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Post Gazette, de Pittsburgh, 4 de agosto de 1964 (pág. 6)
BATIDA DE DOIS VEÍCULOS MATA DOIS E FERE DOIS
Harrisburg, PA (UP) — Uma mulher e sua jovem filha morreram, e outras duas pessoas ficaram ligeiramente feridas, depois que seus carros colidiram um com o outro na Via Expressa Pensilvânia durante uma súbita tempestade de granizo.
A policia não divulgará informações sobre a identidade da mulher e da criança mortas até que os parentes sejam notificados.
Lá estava ele de novo, parado em meio à multidão de mães que chegavam todos os dias às dez para as três e ficavam por ali em mundos separados, esperando que a escola soltasse seus filhos.
Até hoje, ele era apenas uma presença para Janice Templeton, apenas outro pai parado naquele frio, diante da Escola de Cultura Ética, esperando seu rebento aparecer. Hoje, porém, ela descobriu-se a observá-lo — um homem solitário num mar de mulheres — e perguntando-se por que era sempre ele quem vinha, e não sua mulher.
Ele se mantinha meio virado de costas para ela, olhando ansiosamente para as grandes portas da escola. Devia ter quarenta e poucos anos, refletiu Janice, e não era feio. Usava um basto bigode e costeletas bem aparadas; tinha o corpo esguio e rijo de um atleta.
Perguntava-se qual seria o seu filho, e anotou na mente que devia descobri-lo.
O sino da escola tocou.
O desfile de crianças saindo aos bolos pelas portas era, todo dia, uma experiência agridoce para Janice. Fazia-a compreender como o tempo corria rápido, como a criança de ontem se tornava rapidamente o adolescente de amanhã.
Alta, flexível, de uma beleza impressionante, Ivy Templeton, em seus dez anos, tinha uma elegância feminina que parecia deslo-cada em tão tenra idade. Uma onda de cabelos louros — puros até as raízes —, penteados para trás, chegava-lhe abaixo da linha dos ombros, emoldurando um rosto de feições perfeitas. A delicadeza da pele formava um fundo ideal para os grandes olhos de um cinza profundo. A forma da boca bem delineada, uma boca sensual até o momento em que ela sorria, restaurando a infância e a inocência. Janice nunca deixava de maravilhar-se com a beleza da filha, e nunca deixava de imaginar que milagre genético a produzira.
— Posso tomar uma Coca?
— Tem Cocas na geladeira lá em casa — disse Janice, beijando o cabelo de Ivy.
De mãos dadas, as duas começavam a caminhar, subindo o Central Park West, quando Janice parou, lembrando-se do homem. Olhando por cima do ombro, para ver que criança ele levava pela mão, sentiu-se gelar. O homem estava parado logo às suas costas, bastante próximo para tocá-la, bastante próximo para que ela sentisse os vapores de sua respiração. Tinha nos olhos um brilho maníaco de desesperada necessidade — de anseio inexpressível — dirigido exclusivamente para Ivy. Para Ivy!
— Desculpe — ela disse debilmente, sob o efeito do choque, o coração batendo forte quando agarrou o braço da filha e subiu apressada o Central Park em direção ao Des Artistes, cinco quadras adiante, sem olhar uma só vez para trás a fim de ver se o homem as seguia.
— Quem era ele, mamãe?
— Não sei — disse Janice, arquejante.
O pensamento do que poderia ter acontecido, se ela não estivesse ali para pegar Ivy, fez Janice parar de repente na esquina de sua rua. E se houvesse cedido aos insistentes pedidos da filha, deixando-a voltar para casa sozinha como Bettina Carew e algumas das outras de sua sala?
— Por que paramos, mamãe?
Janice respirou profundamente, para readquirir controle sobre si mesma, sorriu palidamente, atravessou a rua com a garota e entrou no velho prédio, Des Artistes.
"A Fortaleza", como Bill o chamava.
Construído na virada do século por capricho de um grupo de pintores e escultores que compraram o terreno, contrataram uma firma de arquitetura, aprovaram os projetos e cuidaram da hipoteca, o prédio continha, em cada um dos seus vinte e dois andares, seis apartamentos independentes de vários tamanhos, oferecendo estúdios imensos, com galerias de janelas que iam do chão ao teto e proporcionavam uma diversificada escolha de panoramas da cidade. Várias dessas janelas admitiam a luz do norte, um detalhe obrigatório para os pintores. A decoração dos apartamentos era pródiga, imaginativa, e satisfazia as necessidades estéticas e emocionais de seus donos. Alguns estúdios assumiam um caráter barroco, exibindo tetos abobadados cheios de frontões e gárgulas escravizantes.
Outros seguiam uma tendência rococó mais frívola, apresentando tetos pintados com moldes ricos e dourados. Uns poucos apartamentos seguiam um sombrio padrão Tudor, e eram intrincadamente apainelados de madeira escura e veiada.
Um magnífico restaurante, no vestíbulo do prédio, satisfazia amplamente os apetites dos artistas, e chegava mesmo a servir jantares perfeitamente preparados a cada apartamento, através de uma rede de elevadores de cozinha espalhados por todo o edifício.
Durante a Depressão, o Des Artistes fora vendido a uma cooperativa, e as novas pessoas que compraram os apartamentos começaram a remodelá-los. O espaço no alto era muito valioso para elas, e foi rapidamente subdividido, proporcionando uma grande sala de estar embaixo e suficiente espaço para dois ou três quartos de dormir em cima.
Com todas as mudanças e afastamentos dos conceitos originais dos artistas, a única coisa que os moradores jamais puderam alterar foi o encanto e a grandeza inerentes ao prédio.
Como o soberbo restaurante no vestíbulo principal, a atmosfera original permanecera intata.
O primeiro ato de Janice, depois de entrar no apartamento, foi fechar as duas fechaduras da porta e passar a corrente. Após servir um pouco de Coca-Cola a Ivy e enviá-la para cima, a fim de fazer seu trabalho de casa, ela serviu-se de um uísque puro.
O homem na escola tinha realmente mexido com seus nervos.
Era uma nova sensação para Janice. Ela compreendia que a vida era cheia de áreas de perigo, mas até então havia sido poupada.
Levou seu uísque para a sala de estar e sentou-se em sua poltrona favorita — uma antiga cadeira de balanço superacol-choada, que pertencera à sua avó. Enquanto beberícava o drinque, sua mente refazia o rosto, a expressão nos olhos do homem ali parado, olhando Ivy. Não havia nada de sexual em seu olhar, nem de depravado; era mais um olhar que falava de uma grande perda — triste, sem esperança, desesperado. Era isso, desesperado.
Janice sentiu um calafrio e tomou uma grande dose do uísque. Podia sentir a sensação do álcool espalhando-se pelo seu corpo, apaziguante, aquecedor, quando se levantou e foi até a janela. Seus olhos examinavam as figuras que andavam como formigas pelas calçadas lá embaixo. Estaria ele ali? Observando?
Esperando? Ela falaria com Bill sobre aquilo assim que ele chegasse em casa.
Bebendo o resto de seu uísque, Janice voltou-se da janela e olhou a comprida sala de estar na luz fraca e pálida da tarde de outono. Os onze metros de piso taqueado levavam o olhar até uma imensa lareira de estuque, uma lareira prática, que queimava lenha e aquecia suas almas nas frias noites de inverno. Junto à lareira havia um lance de escada atapetada que conduzia aos dois quartos e a um pequeno estúdio. O corrimão e as barras remontavam à época dos artistas e eram fantasiosamente esculpidos; o pilar apresentava a cabeça nodosa de um capitão viking.
Os olhos de Janice cruzaram carinhosamente os cantos queridos de seu mundo, e como sempre foram parar finalmente na pièce de resistence — a única coisa que os mergulhara temera-riamente na perigosa aventura de comprar o apartamento: o teto.
Profundo, apainelado com uma variedade de madeiras raras, envernizado e brilhante, o teto era uma magnífica obra de arte. Duas grandes pinturas, criadas pelo pincel de um verdadeiro mestre, haviam sido encaixadas dentro da madeira lavrada, dividindo o teto em duas partes. Janice descobrira, depois de muita pesquisa, que as pinturas eram na tradição de Fragonard, apresentando ninfas dos bosques brincando licenciosamente em frias clareiras sombreadas. Era uma visão espantosa, de cortar a respiração, que literalmente pasmava os novos convidados, e Bill e Janice adoravam fazer pouco da coisa, fingindo aceitar o teto como algo comum, e às vezes até manifestando uma ligeira irritação com sua vistosa vulgaridade.
Mas sozinhos, eles deitavam-se juntos no tapete em frente à lareira, de mãos dadas, e ficavam olhando fascinados seu museu no teto, pasmados eles mesmos com a fantástica sorte de terem encontrado e adquirido um tal tesouro tão logo após seu casamento. Haviam-se lançado à compra do apartamento da mesma forma como se haviam lançado ao casamento, impacientes para começarem suas vidas juntos.
Dedicados admiradores da ópera, Janice e Bill encontraram-se pela primeira vez numa matinê de La traviata em San Francisco. Ambos estavam na escola na época, Janice concluindo seu último ano em Berkeley e Bill trabalhando em sua tese na Universidade Estadual de San Francisco. Os dois tentavam a sorte naquela ventosa tarde de sábado, vagueando em meio a uma multidão de entusiastas que esperavam alguma desistência. Um segundo antes de abrir a cortina, dois dos melhores lugares foram oferecidos. Mais caros do que o que Janice podia pagar, ela mesmo assim agarrou rapidamente um bilhete. Bill pegou o outro.
Os dois, estranhos, sentaram-se juntos durante o primeiro ato em perfeito silêncio, bebendo os dolorosos compassos de Verdi como duas almas sedentas num oásis do deserto. Durante o primeiro intervalo, Bill ofereceu um cigarro a Janice. Fumaram e falaram de ópera. No segundo intervalo, ele pagou-lhe uma bebida no bar do teatro. Naquela noite, jantaram no Cais do Pescador.
Sete dias depois, passaram um fim de semana juntos num motel de Sausalito e se amaram. Casaram-se após a formatura de Janice e foram imediatamente morar em Nova York.
Onze anos de perfeição, pensou Janice. Num cenário sem igual.
Ela sentia-se inteiramente relaxada quando se encaminhou ao carrinho de bebidas e serviu-se de outro uísque. Deixaria Bill beber seu martíni primeiro, antes de falar-lhe do homem.
Ela estava picando uma cenoura na minúscula cozinha quando ouviu o som de uma chave na fechadura de baixo. Era um som de quem experimentava, tateava. Não seria Bill àquela hora; era cedo demais.
Janice ficou paralisada, agarrando a pequena faca de aparar, quase sem respirar, ouvindo os ruídos abafados, de metal arranhando metal. Sabia que estava segura, na verdade; havia duas fechaduras, além da corrente, para protegê-la.
Contudo, sentia-se vulnerável e em grande perigo. Se o homem tivera coragem de esgueirar-se por Mário e o ascensorista, e encontrar a sua porta, era capaz de fazer qualquer coisa.
De repente, o mecanismo da fechadura girou com um ruído metálico. Janice sentiu-se gelar. Ouviu a chave movimentar-se na segunda fechadura, encaixando-se com muito menos problemas. O mecanismo girou. Janice deu um passo para trás, em direção à parede da cozinha. A pele da mão que agarrava a faca estava branca. A corrente retesou-se na pequena abertura com um ruído seco.
— Ora, vamos, abra.
A voz de Bill.
Com um grito de alívio, Janice saltou até a porta, soltou a corrente e atirou-se nos braços do marido, quando ele cruzou a soleira.
— Que é que há, benzinho? — perguntou Bill delicadamente.
— Nada — ela sussurrou. — Apenas estou surpresa por ver você. — Depois, recompondo-se, sorriu e acrescentou: Deixei um copo gelando para o seu martíni.
Bill desvencilhou-se gentilmente dela, e numa voz de quem pisava delicadamente em ovos disse baixinho: — Não... diga... essa... palavra... por favor.
Ele e seu assistente, Don Goetz, haviam almoçado com um cliente no Restaurante 21, e a refeição fora basicamente líquida.
O cliente, presidente de uma próspera cadeia de produtos alimentícios, certamente não praticava o que pregava, e mantivera Bill e Don emborcando doses duplas até os dois quase não poderem se manter de pé.
Caminhando nas pontas dos pés e com muito cuidado, Bill começou a subir a escada para se recuperar um pouco, antes do jantar.
— Você tem mais ou menos uma hora — Janice gritou às suas costas, com uma jovialidade forçada. — E não esqueça o bridge esta noite na casa dos Federico.
A resposta de Bill foi um gemido agônico.
Janice voltou à porta da frente e fechou-a de novo, inclusive passando a corrente. Viu seu copo vazio sobre a tábua de cortar carne na cozinha, apanhou-o e levou-o de volta à sala de estar. Enquanto se servia de uma terceira dose, vozes fracas, ininteligíveis, chegaram até ela, vindas do andar de cima. O suave barítono engro-lado de Bill. O suave riso de Ivy. Sons adoráveis, reconfortantes.
— As de paus.
— Passo.
— Dois de espadas.
— Passo.
Carole Federico estudava sua mão, mordendo o lábio.
— Passo.
Bill riu alto, vendo o erro dela. Russ Federico fuzilou a mulher com um olhar irado.
— Você perdeu a cabeça, não ouviu o meu salto?
— Mas nós já temos uma parcial, e isso chega para fechar. — protestou Carole.
— Porra, eu dei um salto. Indiquei que tínhamos pontos suficientes para um slam! — Russ jogou suas cartas na mesa. — Você não podia fazer nada mais estúpido!
Os Federico levavam seu bridge a sério, e as partidas noturnas de quinta-feira sempre acabavam em briga. O jogo começava às oito em ponto, mas nunca ia além das dez. A essa altura, após uma série de pequenos jaux pas, Carole invariavelmente punha Russ numa fúria mortal e fazia insinuações a Janice para que servisse o café.
Os Federico eram pouco mais jovens que os Templeton. Bill e Russ haviam-se conhecido no elevador, descendo todas as manhãs. Sorrisos e bons-dias ocasionais haviam amadurecido pouco a pouco até a fase da conversa e depois da amizade.
Muitas vezes eles iam juntos para o trabalho.
Russ e Carole haviam-se mudado para o Des Artistes em 1970, tendo comprado um dos apartamentos menores. Estavam casados há cinco anos e meio e não tinham filhos. Russ era dono de um pequeno estúdio de gravação na 57th Street. Como Bill e Janice, eles não toleravam televisão, adoravam o bridge e, melhor ainda, eram apaixonados por ópera e possuíam uma fabulosa discoteca, com muitos discos que eram privilégio de colecionador.
A primeira noite que os casais haviam passado juntos fora na casa dos Templeton. Janice passara todo o dia preparando uma vitela tonnata fria, geléia de carne com aipo e uma mousse cremosa de chocolate guarnecida com Grand Marnier. Os Federico ficaram impressionados e não pouparam elogios, propondo brindes atrás de brindes de Mouton Cadet, que fora a contribuição deles ao jantar. Depois, a relação se solidificara com um dos discos mais raros de Russ, uma gravação Victor de 1912, de Alma Gluck cantando trechos de Fausto, Aída e Manon Lescaut.
O vigoroso combate de cantores de lieds trazia a ópera à sua trágica conclusão. Janice, sentada na cadeira de balanço, olhava os outros saborearem intensamente os compassos finais.
Ninguém falava, nunca, nessas sessões musicais. Os olhos de Russ estavam entrecerrados, numa expressão de profunda apreciação. Carole fitava o chão. Bill reclinava-se para um lado, na grande poltrona, cobrindo os olhos com a mão numa atitude de concentrada atenção; contudo, Janice desconfiava de que ele estava cochilando.
Quando o choque dos címbalos acentuou o crescendo orquestral final, Janice ergueu o olhar e viu Russ fitando atentamente a extremidade oposta da sala, um brilho de gozação nos olhos. Ela voltou a cabeça e viu Ivy descendo a escada, esfregando os olhos para afastar o sono. O efeito que ela exercia sobre Russ era tudo, menos sutil. Duas vezes num dia homens haviam-na notado. Magoada e intrigada, Janice perguntava-se aonde fora a infância, e por que tão rápido.
— Não estou me sentindo bem, mamãe. — Ivy bocejou cansada e atravessou a sala em direção à mãe. Um abajur de pé, num canto, iluminava-a por trás, transformando a camisola de renda num véu transparente.
Russ levantou-se e cumprimentou-a com um sorriso abafado.
— Epa, você está ficando grande mesmo, menina — ele disse, os olhos transferindo-se ligeiramente para os seios dela, devas-sando impudentemente o fino tecido.
Ivy sorriu palidamente para ele e pôs o braço em volta da cintura da mãe. Carole juntou-se a eles, pois vira a atitude do marido.
— Muito bem, demolidor — seu tom era de uma seriedade fingida e tinha um toque de casualidade. — Leve-me para casa, antes de se meter em encrenca.
Bill, afinal, estivera dormindo mesmo, pois permanecia na mesma posição, atravessado na poltrona, a mão protegendo os olhos.
Depois que os Federico reuniram seus discos e saíram, Janice despertou suavemente o marido e mandou Ivy para cima.
Seguiu-a depois com um copo de leite quente e tomou sua temperatura. Estava normal.
Quando, finalmente, Janice se despiu, passou creme no rosto e enfiou-se em sua camisola, Bill dormia profundamente.
Sua respiração tranquila, ritmada, que não chegava a ser um ronco, envolvia o quarto. Era um som protetor, tranquilizador, e muitas vezes embalava o sono de Janice.
Ela apagou a luz e meteu-se na cama ao lado dele. Erguendo a camisola até a cintura, aconchegou-se delicadamente ao marido, encaixando seu corpo na curvatura de sua cálida nudez.
Como tudo mais em seu casamento, a vida sexual dos dois era perfeita. Nada entre eles era tomado por certo. Ambos eram experimentadores, e cada oportunidade trazia consigo algo novo e liberador. Bill comprava livros sobre o assunto, para ampliar seus conhecimentos.
"Bio-arco", "biocurva", "concentração mútua", "espiral de intimidade" eram expressões que eles conheciam e empregavam.
Janice sorriu ao lembrar-se do livro de posições de Orissan que Bill trouxera para casa uma noite. Continha desenhos de mais de cem posições íntimas praticadas por árabes do século XVI. Durante várias semanas, tentaram muitas delas, as mais viáveis, que geralmente não eram muito recompensadoras.
Foram obrigados a desistir quando Bill machucou as costas tentando a posição 17, ou do carrinho de mão.
Seu sorriso aprofundou-se com a lembrança do prazer, da alegria, da perfeita doçura de sua vida juntos, no alto do centro de Manhattan, num dúplex de sonho que era deles.
Como sua vida tinha sido perfeita. Como era segura e protegida. Nada de temores, nada de infelicidades, nada de choques súbitos. Exceto por aquela inundação de pesadelos loucos que se apoderara de Ivy quando ela engatinhava, e que durara quase um ano, nenhuma doença, necessidade, medo ou desejo de outros viera abalar a perfeita ordem de suas vidas.
Até hoje, ela pensou, com uma dolorosa pontada de mágoa.
Até hoje — defronte à escola.
Janice estava certa, e estivera certa desde as três e dez daquela tarde, de que a vida que eles conheciam chegava ao fim. Sabia que mesmo agora, enquanto jazia ao lado da forma cálida e ressonante do homem a quem amava, havia forças ? 19 ?
concentrando-se para despedaçar o seu sonho. Não sabia como viria, nem por quê. Apenas que aconteceria.
Naquela tarde, num lampejo de instantânea premonição, Janice vira sua condenação refletida nos olhos de um completo estranho.
2
Ivy acordou levemente febril. Sua temperatura estava apenas um pouco acima da normal, mas a mãe julgou melhor mantê-la em casa, sem ir à escola. Com o fim de semana, isso lhe daria três dias de repouso. Janice encontrou argumentos satisfatórios para a sua decisão, e sentiu uma sensação de alívio por tê-la tomado.
Fosse como fosse, conseguira três dias até o próximo confronto com o homem.
A manhã estava fria e ensolarada quando Bill passou pelas grandes portas de vidro do velho prédio e começou a andar em direção à esquina da 67th Street com o Central Park West. O tempo estava perfeito para uma caminhada, e ele chegaria a tempo ao escritório, uma vez que não tinha de levar Ivy à escola naquela manhã.
Podia até abandonar o caminho mais rápido descendo o Central Park West e atravessar o parque diretamente no Tavern on the Green. Demorava mais sete minutos; mas o parque era lindo naquela época do ano, e Bill sempre gostara de cruzar o macio tapete dourado de rígidas folhas de outono.
Quando o sinal de trânsito mudou, ele já decidira.
Atravessou até a entrada da 67th Street e encaminhou-se para o velho e famoso restaurante de tábuas verde e branco.
Ao cruzar o portão do parque, olhou casualmente para a escola de Ivy, seis quarteirões abaixo do bulevar congestionado pelo tráfego. Imaginou o que Costeletas pensaria ao ver que ele e Ivy não apareciam, naquela manhã.
Bill atravessou a densa camada de folhas secas que o vento juntara na sarjeta e prosseguiu em direção ao sudeste, pelo parque. As veredas naquele ponto eram amplas e engrinaldadas com galhos de árvores por cima. A manhã estava tranquila, e as folhas revoluteavam suavemente à sua volta.
Bill percebera o homem pela primeira vez a 12 de setembro, exatamente quatro semanas e quatro dias antes. Na verdade, não o localizara até o dia 14, dois dias depois, mas no momento em que compreendera que estava sendo seguido, sua mente fizera alguns cálculos rápidos e afinal ele lembrara o primeiro encontro num momento específico no tempo.
Fora no ônibus que atravessava a 65th Street. Bill acabava de encerrar uma conferência que durara toda a tarde, com um representante de mídia da conta da Doggie-Dog TidBits. Haviam realizado a reunião na suíte dos clientes do Hotel Pierre.
Quando Bill saíra, para voltar para casa, começara a chuviscar.
Ele conseguira percorrer os quatro quarteirões até a Fifth Avenue antes de desabar o dilúvio, e por felicidade encontrara um ônibus estacionado ali, apanhando passageiros.
Quando o ônibus superlotado se pusera em movimento, com sua carga úmida e carrancuda, ele se vira fortemente imprensado numa massa de estranhos, suas respirações misturando-se intimamente, seus corpos oscilando e saltando juntos no ritmo da marcha em staccato do veículo, através da transversal.
O rosto mais próximo ao seu era de uma mulher — meia-idade, esgotada de alegria ou esperança, com um par de olhos que fitavam vaziamente dentro dos dele, sem registrar nada. Ele não podia ver a pessoa às suas costas, mas sabia que era outra mulher, pois podia sentir a forma macia e maleável de seus seios aconchegando-se em suas costas toda vez que o ônibus parava.
O terceiro rosto, visto apenas parcialmente e de perfil, era de um homem mais ou menos da sua idade. O que o fascinara fora a perfeita costeleta no lado direito do rosto. Era fascinante devido à perfeição. Cada fio de cabelo era separado e distinto, e parecia ter sido traçado por um desenhista. A densidade da costeleta do homem repetia-se no bigode, igualmente perfeito.
E, no entanto, havia algo muito errado em ambas as coisas. Bill quebrara a cabeça com isso até o meio da viagem, no parque, mas finalmente descobrira a resposta. Eram falsos. As faces do sujeito eram quase imberbes; ele jamais poderia ter desenvolvido matagais como aqueles. Bill sorria, satisfeito por ter resolvido o mistério, quando de repente compreendera que o homem o olhava. Desviara rapidamente o olhar e começara a estudar um anúncio acima da poltrona do motorista.
No momento em que descera do ônibus, na esquina da 66th com o Central Park, a chuva caía em bátegas. Pequenas gotas reluzentes de água explodiam na larga rua quando ele fizera correndo o pequeno percurso até o Des Artistes. O homem das costeletas falsas fora totalmente esquecido.
Dois dias depois, Bill encontrava-o de novo, no elevador do prédio onde ele próprio trabalhava. O homem estava no fundo da cabine, atrás de um grupo de pessoas, quando ele entrara.
Não olhara Bill, e este fingira não notá-lo. Podia ter sido uma coincidência, mas Bill não pensava assim.
Mais tarde, no mesmo dia, para confirmar suas suspeitas, Bill pusera uma fita no grande computador que a Agência de Publicidade Simmons usava para suas grandes descobertas demo-gráficas. Alimentara a máquina com todos os dados que conseguira pensar: densidade populacional, área dos encontros, tempo decorrido, distância entre os dois encontros, e dera até seus sexos, idades prováveis e uma estimativa de seus estados físicos. A máquina respondera com uma probabilidade de um em dez milhões de que tais encontros pudessem ocorrer dentro de dois dias.
Contudo, Bill estava disposto a admitir a única possibilidade de que poderia ser uma coincidência.
Duas vezes, sim. Três, não.
Uma das contas de Bill era a de um fundo mutualista com escritórios em Wall Street. Ele e Don Goetz haviam passado toda uma manhã de segunda-feira apresentando sua campanha de anúncios para a primavera ao conselho de diretores. As discussões no conselho continuariam pelo resto do dia, e assim Don e Bill haviam escapado para um restaurante próximo, para um almoço antecipado.
Haviam acabado seus sanduíches e estavam bebendo sua segunda xícara de café quando o olhar de Bill localizou a visão familiar de Costeletas flutuando no fundo de uma multidão de clientes que aguardavam perto da entrada. O homem estava quase invisível, porque os corpos das pessoas bloqueavam tudo, a não ser um pedaço de sua cabeça. Contudo, Bill tinha certeza de que era a mesma pessoa.
Depois de pagarem suas contas, Bill abrira caminho pelo meio da multidão que atravancava a entrada, mantendo os olhos abertos para o homem das costeletas. Mas no tempo que levara para pagar a conta e pôr o casaco, o homem desaparecera. Bill olhara para dentro do restaurante, para ver se ele se sentara, mas o homem não estava em parte alguma.
Bill ficara preocupado. Era óbvio que o estavam seguindo.
Mas quem? Um tira? O FBI? E por quê?
Naquela noite, uma perfumada noite de veranico, Bill passeara lentamente, subindo a vereda que margeava o pequeno lago do Central Park. Cisnes e gansos nadavam em círculos delicados, pacientes, em busca de crostas perdidas de pipocas ou amendoins. Encaminhara-se até um banco vazio e sentara-se.
A sua era uma mente lógica, ordenada. Se o estavam seguindo, e se era o FBI, devia haver um motivo. Sentado à sombra do Plaza Hotel, que se erguia impressionantemente acima do lago, ele vasculhava a memória em busca de algo que pudesse ter feito na faculdade, alguma organização ou clube a que se houvesse filiado, alguma doação que tivesse feito, conferências a que houvesse assistido, que talvez dessem ao FBI um motivo para interessar-se por ele. Revira cada episódio de sua juventude, cada pequena área de seus anos de escola, examinara minuciosamente cada infeliz dia do ano que passara no Exército, e não conseguia encontrar nada. Estava limpo.
Disso tinha certeza.
O homem usava obviamente um disfarce. O bigode, as costeletas, a coisa toda era amadorística. Talvez não fosse um profissional, afinal. Talvez fosse apenas algum maluco. Deus sabia que a cidade estava cheia deles. A gente os encontrava nos ônibus, no metro, em plena luz do dia, descendo a Fifth Avenue, gritando, berrando, praguejando, nenhum tira em redor e ninguém com coragem para detê-los. Sim, a cidade estava infestada de psicóticos. E quem era esperto jamais chamava a atenção deles.
Bill lembrava do que acontecera a Mark Stern. Uma carreira promissora cortada devido a um maluco. Mark e sua mulher haviam estacionado o carro numa rua lateral perto do Lincoln Center. Eram sócios da Metropolitan Opera House e tinham cadeiras cativas no Círculo dos Fundadores. Após a ópera, tinham ido para onde o carro estava estacionado e encontraram o maluco urinando no pára-choque. Mark ficara zangado e empurrara-o para longe do carro, mas o homem começara a urinar nele e em sua mulher.
Mark dera-lhe um soco diante de testemunhas e o derrubara.
O homem sofrera uma pequena concussão, mas deixara o hospital em duas semanas. Contratara um advogado e apresentara uma queixa por agressão e espancamento contra Mark. O julgamento fora por júri. Mark fora considerado culpado.
Passara dezesseis meses na cadeia, perdera seu emprego, uma vice-presidência em Gelding Hannary, e a última coisa que Bill soubera era que a mulher estava se divorciando dele.
Bill não podia imaginar por que estava sorrindo. O que ocorrera a Mark era trágico, e no entanto ele não podia deixar de se perguntar quem ficara com as cadeiras cativas no Metropolitan.
Suspirara e levantara-se do banco. Costeletas devia ser outro louco.
No dia seguinte, fora obrigado a rever essa opinião.
Ele e Don haviam passado a manhã tentando conquistar um cliente de outra agência — um cliente a quem eles representavam antes, mas que tinha sido roubado da Simmons havia alguns anos. Don sentira-se encorajado pela recepção que haviam tido, mas Bill, um pouco mais velho e escolado nos caminhos do mundo, entendera diferente.
— Eles nos deixaram sair — Bill explicara a Don, no táxi, de volta ao escritório.
— Bem, queriam pensar — protestara Don. — Que há de errado nisso?
— Se precisam pensar, nós os perdemos — dissera Bill. com um tom terminante.
Ele gostava de Don; era brilhante, agressivo, leal e ávido por aprender. Tomara-o como assistente assim que ele deixara Princeton, três anos antes. E nunca lamentara essa decisão.
Ao se aproximar de sua mesa, a primeira coisa que Bill vira fora um envelope de comunicação interna. Olhara ligeiramente os recados telefônicos antes de abri-lo.
O envelope continha uma foto esmaltada dele próprio — um retrato datado que ele tirara no ano passado em Bachrach's.
Acompanhava seu currículo, que era mantido numa pasta no Departamento de Pessoal. Uma nota manuscrita de Ted Nathan, diretor de pessoal da Simmons, vinha junto: "Esqueci de incluir isso em seu currículo. Desculpe. Ted".
Bill balançara a cabeça confusamente e pusera o envelope de lado.
Cuidara de várias das chamadas mais importantes em sua folha de recados, antes de discar o número interno de Ted.
— Pra que o boneco, Ted? — perguntara quando Ted atendera.
— Que quer dizer? — dissera Ted. — Sempre os enviamos com os currículos.
— Que currículo?
O que você pediu.
Espere aí, velho. Vamos começar do começo. Você diz que eu pedi um currículo meu?
— Sim, exato. — A voz de Ted Nathan apresentava um ligeiro nervosismo quando dissera estas palavras, com muito cuidado.
— Muito bem, Ted — dissera Bill delicadamente. Quando eu pedi isso?
— Esta manhã. Pouco depois das nove. Eu acabava de chegar quando você chamou. Você queria em dobro, para a sua apresentação. Não se lembra, Bill?
— Claro, Ted, claro. Escapou de minha mente por um segundo. Obrigado, companheiro. — E depois: — Oh, a propósito, você não o trouxe pessoalmente, trouxe?
— Claro que levei. Não há mais ninguém aqui a essa hora.
— Certo de que não fizera nada errado, o tom de Ted Nathan tornara-se visivelmente compenetrado: — Coloquei na mesa de sua secretária, como você mandou.
— Sim, exato — disse Bill jovialmente. — Obrigado, Ted.
Bill desligara o telefone. Sentara-se em sua reclinadora tubular Eames e fixara os olhos na grande gravura de Motherwell que dominava a parede em frente. Seus olhos afundaram-se nas apaziguantes justaposições marrons e negras, atraídos para dentro do fascínio hipnótico da visão do artista.
Sentado em silêncio, imóvel, Bill Templeton tinha coisas concretas em que pensar.
Alguém queria saber tudo a seu respeito. Era claro. Alguém que conhecia os macetes. Que sabia que sua secretária só chegava no escritório às nove e meia. Que sabia que Ted Nathan sempre chegava pouco antes das nove. Que sabia que naquela exata manhã ele iria diretamente ao encontro e não viria ao escritório. Que sabia como imitar sua voz suficientemente bem para enganar um homem que ele conhecia há mais de nove anos. Alguém com o treinamento e os recursos para planejar uma invasão e efetuar sua missão sem ser apanhado. Uma pessoa de talento e dedicação — e audácia.
Uma semana depois Costeletas surgira na escola.
Fora na primeira segunda-feira de outubro. Havia uma ameaça bem concreta de neve no ar. Bill, como sempre, estava levando Ivy para a escola, a caminho do trabalho.
Suas mãos enluvadas apertavam-se, eles corriam um quarteirão e depois, chegando a uma esquina, giravam de repente, para receberem nas costas o frígido impacto dos ventos que cruzavam a cidade, açoitando as estreitas ruas laterais. Era uma brincadeira que faziam e gostavam de fazer juntos, todo ano, naquela época.
Quando haviam chegado finalmente ao prédio da escola, ambos estavam sem fôlego e sorriam de absoluto prazer um para o outro. Bill tinha os olhos cheios d‘água, devido ao frio, e mal pudera ver quando Ivy se erguera nas pontas dos pés, beijara-lhe o rosto, depois voltara-se, subira os degraus e passara pelas grandes portas. Quando ele se voltara para partir, quase se chocara com um grupo de mães paradas ao pé da escada, dando adeus a seus filhos.
Resmungando uma desculpa, começara a passar por elas quando, de repente, parara. Costeletas estava parado diretamente em seu caminho, olhando-o. A expressão nos olhos do homem apoderara-se firmemente de Bill e parecia forçar um confronto.
— Meu nome é Bill Templeton — dissera Bill, e dera um passo em frente. — Creio que você deseja me conhecer.
O homem permanecera petrificado, olhando gravemente para Bill durante um longo momento, antes de dizer em voz baixa: — Não sei. Não tenho certeza. Eu o informarei breve. E, sem outra palavra, voltara-se abruptamente e descera apressado o bulevar em direção a Columbus Circle, açoitado pelo vento.
Bill ficara apenas olhando-o afastar-se, pasmado, repetindo as palavras vezes sem conta em seu cérebro confuso.
"Não sei. Não tenho certeza. Eu o informarei breve."
Uma semana passara.
Toda manhã, Costeletas comparecia fielmente ao seu encontro, diante da escola. Bill via-o parado em seu local costumeiro, perto dos degraus, observando-os aproximarem-se a distância. Olhava-os beijarem-se, despedindo-se, e depois voltava-se e descia apressado em direção a Columbus Circle no momento em que Ivy entrava no prédio.
Quando, depois de duas semanas, Bill vira que o esquema não mudava, decidira ir à polícia.
O sargento de serviço era barrigudo, dispéptico e próximo da aposentadoria. Ouvira a história de Bill de um modo entediado, depois mandara-o subir até a seção de "Detetives", para falar com o Detetive Fallon.
Bill sentara-se diante de um homem jovem, de uma beleza rústica, à paisana, e repetira-lhe sua história. A sala era grande, pintada de um verde horrível, e cheia de uma curiosa mistura de mesas e cadeiras. A mesa à qual Bill e o Detetive Fallon estavam sentados mostrava-se profundamente marcada por anos de uso e estrago.
O Detetive Fallon ouvira atenciosamente mas sem surpresa ou emoção. Tomara algumas anotações, dera um rápido olhar a Bill quando ele mencionara o disfarce do homem, mas deixara-o acabar para perguntar: — Essa pessoa o maltratou de algum modo?
— Maltratar-me?
— Ele entrou em contato físico violento com o senhor?
Empurrou-o? Golpeou-o?
— Não. Nada disso.
O rosto de Fallon amaciara-se um pouco.
— A menos que haja provas de espancamento, há pouca coisa que a polícia possa fazer num caso desses.
— Não basta que ele esteja me seguindo, me espionando?
— Que provas tem o senhor de que ele o está espionando?
— Eu lhe disse, ele entrou em meu escritório. Conseguiu meu currículo fazendo-se passar por mim.
— A voz de Bill elevara-se, de indignação. — Isso não é prova suficiente?
— Como pode o senhor provar que ele fez isso? Quer dizer, o senhor tem prova concreta de que foi ele a pessoa que entrou em seu escritório e fez isso?
— Bem, não, mas... — A energia na voz de Bill fora aos poucos desaparecendo.
Fallon observara-o por um momento, quase lamentando.
— Oficialmente, não há nada que eu possa fazer pelo senhor, Sr. Templeton, mas me diga de novo: a que horas costuma levar sua filha à escola?
— O sino da escola toca às oito e meia.
— OK. Eu estou no horário de nove às cinco esta semana.
vou passar por lá na vinda amanhã e darei uma olhada nesse cara. — E com um sorrisozinho comprimido, acrescentou: Não-oficialmente, é claro.
Na manhã seguinte. Costeletas não aparecera.
Depois de Ivy ter entrado no prédio, Bill fora até o Detetive Fallon, que rondava por trás de uma caixa do correio, tentando fazer-se inconspícuo. Quando Bill lhe dissera que o homem não aparecera, ele dera um sorriso, encolhera os ombros e dissera que tentaria de novo. Na manhã seguinte, a mesma coisa acontecera: Fallon viera, Costeletas não. Na terceira manhã, Costeletas esperara por eles no local de costume, mas Fallon tinha desistido.
As folhas estalavam prazerosamente sob os pés de Bill, quando ele se aproximou da saída de pedestres na 59th Street com a Fifth Avenue. Longas filas de carruagens puxadas a cavalos achavam-se estacionadas defronte do Plaza Hotel, esperando que os turistas acabassem seus cafés da manhã e iniciassem o dia.
Bill esperou num pequeno grupo até o sinal mudar. De certa forma, estava contente por Ivy não ter ido à escola hoje. Ele teria uma folga de três dias antes de enfrentar a manhã de segunda-feira.
Pensou no fim de semana à frente. Seria divertido ficar em casa todo o fim de semana. Podia comprar a pouca comida necessária. Talvez convidassem os Federico para jantar e jogar bridge sábado à noite.
Ao atravessar a 57th Street e dobrar para o leste, em direção à Madison Avenue, sentiu que seu passo estava leve, quase saltitante. Sentia-se quase bem, para variar.
"Que será, será", pensou. A próxima jogada cabe a Costeletas. Que se foda!
Embora estivesse submetido a uma tremenda pressão nas últimas semanas, orgulhava-se de jamais ter levado suas preocupações a Janice. Ela fora poupada de qualquer conhecimento de seu pequeno pas de deux com o homem disfarçado.
Ele mantivera a fortaleza da família inviolada — segura.
3
A palavra era M-A-T-E-R-I-A-L.
Ivy deu uma risadinha excitada e empurrou o I para a casa em frente do L. Janice considerou a jogada profundamente, depois acrescentou um Z à frente do I. Ivy rapidamente completou a palavra com um A e um R.
— Está aí. — Riu triunfantemente.
Eram apenas dez e dez. A manhã parecia interminável.
Ivy acabara de pôr um X embaixo do E, iniciando uma nova palavra na vertical, quando o telefone tocou. Janice pôs um C embaixo do X, ergueu-se do chão com um resmungo divertido e atravessou rapidamente a sala comprida e elegante para atendê-lo. Provavelmente era Bill; sempre chamava ao chegar ao escritório.
Janice pegou o telefone no quarto trinado.
— Alo — disse. Não houve resposta.
— Alo — ela disse de novo, num tom mais baixo, sentindo uma pontada de apreensão. E estava para desligar quando a voz finalmente veio. De homem. Baixa. Hesitante.
— Ela está bem? — perguntou. Janice desligou abruptamente.
Ficou ali, de olhos fechados, fortalecendo-se contra a onda de extremo pânico na iminência de se apoderar dela. Era o homem. Sabia que era ele. Não podia ser mais ninguém.
Descobrira o número do telefone deles, que não estava na lista.
De algum modo. Ela sentia que estava tremendo. "Controle-se!
Controle-se! Não deve deixar Ivy vê-la assim!"
Com um leve sorriso estático fixo no rosto, Janice sentou-se graciosamente no chão para reiniciar o jogo.
Ivy empurrou um E sob o C.
— Quem era? — perguntou de repente.
— O Serviço Secreto — respondeu Janice com um riso ligeiro, controlado.
Ivy deu uma risadinha, sabendo muito bem ao que sua mãe se referia. Chamados telefônicos sem voz do outro lado da linha eram uma ocorrência frequente na vida da maioria dos moradores da cidade. Quer fossem simples enganos, traquinagens de crianças ou um passatempo de pessoas seriamente perturbadas, não havia como explicá-los, e muito menos acabar com eles. As pessoas aprendiam a viver com a chateação; vinha com o território. A expressão "Serviço Secreto" tornara-se a forma eufemística de elas sorrirem desses telefonemas não-identificados.
Quando Janice movimentou um L para baixo do E, o telefone tocou de novo. Janice observou Ivy deslizar outro E para baixo de seu L. O telefone continuou a tocar.
A palavra na prancha chegara a E-X-C-E-L-E-N quando Ivy perguntou tranquilamente: — Não vai atender?
— Não — respondeu Janice, com uma nota de animação forçada na voz. — Prefiro este jogo àquele lá.
Ivy pôs um C, Janice um I e Ivy um A, com um riso de alegria, formando E-X-C-E-L-Ê-N-C-I-A. O telefone continuava a tocar.
— Acho que a gente deve atender, mamãe — disse Ivy preocupada. — Pode ser papai.
O mesmo pensamento já ocorrera a Janice. Ela podia ver Bill sentado à sua mesa, ouvindo preocupadamente o telefone tocar e tocar, imaginando por que ninguém respondia.
Janice levantou-se rapidamente e dirigiu-se ao telefone, quando ele parou de tocar.
— Oh — disse Ivy decepcionadamente. — Perdemos.
— Se era papai, ele chamará de novo. Janice estendeu a mão e sentiu a testa de Ivy.
— Que tal um leitinho e uns bolinhos?
— Legal.
O telefone recomeçou a tocar, e Janice largou a garrafa de leite, que estava pela metade, derramando o leite em si mesma e no chão da cozinha. Mas desta vez os trinados vinham em sons curtos, staccato, dizendo a Janice que o telefone da casa, localizado no corredor, perto da porta, a chamava. Se fosse o homem, ela recusaria o chamado, pois todos os telefonemas recebidos eram anunciados pelo homem da mesa no saguão, Dominick. Contudo, deixou-o tocar quatro vezes antes de atender.
Senhorra Templeton — o sotaque rude e familiar de Dominick era agradavelmente tranquilizador. — É seu marrido.
— Obrigada, Dominick.
— Ei, que é que há? — foram as primeiras palavras de Bill — Chamei você duas vezes. Na primeira a linha estava ocupada. Na segunda não houve resposta.
— Não sei — ela mentiu. — Não ouvi tocar. Talvez você tenha discado o número errado.
Bill emitiu um som baixo, pensativo. Depois perguntou: — Como está minha Princesinha?
— Bem. Não está com febre. Provavelmente é só uma daquelas coisas de um dia só.
— Bem, mantenha-a dentro de casa de qualquer jeito. Quer dizer, não saia, o tempo estava realmente gelado esta manhã.
— Eu nem pensaria nisso — disse Janice com um leve floreio dramático.
— Talvez eu volte cedo.
— Ótimo. Chame-me mais tarde e me informe — disse Janice, tentando encerrar a conversa.
— Que tal chamar Carole e ver se eles estão livres amanhã à noite para o jantar?
— Muito bem.
Uma pausa. Depois: — Há alguma coisa aí?
— Não. — Por que ele não desligava?
O telefone na sala de visitas tocou de novo. Seu som distante, estridente, fez com que todos os nervos de Janice berrassem em protesto.
— Preciso desligar, Bill. O outro telefone está tocando.
— Atenda, eu espero — ele disse.
Janice depôs o telefone, bruscamente demais, e atravessou depressa o corredor até a sala de visitas.
Quando chegou lá Ivy já atendera e estava cuidando do assunto.
— Bem, obrigada — disse com um sorrizinho. — Adeus.
— E devolveu delicadamente o telefone ao gancho.
O coração de Janice estava aos pulos quando ela deu alguns passos pela sala de visitas. Sua voz soou surpreendentemente desinteressada quando ela perguntou a Ivy quem chamara.
— Um homem — respondeu Ivy. — Queria saber se eu estava bem.
— Ele disse como se chamava?
— Não.
— É muito provável que tenha sido ligação errada.
— Hum-hum, Ele me chamou de Ivy.
Janice estava espantada com seu próprio controle quando comentou despreocupadamente: — Talvez algum professor da escola. Eles se preocupam com as crianças, você sabe.
— Ora, aposto que foi Mr. Soames. — Ivy caiu na risada.
— Ele está sempre perguntando às garotas como vão.
Perguntou a Bettina outro dia, e ela nem estava doente.
Janice lembrou-se de repente de Bill esperando na outra linha.
— Por que não vai lá para cima e se deita, querida? Seu pai está esperando no outro telefone.
— E meu leite com bolos?
— Eu os levo pra você lá em cima. Vá, corra.
Ivy encaminhou-se para a escada com certa relutância.
— Quem era? — perguntou Bill.
— Um dos professores querendo saber como Ivy estava se sentindo — respondeu Janice, sem nem parar para pensar.
— Mesmo? Qual?
— Mr. Soames.
Mais tarde, enquanto Ivy dormia e Janice teve um momento para reunir seus pensamentos e rever calmamente cada passo da incómoda situação, perguntou-se por que não dissera simplesmente a verdade a Bill. Não podia pensar em nenhuma resposta, a não ser um desejo vago, idiota, de preservar a paz e a tranquilidade de seu próximo fim de semana. Sim, era isso — estava procurando proteger o fim de semana deles, permitirlhes uma vez mais, talvez a última, saborear os adoráveis movimentos de unidade antes do machado cair, como ela sabia que inevitavelmente aconteceria.
Estava comprando tempo.
O táxi deixou Bill no lado do parque da 62nd Street, defronte ao Gristede‘s Market. Após uma examinada rápida e instintiva do terreno, ele atravessou correndo o largo bulevar e entrou no supermercado.
Percorreu as estreitas alas enchendo o carrinho de alumínio com latas, caixas, pacotes e feijão, sopas, toucinho defumado, cachorros-quentes, leite, vários tipos de pães, amendoim, batatas fritas, bolos embalados, sorvete — uma verdadeira despensa de provisões.
No balcão de verduras, escolheu três molhos de alface e seis tomates de estufa de um vermelho brilhante, que ele ficou chocado ao descobrir que custavam dois dólares e dez o quilo.
Contornando a ala para chegar ao balcão de carnes, Bill julgou ver de relance a imagem de um homem desaparecendo no extremo oposto com muita pressa. Despertada a suspeita, empurrou o carrinho o mais rápido que pôde por aquela ala e, arquejando pesadamente, dobrou a curva certo de ver Costeletas fugindo em direção à saída. Mas viu apenas duas velhas olhando-o com discreto temor. Bill sorriu para elas meio envergonhado e rapidamente dirigiu o carrinho para o balcão de carnes, onde pediu três bifes, três quilos de rosbife e uma dúzia de costeletas bem finas.
No caixa, preparou um cheque de oitenta e um dólares e cinquenta e cinco centavos, enquanto o rapaz enfiava suas compras em três grandes sacolas de papel. Ele pretendera caminhar os quatro quarteirões até sua casa, mas as sacolas eram volumosas demais para isso. Sugeriu que lhe emprestassem o carrinho, que devolveria depois, mas a proposta foi delicadamente recusada. Teria de encontrar um táxi de qualquer forma.
Deixando as compras atrás, no armazém, o que lhe permitiram fazer, Bill correu até o Mayflower Hotel, pouca distância rua acima. Esperou dez minutos até que um táxi chegou para deixar um passageiro.
Quando Bill entrou no elevador do suntuoso e velho prédio, juntamente com Mário, o porteiro, que trazia duas das sacolas mais pesadas, eram quatro e quinze.
Começara o fim de semana.
4
A partir do momento em que Bill entrou no apartamento, a atmosfera apareceu carregada de uma espécie de eletricidade oculta. Cada qual tinha uma consciência excessiva do outro, cada movimento, olhar e gesto intensificavam-se e cresciam além do seu valor. O riso de Janice era cheio demais, forçado; o humor de Bill, sua demonstração de ardor, exagerados. Cada um sentia a nota falsa no outro, mas não se dispunha a denunciá-la.
Haviam decidido que nada estragaria o seu fim de semana.
Bill correu escada acima para dizer alo a Ivy, enquanto Janice desembrulhava a comida.
Ivy passara a tarde compondo um poema para Bill. Os dois sentaram-se na cama enquanto ela o recitava, espremendo cada gota de atmosfera de cada palavra entesourada: "Meu pai é forte, meu pai é bravo Nunca faz nada de errado.
Sua voz é firme, seu riso melodia.
Eu penso nele todo o dia.
Oh, que felicidade para mim Ser parte de um homem assim".
Os olhos de Bill estavam úmidos quando ele se inclinou e beijou o rosto orgulhoso e sorridente da filha.
— Sensacional, Princesa — sua voz estava rouca de emoção. — vou tentar corresponder a ele.
Enquanto vestia seu smoking de veludo vermelho — o presente de Natal de Janice no ano passado — ocorreu-lhe que devia ter trazido alguma coisa para Ivy: um presentinho ou flores. Ficou aborrecido consigo mesmo por ser tão desconsiderado. Compensaria isso amanhã. De qualquer jeito.
Bill desceu o último degrau para a sala de visitas e encaminhava-se para o carrinho de bebidas, onde sabia que havia gelo à espera, quando Janice apareceu de repente na porta da sala de jantar, com um sorriso maravilhoso.
— Oi, venha cá — sua voz era macia, sensual.
Ele foi até ela, e beijaram-se calidamente. Então, ele sentiu lágrimas no rosto da mulher.
— Que é que há, benzinho? — perguntou-lhe delicadamente.
— Eu curto você, é isso que há — respondeu Janice, o rosto radiante de amor.
Até aquele momento, Bill não percebera a caixa nas mãos dela. Era uma caixa de presente, lindamente embrulhada e com uma fita e um cartãozinho emergindo da dobra.
— De onde veio isso? — ele perguntou, intrigado.
O braço livre de Janice ainda pendia do ombro dele, e seu sorriso alargava-se à medida que ela sondava o rosto terno, paciente e misterioso do homem a quem amava.
— De onde você o pôs, querido — Janice sorriu, continuando a brincadeira. — Em cima das costeletas de porco.
Bill ia protestar quando ela o interrompeu.
— Por favor, Bill, assine o cartão. Ela vai ficar tão feliz.
O cartão tinha o delicado desenho de um conjunto de pequenas flores cercando a legenda, também desenhada: "Espero que esteja melhor".
— Que há aí dentro? — perguntou Janice, passando os dedos pela caixa.
— Que?
— O que você comprou para ela?
— É uma surpresa — disse Bill.
A ânsia de Ivy e Janice para desamarrarem a fita e descobrir o que havia dentro era igual à de Bill; nele, entretanto, a ansiedade era temperada pela dúvida, a preocupação e um medo profundo. Alguém pusera o presente em uma das sacolas de alimentos, quando ele deixara o supermercado para procurar um táxi. Disso tinha certeza. Quem fora esse alguém também era algo que não representava nenhum grande desafio a seus poderes de dedução. Tinha de ser Costeletas. Mas por quê?
— Oh, papai! — exclamou Ivy, retirando uma bolsa linda, pintada a mão, de um estojo de tecido. — Oh, papai, eu adoro você, adoro você!
Ela lançou os braços em torno do pescoço de Bill e apertou-o até que ele gritou, rindo: — Muito bem, muito bem, socorro, alguém me acuda.
— Mas realmente, papai, é legal.
Ivy beijou Bill novamente, e depois voltou-se para estudar seu presente.
Idêntica em estilo aos Fragonard encaixados em sua sala de visitas, a ilustração no cetim azul-pálido da bolsa apresentava uma adorável cortesã francesa sentada num balanço engrinaldado de flores e embalado por um impetuoso cisne. Era exuberante, exagerada e extremamente romântica. Ivy apertava-a contra o peito.
— Como você soube que eu sempre a quis, papai?
— Imaginei — disse Bill, o sorriso desaparecendo lentamente de seu rosto.
Agora era a cabeça de um demónio — focinho rombudo, chifres curtos, língua lasciva de serpente, um nauseante horror barroco zombando de Bill do complexo relevo da placa no teto, no centro do quarto de dormir. Pequena, circular, antiga, a placa servira outrora como base do centro de uma instalação de iluminação. Talvez um pequeno candelabro. Provavelmente a gás, pela idade do prédio, pensou Bill, deitado na cama, olhando os desenhos em constante mutação aparecerem, depois sumirem, depois alterarem-se em novas formas segundo os caprichos de sua imaginação. Obrigando os olhos a mudarem ligeiramente a profundidade de foco, ele fez o demónio dissolver-se em fragmentos informes, e com um pouco de concentração reconstituiu as linhas suaves, fluidas e graciosas da mulher correndo. Ela também era uma velha amiga, como o demónio, e o homem jogando cartas, e a proa do navio rasgando um mar tempestuoso. Todos velhos amigos, companheiros das noites em que ele não conseguia dormir.
Passava das três, segundo o mostrador luminoso do rádio-relógio. A respiração suave e rítmica de Janice, a seu lado, e o quase imperceptível zumbido de algo elétrico lá embaixo eram os únicos sons que se podiam ouvir àquela hora.
Pelo menos ela pode dormir, pensou Bill, sentindo o calor da perna dela na sua. O sono da inocência. Da confiança, fé e crença na perfeita ordem e certeza de suas vidas. Não falara a Janice sobre Costeletas porque não queria despedaçar essa crença. Enquanto ele se julgasse o alvo, o ponto focal do interesse de Costeletas, por que diabos arrastar Janice para aquilo, especialmente quando não tinha a mais vaga ideia do que se tratava?
Mas agora — com a vinda do presente — ele sabia que todo o seu otimismo, todas as suas conjeturas e racionalizações cuidadosamente organizadas teriam de ser drasticamente revisadas, uma vez que estava claro que não era ele o único alvo de Costeletas. O presente penetrara muito além na vida de Bill, chegando ao próprio centro das vidas de sua família. No coração mesmo de seu lar.
Costeletas sabia muita coisa sobre eles. Sabia da doença de Ivy. Sabia exatamente o que lhe agradaria. Sabia mais do que Bill, na verdade.
— Que diabos está acontecendo aqui, afinal? — ele disse alto.
Janice moveu-se no sono, virou-se e aconchegou-se a seu lado. Bill fechou os olhos e permaneceu inteiramente imóvel.
Que era? Ivy perguntara: "Como você soube que eu sempre a quis, papai?" A pergunta na mente de Bill agora era: "Como ele sabia?"
Ele foi caindo no sono aos poucos, com medo, parando à beira de uma selva densa, sendo relutantemente arrastado para dentro de sua nauseante fortaleza, suas mil gradações de cor, seu refúgio ameaçador de presa e garra. Grandes coqueiros erguiam-se para o céu, tapando o sol, cercados por cascatas de lianas estrangulando as árvores e trilhas. Era uma catedral sinistra, com o húmus de cem anos espalhado pelo chão, almiscarado de decomposição. Bill olhava em redor, não muito seguro sobre onde estava ou que direção tomar para sair dali.
Finalmente escolheu uma abertura entre duas grandes árvores e passou por ela cuidadosamente. Um passo, dois passos, três...
De repente, o chão fugiu debaixo de seu mundo, e ele começou a cair. E cair. E cair...
— Acabe seu desjejum antes que esfrie.
Ivy sorriu para Bill e acenou com a cabeça, alegre por satisfazê-lo de toda forma que pudesse nessa manhã.
Estavam sentados um defronte do outro, dos lados da mesa de jantar lustrosa, de poliuretano. O último a adormecer, Bill fora o primeiro a despertar, e agora estava de olhos vermelhos, metido num roupão, bebendo café, fumando cigarros e observando a filha sugar colheradas de uma substância cinzenta que julgava fosse papa de aveia, embora não tivesse certeza.
Ivy acordara transbordante de saúde e explodindo de energia. Sua primeira pergunta, exuberante, fora sobre que planos havia para o fim de semana. Bill ficara agradecido por Janice ter respondido, explicando a Ivy que ela teria de ficar em casa devido à sua recente doença.
— Mas eu me sinto ótima agora, mamãe — a garota protestara.
— Eu sei — dissera Janice. — Mas não force sua sorte após uma doença. O certo é ficar em casa pelo menos dois dias após o fim da febre.
— Bacana — disse Ivy com um beicinho. — É o tempo exato de voltar para a escola.
Bill olhava Ivy inclinar o prato para tirar a última colherada.
A bolsa de cetim pintada a mão estava ao lado de seu prato, onde ela podia olhá-la e contemplar sua beleza com amor entre uma colherada e outra. Obviamente, não podia perdê-la de vista.
— É realmente o que você sempre quis? — perguntou Bill, lançando-se numa pequena investigação.
— Oh, sim — disse Ivy, com um sorriso sincero.
— Ou você está dizendo isso apenas para me agradar?
— Oh, não, papai. Eu sempre a quis, verdade.
Bill calou-se, formulando mentalmente sua próxima pergunta com cuidado.
— Para querê-la tanto, você deve tê-la visto em algum lugar.
Ivy olhou-o ironicamente, mas não respondeu.
— Você a viu numa loja em algum lugar?
— Não — ela disse. — Nunca a vi numa loja.
Era visível que ela estava intrigada por aquela linha de interrogatório e buscava uma pista para as respostas que Bill esperava dela.
— Bem, se você nunca a viu antes, como sabia que era realmente o que queria? — perguntou Bill, erguendo a voz.
— Não sei, papai. Eu simplesmente sabia.
— Mas querer tanto alguma coisa só pode significar que a gente conhece o que quer. O que quer dizer que a gente o viu em algum lugar. — A voz de Bill tornara-se estridente.
Confusa, Ivy olhava-o nervosamente.
— Então? — gritou Bill.
— Deixe-a em paz, Bill — disse Janice em voz baixa. Bill ergueu o olhar e viu a mulher parada na porta da cozinha. Ele não sabia por quanto tempo ela estivera ali, mas fora o suficiente, era claro, para ter apreendido a essência do interrogatório.
— Eu não a vi em lugar nenhum, papai! — gritou Ivy, as lágrimas brotando dos olhos. — Acho que simplesmente a queria porque... porque... — Pegou a bolsa, correu os dedos pela pintura com uma delicada carícia — porque é exatamente como uma parte de nossas vidas. É como nós, neste apartamento... com as pinturas no teto... É perfeita, eu a adoro... e quando a vi pela primeira vez, ontem, eu soube imediatamente que a adorava... sabe? É como a gente ver uma coisa, e ver que é tão perfeita que a gente sabe que sempre a quis, mesmo sem nunca tê-la visto antes...
Tendo notado o longo e silencioso diálogo entre seu pai e sua mãe, Ivy compreendera que, de algum modo, era ela a causa do que estava acontecendo, e que mesmo não compreendendo o que era, havia erros a consertar, e esperava-se que ela o fizesse.
— Eu a adorava sem saber. Como você soube que eu adoraria quando a comprou para mim. — Abriu a bolsa e retirou um gracioso lencinho. Enxugando as lágrimas, olhava Bill com olhos que imploravam compreensão e ofereciam amor. Sinto muito, papai, se deixei você zangado.
Bill derrubou o açucareiro, em sua ânsia de estender o braço sobre a mesa para tomar a mão dela na sua e assegurar à filha angustiada que não estava zangado de modo algum, que apenas tinha uma mente superanalítica, que gostava de cavar e refocilar nos porquês e portantos das coisas.
Após as desculpas humildemente pedidas, mais beijos, abraços e uma centena de pequenas carícias, Bill escusou-se e subiu para tomar um banho de chuveiro, barbear-se e vestirse, deixando a filha inteiramente refeita a estudar o programa matinal no Guia de TV, e Janice inteiramente apavorada a limpar o açúcar espalhado e retirar os pratos do café da manhã.
Janice estava em sua cadeira de balanço, imóvel. Tinha o olhar fixo, intensamente vazio, de uma pessoa presa no sortilégio de uma bruxa. Seus olhos, que não piscavam, aparentemente focalizados num grão de poeira na metade da sala, estavam na verdade voltados para dentro, para as agitadas profundezas de seu cérebro estonteado.
Bill não comprara o presente.
Este simples e desconcertante pensamento era o único motivo de toda a sua concentração.
Os sons vindos de cima, de riso abafado e conversa infantil entre Ivy e Bettina Carew, não conseguiam penetrar o duro escudo de intimidade que ela erguera à sua volta. Nem mesmo a advertência delicadamente severa de Bill às crianças, para que "se aquietassem um pouco", pois ele queria dormir algumas horas antes do jantar, pôde penetrar no vácuo de sua reclusão.
Bill não comprara o presente.
Ela podia ter sabido imediatamente, se quisesse saber. O ar estivera zumbindo com sinais e insinuações — mil pequenas pistas. A expressão curiosa, intrigada, dele quando lhe mostrara o presente. Sua ansiedade por ver o que era quando Ivy desfazia o embrulho. Seu comportamento estranho, mal-humorado, no jantar, quase sem tocar no bife. E fingindo dormir quando ela se enfiara na cama a seu lado. Ele não estava a fim dela, obviamente. Tinha a mente inteiramente tomada por outros problemas. O que o mantivera acordado até quase de manhã. E depois, a estrambótica inquisição no café da manhã, aquelas perguntas paranóides, amedrontando cruelmente Ivy.
O que ela considerara como um comportamento anormal, inteiramente estranho à natureza de Bill, era na verdade completamente normal, quando posto em seu próprio contexto.
Ele refletia apenas as preocupações de um pai sadio e razoável, buscando a origem de um presente sem remetente que sua filha recebera, intrigado sobre quem seria o presenteador e como o embrulho aparecera em sua sacola de compras.
Janíce odiava-se agora por não ter falado a Bill sobre o homem. Podia ter-lhe poupado toda aquela angústia. Porque, tão certa como estava de que Bill não comprara o presente de Bill, sabia quem o fizera.
Devia falar do homem a Bill.
Agora. Assim que ele acordasse. Antes que os Federico chegassem.
Russ Federico fazia as honras no carrinho de bebidas, medindo as porções exatas de gim e vermute numa proporção de doze por um, enquanto Bill ainda dormia lá em cima.
Janice, disfarçando seu estado de espírito numa blusa camponesa alegre e festiva, de mangas bufantes, e uma saia de noite com flores aplicadas, estava na cozinha. Acabou de untar com manteiga o grande rosbife e desembrulhou cuidadosamente o papel estanhado dos pedaços de frango congelados de Ivy, para deixá-los bem sequinhos. Ivy preferia jantar em seu quarto sempre que os Federico vinham, e Janice não se importava com isso. Conversas so-bre ópera entediavam quase tanto a garota como a própria música.
Bill acordou para receber um martíni seco, gelado, amoro-samente posto em suas mãos por Janice.
— Um Federico especial — ela disse, beijando a ponta de seu nariz.
Ele bocejou profundamente e tomou um gole da bebida.
— Desço já.
— Não se preocupe em vestirse todo — aconselhou Janice ao deixar o quarto. — Ele está à vontade.
Ela falaria do homem a Bill depois que os Federico fossem embora.
O jantar seguiu seu curso habitual. Como os discos de Russ, a conversa não tinha surpresas, e trilhava os mesmos terrenos cansativos da ópera, bridge, o encanto do antigo Metropolitan e seu substituto sem graça.
Após o jantar, decidiram deixar o bridge por Il barbiere di Siviglia, de Rossini, numa recente gravação da RCA apresentando Robert Merrill como o Fígaro, numa excelente voz.
Janice sentiu que a noitada acabaria cedo e estava satisfeita com isso. Russ e Carole saíram pouco depois das dez.
Geralmente, Bill ajudava Janice a recolher os pratos, enquanto ela os arrumava na lavadora, mas hoje ele se desculpou. Teria sido uma boa oportunidade de falarem. Depois que ela acabou de arrumar os pratos, foi dar uma olhada em Ivy e entrou no quarto, ele já estava dormindo. Ou fingia estar.
Janice sentou-se na beira da cama ao seu lado e tocou de leve o seu rosto.
— Bill — murmurou —, eu preciso falar com você, é importante.
Os olhos dele continuaram fechados.
— Querido — ela disse um pouco mais alto.
O ritmo da respiração de Bill continuou igual, sem interrupção.
Estava realmente dormindo.
O rosto de Janice estava corado e suado.
Olhos abertos, lábios separados.
A silhueta escura da cabeça e dos ombros de Bill movimentava-se ritmicamente em cima dela. Brincando de tapa-olho com a pintura no teto. Nus exuberantes, estonteantes e plenos brincando alegremente no faiscante riacho do bosque.
Seios fartos. Mamilos róseos. Lábios úmidos, sensuais, formando um O em êxtase. Aparecendo e desaparecendo em movimento staccato. Adquirindo rapidez à aproximação da crise.
Janice sentiu que ia gozar. Desviou rapidamente seus pensamentos para coisas neutras. Bridge. Rigoletto. Era cedo demais. Cedo demais. Não deviam deixar acabar. Bill gemeu baixinho e diminuiu as investidas. Também estava se contendo.
Boa, Bill. Pense, Bill, pense! Considere. A essência aqui não é a satisfação sexual. Há uma dimensão superior e acima disso. É catarse. Um ato de desesperada necessidade. O antídoto do medo. Sim, do medo. Pense no medo, Janice. Pense no homem.
O homem...
Ela não dissera a Bill. Não houvera oportunidade. Ele descera tarde. Ivy o perseguira com sua matemática. A manhã toda. Não houvera oportunidade.
Uma pausa. Uma mudança de posição. O travesseiro arranha as nádegas. Travesseiro de agulhas. Travesseiro cabeça-de-tigre.
Trabalho artístico seu. Vinte e seis dólares o conjunto todo, inclusive o pano de vela com silk-screen, fios coloridos e as instruções. Uma declaração de puro fato. Não houvera tempo de melhorar as coisas. Bill tomara-a no chão de repente, sob a pintura, no momento em que Ivy saíra para brincar com Bettina.
Era essencial que saciassem sua fome imediatamente. Ambos sabiam disso. Como os pássaros sabem. Não havia tempo. Não havia tempo. Bill de roupão, ela de camisola. Sem preâmbulos.
Sem toques. Logo dentro! Uma operação de emergência. Por decreto real. Uma exibição de comando. A vontade de Deus!
Ele ia gozar. Diabo, diabo! Seus gemidos aumentavam com cada investida penetrante. Sim, ia gozar. Logo acabaria. O fim da sanidade. O fim.
O telefone tocou.
Salva! Parariam. Ele responderia. Mas não. Tarde demais.
Onde ele estava, não dava para voltar mais. Arquejando, sibilando, estugando, arremetendo... Tarde demais para Bill.
Tarde demais para Janice. Tarde demais.
O telefone tocava.
Os dedos dela agarraram a pele dele. Sua língua procurou a dele. Suas respirações explodiram na boca um do outro.
O telefone tocava.
Agudo, penetrante, estridente, desafinado, áspero, envolvente, confundindo-se com os sons de seu amor, grudando-se a eles no salto rápido e arrebatador dos dois no espaço celestial, fazendo-lhes companhia a cada palpitante momento de sua macia queda de volta à terra. Uma cavatina decrescendo com sinos...
O telefone parou de tocar.
Os sons de suas respirações dominaram novamente a sala.
Eles apegavam-se um ao outro, no chão, sem querer ceder um centímetro ao inimigo. Bill brincava com o corpo dela. Ela correspondia fazendo o mesmo. Cada um lutava para reestimular o outro. Epílogo. Recomendado por Allen Martin.
Mas de algum modo as extremidades nervosas não cooperavam.
Eles se beijaram sem ardor e se separaram. Bill pôs o roupão, Janice subiu para o chuveiro.
Ele estava parado no extremo oposto da sala, junto à ampla ramagem de outono. Tinha o telefone no ouvido, mas não falava. Um raio de sol acentuava a expressão chocada de seu rosto.
— Que é? — murmurou Janice, numa voz abafada e trêmula, ao descer o último degrau para a sala de visitas e parar assustada.
— Ninguém responde na casa de Bettina — ele disse a frase quase alheiamente, como simples constatação de um fato.
— Quê? — Janice não apreendeu bem o sentido do que ele dizia.
— Pensei que podia ser Ivy quem chamou naquela hora. Mas ninguém responde.
— Isso é impossível. Eles têm de estar lá. — Janice sentiu o couro cabeludo encolher, um prelúdio para o pânico.
— Doze chamadas, nenhuma resposta.
— Disque de novo.
— Já disquei. Pegue seu casaco.
Bill desligou o telefone e pôs-se em ação, enquanto Janice permanecia pregada, olhando estonteadamente o marido, metido numa calça Levi‘s e numa camisa preta de gola rulê, enfiar os tênis nos pés. Ela não podia se mover nem pensar.
Bill olhou-a e ordenou rispidamente: — Mova-se, Janice.
As palavras pareceram funcionar. De algum modo, ela se encontrou fazendo coisas sensatas, apesar de o coração latejar e de uma extrema sensação de fraqueza nas pernas. Ficou mesmo surpresa ao ver a bolsa em suas mãos, quando os dois desceram o corredor pouco iluminado até os elevadores.
Mrs. Carew, uma viúva triste e aposentada, resistira a todas as ofertas de amizade, preferindo uma vida de tranquilo isolamento para si e sua filha. Parada no corredor, envolvida pelo som do elevador que subia lentamente, Janice lembrou-se da imagem do rosto doce e gentil da mulher. Agora havia uma distinta malevolência por trás daquele sorriso paciente e bondoso.
— Você levou Ivy para baixo, Dominick? — perguntou Bill, enquanto a porta ainda estava em movimento.
— Sim, senhorr — respondeu Dominick em seu inglês trôpego. — Meia hora atrás. Ela saiu com Mrs. Carew e a filha.
Bill agarrou o braço de Janice e enfiou-a no elevador.
Um sol vivo e quente havia afastado o frio de outono do ar, dando um dia claro e primaveril à cidade. Deixando o prédio, eles correram para o Central Park West, tendo acertado um curso de ação preciso enquanto desciam o elevador. Calcularam que Mrs. Carew teria levado as crianças para o parque ou talvez para o supermercado na Amsterdam Avenue, o único das vizinhanças aberto aos domingos. Como o dia estava tão bonito e o parque era mais perto, decidiram ir lá primeiro.
Enquanto esperava o sinal mudar, Bill sentiu uma vibração vaga e nervosa vinda do braço de Janice, que ele segurava de leve. Ela tremia. Discretamente, ele olhou o rosto dela, de modo casual. Os olhos de Janice eram brasas de intensidade; uma leve camada de suor acentuava a palidez de sua pele. Ela estava realmente aterrorizada. Por quê? ele se perguntou.
Atravessando para o parque, quase subiram correndo a trilha de terra batida que levava ao playground. As desajeitadas formas surrealistas dos brinquedos que haviam substituído, num assomo de generosidade da companhia Estée Lauder, os balanços, gangorras e barras, estavam literalmente pingando de crianças, de todas as idades e raças, que tentavam esportivamente extrair um mínimo de diversão das formas curiosas e loucas.
Janice e Bill separaram-se no portão, tomando direções diferentes a fim de aumentarem sua eficiência. Ela cobriu o perímetro leste do playground, e Bill o lado oeste. Eles se reuniriam em algum ponto no extremo norte, a menos que um encontrasse o objetivo, caso em que ele ou ela o comunicaria ao outro gritando.
Janice passou por entre um labirinto de monólitos apinhados de crianças, os olhos atentos à sua volta, focalizando-se e refocalizando-se em galáxias de rostos que gritavam, riam, em pé, de lado, de cabeça para baixo, buscando, sondando aquele mundo de pesadelo à procura de um sinal, uma pista importante: botas cor de baunilha, jeans desbotados, cabelos louros. Caminhando, tropeçando, passando de lado, Janice sentia-se afogar ao penetrar minúsculos grupos alucinados na margem oeste de Jabberwocky, a histeria aumentando, avolumando-se, transbordando, até que gritar se tornou o único antídoto possível.
— Janice!
— Quê?
— Janice! Aqui!
Era a voz de Bill, linda, possante, forte, varando o louco muro cacófono, evidenciando êxito, vindo em socorro no último minuto, ele parado lá no alto, acenando para ela do outro lado da terra de ninguém, e ao lado dele o rosto sorridente de Mrs. Carew, flutuando incorpóreo como um balão Dumbo.
Janice chocou-se com um bando de crianças a meio caminho no playground e quase caiu. Bill corajosamente adiantou-se e amparou-a.
— Ivy e Bettina foram dar um passeio na pista de equitação — ele murmurou rapidamente a Janice, mantendo uma aparência de calma para Mrs. Carew. — vou buscá-la.
Janice tremia descontroladamente quando Bill se afastou rápido, deixando-a parada ao lado de Mrs. Carew, que lhe sorria amigavelmente.
— A senhora não devia ter saído com ela — disse Janice numa voz tensa e hesitante.
— Sinto muito, querida — respondeu Mrs. Carew. — Eu não sabia que você ficaria preocupada.
— Não devia ter feito isso — insistiu Janice. — Ela esteve doente...
— Sim, Mr. Templeton me disse. — Mrs. Carew sorriu. — Eu não sabia. Mas está um dia tão quente, tão agradável.
E nós telefonamos para vocês. Aparentemente, estavam fora.
— Sim — disse Janice.
Não falaram mais nada.
Em menos de cinco minutos, Janice viu a cabeça de Bill flutuando a distância, através de um emaranhado de arbustos outonais, adiantando-se para elas. No momento seguinte, um relance vívido da cabeleira loura de Ivy, que lhe confrangeu o coração, apareceu ao lado dele, assegurando-a de que tudo estava bem.
Ivy estava segura.
O resto do domingo foi dedicado a jogar Monopólio.
Bettina voltou ao apartamento, e brincaram até a hora da ceia, todos os quatro, sentados um defronte do outro à mesa de jantar.
Bill jogava brutal e apaixonadamente, ganhando quase tudo que valesse a pena — os jardins Marvin, Boardwalk, um monopólio verde consistindo da Pensilvânia, Carolina do Norte e rotas no Pacífico —, colecíonando rendas do outro mundo sobre três casas e dois hotéis e terminando com mais de vinte e sete mil dólares.
Jantaram costeletas de porco com uma salada de tomate, depois que Bettina foi embora, ficaram vendo televisão até as nove e meia, levaram Ivy para a cama e recolheram-se ao seu quarto.
Às dez e vinte e seis, Bill apagou a luz. Deitados de costas, despertos, debaixo do cobertor elétríco verde, olhando os labirintos sombrios dos relevos do teto, seus corpos separados pela distância de suas mãos dadas, Bill e Janice finalmente falaram.
Ela falou primeiro.
— Bill — murmurou —, há um homem aí...
— Eu sei — ele disse, aceitando o fato de ela saber sem surpresa ou emoção. — com costeletas e bigodes.
A mão dela apertou a dele.
— Há quanto tempo você sabe sobre ele?
— Amanhã fará cinco semanas.
— Ele vai à escola todos os dias.
— É, pela manhã também.
— Que é que ele quer?
— Não sei.
— Ele vai nos fazer mal.
— Provavelmente.
— É atrás de Ivy que ele está, Bill.
— Por que você diz isso?
— Pelo modo como a olha. E ele telefonou ontem de manhã.
— O telefonema de Mr. Soames, não foi?
— Foi. Eu menti. Desculpe.
— Está tudo bem.
Ela sentiu a mão dele afrouxar um pouco na sua.
— Que é que ele quer, Bill?
— Não sei.
— Devemos chamar a polícia.
— Já fui. Não podem ajudar, até que ele tome alguma iniciativa.
Silêncio. Depois, baixinho: — Oh, Deus. Que será que ele quer?
Bill suspirou.
— Saberemos breve.
Como Joãozinho e Maria, eles ficaram de mãos dadas por toda a noite sem lua e assombrada, dormindo irregularmente, acordando e seguindo adiante, falsamente orientados pelas pedrinhas que reluziam como moedas recém-cunhadas, vagueando, perdidos, cada vez mais imersos na mata, em direção aos terrores de um amanhecer incerto.
5
Segunda-feira.
Vinte e um de outubro.
Temperatura: dois graus.
Umidade relativa do ar: 29,92, e caindo.
Uma frente fria que fizera cair neve no alto vale do Mississipi e nos Grandes Lagos ocidentais havia-se deslocado durante a noite até a Nova Inglaterra e partes de Manhattan.
Uma leve camada de refrescante brancura cobria as ruas e prédios cinzentos que se podiam ver do apartamento dos Templeton. O tempo esfriaria ainda mais à tarde. Previa-se mais neve.
O primeiro ataque veio com a correspondência matinal, entregue por Mário, o porteiro, às nove e meia, meia hora depois de Bill ter deixado o apartamento, com a filha maciçamente embrulhada e carregada de livros atrás.
A carta estava incluída em meio a um maço de contas, circulares de propaganda, um convite para um jantar-dançante e duas revistas. O envelope era do tipo padrão, branco e pré-selado, vendido nas agências dos Correios. Endereçava-se a Mr. e Mrs. William Pierce Templeton, numa letra firme e agressiva, sem nome de remetente ou endereço para devolução. O "Pierce" é que era revelador. Quem quer que houvesse enviado a carta tinha um íntimo conhecimento da vida privada de Bill, pois ele jamais usava o segundo nome em sua correspondência; só nos documentos mais oficiais.
Janice sopesou o envelope na mão, sentindo a sua finura com os dedos, para assegurar-se do conteúdo. Era tão leve, que por um momento ela pensou que estivesse vazio, mas erguendo-o contra a luz da janela viu um pequeno quadrado cinza contrastando com o branco do envelope. Como se usara pouco líquido, a parte mal colada abriu ao seu toque sem rasgar o papel.
Janice olhou, de lado, para dentro do envelope — como uma criança olha um filme de terror através dos dedos espalmados no rosto — e viu uma folha de papel bem dobrada, coberta com diminutas letras impressas. Pensou em usar pinças para retirar o papel do envelope, a fim de manter as impressões digitais para uso posterior como prova, mas decidiu finalmente pegá-lo com suas compridas unhas, que agarraram o finíssimo papel pelas bordas. Leu o que estava escrito com um autocontrole que a surpreendeu, antes de dirigir-se ao telefone para chamar Bill.
— Que é que há? — ele arquejava levemente, pois fora chamado de uma reunião para atender a um chamado de "emergência".
— Ele nos mandou seu cartão de visitas — respondeu Janice alheadamente.
— Quê? Diga de novo — Bill gaguejava, tentando manter a respiração.
— O nome dele é Elliot Suggins Hoover.
— É? Como você sabe? — Então, uma súbita preocupação: — Ele esteve aí? Você está bem, Janice?
— Chegou uma carta! — explodiu Janice, perdendo o controle. — com uma tira de papel impressa do Who's Who ou do Social Register, ou algo assim contando a vida e as origens dele.
— Veio mais alguma coisa junto, uma nota, ou...
— Não, só isso.
Houve uma longa pausa do outro lado, enquanto Bill examinava a situação.
— Escute, Janice — ele voltou rispidamente, decididamente.
— Mande os rapazes lá embaixo arranjarem um táxi para você.
Venha ao escritório e espere por mim. Esta reunião deve acabar lá pelas doze e trinta. vou mandar minha secretária reservar uma mesa no Rattazzi s. Almoçaremos e conversaremos. Está bem?
Ele estava fazendo o que sabia fazer melhor — manejando a situação, pensou Janice com amargura.
— Se você quer assim, eu encontro você para o almoço, mas não posso ir até o escritório.
— Ótimo — ele concordou. — Doze e trinta no Rattazzi‘s, certo?
— Certo — ela disse, e depois acrescentou rapidamente: — Bill?
— Sim?
— Ele estava esperando na escola esta manhã?
— Não. Pelo menos eu não o vi.
— Bill?
— Sim, querida? — Ele mantinha cuidadosamente o tom calmo e conciliador em sua voz.
— Estou com medo.
Ela conferiu a corrente da porta antes de subir para um banho de chuveiro e lavar o cabelo.
Eram dez e quinze, e ela enrolava as mechas úmidas em torno dos rolos quentes, quando o telefone tocou. Deixou-o tocar. Ele tocou catorze vezes antes de parar.
Às onze e quarenta ela estava diante do espelho da porta de seu quarto examinando o resultado final e sentia-se satisfeita com o que via. Embora a bela calça azul e borgonha fosse uma compra do ano anterior, não apenas lhe assentava bem, como realçava soberbamente a sua silhueta. O cabelo castanho-claro e a pele ligeiramente maquilada complementavam a imagem de uma mulher ousada e, tinha de admitir, bastante bonita.
A calçada em frente ao Des Artistes fora varrida, retirando-se a neve, e estava quase seca quando Mário a conduziu para o táxi que esperava e deu ao motorista o endereço do Rattazza‘s.
Às doze e quarenta, ela pediu sua segunda dose, ainda evitando conscientemente os perniciosos biscoitos-palitos e a manteiga a seu lado. Quando Bill chegou, à uma e dez, Janice estava dando conta de seu quarto J&B com água e sentia-se leve e tonta. Viu Bill avançar para ela numa névoa de desculpas e ouviu-o pedir o almoço imediatamente, uma vez que ela tinha de ir à escola às três para encontrar Ivy.
Só depois que ele tomou um trago de seu gelado martíni foi que pediu para ver a carta.
Janice remexeu em sua bolsa, encontrou-a finalmente e passou-a para ele com mão trêmula. Obviamente, Bill não se preocupava com impressões digitais, porque retirou a pequena folha impressa com total desprezo pela possível prova que ela talvez contivesse.
Seus olhos estreitaram-se até tornarem-se meras fendas, enquanto ele se esforçava para ler as minúsculas letras no delgado papel. Os lábios formavam lentamente as palavras, mas elas eram abafadas pelo muro de conversas em torno deles:
"Hoover, Elliot Suggins (hoover), exec. corp.; n. Pitts., 26
jan. 1928; f. John Roberts e Ella Marie (Villatte); estudante Instituto de Tecnologia Case, 1945-49, Dr. Engring (honorário), 1955; casou-se com Sylvia Flora a 5 de maio de 1957; filhos, Audrey Rose. Assist. vice-pres. encarregado de matérias-primas na Susquehana Steel Corp., jan-set 1959; vice-pres. encarregado de matérias-primas na Great Lakes Steel Co. of Penns., 1960-62.
Escritor, conferencista sobre administ. de pessoal e relações humanas. Curador, memb. exec. com. Caixa Comunitária de Pitts. Fundo de Saúde Greater Pitts. Prêmios Castor de Prata, Antílope de Prata, Búfalo de Prata dos Escoteiros Am. Membro dos clubes: HooHoo, Rotary, Harrison County e Golf. Mem. Am. Inst. Ferro e Aço. Zeta Psi. Mason (33, Shriner, Jester).
Residência: Estrada de Wellington, 1035, Pitts. 29. Escritório: William Penn PI., Pitts. 30".
Janice ficou pasmada ao ver o sorriso de Bill abrir-se enquanto ele lia lentamente a breve biografia. Ela não vira nada de engraçado.
— Bem — Bill deu uma risadinha —, você tem de admitir que é um rapaz cem por cento americano.
— Por que nos enviou isso? — perguntou ela comedidamente, tentando não embolar as palavras.
— Para os diabos se eu sei. — Ele deu de ombros. — O homem está negociando, Janice.
— Leve o papel à polícia. Mostre a eles.
— Será o bastante? Quer dizer, afinal, que é que isso nos diz? Alguns fatos sobre a vida, o trabalho, as afiliações dele...
Não diz nada de seus motivos, suas intenções. — Bill pegou a fina tira de papel e estudou-a atentamente. — Pode até nem ser ele. Talvez tenha cortado qualquer biografia antiga do Who's Who para testar-nos. Ver qual seria a nossa reação.
— Então você não pretende fazer nada? — Janice tinha consciência de uma nota estridente em sua voz.
— Que podemos fazer? — perguntou Bill. — Agora, agora, as iniciativas são todas dele. Enquanto não fizer alguma coisa aberta ou ameaçadora, não temos nada para levar à polícia. Eles nem considerariam isso um ato de maldade — ele concluiu, repondo a tira de papel no envelope e embolsando-o.
— Eu só espero — declarou Janice, numa voz baixa e hesitante — que quando ele decidir tomar sua iniciativa, você não se arrependa.
Suas palavras funcionaram. A expressão firme e confiante de Bill desfez-se lentamente, fragmentando-se em pequenas e vulneráveis formas de desamparo e desespero. Seus olhos olhavam-na através de um véu de mágoa. Ela desprezou-se por ter falado.
A comida chegou e eles comeram a entrada em silêncio, uma vitela ao marsala acompanhada por uma salada de alface e rúcula. Ambos comeram tudo que havia em seus pratos, e ainda enxugaram o delicioso molho com pedaços de pão; a ansiedade não perturbara seus apetites, — Sinto muito, Bill — ela disse depois que o garçom retirou a mesa. — Provavelmente você está certo. A esta altura, a polícia não saberia o que fazer disso tudo, não mais que nós.
Bill estendeu a mão sobre a mesa e tomou a dela. Seus olhos encontraram-se com simpatia e compreensão, reafirmando a mútua confiança e união.
— Deixe-me pensar — ele disse. — Talvez haja um meio de forçar a saída.
Eram duas e trinta e um quando Bill finalmente encontrou um táxi e colocou Janice dentro dele. Mesmo na lama e na infelicidade da hora do rush, ainda havia bastante tempo para percorrer os oito quarteirões até a Escola de Cultura Ética antes de soar o sino das três horas.
As botas de chuva de Bill esmagavam ruidosamente os detritos sujos e molhados, quando ele percorreu os vários quarteirões até seu escritório, o pensamento inteiramente concentrado em bolar fórmulas e elaborar planos de ação para forçar a mão de Costeletas.
Janice estava certa, decidiu. Quem poderia prever qual seria a primeira iniciativa verdadeira dele? Se se revelasse um lunático, e Janice ou Ivy caísse em suas garras — ele afastou rapidamente os pensamentos de uma perspectiva tão horrível e retornou às formas e meios de provocar um confronto. Ao chegar ao seu escritório, decidira que o próximo encontro com Hoover seria o momento da verdade para ambos. Estava farto daquele jogo de gato e rato. Acabara o tempo do jogo.
Ted Nathan estava parado no elevador quando Bill entrou.
Enquanto a cabine subia com um zumbido até o trigésimo oitavo andar, Bill voltou-se para ele e perguntou: — Nós temos a coleção do Who’s Who, Ted?
Certamente — respondeu Ted. — Do sessenta e nove em diante.
Bill acompanhou Ted ao escritório deste e folheou todas as três edições dos grandes livros vermelhos. Não encontrou nenhum Hoover, Elliot Suggins, em nenhum deles.
Isso o intrigou. Estava certo de que o recorte era de um Who s Who. Comparou o tipo e o formato do recorte com os do livro e descobriu que eram idênticos. Anotando o nome e o endereço do editor — The A. N. Marquis Company, 210 East Ohio Street, Chicago. Illinois 60611 — retornou a seu escritório e pediu a Darlene, sua secretária, para fazer o chamado.
— Sim — a voz de Mrs. Ammons veio do outro lado da ligação, após uma espera de quase dez minutos. — Hoover, Elliot Suggins está relacionado em nossas edições de 1960-61, 1962-63 e 1964-65. Foi retirado após a edição de 1966-67.
— A senhora pode me dizer por quê, Mrs. Ammons?
— Bem, creio que foi porque ele morreu.
Bill pensou nisso por um momento, e depois perguntou: — Como vocês sabem, geralmente, que uma pessoa morreu?
— Ou lemos a respeito ou somos informados pela família.
— Sim.
— Às vezes sabemos quando nossa correspondência para os biografados nos é devolvida sem abrir e sem nenhum outro endereço.
— Obrigado, Mrs. Ammons. A senhora me ajudou muito. Bill pôs lentamente o telefone no gancho e começou a sondar os hipnóticos traços do Motherwell da parede em frente.
Aceitando a hipótese de que Elliot Suggins Hoover estava vivo, e que ele e Costeletas eram a mesma pessoa, por que ele decidira devolver a correspondência do Who’s Who sem abrir e sem dar outro endereço?
Bill fez mais dois telefonemas interurbanos.
Um para o escritório central do Capítulo Nacional dos Shriners, em Cleveland; o outro para o Instituto do Ferro Aço, em Pittsburgh. Ambos corroboraram a informação que ele obtivera de Mrs. Ammons. Os Shriners ainda o tinham relacionado em sua lista de inativos, embora o julgassem morto, uma vez que não tinham notícias dele havia sete anos. O Instituto do Ferro Aço cancelara sua condição de membro em 1968, após um atraso de um ano no pagamento das taxas.
Bem, pensou Bill, pelo menos uma coisa estava ficando clara.
Em algum momento, por volta de 1967, acontecera algo que fizera Suggins Hoover desejar desaparecer da face da terra.
O barulho era apavorante. Um inferno de buzinas de carro e palavrões penetrou a vacilante consciência de Janice, empurrando-a, puxando-a, arrancando-a de volta à vigília.
Contra a sua vontade. Ela teria preferido o nada silencioso e repousante àquelas duras e berrantes cadências assediando-a de todas as direções.
Estava sentada na beira da calçada, numa poça de lama, onde o policial a colocara após o acidente, recostada contra uma lata de lixo com o letreiro "Use-me por favor" pairando ligeiramente acima e à direita de seu campo de visão. Um grupo de rostos entrava e saía de foco em torno dela, simpáticos, solícitos, arrebatados de interesse e excitação. Além deles, as indistintas silhuetas de dois homens lançando insultos um ao outro lutavam para forçar a barreira de policiais de capas azuis que os separavam.
Uma voz chegou de repente a seus ouvidos, avisando delicadamente: — A ambulância logo estará aqui, dona.
Por que estas palavras a encheram de pavor, ela não podia explicar. Teria de pensar nisso de modo metódico e ordenado, organizando cada pedaço de informação como Bill o faria, passo a passo.
Começou com: A ambulância não deve vir. O que levou a: Por que não deve? Porque...
E aqui empacou.
Retorne!
Ela estivera... onde?
Deixe isso de lado!
Sofrera um acidente. Disso tinha certeza.
Estava dentro de um táxi, indo a... alguma parte... Uma tela de arame, separando o motorista do passageiro, impedira um pouco sua visão. Mesmo assim, ela pudera ver o que ia acontecer um minuto antes que acontecesse. O corredor entre o tráfego da esquerda e o ônibus número 5 à direita era estreito demais para se enfiar. Certamente, o motorista do táxi devia ter compreendido. Se tentasse, o carro ficaria ensanduichado entre eles, e acabaria esmagado. Era inevitável. Janice recompôs a cena em sua mente, repetindo o mesmo impacto de horror que sentira antes, quando o táxi arremetera loucamente para a frente, a toda velocidade, abrindo caminho com total desprezo pelas consequências. Ela lembrava os ruídos de metal rasgando metal, quando o táxi derrapara aos trancos para a direita e a esquerda, a colisão contra forças imóveis e a súbita parada e o solavanco que a lançara contra a tela de arame... e nas trevas.
Houvera uma fração de segundo, antes de precipitar-se na suave almofada de trevas, em que ela sentira um medo, não, era mais um terror, tão avassalador que pensara que seu coração pararia de bater.
Sentada na beira da calçada, vasculhando os corredores da memória, ela tinha a distinta sensação de que o terror que sentira naquele ínfimo momento se relacionava com algo bem diverso do acidente. Envolvia outro problema, não o acidente.
Um problema ou obrigação que o acidente a impedia de cumprir. Obrigação? Sim, era uma obrigação.
— Circulem — dizia um policial. — Deixem-na respirar.
Um diáfano desfile de rostos passava indolentemente por ela em imagens duplas, uma grotesca montagem de ambos os sexos: olhos pintados; lábios rubros franzidos, sorridentes; a cabeça de um homem com uma barba ruiva; uma criança, uma garota, de olhos arregalados para ela. A garota! Os olhos de Janice arregalaram-se alarmados. A garota!
— Oh, meu Deus! — disse alto e esforçou-se para se levantar, agarrando-se na lata de lixo para se apoiar. Ivy! Ela já teria deixado a escola! Estaria à espera! Sozinha! Com o homem!
Como era o nome dele? Oh, Deus.
— Calma, dona — o policial dizia-lhe. — A ambulância logo estará aqui...
Janice agarrou sua própria mão trêmula, para contê-la, enquanto tentava ajustar a visão no pequeno relógio de pulso Lucite, sem números, tentando estabelecer se os ponteiros apontavam duas e quinze ou três e quinze.
— Por favor, as horas? — ela soluçou, agarrando a jaqueta do policial e fazendo-o rodopiar.
— Calma, dona — disse o homem. — Passa pouco das três horas.
— Oh, meu Deus, tenho de ir!
— Vamos, vamos, acalme-se...
— Mas eu tenho de ir, senhor policial! — Janice gritava ao jovem rosto irlandês. — É uma emergência!
— É? Que tipo de emergência?
— Minha filha. Ivy. Ela deixou a escola. Está sozinha, me esperando.
— Ela ficará bem, dona — disse o policial querendo tranquilizá-la. — A escola a manterá lá dentro até a senhora chegar.
— Não — ela balançou a cabeça para ele de um modo louco, selvagem. — Preciso ir agora. Por favor.
Suas lágrimas e sua histeria começavam a influenciar o policial. Após um momento de consciente consideração, ele perguntou: — A senhora não acha que devia ser examinada por um médico, dona?
— Não. — Janice chorava. — Eu estou bem, verdade.
Absolutamente bem. Por favor, me ajude a achar um táxi.
— Bem... se a senhora acha que está bem...
— Estou bem. Obrigada.
Ela oscilou apenas um pouco quando o policial a conduziu através do círculo de rostos, abrindo caminho com gritos e ameaças. Parou um táxi com seu apito e abriu a porta traseira.
Um homem estava sentado lá dentro.
— Por favor, deixe este táxi, senhor — ordenou o policial, usando as palavras legais. — Eu sou um policial, e de acordo com a Seção 150 do Código Penal de Nova York, tenho necessidade de usar este veículo.
O pasmado ocupante do táxi saiu rapidamente, e Janice entrou.
— Lembre-se do nome Donovan, 28ª. Delegacia, caso precise de mim — gritou o policial quando o táxi se afastou.
Janice ouviu-o, mas sua mente não registrou a informação.
Um estranho e revigorante senso de euforia penetrava os vários níveis de seu corpo, enquanto o táxi derrapava e fazia curvas fechadas pelo labirinto de ruas escorregadias, escolhendo o trajeto menos engarrafado para chegar ao seu destino. Ela achava sua tonteira um visível conforto, uma vez que mitigava a orientação e reduzia a consciência dos terrores à sua espera no fim da jornada.
Eram três e meia quando Janice, mantendo um frágil domínio de seus sentidos, contou quatro notas de um dólar, que incluíam também a viagem do passageiro expulso, e entregou-as ao chofer do táxi. Ele planejara seu roteiro de modo a deixá-la diretamente em frente ao prédio da escola, que, como ela notou com um frio no coração, estava inteiramente deserto.
Alguns flocos de neve caíam na calçada varrida quando ela deixou o táxi. Encaminhou-se para a entrada da escola, mas no momento em que o fazia sentiu a calçada deslizar sob seus pés e temeu que a consciência pudesse abandoná-la a qualquer momento. Apoiou-se num hidrante próximo e ali ficou, curvada sobre ele, agarrando-se com todas as forças por vários minutos, forçando sua visão a parar de girar e o coração a parar de bater tão forte.
Um ruído agudo, de pancadas secas vindas de algum ponto dentro das instalações da escola, atraiu o olhar de Janice para a fachada de pedra vermelha, até uma janela lá no alto, atrás da qual uma mulher, usando óculos de aros de tartaruga, olhava-a preocupada. Janice reconheceu o rosto, mas não pôde lembrar o nome.
— Está se sentindo bem, Mrs. Templeton? — A mulher abrira a janela ligeiramente e gritava para ela. — Precisa de ajuda?
— Sim, receio que sim. — Janice riu desamparada.
A mulher desapareceu instantaneamente, e no momento seguinte estava se precipitando pelos gelados degraus, as mãos estendidas para ela num gesto de amparo.
— Senti uma súbita fraqueza — explicou Janice, deixando a mulher tomar seu braço e encaminhá-la cuidadosamente até os degraus de concreto. — Vim buscar Ivy; um pouco tarde, receio.
— Janice temia fazer a pergunta seguinte: — Espero que ela tenha aguardado no prédio.
— Não — disse a mulher! — Não há nenhuma criança aí dentro.
Sentou Janice num duro banco de carvalho dentro do escritório de registros e foi buscar uma aspirina e água.
A sala estava deserta. A placa de cobre sobre a mesa dizia Mrs. Elsie Stanton. No relógio da parede, ela viu que eram três e quarenta e um. Viu também um telefone numa mesa próxima e saltou para ele, oscilando ligeiramente enquanto discava o número de casa. Ninguém respondeu. Ela deixou tocar dez vezes, depois desligou e discou o número da mesa na portaria do Des Artistes. Domínick respondeu.
— Aqui fala Mrs. Templeton, Dominick. Por acaso Ivy está no saguão?
— Um minuto, Mrs. Templeton.
Janice suava frio, e o sentimento de medo avançava sutilmente, à medida que os segundos corriam no relógio Western Union acima dela.
— Não, Mrs. Templeton — disse Dominick ao voltar. Ela não está no saguão nem na rua em frente.
— Obrigada, Dominick. Se a vir, por favor, vigie-a enquanto eu chego.
— Claro, Mrs. Templeton.
Janice ficou ali parada, ajustando tremulamente o cinto em sua capa de chuva, que de algum modo ficara retorcido, concentrada em ajeitá-lo, num fútil esforço para não pensar em problemas de maior importância. Mas sua mente não cooperava, continuava recebendo as pontadas de ansiedade que varavam a frívola defesa. Ivy não estava na escola! Ivy não estava em casa!
Que alternativa restava? Nenhuma! Ela fora raptada pelo homem! Ele a levara! Era realmente simples. Simples? Oh, meu Deus! Janice sentiu um grito começar a avolumar-se em algum ponto lá no fundo de seu desespero, sentiu-se cedendo a um cego impulso de sair correndo do prédio a gritar.
— Tome-as com um copo todo de água — aconselhava Mrs.
Stanton, colocando a aspirina e o copo em suas mãos trêmulas.
— Agem mais rápido assim.
Enquanto Janice engolia as pílulas, refrescada pelo líquido frio que aliviava seus lábios crestados, já sabia qual seria seu próximo passo.
Sem pedir permissão, pegou o telefone e discou o número de Bill no escritório. Falou com a secretária dele, que lhe disse que Bill se achava numa importante reunião fora e não voltaria ao escritório.
Foi quando ouvia a voz encorpada e autoritária da secretária que ela se lembrou de algo que fez brotar um surto de renovada esperança por todo o seu ser. Uma vez antes, havia mais de um ano, ela se atrasara e Ivy a esperara no parque, do outro lado da rua. Claro, tinha sido um belo dia de primavera então, mas mesmo assim talvez a neve houvesse exercido seu próprio tipo de fascínio sobre Ivy e ela estivesse lá agora mesmo, a sua espera, logo depois do muro, armando um boneco de neve.
As cautelosas recomendações de Mrs. Stanton quase não foram ouvidas quando Janice se lançou desesperadamente para a porta e a tarde fria. Os degraus de concreto estavam cobertos por uma escorregadia camada de neve, o que a obrigou a descer lentamente, agarrando-se ao frígido corrimão de metal. A neve caía densamente agora, em grandes flocos do tamanho de uma moeda. No meio-fio, ela forçou a vista para ver do outro lado do tráfego emperrado, buscando um relance de Ivy no lado oeste do Central Park. Mas uma grossa massa branca tornava impossível ver além do centro da rua. com obstinada objetividade e total desprezo pelo perigo pessoal, ela mergulhou no tráfego pesado e atravessou o largo bulevar no centro do quarteirão. Freios rangeram e buzinas bradaram, acompanhando-a em sua louca marcha até o outro lado.
No breve espaço de tempo que ela levou para alcançar o baixo muro de pedras que separava a alameda do parque, a neve transformara-se num gélido granizo. Pequenas pedras de gelo atingiam o seu rosto, fazendo-a sofrer, mas ela suava e atravessava graciosamente as dunas de neve rangente que se haviam formado ao longo do muro. Com a ajuda das mãos, protegendo os olhos, investigou as redondezas imediatas do parque, esforçando-se para penetrar o escudo opaco do gelo açoitado pelo vento que caía barbaramente à sua volta. Uma vez, quando o vento mudou ligeiramente de direção, julgou ver a silhueta de uma garota dando cabriolas em meio à cortina de neve, num montículo a pouca distância. Mas não pôde ter certeza e decidiu subir no muro a fim de obter um melhor campo de visão. Sentiu várias coisas rasgarem-se quando saltou o muro e desceu lentamente do outro lado, agarrando-se às bordas escorregadias. Pendurada ali, os pés procurando apoio sem encontrar, Janice teve a sensação desagradável de que seu corpo balouçava sobre um buraco e seria engolido terra adentro se ela se soltasse. Teria ficado naquela posição, se seus dedos não se houvessem soltado do concreto congelado. Seus pés encontraram o chão alguns centímetros abaixo, mas a inclinação e o estado escorregadio do terreno fizeram-na perder o equilíbrio e mergulhar de lado numa suave encosta, rolando incontrolavelmente pela neve endurecida até a beira da vereda.
Ela suportou a provação em total silêncio, aceitando-a como mais uma etapa lógica na insanidade do dia.
O granizo caía em duras camadas ao seu redor, quando ela se levantou inseguramente e flexionou delicadamente os músculos do corpo, examinando ligeiramente se havia ferimentos. Sentia-se estúpida e idiota, e agradecia pelo fato de a impenetrável cortina de granizo ter ocultado seu louco capricho dos olhos curiosos de algum passante. Foi então que percebeu que estava faltando a sua bolsa, mas não podia perder tempo procurando-a agora.
Voltando-se para o montínho onde julgara ter visto a criança brincando, ela pôs as mãos em torno da boca e gritou: — Ivy! Ivy! Pode me ouvir, Ivy?
Mas o granizo, açoitado pelo vento, lançou as palavras de volta contra seu rosto, obrigando-a a prosseguir em frente, através de torrões úmidos de neve congelada.
— Ivy! — gritava, emitindo o chamado no máximo de sua voz. — Ivy! É mamãe!
— Ivy está em casa — disse a voz baixa e cortês de um homem a seu lado. — Ela esperou pela senhora até as três e vinte e cinco, depois foi sozinha.
A voz falava do lado esquerdo de Janice, suficientemente próxima para que ela visse as baforadas de vapor que acompanhavam cada palavra. Mas não devia olhá-lo, ordenou-se, o corpo ferido doendo. Acima de tudo, não devia olhá-lo nem reconhecer sua presença de modo algum.
— Ela está muito bem — a voz continuou baixinho, num tom comum, sem nenhum sinal de agressão. — Está à sua espera no saguão.
Janice permanecia petrificada, sentindo a onda de terror subir dentro dela, ouvindo sua própria respiração tornar-se cada vez mais tépida. Não o olharia nem entraria numa conversa com ele.
— Tome aqui — ele disse. — Você deixou cair isso quando escorregou.
A bolsa de Janice entrou em seu campo de visão, pairando ali, incorpórea entre os flocos de gelo que caíam. Se a recebesse, reconheceria a presença dele, motivaria um encontro, prepararia o terreno para a discussão. Contudo, como poderia deixar de recebê-la? Era a sua bolsa. Ele a apanhara.
Janice aceitou a bolsa sem uma palavra.
— Nós precisamos conversar — disse o homem. — Estou certo agora, e precisamos conversar. Diga ao seu marido.
Os olhos de Janice continuavam pregados num pequeno pedaço de terra escura que de algum modo resistira aos avanços da neve e do granizo. Tentou concentrar-se na causa daquele fenómeno, num esforço para apagar o som da voz do homem, mas as palavras dele insistiam em chegar até ela.
— Não quero lhe fazer mal, compreenda. Mas nós precisamos conversar.
Os olhos dela desviaram-se para a bolsa, e ela a viu tremendo em sua mão. Estava tremendo toda, visivelmente, violentamente, revelando claramente seu medo do homem, admitindo o poder dele sobre ela. Tentou ao máximo parar de tremer, mas não conseguia. Devia ir andando, pensou. Devia encontrar a energia para afastar-se do homem antes que ele a visse tremendo e se aproveitasse de sua fraqueza.
O granizo ardia em seus olhos, quando ela se viu em movimento, dando passos miúdos pela escorregadia ladeira abaixo. Caminhava nas pontas dos pés, como Bill lhe ensinara a fazer em pisos cobertos de gelo, pois escorregar e cair agora seria desastroso, encorajando um maior relacionamento com o homem, que correria em seu auxílio.
— Diga a seu marido que eu telefono esta noite.
As palavras do homem distanciavam-se às suas costas, o que significava, ela pensava agradecida, que ele não a seguia.
Pensou em como Bill ficaria orgulhoso ao saber que não olhara uma vez sequer para o homem, nem lhe dissera uma palavra, nem reconhecera a sua presença de modo algum.
— Venha, — Janice disse a palavra com todo o calor e vigor de uma censura.
Ivy reuniu seus livros em silêncio e acompanhou-a até o elevador que esperava. Ernie, o ascensorista substituto, deu uma olhada geral nas roupas ensopadas e enlameadas de Janice, enquanto subiam em silêncio. Ivy lançava olhares nervosos, sub-reptícios à mãe, sabendo muito bem a causa de sua raiva e temendo o momento do confronto, que estava apenas a três andares de distância.
— Esperei até as três e vinte e cinco, mamãe — ela disse assim que ficaram sozinhas no nono andar, mantendo a voz num nível delicado, ingênuo, tentando romper a armadura de hostilidade de Janice. — Eu não sabia a que horas você ia chegar, e por isso vim sozinha. Um homem me ajudou a atravessar as ruas — acrescentou orgulhosa, inocentemente.
Janice abriu a porta do apartamento e, agarrando o braço de Ivy, empurrou-a para dentro com certa rudeza. Após bater a porta com estrondo, virou a criança assustada de frente para si, baixou o rosto e gritou: — Você não sai sem mim! Não anda com um homem estranho! Fica sentada lá dentro do prédio e me espera! E espera! E espera! Você me entendeu? — Janice gritava e sacudia a criança, que soluçava, com toda a força que conseguia reunir.
— Sim, sim! — berrava Ivy. — Você está me machucando, mamãe!
Janice soltou-a imediatamente e deu um passo atrás, apavorada com sua própria crueldade, ao ver as marcas vermelhas começando a aparecer no branco delicado da pele de sua linda filha. Oh, bom Deus, ela pensou angustiada. Estou realmente ficando louca.
— Vá lá para cima, por favor — ela disse a Ivy numa voz sumida e espantada.
Soluços sufocantes, despedaçantes, atormentados assaltavam os ouvidos de Janice enquanto a criança corria pelo estreito corredor e dobrava a curva da sala de visitas, tornando-se mais baixos à medida que seguiam sua rota de fuga escada acima até o quarto, onde continuaram, agora distantes.
— Oh, Deus. Oh, Deus — Janice murmurou de novo, e de novo cambaleou até a sala de visitas e desabou chorando no sofá, vagamente consciente de suas roupas ensopadas, enlameadas, sujando a guarnição de seda negra, e pouco ligando para isso, deixando a sujeira toda espalhar-se pelo caro tecido Schumacher, juntamente com todos os sentimentos represados, os temores ocultos, os pânicos, os sofrimentos, os horrores dos últimos três dias. — Deus do céu, foram apenas três dias?
O telefone tocou.
Sua primeira reação foi deixá-lo tocar. Mas depois a lembrança de que a extensão do quarto estava ao alcance da curiosidade de Ivy obrigou-a a refazer-se, soluçando atravessada no sofá, para pegar o telefone.
— Janice? — era a voz de Bill. — Darlene me disse que você chamou antes. Que é que há?
A voz firme e segura de Bill finalmente rompeu a represa.
— Oh, Deus, Bill! — ela gritou, liberando toda a torrente de histeria. — Oh, Deus, venha pra casa!
— Estou indo — disse Bill prontamente, e desligou.
De algum modo, Bill conseguiu fazer todas as conexões certas e chegou à sua casa em menos de dez minutos. Após examinar rapidamente os estragos e estabelecer sua seriedade, começou a repor imediatamente a casa em ordem. Esquentou dois banhos e pôs ambas as suas mulheres neles. Dividiu-se entre os dois banheiros, dando a cada uma tempo para contar soluçando a sua história.
Através de Janice, soube dos incríveis detalhes de cada uma das horríveis experiências por que ela passara após deixá-lo diante do Rattazzi‘s, com ênfase especial em seu encontro com o homem, lembrando cada palavra que ele lhe dissera, inclusive a entonação, a inflexão e a possível intenção por trás de cada frase.
— A que horas ele disse que chamaria? — perguntou Bill.
— Não disse uma hora; apenas disse esta noite.
— Ele lhe disse que tinha trazido Ivy para casa?
— Não, foi Ivy quem me contou isso. Ele disse que ela estava no saguão, à minha espera, e que estava bem.
Bill hesitou, depois perguntou: — Tem certeza de que era o homem? Quer dizer, bigodes, costeletas?
— Ora, por Deus, Bill — gritou Janice.
— Está bem, está bem — ele a apaziguou. — Suponho que só podia ser ele.
— Bem, eu não o vi. Não olhei para ele nem reconheci sua presença de modo algum. Pensei que você ficaria satisfeito pela maneira como tratei da coisa toda.
Bill pôs uma mão reconfortante no ombro ensaboado dela e deu um risinho.
— Você foi sensacional, Janice, simplesmente sensacional.
— Depois, sobriamente: — Quero que saiba que ele já me encheu. Chega de joguinhos.
Bill encontrou Ivy ainda mais tensa que Janice. Ela jamais vira a mãe agir daquele jeito; absolutamente esquisita, sacudindo-a e sacudindo-a até que ela quase vomitara. E por quê? Todas as garotas de sua idade voltavam para casa a pé, sozinhas.
— Bettina faz isso desde os nove anos. Que há de tão especial comigo?
— Você é nossa linda filhinha — amaciou-a Bill, segurando sua mão molhada. — É isso que é tão especial em você. Nós a amamos e queremos protegê-la.
— Me proteger contra o quê?
— Contra um monte de coisas que acontecem todos os dias nesta cidade, Ivy. Até agora tivemos sorte; elas aconteceram a outras pessoas. Pessoas dispostas a assumirem riscos, facilitarem com seus filhos. Nós não estamos dispostos a isso.
O banho quente, o terno toque de Bill e o seu tom apaziguante foram aos poucos aliviando as tensões da filha, trazendo-a delicadamente de volta à compreensão e ao perdão.
— Bem, na verdade é a primeira vez que fiz uma coisa assim. E não teria feito se aquele homem não se oferecesse para me ajudar a atravessar as ruas.
— Fale-me desse homem, Ivy — pediu Bill, com uma voz que a desarmou. — Você já o tinha visto antes?
— Claro. Ele espera diante da escola todas as tardes — ela olhou de repente para o pai. — Você deve tê-lo visto; ele fica lá de manhã também.
— Oh, sim... bigodes, costeletas.
Ivy assentiu com a cabeça.
— Ele foi mesmo muito gentil. Levou-me até a 66th Street e esperou até que eu atravessasse.
— Disse alguma coisa? Quer dizer, conversou com você afinal?
— Nada de especial! Estava começando a nevar de novo, e ele disse que preferia os invernos aos verões. Eu disse que eu também. Aí ele disse que a filha dele também preferia os invernos. Coisas assim.
— Ele fez alguma pergunta sobre mim ou mamãe?
— Não. — Ela estudou-o com uma expressão de desconfiança. — Você o conhece, papai?
— Não, querida, não o conhecemos.
— É engraçado...
— O quê?
— Eu achei que ele nos conhecia. Ou pelo menos a mim.
Após o banho, descontraídas e aquecidas na enorme cama, com o cobertor elétrico ligado na temperatura máxima, mãe e filha foram deixadas a sós para refazerem suas relações estremecidas, enquanto Bill se dirigia à cozinha para preparar o jantar.
Quando voltou, trazendo uma imensa bandeja cheia de sanduíches com rosbife cortado em fatias fininhas e pão sem casca, uma panela de feijão fumegante, dois tipos de torta e leite, encontrou-as encerradas num cálido abraço, brincando de atores e atrizes.
Bill estendeu uma toalha de mesa sobre a colcha, e todos comeram seu jantar de piquenique na cama. Às sete e meia, quando veio o telefonema, o amor e a união estavam firmemente restabelecidos.
Ivy agarrou o telefone na mesinha-de-cabeceira na primeira chamada.
— Sim? — Uma pequena pausa, e depois: — É pra você, papai.
Bill fez sinal a Janice para pegar o telefone e correu para fora do quarto, a fim de receber o telefonema no aparelho lá de baixo.
Janice manteve o telefone no ouvido, mas cobriu o bocal com a mão. Num momento, a voz de Bill veio do outro lado.
— Alo?
— Mr. Templeton?
— Sim.
— Meu nome é Elliot Hoover.
— Sim.
— Acho que devemos conversar.
— Muito bem.
— Posso ir à sua casa?
— Não. Que tal meu escritório amanhã de manhã?
— Acho que devíamos conversar logo. Eu também gostaria que Mrs. Templeton estivesse presente. Que tal se encontrarem comigo embaixo, no bar do restaurante?
— Impossível. Não podemos deixar nossa filha sozinha.
— Carole Federico poderia ficar com Ivy por uma hora, mais ou menos.
Janice compreendeu muito bem a longa pausa que se seguiu a essa surpreendente declaração. Podia sentir o choque de Bill diante da amplitude e profundidade do conhecimento que Hoover tinha dos recantos mais íntimos de suas vidas.
— Vou ver — ela ouviu Bill gaguejar finalmente.
— Digamos às oito e meia.
— Vou ver.
O fone deu dois cliques antes de Janice colocar o seu no gancho.
Ivy irrompeu numa risadinha. Pegara um livro de Snoopy e folheava-o enquanto os pais falavam ao telefone. Intimamente, Janice reagiu asperamente ao riso, achou que estava tudo errado, inadequado, inteiramente deslocado — como alguém rindo num funeral.
Parte dois
Elliot Hoover
6
Com exceção de duas mesas ocupadas e uma fileira de garçons de dinner-jackets guarnecendo silenciosamente seus postos em pontos estratégicos periféricos, na paciente espera da hora de fechar, às nove e meia, o Restaurante Des Artistes parecia à beira do sono.
Bill e Janice encaminharam-se discretamente, naquela atmosfera silenciosa e sombria, até o bar, que ficava pouco além do restaurante, num reservado pequeno e parcialmente fechado.
Kurt, o barman, deu um sorriso de reconhecimento aos dois, parados na entrada da sala apainelada em madeira escura, examinando vários rostos em busca de um sinal de Hoover.
Havia apenas cinco clientes.
Janice sobressaltou-se, espantada; Bill girou rápido demais, denunciando sua surpresa. Pairando atrás deles estava um rosto que ambos jurariam jamais ter visto.
A glabra pele pálida, clara e sem rugas, pertencia a um homem de vinte anos. O sorriso, delicado e engenhoso, revelava duas fileiras de pequenos dentes brancos entre finos lábios descorados. Após um exame mais detido, via-se que o cabelo castanho-claro era um tanto ralo e recuado, mas seria aquele o homem de quarenta e seis anos sobre o qual haviam lido no Who’s Who?
Hoover percebeu a surpresa deles e alargou seu sorriso, enquanto sugeria: — Há uma mesa discreta ali no canto.
Bill e Janice acompanharam-no como um par de ovelhas escoltadas por uma companheira traidora para o matadouro. Os dois sentaram-se juntos, de costas para a parede, por indicação de Hoover, enquanto este ficava com a cadeira defronte a eles.
— Quero agradecer aos dois por concordarem em me receber esta noite — começou Elliot Hoover, numa voz baixa, tranquilizante, que parecia hesitar diante da escolha de cada palavra. — Eu realmente sei apreciar isso.
Marie, a linda garçonete, apareceu à mesa, sorrindo inquirido-ramente.
— Gostaria de alguma coisa, Mrs. Templeton? — perguntou Hoover polidamente a Janice.
— Não, obrigada — ela respondeu.
— Eu tomo um uísque com água — disse Bill.
— Vocês têm chá verde chinês? — perguntou Hoover.
— Creio que devem ter um pouco na cozinha — aventurou Marie.
— É o que eu gostaria — ele disse, despedindo Marie. E voltando-se para Bill e Janice: — Também gostaria de me desculpar pelo meu comportamento misterioso nestas últimas semanas — continuou, com uma risadinha de embaraço. — Sei como devem ter ficado apavorados, e sinto muito por isso, mas era necessário. O senhor tinha todo o direito de ir à polícia, Mr. Templeton; nas circunstâncias, eu provavelmente teria feito a mesma coisa. Mas todo esse subterfúgio, o desajeitado disfarce eram medidas necessárias que tinham de ser tomadas antes de se poder acertar este encontro. — Hoover calou-se um momento, para deixar suas palavras penetrarem nos dois, antes de continuar. — Na verdade, a preparação deste encontro me tomou sete anos. Sete anos de viagens, investigações e estudo, exigindo um total recon-dicionamento, como se poderia dizer, de minhas perspectivas espirituais e intelectuais...
Bill sentiu a mão gelada de Janice enfiar-se sub-repticiamente na sua, por baixo da mesa, enquanto Hoover continuava a falar, as palavras despejando-se de sua boca em rajadas rápidas, curtas, explosivas, que para Bill soavam trabalhadas e pré-arranjadas. Muitas das frases que ele usava eram pomposas, como se as houvesse lido num livro e memorizado.
Ele falava-lhes dos sete anos que passara viajando, de como Pittsburgh, sua cidade, não podia proporcionar-lhe o cenário adequado para suas investigações, e de como sua busca o levara à índia, ao Nepal, às geladas montanhas do Tibete, onde começara a descortinar ("descortinar" era a palavra dele) pela primeira vez, nos santuários de certos lamas, a luz da verdade — quando Bill o interrompeu no meio de uma frase.
— Ahhh... desculpe-me, Mr. Hoover, mas que diabos significa isso tudo?
— Não é fácil dizer o que tenho de dizer a vocês — balbuciou Hoover. — É preciso uma certa base de conhecimento, de compreensão...
Sua mão tremia quando, visivelmente confuso, ele pegou agradecido o chá que Marie pôs à sua frente. Bill consumiu metade de seu uísque antes que Hoover pudesse prosseguir, tateando em busca das palavras.
— Não posso dizer-lhes quantas vezes me pus na posição de vocês, e como o que vou lhes dizer me soou inacreditável. Eu fiz muitas coisas desde que cheguei a Nova York; cometi muitos atos excêntricos, na verdade, que são inteiramente alheios à minha natureza. Quer dizer, a biografia no Who’s Who deve ter-lhes dado alguma visão do tipo de homem que eu sou... Não sou do tipo de pessoa que faria essas coisas sem razão. Devem acreditar nisso.
Hoover lançava suas frases desconjuntadas sobre Bill numa barragem trepidante, apaixonada, Baixou um pouco a cabeça para beber o forte chá preto, que aos poucos pôs sob controle sua mão trêmula.
— Antes de prosseguir, devo fazer a ambos uma pergunta.
Algum de vocês dois conhece alguma coisa sobre... — aqui ele se deteve um momento, antes de pronunciar pausadamente a palavra — reencarnação?
A tensão no aperto que Janice dava na mão de Bill afrouxou um pouco, enquanto ela balançava negativamente a cabeça. Bill, convencido de que ouvira "cravo verde"1, apenas ficou olhando alheamente para Hoover, à espera de maiores informações.
— Toda a minha formação — continuou Hoover — sempre me afastou de qualquer crença séria em carma...
A declaração era absolutamente espantosa para Bill, não se relacionava com o seu fluxo de pensamento. Que diabo era carma, e que tinha isso a ver com flores?
— Mas após sete anos de busca e meditação, comecei a experimentar a realidade da reencarnação, e hoje acredito, como nos diz o Corão, que "Deus
1 Jogo de palavras intraduzível: a confusão é entre " reincarnation ", reencarnação, e " green carnation ", cravo verde. (N. da T.)
?
gera seres e os envia de volta, repetidamente, até que eles retornam a Ele".
— O senhor disse "reencarnação"? — perguntou Bill de repente, alcançando finalmente a deriva das palavras de Hoover.
— Sim, Mr. Templeton — respondeu cautelosamente o homem. — A crença religiosa de quase um bilhão de pessoas na Terra, uma doutrina aceita por alguns dos maiores homens que nosso mundo já produziu, de Pitágoras a Schopenhauer, de Platão a Benjamin Franklin...
— Oh — disse Bill impotentemente, engolindo o último trago de sua bebida.
— Compreenda, eu não espero que aceitem ou acreditem na ética do carma, não mais que eu a princípio. O que peço é que mantenham a mente aberta para as coisas de que vou lhes falar.
Duvidarão delas, claro. Podem até pensar que estou louco.
Bastante natural. Aceito antecipadamente o ceticismo de vocês.
Mas ouçam-me.
— Muito bem — disse Bill. — Prossiga.
— Há dez anos — Hoover começou sua história com um tom de solenidade — houve um acidente. E nesse acidente minha mulher e minha filha me foram arrebatadas. Foi tudo muito rápido, muito súbito. Por muito tempo isso me deixou paralisado mentalmente. Durante um ano eu não fiz nada, não fui a parte alguma, evitei as pessoas. O vazio que elas deixaram em minha vida era insuportável. — Um rápido brilho passou pelos seus olhos. — E aí, um dia, eu tive a nítida sensação de que elas estavam perto de mim. Senti como se minha filha, que se chamava Audrey Rose, estivesse muito perto de mim. Eu jamais tinha acreditado em vida depois da morte ou no sobrenatural; julguei que provavelmente era uma aberração de minha mente, provocada pela dolorosa perda, como se minha mente estivesse tentando compensar, ocupar o vazio. Mas era uma sensação boa, e eu não a rejeitei. Na verdade, o senso da proximidade de Audrey Rose foi adquirindo intensidade à medida que o tempo passava, e serviu para me pôr novamente de pé, levou-me ao ponto onde eu podia cuidar de novo da vida e das pessoas...
— Gostariam de alguma coisa mais? — Marie havia-se aproximado da mesa deles, sem ser vista, fazendo com que Janice tivesse um ligeiro sobressalto.
— Mais chá, obrigado — disse Hoover.
— Outro — disse Bill, entregando-lhe seu copo vazio. Janice ficou calada.
Depois de Marie limpar a mesa e afastar-se, Hoover fechou os olhos, compôs seus pensamentos e continuou.
— Cerca de um ano e meio após o acidente, eu estava num jantar e — agora me suportem, por favor — uma das hóspedes era uma mulher que dizia que podia ler mentes. Chama-se a isso psicometrizar. Ela pegava um anel da gente ou qualquer outro objeto pessoal e, por meio dele, dizia-nos coisas sobre nós, como fazem os médiuns, sobre o passado, o presente e o futuro, como um desses mágicos que se vêem nos palcos. Achei a coisa estúpida, idiota; ninguém pode fazer isso. De qualquer modo, o amigo que tinha me levado à festa me convenceu a dar meu anel à mulher, e ela começou a dizer coisas sobre mim muito precisas, sobre meu passado, coisas que só eu sabia. E aí começou a descrever minha filha, como se fosse uma criança de cerca de dois anos, e eu fiquei muito perturbado. Comecei a me afastar, mas ela me deteve e me perguntou por que eu resistia tanto a conversar com ela. Eu disse que Audrey Rose tinha morrido num acidente e que sua lembrança ainda era muito dolorosa. Ela riu e balançou a cabeça. — A voz de Hoover elevou-se de tom ligeiramente, quando tentou imitar a fala da mulher. — "Sua filha está viva", ela disse. "Ela voltou." E passou a descrever minha filha como uma adorável criança loura, morando num lindo lar na cidade de Nova York. Deu a Audrey Rose o nome da filha de vocês, Ivy, e combinou-as tão dramaticamente que as duas eram uma só pessoa, uma e única, e eu pensei: Ora, isso é impossível: Era muito chocante, perturbador, e por isso eu saí... Foi uma sensação muito incómoda quando ela me disse isso tudo... E eu disse a ela que ela estava louca, estava errada, e tomei meu anel de volta e fui embora...
As palavras brotavam em ritmo veloz. Bill sentiu-se piscar sob o aperto de torno da mão de Janice, que aumentava a pressão no ritmo da incrível narrativa de Hoover.
Hoover encheu sua xícara com o chá do bule e continuou sua história numa voz mais baixa, mais controlada.
— Passou quase um ano. Eu não podia deixar de pensar no incidente, é claro, era natural querer acreditar em tais coisas, mas eu me considerava uma pessoa inteligente, racional, e tentei afastar a coisa toda de mim. Mas não pude, realmente. As coisas que ela disse, a maneira como descreveu Audrey Rose, a precisão, era tudo tão convincente, que eu me apeguei à esperança de que talvez ela não fosse apenas mais uma farsante. Mas não fiz nada a respeito.
Após outra ligeira pausa, Bill achou que para aumentar o efeito dramático Hoover juntara as pontas da história.
— Estávamos em 1966, no mês de dezembro. Eu estava por acaso em Nova York, num ônibus, quando vi um anúncio no Times sobre uma conferência de um famoso médium na prefeitura; era um conhecidíssimo especialista em fenômenos paranormais, e também clarividente. Por alguma poderosa razão, achei que devia assistir àquilo. Lembro-me de que perdi um ingresso para Hélio Dolly, que era o show mais quente na Broadway na época.
"O tempo naquela noite estava horrível; foi quase impossível achar um táxi, mas finalmente achei e cheguei à prefeitura com a conferência já começada. Desci a ala tão silenciosamente quanto possível, e já estava em minha poltrona quando compreendi que o conferencista deixara de falar e me olhava, estudando-me, na verdade, com um olhar de pasmo.
Foram-lhe necessários alguns segundos para recuperar-se e continuar com a conferência, que se centrava basicamente sobre percepção extra-sensorial e experiências com transmissão de pensamento."
Enquanto Hoover bebia um gole de chá, Bill deu uma rápida olhada em Janice. O suor reluzia em sua pele perfeita; os olhos fixavam-se exclusivamente em Elliot Hoover, escrutando-o com todo temor e incerteza de um cientista à beira de uma temível descoberta. Bill apertou a mão dela tranquilizadoramente, mas a tensão continuou.
— Após a conferência — continuou Hoover —, quando eu estava para deixar o salão, ele apontou o dedo para mim e indicou que queria que eu esperasse. Fui vê-lo em sua sala, onde ele imediatamente se desculpou por ter-me fixado na chegada e falou-me de uma aura em torno de mim que chamara a sua atenção...
— Uma o quê?
— Uma aura. Uma espécie de halo luminoso que emana de algumas pessoas, e que só pode ser apreendida por uma consciência especialmente sintonizada.
— Oh.
— Como a mulher na festa no ano anterior, ele me disse coisas sobre mim, coisas muito precisas sobre meu passado, sobre minha filha, descrevendo-a como se ela estivesse viva e referindo-se à filha de vocês como à minha, tudo muito detalhado, descrições do tipo de roupas que ela usava, e os amigos que tinha, mas era minha filha, na de vocês, nascida de novo.
Falou-me do lar onde ela vivia, descrevendo a sala de visitas com uma grande lareira branca e um teto lindamente apainelado com pinturas encaixadas... e o quarto de cima, onde Ivy dormia... as cortinas amarelas e brancas, a colcha de franjas da cama... O camiseiro que sempre emperra, a segunda gaveta de cima...
Janice encolheu-se. Lembrava-se bem das cortinas quadriculadas que fizera com base num desenho de revista pouco antes de Ivy nascer. E a colcha de franjas que a tia Wilma mandara então, jogada fora há anos. E aquela maldita gaveta, a segunda de cima, que ainda desafiava as tentativas mais vigorosas e mais pacientes de abri-la.
Ela falou pela primeira vez.
— Que idade tinha sua filha quando... morreu?
— Audrey Rose tinha apenas cinco anos, Mrs. Templeton.
Ela e a mãe iam de carro para Harrisburg, na Barreira. Estavam num temporal. A estrada era escorregadia. O carro derrapou e bateu em outro, caindo por uma vertente íngreme. — Os olhos de Hoover refletiam a dolorosa lembrança da tragédia. — Elas morreram antes de receber socorro.
Janice mordeu o lábio, hesitante, antes de fazer a pergunta seguinte: — Quando... foi que isso aconteceu?
Hoover não respondeu logo. Por um longo momento, seus olhos vasculharam do outro lado da mesa, primeiro o rosto de Janice, depois o de Bill, medindo o seu público, preparando-se com cuidado, antes de responder: — Quatro de agosto de 1964, pouco depois das oito e vinte da manhã, poucos minutos antes de a senhora dar à luz Ivy num hospital de Nova York.
Janice permaneceu parada, imóvel, presa pelo olhar penetrante de Hoover. Bill tossiu e levantou-se.
— Bem, Mr. Hoover, foi certamente muita informação que o senhor nos deu. Dê-nos alguns dias para pensar.
Elliot Hoover também se levantou, afogueado, quando viu Bill pegar o braço de Janice e ajudála a levantar-se.
— O senhor compreendeu o que eu lhe disse, Mr.
Templeton? — gaguejou, colocando-se no caminho deles numa fútil tentativa de retardar sua partida.
— Claro — respondeu Bill jovialmente. — Sua filha morreu e se reencarnou na nossa. Na verdade, o senhor está dizendo que nossa filha Ivy é na verdade sua filha Audrey Rose.
— Bem... é — disse Hoover, tentando avaliar a sinceridade de Bill. — Creio que devemos conversar mais e chegar a alguma espécie de... acerto. Eu não quero prejudicar ninguém. Sei que, legalmente, não há nada que eu fossa fazer. E mesmo que houvesse, eu não faria isso a vocês. Sei o que é perder alguém a quem a gente ama.
— Sim, claro. — Bill dirigiu Janice decididamente além de Hoover, em direção ao arco do restaurante. — Pensaremos nisso, veremos se chegamos a algumas respostas.
— Posso telefonar para vocês amanhã? — Hoover disse às costas deles, que se afastavam rapidamente.
— Telefone para o meu escritório — disse Bill por sobre o ombro. Depois, com uma ponta de sarcasmo: — Creio que o senhor sabe o número.
Carole Federico, sentada à mesa da sala de jantar jogando paciência, levantou-se para partir quando Bill e Janice entraram no apartamento. Suas despedidas foram breves e amistosas: tinha passado uma boa noite? Ivy fora para a cama logo depois que eles tinham saído. Não houvera telefonemas, que tal jantar com os Federico de sábado a uma semana?
Depois de Carole sair, Janice foi dar uma olhada em Ivy, enquanto Bill se preparava para deitar-se. Não tinham falado do encontro com Hoover, nem o fariam — ela sabia — até depois, na escuridão do quarto.
Fitando a adorável inocência loura da filha adormecida, Janice sentiu-se de repente inteiramente gelada por um terrível sentimento de premonição.
Incrivelmente, haviam-se encontrado com o inimigo, avaliado suas forças, sabido de seu objetivo — Ivy.
Um gemido baixinho, intranquilo, de Ivy, um espasmo, seu sono perturbado por algum sonho. Uma onda de medo passou por Janice ao lembrar o ano de pesadelos. Quisesse Deus que jamais retornassem... Pôs a mão na testa da filha. Fria. Normal.
Bom sinal.
O calor de sua própria cama pareceu-lhe aconchegante quando ela se enfiou entre os lençóis estampados e acomodou sua perturbada mente nos silêncios da noite.
Logo Bill se juntaria a ela, e conversariam.
Tendo tirado o roupão, Bill apagou a lâmpada de cabeceira e enfiou-se na cama ao seu lado. A mão dele tateou em busca da sua, debaixo dos lençóis. Ela esperou para ver quem falava primeiro. Mas à medida que os segundos passavam e o ritmo da respiração dele começava a espaçar-se em padrões regulares, ela compreendeu que se não falasse ele logo adormeceria.
— Bill, converse comigo.
— Por Deus, Janice, acalme-se. — Ele deu um profundo suspiro. — Estamos em boa forma. O homem é maluco. Há lugares para pôr malucos. São os asilos.
— Ele sabia que você o chamaria de louco. Ele o predisse e estava mesmo disposto a aceitar.
— Claro, é assim que a mente distorcida deles funciona.
Dizem à gente o que vamos pensar, antecipadamente, para baixar nossa guarda. É assim que pegam a gente, não compreende?
— Não, Bill, não compreendo. Estou morta de medo.
— É natural. Loucos metem medo.
— Não é isso que me mete medo. Receio que ele não seja um... maluco.
— Você acredita na história dele? Engole os carmas e auras dele?
— Ele acredita. — Janice pusera toda a força e o sentimento que conseguira reunir por trás da frase dita em voz baixa. — Ele acredita no que disse, sinceramente. Pude ver pela sua aparência...
— Que aparência tinha ele? Rosto pálido, olhos esquisitos, vazios. Será essa a aparência de um homem normal, saudável?
— Mas por que faria isso? Por que viria a nós com uma história dessas?
— A resposta a isso está trancada no cérebro doido dele, Janice, e eu não leio mentes.
— Vejo que você decidiu não responder a nenhuma de minhas perguntas de modo racional.
— Mostre-me uma de suas perguntas que eu possa responder racionalmente.
— Muito bem. E se ele não for louco? e então?
Bill sufocou um bocejo.
— Se ele não for louco? Bem, aí... — ele considerou suas opções — é possível que queira dinheiro. Extorsão. Vem com essa história complicada para tirar dinheiro da gente.
— Que dinheiro?
— Isso não importa. A teoria da extorsão faz sentido para mim.
— Quer dizer que ele passou sete anos viajando pelo mundo todo apenas para voltar aqui e extorquir nosso dinheiro, que não existe?
— Como você sabe que ele viajou por alguma parte? Porque ele lhe disse? Eu digo que ele nunca foi a parte alguma. Sempre viveu em Nova York. É um bandido. Escolhe nomes na lista telefónica. Encontra os alvos e parte para eles. Prove que estou errado.
— E o Who’s Who?
— Uma identidade tomada de empréstimo. O verdadeiro Elliot Suggíns Hoover pode se levantar e identificar-se? Não.
Porque está morto.
— Você não tem certeza disso.
— Não, Janice, a única coisa de que tenho certeza è que ele não é do FBI, da CIA ou do Imposto de Renda, e isso tira muitas preocupações de minha mente. Qualquer coisa eu posso manejar.
Janice ouviu suas últimas palavras misturarem-se com um bocejo profundo. Ele estava caindo na inconsciência.
— Bill?
— Hummm?
— Como vai cuidar disso, Bill?
— Depende — ele murmurou, meio adormecido. — vou falar com Harold Yates amanhã. Seja lá o que esse cara for, psicótico ou extorsionista, Harry saberá o que fazer. — Outro bocejo, seguido por um quase inaudível: noite.
— Boa noite — disse Janice, e pensou consigo mesma: e se ele não for nenhuma das duas coisas?
Por muito tempo, ela não conseguiu dormir.
A tempestade passara pela cidade, deixando uma noite limpa e fria em sua esteira. Amanhã seria um belo dia de outono.
7
E assim foi.
Revigorante, frio, tônico, um presente contra a poluição, chegado das montanhas do norte do Canadá.
Bill e Ivy tiveram sorte de pegar um táxi na esquina da 67th Street. Enquanto desciam a larga e lamacenta avenida em direção à Escola de Cultura Ética, uma fina nuvem de lama salpicou as janelas do carro, desenhando uma sombria cortina cinzenta sobre o vívido dia. Ivy adorava pegar táxi para a escola, mesmo o percurso durando menos de um minuto. Dava uma nota de elegância ao início de seu dia.
Olhando o brilhante e sorridente rosto matinal da filha — aberto, inocente, confiante —, Bill sentiu um rápido aperto no peito. Como ela era inteiramente vulnerável. Como era desvalida. Como dependia e precisava de seu cuidado e proteção.
Viu Ivy voltar-se pela metade nas grandes portas duplas, sorrir e lançar-lhe um beijo, e depois entrar no prédio da escola.
Esperou alguns segundos, para assegurar-se de que ela estava segura lá dentro, antes de dar ao chofer do táxi o endereço de seu escritório. Sabia que Hoover não estaria ali naquela manhã.
Agora que ele tomara sua iniciativa, tinha o pé na porta deles, seus dias de Sherlock Holmes haviam acabado, ele pensou com um sorriso sombrio. Sai Hercule Poirot.
O táxi derrapou ligeiramente ao fazer uma curva fechada descendo a 57th Street e quase arranhou um ônibus parado. Bill mal percebeu o incidente. Sua mente estava em Hoover.
Falaria com Harry. Harry saberia o que fazer. Era seu elo com todos os remédios legais. Enquanto isso, havia uma engrenagem que ele podia pôr em movimento: a parte sobre o fato de a morte da filha de Hoover ter ocorrido no preciso momento do nascimento de Ivy podia ser conferida. Os jornais de Pittsburgh ou de Harrisburg teriam coberto o acidente, se houvera algum, ou a polícia estadual teria um relatório em seus arquivos. Pediria a Darlene para começar a investigar imediatamente.
Quando o táxi deixou Bill diante do estéril monólito negro que continha o seu escritório, ele estava como um boxeador à espera do gongo — pronto, tenso e preparado para a ação.
O primeiro ataque ocorreu logo diante de seu escritório, quando Dom Goetz o chamou com um aceno do extremo oposto do corredor e aproximou-se lentamente com um rosto de condenado.
— Jack Belaver teve um problema com as coronárias a noite passada — informou sombriamente.
— Como está ele? — gaguejou Bill, avaliando rapidamente os milhares de significados de tão surpreendente notícia.
— Viverá, dizem. Mas ficará fora de ação pelo menos uns três meses.
Jack Belaver era o primeiro vice-presidente da Simmons, e cuidava das maiores contas da agência, a mais impressionante das quais era a das Indústrias Carleton, um gigante diver-sificado cujos dedos corporados alcançavam todos os recantos da indústria eletrônica. Sua conta representava uns bons dois e meio milhões por ano para a Simmons. Sua convenção de vendas anuais começaria naquela quinta-feira próxima na praia de Waikiki. Jack Belaver desempenhava um papel-chave na preparação e apresentação da mostra de vendas. A Simmons dificilmente poderia perder Jack naquele momento crítico.
— O velho quer ver você — disse Don na mesma voz abafada.
Claro, pensou Bill, sabendo muito bem a razão.
— Está bem — disse em voz alta, e entrou em seu escritório; recebeu então o segundo abalo da manhã.
Sentada à mesa de Darlene estava uma secretária temporária substituta, uma garota morena de silhueta atarracada e olhos ligeiramente vesgos por trás de grossos óculos de tartaruga. Informou numa voz anasalada que Darlene estava em casa com gripe. Puxa! Ele estava mesmo com sorte naquela manhã.
O nome dela era Abby, e não conseguia entender bem o que Bill desejava dela — não podia entender que jornais ele queria que chamasse e que acidente devia verificar.
Bill fez anotações legíveis numa prancheta amarela e esperou.
Ao sair do escritório de Pel Simmons uma hora depois, ele tinha a aparência curvada e totalmente esgotada de um homem carregando um monte de tijolos. Pel pedira-lhe não só para substituir Jack Belaver na aventura do Havaí, mas também o instruiu a deter-se em Seattle na volta e dar uma olhada em outra das contas de Jack, a da De Ville Shipping, com alguns aspectos estranhos ultimamente.
— Desculpe por largar isso tudo em cima de você, Bill, mas com um pé-de-boi como Don, você é o único homem disponível.
— Claro, Pel — dissera Bill. — vou me preparar para viajar sexta-feira.
— Digamos quinta. Você precisará de tempo lá para se informar.
De volta ao seu escritório, o caderno de recados disse-lhe que Elliot Hoover chamara duas vezes durante sua ausência.
Afundando-se pesadamente em sua reclinadora Eames, ele deu um suspiro de profunda desesperança e murmurou baixinho: — Merda!
Uma caixa de clipes estava à mão. Um por um, e com estudada deliberação, ele os extraiu e lançou contra o Motherwell, visando a negra forma deltóide no centro. Não podia haver mais má sorte. Não podia haver tempo mais inadequado para deixar a cidade. Como daria a notícia a Janice?
Ela já estava em estado de semichoque. Oh, a propósito, doçura, vou passar uma semana no Havaí, que tal? Provavelmente liquidarei com ela.
A menos! A menos!
Sim, por que não, diabos? Iriam todos. Podiam tirar Ivy da escola por uma semana e voar para o Havaí em família. A viagem faria bem a todos. As despesas dele correriam por conta da companhia. O resto do dinheiro podiam conseguir. Seria naturalmente incomum, um homem em sua posição levar a mulher e a filha numa empreitada daquela, mas diabos! A alternativa de deixá-las sozinhas e desprotegidas...
Com o moral levantado por agradáveis visões de sol, ondas e segurança para todos, Bill levantou-se rapidamente e foi até o Motherwell, catando os clipes espalhados pelo sofá e o chão.
Quando Abby enfiou a cabeça na porta, encontrou-o de joelhos, apanhando "coisas" no tapete.
— Sinto muito — ela gaguejou —, mas eu entrei de repente...
— Que há? — ele disse de cara amarrada.
— Mr. Hoover está na linha.
— Eu estou em reunião e não voltarei até o fim da tarde.
— Sim, senhor.
— Espere — ele ordenou, quando ela ia saindo, encolhida. — E aqueles jornais de Pittsburgh?
— Estão checando. Chamarão depois, a pagar, — Muito bem. Chame Mr. Harold Yates, Y-A-T-E-S, você o encontra no fichário rolante. Pergunte-lhe se tem compromisso para o almoço.
— Sim, senhor. — Abby engoliu em seco e desapareceu.
Harry, descobriu-se, estava no tribunal e não poderia encontrar Bill antes das três da tarde. Bill confirmou o encontro, depois chamou Janice pela linha do Des Artistes. Ela respondeu depois de o telefone tocar muitas vezes, e Bill ouviu Dominick anunciá-lo.
— Alguma novidade por aí? — ele perguntou.
— Não — disse Janice.
— Algum telefonema?
— Uns dois, na outra linha. Mas eu não respondi.
— Ótimo.
Ele estava para falar-lhe de sua iminente viagem ao Havaí quando Janice lembrou de repente: — Chegou um embrulho.
— Um quê?
— Um embrulho. Mário o trouxe poucos minutos depois da correspondência. Foi entregue em mãos.
— Bem, o que é?
— Não sei. Não o abri.
Bill calou-se um momento, depois perguntou baixinho: — Por que não, Janice?
— Não sei. Acho que estou com medo.
— Muito bem. — Ele suspirou baixinho. — Por que não o abre agora?
— Um minuto.
A luz acendeu-se na linha número dois de Bill, piscando, depois ficou acesa, enquanto Abby recebia o telefonema em sua mesa. Num momento, apagou-se. Hoover de novo, calculou Bill, sabendo que Abby dificilmente teria desligado tão rápido se fosse outra pessoa.
O som de papel rasgando-se precedeu a voz de Janice.
— São livros. Quatro.
— Quem mandou?
— Suponho que Mr. Hoover. Parecem livros religiosos.
Muito velhos. Um chama-se O Corão anotado. E há também os Upanichades — não sei se estou pronunciando direito —, uma tradução moderna. Há também um diário.
— Alguma carta? Uma nota, algo assim?
— Há um envelope no volume de Diálogos sobre metem... — psicose, de J. G. von Herder... — Novamente o som de papel rasgando-se enquanto ela abria o envelope. — É de Hoover, uma lista de referência de páginas para cada livro, escrita à mão e assinada "Sinceramente seu, E. Hoover".
— Muito bem — disse Bill, depois de pensar cuidadosamente. — Guarde-os. Podem ser usados como provas.
— Ele telefonou para aí?
— Sim, várias vezes, mas não vou receber as chamadas enquanto não falar com Harry Yates.
Houve uma pausa.
— Bill? — havia um tremor infantil na voz dela.
— Sim, benzinho?
— Será que ele estará na escola quando eu for buscar Ivy?
— Não. Não estava lá esta manhã.
— E se estiver?
— Se a importunar, chame um policial.
— Oh, Deus — ela murmurou numa voz abafada.
Poucos minutos depois de Bill desligar o telefone, lembrou-se de que não falara da viagem ao Havaí. Pensou em chamá-la de novo, depois decidiu que não. Só aumentaria o estado de confusão em que ela se encontrava. Diria à noite, na cama.
Os livros, parcialmente expostos em suas embalagens rasgadas, permaneceram na mesa da sala de jantar toda a manhã.
Janice passou por eles pelo menos uma dúzia de vezes, mas recusou-se conscientemente a olhá-los. O joguinho estava de antemão perdido, no entanto, pois às dez para as duas, após ter-se demorado arrumando o cabelo e as roupas muito mais tempo que o justificável para uma pequena expedição à escola e retorno, ela ainda tinha mais de meia hora sem nada que fazer.
Toda vestida, com casaco, botas de chuva e chapéu de pele artificial branco, ela preparou uma xícara de café solúvel e ficou bebendo-a de pé na cozinha, vendo uma parte dos livros ao lado do umbral da porta.
Parada ao lado da pilha de livros, xícara na mão, os dedos correndo pela capa estragada do de cima, ela não se lembrava de tê-los encontrado antes, nem conseguiu deixar de levantar a capa e revelar uma inscrição quase ilegível no alto do frontispício. Escritas à mão em tinta malva suave havia as palavras "R.A. Tyagy, 06", e embaixo, numa caligrafia mais firme, e em tinta mais nova, "E. Hoover, 68". O título do livro, impresso em delicado desenho floral, era O Bbagavad-Gita — uma tradução inglesa. A data de publicação era: "1746, Londres".
Ela pegou delicadamente parte das folhas amareladas, folheou-as devagar, fazendo com que se desprendesse uma pequena nuvem de poeira do centro do antigo volume. As páginas pareciam passar em blocos, mostrando as partes mais estudadas do texto. Num desses pontos, ela leu: "Assim como o homem, livrando-se de roupas velhas, toma novas, assim também o morador do corpo, livrando-se de corpos gastos, entra em outros que são novos..."
Em outra página, leu: "Pois certa é a morte para quem nasceu, e certo é o nascimento para quem morreu; assim não deveis lamentar o inevitável".
Janice fechou o livro decididamente e afastou-se da mesa, sentindo-se uma traidora por ter capitulado tão facilmente diante do inimigo. Bill estava certo. Era besteira.
Ela pegou a pilha de livros e levou-os para o armário do saguão, onde, subindo em uma cadeira, os colocou num canto escuro da estante superior, junto aos vários volumes da pornografia mais explícita de Bill.
Janice juntou-se às mães que aguardavam defronte da escola, e às três em ponto o sino tocou e o êxodo começou.
Menos de cinco minutos depois Ivy apareceu nas portas duplas e desceu sorrindo os degraus em direção a Janice. Hoover não estava visível em parte alguma. Bill tivera razão. Sem dúvida estava certo sobre tudo, pensou Janice, a confiança no marido crescendo aos saltos.
Pela primeira vez em quase uma semana, ela se viu dirigindo-se para o norte num passo ocioso, e não em pânico.
Ivy tagarelava sem parar. Janice ria sem reservas. Era como nos velhos tempos, para ambas.
— Não sei se é um extorsionista ou um maluco, ou, digamos, um homem que acredita nessa coisa. Estamos falando sobre um domínio sobre o qual muita gente não sabe nada...
— Harold Yates parou um momento, para organizar seus pensamentos e colocá-los dentro de sua perspectiva legal correta.
Bill estava sentado no sofá, junto à poltrona de onde Harold, semi-reclinado para trás, conduzia todo aquele negócio.
Não havia mesa em seu escritório. Uma mesinha de bebidas, baixinha, imediatamente à sua direita, era o bastante para acomodar dois telefones, um estojo de lápis e várias pranchetas.
— Mas independente de ser ele um... maluco, como você diz, e qualquer que seja a definição disso — Harold continuou, de modo lento e pedante —, independente de ser ele um extorsionista, você está realmente preocupado com o que pode fazer para impedir que sua família seja incomodada por essa pessoa. Eu tenho uma pergunta a fazer-lhe. Ele lhe fez alguma exigência?
Bill pensou cuidadosamente.
— Ele não veio logo fazendo exigências, a não ser por dizer que desejava ver-nos de novo, e que temos de chegar a algum tipo de acordo.
— Que acordo? Ele quer Ivy?
— Não. Disse que não quer reivindicá-la nem tomá-la, que não poderia fazê-lo legalmente, e de qualquer modo não o faria, pois sabe o que é perder alguém a quem se ama. Não está vendo, Harry? É um golpe. Estamos sendo preparados para uma extorsão.
Harry pensou nisso.
— Você quer saber quais são seus direitos legais?
— Quero saber como nos livrarmos dele!
— Bem, quando você diz livrar-se dele, se continuar a invadir sua intimidade, seguindo-os aonde vocês forem, telefonando para sua casa, pedindo para ver membros de sua família, ele não tem nenhum direito legal de fazer isso. Se a atenção que ele está dispensando a sua família for incómoda ou um aborrecimento, você pode dirigir-se aos tribunais e pedir um mandado impedindo-o de persegui-lo ou aborrecê-lo, a você ou a sua família. Se ele violar esse mandado, estará desprezando o tribunal e será punido pela justiça. A punição por desrespeito ao tribunal prevê a prisão.
Os olhos de Bill continuaram fixos no advogado.
— Se o levarmos ao tribunal, como provarei que tudo isso realmente aconteceu?
— Há meios de obter provas. Por exemplo, da próxima vez que ele chamar e quiser ir à sua casa conversar, tenha uma testemunha presente.
— Janice não é uma testemunha?
— Certamente, mas seria melhor que você tivesse uma pessoa de fora presente. Pode ser que você consiga fazer esse Hoover escrever-lhe o que deseja e propõe fazer, ou talvez gravar secretamente uma conversa com ele...
Era isso, pensou Bill com uma súbita onda de entusiasmo.
Gravaria as conversas dele. Certamente Russ Federico lhe emprestaria o equipamento e até o ajudaria a fazer as instalações na sala de jantar e manejar a máquina. Ao mesmo tempo, Russ poderia ser a testemunha de fora. Bill ouvia Harry falando como pano de fundo de seus pensamentos, e mudou rapidamente a atenção para o que o amigo e advogado estava dizendo.
— A fita, apesar de provavelmente inadmissível, certamente poderia ser usada para convencer a polícia de que esse homem o está importunando, e possibilita-lhe recorrer aos poderes legais.
— Creio que posso dar um jeito de gravar nosso próximo encontro — disse Bill, levantando-se.
— Pra que tanta pressa? Aonde vai?
— Preparar as coisas. — Bill olhou o relógio. — Não tenho muito tempo.
— Você pretende fazer isso já?
— Pretendo fazê-lo esta noite.
— Neste caso, há algumas perguntas que eu quero que você faça a ele. — A mão reforçada de Harold adiantou-se para uma prancheta e um lápis pontiagudo. — Umas perguntinhas simples e de rotina, cujas respostas terão alguma força legal e validade num tribunal, se for esse o curso que escolhermos.
Bill voltou a sentar-se com movimentos lentos no sofá, observando Harold levar a borracha da outra ponta do lápis aos grossos lábios semi-abertos e começar a formular mentalmente a substância de sua primeira pergunta, — Um — disse.
O encontro com Russ transcorreu como era de esperar; ele se mostrou não só disposto, como ávido para ajudar Bill.
Acertaram o encontro às seis e meia no apartamento para, como disse Russ, preparar o local para a ação. Bill não entrara em muitos detalhes, dizendo apenas que estava sendo incomodado por um artista desequilibrado, e que precisava da ajuda especializada do outro para pegar o bastardo. Discutiram o tipo de equipamento que Russ usaria e a sua instalação. Haveria o problema de esconder o fio entre o microfone e o gravador, ele achava, a menos que se usasse um microfone sem fio, o que era mais ou menos incerto e não tão digno de confiança quanto uma ligação direta. Russ decidira finalmente trazer vários sistemas e testá-los todos antes da chegada de Hoover.
Bill sentiu uma crescente excitação ao ver cada etapa do plano encaixar-se perfeitamente em seu respectivo lugar.
Antes de deixar o estúdio de Russ, ele telefonou para Janice, contou-lhe o que iam fazer e sugeriu-lhe que arrumasse com Carole para Ivy passar a noite na casa dela.
— Ele telefonou esta tarde, Bill.
— Você falou com ele?
— Não — disse Janice. — Mandei Dominick tomar o recado.
Ele deixou um número de telefone.
— Muito bem. Dê-me esse número.
— Só um segundo. — Ela retornou quase imediatamente. — 555-1771.
Bill discou o número e ficou surpreso ao ouvir a voz de uma mulher dizer: — ACM, boa noite.
— Boa noite — ele respondeu. — Eu gostaria de falar com Mr. Elliot Hoover, por favor.
— Um momento, por favor. — Um estalido seco, seguido por um zumbido e depois por uma voz masculina: — Dormitório do quarto andar.
— Elliot Hoover, por favor — disse a mulher.
— Um momento, por favor.
Bill pôs a mão sobre o bocal e perguntou a Russ em voz baixa: — Nove horas, está bem?
— Nove e meia — respondeu Russ, também sussurrando.
Bill podia ouvir o som e o eco das passadas aproximando-se.
Depois, a voz de Hoover disse: — Aqui é Elliot Hoover.
— Aqui é Bill Templeton.
— Oh, sim, Mr. Templeton. — A voz tinha uma nota de ansiedade.
— Eu gostaria de encontrá-lo esta noite, em meu apartamento, digamos, às nove e meia.
— Isso será ótimo. Obrigado.
Sim, pensou Bill, saltando um riachinho de neve suja na esquina da 59th Street com o Central Park West, tudo sairá ótimo.
— Uma garota chamada Abby telefonou. Disse que o Post-Gazetíe de Pittsburgh confirmou a informação que você queria: que Sylvia Flora Hoover e sua filha Audrey Rose morreram num acidente de carro na Barreira de Harrisburg pouco depois das oito e meia na manhã de 4 de agosto de 1964.
Nenhum beijo, nenhum cumprimento, nenhuma chance de despir seu casaco e suas botas; Janice atacou-o com a informação no momento em que ele abriu a porta.
— Muito bem — disse Bill em voz baixa, esgueirando-se ao lado dela para entrar no apartamento.
— Muito bem? — ela gritou em resposta.
— Vá com calma, benzinho. Deixe-me ao menos tirar o casaco e preparar um drinque para nós — ele disse tranquilizadoramente, embora o forte odor de álcool no hálito de Janice lhe indicasse que ela não esperara o convite. — Podemos discutir isso razoavelmente.
— Oh, Deus — ela murmurou baixinho.
— Janice! — a voz dele tornou-se estridente. — Não sei o que você está preparando aqui. Mas quero que saiba que não acredito em fantasmas, espectros, assombrações, auras, carmas ou qualquer outra asneira dessas. Tem de haver uma explicação simples e racional para tudo isso.
Janice deu um rápido passo atrás.
— Muito bem, então me dê uma!
— Está bem, sem me esforçar muito. O cara escolhe seu alvo, descobre quando o filho deles nasceu — o minuto exato do nascimento —, depois pesquisa sobre que criança morreu na mesma hora. Tem o país todo para escolher essa criança morta.
E assim que casa as duas coisas, simplesmente investe-se da personagem do pai da criança morta e ataca. Razoável?
Janice limitou-se a ficar olhando-o, sem dizer uma palavra.
Ele podia ver, pelo amaciamento das linhas do rosto dela, que sua explicação a atingira. Não em cheio, mas o suficiente para permitirlhe toma-la nos braços e beijar seus olhos perdidos e obcecados.
— E isto è assim, de improviso. — Ele sorriu. — Creia, Janice, vamos chegar ao fundo dessa coisa e nos libertar desse chato. Eu prometo.
Beijou os lábios dela e sentiu sua boca abrir-se e seu corpo descarregar a maior parte da tensão que o oprimia. Não fosse por Ivy lá em cima, ciosamente arrumando seu saco de dormir para pas-sar a noite com os Federico, e teria feito amor com ela ali e então.
Russ apareceu às seis e vinte e cinco com uma montanha de equipamentos de som. Mário e Ernie ajudaram-no a pô-los no elevador e a trazê-los pelo corredor até o apartamento de Bill.
Durante a hora seguinte, a voz de Bill, dizendo "Um, dois, três, quatro, cinco, seis... está me ouvindo? Está me ouvindo?
Seis, cinco, quatro, três, dois, um... vamos, Russ, está me ouvindo?", encheu o apartamento e chegou a Janice na cozinha, preparando sanduíches e temperando uma enorme salada de legumes variados, alface e tomates. Ivy partira para sua jornada noturna poucos minutos depois de Russ chegar, arrastando uma valise pesada demais e seu jantar congelado favorito debaixo do braço.
Às oito e quinze, Russ, Bill e Janice estavam sentados na sala de estar, acabando os últimos sanduíches com cerveja e examinando seu trabalho. O microfone sem fio não funcionara, obrigando-os a usar um fio que partia do microfone, ocultava-se entre as folhas e flores de outono no vaso junto ao sofá, atravessava o chão da comprida sala de visitas sob uma série de tapetes, e subia pela parede da escada até o quarto de dormir do casal, onde Russ instalara seu equipamento Nagra de gravação. Caberia a Bill fazer Hoover sentar-se no local certo do sofá, a fim de assegurar um sinal utilizável. Janice achava que aquilo tudo era complicado demais para funcionar.
Os homens não ficaram desencorajados com o seu ceticismo e continuaram a trabalhar com entusiasmo, aperfeiçoando a arrumação, até as nove e quinze, quando o telefone tocou.
Bill ergueu o aparelho, aborrecido, e disse: — Sim? — Depois, após uma pausa: — Está bem, mande-o subir.
Fez um sinal a Janice, com um rápido movimento do dedo.
Ela ouviu os passos de Russ subindo a escada para o quarto de dormir, a fim de guarnecer seu posto, e moveu-se rapidamente para sua posição pré-arranjada no extremo oposto do sofá, junto ao lugar destinado a Elliot Hoover. Ela seria a isca, Bill calculava, para atrair Hoover àquela parte da sala.
Um silêncio quase audível desceu sobre o apartamento, uma quietude consciente e coletiva como a que se sente no teatro, quando as luzes morrem e a cortina sobe.
8
A campainha soou.
Janice ouviu Bill e Hoover murmurarem algo incompreensível um ao outro enquanto atravessavam o longo e estreito corredor em direção à sala de visitas e calculou que fosse alguma forma de cumprimento. Havia certa coisa de loucura, ela pensou, no fato de dois homens, sem dúvida inimigos, observarem as delicadas gentilezas determinadas por uma educação rígida — como dois generais que se defrontam apertando-se as mãos antes do massacre.
O rosto de Bill estava severo, rígido, inflexível, quando precedeu Hoover passando pelos umbrais lavrados da porta e entrou na sala de visitas, tentando dirigi-lo para o lugar no sofá com um ligeiro aceno do braço. Mas Hoover deteve-se na entrada e ficou parado, examinando criticamente a sala, seus olhos melancólicos cheios de um grande temor enquanto absorviam lentamente cada detalhe das paredes e do teto. A suave luz rósea nos cantos acentuava a palidez clara e sem rugas de seu rosto, dando-lhe uma placidez juvenil e como que sacerdotal.
Bill voltara-se rapidamente, ao notar que a atenção do visitante estava em outra parte, e agora permanecia impacientemente à espera de que ele se movesse.
— É exatamente como ele descreveu — disse Hoover numa voz abafada e incrédula. — A lareira... as paredes brancas estucadas... as pinturas do teto — seus olhos encontraram a escada — e a escada, com a coluna de cabeça esculpida...
Encaminhou-se até a escada e pôs os dedos na cabeça de viking com um gesto delicado, tateante, como se buscasse uma corroboração táctil para confirmar o fato de que seus olhos não o enganavam. Seu olhar desviou-se pelo corrimão até o alto da escada, e os olhos tornaram-se focos de curiosidade.
— Os quartos de dormir... em cima — a voz estava embargada de emoção. — Três... o de Ivy fica à esquerda da escada...
Bill preparou-se para a ação. Se Hoover desse um passo escada acima, ele se lançaria do outro lado da sala e agarraria o filho da puta.
Mas o visitante ficou onde estava e voltou-se para ele.
— Estou certo? — perguntou com um sorriso, que Bill decidiu ser presunçoso.
— Hummm... sim... — disse Bill, movimentando-se nervosamente pela sala. — Eu... bem, creio que é melhor começarmos logo, se não se incomoda.
— Certamente — respondeu Hoover, e atravessou rapidamente a sala, observando a desarrumada disposição dos tapetes que ocultavam o fio do microfone. Sentou-se no sofá, no lugar onde devia sentar-se, e Bill sentou-se imediatamente a seu lado.
— Bem... eu imagino, Mr. Hoover — começou Bill, hesitante —,se o senhor se importaria de repassar... de novo os pontos principais do que nos disse ontem à noite.
Estávamos um tanto confusos, e... e o senhor nos atingiu muito...
Hoover pensou um momento.
— Há alguma parte que o senhor gostaria que eu repetisse?
Janice tinha certeza de que ele sabia que suas palavras estavam sendo gravadas.
— Não, não — disse Bill. — Só um resumo geral das coisas, sabe, começando com, digamos, a morte de sua mulher e filha.
Eíliot Hoover inspirou profundamente e fechou os olhos.
Havia um senso de ritual no gesto, uma reunião de forças internas para suportar um momento de provação. Quando falou, foi em frases curtas, bem organizadas e contendo apenas fatos.
— Minha mulher e minha filha morreram num acidente de carro a 4 de agosto de 1964. Cerca de um ano depois, eu conheci uma mulher, uma médium, que me disse que minha filha retornara à vida, no corpo de outra pessoa, e estava morando na cidade de Nova York. Minha tendência foi fazer pouco da idéia, mas achei-a intrigante. Um ano depois, assisti a uma conferência feita por um famoso parapsicólogo, e ele me disse em essência a mesma coisa que a mulher me dissera um ano antes, que minha filha estava viva no corpo de uma garota chamada Ivy, e passou a descrever a casa dela, que era idêntica ao ambiente em que agora me encontro.
A maneira simples, direta de seu discurso causou calafrios em Janice. Ele realmente parecia acreditar naquilo.
— Quem são essas pessoas? — perguntou Bill.
— Perdão?
— Os dois médiuns. Como se chamam?
— Eu nunca soube o nome da mulher. O homem era Erik Lloyd.
— Erik Lloyd?
— Sim, ele... — os olhos de Hoover baixaram-se, respeitosamente — morreu há vários anos.
— Hum, hum — disse Bill compungido. — Isso é muito ruim.
Poderia ter previsto ambas as respostas. Hoover evidentemente pensava que tratava com novatos.
— Muito bem — ele continuou, os olhos fixos em Hoover —, neste ponto, estamos falando de 1965 a 1966. O senhor diz que duas pessoas, médiuns, lhe disseram que sua filha estava viva e morando em Nova York, e que o nome dela era Ivy, correto?
Janice achou que Bill estava exagerando. Contudo, Hoover respondeu diretamente e sem preocupação aparente.
— Sim — respondeu —, correto.
— Bem, por que o senhor não veio aqui e a reivindicou?
— Eu nunca pretendi reivindicá-la. Nem agora.
— Bem, por que não veio pelo menos nos dar uma olhada, como está fazendo agora? O que o fez levar sete anos não foi?
— para decidir se ela era ou não sua filha mesmo?
— Mr. Templeton — a voz de Hoover era suave e paciente — , como expliquei na noite passada, toda a minha origem, minha educação religiosa, a soma e a substância do que eu era e acreditava se opunham fortemente a tais idéias. Eu era um gozador e descrente, como o senhor agora.
— Por isso o senhor foi à índia, para descobrir a verdade?
— Fui a muitos lugares, Mr. Templeton, conheci muitas famílias, muitos professores, e me hospedei com eles. Aprendi um estilo de vida inteiramente alheio ao meu, juntei minha vida à deles, adotei seus costumes, partilhei de sua pobreza, de suas crenças e filosofias. E no devido tempo, com a ajuda de Deus e a sabedoria de Siddhartha Gautama, o Buda deles, vim a conhecer a realidade de suas convicções religiosas.
Hoover voltou-se para Janice.
— Pode me dar um copo d‘água, por favor, Mrs. Templeton? — pediu.
Enquanto Janice se levantava e encaminhava-se para a cozinha, a pergunta seguinte de Bill foi sumindo lá no fundo.
— Compreenda, Mr. Hoover, nessas coisas de reencarnação e outras idênticas, eu estou no escuro. Diga-me: quais são essas convicções religiosas de que o senhor fala? E o que o convence de que são corretas, e de que o senhor tem razão no que está fazendo?
Janice perguntava-se se Hoover gostava de gelo na água e decidiu finalmente servir o gelo separadamente. A idéia de Russ ouvindo lá em cima aquela estranha conversa trouxe-lhe um ligeiro sorriso aos lábios. De certa forma, Hoover não parecia assustador esta noite. Sem dúvida passara por uma experiência muito ruim, e era um homem torturado, disposto a acreditar em tudo. Janice quase tinha pena dele.
Quando retornou com a bandeja, Hoover falava com uma voz carregada de ardor.
— O ego do homem nunca morre. Continua voltando e voltando, tendo adquirido sabedoria em cada estada passada em outros planos do ser entre as encarnações. Assim, algumas almas são mais velhas em saber, desfrutaram de mais estágios de evolução espiritual e intelectual, de modo que um grande professor pode ser uma alma mais velha do que, digamos, um pedreiro ou um selvagem...
— Huumm, sim... — disse Bill, quando Janice pôs a bandeja.
— Eu não sabia se o senhor queria gelo — ela disse inseguramente, colocando a vasilha contendo o gelo na mesa, perto de Hoover.
— Não, obrigado — ele disse com um rápido sorriso. Tomo-a natural.
— Como o senhor obteve dinheiro, Mr. Hoover — perguntou Bill —, para manter-se durante esse tempo? Quer dizer, o senhor abandonou o trabalho em 67. Como se manteve durante todos esses anos?
Janice tinha certeza de que aquela era uma das perguntas de Yates.
Hoover acabou de beber sua água e respondeu simplesmente; — Recebi muito dinheiro com a morte de minha mulher e de minha filha. Uma apólice de dupla indenização no valor de mais de duzentos mil dólares deu de sobra para me manter durante esses anos.
Bill fez um rápido cálculo mental a juros de oito e meio por cento: duzentos mil lhe dariam líquidos dezessete mil por ano, o que, se fosse verdade, era suficiente para mantê-lo em qualquer número de buscas da verdade.
— Embora o dinheiro, por um lado, me enojasse — continuou Hoover —, eu fiz bom uso de parte dele. Ainda sobra muito, uma vez que minhas necessidades são muito simples.
— Quando o senhor chegou a Nova York?
— Este ano, no dia 12 de julho.
— E usou um disfarce?
— Não até estar bem certo de que... encontrara as pessoas certas.
— Quer dizer, nós?
— Sim.
— Como sabia que éramos as pessoas certas?
— Por um processo de eliminação. Eu tinha três pistas concretas: ela morava na cidade de Nova York, seu cabelo era louro, chamava-se Ivy, mais a data do nascimento dela, que tinha de ser logo depois da morte de Audrey. Fui aos postos de saúde de todos os cinco departamentos e conferi os registros de nascimentos. Descobri seis garotas que podiam ser ela: duas em Queens, uma no Bronx, uma em Brooklyn e duas em Manhattan.
Todas haviam nascido no espaço de um ano após a morte de Audrey. Mas só uma nascera no momento da morte dela. Sua filha.
As palavras de Hoover caíram profundamente nos átomos da sala. Janice lambeu os lábios, que haviam de repente ficado crestados. Bill limpou a garganta.
— Não será um tanto incomum — aventurou — uma pessoa voltar tão rápido? Quer dizer, as pessoas que acreditam nisso sempre falam de ter vivido na época de César e David Crockett, sabe? Não será incomum uma pessoa morrer num segundo — Bill estalou os dedos — e nascer no segundo seguinte? Quer dizer, diga-me...
— Em minha experiência, Mr. Templeton, eu descobri que os que morrem prematura ou violentamente, sendo impedidos de experimentar todas as oportunidades de seu crescimento mental, físico e espiritual, muitas vezes voltam mais rapidamente que os que morreram em paz e na velhice. No Tibete, todo dalailama é a encarnação imediata de seu antecessor. Quando um dalailama morre, os notáveis tibetanos imediatamente iniciam uma busca da nova encarnação.
— E sempre a encontram?
— Durante cinco séculos, jamais deixaram de encontrar.
— Como fazem isso?
— Interpretando certos portentos. Depois que o décimo terceiro dalailama morreu, eles colocaram seu corpo num trono, de frente para o sul. Após vários dias, viram que o rosto dele se voltara para o leste, onde se podiam ver curiosas formações de nuvens nas vizinhanças de Lhasa. Altos e notáveis lamas foram a todas as partes de Lhasa em busca do dalaí-lama recém-nascido.
— E o encontraram?
— Sim, na aldeia de Taktser, encontraram um garoto de dois anos, morando em ambiente humilde. Quando o chefe do grupo, Kewtsang Rinpoche, entrou na casa, o menininho correu imediatamente para ele e sentou-se em seu colo. O lama trazia um rosário no pescoço que pertencera ao décimo terceiro dalailama. Quando a criança o viu, reconheceu-o e o quis. O lama prometeu dar-lhe se ele conseguisse imaginar quem era, e o garoto respondeu: " Seraaga", o que significa um lama de Será.
Bill tossiu.
— Muito bem, então o senhor descobriu sua filha. Por que o disfarce? Por que toda essa coisa de Serviço Secreto, seguindo-nos por aí, nos amedrontando como o diabo?
— Peço desculpas por isso — respondeu Hoover com um ar de arrependimento. — Mas eu tinha de ter certeza de que vocês eram as pessoas certas. Que Ivy era a garota certa. Os tempos da morte e do nascimento, apesar de impressionantes, não eram ainda prova convincente. Poderia ainda ser uma mera coincidência...
— E sua pesquisa convenceu-o de que éramos as pessoas certas?
— Tente entender, Mr. Templeton. Na crença budista, a morte torna-se um mero incidente na vida, uma mudança de cenário, uma breve jornada na qual as almas vagueiam em busca de uma nova vida, escolhendo os pais de quem desejam nascer.
Audrey Rose teria naturalmente buscado uma vida e pais semelhantes aos que ela conhecia e amava na vida anterior. Não foi mero acidente o fato de tê-los escolhido. O tipo de pessoas que vocês são, a profundidade de amor e compreensão, a qualidade de intelecto, o estilo de vida que vocês ofereciam faziam de vocês a família perfeita na qual renascer.
— E se Audrey Rose não houvesse morrido? — interrompeu Bill. — Que seria a nossa filha? Uma concha vazia?
— Não se haveria tornado a recebedora de outra alma. Bill balançou a cabeça.
— Seria de pensar, se este fosse o caso, que ela se lembraria de alguma coisa de suas vidas anteriores.
— Uma lembrança dessas só complicaria a vida atual dela, Mr. Templeton. Os hindus acham trágico quando uma criança lembra sua existência anterior, pois isso, acreditam, significa uma morte prematura.
Bill deu um profundo suspiro, como se retomando a respiração.
— Muito bem — continuou, a mente agarrando as perguntas ainda por fazer, buscando a sucessora adequada, legal, para a anterior. — Então o senhor veio para Nova York e, usando um disfarce, começou a observar nossa família...
— Não, não imediatamente. Como eu disse, havia outras, mas por uma razão ou outra elas não se enquadravam. Comecei a observar sua filha há pouco mais de um mês, e quase imediatamente comecei a ver coisinhas em Ivy que realmente me lembravam Audrey Rose...
— Por exemplo?
— O modo como ela anda. Sua tendência a alhear-se, sonhando acordada, enquanto anda. O hábito engraçado de lamber os lábios pouco antes de começar a falar. Seu riso súbito; o modo como joga a cabeça para trás quando ri; a doce tristeza em seus olhos quando ocorre algo doloroso — como hoje, Mrs. Templeton, quando vocês duas pararam para ajudar aquele pombo férido...
Janice sentiu a própria alma empalidecer, quando ele passou a descrever os infinitos gestos e qualidades adoráveis e sutis que eram de exclusiva propriedade de Ivy, aquelas raras e ténues nuanças de movimento, estilo e natureza que Janice pensava que só ela havia notado. Sentiu-se subitamente agradecida pelo fato de a filha não estar por perto, de estar seguramente guardada com Carole lá embaixo, longe da proximidade da estranha e terrível perspicácia de Elliot Hoover.
— Todas essas coisas, essas pequenas idiossincrasias, eram de Audrey Rose, Mr. Templeton. Em muitíssimas formas as duas são uma e única pessoa.
— Elas também se parecem?
— Não. Só o espírito passa de vida a vida; o seu físico é novo com cada nascimento. Eis — Hoover enfiou a mão no bolso e retirou sua carteira, de onde extraiu cuidadosamente uma pequena fotografia de seu invólucro de plástico e entregou-a a Bill — um retrato de Audrey Rose, tirado um mês antes de sua morte.
Bill estudou o retrato; o rosto que olhava para ele era redondo, de feições batidas e feias. O cabelo era escorrido, castanho-claro, parecido com o do pai, assim como os olhos. Bill passou a fotografia a Janice, que a olhou ligeiramente e logo a empurrou de volta para o marido, como se fosse algo doente e contagioso. Bill devolveu a fotografia a Hoover, que cuidadosamente a repôs em seu invólucro protetor.
— Bem, Mr. Hoover — disse Bill, produzindo seu melhor sorriso urbano —, parece que chegamos ao ponto em que devo lhe perguntar o que é, exatamente, que o senhor deseja de nós.
Hoover devolveu o sorriso.
— Nada mais ou menos do que o senhor e sua esposa estão dispostos a me dar.
— Bem, como assim? — perguntou Bill. — Diga-nos. Os olhos de Hoover tornaram-se distantes, serenos.
— A oportunidade de ver Ivy de vez em quando, observá-la crescer, ser útil, se necessário...
— Isso poderia ser difícil de acertar.
— Não se eu me tornasse amigo de vocês. Vizinho. Pretendo radicar-me em Nova York e reassumir novamente minha vida profissional.
Hoover percebeu as linhas severas de resistência no rosto dos dois e logo acrescentou: — Entendam, não tomarei tempo de vocês, nem esperarei nenhum privilégio ou consideração especial...
Sim, claro, pensou Bill esquentado, o diabo é que você não fará isso.
— E, certamente, Ivy jamais saberia de nosso...
relacionamento. Como eu disse antes, seria perigoso para ela saber...
Bill estendeu a mão.
— Muito bem, eu tenho uma pergunta. Como, segundo o senhor próprio reconhece, sua presença representa um perigo para Ivy, e como diz que se preocupa com o que acontece a ela e deseja ser-lhe útil, por que simplesmente não desaparece? Essa seria a maior ajuda que poderia dar a ela, pelo que vejo. Neste momento, nossa filha é uma criança normal e sadia. O senhor não está interessado em que ela continue assim? Quer dizer, digamos que haja um pouquinho de sua filha misturado de algum modo nela, por que arriscar destruir ambas?
A pergunta era boa, direta, expressa em termos simples, objetiva, e Janice sentia-se orgulhosa de Bill por tê-la feito. Não havia como Hoover pudesse responder sem trair seu interesse egoísta. Ela viu o visitante comprimir a ponta do nariz com o polegar e o indicador, e sabia que por trás daquele gesto suave havia uma mente trabalhando.
— O senhor está certo, evidentemente — ele disse finalmente. — Seria a coisa mais fácil eu simplesmente dar o fora. E é bem possível que afinal possamos chegar a isso. Mas ponha-se em minha posição, Mr. Templeton...
Ele foi interrompido pelo súbito chamado do telefone da casa — um trinado estridente e contínuo, que significava perigo.
A última vez que ele tocara desse jeito fora quando se julgara que o prédio estava em chamas.
Bill saltou e correu pelo corredor. Janice levantou-se, assim como Hoover, espantada e confusa pela súbita atividade.
Bill agarrou o telefone e ouviu a voz tensa de Dominick dizer: — Diga, Mrs. Federico.
— Bill? — o frenético murmúrio de Carole ardeu em seu ouvido. — Bill, desça aqui! Alguma coisa está acontecendo com Ivy!
— Que é? — perguntou Bill.
— Não sei... ela está... ela está correndo em torno do quarto, gritando... — a voz de Carole aumentava de volume, com o pânico. — Está tendo algum tipo de pesadelo.
— Já vou indo — disse Bill, batendo o telefone e voltando-se para Janice, parada atrás dele, pálida. — É Ivy! Veja o número de Kaplan!
O olhar fugidio trocado entre eles levantou o véu de uma memória compartilhada, mas detestada. Janice sentiu um calafrio percorrer suas veias enquanto puxava o livrinho de telefones, com capa de couro, da gaveta da cozinha, e depois se sentiu voando, como uma pena, pela porta de serviço e pela escada de incêndio abaixo, atrás de Bill. Não tinha consciência dos próprios pés enquanto eles a levavam velozmente pelos degraus de ferro e concreto até o andar de baixo, transportando-a para a porta dos Federico, onde Bill estava parado, batendo de leve e chamando baixinho: — Carole! É Bill!
Um coração ansioso martelava o peito de Janice, misturando-se com o ruído da corrente ao deslizar para fora de seu trilho e da porta ao abrir-se. Carole ficou parada na soleira, o rosto tenso e branco como um lençol.
— Lá em cima — exclamou debilmente, e correu atrás de Bill, que a empurrou e passou correndo pelo arco da sala de visitas e subiu o curto lance de escadas.
— Tudo estava bem — ela arquejava freneticamente. Ela jantou e foi para a cama na hora... depois eu ouvi esses ruídos...
estava na cozinha... subi e... você vai ver... é... assustador...
quer dizer, ela está sonambulando ou qualquer coisa assim... e gritando... tentei acordá-la... mas não consegui...
A porta do quarto estava parcialmente aberta. Bill esperou antes de entrar, ouvindo os sonzinhos aterrorizados que saíam lá de dentro: o correr de pés nus sobre o piso acarpetado; o leve impacto de um corpo chocando-se com objetos; o choro de ratinho, de angústia infantil, desesperadamente repetindo a mesma litania suplicante de palavras pegadas: " Mamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapai... " que eles tinham ouvido em certas outras noites mais de sete anos antes.
Quando Janice entrou suavemente no quarto atrás de Bill, a lembrança esquisita e incrível daquela época distante, expulsa da realidade durante sete longos anos, saltou de volta à vida, súbita e palpitante.
Inteiramente alheia à presença deles, os olhos de Ivy brilhavam selvagemente; seu rosto febril era varrido por mil terrores noturnos enquanto ela fugia dando voltas no quarto pequeno e atravancado, para um lado e outro, em completa desordem, chocando-se com móveis, cadeiras, máquina de costura, mesa, subindo nas peças maiores para alcançar algum objetivo desconhecido e desesperadamente buscado. Como antes, os minúsculos sons de bebé, "Mamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapai..." acentuavam sua torturada necessidade de conseguir.
Toda vez que ela passava por um obstáculo e parecia aproximar-se da porta ou janela — as mãos batendo, tateando, estendendo-se em direção aos vidros — recuava de repente em dores e mergulhava de volta no círculo desordenado de confusão, chorando, gritando, vagindo seu queixoso lamento: "Mamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapai ..."
A mão de Janice agarrou fortemente a de Bill, os dois paralisados, pouco além da entrada do quarto, olhando desamparadamente o macabro espetáculo, sabendo por experiências passadas como eram ambos impotentes nessas crises.
— Ivy, é papai — implorava Bill, estendendo os braços para abraçá-la quando ela passava por ele, os olhos como luzes ardentes projetando-se de um rosto febril, enquanto ela recuava dele e fugia para um canto oposto do quarto.
— Chame o Dr. Kaplan, Janice — ele murmurou roucamente.
— Esperem.
A voz era de Elliot Hoover, falando da porta atrás deles.
Janice voltou-se e viu-o olhando atentamente para Ivy, correndo pelo quarto num passo mais rápido, inteiramente impelida pela urgência do pesadelo. Os olhos de Hoover estavam fixos na garota atormentada, observando criticamente todo movimento e gesto que ela fazia, ouvindo a voz rouca, inteiramente exausta, — repetindo: "Mamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapai-mamãepapai..."
Janice sentiu a mão de Bill enrijecer-se na sua quando também ele se voltou e plantou um olhar severo de advertência no intruso.
Mas Hoover os ignorou, olhos e mente inteiramente dedicados à filha deles, tentando definir o significado da terrível alucinação em que ela estava presa. E então uma expressão de inexprimível tristeza passou por seu rosto; os olhos tornaram-se enormes e assombrados quando ele murmurou: — Meu Deus. — A voz era quase inaudível.
Passou rapidamente por eles e entrou no quarto, aproximando-se de Ivy, que rodopiava estonteadamente, perto da janela, as mãos buscando os vidros, estendendo-se para eles, tateando, e depois recuando em sofrimento e medo, como se fosse lava derretida.
— Audrey! — A palavra partiu de Hoover como um tiro: nítida, rápida, imperativa, apresentando promessa, oferecendo esperança. — Audrey Rose! É papai! — E deu outro passo em direção à criança agoniada atormentando-se na janela, agitando seus finos braços para os vidros desesperadamente, implorando aos demónios lá fora numa voz estridente e sofrida de uma criança com metade de sua idade: "Mamãepapaimamãepapaimamãepapaimamãepapai".
— Audrey Rose! Eu estou aqui, Audrey! Aqui!
Os nós dos dedos de Janice ficaram brancos na mão de Bill, quando ela viu Hoover adiantar-se outro passo em direção a Ivy, que não dera nenhum sinal de tê-lo ouvido ou de tomar conhecimento de sua presença.
— Aqui, Audrey! É papai! Eu cheguei!
A mão de Bill procurou libertar-se da de Janice, e ela sabia que ele estava para fazer alguma coisa, para agarrar Hoover e atirá-lo fora do quarto. Viu a intenção mortal nos olhos do marido e lançou-lhe um olhar pedindo paciência.
— Audrey! Por aqui, querida! Audrey Rose! É papai!
De repente, Ivy voltou-se da janela e dirigiu seu rosto corado e devastado pelo medo para Hoover, olhando-o alheamente como um suplicante pedindo piedade, o balbuciar de palavras mudando para "Papaipapaipapaipapaipapaipapai-papaipapaipapaipapai..."
— Sim, Audrey! É papai! É papai! Por aqui, querida! — ele chamava desesperadamente numa voz sumida. — Por aqui, Audrey Rose! Por aqui! Venha! — E dando um passo para trás, estendeu as mãos para a espantada criança, oferecendo orientação, convidando-a a confiar. — Por aqui, querida! Por aqui!
Lentamente, a angústia e o pânico começaram a esvair-se do rosto da filha deles; a rápida e febril intensidade das palavras pareceu diminuir, espaçar-se e tornar-se mais definida: "Papai, papai, papai, papai..."
— Sim, querida, por aqui — Hoover adulava-a, curvando-se e estendendo os braços inteiramente para ela. — Venha, Audrey, venha!
— Papai... papai? — Os olhos dela permaneciam fixos num ponto pouco além da imagem de Hoover, tentando com todas as forças penetrar o opaco véu do pesadelo que engolfava tudo.
— Por aqui, Audrey! VENHA! — A voz dele tornou-se uma ordem. — VENHA, AUDREY!
Uma pontada de medo subiu pela coluna de Janice quando viu o rosto de sua filha suavizar-se com reconhecimento, começar a afrouxar a aparência devastada e brutalizada de terror. Lágrimas pendentes das pálpebras — os grandes olhos azuis agora luzindo tão grandes e brilhantes em seu rosto pálido e cansado —, ela lentamente estendeu as mãos para Hoover, de modo inseguro, tateante.
— Papai!
— Sim, Audrey Rose! É papai — Hoover encorajava-a, numa voz abafada, carregada de emoção. — Venha, querida...
— Papai! — E com um sorriso que parecia responder-lhe, ela cambaleou para dentro de seus braços, agarrando-o num forte abraço. E assim ficaram, agarrando-se um ao outro, como um casal de amantes que finalmente se encontravam após uma longa e cansativa jornada.
Bill estava como um homem em transe, sua sombra caindo vaga e grande sobre os dois, lançada pela luz da sala às suas costas. Seu rosto estava pálido; os olhos úmidos e reluzentes; a boca tremia com os lábios abertos. Todo o seu ser parecia absorvido na ansiedade e ternura à sua frente.
— Que diabo você pensa que está fazendo? — ele explodiu roucamente, numa voz que Janice quase não reconheceu. Ficou à espera de uma resposta, as linhas de seu rosto continuando a mover-se, a falar, embora sua voz houvesse cessado.
Elliot Hoover levantou-se lentamente, erguendo Ivy nos braços. Quando se voltou para Bill e Janice, eles viram que a menina dormia, respirando normalmente, seu rostinho adorável agora tranquilo e composto num sono repousante. O homem que a libertara de sua servidão deu um passo até Bill e delicadamente transferiu a preciosa carga para seus braços.
— Era o acidente — disse Hoover cruamente. — Houve incêndio. As janelas estavam fechadas... ela não conseguiu abri-las, e não tinha meios de sair do carro... Disseram-me que isso durou alguns minutos.
Uma estranha quietude pareceu fechar-se em torno deles. O próprio ar parecia silencioso e solene.
Uma tosse atrás de Janice comunicou-lhe que Carole havia presenciado todo o drama. Havia esquecido dela e de Russ, ainda lá em cima, em seu quarto de dormir.
— Vou sair agora — disse Hoover, com um ar de profunda preocupação nos olhos. — Há muita coisa em que tenho de pensar. Vocês foram muito bondosos em me receber. Boa noite.
Com um esboço de sorriso, ele pediu licença para passar por eles, na porta, e deixou o quarto. Janice pôde ouvir seus passos morrerem nas regiões mais baixas do apartamento e finalmente desapareceram. Bill não ouviu nada. Toda a sua atenção estava presa na silenciosa e pacífica cadência da respiração regular de Ivy, que dormia satisfeita e calma em seus braços.
Russ ainda estava no quarto de dormir deles, desmontando o equipamento de som e pondo-o dentro das caixas, quando Bill levou Ivy para o quarto dela, passando pelo seu.
— Tudo bem? — perguntou Russ a Janice, que parara na porta aberta.
— Acho que Carole precisa de você — ela disse debilmente.
— Ah, é? Que é que há?
— Houve um problema com Ivy, ela lhe dirá. Russ assentiu com a cabeça e pegou seu gravador.
— Vou descer imediatamente.
Na porta, voltou-se para Janice com uma surpresa final.
— A propósito — sorriu, pondo o carretel de fita na mesa — , esse cara é louco!
— Sinto muito, Janice, mas eu simplesmente não engulo.
— Muito bem.
— Falei sério, não engulo.
— Muito bem. — A voz dela era suave, desprovida de paixão, não se importando mais com o que ele engolia ou não.
A escuridão do quarto parecia mais negra do que Janice jamais a vira. Os dois jaziam despertos, os corpos separados, as mãos distantes, habitando suas ilhas privadas de desespero.
— Hipnose sugestiva. Não foi o que a Dra. Vassar disse?
— Não me lembro — ela disse.
— Bem, foi isso. Funcionou com ela e com ele. Hipnose sugestiva.
— Quer dizer que ele é psiquiatra?
— Ou hipnotizador.
Janice de repente sentiu pena de Bill. Ele passara por uma experiência amarga, castrativa, e tentava desesperadamente reconquistar alguma aparência de domínio sobre a situação.
— Não acha que é possível? — ele perguntou.
— Que ele seja um hipnotizador? Não.
— Muito bem, então. Em que você acredita?
Ele a obrigava a pensar.
— Está certo — ela disse baixinho. — Não creio que ele seja um hipnotizador. Não creio que seja um maluco. Não creio em reencarnação. Creio que Elliot Hoover é um homem dedicado, persuasivo, com um único objetivo na vida. Por alguma razão, deseja nossa filha. Com toda a sua conversa poética, doce, religiosa, ele tem um fogo ardendo, dentro dele, que não o deixará desistir até obter o que deseja. — Sentiu a voz tremer e lágrimas brotarem de seus olhos. — Assim, é melhor você detê-lo... antes que ele nos destrua a todos.
Ela voltou a cabeça para o travesseiro e deixou sair tudo.
Bill atendeu-a imediatamente, abraçando-a, acariciando seu corpo, enxugando com beijos as lágrimas de seu rosto.
— É uma coisa infernal, não é? — ele murmurou roucamente. — Mas não se preocupe, ele não vai conseguir o que deseja... Prometo-lhe isso!
A mão dele adiantou-se para o seu seio, amassando a carne macia e maleável, o dedo correndo pela coroa do mamilo, sentindo-o começar a inchar e crescer com sua própria paixão.
Os soluços dela foram abafados pelo ardor dos demorados beijos do marido. Amaram-se. E depois dormiram.
Janice acordou abruptamente às três e dez, tendo ouvido um som no quarto de Ivy. Mas quando foi olhar, a menina dormia tranquilamente nos braços de seu ursinho de pelúcia.
Janice apalpou a testa de Ivy. Estava quente. Se o regime de sete anos atrás persistisse, a febre aumentaria pela manhã.
Ela saiu do quarto nas pontas dos pés e voltou para a cama.
Nem ela nem Bill dormiram o resto da noite.
9
Mesmo após um longo banho de chuveiro e um demorado barbear, Bill ainda parecia macilento e esgotado, e falava numa voz áspera de cansaço. Contou a Janice sobre a viagem ao Havaí, parado na porta da cozinha, bebendo café.
— Será bom para você — respondeu ela. A frivolidade de sua observação não conseguiu ocultar o medo e a acusação.
— Estou planejando levar você e Ivy comigo.
— É mesmo? Como vai conseguir isso, alugando um avião-hospital?
— Ela não está tão doente assim, Janice.
— Vai ficar. É só lhe dar tempo.
— Talvez o Dr. Kaplan possa receitar alguma coisa.
— Por Deus, Bill — disse Janice, com uma espécie de selvagem cansaço —, você conhece o curso que essas coisas seguem! À tarde ela estará ardendo de febre... e não há nada que Kaplan possa fazer a esse respeito, além de receitar aspirina e repouso na cama.
Bill inspirou profundamente e disse: — Bem, veremos.
Depois falou-lhe do ataque cardíaco de Jack Belaver, explicou-lhe por que não podia recusar a tarefa e como seria um inferno ir sem elas. Mas Janice mal o ouviu, com o ruído da água da torneira turbilhonando sobre a espuma dos pratos do café da manhã, obrigando-o a elevar a voz.
— Não sei por que você está agindo assim...
Janice fechou a torneira e olhou-o com tranquila atenção.
— Não sabe mesmo?
A resposta dele foi afastar-se decididamente dela e ir para a sala de visitas pegar o telefone. Janice ouviu-o discar um número, e depois dizer numa voz suficientemente alta para ela escutar:
— Ramal 7281. — Uma pausa. — Don Getz, por favor! Aqui é Mr. Templeton. — Outra pausa. — Oi, cara. Escute Don, eu dei um jeito em minhas costas e preciso ir ao médíco. Dê-me cobertura por hoje, está bem? Sim? Que mais está se armando por aí? Bem, você pode cuidar disso... Pegue Charlie Wing se tiver problemas... E, oh, Don, diga àquela garota minha para me arranjar três boas poltronas no voo de amanhã para o Havaí...
Sim, três. Janice e Ivy vão comigo. E Don, diga-lhe para comprar no último voo do dia, que chega lá antes da meia-noite. — Uma risadinha. — Pel disse quinta-feira, e quinta-feira é que vai ser.
Ele não voltou para a cozinha. Janice ouviu-o subir e ficar lá em cima vários minutos, antes de se apresentar na porta da cozinha vestido para sair e levando o gravador de Russ.
— Você acredita mesmo que ela estará em condições de viajar? — disse Janice, com sombrio ceticismo.
— Eu não estou disposto a predizer coisa alguma, Janice. Se ela estiver bem, as passagens estarão lá; se não, eu as cancelarei. — Sua voz transformou-se, atingindo um tom mais letal — Mas uma coisa eu predigo: é o fim da linha para Mr.
Hoover, não seremos mais incomodados por ele outra vez.
Ergueu o gravador para dar ênfase às suas palavras. — Se precisar de mim, estarei com Harold Yates.
Saiu sem beijá-la.
Janice ocupou-se com uma coisa e outra na cozinha por mais dez minutos, depois preparou um grande copo de suco de laranja para Ivy e levou-o para cima.
A menina estava sentada na cama, alerta e ativa, recortando figuras de uma velha Vogue com a tesoura de costura da mãe. A não ser por uma leve dor de cabeça, mostrava-se alegre, vivaz, comunicativa e, como no passado, parecia não se lembrar de seu pesadelo.
— Estou formando uma família — disse com um sorriso adorável quando Janice estendeu a mão para tocar sua testa.
Parecia um pouco mais fria. Talvez Bill tivesse razão, afinal — Talvez pudessem fazer a viagem.
Visões de águas cálidas, límpidas, multicoloridas, as suaves chuvas com seus incríveis arco-íris, as noites perfumadas, sen suais sob uma lua impossivelmente amarela foram acalmando a pouco e pouco o espírito intranquilo de Janice.
Foi preciso que Ivy lhe dissesse: — A campainha está tocando.
Ela desceu as escadas com o coração aos pulos. O correio já havia sido entregue. Ninguém chegava à porta da frente sem primeiro se anunciar — a menos que fosse Carole.
— Quem é? — perguntou através da porta acorrentada.
— É Dominick, Mrs. Templeton — veio a resposta abafada.
— Tenho uma encomenda.
Era uma planta num vaso, um crisântemo de estufa com duas grandes flores brancas. O vaso, uma cerâmica mexicana, estava envolvido por uma fita vermelha com um pequeno envelope trazendo o nome da florista. Janice agradeceu ao porteiro e levou a planta para a cozinha. Deteve-se um momento, olhando sombriamente o presente, antes de abrir o envelope e extrair o cartão.
Uma letrinha minúscula, precisa, cobria ambos os lados da cartolina, obrigando Janice a buscar um raio de sol para ler. A mensagem era uma citação, e dizia: "Receba as flores. Elas perecem tão completamente como se jamais houvessem existido; mas as raízes e o bulbo guardam em subjetivo abraço os detalhes mais insignificantes dessa flor.
Quando o ciclo, a lei básica, se completa, a entidade subjetiva agita-se, expande-se, veste-se novamente com os espécimens de células e produz a planta em toda a sua antiga perfeição e beleza. Assim as flores se reencarnam e expressam a mesma alma elementar da planta. Quão mais razoável é que a intensa individualização do homem deva também ser conservada por períodos subjetivos em sua história vital?"
E abaixo, vinha o crédito: "Astrologia esotérica, de Alan Leo".
Um arrepio de superstição e medo percorreu o corpo de Janice quando ela rasgou o cartão em pequenos pedaços e jogou-os na lata de lixo. Depois, com expressão determinada e mãos trêmulas, pegou a planta e todo o seu verde tecido e, transportando-a afastada de si como se fosse algo nauseante, levou-a para o incínerador da área de serviço e jogou-a lá dentro. Era a única coisa a fazer, pensou, sentindo um súbito poder e domínio sobre seu destino, uma reação perfeitamente normal e sadia ao sorrateiro ataque de um inimigo.
O telefone da casa tocava quando ela tornou a entrar no apartamento. Fechou a porta de serviço e acorrentou-a, antes de pegar o aparelho.
— Há um Mr. Hoover na linha, Mrs. Templeton — veio a voz estridente de Dominick. Janice sentiu uma onda de pânico, e estava para recusar o chamado quando subitamente mudou de idéia. Agira resoluta e corretamente com as flores; que tinha então a temer do homem que as enviara? Ele era inimigo, e devia-se dar um jeito nos inimigos.
— Pode fazer a ligação — ela disse, levando a mão trêmula à cabeça e afastando uma mecha de cabelo.
— Alo, Mrs. Templeton? — a voz de Hoover trazia uma nota distinta de ansiedade.
— Sim — respondeu Janice tremulamente.
— Bom dia, obrigado por falar comigo. Chamei apenas para saber como está sua filha.
— Ivy está muito melhor — ela respondeu com toda a gravidade.
— Mas não o suficiente para ir à escola. É muito sensato de sua parte mantê-la em casa.
A declaração não exigia resposta, e Janice não deu nenhuma. Hoover reiniciou com: — Eu gostaria de saber se a senhora se incomodaria se eu fosse visitá-la. Creio que temos muita coisa a conversar.
— O senhor terá de perguntar isso a meu marido.
— Poderia pô-lo na linha, por favor?
— Ele não está em casa.
— Oh! — Hoover pareceu surpreso. — Do escritório disseram-me que ele estava em casa, doente.
— Foi ver um médico.
— Espero que não seja nada sério. — Depois, mudando de tom: — A propósito, já deu uma olhada nos livros que lhe enviei?
— Não, não tenho tempo para livros. Além disso, não estou interessada no assunto.
— Oh! — disse Hoover baixinho. — Eu julgava que, depois do que houve ontem à noite, talvez a senhora quisesse saber mais sobre... o assunto.
— Está enganado, Mr. Hoover. — Janice descobriu um novo vigor em sua voz. — Não houve nada ontem à noite que aumentasse meu interesse por seus livros.
— Não creio nisso, Mrs. Templeton. Vi a expressão em seu rosto quando... — ele deteve-se, buscando as palavras exatas para exprimir o pensamento seguinte — quando Audrey Rose sentiu minha presença próxima e estabeleceu contato comigo através de Ivy. A senhora tinha uma expressão de quem acabara de presenciar um milagre, como certamente presenciara. Seu marido estava certamente excitado demais para percebê-lo, mas a senhora certamente viu.
— A expressão que o senhor viu em meu rosto, Mr. Hoover, foi a expressão de uma mãe desesperada pela saúde de sua filha. É uma expressão que tenho sempre, uma vez que minha filha sempre tem esses ataques.
— Tem? — disse Hoover, como atingido.
— Sim, Mr. Hoover, várias vezes por mês nos últimos nove anos — mentiu Janice. — O que aconteceu ontem à noite não foi exceção, como não foi o que o senhor fez para acalmála. A psiquiatra dela usa um método semelhante para tirá-la desses transes. Chama-se hipnose sugestiva.
— Eu não sabia que Ivy estava sob os cuidados de uma psiquiatra — respondeu Hoover, como se se censurasse por não ter descoberto esse fato em sua pesquisa sobre eles.
— Bem, pois está. E a causa do problema foi plenamente identificada e é bem conhecida. Relaciona-se diretamente com um acidente que sofremos quando ela era um bebé; uma mamadeira quente demais queimou os dedos dela e deixou uma impressão duradoura em sua mente. O "quente, quente, quente"
que ela balbucia refere-se à mamadeira e a nada mais. Ela mal podia acreditar que aquelas palavras eram suas.
— Sua psiquiatra aprova essa teoria?
— Sim, aprova.
— Creio que ela está errada — disse Hoover numa voz desprovida de energia. — Creio que sua filha vai enfrentar problema muito maior.
— O senhor pode pensar isso, Mr. Hoover, mas nós não.
Acreditamos em nossa médica, temos confiança na formação e experiência dela, e confiamos nela inteiramente. Além disso ? 116 ?
Janice continuou, martelando para ver se ele entendia —, acreditamos na ciência médica, não em superstição.
Hoover ficou calado por um momento, depois falou num tom discretamente respeitoso, e mesmo simpático: — A senhora tem alguma religião, Mrs. Templeton?
— Não, não creio em religião.
— Sempre foi ateia?
— Sim, sempre. E eu ficaria muito grata se o senhor parasse de me enviar seus livros religiosos, suas flores, suas citações ou qualquer outra coisa relativa às suas crenças, uma vez que não tenho absolutamente interesse nenhum no assunto, nem tenho tempo para continuar com esta conversa. Por isso, adeus, Mr. Hoover...
Pôs rapidamente o telefone no gancho, sem lhe dar chance de dizer outra palavra. Estava tremendo, com a excitação febril de um atleta que acabasse de ganhar uma corrida, o coração agitado, mas a alma lavada pelo sucesso. Um trago, ela pensou, seria maravilhoso. Jamais bebera álcool pela manhã, mas essa não era uma manhã como as outras.
Bebericando o uísque puro, sentada na cadeira de balanço, ouvindo vagamente a televisão lá em cima, ela se perguntava por que mentira para Elliot Hoover sobre a história dos pesadelos de Ivy. Fora o medo. Ele buscava insinuar-se em sua mente. Era o inimigo. Não se partilha a verdade com inimigos.
Na verdade, os pesadelos só haviam atacado uma vez antes — começando uma noite pouco depois do segundo aniversário de Ivy e prolongando-se durante quase um ano.
A Dra. Ellen Vassar, a quem Bill logo apelidara de Brunhilde, precipitara-se sobre suas vidas como um anjo vingador, sua voz forte, com um tremendo sotaque, e sua mente freudiana, afiada como uma navalha, sondando, perguntando, analisando e finalmente conseguindo expulsar os demónios dos sonhos de Ivy.
Janice lembrava-se do rosto vigoroso sem humor da psiquiatra alemã na última sessão e suas palavras de despedida a eles.
— Sua filha estava manifestando alguns temores especiais de separação da senhora, Mrs. Templeton, e parece agora ter dominado tais temores, o que as crianças fazem quando crescem. Contudo, não a trate como se ela fosse especial ou particularmente frágil. Trate-a simplesmente como qualquer criança de três anos. Não deverá haver mais problemas.
E agora, sete anos depois, os demónios estavam de volta, com renovada fúria assassina.
Janice sentiu um calafrio glacial subir dentro dela e engoliu rapidamente uma larga dose de uísque para afastá-lo.
Hipnose sugestiva? Era a teoria de Bill. Funcionara com a Dra. Vassar. Por que não com Elliot Hoover? Bem, por que não?
Sua explicação era muito em benefício próprio e conveniente para ser acreditada.
Tinha menos certeza dos motivos que a levaram a mentir a Hoover sobre sua religião.
Nascida numa família católica, ela passara por todos os rituais dessa sombria fé, e na verdade gostava do medo que sentia quando a freira lhe falava de morte e ressurreição, quando era criança. A igreja, de St. Andrews, era construída de antiga e silenciosa pedra, coberta de fungos e manchada com detritos de pássaros. Entrar em sua umidade pesada e silenciosa era como entrar no castelo de Drácula. Contudo, ela acreditara realmente em todas as promessas adoráveis e improváveis do céu, e nas doentias e aterrorizantes ameaças do inferno.
Deixara mesmo de acreditar durante os anos do ginásio. Ia à missa todos os domingos para satisfazer aos pais, maquinalmente. As palavras e ritos latinos haviam-se reduzido, para ela, a uma mixórdia sem sentido àquela altura. Em seu terceiro ano ginasial, deixara a Igreja. Os pais nunca disseram uma palavra sobre isso. Sofreram com sua decisão, mas nunca disseram uma palavra. No fundo de sua mente, ela temia um terrível castigo pelo seu pecado de inconstância. Sabia que, quando viesse o momento da morte, ela desejaria receber os últimos sacramentos e a extrema-unção.
Talvez aquilo fosse o castigo de Deus, pensou — o copo vazio pendurado entre os dedos —, enviado a ela sob a forma de Elliot Suggins Hoover.
Harold Yates estava estendido de lado em sua poltrona como um Buda deitado. Suas feições untuosas contorciam-se num sorriso curiosamente divertido quando a fita chegou ao fim.
— Rapaz, quando você os pega, pega firme. — Deu uma risadinha.
— Só pode ser biruta, certo?
— Não sei, Bill. É difícil de dizer. Ele parece saber do que está falando. Quer dizer, não há dúvida de que expõe seu caso de modo lógico. Não é um histérico empolado. É uma pessoa calma e razoável, que parece acreditar no que está dizendo.
— Que diabos você está dizendo, Harry? — a voz de Bill era insegura. — Está me dizendo que eu tenho de atender aos pedidos desse cara?
Harry ergueu a mão para ele.
— Oooaaa, Bessie! Para trás! Eu não falei em atender aos pedidos dele. Falei que você não pode fazê-lo deixar de acreditar no que quiser. Quanto a atender aos pedidos dele, você certamente não pode ceder, porque aí terá acrescentado outro membro à família. Assim, independente do que ele deseje, você deve tomar medidas para proteger-se e à sua família, e a lei o ajudará a fazer isso.
Muito bem, diga lá! Que medidas?
— Bem, inicialmente deve adotar um ataque menos vigoroso. Deve dizer a ele, da próxima vez que telefonar, que o que quer que ele acredite, pense ou sinta em relação à sua filha ter o espírito ou a alma da filha dele, você não endossa esse pensamento, não acha que deva permitir suas visitas nem deixá-lo interferir no curso normal da vida de sua família. E aí lhe dirá que, se ele insistir, você tomará medidas legais para impedi-lo de importunar você.
Bill pensou nisso, um ar de incerteza no rosto.
— Não há nenhum modo especial, nenhuma linguagem jurídica especial que eu deva usar para dizer essas coisas a ele?
— Se você quiser, eu posso escrever uma carta — disse Harry. — Você poderia enviá-la a ele, registrada, ou mesmo mandar por portador, com recibo de entrega assinado, dizendo-lhe para parar e desistir dessa conduta condenável, e que, se não parar, você estará autorizado a buscar os meios legais à sua disposição. O efeito dessa carta não tem nenhum significado legal verdadeiro, a não ser como prova num tribunal, se você recorrer à justiça, de que Hoover foi avisado de que estava sendo importuno e não era aceito por você nem por sua família.
Com uma ligeira marca de tensão no rosto, Harry avançou a poltrona, pondo-a em posição vertical, e apertou o botão que chamava sua secretária.
— É o melhor modo de agir, Bill. Descobriremos meios de desencorajá-lo, sem arrastá-lo a um tribunal ou a uma delegacia de polícia. Quer dizer, tentaremos todos os meios pacíficos antes de aplicarmos a majestade e a terrível força da lei.
A secretária, uma mulher alta de sessenta e poucos anos, entrara silenciosamente, tomara sua cadeira e, lápis na mão, esperava.
A "majestade e terrível força da lei". As palavras tinham uma aura boa e reconfortante, pensava Bill com uma pontinha de emoção quando entrou no elegante elevador e cumprimentou sorridente, como sempre, o ascensorista Ernie.
Harry escrevera uma carta enérgica, sólida, envolta em todas aquelas frases intrincadas, apavorantes, que os advogados usam para aterrorizar os seus oponentes. Haviam-na mandado pela firma de mensageiros Red Arrow para o endereço de Hoover na ACM, a ser entregue em mãos, e com recibo assinado a ser devolvido ao escritório de Harry.
Tendo aberto as duas fechaduras, Bill teve ainda de tocar a campainha, porque Janice mantivera a porta acorrentada.
Ela parecia mais alegre, mais animada, quando tirou o gravador das mãos dele, colocou-o no chão e ergueu-se nas pontas dos pés para beijá-lo, desequilibrando-se ao fazer isso.
Bill segurou os braços dela, para firmá-la, e deu uma risadinha: — Ora, ora, alguém esteve bebericando.
Janice riu. — Que diabos...
Eram pouco mais de três horas — um pouco cedo demais para um pileque, mas "que diabos", Bill concordou, e foi à cozinha buscar gelo.
Janice deu-lhe as boas novas quando ele despejava os cubos de gelo na coqueteleira, para preparar seu martíni. A temperatura de Ivy descera e estava absolutamente normal, e Bill era um absoluto génio por haver predito isso. E a esta altura ela começou a cantarolar Isle of lovely bula bands e a mexer sensualmente as cadeiras. Bill cantarolou junto com ela, os dois foram dançando a hula até o carrinho de bebidas na sala, onde ele encheu a coqueteleira de gim e renovou a bebida de Janice. Curiosamente, o rijo e frio impacto do álcool o fez ficar sóbrio, e seguiu-se um momento de seriedade em que ele disse a Janice sobre a carta de Harry, tentando lembrar palavras e frases em particular: "perseguindo, molestando, invadindo..." e "seguirse-á uma intimação..." e "a majestade e a terrível força da lei".
— Ele telefonou esta manhã e me mandou uma planta — ela lhe disse, espaçando as palavras com cuidado para evitar embolá-las.
— Mandou o quê?
— Uma planta, com uma nota dizendo que até as flores fazem o mesmo, quer dizer, se reencarnam.
— Miserável.
O rosto dela contorceu-se num sorriso manhoso e mau.
— Eu a joguei no incine...rador — disse tropegamente.
— Vaso, planta, flores, poema, o diabo...
Bill sorriu e bateu seu copo no dela.
— Isso é que é garota. — Beberam seus drinques e olharam-se aprovadoramente. Depois ele perguntou: — Você disse que ele telefonou?
— Foi. Logo depois que a planta chegou, e partiu.
— Que era que queria?
— Queria aparecer, que é que você pensa?
— Que foi que você disse?
— Disse a ele para... dê o fora, cavalheiro... vá vender seu peixe mais adiante!
Bill explodiu na gargalhada.
— Não!
— Em outras palavras — Janice piscou orgulhosa e balançou a cabeça: — ele recebeu o recado, esteja tranquilo.
Largando seu copo, Bill estendeu os braços e puxou sua corajosa e estonteada mulherzinha, abraçando-a e beijando-a sonoramente.
O telefone tocou.
Ambos sentiram um sobressalto no outro. Separaram-se.
Bill inspirou profundamente e pegou o aparelho.
— Sim — disse bruscamente, depois relaxou e passou o telefone para Janice. — É Carole, pra você.
O rosto de Janice desarmou-se; seria um longo e cansativo cerco, mas não havia modo de recusar o chamado.
Bill pegou o copo e a coqueteleira e subiu para ver Ivy, a quem encontrou sentada no chão, à moda índia, cercada por peças do jogo Pista. Seus olhos brilhavam com uma luz saudável quando ela estendeu o braço, pegou a mão dele e a levou à sua testa fria.
— Uma partida, papai, por favor? — pediu, o rosto voltado para cima, para ele, com seu sorriso impossível-recusar.
— Mamãe jogou mal demais — ela se queixou. — Venci-a sem sequer tentar.
Bill entendia por quê.
Quando ele esvaziou finalmente a coqueteleira, já tinham jogado duas partidas, com uma vitória para cada um, e estavam na volta final da terceira. Eram dez para as cinco, e aromas agradáveis subiam da cozinha.
Bill perguntava-se se Hoover tinha recebido a carta. Havia um meio de checar isso. Cometeu dois erros propositais, deixando Ivy ganhar a terceira partida. Seus gritos de vitória acompanharam-no até o seu quarto, onde ele chamou Harold Yates.
— Carta entregue, recibo assinado e devolvido, agora trancado em meu arquivo — Harold informou-o com o troar profundo de seu riso satisfeito.
— Ótimo — disse Bill. — Ele não tentou me chamar.
— Nem deve! Está sob aviso. De agora em diante, se ele o importunar ou à sua família, de qualquer modo, nós iremos ao tribunal e iniciaremos uma ação.
— É — disse Bill. Depois acrescentou: — Partimos para o Havaí amanhã, Harry. É a negócios, mas vou levar Janice e Ivy comigo.
— Excelente. A hora não poderia ser melhor. Se quer minha opinião, foi a última vez que você ouviu falar de Mr. Hoover.
Assim, relaxe e desfrute sua viagem. Chame-me quando voltar.
Comeram como uma família, em torno da mesa da grande sala de jantar, às seis e quinze. Janice preparara uma gala mexicana com ingredientes comprados em latas e caixas; um gazpacho gelado, que se deixou derreter até a temperatura da sala, bolinhos de tamale e tigelas de pimenta, com biscoitos quentes substituindo as tortillas, e complementados com refresco de lima e bolos de sésamo. Bill e Janice beberam Cold Duck com a refeição. Ivy bebeu leite.
A garota foi para a cama às oito e quinze, depois de beijar Janice cinco vezes e Biíl dez, e pegar o ursinho sonolenta para recolher-se. Janice ficou com ela até que adormeceu, depois saiu à procura de uma aspirina. As horas de farra tinham tido seus efeitos nela, produzindo uma dor de cabeça aborrecida e um sentimento de depressão.
Ao entrar no quarto, encontrou Biíl já meio pronto, movimentando-se rápida e expeditamente entre gavetas e valises, assobiando baixinho enquanto trabalhava. Janice afundou cansadamente numa poltrona e olhou sua valise vazia, incapaz de enfrentar a tarefa à frente. Bill lançou-lhe um sorriso de encorajamento, foi à cómoda dela e abriu a gaveta de cima, exortando-a à atividade. Janice sorriu debilmente, esforçou-se para deixar a poltrona, e dera apenas o primeiro passo indeciso quando o telefone da casa tocou, lá embaixo. O toque era normal, não contínuo, de rotina, mas para Janice, em seu estado debilitado, teve o efeito dos sinos do inferno anunciando a hoste de demónios.
Ela sentiu a mão de Bill na sua e viu o calmo sorriso de tranqüilização em seu rosto, e ouviu-o dizer confiantemente: — Arrume a mala — antes de sair apressado do quarto e descer a escada para responder ao telefone.
— É Mr. Hoover, Mr. Templeton. — A voz era de Ralph, o porteiro da noite.
— Está bem, faça a ligação.
— Ele está aqui — explicou Ralph. — Quer subir. Cristo, pensou Bill, o sacana tem peito.
— Diga-lhe que estamos na cama, Ralph — ele disse rudemente. — Não, espere! Ponha-o no telefone... eu falo com ele.
— Sim, senhor.
Bill ouviu Ralph murmurando instruções a Hoover e podia imaginar o corpo fino, magriço, atravessando o saguão para o salão onde ficavam os telefones do prédio.
— Mr. Templeton? — A voz ecoou desoladamente no instrumento. — Posso subir para falar com o senhor?
— Não — disse Bill. — Acabamos de nos recolher.
Um som lá em cima reverberou no teto... Janice devia ter deixado cair alguma coisa...
— Eu recebi sua carta, a que seu advogado enviou. Gostaria de discuti-la...
— Não há nada a discutir, Mr. Hoover. A carta se explica a si mesma e estabelece claramente a minha posição.
Passos correndo lá em cima... uma porta batendo com força... que diabos Janice estava fazendo?
— Não vejo por que o senhor achou necessário procurar um advogado. É um assunto que podíamos ter discutido entre nós...
— Escute, Mr. Hoover, não quero ter mais nenhuma conversa com o senhor sobre este ou qualquer outro assunto. A carta destinava-se a romper nossa relação de uma vez por todas. Entendeu?
Aquilo eram soluços? Ou riso? Era difícil de dizer, através do sólido painel e das pinturas.
— Por favor, Mr. Templeton, se pelo menos me deixar falar com o senhor, creio que necessita tanto de minha ajuda quanto eu da do senhor...
— Bill, pelo amor de Deus! — era Janice! Gritando!
— Escute, Hoover, se você não desligar e deixar este prédio imediatamente eu chamarei a polícia!
Bateu o telefone e foi correndo à sala de visitas.
Pancadas secas... correrias pelo teto... uma cadeira caindo... diretamente acima de sua cabeça... O quarto de Ivy!
Ele subiu a escada de dois em dois degraus e parou diante da porta aberta do quarto da filha, quase chocando-se com Janice sentada no chão, soluçando como uma criança, olhando-o com um horror de hipnotizada, balançando a cabeça queixosamente, sufocando com as palavras: — Ela... ela está... está procurando por ele...
— Pare com isso! — gritou Bill, agarrando-a pelos braços e puxando-a rudemente para pô-la de pé.
— Papaipapaipapaipapaipapaipapaipapaipapai... — o estridente fluxo de palavras despejava-se pela porta aberta ao lado deles.
— Ela... ela está procurando o pai... dela! — soluçou Janice com crescente histeria.
— Janice! — gritou Bill outra vez, mais alto, sacudindo-a com força. — Pare com isso, Janice!
A rudeza de sua voz foi terapêutica. Os soluços diminuíram de repente, tornaram-se arquejos secos num rosto pálido e cheio de terror e confusão.
— Chame o Dr. Kaplan! Eu cuidarei dela! Vá, depressa!
Janice cambaleou, olhou em redor como uma pessoa presa em meio a um pesadelo. Começou a movimentar-se, mas parou ao ouvir o grito, a súplica: — Papaipapaipapaipapaipapaipapaipapai...
O chamado crescia e tornava-se mais urgente; o som de móveis caindo e coisas derramando-se — livros, bonecas, jogos, bolas — tornava-se mais acentuado.
— Vá, Janice! — ordenou Bill.
Ela olhou-o com olhos que lutavam para adquirir compostura; depois, reunindo suas forças com óbvio esforço, começou a mover-se de lado, furtivamente, em direção ao seu quarto, dando uma rápida olhada ao quarto de Ivy, como se temendo o súbito aparecimento de algo monstruoso.
Bill esperou até que ela houvesse entrado no quarto para voltar-se para a voz cantada e os sons desesperados que vinham do quarto de sua filha.
— Papaipapaipapaipapaipapaipapaipapaipapai...
O penetrante staccato tornava-se mais frenético à medida que o pequeno corpo saltava sobre a cama e começava a chutar os lençóis que impediam o seu avanço, obrigando-a finalmente a atirar-se de cabeça no chão, a fim de escapar ao seu emaranhado.
Bíll estremeceu ao som que sua testa fez ao bater firme contra a perna da cómoda rosa e branca. Entrou correndo para pegá-la, ajudála, consolá-la, mas ela evitou habilmente os seus braços e, ignorando o ferimento e a dor, continuou sua louca ronda sem interrupção. O cabelo, recém-lavado e enxugado, estava assanhado, formando um halo bufante em torno do rosto e tornando-o menor que o normal e dando um ar de insanidade às feições graciosas e coradas e aos grandes olhos brilhantes que revolviam constantemente em busca do — Papaipapaipapaipapaipapaipapaipapaipapai...
Ele via uma marca vermelha em sua testa, diretamente acima do olho esquerdo. Ela se ferira seriamente. Uma súbita onda de medo apoderou-se dele. Precisava fazer algo para impedi-la de desfigurar-se.
— Ivy! — gritou, dando um passo em direção à garota, que agora subia numa cadeira virada. — Ivy! É papai! Eu estou aqui, Ivy! — Consciente ou inconscientemente, sua voz assumira o mesmo tom e timbre da de Hoover. — Ivy! Eu estou aqui! Ivy!
Aqui, querida!
Ela parecia nem vê-lo nem ouvi-lo, levantando-se e correndo pelo quarto em direção à janela, onde começou a fazer gestos de quem queria agarrar o vidro, recuando rapidamente do frio painel sempre que seus dedos curvados chegavam perto demais, a voz feroz e amedrontada revertendo para o mesmo pedido de — Papaipapaipapaipapaipapaipapaipapaipapai...
Bill aproximou-se mais alguns passos e ajoelhou-se.
— Por aqui, Ivy! É papai! Por aqui, querida!
De repente, como se as palavras dele houvessem chegado a ela, a garota rodopiou e olhou-o com grandes olhos interrogadores.
— Papaipapai, papai, papai...
O pânico em sua voz diminuiu; o tom desceu; os grandes olhos procuravam, sondavam, vasculhavam através de alguma invisível densidade um lampejo de luz.
Bill sentiu-se encorajado. Estabelecia contato. Ela se acalmara visivelmente. Parecia ouvir, escutar. Ele ergueu os braços para ela e chamou-a com os dedos, oferecendo numa voz forte e cheia de esperança a proteção que ela parecia buscar.
— Por aqui, Ivy! Venha! É papai! Venha!
Enquanto ele falava, a palidez de cera das faces febris de Ivy aumentou, até que ela ficou parecendo um cadáver com olhos vivos.
— Ivy! POR AQUI, IVY! VENHA! É PAPAI! — Sua voz avolumou-se com feroz excitação. Os dedos agarravam a camisola da garota.
Ao seu toque, ela recuou rudemente, como se atingida por alguma coisa, e rodopiou em direção à janela, procurando fugir, a voz elevando-se em tom e histeria: — Papaipapaipapaipapaipapaipapai...
As mãos batiam contra o vidro gelado em desespero, depois encolhiam-se com um terrível grito de dor.
— Quentequentequentequentequentequentequentequente-QUENTEQUENTE...
Repetidamente, erguendo as mãos diante dos olhos lacrimosos, angustiados, estudando a carne queimada e cheia de bolhas.
Vendo a horrível vermelhidão nas mãos da filha acentuarse e uma bolha começar a formar-se no dedo médio da mão esquerda, Bill temeu que ela caísse e desmaiasse. Aquilo não era possível, não era racional. O vidro estava frio, gelado...
Conseguiu levantar-se de algum modo e ali ficou como um autómato, pairando desvalidamente sobre a forma chorosa de sua querida filha, que oscilava para a frente e para trás, choramingando baixinho: — Papai, papai, papai, quentequentequente...
Lambia os dedos queimados das mãos, o choro e os soluços altos e melodiosos confundindo-se com o agudo chiado do radiador diretamente atrás dela.
O radiador!
Os olhos de Bill arregalaram-se com contida excitação ao ver o simples, real e lógico culpado à sua frente, embaixo da janela, seus painéis de ferro fundidos escaldantes soltando jatos de vapor através de um cano destinado a aliviar a terrível pressão em seu fervido interior.
— Oh, Deus, as mãos dela! — a voz desolada de Janice veio da porta, fazendo Bill saltar e girar. Ela estava parada na porta, a luz iluminando-a pelas costas, olhando para Ivy, que balançava penosamente para a frente e para trás, num paroxismo de soluços e lamentos.
— Papaipapaipapaipapai...
E lambendo e chupando os dedos queimados.
— Que aconteceu? — arquejou Janice, dando um passo para dentro do quarto.
— O radiador, ela caiu sobre ele e queimou os dedos. Janice começou a oscilar incertamente. Bill amparou-a.
— Temos alguma coisa aqui em casa?
— Há um... unguento no armário da cozinha.
— Fique com ela. Eu vou buscá-lo. — Ele obrigou-a a sentar-se, com delicadeza, na beira da cama, e saiu. Na porta voltou-se.
— E Kaplan?
— Está vindo... — a voz era apagada, sem brilho.
Bill deixou o quarto, fechando a porta.
Sem qualquer expressão, Janice apenas ficou sentada olhando o choro, os gemidos, daquela carga de infelicidade do outro lado do quarto, a voz estridente entoando: — Papaipapaipapaipapaipapai...
Ivy! Deus do céu! Era Ivy! Sua Ivy! Seu bebé! Sozinha, abandonada, sofrendo! Em necessidade! Trancada no cofre de aço de seu pesadelo. Incapaz de sair. Lutando para sobreviver — para manter-se viva até a vinda do socorro. Socorro? Que socorro?
Qual era a combinação para abrir a porta — para libertá-la de sua terrível servidão? Para Ivy, não havia nenhuma. Nenhuma combinação. Nenhuma. Para Ivy, nenhuma. A não ser...
— Audrey! Audrey Rose! Venha!
A voz era baixa, quase nem um sussurro. Suave. Humilde.
Suplicante.
— ... papaipapaipapaipapaipapai...
— Audrey Rose! Estou aqui! Audrey!
Convidando. Atraindo. Insistindo.
— ... quentequentequentequentequente...
— AUDREY ROSE! VENHA!
Estridente. Compulsiva. Autoritária.
— ... papaipapaipapaipapaipapaipapaipapai...
Mas a porta permaneceu fechada.
— Volto amanhã; enquanto isso, continuem usando as compressas frias para reduzir a febre e mantenham as mãos dela fora dos cobertores. Essas queimaduras são sérias, e mesmo a leve pressão de um cobertor pode irritá-las. Ponha-a em sua cama, onde poderá vigiá-la. O supositório de Nembutal deve fazê-la dormir o resto da noite.
A propósito, Bill, se eu fosse você entraria em contato com aquela clínica psiquiátrica logo pela manhã. Eles a ajudaram uma vez, eu me lembro.
Ali deitada, inerte, dobrada segundo a forma trêmula de sua filha, Janice ouvia as instruções do médico.
A lua, em quarto crescente, abria um pálido caminho através das venezianas até o rosto vermelho e trêmulo que jazia sobre o travesseiro junto a ela. Presa no ocaso de seu próprio cérebro entorpecido, Janice tentava penetrar além da vida da carne do rosto adorado, além dos olhos vidrados e semi-abertos, as duas janelas, o par de orifícios para a luz e para o ar, que deviam certamente conduzir à masmorra onde a inquieta alma de Audrey Rose, presa como em uma cadeia de sete voltas, jazia cativa e alerta.
10
— Morta? — Era não tanto uma pergunta, como uma chocada reiteração.
— Sim, eu sinto muito. — A voz ao telefone era do Dr. Benjamin Schanzer, diretor da Clínica Psiquiátrica de Park East, um nome inteiramente desconhecido para Bill. — A Dra. Vassar morreu há mais de dois anos.
— Oh — Bill fez uma pausa, reorientou seus pensamentos.
— Minha filha era paciente da Dra. Vassar... há cerca de sete anos.
— Pois não.
Bill viu-se tateando. — Ela teve um problema e... a Dra. Vassar ajudou-a. O problema parece ter voltado...
— Vejamos... isso seria em 1967... bem antes de meu tempo, receio.
— Sim, creio que um médico... Wyman, era diretor da clínica então.
— O Dr. Wyman ainda está na clínica. Por que não fala com ele?
— Obrigado.
— De nada.
Bill estava sentado em seu escritório. Passava pouco das nove horas, e o andar ainda estava deserto. Abby só chegaria às nove e quinze. Don geralmente chegava arrastando-se por volta das dez. Bill era o madrugador essa manhã, e com razão. Havia muita coisa a fazer e menos de cinco horas para isso; um bocado de pontas soltas a amarrar antes da hora da partida.
Isto, e outra razão, na qual ele odiava pensar. Pela primeira vez em seu casamento, sentira essa manhã uma irresistível necessidade de fugir. Imaturo, irracional, desconsiderado, cruel — mas permanecia o fato de que tivera de se afastar.
As lágrimas de Ivy haviam-no despertado; lágrimas normais, uma reação natural à dor em suas mãos. Como sempre, não lembrava nada do pesadelo, e aceitou a explicação de Bill sobre o acidente com apenas uma pergunta: — Se eu as queimei no radiador, indo para o banheiro, como foi que não acordei?
— Porque nós pusemos unguento rapidamente, e as queimaduras só doem depois.
— Oh, sim — ela lembrara. — Como quando eu fiquei queimada de sol na praia, no verão passado. — Apesar de seriamente ferida e febril, ainda conseguira pôr um sorriso nos lábios, um sorriso de aceitação, uma disposição de iniciar o dia numa nota positiva, de esperança.
Janice, porém, despertara num vácuo.
Muda, sem responder, inabordável, executara suas tarefas matinais como um brinquedo de corda. Nem as queixas de Ivy, nem as delicadas sondagens dele pareciam chegar até ela.
— Desculpe tê-lo feito esperar tanto — a voz do Dr. Schanzer retornou à linha. — Parece que o Dr. Wyman não virá pelo resto da semana. Mas o Dr. Perez, que era interno aqui na época, pode ter alguma lembrança do caso.
— Bem, posso falar com ele?
— Um momento, por favor.
O primeiro sinal de apatia surgira quando ele falara a Janice de sua decisão de desistir da viagem para o Havaí que ele preferia deixar o emprego a ir sem elas. Sua reação fora não responder. Depois, quando perguntara se o silêncio dela significava o desejo de que ele fosse, ela não dissera nada; continuara simplesmente a espremer laranjas. Finalmente, e com algum calor, ele perguntara que diabo ela queria que fizesse. Ao que ela respondeu: — Acho que você deve ir.
As palavras eram excelentes, mas o espírito por trás delas deixava muito a desejar. Quando ele sugeriu que mantivessem as passagens de Ivy e dela em suspenso, para serem usadas assim que a febre de Ivy baixasse, ela dissera: — Muito bem.
Também aqui, o conteúdo da resposta era aceitável, mas não a força e o sentimento por trás delas. Quando lhe perguntara se estava com medo de ser deixada só, receosa de que Hoover a importunasse ou de que Ivy tivesse uma recaída, ela respondera no mesmo tom manso e desencorajado: — Por que eu deveria ter medo? A majestade da lei me protegerá contra Hoover, e os supositórios do Dr. Kaplan me ajudarão com Ivy.
Fora nesse ponto que ele sentira necessidade de ar fresco.
Propusera que fossem ver a Dra. Vassar mais tarde, naquela manhã, e acertassem o retorno de Ivy à terapia, ao que Janice respondera: — Se você assim quer...
E fora o bastante. A soma e a substância de seu diálogo matinal, toda a sua conversa.
— Alo, aqui é o Dr. Perez. com quem estou falando?
— A voz era fina; o sotaque, sul-americano.
— Meu nome é William Templeton, Dr. Perez. Nossa filha Ivy foi paciente da Dra. Vassar há alguns anos...
— A Dra. Vassar morreu há dois anos...
— Sim, eu sei, doutor, mas eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas, uma vez que soube que o senhor estava na clínica no tempo em que minha filha foi tratada.
— Por favor, faça...
— Primeiro, eu gostaria de saber se vocês ainda têm as fichas da Dra. Vassar sobre o caso de minha filha.
O Dr. Perez respondeu sem hesitação, aparentemente sem pensar.
— Sim, a prática aqui em Park East é de grupo, e todas as fichas de casos dos médicos são mantidas num arquivo central.
Isso incluiria as fichas dos casos da Dra. Vassar também.
— Eu poderia ter acesso a essas fichas?
— Sim, só tem de assinar um pedido, e teremos a satisfação de passá-las a outro médico.
— Esta é outra coisa que eu desejo discutir, Dr. Perez. O problema de minha filha voltou, e não temos outro médico atualmente. Seria possível o senhor pegar este caso?
— Sim, é possível. Um momento, por favor. — Houve uma curta pausa, durante a qual Bill ouvia a respiração de Perez. — Mr. Templeton?
— Sim, senhor?
— Eu tenho um horário vago em meu livro de consultas, a 14 de dezembro, uma hora...
— Não, Dr. Perez, talvez eu não tenha sido claro. Minha filha está muito doente; precisa de atenção imediatamente.
— Então eu não poderei pegar o caso de sua filha. Talvez outro médico da clínica possa.
— Ótimo, ótimo. Minha mulher e eu gostaríamos de ir à clínica esta manhã e fazer algum tipo de acerto. A quem devemos procurar?
— O Dr. Schanzer é a pessoa indicada.
Bill chamou Janice e disse-lhe que a Dra. Vassar morrera, e ela perguntou: — De quê?
— Não sei — disse Bill mal-humoradamente. — Não pensei em perguntar. Que diferença faz isso?
— Nenhuma, suponho — foi a resposta dela. A apatia continuava, entranhada e duradoura.
— Eu marquei um encontro com o diretor da clínica às dez e meia. Você acha que Carole poderia ficar com Ivy?
— Vou perguntar — ela disse.
— Podemos almoçar juntos depois. Não preciso me apresentar no aeroporto antes das duas e quinze.
— Ótimo.
A ante-sala da Clínica Psiquiátrica de Park East sofrera algumas alterações, mas em essência confirmava a imagem que Bill guardara dela em sua lembrança de sete anos atrás. A parede de vidro sem cortinas mostrava o mesmo adorável pedaço do parque, embora as árvores ali ainda não houvessem sido tocadas pela neve. O caráter das pinturas na parede oposta passara no entanto do impressionismo europeu para o moderno americano, apoiando-se maciçamente em Nolan e Robert Indiana.
Cinco pessoas estavam sentadas na ante-sala, quando ele chegou, às dez e quarenta e cinco. Janice não era uma delas. Ele deu seu nome à recepcionista, que o mandou sentar-se. Às onze horas Janice ainda não havia chegado. Ele pensava em telefonar para casa, quando uma garota jovem e bonita apareceu no extremo oposto da sala e dirigiu-se a todo o grupo.
— Mr. Templeton?
Bill acompanhou-a por um corredor a uma sala comprida e sem janelas, contendo uma grande mesa de conferência com mais de doze cadeiras em seu redor. Uma pasta de arquivo fora colocada sobre a mesa.
A garota sorriu-lhe e disse: — O programa do Dr. Schanzer está muito apertado esta manhã. Ele espera poder aparecer a qualquer momento para falar com o senhor.
Quando a moça deixou a sala, Bill tirou seu casaco e colocou-o no encosto de uma cadeira. Afrouxou um pouco o nó da gravata, porque a sala estava opressivamente quente. Seus olhos gravitaram até a pasta de papel manilha com a palavra "Templeton" impressa em tinta preta na ficha. Pareceu fina a Bill, considerando-se o tempo que a Dra. Vassar passara com eles: aquelas múltiplas sessões em família e as sessões individuais, realizadas no escritório dela ou no apartamento, algumas durando até cinco horas, a depender da necessidade e das circunstâncias.
Bill olhava a pasta e perguntava-se o que a Dra. Vassar teria descoberto sobre eles: que segredos aquele cérebro agudo, intuitivo, conseguira pinçar; a que conclusões chegara em relação à estranha e terrível doença de Ivy, e que não lhes comunicara. Só tinha de abrir a pasta e olhar.
Seus dedos adiantaram-se até o envelope pardo e pararam.
O rosto largo, formal e profundo da alemã, seus olhos penetrantes, pareciam pairar acima da pasta.
Bill retirou lentamente o envelope.
A folha de cima era um pedaço de papel amarelo, pautado, com anotações feitas numa caligrafia enérgica. A escrita tinha um aspecto estrangeiro; algumas letras, como os "s" e os "l", eram difíceis de decifrar. Até ao escrever ela escrevia com sotaque, pensou Bill, ao soletrar lentamente as palavras.
"Muitas vezes, é bastante difícil diferençar perturbações da consciência de origem epiléptica das de origem psiquiátrica — não há histórico anterior de epilepsia neste caso; não há indícios de perturbações lobais nos exames físicos..."
E abaixo disso, o nome "Cullinan, 555-7751".
Cullinan fora o médico que fizera testes eletroencefalográficos com Ivy pouco antes de seu tratamento na clínica.
A página seguinte estava escrita nas costas de uma carta, uma circular relacionando folhetos médicos à venda. Parecia que a Dra. Vassar fazia suas anotações em qualquer papel que estivesse à mão.
"Fenomenologia histérica — ???" era a pergunta escrita no alto. E depois, um parágrafo maior abaixo: "A paciente demonstra sintomas de estado sonambulístico.
Os pais descrevem os movimentos como sendo uma reação ao conteúdo manifesto do sonho. O significado pode ser uma fuga das tentações da cama; contudo, isso seria muito incomum numa criança de menos de três anos. Mas é possível — já que os pais informam que ela tem capacidade de retratar imagens e executar ações complexas durante o sonho..."
E abaixo: "Darei um jeito de estar presente no próximo ataque".
Bill lembrava o telefonema que dera à Dra. Vassar naquela noite, havia sete anos. Eram duas da manhã, e ele se perguntava se devia perturbá-la, mas ela atendera ao telefone no primeiro chamado e dissera numa voz límpida e desperta: "Estou indo".
Chegara logo depois e passara toda a noite com Ivy, sozinha, por trás da porta fechada. Muitas dessas noites se repetiram no ano seguinte.
Bill saltou rapidamente dois pedaços de papel, ambos contendo as breves anotações "Ver Kretschmer" e "Ver Janet", e chegou a um fino caderno de notas, com uma capa de imitação de couro. Era um diário, um testemunho ocular de suas sessões com Ivy durante os ataques, escrito com letra rápida e trêmula, como se ela houvesse tomado as notas no momento exato em que as ações ocorriam. A primeira anotação era datada de 18/1/67, e dizia: "Ação objetiva... tentando sair... tocando as coisas e recuando como se elas estivessem quentes... ações motoras complicadas... estranhas... esquisitas... incomuníssimas nessa idade... às vezes, durante os ataques, ela parece estar recuando de coisas não visíveis a mais ninguém... tenta subir nas costas de uma cadeira — e consegue! Parece bem coordenada e apresenta um grau de coordenação muscular e habilidade de criança mais velha. (Testar a capacidade de subir nas costas da cadeira em estado de vigília.) Ela tenta tocar o vidro da janela, depois recolhe a mão sempre que está para tocá-lo... e estende-a de novo, em dramáticos episódios contínuos... acompanhados por choro, tormento, tremor... balbuciando Quentequentequentepapaipapaipapai... O ataque continuou até as cinco e vinte, hora em que a paciente sucumbiu à exaustão e caiu num sono febril.
"Temperatura do corpo: 40 graus."
Bill passou para a anotação seguinte, datada de 25/1/67: "A princípio, a paciente parecia tentar sair de alguma coisa... possível episódio traumático relacionado com incidente de isolamento... quarto fechado? Mas agora os movimentos parecem indicar menos comportamento de fuga, menos tentativa de sair de alguma coisa, do que tentar encaminhar-se para alguma coisa... seus movimentos são tateios em direção às coisas, e não para longe delas... comportamento de aproximação que é subitamente detido por... barreira térmica imaginária... dolorosa... quente...
Quentequentequentepapaipapaipapai-papai..." o balbucio pode relacionar-se com acontecimento traumático vivido no passado, embora a pouca idade pareça negar essa possibilidade... possível acontecimento relacionado com trauma pré-natal? Parto difícil? Conversar com obstetra.
Possível acontecimento relacionado com idade muito anterior... fogão? fogo? talvez sol quente? praia? algum lugar no verão onde a superfície estava quente demais? o metal do perambulador? tocado acidentalmente? maçaneta de porta exposta ao sol que estava quente demais? (discutir com os pais)..."
O calor na sala tornava-se insuportável. Bill levantou-se e tirou o paletó. A camisa estava molhada de suor. Dobrou o paletó escuro sobre as costas da cadeira vizinha e enrolou as mangas da camisa. Depois virou a página do diário para a anotação seguinte: "20/2/67... resultado do teste de subir na cadeira em estado de vigília revelou que a paciente não pode fazê-lo sem cair... mas no sonho pode, e parece demonstrar muito maior habilidade e coordenação muscular criativas do que o que se esperaria de uma criança de dois anos e meio... particularmente impressionante; embora tenha o típico padrão de fala de uma criança de dois anos e meio, no estado sonambulístico parece estar falando com a pronúncia e o padrão de fala de uma criança muito mais velha, talvez de cinco ou seis anos...
Quentequentequentepapaipapaipapai..."
Manifesta clara e precisa destreza de pronúncia, mesmo durante as rajadas rápidas, em staccato... (Testar a competência verbal da paciente em estado de vigília.)"
A página seguinte continha uma breve anotação: "O Dr. Osborne, obstetra encarregado, diz que não houve nenhum acontecimento desfavorável ou incomum durante o desenvolvimento fetal ou o nascimento da paciente.
Perfeitamente normais em todos os aspectos. Ar-condicionado no berçário normal — não há registro de mau funcionamento —, nenhum acidente com calor — vidro quente —, instrumento cirúrgico".
Bill sorriu ao lembrar a gloriosa manhã de agosto do nascimento de Ivy. Janice optara pelo Método Read, sem temor e sem drogas. Permanecera inteiramente consciente enquanto Ivy deslizara para o mundo exatamente às 8h 27min 03s, marcados no cronômetro de Bill. Nascera com os olhos abertos e parecia ter pleno conhecimento de seu mundo e das pessoas nele.
Mesmo antes de a lavarem, sua enorme beleza era claramente visível. Não houvera problema algum.
Ele suspirou e passou para a página seguinte: "3/4/67... resultado do teste de destreza oral em estado de vigília mostra que a paciente não pode enunciar o padrão de palavras em staccato com o mesmo grau de habilidade que demonstra no sonho... tende a embolar as palavras, engole os =t‘ inteiramente no rápido fluxo =Quentequentequente...‘ e tem dificuldades com o =p‘ e o =m‘ de papai e mamãe..."
"21/4/67... a janela parece ser sua meta principal — uma meta inatingível, pois o vidro apresenta uma barreira de calor prodigioso... as chamas do inferno? Tenta aproximar-se do vidro sem conseguir, porque o calor é intenso demais... cambaleia para trás... cai... chora... estão presentes reflexos córneos e pupilares... a paciente não morde a língua nem urina... fica com o rosto vermelho, e não azul ou branco... a temperatura do corpo aumenta sempre que o comportamento de aproximação a leva para perto da janela..."
Bill esfregou os olhos durante um momento. Gotas de suor da testa haviam escorrido para dentro deles. Tirou o lenço do bolso e enxugou o rosto. Depois olhou o relógio. Eram apenas onze e dez. Aproximou-o do ouvido para ver se não tinha parado. Tinha certeza de que se achava na sala há mais de dez minutos. Mas o relógio trabalhava normalmente. Pensou em chamar Janice. Havia um telefone na mesa do fundo da sala.
Decidiu dar-lhe mais dez minutos. Imaginou se Hoover tentara telefonar para sua casa. Os olhos retornaram ao caderno de anotações, aberto à sua frente, convidando. Não pôde pensar em nada para retardar o momento em que viraria a página.
"Em resumo, o que temos aqui é uma criança que, aos dois anos e meio, parece ter desenvolvido, muito mais cedo do que geralmente se vê, uma forma sonambulística de histeria... parece estar invocando alguma experiência traumática anterior, na qual o calor ou o fogo é a força motivadora... há muitas circunstâncias peculiares que surgiram durante o tratamento — isto é, dentro do estado sonambulístico, tanto a atividade da linguagem como a motora apresentam um grau de maturidade maior do que o que a criança demonstra normalmente, o que é uma coisa muitíssimo impressionante e incomum..."
A página seguinte dizia: "Tratamento: o sonambulismo é uma manifestação de histeria... indica-se a hipnoterapia, aqui não possível devido à pouca idade da paciente... terapia sugestiva aplicada com alguns resultados positivos... fortes sugestões autoritárias durante o sono — forte insistência e pressão para deixar o sintoma —, descoberta alguma reação indicando que a criança é uma sonâmbula muito suscetível... daí, usando-se sua sugestibilidade para afastar as experiências traumáticas, conseguiram-se resultados positivos num período de quarenta e uma sessões de durações variadas..."
A página seguinte do caderno estava em branco. Bill folheou o resto das páginas, não esperando encontrar mais nada, e ficou surpreso ao ver outra anotação na última página.
"Estamos lidando aqui com algo cujo limitado conhecimento e informação que temos impede uma avaliação diagnostica plena. O conceito jungiano de arquétipos... possível relação com o comportamento... possivelmente a criança está reencenando uma experiência que não é sua, mas está em sua mente, sem ter acontecido a ela, dando algum crédito à possível interpretação jungiana... talvez o acontecimento não manifeste a experiência da própria criança, mas algo do inconsciente coletivo???"
Bill virou a capa de imitação de couro e fechou o caderno. O suor em seu pescoço transformara-se num frio gélido. Ele estava paralisado, esvaziando a mente de todo pensamento, pois o pensamento naquele momento era um inimigo, desafiando a razão, encorajando a dúvida. Quase podia ver a face da alemã sorrindo para ele.
A porta abriu-se para dentro. A secretária do Dr. Schanzer mantinha-a aberta para Janice.
— Sua mulher está aqui, Mr. Templeton — disse a secretária animadamente, e saiu logo.
— Venha juntar-se à brincadeira — ele disse, puxando uma cadeira junto à sua. Janice parecia muito bonita, pensou; fresca, fria e usando uma roupa que ele não se lembrava de ter visto antes. Obviamente, esforçara-se para agradá-lo, o que era um bom presságio.
— Melhor tirar o casaco — avisou. — Este lugar é uma sauna.
— Estou bem — ela disse, sentando-se a seu lado.
— Como está Ivy?
— Muito melhor. A febre baixou para trinta e oito. O Dr. Kaplan passou lá e mudou os curativos. Ele acha que as queimaduras não vão deixar cicatrizes.
— Graças a Deus — disse Bill com vigor. E depois perguntou: — Carole está com ela?
Janice balançou a cabeça. — Estavam assistindo a um programa de TV quando saí.
— Alguém chamou esta manhã?
— Não — disse Janice, sabendo a quem ele se referia.
Bill sentou-se e passou-lhe a pasta. — Veja isto — disse.
— Alguma coisa interessante? — Ela abriu a pasta e começou a ler o primeiro pedaço de papel amarelo.
— Um bocado de coisas que a gente já sabe; um bocado que eu não compreendo.
Bill levantou-se, pôs seu paletó e desculpou-se porque ia beber água. Percorrendo o longo corredor em busca de um bebedouro, quase colidiu com um jovem moreno que saía de um escritório bastante iluminado à direita, e perguntou-se se aquele não seria o Dr. Perez. Encontrou um banheiro escondido dentro de uma pequena sala e entrou. A água pareceu-lhe fria e revigorante contra o seu rosto, quando ele o mergulhou nas mãos em concha e mesmo bebeu um pouco dela. Deu a Janice bastante tempo para acabar de ler, antes de voltar à sala de reuniões.
O Dr. Schanzer estava com ela quando ele chegou, a pasta presa em suas mãos, possessivamente. Janice parecia sem dúvida mais pálida do que quando a deixara.
— Perdoe-me por deixá-lo esperando, Mr. Templeton. Os olhos castanho-escuros do Dr. Schanzer faiscaram para ele. Era um homem atarracado e grisalho, com braços e peito possantes.
— Eu estava dizendo a Mrs. Templeton que o Dr. Noonis, um de nossos associados aqui, talvez tenha um horário para sua filha esta semana. O horário das cinco e meia de sexta-feira está aberto; se lhe convier, podemos marcar uma consulta para uma entrevista com a família.
— Não sei — Bill esquivou-se. — Estávamos planejando uma viagem...
— Minha filha e eu estaremos aqui, doutor — interveio Janice. — Sexta-feira está ótimo. — A declaração foi feita no mesmo tom alheio e monótono que ele ouvira naquela manhã: impassível, indiferente, apático.
— Ótimo — disse o Dr. Schanzer. — Então marcarei a consulta. — Levantou-se para sair.
— Doutor... — a voz de Bill deteve-o. — O senhor pode me dizer o que são arquétipos?
Ele percebeu o olhar rápido e preocupado de Janice pelo canto do olho. O médico fechou a porta e esboçou um sorriso.
Parecia quase divertido com a pergunta.
— Arquétipos jungianos. A expressão é uma criação do Dr. Jung. Refere-se ao que ele chamou de inconsciente coletivo. Em seu trabalho com esquizofrênicos, ele ficou impressionado com o frequente aparecimento de imagens notavelmente semelhantes em pacientes de origens as mais diversas. Isso sugeriu-lhe que a mente humana, assim como o corpo, traz traços de seu passado racial, que seus anseios, esperanças e terrores estão enraizados na pré-história, sobre e acima de suas experiências como indivíduo.
— Há em sua profissão quem endosse essa teoria?
O Dr. Schanzer deu uma risadinha. — Devo dizer-lhe, Mr. Templeton, que as pessoas em minha profissão tentam manter a mente aberta todo o tempo. O Dr. Jung foi um homem brilhante, mas um tanto renegado. Em grande parte, suas teorias são muito explosivas, mas há méritos em muitíssimas delas.
— O senhor acredita que as pessoas podem se lembrar de coisas que elas não viveram pessoalmente?
O sorriso no rosto do Dr. Schanzer fechou-se um pouco.
— Eu, pessoalmente, não acredito em inconsciente coletivo, Mr. Templeton, ou em lembranças herdadas da pré-história de uma origem individual.
— Obrigado — disse Bill.
— Dez dias sem vocês duas; vai ser um inferno, você sabe disso.
Estavam novamente no Rattazzi‘s, sentados, Janice pensava, à mesma mesa. Faltavam alguns minutos para uma da tarde, e o salão estava cheio de gente e barulho. Todos pareciam gritar, inclusive Bill.
— Quer dizer — ele continuou, com um toque a mais de mágoa — que não me dá a esperança nem de que poderá ir juntar-se a mim dentro de um dia mais ou menos.
Seu rosto estava corado; os olhos começavam a ficar vidrados. O gim puro estava tendo um efeito decisivo sobre ele.
Janice resolvera manter-se sóbria. Como ia ficar sozinha agora com Ivy e tinham um futuro incerto à frente, era essencial uma mente lúcida.
— Não creio que haja alguma esperança de que possamos — ela respondeu em voz baixa. — Considerando o que nos tem acontecido nestes últimos dias, você acha que poderemos?
— Eu acho que você está levando esse maldito negócio a sério demais.
Janice ergueu o olhar para ele, sem acreditar.
— O que me espanta é que você não leve.
— Muito bem, eu mereci esta. Deixe-me dizer a coisa de outro jeito. A saúde e a felicidade de minha família são de interesse básico para mim. Sua depressão, o problema de Ivy, tudo isso eu levo muito a sério. Estou tentando fazer algo a respeito. — Suas frases eram espaçadas e ligeiramente turvas. — A você, só posso oferecer amor, compreensão e extrema paciência. A Ivy, ofereço além disso a ajuda médica especializada, que ela receberá. O que eu não levo a sério é toda essa coisa com Hoover e arquétipos, toda essa louca palhaçada que está ocorrendo em nossas vidas ultimamente...
— Por Deus, Bill... — explicou Janice. — Você crê honestamente que o que está acontecendo com Ivy não é nada mais que uma simples doença como... como uma gripe? E o que leu no caderno da Dra. Vassar? Não vê uma conexão com Hoover? Considera as opiniões e conclusões dela uma palhaçada?
O garçom trouxe o martíni de Bill.
— Outro — ele resmungou e, tomando a bebida recémchegada, engoliu metade de um gole. Focalizou os olhos incertos em Janice, do outro lado da mesa, e continuou numa voz baixa e áspera.
— Não acho que um título de doutor na frente do nome de uma pessoa a torne necessariamente infalível. Você sabe, há um monte de doutores burros no mundo...
— Oh, bravos! Você acredita mesmo nisso?
— Siiimmm. E já que você falou nisso, eu devo dizer-lhe mais algumas coisinhas sobre o que eu realmente acredito.
Acredito firmemente nas coisas como são. Não no que parecem ser, mas no que são. Percebeu? Posso até não gostar de algumas dessas coisas, mas sei muito bem que não posso mudá-las, e o diabo que me carregue se vou tentar... — Ergueu o cálice e sugou o resto da bebida até a azeitona. — Acredito que branco é branco e preto é preto. Acredito que, se subisse nesta mesa e me atirasse de cabeça, provavelmente quebraria o pescoço. Não haveria anjo da guarda para amaciar minha queda. Seria levado ou para o hospital ou para o necrotério. Se morresse, seria ou queimado ou enterrado no chão, e isso seria o meu fim. Nada de harpas, asas, tridentes, nada. Finis! — Calou-se, para deixar suas palavras penetrarem nela. — Não acredito que algum dia me veria flutuando em torno de alguma enfermaria de maternidade, esperando para me esgueirar dentro do corpo de algum bebé incauto, quando ele saltasse para fora. Tenho certeza de que ele não gostaria disso, e de que eu ficaria horrorizado...
Janice viu-se de repente rindo, apesar de si mesma.
— Não, não ria! — ele avisou, elevando a voz. — Não estou brincando, e não acabei!
O riso abandonou o rosto de Janice, quando ela viu a expressão de intensa sinceridade nos olhos avermelhados dele.
— Eu acredito que quente é quente, e que frio é frio! Ele pegou uma caixinha de fósforos na mesa e acendeu um. — Acredito que, se puser meu dedo nesta chama, ele será queimado e ficará com uma bolha! — Pôs o dedo na chama e deíxou-o ali.
— Bill, não! — Janice estendeu a mão para detê-lo.
Ele soprou a chama e mostrou-lhe o dedo, que começava a avermelhar-se.
— Vê como está ficando vermelho — disse, com absoluta seriedade. — Vai formar uma bolha, como tinha de formar!
Pegou o copo de água gelada com a outra mão.
— Agora, se eu puser meu dedo contra esse vidro gelado, ele ficará frio, porque o gelo não queima! E nenhum poder na terra pode fazer esse gelo queimar meu dedo! — As palavras brotavam dele aos borbotões, compulsivamente, e ele gritava, atraindo os olhares das pessoas em torno.
— Não queima! Por mais que eu fique com o dedo no vidro, não queimará nem ficará com bolha!
Lentamente, Janice foi compreendendo que o que ouvia não era a tagarelice de um homem bêbado, mas o grito angustiado de um homem cujo senso de realidade fora seriamente testado, e que lutava para agarrar-se ao último farrapo de senso e razão que lhe restava.
— O fogo queima! O gelo esfria! — ele continuou, em voz alta. — Agora, se isto não é uma lei de Copérnico ou Galileu, chamemo-la simplesmente da lei do fodido Templeton! Aceita?
O fogo queima! O gelo esfria! E nunca os dois produzirão o mesmo efeito! Aceita?
O salão estava visivelmente silencioso. As pessoas olhavam díretamente para eles. Tommy apareceu com a bebida de Bill e perguntou-lhe jovialmente se desejavam fazer os pedidos.
— Claro — disse Bill. — Que diabos...
Mas a força e a energia haviam abandonado sua voz. O terremoto passara.
Ele fez o pedido para ambos, mecanicamente, Janice assentindo à sua primeira sugestão.
Vendo-o levar inseguramente a bebida à boca, buscando afastar sua confusão em seu efeito anestesiante, uma onda de pena e temor passou por Janice. O vidro gelado tinha sido a revelação. Gelo é frio. Fogo queima. A janela fria, congelada, havia queimado as mãos de Ivy, não o radiador. Ele vira, com seus próprios olhos, as mãos tateantes, em busca, comprimiremse contra o vidro coberto de geada, depois recuarem, vermelhas e crestadas. "O fogo queima! O gelo esfria!"
O radiador quente, feroz, tinha sido o réu lógico, não o vidro congelado diretamente acima dele. Para uma mente tão bem ordenada e apegada à realidade como a dele, essa tinha de ser a única explicação possível, a única aceitável.
Oh, Bill, Bill! O coração de Janice foi para ele. Doce, confuso, acossado, querido! Os olhos dela, marejados de lágrimas, olhavam o rosto querido do outro lado da mesa, curvado sobre o prato, levando garfadas à boca, mastigando, degustando, ou talvez sem nem sentir o gosto da comida.
Brincando distraidamente com sua própria comida, Janice sentiu mais uma pontada de desesperança. Embora se houvesse ressentido da obstinada obtusidade de Bill, sua recusa a aceitar toda aquela "palhaçada", também encontrara um certo conforto nisso. Fosse qual fosse a verdade, sua rígida atitude de São Tomé dera um certo equilíbrio a suas vidas, dera uma nota de sanidade a seu mundo subitamente enlouquecido. Agora não haveria mais isso, essa força niveladora, esse bom, sólido e saudável ceticismo. De agora em diante, haveria dois corroborando a insanidade, galvanizando a atmosfera de temor e tensão em seu lar.
Na rua, ficaram à espera de um táxi. O dia tornara-se novamente cinzento, e o ar tinha cheiro de chuva. Bill acenava para táxis que passavam ociosamente pela rua, mas o gesto era inútil; os carros ou estavam ocupados ou os motoristas não queriam parar. Mas ele continuou a acenar para eles, enquanto Janice insistia que preferia caminhar até em casa. A comida trouxera um pouco de sobriedade a Bill, e seu rosto tinha uma expressão ligeiramente culpada, encabulada, quando ele se curvou e beijou os lábios dela. Abraçando-a fortemente, pediu desculpas em voz baixa pelo seu comportamento e disse-lhe que lhe telefonaria às nove da manhã, hora de Nova York. Lágrimas inundaram os olhos de Janice, agarrada a ele, amando-o, querendo reconfortá-lo, querendo dizer-lhe que sabia de seus temores e confusões, e não sabendo exatamente como dizê-lo.
Ele deu-lhe uma pequena tira de papel com seu itinerário datilografado: os horários de chegada a Los Angeles e Honolulu, o nome do hotel onde estava registrado e vários números de telefone nos quais poderia ser encontrado. Também continha os números dos telefones do escritório e da casa de Harold Yates, para o caso de ela precisar dele. Pediu-lhe que o chamasse em Honolulu a qualquer hora e por qualquer razão.
— E se as coisas derem certo — acrescentou — entre em contato com minha secretária e ela marcará as passagens em menos de uma hora.
Janice balançou a cabeça e disse-lhe para pôr um BandAid no dedo, que já tinha uma pequena bolha. Beijaram-se novamente e disseram "Eu te amo" um ao outro, parados diante do Rattazzi‘s; depois ele a deixou e começou a andar em direção à Madison Avenue. As lágrimas nos olhos dela borravam sua visão, enquanto ficava ali, vendo sua silhueta alta misturar-se e fundir-se e finalmente perder-se na multidão.
Uma forte rajada de vento varreu a estreita rua lateral, gelando-a até os ossos. Ela ergueu a gola do casaco firmemente em torno da garganta e caminhou a passos rápidos em direção à Fifth Avenue.
Continuava pensando em Bill, retendo carinhosamente a imagem de seu rosto bom e generoso, afetado agora pelo choque e a perplexidade, desafiando o testemunho de seus próprios olhos, defendendo sua razão, lutando para sobreviver.
As nuvens sobrecarregadas relutavam em desabar quando ela subiu a Fifth até a esquina da 51st Street e esperou com um batalhão de pessoas que o sinal mudasse.
Agigantando-se acima dela, do outro lado da rua, via-se a Catedral de St. Patrick — suas linhas góticas lançando-se para cima, brotando como uma fonte até as nuvens carregadas. O fantástico transplante da Idade Média, plantado incoerentemente em meio ao aço, vidro e poluição de Manhattan, pareceu menos um anacronismo a Janice do que uma piada monstruosa que a Igreja Católica fizera com a cidade.
Passando por sua complexa estrutura de pedra e seus portais de metal lavrado — vários dos quais estavam abertos e guarnecidos com bandeiras de veludo púrpura —, ela tinha a sensação de passar por um génio colossal, agachado imperiosamente com a braguilha aberta, convidando o mundo a entrar e partilhar de sua magia e milagres.
Grupos de turistas entravam na igreja pelas portas abertas da extremidade sul; ao mesmo tempo, outros turistas saíam pelas portas da extremidade norte, mantendo um constante equilíbrio dentro. Janice subiu os degraus e misturou-se à multidão que passava pelas portas do sul.
Ao entrar na nave, ela sentiu uma quietude que absorvia os sons daquela humanidade se movimentando, empurrando, sussurrando, a circular ociosamente em torno do ambiente cavernoso. Logo à entrada havia uma fonte de mármore com água benta, a bacia manchada de círculos esverdeados de sedimento, denotando vários níveis de água durante os anos de uso. O casal à frente de Janice, um homem e uma mulher idosos, mergulhou os dedos na água e benzeu-se. Ela passou pela fonte sem partilhar de sua consolação.
Ali, na semi-escuridão, ela moveu-se no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio, descendo a ala lateral junto com um grupo de turistas que esticavam o pescoço para os vários pontos de interesse. À sua esquerda estava a abside central da catedral, guarnecida por fileiras de vitrais presos no alto de paredes reforçadas que pareciam erguer-se até o próprio céu. O altar e santuário principal dominava o centro da catedral, com longas filas de genuflexórios partindo dele. com exceção de alguns fiéis que rezavam nesses genuflexórios, não havia nenhum serviço àquela hora.
À direita da ala lateral, havia uma série de capelas menores, cada uma dedicada a um santo particular. Na capela de São José havia um caixão aberto, guarnecido de púrpura, com o corpo de algum dignitário da Igreja jazendo em estado de solidão. Janice viu a ponta do nariz do cadáver surgindo para fora do caixão e ficou momentaneamente mesmerizada.
As pessoas atrás dela empurraram-na delicada mas insistentemente para a frente.
Em breve ela se viu diante de outro altarzinho. Algumas velas ardiam lançando uma luz fumarenta na inscrição gravada na balaustrada de mármore: SANTO ANDRÉ. O rosto de Janice esquentava, seus olhos e sua boca estavam quentes. Ela saiu do caminho dos que vinham atrás e deu um passo para dentro da capela.
A princípio, na luz insuficiente, julgou estar sozinha. Mas quando seus olhos se acostumaram, percebeu que havia um homem parado num canto afastado, a cabeça curvada em meditação.
Janice subiu até o altar. Sentia as mãos tremerem quando as estendeu para tocar o frio corrimão de mármore. Imaginou como seria ajoelhar-se de novo, após tantos anos. Lentamente, desceu até a plataforma, sentindo um choque doloroso quando seus joelhos tocaram a superfície dura. Uma onda de culpa apoderou-se dela por sentir dor. Era um sinal de sua apostasia.
Santo André olhava-a lá de cima com perdão, mas ela não se enganava. O rosto era feito de gesso; os olhos que perdoavam haviam sido traçados pelas mãos de um artista. A face de Deus, ela sabia, não seria tão tolerante e compreensiva. O pensamento de Deus trouxe-lhe o rosto do Padre Breslin à sua mente. Ele fora o cardeal na escola paroquial de St. Andrews, que ela frequentara quando criança. Seu rosto severo, enrugado, corado, fora o terror das classes. Sua voz autoritária, reboando pelos corredores em busca de alguma criança azarada, era como uma antevisão da ira de Deus. Janice tremeu com a recordação e retornou sua atenção para o rosto de Santo André. Lembrava como as expressões das freiras se amaciavam quando falavam dele, contando aos estudantes sua humildade, modéstia, falta de pretensão, percorrendo terras a pregar o Evangelho de Jesus.
E como, ao ser condenado à morte em Aquéia, insistira em ser crucificado numa cruz em forma de X, para não imitar a paixão e morte de Nosso Bendito Salvador. Como falavam facilmente da morte, as irmãs, e como as crianças a aceitavam facilmente.
Ela quis apanhar um palito, mas sua mão tremeu tanto que quase não conseguiu acendê-lo numa vela. Quando conseguiu, era impossível trazê-lo ao pavio da nova vela. Ficou em sua mão, tremendo diante de seus olhos transfixados pela chama brilhante e saltitante.
O gelo esfria; o fogo queima, pensou, olhando o fogo estralejante percorrer o comprimento do longo palito em direção aos seus dedos. Faria surgir uma bolha. E tinha de fazer .
Porque o fogo queima.
Uma mão cobriu a sua, forte, mas delicada. Uma voz disse, ligeiramente e com humor: — A senhora certamente tem uma ardente devoção a Santo André.
O tremor da chama foi extinto quando a mão — uma mão de homem, o pulso envolvido por um punho de camisa branca fechado com abotoaduras negras — rápida e seguramente dirigiu o palito para uma nova vela e a acendeu. Um sopro apagou o palito.
Janice sentia-se novamente trêmula, quando a mão se retirou da sua. Olhando para o chão e os bicos negros dos sapatos, reluzentes sob eras de cera, seus olhos foram subindo pelas gastas calças pretas com um brilho nos joelhos, até o breviário, preso junto com o chapéu de palha sob o mesmo braço, e o rosto. Como o do Padre Breslin, era um rosto enrugado e corado, mas não severo, e a voz não era reboante nem assustadora.
— Santo André é o meu patronímico. — Ele sorriu. Nunca visito Nova York sem dar uma passada por aqui para bater um papo com ele.
Janice apenas olhava o padre idoso, o rosto prestativo que parecia oferecer-se. Ele tomara a sua mão. De repente, tomara sua mão. Fora como se a mão de Deus se fechasse sobre a sua.
Uma onda de fé avolumou-se dentro dela. Seria aquele homem um enviado? As irmãs sempre diziam que Deus jamais esquecia os seus... Seria possível? Não era menos possível do que todos os outros mistérios que cercavam sua vida nas últimas semanas.
Ela sentiu a umidade das lágrimas em seu rosto e viu uma expressão perturbada apoderar-se dos olhos do padre. Sorrindo, ela gaguejou: — Eu frequentei a Igreja de Santo André quando era pequena.
— E onde foi isso?
— Portland.
— A senhora está muito longe de Portland. — Ele notou que as mãos dela ainda tremiam incontroladamente, e ela viu que ele notava.
— Há algum modo de voltar? — perguntou baixinho.
Quando menos esperava, ela estava chorando como uma criança, com o rosto escondido nas mãos. O padre parecia vexado e olhava em torno nervosamente, para ver se estavam sendo observados. Ele tirou seu lenço bem passado do bolso e ofereceu-o a ela, mas Janice pegou rapidamente o seu próprio da bolsa e tentou sorrir.
— Sinto muito, padre — desculpou-se.
O velho sacerdote ficou calado, como se pensasse, e depois perguntou: — Eu posso ser útil à senhora?
Janice tentou erguer-se, mas seus joelhos estavam gelados.
O padre viu o seu dilema e pegou no braço dela. Pontadas de agulha, dolorosas, percorriam as pernas de Janice quando tentou se firmar nelas, e ela oscilou incertamente. O padre continuou a ampará-la e guiou-a lentamente para um banco no canto da capelinha.
— Vamos sentar?
Ela deixou que ele a sentasse, grata pelo ato positivo de ajuda que lhe oferecia, mas sabendo que era inconcebível qualquer conversa com ele.
— Padre, eu não sei se tenho algum direito a estar pedindo ajuda. Estive longe da Igreja por um longo tempo, e não sou uma católica praticante... Eu... — sua mente buscava as palavras corretas — ... não tenho recebido os sacramentos há muitos anos...
— Quantos?
— Quinze... dezesseis anos...
O padre mostrou uma expressão de dor. — E por que está aqui agora?
— Tenho problemas.
Os olhos dele suavizaram-se. — Não é sempre assim? Os problemas nos põem de joelhos.
— Eu não sei como dizer ao senhor. Não sei mesmo como dizer essas coisas a mim mesma, padre. — Lembrou-se de Hoover e da dificuldade que ele tivera para dizer-lhes. Parece tão ridículo, quando a gente põe em palavras... — Parou e balançou a cabeça. — Mas também... eu vejo o que isso está fazendo conosco... minha filha, meu marido... fazendo-nos girar em todo tipo de círculos... — Seus olhos procuraram os do padre. — Padre, posso pedir-lhe?
— Que é? — Havia uma nota de tensão e temor na voz do velho.
— Eu sei que nossa fé não aceita... a reencarnação... e no entanto aconteceram coisas que me fazem perguntar se não há isso.
O padre mediu-a cuidadosamente. Era a última coisa que esperava ouvir.
— Que coisas?
— Minha filha... — ela começou, depois parou e reorganizou a direção de seus pensamentos. — Um homem — começou de novo — entrou em nossas vidas. Ele... ele nos disse — a meu marido e a mim — que nossa filha é... a reencarnação da filha dele, que está morta há anos.
O velho fechou os olhos e baixou a cabeça, como se rezasse. Após um momento assim, perguntou baixinho: — Seu marido é católico?
— Não, padre.
— Sua filha foi batizada?
— Não, padre.
— Que idade tem ela?
— Pouco mais de dez.
Ele olhou-a com olhos de incredulidade — olhos que tinham visto tanta coisa, e no entanto aparentemente sabiam tão pouco — e tentou penetrar a máscara de lágrimas, buscando uma visão da mente e da alma da estranha mulher atormentada à sua frente.
— E a senhora acredita que o que esse homem lhe disse é verdade?
— Coisas... coisas estranhas têm acontecido, e me convenceram que pode ser verdade, padre.
Novamente o sacerdote fechou os olhos e pôs as mãos sobre eles, sentindo-se estonteado, pressionado para dar atenção a um assunto que lhe parecia inteiramente absurdo.
— A senhora deve conhecer os textos. Os Evangelhos não consubstanciam essa crença. Nós não alimentamos essas crenças. Acreditamos em fins, e começos, e meios. Uma vida não viaja em círculos. Há um movimento, há um impulso em nossa vida, há metas... estamos indo para alguma parte!
Janice chorava. — Eu sei, padre, mas isso entrou em nossas vidas... e eu estou perturbada.
O padre olhou-a com olhos repentinamente severos.
— Você está perturbada — disse rudemente. — Você acha que estaria nessa encrenca se houvesse mantido o que lhe foi dado? O que Deus lhe deu? Cristo prometeu desde o início que Seu espírito estaria com a Igreja. E a Igreja tem reagido sabiamente há dois mil anos, a única instituição humana a ter sobrevivido a tempos, espaços e revoluções, e que nos deu algo sólido a que nos agarrar.
— Eu estou confusa, padre.
— Porque esteve ouvindo o mundo. A senhora está flutuando aqui, ali, deve parar de ouvir todas essas forças estranhas; tem de aguentar-se, retornar ao que é básico, retornar ao que Deus lhe deu... tem de voltar para casa. — O rosto do padre havia-se avermelhado e suas mãos tremiam. — A senhora deve dar sentido à sua vida, um objetivo!
— Até esse homem aparecer havia um objetivo em minha vida, padre. — Janice soluçou com o rosto afundado no lenço.
— A senhora não pode alimentar esses pensamentos estranhos... são maus pensamentos... Nosso Senhor disse: "Se teus olhos te escandalizam, arranca-os". Assim é esse homem que entrou em sua vida, ele é mau! A senhora não deve dar-lhe atenção! Deve arrancá-lo de sua vida! Ele é um perigo para a senhora!
— É minha filha, padre... é ela quem está em perigo... ela tem aqueles sonhos terríveis, sonhos que a castigam... e ele é a única pessoa que parece aliviá-la.
O padre ergueu a mão, detendo-a, diante de seu rosto molhado de lágrimas.
— A senhora deve retornar à instituição que Cristo habita.
Isso a ajudará a afastar os poderes do erro, resistir aos engodos e a todas as armadilhas do maldito.
Fitava a mulher sentada a seu lado, chorando amargamente, e a sua voz abrandou-se.
— Quando criança disseram-lhe para evitar as ocasiões propícias ao pecado, e a senhora deixou esse homem e sua força invadirem-na. Deve dar-lhe as costas; deve entregar-se à verdade, à única santa fé católica.
O padre ergueu-se, encerrando a entrevista.
— Eu sugiro que a senhora vá ao padre de sua paróquia e faça uma confissão, entregando-se à misericórdia divina. Abra sua mão para Cristo.
Ele estendeu o braço para o banco e pegou seu breviário e seu chapéu de palhinha, mas não se foi. Parecia incapaz de fugir da estranha e desagradável situação, e permanecia fitando a jovem em lágrimas, que só fazia balançar a cabeça concordando com o seu conselho de despedida. Tentou desligar-se daquilo, afastar-se simplesmente, mas não podia. Uma sensação de profundo fracasso apoderara-se dele. Que sabia ele dos problemas que ela levantara, que ela pusera a seus pés?
Reencarnação? Um interminável ciclo de vidas? Era infantil, senão mau. E no entanto, como ele acreditava implicitamente nos milagres registrados na
Bíblia, como pautava cuidadosamente sua mensagem pelas mensagens deles. O velho padre sentia-se de repente muito confuso e... inútil.
— Minha cara jovem, deixe-me abençoá-la — disse, com sentida compaixão, passando delicadamente a palma da mão pelo lado do rosto de Janice. — Que Deus todo-poderoso a abençoe — disse, traçando o sinal-da-cruz em frente aos olhos dela — em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Janice não o olhou afastar-se. Ficou ali sozinha, à sombra de Santo André, esperando sua angústia diminuir e sua mente recompor-se, antes de levantar-se e juntar-se discretamente à corrente de turistas que circulavam pela catedral.
Às três e dez, ela deixou o abrigo protetor da igreja e cambaleou pelos portais de volta ao escuro e estranho mundo lá fora.
11
A longa caminhada de St. Patrick até em casa, sob uma chuva violenta, foi um tónico revigorante para Janice. Os fortes golpes de chuva em seu rosto tinham um efeito de mágica terapia de limpeza, e ela erguia o rosto para recebê-los. Eram a realidade: frios, ferroantes, dolorosos, seu impacto trazendo-a à plena e súbita consciência de si mesma e do mundo ao seu redor — o real, o presente, o único mundo que havia em seu minuto pessoal de eternidade.
Ensopada, chegou à esquina da 67th Street e ficou um momento fitando a maciça fachada de pedra e vidro do Des Artistes, reluzindo de chuva sob a fraca luz de outono. A fortaleza de Bill, pensou com um sorriso sombrio. Seu baluarte de defesa contra o inimigo lá fora tinha sido inútil contra o inimigo lá dentro. De algum modo, ao projetarem o edifício, os artistas não haviam previsto medidas contra intrusos do mundo dos espíritos. Alho e prata deviam ter sido misturados à argamassa.
Encontrou Carole e Ivy jogando xadrez no chão da sala de visitas. As faces de Ivy pareceram-lhe frias, ao tocarem as suas.
Carole ficou para acabar o jogo, depois pegou seu tricô e encaminhou-se para a porta, fazendo um sinal a Janice para que a acompanhasse.
— Ele insiste em vê-la esta noite — Carole murmurou-lhe com uma espécie de prazer. — Disse que sabe que Bill está fora, mas que você e ele têm de conversar, por Ivy. — Seu rosto contorceu-se numa divertida máscara de medo. — Puxa, querida — disse em voz trêmula —, por que não chama os tiras? Como diz Russ, esse cara é maluco.
Janice sorriu debilmente e disse: — vou fazer isso, se ele continuar.
— Se precisar de ajuda, dê um grito. Vamos jantar com o irmão de Russ, mas estaremos de volta às onze.
— Obrigada, Carole, por tudo — disse Janice, sinceramente, mas alegre por se ver livre da amiga.
Janice não comprara comida e teve de raspar aqui e ali para fazer uma ceia. Encontrou um pacote de spaghetti pela metade no armário e preparou-o com manteiga e parmesão.
Comeram-no com prazer à mesa da sala de jantar, juntamente com ervilhas em conserva e copos de leite. Depois ficaram vendo televisão até as oito e meia e foram para cima.
Enquanto Ivy se punha sentada na cama, lendo o mais novo mistério de Nancy Drew, Janice ocupava-se preparando o quarto.
— Pra que é isso? — perguntou Ivy, referindo-se a um grande biombo de quatro partes que a mãe trouxera de seu quarto.
— É para a janela; está entrando um frio gelado pelas frestas. Precisamos mandar vedá-las de novo.
— Eu não sinto isso.
— Mas há — disse Janice, abrindo o biombo todo e pondo-o diante do radiador. Por alguns minutos, a peça resistiu a encaixar-se por trás do aparelho, fazendo-a praguejar baixinho e Ivy sorrir advertindo: — Cuidado com a linguagem, mamãe; há crianças presentes.
Mas o biombo finalmente encaixou-se entre os vários canos, e agora um motivo chinês vermelho e dourado escondia totalmente a janela.
— Opa, parece bonito — disse Ivy surpresa. — Podemos deixar isso aí?
— Vamos ver — disse Janice, ao enrolar camadas de cobertores em volta do radiador criminoso. — Não quero que se repita o que aconteceu a noite passada — explicou, movimentando-se pelo quarto, arrumando, mas principalmente afastando os móveis mais volumosos para os cantos, fora do caminho, e armando o cenário para uma possível ação.
Às nove e dez, depois de pôr Ivy na cama com seu ursinho e beijá-los ambos, Janice apagou a luz e deixou o quarto, fechando a porta atrás. Caminhou até o seu quarto, abriu o livrinho de telefones na letra K e o pôs emborcado junto ao aparelho. Mentalmente, reviu tudo que tinha feito, e só depois de assegurar-se de que não esquecera nada foi que se permitiu buscar a maciez do travesseiro. Descansaria. Esperava não dormir. Continuaria vestida, com a luz acesa, e apenas descansaria, esperando.
Um som despertou-a. Apurou o ouvido, à escuta. Ouvia a chuva, muito baixinho, contra a janela. E ainda mais baixinho a princípio, fracas pisadas — passos miúdos, minúsculos, e a terrível voz pipilando: — Papaipapaipapaipapaiquentequentequentequente...
Subindo, descendo, subindo de novo, mais alto: — Quentequentequentequente...
Janice esfregou o sono dos olhos e olhou o relógio. Dez e cinco. Cochilara, afinal.
A voz ergueu-se de repente a um grito, tornou-se estridente: — QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEQUENTE!.. .
Ecoando, ferindo os ouvidos de Janice do outro lado do corredor. Ela os cobriu com as mãos e sentiu o sangue latejando e o coração saltando. O telefone.
Punhos batendo, atingindo... alguma coisa!
As mãos tremendo, Janice pegou a lista telefónica e procurou KAPLAN. Não podia controlar os dedos para discar.
Sons rascantes, despedaçantes — rasgando — o quê?
— Consultório do Dr. Kaplan, aguarde um instante por favor...
— Diabos!
Passaram-se segundos, depois um minuto.
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTE! — Os gritos abalavam a casa.
— Consultório do Dr. Kaplan, obrigado por esperar.
— O Dr. Kaplan, por favor.
— É urgente?
— Sim!
Batendo, rasgando, retumbando.
— Nome?
— Janice Templeton.
— Número do telefone?
— 555-1461.
— O doutor a chamará logo.
— Depressa, por favor, é uma emergência!
Arranhando, ferindo, raspando, gritando.
Janice pôs o telefone no gancho e lançou-se para fora da cama a pulso, encamínhando-se para a porta.
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEQUENTE...
— Ecoando, ricocheteando, enchendo o corredor de loucura e terror, açoitando Janice com impacto despedaçante, vindo ao seu encontro enquanto ela cambaleava passando pela escada até o outro lado do corredor e a porta ainda fechada como a deixara. Deteve-se, o pânico aumentando dentro dela, e depois abriu-a e olhou a escuridão plena de ruídos.
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEQUENTE...
— Explodiram em seu rosto as palavras penosamente soluçadas, em rajadas abafadas, agoniadas, rasgando a garganta.
Vagos contornos surgiram na escuridão quando os olhos aterrorizados de Janice procuraram ajustar-se. O espectro estava na janela, agitando as brancas mangas da camisola e as mãos enfaixadas, cavando, arranhando o biombo chinês, impelidas pelo contínuo e monocórdico: — QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEQUENTE...
— Oh, Deus, o biombo! — Janice ouviu-se arquejar, e estendendo a mão para o interruptor, iluminou o quarto.
Levou as mãos aos olhos.
— Não. Oh, Deus! — disse, quase sem voz, os olhos desfocados pela tontura. — Oh, Santa Maria, Mãe de Deus. Não!
Porque na janela estava a sua filha, rasgando a tela pintada e envernizada com as unhas, agora desenfaixadas e expostas, os dedos queimados e cheios de bolhas sangrando de seus esforços sobre-humanos para romper a barreira e revelar a coisa que ela ao mesmo tempo ansiava e odiava, desejava e temia a janela, seu símbolo de esperança e desespero, de horror e salvação, as chamas do inferno, o portal do céu, sua meta inatingível.
— Ivy! Santa Maria! — Janice tentava dizer os nomes, juntá-los num grito de desesperado apelo aos poderes superiores, buscar a intercessão da Mãe de Jesus naquele momento de sua agonia mais severa — mas a voz não funcionava, recusava-se a obedecer ao comando de seu cérebro, e tudo que emergia era um soluço baixo e abjeto.
— Ajude-me — ela gritava para si mesma. — Santíssima Maria, ajude-me a ajudar minha filha.
Suas mãos abriam-se e fechavam-se, as unhas afundando profundamente nas palmas, na luta que ela mantinha para não desmaiar.
— Santíssima Maria, Mãe de Deus — sussurrava sufocando.
O telefone tocou, quase inaudível sob a histeria em torno dela. Ela sentia algo que estava morrendo dentro de si tremular de volta à vida, alimentar seu corpo dormente e inerte para a ação. Encontrando as próprias pernas, voltou-se e cambaleou para fora do quarto, encaminhando-se para o telefone em seu quarto, aonde os gritos a acompanharam com crescente intensidade.
— O médico já telefonou, Mrs. Templeton? — perguntou a voz da mulher.
— Quê? Não! — ela disse.
— Bem, ele está a caminho, saindo do hospital, e a chamará assim que chegar em casa...
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTE!... — Os gritos de repente tornaram-se mais fortes, e as passadas de pés descalços apareceram no corredor, correndo...
Janice ficou gelada. A porta! Ela deixara a porta do quarto aberta!
Houve um momento de silêncio — uma suspensão infinitesimal de todo som — seguido pelo terrível barulho do corpinho despencando pela escada, caindo para o andar de baixo com um grito que coincidia com o grito de Janice quando ela largou o telefone e mergulhou de cabeça no corredor e até o corrimão. Suas mãos agarravam a fantasiosa balaustrada para aguentar o corpo fraco e trêmulo.
A criança caíra formando um bolo leve e confuso de carne e flanela, e erguia-se quando Janice se obrigou a olhar por sobre a balaustrada. Milagrosamente, a queda parecia não tê-la ferido seriamente, pois ela estava de pé num instante, correndo e pipilando em torno da sala, revivendo a mesma diatribe: — Quentequentequentepapaipapaipapaiquentequente...
Impulsionada pelo mesmo desejo desesperado de escapar dos tormentos das chamas consumidoras que ainda queimavam e iluminavam no primeiro plano de seu inconsciente, ela lançou-se para a comprida fila de janelas que davam para a cidade encharcada de chuva e começou a fazer suas mesmas cortesias terríveis e atormentadas para ela.
— Papaipapaipapaipapaipapaipapaiquentequentequente...
Janice desceu as escadas, agarrando-se ao corrimão, apalpando a descida com a mão, incapaz de desprender os olhos da apavorante aparição abaixo.
Ivy estava agora parada diante da janela mais próxima, de perfil, choramingando de terror, as mãos sangrentas fazendo movimentos ondulantes de louva-a-deus em direção ao temido vidro, em busca de alguma coisa, mas ainda repelida por sua proximidade. Descendo mais um pouco, Janice pôde ver que ela não saíra inteiramente ilesa da queda. O lado esquerdo de seu rosto estava muito ferido, e um fino filete de sangue escorria do nariz.
Um súbito passo em falso. Janice caiu dos últimos três degraus, aterrissando de quatro, pesadamente, no piso de madeira. O barulho da queda e o grito consequente não provocaram nenhuma reação da criança, cujos olhos agoniados e assombrados continuaram inteiramente presos nas garras de sua terrível situação na janela.
— Papaipapaipapaipapaiquentequentequentequente...
Pontadas de dor subiram pelas pernas de Janice, arrancando soluços de seus lábios, mas ela não procurou pôr-se de pé.
Era justo que estivesse de joelhos, pois não era aquela a atitude de expiação, de contrição e confissão, um ato de reparação?
Forçando o corpo a ficar reto, de modo a apoiar todo o peso em seus joelhos feridos e doloridos, Janice ouviu as palavras brotarem de seus lábios aos borbotões, numa torrente de paixão. Clara como um sino, colhidas intactas dos salões esquecidos da infância, sua voz falava do Deus de sua única e verdadeira fé.
— Oh, meu Deus! Estou sinceramente arrependida por Vos ter ofendido, e detesto todos os meus pecados, porque temo a perda do céu e as penas do inferno, mas acima de tudo porque eles Vos ofendem, meu Deus, que sois tão bondoso e merecedor de meu amor...
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEQUENTE!...
A voz da garota elevara-se a um grito, enquanto ela recuava da janela horrorizada e, girando, cambaleava pela sala para a fila oposta de janelas, subindo desesperadamente em cadeiras e outros móveis que surgiam em seu caminho.
A voz de Janice continuou ininterrupta quando ela se pôs a andar pela sala nos joelhos despelados e doloridos atrás da filha atormentada.
— Santa Maria, Mãe de Deus, orai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém!
— Papaipapaipapaipapaipapaipapaiquentequente... — Ela estava em cima do sofá, tentando erguer-se nas almofadas moles e inseguras, perdendo o equilíbrio e caindo no chão...
Senhor, tende piedade de nós.
"Cristo, tende piedade de nós.
"Senhor, tende piedade de nós.
"Cristo, ouvi-nos.
"Cristo, dai-nos a graça de ouvir-nos.
"Deus, Pai do Céu, tende piedade de nós.
"Deus, Filho, Redentor do mundo, tende piedade de nós.
"Deus, Espírito Santo..."
Erguendo-se; choramingando; subindo novamente no sofá; oscilando; caindo...
— Santa Maria, orai por nós.
"Santa Mãe de Deus, "Santa Virgem das virgens, "Mãe de Cristo, "Mãe da divina graça, "Mãe puríssima,
"Mãe castíssima..."
Lutando para ficar de pé; arquejando; chorando; subindo; caindo; batendo a cabeça contra a quina da mesa; sangrando...
O telefone tocou.
A voz de Janice deteve-se. Uma expressão de felicidade surgiu em seus olhos. O médico!
Ergueu-se e atirou-se no sofá, pois as pernas lhe faltaram.
Alcançou o telefone e pegou-o com um safanão. Um zumbido.
Um longo e constante zumbido. E o aparelho continuava tocando. Tocando distantemente. Zumbindo e tocando ao mesmo tempo. com Janice interposta no fulcro de ambos os sons. Sua mente não podia entender, não podia fazer sentido.
O telefone da casa! Era o telefone da casa que tocava!
Naquela histeria toda, esquecera de desligar o telefone lá embaixo, e o médico estava chamando-a pelo telefone da casa.
— PAPAI PAPAI PAPAI PAPAI PAPAI PAPAI PAPAI QUENTEQUENTEQUENTEQUENTE!
Ela levantou-se, afastou a mesinha de coquetel do caminho e correu para o outro lado da sala de visitas e o corredor, as mãos apoiando-se aos móveis e paredes para manter-se de pé, e finalmente caiu de joelhos pouco antes de alcançar o telefone.
Com um grito de dor, agarrou o aparelho e puxou-o para baixo.
— Doutor! — arquejou.
A voz de Dominick respondeu: — Mrs. Templeton, está aqui um Mr. Hoover no saguão.
O rosto molhado de lágrimas de Janice empalideceu, tornou-se rígido, e depois acalmou-se. Seus olhos duros tornaram-se impassíveis, enquanto a casa em torno era abalada pelos gritos e lamúrias de sua única filha. Ela pedira a ajuda de Deus, e Ele respondera.
— Mrs. Templeton?
— Sim — ela disse inaudivelmente.
— Que foi que a senhorra disse, Mrs. Templeton?
— Sim, mande-o subir! — gritou Janice, largando o telefone.
Segurando a maçaneta da porta, ela ergueu-se penosamente até ficar de pé. Sentia-se desligada de seu corpo e oscilava tontamente. Fechou os olhos para firmar-se por um momento, depois dirigiu a mão trêmula para a corrente da porta.
O elevador subia com um zumbido.
Uma luzinha e um bater de porta anunciaram Hoover, iluminando dramaticamente sua saída, quando ele deixou o veículo suspenso e parou, chapéu na mão, olhando para Janice no outro extremo do longo e escuro corredor. Quando o elevador desceu, às suas costas, transformando-o numa silhueta, ele deu um passo à frente e parou de novo, experimentando o estado de espírito e a coragem do inimigo, sondando o terreno em busca de armadilhas ocultas antes de ousar avançar de novo. Ela continuava na porta, olhando-o, esperando que ele se aproximasse, mas Hoover não se moveu.
De repente o grito penetrante soou atrás de Janice, chegando ao corredor.
— PAPAIPAPAIPAPAIPAPAIPAPAIPAPAI!
Hoover deu um tímido passo à frente.
— Depressa! — gritou Janice para ele.
Os sentidos dela absorveram os acontecimentos nos próximos minutos abstratamente — imagens fugidias, umas vagas, outras nítidas, com pouca continuidade e sem nenhuma ordem particular de importância: o cheiro de lã molhada quando Hoover passou pela porta; sua postura quando ele parou no umbral da sala de visitas, lembrando o domador de leão do circo que ela vira quando criança; o tropeço dela no telefone ainda no chão, quando seguia Hoover hesitantemente; seus joelhos sangrentos deixando manchas de sangue no tapete da sala; a voz trovejante de Hoover dominando seus soluços de dor e os gritos da criança.
— Audrey Rose. É papai! Aqui, querida! Eu estou aqui!
—Papaipapaipapaipapaipapai!
— NÃO! AQUI, AUDREY ROSE! PAPAI ESTÁ AQUI, QUERIDA!
Um delírio de som — loucos esquemas de movimento —, aproximações, negaças, bajulações, rejeições — um lunático caleidoscópio de visões e sons —, levando final e inevitavelmente à primeira e pasmada suspensão da descrença — a iluminada expressão de reconhecimento —, o sorriso, de cortar o coração, de pura alegria no rostinho sujo de sangue, a rápida corrida para os braços que a esperavam e o abraço unificador, trazendo consigo a súbita e bendita ausência de som — a descida da calma, doce, langorosa, instalando-se pacificamente no ar despedaçado, emendando as interrupções, renovando o silêncio.
Hoover permanecia de joelhos, com a menina nos braços, confortando-a, acalmando-a com suaves carícias e ternos murmúrios. Quase imediatamente, as pálpebras de Ivy tremeram e começaram a se cerrar no sono.
Janice se ergueu, segurando o espaldar de uma cadeira para não cair, observando tudo através das lágrimas, enquanto Hoover se pôs de pé com a menina adormecida nos braços e, lentamente, para não a despertar, subiu a escada, levando-a para o quarto.
Janice mal se deu conta de que os acompanhava; seu corpo machucado e dolorido parecia mover-se sob uma compulsão automática. Sabia apenas que, de algum modo, chegara à porta do quarto e observava silenciosamente Hoover despir delicadamente a menina, acomodando-a, nua e adormecida, na cama. Em seguida, movimentando-se rapidamente entre o quarto e os dois banheiros, Hoover improvisou uma clínica com toalhas, desinfetantes, pomadas, ataduras, esparadrapo, uma bacia de água morna com sabão e vários panos limpos.
Cuidou dos ferimentos de Ivy com movimentos rápidos e seguros, limpando o sangue coagulado do rosto e das mãos, esterilizando os cortes e colocando curativos. Espalhou pomada nos dedos em carne viva e envolveu-os em duas toalhas. O cérebro atordoado de Janice registrava cada movimento e gesto, aceitando-os sem qualquer protesto.
— Pijamas limpos! — bradou Hoover por cima do ombro.
Era a primeira vez que se dirigia a Janice naquela noite.
Ela caminhou aos tropeções até a cómoda e pegou uma camisola de flanela. Ao voltar-se, deparou com Hoover perto de si. O olhar de Hoover examinava atentamente o rosto abatido e atordoado. com uma expressão de grande tristeza, notou o vestido amarrotado, rasgado e sujo, as pernas manchadas de sangue. com um profundo suspiro, pegou a camisola das mãos dela.
Após acomodar o corpo febril de Ivy sob as cobertas, ele se virou para Janice e, tomando-a pelo braço, murmurou: — Venha comigo. Deixe-me agora cuidar de você.
A água morna era suave e calmante sobre a pele arranhada e cortada de Janice, enquanto Hoover limpava-lhe os joelhos e as pernas com um pano molhado. Janice estava sentada onde ele a colocara, na beirada da cama, observando enquanto ele, ajoelhado a seus pés, manobrava habilidosamente o pano molhado em volta de cada ferimento, evitando cuidadosamente qualquer contato com as feridas abertas. Janice refletiu vagamente que deveria protestar contra aquele contato tão íntimo, mas, no momento, não tinha energias nem capacidade mental para fazer qualquer coisa.
Enquanto Hoover cuidava das pernas dela, murmurava frases rápidas que Janice não escutou durante muito tempo.
Seus ouvidos captavam os sussurros como apenas mais um som no interior do quarto, juntamente com o tique-taque do relógio e a água que pingava na bacia cada vez que Hoover torcia o pano. Então, seu cérebro tumultuado começou, finalmente, a perceber o significado daquelas palavras e ela se deu conta de que ele lhe dava uma lição, no tom suave e condescendente de um professor falando com um aluno.
— Sei que você não encara com leviandade a responsabilidade que tem para com sua filha. Estou vendo as grades de proteção nas janelas. Vejo o modo como segura a mão de Ivy ao atravessar a rua. Mas, agora, estamos lidando com algo muito maior que o bem-estar físico de Ivy. Estamos lidando com algo indestrutível. A alma de Ivy. E é isso que devemos tentar salvar — a alma de Audrey Rose, que sofre e é atormentada...
Suas mãos manipulavam as pernas de Janice com a toalha, enxugando o excesso de água com movimentos suaves e experientes.
— Uma dor e um tormento tão reais quanto o sofrimento físico que arrancou o corpo de Audrey Rose desta vida terrena.
Ivy está sofrendo a mesma angústia que Audrey Rose sofreu naquele horrível incêndio. E Audrey continuará a castigar o corpo de Ivy enquanto sua alma não for libertada.
As palavras latejavam no cérebro de Janice.
Oh, Deus do céu, o que estará ele dizendo?
— Ela continuará a empurrar Ivy de volta à origem do problema; tentará sempre voltar àquele momento e conduzirá Ivy a perigos tão atormentadores e destrutivos quanto o fogo que tirou a vida de Audrey.
As palavras pronunciadas com suavidade oscilavam para dentro e para fora do confuso consciente de Janice, caóticas, distorcidas, um caleidoscópio de frases e palavras-chave aterradoras. Alma. Malefício. Ivy. Perigo. Audrey Rose. O que estava ele dizendo?
Cale a boca!
— Agora, não posso me limitar a ir-me embora. Poderia ter sido muito simples anteriormente, quando seu marido me pediu que o fizesse — com toda a razão, aliás. Bem, já que estamos cumprindo tão bem nossa tarefa com a menina, por que não vai embora e não nos deixa criá-la em paz? Ótimo! Eu nada poderia argumentar quanto a isso.
Ele tinha a justiça humana e a justiça divina a seu favor. Por que veio aqui perturbar nossas vidas? Por que veio ao meu lar trazer a intranquilidade? O que podemos fazer por você, homem? Não sabemos como ajudá-lo! Veja só o que aconteceu!
Na primeira noite em que entrou em nossa casa...
Hoover massageava as pernas de Janice com óleo de criança, em movimentos longos e provocadores, substituindo o cansaço por euforia.
— Naquela primeira noite, havia Audrey Rose! Querendo!
Necessitando! Clamando por auxílio! Pelo meu auxílio! Dizendo: "Estou aqui, papai!" "Preciso de você, papai!" E fazendo-me ciente de sua presença.
Os movimentos das mãos diminuíram um pouco.
— Mentiu para mim, Mrs. Templeton. Sabe que mentiu. Sua filha não sofreu esses ataques durante toda a vida, como a senhora afirmou. Não é mesmo? Ela nunca teve esses pesadelos antes de minha chegada, teve?
— Apenas uma vez — replicou Janice, rouca. — Quando tinha dois anos e meio. Duraram quase um ano.
Hoover pareceu espantado.
— Dois anos e meio?
Levantou-se vagarosamente, limpando as mãos na toalha.
— Isso deve ter sido em 1967... exatamente quando estive aqui, em Nova York, escrevendo uma série de artigos para o Steelman’s Quartely...
Permaneceu em pé ante o olhar vacilante de Janice. Seus olhos eram focos de intensa concentração enquanto sua mente examinava a espantosa ligação entre os dois fatos.
— Meu Deus — murmurou, como numa prece. — Há tanto tempo?
Voltou-se para Janice.
— Já naquela época ela implorava minha ajuda!
Agarrando Janice pelos braços com uma força que a assustou, ergueu-a até o nível de seus olhos.
— Compreende agora, Mrs. Templeton? É o brado de uma alma atormentada! A senhora suporta escutá-lo? Eu não!
— Então, saia de nossas vidas! — bradou Janice. — Isso só acontece quando você está por perto. Ivy esteve muito bem e muito saudável durante todos estes anos.
— Não, a senhora se engana! A saúde de sua filha é ilusória.
Enquanto o corpo dela abrigar uma alma que não está preparada para aceitar suas responsabilidades do carma da vida terrena, não pode haver saúde, nem para o corpo de Ivy, nem para a alma de Audrey Rose. Ambas estão em perigo!
Janice sacudiu a cabeça, como se desejasse livrar-se daquelas palavras.
— Não sei o que está dizendo...
— Estou dizendo que Audrey Rose voltou cedo demais.
Cedo demais? Oh, meu bom Deus, de que estará ele falando?
— Depois da Segunda Guerra Mundial, muitas crianças voltaram cedo demais. Vítimas de bombardeios e dos campos de concentração, atordoadas, confusas pela morte extemporânea, essas almas se apressaram a voltar para um útero, em vez de procurar o novo plano astral que lhes cabia.
Ele é maluco. Bill disse que ele era maluco. Bill tinha razão.
— E, assim como elas, o mesmo aconteceu com Audrey Rose: fugiu de um horror e voltou para outro horror, em lugar de permanecer em um plano no qual poderia meditar e aprender a reconstruir a vida passada antes de procurar uma nova vida.
Hoover tinha os olhos marejados e sua voz estava embargada de emoção.
Audrey Rose voltou cedo demais, Mrs. Templeton. E, por causa disso, Ivy corre grande perigo.
Seus olhos, úmidos e límpidos, fixaram-se no rosto contraído e amedrontado de Janice.
Compreende o que estou dizendo?
Não! — gritou Janice, fitando-o incrédula. — Não sei de que está falando!
— Isso é porque sabe muito pouco e ainda existe muita coisa que precisa aprender. Porque seus temores a mantêm a distância do que viu e ouviu, do que a senhora, no íntimo, sabe que é verdade.
— Que verdade? — replicou Janice, lutando para libertar-se.
Mas os dedos de Hoover continuavam firmes em seus braços. — Meu marido diz que você é maluco! Que é um maluco que deveria estar num manicômio — e acho que ele tem razão!
Os dedos de Hoover afrouxaram um pouco. Olhou para Janice com uma expressão profunda, tristonha.
— É o seu medo que está falando, Mrs. Templeton.
— Não, que diabo! Quem está falando sou eu! — soluçou Janice. — Agora, por favor, vá embora!
Por um breve instante, diante dos soluços de Janice, Hoover pareceu perder a compostura. Todavia, dominou-se e respondeu delicadamente: — Eu a assustei. Fui descuidado; sinto muito.
Continuou a segurá-la pelos braços, para amparar o peso do corpo cansado e ferido.
— Sei que ama sua filha — prosseguiu ele num tom muito suave. — Sei que procura o que é melhor para ela. O amor tenta, o amor deseja desesperadamente ajudar, mas também precisa questionar e correr riscos, até que os gritos cessem. Por que acha que um homem como eu, acostumado a uma vida de cartões de crédito e colchões macios, seria capaz de passar sete anos com as vacas, comendo apenas arroz? Ora, vamos, Mrs. Templeton, não sou maluco. Não abandonei uma boa carreira e uma bela posição na vida sem ter motivo algum. Uma história, uma história incrível que duas pessoas me contaram, dominou meu coração, obrigando-o a procurar, buscar. Foi Deus, Mrs. Templeton, foi o amor. Só eles fazem o coração mover-se mais depressa que o medo.
Os lábios de Hoover estavam a poucos centímetros do rosto de Janice. Esta sentia-lhe o hálito na face.
— Quer abrir seu coração e tentar compreender o que estou dizendo?
— Não sei — murmurou Janice, insegura através das lágrimas. — Não sei o que deseja de mim.
— Desejo seu auxílio e sua confiança. A alma de uma criança está chorando, Mrs. Templeton. Está chorando uma dor que ocorreu há mais de dez anos e continuará sofrendo essa dor a menos que possamos ajudála.
Janice encarou-o, totalmente confusa.
— Ajudar a... alma dela?
— Sim — respondeu Hoover, animado, pressentindo um contato. — Devemos estabelecer um laço para ajudála a vencer essa provação. Um laço muito apertado, cheio de todo o amor que a senhora tem, e de todo o amor que eu tenho, para que possamos cuidadosamente refazê-la, reformá-la, livrá-la das cicatrizes, apagar tudo, de modo que a alma de Audrey Rose possa voltar ao repouso. Somos todos parte dessa criança, Mrs. Templeton. Todos estamos envolvidos em sua criação e somente nós poderemos ajudála. A senhora e eu, juntos. A senhora ajudará Ivy. Eu ajudarei Audrey Rose.
Sua voz tinha uma força hipnótica, compulsiva, baixando lentamente as defesas de Janice.
— Como? — indagou ela, quase sem parar. — Como poderá ajudála? Diz que ela está tentando matar Ivy. Como poderá o senhor — ou qualquer outra pessoa — detê-la?
— Preciso tentar — afirmou Hoover. — Preciso ficar com ela, perto dela, a fim de rezar e fazer bem à sua alma. Audrey tinha apenas cinco anos quando morreu. No breve tempo que passou nesta terra, estava apenas começando a perceber as belezas da vida.
A voz de Hoover tremia de emoção.
— Preciso fazer com que sua alma retorne à percepção das manifestações divinas, da beleza e da união da vida terrena que ela conheceu e amou antes de ter a alma queimada pela força destruidora do fogo.
Janice sentiu os dedos de Hoover se apertarem em seus braços, puxando-o para ele. Hoover chorava abertamente, sem pejo.
— Não por mim ou pelo fato de sentir falta dela, mas a fim de repousar seu espírito, que é um direito de todos nós... Por favor, por favor, permita-me ajudála!
Janice começou a chorar, virando o rosto para o lado, evitando a força da paixão de Hoover.
— Não feche a porta para mim, Mrs. Templeton! — implorou ele, sem fôlego. — Por favor, permita-me entrar em sua vida.
Permita-me servir a senhora, Ivy e Audrey Rose.
As lágrimas transbordaram de seus olhos, escorrendo-lhe pelo rosto liso.
É esse o motivo pelo qual estou aqui esta noite. É este o significado de minha jornada. Todos esses anos de busca e procura, de indagações e dúvidas, foram o prelúdio deste momento no tempo e no espaço.
Parando para dar ênfase, puxou Janice para mais perto de si.
— A senhora será capaz de me empurrar para o lado, Mrs. Templeton? Será capaz de fazer isso, agora? Conscientemente?
— Não — replicou Janice em voz baixa, sentindo a umidade de suas próprias lágrimas no rosto.
— Obrigado — suspirou Hoover, grato pela compreensão dela. — Desculpe-me. Não sou um homem mau. Não sou um santo. Sou apenas um homem que agora sabe que Deus o enviou numa jornada absolutamente necessária. E não devemos mais falar de separação entre nós. Pois, agora, estamos ligados. A senhora. Seu marido. Sua filha. Audrey Rose. E eu. Fomos unidos por um milagre e, agora, somos inseparáveis.
Fez nova pausa para ênfase e acrescentou em voz mais forte, mais urgente: — Diga sim, Mrs. Templeton — por favor!
— Sim — disse Janice, chorando, sentindo seu hálito misturar-se ao dele, enquanto os dedos de Hoover continuavam a segurá-la com firmeza.
A expressão de Hoover se suavizou e Janice teve a impressão de que ele iria beijá-la; não veria nada de extraordinário nisso, nem oporia resistência. Mas ele não o fez.
Os dedos de Hoover se relaxaram lentamente, largando-a.
Sem apoio, Janice agarrou-se à cabeceira da cama, tendo a impressão de estar prestes a cair. Sentia as pernas moles como geléia.
Os olhos de Hoover se mantinham fixos nela, mas a tensão amainara. Ele sorriu com ar bondoso e disse: — Agora, descanse um pouco. Vou embora. Conversaremos amanhã.
Chegando à porta, virou-se mais uma vez e sorriu.
— Boa noite, Janice — disse, pronunciando o nome dela com toda a confiança e segurança de um conquistador vitorioso.
Janice ouviu o ruído dos passos que se afastavam através do apartamento e, afinal, o estalido da porta principal se fechando. Ainda assim, permaneceu de pé, escutando todos os sons noturnos que lhe eram familiares: o relógio, uma sirene distante, uma buzina de automóvel — e de repente, além deles, um som inesperado, intruso e incómodo.
Janice tateou em volta, à procura da origem do som estridente, e encontrou o telefone, fora do gancho, jogado no chão. Sentindo a cabeça rodar, abaixou-se, pegou o fone e o recolocou no lugar. Assim que terminou de fazê-lo, a campainha tocou, sobressaltando-a.
— Mrs. Templeton... — era a voz do Dr. Kaplan. Faz mais de uma hora que estou tentando ligar, mas a linha estava ocupada.
— Está tudo bem, doutor — balbuciou Janice. — Está tudo bem, agora.
— Á menina está passando bem?
— Sim, doutor, está ótima. Está dormindo.
— Ótimo. Dê-lhe aspirina e bastante líquido. Passarei por aí amanhã.
— Obrigada, doutor.
A chuva, trazida pelos ventos do oceano, fustigava a longa fileira de janelas que davam para a cidade mergulhada na noite.
De onde estava sentada na cadeira de balanço, Janice olhava para as gotas de água na vidraça, que refletiam mil e uma luzes, como pendentes de brilhantes escorrendo no vidro. O copo de uísque que tinha nas mãos fora recém-completado da garrafa meio vazia de J&B sobre a mesinha de costura a seu lado.
Felizmente, o álcool surtia sobre ela um efeito energético, aumentando sua percepção ao mesmo tempo que suprimia seus temores e acalmava seus sustos.
Era uma e dez da manhã. Elliot Hoover saíra duas horas antes e agora Janice estava sentada às escuras na sala de visitas, sob os nus pendurados nas paredes, esperando pelo amanhecer.
Resolvera considerar cinco horas como o alvorecer, quando acordaria Ivy. Chamara a limusine do serviço VIP para as cinco e meia. O frio que invadia a sala forçara-a a vestir a capa forrada de pele, de modo que agora estava sentada na cadeira de balanço, completamente vestida e pronta para sair, com duas maletas ao lado, bebericando uísque escocês e esperando a hora.
Precisara tomar uma série de decisões em meio à total confusão e se orgulhava de ter sido capaz de deixar as emoções de lado e canalizar o raciocínio através de uma trilha prática e bem orientada.
Seu primeiro impulso fora telefonar para Bill e descarregar tudo sobre ele. Na verdade, pedira a ligação e estava aguardando o chamado para o Reef Hotel, quando desistiu e resolveu cancelar. Bill simplesmente diria que fossem juntar-se a ele no Havaí e, provavelmente, conseguiria convencê-la.
Todavia, Janice sabia que era tarde demais para ir ao Havaí — naquela noite haviam acontecido coisas demais para que uma estada no Havaí servisse de tranquilizante.
Então, lembrara-se de Westport e do esplêndido verão que tinham passado à beira do canal, quando Ivy tinha seis anos.
Haviam alugado um chalé à beira-mar. Um conjunto chamado Sound Side Cottages. Deviam estar fechados naquela época do ano, mas, lembrando-se de que o chalé era provido de uma lareira e de aquecimento interno, Janice telefonou para os Stuart, em Westport.
Mrs. Stuart, esposa do proprietário, atendeu após o décimo quarto toque do telefone e ficou menos zangada por ser tirada da cama do que Janice esperava. Embora os chalés realmente estivessem fechados até meados da primavera e houvesse alguma hesitação por parte de Mrs. Stuart, Janice conseguiu finalmente convencê-la a preparar um chalé para o dia seguinte mas só depois do meio-dia, pois seria preciso arejá-lo e arrumá-lo devidamente.
Em menos de uma hora Janice arrumara duas malas com roupas para uma semana, tanto para ela como para Ivy, além dos livros escolares da menina, remédios e outros triviais.
Contou o dinheiro que lhe restava: cinquenta e oito dólares e noventa centavos — o suficiente para pagar a limusine do serviço VIP e almoçar em Westport. Decidira gastar o dinheiro com a limusine e não usar um táxi comum para a viagem até Westport por causa da febre de Ivy, que não cedera, embora a menina estivesse dormindo tranquilamente. Embrulhou seu cobertor elétrico e resolveu que arrumaria o de Ivy após acordá-la.
A idéia era desaparecer durante algum tempo sem deixar vestígios, rastros ou cheiros. Precisava de tempo para pensar, longe da pressão e histeria criadas por Elliot Hoover. Se, como ele insistia em afirmar, a vida de Ivy estava em perigo e o passado fosse uma indicação digna de crédito, o perigo era maior com Hoover por perto do que com ele bem longe. Não havia pesadelos em sua ausência.
"Agora, estamos ligados, A senhora. Seu marido. Sua filha.
Audrey Rose. E eu. Fomos unidos por um milagre e, agora, somos inseparáveis."
Hoover invadira o lar de Janice, plantara seu marco e estabelecera seu direito de permanecer ali.
Janice sacudiu a cabeça, atordoada, e tentou decidir o que era mais incrível: se o fato de tudo aquilo ser verdade, ou se sua disposição de aceitar tudo como verdadeiro. Não era ingénua ou supersticiosa, jamais acreditara em ocultismo ou no sobrenatural. Aquilo, porém, era diferente. Estava diretamente envolvida, como testemunha ocular, como participante da brincadeira de "pique" espiritual de Audrey Rose.
Tomou um longo gole do copo de uísque e pensou como seria bom se, afinal, Bill tivesse razão e Elliot Hoover não passasse de mais um louco, arrasado pela perda que sofrera, incapaz de enfrentar a realidade, apelando para a magia como um meio de compensar o rude golpe que a vida lhe desferira.
Todavia, bem no íntimo de seu ser, sabia que era diferente.
E que Hoover tinha certeza de que ela sabia.
"... seus temores a mantêm a distância daquilo... que a senhora, no íntimo... sabe que é verdade."
Ele tinha razão.
O medo de Janice desviara sua mente de uma confrontação direta com a lógica de tudo o que vira e ouvira.
"... porque sabe muito pouco e ainda existe muita coisa que precisa aprender..."
Janice se levantou e, cambaleante, se encaminhou para o armário embutido no corredor, onde, trepando numa cadeira, remexeu no canto escuro da prateleira superior até que, finalmente, conseguiu pegar o livro que procurava.
Voltando à cadeira de balanço, puxou o abajur para perto de si e olhou para o diário encadernado em couro que colocara no colo.
Gasto, arranhado, maltratado pelo tempo e pelos elementos, era volumoso e tinha muitos clipes de papel prendendo maços de páginas, dirigindo a atenção do leitor para as passagens mais importantes da peregrinação de sete anos realizada por Elliot Hoover.
Abrindo o diário, Janice reconheceu imediatamente a caligrafia miúda e caprichada. Os trechos iniciais eram escritos nitidamente em tinta preta; as páginas finais, muitas delas manchadas e desbotadas, eram escritas a lápis e quase ilegíveis.
Isto, por si, parecia traçar o itinerário da jornada de Hoover em busca da verdade, desde os confortos e delícias da civilização ocidental até as vicissitudes encontradas em suas viagens através da índia.
Não havia datas — impressas ou manuscritas — e cada página estava coberta até as margens com torrentes de palavras, escritas do modo como ele falava, em rajadas intermitentes de informações.
A primeira página trazia o nome e a data: 17 de abril de 1968. Logo abaixo, numa só palavra escrita em letras de forma: "COMEÇO!".
E Janice, virando a página, também começou.
12
"Esqueci a passagem lá em cima. Tive que procurar a senhoria para abrir a porta e fui obrigado a dar uma gorjeta ao motorista do táxi para me esperar.
A Air índia é do outro mundo. A aeromoça se chama Suman e o piloto O Connor. A meu lado está uma senhora idosa que não pára de acariciar a roupa de Suman — um sari cor-de-rosa e púrpura. Minha companheira, que se chama Mrs. Roth, alega estar com roupas íntimas de lã. Como Suman não parece aborrecer-se, também alego estar com roupas de baixo dela...
Sinto-me fraco. Estamos voando há quase um dia e isso significa martínis demais.
De repente, fico assustado, como um garoto no primeiro dia de escola, com medo de que não gostem de mim.
Aeroporto de Dundum. Creio que foi o único motivo para escolher Calcutá como destino. Só para ver aquela placa.
Tomo um táxi até o hotel onde descansarei até iniciar a excursão de trem, pela manhã. Indian State Railways. Levarei pouca bagagem. Apenas algumas mudas de roupa — camisas, gravatas, calças, um par de bermudas — e meus cartões de crédito cuidarão de qualquer eventualidade. Durante todo o tempo, terei comigo meu caderno de anotações, meu livro Viagem pela índia, que custou dez dólares e noventa e cinco centavos, e um livro sobre a reencarnação, o qual, aliás, guardo num saco de papel pardo.
Faz calor. Tenho a impressão de que acabei de ver um homem morto caído na rua.
Meu hotel dá para o Maidan. É como o Central Park.
Atravesso a Chorwringhi Road, o que me toma algum tempo. Na extremidade sul do parque fica o Victoria Memorial, todo de mármore, com uma estátua da Rainha Vitória.
Encostado na estátua, nesse momento, está um garoto hindu, magro, com cerca de sete anos, vendendo algo num saquinho a um grupo de pessoas que assistem a um espetáculo de gita. Sinto-me surpreso de reconhecer aquilo. Lembro-me de algo a respeito: ... "entre nós, está a diferença"... sabe como é, lembro-me de vidas passadas e você não...
Compro um saquinho do garoto e descubro que é cereal.
Devo comer? Passo por reuniões de estudantes, reuniões de crentes, vejo ursos bailarinos e um macaco que tira sorte. Dou parte do cereal ao macaco e também como um pouco. Aquele macaco talvez tenha todas as respostas que procuro..."
O primeiro clipe de papel no diário prendia um fino maço de páginas representando dias, semanas, meses — de aventuras que Janice estava impedida de conhecer — que levaram seus olhos a uma página marcada com o título "Benares".
"Estou caminhando e muitas coisas chegam até mim. Em primeiro lugar, o perfume de jasmim, muito doce. Depois, o cheiro de fumaça, que não é tão doce. E as multidões aglomerações de pessoas —, cortejos nupciais, rebanhos de vacas, búfalos, e homens com longas barbas bíblicas, despidos à exceção de minúsculas tangas, peregrinos a pé, filas de camelos, crianças gritando, rindo, chorando, e sinos, ouço sinos por toda parte, e depois vejo cadáveres envoltos em seda ou linho brancos. Estão sobre padiolas de bambu, sendo levados aos ghats, onde serão deixados à espera da vez para serem cremados.
Falo com um homem que não me entende e também não consigo entender sua língua. Mais adiante, outro velho se aproxima de mim, falando num inglês com sotaque britânico, mas, ainda assim, difícil de entender. Conta-me que sua ambição sempre foi visitar Benares pelo menos uma vez na vida e que, agora que realizou essa ambição, gostaria de, se possível, permanecer ali até morrer. Diz que as águas do local encerram os poderes da salvação. Todas as águas da índia os encerram, mas o santuário principal é Benares. O velho afirma que pessoas que jamais se afastaram de suas aldeias natais fazem a peregrinação a Benares. Levam cerca de uma semana para chegar até lá e são absolvidas de todos os seus pecados, tendo uma boa oportunidade para alcançar a salvação espiritual.
Também diz que, se puder alcançar seu objetivo final, esse será não ter uma reencarnação.
"No momento, a fumaça sobe em rolos para o céu. Vem dos corpos sendo cremados nos ghats e sinto-me temeroso de investigar melhor. Não compreendo meu temor, a menos que esteja relacionado com a morte ardente de minha esposa e filha...
"Vejo os cadáveres sendo removidos das padiolas de bambu, com o auxílio das famílias, que assistem aos preparativos para a cremação. Os ghats têm mais de três milhas de comprimento, três milhas de degraus que descem pela margem íngreme até o rio sagrado. E aqueles degraus de pedra casaram a grande cidade hindu com o Ganges.
"Aguas, flores, fumaça, fogo — todos são forças que têm um significado divino para aquele povo. No Ganges estão os corpos que se banham, enquanto nos ghats estão os corpos que se consomem nas chamas. Vida e morte, os vivos e os mortos, avançando juntos e em perfeita harmonia.
"Crianças. Crianças pequenas vendo cadáveres queimando.
Carne sendo queimada. E estão sorrindo e distribuindo flores.
Estão até mesmo dando bolos funerais, chamados pindas, aos mortos. Imaginem! Bolos. Doces. Para os mortos...
"Penso em Sylvia e Audrey Rose, suas cinzas misturadas às do Impala 62, lacradas em cilindros de cobre, entregues ao grande esquecimento no mausoléu do Monte Holyoke.
Lembro do rápido serviço fúnebre batista... palavras lidas de um livro... atitudes, poses, o silêncio controlado, uma lágrima derramada, breves palavras de lástima — tudo acabado em menos de uma hora. Nada de bolos. Nada de pindas. Em vez de flores, a família pede que se faça um donativo a uma obra de caridade. Nenhum oferecimento ritual de preces, diário, mensal, anual, ou de qualquer outro tipo."
Janice pulou um maço mais grosso de páginas presas por um clipe, chegando ao próximo trecho que Hoover considerava essencial para seu aprendizado.
"Aqui existe um fato da vida que significa que tudo o que fazemos a cada dia é um ato de piedade em potencial. Creio que estou compreendendo uma verdade a respeito do modo de vida desse povo, ou estou imaginando um modo muito maravilhoso de viver. Preciso aprender mais. E isso não vai acontecer em quarenta e cinco dias.
"Talvez seja a coisa mais importante que aprendi em Benares: o tempo não tem a menor importância".
"A maneira pela qual uma mulher lava suas roupas é um ato tão piedoso quanto o do homem que não parou de olhar para o sol. Não sei. Talvez esteja me afastando demais da realidade.
Talvez seja apenas uma maneira poética de encarar um modo de vida que é totalmente novo e diferente para mim. Ou talvez aqui exista realmente poesia nos sons, vibrações, trabalho e religião..."
"A destruição, que a princípio me confundiu, fazendo-me indagar por que haveria um templo dedicado a uma deusa que é esposa do deus da destruição, é um fato normal da vida."
"A destruição e a criatividade caminham de mãos dadas. Ao olhar em volta, vejo templos e moradias inclinadas presumo que em consequência das monções —, praticamente caindo no rio, ou parecendo sustentadas por ele. E, mais uma vez, a idéia de destruição — de vida persistindo, de vida continuando, de vida lutando para subsistir em meio a tanta destruição — parece arrastar-me em direção à compreensão da verdade básica, ainda nebulosa para mim. E, tentando definir essa verdade básica, vejo-me trazido de volta a todas as minhas leituras nos Estados Unidos. Às leituras que não fizeram sentido naquela época, mas que agora, diante de tudo que vejo a meu redor, devem transformar-se numa educação totalmente nova.
"Começarei por permanecer aqui, em Benares, sede da religião hindu, usando minha mochila como travesseiro, se necessário for, e continuando a assistir a essas cremações a fim de entender por que motivo a morte pode ser considerada um festival. Entender o que eles estão celebrando. Entender se a morte é o fim; se — como disse aquele velho — não houver ressurreição, então estão comemorando Deus. União com Deus.
Todavia, se o velho ainda não chegou a esse ponto, então estão comemorando uma nova oportunidade para unir-se a Deus, uma etapa mais próxima."
Nesse ponto, Hoover trocou a caneta por um lápis, o que passou a dificultar as coisas.
"Conheci um estudante que fala pouco inglês, com o qual sinto-me feliz por compartilhar meus pensamentos. Ele me explica que, no budismo, o problema do verdadeiro conhecimento constitui um problema pessoal e esse é o motivo pelo qual Buda se sentou, meditou e, finalmente, chegou à verdade. É muito importante para mim entender, pois foi isso que me trouxe à índia: encontrar pessoalmente o caminho da verdade.
"Muito do que estou dizendo agora começou nas conversas que tive com meu novo amigo Sesh. Pode parecer um pouco vulgar, mas como ele me ensina um pouco de seu idioma, eu também lhe ensinarei um pouco do meu. Ele usa um safa, um pano que cobre a cabeça, enrolado frouxamente, para protegê-lo contra o sol, uma vez que passa a maior parte do tempo ao ar livre. Usa também a lengha, uma espécie de calças que parecem pijamas, e deu-me uma camisa chamada paharen.
Quando tentei agradecer, na minha efusiva maneira ocidental, ficou muito perturbado e se afastou. Fiquei sem vê-lo durante pelo menos uma hora. Julguei ter perdido meu amigo Sesh.
Então, ele voltou e me disse que agradecer alguma coisa a alguém é tirar parte do mérito do ato de doação. Estou aprendendo muito a cada dia.
"Quando penso nas nobres verdades, no Caminho dos Oito Passos, sinto uma alegria caótica e, não obstante, essa alegria deve ser forçada a seguir uma direção, uma ordem, um equilíbrio que conduz à evolução."
"De certo modo, a destruição de minha mulher e de minha filha foi quase uma reconstrução de mim. O fato da morte delas, da morte de Audrey Rose, em toda a sua beleza e exuberância, lançou-me num ciclo de morte e me obrigou a rever nossas vidas em comum. Se eu acreditar em Deus, como este povo acredita, então devo acreditar que em algum lugar do Caminho dos Oito Passos eu falhei. Falhei e, ao fazê-lo, poluí o meio ambiente que me rodeia. De um modo ou de outro, destruí a ordem, de modo que o desequilíbrio fez com que algo tão adorável, maravilhoso e brilhante quanto o espírito de Audrey Rose fosse incapaz de sobreviver nesse meio ambiente. Estarei aceitando a culpa? Ainda não sei.
"Quando vejo Sesh e o tempo que ele perde comigo, compreendo que o que esse povo deseja realizar é bom. E se eu puder provar a mim mesmo a existência de Deus e da reencarnação, aqui, como Buda provou para si mesmo, então o que eu quiser fazer será bom. Se as almas de Sylvia e Audrey Rose estiverem sofrendo, preciso fazer algum bem por elas. Por pouco que eu possa fazer, será muito no sentido de aproximá-las do ciclo de felicidade a que têm direito..."
A caligrafia miúda e grossa ondulou diante dos olhos de Janice e ela foi obrigada a descansá-los por algum tempo antes de prosseguir. Pulando até o trecho seguinte, verificou que nada tinha melhorado; na verdade, a caligrafia parecia ainda mais confusa.
"Sesh e eu estamos indo a Sarnath, o centro do mundo budista, porque foi em Sarnath que Buda pregou seu primeiro sermão, e vamos ver o local onde esse sermão foi parcialmente gravado numa pedra. Foi lá que ele revelou o Caminho dos Oito Passos que conduz ao fim do sofrimento, à paz interior, à luz e, finalmente, ao nirvana. Foi lá que ele estabeleceu sua doutrina do caminho do meio, que é a trilha dourada entre os extremos do ascetismo e da luxúria."
"Descobriu quatro grandes verdades. O sofrimento é universal. A causa do sofrimento é a ambição ou o desejo egoísta. E" o caminho a seguir é o caminho da moderação. Uma trilha de ação prática. Para fazer isso, temos o Caminho dos Oito Passos, que é: Conhecimento correto. Intenção correta.
Conduta correta. Meio de vida correto. Esforço correto.
Observação correta. Concentração correta. E os cinco preceitos: Abster-se de tirar a vida. Abster-se de tomar o que não lhe é devido..."
Nesse ponto, a caligrafia se tornou indecifrável e Janice não conseguiu continuar. Pulando outros trechos igualmente difíceis, chegou a uma anotação feita a tinta. Seus olhos se desanuviaram.
"Olho para Sesh; não me vem à mente hindi, nem inglês.
Vejo uma lágrima em seu olho e ela nem mesmo lhe rola pelo rosto. Sabemos que temos que nos separar. Dedicamo-nos mais uma vez à necessidade de encontrar a verdade. Pois compartilhamos de um desejo pelo resto da vida, de uma necessidade de absolvição, de uma necessidade de compreender a reencarnação a fim de amar a Deus. Demo-nos mutuamente esse presente."
Algumas páginas adiante, ainda a tinta: "Caminho por muitos dias. Caminho porque sei que, agora, assumi o compromisso de viver ações diárias que antes não Passavam de um ideal."
"Também conheço outra pessoa. Encontro-a caminhando.
Estou me tornando muito consciente de meu corpo e de suas necessidades, sem as quais posso perfeitamente passar.
Atualmente, posso passar algum tempo sem alimento, mas não consigo passar sem verdade e sem fé. No momento, essa é a minha alegria. Meus pés doem e minhas costas estão cansadas.
Não estou acostumado a isso, mas estou sendo forçado a tomar conhecimento da minha carne, que me transporta por este mundo de Deus. A descobrir o motivo pelo qual estou contido nesta carne, a compreender a idéia da alma ocupando um corpo, em vez da alma ter um corpo, como eu acreditava antes. E nessa caminhada estou aprendendo que estamos numa eternidade. A eternidade está aqui conosco, agora."
E uma página adiante: ?Enquanto caminho, vejo diante de mim uma menininha com longos cabelos negros, quase até os pés, presos numa trança, grandes olhos dirigidos para baixo, uma blusa branca apertada e um xale brilhante, muito colorido de verde, rosa e laranja. Traz uma cesta e, quando me aproximo, vejo que nada há na cesta. Restame a metade de uma laranja. Dou-a à menina, que a engole.
?‘Orana‘, diz ela. Sei que significa hálito. Deduzo que seja o seu nome, de modo que respondo =Prana ji‘, pois sei que se trata de um sufixo carinhoso a ser acrescentado aos nomes próprios.
Enquanto caminhamos juntos, ela canta. Não consigo perceber se a canção tem uma letra.
Ela me conduz à casa de sua família. Ao nos aproximarmos da casa, vejo búfalos, vejo o tanque de água que é comum em tantas aldeias. O tanque, construído artificialmente, parece um lago. Vejo uma mulher muito velha, caminhando com um pote de metal na cabeça, dirigindo-se ao tanque. E vejo um homem robusto com uma barba crespa muito preta. Carrega duas cadeiras na cabeça. Interrompem o que estão fazendo e olham para mim. O homem coloca as cadeiras no chão. Não sei o que dizer e ele me leva para dentro de casa. Ao entrar, alegro-me por ter-me lembrado de descalçar as sandálias. Provavelmente jamais tornarei a calçá-las. O homem, que parece ser o pai de Prana, me diz: — Amdhu.
Estende a mão. Aperto-a, respondendo: — Elliot.
Ele responde: — Atcha.
Eu digo: — Atcha.
Rimos, pois atcha quer dizer 'tudo bem‘.
A mulher que está dentro de casa esfrega o chão com areia.
Levanta-se quando entramos e cobre a cabeça com o xale. Os cabelos são como os da filha, compridos, presos, numa trança e repartidos ao meio, e ela traz um enorme anel no nariz, bem como brincos e, também, grandes braceletes nos tornozelos.
Prana usa belos brincos de ouro. E uma linda jóia pende do comprido xale que a mulher usa na cabeça.
A mulher se chama Rama e dá a impressão de estar esperando outro filho.
A velha entra na casa e seus cabelos, compridos como os das outras mulheres, são absolutamente brancos. Chama-se Shira, parece ser a avó e usa uma kabja, blusa que cobre a parte superior do corpo, e uma combinação larga, a chania, sobre a qual está o eterno sari. Entrou com o pote de metal na cabeça, mas agora baixa-o e sentamo-nos todos no chão, onde está servida uma refeição. Comemos chapati, o pão. Foi feito especialmente para a refeição e é servido quente.
"À refeição também estão presentes tio Chupar, tia Kastori e Shakur, filho deles. Como muitos outros hindus nas aldeias, vivem no que se chama de famílias conjuntas. Quase como uma comuna em miniatura. Todos os bens são propriedade comum e os ganhos de cada membro individual são recolhidos numa caixa coletiva. Existe uma grande segurança emocional e não menor segurança económica. Se julgamos que não há muita intimidade ou vida privada, basta lembrarmo-nos de sua religião e da maneira como ela convida seus adeptos a encontrar no recolhimento em si mesmos a vida privada e a intimidade."
E mais adiante: "O dia da família Pachali começa às quatro da manhã.
Banhamo-nos em água gelada e as preces têm início. As mulheres se juntam à meditação, mas logo saem para cuidar dos afazeres domésticos, batendo manteiga e creme de leite, deixando os homens entregues às meditações e preces."
"Existem rituais diários que são cumpridos pelos membros da família. O primeiro é o Bhuta Yajna, uma oferta de alimento ao reino animal, simbolizando o cumprimento, por parte do homem, dessa obrigação para com as formas menos evoluídas de criaturas.
Dessa maneira, chegamos a entender instintivamente que os animais, assim como nós, também estão subjugados a uma forma de identificação corporal, mas não possuem a faculdade da razão que nós possuímos. Assim, ao auxiliarmos aqueles que nos são inferiores, podemos estar certos de que seremos auxiliados pelos seres superiores invisíveis. Essa é a primeira forma de adoração diária. A segunda forma é um ritual de amor silencioso, o amor silencioso pela natureza. É o modo de superarmos a incapacidade de comunicação com a terra, o mar e o céu. As outras duas yajnas diárias são a Pitri e a Nri, oferendas aos antepassados, de forma a reconhecermos diariamente nosso débito para com as gerações passadas, uma vez que foi a sua sabedoria que nos trouxe a luz nos dias atuais."
"Observo Amdhu e Rama e o verdadeiro laço de amor que existe entre marido e esposa. Tratam-se com grande delicadeza, embora não demonstrem afeição em público ou diante dos filhos. Rama sempre oferece sacrifícios pelo marido e pelos filhos, mantendo-os como centro de seu universo e servindo-os permanentemente. Preocupa-se com o progresso religioso de Amdhu, sentindo que as ações que ela fez por ele auxiliam-no a se aproximar de Deus. Também existe uma estreita ligação entre Amdhu e sua filha, Prana. Até atingir a puberdade, ela tem permissão para acompanhá-lo a todas as reuniões masculinas.
Com o conhecimento de que, por ocasião do casamento, ela será enviada a outro lar, Prana é tratada pelo pai com indulgência."
"Arun, como todos os meninos de sua idade, passa cada vez mais tempo longe dos alojamentos das mulheres, perto dos homens, em companhia do pai e dos tios, que o tratam muito bem. Amdhu, porém, sempre mantém uma certa formalidade em relação ao menino. O desejo de ter filhos homens é muito grande, pois só um filho pode cumprir adequadamente os rituais fúnebres e a cerimónia anual que assegura a paz à alma do pai."
"Assim sendo, a morte é encarada a qualquer tempo de modo bem aberto, com um senso de responsabilidade, de planejamento, e uma certeza de que cada dia vivido conduz à morte, que, por sua vez, assegura um avanço digno em direção à próxima vida."
Então: "Vejo grande pobreza, sofrimento, doença, fome. Não obstante, em meio à calamidade, vejo a vida prosseguir com alegria e amor, com grande cuidado e reverência."
"A família é um microcosmo no mundo de Deus..."
Foram necessários dois grandes clipes de papel para prender o maço de folhas que havia antes do trecho seguinte, o qual, surpreendentemente, foi encontrar Hoover numa região diferente da Índia — nas florestas do sul. Por algum motivo, ele se afastara da família Pachali e não acreditava que o motivo fosse importante, ou não queria que Janice o conhecesse. Sem hesitação, ela arrancou os dois clipes e renovou suas relações com Amdhu, Arun, Prana e o resto da família.
"A seca continua. O fato de a monção não haver chegado na época faz a diferença entre a abundância e a penúria. A aldeia inteira sofre.
As poucas provisões que restam são cuidadosamente divididas entre todos os habitantes.
"Os gémeos de Rama, que têm pouco mais de um ano, choram muito, a menina mais que o menino, uma vez que Rama cuida mais deste e o amamenta primeiro, enquanto a menina tem que se contentar com o resto, que é muito pouco..."
"Khwaja, o menino, chora, mas Sarojini, a menina, não chora mais. Prana, também, está doente demais de fome, como Rama, uma vez que a maior parcela da pouca comida que existe deve caber aos homens. Não há qualquer hostilidade nesse ato de privação aparentemente desumano. É simplesmente parte integrante de uma tradição profundamente arraigada. Em todas as aldeias, as mulheres são alimentadas por último..."
"A situação é crítica..."
"Andando de quatro, todos nós vasculhamos os campos esturricados à procura de restos de raízes e sementes..."
"Uma criança da aldeia morreu e duas outras estão moribundas. A família partiu esta manhã, levando o cadáver da menina para os ghats de Benares, dezoito quilómetros ao norte.
Enrolado em linho branco, o pequeno volume da menina morta parecia estremecer com vida quando a carroça sacudia ao passar sobre torrões de terra seca."
A família toda empurrava e puxava a carroça. Levarão o dia e a noite inteira para chegar a Benares...
"Prana já não consegue falar. Seus grandes olhos só conseguem me fitar. Devo tentar recuperá-la — e a aldeia — com o que possuo. Já faz dois anos que não penso em dinheiro ou em quaisquer outros meios de manutenção da vida que abandonei. Agora, porém, preciso pensar nisso. E agir!"
"Benares. O calor é de quarenta e dois graus. Calçadas e ruas juncadas de corpos prostrados, vacas sagradas mascando cascas de coco."
"Faz cinco dias que estou aqui, vivendo no acampamento de forasteiros perto da margem do rio. Abdiquei do hotel americano. Deveria também ter abdicado da comida americana (galinha frita e torta de maçã pela primeira vez em dois anos).
Fez-me vomitar violentamente..."
"Estou esperando que o Barclay‘s Bank receba um telegrama de seu correspondente nos Estados Unidos aprovando meu crédito. Fiz contato com um homem — um sujeito esquivo — a respeito de cereais no mercado negro. Ele me prometeu que caminhões entregarão a mercadoria assim que o pagamento for efetuado — em dólares americanos. Tive que confiar nele — relutantemente.
Afinal, que outra alternativa tenho?
Encomendei oito caminhões de arroz, farinha de trigo e sementes para plantar. Serão distribuídos em nossa aldeia e nas aldeias vizinhas, procurando fazer com que os mantimentos durem o maior tempo possível. Será preciso todo o dinheiro da indenização do acidente. Agrada-me pensar que Sylvia e Audrey Rose aprovariam..."
"Fortes ventos vindos do oceano, chuva fustigante e uma extrema queda de temperatura. A monção chegou. com a força repentina de um deus vingativo. Em questão de minutos as ruas de Benares ficam alagadas. O rio subiu, alagando centenas de metros de cada lado das margens. Ouvi dizer que no espaço de apenas um dia algumas das aldeias ao sul se transformaram em poços de lama. Não há qualquer tráfego de caminhões, carroças, vacas ou pessoas, pois as estradas estão intransitáveis..."
"O Barclay‘s Bank recebeu um telegrama do seu correspondente americano. Parece que meus cartões de crédito não constituem identificação suficiente para satisfazer meu banco de Pittsburgh. É preciso preencher formulários. Comparar assinaturas. Uma demora de pelo menos uma semana... "Tudo está perdido..."
"A monção está em plena cheia. Todo dia chove, chove, chove. O Ganges cobre a terra até o horizonte, num vasto mar cinzento e ondulante. Os topos das árvores aparecem acima da superfície. Aqui e ali a carcaça inchada de uma vaca ou de um ser humano passa pelo meu campo de visão..."
"As águas da enchente cobrem a terra por toda parte.
Homens, mulheres e crianças lutam para conter a fúria das águas, mas não conseguem. Lembro-me de minha aldeiae penso em Amdhu, Rama e as crianças, tentando adivinhar o que terá acontecido a eles..."
"O funcionário encarregado dos problemas da enchente junto à Comissão de Socorro do terceiro setor disseme hoje que a maior parte das aldeias ao sul estão submersas."
Afirmou que a índia inteira está sendo severamente castigada por uma das piores monções de que já se teve notícia...
"A inundação baixou, deixando a terra escura e pegajosa de morte e podridão. Boa para o plantio. Mas onde estão as pessoas?"
"Chegando à minha aldeia, encontro-a completamente deserta e arrasada. É como se um trator gigantesco tivesse aplanado a terra..."
"Acho Jafar Ali e seus dois filhos vadeando um canal de lama. Ele me conta que estavam ausentes quando as águas chegaram. Conta-me também que tia Kastori está em algum lugar das vizinhanças, mas se recusa a dar qualquer outra informação. Parece atordoado..."
"O acampamento se estende ao longo da margem esquerda do rio. Água parada. Sol intenso."
"Alguns cadáveres de gente afogada estão estendidos em bela simetria ao longo da base das pilhas de pedras. Tia Kastori e eu procuramos fisionomias da família Pachali, mas as feições terrivelmente inchadas dificultam reconhecer Amdhu, Rama, Prana, Shira, Arun, os gémeos, tio Chupar, Shakur..."
"Tia Kastori se junta a outra família em busca dos seus, bem como dos nossos. São amigos de uma aldeia vizinha.
Mesmo em sua dor, tia Kastori não consegue deixar de ser o que é — uma mexeriqueira. Estava de visita a vizinhos nas terras mais altas quando a inundação chegou à aldeia, arrastando pessoas, cães, vacas, casas, tudo. Sua mania de mexeriqueira intrometida salvou-lhe a vida..."
"No íntimo, não desejo encontrar qualquer membro de minha família aqui, entre os cadáveres recuperados. Prefiro pensar que eles agora fazem parte do rio, o qual, como Sesh me disse certa vez, contém propriedades químicas capazes de dissolver um corpo humano em vinte e quatro horas, fazendo sumir carne, cabelos e ossos..."
"Encontramos o corpo de Prana. Inchado. Deformado. O ventre estufado como se ela tivesse acabado de comer uma enorme refeição..."
"Primeiro Audrey Rose. Agora Prana..."
"Tia Kastori grita sua dor, que não terá muita duração, pois os hindus não perdem tempo em lamentar a morte. Não derramo lágrimas. Verifico que sou capaz de enfrentar a morte de Prana sem sentir necessidade de chorar, o que não aconteceu em relação à morte de Audrey Rose."
"Os ghats estão funcionando a todo vapor, dia e noite" .
"A fumaça agridoce infiltra-se em cada poro da velha Benares. Longas filas de carroças, jinriquixás e padiolas de bambu ultrapassam os limites da cidade à medida que as famílias avançam em blocos vagarosos rumo aos degraus que descem até o rio sagrado. Já que a morte é contagiosa, todos estão ansiosos para queimar depressa seus cadáveres, de modo que os espíritos dos mortos possam ser purificados" .
"Há pechinchas e subornos à polícia, que mantém as filas em ordem. Algumas das famílias mais ricas são escoltadas até a frente das filas..."
"Espero minha vez, ao lado de tia Kastori e do pequeno cadáver envolto em linho branco que está sobre o assento do jinriquixá que aluguei..."
"Flores em vasos cheios d água cobrem o assoalho de nosso jinriquixá. Colhidas frescas esta manhã, já estão começando a murchar na umidade implacável..."
"Tia Kastori carrega a ritual bandeja de pindas..."
"Embora eu não pertença à família nem seja parente consangüíneo, acenderei o fogo da pira crematória, mas não irei além disso. Não permanecerei para a oferenda de pindas, nem farei a cerimónia anual para os espíritos de Prana e de seus parentes. Não sou digno nem estou devidamente preparado para tal responsabilidade" .
"Em meio a toda essa mortandade, não posso evitar que meu pensamento se dirija à vida. Não à vida passada ou futura, mas à vida presente — cheia, doce, bela, carregada de promessas..."
"Na presença da beleza arruinada de Prana, não sinto qualquer iluminação. Não sinto qualquer lição emanada do cadáver esquálido ou da angústia final de sua morte cruel. Não consigo prever qualquer consequência benéfica de todo o terrível sofrimento que presenciei..."
"Não compreendo coisa alguma..."
"À vista dos gkats, observando os cadáveres que queimam, sei que esses passos que dou em direção ao rio serão os últimos, pois pela manhã partirei desta cidade para nunca mais voltar..."
"Não sei que direção seguirei, ou por quê..."
"Estou irremediavelmente perdido..."
Os olhos de Janice se anuviaram de tensão e emoção quando ela os ergueu dos rabiscos miúdos e confusos do lápis de Hoover no diário e olhou para o relógio. Quatro e quinze.
Ainda restava muito para ler, mas ela teria que parar agora e tratar de acordar Ivy. A limusine chegaria dentro de uma hora.
Após recolocar o diário na prateleira superior do armário embutido no corredor, foi à cozinha preparar o café da manhã.
Fitando o caldeirão de bruxa com a aveia fervendo, a mente de Janice rodava num turbilhão de pensamentos. Embora entendesse apenas parte do que lera, a ardente paixão das palavras de Hoover causara-lhe forte e profunda impressão.
De repente, sentiu-se dominada pela náusea, o corpo estremecendo incontrolavelmente em espasmos sucessivos.
Fechou os olhos e esforçou-se para dominar-se, tentando até mesmo achar graça em sua patética fraqueza, mas, afinal, viu-se forçada a subir correndo ao banheiro para vomitar. Depois sentiu-se melhor.
Ivy ficou surpresa por sair de casa no escuro, mas estava tão cansada e febril que mal protestou. Permitiu que o motorista a embrulhasse em cobertas e adormeceu quase que imediatamente.
Dominick também ficou ligeiramente intrigado com aquela partida tão cedo e perguntou a Janice se iam juntar-se a Mr. Templeton.
— Sim — respondeu Janice. — Cuide de nossa correspondência.
A chuva diminuíra, tornando-se uma garoa fina. Uma luminosidade prateada infiltrou-se entre camadas de nuvens escuras e turbulentas no céu. Folhas caídas de outono, molhadas, amontoavam-se nas sarjetas e o vento cortante soprava do rio Hudson, fustigando-lhe a face com o frio do inverno.
Eram cinco e vinte e seis quando a limusine partiu, enveredando suavemente pela névoa matinal.
13
Os chalés Sound-Side não eram, afinal, destinados a uso durante o inverno. Situados numa saliência de terreno à beira do canal varrido pelas tempestades, suas finas fachadas de tábuas estalavam e gemiam sob o castigo das intempéries de inverno. Desprovidas de isolamento de qualquer espécie, as paredes finas como peneiras deixavam passar sopros gelados de vento e umidade.
De dia, Janice e Ivy sentavam-se diretamente em frente à lareira, enroladas em cobertores elétricos, lendo e colocando achas de lenha no fogo crepitante. Os primeiros vestígios da tempestade tinham saudado sua chegada, quase uma semana atrás, começando com uma chuva leve e progredindo firmemente até se transformar numa terrível borrasca de noroeste, trazendo neve, vento e granizo em ciclos contínuos.
Teriam tratado de mudar-se após o primeiro dia (existia uma acolhedora hospedaria perto da cidade), se Mr. Stuart não tivesse insistido astuciosamente em receber pagamento adiantado por duas semanas de aluguel.
Janice viera para Westport a fim de refletir — de analisar seus alarmes e confusões e de tentar pôr em ordem sua mente.
Agora, porém, depois de uma semana, encontrava-se num estado de confusão mental tão grande como quando deixara Nova York. O diário de Hoover, aquela crónica simples e profundamente sentida de morte e de desespero, servira apenas para reforçar sua sinceridade e seus sombrios prognósticos.
"...A alma de Audrey Rose... continuará empurrando Ivy de volta à origem do problema; tentará voltar àquele momento e conduzirá Ivy a perigos tão angustiantes e destrutivos quanto o fogo que levou a vida de Audrey Rose". As palavras de Hoover, como dardos lançados adiante, pairavam como amuletos ante os olhos de Janice.
A temperatura de Ivy voltara ao normal pouco depois da chegada e suas mãos, que Janice medicava escrupulosamente duas vezes por dia, estavam começando a cicatrizar. Até o momento, Ivy fora poupada dos horrores dos pesadelos, o que, para Janice, era uma bênção duvidosa, uma vez que servia para confirmar a teoria de Hoover sobre as origens dos sonhos.
O maior choque talvez tenha sido a reação de Bill quando ela lhe telefonou na manhã do primeiro dia. Bill aceitara calma e silenciosamente todas as bombas que ela soltara, sem fazer qualquer protesto, mas sondando cuidadosamente para saber de todos os detalhes da noite que ela passara com Elliot Hoover: o que este fizera ao chegar, quanto tempo levara para acalmar Ivy, o que dissera a Janice depois disso, por quanto tempo permanecera lá e quais tinham sido suas palavras de despedida.
Julgava que a decisão de Janice de fugir para Westport fora acertada; estava satisfeito por elas não poderem ir ao Havaí, pois havia calor, umidade e tédio. Disse a Janice que ficasse ali até ele chegar, o que provavelmente aconteceria após o fim de semana, pois ele ia cancelar a viagem a Seattle — e Pel que se danasse.
Na segunda-feira, o dia em que Bill deveria chegar, a tempestade se afastou para alto-mar e, como uma cortina se abrindo para deixar ver um desenho de criança, fez surgir um grande sol amarelo e irreal, num céu de azul-cobalto.
Aquela manhã foi um presente especial para Ivy.
Enquanto caminhavam à beira do mar, pulando de lado para evitar as ondas mais fortes, Janice ficou satisfeita ao perceber um leve tom róseo voltar ao rosto pálido de Ivy e desejou que o apetite da menina também voltasse. Caminharam descalças ao longo de quilómetros de praia, procurando os tesouros devolvidos pelo mar durante a tempestade. Os despojos se apresentavam sob a forma de uma linha contínua ao longo da praia, como um comprido balcão de mercadorias numa loja de preços baixos. Conchas, crustáceos, pedras, seixos, algas marinhas, pedaços de madeira, pontilhados por peças maiores — galhos de árvores, vigas, metros e metros quadrados de algas — e uma variedade de objetos manufaturados: tábuas curtidas pela água salgada, tijolos, um sortimento de garrafas e latas enferrujadas, os rótulos obscurecidos pelas marés e pelo tempo.
— Olhe, mamãe! — exclamou Ivy. — Está morto!
Janice, que se deixara ficar um pouco para trás, aproximou-se do local onde a filha estava agachada à beira d água, examinando um grande peixe morto. Grandes dentadas haviam reduzido o corpo do peixe a um espinhaço. Uma pequena concha se alojara numa das órbitas dos olhos.
— Afaste-se dele — ordenou Janice suavemente, puxando Ivy pela mão e passando rapidamente pela carcaça mutilada.
— Parecia tão... morto — comentou Ivy, incrédula.
— Morto é morto — replicou Janice despreocupadamente.
— É assim que as pessoas ficam quando morrem?
— Pessoas ficam como pessoas e não como peixes.
— Quero dizer, tão duras e... partidas?
— Às vezes, se a morte for violenta.
— Como num acidente de automóvel? Janice sentiu o coração pular no peito.
— É — respondeu, com um leve tremor na voz. — Como num acidente de automóvel.
— É horrível morrer assim.
Janice não respondeu.
— Às vezes, sonho com isso — prosseguiu Ivy.
Janice mordeu o lábio. Então, indagou: — Que tipo de sonhos?
— Oh, sonhos com a morte.
— Num acidente de automóvel?
— Às vezes. Outras vezes, sonho que estou morrendo na cama. E todo mundo está em volta de mim, chorando. Bettina diz que os vivos sofrem mais que os mortos. A mãe dela ainda sofre.
— Você tem muitos sonhos assim?
— Não. Só às vezes. Caminharam caladas por algum tempo.
— Você vai se importar muito? — perguntou Ivy, tristonha.
— Importar?
— De morrer.
— Vou — respondeu Janice, em tom pesado, ríspido. Vou me importar muito.
— Acho que também vou — replicou Ivy, com simplicidade.
— Principalmente se for num horrível desastre de automóvel.
A conversa terminou, deixando Janice a lutar contra o som das ondas e o bater de seu coração.
Não podia haver dúvidas.
Os terrores de Audrey Rose estavam começando a se infiltrar nos pensamentos de Ivy quando acordada.
A filha estivera livre de pesadelos durante uma semana...
Uma semana longe de Hoover...
Audrey Rose sentia a presença do pai...
"Desejando! Necessitando! Gritando por meu auxílio! Por MEU
auxílio!"
A proximidade dele alertava Audrey Rose, trazendo os pesadelos punitivos e cruéis... Era preciso fazer tudo o que estivesse a seu alcance para manter Hoover afastado de sua filha...
De algum modo, precisava pensar muito e encontrar um meio de mantê-los separados — para sempre...
No caminho de volta ao chalé, passaram por um grupo de meninas uniformizadas, regulando de idade com Ivy, que remexiam nos despojos atirados à praia pelo mar. Uma turma estudando biologia, supôs Janice: escola particular, provavelmente paroquial e muito cara. Uma mulher de meia-idade, que não era freira, estava sentada ali perto, numa cadeira desmontável, vigiando as meninas. Houve uma troca de sorrisos entre Janice e a mulher, cada uma rendendo seu tributo à linda manhã, enquanto Ivy se agachava junto às meninas, incorporando-se à classe.
Era uma cena idílica, tranquila, segura, uma resposta óbvia e perfeita.
— Não!
— Por que não?
— Nada de discussão, Janice. Não vou admitir...
— Por que não?
— Não vou deixar esse sujeito desmanchar minha família — eis aí por que não!
Bill alugara um carro no aeroporto e viera diretamente para Westport, chegando pouco depois das dez da noite. Com Ivy dormindo em segurança, estavam de pé numa saliência de terreno perto do chalé, à vista das águas enluaradas do canal.
— Acontece que gosto de nossa vida como ela é — prosseguiu Bill, veemente. — Todos nós juntos sob o mesmo teto. Fico surpreso de ouvir você sugerir uma idéia tão maluca.
Ou melhor: não fico tão surpreso. Você está realmente envolvida pelo sujeito.
— Que está querendo dizer com isso?
— Você o deixou entrar, não foi? Deixou que ele a ajudasse, lavasse suas feridas, cuidasse de tudo. Não foi isso o que me contou?
— Fiz isso porque fui obrigada...
— Não era obrigada, podia ter esperado por Kaplan!
— Não poderia... Pelo amor de Deus! Eu estava lá, você não!
Ivy estava enlouquecendo; tive medo de que se matasse... Fui obrigada a deixá-lo entrar porque só ele poderia ajudála! Será possível que você ainda não compreenda isso?
— Muito bem, Janice, sobre isso não iremos concordar. Para mim, Elliot Hoover não é milagroso. Para mim, não passa de um maluco desorientado, que parece ter causado uma tremenda impressão em minha mulher!
Janice fechou os olhos, flexionando os dedos. Sua voz, mantida em tom baixo, estava carregada de choque e incredulidade.
— Você tem razão: ele me causou uma tremenda impressão.
Quase me matou de medo: eis aí o que ele me fez. Passo a maior parte do tempo tão assustada que nem consigo raciocinar direito. Ele me faz falar sozinha, quando não estou falando com padres e prostrada de joelhos, implorando a Deus aos gritos. Ele me obriga a beber de manhã cedo e a fugir altas horas da noite para escapar dele. Não porque tenha medo de que ele seja maluco, mas porque sei que é são. Porque acredito que aquilo em que ele crê seja verdade. Porque aceito o fato de que nossa filha é vítima de uma encrenca cósmica e que, enquanto estiver por perto dele, corre grave perigo de perder a vida.
Janice tentava não chorar, mas não conseguiu impedir que as lágrimas começassem a rolar.
— Entretanto, o mais terrível e amedrontador em tudo isso é que estou completamente sozinha... que, com tudo o que você viu e ouviu, com todas as provas que foram mostradas nitidamente ante seus olhos e em seus ouvidos, ainda prefere ignorar tudo. Estamos em apuros, Bill! Mais cedo ou mais tarde, você terá que sair de trás de seu escudo e enfrentar a realidade!
Janice começou a soluçar, mas Bill não fez menção de abraçá-la ou confortá-la. Seu rosto assumiu a aparência de uma máscara.
— Muito bem. Já disse o que tinha a dizer. Agora, chegou minha vez — declarou num tom grave e contido. — Para começar, jamais conseguirei acreditar no que você acredita.
Mesmo que Hoover me levasse pessoalmente numa excursão ao portão de São Pedro e me passasse uma perfeita conversa de vendedor, eu jamais acreditaria. Não é a minha realidade. Muito embora eu confesse que no dia em que deixei você e fui para o aeroporto a minha cabeça estivesse girando em todas as direções. Fiquei satisfeito de poder deixar toda essa porcaria para trás — você, Ivy, Hoover, toda essa merda por que temos passado. Imagine! Eu, pai modelo, alegre por me afastar de minha própria mulher e filha, a quem amo mais que a própria vida! Mas foi assim que me senti — satisfeito e culpado, satisfeito e culpado, satisfeito e culpado, durante metade da viagem através do país.
"Tentei me livrar do sentimento de culpa através de repetidas doses de gim com vermute, mas não deu certo a satisfação aumentava, a cabeça doía, mas o sentimento de remorso não diminuía. Estou lhe dizendo: foi pura agonia, mas nada consegui fazer a respeito. Até que, em algum lugar acima do Kansas, olhei pela janela e vi a nação passando lá embaixo, a onze mil metros, e comecei a observar a vida e todos os seus problemas daquele posto de observação privilegiado, vendo cidades, planícies, montanhas, as Rochosas, o milagre americano desfilando lá embaixo, de oceano a oceano — e eu, enclausurado em outro milagre, um grande recipiente metálico cortando o espaço com a velocidade do som. E, de repente, percebi que aqueles eram os milagres que possuem alguma significação não os milagres de Hoover, mas os milagres realizados por homens vivos: domar as terras, construir máquinas incríveis. Aqueles são os verdadeiros milagres!
"Então, comecei a perceber os primeiros vislumbres de uma resposta. Estava chovendo a essa altura, sabe?... estávamos no meio das nuvens e a chuva fustigava as janelas... e eu pensei com meus botões: Em cada vida tem que cair um pouco de chuva. Um cliché dos diabos, mas aí estava a resposta. Hoover foi a chuva em nossas vidas, como uma doença cardíaca ou um câncer. Pensando nele dessa forma, como se fosse uma moléstia, Hoover se tornava menos agourento e mais controlável. Quero dizer, a gente leva o câncer a um médico e, ele nada pode fazer, vamos procurar outro e, depois, um sociealista, e continuamos a lutar até o amargo fim... mas não desistimos. com Hoover, é a mesma coisa... a gente o leva um advogado e, se isso não der certo, procuramos a polícia e, afinal, um tribunal, mas não desistimos — não procuramos largar tudo e fugir, não jogamos nossos trunfos fora, não abandonamos o emprego, o lar... Não se desfaz a família, Janice a gente se une e briga com armas, paus, pedras, com tudo o que estiver à mão para defender aquilo que possuímos e amamos. Se tudo o mais falhar, temos que permanecer juntos: você, Ivy e eu, unidos numa família. E enquanto formos uma família unida, temos uma possibilidade de derrotar aquele filho de uma puta..."
"...de uma puta, uma puta, puta..."
A voz de Bill se interrompeu numa nota dissonante, fazendo a palavra final ecoar através da extensão de água como uma pedra ricocheteando pela superfície. No silêncio que se seguiu, o barulho das ondas retornou. Janice ficou imóvel, deixando que o suave marulho lavasse seu cérebro febril e atordoado. Bill não entenderia, não conseguiria compreender, e, de repente, ela se sentia por demais fatigada para se importar com o fato de ele compreender ou não.
— Portanto, esqueça essa idéia de internatos para Ivy.
Amanhã de manhã, voltamos a nossa casa — como uma família.
As palavras foram pronunciadas em voz baixa, mas com decisão e pertinácia bíblicas, fechando todos os canais de discussão ou diálogo.
Assim seja.
— Está bem — disse Janice.
Voltaram à cidade no final da tarde de 13 de novembro, quarta-feira.
Os olhos de Janice esquadrinhavam rapidamente os trechos sombrios e desertos da rua quando o carro parou diante do Des Artistes.
Ela percebeu que Bill, embora de modo mais disfarçado, fazia o mesmo.
Não havia sinal de Hoover.
Janice observou Ivy chutar distraidamente o monte de neve enegrecida que se juntara na sarjeta, enquanto Mário e Ernie ajudavam Bill a levar as malas para o saguão. Os movimentos de Bill tinham uma rapidez que traía sua ansiedade por sair da rua o mais depressa possível.
— É melhor levá-la para dentro — disse ele a Janice, entrando no carro para devolvê-lo à agência de aluguel.
Janice obedeceu.
A garrafa de uísque escocês estava onde ela a deixara, aberta e consumida até a metade, sobre a mesa de costura ao lado da cadeira de balanço. A rolha não estava à vista.
Toda a sala de visitas parecia um tanto desarrumada, os móveis, cortinas e almofadas tortos e fora de lugar — vítimas do pesadelo.
Janice refez a arrumação enquanto Ivy assistia à televisão.
No andar de cima, a bacia de água estava no chão do quarto, com um depósito escuro de sujeira no fundo. Ao derramar a água suja no vaso sanitário e enxaguar a bacia, Janice lembrou-se das mãos de Hoover lavando suas pernas.
O quarto de Ivy fora o epicentro do ciclone — móveis derrubados, cobertores e lençóis retorcidos e atirados longe, a tela chinesa, ainda em diagonal, que cobria a janela, o suave desenho do painel central rasgado e mutilado, irreconhecível.
Janice passou quase uma hora fazendo com que o quarto voltasse ao aspecto normal, mas nada pôde fazer em relação à tela que estava solidamente presa por detrás do radiador.
Afinal, ela e Bill conseguiram removê-la e levá-la de volta a seu quarto.
Logo que avistou a tela, Bill perguntou a Janice o que acontecera. Ela contou. Bill ficou pálido.
Comeram sanduíches da Confeitaria Stage (Bill os comprara no caminho de volta da agência de automóveis) com cerveja e leite. Quando estavam terminando a refeição, o telefone tocou.
Bill terminou calmamente de comer o sanduíche antes de levantar-se para atender. Sua compostura era por demais estudada para poder passar por indiferença.
Era Russ. Mário lhe contara que eles tinham voltado.
Precisavam de alguma coisa? Carole preparara uma enorme lasanha e eles estavam convidados. Bill agradeceu, explicando que haviam acabado de jantar e pretendiam deitar cedo, pois estavam todos exaustos.
O que, em parte, era verdade, pensou Janice apressadamente, observando as pálpebras pesadas e o rosto pálido e abatido de Ivy, que parecia prestes a desmoronar sobre a mesa do jantar. O copo de leite estava vazio, mas o sanduíche mal fora tocado. Janice fez uma anotação mental para marcar hora com Dr Kaplan no dia seguinte. A menos, refletiu desanimada, que precisemos chamá-lo antes disso...
Deixando de lado o banho, Janice acomodou Ivy na cama pouco antes das oito e a menina adormeceu quase de imediato.
Janice permaneceu com a filha durante muito tempo, escutando seu ressonar suave e ritmado, antes de sair do quarto e fechar a porta de mansinho.
Foi encontrar Bill em seu quarto, desfazendo a mala com ar letárgico, demorando na arrumação de cada peça de roupa, como se relutasse em terminar a tarefa. Janice abriu a própria mala. Trocaram apenas poucas palavras.
— Ela está dormindo? — sussurrou ele.
— Está — murmurou ela.
Continuaram a desfazer as malas em silêncio carregado de tensão e expectativa.
Não precisaram esperar muito.
Audrey Rose chegou às oito e quinze.
— Mamãe papai mamãe papai mamãe papai quente quente quente...!
Bill estalou os dedos em direção ao telefone...
— Kaplan!
... e saiu correndo do quarto.
Janice correu para o telefone (trabalho de equipe) ... pegou o aparelho e, tendo o número gravado a fogo no cérebro, discou-o rapidamente.
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTEquentequentequentequente...
A agonia aumentou e diminuiu quando a porta do quarto da menina se abriu e se fechou...
— Alo?
Kaplan, graças a Deus!
— Doutor, é Janice Templeton. Por favor, venha imediatamente!
— Já estou indo.
Janice tropeçou pelo corredor, correndo em direção ao barulho...
— Quentequentequentequentepapaipapaipapai...
... abriu a porta do quarto...
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTE...
... mãos enfaixadas voando, agredindo Bill, rasgando-lhe a camisa e as calças com uma força que fazia gotas de suor brotarem na testa dele...
— Kaplan já está vindo! — encorajou Janice.
— QUENTEQUENTEQUENTEQUENTE...
... o rosto de Ivy uma máscara contorcida de pavor e angústia, os punhos agredindo Bill com força e precisão maníacas; impactos sonoros que o atingiam em regiões sensíveis do ventre e virilha, obrigando-o a franzir o rosto de dor e agarrar os braços frágeis da menina para evitar as pancadas violentas...
Janice prendeu a respiração quando os dentes de Ivy se cravaram na carne macia do braço de Bill.
— Janice! Socorro! — gemeu ele, arrancando o braço dos lábios ensanguentados da filha.
Janice avançou para as costas da menina com os braços estendidos, atirando-se às pernas dela, enlaçando-as com a força de um torno.
Bill agarrou os braços de Ivy.
Lutando, estrebuchando, esperneando, arrastaram-na gritando até a cama, deitando-a e apoiando-se sobre o pequeno corpo convulsivo, tentando segurá-la.
Gradativamente, o vulcão arrefeceu, o corpo se relaxou, as imprecações gritadas se transformaram em fracos lamentos infantis:
— Mamãe papai mamãe mamãe papai papai quente quente quente...
Bill, passando delicadamente os braços relaxados para sua forte mão esquerda, pegou o lençol com a mão livre e amarrou rapidamente os pulsos da menina. Tinha o rosto banhado de suor e respirava com dificuldade ao manipular a filha. Janice, ainda segurando as pernas de Ivy, observava o rosto chocado do marido enquanto este amarrava a ponta do lençol nos entalhes de madeira da cabeceira da cama e, em seguida, erguia-se para repetir o mesmo processo com os tornozelos da menina.
Pouco depois, a filha de ambos, em sua pálida perfeição, jazia amarrada e suspensa entre os dois lençóis enrolados e firmemente atados à cama. Ambos os lençóis estavam respingados com o sangue de Bill.
Por longo tempo nenhum dos dois disse uma palavra.
Permaneceram de pé junto à cama, num horror mudo, observando o corpo da criança que se remexia levemente.
— Meu Deus! — exclamou Bill com voz embargada.
A campainha da porta tocou.
Kaplan! Fique com ela — ordenou bruscamente Bill, saindo do quarto num salto, descendo aos pulos a escada, acendendo as luzes da sala de visitas e do hall... abrindo dois trincos... retirando a tranca da corrente... abrindo a porta para...
Hoover!
Pálido, sorrindo nervosamente, a mão estendida num meio gesto de oferecimento, reparando no braço ferido e no rosto suado e abalado pelo choque...
— Olá — arriscou em tom hesitante.
— Como diabo subiu até aqui? — quis saber Bill, num sussurro engasgado.
— Eu... — começou Hoover.
— Quem deixou você entrar?
— Eu... moro aqui.
Silêncio atónito, atordoado.
— O quê? — balbuciou Bill.
— Subloquei um pequeno apartamento no quinto andar... enquanto vocês estavam fora. Somos vizinhos.
Uma película vermelha baixou sobre o rosto pálido, enquanto Bill sentia o latejar do sangue nas têmporas e um espasmo de raiva apertando a garganta...
— Seu filho da puta! — explodiu, tentando agarrar o pescoço fino e apertá-lo, dilacerá-lo...
— Não, por favor... — o rosto do outro implorou, recuando dos dedos aduncos de Bill, caindo para trás, flutuando... até que as mãos de Bill se fecharam no vácuo, sobre uma miragem inalcançável. Um pé na virilha de Bill, auxiliado pelo próprio impulso que ele levava para diante, lançou seu corpo para o ar num arco suave mantendo-o no ar por breve instante e, em seguida, largando todo o peso de seus noventa e um quilos no duro chão de ladrilho, com um baque demolidor e de sacudir o cérebro.
Bill sentiu a cabeça estourar e compreendeu que algo se quebrara dentro de si. Maldito bastardo, pensou em sua agonia, percebendo vagamente o abrir e fechar de portas no corredor.
— Sinto muito, Mr. Templeton — disse a voz de Hoover numa câmara de eco. — Deixe-me ajudá-lo...
Bill sentiu um aperto de aço no braço quando Hoover o ajudou a sentar-se. A visão do rosto redondo de Mrs. Carew, observando solicitamente de alguma distância, completou a indignidade do momento, lançando um jato de adrenalina através do corpo machucado, refazendo energias e recrudescendo a raiva.
— Vou matá-lo, seu pilantra — gemeu ele, soltando um gemido e dando um súbito impulso, agarrando as pernas de Hoover, arrancando-o do chão e puxando-o para cima de si.
Rolando pelo chão, os braços de Bill enlaçaram o corpo esguio e rijo de Hoover numa chave de braço, começando a apertar, quando um repentino choque elétrico percorreu sua espinha, imobilizando-o e fazendo explosões de estrelas toldarem sua visão, que começou a escurecer. Sentiu os dedos fortes de Hoover apertando sua nuca, cortando a circulação de uma artéria. Totalmente paralisado, Bill começou a perder os sentidos, enquanto a voz ansiosa de Hoover implorava: — Por favor, Mr. Templeton... estou escutando Ivy...
— PAPAIPAPAIPAPAIPAPAI...
Os gritos da menina, ecoando pelo interior do apartamento e saindo para o corredor, foram dominados parcialmente pelo berro frenético de Janice: — Bill... Meu Deus!...
Bill escutou tudo vagamente, mal conseguindo ver o rosto pálido e atónito de Janice olhando para Hoover com os olhos esbugalhados de incredulidade e hostilidade.
— Largue-o! — gritou ela, começando a puxar ferozmente o braço de Hoover.
— Papaipapaipapaipapai...
— Sim, sim, já vou — disse Hoover, soltando a artéria do pescoço de Bill e correndo para a porta aberta.
O sangue voltou ao cérebro de Bill, fazendo sua vista pulsar com cores vermelhas e negras, à medida que a força da vida lhe retornava à cabeça.
— Bill, Bill! — exclamou Janice, ajoelhada junto a ele, apertando a cabeça latejante de Bill de encontro ao seio.
Outras portas se abriram, mais pessoas apareceram, algumas vestindo roupões — rostos que Bill não reconheceu —, todas assistindo em silêncio enquanto Bill tossia, engasgado, procurando respirar e tentando focalizar os olhos na porta do apartamento — que agora estava fechada!
— Chamem a polícia! — berrou ele, com voz rouca. Aquele filho da puta está com minha filha!
Os vizinhos se movimentaram, obedecendo, enquanto Bill se pôs de joelhos, e, com o auxílio de Janice, ficou de pé. Teve a impressão de que suas pernas pertenciam a outra pessoa.
O rosto cinzento, tumultuado, Bill tropeçou em direção à porta, apoiando-se no corpo de Janice, experimentou a maçaneta — sem necessidade, pois sabia que a porta estava trancada — e começou a esmurrar a madeira com ambos os punhos.
Filho da puta, maldito! Abra a porta, maldito filho! A torrente de obscenidades ultrapassava os limites da razão, pontuada por violentas pancadas na porta, que ecoavam ao longo do corredor.
— Consigam uma chave! — berrou Bill por cima do ombro.
— O cara é maluco, doido varrido — depressa!
Mrs. Carew destacou-se do pequeno grupo de curiosos e correu pelo corredor em direção aos elevadores.
Janice só conseguia observar, impotente, tentando dominar a histeria que ameaçava explodir em seu íntimo, enquanto Bill continuava a gritar, praguejando e esmurrando a porta.
— Bill, querido — implorou ela, tentando controlar a voz.
— Está tudo bem. Ele não fará mal a Ivy.
Bill se voltou com o rosto transtornado e alagado de suor — olhos esbugalhados, saliva escorrendo pelos cantos dos lábios trêmulos (um rosto que ela jamais vira antes) — e berrou em voz áspera e acusadora: — Não se meta! Já estou cheio de você também!
Janice se encolheu, afastando-se dele, com o coração aos pulos, acompanhando o ritmo dos punhos que esmurravam a porta, enquanto a voz rouca e horrível continuava a gritar impropérios.
O ruído distante da porta do elevador.
Dominick, pálido e sério, chaves na mão, correndo até eles, escolhendo uma chave, depois outra, enfiando-as na fechadura... girando... abrindo... estalo!... a corrente do trinco prendendo a porta...
Bill enfiou a boca pela fresta.
— Abra, Hoover! — gritou, mais controlado. — A polícia vai chegar!
Silêncio lá dentro — profundo, agourento.
— Qual é o problema?
Dois guardas jovens tinham chegado, despercebidos, os uniformes azuis de inverno úmidos de friagem.
— Tem um homem na minha casa com a minha filha, seu guarda! Agrediu-me e depois trancou a porta!
— O senhor conhece o homem? — indagou o mais baixo dos dois guardas.
— Chama-se Elliot Hoover — respondeu Janice, quando Bill não conseguiu falar.
O guarda mais alto se aproximou da porta e, erguendo o cassetete, bateu na madeira.
— Mr. Hoover! — bradou em tom autoritário. — É a polícia!
Abra a porta!
Esperou por algum tempo e depois se voltou para Bill.
— O apartamento tem outra entrada?
— Naturalmente — respondeu Bill, meneando a cabeça, irritado com a própria estupidez. — A entrada de serviço, pela escada de incêndio!
Partiram correndo — Bill, os guardas, Dominick (empunhando as chaves) e Janice, correndo atrás deles desajeitadamente, deixando atrás de si os murmúrios e cochichos dos vizinhos.
Era tudo inútil, refletiu Janice, e Bill também deveria saber.
Jamais deixavam aberto o trinco da porta de serviço.
Dominick enfiou a chave, girou e empurrou. A porta se abriu, desimpedida.
Janice gelou. Uma idéia terrível demais lhe surgiu na mente.
Ele não estaria mais lá dentro, nem Ivy; Hoover teria ido embora, levando consigo... Ivy? Não, não Ivy, mas Audrey Rose, a filha dele.
Bill exalou um suspiro ruidoso ao conduzir os policiais e Dominick para o interior do apartamento. Janice seguiu atrás deles, sem pressa de confirmar suas suspeitas.
Os vizinhos permaneceram no corredor de serviço, curiosos, com vontade de entrar, mas hesitando em fazê-lo.
Janice ouviu Mrs. Carew declarar solenemente: — Espero que Ivy esteja bem, querida.
Janice chegou à sala de visitas a tempo de ver a fila de homens descendo sombriamente a escada. O rosto de Bill estava branco como giz.
— Sumiram! — informou ele, erguendo em seguida a voz: — Ele sequestrou Ivy!
Sem diminuir o passo, atravessaram a sala em direção à porta da frente. Dominick disse aos guardas: — Se estão falando de Mr. Hoover, ele acaba de sublocar o apartamento de Mr. Barbour, no quinto andar.
Quando se aproximaram do elevador, a porta do outro elevador se abriu, dando passagem ao Dr. Kaplan. Janice notou a expressão assustada do médico, quando o grupo quase o atropelou.
Ivy foi seqüestrada, Dr. Kaplan! — berrou Bill. — Venha conosco!
— Sim, é claro — murmurou o médico, completamente confuso, permitindo que os outros o empurrassem para o elevador de Dominick.
Quando a porta se fechou, Janice viu o grupo de vizinhos preocupados, liderados por Mrs. Carew, entrar no outro elevador.
A descida foi feita num tenso silêncio. A cabeça de Janice latejava dolorosamente, enquanto seus olhos estudavam o couro ressecado e arranhado da maleta de médico do Dr. Kaplan, gasta por muitos anos de serviços leais, não muito diferente da capa do diário de Elliot Hoover.
O que aconteceu em seguida ficaria gravado para sempre na mente de Janice como uma série de imagens momentâneas — um filme antigo passado em alta velocidade, com as batidas do cassetete na porta do apartamento de Mr. Barbour como cena de abertura.
— Mr. Hoover, é a polícia! Abra a porta!
Não houve resposta verbal, mas todos ouviram nitidamente o som de passos apressados no interior do apartamento.
— Mr. Hoover, peço-lhe mais uma vez que abra a porta! A resposta atrasada foi um som distante e abafado: — Não.
Bill gritando: — Abra, filho de uma puta!
O policial mais baixo advertindo: — Calma, senhor.
Então, virando-se para Dominick e meneando a cabeça.
Enfiando a chave...
Abrindo a porta...
A corrente resistindo...
Revelando uma pequena fresta do hall e Elliot Hoover, visto apenas parcialmente, de pé junto a uma estatueta grega, muito sério e resoluto...
O policial enfiando o distintivo pela fresta...
— Quer fazer o favor de abrir a porta, Mr. Hoover?
— Não. Já houve bastante loucura por uma noite. O guarda se voltando para Bill: — Qual é o seu nome, senhor?
— William Templeton.
O policial dirigindo-se a Hoover: — O senhor está com a filha de Mr. Templeton aí dentro?
Hoover, agitado, replicando raivosamente: — Eles a amarraram na cama... O policial insistindo: — Existe alguma criança aí dentro?
— Há uma criança dormindo lá em cima, tranquilamente.
— A criança é filha de Mr. Templeton?
Uma pausa.
O olhar de Hoover encarando-os implacávelmente. Então: — Não. Quem está dormindo é minha filha.
O policial, confuso, sussurrando para Bill: — O que quer dizer ele?
Bill, gaguejando de raiva: — Ele é maluco! Arrombe a porta!
O policial consultando Dominick: — Mr. Hoover tem uma filha?
Dominick sacudindo a cabeça: — Não tinha nenhuma ontem, quando se mudou.
A voz furiosa do policial: — Dou-lhe trinta segundos para abrir a porta. Se não obedecer, mando chamar o esquadrão de choque para arrombá-
la!
Mrs. Carew prendendo audivelmente a respiração...
Dez segundos...
Um sufocante silêncio de expectativa...
Vinte segundos...
Mais um instante de teimosa resistência. Então, Hoover cedendo, aproximando-se vagarosamente da porta...
Vinte e cinco segundos...
A porta se fechando...
A corrente se soltando...
A porta se abrindo devagar...
Um suspiro geral de alívio...
Hoover, calado e derrotado, de pé no centro da sala grega de Mr. Barbour...
Bill entrando no apartamento de um salto, com um rugido animal, empurrando Hoover violentamente para o lado, subindo a escada acompanhado pelo guarda mais baixo...
O policial mais alto vigiando atentamente Hoover, com a mão perto do coldre...
Bill descendo a escada, com Ivy no colo (graças a Deus), profundamente adormecida, recém-lavada, as mãos envoltas em ataduras novas.
A mão experiente do Dr. Kaplan sobre a testa de Ivy...
O policial mais baixo, muito sério, aproximando-se de Hoover: — Meu nome é John Noonan, guarda de primeira classe, registro número 707325. O senhor está preso por suspeita de seqüestro.
Os olhos de Hoover procurando os de Janice, sondando-os com expressão triste e acusadora...
O guarda mais alto tirando as algemas do cinturão, enquanto seu companheiro pega um folheto e começa a ler: — O senhor tem direito de manter silêncio. Se abrir mão desse direito, tudo o que disser pode ser usado contra o senhor num tribunal. Tem o direito de se comunicar com um advogado e de ter um advogado presente durante o interrogatório. Se não puder pagar um advogado, terá direito a um defensor público, gratuito, durante o interrogatório...
Aplausos...
Seriam realmente aplausos o que Janice escutou dos vizinhos quando Elliot Hoover, algemado, foi levado pelos policiais ao longo do corredor até o elevador?
Aplausos?
Parte três
Ivy
14
— Miss Hall, foi católica praticante durante toda a sua vida?
— Vou à missa todos os domingos — respondeu a bonita loura, sorrindo.
— E qual é o nome da igreja que a senhorita frequenta?
A figura esguia e minúscula do jovem advogado de defesa inclinou-se num ângulo relaxado e um tanto atrevido em direção à moça.
— St. Timothy, no Village — replicou ela.
O sorriso juvenil e ingénuo de Brice Mark manteve o grau meticuloso de inofensiva inocência enquanto ele selecionava cuidadosamente as perguntas que fazia ao décimo segundo jurado em potencial, sempre ciente do perigo de antagonizar os outros jurados por qualquer palavra ou gesto que pudesse ser considerado ofensivo.
Havia três semanas que o processo continuava, enquanto o advogado de defesa e o promotor vasculhavam delicadamente a lista de jurados sorteados, cada um procurando formar um júri tão tendencioso quanto possível em favor de sua causa.
Para Bill, aquele intervalo de tempo foi um verdadeiro inferno.
Para Janice, era simplesmente mais um episódio no mesmo pesadelo aparentemente interminável. Muitas vezes, à medida que o dia passava, as perguntas e respostas suavemente pronunciadas perdiam a característica de falas, tornando-se um murmúrio hipnótico, conduzindo-a a um reconfortante estado de devaneio do qual ela só despertava quando o martelo do juiz marcava o fim da sessão diária do tribunal. Essas fugas felizes dos sombrios e maçantes acontecimentos na sala de sessões da Sétima Vara do Foro Criminal, no centro de Manhattan, eram bênçãos ansiosamente aguardadas por ela.
Durante todo o julgamento — no máximo cinco semanas, na opinião de Scott Velie, o promotor-assistente encarregado do caso —, a rotina dos Templeton era fixa e imutável. Às nove horas da manhã dos dias úteis, com os braços dados numa demonstração de apoio e confiança mútuos, Bill e Janice ocupavam seus lugares na segunda fila da sala quase vazia do tribunal e aguardavam a entrada do Juiz Langley. A primeira fila era reservada à imprensa, mas nunca havia mais que dois repórteres presentes. Naquela manhã, lá estavam o homem da United Press International e a mulher idosa do jornal de Long Island. Em certa ocasião, a mulher se voltara na poltrona e, num tom simpático e maternal, tentara interrogá-los a respeito do caso. Bill se limitara a ignorá-la, mas Janice não conseguira, respondendo com a frase que tivera instruções para dizer à imprensa: — Pediram-nos para não comentar o caso.
Alguns dias mais tarde, a repórter perguntara a Janice como ia passando Ivy no internato em Westport, o que a deixara espantada, pois tinham mantido o mais absoluto segredo a respeito do paradeiro da filha. Mesmo assim, Janice conseguiu sorrir e responder que Ivy estava passando bem e se sentindo muito feliz, o que era verdade.
O internato fora um sucesso desde o início. Janice podia perceber isso no brilho saudável e rosado do rosto da filha, nos olhos faiscantes de entusiasmo que recebiam os pais todas as manhãs de sábado, quando iam visitá-la. E, melhor que tudo, os pesadelos tinham cessado.
Bill fora forçado a concordar com o internato em Westport, uma vez que o promotor insistira em que ambos os pais estivessem presentes ao tribunal em cada sessão do julgamento, mas Janice sabia que o marido não estava satisfeito em separarse de Ivy, embora não comentasse o assunto.
Desde a noite do sequestro, ela e Bill tinham mantido um relacionamento que, na melhor das hipóteses, poderia ser definido como tenso. Sempre delicados um com o outro, eram como dois desconhecidos num avião, obrigados a compartilhar da companhia mútua. Suas conversas eram restritas e inócuas, cada um dizendo apenas o necessário para transmitir a essência básica de uma pergunta ou resposta.
O ódio de Bill por Hoover e seu desejo de vê-lo afastado definitivamente cresciam a cada dia. Sempre que Janice procurava analisar seus próprios sentimentos em relação a Hoover, um interruptor automático em seu cérebro desligava o pensamento e desviava sua mente para outras direções.
Havia semanas que, precisamente às nove horas e quatro minutos, os olhos de Janice se dirigiam à porta lateral que levava à sala dos réus e observavam Elliot Hoover ser conduzido perante o tribunal por um guarda uniformizado, o qual, para permanente surpresa de Janice, segurava firmemente o prisioneiro pelo braço.
Janice sempre desviava o olhar de Hoover quando este era levado ao banco dos réus, porque uma vez, no início do processo Hoover percebera seu olhar e correspondera com um aceno de cabeça e um sorriso. Bill, sentado ao lado dela, notara tudo, pois Janice sentiu a contração dos músculos e a aceleração da respiração do marido. Tentava adivinhar o que pensaria Hoover durante os longos dias na sala do tribunal e as noites ainda mais longas na solidão de sua cela. Hoover não tentara comunicar-se com ela desde a prisão. Janice esperara que ele o fizesse e se preparara para repelir qualquer tentativa nesse sentido. Estava satisfeita por ele não a haver procurado.
Recordando-se da noite que haviam passado juntos, carregada daquela estranha comunhão de terror e intimidade, tentava adivinhar se Hoover a considerava uma traidora.
A cada manhã, Brice Mack erguia-se à entrada de Hoover, sorria e apertava a mão do cliente numa ampla demonstração de afeição e confiança, após o que ambos se sentavam e trocavam rápidas palavras. Ou melhor, Brice Mack falava, enquanto Hoover, sem trair qualquer emoção, permanecia imperturbável, lápis na mão, fazendo anotações num bloco e ouvindo o monólogo do advogado. Durante duas semanas, Janice observara, fascinada, Elliot Hoover encher páginas e páginas de anotações durante a escolha dos jurados e, lembrando-se do diário, imaginava que pensamentos e emoções profundos ele deveria estar exprimindo naquelas folhas amarelas. Então, no final de uma tarde, após o encerramento da sessão e de Hoover ter sido retirado da sala, ela passou propositadamente pela mesa da defesa e lançou um olhar às várias páginas que o réu ali deixara. Estavam cobertas de fileiras de círculos quase perfeitos, alinhados numa ordem meticulosa.
— Acredita na ressurreição de Cristo? — perguntou suavemente Brice Mack à bonita loura na bancada de jurados.
— Bem, acreditava quando era criança — replicou ela com um vago sorriso.
Brice Mack não teve certeza de que a resposta fosse totalmente aceitável. Pediu licença ao juiz para conferenciar com seu cliente. Desde que a acusação não protestou, o Juiz Langley bateu o martelo, decretando o recesso de cinco minutos.
Brice Mack inclinou-se para Hoover, passando o braço pelos ombros do réu e dizendo em voz baixa: — Temos direito a mais uma impugnação. Todavia, acho que essa jurada vai ser legal. O que acha você?
— Está bem — replicou Hoover. — Confio em sua escolha.
Fora assim desde a primeira vez em que se encontraram. Na opinião de Brice Mack, o dia mais feliz de sua vida.
Ele estava sentado na sala do tribunal do Juiz Ira Parnell quando ergueu os olhos e notou um prisioneiro, ladeado por dois oficiais de justiça, de pé no fundo da sala, fitando o espaço onde Brice e vários outros advogados estavam sentados. O prisioneiro parecia medi-los com o olhar. Nenhum dos outros advogados percebeu, mas Mack notou. Seus olhares se cruzaram e o prisioneiro avançou, acompanhado pelos dois oficiais de justiça. Parando diante de Mack, disse: — Meu nome é Elliot Hoover. Quer ser meu advogado? Posso pagar.
Embora não houvesse muita satisfação para seu ego no fato de haver sido escolhido ao acaso, Mack ficou satisfeito de poder defender uma causa em que, para variar, o cliente podia pagar.
Aceitou sem hesitação.
Todavia, sua primeira entrevista com o novo cliente provocou-lhe uma sensação de choque elétrico na espinha. Ali estava uma causa digna de ser atacada com unhas e dentes.
Tinha todos os ângulos possíveis: oblíquos, obtusos, bizarros — o material que galvaniza os tribunais, magnetiza a imprensa, atrai os olhos e ouvidos do mundo.
Reencarnação? Com os diabos! Se o homem não era louco e o tribunal pudesse ser convencido a aceitar as provas existentes como defesa adequada, quem poderia saber aonde aquilo levaria e como tudo iria terminar?
Durante o primeiro encontro com Hoover, Mack tentara oferecer ao cliente a possibilidade de uma defesa baseada em insanidade mental temporária. Sentia que esse era seu dever de advogado, mas, felizmente, Hoover recusara a sugestão.
Nos encontros subsequentes, Brice Mack foi posto a par de todos os fatos ocorridos antes, durante e depois do rapto, e cada nova informação era mais deliciosa que a anterior. Mack sentia-se feliz por encontrar em Hoover um cliente de boa vontade, que afirmava peremptoriamente ter o único desejo de ajudar ívy Templeton e, através desta, sua falecida filha, Audrey Rose, e que tinha substanciais testemunhas oculares de que a alma de sua filha lhe pedia auxílio usando o corpo de Ivy como veículo, de modo que, ao raptar Ivy, ele simplesmente fizera o que qualquer pai preocupado com a possibilidade de ajudar uma filha doente também faria. Sob este aspecto, Hoover tornava sua posição perfeitamente clara: sentia ter o direito de, nas circunstâncias, levar Ivy consigo.
De algum modo, era preciso formular uma defesa capaz de convencer o juiz e o júri não apenas da sinceridade de sua crença, mas também da realidade da reencarnação.
O próximo acontecimento espantoso foi a recusa de Hoover em ser libertado sob fiança, alegando que julgava as acomodações no prédio de detenção do Foro Criminal perfeitamente adequadas às suas necessidades. Quando Brice Mack o pressionou para aceitar a fiança, Hoover resistiu obstinadamente, declarando que seus princípios religiosos estabeleciam que todo sofrimento mortal é natural e necessário para a purificação da alma em sua jornada cíclica através da vida terrena. Mack aceitou esse raciocínio com uma larga dose de humor e informou seu cliente de que possuía fontes dispostas a prestar a fiança e, também, a arcar com o pagamento dos juros correspondentes. Hoover pareceu genuinamente ofendido pela sugestão.
— Não necessito de ajuda dessa espécie. Tenho bastante dinheiro.
Brice Mack tornou a sentir o mesmo choque elétríco na espinha, indagando: — Quanto você considera bastante?
— Ora — replicou Hoover —, a esta altura, deve ser pelo menos um quarto de milhão de dólares.
Mack sentiu a garganta seca.
— Onde está o dinheiro?
— Num banco de Pittsburgh. O First Fidelity Savings.
Mack conseguiu engolir em seco e perguntar suavemente: — Estaria disposto a gastar parte dele com sua defesa?
— Tudo, se necessário — declarou Hoover de imediato.
Aquilo resolveu tudo. Em todos os sentidos.
Por algum milagre de extrema sorte e pela graça especial de Buda, o caso da década caíra bem no colo do jovem e inexperiente Brice Mack. Por um breve espaço de tempo, este temeu por sua capacidade para cuidar adequadamente do caso, mas logo suprimiu a dúvida. com bastante dinheiro para acumular informações, colher provas, chamar testemunhas peritas de todas as partes do mundo, o julgamento se transformaria num seminário didático. Tratava-se de uma causa prioritária, académica, única, permitindo a liberdade total da imaginação, abrindo novas avenidas num terreno jurídico ainda não explorado. O tipo de causa que entusiasmaria Darrow, que Nizer e F. Lee Bailey largariam tudo para defender gratuitamente e era sua, toda sua, de um garotinho recém-saído da faculdade.
Seu cérebro fervia. com trinta e dois anos de idade, solteiro, sem um vintém, lutando para sobreviver numa profissão cruel e alienada, possuindo apenas dois ternos e um par de sapatos, Brice Mack viu-se repentinamente arrastado para o pódio dos vencedores. Estava feito.
Não obstante, seu sexto sentido para o perigo, aguçado pela aproximação da fama, mantinha rédea curta sobre seu entusiasmo, aconselhando-o a proceder lentamente e com cuidado, pois havia obstáculos a ultrapassar, estradas escorregadias a percorrer e inúmeros becos sem saída a evitar.
Três dessas dificuldades eram facilmente identificáveis. A primeira, menos importante para o plano de Brice Mack a longo prazo, era o júri propriamente dito. Por meio de um cuidadoso processo de seleção, ele precisaria reunir jurados compassivos e sensíveis, cujas mentes estivessem abertas a novos conceitos e cuja imaginação lhes permitisse mergulhar na penumbra do oculto, cujos princípios religiosos não os obrigassem a considerar o sobrenatural como algo inteiramente inadmissível.
Sabia que precisava tomar muito cuidado no interrogatório, pois seu adversário, o Promotor-Assistente Scott Velie, nada tinha de tolo e representava para Brice Mack a segunda e mais perigosa dificuldade a ser superada.
Scott Velie era um veterano das lides forenses. Um homem delicado, de maneiras suaves e rosto sonolento, mas um matador. Brice estudara Scott Velie na faculdade. Sua lista letal de condenações constituía matéria de estudo para todos os universitários de direito.
Muito antes do início do julgamento, Velie já teria conhecimento, por intermédio dos Templeton, das convicções religiosas de Elliot Hoover; portanto, estaria a par da estratégia da defesa e esperaria nos bastidores para neutralizar qualquer ação no sentido de utilizar o argumento da reencarnação.
A terceira dificuldade, a mais difícil de todas, seria levar o tribunal a aceitar a tese da reencarnação como uma defesa viável. Era de se esperar que Velie envidasse todos os esforços para desacreditar uma defesa desse tipo e as probabilidades estavam a seu favor, a menos que Brice Mack tivesse a sorte de se deparar com um juiz simpático à sua causa ou fosse bastante astucioso para convencer um juiz antipático da viabilidade de sua tese.
O sorteio do julgamento para a vara do Meritíssimo Harmon T. Langley foi um golpe de sorte de proporções monumentais.
Idoso, cabelos brancos, transformado em juiz por uma designação política dos tempos de Carmine De Sapio e O'Dwyer, Harmon Langley estava chegando ao fim de uma carreira longa e rotineira, estando praticamente à beira do esquecimento eterno, e não se disporia, na opinião de Mack, a recusar o manto de súbita fama que o caso oferecia.
Em menos de um dia, foi formado um grupo de jurados em potencial; o escrivão manipulou o arquivo de fichas e o processo de seleção do júri teve início.
Durante as três semanas necessárias para selecionar onze jurados, Brice Mack tomou gradativamente consciência de um fato desconcertante: Scott Velie estava permitindo que ele escolhesse o júri que desejasse.
O promotor não registrou qualquer objeção às perguntas que Mack formulou aos jurados e muitas vezes consentiu em aceitar um jurado aprovado pela defesa com o mínimo de informações. O fato de ver o promotor tão seguro de si inquietava Brice Mack, mas não tanto quanto o leve sorriso que brincava nos lábios de Velie enquanto este, relaxado, recostava-se na cadeira, ouvindo o adversário fazer perguntas penetrantes a respeito das convicções e preconceitos religiosos dos jurados.
Ou Scott Velie não acreditava na capacidade da defesa para conduzir uma tese baseada na reencarnação e, portanto, concedia-lhe total liberdade de ação, ou aguardava um momento mais oportuno para esmagá-la.
— Meritíssimo — Brice Mack se pôs de pé e encarou o juiz —, a defesa não vê motivo para dispensar a jurada.
Então, sorrindo amavelmente para Miss Hall, acrescentou: — Na realidade, estamos muito satisfeitos com sua presença.
O Juiz Langley se voltou para Scott Velie.
— Mr. Velie?
Velie não se deu ao trabalho de erguer-se ou mesmo se mover. Limitou-se a desviar os olhos dos demais jurados e encarar a loura que fora interrogada por Brice Mack.
— Miss Hall, acredita que os criminosos devam ser mimados?
— Não, senhor.
— Já foi presa alguma vez?
— Não, senhor.
— Conhece alguém que tenha se envolvido em dificuldades com a lei — digamos, algum parente ou amigo?
— Não, senhor.
Aquelas eram as perguntas costumeiras de Scott Velie a cada um dos jurados em potencial. A acusação não podia dar-se ao luxo de aceitar um jurado que, em qualquer situação de sua vida, tivesse considerado a lei como inimiga.
— Diga-me, Miss Hall: se alguém toma uma criança que não lhe pertence e leva essa criança de sua casa para outro lugar, sem o consentimento dos pais dela, e, na verdade, contra fortes objeções levantadas pelos pais, mesmo que essa pessoa acreditasse não estar cometendo mal algum e, na realidade, a lei pudesse provar que essa pessoa estava errada e era responsável por tal ato, a senhorita teria alguma dificuldade para considerar essa pessoa culpada?
Miss Hall julgou conveniente refletir bastante sobre a pergunta, antes de responder: — Não, senhor.
O olhar de Bill procurou o local onde Hoover estava sentado, composto e sereno. O rosto odiado parecia de alabastro, com uma equanimidade insuportável. Com um leve desvio de cabeça, Bill pousou os olhos no rosto suave e querido da esposa, sentada a seu lado. O perfil perfeito e exótico permanecia imóvel, com a atenção aparentemente fixada em outro ponto do tempo e do espaço. Bill tentou imaginar que pensamentos se esconderiam por trás dos olhos fixos e vazios. Lembrou-se daqueles olhos em outra ocasião — refletindo uma expressão de choque, repulsa, traição, num rápido relance que ele jamais poderia esquecer. Ele merecera.
Só Deus sabia como ele merecera aquele olhar — perdendo o controle daquela maneira, atraindo Janice para o caldeirão fervente de sua raiva, acusando-a, praticamente tachando-a de traidora. Sim, refletiu Bill temente, naquele momento ele perdera o que tinha de mais precioso, o que prezava mais que o amor: a confiança da única pessoa no mundo que realmente importava para ele.
Comiam, conversavam e faziam amor por rotina e necessidade. Sorriam muito. Bill estava constantemente premeditando e censurando cada palavra e pensamento, antes de abrir a boca. E quando a necessidade o obrigava a reunir coragem para tocar em Janice, ele jamais deixava de sentir a contração momentânea do corpo da esposa, o leve suspiro de resignação, a submissão relutante. Era tudo falso. E ambos o sabiam. Era exatamente nesse conhecimento que ele percebia dolorosamente a enormidade da perda que sofrera.
Os dias e noites de ambos tornaram-se automatizados. No tribunal de nove da manhã às quatro da tarde, coquetéis e jantar, geralmente fora, a longa caminhada de volta para casa, indo para a cama às dez horas. Os fins de semana eram passados com Ivy, em Westport. Iam num carro alugado e se hospedavam, os três, no Candlemas Inn.
Bill concordara em matricular Ivy no internato para meninas, mas a idéia não lhe agradava. Detestava ver Ivy de uniforme, com a beleza camuflada, desprovida de individua-lidade.
Não obstante, a menina parecia adorar. Fora prontamente aceita pelas colegas e em apenas três semanas já fizera duas "melhores amigas".
Até o momento, as reportagens nos jornais sobre o caso não tinham ido muito longe. Após a prisão e fichamento de Hoover, que mereceu uma citação na segunda página do New York Times, as sessões do tribunal tinham recebido apenas uma atenção mínima por parte da imprensa. A pouca cobertura que havia sobre a escolha dos jurados aparecia nas últimas páginas do News e do Post. O Times publicava ocasionalmente algumas linhas a respeito e os jornais de Connecticut simplesmente ignoravam o assunto.
Bill sabia que ainda estava para chegar o momento em que o caso explodiria nas manchetes dos jornais do país inteiro, pois Velie não tinha a menor dúvida de que a defesa tencionava colocar em jogo a questão da reencarnação, embora ele pretendesse convencer o tribunal a rejeitar a tese como inadmíssivel em matéria de direito. Mas, a essa altura, o mal já estaria feito; as barragens da publicidade estariam abertas.
Sabendo o que tinham pela frente, Bill abrira o jogo com a Irmã Verónica Joseph, madre superiora da Escola Paroquial Feminina Monte Carmelo, no dia em que matriculara Ivy, preparando-a para enfrentar a avalanche de publicidade que estava por vir. Embora o semblante tranquilo da freira tivesse demonstrado um instante de preocupação, ela não demorou a encontrar na fé um amparo para o choque e um estímulo para temperar seus receios com uma grande dose de caridade. Bill percebeu que a mão da madre superiora procurava instintivamente o grande crucifixo de prata que pendia de um rosário de contas pretas preso em seu hábito, quando ela comentou suavemente: — Pobre criança. Faremos o possível para resguardá-la das calúnias do mundo.
O que, refletira Bill, era um modo certamente simpático e correto de definir a situação para todos eles.
Ocorrera-lhe especular sobre as calúnias que poderia esperar por parte de seus colegas de trabalho quando a bomba explodisse. Pel Simmons mostrara-se genuinamente preocupado e fora mais do que solícito em conceder-lhe uma licença durante o decorrer do julgamento, sem interromper os cheques quinzenais de pagamento. Era uma indicação da fé e confiança que depositava em Bill, uma bela maneira de dizer: "Gosto de você. Quero mantê-lo a meu lado". Naturalmente, Pel sabia apenas o que lera nos jornais e o pouco que Bill lhe revelara — que fora o mínimo possível.
Dentro em breve, pensava Bill sombriamente, haveria um terrível abalo, uma pedra solta na bem-regulada engrenagem da máquina de Pel Simmons, que estragaria tudo de uma vez por todas. Em última análise, custar-lhe-ia o emprego. Não seria de repente — nada de bilhete azul anexado ao cheque do pagamento; levariam cerca de um ano para afastá-lo gradativamente e, afinal, mostrar-lhe a porta da rua. Don Goetz passaria a ocupar seu cargo, relutantemente, é claro, detestando ter de depor o chefe, agitado e furioso com aquela injustiça, mas, ao mesmo tempo, começando a sentir o gosto do couro macio da poltrona de Bill se aproximar dia a dia...
Acabaria assim. Ele seria despedido! Estaria no olho da rua!
Vagando pelas ruas, evitando pisar nas sujeiras dos cachorros.
Tump! Tump! Tump! O coração lhe saltava no peito. Gotas de suor lhe brotavam na testa. Seria o prenúncio de um ataque das coronárias? Isso seria o melhor. Cair morto, bem ali na sala do tribunal, na presença do júri tão bem selecionado. Ele pouco se importaria. Sua morte ajudaria a causa de Velie. Suscitaria simpatia. Garantiria a condenação de Hoover. Eliminaria o maldito de uma vez para sempre.
Bill estudou Hoover através das gotículas de suor que se acumulavam em suas pálpebras, produzindo uma imagem difusa, distorcida e malévola. Como um animal selvagem, o filho da puta se insinuara em sua vida e devorara tranquilamente tudo o que ele possuía e prezava: família, carreira, o amor e respeito da esposa, tudo o que realmente importava.
Sentiu um repuxar nos cantos da boca e percebeu que estava sorrindo. Aquilo sempre acontecia quando ele chegava ao fundo do poço, quando suas depressões e desânimos se tornavam insuportáveis. Então, algum mecanismo interno de emergência entrava em ação e o sorriso acudia. Com o sorriso, um pensamento reconfortante: "Se eu for destruído, você também será, seu bastardo!"
Scott Velie dirigiu-se ao juiz.
— A promotoria aceita o júri, Meritíssimo.
— Muito bem — declarou o Juiz Langley, dando prosseguimento à sessão. — O oficial de justiça tomará o compromisso do júri.
Janice viu Hoover levantar os olhos do bloco de anotações e fitar os doze homens e mulheres que se ergueram a um só tempo, encarando o oficial de justiça postado na outra extremidade da sala.
Lendo uma folha de papel, em tom baixo e solene, o oficial de justiça pronunciou a litania de praxe: — Juram solenemente tentar por todos os meios e modos julgar a veracidade das acusações do Estado contra o réu aqui presente, de acordo com as provas apresentadas e as determinações da lei deste Estado...
O semblante de Hoover irradiava pureza e inocência enquanto as doze pessoas, cujo dever e responsabilidade seria decidir sobre a culpabilidade ou inocência, "acima de qualquer dúvida", do réu Elliot Suggins Hoover, acusado de raptar "dolosa e premeditadamente" a menor Ivy Templeton, prestavam o compromisso legal.
Vendo Hoover observar o júri, o exterior tranquilo envolvendo um núcleo de força de vontade dura como o aço, visando os objetivos de seus interesses pessoais sem qualquer preocupação aparente com a maldade e ilegalidade de seus atos e com o mal irreparável que estava causando a terceiros, Janice compreendeu que, a despeito de toda a confiança de Velie e das afirmações convictas de Bill, a obstinação de Hoover acabaria por prevalecer.
Naquele momento sepulcral, Janice teve a certeza de que perderiam a causa.
15
— ... Juram por Deus?
O oficial de justiça ergueu os olhos para encarar o júri.
O coro uníssono de "Juramos" ecoou pela sala do tribunal.
— Podem sentar-se — disse o Juiz Langley ao júri. Voltando-se para os advogados de acusação e de defesa, indagou: — Ambas as partes estão prontas para iniciar o julgamento?
Quando Velie e Mack afirmaram estar prontos, os olhos do juiz se dirigiram ao relógio de parede.
— São onze e dez, Mr. Velie — declarou, como se oferecesse uma trégua. — Se o senhor preferir iniciar após o intervalo para o almoço...
— Muito obrigado, Meritíssimo — interpôs Velie. Creio que poderei terminar as poucas palavras que tenho a dirigir ao júri antes do intervalo do meio-dia.
— Muito bem — disse Langley, um tanto irritado. Tem a palavra.
Scott Velie iniciou sua argumentação sentado como estava, guardando o momento de pôr-se de pé para o instante em que pronunciasse uma frase-chave em meio a seu intróito previamente preparado. Girou a poltrona para encarar o grupo de doze cidadãos, exibindo um ar de tranquila confiança em si mesmo. Falou em tom controlado, coloquial, destinado a aliviar qualquer tensão que pudesse subsistir entre os membros do júri e colocando-os perfeitamente à vontade.
— Como sabem, amigos, existem atualmente muito poucos crimes que são cometidos sem motivo algum. Há ocasiões em que alguém faz algo contrário à lei sem saber por que motivo agiu assim ou sem conseguir discernir entre o certo e o errado.
Em muitos desses casos, a justiça considera que essas pessoas sofrem de uma doença mental e, conseqüentemente, elas são declaradas irresponsáveis. Na maioria dos casos, porém, as pessoas cometem crimes por algum motivo. E esses motivos são muitos. Ódio, medo, ciúme, o desejo de se apropriarem daquilo que não lhes pertence. Podem imaginar o motivo que bem entenderem e verificarão que os registros da justiça estão cheios de todos eles.
Curvou-se para diante, com os dedos cruzados, os braços apoiados nos joelhos, prosseguindo em tom confidencial: — Ora, como sabem, existem motivos por detrás dos motivos pelos quais as pessoas cometem crimes. Tomemos o ódio, por exemplo. Há muitos motivos pelos quais as pessoas odeiam seus semelhantes — e alguns desses motivos são suficientes para que certas pessoas assaltem, espanquem, mutilem, firam e até mesmo matem outras pessoas. Em algumas circunstâncias, esses motivos por detrás dos motivos são a única esperança de o indivíduo que é considerado culpado livrar-se da prisão. Muitas vezes, seu advogado construirá uma tese de defesa baseada nesse motivo por detrás do motivo e o considerará uma circunstância atenuante. É exatamente a esse ponto que desejo chegar e rogo que me escutem com a máxima atenção. Em qualquer crime e, em especial, num crime grave, não pode existir motivo por detrás do motivo, não pode haver circunstância atenuante que absolva um homem da inteira responsabilidade por ter cometido uma ação contrária à lei; não pode haver redução da responsabilidade pelo ato criminoso; não pode haver condescendência, perdão ou esquecimento, nem absolvição, da obrigação de pagar a pena legalmente estabelecida para a autoria do ato criminoso. Nem em nome da circunstância atenuante, nem em nome da caridade, da mãe ou de Deus nos céus!
Atingindo esse ponto dramático, Velie ergueu-se de um salto — um movimento tão repentino e inesperado que fez os jurados na primeira fila se encolherem — e, apontando um dedo para o júri, gritou: — Não num tribunal! Que é onde os senhores estão hoje!
Um tribunal, senhoras e senhores jurados! Não numa igreja, que foi constituída para dispensar o perdão divino, mas num tribunal, que foi constituído para dispensar a justiça humana!
O olhar de Scott Vellie percorreu lentamente a sala do tribunal até pousar em Elliot Hoover, sentado imóvel ao lado de seu advogado.
— Hoje, neste tribunal — prosseguiu o promotor —, um homem é acusado perante a justiça de um crime tão hediondo e ofensivo à sociedade a ponto de ser, juntamente com o homicídio doloso e premeditado, classificado como crime passível da pena capital. Pois não pode existir ato criminoso mais desprezível, a não ser o de tirar uma vida humana, que o de roubar o filho de outrem...
No violento sermão de Velie existiram vários momentos propícios à apresentação de um protesto por parte de Brice Mack, mas este se conteve. Percebera que o jurado número 7, Graser, mostrava-se singularmente impassível ante as palavras de Velie e, a certa altura, quando o promotor afirmara que o perdão divino deveria ser dispensado numa igreja e não num tribunal, exibira mesmo uma expressão de antagonismo. O jurado número 3, Mr. Fitzgerald, carpinteiro de profissão e católico devoto, também não estava se deixando convencer.
Todavia, Velie prosseguia, expurgando o tribunal da misericórdia divina e, como percebeu Brice Mack, preparando o ambiente para enfrentar a questão da reencarnação — o principal ponto de apoio da defesa.
— Além disso, provaremos que foi um ato cuidadosamente preparado e premeditado. Através dos depoimentos de testemunhas, demonstraremos o meticuloso planejamento que foi empregado na perpetração desse crime depravado e desumano. Ouviremos depoimentos a respeito da maneira pela qual Elliot Hoover rondou inúmeras vezes a escola da menina, disfarçado, observando sua vítima; a respeito do número de vezes que ele visitou o prédio de apartamentos onde a menina residia, com a finalidade de preparar o crime; a respeito da maneira pela qual ele, afinal, mudou-se para o mesmo prédio de apartamentos, a fim de encontrar maior facilidade na execução do rapto; a respeito do modo pelo qual, consciente, premeditada e intencionalmente, ele criou um incidente, uma ação diversionária: um ataque brutal contra o pai da menina, que lhe permitiu ter acesso ao apartamento e levar a criança consigo; a respeito do modo pelo qual fugiu pela porta de serviço e ocultou a criança em seu esconderijo...
Brice Mack olhou para o relógio na parede. Onze e vinte e cinco. Sabia que Velie continuaria falando até pouco antes de meio-dia, quando terminaria a introdução com a denúncia dramática do ato execrável e depravado do réu, pedindo a aplicação da pena máxima prevista pela lei. Então, após o intervalo para almoço, dali a duas horas, chegaria finalmente o momento de iniciar-se a defesa formal de Elliot Hoover. O momento em que dois meses de trabalho insano durante vinte e quatro horas por dia seriam arriscados numa simples jogada de dados: a prova da existência da reencarnação.
— ... e, pelos danos que suas atenções indesejáveis causaram a essa família, levando à perpetração desse (ao invés de "execrável" e "depravado", como Brice Mack previa, Scott Velie preferiu outra expressão) degenerado e demoníaco crime de rapto, bem como pelo mal irreparável que poderia ter causado à criança, o Estado pede a condenação de Elliot Hoover por rapto doloso e suplica ao tribunal que lhe aplique a pena máxima prevista em lei.
Todos os presentes suspiraram aliviados quando Scott Velie, com um leve aceno de cabeça, indicou ao juiz que terminara. Eram onze e cinquenta e sete. O Juiz Langley se ergueu.
— A sessão está suspensa para almoço. Será reiniciada à uma e meia.
Janice permaneceu de pé, enquanto Bill e Scott Velie trocavam sorrisos amistosos, acompanhados por piscadas de olho e expressões confiantes, pois sabiam que chegara o momento da verdade. Janice viu Brice Mack falar animadamente com Elliot Hoover, enquanto o prisioneiro era retirado da sala pelo guarda fardado. Agora, refletiu Janice, todos iam almoçar, alimentar-se, restaurar energias para enfrentar a batalha que tinham pela frente. Os condenados têm direito a uma boa refeição. Todos eles.
Janice calculou que, para Bill, seria um almoço com quatro martínis, pois ele já tomara dois e ainda não pedira a comida.
Ela também resolvera abrir uma exceção e estava tomando um uísque duplo com água.
O restaurante Pinetta‘s ficava num beco logo a leste da Foley Square, a pouca distância do Foro Criminal; ostentando uma fachada Tudor, com um toldo listrado do tipo Riviera, era uma feliz combinação de duas lojas com sótãos, parecendo mais uma fantasia saída das páginas de Dickens. Uma série de saletas forradas com lambris, mobiliadas com móveis autênticos e decoradas de acordo com a tradição, proporcionavam reservados quase exclusivos nos três pavimentos. Havia escadas nos locais mais surpreendentes. Fora ótimo encontrar algo tão encantador numa parte tão pouco acolhedora da cidade.
A freguesia era constituída quase exclusivamente dos freqüentadores mais abastados do Foro Criminal, homens em sua maioria; durante os julgamentos mais importantes, era possível reservar uma mesa diária até o final das audiências.
A mesa de Bill e Janice ficava na varanda do segundo andar, bem servida e não muito barulhenta. Tinha, porém, um sério inconveniente. Logo abaixo, visível de todos os ângulos possíveis, ficava a comprida mesa de Brice Mack, onde sua "equipe" se reunia todos os dias: cinco, às vezes seis, homens de várias idades e condições sociais, que comiam, bebiam, fumavam, faziam relatórios e conversavam com o "chefe", Brice Mack, que se sentava à cabeceira.
Duas vezes Bill procurou o gerente para obter outra mesa e duas vezes foi recebido com a mesma promessa delicada: Qualquer dia desses haverá mesas de sobra, senhor.
O julgamento da Quarta Vara está quase terminando.
"Qualquer dia desses" não chegou em três semanas.
Uma semana antes — era segunda-feira e Janice não almoçara para fazer algumas compras —, Bill convidara Velie para almoçar com ele. Diante de canecões de cerveja e costeletas regadas ao molho de raiz forte, Velie identificara para Bill cada um dos membros da "equipe" de Brice Mac, informando-o a respeito de suas atividades.
— Os dois mais jovens são advogados recém-formados, encarregados de pesquisas e dos trabalhos de foro. O velho imponente de óculos sem aro e cavanhaque é William Ahmanson, professor de assuntos religiosos na Universidade de Nova York. O sujeito magro, com a cara cheia de espinhas, é secretário do escritório de advocacia; antes disso, era escrevente juramentado. Chama-se Freud Hudson. Aquele velho com cara de cafajeste que bebe uísque puro é um ex-policial chamado Brennigan.
Velie sorriu e piscou um olho.
— É detetive particular.
Após mastigar uma garfada de carne e engoli-la com cerveja, acrescentou:
— São auxiliares que trabalham sob contrato para cada julgamento — o que, somando tudo, dá uma boa nota.
— Hoover tem bastante.
— É mesmo? Bem, fique sabendo que não são só esses aí que se está pagando. Mantém um maharishi hindu hospedado no Waldorf-Astoria. Um sujeito chamado Gupta Pradesh, considerado um dos principais iogues da índia. Veio de avião especialmente de Calcutá.
Ao engolir a comida saborosa, Bill sentiu um momentâneo ataque de náusea ao tomar conhecimento da amplitude da defesa de Hoover. O filho da puta não estava poupando dinheiro ou esforço para fazer prevalecer seu ponto de vista...
— Por que contratou um detetive particular?
— Para investigar os pesadelos de sua filha. Brennigan anda farejando o consultório do Dr. Kaplan. Sem resultado, apraz-me dizer.
Bill sentiu uma onda de simpatia pelo Dr. Kaplan e por todos os médicos em geral. Eram como sacerdotes. Mudos.
Faziam voto de silêncio e guardavam as confidências dos clientes.
— Mack pode chamá-lo para depor no tribunal?
— Certamente. Mas isso não significa que conseguirá respostas para todas as suas perguntas.
— Como assim?
— No Estado de Nova York, todas as comunicações entre médico e paciente têm certos privilégios e, como tal, não podem ser reveladas em público, exceto em circunstâncias muito especiais. Uma delas, por exemplo, é a autorização do cliente para que o médico preste depoimento. O que a menina certamente não dará.
Quando Bill e Janice voltaram ao tribunal, à uma e vinte e seis, Hoover e seu advogado já se encontravam em seus lugares.
Como de costume, Brice Mack desenvolvia um animado monólogo, enquanto o cliente rabiscava furiosamente no bloco de anotações, imerso em suas misteriosas atividades, sem dar o menor sinal de interessar-se, ou mesmo de escutar, o que dizia o advogado.
Menos de um quarto da parte do tribunal reservada aos espectadores estava ocupada. Apenas um representante da imprensa, a repórter, ocupava a primeira fila reservada aos jornalistas. O homem da United Press International não se dera ao trabalho de voltar. Tomando por base a cobertura feita pela imprensa, o julgamento não deveria passar de mais um caso de rotina, com um resultado bem previsível. Até o momento, não houvera qualquer prenúncio de acontecimentos dramáticos e, consequentemente, a casa estava vazia.
Poucos segundos antes da uma e trinta, Scott Velie e seus dois assistentes se aproximaram da mesa da promotoria e ficaram ali de pé, trocando idéias. Logo após, todos os presentes se ergueram quando o Juiz Harmon T. Langley entrou no recinto. O oficial de justiça, com uma braçadeira e um escudo no peito, acompanhou o juiz com a solenidade de um guarda papal.
Até o exato momento em que o juiz, após sentar-se, reabrir a sessão e dirigir-se ao advogado de defesa, fez a pergunta crucial, Brice Mack tinha sérias dúvidas quanto à resposta adequada. Só havia duas alternativas possíveis: "Sim, Meritíssimo, a defesa está pronta para as alegações iniciais", ou "Não, Meritíssimo, a defesa se reserva o direito de falar por ocasião das alegações finais".
A primeira resposta ocasionaria uma confrontação imediata a respeito da questão da reencarnação e criaria uma situação decisiva e final. Por outro lado, o júri tomaria conhecimento das intenções da defesa e ouviria os depoimentos de cada testemunha da acusação à luz dessas intenções. Uma consideração importante, pois tenderia a suavizar e comprometer a tese da acusação aos olhos dos jurados.
A única vantagem da segunda resposta seria ganhar tempo.
Adiaria a discussão da questão da reencarnação por uma semana, pois o rol de testemunhas de acusação era considerável (doze, segundo informações do escritório do promotor), permitindo o prosseguimento das investigações a respeito dos pesadelos de Ivy Templeton. Até então, Brennigan — estranhamente — não conseguira o menor sucesso em colher pistas ou informações. O Dr. Kaplan, que certamente tinha conhecimento da existência dessas pistas e informações, permanecia mudo como um túmulo. Os amigos da família Templeton, os Federico, eram absolutamente inabordáveis. Não obstante, os pesadelos eram um fato. Existiam. Tinham atormentado a menina em duas ocasiões diferentes de sua vida.
Ambas as vezes, por ocasião da presença de Hoover na cidade. E Hoover afirmava que sua presença desencadeava aquelas manifestações profundamente inquietantes, que jamais variavam em grau ou conteúdo.
Da forma pela qual Hoover descrevera os pesadelos a Brice Mack — e desde que fosse possível admitir a precisão de sua narrativa —, os sonhos constituíam a única ligação entre a filha dos Templeton, Ivy, e a filha de Hoover, Audrey Rose (ou, ao menos, a alma de sua filha).
Brice Mack sentiu uma película de suor cobrir-lhe o rosto, como sempre acontecia naquelas ocasiões, em que toda a sua concentração estava focalizada no ponto básico da causa e ele se via acreditando sobriamente em conceitos daquele tipo, contratando detetives para comparar uma criança viva com a alma de uma criança morta. Seu rosto ficava úmido e pegajoso; o chão parecia mover-se sob seus pés. Era em tais momentos de fraqueza, quando a espantosa enormidade e atrevimento daquele tipo de defesa o fustigavam com uma chicotada repentina, que o semblante sereno, sincero e confiante de Elliot Hoover vinha em seu socorro. Afinal, dizia ele a seu coração temeroso, o dever de um advogado não é questionar a validade das crenças do cliente, nem julgar sua competência para alimentar tais crenças. O dever de um advogado é representar os interesses legais do cliente e providenciar para que este tenha um julgamento justo e de acordo com a lei. Mas seu coração continuava a fraquejar...
Nascido e criado numa tradição de realismo em um rude gueto do Bronx — rude e implacável —, com os estudos pagos pelo suor cotidiano de uma incansável mãe trabalhadora, conseguindo o diploma de bacharel numa universidade de elite graças à indignidade de mudar o nome (fora informado recentemente que a cota de judeus das universidades tradicionais aumentara meio por cento nos últimos cinco anos), Brice Mack, né Bruce Marmorstein, conhecia bem a diferença entre o que é e o que não é. Ou, como dizia Walt Whitman em linguagem mais eufemística, "era capaz de resistir à tentação de ver uma coisa como ela deveria ser, ao invés do que ela é".
E também reconhecia um meshuganeb quando se deparava com um deles.
— Sim, Meritíssimo — disse Brice Mack, pondo-se de pé para responder ao juiz. — Estamos prontos para as alegações iniciais.
Janice percebeu uma contração palpável por parte de Bill, uma preparação interior contra o golpe que estava por vir, quando Brice Mack se aproximou lentamente dos jurados, com um sorriso tranquilo, a mão estendida num gesto de confiança.
— Senhoras e senhores jurados — começou ele, em tom um tanto formal e sofisticado —, o que lhes vou dizer agora levará algum tempo e exigirá a mais absoluta atenção, pois o que ouvirão é algo absolutamente inédito nos anais da jurisprudência anglo-saxônica.
Quando este julgamento terminar, quando as alegações finais da acusação e da defesa forem pronunciadas nesta sala e registradas nos autos, quando os senhores voltarem de suas deliberações e apresentarem um veredicto que, tenho absoluta certeza, será justo e bem pensado — nesse momento, senhoras e senhores jurados, nós, este tribunal e o mundo inteiro, todos enfim, saberão que aquilo que ocorreu nesta sala da Sétima Vara Criminal será imortalizado nos livros de história e nos registros que acompanham meticulosamente os passos mais importantes dados pela humanidade neste planeta.
Interrompeu-se, sustentando cuidadosamente uma pausa dramática, antes de acrescentar: — O que ouvirão aqui talvez possa chocá-los. Talvez possa provocar uma reação inicial de incredulidade. Talvez até mesmo faça surgir sorrisos de escárnio. Prometo-lhes, porém, senhoras e senhores jurados, que antes do término deste julgamento o choque dará lugar à compreensão, a incredulidade dará lugar à aceitação total, os sorrisos de escárnio se transformarão em sorrisos de pura alegria e esperança, pois não apenas teremos acumulado muitas provas e depoimentos suficientes para convencê-los a liberar um ser humano e livrá-lo da terrível pena de reclusão, como também essas provas e depoimentos servirão para libertar cada um dos senhores que agora estão diante de mim, da mais terrível e temível punição que pode recair sobre o homem, a herança que todos nós recebemos desde o nascimento e que paira sobre nós, como um manto ameaçador, todos os dias e noites de nossa vida: a certeza absoluta e inevitável de nossa transitoriedade, de nosso desaparecimento.
Brice Mack fez outra pausa para deixar que o peso de sua mensagem se fizesse sentir, antes de prosseguir: — Antes de continuar, porém, se me permitirem uma rápida digressão, eu gostaria de lhes dizer — uma vez que Mr. Velie deixou de fazê-lo — o que a lei deste Estado define precisamente como rapto doloso...
Scott Velie se erguera durante as declarações de Brice Mack e aguardava pacientemente, de braços cruzados, o momento exato de protestar — que era exatamente aquele.
— Protesto, Meritíssimo! O meu colega da defesa sabe que somente o juiz tem autoridade para instruir o júri em matéria de direito e que a acusação e a defesa não podem assumir tal função; que, além disso, não é admissível fazer tais declarações durante as alegações iniciais...
— Meritíssimo! — interrompeu Brice Mack, com igual veemência. — A defesa alega que a acusação de rapto doloso é inepta, inadequada e incabível em relação ao réu aqui presente; que, se fosse cabível ou imputável qualquer acusação no caso em questão — e a defesa está segura de que conseguiria provar a inépcia de qualquer outra acusação —, esta seria de uma infração culposa em grau muito menor, de custódia indébita...
O momento estava próximo. Janice tateou à procura da mão de Bill, sentindo-se tensa e úmida. A jornalista parecia repentinamente despertada, com os olhos fixos nos advogados.
Até mesmo o Juiz Langley se debruçara, numa atitude de expectativa.
— Mr. Mack — declarou o magistrado —, nesse caso, uma acusação de custódia indébita da menor implicaria a existência de um parentesco consanguíneo direto entre os litigantes. O senhor poderia apresentar provas disso?
— Sim, Meritíssimo. Através dos depoimentos de testemunhas peritas e com grande conhecimento do assunto, a defesa demonstrará cabalmente que existe a mais completa e conclusiva relação de parentesco entre o réu, Elliot Hoover, e a menor conhecida sob o nome de Ivy Templeton...
— Protesto, Meritíssimo! — interrompeu Velie. — É um procedimento completamente insólito numa alegação inicial.
Mais uma vez, o advogado de defesa está procurando discutir matéria de direito. Se a defesa considera erróneo o enquadramento da imputação feita ao réu, deveria ter tomado as medidas cabíveis antes do início do julgamento para que a mesma fosse retirada. Ademais, a acusação dispõe de documentos e provas substanciais para negar qualquer alegação de parentesco consanguíneo direto entre a vítima e o raptor.
— Muito bem — declarou secamente o Juiz Langley. Parece-me que os senhores estão muito mais informados que eu.
— Meritíssimo!
Ambos os advogados falaram ao mesmo tempo, mas a voz retumbante de Velie dominou a do adversário.
— Meritíssimo, a fim de evitar que o presente julgamento seja poluído por declarações absurdas e desprovidas de fundamento, a acusação solicita que ambas as partes sejam ouvidas em particular por Vossa Excelência.
O Juiz Langley, com a curiosidade espicaçada pela discussão, apressou-se em concordar.
— A sessão está suspensa. O júri deverá retirar-se até ser chamado de volta.
Janice ouviu Bill exalar um suspiro sibilante quando a tensão acumulada começou a relaxar. Voltando-se para ela, Bill exibiu um sorriso nervoso.
Acho que Velie ganhou o primeiro round — murmurou.
Janice respondeu com um sorriso animador. A mão de Bill apertou a sua, como a de uma criança prestes a entrar numa casa assombrada.
Por que não fui informado antes? — quis saber o Juiz Langley, obviamente irritado. — Não se falou em reencarnação em nossa conferência antes do julgamento. Por que o assunto não foi trazido ao meu conhecimento?
— Meritíssimo, o que importa neste caso são os fatos reais e concretos — declarou Velie em tom solene e ofendido. Pouco importa se Hoover acredita na reencarnação ou em que a Lua seja feita de queijo parmesão. O fato é que cometeu um crime ao sequestrar a filha de terceiros, tirando-a da casa dos pais e ocultando-a em seu próprio apartamento. Depois disso, interferiu com a ação da polícia. Independentemente dos motivos que tivesse para cometer tal crime, está sujeito a ser preso e a responder a processo perante um tribunal.
O Juiz Langley fixou um olhar frio sobre Brice Mack.
— Então, Mr. Mack, o que tem a dizer?
— É muito simples, Meritíssimo — replicou Mack, mantendo um tom discreto e respeitoso. — Acreditamos que a questão da reencarnação seja relevante e perfeitamente admissível neste caso.
— Com base em quê?
— Com base em proporcionar uma defesa inteiramente válida ao réu.
A voz de Langley teve a força de uma marreta.
— Quer dizer que pelo simples fato de seu cliente acreditar nessas tolices o senhor está disposto a transformar meu tribunal num circo de cavalinhos?
— Meritíssimo! — interpôs Brice Mack rapidamente. Por favor, Excelência, não é absolutamente nossa intenção macular, de qualquer forma, a dignidade deste tribunal. Todavia, meu cliente está sendo acusado de um dos mais graves crimes e tenho certeza de que Vossa Excelência lhe assegurará o direito constitucional de defender-se contra tal acusação.
— Nos termos da lei, Mr. Mack, seu cliente tem direito a uma defesa adequada e razoável. Nada mais ou nada menos que isso. Estou sendo bem claro?
— Sim, Excelência, perfeitamente claro. E acreditamos que, nas presentes circunstâncias, uma defesa baseada na reencarnação seja perfeitamente adequada e razoável.
— O senhor realizou pesquisas a respeito? — rosnou Langley. — Pode citar precedentes ou mencionar fontes legais que justifiquem essa afirmação?
— Não, Meritíssimo — replicou Brice Mack, com seu mais cativante ar juvenil. — Não encontramos precedentes legais que sirvam de base à nossa defesa.
O Juiz Langley ficou atónito.
— E o senhor deseja que eu instrua os jurados no sentido de absolverem seu cliente caso julguem que ele raptou a criança acreditando que se tratava de sua filha reencarnada no corpo de outra menina?
Olhou para Scott Velie com um leve sorriso e sacudiu a cabeça. Velie, afundado na poltrona, também sorriu. Brice Mack esperou que os dois acabassem de trocar sorrisos, antes de prosseguir: — O importante não é a crença de meu cliente na reencarnação, Meritíssimo. O importante é saber se a reencarnação existe. Creio que o júri, para declarar a culpa de meu cliente, deve também declarar que a reencarnação não existe e que é impossível que Ivy Templeton seja filha de Elliot Hoover. Temos peritos que deporão em contrário e, a despeito da preferência ou predisposição de Vossa Excelência para acreditar ou não no fato, nós julgamos que o tribunal tem o dever de permitir que a defesa apresente essas provas.
Acreditamos ser justo, legal e competente que nos seja dada uma oportunidade de convencer o júri da veracidade de tais provas, pois, se conseguirmos esse objetivo, a acusação perderá a razão de ser.
Durante a declaração feita em voz baixa e bem articulada pelo advogado de defesa, o Juiz Langley sentiu-se afundar no couro macio da poltrona em virtude de um enorme peso que lhe oprimia o peito. Naquela manhã, ao acordar, tivera um pressentimento de que seria obrigado a enfrentar um daqueles dias.. Passara uma noite inquieta e mal dormida. Agora, olhando para o rosto liso, inteligente e predatório do jovem advogado, o juiz sentiu-se muito, muito velho.
Scott Velie percebeu imediatamente a momentânea diminuição da atenção, a perda de intensidade no olhar do juiz, e compreendeu que chegara o momento de agir. Era evidente que o alcance intelectual e a acuidade jurídica do velho hipócrita estavam sendo submetidos a um teste violento.
— Meritíssimo — disse o promotor, tirando do bolso um documento e passando ao juiz por cima da mesa. — Eis uma cópia xerográfica autenticada da certidão de nascimento de Ivy Templeton: a prova física de que Ivy é filha de William e Janice Templeton tendo sido gerada no útero de Mrs. Templeton.
Portanto, a menos que Mr. Hoover tenha gerado a menina através de relações sexuais com Mrs. Templeton — o que ele não alega ter feito —, não existe maneira, em minha opinião, de que ele possa provar que Ivy é sua filha. Mesmo se — e julgo que o "se" é uma grande incógnita —, mesmo se, repito, for possível provar que a reencarnação é uma tese viável, isso apenas demonstraria que Ivy pode ter sido filha de Mr. Hoover em tempos idos, mas não o é atualmente. Este documento, que Vossa Excelência tem em mãos, é o único instrumento legal que atesta a paternidade da criança e não pode ser alterado por qualquer alegação ou crença apresentada por Hoover.
O semblante do juiz reassumiu um certo grau de decisão quando leu atentamente a certidão. Tratava-se de algo palpável, tangível, de validade jurídica.
Brandindo a certidão diante de Brice Mack como uma arma, perguntou: — Então, senhor advogado, será que seu cliente é capaz de apresentar ao tribunal um documento como este, provando que tem o direito de reclamar a criança como sua filha?
Brice Mack baixou o olhar e um sorriso tolerante lhe surgiu nos lábios. Um sorriso que o Juiz Langley não aprovava. Um sorriso com um toque de arrogância — a arrogância inteligente e astuciosa do menino judeu seguro de si mesmo e necessitado de afirmação pessoal.
— Meritíssimo — disse ele, continuando a sorrir —, não existe a menor dúvida, nem a defesa afirma qualquer coisa em contrario, de que a menina nasceu no local e na data especificados na certidão, tendo como pais as pessoas citadas no documento. Entretanto, pelo simples fato de ter uma criança saído de um determinado útero, não se pode afirmar, ipso jacto, que ela pertença necessariamente à pessoa que a deu à luz.
O juiz Langley, prestes a replicar, foi interrompido quando Brice Mack se ergueu e bateu na mesa com uma moeda de meio dólar, provocando um ruído peculiar.
Meritíssimo, se Vossa Excelência engolisse esta moeda e após ela ter passado por seu organismo, tornasse a expeli-la por meios normais, poderia afirmar que ela necessariamente lhe pertencia?
Mais uma vez, a réplica do Juiz Langley foi interrompida por Brice Mack: Afirmo que o corpo de Janice Templeton pode ter sido apenas um repositório que serviu para transferir a filha de Elliot Hoover de uma vida passada para a vida presente.
Tanto Velie quanto o Juiz Langley esperaram que Brice Mack continuasse, pois ele dava a impressão de que pretendia fazê-lo, uma vez que permaneceu de pé. Todavia, tornou-se gradativamente evidente que ele terminara o que tinha a dizer e apenas aguardava a resposta do juiz.
Sente-se, Mr. Mack — disse o Juiz Langley, em tom gelado.
— Não estou acostumado a que falem em pé comigo no meu gabinete.
O leve sorriso jamais deixou o rosto de Brice Mack quando ele voltou lentamente à poltrona e se debruçou para diante numa atitude da mais completa atenção.
— Para começar, meu jovem — declarou o juiz —, se eu fosse obrigado a sentar num vaso sanitário e evacuar uma moeda de meio dólar, pode ter absoluta certeza de que ela seria mesmo de minha propriedade — ou passaria a ser.
Brice Mack juntou-se a Scott Velie numa risadinha, prestando homenagem ao excelente senso de humor de Sua Excelência.
— Em segundo lugar — prosseguiu o velho —, a defesa à qual o senhor se propõe, ou seja, a de provar a existência da reencarnação como meio de estabelecer a inocência do seu cliente, mesmo que consiga sucesso, não livrará seu constituinte da prisão, a menos que o senhor também consiga provar que a menina raptada é de fato a filha reencarnada do réu. Pelo que entendi, suas testemunhas não têm qualquer relação com o acusado ou com o crime que lhe é imputado.
Comparecerão ao tribunal apenas com o objetivo de expor e defender conceitos de natureza filosófica e religiosa, os quais, se me for permitido dizer, parecem mais adequados a um seminário que a uma corte de justiça. Em resumo, Mr. Mack, o senhor se propõe a apresentar uma tese de defesa que é altamente irregular, totalmente fora do comum e que me causa uma profunda inquietação.
Exatamente, Excelência.
Mais uma vez, o sorriso confiante.
— É forçoso reconhecer que a natureza deste caso é altamente irregular, totalmente fora do comum e, como expliquei aos jurados, trata-se de um caso sem precedentes nos anais da Jurisprudência anglo-saxônia, que será estudado, comentado, discutido e registrado na história e nos autos que tratam do advento do homem neste mundo.
Estava bajulando. O Juiz Langley percebia que o bastardo estava bajulando — segurando a cenoura diante de seu nariz, apelando para seus instintos mais básicos, a fim de colocá-lo na posição que desejava. Os malditos judeus eram capazes de tudo para conseguir o que queriam, refletiu Langley, azedo. Não obstante, o rapaz conseguira lavrar um tento; era impossível negar. O caso atrairia a atenção da imprensa. Para variar, o tribunal da Sétima Vara Criminal ficaria lotado de repórteres, cinegrafistas e homens da televisão. Ia ser uma festança. Nunca antes o Juiz Langley tivera um caso importante. A nata ia para Fuller, Kararian, Pletchkow, Tanner e outros. Ele só recebia as migalhas. Brigas de famílias. Viciados em tóxicos. A ralé. Bem, talvez tivesse chegado a hora de sair da sarjeta onde o tinham mantido durante tanto tempo e subir para a luz do sol. Isso implicaria baixar a guarda, arriscando-se a eventuais críticas e ao ridículo. Mas, que diabo! E daí? Quanto tempo ainda lhe restava, afinal? O coração lhe rugia no peito como um velho motor de lancha... Seria bom, para variar, ser alvo das atenções gerais. Ser procurado. Paparicado. Sim, seria muito bom, para variar.
— ... e eu afirmo, Meritíssimo, que se Vossa Excelência negar à defesa o direito de explicar publicamente o verdadeiro significado da reencarnação, uma crença que é compartilhada por milhões e milhões de pessoas espalhadas por este mundo inteiro, estará negando ao réu o direito constitucional de defender-se da única forma que lhe é possível. Ademais, a defesa está preparada para apresentar provas que confirmam a alegação do acusado de que a menina é sua filha reencarnada!
Scott Velie percebeu algo na expressão do juiz, um leve relaxamento dos músculos nos cantos dos lábios, um olhar vago, que fez soar o alarme em seu cérebro. Langley ia cair na esparrela, ia aceitar aquela baboseira! Diabo!
— Sinto muitíssimo — interpôs o promotor, sabendo, porém, que já era tarde demais. — Meritíssimo, isto é simplesmente incrível. Tal tipo de defesa é totalmente desconhecido nos tribunais do mundo ocidental. Admito que a reencarnação é reconhecida como verdadeira em uma parte do mundo, mas não na parte em que vivemos. Vossa Excelência tentará impor à nossa sociedade uma cultura alienígena? Não poderá fazê-lo, pois estará desafiando as leis que a nossa legislação, em sua sabedoria, estabeleceu para salvaguardar nossa sociedade!
O Juiz Langley umedeceu cuidadosamente os lábios antes de responder: — É possível que tenha toda a razão, Mr. Velie, e não estou afirmando que esteja enganado. Todavia, sinto que existe algum mérito na análise que Mr. Mack fez da situação. Uma vez que a acusação de rapto é uma imputação tão grave, não julgo que possa privar o réu de qualquer tipo de defesa que tenha escolhido, desde que esta lhe dê alguma possibilidade de se salvar.
Brice Mack permaneceu imóvel, mal ousando respirar, enquanto Scott Velie se erguia de um salto e, vermelho de raiva, encarava o velho juiz.
— Juiz Langley — disse o promotor, pronunciando o nome como se fosse uma imprecação. — Peço-lhe que reconsidere uma decisão para a qual não existe qualquer amparo legal.
Então, assumindo um
tom sutilmente ameaçador, acrescentou: — Talvez Vossa Excelência esteja abrindo uma caixa de Pandora e não consiga tornar a fechá-la!
— Aprecio muito sua preocupação, Mr. Velie — replicou secamente o Juiz Langley. — Não obstante, a menos que o senhor cite alguma autoridade jurídica que afirme a impossibilidade da reencarnação, não estou disposto a impedir que o réu tenha sua defesa cerceada e, portanto, autorizo ao advogado de defesa a apresentação das provas que alega ter, desde que estas estejam diretamente relacionadas com os fatos do caso em pauta.
Estava terminado.
Brice Mack vencera.
16
Quando o Juiz Langley voltou ao tribunal e reabriu a sessão, mais de três quartos da sala já estavam tomados por espectadores que aguardavam ansiosamente, numa atmosfera carregada de expectativa. De que maneira a notícia de que algo sensacional estava prestes a acontecer na Sétima Vara Criminal correra tão depressa e chegara a tantas pessoas era coisa que Janice simplesmente não conseguia entender. Até mesmo a fila de poltronas reservada à imprensa estava cheia de repórteres de jornal e de rádio, acomodados nos assentos, esperando calmamente o reinicio do julgamento com leves sorrisos de interesse.
O advogado de defesa, com uma expressão levemente confusa, começou: — Bem, onde é mesmo que estávamos?
A pergunta, feita em tom suave e tranquilo, deixava nitidamente implícita a continuação: "...antes de sermos tão indelicadamente interrompidos?"
O tom e os termos da indagação indicavam claramente aos jurados que ele vencera o debate nos aposentos do juiz e, agora, poderia prosseguir livremente sua luta em prol da justiça.
Janice notou que alguns jurados sorriam disfarçadamente e vários deles lançavam olhares de esguelha a Scott Velie, que permanecia imóvel na cadeira, com as costas voltadas para o advogado de defesa. Percebeu também que Bill se afundava cada vez mais na poltrona ao sentir que Velie fora derrotado.
— Vejamos... — prosseguiu Brice Mack, como se procurasse entre as teias de aranha que lhe toldavam a mente o ponto de partida adequado, embora estivesse perfeitamente ciente de onde fora interrompido e soubesse precisamente a ordem e entonação de cada palavra que iria pronunciar a seguir — que tinham sido escritas, reescritas, ensaiadas e pronunciadas por horas a fio em cada noite do mês anterior, diante do espelho rachado do pequeno apartamento infestado de baratas onde residia.
— Oh, sim... Eu estava dizendo que provaremos a existência dos laços familiares mais fortes e conclusivos possíveis entre o acusado, Elliot Hoover, e a menina conhecida sob o nome de Ivy Templeton. Um parentesco, senhores jurados, baseado não nas leis humanas, que são imperfeitas e mutáveis, mas nas leis perfeitas e imutáveis de um Deus e de uma religião reconhecidos por mais de um bilhão de pessoas que vivem atualmente em nosso planeta; leis que são acreditadas, professadas, obedecidas e utilizadas na vida cotidiana dessas pessoas com a mesma fé e convicção com que nós, neste tribunal, com que os senhores, membros do júri, professam sua própria religião.
Brice Mack fez uma pausa. Um leve ruído de movimentos nas poltronas se fez ouvir. Os jurados trocaram olhares. Os repórteres permaneciam com os lápis a postos sobre os cadernos de notas.
— No decurso dos depoimentos, os senhores ouvirão homens eruditos explicar essa religião, essa crença, essa fé.
Tomarão conhecimento de seus preceitos, de sua beleza, de seus dogmas, de suas condições e de suas recompensas.
Virando-se para Hoover, Bríce Mack apontou um dedo para ele, num gesto suave.
— Ouvirão a história daquele homem, relatada de viva voz — uma história que os abalará, que os encherá de tristeza, mas que, no final, lhes trará encanto e ânimo. Saberão a respeito de sua filha — sua única filha —, Audrey Rose, com cinco anos de idade, e de sua morte trágica e horrível, juntamente com a mãe, no holocausto de um desastre automobilístico. Sentirão as agruras da perda sofrida por Elliot Hoover, a desesperada solidão de sua vida após a terrível tragédia; ouvirão de que maneira, no momento mais negro de sua vida, ele recebeu uma mensagem, vinda de além-túmulo, na verdade uma mensagem transmitida através de um dos mais eminentes e honrados expoentes dos fenómenos psíquicos deste país, o falecido Erik Lloyd. Uma mensagem que lançou esse americano honesto, trabalhador, responsável, um homem como nós — e Brice Mack colocou toda ênfase na palavra, olhando diretamente para Mr. Fitzgerald —, numa jornada a terras longínquas e exóticas, com o objetívo de corroborar sua autenticidade, livrar-se de qualquer dúvida e ceticismo, antes de se permitir acreditar no seu conteúdo. Uma jornada de sete anos, durante os quais ele não apenas abraçou uma fé e uma religião que antes não conhecia, como também adotou um povo, convivendo com ele, compartilhando de sua vida, de suas alegrias, de suas esperanças, de seus infortúnios — tudo isso para verificar a validade e veracidade da estranha e maravilhosa mensagem que lhe foi transmitida por Erik Lloyd. Uma mensagem que, se fosse falsa, poderia causar graves danos, ocasionar prejuízos irreparáveis nas vidas de três seres humanos inocentes, mas uma mensagem que, se verdadeira, poderia realmente fornecer a resposta para um dos mistérios mais antigos e inexplicáveis da humanidade; que lançaria a luz sobre o próprio significado e natureza da vida... e da morte.
"Uma mensagem que dizia... "
O silêncio sepulcral na sala do tribunal proporcionou a atmosfera perfeita para as palavras seguintes de Brice Mack, que explodiram no ambiente com a força e a fúria de um trovão: — ELA ESTÁ VIVA! — gritou ele, dando as costas ao júri para encarar os espectadores, a mão direita apontando dramaticamente para o céu. — SUA FILHA ESTÁ VIVA! AUDREY ROSE ESTÁ VIVA!
Janice sentiu a sala inteira estremecer ao som das palavras de Brice Mack. Até mesmo o Juiz Langley teve um sobressalto.
Apenas Bill, afundado na poltrona, os olhos fechados, queixo enfiado no peito, afogado em álcool e em desespero, parecia ignorar tudo.
— Está viva! — declarou Brice Mack, com a voz embargada, semelhante à exclamação de uma criança espantada. Audrey Rose voltou! Sua alma atravessou o vale das trevas e emergiu para a vida, onde ela agora reside em perfeita harmonia no corpo de uma criança — de uma menina que vive na cidade de Nova York e se chama Ivy.
Ouviu-se um suspiro geral, acompanhado de algumas risadinhas abafadas. Os semblantes dos jurados pareciam contraídos pelo esforço no sentido de manter um grau adequado de compostura naquelas circunstâncias. Foi uma batalha perdida para o jurado número 4, Mr. Potash, o contador, que sorria abertamente.
O Juiz Langley bateu o martelo, exigindo silêncio, mas não fez advertência em voz alta.
— Sim, pessoal — continuou Brice Mack, em tom menos histriónico. — Foi essa a mensagem que Elliot Hoover recebeu de Erik Lloyd. Dizia que sua filha estava viva. Que Audrey Rose reencarnara. E, através de investigações posteriores, Elliot Hoover descobriu que no dia 14 de agosto de 1964, exatamente às oito e vinte e sete da manhã, poucos minutos após o acidente automobilístico que tirou a vida de sua filha, esta renasceu num hospital de Nova York como filha de Mr. e Mrs. William Templeton, recebendo o nome de Ivy.
Janice ouviu a repórter na primeira fila rir baixinho, murmurando: — Ora, essa não...
Bill, afundado na poltrona ao lado de Janice, não fazia qualquer movimento ou produzia qualquer som. Parecia estar dormindo. Ou então — e Janice não eliminava a possibilidade — desmaiara de tanto beber no almoço.
Recuando alguns passos e fazendo um gesto que abrangia todos os presentes, Brice Mack implorou: — Por favor, senhoras e senhores, consultem seus corações e considerem bem as atitudes que devem tomar em relação ao que acabo de dizer. Palavras como "incrível", "inacreditável" e "impossível" têm um lugar destacado e de muita utilidade na vida cotidiana da espécie humana, mas — estou certo de que todos admitirão o que vou dizer — são desprovidas de qualquer pertinência nos assuntos divinos. Para Deus, tudo é possível. E no plano divino estão as implicações básicas do presente caso!
Pois estamos tratando da fé de um homem de sua crença e de seu profundo sentimento religioso. De seu envolvimento com um conceito religioso que só foi assumido após anos e anos de viagens e estudos, de prolongada e angustiante busca da verdade, até que a semente de uma firme convicção, de uma fé absoluta, pudesse lançar raízes e brotar em seu coração e sua mente.
Brice Mack recuara lentamente de perto do júri até uma posição paralela a Elliot Hoover, o qual estava ereto e rígido, rabiscando furiosamente no bloco de anotações. Janice notou que Scott Velie se voltara na poltrona e observava o adversário com o interesse e a curiosidade de um cientista que estudasse um inseto fincado na ponta de um alfinete. Até mesmo os repórteres tinham parado de fazer anotações e, transfixados, observavam o jovem advogado.
— Só então, senhoras e senhores, só após quase uma década de peregrinação por este mundo, Elliot Hoover se deu o privilégio de regressar a este país, a fim de baixar o pano sobre o último ato de sua longa e desesperada busca. Só então, firme em sua crença na veracidade da mensagem de Erik Lloyd, ousou aproximar-se das vidas dos autores da acusação e procurou apresentar-se a eles. E como se apresentou a eles? Como um pedinte? Não. Como um ladrão que tencionasse tomar o que não lhe pertencia? Jamais! Apresentou-se simplesmente como um homem decente e honrado, pedindo-lhes indulgência, compreensão e, talvez, até mesmo uma migalha de bondade.
Como me declarou literalmente, não desejando coisa alguma além daquilo que eles estivessem dispostos a lhe dar. Esperava escárnio e o recebeu. Esperava repulsa — e a recebeu. Esperava a negação absoluta, por parte deles, do direito garantido por Deus de visitar e encontrar-se com a menina Ivy — a encarnação terrena de sua filha Audrey Rose — e aceitou totalmente a chibatada da negativa, com dignidade e compreensão, dispondo-se a se afastar da casa deles, a sair de suas vidas e nunca mais voltar, quando... quando aconteceu algo que o deteve, senhoras e senhores. Algo tão extraordinário que obrigou Elliot Hoover a estacar — que o obrigou a reconsiderar sua firme decisão de fugir àquela situação intolerável. Um acontecimento que, repentinamente, emprestou força e significado a todos os anos de peregrinação, estudo e dedicação a que ele se entregara em sua incansável busca da verdade.
O advogado de defesa escolheu aquele momento crucial para aliviar a garganta seca, demorando-se cruelmente em cada etapa de encher o copo, medir a quantidade e sorver alguns goles de água.
— Esse acontecimento, senhoras e senhores, ocorreu exatamente na primeira noite em que Elliot Hoover visitou a família Templeton — a convite deles, aliás —, uma ocasião que, como se Deus atendesse às súplicas de Hoover, serviu de palco a um milagre. Sim: um milagre. Pois, naquela noite, pela primeira vez depois de dez anos, Elliot Hoover ouviu a voz de sua filha, Audrey Rose, chamar por ele num apelo desesperado: ?Papai, papai, me ajude, me ajude!"
— Agora, permitam-me ser perfeitamente claro. Não me refiro a uma voz que tenha sido produto da angústia de Elliot Hoover, uma voz imaginária ouvida apenas por ele, uma voz sem corpo... oh, não!... Foi uma voz ouvida por todos os presentes ao fato, uma voz real, verdadeira, pertencente à única pessoa que tinha o direito de transmitir o apelo de Audrey Rose a seu pai — a própria filha dos Templeton, Ivy!
Houve uma agitação perceptível na sala. Pigarros, trocas de olhares. Uma curiosidade nervosa se estampava nos semblantes dos repórteres, jurados e espectadores, como se todos procurassem confirmação do que acabavam de ouvir. Janíce viu Scott Velie se mexer na poltrona e julgou que ele fosse apresentar algum protesto. O promotor, porém, notando a incredulidade estampada nos rostos dos jurados, preferiu não protestar. Ao invés disso, exibiu um sorriso muito seguro de si, que, na interpretação de Janice, queria dizer: "Vá em frente, garoto; está indo muito bem!"
— Sim, senhoras e senhores — continuou Brice Mack, obstinadamente. — Ivy Templeton, presa de um terrível pesadelo e na presença de quatro testemunhas, clamou por Elliot Hoover. Seu clamor foi o brado de uma alma em tormento — a alma de Audrey Rose, que, queimada pelas chamas do incêndio que a consumiu, não conseguiu encontrar descanso, não conseguiu ter alívio do ruinoso horror até... até que, senhoras e senhores, esse homem, Elliot Hoover, seu pai, se aproximou dela e, com sua presença e amor paterno, conseguiu acalmar finalmente o espírito atormentado e afugentar o terror.
Virando-se para os jurados, o advogado de defesa sacudiu a cabeça em rápidos meneios negativos.
— Não, não descerei a maiores detalhes no momento.
Compreendam, porém, que ainda existe muita coisa de que precisam tomar conhecimento. E prometo-lhes que saberão de tudo antes de chegarmos ao final deste julgamento.
Lançando um olhar a Scott Velie, acrescentou: — O ilustre representante da promotoria apresentou contra o acusado uma denúncia de rapto premeditado, com fundamentos um tanto quanto duvidosos. Antes de chegarmos ao final do julgamento, apresentaremos provas que rejeitarão totalmente tal imputação. Demonstraremos que Elliot Hoover, muito ao contrário de se intrometer na vida dos Templeton como um criminoso mal-intencionado, com desígnios maléficos e inconfessáveis, foi, na verdade, um benfeitor, um homem cheio de compaixão e preocupação, a única pessoa capaz de aliviar os terríveis e devastadores tormentos que afligiam a filha deles, Ivy, através da alma de sua própria filha, Audrey Rose. Demonstraremos, além de qualquer sombra de dúvida, que Elliot Hoover não visitou os Templeton naquela noite fatídica com a intenção de atacar a filha deles, mas para colocar à sua disposição seus serviços singulares e especiais, na esperança de aliviar os sofrimentos de uma menina inocente.
Num movimento repentino, virou-se para Janice, encarando-a com olhar duro e acusador.
Tomarão conhecimento da maneira pela qual, ao entrar no quarto do apartamento, ele encontrou a menina ferida, ensanguentada e amarrada — sim: AMARRADA à cama, como um animal. Compreenderão e acreditarão inteiramente no motivo pelo qual Elliot Hoover precisou levar Ivy Templeton para seu próprio apartamento — não para raptá-la ou sequestrá-la com objetivos ilícitos ou criminosos, mas para ajudála, salvá-la, acalmála, lavar-lhe os ferimentos, tratar e curar seu corpo dolorido e machucado, pacificar e acalmar sua alma inquieta e atormentada: a alma de Audrey Rose.
Muito calmo e seguro, tornou a encarar o júri.
Todos estavam atentos. Tinham a atenção presa em suas últimas palavras e aguardavam as seguintes. É claro que havia dúvida, incredulidade, nos semblantes do número 3 e do número 10. O número 4, Mr. Potash, estava sorrindo. Mas Mrs. Carbone escutava. E Harrison, e Fitzgerald, e Hall. Escutavam.
Estavam conquistados. Um belo resultado para dez minutos de trabalho...
— Estou certo de que os senhores manterão suas mentes abertas aos depoimentos dos peritos que serão chamados a este tribunal para estabelecer uma firme base sobre a qual apoiaremos nossa afirmação de que Elliot Hoover tinha todo o direito — o direito de um guardião — de retirar a menina de um ambiente carregado de violência e perigo, a fim de removê-la para lugar calmo e seguro. Estou igualmente certo de que, após o término dos depoimentos, os senhores pronunciarão um veredicto — um veredicto justo e honrado — , livrando Elliot Hoover de qualquer mácula de culpa com relação às acusações falsas e enganosas que lhe foram imputadas pela promotoria.
Finalmente, virando-se para o juiz, Brice Mack fez uma leve reverência, dizendo: — Muito obrigado, Meritíssimo.
O Juiz Langley se apressou em bater o martelo e declarar: — A sessão está suspensa até as nove horas de amanhã.
Mesmo após a saída do juiz, todos permaneceram calados e imóveis, até que, pouco a pouco, a realidade se fez sentir.
Então, o silêncio foi quebrado por uma tempestade de vozes agitadas, que encheram a sala de ondas tumultuosas.
Janice se ergueu, juntando-se ao êxodo em direção à porta.
Percebeu que os jurados sorriam ao serem conduzidos de volta à sua sala especial. Não havia sinal do juiz, mas Scott Velie se deixara ficar para trás e conversava, sorridente, com um jornalista. Avistando Janice, piscou para ela, lançando-lhe um sorriso encorajador.
Elliot Hoover e Brice Mack estavam em pé, trocando um aperto de mãos e sorrindo, satisfeitos, enquanto o guarda, também sorridente, aguardava o momento de levar o prisioneiro de volta à cela. Sorrisos e risadas pareciam dominar o ambiente naquele momento, forçando Janice a sentir-se contagiada pela alegria.
O caso da justiça contra Elliot Hoover tivera um início alegre e feliz.
Havia na portaria uma série de recados, quase todos para Bill e a maioria vindos do escritório; sua secretária ligara duas vezes, Don Goetz quatro vezes, Mr. Simmòns uma vez. E um repórter da Associated Press, chamado Hazard, ligara duas vezes. Havia também um recado de Carole para Janice: "Não queriam ir jantar, naquela noite, galeto com fettuccini casalingo? POR FAVOR!" Janice bem que gostaria de ir, mas sabia que Bill ia dizer não. Telefonaria mais tarde para Carole, agradecendo o convite.
Bill empurrou os recados para longe e fez uma ligação para o Monte Carmelo.
Janice pendurou os casacos e, depois, subiu a tempo de pegar a extensão e escutar:
— Por favor, Mr. Templeton, não se preocupe. Todas as irmãs e professoras foram alertadas no sentido de preservar a tranquilidade de sua filha. Pode confiar em nós.
— Muito obrigado, Irmã Verónica — disse Bill, com voz rouca, fazendo em seguida uma série de perguntas a respeito das atividades escolares, comportamento e estado de saúde de Ivy.
— Ela é uma menina adorável — afirmou a freira, entusiasmada. — Ótima aluna. Atenta, inteligente, apreciada pelas outras meninas. No momento, está jantando. Quer que eu peça para ela lhe telefonar após as preces vespertinas?
— Eu lhe ficaria muito grato, irmã.
A omelette à fines berbes sec que Janice preparou com salsa e outros temperos foi um desastre, uma vez que não havia em casa azeite nem manteiga. O resultado final, cozido num pouco de água, ficou mole, molhado e intragável.
Antes do telefonema de Ivy, às sete e quinze, receberam dois outros chamados, ambos para Bill. Don Goetz foi quem ligou primeiro, pouco depois que eles tinham desistido da omelete.
— Ei, rapaz, você está famoso — brincou Don, com uma mescla de espanto e divertimento na voz. — Apareceu na página seis do Post.
— Sim, eu já sei — mentiu Bill, com um riso semelhante ao de Don. — Uma loucura, não acha?
— Puxa! Isso é mesmo verdade?
— O quê?
— O que diz o jornal: "RAPTOR DECLARA: É MINHA FILHA REENCARNADA".
Bill sentiu um bolo no peito quando Don, ainda rindo, leu algumas frases escolhidas na reportagem: — "... famoso metafísico informou Hoover a respeito do paradeiro da filha reencarnada... o acusado ouviu os clamores da alma de sua filha saírem dos lábios da menina raptada... a defesa promete que testemunhas peritas no assunto confirmarão as alegações do réu..." Puxa vida, homem! exclamou Don, em voz alta e estridente. — Esse cara existe mesmo?
Não havia sinal de leviandade na voz de Pel Simmons quando este ligou alguns minutos mais tarde. Na verdade, o tom da conversa foi decididamente fúnebre. Bill colocou Pel a par dos detalhes essenciais do caso e Pel, evidentemente perturbado, expressou sua simpatia e apoio à família de Bill.
— Não se preocupe com as coisas no escritório — concluiu ele. — Don cuidará de suas contas.
Bill sentiu as primeiras e longínquas reverberações de um pressentimento de morte naquelas últimas palavras.
Ivy ligou logo depois que Pel desligou. Janice atendeu, ouvindo calada e com evidente preocupação o que Ivy tinha a dizer. Bill se aproximou.
— O que foi? — quis saber ele, temendo o pior. Janice cobriu o fone com a palma da mão.
— Ela está tossindo. Creio que pegou um resfriado.
— Oh — suspirou Bill, aliviado.
— Papai está aqui. Quer falar com você — disse Janice a Ivy, passando o telefone a Bill.
— Olá, Princesa. Que negócio é esse de resfriado?
— Não é nada, papai — respondeu Ivy, entre acessos de tosse. — Todas as meninas estão espirrando e tossindo.
— Está certo. Trate de agasalhar-se bem quando sair. E, se piorar, vá procurar a irmã da enfermaria.
— Já fui — respondeu calmamente Ivy. — Ela me deu um remédio muito gostoso para a tosse. Tem gosto de cereja, é claro.
Então, mudando de assunto: — Papai, você e mamãe virão aqui este fim de semana, não é?
— Experimente deter-nos — disse Bill, sorrindo.
— Você conhece Mina Dawson?
— Claro que conheço — aquela sua amiga muito bonita.
— Exatamente. Ela é ótima e eu estive pensando, papai.
Você sabe, a mamãe dela não virá neste fim de semana...
A voz de Ivy baixou para um sussurro: — Vai à Flórida entrar com uma ação de divórcio... Depois, em voz alta outra vez:
— Mina vai ficar terrivelmente sozinha e pensei em convidá-la para jantar conosco no Ciam Box, na noite de sábado.
Janice viu um sorriso satisfeito surgir no rosto de Bill.
— Será um prazer, Princesa. Diga a Mina que contamos com ela.
Conversaram por mais algum tempo. Então, Bill deixou Janice despedir-se, antes de tornar a pegar o telefone para uma palavra final: — E se alguma das meninas lhe disser alguma coisa, Princesa, alguma coisa que possa parecer estranha e esquisita, prometa-me que não dará ouvidos, prometa-me que vai mandá-las amolar outra pessoa, está bem?
— Estranha e esquisita, como?
— Oh... — Bill procurou uma resposta. — Como... seu pai ter duas cabeças e um rabo peludo... Coisas malucas desse tipo...
Ivy riu.
— A única menina aqui que diria coisas assim é Jill O'Connor, mas ela não é normal.
A voz de Ivy tornou a baixar para um sussurro: — O peito direito dela é duas vezes maior que o esquerdo.
Após desligar, Bill verificou se havia outros recados na portaria. Havia três: dois do repórter chamado Hazard e um de uma moça pertencente ao departamento de notícias de uma estação de rádio. Bill disse a Ernie que nem precisava enviar.
Mais tarde, após um banho prolongado e relaxante, Bill vestiu um roupão e foi juntar-se a Janice na sala de visitas.
Janice surpreendeu-se ao ver o marido ligar o aparelho de televisão. Bill fizera questão de evitar o noticiário das seis e meia, mas, agora, parecia ansioso para pegar o resumo das dez horas.
O assunto só veio à baila depois que todas as notícias importantes foram comentadas e após a exibição de seis comerciais. Só então, nos minutos finais do programa noticioso, as rugas de preocupação no rosto do locutor se relaxaram e os olhos escuros e pensativos exibiram um raro brilho bem-humorado e travesso quando ele passou à parte mais agradável dos acontecimentos daquele dia.
— Reflexos do Exorcista no tribunal — anunciou, forçando um sorriso. — A sala da Sétima Vara Criminal, do Juiz Harmon T. Langley, serviu hoje de palco a acontecimentos estranhos e inusitados, quando o advogado de defesa Brice Mack invocou uma voz de além-túmulo como circunstância atenuante, ao fazer as alegações iniciais em favor do réu Elliot Hoover, acusado de haver raptado a menina Ivy Templeton, de dez anos de idade.
Parece — ou, pelo menos, é o que consta aqui no meu script — que a menina raptada não era desconhecida para Mr. Hoover, pois este já compartilhara de sua companhia em uma outra vida anterior — como sua filha, Audrey Rose, falecida há dez anos. O misterioso caso de ocultismo promete outros acontecimentos espetaculares nas próximas semanas, durante as quais o caldeirão de bruxo do Juiz Langley continuará a ferver, enquanto Mr. Mack lutará de modo infatigável para livrar seu constituinte da prisão, baseando-se na tese muito razoável da reencarnação...
Nesse ponto, o locutor, apanhado obviamente de surpresa pela poesia maluca que o redator incluíra no script, soltou uma sonora e incontrolável gargalhada, até que, finalmente, a direção do programa cortou a cena e colocou no ar mais uma mensagem comercial.
Tão logo o locutor começara a rir, Janice o acompanhara, sentindo-se satisfeita ao perceber que Bill fazia o mesmo. Suas risadas se intensificaram juntamente com as do locutor e, mesmo depois que este foi ignominiosamente retirado do ar, o casal continuou a rir até chorar e sentir a garganta seca. Então, exaustos, afundaram-se no sofá, atirando-se nos braços um do outro, parando paulatinamente de rir e enxugando-se mutuamente as lágrimas de riso. Ambos tinham consciência de que se tratava do primeiro contato genuíno que tinham há várias semanas e nenhum dos dois desejava estragar aquele momento.
— Oh, Bill — suspirou Janice, rouca, aconchegando-se ao marido.
A boca de Bill cheirava a menta e sua pele a sabonete odores afrodisíacos para Janice. Soltando o cinto do roupão dele, Janice começou a explorar e acariciar com a mão o corpo que tanto amava. com um profundo suspiro, Bill acomodou-se nas almofadas, permitindo que os toques carinhosos, primeiro das mãos e depois dos lábios da esposa, agissem de modo mágico e maravilhoso para restaurar seu espírito abalado e dolorido. A certa altura, Bill ergueu a cabeça para dizer num gemido: — Vamos fazer juntos...
Ao que Janice respondeu: — Depois...
E tornou a inclinar-se, ávida, para concluir o ritual de obediência e purificação...
17
Como já era previsto e temido, o corredor que dava acesso à sala do tribunal estava transformado num emaranhado de fios, cabos elétricos e gente. Refletores montados aos grupos em cavaletes estavam aninhados em nichos fora do caminho normal de passagem, iluminando fortemente a figura sorridente de Brice Mack, que estava rodeado por uma multidão de repórteres de todos os meios de comunicação de massa.
Saindo do elevador, Bill e Janice esgueiraram-se sorrateiramente ao longo da periferia do grupo de jornalistas, conseguindo chegar à porta da sala do tribunal sem serem reconhecidos.
Ao contrário das manhãs anteriores, a sala do tribunal estava lotada de espectadores curiosos e excitados. Muitos deles usavam turbantes e exibiam largos sorrisos nos rostos muito morenos. Os repórteres, entre eles jornalistas de outros Estados, enchiam a fila de poltronas reservadas à imprensa.
Ao atravessarem a sala em direção a seus lugares, Bill e Janice perceberam um súbito silêncio, seguido de murmúrios de reconhecimento. Até mesmo os jornalistas que ocupavam a primeira fila interromperam o que estavam fazendo e se viraram para observar o casal sentar-se. O homem diretamente à frente de Janice voltou-se totalmente para encará-la e exibiu um sorriso. Só então Janice se deu conta de que ele não era um repórter normal, mas um desenhista enviado especialmente para ilustrar vários aspectos do julgamento. O bloco de desenho continha, naquele momento, uma ilustração notavelmente bem feita de Elliot Hoover sentado no banco dos réus, rabiscando em seu bloco amarelo. O desenhista captara com perfeição a expressão de virtuosa paciência no olhar do acusado.
Janice espiou por cima das fileiras de cabeças em direção ao local onde Hoover se encontrava, e arrependeu-se imediatamente de tê-lo feito, pois ele estava olhando díretamente para ela. Pior ainda, sentiu-se incapaz de desviar os olhos do olhar dele, que a fixava com a intensidade de uma ordem, impelindo-a a obedecer, a prestar atenção, a ouvir, e, afinal, sentindo que Janice cedia, suavizando-se paulatinamente, como se procurasse perdão, compreensão, expressando tristeza por tudo o que acontecera e ainda estava por acontecer.
Libertada, finalmente, graças à chegada do Juiz Langley ao tribunal, Janice sentiu-se atordoada ao se pôr de pé em obediência à ordem do meirinho. Seu coração pulsava fortemente, dominado por uma emoção que ela não sabia definir.
Iniciou-se, enfim, a acusação contra Elliot Hoover, com o desfile de testemunhas chamadas pela promotoria, as quais, após repetirem as palavras do meirinho, jurando dizer "a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade", acrescentavam seus depoimentos à intrincada teia de provas que Scott Velie tecera contra o réu.
Nos quatro dias seguintes, doze pessoas, algumas das quais totalmente desconhecidas para Bill e Janice, ocupariam o banco das testemunhas para dizer o que sabiam, em primeira mão, a respeito do acusado e de suas ações nas proximidades da escola onde Ivy estudara e do apartamento onde residiam os Templeton.
Três mulheres, uma delas um exemplo típico de avó à moda antiga, as quais Janice reconheceu vagamente como componentes do grupo que esperava todos os dias à saída da escola, sucederam-se rapidamente na ordem das testemunhas de Velie. Cada uma delas relatou aproximadamente a mesma história de haver reparado num homem de bigodes e costeletas pretas que rondava os degraus da escola todas as manhãs, na hora da entrada das crianças, e todas as tardes, na hora da saída. Nenhuma delas, porém, conseguiu identificar o homem como sendo o acusado.
As duas testemunhas seguintes também não fizeram a identificação, ao contrário de Ernesto Pucci e Dominick D‘Alessandro, ambos parecendo decididamente pouco à vontade e inquietos sem seus uniformes bordados, que tomaram assento no banco das testemunhas e afirmaram que Elliot Hoover entrara pelo menos em quatro ocasiões no saguão do prédio onde residiam os pais de Ivy, com a intenção expressa de "visitar os Templeton".
O senhor poderia descrever a conduta do acusado nessas ocasiões? — perguntou Velie a Dominick.
— Conduta?
— Como se comportou ele? Parecia perturbado, nervoso?
Oh, sim... Especialmente quando não o deixavam subir.
— Muito bem, Mr. D‘Alessandro — prosseguiu Velie. — Falemos agora da primeira vez que o senhor viu o acusado.
Descreva o que aconteceu.
Bem, da primeira vez que ele apareceu, estava legal. Quero dizer, estava calmo, porque o deixaram subir.
— E nas outras vezes?
— Na minha opinião, ficou decididamente aborrecido por não poder subir.
— O senhor viu o acusado na manhã do dia 12 de novembro?
— Vi.
— Como lhe pareceu o acusado naquela ocasião?
— Parecia muito feliz, de novo, porque sublocara um apartamento no prédio e agora podia subir quando quisesse.
Quero dizer, não podemos impedir que os inquilinos utilizem os elevadores.
Ouviram-se algumas risadinhas e o juiz bateu o martelo.
Scott Velie aproveitou a interrupção para ir à mesa e consultar algumas anotações.
— Muito bem, então, Mr. D‘Alessandro... — o tom de Velie indicava que iam chegar ao ponto crucial. — Na noite de 13 de novembro, data do suposto rapto, o senhor quer fazer o favor de dizer ao júri o que viu?
Dominick meneou a cabeça e mergulhou numa narrativa detalhada e obviamente ensaiada de suas ações e observações.
Foi uma descrição concisa e bem feita dos acontecimentos daquela noite, pronunciada com fervor e talento dramático, refletiu Janice, sentindo orgulho por Dominick.
Quando Scott Velie cedeu a testemunha à defesa, Brice Mack teve uma curta série de perguntas a fazer.
— Procure lembrar-se, Mr. D‘Alessandro, e pode pensar com toda a calma, mas também não houve uma outra ocasião, entre a primeira e a última, na qual Mr. Hoover também estava satisfeito? Ou, pelo menos, não estava aborrecido?
Dominick refletiu sobre a pergunta durante longo tempo, antes de responder: — Houve uma outra ocasião, entre a primeira e a última, em que ele subiu. Mr. Templeton estava viajando a negócios e Mrs. Templeton deixou-o subir.
— Exato. E ele não ficou satisfeito, nessa ocasião?
— Não sei dizer.
Algumas risadinhas na sala foram controladas pelo martelo do juiz.
— O senhor disse — não disse? — que Mr. Hoover ficava decididamente aborrecido por não subir.
— Exatamente.
— Muito bem. Quando Mrs. Templeton permitiu que ele subisse, o acusado pareceu ficar satisfeito?
— Sim. Creio que sim.
— Isso é tudo.
Bill sentiu Janice encolher-se à menção de seu nome e viu a disfarçada piscadela de encorajamento que Velie lançou a ela antes de dispensar a testemunha. Sabiam que a defesa confiava fortemente no depoimento de Janice a respeito da noite em que convidara Hoover a subir até o apartamento e estavam preparados para "cuidar" do assunto. Não obstante, apesar de toda a confiança e afirmações de Scott Velie sobre sua capacidade de "cuidar" de tudo, Janice temia o momento em que seria chamada ao banco das testemunhas para responder a perguntas sobre aquela noite.
O ritual jurídico prosseguiu, lento e implacável. Dia após dia, itens irrefutáveis chamados "fatos" foram extraídos das testemunhas e apresentados aos jurados, a fim de auxiliá-los na tarefa de pronunciar um veredicto justo e acima de qualquer sombra de dúvida.
Martelando incansavelmente, o ágil e resoluto representante da promotoria chamou Carole Federico para depor a respeito dos dois inquietantes telefonemas de Hoover, que ela atendera na ausência de Janice, e da censura salgada e até certo ponto ofensiva que ela fizera ao procedimento do acusado, que arrancou risos de todos os presentes ao tribunal, inclusive do juiz.
Os dois policiais que efetuaram a prisão do acusado foram chamados a seguir. Depois, foi a vez dos vizinhos dos Templeton que tinham assistido à agressão perpetrada por Hoover contra Bill, no corredor do prédio, naquela noite, dois meses atrás; todos eles, sob juramento, apresentaram suas versões dos fatos, que foram devidamente registradas nos autos do julgamento e nas mentes dos jurados, juntamente com o resto dos "fatos".
Brice Mack teve poucos protestos a apresentar e ainda menos perguntas a fazer às testemunhas, dispensando todas elas à exceção de uma, sem se erguer da poltrona. Do guarda Noonan, solicitou a confirmação do fato de que Elliot Hoover abrira a porta, embora após alguma hesitação, atendendo, afinal, ao pedido do policial.
— Não foi um pedido, senhor — corrigiu severamente Noonan. — Foi uma ordem. E ele só obedeceu depois que ameaçamos mandar chamar o esquadrão de choque.
— Todavia, ele abriu voluntariamente a porta, não foi?
— Sim, senhor — replicou secamente Noonan. — Nós o convencemos a abrir a porta.
Pálida, com uma expressão de medo no olhar, Janice observou num estado de suspense os acontecimentos que se desenrolaram na sala do tribunal durante aqueles quatro primeiros dias.
Entretanto, na sexta-feira, antes da interrupção para o fim de semana, ocorreu algo que arrancou Janice de seu limbo voluntário.
O fato se deu após o almoço, quando tinham voltado ao tribunal e aguardavam a reabertura da sessão. Bill estava conversando com Scott Velie, junto à balaustrada que separava os espectadores do recinto do tribunal propriamente dito. A testemunha chamada de manhã fora o Dr. Kaplan e houvera controvérsias a respeito da ética de algumas das perguntas feitas por Brice Mack durante o interrogatório — e que continuaria a fazer, pois o Dr. Kaplan ainda não fora dispensado. O advogado de defesa procurara descobrir o motivo pelo qual o Dr. Kaplan fora chamado na noite em questão e qual a natureza da doença de Ivy. Velie apresentara um protesto, alegando que as perguntas eram impróprias, que ultrapassavam os limites e objetivos do interrogatório direto, e que violavam a ética médica e o direito de segredo entre médico e paciente.
— O Dr. Kaplan não pode depor a respeito do tratamento que aplicou à menina, e nem mesmo sobre o motivo pelo qual foi chamado para tratá-la.
O Juiz Langley mantivera o protesto. Em consequência Brice Mack pedira permissão para arrolar o Dr. Kaplan como testemunha da defesa e, além disso, solicitou autorização do juiz para tomar o depoimento da testemunha fora da ordem normal uma vez que suas perguntas estavam realmente fora dos limites do interrogatório direto e eram relativas aos interesses de defesa do acusado. Após refletir durante algum tempo, com evidente hesitação, o Juiz Langley instruiu o Dr. Kaplan no sentido de não se afastar do tribunal, mas declarou que estudaria a solicitação da defesa, quanto a interrogar a testemunha "fora da ordem normal", durante o recesso para o almoço.
Agora, voltando do almoço, Bill e Scott Velie planejavam uma estratégia para cercear as tentativas do advogado da defesa no sentido de extrair do Dr. Kaplan informações relativas aos pesadelos de Ivy, caso o juiz concordasse com a solicitação de Brice Mack.
Poucos minutos após Janice sentar-se e observar distraidamente o desenhista dar os toques finais a uma ilustração de corpo inteiro de Scott Velie apresentando um protesto ao juiz, um jornalista caminhou ao longo das poltronas reservadas à imprensa e, tapando com o corpo a visão de Bill, enfiou um pedaço de papel na mão de Janice. Antes que esta pudesse reagir ou mesmo erguer os olhos, o homem dera meia-volta e se afastara de volta à sua poltrona na primeira fila, logo atrás da mesa do advogado de defesa.
Janice levou alguns minutos para tomar coragem suficiente e examinar o pedaço de papel. Afinal, olhou disfarçadamente, às escondidas. O papel, dobrado, fora arrancado de um bloco de folhas amarelas. Janice pressentiu que fora enviado por Hoover, e tinha razão. Não obstante, ao desdobrá-lo, ficou surpresa por encontrar, ao invés da caligrafia que já conhecia, apenas duas linhas escritas em grandes letras de forma, com pontos de exclamação enfatizando a urgência da mensagem: "TEMO PELA MENINA!! ELA ESTÁ BEM?? POR FAVOR, POR FAVOR, INFORME A RESPEITO.!!! E.H."
Lacónico, conciso, terrível — como um telegrama do Ministério da Guerra. Janice sentiu um arrepio, um estremecimento que lhe percorreu o corpo inteiro. Amarrotou o papel, fazendo uma bola amassada, e largou-o disfarçadamente no chão.
Sub-repticiamente, com o coração aos saltos, Janice arriscou um olhar na direção de Hoover e viu que ele a fitava através da sala. Sentiu-se irremediavelmente presa àqueles olhos que exigiam, imploravam angustiadamente uma resposta à indagação escrita no papel amarelo.
Naquele instante, o Juiz Langley achou por bem entrar na sala, obrigando todos a se erguerem. Os olhares de Janice e Hoover continuaram pregados durante parte das palavras habituais do oficial de justiça, até que ela, temendo o retorno iminente de Bill, permitiu-se a imitação de um sorriso e, com um leve aceno de cabeça, confirmou o bem-estar de Ivy. Hoover suspirou visivelmente, relaxando-se. O temor e preocupação estampados em seu rosto deram lugar a um sorriso expressando tal gratidão e carinho que Janice se viu obrigada a desviar o rosto, a fim de não demonstrar uma emoção da qual poderia arrepender-se mais tarde.
A voz do Juiz Langley anunciando sua decisão a respeito da moção apresentada por Brice Mack constituiu um fundo sonoro ininteligível para os pensamentos de Janice, que continuavam focalizados no conteúdo do bilhete de Hoover. Algum pressentimento sombrio provocara aquela súbita apreensão por parte dele; disso, Janice estava absolutamente segura. Muito já acontecera em suas vidas para que ela começasse a duvidar dele naquele momento. Se alguma apreensão instintiva em relação à segurança de Ivy chegara até Hoover por algum meio telepático, Janice sentia-se na obrigação de acreditar nele e tomar providências a respeito. Seu primeiro temor foi de que os pesadelos tivessem voltado, de que Audrey Rose tivesse, mais uma vez, conseguido insinuar-se no subconsciente de Ivy e estivesse clamando pelo pai, que se encontrava em um tribunal a cerca de cinquenta quilómetros de distância. E que ele tivesse recebido o apelo da filha. De qualquer forma, ela precisava telefonar para Monte Carmelo e falar com Ivy. Imediatamente!
Levantar-se e sair da sala durante o solene pronunciamento do juiz certamente chamaria a atenção geral sobre ela, acarretando talvez até mesmo a irritação do magistrado — mas não havia outro remédio. Precisava chegar a um telefone.
Esgueirando-se da poltrona, segredou a Bill que não se sentia bem e se encaminhou para o corredor. A voz do Juiz Langley hesitou em meio a uma frase, quando um leve sussurro, como um longínquo zumbido de cigarras, acompanhou o progresso de Janice em direção à porta. Uma leve batida do martelo advertiu todos os presentes quanto à indevida interrupção.
Janice encontrou os telefones públicos na extremidade de um comprido corredor, entre as portas dos reservados para homens e para senhoras. Sentiu-se feliz por haver decorado o número do telefone da escola e por manter na bolsa uma reserva de moedas para eventualidades como aquela. Ainda assim, levou quase cinco minutos para conseguir completar a ligação. A voz de Ivy soou no aparelho: — Mamãe! Que bom! Quais são as novidades?
Graças a Deus! Era uma voz alegre, exuberante, saudável!
— Nada importante, querida. Só saudades — disse Janice, com um suspiro de alívio. — Como vão as coisas?
— Tudo ótimo!
— Tem dormido bem?
— Claro. Só não tenho dormido o suficiente. Acordamos às seis, todos os dias. Por falar nisso, adivinhe o que você interrompeu.
— O quê? — perguntou Janice, tentando manter a voz calma.
— A aula de álgebra — disse Ivy, desgostosa. — A Irmã Margaret já ia me chamar. Pela cara que ela fez, pude adivinhar que...
Enquanto Ivy tagarelava, Janice ouvia com o sorriso atento e concentrado de uma mãe que compartilhasse de uma feliz intimidade com a filha, mas, na verdade, mal escutava o que a menina dizia. Seus pensamentos se ocupavam com outras áreas de preocupação. com a publicidade que os jornais e televisão estavam dando ao julgamento, como seria possível que Ivy ainda não soubesse coisa alguma a respeito? É bem verdade que as freiras do Monte Carmelo tinham prometido fazer o possível para salvaguardar a menina do impacto, mas, por outro lado, o internato não era um claustro fechado que observasse a regra do silêncio. com certeza tinha aparelhos de televisão e a maior parte das alunas devia possuir rádios transistorizados. O fato de Ivy ainda não ter tomado conhecimento do que se passava era algo que Janice simplesmente não conseguia entender.
— ...e Sylvester tem mais de cinco metros de altura, de modo que mal chegamos aos ombros dele.
Ivy continuava a falar com entusiasmo e Janice voltou à realidade, prestando atenção ao que dizia a filha.
— Mina acha que ele chegará aos sete metros quando nós o coroarmos e isso baterá o recorde do colégio...
Sylvester era o boneco de neve do Monte Carmelo — uma tradição anual do colégio que, quando o clima permitia, se transformava num projeto de todas as alunas.
Eu estou feliz por saber que você parou de tossir, querida — interrompeu Janice.
— Ainda tusso um pouquinho de noite. Final de resfriado nasal, como disse a enfermeira. Nada de grave.
A voz de Ivy baixou para um sussurro: — Jill O‘Connor ficou menstruada. Pelo menos, foi o que ela contou a Mina. E tem apenas nove anos, mamãe. Você acredita?
Não, não acredito — respondeu Janice, rindo. — Jill O‘Connor está imaginando coisas.
— Ela é mentirosa — afirmou Ivy, com repentina veemência.
— Anda espalhando pela escola as coisas mais malucas a meu respeito.
— Que tipo de coisas? — quis saber Janice, apreensiva.
— Ela disse que eu sou duas pessoas. Que sou uma espécie de fenómeno. Que o rádio e a televisão não falam de outra coisa.
Janice hesitou, antes de dizer: — Isso é tolice.
— Eu sei — concordou Ivy, alegremente. — Além disso, foram proibidos rádios e televisões aqui no colégio. A Irmã Verónica Joseph proibiu na semana passada. As freiras passaram uma revista geral e recolheram todos os aparelhos.
Janice tornou a titubear.
— Papai e eu estamos loucos para chegar amanhã — disse ela, esforçando-se para falar num tom animado.
— Nós também. Mina e eu já escolhemos costeletas de porco com batatas fritas para o jantar. Quase nunca comemos carne aqui no colégio.
Não seria possível ocultar-lhe a verdade para sempre. Mais cedo ou mais tarde seriam obrigados a contar-lhe. E, se a opinião de Janice prevalecesse, seria dentro em breve.
Quanto mais cedo melhor.
Naquele fim de semana.
18
Mergulhada em sombria agitação, Janice adiou o retorno à sala do tribunal até o último instante possível, demorando-se no reservado de senhoras para lavar o rosto e refazer a maquilagem, até compreender que sua prolongada ausência poderia despertar a curiosidade de Bill. Tinha certeza de que, se não voltasse logo ao tribunal, Bill providenciaria para que uma policial feminina viesse à sua procura no banheiro.
Uma hora e vinte e cinco minutos após ter deixado sua poltrona, Janice voltou à grande porta dupla e, puxando a maçaneta de metal, sentiu a porta se abrir e o guarda aparecer.
O homem uniformizado, grisalho e sorridente, cumprimentou Janice com um aceno de cabeça e, delicadamente, segurou a porta para lhe dar passagem.
— Obrigada — murmurou Janice, entrando na sala.
O choque da cena ante seus olhos fê-la estacar, vacilante.
Ainda apoiada na maçaneta, ficou petrificada, fitando com dolorida surpresa Brice Mack, que metralhava Bill com perguntas. Seu marido, muito sério, estava sentado no banco das testemunhas. Janice não estava surpresa pelo fato de Bill ter sido chamado a depor; sentia-se abalada por ele ter sido chamado tão cedo. Estava certa de que haveria outras testemunhas intermediárias, como Russ e Harold Yates, antes que chegasse a sua vez e a de Bill. Entretanto, por algum motivo, Scott Velie chamara Bill antes da hora prevista, o que significava que ela, provavelmente, seria chamada logo em seguida. Muito provavelmente, naquele mesmo dia. Ainda era bem cedo. Janice sentiu uma onda de pânico. Não contava com ter que prestar depoimento naquele dia. Não estava preparada, ou, pelo menos, não se fortificara o suficiente para aquela provação. Esperava dispor de mais tempo — do fim de semana, pelo menos para pensar no assunto, para colocar seus pensamentos em ordem, para ensaiar seu papel. Não tinham o direito de arrastá-la para o banco das testemunhas daquela maneira, de uma hora para a outra.
Seu retorno à poltrona não foi especialmente notado pelos espectadores, pois todos os olhos e ouvidos estavam atentos a Bill sentado no banco das testemunhas.
Brice Mack, de pé, com os braços cruzados sobre o peito, disparava perguntas contra Bill, a poucos centímetros de distância.
— O senhor declarou, sob juramento, que no momento em que ordenou a Mr. Hoover que se retirasse, este o agarrou e o atirou por cima da cabeça. Correto?
— Sim.
— E que, antes desse ato de hostilidade por parte de Mr.
Hoover, o senhor nada fez que pudesse, de algum modo, ser interpretado como um movimento, gesto ou ação física que servisse de provocação a essa reação violenta e aparentemente arbitrária por parte de Mr. Hoover?
— Não encostei a mão nele — declarou Bill, resoluto, deixando de acrescentar que não tivera oportunidade para fazê-lo.
O advogado de defesa, que estava prestes a continuar interrogando-o sobre o assunto, pareceu mudar de idéia e, ao invés disso, perguntou: — Mr. Templeton, após o episódio do aperto na nuca, durante o qual o senhor ficou paralisado, será capaz de relatar mais uma vez, se não se importa, o que aconteceu exatamente depois que Mr. Hoover largou sua artéria carótida?
— Bem, como eu já disse, minha esposa chegou e ajudou a empurrá-lo para longe de mim. Foi quando ele se virou, correu para dentro do apartamento e trancou a porta.
— Sim, foi o que o senhor disse. Pense bem, porém, Mr. Templeton. Na realidade, não pediram a Mr. Hoover que entrasse no apartamento?
— Pediram?
— Sim. Ele foi chamado — por Ivy!
Bill hesitou.
— Não sei o que o senhor quer dizer com isso.
— Quero dizer, Mr. Templeton, que os gritos e apelos patéticos de Ivy ecoaram através do apartamento, sendo ouvidos e atendidos por Mr. Hoover como um legítimo pedido de seu auxílio — é isso o que quero dizer!
Bill meneou a cabeça em negativa.
— Não ouvi nenhum grito ou apelo.
— Não é verdade que Ivy, pouco antes da chegada de Mr. Hoover, sofreu um daqueles pesadelos — um pesadelo do qual foi impossível despertá-la, e de natureza tão violenta que exigiu que o senhor e sua esposa a amarrassem na cama?
— Um momento! — interrompeu Velie. — Protesto quanto à formulação da pergunta. Exige uma resposta complexa e além disso, ultrapassa os limites e objetivos do interrogatório direto.
— Protesto mantido — declarou o Juiz Langley.
Brice Mack sacudiu os ombros. Então, voltando-se mais uma vez para Bill: — A testemunha está dispensada, mas solicito que receba instruções para estar disponível a fim de servir como testemunha da defesa, no momento adequado.
— A testemunha está intimada — disse o Juiz Langley, dirigindo-se, em seguida, a Scott Velie. — Quer chamar sua próxima testemunha?
Janice fechou os olhos e contraiu os músculos para resguardar-se do golpe esperado, mas este não veio. Houve uma ligeira pausa, pois Velie aproveitou a ocasião para pedir que a certidão de nascimento de Ivy fosse anexada aos autos.
Bill esgueirou-se de volta ao seu lugar, aproveitando-se da distração ocasionada pelo ritual da anexação da certidão de nascimento de Ivy aos autos, como prova material número 1 da promotoria.
Com ar sombrio e funesto, Janice se inclinou para perto do marido.
— Não estou preparada para enfrentar isso — declarou, num sussurro engasgado.
— Tudo correrá bem — replicou Bill, baixinho, apertando o joelho de Janice e sentindo-o tremer.
— O que aconteceu com Russ e Harold Yates? Por que Velie não os chamou?
— Preferiu reservá-los como testemunhas para a réplica, depois que Mack apresentar a defesa.
— Não estou preparada — insistiu Janice, com o rosto assumindo um doentio tom de vermelho.
— Chame a próxima testemunha — ordenou o Juiz Langley ao promotor.
— Minha próxima testemunha — anunciou Scott Velie — é Mrs. William Templeton.
Janice se ergueu da poltrona e, imediatamente, começou a sentir-se pior. Seu rosto, vermelho e febril um segundo antes, ficou pálido, cinzento. Ela teve a impressão de que perderia os sentidos antes de chegar ao banco das testemunhas.
Um silêncio profundo pairou na sala quando Janice se encaminhou desajeitadamente ao longo da fileira de poltronas, até chegar ao corredor central e, com o sangue latejando nas têmporas, caminhar como um autómato até a balaustrada que dividia o recinto do tribunal. Cada passo de seu avanço vacilante parecia impelido por uma energia interior que estava além de seu controle e compreensão. Refletiu que sob a mesma compulsão estranha e irresistível a nobreza da França deveria ter galgado os degraus do cadafalso para o tête-à-tête final com Madame la Guillotine.
No banco das testemunhas, Janice ergueu a mão direita, fez o juramento e, depois, sentou-se, obedecendo às instruções do meirinho.
Scott Velie aproximou-se dela com um semblante que expressava gentileza e compaixão.
— Poderia declarar seu nome completo, por favor?
— Janice Gilbert Templeton.
— É esposa de William Templeton?
— Sou.
— E mãe de Ivy Templeton?
— Sim.
— Ela foi gerada pela senhora?
— Sim, senhor.
— Por favor, Mrs. Templeton, descreva os acontecimentos ocorridos entre a data em que a senhora viu o acusado pela primeira vez e a data em que ele retirou sua filha de seu apartamento e a levou para o apartamento dele.
Janice engoliu em seco, pigarreou e tentou encontrar a própria voz. O fato de tê-la encontrado, forte, cheia e autoritária, constituiu mais um mistério numa tarde tão cheia de enigmas. Sentiu-se imediatamente reconfortada pelo som da própria voz e logo começou a falar mais depressa.
Com grande confiança, segurança e a experiência de um mestre no assunto, Scott Velie extraiu de Janice o relato que ele desejava que o júri ouvisse dela, não lhe dando qualquer oportunidade para desviar-se, elaborar, fazer comentários ou tocar em assuntos que, de qualquer modo, pudessem proporcionar à defesa uma brecha aproveitável para refutar as acusações da promotoria. Até mesmo o próprio Brice Mack foi obrigado a admitir que se tratou de uma espantosa demonstração de perícia forense.
Afinal, Scott Velie virou-se para o advogado de defesa.
— A testemunha é sua — declarou.
— Meritíssimo...
Brice Mack fez uma pausa intencional, prolongando a expectativa, saboreando o óbvio e sádico prazer de torturar a mulher amedrontada que estava no banco das testemunhas.
— Meritíssimo, permita-me dizer que, já que Mrs. Templeton está protegida pelas normas jurídicas que regem o interrogatório das testemunhas, há pouca esperança de que a defesa consiga alguma vantagem em lhe fazer perguntas.
Todavia, ainda existe muita coisa que deve ser revelada por essa testemunha e pelas testemunhas que a precederam: muitas verdades que foram suprimidas pelo interrogatório direto tão habilmente conduzido pelo meu ilustre colega da acusação.
Fixando em Janice um olhar carregado de dura e fria advertência, acrescentou: — Verdades que eu pretendo trazer inteiramente à luz neste tribunal. Portanto, não tenho perguntas a fazer a essa testemunha neste momento, mas reservo-me o direito de chamá-la como testemunha da defesa quando chegar a ocasião propícia.
— Muito bem — declarou o Juiz Langley, enquanto Brice Mack retornava a seu lugar na mesa reservada à defesa. — A testemunha está dispensada no momento, mas fica intimada a depor como testemunha de defesa quando for chamada a fazê-lo.
Olhando para Scott Velie, que estava empenhado numa conferência estratégica com seu assistente, o Juiz Langley demonstrou secamente seu aborrecimento: — Mr. Velie, se nos permite interrompê-lo, estamos aguardando sua próxima testemunha.
— Data venia, Excelência — respondeu Velie, levantando-se com um sorriso conciliatório —, a promotoria não tem mais testemunhas a chamar.
O Juiz Langley bateu de leve com o martelo, anunciando: — Nesse caso, a sessão fica suspensa até segunda-feira, às nove horas. O acusado permanecerá sob custódia do tribunal.
Erguendo-se do banco das testemunhas e se encaminhando para Bill com passos vacilantes, inseguros, Janice experimentou a deliciosa sensação de inércia e euforia de alguém que escapa, atordoado mas ileso, de um desastre de avião.
O momento de colocar Ivy a par de "todos os fatos" chegou na noite seguinte, após terem levado Mina de volta ao colégio e estarem instalados na suíte da família, no Candlemas Inn.
Bill e Janice tinham vindo de automóvel, chegando logo após o almoço, a tempo de assistir ao ensaio do coro juntamente com vários outros pais de alunas. A beleza loura de Ivy era perfeitamente distinguível entre o grupo de meninas que fazia voz de contralto. Foi durante o Kyrie eleison, de Handel, que Janice começou a sentir os vagos murmúrios de interesse e curiosidade que pairavam no ar — cochichos, olhares de esguelha e risadinhas que pareciam rodeá-los como pedaços de palha soprados pelo vento.
Ainda mais perturbadores foram os olhares brilhantes e esquivos das meninas que passaram por eles na saída da capela, a caminho do pátio coberto de neve, onde um Sylvester sem cabeça esperava por elas. Ivy e Mina foram as últimas a sair, de mãos dadas, aproximando-se calma e lentamente deles, ambas exibindo sorrisos de bravura diante da tragédia.
— Olá, papai. Olá, mamãe — disse Ivy, desanimada. Vocês já conhecem Mina.
— Claro, Princesa — sorriu Bill. — Olá, Mina.
— Olá, Mr. Templeton. Olá, Mrs. Templeton — cumprimentou Mina, passando a bola de volta a Janice.
— Olá, Mina — saudou Janice, completando o círculo de cumprimentos.
Bill se curvou para beijar Ivy e sentiu que ela se esquivava um milímetro. Janice também percebeu e perguntou depressa: — Vão trabalhar em Sylvester?
— Hoje não. Não estamos com vontade.
— Não — repetiu Mina, com evidente desgosto. — Não estamos com vontade.
— Muito bem, então — sugeriu Janice, simulando entusiasmo. — Por que não vão se aprontar para nossa festinha?
A perspectiva de jantar fora alegrou o momento — pelo menos para Mina. Depois que as duas foram tomar banho e vestir suas melhores roupas, que só eram permitidas no Monte Carmelo nos fins de semana ou quando as meninas saíam com os pais, Bill e Janice atravessaram o pátio, passando pelo enorme boneco de neve ainda em fase de construção, e entraram no prédio da administração.
— Uma das meninas contrabandeou jornais para o dormi-tório. Achamos que foi Jill O‘Connor, mas não temos certeza.
Vários exemplares do Guardian de Westport, trazendo na primeira página a manchete: "JURADOS OUVEM GRAVAÇÃO DOS PRINCIPAIS DEPOIMENTOS NO CASO RAPTO-REENCARNAÇÃO", estavam abertos sobre a mesa da irmã superiora. O olhar da Irmã Verónica Joseph tinha a mesma expressão de piedade e compaixão, mas suas feições estavam ligeiramente alteradas.
Bill teve a impressão de que pareciam mais duras, sombrias, até mesmo severas.
— Farei uma reunião com os pais esta tarde, antes de partirem, e pedirei a colaboração de todos neste assunto. E pedi ao Padre Paul para falar com as meninas no sermão de amanhã.
Bill inclinou-se ansiosamente para a frente.
— Estamos muito agradecidos pelo que a senhora fez, irmã, no sentido de proteger nossa filha dessas notícias. Ivy nos contou a respeito da proibição de rádios e televisão.
O rosto da Irmã Verónica Joseph se suavizou um pouquinho.
— Embora meu coração e minha simpatia estejam com vocês e com Ivy, procurem compreender, por favor, o que vou lhes dizer — declarou ela, baixando a voz para um tom que parecia mais adequado a um confessionário. — As normas que estabeleci e as providências que tomei para evitar que os detalhes desse caso se espalhassem pelo colégio não foram somente por sua causa. Visavam também os interesses de todas as alunas e do colégio. Não existe a menor dúvida de que Ivy é vítima involuntária das alucinações de um pobre homem e merece ser resguardada da publicidade prejudicial consequente ao que está acontecendo. Por outro lado, existe um perigo equivalente, senão maior, de que o colégio também seja vítima involuntária da presença de uma aluna notória, o que realmente acaba de acontecer. O que, como os senhores devem compreender, é uma espécie de situação que poucas instituições como a nossa podem suportar durante muito tempo.
— O que — resumiu Bill, quando ele e Janice se encaminhavam para apanhar Ivy e a amiga — pode ser resumido em poucas palavras: "Tratem de arranjar outra escola para Ivy.
Não foi isso que ela disse — protestou Janice.
— Foi isso que ela quis dizer.
"Sim", refletiu Janice. "Estava implícito no tom da freira.
Uma advertência para resolvermos logo o problema, ou ela será obrigada a tomar providências."
O jantar com as meninas foi tenso e silencioso, consistindo de comer muito e falar pouco. Ivy mostrou-se introspectiva e distante, mas conseguiu terminar as costeletas com batatas fritas e até mesmo repetir, com Mina, a sobremesa. Bill surpreendeu-a várias vezes a fitá-lo com uma expressão confusa, perplexa, como se indagasse: "Que quer dizer isso tudo? O que está acontecendo?"
A responsabilidade da revelação recaiu sobre Bill e teve lugar na presença de Janice, na pequena sala de visitas que também servia de quarto para Ivy. Enrolada nas cobertas e recostada na cama de armar, Ivy encarava o pai enquanto este lhe revelava todos os fatos com a maior delicadeza, compreensão e sinceridade, ocultando apenas uma coisa — os pesadelos.
— Mas isso é possível? — indagou Ivy.
O tom de sua voz traía uma incredulidade ansiosa, mesclada com um leve toque de excitação.
— Não, Princesa — respondeu Bill. — Mas Mr. Hoover parece pensar de modo diferente.
Então, acrescentou num tom mais carinhoso: — Tente compreender, Ivy. Quando um homem perde alguém a quem muito ama — no caso, a esposa e a filha —, sua dor e tristeza podem ser tão profundas a ponto de sua mente se recusar a acreditar no que aconteceu. Nessas circunstâncias, um homem é capaz de acreditar em qualquer coisa, para conseguir sobreviver. Mr. Hoover é um homem assim. Quando perdeu tudo o que amava e possuía, não conseguiu aceitar a realidade e partiu em busca de soluções. O mais triste em tudo isso é que existiam pessoas — pessoas maldosas — que estavam dispostas a dar as respostas que ele desejava ouvir. Foi assim que ele passou a acreditar que a filha tornou a nascer em você.
Portanto, Princesa, como você está vendo, a culpa não foi de Mr. Hoover; ele não passa de uma vítima de seu próprio sofrimento.
Seguiu-se um prolongado silêncio, durante o qual Ivy soltou um longo suspiro, carregado de lástima.
— Que coisa tão triste — murmurou em tom abafado. — Lembro-me dele na escola. E da vez em que ele andou comigo até em casa. Parecia um homem tão bom...
— Talvez ele seja um homem bom, Princesa. Talvez seja apenas mal orientado. Vamos pensar assim, está bem?
Ivy assentiu e, depois, olhou para Janice.
— Não acha engraçado eu não me lembrar de coisa alguma?
Isto é, não me lembro de ele me tirar da cama e me levar embora.
— Você estava dormindo — declarou Janice.
— Puxa! — comentou Ivy, sacudindo a cabeça e arqueando as sobrancelhas com ar espantado. — Não é de espantar que todas as meninas me olhem de lado. Sou realmente esquisita, um fenómeno.
— Você não é um fenómeno, Ivy — insistiu Bill. Como já expliquei, você foi vítima das alucinações de um homem — de um sujeito que a justiça vai mandar para a cadeia por muito tempo, para pagar pelo que fez. Sempre que as meninas olharem para você, ou cochicharem a seu respeito, lembre-se disso, está bem? Você não tem nada a temer e, muito menos, nada de que se envergonhar.
Em tom mais suave, acrescentou: — E se as coisas por aqui piorarem, basta me avisar e virei buscá-la para voltar para casa.
Ivy sentiu uma pontada de tristeza.
— Espero poder ficar. Gosto muito do colégio.
Às três e dez da manhã, Janice foi despertada por sons que vinham do quarto de Ivy — ruídos de tosse, fortes, violentos.
Correndo para a sala e fechando cuidadosamente a porta, a fim de não acordar Bill, Janice acendeu a luz e olhou, assustada, para Ivy. A menina estava sentada na cama, com a cabeça entre os joelhos, tossindo e espirrando no cobertor. Janice correu para a filha, abraçou-a e começou a dar-lhe palmadinhas nas costas, tentando cortar a torrente de espasmos.
— O remédio está na minha bolsa — conseguiu dizer Ivy, engasgada, entre dois acessos de tosse.
O rótulo dizia: "Tomar quando necessário". Ivy tomou o xarope direto no vidro, pois não havia uma colher à mão. O remédio fez efeito rápido e logo os acessos de tosse cessaram, deixando-a trêmula e exausta.
— Puxa! — comentou ela. — Foi de lascar!
Tinha o rosto muito vermelho e os olhos lacrimejavam.
Janice ficara abalada com a violência do ataque de tosse.
Isso acontece todas as noites?
Hum, hum — confirmou Ivy. — Quase todas as noites, durante esta última semana. Mas não tão forte.
— Vou levar você a um médico amanhã.
— Certo — concordou Ivy, engolindo em seco. Mamãe?
Janice apalpou a testa de Ivy. Estava fria.
— O que é, querida?
— Não seria maravilhoso?
— O quê?
— Se o que Mr. Hoover acredita fosse verdade? Se a gente continuasse vivendo para sempre e não morresse nunca...
As palavras tinham um tom sonhador, que arrastaram Janice a uma contemplação sombria, na qual o semblante de Hoover parecia pairar diante dela: suave, tristonho, atordoado.
Puxando Ivy para si e acomodando o rosto nos cabelos louros da menina, Janice respondeu num murmúrio choroso, abjeto: — Sim, querida, seria maravilhoso. Realmente maravilhoso...
Os dois homens se encaravam por cima da mesa de metal, no quarto pequeno, vazio e sem janelas. Uma luminária de lâmpadas fluorescentes lançava sombras fortes sobre os documentos e pastas de arquivo espalhadas entre eles, emprestando às suas fisionomias um aspecto pálido e sombrio de máscaras mortuárias. Excetuando o leve zumbido do ar condicionado que entrava pelo teto, o quarto conservava o silêncio profundo e sem ecos de uma caixa-forte.
Elliot Hoover solicitara a conferência e tomara as rédeas do encontro durante a última hora, exigindo uma completa análise da estratégia da defesa em sua miríade de detalhes e complexidades.
Agora, quase no final, desafiava as testemunhas, sugeria alterações, pedia reavaliações de provas e de depoimentos.
Brice Mack, sentado sob a luz forte, enxugando o rosto com um lenço já úmido, só conseguia fitar espantado o semblante sério e controlado do cliente, que pronunciava em voz baixa recomendações que, se questionadas ou contrariadas, tornavam-se ordens peremptórias.
A discussão se iniciara com mais uma análise de Gupta Pradesh, um famoso maharishi de Ghurni, que estava alojado no Waldorf-Astoria Hotel e seria chamado a depor como primeira testemunha da defesa. Elliot Hoover não conhecia Pradesh pessoalmente, mas estava bastante familiarizado com suas obras e sua história para considerá-lo a testemunha ideal para informar o júri a respeito de alguns dos aspectos mais profundos da religião hindu. Todavia, em deferência à indiscutível santidade do maharishi e à extrema reverência que lhe era dedicada por todos os seus seguidores, o advogado de defesa recebera instruções para só lhe fazer perguntas realmente elevadas, relativas aos aspectos mais sublimes, eliminando quaisquer referências que pudessem levar a especulações sobre os pontos leigos, ou "feijão com arroz", da reencarnação. O que constituía um severo golpe no plexo solar da estratégia planejada por Brice Mack para a defesa.
— Mas ele deve conhecer exemplos concretos de reencarnação — protestou o advogado. — Casos específicos, que nos ajudariam a consolidar sua posição.
— Não há dúvida de que ele poderia citar casos desse tipo — replicou Hoover tranquilamente. — Todavia, seria aviltante para ele discutir tais assuntos em público. Compreenda, por favor, que o maharishi é uma criatura santa, preso pelo mesmo voto de segredo de um sacerdote católico. Portanto, você lhe dispensará todo o respeito devido a um homem de sua posição.
Brice Mack procurou na pasta um lenço de papel, mas não encontrou.
Não havia pontos discordantes quanto ao interrogatório da segunda testemunha, que, como Gupta Pradesh, professava um profundo conhecimento dos conceitos religiosos orientais, mas, ao contrário do maharishi, era um erudito de puro sangue americano — professor eméritas de estudos religiosos numa das principais cidadelas de erudição do país —, um homem cujo nome conjurava todas as imagens genuínas da história americana, desde os verdes campos de batalha de Lexington até os picos enevoados das montanhas Rochosas.
O depoimento de James Beardsley Hancock, versando sobre as leis específicas do carma, seria — na opinião de Brice Mack e seus assistentes — de grande peso na formação da opinião do júri, não apenas por partir de um americano branco, de profundas raízes no país e gozando de eminente conceito, como também por tratar de uma fé que ele abraçara e professava fielmente.
Como Hoover definia para Brice Mack: "Ele está por dentro e olhando para fora; é o nosso homem ideal".
O principal ponto de discórdia fora a inclusão, no rol de testemunhas, do nome da terceira testemunha "perita" no assunto, Marion Worthman, uma versão mais moderna de Edgar Cayce, uma médium que se declarava feiticeira, profetisa e vidente, que pregava e interpretava a Bíblia, uma mulher que se dizia capaz de sintonizar telepaticamente com o corpo e o espírito de uma pessoa e revelar fatos relacionados com as vidas passadas e futuras dessa pessoa.
Embora seus adeptos se contassem às dezenas de milhares e seus livros encabeçassem as listas de best sellers, Elliot Hoover era contrário ao seu comparecimento para prestar depoimento no tribunal na qualidade de testemunha de defesa, temendo que ela pudesse trazer ao processo a mácula da charlatanice — que era o exato motivo pelo qual Brice Mack lutava por sua inclusão no processo.
Não obstante, Hoover continuava cético a respeito, achando que a melhor defesa partiria dos Templeton e de Carole Federico, quando Brice Mack os chamasse a depor como testemunhas em seu favor.
— Eles estavam lá — argumentava Hoover. — Estavam presentes durante o pesadelo e viram a menina responder a meus apelos a Audrey Rose. Conhecem a verdade e devem ser forçados a revelá-la.
— A verdade? — indagou Brice Mack, sentindo-se repentinamente fatigado. — De que verdade você está falando?
Da sua ou da deles?
— São uma só e única verdade.
O advogado soltou um suspiro patético.
— Já ouviu a história dos três cegos a quem foi pedido que descrevessem um elefante? Cada um descreveu o que sentiu nas mãos ao tatear o corpo do elefante. Cada descrição foi diferente e, não obstante, todos os três disseram a verdade.
Hoover o encarou, sem entender.
— O que quero dizer é o seguinte — explicou Brice Mack. — Embora quatro pessoas tenham presenciado o pesadelo da menina, isso não quer dizer, necessariamente, que todas as quatro tenham visto a mesma coisa. Na realidade, estou disposto a apostar que obteremos quatro descrições diferentes dos fatos que se passaram no quarto naquela noite.
— Janice Templeton conhece a verdade — declarou tranquilamente Hoover. — Ela me chamou porque sabia que eu era a única pessoa que poderia ajudar a menina.
— Ótimo — admitiu o advogado. — E quando eu a chamar para depor, certamente explorarei esse aspecto. Todavia, não espere muito da maneira pela qual ela se lembrará, ou dirá que se lembra, do que se passou naquela noite.
Seguiu-se um minuto de silêncio, durante o qual Elliot Hoover estudou atentamente o rosto de Brice Mack.
— Creio que você não deposita muita fé no resultado deste caso.
— Coloquemos as coisas de modo diferente — sugeriu Brice Mack. — Não tenho muita fé em que os Templeton venham em seu auxílio. Gastei oito semanas e muito dinheiro para preparar sua defesa e, agora, tudo está dependendo principalmente dos depoimentos de nossas testemunhas peritas no assunto. Se você me permitir cuidar do caso da maneira como planejei, acredito que tenhamos uma boa possibilidade de vender a tese da reencarnação até mesmo ao jurado mais descrente.
— Do contrário...
Mack resolveu colocar as cartas na mesa.
— Do contrário, não acredito que você tenha muita probabilidade de ser absolvido.
Hoover tornou a estudar atentamente o advogado.
— Aprecio muito sua franqueza, Mr. Mack — declarou, afinal, em tom de desprezo. — Agora, permita-me ser franco com o senhor. Ainda continuo a insistir, apesar de sua opinião a respeito do desfecho do caso, em que o senhor conduza a defesa com toda a ética e decoro possíveis. Compreendo até que ponto o senhor está dominado pela ambição de vencer. Não obstante, a determinação de minha culpa ou inocência por um tribunal de justiça composto por seres humanos não é uma plataforma para servir ao seu egoísmo, nem vou permitir que se transforme num trampolim para seu engrandecimento pessoal.
Mr. Mack, o que está em jogo é a minha liberdade e não a sua reputação. Portanto, cabe a mim decidir cada passo que deveremos tomar no decurso do julgamento. Se o senhor não compreende, ou acha que não poderá respeitar meus desejos à a letra diga-me agora, por favor, e tratarei de substituí-lo.
— Claro, como quiser.
A pronta e displicente aceitação por parte de Brice Mack do desprezo de Hoover foi destinada a disfarçar o profundo choque e a surpresa de que o advogado estava possuído. A precisão com que Hoover acertara o alvo fora devastadora. Seria possível que ele fosse sempre tão transparente?
Deixando o interior abafado do Foro Criminal e saindo para as ruas desertas e geladas daquele fim de tarde de domingo, Brice Mack teve consciência da estranha ironia da pasta que trazia consigo, carregada de esperanças, de ambições, e de oito semanas de trabalho e planejamento que, agora, privado de seu poder de livre ação, representava uma pasta cheia de absolutamente nada!
A tentação de jogá-la numa lata de lixo, enquanto procurava em vão por um táxi e se encaminhava para a estação do metro na esquina da Foley Square, foi dissipada pela ruidosa vibração do trem que passou por baixo da rua quando ele se aproximou da entrada da estação.
A viagem para casa no vagão quase vazio foi feita em companhia de duas mulheres amedrontadas e de um negro que vomitava. O que, somando tudo, parecia encerramento adequado para um dia cheio de acontecimentos desanimadores.
Espremido contra o canto do assento, em meio ao ruído das rodas nos trilhos, aos gemidos das mulheres e ao terrível cheiro do vómito do negro, o jovem advogado observou o ponteiro de segundos de seu relógio de pulso, que caminhava inexoravelmente para o dia seguinte, produzindo a inquietante sensação de que uma tragédia estava prestes a abater-se sobre ele. Foi naquele momento que Brice Mack se lembrou de sua mãe e da noite em que ela foi levada às pressas para a sala de operações, com menos de dez por cento de probabilidades de se salvar. E Brice Mack sorriu ao se lembrar do sorriso corajoso no rosto da mãe, quando esta piscara para ele, embora ambos soubessem que aquele seria o último gesto físico de que compartilhariam neste mundo.
19
O primeiro prenúncio da catástrofe surgiu quando Brice Mack chegou ao Foro Criminal, na manhã seguinte.
Ainda era bastante cedo para que as ruas estivessem calmas e vazias enquanto seu táxi chiava pelo pavimento molhado, percorrendo os estreitos canyons de edifícios que levavam à Foley Square. Quatro ônibus fretados se achavam estacionados diante do prédio do Foro Criminal, logo atrás de um caminhão da televisão. O jovem advogado sentiu um arrepio de ansiedade ao pagar o motorista do táxi e subir correndo as escadas recém-lavadas.
Até mesmo no receptáculo fechado que era o elevador, erguendo-se acima do zumbido característico, faziam-se ouvir sons ritmados, que aumentavam de intensidade à medida que o elevador se aproximava do sétimo andar. Quando a porta se abriu, houve uma explosão de som: — Hare Krishna! Hare Krishna! Hare Krishna!
O corredor estava bloqueado por uma sólida massa humana, mais de cento e cinquenta filhos do Senhor Krishna, que, como Brice Mack veio a saber posteriormente, haviam chegado de madrugada, vindos de sua gurukula em Bronxville, a fim de prestar seu tributo ao venerável santo Gupta Pradesh, a primeira das testemunhas arroladas por Brice Mack.
Rapazes e moças cujas idades variavam entre treze e dezoito anos, todos trajando túnicas cor de açafrão — as testas das moças cobertas de pasta, as cabeças dos rapazes totalmente raspadas, à exceção de um rabicho no alto, para permitir que Krishna os puxasse para o céu no momento adequado —, acotovelavam-se ao longo do corredor, dançando, batendo tambores, tocando sinos e pandeiros, cantando repetidamente " Hare Krishna! Hare Krishna! ", transformando o ambiente sombrio e severo em um bazar alegre e colorido. Tudo isso ante os olhares intrigados e atentos de uma fila de guardas usando cacetes e empunhando cassetetes, que tinham sido chamados às pressas para manter a ordem.
Brice Mack ficou literalmente aturdido pelo espetáculo e pelo barulho. Hesitou um momento antes de enveredar por entre a massa humana que exalava perfumes exóticos, nutria valente tentativa de chegar ao telefone na outra extremidade do corredor. Era importante comunicar-se com Gupta Pradesh, no Waldorf-Astoria, a fim de preveni-lo para evitar os elevadores principais e entrar no tribunal pela porta de serviço.
Com o auxílio de um guarda que parecia muito satisfeito pela oportunidade de abrir caminho à força por entre a multidão que dançava e cantava alegremente, o jovem advogado conseguiu, afinal, chegar à extremidade do corredor onde ficavam os telefones públicos. Ali, no espaço em frente às cabines, deparou com o Juiz Langley, impecavelmente trajado e trazendo um cravo vermelho na lapela, de pé no centro de um círculo de refletores, câmaras e repórteres curiosos, tentando em vão acrescentar algo à sua imagem e reputação nacional.
Os repórteres, porém, pareciam ter intenções muito diferentes, pois, em lugar de fazerem perguntas a respeito do assunto mais palpitante do momento, a questão da reencarnação, preferiam bombardeá-lo com embaraçosas indagações sobre seus dias de político, sua ascensão na hierarquia de O'Dwyer, particularmente desejosos de saber como ele conseguira esquivar-se dos tentáculos da comissão parlamentar de inquérito chefiada por Kefauver e, de um modo geral, procurando vasculhar os cantos mais sombrios de um passado que o idoso magistrado preferiria relegar a um total esquecimento.
Da mesma forma que o cravo vermelho murchava sob o extremo calor produzido pelos fortes refletores, a disposição e o humor do Juiz Langley se deterioraram sob a punitiva chuva de indagações incómodas, até que, afinal, seu vocabulário de respostas e declarações desceu a um nível rude e monossilábico mais adequado à sarjeta que ao augusto ambiente do corredor de um tribunal.
Por fim, com uma demonstração de raiva, o juiz abriu caminho à força por entre os jornalistas, berrando: — Que diabo! Saiam da minha frente!
Mandando que um guarda o escoltasse, passou também por entre os jovens que cantavam e dançavam, até chegar a seus aposentos privados no interior do tribunal.
Quando o pessoal da televisão retirou parte da aparelhagem, Brice Mack conseguiu chegar a um telefone e ligou para o Waldorf, sendo informado de que o maharishi já saíra, em companhia de Fred Hudson. Tornando a abrir caminho por entre os " Hare Krishna" até chegar aos elevadores, o advogado apressou-se em descer para o saguão principal do prédio, a fim de interceptar a testemunha.
Alto, esguio, ascético, trajando uma simples túnica cor de laranja que indicava ter ele abandonado o mundo dos prazeres materiais, o santo Maharishi Gupta Pradesh permitiu que Brice Mack e seu assistente, Fred Hudson, o conduzissem por um itinerário tortuoso e sombrio através dos porões do edifício do Foro Criminal, até os elevadores de serviço, que estavam cheios de latas abarrotadas de lixo e papéis amarrotados, mal dando lugar para o ascensorista. Só mesmo espremendo-se num canto, com os rostos quase enfiados nas aberturas da grade do elevador, os três homens conseguiram completar a vagarosa subida até o sétimo andar.
A cadência sonora ritmada que vinha da sala do tribunal indicava que os filhos de Krishna estavam lá dentro, aguardando a chegada de seu mestre.
Tão logo Gupta Pradesh surgiu à porta, um silêncio profundo e reverente baixou sobre o ambiente, enquanto todos os olhares se esforçavam por absorver a figura e semblante do santo homem. A pureza e intensidade da consciência que os jovens tinham da presença do maharishi encheram de tal maneira a sala do tribunal que até mesmo Brice Mack experimentou de modo tangível o alto nível de percepção que era irradiado pelos jovens ali reunidos.
Com um sorriso sereno e bondoso, Pradesh ergueu a mão numa saudação aos filhos do Senhor Krishna e, em seguida, dirigiu-se à mesa da defesa, onde Elliot Hoover, que se pusera de pé, o aguardava com a mão estendida.
O Juiz Langley permanecia mudo, o rosto contorcido de incredulidade, observando silenciosamente a gentil troca de saudações entre a testemunha, a platéia e o acusado.
com uma seca batida do martelo, dirigiu-se ao advogado de defesa num tom agressivo: — Mr. Mack, já fez o tribunal esperar durante cinco minutos e não me importa dizer que estamos perdendo bem depressa a paciência! Quando declaro que a sessão será aberta a uma determinada hora, é exatamente isso que estou querendo dizer e faço questão de estar pessoalmente no tribunal à hora marcada!
— Apresento minhas escusas ao tribunal por nosso atraso, Meritíssimo — respondeu Brice Mack, baixando a cabeça por um momento. — com a permissão de Vossa Excelência, estou pronto para chamar minha primeira testemunha.
— Muito bem, prossiga.
Brice Mack virou-se lentamente para a mesa da defesa, correndo rapidamente o olhar pela sala, percebendo de relance o ar de confiança e indiferença estampado no rosto de Scott Velie, notando que a fila de cadeiras reservadas à imprensa estava superlotada com rostos conhecidos e desconhecidos, incluindo um padre católico e vários cavalheiros que usavam turbantes e, provavelmente, representavam órgãos da imprensa religiosa ou estrangeira. Verificou também, com alguma surpresa, que Janice Templeton estava ausente; seu marido era o único ocupante da fileira reservada às testemunhas.
Brice Mack pigarreou e, em voz alta, clara, trêmula de cavalheiresca deferência, declarou: Tenho a honra de chamar Sua Santidade Gupta Pradesh para depor.
O silêncio se tornou ainda mais profundo quando o maharishi, que continuava de pé junto a Hoover e o guarda — este também se levantara e observava o prisioneiro com grande atenção —, inclinou a cabeça em direção ao juiz e se encaminhou lentamente para o banco das testemunhas, perto do qual se postara Brice Mack.
O meirinho, segurando a Bíblia, estava ao lado do banco das testemunhas, esperando pacientemente para tomar o juramento Todavia, ao ver o livro que relatava as verdades reveladas pela fé cristã, o velho hindu estacou de súbito e, voltando-se para Brice Mack, manteve com este uma rápida e sussurrada conferência.
Após alguns segundos, o Juiz Langley se debruçou, irritado, querendo saber: — O que está havendo, agora?
— É a Bíblia, Meritíssimo — explicou o advogado de defesa.
O Maharishi informa que não pode prestar juramento sobre os testamentos cristãos.
— Bem, ele possui sua própria Bíblia?
— Não, Meritíssimo. A fé hindu não tem fundador nem escrituras sagradas.
O Juiz Langley se virou para o meirinho, ordenando: — Tome o juramento alternativo.
Enquanto o meirinho procurava na última capa da Bíblia o papel adequado, Gupta Pradesh subiu cerimoniosamente ao banco das testemunhas e se voltou para encarar a platéia. Seus cabelos longos e ondulados emolduravam um rosto da mais pura tranquilidade. Seus olhos, que pareciam fitar a eternidade, transbordavam de calor e compaixão para tudo o que fixavam.
Afinal, o meirinho encontrou o texto certo.
— Afirma solenemente que as declarações que aqui prestará sobre a causa em julgamento neste tribunal serão a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, sob pena de perjúrio?
— Na medida em que me for dado poder e capacidade para fazê-lo, eu afirmo — declarou o maharishi, erguendo pela primeira vez a voz sonora e carregada de sotaque, que ecoou por todos os recantos do tribunal, enchendo-o de tal maneira que deu a impressão de provocar reverberações ao final da frase.
Uma voz que emocionava, que provocava arrepios até mesmo em Bill Templeton, e que suscitou imediata reação por parte dos filhos do Senhor Krishna, que se puseram de pé e, em perfeito uníssono, começaram a cantar e balançar num transbordamento de alegria.
— Ordem! Ordem! — bradou o Juiz Langley, mas sua voz não passou de um suspiro em meio a uma tempestade. — Ordem no recinto do tribunal!
Quando Brice Mack se aproximou da balaustrada, gesticulando num desesperado apelo por silêncio, seu rosto espelhava tanta humilhação e atordoamento quanto o semblante de Scott Velie demonstrava divertimento e satisfação.
— Hare Krishna! Hare Krishna!
O tumulto de vozes cresceu, transbordou, criando uma vibração que fazia os copos tremerem nos pires.
Não parecia haver outro modo de controlar a situação a não ser chamar a polícia — o que o Juiz Langley estava prestes a fazer quando, de repente, em obediência a um gesto do venerável hindu, um simples movimento de suas mãos em direção aos filhos de Krishna, o cântico cessou abruptamente.
— Meus filhos — apelou o maharishi em sua voz melodiosa e dominadora. — Não é necessário prestar homenagem à minha entidade física, quando a única coisa que precisam fazer para encontrar-me é olhar para o interior de seu espírito.
A declaração, destinada a acalmar os jovens, serviu apenas para reacender seu ardor e provocar uma nova onda de cânticos diferente em forma e ritmo da anterior: um murmúrio disforme, aparentemente sem palavras — "OM! OM! OM! OM!" que produzia uma profunda vibração com força e intensidade suficientes para estourar os tímpanos dos presentes.
— Ordem! — berrou o Juiz Langley. — Ordem ou mando evacuar o recinto!
— Meus filhos! — implorou o maharishi, inutilmente.
Então, como se obedecessem a um sinal mudo, de inspiração interior, muitos dos filhos de Krishna começaram a tirar das dobras das túnicas pequenos potes de incenso, acendendo-os.
O Juiz Langley se ergueu de um salto, transtornado de raiva, pronunciando a advertência final: — Não permito que fumem no meu tribunal! Virando-se para o meirinho, acrescentou: — Oficial de justiça! Quero que evacuem o recinto! Chame a polícia e mande expulsar essa gente do prédio! com uma martelada final, declarou: — A sessão está suspensa até que a ordem seja restabelecida!
Bill tratou de abrir caminho por entre as filas de jovens que cantavam, riam e dançavam em meio a nuvens de incenso, batidas de tambores e recitações do Bhagavad gita. Apressou-se em ultrapassar os jornalistas que corriam para a porta de saída, procurando chegar até lá antes que a polícia entrasse em ação e barrasse todas as possibilidades de escapar da sala. Seu único objetivo era chegar a um telefone e relatar a tragédia a Janice, que permanecera no Candlemas Inn, em Westport, para cuidar de Ivy.
Conseguindo a ligação para o apartamento do hotel, contou doze toques do telefone antes que a telefonista informasse que ninguém atendia e se oferecesse para deixar recado na portaria.
Bill pediu que mandassem procurar Janice no restaurante, pois ainda era bastante cedo e elas poderiam estar tomando o café da manhã. Mas foi inútil.
Desligando o telefone, Bill voltou em direção ao recinto do tribunal, sentindo-se atordoado e ansioso. Era estranho não ter encontrado Janice no hotel, não só por causa da doença de Ivy — que, na sua opinião, fora exagerada por Janice — como também porque ela sabia muito bem que era importante ficar por perto do telefone. A decisão a respeito da permanência de Janice em Westport fora tomada com o conhecimento e anuência de Scott Velie. A única advertência do promotor fora no sentido de Janice estar sempre disponível para atender a qualquer chamado do tribunal, pois o seu não-comparecimento para depor como testemunha da defesa poderia ser considerado como um ato de desrespeito à lei. Por que motivo Janice resolvera ignorar a advertência de Scott Velie?
Talvez, refletiu Bill sombriamente, Ivy tivesse piorado da tosse.
Já eram dez e vinte quando a ordem e a calma foram restabelecidas no recinto do tribunal e a sessão foi reaberta.
Os lugares deixados vazios pelos filhos de Krishna, que haviam sido turbulentamente embarcados nos quatro ônibus fretados e mandados de volta à sua gurukula em Bronxville, estavam apenas parcialmente ocupados quando Brice Mack começou a interrogar o sábio hindu, que se mostrava bastante abalado pelos acontecimentos. O advogado de defesa iniciou os trabalhos com uma série de perguntas relativas à própria vida do maharishi, tais como seu nome, local de nascimento, grau de escolaridade, domicílio atual e as características gerais da vocação que abraçara e da fé à qual dedicara a essência e a totalidade de seus setenta e dois anos de vida.
Sob a orientação delicada de Brice Mack, o maharishi fez elucidações a respeito da intrincada rede da religião hindu, começando pela origem da própria palavra "hindu", no século VI antes de Cristo, termo que foi aplicado pelos invasores persas ao povo de língua sânscrita que habitava o vale do rio Indo.
Com voz melíflua, Gupta Pradesh referiu-se aos livros sagrados, os Vedas, compostos muito antes do primeiro milénio antes de Cristo, e ao catálogo de yajnas mágicas, fórmulas de sacrifício e outros rituais incorporados pela religião védica, bem como das muitas escolas, seitas e religiões que se haviam desenvolvido através dos séculos: Sankhya, ioga, vedanta, Vaishnavas, Shaivas, sactismo, todas elas pregadas e praticadas sob as abóbadas diferentes do budismo, jainismo, siquismo, que, por sua vez, extraíam seu ímpeto do vedismo original, alterando e aperfeiçoando os conceitos básicos numa multiplicidade de doutrinas separadas: carma, avatar, samsara, trinurti, bakti, maya.
Durante mais de uma hora todos os presentes ao tribunal pareceram hipnotizados pela voz cantante e as palavras estranhas à medida que o maharishi desvendava as particularidades das muitas gradações de crença, dando ênfase à natureza eclética da fé, que não aderia a uma crença especial, nem adorava um determinado deus ou profeta, como o Jesus dos cristãos ou o Maomé dos islamitas, mas encontrava sua expressão na adoração de animais, dos ancestrais, dos espíritos, dos sábios e de todo o mundo da natureza. Uma religião tão variada como o povo que a praticava e, não obstante, tendo certas restrições: a crença nas peregrinações religiosas, nos banhos nos rios sagrados, na veneração dos sábios e gurus e, acima de tudo, a crença na realidade da reencarnação.
O que era exatamente a deixa aguardada por Brice Mack, uma vez que a expressão do rosto de Scott Velie prenunciava a iminência de um protesto baseado em vários fundamentos válidos.
— A respeito de reencarnação — interpôs rapidamente o jovem advogado, orientando o maharishi no sentido da questão mais importante do caso. — O senhor se refere a ela como uma realidade, uma doutrina existente, abraçada e acreditada por milhões de seus compatriotas. Poderia explicar melhor ao júri a manifestação exata da reencarnação?
O atrevimento da pergunta trouxe um sorriso aos lábios do velho sábio. Pelo tom displicente da voz do jovem causídico, este poderia muito bem estar solicitando esclarecimentos quanto ao funcionamento de uma máquina agrícola, ao invés de estar tratando de um mistério eterno, cujo conhecimento era concedido apenas a um punhado de santos sábios. Não obstante, refletiu Gupta Pradesh com seus botões, estavam na América, onde imperava a máquina, onde as maravilhas da ciência eram veneradas acima da fé, e somente aquilo que pudesse ser explicado era considerado acima de suspeitas e aceito como realidade.
Tentar definir a morada da alma entre suas encarnações e o funcionamento interno do cosmo astral para uma plateia leiga era o mesmo que tentar explicar os princípios da energia atómica a um aborígine australiano.
Fitando os rostos estranhamente mesclados das doze pessoas que compunham o júri, que pareciam observá-lo com vários graus de dúvida e ceticismo, o idoso sábio começou sua explanação relativa ao mundo situado no intervalo e além das encarnações, falando de maneira tão infantil que só poderia ser mal entendida pela mais rudimentar das inteligências.
— O mundo astral é composto de muitos planos, de muitos níveis, de muitas esferas, que recebem a alma quando esta se separa do corpo por ocasião da morte. Existem muitos planos astrais pululando de seres astrais que vieram da Terra para residir nesses diferentes níveis, de acordo com suas qualificações cármicas. Isso significa que a alma de uma pessoa rude, cujas qualificações cármicas sejam de uma ordem inferior, reside num plano astral inferior ao de outras almas que possuem substância mais rica. As pessoas rudimentares, cujos principais estímulos na vida terrena eram de uma tendência ligada à carne e aos bens materiais, reencarnam pouco tempo após a morte, pois não possuem muito sobre que meditar, uma vez que suas necessidades e atrações são de natureza material.
Essas almas logo encontram o caminho de volta à Terra, pois sempre existe um suprimento suficiente de novos corpos, nascidos de pais de natureza semelhante, que oferecem as oportunidades ideais para a reencarnação dessas almas.
Enquanto Gupta Pradesh prosseguia em seu esboço das regras e condições da "vida" no mundo astral, Brice Mack lançou um olhar aos jurados, a fim de fazer uma rápida avaliação de suas reações, sentindo-se satisfeito ao ver que mais da metade deles demonstrava grande atenção, escutando com total interesse as palavras do sábio hindu. A voz do maharishi assumiu um tom cristalino ao falar, com evidente satisfação, sobre as almas que ocupavam os planos astrais mais elevados serem capazes de observar os planos situados em nível inferior e, também, de visitar parentes e amigos residentes nesses planos. Por outro lado, as almas nos níveis inferiores não tinham capacidade de retribuir o cumprimento, uma vez que não conseguiam ver ou escutar as almas dos planos superiores.
— À medida que diminuem as necessidades terrenas da vida material, os períodos de existência espiritual entre as encarnações se tornam mais prolongados. Algumas das almas mais elevadas e aperfeiçoadas permanecem no estado de repouso durante vinte mil anos, ou mais, retornando à Terra somente quando surge a necessidade de seus serviços especializados para enriquecer e aperfeiçoar o mundo. São os líderes, os grandes filósofos, grandes professores, grandes estadistas; homens como Abraham Lincoln, Luther, Burbank, Albert Einstein, Mahatma Gandhi — homens cujas qualificações cármicas se aproximam dos píncaros da perfeição e cujo desenvolvimento espiritual os conduziu aos portais do estado de felicidade na presença do divino, que é o nirvana, o lugar do repouso final no mais elevado dos reinos espirituais.
O olhar de Brice Mack pegou o jurado número 7, Graser, bocejando. E Potash exibia um sorriso imbecil. O advogado de defesa teve a impressão de que Potash ainda lhe criaria dificuldades e arrependeu-se de não haver recusado o sujeito quando tivera oportunidade para livrar-se dele.
— Todavia, essas almas perfeitas são em número muito reduzido. A maioria das almas ocupam os vários níveis mais baixos do mundo astral, onde esperam, lutam e, através da meditação, procuram o aperfeiçoamento espiritual que permitirá sua ascensão a níveis mais elevados. Quando uma alma deseja voltar à vida terrena, procura um renascimento, buscando os pais e circunstâncias adequados que lhe permitam renascer. com bastante frequência, uma alma que retorna pode estar acompanhada por uma outra alma, como, por exemplo, a alma de uma pessoa querida, cada uma delas procurando ser reencarnada ao mesmo tempo, a fim de gozar de uma continuação desse relacionamento na Terra.
Entretanto, o passado não é lembrado e a nova vida terrena manifesta suas próprias necessidades e condições, arrastando a criança recém-nascida para o ritmo esfuziante de sua própria existência.
Gupta Pradesh interrompeu-se bruscamente, mergulhando num torpor de contemplação, os olhos vidrados refletindo o vazio interior de um homem que perdeu temporariamente o rumo. Uma leve onda de inquietação percorreu a sala. Quando, após um minuto completo de silêncio, o sábio hindu não retomou o fio da explanação, Brice Mack insistiu delicadamente: — Há mais alguma coisa que deseje acrescentar, senhor?
A pergunta penetrou o olhar vazio e o trouxe de volta à consciência.
— Apenas o seguinte — declarou o maharishi num tom muito baixo, mas parecendo repentinamente revitalizado. Uma mensagem do além. A jornada é longa. O avanço é eterno. O fim é bom. Nada existe a temer. A força que impera na Terra impera no cosmo astral. E tudo é governado por uma lei! Todos são abençoados, guardados e protegidos,até o mais ínfimo átomo na escala dos seres.
Uma luz de fé interior emanava dos olhos do maharishi, dirigindo-se a Elliot Hoover, que parecia em estado hipnótico, um sorriso beatífico num rosto que irradiava compreensão, aceitação e eterna gratidão. A comunicação entre os dois, nem tácita ou secreta, mas expressa abertamente, não escapou à atenção do tribunal. Brice Mack notou que os olhares dos jurados iam do banco das testemunhas ao banco dos réus, como se acompanhassem o movimento da bola em uma partida de ténis. O rosto enrugado do Juiz Langley expressava perplexidade e irritação em meio a mais um profundo silêncio, que, finalmente, levou o colérico magistrado a indagar causticamente do advogado de defesa: — Tem mais perguntas a fazer a esta testemunha, Mr Mack?
Havia muitas outras perguntas que Brice Mack desejava desesperadamente fazer a Gupta Pradesh — perguntas básicas, concretas, que arrastariam o maharishi de seu elevado plano astral, trazendo-o de volta à Terra. Todavia, as advertências de Hoover impediam-no de fazê-las. com um leve suspiro e um pequeno meneio de cabeça, o advogado de defesa desviou os olhos da testemunha e encarou o juiz.
— Não, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas.
O juiz ergueu os olhos para o promotor, que se erguera da poltrona.
— Mr. Velie?
— Sim, Meritíssímo, há várias perguntas que desejamos fazer ao erudito cavalheiro.
O maharishi, habituado ao tipo de veneração que seus seguidores costumavam dedicar-lhe, preservava um semblante de tranquilidade e suave resignação, mesmo perante aquele indivíduo grosseiro e caloso, que se aproximava dele com um sorriso torcido que revelava um coração de pedra e uma mente carregada de intenções maléficas.
— Esse mundo — ou cosmo — astral a que o senhor se refere é simplesmente um símbolo metafísico, como o céu e o inferno, ou é um lugar real?
— Ele existe — replicou o maharishi em voz bondosa e controlada.
— O senhor já esteve lá? Já o viu?
— Muitas vezes, através da eternidade — sorriu o maharishi. — Assim como o senhor.
— Bem, nesse caso, creio que estou um pouco confuso quanto aos detalhes físicos do local. Talvez o senhor possa refrescar um pouco a minha memória...
As águas calmas e límpidas do olhar do sábio hindu se transformaram em granito, quando Scott Velie prosseguiu: — Por exemplo: esse cosmo astral, pululando de seres astrais — o senhor pode explicar ao júri que aparência ele tem?
— Aparência?
— Sim. É como um grande parque, com árvores, arbustos e pedras, ou é mais parecido com... digamos... um deserto, um terreno árido, sem sinais de vegetação?
Gupta Pradesh umedeceu os lábios com a ponta da língua.
— O universo astral não pode ser descrito nos mesmos termos que usamos para descrever o mundo material. O universo astral consiste de variações mais sutis de luz e cor, bem como de inúmeras vibrações. No mundo astral, tudo é beleza, pureza e perfeição.
— Hum — murmurou Scott Velie, gastando vários segundos para considerar as palavras do maharishi. — O senhor está querendo dizer que não é um lugar como a nossa casa?
A pilhéria arrancou risadas dos jurados e repórteres, bem como um leve sorriso do Juiz Langley. Bill viu Brice Mack erguer-se para protestar e ser contido por um gesto de Elliot Hoover.
O maharishi, impávido ante o cinismo do promotor, replicou calmamente: — Não é, certamente, um lar como conhecemos aqui na Terra; todavia, para os entes que residem nos diversos níveis do universo astral, é um lar de infinita e brilhante beleza.
— Oh, sim... O senhor pode nos falar a respeito desses seres que lá residem? Permanecem com uma forma humana, ou são apenas... hum... bem, o senhor sabe, fumaça e manchas?
— Os seres astrais podem manifestar-se sob quaisquer formas que desejarem: humanas, animais, até mesmo vegetais.
Não existem restrições ou limitações.
Um sorriso travesso surgiu no rosto de Velie.
— É verdade? — disse num tom que parecia tentar abafar uma gargalhada. — Não diga! Quer dizer que eu poderia me transformar numa rosa, ou numa margarida, se assim desejasse?
— Ou, até mais facilmente, num porco.
A equanimidade do maharishi era suprema.
Potash soltou uma ruidosa gargalhada, acompanhado por Carbone e Fitzgerald. O Juiz Langley, desfazendo-se em sorrisos, bateu de leve com o martelo. Velie, obviamente mortificado, aproveitou a interrupção para voltar à sua mesa e consultar algumas anotações.
Tornando a encarar a testemunha, disse em tom despreocupado: — Por falar nisso, o senhor sabe que o acusado acredita que a vítima deste caso, a menina Ivy Templeton, é a reencarnação da filha dele, Audrey Rose?
— Sim. Fui informado a respeito.
— O senhor apoia essa crença?
— Sim. Acredito nela.
Brice Mack estava ansioso para apresentar um protesto, com fundamentos bem válidos. A pergunta se relacionava com um fato que ainda não fora apresentado ao tribunal e, certamente, não condizia com os princípios forenses de reinquírição, pois ultrapassava os limites do interrogatório direto. Apesar disso, preferiu controlar o impulso, na esperança de que Velie conduzisse a testemunha para o mesmo rumo que Elliot Hoover o impedira de tomar.
— O senhor pode relatar ao júri os motivos pelos quais acredita que isso seja verdade? — insistiu o promotor.
— Tais acontecimentos não são raros no meu país replicou o maharishi. — Trabalhando atualmente em meu ashram existe um jovem estudante que é a reencarnação de um ex-aluno meu, que morreu na epidemia de cólera em 1936.
Brice Mack percebeu que a declaração surtira um efeito mágico sobre o júri. Todos os jurados estavam inclinados para diante, fascinados.
O promotor, também notando o repentino interesse dos jurados, interpôs rapidamente: — Solicito que a resposta não seja registrada nos autos, pois não se refere à pergunta feita à testemunha.
— Concedido — concordou o Juiz Langley. — A resposta à última pergunta não será registrada nos autos e os jurados não devem levá-la em consideração.
Scott Velie prosseguiu: — Permita-me repetir a pergunta: o senhor pode relatar ao júri os motivos pelos quais acredita que isso seja verdade?
"Isso" quer dizer a crença, por parte do acusado, de que a vítima seja a reencarnação de sua filha.
O maharishi olhou, através da sala, para Elliot Hoover. Seu olhar transmitia fé e confiança.
Creio que isso seja verdade porque me foi dito por um homem que diz a verdade — replicou o hindu.
Compreendo — disse Velie, sorrindo. — O senhor acreditaria em tudo o que esse homem lhe dissesse?
O maharishi retribuiu o sorriso do promotor.
— Eu acreditaria em qualquer verdade que ele me dissesse.
O Juiz Langley olhou para Brice Mack.
— Algum protesto por parte da defesa?
— Nenhum protesto, Meritíssimo — declarou Mack. A defesa julga que a acusação deve ter todas as oportunidades para interrogar a testemunha a respeito da questão da reencarnação.
— Muito bem — disse o juiz, tornando a encarar Scott Velie.
— Prossiga.
— Muito obrigado, Meritíssimo — disse Velie, consultando suas anotações até encontrar o que procurava. — Oh, sim, Mr. Pradesh, permita-me perguntar-lhe o seguinte: essas tais viagens que os seres astrais dos níveis superiores fazem até os níveis inferiores, como são realizadas?
A pergunta suscitou um olhar atónito do maharishi.
— Eles voam? — insistiu Velie. — Possuem asas?
— Não — respondeu o maharishi, muito sério. — Não são como os anjos do teto da Capela Sistina. A comunicação e as viagens de um nível para outro do mundo astral são feitas por meios telepáticos, muito mais rápidos que a velocidade da luz.
— É mesmo? Falando em viagens, permite-me perguntar como o senhor chegou até aqui?
O maharishi franziu a testa, sem entender.
— Como cheguei até aqui?
— Sim, como veio para a América?
— Não compreendo...
— É uma pergunta bastante simples. O senhor certamente não fez a viagem por meios telepáticos...
— Não. Vim num avião.
— Precisamente.
Scott Velie folheou as anotações.
— Um avião da Air índia, para ser mais exato. Voo 17, partindo de Calcutá na noite de 23 de dezembro e chegando ao Aeroporto Kennedy às três e trinta e cinco da tarde seguinte, que foi véspera de Natal. Passagem de ida e volta na primeira classe, comprada por setecentos e vinte e oito dólares e catorze centavos, paga com fundos de uma conta jurídica especial em nome do acusado no Chase Manhattan Bank, assim como foram pagas todas as despesas pessoais do senhor durante este último mês, as quais, até a presente data, incluindo a diária de cento e vinte dólares de sua suíte no Waldorf-Astoria Hotel, totalizam a bela soma de seis mil trezentos e cinquenta dólares, aproximadamente.
Velie ergueu os olhos do bloco de anotações e encarou a testemunha com um sorriso cínico.
— É uma vida bastante luxuosa para um homem que abdicou das tendências grosseiras e carnais do mundo material, o senhor não acha?
Brice Mack se ergueu de um salto, chocado por perceber que os registros bancários de Elliot Hoover tinham sido requisitados pela promotoria.
— Meritíssimo, protesto contra esse ataque espúrio, inadequado e humilhante ao caráter da testemunha. Jamais foi segredo o fato de a defesa ter pago a viagem do Reverendo Pradesh a este país, bem como todas as suas despesas enquanto ele aguardava o momento de prestar depoimento perante este tribunal. O conforto dispensado a Sua Santidade jamais foi solicitado ou imposto como condição pelo maharishi, mas constitui um presente generoso oferecido pelo acusado e, como tal, perfeitamente aceitável, ético e adequado, como bem sabe o representante da promotoria.
Antes que o Juiz Langley tivesse tempo de decidir sobre a aceitação ou não do protesto da defesa, Scott Velie declarou: — Meritíssimo, admito que as despesas efetuadas por Mr. Pradesh, embora obviamente excessivas, possam ser consideradas éticas e aceitáveis; todavia, já que fui interrompido pelo ilustre advogado da defesa antes de completar minha pergunta, existe mais um detalhe que gostaria de ver incluído nos autos.
— Muito bem — disse o Juiz Langley. — Prossiga.
Consultando suas anotações, Velie soltou dramaticamente sua bomba: — É um lançamento de um cheque sacado contra a conta jurídica de Elliot Hoover, na importância de vinte e cinco mil dólares, emitido em nome de Mr. Gupta Pradesh.
Bill percebeu a expressão de espanto e abalo no rosto de Brice Mack quando este se virou rapidamente para conferenciar com seu cliente. O lápis do desenhista trabalhava furiosamente, procurando captar no papel as várias reações: Hoover e seu Advogado conferenciando em voz baixa, o Juiz Langley de olhos desmesuradamente abertos, Scott Velie triunfalmente postado diante do maharishi, cujo olhar fixava o promotor com malevolência viperina.
— Agora, Mr. Pradesh — insistiu Velie —, o senhor recebeu realmente tal cheque?
— Sim, recebi.
— E o cheque lhe foi dado em pagamento por seu depoimento neste tribunal?
— Protesto contra essa linha de inquirição! — berrou Brice Mack, erguendo-se e encarando o juiz com uma expressão de impotente inocência. — Eu não tinha a menor idéia dessa transação monetária entre meu cliente e a testemunha, Meritíssimo. Todavia, meu cliente informa que, muito embora o cheque fosse emitido em nome de Sua Santidade, era especificamente destinado a fins filantrópicos da mais elevada ordem possível e jamais teve a finalidade de uso pessoal por parte do beneficiário.
— Meritíssimo — interveio Scott Velie rapidamente. Mr. Mack não é testemunha nem prestou juramento para depor perante esta corte de justiça. Fiz uma pergunta a Mr. Pradesh e não ao advogado da defesa. Portanto, solicito que os comentários do advogado da defesa sejam retirados dos autos por serem incabíveis. O que realmente interessa é que uma testemunha da defesa recebeu um pagamento em dinheiro feito pelo acusado. Afirmo que vinte e cinco mil dólares constituem uma soma capaz de comprar uma grande parcela de colaboração e que o depoimento prestado por esta testemunha foi comprado e pago em dinheiro!
— Meritíssimo! — bradou Brice Mack, mas foi interrompido por uma severa batida do martelo.
— Um momento — advertiu o Juiz Langley. — Não aceitarei a moção de Mr. Velie para retirar dos autos os comentários do advogado da defesa, mas, por moção minha, mandarei retirar dos autos todos os comentários feitos por ambos os advogados, da acusação e da defesa, e recomendo ao júri que não leve em consideração todas as declarações de ambos os advogados com relação a suas opiniões particulares a respeito dos motivos pelos quais a testemunha recebeu um cheque no valor de vinte e cinco mil dólares.
Em seguida, voltando-se para Velie: — Se o senhor tem mais alguma pergunta a fazer à testemunha, faça o favor de prosseguir.
— Ainda estou aguardando a resposta à minha última pergunta, Meritíssimo.
A fim de economizar tempo e evitar equívocos, o Juiz Langley mandou que o taquígrafo do tribunal lesse em voz alta a pergunta que o promotor fizera à testemunha: — "E o cheque lhe foi dado em pagamento por seu depoimento neste tribunal?"
Durante toda a discussão entre os advogados e o juiz, o maharishi mantivera a fachada tranquila e imperturbável de alguém que se tivesse ausentado mentalmente de um mundo que considerasse vulgar e mesquinho. Bill teve a impressão de que o hindu estava em transe, ou melhor, num plano diferente dos demais, de modo que não escutou ou preferiu ignorar a pergunta repetida pelo taquígrafo.
— A testemunha deve responder à pergunta — declarou rispidamente o Juiz Langley.
O véu de apatia continuava a encobrir os olhos do maharishi.
Batendo o martelo com o som de um tiro, o juiz se debruçou em direção à testemunha, rosnando: — A testemunha está ouvindo?
O barulho repentino da martelada sobressaltou o maharishi. Seus olhos tornaram a entrar em foco. Ele fitou o juiz com a expressão desorientada de alguém que acaba de despertar subitamente de um sono profundo.
— O senhor deve responder à pergunta — advertiu o Juiz Langley, ríspido; — A pergunta? — repetiu o maharishi, aparentemente atordoado.
Impaciente, o juiz se voltou para o taquígrafo: — Leia novamente a pergunta!
— "E o cheque lhe foi dado em pagamento por seu depoimento neste tribunal?"
Quando o maharishi, afinal, se deu conta do verdadeiro significado da pergunta, com toda a sua carga de insultos e insinuações, seu olhar se tornou ofendido e seu rosto assumiu uma expressão de rancor, mágoa e hostilidade. Num movimento repentino, ergueu-se do banco das testemunhas e se encaminhou para a saída do recinto.
Os espectadores soltaram uma exclamação coletiva de surpresa. O Juiz Langley teve dificuldade para encontrar a voz.
Afinal, pondo-se de pé, berrou para a testemunha que se afastava: — Pare! Ainda não foi dispensado! Guarda! Detenha esse homem! Segure-o e traga-o de volta ao banco das testemunhas!
O maharishi já passara pela abertura na balaustrada e caminhava rapidamente pelo corredor central em direção à saída, quando o guarda que estava postado à porta correu para a frente e deteve o corpo leve como uma pluma num abraço de urso (comentando, mais tarde, com um jornalista, que teve a impressão de estar segurando um esqueleto).
Ao primeiro sinal de dor no rosto do maharishi, Elliot Hoover se ergueu de um pulo e partiu em socorro do velho hindu, saltando agilmente a balaustrada. Segurando o guarda pela artéria carótida, separou-o de sua presa.
Bill, em pé, observando tudo com um sorriso espantado, sentiu uma pontada de piedade pelo guarda, que tombou ao chão, completamente atordoado.
O Juiz Langley batia furiosamente com o martelo.
— Ordem! — berrava ele. — Isto é uma corte de justiça!
Guardas, detenham o acusado!
Os dois guardas corpulentos não precisavam da advertência do magistrado para entrar na confusão. Partindo de direções opostas, correram para Hoover com os revólveres em punho.
Todos os repórteres estavam em pé, o mesmo acontecendo com os jurados. Mr. Fitzgerald sacudia a cabeça, incrédulo; Mrs. Carbone, tapando a boca com a mão, chorava de angústia e emoção, repetindo: "Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!"; o riso feroz e metálico de Mr. Potash se erguia acima do tumulto, em grandes gargalhadas sucessivas.
Foi nessa altura do pandemônio que Brice Mack, sentado à mesa da defesa, escondeu o rosto nas mãos, esforçando-se por apagar dos olhos o espectro de sua ignominiosa derrota. O que fora planejado como um digno e correto interrogatório a respeito da ética e da religião de um povo longínquo se transformara, em vez disso, numa pancadaria de taverna. De que maneira seria possível restaurar o equilíbrio emocional de qualquer júri após um desastre daquelas dimensões — eis aí uma indagação envolta em profundo e impenetrável mistério, na qual ele nem admitia pensar!
— Exijo que o acusado seja algemado!
A voz áspera do Juiz Langley penetrou através do negro desespero de Brice Mack.
— Tragam a testemunha de volta ao banco e não permitam que se retire até devidamente dispensada!
O tilintar de algemas de aço juntou-se à confusão generalizada.
— Ordem! — berrava o Juiz Langley, à beira da histeria. — Ordem no tribunal ou mando evacuar o recinto! Os espectadores façam silêncio!
Quando Brice Mack retirou vagarosamente as mãos do rosto, a primeira imagem que lhe surgiu aos olhos foi a de seu cliente, sentado a seu lado numa atitude de estóica resignação, o pulso esquerdo algemado ao braço da poltrona, um corpulento guarda vigilante a seu lado. Voltando-se para procurar o maharishi, Brice Mack viu o vulto esguio e solene do sábio hindu curvado no banco das testemunhas, o rosto tristonho aparecendo acima da túnica amarela amarfanhada. Dois policiais, com ar ameaçador, ladeavam o pobre homem.
— Mr. Mack — rosnou o Juiz Langley, ofegando, como se tivesse acabado de disputar uma corrida. — vou responsabilizá-lo pelos atos de sua testemunha e de seu cliente. Se o senhor não for capaz de controlá-los, não apenas mandarei manietá-los e amarrá-los às cadeiras, como também processarei o senhor por desrespeito ao tribunal. Está entendido?
A expressão de cão escorraçado estampada no rosto do jovem advogado foi registrada pelo desenhista. Brice Mack replicou humildemente: — Sim, Meritíssimo.
— Mr. Velie — prosseguiu o Juiz Langley, num tom estridente e severo. — O senhor fará a pergunta à testemunha.
Scott Velie, que permanecera sentado durante a maior parte do tumulto, saboreando cada segundo, levantou-se da poltrona sem a menor indicação de pressa e esperou que voltasse a reinar absoluto silêncio no recinto, antes de dizer ao juiz: — Meritíssimo, retiro a pergunta.
Em seguida, lançando à testemunha um olhar de monumental desdém, acrescentou: — Não tenho outras perguntas a fazer ao Reverendo Pradesh!
Com um suspiro geral de alívio, a sessão foi suspensa para o almoço.
20
Brice Mack estava debruçado sobre o prato de costeletas de porco assadas, mantendo um silêncio amuado enquanto seus dentes dilaceravam cruelmente a carne gordurosa, separando a cartilagem dos ossos em dentadas rápidas e violentas. Sentia uma terrível necessidade de rasgar, destruir, mutilar e deformar. Fred Hudson, o único membro de sua "equipe" que se juntara a ele na comprida mesa do Pinetta‘s naquele momento de amargura, tendo percebido a perigosa disposição do chefe, mantinha-se alerta a uma distância cautelosa.
Chupando um osso gorduroso e suculento, Brice Mack observou Hudson e as cadeiras vazias que rodeavam a mesa.
Seus olhos se mantinham inexpressivos. Sabia onde se encontravam os dois advogados: ainda enfiados na biblioteca, vasculhando os livros à procura de algum precedente que proporcionasse a mais ínfima possibilidade de apoio — a essa altura, totalmente inútil. Sabia que o Professor Ahmanson fora a Washington Heights buscar James Beardsley Hancock, a próxima testemunha da defesa.
Mack sentia pouco consolo no fato de se haver lembrado de mandar uma limusine apanhar o velho erudito, a fim de trazê-lo a tempo até o recinto do tribunal. Qualquer deslize, por menor que fosse, e o Juiz Langley o enquadraria impiedosamente. O velho magistrado estava louco para ter uma oportunidade...
Só ignorava o paradeiro de Brenningan. O último contato com o ex-policial irlandês fora na sexta-feira, pouco antes do recesso para o almoço, quando surgira com forte cheiro de bebida, sussurrando para Brice Mack que estava seguindo uma pista.
— Uma coisa que vai soltar os intestinos de Velie acrescentara em tom misterioso.
Mastigando a gostosa carne de porco, o jovem advogado voltou o pensamento para James Beardsley Hancock, sua última esperança luminosa num horizonte sombrio e ameaçador. A ferrenha recusa de Hoover em permitir que Marion Worthman fosse chamada a depor em seu favor fora ainda mais reforçada pelo fiasco com Gupta Pradesh. Agora, restava apenas Hancock, a última possibilidade de acrescentar as declarações de um perito à argumentação da defesa — um fato que não conseguia desencorajar Brice Mack e, na verdade, causava-lhe no peito uma onda de renovado otimismo.
Tendo entrevistado o velho em seis ocasiões diferentes, Mack chegara finalmente à mais absoluta certeza e confiança de que James Beardsley Hancock seria uma figura imponente no banco das testemunhas.
Às vezes, sua postura era verdadeiramente olímpica; em outras ocasiões, fazia lembrar Abraham Lincoln. Sua cabeça era digna de figurar numa moeda romana ou num selo ianque. Sua atitude impunha respeito; seu rosto curtido e os olhos brilhantes e penetrantes como os de uma águia irradiavam honra, verdade e impressionante integridade. No tribunal, pareceria merecer ocupar o lugar do juiz.
A lembrança de trechos de seu primeiro encontro, no gracioso solário da casa de Hancock, com vista para o rio Hudson, sempre surtia um efeito tranquilizante sobre Brice Mack. A casa estava cheia de marcos históricos e gozava a reputação de haver hospedado George Washington e seu estado-maior durante a batalha de Harlem Heights, nas várias ocasiões em que seu quartel-general em Jumel Mansíon estivera sob o fogo da artilharia inglesa.
Mack comparecera àquele encontro com a disposição inflexível de um cético, pretendendo experimentar a capacidade do velho para persuadir um corpo de jurados, e ficara espantado de verificar que, após uma hora de perguntas impertinentes e respostas pacientes, sentia-se totalmente cativado pela erudição tranquila de Hancock, sempre expressa com a máxima delicadeza, sem se rebaixar ou tentar humilhar o interlocutor, mas cativante e conseguindo manter sempre viva a chama do interesse. No momento, Brice Mack não apenas continuava totalmente encantado com o velho, como também se recusava a acreditar que a manhã já se escoara e que a palestra prosseguira durante todo o almoço.
Recordando-se da essência daquele primeiro encontro, o advogado procurava reconstituir os pontos em que as palavras de Hancock o haviam enlevado de tal maneira. Em lugar de abordar a questão da reencarnação com a superioridade de um erudito versado no assunto, o velho sábio transformara o diálogo num jogo, aceitando o ceticismo e as dúvidas de Mack e, em determinadas ocasiões, até mesmo dando a impressão de se deixar confundir, permitindo que o próprio Mack o auxiliasse nas respostas.
A certa altura, Mack interrogara Hancock a respeito das provas que existiam sobre a reencarnação, pedindo-lhe que citasse exemplos específicos, que substanciassem o conceito de que a alma vivia muitas vezes. O velho refletiu longo tempo sobre a pergunta antes de responder.
— Nunca aconteceu comigo, infelizmente. Todavia, muitas pessoas já me afirmaram ter experimentado lembranças fragmentadas de vidas anteriores — momentos em que reconheciam pessoas ou lugares que nunca haviam conhecido ou visitado antes, mas que, não obstante, lhes pareciam perfeitamente familiares.
Brice Mack lembrava-se de várias ocasiões semelhantes em sua própria vida e relatou a Hancock como certa vez, quando era menino, fora mandado para um acampamento de verão durante as férias e, num determinado dia, perdera-se do grupo que fazia uma excursão pela floresta. Irremediavelmente perdido, fora obrigado a passar a noite naquele meio totalmente desconhecido. Lembrava-se de como vagara chorando pela escuridão, até ser dominado pelo sono. Então, com o romper do dia, acordara faminto, amedrontado e com frio, deparando com algo que, de imediato, afastou seus temores e restaurou sua confiança. Foi a visão de um regato que corria sobre as pedras, mal visível através do denso arvoredo, mas tão familiar que chegava a parecer um velho amigo. Sentiu-se abismado por conhecer tão bem o lugar e ser capaz de descrever detalhadamente cada pedra, barranco ou galho caído, tendo a mais absoluta certeza de que já vira antes aquele local — e não fora numa pintura ou fotografia, pois a própria atmosfera perfumada de pinhos e da umidade do orvalho tinha um odor nitidamente reconhecível.
— Sim, sim — concordara o velho sábio, satisfeito. Não há dúvida de que se deparou com uma cena que despertou lembranças de um passado oculto há muito tempo na névoa de uma vida anterior. Tenho certeza, também, de que se aproveitou da experiência passada para encontrar o caminho de volta a um lugar seguro, não foi?
— Isso é o mais estranho de tudo — confessou Mack.
— Naquela altura, todo o bosque me pareceu perfeitamente familiar e não tive a menor dificuldade para encontrar o caminho de volta ao acampamento.
Após um momento de reflexão, o velho fez uma pergunta: — Diga-me uma coisa, Brice: teve uma infância feliz?
— Bem... — respondeu o advogado, sorrindo — éramos pobres.
— Seus pais possuíam algum dom especial ou incomum?
Brice sacudiu os ombros.
— Não particularmente. Não eram intelectuais, se é isso que está querendo saber. Descendiam de uma longa linhagem de camponeses e eram pessoas honestas e trabalhadoras.
— O sal da terra — concluiu Hancock, com evidente sinceridade. — Não é estranho que encontremos, muitas vezes, indícios de "génios" ou de "meninos prodígios" que germinam em solo tão humilde? Crianças que possuem gostos, talentos, predisposições e qualidades que parecem brotar de um solo mais rico que a hereditariedade e o meio ambiente em que nasceram?
Brice Mack corou.
— Bem, eu não sou um génio — ponderou.
— Não obstante, parece gravitar em direção a um grau de realização intelectual que não pode ser explicado por sua hereditariedade nem pelo ambiente familiar. Os adeptos da reencarnação diriam que seu trabalho nesta vida foi predeterminado pelas exigências mentais de uma vida anterior.
Foi nesse ponto da conversa, lembrava-se Brice Mack, que foram interrompidos pela governanta de Hancock, uma velhinha esperta, que parecia tão velha quanto o patrão. Chegara a hora dos remédios de Hancock: quatro pílulas colocadas sobre um imaculado guardanapo de linho, em uma bandeja de estanho, ao lado de uma garrafa de cristal, contendo água, e de um copo também de cristal. Depois que a governanta tornou a encher a xícara de Mack com café e se retirou da sala, levando consigo a bandeja, o advogado recordou-se de outro caso que talvez interessasse a Hancock.
Relacionava-se com o filho de seis anos de um amigo seu — um amigo que ele conhecia desde a infância. Nem o amigo nem a esposa possuíam quaisquer dons artísticos que os diferenciassem das pessoas inteiramente comuns. O menino, porém, aos cinco anos de idade, sentou-se certo dia ao piano e começou a tocar com uma habilidade espantosa, embora nunca tivesse recebido uma lição de música.
— E também há o caso de Pascal — acrescentou o velho, com irreprimível satisfação. — Aos doze anos, sem receber lições, dominava a maior parte da geometria plana e desenhava no chão do quarto todas as figuras do Primeiro livro de Euclides! E Mozart, executando uma sonata ao piano quando tinha apenas quatro anos de idade — e compondo uma ópera aos oito! E Rembrandt, que desenhava como um mestre antes mesmo de aprender a ler. Você consegue duvidar de que essas "almas antigas" vieram à Terra dotadas de poderes notáveis adquiridos em existências passadas?
Não, refletiu Brice Mack com seus botões, chupando o osso de uma costeleta. E o júri também não conseguirá duvidar. O entusiasmo do velho erudito era contagiante. Possuía o dom da palavra e tinha o talento de um vigarista para fazer com que coisas do outro mundo parecessem perfeitamente razoáveis. O júri o ouviria e acreditaria nele.
Mack consultou o relógio. Dezessete para a uma. Nesse momento, a limusine que transportava a essência de sua causa e a salvação de sua reputação profissional estaria percorrendo velozmente a West Side Drive, em direção à Foley Square.
Roendo a costeleta fria e gordurosa, Brice Mack calculou que o tráfego não deveria apresentar problemas àquela hora do dia e que talvez até mesmo o carro já tivesse chegado ao Foro Criminal.
Se fosse possível ao jovem e esperançoso advogado adivinhar que, naquele preciso instante, ao invés de seguir velozmente em direção ao sul, a limusine, com a ajuda da sirene de um carro da polícia para abrir caminho, se dirigia a toda a velocidade ao serviço de emergência do Roosevelt Hospital, transportando a forma catatônica de um homem muito velho e doente, certamente a costeleta de porco que ele devorara com tanta ferocidade estaria vingada, pois não há dúvida de que Brice morreria engasgado com o osso...
Janice recebeu a notícia às três e quinze.
O telefone estava tocando quando ela e Ivy entraram no quarto do Candlemas Inn. Recebendo na portaria uma pilha de recados — todos eles de Bill, dizendo: "Telefone para 555-1461.
Urgente!" —, subiram correndo ao quarto para pedir a ligação.
Mas Bill já estava ligando para elas mais uma vez.
— Onde, diabo, você se meteu? — berrou Bill com uma petulância violenta e histérica que Janice suspeitou ser resultante tanto do álcool quanto da raiva.
— Saí — replicou ela, fingindo calma para não preocupar Ivy.
— Saiu? Que diabo, Janice! Mandei que ficasse junto ao telefone!
A voz de Bill vibrava no fone, causando estática.
Janice sentiu vontade de desligar, mas dominou-se. Ao invés disso, perguntou: — O que há?
— O que há? — imitou ele. — Onde, diabo, esteve você, afinal? Está tudo no rádio e na televisão!
Janice continuou a controlar-se.
— O quê? — perguntou, obrigando Bill a continuar.
— A defesa foi pelos ares! — gritou ele, num delírio de hostilidade e satisfação.
A seguir, relatou os incríveis acontecimentos daquela manhã. Depois — e a voz estridente de Bill cresceu ainda mais de volume e emoção ao soltar a verdadeira bomba — o repentino ataque cardíaco de James Beardsley Hancock, a principal testemunha da defesa, que agora estava fora de combate, talvez para sempre...
— Infarto do miocárdio — explicou Bill. — O último boletim do hospital informou que ele está em coma profundo, em estado crítico. Brice Mack solicitou ao juiz um adiamento até amanhã, para reorganizar a defesa e — diabo! — Velíe foi obrigado a concordar porque você sumiu e ele tinha receio de que Mack resolvesse chamá-la logo em seguida...
— Oh — murmurou Janice.
— Velie está furioso, Janice. E eu também. Eles estavam desequilibrados, confusos. Esse maldito caso poderia ter sido encerrado de uma vez por todas ainda hoje.
Agora, os miseráveis terão tempo para reformular a tática e contra-atacar.
— Sinto muito — murmurou Janice.
— Que diabo! — a voz de Bill perdeu um pouco da agressividade. — Não podemos andar por aí, fazendo o que nos dá na cabeça, Janice. Não estamos levando uma vida normal: estamos numa guerra!
— Eu sei — replicou Janice em voz baixa, mantendo um tom adequado de ambiguidade. Sentiu que Bill pesava o que ela acabava de dizer. Quando tornou a falar, mostrou-se nitidamente mais calmo.
— Como está Ivy?
— Está aqui comigo. Quer falar com ela?
— Como está ela, Janice? — insistiu ele.
— Muito bem... acho.
— Você acha? Que quer dizer com isso? Ela está doente ou não está?
— A garganta está melhor e a tosse passou.
— Bem, nesse caso, traga-a para a cidade com você! Janice foi apanhada de surpresa.
— Quando?
— Agora. No próximo trem. Não demore para pagar a conta do hotel.
Janice hesitou.
— Ela prefere ficar na escola.
— E eu prefiro que ela fique em casa, onde podemos vigiá-la.
Janice protestou: — Mas passaremos os dias inteiros no tribunal...
— Ela estará mais perto de nós do que se ficar na escola.
Contratarei uma ama, ou uma enfermeira, se você preferir.
Arrume as bagagens e traga Ivy para cá, está bem?
Janice sentia o sangue latejar nas têmporas. Ivy não devia retornar à cidade. Sabia que não devia ceder à vontade do marido em relação à questão; não obstante, trazer à baila os motivos pelos quais ela não devia ceder só serviria para reviver a raiva de Bill e trazer nova onda de escárnio e desprezo para com os temores que ele considerava não apenas uma tolice como também uma traição por parte dela.
— Janice? — insistiu Bill, após uma pausa por demais prolongada. — Estarei esperando vocês duas esta noite, está bem?
Janice teve vontade de largar o fone, sem saber como responder ao marido. Então, num impulso repentino que chegou a surpreendê-la, entregou o telefone a Ivy, dizendo: — Tome, querida. Papai quer falar com você.
O sorriso feliz e confiante da menina trouxe uma onda de vergonha e calor ao rosto de Janice. Era difícil sorrir e permanecer calada enquanto Ivy tagarelava inocentemente com o pai, sem a menor consciência de que fora usada como "tapa buraco" numa situação irremediável.
— ...mas não posso voltar para casa agora — implorou a menina. — Amanhã vai ser a coroação de Sylvester e eu não posso faltar. Trabalhamos tanto para fazê-lo. Por favor, papai, deixe-me ficar!
Seus patéticos apelos conseguiram gradativamente despertar alguma receptividade. Janice viu as nuvens sombrias se dispersarem e o sol alegre voltar ao rosto da filha.
— Muito obrigada, papai! — exclamou Ivy. — E, por favor, não se preocupe. Estou mesmo me sentindo muito melhor.
Ainda não tossi desde que voltamos para o quarto.
O olhar de Ivy procurou Janice.
— Sim, ela está aqui. Vou passar o telefone. Eu o amo, papai...
Janice segurou com força o fone. Ouvindo a respiração de Bill na outra extremidade da linha, pigarreou de leve.
— Muito obrigada — disse ela secamente. — Muitíssimo obrigada.
O comentário não exigia resposta e Janice permaneceu calada.
— Que negócio é esse de coroação?
— É uma festa que fazem todos os anos na escola, com o boneco de neve.
Houve uma breve pausa.
— Acha certo deixar Ivy aí?
— Acho, sim — replicou Janice, firme.
A voz de Bill parecia resignada.
— Está bem. Volte assim que puder. Espero-a para jantar.
— Ótimo.
Janice desligou e se virou para Ivy.
— Se você quer voltar à escola a tempo para o jantar, precisamos andar depressa e arrumar tudo.
— Já arrumei minha mala — disse Ivy, ligeiramente nervosa.
— Não se lembra?
Sim, Janice se lembrava. No momento, tinha dificuldade para se lembrar — principalmente porque, com a lembrança, voltava também o aperto no coração, a sensação de medo que a perseguia ímplacavelmente desde que Bill partira na véspera. As coisas que tinham acontecido — em quanto tempo? —, sim, em menos de vinte e quatro horas, coisas que Bill certamente consideraria corriqueiras e inofensivas, mas que, passo a passo, haviam-na mergulhado de volta num estado de pânico e desespero.
Tudo começara domingo à noite, algumas horas depois que ela e Ivy tinham ido deitar-se. Janice fora dormir no quarto e Ivy na sala de estar, logo ao lado. Janice pensara em compartilhar com a filha a espaçosa cama de casal e certamente o faria se Ivy quisesse, mas, desde que a menina não tocara no assunto, a mãe preferiu deixar as coisas como estavam.
Depois de trocarem palavras de boa noite na escuridão, Ivy perguntou: — Mamãe, como se chama ela?
Janice ficou perturbada, pois sabia perfeitamente a quem Ivy se referia. Mesmo assim, perguntou: — Quem?
— A filhinha de Mr. Hoover.
— Audrey Rose.
Janice percebeu que Ivy ruminava a resposta.
— Bonito nome.
Após uma pausa, Ivy resolveu insistir: — Você acha que ela se parecia comigo?
— Não — replicou Janice, brusca.
— Como sabe?
— Ele nos mostrou uma fotografia da filha. Tinha cabelos pretos, olhos escuros e o rosto era diferente do seu.
Então, decidida a encerrar a conversa: — Vamos tratar de dormir agora, querida?
— Vamos. Boa noite, mamãe.
— Boa noite.
Mais tarde, Janice foi acordada por algum movimento ou ruído. Percebeu que era o leve rangido da porta de comunicação entre o quarto e a sala. Viu uma fresta de luz antes que a porta se fechasse.
Alertada pela possibilidade de Ivy estar doente, Janice se levantou da cama sem acender a luz e caminhou silenciosamente até a porta. Abriu-a com muito cuidado e verificou que a luz vinha do banheiro, situado na outra extremidade da sala. Normalmente, limitar-se-ia a chamar Ivy e indagar se tudo estava bem. Todavia, uma sensação esquisita, muito vaga e indefinida, alterou seu procedimento. Descalça, atravessou a sala mal iluminada até um ponto ainda distante do banheiro, mas do qual podia ver através da porta entreaberta.
Estacou, surpresa.
Ivy estava em pé diante do espelho de parede, completamente nua, fitando, como se hipnotizada, sua própria imagem refletida. Tinha os seios — que começavam a brotar — bem próximos ao vidro. Havia uma luz estranha, louca, no olhar que parecia querer penetrar nos olhos refletidos pelo espelho, tentando atravessá-los para mergulhar na
escuridão impenetrável que havia além deles. Por um instante, Janice julgou que aquilo fosse o prenúncio de mais um pesadelo — pois a proximidade do espelho, a expressão fixa e vazia, a imobilidade total da menina, tudo parecia indicar isso.
Entretanto, quando Janice estava prestes a entrar no banheiro, Ivy começou a rir baixinho, de repente. Risadinhas agudas, infantis, dirigidas à imagem refletida no espelho, aos olhos que devolviam a expressão vazia. Janice sentiu os joelhos tremerem.
A visão da filha despida, o risinho bizarro que parecia a um só tempo inocentemente infantil e hediondamente sinistro, imobilizaram-na. Então, o riso cessou de modo tão repentino quanto começara e Ivy, em voz baixa, zombeteira, começou a chamar: — Audrey Rose? Audrey Rose?
Janice apoiou-se num móvel e, depois, sem fazer ruído, girou nas pernas trêmulas e voltou para o quarto, fechando silenciosamente a porta. Acendendo a lâmpada da mesa-de-cabeceira, olhou o relógio. Meia-noite e dez. Acendera a luz e fizera barulho propositalmente, a fim de alertar Ivy. Pouco depois, Janice ouviu o ruído da descarga no banheiro e, em seguida, os passos de Ivy, que voltava à cama. Janice ainda esperou um pouco antes de abrir a porta e olhar para a filha. Ivy estava deitada de lado, com o rosto virado para a parede, o cobertor puxado até o pescoço. Seu pijama estava no chão, ao lado da cama.
— Tudo bem? — indagou Janice.
Ivy virou-se para encarar a mãe com o rosto sonolento expressando ternura e a mais cândida inocência infantil.
— Hummm — murmurou, sorrindo. — Fui ao banheiro.
Janice não conseguiu dormir. Os temores, terrores, complicações, confusões, momentos infelizes — todas as febris preocupações dos últimos meses perseguiram-na implacavelmente até o nascer do dia.
Afinal, conseguiu cochilar. Foi despertada com um raio de sol, quente e brilhante, que incidia sobre seus olhos. Durante um momento não se lembrou de onde estava. Sentia apenas a forte luz em seus olhos e uma voz que gritava: — Mamãe! Mamãe!
Sentou-se na cama.
— Sim... o que é?
Levantando-se, correu para a porta, escancarando-a. Ivy, usando o pijama, estava de pé no centro da sala, os cabelos louros em desalinho, o rosto contorcido de espanto e angústia.
— Mamãe, minhas coisas sumiram! Todas as minhas roupas: vestidos, jeans, blusas — tudo!
— Sumiram? Como "sumiram"?
Janice se encaminhou automaticamente para o armário.
— Foram roubadas! — insistiu Ivy. — Alguém roubou tudo!
Escova de cabelo, pasta de dentes, xampu — tudo! Até mesmo meu remédio!
E tossiu, numa reação reflexa. —, É impossível...
— Pois veja por você mesma — retrucou Ivy, irritada, apontando para as roupas que estavam em cima de uma cadeira.
— Só não levaram as roupas que usei ontem. E meu chapéu e casaco.
Janice abriu o armário e deparou com uma fileira de cabides vazios. Olhou para o fundo do armário. Nem botas, nem sapatos. Sentiu um suor frio e pegajoso na testa e procurou dominar a preocupação, a fim de evitar que Ivy ficasse ainda mais assustada. Indo até a penteadeira, abriu todas as gavetas, certificando-se de que estavam vazias.
Os lábios de Ivy se franziram num sorriso sem humor.
— Os ladrões devem ter entrado enquanto dormíamos, mamãe.
Janice exibiu um sorriso forçado.
— Por que desejariam roubar suas roupas?
Antes mesmo de terminar a frase, avistou a ponta da maleta aparecendo por baixo da beira da cama.
— Parece que não quiseram levar sua mala — comentou, puxando a mala para o meio da sala e sentindo que estava pesada. Quando soltou os fechos, a tampa da mala só faltou explodir sob a pressão de roupas, escovas, botas, sapatos, vidros — tudo muito bem arrumado.
Virando-se para Ivy a fim de interpelá-la, Janice se conteve ante a expressão de atordoamento e espanto da menina — uma expressão inteiramente genuína e espontânea que ator algum seria capaz de simular.
— Quem fez isso? — indagou Ivy, perturbada.
— Uma de nós duas deve ter arrumado a mala — replicou Janice, aparentando despreocupação.
— Não fui eu! — declarou Ivy, colocando toda a ênfase de que era capaz na negativa.
Janice não tinha a menor dúvida de que a própria Ivy arrumara a mala durante a noite, como também tinha absoluta certeza de que a menina não se lembrava de tê-lo feito.
Mais tarde, durante o café da manhã, Ivy sugeriu a possibilidade de Bill ter arrumado a mala antes de partir de volta à cidade.
— Você sabe como papai está ansioso para me levar de volta para casa. Ele não gosta que eu fique aqui na escola.
Talvez tenha desejado demonstrar isso.
— Quer dizer, como uma insinuação?
— É possível, não acha?
— É possível — conseguiu dizer Janice, largando no pires a xícara que ameaçava entornar por causa do tremor de sua mão.
Ainda não eram sete horas e as duas estavam sozinhas no restaurante do hotel. Lá fora, brilhava uma dessas raras manhãs de inverno nas quais o sol parece derramar uma luz cálida e bondosa sobre o mundo inteiro. Ivy sugeriu que seria ótimo fazerem um piquenique na praia. Embora isso implicasse ter que abandonar o posto de sentinela junto ao telefone, Janice apressou-se em concordar, esperando que a terapia de ar salgado e areia quente de sol concorresse para acalmar seu corpo e espírito. Seu cérebro era uma verdadeira tempestade de pensamentos e conjeturas, um redemoinho de vagos temores que se centralizavam num único fato: Ivy arrumara a mala sem estar consciente de que o fizera. Por quê? O que significaria aquilo? Se o ato estava fora do controle de Ivy, então Audrey Rose devia ser a força que impelira a menina a realizá-lo. Se assim fosse, tratar-se-ia meramente de uma manifestação simbólica, ou teria aplicação prática? Uma viagem... Estaria Audrey Rose impelindo Ivy de volta à cidade? De volta ao lar — e a Hoover? Seria essa a sua intenção? E, se realmente fosse, como pretendia ela alcançar o objetivo? Uma menina de dez anos... sozinha... sem dinheiro... sem ter a menor experiência de viajar? As perguntas atordoavam Janice, fazendo aflorar a seus lábios um sorriso retorcido de abalo, colocando em seus olhos uma expressão atónita e confusa. Se Bill tomasse conhecimento daqueles temores, certamente trataria de interná-la num hospício...
Os temores se confirmaram um pouco mais tarde, ainda naquela manhã.
Na praia, sob nuvens cinzentas e fortes rajadas de vento, Janice estava sentada num cobertor, observando Ivy, que, perto do mar, jogava conchas. Uma súbita e violenta rajada de vento jogou um grão de areia em seu olho, que começou a lacrimejar violentamente. Janice tateou na bolsa à procura de um lenço de papel, não conseguindo encontrar. Espiando com o olho são, verificou que, às apalpadelas, pegara por engano a bolsa de Ivy.
Quase no mesmo instante achou o horário de trens — um folheto impresso pela ferrovia Nova York, New Haven Hartford, enumerando os horários de partida e chegada dos trens entre Nova York e Westport. Esquecendo a dor nos olhos, Janice continuou a revistar apressadamente a bolsa, lançando olhares sub-reptícios a Ivy, que continuava a brincar à beira-mar, com as costas voltadas para a mãe. Esta pegou uma bolsinha azul de cetim. Encontrou a nota de dez dólares numa carteira de plástico, dobrada entre duas fotografias, uma de Janice e outra de Bill.
Sentiu-se engolfada por uma sombria névoa de maus presságios. Guardou tanto o horário de trens quanto a nota de dez dólares em sua própria bolsa, tendo a impressão de que nuvens negras começavam a toldar o dia bonito.
Sabia que a filha, por livre e espontânea vontade, ou servindo de instrumento inconsciente aos desígnios de Audrey Rose, desesperada para voltar à cidade, retirara o folheto e o dinheiro de sua bolsa.
Havia um modo de verificar. Quando Ivy caminhou em sua direção, cabisbaixa e pensativa, Janice indagou com naturalidade: — Vamos para casa, querida?
— Para o hotel?
— Não, para a cidade, para o papai.
— Tenho que ir?
— Você não quer?
— Não, agora não, por favor! — exclamou a menina, numa explosão evidentemente sincera. — Preciso voltar para a escola.
Estão acontecendo muitas coisas que eu não posso perder.
Amanhã será a coroação e, depois, vai ter uma festa no salão.
Há muitas semanas que não falamos de outra coisa! Por favor, mamãe, não me leve de volta à cidade!
Ivy ajoelhara-se diante de Janice, colocando o rosto molhado de lágrimas bem junto ao da mãe.
— Está bem, está bem — replicou Janice em tom conciliatório, estendendo a mão para enxugar o rosto pálido e preocupado da menina. — É claro que você pode ficar.
Olhando para os olhos azuis que fitavam os seus com tanta candura, notando a expressão séria e, ao mesmo tempo, terna dos lábios de Ivy, Janice não teve a menor dúvida a respeito de quem roubara as coisas de sua bolsa — e por quê!
Janice chegou à Estação Grand Central no trem das sete e cinco. Não teve dificuldade para pegar um táxi na rampa de saída da Vanderbilt Avenue.
Tendo comprado a edição vespertina do Post na estação, correu os olhos pelas manchetes. À luz dos postes e vitrines que passavam lá fora, não encontrou coisa alguma de interesse na primeira página.
Mas a reportagem enchia toda a terceira página e continuava nas páginas trinta e sete e trinta e oito, repleta de ilustrações que descreviam o tumulto havido naquela manhã.
Um pequeno quadro tarjado no centro da página noticiava o ataque cardíaco sofrido por James Beardsley Hancock e trazia uma declaração do Dr. John Whiting, cardiologista encarregado da Unidade de Tratamento Intensivo do Roosevelt Hospital: "As condições do paciente são críticas, mas ele parece resistir bem.
Só poderemos dizer alguma coisa daqui a doze horas".
Entrando no saguão do edifício Des Artistes, Janice teve a impressão de que passara meses fora de casa. Tanto Mário como Dominick a cumprimentaram efusivamente. Pairava no ar uma sensação de vitória, a espécie de delírio de júbilo que ocorre no final de uma guerra.
Até mesmo Bill estava eufórico, entusiasmado com o sucesso do dia e disposto a comemorar — o que era totalmente inesperado para Janice, que se preparara para uma noite cheia de irritação e de discussões e, ao invés disso, foi recebida com festiva alegria e beijos carinhosos. Depois das preocupações das últimas vinte e quatro horas, era exatamente o que ela necessitava.
A mesa, colocada em frente à lareira, fora arrumada com meticulosidade e carinho para duas pessoas. O fogo crepitava, exalando um calor perfumado de pinho. Um garrafão de Taittinger estava gelando no balde de prata. Grandes maçãs vermelhas, um queijo brie e um pato assado numa travessa de papel aluminisado, guarnecida com legumes, esperavam por ela.
Janice ficou desvanecida.
— Que lindo! — exclamou.
Bill sorriu, girando a garrafa de champanhe no gelo. Parecia perfeitamente sóbrio, o que significava que dormira após o telefonema. Usava um robe por cima do pijama e fitava Janice com ar significativo.
— Não demore — pediu, num tom que não escapou a Janice quando esta subiu para o quarto.
Bill calculou o tempo com exatidão, de modo que a rolha do champanhe se abriu com um barulho característico no preciso momento em que Janice, usando um peignoir transparente, começava a descer a escada.
O primeiro brinde foi ao sucesso.
— Pel Simmons telefonou — disse Bill, sorrindo com grande satisfação. — O velho ficou realmente entusiasmado com o que aconteceu hoje. Mal conseguia parar de rir. Ficou repetindo as congratulações, como se eu fosse o responsável pela vitória.
Mesmo assim, foi bom escutá-lo — acrescentou, esvaziando a taça. — Devolve a confiança.
Tornou a encher as taças. O segundo brinde foi à saúde — deles e de Ivy.
— Temos passado por muita coisa — disse Bill, com expressão mais séria. — Demais. Mas tudo acabará logo. O noticiário das sete horas informou que Hancock está piorando depressa. Pobre velho...
A expressão de tristeza que tentava exibir não conseguia disfarçar o tom exultante de sua voz.
— A defesa está desbaratada. Velie me contou que os dois advogados assistentes de Mack passaram a tarde no hospital, tentando convencer os médicos a darem autorização para que Hancock assinasse uma declaração, ou coisa semelhante.
Acontece que o velho está em situação crítica e isso nunca acontecerá — concluiu Bill, com um sorriso. — Chegou a hora do desespero, para eles.
Tornou a se servir de champanhe.
— Tudo terminará — assegurou ele a Janice. — Tudo o que precisamos fazer agora é esperar e manter a calma. O tempo e as testemunhas de Mack já se esgotaram. Velie contou que Hoover vetou a última testemunha "perita" de Mack — você sabe, aquela mulher que dá espetáculos: a bruxa.
Bill soltou uma risada, prosseguindo: — Não consigo culpar o pobre maluco. Provavelmente, foi a melhor decisão que tomou até agora. com o azar que estão tendo, é bem provável que ela fizesse bruxarias no tribunal... transformasse Langley num morcego — afinal, ele já está meio caduco...
Janice manteve um leve sorriso com o qual esperava conseguir esconder o choque que sentia ante as palavras irreverentes e maldosas do marido.
— A esta hora, amanhã, tudo estará praticamente acabado — continuou ele em voz pastosa, largando a taça na mesa e se aproximando da mulher. — Então, quando tudo acabar, há muita coisa que precisarei fazer para compensar você. Sei como tenho sido, Janice. E sei também como não tenho sido.
Janice sentiu o corpo contrair-se quando o marido a beijou.
Tentou controlar-se, relaxar-se, mas não conseguiu. Bill não percebeu — ou não se importou.
Fizeram amor no tapete — insatisfatoriamente. Depois, jantaram e foram deitar-se.
Bill adormeceu antes de Janice.
Às três da tarde daquele mesmo dia, Brice Mack, de sobretudo, chapéu e carregando uma volumosa pasta, saiu da sala de entrevistas e começou a caminhar pelo comprido corredor deserto em direção aos elevadores. Caminhava pesadamente, com dor de cabeça, sentindo as fortes luzes fluorescentes do teto, que se refletiam nas paredes pintadas de branco, incomodarem seus olhos. Estava sofrendo todos os sintomas habituais que se seguiam a mais uma claustrofóbica reunião com Elliot Hoover. Desta vez, porém, em vez de se atenuarem, os sintomas pareciam estar aumentando. com um sorriso desanimado, Brice Mack refletiu que sua pressão arterial deveria estar bem alta. Preferiu não pensar mais nisso.
A reunião fora normal — previsível e totalmente bizarra.
Mack já sabia com antecedência que não haveria possibilidade de fazer com que seu cliente entendesse a gravidade da situação, compreendesse que estavam no fim da linha e que perderiam o caso se não agissem com agressividade e ousadia.
— Parece que você não entende — insistiu Mack, ansioso. — Não nos resta mais ninguém. Quando o Professor Ahmanson conseguir encontrar alguém para substituir Hancock, já será tarde demais — a menos que utilizemos Marion Worthman para tapar o buraco. Eu poderia prolongar o interrogatório dela durante dias a fio.
Os olhos de Hoover se apertaram numa expressão cínica, estudando atentamente o advogado suarento.
— Não se preocupe tanto, advogado — disse em tom imperioso. Então, acrescentou enigmaticamente: — Esta causa não será ganha pela presença de Mrs. Worthman, nem perdida pela ausência dela. Quer você acredite ou não, o veredicto já está decidido. Já foi decidido muito antes de você aceitar o caso.
O comentário deixou Brice Mack literalmente atónito. Por um instante, teve a impressão de que iria explodir numa gargalhada. Não se poderia dizer que suas relações com Elliot Hoover até aquele momento tivessem sido inteiramente lógicas e sensatas, mas isso... isso era pura e rematada loucura de hospício!
— Nada posso dizer a respeito, Mr. Hoover — replicou Mack. — Não defendo minhas causas com uma bola de cristal.
Sou obrigado a depender dos métodos simples, comuns e cotidianos prescritos pelas normas judiciais.
Hoover não se mostrou impressionado nem ofendido pela resposta, parecendo ignorá-la completamente. Debruçou-se sobre a mesa e, com um sorriso superior, confidenciou a Brice Mack: — Um grande homem disse, certa vez: "A coincidência, desde que persista por muito tempo, transforma-se no inevitável". O que aconteceu hoje, por exemplo — a grosseira e vergonhosa degradação de um santo homem, a súbita enfermidade grave de uma testemunha-chave —, não são simplesmente ocorrências arbitrárias mas passos essenciais de um movimento infinitamente mais amplo e complexo, que conduzirá inevitavelmente a uma conclusão predeterminada, cuja natureza exata nos será revelada no devido tempo. Nada que você ou eu façamos poderá alterar seu rumo. É evidente para mim, agora, que a defesa que você planejou e estruturou com tanto cuidado esteve sempre fadada a fracassar. Em outras palavras: você tentou manipular algo que não pode ser manipulado. Impulsionado pela ambição pessoal, tentou intrometer-se no funcionamento de uma força que está muito além de seu discernimento — e foi totalmente repudiado. Não há mais necessidade de esforçar-se, planejar e lutar para defender minha causa. Tudo se resolverá por si mesmo.
Portanto, trate de relaxar e descansar. A máquina continuará a funcionar por conta própria. Mesmo agora, enquanto estamos aqui conversando, as forças tomam posição para impulsionar o andamento da máquina e produzir os acontecimentos e as pessoas que testemunharão minha inocência e me farão justiça.
Uma filosofia louca, embora reconfortante, pensou Mack, esperando o elevador. Sim, uma filosofia muito reconfortante — até que se chegasse ao ponto de saber quem seriam aquelas "pessoas". Certamente não seriam os Templeton, mesmo admitindo a fé de escoteiro que Elliot Hoover depositava na honestidade e integridade básicas de Janice Templeton. Nem a salvação desceria sobre o tribunal como um raio lançado pelos céus. O advogado riu baixinho. Milagres! Se isso fosse possível, quem precisaria de advogados? Trate de relaxar e descansar, dissera o homem. Claro, no asilo de indigentes — pois em breve estariam todos desempregados...
Embora, naquele momento, essas reflexões fossem apenas uma consequência da frustração, permaneceriam gravadas na mente do advogado pelo resto de sua vida, pois, no exato momento em que o elevador que descia parou, o elevador que subia também parou, trazendo Reggie Brennigan. Mais tarde, Brice Mack ficaria profundamente intrigado pela coincidência de ambos os elevadores terem parado exatamente ao mesmo tempo e de o detetive ter saltado de um no mesmo momento em que o advogado entrava no outro, sem terem se avistado, até que Mack, virando-se do interior do elevador, avistou a gola manchada e puída do sobretudo, o chapéu velho e surrado, o grosso pescoço vermelho. Mais tarde, Mack tentaria adivinhar a causa do impulso que o levara a enfiar o braço pela abertura da porta que se fechava.
— Ah! Aqui está você, meu menino — exclamou o ex-policial, exalando um bafo de bebida no rosto de Mack.
— Onde, diabo, se meteu? — grunhiu o advogado, nauseado.
— Por aí — replicou Brennigan, com um sorriso matreiro, apalpando o bolso do casaco. Em seguida, apontando para o banheiro dos homens, na extremidade do corredor, sugeriu: — Vamos até a suíte presidencial?
Os olhos lacrimosos tentaram um brilho brincalhão e falharam.
Poucos minutos mais tarde, Brice Mack estava no interior de um banheiro, com a porta trancada, sentado no vaso sanitário com as calças arriadas — tudo por exigência de Brennigan, "para manter as aparências, como sabe..." O detetive ocupava a privada ao lado, sentado de maneira semelhante, e, só depois de certificar-se cuidadosamente de que a "barra estava limpa", entregou seu achado a Mack, passando-o por debaixo da parede divisória.
As várias dúzias de ampliações fotográficas eram de qualidade tão inferior que o advogado mal conseguiu identificá-
las no interior da privada mal iluminada. Eram fotografias de documentos redigidos numa caligrafia apressada que, na melhor das hipóteses, seria muito difícil de ler. Examinando as fotos, Mack parou numa que fez seu coração dar um salto. Tratava-se da fotografia de uma pasta de arquivo com o nome "Templeton" em letras de forma no indicador.
Durante os cinco minutos seguintes, o advogado, obrigando seus poderes de percepção a ultrapassarem os limites normais, conseguiu encontrar nos documentos dados suficientes para convencê-lo de que ali estava a essência de sua defesa: o tão necessário elemento que faltava.
Com o rosto afogueado, indagou finalmente de Brennigan, em voz engasgada: — Este material é genuíno?
O detetive soltou uma risadinha no outro lado da divisória.
— Vagina de porca é carne de porco?
— Meu Deus! Onde encontrou isto?
— Onde estava guardado há sete anos — na sala de arquivos da Clínica Psiquiátrica Park East, na esquina da 106th com a Fifth Avenue.
— Meu Deus!
Mack não conseguia ocultar a excitação.
— Como conseguiu entrar? Isto é... como conseguiu tirar as fotografias?
— Quer mesmo saber?
— Não importa — replicou depressa o advogado.
Ouviu o riso de Brennigan, seguido de um barulho peculiar, como se o detetive bebesse algo no gargalo de uma garrafa.
— Conversou com essa tal Dra. Vassar?
— Não; ela já morreu. Falei com um médico chamado Perez, um jovem gringo tagarela que foi assistente dela. Sabe tudo a respeito do caso.
— Meu Deus!... — foi tudo o que Mack conseguiu dizer.
Nesse ponto, alguém entrou no banheiro dos homens e se trancou numa privada na outra extremidade. Durante cinco minutos de silêncio forçado, as emoções de Brice Mack percorreram toda a escala desde o mais delirante entusiasmo até o mais negro desânimo. Depois que o intruso deu a descarga, lavou as mãos, penteou o cabelo, assoviou alguns compassos de You'll never walk alone e saiu, o advogado descarregou seu desespero sobre o velho detetive.
— Jamais conseguiremos apresentar isto como prova no tribunal. É material sigiloso.
Um riso baixinho, esquisito, que o advogado julgou a princípio tratar-se de um peido, precedeu o aparecimento, por baixo da divisória, de uma nova pilha de documentos.
Incrivelmente, eram cópias xerografadas de uma declaração de imposto de renda referente ao ano de 1967: a declaração conjunta de William P. e Janice Templeton.
O espanto de Mack não encontrava limites.
— Não me diga que também invadiu o Ministério da Fazenda!
— Algum dia eu lhe contarei tudo — riu o detetive, acrescentando: — Procure a página marcada com um clipe.
Os dedos trêmulos de Mack encontraram o clipe e viraram uma página referente às deduções de despesas médicas: uma longa e detalhada lista que, apenas pouco a pouco, revelou o grande segredo. Ali estava, em duas linhas separadas, a indicação da Clínica Psiquiátrica Park East. E, logo abaixo, o item que quebrava a obrigação de sigilo!
Era demais para ser absorvido de uma só vez pelo cérebro cansado e atribulado do advogado. Era demais para ser considerado por um homem sentado num vaso sanitário, com as calças arriadas, no coração da cidadela jurídica da cidade.
Brice Mack sacudiu a cabeça dolorida num gesto fatigado, mas feliz, e tentou recostar-se à parede, no que foi impedido por um emaranhado de canos e registros. Começou a rir. O riso foi logo acompanhado pela gargalhada do velho, embriagado e rubicundo ex-policial que estava sentado na privada ao lado.
Mack imaginou os olhos congestionados no rosto muito vermelho e cheio de rugas. Aquela imagem lhe calou fundo no coração. O riso diminuiu à medida que a memória passou a dominar — a lembrança de algo que seu pai lhe dissera, havia muitos anos, a respeito de um mendigo que batera à porta pedindo esmola e, por algum motivo, fora mandado embora.
— Sinto muito não poder ajudá-lo — dissera o pai de Mack em iídiche, chorando. — Trata-se de um homem, de uma criatura feita à imagem de Deus, com uma mente e um espírito que poderiam ter sido a salvação do mundo. Sinto muito não poder ajudá-lo.
Um sorriso humilde franziu os lábios de Brice Mack quando ele pensou em todas as avenidas que Reggie Brennigan aquela criatura feita à imagem de Deus — abrira para ele. Então, lembrando-se do que lhe dissera Elliot Hoover, parou de sorrir.
A máquina continua a funcionar por si mesma — posicionando forças, criando acontecimentos, trazendo pessoas...
Seria possível?
Seria realmente possível?
21
Bill teve uma súbita sensação de déjà vu quando o homem esguio e moreno, esplendidamente trajado com um terno escuro e carregando uma pasta fina, entrou na sala do tribunal às oito e cinquenta e cinco da manhã de terça-feira. Bill tinha a certeza de já ter visto aquele homem em algum lugar, recentemente; de ter visto aquele rosto bem perto, num rápido encontro. Não conseguia se lembrar da ocasião, mas a certeza de conhecer o homem lhe provocou uma instintiva reação de pânico.
O olhar de Bill se fixou ostensivamente no rosto do homem moreno enquanto este passava pela balaustrada e tomava assento na ponta da mesma fila que Bill ocupava.
Então, com uma pontada de fraqueza e ansiedade, lembrou-se da identidade do recém-chegado. Conhecera-o na Clínica Psiquiátrica Park East. Quase tinha esbarrado com ele no corredor, no dia em que fora examinar as anotações da Dra.
Vassar.
Um suor frio brotou na testa de Bill quando o Juiz Langley, aborrecido e fatigado, chegou ao tribunal e abriu apressadamente a sessão. A lembrança de Bill quanto ao nome do homem foi logo refrescada por Brice Mack, que se ergueu e declarou num tom animado e ansioso: — Minha próxima testemunha é o Dr. Gregory Alonzo Perez.
No mesmo instante em que Perez se ergueu, Janice percebeu a rápida e intrigada expressão nos olhos de Scott Velie, ao se voltar para observar a testemunha, que se encaminhava para o banco, e, em seguida, lançar a Bill um olhar intensamente inquisitivo. A única reação de Bill foi suspirar fundamente e sacudir a cabeça em desânimo.
Os jornalistas, ávidos por notícias, inclinaram-se nas poltronas enquanto a testemunha prestava juramento perante o meirinho. Seguiu-se um silêncio delicado enquanto Brice Mack permitia que Perez se acomodasse.
— Pode dizer seu nome completo, por favor? — perguntou o advogado em tom suave e amistoso.
— Gregory Alonzo Federico Perez.
— E sua profissão?
— Sou médico psiquiatra.
Bill reconheceu a voz fina, com sotaque espanhol, com quem mantivera uma conversa telefónica há mais de dois meses.
— Tem licença para exercer sua profissão nesta cidade?
— Sim.
— Qual é o endereço de seu consultório?
— Sou médico da Clínica Psiquiátrica Park East, na Fifth Avenue, 1010.
Uma expressão de medo surgiu no rosto de Janice à menção da clínica.
— O senhor pode dizer ao júri quando começou a trabalhar na Clínica Park East?
— Logo após completar meu treinamento no Enoch Pratt Hospital, em Towson, Maryland, fui trabalhar como interno na Park East, em 1966.
— Nessa ocasião, foi apresentado à Dra. Ellen Vassar? Scott Velie franziu os lábios como se fosse falar, mas mudou de idéia.
— Sim, trabalhei intimamente com a Dra. Vassar, na qualidade de seu assistente, durante seis anos, até sua morte em 1972.
— Seria correto supor que, durante esse tempo, o senhor conhecia a maioria dos casos tratados pela Dra. Vassar?
— Sim. Todos os seus casos.
— Tomou conhecimento de um caso envolvendo uma paciente chamada Ivy Templeton, que foi tratada pela Dra.
Vassar durante o período iniciado a 12 de dezembro de 1966 e terminado em 23 de setembro de 1967?
Scott Velie ergueu-se vagarosamente com a testa franzida num ar pensativo, e declarou em tom seco, despido de dramaticidade:
— Meritíssimo, trata-se de informação sigilosa. A defesa está abordando o relacionamento entre médico e paciente, que é assunto sigiloso. Protestamos com base nesse ponto.
Brice Mack, observando o júri com um olhar de esguelha, interpôs, depressa: — Não há dúvida quanto ao sigilo, Meritíssimo; todavia, neste caso, os pais da menina abriram mão desse privilégio.
Velie retrucou de imediato: — Meritíssimo, em momento algum os pais de Ivy Templeton abriram mão do privilégio de sigilo. Afirmo que a pergunta viola a norma de sigilo nas relações médico-paciente, e protesto...
O Juiz Langley bateu com o martelo na mesa e interrompeu: — Um momento.
Voltando-se para Brice Mack, indagou: — O senhor pode apresentar provas que confirmem sua alegação?
Mack, saboreando a ocasião, respondeu: — Peço autorização para apresentar como prova e juntar aos autos três documentos que estabelecem claramente a abdicação dos pais de Ivy Templeton ao privilégio de sigilo das relações médico-paciente. Número 1: o formulário de seguro apresentado por Mr. e Mrs. Templeton à Cia. de Seguros Mutual de Manhattan. Número 2: o questionário da Cia. de Seguros Mutual de Manhattan, completado pela Dra. Vassar e devolvido à companhia de seguros. E número 3: o laudo médico suplementar relativo às perturbações mentais de Ivy Templeton, redigido pela Dra. Vassar e apresentado à Cia. de Seguros Mutual de Manhattan — tudo isso a pedido e com a autorização de Mr. e Mrs. Templeton.
— Não se trata de uma abdicação! Isso foi feito com o objetivo de receber o seguro e não com a intenção de revelar a natureza da enfermidade da criança!
O Juiz Langley bateu o martelo.
— Não podem fazer o bolo e comê-lo sozinhos — advertiu ele ao promotor. — Desejavam o reembolso do seguro e não apresentaram objeções a prestar informações a terceiros com referência à doença da menina — no caso, os arquivistas, datilógrafos, fiscais, etc., da companhia de seguros. Mr. Velie, não é cabível a alegação do privilégio de sigilo. Considero que foi abdicado. Protesto indeferido.
Brice Mack, com um sorriso triunfal, voltou-se para a testemunha.
— Repetindo, Dr. Perez, o senhor tomou conhecimento do caso envolvendo uma paciente chamada Ivy Templeton, que foi tratada pela Dra. Vassar no período iniciado a 12 de dezembro de 1966 e terminado em 23 de setembro de 1967?
— Sim.
Em seguida, Brice Mack dirigiu-se ao juiz: — Meritíssimo, tendo em vista a resposta do Dr. Perez, solicito permissão para que o mesmo deixe o banco das testemunhas. Gostaria de interrogar outra testemunha, fora da ordem normal, a fim de preparar os fundamentos para a apresentação, como provas, dos três documentos que acabei de citar.
— Concedido — declarou o Juiz Langley.
O Dr. Perez voltou à sua poltrona na fila reservada às testemunhas, enquanto Frank Tallman, responsável pelos arquivos da Cia. de Seguros Mutual de Manhattan, foi chamado ao banco das testemunhas e prestou juramento.
Brice Mack, aproveitando-se da interrupção, lançou um rápido olhar aos Templeton e não se surpreendeu ao notar que ambos estavam afundados nas poltronas, com expressões de choque, medo e auto-recriminação.
Inteiramente controlado e saboreando intensamente a ocasião, o advogado de defesa perguntou rapidamente ao arquivista da companhia de seguros seu nome, cargo e natureza do conteúdo da sala de arquivos pela qual era responsável. Em seguida, Brice Mack pediu-lhe que identificasse a pasta de arquivo que a testemunha fora intimada a apresentar como prova no tribunal. Tirando da maleta um envelope, Tallman descreveu-o como sendo a pasta de arquivo referente ao requerimento apresentado por Mr. e Mrs. Templeton para reembolso das despesas médicas efetuadas com sua filha no período entre 12 de dezembro de 1966 e 23 de setembro de 1967.
Escolhendo na pasta os três documentos a que se referira anteriormente, Brice Mack apresentou-os como provas da defesa
números 1, 2 e 3, marcadas com a referência "Templeton", devidamente identificadas e rubricadas pela testemunha.
Diante disso, Scott Velie levantou-se e, apresentando um semblante tranquilo ante uma situação difícil, não apenas concordou com a anexação dos documentos aos autos, mas insistiu: — Meritíssimo, creio que todo o conteúdo da pasta deve ser anexado como prova.
E, para enfatizar sua completa despreocupação com relação às provas apresentadas, até mesmo abdicou do direito de examiná-las pessoalmente.
Tudo isso levou menos que cinco minutos, ao fim dos quais o Dr. Perez substituiu Frank Tallman no banco das testemunhas.
O sorriso que Brice Mack dirigiu a ele mais parecia um beijo de ternura.
— Dr. Perez, poderia dizer-nos algo a respeito da reputação da Dra. Vassar como psiquiatra?
— Naturalmente. Era reconhecida como um expoente em sua especialidade: a psiquiatria pediátrica. Era muito procurada para fazer conferências e tinha muitos trabalhos publicados.
Seus livros são considerados como a última palavra no assunto pela maioria dos psiquiatras atuais. Era uma profissional brilhante.
— Muito obrigado. Bem, o senhor declarou ter trabalhado em íntima ligação com a Dra. Vassar até sua morte?
— Sim.
— E que estava a par de todos os casos tratados por ela?
— Sim.
— Dr. Perez, a intimação que recebeu determina que o senhor apresente a ficha da Dra. Vassar referente a uma paciente chamada Ivy Templeton. O senhor trouxe essa ficha?
— Sim.
— Está em seu poder?
— Sim.
— Posso vê-la?
Com um meneio de cabeça, a testemunha abriu a maleta e retirou uma pasta que Bill e
Janice reconheceram imediatamente.
Pegando a pasta, Brice Mack manteve-a diante da testemunha.
— Tenho em mãos fichas datadas de 12 de dezembro de 1966 a 23 de setembro de 1967, com a etiqueta "Templeton". O senhor pode identificá-las?
— Sim. São fichas contendo os registros dos exames, entrevistas e diagnóstico referentes a uma paciente chamada Ivy Templeton, que, aos dois anos e meio de idade, foi submetida aos cuidados psiquiátricos da Dra. Vassar durante o período compreendido entre essas datas.
Virando-se para o juiz, Brice Mack declarou: — Meritíssimo, apresento estas fichas como prova de defesa número 4 e solicito que todo o seu conteúdo seja lido e anexado aos autos.
Velie se levantou.
— Meritíssimo, o advogado de defesa nem mesmo teve a gentileza normal de me permitir examinar o documento antes de apresentá-lo à testemunha. Solicito que, antes que as fichas sejam aceitas como prova, eu tenha permissão para examiná-las.
— Concedido — declarou o Juiz Langley, batendo o martelo.
— A sessão está suspensa por trinta minutos.
— O que acha? — perguntou Bill.
Velie ergueu a mão para evitar interrupções, continuando a ler o documento, demorando-se bastante na parte final, que se referia a arquétipos jungianos como possíveis explicações para os pesadelos. Afinal, Velie largou os papéis e soltou um profundo suspiro.
— Bem, aqui não existe qualquer referência que eu possa recusar — disse ele a Bill. — É evidente que eles encontraram uma porta.
— Mas não tinham isso ontem — protestou Bill.
O promotor, notando a expressão de desânimo e derrota no rosto de Bill, sorriu e replicou tranquilamente: — Mack abriu uma porta, Bill, mas não vamos cometer suicídio até sabermos o que ele pensa que está do outro lado.
Logo após a reabertura da sessão, às dez e quarenta, Brice Mack apressou-se em reapresentar a moção no sentido de anexar as fichas aos autos. O promotor não apresentou qualquer objeção e o juiz determinou a anexação da prova da defesa número 4. Então, Brice Mack tornou a solicitar que o documento fosse lido perante os jurados.
Scott Velie se ergueu para protestar: — Meritíssimo, trata-se de uma ficha volumosa. O júri terá oportunidade de examiná-la durante as deliberações, se assim lhe convier. Creio que seria um desperdício inútil do tempo deste tribunal fazer uma leitura completa do documento.
Brice Mack suspirou com uma indolência irritante.
— Meritíssimo, suplico a indulgência do tribunal em permitir a leitura do documento, para o devido registro nos autos, pois acredito que isso auxiliará os jurados na avaliação das declarações das próximas testemunhas que serão chamadas a depor.
O Juiz Langley, que parecia muito interessado em ouvir a leitura do documento, decidiu-se rapidamente em favor da defesa.
O resto da manhã foi dedicado à leitura das fichas, Brice Mack identificava cada página e anunciava lentamente cada item, esmerando-se na pronúncia dos termos psiquiátricos mais complexos e, muitas vezes, sendo obrigado a soletrar palavras para o taquígrafo.
Terminada a leitura, houve uma expectativa silenciosa, enquanto o Juiz Langley decidia a próxima etapa, que, embora ainda faltassem vinte minutos para o meio-dia, foi o recesso para almoço.
Janice se esquivou de almoçar no Pinetta‘s, pretextando afazeres imaginários. Nada havia de ambíguo nos olhares que Bill lhe lançara durante toda a sessão matinal, e seu sentido inato de antever perigo já a prevenira para evitar, a qualquer custo, a companhia do marido. Depois de dois martínis, o curto pavio de uma raiva que fervia furiosamente perto da superfície não poderia deixar de causar a explosão, especialmente se Janice estivesse por perto para acendê-lo.
Outro motivo igualmente urgente para fugir ao almoço era fazer uma ligação para Ivy, no Monte Carmelo. Janice pretendera ligar pela manhã, mas Bill resolvera sair cedo demais e as pressões da sessão do tribunal também não tinham permitido que ela fosse ao telefone.
Após perder duas ou três moedas em tentativas frustradas, Janice andou pelas ruas geladas, sob um vento cortante, à procura de uma cabine com um telefone que funcionasse, e, afinal, encontrou uma no ambiente cálido e aromático de uma tabacaria.
Quem atendeu foi uma professora chamada Miss Halderman ou Alderman, assistente da professora de arte que supervisionava as classes primárias. Sua voz animada informou Janice de que as meninas tinham acabado de almoçar e estavam entregues, com grande entusiasmo, à preparação de Sylvester para as cerimónias de coroação e derretimento que deveriam começar às três horas em ponto. Sim, Ivy estava ótima; na realidade, Miss Alderman podia vê-la pela janela — pelo menos o lindo cabelo louro parecia o de Ivy — em meio a um grupo de meninas que ajudavam Mr. Calitri, vigia da escola, a empilhar caixotes, Janice desejava falar com a filha?
— Não, não é preciso — respondeu Janice, sentindo um inexplicável arrepio de frio na quentura da cabine telefónica.
Não precisa incomodá-la. Eu só desejava saber como está ela.
No caminho de volta ao Foro Criminal, Janice entrou numa farmácia para comprar aspirina. Estava um pouco tonta e o arrepio de frio persistia.
No saguão, foi a um bebedouro automático e tomou três comprimidos. Ao levantar novamente a cabeça, sentiu uma vertigem, sendo obrigada a apoiar-se no bebedouro para não cair. Tremia incontrolavelmente. Meu Deus, o que estava acontecendo? Tudo começara depois do telefonema — ou melhor, durante ele. Alguma coisa na conversa. Algo que Miss Alderman dissera causara aquele súbito mal-estar? Mas... o quê?
— Diga-me, Dr. Perez...
A voz de Brice Mack chegava aos ouvidos de Janice como se através de um filtro. O tremor cessara, mas os arrepios continuavam. Além disso, uma vaga sensação de iminente desastre, que parecia aproximar-se cada vez mais.
A tosse seca de Bill, a seu lado, fez com que Janice abrisse os olhos e lançasse um olhar de esguelha ao marido. Bill parecia feliz e longe de tudo — os olhos fechados, o corpo escorregado na poltrona, totalmente relaxado numa profunda euforia alcoólica. Ela estava sozinha. Sentiu-se ferida pela ideia. Estava sozinha. A fuga de Bill para um estado de amargura e auto-absorção tornara impossível qualquer comunicação entre eles.
Bill mostrava-se incapaz de compreender não apenas Janice, como também tudo o que realmente estava acontecendo em suas vidas. Sim, estava sozinha.
— ... e o senhor afirma que a Dra. Vassar lhe confiava os detalhes de todos os casos, inclusive este?
— Trabalhávamos intimamente em todos os casos, especialmente neste.
— Por que especialmente neste?
— Porque era incomum, singular. Desafiava qualquer classificação. A Dra. Vassar nunca tinha encontrado um caso semelhante.
— Ela e o senhor discutiam prolongadamente o caso?
— Prolongadamente e de modo muito minucioso, Brice Mack consultou as anotações da Dra. Vassar.
— Desejo chamar sua atenção para determinados termos das anotações da Dra. Vassar, Dr. Perez. Determinados termos que exigem uma interpretação adequada.
Virando-se ligeiramente para os jurados, o advogado leu em voz alta e clara: — Nas afirmações datadas de 18 de janeiro de 1967, a doutora diz o seguinte: "(a criança) tenta subir nas costas de uma cadeira — e consegue! Parece ter boa coordenação; na verdade, demonstra um grau de coordenação e capacidade muscular de uma criança mais velha. (É preciso testar a capacidade de subir nas costas da cadeira quando ela estiver consciente.)"
Virando mais algumas páginas das anotações, Mack prosseguiu: — E, no dia 20 de fevereiro de 1967, a doutora anotou: "Os resultados do teste de subir na cadeira enquanto consciente revelaram que a paciente não consegue tentar subir na cadeira sem cair... todavia, durante o sonho, é perfeitamente capaz de subir nas costas da cadeira e demonstra coordenação e capacidade musculares muito acima do que se esperaria encontrar numa criança de dois anos e meio..."
Mack encarou a testemunha.
— Como o senhor interpreta essa observação a respeito de a menina parecer "mais velha" durante os sonhos?
— Isso não fazia sentido para a Dra. Vassar ou para mim, pois uma pessoa em estado de sonambulismo é capaz de repetir atos que tenha realizado anteriormente, mas, nesse caso, pareceria mais jovem. Não obstante, a menina, em estado de sonambulismo, realizava um ato no qual aparentava ser realmente mais velha.
— Então, em suas discussões com a Dra. Vassar, a que conclusões o senhor chegou com relação a esse comportamento fenomenal?
— Não conseguimos chegar a conclusão alguma. Tratava-se de algo totalmente inexplicável.
— Dr. Perez, o que quer dizer com o termo "inexplicável"?
— Quero dizer que não havia uma explicação médica que pudéssemos dar em relação ao comportamento da criança.
O advogado hesitou, sopesando a conveniência de abordar naquele momento os arquétipos jungianos. Muito embora a Dra.
Vassar tivesse sugerido tal possibilidade em seu comentário final, Brice resolveu deixar a questão definitivamente de lado, pois era possível que a Dra. Vassar fosse mais sensível à teoria de Jung do que o Dr. Perez. Além disso, a primeira regra para interrogar uma testemunha é: "Nunca faça uma pergunta se não tiver certeza de qual será a resposta". Portanto, Brice Mack passou para a anotação seguinte.
— No dia 21 de abril, encontramos a seguinte anotação: "Seu objetivo principal parece ser a janela... a vidraça representa uma barreira prodigiosa de calor... as chamas do inferno? ... as tentativas para se aproximar da vidraça não surtem efeito por causa do calor intenso demais... tropeça para trás, cai, chora... " O senhor discutiu com a Dra. Vassar esta anotação?
— Certamente que sim. Muitas vezes.
— Discutiu com ela a respeito do significado desse comportamento?
— Sim.
— E chegaram a alguma conclusão?
— Ambos julgamos que poderia existir a lembrança de um incidente no qual a menina estivesse trancada em algum lugar e que o caminho de fuga lhe provocasse dor. Em consequência, surgia essa contradição de se encaminhar numa determinada direção e, ao mesmo tempo, ser repelida por ela.
— Os pais da criança foram interrogados, a fim de verificar se houvera no passado da filha algum incidente que justificasse tal lembrança?
— A ficha indica que o assunto foi discutido com os pais e com o obstetra que assistiu ao nascimento de Ivy, mas nenhum deles tinha conhecimento de qualquer fato no passado da criança que justificasse uma lembrança desse tipo.
Assumindo um ar de profunda concentração, Brice Mack prosseguiu em voz cuidadosamente estudada: — Dr. Perez, suponha que uma criança estivesse presa num automóvel incendiado, que as janelas estivessem fechadas e que as chamas bloqueassem qualquer caminho de fuga. Como médico, o senhor tem alguma opinião a respeito de que esse conjunto de circunstâncias pudesse provocar uma reação semelhante à observada no caso de Ivy Templeton?
— Sim. É concebivel que isso explicasse tal comportamento.
— E, ao que me consta, a paciente Ivy Templeton jamais sofrera a experiência de ficar presa num automóvel em chamas?
— Sim. Está correto.
Brice Mack virou-se para o promotor: — A testemunha é sua.
Scott Velie levantou-se com exagerada lentidão. Parecia cansado, com voz sonolenta, ao dizer: — Pelo que entendi, o senhor foi trabalhar na Clínica Park East em 1966, não é isso?
— Sim.
— O mesmo ano em que os pais de Ivy Templeton foram procurar tratamento para a filha?
— Sim, isso aconteceu em 1966.
— Em que mês o senhor chegou à clínica?
— Em novembro.
— No início de novembro? No final de novembro?
— Depois do Dia de Ação de Graças.
— Compreendo. Velie refletiu um instante antes de perguntar: — Então, quer dizer que o senhor começou seu trabalho de interno na clínica poucas semanas antes de Ivy Templeton tornar-se paciente da Dra. Vassar?
— Sim.
— E, não obstante ser tão novato na profissão de psiquiatra, o senhor afirma que a Dra. Vassar lhe confiava inteiramente todos os detalhes, inclusive de um caso tão incomum e singular, que desafiava qualquer classificação?
O Dr. Perez umedeceu os lábios.
— Sim, exatamente.
— É costume, no ramo psiquiátrico, que os médicos consultem internos a respeito de casos de comportamento tão complexo a ponto de — segundo suas próprias palavras "não terem explicação médica"?
— A Dra. Vassar o fazia — replicou Perez, com simplicidade. — Era uma mulher notável.
— Muito bem. Até que ponto o senhor participou realmente, com ela, do caso em questão?
— Como eu disse antes, trabalhamos intimamente nesse caso.
— Como?
— Após cada sessão, examinávamos tudo o que acontecera e fora dito e discutíamos o assunto.
— E chegavam juntos a conclusões?
— Às vezes, quando isso era possível.
— O senhor assistiu a alguma dessas sessões com a menina?
— Não.
— Esteve com ela no apartamento?
— Não.
— Teve oportunidade de observar a menina durante algum dos pesadelos que ela sofria?
— Não.
— Portanto, o senhor dependia do relato feito pela Dra. Vassar a respeito do que ela via e ouvia?
— Sim.
O promotor estudou algumas anotações e, depois que o impacto total das declarações da testemunha havia sido absorvido pelos jurados, retomou o interrogatório.
— Diga-me, doutor, quanto a essa questão de a menina "parecer" mais velha durante os ataques, de realizar atos e demonstrar maior coordenação e habilidade muscular do que seria normal numa criança de sua idade — não existe alguma circunstância sob a qual tal comportamento aparente ocorre, uma circunstância que o senhor, na qualidade de psiquiatra, deve conhecer muito bem?
Percebendo o olhar perplexo da testemunha, Velie prosseguiu esperançoso: — A hipnose não é um instrumento psiquiátrico bastante empregado atualmente por seus colegas de profissão?
— Bem, sim...
— E não é verdade que sob a ação do hipnotismo uma pessoa pode ser induzÍda, por sugestão, a realizar atos físicos muito acima de sua capacidade normal quando consciente?
— Sim, mas...
— Obrigado — interrompeu Velie. — O senhor já respondeu minha pergunta.
Brice Mack vigiava o promotor como uma águia, pronto para atacar, pronto para solicitar ao Juiz Langley que instruísse Mr.
Velie no sentido de permitir que a testemunha refletisse sobre suas perguntas com a deliberada e cuidadosa consideração que o júri exigia de peritos, mas resolveu controlar-se, deixando que o promotor extraísse meias respostas da testemunha, e preferindo esperar um momento adequado de explorar a fundo as questões que estavam sendo levantadas.
Nesse meio tempo, Velie pegara as anotações da Dra.
Vassar, folheando-as.
— Voltemos agora à questão das tentativas da menina para chegar à janela...
Afinal, encontrou o trecho que procurava.
— "... seu objetivo principal parece ser a janela... a vidraça representa uma barreira prodigiosa de calor... tropeça para trás, cai, chora... ", e assim por diante. Eu lhe pergunto, Dr. Perez: é concebível que uma pessoa trancada num prédio durante uma tempestade de granizo e tentando escapar por uma janela não seja capaz de tocar na vidraça, porque esta está tão fria a ponto de machucar sua mão — não é concebível que isso, também, pudesse causar o tipo de comportamento aqui descrito pela Dra. Vassar?
— Bem, compreenda...
— Desejo que o senhor responda simplesmente sim ou não.
É ou não é possível?
— Bem, é possível...
— Obrigado.
Velie virou as páginas até chegar ao fim das anotações.
— Esta anotação final da Dra. Vassar, que, por sinal e a voz de Velie assumiu um tom incisivo —, o advogado da defesa parece fazer questão de ignorar, considera os arquétipos de Jung como uma possível solução para explicar o comportamento da menina. Qual é, Dr. Perez, o significado desta referência da Dra. Vassar aos arquétipos de Jung?
O Dr. Perez demorou-se refletindo sobre a pergunta.
— Para mim, seria muito difícil dizer. Eu, pessoalmente, não sou adepto dessa teoria.
— E o que diz a teoria?
— A teoria a que se refere a Dra. Vassar nessa anotação sugere que existe, no interior da mente humana, a capacidade de lembrar-se de experiências pelas quais a pessoa não passou.
Fatos que constituem experiências da raça humana, mas não são experiências daquele indivíduo, em particular. A Dra. Vassar, tendo estudado em Burghölzli, provavelmente deixou-se influenciar pela teoria de Jung e pode ter chegado a essa conclusão. Entenda-se que a Dra. Vassar não era propriamente uma seguidora de Jung, mas é perfeitamente possível que tenha sido a única maneira que ela encontrou para justificar o comportamento da paciente, uma vez que não existem meios para explicar a repetição de atos que uma pessoa jamais experimentou na vida, a menos que, naturalmente, aceitemos a hipótese da reencarnação.
Aí está, pensou Janice. Foi dito. Pela primeira vez naquele dia, o termo fora realmente pronunciado no tribunal. E, por mais estranho que pudesse parecer, a primeira pessoa a empregá-lo fora um cientista.
Na sua opinião, Dr. Perez, a teoria de Jung se estende no sentido da reencarnação?
Não, não creio que isso aconteça. Na minha opinião, creio que Jung acreditava que a experiência de gerações anteriores criava uma espécie de herança da memória. Da mesma forma como as experiências do passado deixam vestígios genéticos no aspecto físico, Jung acreditava que também deixassem vestígios genéticos na memória. Todavia, não creio que ele acreditasse literalmente em que os indivíduos tivessem uma vida anterior.
— Em que acredita o senhor, Dr. Perez?
— Em quê?
— O senhor acredita na reencarnação?
A testemunha deixou escapar um riso surpreso.
— Não — declarou. — Não acredito.
O sorriso confiante de Brice Mack conseguiu esconder a preocupação que o invadiu ao ouvir a resposta de Perez e perceber os sorrisos dos jurados. Ainda assim, tinha certeza de que muitos momentos dramáticos ainda estavam por chegar, momentos que fariam o júri ficar a seu favor.
Velie prosseguia.
— Dr. Perez, ao que lhe consta, existem atualmente no mundo muitas pessoas que acreditam no sobrenatural?
— Sim, naturalmente.
— Sob o ponto de vista psiquiátrico, qual é o fundamento dessa crença no sobrenatural?
— Bem — respondeu Perez, muito sério. — Muitos se sentem aterrorizados ante a perspectiva da morte, do sentido de finitude e eternidade da morte. Desde que um indivíduo seja religioso, pode evitar a aceitação da morte como eterna através da crença em uma vida futura. Todavia, o medo da morte e o temor de deixar de existir levam muitas pessoas a procurar algo que lhes dê uma sensação de continuidade. Este é um dos aspectos. O outro aspecto é que existe muita coisa no comportamento humano que constitui um mistério inexplicável, ? 331 ?
embora tenha presumivelmente uma explicação racional mas seja inexplicável no momento. E as pessoas, pela própria natureza da curiosidade humana, são impelidas a procurar explicação para fatos que lhes pareçam misteriosos e sobrenaturais. Mas eu, na qualidade de cientista, suponho que não exista isso que se costuma chamar de sobrenatural; o que existe são apenas fenómenos cuja natureza nós ainda não conhecemos.
— Mas o senhor não acredita que a reencarnação seja uma dessas coisas?
— Não. Pessoalmente, não acredito.
— Muito obrigado. Isso é tudo.
Brice Mack, erguendo-se, inclinou rapidamente a cabeça para Scott Velie e se aproximou da testemunha.
— Apenas mais umas perguntas, Dr. Perez, se o senhor não se importa. Creio que o senhor foi impedido de explicar melhor suas respostas a várias das perguntas feitas por Mr. Velie.
Especificamente, na pergunta relativa à hipnose como instrumento para induzir um indivíduo a realizar feitos acima de sua capacidade normal. Na sua opinião, essa sugestão pode se aplicar, ou explicar, de alguma forma, o comportamento de Ivy Templeton registrado nas anotações de 18 de janeiro e de 20 de fevereiro de 1967?
— Não, é claro que não. Eu ia exatamente dizer que as condições e a natureza de um transe hipnótico são inteiramente diferentes de um estado histérico de sonambulismo. Sob a hipnose, o indivíduo permanece inteiramente sob controle e reage à pessoa que conduz a experiência. Num transe hipnótico, o indivíduo desenvolverá um esforço inaudito para obedecer a todas as ordens que lhe forem dadas pelo hipnotizador e será capaz de demonstrar habilidades físicas muito superiores à sua capacidade em condições normais, quando está consciente. Todavia, isso acontece apenas sob o comando do hipnotizador. No estado de sonambulismo, porém, o indivíduo não se encontra sob tal influência e apenas recapitula ou expressa o comportamento de uma experiência anterior, profundamente traumática, que se encontra reprimida. Em cada um dos casos as circunstâncias são completamente diferentes.
Brice Mack aceitou a explicação sem demonstrar satisfação e, em seguida, orientou a testemunha no sentido da reencarnação.
— Dr. Perez, o senhor expressou sua descrença na reencarnação. Não obstante, o senhor tem conhecimento de que existam cientistas que acreditem na reencarnação?
— Suponho que existam.
— O senhor supõe que existam médicos e psiquiatras devidamente qualificados que acreditam na reencarnação?
— Sim. Provavelmente existem alguns.
— E é possível que, a despeito de sua opinião pessoal, Dr. Perez, eles estejam certos e o senhor esteja enganado?
O Dr. Perez sacudiu os ombros.
— Creio que há essa possibilidade.
Mack correu rapidamente os olhos pelos jurados, antes de consultar mais uma vez as anotações.
— Oh, sim... Dr. Perez, o senhor declarou anteriormente ser possível que a frieza de uma janela durante uma tempestade de granizo fosse suficiente para machucar a mão de uma pessoa e talvez pudesse explicar o comportamento descrito pela Dra.
Vassar nestas anotações. Agora eu lhe pergunto: na sua opinião, trata-se de uma possibilidade provável?
— Não. A própria reação da menina, o recuo rápido e reflexivo diante da vidraça, indica que a magnitude da experiência dolorosa foi maior do que a que poderia ser produzida pelo gelo. Isso, somado à contínua repetição "quentequentequente", parece-me indicar, decisivamente, que se tratava de uma situação relacionada com fogo.
— Muito obrigado, Dr. Perez. Isso é tudo.
Quando a testemunha fez menção de se levantar, Velie girou na poltrona.
— Um segundo, Dr. Perez. Ainda não foi dispensado. Perez tornou a se sentar, encarando Velie com um olhar langoroso. O promotor continuou recostado na poltrona, perguntando em voz bem alta: — A Dra. Vassar era uma hipnotizadora?
O modo grosseiro com que a pergunta foi feita pareceu confundir momentaneamente a testemunha. Afinal, o Dr. Perez exibiu um leve sorriso cético.
— A Dra. Vassar era psiquiatra. Conhecia o emprego do hipnotismo como um meio terapêutico, como acontece com todos os psiquiatras atuais, inclusive eu.
— Compreendo — disse Velie. — Então, ela era uma hipnotizadora. Obrigado.
O protesto de Brice Mack foi imediato e veemente: — Meritíssimo, solicito que o comentário de Mr. Velie — "Então, ela era uma hipnotizadora" — não seja registrado nos autos, uma vez que ele está caracterizando uma resposta que a testemunha não pronunciou. Além disso, uma pessoa que conheça o emprego do hipnotismo não é hipnotizadora, da mesma forma que uma pessoa que sabe usar um martelo não é carpinteiro.
— Protesto mantido.
Houve um impasse momentâneo, durante o qual o Dr. Perez permaneceu sentado, sem saber se deveria ou não deixar o banco das testemunhas.
O Juiz Langley, assumindo sua expressão de maior enfado, perguntou a ambos os advogados se tinham mais perguntas a fazer à testemunha.
— No momento, não, Meritíssimo — declarou Scott Velie. — Todavia, é provável que tenha outras perguntas mais tarde.
O Juiz Langley disse ao Dr. Perez para estar pronto a ser chamado novamente e dispensou-o. Enquanto o psiquiatra saía apressadamente da sala, o juiz ordenou a Brice Mack que chamasse sua próxima testemunha.
Todos os olhares se dirigiram ansiosamente para a porta.
Entretanto, Mary Lou Sides não entrou pela porta, mas levantou-se de uma poltrona no meio da sala e caminhou pelo corredor em direção ao banco das testemunhas, causando alguns risos nervosos por parte de espectadores que tinham sido apanhados de surpresa.
Janice olhou para a moça corpulenta, grandalhona, aparentemente tímida, que não podia ter mais que vinte e cinco anos, enquanto esta erguia a mão direita e prestava juramento perante o meirinho. Vendo os cabelos lisos, cor de palha de milho, e o rosto sorridente, corado, irradiando saúde, Janice lembrou-se da moça loura que aparecia no rótulo das embalagens do Chocolate Baker. Olhando para Elliot Hoover, verificou que ele também fitava a moça, sorrindo. Mary Lou Sides, ao se acomodar no banco das testemunhas, retribuiu o sorriso de Hoover — o que, provavelmente, significava que já se conheciam bem.
Os jurados, repórteres, espectadores e todos os outros presentes ao tribunal não demoraram muito a tomar conhecimento do motivo da presença de Mary Lou Sides no banco das testemunhas, pois Brice Mack, após indagar rapidamente da moça de fala macia seu nome, idade (na verdade, tinha trinta e um anos) e endereço (que ficava num subúrbio afastado de Pittsburgh), foi imediatamente ao âmago da questão.
— Miss Sides, na manhã do dia 4 de agosto de 1964, esteve envolvida num acidente automobilístico no Pennsylvania Turnpike?
— Sim.
É verdade que o carro que a senhorita dirigia se chocou com um carro dirigido por Sylvia Flora Hoover?
— Sim.
— A senhorita estava sozinha no carro?
— Não. Estava com uma amiga.
— E Mrs. Hoover estava sozinha no carro dela?
— Não.
Nesse ponto, a voz da testemunha vacilou ligeiramente e seus olhos pareceram marejar-se de lágrimas.
— A filha dela também estava no carro.
— A senhorita sabe o nome da filha de Mrs. Hoover?
— Audrey Rose.
— Miss Sides, poderia relatar aos jurados, da forma como melhor se recordar, exatamente o que ocorreu e o que a senhorita viu, na manhã do dia 4 de agosto de 1964, por volta das oito e trinta?
— Sim.
Miss Sides levou algum tempo para recompor as idéias, colocá-las em ordem e fixar o pensamento naquele momento, mais de dez anos atrás.
— Eu estava guiando meu carro no Turnpike, indo para o trabalho, na
direção leste.
Estava com uma amiga.
Trabalhávamos ambas na Companhia de Seguros Forsyth, cujo escritório ficava a cerca de trinta quilómetros do centro de Pittsburgh, e tínhamos que chegar lá às nove horas.
Fez uma leve pausa, antes de prosseguir: — A manhã estava quente, mas o céu se apresentava encoberto. Ia chover e eu rezava para chegar ao trabalho antes que a chuva começasse. Sempre detestei dirigir com chuva.
Uma atmosfera de tensão começou a invadir o tribunal à medida que a voz da moça, até então calma e inexpressiva, começou a mudar de tom quando ela chegou ao momento de reviver os episódios seguintes.
— Estávamos a cerca de oito quilómetros do trabalho quando o temporal desabou. Foi terrível. Pedras de gelo do tamanho de ovos. Eu mal conseguia ver através do pára-brisa e estava pensando em sair para o acostamento, quando aquele carro... aquele carro...
Interrompeu-se, com a voz visivelmente embargada. A imprensa e os jurados se debruçaram, em grande expectativa.
— Aquele carro passou derrapando por mim, no lado esquerdo... um seda dos grandes, derrapando e rabeando na pista... Tentei parar mas não consegui e... também comecei a derrapar... pude perceber que íamos bater...
A voz tornou a falhar durante alguns segundos.
— Tentei controlar o carro, mas não consegui... o volante estava mole... então, nos chocamos... batemos...
Ela deixou escapar um soluço.
— Batemos...
Parou de falar, banhada em lágrimas.
— Está em condições de prosseguir, Miss Sides?
— Sim, estou.
A partir de então, as palavras brotaram numa torrente, pontuadas por lágrimas e exclamações de angústia.
— Nós nos chocamos e ambos os carros bateram na proteção, embora naquele momento eu não conseguisse ver o que impedira meu carro de rolar pela ribanceira, por causa da tempestade... Foi a barreira de proteção que nos deteve, mas não parou o outro carro. Ele atravessou a barreira de proteção e caiu pela encosta íngreme...
Fez outra pausa, para controlar-se.
— Não sei por quanto tempo fiquei dentro do carro, mas minha amiga estava inconsciente e eu senti uma coisa úmida no rosto, que era sangue, pois bati com a cabeça no pára-brisa, uma vez que nem eu nem minha amiga estávamos usando os cintos de segurança e ela estava desmaiada...
Parou mais uma vez, abrindo muito os olhos.
— Então, de repente, a tempestade parou e o sol apareceu, muito brilhante. Lembro-me de sair do carro e ver a beira da estrada cheia de carros que também tinham parado. Havia muita gente parada, em pé, na beira da estrada, olhando para a ribanceira, para o outro carro que estava de rodas para o ar.
Saía fumaça e uma das rodas traseiras ainda estava girando.
Então, vi... vi o rosto de uma menina... uma menina pequena...
olhando pelo vidro da janela do carro... e gritando...
A testemunha parou de falar, soluçando abertamente. Mas logo depois prosseguiu: — Havia homens tentando descer a ribanceira para salvar a menina, mas era muito difícil, porque o barranco era muito íngreme naquele lugar. Outros homens foram de carro até cerca de quatrocentos metros mais adiante, onde a encosta não era tão inclinada, e eu podia vê-los andando a distância... Mas não conseguiram chegar ao carro, porque então... naquele momento... houve uma explosão... não muito grande... mais como um "Pufff!"... e imediatamente o carro ficou envolto em chamas... Foi horrível!... Eu ainda conseguia ver a menininha gritando, gritando e batendo com os punhos no vidro, enquanto o carro parecia derreter-se... eu a via através das chamas... e a pintura do carro derretendo, escorrendo pelo vidro da janela...
O coração de Janice parecia prestes a estourar. Seu corpo inteiro tremia.
— ... a menina continuava a gritar e gritar... tentando sair do carro e continuando a...
A tinta do carro derretendo e escorrendo pelo vidro da janela...
— ... a bater com os punhos na janela...
Derretendo! O derretimento! As cerimónias de coroação e de derretimento, dissera a mulher no telefone...
— ... que ia sendo lentamente coberta pela tinta derretida...
Meu Deus do céu!
Janice espiou para o relógio na parede. Quatro e vinte.
Estava acontecendo! Estava acontecendo! Agora! Olhou para Hoover.
O acusado estava em pé.
Os dois guardas, inquietos, postavam-se a seu lado.
Hoover tinha o rosto banhado de suor, muito vermelho.
Seus olhos chamejavam...
... parecendo uma distância muito além da moça que soluçava no banco das testemunhas, além daquele horror que estava sendo revivido no tribunal, procurando um lugar no tempo e no espaço onde os sons futuros esforçavam-se por serem ouvidos, onde soprava um vento frio, as crianças riam, a neve caía, derramando branco no preto, derretendo-se ao crepitar das chamas...
Observando da janela, a Irmã Verónica Joseph sentia o gosto amargo do medo crescer na garganta, como acontecia todos os anos naquela data.
Pagão, anticristão, pensou ela nervosamente, olhando os rostos das cento e vinte e sete virgens que rodeavam o ídolo do sacrifício — trabalho de semanas a fio — que se derretia ao calor consumidor das chamas. Homenagem a Moloque, o deus pagão do fogo. Ritos pagãos num solo consagrado a Deus... Por que ela permitia? Todos os anos, fazia a promessa de eliminar a festa do calendário escolar, mas a cada ano hesitava em fazê-lo.
Por quê?
As chamas estavam aumentando, agora — lambendo as extremidades inferiores do boneco de neve —, minando suas forças, dominando seu orgulho, devorando sua glória coroada.
Criação. Adulação. Destruição. Um ritual pagão. Inadmissível.
Não obstante, tivera origem em alguma ocasião do passado cristão do Monte Carmelo. Os irmãos franciscanos e o velho vigia, Mr. Calitri, tinham-lhe dito isso. No tempo em que o Monte Carmelo era um colégio para meninos. Antes da conversão. Nos dias em que ela ainda não se chamava Verónica Joseph, mas Adele Fiore. Sim, tinham sido os irmãos franciscanos. Atearam fogo ao primeiro boneco — o primeiro de uma série que se tornaria uma tradição anual no Monte Carmelo —, um acontecimento anual tão arraigado nas mentes de cada classe sucessiva de alunos que se transformara numa parte fixa e imutável do colégio, como aquela velha iva trepadeira que se agarrava às suas venerandas paredes...
Iva... Ivy? Seria aquela a menina Templeton? Estava perto demais do fogo...
Sim, os irmãos franciscanos.
Homens honrados, respeitáveis, que certamente ignoravam o que estavam criando, eram responsáveis pelo ultraje que ofendia a visão e os sentimentos da Irmã Verónica Joseph.
Observando as chamas crepitantes devorarem o enorme boneco de neve, a Irmã Verónica Joseph sentiu-se levemente consolada pela idéia de que, em breve, tudo aquilo estaria acabado; em poucos minutos o ídolo tombaria, transformando-se num monte de neve enegrecida, e a tradição estaria cumprida por mais um ano. Sim, pensou a Irmã Verónica Joseph, prometendo a si mesma que aquele seria o último ano.
Só as despesas com a remoção e a limpeza já constituíam motivo suficiente para terminar de uma vez por todas com a tradição...
A freira teve um sobressalto.
O que estava fazendo aquela menina? Encaminhando-se lentamente para a fogueira? Estariam todos tão fascinados pelas chamas que nem reparavam nela?
Sim, o fogo fascina. Só agora ela se apercebia disso. Fogo! O inimigo da humanidade desde tempos imemoriais! O travesseiro de Satanás! As chamas crepitantes, como os olhos do Demónio, chamando, tentando...
Ela está de quatro! Avançando! Será que ninguém a está vendo?
— Pare! — gritou a freira, com o coração nas mãos, sabendo, porém, que sua voz era engolida pelas grossas paredes do prédio silencioso. Começou a esmurrar a vidraça chumbada nos caixilhos. Tentou abrir as velhas janelas, mas as dobradiças enferrujadas não cediam.
Oh, meu Deus! Minha Virgem Maria! A criança estava junto ao fogo e ninguém percebia! Estariam sonhando? Estariam todos hipnotizados pela dança das chamas? Seduzidos pelas línguas tentadoras de Satanás, que convidavam a um abraço ardente?
— Pare! Detenham essa menina! — berrou a freira, pegando um pesado cálice de prata e quebrando os losangos de vidro da janela, deixando entrar rajadas de vento gelado que sopravam o véu para trás, fustigando-lhe o rosto.
— A MENINA! — gritou a freira contra o vento implacável. — A MENINA! DETENHAM-NA! DETENHAM-NA!
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte...
22
Chegaram ao hospital nos arredores de Darien à luz incerta da madrugada. Fazia um frio terrível e ambos tinham a impressão de que ia nevar, mas se abstiveram de comentários.
Foram recebidos no saguão, logo após a entrada principal.
A Irmã Verónica Joseph começou a falar antes mesmo que Bill e Janice parassem de andar, o mesmo acontecendo com um médico idoso — Dr. Webster —, o qual, num tom tranquilo e profissional, procurou acalmar os pálidos e assustados pais da menina. Tanto o médico como a freira continuaram a falar animadamente, enquanto Bill e Janice tentavam acompanhar simultaneamente os dois fios de pensamento ao caminharem pelo largo corredor, passando ocasionalmente por enfermeiras ou por outros grupos de família que estavam postados perto de portas entreabertas. A primeira narrativa era referente ao que acontecera: a voz baixa e ainda espantada da Irmã Verónica Joseph reconstituía detalhadamente o que ela presenciara do acidente, que ocorrera inesperadamente e, se não fosse pela ação rápida e imediata de Mr. Calitri, poderia ter redundado numa verdadeira tragédia. A outra era uma torrente mais complexa de palavras, referente à natureza e aos prognósticos dos ferimentos de Ivy, que, assegurou o médico, eram principalmente queimaduras de primeiro e segundo graus, produzindo apenas um leve choque, sem indicações de toxemia ou septicemia.
— Felizmente, ela estava muito bem agasalhada e havia muita neve em volta — disse o Dr. Webster, procurando animá-los. — O corpo ficou totalmente ileso. O rosto pegou um pouco de calor; todavia, não existem sintomas de danos no aparelho respiratório. Os cabelos nasais não estão queimados, ela não tosse e não parece estar rouca. Não ocorre a expectoração de sangue ou de partículas de carbono nos casos de inalação de chamas. Apenas um edema facial passageiro, vermelhidão na face direita, sobrancelhas chamuscadas e algumas bolhas... — explicou ele com um sorriso. — Nada de permanente que prejudique a beleza da menina.
Janice, andando mais à frente, esforçava-se por ouvir o que dizia o médico, mas a distância e o incessante tagarelar da Irmã Verónica Joseph a impediam.
— ... gostaríamos que a senhora soubesse, Mrs. Templeton — afirmava a freira, em voz baixa, com um toque virtuoso —, que jamais aconteceu algo assim no Monte Carmelo, nem deveria ter acontecido agora. Quero dizer que não foi um acidente. Sua filha literalmente andou e, depois, engatinhou na direção da fogueira.
Janice sentiu uma pontada no peito. Então, sacudindo a cabeça, replicou inadequadamente, e sem convicção: — A senhora deve estar enganada. Por que iria Ivy fazer uma coisa dessas?
— Não sei responder, Mrs. Templeton. Mas não estou enganada a respeito do que presenciei. Tente compreender: não estou dizendo que sua filha sabia o que estava fazendo. Afirmo apenas que não foi um acidente.
Ivy estava sentada na cama, com expressão sombria, folheando uma revista. Seu rosto, por baixo da brilhante camada de medicamento, parecia levemente queimado de sol. Os longos cabelos louros tinham sido reduzidos pelo fogo a fiapos irregulares. Ao ver os pais, foi tomada pelas emoções conturbadas e as lágrimas lhe saltaram aos olhos. Bill e Janice correram para perto da cama, mas o Dr. Webster advertiu que não deviam beijar Ivy.
— Está tudo bem, querida — murmurou Bill, ajoelhando-se ao lado da cama e pegando a mão da filha.
Janice, sentando-se na beirada da cama, pegou a outra mão da menina. Por algum tempo, Ivy só conseguiu olhar para os pais, os olhos saltando de um para outro. Soluçava, parecendo muito confusa, desanimada.
— O que aconteceu comigo, afinal? — exclamou numa explosão angustiada. — O que me obrigou a fazer isso?
— Foi um acidente, querida — disse Bill, com ternura, procurando acalmála.
— Não, papai. Eu fiz de propósito. Dizem-me que caminhei direto para o fogo e não me lembro de nada a respeito.
O rosto de Bill se fechou.
— Quem lhe disse tal coisa?
Os olhos de Ivy pousaram na figura imponente, envolta num hábito negro, que estava junto aos pés da cama.
— A irmã — respondeu Ivy, chorando.
Bill passou um dedo entre o colarinho e o pescoço.
— Ela está enganada — declarou.
Em seguida, virou-se brutalmente para a Irmã Verónica Joseph.
— Por que fazem fogueiras, afinal? — bradou ele. — Que negócio é esse — num convento? Nós lhes confiamos nossas filhas para que tenham tranquilidade e proteção — e vocês fazem fogueiras!
Ante a fúria de Bill, a Irmã Verónica Joseph não deu resposta. O silêncio pareceu vibrar no interior do quarto, até que a idosa freira, com os lábios apertados numa linha severa, falou com evidente esforço: — Esperarei lá fora.
Depois de pronunciar essas palavras em voz baixa, com os dedos manipulando o rosário, saiu e fechou a porta.
O Dr. Webster pigarreou e conferenciou em voz baixa com a enfermeira, que, apesar de alerta e solícita, mantivera-se tão quieta no canto que Janice nem percebera sua presença.
— O que está acontecendo comigo? — gemia Ivy, num repetido lamento. — O que está acontecendo comigo?
Janice pensou naquela pergunta: uma pergunta que só poderia ser respondida por ela — e por uma outra pessoa. Não tinha a menor sombra de dúvida a respeito de quem estava por detrás daquela tentativa criminosa, nem a respeito das verdadeiras intenções de Audrey Rose. Como Elliot Hoover advertira: " Ela continuará empurrando Ivy de volta à origem do problema; tentará voltar ao momento, conduzindo-a a perigos tão tormentosos e destrutivos quanto o fogo que tirou sua vida... "
Sim, Audrey Rose não mostrara o menor escrúpulo em revelar suas intenções e continuaria a não ter. Ao pensar em como seria fácil perderem Ivy, Janice estremeceu. " Audrey continuará a maltratar o corpo de Ivy até que sua alma seja libertada.. ." Não havia coisa alguma que pudesse detê-la, nada que a fizesse hesitar. A menos que...
A idéia atordoou Janice, que ficou imóvel, quase petrificada, ouvindo os murmúrios de Bill, que, pouco a pouco, conseguia reanimar e acalmar a filha amedrontada.
Tinha medo de levar avante o pensamento, pois estava segura de que tal ato só poderia ter um resultado. A idéia lhe viera cedo demais? Tratava-se, a seu modo, de uma solução bizarra e caprichosa; ainda assim, continuava a fervilhar em sua mente, pois parecia a única resposta adequada. Proceda com cautela, advertia-lhe uma voz interior. Pense bem. Os próximos passos serão carregados de perigos. As decisões a serem tomadas nas próximas doze horas podem desmoronar o seu mundo...
Só deixaram o hospital às nove e quinze. Nenhum dos dois se surpreendeu ao verificar que a Irmã Verónica Joseph não os aguardara. Encontraram o Dr. Webster no saguão da recepção, conversando amistosamente com um paciente idoso numa cadeira de rodas.
Avistando os Templeton, o médico pediu licença ao interlocutor e juntou-se a eles perto da porta. Reiterou sua certeza de que Ivy logo ficaria boa e receberia alta antes do final da semana. Janice indagou se a enfermeira Baylor poderia receber instruções para permanecer a noite inteira em companhia da menina.
— Ela deverá largar o serviço à meia-noite — explicou o médico.
— Haverá alguém para substituí-la? — perguntou Janice.
— Só a enfermeira de plantão no andar. Mas não há motivo para preocupações: ela possui um monitor de TV que vigia todos os quartos.
Janice franziu a testa.
— O senhor não pode arranjar alguém para ficar com Ivy?
Bill lançou-lhe um olhar rápido e se virou para o médico.
— Sim, doutor — disse ele. — Naturalmente, estamos dispostos a pagar por uma enfermeira particular.
O Dr. Webster refletiu um instante. Havia no pedido uma urgência e ansiedade que ele não poderia ignorar.
— Verei o que posso fazer — declarou, afinal.
Lá fora, a neve cessara de cair, dando lugar a uma garoa fina. Bill seguiu para o sul ao longo da Boston Post Road, à procura de um restaurante que não estivesse cheio demais. Logo ao sul de Stamford encontrou um com poucos carros parados à porta.
O salão estava quase vazio. Um garçom conduziu-os a uma mesa junto à parede, afastada das que estavam ocupadas.
Primeiro, tomaram os aperitivos. Depois, pediram a comida e consumiram um jantar desusadamente farto.
Não falaram até que os pratos e talheres foram retirados e novos drinques foram colocados sobre a mesa. Então, foi Bill que falou, enquanto Janice permanecia calada. Disse coisas agradavelmente triviais e Janice ficou satisfeita por não ser perturbada em suas reflexões e emoções, que a envolviam num violento turbilhão pessoal. Sentia-se grata por Bill não desejar trazer à baila o assunto que mais preocupava a ambos. A agressividade que ele demonstrara para com a Irmã Verónica Joseph não deixava a menor dúvida sobre o que ele pensava a respeito, e tivera a clara intenção de servir, também, como advertência a Janice.
Para Bill, fora um acidente. Nada mais que isso. Qualquer sugestão diferente só serviria para avivar as chamas de sua ira, libertando a violenta torrente de escárnio e desprezo. De nada adiantaria a Janice confiar seus pensamentos e sentimentos a Bill. Nem agora, nem nunca. Seus temores quanto à segurança de Ivy — quanto à vida da filha — eram assunto inteiramente seu.
Deliberadamente, afastou de si todo e qualquer pensamento relativo ao marido e, tendo a tagarelice inócua dele como fundo sonoro, dedicou-se inteiramente a analisar a decisão que deveria tomar antes do amanhecer.
Bill percebeu a distração da esposa e perguntou asperamente: — Em que diabo está pensando, afinal?
Janice assustou-se.
— O quê?
— Está imaginando espíritos e fantasmas?
O sorriso de Bill tinha um ar malévolo. Esvaziou o copo e pediu mais um drinque. A falta de uma resposta por parte de Janice intrigou-o.
— Suponho que você concorda com a reverenda irmã. E, sem esperar réplica, acrescentou: — Bem, pouco importa com o que você concorda ou o que pensa. Hoover está perdido. Aquela pequena demonstração que eles fizeram hoje à tarde no tribunal foi a descarga total.
Gastaram toda a munição que possuíam, e não conseguiram coisa alguma. Velie afirma que não têm outras testemunhas. Não podem apelar para mais ninguém, a não ser nós dois.
Riu baixinho, com sinistra satisfação.
— Não lhes resta ninguém a não ser nós dois. A menos que decidam tomar o depoimento de Hoover ou resolvam mandar vir outro guru maluco das Arábias.
Desta vez, riu alto.
— Talvez mandem chamar o Gunga Din... — comentou, completando o pensamento. Seu drinque chegou e ele o tomou enquanto pagava a conta.
Nada mais foi dito durante a viagem para o sul, pela Merritt Parkway. Uma viagem fria, pois o aquecimento do carro estava defeituoso, um fato que serviu para restaurar a sobriedade de Bill.
Quando se aproximavam da Henry Hudson Parkway, ele disse sem vestígio de rancor: — Devemos fazer algo por Mr. Calitri — para demonstrar nossa gratidão. Talvez um cheque, ou um bom presente.
Janice concordou.
Mais tarde, voltando a pé da agência de aluguel de automóveis, ambos curvados contra o vento gelado de janeiro, que parecia querer empurrá-los para trás, Bill teve que gritar: — Pedirei a Harold Yates para estudar a possibilidade de uma ação judicial por incompetência ou negligência. De qualquer maneira, como diabo se pode processar a Igreja Católica?
Já era quase meia-noite quando entraram no apartamento.
Bill apanhou uma cerveja no congelador e serviu-se, também, de uma dose dupla de bourbon. Parecia novamente distante e amuado, levando as bebidas até a escada com um andar um tanto vacilante. Parou e, equilibrando com dificuldade o copo de bourbon, acendeu a luz com o cotovelo, iluminando o hall superior. Antes de subir, afastou-se para permitir que Janice subisse à sua frente.
— Vamos para a cama?
— Daqui a pouco — replicou ela, cautelosa.
Bill meneou a cabeça sabiamente, com um ar de infinita clarividência.
— Boa noite — disse, erguendo o copo num brinde. Sonhe com os anjos.
Era evidente que ele notara com facilidade os temores de Janice e zombava abertamente deles, espantado pela covardia da mulher, que não tinha coragem de expressar o que sentia.
Janice, imóvel e atordoada, viu o marido subir a escada.
Não se sentia atordoada pela zombaria de Bill, mas pela barreira que ele erguera entre os dois, que agora estavam irrevogavelmente separados.
À uma e quarenta e cinco, o apartamento estava completamente silencioso.
Sentada na cadeira de balanço, Janice aparentava estar totalmente tranquila, exceto por duas linhas nos cantos dos lábios. Seus olhos passeavam pela sala — o único mundo real que ela realmente conhecera e amara: as paredes de alvenaria branca, o assoalho de tábuas manchadas, o lindo teto que coroava o ambiente. Olhou demoradamente para cada detalhe querido, cada almofada e peça de mobília, cada quadro, abajur e objeto de adorno, cada um deles trazendo uma lembrança doce e agradável de um momento feliz em suas vidas.
Sentiu uma onda de pânico ao pensar em tudo que estaria arriscando. Perderia Bill. Não havia dúvida. Perderia tudo. O amor do marido. O casamento. A vida perfeita, no apartamento perfeito. Quase desfalecia ante a ideia; seus sentidos se revoltavam contra a realidade de uma vida sem Bill — uma vida solitária, que a transformaria em mais um membro da multidão dos desprovidos de amor, dos abandonados, gravitando na periferia das vidas de outras pessoas, totalmente solitária.
Sentiu lágrimas nos olhos. Enxugou-as com a mão e fixou a vista embaçada na capa de couro gasta e arranhada do diário que estava em seu colo.
O diário de Hoover.
Retirara-o do armário por um motivo — um motivo que, naquele momento, lhe parecera importante e urgente, mas que, agora, era vago e incompreensível.
Por que pegara o diário? Seria simplesmente um meio de enfrentar as longas horas de insónia que teria pela frente? Por necessitar de uma companhia, de uma mão para segurar durante a noite escura e angustiosa?
Ou — e sua expressão se tornou dura, severa — ainda existiam coisas que ela precisava saber a respeito daquele homem, antes de conseguir dar o passo assombroso e definitivo? Todos os fragmentos do passado do homem, seus pensamentos e sentimentos, sonhos e esperanças, as confidências íntimas e profundas que os que se amam costumam trocar no período de namoro...
Sim, era exatamente isso: o fato de apanhar o diário constituía mais uma etapa de seu namoro. Mais um passo para conhecer melhor o homem ao qual ela estava prestes a entregar o destino de sua família.
Os dedos trêmulos procuraram a página central do volumoso diário. Abrindo-o, Janice deparou com um trecho coberto do que lhe parecia ser uma série de hieróglifos — minúsculos rabiscos a lápis numa linguagem que provavelmente seria sânscrito ou indi. Páginas e páginas cobertas com aquela escrita; palavras estranhas e intensas que, embora incompreensíveis para ela, transmitiam uma sensação profunda, através de seu próprio formato e quantidade. As páginas se sucediam naquela mesma escrita, até que Janice imaginou que a tragédia de Prana e sua família, bem como a consequente perda da fé por parte de Hoover, tê-lo-iam obrigado a abandonar inteiramente a língua inglesa. Então, virando mais uma página, surpreendeu-se ao encontrar um parágrafo escrito no mesmo estilo narrativo e informativo que se lembrava de ter lido em trechos anteriores do diário: "Estou em Mysore. Quero ficar aqui porque, ao que sei, é a região habitada há mais tempo em todo o mundo. É do tamanho aproximado da Nova Inglaterra, que, para mim, parece já não mais existir. Estaremos todos, realmente, sob o mesmo céu?
"Boas estradas. Prédios com jardins adornados de fontes.
Palácios na outra margem do rio. Mas estou procurando plantas e animais; não busco templos. Vejamos se ainda existe alguma majestade em meu íntimo..."
As duas páginas seguintes estavam escritas em sânscrito.
Depois, uma página em inglês: "Vida de aldeia. Preciso sair daqui. Vejo as mesmas mulheres delicadas enchendo cântaros na fonte. Vejo homens, com sua dignidade tão simples, guiando búfalos que puxam arados. Têm mil anos de idade. As palhoças são mais humildes do que as que estou acostumado a encontrar; as camas ficam do lado de fora. Jamais me ocorreu ver alguma coisa e, ao mesmo tempo, visualizar uma catástrofe. Mas só consigo pensar na monção. Filha de uma puta. Em Benares, julguei estar testando a índia. Os céus se abriram; a mesa virou. A índia me testou."
Após mais algumas páginas de sânscrito, Janice leu em inglês: "Ando depressa, mas continuo a ouvir gritos de Khedda!
Khedda! Eventualmente, acompanho as multidões — na índia só existem multidões —, esperando que me conduzam às partes menos civilizadas de Mysore.
"Agora, começo a compreender o que Seth queria dizer ao explicar os motivos pelos quais os monges partem sozinhos pelo mundo. Seth comparava-o aos artistas no momento da criação de uma obra de arte. Parar a vida para produzir vida. O
artista abandona tudo quando se dedica à criação. Já vi homens se esquecerem de comida, sexo e dinheiro, tudo porque desejam pintar um quadro. São alimentados pelo amor à obra de arte e pelo desejo de vê-la criada. Parar a vida para produzir vida. E, no centro de tudo, o plano que conduz à perfeição. O trabalho.
A obra".
Os dedos de Janice passaram pelas semanas e meses separados com clipes, por orações, comentários e observações, parando aqui e ali para ler uma anotação que prendia particularmente sua atenção e interesse.
"Ando todos os dias. Para ver a vida acontecer. O que desejo observar é o processo de alteração, e não as alterações depois de já efetuadas.
"Aqui, não busco crenças, religiões ou inspiração divina.
Busco a qualidade do silêncio. Devo escutar aquela parte de mim mesmo que é a mais silenciosa. É a ponte de meu passado, presente e futuro — oferecendo uma possibilidade de transformar o passado, o presente e o futuro numa única coisa."
E mais adiante: "O nascimento de um filhote de elefante selvagem. A manada inteira forma um círculo em volta da mãe, todos os membros virados para fora, a fim de resguardá-la contra qualquer perigo. O chefe da manada fica rondando em volta, inspecionando, vigiando, guardando.
"Círculos. Círculos rituais. Ciclos. A liberdade, aqui, de observar tudo o que acontece, dia e noite. Para observar o acontecimento de mim mesmo. Os ciclos que eu sou. Olho para dentro de mim e não consigo ver onde começo e onde acabo, pois existe movimento. Creio que isso seja bom. E, não obstante eu seja incapaz de discernir o começo e o final, existe um centro em mim. Eu, eu, eu, eu! Estou ligando o centro de MIM, esse estranho centro que sou EU, com tudo o que percebo fora de MIM. INFINIDADE. ÍNDIA. INTERIOR. Todas essas palavras começam por IN.
INCARNAÇÃO — ENCARNAÇÃO!"
A caligrafia pouco legível parecia dançar diante de Janice, que fechou os olhos, para descansá-los. Podia escutar, na quietude do apartamento, o zumbido da geladeira. Sentia uma angústia avassaladora, um terrível desespero, ao contemplar o dia que estava por chegar. Permaneceu imóvel por muito tempo, tentando ouvir algum ruído que indicasse a presença de Bill no andar de cima. Não conseguia escutar coisa alguma. Olhou para o diário e, com a consciência pesada, folheou as páginas restantes. Ainda havia muita coisa para ler, muitas palavras, muitos anos de viagens e pensamentos. Parando numa página quase no final do diário, ela leu: "Minha pele queimada de sol fica branca. Uma gota d água se congela na ponta de meu nariz. Solto um hálito quente e o nariz coça quando a gota se derrete. Algo muda. Algo permanece. Começo a rir e, dentro de minha risada, se esconde um rugido. Pareço fanfarrão? É isso que acontece com a percepção: transforma-se numa percepção ainda melhor. A verdade constrói mais verdade.
" Tabe asi, himalayas! Como me senti confuso ao ouvir essas palavras pela primeira vez. Em bengali, significam "adeus", mas, traduzidas literalmente, seriam: "Então, virei". Nada termina.
Tudo evolui.
"Índia, minha amiga, minha amante, minha mestra. vou deixá-la. Prana, "sopro da vida", como te chamaram, nas minhas pulsações vibra a melodia que você cantava naquele primeiro dia. Posso abrir meus olhos, ou fechá-los. É indiferente. Uma sensação do que sou e de tudo que aprendi, da energia que todos nós compartilhamos. Agora, posso despedir-me e dedicar-me a ações dignas.
"Em breve, meu ambiente físico será muito diferente. Mas ainda terei a altura do sol para alcançar. O necessário é ligar toda a atividade cotidiana ao meu objetivo final.
"Saber. Amar. Realizar.
"Esse é o poderoso dom da vida."
E a anotação final, escrita a tinta, com caligrafia mais ousada: "Hoje, estou em Dharmsala. Dentro de uma semana, estarei em Nova York. Trocarei minha kata por um terno, calçarei sapatos de couro, passarei a me movimentar no pânico e confusão dos automóveis e do metro. Meu café da manhã passará a ser presunto com ovos, em vez do moo-moo a que estou habituado. Depois de sete anos, uma perspectiva estranha e amedrontadora. Não obstante, parto com a mente cheia de esperança e o coração cheio de alegria, pois logo terei o privilégio de dar o passo final em minha busca da verdade, um passo tão divino que só é permitido aos santos e aos deuses.
Pois, possuindo o conhecimento e a fé que agora tenho, devo traçar o rumo de minha vida de modo a interceptar a trajetória da alma de minha filha. Devo descobrir onde ela está e oferecerlhe meus serviços, orar e praticar boas ações em reparação às faltas e omissões cometidas no passado".
Janice fechou o diário.
Lá fora, o vento gelado de inverno assoviava, cortante, entrando pelas frestas das janelas, esfriando a sala e causando-lhe arrepios de frio.
As palavras se misturavam em sua mente, chegando em rajadas irregulares. Palavras de Hoover, repetidas nos corredores mais próximos e mais distantes da memória.
"... saber, amar, realizar — preciso interceptar... a alma de minha filha..."
Hoover batera à sua porta para oferecer-se ao serviço da alma da filha — para orar e praticar boas ações por ela — e eles o tinham mandado para a prisão!
"A saúde de sua filha é uma ilusão. Enquanto seu corpo abrigar uma alma despreparada para aceitar as responsabilidades cármicas da vida terrena, não poderá haver saúde, nem para o corpo de Ivy nem para a alma de Audrey Rose. Ambas correm perigo!"
Ele advertira, honesta e corretamente — e eles o tinham trancado numa cela.
"Precisamos estabelecer um laço... um laço tão forte, tão cheio do amor que existe em mim e do amor que existe em você, para podermos restaurá-la, curá-la — para que a alma de Audrey Rose possa repousar outra vez..."
Hoover lhes oferecera a única solução possível e eles a haviam rejeitado, mandando-o para a prisão e, agora, tentando fazer com que esse encarceramento se tornasse permanente.
"Fazemos parte dessa criança. Todos nós participamos de sua criação e só nós podemos ajudála..."
Ele tinha razão. Eram parte da menina, todos eles. Estavam todos envolvidos na sua criação e agora só eles, juntos, poderiam ajudála.
Era o único meio.
Para conservar a vida de Ivy.
O dia estava começando a raiar quando ele chegou à Foley Square. Pedira ao motorista do táxi que o deixasse na 14th Street e estava andando fazia uma hora e meia. Parara rapidamente num daqueles cafés malcheirosos que ficam abertos a noite inteira e tomara uma xícara de café preto, sem açúcar ou creme — o que não era seu costume, mas constituía um ato de automortificação naquela hora, na sua hora de dor.
Bebericando o líquido amargo e escaldante, Brice Mack lembrou-se de como sua mãe fizera o shivah após a morte do seu pai. Uma vizinha lhe trouxe um caixote de laranjas, vazio e rachado, no qual ela permanecera sentada durante sete dias e sete noites, sem lavar o rosto, os cabelos em desalinho, as roupas rasgadas, bebendo o mais amargo dos chás, balançando-se para a frente e para trás, gemendo baixinho das profundezas de sua alma, demonstrando publicamente a dor e angústia que sentia em memória do marido que perdera, do homem que amara e cujo filho dera à luz, lamentando, em sua expiação, tudo o que deixara de dizer e de fazer por ele — as omissões, faltas e deveres matrimoniais que deixara de cumprir em vida e que não mais teria oportunidade de compensar na morte.
O ar matinal era frio e úmido, nuvens de vapor saíam pelas tampas dos bueiros nas ruas desertas que cercavam a Foley Square.
Sim, refletiu solenemente Brice Mack, passando a língua nos dentes e procurando livrá-los do gosto amargo do café, mamãe ficou sentada, fazendo shivah por papai, da mesma forma que, mais tarde, ele fizera o shivah por mamãe. Mas quem faria o shivah por James Beardsley Hancock? Quem haveria de sentar-se num caixote durante sete dias e sete noites, gemendo e balançando sua angústia por ele?
Haveria um necrológio no Times — sem dúvida, um artigo longo e detalhado, mas despido da paixão e do angustioso sofrimento do shivah — para marcar seu passamento desta vida.
Seu funeral seria uma cerimónia simples — rápida, esquálida, leiga, totalmente desprovida de força e significação. E, no entanto, tratava-se de um homem cuja vida esplêndida, exemplar e cheia de beleza merecia — não! exigia! — o ritual completo, a demonstração total de dor e sofrimento humanos para lamentar devidamente a sua perda. Não existia justiça. Se tivesse nascido judeu, teria o ritual completo. Agora, infelizmente, havia apenas Brice Mack, um substituto miserável e indigno do que ele merecia, para chorar sua morte.
Mack permanecera ao lado de James Beardsley Hancock até a hora final. Sentado ao lado da cama. À uma e dez não havia qualquer sinal de que o fim chegaria à uma e onze. Estavam conversando — ou melhor, Hancock estava falando, em voz baixa e eloquente, a respeito do próprio assunto da morte, quando esta se esquivara para dentro do quarto a fim de levá-lo.
Mack passara a maior parte da noite no hospital, não com a finalidade exclusiva de fazer uma visita ao doente, mas para conversar com os médicos, a fim de verificar se Hancock melhorara o suficiente para prestar um depoimento ou, caso Mack conseguisse persuadir o tribunal a deslocar o corpo de jurados até o hospital, estaria em condições físicas de submeter-se ao que poderia ser um estafante interrogatório por parte da defesa e da acusação.
A despeito do espantoso sucesso que conseguira naquele dia com suas testemunhas, cujos depoimentos, combinados entre si, estabeleciam uma sólida ligação entre a morte horrível de Audrey Rose e os pesadelos de Ivy Templeton, Brice Mack sabia que, a menos que conseguisse erguer uma forte e convincente tese em torno da questão da reencarnação, estava muito longe da vitória. Naquela altura dos acontecimentos, com o fiasco de Pradesh, o ataque cardíaco de Hancock e a recusa de Hoover em aceitar o depoimento de Marion Worthman, sua tese praticamente deixara de existir. A menos, e até, que fosse feita perante o júri uma exposição completa sobre o assunto, por uma pessoa de grande habilidade e possuidora da mais impecável reputação de erudição e integridade, de nada adiantaria chamar Hoover ou os Templeton ao banco das testemunhas, uma vez que seus depoimentos seriam tomados na ausência de uma compreensão real da questão básica em que se apoiava o caso. Era, portanto, essencial que a testemunha seguinte fosse um perito da categoria de Hancock.
Às oito e vinte da noite os médicos estavam suficientemente encorajados pela recuperação de Hancock para alimentar uma leve esperança de que ele pudesse ser ouvido intra muros no dia seguinte. O que animara Brice Mack o bastante para deixar o hospital e comparecer a um encontro para jantar com o Professor Ahmanson e um homem chamado Robert Vanable, um eventual substituto para Hancock que Ahmanson conhecera num simpósio de cientologia.
Na qualidade de ?limpo", termo aplicado àqueles que atingem o ápice da perfeição cientológica e estão a caminho dos níveis mais elevados, nos quais adquirem capacidades conferidas por Deus, Robert Vanable explicou a Brice Mack, durante a sobremesa, a verdadeira natureza da vida após a morte, como revelada a L. R. H. — iniciais de L. Ron Hubbard, fundador da Igreja Cientológica — e por ele expressa em sua famosa conferência no XVIII Congresso Americano de Clínica Avançada, nos idos de 1957.
— L. R. H. foi o primeiro a conhecer e a postular o que realmente acontece quando o espírito muda de cena — declarou Vanable, entusiasmado, provando o café irlandês. — O espírito abandona rapidamente o corpo quando este morre. Passa por uma tremenda confusão e por um período terrível, até conseguir localizar outro corpo e continuar existindo. Nesse intervalo, permanece totalmente consciente. Sabe quem foi e quem foram seus amigos. Sofre apenas a perda de substância. A mente permanece. Os erróneos conceitos cristãos de céu, inferno, purgatório — tudo isso é tolice. O espírito é submetido à prova aqui mesmo neste mundo. O esquecimento só começa após a escolha de um novo corpo, ocasião em que a válvula da memória se fecha, mas não antes que sejam feitas algumas orações e oferendas interessantes, destinadas a assegurar uma existência feliz na próxima vida...
E assim por diante.
Saindo do restaurante, Brice Mack retornou ao Roosevelt Hospital a fim de verificar o estado de Hancock.
Passavam vinte e sete minutos da meia-noite quando ele chegou à ante-sala da Unidade de Tratamento Intensivo. Uma enfermeira informou que o Dr. Pignatelli, médico pessoal de Hancock, se encontrava com o paciente. O Dr. Pignatelli apareceu às vinte para a uma e, lançando um rápido sorriso a Mack, conferenciou brevemente com a enfermeira, antes de se virar para o advogado. Informou que os prognósticos quanto à saúde de Hancock eram favoráveis e, a menos que ocorresse uma recaída, o paciente parecia melhorar sensivelmente.
Todavia, ainda era muito cedo para dizer se poderia autorizar o exaustivo programa de atividade proposto por Brice Mack, pois Hancock continuava em estado considerado crítico.
Brice Mack sentia-se profundamente fatigado. Na verdade, Pignatelli estava querendo dizer que Hancock não poderia prestar depoimento na manhã seguinte. O que deixava Mack às voltas com o delicado problema de "fazer cera" até que o velho erudito estivesse em boas condições. Isso significava ter de chamar outras testemunhas — mas quem? Não Hoover. Não agora. Nem nunca, se fosse possível. Nem os Templeton. Talvez o médico, Dr. Kaplan, servisse para encher uma manhã inteira. E Carole Federico. Com os dois, talvez Mack conseguisse ganhar um dia, ou mais...
— O senhor gostaria de falar com ele? — indagou o Dr.
Pignatelli, interrompendo as sombrias reflexões do advogado.
— Posso?
Pignatelli riu.
— Fará bem a ele. Acaba de acordar de um prolongado cochilo e está morrendo de chateação.
Não foi difícil localizar James Beardsley Hancock na ampla sala fortemente iluminada e de aspecto asséptico. Todos os demais pacientes estavam protegidos pela inviolabilidade dos biombos. James Beardsley Hancock estava totalmente exposto à vista de quem entrasse, sentado muito ereto, com o estrado erguido ao máximo, como um rei em seu trono, observando imperiosamente seus domínios com o olhar vivo e penetrante de uma águia.
O velho encarou o advogado que atravessava a sala em sua direção e sorriu — um sorriso que parecia genuinamente satisfeito e cheio de autoconfiança; um sorriso que dizia: "Veja só! Ainda estou por aqui. Não abandonei esta vida terrena, pelo menos por enquanto".
Cercado por frascos borbulhantes e telas de TV, cada uma delas revelando um aspecto da enfermidade, e atrapalhado como estava por tubos que pareciam sair de todos os orifícios de seu corpo, inclusive da boca, onde havia um termómetro, James Beardsley Hancock não pôde dizer uma palavra, oferecer a mão a Brice Mack, ou mesmo indicar-lhe uma cadeira. Só pôde expressar sua satisfação ao ver o visitante através do brilho no olhar e de uma leve inclinação de cabeça.
— Bem, senhor, é mesmo um prazer — disse Brice Mack, puxando uma cadeira branca de ferro para perto da cama e sentando-se. — Não esperava que me deixassem entrar.
Uma enfermeira veio tirar o termómetro da boca de Hancock e registrou a temperatura numa papeleta presa nos pés da cama. Antes de se afastar, verificou cuidadosamente os tubos e fios ligados ao corpo do doente e estudou os monitores de TV.
Hancock suspirou.
— Assim é melhor.
Tinha a voz forte, sonora e, como sempre para Brice Mack, agradável de se ouvir. Ficaram calados durante longo espaço de tempo, sorrindo um para o outro. Então, o advogado viu uma expressão de tristeza se espalhar pelo rosto ossudo. Os olhos do doente se enevoaram.
— Devo pedir-lhe desculpas, Brice, e também a Mr. Hoover, por minha... — e o leve sorriso retornou por um instante — ...ausência imprevista.
O advogado sorriu, fazendo um gesto compreensivo.
— Diga-me — prosseguiu Hancock —, como está indo o caso?
— Está indo — respondeu o advogado, dando de ombros.
— Tudo correrá bem.
Com um riso nervoso, acrescentou: — Quando o senhor chegar lá, venceremos.
Hancock inclinou a cabeça, concordando, e estendeu a mão para pegar um livro fino que estava em cima da cama.
— Estou ensaiando meu papel — disse, sorrindo e correndo os dedos pela lombada do livro. — Louis Fiquier, filósofo francês. Explica muito bem a reencarnação. Um bom auxílio para nossa tese.
Sorrindo ainda mais, abriu o livro numa página marcada por uma pequena dobra no canto superior e comentou: — Convença os incrédulos. Leia isto aqui, Brice.
Empurrou o livro na direção do advogado. Mack se levantou e, ao estender a mão para pegar o livro, sentiu-a segura pela mão forte de Hancock. Surpreso, ergueu os olhos para encarar o velho e percebeu que este o fitava com ar matreiro.
— Talvez você consiga convencer até mesmo os céticos mais empedernidos.
Brice devolveu o sorriso e libertou delicadamente a mão.
Tornando a se sentar, abriu o livro — intitulado O amanhã da morte — na página indicada e começou a ler. Após alguns minutos de silêncio, a voz profunda de Hancock pediu: — Leia alto, por favor.
Brice Mack pigarreou e, em voz bastante baixa para não perturbar os pacientes mais próximos, mas suficientemente alta para se fazer ouvir acima da cacofonia de "bips" dos marcapassos e outros aparelhos, começou a ler: ?
— Alguns homens são dotados de todas as vantagens da mente; outros, pelo contrário, são desprovidos de inteligência, percepção e memória. Tropeçam a cada passo na trilha difícil de suas vidas. Não conseguem sucesso em coisa alguma e o destino parece tê-los escolhido como alvos para seus golpes mais mortíferos. Por que estão no mundo? Deus seria injusto e mau se impusesse existência tão miserável a criaturas que nada fizeram para merecê-lo, nem pediram para existir. Entretanto, Deus não é injusto ou mau; possui qualidades essenciais exatamente opostas a isso. Portanto, a distribuição desigual do mal neste mundo terá que permanecer sem explicação, a menos que admitamos a pluralidade da existência humana e a reencarnação — isto é, a passagem da mesma alma por vários corpos. Então, tudo fica perfeitamente esclarecido. Temos uma alma que devemos purificar, aperfeiçoar e enobrecer durante nossa permanência neste mundo ou, tendo completado uma vida imperfeita e má, seremos compelidos a começar uma nova vida e, assim, a lutar para atingir o nível daqueles que já passaram para planos mais elevados..."
Quando Brice Mack ergueu os olhos, teve a impressão de que Hancock adormecera. Estava de olhos fechados, com o rosto imóvel e tranquilo. Fazendo menção de se levantar para sair, o advogado foi detido pela voz de Hancock.
— Como vê — disse o velho, da maneira suave e pensativa de alguém prestes a adormecer —, sem a doutrina da reencarnação, é impossível explicar os caminhos de Deus.
Calou-se e, mais uma vez, deu a impressão de cochilar.
Mack permaneceu sentado, a fim de verificar se o doente realmente dormira. Lançou um rápido olhar ao relógio. Uma e dez. Aparentemente, até mesmo esse leve movimento foi suficiente para chamar a atenção de Hancock, que abriu os olhos, alerta, procurando o intruso que lhe perturbara o repouso. Seguiu-se um intervalo — de não mais que alguns segundos — durante o qual o velho reorganizou os sentidos, reconhecendo o lugar que ocupava no tempo e no espaço.
Tornou a se sentir seguro.
— Está tudo bem — sussurrou em tom quase inaudível. — Todos nós experimentamos diferentes níveis de morte em nossa vida cotidiana... estamos tão acostumados a considerar a vida e a morte como antônimos... que não nos permitimos pensar nisso...
Mack mal conseguia ouvir o que o velho dizia.
— Não obstante, o fato de adormecer, esse momento de crepúsculo, é um nível diferente de consciência e muito... semelhante... a uma das etapas da morte...
De repente, Hancock abriu muito os olhos. A princípio, pareceu olhar para Mack; depois, através de Mack; finalmente, além de Mack, além das paredes, vendo uma vasta e etérea infinidade situada além dos limites espaciais do mundo conhecido onde lhe foi revelada uma visão que produziu em seu rosto uma expressão surpresa e maravilhosa de pura alegria e enlevo e, finalmente, de uma felicidade tão intensa e absorvente que fez seu corpo inteiro vibrar. Abrindo os lábios, ao exalar o último suspiro, deixou escapar — lindo!
Brice Mack mal tomou consciência do que se passou a seguir: a reação profissional dos médicos e enfermeiras ao alarme estridente dos aparelhos, correndo de todas as partes da sala, para rodear Hancock como um bando de baratas em volta de um pedaço de pão, suas tentativas para reviver o doente, seus gestos rápidos e precisos com seringas, equipamentos de oxigénio e, finalmente, com as próprias mãos batendo no peito inerte como se batessem a uma porta na esperança de acordar o morador adormecido. O olhar do advogado permaneceu fixo no rosto de Hancock, nas pálpebras cerradas, nos lábios sorridentes, nas narinas infladas, na expressão de tranquilidade, de total felicidade estampada na nobre fisionomia.
— Morreu — murmurou alguém.
Gradativamente, o grupo se afastou, por etapas, primeiro os médicos e depois as enfermeiras. Todos menos uma enfermeira, que ficou para desligar os fios e tubos, baixar o estrado e puxar delicadamente o lençol para cobrir o rosto ainda enérgico.
Brice Mack permaneceu imóvel durante longo tempo, fitando num transe o vulto imóvel sob o lençol, até perceber que as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. A umidade fê-lo voltar à realidade da luta pela vida que se desenrolava ao seu redor.
Atordoado, saiu da sala cambaleando. A enfermeira na ante sala lhe disse algo que ele não escutou direito, mas que soava como uma expressão de condolência. Mack empurrou a porta e saiu para o corredor que levava ao saguão.
Passava pouco das duas horas quando ele deixou o hospital e começou a andar para leste, na 57th Street, atravessando toda a ilha de Manhattan até chegar ao East River. A noite estava escura e gelada; um vento forte o empurrava na caminhada sem destino.
No Sutton Terrace, debruçou-se na grade, olhando as águas revoltas. O tráfego veloz no East Side Drive fazia a calçada estremecer sob seus pés.
Por algum tempo, sua mente permaneceu vazia de pensamentos, envolta nos ruídos e vibrações da noite, até que os sons se tornaram indistintos e distorcidos, assumindo a forma da última palavra balbuciada por Hancock — "Lindo!" —, enquanto seus olhos pareciam discernir nas águas escuras e turbulentas a imagem fragmentada do rosto do morto, refletida em mil e uma luzes que piscavam.
As lágrimas lhe saltaram aos olhos e sua garganta se apertou ao tentar reprimir o profundo soluço de angústia que brotou de seu peito.
Que estou fazendo, afinal?, admoestou-se ele. Chorando por um morto que mal conheci. Não faz sentido. Especialmente, considerando que era exatamente o que ele desejava... o que sempre quis durante a vida inteira.
— Merda! — cuspiu a palavra contra as rajadas de vento que sopravam do rio. — Merda! — repetiu, encontrando algum consolo naquele som.
Quem está morto, está morto, pensou raivosamente.
Quando a luz se apaga, fica apagada para sempre. Quem pensa diferente está cheio de merda — inclusive Hancock, Hoover e todos os patéticos filhos da puta que não conseguem encarar... como disse aquele psiquiatra?... a finalidade da morte. Ele está certo. Perez tem razão. Nós nos cagamos tanto de medo da morte que estamos prontos a aceitar qualquer teoria de merda que nos apresentem.
Não obstante... Não obstante, advertia uma voz interior, havia aquela expressão no rosto de Hancock... Uma expressão de puro êxtase. Sim: exatamente isso — êxtase! O velho realmente vira e sentira algo.
Luzes piscando? Mãos acenando? Cantos de sereia? A vulva sensual e convidativa que levava ao útero astral? Ou seria simplesmente, como lhe dissera certa vez Mel Stern, seu médico, o orgasmo final do corpo na hora da morte? Sim, isto explicaria aquela expressão de êxtase. Especialmente, num homem de oitenta e quatro anos.
Quem sabia? Quem realmente sabia alguma coisa? A única coisa que ele sabia com certeza era que Hancock estava morto, finado, acabado, de mais nada servindo a si próprio, a Brice Mack, à tese da defesa, a coisa alguma, a ninguém, nunca mais.
E, excetuando as lágrimas que começavam a se congelar, fazendo coçar seu rosto, haveria poucas pessoas — se houvesse alguma — para chorar pelo velho e lamentar adequadamente sua morte.
Com grande surpresa, Brice Mack verificou estar na esquina da 59th Street com a Second Avenue. Não se lembrava de ter-se afastado da grade à beira do East River e caminhado toda aquela distância. Só o percebera agora, por causa do táxi solitário que passava pela larga avenida deserta. Fez sinais frenéticos para o motorista.
Depois do frio cortante, o calor do interior do táxi era abafado e opressivo. O extremo contraste de temperaturas fez brotar em sua pele filetes de perspiração quenem mesmo tirar o sobretudo e afrouxar a gravata conseguiram fazer parar.
Na 14th Street pagou o táxi e percorreu a pé o resto da distância até Foley Square, na solidão de seus pensamentos, acompanhado pelo rosto de Hancock, gravado em sua mente naquele instante final da vida: alerta, vital, consciente — e, naquele primeiro instante da morte, abalado, surpreso, maravilhado... " Lindo! "... Então, nada...
A primeira pessoa que Brice Mack avistou ao entrar, fatigado, na sala do tribunal, às oito e quarenta da manhã, foi Elliot Hoover, já sentado à mesa da defesa. O acusado tinha o rosto cansado e abatido; seus olhos injetados e fitando o vácuo pareciam indicar uma noite maldormida e cheia de ansiedade.
Tivera notícia da morte de Hancock? Se a resposta fosse negativa, Brice Mack precisava informá-lo imediatamente, a fim de convencê-lo da situação difícil em que se encontravam e da necessidade de chamar Marion Worthman e mantê-la no banco das testemunhas até que Ahmanson encontrasse alguém digno de substituir Hancock. Não era hora de preocupações com bom gosto, decoro e outras amenidades; não agora, num tribunal — especialmente quando a acusação era de rapto premeditado.
Mack precisava convencer Hoover de que as águas da Sétima Vara Criminal estavam infestadas de tubarões e eram altamente perigosas, se não assassinas.
As poltronas reservadas aos espectadores já estavam totalmente tomadas e jornalistas já começavam a lotar sua fila, quando Brice Mack, com sua expressão mais séria e compenetrada, se aproximou do cliente. Estava prestes a começar o que tinha certeza de ser um monólogo provavelmente inútil, quando percebeu no ar uma alteração sensível. Foi como uma pausa, um silêncio na sala normalmente agitada, seguida por uma atmosfera de excitada expectativa.
Olhando para o corredor central, avistou Janice Templeton, pálida, séria, mas, não obstante, animada por uma intensidade radiante, caminhando decididamente para a fila das testemunhas, bem adiante do marido, o qual, como sempre, parecia estar sofrendo os efeitos de uma ressaca. O que prendeu a atenção e o interesse do advogado foi a atitude de Janice Templeton — sua postura empertigada, ereta e resoluta.
Aparentemente, o mesmo acontecia em relação aos espectadores e aos jornalistas, pois a sala se encheu de cochichos e olhares curiosos.
Naquela manhã, Janice Templeton parecia uma mulher diferente.
Acontecera alguma coisa.
Com o olhar pregado em Janice Templeton, Brice Mack não percebeu que Elliot Hoover se pusera de pé e se virara para a plateia, olhando para a fila das testemunhas, fixando, em especial, Janice Templeton. Só se deu conta do que se passava quando viu Janice Templeton, pouco antes de chegar à sua poltrona, estacar e virar-se para encarar Elliot Hoover.
Foi naquele rápido instante de franco e aberto intercâmbio, naquela comunicação profunda, íntima e silenciosa, na sutíl troca de olhares cheios de compreensão, na concessão e aceitação de fé e confiança mútuas — ali, diante de todos os presentes ao tribunal, inclusive do marido dela, cuja expressão de total atordoamento pareceu congelar suas feições, e na troca de olhares temerosos e inquietos entre os membros da promotoria —, que Brice Mack compreendeu claramente que algo de fato se passara com Janice Templeton e, fosse lá o que fosse, tratava-se de algo bom para a defesa.
Por alguma graça especial, a máquina continuava a funcionar perfeitamente por sua própria conta e, mais uma vez, fornecera-lhe a próxima testemunha...
23
NOVA YORK, ESTADO DE NOVA YORK, QUARTA-FEIRA, 29 DE JANEIRO DE 1975, ÀS 09:00 HORAS.
JANICE TEMPLETON chamada a depor como testemunha em favor da defesa, tendo prestado o compromisso de praxe, declarou o seguinte: INQUIRIÇÃO DIRETA POR MR. MACK:
P. Mrs. Templeton, em seu depoimento anterior a senhora declarou que o nascimento de sua filha foi perfeitamente normal?
R. Sim.
P. E a criança era normal e saudável sob todos os aspectos?
R. Oh, sim. Era saudável e linda.
P. De modo que, quando os pesadelos começaram a ocorrer, dois anos e meio mais tarde, a senhora não os atribuiu a possíveis complicações causadas durante o parto?
R. Não, absolutamente.
P. Devido aos pesadelos, a senhora procurou os serviços de um psiquiatra?
R. Sim.
P. Qual era o nome do psiquiatra?
R. Dra. Ellen Vassar.
P. A Dra. Vassar observou sua filha durante os pesadelos?
R. Sim, muitas vezes.
P. A senhora esteve presente em todas as ocasiões nas quais a Dra. Vassar observou sua filha durante um pesadelo?
R. Sim.
P. Mrs. Templeton, encontrava-se no tribunal quando o Dr. Perez prestou depoimento e descreveu o que a Dra. Vassar anotou sobre a natureza e o conteúdo dos pesadelos?
R. Sim.
P. O que a senhora presenciou dos pesadelos difere das anotações da Dra. Vassar?
R. Não.
P. Com que frequência ocorriam os pesadelos?
R. Nas primeiras semanas, ocorriam de três em três noites, aumentando de frequência com o decorrer do tempo. Quando fomos procurar a Dra. Vassar, estavam ocorrendo todas as noites.
P. Alguma vez os pesadelos variaram de natureza ou conteúdo?
R. Não, sempre se repetiam.
P. Então, em cada pesadelo, a menina corria pelo quarto, soluçando e balbuciando: "quentequentequentequente"?
R. Sim.
P. E em cada pesadelo ela tentava tocar a janela com as mãos, mas recuava como se sentisse dor?
R. Sim.
P. Durante quanto tempo perdurou esse primeiro período de pesadelos?
R. Durante o inverno e a primavera de 1967. Diminuíram gradativamente de frequência com o tratamento da Dra. Vassar.
No verão, já tinham praticamente cessado.
P. Na época, a senhora atribuiu essa diminuição de frequência a algo que a Dra. Vassar fazia no tratamento?
R. Sim, naturalmente.
P. Então, quando os pesadelos cessaram, a senhora atribuiu isso à Dra. Vassar?
R. Sim.
P. Alguma vez a Dra. Vassar discutiu com a senhora a opinião que tinha sobre a causa dos pesadelos?
R. Ela achava que Ivy estava expressando alguns temores de ser separada de mim e que os tinha superado.
P. Então, a Dra. Vassar jamais confiou à senhora as idéias e suposições que anotou na ficha de sua filha?
R. Não.
P. Agora, passemos da série de pesadelos de 1967 para a próxima ocasião em que Ivy teve outro pesadelo. Estarei correto ao supor que a data foi 22 de outubro de 1974?
R. Sim.
P. Relate, por favor, e da melhor maneira possível, o que aconteceu naquela noite.
R. Pois não. Mandamos Ivy passar a noite com uma vizinha.
Esperávamos a visita de Mr. Hoover e achamos melhor que Ivy não ficasse em casa, pois... bem, o senhor sabe... por causa das coisas que ele dizia e da maneira como vinha agindo.
P. Pode explicar o que quer dizer com "as coisas que ele dizia e da maneira como vinha agindo"?
R. Bem, ele alegava que Ivy era a reencarnação de sua filha, Audrey Rose. E se mostrava muito persistente nessa alegação, muito seguro de si. Naturalmente, julgamos que suas declarações eram simplesmente absurdas e que ele talvez fosse um doente mental. Foi por isso que meu marido e eu não quisemos que Ivy estivesse em casa quando ele chegasse, pois não sabíamos o que ele poderia dizer ou fazer.
P. Quando foi que a senhora soube que Ivy estava tendo um pesadelo naquela noite?
R. Cerca de uma hora após a chegada de Mr. Hoover. Carole... Mrs. Federico... telefonou para nós, terrivelmente perturbada. Disse que Ivy tivera um ataque e corria pelo quarto, berrando e gemendo, e que não conseguiam acordá-la. Naturalmente, meu marido e eu sabíamos o que isso significava.
P. E correram para o apartamento dos Federico?
R. Sim.
P. E o que encontraram lá?
R. Ivy estava tendo um pesadelo. Tudo voltara.
P. E esse pesadelo era de natureza e conteúdo semelhantes aos que ela tivera sete anos antes?
R. Era idêntico. Até mesmo sua fala e gestos eram os de uma menina muito mais jovem.
P. Quer dizer que, durante o primeiro período de pesadelos, ela parecia imitar a fala e apresentava a coordenação muscular de uma criança mais velha, e nesse pesadelo parecia imitar a fala e apresentava a coordenação muscular de uma criança mais nova?
R. Sim, aparentemente.
P. O que aconteceu em seguida?
R. As mesmas condições se repetiam. Ela corria pelo quarto tropeçando nos móveis, soluçando, implorando, balbuciando aquelas palavras, "quentequentequentequente", e tentando chegar à janela, mas não conseguindo.
P. E, como antes, nada puderam fazer para ajudála?
R. Sim, foi exatamente como antes. Só pudemos ficar observando. Até que...
P. Sim?
R. Mr. Hoover entrou no quarto.
P. O que aconteceu, então?
R. Ele exclamou: "Meu Deus!" Parecia estarrecido pelo que via e soltou aquela exclamação como se, de repente, compreendesse a verdade sobre o caso.
P. E o que fez ele?
R. Aproximou-se de Ivy — ela estava perto da janela, chorando e gritando — e chamou-a.
P. Pelo nome?
R. Sim.
P. Que nome?
R. Audrey Rose.
P. E ela atendeu?
R. A princípio, não. Levou algum tempo. Ele continuou a chamá-la, tentando interromper o pesadelo. Dizia: "Venha comigo! Venha, Audrey Rose! Sou eu, papai, que estou aqui! Venha!"
P. E, afinal, ela foi até ele?
R. Sim. Foi incrível. De repente, pareceu livrar-se do pesadelo e foi até ele.
P. Como foi até ele?
R. Correu para Mr. Hoover e o abraçou.
P. E então?
R. Ele a abraçou. Reconfortou-a. E ela logo adormeceu.
Tranquilamente.
P. Qual foi sua reação diante do acontecido?
R. Eu não sabia o que pensar. Fiquei espantada.
P. Discutiu o assunto com seu marido?
R. Sim, mais tarde.
P. O que disse ele?
R. Bill pensava que Mr. Hoover fosse alguma espécie de hipnotizador, que, de algum modo, sugestionara Ivy, impelindo-a a proceder daquela maneira.
P. A senhora concordou com ele?
R. Sim.
P. Passemos à noite seguinte, Mrs. Templeton. A noite de 23 de outubro. O pesadelo se repetiu?
R. Sim.
P. Descreva o que se passou naquela noite, da melhor maneira que lhe for possível.
R. Aconteceram as mesmas coisas. Os gritos, as correrias, os gemidos — foi uma exata repetição da noite anterior, só que Mr. Hoover não estava lá para ajudar. O pesadelo continuou durante horas, até que o médico chegou e aplicou um sedativo.
P. Seria o Dr. Kaplan?
R. Sim. É o pediatra de Ivy. Cuida dela desde que nasceu.
P. Passemos à noite de 24 de outubro. Creio que seu marido estava viajando e a senhora estava sozinha em casa com Ivy.
R. Sim.
P. Diga ao júri o que aconteceu naquela noite.
R. O pesadelo começou por volta das dez horas e foi o mais terrível de todos. Ao tentar telefonar para o Dr. Kaplan, esqueci de fechar a porta do quarto e Ivy saiu. Caiu na escada e se feriu. Estava sangrando e eu nada podia fazer para ajudála. Ela fugia de mim sempre que eu me aproximava. Eu nunca a vira tão histérica e desesperada. Ela corria pela sala, de janela para janela, tentando alcançá-las e depois recuando, procurando sair. Fiquei aterrorizada, temendo que ela caísse por uma janela.
P. A senhora recebeu uma visita naquela noite?
R. Sim. Mr. Hoover. Ele chegou ao prédio por volta das onze horas.
P. A senhora o convidou a subir?
R. Sim.
P. Por que o convidou?
R. Porque precisava de auxílio.
P. Mas o médico não ia chegar?
R. Eu precisava de auxílio imediato.
P. Então, por que não chamou a polícia, ou um dos empregados do prédio?
R. Eu precisava do auxilio de Mr. Hoover!
MR. VELIE: Meritíssimo, acabo de ser informado de que Mrs. Templeton sofreu um severo trauma ontem, causado pelos ferimentos sofridos por sua filha em um acidente. Mrs. Templeton encontra-se num estado de grande agitação emocional e julgo que deveria ser poupada do transtorno de prestar depoimento neste momento.
Mr. MACK: Meretissimo, trata-se de um evidente subterfúgio da acusação para evitar que a testemunha deponha, pois suas declarações derrubarão a tese da promotoria.
Mr. VELIE: Estou certo de que a defesa, assim como a acusação, deseja desvendar a verdade sobre o presente caso; portanto, é importante que os depoimentos aqui prestados estejam isentos de influências emocionais que possam perturbar as testemunhas. Acredito que um recesso até amanhã, a fim de dar à testemunha uma oportunidade para se acalmar e poder responder às perguntas com o devido grau de responsabilidade, seria uma medida adequada. Acredito que seja não apenas um ato humanitário, mas também uma providência para resguardar os interesses da justiça.
Mr. MACK: É justamente por desejar desvendar a verdade, que a defesa acredita que a testemunha deve ter permissão para depor aqui e agora. Protesto contra os comentários de Mr. Velie a respeito do estado emocional de Mrs. Templeton, pois insinuam que a mesma esteja, no momento, incapacitada para prestar declarações honestas e verdadeiras. Solicito que tais comentários não sejam registrados nos autos e que os jurados recebam instruções no sentido de ignorá-los.
O JUIZ: Os comentários ficarão registrados nos autos, mas recomendo aos jurados que as alegações de ambas as partes não devem ser consideradas como provas. Mrs. Templeton, sente-se capaz de prosseguir?
Mrs. TEMPLETON: Sim, estou bem. Quero continuar.
O JUIZ: Prossiga, Mr. Mack.
P. Por Mr. MACK: Mrs. Templeton, declarou que necessitava do auxílio de Mr. Hoover. Que tipo de auxílio?
R. Precisava dele para ajudar a interromper o pesadelo de minha filha. Para terminá-lo, como ele fizera antes.
P. E a senhora pediu a Mr. Hoover que a ajudasse?
R. Não foi preciso. Ele entrou no apartamento e, imediatamente, começou a dizer aquelas coisas a Ivy.
P. Que coisas?
R. O senhor sabe: chamou-a, dizendo que ele estava ali e que tudo correria bem. Dizia: "Audrey Rose! É o papai! Venha cá, querida! Estou aqui!"
P. E isso ajudou sua filha?
R. Sim, quase de imediato. Ela pareceu reconhecê-lo, como acontecera na outra noite, e correu para os seus braços. Depois, enquanto ele a reconfortava, Ivy adormeceu. Tranquilamente.
P. O que aconteceu depois que Mr. Hoover acalmou sua filha?
R. Ele a carregou para cima, lavou-lhe as feridas e fez curativos. Depois, colocou-a na cama.
P. E fez tudo isso com o seu consentimento?
R. Sim.
P. Nessa ocasião, a senhora teve uma conversa com Mr.
Hoover?
R. Sim.
P. O que lhe disse ele?
R. Disseme que Ivy corria perigo. Que a alma de sua filha... isto é, a alma de Audrey Rose... pedia-lhe socorro através dos pesadelos de Ivy. Que Audrey Rose se sentia muito infelÍz e estava procurando escapar desta vida terrena; por causa disso, impelia Ivy a situações perigosas.
P. Ele disse mais alguma coisa?
R. Disse que, uma vez que a alma da filha estava pedindo socorro, ele deveria tomar parte ativa em lhe proporcionar o auxílio necessário. Afirmou que deveríamos criar um laço entre nós; um laço bem firme com todo o amor que havia em mim e todo o amor que havia nele, a fim de que, juntos, pudéssemos restaurar e curar a alma de Audrey Rose, devolvendo-lhe o repouso.
P. A senhora acreditou no que ele lhe disse?
R. Não. Não conseguia compreender esse tipo de pensamento, alheio à minha criação e às minhas convicções religiosas. Simplesmente, não consegui acreditar.
P. Mrs. Templeton, sua crença no que Mr. Hoover lhe disse naquela noite permanece a mesma até hoje?
R. Não.
P. Pode revelar por que sua crença mudou?
R. (Resposta ininteligível.) O JUIZ: A testemunha quer fazer o favor de responder?
R. Eu disse: agora, acredito em Mr. Hoover e no que ele afirma.
Mr. VELIE: Protesto, Meritíssimo.
O JUIZ: Sim, Velie? Qual é o seu protesto?
Mr. VELIE: Mudei de idéia. Retiro o protesto.
O JUIZ: Prossiga.
P. Por Mr. MACK: Mrs. Templeton, existe algum motivo, que a senhora possa descrever, que a tenha levado a mudar de opinião a respeito de Elliot Hoover?
R. Sim. Uma série de acontecimentos recentes convenceram-me de que os temores de Mr. Hoover são justificados.
P. Que acontecimentos, especificamente?
R. Bem, meu marido e eu tomamos a decisão de matricular Ivy num internato fora da cidade, durante algum tempo, pelo menos até o final do julgamento. Eu acreditava que lá ela estaria em segurança, longe da influência de Mr. Hoover. Pensava que Audrey Rose, se fosse mesmo ela a força que desencadeava os pesadelos, não se manifestaria se permanecesse afastada dele. E, na realidade, os pesadelos cessaram, mas começaram a acontecer outras coisas. Coisas sutis.
P. Por exemplo?
R. Bem, ela pegou um resfriado. Muitas das meninas na escola estavam resfriadas, mas o resfriado de Ivy se transformou numa grave infecção dos brônquios. Passou a noite inteira acordada — a noite de sábado passado — devido a terríveis acessos de tosse. E teve febre. Eu não tinha termómetro, mas pude sentir que Ivy estava muito quente, febril. Foi uma noite tão terrível que nem sei como conseguimos suportar. Na manhã seguinte, Bill sugeriu que a trouxéssemos de volta à cidade, para consultar o Dr. Kaplan. Entretanto, tive medo de trazê-la para casa, porque Mr. Hoover estava aqui. Por isso, nós a levamos ao United Hospital, em Port Chester, uma vez que era domingo e os poucos médicos para quem telefonamos em Westport não podiam atendê-la. Bem, quando chegamos ao hospital, a febre passara e a bronquite também. O médico que examinou Ivy constatou que ela estava perfeitamente bem, a não ser por uma leve irritação na garganta.
P. E qual a maior importância que a senhora deu ao fato, além de sua filha ter um ligeiro resfriado?
R. Bem, interpretei o caso como um estratagema para trazer Ivy de volta à cidade. A febre e os acessos de tosse tinham por objetivo assustar-nos, compelindo-nos a trazer Ivy para consultar o Dr. Kaplan. E quase deu resultado.
P. Mrs. Templeton, refere-se a "um estratagema para trazer Ivy de volta à cidade". Quem se esconderia por detrás desse estratagema?
R. Audrey Rose, naturalmente.
Mr. VELIE: Protesto. A resposta da testemunha é inadmissível. Sua referência a uma mítica Audrey Rose é prova cabal de que se encontra sob tamanha tensão emocional, a ponto de estar incapacitada para prestar declarações coerentes.
O JUIZ: Protesto mantido.
P. Por Mr. MACK: Aconteceu mais alguma coisa?
R. Na noite de domingo, permaneci em Westport com Ivy, enquanto Bill voltava à cidade. Pois bem, naquela noite, fui despertada por um barulho vindo do quarto de Ivy. Quando fui investigar, encontrei Ivy no banheiro, despida, em pé diante do espelho, olhando para a própria imagem, rindo baixinho e sussurrando: "Audrey Rose, Audrey Rose...", como se Audrey Rose estivesse oculta em seu corpo e Ivy tentasse comunicar-se com ela.
P. Nessa ocasião, sua filha já sabia algo a respeito de Audrey Rose?
R. Oh, sim, nós lhe contamos na véspera. Algumas meninas da escola descobriram o que se passava aqui e espalharam rapidamente a notícia, de modo que achamos melhor contar tudo a Ivy.
P. Como sua filha recebeu a notícia?
R. Espantada. Incrédula. Mas, considerando tudo, aceitou muito bem. Na realidade, quanto mais pensava no assunto, mais romântica e atraente achava a idéia. Agradava-lhe particularmente a noção de continuar vivendo para sempre, sem morrer.
P. E qual o significado que a senhora atribuiu ao comportamento de sua filha diante do espelho?
R. A princípio, julguei que se tratasse de simples curiosidade de criança, mas sua nudez me sugeriu algo diferente.
P. O quê?
R. Que ela estivesse se exibindo, mostrando seu corpo, por ordem de outra pessoa.
P. Por ordem de quem?
R. De Audrey Rose.
Mr. VELIE: Protesto, Meritíssimo. Solicito que a resposta não seja registrada nos autos, pois se refere a uma pessoa imaginária. Não há provas de sua existência.
O JUIZ: Protesto mantido.
P. Por Mr. MACK: Aconteceu mais alguma coisa naquela noite?
R. Naquela noite, Ivy arrumou a mala e, pela manhã, não se lembrava. Durante a noite, dormindo, levantou-se silenciosamente e arrumou suas coisas com o maior cuidado. Para mim, era uma indicação da desesperada necessidade que Audrey Rose sentia de voltar à cidade; entretanto, não compreendi de que forma ela pretendia alcançar seu objetivo, pois Ivy não tinha dinheiro e nunca viajara sozinha de trem. Mais tarde, porém, encontrei na bolsa de Ivy um horário de trens e uma nota de dez dólares. Ambos tinham sido roubados da minha bolsa.
P. Roubados por Ivy?
R. Não, claro. Por Audrey Rose.
Mr. VELIE: Protesto, pois não há provas de que Audrey Rose seja uma pessoa real.
O JUIZ: Mantido.
P. Por Mr. MACK: A senhora sabe por que Audrey Rose estava tão desesperada para voltar à cidade?
Mr. VELIE: Protesto, Meritíssimo. A pergunta pressupõe um fato do qual não existem provas: a existência de uma pessoa chamada Audrey Rose.
O JUIZ: Protesto mantido.
P. Por Mr. MACK: A senhora sabe por que sua filha estava tão desesperada para voltar à cidade?
R. Para estar perto do pai.
P. Quem é o pai?
R. Mr. Hoover.
P. Não quer dizer Mr. Templeton?
R. Não, quero dizer que Ivy estava sendo compelida a procurar Mr. Hoover.
P. Aconteceu mais alguma coisa?
R. Sim, ela tentou matar Ivy.
P. Quem tentou matá-la?
R. Audrey Rose.
Mr. VELIE: Protesto pelo mesmo motivo citado anteriormente, Meritíssimo. Não há provas da existência de uma pessoa chamada Audrey Rose.
O JUIZ: Protesto mantido.
P. Por Mr. MACK: Quando ocorreu a tentativa para matar Ivy?
R. Ontem à tarde. Todas as meninas da escola contribuíram para fazer um enorme boneco de neve e estavam realizando o que chamam de cerimónia de coroação e derretimento. Isto é, fazem uma fogueira em torno do boneco, derretendo-o, destruindo-o; é um ritual realizado todos os anos. Enquanto o boneco estava sendo derretido, Ivy tentou entrar na fogueira. Não foi acidente; ela o fez de propósito. A irmã superiora me contou. Disse que Ivy literalmente se encaminhou e, depois, engatinhou para dentro da fogueira, e, se não fosse o vigia, Mr. Calitri, que correu e a tirou de lá, ela teria morrido.
P. Quer dizer que sua filha, deliberadamente, tentou se matar?
R. Oh, não! Não Ivy. Foi Audrey Rose que tentou matar Ivy. O senhor não compreende? Ela estava frustrada. Não conseguindo voltar à cidade, tentou fugir da vida terrena forçando Ivy a entrar na fogueira. (Testemunha começa a chorar.)
Mr. VELIE: Meritíssimo, deixei de protestar contra as duas respostas dadas por Mrs. Templeton, embora creia que existam fundamentos amplamente suficientes para eliminá-las dos autos por serem informações de terceiros, porque acreditava que logo se tornaria evidente para este tribunal que Mrs. Templeton se encontra tão perturbada em virtude do acidente quase fatal sofrido por sua filha na tarde de ontem, que certamente não pode ser responsabilizada pelas respostas que está pronunciando. Mais uma vez, com a maior veemência, sugiro que a sessão seja suspensa até que a testemunha consiga acalmar-se e voltar ao estado normal.
O JUIZ: Sente-se em condições de continuar, Mrs. Templeton?
Mrs. TEMPLETON: Sim, sim. Quero continuar. Quero contar tudo.
O JUIZ: Mr. Velie, na minha opinião, não parece haver motivo para suspender a sessão neste momento. Mrs. Templeton parece haver se recuperado o suficiente para prosseguir. Todavia, determino que as duas últimas respostas da testemunha sejam excluídas dos autos e recomendo aos jurados que não as levem em consideração.
P. Por Mr. MACK: Mrs. Templeton, acredita em reencarnação?
R. Sim, acredito.
P. Mrs. Templeton, acredita que sua filha, Ivy, seja a reencarnação da filha de Mr. Hoover, Audrey Rose?
R. Sim, acredito.
P. Mrs. Templeton, acredita que Mr. Hoover raptou sua filha?
R. Não, não acredito. Julgo que ele estava praticando um ato humanitário e tinha todo o direito de ir ao quarto dela naquela noite, a fim de ajudála, de vê-la, de cuidar dela, porque acredito que aquilo que ele afirma é verdade. Acredito que o único auxílio que minha filha poderá ter neste mundo venha por intermédio de Mr. Hoover. A única possibilidade que ela tem de continuar viva é a libertação desse homem. (Testemunha dominada pelo choro.)
Mr. VELIE: Protesto contra a pergunta, Meritíssimo, pois implica uma conclusão de ordem jurídica. Solicito que a resposta da testemunha seja totalmente excluída dos autos, porquanto tal decisão cabe exclusivamente aos jurados.
O JUIZ: Protesto mantido. Determino que a resposta da testemunha seja excluída dos autos, na sua totalidade.
Recomendo aos jurados não levarem em consideração essa resposta. Prossiga, Mr. Mack.
Mr. MACK: Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.
O JUIZ: Mr. Velie, pode reinquirir a testemunha.
Mr. VELIE: Meritíssimo, na minha opinião, a testemunha se encontra em tal estado de tensão e agitação que não acredito que suas respostas às perguntas que lhe foram endereçadas pelo advogado de defesa tenham qualquer relação com a verdade que se deseja esclarecer neste caso. Creio que qualquer reinquirição que eu pudesse fazer neste momento também resultaria em respostas baseadas nesse estado de grande perturbação. Portanto, não farei perguntas à testemunha.
Mr. MACK: Meritíssimo, solicito que todos os comentários de Mr. Velie não sejam registrados nos autos, uma vez que constituem argumentação. Solicito, também, que os jurados recebam instruções para ignorá-los.
O JUIZ: Solicitação atendida. O taquígrafo excluirá dos autos as últimas declarações de Mr. Velie. Recomendo aos jurados que não as levem em consideração. Mr. Mack, pode chamar sua próxima testemunha.
Mr. MACK: Meritíssimo, não tenho outras testemunhas a apresentar.
O JUIZ: Está pronto para a réplica, Mr. Velie?
Mr. VELIE: Meritíssimo, levando em consideração o depoimento de Mrs. Templeton, bem como o fato de acreditarmos não ser possível reinquiri-la devido ao estado em que se encontra, solicito ao tribunal um adiamento para preparar minha réplica. Portanto, a acusação requer de Vossa Excelência que a sessão seja suspensa até amanhã pela manhã.
O JUIZ: Muito bem. A sessão será reaberta às nove horas da manhã.
(Encerramento do termo de declarações da testemunha Janice Templeton.) A batida do martelo do Juiz Langley baixou o pano sobre a cena. Naquele momento carregado de tensão, todos os presentes ficaram mergulhados num silêncio tumular, levemente interrompido pelos ocasionais soluços da testemunha. Então, o ambiente foi invadido pelo que parecia ser uma estrondosa ovação: uma dramática explosão de surpresa, deleite e aprovação, quando os espectadores se ergueram ruidosamente e os repórteres partiram correndo para a porta.
Em meio ao pandemónio, Janice Templeton permaneceu sentada no banco das testemunhas, o rosto escondido nas mãos, tentando apagar a cena da memória, respirando fundo para controlar as lágrimas e o frio que lhe invadira os ossos. Podia sentir o calor produzido por centenas de olhares que se fixavam nela, inclusive o de Bill — oh, Deus, quanto ódio devia haver nos olhos dele! —, mas estava aliviada, limpa, subitamente liberta da ansiedade que a devorara durante os últimos meses.
De repente, percebeu que o barulho na sala do tribunal quase cessara — estariam todos eles fitando-a em silêncio? —, o que fez com que erguesse os olhos. A primeira imagem a surgir à sua frente foi o rosto de Elliot Hoover, aparecendo em primeiro plano na sala que se esvaziava, cercado por sorrisos e expressões curiosas. Ladeado por dois guardas, Hoover deixara-se ficar no recinto, esperando que Janice erguesse a cabeça, insistindo em exercer seu direito de agradecer-lhe, de expressar-lhe gratidão por tudo o que ela havia declarado, por tudo o que ela arriscara em seu benefício. À medida que sua visão se tornava mais nítida, Janice percebeu que ele também tinha os olhos cheios d água e sorria para ela, como se dissesse: "Eu sei. Eu compreendo".
Janice queria desviar o olhar, mas não ousava virar a cabeça para o lugar da sala onde Bill devia estar sentado. Ainda era cedo demais para enfrentá-lo; sentia-se fraca demais para se deparar com todos os problemas que a aguardavam naquela direção.
O que, afinal, desviou sua atenção foi ouvir alguém chamar seu nome numa voz baixa e vibrante.
— Mrs. Templeton — disse Scott Velie. — Vamos fazer uma conferência em meu gabinete após o almoço. Poderá comparecer?
Tinha a mesma aparência que a voz: vazia.
— Poderá comparecer? — repetiu.
Janice meneou afirmativamente a cabeça. Velie girou nos calcanhares e se encaminhou rapidamente para a saída.
Só nesse momento ela conseguiu reunir forças suficientes para encarar Bill. Quando virou a cabeça, verificou que a poltrona dele estava vazia.
Scott Velie, o assistente-chefe da promotoria da cidade de Nova York, estava sentado, sozinho, em seu gabinete.
Correu o olhar pelas sombrias prateleiras de livros jurídicos que cobriam todas as paredes, do teto ao chão, achando que o ambiente tranquilo estimulava o pensamento e repousava o espírito. Era, simultaneamente, seu retiro espiritual, sala de troféus e cabine telefónica. Ajustava-se como uma velha luva a seu temperamento e disposições, acalmando-o nas horas de crises turbulentas, dando-lhe energia quando a fadiga ameaçava toldar-lhe o raciocínio, consolando-o quando as depressões atacavam.
Por que motivo teria falhado seu instinto, agora?
Normalmente, teria percebido que Mrs. Templeton estava tensa como uma corda de violino. Notara os indícios em seus olhares inquietos, nos sorrisos rápidos demais, nos mil e um maneirismos que ela vinha empregando para disfarçar seus temores e remorsos. Todos os sinais ali estavam, desfraldados.
Ela só faltara anunciar aos quatro ventos que estava prestes a explodir. Por que ele não percebera?
Velie compreendia que seu instinto, aquele instrumento raro e delicado, não funcionara. Aos sessenta e três anos, após longos anos de profissão, seu instinto falhara.
Durante seus trinta e dois anos na promotoria, vira todo o préstito da miséria humana entrar pela porta de seu gabinete: todas as cores, sexos e idades, com todos os defeitos possíveis — viciados, traficantes de tóxicos, prostitutas, exploradores do lenocínio, ladrões, assaltantes, tarados sexuais, assassinos, todos os tipos, enfim. Sentira pena de muitos deles, especialmente dos que tinham sido marcados pela miséria desde o berço, os derrotados profissionais, que, mesmo naquela nação de grandes oportunidades, jamais conseguiam encontrar o caminho. Conhecia bem aquela gente. Ela formava o pano de fundo de sua juventude e ainda permanecia na periferia de sua memória. Às vezes, ao fitar o indivíduo postado do outro lado de sua escrivaninha, reconhecia seu próprio rosto na fisionomia desesperançada, conturbada pelo medo, de um jovem criminoso, e tentava adivinhar de que maneira conseguira ele próprio escapar a destino semelhante. Às vezes, via tão claramente a própria imagem refletida num daqueles jovens infelizes que se permitia fazer acordos com algum advogado recém-saído da faculdade, sem achar que traía seus deveres profissionais.
Então, haviam surgido os Hoover — os puros e imaculados Hoover, privilegiados por todos os benefícios de uma sociedade generosa, pessoas inteligentes e de boa posição social, que passavam a vida se aproveitando das oportunidades que lhes caíam no colo —, que nada tinham de melhor a fazer na vida que entregar-se a devaneios fantasiosos e loucos, julgando ter o direito legal de impor suas ilusões doentias a cidadãos decentes e respeitadores da lei. O depoimento de Janice Templeton era prova cabal da influência contaminadora de Hoover sobre pessoas inocentes e de bem. A mulher estava tão desesperada para poupar a filha das dores e sofrimentos de uma doença mental, que se mostrava disposta a aceitar qualquer teoria maluca. Aceitara as alegações de Hoover quanto à reencarnação como uma doente desenganada aceitaria um tratamento milagroso para a cura do câncer — por puro desespero. Hoover não apenas conseguira iludi-la, como também destruíra um bom casamento.
Velie sabia perfeitamente que tudo estava acabado entre os Templeton. Fora fácil perceber, pelo modo como permaneceram sentados longe um do outro, evitando olhar-se mutuamente, durante a reunião ali no gabinete da promotoria. Como estranhos. Pior ainda: como inimigos. Janice não conseguia encarar o marido. Bill simplesmente não suportava a idéia de ver a mulher. Pela expressão calma e distante de Janice, esta parecia estar num mundo completamente diferente — num plano astral particular. A única reação que tivera ocorreu quando Velie apresentou sua sugestão. Então, a mulher ficara branca como cera. O marido, ao contrário, parecera crescer meio metro. Entusiasmara-se realmente com a idéia — especialmente quando vira a reação da esposa, quando notara que o rosto dela ficou muito pálido, assumindo uma expressão lunática. Foi exatamente a reação aturdida da mulher que fez com que Bill Templeton mordesse avidamente a isca jogada por Velie — não porque a sugestão lhe agradasse muito, mas para punir a esposa. Velie jamais vira tanto veneno num sorriso de satisfação. Sim, Hoover fizera um belo trabalho com o casal.
Trouxera à tona seus melhores instintos...
Quando Velie apresentou-lhes seu estratagema, jamais imaginara que um deles aceitasse a idéia. Nem mesmo esperava que ele próprio concordasse... Era pura charlatanice, completamente contrária à sua natureza; o tipo de estrume que Brice Mack seria capaz de empregar. Não obstante, era adequado ao tipo de arena em que estavam pugnando, o tipo de combate que estavam travando: quando o adversário nos atira estrume, atiramos estrume nele. Às vezes, era a única maneira de se lidar com atiradores de estrume do tipo de Brice Mack. Bem, Velie tinha bastante experiência naquela espécie de luta. Sabia o suficiente a respeito de atirar estrume para poder enfrentar os melhores atiradores da praça...
Scott Velie se levantou e foi até a janela. Para variar, o céu estava azul naquele final de tarde. Talvez o tempo bom continuasse durante o fim de semana. Prometera a Ted e Virgínia passar o fim de semana na sua casa de campo, na Pensílvânia, e estava ansioso para cumprir a promessa. Seria ótimo revê-los, passar alguns dias em companhia de bons e velhos amigos. Desde que Harriet morrera, aquilo era tudo que lhe restava: a bondade dos velhos amigos.
Ao ver a figura esbelta de Janice Templeton descer a escadaria do Foro Criminal, seis andares abaixo, Scott Velie se deu conta do motivo pelo qual fora até a janela. Sentia-se curioso para saber se eles sairiam juntos do prédio. Agora, vendo-a descer sozinha os degraus e se encaminhar para o ponto de táxis, o promotor começou a refletir que talvez fosse tão culpado quanto Hoover pela separação do casal.
O que dissera ela ao marido, com aquela expressão confusa e apavorada? "Você seria realmente capaz de submeter sua própria filha a algo tão horrível?" E como ele respondera, sorrindo: "Não é pior do que aquilo que você está querendo fazer a ela".
Scott Velie viu o táxi de Janice Templeton afastar-se.
Poucos segundos depois, viu Bill Templeton descer a escadaria e se encaminhar para o Pinetta‘s.
Velie suspirou. Naquela noite, haveria uma cama solitária e fria no apartamento dos Templeton.
Ele sabia tudo a respeito de camas solitárias e frias. Os últimos cinco anos tinham-no transformado em perito no assunto.
Para variar, o Juiz Langley entrou na sala do tribunal com ar decidido, andar vigoroso, fazendo esvoaçar levemente a barra da toga. Ocupando a cátedra elevada, correu os olhos pelo ambiente. Ficou satisfeito ao verificar que, mais uma vez, a sala estava lotada. Mais um dia no qual a Sétima Vara Criminal cumpriria o sagrado dever de ministrar justiça de modo imparcial e judicioso, garantindo ao público o direito de saber a verdade — garantindo ao público o direito de lançar olhares curiosos, de soltar risadinhas, de cochichar, de soltar exclamações de surpresa ante o drama que se desenrolava diante de seus olhos. Por Deus, era exatamente isso: um drama! Um maldito espetáculo. Um melodrama sensacional, com mais emoções, quedas e arrepios que um circo de três picadeiros...
O juiz se sentia um tanto espantado. Um processo como aquele só ocorria uma vez, se tanto, na vida de um magistrado.
Embora houvesse surgido tardiamente em sua carreira, chegara finalmente. E Harmon T. Langley pretendia, por Deus, tirar o melhor proveito da situação. Ser fotografado, ser procurado constantemente pela imprensa para dar sua abalizada opinião e, como acontecera na noite passada, receber uma oferta de contrato por parte de uma das mais importantes agências que organizavam conferências, era algo que produzia no íntimo do Juiz Langley uma deliciosa sensação de, afinal, ter vencido na vida.
O repentino silêncio e a atmosfera de expectativa que dominaram a sala do tribunal arrancaram o juiz de seus devaneios a respeito da boa vida que teria no futuro, trazendo-o de volta, relutante, à ordem do dia.
— Mr. Velie, se já estiver pronto, pode iniciar sua réplica — declarou Langley, olhando de um advogado para outro, e acrescentando silenciosamente uma prece: — Por favor, meu Deus, iluminai-os para que mantenham o caldeirão fervendo.
Velie se ergueu com um sorriso formal.
— Muito obrigado, Meritíssimo. Torno a chamar ao banco das testemunhas o Dr. Gregory Perez.
Na mesa da defesa, Brice Mack relaxou-se confortavelmente, permitindo que um sorriso fatigado indicasse sua ausência de preocupação com o fato de o promotor ter tornado a chamar uma testemunha da defesa. Em breve, porém, o sorriso se congelaria em seu rosto, à medida que a intenção por detrás das perguntas de Velie se tornava evidente.
Dr. Perez — começou Velie, aproximando-se da testemunha com uma atitude tranquila e respeitosa. — Ao que me consta, o senhor declarou anteriormente que a hipnose é um instrumento terapêutico utilizado pela maioria dos psiquiatras, inclusive pelo senhor, não é mesmo?
— Sim. Muitos psiquiatras empregam técnicas hipnóticas em sua terapia.
— E uma dessas técnicas hipnóticas empregadas pelos psiquiatras é a chamada regressão hipnótica da idade?
Perez, impassível, encarava Velie.
— Sim.
— O que quer dizer exatamente regressão hipnótica da idade?
— É o processo através do qual um indivíduo submetido à hipnose é levado a uma época anterior de sua vida, podendo experimentar novamente sensações, lembranças, pensamentos e comportamentos característicos daquele período. Uma pessoa que sofre regressão de idade através da hipnose comporta-se como se voltasse literalmente à época em questão.
Enquanto o médico respondia à pergunta, o promotor virou-se lentamente para o banco dos jurados, até ficar bem de frente para as doze pessoas que deveriam julgar o acusado ao fazer a pergunta seguinte: — Até que ponto é possível fazer com que uma pessoa regrida hipnoticamente no tempo?
— Teoricamente, não existe um limite. Todavia, de nada adiantaria fazer uma pessoa regredir até uma idade na qual ainda não aprendera a falar...
Enquanto o médico falava, Velie começou a se aproximar vagarosamente do banco dos jurados.
— ... Teoricamente, pode-se levar um indivíduo de volta à infância, mas, desde que ele ainda não sabia falar naquela época, não será capaz de relatar o que sentia. Portanto, normalmente, quando aplicamos a técnica de regressão hipnótica da idade, vamos apenas até a chamada idade da razão, ou apenas um pouco além, a fim de reviver a lembrança de fatos que ocorreram naquela época e que agora, reprimidos, possam estar afetando o comportamento e as emoções do adulto. Para tentar eliminar as causas do comportamento neurótico atual, tentamos reviver as lembranças "ocultas" anteriores, através da regressão hipnótica.
Velie parou junto aos jurados.
— Todavia, é possível fazer uma pessoa regredir até a mais tenra idade?
— Sim.
— É possível fazer com que uma pessoa regrida até uma época anterior à infância? Digamos, até um estágio de desenvolvimento fetal no útero materno?
Perez hesitou um pouco antes de dizer: — Teoricamente, é possível fazê-lo, desde que nesse estágio existisse algum grau de consciência ou percepção. Entretanto, repito, nada se poderia ganhar com isso, de vez que um feto é incapaz de relatar seus pensamentos ou sensações.
Velie, segurando a balaustrada do banco dos jurados, inclinou-se dramaticamente e pronunciou claramente cada sílaba da pergunta seguinte: — Dr. Perez, é possível, através da regressão hipnótica da idade, levar uma pessoa além da idade fetal, além da barreira de uma vida atual, chegando a uma vida anterior?
A pergunta arrancou do médico um riso nervoso.
— Bem, já houve quem afirmasse ter não apenas feito pacientes regredirem a épocas anteriores ao nascimento, como também passarem por várias personalidades anteriores — disse ele, quase embaralhando as palavras. — Afirmam que determinados pacientes, sob a ação da hipnose, alegam ter vivido anteriormente em outras épocas e sob outras personalidades e, no estado hipnótico, são capazes de falar idiomas que não conheciam quando em estado consciente. Para responder a sua pergunta, eu teria que dizer que, teoricamente, isso é possível. Teoricamente, sim.; Alguns acreditam, outros não. É uma questão controversa, mas, existem pessoas que alegam ter sido capazes de fazer seus pacientes regredirem até existências passadas.
Os olhos de Velie circularam pela sala, observando disfarçadamente as reações de jornalistas, espectadores e, em especial, do réu e do advogado de defesa, que estavam empenhados numa discussão enérgica, embora quase inaudível.
Velie teve a impressão de que Hoover estava impedindo que Brice Mack apresentasse um protesto e ficou satisfeito ao perceber o efeito pouco saudável que suas perguntas estavam surtindo sobre seu jovem adversário, que parecia estar prestes a ter uma apoplexia: por ver-se atingido pelo estrume que ele próprio trouxera ao tribunal...
Dr. Perez — disse Velie, tornando a encarar a testemunha — , se o tribunal lhe pedisse para tentar, o senhor seria capaz de fazer uma pessoa regredir além da barreira desta vida e passar para uma existência anterior, se é que isso existe?
Perez sacudiu nervosamente os ombros.
— Nunca tentei algo assim.
— Estaria disposto a tentar?
Perez mexeu-se, inquieto.
— Poderia tentar, desde que o tribunal o exigisse.
Brice Mack, incapaz de conter-se por mais tempo, explodiu da cadeira: — Protesto, Meritíssimo! — berrou. — Isso é pura especulação! As intenções do promotor são evidentes e desejo registrar meu mais veemente protesto! Não se trata apenas de algo altamente fora de propósito, como também de um subterfúgio barato e de profundo mau gosto por parte de Mr. Velie, no sentido de impressionar e influenciar os jurados!
Um murmúrio excitado percorreu a sala. Uma leve batida do martelo do juiz restaurou rapidamente a ordem. Então, o Juiz Langley passou a considerar o protesto do advogado de defesa.
— É provável que tenha razão, Mr. Mack — declarou cortesmente o magistrado. — As perguntas implicam especulação por parte da testemunha. Entretanto, já que se trata de um perito no assunto, sinto-me inclinado a permitir que o promotor prossiga nessa linha de interrogatório, até que eu verifique aonde ele deseja chegar.
Velie aproveitou-se depressa da decisão do juiz.
— Meritíssimo — disse, em tom muito sério. — Desejo fazer ao tribunal o que talvez constitua uma solicitação fora do comum, mas acho que estamos tratando de um caso muito fora do comum. Um caso que suscitou não apenas interesse nacional, como também do mundo inteiro. Portanto acredito que, na intenção de atender aos interesses da justiça, bem como de tentar por todos os meios possíveis desvendar a verdade sobre a questão, Vossa Excelência deveria autorizar a realização de uma experiência, na qual Ivy Templeton seria submetida pelo Dr. Perez à regressão hipnótica da idade, a fim de verificar se realmente ela teve ou não uma vida anterior a esta e, caso isso seja provado, se essa existência anterior confirma ou não as alegações do acusado, ou se a hipnose é ou não capaz de revelá-la. Proponho, ainda, que a experiência seja realizada sob controle médico adequado, no mesmo hospital de Darien, no Estado de Connecticut, onde Ivy Templeton convalesce atualmente de ferimentos sofridos há alguns dias. Tomei a liberdade de telefonar para o hospital, a fim de verificar os recursos disponíveis. O hospital poderá ceder a este tribunal uma ampla sala do pavilhão psiquiátrico, normalmente utilizada como campo de observação para permitir que médicos e académicos de medicina estudem os casos de uma posição vantajosa e sem serem percebidos. A sala dispõe de um anfiteatro por detrás de um vidro especial, com espaço suficiente para acomodar confortavelmente os jurados, o acusado, todos os advogados, o taquígrafo e Vossa Excelência.
Os médicos que assistem Ivy Templeton asseguraram que a menina se encontra em condições físicas de ser submetida à hipnose e julgam que uma experiência dessa espécie não causará efeitos prejudiciais à paciente. Fica entendido, Meritíssimo, que tal experiência será realizada de acordo com as normas estipuladas por Vossa Excelência para que haja imparcialidade e justiça para ambas as partes.
Com um sorriso Velie, muito formal, concluiu: — Acredito que a defesa acolherá com satisfação a sugestão de fazer a experiência, desde que o acusado acredite na reencarnação da maneira tão profunda e incondicional que alega.
Brice Mack permanecera de pé durante todo o discurso de Velie, o rosto estampando choque e incredulidade. Sua voz, quando ele conseguiu reencontrá-la, manteve-se no nível de um sussurro aturdido: — Isso é inacreditável, Meritíssimo!
— A defesa protesta? — indagou o Juiz Langley.
— Sim, Meritíssimo. A defesa protesta da maneira mais enfática possível, alegando que tal experiência não pode ser considerada conclusiva. Não existem meios para realizá-la com garantia absoluta de que os resultados sejam exatos.
Com um leve toque divertido, o advogado de defesa acrescentou: — Compreenda, Meritíssimo: se o hipnotizador não conseguir fazer com que Ivy regrida até uma época anterior ao seu nascimento, isso não significará que a reencarnação não existe. Provará apenas que ele não é um hipnotizador de grande sucesso.
Velie exibiu um sorriso zombeteiro.
— Não foi a acusação que apresentou o Dr. Perez a este tribunal na qualidade de um perito qualificado e digno de confiança, foi a defesa! E agora, a defesa está procurando impugnar a credibilidade profissional de sua própria testemunha!
O Juiz Langley fez uma pausa para considerar a proposta, mas, na realidade, sua decisão já fora tomada no momento em que Scott Velie apresentara a sugestão. Transportar o tribunal inteiro para o anfiteatro do hospital, com todos aqueles toques dramáticos — o vidro especial, a criança sob hipnose, a busca de uma existência anterior sendo efetuada sob o controle severo e imparcial da ciência e da lei —, proporcionava a dose exata de temperos picantes para preparar sua futura série de conferências, muito embora, como a defesa alegava muito justamente, tal experiência não pudesse oferecer dados de natureza substancial ou conclusiva.
O olhar suave, quase sensual, a expressão relaxada e satisfeita do rosto do juiz — expressão que ambos os advogados já conheciam muito bem —, comunicou simultaneamente a essência de seus pensamentos aos dois adversários. Brice Mack explodiu imediatamente num veemente protesto: — Meritíssimo, reitero enfaticamente meu protesto! Tal experiência é não apenas altamente irregular, como...
— Eu não protesto, Excelência! — rugiu Elliot Hoover, abafando as palavras de seu advogado e pondo-se de pé num salto que colocou em imediato estado de alerta os dois guardas encarregados de vigiá-lo. — Quero que a experiência seja realizada e dou minha autorização!
A repentina contra-ordem de Hoover fez com que vários repórteres se erguessem e provocou grande tensão no ambiente.
Brice Mack encarou sombriamente o cliente.
— Não retiro meu protesto, Meritíssimo — declarou em tom frio e desafiador.
— Eu insisto na realização da experiência — disse Hoover, com os dentes trincados.
Ouviu-se um arrastar de cadeiras, quando os espectadores das últimas filas se puseram de pé para ver melhor o que se passava.
— Sente-se, Mr. Hoover — ordenou o Juiz Langley num tom fatigado. — O senhor está sendo representado por um advogado e não tem permissão para se manifestar.
Um rubor de raiva cobriu o rosto pálido de Hoover.
— Nesse caso, desejo dispensar meu advogado, Meritíssimo, Brice Mack ficou branco.
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— Concede-me alguns minutos, Meritíssimo?
— Concedido — declarou o Juiz Langley.
Espantado mas alerta, o advogado se aproximou do perturbado cliente, iniciando uma discussão em voz baixa. O juiz esperou pacientemente enquanto os dois discutiam acaloradamente, num tom quase inaudível, pontuando as sentenças com muita gesticulação e meneios de cabeça.
Finalmente, Brice Mack se levantou e encarou o juiz, esforçando-se para manter uma atitude de comando sobre a situação muito desfavorável.
— Retiro meu protesto, Meritíssimo — declarou com firmeza. — Meu cliente está ansioso para que a experiência seja realizada, pois julga que suas alegações serão confirmadas por ela.
Encolhido na cadeira, Bill Templeton fitava com grande satisfação a ignomínia e a derrota de Brice Mack. Há muito tempo o franguinho atrevido vinha merecendo uma boa sova...
— Não vejo motivo pelo qual o tribunal não permita a realização da experiência — declarou o Juiz Langley, com uma suavidade surpreendente. — Afinal, é um caso de dimensões totalmente singulares, como lembrou muito adequadamente Mr. Velie, que despertou o interesse do mundo inteiro. Já que permiti ao acusado ampla liberdade na apresentação de sua defesa, não me julgo no direito de, agora, impor restrições arbitrárias à acusação quanto ao seu método de apurar a verdade. Todavia, exijo que sejam observadas certas especificações quanto à maneira de conduzir a experiência e quanto às medidas que devem ser tomadas no sentido de assegurar que a mesma seja efetuada de modo adequado, para que se procure chegar à verdade por meios justos e imparciais, e, também, que as pessoas encarregadas de conduzir a experiência estejam devidamente qualificadas para fazê-lo.
Em seguida, o Juiz Langley se dirigiu ao promotor: — Quanto ao protesto apresentado pela defesa, Mr. Velie, determino que, além do Dr. Perez, sejam escolhidos dois outros psiquiatras para participar da experiência. Dois psiquiatras que utilizem normalmente a hipnose no tratamento de seus pacientes. Esses dois psiquiatras serão designados pelo tribunal, que escolherá os dois profissionais de melhores qualificações que seja possível encontrar.
A sala permaneceu em profundo silêncio enquanto o Juiz Langley fez uma anotação em seu bloco e depois, olhando tranquilamente para os rostos que o fitavam cheios de expectativa, acrescentou: — Desde que não haja mais perguntas, a sessão ficará suspensa até a manhã da próxima segunda-feira, o que dará ao tribunal tempo suficiente para escolher os dois psiquiatras e tomar as medidas necessárias à realização da experiência. O acusado deverá permanecer sob custódia.
Janice ouviu a notícia no rádio de cabeceira.
O noticiário do meio-dia confirmou sua derrota.
Segundo o locutor, não só o tribunal parecia disposto a permitir aquela barbaridade, como também Elliot Hoover endossara inteiramente a sugestão da promotoria.
Janice ficou longo tempo parada no meio do quarto, completamente atordoada, ouvindo a voz do locutor descrever os medonhos detalhes do caso.
A experiência seria efetuada na manhã de segunda-feira, no hospital em Darien. Todo o tribunal seria transportado até lá.
Juiz, jurados, advogados e o acusado observariam tudo sem ser vistos pelas pessoas presentes na sala. Três psiquiatras conduziriam a experiência. A presença do público seria proibida. A imprensa ficaria numa sala especial, provida de um circuito fechado de televisão.
Desligando o rádio, Janice correu para o telefone, discando o número da telefonista de informações. Bill talvez ainda estivesse no Foro Criminal. Se ele não estivesse lá, talvez fosse possível localizar Mr. Velie ou o Juiz Langley. Precisava encontrar um deles, impedir a realização da experiência. Negaria seu consentimento. Afinal, era a mãe de Ivy — tinha seus direitos...
Bill Templeton não foi encontrado. Scott Velie acabara de sair, avisando que passaria o fim de semana fora da cidade. O Juiz Langley, porém, talvez ainda estivesse em seu gabinete. Se Janice quisesse esperar...
A voz que atendeu era masculina e idosa, mas não pertencia ao Juiz Langley.
— Quem fala? — indagou.
— Aqui é Janice Templeton.
— Oh, sim, Mrs. Templeton. Aqui fala John Cartright, o oficial de justiça.
— Mr. Cartright, preciso falar com o Juiz Langley. É urgente.
— O Juiz Langley não está aqui no momento, Mrs.
Templeton. Posso ajudála em alguma coisa?
— É a respeito de minha filha. A respeito da experiência.
Não quero que se realize. Recuso... nego minha permissão.
— Tentarei dar seu recado ao Juiz Langley.
Janice teve a impressão de que os dedos sinistros do terror se aproximavam, tentando agarrá-la. Tomou um rápido banho de chuveiro e arrumou uma mala com roupas suficientes para uma estada prolongada. Suas mãos se moviam automaticamente — mal se dava conta do que estava fazendo — enquanto seu cérebro parecia correr. Precisava chegar até Ivy. Estar com ela.
Permanecer junto a ela. Tinha que dar um jeito de impedir a experiência.
Sentiu a cabeça rodar ao pegar a pesada mala e arrastá-la pela escada estreita até a sala de visitas.
Saiu para o corredor e apertou o botão do elevador.
Enquanto Ernie ia buscar a mala no apartamento, Janice ficou parada na porta, olhando desconsoladamente para a sala de visitas — um olhar prolongado, fixo —, vendo tudo o que estava abandonando e tentando adivinhar se algum dia voltaria a ser a mesma, se Bill, Ivy e ela conseguiriam compartilhar novamente a vida agradável e bela que haviam construído.
"Oh, meu Deus, não permitais que isto seja o fim!", implorou silenciosamente, sentindo as lágrimas brotarem e cerrando as pálpebras, procurando afastar de si a idéia daquela perda irreparável. "Não permitais que isto seja o fim", implorou novamente, enquanto, ao mesmo tempo, bem no fundo do coração, compreendia que desde o começo, desde aquele primeiro dia em que vira, em frente à escola, o homem de bigode e costeletas, desde aquele instante de percepção, sempre tivera a certeza de que, algum dia, o ato final se desenrolaria por sua própria conta, em seus próprios termos, sem permitir interferências, até cair o pano...
Parte quatro
Audrey Rose
24
— Bom dia. Meu nome é Steven F. Lipscomb. Sou doutor em psiquiatria e fui escolhido para presidir a equipe de três psiquiatras designados pelo tribunal para realizar esta experiência.
O corpo ligeiramente encurvado e os poucos fios de cabelos grisalhos que lhe restavam faziam-no aparentar sessenta e poucos anos, embora talvez fosse mais moço. Os pés-de-galinha nos cantos dos olhos cansados e pacientes, suas maneiras calmas e inteligentes, somadas a uma sinceridade quase desprovida de humor, confirmavam a posição que ocupava nas fileiras da profissão médica.
— Após consultar meus colegas, Dr. Nathan Kaufman e Dr. Gregory Perez, decidimos abordar individualmente a paciente, em turnos sucessivos. O Dr. Kaufman me sucederá e o Dr. Perez substituirá o Dr. Kaufman, caso a experiência não dê resultado com cada um de nós após um determinado período.
Encontrava-se numa sala tranquila, suavemente iluminada, desprovida de qualquer decoração ou mobília, excetuando um sofá de couro acolchoado e uma cadeira de espaldar reto. As paredes eram forradas de camurça, o que parecia aumentar as dimensões da sala.
— Não houve qualquer motivo especial para que eu fosse escolhido para iniciar a experiência. Foi uma decisão totalmente arbitrária, não significando que eu seja melhor qualificado que meus colegas ou mais experiente que eles nas técnicas hipnóticas.
Estava de pé junto à cadeira colocada no centro da sala sem janelas, parecendo dirigir-se à sua imagem, refletida num espelho retangular que cobria toda uma parede. Sabia, contudo, que não estava falando sozinho, mas para um grupo de pessoas que exerciam um direito e um dever legal de observá-lo e ouvi-lo do outro lado do espelho.
— Todos os senhores receberam fichas contendo dados pessoais e profissionais sobre cada um dos membros de nossa equipe e, portanto, já devem estar perfeitamente a par de nossos currículos profissionais e credenciais médicas. Se desejarem maiores informações a esse respeito, teremos o prazer de fornecê-las após o término da experiência.
Sabia que sua voz chegava aos principais interessados no caso através de um sistema de altofalantes e que eles deviam estar totalmente absortos no que ele dizia, sem demonstrar a inquietação ou desinteresse que suas aulas costumavam provocar nos alunos da universidade. Mesmo que alguns dos membros da audiência se mexessem nas poltronas, cochichassem ou tossissem, ele não perceberia, pois, assim como o espelho não permitia a visão, a sala era inteiramente à prova de som, a fim de preservar a total impressão de isolamento e intimidade.
— Antes de trazer a paciente que será submetida ao teste, eu gostaria de dizer algumas palavras a respeito do que tentaremos fazer aqui dentro de poucos instantes. A hipnose nada tem de misterioso ou incomum, sendo nos dias de hoje amplamente empregada pelos psiquiatras como um meio terapêutico de aliviar os sintomas de certas perturbações mentais. "Hipnose" é o termo empregado para definir um estado de extrema sugestibilidade induzido em um indivíduo por uma outra pessoa.
Também sabia que sua imagem, como sua voz, estava sendo transmitida para a sala de recreação do terceiro andar por uma câmera de televisão quase invisível implantada na parte superior da parede, acima do espelho. Tendo olhado para o interior do salão de jogos antes de descer para a sala, ele sabia que o recinto estava lotado por mais de cem pessoas, algumas delas vindas de longínquos recantos do mundo, que neste momento se debruçavam sobre blocos de anotações, registrando no papel cada palavra que ele pronunciava.
— Antes de trazer a paciente, eu desejaria acrescentar mais algumas palavras a respeito da regressão hipnótica da idade e do nível ou grau de transe que será necessário para extrair da paciente um fluxo nítido de lembrança de sua vida passada.
Dezenove pessoas se apinhavam num espaço previsto para acomodar apenas dez. Os jurados tinham recebido os melhores lugares e estavam bem perto do vidro, com o Juiz Langley cerimoniosamente espremido entre eles. O promotor e o advogado de defesa tinham o dúbio privilégio de ocupar um banco na parte superior esquerda do pequeno anfiteatro, logo atrás do taquígrafo do tribunal, cuja mesa e máquina estenográfica tomavam o espaço de uma pessoa. Hoover, devidamente escoltado, estava sentado logo à frente de Bill — uma proximidade muito desconcertante para este.
— ... e, depois que a paciente estiver suficientemente relaxada e segura de que nada de mau lhe acontecerá, empregarei o...
Janice preferira não exercer o direito de assistir a tudo do anfiteatro. Fora juntar-se aos repórteres no salão de jogos. Tal decisão, refletia Bill, com a mesma tristeza desesperançada que agora o dominava sempre que pensava em Janice, fora obviamente motivada pela necessidade que tinha de o evitar.
Conseguira esquivar-se do marido desde que ele chegara ao hospital naquela manhã.
— ... e, depois de verificar que as sugestões surtem efeito, farei um teste para determinar a profundidade do transe. Uma vez que as condições sejam satisfatórias, iniciarei a regressão da paciente em sua vida passada.
Bill sabia que deveria ter chegado mais cedo ao hospital, mas ao ser informado por Dominick de que Mrs. Templeton partira num táxi, levando consigo uma mala muito pesada, só conseguira pensar em tomar um pileque. Foi realmente um pileque e tanto, que o deixou exausto, trêmulo e com uma terrível dor de cabeça, que se recusava a passar. Mesmo agora, no anfiteatro, tinha a impressão de que uma barra de ferro em brasa lhe atravessava a cabeça de lado a lado.
— Muitas vezes, a regressão liberta um fluxo de associações esparsas que, frequentemente, se ligam a lembranças de ocorrências emocionais de natureza traumática.
O paciente pode exprimir sensações de dor ou de profunda melancolia. Pode até mesmo gritar ou apresentar bizarras alterações de personalidade. Tentarei poupar nossa paciente desses momentos dolorosos, mas peço que compreendam que se trata de um fato normal, que deve ser esperado numa experiência de regressão hipnótica da idade e que não surtirá qualquer efeito prejudicial de caráter permanente. Ademais, poderei despertá-la e tirá-la do transe a qualquer momento que deseje fazê-lo.
Poderia ter telefonado para Janice, pensou Bill. Apesar de embriagado, poderia ter feito ao menos isso. Ter demonstrado algum pequeno vestígio de preocupação paternal. É claro que a idéia lhe ocorrera, mas, por algum motivo oculto, não conseguira tomar a decisão de pegar o telefone. Sabia o que Janice lhe diria e isso era muito mais do que ele conseguiria suportar...
— A experiência que tentaremos dentro em pouco não tem precedentes nos anais da psiquiatria. Fazer com que um paciente regrida até uma época no início da infância, ou mesmo além disso, até um período pré-natal, embora já tenha sido conseguido em estudos experimentais, ainda é muito raro.
Todavia, conduzir um paciente além dos limites da vida atual, levando-o até uma vida anterior, é algo que, ao que me consta, jamais foi considerado nas pesquisas de natureza puramente científica e psiquiátrica.
Tinham-se encontrado, rapidamente, na cantina do hospital.
O local estava apinhado de jornalistas e o ambiente parecia festivo. Bill avistou Janice sozinha a uma mesa, tomando café.
Quando ela o viu, levantou-se e apressou-se em sair. Bill a interceptara junto à porta, dizendo: — Por favor, Janice, confie em mim — pelo menos uma vez.
Sei o que estou fazendo.
Ela parecia cansada, derrotada, o rosto abatido e despido de expressão, o olhar evitando o dele.
— Não, não sabe — replicara num tom indiferente, sem qualquer vestígio de esperança ou de acusação. — E, mesmo que soubesse, não faria diferença. Nenhuma.
O médico continuava: — Ao concordar em conduzir esta experiência, fi-lo sem qualquer pretensão de acreditar ou de ter fé no seu sucesso final. Estou aqui por solicitação de um órgão governamental, a fim de desempenhar uma função para a qual estou qualificado e tenho licença oficial.
As roupas de Bill se colavam ao corpo. O anfiteatro mais parecia uma panela de pressão. Por que o velho tagarela estava falando tanto? Por que não calava a boca e começava logo de uma vez o espetáculo — para acabar logo com a maldita experiência?
— Há cerca de uma hora, conversei com o acusado, Mr. Hoover. Ele me relatou cinco fatos a respeito da vida de sua filha. Detalhes de ocorrências de natureza especial e íntima, que causaram forte impressão na menina, Audrey Rose, e são do conhecimento exclusivo de Mr. Hoover, meus colegas e meu.
Se realmente atingirmos o objetivo a que nos propomos, pedirei à paciente que se lembre dessas ocorrências. Sua capacidade de recordar-se ou não desses cinco fatos pode ser conclusiva.
Tudo aquilo acabaria — em breve. Dentro em pouco a questão estaria resolvida, de uma vez por todas. Logo estariam juntos novamente, os três. E quando tudo aquilo estivesse terminado e esquecido, Janice e ele voltariam a se encontrar.
Haveria afastamento e tensão durante algum tempo, mas, no final, chegaria o perdão. O amor de ambos ajudaria Janice a estender o perdão — com o tempo...
— Agora, trarei a paciente.
Reinava absoluto silêncio no salão de jogos. Mais de uma centena de pares de olhos se mantinham pregados nas telas de três monitores de TV estrategicamente colocados, cada um deles mostrando a imagem do Dr. Lipscomb tomada de um mesmo ângulo. O médico abriu a porta da sala, deixando Ivy entrar.
O contato entre os olhos e as telas era palpável, pensou Janice, como uma corrente elétrica de alta tensão. Lutou para se concentrar nos aspectos técnicos da experiência. Condicionara-se mentalmente para aceitar aquele teste como a próxima e inevitável etapa de um processo inexorável. Prometera a si mesma não chorar. Lágrimas de nada adiantariam, nem a ela nem a Ivy. Era tarde demais para chorar. Contudo, a imagem de Ivy entrando na sala e permitindo que o médico a conduzisse pela mão até o sofá, tão tímida, tão vulnerável, tão ingénua, obrigou Janice a prender a respiração. Foi dominada por uma onda de pânico e teve que lutar para reprimi-lo, Janice aparara bastante os belos cabelos louros de Ivy. O rosto da menina ainda estava avermelhado em consequência das queimaduras recentes, mas, mesmo na transmissão em preto e branco, que reduzia tudo a tons cinzentos, sua beleza continuava irretocável.
Confortavelmente sentada no sofá, com a perna encolhida sob o corpo, Ivy não demonstrava qualquer nervosismo e parecia muito senhora de si.
— Relaxe-se, Ivy — começou o Dr. Lipscomb, em tom suave, monótono, insinuante. — Relaxe-se, solte bem todos os músculos do corpo. Como conversamos no outro dia, você não sofrerá nada. Sentir-se-á apenas cansada, muito cansada, tão cansada que vai querer dormir um pouco. Nada de mau, nada de ruim vai acontecer com você. Não se incomodará de dormir um pouco, porque daqui a pouco vai se sentir cansada, tão cansada que não se importará se cair no sono. Você se incomodará se cair no sono, Ivy?
— Não, não faz mal — respondeu Ivy, bem acordada.
— Não me incomodo.
Não, pensou Janice, ela não se incomodaria. Muito embora os psiquiatras, convencidos de sua própria sabedoria, considerassem Ivy criança, fácil de ser enganada, Ivy percebera de imediato o objetivo do teste e fora comentá-lo com Janice.
— Querem me hipnotizar para descobrir se é Audrey Rose que anda fazendo todas essas coisas malucas comigo.
— Você não é obrigada a se submeter — dissera Janice.
— Ninguém pode ser hipnotizado contra a vontade.
— Mas eu quero — insistira Ivy, muito séria e ansiosa.
— Preciso saber o que há de errado comigo. Não posso continuar dessa maneira.
Era realmente espantoso, pensara Janice, o fato de Ivy também ter aceitado tão prontamente a existência de Audrey Rose, passando a participar da conspiração que esta tramava contra ela. Primeiro, fora Scott Velie, depois Bill, então Hoover e o Juiz Langley, e, agora, a própria vítima, todos unidos num único anseio por uma força que eles mesmos eram incapazes de perceber ou compreender. Seria possível que somente ela, Janice, soubesse o que estava acontecendo? Que somente ela tivesse adivinhado o significado e a intenção que se ocultava por detrás do estratagema mais recente de Audrey Rose?
Tudo parecia indicar que sim. Todas as tentativas que Janice fizera em contrário tinham sido frustradas.
Passara o fim de semana inteiro procurando comunicar-se com alguém. Dera inúmeros telefonemas para o apartamento, na esperança de que Bill, finalmente, tivesse resolvido voltar para casa, mas ele não voltou. Fora impossível localizar Scott Velie.
Janice tentara coagir a telefonista a lhe revelar o número do telefone do Juiz Langley, que não constava da lista — alegando que se tratava de um caso de vida ou morte, o que era verdade —, mas todas as suas súplicas apaixonadas tinham sido polidamente recusadas, primeiro pela telefonista e, mais tarde, pela supervisora.
Quando, afinal, conseguira falar com Langley, naquela manhã, após esperar durante duas horas no gélido estacionamento do hospital, fustigado por um vento cortante, a chegada da limusine com chofer alugada para o juiz, apresentando seu protesto contra a experiência, da forma mais formal, veemente, embora respeitosa, a resposta do magistrado, pronunciada enquanto atravessavam apressadamente o pátio escorregadio e traiçoeiro, tinha toda a sinceridade e espontaneidade de um discurso escrito e cuidadosamente decorado: — Madame, compreendo perfeitamente suas objeções e fico profundamente comovido por elas. Tem todo o direito de externar sua opinião e, em circunstâncias normais, eu certamente as levaria em consideração. Entretanto, seu marido e a defesa possuem iguais direitos para consentir na realização do teste. Além disso, o Dr. Lipscomb me revelou que sua filha não apenas concordou com a experiência, como também faz questão de submeter-se a ela. Não há dúvida de que estamos adotando um procedimento altamente fora do normal, mas devemos considerar que se trata de um caso criminal. A acusação é muito grave e o réu, se for condenado, estará sujeito a penalidades extremamente severas. Considerando esses aspectos e, também, o interesse da justiça, sou obrigado a negar seu pedido. Todavia, pode ficar absolutamente certa de que tomamos todas as precauções para garantir a segurança de sua filha. Convocamos os melhores psiquiatras e o teste será realizado em condições que igualam a intimidade inviolável de um quarto de hospital.
O Juiz Langley fora a última esperança racional de Janice.
Agora, a única opção que lhe restava era o irracional.
A experiência tinha o início marcado para as dez horas. Às nove e cinco, Janice fora procurar o Dr. Webster. Encontrara-o no saguão, conversando com jornalistas. Jaleco engomado, estetoscópio recém-polido pendendo do pescoço, estava totalmente preparado para a grande ocasião. Janice conseguiu atrair sua atenção. Webster foi juntar-se a ela no vestíbulo frio e deserto.
— Ivy está em condições de voltar para casa? — indagou Janice, com fingida naturalidade.
— Claro — afirmou ele. — Logo que terminar o teste. A próxima escala de Janice foi o quarto de Ivy. Encontrou a filha sentada na cama, conversando amistosamente com os três psiquiatras. Uma conversa tranquila, sobre assuntos gerais, certamente destinada a acalmála. Relaxando o paciente antes da operação. Mal perceberam a presença de Janice. Esta esperou pacientemente que os médicos saíssem do quarto. Quando, após dois ou três minutos, eles não fizeram menção de se retirar, Janice os interrompeu em tom ligeiramente histérico: — Por favor, podem conceder-me alguns momentos a sós com minha filha?
Os psiquiatras olharam para ela com leve interesse profissional e saíram sem dizer uma palavra.
Tirando do armário a maleta de Ivy, ela começou a arrumar rapidamente a bagagem. Ivy observava, desconfiada. Afinal, indagou: — O que está fazendo?
— Pegue o casaco — ordenou Janice. — Vamos embora daqui.
— O quê? — replicou Ivy, chocada.
— Não vou permitir que façam isso com você!
— Mamãe! — a palavra explodiu cora uma torrente de lágrimas. — Mamãe, eu preciso! Preciso! Será que você não compreende? — exclamou a menina, em pânico. — Eu preciso!
Por favor! Por favor! Por favor!
Sua voz foi abafada pelos soluços. Janice correu para ela, assustada.
— Calma, calma, filhinha...
Tentou pegar a mão de Ivy, mas a menina esquivou-se violentamente, agarrando-se à beirada da cama.
— Não deixarei você me levar embora! — gritou, com o rosto avermelhado contorcido de angústia. — Não deixarei! Não deixarei! Não deixarei!
A porta se abriu. A enfermeira Baylor olhou para dentro do quarto.
— Posso ajudar?
Janice estava de pé junto à cama, olhando fixamente para o rosto angustiado e molhado de lágrimas da filha, sentindo-se incapaz de falar, paralisada pelo tremendo esforço mental que lhe custava admitir o fato de que não havia ajuda possível para Ivy, que não havia recurso humano que pudesse auxiliar sua filha — que Audrey Rose não se deixaria deter. Agora, a vontade dela prevaleceria.
— Quero que você se relaxe — continuava a voz suave e regular do Dr. Lipscomb. — Deixe-se relaxar totalmente.
Recoste-se e acomode-se bem.
O ruído das esferográficas nas folhas de bloco, do crayon no papel de desenho, fazia uma espécie de contraponto para a voz do Dr. Lipscomb. Este puxou do bolso uma lanterna em forma de lapiseira e ergueu-a, acesa, na mão direita.
— Agora, Ivy, olhe para a luz. Erga os olhos e fique olhando para a luz. Fique olhando. Continue olhando. Agora, enquanto continua olhando para a luz, está começando a sentir as pálpebras pesadas. Suas pálpebras estão ficando pesadas, pesadas, cada vez mais pesadas, e você tem cada vez mais dificuldade para abri-las, cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais. É cada vez mais difícil ver a luz, cada vez mais difícil abrir os olhos, ver a luz... Cada vez mais... cada vez mais... Bem devagar, suas pálpebras estão pesadas, tão pesadas, que você começa a fechar os olhos... seus olhos querem ficar fechados...
Eles querem... ficar fechados... fechados... Começam a se fechar... Estão fechados... fechados... fechados...
A posição da luz, bem acima dos olhos de Ivy, era tal que suas pálpebras se tornavam cada vez mais pesadas em virtude do esforço de manter os olhos voltados para o alto. A sugestão da voz ritmada e repetitiva começou, lentamente, a surtir efeito sobre a menina.
— Pálpebras pesadas... pesadas, cada vez mais pesadas...
cada vez mais... tão pesadas que você não consegue mais abrir os olhos... não consegue mais abrir... seus olhos estão quase fechados... quase fechados, embora você não queira... estão fechando e você precisa mantê-los fechados... mantê-los fechados... fechados... fechados... fechados...
Janice ouviu as batidas do coração se juntarem ao som do contraponto, enquanto via a filha permitir que sua vontade fosse dominada por aquele estranho que a conduzia a uma noite interminável.
— Agora, suas pálpebras estão tão pesadas, tão pesadas que você precisa fechá-las e mantê-las fechadas, fechadas... Agora, seus olhos estão fechados, totalmente fechados... Estão tão fechados que você não consegue abri-los... Não consegue abri-los... Mesmo que tente, mesmo que queira, mesmo que se esforce... por mais que se esforce... você não consegue abri-los... Não consegue... Tente! Tente abrir os olhos, Ivy!
A câmera de televisão focalizou o rosto de Ivy numa tomada em close. A menina tentava abrir os olhos. Seu rosto refletia o esforço. Mas não conseguiu.
Os ocupantes do anfiteatro não podiam ver tão bem. Não só porque o vidro tirava um pouco da luminosidade, como também porque, imprudentemente, o Dr. Lipscomb colocara a cadeira num ângulo em que seu corpo bloqueava metade da visão da paciente. As pessoas que se encontravam no mesmo lado da sala que Bill conseguiam enxergar apenas uma parte de Ivy. As do outro lado simplesmente não conseguiam vê-la. O Juiz Langley, irritado, exigiu que alguém pedisse ao médico para trocar de posição.
— Paciência — aconselhou Scott Velie, respeitosamente. — Esperemos até que ela esteja em transe profundo.
— Veja, você não consegue abrir os olhos, estão muito cansados, tão cansados que precisam permanecer fechados.
Relaxe-se, Ivy, relaxe-se... nada de mau vai lhe acontecer. Agora, você está segura, bem acomodada e totalmente adormecida...
Totalmente adormecida... Agora, seu braço direito está começando a parecer mais leve... cada vez mais leve... Está tão leve que quer se levantar do sofá... tão leve que quer flutuar no espaço...
Ô braço da menina se ergueu.
— Você está completamente adormecida... completamente adormecida... Quando eu quiser despertá-la, contarei até cinco.
À contagem de cinco, eu direi: "Acorde, Ivy!" E você acordará imediatamente. Está entendendo?
— Sim — respondeu a menina em voz fraca e inexpressiva.
— Quando eu der a ordem, você acordará, sentindo-se, bem e descansada, como se tivesse tirado um cochilo. Está entendendo?
— Sim.
O arrastar de uma cadeira, seguido por um tropeção, precedeu o aparecimento da silhueta de Scott Velie no vidro. O promotor bateu de leve na janela de observação, chamando a atenção do médico, que, virando-se nervosamente, logo compreendeu o problema e solucionou-o com a mudança da cadeira para um lado, permitindo uma visão total da paciente. A leve interferência não pareceu perturbar ou provocar qualquer reação por parte da menina adormecida. Novamente instalado, o Dr. Lipscomb prosseguiu com a hipnose.
— Agora, que seus olhos estão fechados e que você está profundamente adormecida, completamente relaxada, começa a recuar no tempo. Recuar, recuar, Ivy... recuar no tempo. Está recuando no tempo até seu oitavo aniversário. Muito bem, Ivy, contarei até três e você estará na sua festa de oito anos. Vai se lembrar de cada detalhe dessa festa. Um, dois, três...
Logo a seguir, uma expressão de alegria surgiu no rosto de Ivy — uma alegria interior, contida, que parecia pura, natural, sincera.
— Agora, você está na festa, entre seus amigos. Está vendo seus amigos, Ivy?
Ela meneou a cabeça, sorrindo.
— Fale-me a respeito deles, Ivy. Quem está na festa?
— Bettina, Carrie, Mary Ellen. Os gémeos. Peter.
— Fale-me a respeito dos presentes. Gostou dos presentes?
— Oh, sim. Gostei da boneca com o guarda-roupa completo.
E do jogo de adivinhações que Bettina me deu. E dos patins...
Janice sentiu uma pontada quando Ivy relembrou os patins.
O terrível barulho de Ivy andando de patins pelo apartamento e as lágrimas que derramava ao cair a cada três passos, provocando a decisão de Janice de escondê-los num armário e fingir que tinham sido perdidos ou roubados, voltaram-lhe à mente em ondas alternadas de tristeza e remorso por saber que os patins, ainda escondidos no mesmo lugar, lá permaneceriam para sempre.
— Agora, deixaremos essa festa e recuaremos no tempo até outro aniversário. Relaxe-se e recue no tempo até a festa do seu quarto aniversário, Ivy. Contarei até três e você estará na sua festa de quatro anos. Pronto! Um... dois... três.
Imediatamente, o rosto de Ivy ficou muito sério, assumindo a expressão queixosa de uma criança muito mais nova, que acabasse de sofrer uma decepção profunda e humilhante.
— Agora, você está na sua festa de quatro anos. Seus amigos trouxeram presentes, Ivy. Você está vendo os presentes?
O rosto de Ivy ficou vermelho de mágoa e ressentimento.
Virou a cabeça, esquivando-se à pergunta. Seu queixo tremia.
O Dr. Lipscomb, percebendo a reação da menina ante a lembrança, mudou delicadamente de assunto.
— Que belo bolo de aniversário seus pais compraram.
Quatro velas para você soprar e fazer um pedido, Ivy.
— Cinco velas — corrigiu repentinamente a menina, numa voz muito infantil e, a seguir, cometendo uma série de erros de pronúncia peculiares a crianças pequenas. — Não foram compradas. Muito caras. Mamãe tirou de uma revista. Eu ajudei.
As lágrimas saltaram aos olhos de Janice ao ouvir aquela voz doce e singela da sua filha de quatro anos, com os adoráveis erros de pronúncia — como na palavra "revista" —, fazendo-a lembrar as vezes em que resolvera não corrigir Ivy, travando uma batalha com os anos na tentativa de preservar aquela deliciosa ingenuidade, relutando em ver a filha crescer.
Janice foi arrancada de seu devaneio e trazida à realidade pelo som dos soluços. Ivy, encolhida no sofá, cobrindo o rosto com as mãos, entregava-se a um choro convulsivo, que lhe sacudia o corpo inteiro. Por que está chorando? perguntou-se Janice, vasculhando a memória em busca de alguma causa para tanta mágoa. Não fora uma festa tão alegre? Então, lembrou-se: houvera um momento horrível, quando aquele menino... como era mesmo o nome dele?...
— Ele quebrou! — soluçava Ivy. — Quebrou meu macaco!
Sim, Stuart... era isso mesmo... o brinquedo de corda — um macaco num velocípede. Stuart Cowan, um colega do jardim de infância que Ivy frequentava, dera tanta corda que o brinquedo quebrara.
— Maldito garotinho! — exclamou Ivy, chorando.
Bill engoliu em seco, lembrando-se nitidamente da cena. Foi uma confusão. Ivy gritando. Stuart rindo. Bill consolando-a, dizendo-lhe que Stuart não passava de um maldito garotinho.
— Está bem, Ivy — consolou o Dr. Lipscomb. — Está bem.
Você vai deixar de lado essa lembrança desagradável. Vai deixá-
la de lado e recuar ainda mais no tempo. Vai recuar até seu terceiro aniversário. Um... dois... três... Agora, Ivy, está na sua festa de três anos...
As lágrimas cessaram. A expressão se tornou distante, depois suave. Um sorriso brincou nos lábios da menina, logo seguido por uma risadinha infantil, que se transformou numa gostosa gargalhada.
— Ganhei! Ganhei! Ganhei! — gritou ela, na maneira histérica característica de uma criança de três anos. — Ganhei e vocês perdem! Todos perdem menos eu!
— Muito bem, Ivy — elogiou o médico. — Muito bem. Agora recue um pouco mais no tempo. Você tem dois anos e meio e não consegue dormir direito. Recue até a noite em que começaram os pesadelos. Agora, você está sonhando a mesma coisa que sonhou naquela noite...
O rosto de Ivy se contraiu lentamente. A menina começou a se debater, trêmula. A respiração se acelerou, entrecortada. A seguir, começou a choramingar: — mamãepapaimamãepapaimamãepapaiquentequentequente..
O lamento se transformou num grito.
Bill ouviu várias pessoas prenderem a respiração.
Movimentos nervosos fizeram-se sentir no anfiteatro.
Janice percebeu um profundo silêncio no salão de jogo quando as esferográficas ficaram suspensas no ar e todas as atenções se fixaram nas telas dos monitores.
— PapaipapaipapaiquentequenteQUENTEQUENTE...
— Está bem, Ivy! Abandone o pesadelo! — ordenou o Dr. Lipscomb. — Abandone o pesadelo! Já é de manhã e o pesadelo passou!
Os lamentos cessaram. O rosto relaxou, a tensão desapareceu.
— Ótimo, Ivy, ótimo... Agora, relaxe-se, acalme-se. Acalme-se. Quero que você agora recue ainda mais e mais no tempo. Vá embora no tempo, Ivy. Recue muito, recue até uma época em que você pode ver, ouvir, sentir e pensar, mas não consegue falar. Você agora é um bebé no colo da mamãe... Mamãe está colocando você no carrinho...
Mais uma vez, as lágrimas assomaram aos olhos de Janice, quando Ivy começou a balbuciar e sorrir, expressando os pequenos incómodos e prazeres de um bebé. A inefável doçura daquela recordação atingiu-a em cheio, trazendo consigo a sensação e cheiro do corpinho agasalhado, aninhado em seus braços. Sentiu uma pontada no coração por todos aqueles momentos queridos e preciosos, perdidos para sempre — alguns deles até mesmo além do alcance da memória.
— Muito bem, Ivy — disse o Dr. Lipscomb em voz tão baixa e suave que parecia uma carícia. — Agora, vamos recuar ainda mais no tempo — mais e mais —, recuar até uma época antes de você nascer... antes de você nascer... antes de você nascer...
A repetição, a cadência insinuante, a voz de comando firme e irresistível começaram paulatinamente a manifestar na menina uma letargia total. Os olhos cerrados, a cabeça repousando num ombro, as mãos levemente entrelaçadas como em oração, os joelhos começando a se encolher lentamente na diteção do peito, numa imitação impressionante de um feto. A seguir, Ivy permaneceu rigidamente imóvel, dando a impressão de nem mesmo respirar; com efeito, era a réplica perfeita da atitude de um feto flutuando no líquido uterino.
Um momento eletrizante.
— Meu Deus!... ela está no útero da mãe — sussurrou alguém atrás de Janice.
No anfiteatro, nem a menor vibração perturbava o silêncio na atmosfera quente e fétida em que dezenove pessoas estavam petrificadas pelo incrível espetáculo.
Bill, com o rosto banhado de suor, os olhos esbugalhados pelo abafamento do ambiente e pela tensão, só conseguia olhar como os outros, sentindo a dúvida ceder lugar à perplexidade, à medida que o inacreditável comportamento de sua filha, de sua Princesinha, se desenrolava à sua frente.
É impossível, pensou ele. Ela está fingindo. Tem que estar fingindo. Não está dormindo. Está zombando de todos. Sempre teve boa memória quanto às festas de aniversário. Mas... como poderia saber alguma coisa a respeito de fetos? E da maneira como se portam? Livros? Provavelmente Bettina. Aquela garota sempre foi muito precoce. Mesmo assim... É estranho como ela permanece imóvel, mortalmente imóvel... Como aquilo que a gente às vezes vê em vidros nos consultórios médicos. Esquisito...
As dúvidas e o tumulto interior de Bill se espelhavam nitidamente em seu rosto. E seu medo. Se aquilo fosse real, era errado. Tudo errado...
— Recue, recue, recue no tempo — prosseguia o metrônomo oral, insistindo, compelindo, exigindo. — Continue a recuar, recuar mais e mais no tempo, até a época anterior à em que você existia como você mesma. Até a época em que você não era Ivy... não era Ivy... não era Ivy... até o tempo em que você era outra pessoa... outra pessoa... não era Ivy... mas outra pessoa...
Estava errado. Aquilo era mau. O modo como ela permanecia imóvel, quase sem respirar, suspensa no espaço, flutuando. Que diabo estava fazendo o médico com ela? Aonde a levava? Seria possível que realmente estivesse levando Ivy de volta a uma outra vida? Loucura! Impossível! E, não obstante...
— ... não era Ivy, mas outra pessoa, outra pessoa... recue no tempo, recue no tempo, recue no tempo... recue no tempo até conseguir se lembrar, conseguir se lembrar, lembrar, lembrar, lembrar... lembrar a próxima coisa, a próxima coisa, lembrar, lembrar... você não é Ivy, mas outra pessoa... outra pessoa... não é Ivy, não é Ivy... mas... quem é você? QUEM É VOCÊ? QUEM É VOCÊ?
Ele tem que parar! Diabo, ele tem que parar! Está errado.
Muito errado. Ele tem que parar agora!
— QUEM É VOCÊ?
— Quero que parem com isso, Mr. Velie! — gritou Bill, pondo-se de pé, vacilante. Sentia a cabeça prestes a explodir.
— QUEM É VOCÊ?
— Quero que parem! — exigiu Bill, trêmulo, agarrando-se à cadeira para não cair. — Que diabo! Não estão ouvindo?
— QUEM É VOCÊ?
— Parem com isso — berrou Bill. — Mr. Velie, Juiz Langley... estão ouvindo?
Mesmo que estivessem ouvindo, o que era duvidoso, nenhum deles poderia tomar providências, pois todos estavam petrificados, aterrorizados pelo espectro que se materializava lentamente no outro lado do espelho. Pois, agora, a menina estava sentada, ereta no sofá, os olhos esbugalhados e fixos, o corpo rígido, a fisionomia confusa, vacilando entre o pavor e o divertimento, procurando alguém além de seu alcance, movendo-se de modo vacilante e cauteloso em direção a alguma descoberta maravilhosa.
— QUEM É VOCÊ? — prosseguia a voz implacável, ordenando, impelindo, empurrando Ivy na mesma direção.
Tremendo, Bill tentou apoiar-se mas caiu na cadeira, incapaz de falar, mal conseguindo respirar. Tentou fechar os olhos para apagar a cena, mas não conseguiu.
Tinha que olhar. A culpa era sua — toda sua... Agora, tinha que olhar — assistir a tudo!
— QUEM É VOCÊ?
De repente, o rosto de Ivy se imobilizou. Seus olhos — já brilhantes e cheios de expectativa — abriram-se ainda mais, buscando alguma distante lembrança que, agora, parecia estar próxima, ao seu alcance. A respiração se acelerou. As linhas de tensão nos cantos da boca se relaxaram num lento sorriso, que se alargou suavemente, espalhando pelo rosto uma alegria tão grande, irradiando um calor tão terno e tão cheio de gratidão que se tratava, indubitavelmente, de uma volta ao lar. Chegara — afinal! Após prolongadas e exaustivas peregrinações, chegara finalmente ao lar.
— Mamãe? — exclamou a voz infantil, nítida e cristalina.
— Mamãe!
A menina começou a rir, um riso cheio de enlevo e deleite.
— Mamãe! Mamãe, mamãe, mamãe!
Foi naquele momento de chegada ao lar, de alegria e união, que Janice Templeton fechou os olhos e começou a recitar baixinho a Oração pelos Mortos.
— "Oh, Deus, que sois a misericórdia e o perdão, nós vos rogamos humildemente pela alma de Vossa serva, Ivy Templeton, que levastes deste mundo..."
— Mamãe, mamãe, mamãe! — repetia a voz infantil, numa persistente litania, cujo tom ia sofrendo uma sutil alteração. O que antes fora alegria, prazer, fervor de júbilo e felicidade, começou a se transformar, pouco a pouco, em ansiedade e histeria. — Mamãe, mamãe, mamãe! — gritava, subindo a escala, passando do medo ao pavor, até chegar a uma nota estridente de terror.
— "... que não a deixeis cair em poder do inimigo, nem a esqueçais, mas conduzia aos santos anjos..."
— Mamãeeeeeeeeee!
No anfiteatro pairava um silêncio mortal. Ninguém se movia.
Bill procurava desesperadamente enxergar através do vidro, os olhos fixos no rosto distante da filha, mal conseguindo focalizá-la.
Que diabo está acontecendo com ela? Estava rindo ainda há pouco e, agora... Ela está mudando. A voz... O rosto... Estão mudando. Está desmoronando... fragmentando-se em cacos e linhas de medo... de terror — um terror crescente, avassalador... como o rosto das crianças que descem numa montanha-russa.
Isso mesmo. Balança para a frente e para trás, como se estivesse se movendo... não, como se o mundo se movesse ao redor dela... como se o sofá se movesse e o mundo passasse por ela...
— Mamãeeeee!
A palavra se transformou num grito tão agudo que o altofalante começou a estalar.
— Meu Deus... — sussurrou alguém, enquanto o grito sustentava a nota aguda e o balanço do corpo se tornava mais pronunciado — para a frente e para trás, para um lado e para o outro, obrigando a menina a agarrar os braços do sofá e lutar para manter o corpo ereto, resistindo a uma força que parecia procurar arrastá-la pelos ares...
— Está bem, Ivy! — disse o Dr. Lipscomb, nervoso.
— Eeeeeeeeeeeeeeeee!
— Está tudo bem, Ivy! — repetiu ele, erguendo a voz num tom de comando. — Abandone essa lembrança, agora! Recue mais no tempo, para além dessa lembrança! Recue mais no tempo, Ivy!
— Mamãeeeee! — berrava a menina, balançando o corpo num frenesi, o rosto contorcido, a cabeça violentamente sacudida, os dedos crispados no sofá para evitar que fosse jogada ao espaço.
— Abandone essa lembrança, Ivy! Quando eu contar até três, você recuará no tempo! Um... dois... três!
— Mamãeeeee! Bater-bater-bater-bater!
— Ela não é Ivy! — murmurou uma voz no anfiteatro — a voz de Elliot Hoover. — Não é Ivy!
— Mamãeeeee! Bater-bater-bater-bater-bater!
O grito, elevando-se numa escala de decibéis que sobrecarregava altofalantes e tímpanos, rasgou o ar numa única nota, sustentada indefinidamente. O corpo da menina, incapaz de resistir por mais tempo às oscilações turbulentas, ergueu-se do sofá como se empurrado por uma força invisível e irresistível. Ela cambaleou e pareceu ficar momentaneamente suspensa no espaço — os braços estendidos, os olhos esbugalhados, o grito morrendo na garganta — antes de tombar ao chão com um baque violento e repentino, que se fez ouvir pelos altofalantes. Caindo de cabeça, virou uma estranha cambalhota e ficou enroscada no chão, contorcendo-se e tremendo, parecendo estar semiconsciente — olhos semicerrados, um filete de sangue escorrendo da boca, gemidos abafados de alguém terrivelmente ferido escapando da garganta.
O efeito sobre os espectadores foi arrasador e inequívoco.
"... havia fumaça e uma das rodas traseiras ainda girava..."
Em volta de Janice, cadeiras se arrastaram, caindo. Gente se levantava. Então, um silêncio mortal pesou no ambiente, enquanto todos aguardavam o terrível desenlace.
— "Oh, Senhor, poupai-a do rigor de vossa justiça. Oh, Senhor, livrai-a do sofrimento eterno..."
O Dr. Lipscomb, mudo e perplexo como os demais, conseguiu finalmente recobrar as faculdades profissionais e, deixando-se cair de joelhos, tomou o pulso da criança. Seu rosto demonstrava uma preocupação, espelhada, logo a seguir, em sua voz: — Agora, Ivy, você vai acordar! — ordenou num tom ligeiramente trêmulo. — Quando eu contar até cinco, você vai acordar, bem disposta e descansada. Um... dois... três... quatro... cinco... Acorde, Ivy!
A menina continuava caída de costas, os olhos fechados, respirando com dificuldade, contorcendo-se, gemendo.
— Obedeça, Ivy! Quando eu contar até cinco, você acordará!
— Não é Ivy — murmurou Hoover, em febril ansiedade.
— Não é Ivy...
— Um... dois... três... quatro...
— "Oh, Senhor, livrai-a das chamas cruéis..."
— ...cinco!
Os olhos da menina se abriram de repente e ela se sentou, ereta. Fraca. Exausta. Ofegante. Inteiramente alerta. Os sentidos aguçados. Os olhos se arregalando de alarme. As narinas inflando. Cheirando. A cabeça girando em todas as direções, procurando, pressentindo um tremendo perigo iminente. O rosto se contorceu num caleidoscópio de expressões: medo, espanto, pânico, horror...
"... então... então houve uma explosão... não muito alta... mais como um puf... imediatamente o carro foi engolido pelas chamas..."
O grito explodiu com o estampido de um tiro, crescendo de maneira incrível, sustentando a nota final.
No outro lado do espelho, as pessoas se encolhiam, expelindo o ar dos pulmões para aliviar a tensão.
— Um... Dois... Três... Quatro... Cinco! Acorde, Ivy!
— Que diabo, ela não é Ivy! — berrou Hoover, pondo-se de pé num salto, acompanhado pelo guarda.
Bill, sem perceber, também se pôs de pé, gravando no cérebro aturdido a cena pavorosa. Sentiu um terrível aperto no peito.
O grito prolongado sustentava com firmeza a nota aguda, não dando atenção às palavras do médico. O corpo da menina se esquivou das mãos de Lipscomb, arrastando-se e, depois, engatinhando para longe dele.
— Um... Dois... Três... Quatro... Cinco! Acorde, Ivy!
Erguendo-se aos tropeções, a menina olhou freneticamente em volta, procurando um caminho de fuga. Então, vendo o espelho, correu para a imagem que refletia seu rosto deformado pelo medo. Correu ao encontro da imagem, parando de gritar, começando a soltar soluços engasgados que logo se transformaram num lamento balbuciado: — Mamãepapaimamãepapaiquentequentequente!
— "Oh, Senhor, livrai-a dos terríveis prantos e lamentos, através de Vossa infinita misericórdia!"
O súbito murmúrio de vozes e ruídos de passos fez com que Janice abrisse os olhos. Todos estavam de pé, com os olhos pregados nos monitores, acotovelando-se para ver melhor a imagem.
Janice percebeu que Ivy e o Dr. Lipscomb haviam saído do campo abrangido pela câmera, embora suas vozes se fizessem ouvir nitidamente.
— Mamãepapaimamãepapaipapaipapaiquentequente!
— Um... Dois... Três...
Janice respirou fundo, sabendo que agora deviam estar junto ao espelho, fora do alcance da câmera.
Um grito de horror partido dos espectadores deu início ao êxodo do salão de jogos e os jornalistas, desistindo da televisão, começaram a correr em direção à escada.
Janice se ergueu. Era chegada a hora de ir, também. Não correria ou se atrasaria, mas desceria os três lances de escada a passo normal. Levaria pouco menos de dois minutos para chegar até lá. Tomara a precaução de cronometrar o percurso.
Quando chegasse, tudo já estaria acabado.
No anfiteatro, todos os olhares continuavam pregados na cena que se desenrolava no outro lado do vidro...
A figura etérea da menina correndo de um lado para outro ao longo do espelho...
Suas mãos, tentando tocar o vidro e recuando, chorando, gemendo, "quentequentequentequente..."
O doutor: — "... quatro... cinco! Acorde, Ivy!" ... — aproximando-se da menina, tentando pegá-la...
A menina gritando, lutando violenta e furiosamente, esquivando-se dele...
O rosto deformado, a respiração ofegante, o olhar refletindo relâmpagos de pânico, os sentidos aguçados pela ameaça do perigo implacável...
Os punhos cerrados, movidos pela energia do desespero...
"Foi horrível. Eu ainda conseguia ver a garotinha gritando e esmurrando o vidro..."
Esmurrando o vidro e soluçando: "Quentequentequente quente!"...
"Eu podia vê-la através das chamas enquanto o carro se derretia, a tinta escorrendo pelo vidro da janela..."
Um grito alto e agudo saindo repentinamente da garganta da criança, fazendo com que os jurados, atrás do espelho, caíssem sentados nas cadeiras...
— Obedeça, Ivy...
O brado de Hoover, em desespero: — AUDREY ROSE!...
— Um... dois... três...
— Não conseguem ouvir — explicou Velie. — A sala é à prova de som...
— ... quatro...
Langley, boquiaberto — seu cérebro se recusando a compreender o que se passava...
— ... cinco! Acorde, Ivy!...
— AUDREY ROSE! ...
Ofegando, tentando respirar, vítima indefesa de um turbilhão incontrolável de emoções, esmurrando o vidro, gritando: — "Papai papaipapaiquentequentequente!"...
Hoover gritando: — Estou aqui! — e, pulando sobre cadeiras e pessoas, tropeçando até o vidro...
O guarda, sacando o revólver, hesitando...
Velíe gritando: — Guarde isso, Tim!...
— "Papaipapaipapaipapai!"...
O corpo de Hoover grudado ao vidro, as mãos estendidas...
— "quentequentequente!"...
"... ela continuava a gritar, tentando sair do carro..."
Bill, petrificado, mudo, o olhar enlouquecido pelo remorso...
"... e continuava a esmurrar o vidro..."
— QUENTEQUENTEQUENTE! ...
O Dr. Lipscomb, derrotado, dizendo na direção do espelho: — Terei que aplicar um sedativo, Meritíssimo — e, correndo para apanhar a maleta, frustrado e impotente...
— Quentequentequente... Papai... quente... quente...
A voz perdendo as forças, o rosto pálido se avermelhando, assumindo um aspecto cadavérico...
— Quente...quente... quente...
Tossindo, tossindo, as palavras morrendo na garganta...
— ... quente...
Agarrando o pescoço, caindo de joelhos, os olhos revirando nas órbitas...
Mrs. Carbone gritando: — Meu Deus, ela está morrendo! — estendendo os braços para a criança que lutava para sobreviver no outro lado do vidro. — Está morrendo sufocada!
Implorando. Ajudem-na! ELA ESTÁ MORRENDO!...
— PAPAIIIII! — A agonia da alma explodindo num grito prolongado e final de angústia...
Mrs. Carbone, esmurrando o braço de Elliot Hoover e gritando: — Você é o pai dela! Ajude-a! AJUDE-A!...
Hoover, virando-se para a mulher, arregalando os olhos, contraindo-se, movendo-se deliberadamente para pegar a cadeira de Mrs. Carbone e, com um grito agudo — "AUDREY!" batendo violentamente com a cadeira no vidro, quebrando-o numa chuva de estilhaços...
O corredor que dava para o anfiteatro estava entupido de jornalistas. Dois patrulheiros rodoviários de ar severo guardavam a porta fechada, indiferentes à chuva de perguntas que os fustigava.
— Deixem-me passar, por favor — pediu Janice, na periferia da multidão.
Quando a reconheceram, uma onda de silêncio se espraiou no ambiente. Abriram caminho para ela.
— É a mãe da menina — disse alguém aos guardas que, imediatamente, abriram a porta apenas o bastante para que o corpo esguio de Janice pudesse passar.
Sentiu-se abafada pelo ambiente mal iluminado.
O chão estava coberto de cacos de vidro, fazendo com que os passos de Janice anunciassem sua presença quando ela se aproximou lentamente das pessoas que formavam um semicírculo, bloqueando a visão daquilo que constituía o foco da intensa preocupação geral. Eram fisionomias que Janice já conhecia bem: Scott Velie, Brice Mack, o Juiz Langley, o taquígrafo do tribunal (cujo nome ela jamais saberia), o guarda de Hoover (Finchley ou Findley), os doze jurados, cada um expressando diferentes reações de tristeza, perplexidade, incredulidade. Mrs. Carbone chorava num lenço. Gente do tribunal, gente do hospital, os três psiquiatras lado a lado, ridículos, refletiu Janice, nenhum deles vendo o mal, ouvindo o mal, sentindo o mal. E Bill — finalmente Bill — sozinho no anfiteatro, com as costas de encontro à parede, dramaticamente emoldurado por estilhaços pontudos de vidros, fitando o vácuo, sacudindo a cabeça, como costumam fazer as pessoas que se sentem incapazes de suportar o peso que a vida lhes joga nos ombros.
— Mrs. Templeton... — a mão delicada e a voz bondosa pertenciam ao Dr. Webster, cuja expressão de desilusão e tristeza contrastava com o brilho do estetoscópio que continuava a lhe pender do pescoço como uma jóia. — Aconteceu... aconteceu tão depressa... tentamos... não tenho palavras...
A voz se embargou, não conseguindo continuar.
Cabeças se voltaram. Abriu-se um caminho. Janice avançou e, num momento de pânico, sentiu o coração parar e sentiu uma sombra começar a lhe toldar a visão.
Alguém lhe agarrou o braço. Sustentou-a. Obrigou-a a voltar à realidade. Forçou-a a olhar para o chão, para sua filha, para sua doce Ivy, agora tão imóvel, sem respirar, nos braços de Elliot Hoover. A menina tinha os olhos abertos, refletindo um brilho que parecia irradiar vida; seus lábios pálidos estavam ligeiramente entreabertos, como se ela estivesse prestes a dizer alguma coisa.
Mas foi Hoover quem falou por ela.
— Está tudo bem — disse ele, embalando suavemente o corpo da criança. — Agora, ela está em paz.
Sua voz era exausta e, não obstante, tranquila e estranhamente reconfortante.
Encarando Janice na luz difusa, seu rosto parecia abatido, marcado pelas cicatrizes de uma prolongada e árdua batalha, mas, apesar de tudo, tranquilo.
— Está tudo bem, agora — repetiu ele, oferecendo a Janice a força e conforto de sua crença, como um legado de Deus a seus atribulados filhos, emprestando às palavras a ênfase e a certeza de uma convicção tão poderosa que se tornava indiscutível, continuando a segurar o corpo imóvel e sem vida da... filha deles.
Documentos finais
35493
INVESTIGAÇÃO DO
JUIZ DE INSTRUÇÃO
e LAUDO DE AUTOPSIA
do cadáver de
Ivy TEMPLETON
Arquivado: 03 FEV 1975
RALPH W. EPPERS (Escrivão) Por W.M. Cauley (Escrivão assistente)
caso n° 88990
PROVA Povo nª 2
Data 4, fev. 1975
Por C. Briggs
Escrivão municipal
GABINETE DO DELEGADO-LEGISTA
REGISTRO DE LAUDO CADAVÉRICO
Nome TEMPLETON, Ivv Idade: 10
Sexo: Feminino Raça: Branca Altura: 1,42 Peso: 35 (est.) Data e hora da morte: 3-2-75 às 10,43 Autópsia: Local: SJGH
19,05 h Data 3-2-75 Hora 16,25
INSPEÇAO
1. Sinais de identificação: Fita no pulso com identificação do juiz de instrução: Ivy Templeton 2. Olhos: Cinza 3. Orelhas: Normais: 4. Boca: Normal 5. Rigor mortis: Leve, generalizado 6. Ferimentos e observações gerais: Jovem branca bem desenvolvida, vem alimentada, aparentando a idade declarada. Sinais de cura de quatro dias de queimaduras de 2° grau no rosto. Velhas cicatrizes de queimaduras nas mãos (antigas). Nenhuma outra lesão de pele.
Nenhuma outra anormalidade externa notável.
AUTÓPSIA
Sem anormalidades no trato respiratório superior. Não há sinais no pescoço de qualquer trauma ou estrangulamento provocado. As superfícies pleurais mostram inúmeras hemorragias petequiais provavelmente devidas a anoxia. Os pulmões pareciam inteiramente normais. Não havia irregularidades no sistema cardiovascular.
Também nenhuma anormalidade grande ou microscópica nos órgãos abdominais. Sistema nervoso central: o cérebro parecia normal, não apresentando sinais de tumor, hemorragia, edema ou lesões vasculares.
Exame toxicológico: Estudos completos e exaustivos não revelam qualquer anormalidade.
Nós, os abaixo assinados, tendo feito o exame acima, descobrimos que a causa da morte foi ASFIXIA DEVIDO A LARINGO-ESPASMO - PROVAVELMENTE CAUSADO POR FATORES PSICOGÊNICOS
1 Amostras retiradas (resultados): A. Sangue X: ________
Retiradas por: R.F. Shad Data: 3-2 Hora: 10.30
B. Contéudo Estomacal R.F.Shad Médico C. Tecido X Geral-Fixativo-depósito
D. Outras: urina, bile-toxicologia Delegado-Juiz Retiradas para: Teor alcóolico C Grupo Tox: exame
barb morgina & geral Testemunhas: Retiradas por: R.F. Shad Data 3-2 Hora.30
______________________________
Enviadas para: laboratório SJGH
______________________________
UPI — 4 FEVEREIRO, 1975 — APÓS TODA UMA MANHÃ
DE ALEGAÇÕES FINAIS, O JÚRI RECEBEU INSTRUÇÕES DO
JUIZ E COMEÇOU SUAS DELIBERAÇÕES NO JULGAMENTO
DE ELLIOT S. HOOVER ESTA TARDE ÀS 14h07. O JUIZ
HARMON T. LANGLEY, NUMA PRELEÇÃO DE QUASE UMA HORA AO JÚRI, DISSE: "CABE A VOCÊS DECIDIREM QUE
PROVAS SÃO DIGNAS DE CRÉDITO NESTE TRIBUNAL.
VOCÊS JURADOS SÃO O ÚNICO JUIZ DA CREDIBILIDADE
DAS TESTEMUNHAS E DOS ACONTECIMENTOS QUE
OCORRERAM NESTE CASO TÃO INCOMUM. SUA FUNÇÃO
É ESTUDAR OS FATOS E DECIDIR". MENOS DE TRINTA MINUTOS DEPOIS DE RETIRAR-SE PARA DELIBERAR, O
JÚRI MANDOU DIZER QUE CHEGARA A UMA DECISÃO. O
VEREDICTO, ANUNCIADO PELO PRIMEIRO JURADO
HERMAN M. POTASH, CONSIDEROU ELLIOT HOOVER
INOCENTE DE TODAS AS ACUSAÇÕES, AO QUE O JUIZ
LANGLEY AGRADECEU AO JÚRI E ORDENOU A LIBERTAÇÃO DO RÉU. FIM. 4 DE FEVEREIRO 16h04. UPI.
New York Times, 6 de fevereiro de 1975
REGISTROS IMPORTANTES
MORTES
Anúncios fúnebres
TEMPLETON, Ivy, amada filha de William P.
& Janice Templeton.
Sepultamento no mausoléu da família em Monte Canaã. Valhala, N. Y., a cargo de
Boyce & Logan, Co-agentes funerários, Cidade de Nova York.
IN MEMORIAM
Em saudosa memória
AUDREY ROSE HOOVER
Serviço em sufrágio de sua alma, 19h30 do dia 7 de fevereiro, no Templo Budista de
Hompa Hongwanji, Christopher Place, 14, N. Y.
J.T.
Sr. E. S Hoover
a/c. Sr. Sesh Mehrotra
Universidade Hindu de Benares
Benares, U.P.
India
Cidade de Nova Iorque
24 de março de 1975
Caro Sr. Hoover:
Muito obrigada por sua bela carta. Saber que o Sr. está aí, fazendo tudo que deve pela paz e purificação da alma de nossa filha, é algo que ajuda a aliviar o fardo de nossa tristeza. Incluo Bill em meu agradecimento, embora ele ainda não possa aceitar o que sabe, em seu coração, ser verdade.
Bill não é do tipo que muda seu modo de pensar facilmente. Especialmente porque se culpa exageradamente pela morte de Ivy, acreditando que, se não tivesse apoiado o teste, ela ainda estaria viva hoje. Sua dor, aumentada pelo sentimento de culpa, torna difícil para ele compreender que o que aconteceu a Ivy era inevitável e estava além do seu controle ou de qualquer outra pessoa. Devo confessar que até aquela última manhã no hospital eu própria achava difícl aceitá-lo.
A perda do ser físico de Ivy é para Bill a perda de uma posse querida, que é o que as crianças são para a maioria dos pais. Um dia, estou verta, Bill virá a compreender, como eu, que não podemos pensar em nossos filhos como propriedades, ou tentar possuí-los – que eles nos são apenas emprestados por um breve tempo. Podemos sustentá-los e ajudar a moldá-los até certo ponto, mas no fim eles têm que ser eles próprios, cumprindo quelaque destinho que tenham vindo à terra cumprir, não importa até onde esse destino seja pleno ou vazio, comprido ou breve, belo ou trágico.
Permitindo-lhe levar as cinzas de Ivy para a India, creio que Bill deu o primeiro passo para essa compreensão.
A morte de Ivy deixou um inexorável vazio em nossas vidas. A súbita separação trazida pela morte a toda família é realmente insuportável, e posso apenas rezar para que Deus nos dê força e compreensão para vivermos com nossa perda. O apartamento ressoa com a presença de Ivy, e agora, que é primavera de novo, e o parque desabrocha com lembranças de nossos dias mais felizes, a cidade tornou-se insuportável. Pusemos o apartamento à venda e estamos pensando em mudar para Portland, Oregon. Era a minha cidade, e Bill não parece se incomodar com o lugar onde tentaremos refazer nossas vidas.
Saiba que junto minhas preces às suas, para que a alma de nossa filha se refaça, e encontre a par e a realização, no céu, que lhe foram negadas em sua vida terrena, e que chegue o dia em que ela se sinta livre e capaz de continuar sua jornada cíclica para a perfeição, e qua quando isso acontecer, ela escolha pais generosos, compreensivos, que a amem como nós todos a amamos.
Take Asi,
Janice Templeton
Epílogo
Ele não vinha ao cemitério desde o enterro da mãe, há mais de três anos. Não tinha certeza do motivo pelo qual viera hoje.
O que começara como um passeio dominical sem destino em seu novo Camaro, transformara-se, de algum modo, numa viagem deliberada até Woodbridge, em Nova Jersey. Não fora premeditado. Na realidade, era o último lugar em que ele desejaria estar, ao sopro agradável da brisa naquela tarde quente e tranquila de maio.
Para Brice Mack, cemitérios não eram locais de paz, mas de inquietação. De finais abruptos e sonhos não realizados. De ossos e espíritos unidos num brado de raiva contra um destino cruel, rude e arbitrário, que interrompe brusca e displicentemente as ações, pensamentos e palavras.
Depois de passar pelo portão principal e subir a alameda sinuosa que levava ao topo do Cemitério Beth Israel, freou repentinamente o carro ao se deparar com as lápides que se estendiam até onde a vista alcançava. Naqueles três anos a população do cemitério passara por uma verdadeira explosão.
No mínimo, quadruplicara. Meu Deus, pensou ele, tanta gente em tão pouco tempo.
Aliviando a pressão no pedal do freio, permitiu que o Camaro descesse lentamente a encosta, dirigindo-se não para o setor dos túmulos individuais, mas para a grande área dividida em pequenas comunidades, cada uma delas representando uma instituição, sociedade ou irmandade de uma cidade, vila ou povoado da velha pátria, permitindo que famílias, parentes e amigos continuassem juntos na morte como tinham estado em vida, reunidos em pequenos guetos, "conterrâneos" para sempre.
O carro percorreu vagarosamente a estreita alameda flanqueada por essas aldeias, cada uma delas identificada por rebuscadas placas que anunciavam orgulhosamente os nomes das cidades de origem. "IRMANDADE INDEPENDENTE DE RAWICZ", "MENINOS DE CZERSK", "ASSOCIAÇÃO 121 DE PAUSZKOW", "JUVENTUDE DE KRAJENSKIE", eram alguns dos nomes que Brice Mack se lembrava de ter visto em suas duas visitas anteriores ao cemitério. Ficou surpreso ao verificar o conhecimento que tinha do caminho que levava à "SOCIEDADE INDEPENDENTE DE STANISLAWO WER", que trazia o nome da aldeia polonesa onde seus pais tinham nascido, crescido e se casado antes de emigrarem.
As colunas de mármore tinham gravados em destaque os nomes dos diretores, há muito falecidos: Jacob Gilbert, presidente; Oscar Goldfeder, vice-presidente; Morris Pinkus, tesoureiro; e Max Ladner, secretário. Abaixo dos diretores, estavam enumerados os associados, por ordem cronológica de falecimento. Max Marmorstein precedia Sadie por dezessete nomes. A lista crescera muito nos últimos três anos, pensou Brice Mack, entristecido. Tinha a impressão de que todos os sócios haviam morrido de repente, cobrindo o lote com lápides.
Não foi difícil localizar o túmulo dos pais. Sem ter quem o conservasse, parecia um lote árido e deserto — abandonado e esquecido — em meio ao vale fértil e florido dos vizinhos.
Mack foi dominado por uma sensação de vergonha ao se abaixar e tentar arrancar o capim seco da terra esturricada junto à lápide, mas as raízes eram profundas e resistiram ao seu esforço. Levantou-se, ofegante, decidindo passar no escritório para contratar o serviço de conservação do túmulo dos pais. Era o mínimo que poderia fazer por eles. Devolver-lhes o orgulho.
Permitir que voltassem a encarar, de cabeça erguida, os "conterrâneos".
As lágrimas começaram a toldar os nomes gravados nas colunas de mármore. Seus pais pouco lhe haviam pedido; ele pouco lhes dera.
Não obstante, orgulhar-se-iam dele atualmente. Mamãe, em especial. Agora, seu futuro estava garantido. O que ela sempre desejara para ele: um futuro livre das dúvidas e incertezas que lhe tinham atribulado a vida.
Bem, Sadie ficaria satisfeita de saber que seu filho tinha pela frente um futuro brilhante. Ganhara a causa da década.
Tinha garantida a sociedade num escritório de advocacia na Fifth Avenue. Alugara um apartamento em Greenwich Village.
Comprara roupas novas. Tinha um carro zero quilómetro. Até mesmo Cynthia, filha do patrão, formada na melhor escola feminina do país, Bryn Mawr, representava uma boa perspectiva de namoro. Uma história saída das páginas de Horatio Alger; a realização de um sonho delicioso.
Não importava se ele merecia ou não. Embora a causa não tivesse sido ganha totalmente por ele, não se poderia negar que ele fora o procurador do vencedor, tendo direito a boa parte da glória. O Juiz Langley estava deitando na sopa, percorrendo o país de ponta a ponta, fazendo conferências cheias de retórica empolada, meio jurista, meio monge budista. Até mesmo Scott Velie, o derrotado, aparecera num importante programa da televisão.
Não obstante, sempre que os aspectos peculiares do caso lhe voltavam à lembrança no silêncio de uma noite de insónia, contradizendo e alterando as explicações e racionalizações que ele cuidadosamente construía durante o dia, via-se forçado a admitir que não sabia realmente o que acontecera. Só tinha certeza de que tudo fora uma loucura — um caso maluco, desde o começo estranho até o término fatal.
A brisa soprava através do cemitério, farfalhando as folhas e balançando os arbustos. A fisionomia de Brice Mack refletia emoções complexas demais para serem definidas isoladamente.
Isso acontecia sempre que ele pensava na menina atrás do vidro, sufocando, lutando para respirar, morrendo — exatamente como a outra menina morrera no acidente. Ele tivera certeza, antes mesmo da explosão dramática de Hoover, como todas as demais pessoas no anfiteatro deviam ter percebido também, que não havia esperança de salvação para ela — que todos os médicos, injeções e tubos pela garganta não alterariam seu destino, que sua morte fora decidida desde o início, desde aquele primeiro momento de percepção que ela descrevera de modo tão claro durante a hipnose. Era a lembrança da menina, a imagem do feto flutuando no útero materno, que surgia nos momentos mais inesperados, abalando-lhe o ceticismo e corroendo-lhe a confiança — e continuaria a fazê-lo durante o resto de sua vida.
Brice Mack soltou um profundo suspiro e sacudiu a cabeça.
Quem saberia? Quem teria certeza de alguma coisa?
Reencarnação. Renascimento. Outra vida. Uma eternidade de vidas. Para frente e para trás. Aqui e ali. Seria verdade? Poderia ser? Estariam Max e Sadie observando-o naquele minuto, de algum plano astral, enviando-lhe sorrisos de encorajamento? Ou já estariam renascidos, chorando em berços ou carrinhos de bebés? Quem poderia saber? Quem conheceria a verdade? A verdade estava ali, diante de seus olhos — agora. Um domingo de maio. Uma brisa cálida. Um presente real. Um futuro promissor, intacto.
— Com licença, por favor...
O homem se aproximara por trás e Brice Mack não o vira até sentir o leve toque em sua mão e ouvir a voz suave.
— Quer que eu diga um yiskor por Max e Sadie?
Brice Mack lembrou-se. Era um dos homens que passavam os dias no cemitério, fazendo preces junto aos túmulos por alguns trocados.
Casaco comprido de lã e chapéu, incongruentes com a estação. Olhos claros e brilhantes numa fisionomia pura, sem rugas, coberta por fiapos ralos de barba.
— Quer? — insistiu sorridente.
— Sim, claro — murmurou Mack, tirando a carteira do bolso, enquanto o homem lhe entregava um solidéu. Brice tirou da carteira uma nota de dez dólares e, depois, decidiu dar mais outra. Em seguida, rabiscou três nomes nas costas de um cartão.
Entregando ao homem o dinheiro e o cartão, disse: — Inclua-os também.
O homem estudou os nomes durante algum tempo, perplexo, pronunciando silenciosamente os sobrenomes, antes de perguntar: — São judeus?
— Não — replicou Brice Mack. — Faz diferença?
O homem pensou um pouco e, depois, sacudiu os ombros e sorriu.
— Não faz mal — declarou.
Baixando a cabeça, começou a ler o kaddish, a prece judaica pelos mortos.
Frank De Felitta
O melhor da literatura para todos os gostos e idades