí vem a senhora com a cantilena de todos os dias; os deveres de mãe... Pois ela não pode ser mãe e médica ao mesmo tempo? Não quer chamar uma ama, quer dar de mamar ao pequeno... Pois que dê a de mamar e clinique... uma coisa não impede a outra... 
 
MARIA  Com esta lógica prática... 
 
PRAXEDES  E além disso sendo a especialidade dela moléstias de crianças, nada mais natural do que ser chamada para a clínica daquelas enfermidades a médica que tem filhos. Pelo menos está mais experimentada.
 
MARIA  Queres então fazer reviver nesta casa as lutas de outrora! Há um ano, pouco mais ou menos, quando me disseste: — se eles tivessem um filho, não entrava em tua mente o sonho de felicidade que presenciamos? O que sonhavas então?
 
PRAXEDES  Não sonhava coisa alguma; não tenho por hábito sonhar. Desejei-lhe um filho, porque sempre ouvi dizer que os filhos apertam mais os laços conjugais. Mas o que eu nunca podia prever, é que ele desse este resultado. Isto não está direito.
 
 
CENA VI Os mesmos e Luísa (carregando o filho).
 
PRAXEDES  Não largas esse menino?
 
LUÍSA  Estou muito aflita, papai. Coitadinho! Esteve lá dentro a chorar, tão inquieto. Veja se ele tem febre!
 
PRAXEDES  A mim é que tu o perguntas?
 
LUÍSA  Veja, mamãe: a Eulália disse-me que o pulso estava regular.
 
PRAXEDES  Pois também foste consultar a Eulália! Ora, louvado seja Deus!!!
 
 
CENA VII Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA (entrando com um pires na mão)  Cá está, patroa, cá está. Isto não é nada: o que o pequeno tem é uma dor de barriga.
 
MARIA  O que é que trazes aí no pires?
 
EULÁLIA  Algodão queimado com óleo de amêndoas doces, senhora! É um santo remédio. Chimpa-se isto no umbigo da criança e não há dor de barriga que lhe resista.
 
LUÍSA  Vamos, Eulália, vamos!
 
EULÁLIA  O melhor é levá-lo para o berço! 
 
(Luísa leva a criança para o berço) 
 
MARIA (baixo a Praxedes)  Vai ali junto àquele berço e se és capaz convence a tua doutora de todas essas belas teorias que pregaste há pouco. Anda, vai, meu reformador!
 
PRAXEDES  Parece incrível!
 
LUÍSA  Dir-se-ia que está mais aliviadinho.
 
EULÁLIA  (aplicando o curativo) Ora, ora! Daqui a pouco está a dormir que é um gosto. É santo remédio, senhora! Quisera de contos de réis às vezes que fomentei o umbigo da menina com isto. Uma ocasião ainda me lembro.
 
LUÍSA  Não faças barulho, ele está dormindo!
 
PRAXEDES (consigo) 
 
Contado não se acredita!
 
LUÍSA  Psiu! Papai! Pode acordá-lo... (A Maria, dirigindo-se para a esquerda) Não faça barulho, mamãe! 
 
(Maria sai nas pontas dos pés pela esquerda. Praxedes senta-se pensativo. Eulália e Luísa embalam o berço) 
 
 
CENA VIII Luísa, Eulália, Praxedes e Doutor Pereira.
 
DR. PEREIRA  Acabo de estar neste instante com o Doutor Martins.
 
PRAXEDES  Ia com a senhora, a Carlota de Aguiar?
 
DR. PEREIRA  Com a senhora e uma ama toda cheia de fitas e carregando o primeiro bebê.
 
LUÍSA  Já tem um filho a Carlota?
 
DR. PEREIRA  Ora que admiração! Estão casados há um ano e tanto.
 
LUÍSA  E rapaz, ou menina?
 
DR. PEREIRA  Uma menina e muito bonitinha. Quando me lembro que tiveste ciúmes... (Luísa baixa a cabeça) Confessa, vamos lá, que foste uma grande tolinha.
 
LUÍSA  Ainda está muito pedante?
 
DR. PEREIRA  A mesma coisa.
 
PRAXEDES  Era uma rapariga inteligente.
 
DR. PEREIRA  Viva... 
 
PRAXEDES  E creio que abandonou o foro, porque há muito tempo não lhe tenho visto o nome nos jornais.
 
DR. PEREIRA  Vive para a sua Luisinha. Ah! a pequena chama-se Luísa, é tua xará.
 
LUÍSA  E o nosso, Luís.
 
DR. PEREIRA  É verdade, que coincidência!
 
PRAXEDES (pensando)  Então abandonou tudo?
 
DR. PEREIRA  Tudo. O marido foi nomeado Presidente para o Amazonas.
 
PRAXEDES  O Doutor Martins mandou-me participação de casamento. Eu e minha mulher não o fomos visitar... Também depois das cenas que se deram... 
 
DR. PEREIRA Comuniquei que estávamos morando juntos. Mostrou grande desejo de ver-nos. "Por que não vai até lá em casa" disse-lhe eu. "Ora, não sei!" balbuciou. Afinal, disse-lhe a mulher: "Vamos, mas há de ser hoje, porque partimos amanhã." Daqui a pouco, portanto, devem estar aí. Fiz bem ou mal?
 
LUÍSA  Fizeste bem.
 
DR. PEREIRA  És um anjo! (tocam a campainha fora. A Eulália) Vê quem toca.
 
LUÍSA (mostrando o pequeno a Pereira)  Olha como está gordinho... Vou pôr-lhe ao pescoço duas figas.
 
DR. PEREIRA (rindo)  Para livrá-lo do mau olhado?! Pois acreditas também nisso?!
 
LUÍSA  Não sei!
 
DR. PEREIRA (rindo)  Aposto que acreditas!
 
LUÍSA  Acredito. (Esconde o rosto no peito de Pereira) 
 
DR. PEREIRA  Tolinha. 
 
(Saem os dois) 
 
 
CENA IX Manuel e Eulália.
 
(Manuel fica pensativo por instantes; depois levanta-se, vai ao berço e embala a criança) 
 
EULÁLIA (entrando)  Um chamado para a patroa.
 
PRAXEDES (levantando-se)  Para Luísa?
 
EULÁLIA  Sim, senhor... 
 
PRAXEDES  Vai já avisá-la.
 
EULÁLIA  Avisá-la? Nessa não caio eu!
 
PRAXEDES  Vai avisá-la, já te disse.
 
EULÁLIA  Quem eu vou chamar é o patrão, esse sim.
 
PRAXEDES  Mas o doente é para ela ou para ele?
 
EULÁLIA  Agora não há aqui mais para ela, nem para ele! E admira-me bastante que o patrão morando nesta casa ainda não saiba que a menina abandonou de uma vez todos os doentes.
 
PRAXEDES  De uma vez não. Ficou assentado, logo que ela se sentiu no seu estado interessante, que deixaria a clínica por algum tempo.
 
EULÁLIA Pois deixou para sempre, senhor! O único doente que ela tem agora é estezinho. (Aponta para o berço) E creia que este dá-lhe mais que fazer que todos os outros juntos.
 
 
CENA X Os mesmos e Luísa.
 
PRAXEDES  Se o chamado é para Luísa, não tens o direito de pregar uma mentira.
 
EULÁLIA  Mas eu não minto, senhor, nunca menti. Menos essa!
 
LUÍSA (que tem entrado e está junto ao berço)  O que é isto, Eulália?
 
EULÁLIA  E o senhor que está aqui a dizer que eu minto. A senhora algum dia apanhou-me em mentira?
 
LUÍSA  Mas o que foi?
 
PRAXEDES  Nada mais, nada menos, que um chamado para ti.
 
LUÍSA  Para mim?
 
EULÁLIA  Sim, senhora!
 
LUÍSA  Então vai já avisar meu marido!
 
EULÁLIA  Era o que eu ia fazer. Mas o patrão pôs-se aqui com uma lenga-lenga muito grande, e sem mais nem menos, zás! chimpa-me na bochecha: — Você é uma mentirosa! Ora, senhora, isto dói, é preciso confessar que dói muito, sim, porque, no fim de contas por mais baixa que seja uma pobre criatura de Deus... 
 
LUÍSA  Está bem, vai chamar meu marido.
 
EULÁLIA  Se eu já tivesse sido apanhada em mentira.
 
LUÍSA  Tens razão.
 
EULÁLIA  Eu sou uma mulher honrada.
 
LUÍSA  Sim, sim.
 
EULÁLIA  Fique a patroa sabendo que no Porto rejeitei propostas muito vantajosas e não era cá meia dúzia de mequetrefes. Eram viscondes e barões, sujeitos apatacados. Se quisesse escorregar, senhora, podia estar hoje muito bem!
 
LUÍSA  Já sei, já sei, Eulália.
 
EULÁLIA  As injustiças doem.
 
LUÍSA  Sim, sim, sim; mas vai chamar teu amo! (Eulália sai resmungando) 
 
 
CENA XI Luísa e Manuel Praxedes.
 
LUÍSA  Coitada! É uma boa alma! E ultimamente tem sido tão carinhosa para meu filho!
 
PRAXEDES  Ora! Até dá-lhe remédios!
 
LUÍSA  É verdade!
 
PRAXEDES  O que me admira é que os aceites.
 
LUÍSA  E por que não?
 
PRAXEDES  Não valia a pena surrar durante 6 anos os bancos de uma Academia e encetar brilhantemente a clínica, afrontando estúpidos preconceitos sociais para chegar a este triste resultado!
 
LUÍSA  Triste resultado?
 
PRAXEDES  Sim. Queres nada de mais triste, para uma mulher em tuas condições! que papel representas hoje?
 
LUÍSA  O único, meu pai, que pode e deve representar uma mulher.
 
PRAXEDES Então o juramento que prestaste no dia do teu grau de socorrer todos aqueles que te viessem bater à porta.
 
LUÍSA  Meu pai: dizem que o cérebro da mulher é fraco. Pois bem, por um sentimento de vaidade, que dizem também ser inato em nosso sexo, eu enchi esse cérebro de tudo quanto a ciência pode ter de mais grandioso e mais útil. Percorri com coragem inaudita toda a escala do saber humano na minha especialidade. Calquei ódios e vaidades dos colegas, ergui a cabeça, sem corar, acima desses preconceitos sociais de que falou há pouco e que eu também considerava estúpidos! Venci. Entrei na sociedade triunfante com o meu título. O prestígio que se formou em tomo do meu nome fez-me esquecer de que era uma mulher... A glória atordoava-me... Dentro de mim sentia, porém, qualquer coisa de vago, de estranho, que não sabia explicar! Eu que muitas vezes no anfiteatro havia apalpado o coração humano, que o tinha dissecado fibra por fibra, que pretendia conhecer-lhe a fundo a fisiologia! Desconhecia entretanto, o sentimento mais sublime que enche todo esse órgão. Tudo quanto aprendi nos livros, tudo quanto a ciência podia dar-me de conforto, não vale o poema sublime do amor que se encerra neste pequeno berço!
 
PRAXEDES  Então esta criança... 
 
LUÍSA  É bastante, meu pai, para encher toda a minha alma.
 
PRAXEDES  Mas minha filha, já não te falo em glórias, no prestígio do teu nome, nos compromissos que tomaste para com a sociedade, olha um pouco para os teus interesses, que não podes desprezar, por amor mesmo deste que aqui está (Aponta o berço) e diz-me com toda a franqueza: é justo que abandones por um falso ponto de vista, a missão sublime que tinhas no teu casal, cooperando honestamente para a formação e o aumento do pecúlio dele?
 
LUÍSA  O pecúlio do casal, pelas leis naturais, meu pai, compete ao marido.
 
PRAXEDES  Então abandonas todos os teus direitos, todas as tuas obrigações, todos os teus deveres?
 
LUÍSA  Tudo; exceto a felicidade de criar e educar meu filho.
 
 
CENA XII Os mesmos e o Doutor Pereira.
 
DR. PEREIRA (dirigindo-se ao berço)  Este maganão ainda está dormindo?
 
LUÍSA  Ainda. Não o acordes. Recebeste um chamado?
 
DR. PEREIRA  Já vou. E para o Luís Maria, o dispéptico mais maçante que tenho na minha clínica!
 
 
CENA XIII Os mesmos e Eulália.
 
EULÁLIA  Oh! patroa, sabe quem está aí? Aposto que não adivinha.
 
LUÍSA  Quem é?
 
DR. PEREIRA  É o Martins com a mulher.
 
EULÁLIA  É verdade. A senhora não imagina como está engraçada a ama da menina. Tem uma touca deste tamanho, (indica) com duas fitas enormes que arrastam até o chão. Mando-os entrar para aqui mesmo?
 
DR. PEREIRA  Sim. (Eulália sai) 
 
LUÍSA (para Pereira)  Aposto em como a filhinha dele não é mais bonita que o nosso Luís.
 
DR. PEREIRA  Vaidosa!
 
 
CENA XIV Os mesmos, Martins, Carlota e a ama (com uma criança).
 
MARTINS (apertando a mão de Pereira)  Já vês que cumprimos a nossa palavra!
 
DR. PEREIRA  E que eu os recebo como amigos antigos, sem a menor cerimônia nesta sala onde Luísa passa os dias a namorar o seu bebê.
 
CARLOTA  Quero vê-lo! Quero vê-lo! 
 
(Luísa leva-a ao berço) 
 
LUÍSA  Está acordado, felizmente. (Tira-o do berço e entrega-o a Carlota) 
 
CARLOTA (com a criança ao colo) 
 
E um querubim rafaelesco! Como está gordo e anafado! Dir-se-ia uma rósea aurora de maio!
 
DR. PEREIRA  Gosta muito de crianças?
 
CARLOTA  Adoro-as! (Mostra a Martins) Olha, meu Lacinho.
 
PRAXEDES  Seu Lacinho?
 
MARTINS  E o poético diminutivo por que sou hoje conhecido em casa.
 
LUÍSA  Deixe-me ver agora a sua. Já sei que é uma menina.
 
CARLOTA  É verdade.
 
LUÍSA (tirando a criança do colo da ama)  Oh! É muito bonitinha!
 
MARTINS  Sai ao pai!
 
CARLOTA  Tem paciência, meu Lacinho, mas todos dizem que ela é sem tirar nem pôr a minha efígie.
 
LUÍSA (mostrando a Pereira)  Olha!
 
DR. PEREIRA  É muito galante!... 
 
LUÍSA (a Carlota)  E a senhora que a está amamentando?
 
CARLOTA  Sim, e a senhora também cria o seu?
 
LUÍSA  Também!
 
CARLOTA  Coitadinha! A minha veio chorando tanto no bonde. Creio que tem fome. Se me permitisse... 
 
LUÍSA  Que lhe dê de mamar? Pois não! Vou fazer o mesmo ao meu. 
 
(Trocam as crianças: Luísa senta-se de um lado e dá de mamar ao filho; Carlota faz o mesmo do outro lado) 
 
PRAXEDES (a Carlota)  Então o foro, a candidatura, a Deputação Geral pela corte, os projetos grandiosos da reforma da nossa legislação... 
 
CARLOTA  Chi!... Está toda molhada! (Para a ama) Vê aí um cueiro. 
 
(A ama tira um cueiro que deve trazer dentro de uma cesta e entrega-o a Carlota que vai pô-lo na criança, entregando o molhado à ama) 
 
MARTINS (a Praxedes)  Quer resposta mais eloquente? O senhor pergunta-lhe pelos sonhos de ontem, ela responde-lhe com o cueiro da sua Luisinha.
 
PRAXEDES  Afinal tudo isto acabou em cueiros!
 
 
CENA XV Os mesmos, Maria e Eulália.
 
MARIA  Bravo! Bravo! As duas doutoras amamentando os filhinhos! (Para Carlota que quer levantar-se para falar-lhe) Não se incomode. (A Martins) Dê-me um abraço. (Martins abraça-a) É, na realidade, feliz!
 
EULÁLIA (entrando)  Ele não quer mamar, senhora! Eu o carrego! (Toma do colo de Luísa a criança) 
 
MARIA (a Praxedes)  Olha, meu amigo, em que deu o teu programa filosófico, político, moral e social, a tua evolução do futuro.
 
PRAXEDES  Sim, mas não perdi de todo o meu latim. (Tomando a criança e mostrando-a a todos) Aqui está um médico de raça! (Dá-lhe muitos beijos) 
 
EULÁLIA  De raça! Ai que reinação! Ah! Ah! Ah!

 

 

                                                                  França Júnior

 

 

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