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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS DUAS FACES DA FELICIDADE / Kay Thorpe
AS DUAS FACES DA FELICIDADE / Kay Thorpe

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Sexta-feira, 13! Aquele não poderia ser um dia de sorte para Júlia. Ao voltar para sua casa com o marido Ross, aconteceu o terrível acidente, que apagou de sua mente qualquer lembrança do passado. Júlia perdera completamente a memória, mergulhando num abismo tão profundo, que todas as lembranças fugiram e o passado se apagou. Depois de algum tempo no hospital, Júlia acorda para uma outra vida e descobre que a sua existência estava dividida em duas etapas: um passado transformado em cinzas e um futuro incerto, duvidoso e nebuloso nos braços daquele homem arrogante que se dizia seu marido! E Júlia não podia acreditar que, no passado, tivesse se apaixonado por aquele homem sem alma. Ou seria tudo aquilo uma mentira para envolvê-la numa trama cruel, onde ela não passava de um brinquedo?

 

 

                             

 

 

A mancha de luz tremeluziu durante alguns momentos, voltou a esmaecer, em seguida começou a definir seus contornos e finalmente materializou-se em um rosto emol­durado por um gorro branco. Um rosto encorajador, bom, sorridente.

— É isso mesmo — repetiu a voz, dessa vez mais próxima. — Você vai ficar boa. Boa de verdade!

A voz e o rosto não combinavam. Júlia fechou os olhos por alguns segundos, abriu-os novamente e focalizou-os no homem de avental branco, de pé ao lado da cama. Era baixo e magro, e seu cabelo grisalho e fino apresentava-se cuidadosamente penteado. Seus de­dos seguravam o pulso dela, e os olhos estavam presos no relógio. Sacudiu a cabeça, olhou para ela e sorriu com ar de satisfação.

— Você nos deixou preocupados por algumas horas, minha jo­vem, mas parece que agora já está bem melhor. Você vai ficar boa em um abrir e fechar de olhos. Como está se sentindo?

— Esquisita — falou em um murmúrio. — Acho que eu não...

— A voz sumiu, e a fronte contraiu-se ligeiramente. — On... onde é que estou?

— No Hospital Otterbidge — ele respondeu prontamente. — Você foi trazida para cá depois do desastre.

— O... desastre?

— Você não se lembra? Bem, isso é comum nesses casos. Você recebeu uma pancada na cabeça.

— Minha cabeça? — A mão levantou-se devagarinho e tocou a atadura na têmpora, em seguida voltou a apoiar-se sobre a colcha.

— Está doendo um pouquinho. — Falava hesitante e aquela man­cha branca como algodão em sua mente recusava-se a desvanecer-se. — Há quanto tempo estou aqui?

— Há quase sete horas — ele disse. — Agora chega de conversa, já falamos bastante, sra. Mannering. Mais tarde haverá tempo de sobra, depois que a senhora tiver descansado. Seu...

Ela ouvia confusamente. Sra. Mannering? Quem era sra. Man­nering? Devia haver algum engano. O nevoeiro começava a dissi­par-se, apesar de ela não conseguir recordar nenhum detalhe do acidente.

— Meu nome é Gardner — disse, tornando-se cada vez mais consciente da rigidez maxilar — Júlia Gardner. E sou senhorita, não senhora.

O médico e a enfermeira trocaram um olhar furtivo antes de assumirem uma postura profissional. Foram rápidos, mas não su­ficientemente para disfarçar seu embaraço. Para Júlia, mesmo na­quele estado de semiconfusão, o que acontecera era bastante óbvio. Acontecera um desastre envolvendo várias pessoas e as identidades tinham se misturado. A culpa era dela, claro. Quantas vezes seu pai lhe havia recomendado levar alguma prova de identidade toda vez que saísse? Seu pai. Lentamente, mas com segurança, sua men­te começava a funcionar novamente. Seu pai tinha morrido havia quase dois anos, em consequência de ataque cardíaco, alguns dias depois que ela fizera o vigésimo segundo aniversário. Eram somen­te os dois, desde que ela completara doze anos. Mesmo dois anos não eram suficientes para amortecer a dor daquela recordação que voltava.

— Não se deixe abater — disse o médico, enquanto as emoções perpassavam em seu rosto. — Depois de passar tantas horas em estado de inconsciência é de esperar que vá levar algum tempo até recuperar seu pleno controle. Relaxe, e tudo voltará ao devido lu­gar. — Fez um sinal à enfermeira. — Vou dar um remédio para fazê-la dormir. Quando acordar novamente vai estar se sentindo muito melhor.

Júlia torceu para que isso desse certo. Naquele momento se sentia um bocado tonta.

— Meu rosto está dolorido — disse lentamente. — Estou... Fi­carei com cicatrizes?

O sorriso dele foi tranquilizador.

— Não —respondeu com firmeza. —A dor vem da batida. Traga um espelho, enfermeira. Vamos resolver esse assunto já, já.

O espelho foi trazido e ela pôde contemplar-se nele. O rosto ali refletido era pálido e dele ressaltava uma área escura que se es­tendia da orelha e seguia ao longo do maxilar inferior, no lado esquerdo. Havia um arranhão superficial no queixo, e uma atadura muito branca cobria-lhe a fronte, acima da qual elevava-se um tufo de cabelo claro. O resto lhe era bastante familiar: olhos azuis, nariz pequeno e reto, a boca naquele exato momento parecia um tanto trêmula, e o queixo se mantinha firme.

Aliviada, sobretudo ao constatar que as palavras de conforto do médico não eram vãs, bebeu obedientemente a poção que a enfer­meira havia preparado e deixou-se afundar novamente nos traves­seiros. Havia uma dezena de perguntas que ela queria fazer, mas naquele momento isso lhe pareceu um esforço excessivo. Como dis­sera o médico, mais tarde haveria tempo de sobra. Deixou-se ficar muito quieta e mergulhou no sono.

A luz do sol que se punha invadia o quarto quando ela voltou a acordar, e ocorreu um outro breve momento de tomada de cons­ciência. Tinha aberto os olhos havia alguns segundos até que se deu conta da presença de mais alguém. Virando cautelosamente a cabeça, viu um homem de pé diante da janela. Dessa vez não era o médico. Ele usava terno cinza, e seus cabelos abundantes refle-tiam um tom castanho quando a luz do sol neles incidia. No mo­mento em que o olhou, ele moveu a cabeça, e em seu rosto surgiu uma expressão estranhamente atenta.

— Alô, Júlia — ele disse calmamente.

Insegura, ela o fitou. Tanto quanto se lembrava, jamais o tinha visto antes, e no entanto ele se dirigira a ela em termos de fami­liaridade, que deixavam pouca dúvida de que a conhecia. Não era um homem bonito, pensou, o rosto era forte demais para isso. Tam­bém não era nem um pouco terno, a julgar pela expressão da boca. Denotava uma firmeza e uma determinação que chegavam quase à falta de compaixão.

Um ligeiro tremor apossou-se dela.

— Desculpe-me — disse com hesitação. — Não consigo me lem­brar... Eu o conheço?

Os olhos cinzentos se estreitaram, e por um longo momento ele permaneceu contemplando-a,

— Você não consegue se lembrar de nada? — perguntou ele finalmente.

— Em relação ao desastre, não, se é a isso que você se refere. Você também foi atingido?

— Pode-se dizer que sim. — Ele dizia isso de um modo estranho.

— Ah, então você talvez possa me contar o que aconteceu. Ainda não tive muitas oportunidades de perguntar a alguém daqui.

Seguiu-se uma outra pausa bastante longa antes que ele dissesse:

— Você caiu do carro. Por sorte eu ia devagar, caso contrário você com toda certeza teria morrido. — Ele a olhava detidamente.

— O carro é novo. Você provavelmente pretendia abrir a janela e mexeu na maçaneta errada. Isso já aconteceu antes.

A perplexidade apoderou-se dela.

— Eu estava no carro com você?

— Sim. — Ao que tudo indicava, ele estava procurando as pa­lavras exatas, apesar de não lhe parecer um homem que se per­turbasse com muita frequência. — Tínhamos saído de uma festa e íamos para casa. Era tarde, e você estava cansada. Eu estava...

— Eu... não compreendo. — Levantou a mão trêmula e passou-a pelos lábios que tinham ressecado subitamente. Percebeu um bri­lho dourado e permaneceu imóvel, sem acreditar no que via. No seu terceiro dedo havia um anel, uma aliança larga de ouro na qual estavam cinzelados pequenos lírios. Ela a contemplou, com os olhos muito arregalados,

— Eu a coloquei no seu dedo há três meses. — Havia um ligeiro tremor em sua voz. — Sou Ross Mannering, Júlia. Seu marido.

— Não! — A exclamação era apenas um murmúrio. — Não, náo pode ser. Eu não tenho marido. — Seus olhos dirigiram-se do anel a seu rosto, revelando o pânico que ia por dentro dela. — Meu nome é Júlia Gardner. Eu nunca o vi antes!

— Gardner era seu nome de solteira — ele disse. — Nós nos casamos em Caxton Hall, passamos a lua-de-mel na Áustria e de lá viemos para Hampshire. Você não se recorda de como estava entusiasmada com a casa? Três chalés encostados um ao outro, no meio de uma vastidão sem fim. Você disse que ela lhe recordava aquela casinha de chocolate, na história de Joãozinho e Maria, dava até vontade de comer. Você até mesmo...

— Pare com isso! — Comprimia os lábios com os dedos e cerrava os olhos. — Não é verdade! Não pode ser verdade! Meu nome é Gardner. Nunca estive na Áustria. O que é que você está tentando fazer?

— Acalme-se. — Ele estava na cabeceira, tentando alcançar suas mãos e fechando-as nas dele — Acalme-se. — Sentou-se na beirada da cama. — Olhe para mim, Júlia. Abra os olhos e olhe para mim!

Foi o que ela fez, lutando contra o desejo de retirar suas mãos das dele e gritar-lhe para que se afastasse dela.

Seria possível que estivesse sonhando com tudo isso?, pôs-se a imaginar, perturbada. Aquilo tudo não podia ser real. Simples­mente não podia! Mas ao mesmo tempo que pensava naquilo sabia que não era um sonho. Ele não era do mesmo estofo de que são feitos os sonhos. Ele, portanto, estava mentindo. Ela não conse­guia imaginar quais as razões para tal, mas ele tinha de estar mentindo. Que mulher poderia esquecer seu próprio esposo, seu próprio casamento?

— Que dia é hoje? — perguntou ele, e o cenho dela franziu-se, novamente tomada pela confusão.

Data? Que importância poderia ter uma data naquela situação maluca? Ela tentou pensar, O desastre devia ter acontecido na véspera, quando ela se dirigia do escritório para casa, e era uma sexta-feira... sim, dia treze, sexta-feira. Com toda certeza não era difícil lembrar-se desse detalhe.

— Hoje é dia catorze — disse ela, e notou uma expressão estra­nha nos olhos dele. — Sábado, dia catorze de junho.

Ele a contemplou detidamente, por um longo momento, e quan­do voltou a falar sua voz era um tanto diferente.

— Catorze de junho foi o dia seguinte ao nosso primeiro encontro — disse. — Ambos concordamos com o fato de que não sermos supersticiosos é uma boa coisa. — Dessa vez a pausa foi breve. — Hoje é vinte e seis de setembro.

Nos segundos que se seguiram a batida de seu coração parecia encher o quarto. Disse com a voz embargada:

— Não acredito.

— Você tem de acreditar. Olhe... — Largou uma das mãos e, na cadeira ao lado da cama, pegou um jornal dobrado em dois e abriu-o, mostrando a primeira página. — Aqui está, com todas as letras e números.

Lá estava, de fato, e não havia como escapar disso. Tonta, tentou encarar o que aquilo significava. Em algum lugar e de algum modo ela havia perdido três meses inteiros de sua vida. Três meses, du­rante os quais ela tinha conhecido e desposado o homem que naquele momento a encarava. Três meses, durante os quais tinham vivido juntos, como marido e mulher. Perturbada, olhou para aque­la mão que ainda segurava a sua, para aqueles dedos alongados, dos quais emanavam força e agilidade. Marido e mulher.

Ele não fez a menor tentativa para detê-la enquanto retirava a mão e a escondia por debaixo da coberta. Não houve mudança al­guma em sua expressão, além de uma ligeira contração do músculo do maxilar.

— Desculpe-me — disse ela, em tom de desespero. — Não pos­so... Não é fácil compreender. — Fez um esforço sobre-humano para controlar o tremor das pernas e pôr alguma ordem em sua mente perturbada. — Você disse que nos casamos há mais de três meses. Mas se nos conhecemos apenas no dia treze de junho...

— Foi o que se pode chamar de amor à primeira vista. — Tirou do bolso uma cigarreira de aço inoxidável, abriu-a, fez uma pausa e fechou-a novamente, sem tirar nenhum cigarro. — Eu estava na cidade a negócios e fui até a firma em que você trabalhava. Havia uma festa no escritório, em homenagem a uma das garotas que se despedia para se casar. Convidei você para jantar fora naquela noite. Casamo-nos seis dias depois. O resto já lhe contei.

Fizera-o, com efeito, e no entanto não lhe ocorria a menor lem­brança do que se passara. A sexta-feira tinha sido um dia rotineiro de trabalho na agência de seguros, onde desempenhava a função de secretária. De fato, não sabia precisar a hora exata em que tinha deixado o escritório, mas isso podia ser devido à pancada na cabeça. Ela a moveu confusamente no travesseiro. A noite passada, ou o que lhe parecia ser a noite passada, ficara três meses atrás. Ela devia se forçar a entender isso. E começar de novo. Uma festa no escritório para uma das garotas que se despedia a fim de se casar, ele tinha dito. Isso não significava absolutamente nada. Duas das datilógrafas eram noivas, mas tanto quanto ela sabia não havia nenhuma conversa relativa a casamento em um futuro próximo, apesar de que ambas estavam economizando loucamente para po­der alugar uma casa. Estavam mesmo? Concentre-se, ela disse a si mesma desesperadamente, concentre-se!

Quando a porta se abriu foi um alívio. Ver novamente o médico era quase como ver um velho amigo. Ela o conhecia. Sabia quem ele era, ou pelo menos o que ele era. Viu seus olhos dirigirem-se de seu rosto para o de seu companheiro, sentiu a mensagem não enunciada que passava entre os dois homens. Então ele aproxi­mou-se e tomou-lhe o pulso. Seus modos eram enérgicos e inspira­vam confiança.

— Não deve deixar que isso a preocupe, sra. Mannering. A am­nésia temporária após uma pancada na cabeça é bastante comum. Algumas vezes é apenas uma questão de horas, e sabe-se de casos que levam dois dias.

— Existe gente que nunca se recupera? — ela indagou em tom neutro, e o médico hesitou.

— Talvez, mas é muito raro. Está com fome?

— Não — ela respondeu com sinceridade.

— Pois vai estar, assim que sentir o cheiro do supremo de ga­linha. Foi preparado especialmente para a senhora. Dentro de al­guns dias sairá daqui novinha em folha, pode crer. — Olhou para o homem. — Acho que seria uma boa idéia se sua senhora repou­sasse um pouco, sr. Mannering. Se o senhor puder voltar novamen­te amanhã de manhã.

— Claro. — Pegou a capa de chuva no encosto da cadeira e voltou até a cama. Seu sorriso denotava um certo cansaço. — Tudo vai dar certo — disse. — Não se preocupe. Boa noite, Júlia.

Ela ficou tensa no momento em que ele se debruçou sobre ela, porém ele apenas pousou os lábios em seu rosto e endireitou-se novamente. O médico acompanhou-o até o corredor, mas não fechou completamente a porta do quarto. Podia ouvir o murmúrio das vozes e conseguia distinguir a do homem que se dissera seu marido, devido ao tom grave. Não conseguia ouvir o que estava sendo dito, mas isso também era fácil adivinhar. Ficou lá, olhando desampa­rada para as paredes de um branco imaculado até que o médico voltou ao quarto.

— A coisa importante — disse ele com firmeza — é não se preo­cupar. A mente costuma agir desse modo estranho. Frequentemen­te ela se recusa a liberar uma lembrança, e as coisas só acontecem a partir do momento em que ela deixa de ser pressionada.

— Mas não se trata apenas de uma lembrança — ela disse. Trata-se de uma série de acontecimentos. Como é que eu consigo me recordar do dia em que ele disse que nos conhecemos e no entanto não me lembro dele? Não faz o menor sentido!

Ele balançou a cabeça.

— E uma pergunta que não posso responder, porque não conheço a resposta, não completamente. Tudo que sabemos é que no mo­mento sua mente se recusa a admitir certas lembranças que se ligam umas às outras. — Fez uma pausa, sorriu e disse com deci­são; — Precisamos dar tempo. Quero que a senhora tente comer um pouco quando a enfermeira lhe trouxer a refeição. Em seguida ela lhe dará um sedativo e a senhora irá dormir. — Voltou a cabeça de leve para distinguir os sons que vinham do corredor. — Ela vem vindo, a menos que eu me engane. Prometa que vai tentar relaxar.

— Sim. — Havia pouca coisa mais que ela pudesse dizer, e nada que pudesse fazer enquanto permanecesse naquele leito de hospi­tal. — Quando é que vou poder me levantar?

— Não vamos pôr os carros diante dos bois. Vamos ver como a senhora se sente amanhã de manhã. Eu virei logo cedo vê-la, sra. Mannering.

Sra. Mannering. Sra. Ross Mannering. Era melhor que ela co­meçasse a se acostumar, porque era assim que ela se chamava. Mas ela não queria ser quem ela era, pensou incoerentemente. Não queria ser uma mulher casada com um homem tão completa e totalmente estranho.

A noite foi agitada, e a manhã desagradável, pois seu estado não havia melhorado. Júlia acordou às sete e passou umas duas horas imaginando o que ia fazer. As enfermeiras eram a própria bondade, mas havia muito pouco que elas pudessem fazer para ajudá-la em seu problema básico. Dependia de si mesma.

Quando o dr. Stewart chegou, lá pelas nove horas, ela conseguira adquirir uma boa dose de controle sobre suas emoções. Ficar ner­vosa não adiantaria nada. Esboçou um sorriso em resposta à sua saudação, e ele balançou a cabeça em sinal de aprovação.

— Assim é que se reage! De nada adianta deixar que as coisas a deprimam. Vamos dar uma olhada em sua cabeça antes de irmos mais adiante.

A atadura saiu com facilidade, e com ela o curativo que cobria a área da pancada na têmpora. Ele apalpou a área com todo cui­dado, mostrou-se satisfeito ao constatar que não havia nenhum ferimento sério e disse que retiraria o curativo.

— A senhora vai ficar com uma ligeira cicatriz durante algumas semanas — acrescentou. — E logo será coberta pelo cabelo. Gos­taria de sentar-se ao lado da janela por uma ou duas horas?

— Gostaria muito — ela replicou, ansiosa por qualquer mudança que a fizesse sair daquela cama e lhe possibilitasse escapar do círculo de seus pensamentos confusos. Fez uma pausa e esforçou-se para prosseguir. — Sabe a que horas o sr. Mannering virá?

— Disse que às dez, quando telefonou agora de manhã. — Sua voz era propositadamente desprovida de expressão. — Tenho cer­teza de que ele vai ficar muito contente por vê-la de pé e com a aparência tão melhor. — Ele a contemplou e acrescentou suave­mente: — Também para seu marido não deve estar sendo fácil, sra. Mannering. Ele deve estar se sentindo como alguém diante de um muro intransponível.

Mas não tão intransponível quanto seu próprio muro, pensou,

— Tenho de vê-lo a sós? — perguntou desesperada. — O senhor não pode ficar comigo?

— Sinto muito — respondeu. — Não seria sensato. Ele é seu marido. Há coisas a ser discutidas que dizem respeito unicamente a vocês dois. — Havia solidariedade em seu olhar. — Acredite em mim, posso muito bem entender como a senhora se sente, mas é preciso tentar voltar a confiar nele. Talvez, ao conversarem, sua memória comece a voltar.

— Sim. — Ela não acreditava nisso e tinha certeza de que ele também não. Se a amnésia tivesse sido meramente temporária, ela teria voltado ao estado normal após uma noite de sono. Mas ele tinha razão. Devia obrigar-se a pensar em Ross Mannering como seu marido. Devia!

Assim que o médico saiu, a enfermeira ajudou-a a levantar-se da cama e a pôr um roupão azul que combinava com a camisola azul-clara que usava. O tecido era caro, e o corte perfeito. Júlia viu a etiqueta e se deu conta de que não poderia comprar um roupão de alto preço. A não ser por um certo tremor nas pernas e a dor no maxilar, sentiu-se razoavelmente bem. E ela precisava estar bem, pensou, olhando os ponteiros do relógio de parede. Havia mui­tas coisas que ela tinha de saber.

A vista da janela era muito pouco inspiradora. Um pequeno pátio dois andares abaixo, um muro alto de pedra e além dele os tetos de uma cidade, no qual a torre de uma igreja era o único ponto de interesse imediato.

Otterbridge, era o nome que o dr. Stewart tinha dado ao lugar, e era em algum ponto de Hampshire. Ela tinha certeza unicamente disto, e hesitou em pedir à enfermeira maiores detalhes. Com quan­to menos gente ela tivesse de discutir sua situação, melhor.

Ficando a sós por alguns minutos, foi até a mesinha ao lado da cama, sentindo-se quase culpada enquanto abria a gaveta e exa­minava o conteúdo. Havia uma pequena bolsa de cosméticos, os quais ela reconheceu: um vaporizador com um perfume que com quase toda certeza era francês, e inteiramente a seu gosto, porém fora de suas possibilidades, como constatou, um lenço, muito limpo e bem passado, com a inicial J em um dos cantos, e outra bolsa para objetos de toalete. Nada havia ali que a esclarecesse. Nada que evocasse a recordação daquelas semanas que haviam ficado para trás.

Era difícil acreditar que aquela situação realmente existisse, mas no entanto ela tinha de obrigar-se a aceitá-la como um fato. O anel em seu dedo, as coisas que usava, o perfume francês, tudo isso fazia parte daqueles três meses perdidos. Se ao menos pudesse se recordar de alguma coisa entre aquela sexta-feira de junho e o momento em que havia recobrado a consciência naquele quarto vinte e quatro horas atrás... Alguma coisa que fosse!

Uma breve pancada na porta a fez estremecer. Fechou a gaveta rapidamente e tentou dominar o nervosismo que se apoderava dela enquanto Ross Mannering entrava no quarto. Ela notou a largura dos ombros sob o paletó que lhe caía tão bem, assim como a eco­nomia controlada dos movimentos que denotavam saúde e apuro perfeitos. Sua idade era indeterminada. Trinta e quatro? Trinta e cinco? Ela não sabia.

— Como é que você se sente? — perguntou ele, junto aos pés da cama. — Estou vendo que retiraram a atadura.

— Sim. — Ela estava perdida, sem saber o que lhe dizer. O que poderia ser dito ao homem com quem tinha vivido e que no entanto falhara completamente em reconhecer? — O dr. Stewart disse que durante algum tempo ficará uma cicatriz, mas que o cabelo a co­brirá. — Seu olhar desviou-se do dele. — Obrigada pelas flores. São lindas.

— Fico contente porque você gosta delas. — Estudou-a durante alguns momentos. — Incomoda-se se eu sentar?

Ela olhou rapidamente em torno do quarto.

— Parece que não há nenhuma outra cadeira.

— Eu me ajeito na beirada da cama.

E o gesto o levou inevitavelmente para mais perto. Se ele a tocasse, ela pensou em pânico, gritaria. E no entanto ele tinha pleno direito de tocá-la, segurá-la em seus braços, beijá-la, se qui­sesse. Ela lhe tinha concedido aquele direito. Era sua mulher. Tal­vez, se ela se pusesse a repetir isso para si mesma, a coisa tomasse um aspecto de realidade.

— Não se preocupe — disse ele, e seus lábios se contraíram um pouco —, não vou me aproximar mais do que isto. Precisamos con­versar, Júlia.

— Eu sei. — Ela esboçou um pequeno gesto de desamparo e deixou as mãos caírem sobre o colo. — Por onde começamos?

— Acho melhor eu lhe falar a meu respeito. — Fez urna pausa. — Sou um corretor e tenho escritório em Southampton. Nossa casa fica a uns trinta quilómetros daqui. — Ele parecia estar fazendo uma seleção dos assuntos sobre os quais iria falar. — Conheço seu antigo patrão, Bill Grieves, já há algum tempo e habitualmente fazemos algum negócio quando há oportunidade. Foi por isso que apareci no escritório naquela sexta-feira.

Naquela sexta-feira. Júlia desejou poder retornar àquele dia que, do modo como ele falava, parecia tão distante. Não que isso lhe fizesse algum bem, a menos que ela conseguisse lembrar-se dos outros detalhes.

— Aquela festa — ela disse lentamente. — Acho que você não se lembra do nome da garota que ia se casar.

Ele franziu o cenho.

— Agora você me pergunta, provavelmente eu o ouvi quando vocês a brindavam, mas... — Balançou a cabeça — É importante?

— Acho que não. Só que eu não consigo me recordar de que houve uma festa de despedida de alguém naquela semana.

— Estavam fazendo uma brincadeira a respeito de alguém cha­mado Ernie. Pelo que entendi, a garota, ou o noivo, havia ganho um prémio na loteria. Isso ajuda?

— Não — admitiu ela, desanimada. — Creio que não. Tanto quanto me lembro, não houve nada de extraordinário naquela se­mana. — Seus dedos seguraram com força a borda do lençol, e ela, fazendo um esforço, perguntou: — Por que você casou comigo?

Houve uma breve pausa antes que ele respondesse:

— Você tem algo contra as razões habituais?

— Não, mas... — Ela não conseguiu enfrentar seu olhar — você não age como se estivesse apaixonado por mim.

— Não ajo? — Havia uma ligeira ponta de ironia no tom com que ele falava. Estranho, mas eu tinha a impressão de que a última coisa que você queria era perceber qualquer traço de emoção da minha parte. Você fica gelada se eu me aproximo dois passos de você. Se pareço desligado é porque estou fazendo o que me é pos­sível para lidar com uma situação que qualquer homem acharia difícil aceitar.

— Desculpe-me. — Sua voz era insegura. — Eu também estou fazendo o que posso. Não é fácil.

Ele esboçou um pequeno gesto involuntário dirigido a ela, mas corrigiu-se ostensivamente. — Sei que não é — disse. — Prossiga e pergunte tudo o que você quiser. Tentarei lhe dar uma resposta honesta.

— Está bem. — A pergunta que se seguiu era necessária, mas ela precisou de todo seu controle para formulá-la tão abruptamen­te. — Nós... nós combinávamos?

Ele estava inclinado para a frente, com os cotovelos apoiados no joelho e a cabeça baixa.

— Se você quer saber com isso se tínhamos diferenças de opi­nião, a resposta é não. — Um sorriso muito ligeiro surgiu e desa­pareceu. — Somos parecidos em muitas coisas, nós não aceitamos as coisas como elas vêm. Isso torna a vida interessante algumas vezes,

Júlia bem que podia imaginar, embora interessante não fosse o adjetivo de sua escolha. Desde que seu pai morrera tivera de ser independente. Era bem plausível que tivesse se ressentido de qual­quer tentativa dele de impor sua vontade a ela, E no entanto devia ter ficado claro, quando ela o conheceu, que havia um homem que gostaria de ser o lado dominante em qualquer relacionamento, o que, nesse momento, era muito evidente. Ou poderia estar ocor­rendo o fato de que sua percepção agora era mais aguda porque estava livre da emoção que ele havia despertado nela, a ponto de convencê-la a desposá-lo em um prazo tão curto? Ela o tinha amado de verdade ou tinha sido levada a se convencer de que o amava? Ela tinha de reconhecer que ele era um homem a quem ela teria achado extremamente atraente em circunstâncias diferentes.

— Todos os casais brigam de vez em quando — ele prosseguiu. — E sempre dizem que o primeiro ano é o pior. Duas pessoas não podem aprender a viver juntas da noite para o dia. — O sorriso surgiu de novo, e ele levantou a cabeça. — A cama de casal é o melhor modo de fazer as pazes.

A cor subiu a seu rosto pálido. Ela indagou rapidamente:

— Você sempre viveu nesta região?

— Não, nasci e fui criado em Londres, como você.

— Por que foi que você se mudou para cã?

— Por várias razões. — A hesitação foi tão rápida que pareceu ser fruto de sua imaginação. — Durante uns dois anos eu tinha um sócio na cidade e então decidi me estabelecer por conta própria. Esta região me pareceu muito boa. Mudei para cá há uns cinco anos. — Ele a encarou firme. — Isto mais ou menos completa o que você já sabia do meu passado, mas não tem muito a ver com o que você já sabia a meu respeito durante estes últimos meses. Vamos ter de enfrentar a possibilidade de que talvez leve tempo até você recuperar a memória. Tempo e paciência, e será preciso começar da estaca zero. Pelo menos desta vez vou saber melhor como lidar com você.

Júlia sentiu a boca seca e se deu conta de uma veia que latejava na têmpora.

— A coisa não é tão simples assim, não acha? Você não pode esperar que sem mais essa nem aquela... eu volte ao ponto em que estávamos.

A expressão dele estava cuidadosamente controlada. — E qual é a alternativa?

— Não sei. — Ela tentou dizer essas palavras com toda a calma. — Mas deve existir uma. Você seria capaz de viver com alguém que você nem sequer reconhece?

— Eu poderia tentar, na esperança de que o reconhecimento sobreviesse. — Ele respirou fundo. — Júlia, você é minha mulher e está sob minha responsabilidade. Que espécie de marido eu seria se concordasse com o que você está sugerindo?

Eu nem sequer tenho certeza do que estou sugerindo. Não tenho certeza de nada, exceto de que não posso aceitar as coisas desse jeito. Você está me pedindo que eu volte e seja novamente sua mulher, como antes. E como...

— Não, não estou. — Havia uma ponta de cólera em seu tom. — Eu quero que você volte, mas jamais pediria o que você não está preparada para dar. Eu fiz com que você me amasse uma vez, e posso fazê-lo novamente.

— Eu o amei? — ela perguntou involuntariamente, e notou que seus lábios se contraíam.

— Se não me amou, você soube representar com muita convic­ção, em várias ocasiões! Sei muito bem que não posso forçá-la a voltar para casa quando você for dispensada daqui, pelo menos legalmente, mas não tenho a menor intenção de facilitar as coisas de modo que você se torne independente de mím. Para você o fato de termos passado três meses juntos tem que significar algo. Não quer se lembrar?

— Sim, é claro que quero. — A despeito de todos os seus esforços sua voz tremeu subitamente. — Eu daria tudo para conseguir me recordar de tudo o que você me disse, até mesmo um pequeno fato já bastaria, para começar. Só que não posso. Nada disso significa o que quer que seja para mim. Sinto muito se isso o magoa. Não posso evitar... Bem que gostaria de poder!

— Está certo. — O tom de sua voz era propositadamente tran­quilizador. — Não fique preocupada. Não quero que você se con­trarie. Podemos falar a respeito disso outro dia, se você quiser.

— Sim. — Ela apressou-se em concordar, recusando-se a admitir que o problema não desapareceria nem sequer diminuiria com o passar do tempo. — Sim, podemos fazer isso.

Os olhos dele ainda estavam fixos nos dela.

— Há algo mais que você gostaria de saber? Algo que eu tenha omitido?

Havia muito mais coisas que ela gostaria de saber, mas era duvidoso que ele conseguisse ajudá-la. Poucas pessoas se conhe­ciam o bastante ou eram suficientemente honestas a ponto de se­rem capazes de uma autêntica auto-apreciação. Como ele dissera, a única maneira de começar a voltar a conhecê-lo era voltar a viver com ele na casa que nem sequer imaginava como seria, e essa era uma decisão que ainda não estava preparada para tomar. Tinha de pensar no assunto, refletindo a respeito do que significaria o fato de não recuperar a lembrança daqueles meses. Seria capaz de aprender a amar aquele homem novamente, a viver com ele, como o tinha feito antes? Será que a estranheza de seu relacionamento não tornaria as coisas ainda mais difíceis do que lhe pareciam naquele momento?

— Não. — respondeu finalmente. — Não há nada de que eu me lembre.

— Então acho melhor ir embora. Você parece cansada. — Pôs-se de pé. — Voltarei hoje à noite. Há alguma coisa que você gostaria que eu trouxesse?

Ela balançou a cabeça, sem dizer nada. Podia sentir que ele a olhava e esperava, mas nada neste mundo teria conseguido con-vencê-la a levantar o rosto naquele momento.

— Tente descansar um pouco — disse ele, após um minuto bem pousado. — Soube que você não dormiu muito bem na noite passada.

Ele retirou-se, deixando um leve aroma de loção de barbear e um súbito e irracional sentimento de que ela estava privada de algo. Ele era o laço que a unia àquelas semanas que haviam ficado para trás. Seu único laço, Não importava o que ela pensava ou sentia a respeito dele como pessoa, era somente por meio dele que conseguiria repor as peças que faltavam.

 

A estrada principal atravessava verticalmente o centro da cidadezinha de Otterbridge. Depois, Ross virou à direita, acelerando o carro logo que deixaram o perí­metro urbano, mantendo a velocidade a oitenta por hora durante alguns quilómetros de estrada, antes de diminuir a marcha ao che­gar ao lugar chamado Marlow.

Alguns minutos mais tarde percorriam a rua central, limpa e muito atraente, e ele disse com toda precisão:

— Vivemos um pouco afastados da aldeia, mas temos outro car­ro, se você sentir a necessidade de vir até aqui. Neste lugar, dois automóveis são essenciais.

Júlia disse:

— Não sei guiar — e sentiu que ele a olhava.

— Sabe sim. Eu a ensinei quando você pediu. Não é todo mundo que consegue tão rapidamente, mas você tirou a carteira de moto­rista em sete semanas. Aposto que você vai descobrir que sua ha­bilidade não foi prejudicada.

Ela duvidava disso. O fato de contemplar suas mãos segurando O volante não lhe trazia o menor senso de familiaridade. Mordeu os lábios. Não esperava que as coisas fossem fáceis, mas eram ainda mais difíceis do que ela tinha imaginado durante aquela última semana, tão tensa. Havia tantos detalhes em jogo, tantas coisas a aprender. Se pelo menos ela conseguisse se convencer de que aque­la situação fantástica não era um pesadelo, do qual ela talvez pu­desse despertar!

Tinham deixado a cidadezinha para trás e seguiam por uma estrada estreita, ao longo da qual as árvores se enfileiravam. Ross desviou o carro para algo que se assemelhava a um acostamento, desligou o motor e a contemplou durante um bom momento antes de dizer tensa mente:

— Você está com os nervos à flor da pele. Tem medo de que eu não mantenha minha palavra?

— Não — respondeu ela, com a voz embargada. — E que eu não consigo evitar. Por favor, tente compreender, tenha um pouco de calma.

— Estou tentando. Acredite em mim, estou tentando de verdade. Mas você também tem de tentar. — Fez uma pausa, escolhendo cuidadosamente as palavras. — Você tem de confiar em mim, ou então não adianta. Será que não percebe isto?

— Eu sei. E confio. Mas acontece que você sabe como as coisas se passaram entre nós, eu só posso imaginar. Esta... esta estra­nheza é algo que vou ter de superar no seu devido tempo, e você não me ajuda em nada se ficar cobrando isso de mim o tempo todo.

Havia tristeza em seu sorriso.

— Isso faz sentido. Muito bem, esqueçamos o que falei. — Enfiou a mão no bolso e retirou a cigarreira. — Cigarro?

— Por favor. — Contente por ter algo em que se concentrar, inclinou a cabeça em direção à chama do isqueiro e em seguida recostou-se no banco, enquanto ele fazia o mesmo. A fumaça a acalmava, e o ato de fumar era em si tranquilizante. Sentiu que relaxava um pouco e que as contrações no estômago começavam a ceder. Ele estava fazendo tudo que podia para externar solidarie­dade e compreensão; as coisas não lhe eram mais fáceis do que para ela.

Júlia moveu ligeiramente a cabeça a fim de contemplar aquele perfil bem definido, enquanto ele olhava através da janela. Viu a boca de traços bem precisos e o queixo de linhas retas, com uma cova profunda bem no meio. Havia beijado aquela boca e fora bei­jada por ela, tinha estado entre aqueles braços que agora segura­vam a direção. Parecia quase impossível que uma mulher pudesse esquecer esse tipo de experiência.

— Estamos longe? — ela perguntou, enquanto ele voltava a ca­beça em sua direção. — Estamos longe de casa?

— Não muito. — Ele fez uma pausa e pós a mão no bolso. — Antes de prosseguirmos, tenho uma coisa que preciso lhe devolver.

Júlia contemplou a pequena caixa quadrada que ele colocou em suas mãos e sentiu que sua garganta se contraía.

— Abra — disse ele.

Ela obedeceu passivamente, e não conseguiu tocar o brilhante que faiscava em seu leito de veludo negro. Não era dela. Pertencia a mais alguém. Alguém que o escolhera com um brilho nos olhos.

— É lindo — conseguiu dizer, e fechou a caixa com um gesto seco. — Desculpe-me, eu não posso. Você não se incomoda se eu o deixar aí por algum tempo?

— Sim — ele retrucou —, eu me incomodo. — Ele pegou a caixa, tirou o anel e colocou-o no dedo dela. Seu toque era firme e caloroso.

— Se vamos recordar tudo, então teremos que nos prender aos principais detalhes. Este foi o primeiro presente que eu lhe dei. Você sempre o usou. — Retirou a mão e acrescentou ternamente:

— Eu a amo Júlia. Não deixe nunca de pensar nisso. Agora, vamos para a nossa casa.

Uns dois quilómetros adiante tomaram uma pequena entrada que dava passagem para apenas um carro e ao longo da qual cor­riam duas valas profundas. Júlia pensou na contingência de guiar por aquela estrada no escuro, em um carro daquele tamanho, e decidiu que isso definitivamente estaria aquém de suas forças, mes­mo que ela pudesse conduzir tão bem quanto Ross afirmava com toda confiança.

Dobraram a estrada e de repente surgiu a casa, escondida por canteiros de rosas e azáleas. As clematites se aferravam às paredes irrepreensivelmente brancas e algumas lucarnas espiavam por de­baixo do teto coberto de palha. Era um lugar de sonho, o tipo da casa que muitas pessoas desejariam possuir mas jamais poderiam encontrar, pois o preço estaria fora de suas possibilidades. Júlia duvidou de que a casa tivesse aquela aparência quando Ross a descobriu. Os batentes das janelas pareciam novos. Automatica­mente pôs-se a calcular qual o valor das prestações mensais do seguro contra fogo que ele deveria ter feito por causa do teto de palha.

Ross deu a volta ao carro com a mala na mão e abriu a porta para ela. Seu coração começou a pulsar forte, antecipando alguma coisa. Júlia subiu a seu lado as escadas cobertas de lajotas, em direção à sólida porta de carvalho, esperando enquanto abria a porta. O hall era acolhedor, e algumas traves atravessavam o teto baixo. De um arco à direita, Júlia conseguia divisar parte de uma grande sala de estar, com uma grande lareira de pedra tomando toda uma parede. Havia mais duas portas, ambas fechadas, e uma escada feita de barrotes sólidos, ligados na extremidade a uma fileira de balaústres esguios e brancos, que ofereciam grande segurança.

— Foi idéia sua? — Perguntou ela em meio ao silêncio. — E muito imaginativo.

— Tudo isso foi idéia minha — ele replicou, pousando a mala no chão de tábuas enceradas. — Tive um ano inteiro para pensar nisso tudo enquanto a casa estava sendo reformada. Não é muito difícil encontrar mão-de-obra competente nesta região, mas é quase impossível conseguir com que trabalhem em um ritmo diferente. — Sem mudar de expressão, adiantou-se e abriu a porta do outro lado da sala. — Venha ver a cozinha. Espero que você ainda goste de cozinhar.

Júlia o seguiu lentamente, contemplou os armários de pinho, o equipamento moderno e brilhante e tomou consciência de que sua esperança se esvaía rapidamente. Não adiantava. Era melhor acei­tar o fato. Nada do que ela tinha visto até então conseguira des­pertar algo além da admiração e prazer que se poderia esperar da visita a um lugar como aquele. Ela teria se sentido exatamente da mesma forma se tivesse ido à casa com a intenção de comprá-la. Na realidade era exatamente assim que ela se sentia, só que dessa vez ela teria de levar em consideração algo mais do que uma sim­ples casa.

— Ainda gosto de cozinhar — disse subitamente, e deu-lhe as costas. — Posso ver meu quarto?

— Em um minuto. — Era difícil dizer o que ele estava pensando ou sentindo. — Você não viu o jardim.

Nesse momento Júlia queria apenas ficar sozinha durante al­gum tempo, mas ele já estava levantando a aldrava da porta. Com relutância, ela permaneceu a seu lado, contemplando a grande ex­tensão do gramado verde-esmeralda que ondulava até um lago ro­deado de salgueiros.

Diante deles estendiam-se plantas em profusão, e à direita co­meçava o bosque pelo qual tinham passado ao percorrer a estrada. Próximo às arvores encontrava-se um cão com as orelhas empina­das, em expectativa. Ross assobiou suavemente, e o animal correu até ele, apoiou-se nas patas traseiras e enfiou o focinho nas mãos de seu dono, em uma saudação barulhenta e entusiasta.

Júlia recuou um pouco no momento em que a cabeça do animal, coberta de lindas manchas, voltou-se para ela. Os modos do cão não tinham mudado, era ela que se sentia insegura. Ele a conhecia, e isso era mais do que evidente. Ele a conhecia o suficiente para ter perdido os modos ariscos, característicos de sua raça, e contem­plá-la sem temor. Depois de um momento estendeu a mão e deixou que o focinho úmido a tocasse e cheirasse, antes de segurar a orelha do animal e coçá-la suavemente. Seu pêlo era espesso e quente, e os músculos rijos do pescoço faziam pressão contra ela.

— Basta, Shan — ordenou Ross, e o cão pôs obedientemente as patas no chão. Ficou olhando para eles, sacudindo a cauda felpuda, à espera do próximo gesto.

— Desapareceram as últimas dúvidas? — perguntou Ross suave­mente, e Júlia desviou-se daquele olhar excessivamente perscrutador.

— Não tenho certeza do que quer dizer exatamente com isso.

— Tem sim, só que não quer admitir. No fundo você suspeita de que tudo o que eu lhe disse pode ser mentira, não é mesmo? Apesar de que não tenho certeza dos possíveis motivos que você me atribui para reclamá-la como minha esposa.

— Muito bem. — Ela o encarou com toda a honestidade. — Em um determinado momento isso passou por minha cabeça. Não é tão estranho assim.

— Não disse que era. Só queria deixar bem claro que você estava convencida disso. Você trabalhou nessa cozinha, Júlia. Você gosta­va deste lugar. — Enfiou as mãos nos bolsos da calça. — Foi você quem plantou as dálias e as trepadeiras. Quer você se lembre, quer não, há uma parte de você aqui, e você terá de aceitar o fato.

— Já aceitei. — Ficou surpreendida com a calma com que falava, — Quem é que rejeitaria um cantinho em um lugar como este? É perfeito!

— O arquiteto não poderia receber elogio maior. — Fez um gesto brusco. — Você disse que queria ver seu quarto.

No andar de cima ele lhe mostrou o quarto, que dava para a frente da casa, era um aposento grande com duas janelas e deco­rado em tons repousantes de coral pálido e marrom. Consciente de que, quase com certeza, aquele era o quarto que eles deveriam ter compartilhado, Júlia procurou dizer algo que aliviasse a tensão do momento, e não encontrou nada adequado.

— Desça quando estiver pronta — disse Ross formalmente. — Eu lhe tarei um chá. A sra. Cooper deixou preparado o jantar na geladeira.

— A sra. Cooper?

— Nossa diarista. Eu lhe disse que uma salada e um prato de carne fria bastariam. Está bem?

— Sim, ótimo. — Júlia hesitou por um instante. — O que mais

você lhe disse?

— Somente o necessário. Ela é uma boa mulher, e fará o que puder para levar as coisas adiante como de costume, mas você terá de enfrentar uma certa incompreensão e talvez até mesmo o em­baraço, se não conseguir reconhecê-la.

— Tem tanta certeza assim de que não conseguirei? — disse Júlia prontamente.

Ele estremeceu.

— Sua intuição é tão valiosa quanto a minha. De acordo com o dr. Stewart, não há regras precisas no que diz respeito à amnésia. Um pequeno detalhe pode ser suficiente para fazer com que todas as recordações voltem. Ou então seria necessário mais uma pan­cada na cabeça.

— Poderia ser uma idéia — ela murmurou, esboçando um ligeiro sorriso.

— Obrigado, uma vez basta.

Aliviada, fechou a porta assim que ele saiu e apoiou-se nela, com os olhos fechados. Teria de encontrar algum padrão aceitável de comportamento, um biombo atrás do qual pudesse se esconder até que tivesse se acostumado àquela situação totalmente impos­sível. E teria de começar agora, sem perda de tempo, ou então de nada adiantaria prosseguir.

Atravessou o quarto e abriu a porta do armário. Lá havia roupas que jamais tinha visto, ao lado de outras que lhe eram familiares. Seguindo um impulso, desceu o zíper do vestido de lã cor de âmbar que Ross levara ao hospital, tirou-o, pôs um vestido justo azul-es-curo que comprara havia um ano e imediatamente se sentiu me­lhor. Era novamente Júlia Gardner, pelo menos naquele momento.

Havia uma foto dela e de Ross ampliada e emoldurada sobre a penteadeira, ambos usavam trajes de banho, nos fundos via-se um lago e por detrás dele as montanhas. Ross estava com os braços ao redor de seus ombros, e ambos riam. Ao contemplar o retrato, Júlia teve mais uma vez consciência daquela sensação incômoda de intrusão, como se estivesse bisbilhotando a vida de alguém a quem não conhecia. Estremeceu e desviou o olhar. As coisas estavam piorando, era vez de se ajeitarem.

Ross estava trazendo uma bandeja da cozinha no momento em que ela desceu. Tinha tirado o paletó, posto um suéter leve a fim de enfrentar o friozinho da tarde de outono e amarrado displicen­temente uma echarpe em volta do pescoço. Descobriu também, en­quanto ele a olhava, que estava precisando barbear-se novamente. Por mais estranho que parecesse, tudo aquilo lhe deu uma certa segurança. Se notou que ela mudara de vestido, não fez o menor comentário.

O fogo crepitava na lareira da sala de estar. Júlia sentou-se em uma poltrona confortável, muito próxima à mesinha onde Ross ti­nha depositado a bandeja. Aceitou a xícara que ele lhe estendia e levou-a aos lábios, feliz por ter o que fazer com as mãos, exatamente como acontecera no carro.

— O que faríamos sem as amenidades sociais? — comentou Ross secamente, decifrando sua expressão sem esforço. — Aceita mais açúcar?

— Sim — disse Júlia, esforçando-se para encará-lo. — Imagino que você é muito bom em lembrar detalhes como este.

— No que diz respeito a você, sim. São as coisas pequenas que fazem com que um casamento dê certo. — Sentou-se em frente a ela, em uma poltrona igual, tomou o chá rapidamente e colocou a xícara sobre a mesa. — Sei exatamente como é que você gosta do café da manhã: ovos bem passados e pão preto. Sei qual é sua aparência quando surge com os cabelos todos desmanchados, os olhos sonolentos; como é que você... — Ele a contemplava com um ligeiro sorriso. — Devo prosseguir?

Ela sacudiu a cabeça, sentindo o calor subir ao rosto.

— Você já conseguiu o que queria. Como é que você prefere o café?

— Bem forte. Gosto do bacon bem passado, ovos no ponto e torradas com pouca manteiga. Não gosto que me desarrumem o jornal e quero ter tempo de ler a seção de esportes antes de ir trabalhar. Isso quer dizer que tomo o café da manhã às oito em ponto, de segunda a sexta. —Arqueou a sobrancelha. —Acha que vai conseguir?

A despeito de si mesma, ela teve de sorrir.

— Eu já não consegui?

— Admiravelmente, urna vez que decidimos quem era o respon­sável por isto. Não que tivesse sido fácil. Ambos fomos indepen­dentes por muito tempo. — Uma expressão indecifrável estampou-se brevemente em seu rosto. — Mais chá?

— Eu me sirvo. — Inclinou-se em direção à mesa. — E você?

— Para mim uma já chega.

— Você já notou como é que a chaleira fica por dentro?

— Como se fosse nicotina? — sugeriu ela enquanto ele tirava do bolso a cigarreira.

— Agora me diga que fumo demais e eu vou começar a sentir que você de fato voltou para casa!

Seu sorriso dissipou-se subitamente. Pousou a xícara, levantou-se, atravessou a sala em direção à janela e ali ficou, olhando para fora.

— Shan fica fora o tempo todo? — perguntou, após alguns mi­nutos.

— Ficava, até mesmo antes de você chegar. Ele tem um canil muito bem instalado e muito espaçoso. — Havia uma mudança aparente no tom com que falava. — Primeiro ele chegava perto da cozinha, em seguida conseguia entrar na casa quando caía a noite e uma vez em que cheguei em casa inesperadamente encontrei-o na cama. Cada vez que eu chamava por você ele vinha correndo para mim.

Ela voltou a cabeça.

— É sério?

— Não me dei ao trabalho de perguntar... Os cães da Alsácia andam sempre em matilha, é preciso sempre que haja um líder. Se eu não o tivesse castigado daquela vez ele teria ficado insupor­tável. — Fez uma pausa. — Aqui acaba a lição. Você não tem medo de ficar sozinha com ele, não é mesmo?

— Acho que não. Ele parece gostar de mim — respondeu Júlia.

— Que animal sábio! — Seu tom era descontraído. — Vamos dar uma olhada no jardim enquanto o sol não se põe. Você havia planejado fazer lá uma série de obras antes que o frio chegasse.

Percorreram o jardim durante uma hora, andando um ao lado do outro, porém mantendo certa distância, o fosso que os separava ainda não era transponível, Júlia não ficou surpreendida ao cons­tatar que ainda tinha alguns conhecimentos de jardinagem. Seu pai sempre se mostrara interessado no assunto e a contagiara com seu entusiasmo durante a adolescência, em sua casa de Harrow. Ross confessou sua indiferença quase total em relação àquela forma de relaxar.

— Os jardins eram feitos para que as pessoas neles se sentassem e os olhassem — disse ele quase sorrindo quando chegou o momento de voltarem para casa.

Anoiteceu. Quando bateu sete horas, tomaram a refeição prepa­rada pela sra. Cooper, e em seguida Júlia preparou café para am­bos. Ao trazer a bandeja da cozinha, deparou-se com as cortinas fechadas e Ross colocando mais um pouco de lenha na lareira.

— O serviço de meteorologia prevê uma noite fria — comentou, sintonizando o rádio em um programa musical enquanto ela depo­sitava a bandeja. — Está chegando um tanto cedo demais nesta região. Habitualmente a gente pode confiar em que o tempo con­tinue suave até a primeira semana de novembro. Há alguns cober­tores a mais no armário de seu quarto, se você sentir necessidade deles durante a noite.

— Obrigada. — Júlia serviu o café, pôs açúcar em sua xícara e perguntou. — Preto e doce?

— Duas colheres — ele respondeu sucintamente, afundando-se na poltrona que havia ocupado antes. — Você não esqueceu como fazer um café gostoso — observou ele satisfeito. — Você encontrou alguma dificuldade em localizar as coisas?

— Não — respondeu, tomando pela primeira vez consciência do fato. Mexeu lentamente a colher, sentindo que ele a olhava e relu­tando em retribuir o olhar. Dos dois ele sem dúvida é quem estava mais à vontade. Ela gostaria de ter a mesma capacidade de dissi­mular. Seria um imenso alívio esquecer os problemas que a ator­mentavam.

— A que horas a sra. Cooper costuma chegar? — perguntou, rompendo o silêncio.

— As oito e meia — ele disse. — Costumo cruzar com ela na estrada — acrescentou sem mudar de tom. — Posso ficar sem tra­balhar mais um dia, se você quiser. Não há nada que esteja me apressando.

— Oh, não! — A recusa foi ríspida demais. Esforçou-se para atenuá-la um pouco. — Mais cedo ou mais tarde vou ter de acabar ficando sozinha. Você fica na cidade para o almoço?

— Só se eu estiver muito longe daqui, mas nesse caso telefono. — Seu tom era enigmático. — O que é que você vai fazer durante o dia inteiro?

— Não tenho certeza. — Tentou mostrar-se alegre. — O que uma pessoa faz normalmente no campo, além de jardinagem?

Ele deu de ombros.

— Parece que é um fato que nunca a incomodou. Você terá a companhia de Shan quando a sra. Cooper for embora, e também ficará com o carro. Você uma vez falou em alugar um cavalo da­quela fazenda ao lado da estrada. Fiquei um tanto surpreendido. Até então eu não sabia que você montava.

— E não monto. Pelo menos, não monto muito bem. Algumas vezes saí a cavalo com uma das moças do escritório. O pai dela tem uma pequena propriedade em Kent, e passei algumas semanas por lá. — Ela levou a idéia em consideração. — E algo para se pensar, contanto que eles tenham um animal manso para alugar. É um ótimo exercício. — Dessa vez ela obrigou-se a encará-lo de frente. — Você sabe montar?

— Nem sequer tentei. Um carro bem veloz faz mais o meu gê­nero. — Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. — Você por acaso está pensando em querer me convencer a montar com você?

— Não — respondeu irrefletidamente. — Você talvez seja velho demais para começar a aprender. — Enrubesceu, enquanto as so­brancelhas dele arqueavam. — Quero dizer, aprender do começo. Não consigo imaginar você tomando aulas do que quer que seja.

— Não consegue? — Estudou-a durante um bom momento. — Bem, talvez você tenha razão. Aos trinta e cinco anos um homem não deveria ter necessidade de se encontrar nesta posição. Tem certeza de que ficará bem sozinha?

— Até certo ponto. Pelo menos ainda me lembro como se anda a cavalo.

— Você também se lembrará como se dirige um carro, quando estiver na direção. Isto é, seus instintos se lembrarão. Tente ama­nhã, na estrada.

— Imagine se eu cair na valeta.

— Então será necessário tirar o carro de lá. Ou prefere esperar que eu volte para casa e dê uma mão?

Naquele momento exato Júlia sentiu que ela, de modo algum deveria tentar pôr à prova suas habilidades como motorista, mas dizer uma coisa dessas teria sido uma mostra de ingratidão. Se Ross dissera que ela sabia guiar, não havia a menor razão para duvidar de sua palavra. Uma coisa era certa: não poderia saber se era ou não boa na direção enquanto não tivesse a coragem de sen­tar-se em um carro e tentar.

— Esperarei — disse finalmente. — Eu me sentirei mais segura sabendo que você estará aqui pronto para guiar, caso fique provado que você se enganou.

— Muito bem. Tentarei voltar o mais cedo possível. — Ele a observou servir mais café para ambos e acrescentou, bem à vonta­de: — Por que não deixa o Shan entrar em casa? Ele está arra­nhando e porta de trás há uns dez minutos.

— Você não se incomoda?

— Faz tempo que deixei de me preocupar. Eu o deixei ficar dentro de casa enquanto você estava no hospital, apesar de ainda achar que fica melhor lá fora. Agora ele conseguiu embrulhar nós dois. Coloque-o para dentro antes que tire toda a pintura da porta.

O cachorro estava esperando no momento em que ela abriu a porta, com a cauda balançando. Ao passar, encostou o focinho em sua mão, dirigiu-se até o hall e lá ficou à sua espera, não ousando entrar na sala de estar. Dirigiu toda sua atenção para Ross, até que uma ordem enérgica o fez encaminhar-se a um lugar perto da lareira, que ele, obviamente, já havia escolhido anteriormente.

— Você está estragado — observou o dono, encarando-o com ar de resignação, e recebeu em resposta um abano da cauda malhada.

— Ele sabe que você não está falando a sério. — Júlia sorria, ao notar como o cão demonstrava o quanto estava gostando do calor. Abaixou-se e passou a mão pela cabeça do animal, coçando-lhe a ore­lha. No mesmo instante Shan encostou a cabeça nela. — É uma ma­ravilha como eles são sensíveis à mudança da temperatura.

— E aparentemente se adaptam muito bem. — Ross a contem­plava, com um sorriso fugaz. — Seu café vai esfriar.

Júlia recostou-se bruscamente na poltrona, e o sorriso desapa­receu. Ela tinha sido natural com o cachorro de um modo que não conseguia ser com Ross, e ele tinha notado isso. Era difícil prever o dia em que seria capaz de sentir-se à vontade com o homem sentado à sua frente. As circunstâncias não o permitiam, pelo me­nos atualmente. Não deveria ter regressado, pensou. Não deveria ter ido para aquela casa. Deveria haver outro modo de resolver as coisas.

— Não vai dar certo — ela disse tensa. — Você percebe isso tão bem quanto eu. Eu não consigo me obrigar a sentir o que quer que seja.

— Não estou lhe pedindo que o faça. Tudo o que solicito é que você faça algum esforço e ceda um pouco. — Ele falava em tom calmo, mas com uma ponta de tensão. — Você tem alguma idéia do que representa você se esconder atrás de uma cortina de ferro cada vez que lhe ocorrer que estamos sozinhos aqui? Não vou fingir que o lado físico de nosso relacionamento não signifique muito para mim. Seria um marido muito esquisito se agisse dessa forma. Mas existe muita coisa entre nós dois além disso, e o que eu quero de volta é a totalidade, não apenas parte dela. Certo?

Ela contemplou suas mãos, que apertava tensa mente.

— Está bem. Mais café?

— Por que não? — Estendeu-lhe a xícara e disse sem maior emoção: — Você parece estar cansada. Por que não vai se deitar mais cedo? Sabe, você não pode romper de uma hora para outra com a rotina do hospital.

— É o que eu estou começando a perceber. — Levantou-se a fim de retirar a bandeja. — Primeiro vou levar isto lá para dentro.

— Eu o farei assim que acabar. Ainda tenho de ver uns docu­mentos e escrever uma carta antes de ir me deitar. Vejo você ama­nhã de manhã.

— Sim. — Dirigiu-se sem a menor pressa em direção à arcada que dava para o hall e, ao chegar lá, parou e olhou para o homem e o cão, ainda encolhido perto das chamas. — Boa noite.

— Boa noite — respondeu ele, sem levantar a cabeça.

 

Passaram-se algumas semanas antes que Júlia ad­quirisse bastante confiança em si mesma para tentar guiar o carro sem que Ross estivesse a seu lado, pronto a tirá-la de qualquer dificuldade. Uma quinzena durante a qual achou tempo suficiente para explorar o campo ao redor da propriedade, Era estranho e quase assustador seguir por um atalho ou um ca­minho inteiramente novos para ela e dar-se conta subitamente de que já teria feito tudo aquilo antes com pequenas diferenças. Agora era o outono, antes tinha sido o verão. Então não precisava andar com um casaco nos ombros, como agora, a fim de enfrentar o frio cortante.

Ela visitou a aldeia somente uma vez, percebendo a curiosidade estampada no rosto das pessoas por quem passava na rua e ouvindo os murmúrios a seu respeito quando saía da loja. Ela sabia que a sra. Cooper era a fonte de informações, mas no entanto não con­seguia julgar aquela criaturinha com muita severidade, dificilmen­te era de esperar que ela conseguisse guardar tantas notícias só para si mesma. Tentou não se importar com a idéia de que discu­tiam e faziam especulações a seu respeito. Com o tempo eles en­contrariam algo mais a que dedicar a atenção. Naquele momento, entretanto, fez questão de certificar-se de que suas ordens relativas à entrega das compras fossem suficientemente entendidas para suprir todas as necessidades da casa.

Os dias começavam a seguir gradualmente uma determinada rotina. Na parte da manhã, vagava pelos campos com Shan ao lado, voltava à casa para o almoço e passava a tarde no jardim, quando o tempo o permitia. Lia também um bocado, renovando seu conhe­cimento dos clássicos e explorando com atenção os vários outros campos da literatura, que enchiam as estantes dispostas em torno da lareira. O gosto de seu marido no que dizia respeito à leitura era amplo e variado, como verificou.

Era uma vida tranquila e fácil, mas também muito solitária. Chegou inevitavelmente um tempo em que ela se pôs a aguardar ansiosamente a noite e a volta de Ross, e ficava feliz ao ouvir o barulho do carro, a porta que batia e os passos decididos nos de­graus. Havia até mesmo ocasiões em que quase conseguia esquecer as circunstâncias de seu relacionamento, em meio à necessidade crescente do estímulo de sua companhia. Quase, mas não comple-tamente. Ele, sob vários aspectos, ainda era um estranho para ela.

Estava no jardim, na tarde da segunda sexta-feira, quando ou­viu um carro se aproximar. Uma olhada no relógio convenceu-a de que era pouco provável tratar-se de Ross, que normalmente voltava às seis. De qualquer modo, o barulho do motor era diferente.

Com o coração palpitando, ouviu o barulho, esperando que a pessoa tivesse se enganado de direção e que corrigisse seu erro. Ainda não se sentia pronta para receber visitas. Sobretudo sem Ross a seu lado para lhe dar apoio. Supunha que ele tivesse pre­venido todas as pessoas conhecidas de ambos, esperando que tives­sem a sensibilidade de não se aproximar da casa até que ela se preparasse para enfrentá-los. Talvez se tratasse de alguém a quem ele não tinha avisado, e nesse caso cabia a ela dar as explicações. E como começar?, indagou-se, com uma ponta de desespero enquan­to o carro parava diante da porta. O que iria dizer?

O som estridente da campainha da entrada assustou-a, a des­peito de estar preparada para ouvi-lo. Permaneceu onde estava, pondo a mão no focinho de Shan, enquanto o cão se preparava para latir. Se ela permanecesse em silêncio e não se mostrasse, a pessoa ou as pessoas poderiam pensar que a casa estivesse vazia e iriam embora.

Seguiu-se uma pausa prolongada após o segundo toque da cam­painha. Júlia imaginou todas as ações possíveis da parte de quem chegava: um passo atrás, a fim de olhar as janelas e talvez a cha­miné, uma olhadela rápida na sala de estar para ver se havia fogo crepitando, sinal seguro de gente na casa, uma sobrancelha que se arqueava pensativa. Ouviu sem a menor possibilidade de engano o barulho da porta que rangia ao se abrir, o trinco que se fechava e o som de passos na escada e que avançavam em sua direção. Não adiantava mais. Tinha sido descoberta. Agora não podia se escon­der mais em nenhum lugar,

O homem que surgiu em um canto do chalé era jovem e vestia-se à vontade, seus cabelos pareciam ter sido desmanchados por um vento forte. Ele parou assim que a viu, primeiro pareceu ficar sur­preso, em seguida inseguro e depois um pouco apreensivo, no mo­mento em que Shan desprendeu-se de seu braço e avançou em direção ao recém-chegado, latindo ruidosamente.

— Acalme-se, meu velho. Não fique bravo! Sou um amigo, não um adversário! — Com um olho no cachorro, sorriu para Júlia. — Alô finalmente. Meu nome é David.

Ela o encarou, ainda segurando na mão a pá de jardineiro com que pretendia se defender. Não era necessário perguntar o resto do nome, a semelhança era forte demais para que houvesse algum engano. Oito. talvez nove anos mais jovem do que Ross, mas incri­velmente parecido com ele, tinha até mesmo a cova no queixo, vi­sível a alguns passos de distância. Por que Ross não lhe contara que tinha um irmão? O que o levara a não lhe dizer nada? Ele não havia feito menção a nenhum parente. Disso ela tinha certeza.

O sorriso desapareceu daquele rosto queimado de sol e ele co­meçou a sentir-se nitidamente pouco à vontade.

— Desculpe-me — ele disse —, pensei que vocês estivessem ã minha espera. Escrevi duas semanas atrás dizendo que vinha para a Inglaterra. Não recebeu minha carta?

— Acho que não — respondeu ela, insegura. — Ross não... Ele teria me avisado.

— Foi dirigida a vocês dois. — Ele parecia estar pouco à vontade. — É isto o que dá confiar no correio! Sinto muito chegar desta maneira.

Júlia fez o possível para se dominar.

— Não se incomode. Para Ross será uma ótima surpresa encon­trá-lo aqui quando chegar. Desculpe-me por não ter atendido a campainha. Eu... achei que podia ser outra pessoa.

Seu sorriso era atraente. Era o mais jovem dos Mannering!

— Vim para cá esperando encontrar alguma janela aberta ou qualquer coisa do gênero, Nem imaginei ir até a cidade pedir a Ross que me emprestasse uma chave. — Seguiu-a até a cozinha, trancando a porta de fora a fim de impedir Shan de entrar. — Para fora, cachorro! — Seu olhar percorreu a casa, mostrando aprovação.

— O lugar mudou bastante desde a última vez que o vi. A casa ainda estava em obras quando fui para a Argélia. Você não acha as coisas por aqui tranquilas demais, depois de ter vivido esse tem­po todo em Londres, que é uma cidade agitada?

— Algumas vezes, sim — ela admitiu, experimentando ao mes­mo tempo um sentimento que se assemelhava à deslealdade. — Mas tenho o carro e posso sair por aí — acrescentou rapidamente.

— Quer tomar café?

— Por favor. — Ele encostou-se à mesa, repetindo aquela mesma postura tão à vontade característica de seu irmão, — Ross disse que você faz café como nenhuma outra mulher que já conheceu.

Ela voltou rapidamente a cabeça.

— Quando foi que você o viu?

— Quando o vi? Bem, há pouco mais de um ano, quando viajei para o exterior. — Ele a encarava de modo estranho. — Ele falou a respeito do seu café em uma carta. Você acrescentou um post-scriptum, comentando a ambiguidade de sua confissão. Não está se lembrando?

Seu coração disparou, Esse era o momento óbvio de lhe dizer a verdade, mas no entanto ela não conseguia organizar as palavras.

— Não — respondeu, e sua voz soava surpreendentemente tran­quila —, não posso dizer que me recordo. Você veio de avião ou de navio?

— Avião. Cheguei hoje de manhã em Heathrow, aluguei um carro e vim diretamente para cá. Pretendia enviar um telegrama anunciando minha chegada, mas tive tanta coisa para fazer que acabei não mandando. — Fez uma pausa. — Você ficou aborrecida com isso?

— Claro quê não — apressou-se ela em tranquilizá-lo. — Apenas fiquei realmente surpresa. Quanto tempo você vai ficar aqui?

— Mais ou menos um mês. Pensei em passar uns quinze dias com vocês e depois ir para a cidade, a fim de me divertir um pouco. Quando vi que não recebia resposta alguma à minha carta, percebi que não deveria ter usado a posta-restante, mas tive certeza de que Ross teria entrado em contato comigo de alguma maneira se minha chegada não fosse conveniente. De qualquer modo, prefiro que seja você a me dizer, se isso for verdade. Posso me ajeitar temporaria­mente no apartamento, contanto que Ross não o tenha alugado...

— Tenho certeza de que ele vai querer que você fique aqui — disse Júlia prontamente, fugindo de uma indagação a que ela não poderia responder com toda certeza. — Temos três quartos.

— Vou precisar somente de um. Você ainda fica com um quarto livre para acomodar Ross no caso de vocês brigarem um dia — rospondeu com certo humor.

A colher que ela havia usado para mexer o café caiu no chão. Júlia curvou-se para apanhá-la, feliz por ter encontrado um dis­farce para o rubor que lhe subia ao rosto. Três quartos, três pes­soas, mas naturalmente David presumiria que ela e Ross compar­tilhariam o maior de todos. As explicações teriam de vir de um modo ou de outro. Mas não partiriam dela. Que Ross desse expli­cações quando voltasse para casa. Afinal era seu irmão. Ele saberia como colocar as coisas.

— Não se importa se comermos aqui?— perguntou, ocupando-se com a tarefa de tirar xícaras e pratos do armário. — Está na hora de eu começar a preparar o jantar. Espero que você goste de peixe.

— Claro. Não se preocupe comigo. Vou ficar sentado, olhando. — Desligado, imaginou que ela conseguiria fazer com que um peixe, destinado a duas pessoas, rendesse para três sem maiores dificul­dades. — Não aguentava mais de vontade de comer um bom prato da cozinha inglesa. A cantina em Izria era boa, mas batata quase todo dia se tornara enjoativo.

Júlia desejou perguntar o que e onde era Izria, mas com isso ela se trairia um bocado.. Era de esperar que Ross tivesse contado detalhes sobre o emprego de seu irmão, qualquer que fosse ele. Sabia que estava se comportando como uma tola em relação a tudo aquilo, mas no entanto parecia não lhe fazer a menor diferença. Faria qualquer coisa, menos forçar-se a colocar em palavras uma situação que era para ela um pouco menos real do que o tinha sido havia três semanas. Deixaria as explicações para Ross, quando chegasse. Até então deixaria aquela charada suspensa, por mais que isso lhe custasse.

Do jeito como as coisas se desenrolaram, a situação se tornou um pouco mais fácil do que ela havia esperado. Interrogado, David falou quase o tempo todo, contando sua vida durante os dois últi­mos anos, com um humor que não disfarçava o gosto pelo tipo de trabalho que exercia. Tornou-se evidente que ele era engenheiro cm uma grande companhia petrolífera, preso por um contrato de três anos em um país do Oriente. A vida nos acampamentos no deserto parecia rotineira e um tanto aborrecida, apesar de ele as­segurar que as coisas frequentemente se tornavam bastante agi­tadas e até mesmo perigosas, quando a política e a ambição come­çavam a se misturar. Em certa ocasião tiveram de interromper o trabalho durante três semanas, enquanto duas autoridades locais acertavam suas diferenças.

— Estamos a cinquenta quilómetros do lugarejo mais próximo — disse. — E olhe, não é lã essas coisas! — Sorriu. — Kenal, sob vários aspectos, me faz lembrar de Marlow, tirando o cheiro. Lá não há muito o que fazer como aqui. Se quisermos nos divertir um pouco mais, temos de pegar a estrada e rodar umas seis horas de viagem. É um pouco como aqui, só que em escala um pouco maior. Fico surpreendido de ver como você aguenta há tanto tempo. Acha­va que uma garota tão moderna e que cresceu em uma cidade grande não suportaria mais de dois meses neste lugar tão pacato.

Júlia concentrou-se no molho que aos poucos engrossava na pa­nela. Juntando queijo ralado, disse cautelosamente, sem tirar os olhos da panela:

— Acho que quando você for para Londres colocará para fora todo seu entusiasmo. Manteve contato com alguém em particular?

Fez-se uma pequena pausa, antes que ele respondesse, e, quan­do falou, o tom de sua voz havia se alterado.

— Ross então não lhe contou?

Suas mãos não pararam de mexer o molho.

— Contou o quê?

— A respeito de Lou e de mim. Eu era noivo de uma garota que decidiu se casar com outro homem. — A declaração foi feita com toda simplicidade. — O emprego apareceu no momento psicológico exato. Viajei para fora do país em dez dias, isso pareceu uma fuga.

— Desculpe-me — disse ela, após um momento. — Eu não tinha a intenção de abrir velhas feridas.

— Não tem importância. Faz tempo que tudo isso aconteceu. — Sua expansividade era um tanto propositada. — Presumi que Ross tivesse lhe falado a respeito, apesar de não haver alguma razão especial para que ele o fizesse. O que passou, passou. Você não pode culpá-lo por ter adotado essa atitude. — Aspirou o cheiro que vinha da panela: — Não existe nada como a comida caseira! A que horas Ross chega?

— Dentro de uns quinze minutos. — Júlia abriu a portinhola do forno e tirou a caçarola fumegante, pousando-a sobre o fogão, franzindo ligeiramente o cenho. Havia algo na confidência de David que a preocupava. Por que razão Ross desejaria esquecer o passa­do? O que existia no passado que deveria ser esquecido?

Cobriu o peixe e os cogumelos com molho de queijo, adicionou um pouquinho de páprica e voltou a colocar a caçarola no forno. Assim que ela acabasse de pôr a mesa. Ross estaria em casa e o jantar estaria preparado. Uma coisa de que ele fazia questão era que o jantar fosse servido alguns minutos depois que ele chegasse em casa. Ela não tinha idéia se isso era um hábito seu ou se se tratava de algo meramente desejável porque aliviava a atmosfera e proporcionava aos dois um momento relaxante e descontraído. A coisa funcionava, qualquer que fosse o motivo.

Deixou David na cozinha enquanto se dirigia para a sala de jantar. Após alguns momentos ele apareceu na porta, postando-se lá e olhan­do-a durante alguns momentos, antes de dizer subitamente:

— Você se incomoda se eu ligar o rádio? Em Izria a gente o ouve o dia inteiro, até mesmo junto ao oleoduto. A gente acaba se acos­tumando.

— Como não? — respondeu ela. ~ Está lá na sala.

Ele desapareceu novamente. Fez-se uma pausa, e o som irrom­peu, moderno, desarmonioso e irritante. Júlia estremeceu, pensan­do saudosa no concerto de Lizt que havia colocado havia pouco no toca-disco, e refletiu que era preciso um pouco de tudo para se fazer um mundo.

— Não pode abaixar um pouquinho? Não dá para conversarmos — pediu.

O volume diminuiu no mesmo instante. David chegou até a porta.

— Desculpe-me, estava apenas matando a saudade, depois de tanto tempo — disse.

Ela sorriu para ele.

— Não tem importância. — Parado lá na porta ele tinha a apa­rência de um garoto encabulado. Ela disse impulsivamente: — Você gosta mesmo disso? — Notou que sua expressão se alterava, mos­trando a surpresa que ele sentia.

— Você se refere à música de discoteca? — refletiu. — Não sei se eu pensei muito a respeito. Isso e mais os programas locais eram tudo que ouvíamos na Argélia. — Muito desafinado, assobiou al­gumas notas da música que estava tocando no momento, sorriu e olhou para ela. — A música, como você deve ter notado, não é realmente o meu forte. Mas é que não consigo ficar parado durante muito tempo, por isso assobio ou canto. Já fizeram muitas queixas a respeito de minhas cantorias no chuveiro. Alguém disse uma vez que eu parecia um touro no cio, entusiasmado com a idéia de se acasalar!

Júlia caiu na risada, ouviu a porta da frente que se abria e dominou-se repentinamente,

— Ross chegou — disse.

David já se voltara, e seu sorriso se abria, enquanto encarava o homem que caminhava pelo hall.

— Olá! Surpresa! Surpresa! Júlia me disse que você não recebeu minha carta, que avisava a minha chegada!

— Tudo leva a crer que não. — O tom com que Ross falava era simpático, mas havia nele uma certa reticência pelo encontro ines­perado. — Que bom vê-lo novamente, Dave. Quando é que você chegou?

— Hoje de manhã. Vim para cá há mais ou menos uma hora. — O sorriso de David era espontâneo e natural. — Você tinha razão em relação ao café. É o melhor que já tomei até hoje. Como cozi­nheira ela também não deixa a desejar, a julgar pelo cheiro que vem da cozinha. Há meia hora que minha boca está cheia de água.

Os olhos azuis cruzaram com os olhos cinza, muito alertas, e desviaram-se. Júlia sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente. Percebera que David mal disfarçara sua surpresa ao constatar que seu irmão, ao entrar, cumprimentara aquela que era sua esposa havia quatro meses com pouco entusiasmo, e não fizera o menor esforço para disfarçar aquele mal-estar com um sorriso.

— O jantar está quase pronto. Por que vocês dois não vão tomar um drinque lá dentro enquanto eu sirvo?

— Boa idéia. — Com um brilho no olhar, Ross rodeou ligeira­mente sua cintura com as mãos no momento em que ela passava por ele e beijou-a na fronte. — Passou bem o dia?

— Como sempre — respondeu, resistindo ao impulso de afas­tar-se dele. Obrigou-se a olhar para ele. — Você e David terão muito 0 que conversar.

— Sim, disse ele —, tenho certeza. — Era impossível adivinhar o que ele estava sentindo naquele momento. Deixou-a afastar-se, e seu olhar cruzou-se com o do irmão, que permanecia sorrindo, um tanto inseguro. — Você ainda é chegado ao uísque, Dave. ou aqueles grandes horizontes despertaram em você o gosto por outras bebidas?

— Uísque para mim está muito bom. — O jovem olhou com certa indagação para Júlia. — Tem certeza de que não precisa de nenhuma ajuda?

— Não, eu levo tudo no carrinho de mesa, obrigada. Servirei dentro de dez minutos.

De volta à cozinha apoiou-se na porta e respirou fundo. Ainda conseguiu sentir a marca dos lábios de Ross em sua pele e o calor de suas mãos na cintura. Era a primeira vez que ele tinha feito a tentativa de tocá-la desde o dia em que a tirara do hospital. Até então agira de acordo com os desejos dela, é claro, mas ela de vez em quando pensava como seriam realmente seus sentimentos por ela, já que ele conseguia tão facilmente manipular as emoções. E por que teria feito uma exceção hoje à noite? Devido a uma relu­tância natural em revelar a seu irmão a profundidade do abismo que os separava? Mais cedo ou mais tarde ele teria de fazer isso.

Júlia desejou colocar um pouco de ordem em suas emoções confusas.

O rádio tinha sido desligado no momento em que foi até a sala chamar Ross e o cunhado para jantar. Em dez minutos não teriam tido muita oportunidade de esclarecer o assunto com sutileza, re­conheceu, e estava preparada para enfrentar as prováveis reações de David. Um olhar foi o suficiente para lhe revelar que até então ele ignorava o que estava se passando. Olhou de soslaio para Ross e recebeu de volta um olhar sem a menor expressão. Se a incum­bência mais pesada tocava a ele, pensou, então cabia-lhe escolher o momento apropriado para contar ao irmão o que se passava. Até então ela devia se limitar a tocar o barco adiante.

Foi difícil, senão impossível, evitar um certo clima durante a refeição. Consciente de que era inevitável a revelação de tudo em algum momento, naquela mesma noite, Júlia achou mais difícil do que nunca disfarçar e interpretar o papel que era esperado da parte dela. Por diversas vezes surpreendeu David olhando de um para o outro, com o cenho ligeiramente carregado e com muita dúvida. Era óbvio que sabia que alguma coisa não ia bem, apesar de difi­cilmente ser capaz de adivinhar a verdade. Fazendo uma retros­pectiva da situação, ela compreendeu que teria sido muito mais

fácil esclarecer as coisas desde o início. Mais fácil e muito mais sensato. Afinal de contas, não havia vergonha alguma em relação ao que lhe sucedera. Ou haveria?

Deixou os dois tomando uma segunda xícara de café e foi pre­parar o quarto de David. Quando voltou para a sala de estar Ross estava sozinho.

— Ele foi até o carro pegar a mala — disse o marido. — Pelo que entendi, pretende passar as próximas duas semanas conosco.

— Foi o que disse. — Fez uma pausa, insegura. — Você... você ainda não lhe contou?

Suas sobrancelhas arquearam.

— Do modo como você agiu quando entrei, tive a impressão de que você não queria que eu lhe dissesse nada. Se você se sente tão ansiosa para que tudo fique esclarecido, por que não lhe contou você mesma assim que ele chegou?

— Porque — disse ela —, levei alguns minutos para me recu­perar do choque. Até ele aparecer e me dizer quem era eu não tinha a menor idéia de que você possuía um irmão. Você jamais fez a menor menção a ele.

— Não me parecia relevante. Ele estava a milhares de quilóme­tros de distância e era pouco provável que aparecesse por aqui. Eu realmente não esperava por isso. Já bastam os problemas que você está enfrentando. — Seus lábios ficaram adelgaçados. — Mas com Dave é diferente, não ó mesmo? Com ele a gente consegue relaxar.

— Relaxar! — Havia um tremor em sua voz. — Eu me sinto em relação a ele como se estivesse tentando matar uma charada. Você chama a isso relaxar?

— Não estamos falando da mesma coisa. Quis dizer que como homem ele não representa nenhum problema em particular, en­quanto comigo você está sempre na corda bamba, morta de medo de dizer ou de fazer algo que poderia ser interpretado erroneamen­te, no sentido de estar me encorajando. Hoje à noite foi a primeira vez que você riu naturalmente desde o desastre, a primeira vez que eu notei que você se parecia com a garota com quem me casei. Muito bem, fico contente por ver que finalmente alguém conseguiu tirar você daquela situação, mas não espere que eu comece a pedir desculpas por meu irmão ter feito aquilo que não consegui fazer. Não consigo ser assim tão altruísta.

As palmas das mãos dela ficaram úmidas.

— Não foi exatamente assim — disse era voz baixa. — Você tem sido tão distante nestas duas últimas semanas. Eu não tinha certeza...

— Você não tinha certeza de como eu me sentia em relação a tudo isso, se me importava com o que estava acontecendo. É isso o que você está tentando me dizer? — Com as mãos metidas nos bolsos olhou para e!a e prosseguiu: — Pois fique sabendo que me importo, sim. O que não consigo aguentar é esse seu olhar toda vez que ouso mostrar uma sombra que seja de alguma emoção natural. Posso conversar com minha mulher a respeito de livros, de música, de qualquer coisa que esteja sob o sol, menos de nós mesmos. É duro se acostumar com isso.

Ela sentiu um aperto na garganta.

— Desculpe-me. — Havia muito pouco que pudesse dizer na­quele preciso momento. — Que vamos fazer em relação a David?

Ele fez uma breve pausa.

— Contar-lhe, suponho. Que mais podemos fazer?

— Contar-me o quê? — David estava na soleira da porta, com a mala na mão. Seus traços queimados de sol denotavam uma certa preocupação, misturada a um pouco de desconfiança. — Não quero parecer indiscreto — disse. — Mas não consegui deixar de ouvir o que vocês falavam no momento em que entrei. — Olhou para ambos e pousou a mala no chão. — Eu vim no momento errado, não é mesmo?

— Talvez não. — Ross deu duas passadas bruscas a fim de tirar um cigarro da caixa sobre a mesinha de café e procurar um isquei­ro. Expeliu a fumaça com alguma energia e disse, sem alterar o tom: — Júlia sofreu um acidente há algumas semanas. Ficou in­consciente por algumas horas. Quando voltou a si já não se lem­brava mais de mim, deste lugar e de tudo que aconteceu nos últi­mos meses. Amnésia parcial, disseram os médicos, de duração in­definida. Ela só esta aqui porque não havia mais nenhum outro lugar para onde pudesse ir.

Júlia percebeu o olhar surpreso de David e deu-lhe as costas. As coisas, colocadas daquela maneira, pareciam tão clínicas, tão frias... E seu comentário final não era verdadeiro. Pelo menos não muito. Ela estava lá porque tinha necessidade de saber algo a res­peito daqueles meses obscuros de sua vida — e essa necessidade persistia. Era como ter os três primeiros capítulos de um livro arrancados, tornando necessário reconstruir o início para depois po­der prosseguir. Isso com toda certeza era compreensível.

— O que você quer que eu faça? — David formulou a pergunta após uma pausa prolongada. Do modo como ele falava ressaltava que estava fazendo o possível para ajustar-se rapidamente à si­tuação. — Quero dizer, devo ir imediatamente embora ou ficar? Você só...

— Fique. — Disse Ross, em tom -cortante e decisivo. — A pre­sença de uma terceira pessoa poderia ser a melhor solução para nós dois. Sinta-se em casa, Dave. Vou levar o cachorro para dar uma volta.

Júlia esperou até ouvir a porta da cozinha se fechar e os ganidos de alegria de Shan, antes de dizer em um tom bastante neutro:

— Seu quarto é o segundo à direita. Vou fazer mais um pouco de café,

David não se moveu.

— Por que foi que você fingiu? — perguntou.

— Não sei. — Levantou os ombros e deixou-os cair novamente.

— Suponho que tenha sido uma coisa instintiva. Queria voltar a ser normal.

— Não existe nada de anormal em perder a memória, pelo me­nos não do modo como você coloca a coisa. Uma vez conheci um camarada que perdeu a memória completamente, após uma queda com o elevador. Não conseguia se lembrar de sua mulher ou dos filhos. Ficou com um branco total. E de repente voltou sem que ele menos esperasse, por si só.

Júlia disse suavemente:

— Obrigada, David.

— Mas é verdade — ele protestou. — Mesmo.

— Não duvido. Só que não acho que isso vai acontecer comigo.

— Passou a mão pela testa. — O mais difícil de tudo tem sido aprender a aceitar que algo aconteceu.

— Posso imaginar. — Sacudiu a cabeça com um movimento sú­bito de impaciência. — Não, não consigo não! E ninguém, a não ser que tenha passado pela experiência, conseguiria.

— Você é muito... compreensivo.

— Só exteriormente — ele disse. — Para mim é mais fácil. Sabia que alguma coisa estava errada no momento em que Ross voltou para casa, mas achava que era apenas uma dessas briguinhas tão comuns num casal.

Não havia alegria no sorriso dela.

— Quem me dera que não passasse disso!

Ele entrou na sala, deixando a mala na posição em que a colocara.

— Quer conversar agora a respeito disso? Não posso oferecer uma solução, porem me coloco como ouvinte atento que pode ser de alguma ajuda.

— Mas existe o que falar? Acordei um dia e encontrei um es­tranho à minha cabeceira, dizendo que era meu marido. Fim da história.

— Diria antes que é o começo. Você deve querer saber o resto ou então não estaria aqui.

Júlia encarou-o.

— Você parece que me compreende melhor do que seu irmão.

— Eu já lhe disse, Ross está envolvido demais. Durante três meses foi um homem feliz, e agora perdeu tudo de novo. Natural­mente que se sente amargurado em relação a isso.

— Mas era mesmo feliz? — perguntou ela ansiosa. — Como é que você sabe?

— Por suas cartas. Ele não lhe... — Ele parou, com ar pesaroso. — Percebo o que você quer dizer, quando fala a respeito de apren­der a aceitar. Mas não lhe tem acontecido nada? Nem mesmo um pequeno vislumbre?

— Nada. A menos... — Ela hesitou. — A menos que se leve em consideração que eu fui capaz de manipular tudo o que se encontra aqui em casa, sem pensar duas vezes, e isso desde o primeiro dia em que voltei para cá. Não consigo chegar à conclusão se isso se deve à memória ou simplesmente ao fato de que tudo estava em ordem, nos lugares onde eu logicamente esperaria encontrar cada objeto.

Seu sorriso era contagiante.

— Como homem, jamais penso que as mulheres são criaturas lógicas, mas isso não passa de uma opinião individualista. Como é que as demais pessoas encararam o fato?

Júlia sentiu-se empalidecer.

— Não sei. Não tenho visto ninguém. Não quero ver ninguém. Pelo menos ainda não.

— Não vai resolver nada ficar trancada aqui.

— Nada resolverá. Já me resignei com tudo isso. Não posso suportar mais a ideia de que me encarem e comentem coisas a meu respeito.

— Mas se você se tomar uma reclusa, vão falar muito mais de você. Quanto a ser encarada... — ele sorriu — você já devia ter se acostumado com isso. Bill Grieves sabia como escolher uma secretária!

— Penso, algumas vezes — disse ela com a voz subitamente embargada —, que teria sido muito melhor se eu tivesse perdido a memória completam ente. É o fato de poder me lembrar de tudo tão nitidamente até o dia em que Ross disse que nos conhecemos que torna tudo isso tão terrivelmente irreal. E como ser arrancada de sua própria vida e ser inserida na vida de outro alguém que nunca vi.

David pegou uma pequena estatueta de louça da prateleira e examinou-a de todos os ângulos contra a luz.

— Você alguma vez já pensou em voltar para Londres, a fim de tentar elucidar as coisas a partir de lá? Foi Bill quem a apresentou a Ross. Nunca se sabe...

— Sim — disse ela —, já pensei nisso. O problema é que se eu sair daqui, acho que jamais voltarei. — Levantou o bule do café. — Ia fazer mais um pouco.

— Neste momento — disse ele — sinto vontade de tomar algo mais forte. E você?

Ela sacudiu a cabeça.

— Pressinto que se começar não sei quando é que deverei parar. Beba o que você quiser.

Voltou para a cozinha com a bandeja, encheu uma vasilha de água quente e colocou nela as xícaras. Viu-se refletida na vidraça da janela, e ao fundo a silhueta das árvores levantava-se contra um céu ligeira­mente mais claro. Pensou em Ross, que tinha ido lá fora unicamente por causa de Shan, e põs-se a imaginar se chegaria um dia em que ela começaria a confiar inteiramente nele. No máximo conseguiria atingir um relacionamento precário. E que efeito, ponderou, a presen­ça de David no chalé teria sobre tal relacionamento?

 

Passava das dez quando Ross voltou para casa, com a mesma expressão enigmática de sempre. Júlia fez café e sanduíches, comeu alguma coisa e pediu desculpas, pre­textando um pouco de cansaço, a fim de ir para o quarto. Supôs que os dois passariam pelo menos mais uma meia hora conversan­do, e ficou surpresa ao ouvi-los subir a escada uns dez minutos mais tarde. Ouviu-se o murmúrio de vozes no patamar e o barulho de uma porta que se fechava. Seguiu-se uma pausa breve. Ouviu então uma pancada em sua porta e a voz de Ross, calma porém firme:

— Júlia, quero falar com você.

Júlia deparou com seus olhos no espelho, pousou a escova que estivera usando, levantou-se e foi abrir a porta. Ross lá estava, com uma mão encostada na perna. Seu olhar percorreu o roupão azul, voltou a pousar sobre o rosto dela e nele permaneceu.

— Você vai me convidar para entrar ou prefere que conversemos lá embaixo?

Ela contemplou-o durante um bom momento antes de se mover. Ele entrou rapidamente, fechou a porta e disse:

— Como é que você se sente com a presença de David? Se prefere que ele não fique, diga. Ele pode ir para o apartamento.

— O apartamento? — perguntou ela, procurando ganhar tempo.

— Em cima do escritório. Eu mesmo o usava, quando vim para cá, depois foi alugado por um ano e pouco. No momento está vazio.

— Não o acha mais apropriado? — perguntou cautelosamente. — Quer dizer, você, solteiro e vivendo tão perto do emprego. Este lugar parece tão afastado para um homem que mora sozinho.

— Meu plano era usar o apartamento durante a semana e vir para cá nos fins de semana, à procura da paz e do silêncio. Um cliente, ao saber que tinha de se mudar de volta para a cidade, perguntou se eu poderia encontrar um lugar onde abrigar Shan, e então eu tive de pensar duas vezes, Um apartamento pequeno e um cachorro alsaciano barulhento não combinam muito bem. Per­suadi a sra. Cooper a vir aqui cinco vezes por semana e vim morar aqui permanentemente — informou, com uma certa deliberação: — Voltando à pergunta original, e quanto a David?

Júlia voltou para a penteadeira, pegou novamente na escova e sopés ou-a.

— Ele é seu irmão.

— Isso é um fato, não uma razão. — Ele a olhava através do espelho. — A única maneira que temos de resolver esta situação é sermos honestos um para com o outro.

— As pessoas alguma vez são completamente honestas umas com as outras? — ela murmurou, e a expressão dele modificou-se um tanto.

— Se não o são, algumas vezes isso ocorre por razões honestas. Pare de se mostrar indecisa, Júlia. A decisão é sua.

— Você quer que ele fique?

Ele fez um gesto de impaciência.

— Quero qualquer coisa que nos ajude a voltar a ter uma vida normal. Você precisa se distrair de alguma maneira, e não é sozi­nha que você vai conseguir isso. Você faz muito mal em evitar a sra. Cooper.

— Pois ela devia se sentir aliviada. — O que você quer dizer com isso?

— Que ela provavelmente pensa que meu lugar é em um sana­tório psiquiátrico.

— Como?! — Sua voz tornou-se mais suave. — E a primeira vez que eu vejo você ceder à autopiedade.

Já arrependida por ter feito aquela observação, esforçou-se por amenizá-la.

— Acho que fui longe demais. Mas é que algumas vezes a sur­preendo a me encarar, como se não soubesse o que vou fazer em seguida.

— Bem, se ela tivesse medo de você pediria a conta. Você pro­vavelmente é um motivo de interesse muito grande na vida dela.

— Mas então até que vale a pena...

— Júlia, pare com isso! — Com um gesto suave obrigou-a a encará-lo, segurando-a gentilmente pelos cotovelos. — Podemos subs­tituí-la por outra pessoa, se você preferir. Não sabia que você se sentia assim em relação a ela.

Júlia tinha plena consciência de sua proximidade, do odor más­culo de seu cabelo e de sua pele, do toque de suas mãos. Um passo a mais a levaria a cair em seus braços. Ela deu o passo — mas para trás — e viu seu rosto endurecer novamente.

— Não — disse ela rapidamente —, não é necessário. Eu estava sendo infantil. E é claro que David deve ficar.

— Claro. — Suas mãos tinham caído de lado quando ele se voltou, e naquele momento ele se dirigia para a porta. — Não quero mais tomar o seu tempo. Boa noite.

A porta abriu-se e voltou a se fechar. Júlia sentou-se na cadeira da qual se levantara tão recentemente, passou a escova pelo cabelo percebeu que sua mão estava tremendo demais, por isso desistiu de prosseguir. Uma pequena artéria latejava na base de seu pes­coço, e sentiu intensamente aquela dor profunda no interior de si mesma. Levantou-se abruptamente, desvencilhou-se do roupão, apagou a luz e deslizou entre os lençóis.

Sentia-se no ar um cheiro de bacon frito quando Júlia despertou às oito horas. No momento em que chegou à cozinha David colocava ovos mexidos em um prato, ao mesmo tempo que não tirava o olho do leite, a ponto de ferver.

— Alô — ele a saudou bem à vontade. — Eu ia levar o café da manhã em seu quarto, mas já que você está aqui bem que pode providenciar o café enquanto cuido do resto. Você quer tomates?

— Acho que prefiro ovos. — Ela o contemplou por um momento com um sorriso no canto da boca, enquanto ele limpava diligente­mente os pedacinhos de tomate que haviam caído sobre o fogão. — Você é um profissional.

— Para um homem? — Ele sorriu. — A prática leva à perfeição, como se costuma dizer. Vivi durante muito tempo sozinho para aceitar qualquer tipo de comida, a minha ou a de quem quer que seja. Note bem, jamais chegaria a ser um Cordon Bleu, mas sei distinguir carne de carneiro da carne de ovelha a dez metros de distância. Até que mereço um prémio, você não acha?

Júlia pegou a tampa da garrafa de leite e com ar bem sério entregou-a para ele. — Tome esta medalha.

Pois eu até que aceito, — Ignorando o creme que ainda aderia à tampa, pregou-a em seu suéter de lã. — Só que eu preferia que fosse de ouro. Nunca suportei ficar em segundo lugar. Quando ti­nha nove anos, meu maior desejo era ser da altura de Ross antes de acabar o curso primário, e foi o que aconteceu. E mais, desde então a diferença entre nós sempre foi de apenas alguns centíme­tros. Você já ouviu falar de um exemplo maior de persistência?

— Como é que você sabe que as coisas não teriam acontecido naturalmente?

— Pois é, não sei. Mas se há alguma coisa que aprendi nos meus vinte e seis anos de vida é vangloriar-me por tudo que é possível. Acrescenta encanto à biografia de qualquer um. — Riu para ela, alegre. — Você devia sorrir assim mais vezes. Fica bem em você.

Ela ficou séria no mesmo momento, lembrando-se de que Ross estava no quarto acima de suas cabeças.

— Vocês eram muito chegados um ao outro, quando crianças? — perguntou.

— Acho que bastante chegados, caso se leve em conta a diferença de nove anos. Devo muito a ele. Quando papai morreu, deixou-nos sem um tostão furado. Foi graças a Ross que terminei os estudos e me capacitei para este emprego. Se dependesse de mim, prova­velmente teria me tornado um vagabundo. É o que mamãe costu­mava dizer. — Havia displicência no tom com que falava. — Ross era seu preferido. — Colocando os tomates no prato, acrescentou: — Você vai chamá-lo ou quer que eu o faça?

A porta da frente abriu-se no mesmo momento em que a última pergunta era formulada, Ross estava na soleira, com as sobrance­lhas sardônica mente alteadas, enquanto contemplava os dois ros­tos surpresos que se voltavam para ele.

— Me chamar para quê? — perguntou, e abaixou-se para tirar os sapatos. — Está muito frio lá fora. Meus pés parecem dois blocos de gelo. Um de vocês não quer pegar meus chinelos? Estão debaixo da mesa.

Júlia desligou a máquina de fazer café antes de ir procurar os chinelos.

— Não sabia que você tinha saído — disse ela.

— Eu percebi. — Ele disse, sem nenhuma ênfase. — Os cães são criaturas exigentes. Mas acho que calculei o tempo certo do passeio.

— David preparou o café — informou ela, e ele olhou para o irmão.

— Vai ser uma sorte ter você por perto. Espero que o gosto seja tão bom quanto o cheiro. Estou com muito apetite. Sentando-se, disse: — Que tal um passeio até a cidade agora de manhã? Tenho um cliente às onze, mas poderia encontrar vocês dois na hora do almoço.

— Acho que é uma boa idéia — falou David com um jeito tão displicente quanto o de seu irmão. — O que você me diz do Luigí's? Ele ainda existe?

— Tanto quanto eu saiba, sim. Este ano ainda não fui lá.

— É um pequeno restaurante italiano em uma das ruazinhas do centro — David explicou para Júlia. — Costumava ser incrivel­mente frequentado, a comida era ótima. Podemos tentar, se você quiser.

— E por que ela não haveria de querer? — A pergunta foi feita rapidamente, mas havia uma sugestão de inflexibilidade nos traços de Ross. — Afinal, é apenas uma refeição.

— E uma mudança até que faz bem. — Custou-lhe algum esforço parecer alegre, mas ela o fez. — Você vai ter que me mostrar a cidade, David. Quem sabe eu seja até capaz de reconhecer alguns lugares!

— Um cego conduzindo outro. Eu não sou muito craque em me lembrar das coisas. Talvez devêssemos tomar um guia. O que é que você sugere, Ross?

— Vocês hão de conseguir — foi a resposta pouco solidária. — E somente por algumas horas.

Assim que acabaram de comer, Júlia lavou os pratos, colocou-os para secar e subiu a fim de se trocar. Escolheu uma bela saia de lã que tinha havia anos, pôs um suéter quente e passou uma escova no cabelo. Ao passar batom, surpreendeu-se sentindo o quanto de­sejava sair, acariciando o pensamento de se afastar do chalé por algum tempo, com David atuando como um pára-choque entre ela e Ross. Este ultimo tinha razão em relação a algo: ela conseguia relaxar com seu irmão. Havia um certo consolo nesse fato.

Foram com o cônsul, deixando o conversível que David alugara na garagem. Ross deixou-os no centro da cidade, combinando en­contrar-se a com eles no Luigi's. David confirmou que o restaurante ainda existia telefonando para lá antes de saírem de casa. No momento em que ficou a seu lado, na calçada cheia de gente, enquanto o carro se perdia no tráfego da manhã, Júlia teve uma sensação inexprimível de libertação. O que se desenrolava diante dela não significava nada, mas pela primeira vez isso pareceu não importar tanto. Voltou seu rosto sorridente para o companheiro.

— Aonde é que vamos primeiro?

— Às compras! — sugeriu, rindo, ao notar que o nariz dela fran­zia. — Pensei que todas as mulheres gostassem de entrar nas lojas.

— Não generalize — disse ela. — O dia está bonito. Vamos andar por aí.

Foi o que fizeram, e tiveram a impressão de percorrer quilóme­tros. Andavam e falavam. Júlia de repente surpreendeu-se contan­do os dias de sua infância, caçoando das esperanças e das aspira­ções de quando tinha entre doze e treze anos.

— Era verdadeiramente terra de ninguém — disse, em deter­minado momento do relato. — Velha demais para brincar com bo­necas e ainda não suficientemente velha para qualquer outro tipo de atividade. Tive sorte em possuir um pai que era capaz de com­preender os meus estados de alma o lidar com eles. Ele mais do que compensou o fato de eu não ter mãe.

— Ele nunca pensou em se casar de novo?

— Nunca quis. Tínhamos um ao outro. Bastava.

— Você teria aceito uma madrasta?

— Já disse a você, a questão nem se colocou. Ele era perfeita­mente feliz daquele jeito.

Tinham chegado até a praia. Assentindo mutuamente, viraram à esquerda e deram alguns passos em silêncio, até que Júlia per­guntou subitamente:

— Você quis sempre ser engenheiro, David, ou Ross decidiu por você?

Ele lançou-lhe um olhar penetrante.

— O que a leva a perguntar?

— Algo que você disse hoje de manhã, relativo ao fato de ser muito agradecido a ele. Você me pareceu... bem, um tanto ressentido,

— É mesmo? Não tive consciência disso. — Naquele momento ele tinha o ar decididamente pesaroso. — Acho que sempre tive uma inveja muito disfarçada de Ross, por ele ser o mais velho e tudo o mais. Eu me envolvi em algumas encrencas depois que papai morreu. Eu me meti com más companhias e cheguei a ter problemas com a polícia. Ross tirou-me da enrascada aceitando ser res­ponsável por meu futuro comportamento, e deu duro, a fim de que eu me dedicasse a alguma coisa. — Estremeceu. — Ele tinha vinte e três anos e eu catorze. Eu lhe dava ouvidos porque o que ele dizia parecia ser correto, mas não gostava de fazer o que ele queria, Foi somente nestes últimos anos que finalmente consegui compreender o que fez por mim.

— Mas no fundo você ainda detesta a idéia de lhe dever alguma coisa — ela arriscou-se a dizer, e ele riu subitamente.

— Pare de tentar me psicanalisar! Não sou tão complicado assim.

— Sinto muito. — Seu sorriso era contrafeito. — Se há alguém aqui que precise de psicanálise esse alguém sou eu.

— Como assim? Você recebeu uma pancada na cabeça que blo­queou temporariamente algumas das células da memória como di­ria um profissional, isso não fax de você um caso de divã. De acordo com o que Ross me disse, os médicos declararam que há uma boa chance de uma recuperação completa a qualquer momento.

— Eles vivem dizendo isso desde que eu acordei no hospital. Não acho que acreditem nisso mais do que eu, ou do que Ross. para falar a verdade. — Andava olhando o calçamento e evitava incons­cientemente pisar nas fendas, como se se tratasse de uma brinca­deira de infância. — O que mais ele lhe contou?

— Que mais deveria ter me contado? Ele não é o tipo de pessoa que discute problemas pessoais com os outros. — Hesitou. — Não é preciso ser muito observador para notar que no momento vocês vivem juntos somente na aparência. Deve provocar uma grande tensão.

— Em Ross?

— Em vocês dois. Você tem certeza de que não vou acabar atra­palhando?

— Certeza completa. — Ela levantou os olhos e sorriu para ele.

— Você já... — Interrompeu-se no mesmo momento em que um relógio começou a bater as horas. — Já é uma hora!

— E mesmo — confirmou ele, consultando o relógio de pulso.

— E devemos estar bem longe do Luigi's. Acho melhor pegarmos um táxi.

Isso foi mais fácil de dizer do que de fazer. Quando finalmente conseguiram chegar ao restaurante já era quase uma e meia. Ross estava sozinho na mesa reservada para eles. com um drinque dian­te de si.

— Desculpe-me — disse David, enquanto se acomodavam. — Fomos andando até o porto e esquecemos da hora. Você já pediu?

— Ainda não. — Os olhos de Ross pousaram em Júlia. — Você parece mais alegre. Obviamente a mudança de ares lhe fez bem. Vai tomar um drinque antes de comermos?

Ela começou a sacudir a cabeça em sinal de negativa e mudou de idéia bruscamente.

— Aceito um martíni seco.

— Para mim, uísque com água. — David sentou-se e olhou à sua volta. — O lugar não mudou muito. Espero que a comida seja tão boa como costumava ser. Vejamos, a última vez que vim aqui foi em...

— Foi com Lou — atalhou seu irmão calmamente, no momento em que ele fazia uma pausa. — Daquela vez que você a trouxe aqui para um fim de semana prolongado. Tem tido alguma notícia dela ultimamente?

— Recebi um cartão-postal de algum lugar da Itália por volta de fins de setembro. Desde então, não sei de mais nada. — As palavras soavam casuais, mas havia uma ponta de tensão em sua voz. — Ela foi lá a negócios.

— Com o marido?

— Não, sozinha. Pelo que pude depreender da última carta, o casamento não estava dando muito certo.

— Não? Que pena. Está pretendendo vê-la durante estas férias? Dois pares de olhos cinza idênticos se encontraram e se chocaram.

— Pensei nisso. Qualquer pessoa pode cometer um engano.

— Claro. — Havia cinismo no sorriso de Ross. — E é sempre cômodo ter alguém de reserva, caso seja necessário.

— O que você está dizendo não é justo. Ela nem sequer sugeriu que nos encontrássemos.

— Não, ela precisa ser persuadida, não é mesmo? Não seja tolo, Dave. Você já estava fora da jogada quando ela o abandonou por aquele outro homem.

— Foi o que você disse naquela ocasião. — Os lábios de David estavam tensos. — O problema é que você tomou uma implicância solene com todas as morenas depois do que aconteceu... Ele se de­teve, mudou de cor, olhou para Júlia e disse pouco à vontade: — Estamos deixando sua mulher perturbada. Que tal falarmos disso mais tarde?

— Vamos deixar este assunto de lado e ponto final. Você tem razão. Tem idade suficiente para cometer seus próprios erros. — Ross pegou seu copo e o esvaziou, pousou-o novamente e olhou impacientemente em volta do restaurante. — Mas por onde é que anda esse garçom?

Quando finalmente serviram a comida, acharam-na excelente, porém Júlia não sentia fome. Ao voltarem para o carro, sugeriu que os dois se sentassem no banco da frente, e acomodou-se no banco de trás, antes que alguém pudesse esboçar o menor gesto. Sua cabeça latejava com tamanha intensidade que ela até franzia as sobrancelhas. Apojou-a no encosto do banco e fingiu dormir, para não ter que se esforçar em conversar.

— Desculpe-me por ter dito aquilo no restaurante — disse David em voz baixa, após alguns momentos. — Foi como se eu estivesse dando um golpe baixo.

— Fui eu quem provocou. — Ross mudou de marcha para subir a colina e acrescentou, sem mudar de tom: — Esqueça.

Eles poderiam esquecer, Júlia, porém, não. Ross não gostara da noiva de seu irmão, isso ficara bem claro. E por quê? Por que ela lhe recordava alguém a quem ele tinha conhecido outrora? Alguém a quem ele tinha amado e que o abandonara? Seus lábios estavam frios. Ela queria realmente saber desse assunto?

O fim de semana prosseguiu atravessando diferentes fases. No domingo choveu o dia inteiro, confinando os três em casa, deixan­do-os entregues às suas ocupações. Imediatamente após o almoço, Ross desapareceu, trancando-se no pequeno quarto que dava para o hall e que ele usava como escritório pretextando o fato de que tinha de dar andamento a uma papelada relativa a seu compro­misso da véspera. Estendida preguiçosamente diante da lenha que ardia, Júlia conversou despreocupadamente com David por muito tempo, antes de abordar assuntos mais pessoais.

— Você acha que vai continuar no Oriente quando seu contrato expirar? — perguntou. — Ou se trata apenas de um passo na di-reção correta?

Ele sorriu, com as mãos cruzadas por detrás da cabeça, em uma atitude de total relaxamento.

— Até agora sou uma peça relativamente pequena em uma engrenagem muito grande. Eu aceitarei o que vier, quando chegar a hora, mas não estou formulando planos ambiciosos.

— Isso é uma maneira um tanto negativa de encarar as coisas.

— Possivelmente. Você pode qualificar isso como a minha ma­neira de me garantir contra decepções. Nem planos nem decepções.

— E isso — ela indagou cautelosamente — inclui Lou?

Sua atitude não se alterou, apesar de se passarem alguns mo­mentos antes que ele respondesse.

— Para falar a verdade, não tenho pensado muito a respeito. Ross me pegou de surpresa ontem à noite. Eu nem mesmo tenho certeza se ainda sinto alguma coisa por ela.

— Você lhe escreve.

— Ela é quem me escreve e eu respondo. Há uma diferença. Fomos muito íntimos há um tempo atrás, e ela obviamente neces­sita de alguém em quem possa confiar. — Fez uma pausa e acres­centou: — Ou você encara esse assunto do mesmo modo que Ross?

— Não estou julgando alguém que nem sequer conheço. — Por alguma razão sua garganta tinha ficado inconfortávelmente seca, e sentia a têmpora latejar. — Será que fomos apresentadas?

— Você e Lou? — Ele a encarou. — É possível, suponho, mas pouco provável. Por quê?

— Não tenho... certeza. — Levou a mão à fronte e pressionou-a, sorrindo para ele com insegurança. — É que o nome dela parece significar alguma coisa. E como aquilo que você sente quando acor­da e não consegue se lembrar com clareza de seu sonho, — Sacudiu a cabeça. — Se tivéssemos sido apresentadas, Ross teria falado a respeito. Até ontem nunca o ouvi mencionar seu nome, Ele... ele não gostava muito dela, pelo que percebi.

— Foi pelo modo como ela rompeu comigo. Achou que uma carta era a forma de resolver tudo. — Ele deu de ombros. — Nós basi­camente nunca combinamos. Acho que sabia disso desde o começo, só que não me sentia preparado para admiti-lo. Lou necessitava de um homem que estivesse à sua altura. Eu não consegui.

— Ela parece ser um tanto dura — disse Júlia suavemente, e ele lhe dirigiu um sorriso contrafeito.

— É o que Ross disse, só que de maneira um pouco mais crua. Na verdade, acho que o que ele disse foi: "Ela passa por cima de qualquer coisa para conseguir o que quer". — David fez uma pausa, ao ouvir algo. — Não é um carro?

Era, de fato. Júlia também ouviu. Levantou-se e consultou o relógio. Três e meia. Era com certeza a hora apropriada para uma visita de domingo à tarde, apesar de o tempo não estar muito en-corajador. Aquele senso familiar de pânico começou a apoderar-se dela.

— Não fique assim. — A voz de David exprimia solidariedade e compreensão. — Afinai, são apenas gente.

Uma porta abriu-se no hall. Júlia foi até onde Ross estava, pa­rado diante de um espelho, dando um laço na gravata.

— Vem vindo um carro pela alameda — disse ela.

— São Peggy e Mike Ashley, provavelmente, são os nossos ami­gos mais chegados. Não vão ficar muito tempo.

— Sim, mas...

— Mas o quê? E preciso que você comece a ver as pessoas no­vamente, e quanto mais cedo, melhor. — Olhou para ela, e o tom de sua voz suavizou-se. — Está certo, é provável que nos primeiros momentos todo mundo se sinta pouco à vontade, mas acaba pas­sando. Você não pode fazer esse esforço por mim, se não quiser fazê-lo por você?

Ela disse com a voz embargada:

— Você parece que não me deixou muita escolha, não é mesmo? — e notou que seu rosto voltava a ficar contrafeito.

— Não. Talvez essa seja a melhor maneira de agir com você. Ouviu-se a porta do carro que se fechava e o rumor de passos

que se aproximavam. Sem voltar a olhar para ela, Ross foi até a porta e abriu-a, deixando entrar duas figuras sorridentes abraça­das sob uma capa de chuva.

— Esquecemos do guarda-chuva — disse Peggy, livrando-se da capa e revelando seus cabelos cor de fogo e um rosto literalmente coberto de sardas, mas muito atraente. — Está chovendo a cânta­ros! — Seu olhar desviou-se de Ross e tornou-se um pouco mais formal. — Alô, Júlia. Que prazer vê-la.

Júlia engoliu em seco e desejou de todo coração encontrar algo familiar naquele casal que tinha sido seu amigo durante aqueles meses esquecidos. Mas nada surgiu,

— Alô — disse.

Ross tinha razão, claro. Os primeiros minutos foram os piores. David ainda não conhecia os Ashley e, durante as apresentações e explicações, Júlia conseguiu ficar de lado e lembrar-se do pouco que Ross tinha mencionado a respeito deles. Mike trabalhava no ramo de construções, era um homem pesadão, na casa dos trinta, e que parecia ficar mais à vontade em um time de rúgbi — impres­são que se confirmou quando ele começou a relatar entusiasmado o jogo do dia anterior. Peggy era talvez três ou quatro anos mais velha do que Júlia e tinha uma butique em Southampton. Dela emanava vitalidade.

— Não vamos passar a tarde toda falando de jogo! — exclamou, levantando os olhos para o céu, em atitude de enfado. — O que eu não daria por um marido que sossegasse as pernas aos sábados! Você não faz idéia... — disse, dirigindo-se a Ross — do que eu tenho de aguentar. Tive até mesmo de arranjar uma empregada para poder seguir o time onde quer que ele vá.

Ross estava sorrindo.

— Você poderia deixá-lo ir sozinho.

— Nem pensar! As tentações são muitas. Até que o céu nos separe... foi o que eu disse, quando me casei com ele.

— E quanto a honrar e obedecer? — indagou seu marido sua­vemente, recebendo em troca uma exclamação de protesto.

— Nunca! Era só o que faltava. Companheirismo, foi o que dis­semos. Igualdade em todas as coisas!

— Só que alguns têm mais igualdade do que outros. — Voltou-se para Ross. — Como estava dizendo, a bola estava em minhas mãos, e eu estava a apenas alguns passos do campo adversário quando aquela espécie de macaco veio...

— Não tem remédio — disse Peggy para Júlia, resigna da mente.

— E Ross também é culpado, ao encorajá-lo. Lembra-se daquele fim de semana em julho, quando todos nós... — Ela interrompeu-se e disse pesarosa: — Desculpe-me. Sempre acabo dizendo o que não devo.

— Não tem importância — Júlia apressou-se em tranquilizá-la.

— Diga o que você ia me contar. — Esforçou-se por sorrir acolhe­doramente. — Aquele fim de semana, quando nós?...

— Bem, fomos fazer um piquenique em Emery Downs e esses dois acabaram jogando uma partida de críquete com um bando de meninos enquanto nós duas ficamos de lado, olhando feito bobas. Ross era capaz de jogar com uma das mãos amarradas às costas e ainda assim se saía melhor do que Mike. — Seu olhar pousou sobre David, que se sentava ao lado de Júlia, no divã. — Você também joga?

— Não tão bem quanto Ross, apesar de já ter tido meus mo­mentos de glória — retrucou ele. — Ouviu falar que o time da aldeia voltou a ganhar o campeonato local este ano?

— E tudo se deve ao capitão do time. Ele, evidentemente, é uma pessoa completamente desperdiçada. Podia ter seguido carreira se tivesse feito um pouco de esforço quando era mais jovem.

— O que ele não fez, e não faria, se lhe fosse dada uma chance — observou calmamente a pessoa alvo dos comentários. — Não passo de um jogador de fim de semana. — Sorriu, enquanto Peggy abria a boca. — Fale, se você tiver coragem!

Ela arregalou os olhos para ele inocentemente. — Eu ia apenas dizer que a modéstia lhe assenta bem. Por que você é tão desconfiado?

Ao ouvi-los, Júlia percebeu uma opressão em seu peito. Esse era um Ross diferente do que ela tinha conhecido durante aquelas se­manas. Quando é que ele tinha olhado para ela com aquela afeição tolerante que obviamente demonstrava em relação a Peggy? Qual fora a última vez que parecera tão relaxado como naquele momen­to? A consciência desse fato a perturbou. Quando foi que ela lhe deu motivo para proceder de modo diferente?

Ela mordeu os lábios com força, encarou-o, deparou com aqueles olhos cinza e firmes e sentiu-se enrubescer. Será que ele poderia adivinhar o que lhe passava pela mente? Seria essa a intenção dele, despertar seu ciúme, envolvendo-se deliberada mente com aquela mulher tão atraente? Júlia levantou-se.

— Vou pôr a panela no fogo. Já são quase quatro horas, Peggy acompanhou-a até a cozinha e perguntou:

— Posso ajudá-la?

— Se quiser, — Júlia esboçou um sorriso. — Acho que você sabe onde as coisas estão guardadas.

— Sei de quase tudo. — Houve um momento de indecisão antes que Peggy dissesse francamente: — O tato não é o meu forte, por­tanto vou dizer as coisas como eu as sinto. Nós sentimos muito o que aconteceu com você, Júlia, e se há algo que possamos fazer para ajudá-la basta você dizer. Talvez você não se recorde, mas nós fomos amigos — bons amigos — todos nós. Não podemos co­meçar novamente na mesma base?

Júlia permaneceu olhando para ela durante um bom momento, com a chaleira na mão.

— Sabe de uma coisa? — disse lentamente. — Você é a primeira pessoa que não tentou me convencer de que me recuperarei subi­tamente. Todo mundo parece estar disposto a insistir na tecla da doença temporária.

— Não vejo muito sentido em esperar por algo que pode ou não pode acontecer. A vida é curta demais. — Um amplo sorriso aflorou aos lábios de Peggy. — Estou citando uma frase feita, como diria seu marido.

— Você parece que se dá muito bem com Ross. — Júlia não tinha a intenção de dizer isso, mas de certo modo a frase lhe es­capou, antes que ela pudesse se controlar.

— Eu me dou, sim. — O olhar de Peggy era firme, — Mas não interprete mal. Ross gosta de caçoar de mim, e não vai além disso. Mesmo que eu não estivesse apaixonada por meu homem, a des­peito de toda minha aparência zombeteira, não teria a menor chan­ce com Ross enquanto você estiver por perto.

— Há muito tempo que você o conhece?

— Nem tanto. Há pouco mais de um ano, talvez, desde que Mike decidiu-se estabelecer por conta própria. Viemos morar nesta re­gião há uns dois anos. Até que é uma parte simpática do país, não é mesmo?

Júlia sorriu.

— Eu ainda não a conheço bem. Ontem fomos a Southampton e gostei bastante.

— Temos que combinar de nos encontrarmos na hora do almoço, como costumávamos fazer. Vamos usar nossa melhor roupa e os maridos levarão um gordo talão de cheques. Será o dia do sacrifício, como Mike costumava dizer. Você irá?

— Por que não? — O ânimo de Júlia se renovara inteiramente. Como podia ter sido tão tola a ponto de não querer ver aquelas pessoas? Não era de admirar que Ross tivesse finalmente perdido a paciência e se encarregasse de resolver pessoalmente aquele as­sunto, — Eu gostaria muito.

— Ótimo. — Animada, Peggy abriu a porta do guarda-louças e tirou de dentro pratos e travessas. — Deixe que arrumo a bandeja.

Os Ashleys partiram às cinco e meia, levando emprestado um guarda-chuva para abrigá-los em seu breve trajeto até o automóvel. Júlia ficou a contemplá-los até que se perderam de vista, extrema­mente consciente da presença de Ross a seu lado. Pela primeira vez estava começando a sentir alguma segurança na presença dele, alguma crença real na extensão dos sentimentos dele por ela. Não tinha sido justa com ele. Não lhe tinha dado uma oportunidade. Ele a amava e ela o tinha amado. Seria tão difícil assim voltar a se apropriar daquela emoção se ela se permitisse?

 

Júlia ficou contente por ter David a seu lado na semana que se seguiu. Já estava farta de ficar so­zinha a maior parte do dia. Como hóspede era excelente, ordeiro e atencioso, e um companheiro admirável, ao lado de quem ela não sentia a menor tensão. Juntos, davam grandes passeios. Fizeram uma pequena viagem a Lymington, com Shan resfolegando feliz no banco de trás do conversível, riram um bocado e não falaram sobre nada em particular. Havia muita coisa que Júlia gostaria de saber a respeito de Ross, mas não conseguia se forçar a perguntar. Se devia aprender alguma coisa mais a respeito do homem com quem tinha se casado teria de recorrer a ele mesmo.

Isso era mais fácil de pensar do que de executar. Se Ross fazia alguma objeção ao tempo que passava com seu irmão, dissimulou o fato muito bem. Nas raras vezes em que ficavam a sós, parecia fazer um esforço enorme para tornar a atmosfera entre eles estri­tamente impessoal. Júlia não se sentia segura sobre como enfren­tar a situação, como criar uma atmosfera de relaxamento, neces­sária para se iniciar qualquer tipo de relacionamento mais chegado. E no entanto a necessidade de ter algo mais do que já tinham ficou cada vez mais forte, colorindo seus dias, fazendo com que ela, in­quieta, se agitasse na cama vazia de casal todas as noites. Com­preendeu, ou pensou que compreendera, que o corpo se lembrava daquilo que a mente havia esquecido, mas isso não a ajudava a entender que a fome de carne podia vir antes de tudo, até mesmo sem amor, quando em toda sua vida tinha acreditado de todo co­ração nas românticas concepções de amor, desejo, casamento e rea­lização, exatamente nessa ordem e em nenhuma outra.

Inevitavelmente, à medida que os dias passavam, começou a enxergar em David todas as qualidades que aparentemente falta­vam em seu irmão. Estava sempre de bom humor, era uma boa companhia, mostrava-se preocupado com seus sentimentos e qual­quer cinismo que tivesse assumido durante seus vinte e seis anos de vida era mantido sob inteiro domínio. Havia uma sintonia per­feita entre eles, e ambos se mostravam contentes em fazer as mes­mas coisas. Era um companheiro perfeito, dizia-se Júlia frequen­temente, fechando os olhos ao ligeiro senso de frustração que al­gumas vezes acompanhava sua aceitação um tanto rápida de todas as suas sugestões. Por mais estranho que parecesse, era exatamen-te nessas ocasiões que algo que seu pai lhe dissera sempre lhe vinha à mente: "Uma mulher sempre sabe o que ela quer de um homem, até consegui-lo". Sob alguns aspectos, seu pai tinha sido um pouco como Ross, pensou. Um homem que deixava aflorar mui­to pouco do que pensava ou sentia, a menos que fosse pressionado. Peggy apareceu na tarde de quinta-feira para ver se Júlia não gostaria de se encontrar com ela na cidade no dia seguinte, a fim de almoçarem juntas. Júlia não hesitou. Precisava de uma mudan­ça, e Peggy parecia ser uma pessoa diante de quem ela talvez pu­desse se assumir totalmente pela primeira vez, desde que Ross a trouxera do hospital. A vida que levara nas últimas semanas era estranha e pouco natural, ela só foi compreender a extensão desse fato na sexta-feira, na hora do almoço, quando foi se encontrar com Peggy na portaria daquele hotel pequeno, porém elegante.

— Por que você não trouxe David? — foi a observação de Peggy, após cumprimentá-la. — Temi que você se sentisse obrigada a fazê-lo, pelo fato de ele estar hospedado em sua casa.

— Não, ele achou que não seria oportuno vir. Ele é desse jeito: muito compreensivo.

— Realmente? — Peggy arqueou as sobrancelhas irrepreensi­velmente bem cuidadas. — E tão pouco habitual em um homem. Mike jamais perderia e oportunidade de acompanhar duas mulhe­res para o almoço, por mais que elas quisessem ficar sozinhas. Meu bem-amado é totalmente insensívei a este tipo de sutileza! Que tal um drinque antes de nos sentarmos à mesa?

— Eu tomaria um martíni seco.

— Sempre cautelosa. — Não havia o menor traço de malícia em sua observação. — Preciso de algo mais forte do que isso, depois de passar a manhã inteira enfiada na cozinha. Sabe, quando eu era adolescente — e não faz tanto tempo assim — me achava com muita sorte se tivesse vinte libras por ano para gastar em roupas, Hoje em dia gasta-se isso em uma manhã e ninguém acha nada demais. Eu não devia resmungar tanto, mas é que algumas vezes tenho a sensação de que nasci quinze anos mais cedo do que devia!

— Quinze? — indagou Júlia, francamente admirada, recebendo de volta um olhar expressivo.

— Eu devia ter ficado quieta, esqueci que você não sabe o meu segredo, pois Ross é um cavalheiro. Que idade você me dá?

— Talvez uns vinte e seis,

— Tenho trinta e dois e algumas vezes sinto isso a cada minuto que passa. Mas hoje não, graças a Deus. — Levantou a mão, cha­mando o garçom, ordenou os pratos e recostou-se à cadeira, a fim de observar sua companheira. — Devo dizer que você está com aparência muito melhor do que no domingo. Correndo o risco de ser considerada uma pessoa grosseira, devo atribuir isso a Ross ou ao irmão dele?

— David é uma pessoa maravilhosa — afirmou Júlia. — Ele foi muito bom comigo nesta semana.

— Posso bem imaginar! Você é o tipo da pessoa para quem mui­tos homens gostariam de ser bons, se lhes fosse dada a oportuni­dade. Pessoalmente, me deu a impressão de ser uma pessoa um tanto insípida, comparado com Ross. Parece não ser nem um pouco atirado.

— Ele esteve no Oriente Médio durante três anos. Acho que esta não é a atitude de alguém que se acomodou.

— Ah, sim, mas por que razão ele foi para lá? Um noivado des­feito. Ele devia ter entrado para a Legião Estrangeira. Isso pelo menos tem um resquício de drama! — Peggy sorriu. — Não me leve a sério. Não sou tão cínica quanto pareço. Chame a isso me­canismo de defesa, se quiser. Ser normalmente ajustada não leva a nada hoje em dia.

Júlia teve de sorrir.

— É tão importante assim estar por dentro em relação à geração jovem?

— Importante? É o segredo do meu sucesso! Você ficaria espan­tada se ouvisse as histórias que eu ouço na salinha onde reformo roupas.

— Você reforma roupas em uma butique?

— Sim. A garotada aprecia um bom estilo e um bom corte, in­dependentemente do que as lojas tentam lhes impingir. Faço re­formas nas roupas e cobro uma pequena porcentagem sobre o preço pago. Você ficaria surpresa de ver a quantidade de jovens que apa­recem na minha sala. — Ela sacudiu a cabeça. — Não fique tão distante. Presumo que não ocorreram mudanças substanciais.

— Não. — Júlia ficou contente ao ver que o garçom se aproxi­mava com os drinques. Assim que se afastou, olhou para Peggy e sorriu. — A que vamos brindar?

— Que tal se brindássemos ao futuro?

Subitamente, algo dentro dela pareceu abrir-se e expandir-se.

— Muito bem. Ao futuro. Espero que dê certo.

— Dará, sim. — Peggy parecia extremamente confiante, apesar da malícia estampada em seu sorriso. — Água mole em pedra dura tanto bate até que fura!

Elas ainda estavam rindo quando seu olhar se desviou do de Júlia, em direção à porta, e modificou-se.

— Oh, meu Deus — disse. — Vamos ter encrenca, a menos que eu esteja muito enganada, — Olhou para Júlia e disse em voz baixa: — Aí vem um conhecido nosso, que se aproxima rapidamente com um brilho no olhar. Com alguma sorte, poderemos nos sair bem. Quer deixar que eu me encarregue da situação?

— Sim — Júlia não ousou se virar a fim de ver quem era o intruso: ela provavelmente não poderia tirar nenhuma vantagem desse gesto. — Não posso suportar a idéia de ter que dar explicações.

— Foi isso mesmo o que eu pensei. — A expressão de Peggy tornara-se firme. — Não se preocupe com isso. Eu sei como lidar com Lester Connelly.

O homem aproximou-se por trás de Júlia e deteve-se, pousando as mãos no encosto de sua cadeira. Uma voz confiante, calculada-mente máscula e extremamente sugestiva, disse:

— Há quanto tempo não nos vemos! Isso é que é deixar alguém com saudade! Como é que essas duas beldades têm passado?

— Muitíssimo bem, obrigada — Peggy respondeu por ambas. — Este lugar é um de seus esconderijos preferidos, Lester?

— Deduzo de sua observação que, se fosse realmente, você po­deria ter segundos pensamentos e passaria a frequentá-lo — ele replicou calmamente. — Eu adoro esse seu jeito, Peggy. Com ele você consegue ganhar de todo mundo!

— Uma coisa reconheço — foi a resposta calma —, você não se deixa desarmar facilmente. O que é que está fazendo aqui?

— Vim encontrar um cliente. Nem preciso dizer que se trata de alguém muito convencional. — Fez-se uma breve pausa, e Júlia sentiu o olhar dele pousar sobre seu pescoço: — Quer dizer que estou no gelo?

Forçou-se a voltar a cabeça lentamente e viu um homem de estatura média e bem esguio, de cabelos encaracolados e com um bigode petulante, que combinavam à perfeição com seu tipo. Talvez fosse o fato de ter Peggy sentada a seu lado que lhe desse tanto controle: não havia o menor traço de tremor em sua voz, no mo­mento em que disse:

— Por que é que você pensa assim?

Suas sobrancelhas arquearam enquanto ele estudava seu rosto.

— Você mudou um pouco desde a última vez em que nos encon­tramos. Você mudou de idéia em relação a mim, não é mesmo?

— Não tenho certeza — disse ela com sinceridade —, se algum dia cheguei a formular alguma idéia a seu respeito.

— Pois eu até diria que sim. — Ele parecia um tanto irritado. — Por menos que eu queira admitir, há algumas mulheres que eu simplesmente não consigo entender!

Peggy suspirou, enfadada:

— E por menos que você queira admitir, isso se aplica à maior parte dos homens. Até logo, rapaz. Não estamos interessadas no assunto.

Ele se foi, obediente como um carneiro. Ao examinar a atitude irônica de Peggy, sentiu que faria o mesmo.

— O que ele queria dizer? — perguntou Júlia, insegura. —Acon­teceu... algo desde a última vez que nos encontramos?

— Na verdade, não. — Peggy tinha toda a aparência de alguém que estivesse tentando escolher as palavras a fim de não ser mal interpretada. — A última vez que você viu Lester você o encorajou um pouco mais do que já havia feito em ocasiões precedentes, é tudo.

— Você está querendo dizer que eu flertei com ele?

— Não chegaria a esse extremo. É que o nosso Les costuma exagerar. — Acrescentou com toda franqueza: — Olhe, Júlia, não foi uma noite lá muito agradável. Tenho certeza de que você não haverá de querer que eu a lembre.

Júlia contemplou sua bebida e subitamente seu coração disparou.

— Se existe alguma coisa que me diz respeito, eu então obvia­mente tenho de saber. Conte-me o que foi, Peggy. Por favor.

Peggy deu de ombros.

— Bom, está certo, mas não há muita coisa para contar. Quando vocês chegaram em casa ficou bastante evidente — para mim pelo menos — que você e Ross tinham tido uma briga, não sei se as outras pessoas perceberam. No momento em que Lester fez sua abordagem costumeira você não o desencorajou, e ele, sendo quem é, imediatamente tomou a coisa como uma brecha e monopolizou você o resto da noite. Foi só isso o que se passou.

Júlia permaneceu algum tempo em silêncio, antes de perguntar calmamente:

— E Ross? Ele disse alguma coisa sobre isso?

— Na frente de todos, não muito. Imagino que muita coisa quan­do vocês ficaram a sós. Ele não suporta Lester. Poucos homens conseguem. Não consigo entender por que é sempre convidado para nossas reuniões, a não ser pelo fato de que já fazia parte dos grupos que estavam formados quando nos mudamos para cá.

— E quando foi que tudo isso aconteceu? Peggy a encarou.

— Você quer dizer que Ross não lhe contou?

— Contou o quê?

— Que vocês estavam indo de nossa festa para sua casa quando aconteceu o desastre. Que estranho! Eu pensei que... — Ela se conteve, deu de ombros e sorriu. — Acho que não é tão importante.

Talvez para Peggy não fosse, mas para Júlia certamente era. Na noite do acidente, ela e Ross tinham discutido, não uma vez só, mas provavelmente duas. E como resultado, ela, ao que parece, tinha deliberadamente encorajado o homem que acabara de deixá-las, o homem por quem ela não sentia a menor atração naquele momento tanto quanto agora. Precisava conversar com Ross, pen­sou ansiosamente. Tinha de saber o que havia se passado entre eles antes que chegassem à festa e em seguida no carro, quando se dirigiam para casa. Subitamente, saber de tudo tinha se tornado para ela um fato imperativo.

Sentiu-se aliviada por Peggy não fazer a menor tentativa de prolongar o encontro, aceitando aparentemente como um fato na­tural o encontro dela com David, na volta para casa. Júlia, de fato, tinha um encontro com ele, mas somente às quatro. Despediu-se de Peggy diante do hotel, prometendo dar-lhe notícias brevemente, e entrou no táxi que o recepcionista do hotel chamara, suposta-mente a fim de ir ao encontro com David.

O escritório estava situado não muito longe do centro da cidade. Era um prédio de dois andares, situado em um quarteirão repleto de lojas. Júlia pagou o motorista com o coração aos pulos e ficou por alguns momentos a contemplar as duas vitrinas do prédio e suas variadas ofertas. Muitas pessoas estavam fazendo o mesmo, entre elas um jovem casal de braços dados, postado diante da fotografia de um chalé, com um traço de resignação sobrepondo-se a seu desejo.

— Seria muita sorte conseguirmos comprar uma casinha com terraço com o dinheiro que economizamos — murmurou a garota, desanimada, e o jovem a seu lado apertou-lhe o braço.

— E você acha isso mau para um começo? De qualquer maneira, o sr, Mannering disse que vai fazer o possível para achar em algum outro lugar uma casa tão boa quanto esta.

Ross estava no escritório... Júlia se deteve, refletindo no fato de que bem podia se dar o contrário. A ansiedade que a levara até lá começava a atenuar-se, a tentação de dar as costas e deixar aquilo tudo para uma outra ocasião crescia a cada segundo que passava. Ainda estava lá, indecisa diante da vitrina, quando a porta se abriu e o próprio Ross, surgiu. Ele a viu imediatamente, e seu rosto revelou uma certa emoção, que Júlia não conseguiu decifrar, antes de voltar a seu estado normal de controle.

— Por que é que você não entrou? — perguntou ele. — Faz tempo que chegou?

Ela sacudiu a cabeça.

— Acabei de chegar. — Sentiu-se contente por não ter ninguém por perto a testemunhar sua confusão, acrescentando: — Eu quero conversar com você, Ross, se não estiver atrapalhando.

Dessa vez sua expressão não revelou nada.

— Claro que não está — disse, e abriu a porta para lhe dar passagem.

A garota sentada à escrivaninha olhou com um sorriso no mo­mento em que entraram.

— Já de volta? — perguntou. Nesse momento seus olhos depara­ram com Júlia, e o sorriso esmaeceu um pouco. —Alô, sra. Mannering.

Ross colocou a pasta em um canto da mesa.

— Telefone para os Fallows e diga-lhes que vou chegar dentro de alguns momentos, Chris. Estarei no escritório se alguém per­guntar por mim.

Júlia conseguiu endereçar ã garota um sorriso que esperava parecesse natural, enquanto Ross a precedia c abria uma porta nos fundos da sala. Ela dava para um escritório de aspecto convencio­nal, contendo uma grande mesa, cadeira giratória e alguns fichá­rios. O chão era carpetado, e dele saía um corredor estreito, o qual dava para um lance de escadas que levavam a um pequeno apar­tamento. Ele era muito agradável, apesar de extremamente aca­nhado. Continha um quarto com uma cama embutida na parede, além de uma quitinete e um banheiro. Vendo-o, Júlia compreendeu perfeitamente por que Ross tinha julgado necessário mudar-se e ter um cachorro, apesar de o apartamento ter sido perfeitamente adequado às suas necessidades de solteiro.

— Café? — perguntou ele.

— Não, já tomei com Peggy. — Foi direto ao assunto. — Um homem chamado Lester Connelly chegou ao hotel enquanto tomá­vamos um drinque antes do almoço.

— Muito bem. — O olhar dele aguçou-se. — O que aconteceu?

— Nada. Peggy conduziu as coisas magistralmente. Acho que ele nem percebeu que alguma coisa estava errada, exceto...

— Exceto? — ele atalhou. Ele estava de pé, a alguma distância, com as mãos nos bolsos, na atitude que ela começava a reconhecer como seu único indício de uma perturbação interna. Era uma es­pécie de calma forçada, se é que isso existia.

— Exceto que ele parecia um pouco desapontado por eu me mostrar fria com ele, desde a última vez que nos vimos — ela disse, sem ter consciência de que suas mãos se contraíam e os dedos se entrelaçavam nervosamente. — Peggy disse que chegamos briga­dos à casa dela naquela noite e que eu provoquei aquele homem durante toda a reunião. Por que você não me contou que era na festa dos Ashley que estávamos naquela noite?

— Por quê? — Ele deu de ombros. — Por que foi que não contei para você uma porção de outras coisas? Quando foi que eu tive a oportunidade?

Ela disse em atitude de defesa:

— Se você quisesse, teria criado a oportunidade.

— Devo concluir disso que você pensava que eu não queria? — O tom com que falava era estranho. — Que razões você acha que eu teria para esconder esse tipo de coisa de você, Júlia?

— Não sei. — A intensidade de seus sentimentos, durante todo esse episódio, tinha diminuído, até o ponto em que ela se viu na necessidade de lutar para mantê-los vivos. Sentou-se subitamente no diva. — Não tenho certeza do que me passou pela mente quando vim aqui. Acho que fiquei chocada. A idéia de ter dado a um homem daquela espécie a impressão de que eu... de que nós...

— Mas não é nada disso! — ele disse, arrebatado. — Les Connelly pega na mão inteira depois que você lhe dá um dedo. Mesmo que você tivesse se abandonado a um pequeno flerte naquela festa era esperar demais que essa sua inclinação durasse mais do que um mês.

— Mas as coisas não se passaram assim, não é mesmo? — ela disse, com a voz embargada. — Eu o encorajei porque queria fazer as pazes com você, pelo menos é o que Peggy pensa. — Ela o con­templou, alto e elegante, familiar e ao mesmo tempo um desconhe­cido, e sentiu um aperto na garganta. — Por que foi que brigamos naquela noite, Ross?

— Não tenho certeza. — Ele disse isso sem mudar de tom, mas convincentemente. — Você, por alguma razão, estava perturbada. Não estava doente, não, apenas irritada. Eu atribuí o fato às ten­sões costumeiras das mulheres e tentei alegrá-la, mas você não estava a fim. No carro, a caminho da casa de Peggy, você falou asperamente comigo, em resposta a um comentário perfeitamente inócuo que eu tinha feito e perdi a cabeça. Não me lembro do que disse, exatamente, mas o resultado foi o seu namorico com Lester.

— E em seguida? Subitamente seu maxilar enrijeceu.

— Mais tarde eu briguei com você pra valer e não me envergo­nho em reconhecer. Se tivesse sido com alguém que não Les Con-nelly... — Ele deixou a frase em suspenso. — Eu devia ter feito você amarrar seu cinto de segurança. Estava sempre insistindo com você para que o fizesse. Estávamos nos aproximando da en­trada de Marlowe quando você subitamente começou a inclinar-se para o lado. Eu tentei segurá-la, mas era tarde demais. — Sua voz se alterou. — Não consigo narrar o que aconteceu nos momentos que se seguiram. Não repare. Acho que envelheci dez anos.

— Ross. — Sem saber como ou quando se levantara, Júlia apro­ximou-se dele, e seu coração parecia que ia lhe saltar pela garganta.

— Ross, eu...

O que quer que fosse que ela tivesse a dizer, não conseguiu completar, pois ele estava diante dela, seus braços a envolviam e seus lábios se encontravam. Sua reação foi imediata e involuntária: a tensão e a reticência de semanas se dissolveram diante daquela, emoção forte do momento. Mas não durou muito. A consciência do que estava acontecendo a fez afastar-se dele e desencadeou uma onda de calor que lhe subiu ao rosto. Aquela não era a resposta. Ainda não. E não daquela maneira.

— Júlia. — Ross segurou sua mão no momento em que ela fez menção de se desviar. — Não comece a fugir de novo. Não vou me deixar transtornar por um beijo, da mesma forma que você também não. — Pôs sua outra mão carinhosamente, mas com firmeza, sob seu queixo e fez com que ela o encarasse novamente. — Quando é que irei convencê-la de que meus sentimentos por você são mais profundos do que uma paixão de momento? Eu a quero, sim, mas não enquanto você não voltar a sentir o mesmo em relação a mim. Acredite em mim.

— Mas eu quero — ela murmurou. — Você não sabe o quanto eu gosto de você!

— Pois então estamos a meio caminho. — Ele estava sorrindo.

— De uma certa maneira eu deveria me sentir grato a Lester por ter enviado você aqui hoje à tarde. Se você não o tivesse visto nós ficaríamos rodeando o assunto por mais algumas semanas. E agora que chegamos a este ponto, nada de voltar atrás. Não vá me repelir novamente. Eu não conseguiria suportar.

— Não o farei. — Naquele momento ela estava mais próxima do ponto de entender a qualidade de seus sentimentos por ele do que estivera em qualquer outra ocasião. Ele era um homem em quem uma mulher podia confiar e amar. Por que ela não enxergara esse fato antes?

— A que horas você ficou de se encontrar com Dave? — ele perguntou.

Ela disse e ele consultou o relógio.

— Então ainda temos algumas horas. Tenho de ir ver um cliente no caminho de Botley. Vou levar apenas alguns minutos para tra­tar de negócios, e a paisagem lá é muito agradável. Ela sorriu descontraidamente.

— Gostaria de ir.

O lugar para onde se dirigiram ficava a uns dez quilómetros da cidade, tratava-se de uma propriedade pequena, porém muito bem cuidada, composta de alguns bangalôs, que pareciam ser de cons­trução recente. Ross parou o carro diante de um deles, que tinha uma placa com seu nome, anunciando que o imóvel estava à venda, e deixou-a com a promessa de que não se demoraria muito. Júlia não se importou. Naquela tarde ela não se importava com nada.

Ele estava sorrindo quando voltou.

— Acabo de ter minha fé na humanidade restaurada — obser­vou, enquanto dava partida no motor e se afastava do meio-fio. — Esse pessoal concordou em reduzir cem libras no preço de venda, só para não decepcionar um jovem casal que não conseguiu levan­tar o empréstimo que esperava. Foi muita generosidade, sobretudo quando se considera que podiam ter vendido a propriedade por um preço doze vezes maior.

Júlia indagou cautelosamente:

— Mas é profissional de sua parte ficar tão contente assim com isso? Sua comissão não diminui?

Ele deu de ombros, despreocupado.

— Nem tanto. Os Moore são um casal simpático, e ficaram ena­morados por este lugar. — Desviou o carro, entrando na estrada principal, e acrescentou. — Estava pensando se não seria uma boa idéia nos mudarmos para a cidade. Não tenho o menor problema em encontrar um comprador para o bangalô. O que você acha?

Deixar o bangalô! Subitamente Júlia sentiu um baque, ao pen­sar naquela hipótese.

— Não cabe a mim decidir — disse finalmente. — A casa é sua.

— Nossa — ele a corrigiu, sem tirar os olhos da estrada. — Assim que voltamos da Áustria eu retifiquei a escritura e ela ficou também em seu nome. — Deu um sorriso rápido. — E o tipo da atitude que um homem toma quando sente que está para morrer. Não vou negar que não sentiria pena por abandonar a casa, mas isso passaria logo. É que eu me empenhei tanto em reformá-la... Mas se isso vai nos ajudar eu não hesitarei. Basta você dizer.

— Não — disse ela com rapidez e firmeza. — Não quero mudar. Gosto de lá.

Ele a contemplou.

— Você sabe que no inverno aquilo lá fica ainda mais solitário? No ano passado, quase ficamos isolados pela neve. Isso não a desanima?

— Não. — Havia muito terreno perdido a ser recuperado antes que o inverno chegasse, e naquele momento ela estava contente em dar um passo por vez. — Você tinha razão em relação à paisa­gem daqui — acrescentou efusivamente. — É linda. Não precisa visitar nenhum outro cliente?

— Só às cinco horas. Poderíamos passear um pouco. Que tal?

— Ótimo. — Apoiou a cabeça no encosto do banco, sentindo-se protegida pelo cinto de segurança. — Nós costumávamos passar tardes como esta quando você não estava muito ocupado?

— Com muita frequência. Você tinha o hábito de aparecer no escritório inesperadamente, como hoje, e me acompanhar quando eu tinha de visitar um cliente.

— Você não se importava?

— Isso é como perguntar se eu me importava por estar casado. Gostava de sua companhia tanto quanto você da minha. — Ele lançou-lhe um olhar. — Esta é a primeira vez que você mostrou interesse em nosso passado comum, desde o dia em que você saiu do hospital,

— Eu sei. — Ela procurou escolher as palavras, não querendo que aquele clima se dissipasse. — Eu tenho experimentado um sen­timento tão estranho, como se se tratasse de uma outra pessoa que tivesse vivido no chalé antes de mim. Alguém com meus hábitos e métodos, porém uma pessoa diferente. Fazer perguntas a respeito dela poderia parecer... uma intrusão. Isso lhe parece ridículo?

— Não, acho que estou começando a compreender tudo aquilo por que você tem passado. — Havia um carro à frente. Ross ace­lerou e ultrapassou-o, prosseguindo em seguida: — Por mais que a gente tente, é quase impossível se colocar em uma posição que a nossa própria mente sente dificuldade em apreender. A gente lê que coisas desse tipo acontecem com outras pessoas, mas quando acontece com a gente parece tão irreal que eu temo ter ficado muito mais preocupado a respeito de meus próprios sentimentos do que com qualquer outra coisa.

— Isto não é verdade — disse ela. — Você tem sido muito paciente.

— Pelo fato de não ter feito nenhuma pressão em relação a meus direitos matrimoniais? — Ele sorriu e sacudiu a cabeça. — Não pense que eu não fiquei tentado. Muitas vezes pensei que seria necessário uma atitude enérgica para quebrar o gelo. Uma questão de orgulho. Nenhum homem gosta de pensar que foi esquecido com tanta facilidade.

A estrada subia por uma colina, e Ross dirigiu o carro para onde a vegetação se adensava, A frente deles estendia-se a paisagem da baía de Southampton, com o rio Solent desembocando nela e a mancha que era Portsmouth bem à esquerda. Daquela distância as docas pareciam brinquedos, e nuvens cinzentas adensavam-se no horizonte.

— É uma vista e tanto, não acha? — observou ele. — E evidente que num dia mais claro ela se torna mais bonita. Quando aquela ilha fica coberta pela névoa significa que vem vindo chuva. — En­fiou a mão no bolso. — Cigarro?

Júlia aceitou um, deixou que ele o acendesse e ficou a contem­plá-lo acendendo o seu. Há um mês ela estivera com ele naquele carro, com os nervos à flor da pele e tremendo de tensão. Hoje a barreira ainda existia, porém não era mais intransponível. Havia uma chance para eles. Uma boa chance, se eles a aproveitassem lenta e descontraidamente. Quantas mulheres, ela pensou, tiveram a oportunidade e o incentivo de se apaixonar pelo mesmo homem duas vezes na vida?

— Costumávamos passar muitos feriados na ilha — ela observou após um momento. — Estranho, não é mesmo, como as coisas se configuram? Quero dizer, é estranho que eu acabasse por viver em uma região do país que nós dois amávamos. Até leva a gente a ima­ginar se não haveria alguma verdade nessa história de fatalismo.

— Não. — O tom com que se exprimia era enérgico. — Moldamos nossa vida de acordo com aquilo que somos.

— Não é mais ou menos a mesma coisa?

— Penso que não. A realização é a coisa principal. O contorno de sua vida pode ser modificado, se o conhecimento chega a tempo. — Permaneceu com um cotovelo apoiado na direção, o corpo ligei­ramente inclinado para ela e o cigarro se consumindo entre seus dedos. — Ainda temos muita coisa a viver, Júlia, e compete a nós dois saber como fazê-lo. A primeira coisa que você precisa encarar é o fato de que você talvez jamais recupere a memória de nossos três primeiros meses juntos. Com o risco de parecer irônico, você acha que poderia aprender a esquecer esse lado de sua vida?

— Não — disse ela suavemente. — Mas poderia aprender a viver com ele, no devido tempo. Não me apresse, Ross. É tudo o que eu peço.

— Não é muito, pensando bem. — Seu sorriso era ligeiramente irônico. — E provavelmente mais do que mereço. — Atirou fora o cigarro e ligou o motor. — Está na hora de voltarmos.

 

Júlia, nos dias que se seguiram, defrontou-se com a tarefa de dar as costas ao passado e tentar pen­sar somente no futuro, de aprender a conhecer o homem com quem tinha casado, de permitir que as emoções que tinha sido incapaz de negar desde o início crescessem e se desenvolvessem de acordo com seu curso natural. No mais íntimo de si mesma tinha cons­ciência das dúvidas que ainda permaneciam sem resposta, mas em relação a elas fechou decididamente sua mente e seu coração. Do seu passado só restavam cinzas. O aqui e o agora tinham de im­portar mais do que tudo.

O tempo continuava fresco, porém razoavelmente seco. Com a ajuda de David, ela limpou e colocou em ordem os canteiros e o gramado, e preparou a terra para a semeadura da primavera. Acen­deram uma fogueira perto dos salgueiros que bordejavam o lago e nela queimaram as folhas secas recolhidas dos canteiros. Ao acor­darem no dia primeiro de novembro depararam-se com as primei­ras rajadas de vento e com o jardim coberto de entulho.

— Foi um desperdício de energia — comentou Ross, durante o café da manhã. — A jardinagem, sob qualquer aspecto, é seme­lhante a um dos sete trabalhos de Hércules!

— A menos que você goste dela — observou David, calmamente, lançando-lhe um olhar zombeteiro.

— Desde quando você entrou para o clube dos jardineiros amadores?

— Desde o dia em que conheci sua mulher. — Havia um traço de desafio em sua cabeça, que se alteava. — É muito compensador ver as coisas crescerem e saber que você participou disso. Todo o trabalho que você teve passa a valer a pena.

Os olhos de Ross estreitaram-se, enquanto permaneciam pou­sados no rosto do rapaz.

— Você devia se casar e ter uns dois filhos — disse. — Talvez dêem mais trabalho do que as plantas, porém a realização é muito maior. — Não olhou para Júlia, enquanto se levantava. — Acho melhor ir embora. Tenho encontro marcado com um cliente às nove e meia.

Fez-se um silêncio prolongado na cozinha depois que ele partiu. Levando os pratos da mesa para a pia, Júlia ouviu o barulho do automóvel que a distância amortecia e pensou que algo vital partia da casa com Ross cada manhã.

— Não estará na hora de eu ir embora? — perguntou David subi­tamente, e ela voltou-se para contemplá-lo, surpresa e intrigada,

— Pensei que você fosse ficar até o fim de semana.

— E ia mesmo. — Girou a xícara entre os dedos cautelosamente, olhando a borra do café pousada no fundo. — Só que estou come­çando a sentir que já não sou mais tão bem-vindo, pelo menos no que diz respeito a Ross.

— Que coisa ridícula — respondeu ela impetuosamente. — Claro que ele quer que você fique.

— Sim? — Olhou para ela. — Você o conhece tão bem assim? Júlia ruborizou-se.

— Melhor do que conhecia. Em todo caso, o suficiente para saber que ele não finge em relação a coisas desse tipo. Se ele quisesse que você fosse embora diria sem receio nenhum, e você sabe disso.

— Como eu disse, é apenas uma sensação. Posso estar enganado. Não que eu devesse me queixar. É natural que um marido queira a esposa só para ele. — Afastou a cadeira. — Muito bem — acres­centou jovialmente —, não vamos mais falar nisso. Qual vai ser a programação de hoje? Não adianta continuar cuidando do jardim enquanto este vento soprar.

Acho que não, mesmo. — Acrescentou sem jeito: — Usei muito você estes dias, não é mesmo, David? Isto não é um jeito muito repousante de passar as férias.

— Bem que gostei. Foi divertido. Não temos jardins no deserto. — Sua voz mudou. — Não temos muita coisa, exceto a areia e o sol escaldante, e depois de uma ou duas semanas eles começam a se tornar insípidos.

— Você precisa voltar?

— Não, até poderia desistir do emprego. Uma outra opção seria voltar para lá e pedir transferência. Recentemente fizemos pros­pecções no Mar do Norte, e ouvi uma conversa de que logo eles haverão de querer um outro engenheiro com minha experiência. Talvez valha a pena pensar no assunto. Por outro lado, provavel­mente voltarei para lá e assumirei imediatamente a rotina. Você só se conscientiza das coisas que lhes fazem falta quando se torna possível uma comparação. — Ele emitiu um assobio sem som, per­seguiu com o dedo uma migalha de comida no prato e disse subi­tamente: — Olhe, se você não tem outros planos para hoje, que tal irmos perguntar lã na fazenda de baixo se eles têm cavalos para alugar? Gostaria de dar uma boa galopada.

— Não sabia que você montava — disse ela interessada. Ele sorriu.

— A exemplo de minha comida, isto também dificilmente preen­cheria os requisitos dos peritos. Lá no acampamento temos alguns cavalos do deserto para fins de recreação ou para situações de emer­gência. É um bom exercício, e pode-se confiar neles, pois sabem encontrar o caminho de volta para nossa base. Mas se você não quiser, basta dizer.

— Acho que é uma boa idéia. Há séculos que não monto... É muito mais tempo — acrescentou com um sorriso — do que eu consigo me lembrar. Apenas me dê tempo para pôr uma roupa um pouco mais apropriada e iremos embora. Se não nos atenderem na fazenda, tenho certeza de que encontraremos um estábulo em al­gum lugar.

A fazenda não os desapontou. Forneceram-lhes dois animais e os alugaram por um preço bem conveniente.

— Eles pertencem a meus filhos, sabem? — confidenciou o fa­zendeiro. — Ficam parados muito tempo, pois meus rapazes estão fora quase o tempo todo. — Não disse, entretanto, onde, — Tive de começar a alugá-los para ajudar a pagar sua manutenção. Os cavalos comem demais e isso é muito dispendioso. — Entregou a Júlia as rédeas do cavalo baio, e David ficou com o castanho. — Talvez no início eles vão parecer um pouco espantados, pois não saíram ontem, mas logo se acostumarão. Se puder, livre Campeão do trânsito — recomendou a Júlia. — Esse aí não gosta muito de sentir os carros passando a seu lado. Fora isso, é um ótimo animal.

Júlia não tinha tanta certeza assim. Havia alguma coisa no jeito como o cavalo girara os olhos quando ela pegou as rédeas que não inspirava a menor confiança em alguém tão pouco experiente na arte de cavalgar, e além do mais tratava-se de um animal tão gran­de... O fato de a montaria de David ser ainda maior não a consolava muito. David já tinha montado em cavalos árabes, muito conheci­dos por seu temperamento, enquanto a totalidade de sua experiên­cia restringia-se a um pangaré de oito anos que só andava a meio galope.

O vento também não ajudava. Apesar de sua força ter diminuído consideravelmente desde que amanhecera, soprava ainda com in­tensidade suficiente para lhe trazer lágrimas aos olhos quando ela o encarava diretamente, e frio a ponto de fazer com que o casaco que ela usava parecer ser de papel. Sentindo sua falta de firmeza, Campeão começou a tomar liberdades no momento em que saíram na estrada, sob ressaltando-se com um galho que se agitava ao ven­to, com um portão aberto cujos gonzos rangiam, com sua própria sombra que surgia repentinamente, no momento em que o sol se punha a brilhar.

— Mantenha as rédeas firmes — aconselhou David. — Deixe-o sentir quem é que comanda.

— Ele sabe! — exclamou ela, pesarosa. — E, o que é melhor, eu também! Desculpe-me, David. Isto não deve estar sendo muito divertido para você. Por que não galopa?

— E a deixo sozinha com esse maroto? — Ele sacudiu a cabeça. — Eu não sou tão fanático assim por um galope. De qualquer forma, acho que logo ele se acalma. Talvez tenha sido o trânsito que o deixou assustado.

Quando finalmente chegaram ao atalho que serpenteava pelo bosque, o cavalo parecia ter se aquietado um pouco, e Júlia teve coragem de seguir David, primeiro trotando e em seguida a meio galope. Ali, por entre as árvores, estava bem mais quente. As folhas atapetavam o chão, a camada de cima ainda tinha a cor do âmbar, fresca e limpa, e a inferior, ao ser revolvida, exalava um cheiro agradável. A parte o pio ocasional de algum pássaro, tudo era si­lencioso e sereno.

— Uma das coisas incríveis da Inglaterra é que você nunca está a muitos quilómetros da civilização — observou David, quando pa­raram em uma clareira a fim de proporcionar algum descanso aos animais. — O deserto é tão monótono quanto solitário. Depois de um tempo você quase começa a acreditar que fora de lá não existe mais nada, que o mundo inteiro consiste em areia. — Olhou para ela, sorrindo, muito seguro de si. — Parece fantástico, não é mes­mo? E difícil explicar esse sentimento.

— Sei o que você quer dizer — comentou ela, hesitando em prosseguir. — Acho que você deveria tomar alguma atitude para mudar as coisas, David. E quanto mais cedo, melhor. Você não pode começar a fazer os conta tos enquanto está aqui na Inglaterra?

— Poderia tentar. — Ele não parecia muito esperançoso. — De­pende do fato de poder ser substituído rapidamente.

— Você mudou muito desde que chegou — disse. — Na primeira noite você parecia tão entusiasmado a respeito de tudo, até mesmo quando falou do deserto.

— Estava tentando convencer a mim mesmo. O problema é que eu fui para lá por razões erradas. Talvez levasse mais tempo para esquecer Lou se eu tivesse ficado aqui, mas pelo menos eu teria vivido uma vida normal, com viagens ocasionais para outros luga­res. O emprego que tinha naquele momento até que era muito bom, só que na época não dei a necessária atenção. — Juntou as rédeas com decisão. — E basta de falar de mim por hoje. Aquele camarada lá da fazenda disse que alguém alugou o cavalo para as onze.

Faltavam cinco minutos para as onze quando eles alcançaram novamente a estrada. A relutância em deixar as pessoas a sua espera mais o fato de que Campeão não tinha se mostrado rebelde durante a última meia hora fizeram com que Júlia se descuidasse um pouco. Um carro passou por eles a uma velocidade moderada, mas O barulho e o vento que ele provocou a sua passagem foram suficientes para assustar o cavalo. Júlia segurou-se aflita à sela enquanto o cavalo disparava, sentiu seus pés desprenderem-se dos estribos e viu a vegetação de uma cerca viva aproximando-se dela. Ficou caída no chão, sem fôlego, enquanto David ia correndo ao seu encontro.

— Júlia! — disse ele, aflito. — Júlia!

Ela voltou-se lentamente e sentou-se, sentindo os braços dele passar em torno de seus ombros, em atitude de apoio.

— Está tudo bem, não fiquei machucada, só meu orgulho é que ficou... Acho que nunca conseguirei ser uma... — Seus olhos se levantaram, encontraram os dele e o sorriso morreu calmamente em seus lábios. Quando ele a beijou, o único sentimento que ela experimentou foi o de confusão.

— Desculpe-me — ele disse, ruborizando-se, — Sei que não de­via ter feito isso, mas não pude evitar, Ao vê-la caída pensei... Oh, meu Deus, não sei o que pensei! Só sei que se alguma coisa tivesse acontecido com você... — Seus braços a apertaram. — Eu sabia que ia me apaixonar por você desde aquela primeira tarde, quando conversamos e tomamos café na cozinha. Não, antes disso. No mo­mento em que eu dei a volta à casa e a vi com uma colher de pedreiro na mão e um traço de sujeira bem em cima do nariz.

— Acho — disse Júlia insegura — que é melhor eu me levantar. Davi d estendeu-lhe a mão e ficou a contemplá-la, enquanto ela

automaticamente se limpava.

— Você ficou realmente zangada comigo por lhe ter dito isso? — perguntou.

— Não. — Ela finalmente levantou os olhos. — Só acho que você está um pouco confuso. Acho que você gosta de mim tanto quanto eu gosto de você, mas você de fato não me ama. Você me conhece há apenas dez dias.

— Não é verdade. Ross falou a seu respeito nas cartas dele. Sobre pequenas coisas que você havia dito ou feito. Foi desse modo que fiquei sabendo como ele se sentia em relação a você. Você es­tava sempre nos pensamentos dele.

Estava, pensou, porém ainda estaria? Ross ainda sentiria o mes­mo ou estava apenas lutando para reviver uma emoção que tinha começado a morrer antes do acidente? As dúvidas. Os temores. Eles ainda estavam lá, a despeito de todos os seus esforços naqueles últimos dias para enterrá-los.

— Temos de voltar, está ficando tarde — disse ela, e no momento em que ele abria a boca para falar, acrescentou: — Não, não diga mais nada. Por favor, David, não diga mais nada. — Começou a andar ao longo da estrada, em direção a Campeão, que pastava

despreocupado junto ao meio-fio. — Não vou mais montar.

Os dois acabaram voltando a pé com os cavalos, e lá souberam que o freguês seguinte não tinha aparecido. David estava muito abatido quando abriu a porta do carro para Júlia e ligou o motor.

Já estavam na metade do caminho de volta quando em um certo

trecho disse, sem encará-la:

— Considerando o que aconteceu, o melhor que tenho a fazer é arrumar minhas coisas e ir embora. Acabei por atrapalhar tudo, como sempre. Nunca tive a intenção de fazer com que você soubesse como me sentia.

— Talvez seja a melhor solução. — Júlia não conseguia pensar em nenhuma outra opção razoável. Estivesse ou não David real­mente apaixonado por ela, o fato de que as coisas tinham sido explicitadas colocava seu relacionamento em um plano totalmente diferente. Ela certamente não conseguiria se sentir muito à von­tade com ele, principalmente quando estivessem sozinhos. — Quan­do é que você parte? — Ela conseguiu perguntar,

—Agora. Hoje. — Ele parecia estar arrasado. — Você pode dizer a Ross que me cansei desta vida tranquila. Ele vai compreender. Talvez possa dar um pulo aqui para vê-lo antes de partir.

Ela olhou rapidamente para ele e desviou de novo o olhar.

— Então você está indo embora?

— Sim. — Fez-se uma pequena pausa antes que prosseguisse: — Você pode dizer que a história se repete. Minha principal razão por não querer partir era você. Nestes últimos dias eu vivo apenas o momento que passa.

Eles eram dois a fazê-lo. Júlia mordeu os lábios e desejou poder se desligar novamente de tudo aquilo, com a mesma facilidade com que se tinha ligado. Ela tinha de acreditar em Ross. Era necessário!

A segurança que essa crença lhe inspirava tinha se tornado a coisa mais importante de sua vida.

David partiu para Londres imediatamente após o almoço, e sua despedida foi desajeitada.

— Sou um tolo — disse pouco antes de ir, — Estraguei algo muito especial. Se eu tivesse permanecido em silêncio, poderíamos ter continuado a ser amigos.

— Ainda podemos — replicou ela, e teve consciência, no momen­to em que pronunciou essas palavras, que as coisas nunca poderiam voltar a ser as mesmas. Ela sentira atração por David porque em certos aspectos ele era igual ao irmão, mas em momento algum se tratara de uma emoção que exigisse ser correspondida. Como as coisas se colocavam naquele momento, o alívio que ela sentia por sua partida sobrepujava a mágoa de perdê-lo, apesar de ela saber que sentiria sua falta nos dias que estavam por vir.

A tarde lhe pareceu muito comprida e muito calma, a despeito do vento. Júlia estava na cozinha quando o telefone tocou, às três horas. Atendeu cheia de cautela e ouviu a voz de Ross, sentindo emoções contraditórias.

— Fomos convidados para jantar — disse ele. — Lembra-se da­quele casal jovem de quem falei, na sexta-feira?

— Os clientes agradecidos? — perguntou, cora uma ponta de humor, e ouviu-o rir.

— Alguma coisa no gênero. Você gosta de comida chinesa?

— Muito.

— Foi o que eu sugeri, quando eles perguntaram. Não quis re­cusar o convite e, por outro lado, eles não tem condições de ir a um restaurante caro. Vamos encontrá-los para um drinque por vol­ta das sete e meia. Está bem?

— Sim, ótimo. — Hesitou, insegura quanto à sua reação. — Ross, David partiu há pouco. Acho que ele se cansou da vida no campo. Disse que ia ficar com um amigo, em um apartamento pró­ximo a Lancaster Gate. — Sabia que estava dando explicações ex­cessivas, e muito rápido demais, no entanto não conseguia se con­trolar. — Pediu para dizer a você que logo dará notícias.

Fez-se um breve silêncio, antes que Ross prosseguisse no mesmo tom:

— Suponho que isso seja compreensível. De qualquer modo, ele ia embora no fim de semana. — Era difícil decidir se isso era uma constatação ou uma conjetura, — Você bem que podia ver se meu terno azul está em ordem. Lembro-me que da última vez que o usei havia uma mancha na lapela.

— Mas você tem outros ternos — observou ela, dando-se conta subitamente de que falava exatamente como uma esposa, como qualquer esposa medianamente exasperada com a presunção mas­culina de que era seu dever cuidar de tais coisas.

— Tenho, sim. — Ele parecia estar se divertindo bastante. — Mas quero usar o azul. Combina muito bem com seus olhos. Vejo você lá pelas seis, Júlia.

Júlia sorria enquanto desligava o telefone. Olhou-se no espelho, notou que seus olhos brilhavam e teve consciência de que fora Ross que pusera aquele brilho neles. Por que ela continuava a duvidar dele? Por que ele deveria fingir que a amava, se isso não era ver­dade, quando as próprias circunstâncias de seu relacionamento te­riam facilitado romper com tudo, semanas antes? Não fazia o me­nor sentido agora.

Era a primeira vez que se aproximava de seu quarto, rompendo a barreira da intimidade. A sra. Turner lavava, passava e guardava as roupas no armário, não encarando com bons olhos qualquer ten­tativa da ser ajudada, considerando essa intrusão como uma des­confiança em suas próprias capacidades. Júlia pisou no carpete castanho-avermelhado e abriu a porta do armário. Seu coração ba­tia mais rápido enquanto acariciava o tecido áspero de um paletó esporte que rescendia a tabaco e pinho, no momento em que ela aproximou o rosto. Ela vira Ross usá-lo uma única vez, durante o primeiro fim de semana. Como tudo isso parecia distante agora...

Nunca o tinha visto usar aquele caríssimo terno azul. Pelo me­nos não se lembrava. Tirou-o do armário e pendurou-o na porta, de modo que a luz incidisse sobre o paletó. Sim, havia uma mancha na lapela esquerda, uma mancha avermelhada, mais ou menos no nível que sua boca alcançaria, quando Ross o usasse. Ficou a con­templá-lo por algum tempo, tentando novamente romper com o vazio que invadia sua mente. Claro que era totalmente inútil. Tão longe quanto sua memória podia ir, aqueles três meses ainda não existiam. Tudo o que ela sabia a respeito deles lhe tinha sido con­tado. Talvez isso fosse tudo que ela ficaria sabendo.

Pôs de lado resolutamente aquele sentimento negativo que era o começo de uma depressão, pegou o terno e desceu as escadas. Havia um frasco de removedor de sujeira sob a pia. Uma simples mancha de batom não deveria trazer muitos problemas.

Levou cinco minutos para apagar os últimos traços da mancha no tecido. Ao sacudir o paletó para ajudar a dissipar o cheiro, notou que um pedaço de papel caía do bolso de fora e dobrou-se para pegá-lo. Era uma página retirada de um diário — um diário muito pequeno —, e trazia um número de telefone escrito com letra ine­quivocamente feminina. Olhando-o, Júlia sentiu algo dentro dela contrair-se novamente. E daí?, perguntou-se, em um desafio. Ross tinha muitos clientes, e alguns deles deviam ser mulheres. Aquele número estaria provavelmente havia meses em seu bolso.

Amassou a folha subitamente, fez menção de jogá-la na lata de lixo, fez uma pausa e desamassou-a cuidadosamente. Não lhe per­tencia para que pudesse jogar fora. Fosse ou não importante, ela pelo menos deveria mostrá-la a Ross. Mas como? Se ela a entre­gasse poderia parecer que estivera revistando seus bolsos. Talvez devesse colocá-la em seu escritório e deixar que ele a encontrasse por si mesmo.

E não se esquecer de observar as reações dele, sussurrou-lhe uma vozinha, ao mesmo tempo que se sentava na cadeira mais próxima. Isso tinha que ter um fim. Simplesmente tinha que ter um fim! Não havia já motivos suficientes com que se angustiar sem permitir que sua imaginação se expandisse desenfreadamente, co­mo estava acontecendo naquele momento?

Finalmente acabou pondo o papel de volta no bolso e levou no­vamente o terno para cima, pendurando-o com todo cuidado e fe­chando a porta do armário. De volta a seu quarto tirou do armário um terninho de lã cor do âmbar-claro e estendeu-o sobre a cama, junto com as meias e uma muda de roupa de baixo. Tomaria um banho e se aprontaria antes que Ross chegasse, deixando o banhei­ro livre para ele.

Ao consultar o relógio ficou surpresa por notar que ainda eram quatro horas. Ross levaria duas horas para voltar para casa, por­tanto tinha ainda uma hora para começar a se vestir. Andou in­quieta pelo quarto, olhou pela janela as árvores que se agitavam e o céu sombrio e lembrou-se de que Shan ainda não tinha saído para seu passeio. Isso levaria mais ou menos uma hora.

O cão saudou-a com o alívio e o entusiasmo de alguém que ti­vesse se considerado abandonado e esquecido, correndo à sua frente em direção ao arvoredo e ao regato de onde era bombeada a água que regava o gramado. O vento a açoitava enquanto ela avançava por entre as árvores, penetrando em seu casaco. Tinha voltado a soprar forte. Era bem possível que caísse uma tempestade durante a noite, o que certamente liquidaria com o que sobrara das rosas. Na parte da manhã elas estariam totalmente destruídas.

Júlia não tinha a intenção de ir muito longe, mas Shan presu­mivelmente tinha outras idéias. Pela primeira vez ignorou seu as­sobio, quando chegou a hora de voltarem para casa, e meteu-se por entre a escuridão do arvoredo, na pista de algo que não se via e não se ouvia, mas que ele obviamente farejara, Ela o seguiu com resignação, sentindo a chuva trazida pelo vento, leve naquele mo­mento, mas que ameaçava engrossar, a julgar pelas nuvens que se adensavam no céu. Maldito animal, pensou, por que ela escolheu um tempo daqueles para sair perambulando por aí? Assobiou no­vamente, ouviu-o latir excitado e foi em direção ao som, tropeçando nas moitas de capim, pisando só Deus sabia em que e rezando para não dar um escorregão.

Quando finalmente chegou perto o cão estava cavando um bu­raco, enfiando o focinho nele e rosnando. Júlia falou com ele aspe­ramente, afastou-o de lá, passou seu cinto no pescoço do cão, como se fosse uma coleira, e tomou o caminho de volta. Agora chovia a cântaros, seu rosto e mãos ficaram molhados. O vento soprava for­te. Depois de se cobrir com o capuz pela vigésima vez, desistiu. Seu cabelo simplesmente teria de ficar molhado. Chegando em casa, ela o lavaria e depois usaria o secador.

Quando finalmente chegaram, ambos estavam encharcados. Jú­lia pegou uma toalha, esfregou Shan, abriu a porta da cozinha, a fim de deixar o cão entrar, e quase caiu, no mesmo momento em que alguém fazia o mesmo do lado de dentro.

Ross segurou-a pelo cotovelo no instante em que ela tropeçava, examinou-a de alto a baixo e afastou com certa rispidez Shan, todo excitado, com a outra mão.

— Você está tentando pegar uma pneumonia? — perguntou. — Você não devia ter levado o cão para passear com um tempo deste.

— Não estava assim quando saímos — disse, passando a mão pela fronte a fim de evitar que as gotas de chuva escorressem por seu rosto. — Pelo menos não chovia tanto. Você me deu um susto quando abriu a porta desse jeito. Por que não acendeu a luz?

— Porque eu tinha acabado de entrar quando ouvi vocês lá fora. Ele liquidou o assunto ao ver seu cabelo ensopado e sua roupa

toda molhada colada no corpo, empurrando-a com firmeza para a porta do hall.

— Já para cima, tomar um banho quente. Dê-me seu paletó, que eu vou pôr para secar.

Júlia abaixou o zíper, entregou-lhe o paletó e deixou os sapatos na soleira da porta, indo em seguida para cima. Começou a encher a banheira com água quente, a tirar as calças e o suéter e ouviu Ross, que subia as escadas e em seguida batia na porta.

— Quando você terminar, venha para o quarto. Trouxe conha­que lá de baixo.

— Estou bem — disse ela. — Não é a primeira vez que me molho. E não gosto de conhaque.

— Não teime. Só pode lhe fazer bem. — Afastou-se antes que ela pudesse retrucar.

Ele estava em frente à janela quando Júlia entrou no quarto, uns quinze minutos mais tarde. O brilho da lâmpada de cabeceira evidenciava a largura de seus ombros sob o paletó cinza-escuro.

— Esta tempestade vai longe — comentou ele, sem se voltar.

— Talvez fosse melhor telefonar e marcar o compromisso para uma outra noite.

— Mas vamos estar de carro — observou ela apressadamente.

— E foi você quem disse que não gostaria de desapontá-los. — Ela parecia estar um tanto aflita com a observação dele. — Talvez não tenham mais nenhuma noite livre.

Finalmente ele se voltou e seus olhos percorreram o roupão de Júlia, sem mudar de expressão.

— Você lavou o cabelo — disse ele. — Será que vai ficar seco a tempo?

— Se eu usar o secador, sim. — Júlia pegou na mesinha de cabeceira o copo que continha o líquido cor de âmbar e fez uma careta. — Não preciso disto. Não sinto frio, depois deste banho.

— Não há de lhe fazer nenhum mal — retrucou com firmeza.

— Tome.

Um sorriso iluminou subitamente seu rosto.

— Você está falando igualzinho a meu pai.

— É mesmo?

— Ele também sorria, mas o tom com que falava era estranho.

— Pois então faça de conta que sou seu pai e pelo menos uma vez na vida obedeça. E uma dose muito pequena.

Era, de fato, e ela teve de reconhecer que se sentiu mais aque­cida. Pousou novamente o copo, dessa vez vazio.

— Assim é que é. — Ross tirou as mãos dos bolsos e caminhou em direção à porta. — Eu também vou tratar de me trocar. Talvez a gente vá demorar um pouco mais para chegar à cidade, guiando contra essa ventania que parece não ter fim.

Parada no lugar onde a tinha deixado, Júlia pôs-se a imaginar o que ela esperava na realidade — ou tratava-se de uma esperança? Havia passado cinco dias desde que ele a beijara no apartamento. Cinco dias, desde que tinham concordado em começar tudo de novo, ou pelo menos tentar. O que ele estava esperando? Que ela desse o primeiro passo? Não, pensou, ele não era do tipo que tirasse o corpo fora. Então por quê, por quê, por que ele não a havia beijado, ali, nessa noite, naquele quarto, quando desejava tanto que sua confiança nele fosse renovada? Ross não era tolo. Devia ter perce­bido suas emoções durante aqueles últimos minutos — mesmo que ela não estivesse totalmente segura delas.

O efeito do conhaque já havia se dissipado no momento em que Júlia ficou pronta e desceu as escadas. Sentia-se calma e com a cabeça no lugar, como não lhe acontecia havia semanas. Ross já estava pronto, à espera na sala de estar, folheando novamente o jornal do dia com um copo de uísque ao lado. Levantou os olhos quando ela entrou, aprovou claramente o vestido de cor âmbar e dobrou cuidadosamente o jornal, antes de pousá-lo sobre o divã.

— Ainda temos uns cinco minutos — disse. — Não quer tomar um licorzinho?

— Não quero misturar com o conhaque. — Abaixou-se para aca­riciar a cabeça de Shan. — Você não vai se afastar muito da lareira hoje à noite, não é mesmo, rapaz? — Sem levantar a cabeça, acres­centou: — Não podemos deixá-lo ficar aqui, Ross? Só hoje. Está uma noite tão feia e tenho certeza de que se comportará bem.

— Acho que daria um trabalhão convencê-lo a ir lá para fora — Ross respondeu. — Vamos pra fora, Shan? — Riu, enquanto o cão encostava a cabeça nas patas dianteiras e lançava-lhe um olhar acusador, mantendo-se estático. — Esse animal está completamen-te mimado, e sei muito bem de quem é a culpa!

— A culpa é sua — replicou ela —, por querer me dar uma lição. — Se era tão importante deixá-lo ficar fora de casa você devia ter sido explícito. O cachorro é seu.

— E mesmo. — Havia algo de diferente em seu olhar. — Mas ele é um bicho muito compreensivo. — Levantou-se, tomou o casaco que ela tinha pousado no encosto do divã e entregou-lhe, com um sorriso no canto dos lábios. — Está na hora de irmos. E tarde demais para recuar, por pior que esteja o tempo. E melhor você pôr um lenço na cabeça até chegarmos ao carro.

Jill e Vincent Moore já estavam a sua espera no hotel onde tinham combinado se encontrar. Conforme Júlia suspeitava, tra­tava-se daquele casal jovem que ela havia encontrado diante do escritório na última sexta-feira. Eram ambos mais ou menos de sua idade, haviam se casado havia uns dois, anos e no momento moravam com os pais de Jill.

— No começo, tudo bem, mas ultimamente as coisas estavam ficando difíceis para ambos os lados — confessou Jill. — Durante algum tempo procuramos um lugar que fosse só nosso para morar, mas na realidade nunca esperamos encontrar algo tão bom assim. — Seus olhos se dirigiram a Ross, e por eles passou um lampejo de ansiedade. — Tem certeza de que eles não vão mudar de idéia, sr. Mannering? Estou falando sério. Não suportaria perdermos o negócio.

— Eles não mudarão de idéia — respondeu. — Não são esse tipo de gente. Você mesma deve ter se dado conta disso quando os conheceu. Algumas pessoas nasceram para embromar os outros, mas gente como os Fallows encaram um compromisso verbal tão a sério como um contrato. Pare de se preocupar com isso. As coisas estão indo muito bem.

— Muito bem — disse ela sorrindo —, não me preocuparei mais com isso. — O que não era verdade, porque obviamente estava em sua natureza preocupar-se com tudo nos mínimos detalhes, até que as coisas se tornassem realidade. Naquele momento, entretanto, mostrava-se satisfeita. — O senhor fez tanto por nós.

— Não mais do que a minha profissão impõe. E em relação aos Fallows que você devia se mostrar agradecida.

— Mas estamos — interveio Vincent. — Muitos corretores te­riam preferido persuadi-los a manter o preço original, a fim de não sofrer um corte em sua própria comissão.

Sim, bem... — Ross levantou a mão e chamou o garçom. — Vamos deixar esse assunto de lado, está bem?

Foi uma noite realmente agradável, se bem que um tanto sin­gela. Júlia ouviu os planos de Jill relativos ao mobiliário, tapetes e eventuais decorações novas, concordou que tais assuntos forne­ciam metade do prazer a uma mulher em uma casa nova e ficou admirada ao constatar que ela mesma não havia sentido aquela empolgação. O chalé agradava-lhe do jeito como era, a escolha de Ross era excelente e podia também ter sido sua. Isso, supôs, fazia uma certa diferença.

— Sabe, seu marido me inibiu um pouco a primeira vez que fomos encontrá-lo — confidenciou Jill, com uma franqueza que em parte era devida ao vinho e em parte à sua felicidade esfuziante, no momento em que foram ao toalete, — Só fiquei à vontade quando ele começou a falar. Algumas pessoas fazem você se sentir culpada por não ter economizado tanto quanto acham que você deveria, antes de começar a procurar uma casa, mas ele soube nos pôr à vontade. Nunca pensamos cm abrir uma caderneta de poupança em uma instituição que estivesse ligada a uma firma construtora, para assim termos uma chance maior de empréstimo quando sur­gisse a oportunidade, gozando também de uma taxa menor de ju­ros. A gente nem se preocupa com essas coisas, não é mesmo? E daí surgiu aquela decepção quando nos perguntaram em relação à hipoteca. Eu quase chorei no escritório quando soube que precisa­ríamos de mais duzentas libras. É realmente muito dinheiro, sob qualquer ponto de vista, e nunca esperei que os Fallow reduzissem o preço para nós, quando podiam ter vendido facilmente a casa com aquele preço pretendido para mais alguém. — Fechou o estojo de maquilagem com um gesto de satisfação, — Falo um bocado, não é mesmo? Vin sempre me diz que devo ter sido vacinada com uma agulha de vitrola!

Júlia seguiu-a de volta à mesa sentindo-se ligeiramente confusa. Duzentas libras, dissera, e no entanto Ross havia feito menção a apenas cem. Tinha certeza desse fato. Portanto, quem teria con­tribuído com a outra parte? O próprio Ross? Não, disse a si mesma, não era possível. Ninguém no mundo dos negócios — qualquer tipo de negócio — era assim tão generoso.

Mais tarde, ao desejar boa noite aos Moore, Ross lembrou-se subitamente de que necessitava de mais algumas informações e pediu a Vincent que as escrevesse em um pedaço de papel arran­cado de sua caderneta de endereços. Dobrou-o, colocando-o no bolso de fora, e ao fazê-lo encontrou a outra anotação, tirando-a para ler, Júlia sentiu que quase chegava a prender a respiração, ao mesmo tempo que ele dava de ombros e a jogava displicentemente em uma cesta de lixo, antes de colocar a nova anotação no bolso. Então não passava disso. Ele provavelmente nem sequer se lembraria de que número se tratava.

A chuva havia parado, no momento em que chegaram ao desvio que levava a Marlowe. Júlia espiou para fora enquanto o carro diminuía a marcha, e pensou naquela noite de setembro quando a porta do carro se abrira e ela caíra, sofrendo aquele acidente, jus­tamente naquele lugar. Devia ter estado muito confusa, a ponto de se enganar de maçaneta, pensou, eram muito diferentes uma da outra. Desviou o pensamento daquele assunto. Tudo aquilo era um fato consumado. Era coisa do passado. Não iria permitir que isso a preocupasse agora.

— Você não me disse que os Fallow haviam concordado em aba­ter cem libras no preço da casa? — perguntou ela, e sentiu o olhar de Ross pousar-se sobre ela imediatamente.

— Sim. Por quê?

— Jill Moore está pensando que foram duzentas. — Ela esperou uns bons trinta segundos antes de voltar-se para encarar aquele perfil decidido. — Foi você quem cobriu a diferença, não é, Ross? Você foi quem colocou os outros cem.

— Sim — disse, com o mesmo tom calmo de sempre. — Desisti de minha comissão. Posso compensar em outras vendas.

— Pare de fingir que não foi nada — disse ela suavemente. — Acho que foi um grande gesto de sua parte, mesmo que você tire o prejuízo de alguma outra maneira. Você costuma ajudar jovens casais com tanta frequência?

— Não, e não vai voltar a acontecer, portanto não perca tempo em querer pôr uma auréola em volta de minha cabeça. Acontece que os Moore são um jovem casal do qual gosto muito, eis tudo. E eu queria vê-los ficar com aquela casa. Espero que você não tenha proporcionado a Jill razões para suspeitar do que quer que seja.

— Claro que não! Eu mesma não tinha certeza.

— Você está dizendo que não me acredita capaz de praticar uma ação impulsiva. — Ele soltou a frase sem alterar o tom, mas havia uma ligeira contração em seu maxilar. — Talvez tenha sido um cálculo. Talvez tenha feito de propósito, para que você descobrisse.

— Não acredito — disse, sabendo que ele falava a verdade. Hou­ve uma ligeira hesitação antes que ela acrescentasse com ternura: — Fale sobre como nos conhecemos, Ross. A respeito de que foi nossa primeira conversa?

— Conversamos sobre você a maior parte do tempo. — Um sor­riso abrandou seus traços. — Você usava um elegante vestido azul com gola branca, e eu queria beijá-la durante toda a noite. É disso que eu me lembro melhor.

— E você beijou?

— Na primeira oportunidade, quando saímos do apartamento que você dividia com duas amigas. Não que você estivesse inclinada a se abandonar. Levei mais quarenta e oito horas para convencê-la de que duas pessoas não precisavam se conhecer durante semanas a fio para se sentirem seguras de suas emoções. — Parou o carro diante do portão e acendeu os faróis de modo a iluminar o caminho que ia até a porta de entrada. — Vou levar você até a entrada antes de pôr o carro na garagem.

Júlia pegou na maçaneta, sentiu a mão dele fechar-se suave­mente sobre seu pulso e voltou-se lentamente a fim de encará-lo. Seu coração batia com tanta força que tinha a impressão de que o ruído enchia o automóvel. O beijo foi longo, lento, indagativo, tes­tando suas reações antes de propor outras solicitações, e deixando-a trêmula, de olhos fechados, e apoiada em seu ombro. Ele roçou lentamente seu rosto com os dedos, permaneceu por um momento infindável e intenso com sua mão quente pousada em sua nuca e finalmente debruçou-se sobre ela e abriu a porta.

Esperou que ela entrasse antes de pôr o motor em movimento e levar o carro para a garagem. Shan veio correndo da sala de estar para festejá-la, parando ao pé da escada, enquanto subia até o quarto a fim de tirar o casaco.

No andar térreo a porta da frente abriu-se e fechou-se novamen­te. Ouviu-se o barulho costumeiro do ferrolho que se fechava, uma ordem dada a Shan em voz baixa, e em seguida Ross subiu as escadas de tábua lavada e entrou no quarto.

 

Estava começando a amanhecer quando Júlia acor-dou, e ela permaneceu por alguns momentos olhan­do para o teto antes de voltar a cabeça cautelosamente para o outro travesseiro. Ross estava deitado de bruços, com um dos braços pas­sado em torno da cintura dela. O sono eliminara a tensão de seu rosto. Com os cabelos desmanchados daquele jeito parecia mais jovem, quase um menino. Com um gesto levíssimo ela afastou os cabelos de seus olhos, sentiu-o movendo-se e voltou a contemplá-lo mais uma vez, relembrando o terno calor de suas mãos e de sua voz na noite, a paixão nascente de seus beijos e o modo arrebatado corno ela própria reagia. Aquele era seu marido, disse a si mesma, e estava apaixonada por ele. Agora nada mais lhe importava, a não ser isso. Nada mais tinha de importar.

Deslizando devagar c cuidadosamente, escapou do braço que a rodeava e saiu da cama. Pôs os chinelos e o roupão e, indo até a janela, espiou aquele mundo lá fora mergulhado na neblina, em que as árvores despontavam como sentinelas fantasmagóricas no meio do jardim. Havia no ar uma umidade fria que até mesmo o aquecimento central não conseguia anular totalmente. Júlia tre­meu um pouco e fechou ainda mais o roupão em torno de si: ao voltar-se, deparou com Ross apoiado no cotovelo olhando-a, com um sorriso nos lábios.

— Alô — disse ele suavemente, e estendeu-lhe a mão. — Ve­nha cá.

Foi até ele sem hesitar, pegando em sua mão e deixando-se envolver no círculo rijo e seguro de seus braços.

— O vento parou de soprar — disse. — Conseguirei varrer no­vamente as folhas.

— Hoje não. — Tocou seu queixo com a ponta do dedo. — Hoje é um dia especial. Não irei trabalhar e ficarei com você. Somente nós dois. Você gostaria de ir a algum lugar?

— Não tenho nada em mente. — Apoiou a cabeça no peito mo­reno e liso e abandonou-se, sem a menor censura. — Só quero ficar perto de você. Estou parecendo uma tola?

— Acho que não. Esperei durante várias semanas para ouvi-la dizer isso. — Acrescentou calmamente: — Nenhum arrependimento?

— Por quê? Por estar casada com você? — Ela riu. — Acho que provavelmente foi a melhor coisa que fiz na vida. Se me arrependo de alguma coisa é de não poder me lembrar quando foi que o vi pela primeira vez, mas, se eu não conseguir realmente, sempre posso levar em conta o momento em que despertei no hospital e você estava a meu lado.

— Isso é um bom sinal. Você agora pode fazer piadas com isso. — Ele a contemplou: sua expressão passou por uma mudança sutil. Parecia estar a ponto de dizer algo mais, porém mudou de idéia. Deu uma pancadinha em seu queixo e disse, decidido: — Vamos tomar o café da manhã, senão ficaremos aqui o dia inteiro. Com­binaremos o que vamos fazer durante o dia, enquanto comermos.

Júlia estava fritando bacon quando ele desceu. Usava um jeans surrado e um suéter branco bem folgado e trazia um mapa da região.

— Você conhece Stonehenge? — perguntou Ross, desdobrando o mapa sobre a mesa, sem se importar com o que estava por baixo. — Se bem me lembro, podemos deixar o carro em Amesbury e andar, mais tarde voltaremos por um caminho diferente. Vai ser um dia lindo, assim que o sol sair. É o tempo ideal para andar. — Olhou-a, levantando as sobrancelhas. — Que lhe parece?

— Acho uma boa idéia. — Júlia não se importava muito com o que fizessem, contanto que aquela sensação de calor e segurança permanecesse. Ficar com Ross durante o dia todo já lhe parecia suficiente. Naquele momento seu horizonte parecia povoado por aquela necessidade. — O que devo usar?

— Uma roupa quente e confortável: proteja principalmente os pés. — Sorriu à vontade. — Não consigo suportar as mulheres que vão para uma excursão vestidas como manequins.

Júlia também sorriu.

— Alguma vez fiz isto?

— Não exatamente. Uma ocasião você teve a idéia de tentar subir trezentos metros em uma montanha na Áustria usando san­dálias, mas consegui fazer você desistir. A garota com quem me casei é uma típica moradora da cidade!

— Pare de caçoar — replicou. — Você também era antes de se mudar para cá.

— No corpo, talvez, mas não no espírito. Não havia nada de que gostasse mais do que sair da cidade nos fins de semana.

— Sozinho? — perguntou ela, colocando um prato diante dele enquanto ele voltava a dobrar o mapa.

— Sim. — Urna leve sombra passou momentaneamente sobre seus olhos, — Naquele tempo não me importava de levar quem quer que fosse comigo. — Deixou o mapa de lado, pegou a faca e o garfo, cortou o bacon e disse: — Esse roupão que você está usando eu comprei na Áustria.

— A palavra certa é penhoar — disse ela. Examinou o tecido, — Por que foi que você comprou?

— Porque você gostava e ficava bem nele. Eu queria comprar outro, mas você disse que era escandalosamente caro e que não valia o preço. Lembro-me de que me congratulei comigo mesmo por ter encontrado uma esposa tão econômica quanto bonita. Pensando bem, aquelas três semanas foram muito compensadoras.

Subitamente ela sentiu um aperto doloroso na garganta. Ele estava falando de sua lua-de-mel, de um tempo que os casais re­cordam juntos. Chegaria um tempo em que ela e Ross poderiam fazer o mesmo? Com certeza aquele bloqueio em sua mente não poderia durar pelo resto da vida,

Inconscientemente sua mão percorreu a fonte, na região onde seus dedos podiam tocar as cicatrizes ligeiras e apertou-as, como se através daquela pressão ela pudesse reconstituir a parte do cé­rebro que se recusava a funcionar. Se pelo menos ela pudesse se recordar!

— Júlia. — Ross debruçou-se e pós a mão em seu rosto. — Não fique assim. Você está com uma expressão idêntica à do dia em que eu a trouxe para casa.

— Desculpe-me. — Tentou sorrir e recuperar o estado de espírito em que estivera. — Prometi a mim mesma que tentaria não pensar mais nisso, mas não é assim tão fácil.

— Então teremos de nos empenhar em manter sua mente ocu­pada com algo mais — disse ele com deliberação. — Talvez fosse melhor combinarmos de agora em diante não fazer a menor menção ao que passou. É no futuro que temos de pensar, aconteça o que acontecer.

— Não. — Ela sacudiu a cabeça teimosamente. — Essa não é a solução. Tenho de aprender a aceitar as coisas como elas são. Aliás, nós dois temos. — Dessa vez seu sorriso foi mais descontraí­do. — Sempre tive vontade de conhecer Stonehenge. Como foi que você adivinhou?

Partiram logo depois das nove e meia, e Shan foi acomodado no banco traseiro. Na verdade Ross não havia planejado levar o ca­chorro, mas este tinha dado demonstração de ter sua própria opi­nião em relação ao assunto, esgueirando-se e pulando para dentro do carro no momento em que a porta foi aberta.

— Pressinto que minha autoridade está começando a não sig­nificar nada neste lar — observou Ross enquanto o carro seguia pela alameda. — Imagino que ele tenha dado grandes passeios por aí com você e Dave. — Voltou a cabeça ao notar que Júlia não respondeu imediatamente e lançou-lhe um olhar perscrutador. — Não se preocupe, tenho uma boa explicação para o fato de David ter ido embora do jeito que foi. Você foi a primeira mulher com quem ele se envolveu um pouco mais, após um ano inteiro. Foi somente na nossa correspondência que ele começou a se aproximar um pouco mais de mim. Não quer me contar o que aconteceu?

— Não seria muito justo para com David. Ele apenas deixou-se levar por um impulso, como você mesmo disse. A ideia de ir embora partiu dele. — Olhou-o de soslaio. — Você vai voltar a vê-lo antes de ele viajar?

— Naturalmente. Isto é, se viajar. — Seus traços se contraíram. — Ele falou algo a respeito de Lou antes de ir embora?

— Não. — Lou, pensou Júlia, tinha estado longe de seus pen­samentos naqueles dias. Mais uma vez tomou consciência da ligeira sensação de incómodo ao ouvir mencionar aquele nome, do senti­mento de que, em algum momento, de alguma forma, ele tinha tido uma significação. — Como é que ela era? — perguntou em tom displicente, e verificou que esperava sua resposta com uma expec­tativa que se assemelhava a um pressentimento.

Ele demorou alguns segundos para responder, se bem que isso pudesse ser atribuído à sua concentração em evitar um buraco na pista.

— Atraente — disse calmamente. — Alta, esguia e atraente.

— E morena — acrescentou, e sentiu que ele a olhava.

— Por que me pergunta, se David já lhe falou a respeito dela?

— Ele não falou. Pelo menos não desse jeito. — Júlia franziu o cenho e subitamente seu rosto descontraiu-se. — Foi lá no Luigi's. Não consegui imaginar como é que sabia que ela era morena. — A lembrança daquela ocasião voltou integralmente, ela acrescentou devagar: — Ross, o que você queria dizer quando declarou que era contra todas as morenas?

Ele deu um longo suspiro. Parou subitamente o carro no acos­tamento, ficou durante um bom momento olhando através da ja­nela e finalmente voltou-se para ela,

— Preciso lhe contar uma coisa, Júlia — ele disse. — Este não é o lugar apropriado, e duvido até mesmo de que seja o momento certo, mas tenho de pôr isto para fora. Quer tentar ouvir calma­mente e em silêncio, sem precipitar conclusões?

Subitamente parecia que o carro encolhia, pressionando-a de todos os lados. Quando falou sua voz soava inexpressiva.

— Está certo.

Ross inclinou-se sobre a direção, sem lazer a menor tentativa de tocá-la.

— Há uma única maneira de contar, e vou direto ao assunto. Fui casado, há muito tempo, oito ou nove anos. Enid morreu seis meses antes que eu me mudasse para cá. Eu queria lhe contar enquanto você ainda estava no hospital, mas o dr. Stewart aconselhou esperar até que as coisas estivessem mais... solidificadas entre nós. Ele provavelmente teria muitas reservas a respeito desse meu pro­cedimento, mas é que eu tinha de ter certeza de que desta vez seria eu quem lhe contaria.

O sentimento de claustrofobia estava passando, mas Júlia sen-tíu-se transida de frio.

— Desta vez? — murmurou.

— Se você soubesse que seria minha segunda mulher nunca teria se casado comigo — replicou sem rodeios. — Você falou um bocado a respeito de seu pai na primeira noite em que passamos juntos, e então me dei conta de como você se sentia em relação a ocupar o segundo lugar. Você teria ficado ressentida se seu pai voltasse a se casar, pois isso significaria que você teria de compar­tilhá-lo com mais alguém. Da mesma forma você teria ficado ressentida com o fato de eu ter amado suficientemente uma outra mulher a ponto de pedi-la em casamento.

Seria isso verdade?, pensou ela, enquanto os segundos se trans­formavam em minutos. Ela era realmente assim? Seu pai tinha quarenta e poucos anos quando sua mãe morreu, e ainda era um homem muito atraente. Mas com certeza...

— Você ia me contar depois que nos casássemos? — ouviu sua própria voz rompendo o silêncio, e Ross sorriu desajeitado.

— Era minha intenção, só que eu nunca conseguia encontrar a ocasião apropriada. Como disse antes, o primeiro ano de casamento já apresenta suficientes problemas sem que seja necessário acres­centar outros.

— Mas então eu descobri? Foi isso que eles pensam que aconteceu?

— Não é certo. Não é nem mesmo certo que você descobriu, Ninguém, a não ser David, sabe alguma coisa a respeito dela, ou pelo menos é o que eu supunha. — Ele falava com cuidado, esco­lhendo as palavras. — Mas, pressupondo que você soubesse, pode ter acontecido que sua mente lidasse com o choque da revelação simplesmente fingindo que não aconteceu. Para que isso ocorresse era preciso bloquear tudo que estivesse relacionado com o fato. Foi por isso que o dr, Stewart não queria que eu contasse a verdade imediatamente. Ele esperava que você começasse a se lembrar por si mesma.

— Não acredito — disse ela a muito custo. — Mesmo que eu tivesse descoberto por acaso eu... — Fechou os olhos, e sua voz tremeu, — Ross, não é possível que eu fosse assim tão desequili­brada. Não é possível!

— Ninguém está dizendo que você é desequilibrada — Estendeu os braços para ela, puxando-a para junto de si. — É apenas uma teoria, uma explicação possível. Como o fato de contar a você não suscitou nenhuma espécie de reação, é mais do que possível que tenhamos embarcado em uma canoa furada. Pelo menos agora po­deremos começar da estaca zero. — Afastou-a de modo a poder contemplar seu rosto. — Ou será que vai ficar tudo na mesma?

Júlia olhou aqueles olhos cinza vacilantes e sacudiu lentamente a cabeça.

— Não — disse, com toda firmeza de que se sentia capaz —, não vai fazer a menor diferença, Não permitirei que faça alguma em falar a respeito dela. Júlia cerrou os olhos enquanto ele ligava o motor e tentou controlar suas emoções. Fosse ou não verdade, tudo estava consumado muito antes de Ross conhecê-la. Se de agora em diante iam ser felizes, ela tinha de parar de revolver o passado. Aquele dia passado na companhia de Ross foi o que de melhor lhe aconteceu durante muitos anos, Mesmo nos dias que se segui­ram, quando mais uma vez ela se encontrava sozinha durante ho­ras, encontrou uma diferença no fato de que agora sempre havia o fim da tarde, tão almejado e para o qual podia fazer planos. Recomeçou a ir à aldeia, fazendo compras no pequeno mercado, surpreendentemente farto. Aos poucos começou a superar seu cons­trangimento em relação àquelas pessoas que a haviam conhecido antes do acidente. Levaria algum tempo até que eles a aceitassem sem reservas, mas possivelmente isso teria ocorrido da mesma for­ma, se nada tivesse acontecido.

David só telefonou na segunda-feira. Foi Ross quem atendeu, e seus olhos não se despregavam de Júlia, enquanto ela ouvia. Sim, disse, ambos estavam bem. Como é que estavam as coisas na cidade? Após alguns momentos ele disse:

— Espere — e cobriu o bocal com a mão. — Dave quer saber se gostaríamos de passar uma noite na cidade — disse. — Quer nos convidar para ir a algum lugar, em retribuição à nossa hospeda­gem. Como é que você se sente em relação a isso?

— Como é que você se sente? — ela repetiu. Seu sorriso foi tranquilizador.

— Generoso. E a mudança lhe faria bem. Podemos combinar para a próxima sexta-feira. — Retirou a mão. — Sim, está bem, Dave. Na próxima sexta-feira. Até logo.

— Obrigada — disse Júlia baixinho, quando ele desligou o te­lefone. — Refiro-me ao fato de você não deixar escapar que sabia de alguma coisa. Ele com toda a certeza já superou o problema.

— Não esteja tão segura assim. Ele pode estar à espera da opor­tunidade de vê-la novamente, mesmo que seja na minha compa­nhia. — Ross, ao afirmar isso, mostrava-se bem-humorado. — Da­das as circunstâncias, não posso lhe recusar isso. Mais cinco dias e ele estará de volta ao deserto.

— Você acha que ele deve voltar? — perguntou ela, enquanto ambos voltavam à sala de estar, e ele a encarou.

— É uma boa experiência. Após três anos ele estará qualificado para ocupar um posto mais elevado.

— Mas a vida lá é terrivelmente solitária, segundo ele diz, Não teria sido melhor se ele tivesse tentado conseguir outro emprego, enquanto permanecesse na Inglaterra?

— Cabe a ele decidir. — Ross sentou-se na cadeira que ocupava quando o telefone tocou, acendeu outro cigarro e contemplou-a atra­vés da fumaça. — A única coisa de que ele parece estar sentindo falta lá é de uma mulher, e se ele está assim tão desesperado sempre há um jeito de resolver a situação.

Ela franziu o nariz.

— Você coloca as coisas de um modo um tanto cru.

— Pois eu diria realista. Afinal, trata-se de uma necessidade mais do que natural. — Ele parecia estar se divertindo. — Imagino que você situa os sentimentos dele em relação a você em um plano bem diferente.

— Suponho que sim. — Sorriu para ele suavemente. — Talvez eu tenha razão.

— Está querendo que eu fique com ciúme?

Houve um momento de tensão entre eles. Em seguida, ambos sorriram e aquele constrangimento passageiro dissipou-se.

— Sim — disse ela —, é mais ou menos isso. De acordo com os redatores da seção de correspondência sentimental nas revistas, não faz muito bem a um marido ser muito complacente.

— Ah! Então sou complacente? — Inesperadamente ele agar­rou-lhe o pulso, obrigou-a a ajoelhar-se a seus pés e franziu o cenho. — Quer repetir o que você disse?

— Até que poderia. — Estava rindo. — Mas só quando você parar de soprar fumaça em meu rosto.

— Isso é um detalhe.

Ross jogou fora o cigarro e puxou-a para junto de si, roçou o queixo em sua fronte e riu, ao ouvir sua exclamação de protesto.

— Alguma outra queixa, sra. Mannering?

— Não. — A voz dela era suave, e notou que os olhos dele se ensombreciam. Agora, nada mais poderia privá-los um do outro, pensou exaltada, enquanto suas bocas se tocavam. Nada!

Peggy e Mike foram jantar com ele, na quinta-feira. Júlia usou seu vestido azul preferido, e sabia que sua aparência não poderia ser melhor.

— O que quer que tenha acontecido, com certeza fez muito bem a vocês dois — comentou Peggy com aquela simplicidade que era só dela, no momento em que as duas se encontravam a sós na cozinha preparando o cafezinho. — Esta noite poderia ser idêntica a dezenas de outras de que me recordo, mas imagino que você não pensa assim.

— Não — reconheceu Júlia, e levantou a cabeça para olhá-la imperturbável. —Acho que tudo isso já não importa tanto. Talvez algum dia eu me lembre de tudo, talvez não. Mas, com certeza, não vou me preocupar com isso.

— Que bom para você. — Havia afeto na voz de Peggy. — Ross disse que talvez vocês passem uns dois dias em Londres, quando telefonou ontem. Onde é que vão ficar?

— Não tenho a menor idéia. Foi ele quem tomou as providências. Ele lhe contou que David volta para a África na próxima quinta-feira?

— Ele tocou no assunto. Penso que é uma boa idéia.

— Tem medo de que ele se envolva novamente com Lou. — Pela primeira vez Júlia conseguiu dizer aquele nome sem sentir nenhu­ma sensação em particular. — Pelo que David me contou a respeito dela, acho que não há a menor chance, mas Ross não quer nem ouvir falar. Você sabe como ele é quando põe uma idéia fixa na cabeça, — Ela parou e então riu subitamente. — Sabe, acho que alguma coisa do passado pode estar voltando. Eu me vejo aceitando fatos relativos a Ross impossíveis de eu ter descoberto nestas úl­timas semanas. Por exemplo, saber, entre duas dúzias de gravatas, qual é a que ele sempre usa com um terno que eu, em sã consciên­cia, nunca o vi vestir antes. Algumas vezes é um sentimento mis­terioso, um pouco como aqueles pressentimentos que se usam como argumento em favor da reencarnação. Suponho que, em certo sen­tido, estamos começando a viver novamente aqueles três meses.

Peggy sorriu.

— Quem foi que disse uma vez que a vida é uma longa lua-de-mel?

A noite foi muito agradável, e Júlia sentiu sinceramente que os Ashley fossem embora.

— Vocês precisam ir lá em casa na semana que vem — disse Peggy ao se despedirem. — Claro que nem vou tentar competir com o prato húngaro que você nos serviu. Telefonarei na segunda -feira, depois que vocês voltarem.

Depois que a porta se fechou e o carro se afastou na noite ene­voada, Júlia olhou para Ross e disse com ternura:

— Que gente boa! — Humm. — Passou o braço ao redor de seu ombro, abafando um bocejo com a mão livre. — Mas gostam de um papo. Gostaria de partir bem cedo amanhã, ou, melhor dizendo, hoje. Devo procurar uma ou duas pessoas, se você não se importa de passar uma ou duas horas sozinha durante a tarde.

— Está matando dois coelhos com uma só cajadada? — ela per­guntou bem-humorada, e ele lhe beliscou o braço.

— Estou aproveitando a oportunidade. Não vou à cidade com tanta frequência assim. Mas se você prefere que eu não os procure...

— Claro que não. Até que me importaria, mas farei o sacrifício, em nome dos negócios. Trata-se de negócios, não?

Ross foi até o hall e apagou a luz.

— Sim — disse no escuro —, trata-se de negócios.

Fizeram uma viagem rápida na manhã seguinte. Chegaram ao centro da cidade na hora do almoço e decidiram fazer a refeição no restaurante do hotel, em vez de sair novamente.

Tanto quanto Júlia podia se lembrar, havia passado seis ou sete semanas desde que estivera em Londres, tinha de se dizer constan-temente que mais cinco meses tinham escoado desde que deixara o apartamento compartilhado com mais duas garotas. Pensara em procurá-las enquanto estivesse na cidade, mas refletiu melhor e de­cidiu o contrário. Haveria perguntas demais a ser respondidas, mui­tas armadilhas a evitar, a menos que contasse tudo, e isso não tinha intenção de fazer, pelo menos não desnecessariamente.

Ross deixou-a por volta das duas, dizendo-lhe que se ausentaria por pouco tempo. Entregue a si mesma, Júlia foi dar um passeio pelo Strand, aproveitando o sol brilhante da tarde. Apreciava aque­la sensação de anonimato que lhe vinha de pertencer outra vez à multidão apressada, e no entanto se sentia aliviada ao pensar que isso era apenas um interlúdio. O chalé era seu lar, e o campo, seu deleite. Estranho como as opiniões de alguém podiam mudar tão radicalmente em um período de tempo relativamente curto, pen­sou, parando para olhar uma vitrina que exibia casacos de inverno. Dois anos antes, ou mesmo um ano, não teria conseguido imaginar que pudesse viver em qualquer outro lugar que não Londres.

—Júlia! —Alguém a seu lado pegou-a pelo braço, sem conseguir disfarçar seu contentamento. — De onde é que você surgiu? Por que não me avisou que estava na cidade?

Estava em um lugar que nenhuma cidade substituí, pensou Jú-lia, sorrindo para aquele homem bem-posto em um terno escuro e formal.

— Olá, Bill. Estava pensando em telefonar para seu escritório. Você está indo para lá?

— Estava, sim, mas não tenho pressa. — Olhou em volta. — Está esperando por Ross ou está sozinha?

— Um pouco de cada coisa. Vou encontrá-lo no hotel às quatro e meia.

— Então você tem uma hora ou mais pela frente. Venha tomar um café comigo. Há tanto tempo que não a vejo!

Havia um bar na próxima esquina. Era o mesmo ao qual haviam ido com frequência no passado. Sentada em um dos compartimen­tos, Júlia olhou para seu antigo patrão com um sorriso.

— É como nos velhos tempos.

— Não — disse ele com ênfase. — Não exatamente. Ao vencedor, os despojos. — Olhou-a sorridente, e os olhos se apertavam nos cantos, de um jeito que conhecia tão bem. — Não preciso fazer a pergunta óbvia. Você ainda está radiante, se bem que diria que você perdeu um pouco de peso desde que nos vimos pela última vez.

— Exercício — disse prontamente. — Levo o cachorro para dar longos passeios todo dia. Como estão todos?

— Mais ou menos na mesma, se bem que houve alguma mu­dança neste último mês. Agora estou com Josie Harris.

— A ruiva sedutora! — Júlia arqueou as sobrancelhas, bem-hu-morada, e falou com voz baixa e envolvente: — Devo levar o caderno de apontamentos, sr. Grieves?

Bill riu.

— Cada um faz o que pode. Depois de batalhar como pôde para se tornar sua substituta, ela não perde a menor chance, e eu já sou suficientemente velho para farejar uma caçadora de maridos quando a encontro pela frente. Não se preocupe, saberei me livrar de suas garras afiadas, pelo menos fora do escritório. Ross veio à cidade a negócios ou para se divertir?

— Neste momento, a negócios, mais tarde virão as diversões. Vamos encontrar seu irmão David e jantaremos juntos.

— Não sabia que estava aqui. Faz tempo?

— Três semanas, mais ou menos. Ele passou uns dez dias no chalé, antes de vir para a cidade. — Havia tantas coisas que ela teria gostado de perguntar, e no entanto tão poucas que ela poderia perguntar sem se trair... — Pensei que ele o tivesse procurado.

— Não havia razão para tal. Nós nos encontramos apenas em algumas ocasiões. — Bill levantou a xícara, bebeu, pousou-a sobre o pires e disse: — Você contou para Lou que ele vinha para a Inglaterra?

Júlia ficou tensa, com os olhos pregados no líquido que girava em tomo da colher. Havia uma sensação estranha de formigamento na parte detrás do pescoço, o sentimento de que o próprio tempo parara subitamente. Quando ela finalmente levantou a cabeça pre­cisou exercitar todo o seu controle para não mostrar até que ponto aquela pergunta tão simples a havia afetado.

— Lou?

— Bem, não deve ter passado seis semanas ou mais desde que eu as apresentei uma à outra, quando você apareceu no escritório, e saíram de lá juntas. Até pensei que você fosse tocar no assunto. — Ele a encarava com certo ar de estranheza. — Você ficou pálida. Está se sentindo bem?

— Sim. — Sua voz parecia vir de muito longe. — Bill, você consegue se lembrar em que dia fui a seu escritório?

— Em que dia? — Franziu o cenho. — Não... Oh, espere um minuto. No dia em que Lou partiu para a Grécia, a fim de passar duas semanas lá. Portanto, vejamos... foi no dia vinte e oito de setembro. Por quê?

Dia vinte e cinco. Júlia respirou fundo. Ela portanto tinha estado em Londres no dia do acidente e passara pelo menos uma parte do dia com a ex-noiva de David. Por um rápido momento ela teve a impressão de se encontrar no fim de um túnel comprido e escuro, com algo que lhe acenava na outra extremidade. Algo que ela se recusava a ver.

— Acontece que eu... perdi algo naquela ocasião — disse com esforço. — Estou a imaginar se Lou não teria encontrado. — Pa­recia pouco convincente, mas era o melhor que ela podia fazer no momento. — Tem o endereço dela?

A expressão de Bill passou por uma mudança indefinível.

— Sim, mora em Kensington. Mas acho que agora não está em casa. Por que não lhe telefona?

— Boa idéia — disse ela. e viu-o tirar a caneta e escrever o número em uma folha destacada de uma caderneta de endereços.

— Você também podia pôr o endereço — acrescentou, com a gar­ganta seca. — Se não puder contatá-la pelo telefone antes de ama­nhã à tarde poderei lhe escrever.

— Acho que sim. — Resultava evidente do tom com que falava que Bill estava achando tudo aquilo um tanto confuso, mas evitou fazer qualquer comentário até lhe entregar o pedaço de papel. — Tenho certeza de que ela teria entrado em contato com você, se tivesse achado aquilo que você perdeu.

— Provavelmente você tem razão. Mas acho que vale a pena tentar. — Júlia segurou o papel nervosamente com um riso forçado.

— Você a tem visto ultimamente?

— Sim, na semana passada. — Encontrou seu olhar e estreme­ceu ligeiramente. — Sei o que você está pensando. Eu devia me comportar de modo diferente, depois do que ela fez a David. Sei o que ela é e o que procura, só que para mim não faz a menor dife­rença quando estou com ela. O lado irônico da coisa é que pensei que simplesmente a estava usando para me esquecer de você, de­pois que Ross deu um sumiço em você.

Júlia perguntou a muito custo:

— Como foi que você a encontrou?

— Por acaso, há mais ou menos quatro meses, perto do escritó­rio. Perguntou por David e parecia estar sinceramente arrependida pela forma como se descartou dele. Quando menos esperei estáva­mos jantando juntos.

— Percebo. — Por um breve momento Júlia pôs-se a refletir se lhe contaria que Lou estivera em contato com o próprio David, mas decidiu que não. Isso era algo que Bill teria de saber por si mesmo. Já tinha muita coisa pesando sobre ela. — Preciso ir embora — disse. — Foi tão bom ver você, Bill.

Seu olhar exprimiu novamente a confusão.

— Mas o que foi? — perguntou subitamente. — O que aconteceu entre você e Lou naquela época, Júlia?

Ela replicou em um tom ao qual faltava firmeza:

— Isso é o que tenho de descobrir. Você pode lhe perguntar na próxima vez que se encontrarem. Até logo, Bill.

Ela estava na porta do restaurante enquanto ele ainda tirava dinheiro do bolso para pagar a conta. Alguns passageiros dispensavam um táxi. Júlia correu até ele e entrou em um segundo, antes que mais alguém fizesse o mesmo. Desamassando o papel, deu o endereço ao chofer, encostou-se no assento e olhou mais uma vez para o número de telefone que Bill havia escrito. Não havia como errar, tinha certeza disso. Era o mesmo número da página do diário que se encontrava no bolso de Ross, e que ele tinha jogado fora. Mas por quê? Porque ele não precisava mais discar aquele número ou porque ele se lembrava tão bem que de agora em diante não tinha mais necessidade da anotação? Tinha de descobrir qual das duas hipóteses era correta.

O endereço que Bill lhe dera era além da rua Church. Júlia mandou o táxi parar na esquina e pôs-se a caminhar pela rua. As casas eram muito bem conservadas e a maior parte tinha sido con­vertida em apartamentos, pelo que podia notar. Naquele momento passava em frente ao número 63, e calculou que o número 137 devia ser logo mais adiante. Dentro de alguns minutos estaria dian­te da mulher que podia deter em suas mãos toda a explicação para aquela lacuna em sua memória. Diminuiu o passo. E se Lou não estivesse em casa, como Bill dissera? Conseguiria suportar voltar ao lado de Ross sem ainda saber de tudo? Não, decidiu, não poderia. Se Lou tivesse saído teria de esperar por ela, n&o importava por quanto tempo. De um modo ou de outro...

A seu lado uma mão agarrou-se à balaustrada da escada. Um homem descia os degraus de uma casa, alguns metros adiante do lugar onde ela havia parado, fazendo uma pausa para jogar fora o que sobrara de um cigarro, esmagando-o com o calcanhar, antes de cruzar a rua e abrir a porta do carro verde estacionado junto ao meio-fio. O barulho do motor parecia vir de muito longe. Júlia viu o carro partir e afastar-se dela. Naquele momento sentiu que as paredes do túnel se estreitavam e se cerravam em torno dela, enquanto mergulhava no caleidoscópio perturbador das imagens que retornavam.

 

Três longos meses, pensou Júlia, saindo do táxi e contemplando por um momento o edifício fami­liar, antes de se voltar para pegar o troco com o motorista. Na verdade parecia muito menos tempo, e não estava longe o dia em que Ross entrara no escritório do primeiro andar e arrebatara sua vida. Tudo parecia um pesadelo. Havia muito mais coisas no casa­mento do que ela podia imaginar, mas não renegaria um momento sequer de tudo que tinha vivido, incluindo as rusgas. Pior para aqueles que a tinham prevenido durante os breves dias que prece­deram a cerimônia.

Ficou muito contente ao constatar que Sue Raynor ainda tra­balhava como recepcionista no saguão do prédio. Entrou pela porta giratória tão silenciosamente quanto conseguiu, caminhou na pon­ta dos pés até onde Sue se concentrava em suas tarefas e apoiou os cotovelos na mesa, rindo da expressão de espanto da antiga colega quando ela levantou os olhos.

— Alô.

— Júlia! — A surpresa deu lugar ao prazer, e este foi substituído pela admiração. — Você está com uma aparência incrível! Toda esta cor é natural?

— É o ar marinho e puro sol. Algo que vocês, pobres moradores da cidade, desconhecem.

— Você não parecia achar muito ruim a vida da cidade antes que esse seu marido entrasse em cena. Como é que vai aquele selvagem sensacional?

— Muito bem — disse Júlia, rindo. — Vou contar para ele sua opinião assim que voltar.

— De que é que vai me adiantar? Faz tempo que você está na cidade?

— Cheguei hoje. Quis aproveitar a oportunidade para fazer al­gumas compras e ver os velhos amigos. Bill está?

Sue contraiu os lábios.

— Está sim, mas não sei se devo interrompê-lo. Está com uma namorada.

— Namorada?

— Sua sucessora. É nada menos do que uma mulher casada.

— Oh, vamos, deixe disso. Bill jamais...

— Tem certeza de que não? Bem, você o conhecia melhor do que nós todas. — A expressão de Sue era afável no momento em que pegou o interfone. — Vou avisá-lo de que você está aqui.

— Acho que não há necessidade — disse Júlia, no momento em que a porta se abria. — Ele está saindo.

Logo em seguida refletiu se era apenas obra de sua imaginação aquele desapontamento momentâneo estampado no rosto de seu antigo patrão, enquanto ia cumprimentá-la, com aquele sorriso tão familiar iluminando seu rosto.

— Mas que surpresa — disse, — Muito agradável, no entanto. Está sozinha?

— Sim — disse, convicta de que não era fruto de sua imaginação o brilho que surgiu nos olhos dele. — Ross mandou lembranças.

— Então você é a mulher de Ross Mannering. — A companheira de Bill tinha se aproximado, e seus olhos registravam os mínimos detalhes, a aparência de Júlia. O tom com que falava era agradável, mas havia um traço de ironia em seu sorriso. — Sempre disse que Ross tinha bom gosto. Você não vai nos apresentar, Bill?

Ele parecia nitidamente pouco à vontade.

— Júlia, quero lhe apresentar Lou Roxford.

— Você, evidentemente, não precisa acrescentar mais nada — disse Lou, contemplando a expressão de Júlia com ar divertido. — Sim, sou a própria Lou Roxford. A ex-noiva de David. Ele ainda está na África?

— Sim. — Então aquela era a mulher por causa de quem seu cunhado havia deixado o país. — Olhando-a, Júlia conseguia com­preender perfeitamente como um homem se sentiria ao perdê-la. Lou era uma das mulheres mais atraentes que ela conhecera, mo­rena, cheia de vida, de grandes olhos negros. Imaginou que não fosse muito mais velha do que ela mesma, mas no entanto tinha uma segurança e uma pose que ela, Júlia, jamais conseguiria os­tentar. — Acho que logo ele vai entrar em férias.

— É mesmo? — Era difícil dizer se o seu interesse era mera­mente polido. — Ele deve ter passado um ano interessante.

— Vamos tomar café? — perguntou Bill, na pausa que se seguiu.

— Sue, você quer...

— Não posso ficar — disse Júlia apressadamente. — Muito obri­gada, vou tomar o trem das cinco e meia. Estava indo para a es­tação e dei uma paradinha para dizer alô. Na verdade... — disse, olhando o relógio de parede — é melhor eu me apressar se quiser chegar a tempo e não perder a viagem.

— Estação Vitória? — Lou estava pondo as luvas. — Vou passar lá em frente. Posso lhe dar uma carona. — Olhou para Bill, com um estranho sorriso. — Nós nos vemos dentro de quinze dias. Eu lhe mandarei um ou dois postais.

— Obrigado. — Seu olhar desviou-se dela para Júlia, e ela achou que ele, de alguma forma, parecia perturbado. — Tente fazer uma visita mais demorada da próxima vez, ouviu?

— Tentarei, sim — prometeu. — Até logo, Bill. Que bom ter visto você, mesmo com toda essa pressa. — Sorriu vagamente para Sue, que parecia não estar entendendo mais nada, e saiu com Lou pela porta giratória.

O carro de Lou estava estacionado em um parquímetro, na es­quina do escritório. Era um Triunph 2000 quase novo e já estava multado por ter ultrapassado dez minutos do tempo permitido de estacionamento.

— Ponha suas coisas aí atrás e vamos cair fora antes que algum fiscal abelhudo apareça por aqui — disse ela, abrindo as portas.

— Tenho duas horas para chegar até Gatwick, e do jeito como o tráfego está ficando, vou ter que me apressar.

— Está saindo de férias? — perguntou Júlia, enquanto ela ligava o carro.

— Não, vou a negócios. Vou viajar para descobrir novas atrações para a próxima estação. É uma mudança, para quem se limita a enviar os outros em viagem.

— Ah, percebo. Você trabalha para uma agência de turismo?

— É isso mesmo. — Voltou-se momentaneamente para ela: — O que foi exatamente que Ross lhe contou a meu respeito?

Júlia respondeu, pouco à vontade:

— Pouca coisa ou quase nada. Que você era noiva de David, mas decidiu repentinamente casar com outra pessoa.

— É, acho que a coisa podia ser colocada assim. — Lou pisou no acelerador e ultrapassou um táxi, ignorando os gestos irritados do motorista. — David é boa gente, mas aborrecido. Eu nunca de­veria ter me envolvido com ele.

— Então por que o fez?

— Oh, por várias razoes. Eu não estava muito bem comigo quan­do o conheci. Odiava o meu emprego e achava que o casamento me oferecia uma perspectiva melhor. — Deu de ombros. — Podia ter sido com o homem certo. Só que David não era, e muito menos o homem por quem o deixei.

— E Bill? — A pergunta escapou antes que Júlia pudesse con­trolá-la, e viu um sorriso aflorar no rosto de Lou.

— Eu estava mesmo achando que isso a devia estar preocupando demasiadamente. É uma lástima quando a velha chama está se extinguindo, não acha?

— Não sei exatamente o que você está querendo dizer com isso — respondeu Júlia.

— Pois acho que sabe. Você entrou em conflito consigo mesma, a fim de decidir se parava ou não para ver Bill, mas não conseguiu resistir à tentação de descobrir como é que ele estava passando sem você. O fato de me encontrar lá deixou você completamente desmontada. Foi por isso que você quis ir embora imediatamente.

— Isso é ridículo — disse Júlia com veemência. — Eu tenho de tomar um trem.

— O lugar onde você mora é muito bem servido de trens. Você podia ter pegado o próximo. — Lou não se mostrava nem um pouco perturbada. — Não se preocupe, sei como você se sentia. Eu tam­bém teria agido da mesma forma. E a maior parte das pessoas também, só que jamais admitiria. Ross, por exemplo, é um caso bem típico.

— Ross?

— Veja só o modo com que ele tratou a primeira mulher. Se alguma coisa não funciona a gente tenta cortar os laços, mas ele não procede assim. Recusar o divórcio foi a maneira de ele sentir-se em pé de igualdade, apesar de provavelmente ter lastimado o fato quando ela morreu, e assim acabou-se o drama.

Talvez houvesse algo no silêncio de Júlia que fizesse com que ela desviasse o olhar, alterando subitamente sua expressão.

— Você com toda a certeza sabia a respeito de Enid? Ross jamais teria... — Interrompeu-se, olhou novamente para Júlia e disse em voz baixa: — Mas claro que ele contou. E eu fui muito indiscreta. Desculpe-me, eu sinto muito.

Júlia notou que suas mãos se cerravam, sentiu que as unhas se cravavam nas palmas e bendisse a dor física, Ross tinha sido casado antes. Ela era sua segunda mulher. Por que ele não lhe tinha dito? Por quê?

Estavam se aproximando do pátio de estacionamento da estação.

Lou parou o carro.

— Olhe — disse —, eu sinto de verdade. Eu não pretendia ul­trapassar certos limites. Nunca me ocorreu que...

— Não tem importância. — Júlia desceu do carro, pegou os pa­cotes que Lou lhe estendia, encarou aqueles olhos negros e formu­lou a pergunta cuja resposta já conhecia. — Como é que você ficou sabendo a respeito de Enid?

A resposta soou ligeiramente defensiva,

— O que é que você realmente acha?

Júlia não esperou para ouvir o resto. Não suportaria ouvir o resto. Ouviu Lou chamar seu nome, mas seguiu em frente, sabendo que ela não poderia deixar o carro a fim de segui-la. Ross e Enid. Ross e Lou. Ross e quantas outras mulheres!

Ela imaginava que havia se dado perfeitamente conta, quando o conhecera, de que ele não era nenhum monge. Não teria esperado outro comportamento de um homem de sua idade. Mas ele jamais havia mencionado uma esposa, e muito menos uma amante que tinha sido noiva de seu próprio irmão — isso estava além de toda aceitação! Ela engoliu em seco. Não podia haver a menor dúvida de que tivera um caso com Lou. O próprio fato de ela conhecer tantos detalhes pessoais de seu passado tornavam a coisa óbvia. Quando? Pôs-se a imaginar, e soube com uma certeza atordoante que só poderia ter acontecido enquanto Lou ainda estava noiva de David. O modo amargo como ele a condenava agora vinha da ofensa infligida ao seu orgulho, não ao orgulho de seu irmão.

Sua cabeça doía. Ela tinha confiado em Ross, acreditado nele, tinha lhe dado todo seu amor. E agora, em poucos momentos, tudo lhe fora arrebatado. O que iria fazer?

Ross a esperava de automóvel, quando saiu da estação, às seis e meia. Foi em sua direção assim que a viu, a fim de tirar-lhe os pacotes da mao, beijando-a na fronte.

— Passou o dia bem?

Sim. —- Júlia foi com ele até o carro e sentou-se, esperando em silêncio enquanto ele acomodava os pacotes no banco de trás. Ao voltar de trem, a única coisa que desejava, ao encontrá-lo, era atirar a verdade em seu rosto e ver a reação. Gradualmente, aquele desejo tinha se dissipado, e uma espécie de torpor ocupara seu lugar. Sentiu-se como uma sonâmbula, andando adormecida com os olhos muito abertos, vendo tudo e não sentindo nada,.

Ross sentou-se a seu lado, encarando-a.

— Você parece estar cansada. Se passar o dia em Londres pro­voca isso em você, é melhor fazer as compras por aqui mesmo, no futuro. Você foi até o escritório?

Sim. — Apoiou a cabeça no encosto e cerrou os olhos. — Você não se importa se eu não conversar? Estou com dor de cabeça.

— Não, claro que não. — Seu tom era bastante compreensivo. — Descanse.

A viagem de volta ao chalé foi rápida. Júlia fingia dormir. Era a solução mais fácil. Ao entrar em casa tirou o casaco, pendurou-o no cabide ao lado do telefone e foi até a cozinha. Estava enchendo a chaleira quando Ross entrou.

— Levo todas as compras para cima? — ele perguntou, e ela assentiu sem se voltar. Houve uma pausa, durante a qual ela con­seguia sentir seu olhar cravado em suas costas. Ele disse calma­mente: — Quer que eu ligue para Peggy e diga que você não está se sentindo bem?

Peggy? Júlia fechou a torneira. Tinha se esquecido completamente da festa dos Ashley. Pensou na longa noite que tinha pela frente, na impossibilidade total de obrigar-se a agir normalmente em relação a Ross. Não conseguiria ficar sozinha com ele. Não conseguiria.

— Não faça isso — disse. — Tomarei uma aspirina e um banho de chuveiro. A que horas você quer ir para lá?

— As oito está bom. Você tem certeza de que... A irritação se apoderou dela.

Eu já lhe disse. Sim!

Está bem. — Ross, obviamente, estava fazendo o possível para se controlar tentando ser compreensivo. — Vou levar suas coisas para cima. Não se preocupe em fazer café para mim. Tomei na cidade, antes que o trem chegasse.

Júlia decidiu que ela também não tomaria. Tinha apenas agido automaticamente tentando desviar a atenção. Foi até o quarto, tirou do armário o primeiro vestido que lhe caiu nas mãos e pro­curou um par de sapatos que combinasse com ele. Podia ouvir Ross no banheiro e o barulho que o chuveiro fazia. Ele acabaria dentro de dez minutos. Sempre acontecia assim. Ela levava tanto tempo no chuveiro que ele contraíra o hábito de ficar pronto em primeiro lugar. Isso lhes poupava uma série de aborrecimentos.

Sentou-se subitamente na banqueta da penteadeira, enquanto suas pernas tremiam. O que ela iria fazer? Conseguiria aguentar viver com Ross, sabendo o que sabia sobre seu passado? Ou se rebelaria? Poria tudo em pratos limpos ou simplesmente esqueceria o assunto? Apertou o rosto com as mãos e pôs-se a fitar no espelho aquela figura pálida e de olheiras, marcada pelo passado. Esque­cer? Se pelo menos ela nunca tivesse descoberto!

Já estava escuro quando partiram para a cidade, e suficiente­mente frio, após o calor do dia, para ligar o aquecimento no carro. Corriam em velocidade baixa, e depois de alguns instantes Ross disse displicentemente:

— Como estava Bill? Acaso você o viu?

— Sim — disse. — Ele está bem.

— Ficou lá muito tempo?

— Não, somente alguns minutos.

— É mesmo? — Ele parecia surpreso. — Pensei que...

— Pare com. essa investigação! — Seu tom era ríspido e nervoso. — Vi Bill por alguns momentos, e foi tudo.

Seus lábios se contraíram.

— Basta! Você tem se comportado como um ouriço desde que voltou. Muito bem, posso ser tão compreensivo quanto qualquer outra pessoa, mas pelo amor de Deus, vamos parar com isso. E já!

Foram essas as últimas palavras trocadas entre eles até chega­rem à casa dos Ashley, e estavam quase diante da porta da frente quando Ross tomou-a pelo braço.

— Se você continuar a agir desse jeito aqui — ele disse amea-çadoramente — garanto que irá se arrepender mais tarde. É uma promessa que quero deixar bem claro.

Olhou aqueles traços enérgicos e duros iluminados pela luz da entrada e conheceu um momento de puro ódio. — Não se preocupe

— disse —, não o desapontarei.

A festa já tinha começado, e a casa estava cheia de gente. Peggy os saudou da porta da cozinha, agitando no ar um prato cheio de salgadinhos confeitados.

— Ponham os casacos no quarto dos fundos. Você não, Ross. Venha me ajudar a servir estas coisas. Não consigo encontrar Mike.

Júlia subiu as escadas sem olhar para Ross, pôs seu casaco sobre a cama, no quarto dos fundos, ao lado de dezenas de outros, e depois se dirigiu para a sala da frente. Lá encontrou três mulheres se retocando diante da penteadeira. Uma delas era sua conhecida. Fo­ram feitas as apresentações, trocaram algumas palavras e empoa­ram o nariz. Desceram em seguida, deixando Júlia a sós. Ela ajeitou a saía e passou unia mão febril pelo cabelo, antes de segui-las.

Lester Connelly estava ao pé da escada, com uma expressão de enfado que se modificou consideravelmente no momento em que a viu.

— A recém-casada está sozinha? Que coisa inusitada! Você está extraordinariamente linda hoje.

— Obrigada. — Júlia pousou a mão no braço dele e forçou um sorriso. — Não quer me arranjar um drinque?

Por diversas vezes, durante as horas que se seguiram, Júlia no­tou as tentativas de Peggy de afastá-la de Lester, mas este último estava por demais envaidecido de sua última "conquista" para se deixar vencer com facilidade. Júlia não tomou nenhuma atitude em especial. Nem precisava. Pelo que pudera notar no rosto de Ross, em meio à sala repleta de gente, a flecha atingira seu alvo. Não se tratava de ciúme, pensou, mas de possessividade. De orgulho ferido. Pois bem, que ele, finalmente, sofresse de alguma maneira.

Não teve uma idéia muito clara das coisas sobre as quais ela e Lester conversaram durante aquelas horas. Qualquer que fosse o assunto, era evidente que ela tentava se controlar o mais possível, enquanto ele não demonstrava o menor sinal de impaciência. Até que bateu meia-noite. Ela estava apoiada na parede, próxima à lareira, quando o carrilhão do hall bateu as horas, Lester estava diante dela, com um dos braços apoiados sobre a lareira.

— Meia-noite — disse, arqueando sugestivamente as sobrancelhas.

— É hora de as meninas boazinhas irem dormir, não é mesmo?

— Isso mesmo. — Ross estava a seu lado e demonstrava controle. O casaco de Júlia estava em seu braço.

— E é isso o que esta menina vai fazer. — Os olhos que se cruzavam com os dela eram perigosos. — Vamos dizer boa-noite a Peggy e Mike antes de partirmos.

— Oh, deixe disso, homem. Não seja um desmancha-prazeres-A noite está apenas começando. — Lester pôs a mão no ombro de Ross, como se se tratasse de um velho amigo. — Você bem vê que ela não está disposta a ir embora.

— Tire as mãos de mim — disse Ross, sem alterar a voz —, se não quiser se complicar. — Nem sequer se importou de virar a cabeça, enquanto Lester se apressava em tirar a mão. — Júlia.

Ela se desencostou da parede, cônscia dos olhares interrogativos lançados em sua direção, deu um sorriso neutro para Lester e foi à frente de Ross, em direção ao hall, onde Peggy e Mike falavam com um grupo de pessoas.

Havia muita neblina quando saíram. A capota do carro estava toda molhada. Atravessaram a cidade em silêncio e já estavam quase na estrada quando Ross disse friamente:

— Volte a fazer isso e você se arrependerá.

— O quê? — perguntou ela. — Conversar com um outro homem?

Ele estava tenso.

— Não banque a esperta. Você encorajou um homem de quem nem sequer gosta só para me provocar. Chama isso de comporta­mento adulto?

— Não — ela disse com voz neutra —, não dou nenhum nome a isso. Nós apenas conversamos e foi tudo.

— Sim, em um canto, durante três horas. Discutindo o quê? Negócios? — Furioso, pós o carro em terceira. — Garanto que você não o informou de sua dor de cabeça. Não, esse tipo de conversa é reservado para os maridos! Bem, se você está querendo se exibir novamente, hoje à noite, desista. Não tenho a menor vontade de me mostrar gentil!

Júlia ficou sem se mover. Sentiu uma agulhada nos olhos, teve a sensação de que as coisas se amontoavam sobre ela e a sufoca­vam. Aqueles três últimos meses tinham sido uma pilhéria. Ross não a amava. Não do modo como ela queria ser amada, não como ela pensava que fosse amada, não como ela o amava. Uma farsa, e ainda assim ela tinha sido feliz em sua ignorância.

O carro ia mais lento a fim de desviar-se para Marlow, Estava muito abafado. Ela estendeu a mão cegamente a fim de abrir a janela, sentiu que a porta se abria e gritou o nome de Ross. A última coisa de que se lembrou foi da mão dele se estendendo a fim de ampará-la, e o ranger do breque...

 

— Desculpe-me, senhorita, mas vamos fechar dentro de cinco minutos — disse a voz, e Júlia piscou, vendo a figura uniformizada parada diante dela.

— Como?

— Estamos fechando, senhorita, dentro de alguns minutos. Sin­to muito, terá de ir embora. — Ele se desmanchava em desculpas. — É o horário de inverno.

A tarde caía rapidamente, nas ruas as lâmpadas já estavam acesas. Júlia se deu conta de que devia estar sentada no parque havia mais de uma hora, o local estava quase deserto. Pela primei­ra vez sentiu o ar úmido e suas mãos enregeladas.

— A senhorita está bem? — O vigia do parque a encarava com curiosidade, e ela fez um esforço para se recompor.

— Oh, sim. Muito bem, obrigada. — Ela se levantou e sorriu. — Acho que estava sonhando de olhos abertos. Não tinha idéia de que já era tão tarde.

Podia sentir que o olhar dele a seguia, enquanto se encaminhava para a saída mais próxima, e fez o possível para mostrar-se deci­dida, como alguém que se dirige a um lugar muito definido. Quanto a ela, não tinha a menor ilusão. Não tinha mais para onde ir, a não ser para o hotel.

O hotel, Ross, o fato de saber que ele tinha estado com Lou tão recentemente. Vai matar dois coelhos com uma só cajadada?, ela lhe tinha perguntado na noite passada. Recuar para o momento em que ele tinha largado tudo significava aproximar-se do ponto de partida. Ou não? Compreendeu que essa não seria a primeira vez que ele vira Lou, desde que ela o abandonara. Deveria ter ocorrido pelo menos uma ocasião em que ela lhe fornecera o número de te­lefone de Kensington. Isso devia ter acontecido pelo menos uma vez. Por mais estranho que parecesse, ela duvidava de que poderia estar correndo o perigo de perdê-lo completa mente para a outra mulher. Ross poderia achar Lou irresistível até certo ponto, mas não era suficientemente tolo a ponto de correr o risco de confiar em alguém que já o decepcionara uma vez. Podia até mesmo aceitar que ele amava a ela, Júlia, à sua maneira. Só que não era à maneira dela. Ela o queria integral e completamente, não estava disposta a compartilhá-lo.

Portanto, qual seria a alternativa? Perder novamente a memó­ria? Obrigar sua mente a fazer outra tentativa desesperada para começar outra vez do início? Comprimiu os lábios. Não, isso não tornaria a acontecer. Não poderia acontecer. Aquela Júlia de seis ou sete semanas atrás tinha sido uma pessoa diferente. Dessa vez ela iria encarar as coisas como elas eram. Mas de que modo? Pela separação? Pelo divórcio? Tentou imaginar a vida sem Ross e sentiu um aperto na garganta. Muito bem, e que tal um ultimato? Obri­gá-lo a escolher entre as duas. Sabia que isso também não era resposta. Provavelmente venceria, mas que efeitos isso teria sobre seu casamento?

Estava bastante escuro no momento em que voltou para o hotel. Ross telefonava, no momento em que entrou no quarto. Olhou para ela e disse:

— Não precisa mais, obrigado — e pousou o telefone no gancho.

— Onde foi que você se meteu? — ele perguntou. — Já estava telefonando para Bill a fim de saber se você tinha ido lá.

— Ele já deve ter saído — ela disse. — Nunca fica até muito tarde na sexta-feira.

— Nem mesmo quando vale a pena? Ela levantou o queixo, agressiva:

— O que você quer dizer com isso?

Fez-se uma pausa, enquanto ele a estudava, em seguida deu de ombros, passou a mão pelo cabelo e levantou-se da borda da cama.

— Nada de especial. Estava preocupado com você. Que foi que aconteceu?

— Nada — ela disse, com uma ponta de impulsividade. — Eu... saí passeando por aí e me esqueci da hora.

— As lojas fecharam uma hora atrás.

— Nem todas. E há outras coisas para ver. — Afastou-se dele e colocou a bolsa sobre a cadeira. — Não tenho de prestar contas de como passei cada minuto.

— Não, se não tem vontade. — Ele a olhava pelo espelho, com o cenho ligeiramente franzido. — Guarde seus pequenos segredos.

Já não está na hora de você se aprontar? Vamos nos encontrar com David às sete e quinze.

Ambos guardariam seus segredos, ela pensou, irritando-se com ele. Momentaneamente, pelo menos. Ele tinha o atrevimento de ficar ressentido com a possibilidade de ela ter estado com Bill todo aquele tempo. Logo quem! Vendo-o agora, refletido no espelho, ain­da lhe era difícil reconciliar o conhecimento que ela agora tinha dele com a imagem que havia formulado a seu respeito por tanto tempo. Por mais de uma vez conseguira convencê-la de sua inte­gridade. Como as mulheres podiam ser cegas, quando se tratava de enxergar através de um homem que se apoderava de suas emo­ções! Totalmente cegas, teimosamente cegas!

Pusera um vestido muito simples, preto e sem mangas. De certa forma, parecia apropriado a seu estado de espírito. Quando ela saiu do banheiro, Ross já tinha descido até o bar, avisando antes que a encontraria lá. As sete e dez Júlia pegou o casaco e a bolsa e saiu do quarto para encontrá-lo. Naquele momento, sentia-se desprovi­da de toda e qualquer emoção, e na verdade apreciou aquele vazio. Tinha uma noite inteira pela frente, antes que pudesse tomar qual­quer "decisão. O que quer que acontecesse, David não seria envol­vido, pelo menos no que dependesse dela.

David já tinha chegado quando ela desceu até o bar. Ambos se levantaram no momento em que ela entrou, mas foi o rosto do mais jovem que se abriu em um sorriso.

— Que bom vê-la novamente, Júlia — disse.

— Da mesma forma. — Inclinou-se impulsivamente e beijou-o no rosto, mas arrependeu-se no mesmo instante e procurou afas­tar-se. Se David ainda se sentia envolvido com ela, e, a julgar por sua aparência, isso poderia ser verdade, então qualquer espécie de encorajamento de sua parte era injusto. — É um alô e ao mesmo tempo uma despedida — ela acrescentou, sorrindo, fazendo piada.

— Pelo menos você vai deixar o inverno para trás.

— É verdade. Não posso dizer que morro de amores pelo frio.

— Ele se mostrava propositadamente expansivo. — Martíni, Júlia!

— Por favor. — Ao se sentar, surpreendeu o olhar irônico de Ross e desviou rapidamente o rosto. Não tinha certeza do que ele estava pensando, não tinha certeza se queria saber. Se ela tinha de encarar aquela noite até o fim, então deveria fazer um esforço para ocupar seu pensamento com outras coisas, falar a respeito de assuntos que solicitariam sua atenção.

— Você voltou a pensar em pedir transferência para aquele poço de petróleo no Mar do Norte? — ela perguntou, quase em pânico, no momento em que o silêncio tinha atingido vastas proporções. — Seu trabalho lá seria muito diferente do que você faz agora?

— Não tanto quanto você pensa — respondeu David. — Para início de conversa, estaria totalmente isolado da civilização e re­duzido a pouquíssimas possibilidades, no que diz respeito ao lazer. Por outro lado...

— Ela está se referindo apenas ao trabalho — interrompeu seu irmão, ligeiramente irônico. — Aquilo pelo que você recebe um salário.

— Ah, sim. — David lhe sorriu e voltou-se para Júlia. — Você não está interessada em ouvir falar a respeito de petróleo, não é?

— Sim — respondeu ela com firmeza —, estou sim. Você apenas mencionou o assunto, nunca se aprofundou. Por exemplo, como é possível saber por onde se deve começar a prospecção?

Ross pegou o copo e recostou-se na cadeira. Um sorriso bailava em seus lábios, mas a expressão do olhar de sua mulher estava muito longe de ser divertida.

— A festa é sua, David.

Como obter petróleo, como processá-lo e como utilizá-lo foi o assunto que os ocupou durante os drinques no bar do hotel, a cor­rida de táxi até a Villa Dei Cesari, em Grosvenor Road, e a entrada de um jantar excelente. Àquela altura, a cabeça de Júlia estava tomada por uma confusão de detalhes para os quais ela, com toda certeza, seria incapaz de encontrar qualquer utilidade. Sentiu-se aliviada quando David convidou-a para dançar.

— Fiquei contente por você concordar em vir hoje à noite — disse ele suavemente, quando estavam na pista.

Ela o encarou com firmeza.

— Não havia a menor razão para recusar o seu pedido,

— Você sabe que havia, nós dois sabemos. — A mão às suas costas tornou-se tensa de repente. — As coisas, para mim, absolu­tamente não mudaram, Júlia. É por isso que vou embora na quin-ta-feira. Se quiser, estou fugindo de novo.

Ela mal sabia o que dizer. Mesmo que fosse livre, duvidava de ter alguma resposta. David era... David. Uma boa pessoa, mas...

O coração disparou. Lou! Lou! Tudo se remetia a Lou! Olhou para Ross, sentado sozinho à mesa, girando lentamente o copo entre as mãos, Estaria pensando nela, naquele momento? Desejando que ela estivesse a seu lado? De agora em diante pensaria nisso toda vez que olhasse para ele, mas sem que ele o percebesse.

— Não há nada a ganhar quando se foge — ela disse. — As coisas sempre acabam nos atingindo. — Forçou-se a perguntar; — Esteve com Lou desta vez?

— Sim. — Sua expressão alterou-se. — Sim, eu a vi.

— E?...

Ele sacudiu a cabeça.

— E nada. Com toda a franqueza, ela me deixou frio. Não con­sigo entender o que vi nela. — Surpreendeu um brilho fugitivo nos olhos dela e subitamente sentiu-se intimidado.

— Está bem, ela ainda consegue acelerar os meus sentimentos. Seria capaz de provocar isso em qualquer homem. Mas o resto não me preocupa mais. Mesmo se tivéssemos nos casado, não ficaria com ela para sempre. Precisa de alguém tão duro quanto ela.

Alguém como Ross, por exemplo. Mas ele também não pudera prendê-la. Era isso o que lhe cabia esperar, que a própria Lou se cansasse novamente do relacionamento?

— O que você vai fazer estes dias, agora que Richard quer o apartamento de volta? — perguntou Ross, quando voltaram à me­sa. — Lá existe somente uma cama, não é?

— Sim, mas ele disse que eu poderia dormir no divã, apesar de todo o desconforto, conforme o próprio Rick frisou. — David olhou através das janelas, das quais se descortinava uma bela vista do Tamisa. — É difícil imaginar que na próxima semana estarei a milhares de quilómetros de distância. Viajar sempre me afeta, pelo menos viajar de avião. Sou do tipo que prefere longos cruzeiros marítimos.

Ross sorriu.

— Você nasceu com cem anos de atraso. Tem que aprender a se adaptar a nossa era.

— Não sei, não. Mais dia, menos dia, vou acabar me ajeitando em algum lugar. — David dizia isso com bom humor. — De uma coisa tenho certeza: lá é que não há de ser.

A noite chegava ao fim. Ao se despedir de David, Júlia lutou contra o desejo súbito de convidá-lo para passar no chalé seus ú1timos dias ali. Isso apenas serviria para adiar uma decisão, e de nada adiantaria. Ross não teve muito que dizer, enquanto regressavam ao hotel, mas havia algo em sua atitude que ela achou perturbador.

— Mais um drinque, antes de dormir? — ele perguntou, ao en­trarem na portaria, acrescentando, enquanto ela recusava: — Bem, eu não resisto e vou tomar. — Seu rosto estava contraído. — Vejo você daqui a pouco.

Ela já estava deitada quando ele subiu, quinze minutos mais tarde. Apagara a lâmpada da cabeceira, puxara as cobertas até o queixo e estava de olhos fechados. Ele ficou parado na porta du­rante uma fração de tempo que para ela pareceu um século, antes de fechá-la. Em seguida ouviu seus passos que se dirigiam até a mesa e, logo após, o barulho das chaves c das moedas, enquanto ele esvaziava os bolsos. Escutou o ruído abafado das almofadas que cediam, o som dos sapatos que caíam sobre o tapete, mais alguns movimentos e percebeu que escovava os dentes.

Em seguida, Ross voltou para o quarto e apagou a luz. Júlia sentiu cada nervo de seu corpo retesar-se insuportavelmente, en­quanto o colchão cedia ao peso do corpo dele.

— Você não está dormindo — Ross disse. — Pare de fingir.

— Estou cansada. — Ficou admirada com a segurança com que falava. — Foi um dia cheio.

— Deu para perceber. — Fez uma pausa, e ela sentia que ele a olhava, apesar de ser impossível perceber sua expressão no escuro. — Você não vai me dizer aonde foi hoje à tarde?

— Já contei. Eu apenas...

— Passeou. Sim, eu sei, Mas onde é que foi?

— Por aí. — Conseguiu detectar um leve tremor na voz, mas não teve certeza se ele percebera. — Eu... estive pensando muito.

— É? — O tom com que se exprimia se alterara de um modo quase imperceptível.

— Pensando em quê?

— Em nós. — Quem dissera, pensou Júlia, que uma meia ver­dade era preferível à verdade inteira, ou era o contrário? — Eu... eu tentei esquecer tudo o que se referia a Enid, Ross, mas não foi possível. Sei que é uma tolice da minha parte, mas não consigo evitar. Afinal de contas, isso faz muita diferença. Sinto muito.

O tempo pareceu interminável, antes que ele respondesse.

— Já passou uma semana desde que lhe falei a respeito dela.

Eu jamais teria lhe contado, se soubesse que isso a atingiria dessa forma.

— Eu disse a você que tentaria — murmurou. — Você mal sabe como eu me esforcei. Mas não consigo. Quando... quando você me toca, eu penso nela. O que quer que seja que você me diga, já disse a ela antes. Você tinha razão em relação a mim, Ross. Eu não suporto ficar em segundo plano.

— Você acha que é tão simples assim? — A luz voltou a se acender, e seus olhos cinza cravaram-se nos dela. — Você por acaso acha que sou feito de ferro? Durante semanas a fio tratei de você como se fosse feita de porcelana, Júlia. Não pense que vou reco­meçar tudo. Diga o que disser, eu me recuso a acreditar que foi tudo fingimento de sua parte, na semana que passou. Você me deseja tanto quanto eu a desejo!

Com o coração aos pulos ela disse com um fio de voz:

— Existem mais coisas no casamento do que a mera satisfação física, julguei que já nos tínhamos posto de acordo em relação a isso. Dê-me tempo, Ross. Deixe que resolva isso por mim mesma.

O rosto dele ficou mais tenso do que nunca.

— Não sou psicanalista — disse finalmente —, mas aprendi algo em relação as mulheres: vocês, a maior parte do tempo, não sabem o que querem. Se eu concordasse com a sua sugestão, você iria deduzir que eu não me importava com você. — Estendeu a mão e segurou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-lo. — Não é possível, Júlia. Não vou me arriscar a perder o que eu consegui recuperar. Se você quiser pensar em Enid, então pense. Eu, com certeza, é que não vou fazê-lo.

Júlia cerrou os olhos, enquanto os lábios dele encontravam os seus. Naquele exato momento, ela se recusava absolutamente a pensar.

 

Peggy telefonou na segunda-feira, pela manhã. — Vocês se divertiram? — perguntou. — Eu ia telefonar ontem, mas não foi possível.

— Foi ótimo, obrigada — Júlia respondeu automaticamente, ape­sar de imaginar que havia muito pouco a acrescentar. — David mandou lembranças.

— Quanta gentileza de sua parte! Ele não pretende passar uns dias aqui antes de viajar?

— Duvido. Nós nos despedimos na sexta-feira à noite. — Sua mente cerrou-se novamente as lembranças evocadas por aquele re­lato. — Ross disse que apareceria por aí mais tarde, após o traba­lho. Acho que quer conversar com Mike a respeito de um assunto.

— Você acha, é? — Do modo como a voz de Peggy soava, podia imaginar que ela estivesse sorrindo. — Esse seu homem nunca lhe conta nada?

— Depende — disse Júlia cuidadosamente.

— Pois é, os homens são assim mesmo — ela replicou, tentando consolá-la. — Não quer vir aqui em casa na quinta-feira? Posso tocar no assunto com Ross, quando ele chegar.

— Sim, ótimo. — Júlia desejou poder pensar em algum outro adjetivo. — A que horas?

— A mesma hora de sempre... Oh, me esqueci! — Peggy parecia estar pedindo desculpas. — Oito horas está bem?

— Sim. — Mordeu a língua. — Estaremos só nós quatro?

— Sim, claro. — Fez-se uma pausa. — Por quê?

— Não há nenhuma razão especial. Então, até quinta-feira, Peg­gy. Obrigada pelo telefonema.

Desligou o telefone, sentindo uma mistura de alívio e arrependimento. Conversar com Peggy representava para ela a normali­dade, e a isso ela se aferrava. No entanto, a tensão em que isso a colocava quase superava sua necessidade. Normalidade! Ficou pa­rada, pensando em Ross e na expressão fechada de seu semblante durante os dois últimos dias. Desde a última sexta-feira ele não tinha esboçado a menor tentativa de tocá-la e tornara bastante claro que qualquer esforço futuro teria de partir dela. Pelo menos quanto a isso ela não poderia censurá-lo. Poucos homens poderiam extrair prazer do fato de fazer amor com um pedaço de madeira totalmente amorfo.

Não foi a primeira vez que Júlia desejou desespera da mente po­der adquirir algum controle sobre suas emoções desencontradas. Outras mulheres tinham sido enganadas por seus maridos. Como é que elas procediam? O que lhe faltava era um caráter mais forte, ou então suficiente profundidade de sentimento para obrigá-la a querer lutar por Ross. Se pelo menos houvesse alguém com quem ela pudesse conversar,.. Alguém com quem ela pudesse comparti­lhar ao menos uma parte de sua confusão...

Subitamente seu coração bateu mais forte. Havia uma pessoa: o dr. Stewart. Ele sabia quase tudo a respeito de sua história. Que mal haveria em lhe relatar o resto?

Não foi difícil descobrir o nome do hospital. Ao discar, Júlia tentou não pensar se ela estava ou não agindo corretamente. Tinha de encontrar uma válvula de escape ou então ficaria louca. Per­guntou pelo dr. Stewart com o coração aos pulos, quase desligou o telefone, enquanto esperava que o fossem chamar, e ficou contente por não tê-lo feito no momento em que ouviu aquela voz calma, de que se lembrava tanto.

— Como vai, sra. Mannering?

— Eu... eu gostaria de ir vê-lo — exclamou, — É possível?

— Tudo é possível — ele replicou, sem demonstrar surpresa. — Quer vir agora?

De alguma forma, ela sabia que ele não lhe falharia. Tinha de ser agora ou nunca, e ele compreendeu isso.

— Estarei aí dentro de meia hora — ela disse.

A sra. Cooper lançou-lhe olhares inquisitivos quando ela entrou na cozinha a fim de apanhar a chave do carro.

— Vai sair? — perguntou.

— Sim. — Júlia não conseguiu sorrir. — Acho que quando eu voltar a senhora já não estará mais aqui. Podia pôr água no bebe­douro de Shan?

— Ponho, sim. Ele vai sentir falta do passeio da manhã.

— Eu sei. Eu o levarei para dar uma volta hoje à tarde. Até amanhã, sra. Cooper.

Levou vinte minutos ate chegar ao hospital. O cheiro de limpeza penetrou-lhe nas narinas no momento em que ela entrou pela porta principal e uma criada a olhou sem a menor curiosidade, enquanto fazia uma pausa na sua tarefa de encerar o chão. O dr. Stewart saía nesse momento do elevador e foi a seu encontro, a fim de cumprimentá-la.

— Eu a vi chegar da janela da enfermaria — disse. — Há um café à nossa espera na sala da administração. — Viu que sua ex­pressão se modificava e sorriu, reconfortando-a. — A diretora neste momento está ocupada em algum lugar do hospital. Não seremos interrompidos, se é esse o seu receio.

Ele não esperou por uma resposta, mas empurrou-a delicada­mente para dentro do elevador e apertou o botão. Júlia não conse­guia encará-lo, apesar de não ter como deixar de ver seu reflexo no aço polido da porta. O impulso e o desespero que a tinham levado até lá já estavam dando lugar à dúvida, O dr. Stewart obviamente estava disposto a ouvir, mas como seria possível ajudá-la? Não havia nada fisicamente errado com ela, nem pílulas ou remédios que ele pudesse prescrever. E por onde ela começaria? Como co­meçaria?

O café ajudou um pouco. O fato de estar sentada naquele escri­tório aquecido com uma xícara na mão parecia dar às coisas uma dimensão bem mais razoável. O dr. Stewart também ajudou, não exercendo a menor pressão.

— Vi seu marido a semana passada — disse. — A julgar pela sua aparência, imaginei que a maior parte de seus problemas tinha sido superada, mas obviamente isso não aconteceu.

Júlia olhou para ele surpresa.

— Ross tem vindo aqui?

— Não, nós nos encontramos por acaso. Um amigo meu está vendendo a casa, e eu, por coincidência, estava lá quando seu ma­rido chegou para avaliá-la. Naturalmente, indaguei da saúde de minha ex-paciente.

— Percebo. — Mordeu os lábios. — E o que foi que ele disse?

O médico sorriu.

— Disse que a senhora estava bem de ânimo. Seu marido é um homem de poucas palavras, mas cada uma delas tem seu peso, ou pelo menos foi o que eu pensei. Será que ele se enganou tanto assim?

— Naquele momento, não. — Júlia pousou a xícara. — O senhor ficaria admirado se eu lhe dissesse que recobrei a memória?

— Não, eu ficaria mais é interessado. — Ele a estudou atenta­mente. — Quando foi?

— Há três dias. — Fez uma pausa. — É um tanto complicado.

— Nem tanto. A senhora não é a primeira mulher a ficar emo-cionalmente perturbada ao se dar conta de que seu marido lhe ocultou alguma coisa. Admito que seu marido errou em não lhe contar nada a respeito de sua primeira mulher, mas...

— Não se trata disso. — Ela o interrompeu de imediato, ten­tando logo em seguida ser inteiramente honesta consigo mesma, bem como com o médico: — Não é apenas isso. Ross me falou sobre Enid há mais de uma semana.

— Antes que a senhora recobrasse a memória? Então... —- Ele pareceu surpreso. — Prossiga.

Tornou-se mais fácil falar, uma vez que ela começou. Contou-lhe tudo, desde sua visita ao escritório e de seu encontro com Lou até o momento naquela sexta-feira em que tinha visto Rose sair do apartamento de Lou.

— A história com Enid aconteceu há muito tempo — disse ao acabar. — Eo seu envolvimento com essa mulher também. Mas é o aqui e o agora que tornam tudo insuportável.

— O que é muito compreensível. — O doutor fez uma pausa, seus olhos a fitaram pensativamente. — Tem certeza de que ainda existe algo entre seu marido e essa outra mulher? Sua visita, na­quela tarde, não poderia se prender a algum outro motivo?

— Se fosse assim, não haveria necessidade de ocultar o fato, não acha? — ela replicou, sem maiores rodeios, e levantou-se, indo até a janela contemplar a vista da cidade. — O senhor acha que devo deixá-lo?

— Não — ele respondeu calmamente. — Acho que devia lhe contar e dar a ele uma oportunidade de se defender.

— Mas que defesa ele teria a apresentar? Que defesa qualquer outro homem teria? — Ela se voltou e o encarou com ar irónico. — Ou o senhor acha que um homem deve ter uma mulher e uma amante?

— Sob o ponto de vista físico, isso não lhe causaria nenhum dano. — Seu tom era neutro. — Moralmente, eu me sentiria incli­nado a condená-lo.

O ressentimento dissipou-se tão rapidamente quanto tinha surgido.

— Desculpe-me — ela disse com sinceridade. — Não devia ter falado assim. O senhor não pediu que eu viesse aqui lhe relatar meus problemas.

— Mas posso ter ficado contente por a senhora ter findo. A longo prazo, guardar as coisas para si acaba fazendo muito mal. — Espe­rou um momento e acrescentou: — Só sinto não poder lhe oferecer um conselho melhor. Confirmar seus temores não poderia deixá-la em pior estado do que a senhora se encontra neste momento.

Isso só precipitaria uma decisão que ela não estava pronta para tomar, pensou Júlia em um momento de lucidez.

— Vou pensar no assunto — disse, e afastou-se da janela a fim de pegar o casaco. — Foi muita bondade de sua parte me atender, dr. Stewart. Só de ter alguém com quem me desabafar já ajudou um bocado.

— Mas não o suficiente. — Ele segurou o casaco, enquanto ela enfiava os braços nas mangas. — Estarei sempre aqui, se sentir necessidade de conversar de novo.

— Obrigada — ela disse com sinceridade. — Não me esquecerei. Acompanhou-a até o carro, fechando a porta e permanecendo

por um momento com a mão na maçaneta, como se estivesse pro­curando algo para acrescentar ao que já lhe tinha dito, antes de lhe dar um resignado sorriso de despedida. Ao ultrapassar o portão, Júlia pôs-se o pensar o que realmente esperava dele. Não havia uma solução imediata para este tipo de problema, somente uma escolha de ações, que devia partir dela.

A casa estava em silêncio quando ela regressou. A sra. Cooper tinha deixado uma nota um tanto queixosa, dizendo que o sapólio tinha acabado e ela não pudera limpar a pia da cozinha. Traria um pouco na manhã seguinte. Até então, pensou, teria de suportar a vista de uma mancha de chá de quase dois palmos de compri­mento. Comeu rapidamente algumas torradas acompanhadas de café, levou Shan para dar um passeio até a hora do chá e decidiu preparar um frango para o jantar, enquanto o dia cedia lugar à noite.

Ross voltou para casa às oito, comeu o que lhe era servido sem fazer nenhum comentário e foi para a sala de visitas com o jornal da tarde e uma carteira de cigarros. Quando Júlia acabou de ar­rumar tudo, ele estava pondo mais lenha na lareira, e seus traços se recortavam contra o fogo crepitante.

— Peggy me disse que telefonou para você hoje de manhã — ele disse em tom neutro, enquanto ela se sentava na cadeira em frente. — Eu mesmo telefonei uns dez minutos mais tarde, mas você tinha saído.

— Sim. — A hesitação foi suficientemente curta para passar despercebida. — Fui à cidade.

— Comprou alguma coisa?

— Não, fui só espiar as vitrinas.

Ele endireitou-se, juntou as mãos e voltou-se com deliberação a fim de encará-la.

— Então a sra. Cooper se enganou, ao me dizer que você tinha um encontro com um certo dr. Stewart?

A cor fluiu e refluiu de seu rosto.

— Muito bem, estive com o dr. Stewart.

— Então por que não me disse?

— Porque você não facilita muito as coisas. — Suas mãos esta­vam cruzadas e tensas. — Eu... precisava de alguém com quem falar.

— Podia ter me procurado.

— Procurei — disse, e notou tensão no rosto dele. Fez-se uma pausa prolongada antes que ele respondesse.

— Eu disse que não era psicanalista. Se isso lhe traz algum consolo, saiba que também para mim a experiência não fez bem. Não posso dizer que gosto da idéia de vê-la correndo para o dr. Stewart a fim de pedir conselho, mas se isso pode ajudá-la eu con­cordo. Quando é que vai estar com ele novamente?

— Não vou mais. — Júlia engoliu em seco. — Ele também não é psiquiatra.

— É simplesmente um homem que a compreende melhor do que eu? — retrucou ele, com uma certa dureza. — Isso não é tão difícil assim. Ele sabia que não devia antecipar certos fatos para você. E se eu tivesse sido suficientemente sensato e não abrisse a boca, ainda poderíamos salvar este casamento.

— Um casamento baseado em quê? — apressou-se ela a respon­der. Levantou-se impetuosamente. — Vou me deitar.

— Júlia. — Deu um pequeno passo em sua direção, dominou-se e enfiou as mãos nos bolsos. — E a partir de agora, o que vai nos acontecer?

— Não sei — ela respondeu com sinceridade. — Realmente não sei, Ross.

— Então é melhor você começar a se decidir. E logo. Eu não sirvo para viver nesta espécie de gangorra emocional. — Desviou-se dela abruptamente. — Irei para o outro quarto enquanto você pen­sa no assunto.

A eventual possibilidade de um confronto esgotou-se naquele momento.

— Faça como quiser — disse, e deixou-o plantado lá.

Júlia passou o resto da semana mergulhada em uma espécie de devaneio. O jantar com os Ashley proporcionou-lhe momentos agra­dáveis, que ela desejava ao mesmo tempo que temia, mas se Peggy notou diferenças radicais de comportamento entre ela e Ross, não fez nenhum comentário. Na aparência, Ross não mudara em nada. Conversava, ria, dava todos os indícios de não estar enfrentando naquele momento qualquer problema que não fosse corriqueiro. Era somente em seus olhos que Júlia conseguia detectar uma mu­dança que se iniciava. Agora, quando ele a fitava, era quase com cinismo. Ela o estava perdendo, entretanto não conseguia se forçar a fazer o que quer que fosse.

Foi necessário um telefonema para arrancá-la daquela terra de ninguém emocional em que ela estava se afundando. Foi Ross quem o atendeu, durante o café da manhã, na sexta-feira, fechando a porta da cozinha, de forma que Júlia não conseguisse ouvir a con­versa. Quando desligou o aparelho, parecia estar tomado por novos propósitos.

— Vou ficar fora o dia inteiro — anunciou. — E possivelmente não volte para dormir. Acho que você não vai ficar muito preocu­pada com isso. — Não lhe deu tempo para formular uma resposta, se é que havia alguma resposta. — Pode ser uma boa oportunidade para você tentar examinar o que está acontecendo e decidir o que você quer fazer. — Encarou-a com firmeza. — Uma vez eu cometi o erro de me prender a alguma coisa que já tinha acabado. De agora em diante dançarei conforme a música. Resolva o que você quer, Júlia. — Pousou o guardanapo sobre a mesa. — Vou arrumar a mala.

— Não. — Levantou-se subitamente. — Deixe comigo. Acabe de tomar o café.

Precisou apenas de três minutos para colocar na valise o que era necessário para que ele passasse a noite fora. Três minutos e toda uma vida. Era Lou quem estava ao telefone, e Ross ia a seu encontro. Ele que fosse, Lou que ficasse com ele. Esperava que gozassem de felicidade, um ao lado do outro. Quando ele voltasse, no dia seguinte, já não a encontraria mais lá. Era tudo muito simples.

Ele estava à sua espera no hall, quando ela desceu. Pegou a valise com um breve agradecimento, pôs o casaco e pareceu hesitar um momento enquanto a olhava. Uma expressão indefinível surgiu em seu rosto, mas imediatamente se dissipou.

— Até breve — disse.

A casa parecia insuportavelmente vazia, depois que ele partiu. Júlia tomou um banho e vestiu-se, veio novamente para a cozinha e teve a certeza de que naquele dia seria totalmente incapaz, de disfarçar seus sentimentos perante quem quer que fosse.

As chaves do carro estavam no bolso do casaco desde segunda-feira. Saiu da casa com a maior tranquilidade, tirou o carro da garagem e partiu pela alameda sem olhar para trás. Nada que ela fizesse surpreenderia muito a sra. Cooper, e qualquer coisa era melhor do que ficar lá dentro sentada, pensando em Ross a caminho de Londres e na mulher que o esperava. O ato de guiar exigia toda sua concentração.

Ela não tinha planejado conscientemente aonde ia mas não se surpreendeu ao ver que se aproximava da colina onde Ross tinha parado o carro havia algumas semanas. Parou no mesmo lugar, desligou o motor e ficou a contemplar a vista de nítidos contornos sob o céu muito azul. O inverno estava para chegar, e, pelo que parecia, esse ano seria terrível. As árvores já tinham perdido todas as folhas. Pensou no jardim do chalé e no trabalho que ele lhe tinha exigido durante os últimos meses. Algumas vezes tinha sido uma verdadeira luta eliminar o mato, mas os resultados tinham sido compensadores. Os jardins eram assim mesmo: só se tirava deles o que neles se colocava.

Olhando para o passado conseguiu ver em quantas coisas errara. O casamento tinha sido um jogo, uma novidade. Ross fora pai, irmão, amante, mas nunca o aceitara totalmente como marido. Ela não estava preparada para o casamento, compreendia isso agora. Tinha sido incapaz de contribuir com qualquer profundidade de emoção para qualquer relacionamento.

Escapou-lhe um suspiro. O dr. Stewart tinha razão, é claro. Ela tinha de ficar e encarar as coisas. Deixar Ross seria apenas um gesto, nunca uma solução, e um gesto que, a longo prazo, acabaria por ma­goá-la muito. Se valia a pena ficar com Ross, então valia igualmente a pena lutar por ele, contanto que não fosse tarde demais.

Fez hora antes de voltar para casa, guiando a esmo até ter cer­teza de que a sra. Cooper partira e que ela podia ficar a sós. Havia um carro parado na alameda quando ela se aproximou de casa. Era um Capri vermelho com placa de Londres. A primeira coisa que lhe ocorreu foi que David, afinal, não tinha voltado para a Argélia. En­trou rapidamente, dirigiu-se para a sala de visitas e ficou estarre­cida no momento em que Lou se levantou de uma cadeira.

— A diarista permitiu que eu ficasse à sua espera —- ela disse, com um leve sorriso, — Uma atitude um tanto dúbia, devo dizer. Preparei um pouco de café. Acho que você não se incomoda, não é?

Júlia sacudiu a cabeça lentamente, em total confusão. Se Lou estava lá, então onde estaria Ross?

— O carro que está lá fora não é seu — disse.

— Não, é alugado, O meu está na oficina. Estou indo para Ly-mington passar o fim de semana com amigos. — Lou fez uma pau­sa, e seu olhar percorreu o aposento. — Lindo lugar. Ainda estava em reforma, naquele fim de semana em que vim aqui com David. — Voltou-se para Júlia, e o tom de sua voz modificou-se impercep-tivelmente. — Bill disse que você estava procurando meu endereço, na semana passada. Encontrou o que pretendia?

A ironia, pensou Júlia, devia ser imaginária. Lou não podia saber.

— Sim —, disse, prosseguindo com maior desenvoltura; — Você não se desviou do caminho só para me fazer essa pergunta.

— Tem razão. — Ela ainda se mostrava perfeitamente calma. — Lembra-se de que, na última vez em que nos encontramos, eu lhe disse que havia certos limites que eu seria capaz de ultrapassar?

As sobrancelhas de Júlia se aproximaram.

— Sim, acho que sim. Não foi logo após você me falar a respeito de Enid?

— Acredite ou não, aquilo não foi intencional. — Pela primeira vez Lou parecia hesitar. — A outra frase, sim, foi, ou, pelo menos, eu não me esforcei muito para controlar meus impulsos.

— A... outra?

— Quando você me perguntou como é que eu sabia a respeito de Enid. Durante um ou dois segundos senti-me tentada a envolver Ross na história e a vingar-me dele, — Deu de ombros. — A essa altura você já tinha ido embora.

Júlia encarou-a, e o coração batia forte.

— O que você está pretendendo dizer?

— Pretender é a palavra correta. Não sou muito boa em escla­recer as coisas. Provavelmente nem teria me incomodado, se Bill não tivesse ficado tão preocupado com seu estado de espírito quan­do a viu. Deu certo, não é mesmo? Você deduziu que, pelo fato de eu saber tanto a respeito de seus assuntos pessoais, Ross e eu devíamos ser muito ligados, durante uma certa época. — Dessa vez a ironia era inconfundível. — A verdade é que, se dependesse de mim, as coisas teriam ultrapassado os limites de um simples caso. Estranho como aquilo que você quer de verdade acaba sendo aquilo que você não pode ter. Mesmo que não tivesse sido noiva de David, a coisa não teria dado certo. Não foi a mim que Ross viu, foi a Enid.

Júlia respirou fundo.

— Então foi David quem lhe falou a respeito dela.

— Foi. Imagino que não lhe ocorreu considerar essa possibili­dade. É assim que funciona a mente feminina, sempre pronta para enxergar o pior. — Inclinou-se e tirou o casaco do encosto do divã. — Bem, minha tarefa de bandeirante está cumprida e eu vou indo. Estou sendo esperada para o almoço. — A pausa que se seguiu foi breve. — Pode dizer a Ross que não precisa mais se preocupar com David. Pensei no que ele disse na semana passada e vou entrar em contato com meu marido. — Sorriu. — Talvez também não funcione, mas pelo menos eu ficarei com a consciência tranquila.

— Lou. — A voz de Júlia soava tão baixa que ela mesma mal conseguia ouvi-la. Obrigada.

Já a caminho da porta, Lou voltou-se.

— Não há de quê. Espero que você dê valor ao que tem.

Dar valor, pensou Júlia, não era o termo correto. Com dor no coração ouviu os passos que se afastavam, a porta do carro que se fechava e o carro que partia. Somente quando o som se perdeu na distância ela caminhou cegamente para uma cadeira e deixou-se afundar nela. O que ela havia feito com o seu casamento era im-pensável mas tinha de ser encarado. Era um fato perante o qual ela não poderia se esconder, dar as costas ou fingir que jamais tinha ocorrido. Poderia encontrar algum consolo no choque que lhe provocara o relato do casamento anterior de Ross, mas isso não era suficiente. Ela o tinha julgado e condenado sem ouvi-lo, levada pelas emoções do momento, como uma criança irresponsável, e não como um adulto racional. Lou tinha razão, não merecia que um homem como Ross a amasse, se é que ele ainda a amava.

Seus lábios se cerraram com deliberação. Ficar lá sentada, per­dida em seus pensamentos, não ia resolver nada. Se era tarde de­mais para se penitenciar, teria de encarar o fato. Mas imaginava que isso não ocorresse. Havia em Ross muita profundidade, muito mais do que ela seria capaz de imaginar. Dizer-lhe a verdade não ia ser nada fácil, a auto-acusação dificilmente era. Mas agora ela lhe devia lealdade. Acima de tudo, ela lhe devia esse sentimento.

A tarde pareceu durar uma eternidade. Se pudesse contar com a presença de Ross naquela noite, as coisas teriam sido mais su­portáveis, Do jeito como as coisas se apresentavam, só lhe restava sentar e esperar, alternando entre a esperança e o temor de seu telefonema. Precisava demais ouvir sua voz, mas isso não era algo que ela pudesse exprimir pelo telefone. Teria de vê-lo, olhar dentro de seus olhos, para saber com certeza que seus sentimentos por ela se mantinham vivos.

Às cinco horas já havia escurecido completamente, e o nevoeiro se espalhava sobre os campos. Júlia trouxe Shan para dentro de casa a fim de que ele lhe fizesse companhia e acendeu a lareira, aceitando a contragosto o fato de que passaria a noite sozinha. Às sete horas forçou-se a comer um sanduíche e bebeu um pouco de café. Escolheu um livro na estante e tentou concentrar-se na leitura. Ao ouvir o barulho de um carro aproximando-se vagarosamente pela alameda, sentiu uma estranha mistura de alívio e repulsão.

Por que o carro andava tão devagar ficou explicado no momento em que ela abriu a porta. A neblina tinha se adensado e baixado até que a visibilidade se tornou mínima. O barulho do moto chegava até ela abafado. Somente quando o veículo se aproximou o suficiente para adquirir forma e cor é que ela se deu conta de que não se tratava de Ross, era Mike quem chegara.

Com o coração aos pulos, tomada subitamente de um pressen­timento, saiu correndo em direção ao portão, quase caindo nos bra­ços de Peggy após escancará-lo.

— Aconteceu alguma coisa com Ross! — ela gritou, desesperada. — É verdade, não é?

— Ele sofreu um acidente. — Peggy segurou-lhe as mãos. — Viemos para levá-la até o hospital, Júlia, Ross não queria que você fosse até lá sozinha.

Júlia cerrou os olhos, cambaleante, e apoiou-se contra a pessoa de Peggy. Ele estava vivo. Ross estava vivo!

— Você vai precisar do casaco — ouviu Peggy dizer. — Mike vai manobrar o carro de modo que a gente possa partir imediata­mente. O nevoeiro está ficando cada vez mais denso. Quase caímos em um buraco agora a pouco.

Sem saber como, Júlia viu-se com um casaco sobre os ombros e achou-se novamente fora de casa. Peggy trancou a porta e pôs a chave em seu próprio bolso, e em seguida ambas entraram no carro. Mike voltou-se a fim de lhe dirigir um sorriso reconfortante e par­tiram imediatamente, atravessando o nevoeiro, guiando cautelosa­mente por entre os meios-fios, que exibiam toda sua brancura dos dois lados da estrada estreita.

— Conte-me o que aconteceu — disse Júlia a Peggy. — Como foi que vocês...

— Foram nos procurar imediatamente, devido à insistência de Ross. Ao que tudo indica, foi uma jamanta que transportava três carros e vinha para a aldeia pela estrada de Lyndhurst. Durante toda a tarde a neblina tinha estado terrível. O guarda disse que aconteceu por volta das seis.

— Eles não disseram se... ele ficou muito ferido?

— Não. Eles nunca dizem. — A mão de Peggy, que até então a segurava, afrouxou um pouco. — Ele não chegou a perder a cons­ciência. Tente não se preocupar, Júlia.

Tentar não se preocupar, a mesma observação de sempre, sem o menor sentido, a mesma recomendação automática, em ocasiões de desespero. Tentar não se preocupar, quando toda sua vida es­tava envolvida com a do homem de quem falavam.

— Não podemos ir mais depressa? — perguntou.

— Sim, logo que deixarmos esta estrada e chegarmos ao asfalto.

— Mike não tirava os olhos do visor. — Chegaremos logo, Júlia. Mais tarde ela conseguiu se recordar muito pouco da viagem, lem­brando-se apenas da urgência febril e do medo terrível que sentira.

Chegaram ao hospital por volta das oito e meia e foram avisados de que Ross estava na seção de ortopedia. Uma enfermeira serviu-lhes chá, mas Júlia não conseguiu tomar o seu, sentindo que não lhe passaria pela garganta. Pela primeira vez começou a se dar conta do que Ross devia ter sentido, na noite em que esperara notícias de seu estado e que experimentara a angústia de ficar sentado, impotente, enquanto os minutos se escoavam. Quando a figura uniformizada de verde emergiu finalmente do elevador, ela mal conseguiu encará-lo. Sabia o que ele ia dizer.

— Seu marido vai se recuperar, sra. Mannering. Quebrou um braço, fraturou duas costelas e sofreu algumas escoriações, mas o pulmão não foi perfurado, como temíamos a princípio. Dentro de alguns dias ele terá alta.

Como se estivesse no fundo de um sonho, ela teve consciência da presença de Peggy e Mike, ambos a seu lado, do cheiro penetrante do anti-séptico e do rosto compreensivo e fatigado do cirurgião.

— Obrigada — disse. — Obrigada.

Deixaram-na ver Ross às sete da manhã. Seu rosto parecia estar mais alongado do que antes, mas os olhos que se depararam com os dela eram tão enigmáticos como sempre.

— Desta vez fui eu — disse, com um ligeiro sorriso. — Você ficou sentada esperando a noite inteira?

— Eles providenciaram uma poltrona para mim na sala de es­pera. — Não acrescentou que não tinha pregado o olho. — Peggy e Mike foram para casa, mas pretendem vir vê-lo mais tarde, hoje ainda, — Fez uma pausa, insegura, olhou para a boca de Ross e tomou consciência de que caberia a ela agir. Ele já fizera tudo o que lhe cabia. A mão que não se machucara estava apoiada sobre as cobertas. Ela a segurou, começou a dizer algo — não tinha idéia do que se tratava — e foi tomada por uma onda de emoção que precisava se extravasar muito além das palavras. Apoiou os lábios no dorso da mão dele, aninhou-a contra seu rosto e contra o peito, sentiu as lágrimas que lhe afloravam aos olhos e não fez o menor esforço para contê-las.

— Pensei que o tivesse perdido — murmurou.

— Nem pense nisso. — Havia um sorriso em seus lábios, mas também uma certa reserva em sua voz. — Ainda tenho muito que viver.

— E que amar?... — As palavras lhe escaparam, ela não as controlava mais. Viu seu rosto mudar, o brilho súbito em seus olhos, e sentiu que finalmente a resposta lhe chegara. Com toda simpli­cidade e clareza, disse: — Eu o amo, Ross. Não se trata apenas de um envolvimento. É para valer.

Ele procurou seu rosto e disse com ternura:

— Você tem certeza de que sabe distinguir a diferença?

— Descobri qual é a diferença. Levou muito tempo, mas agora tenho certeza. — Sua voz tremia um pouco. — Você se recorda de ter dito uma vez que eu era uma criança, em certas coisas? Naquele momento pensei que você se referia a um medo quase físico. Acho que lhe respondi que você esperava muito de mim.

— Lembro-me. — Seu olhar se tornara mais penetrante. — Foi durante nossa viagem à Áustria.

— Sim. — Ela sorriu- — Durante nossa lua-de-mel. Passaram-se alguns momentos antes que ele falasse calmamente:

— Quanto tempo faz que você voltou a se lembrar de tudo, Júlia?

— Desde o dia em que você foi ver Lou. — Ela tinha de pôr tudo para fora, mas precisou de toda sua coragem para prosseguir. — Eu estava na rua, quando você saiu do apartamento.

Júlia contou-lhe toda a história, hesitante, desde a ocasião em que se encontrara com Lou. Tropeçava nas palavras e não ousava encarar o rosto dele, de medo do que veria nele. Quando finalmente terminou, ficou à espera de que a espada se abatesse sobre sua cabeça, de que ele lhe dissesse friamente o que pensava a seu res­peito. Mas ele não o fez. Não disse uma palavra sequer. Ela final­mente o olhou e surpreendeu-o fitando-a com um sorriso enigmático,

— É geralmente aceito — disse — que o amor e a confiança andam juntos. Mas isso não é verdade, nem sempre. Já lhe ocorreu imaginar por que eu jamais me referi ao dia que você passou em Londres? — Não esperou que ela respondesse. — Quando me casei com você, sabia que eu sentia por você muito mais coisas do que você por mim, mas tinha suficiente confiança para acreditar que com o tempo eu pudesse mudar isso. Até mesmo cheguei a pensar que tinha superado meu ciúme em relação a Bill, até aquela noite em que você voltou muito alterada, depois de visitá-lo. Se Bill soubesse alguma coisa em relação a Enid, eu até poderia ter conside­rado a possibilidade de que ele lhe contara. Como ele não sabia, a outra explicação era de que você tinha finalmente compreendido o engano que cometera ao se casar comigo, em vez de se casar com ele. Quando você não conseguiu se lembrar de mais ninguém, a não ser de Bill, tive confirmação do que pensava apesar de que eu ainda me apegava à tênue esperança de que podia estar errado. Você vê, portanto, que houve erros de ambos os lados, com algumas desculpas a mais para os seus do que para os meus. Se eu podia ocultar uma esposa, por que não faria o mesmo com um ou dois casos?

Júlia engoliu em seco.

— Você não acredita em mim, não é mesmo? — disse com difi­culdade. — Ainda não crê que sou capaz de amá-lo do modo como você quer.

Ele sorriu ligeiramente.

— Acho que você acredita nisso, e é um bom começo. Podemos partir daí. — Tapou-lhe a boca, no momento em que ela a abria, gemendo ao se mover. — Vamos deixar as coisas nesse pé, Júlia. Eu a tenho de volta, e agora isso é o que importa.

Ela sentia uma tensão no peito, e a dor era quase física. O que poderia dizer para convencê-lo? Existiriam palavras? Não, pensou, nenhuma palavra que significasse muito. Olhou os traços enérgicos e familiares, a boca que, segundo ela julgara, desconhecera o sig­nificado de um engajamento. Foi puro instinto o que o levou a procurar-lhe os lábios, puro sentimento, desprovido de pensamen­tos, o que a fez agir com tanta ternura, tantos cuidados, tamanho amor que não havia mais lugar para nenhuma espécie de dúvida. Ross passara os braços em volta dela, mantendo-a junto dele como se nunca mais a quisesse deixar partir, ignorando a dor, até que Júlia lembrou-se dos ferimentos e se afastou.

— Ross, suas costelas!

Ele franziu o cenho, mas em seus olhos havia um brilho irônico e malicioso.

— Até que vale a pena — disse. — E aposto que Adão também pensava assim!

 

 

                                                                  Kay Thorpe

 

 

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