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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS FACES DO MAL / Marja
AS FACES DO MAL / Marja

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

“O Caçador de Fadas”

Livro IV

AS FACES DO MAL

 

        Seus olhos se abriram com fraqueza. Estivera presa em um sono permeado de pesadelos. Por isso, abrir os olhos, e ver o sol, além de ferir suas pupilas, causava-lhe o assombro de saber que mais um dia começava e que esse dia seria tão assustador quanto os demais.

       Joan se moveu em meio ao feno seco e as gaiolas de galinhas. Estava escondida na parte de trás da carroça, e Tubã manobrava os cavalos com atenção redobrada aos perigos da estrada. Fazia um dia e uma noite que haviam deixado à carroça abandonada em um trecho do percurso, e comprado uma nova carroça nos moldes humanos. Um disfarce para ludibriar os olhos.

       Quando olhava para trás, a impressão de Joan era que uma vida havia se passado e não os poucos dias de terror e medo. Tubã se esforçava para não lhe causar maior susto, mas eles nunca foram tão próximos quanto eram de Eleonora.

       Eram amigos, porém sem assunto quanto sozinhos. O elfo se esforçou para ser um cavalheiro e ajudá-la a lidar com sua nova situação de fugitiva. Mas não era a mesma coisa. Joan não sabia ser sozinha.

       Tubã conhecia um caminho secreto entre as pedras do desfiladeiro, de uma estradinha de chão batido, estreita e escura, protegida pela eterna sombra da murada de pedras, que os protegiam de olhares atentos. Era um lugar perigoso e hostil, mas eles venceram esse caminho em poucos dias.

       Comendo mal, bebendo água suja dos córregos que cortam aquela região desprivilegiada, passando as noites acordados, vigiando a noite pesada, sem estrelas, sem lua, e sem esperança, na ansiedade de que o amanhecer trouxesse uma nova chance de sobrevivência.

       Faminta, Joan olhou por cima do feno e das galinhas e chamou por Tubã baixinho.

       -Quieta – ele respondeu sem olhar para trás.

       -O que esta acontecendo?  Perguntou aos sussurros.

       Era manhã e ela havia adormecido por muitas horas.

       -Vista o manto e se cubra– ele sussurrou de volta, conduzindo os cavalos para um lugar desconhecido.

       Joan espiou por sobre a borda de madeira da carroça e avistou casas.

       -Não – ela disse baixinho – não, não, não...

       Se aquele era o Campo dos Humanos, isso queria dizer que Tubã partiria e ela ficaria sozinha definitivamente!

       -Onde estamos? – perguntou a ele, na agonia, esquecendo a precaução.

       -Fique calada. – ele exigiu.

       -Tubã – Joan arrastou –se no limitado espaço e ficou pertinho, olhando para ele, com olhos de pura suplica.

       O elfo olhou para esses olhos, e afastou os seus, pois era difícil dizer não para um animalzinho amedrontado e frágil.

       -Por favor, Tubã, não me deixe sozinha. Eu imploro, não me largue aqui.

       -Não estou fazendo isso porque quero. Reina sabe o que devemos fazer. Você fica. Eu tenho que partir e me esconder. É a única forma de manter Eleonora a salvo. Ela precisa de tempo para que suas asas nasçam. Se isso não acontecer nenhuma de vocês terá chance de escapar, Joan.

       -Eu sei – ela recostou-se contra a madeira velha da carroça e sufocou o choro – Sabe o quanto é difícil estar sem notícias delas? – perguntou-lhe.

       Tubã não respondeu. Ele vivia longe das meninas. Eram amigos, mas todo dia se separavam. Ele tinha uma vida para cuidar fora do Ministério do Rei. Para Joan a separação total era um choque.

       -Você virá me ver? – ela o pressionou.

       -Eu não posso fazer isso. Eu quero, mas não posso. – ele negou com dó profundo.

       Tubã era moreno, cabelos bem mais longos que os usuais, presos em um rabo de cavalo rente ao pescoço. Na orelha um brinco.  A sempre impecável túnica de linho estava encardida e puída e seu colete de couro, era a única resistência de rebeldia que se mantinha em pé em seu corpo abatido e expressão preocupada.

       -Eu não sei usar espadas. Não sei lutar. Não sei caçar. Nunca trabalhei pelo meu sustento. Não tenho meu dom, ou minhas asas. Como eu vou sobreviver? – ela sussurrou como quem pergunta a si mesma.

       -Tente encontrar trabalho no forte – ele respondeu tenso, enquanto adentrava o vilarejo.

       -Forte?  O que é isso? – Joan olhou em volta, assustada e confusa.

       Por um segundo Tubã hesitou e quase desistiu de tudo. Uma fada inocente, desprotegida e ignorante sobre o mundo humano?

       -Pergunte para as pessoas da vila sobre trabalho no forte. Se houver algum, pergunte como ir até lá. Diga que é de longe, invente uma desculpa qualquer, Joan. O que você acha que Driana diria nessa situação? – ele perguntou fazendo-a sorrir por um instante.

       -Ela diria para ser criativa. Eu poderia mentir que perdi a memória – ela disse pensativa, abraçando os joelhos contra o peito.

       -É uma boa idéia – não quis desmotivá-la - Estamos chegando.

       Joan sabia o que isso queria dizer. Sentou-se visível na carroça, como haviam conversado no dia anterior. Pela falta de uma capa nova, Joan usava uma cava bastante surrada, masculina, que era o dobro de seu tamanho. Mas isso não importava.

       -Tenha sorte em sua jornada, Tubã. Eu vou ficar aqui e esperar – ela disse para Tubã – Se ninguém vier me buscar, mesmo assim, eu esperarei. Pelo resto da vida se for preciso, eu esperarei aqui. – avisou-o, lábios trêmulos, lutando para não chorar.

       Tubã fez a carroça parar. Em um canto recluso do vilarejo, ele parou, mas não saltou da carroça. Pelo contrário, esperou que Joan fizesse isso.

       Amedrontada, mãos tremulas, Joan saltou da carroça e ficou parada de pé, olhando para Tubã. Esperando que algum milagre acontecesse e a salvasse da solidão.

       -Eu sou um fardo – ela disse baixinho, para que apenas ele ouvisse – Eu não posso ajudar minhas amigas. Eu não sirvo para muita coisa. Mas prometo que vou me manter escondida, que ninguém me encontrará. Não vou atrapalhar. Eu juro Tubã, eu morro, mas não deixo que me usem para chegar a Eleonora.

       Tubã não respondeu nada. Há apenas alguns dias atrás, ele era apenas um elfo sem responsabilidades, aproveitando a vida de conforto e algum poder que sua situação de filho de Conselheiro Real lhe atribuía após uma infância miserável no Ministério do Rei.

       Era apenas um bandoleiro arruaceiro como vivia chamando Túlio, seu pai adotivo. Um provocador, deitando-se de cama em cama, enquanto esperava sua chance de ser um homem responsável, e tomar Eleonora para esposa.

       Agora tudo isso parecia tão pequeno. Tão vazio.

       Ele deixaria uma fêmea para trás, abandonada a própria sorte, e para tornar sua culpa ainda maior, essa fada era doce, desprotegida e frágil como uma pétala de flor. Como era possível que Tubã nunca houvesse reparado em quanto Joan era sensível a tudo? Mesmo o  sol forte parecia ferir sua pele. Tudo a agredia de modo assustador.

       Era uma crueldade deixá-la sozinha. Mas como impedir? A vida de mais três fadas dependiam disso. Cada uma das fadas supostamente envolvidas no assassinato do Rei Isac deveriam ser mantidas escondidas. Reina fora muito precisa em suas instruções.

       -Não tenha medo, Joan, tudo ficará bem – ele disse para consolar seu coração aflito. Olhou em torno reparando no Campo dos Humanos.

       Raramente vinha neste lugar. Apenas duas vezes em sua vida e sempre na companhia de seu irmão Egan. Era parecido com o mundo mágico, e Joan com sua aparência pouco distinta, conseguiria misturar-se com perfeição.

       -Tenha coragem, Joan. Coragem – ele pediu antes de balançar os arreios e movimentar os cavalos.

       -Tubã! – ela chamou, ignorando a prudência, e deixando cair no chão à pequena trouxa de pertences que segurava nos braços – Não me deixe!

       A carroça ganhou velocidade e Joan correr atrás dele. Correu por alguns metros, antes de parar e agarrar o tecido da túnica, na altura das coxas, amassando o tecido com os dedos, se contorcendo em sentimentos como medo e angústia.

       O grito de pânico ficou preso em sua garganta, mas as lágrimas corriam em sua face. Ela cravou os olhos na carroça, e manteve-se assim até vê-la desaparecer entre as árvores, sumindo para longe.

       Sozinha, não havia retorno, o derradeiro momento havia chegado. Joan engoliu o choro de desespero, as lágrimas ainda correndo em sua face, e deu a volta, sufocando o medo e a angústia, na busca de seus escassos pertences. Encontrou a trouxa e abaixou-se no chão, pegando com as mãos aflitas.

       A dor em seu coração era tão forte e pesada que achou que não levantaria mais. No entanto, era preciso. Não havia ninguém para socorrê-la. Era manhã, e Joan precisava encontrar um lugar para ficar e um trabalho.

       Olhou para trás mais uma vez, em uma esperança tola de ver a carroça voltar e Tubã buscá-la. Não podia culpar seu amigo. Era uma recomendação de Reina e ela sabia o que fazer, sempre soube o que fazer. A protetora de Eleonora, que sempre protegeu também suas amigas, Joan, Driana e Alma.

       Recusar uma ordem de Reina, ainda mais nessa situação, seria loucura.

       Abraçada a sua trouxa de pertences, Joan olhou em torno. Várias casas, um poço de tijolos, alguns cavalos amarrados, com comida e água à frente. De uma das construções fumaça abundante escapava da chaminé. No castelo de Isac sinal abundante de fumaça era sinal de que havia uma ferraria. Um lugar para trabalhar o ferro e criar espadas. Era um lugar de trabalho.

       Joan olhou para o chão, e pensou na besteira que lhe vinha à mente. Ela trabalhando com metal pesado?

       O que ela faria para sobreviver?

       Fechou os olhos e quando os abriu notou que alguns aldeões olhavam em sua direção. Tentou sorrir e cumprimentá-los. Eram mulheres da aldeia, simples e preocupadas com a lida do campo. Elas lhe retribuíram o cumprimento e Joan sentiu alivio imediato.

       Ao menos sua aparência não causava rechaço. Era ruiva, os cabelos vermelhos longos, na cintura, grossos e ondulados. De um tom vermelho vivo, brilhante e intenso. A pele pálida, coberta por sardas adquiridas pela exposição exaustiva ao sol forte. Seus olhos eram verdes, e seu porte físico pequeno. Tinha uma altura comum, em um corpo fino, de pernas e canelas fininhas. Cintura magricela, braços sem músculos. Ela era toda delicada, beirando o etéreo. E agora, ela não via vantagem alguma em ter um corpo aristocrático.

       Outras fadas mesmo antes de obterem suas asas, possuíam características físicas demasiadamente definidas para se misturarem aos humanos. Como Eleonora, que possuía praticamente pigmento algum em sua pele, cabelos e olhos. Ou Alma com sua voz rachada e feia. Ou ainda Driana, que fisicamente poderia se misturar, mas bastava abrir a boca para seu intelecto assustar qualquer criatura viva a sua volta.

       Tubã também não poderia permanecer ali, com suas orelhas pontudas de elfo.

       Aquele era o único lugar onde ela poderia estar segura, pois mesmo que a encontrasse, o Guardião enviado em sua caça não poderia se revelar diante dos humanos, e precisaria encontrar modos de pegá-la sem chamar atenção. Então, ficar entre os humanos era sua melhor chance de sobrevivência.

       Repetindo mentalmente essa verdade, para que isso a consolasse, Joan começou a andar com passos lentos, olhando em torno em busca de uma oportunidade. Para quem sequer tinha ideia do que procurava, a chance de encontrar algo era remota.

       Angustiada, ela avistou um pequeno grupo de mulheres jovens, quase da sua idade. Elas pareciam em polvorosas. Joan aproximou-se e uma delas a cutucou sem querer com o braço, notando-a e analisando seu porte da cabeça aos pés antes de dizer:

       -Tire isso, ou ela vai lhe roubar – a jovem era pequena, gordinha e sorridente.

       -O que? – não entendeu imediatamente.

       A jovem apontou a capa, mas não repetiu a frase, engatando uma conversa com outras jovens.

       -A capa. Retire isso, ou Matilde ficará com ela. Esconda bem se quiser manter isso com você. – a voz era de outra jovem.

       O oposto exato da primeira jovem, a locutora era altíssima, e magrela, vestida em uma roupa cinza sem graça e velha.

       Rápida, Joan retirou a capa de peles e socou-a com dificuldade dentro da bolsa de couro onde guardava seus pertences.

       Notou que alguns olhares pareciam estranhar sua túnica. Era uma roupa longa de tecido comum, sem adornos e sem forma de vestido. Era a roupa usada no Ministério do Rei.

       As outras jovens usavam vestidos simples, mas com forma distinta. E a maioria tinha os cabelos presos ou trançados.

       Joan pretendia perguntar o que elas esperavam quando uma mulher começou a sabatiná-las. Uma a uma, paradas lado a lado, ela avaliava de alto a baixo e perguntava os nomes.

       Quando chegou a sua vez, a mulher olhou-a de alto a baixo e disse franzindo o rosto em desgosto.

       -Está não serve. Não serve para nada.

       Joan abriu a boca surpresa, mas não disse nada, a jovem gordinha a cutucou para que não ousasse abrir a boca.

       -Perdão, senhora. Ela serve para cuidar de crianças. – disse a mais alta, saindo da fila.

       Pelo visto conhecia a mulher e  lhe tinha alguma importância, pois Matilde parou para ouvir o que dizia.

       -Pense em alguém que possa servir para lidar com aqueles... Os demônios insuportáveis. – a jovem tentou-a com sua boa lábia.

      Sua frase causou horror em Joan. Ela temia os demônios profundamente. No mundo mágico ouvira falar sobre essas aparições do mundo mundano, mas nunca soubera se era mentira ou não.

       -Quer se livrar do fardo, Liara? – a mulher pareceu achar graça, mas não demonstrou - Está enganada. Olhando melhor vejo posso ver que ela serve para escovar as escadarias. Alguns calos nessas mãos irão fazê-la bem mais atraente ao trabalho – a mulher disse agarrando as mãos de Joan e exibindo-as.

       -Alguma vez já viu pele tão lisa em sua vida?  - perguntou a sua ajudante, com escárnio antes de olhar outra vez para Joan - Como se chama?

       -Joan – sua voz mal saiu.

       -Ao menos ela parece saber falar – ela ironizou soltando suas mãos e passando para a próxima jovem, perguntando seu nome.

       Joan estava confusa. Não sabia se isso queria dizer que ela tinha um emprego ou não. Ou se tinha o que feria e para onde iria?

       A jovem alta continuou acompanhando a mais velha enquanto rejeitava e escolhia outras jovens. Quanto aparentemente tudo acabou, elas começaram a andar e Joan se esforçou para acompanhar o ritmo.

       Uma carroça grande, com um suporte em madeira, lembrando muito uma grande armadilha de caçar roedores, foi lotada com as moças. Uma a uma subiram na carroça e então o cadeado foi trancado. Em pânico, Joan olhou para as outras jovens. Elas pareciam tranquilas. Isso há acalmou um pouco.

       A carroça entrou em movimento e ela quase caiu, agarrando-se as grades de madeira para não cair.

       -Para aonde vamos? – balbuciou para uma das jovens.

       A moça olhou-a com estranheza e respondeu:

       -Para o castelo. Para onde mais iríamos?

       O castelo? Por um segundo, Joan temeu o pior, então lembrou a si mesma, que os humanos também possuíam reis. Tentou se acalmar, enquanto era levada presa como um animal.

       Pelo visto a liberdade não era muito diferente da prisão da clausura.

 

       Horas mais tarde, finalmente chegaram ao Forte de Mac William. Os gigantescos portões foram abertos e a carroça seguiu por uma ponte frágil, que a primeira vista não parecia capaz de aguentar o peso.

       Chegaram do outro lado, e a carroça foi conduzida em meio ao vai e vem de pessoas. O fluxo era intenso.

       Joan reparou nas construções incendiadas, ainda exalando cheiro de queimado e fumaça, no corre-corre das mulheres com baldes, bacias e trouxas de lençóis nos braços. Nas crianças correndo de um lado para o outro sem supervisão.

       Tudo cheirava a esgoto, fezes, urina, fumaça e sangue.

       A carroça parou por um instante, enquanto o condutor conversava algumas poucas palavras com um cavalheiro do forte, antes de seguir seu caminho. Foi nesse momento que Joan piscou para saber se o que enxergava era real.

       No meio da bagunça de crianças correndo, gritando e brincando, ela avistou uma cria de lagarto. Sim, era um mestiço de homem-lagarto. Ela pode notar pela pele escura, mas não negra. Era um tom comum, como um humano bronzeado, mas para os seus olhos de ser mágico, essa pele ganhava um viço diferenciado. E quando a criança olhou em sua direção, provavelmente atraída pelo cheiro de criatura mágica, Joan viu o brilho em seus olhos. Olhos que em breve, muito breve, seriam oblíquos e enviesados, mas por hora pareciam quase banais. A criança deveria ver o mesmo, pensou sorrindo. Ao olhar para ela, sua atenção se mantinha, pois se reconheciam na multidão.

       O menino voltou a brincar com seus amigos e ela disfarçou a emoção. Será que em meio aos humanos ela encontraria outros seres mágicos escondidos, tal como ela?

       Suas perguntas não seriam respondidas naquele momento. Joan guardou essa pequena felicidade em seu coração e observou com olhos atentos cada detalhe do lugar. A carroça parou uma segunda vez diante de uma construção menor e a mulher de antes, vestida com roupa cinza, uma espécie de avental que cobria dos ombros aos pés, na cor branca, com cabelos em coque na altura da nuca, surgiu e retirou um molho de chaves de um dos bolsos, soltando o cadeado e gritando para que elas saíssem porque iria conta-las novamente.

       Matilde, era esse o seu nome. Deveria ter a idade aproximada de Reina, e era muito bonita. Joan era capaz de ver a beleza por de trás da seriedade e das sombras de ódio e tensão que marcavam seu rosto com rugas de expressão.

       Seu olhar insistente irritou ainda mais a mulher que se voltou contra ela:

       -De onde mesmo você disse que é? – a voz era dura.

       -É daqui mesmo. Criada nas montanhas, em uma cabana – disse a jovem magricela que sempre acompanhava Matilde – Eu a conheço, está sozinha no mundo. Não é isso?

       -Sim – ela balbuciou concordando.

       -Que assim seja – Matilde disse com escárnio – Leve essa e as outras para um banho. Elas fedem.

       Com essa informação, se retirou a passos duros. Quando as moças começaram a ser levadas em fila indiana para dentro da construção menor, Joan aproximou-se da jovem e sussurrou:

       -Obrigada, você me ajudou muito...

       -Não agradeça – ela disse séria – Todo ano é igual. Matilde escolhe uma de nós para odiar e infernizar. Eu fui a infeliz do ano passado. Esse ano... Matilde desgostou profundamente de você. Se você for embora, ela não me deixará em paz. Mas se você ficar... Eu sinto que finalmente terei paz.

       Dizendo isso, ela se afastou, gritando com as jovens, e dando ordens.

       Hostil, pensou Joan. Os humanos eram hostis.

       Olhando em torno com curiosidade, ela seguiu as moças, e quando foi conduzida para um salão fechado e escuro e a ordem foi para que todas se despissem, enquanto bacias e tinas de água escaldante eram trazidas, Joan começou a se arrepender amargamente de seguir as sugestões de Reina...

 

        Ao todo eram treze moças entre dezesseis e vinte e cinco anos. A maioria era órfã ou viúva sem filhos. Físicos, diferenciados, histórias de vidas diferentes. A única coisa em comum entre todas elas era a necessidade pungente de ter um teto sobre as cabeças e comida em um prato.

       Joan despiu as roupas sem grande melindre. Era comum no Ministério do Rei vestir-se e banhar-se junto das outras moças. O que não era comum era o escárnio e as risadas das outras fêmeas, como acontecia agora.

       Elas riam, e apontavam para ela.

       -Não ligue - disse a mais gordinha, farta em carnes, mesmo assim, bonita aos olhos de Joan – Elas estão invejosas da sua pele. É suave como leite – ela disse abismada, passando os dedos gentilmente pela pele de um dos ombros de Joan – Você nunca pegou sol em sua vida?

       -Eu não sei. Eu sou assim... – ela disse nervosa.

       Começava a notar que seu corpo e traços chamavam atenção sim entre os humanos, mas como chacota.

       -Prepare-se, lá vem ela – disse a jovem.

       -Ela quem? – perguntou com medo, envergonhada da própria nudez.

       -Matilde. Ela é horrível. Fará da sua vida um inferno. Ela faz isso com todas nós. Eu já desisti de trabalhar no castelo umas mil vezes por causa dela. Mas sempre acabo voltando. A necessidade obriga. Mas confesso, por causa de Matilde quase não vim dessa vez.

       -E porque veio? – perguntou curiosa.

       Os olhos da jovem ficaram tristes.

       -Você não soube? O castelo foi atacado a duas semanas atrás. Invasores tentaram tomar o ducado, e matar os aliados do Duque Rowell Mac William. Foi uma luta feia. Muitos estão feridos e muitos morreram. Eu vim por que... Um dos cavalheiros me interessa e eu sei que ele está ferido. Nada sério, graças ao bom Deus. – ela parecia aliviada ao lembrar-se desse detalhe sobre seu pretendente.

       -O reino está sem líder? – perguntou surpresa, no mundo mágico isso não era concebível, um reino sem um rei.

       Estranhando seu modo de falar, a jovem sorriu:

       -Não. O Duque está vivo. Mas está ferido. Estive aqui no primeiro dia, quando o pior aconteceu e eu vi a ferida. Duvido que o pobre homem torne a levantar da cama algum dia. Mas ninguém ousará dizer isso a ele, ou espalhar a trágica notícia. Afinal, um milagre sempre pode acontecer não é mesmo?

       As fofocas foram caladas abruptamente pela entrada da temível Matilde. Acompanhada da outra jovem alta, ela começou a inspecionar os cabelos de uma a uma. Quando foi a vez de Joan, ela puxou alguns tufos de cabelo e Joan reclamou.

       Tocou as madeixas entre os dedos com interesse mascarado por nojo.

       -Calada, vou tirar esses piolhos fedorentos dessa sua cabeça podre antes que empesteei a todos nos! – Matilde deu alguns puxões e Joan afastou-se.

       -Eu não tenho piolhos! Sou limpa! Meu cabelo é vistoriado toda semana!  - respondeu. Um resquício do Ministério do Rei, onde os cabelos eram inspecionados semanalmente para evitar surtos de piolhos.

       Pelo visto não era o comportamento aceitável responder para Matilde. A jovem mais alta imediatamente estendeu para Matilde um fino e longo cajado e Joan descobriu na pele porque não deveria responder para Matilde.

       Duas pancadas bem dadas em suas pernas e ela caiu no chão. Mais duas lambadas da madeira em suas costas e uma no braço, e Joan achou que fosse desmaiar.

       -Limpe os piolhos dessa infeliz. Ela deve lavar os corredores.  – Matilde disse antes de seguir para a inspeção das próximas mulheres.

       Ninguém a ajudou. Joan levantou com dificuldade quando duas empregadas do castelo disseram para fazer isso. Vestiu-se e foi levada para outra ala, junto das mulheres que estavam liberadas para isso.

       As lágrimas corriam em sua face e ela entendeu finalmente o que Alma sentia em seu coração angustiado.

       Naquele momento, se ela pudesse, mataria Matilde pela dor que lhe causava, pela humilhação e pela degradação. Mas não era assim, por isso, as lágrimas eram seu refúgio.

       Quantas e quantas vezes Alma não se ofereceu para as surras no lugar de Joan? Pensar nisso lhe causou um aperto no coração tão forte que achou que morreria. Só quem sente na carne e no coração a dor de apanhar injustamente, para julgar o tamanho da culpa que Joan sentia ao lembrar-se das vezes em que Alma a protegeu.

       Alma sempre fazia parecer que não sentia nada. E Joan acreditou nessa mentira até sentir o corpo ser lambado pela surra.

       Seguiu as empregadas silenciosamente, ignorando a conversa entre elas, sobre as novas ajudantes, e os problemas que assolavam o forte. Algumas rezavam secretamente para que não houvesse novos conflitos.

       Confusa com tantas novas informações Joan foi levada juntamente com outras jovens na direção de uma construção anexa ao castelo. Uma porta de fundos, por onde entraram quase correndo, e percorreram a ampla e movimentada cozinha com a rapidez de quem corre de um inimigo.

       Não foram rápidas o bastante em levarem as novatas. Um homem enorme, e gordo interceptou-as no caminho. Ele vestia uma camisa branca, calças novas e um perfume enjoativo. Cabeça totalmente coberta de cabelos raspados, sobrancelhas fartas e uma barbicha que lhe alcançava o centro do peito.

       Ele apontou para as jovens e perguntou:

       -São as novas ajudantes?

       -Sim – disse uma das empregadas – Sim, senhor. São as escolhidas de Matilde para o trabalho do castelo. Ela ordenou que eu leve essas para os aposentos e depois para a limpeza pesada.

       -Não – ele disse apontando para Joan  - quero essa na cozinha. – ele apurou os olhos tentando ver melhor o rosto de Joan, mas ela baixou tanto quanto pode a cabeça para não ser observada daquele modo.

       -Sinto muito, Hector, mas essa é a escolhida da vez, nada vai tirá-la das mãos de Matilde – a jovem respondeu e ele suspirou apenado.

       -Escute, pobre criança, qual é o seu nome? – ele apontou para Joan e ela não pode negar-se a responder seu nome. – É um belo nome para um coelho de estimação. Eu tenho um – ele apontou o enorme e gordo coelho marrom que ficava em um canto da cozinha – Quando estiver com fome venha até a aqui, eu sempre tenho um agrado para a coitada da vez.

       Ela sorriu agradecida, mas não sabia se era uma boa coisa. Afinal, ela era a ‘coitada da vez’.

       A caminhada seguiu e Joan evitou erguer o rosto por onde passava, para não ser vista ou evitar que reparassem nela. Ao seu lado, a jovem gordinha que falava sem parar a cutucou:

       -Meu nome é Molly.

       -O meu é Joan - ela respondeu sem jeito.

       -Você deveria prender o cabelo.  – ela disse apenada – chama muita atenção. Vai acabar em maus lençóis com os soldados e os trabalhadores. Eles acham que todas nós somos propriedade do castelo.

       -Eu não quero chamar atenção – ela balbuciou nervosa.

       -Então cubra a cabeça. – sugeriu, voltando a conversar com outras jovens.

       Os humanos não pareciam interessados em conversas profundas, apenas em fofocas. Estranhando esse comportamento, Joan foi levada para um dos quartinhos. Ela dividiria o lugar com as outras jovens. Enquanto as moças reclamavam dos lençóis e da falta de espaço, Joan sentou na beirinha da cama, e alisou o lençol branco e limpo. Nunca antes dormiu em uma cama de colchão verdadeiro. Os colchões do Ministério do Rei eram feitos em palha e machucavam suas costas.

       Ouviu risos e olhou para suas companheiras de quarto. Elas pareciam bem à vontade com a nova vida. Eram acostumadas ao trabalho e conheciam aquela vida. Mercê do medo e do susto, Joan era vítima do pânico oriundo do desconhecido. Era uma fada entre humanos e isso não podia prestar.

       Uma delas falava sobre o filho, deixado aos cuidados dos avós na vila. A conversa girou sobre isso, e quando lhe perguntaram sobre filhos, Joan respondeu prontamente:

       -Não, eu não tenho crias. Mas logo vou ter, estou quase na idade de reproduzir. – foi uma resposta imediata, e se arrependeu quando elas comeram a rir.

       Sua aparência poderia assemelhá-la a uma mulher humana. Mas seu modo de pensar a diferenciava bruscamente. Baixou os olhos e pensou no que faria. Estava trançando e prendendo os cabelos em um penteado no alto da cabeça quando ouviu um risinho e Molly veio socorrê-la.

       -Coloque isso. Nada vai esconder sua beleza – ela disse amarando um feio lenço em sua cabeça – Mas pode ajudar, vai precisar de um vestido também. Não pode continuar usando essa camisola – ela disse referindo-se a sua túnica.

       Para os humanos, sua roupa assemelhava-se a uma camisola.

       -É grande, e vai ter que me pagar um vestido novo quando receber seu salário – Molly avisou lhe entregando um de seus vestidos velhos.

       Infelizmente faltava a Joan a malícia de entender que Molly se livrava de um vestido velho que não lhe servia mais em troca de conseguir um novo com a tola novata que parecia agradecida em ter o que vestir.

       Era realmente grande, facilmente caberiam três moças com o porte de Joan dentro do vestido. Mesmo assim ela sentiu-se feliz ao vestir a roupa. Dobrou as mandas amplas e olhou para baixo, feliz por terem ao menos a mesma altura e não precisar arrastar o vestido pelo chão.

       -Onde você conseguiu isso? – perguntou uma das jovens, apontando para seus pés. Sem a túnica era possível ver suas sandálias caprichosamente transadas e decoradas. Fora Alma quem fizera.

       -Foi um presente de uma amiga muito querida. – ela disse sem jeito.

       -Mas eu quero fazer uma troca com você. – a jovem disse cobiçando seu sapato.

       -Eu não posso ficar sem sapatos – ela disse sem saber o que fazer.

       -Fique com um sapato meu – ela disse empurrando uma botinha velha de couro que deveria lhe servir – o que você quer em troca dessa sandália?

       Joan olhou para os próprios pés e meditou sobre o que Driana estaria pensando a cerca do assunto. Quanto menos chamasse atenção, melhor.

       -Eu te dou – ela disse triste em perder o presente de Alma – Fique com elas.

       -O que você quer em troca? – a jovem perguntou desconfiada, observando-a tirar as sandálias dos pés, e calçar a bota desconfortável.

       -Nada, eu não preciso de nada em troca. – ela entregou-lhe a sandália, e tentou sorrir – Eu não sou daqui e não nunca antes fiquei inteiramente sozinha. Se puder me avisar quando estiver agindo... Estranhamente, eu ficarei muito grata. – tentou não corar.

       A jovem pegou a sandália e disse-lhe, com a sombra de um riso na voz:

       -Você está agindo estranhamente nesse exato minuto.

       Obviamente suas palavras eram amigáveis e promoveu o riso entre as outras. Menos tensa, Joan esperou pelo que aconteceria. Quando a jovem alta e ranzinza veio busca-las, Joan levantou da beira da cama, e seguiu-a juntamente com as outras.

       Era a última na fila indiana que seguiam. Joan tentou seguir o ritmo urgente das passadas, mas poucos minutos depois estava exausta e arfante, isso sempre acontecia, seus pulmões não eram muito bons. Dizendo a si mesma para aguentar e não desmaiar, exigindo que seu corpo aceitasse a nova realidade da sua vida, Joan acompanhou o ritmo e quando ficou para trás sem querer, ouviu um grito de tremer as paredes.

       Era Matilde exigindo saber onde estava a novata. Correu o quanto pode para não irrita-la ainda mais e ser expulsa do lugar. Não poderia haver esconderijo melhor do que aquele entre os humanos.

       -Aí está você – Matilde disse e a puxou por um braço, levando-a por entre os corredores, para longe das demais.

       Foi uma tortura que durou alguns instantes.

       -Aqui é o seu lugar, quando acabar esse corredor, eu saberei. Não ouse bater nas portas ou entrar sem ser chamada. E se for chamada, primeiro recorra a uma das serviçais e jamais... Ouça bem o que lhe digo, jamais entre nesse quarto sem a minha permissão – ela apontou uma das portas.

       -Por quê? – perguntou, e recriminou-se um segundo depois.

       A expressão de raiva de Matilde prometia uma surra caso ela tivesse em mãos seu cajado.

       -Porque o Duque Mac William precisa repousar e não tolera empregadas que não saibam o seu lugar.

       -Mas eu sei o meu lugar – ela disse sem compreender – Você disse que devo ficar aqui e limpar os corredores. Não foi isso que disse?

       Matilde focou os olhos na novata dividida entre a certeza que ela caçoava, ou a dúvida se Joan era tola e insípida como aparentava.

       Mas não era nem uma coisa, nem outra. Ela não compreendia os humanos e seu modo de falar. Aturdida, foi deixada para trás e olhou para os baldes de metal pesados com água, os esfregões e vassouras.

       Em meio ao desespero de não saber por onde começar, ou como aguentaria tanto esforço físico sem passar mal, Joan sorriu diante de uma lembrança.

       Podia imaginar a expressão voraz de Alma caso visse alguém tentar impor trabalho braçal para sua protegida Joan. Ela avançaria na criatura que tivesse tal audácia como uma fera furiosa e espantaria a criatura com sua postura dominadora.

       Driana por sua vez, ergueria uma sobrancelha de escárnio e tentaria uma barganha em troca de amenizar o trabalho e caso não surtisse efeito, lhe recomendaria uma saída à francesa, para que elas pudessem fazer seu trabalho sem que ninguém notasse.

       Nessas horas normalmente Eleonora apenas olharia para tudo aquilo com dor no olhar e pegaria os esfregões para ajuda-la, sem saber como dizer ou agir sobre a humilhação de serem oprimidas.

       Agora, estava sozinha e não restava a ela alternativa alguma, além de se ajoelhar no chão e começar a lavar e esfregar...

 

       Os corredores pareciam se multiplicar. Não importava o quanto ela limpasse, varresse e esfregasse, sempre haveria um pouco mais para fazer. E no final do dia, quando finalmente pudesse descansar, primeiro precisaria ouvir os gritos e histerias de Matilde.

       Na primeira vez que aconteceu, ela tremeu como vara verde ouvindo seus berros sobre como a mulher a considerava incompetente e relapsa e sobre como sua presença não valia mais que alguns centavos.

       Com o passar dos dias, Joan quase não ouvia mais sua voz. E no final da primeira semana, de pé, pernas exaustas quase se recusando a mantê-la naquela posição, balde pesado pendendo em suas mãos, suada, suja e exaurida, Joan ouvia seus gritos e insultos como quem não está presente.

       O som penetrava em seus ouvidos, mas não em sua mente.

       Estava em um dos corredores, ouvindo os berros de Matilde enquanto pensava no Duque Mac William, que se mantinha enfurnado o dia todo em seu quarto. Pobre humano, pensava Joan. Não fazia bem para qualquer criatura viva manter-se refugiado entre quatro paredes, fosse acamado ou não. O sol, o vento, a brisa... Era disso que qualquer Alma viva precisa para ao menos curar o coração, se não possível ajudar o corpo.

       Seus olhos pendiam quase fechados, quando Matilde virou-se em sua direção e a agarrou pelos ombros, sacudindo-a.

       As outras serviçais oscilavam entre achar graça e ter pena.

       -Oh, desculpe, eu cochilei por um instante. – ela pediu desculpas, sem nem saber por quê.

       Seu jeito exasperava Matilde. Ela não lhe batia tanto quanto fazia com as outras, mas os ataques verbais eram intensos. E também a implicância. Algumas vezes, apenada Molly ajudava-a no trabalho para que Matilde não tivesse tanta razão para rechamar.

       -É uma insolente. – ela disse revoltada – Não há outra palavra para descrevê-la.

       -Desculpe, mas eu estou cansada, não insolente. É cansaço. – ela respondeu sem compreender exatamente porque Matilde dizia essas coisas sobre ela.

       Inflada de raiva, Matilde pareceu prestes a lhe bater.

       -Eu quero que volte para a vila, não tem trabalho para uma marafona como você. Eu não aceito desrespeito. Vou acabar fazendo uma besteira – ela disse furiosa, engolindo ar e tentando se controlar.

       No corredor, correndo na direção delas, a jovem Liara vinha desesperada, com uma criança perseguindo-a.

       -Eu não aguento mais – disse Liara, escondendo-se atrás de Matilde, o que muito a desagradava – Olhe. Matilde! Olhe isso! – mostrou as canelas mordiscadas – ele me morde! Morde-me! Eu não aguento mais!

       O menino deveria ter uns quatro anos de idade, carregava uma espadinha de madeira nas mãos e achava graça de sua acompanhante chorar.

       Joan sentiu todo o sono ir embora. Raramente tinha a chance de ver o menino, e sentia o impulso de procurá-lo. Precisava se controlar, mesmo que ele viesse cheirar seus pés.

       Era habito de sua raça, lembrou Joan. Cheirar os pés, a virilha e às vezes provar o sangue. Um modo de saber a condição da criatura a sua volta.

       -Oh, meu Deus, ele vai mordê-la também! – Liara apontou o menino e então Joan.

       -Que morda – disse Matilde com maldade na voz – O que faz com essa criança aqui? Ele deveria estar com os irmãos!

       -Sim, mas o Duque Mac William pediu que leve o menino até seu quarto. O senhor Edward proibiu. E eu não sei a quem obedecer. Se eu digo sim a um, desagrado o outro.

       -O trabalho é seu, não cabe a Edward envolver-se em suas tarefas, sua inútil – disse Matilde – Deve obediência ao Duque.

       -Sim, mas o senhor Edward vai me cobrar se eu fizer isso... Oh, não, pare, criança infernal, pare com isso! Pare com isso! – ela fugia do menino e quando notou o sorriso de Joan, provavelmente o primeiro sorriso verdadeiro em duas semanas, disse furiosa – está rindo? Está rindo da minha desgraça?

       O menino seguia cheirando a mulher e brincando com ela, e quando começou a correr de quatro atrás dela, Liara gritou.

       -Quantos anos ele tem? – Joan perguntou de súbito.

       -Esse monstro tem dois anos. Deveria ter apenas dois anos! Mas foi tomado! Foi tomado por alguma força oculta que apropriou-se de seu corpo! – disse Liara, apavorada.

       -Ele pode apenas estar querendo e precisando de algo para morder – Joan abaixou o corpo e ofereceu a mão sem medo. Sentiu as mordidinhas e sorriu. Era a primeira dentição de sua raça. Ainda não tinha condições de ferir.

       Por trás dos dentes de humano, ela sentia os dentes verdadeiros começando a surgir e entendia o desespero de Liara. Ela não sabia o que era, e estranhava. Tinha medo.

      O menino concentrou-se em morder sua mão e Liara olhava-a com horror.

       -Se achar algo macio e suave para que ele morda... Tudo ficará bem. – Joan acariciou o cabelo macio e escuro do menino.

       -Como sabe disso? – Liara olhava-a com parcimônia – Tem parte com forças ocultas?

       -Eu sei lidar com crianças – ela disse corando – Só isso. É só uma criança grande para sua idade. – ponderou.

       -Ele não me obedece. Todos me obedecem, menos ele! – Liara disse com rancor.

       -Porque você não o chama pelo nome? – perguntou puxando a mão, pois o menino começava a cansar suas mordidas e acalmava toda a energia acumulada.

       -Porque eu não tenho certeza se devo – ela disse com medo.

       Joan sentiu um forte aperto no coração, olhando para aquela criatura mágica nascida e criada ente humanos que não compendiam ou aceitavam suas diferenças. Sem carinho, amor ou refúgio.

       -Tente. Ele não vai mordê-lo mais ou menos do que já fez – ela tentou sorrir.

       -Marmom – Liara disse com receio – Eu vou leva-lo até seu pai.

       O menino estendeu a mão para ela como quem pede colo.

       Com receio, Liara segurou sua mão e olhou para Joan com um mudo pedido de ajuda.

       -Com a chegada do Senhor Edward as regras vão mudar por aqui – Matilde disse em alto e bom tom, roubando a atenção de todas para ela – Eu não aceito que deitem-se com ele, ou qualquer outro de sua confiança. As serviçais devem ser honestas e não executarem fofocas sobre seus senhores. – ela disse impertinente e indiferente a estar ofendendo-as ou não – Você – ela apontou Joan – volte para o corredor principal e escove o chão até se ver refletir nele. – falou bem perto ao rosto de Joan – Não importa o quanto você limpe... Sempre deixa alguma imundice para trás.

      Era uma ofensa direta. A sujeira vinha dela, e não o contrário. Dessa vez, Joan teve a vontade de revidar. Empurra-la com ambas as mãos até vê-la caída de bunda no chão. Seria uma forma de livrar-se do mau sentimento em seu coração.

       -E lava suas roupas. É uma vergonha expor sua condição de mulher diante de todos. Recomponha-se. – Matilde ofendeu uma última vez e Joan não entendeu imediatamente.

       -Tem sangue no seu vestido. – uma das jovenzinhas disse apenada antes de sair correndo para acompanhar Matilde e seguir suas ordens.

       Intrigada, Joan correu para longe, passando pelos corredores que aprendera a conhecer como a palma de suas mãos. Não existiam espelhos no quarto das serviçais, mas havia um grande espelho no corredor principal, onde ficava o quarto do duque. Era um lugar relativamente discreto, e ansiosa, Joan correu para lá.

       Sangue em seu vestido? Fadas não sangravam como as humanas faziam mensalmente. Sua genética íntima era um pouco diferente. Com o coração saltando no peito, ela apalpou as costas e não encontrou nada diferente, puxou os botões do vestido e olhou as costas.

       Sentiu as pernas fraquejarem diante das marcas escuras e feias. Suas asas? Suas asas nasciam? Era uma dádiva, pensou, recompondo a roupa.

       Não sentia dor alguma ou fraqueza. Na verdade, apesar do cansaço e do sofrimento físico para executar tantas funções e trabalhos pesados, Joan não sentia metade dos problemas físicos que tinha antes. Ainda respirava com dificuldade em alguns momentos, mas os outros problemas haviam sumido.

       Culpava o ar da região por isso. Era um ar menos úmido, mais seco, e parecia fazer bem para seus pulmões.

       Com uma empolgação genuína, Joan ajoelhou-se para escovar outra vez o chão. Tudo para deixar Matilde feliz.

       Uma hora mais tarde, Liara deixou o quarto, arrastando o menino pela mão. Um segundo antes de fechar a porta, o menino correu de volta para o quarto e Liara o seguiu esquecendo a porta entreaberta.

       Às vezes acontecia isso, alguém esquecia a porta entreaberta e Joan via o interior do quarto. Curiosidade a fazia tentar enxergar mais do que uma fresta. Via a cama de madeira, com dorsal sustentando cortinas de veludo vermelho e dourado, via muito requinte e limpeza, graças aos cuidados de Molly, a serviçal cheia de cuidados com o quarto do duque, e que se apaixonava facilmente por todos os humanos machos que cruzavam seu caminho.

       Sua suposta nova paixonite era o duque. Mas Joan não conseguia vê-lo. Às vezes via seu contorno, deitado, ou sentado na cama, com as pernas cobertas por uma manta. Hoje, ela conseguiu ver o pequeno Marmom pular na cama, e ouviu um riso típico da espécie masculina.

       O pai da criança o apreciava apesar da estranheza de sua espécie. Joan sufocou a curiosidade. Será que o duque sabia que a menino era uma cruza de humano com homem-lagarto?

       Se ele cruzou com uma fêmea da espécie, era impossível não notar. As características físicas da raça eram muito distintas, impossível não reparar. Qual a possível explicação para isso? Os outros dois filhos do duque eram totalmente humanos, ela reparou nisso. A menina chamava-se Alice e o menino do meio, Antônio, chamado por todos de Tommy.

       Alice era morena, cabelos escuros e olhos claros. Muito bonita, mas mal educada, e corria pelo castelo como se fosse um menino, tinha doze anos, e Joan ouvira boatos que seu tio, Edward queria casa-la em breve com um nobre. O menino do meio, Tommy tinha sete anos. Era a copia fiel da irmã. Muito tímido, vivia sozinho pelos cantos do jardim, ou corredores sempre lendo. Lembrava-a de Driana.

       O pequeno Marmom estava sempre correndo com as outras crianças menores do forte, mas Joan ainda não sabia se ele corria atrás das crianças, ou corria com elas. Matilde lhe dava tanto trabalho que tornava impossível arrumar um tempo livre para descobrir mais sobre a criança.

       Pensar no menino lagarto ajudava a gastar seu tempo e ocupar sua mente para não pensar em sua situação e na ausência de suas amigas e do mundo a qual era habituada.

       Ela não compreendia metade das conversas que ouvia, não sabia interagir com ninguém. Sempre ficava de lado, em seu canto tentando não chamar demasiada atenção sobre si mesma.

       O que era impossível de acontecer, pois Matilde parecia adorar seu nome e por isso passava o dia todo gritando-o aos quatro ventos. Joan se perguntava em como Matilde sobreviveria sem sua presença para extravasar todo seu ódio diário, quando finalmente fosse seguro para voltar para casa junto as suas amigas.

       Minutos mais tarde, Liara deixou o quarto e fechou a porta atrás de si com um baque. O menino parecia distraído por um pedaço de pano, talvez um travesseiro antigo, pequeno e macio, onde mordia calmamente, como qualquer criança que encontrou um brinquedo favorito. Liara não parecia tão nervosa, mas era impossível dizer, pois ela estava bastante corada, como sempre acontecia quando as fêmeas deixavam o quarto do Duque Mac William.

       Elas sempre cochichavam entre elas que o Duque era bonito. Mas Joan não conseguia ver pelas frestas da porta. Nem sabia se queria ver.

       Distraída com a limpeza, Joan sentiu cheiro de chuva. Vinha de longe, mas impregnava o ar. Como bicho, ela sentia a chuva em cada poro. Era bom, aquela terra penava pela ausência de chuva depois da tragédia.

       Com a mente vagando por caminhos perigosos, Joan passou muito tempo ali. Era noite, e ela estava exausta. Podia facilmente encostar-se naquelas paredes e tirar um cochilo, mas a curiosidade era maior. O castelo estava silencioso e todos deveriam estar dormindo ou se encaminhando para isso.

       Ninguém iria percorrer aqueles corredores ou visitar a alcova do duque. O que poderia acontecer se ela fosse pega naquele quarto? Matilde provavelmente iria gritar até cansar, e bater-lhe com o cajado.  Alguma novidade nisso?

       Tomada de uma coragem que normalmente não lhe pertencia, Joan levantou e escondeu o material de limpeza em um canto particularmente escuro. Aproximou-se sorrateira da porta e empurrou de leve, até abri-la. Não queria fazer barulho e sabia como ser silenciosa.

       Quando precisava escapar do Ministério do Rei durante a noite para alguma travessura de Eleonora geralmente era Joan quem ia à frente, abrindo as portas e checando as passagens por ser a mais leve e ter os passos suaves como seda.

       E também, por facilmente esconder-se em qualquer canto, pois mesmo sem grande atividade às vezes resquícios do seu dom lhe eram úteis, com o a capacidade de esconder sua imagem e camuflar-se ao ambiente.

       Entrou, e andou lentamente em direção a cama. Nada mais lhe captava a atenção além da cama. A vela ao lado da cama estava acesa e havia um livro caído no chão, ao lado da cama, sobre o tapete de peles. Uma pena e tinteiro na mesinha a o lado da cama, assim como uma caderneta de notas pendendo e quase caindo, repetindo o fatídico destino do livro.

       Joan pegou a caderneta e pousou-a no criado mudo. Percebeu o cuidado com a cama e a colcha. Estavam no verão, mesmo assim havia um cobertor ao alcance das mãos do homem.

       Duque Rowell Mac William, popularmente conhecido entre os seus aldeões como Rowell, era um homem bonito. As serviçais, colegas de quarto, não mentiram quanto a isso.

       Adormecido, vestia uma camisa branca, desabotoada. Era definido, músculos apropriados para um lutador. Não era de admirar que houvesse erguido a espada para defender seu povo, pois seu corpo acusava um macho de ação.

       Era um belo espécime de humano. Joan chegou bem perto e aspirou seu cheiro. Gostou do aroma. Não era parecido com os elfos, nem de longe, mas ela gostou do cheiro natural do humano.

       Seu cabelo era curto, negro e liso, bem curtinho, e ela sabia de ouvir fofocas que mantinha os cabelos assim a pedido da esposa morta no parto de seu filho mais novo. Joan não ouvira muito sobre a perda, ninguém queria falar disso com ela.

       Aliás, ninguém falava sobre nada com ela. A pele era queimada do sol, mas havia resquícios de palidez e a culpa era do ferimento.  Seus traços eram harmoniosos, queixo muito quadrado, nariz longo. Lábios cheios... Não conseguia ver seus olhos para saber a cor, por isso podia apenas imaginar e compor uma imagem em sua mente.

       Tentar ligar o som do riso que ouvira mais cedo com a imagem mental de como deveria ser seu sorriso.

       Joan gostou dessa imagem. Observou em volta e desgostou do abafado do quarto. Cheiro de mofo. Com passos lentos andou até a ampla janela e entreabriu uma das folhas, permitindo que uma brisa entrasse. Não lhe faria mal um pouco de ar puro. Voltou para junto da cama e apagou a vela, pois era perigoso que dormisse com a vela acesa.

       Ele estava recostado nos travesseiros, quase sentado, mas visto sua atual situação, a posição era adequada.

       Pesarosa de sair e deixa-lo sozinho, Joan foi cuidadosa ao deixar o quarto e fechar aporta.

       Sozinha na solidão do castelo, ela andou pelos corredores. Seus pensamentos confusos e distantes da realidade foram tolhidos pelo ronco insistente do estômago. Sorriu e tocou a barriga.

       Bem, para esse mal ela conhecia a cura, e se bem conhecia o funcionamento da cozinha do forte, aquela era a hora perfeita para surrupiar restos do cordeiro do jantar, enquanto ouvia as boas conversas de Hector, o cozinheiro, e seu coelho.

         

       Contrariando a temperatura amena da região, ao pé do desfiladeiro, o frio era mordaz. Culpa das fortes correntes de ar que desembocavam contra as pedras maciças. A falta de vegetação e o excesso de umidade não contribuíam em nada para subir a temperatura.

       Tubã estava começando a se habituar a passar o dia todo dormindo ou lamentando o próprio azar enquanto refugiava-se em uma manta que surrupiara no Campo dos Humanos, depois de deixar Joan para trás. Ele não era tão irresponsável como todos diziam que era.

       Observou sua amiga a distância para saber se ela conseguiria se virar sem ajuda. Confiava na sagacidade da menina, mas não inteiramente em sua capacidade de distinguir o caminho correto, estando com tanto medo.

       Ao vê-la ser acolhida para trabalhar no forte Mac William acalmou-se sobre sua sobrevivência. Joan conseguiria alimento e um teto. No Campo dos Humanos criatura mágica alguma teria coragem de ataca-la.

       Por causa disso, optou por esconder-se longe, muito longe de lá. Em um lugar jamais imaginado por outra criatura. Na solidão daquele acampamento improvisado, Tubã sorriu.

       O único que saberia instantaneamente onde se escondia era seu irmão adotivo Egan. Ele saberia que seu comodismo natural e seu radicalismo em relação às regras o obrigaria a refugiar-se no lugar mais inesperado para os demais.

       Um lugar onde o pequeno Egan brincava na infância, sempre sozinho e audaz, antes de ter um irmãozinho para quem ensinar tudo que sabia e amava. Antes de Tubã entrar em sua vida, e trazer cor para uma vida de obrigações para com um pai Conselheiro.

       Tubã passou a conhecer o mundo particular de Egan e ficou muito feliz de compartilhar seus segredos. Ao contrário do que muitos acreditavam, não havia divergências entre os dois irmãos. Muito menos inveja, ou ressentimentos.

       Egan queria ter à liberdade de Tubã para suas escolhas e se realizava através da rebeldia do irmão mais novo, secretamente incentivando-o em suas aventuras. Enquanto Tubã realizava-se através de Egan, em suas ideias de seriedade e coretidão, quando ele próprio era tão falho e cheio de defeitos. Completavam-se e talvez por isso, a amizade havia sido instantânea ao se conhecerem.

       Eram irmãos desde o primeiro segundo, quando apresentados.

       O amor por seus pais adotivos Reina e Túlio, nasceu lentamente. Mas o carinho e afeição por Egan foi imediato. Tubã não acreditava que teria aguentado o afastamento de Eleonora e suas amigas, se não fosse à presença de Egan.

       Viver com uma família era o sonho de qualquer criança nascida órfã e abandonada em um Ministério do Rei com leis rígidas e quase cruéis. Mas alguma coisa sempre faltava por isso Tubã sempre voltava ao Ministério. Era um desejo de seu coração, e depois de algumas reclamações de Túlio, seu pai adotivo, eles entraram em acordo sobre a necessidade do menino precisar manter o vínculo entre suas duas realidades: seu passado e seu presente.

       E Tubã era incapaz de dizer qual desses dois elos eram mais importantes em sua vida.  Sua família ou suas amigas? Reina, sua mãe, dividia com ele esse sentimento e o compreendia, mas as vezes, Túlio e Egan o questionavam.

       Sobretudo depois de crescer e se tornar um elfo maduro. Estava na idade de escolher uma fêmea e casar-se. Túlio até mesmo tentou incentiva-lo a escolher uma das amigas, pois isso ajudaria a resolver seus sumiços atrás das jovens do Ministério do Rei.

       Mas como ele faria isso? Escolher Eleonora, sua secreta paixão, e deixar as outras três para trás, sabendo que o coração de Lora seria partido em milhares de pequenos pedacinhos?

       A culpa o assolaria para sempre. A vida uniu as quatro fadas e jamais poderiam ser inteiramente felizes se não pudessem se ajudar mutuamente.

       Encolhido no vão entre as rochas, em sua caverna improvisada, Tubã achou ter ouvido algum barulho, talvez som de passos, mas era apenas o sussurrar do vento, anunciando chuva.

       Nada para se preocupar. Havia água, alimento, e abrigo. Ele podia viver assim pelas próximas semanas. Mas não poderia viver assim muito tempo, a menos que obtivesse notícias.

       Tubã saiu de seu esconderijo e olhou para a noite escura, um céu tão longínquo e encoberto pela sombra do abismo, que tornava impossível ver a lua e nutriu a esperança de que em breve seria avisado da salvação das fadas.

       Egan saberia intuitivamente onde seu irmão adotivo escondia-se e o procuraria ao menor sinal de paz. E Tubã confiava em Egan cegamente.

       De volta ao seu canto, Tubã fechou os olhos e adormeceu. O cansado e a solidão não lhe permitiu ver que alguém, ou alguma coisa rastejava pelas pedras em sua direção.

       O alguém misterioso ficou de pé e andou lentamente em direção à fogueira. Alimentou-a com mais gravetos secos e observou-o dormir inocentemente.

       Uma brisa mansa anunciando chuva balançou os longos cabelos da intrusa e ela esquadrinhou a estrutura óssea do invasor, medindo as possibilidades. Quando chegou a uma boa conclusão, afastou-se.

      Tubã acordou de seu cochilo sentindo um forte cheiro, trazido pelo vento, era cheiro de animal, mas ele não sabia identificar que raça. Tubã nunca foi do tipo de preocupar-se por antecedência, por isso descartou qualquer possibilidade de perigo e voltou a dormir.

 

       Joan ria tanto que sentia dor no estomago. Havia comido toda a sobra do jantar que Hector pusera em seu prato e depois que Molly unira-se a eles na cozinha, o assunto havia surgido rapidamente e ela mal aguentava rir de sua imitação barata do jeito de Matilde.

       Naquele exato momento Molly andava pela cozinha imitando os trejeitos da governanta, e eles riam sem parar.

       -Veja só, Molly – Hector dizia enquanto cortava uma fatia de bolo e oferecia a elas.  – A pequena coelha sabe rir.

       Molly sorriu e sentou-se perto deles para comer.

       -Isso é uma surpresa não é? Joan quase não fala ou ri. A não ser quando quer atazanar a vida de Matilde com suas frases que a deixam de cabelo em pé.

       -Eu não faço de propósito – Joan defendeu-se instantaneamente. – eu não sei quando estou incomodando-a. Sinto muito por isso, eu não entendo tudo que ela diz.

       -Continue respondendo para Matilde, ela precisa disso – disse Hector, sentado em seu banquinho, com o grande coelho marrom aos seus pés. – Ser desafiada.

       Joan pensou em perguntar a ele, se Hector sabia que seu coelho não era apenas um animal comum. Ela sentia uma aflição sempre que olhava para ele. Algo mágico rodeava o animal, mas ela ainda não sabia o que era.

       -Eu realmente não faço por querer. – ela disse triste, em ser mal compreendida.

       -Você tem família, Joan? – perguntou Molly, olhando para ela com curiosidade – você não é daqui. Eu nem sei de onde você pode ter vindo. Não é como nós.

       -Eu... Tenho família. – ela disse, e não deixava de ser verdade, suas amigas eram como sua família – É melhor ir  dormir. Estou muito cansada.

       Queria fugir do assunto. Levantou e agradeceu pela comida, e antes que saísse, Molly levantou e a seguiu:

       -Eu sei um jeito de você conseguir trocar de lugar com Liara – ela cochichou.

       -Como assim, trocar de lugar com Liara? – parou de andar e olhou para ela surpresa.

       -Ora, vamos, você não aguenta esse trabalho todo. Quem quer isso para si? – desacreditou – Você pode ter muito mais do que isso. E eu sei como você consegue o que desejar rapidamente!

       -Como? – perguntou curiosa.

       -O Senhor Edward. Ele tem mil olhos, Joan, e já andou colocando-os sobre você.

       -O irmão do duque? – estranhou – mas eu nunca o vi em toda minha vida.

       -Como eu disse... Sir. Edward tem muitos olhos e muitos ouvidos. Eu posso conseguir uma troca entre vocês dois. Liara pode cuidar do trabalho pesado, e você... Das crianças.

       -Em troca de...? – começava a entender o mundo dos humanos. Sempre havia uma paga em troca de um favor.

       Nada era caridosamente oferecido sem segundas intenções.

       -Você sabe em troca do que! – Ela disse maliciosa. – Não seja boba. Aceite, isso facilitará em muito a sua vida! Eu não gosto de vê-la sofrendo tanto no trabalho pesado!

       -Molly, eu não sei como funcionam as coisas por aqui... Mas eu não posso fazer algo desse gênero. Eu vou entrar no cio em pouco tempo! Não posso desperdiçar esse momento copulando por interesse! – disse tocada pelo vinho bebido de acompanhamento do resto do jantar – imagine desperdiçar esse momento único... Não, eu aguento o trabalho pesado. Eu aguento!

       Molly chegou a abrir a boca para insistir na oferta, mas o grandalhão Hector a espantou e aproximou-se de Joan, segurando sua mão com afeto.

       -Mantenha-se longe do irmão do duque. Edward não vale mais do que um osso de costela ruído – ele jogou um pedaço de osso no chão, com raiva, pois o segurava nas mãos, depois de roer a carne. – Fique longe. Ele vai acabar com sua juventude e alegria. Ele não presta.

       Joan engoliu em seco, sem saber o que responder e apenas acenou concordando. Hector soltou sua mão, e tornou a ser o humano agradável oferecendo-lhe um pedaço de bolo para levar consigo para o dormitório.

       Com medo que Matilde descobrisse a comida em seu quarto negou e partiu. Não estava enganada sobre a chuva. Pingos grossos caiam do céu, por isso Joan correu pelos corredores, e parou de correr quando encontrou uma porta entreaberta, que levava diretamente para o alto do castelo, onde não havia proteção e sim o céu aberto. Pensou ter ouvido voz de criança e num impulso correu por ali.

       De longe ela avistou o vulto de um homem que levava uma menina pela mão. Joan não conseguia ver o rosto do homem, tão pouco, reconhecê-lo pela postura, pois não se parecia com nenhum dos humanos que conhecera desde que chegou ao castelo.

       A menina que corria ao lado dele era Alice, vestida em uma camisola branca, agora molhada pela chuva.

       Do céu despencava uma chuvarada que se acentuou com o passar dos minutos. De longe, Joan observou o homem ajudar a menina a subir na murada de pedras e segura-lá, falando algo para ela.

       Joan não gostou naquela daquilo. As humanas fêmeas não possuíam asas ou o dom do voo. Eram frágeis quanto à altura. Se a menina pulasse, era morte certa!

       Angustiada, Joan se fez notar ao correr na direção deles.

       -Pare! Alice! Não pule!

      A menina a conhecia de vista, mesmo assim, Joan a conhecia muito bem, pois reparava muito na menina. Não era nada explicável. Era apenas interação, afeição que nasce sem justificativa.

       Joan teve a impressão de vê-los olhar em sua direção, então, em um piscar de olhos não havia anda além da chuva, escuridão da madrugada e vento frio. Ela parou de correr, e olhou em volta, procurando-os. Nada. Aproximou-se da murada e curvou-se olhando para baixo. Não havia nada mesmo.

       Teria sido uma alucinação? Joan não soube responder a sua própria indagação. Não era acostumada com o vinho produzido pelos humanos, com grande quantidade de álcool. Poderia ser isso? Uma alucinação?

       Confusa, Joan voltou a andar, percorrendo o lugar rapidamente, e então, correndo para refugiar-se da chuvarada. Encharcada da cabeça aos pés, ela refugiou-se em um canto escuro, onde encontrou abrigo temporário.

       Escorregou para o chão, e recostou-se na parede. Tremia de frio, e medo. Minutos mais tarde quando tentou levantar, sentiu uma fisgada nas costas. Não era dor. Era uma fisgada quase indolor. Suas benditas asas. Joan saiu do esconderijo e andou pela chuva, até fitar o céu escuro, coberto por estrelas, uma lua distante, banhando-a com seu poder mágico.

       Abriu os braços, como quem abre as asas e fechou os olhos esperando. A fisgada aconteceu mais uma vez e ela sorriu, olhos abertos, encarando a madrugada, com a certeza pungente em cada célula do seu organismo.

       Era agora, era mágico e era à noite envolvendo seu corpo, alma e coração. Ela obedecia ao chamado da natureza. Permitiu que a natureza e seu chamado fossem atendidos.

       Não fora assim que sonhou. Ela achou que estaria entre suas amigas, com Eleonora segurando sua mão e Driana e Alma elogiando seu esforço e a beleza de suas asas, e quando voasse pela primeira vez teria a companhia de suas amigas.

       A vida não quis assim, e Joan sentiu o corpo reagir, embora sem dor, sentiu a carne retorcer, sentiu a punção de força e esforço que seu corpo sofria na ansiedade de expulsar suas asas.

       Curvou o corpo e seus joelhos sucumbiram por isso ela caiu de joelhos e puxou o vestido livrando as costas até a cintura, segurando-se no chão, palmas das mãos cravadas nas pedras enquanto sentia a mágica pura que a envolvia chegar ao ápice.

       Nunca imaginou que seria assim, que seria ali entre humanos, em uma noite de temporal, desprotegida e meio bêbada, mas era perfeito.

       Um baque poderoso tomou seu corpo quando as asas romperam a pele. Ela sentia o sangue verter, e viu pingos correrem para o chão, em meio à água da chuva. Foi um momento demorado, ela não conseguia se mexer. Tombou para o lado, meio deitada, meio sentada, sentindo o bater acelerado do coração. Sentindo o peso das asas, o pulsar de sua carne acomodando-se ao novo estado do seu corpo.

       Era diferente, e ela não sabia explicar no que. Não havia acabado ainda, pensou Joan. Ergueu os olhos, para ver o céu e sua certeza se acentuou.

       Não havia acabado ainda. Ela ergueu uma das mãos tremulas e tentou esconde-la. Não conseguiu. Deveria conseguir enganar os olhos alheios. Ela fazia isso desde muito jovem.

       Mas não conseguiu. Tremula, tentou levantar e caiu de volta no chão. Estendeu uma das mãos nas costas e tocou suas asas. Eram curtas. Pontiagudas, macias e sem muitas hastes. Asas pequenas pensou, e sorriu. Suas asas haviam nascido. Sem dor ou sofrimento, e ela somente poderia agradecer a mãe natureza por ter pena de seu pesar e ter amenizado esse momento.

       Renovada em sua coragem, Joan ficou de joelhos outra vez e respirou fundo, exigido ser obedecida. Exigia deu dom completo e exigia ser obedecida. Precisava camuflar suas asas para que os olhos humanos não as vissem. Foi um momento de expectativa onde ela esperou que algum tipo de ilusão fosse escondê-las.

       Mas não, Joan sentiu um reboliço em suas costas, e então, suas asas se recolheram para dentro da pele como se nunca antes houvessem nascido.

       Embevecida, sem compreender, ela ponderou que Driana saberia lhe explicar o que acontecia.

       Seria parte do seu dom? Como faria para descobrir isso agora? Impossível. Confusa e perdida, Joan arrumou o vestido cobrindo o torço nu, e respirou fundo, olhando para a lua que a banhava com sua luz mágica.

       Estava tão longe de casa e ao mesmo tempo tão perto de tudo que valia a pena. Onde estivesse sua gente estaria também. Pois os guardava no fundo de seu coração.

       Rezando secretamente para que tudo ficasse bem e em breve pudesse voltar para casa, Joan andou para longe e quando conseguiu começou a correr na chuvarada, até encontrar a porta aberta e voltar para dentro do castelo.

       No dormitório todas as jovens dormiam pesadamente, cansadas do pesado trabalho no castelo. Por isso, ninguém viu quando Joan despiu a roupa molhada e a colocou para secar dependurada perto da cama. Entrou sob a coberta nua e fechou os olhos, sorrindo. Em poucos segundos, adormeceu.

 

       Por mais uma longa semana, Joan observou os dias passarem entre limpeza pesada, gritos de Matilde e intrigas entre as moças humanas do dormitório. Elas brigavam muito entre si, o que não costumava acontecer no Ministério do Rei.

       Havia harmonia entre as fadas, mas não entre as humanas.

       Toda noite, ela encontrava uma esculpa qualquer para passar perto da alcova do Duque e entrar sorrateira, para espia-lo e também abrir sua janela.

       Não cansava de sentir dó da criatura humana que padecia inválido e sem esperanças. Certo dia, ela tentou ver seu ferimento, mas ele se mexeu e Joan precisou correr para fora do quarto com medo de ser vista. No domingo, Joan terminava de abrir a janela, apenas uma fresta, quando notou que era observada.

       Imóvel, ela permaneceu parada, torcendo para não ser vista. Observou o duque, que acordado olhava em torno, uma expressão confusa na face, tentando encontrar a imagem da jovem bonita que abria a janela de seu quarto. Um segundo atrás ela estivera ali, diante de seus olhos, real e perfumada, um cheiro de mato, de folha e de chuva.

       Mas esse segundo passou e a imagem sumiu diante dos seus olhos. Joan encarou o espelho na parede oposta, descobrindo que não era possível vê-la. Estava camuflada contra a parede de pedra, cortina de veludo vermelho e uma mesa de madeira maciça adornada com ouro e prata.

       Seu dom era pleno, pensou Joan, encantada consigo mesma. Era pleno e útil, finalmente.

       O Duque maneou a cabeça e pegou o livro esquecido ao seu lado da cama, fechando-o e colocando-o no criado mudo ao lado da cama. Com dificuldade e evidente dor, pegou uma garrafa com água e bebeu do gargalo, deixando a garrafa de prata ao lado, esquecida.

       Sua condição não era nada boa e ele sabia disso. Em momentos de solidão Rowell se afligia com sua situação. Exasperado, passou ambas as mãos na face e fechou os olhos. Não poderia sustentar aquela mentira para sempre.

       Agoniado olhou em volta mais uma vez e suspirou. Ele queria acreditar que não estava sozinho, que não era apenas sonho. Queria acreditar que seus olhos não lhe enganavam.

       Na manhã seguinte descobriria quem abria a janela todas as noites. Com sorte, era a ordem de Matilde e alguma das serviçais obedeciam fervorosamente suas ordens. Acalmando-se, o Duque tornou a olhar fixamente para um ponto qualquer do quarto. O sono o abandonou e a aflição tomou o lugar do cansaço.

       Joan ficou ali, parada, por muito tempo, observando-o incólume. Passado mais de uma hora, precisou partir, pois se Matilde desse por sua falta mais uma vez, seria levada de volta para a vila e perderia seu perfeito esconderijo.

       Mesmo querendo ficar, Joan partiu. Camuflada andou por muitos corredores. Empolgada com a nova descoberta sobre si mesma, Joan escondeu-se em um lugar recluso e deixou as asas aflorarem. Era um pequeno prazer de uma fada que ainda não tivera a chance de voar e descobrir essa maravilha de sua natureza.

       Havia descoberto que ser invisível aos olhos, camuflada no ambiente, lhe conferia uma liberdade única. Entrar e sair de lugares proibidos, como a alcova de Matilde.

       A noite era a companheira de Joan desde que chegara ao castelo. Os humanos dormiam e ela transitava pelos corredores em busca de conhecimento. Agora, com seu dom desperto, seria ainda mais fácil.

       Andando pela madrugada, Joan chegou à frente da porta tão cobiçada. Era o dormitório de Matilde. Em um corredor simplório, mas de melhor acesso, privilegiado em comparação com os corredores onde as serviçais dormiram, Matilde possuía um quarto unicamente para si.

       Uma regalia importantíssima em uma vida coletiva como a dos humanos.

       Nisso humanos e criaturas mágicas assemelhavam-se profundamente. Em um mundo, ou outro, os serviçais eram tratados com descaso. Com humilhação e muitas vezes abusos.

       Com a coragem adquirida com seu dom, Joan entreabriu a porta do quarto e entrou. Velas mantinham todo o quarto iluminado. Uma cama simples, com lençóis limpos e perfumados, uma mesa de estudos com uma cadeira, onde Matilde estava sentada, escrevendo o que parecia ser uma carta. Ela limpava as faces, onde lágrimas molhavam a pele.

       Intrigada, Joan aproximou-se e espiou por seu ombro. Ela escrevia uma carta para um humano. Não reconheceu o nome, muito menos seu título. Ainda não compreendia a hierarquia de títulos humanos. Rowell Stiller Delan era o Duque de Mac William, por isso apenas nomeado de duque Rowell Mac Willian, enquanto seu irmão mais novo em três anos era apenas um empregado em seu próprio forte de nascimento, sem títulos.

       Liara havia contado que Edward, o irmão do Duque poderia ter se nomeado cavalheiro do rei, se assim o desejasse, mas lhe faltava talento com espada e dedicação. Poderia ter se dedicado ao comércio ou a religião, mas lhe faltava talento e vontade para ambas as coisas.

       Era um preguiçoso nato. Um ambicioso maledicente.

       Matilde terminou de escrever a carta e dobrou-a cuidadosamente antes de coloca-la dentro de uma gaveta e chavea-la. Joan teve um vislumbre de outros papéis semelhantes colocados dentro da mesma gaveta.

       Pobre Matilde, escrevendo cartas que jamais enviaria...

       Apenada, Joan observou-a esconder a face e o choro entre as mãos, e pousou uma das mãos em seu ombro muito de leve, como fazia com Alma, quando sua amiga estava descontrolada. Não pretendia se revelar, apenas apoia-la.

       Matilde sentiu o toque de um anjo e pensou ser impressão sua. Minutos mais tarde, recompôs-se do choro e Joan afastou-se a observando deitar-se e tentar dormir.

       O forte era um lugar tão triste, pensou. Tão triste que cortava seu coração.

       Sem vontade de voltar ao dormitório e simplesmente adormecer, Joan vagou pelo castelo adormecido e então, pelo pátio. Fumaça ainda escapava de uma chaminé onde ficava a fábrica de metal, onde criavam as espadas e consertavam as armaduras humanas dos cavaleiros que protegiam o castelo.

       Os cavalos relinchavam nas baias e Joan reparou que havia luz fraca vinda de um dos casebres onde mantinham uma pequena taverna adjunta ao forte.

       Joan sorriu ao ouvir o toque choroso de um instrumento musical. Lembrou imediatamente de Tubã e sua gaita sofrida, soando pelos prados, onde as fadas dançavam ao som de sua música, aproveitando o pouco de felicidade que conseguiam com suas fugas fortuitas.

       Falsa liberdade, mas que lhes trazia tanta alegria... Hipnotizada pelo som, Joan se lembrou dos pés brancos, pálidos e canelas finas de Eleonora, movendo-se com graciosidade pela grama e mato da relva, enquanto dançava com ela.

       Driana normalmente dançava quando era obrigada a isso. Preferia ler, treinar sua mente e dedicar-se ao conhecimento. Alma acompanhava-as com reticências, embora que não fundo, Joan suspeitava que se divertisse nesses momentos de diversão.

       Eram quatro pares de pés rodopiando na grama verde, macia e orvalhada, sob um lindo sol da manhã... Saudosa, reprimiu o suspiro triste, e desviou a atenção para uma fêmea humana que andava com passos apressados naquela direção.

       As roupas pareciam muito com vestimenta masculina, a capa longa cobrindo sua face e suas maneiras rápidas, mas Joan sentia cheiro de fêmea.

       Uma pena que perdesse seu rastro. Queria muito ter alguma coisa para ver e pensar. Algo para ocupar sua mente e impedi-la de enlouquecer enquanto esperava Eleonora provar sua inocência e salvar a todas elas.

       Nutria essa esperança infantil, e não abriria mão disso por nada no mundo!

       Mais uma noite triste chegava ao apogeu e ela precisava dormir um pouco, para dar conta do trabalho na manhã seguinte.

       Cada dia era mais difícil ir dormir. A insônia a impedia de conciliar o sono e quando acontecia, os pesadelos a atacam sem dó.

       Era nesses momentos que Joan normalmente corria para a cama de Alma e refugiava-se na presença e segurança que sentia ao lado de Alma.

       Mas estava sozinha e não havia para quem correr.

       Voltou para o castelo com passos lentos. A meio caminho olhou para cima, para onde deveria ficar a varanda do quarto do Duque.

       Mordeu o lábio, e conteve a vontade abrasadora de voltar para junto dele.

       Era uma vontade que passaria, disse a si mesma.

       Como diria Driana, ela estava procurando sarna para coçar.

       De volta para o quarto onde as outras moças dormiam Joan lembrou de revelar-se no último instante antes de adormecer. Seria temerário se adormecesse camuflada. Sorrindo desse pensamento, fechou os olhos por um instante e quando os abriu outra vez já era manhã, e os gritos de Matilde a arrancaram da cama.

       -Levante-se, sua preguiçosa! Limpe-se! Está fedendo! Vamos! Levante! – ela agarrou seus cabelos e a puxou da cama.

       Joan segurou sua mão, mais por instinto do que por agressão, e sem querer, fincou as longas unhas em sua pele. Matilde soltou e ela ficou caída no chão, usando apenas as roupas íntimas que usava sob o vestido largo que Molly lhe dera em troca de pagamento por um novo.

       -Você vai pagar por isso – Matilde disse segurando o pulso – Você vai pagar, sue demônio!

       Exigiu o pulso como quem pede apoio.

       Joan reparou que não aparecia nada em sua pele. Sorriu e disse com satisfação:

       -Eu não vejo nada!

       Molly pareceu sentir prazer ao dizer:

       -Eu também não vejo marca alguma. Não pode estar doendo se não tem marcas.

       -Você é uma bruxa –disse Matilde afastando-se alguns passos – Eu vou me livrar de você e da sua bruxaria – ameaçou.

       -Eu sinto muito, não sou uma bruxa. – Joan disse levantando e pegando o vestido dependurado no encosto da cama, para secar, pois era sua única roupa. – Eu nunca vi uma bruxa na vida. Eu penso que elas existem, mas não posso ter certeza, ainda não conheço todo o mundo... - quase referiu-se ao mundo mágico, mas se calou a tempo  - ...eu não acredito nessas coisas. Não em bruxas. Porque nunca as vi pessoalmente.

       Matilde encarou-a com ódio evidente.

       Joan a confundia e isso a deixava louca, completamente fora de si.

       -Vista suas roupas e penteie esse cabelo imundo. Prenda-o. Não quero seus piolhos contaminando o Duque. – ela disse com rancor na voz.

       -Duque? – Joan parou de se vestir e encarou-a com surpresa.

       -Servirá o Duque essa manhã. – apontou para Molly – Faça o trabalho de Joan.

       Pela primeira vez a chamou por seu nome e Joan sorriu. De mais a mais, ela gostava de Matilde. Não o tempo todo, mas simpatizava com ela. Era errado, e Driana a alertaria para o fato de sempre gostar das criaturas, mesmo que elas não valessem a pena.

       Ansiosa, com um frio súbito no estomago, Joan arrumou o vestido, e lamentou não ser mais justo ou bonito. Trançou rapidamente os cabelos para o lado, pois eram longos demais para trançar sozinha.

       Ainda calçava os sapatos quando correu para acompanhar as passadas rápidas de Matilde.

       A primeira parada foi na cozinha. Liara alimentava o menino Marmom e Joan desejou fazer graça para o menino, mas Matilde lhe arrancaria a língua se fizesse isso. A menina Alice comia calada, sem erguer os olhos para ninguém. Tommy, o filho macho do Duque, o provável sucessor de seu ducado, não parecia se importar com o silêncio na cozinha, muito menos com a ausência do pai.

       Joan sentia tanta pena daquelas crianças... Tanta pena que doía seu coração.

       -Não ouse derrubar – Matilde avisou quando ela pegou a bandeja pronta.

       Era pesada, mas nada comparado aos baldes que carregava para a limpeza dos corredores.

       O silêncio imperou entre elas, o que era estranho, pois Matilde adorava gritar com ela. Em frente ao quarto do Duque, Matilde parou e avisou:

       -Não ouse olhar na direção do Duque.  – sua voz era pesada, inflamada de revolta – Ouvi o que eu disse?

       Era uma pergunta retórica, mas Joan não entendia essas frases humanas.

       -Ouvi – respondeu sem notar que inflamava ainda mais a implicância de Matilde por ela.

       Ansiosa por entrar, não prestava muita atenção na governanta.

       -Se você ousar falar com o Duque ou derrubar essa bandeja sobre ele ou qualquer outro lugar do quarto, eu vou arrasta-la de volta para a vila pelos cabelos. Entendeu?

       -Entendi – seu tom era de pressa, e Matilde notou.

       -Você faz isso para me enlouquecer – Matilde disse muito baixo, provavelmente esbravejando, mas Joan ouviu.

       A porta foi aberta, e Joan sentiu a empolgação de entrar naquele quarto durante o dia esvair-se em puro nervosismo. Segurou a bandeja com toda sua concentração em pânico de tropeçar e derruba-la sobre o Duque. Não era medo pelas ameaças de Matilde e sim um medo diferente. Ela não queria causar uma má impressão no humano.

       Seguiu Matilde com passos comedidos, e ficou bem atrás, escondida.

       Matilde parou de andar e encarou-a com repreensão contida, pois não podia gritar com a serviçal na frente do Duque:

       -Sirva seu senhor, criada – ela disse com falsa simpatia.

       Na cama, recostado contra travesseiros, o Duque sorria da expressão fechada de Matilde. Joan não ousou dizer nada, mas o pensamento insistente e frívolo de como o Duque era mais bonito a luz do dia que a noite, a fez quase suspirar.

       Conteve-se a tempo e aproximou-se com a bandeja. Depositou-a com cuidado sobre as pernas do humano, e serviu o chá, café e leite, como era ensinado pela governanta.

       Fez tudo sem olhar na direção do humano. Por mais que quisesse, ela se conteve. Mantinha a respiração suspensa, até terminar. Endireitou o corpo e olhou para o chão. Não era medo de Matilde. Era timidez inesperada e exagerada. Driana poderia lhe explicar o porquê disso, mas sua amiga não estava ali, então Joan precisava lidar com a própria ignorância sobre os assuntos humanos.

       Ouviu o barulho da louça, dos talheres e ouviu a conversa fiada de Matilde. A governanta olhou para a serviçal de pé, parada imóvel, com os braços junto ao corpo e ordenou:

       -Arrume as cortinas, estão tortas.

       Era apenas um modo de coloca-la para trabalhar. Matilde não se continha. Não adiantava. Joan aproximou-se da janela e arrumou os problemas imaginários da cortina, apenas para satisfazer Matilde, sem notar que os olhos do Duque a acompanhavam.

       -Eu gostaria de mais um cobertor, Matilde – disse o duque com sua voz forte, e rítmica, e Joan conteve a vontade de olhar para ele e assisti-lo conversar, para saber como era sua face falando e interagindo. Sempre o via adormecido ou então silencioso.

       -Eu posso lhe trazer uma das cobertas que guardo no armário... – Matilde estava a meio caminho de suas explicações e também, de seu percurso até o armário principal onde guardavam mais roupas de cama quando o Duque impediu-a de seguir.

       -Eu prefiro um cobertor novo. Sem cheiro de mofo.

       Matilde pareceu inconformada, olhou para Joan, e então disse:

       -Como queira, meu senhor. Joan me acompanhe – mandou suave, contraditória a sua verdadeira personalidade e ações diárias.

       Joan olhou-a com uma sobrancelha erguida em desacato. Quem via o cordeirinho Matilde, não imaginava o lobo sanguinário que se escondia sob sua pele.

       -Preciso de ajuda com minha higiene – o Duque lembrou Matilde, deixando-a em um grave dilema.

       -É claro. Como pude me esquecer disso? – ela disse a si mesma – Esta criada chama-se Joan, e ira atende-lo em todos os seus desejos. Não demoro a voltar – ela disse em aviso, e esse aviso era para Joan;

       Quando Matilde saiu, o duque disse:

       -Feche a porta.

       Ainda sem olhar em sua direção Joan obedeceu.

       Fechou a porta e manteve-se de pé, olhos baixos, esperando ordens.

       Vinha sonhando há duas semanas com o momento de interagir com o Duque, mas lhe faltava coragem para tanto.

       -Soube que tem apreço pelo meu filho mais novo, o pequeno Marmom – ele disse deixando o café da manhã de lado.

       Surpresa Joan ergueu os olhos. Que erro. Ele olhava para ela fixamente com seus olhos bonitos, brilhantes em um tom perigoso de cor terra e cor de árvore. Um misto de verde com nuances de castanho.

       -É um bom menino – foi sua única resposta. O que ela poderia lhe dizer?

       -Sim, é um menino muito alegre. – ele insistiu – Tenho ouvido o barulho do escovão que usa para limpar o corredor. Todos os dias. Matilde há escolheu esse ano?

       -Matilde escolheu a todas nós, senhor. – respondeu com diplomacia, Desconfiando de suas intenções.

       O duque sorriu de leve e esse sorriso fez o coração de Joan saltar no peito.

       -Agora eu vejo porque Matilde há escolheu esse ano. Deve estar enlouquecida com seu comportamento.

       -Sinto muito se o desagrado. – ela disse nervosa – Deseja que o ajude, senhor? – perguntou quando ele ergueu facilmente a bandeja e colocou ao lado, na cama.

       Um riso morno ecoou pelo quarto e ela ficou parada, olhando para ele sem fala.

       -Você é uma preciosidade a enlouquecer a cabeça de Matilde, e agora eu vejo por que. Ela deve estar ficando louca. Aproxime-se, quero entender o que acontece em meu forte.

       -Eu não fiz nada de errado – disse em um impulso – Eu não posso controlar o gostar ou odiar de uma fêmea. Se Matilde me odeia... Eu apenas lamento.

       Seu modo de falar o intrigou.

       -Liara contou de sua simpatia com meu filho caçula. Não são todos que conseguem gostar de Marmom.

       -Oh, mas ele é adorável – ela deixou escapar, e se repreendeu.

       -E a janela? É você quem tem aberto todas as noites? Ou Matilde está coberta de razão quando esbraveja que a pequena Joan é uma bruxa astuta? Que sua bruxaria penetrou em meus sonhos e me fez conhecê-la antes mesmo de nos encontrarmos? – ele zombava dela. Joan notou que era zombaria, mas não sorriu. Conteve-se.

       -Sinto muito, meu senhor. Eu achei que... Um pouco de ar puro faria bem para sua recuperação.

       -Eu gosto disso – ele avisou – estou entrevado nessa cama, Joan. Não é algo temporário. Não estou me curando, pelo contrário. Por isso, um pouco de ar fresco alivia minhas dores e meus pensamentos ruins. Eu lhe agradeço pela atenção, sobretudo pela afeição ao meu filho mais novo.

       Joan sentiu os joelhos falharem. Molly e Liara não exageravam em seus suspiros. O duque era bonito e gentil e ela estava morna em toda pele. Perguntou-se com inocência se ele era capaz de fazer isso com todas as fêmeas humanas.

       -Eu sinto por sua situação, meu senhor. Posso fazer algo para ajuda-lo a minimizar sua dor? 

       A face delicada da jovem lhe causava dúvida. Intrigado ele disse com um meio sorriso.

       -Pode afofar os travesseiros. Estão desconfortáveis.

       Geralmente era nesse momento que as jovens mais afoitas demonstrariam suas verdadeiras intenções ao paparicar os filhos do duque e tentar chamar sua atenção a qualquer custo.

       Joan aproximou-se e curvou o corpo um pouco para conseguir realizar a função sem tocar no duque. Sua longa trança roçou o braço do Duque e ela corou em toda a sua face, pois não conseguia se conter.

       Uma troca de olhares, sem palavras para atrapalhar.

       -Está confortável, senhor? – perguntou-lhe com doçura.

       -Porque faz isso? – ele foi direto, pois não conseguia ler seus sinais e saber suas intenções.

       -O que eu faço? – perguntou confusa, recuperando a postura ereta.

       -Cuidar de mim e da minha família. Porque tem feito isso? O que espera em troca de tanta generosidade?

       Joan olhou para o Duque e notou que por trás de sua simpatia havia desconfiança.

       -Eu... Tenho saúde frágil. Sempre tive problemas para respirar. Eu... Já passei muito tempo da minha vida encarcerada em uma cama sem poder interceder por mim mesma. Eu tenho pena de seu sofrimento. Eu nunca fui bem quista pelas outras criaturas por ser mais frágil. Por isso gosto de seu filho, ele também é... Rejeitado. Assim como eu sempre fui rejeitada.

       Foi sincera, era isso que lhe ia ao coração. Doía ouvir, para um homem tão forte e sempre capaz de cuidar de si mesmo, doía ouvir essa verdade.

       Que despertava pena e seu filho rejeição.

       -Pode ir. – ele disse simplesmente, dispensando-a.

       Arrependida de cada palavra dita, Joan acenou com a cabeça e aproximou-se para pegar a bandeja de sobre a cama. Seu cheiro era de natureza e o Duque aspirou esse cheiro sem conseguir distinguir de onde vinha.

       Cheiro de chuva. De grama verde molhada. Como alguém consegue cheirar assim?

       -Espere - ele disse quando Joan estava quase saindo do quarto.

       Ela parou e esperou com expectativa por suas ordens.

       -Diga a Matilde que não preciso do cobertor. Estou confortável. E traga meus filhos para me ver.

       Joan acenou e saiu do quarto. Caminhou rapidamente para a cozinha. Encontrou Matilde aos gritos sobre conseguir um cobertor limpo, que não estivesse mofado ou guardado há muito tempo.

       -O Duque pede que leve seus filhos para vê-lo. E que não precisa mais do cobertor – ela disse trêmula.

       Hector retirou a bandeja de suas mãos e ela sentou-se na primeira cadeira que encontrou.

       Estava pálida e assustada. Sua pressão deveria ter caído outra vez. Quando ficava assim era culpa de alguma forte emoção que a fragilizava. Ela reparou no modo como Matilde a olhava. Tanto ódio e rancor.

       -O Duque pediu que eu levasse seus filhos. É que devo fazer? – perguntou-lhe mais uma vez, pois Matilde parecia ter perdido a língua.

       -Escute o que vou dizer, insolente – Matilde ficou diante de Joan e a fez levantar segurando seu braço com força – Não importa o quanto você seduza o Duque, ou o quanto você encante a todos nesse forte... No final, você irá embora como todas as outras e eu permanecerei aqui, cuidando do forte e do Duque.

       -Eu não quero seduzir ninguém – ela disse surpresa, puxando o braço com força sentindo os sentidos falharem, e o mundo escurecer. Foi um segundo, sempre acontecia, e ela precisava respirar fundo para se recuperar – Como pode? Como pode ter prazer de me ferir sempre que tem oportunidade?

       Sua pergunta era quase um sussurro quando liberta sentou-se outra vez na cadeira, e respirou com força, recuperando o ar.

       -Siga as ordens do Duque. – Matilde disse séria e brava – Eu já lhe avisei o que acontece com serviçais abusadas. Eu cuido desse forte. É a minha vida. Não ouse tentar roubar o que é meu.

       -E como eu faria isso? – ela perguntou de surpresa, sem que alguém esperasse.

       Hector parou de cuidar de suas panelas assustado em ver alguém enfrentar Matilde. Molly que descascava batatas para ajudar ficou a meio caminho com a faca. Até mesmo o enorme coelho no canto da cozinha pareceu interessado no que acontecia.

       -Como eu posso roubar o que é seu? Eu não tenho nada, não sou nada, e não quero nada. Eu só quero viver em paz e esperar a hora de partir em paz. Eu nunca fiz mal a ninguém. Eu nunca quis o que é do outro. Mesmo quando estava com fome, frio e medo. Eu nunca quis nada que pertencesse a outro. Eu não sei por que você acha que eu sou assim. Eu não sei por que me odeia tanto. Eu só estou vivendo, tentando sobreviver longe de casa, longe das minhas amigas, longe de tudo que amo e me ama. Eu não quero sua vida, seu Forte, seu Duque. Eu não quero nada. Eu só quero que me deixe em paz. Um pouco de paz. Só isso – ela terminou de falar em um fio de voz, sentando outra vez, pois o mundo rodava.

       O silêncio foi total.

       Matilde parecia pensar no que ouvira.

       Não respondeu, as ordens e o aviso estavam dados. Era hora de sair e manter a dignidade.

       -Eu não acredito que teve coragem de falar essas verdades na cara de Matilde! – foi Molly quem sussurrou provavelmente com medo que Matilde ouvisse – Eu não creio no que meus olhos viram. Você é minha heroína, Joan. Eu vou ama-la eternamente por ter me proporcionado esse momento de rara felicidade!

       Seu riso fez eco ao riso de Hector e Joan sentiu lágrimas quentes rolarem em seu rosto e disse com a voz presa:

       -Mas é a verdade do que sinto. Eu só tenho saudade de casa...

       O riso de Molly morreu e Hector aproximou-se colocando a mão em seu ombro.

       -Essa hora da manhã as crianças estão no quarto. Se você se apressar pode pegá-las facilmente antes que saiam do castelo e se juntem as outras crianças.

       Era assim pensou Joan, pousando uma das mãos sobre a de Hector que lhe dava apoio.

       O mundo dos humanos finge não ver o sofrimento.

       E assim tudo parece de mentira.

       Erguendo a cabeça, Joan limpou as lágrimas e saiu atrás das crianças.

         

       Alice a detestava, isso era claro demais para ser ignorado. Não importava que seu irmãozinho Marmom segurasse a mão da intrusa com calma e carinho, quando sempre era avesso ao contato de outras pessoas. Ou que seu irmão do meio, Tommy estivesse gostando de ouvir sobre histórias de gnomos e duendes.

       A intrusa queria conquista-los com palavras doces. Mas Alice estava bastante acostumada com isso. Todas as ajudantes e serviçais desejavam o lugar de sua mãe. Mas Alice sabia que um dia sua mãe voltaria e por isso, não podia permitir que alguém conseguisse seu intento.

       Correu a frente, ignorando o chamado de Joan. Adentrou o quarto de seu pai e correu para ele, jogando-se ao seu lado na cama, conseguindo sua atenção.

       -Mande-a embora, papai – ela dizia para o Duque quando Joan entrou – Eu não gosto dela.

       Joan corou e não respondeu nada. Tommy participou da brincadeira da irmã na cama, sem entender que era algo sério e o Duque desconsiderou a birra de sua filha.

       Joan permaneceu longe, apenas ouvindo a interação entre pai e filha. Tommy interrompia o tempo todo querendo sua atenção. O pequeno e estranho Marmom ganhou o olhar de Joan. Ele detinha atenção às cortinas de veludo, sem notar arranhando-as com suas unhas. Era tempo de nascerem suas longas unhas. Por enquanto nasceria uma fina camada de unhas escuras sobre as humanas e em um ou dois anos, elas cairiam e as definitivas surgiriam.

       Se o menino detinha a idade de dois anos, era provável que em breve estivesse subindo pequenas alturas com sua pele escamosa. Joan perguntou-se como seria sem alguém para ensina-lo a fazer isso.

       -Marmom – O duque chamou o filho – venha cá, pequeno cavaleiro. Quero ver suas mãos – ele chamou e o menino correu para ele, como sempre preferindo correr de quatro a seguir de dois pés.

       O modo como o duque olhava para o filho era quase doloroso. Ama-lo não escondia sua preocupação. Ele olhou para as marcas escuras nas unhas de seu filho e tentou sorrir.

       -Está doendo? – perguntou a ele e o menino negou com a cabeça, e apontou Joan.

       -Precisa me dizer o que você quer Marmom. Precisa começar a falar se quer ser entendido. Eu sei que você pode. – O Duque incentivou, mas o menino apenas ronronou como um rangido e Joan não aguentou mais:

       -Ele deve estar com a garganta doendo. Isso acontece por não... – como ela explicaria isso? – talvez ele precise apenas comer e beber um pouco mais de líquido que as outras crianças, assim sua garganta não vai doer e ele falará.

       -É mesmo? É esse o seu mistério, Marmom? – o Duque tentou sorrir para o filho, mas era óbvio que estranhava essa conversa.

       -E talvez... Apenas talvez... Ele devesse ser incentivado a subir nos objetos. – era definitivamente uma frase estranha para os ouvidos de um humano.

       -Uma brincadeira deveras perigosa para uma criança de dois anos. – Rowell lembrou-a com seriedade, estranhando muito aquela conversa.

       -Eu já vi Marmom subindo nas paredes, papai – Alice queria sua atenção – foi quando Liara correu pela primeira vez, gritando que ele era um demônio vindo das profundezas do...

       -Não – ele impediu-a de continuar – não diga essas coisas em voz alta. Seu irmão não é nada disso.

       O modo carinhoso do Duque tratar o menino deixou Joan com o coração partido.

       -Cada criança tem seu jeito. – ela disse para suavizar o peso nos ombros daquele homem – Veja Alice... É tão inteligente e esperta para a idade. Não é como as outras meninas. – o modo como a jovem olhou para ela era de repugnância. – Marmom é apenas diferente.

       -Como você? – o Duque perguntou a queima roupas.

       -Sim, como eu - ela respondeu sem titubear, e sem querer o duque acertava na mosca.

       Como ela, o menino era estranhíssimo e fazia parte de um mundo incrível e desconhecido aos humanos.

       Marmom interrompeu a conversa saindo da cama, e tornando a cheirar Joan que apenas riu suavemente. Quando o menino tentou cheirar suas asas, escalando em suas costas, Joan deixou e o levou nas costas.

       -Não, não, pequeno, não me morda – ela pediu suave, pois não queria ferir suas asas.

       Como um ser mágico ele era capaz de saber que suas asas estavam ali, e ela temia não conseguir mantê-las escondidas, pois o menino era muito entusiasmado. Cheia de cócegas, Joan foi até a cama e o derrubou gentilmente fazendo cócegas de volta no menino, esquecida do Duque.

       O riso da criança era bonito e ela aproveitou para dar uma espiada em sua arcada dentaria e ver a que pé andava sua dentição primaria.

       Quando olhou em torno encontrou o Duque olhando para ela com interesse.

       Receosa que isso acabasse em represarias, afastou-se da cama.

       Alice tomou a palavra querendo a atenção do pai toda para si. Manhosa, ela reclamava sem parar, enquanto Tommy tentava contar sobre suas bobagens de menino cheio de agitação e pouca companhia masculina da sua idade.

       A manhã foi muito divertida, apesar de não participar da conversa, Joan gostou de acompanhar o que era dito. O Duque tentava explicar algo para Alice e ela não gostou do que ouvia.

       Joan acompanhou a menina neste sentimento e era provável que a expressão de ambas se assemelhasse muito quando o Duque começou a falar:

       -Lembra-se de Howard? – a menina concordou com um aceno. – Howard sempre foi meu melhor amigo. Leal a meu ducado e ao meu povo. Um homem de valia inestimável. Você conviveu com ele, e tem idade suficiente para saber que Howard sacrificou sua própria vida para salvar a minha e que graças a isso estou aqui, apesar de ferido, estou vivo.

       -Eu sei disso, papai. Tio Howard foi muito corajoso – a menina disse com doçura destinada apenas ao pai. Toda a ferocidade desaparecia quando destinada ao pai.

       -E você sabe que eu adquiri responsabilidades para com a família de Howard? Eu fiz uma promessa a ele, Alice, em seu leito de morte, eu prometi cuidar da família do meu grande amigo. Ele está morto, e sua família desprotegida. Eu preciso cumprir minha promessa.

       -Papai... – ela tentou interromper, mas o modo sério do Duque a impediu.

       -A irmã de Howard chegará em algumas semanas e é para com ela que dedico minha total lealdade. Cumprirei minha promessa. Vou me casar com ela e honrar seu irmão.

       Joan e Alice exibiram a mesma expressão, mas ninguém reparava em uma serviçal por isso Joan manteve-se calada.

       -Mas, papai, eu não quero outra mulher no lugar da mamãe! Eu não quero!

       -Ela também não queria perder seu irmão e único protetor, e isso aconteceu em nome de nossa amizade e lealdade. Eu daria minha vida por Howard, mas ele o fez primeiro. E agora vou honrar minha palavra, e tentar devolver um décimo do favor que ele me fez. Eu posso cuidar da minha filha – ele fez um carinho no rosto da menina - e dos meus meninos, e em breve, Tommy será um homem e poderá cuidar de todos nós.

       Joan sabia que o homem dava sua vida como acabada por causa do ferimento.

       -Quando ela chegar eu exijo que a trate com respeito. Está me ouvindo, Alice?

       A menina levantou da cama, lábios trêmulos e moveu a cabeça concordando em um aceno.

       -A mamãe está viva – ela disse chorosa – como será quando ela voltar?

       -Sua mãe partiu Alice. Ela morreu no parto de Marmom. Sophie não voltará. – ele tentou levantar, mas sua condição o impediu.

       -É mentira! Mamãe vem me ver quando ninguém está perto! Ela está viva e linda! Ela tem lindas asas! E ela me levará para voar com ela um dia! Ela prometeu!

       A menina gritou e saiu correndo do quarto.

       Exasperado o duque praguejou e socou o colchão ao seu lado, pois estava preso naquela cama.

       Confusa, Joan pensou no que ouviu. Asas? Seria possível que a esposa de Rowell, Duque de Mac William, fosse uma fada?

       Mas se assim o fosse, ele teria visto suas asas não é mesmo?

       A menos claro, que a fêmea possuísse dons semelhantes a Joan, o que seria uma curiosidade inexplicável. E nesse caso, como uma fada poderia gerar um mestiço de lagarto?

       Confusa ao extremo, Joan aproximou-se da cama e retirou o menino de sobre o Duque, pois ele estava nervoso e temia que o menino se agitasse e o arranhasse. Segurou-o no colo, apesar do garoto ser enorme e pesado.

       Tommy estava quieto, era perdido naquele turbilhão de acontecimento.

       -Leve-os - O Duque mandou – Eu quero ficar só.

       Joan concordou e estendeu a mão chamando Tommy. O menino obedeceu e agarrou sua mão com força, como quem pede socorro, e Joan levou-os para fora do quarto. No corredor, o menino estava choroso e a abraçou pela cintura.

       Joan deixou e acariciou seus cabelos negros, tão parecidos com os do pai. Quanta dor para uma criança tão pequena.

       Joan não notou que a porta do quarto estava apenas encostada e da cama, melancólico refúgio de um homem ferido, o Duque observava sua interação com seus filhos.

 

       Escurecia lentamente naquela noite. Sem a designação de cuidar do serviço da limpeza, Joan passou o dia ajudando na cozinha, como era o desejo de Hector desde o primeiro dia quando a viu.

       O Duque se recusou a almoçar e ela temia ser a culpada por isso. Talvez estivesse evitando sua presença.

       O jantar estava pronto e a ordem era de servi-lo, o que há acalmou um pouco. Audaz, ela convenceu Hector a preparar um chá com ervas colhidas na horta do forte. Ervas normalmente usada como temperos, mas que Joan conhecia como medicinais e apropriadas para os nervos.

       Eram usadas em chás que lhe davam no Ministério do Rei quando estava nervosa ou adoentada.

       Com receio levou o jantar para o Duque em seu quarto. Ele comeu em silêncio e quando terminou Joan esperou que a mandasse sair.

       -Meu melhor amigo deu a vida por mim. – ele disse de surpresa – porque ele acreditava na liderança de um duque justo. Que todas as pessoas sob minha proteção precisavam mais de mim, do que de um simples cavaleiro negro, nunca reconhecido pelo rei. E olhe para mim agora... Não sirvo para nada. Casarei com a irmã de Howard sem saber se lhe ofereço proteção ou a desgraça de casar-se com um inválido. Tenho que casar minha própria filha, tão jovem, ainda tão criança, na esperança que outro homem possa tomar as rédeas de um cargo que é meu. Rezar para que Tommy cresça e herda meu título. Enquanto eu? Eu fico aqui. Sem serventia.

       Joan ouviu seu lamento e chegou a dar um passo na direção do duque.

       -Eu tive que aprender muito sobre saúde. Onde vivia quando adoecíamos não podíamos contar com ninguém além de nós mesmos. Eu penso se... Você tem noção do seu ferimento? O que lhe aconteceu?

       -Sim, eu vi esse ferimento em outros homens. Sei o que me aguarda. Não vou me recuperar. É fato.

       -Eu posso... Eu posso ver? – perguntou corajosamente.

       O modo como Rowell a olhou era reflexo de seu próprio sentimento.

       -Se você aguenta ver um pouco de sangue.

       -Eu aguento muita coisa – ela disse tentando sorrir.

       Rowell moveu o torço e ela aproximou-se. Ele retirou a túnica por sobre a camisa e Joan reteve o ar quando avistou o ferimento em suas costas. Era longo, não cicatrizado e aparentemente muito profundo.

       Ele tinha razão ao referir-se a sangue. Era uma imagem feia, pois a ferida ainda estava aberta, coberta de pontos mal feitos. Era um milagre que ele estivesse vivo. Joan sentiu as mãos tremerem ao tocar a pele em torno do ferimento.

       Chegou de ouvir em sua mente as palavras de Driana:

       “-Existem ervas que podem curar, mas existem as que podem matar, e para tudo há um a solução. Eu nunca usaria folhas vermelhas em um ferimento, mas as amarelas de todo tipo costumam ser ótimas para minimizar a inflamação e cicatrizar os tecidos mais profundos. Nas margens do Rio Branco, é onde crescem as melhores.

       -Ah, sim – disse na ocasião Eleonora puxando seu livro para olhar em sua face, enquanto fazia graça de seu entusiasmo com a leitura. – E que tipo de ervas poderíamos usar para curar sua chatice aguda?

       -Eu não sei, talvez ervas com folhas verdes que são ótimas para curar coceiras e ardências. Do tipo que posso colocar em suas calcinhas durante a noite, Eleonora. – ameaçou e a fada esbranquiçada e pálida riu e roubou-lhe o livro, correndo pelo quartinho do Ministério do Rei, saltando sobre a as camas tentando manter o livro longe de Driana enquanto ela a perseguia.

       O riso de Joan acompanhava a brincadeira das duas, mas Alma apenas pedia que parassem, pois os gritos de gralha das duas incomodavam seus ouvidos...”

       Mas quem sabe, pensou Joan, algumas folhas amarelas pudessem ajudar? Folhas mágicas, desconhecidas dos humanos.

       -Quem tem cuidado de seu ferimento? Matilde? – perguntou pensativa.

       -Sim, ela tem experiência com esse tipo de pratica - ele tornou a vestir a roupa e recostou-se dolorosamente contra o encosto da cama.

       -Alguma vez desde que se feriu tentou levantar e andar pelo quarto? – perguntou curiosa.

       -Eu sinto muita dor e um peso nas pernas. Matilde não acha prudente esse risco. – ele disse pesaroso.

       -Hum – ela não disse nada, mas o simples som que fez foi o bastante para despertar a curiosidade do duque.

       -Discorda de Matilde? – perguntou intrigado.

       -Não, ela faz o que sabe. Eu penso em outros meios de tratamento... Eu não tenho a experiência de Matilde, mas conheço um pouco da essência de uma criatura... Se você não tentar se exercitar, como poderá recuperar seus músculos? Hector, o cozinheiro me contou de suas façanhas. Sobre suas lutas e batalhas. É um exemplar de macho da sua espécie que lida com o corpo e a atividade física constante. Não pode ficar restrito a uma cama, a menos que de fato seja uma lesão permanente.

       -A minha situação é muito delicada, Joan – ele foi sincero, abrindo suas aflições para a jovem de olhar puro e faces coradas de um embaraço puramente romântico.

       Com sua experiência de vida era capaz de julgar o interesse de uma jovem. Ainda não entendia suas verdadeiras intenções, pois ela era uma moça peculiar e estranha, mas sabia que sentimentos como atração são pouco disfarçáveis, a menos que a jovem fosse uma atriz perfeita.

       -O que há de complicado em um líder tentando se curar para cuidar de sua família e seu povo? – perguntou em dúvida.

       -Eu sou um Duque, Joan. O que você sabe sobre um ducado e sua fidelidade ao rei? – sondou, pois ela lhe parecia ignorante sobre esses assuntos, o que por si só era um fato estranho.

       -Não sei muita coisa. – confessou humilde em seu nulo conhecimento do assunto.

       -Um Duque por direito adquirido em nascimento, como é o meu caso, deve fidelidade ao seu rei. Defender o Rei e a terra que lhe é de direito sob pena de perder seu povo e sua vida. Vivemos tempos difíceis. Muita batalha por poder e terras. A batalha que me feri, não foi à primeira deste ano. Houve outras e tão logo o boato que o Duque Mac William não pode lutar e defender seu ducado espalhe-se, outros invasores tentaram invadir e tomar o forte. Manter-me forte e intacto, ao menos em fama é a única forma de manter minha família segura.  – ele explicou e Joan perguntou começando a entender seu dilema:

       -Mas o Rei não lhe deve algum tipo de lealdade também? Você o honra e vive por suas leis e ele não lhe deve lealdade?

       -Sim, uma vez invadida minhas terras e meu ducado tomado por outro, o Rei enviará tropas e massacrará os invasores. Acontece que há uma forte razão a me preocupar que torna isso impossível, que atará as mãos do Rei e ele não poderá interceder por minha gente. – ele disse com tristeza na voz – Alice.

       -Alice? Sua filha? Eu não entendo – Joan sentou na pontinha da cama, longe de Rowell, sem notar que gostava de ouvir sua história e que o Duque parecia gostar de conta-la para ela.

       -Se o forte for tomado, Tommy será morto. Ele é meu herdeiro de direito. O nascimento de Marmom é carregado de desconfianças. Ninguém o considerará meu herdeiro, mas Tommy... Sim, ele será morto. Sem um herdeiro de sangue aquele que invadir o castelo e me vencer, tomará Alice por esposa e revindicará seu direito ao ducado. Nem mesmo um rei pode lutar contra isso. Seria um caos com os demais súditos. Casar Alice enquanto há tempo é minha única medida de segurança para com minha filha.

       -Mas ela tem apenas doze anos – lamentou – E com quem você pensa casa-la? Alguém do castelo? – perguntou.

       -Preciso de alguém de fora. Alguém poderoso. Por isso meu casamento será tão útil. A irmã de Howard mora em um ducado vizinho. Escrevi logo depois do acontecido e ela deve estar a caminho. Com ela, pedi que viesse o filho do Duque de Brixton. Ele é solteiro. Farei a proposta. Com sorte um arranjo pode ser feito entre nós. – ele afastou o olhar amendoado dos olhos da fada, sentindo-se culpado por fazer planos para sua filha – Eu tenho esperança dele aceitar um casamento platônico até Alice ser menos menina, e mais mulher.

       -Alice não vai aceitar isso – ela disse realista – Desculpe se pareço ofensiva... Mas sua filha é temperamental. Ela vai se rebelar contra um casamento nestas condições.

       -Eu sei disso – ele sorriu, pensando na filha – Alice tem minha personalidade. Ela vai espernear. Mas no final, vai aceitar.

       -Mas e se você melhorar antes da chegada de sua noiva? Antes que esse arranjo entre os dois ducados aconteça?  - perguntou ansiosa.

       -Eu gosto do seu entusiasmo, Joan – ele desse com ternura – Acho que não lhe contei como a conheci de fato.

       Joan negou com a cabeça.

       -Eu ouvia suas discussões com Matilde nos corredores. Confesso que era um sopro de humor em meio a tanta apreensão. O modo como você responde para Matilde sempre me faz rir. – ele disse manso e Joan corou.

       -Não é por querer. – ela defendeu-se.

       -Estou notando isso. – ele apontou a bandeja do jantar – Eu senti o que você disse mais cedo. Tem pena de Marmom. Tem pena de mim. Eu fique furioso, mas sei que não disse por maldade e sim por ser seu íntimo sentimento.

       -Não há vergonha em ser diferente ou penar de uma doença. O mundo que está errado e não o contrário. Marmom... - ela mordeu o lábio, incerta de sua pergunta – ele é mesmo seu filho?

       -Às vezes eu penso que não - ele foi franco.

       -E a fêmea progenitora de Marmom... É a mesma de Alice e Tommy?

       Rowell sorriu de seu jeito e perguntou:

       -Você sempre fala assim? – franziu as sobrancelhas, curioso.

       -Assim como? – não compreendeu de imediato.

       Ele sorriu de lado, olhando-a com candura e outros sentimentos nem tão pueris, mas ela não notou o interesse por de trás do olhar do duque.

       -Sophie, minha esposa, deu a luz a três filhos. Infelizmente morreu no parto de Marmom. – ele achou por bem contar. – isso foi a pouco mais de dois anos.

       -Ela era como... Como você? – perguntou exibindo toda sua curiosidade.

       -Como eu? – Rowell começou a se consternar com as perguntas, sem saber onde Joan queria chegar.

       -Eu digo... Ela se parecia mais com Alice e Tommy, ou mais com Marmom?

       Era a pergunta mais estapafúrdia que Rowell ouvira em toda sua vida.

       -Alice e Tommy. – ele confessou pensativo – Muitos acham que a gravidez de Sophie foi tomada por algum espírito vagante, e por conta disso Marmom não nos pertence e sim a eles – disse com cinismo – E como eu posso explicar o nascimento do meu filho de outro modo?

       Joan suspirou. Era isso. Marmom não era cria de Sophie Stiller Delan, Duquesa de Mac William.

       Como dizer isso a um humano?

       -Eu me pergunto por onda seus pensamentos quando se cala – ele divagou rastreando sua face em busca de indícios de seus pensamentos.

       -Eu pensava em seu ferimento – desconversou – Em uma melhora antes do seu casamento e do casamento de Alice. Era isso que dominava meus pensamentos.

       -Mesmo que um milagre aconteça, ainda assim me casarei. Vou honrar a promessa que fiz – ele disse em tom de aviso.

       Joan ergueu uma sobrancelha em dúvida. Uma coisa de cada vez, pensou. A noiva trazida de longe poderia ter um amor escondido, ou simplesmente não aceitá-lo por antipatia? Tudo é possível no amor, não é? Ao menos era isso que Reina vivia dizendo.

       -Bom – ela disse levantando e ajeitando o tecido do vestido, atraindo sem querer atenção do duque sobre seu corpo – Eu posso fazer algo para tornar sua noite mais agradável? Um chá, talvez? – era uma oferta inocente.

       Rowell fingiu não pensar em possibilidades bem menos inocentes para tornar sua noite agradável. Algumas serviçais eram ousadas em suas tentativas de conquistar o apreço do duque Mac William. Mas Joan não parecia padecer deste mal.

       -Pode abrir um pouco a janela? Eu tenho gostado de desfrutar da brisa noturna.

       Joan presenteou-o com um enorme sorriso de contentamento enquanto abria a janela e permitia que uma fresta permanecesse aberta, arrumou as cortinas e virou-se para ele com olhos brilhantes:

       -Eu lhe desejo uma boa noite, Duque Mac William.

       Rowell apenas acenou aceitando suas palavras como quem aceita um afago.

       Ao sair e fechar a porta Joan não podia saber que sua presença vinha aquecendo a vida do Duque de esperança. Um sentimento a muito esquecido. Desde os estranhos dias apenas ouvindo sua voz meiga respondendo para Matilde e arrancando-lhe gritos quase histéricos de fúria, que Rowell estava encantado com a serviçal mesmo sem conhecer sua face.

       E agora que conhecia seus traços e a doçura em seus olhos, ele estava enfeitiçado.

 

       A pior parte de viver na solidão é acostumar-se com o silêncio. Tubã sentia o impulso de conversar sozinho para afastar a tristeza e os pensamentos loucos. Era esperado que alguém ativo e acostumado a passar seus dias agindo, ficasse tonto e louco com tanta passividade.

       A duas noites atrás ele começara a pensar se aquele era um esconderijo verdadeiramente seguro. Não temia ser achado por guardiões, duvidava que algum o seguisse, pois não tinha valia alguma para o reino e não era diretamente acusado de crime algum e se eventualmente Rainha Santha, a rainha louca, tentasse incrimina-lo Túlio, seu pai adotivo daria um jeito nestas acusações descabidas.

       Sim, ele era um bon vivant colhendo os frutos de uma adoção abastada. Ele amava incondicionalmente Túlio e Reina, e seu irmão Egan, mas amava também o poder e o ouro que essa nova vida lhe trouxera. E isso não o fazia menos honesto, apenas sincero.

       Começando a lamentar cada negativa desbocada que fornecera a Túlio no passado para fugir dos treinamentos com espada, Tubã esperava. Algo o espreitava. Ele sentia em cada poro de seu corpo e ele era uma visão bastante patética com um punhal nas mãos e nenhuma coordenação física de luta.

       Um prato cheio para qualquer criatura faminta que estivesse em busca de uma farta refeição. Lamentando profundamente ter deixado o posto de herói da família para Egan, Tubã andou pelo acampamento improvisado e nem tão incólume como imaginou, e apagou os rastros da fogueira usando restos de mato molhado das recentes chuvas. No escuro total, ele escondeu-se nas pedras.

       A visão é um sentido poderoso para os caçadores da noite. Assim dificultava o trabalho da criatura que o espreitava.

       Tubã era péssimo em luta, mas exímio em fugas ousadas. Não era de surpreender que houvesse aprendido a escapar de confrontos, visto ser o filho adotivo de um poderoso Conselheiro, que também era braço direito do Rei Isac.

       As outras crianças não aceitavam um órfão do Ministério do Rei entre eles, sendo bajulado por causa de um ato considerado espúrio. Túlio e Reina deveriam ter escolhido entre alguma das famílias importantes, tendo assim um filho com sangue de boa linhagem.

       E os anos o fez um vagabundo provocador que parecia confirmar essas afirmações maldosas do passado.  Desafiar aqueles que não o aceitavam em sociedade e lidar com suas atitudes torpes, quando o único modo de fazê-lo era revoltar-se contra o então Primeiro Conselheiro Túlio. A hipocrisia de toda uma gente sendo devolvida na mesma moeda. Envergonhar seu pai, era um modo de repudiar aqueles que o desprezavam e mentir que não se importava com eles.

       Enfurnado em uma caverna no meio das pedras, Tubã contava com o fator surpresa para pegar seu possível agressor. Ele não sabia que a ausência de luz não interferia em nada quando o perseguidor é um exímio caçador da noite.

       Na parede, ao lado de Tubã que de pé esperava seu agressor segurando o punhal, algo rastejou e aproximou-se a ponto de fungar em seu pescoço, o hálito quente deixando-o paralisado.

       Foi apenas um momento de medo irracional, e então Tubã fez o que sabia fazer de melhor... Saiu correndo, fugindo do confronto.

       Na escuridão da caverna a criatura deixou a parede, pousando os pés no chão e encarou o vazio desolador. Ele havia corrido, pensou a fêmea. Era isso? Fugido do confronto como uma fadinha assustada?

       Retirando a espada curva da cintura, afiada e fulminante, Helana sorriu sedenta de sua caça, antes de correr atrás do coelhinho assustado que tencionava esconder-se nas pedras, sem saber que a escuridão e as pedras eram o lar milenar da raça que o perseguia em uma caçada onde haveria apenas um vencedor...

 

       Durante a madrugada, Joan acordou de um pesadelo. Imagens distorcidas de Alma precisando de ajuda. De Driana perdida e com medo. De Eleonora sendo pega e aprisionada. Pesadelos assustadores que lavaram sua pele de suor e enjoavam seu estomago.

       Ela acordou no ápice, mas não foi a única a ter o sono interrompido. Pelo visto seus gritos haviam acordado as outras serviçais que ascenderam seus candelabros para saber o que acontecia.

       -Você está bem? – perguntou-lhe Molly, vindo até sua cama, para acudi-la.

       -Sim, eu estou apenas enjoada – confessou sentando na cama – eu fico assim às vezes. Não é nada, já vai passar – explicou.

       Por mais que soubesse como era sua saúde, ainda assim, Joan não pode evitar de curvar-se e vomitar na comadre que ficava sob a cama, pega as pressas para evitar uma tragédia no chão.

       -Tem certeza que está bem? – Molly perguntou com insistência.

       -Sim, não foi nada, volte a dormir. Eu ficarei bem – encolheu-se na cama, depois de limpar a boca e fechar os olhos, para afastar as imagens desoladoras de seu pesadelo.

       As outras jovens voltaram para suas camas e a luz foi sumindo aos poucos, até permanecerem no escuro. Joan tentou fechar os olhos, mas o sono havia partido definitivamente.

       Sentia apreensão e saudade de suas amigas, medo do que acontecia com elas. Estava impressionada com o que poderia acontecer com o Duque. Estava muito assustada com tudo isso. Deitando de lado, Joan encostou a cabeça no braço e fechou os olhos rezando silenciosamente para que suas queridas amigas tivessem sorte e não penassem em sua trajetória.

       Que obtivessem suas asas o mais rápido possível, como aconteceu com ela, e que pudessem salvar a si mesmas.

       Nesta melancolia as horas passaram e quando Joan abriu os olhos outra vez era manhã e Matilde gritava com Molly sobre algo que a jovem fizera errado. Joan gostaria de ter coragem de dizer-lhe o quanto era desgastante todas as manhãs suportar gritos e berros. Que a vida poderia ser menos tensa se todos falassem em voz mais normal.

      Joan estava pensativa sobre o que faria em relação ao seu único vestido. Era grande e desajeitado e não contribuía em nada para uma boa aparência. Mas ao menos deveria estar limpo. Com as recentes chuvas ele não secaria facilmente. O que ela usaria nesse meio tempo?

       Pensava sobre como conseguir roupas quando ouviu Matilde falando dela com Liara.

       -É mesmo? – ela perguntava olhando para Joan com satisfação.

       Finalmente obtinha a desculpa perfeita para livrar-se daquele incomodo.

       -Não se dê ao trabalho de ir à cozinha. – Matilde lhe disse com um sorriso satisfeito na face – Faça sua trouxa e me aguarde lá fora, perto do portão.

       -Por quê? – Joan perguntou sem entender.

       -Obedeça minhas ordens, criada. –ela disse saindo em seguida do quarto.

       -Mas o que foi que eu fiz? – perguntou para Molly e Liara.

       -Além de tornar-se a queridinha do Duque? Matilde jamais perdoaria isso – foi à resposta de Liara.

       -Mas eu não fiz nada de errado! – afirmou desesperada de ter que partir.

       O pensamento insano de não querer partir e deixar o duque e sua família para trás. Um pensamento inesperado, visto que sua primeira intenção em esconder-se no castelo era proteger-se do Guardião que deveria estar seguindo-a e procurando por ela na surdina!

       -É claro que você fez. Você tirou o prazer de maltrata-la. Para Matilde é inaceitável obedecer à protegida do Duque. – Liara insinuou.

       -Você fala como se houvessem muitas protegidas do duque – sim, ela perguntou com uma pontinha de ciúmes na voz.

       -Você não entende Joan? – Liara perguntou bem perto, pousando ambas as mãos em seus ombros – você é diferente de nós. Em tudo. Faz com que pareçamos errados o tempo todo. Matilde não sabe lidar com você e isso nunca aconteceu antes. E o duque... Desde a morte da esposa, ele jamais olhou para outra mulher. E Matilde não permitirá que essa mulher venha a ser uma serviçal.

      -Mas o duque vai se casar! Ele chamou sua prometida. – disse derrotada.

       -Uma mulher de pele escura? Matilde acredita que ele desistirá quando perceber a loucura que fará diante do Rei.

       Joan começava a entender esses aspectos de preconceitos humanos, não comuns entre criaturas humanas, normalmente a cor da pele não influenciava, e sim sua descendência. Cada povo com sua maledicência, pensou Joan.

       Ninguém sabia da situação do Duque em relação ao medo de não conseguir proteger sua família. Sua intenção de ceder seu título a um futuro marido de Alice. Sendo assim, tanto fazia as características da nova esposa de um duque que passaria adiante seu título diante do Rei.

       -Matilde não pode acreditar que sou uma ameaça. Eu nunca fiz nada contra ela. O Duque é apenas gentil comigo. A maldade está na cabeça dos outros.

       Liara e Molly entreolharam-se como quem diz que a jovem Joan era inocente demais sobre os homens para compreender o que de fato acontecia entre um senhor e sua serviçal.

       -Pegue e leve isso com você, Joan – Molly retirou debaixo de seu travesseiro um punhal pequeno – eu consigo outro para mim. Leve consigo, as estradas são muito perigosas desde que o duque foi abatido. Não é seguro andar sozinha por essas estradas, na verdade, não é seguro para qualquer um seguir sem escolta.

       Sozinha? Joan não teve tempo para raciocinar ou despedir-se. Foi escoltada até o portão principal e de lá despachada.

       Encarou o portão do forte, fechado e austero e pensou em voar e saltar por sobre ele voltando para junto do castelo. Mas a racionalidade falou mais alto. Era uma fada, mas pretendia passar despercebida entre os humanos. Por isso, Joan começou a andar com passos cansados e sem vontade, enquanto segurava junto ao peito sua bolsa, onde continha à capa que Tubã lhe conseguira durante a fuga e sua túnica de algodão, usada no Ministério do Rei.

       Joan olhou para o céu bonito, com nuvens brancas e fofas. Ainda não havia voado nenhuma vez. Secretamente guardava esse momento para compartilhar com suas amigas, o que era uma ideia bastante ingênua. Agora seria um bom momento para usar suas asas e proteger a si mesma.

       Limpando uma lágrima fortuita que corria em sua face, Joan disse a si mesma que faria isso se corresse perigo. Se não, ela voltaria para a vila e tentaria misturar-se aos demais humanos. E quem sabe, ao menos conseguisse notícias ocasionas do forte e seus habitantes?

       Notícias do Duque e seu olhar sofrido. De sua filha Alice, tão acuada e agressiva por conta do medo. De Tommy tão pequeno e carente de atenção materna. E Marmom, sem xodó.

       Sufocando o choro, Joan pensou em Matilde, até de seus gritos teria saudade.

       Mas a saudade não lhe serviria de nada em sua jornada. Precisava esconder-se de qualquer Guardião que chegasse perto demais. Era sua meta de vida, e concentrar-se-ia nisso!

       Joan não sabia, e dificilmente poderia imaginar que horas mais tarde, quando Molly levou o desjejum para o Duque houve perguntas sobre ela.

       -A jovem partiu – respondeu Matilde cuidando das cobertas, paparicando o duque, sem olhar em seus olhos enquanto mentia – aparentemente a jovem tem um amante na vila e espera um filho. Tem passado mal todas as noites. Não é prudente que continue aqui, pois em breve não servirá para o trabalho.

       O duque não disse nada. Tão pouco Molly. Ela serviu o Duque e quando Rowell pediu que o ajudasse com sua higiene matinal, Matilde saiu e fechou a porta, sem saber que era um grande erro fazer isso.

       -O que Matilde disse é verdade? – Rowell perguntou.

       -Eu não sei quanto a uma amante. Sei que Joan passa mal quase todas as noites. Ela tem pesadelos horríveis. Pobrezinha, não duvido de sua condição. Quando a conheci na vila estava desesperada por encontrar um lugar para viver. Ela parecia desamparada. Completamente abandonada à própria sorte. – Molly contou pesarosa.

       A falta de resposta do duque a fez silenciosa, cuidou do seu serviço e saiu logo depois. Liara que levava os filhos do duque de um lado para o outro, entretendo-os, chegou de ver o entra e sai de cavalariços do duque.

       O homem deveria ter bons assuntos a tratar.

       No meio da tarde, um cavalo partiu do Forte Mac William em direção da vila.

       Joan ouviu o som dos cascos e virou para trás tentando ver se eram cavalos de humano ou criaturas mágicas. Aliviada reconheceu um dos serventes do duque. Esbaforido o homem puxou as rédeas do animal e o fez parar, o animal impaciente em seguir, sendo controlado pela força masculina de seu dono.

       -Trago ordens do Duque Mac William de leva-la de volta para o forte. – ele disse com pompa e circunstancias.

       -Ele quer que eu volte? – perguntou surpresa.

       -Sim, e a ordem foi trazê-la antes do anoitecer – ele olhou para cima para o céu – Vejo uma chuva se anunciando.

       Estupefata, Joan apressou-se a segurar a mão do homem e subir em seu cavalo, em sua garupa.

       No coração uma sensação única de ser bem quista.

       Não entendeu imediatamente a guerra que se anunciaria junto com sua chegada. Matilde jamais aceitaria seu retorno e isso ficou evidente quando a mulher a viu chegar. Uma chuva fina os pegou ainda na estrada e Joan tinha a roupa salpicada por chuva e os cabelos molhados. Ela sorriu muito ao despedir-se do jovem que a trouxera de volta e correr para dentro do castelo, passando por Matilde sem uma palavra sequer.

       Ouviu os passos da mulher atrás de si, mas não perdeu tempo com ela, seu coração estava acelerado e queria trocar a roupa molhada e ir até o Duque agradecer-lhe por ter desejado sua presença. Era tolo agradecer por algo assim, mas ela era grata por ter seu apreço.

       Há quem não saiba o valor de uma amizade, mas Joan não era uma dessas pessoas. Ela sentia vontade de gritar de alegria.

       Chegou ao pequeno dormitório, deixou a trouxa de roupas em sua cama, ainda vazia, no aguardo da próxima serviçal a ocupa-la. Retirou as botas molhadas e esfregou um dos pés na canela, ansiosa por sentir a terra, o mato ou grama verde contra as solas de seus pés.

       Essa vida de sapatos, paredes de pedra e ordens era muito parecida com a do Ministério do Rei, com a única diferença de não ter Eleonora, Alma e Driana para leva-la em suas fugas para que corressem com liberdade pelos prados.

       Matilde alcançou antes que pudesse tirar o vestido molhado e vestir sua túnica sequinha, guardada em sua trouxa de pertences. E eram tão poucos seus pertences. Apenas uma túnica velha e uma capa de couro, recebida de Tubã ainda na fuga. E um pente. Ela tinha um pente velho, e um espelhinho rachado. Sua única vaidade.

       -Como ousa estar de volta? – Matilde perguntou furiosa.

       -Foi uma ordem do Duque Mac William.  – respondeu sem muita atenção.

       Matilde detestava ser deixada de lado. Agarrou seu braço e disse severa:

       -Eu não acredito em nenhuma mentira que saia de sua boca imunda. – ela disse com prazer na voz – Veremos se o Duque compactua com suas artimanhas.

       Joan não impediu-a de levá-la pelo braço. Primeiro, porque no fundo estava ansiosa para ver o duque e Matilde fornecia a desculpa perfeita para fazê-lo sem parecer audaz e em segundo, pois era bom que a mulher ouvisse da boca do duque que era sua ordem de mantê-la no castelo.

       Encontraram Rowell acordado fitando a parede com nostalgia. Ele se fazia de forte, mas Joan podia sentir sua aflição e angústia em estar naquele estado.

       Matilde empurrou-a bem a vista do humano, e Joan tentou arrumar os cabelos molhados e melhorar a própria aparência em vão. Cheirava a estrume de cavalo e a barro. Nada poderia melhorar isso.

       -Essa serviçal alega que partiu do Duque a ordem de trazê-la de volta. – Matilde disse respirando com força, a um passo do descontrole total.

       -Sim, foi minha ordem – ele respondeu com convicção –Não vejo razão para mandar uma criada útil embora por que carrega uma criança. Existem outras criadas grávidas, e é bem vinda qualquer criança que nasça sobre o teto do forte Mac William.

       -Está mulher é uma devassa. – Matilde disse com insistência – ela é terrível. Repense sua postura, meu senhor. Não é inteligente mantê-la aqui dentro. Perto de seus filhos.

       -Espere... – Joan disse com voz falha, sua garganta começando a se ressentir do banho de chuva – Eu não estou prenhe. – disse com estranheza.

       Como nenhum deles pareceu entendê-la, Joan repetiu:

       -Eu não estou prenhe. Nunca estive. Não tenho crias, eu disse isso no primeiro dia, quando cheguei. Não chegou meu momento de cruzar. O que é estranho por si só – disse ao lembrar que deveria estar no cio, e não estava. – Eu nunca passei pelo coito com nenhuma espécie de macho! Muito menos um da sua raça! – acusou – Eu deveria estar ofendida com isso? Eu acho que sim – disse para si mesma. – Porque me acusa de algo que não fiz? Eu vim para trabalhar e cuidar do meu serviço. Não tenho pedido que fique o dia todo em torno de mim! – ela disse para Matilde.

       -Eu tenho tanta vontade de torcer seu pescoço com minhas próprias mãos – Matilde disse entre dentes, e seus olhos contavam uma história de ódio, magoa, e raiva.

       Tanta raiva que trazia lágrimas em seus olhos.

       -E por quê? O que eu lhe fiz? – perguntou com súplica no olhar.

       Que lhe contasse a verdadeira razão de tanto ódio. Mas Matilde não faria isso. Era uma luta sem vencedores. A humana olhou para seu senhor e perguntou com voz embargada:

       -Eu vejo que não tenho valor ou utilidade neste forte. Se for permitido pelo meu senhor, desejo partir ainda hoje. – ela disse humilhada.

       -Por minha causa? – Joan num impulso tocou o braço da humana e perguntou emotiva – Mas eu nunca quis isso!

       -Não ouse me tocar – Matilde afastou-se com aviso na voz.

       -Eu não permito sua partida – a voz do Duque encerou a questão – Este forte é seu lar, Matilde, e minha família é sua família. Sendo assim, aceite meu pedido para que fique e suporte a presença de Joan. Não será muito difícil, pois ambas são inteligentes o bastante para conseguirem viver em um mesmo castelo sem esbarrarem uma na outra.  – ele fixou os olhos em Joan com seriedade – Está proibida de ter qualquer contato com Matilde daqui para frente.

       Joan entreabriu os lábios surpreendida com sua reprimida.

       -Suas ordens serão repassadas por outro serviçal a escolha de Matilde. Agora, eu quero ficar só – disse para as duas.

       Altiva e satisfeita com o resultado, pois ao menos a intrusa estava sendo posta em seu devido lugar, Matilde aproximou-se da porta, mas Rowell interrompeu-a:

       -Não acho prudentes ambas andando pelos mesmos corredores. Joan irá esperar que tenha chegado ao seu destino, Matilde, antes de sair.

       Matilde olhou de um para o outro antes de sair e fechar a porta.

       Quando Joan olhou para o Duque havia um meio sorriso em sua face.

       -Está de volta, intrusa – ele brincou e ela baixou os olhos corando.

       -Eu não entendi se você falou a sério ou não – ela confidenciou – Eu devo ficar longe de Matilde?

       -Sim, mas não sou otimista sobre ela deixa-la em paz.  – ele admitiu, fazendo um gesto para que se aproximasse da cama.

       Joan espirou umas duas vezes antes de ficar perto da cama.

       -Eu não sei o que fiz de errado para que alguém me odeie tanto. De onde eu vim, eu não tinha muitas amizades... Mas também nunca tive um inimigo. Nunca. – ela disse consternada com esse pensamento.

       -Pegue a manta – ele apontou a roupa dobrada sobre a cama – Está com frio?

       -Sim, eu fico doente muito fácil – ela lamentou, envolvendo-se na manta quentinha – Obrigada por me deixar ficar, eu preciso muito de um lugar para me abrigar e estava com medo de ficar sozinha outra vez – admitiu com sinceridade.

       -De onde você vem, Joan? – ele perguntou intrigado.

       Por um louco instante ela pensou em contar-lhe, mas conteve as palavras e mudou o assunto:

       -Eu não sei por que ela disse aquelas coisas de mim. Eu nunca estive com um homem. Fui educada para aguardar o momento certo. Mas Matilde ficou tão furiosa comigo que não me permitiu explicar nada.  – espirou mais algumas vezes, em sequencia e fechou os olhos para afastar a ardência nos olhos.

       Da última vez em que estivera gripada, permanecera de cama por dias. Era só o que lhe faltava.

      Por causa da sua situação não reparou no modo como o duque a olhava. Molhada e totalmente natural, ela era bonita e fresca, como o orvalho da manhã e trazia algo de vivo para dentro de sua vida mórbida e triste.

       -Porque me chamou de volta? – ela perguntou, e era essa a pergunta que queria lhe fazer desde o instante em que descobriu que voltaria – Porque mandou me buscar?

       -Porque eu gosto da sua companhia – ele disse com um pouco menos de tristeza na voz. – Eu tive um único amigo em minha vida. E ele está morto. Morreu para me salvar. E eu me sinto só o tempo todo. – ele admitiu.

       Apenada, Joan tentou pensar em como seria perder suas amigas. Era uma possibilidade, pois a situação das quatro era perigosa e tensa. Afastando esse pensamento e essa dor silenciosa, Joan respondeu:

       -Eu gostaria muito de ser sua amiga, Duque Mac William. De todo o meu coração, eu gostaria muito de ter essa honra. – ela sorriu tímida.

       -Seremos amigos, então - ele proferiu as palavras com um olhar que dizia outra coisa. – e você precisa começar a me chamar pelo meu nome. E não de Duque. Rowell, como me chamam os meus filhos.

       Sem saber a razão Joan abriu um sorriso maior e olhou para longe. Havia um mundo entre eles. Sua fuga, a acusação de assinado de um rei que Rowell não sabia sequer da existência. Suas amigas e o bem estar de todas elas. O noivado de Rowell baseado em honra e, sobretudo, a diferença de espécie entre ambos.

       Joan era uma fada e possuía asas. Diante de um humano seus poderes mágicos não eram reais, ou havia interação entre suas espécies. O cio não estava manifestado, pois a espécie humana não lhe despertava os instintos sexuais. Ao menos não do modo esperado.

       Joan precisava responder algo, mas não havia palavras em sua mente para explicar a ele o que sentia e pensava, e por sorte do destino seus espirros sequenciados interromperam a conversa e Joan precisou ir para trocar as roupas molhadas e tomar um banho quente antes que seu resfriado piorasse.

       Chegou a percorrer alguns corredores em paz, até ser barrada pela imagem de Matilde surgida de um canto qualquer, provavelmente esperando-a na espreita:

       -Você não sabe o que fez. Mas vai pagar por isso – ela avisou entre dentes – eu vou pegá-la de jeito e provar quem você é.

       -Você sabe quem eu sou? – Joan perguntou, interpretando mal suas palavras.

       -Não se faça de boba comigo. Não vou permitir que uma qualquer destrua a harmonia dessa família. Eu prezo pelos Mac William e você não vai durar aqui. Eu não sei o que você faz para cativar o duque, mas eu colocarei fim a esse encanto. Se prepare, eu vou acabar com você.

       A ameaça foi feita e Matilde sumiu no corredor, rápida, pisando duro, arfante pelo ódio despertado dentro de si.

       Não era uma ameaça suficientemente assustadora para alguém ameaçada de penar da clausura por toda uma vida, ou ser presa por assassina. Mas era doloroso saber que despertava tanta raiva. E pena de Matilde. Ela estava tão errada sobre tudo.

       Apesar dos pesares, nem mesmo uma ameaça feia poderia suprimir a alegria de ser considerada uma amiga pelo Duque Mac William, ou melhor, por Rowell.

 

       Ser odiada por Matilde representava uma tortura diária. Mas Joan não reparava mais. Confessava que sua estadia entre os humanos estava sendo apreciada a extremos. Ela vinha passando seus dias na cozinha, ajudando Hector com a comida e cuidando do trato pessoal do Duque.

       Ele gostava que lhe levasse as refeições e às vezes estivesse presente quando pedia a visita de seus filhos. Na hora de seu trato pessoal, como higiene e banho, ele insistia que Molly era mais apropriada para ajudar alguém de seu peso e tamanho.

       Em uma dessas vezes, quando delicadamente foi retirada do quarto, Molly a alertou para não questionar a decisão do Duque:

       -Pelo amor de Deus, Joan, o pobre homem tem vergonha de sua condição. – ela lhe dissera em meio a uma longa caminhada pelo castelo, enquanto carregava as trouxas de roupa suja, e Joan a ajudava – Você é bonita, jovem, e obviamente virgem até seu último fio de cabelo. Ele tem desejos, e não pode erguer as vistas para você.

       Surpreendida com essa informação, Joan havia perguntado:

       -Por quê? Porque ele não pode olhar para mim desse modo?

       Um louco pensamento de que o duque poderia saber da diferença entre as espécies.

       Molly havia parado de andar e a fitado com seriedade:

       -O homem está inutilizado da cintura para baixo. Não fale com ele desses assuntos, é humilhante para ele.

       Nesse momento Joan havia lutado contra o constrangimento. Não era tão tola para o coito que não pudesse entender a que Molly se referia.

       As duas haviam seguido com o trabalho e em nenhum outro momento tocaram no assunto.

       Desde aquele dia, passado mais de uma semana, Joan apreciava os momentos a sós com o duque, ou então, com a companhia de seus filhos, sobretudo Marmom e Tommy.

       E vinha em segredo pensando em como ajuda-lo, mas para isso precisaria de coragem, muita coragem. E, sobretudo da permissão do duque de Mac William, ou Matilde lhe arrancaria as vísceras pela ousadia de sair sem permissão.

       Naquela manhã em especial, Joan levava o café da manhã para Rowell.

       Na cama, Rowell tinha o peito enfaixado e estava sem camisa, um pouco febril ainda, pois na noite anterior estivera com muitas dores e padecendo. Os cabelos negros estavam úmidos do recente banho dado pelas outras servas e seus olhos esverdeados estavam cansados, mirando o espelho na parede do quarto, com pesar e pensamentos pesados.

       Abatido, o homem não suportava ter que ficar na cama e passar dias sem poder cuidar de sua gente.

       -Eu não quero comer – ele reclamou quando a serva lhe trouxe o jantar.

       Seu mau humor era corriqueiro. Havia dias em que não conversava. Em outros, a presença de Joan ao menos o fazia menos chateado. Mas eram oscilações perigosas de humor. Joan não poderia culpá-lo por isso. Era um homem de luta e de ação e agora estava preso a uma cama.

       -Eu... – Ela começou a falar e quase perdeu a coragem.

       Vestia um vestido verde, de veludo simples e gasto, que Liara lhe emprestara, enquanto maliciosamente lhe confidenciara que torcia que conquistasse o duque o suficiente para conseguir que Matilde fosse mandada embora.  Usava também um lenço que cobria parte dos cabelos, pois estava cansada de Matilde gritando que era piolhenta e fedida.  Quem sabe se ela não visse seus cabelos, não pudesse ter desculpas para os gritos?

       Mesmo assim sua face sardenta e os olhos claros não escondiam sua beleza e o humano era capaz de notar e se apegar a isso, mas Joan não notava esses detalhes.

       -Eu estive pensando... Conheço um pouco sobre ervas. Poderia, se o meu senhor autorizasse, eu poderia buscar ervas e lhe fazer um chá que deve apressar sua recuperação.

       -Isto existe? – Ele ficou imediatamente interessado e Joan sorriu aliviada por entender que não seria punida.

       Ele não acreditava em muitas coisas, mas quando ela falava normalmente levava em consideração.

       Joan gostava da interação com Rowell, mas ainda temia as represarias de Matilde. Estava cansada de apanhar de Matilde, a governanta que dava ordens às servas e que adorava gastar a madeira de seu cajado lambendo as costas e as pernas das servas com surras de horas. Até então fora vítima de algumas pancadas, mas as demais moças viviam feridas.

       -Sim, não fazem milagres, mas ajudam muito a aliviar a dor e fechar as feridas. – Garantiu.

       -E onde pode achar essas ervas? – Ele sentou na cama com uma careta de dor.

       -Perto do lago. – Aproximou-se um passo, com vontade de ajudá-lo, mas se conteve. Era na verdade, um córrego do Rio Branco, que de desviava do rio e cortava a região, formando um belo lago de águas calmas, não muito longe do castelo.

       -O lago fica muito longe daqui – ele decepcionou-se.

       Joan abriu um lindo sorriso e disse:

       -O meu senhor acredita em magia? – Perguntou, gostando até demais de conversar com ele e desafia-lo a deixar a dor de lado para prestar atenção a outros assuntos.

       -Não. Você acredita? – Ele perguntou de volta.

       -Talvez. Mas e se eu posso ir e voltar com as ervas em uma hora? Isso o convenceria que existe alguma magia no mundo?

       -De modo algum, apenas me convenceria que conhece alguém que já colheu as ervas e que mora perto daqui – ele opinou.

       -Acho que essas leituras fazem mal para a capacidade de crer de um macho humano – ela apontou a pilha de livros sobre a mesinha de cabeceira.

       -Vá, busque as ervas. Eu tenho pressa de sair dessa cama. – Ele autorizou não mais estranhando seu modo de falar.

       Joan era diferente das outras moças e ele se dividia entre curiosidade de fazer-lhe perguntas e exigir respostas e o estranho fascínio de apenas desfrutar de sua companhia.

       Um estanho sentimento de que era temporário. Em algum momento ele a perderia. Como uma aparição, talvez um anjo, Joan partiria e levaria a pouca esperança que o fazia aguentar seu estado com menos sofrimento.

       Joan conteve a vontade de dizer-lhe que tinha pressa para vê-lo sair da cama. Não deveria, mas seu coração estava acelerado por conta daquele humano.

       Mesmo que não fosse uma fugitiva, era uma fada e ele um humano. Uma relação impossível.

       Sorriu-lhe enquanto observava-o comer e beber do café com interesse. Seu apetite estava melhor e ele vinha se fortalecendo, pois tinha prazer de comer na companhia de sua nova amiga.

       Quando terminou, apressada, Joan despediu-se e levou a bandeja para a cozinha.

       Em surdina para não ser vista, Joan andou pelo castelo e em um canto discreto abriu os botões do vestido nas costas e revelou as asas. Haviam nascido logo depois da fuga, e ninguém percebeu porque ela camuflava muito bem as asas. Depois de nascidas descobriu que elas se fundiam com sua carne quando queria embutidas, ao contrário das asas das outras fadas que conhecia. Eram asas pequenas, avermelhadas e ágeis.

       Era a primeira vez que voaria em duas semanas de obtenção de suas asas. Era o momento certo e valia a pena o risco da exposição.

       Ela tinha medo de andar sozinha pela floresta, sobretudo voando.  Receio do cheiro do cio, imperceptível para os humanos, ser captado pelas criaturas mágicas da floresta, e por isso, ser perseguida e interceptada por malfeitores.

       Caçadores de Fadas, de Recompensa, ou Guardiões.

       Ela temia por sua vida, e pela existência de suas amigas. Mas temia também que a vida de um bom macho humano se perdesse por conta da ignorância e desconhecimento sobre o que é mágico.

       Assustada com o que faria, pois nunca antes voo, Joan ergueu uma das pernas e pousou o pé na murada de pedra da mais alta das muralhas. Bateu suas asas, e foi erguida o bastante para seu outro pé tocar as pedras. De pé, ela olhou para baixo.  Fechou os olhos diante dessa liberdade. Era único, não era prisioneira, não era padecente da clausura, não era fada e não era humana.

       Era apenas um corpo suspenso no ar, prestes a se lançar ao desconhecido.

       Cheia de coragem e impulsionada por sentimentos profundos demais para nomear em tão pouco tempo, Joan se lançou. Suas asas imediatamente a içaram para cima e ela ganhou velocidade e altura. Tão alto, que se a vissem lá embaixo pensariam ser um pássaro.

       Era estranho como às vezes certas coisas sobre o interir de um ser é revelado apenas nos momentos mais inesperados. Joan era fada. E sua essência era profundamente ligada a suas raízes e ela não sentia o menor incomodo ou dificuldade em voar. Francamente, era de surpreender-se que viveu por longos vinte anos sem suas asas!

      Meia hora depois, ela pousou os pés na grama macia, em meio à floresta, nos arredores do Rio Branco, que banhava o campo dos humanos, a poucos quilômetros do lugar onde o Campo dos Humanos fundir-se-ia com o mundo mágico.

       Um campo repleto de plantas altas. Que lhe chegavam à cintura, com folha longas e amareladas, com miolo carregado de esporos e pequenos insetos que costumavam polinizá-la.

       Joan recolheu uma grande quantidade dessas folhas, e então, das florzinhas do miolo, que ela lembrava que eram boas para os pulmões.

       Menos de uma hora depois estava com as ervas cortadas e presas a uma bolsinha em sua cintura quando reparou em uma fada se banhando do outro lado do lago.

       Um princípio de esperança a fez sorrir pensando na possibilidade de uma de suas amigas andar por aqueles lados, escondendo-se de seu Guardião perseguidor.

       O sentimento foi tão forte, que Joan quase derrubou a bolsa com as ervas, na ansiedade de aproximar-se e descobrir que estava certa.

       Ela queria tanto abraçar Alma. Tanto que seu seus braços doíam de ansiedade. Ouvir a voz de Driana mesmo que a repreendesse por estar se expondo ao perigo por causa de um humano, ou quem sabe ainda, e isso lhe trouxe lágrimas aos olhos, ouvir a voz suave de Eleonora elogiando-a pelas lindas asas vermelhas que se estendiam de suas costas.

       Perto, Joan fixou os olhos na imagem que emergia da água após um longo mergulho.

       Era linda e estava nua. A pele era escura, e brilhante pela água e pela luz do sol. Os cabelos longos, trançados escorriam por suas costas.  Em sua testa uma linha pintada com tinta negra, em formas circulares e ornamentais que descrevia sua descendência, cravada em sua carne, em uma tatuagem eterna.

       Joan correu os olhos pela figura e toda a esperança caiu por terra, diante de seus olhos, revelando novamente o horror da vida.

       Na margem do lago uma armadura de Guardião. Assustada, Joan engoliu em seco e camuflou-se para não ser vista.

       Invisível aos olhos de tudo e todos, andou para longe sem saber que para os olhos de Zoé não havia nada capaz de se esconder.

       Com o coração apertado, acelerado e sem ar, Joan correu para longe, floresta a dentro.

       Zoé sorriu, saindo da água e vestindo a armadura sem pressa. Ela achara a fada fugitiva e agora era questão de tempo para cumprir sua missão.

       Joan correu muito, até sentir que estava segura. Seu dom a camuflava e isso a manteria segura. Respirando com dificuldade apoiou-se em uma árvore e escorregou para o chão, tentando descansar um pouco, ganhar tempo.

       Ouviu passos na floresta e levantou, olhando em torno.

       Não era possível estar sendo seguida pela Guardiã! Tentou lembrar tudo que sabia sobre Zoé, mas não conseguiu.

       A bela imagem vestida de metal escuro surgiu de entre as árvores, olhando diretamente para ela.

       Em pânico Joan entendeu que podia reconhecê-la mesmo camuflada.

       -Você não pode esconder-se de mim. – a voz era forte, fria, distante, carregada de certeza incondicional. – Eu esperei todos esses dias que saísse do castelo. Eu sabia que não resistiria muito tempo a experimentar suas asas. Eu posso fareja-la e soube imediatamente quando obteve sua dádiva. De resto, foi uma questão de paciência e espera, para não ser vista pelos humanos.

       Zoé andou em torno de Joan, que muda de surpresa e medo não respondeu nada, apenas acompanhou seus movimentos.

      -Quanto azar a frágil Joan ser caçada por um Guardião com dom de fada, não é? Eu posso vê-la onde quer que tente se esconder. O seu dom esconde, e o meu revela. – ameaçou, avançando em sua direção – Entregue-se, pequenina Joan, e não lhe farei mal.

       Suas palavras soaram como a pior das ameaças. Se Zoé colocasse as mãos sobre ela, não restaria nada para entregar a rainha Santha e Lucius.

       Por um segundo Zoé realmente desconfiou que a fada pudesse ser tão fraca e boba a ponto de se entregar por causa de medo e coação.

       Mas foi apenas um momento e Joan bateu suas asas, cortando o céu em um voo desesperado.

       Uma fadinha recém-agraciada com asas, lutando contra uma fada experiente dominante e, sobretudo, uma guardiã? Zoé sorriu dessa bestialidade e seguiu-a.

       Desesperada, Joan fugiu de Zoé tentando despistá-la. Cada vez mais perto, Zoé chegou de raspar as pontas dos dedos no calcanhar de um dos pés da fada, quando Joan quebrou o voo e fez uma descida inesperada.

       Um voo cortante sobre a copa das árvores, um voo perigoso para qualquer fada inexperiente. Mas suas asas eram curtinhas e práticas e ela conseguiu manter o caminho sem acidentes, o contrário de Zoé que dona de asas longas e esverdeadas, da cor da copa das árvores, não conseguia manter o mesmo ritmo sem machucar suas asas.

       Notando isso Joan manteve-se assim, até descobrir que estavam em uma planície sem árvores. Em pânico, ela subiu e desceu varias vezes, tentando manobras inesperadas na ansiedade de escapar de Zoé.

       Furiosa com a audácia da fada, Zoé usou o poder de sua armadura para atingir a fada. Foi de raspão, mas Joan gritou e rodopiou no ar, perdendo altitude rapidamente. Em outras palavras, estava a um passo de espatifar-se no chão de terra.

       Por sorte do destino, o mesmo destino que Reina insistia em sempre afirmar que nascia traçado para cada individuo, Joan caiu em um amontoado de feno, na parte de trás de uma carroça, o que amorteceu sua queda.

       O humano que a conduzia pareceu não notar nada demais, pois no mesmo instante os dois cavalos que puxavam a pesada carroça fizeram algazarra e ele se distraiu. Escondendo-se ali, Joan olhou para cima, e viu Zoé parada no ar, olhando para ela com ódio fatal.

      Sem saber por que, ou se deveria, Joan abriu um sorriso e começou a rir, cobrindo a boca para não revelar ao humano que havia uma carona extra em sua boleia.

       Zoé não poderia investir contra ela sem se relevar para o humano que conduzia a carroça e as duas outras humanas que seguiam ao seu lado, provavelmente esposa e filha.

       Era regra do mundo mágico não expor sua raça aos humanos. E nem mesmo Zoé quebraria esse voto perpétuo.

       Joan não era do tipo que gostava de fazer troça de ninguém, mas seu riso era de alivio, alegria e orgulho de si mesma. Havia escapado de Zoé, a grande Guardiã!

       Por sorte, pouco depois a carroça chegava ao castelo, e Joan saltou um pouco antes, fingindo ter chegado ao mesmo momento, pois estava no campo, em torno do forte. Ninguém reparou nela, era apenas uma servente do forte.

       De longe Zoé observou o ratinho escondendo-se em sua ratoeira. Por isso era tão frustrante e difícil pegá-la. A fadinha frágil e boba era na verdade uma raposa esperta, que se misturava aos humanos com perfeição.

       Sem fôlego, Joan correu para a cozinha do castelo, sufocando um riso quase histérico por ter escapado. Ela encontrou Hector entretido com suas panelas. Quase tropeçou no coelho gordo que andava livremente por toda a cozinha. Alice, a filha mais velha do duque estava na cozinha, de cabeça baixa comendo um pedaço de bolo e apenar ergueu os olhos para ela com desdém.

       -Onde você esteve, menina? Caiu dentro de uma colmeia de mel? – perguntou Hector, observando o estado de seu vestido.

       Ela estava coberta por gosma amarelada, muito parecida com mel. Era o pólen esmagado das plantas colhidas que grudaram na saia do vestido. Sorrindo, Joan respondeu:

       -Quem sabe, Hector? Quem sabe não caí em um grande favo de mel?

       -Isso é impossível – respondeu Alice, de má vontade e sentindo óbvio prazer em responder com má criação para a serviçal que lhe desgostava.

       Joan parou de andar pela cozinha e fitou a menina com surpresa:

       -E quem lhe disse que é impossível?

       -O meu pai. Ele disse que essas coisas não existem.

       -Bem, se o seu pai lhe disse, é porque é verdade – Joan respondeu sorrindo – Eu não caí em um favo gigante de mel.  Mas estive entre muitas folhas e flores coloridas, belas e perfumadas, por isso estou suja. As flores são doces e perfumadas, então, não é muito diferente de cair em um favor gigante de mel, não é?

       -É, é muito diferente – Alice insistiu, brava.

       Joan deu de ombros, contente demais para ser irritada pelo comportamento de Alice. Vencer Zoé, mesmo que na base da sorte pura, lhe conferiu uma estranha segurança e felicidade. A Guardiã rondava, mas não poderia pegá-la dentro do Campo dos Humanos.

       Joan tinha razão quanto a isso. No Campo dos Humanos ela era intocável. Sobrevoando a região, Zoé amargava essa verdade até avistar uma comitiva de duas carroças, uma carruagem e alguns cavalos. Eram humanos parados na estrada, a muitos quilômetros de distância.

       Aproximando seu voo, atraída pela curiosidade de ver humanos, Zoé avistou uma jovem sair da carruagem vestido um lindo vestido azul, adornada por joias e acompanhada por uma pajem.

       A moça era humana, sem dúvidas, e era negra tal como Zoé.

       Sorrindo, Zoé chegou a uma conclusão maravilhosa.

       Joan era uma cobra espertalhona, escondendo-se entre os humanos, mas ela era uma guardiã e muito mais esperta que uma fada fugitiva da clausura!

 

       -O que ela está fazendo? – Alice perguntou, brincando com o coelho de Hector, embora não tirasse os olhos de sobre Joan.

       Enquanto mexia o caldeirão fervente, Joan olhou para a menina e sorriu, porém não respondeu nada.

       -Diga de uma vez, Joan, o que você está cozinhando nas minhas panelas? Nunca senti um cheiro parecido com esse!

       Joan piscou para Hector e então respondeu para Alice, pois partira dela a pergunta:

       -Não estou cozinhando alimento e sim remédio. Um poderoso medicamento.

       -Duvido – disse Alice – Nunca vi Matilde cozinhar algo tão mal cheiroso e ela entende tudo de medicamentos! – a menina não resistiu a menosprezá-la e falar com ela, mesmo que uma provocação.

       -Hum, sim, ela tem seus conhecimentos e eu os meus. – deu de ombros, colocando mais folhas na água e aspirando o cheiro forte.

       -Isso é para o meu pai? – Alice perguntou séria, enquanto amassava o pelo do coelho entre os dedos, distraída entre brincar com ele, e ser criança, ou prestar atenção aos adultos e ser adulta também.

       -Sim, ele me autorizou a preparar um remédio. Eu tenho fé que esse composto possa ajuda-lo, Alice.

       -Meu pai pode se curar bebendo isso? – Alice levantou e abandonou o coelho.

       -Eu não tenho certeza – foi sincera, parando por hora de mexer e olhando para a menina com carinho – Eu tenho esperança que sim. E não é para beber, e sim passar os ferimentos. Veja – ela apontou as flores miúdas que aguardavam para ser amassadas e abafadas na água fervente – elas são para beber. Porque você não as amassa com as mãos enquanto a água ferve?

       -Isso não é bruxaria, não é? – perguntou Hector baixinho enquanto passava por Joan e pegava uma jarra de água para colocar no fogo, e aquecer.

       -Você se importa se for? – Joan perguntou de volta, quase sorrindo.

       -Francamente – ele deu de ombros, mas não respondeu.

       Sorrindo, Joan continuou mexendo a colher de pau, enquanto suava e mexia com força. Concentrada, Alice amassava com as mãos as florzinhas e fazia uma expressão de nojo com o liquido adocicado que elas expeliam.

       -Prove. É doce. – Joan instigou-a. Era um delicioso doce que ela e suas amigas comiam quando fugiam do Ministério do Rei.

       Ainda com expressão de nojo, Alice provou. Sua careta amargurada mudou para algo de surpresa e agrado.

       -É doce – ela disse provando o doce dos dedos – Hum, é muito doce!

       -Sim, mas não coma demais, preciso disso para o chá do Duque. – avisou tornando a cuidar do preparado.

       -E precisará de muito mais do que isso para adoçar a língua de Matilde quando ela descobrir que está lhe roubando o lugar nos cuidados para com o Duque – disse Hector, coçando sua enorme barriga de cerveja e vinho. Ele tornou a sentar-se pesadamente em uma cadeira de madeira, com o coelho aos seus pés.

       -Eu tenho permissão de Rowell. E mais do que isso, eu perdi o medo de Matilde.

       Mal terminou de fechar a boca, e Joan se arrependeu da confidência. Na porta da cozinha a dita, personalizada em carne, ossos, e muita raiva encarava-a com a severidade de sempre.

       -Eu tenho permissão do Duque Mac William – Joan apressou-se a dizer. Limpou as mãos no avental que Hector lhe emprestara, gigantesco em seu corpo mirrado e encarou a mulher.

       Joan observou-a andar pela cozinha encarando Alice, que até então era uma aliada em seu ódio para com a novata, mas que agora parecia atraída para a jovem do mesmo modo que acontecia com todos. Hector, nada discretamente retirou uma das facas que jazia sobre a mesa, provavelmente com recio velado que a mulher pudesse usa-la contra Joan.

       Pensando bem sobre o assunto, Joan concordava com ele.

       -O senhor Edward pediu que preparasse um janta especial, Hector – a mulher disse, engolindo a raiva e tentando aparentar profunda indiferença – Ele espera visitas para os próximos dias, prepare-se para alimentar no mínimo doze pessoas. E livre-se de todos os entojos que tornam essa cozinha imunda. – avisou antes de sair.

       Joan soltou o ar preso nos pulmões e lembrou-se do seu preparado, voltando a mexer, para que não queimasse no fundo e estragasse o composto.

       A cozinha permaneceu em silêncio contemplativo depois da saída de Matilde. Nenhum deles queria correr o risco de falar algo e ser mal interpretado caso a ditadora estivesse ouvindo atrás das portas outra vez.

       Muito tempo depois, tudo pronto, Joan guardou a pomada recém-feita em um pote de barro e separou o que precisaria além do chá, e de toalhas limpas.

       Para sua surpresa, Alice pegou as toalhas, como quem se oferece para ajudar. Era amor pelo pai, pensou Joan.

       Silenciosas, pois não havia assunto entre elas, percorreram os corredores. Foi Alice quem abriu a porta do quarto do Duque e avisou-o da chegada das duas. O homem estava adormecido, mas despertou com a entrada de ambas.

       Hoje era um dia particularmente difícil para o pobre humano. A dor intensa, o sofrimento da carne refletindo-se na alma e nos modos.

       -Esse cheiro é horrível – ele reclamou quando sentiu o forte odor.

       -Não é para comer, papai – Alice apressou-se a dizer subindo na cama, e beijando o rosto do pai.

       -Sorte minha – ele disse de mal humor.

       -Não comemore ainda. O chá deve ser tomado ainda quente. – Joan sorriu enquanto dizia isso.

       Rowell torceu o nariz para o cheiro do chá, mas não reclamou mais.

       Foi preciso muito jeito e bom humor para convencê-lo a deixar que passasse aquela gosma mal cheirosa em seu corpo.

       Lutando contra o constrangimento que tomou conta dela e a fez corada, algo que parecia divertir o duque, Joan ajudou a despir sua camisa e então afastou as cobertas. Alice retirou as meias dos pés do pai com todo carinho de uma filha.

       -Alice, você deve esperar lá fora – Joan pediu.

       -Por quê? – ela perguntou desconfiada e voltando a parecer arredia.

       -Porque é apenas uma menina. E eu preciso cuidar do seu pai. – ela disse com firmeza, mas sem causar mais raiva na menina.

       -Eu vou ficar no corredor.

       Era como se Alice quisesse avisar ao pai que o protegeria a todo custo. Não deixava de ser bonito e doce da parte da menina.

       Evitando olhar para o duque, Joan ajudou a despir suas calças. Não tocou na roupa íntima, mas sabia que precisaria retirar. Suspirou e encheu-se de coragem para puxar sua roupa íntima e retira-la por suas pernas.

       Nesse processo ela sentia o olhar do humano sobre ela.

       -Isso é mesmo necessário? Tirar toda a roupa? – ele perguntou, com algo de travessura na voz.

       Finalmente ela encarou seu olhar e corou ainda mais.

       -Sim, é preciso passar no corpo todo. – disse com voz baixa.

       -Você quer dizer passar essa pomada em todo o corpo? – ele perguntou divertido, conseguindo esquecer um pouco da dor.

       -Sim, passar por todo o corpo – respondeu cada segundo mais corada.

       -Com o uso de um esfregão? – ele insistiu, achando muita graça de sua expressão.

       -Não. Usando as mãos. É necessário o calor da palma das mãos para ativar a pomada. Torna-la mais eficaz. É um preparado muito poderoso, você sentirá o corpo arder muito. E será preciso fazer isso... Várias vezes até resultar em algum efeito real.

       Rowell pareceu gostar dessa ideia. Joan tomou o cuidado de colocar uma toalha sobre suas partes íntimas sem olhar diretamente para isso. Morria de vergonha só de pensar em olhar.

       O duque fingiu não notar sua reação exagerada de recato.

       Entre as humanas poderia ser um exagero baseado em uma criação ferrenha na moral e religião. Mas para Joan, e seu crescimento em um Ministério do Rei, um orfanato, era apenas a ausência de costume de estar com seres de outra raça e sexo.

       O único elfo que tinha contato era Tubã e muito ocasionalmente com Lucius quando o amante da rainha perdia seu primoroso tempo seguindo as fadas da clausura na busca de alguma travessura que pudesse ser usado como desculpa para uma severa e injusta punição.

       Depois de tantos anos, finalmente compreendia a razão de tanta implicância e malvadeza.

       -Onde você aprendeu sobre isso, Joan? - perguntou Rowell.

       Ele não queria admitir, mas a cada dia que passava maior era sua curiosidade a cerca da serva Joan. Ela falava de um modo diferente, agia de modo estranho e muitas vezes demonstrava conhecimentos que não se assemelhavam aos de uma moça da sua idade.

       Joan vivera um tipo de vida que a fazia mais aberta e crédula do que qualquer outra mulher que Rowell conhecera em toda sua vida.

       Ainda duvidava um pouco de sua veemência em alegar castidade, pois as mulheres sempre mentem sobre esse assunto, mas aprendia a confiar em suas palavras a cada dia.

       -Eu sempre fui observadora. Quando pequena faziam em mim, para me ajudar a melhorar. Quando cresci um pouco, sempre ajudava a cuidar das minhas irmãs e amigas, sempre havia alguma doente, porque vivíamos em um lugar bastante abafado e úmido. - confidenciou, pensando nesse tempo distante.

       -E onde era esse lugar? - ele insistiu.

       Joan ergueu os olhos para ele, e respondeu com toda a sinceridade do seu coração:

       -Um orfanato.

       -Não existe nenhum orfanato nesse lado do país - ele revidou, precisando de respostas. - Existem dois conventos que aceitam moças afortunadas, mas dificilmente uma delas pode sair e tornar-se uma serviçal.

       Um longo suspiro e Joan pegou a xícara com o chá e entregou a ele.

       -Precisa beber tudo. Seu corpo vai esquentar muito por causa do chá. Essa será a hora de começar a passar o preparado em toda sua pele.

       Era uma nada sutil mudança de assunto. Rowell recebeu a xícara e tocou as mãos da fada nesse processo. Ela afastou-se apressada, e não olhou para ele. O que ela pensava? Era uma fada! Precisava esperar por um elfo. Um companheiro para sua vida toda! Não podia sentir o coração acelerado por um único toque de um humano!!!

       -Se fugiu de um convento... É uma fugitiva - ele disse antes de começar a beber o chá.

       A palavra 'fugitiva' causou arrepios em Joan. Ela parou de ajuda-lo e ficou imóvel esperando pelo que viria a seguir.

       -É uma fugitiva, Joan? - ele perguntou direto, aguentando o gosto amargo do chá sem reclamar.

       -Sim, eu sou uma fugitiva. Mas não estou fugindo de um convento. Eu... Não sei o que é um convento. - ela disse envergonhada. - Eu estou fugindo, mas não fiz nada errado. Não sou uma criminosa. Eu lhe juro isso, Duque Mac William.

       -Rowell - ele corrigiu e terminou de beber todo conteúdo da xícara - Eu sou capaz de reconhecer um criminoso e você, definitivamente, não é capaz de fazer mal a uma mosca - ele sorriu e ela pode relaxar um pouco - Mas eu quero saber de onde vem e porque está fugindo.

       -E eu quero contar. Não tenho segredos para meus amigos - ela foi sincera, lembrando-se do outro dia, quando ele disse que a considerava uma amiga - Mas é tudo muito complicado, eu não posso falar nada agora. - Joan parou de falar e ficou com um meio sorriso no rosto ao perguntar - Posso começar?

       Rowell fitou seu rosto inocente e sorriu concordando. Perguntou-se até onde ia sua inocência. Joan não sabia que desde a morte de sua esposa, dois anos antes, Rowell dedicava-se unicamente ao cuidado de seu Forte e a preservação de seu Ducado, a herança de seus filhos. Que as preocupações constantes e as lutas contra invasores, algo que acontecia cada vez mais, o tornara um homem inquieto e de poucos momentos de paz e relaxamento.

       Sobretudo poucas oportunidades de estar com mulheres. Uma ou outra, na sua maioria cortesãs, pagas e esquecidas no instante seguinte ao ato. Nada de sedução premeditada ou no caso de Joan, de sedução inocente.

       Ele estava encantado por sua voz desde a primeira vez que a ouviu discutindo com Matilde nos corredores próximos ao seu quarto. Então, encantou-se com sua presença em seu quarto, no escuro, com seu perfume peculiar. Um perfume de natureza.

       Joan cheirava a orvalho e grama molhada, a flor e água limpa. Era impossível distinguir seu cheiro. Seu fascínio era exatamente este. Ser tão peculiar, talvez por isso, Rowell fosse pernicioso com ela e seu comportamento obtuso, permitindo-a confundir sua cabeça e as ideias de todos os outros moradores do Forte Mac William. Com seu jeitinho calmo, Joan sentou-se na beira da cama, e mergulhou uma das mãos no pote de barro retirando grande quantidade de pomada. Espalhou-a nas mãos e esfregou até senti-las aquecerem. Então foi o momento tão temido. Segurou um dos pés do Duque e começou a esfregar e espalhar o medicamento. A pomada era clara, sem cor, mas garantia uma luminosidade à pele, um brilho úmido, como se estivesse suado ou besuntado em óleos essenciais. Tentou ser indiferente e assexuada como acontecia com todas as enfermeiras ao cuidar de um enfermo sob sua responsabilidade, mas falhou miseravelmente.

       Era a pele do duque e ela sentia o calor e o pulsar do sangue em suas veias conforme subia a massagem pelas canelas e coxas, dando a mesma atenção para ambas às pernas.

       -Você tinha razão. Isso arde - ele reclamou, mas sua voz estava rouca, farta, e ele não estava propriamente referindo-se ao incomodo causado pelo torpor do medicamento.

       -Vai piorar - ela garantiu sem notar que sua voz parecia muito falha.

       Suas mãos formigavam e não era por causa da pomada. Não mesmo. Joan fixou os olhos na pele morena, na firmeza dos músculos sob a palma de suas mãos. Mesmo que não quisesse e tentasse ser politicamente correta, seus dedos faziam perigosos círculos em caricias sensuais, enquanto espalhavam o remédio.

       Movimentos inconscientes, assim como o inclinar o corpo de fêmea sobre o dele, revelando muito do decote até então pudico do vestido, mas que naquela posição forneciam uma ótima visão da pele clara e seios pequenos. Rowell engoliu em seco a cada movimento de Joan, esperando pelo segundo inestimável onde ela revelaria a totalidade daqueles montes jovens e delicados. Mas ela moveu-se e subiu os movimentos, mudando o angulo e afastando a imagem de seus olhos.

       Para que perder tempo com seios, se um homem pode refestelar-se em pele perfumada, macia, olhos verdes e inocentes? Lábios rosados, entreabertos, pedindo por um beijo? Joan esfregou sua barriga, subindo por seu peito, e Rowell ergueu as mãos para segurar suas pequenas mãos.

       -É melhor chamar outra serva para ajudar nisso - foi direto, sem rodeios.

       -Não pode ser outra - faltou-lhe coragem para contar-lhe que seu poder mágico, sua essência de fada tornava aquele emplasto de ervas ainda mais potente. Sem isso, era apenas uma mistura inútil.

       O humano apertou suas mãos entre as suas e disse muito sério e convencido de que ela precisava saber disso:

       -Você é muito bonita, Joan. E eu não posso lhe oferecer nada.

       Ela não queria nada. Joan não queria de modo algum se ofender ou entristecer com essa revelação que era mais do que conhecida.

       -Eu não quero nada. Eu não poderia aceitar nada de você. - confidenciou - eu vou partir Rowell, muito em breve, eu partirei para todo o sempre. Não pode me oferecer nada e tão pouco eu posso lhe dar alguma coisa de mim. A não ser isso - ela esfregou as mãos nas dele - A não ser ajuda-lo a estar de pé outra vez.

       O Duque Mac William não gostou de ouvir isso. Em seus olhos essa verdade gritava. Ele soltou suas mãos e se deixou tocar. Joan esfregou seu peito, os músculos cobertos por cicatrizes e ferimentos antigos de lutas travadas no desespero de conservar sua terra, seu clã e sua família livres.

       Seu corpo era bem feito, moldado pelo árduo trabalho de luta. Ombros largos, generosos, e quando Joan esfregou essa carne em especial, descobriu que estava estranha. Seu coração batia descompassado, sua boca ressecada, seus seios dolorosamente rijos e uma palpitação nova entre suas pernas.

       Seu corpo de fada escapava das apreensões do cio por estar fora do mundo mágico. Mesmo assim, conhecia essas novas experiências sexuais, e justamente com um humano, algo impensável para uma fada.

       Corada, excitada, ergueu os olhos, assim tão pertinho e fitou o Duque como quem pede um beijo.

       Sim, ela pedia um beijo. Seus olhos imploravam por isso. Seus movimentos cada vez menos clínicos e a tensão em torno de ambos a impulsionou a tomar uma atitude que nunca antes em sua vida pensou ser possível.

       Era tímida, naturalmente envergonhada e contida. Não era explosiva como Alma, ou extrovertida como Eleonora, ou ainda segura de si e decidida como Driana. Era tímida e insegura. Não era uma sedutora.

       Joan roçou de leve os lábios nos lábios humanos. Foi um toque eletrizante. Seu primeiro beijo. Seu único beijo em um macho fosse ele de que espécie fosse. Seu primeiro fechar de olhos em meio a um arrepio de paixão.

       Era diferente de tudo que imaginou. O Duque pousou uma das mãos em suas costas, possessivo, cingindo seu corpo pequeno contra o seu, deitando-a sobre ele, umedecendo definitivamente suas roupas com o toque do emplasto. A outra mão de Rowell entrou entre seus cabelos, na altura do queixo e segurou-a para um beijo profundo. Ele não forçou o momento, permitindo que a delicada flor em suas mãos tomasse o que desejasse dele, mas quando a sentiu rendida e apaixonada, assim como ele, aprofundou o beijo, roubando-lhe uma resposta ardente. O beijo durou muito tempo, e quando o Duque tentou afastar o rosto, ela o segurou com ambas as mãos na face e aprofundou a língua em seus lábios, correspondendo com a mesma paixão que o humano, roçando o corpo no seu, completamente esquecida sobre diferença de espécies e qualquer outra besteira sobre se guardar para o cio, e não desfrutar de um sentimento tão grandioso como aquele, que envolvia corpo, alma e coração.

       -Joan... - Rowell afastou-a e seus lábios cheios pelo beijo dos dois atraiu o olhar de Joan como um imã - Isso arde. Meu Deus, eu quero beija-la, mas isso está ardendo demais... - ele precisou avisar e ela afastou-se imediatamente.

       -Como eu pude esquecer? Como sou relapsa! - ela ficou sem ação ao notar que o deixara sofrendo em vão. - Eu sinto muito por isso, não era minha intenção.

       -Não peça desculpas por isso - Rowell sorriu apesar da dor que começava a se espalhar por todo seu corpo - Foi a coisa mais bonita que me aconteceu em anos.

       Joan ficou parada de pé diante da cama, olhando para ele sem saber como se explicar.

       -Eu tenho receio, Joan, de força-la a me contar seus segredos. Por isso me calo. Você pode fazer o mesmo? Se calar, e fingir que isso nunca aconteceu? - ele perguntou preocupado com a reputação da jovem e também com sua situação quando a noite chegasse - Eu não posso correr o risco de deixar meus filhos desamparados.

       -Eu sei disso - ela apressou-se a se aproximar - Somos amigos. Apenas amigos. Eu entendo e não procuro mais do que isso. - ela tentou sorrir e até conseguiu.

       Quando sorria o Duque exibia duas covinhas nas bochechas, o que o desacreditava totalmente em seriedade e severidade. Ele deveria sorrir mais, pensou Joan. Ela adoraria ficar ali e ser a causa de seus sorrisos.

       -Eu preciso passar em suas costas... - ela disse recuperando a compostura. Pigarreou para clarear a voz, pois estava soando tremula - Você consegue virar sozinho?

       -Sim - ele respondeu em um tom quase irritado.

       No fundo Joan sabia que essa raiva não era por sua causa e sim da situação. Sentindo-se inútil, o humano conseguiu ficar de lado, quase de costas e ela puxou rapidamente a toalha cobrindo seu traseiro, pois ela não estava preparada para lidar com isso. A tentação era grotesca, principalmente quando ela sentou-se atrás dele e começou a cobrir os ferimentos com mãos firmes e suaves.

       -Matilde está com mais raiva de mim agora que soube que tenho sua permissão para cuidar de seus ferimentos. Acho que se ela pudesse me esganaria com as próprias mãos. - confidenciou, mudando de assunto.

       Era melhor falar de amenidades do que continuar em um silêncio tenso, que gritava as intenções sensuais de ambos. Muitas vezes o silêncio é ainda mais poderoso do que a fala. Como os silêncios dolorosos a cada nascimento de asas, quando suas colegas de Ministério do Rei eram levadas para a clausura definitiva e nenhuma fada conseguia encontrar palavras para expressar o medo e a angustia de saber que a qualquer momento poderia ser a próxima.

       Apreciando a mudança de assunto e, sobretudo a chance de ocupar sua mente com qualquer outro assunto que não lhe trouxesse pensamentos eróticos proibidos a mente, Rowell sorriu ao dizer:

       -Você sabe quem é Matilde?

       -Sim, a governanta do Forte Mac William - ela respondeu com sua ingenuidade de sempre.

       O duque olhou-a por sobre o ombro, e disse:

       -É por causa disso que Matilde a detesta. Você é única, Joan.

       -Não, eu não sou - ela disse imediatamente, lembrando-se que existiam muitas fadas além dela no mundo mágico - Existem muitas fêmeas como eu de onde eu vim.

       -Eu me referi a sua personalidade - ele achou por bem explicar que falava por metáfora e não no sentido literal.

       Joan ainda não estava acostumada com o modo dos humanos de falar sem dizer. Um humano floreava muito as palavras para dizer a mesma coisa que ela dizia com poucas palavras.

       -Entendo - Ela disse esfregando com muito cuidado sobre suas costas, sobretudo na altura dos ferimentos.

       -Matilde não é apenas uma governanta. Matilde é minha mãe. - ele contou o grande segredo de Matilde.

       -Isso não é possível! - ela afastou-se do Duque imediatamente. - Oh, que judiação. Como pode ser filho de Matilde?

       Seu horror era verdadeiro. Rowell achou tanta graça de seu jeito que correu os olhos por seu rosto e colo, desejoso de beija-la mais uma vez.

       -É um segredo, não pode comentar pelos corredores. Mas Matilde é minha mãe.

       -Por isso que aceita o comportamento dela... - agora tudo fazia sentido, pensou Joan. - Matilde chega a ser cruel às vezes, eu pensei que fosse pelas costas do Duque.  - Confidenciou em voz baixa, íntima.

       -Eu sei dos abusos de Matilde, mas o que eu posso fazer? Ela é minha mãe. Eu não sei lidar com ela. - ele admitiu.

       -Porque não? Se ela é sua mãe, deve haver amor entre vocês dois! - estranhou.

       -Sim, nos somos bastante íntimos. Mas eu tenho receio de dizer não e causar outros problemas para Matilde. - ele disse pesaroso.

       -Outros problemas? Como assim? - tornou a espalhar a mistura em seus músculos e Rowell precisou avisa-la:

       -Tem certeza que isso está direito, Joan? Isso machuca - ele reclamou, sufocando gemidos de dor.

       Ela havia terminado por isso tocou seus ombros e o puxou gentilmente para atrás, recostando-o em seu peito e envolveu seus ombros com os braços, acariciando os cabelos negros.

       -Eu sinto muito, mas agora vai piorar. Vai sofrer muito, Duque. Eu sinto muito por isso, mas é necessário. - desculpou-se com o coração condoído por ele.

       Rowell fechou os olhos, desfrutando do carinho e também tentando acalmar o padecer do corpo. Era um guerreiro, provinha seu forte e lutava por liberdade e prosperidade, não temia espadas ou luta, e a dor da carne fazia parte de sua vida. Não era novidade estar ferido. A grande novidade era não conseguir se recuperar. O fim chega para todos, mas Rowell gostaria de ter mais tempo em sua vida para ver os filhos criados e ajudar a manter em segurança o ducado que era de sua família há décadas.

       Fingindo que não sentia nada, Rowell começou a falar, enquanto Joan tentava minimizar seu sofrimento com afagos que eram tudo, menos carrinhos de amiga.

       -Matilde tinha sua idade quando meu pai a escolheu para ser a Duquesa Mac William - ele disse com voz menos forte, mais cansada - Não houve empecilhos ao casamento, o Rei cobrava herdeiros do Duque há muito tempo. Meu pai era um homem mais velho, Joan, não era mais um menino. Ele precisava de herdeiros para sua terra. Foi quando se apaixonou por Matilde.

       -E ela? Apaixonou-se pelo duque? - perguntou para instigá-lo a contar mais.

       -Creio que sim. Sempre vi muito amor entre meus pais - ele olhou para cima, para ela e Joan lhe sorriu. - Sim, eu convivi com Matilde em momentos pessoais como mais ninguém conviveu. Eu sei multou bem o que se esconde por baixo daquele cajado.

       -Não me diga que provou do cajado de Matilde! - disse surpresa.

       -Sim, quando adolescente após a morte do meu pai eu provei muito do cajado de Matilde. - disse pensativo.

       -Não é a melhor das experiências - ela concordou.

       -Matilde lhe bateu? - ele parecia não acreditar nisso - Como ela pode ter tido coragem de bater em alguém com sua aparência? - o duque segurava entre os dedos um punhado de seu cabelo longo e ruivo, parecendo surpreso com a crueldade de sua própria mãe - Às vezes eu não entendo minha mãe.

       -Mesmo assim não a questiona em seu modo de agir - ela acusou sutilmente.

       -Não, eu não questiono nenhuma das decisões ou atitudes de Matilde. - ele foi franco em exibir sua fraqueza para com sua progenitora.

       -E porque um humano tão justo e honesto permite essas indulgências contra seu próprio ducado? - pressionou.

       -O casamento nunca aconteceu, Joan. No mesmo ano, meses antes da cerimônia, minha mãe passou mal. Ela teve um surto ou algo assim. Por muitas semanas seu juízo não foi o mesmo. E essas semanas se tornaram meses. Um ano mais tarde meu pai não podia esperar que ela se recuperasse. Quando o rei ordena, cabe aos seus súditos obedecerem - ele engoliu em seco, tenso - Eu mesmo pedi permissão ao rei para casar-me com a irmã de Howard. Não existe outro modo. A desobediência ao Rei é paga com a morte.

       -Então os dois não se casaram? - sentiu pena de Matilde.

       Talvez a carta que vira ser escrita na calada da noite, fosse para seu amante sigiloso, o pai falecido do Duque. Um lamento de sofrimento. Apenada, ouviu atentamente a cada palavra dita por Rowell.

       -Meu pai se casou com uma boa moça, mas nunca a amou. Pouco tempo depois Matilde recuperou-se do surto que se abateu em seu juízo e eles se tornaram amantes.  A Duquesa engravidou no mesmo ano que Matilde engravidou de mim. - ele sorriu ao pensamento - Isso é o mais profundo dos segredos, Joan, você não pode contar isso para ninguém.  - ele tornou a contar - O filho da Duquesa nasceu morto, e mantiveram esse nascimento em segredo até que Matilde desse a luz. Fizeram uma troca.

       -Ela aceitou dar o seu filho? Pobre mulher infeliz.

       -Era meu direito de ser o primeiro herdeiro. Eu nasci vivo, nada mais justo do que ter meu lugar de herdeiro do ducado. - ele contou como se isso fizesse sentido.

       -Eu nunca vou entender sua raça - ela disse séria.

       Rowell apenas segurou sua mão e entrelaçou os dedos, continuando a contar:

       -Depois anos mais tarde, a Duquesa engravidou outra fez e nasceu Edward meu irmão mais novo. Ela morreu pouco tempo depois em um acidente com seu cavalo preferido, foi um tombo. Uma morte trágica. Matilde e meu pai continuaram amantes em segredo.  Treze anos atrás meu pai se foi e eu precisei tomar seu lugar. Era muito jovem, o último em linhagem. Meu irmão estava em um seminário. O Rei decretou meu casamento com uma afiliada de um conde. Eu aceitei. Sophie e eu nos casamos no inverno daquele mesmo ano, e ela logo engravidou de Alice. - um suspiro de pesar, pois fim ao seu relato e Joan perguntou baixinho em seu ouvido:

       -Você amava muito Sophie?

       O modo como o Duque a olhou a fez duvidar desta pergunta.

       -Aprendia a gostar dela com o tempo. E ela de mim. A palavra amor é muito forte em tempos de crise, Joan. Vivíamos bem, com harmonia e afeição. Ela me deu lindos filhos e anos felizes. Lamentei e ainda lamento sua morte prematura.

       -Mas não a amava - ela completou triste por ele.

       -E você? Já amou alguém? Ou está me cobrando isso por ser uma menina cheia de fantasias sobre amor? - Rowell perguntou, mas sua expressão de dor a desmotivou a responder.

       Permaneceram em silêncio por alguns instantes, enquanto ele tentava acostumar-se a dor. Passado o ápice, Joan abanou-o levemente com uma das mãos e ele reclamou sorrindo e por isso ela parou:

       -Você não me disse que mal foi esse que tomou o juízo de Matilde e a fez perder a chance de ser a duquesa Mac William.

       -Hum, eu preciso de um pouco de água - ele pediu angustiado com sua situação.

       Joan apressou-se a ajeita-lo contra os travesseiros e preparar um copo com água fresca, esperando sua resposta:

       -Naquele ano, Matilde jurou a todos que havia visto um ser de outro mundo bem dentro do Forte, na torre mais alta. Que trocaram palavras e descreveu com perfeição como era esse ser. Isso assustou a todos. Ela demorou muito tempo para entender que o que vira era fruto de sua mente doente e não da realidade.

       -E o que foi que Matilde viu para causar tanta confusão? - perguntou distraída preparando a água de costas para o Duque.

       -Uma fada.

 

       Sua mão tremulou e por um acaso que Joan não derrubou o copo com água. Foi bom estar de costas assim Rowell não viu sua expressão de choque.

       Alegar ver uma fada era o bastante para alguém ser considerado louco entre os humanos? O suficiente para perder a chance de se casar com seu grande amor e viver uma vida de mentira?

       Era por isso que Matilde era tão amargurada?

       Joan subestimara até onde ia à ignorância dos humanos sobre o mundo mágico e, sobretudo vinha ignorando a impossibilidade de conciliar esses dois mundos.  Sufocando esses pensamentos e as perguntas que lhe vinham à ponta da língua, e eram muitas perguntas, Joan levou o copo com água fresca e ajudou- o a beber.

       Toda a pele do corpo masculino ardia em febre e avermelhava completamente. Minutos mais tarde, ardendo em dor e delírios, o Duque agarrou sua mão com força, a mesma que acariciava seus cabelos escuros na ansiedade de consola-lo. Com olhos injetados de dor, ele perguntou entre dentes:

       -Isso é bruxaria não é?

       -Não - Ela respondeu rapidamente, para acalma-lo em seus medos humanos - Não sou uma bruxa. Um dia, Duque, eu lhe contarei o que sou. Agora feche os olhos. Você precisa dormir um pouco.

       Sabia como era. A exaustão o faria adormecer por muitas e muitas horas.  E quando acordasse, se sentiria menos pesado, menos tenso, menos tudo. Um passo para o começo da cura e se Joan não estava errada, seu ferimento tinha cura. Era questão de tempo, paciência e um tratamento mágico adequado.

       Duas horas mais tarde, preso em um sono pesado, o Duque não viu sua serva andar até a janela e abri-la em sua totalidade, revelando a passagem para a varanda. O quarto do Duque Mac William ficava em uma das torres mais altas do castelo, e não poderia ser diferente. Mesmo no castelo de Rei Isac, no Monte das Fadas, o rei sempre escolhia para si o quarto mais alto.

       Em algumas coisas os humanos e os elfos eram muito parecidos.

       Angustiada com o que ouvira a cerca de Matilde, Joan decidiu por manter-se em alerta e tentar se conter para não se revelar em sua essência mágica. Os humanos não estavam prontos para uma verdade dessas.

       Distraída, observou o movimento ao longo do forte. As pessoas indo e vindo, vivendo suas vidas inocente as maravilhosas que havia em um mundo tão próximo. Tantas maravilhas ao alcance das mãos. Bênçãos como a cura através de plantas poderosas e de dons divinos, como o dom que Eleonora um dia seria agraciada, isso, se não houvesse ocorrido o padecimento das asas nesse tempo de afastamento.

       Controlar o tempo, quem não queria esse dom? Trazer chuva quando houvesse seca. Ter trégua quando as chuvas fossem demais. Ter asas pensou Joan, para ir e vir rapidamente?

       Perdida em seus pensamentos, Joan ouviu a porta do quarto abrir-se e espiou pela fresta entre a porta e um vão da cortina. Viu quando Matilde entrou, olhou em volta e ao não avistar ninguém, aproximou-se da cama e fez um carinho carregado de emoção no Duque.

       Era uma mãe afetuosa. Ela escondia algo muito emotivo dentro de si. Apenada, Joan ficou quieta em seu canto, para não atrapalhar esse momento. Minutos mais tarde, Matilde percebeu que ela estava ali. Joan encolheu-se na varanda, observando-a abrir a cortina e olhar com mordaz ódio em sua direção.

       -Você ainda vê fadas? - perguntou antes que pudesse conter a pergunta.

       O modo estático de Matilde foi torridamente angustiante. Ela tomou sua pergunta como uma piada. Logo Joan que queria ter alguém para conversar sobre sua condição. Talvez uma amiga que a compreendesse.

       Matilde soltou a cortina e voltou para junto do Duque. Quando Joan saiu da varanda, a mulher não lhe dignou olhar algum. Era uma pena, pensou Joan. Elas poderiam ser boas amigas.

       Tinham algo em comum. O desejo do bem estar de Rowell era um desses pontos semelhantes.

       Com um olhar de apatia por apartar-se do cuidado para com o Duque, Joan saiu silenciosamente do quarto.

 

       Tubã estava encurralado. Ele entendia isso. Não era apenas uma desconfiança, ele estava realmente encurralado no lado oposto das pedras. Na região que nunca antes fora seguro estar sem a companhia de um Guardião. Mesmo Egan evitava aqueles lados.

       Amplamente arrependido de nunca ter questionado seu irmão das razões para tanto zelo em relação às cavernas do lado baixo das pedras. Cavernas fundas, e estreitas, nas pedras escuras e úmidas, em um canto totalmente sem iluminação, onde o sol jamais encostava seus raios de luz.

       Tubã torcia para que o chuvisqueiro passasse, e torcia também que o que estivesse espreitando-o logo se cansasse. Estava escondido naquele buraco há quase um dia inteiro. Estava com fome, sede, e sua temperatura corporal caindo absurdamente. O que lhe dera na cabeça para fugir levando consigo apenas um punhal?

       Era nessas horas que uma criatura se pergunta de que vale nascer elfo quando não nasce com dom da luta e inclinações a selvageria. Ele gostava da ser livre, de correr o mundo conhecendo e usufruindo da vida, sem se preocupar com dominar e possuir.

       Era um bandoleiro, um arruaceiro, procurava por aventuras e prazeres espúrios. Não procurava por seriedade!

       Ouviu um sussurrar, um ganido que parecia uma conversa. Isso o apavorava cada vez mais. Ele ouvia esses sussurros e sabia que era uma conversa, apenas não reconhecia a língua. Algo antigo, desconhecido para um elfo sem responsabilidades como ele! Se fosse Egan em seu lugar, estaria lutando e vencendo seu oponente com maestria. E sinceridade sobrava hombridade e humildade em Tubã para admitir que ele adoraria estar sob a proteção de Egan quando isso acontecesse e não ali sozinho.

       Ouviu os sussurros cada instante mais perto e levantou. Estava encolhido entre as pedras, e achou por bem ter espaço para correr. Andou em direção a uma das cavernas e encolheu-se pela passagem, adentrando o escorregadio e perigoso labirinto de rochas. Ouviu o barulho de água, e imaginou que houvesse um córrego ou nascente por aqueles lados.

       Um bom esconderijo para quem estava sedento. Com uma tocha de chamas na mão, iluminando pouco do caminho Tubã avançou pelo território, sem notar que nas paredes era seguido de perto por uma criatura que rastejava na rocha enquanto outra seguia pelo teto da caverna, seguindo-o com a mesma intenção.

       Os sons cessaram em determinado momento, e Tubã convenceu-se que estava a salvo, provavelmente havia despistado a criatura que o espreitava.

       Na beira de um pequeno lago natural formado entre as rochas, Tubã agachou-se para beber uma porção da água límpida. Era um alivio para se corpo exaurido. Como vinha acontecendo muito nos últimos dias o pensamento insano de como estaria Eleonora e as meninas vinha perturba-lo.

       Confiava plenamente que Driana estaria bem. Esperta como era dificilmente alguém conseguira por as mãos sobre ela. Ficaria bem, mesmo que sozinha e assustada. Alma, por sua vez, representava um perigo eminente, mas ele não sabia exatamente para quem. Se para ela mesma ou para quem a perseguisse e ainda, se não representava perigo para as pessoais inocentes que cruzassem seu caminho. Joan... A culpa o corroia só de pensar que deixara um passarinho frágil, fora de seu ninho, à espreita de seus predadores.

       Tubã jogou água gelada na nuca e na face, tentando aliviar a tensão, mas pensar nelas não ajudava em nada.

       Distraído, não percebeu o bote sendo armado até ser jogado na água. Não era o bastante para um afogamento, mas em instantes ele estava imobilizado por uma longa cauda e garras enormes que calavam seu protesto. De olhos arregalados, completamente imobilizado pela criatura Tubã fitou a outra criatura que saltava da parede, até então escondida pela sua semelhança física com o local, e começou a andar em sua direção.

       Já era boa coisa que andasse em duas patas, pensou cínico. Sem condição de falar ou lutar, ele mal acreditou quando a fêmea de lagarto revelou-se aos seus olhos.

       Um segundo de jubilo, por ser provavelmente o único elfo em séculos a ver uma fêmea dessa espécie de perto, e então, Tubã foi socado na parte de trás da cabeça pela criatura que o mantinha imóvel e desmaiou.

       A fêmea que o mantinha imóvel soltou-o e arrastou-o para a margem das pedras. Aralou era seu nome e ela sequer arfava, pois o esforço físico não a desgastava em nada.

       -Está feito, Helana. Devo leva-lo comigo? - perguntou satisfeita com o feito das duas.

       -Sim, leve-o diretamente para seus aposentos. Não conte as outras ainda. Não o demarque com seu cheiro, Aralou, ou ele perderá a serventia - avisou séria.

       Sorrindo, a fêmea de lagarto concordou e arrastou o elfo consigo, até erguê-lo com facilidade e joga-lo sobre o ombro, levando-o embora consigo.

       Aliviada de ter obtido êxito, Helana respirou fundo e retomou a saída da caverna. Tolo elfo, esconder-se e uma caverna de lagartos. Era uma estupidez digna de um ser de pouca inteligência e serventia.

       Apesar das ordens a ser dadas e autorizações que a aguardavam, Helana pôs-se a correr para fora do abismo, pois antes, precisava ir a um lugar e ver uma pessoa.

       A saudade a corroia por dentro e era hora e ver aquele que possuía seu coração e sua eterna devoção.

 

       No final do dia, quando anoitecia, Joan voltou ao quarto do Duque com seu jantar e com Alice e Tommy em seu encalço. A menina era inteligente, mas também sabia ser desagradável e chata, e Joan suspeitava que se não fosse contida a tempo, tornar-se-ia outra Matilde no futuro. Tommy brincava com seu irmão, que corria bem mais a frente, independente, como poucas crianças de sua idade poderiam ser.

       Nem um pouco preocupada com o fato de Liara delicadamente colocar o menino ao seu lado o dia todo, livrando-se do fardo que Marmom representava, Joan estava bastante contente em ter momentos a sós com o menino.

       -Não, Marmom - ela disse autoritária, fazendo-o parar e esperar por eles.

       Alice abriu a porta e espiou.

       -Meu pai ainda está dormindo - ela disse em aviso, como quem reclama sobre acorda-lo.

       -Não por muito tempo - Joan sussurrou ao ver Marmom e Tommy correrem para a cama do Duque.

       O cheiro forte da mistura usada para medicar Rowell havia desaparecido e o tom da pele humana estava normalizado. Sorrindo, Joan confirmou que ele não estava com febre ou desacordado por um desmaio, e sim sono profundo.

       Tommy despertou o pai com suas brincadeiras e um pouco confuso, ele olhou em torno, procurando seu anjo de cabelos ruivos que permeava sua mente e seus sonhos.

       Encontrou-a usando um lenço nos cabelos, escondendo-os e arrumando o alimento em um prato, para servi-lo.

       -Como se sente Duque? - Ela perguntou de costas, servindo água.

       -Estranho - ele respondeu com sinceridade.

       -Isso é bom - ela disse sorrindo para ele enquanto levava a bandeja até a cama.

       -E desde quando algo estranho pode ser bom? - Ele duvidou.

       -Sente dor, desconforto ou qualquer outro malefício? - Como ele negou ela sorriu ainda assim - Então, convenha, 'estranho' nesse caso é muito bom.

       Era uma lógica simples e inquestionável. Ainda confuso do sono e pesado do efeito do medicamento, Rowell comeu e bebeu sem conversar. O que era bom, pois Joan gostava de apenas observá-lo.

       -Hector tem caprichado na comida - ele comentou quando terminou - Eu notei a mudança no tempero.

       -Acho que é o seu apetite, papai, pois Hector está ocupado com a chegada das visitas e mal tem tempo para cuidar da alimentação do castelo - Alice disse, em um resmungo deitando com a cabeça apoiada no peito de seu pai, querendo e precisando de sua atenção.

       -Talvez seja isso - ele respondeu observando a filha com olhos curiosos - Tem pensado em seu casamento, Alice?

       Joan imediatamente olhou para a menina esperando que não houvesse uma discussão de tremer as paredes, a menina não era muito receptiva a esse assunto.

       -Eu não quero me casar - ela disse com calma, mas algo fervia em seu olhar.

       -E eu não quero que você case - ele alegou como quem pede desculpas - quem sabe se a mágica de Joan dê certo e eu possa cuidar do forte, isso não seja mais necessário? - ele brincou para ver a filha sorrir.

       -Isso é mesmo possível? - Alice perguntou sentando-se e olhando para Joan.

       -Não pergunte a mim. Joan fala de mágica com maior credulidade do que eu. - Era sem dúvidas uma brincadeira e Joan sorriu.

       -Em uma semana eu coloco seu pai de pé, Alice - ela disse com certeza inabalável. Conhecia o poder das folhas mágicas e acreditava totalmente em seu conhecimento - Você gostaria de fazer uma aposta comigo?

       -Apostar com você? - A menina hostilizou - E o que você quer apostar?

       -Não seja assim, Alice, ousa a proposta de Joan - Rowell tentou impor disciplina, mas o modo esnobe da filha quase o desmotivou.

       -Se o seu pai estiver de pé em uma semana exata, você se livrará de um casamento prematuro. Estou certa?

       -Eu quero meu pai bem. É só o que me importa! - ela reclamou, pois o modo como Joan falava fazia parecer uma megera.

       -Pois sim, isso também - Joan não êxito em brincar com os brios da menina - Se eu cumprir minha parte e obtiver êxito eu venço a aposta e quero algo em troca. Dois favores seus.

       -Favores para uma serva? - Alice rechaçou a proposta.

       -Dois favores muito simples. - Joan sorriu para a menina, aproximando-se da cama, para olhar em seus olhos. Olhos parecidos com os do duque. Olhar para Alice era ver Rowell em suas feições. Não conhecia a face de Sophie, a duquesa, mas pela semelhança entre pai e filha, supunha que Alice não puxara a mãe em aparência.

       -Pois diga o que quer - ela disse com empáfia.

       -Primeiro, quero que me ajude a conviver com Matilde. Ela me odeia profundamente, mas a ama incondicionalmente. Fale bem de mim para ela. Ajude-me a conquistar o coração turrão de Matilde. - pediu com simplicidade.

       -E porque você quer isso? - Alice desconfiou.

       -Porque eu não gosto de apanhar de cajado? - retrucou e amenina perdeu a vontade de argumentar. - E o meu segundo pedido é... Bem, eu preciso aprender a conviver em meio aos... - Iria dizer 'humanos', mas se conteve - a conviver no forte. Sou muito despreparada para o convívio em sua sociedade. Preciso que me oriente e ajude sobre isso. Molly ia me ajudar, mas a pobre está presa no meu antigo oficio de limpar os corredores e não tem tempo para me ajudar.

       -Eu não sei se quero que você fique aqui tempo o bastante para aprender a conviver conosco - Alice ofendeu.

       -E porque não? - Joan insistiu.

       -Porque eu não gosto de você. - Alice foi direito na jugular.

       -Bem, se eu ganhasse uma moeda de ouro cada vez que ouço isso na minha vida, estaria mais rica que o seu rei. - ela desdenhou sorrindo - Acredite você não é a primeira a me desprezar. E novamente, eu não fiz nada para merecer isso.

       Ser uma fadinha adoentada o tempo todo não alimentou boas amizades. As outras fadas do Ministério do Rei a invejavam pela atenção que recebia das carcereiras e até mesmo de Reina, sempre lhe trazendo presentes para amenizar seu sofrimento.

       Alice era orgulhosa demais para dar o braço a torcer. Olhou para o pai e então parta Tommy seu irmão menor. Se ela casasse, ainda assim não seria garantia de segurança para seu irmãozinho. Se o ducado fosse tomado, além de assassinarem o Duque, mataria seu irmão, o próximo na linha de sucessão.

       -Eu espero que meu esforço não seja em vão - Alice ridicularizou e Joan sorriu entendeu que era seu jeito de dizer que sim.

       Estava prestes a dizer que apreciava sua escolha acertada, quando as pequenas mãozinhas de Marmom vieram arranhar suas canelas por baixe do vestido. O menino nutria esse estranho fascínio em entrar sob as saídas e arranhar as canecas de todas as fêmeas do castelo.

       Se o pequeno filhote de homem lagarto fosse mesmo viver entre os humanos, precisaria aprender a controlar esse habito ou arrumaria muita confusão por onde andasse. Sorrindo para ele, abaixou-se e o pegou no colo.

       Marmom estava ansioso outra vez, e ela o balançou, carregando-o com dificuldade, por causa de seu peso. Levou-o para a varanda e soltou-o lá. Para os humanos soaria como 'largar' um bebê na varanda e fechar as cortinas. Abandono puro e simples, mas para a raça de Marmom era apenas uma ajuda muito bem vinda.

       O menino precisava afiar as garras que em breve nasceriam absolutas. Ele arranharia as pedras das paredes da varanda e cheiraria tudo que conseguisse. Ele ainda não dominava a arte de subir pelas paredes, então não havia riscos dele se machucar.

       -Você não pode deixar Marmom lá fora sozinho - Rowell disse com um resquício de aversão na face, olhando com preocupação para a varanda.

       O súbito som de algo sendo arranhado chegou aos ouvidos de todos e Joan disse com simplicidade:

       -Quando você tem fome, você deve comer. Quando tem sede, precisa beber água. Quando quer morder... Deve morder. E quando quer arranhar, deve arrumar algo para arranhar. - ela disse com simplicidade - Não importa quem você é.

       -Ou o que você é - Foi Alice quem completou com um sussurro quase inaudível.


       -Marmom é adorável. - Joan disse com um suspiro e olhou para Tommy impaciente para sair e brincar - E quando alguém quer brincar lá fora... Deve brincar lá fora.

       Alice achou graça de seu comentário, mas não admitiria. Levantou da cama e puxou o irmão menor pela mão.

       Olhou para a varanda, mas faltou coragem de chamar Marmom. Sozinhos no quarto, Rowell observou-a com interesse:

       -De onde vem essa sabedoria toda? É uma menina ainda, Joan, não pode ser tão madura assim.

       -Eu não sou uma menina. Tenho vinte anos. Já passei pelo amadurecimento e o padecimento das... - travou ao notar o quanto revelava sobre si mesma. Corou e respondeu - De onde venho estou no ponto para casar e procriar.

       -O que me leva a duvidar da sua razão em estar aqui e me ajudar. - ele disse com algo no rosto que a fez sorrir - Eu sei que muitas jovens na vila creem que podem ter sua chance de ser duquesa conquistando o coração de um Duque viúvo e disponível. Mas isso não vai acontecer. Não aconteceria antes, e, sobretudo agora. Eu me comprometi em casamento e não voltarei atrás da minha decisão.  - ele foi sério nessa hora.

       -Eu sei disso, tem repetido isso demais, Duque. Não é para mim que deve dizer. Eu seria a última das fêmeas a desejar um casamento com um humano como você. Eu não posso me comprometer com sua gente. Eu vou embora, estou de passagem. Mas admito, eu gosto de estar aqui - aproximou-se da cama. - eu gosto muito de estar aqui. Quase me esqueço da minha vida e das minhas razões.

       -Eu nunca fui um homem capaz de aceitar e acreditar na honestidade de alguém sem obter todas as respostas para as minhas dúvidas, Joan - ele alegou estendendo uma das mãos em sua direção. O que ela aceitou de bom grado - Mas você é terna, doce e gosto de olhar para você. Tem carinho e cuidado com meus filhos, sobretudo Marmom. Eu olho para seu rosto e... - ele pareceu confuso com o que deveria dizer e o que não deveria - Tenho vontade de beija-la.

       Joan não pode deixar de corar e sorrir. Ser correspondida em um sentimento era a melhor sensação do mundo.

       -Eu vou embora em breve, não sou uma ameaça a sua promessa de casamento. E eu não me importaria... Com alguns beijos. - disse suave.

       -Não posso me aproveitar de uma serva sob o teto de Mac William - ele foi sincero, acariciando seu rosto com uma das mãos. Joan pousou uma das mãos em seu peito, onde o coração do duque batia acelerado.

       Havia umidade nos olhos claros da fada, pois ela sentia paixão, ternura e muita vontade de permanecer ao seu lado naquele instante. Os arranhões de Marmom cessaram na varanda e um ganido os interrompeu.

       O Duque a soltou e olhou horrorizado para a varanda, como quem tenciona levantar-se e acudir o filho.

       Pelo barulho assustador, Joan poderia facilmente supor que uma azarada ave qualquer havia pousado no parapeito da varanda. Sua expressão era muito óbvia, o Duque imaginava o mesmo.

       -O que o meu filho é? - ele perguntou baixo, assustado, preocupado.

       -Ele não é seu filho, Rowell - ela sussurrou de volta, muito baixinho - Mas se você o ama isso não faz diferença não é?

       -Sophie não me trairia. - ele rejeitou essa afirmação.

       -Não. Marmom não pode ser filho de qualquer ser sob seu teto. Ele é legitimo em sua raça, não é um mestiço, como pensei a princípio. Quanto mais convivo com ele, mais convencida disso, eu fico. Ele não nasceu de Sophie. - alegou triste - Um dia, antes de ir embora, eu lhe contarei tudo sobre Marmom. Mas não hoje. Precisa repor suas forças, pois amanhã bem cedo preciso trata-lo mais uma vez.

       -Se o que diz for verdade... Onde está o meu filho? Naquela noite, Sophie deu a luz. Eu ouvi o choro. Joan - ele agarrou sua mão e em seus olhos havia dor - eu não posso acreditar que levaram uma criança desse forte sem que ninguém tenha notado.

       -Talvez nada disso tenha acontecido - ela disse triste por ele - Você precisa sair dessa cama para ter suas respostas. Eu acho... Que sua esposa não deu a luz naquela noite. Mas isso eu não posso provar. Mas quando você levantar dessa cama irei lhe mostrar tudo sobre Marmom. Na floresta - ela disse sorrindo - eu os levarei na floresta, além do rio que faz divisa com o vilarejo. - Curvando-se na cama, Joan sussurrou - eu lhe mostrarei um mundo, Rowell, um mundo que jamais poderá esquecer. Que jamais supôs existir - era uma promessa.

       Ela queria cumprir essa promessa. Não importava o preço a pagar.

       -E é desse modo que você espera que eu me contenha e não a beije? - ele perguntou com um olhar apaixonado que não poderia ser ignorado.

       Joan mordeu o lábio, indecisão. Poderia se afastar e ganhar distância ou deixar que o beijo acontecesse.

       -Eu nunca pedi que não me beijasse. Eu disse que partirei em breve. Foi o que eu disse - ela tentou não sorrir.

       Tentou em vão. O modo como Rowell a olhava derretia seus sentidos. Ela perdia o rumo. Fechou os olhos, arrepiada quando ele colocou uma das mãos por seu rosto e entrou com os dedos em sua nuca, acariciando seus cabelos e uma área sensível do pescoço antes de puxa-la gentilmente para si e roçou os lábios nos seus.

       Joan lutou contra o impulso de agarrar-se no pescoço do Duque e beija-lo com todo o calor que se avolumava em seu coração. Talvez fosse culpa do cio, mas era estranho, pois humanos não poderiam lhe despertar os instintos.

       Rowell entreabriu os lábios contra os seus e Joan fez o mesmo, recebendo o toque de sua língua na sua, com um gemido de antecipação e prazer. Ambas as mãos no peito nu, correndo-as em caricias provocantes, sem saber que esse beijo era tudo, menos um simples beijo entre amigos compromissados com suas próprias vidas.

       O beijo não foi quebrado, foi arrancado dos dois, quando algo pulou na cama e os assustou.

       -Marmom! - Joan agarrou o menino para que não se jogasse sobre Rowell que convalescia. - Não, não, querido, não faça isso! - ela começou a rir enquanto levava o menino no colo, para longe da cama e ele saiu correndo pelo quarto. - Não é a toa que Liara tem fugido de Marmom! - ela contou do Duque - Ele tem muita energia! Precisa gastar essa força toda ou vai me enlouquecer como faz com Liara!

       -Joan - Rowell chamou quando ela chegou à porta do quarto, levando o menino em seu colo, desejando dar um jeito para que o pequeno Marmom não incomodasse do Duque.

       -Sim? - perguntou corada, e ainda sem ar do beijo que não foi total, mas foi suficiente para acelerar seu coração e deixar seus joelhos bambos.

       -Você me faz muito bem.

       Essa era a típica declaração que faz uma fêmea se derreter de amor, pensou, Joan, contendo a vontade de voltar para a cama e mostrar-lhe que sentia o mesmo.

       Porta fechada, coração acelerado, ela colocou Marmom no chão e o segurou antes que ele corresse demais.

       -Espere - agachou-se e ficou na altura do menino - Fale comigo, eu sei que você entende nosso dialeto. Diga seu nome, e o nome de sua família.

       O menino tentou fugir e não queria responder.

       -Diga, Marmom - ela exigiu, com voz forte, como Alma fazia no Ministério do Rei quando queria obter uma resposta. - Estou ordenando que diga seu nome e o nome de seus familiares.

       O menino continuou fugindo, mas ela não deixou que escapasse. Pelo canto do olho notou que Matilde a espreitava no fundo do corredor, mas não interferia.

       -Marmom - ele respondeu de má vontade tentando aranha-la no rosto.

       Joan segurou sua mão a tempo de impedir isso, mas um arranhão superficial ficou em sua bochecha.

       -Nunca mais, Marmom, está me ouvindo, nunca mais ouse atacar um humano desse castelo! Seu nome, repeita em voz alta!

       -Marmom - ele disse com sua voz infantil e rachada, como um guincho de animal.

       -O nome do seu pai?

       -Rowell - ele reclamou.

       -Seus irmãos?

       -Tommy. Lice.  - ele ainda não conseguia dizer 'Alice' com perfeição.

       O menino estava profundamente magoado em ser pressionado e Joan segurou-o e o fez olhar para ela.

       -Eu quero que comece a falar mais. E agora me de um abraço, para que não haja magoas entre nós dois. - pediu e de má vontade o menino a abraçou.

       Sorrindo, Joan levantou com ele empoleirado em seu colo e disse:

      -Agora, querido Marmom, eu vou leva-lo para morder as canelas de Liara. O que acha? - brincando com o menino o fez esquecer-se da magoa infantil.

       Ele precisava começar a falar e ser domesticado para a vida entre os humanos, ou em breve seria caçado e morto.

       Passou por Matilde que não ousou dizer nada. Fez um aceno e seguiu seu caminho ignorando Matilde.

         

       Era em momentos de calmaria que a mente avançava por territórios perigosos. Deitada em sua cama, no dormitório das empregadas, Joan estava de lado fitando na escuridão quase total o rosto adormecido de Molly na cama ao lado.

       A jovem dormia e roncava que dava gosto de olhar. Liara em uma cama próxima mantinha a luz do candelabro acessa, pois escrevia uma carta, na sua única hora de folga do dia, ou seja, da noite.

       As outras moças dormiam calmamente, em paz, como os justos merecem dormir. Quem sabe, por isso, Joan não conseguisse conciliar o sono?

       Por não ser justa? Era uma mentirosa. E os mentirosos merecem o desassossego da alma? Suspirando melancólica lembrou-se das palavras de Rowell sobre Matilde e seu passado. A humana havia perdido a chance de ser alguém na vida e viver um amor às claras por conta de uma verdade dita. Ver uma fada e falar sobre isso era razão suficiente para ser considerado louco entre os humanos. Isso era assustador demais. Inquietante saber até onde ia a ignorância humana.

       Uma raça tão bonita, capaz de construir muralhas e vidas inteiras mesmo sem o uso de magia e dons. Capaz de belos feitos sem suspeitar das facilidades que o mundo mágico poderia oferecer.

       Uma pena viverem uma vida de incertezas, vazias e sem objetivos, sem saber que há tanta beleza no mundo quanto Joan sabia que existia.

       Suprimindo o pensamento sobre sua situação e a saudade, Joan, lembrou-se que no mundo mágico apesar das facilidades de convívio trazidas por poderes maravilhosos e asas de fadas, havia as constantes lutas, os Caçadores de Fadas e Recompensas.

       Os reis e rainhas injustos que mantinham orfanatos em situação precária e alimentavam o sofrimento de pobres crianças inocentes.

       Joan tentou pensar apenas nas coisas boas. Nas alegrias. Abrir suas asas e alçar voo havia sido uma felicidade inexplicável com palavras. Porém fugir de uma Caçadora de Fadas, uma Guardiã, não ajudava em nada a alimentar bons pensamentos sobre sua existência de fada.

       Fechou os olhos agoniada ao pensar em Zoé.

       O que ela sabia sobre a Guardiã? Quase nada. Apenas boatos que não poderiam ser provados.  Era uma fêmea, e não um macho como de costume. Supostamente, nascida de um pai Guardião, que tivera apenas fêmeas e não crias masculinas.  Sua mãe era desconhecida, mas esse tipo de informação normalmente não interessava no Monte das Fadas, pois imperava o machismo.

       Era uma fêmea maravilhosa. Deveria ter por volta de trinta anos, alta e esguia, possuía traços genuinamente étnicos, a pele escura, marrom como calda de chocolate. Cabelos longos sempre trançados, ou presos no alto da cabeça por tiras de couro, o que definitivamente favorecia seu rosto anguloso, orgulhoso e altivo. Olhos escuros, boa farta. Na testa, Zoé carregava tatuagens feitas com símbolos de seu povo, de sua etnia. Nas orelhas furadas brincos argolas feitas em marfim.

       Sua vestimenta era sempre masculina, calças de couro e túnica. Com exceção de quando caçava, pensou Joan.

       Fazendo uso de sua armadura, Zoé era praticamente invisível. Possuía asas, dom e armadura. E Joan estava muito ferrada.

       Angustiada moveu-se na cama, fitando o teto de pedra. Zoé a encontrara e agora era questão de tempo para aprisiona-la. Estar entre os humanos impunha-lhe alguma vantagem.

       Mas era uma frágil vantagem. Não poderia permanecer escondida para sempre. Não concebia uma vida toda afastada de suas amigas. Por maior que fosse seu deslumbramento com os humanos, sobretudo Rowell, ela não queria e não aceitava uma vida longe de suas amigas, suas irmãs de coração.

       Fechando os olhos, Joan tentou afastar a lembrança dos dois beijos trocados com o Duque. Ele era bonito, gentil e sabia como tocar uma fêmea. E ela estava encantada com sua presença em sua vida. Era um sopro de alegria.

       Mas poderia não ser real. Se estivesse ali, Driana a alertaria sobre o risco de trocar seu coração e o cio por nada além de companheirismo e necessidade de ser amada.

       Seus suspiros de desconsolo atraíram o olhar curioso de Liara que parou de escrever para olhar para Joan, mas ela não notou. Sonolenta manteve os olhos fechados até conseguir entrar em um sono superficial e carregado de angustias.

       Em seu sono ela via o Reino de Isac pelos olhos de Eleonora, que de pé sobre a murada da mais alta das torres do castelo apontava para as florestas e os montes que viam a distância. Ela falava sem parar sobre seus sonhos e sobre percorrer toda aquela imensidão com suas asas.

       O vento despenteava seus cabelos loiros clarinhos, quase brancos, e ameaçava derruba-la, mas Eleonora não sentia medo algum. Em um canto qualquer Driana observava o falatório da amiga com um sorriso resignado na face de quem sabe que jamais cumprirá tantas metas e sonhos. Na ocasião Joan ainda padecia de um forte resfriado e estava abrigada em uma quentinha manta em torno de seus ombros, enquanto Alma se calava depois de repreendê-la por ter seguido-as até ali.

       Joan ignorou sua amiga rabugenta, e curvou-se na murada, olhando para baixo.

       -Aquele ali é Egan? – perguntou atraindo a atenção imediata de Eleonora.

       Ela saltou da murada e curvou-se também, protegendo os olhos do sol com a palma da mão.

       -Sim, é Egan. Ele está treinando alguns jovens para a segurança do castelo. – Eleonora disse empolgada de ver Egan. – Faz muito tempo que não o vejo. Por onde será que ele andou?

       -Eu não sei. Tubã não lhe disse nada sobre ele? – Perguntou Joan de volta.

       -Tubã contou que Egan tem ajudado nas negociações com o líder dos duendes. Parece que as coisas andam feias entre elfos e duendes. – disse Eleonora, sem afastar os olhos da imagem que lutava lá embaixo.

       -Não me admira – dissera Driana eloquente até demais – As relações diplomáticas entre as criaturas mágicas e os elfos sempre foram delicadas. Rei Isac, apesar de seus erros, tem mantido a ordem há muito tempo e à custa de muitas regalias para os duendes. E agora, justamente quando eles estão inquietos e desejosos de uma maior participação nas decisões do reino, Lucius resolve cortar essas regalias? Impor novos impostos sobre o ouro escavado pelos duendes? Não bastasse isso, ainda deseja redefinir o mapeamento do Reino das Fadas, e até onde pude apurar, para Lucius o território dos duendes seria muito melhor aproveitado se pertencesse ao reino. – como suas amigas prestavam atenção a ela, mas sem grande entusiasmo, Driana revirou os olhos antes de dizer – Resumindo: Lucius tem provocado os duendes e isso não vai acabar bem.

       As três permaneceram olhando para ela como quem questiona a importância das informações, e então, tornaram a falar dos assuntos tolos de guardiões, músculos e lutas.

       -Olhe! – foi Eleonora quem apontou – O treinamento de Egan acabou! – ela sorria ao olhar para elas – Ele sempre se banha antes de voltar para seus afazeres!

       Não foi necessário um segundo convite.

       Egan era a grande paixão da vida de Eleonora, e ela tinha um habito nada discreto de espiar o Guardião banhando-se no alojamento público dos treinadores antes de seguir com seus trabalhos diários.

       Ele não ficava nu, pois era um local público, mas ver a água límpida correr pelos músculos definidos e suados do treinamento era sempre uma diversão para Eleonora!

       Menos ágil, Joan correu atrás das amigas e as alcançou com atraso. Ao sentir a terra árida nos pés descalços, Joan olhou em volta, pois perdera as amigas de vista. Procurou por elas um instante, e quase foi atropelada por um grupo de jovens treinados que corria para o campo de treinamento, pois estavam atrasados e sua treinadora não aceitava indisciplina.

       Rodopiando em torno de si mesma, Joan esforçou-se para ficar de pé, mas acabou sendo levada pelo movimento de pessoas, sem conseguir escapar do fluxo intenso.

       Em polvorosos, os recrutas aguardavam sua vez de passarem pelo treinamento daquele dia. No fundo, eles sabiam da impossibilidade de alcançarem o posto de Guardião, por não serem herdeiros de sangue de um Guardião a se aposentar, mas a esperança era sempre um motivador para aqueles jovens desafortunados.

       Pois mesmo sem títulos e posições de respeito dentro do reino, ainda assim, o treinamento direto com um Guardião os tornaria exímios guerreiros e poderiam fazer carreiras e fortuna servindo ao rei ainda que apenas agregados.

       Um deles, muito jovem e franzino era o escolhido da tarde para travar um combate com sua treinadora.

       De pé na arena de terra, Zoé riscou o chão com o pé enquanto girava a pesada espada na mão, causando medo no rapazola.

       Ela vestia uma calça de couro de raptor e botas bem feitas e caríssimas adquiridas no mercado da Vila dos Desesperados. Cobria o torço com um conjunto de tiras de couro que protegiam seus seios da nudez total, mas revelavam completamente sua pele escura e brilhante pelo suor da manhã.

       Os cabelos estavam praticamente presos no alto da cabeça, permitindo que boa parte da cabeleira negra e espessa brilhasse sob o sol.

       Irônica sobre seu opositor, Zoé apontou a espada para o rapaz e gritou acima das vozes e cochichos daqueles que os circulavam, em uma roda de curiosos e ansiosos rapazes querendo sua chance de fazer história junto ao reino.

       -Erga o braço – ela mandou com voz potente – Olhe na minha direção. O chão não vai ajuda-lo, não precisa fixar os olhos sobre ele como se pudesse criar vida e lutar por você! – seu brado irônico fez o menino corar, mas obedecer – Sempre olhe nos olhos de seu opositor. Mesmo que seja para reconhecer o bastardo que o matou quando ambos estiverem do outro lado – ela fez referencia ao céu e inferno, conceitos humanos, mas que rapidamente tornava-se um boato entre as criaturas humanas.

       -Para cima – ela gritou e no susto o garoto ergueu a espada para cima – esquerda! – ele foi obedecendo, enquanto saltava para trás conforme a espada potente de Zoé chocava-se contra a dele.

       Assim, meio no susto, ela foi instruindo o garoto. Quando parou, o menino transpirava copiosamente e parecia prestes a desistir e urinar nas calças de medo.

       Sorrindo, algo meio de lado, Zoé apontou a espada para ele:

       -Agora é para valer – era um aviso terrível. – postura!

       Se era para valer, não haveria clemência. Joan andou para um canto menos cheio e manteve os olhos sobre a luta, assustada pela agressividade da Guardiã. Joan viu a fêmea investir na direção do rapaz com um brado de guerra. Seu movimento foi barrado por um bumerangue vindo de algum lugar, algo inesperado.

       Zoé parou e virou-se com fúria no olhar.

       -Deixe o rapaz em paz, Zoé – era o Guardião Acheron.

       Usando suas roupas comuns, calça e túnica, Acheron manuseou o bumerangue e retirou a espada no cinturão em sua cintura.

       -Eles precisam aprender, Acheron – Zoé gritou, enquanto atacava e se defendia.

       -Sim, mas não precisam sujar as calças enquanto aprendem a lutar – ele revidou quase conseguindo domina-la.

       -Você se mete demais com assuntos que não são de sua ossada – ela revidou quase o acertando com a espada.

       Acheron imobilizou-a, um braço embaixo do pescoço, sufocando-a. De olhos arregalados, achando aquilo tudo uma barbárie, Joan tentou se afastar, sem notar que no mesmo instante em que ela achava uma brecha para andar para longe, Zoé livrava-se de Acheron e mirava um punhal em sua direção, lançando-o como um dardo potente e afiado.

       Sagaz, Acheron escapou da arma, mas essa cortou o ar sem direção, sem meta e sem alvo.

       Joan chegou a esbarrar em um dos rapazes que se esquivava do punhal e naquele corre- corre, Joan foi empurrada na direção exata da arma.

       Escapou de ser morta sumariamente por pura sorte. Mas perdeu o equilíbrio e caiu no chão, o rosto na terra árida, cuspindo terra.

       Atordoada, Joan gritou quando foi erguida pelos cabelos. A Guardiã havia agarrado seus cabelos e a erguia na base da dor.

       -De onde saiu esse ratinho, Acheron? – ela perguntou o halito muito perto do rosto de Joan.

       Realmente atordoada, a beira de um desmaio, seja de medo, ou de fraqueza, Joan olhou para ela, tentando segurar sua mão, que a agarrava e erguida do chão pelos cabelos. Zoé sacudiu sua cabeça e ela gritou de dor.

       -Deixe a jovem, Zoé – foi uma reclamação. Um rugido de reclamação vindo do outro Guardião, que apenado não podia intervir, mas não queria permitir uma desumanidade.

       Todo o corpo da fadinha tremia. Dava pena de olhar seu pavor.

       -Eu nunca vi essa coisinha por aqui – Zoé continuou fazendo troça do físico de Joan – Deseja ser treinada, fada sem asas? – ela perguntou tentando farejar o nascimento das asas, e obtendo a resposta de que não havia vestígios de asa ou cio.

       -Não... Não... – Joan gaguejou, quase sem voz, travada pelo medo – Eu me perdi, senhora, eu me perdi...

       -E olha só que péssimo lugar para se perder – Zoé definitivamente achava graça de coagi-la em público – O que eu faço com você? O que acha que devo fazer com uma arruaceira que atrapalha meu treinamento?

       Incapaz de falar, Joan apenas sufocou o choro em vão.

       -Solte a menina, Zoé – Acheron aproximou-se e ficou frente a frente com a companheira de guarda – É uma das órfãs da clausura. Olhe as roupas e a sujeira, é irmã das desvalidas da clausura – ele apelou.

       -Eu deveria sentir pena? – Zoé sorriu – Eu poderia abreviar o sofrimento dessa criatura...

       -Sim, você poderia, mas não hoje – Acheron insistiu até conseguir que Zoé desistisse e soltasse Joan.

       Sem forças, Joan caiu no chão, tossindo sem parar.

       Foi um momento de incerteza, pois Zoé parecia arrependida de perder um brinquedo adorável para suas horas de tédio. Acheron não queria lutar com uma companheira de guarda, mas não poderia permitir que Zoé se divertisse à custa da infelicidade de um ser inferior em força e nascimento.

       -Afastem-se! Saia da frente! – eles ouviram os gritos, e em meio aos rapazes que observavam calados sua treinadora coagir e assustar a menina surgiu três fadas.

       Uma delas, de cabelos claros como um tufo de algodão, caiu de joelhos no chão acudindo a fadinha ruiva que se contorcia no chão.

       A outra, alta e grandalhona, cabelos castanhos e expressão feroz apontava um cajado de madeira, esculpido em forma de lança, na direção de Zoé.

       -Não ouse tocar em Joan outra vez! – Alma gritou furiosa.

       -É mesmo? E porque eu não posso fazer isso? – Zoé aproximou-se a centímetros de Alma, fitando a fada da clausura com ferocidade e revolta por estar sendo enfrentada.

       Zoé era alguns centímetros mais alta que Alma, mas isso não a impediu de encarar esse olhar de luta e enfrentar sem medo algum sua opositora.

       Sem fraquejar, olhos flamejantes, a fada respondeu:

       -Porque eu a mato se encostar outra vez em Joan.

       De um modo estranho, apesar da óbvia discrepância entre ambas, uma armada e com poderes de dom, e a outra sem asas, sem dom e presa ao Ministério do Rei, Acheron sentiu um arrepio diante dessa ameaça.

       De um modo ou outro a fada da clausura Alma se vingaria de Zoé se ela fizesse mal para Joan.

       -Quanta brutalidade - outra voz foi ouvida. Era Driana observando tudo de longe, enquanto remoia a raiva – Segundo as normas do Rei Isac um Guardião é veementemente proibido de atacar, molestar ou causar dano físico a uma fada da clausura! Devem ser vigiadas, protegidas ou mortas, mas as ordens devem vir diretamente do rei e não de um Guardião, muito menos um Guardião fêmea! – ela citou trechos das leis do Reino de Isac e até mesmo Zoé precisou reconhecer a exatidão de cada palavra. – É uma vergonha que atente contra a vida de uma fada desprotegida – ela completou a frase, a voz tremula e os olhos marejados de lágrimas de ódio e magoa – Ainda mais se tratando de Joan.

       Sim, ela se apenava da amiga ser frágil e desprotegida e odiava com todo o coração as criaturas capazes de coagir o que é frágil e propenso a sucumbir com facilidade.

       A fada Alma, que ainda mantinha o desafio contra Zoé, como se as duas fossem se pegar em uma luta mortal a qualquer momento, e afastou-se ajudando Eleonora a erguer Joan. Driana foi à última a virar as costas para partir, pois o rancor a compelia a querer gritar e xingar.

       -Não ouse – Acheron disse pousando uma das mãos no ombro de Zoé, para impedi-la de seguir as fadinhas e tomar satisfações.

       Furiosa em ter sido enfrentada, Zoé empurrou-o e correu para longe.

       Fora do campo de visão dos outros, elas pousaram Joan no chão e tentaram fazê-la acordar e se situar, pois ela estava em choque.

       -Eu odeio isso! – disse Eleonora, de pé, torcendo o tecido da roupa com uma das mãos, como quem torce o pescoço de Zoé – eu odeio ser sempre atacada! Eu não aguento mais saber que não nos respeitam! Mas com Joan? – ela disse quase chorando – como posso ver isso acontecer e ficar calada?

       -É melhor nos calarmos, ou Joan ficará ainda mais assustada – disse Driana acariciando os cabelos de Joan, enquanto ela se movia e ficava sentada em um cantinho, com o rosto escondido entre as mãos.

       O choro de Joan cortava o coração de suas amigas, e saber que apesar da força e do esforço em manter-se firme, até mesmo Alma controlava um choro de humilhação, pena e indignação, era de acabar com as esperanças de todas.

       Essa era a vida de uma fada da clausura. E elas deveriam estar acostumadas, mas não estavam.

 

       E nunca estariam, pensou Driana, em algum lugar da floresta, seguindo a caminho do Campo Dos Humanos, na busca por Joan. Naquele mesmo dia haviam sido avisados da presença de Zoé na região, e depois disso, Driana não conseguira mais sossegar o coração. Estava aturdida e assustada com medo de chegarem tarde demais.

       Estava deitada, abraçada ao seu Guardião, Acheron, que dormia sem perceber seu desassossego. Driana fez um carinho no peito do elfo e tentou se acalmar. Mikazar havia seguido sem eles, e quem sabe, com sua velocidade única conseguisse alertar Joan do perigo a tempo?

       Alma não era tão otimista. Estava acordada, era madrugada, mas ela não conseguia dormir. Sólon não dizia nada, conhecia a exatidão de seus medos e o quanto lhe custava ficar parada sem agir, enquanto contava com outras criaturas para salvar Joan.

       Sua Joan, ela pensava. A mais delicada e frágil, que sempre protegera com unhas e dentes. O medo a fazia mole, pensava Alma ao voltar para a cabana que dividia com seu elfo escolhido, e fechar a porta, encontrando-o na cama, para uma noite de sono, pois no dia seguinte, muito trabalho os aguardava naquele novo povoado que criavam e mantinham juntos.

       Joan não sabia que suas amigas estavam pensando nela, e quando sentiu um toque no braço, acordando-a, piscou os cílios e sorriu, achando que era Eleonora, acordando-a no meio da noite para alguma estripulia que enlouqueceria a mente cética das carcereiras do Ministério do rei.

       Mas não era Eleonora, era Liara e seu candelabro na mão.

       -Você estava começando a gritar. – ela avisou aos sussurros – E Matilde anda nos corredores. Eu não sei o que ela está procurando, mas acho que está vigiando você.

       Suspirando pesarosa, Joan concordou e virou para o outro lado, mantendo-se acordada, para controlar os pesadelos.

       Muito em breve, enfrentaria Zoé de frente, e tal como no passado, sairia perdendo.

       Estava sozinha, sem suas amigas para intercederem por ela, sem qualquer criatura mágica para implorar ajuda. Seriam apenas as duas, em uma luta mortal. E por mais que confiasse em seu dom e em suas asas, Joan sabia que perderia.

         

       Joan estava se acostumando a ver os dias passarem sem novidades sobre sua situação junto ao reino de Isac. A cada dia lutava contra o desespero de notícias não chegarem e de ninguém surgir para buscá-la e dizer-lhe que finalmente poderiam voltar para o monte das fadas em segurança.

       Preocupada com as amigas, e também com a facilidade com que se adaptava ao Campo Dos Humanos, e ao modo de viverem, Joan dedicava seu dia a cuidar do Duque, e ouvir as explicações de Alice sobre como se portar na mesa, no dia a dia, e em uma conversa entre humanos.

       A menina achava que era apenas uma serva sem instrução. Mas vez ou outra lhe lançava um olhar de desconfiança.

       Há alguns dias que Joan não conversava com Matilde, ou era alvo de seu cajado. Não que isso minimizasse seus atos, pois a cada dia Molly e Liara se queixavam das constantes agressões. Naquela manhã em especifico, Joan estava decidida a pedir ajuda ao Duque, para que ele intercedesse junto de sua mãe, para que ela deixasse as serviçais em paz. Pois Joan sabia que era apenas represaria pela amizade que lhe dedicavam.

       Enquanto levava a bandeja de café da manhã, ouvia a papagaiada de Alice sobre se portar e dançar em lindos bailes. Olhou para a menina, e quis lhe dizer que o forte estava em ruínas, parcialmente destruído, tentando desesperadamente se reerguer apesar do desespero do que aconteceria com os moradores sem poder contar com a proteção do título do Duque.

       Melhor deixar a menina com suas ilusões. A vida tende a ser demasiadamente agressiva com os inocentes.

       -Eu vou participar de um desses bailes. Muito em breve – ela disse sonhadora – Um lindo baile junto do rei. Será lindo. O rei irá se apaixonar perdidamente por minha... – ela parou de falar e mordeu o lábio, indecisa – Acha que o rei se apaixonaria por uma duquesa, Joan?

       -Eu não sei. Não conheço sobre seus títulos, Alice – foi franca – porque você quer conquistar o Rei? Não lhe basta um homem justo, bondoso e quem sabe, bonito?

       -Se o Rei se apaixonasse por mim, ou por uma mulher de minha família seria perfeito. Poderíamos viver plenamente, sem nos esconder!

       -E de quem você se esconde, Alice? – perguntou curiosa, quando pararam diante da porta do quarto do Duque.

       -Você sabe guardar segredos, Joan? – ela perguntou baixinho, olhando em torno, como se temesse que alguém a ouvisse.

       -É claro que sim! Você não tem ideia de como sei guardar segredos – sorriu pensando o grande segredo que guardava sobre si mesma.

       -Eu sei de um segredo, mas não posso contar para ninguém. Meu tio Edward pediu para me calar. – ela alegou incerta sobre falar desse assunto.

       -Esse assunto envolve seu pai e o ducado? – quis saber.

       -Acho que sim. Meu pai não poderia se casar, se esse assunto viesse à tona. – ela disse triste.

       -Bem, se é um assunto assim tão sério, você tem que contar para seu pai.

       -Eu não sei se devo. Ele está melhor agora... – Alice teve que concordar incerta sobre abalar a saúde de seu pai.

       -Escute Alice, um dia você vai me contar, está bem? Quando achar que deve contar, me procure e conte. Eu não vou julga-la sobre nada que disser.  Estamos entendidas?

       Desconfiada, Alice concordou.

       Ela pretendia entrar no quarto sozinha nesta manhã, pois faziam dias suficientes  do tratamento para testar os benefícios na saúde do Duque e pretendia fazer isso com privacidade.

       -Alice, esqueci o açúcar para o chá. Você pode buscar para mim?

       A menina ainda não confiava inteiramente nela. Por isso olhou para a porta e então para Joan como quem pondera se deveria ou não deixar o pai inteiramente sozinho com ela.

       Aliviada, Joan observou a menina correr pelos corredores, esvoaçando seu vestido azul de veludo e seus cabelos longos e negros.

       Uma batida na porta e Joan entrou.

       A primeira coisa que notou foi que a cama estava vazia. Assustada deixou a bandeja sobre uma mesinha e olhou em torno, desesperada sobre alguém ter feito mal ao Duque.

       Num ímpeto de pânico empurrou as cortinas da varanda, e ficou imóvel ao vê-lo apoiado na murada, olhando para baixo, e para o horizonte.

       -Estive pensando se conseguiria fazer isso sozinho – ele disse com tranquilidade na voz.

       Apesar do redemoinho que tomava conta de seu coração, Joan agiu com muita naturalidade.

       -Apressou-se, Duque Mac William. Eu pretendia testar suas pernas essa manhã. Mas acho que isso não será necessário. – sorriu e aproximou-se, ficando ao seu lado diante da murada.

       -Eu vinha sentindo que conseguiria mover minhas pernas. Quis tentar sozinho, poupar a todos da minha vergonha caso falhasse. – ele alegou.

       -Não diga isso. Não há vergonha na enfermidade. E tão pouco a possibilidade de falhar. Eu lhe disse que o tratamento era eficaz. Sua eficácia é de uma dimensão que humano algum pode entender. – disse transparecendo na face e nos olhos a alegria de vê-lo de pé.

       O Duque era bem mais alto do que ela. Uns vinte centímetros, o que a fazia parecer mínima ao seu lado. Ele não parecia tão musculoso e forte deitado. Mas agora, corado e de pé, ele parecia um gigante.

       E de algum modo estranho, Joan sentia a distância imposta entre eles. Não sabia onde enquadrar-se na vida de um Duque que agora podia cuidar de si mesmo.

       -Eu me pergunto o que quer dizer quando me chama de humano – ele alegou pensativo – A razão que eu estou de pé nesse momento. É a mesma razão de você me chamar de humano?

       -Faz muitas perguntas para quem tem tanto a pensar, Duque – ela desconversou. – Olhe para si mesmo, está de pé e pronto para retomar seu ducado e sua vida. E mais importante que tudo... Alice não precisará se casar precocemente.

       -O que é um alívio. Não estava pronto para causar sofrimento em minha filha – ele alegou taxativo, olhando para Joan com algo úmido nos olhos. – Nunca vai entender a dimensão do que fez por mim, Joan. Jamais terei palavras suficientes para lhe agradecer ou pagar por essa maravilha que trouxe a minha vida. – ele ergueu uma das mãos para tocar seu rosto, e quase perdeu o equilíbrio – Eu ainda estou me adaptando.

       -Ficou muito tempo sem andar, mas logo, logo estará forte outra vez – disse tocando sua mão, e não o afastou quando Rowell aproximou-se, ainda segurando na murada, e a envolveu em seus braços, beijando o topo de sua cabeça, enquanto dizia:

       -Eu serei eternamente grato por ter devolvido minha vida, Joan. Foi Deus quem a enviou para minha vida.

       Foi um momento perfeito. Joan o envolveu pela cintura e descansou a cabeça em seu peito, apertando-o com saudosismo antecipado. O Duque estava de pé e a um passo da recuperação total, e de agora em diante sua atenção não mais lhe pertenceria!

       O cheiro da pele, o calor do corpo, a respiração pesada, eram detalhes que Joan desejava gravar em sua mente e coração, pois previa um afastamento definitivo.

       -Você me prometeu que quando me recuperasse me mostraria um mundo único e cheio de maravilhas, onde eu entenderia quem é, e tudo faria sentido. Sua promessa está de pé, Joan?

       Ela riu baixinho e afastou o rosto do peito do duque para olhar em seus olhos, sendo acariciada ternamente na face e nos cabelos.

       -Sim, é tudo que mais desejo. Mostrar-lhe o meu mundo, para que entenda quem sou. Mas primeiro... Precisa estar totalmente curado.

       -Sim, com sorte, estarei ágil e forte outra vez, antes da chegada de minha noiva. – ele disse pensativo.

       Joan tomou esse pesar, como ansiedade e afastou-se um tanto, ocultando a magoa.

       -O café da manhã vai esfriar. E você precisa comer e restabelecer suas forças – afastar-se era custoso, mas necessário.

       Havia uma noiva que casaria com o Duque e teria seu amor e sua companhia. Enquanto Joan somente podia contar com alguma clemência do destino, e que junto a essa clemência viesse à liberdade e a redenção.

       -Eu preciso da sua companhia para me dizer que tudo ficará bem e que o mundo é bonito e cheio de esperanças. – ele brincou e Joan não resistiu a lhe presentear com um lindo sorriso.

       -Eu só digo essas coisas por que é a mais pura verdade. A esperança é a única joia preciosa que ninguém pode nos roubar. Não duvide disso, sua recuperação é fruto dessa esperança.

       -Suas palavras são bonitas. Mas nada se compara com seu olhar – ele disse encantado com seu jeito – ou com seus lábios – correu os dedos sobre seus lábios cheios e rosados e mudou o tom de voz ao dizer – eu quero beija-la assim, ambos de pé, abraçados, como se não existisse nada no mundo além desse momento.

       -Mas existe – Joan apontou para o horizonte, uma paisagem tão remota quanto os olhos podiam alcançar – Sua noiva chegará em breve. E eu partirei em breve também. E o que faremos com os beijos que ficarão para trás?

       Para essa pergunta o Duque não possuía respostas ou argumentos.

       -Eu gostaria que ficasse, Joan. Que não partisse. – era a única forma de expressar o que de fato sentia. E talvez esse argumento fosse à resposta para a pergunta de Joan.

       -E sua noiva? O que fará com ela e a promessa de honra que fez ao seu amigo em seu leito de morte? Dirá que foi tudo um mal entendido?

       -Eu não posso fazer isso. Mesmo que eu voltasse atrás com minha palavra, o Rei foi informado da união entre mim e a noiva de Haword. Ele não detinha título de nascimento, mas era um cavalheiro muito bem quisto pelo Rei. Em mais de uma vez salvou a vida do rei, e por conta disso, lhe devotou terras e pertences.

       -Qual o nome de sua noiva? – perguntou invejosa e ciumenta.

       Ainda nos braços do Duque, era impossível sair daquele conforto que aquecia suas veias de calor e paixão. Mesmo assim, distante de qualquer contato íntimo, como beijos ou caricias de amantes.

       -Eu não sei. Soube da existência dessa jovem há pouco tempo. Escrevi para o condado onde ela vive, mas sempre me referindo à família de Haword e não a ela em especial.

       -Uma desconhecida – disse com quase amargor – Uma estranha?

       -Sim, uma estranha. Mas segundo suas próprias palavras, o que é estranho também pode ser bem vindo e apreciado – ele lembrou-a de suas palavras dias atrás.

       -Não quando causa dor, sofrimento ou magoa – ela reinterou - Eu devo deixa-lo em paz para que coma seu desjejum.

       -Não faça isso – ele pediu segurando seu pulso, para mantê-la perto – Não me erga de pé e depois parta. Eu não quero ficar sem você antes da hora.

       Joan olhou para longe, e ficou de costas, olhando para o horizonte.

       -Alguma vez eu lhe contei que tenho amigas esperando por mim?

       -Sabe que não – ele disse imediatamente a sua afirmação – eu não sei nada sobre você. É um completo mistério para mim, Joan.

       -E assim deve ser. Um mistério. – disse engolindo em seco, apoiando ambas as mãos na murada da varanda, quando tudo que desejava era revelar suas asas e mostrar-lhe um espetacular voo em direção ao horizonte de montanhas e florestas que enxergavam ao longe. – Eu cresci em um orfanato, como já lhe disse em outro momento e não acreditou em mim. Eu tenho três amigas, que são como irmãs de sangue para mim. Recentemente fui apartada delas. Cada uma para um destino diferente. E nenhuma delas veio me buscar...  O que quer dizer que ainda correm risco de vida e que devo me manter escondida. É por causa delas que eu estou aqui. E por amor a elas não lhe contarei quem sou ou de onde venho. E é também por esse amor incalculável que partirei quando me buscarem.

       Rowell ouviu calado cada palavra dita.

       -Penso se não devo proibir a entrada de qualquer mulher desconhecida que ouse bater nas portas do meu forte para busca-la e leva-la de mim – ele foi sincero.

       -Mesmo que pudesse impedi-las de entrar... O que eu duvido – ela disse sorrindo, menos tensa e triste diante da impressão de desamparo de Rowell – ainda assim, o que faria comigo aqui? Eu não sei se gostaria de ser como Matilde.

       A expressão de Rowell endureceu diante da chamada de atenção. Mantê-la como sua amante depois do casamento com a irmã de seu melhor amigo seria a mesma coisa feita por seu pai no passado ao manter Matilde seu grande amor como sua amante secreta. E isso acabou com a vida de Matilde.

       -Eu gostaria de lhe dizer, Rowell, que existem muitos segredos dentro do seu forte. Que deve ficar atento a isso. Aos nuances. As diferenças. Aos sussurros dos corredores. Coisas acontecem nas suas costas. É hora de abrir bem os olhos e enxergar de onde vem à traição.

       -Dizendo isso espera que eu não a interrogue atrás de informações? – ele a fez ficar parada, enquanto exigia-lhe respostas.

       -Eu mesma não sei todas as respostas. Talvez não fique tempo o bastante para descobrir o que acontece pelos corredores. Mas eu sei que algo aconteceu na noite em que Marmom nasceu. Algo que se estende até hoje, acontecendo em surdina. Algo que pode estar envolvendo Alice. Observe atentamente, antes que seja tarde demais para mudar planos traçados pelas suas costas, Duque.

       -Eu nem sei para o que deveria estar olhando. – ele alegou assustado com essa afirmação – Eu nem sei o que Marmom é.

       -Essa é uma resposta que posso lhe dar. Mas não agora. Em breve – afastou-o com uma das mãos – Devo chamar Matilde para ajuda-lo com sua higiene matinal? – sugeriu. Mudando drasticamente de assunto.

       -Matilde nunca me ajuda com a intimidade da minha higiene – ele desconversou e ela sorriu.

       -Eu sei disso, mas nessa manhã em especial, creio que ela gostaria de ser uma das primeiras pessoas a estarem com você. – apontou suas pernas e o Duque abriu um lindo sorriso de felicidade.

       -Tem razão, minha mãe merece esse privilégio. – concordou.

       -Então me permita o gostinho de ser eu a portar as boas notícias. Talvez assim, Matilde me odeie um pouco menos.

       -Como queira, Joan.  – ele concordou, olhando-a de um modo que ela sabia que acabaria em um beijo roubado.

       E ela queria que lhe roubasse esse beijo. E como queria. Foi forte e fugiu dele, correndo para o quarto e então para fora do quarto. Sem ar, corada e excitada pela companhia do duque, Joan correu pelos corredores em busca de Matilde. Quando a encontrou, em um dos corredores mais baixos, gritando ordens para Molly que esfregava as pedras, enquanto seus ouvidos doíam pelos gritos, Joan sorriu e se fez escondida e camuflada contra as paredes. Aproximou-se sorrateira, completamente invisível aos olhos de qualquer criatura, sobretudo de Molly que estava de costas e de joelhos esfregado o chão. Quando chegou bem pertinho de Matilde, se fez visível, e disse em voz normal bem no ouvido de Matilde, alto o bastante para assustá-la mortalmente:

       -Matilde!

       A pobre infeliz humana saltou em seus próprios pés, cobrindo o peito com uma das mãos e a face com a outra, escorregando contra a parede, prestes a desmaiar. Pernas bambas pelo susto, coração disparado, descomposta. Ajoelhada no chão, Molly esforçou-se para não cair na gargalhada. Joan conteve um sorriso e quando Matilde gritou com ela, foi impossível não sorrir, mesmo que baixasse a cabeça e escondesse esse sorriso com os cabelos. A voz da mulher estava rachada e arfante. Uma lástima.

       -De onde você saiu sua imprestável? De onde? – ela questionou e Joan apontou para o corredor.

       -Eu vim por ali, senhora, pelo corredor. Por aonde mais eu viria? – perguntou batendo as pestanas, com tanta inocência que era impossível questiona-la.

       -O que você quer afinal? – Matilde tentou recuperar-se, mas era impossível diante do nervoso que se abatera em seus nervos.

       -O Duque Mac William pede sua presença no quarto, senhora - disse com voz mansa.

       -Às vezes eu acho que foi enviada das profundezas do inferno para acabar com meu juízo – Matilde revidou muito perto de perder a razão e lhe bater. Mas o pedido do Duque sobre não usar força bruta contra a serviçal Joan ainda pesava em seus ouvidos e consciência. Não negaria um pedido do filho! De modo algum! – Afinal, para que você serve? Nem recados é capaz de dar com alguma eficiência!

       A mulher alisou o tecido do vestido e tentou se recompor, e quando virou as costas para sair triunfal sobre sua serviçal, Joan a interrompeu, sentindo-se profundamente satisfeita ao dizer:

       -Sirvo para escrever cartas, senhora, algumas pessoas dizem que minha caligrafia é perfeita.

       Sim, era uma indireta sobre as cartas secretas que Matilde escrevia e escondia em sua gaveta com chave. A mulher não respondeu, e sim, bateu os pés furiosamente enquanto andava para longe, em direção ao quarto do filho.

       -Um dia desses Matilde irá se vingar disso. Escreva o que lhe digo Joan, ela não vai aguentar isso por muito tempo – Molly avisou.

       -Eu não faço nada contra ela. Pelo contrário. Precisa de ajuda? – ofereceu notando seu esforço.

       -Não, claro que não. É a preferida do duque, não pode fazer serviço braçal. – Molly sorriu com malicia – Me diga, e seja sincera, tem se deitado com o duque?

       -É claro que não! Sou casta! Não me deitaria com humano algum! – negou veemente.

       -Eu não sei. Tantas regalias. Como alguém pode acreditar               que passe tanto tempo no quarto do duque apenas conversando? – Molly duvidou.

       -Eu estava ajudando a cuidar dele. Verá com seus próprios olhos que agora que não precisa mais de mim, o duque não solicitará minha presença como antes.

       -O Duque está curado? – Molly surpreendeu-se.

       -Sim, creio que sim.

       -Isso é um verdadeiro milagre, Joan – disse surpresa e empolgada com a notícia – um milagre que garantirá a proteção de todas nos! Afinal como fez isso?

       -Eu não fiz nada especial. O Duque tem boa saúde – desconversou.

       -Hum, eu não sei. Você parece ser um anjo caído do céu em nossas vidas. Enfrentando Matilde e livrando a todas nós de sua presença furiosa. Trazendo saúde para o Duque quando todos davam seu título por perdido. – Molly gracejou – É mais fácil sorrir perto e você, Joan. Está sempre alegrando nossas vidas com sua presença. E definitivamente, você não veio pelo corredor e assustou Matilde. Eu estava olhando, você apareceu do nada. – Molly alegou convencida disso.

       -Isso é o que você diz. – Joan brincou – acho que precisa mesmo de ajuda, pois o sabão tem lhe subido a cabeça!

       Joan fez menção de ajudar, mas Molly barrou sua ajuda, dizendo-lhe:

       -Porque não ajuda Liara com as crianças do Duque? Sei que ela prefere esfregar os corredores a cuidar do menino – ela disse aos cochichos como se temesse falar da criança.

       Pobre Marmom. Sempre seria rejeitado entre os humanos.

       -Tem razão, Molly. Eu devo ajudar com as crianças – disse triste. Tentou até sorrir, mas não foi totalmente verdadeiro.

       Não tomou muito de o seu tempo encontrar Liara e tomar conta de Marmom. Tommy brincava com outros meninos e foi sua chance de ficar com a cria de homem-lagarto.

       Com o menino no colo, Joan refugiou-se em um corredor perto da mais alta das torres, e perto da murada, mostrou-lhe o horizonte, conversando com ele. Não havia como serem vistos lá embaixo, por isso, Joan colocou o menino no chão e abriu os botões do vestido, mantendo-o preso no corpo, mas com as costas nuas. Permitiu que suas asas viessem à tona e o menino ficou indócil para ser pego outra vez no colo.

       -Somos iguaizinhos, Marmom. Você e eu somos de outro lugar. Eu o entendo, e você me entende. É certo ser desse modo, mas você precisa começar a interagir com aqueles que o criam. Seu pai o ama, seus irmãos também – suspirou – comece a falar mais e não fareje ou morda os humanos.

       Conversava com o menino, instruindo-o sobre sua vida e sua raça sem notar que alguém a observava em surdina.  Esse alguém também não notou a aproximação de uma terceira pessoa, e quando Joan ouviu o grito assustado era tarde demais para esconder-se.

       Molly derrubava seu balde e esfregões e caia desmaiada aos pés da escada que levava até a torre.

       Sem saber como agir, Joan pousou o menino no chão e encolheu suas asas, para que se escondessem. Fechou o vestido e aproximou-se de Molly, tentando acorda-la com tapinhas suaves nas bochechas.

       -Oh, meu Deus, você é mesmo um anjo! Eu suas asas! É um anjo de Deus! – Molly gritou encantada e em êxtase religioso.

       -É claro que não, Molly! Olhe para mim, está vendo alguma asa? – perguntou jocosa, tentando minimizar o estrago.

       -Mas eu vi! Lindas asas vermelhas e sedosas, macias e brilhantes... Lindas, lindas demais. Uma aparição divina, Joan! – e tocou suas costas, mas não encontrou nada.

       Joan abriu o vestido e lhe mostrou as costas lisas e suaves, sem marcas ou asas. Totalmente normal e comum.

       -Mas eu vi... Eu juro que vi. – Molly disse confusa.

       -É claro que viu. Você viu o que deseja ver. Você fica falando de anjos o tempo todo. Rezando o tempo todo. Pensando nisso o tempo todo. Sua mente lhe pregou uma peça. Estava aqui em cima, mostrando a Marmom a paisagem. Ele é muito inquieto, mas gosta de ouvir histórias e contos. É o que eu estava fazendo, sua tola. – Joan brincou.

       -Será possível que eu vi o que eu quis ver? – Molly sentou-se no chão e segurou a mão de Joan, para sentir-se segura.

       -E porque você iria querer ver um anjo? – quis saber.

       -A vida é tão escura, Joan, tão triste. Eu acho que gostaria de ver um anjo e saber que existe mais do que... Tristeza, angustia e humilhação. Você é sempre tão doce, tão fresca, como o orvalho da amanhã... Eu não me surpreenderia se fosse um belo anjo de Deus enviado para trazer luz a tanta tristeza. E depois do que tem feito pelo Duque... Acho que me convenci disso. – disse envergonhada.

       -Não sou um anjo, mas você faz bem de crer neles. Devem existir. Muitas coisas existem, Molly. Não se envergonhe de suas convicções. – disse sorrindo para anima-la – Apenas não vamos contar sobre esse incidente para ninguém, está bem? Poderiam pensar mal de nos duas.

       -Jamais contaria sobre isso! – Molly assustou-se e fez o sinal da cruz – Poderiam pensar horrores de mim. – ela disse amedrontada.

       -Foi tudo um mal entendido. Só isso.  – Joan olhou em volta, aliviada por Molly crer em suas palavras. – Oh, não! Onde está Marmom? – notou a falta do menino e levantou rapidamente, procurando por ele. – Marmom!

       Nem sinal do menino. Pensando ter ouvido seus grunhidos, Joan correu pelos corredores, esquecida do incidente com Molly.

       -Não se esconda de mim, Marmom! – ela exigia, começando a se desesperar com a ausência da criança – Oh, não faça isso comigo, Marmom! Onde está você?

       Chegou de olhar pelas paredes, e curvar-se na murada, com receio do menino ter escapado ou decido pelas paredes. Era muito novinho para isso, mas nunca se sabe.

       Estava a um passo de chamar ajuda quando ouviu sua voz infantil e encontrou-o brincando atrás de uma pilastra.

       -Oh, meu querido! Aqui está você! – Joan ajoelhou-se no chão e o abraçou com força – Porque correu de mim? Que susto me deu!

       Na confusão de sentimentos do momento, Joan não percebeu que o menino carregava nas mãos um brinquedo feito de couro de raptor, quando antes tinha as mãos vazias.

       Protegendo-o em seus braços, Joan levou-o de volta para a proteção dos corredores do castelo e então para a cozinha de Hector, para que Marmom fizesse um lanche e também brincasse um tanto com o coelho.

       E para que Joan pudesse tomar um copo de água e tentar acalmar seus nervos.

         

       Naquele finzinho de tarde, Tubã ouviu, mais uma vez aquela conversa estranha sobre guerra. Boa parte da conversa não compreendia, pois a língua não lhe era totalmente compreensível.

       Entendia poucas expressões e poucas palavras. Alguns semblantes preocupados, alguns cochichos sobre a ausência da líder dos homens-lagartos. Homens-lagarto? Quanta ironia. Em dias de cativeiro, Tubã não vira um único macho, apenas fêmeas.

       Não que estivesse reclamando, pois em teoria lidar com fêmeas era sempre mais fácil, do que combater machos fortemente treinados. Mas levando em conta a qualidade da luta daquelas fêmeas... Tubã preferia muito mais um diálogo doloroso com machos furiosos.

       Estava convencido que elas falavam sobre a fuga das fadas da clausura e a luta que isso representava contra o Reino de Isac, ou seja, contra Santha, a rainha louca.

       O que era muito bom, pois reforçava sua esperança de Eleonora ter obtido suas asas e estar provando sua inocência, ou ao menos, levantando suspeitas sobre Santha e seu amante Lucius.

       Se o boato havia se espalhado era porque estavam causando estrago.

       Ao menos era isso que Tubã pensava. Que suas considerações sobre guerra referiam-se as fadas fugitivas. Não concebia outra razão.

       Ouvia os boatos, mas estava mais ocupado tentando sobreviver, por isso não apurava as informações.

       Tubã arrastou-se sobre as cinzas frias, despido das roupas, o corpo nu ressentido do calor que ainda exalava das cinzas e com desespero caçou os restos de carne dos ossos jogados para os animais.

       Estava faminto, desesperado por comida. Roeu os ossos e arrancou o que encontrou de carne. Quando ergueu os olhos notou que ela estava de pé, encarando-o.

       Pelo visto a líder daquele povo de fêmeas estava de volta.

       Não sentiu vergonha de sua situação, não era sua culpa, mas sentiu raiva do modo que era tratado. Do olhar superior.

       Uma delas aproximou-se e cochichou no ouvido da criatura que o encarava.

       -Posso leva-lo, Helana?

       -Sim – ela disse com voz firme, mas seu olhar dizia outra coisa – É a sua vez.

       A criatura aproximou-se e cutucou suas costelas com a ponta da longa lança. Foi obrigado a levantar e andar, mesmo que olhasse para trás, procurando encarar a mandante, para que ela soubesse que a culpa era inteiramente sua.

       Agora sabia seu nome, não era mais um carrasco sem nome. Helana? Um nome tão simples e feminino para uma criatura sem amor a vida alheia?

       A fêmea de lagarto levou-o para um canto escuro em uma das recôncavas cavernas e Tubã sabia o que o aguardava.

       Fora assim na primeira vez. Uma fêmea qualquer o arrastou para um lugar afastado e quando julgou que seria morto e devorado, pois contava de muitos séculos os boatos sobre o povo da raça homem-lagarto ser carnívora, mas a fêmea o surpreendera ao exigir que retirasse as roupas.

       Ela fez o mesmo, abandonando inclusive as armas. Por um instante, naquele choque de não compreender o que acontecia, Tubã apenas avaliou o corpo delgado, musculoso e coberto de curvas perfeitas. A pele era mais escura que o comum, em um tom levemente esverdeado, e possuía uma longa e fina cauda de uns dois metros. Era uma fêmea jovem, possuía ranhuras nas costas, e nos braços, e sobre a cauda, que indicava sua juventude.

       Seus olhos eram levemente amarelados, com íris escura. Cabelos curtos moldavam seu rosto e naquele enlevo de surpresa, Tubã não reagiu quando a fêmea o imobilizou no chão e o atacou sexualmente.

       Não poderia dizer ter sido uma barbárie, pois em determinado momento ele se pegou colaborando com o acontecido. Muitas semanas sem deitar-se com uma fêmea fosse ela da raça que fosse, e ele estava começando a sentir-se sortudo.

       Até descobrir que seria passado de mão em mão, para fêmeas de todos os tamanhos, formas e rostos, e que o tratariam como um animal.

       Não o impediam de comer, desde que se contentassem com os restos. Podia dormir o quanto quisesse, mas não lhe ofereciam abrigo ou liberdade. Durante a noite permanecia amarrado pela perna, por correntes e vigília constante. De dia era solto, mas sua liberdade condicionada à presença das fêmeas a sua volta.

       Não eram tantas que não pudesse contar. Umas trinta, no máximo. Ele via a ausência total de machos, fossem adultos ou infantos. Mas havia algumas meninas pequenas, que até então não lhe impuseram a cruza e isso muito o alegrava, pois detestaria deitar-se com uma jovem. Preferia mulheres criadas, e adultas o bastante para saberem o que faziam.

       A fêmea que o empurrava sem delicadeza, grunhiu algumas ordens e Tubã, cansado daquela ofensa a seus brios, tentou empurra-la e ganhar espaço, talvez uma fuga patética.

       A fêmea o deixou ir. A ordem era não ferir o elfo.

       Ele correu para fora da caverna e fitou as outras fêmeas que não se manifestaram.

       -Eu vou embora daqui – ele disse sério, convencido disso – Eu agradeço a hospitalidade, agradeço o apreço e a companhia adorável de... Todas - ele desistiu de apontar uma só, pois já havia copulado com um bom número delas. – Então, isso é um adeus.

       É claro que ele sabia que não seria assim fácil.

       Não chegou a dar meia dúzia de passos, mantendo a cabeça erguida, apesar de totalmente nu e indigno, quanto foi derrubado por um chicote que era usado como corda e amarrava seus pés dolorosamente.

       Ele reclamou da dor e olhou para cima.

       Helana olhou para ele com o mesmo desprezo de sempre e disse em sua língua, para que entendesse:

       -Leve-o de volta, Hera. E não seja gentil com ele.

       -Ah, sim, grande coisa! – ele revidou furioso e humilhado em sua masculinidade – que bela líder você é! Sacrifica seu povo, mas não se sacrifica! O que foi? Precisam procriar? Eu não duvido! Qual macho aguentaria viver aqui de livre e espontânea vontade? – notando que acertava no alvo, ele ficou de pé ao ser erguido e chegou de encostar na líder, empurrando-a como quem deseja na verdade agarrar e esganar – Onde está  o sacrifício da grande líder? Vamos, deite-se comigo e procrie! Ou se acha melhor do que eu?

       Ele desejava impor intrigas entre elas. Muitos anos de amizade com quatro fêmeas o fizera entender tudo sobre a mente feminina. Principiante sobre como são sucessíveis a intrigas e desconfianças entre si.

       -A cria de uma líder deve ser pura. Sem a sujeira de seu sangue – ela disse sem se abalar e ao olhar em volta, ele percebeu que falara sem intenção de ofendê-las e causar dano – Hera, ceda à vez para Biarca. Creio que ela saberá dar conta de ensinar uma boa lição para esse elfo.

       Hera sorriu misteriosa e concordou, chamando sua companheira com um grito. Uma fêmea de homem-lagarto surgiu e Tubã quase engasgou de medo. A fêmea era grande, alta, larga e carregada de carnes. Isso normalmente não o desagradava, pois ele gostava de uma fada recheada de curvas e formas para agarrar. Mas a expressão da fêmea o assustou. Ela pegou o chicote das mãos de Helana e o arrastou com empurrões nada delicados de volta para a caverna. Olhando para trás, Tubã encontrou um olhar de satisfação na face de Helana.

       Sua indignação com a líder durou apenas o tempo de descobrir que Biarca gostava de um ato sexual intenso e masoquista e que ele estava em péssimos lençóis ao ser jogado contra uma parede e atacado por seu corpo enorme e quente, enquanto ela usava o chicote sem dó...

       Seus gritos, misto de susto, dor e prazer inestimável, ecoaram pela caverna e quando acabou Tubã disse de má vontade:

       -Espero de coração ter gerado uma ninhada, você merece uma ninhada depois disso tudo... – estava exaurido no chão, e pegou um pedaço de pano que ela deixara no chão e cobrira as partes íntimas, quase envergonhado de si mesmo.

       -Não se preocupe. Sua raça não gera ninhadas em nossa raça. Mesmo que seu irmão tenha tentado com todas as suas forças.

       Dizendo isso, Biarca o deixou sozinho e Tubã mal acreditou no que ouvira.

       Egan? Seu irmão Egan conhecia essas fêmeas... Ou melhor, Egan, sem irmão postiço, o primoroso Primeiro Guardião, irretocável em suas ações e pretensões, havia sido escravizado pelas fêmeas? Ou pior que isso... Doado seus genes de boa vontade? Será que era essa a razão de Egan passar longos dias acampando ao pé do abismo?

       Com um meio sorriso sem vergonha na face, Tubã ajeitou os cabelos bagunçados e maneou a cabeça ao pensar que se isso fosse verdade, não havia razão para temer essas fêmeas. Egan nunca permitiria que qualquer espécie de crime se alastrasse sob suas barbas. Se ele colaborava de livre e espontânea vontade ou se não as delatava, era porque não havia risco real. E sendo assim... Agora Tubã tinha uma vantagem sobre elas. O conhecimento da verdade.

 

       Saudosa, Joan manteve-se afastada do quarto do Duque. Rowell precisava de tempo para si mesmo e ela não poderia fazer mais nada por ele. Estava curado. E não precisava mais dela.

       Manter distância era a única coisa que poderia fazer por ele e sua família. Pensativa, Joan comia sem presa enquanto Hector falava sem parar sobre seus tempos de aventura fora do castelo. Ele tivera alguns amores proibidos e Joan às vezes sorria ao pensar nisso.

       Olhando para o coelho, em um momento de descuido, ela perguntou:

       -E qual é o nome desta?

       E foi em um momento de descuido que Hector respondeu:

       -Minha querida Anesi.

       Foi uma surpresa para os dois. O coelho pulou para longe, e Joan baixou o rosto, sem saber como prosseguir depois disso. Hector mudou drasticamente de assunto e ela não insistiu.

       -Já ouviu falar das fadas das montanhas, Joan? – ele perguntou depois de quase uma hora de assuntos amenos. Fingia atenção a uma comida qualquer que mexia com sua colher de pau imensa, mas que tão bem cabia em suas mãos e ela respondeu:

       -Não, eu nunca ouvi falar. – mentiu, e ele sabia que era mentira.

       -Pois sim, há quem diga que há fadas por toda a floresta – ele fugiu o olhar, mesmo que de vez em quando olhasse com saudade para o coelho – ouvi uma história curiosa, uns trinta anos atrás que talvez um dia você quisesse conhecer.

       -É mesmo? E sobre o que seria essa história? – fez-se de desentendida.

       -Sobre uma moça muito bonita e sorridente, que cruzou o caminho de uma dessas fadas do mal. Ela transformou-a em um animal. E tem sido assim pelos últimos trinta longos anos... – ele disse baixo, melancólico.

       Com um aperto no coração, Joan levantou da cadeira e disse:

       -Mas será que todas as fadas são más?

       Hector olhou para ela com indagação.

       -Um dia eu gostaria que me contasse dessa fábula. Deve ser encantadora – ela desconversou e saiu da cozinha.

       Era um assunto que não poderia evoluir. Sem ar, ela correu pelos corredores, esquecida de ficar invisível e camuflada. Manteve a corrida até alcançar a mais alta das torres, onde estava acostumando-se a se refugiar.

       Era seu lugar favorito, onde podia deixar as asas virem à tona e simplesmente sentar no chão e descansar do fingimento que mantinha o dia inteiro. Ou simplesmente bater as asas e tentar voar um pouco, mesmo que mal tirasse os pés do chão. Temia avançar além dos limites do forte e precisar encarar a Guardiã Zoé. E se voasse nos limites do castelo poderia ser vista e causar um mal irreparável. Angustiada, Joan entregou-se a um choro baixo, e contido. Sentia-se desprotegida, precisava de um abraço e alguém que lhe dissesse que tudo ficaria bem, e esse alguém precisava ser Alma, Driana ou Eleonora. Não servia outra pessoa. Permaneceu ali por muito tempo, olhando em volta, como se conferisse se Zoé estaria sobrevoando o castelo ou não. Mas não havia nada. Estava ficando paranoica.

       Joan escondeu suas asas e voltou para a área de convívio normal das empregadas. Em seu caminho cruzou com Matilde, mas baixou o rosto e temeu ter que enfrenta-la em um combate. Sinceramente, estava cansada de sempre ser a vítima. Era cansativo aguentar tudo calada.

       -O Duque Mac William está andando outra vez – Matilde disse entre dentes – Eu não sei como fez isso, mas vou descobrir. – ela ameaçou.

       -É mesmo? – Joan parou de andar e fitou-a decididamente querendo briga. A saudade, a angustia, o medo de perder o afeto do Duque e a coação que sofria de Zoé... Tudo isso a punha em um estado de alerta estranho, com o desejo por desordem e caos. Vai ver que era esse sentimento que Alma nutria em seu coração e a fazia sempre tão arredia. – Você quer punir a única pessoa que conseguiu colocar seu filho de pé outra vez, livrando-o de uma vida de sofrimento e angustia? É isso que você quer fazer? Se for, sou capaz de lhe contar o meu segredo apenas para ver isso acontecer.

       Enfrentada, Matilde mal acreditou no que ouvia.

       -Como sabe sobre mim e o Duque? – ela agarrou seu braço e Joan soltou-se com um safanão e uma força que não sabia que tinha.

       -Ele me contou! Rowell me contou! Porque sabe que me importo com ele!

       -É mentira! – Matilde disse com horror e uma das mãos erguida, pronta para esbofetea-la, como era seu costume.

       -Quer me bater? Faça. Mas saiba que eu vou entrar em seu quarto quando estiver dormindo, e lhe farei mau maior que uma simples bofetada! Eu posso fazer isso. Eu já estive em seu quarto. Pense nisso, Matilde, quando estiver em seu quarto, durante a noite prestes a dormir... Que eu posso estar lá esperando a hora de me vingar de você por tantos anos de humilhação as empregadas submissas por necessidade! Eu quero que me diga, manhã cedo, como é passar uma noite inteira tremendo de medo.

      -Perdeu a lucidez me ameaçando? – Matilde quase espumava pela boca.

       -Não. Eu perdi foi à capacidade de temer. Chega de ter medo. Eu não posso me defender com suas armas. Mas eu tenho as minhas. Se daqui por diante você encostar um único dedo em qualquer uma das servas – ela disse bem pertinho olhando nos olhos de Matilde com a mesma raiva que via no olhar da humana - eu vou atazanar sua vida e nunca mais terá uma noite de sono em paz. Se você acha que já conheceu a dor e sofrimento... Aguarde para ver do que sou capaz.

       -Não tem autoridade para fazer isso. É apenas uma criaturinha insossa e pequena. Eu posso quebra-la ao meio com um golpe do meu cajado, sua vadiazinha de vilarejo! – Matilde avançou sobre Joan e a agarrou pelos cabelos.

       Joan havia descoberto uma grande vantagem entre os humanos: os gritos.

       Berrou o quanto pode, até atrair serviçais e Alice que brincava ali perto. Nem mesmo a presença da neta, aquietou Matilde.

       -Eu a odeio! Deus é testemunha do quanto eu me contenho para não mata-la! Eu não suporto sua presença! Não é possível que vivamos sob o mesmo teto!  - em meio ao seu frenesi de raiva Matilde não esperava que Joan se soltasse.

       Era fada e com um reflexo rápido fez com o que parte do cabelo desaparecesse das vistas de Matilde, mas não fosse possível que os outros notassem, pois seu dom obrigava a todos verem o que ela queria que vissem.

       – Meu Deus! Meu Deus! – Matilde gritou em pânico, soltando-a no chão.

       -Eu avisei! – Joan levantou gritando, chorando e alisando os cabelos feridos, com dor e magoa – Foi avisada! Dessa noite não passa! – antes que alguém tentasse acudir, Joan afastou-se correndo, deixando Matilde para trás.

       Desolada a humana olhou em volta e não sabia para onde ir. Ambas, fada e humana estavam em pé de guerra. Era oficial. E por mais que amasse o Duque, e esse pensamento, chocou Joan profundamente, não poderia perdoar os desfeitos de Matilde. Era hora de alguém lhe dar uma lição. E ela nunca se esqueceria dessa lição enquanto vivesse! Apesar da decisão tomada, Joan ainda limpava as lágrimas quando avistou alguém desconhecido saindo do quarto do Duque Mac William. Era seu irmão Edward. Conhecia o humano de vista, mas nunca de tão perto. Diziam que era um bêbado inveterado, e que não havia recuperação para sua alma. Ele cheirava sim a uísque e vinho, e trocava os pés enquanto assoviava pelos corredores.

       Se ele a notou, não demonstrou. Joan baixou a cabeça ao cruzar com ele, e bater de leve na porta do quarto do duque. Edward notou-a. Mas foi um olhar rápido. A voz de Rowell pedindo que entrasse a fez esquecer-se de tudo. Mal fechou a porta atrás de si e disse:

       -Eu sinto muito, mas preciso dar uma lição em Matilde. Ela está acabando com meus nervos. Eu aprecio sua família e cada dia mais eu gosto... Eu aprecio sua companhia Duque de Mac William... Mas Matilde não me deu outra escolha! Preciso acabar com seus hábitos feios de nos coagir! Alguém precisa por fim a isso!

       Sua exasperação era surpresa para o Duque.

       Rowell estava de pé, exercitando suas pernas, enquanto andava pelo quarto, de canto a canto, fortalecendo os músculos. Primeiro, a surpresa de sua visita noturna. Depois a breve alegria de ouvir que gostava dele como companhia e agora a informações sobre mais uma briga com sua mãe.

       -Está me pedindo permissão para vingar-se de minha mãe? – perguntou com cautela;

       -Sim, mas não farei nada que coloque em risco sua saúde. Quero mostrar a ela o que é sentir medo o tempo todo. Humilhação, raiva e coação! Não é possível que alguém se sinta no direito de coagir outra pessoa o tempo todo! Como alguém aguenta isso? Viver fugindo? Viver na angústia de ser pega e... – calou-se, pois estava desviando o assunto para o que lhe acontecia em relação à Zoé.

       -A vida de um fugitivo é angustiante – ele concordou, e pela expressão de Rowell, ele imaginava que ela era uma fugitiva a um passo de ter um ataque de nervos – Matilde merece uma correção. Mas não autorizo que lhe faça mal, Joan.

       -Nem mesmo uma pequena brincadeira inocente para fazê-la mais... Humana? – Fez um trocadilho que apenas ela entenderia.

       -Acho que tem algo de malvado dentro de você – ele sorriu e estendeu uma das mãos pedindo sua companhia.

       Mesmo sem querer, Joan olhou para a cama desfeita, onde até então o Duque estivera.

       Negou com a cabeça. Não iria se aproximar. A tentação era maior. Se ela se deitasse naquela cama com Rowell... Nunca o deixaria. Mas, ele estava de pé, e era ela quem pensava em camas!

       -Espero que sim. Estou cansada de ser enxovalhada pelo ódio alheio. Quero que me odeiem pelo que faço e não pelo que sou – foi franca.

       -É o que o mundo espera. – ele deduziu – Agora, se me perdoar à indelicadeza, eu espero que saia antes que eu use minha recém adquirida capacidade de andar, e a encurrale contra a parede para um beijo que nós dois sabemos que queremos.

       Por um segundo, Joan pensou em atiça-lo. Sua raiva rapidamente dissipou-se. Ela sorriu maliciosa e foi por pouco que Rowell não a alcançou a tempo. Sorrindo, Joan o deixou para trás e fechou a porta bem diante de seu nariz humano. Sozinho no quarto, Rowell riu e ficou pensativo. Assumira a responsabilidade de casar-se com uma completa desconhecida, quando não achara que poderia amar outra vez. E agora? O que seria dele completamente apaixonado por uma serviçal inocente e pueril que trouxera felicidade e ares novos para sua vida?

         

       Desta vez Joan cumpriria suas ameaças. Era o tipo de criatura que sempre voltava atrás em suas intenções de vingança, ódio ou magoa. Era sempre aquela que perdoa e esquece rapidamente. Mas dessa vez era questão de honra e sobrevivência. Precisava dar uma lição em Matilde e finalmente ter alguma paz em sua jornada de fugitiva. Estava cansada de ser emboscada e atocaiada o tempo todo e estar sempre com medo da própria sombra!

       E suspeitava que as outras servas do forte Mac William apreciariam uma boa trégua nos gritos e cajadadas da governanta!

       Era começo da noite, a lua soberana em um céu sem estrelas, pesado com nuvens de uma chuva que se anunciava, quando Joan percorreu os corredores camuflada. Ela estava começando a perceber que conseguia mudar a imagem que os olhos alheios viam. Até então, sabia que era capaz de se camuflar e manter suas asas retraídas dentro do corpo, mas tal como supunham as carcereiras do Ministério do Rei, ela seria mesmo capaz de controlar as imagens e formas vistas pelos olhos das demais criaturas.

       Com um sentimento único no coração, algo entre satisfação antecipada e ansiedade, ela chegou à porta do quarto de Matilde.

       A humana deveria considerar que suas ameaças eram apenas palavras vãs de uma serviçal amedrontada tendo um arremeto de coragem passageira. Estava totalmente errada. Joan tocou o trinco da porta e este passou a fazer parte da ilusão criada por ela, e quando aberta Matilde não poderia ver que sua porta se movera. Seus olhos viam apenas a imagem de sempre.

       Dentro do quarto, Joan piscou para se acostumar com a luz parda das chamas das velas, e  lutou para não espirar pelo cheiro forte das velas derretidas.

       Matilde estava pronta para dormir, vestida em sua camisola pudica, cabelos soltos, que transava lentamente, pensando em algo que ocupava totalmente sua mente. Talvez na saúde recém recuperada de seu filho. Ou na briga tórrida com sua subalterna. Quem sabe ainda, um pouco de culpa por infernizar a vida de todas as outras moças desvalidas de proteção, como um dia a própria Matilde o fora?

       Eram conjecturas vãs. Nunca saberia o que pairava em sua mente, e sinceramente, não queria saber. Nesse instante tudo que desejava era uma pequena vingança. Como diria Alma, um ‘acerto de contas’. E as contas, até aquele presente momento, apontavam saldo negativo em relação a Joan.

       Sentindo um gostinho antecipado de euforia, Joan olhou para o cajado displicentemente apoiado na parede do quarto, soberano aos olhos de quem já provou do seu fel. Apesar de ter sido apenas uma vez, Joan ainda tinha as marcas nas canelas, ainda roxas, e que relutavam em curar totalmente.

       Queria evitar fazer algo que pudesse levantar suspeitas sobre sua descendência, nada tão drástico que fizesse Matilde ter o que falar na manhã seguinte, por isso, Joan aproximou-se do cajado e o empurro para o chão.

       O baque da madeira chocando com o chão acordou Matilde de seu transe. Assustada, a mulher levantou e esqueceu a escova de cabelos sobre a mesa. Imediatamente, Joan pegou e colocou a escova sobre a penteadeira.

       Matilde olhou em volta, e ao notar que não havia nada no quarto provavelmente deduziu ser um acidente corriqueiro. Recolocou o cajado no mesmo lugar e voltou para perto da cama. Estranhou a ausência da escova e quando a notou sobre a penteadeira, franziu as sobrancelhas com estranheza, mas não se abalou.

       Joan imaginava que por ter sido tratada como louca no passado, Matilde não teria coragem de contar nada do que acontecia para outros humanos, com medo de ser mal vista outra vez. Sufocando o riso, Joan aproximou-se da cama, e começou a mexer nos cabelos longos de Matilde, assustando-a.

       Dessa vez ela ficou realmente assustada. Procurou pelo invasor, enquanto se aproximava da porta. A chave havia desaparecido e a porta estava trancada por dentro. Joan correu para pegar o cajado e esconder sob a cama.

       Matilde mal sufocou um grito quando tentou se proteger recorrendo ao cajado e não o encontrou. Encolhida contra uma das paredes, ela segurou o crucifixo em seu pescoço e começou a rezar fervorosamente.

       Joan nem sabia que era capaz de desfrutar tanto de uma malvadeza dessas! Assustada consigo mesma, sentiu um prazer quase físico ao ficar parada do lado de Matilde e, sobretudo pertinho de uma das velas que iluminavam o quarto. Curvou-se e assoprou a chama, até apaga-la.

       Matilde olhou para isso em pânico. Seus reflexos demoraram um segundo para fazê-la agir e tentar alcançar a próxima vela, mantendo-a segura, e Joan foi mais rápida, assoprando uma a uma, até o quarto estar na mais completa escuridão.

       Matilde escorregou no chão, e ficou sentada, encolhida naquele canto, rezando e implorando por clemência.

       Como acontecia com as meninas ingênuas e desprotegidas que ela adorava ofender, enxovalhar com seus gritos e humilhações, e, sobretudo com seu cajado e os espancamentos que nunca tinham fim.

       Joan pegou uma das velas e a manteve em mãos, sentou-se ao lado de Matilde, para que ela sentisse a presença ao seu lado. Imóvel, tremendo a humana parou de rezar e ficou no aguardo da desgraça que poderia se abater sobre ela.

       Dividida entre pena e raiva, Joan conduziu seus olhos a verem a ilusão que desejava mostrar-lhe. Não era propriamente uma ilusão. Era um dos corredores da clausura, dentro do Ministério do Rei, quando uma das carcereiras, a pior delas, chamada Miquelina, humilhava e espezinhava as fadinhas com seus gritos, suas surras e humilhações gratuitas.

       As carcereiras vestiam túnicas longas, em linho antigo e amarelado. Cabelos presos em toucas fechadas e asas recolhidas, escondidas pela roupa. Naquele momento uma fadinha jovem, com uns doze anos, a própria Joan, chorava baixinho enquanto apanhava de cinto. Não precisava de uma razão para isso.

       Matilde não poderia reconhecê-la, mas bastava ver seu próprio comportamento refletido em Miquelina, pois nesse aspecto, humana e fada muito se assemelhavam.

       As imagens continuaram, principalmente quando uma das fadas mais velhas e enclausuradas havia surgido no fundo do corredor, usando uma das toucas e túnicas velhas, com pés amarrados, e asas cerradas. Estavam cicatrizadas, já fazia muito anos que estava presa na clausura.

       Pálida, feia pelos anos de sofrimento e apatia, a fada tivera um acesso de fúria inesperado, e avançara sobre Miquelina com uma fúria animalesca de quem não tem mais nada a perder e está com o juízo findado. Usando as mãos, a fada esganava Miquelina sem dó ou piedade.

       E o pior de tudo, era que as fadinhas jovens, apenas assistiam, sem interferir. Nenhuma delas ergueu um dedo para salvar Miquelina. Nem mesmo Joan, encolhida e chorando em um canto.  Nem um movimento de ajuda.

       A vida de Miquelina estava por um fio, quando outras carcereiras surgiram e retiraram a fada enclausurada de sobre a carcereira. A infeliz berrava e tentava se soltar, decidida a acabar de uma vez com sua desgraça.

       Uma das carcereiras, uma das mais antigas, deixou de acudir Miquelina e aproximou-se da fada que esperneava e tentava acabar com tudo e usando de seu dom, pousou uma das mãos na testa da jovem e foi lentamente acalmando-a.

       -Por favor, me salve – dizia a fada ao ir desfalecendo lentamente – me salve, por favor... Eu imploro, me salve... Eu não aguento mais... Salve-me...

       Quando a voz silenciou e a fada estava desmaiada a contida, as carcereiras começaram a se movimentar e arrumar toda aquela bagunça.

       Mas não importava se a bagunça podia ou não ser arrumada. O silêncio gritante queria dizer apenas uma coisa: fadas da clausura e carcereiras, ambas remavam no mesmo barco a deriva em um mar de solidão, abandono e sofrimento.

       Matilde não tinha ideia de que mundo era aquele, ou o quem eram aquelas pessoas, apenas assistia com olhos arregalados, de pânico completo. E quando Joan ascendeu uma das velas, deixando ao lado de Matilde no chão, levantou e saiu do quarto do mesmo modo que entrou, a governanta ficou para trás.

       Imóvel, incapaz de reagir, Matilde fitou a chama da vela.

       Ela fora avisada pela serva Joan que isto aconteceria. Aquilo não podia ser um truque, fora realístico demais. Também não poderia ser real. Uma vez, muitos anos atrás, Matilde se convencera que algo assim era real e isso acabou com sua vida.

       Com as mãos tremendo, ela pegou a vela e trouxe para junto de si, segurando-a com quase desespero.

       Não reparou que a chave estava de volta na porta e que ela poderia sair quando bem quisesse. As teias do medo haviam envolvido-a e Matilde não tinha certeza de como prosseguir, como agir depois de algo assim.

       Não podia deixar a serviçal vencer essa batalha. Não mesmo. Não possuir o título de Duquesa não queria dizer que aquele ducado não lhe pertencesse. Era ela quem ditava as ordens. E continuaria sendo assim enquanto vivesse. Cuidaria de seu filho e de seus netos e lutaria por eles com unhas e dentes, mesmo que para isso, ela precisasse enfrentar Joan e submeter-se a esses delírios de loucura.

       Matilde fechou os olhos lembrando-se dos gritos implorando ajuda. Sim, era esse o final de quem coage e de quem é coagido. Uma estrada sem volta. Nunca há um vencedor.

       No final, todos perdem.

 

       Em uma estrada, não muito longe do forte Mac William, uma caravana de carruagem e carroças acampava na beira da estrada. Muito bem protegida, uma jovem desfrutava de um pequeno descanso perto da fogueira, depois de espichar um pouco as pernas cansadas de permanecerem tantas horas sem exercício, tantas horas sentada em uma carruagem.

       Sua pajem entrava comendo o jantar, perto da fogueira acesa para os serviçais.  A jovem pensava em seu irmão e na chegada abrupta ao forte Mac William. Não queria se casar com um completo desconhecido. Estava apaixonada por um homem justo e bom, mas não lhe fora dada escolha. Seu irmão escolhera seu marido, e dada à situação de sua família com a morte de Howard, casar-se com o Duque era sua melhor alternativa.

       A jovem nunca foi nada além do que submissa. Ela observou o céu e lamentou a ausência de estrelas. Sua serva sorria muito para um dos cocheiros, e quando ambos saíram à francesa e desapareceram entre as árvores, a jovem corou e afastou os olhos, pois sabia muito bem o que fariam.

       O mesmo que ela fazia escondida com seu grande amor. Um a um os empregados encontraram um canto para se recostar e dormir. Ela não tinha sono, e permaneceu acordada. Andou pela estrada, mesmo que não fosse muito longe. 

       Não sentia sono, pelo contrário, estava inquieta com a chegada eminente. No dia seguinte ela estaria diante do noivo e quem sabe, até o final daquele mesmo dia se tornasse a Duquesa Mac William, amada esposa e cordata madrasta de três crianças.

       A jovem olhou para o céu e pensou ter visto uma estrela cadente, algo em cor de ouro escuro, cortando o céu. Olhou em torno, sem ver o que era.

       Distraída não percebeu o que era até ser atacada.

       Zoé alçou um voo firme e compassado, levando consigo o peso da jovem sequestrada. A infeliz havia desmaiado de medo ao ser erguida do chão e levada em um voo alto por sobre a copa das árvores.

       Humana estúpida, como todos os outros humanos eram estúpidos e insípidos. Com a velocidade de quem conhece a região e esta habituada a voos longos, Zoé demorou mais de duas horas para chegar ao seu destino.

       Em meio à floresta que margeava a Vila dos Desesperados, ela pousou os pés no chão e com agilidade e força que lhe era peculiar, principalmente ao usar a armadura, jogou a humana em seu ombro e avançou na direção do casebre.

       A velha duende sem nome esperava-a na porta.

       A fêmea de duende era conhecida por serviços pouco ortodoxos e por ser silenciosa e de confiança. Aquela era a criatura certa para esconder e guardar um perigoso segredo.

       -Preciso que ela esteja intacta quando vier buscá-la – avisou a duende mais uma vez, lembrando-a do acordo.

       -Precisará disso para calar as perguntas dos humanos – a fêmea lhe disse empurrando para ela um saco com moedas de ouro humanas. Eram moedas menores, diferentes das usadas no mundo mágico.

       Fechando o saco de veludo, Zoé amarrou-o na cintura e olhou para a jovem desmaiada no chão, aos pés da velha duende.

       -Não podem comercializar esta humana ou troca-la por qualquer outro bem. Preciso dela de volta em breve. Está me entendendo?

       -Claro que sim. Não é a primeira vez que faço isso. – ela disse séria como sempre – Eu fiz um serviço bastante parecido para uma conhecida sua. Talvez tenha interesse nesta informação. São duas moedas de ouro e lhe conto o que fiz e tudo que sei – ela barganhou.

       Zoé analisou a velha duende, capaz de trocar a própria vida por ouro, e perguntou:

       -Quem é esta conhecida?

       -Miquelina. Uma das carcereiras do Ministério do Rei – ela disse com empáfia e Zoé fez uma expressão de escárnio antes de dizer:

       -Acha que pagarei duas moedas de ouro para saber dos serviços obscuros de uma carcereira da clausura? Está louca. Não me importo com o que as ratazanas fazem em suas tocas. Cuide dessa humana, lhe dê de comer e beber, e não a deixe sair da cabana e ver nosso mundo mágico. Eu venho busca-la em poucos dias e lhe trago o restante do pagamento.

       A velha duende apenas acenou concordando. Não insistiu em lhe vender a informações sobre a carcereira da clausura e quando Zoé partiu riscando o céu com suas asas longas e verdes,e a velha duende fitou a humana desfalecida aos seus pés.

       Graças à arrogância da Guardiã, não lhe contara uma informações vital que mudaria totalmente seus planos.

       Era uma comerciante, não podia entregar informações e sim vendê-las. Por isso, um preço tão baixo, quase simbólico, apenas duas moedas de ouro.

       Queria ter lhe contado que Miquelina a pagou para manter a fada fugitiva da clausura Alma resguardada e em segurança, enquanto aguardava, cheia de esperanças, que o Primeiro Guardião encontrasse e acreditasse na fada Eleonora, após ver suas asas. Que Reina e Miquelina acreditavam na inocência das fadas fugitivas e esperavam há anos por esse momento, um momento previsto pelo dom de Miquelina.

       Que neste momento, Alma estava em segurança, após descobrir que Eleonora era Rainha e Santha e Lucius haviam sido derrubados do poder.

       Ao saber disso, a Guardiã se reportaria imediatamente ao reino e sua nova rainha e obteria novas ordens. Resgatar a fada Joan, em lugar de caça-la.

       Mas a velha duende não podia dar uma informação. Ela apenas vendia informações. Era contra sua natureza e graças a isso, a Guardiã sovina continuaria caçando vento e tempestade, sem saber que a bonança havia chegado ao reino de Isac.

 

       Joan ansiava pelo momento de ver Matilde na manhã seguinte. Não havia conseguido dormir nada, na expectativa de ver sua opositora e descobrir os benefícios que alcançara ao mostrar-lhe que seus erros tinham consequências.

       Observava Molly e Liara conversando sobre seus envolvimentos românticos, pois Molly andava trocando beijos com um arqueiro, que cuidava da proteção do forte, sempre de guarda na torre mais alta da murada de fora, junto ao portal principal.

       Liara, por sua vez, tinha um namorado secreto, e pelo corado em sua face, Joan sabia que deveria ser alguém problemático, talvez comprometido. Uma provocava a outra, e naquele reboliço de vozes de jovens, Joan quase não notou a porta do dormitório ser aberta com força e brutalidade.

       A forte batida calou as vozes. Matilde, vestida com seu mais sóbrio vestido azul escuro, em veludo pesado, abotoado até a altura do queixo avançou pelo pequeno quarto e para surpresa de Joan, avançou até sua cama, onde Joan ainda estava deitada, vestindo apenas uma camisola fina e larga, presente de Molly que se desfizera daquela roupa usada com uma desculpa qualquer, que mascarava seu único desejo de ajudar alguém em situação ainda pior que a sua, e num ataque premeditado, Matilde atacou-a de sobre a cama pelos cabelos.

       -Eu vou mostrar onde é o seu lugar neste castelo, sua imunda fedorenta! – ela esbravejava, enquanto seguia um turbilhão de palavrões, arrastando-a pelo chão, pelos cabelos.

       Faltava força física para que Joan conseguisse escapar, mas conseguiu ao menos ficar de pé, e tentar puxar os cabelos das mãos de ferro de Matilde, o que foi em vão.

       Gritando, ela tentava se soltar, sem notar que no meio daquele escândalo todo, as servas as seguiam horrorizadas, e sem cuidado com as próprias vestimentas, seguiam-nas pelos corredores.

       -Você quer medir forças comigo, não é? – Matilde gritou, em determinado momento, parando de andar e sacudindo sua cabeça com força enquanto fitava seus olhos com verdadeiro frenesi de ódio.

       Depois que o medo passou ela foi tomada de um ódio incondicional, de mostrar quem vencia no final.

       -Você quer tomar meu lugar no forte? Você quer meu lugar no coração do Duque? Quer tudo que é meu? Eu vou lhe dar o que você quer! O que vem pedindo desde que chegou aqui! Eu vou lhe dar o que você merece!

       Esse grito, em particular, fez Joan tremer por dentro, mas não chorar.

       Havia decidido não chorar mais. Matilde não valia suas lágrimas, mesmo que a dor estivesse sufocando-a.

       -Me solte! Eu lhe juro Matilde, se não me soltar essa noite você vai pagar por isso!

       A ousadia de chama-la diretamente pelo nome e a ameaça rivalizaram no conceito de Matilde sobre provocação e ousadia.

       -Mil noites em claro não me farão permitir sua ousadia! Eu espero que goste do seu lugar, criatura sem valor, porque de hoje sua estadia neste castelo não passa!

       Joan se calou diante da última ameaça e quase sentiu alivio ao descobrir que havia chegado a um lugar e que aparentemente Matilde não pretendia expulsá-la pelos cabelos do castelo.

       -Aqui! Este é seu lugar!  - ela a arrastou de tal modo que Joan foi lançada ao chão quando Matilde parou e soltou seus cabelos.

       -Está diante do lugar que tanto deseja! O lugar que me pertence! – Matilde disse-lhe encarando os demais presentes.

       Joan ergueu a cabeça, e calou qualquer ofensa que pudesse dirigir a Matilde.

       As duas haviam chegado a um ponto onde diálogo não existia mais, apenas ofensas e ameaças e Joan não estava disposta a abrir mão dessa briga.

       Vencer Matilde seria como expurgar todos os fantasmas passados que ainda a assustavam.

       Estava na sala de jantar principal, onde nunca antes presenciou um jantar ser servido.

       A longa mesa estava arrumada com o café da manhã, e pela primeira vez em semanas, a família Mac William toda reunida em torno da mesa longa de madeira.

       O Duque na cabeceira, seu irmão Edward ao seu lado esquerdo. Ao lado direito uma cadeira vazia. Na sequência, Alice, Tommy e o pequeno Marmom.

       Com uma mesura, Matilde virou-se para o duque e disse:

       -A serva tem causado arruaça, meu senhor. Desejo puni-la como merece ou envia-la de volta para o vilarejo. Sempre foi do meu cuidado as decisões referentes aos empregados. Se houver mudança quanto a isso, estarei plenamente feliz em abdicar do meu cargo e partir eu mesma para o vilarejo.  – ela disse olhando fixo para o Duque – E farei isso ainda hoje. – frisou a ameaça com voz seca.

       Rowell olhou de sua mãe, altiva e furiosa, mascarando os sentimentos com uma expressão de indiferença, e então para Joan, largada no chão, vestindo apenas uma roupa fina de dormir, que revelava ombros delicados e claros, macios e tentadores. Cabelos longos por todos os lados, bagunçados e despenteados.Ruivos e brilhantes.

       Sua face pálida, assustada, mas, sobretudo os olhos acusadores. Verdes, límpidos e puros, E, sobretudo furiosos cobrando uma atitude do duque!

       Humilhada, espezinhada e agredida.

       Se ele acudisse uma delas, perderia a outra. Era fato.

       -É o primeiro dia que partilho de um passeio pelo castelo após semanas de convalescimento – ele disse com voz aparentemente calma, pois várias empregadas espiavam pela porta aberta, aguardando ver qual das duas seria a vitoriosa – Meu primeiro café da manhã em família depois de tanta espera por minha recuperação. Como podem ver, meus filhos estão na mesa. Meu irmão está na mesa. Eu tenho assuntos mais importantes a lidar do que intrigas entre serviçais.

       -Se esta mulher ficar sem punição, eu partirei ainda hoje. É minha última palavra, Duque Mac William.

       A voz de Matilde não deixava alternativa. Ele sabia que Joan se vingaria e pela fúria de Matilde havia alcançado seu intento, mas sem esperar pela retaliação.

       -A comitiva que trás minha noiva foi vista aproximando-se do forte. Não posso dispor de servas nesse momento, quando o trabalho deve aumentar. Sei que é plenamente capaz de resolver esse problema do seu modo, Matilde.  – ele disse tornando a dedicar sua atenção ao café da manhã como se isso não lhe importasse.

       Sorrindo vitoriosa, Matilde olhou para Joan como quem olha para um inseto:

       -Volte para seu quarto, vista-se e recomponha-se. Pense em sua insubordinação, e mais tarde, lhe darei a punição adequada.

       Joan olhou para a mesa mais uma vez, notando que o irmão do Duque bebia seu vinho, achando muito divertida a situação toda.

       É claro que a cobra peçonhenta que era Matilde sabia muito bem que o filho nunca a deixaria partir do forte. Sentia magoa do Duque, mas não raiva.

       Tremendo, pois sentia dor no corpo todo, levantou e quase cambaleou. Antes de sair, no entanto, virou-se para Matilde e pretendia sair, antes que o choro de revolta viesse à tona.

       Mas a injustiça do destino sempre nos trás mais magoa. Sentiu algo agarrar suas canelas e quando olhou para baixo encontrou Marmom olhando para ela com idolatria e um sorriso fácil na sua boca cheia de dentinhos humanos que em breve cairiam e daria lugar a sua dentição definitiva de homem-lagarto.

       -Não, Marmom – ela disse com voz embargada – Agora não.  – soltou suas mãos de suas canelas e quase correu porta a fora.

       No corredor, Molly tentou ajuda-la, mas ela desvencilhou-se de suas mãos e disse:

       -Me deixem em paz!

       Correu pelo corredor, mas não em direção ao quarto das servas. Camuflada ela percorreu os corredores até o quarto de Matilde, entrou e pegou o cajado.

       Com ódio, desejou quebrar o quarto todo, mas não fez isso. Não mesmo. E pegou o cajado e as cartas de Matilde.

       Agora sim, a guerra estava de igual para igual!

         

       Matilde encontrou-a vestida, penteada e sem marcas de choro, esperando por ela no quarto das serviçais.

       Mal entrou e Joan levantou da cama e disse séria:

       -É bom pensar bem antes de encostar um dedo em mim outra vez. Dessa vez você tem muito a perder. Eu peguei suas cartas – foi direto ao ponto e para surpresa de Matilde o cajado surgiu nas mãos de Joan como que por magia.

       A outra engoliu em seco e Joan moveu o cajado de um lado para o outro nas mãos.

       -Eu gostei de carregar isso. Você tem razão de usa-lo. Deve ser bem útil quando se é coagido, não é? Se eu tivesse ele em mãos hoje cedo... Você não teria me machucado mais uma vez.

       -Me devolva. Isso é meu. – ela ergueu a mão exigindo que devolvesse o cajado.

       -Não. De agora em diante, nunca saberá quando eu terei isso comigo. Quando vou usar contra você. Eu também sei bater, principalmente quando a luta é injusta. Sua humana nojenta, você acha que só você no mundo sabe bater? – ela aproximou-se com o cajado nas mãos e encostou-o na bochecha de Matilde – Eu quero te respeitar. Mas é muito difícil. Prepare-se... Ontem a noite foi só o aperitivo.

       -O que você é, sua imunda? – Matilde perguntou com nojo na voz.

       -Seu pior pesadelo? – Joan provocou – Eu poderia ser sua amiga, lhe contar tantas coisas... Mas você não quer amigos. Você quer ver choro. Mas eu cansei de chorar.

       -Você é exatamente como ela – disse Matilde – Anos atrás eu conheci alguém exatamente como você. E ela acabou com minha vida. Eu não vou deixar isso acontecer de novo.  – avisou – De hoje em diante você cuida da lavanderia junto com as outras criadas. Vai cuidar da roupa. – o sorriso de vitória de Matilde era doentio.

       -Desde que eu não precise ficar olhando para sua cara, para mim está ótimo – Joan provocou.

       -A noiva do Duque Mac William está chegando e eu não quero ver você perto da jovem. Eu quero que mantenha distância. Não permitirei que destrua o casamento do duque.

       -Do seu filho – ela corrigiu e Matilde estreitou os olhos, e num gesto audaz de quem está perdendo o controle, tentou tirar o cajado das mãos de Joan.

       Joan era pequena demais para lutar com ela, mas tomada de uma fúria igualmente potente a força física de Matilde lutou pelo cajado a ponto de cair sobre Matilde no colchão da cama.

       As duas iriam sempre se engalfinhar. Quando Matilde tentou agarrar seus cabelos descobriu que a estratégia de amarra-los em um coque era proposital, pois assim Matilde não tinha onde agarrar. Matilde tentou unha-la, mas Joan usou o cajado para imobiliza-la. A madeira embaixo do queixo de Matilde, e ela ficou sem ar, e parou de se mexer.

       -Vai ser assim daqui para frente. Você me bate, e eu te bato de volta. Você sai do meu caminho e eu saio do seu. Eu não quero seu lugar. Você é a mãe de Rowell! Eu? Eu quero ser outra coisa... Eu quero ser a mulher dele! – nem mesmo ela sabia que essa revelação estava a caminho. - Se ousar me bater de novo, ou a qualquer outra criada, eu juro que rasgo suas cartas, uma a uma. - notou que Matilde olhava em volta e sorriu de modo doentio, com o mesmo veneno que sempre lhe dispensara - Nem adianta procurar, do jeito que eu escondi... Você nunca vai achar.

       Confusa com o que fizera, e de onde saíra tanta coragem, afrouxou o aperto do cajado e desmontou de sobre a governanta. Ajeitou o coque que Matilde quase desfez com as mãos, mas lhe disse petulante:

       -Vou cuidar do meu serviço. Alguma recomendação, senhora?

       Matilde não respondeu nada, sem palavras e Joan tomou aquilo como um não e saiu do quarto.

       Finalmente, pensou. Finamente ela havia se defendido. E o sentimento de se proteger e não ser coagida era maravilhoso!

 

       O gosto do poder era saboroso. Por isso que Alma não abdicava de impor respeito usando da força e coação e por mais que não concordasse, Joan não podia dizer que não possuía um fundo de razão em ser assim.

       Joan sabia onde ficava a lavanderia do castelo, mas nunca estivera ali antes. Aturdida, fitou o movimento intenso e algumas servas que ela conhecia principalmente as que dormiam em seu quarto, dividindo dormitório.

       Uma delas ao vê-la, empurrou-lhe um enorme avental branco, quase um casaco, e uma touca branca. Todas usavam isso, e Joan vestiu-se rapidamente, seguindo-a em direção aos tonéis.

       Tonéis gigantescos onde água borbulhava e cozinhava os tecidos sujos dos lençóis e roupas usadas pelos cavaleiros, escudeiros e arqueiros.

       A criada lhe explicou que ali era preciso atenção redobrada para não se queimar. Alguns cozinhavam também tinta para modificar a cor de alguns tecidos.

       O calor intenso corou suas bochechas e suor surgiu em sua testa. Rapidamente esse suor corria por todo seu rosto, pescoço e formava manchas escuras em sua roupa.

       O trabalho era pesado demais para moças. Mesmo assim, precisava ser executado e Joan não reclamou em nenhum momento. Tudo para ficar longe de Matilde.

       Joan descobriu que o trabalho era intenso e parecia não acabar nunca. Elas comeram o almoço rapidamente, servido em uma pequena saleta anexa a lavanderia e ela imaginou que a causa disso fosse o cheiro intenso de produtos de limpeza que impregnava suas roupas e corpos e que estragaria totalmente o apetite de qualquer outro trabalhador do castelo caso se juntassem e a eles na cozinha principal.

       Apesar de todo trabalho pesado e toda a tensão acumulada durante a manhã, Joan conseguiu aproveitar a conversa e o alimento. Quando retornaram ao trabalho, foi uma das criadas a ajudar a levar as roupas lavadas para os varais. Gigantescos varais escondidos dos olhos de todos, em um canto escuro do castelo, onde poderiam esticar as roupas de cama e deixa-las quarar.

       Uma a uma foram estendendo as peças de roupas ao som das vozes que conversavam assuntos humanos de suas vidas. Muitas palavras e discrições Joan não compreendia e se eximia de responder.

       Em determinado momento, uma das criadas avisou-a sobre terminar de dependurar os lençóis, pois voltariam com mais roupas em breve. Ela não conseguia carregar o peso todo sozinha e era mais útil estendendo as roupas.

       Sua roupa estava bastante molhada, e ela cansada. 

       Pensou ter visto um vulto entre os lençóis esticados nos varais e andou entre eles, procurando a imagem que se afastava e aproximava conforme sua vontade. Assustada com a possibilidade de ser uma ameaça, seu coração culpado saltitava dentro do peito quando afastou um dos lençóis molhados e não enxergou nada.

       Aturdida, Joan quase gritou assustada quando alguém a segurou por trás. Uma mão enorme em sua barriga, cingindo-a contra o corpo de um homem. Um humano, ela sentiu cheiro de humano.

       Sem ar, e dessa vez, sem medo, Joan esperou. Um queixo coberto por barba rala roçou em seu pescoço e arrepiou-se da cabeça aos pés quando foi beijada exatamente entre a curva do pescoço com o ombro. Segurou sobre aquela mão possessiva que a mantinha imóvel e embora mantivesse os olhos fechados, desfrutando da caricia, precisou empurra-lo e soltar-se.

       Virou-se para encarar Rowell que de pé, vestido e retomando sua postura de Duque Mac William começava a lhe parecer deveras perigoso para seu juízo de fêmea. Com seus instintos ela podia farejar a excitação dos corpos animais, e não era imune ao que se passava entre os dois.

      Mesmo entre raças diferentes, às vezes, a compatibilidade pode ser total, e a raça humana e a sua não eram fisicamente tão desproporcionais.

       -Está com raiva por que eu acatei o pedido de Matilde - ele verbalizou a razão de sua raiva e Joan o ignorou, fingindo interesse em pegar mais um lençol na imensa bacia que jazia no chão do gramado e estende-lo no varal. - Fui pego em uma armadilha perigosa e a culpa é das duas. - Joan olhou para o Duque e ele manteve o olhar - Se eu desautorizasse Matilde, colocaria a criada Joan em uma posição difícil. Todos a tratariam como uma privilegiada dentro do castelo. Metade dos criados iria trata-la como minha amante, a outra metade despreza-la. Se eu apoiasse totalmente você, eu perderia minha mãe. E se apoiasse totalmente Matilde, perderia você. De um modo ou de outro, eu sou o único que perde. - ele avisou como quem pede desculpas.

       -Você não perde nada! - ela lembrou-o disso - Eu não o culpo por tomar um partido na situação. É sua mãe, você tem o dever de defendê-la.

       Joan sacudiu a água de uma túnica com tanta força que acusou sua raiva eminente.

       -Acontece que eu tomei partido muito antes da briga das duas. Ontem à noite, quando me pediu permissão para se vingar de Matilde, eu tomei o seu partido, Joan. Eu a apoiei nessa luta contra Matilde, mas ela não sabe disso. Você sabe. E você não pode me julgar por entrega-la aos lobos e permitir que as duas lidem com a situação que criaram.

       Era uma grande verdade.

       Joan parou de trabalhar, água respingando entre eles, e disse resignada:

       -Sabe o que acaba comigo? Eu gosto dela! Eu gosto de Matilde! Eu nunca pensei que poderia gostar e odiar uma pessoa na mesma medida! Como isso é possível?

       -O amor e o ódio são amigos íntimos, Joan. Quando um trai a confiança do outro, o caos se instala - Rowell deu um passo em sua direção, e Joan manteve o olhar preso ao seu, desfrutando desse momento.

       O Duque vestia uma camisa de linho com tiras intercalçadas em seu peito que a mantinha fechada, mas não escondia o peito amplo e coberto por pelos escuros. Ele usava um casaco estranho, ricamente bordado, e ela imaginou que fosse a vestimenta dos nobres humanos. A calça colada ao corpo e as botas muito se assemelhavam as dos elfos. Mas o material era totalmente diferente.

       Rowell era diferente quando em seu habitat natural. Fora da prisão que o quarto e o convalescimento representavam, o duque era completamente diferente. Sua voz mais grossa, menos tênue. Sua postura totalmente ofensiva. Joan moveu os pés em um passo desajeitado, não por querer fugir dele, ou temer suas ações agora que recuperara suas forças e sua saúde, mas sim, por temer o que aconteceria entre eles se não fugisse a tempo.

       As besteiras que ela faria por não pensar direito, envolvida por seu cheiro e sua presença. Às vezes esquecia que estava em pleno cio. Entre humanos ela não sentia os efeitos de sua situação atual, mas quando Rowell a olhava... Ela sentia algo muito forte. E perigoso, pois se não é pele e carne, é coração e alma, e nesse caso, como ela poderia esquecer-se dele e seguir sua vida?

       -Não vou causar-lhe problemas, Rowell. Vou resolver minha situação com Matilde e você não deve tentar me defender. Sou apenas uma criada e nem ficarei aqui tempo o suficiente para ser mais do que isso - disse triste com essas palavras.

       -Eu não posso evitar defende-la. Depois de tudo que fez por mim, Joan... Eu não estaria aqui, de pé olhando para seu belo rosto, se não houvesse cuidado de mim e me salvado de uma vida de tristeza e padecimento. Eu preciso retribuir tudo que fez por mim.

       -Eu não quero sua gratidão. - Joan maneou a cabeça, ofendida com essa possibilidade. - Tudo que eu não quero é sua gratidão. Eu não lhe dei nada, ou fiz algo estupendo. Se não fosse a ignorância de sua raça... Estaria curado pelos seus e não precisaria de mim. A natureza lhe deu a chance de viver, a sorte o fez sobreviver ao ataque ao seu forte. Eu? Apenas busquei as ervas corretas para seu tratamento. Se o seu povo não fosse ignorante sobre muitas coisas... Saberiam onde encontrar e para que servem essas mesmas ervas. - explicou.

       Quando falava assim, o duque não a compreendia.  Um abismo se abria entre os dois.

       -Eu fico fascinado quando você fala assim - ele admitiu, e Joan não notou sua proximidade, perdida em seu olhar castanho esverdeado. Rowell andou entre os lençóis molhados e encurralou-a junto a um deles, o mais pesado, que molhava suas costas.

       Joan nem tentou resistir. O pensamento de fugir era inaceitável. Foi beijada com o mesmo empenho das outras vezes. Calor imediato à fez agarrar-se ao pescoço do duque. Entrelaçando os dedos em sua farta cabeleira negra, enquanto ele a abraçava pelas costas, apertando-a tanto e tão próxima quanto possível.

       Uma das mãos subiu para seu cangote e ela gemeu quando a língua alcançou a sua e a provocou sem folga. A outra mão desceu muito e apertou a carne de suas nádegas, por sobre o excesso de roupa e Joan saltou em seus braços, assustada com a ousadia do toque, entregando-se ainda mais ao calor do momento.

       Nunca estivera envolvida em um arremeto de paixão. Ela sabia a teoria de como acontecia, pois Driana era uma leitora voraz e lia todos os livros que lhe caiam em mãos, sobretudo, os livros proibidos e roubados dos quartos das carecerias, geralmente roubados por Eleonora. Em companhia dela, pois Joan sempre acompanhava Eleonora em qualquer bagunça e quebra de regras que desejasse fazer, em busca de alguma fictícia adrenalina, em meio aquela vida de monotinia e sofrimento.

       Esses livros eram pesados e com relatos bastante eróticos sobre o que acontecia em meio ao cio de uma fada. Sem contar as informações obtidas das conversas secretas entre as carcereiras que vez e outra bebiam elixir proibido e falavam de suas obscenidades em meio a riso histérico e muito choro bêbado.

       Joan sabia que em pleno cio, a fêmea perde o controle de seu lado animal e acaba sendo muitas vezes agredida e ferida por despertar o mesmo instinto em um elfo. Era culpa dos instintos. Por isso era viável ter um parceiro previamente escolhido antes do cio, ou durante ele, para que esse macho pudesse ser preparado e escolhido de acordo com a família da fada.

      Joan nunca imaginou que entre humanos, algo assim pudesse acontecer. Sobretudo entre eles dois. Até então estiveram envolvidos em uma suave paixão, que a envolvida quando nos braços do duque. Mas recuperado fisicamente, o humano demonstrava não apenas força e personalidade, mas também uma sexualidade forte e impaciente.

       Ela tentou segurar seu braço e conter suas mãos, mas foi uma tolice, pois ela queria esse contato mais do que tudo.  Rowell aproveitou-se de suas curvas, apertando nádegas, coxas e assumindo a permissão para tentar erguer sua saia.

       Joan nem percebeu como eles acabaram contra o muro de pedras que separava o pátio dos fundos do restante da ala dos serviçais. Ofegante, Joan sussurrou seu nome enquanto agarrava sua cabeça, acariciando seus cabelos como um incentivo. Rowell correu os beijos por seu pescoço e encontrou a curva de seu ombro, desnudando o máximo possível que conseguiu de pele, antes de subir a cabeça outra vez e devorar seus lábios em um beijo forte.

       O corpo pesado a pressionou inteira, completamente coberta por seus músculos e a presença envolvente do seu humano escolhido. Joan agarrou o casaco, nas lapelas, e o puxou com força, obedecendo aos instintos sobrecarregados, sendo plenamente atendida por Rowell, que afastou suas saias o suficiente para encaixar-se entre suas pernas.

       Incapaz de pedir que parasse, ou que continuasse, ela apenas deixou que o momento acontecesse.

       -Eu vou escrever ao Rei – ele disse sem fôlego, quebrando o beijo, uma das mãos pousando sobre seu seio, olhos fixos nisso, como um toque de reverencia, que imprime todo um secreto desejo, guardado no fundo de um coração que nunca conheceu um amor verdadeiro – Eu a quero como nunca antes aconteceu. Eu a quis quando era apenas uma voz no corredor. Quando era apenas uma ideia na minha cabeça. Joan, eu não vou deixa-la se afastar de mim.

       -Não – ela negou, sem ar, sem notar a tentação que representava, oferecendo o peito para seu toque, mesmo que inconsciente a isso – Você não pode fazer isso, Rowell. Sua promessa, você não pode esquecer-se da sua promessa....

       -Eu não quero esquecer da minha promessa, Joan, farei tudo que puder pela jovem que Howard deixou sobre minha proteção. Encontrarei um marido e uma posição para ela. Mas não posso me casar com outra depois de conhecer você, Joan. Não posso. – ele foi tão incisivo que a deixou repleta de esperanças de uma vida ao seu lado. Encostou a testa na sua, com um sorriso de quem finalmente abriu seu coração e está feliz por isso – Sempre fui obediente ao Rei e nunca houve desavenças entre nós. Eu acharei um modo de negociar com ele. A situação nunca foi aprovada totalmente pela corte. Eu posso encontrar uma brecha para escapar disso. - ele não lhe falaria sobre o preconceito do Rei a cerca de um nobre casar-se com uma mulher de cor. Lhe falaria apenas sobre as coisas bonitas. Sorrindo, completou - O que temos é maior do que tudo. Antes eu era um homem sem opções, em uma cama sem esperanças. Mas agora eu sou capaz de gerir minha própria vida e lutar pelo que eu quero e pela minha família. Lhe ofereço meu coração, minha proteção e minha família. Diga sim, e me caso com você hoje mesmo – ele ofertou.

       -Eu diria sim – ela ofegou ao dizer, sufocando os sentimentos – Eu poderia dizer sim, Rowell e ser feliz a vida toda com a escolha que fiz! – ela correu os dedos pelos cabelos do duque e fixou os olhos nos seus, para que soubesse que era sincera. Que suas palavras continham apenas a verdade de seus sentimentos – Apesar de todas as nossas diferenças, de nossas raças não serem compatíveis e de tudo que eu perderia com essa união... Eu ficaria com você para sempre. – admitiu, mesmo que para ele não fizesse sentido.

      Ela pensava em suas asas e no fato de nunca poder plenamente usa-las, como as outras fadas faziam, ou do fato de viver entre pedras e construções, ao invés de perto das florestas, junto da mãe natureza, que tudo rege e cria. Um ser mágico precisa desse poder, dessa energia e ela perderia o convívio com seu povo, com as criaturas semelhantes a ela.

       Mas por Rowell e esse amor imenso que sentia, abriria mão de tudo isso!

       Com um sentimento de tristeza, ela piscou para não chorar e contou:

       -Eu tenho um amor no peito, Rowell, que carrego dentro de mim desde o berço. Eu não posso trair esse amor, ou renega-lo. Eu tenho três irmãs de nascimento e não de sangue, e elas são tudo para mim nesse mundo. Eu falei sobre elas, como eu as amo. Eu as amo desde sempre. Eu não me lembro de mim mesma sem a companhia delas. Desde o berço, Rowell. Enfrentamos tanta coisa juntas... Tanto sofrimento, tanta coação. Tanto desespero! Eu não posso simplesmente virar as costas para elas e construir uma vida feliz. Eu preciso ajuda-las, eu preciso esperar por elas, e, sobretudo, eu preciso partir por elas! Quando for a hora, elas me buscarão e eu preciso segui-las para onde o destino as levar. Seja perto, ou longe. Eu estarei pensando em você o tempo todo, mas não posso ficar e ser feliz sem elas. Eu não poderia trair quem salvou a minha vida de todos os modos possíveis. Sem elas, eu nunca teria suportado o Ministério do Rei por toda uma vida de angustia. Nem um dia, Rowell. Eu não teria sobrevivido um único dia sem elas... – no calor da emoção ela revelava fatos que não queria; que não fazia sentido aos ouvidos de um humano. - Eleonora sempre me alegrando com suas brincadeiras, com seu riso fácil... Sempre querendo me mostrar coisas bonitas e me fazer sorrir mesmo nos piores momentos. Driana... Você não tem ideia de quantos riscos ela correu até hoje atrás de remédios e conhecimento para me ajudar nas minhas crises... Sempre tão esperta, pensando em modos de aliviar as punições e me livrar de mais dor. Alma... Olhe, eu nunca poderia deixar Alma. Ela anda no limiar do certo e do errado. Eu não poderia abandona-la, nunca, jamais faria isso! - eram palavras de desabafo, não queria de fato lhe contar sua intimidade, pelo medo de serem ouvidos, mas não podia conter a verdade, pois precisava que ele entendesse o que sentia. - Eu não posso virar as coisas para elas! Porque eu sei que em meio a todo o medo, elas buscam por mim. Elas lutam pela liberdade, e eu sou a última a ser buscada, eu sou aquela que tentaram proteger mesmo quando não há mais o que proteger!

       Rowell segurou seus braços, gentilmente, pois Joan gesticulava muito, nervosa e emotiva, pois abrir mão dele não fazia sentido em sua mente e lhe disse baixinho para acalma-la:

       -Minha proteção estende-se a elas, Joan. Eu não as conheço, mas as protegerei com minha vida, se esse for o preço para ter você em minha vida.

       Era uma promessa tão linda. Tão verdadeira. Tão apaixonante, que Joan não respondeu apenas beijou-o com sofreguidão e desespero apaixonado de quem abria mão de um grande amor.

       Rowell correspondeu, e quando Joan o soltou, lágrimas brilhavam em seus olhos, e sua decisão de não mais chorar, havia caído totalmente por terra.

       -Eu não posso. – ela sussurrou desesperada – Me perdoe, duque, eu quero, mas não posso.

       Claro que o humano não entendia a profundidade que Joan carregava dentro de si. Ele via uma jovem apavorada por uma vida sofrida e sem esperanças, e sabia que com o tempo curaria suas feridas e construiria ao seu lado uma bela vida e uma família feliz. Era questão de tempo.

       Por isso, Rowell a beijou outra vez, deixando aquele assunto de lado.

       Joan deixou lágrimas molhando sua face enquanto o beijava com todo sentimento que carregava dentro de si. Segurou o rosto de Rowell com ambas as mãos para acaricia-lo enquanto ainda podia. O beijo teria evoluído para a mesma paixão desenfreada de antes se um pigarrear alto não os assustasse.

       Pega no flagra, Joan sorriu apesar dos pesares.

       Seu coque desfeito, mexas soltas por todos os lados, desfeito pelos toques apaixonados de seu futuro amante, face corada, lábios machucados dos beijos... Ela sorriu, não por alegria, mas porque o olhar de raiva reprimida de Matilde valia um sorriso.

       -Sua prometida finalmente chegou – ela disse com voz mordaz e satisfeita – A comitiva está no portão esperando sua permissão para entrar, Duque Mac William.

       -Faça o que tem que fazer, Matilde – ele disse com um olhar incerto – Eu já vou.

       -A demora demonstrará escárnio para com sua noiva, Rowell – o modo sério e petulante de Matilde finalmente conseguiu tira-lo da sua rotineira calma para com os caprichos de sua mãe.

       -Eu já fiz o que você queria uma vez neste dia, mãe. Não peça mais de mim do que posso dar. A permissão está dada. Estarei com eles em alguns minutos.

       Era raro ouvir Rowell chama-la de mãe, pois temiam ouvidos curiosos e boatos que pudessem causar dúvidas sobre o direito dele ao título de Duque Mac William. Mas Matilde conseguia tirar até mesmo um homem pacato de seu eixo. Ela enlouquecia qualquer ser racional!

       -Essa não é uma boa ideia. Um Duque precisa saber seu lugar e suas obrigações...

       -Eu já disse que estou indo – ele reafirmou, saindo do sério.

       Desistindo de inferniza-lo, pois o filho não cederia dessa vez, Matilde afastou-se arrastando as saias na terra e remoendo sua insatisfação.

       -Não faça isso, duque, não mude sua vida por minha causa. Eu não vou ficar. No final, quando menos esperar, é isso que acontecerá. – Joan fez questão de afirmar.

       -É claro que vai. No devido tempo, você vai mudar de ideia e verá que ficar aqui é a única alternativa. Ficar comigo. - ele afirmou convicto.

       -Não. Eu vou embota, e para onde vou... Jamais voltaremos a nos encontrar - foi taxativa, empurrando-o com ambas as mãos – Está curado, está de pé outra vez, e pronto para sumir suas responsabilidades! Então faça isso! Matilde está certa, você precisa honrar suas obrigações! Vá de uma vez! Eu não posso ficar aqui, e na posso lhe oferecer nada!

       Rowell não aceitaria suas palavras.

       -Eu vou apenas adiar essa decisão, Joan. Peça minha ajuda, não parta assim. – ele pediu, e ela afastou-se de qualquer toque.

       -Apenas vá de uma vez, e recepcione sua noiva. Ela não tem culpa de termos perdido a razão. Nenhum de nós é livre, duque. – ela disse com angustia mortificante.

       O duque não queria ir, e deixa-la assim, mas obedeceu. Um longo olhar que prometia que aquela conversa ainda teria continuação e ele partiu.

       Sozinha, Joan apoiou-se no murro de pedras para não cair. Respingos que o vento trazia, vindos dos lençóis e roupas molhadas salpicaram sua pele e ela olhou para o céu azul.

       Queria abrir suas asas e voar para bem longe, em algum lugar onde não precisasse assistir Rowell interagir com sua noiva. Mas não podia fazer isso.

       O céu não era seguro. Ela não era livre. Suas asas não serviam de nada com Zoé lá fora espreitando.

       Limpando as lágrimas, Joan retomou o trabalho de estender as roupas que ainda repousavam nas bacias e sufocou os soluços, pois apesar de Rowell não acreditar e aceitar, qualquer envolvimento entre eles era impossível!

 

       De um canto, perto das pedras, Tubã analisava uma das meninas menores que brincava perto das fêmeas. Ela era bonitinha e engraçadinha. Ele sorriu para a pequena e fez uma florzinha amarela aparecer em sua mão, atraindo a atenção da menina de um modo instantâneo.

       -Pegue, é para você, lagartixazinha - ele disse em um gracejo e a menina foi somente sorrisos para ele.

       Uma série de pequeninas mágicas para gastar o tempo e ele soube que sua brincadeira estava arruinada quando avistou Helana aos cochichos com outras fêmeas. Rapidamente as mães vieram na busca de suas crianças e ele ficou sozinho outra vez.

       A fêmea de homem-lagarto precisava juntar armas, ele vinha notando que uma movimentação estranha estabeleceu-se entre elas, sobretudo a necessidade por armas.

       As fêmeas que até então apenas cuidavam das crianças, agora passavam o dia todo esculpindo flechas e afiando lâminas.

       No dia anterior uma delas voltou com as costas carregadas de espadas em uma bolsa de couro. Ele não era tolo, poderia não ser um elfo de luta, mas não era estúpido a ponto de não saber o que acontecia.

       Ou atacariam, ou seriam atacadas e em qualquer uma dessas hipóteses ele estaria em péssimos lençóis.

       Se fossem abatidas, ele seria levado escravo por seus inimigos e viraria moeda de troca por ser irmão do Primeiro Guardião, filho do Conselheiro Real de Isac e, sobretudo procurado por assassinato.

       Se elas atacassem, por certo o deixariam preso ali sem água e comida por dias. O que também não contribuiria em nada para seu bem estar.

       Incomodado, Tubã preferiu fingir não perceber o que acontecia, e andou para longe da entrada da caverna, sentando-se no chão, próximo de onde Helana preparava uma bolsa de viagem.

       Ela acampava muito. Sempre longe do bando. Ele notou isso também. Muita negociação, movimentação escusa. A líder das fêmeas de lagarto gastava muito do seu tempo barganhando alimento, armas e provavelmente afiando relações diplomáticas com outros povos.

       Ele sempre temia o tipo de gente com quem se metia. Apesar de prisioneiro, ele vinha se afeiçoando aquelas fêmeas puras de coração, e ansiosas por procriar. Era o único desejo da sobrevivência e perpetuação da espécie. Um povo a beira do precipício da dizimação de toda sua raça.

       Olhando para ela de esguelha, e percebendo que ela fazia o mesmo, pois desconfiava de sua proximidade espontânea, Tubã puxou assunto:

       -Quantas delas são de Egan? - usou um movimento sutil da cabeça para apontar as fêmeas infantas que brincavam não muito longe deles.

       Helana parou o que fazia e olhou para as meninas antes de responder.

       -Nenhuma delas. Nossa raça não pertence a macho algum.

       -Eu me referia à paternidade delas - ele fingiu não notar que ela escapava de sua pergunta usando de hostilidade - É possível que algumas delas sejam minhas sobrinhas. E eu gostaria de saber quais. - ele sorriu sem vergonha e piscou para Helana, como quem espera abrandar seu coração e ganhar sua confiança - Agora eu entendo o desejo de solidão de Egan. Todos os anos apreciando um bom tempo de reclusão nas pedreiras do abismo, aproveitando de todo o silêncio e afastamento do restante das raças... Egan, o sério e incorruptível Primeiro Guardião e seu segredinho sujo com as fêmeas de lagarto! - ele não resistiu a provoca-la.

       -Seu irmão possui um senso de decência que você não entenderia. Ele não se divertia fazendo isso. - ela respondeu com seriedade, sem um único traço de candura na face. - pelo contrário, sempre um grande sacrifício de ambas as partes. Egan sempre foi justo e útil para nós. Ele nos ajudou muito e por dois longos anos. E por conta disso, nossa lealdade para com ele é eterna.

       -E porque eu estou aqui?- ele perguntou - Não precisam de uma colaboração forçada se Egan contribui espontaneamente para a raça - ele apontou essa verdade com inveja. Seu irmão era melhor do que ele. Era isso que parecia.

       E no fundo do peito, afastando o quase rancor por Egan estar na perseguição às fadas e não as ajudando, sabia que ele não desfrutaria do infortúnio dessas fêmeas e sim as ajudaria de coração limpo e sem malícia. Algo que ele próprio, não seria capaz de fazer.

       -A situação mudou. Não é mais plausível contar com Egan. Em breve nossa situação deve ser resolvida, mas enquanto isso não acontece... Você serve para suprir nossa necessidade imediata. - ela disse com ironia, voltando a arrumar seus pertences.

       -Você diz que Egan não pode mais ajudar? O que você sabe sobre ele? - Tubã levantou imediatamente a sua afirmação. Ele tinha uma corrente prendendo seu pé, mesmo assim era longa o bastante para andar entre as pedras e interagir entre as fêmeas.

       -O que você acha que eu sei? - ela revidou, provavelmente gostando de ver o desespero em seu rosto.

       -Egan estava seguindo uma das fadas fugitivas - ele disse com frieza na voz, um desespero velado de quem teme o pior - Eu não posso acreditar que algo tenha acontecido com meu irmão. Para que Egan deixe de cumprir suas obrigações ou cumprir promessas empenhadas... Eu não posso pensar em outra razão além de... Não, eu não posso conceber essa ideia - ele tornou a sentar, e enterrou a cabeça entre as mãos, tomado pelo pior dos pensamentos.

       Perder seu irmão seria um golpe que jamais o permitiria seguir em frente. Não, ele não concebia a ideia de viver sem o irmão por perto!

       Helana jogou a trouxa arrumada de pertences nas costas, e com um vestígio de pena, que Tubã não chegou a ver, decidiu por ter clemência.

       -Egan está vivo e bem fisicamente. - avisou - Ele não pode mais reproduzir com nossas fêmeas. Ele tem obrigações agora. Um rei não pode ter crias que suprimam suas obrigações de rei. Até então, apenas fêmeas vieram de sua contribuição... E não colocam em risco a descendência real de seus futuros herdeiros machos - ela apontou um grupinho de meninas brincando, eram muito pequenas, entre um e dois anos - de hoje em diante seus filhos serão herdeiros do trono de Isac, e precisam ter o sangue de sua rainha e não de uma  fêmea de lagarto.

       -Rei? - Tubã olhou para ela em choque. Sentimentos que iam aos extremos.

       -É claro que não sabe das novidades. - ela satirizou, satisfeita em lhe dar às notícias - Rainha Eleonora subiu ao trono. O poder agora lhe pertence e ela escolheu um rei. E esse Rei é Egan, o Primeiro Guardião. Nada mais natural que isso acontecesse. Filho do Primeiro Conselheiro Real e de Reina, a mulher que sempre zelou por Eleonora, e Primeiro Guardião. Quem não escolheria Egan para ser seu rei? - ela sabia que suas palavras feriam a vaidade de Tubã - que coisa estranha... - ela sentiu prazer em dizer isso - olhando para você agora... Ninguém diria que é irmão de um rei.

       Com essas palavras, Helana afastou-se deixando para trás todo o seu desprezo. No chão, Tubã não acreditava nas palavras ouvidas. Eleonora estava a salvo e era rainha. Engoliu em seco, lutando contra o sentimento de felicidade por saber que em breve todas as quatro fadas estariam livres e ele também estaria a salvo. Mas então a euforia foi sufocada pelo ódio e ciúme.

       Egan? Eleonora escolheu seu irmão para ser seu macho escolhido?

       Depois de tanto companheirismo e cumplicidade, de tantos anos sabendo de seus sentimentos e Eleonora simplesmente escolhia outro?

       Tomado de uma indignação sem precedentes, ele tentou levantar e sair dali, mas a corrente que prendia seu pé foi um empecilho. Seu brado de ódio assustou as meninas menores que correram para suas mães.

       Engolindo a raiva, Tubã limpou o suor da testa e olhou para tantos olhares femininos e recriminadores e puxou a corrente praticamente até desistir, ao confirmar o que já sabia. Não podia ir, estava preso.

       Devastado, Tubã voltou para o chão e conteve a raiva, pois agora, mais do que nunca, precisava encontrar um modo de fugir! Quem sabe... Ainda houvesse tempo para impedir o casamento e a consumação? A escolha do Rei não quer dizer nada, a menos que ele seja realizado e consumado diante dos olhos dos Conselheiros Reais!

 

       Joan estava cansada de ouvir os burburinhos que corriam soltos pelos corredores. Havia passado o dia todo fugindo, mesmo assim as criadas estavam em polvorosas por conta da chegada da noiva do Duque, e vinham lhe perturbar com fofocas.

      Ela sentia seus ouvidos doerem de tanto ouvir elogios. Bonita, charmosa, perfumada, coberta de joias... Elegante e brilhante, como uma nobre dama deve ser. Claro, e ela estava rapidamente adquirindo um habito humano: odiar.

       Sua única alegria daquele dia foi ter visto Matilde esbaforida, correndo pela cozinha, no desespero primitivo de agradar a infeliz que viera meter-se em seu domínio e que Joan esperava que não sofresse tanto quanto ela vinha sofrendo nas mãos de Matilde.

       Mentira, ela queria que Matilde fizesse da vida da noiva metida de Rowell um verdadeiro inferno. Ciumenta, ela comia uma maça na cozinha ouvindo as estórias de Hector, enquanto as criadas corriam de um lado ao outro.

      Quando Matilde apareceu na cozinha para trocar um dos pratos do jantar, pois a noiva do Duque não gostara do tempero, Joan indignou-se tanto ou mais do que acontecia com Matilde.

       Como uma novata ousava impor-se entre os cuidados de Matilde e o tempero de Hector? Sabendo muito bem que vinha procurando defeitos na jovem, Joan fingiu não notar e concentrou-se em seu orgulho machucado, ciúme e inveja.

       Em determinado momento, de seu canto, ela ergueu os olhos para descobrir que a mãe de Rowell mantinha os olhos sobre ela. Sim, Matilde conhecia bem o sentimento que dominava Joan. Vira seu amante casar-se com outra bem diante de seu nariz, e não pudera fazer nada para evitar. E no caso de Joan era ainda pior, ela não podia e não queria fazer nada para evitar.

       As horas passaram e o bendito jantar de boas vindas chegou ao fim, e finalmente Joan teve permissão, junto das demais criadas, para se recolher.

       Todas dormiam, e quando a lua tomou conta de seu domínio nos céus, Joan refugiou-se nas mais altas muradas. Queria um tempo para si, para respirar e ver a natureza de um ponto onde humano algum maculou.

       Um pequeno voo não seria detectado pela Guardiã. A infeliz deveria estar longe dali, e não a veria. Talvez a farejasse, mas Joan não pretendia ir longe. Apenas um voo curto para espairecer a mente e lembrar-se de quem era.

       Fungando, ela fingia não saber que o choro corria em suas bochechas. Ela sempre foi chorona, tanto na felicidade quanto na tristeza, mas chorar por amor era um tipo pior de choro. Um tipo angustiante.

       Uma palavra sua e ela estaria no lugar daquela fêmea humana, sendo alvo de todo o sentimento do Duque Mac William. Mas sua escolha estava feita. Ela nunca viraria as costas para suas amigas por conta de um humano. Ainda não sabia se seria plenamente capaz de deixar de ser uma fada por conta de um amor. Como ter maturidade suficiente para decidir algo dessa magnitude?

       Uma vida toda presa, ansiando pelo momento de ter suas asas e desfrutar da liberdade total, e agora que esse momento chegou, não importava a razão, ela considerava a possibilidade de abrir mão de tudo por um humano?

       Primeiro ela reencontraria Eleonora, Driana e Alma. Então, ela regressaria um dia, quando todos estivessem esquecidos dela, e tentaria recuperar esse amor perdido. Angustiada com esse pensamento, Joan abriu os botões do vestido, nas costas e esperou que suas asas viessem à tona para usufruir um pouco de alivio e liberdade.

       Nada aconteceu, e Joan insistiu mais um pouco. Nada de suas asas aparecerem. Ótimo, ela estava exausta de tanto trabalho na lavanderia do castelo e estressada por conta da chegada da noiva de Rowell. Suas asas não a obedeceriam enquanto estivesse assim. Conformada, ela pensou ter visto um vulto na escuridão quase total e procurou pelo humano que estava ali.

       Era Edward, o irmão de Rowell. Ele estava sozinho. Bebendo outra vez. Uma garrafa de vinho ao seu lado, e nada elegantemente o homem sentou no chão para chorar suas lamurias alcoólicas. Apenada, Joan ficou espiando. Quando pensou ter ouvido o som de asas de uma fada, tentou ficar camuflada, invisível aos olhos humanos e não conseguiu.

       Precisou esconder-se atrás de uma parede e ficar silenciosa na esperança de ver se estava certa. Mas não estava. Não havia ninguém.

       Estava ficando paranoica, ou desesperada, tentando encontrar algo de mágico a sua volta.

       Uma boa noite de sono afastaria o medo, a decepção e quem sabe, aquela dor que o ciúme despertara em seu coração.

       Quando partiu, Joan deixou para trás o irmão do Duque que chorava baixinho bêbado e mais alguém.

       Uma mulher humana, muito bonita, coberta por mantos e capas, saiu da surdina e aproximou-se do humano. Ajoelhou-se no chão e tocou o rosto úmido de lágrimas sussurrando:

       -Olhe para mim, Edward, agora eu sou mesmo uma fada – era uma voz suave, ferida e apática.

       Olhando para o rosto bonito, que um dia fora incrivelmente belo, Edward viu palidez assustadora, veias avermelhadas, e marcas de hematomas. Apenas os belos olhos cor de avelã haviam resistido aos anos de sofrimento físico.

       Ela levantou e seu corpo cambaleava. Mesmo assim, um sorriso pairava em sua face ao deixar a capa e o manto caírem no chão revelando seu corpo nu.

       Ela virou de costas e ele viu suas belas asas. Era uma visão assustadoramente feia.

       As asas brancas, salpicadas com dourado, longas e com detalhes ricamente bordados pela natureza em suas hastes e formas, que deveriam ter sido lindas um dia, estavam começando a murchar e apodrecer. A junção do corpo humano com as asas estava apodrecendo onde havia uma costura mal feita.

       Mais uma vez ele teria que dizer a ela. Outra vez seria sua vez de dizer e destruir seus sonhos:

       -Eu sei de uma fada que se adapta a tudo, Sophie. – ele disse com voz mansa – suas asas são adaptáveis. Elas não são como as outras asas, não são como essas. – ele apontou o corpo ferido e retalhado, principalmente onde havia uma patética tentativa de fundir as asas roubadas de alguma fada, com o corpo de uma humana.

       -Mas eu consegui voar com essas asas. Pela primeira vez. Elas me pertencem agora – ela disse ajoelhando-se no chão, a face trincada, funda, marcada pelos anos de obsessão.

       -Não, elas estão apodrecendo. Outra vez, não vão durar e precisarão ser trocadas, como aconteceu com todas as outras - ele tocou seu rosto antes que ela se desesperasse – Mas dessa vez eu tenho as asas perfeitas para isso. Não faça nada sem minha permissão, querida. Eu vou ajuda-la nisso mais uma vez. É questão de tempo agora.

       -Fala da criada que tem se deitado com Rowell? Ela cheira a fada, a cio de fada – ela disse com apatia total, nada era capaz de alegrar verdadeiramente seu rosto.

      -O nome é Joan. Sim, ela é uma fada e está no cio. Mas isso não importa. O que importa são suas asas. Ela tem um dom muito útil para nós, Sophie. Você verá com seus próprios olhos.

       -Quando? – ela perguntou frágil.

       -Logo. Quando tudo estiver acabado e os dois mundos estiverem em nossas mãos - ele sorriu e ela fez o mesmo, mesmo que apaticamente – eu lhe darei isso, Sophie. Será a mais linda das rainhas. E suas asas serão vermelhas, curtas e ágeis. Você verá.

       -Eu nunca tive asas vermelhas – ela recostou-se ao peito de Edward e começou a contar sobre todas as outras asas que foram roubadas de fadas sequestradas e costuradas em seu corpo. Sobre todas as outras asas perdidas e apodrecidas – Eu sei o que está acontecendo, Edward. Depois de tantas tentativas, eu sou quase uma fada. Eu posso sentir a magia correr em minhas veias - ela disse com a face refletindo essa insanidade.

       -É claro que sim, Sophie – ele abraçou-a, tomando cuidado para não tocar aquela aberração nas suas costas. – Precisa voltar para o seu esconderijo, ainda não é hora de se revelar.

       -Alice – ela disse com olhos brilhantes – O último carregamento que trouxeram contem uma fadinha no cio. Ela é pequena e tem asas finas e macias. O que me diz? Alice tem idade o bastante para começar as tentativas...

       -Hum, ainda não – ele disse angustiado – Primeiro mostraremos a ela como sua mãe possui lindas asas e Reina em um mundo de criaturas lindas e inacreditáveis. Depois, será a vez de Alice.

       -Sim, e então, de Tommy. – ela disse pensativa.  – O meu pequeno Tommy será um lindo elfo, Edward, você não acha?

       -É claro que eu acho.  – ele respondeu com apatia.

       -E o pequeno Marmom? Porque nunca o traz para que eu o veja? Eu o vi apenas uma vez, quando nasceu. Quero abraça-lo um dia desses.

       -É claro que sim, - Edward disse com o olhar perdido na imensidão da noite, em uma apatia trágica – Todos os seus desejos, Sophie. Eu realizarei todos os seus desejos...

 

       Naquela manhã, Joan acordou com uma pequena poça de sangue em sua cama. A primeira a notar além dela, foi Molly. Ela tratou como algo normal, como se a surpresa de Joan se devesse a ser sua primeira menstruação.

       Mas não era nada disso. Era o cio machucando-a por dentro. Ela escondeu isso, e fugiu dos sorrisos das outras criadas e se refugiou na cozinha, sob a proteção de Hector. Ajudou na cozinha durante a manhã, esperando o momento de ser chamada pela responsável da lavanderia.

       Estava com uma dor de cabeça imensa, que parecia crescer a cada palavra dita por Hector. Ele falava sem parar da noiva do Duque Mac William.

       A noiva misteriosa havia conquistado a admiração e afeição de todos no forte.

       Todos menos Matilde. O que era de esperar, pois a humana não tendia a simpatizar muito com as escolhas do filho.

       Quando ela surgiu na cozinha e apontou para Joan, ela soube que era algum tipo de vingança pessoal.

       -Leve o chá para a saleta principal. – Matilde mandou, e embora não houvesse sorriso em sua face, Joan sabia que ela estava contente em humilha-la. – E seja cuidadosa, estamos usando nossa melhor prataria.

       Joan olhou para a prataria e concordou. Não por submissão, mas porque não andava com animo para incentivar a guerra com Matilde. Apática, ela pegou a bandeja e saiu da cozinha.

       Desconfortável, Joan sentia o ataque feroz do cio em seu corpo e se perguntava por que disso. Talvez algum ser mágico estivesse por perto e ela não houvesse notado. Isso, com toda certeza, afetaria seu corpo padecente do recente nascimento das asas.

       Preocupada sobre seu cheiro de cio ter atraído alguma criatura mágica, algum elfo de má índole, algum caçador de fada, Joan decidiu por subir na murada mais alta, para observar o pátio todo, na busca de algum invasor.

       Infelizmente Joan não precisava se preocupar em esconder seu cheiro de fada, pois a Guardiã Zoé sabia onde estava. Apavorada, Joan tentou refutar o pensamento insistente de Zoé ter invadido o castelo. Com esse medo correu pelos corredores do castelo, no alto, olhando para o pátio onde humanos trabalhavam e mantinham o forte em perfeito zelo.

       Tentou ver onde estaria Zoé, pensar onde ela poderia estar escondida esperando-a para uma caçada de vida e morte, que para piorar tudo poderia por em risco a vida dos humanos. Quando mais andava, mais forte o cheiro de criatura mágica ficava. Aos poucos esse cheiro se tornou insuportavelmente azedo e ela teve certeza que era uma fêmea.

       Apavorada, Joan temia por sua vida e pela vida de todas aquelas pessoas. A estratégia de Zoé em caça-la dentro do castelo a assustava muito mais do que um ataque direto em plena floresta.

       Zoé parecia muito mais interessada em derramar seu sangue do que aprisiona-la e leva-la para a Rainha Santha.

      Joan voltou a correr, e parou abruptamente ao ver Rowell, o seu humano. Gostava de pensar nele dessa forma: O seu humano. Ele não estava sozinho. Ao seu lado uma bela plebeia trajando um vestido delicado e um sorriso falso na face.

       Ele estava de frente para a murada mais alta, apontando algum ponto no horizonte enquanto conversava com a humana, provavelmente lhe contando sobre histórias antigas do ducado, sobre como ele foi conquistado com lutas e mantido durante anos e anos, através de ferozes defesas contra inimigos dispostos a tudo para obter suas férteis e bem localizadas terras.

       Alta, tanto quanto Rowell, a mulher vestia um belo vestido verde jade, com adornos em dourado bordados por todo o tecido. Sua postura era reta, firme, longilínea, o que muito combinava com seu corpo coberto de curvas sensuais. Seios fartos e rijos, cintura finíssima, quadris redondos, pernas musculosas cobertas pelas camadas de tecido.

       Os longos cabelos negros e crespos estavam soltos da nuca em diante. Sobre a cabeça, presos e mantidos domados. Enquanto uma bela joia em forma de tiara cobria sua testa inteira.

       Para os humanos, uma linda joia forjada em ouro. Para Joan, era uma parte de armadura de Guardião. E essa joia escondia as tatuagens de um clã que marcavam a testa de uma fêmea de fada da raça de Zoé.

       Essa humana na verdade era Zoé caçando-a dentro do castelo, nas fuças dos humanos.

       Sentindo seu cheiro e sua presença, e quem sabe também sentindo o cheiro de medo, Zoé olhou para trás e sorriu com algo de misterioso na face.

       Depois de sua última derrota, ao ver a ratinha inocente Joan fugir com o gosto da vitoria, pegá-la desse modo, de surpresa, dentro de sua toca, era no mínimo satisfatório.

       Joan deixou cair à bandeja com pratarias que carregava e por um segundo ficou imóvel.

       Naquele momento de caça encurralada a única certeza que Joan teve era que Rowell estava de pé diante e de uma Guardiã do Reino de Isac, uma criatura que deveria leva-la embora viva ou morta.

       Como pode ser ingênua a ponto de acreditar que estaria segura dentro do forte dos humanos?

       Num impulso incontrolável de não saber o que fazer ou para onde ir, Joan correu para longe, esperando ter alguma vantagem. Mas era tarde demais para temer por suas amigas, pois sua vida estava por um fio, e agora que estavam no mesmo lugar, nada impediria Zoé de mata-la.

       Principalmente depois do que fizera, vencendo-a alguns dias atrás!

       Joan não conseguiu ir longe. Ouviu o grito de Rowell exigindo que aguardasse e não podia negar um chamado do duque, podia? Ficou parada, de costas, tremendo da cabeça aos pés, sentindo a aproximação dos dois.

       -Espere, Joan. Quero que conheça Zoé. Condessa Zoé de Ruminosses, viúva do Conde Francisco Ruminosses. – ele apresentou com algo no olhar, que ao virar-se e fita-lo cortou o coração de Joan – A Condessa precisará de cuidado especial da criadagem. Ela não deve se casar nos próximos dias, está de luto recente. Mas precisa fazer amigos e conhecer seu futuro forte.

       -Eu direi isso a Matilde – ela respondeu sem saber de onde encontrara voz para isso.

       -Faça isso – ele respondeu com um tom muito parecido a condescendência – Gostaria que levasse a Condessa para conhecer o castelo. – ele pediu.

       -Sinto muito, duque, Matilde me designou para a lavanderia... – tentou fugir.

       -Estou autorizando-a a conduzir minha noiva a um passeio pelo castelo – ele sorriu e aproximou-se suavemente sussurrando para que apenas ela ouvisse – Não quero ter que falar sobre o casamento agora, distraia-a para mim, Joan. Por favor.

       Ótimo, Rowell queria escapar de uma conversa sobre casamento. E ela queria escapar de ser morta, empalhada, e levada de presente para a coleção pessoal de morbidezes de uma rainha louca chamada Santha.

       Contendo uma vertigem, ela acenou e concordou.

       Olhou para Zoé e encontrou-a olhando para os dois com malicia indisfarçável.

       -Um passeio será encantador, Rowell – ela disse sedutora, e pousou uma das mãos no braço do Duque, embora os olhos estivessem fixos em Joan.

       Era o segundo dia da Condessa em seu novo lar, e era natural que ela desejasse conhecer seu patrimônio, sobretudo as possíveis amantes de seu futuro cônjuge.

       Livre do incomodo que sua noiva representava, Rowell suspirou aliviado quando as duas se afastaram dele, lado a lado, unidas por um silêncio tenso.

       -O que achou de sua noiva?

       A pergunta não o assustou, pois estava acostumado com as chegadas de sua mãe, sempre na surdina, espreitando e pegando-o de surpresa em algum momento de descontração. Olhou para trás e sorriu para ela.

       -É bonita – era um quase consolo.

       -Você não gostou dela. – Matilde ficou ao seu lado, olhando para as duas figuras femininas que se afastavam ao longe.

       -Eu não gostei de Sophie quando a conheci e isso nunca fez diferença alguma para você.  – ele revisou, com um pouquinho de amargor na voz.

       -Mas agora é diferente – Matilde acusou e ele sabia muito bem do que se referia. – agora você tem uma razão em especial para rejeitar esse vantajoso casamento.

       -Deixe Joan em paz. Eu ofereci a ela meu ducado, proteção e meu amor e mesmo assim, ela disse que partirá em breve. – ele disse incomodado com o comportamento de sua mãe. Ressentido, essa era a palavra certa para descrever o que sentia.

       -A ousadia dessa mulher parece não ter fim – Matilde ruminou e ele sorriu.

       -Seja agradecida a Joan, ela me salvou de muitas maneiras. – ele pegou a mão de Matilde e fez um carinho.

       -Ela é estranha e trará muita desilusão para este forte. Eu já vi isso acontecer antes. Não duvide de sua mãe, Rowell. Eu sei o que digo.

       Ele não respondeu nada, apenas manteve o carinho, dizendo silenciosamente a ela para ser menos tensa e mais emocional.

 

       Joan andou lentamente ao lado de Zoé, sem assunto, até estar longe o bastante para não ser ouvida pelo duque Mac William.

       -Então, como anda o funcionamento de suas asas, fadinha da clausura? – perguntou Zoé com uma expressão de tanta satisfação que a irritou profundamente.

       -Muito bem, obrigada – mentiu.

       -Não seja mentirosa – Zoé esnobou sua tentativa de manter a dignidade – Belo dom esse seu. Recolher suas asas é algo muito prático. – ela disse com mistério no olhar – Porém um dom complicado quando o meu o bloqueia. Quem diria, não é? Que eu apareceria aqui e depois disso, seu dom e asas não serviriam para mais nada?

       Joan ouviu e fez sentido total. Suas asas estavam recolhidas e escondidas quando Zoé chegou. Agora seu dom bloqueava o seu e ela não podia usar asas e dom.

       -Você não pode me pegar na frente dos humanos. – Joan parou de andar e foi direto ao ponto – Nem mesmo você poderia exibir quem é diante dos humanos. Suas asas estão aí, não estão? Escondidas nesse belo vestido. – acusou – mas se você revelar quem é, será alvo dos humanos e eu bem tenho visto do que eles são capazes por conta do medo e ignorância que nutrem sobre nós. Eu não posso fugir, mas você também não pode atentar nada contra mim na frente deles! – ela avisou.

       -Eu não pretendo pegá-la na frente dos humanos. Eu vou esperar o momento certo, Joan, e tira-la da toca. Virá de bom grado até mim. Enquanto isso não acontece – ela fitou Joan com riso no olhar – eu vou tomar tudo que é seu. Eu vi o modo como interagiu com o humano. Que coisa feia, fada da clausura. Está sujando nossa raça com a genética dos humanos?

       -É claro que não – Joan negou imediatamente – eu não poderia engana-los desse modo. Eu vou partir em breve... Zoé, por favor, me ouça – Joan tentou um passo de aproximação, mas o olhar de Zoé a impediu - Fique no aguardo junto comigo. Uma trégua para nós duas. Eu tenho esperança que em breve terei notícias de que estávamos certas!

       -Certas em matar um rei bom e justo? – Zoé perguntou gelada.

       -Acho que você ainda não sabe dos boatos não é? Rainha Santha é a assassina. Ela é progenitora de Eleonora. Esse assassinato foi um ato desesperado para esconder sua filha ilegítima que estava à beira do nascimento de suas asas, na clausura, bem diante do nariz de todos. É uma questão de aguardar, as asas de Lora devem estar nascendo em breve, isso, se já não houverem nascido. Toda essa nossa briga pode estar sendo em vão!

       -Hum, como se eu não conhecesse as mentes insanas da clausura. – Zoé desdenhou – Vou leva-la comigo, viva ou morta. Foi à ordem que recebi. Estarei vinte e quatro horas no seu encalço, esperando um momento apropriado para rapta-la e fugir voando.  Não importa o quanto demore você e eu sabemos que terei êxito em meu plano. É questão de tempo. Enquanto isso não acontece, eu aproveitarei a hospitalidade do Duque Mac William e sua boa vontade em agradar sua noiva. – ela sorriu maliciosa e Joan lutou contra a raiva.

       -O que você fez com a noiva verdadeira do duque? – temia a resposta.

       -Ela está bem guardada em um lugar seguro e seus criados muito bem pagos para manterem as bocas fechadas – Zoé sorriu – agora, quanto a você, não posso dizer o mesmo.

       -Eu não vou me esconder com medo – Joan avisou – Você não pode me pegar na frente dos humanos. Não tem nada que possa fazer contra mim aqui dentro! Sendo assim, espero que tenha uma boa temporada vivenciando os costumes humanos. Se me permite recomendar, a comida é muito boa, mas a higiene deixa a desejar.

       -Pois bem, estou vendo uma fêmea muito confiante, bem diferente do ratinho assustado que me lembro de ter visto varias vezes se escondendo pelos cantos, fugida do Ministério do Rei, junto com suas amigas assassinas. Eu sempre soube que vocês eram um grande problema ser extirpado.  – Zoé chacotou, aproximando-se e coagindo-a com seu corpanzil tão mais alto e forte – Eu deveria ter trazido um elfo na minha companhia. É disso que você precisa, entretimento, para deixar de ser tão corajosa.

       Joan sentiu um aperto no estomago ao pensar em ser entregue para um elfo que quisesse apenas desfrutar de um cio. Ouvira falar tantas crueldades e abominações sobre isso!

       -E a sua armadura? Onde a escondeu? – revidou a ofensa, com uma insinuação – cuidado, se algum humano achar, irá derreter e fazer taças de ouro. Já pensou? Que lindas taças seriam? - soou como uma ameaça.

       -Não ouse brincar comigo, sua ratinha imunda– Zoé agarrou seu braço e a fez erguer-se na ponta dos pés para não sofrer tanto com a agressão – eu vou vencer no final. Escreva o que eu digo.

       -Não. Você vai perder e ficará tão envergonhada quando Eleonora for rainha e lhe cobrar essa maldade que faz comigo, que o mínimo que poderá fazer para custear sua dívida de honra será abrir mão de seu cargo e baixar sua cabeça limpando o chão imundo de alguma taverna! – respondeu com raiva.

       Sim, ela havia aprendido com Matilde que nem sempre baixar a cabeça adianta. O melhor, às vezes, é enfrentar de frente, sem medo!

       -Eu vou arrancar seu couro, fada da clausura, e costurar um belo par de botas para mim. – ela ameaçou – Eu sei de toda a verdade. Egan, Primeiro Guardião encontrou sua amiga. Ela estava escondida em um buraco. Está morta. Acheron encontrou a pequena Driana escondida em uma toca qualquer e ela está morta também! E sua amiga, a grandalhona Alma... Ah, é prisioneira pessoal de Lucius. Tubã... Você sabe que sempre intercederão por ele. Mas você... Agora só falta você, ratinha, só falta você sucumbir. – Zoé fez questão de feri-la com as palavras.

       Achar que era mentira, não evitava que a dor viesse e o medo crescesse.  Joan estava a um passo de sucumbir em sua repentina coragem de implorar para que a deixasse ir quando, ambas ouviram um pigarrear.

       Era bom que Zoé fosse se acostumando com o pigarreio de Matilde e, sobretudo com sua mania de aparecer na surdina assustando todo mundo.

       -Não é apropriado que uma Condessa seja vista brigando com uma criada – Matilde disse com voz séria e superior – Isso é um absurdo e...

       -Eu decido o que é certo ou errado na minha vida. Não ouse me dar ordens, criada - Zoé disse bem alto, com voz inquestionável – Agora mexa essa sua bunda humana, e me prepare um longo banho. Estou suando e essa terra é quente como o inferno. E fede. O cheiro daqui me enoja.

       Zoé partiu e deixou Matilde e Joan para trás.

       Por um segundo Joan gostou de ver algum colocar Matilde em seu lugar. Por outro lado, ela se perguntou o que acontece quando um inimigo é tão poderoso a ponto de vencer seu segundo maior inimigo em segundos?

       Matilde olhou para ela e Joan deu de ombros:

       -Você ouviu a Condessa – Joan disse com voz sem vida.

       -De onde você conhece a Condessa? – Matilde foi direto à ferida.

       -Eu sou uma fada, estou escondida e Zoé é uma Caçadora de Fadas, uma Guardiã que tomou o lugar da Condessa. Ela está aqui para me caçar e levar de volta ao Reino de Isac, lá em cima, no Monte das fadas. – contou com voz mortalmente azeda, sabendo muito bem que Matilde acharia ser uma piada – Bem, eu imaginei que não acreditaria. Se me de licença, tenho trabalho a fazer. – fez uma mesura e saiu correndo para longe daqueles corredores.

       Matilde ficou parada, estática. Achara sinceramente que a chegada da noiva de Rowell pusesse fim aquela loucura de amar uma serviçal, mas agora começava a se perguntar se estava errada ou não.

       Sentindo a ausência de seu cajado, com as mãos coçando de vontade de extravasar sua frustração no lombo de alguma criada desaforada.

       Na noite anterior esperou que Joan viesse atazanar sua noite, mas nada aconteceu. Por um lado, regojizava-se na certeza de a chegada da noiva de Rowell ter vencido a empáfia da criada com sua chegada. Por outro lado, começava a duvidar da bonança trazida por essa mulher.

       Certos ventos não veem para bem, e certas tempestades trazem apenas destruição. Esperava que não fosse o caso de Zoé. Mas se assim o fosse, ela queria ter seu cajado em mãos outra vez...

 

       Joan permaneceu todo o tempo que pode na sozinha com Hector, e quando ficou tarde e todos foram dormir, ela encolheu-se em um canto e ficou acariciando o coelho, pois Anesi era uma ótima companhia, não fazia perguntas e não exigia que falasse de seu sofrimento.

       Vez ou outra, Hector olhava para ela com curiosidade, mas não exigia que se abrisse. Encolhida naquele canto da cozinha, sentada no chão, acariciando o pelo do animal de estimação do cozinheiro, Joan limpou as lágrimas de frustração que corriam, e ficou surpresa ao descobrir que alguém buscava por ela na cozinha.

       Um olhar de esguelha e ela fingiu não ter notado.

       Era uma honra para um cozinheiro receber o Duque Mac William em sua cozinha. Com uma desculpa qualquer, ele ganhou espaço e atenção de Hector.

       Se Rowell esperava que ela mudasse de ideia quanto a seu casamento estava muito enganado. Ela iria embora quando chegasse a hora.

       Isso se conseguisse obter suas asas de novo, se conseguisse barrar o dom de Zoé e conseguisse se livrar dela, ou melhor, se conseguisse sobreviver tempo bastante para ser encontrada por suas amigas.

       -O chão está gelado, Joan – ele disse com voz mansa, quando Hector fingiu ter entretimento com seu coelho, retirando-o dos braços de Joan.

       -Não leve Anesi, ela me faz companhia – Joan reclamou, mas o cozinheiro parecia mais dispostos a agradar o duque do que agradar uma criada. – eu gosto de algo gelado às vezes – ela reclamou birrenta.

       -Não se isso a tornar doente – ele lembrou-a delicadamente de sua frágil saúde.

       -Que diferença faz? –ela revidou sem pensar.

       -Eu quero conversar, procurei-a por todo castelo, porque se escondeu de mim?

       -Eu não me escondi de você – recendeu na mesma hora mesmo que não devesse – Apesar de não termos o que conversar... Ainda assim eu não me esconderia de você. Eu quero e preciso ficar sozinha. Hector é um bom ouvinte, eu posso ficar horas em sua cozinha sem que ele reclame da minha presença.

       -Marmom sente sua falta, afastou-se dele também. – Rowell acusou, puxando uma cadeira e virando-a na direção de Joan. Sentou-se e fixou os olhos nela – Até mesmo Alice perguntou por você. E o que eu digo? Que cansou de nós e pretende ir embora?

       -Não deveria perder seu tempo falando de uma criada e sim, falando de sua adorável noiva. Conte a seus filhos sobre o casamento.  – ela acusou ciumenta.

       -Não gostou da Condessa – ele disse sorrindo.

       Sabia que era ciúme, mas não sabia do quão profundo era esse desgosto.

       -Porque não a chama pelo primeiro nome? – jogou de volta.

       -Não somos íntimos o bastante. Embora... Ela tenha se oferecido para passar a noite em meu quarto – ele contou, esperando sua reação.

       -Zoé fez isso? – toda a apatia fugiu de Joan na mesma hora. Revoltada, levantou e andou pela cozinha - Eu deveria saber que ela faria isso! – disse furiosa – Ela quer... - conteve as palavras, pois para ele não fariam sentido.

       Zoé queria feri-la, obriga-la a enfrenta-la fora do castelo. Que na ansiedade de proteger o amor de sua vida, Joan se entregasse e fosse levada de livre e espontânea vontade para as garras de Rainha Santha e seu amante Lucius.

       – Ah, mas ela esta muito enganada. – disse em voz alta – Eu nunca pensei Rowell, eu nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo. Mas olhe para mim – parou de andar e apontou para si mesma - olhe como estou feia e amarga. É o ódio me consumindo. Ódio de Matilde e seu cajado, ódio de Zoé, ódio de tudo e todos! De Santha, a desgraçada! – lágrimas de indignação vieram aos seus olhos e ela perguntou – o que uma criatura faz com tanto ódio?

       -Eu não sei, mas esse sentimento destrói e arruína – Rowell levantou e a fez parar, segurando seus braços – E eu não suporto a ideia de perder a Joan doce e meiga que me conquistou com seus olhos de pureza e seu sorriso de esperança – ele disse emocionado, tocando sua face – Faça o que fizer, não me prive de conviver com essa Joan. Eu não suportaria voltar a viver em um mundo frio e sem os seus sorrisos doces.

       Sem palavras, ela pensou em Zoé e na verdadeira Condessa de Ruminosses. Não importava o que a Guardiã dizia, Joan duvidava que a pobre condessa ainda estivesse viva depois de passar pelas mãos de Zoé. Suspirando de pesar, ela afastou-se do duque Mac William.

       Aquele sentimento todo não tinha sentido de ser. Tomada por uma tristeza infinita, afastou as mãos de Rowell e tentou sair da cozinha e ficar longe dele. Mas ele segurou sua mão e disse baixo, contido, com voz sussurrada, para que ela não fugisse mais:

       -Eu não vou ficar com Zoé ou com qualquer outra. Estou ganhando tempo até você se decidir. – sua face dizia isso.

       Seus olhos castanhos, quase verdes, diziam isso. Todo o corpo do duque dizia isso. Ela soltou a mão e fugiu.

       Era uma covarde, e ciente disso, mesmo assim fugiu.

       A noiva não era de verdade, pensou. Rowell era livre, pois ela duvidava que a verdadeira condessa ainda estivesse viva. E ela tinha fé que Eleonora obteria êxito em salvar a todas elas.

       Então? Ela abriria mão do amor pelo que? Por medo? Uma vida toda protegida pelos punhos fortes e gritos afiados de Alma? Ou pela astucia de Driana? Ou ainda pelas artimanhas de Eleonora?

       Não era hora de ser a verdadeira Joan, e procurar por seu caminho?

       Enfrentar seus medos e lutar por sua felicidade e seu direito de existir?

       Zoé que se explodisse. Ela amava o duque e nada mudaria isso! Nada mesmo!

       Num arremeto de coragem, ela refez o caminho de volta para a cozinha, mas não o encontrou mais. Pelo avançado da hora imaginou que ele estaria de volta ao seu quarto.

       Rowell vinha dedicando seu dia a colocar o forte em ordem após tanto tempo de abandono sem o pulso firme de seu duque. Era natural que estivesse cansado.

       Com o coração acelerado, ela praticamente correu pelos corredores em direção ao quarto. Diante da porta ela parou e arfante pela corrida tentou reaver o controle de seu próprio pulso, mas era impossível, ele batia descompassado por conta da emoção e não apenas pelo esforço físico.

       Uma decisão tomada no ápice da emoção.

       Mordiscando o lábio, insegura, Joan pensou se deveria ou não. Sua mão pousou no trinco e ao sentir o metal frio sob os dedos ela soube que não havia outro caminho. O destino de cada uma das fadas da clausura foi traçado naquela fatídica noite no castelo de Isac, quando por culpa de Santha, as quatro se lançaram ao mundo e agora o mundo as acolhia.

       E por mais que tentasse ser a mesma Joan da clausura, algo rompera dentro de si, desde o dia em que viu a carroça partir, sendo deixada para trás na Vila dos Humanos. Daquele dia em diante, ela encontrou forças não sabia de onde para seguir vivendo e erguendo a cabeça a cada dia, com orgulho de quem era.

       Era fada. Era fêmea. Era capaz, e era inteligente. E agora, era apaixonada e decidida a viver esse sentimento.

       Abriu à porta, o quarto estava vazio, mas a janela aberta. Emocionada, ela sorriu. Pelo visto Rowell havia gostado de manter sua janela aberta, para que o ar puro pudesse limpar seu espírito conturbado.

       Joan trancou a porta e aproximou-se da ampla cortina, espiando para ver o Duque apoiado na murada, com o olhar perdido na noite escura e sem estrelas.

       Sabia que para sua mente humana o que fizera, ao ajuda-lo a sair daquela cama, era um feito digno de gratidão eterna. Mas ela não queria sua gratidão. Queria seu amor. E era o sentimento que via em seus olhos.

       Ficou parada e esperou que a notasse. Rowell percebeu que não estava sozinho, o perfume de natureza que Joan sempre exalava veio avisa-lo de sua presença.

       Ela cheirava a mato verde, a água viva, a ar puro. Ele não tinha ideia de como descrever esse perfume ou o efeito que lhe causava.

       -Posso ficar? – ela perguntou com voz baixa, insegura, esperando que ele dissesse algo. Um pouco tímida, apoiada no batente da ampla janela, que conduzia para a varanda.

       -Você é bem vinha sempre que quiser – ele disse com carinho e estendeu uma das mãos em sua direção. Joan aceitou o convite, indo refugiar-se em seus braços.

       Rowell abraçou-a pelos ombros, trazendo-a diante dele, para envolvê-la com seus braços e apoiar o queixo em seu ombro.

       -A noite está linda – ela comentou baixinho, apreciando o aconchego daquele abraço – Mas eu não vim para assistir a noite.

       -Não? Veio para conversar? – ele perguntou curioso, cheirando seu pescoço, e apesar da paciência em sua voz, ela sentiu uma das mãos de Rowell ousar por suas curvas, indo apoiar-se sobre sua barriga, de um modo possessivo.

       Uma sedução calma, velada, para não assustar a vítima. Sorrindo, ela olhou para ele com seus olhos límpidos e sinceros.

       -De modo algum. Vim para ter o que é meu. Só meu. – disse possessiva. -Mesmo que eu vá embora, Rowell, ainda assim, eu quero o que é meu – disse com voz decidida, pela primeira vez na vida a decisão era totalmente dela.

       Joan virou-se em seus braços e tocou o queixo coberto por uma barba rala, e esfregou seus lábios de leve nessa pele áspera, enquanto murmurava sedutora:

       -Se eu partir amanhã, me espere, porque eu volto. Eu não sei quando, nem como, mas eu volto para você. - prometeu.

       Sim, não era comum que as promessas românticas viessem de uma mulher, fosse humana ou fada, pois normalmente cabia ao homem às promessas fantasiosas ao pé da alcova, mas com Joan nada era convencional.

       Ela pressionou o corpo frágil contra o dele e ergueu os olhos, boa parte da íris verde tomada pela cor negra de sua pupila dilatada, pois ela via algo que desejava, e esse desejo era maior que tudo, sobretudo maior que sua capacidade de pensar!

       -Tem coisas a meu respeito que você nunca entenderia, Rowell, coisas que acontecem dentro de mim, com meu corpo... Não sou como as mulheres que você já teve. Nem eu mesma sei como eu sou, ou o que acontecerá comigo... - ela corou e afastou os lábios do carinho que fazia, dizendo com voz mansa, porém carregada de paixão – Eu não tenho nem ideia de como isso acontece entre a minha raça e a sua. Ainda mais no cio... – baixou os olhos, pois ele não entendia nada, e pretendia fazer perguntas.

       Imediatamente, Joan pousou os lábios nos dele, e sussurrou em meio ao carinho:

       -Sem perguntas? – implorou.

       Um olhar profundo, direto, que procurava mentiras ou artimanhas, tão comuns no mundo humano, mas ao encontrar apenas verdade e entrega, Rowell apenas envolveu ambas as mãos em sua cintura e puxou-a para si com força, respondendo diante de seus lábios:

       -Sem perguntas, Joan. Sem cobranças, será do seu jeito, minha pequena fada – ele disse como um gracejo e ela abriu um lindo sorriso antes de responder:

       -Você não tem nem ideia, Rowell. Você não tem a menor ideia de quem eu sou de verdade... – seu gracejo se perdeu, assim como sua resposta, pois ele a beijou e tudo ficou esquecido.

       Joan não sabia se era por conta do cio, ou não, mas ela fervia por todos os lados. O duque beijou-a até roubar-lhe gemidos altos. Em determinado momento, ela girou em seus braços, roçando as costas em seu peito e ele agarrou seus cabelos, soltando-os do pesado coque que os escondia, uma prevenção contra os constantes puxões dolorosos que Matilde tanto gostava.

       Livre da prisão, sua cabeleira ruiva foi acariciada e amassada entre os dedos do duque, enquanto ele cheirava e deleitava-se com a suavidade e abundância. Joan contorceu-se contra ele, quando mordiscou seu pescoço e molhou a pele com beijos e chupões.

       Apesar de saber que os humanos não eram capazes de magia alguma, Joan sentia a magia brotar das mãos do duque. O modo como ele corria os dedos fortes e apertava seu corpo. Uma das mãos agarrou sobre seu seio, por sobre o vestido e ela murmurou de prazer, a outra mão hábil de Rowell pressionando seu quadril contra sua virilha, esfregando carne contra carne de um modo excitante e obsceno.

       Os dedos encontraram os contornos suaves de seu seio, e ela arfou quando foi beliscada sobre o mamilo. Ele correspondia a sua paixão, e ela queria que fosse assim. Em determinado momento, Rowell sussurrou em seu ouvido, e ela se contorceu, quase mentindo para que ele não se contivesse:

       -Você não mentiu sobre nunca ter estado com um homem, ou mentiu, Joan? Preciso ser suave? Eu sei que sim... Confirme isso, para que me convença que devo ser suave – era um desejo intenso por duas verdades. A primeira, que fosse o primeiro a se deitar com a doce Joan, e a segunda verdade, que deveria conter seu desejo e ser suave, quando na verdade ambos desejavam a força e a rapidez.

       -Eu nunca estive com alguém - ela confessou – Nem poderia. No lugar onde vivi enclausurada isso não era permitido...

       Como sempre Rowell iria pensar que ela se referia a algum convento da região. Jamais a um Ministério do Rei, um orfanato onde enclausuravam as fadas desvalidas e desafortunadas, privando-as de ter uma vida, apenas pelo caos que poderia haver por injetar fêmeas sem recurso em uma sociedade organizada por grupos socialmente parecidos, onde na maioria das vezes, as uniões se davam por comum acordo de interesses e não amor verdadeiro.

       -Seja suave comigo, Rowell... Mas não muito – ela provocou, sem saber que era capaz disso.

       O seu humano libertou uma fera dentro de si, e essa fera estava descontrolada, obcecada por paixão e ação. Sobretudo ação!

       Joan soltou um gemido alto de surpresa quando Rowell a pressionou contra a murada da varanda e atacou seu pescoço, mordendo a pele, descendo por suas costas ainda cobertas por tecido. As mãos do duque correram por seus quadris femininos, e ela sentiu o ar da noite batendo em suas pernas quando ele ergueu o tecido e enfiou ambas as mãos por baixo, enroscando os dedos em sua roupa íntima, puxando o tecido sem muita gentileza.

       Ela ajudou, chutando a roupa para longe. Arfou, puxando ar com força, quando àquelas mãos quentes voltaram a agarrar seu quadril, dessa vez por baixo da roupa, diretamente sobre sua carne quente.

       Humanos vestiam roupas demais e ela tentou tirar a parte de cima do vestido sem sucesso, pois era abotoado nas costas.

       -Calma – ele mordiscava seu ouvido ao dizer isso – quieta, Joan, fique quietinha...

       Como se ela pudesse simplesmente ficar quieta! Olhou em torno, para a escuridão da noite, para as tochas de fogo ardente que mantinham alguma claridade no pátio do castelo, e sobre as muradas, onde cavaleiros, arqueiros e outros serventes do castelo mantinham a segurança. Nenhum desses pontos de luz poderia ser mais ardente do que ela naquele louco momento.

       Esquecida de qualquer pensamento lógico, Joan apenas se contorcia e aceitava as caricias. Rowell começou a desabotoar ao vestido, e ela sentiu falta das caricias em seus quadris por baixo do tecido.

       Roçou as nádegas contra a virilha do humano, pois ele gemia quando fazia isso, o que a fazia supor ser tão prazeroso para ele quanto era para ela. Cada bocado de pele revelada, Rowell brindava com um chupão firme e uma mordida leve, de quem não quer machucar, e sim, devorar.

       Quando alcançou o último dos botões, ele mordicou a curva suave abaixo de sua cintura e puxou o vestido para baixo, revelando primeiro ao seu olhar, suas nádegas pequenas, curvas e macias.

       Coxas finas, pernas curtas, Joan era pequena, e de estrutura frágil, com ossos miúdos e delicados. Rowell refreou o desejo de acomodar-se a ela, e terminar o ato muito rápido. Joan merecia bem mais do que isso. Não apenas por gratidão, por ter salvado-o de uma vida de sofrimento e limitações, mas por ter despertado em seu  coração um amor maior do que conseguia explicar.

       O tecido pesado da roupa raspou sobre seus mamilos e ela tentou segurar o tecido, mas era tarde para qualquer pudor remanescente, e Rowell não deu chance para mudar de ideia, puxando a roupa para baixo com a velocidade de um homem curado e no ápice do desejo físico.

       Por ser a mais frágil de todas as fadas da clausura, muitas vezes se envergonhava do próprio corpo. Mas sob as mãos do duque Mac William esse sentimento não existia. Ele apreciava seu corpo e não se importava com qualquer falso pudor que ela pudesse resguardar.

       Se ela pudesse entrar em sua mente, saberia que Rowell apreciava as mulheres e não os tabus de feminilidades impostos pela sociedade, e por conta disso, era capaz de excitar-se com o contato, a presença e as formas que viam, e não com o que os outros pensavam que deveria ser excitante.

       Ele manteve uma das mãos em sua barriga, colando os corpos, enquanto descia os lábios por suas costas, molhando a pele e arrancando arrepios e gemidos incontroláveis. Joan moveu as pernas, ofertando mais espaço e por pouco Rowell não aceitou esse ingênuo convite.

       Precisou lutar contra a pressa, para saborear o momento e permitir que ela saboreasse também.

       Joan agarrou com força a beirada da murada, lutando para manter os olhos abertos enquanto a mão poderosa subiu por sua barriga e estendia-se sobre seu seio. Seu lamento, não era de dor, e sim uma represaria para as sensações nunca antes imaginadas. Rowell sabia disso, tanto que a puxou em seus braços e a trouxe contra a parede, atrás dos dois, próxima a janela ampla da varanda.

       De frente, ele correu os olhos pelo corpo pálido, enquanto Joan agarrava o tecido de sua roupa, e tentava puxar para baixo, numa patética tentativa de descobrir seu amante.

      Rowell lhe sorriu e o mundo parou por um instante. Era romântico demais, mas era assim que ela se sentia. Sem chão, sem rumo, envolvendo os braços em seu pescoço, quis seu beijo.

       Correspondida, Joan mal notou quando o duque a puxou para seu colo, e a levou para dentro do quarto.

       Definitivamente curado, ele não teve dificuldades de levar seu pouco peso no colo. Ela sentiu o ar faltar quando foi gentilmente pousada no centro da ampla cama. Luxuosa, coberta por colchas de tecido caro e bordadas, escondida por dorsal alto, com cortinas de veludo, e muito requinte, Joan ficou esperando pela volta do seu duque.

 

       Ele andou em torno da cama, enquanto desabotoava a camisa e livrava-se do excesso de tecido. A calça e as botas seguiram o mesmo caminho. Quando ele parou, no lado direto da cama, Joan suspirou e apoiou-se em um dos braços para vê-lo melhor e deixar claro que apreciava olhar para ele.

       Joan conhecia o corpo de Rowell, depois que o vira nu a primeira vez, nunca mais esqueceu e aquelas lembranças aqueciam suas noites. Mesmo assim havia certos detalhes que por pudor ela não conheceu.

       Mas agora, data a situação, ela queria ver tudo, sem pudores e sem medos. Correu os olhos pelos músculos dos braços, do peito, da barriga e das coxas. Ele era proporcional, não exagerado, mesmo assim mais largo em músculos que a maioria dos elfos que ela conheceu, com exceção de alguns guardiões que por função do treinamento cresciam em músculos.

       Engoliu em seco, sabendo bem que Rowell dedicava sua vida a luta, a defender seu forte e a manter a ordem, e seus treinamentos de luta não eram de modo algum suaves.

       Rowell sorriu por conta do modo que era olhado e Joan corou, e mesmo sem querer parecer constrangida, o rubor o fez saber de seus íntimos sentimentos. Rowell subiu na cama, e ela ergueu uma das mãos para encostar no seu peito nu. Era mais forte do que ela. O desejo de correr os dedos pelos músculos, sobretudo os da barriga, por onde aventurou os dedos, descendo inocentemente para baixo, incentivada pelos gemidos do duque.

       Ele não tentou para-la, pelo contrário, beijou-a, embrenhando ambas as mãos em seus cabelos, e curvando-se para que o beijo fosse completo. Rowell estava ao seu lado, de joelhos na cama e Joan não cessou o movimento da mão até sentir aquela área em especial que na outra noite, quando cuidou dele, tanta curiosidade lhe despertou e que margeava suas fantasias como uma curiosidade e um desejo secreto.

       Joan fugiu do beijo por um segundo ao alcançar seu intuito, algo entre surpresa e curiosidade aguçada, mas Rowell tornou a saquear seus lábios e ela dividiu-se entre as duas tarefas, ambas prazerosas.

       Agarrou a intimidade masculina com uma das mãos e sentiu quando ele tocou sua mão para posicionar do modo correto e de certo modo ensinar como deveria acontecer. O beijo cresceu e ela quase saiu da posição deitada, na ansiedade de obter tudo dele.

       Experiente, Rowell manteve o beijo, enquanto levava uma das mãos pelo o corpo da jovem mulher em sua cama. Não era sua noiva ou esposa, mas ele a tratava como uma donzela em sua lua de mel. E de certo modo era exatamente isso. Um casamento acontecera naquele quarto, semanas atrás quando seus ouvidos captaram a doce voz no corredor pela primeira vez, ou então, quando na escuridão de uma noite de pesadelos, ele acordou e viu a imagem etérea e quase sobrenatural em seu quarto, aterrorizando-o pela incerteza de ser ou não realidade.

       Esse tipo de casamento dura uma vida inteira, e ao descobrir que aquela voz e aqueles olhos eram reais, Rowell refirmou àquele compromisso dentro de si. Protegeria Joan com sua vida se necessário, e mais do que isso, protegeria suas amigas, mesmo sem conhecê-las e sem saber os crimes cometidos por elas.

       A vida de Joan até aquele dia, quando seus olhos se cruzaram pela primeira vez não lhe importava. Ele sabia quem era, bastava um segundo de silêncio ao seu lado e ele sabia exatamente quem, e o que, era a misteriosa Joan.

       Deslizou a mão por um dos seios, e apertou de leve, testando suas reações. Insistiu, massageando o bico com insistência e Joan fugiu definitivamente ao beijo, não por ausência de vontade de continuar, mas por outros sentimentos inomináveis que a obrigavam a olhar o que ele fazia com seu corpo.

       Os dedos roçaram e apertaram a carne saudável e macia de seu seio, brincando com o mamilo, enquanto inclinava o rosto para saborea-lo com os lábios. Joan folgou os dedos em torno dele, e o duque sorriu, e olhou para ela, sussurrando:

       -Não pare, Joan - ele piscou malicioso e ela derreteu por dentro, apertando com mais força, e voltando a mover a mão como ele queria e gostava.  - Assim, não pare, eu gosto quando faz assim...

       Incentivada, continuou o que fazia, e fechou os olhos envolvida no clima do momento quando Rowell deslizou os dedos para baixo. Ele passou a mão por sua barriga, sempre para baixo, enquanto sua outra mão acariciava um dos seios, e os dedos que desciam logo encontraram as curvas entre pernas, onde ele queria realmente chegar.

       Esfregou os dedos de leve, por entre os pelos ruivos, e Joan não pode evitar o impulso de parar e olhar. Rowell não insistiu que voltasse aos carinhos anteriores, pelo contrário, concentrou-se na caricia atual.

       Juntou ambas as mãos na mesma carícia, usando os dedos para abrir caminho e desvendar o grande segredo feminino que se escondia entre as pernas da mulher que mexia com seus sentimentos.

       Joan observou os longos dedos encontrando caminho por suas curvas e gemeu, apoiando ambas as mãos no lençol para se erguer e espiar exatamente o que ele fazia. Com um sorriso cafajeste, Rowell lhe roubou um beijo e a fez deitar outra vez, movendo-se para ficar de frente, e não mais de lado.

       Sondou-a com gentileza, conhecendo as formas, aspirando o cheiro, satisfazendo os olhos, antes de satisfazer os outros sentidos. Joan era macia e delicada em toda parte e ele não queria ser o autor de magoas em seu coração, muito menos o causador de péssimas lembranças futuras.

       Joan não tinha a menor ideia sobre o que lhe passava na mente, e sobre suas inseguranças. Era tudo tão perfeito, que superava qualquer fantasia.

       Ele esfregou os dedos na junção, abrindo as partes lentamente, e esfregando os dedos com jeitinho sobre o feixe de nervos que se escondiam ali. Ela entreabriu os lábios e não ousou dizer nada, simplesmente deixando os braços largados ao lado da cabeça enquanto lutava para não gritar de susto e paixão.

       Ele esfregou mais forte, e quando a língua escapou da boca do duque e saiu para brincar com suas dobras, Joan resmungou um protesto, e contorceu o corpo de ansiedade. Nunca imaginou que fosse assim, muito menos que existisse esse tipo de intimidade.

       Rowell lambeu e mordicou sem paragem, e quando Joan tentou virar de lado, ele manteve seu quadril parado, mesmo que ela agarrasse o travesseiro sob sua cabeça e o abraçasse, como quem precisa de algo para segurar, apertar e fincar os dedos.

       Ela mordeu o travesseiro quando ele mordeu lá em baixo. Era uma reciprocidade sem limites. A sensação que a principio era apenas deliciosa, começou a ficar angustiante e avançada, como se estivesse com um queimor nas regiões íntimas.

       Rowell sabia tocar uma fêmea, mesmo que essa fêmea fosse de outra raça e Joan soltou oi travesseiro na angústia do pré clímax e chamou seu nome, enquanto empurrava o quadril contra sua boca.

       Ele mordiscava muito, pois ela gostava assim, lambia com mais força e sugava enquanto mantinha suas nádegas paradas, agarrando a carne com dedos fortes.

       Joan era toda magrinha, e fraquinha, e ele tinha medo de machuca-la. Mesmo os mais gentis apertos mantinham marcas vermelhas em sua pele suave. Ele não acreditava muito quando ela contou ter crescido em um orfanato, pois não havia nenhum orfanato na região, nem mesmo nas redondezas mais longínquas, mas fosse lá onde ela houvesse nascido e crescido, não era um lugar que fornecesse muita alimentação.

       Um pensamento nada sutil sobre falar com Hector para caprichar na comida de Joan. Ele a desejava saudável e não tão singela como um coelho assustado.

       Ela murmurou uma reclamação, em meio ao clímax e ele abocanhou sua intimidade sem dó erguendo suas pernas sobre os ombros, para leva-la com toda a força que ela gostaria.

       Joan bateu os dos braços contra o colchão, olhos fechados, cabeça jogada para trás, em um emaranhado de cabelos longos, embaraçados e ruivos e gemeu muito ao atingir o ápice.  Se alguém tentasse lhe contar sobre aquele sentimento ela se recusaria a acreditar que algo assim pudesse existir!

       Segundos de puro individualismo e delírio. Ela ficou sobre a cama, um pouco inconsciente do que Rowell estaria fazendo, olhos fechados, apoiou o rosto em uma das mãos, e manteve-se assim, dengosa demais para falar ou fazer qualquer coisa além de desfrutar do sentimento novo que a abandonou tão rápido quanto veio!

       Sentiu um beijo na clavícula e as mãos do duque por todo seu corpo. Ele separava suas pernas e pesava sobre ela. Abriu os olhos quando Rowell beijou seu rosto, despertando-a para sua presença e seus olhos brilhantes.

       Ela sorriu e foi beijada com o mesmo sentimento com que correspondeu. O que acontecia entre eles dois era lindo e único e esse sentimento não se dissolve no ar após o gozo. É algo que permanece e evolui e ela abraçou-o pelas costas, agarrando seus ombros com quase desespero, enquanto era beijada por toda face e pescoço.

       O duque se posicionava e Joan apenas arfou tentando não se assustar e atrapalhar. Estava macia, úmida e palpitante e não foi difícil encontrar caminho e empurrar.

       Usando as coxas firmes e trabalhadas por anos de luta, treinamento e cavalgadas, Rowell abriu as coxas de Joan mais largo, rodilhando o próprio quadril entre os seus, para facilitar a invasão, que nada suavemente encontrava barreiras de proporcionalidade. Era tão miúda que causava ternura em seu amante.

       Ela mantinha os olhos abertos agora, cobrando dele uma explicação, e Rowell segurou seu queixo e então segurou seu rosto pelas bochechas com uma das mãos, beijando-a e distraindo-a do movimento forte e impiedoso que seus quadris fizeram ao invadir completamente, rompendo a barreira da virgindade e deflorando seu corpo completamente.

       Ela grunhiu de dor e negação, e ele soltou o beijo, mas não parou de mover o quadril. Era a primeira vez para ele também, pois nunca antes esteve com uma donzela. Sophie, sua esposa, viera para o casamento com o coração partido depois de ser abandonada por um amante que a enganou, mas ele não se importava com isso, pois o casamento era conveniente para ambos, e na ocasião, ele fora feliz na sua presença.

       Sem muito amor, sem muita confusão. Fazia sentido na época.

       E parecia o maior dos absurdos agora que conhecia o verdadeiro sentimento que deveria unir homem e mulher. Ou melhor, homem e Joan. Ele ainda não tinha certeza de quem ou que era Joan.

       Molly, a criada que cuidava da limpeza dos corredores, vivia aos cochichos sobre Joan ser um anjo caído dos céus para salvar a todos eles, era um exagero tremendo de uma mente tomada pela religião, mas Joan não era exatamente como eles.

       Havia algo nela. Algo que não se explicava por rótulos.

       Ele gemeu, e perdeu o domínio dos pensamentos ou ações. Abraçou-a com força e deixou que o corpo falasse o que lhe faltava de palavras. Bem agarrados, sem espaço para ar, ou respirar, o beijo aconteceu e selou o momento. Braços trincados nas costas de seu amante, Joan não respirava, apenas beijava.

       Os pensamentos desapareceram, o ar ficou denso e pesado, carregado de tensão, suspiros, gemidos e sussurros de paixão.  Joan foi a primeira a romper, e deslizar daquela montanha imensa que os levava a altura mais longínqua do chão que poderiam imaginar. Ela moveu a cabeça para longe do beijo e espalmou ambas as mãos no peito do humano, tentando empurra-lo, enquanto lutava conta o sentimento que bem maior que o anterior a fazia contorcer-se e sentir tudo mudar dentro de si.

       Era culpa do cio. Era culpa da paixão humana despertada dentro de um corpo mágico. Ela não tinha respostas para suas perguntas, mas era quase doloroso demais para suportar. Rowell não permitiu que se afastasse, manteve seus braços parados, erguendo ambos acima da sua cabeça e apertando os pulsos contra o colchão enquanto empurrava os quadris com maior força e rapidez. Ela gritou, o peito frágil balançando, as pernas largadas em torno dele, sendo levada de um modo impensável, quase rude.

       Àquela quase dor desapareceu e ela se calou quando o sentimento explodiu em torno de si em uma miscelânea de sensações indescritíveis. A mais forte delas era um quase choque que a fez tremer da cabeça aos pés.

       O mesmo que aconteceu com Rowell. A palavra correta era 'possuído'. Joan não era um anjo, pelo contrário, era uma devoradora de corações, e esmigalhava o seu com seu corpo, e olhar.

       Ela abriu os olhos brilhantes pela emoção do prazer e o fitou enquanto Rowell desfazia-se em seus braços, terminando o ato, com um grunhido de prazer e posse. Olhos verdes, claros, úmidos de lágrimas. Tão incríveis quanto o modo de ela tocar seu corpo, sua pele, com mãos quentes, e tremulas.

       Sua pequena Joan, que se tornara uma gigante em seus braços, e lhe espertava sentimentos contraditórios. Desde o impulso incontrolável de morde-la inteirinha e devora-la, ao sentimento imensurável de ternura, de abraçar e acarinhar, protegendo-a do mundo, inclusive dele próprio e sua paixão desvairada.

       Rowell correu suas mãos pelos braços pálidos, e contornou seu rosto, pousando um beijo suave em sua testa.

       Suados, e arfantes, suas bocas se encontraram para um beijo de consolidação. Ele não se casaria com humana alguma depois do que partilharam disso Joan tinha certeza!

       Quando o beijo acabou, ela sentiu aquela sensação incontrolável revirar tudo dentro de si, e apesar de não saber se era o cio ou não se manifestando, Joan sussurrou:

       -Eu quero mais.

       O modo íntimo como seus olhos pediam por isso, era muito mais que um pedido de luxuria e Rowell sabia disso. Ela disse algo sobre não ser como as demais mulheres e ele começava a crer que isso pudesse ser verdade. Nunca se cansava de pensar, intrigado, sobre o que havia em Joan que a fazia tão peculiar. Tão única.

       -E como você quer? - ele provocou, se movendo entre as suas pernas.

       Ela ajeitou o quadril, convidando para mais.

       -Eu não sei. Como você gosta? - ela perguntou de volta, suas unhas arranhando de leve o ombro e o peito de Rowell enquanto os olhos duelavam por rendição e as bocas se caçavam em suaves mordidas intercaladas por palavras.

       -Eu não tenho uma resposta para sua pergunta. Com você, eu gosto de qualquer jeito. - ele galanteou e ela riu com humor e leveza.

       -Tem tantas cosias sobre mim que eu gostaria de lhe contar, Rowell. Tantas coisas. Mas não sei por onde começar. Ou se devo contar. Eu... Não sei se o que sinto é por nossa causa ou... Por algo que acontece dentro de mim. Precisarei me deitar com você novamente, para sanar essa dúvida. – foi sincera.

       -Você fala coisas tão estranhas – ele disse com um meio sorriso na face – Você é uma pequena fada estranha. Mas não me importo com isso. Estou me apaixonando por você, Joan – ele declarou.

      Joan suspirou de contentamento. Primeiro, ela gostava do apelido íntimo. Ser chamada de ‘fada’ mesmo que Rowell não tivesse ideia da ironia que representava falar isso para alguém que escondia sua verdadeira natureza mágica, e segundo, porque era uma declaração de amor, e como qualquer fêmea, ela exultava em ouvir isso da boca do macho que lhe despertou sentimentos.

       -Isso é um problema, Rowell – ela disse sorrindo, e aconchegando-se sob ele, roçando os corpos e instigando mais do ato – Porquê eu sei que vai levar um susto quando souber quem eu sou. E então, o que faremos com esse amor todo?

       -Eu levarei um susto? É algo tão grave assim? – ele fingiu debochar para não conversar sobre o quanto o assustava essa possibilidade. Sobre a verdade da vida de Joan causar uma barreira instransponível entre eles.

       -Hum, eu não sei, em outro momento, se eu não estivesse fugindo e me escondendo... Talvez não fosse algo tão grave assim – confessou pesarosa, no entanto, sem conseguir afastar aquela felicidade toda que parecia toma-la inteiramente e não deixar espaço para lamentação alguma! – Eu acho que você entenderia. Caso contrário não amaria e aceitaria Marmom.

       Por um segundo ela viu um vislumbre de medo real no olhar de Rowell. Ele temia a verdade sobre o que era Marmom, e principalmente, sobre a real possibilidade de não ser seu filho e ter uma criança com seu sangue apartada de si em algum lugar do mundo, provavelmente roubada na noite de seu nascimento.

       Joan plantou um beijo suave na bochecha do duque e o distraiu de seus medos. Rowell beijou-a e esse foi o estopim para o final da conversa.

       Não poderiam manter uma relação sem falar do passado e do futuro, mas ela não podia fazer promessas agora.

       Rowell conduziu-a outra vez pelos mistérios do amor e quando terminaram Joan se moveu na cama, deixando-o deitado, e apoiou-se em uma das pilastras que segurava a cortina em torno da cama. De costas para ele, respirou fundo várias vezes, acalmando a mente e o coração.

       Sim, não era culpa do cio. Ela tornou a sentir a mesma avassaladora torrente de paixão nos braços de Rowell, e passado o defloramento isso não deveria se repetir, caso fosse mesmo responsabilidade do cio.

       Sorriu e mordeu o lábio de expectativa e prazer quando sentiu uma mão quente correr por entre seus cabelos e sobre a pele de suas costas, reascendendo o calor dentro de si. Era Rowell vindo atrás de aconchego, que apenas sua amante ruiva e suave poderia lhe proporcionar.

       Difícil crer que alguém tão meigo e terno pudesse ser tamanhamente selvagem sobre a cama. Mas era o caso de Joan. Uma leoa despertava dentro de seu corpo quando tocada com intimidade e ele estava bastante grato de ser sua vítima.

       Sorrindo, mordiscou seu ombro e ela gemeu.

       -Hum, como foi que eu não vi essas duas cicatrizes na sua pele? – ele perguntou e Joan olhou para trás, para saber do que ele fazia.

       -Cicatrizes? – não entendeu imediatamente.

       -Sim, essas duas linhas paralelas e cicatrizadas nas suas costas. Eu não sei como não notei antes... – ele duvidava da própria sanidade, pois não vira isso na varanda quando a despiu.

       Joan se moveu e sorriu. Eram suas asas lutando contra o poder do dom de Zoé, tentando desesperadamente encontrarem saída por sua carne.

       -Não é nada demais. Conto-lhe sobre isso quando... Quando falarmos sobre meu passado – ela prometeu, acariciando o rosto de Rowell com essa promessa no olhar e então tornando a apoiar os braços na madeira e o queixo sobre os braços, descansando e respirando calmamente, para aquietar o corpo após tanto exercício e prazer.

       Rowell queria a atenção de Joan, e ser o alvo único de seus pensamentos, e era culpa da possessão que lhe despertara. Ele mordiscou outra vez seu ombro e ela riu com aquele som que agradava seu coração. Ouvir o riso de Joan era como ouvir o riso de um anjo.

       Ele voltou a morder a pele de suas costas, em uma caricia íntima e delicada, e um pensamento a fez sorrir e então soltar um risinho que o fez parar e gira-la em seus braços.

       -Está rindo de mim? - ele perguntou cravando os olhos nos seus como se não estivesse nua e tremula em seus braços.

       -Não. Eu pensava que não é apenas Marmom que gosta de morder... - seus lábios cativaram totalmente a atenção do duque. O modo como ela disse isso, atiçou e obrigou Rowell a lhe punir com um beijo.

       Perdida naquele enlevo de sentimentos, Joan pensou se aquilo era real. Era mesmo ela quem estava sendo devorada em um beijo apaixonado, nua e pertencente a um humano?

       O modo como Rowell mordicou seu lábio, em represália a sua brincadeira sobre mordidas, a fez lembrar que era tudo muito real, e que ela estava adorando cada segundo.

       -Eu gosto de estar aqui, de estar assim, de estar com você. – ela confessou, como um eu te amo não verbalizado.

       Rowell engoliu em seco. Ele nunca se apaixonou, não assim, e ainda não entendia como poderia ser tão simples. atípico a um momento de paixão e sexo, ele parou tudo para afastar os cabelos ruivos da face de boneca e salpicou um beijo em seu nariz, para ouvi-la rir outra vez, e então, a puxou para o colchão de volta, .

       Joan ria quando foi colocada sobre a colcha deitada sobre ele.

       Dessa vez não havia dúvidas sobre o olhar do seu humano. Rowell correu os olhos por suas pernas, montadas em seu quadril, suas coxas, virilha e seios empinados. Um olhar demorado, de pura apreciação.

       -Eu não posso passar a noite aqui – ela disse com reticências, enquanto pousava a cabeça em seu peito, em uma posição dolorosamente erótica.

       Rowell afagou seus cabelos e fez um carinho em sua bochecha antes de concordar:

       -Não. Não pode. Não vou me casar com Zoé, mas não quero arrumar problemas com o rei antes de ter contado a ele minha versão dos fatos – ele disse pesaroso.

       -Rowell, me prometa uma coisa. É muito importante para eu ter sua palavra. – pediu erguendo o torso para fitar seus olhos – Não escreva ao seu rei ainda. Espere um pouco. Minha situação é complicada, diante dos olhos dos humanos de sua terra eu sequer existo. Quando eu resolver minha situação, aí sim, você poderá lidar do modo certo com a situação do seu casamento. – alertou.

       -Eu não posso enganar Zoé para sempre. Ela é irmã do meu melhor amigo. De quem deu a vida por mim. Se eu estou vivo, aqui com você, é graças a Howard. Eu devo a ele proteção para sua irmã, mesmo que não me case com ela.

       -E se eu lhe disser que Zoé não é quem parece ser? – disse começando a ficar tensa. – Escute, não vamos falar disso – pediu, tornando a pousar a cabeça em seu peito – Apenas confie em mim e me dê um pouco de tempo antes de tomar qualquer atitude que possa prejudicar sua vida e seus filhos.

       Como ele poderia dizer não para o pedido de uma mulher que se preocupava também com o destino de seus filhos? Rowell envolveu os braços em torno de Joan, controlando a exasperação, e retribuído a afeição dela com confiança.

       Permaneceram em silêncio por longos minutos até que Rowell quebrou a gostosa mostalgia que os envolvia.

       -Precisa devolver as cartas de Matilde – ele alertou.

       -Eu não quero fazer isso – disse Joan.

       Um pesado suspiro de exasperação e ela preparou-se para um sermão sobre ser boazinha com a mãe do duque.

       -Tem rodas às razões do mundo para declarar guerra contra minha mãe. Mas eu preciso interferir nisso. Devolva as cartas, Joan. Isso é muito importante para Matilde e vai além da briga pessoal entre vocês duas.

       -Por quê? São cartas antigas, que ela nunca enviou. – ergueu a cabeça e desmontou de sobre o humano, pois ficava irritada de ser contrariada nesse assunto.

       -Matilde nunca enviou essas cartas, pois as escreve para meu pai que está morto. É o único modo que ela encontrou de superar a perda e a saudade. São suas palavras de saudade, Joan. Tenha pena e devolva as cartas.

       -Matilde não tem pena do sofrimento de nenhuma de nós. Sabia que Liara perdeu a família recentemente? E mesmo assim, mesmo sabendo, Matilde a castiga com gritos e ofensas o tempo todo! E Molly? Pobrezinha, ela já foi abandonada tantas e tantas vezes por tantos amores falsos, e mesmo assim, Matilde a chama de meretriz e prostituta e lhe bate com o cajado... Ou batia, eu roubei o cajado. - contou, emburrada.

       -Matilde não merece sua piedade. Eu sei disso e meu pedido não é baseado em justiça. Ela é minha mãe e você será minha esposa. Será a duquesa e será a única a dar ordens nesse castelo, inclusive no trato da criadagem. Devolva as cartas, Joan.

       Ele não cederia. Contrariada, e claramente emburrada ela acenou concordando.

       -Mas eu manterei o cajado para mim – ela avisou, antes que isso fosse debatido também.

       -Está bem, eu posso entender seu ponto de vista. Fique com o cajado. Mas não use contra Matilde. – avisou.

       Meio tarde, pensou Joan, mas não lhe contou da briga com Matilde. Manteria esse segredo, assim como Matilde mantinha segredos de seu próprio filho.

       -Eu preciso ir – ela disse olhando em torno no quarto. Apenas as chamas das velas iluminava o ambiente, e ela sentia falta antecipadamente de estar ali.

       -Uma vida de aparências. – ele disse em tom de profundo desgosto.

       -É melhor do que nada  - tentou anima-lo sobre isso. – Amanhã à noite eu volto. Quer que eu volte?

       -E como eu vou conseguir esperar até amanhã à noite? – ele devolveu a pergunta.

       Joan riu esquecida de todas as tristezas, inclusive da rincha entre os dois causada por Matilde e juntou-se a ele na cama mais uma vez, para um abraço e um beijo de despedida.

       -Vou sentir sua falta – ela disse olhando para os lábios que recém beijara.

       Rowell prendeu os braços em torno dela, para não deixa-la ir.

       -Eu não quero passar o dia todo longe de você. – ele queixou-se e ela nem tentou fugir do abraço.

       -Porque você não vem comigo na vila? Podemos passar o dia juntos, com a desculpa de encontrar ajuda extra para o trabalho. E Hector está reclamando da falta de mantimentos.

       E, apesar de não confessar, Joan queria a chance de ficar bem longe de Zoé. Afastar-se do dom da outra, que anulava o seu. Poder libertar suas asas e voar. Não para partir, mas sim contar tudo a Rowell, provando o que dizia com a imagem de suas asas.

       -Minha mãe não pode saber. Precisamos despista-la – ele mesmo sorriu diante da tolice de um homem adulto, um duque, precisar de artimanhas para desviar do cuidado exagerado de uma noiva indesejada e uma mãe controladora.

       -Agora eu vou – ela disse novamente.

       -Vá antes que eu perca o juízo e acabe com todos os segredos desse forte. - ele conformou.

       Era muito difícil simplesmente ir. Ambos sorriram e dividiram um beijo longo e carinhoso e tomada de um arremeto de coragem, Joan saiu da cama.

       Rowell ficou olhando-a vestir-se e correr para a porta. Era o único modo de sair sem ser barrada pela vontade de ambos ficarem juntos.

       Com o coração leve e sentimentos contraditórios sobre assumir ou não aquele amor, Joan abriu a porta e saiu, cuidadosa ao fechar a porta e andar pelo corredor. Não queria falatórios sobre o comportamento do Duque Mac William.

       Zoé saberia imediatamente que havia se deitado com ele, pois o cheiro de cio havia abandonado-a. Mas não poderia acusa-los de nada sem entregar quem era e como sabia do acontecido.

       Então, não havia razões para preocupar-se quanto a isso.

       Sorrindo de orelha a orelha, incapaz de suprimir a proporia felicidade, Joan dirigiu-se para o alojamento dos serviçais.

         

       Joan entrou no quarto onde dormia com as outras serviçais, cuidadosa para não ser ouvida e acorda-las. Ignorou a cama, e abaixou-se, procurando embaixo do colchão pelas cartas de Matilde.

       Era um esconderijo camuflado por seu dom, e por culpa de Zoé não poderia desfazer essa mágica, mesmo assim, as cartas não estavam camufladas, apenas guardadas nesse esconderijo. Uma pena que não fosse tão simples recuperar o uso de suas asas.

       Estava com a mão enfiada sob o pesado colchão procurando pelo peso das cartas, quando foi interrompida por um sussurro na escuridão:

       -Joan, é você?

       Era Molly. Aliviada, ela levantou e andou até a cama de Molly tomando cuidado para não tropeçar na completa escuridão. Ajoelhou-se no chão, pertinho dela e sussurrou de volta:

       -Sim, desculpe acorda-la. Volte a dormir, Molly. – pediu.

       -Onde você estava? Fiquei preocupada com sua demora em voltar para o quarto. Hector me contou de sua conversa com o Duque Mac William... Eu... Cheguei a pensar que você não voltaria mais... - havia dependência emocional sendo verbalizada nas palavras de Molly.

       Carinhosa com sua recente amiga adquirida naquela louca vida entre os humanos, Joan sussurrou de volta, para tranquiliza-la:

       -Não se preocupe. Rowell e eu não brigamos. Nós... Molly, eu estou completamente apaixonada pelo duque. Eu sei que é inapropriado, mas... Não posso evitar. Seria terrível se alguém ficasse sabendo, e colocasse o nome do duque em uma roda de fofocas. Seria um escândalo que poderia causar tragédias para toda a família Mac William. Eu não tenho certeza de como essas coisas acontecem, mas acho que seria perigoso.

       -Sim, muito perigoso. O Rei deu sua permissão para um casamento entre o duque e a condessa.  – na escuridão, Molly sentou na cama e segurou sua mão com afeição – prometo ser discreta!

       -Obrigada. Você é uma boa amiga. Eu nunca vou esquecê-la enquanto viver! – Joan disse emocionada.

       -Não fale como se fosse partir. A vida voltaria a ser escura e sem felicidade. – Molly disse com dor.

       Joan não soube o que responder. Faltava-lhe palavras, pois em breve precisaria partir sim, mesmo contra sua vontade, e mesmo tencionando voltar!

       -Oh, Deus, vocês duas não vão se calar? Eu quero dormir! – os resmungos de Liara fizeram as duas rir baixinho.

       Pronto, na escuridão total, uma a uma as servas foram acordando.

       -O que estava procurando, Joan? – perguntou Molly e notando que não havia sentindo em manter segredo, pois agora todas elas estavam acordadas e eram suas amigas. Para bem ou para mal, eram todas empregadas e penavam da mesma vida de privações. Identificação por amizade e sobrevivência.

       -As cartas de Matilde, eu as escondi embaixo do colchão. O Duque Mac William me fez prometer que devolverei para ela amanhã cedo. - disse apenada de ter que fazer isso.

       -Você roubou as cartas de Matilde? – o gritinho empolgado veio de outra serva, que quase pulou da cama em empolgação – Eu sempre quis fazer isso! Mas ela esconde tão bem, e seu quarto é tão vigiado! Como conseguiu? Oh, isso não importa! Vamos, me dê, eu quero ler!

       -Sim! – disse outra jovem – Quem sabe descobrimos algum pobre cabeludo da enjoada para usar contra ela? Eu bem gostaria de usar aquele cajado contra ela um dia desses!

       -Eu não posso mostrar. Eu prometi ao duque. – Joan negou e levantou na escuridão.

       -Ascenda uma veja, Joan, desse jeito você vai cair! – disse Liara, ainda irritada de ter que acordar no meio da madrugada.

       Entre tropeços e risos, ela conseguiu pegar a vela das mãos de Liara que voltou a deitar a cabeça no travesseiro querendo e precisando de mais tempo de sono.

       -Você não pode esconder as cartas de nós, Joan – dizia Molly. Enquanto Joan acendia a vela de costas para as demais camas, pois a sua era no canto mais fundo do quarto – Pense, é nossa única revanche contra aquela cobra asquerosa...

       Joan considerou essa possibilidade. Rowell não precisava saber disso, precisava? Seria deveras interessante ver a cara da bruxa amarga ao saber que suas serviçais haviam lido suas cartas! Mas, eram cartas para o pai de Rowell, e ela não queria invadir a individualidade de seu grande amor. A menos, claro que selecionasse as cartas menos comprometedoras e...

       Joan terminou de ascender à vela, protegendo a frágil chama com a palma das mãos e virou-se de costas, enquanto ouvia Molly falar sem parar sobre as cartas.

       Chegou a andar alguns passos na direção da cama, antes de erguer os olhos para longe da chama e fitar o colchão.

       Foi quando ela viu.

       Com um grito, ela derrubou a vela no chão.

       Não foi um grito qualquer, foi um som de horror e pânico.

       Liara foi à única que percebeu o fogo alastrar-se no chão e correu para apaga-lo usando um dos cobertores e rapidamente a fumaça subiu e inundou o quarto.

       Joan ficou imóvel quanto às chamas eram apagas e uma a uma as servas ascendiam suas próprias velas, levantavam e gritavam assustadas com a imagem inédita e assombrosa sobre sua cama.

       No final, restou apenas Joan de pé encarando a imagem inesperada.

       Sobre sua cama, imersa em uma poça de sangue, a cabeça de uma mulher morta jazia sobre seu colchão.

       Olhos ainda abertos, morta em meio ao horror de um vil ataque. A face da mulher não era desconhecida. Era muito semelhante a face de Zoé e por um segundo Joan quase achou ser a Guardiã.

       -Cristo!  - ela ouviu o grito de Matilde, vindo de suas costas, mas não registrou.

       Sentiu braços agarrando-a e puxando para fora do quarto e não fez nada para evitar, apenas tentava olhar e olhar a imagem assombrosa, como quem precisa decorar e ter certeza que é real.

       Em choque, Matilde a arrastou pelo corredor até uma sala no andar de baixo onde as outras criadas estavam. Sem saber por que, Joan parou e tentou segurar Matilde, antes de entrarem:

       -Foi ela! Foi Zoé! Foi ela!

       Se Matilde ouviu ou registrou suas palavras ela não sabia. Foi deixada junto das demais, e só percebeu que chorava pelo medo e susto quando Molly ajudou-a a sentar-se e segurou suas mãos entre as suas, consolando-a.

       -Foi você, Joan? Que trouxe... Aquilo? – Liara perguntou a queima roupas – você não estava no quarto!

       -Não! – Molly respondeu por ela – É claro que não! Joan estava com o duque! Estava com ele em seu quarto! Pobre menina, nunca faria isso com uma criatura viva! Como pode pensar isso, Liara?

       -Eu não estou recriminando-a – disse Liara, sentando ao lado das duas e pousando uma das mãos sobre a perna de Joan para acalma-la – Tem coisas que precisamos fazer... Eu só a culparia de ser boba o bastante para levar isso para seu próprio quarto.

       -Liara! – Molly gritou e a calou.

       Seria algo que sua amiga Alma diria. Mas não, Joan não fizera aquilo, mas era um aviso para ela.

       Zoé a mataria do mesmo modo que fez com a verdadeira noiva de Rowell. Assustadíssima, Joan escondeu o rosto entre as mãos e chorou sem saber o que fazer.

       Primeiro, desfrutara dos momentos mais deliciosos e emocionantes que jamais pensou existir entre macho e fêmea, e então, a realidade caia sobre sua cabeça com o peso de uma bigorna!

       Minutos depois, Rowell invadiu a sala, vestia apenas parte das roupas na pressa de juntar sua família. A fumaça o alertou do perigo e o medo o fizera procurar pelos filhos e então Joan. Um incêndio em um forte poderia ser uma tragédia irrecuperável!

       Ele trazia Marmom em seu colo, abraçado ao seu pescoço, Alice levava Tommy pela mão, ambos assustadíssimos. O menino soltou a mão da irmã assim que viu Joan e aproximou-se querendo seu colo.

       Tremula, ela não poderia oferecer conforto a quem quer que fosse.

       -Não foi um incêndio – disse Joan – eu derrubei uma vela... Eu... Oh, Rowell, você precisa ver o que fizeram no quarto! – ela disse com olhos marejados, sem coragem de levantar e fazer qualquer outra coisa além de ficar ali imóvel, sem reação.

       -É verdade, Duque Mac William – disse Liara – É  um horror. Não é possível descrever com palavras!

       -Um ataque? – ele perguntou retirando a espada da bainha, presa em sua cintura.

       -Sim – Joan respondeu e levantou no mesmo instante quando avistou Zoé entrando no amplo salão, seguida de Matilde – Ela! Foi ela! Sua assassina! Assassina!

       O tempo que levou para afastar-se de Tommy e avançar na direção de Zoé, foi o mesmo tempo que Rowell levou para colocar Marmom nos braços de Alice e tentar aparta-las.

       Joan empurrou Zoé contra a parede, furiosa:

       -Como pode fazer isso? Como pode agir contra tudo que acreditamos? Uma humana! Como pode fazer isso?

       Era proibido aos seres mágicos atacar ou causar qualquer forma de dano físico aos humanos, com exceção em casos de ataque prévio. Na verdade era repugnante que qualquer ser, mágico ou não, atacasse uma criatura viva que não houvesse lhe causado agressão alguma!

       -Eu não fiz nada! – Zoé empurrou-a de volta – sua louca, eu não sei do que está falando!

       -Não? Mentirosa!  - Joan foi afastada de Zoé, e não quis saber se era Rowell ou não, empurrou-o, tomada pela fúria de ser manipulada outra vez:

       -Uma cabeça em minha cama? Uma cabeça decepada em minha cama? É assim que você joga, Zoé? Matar uma humana para me acuar? – desarvorada, Joan limpou as lágrimas da face e gritou outra vez, temendo ter um ataque de nervoso ou algo assim – ela está morta! Você disse que ela estava bem! Como você pode fazer isso?

       Rowell a calou, ao afasta-la de Zoé e segurar seus braços, obrigando-a a olhar em sés olhos:

       -Não está falando coisa com coisa, Joan. Cale a boca e me deixe cuidar disso. Sente-se e fique calada, é uma ordem, não é um pedido.

       Ela não queria obedecer, pois Rowell não sabia o perigo que corria. Mas ele tinha razão. Não falava assuntos que humanos pudessem entender. Calou-se e baixou os olhos, sentando perto de Molly e Liara outra vez. Não por submissão, mas por não querer fazer o joguinho de Zoé.

       Olhando de uma para a outra, intrigado com a troca de olhares profundos de Zoé e Joan, algo que ia muito além de rivalidade feminina pelo amor de um homem, Rowell repassou a Matilde o que deveria fazer.

       Ele saiu e minutos mais tarde alguns ajudantes de Rowell apareceram para fazer a guarda, pois um crime havia sido praticado dentro dos portões do Ducado Mac William.

       Fungando, Joan foi acalmada por Molly e precisou se ajeitar e sufocar o choro, pois acordado Marmom queria sua atenção e conforto e o menino Tommy, sempre tão arteiro e risinho estava precisando de uma postura feminina naquele momento. Alice estava ao lado da avó, tentando esconder o medo.

       -Quem é aquela mulher? – Matilde perguntou para Joan, que nada respondeu, mas sim olhou para Zoé, com acusação no olhar.

       -Minha pajem – disse Zoé, com voz forte, nada abalada, ou ao menos parecendo nada abalada pela situação – Eu gostaria de ver para confirmar. Eu não sei se falam da pessoa que acho que falam. Essa mulher me acusa, mas eu não sei o que acontece.

       -Falsa – Joan disse entre dentes.

       -Como pode saber que é sua pajem se não esteve em nosso quarto? – perguntou Liara, inteligente demais para se deixar levar pelo medo e abalo da situação.

       A pergunta não foi respondida ou reparada pela maioria das mulheres assustadas daquela sala. Mas Matilde e Alice notaram a ausência da resposta.

       Joan beijou a cabeça de Marmom, pois ele se aquietava e adormecia em seu colo, abraçado a um brinquedo feito em couro, e não queria acorda-lo outra vez.

       Zoé, de braços cruzados afastou-se de todas, e de costas, fitou um quadro na parede. Seus pensamentos iam longe.  Pelo modo como Joan a acusava, a pessoa sacrificada deveria ter sido a verdadeira noiva do Duque, a verdadeira Condessa de Ruminosses, viúva do Conde Francisco Ruminosses.

       Mas como era possível? Ela estava sob os cuidados da duende da floresta, nos arredores da Vila dos Desesperados. Mesmo que a humana tentasse fugir, ainda assim, a duende seria praticamente implacável. Mas não agressiva, pois recebia pelo trabalho e não ousaria abusar da boa vontade de uma Guardiã! Não era a primeira vez que usava dos serviços da duende e não cabia a ela a imagem de traiçoeira ou incompetente.

       Mas quem teria interesse em acabar com a vida da humana? Olhou para Joan com ponderação. Sim, cabia a essa fada a intenção de fazer isso. Joan olhou para ela com a mesma acusação. A fada da clausura era acusada de assassinado. Uma acusação passível de condena-la previamente por outros crimes, inclusive a morte desta humana.

       Mas em primeiro lugar, pesava sobre a fada Driana, Alma e Joan a acusação de cumplicidade, e a Eleonora o crime de assassinato. Ela empunhara a arma e tirara a vida do Rei Isac. Não havia provas de nenhum outro crime contra Joan ou as demais fadas. Nada além de cumplicidade.

       E também, Joan não possuía grande força física ou boa saúde que a fizesse capaz de cometer um crime pesado como aquele usando armas ou mesmo as mãos livres. E nesse momento, ela não podia usar suas asas. Não podia sair do castelo. A menos que... Estivesse comunicando-se com alguém de fora.

       Talvez uma das outras fadas. Zoé desejava estar a sós com a fada da clausura para lhe arrancar a verdade.

       Mas para que? Ela sabia a verdade. Vinha vigiando-a a semanas. Ela não saia ou entrava do castelo, com exceção da vez que voo pela primeira vez, em busca de ervas que poderiam ajudar ao humano. E uma vez a pé, expulsa do castelo.

        Olhando bem para a fadinha do Ministério do Rei, e ignorando a missão que tinha em suas costas, e o preconceito que nutria por todas as fadas da clausura, Zoé precisava admitir que o que via não era nada muito animador em questão de ação. Joan era pequena e frágil demais para cometer atrocidades desse tamanho. E sem os meios adequados para isso, restava anular qualquer acusação contra ela nesse sentido.

       Do mesmo modo que Zoé não entendia o que acontecia, Joan estava confusa.

       Horas mais tarde, soldados de Rowell trouxeram Hector, ainda assustado depois de ser acordado daquele modo abrupto, com seu imenso coelho no colo, que imediatamente atraiu o olhar de Zoé, que tal como Joan conseguia reconhecer o poder mágico no animalzinho.

       Incapaz de se conter, Joan levantou, e aproximou-se de Hector, afastando-o de Zoé, com um impulso visceral de proteger a todos que tinha afeição. O modo como olhava para Zoé era muito claro.

       Elas eram animais, e estavam prestes a entrar em uma luta. E quem ficasse no caminho estaria perdido.

       Edward foi o último a ser trazido, bêbado como sempre, trocando os pés, cheirando a bebida fétida e falando amenidades como sempre. Matilde esbravejou contra o homem, e causou um tumulto enorme por conta disso.

       Amanhecia quando Rowell voltou para junto delas. Encontrou uma guerra armada e não verbalizada entre Joan e Zoé e ele esperava encontrar isso.

       -Não encontramos o restante do corpo – ele avisou – O castelo foi vasculhado e não encontramos ninguém estranho ou qualquer indicio do que aconteceu. Será feita uma busca pelo local do crime. Por hora é seguro saírem dessa sala, mas não do forte. Todos que estão aqui irão me contar exatamente o que viram e o que sabem. Sem exceções – ele olhou para Matilde que estava prestes a brigar sobre isso.

       -Hum, quanta tolice – resmungou Edward que havia se deitado no primeiro sofá que encontrou e escondido o rosto no estofado, de costas para todos eles. – É muito claro o que aconteceu. O assassino não está entre nós. Foi um aviso. De que servira uma cabeça, além de assustar? Mande a criada embora e resolverá o nosso problema de segurança. Solução imediata.

       -Seu irmão tem razão – Matilde disse no mesmo instante que Edward calou a boca – Pela primeira vez na vida esse imprestável disse algo útil! Essa criada deve partir imediatamente! Foi um aviso para ela! Não devemos nos envolver em seus assuntos perniciosos!

       -Joan não fez nada, ela estava comigo, em meu quarto – Rowell disse sem hesitar. Preferia as maledicências dos comentários à possibilidade de Joan ser culpada por assassinato – Seja o que for, é uma ameaça contra ela. Uma ameaça de morte e protegê-la é o que farei.

       É claro que Rowell esperava represarias. Matilde não cansaria de falar sobre isso, mas naquele instante ele esperava um posicionamento da condessa. Sua noiva.

       -É comum que um duque tenha amantes. – ela disse séria – Até as bodas posso aceitar esse comportamento. Depois, essa prostituta não será bem vinda a minha casa e a vida do meu marido – ela disse com ofensa e seriedade na voz.

       -Não diga essas palavras na frente de crianças – disse Joan, furiosa.

       Tommy estava adormecido junto ao irmão menor, no sofá menor, aos cuidados de Liara, mas Alce ainda estava acordada, incapaz de descasar em meio aquela confusão toda.

      -Eu falo como eu quiser – Zoé alegou, e aquela briga era entre elas duas, algo antigo, algo que ninguém poderia compreender.

       -Lembre-se que essa gente não é como você ou vem do mesmo lugar que você! Ninguém tem obrigação de obedecê-la ou ouvir suas maldades! Matilde – Joan virou para a mulher detestável – como pode deixa-la falar assim na frente de sua... – quase disse ‘neta’ -... De Alice? Não é sua responsabilidade o cuidado para com os filhos do duque?

      -Não – ele disse, erguendo a voz alto o bastante para calar as três vocês, pois tanto Zoé quando Matilde haviam aberto a boca para falar ao mesmo tempo e ele não queria ouvir as gralhas matracando em seu ouvido, sobretudo Joan sendo uma delas. Nunca imaginaria que a pequena fadinha que aquecia se coração com doçura e meiguice também era aquela megera irritando seus ouvidos com brigas femininas. – As três em silêncio. Hector, a cozinha está segura. Prepare o desjejum. Ele deve ser servido aqui. Até o almoço espero liberar a todos para o uso do castelo. Até lá, quero silêncio total aqui dentro!

       -Não se engane, Rowell. É culpa dela. De Zoé! – Joan não obedeceu, desafiando-o.

       Ficou bem perto e desafiou-o:

       -Pergunte para a Condessa quem é a verdadeira Zoé e saberá quem colocou... Aquilo sobre a minha cama! - continuou insistindo.

       -Eu não sei de nada! – Zoé defendeu-se, rapidamente voltando para a discussão – creio ser minha pajem, que desapareceu ainda no vilarejo. Na verdade, ela pediu para ficar e ajeitar-se com algum homem do vilarejo. O que eu faria? Impedi-la de ser feliz? – satirizou Zoé, desafiando Joan a desmentir essa imensa falsidade.

       -Como mente bem – Joan acusou.

       -Não sou a única – Zoé retrucou.

       -Chega! – o duque gritou e elas se calaram imediatamente. – Matilde, é sua responsabilidade mantê-las caladas. – ele passou a dianteira para a única pessoa que saberia fazer isso como ninguém.

       Um longo olhar de aviso para Joan, e Rowell saiu acompanhado de Hector e seu coelho e deixou a todos trancados e protegidos ali dentro.  Joan culpava-se por estar sendo detestável, mas estava furiosa com a audácia de Zoé, o medo elevado a níveis alarmantes e transformado em força para lutar.

       -Aposto como foi umas das suas amigas imundas – disse Zoé para trazer Joan ao limite do autocontrole.

       -É mesmo? Pois eu tenho certeza que foi você! Assassina! – acusou.

       As vozes se elevavam rapidamente.

       Matilde empurrou Joan para longe de Zoé e virou-se para a condessa:

       -São ordens do Duque que ambas se calem. Obedeça! – disse com propriedade e Zoé aproximou-se, simplesmente ergueu uma das mãos e acertou o rosto de Matilde com um tapa.

       -Eu sou uma condessa. Não ouse elevar a voz para mim, sua serviçal.

       Incrédula, Joan nem sabia porque, mas se colocou entre Zoé e Alice que tencionava proteger a avó.

       -Como ousa tocar em Matilde? Você não é daqui! Você não pertence a esse lugar! Você não pode erguer sua mão para um humano! Eu juro, Zoé, quando sairmos desse lugar, eu vou denuncia-la por isso. Eu vou acabar com você. Vou contar tudo que fez, desde sua pretensiosa oferta de copula a um humano, até suas agressões. Vai pagar por esses crimes, assassina. Vai pagar!

       -Ouça bem o que diz, ratinha, e não esqueça de onde você vem e de onde eu venho. Se essa serviçal ousar erguer a voz para mim outra vez... Ou qualquer outra erguer a voz para mim – ela olhou em torno – isso irá se repetir e eu não me importo com parentescos.  – era um claro aviso sobre Alice, a menina que a odiava.

       -Você é um monstro. Eu sempre soube disso. Não importa o quanto a idolatrem e o posto que ocupe! Você não presta! Eu sinto medo de você. E isso não faz de você alguém bom. – Joan esbravejou e tornou a afastar-se de Zoé, empurrando gentilmente Alice para que se afastasse também e ficasse perto dos irmãos.

       Matilde permaneceu de pé, humilhada e sem ação, prevendo que ainda haveria muito desgosto com a nora que Rowell lhe arrumou.

       Um olhar de esguelha para Joan e ela afastou-se do confronto também.

       Zoé era mais forte do que as duas juntas. Era mais forte do que qualquer um ali dentro, mesmo Rowell.

       Angustiada, Joan sentiu o peso de não contar para ele sobre a verdade a cerca de Zoé. Precisava contar, era simples assim. Ela precisava contar e alertar Rowell do perigo acoitado dentro de sua própria casa!

       O modo como Joan estava se portando era bastante óbvio. Ela contaria tudo ao humano. Além de expor sua raça aos conhecimentos humanos e aos seus preconceitos, Joan colocaria o disfarce de ambas no chão com apenas algumas palavras.

       E como impedi-la de fazer isso? Afinal, não podia esquecer que a ratinha imunda havia achado um fácil caminho para a cama do duque e pela ausência total do cheiro do cio, podia dizer que obtivera êxito em firmar-se como a preferida de Rowell.

       Se era por amor ou interesse, não sabia dizer, mas estava um passo a sua frente.

       Olhando para aquelas mulheres, Zoé reparou em uma das criadas que a olhava com um quase sorriso. Fora uma das que achou graça de ver Matilde apanhar. Liara era seu nome e Zoé apostava que ela saberia muitos segredos daquela terra de humanos.

       As horas correram para os homens que procuravam pelo assassino e pistas do que aconteceu, mas andou vagarosamente para as mulheres presas naquela sala. As crianças estavam acordadas e foi Joan quem cuidou de Marmom. Tommy e Alice orbitaram em torno de Matilde que calada observava cada passo da condessa.

       Por um segundo Joan considerou a possibilidade de provocar a governanta e lhe jogar na cara que tanto quis a chegada da condessa e a partida da serviçal, e agora era humilhada e espezinhada merecidamente.

       -Eu não sei como você consegue lidar com ele - disse Liara baixinho referindo-se a Marmom - ele me assusta tanto.

       O menino brincava no tapete e Joan lutou para não brigar com Liara e explicar-lhe que Marmom era perfeito do modo que era. Mas não seria ela a lhe explicar isso.

       Joan ergueu os olhos para sondar e monitorar Zoé e surpreendeu-se ao vê-la com expressão contrariada diante do comentário de Liara. Eram raças diferentes, mas o sangue mágico falava mais alto mesmo em alguém como Zoé.

       Apreensiva, sim, a Guardiã estava apreensiva. Corajosa, Joan levantou e aproximou-se de Zoé.

       Era uma surpresa total ter coragem para tanto.

       Depois de apartar-se de suas amigas, ser deixada sozinha entre os humanos e lutar diariamente contra a hostilidade de Matilde, nada poderia amedronta-la e fazê-la abater-se novamente.

       Enfrentar era sua única alternativa, pois até então, fugir não estava dando muito certo para ela!

       Pela primeira vez em muitos anos, Zoé sentiu-se sendo rodeada por uma serpente, e não pela ratinha indefesa Joan. O modo como a fada da clausura a sondava, rondava, olhava e aproximava-se era peculiar. Sem medo. E quando o medo acaba, o domínio é extinto.

       E o que sobraria para Zoé além do domínio imposto pelo medo?

       -O que você quer? - ela perguntou a Joan, na defensiva.

       -Não foi muito inteligente da sua parte colocar aquilo na minha cama. - disse com voz mansa.

       Braços cruzados, postura de retraimento que escondia sua súbita coragem de enfrentar seu pior pesadelo.

       -E porque eu faria isso? Não preciso de um gesto tão inconsequente para assusta-la - Zoé disse com um meio sorriso e Joan sorriu.

       -Está enganada. Eu ainda tenho medo de você, pelo que sei que é capaz de fazer contra aquilo que considera frágil, eu tenho receio porque sei que odeia o que é menos capaz de se defender, mas não tenho aquele medo que fazer fugir, isso acabou, se for preciso eu enfrento você. Se é isso que você quer, Zoé, eu aceito o desafio.

       -Você me enfrentar? – ela sorriu sádica – Sem asas e sem dom? – ironizou.

       -Exatamente. Sem asas e sem dom. – Joan revidou.

       No fundo não pretendia enfrentar Zoé em um confronto desse tipo! Precisava pensar em um modo de vencê-la mesmo sem seu dom e sem o uso de suas asas. Algum modo, mesmo que ilícito de fazer isso acontecer. Agora que adquirira o desejo de vitória, nada poderia dissolvê-la disso.

       -Só nós duas, longe daqui. – disse convencida que isso era o melhor – longe de Rowell e das crianças. Longe desses humanos que não lhe fizeram nada de mal.

       -Rowell? Acha que uma noite de copula pode afasta-lo de mim? Ele me deseja, ratinha. E ele vai desejar ainda mais. Quando o encanto por você passar... E isso vai acontecer em breve, então, eu vou ter Rowell  em minhas mãos, e nessa hora, eu espero encontra-la de joelhos e cabeça baixa esperando pelas algemas. Porque eu me daria ao trabalho de sair desse forte e correr o risco de vê-la fugir como fazem os covardes? Estou gostando de ficar aqui. É um lugar hospitaleiro e essa brincadeira de ser humana é muito divertida. Você não acha?

       -Acho. Acho que você blefa. Vai matar a todos. Mas eu não vou deixar isso acontecer – ela elevou a voz, mas acabou se contendo para não alertar a todos do que diziam. Que pensassem ser apenas farpas entre duas mulheres que disputavam o mesmo homem.  – Minhas amigas e eu estamos sendo injustiçadas e em breve Eleonora vai provar isso. E quando acontecer... Ela será rainha porque é isso que acontece com as filhas de uma rainha deposta. Na ausência de um rei, e de herdeiros de sangue, Eleonora será rainha e quando isso acontecer... Você será punida pelos seus crimes. A começar pela morte dessa pobre moça inocente. O que ela lhe fez? Nada. Porque sacrifica-la? Por tão pouco! Por ordens de uma rainha louca, Santha!

       -Eu não matei ninguém! – Zoé avançou um passo e Joan afastou-se na mesma medida.

       -Assassina. – disse entre dentes – Animal. Você é um animal, Zoé. Eu não sei por que uma fada tão poderosa, bonita e inteligente, aceita por todos como Guardiã, admirada e saudada por seu posto, é tão horrível assim, mas você é! Cruel, sem dó ou piedade!  - disse mordaz e ferrenha em sua acusação.

       -Cale a boca – Zoé revidou no mesmo tom.

       Bem, essa era uma arma que Joan poderia usar contra Zoé: as palavras.

       -Animal. Assassina. Repugnante. Seu poder não é nada.

       -Eu não sei como ela apareceu morta em sua cama. Eu não fiz isso. O jogo é entre nós duas. Ela estava em segurança. Eu não sei quem fez isso! – Zoé agarrou seu braço e Joan olhou para isso com nojo, lágrimas de indignação correndo em sua face, mesmo que tentasse se conter.

       -Sinto o cheiro de choro de inocente em você, Zoé. E não vem da mulher sobre a minha cama. Vem de antes. De todos que já humilhou, espezinhou e ofendeu. Vem de todos que agrediu e matou.

       Foi suas palavras que fizeram Zoé soltá-la.

       -Não fui eu – Zoé disse mais uma vez, mas Joan ignorou e afastou-se ofegante e assustada com a própria coragem e o confronto.

       -Não fui eu – Zoé tornou a sussurrar para si mesma, virando de costas para todos eles, remoendo isso, as possibilidades, e principalmente quem teria cometido aquele crime em seu nome.

 

       O entardecer trouxe consigo a liberdade. As criadas saíram praticamente correndo do amplo salão. Elas não queriam permanecer nem mais um minuto presas à chave em um mesmo lugar onde estivesse Matilde.

       Uma delas chegou a sussurrar um inapropriado “pena que não era a cabeça de Matilde” ao sair do salão e ouvir os gritos da governanta sobre haver muito trabalho esperando por elas.

       -Eu mesma quero arrumar minha cama. Preciso recuperar algo que escondi no colchão. – disse Joan levantando e andando para perto de Rowell que esperava no corredor, com Marmom no colo e os filhos perto.

       -Não – ele disse – Não vai tocar naquela monstruosidade. – ele negou imediatamente – Ficará no meu quarto de hoje em diante. – ele não olhava na direção de Zoé e Joan sorriu, mas negou com a cabeça:

       -Eu não posso fazer isso. Vai lhe trazer problemas. Eu posso dormir no quarto com Matilde – ofereceu – é seguro o bastante e em breve voltarei para junto das minhas amigas.

       Por um minuto ele não soube se ela falava mesmo sobre as criadas ou suas outras amigas, aquelas que Joan vivia falando estarem escondias esperando o momento de busca-la.

       -Você pode dormir no meu quarto se quiser – a oferta veio de Alice e diante dessa surpresa, Joan sorriu e disse:

       -Oh, querida, eu adoraria, mas não é o momento adequado. Em breve refaça seu convite e eu vou adorar passar uma noite em seu quarto, na sua companhia. – prometeu, feliz em ter o apreço da menina.

       -Sentiu medo, Joan? – a menina perguntou – quando viu aquilo... Na sua cama?

       -Sim, eu estou tremendo até agora – foi sincera. – Mas já passou. Tenho certeza que nunca mais acontecera algo assim. – olhou para Zoé como quem a avisa sobre isso e então sorriu – Não gostaria de ir à cozinha comigo ver se Hector teve tempo para preparar um delicioso bolo para nós? – sugeriu ofertando a mão, ao qual Alice aceitou de prontidão.

       -Alice tem suas obrigações – Matilde impediu, afastando a neta da presença de Joan, e sobretudo de Zoé – Eu cuido da crianças, Duque Mac William – ela disse com seriedade – Imagino que tenha assuntos a tratar com a Condessa e com sua...  Serviçal. – olhou para Joan de alto a baixo.

       Realmente, ela não desistiria de ofendê-la?  Pensando por esse ângulo, uma ou outra bofetada de Zoé em Matilde, poderia ser uma boa ideia no futuro...

       Sozinhos no corredor o clima era no mínimo tenso.

       -Entrem – ele disse sério e apesar da postura ferrenha, o olhar era todo de Joan.

       Não foi surpresa descobrir que Edward ainda dormia no sofá completamente embriagado. Rowell simplesmente ignorou a presença do irmão e olhou para as duas.

       -Eu não vou pedir desculpas por ter outra mulher em minha vida. – Rowell foi direto – Eu deveria ter sido sincero quando chegou, Zoé. Mas não sabia como fazer isso. Tenho obrigações com você. Não fugirei disso.

       -É claro que não. Eu não aceito menos do que casamento – ela disse severa.

       -E porque uma viúva é tão exigente? – Joan provocou, pois era mentira de Zoé.

       -Joan – Rowell pediu e ela se calou – Seu irmão foi meu amigo durante toda uma vida. E eu nunca vou esquecer esse vinculo – ele aproximou-se de Zoé e tocou seu rosto – eu não poderia esquecer Howard mesmo que eu quisesse. Vou carregar a dor da perda dessa amizade para sempre.

       Infelizmente Joan sabia muito bem o efeito daqueles olhos claros e cândidos no coração de uma fêmea. Temendo o pior, que a atração que Zoé sentia pelo humano evoluísse para algo maior, pensou em interromper, mas se manteve a parte, atacada pelo ciúme.

       -Eu tenho responsabilize com você. Quero que fique no forte, sob minha proteção. Se for sua vontade, encontrarei alguém com um bom título para casar-se. Mas eu não posso me comprometer. Eu tenho sentimentos por Joan, e não me importa se ela é uma serviçal ou não. Quando se referia a ela pejorativamente, me ofende mais do que a ela.

       -Isso é tolice, Rowell. Conheço essa mulher – Zoé jogou – é uma vagabunda de taverna. Eu esbarrei com ela no caminho para cá. Não se iluda com uma castidade e um sorriso bonito. Ela comete crimes e o que aconteceu ontem a noite, foi apenas o começo. Mantê-la nesse forte e trazer para sua gente a tragédia e perseguição. Livre-se dela enquanto é tempo.

       -Como é mentirosa! – disse Joan, e Rowell afastou-se de Zoé olhando de uma para a outra.

       -Quando gritam uma com a outra, estão longe de me convencer de quem está falando a verdade. Eu sei que as duas se conhecem. Eu só não sei qual das duas está mentindo e o porquê disso – foi direto com ambas e por mais que contrariasse Joan, ela sabia que era da índole do duque agir assim. – Tenho obrigações com os aldeões sob minha proteção. Zelo pelos amigos, companheiros de luta, e sobretudo, por minha mãe e meus filhos. – ele não esclareceu para Zoé quem era sua mãe, mas Joan notou que ela guardava essa informação para mais tarde usar contra eles – Vou manter as duas sob as minhas vistas e estou proibindo ambas de se encontrarem sozinhas. Não é uma recomendação. Descumprir as ordens do senhor desse forte é pedir por punição. Se eu souber que andaram perto, sobretudo, brigando, ambas serão punidas severamente – era a verdade – Antes que comecem a reclamar – ele adiantou-se as queixas – é o comportamento adotado em relação a todos nesse forte. Serviçais ou nobres. Quero as duas dispersadas. Zoé, sua companhia é bem vinda. Joan, sua presença é indispensável em minha vida. Mas isso não quer dizer que irei permitir que gritos e brigas se tornem rotina. Já me chega o comportamento de Matilde, não vou suportar que se transforme em alguém como ela, Joan. Ou que Zoé tome o lugar dela. Matilde só tem uma nesse castelo e é assim que continuará sendo. – ele foi taxativo.

       -Pois diga isso para a Condessa – Joan usou do seu direto de amante, e enlaçou os dedos na mão de Rowell e apoiou o queixo em seu ombro, traiçoeira, vingando-se de Zoé como podia – Essa humana acertou uma bofetada na face de Matilde.

       -A serva me aborreceu – Zoé defendeu-se.

       -Castigos físicos não são tolerados dentro do meu forte. – ele foi direto, olhando de uma para a outra – assim como mentiras e intrigas também não são toleradas.

       Era um aviso para Joan. Ela afastou-se dele e virou de costas.

       -Eu gostaria de me recolher ao meu aposento – disse Zoé com toda a elegância e pompa de uma senhora de requinte – Mas primeiro – ela aproximou-se do duque e ergueu uma das mãos para que ele cumprimentasse como era de praxe entre pessoas de títulos – devo avisa-lo que não padeço das mazelas que as outras mulheres padecem, sou viúva e como tal, não tenho apego a rótulos. O receberei de braços abertos em minha alcova. – olhou para Joan com superioridade – Para que saiba que possui opções, Rowell. Melhores opções.

       Ela sorria de leve e maliciosa ao virar de costas e partir. Apesar de ser um monstro assassino, Zoé era também uma linda fêmea cor de ébano e tomada de um ciúme primitivo, Joan aproximou-se de Rowell e segurou seu rosto, virando-o em sua direção.

       -Não olhe para ela desse modo! – mandou.


       -E como você acha que eu estou olhando para a Condessa? – ele afastou sua mão, com revolta por seus modos agressivos.

       -Como um homem que possui opções! – ela revidou, azeda e ofendida.

       -Não coloque suas garras de fora, Joan. – ele avisou, tolhendo seu gesto possessivo. – Eu não suporto falsidade em uma mulher – era algo muito direto. – Eu me apaixonei por uma jovem doce e meiga, com o coração mais puro que alguma vez pude conhecer. Não me assuste mudando seu comportamento!

       -Estão envenenando meu coração. Será que não vê isso? – ela afastou-se magoada. – Eu lhe contei que havia segredos sobre mim! Não haja como se o tivesse enganado!

       -Mas nenhuma das possibilidades que me contou envolvia cabeças decepadas sobre sua cama, Joan! – ele agarrou-a pelo braço e a fez virar-se e encara-lo.

       -E você acha que eu pensei que isso chegaria tão longe? – Ela acusou – Eu nunca achei que ela fizesse algo assim! Aquela mulher, Rowell... A mulher morta, é a verdadeira Condessa! Será que você não vê? Essa mulher que você chama de Zoé é uma impostora! É ela quem está me caçando! Que quer me levar embora! Ou me matar, o que conseguir primeiro!

       -Não faz sentindo, Joan. Ela não chegou desacompanhada! Seus empregados estão aqui de testemunha de quem é!  -ele alegou, esperando arrancar de Joan a verdade – Porque ela estaria perseguindo-a?

       Silêncio total, ela não podia contar sobre isso. Ainda não.

       -Certo. Você se cala. – ele soltou-a, exasperado.

       -Eu disse que era assim. Que eu tinha segredos! Eu tentei me afastar de você! Mas foi você, Duque Mac William que veio atrás de mim e me convenceu que isso não importava! – ela acusou.

       -E não importa! – ele respondeu, completamente exasperado -  E isso é revoltante. Não importa o que você fez de errado ou do que a acusam! Isso é o pior de tudo. Eu não me importo desde que você não saia da minha vida!

       Era uma angustiante declaração de amor. Pobre Rowell, envolvido em seus segredos e podridões.

       -Eu sinto muito, Rowell. Sinto tanto por trazer infelicidade para sua vida. – ela sentou-a na primeira poltrona que encontrou, sem forças para lutar contra a tristeza - Eu juro que meu segredo não é horrível. Que eu não sou um monstro ou criminosa. Que tudo isso está acontecendo por culpa de outras pessoas, não por minha culpa! Mesmo assim, eu deveria ter partido quando percebi o quanto o queria. Não é justo trazer essa imundice para sua vida. Não é justo.

       -Você me salvou. E tem me mantido salvo desde o dia em que chegou aqui – ele aproximou-se e sentou ao seu lado, tentando segurar sua mão.

       Joan não queria deixar, para tentar se afastar e quem sabe ir embora, mas ele segurou mesmo assim, e ela se perdeu naquele olhar claro, e bonito, que exalava charme e paixão. Que a olhava tão bonito...

       -Não foi minha culpa o que aconteceu essa noite – ela disse angustiada para que ele entendesse isso – Mas foi por minha causa que fizeram essa barbárie. Por minha presença.

       -E o que esperavam com isso? Que você partisse? – ele tentou arrancar-lhe qualquer migalha de informação que Joan pudesse lhe dar.

       -Não. Não exatamente. O responsável pela morte daquela mulher deseja que eu saia do forte. Para poder me pegar longe de vocês.

       -Vocês? E de quem você fala? – insistiu.

       -Você. Sua família. As pessoas nesse forte. Longe da sua raça. Ah, Rowell, não me obrigue a contar mais que isso. Eu ainda não posso provar nada que eu disser!

       Temia a verdade absoluta. Não podia expor suas asas, mesmo que abdicasse das regras que proibiam um ser mágico de se revelar a humanos. Suas asas estavam recolhidas e fora do seu domínio. Sendo assim, como provaria suas palavras? Seria tratada como louca, do mesmo modo que aconteceu com Matilde anos atrás!

       -Rowell, eu estou com tanto medo.  – ela desabafou, finalmente desabando – tanto medo de ser a próxima vítima...

       -Isso não vai acontecer – ele garantiu – Não importa o que digam, ou os boatos. Ficará no meu quarto de hoje em diante. Eu prometo lhe fazer honesta em breve, Joan. Tão logo eu entenda tudo que acontece com você.

       -Suas regras e leis não me dizem nada, Duque. – ela tentou sorrir, mas faltava vontade.

       -E isso me assusta. Quando fala assim, me assusta um pouco. – ele a abraçou. Joan apertou-se contra ele, com desespero de perde-lo – Me assusta ainda mais o quanto eu a quero. Apesar de todas as implicações, eu não vou abrir mão de você.

       Joan não sabia se esse tipo de afirmação enervava seus sentimentos e a acalmava, por saber que apesar de tudo, havia encontrado o amor verdadeiro e perto disso, nenhum perigo parecia importante, ou se temia o pior, pois amar Rowell o colocava em perigo junto com ela.

       Abraçada a ele, deitou a cabeça no ombro do seu duque e deixou que a consolasse. Ele não a beijou naquele instante, pois Edward seu irmão acordava de seu porre e reclamava sobre barulho e sono interrompido.

       Trocando os pés, o humano deixou a saleta, e Joan olhou para a porta fechada, e perguntou:

       -Porque ele bebe tanto assim? – havia curiosidade em sua voz.

       -Eu não sei. Eu nem mesmo sei se Edward sabe por que bebe desse jeito.

       -Talvez ele sinta saudades do pai e da mãe. Esse tipo de dor deve enlouquecer alguém com um sentimento frágil – ponderou.

       -Não. Ele nunca foi tão sensível assim. Acho que não é a única que guarda segredos, Joan – beijou sua testa e sorriu. – Não vamos deixar que o susto dessa madrugada estrague a lembrança da noite que passamos juntos.  – ele pediu romântico.

       -Como se eu pudesse esquecer o que aconteceu entre nós dois – ela sorriu e beijou-o próximo aos lábios, querendo que Rowell se esquecesse das aflições por um instante e confiasse nela – Eu quero repetir essa noite, Rowell. Muitas e muitas vezes.

       -Me conte seus segredos, Joan. Eu posso ajuda-la. Eu sei que posso.

       Era uma oferta tentadora. Ela fez um carinho no rosto do duque e sorriu:

       -Eu sei que pode. Mas tem coisas sobre mim que não posso provar agora. E que será impossível para sua mente acreditar sem provas.

       -Isso é impossível, não há nada que me dissesse que eu não poderia acreditar! Joan, eu confio em você! - ele indignou-se - você entrou na minha vida e colocou tudo em ordem! Será que não vê que eu acredito em você? Eu confio cegamente em você, Joan. Não são palavras vazias.

      Era a hora de contar. Essa certeza gritava dentro dela em medo e aflição. Talvez por isso as palavras fugissem de sua mente ela beijou Rowell em um ato desesperado de fuga. O beijo era apaixonado e desesperado.

       Ele enlaçou sua cintura e suas costas e correspondeu com a mesma ferocidade. Um beijo devorador que precisava suprimir em ato tantos sentimentos e palavras carregadas de pesar.

       Quando o beijo terminou, e os olhos se encontraram, Rowell não insistiu nas perguntas.

       Ele viveu uma vida toda ausente de amor e paixão verdadeira, mas havia sido uma vida. Com histórias, pessoas e passado. Uma vida toda que não poderia simplesmente ignorar por causa de um amor repentino. E o mesmo acontecia com Joan. Ela possuía um passado antes de conhecê-lo, com pessoas, atos e, sobretudo responsabilidades. Então, como ele poderia pedir que ignorasse toda uma vida em nome do amor dos dois?

       Isso não seria amor, e sim, egoísmo.

       -Não me deixe de fora, Joan. Peça ajuda. - ele disse ao beijar de leve sua testa e ser recompensado por um dos lindos sorrisos sinceros de Joan. Ninguém sorria como ela. Com exceção talvez das crianças. Essa sinceridade e pureza era algo somente dela. De mais ninguém.

       -Eu te amo, Rowell. Essa é a única verdade que posso confessar nesse momento. E que estou morrendo de fome. Acha que pode lidar com essa verdade absoluta?

       Era uma parca tentativa de trazer um sorriso ao rosto sério de Rowell e aliviar o peso da discussão e quem sabe, impedir que um afastamento doentio viesse junto com a desconfiança.

       -Como eu disse, eu posso ajuda-la sempre que me contar a verdade – ele entrou em sua brincadeira e segurou sua mão com carinho, determinação e mais do que isso, encanto – Vou deixa-la na cozinha, junto de Hector. Há essa hora ele deve ter tido tempo de preparar algo.

       -Não precisa. Eu vou sozinha – beijou-o de leve no rosto - eu sei que você precisa acalmar sua gente depois de tudo que houve.

       -Sua gente, Joan. Essas pessoas fazem parte da sua gente, também. No momento em que se tornou minha paixão, essas pessoas passaram a ser parte da sua vida também.

       Sorrindo, um pouco melancólica, Joan perguntou-se se isso duraria depois da grande revelação sobre serem de raças distintas.

       Carinhosa, ela beijou-o outra vez, dessa vez na altura do ouvido, e sussurrou um eu te amo em sua língua natural, a língua das fadas, e afastou-se.

       Os olhos de Rowell brilharam intensamente, e ela tocou sobre seu peito, dizendo:

       -É parte de uma verdade, Rowell.  – não fazia sentido suas palavras, ou faziam sentido até demais.

       Uma língua estranha, nos lábios de uma criatura que não pertencia a sua gente, e que se referia a eles como ‘humanos’.

       Confuso, Rowell deixou-a ir, não sem antes pensar que a Condessa, sua até então noiva, também se referia a eles desse modo.

       Lutando contra a desconfiança total, quando havia decidido confiar plenamente, Rowell tomou caminho para fora do castelo, para interagir com seus homens de confiança. Até segunda ordem, havia um assassino a solta, e ele faria de tudo para alcança-lo antes que o pior sucedesse com sua adorada Joan.

        

       Joan escapou dos olhares dos homens que faziam a guarda do quarto das serviçais, onde a tragédia se deu, e fortuitamente conseguiu entrar, recuperar o lenço camuflado, onde escondera as cartas de Matilde e sair sem ser vista. Tudo com discrição.

       Bem, ela aprendeu a fazer isso mesmo sem seu dom, no tempo em que vivia seguindo Eleonora, Driana e Alma em suas travessuras:

       “-Pés silenciosos – dizia Eleonora andando sobre um galho alto, sobre uma árvore, de uma ponta a outra, sem cair ou bambear – Gestos folgados – ela abriu os braços, como uma bailarina faria – olhos atentos - ela piscou para Joan e então completou – e pronto! Você entra e sai de onde quiser sem ser vista!

       -E porque eu iria querer fazer isso, Lora? – Joan perguntou, sentada na grama macia, sob o sol de um dia caloroso, sendo brindada por uma leve brisa que movia os cabelos esbranquiçados de Eleonora de um lado ao outro, como se ela fosse uma bela aparição.

       Eleonora não respondeu. Algo menos doce cruzou seu rosto e ela terminou de percorrer o galho com seus passos de pluma e saltou para o chão graciosamente.

       -Acho que Eleonora não quer que você saiba que o mundo é feio e que um dia precisaremos fugir – disse Driana com amargor disfarçado por um sorriso de provocação para com Eleonora, sempre andando de um lado de outro, carregando um livro aberto, enquanto lia algo que lhe cativava a atenção.

       -Porque? - Joan não entendeu de imediato.

       -Ora, por favor, Joan! – foi Alma quem se irritou, pois esse assunto a descompassava e exasperava – Um dia seremos trancafiadas e esquecidas! Você pretende passar o resto de sua vida presa?

       -Não. Mas eu pensei que... Tubã vai escolher uma de nós, não é? Eleonora, ele vai escolher Eleonora! E vai convencer o irmão a escolher outra de nós e assim será, até que todas seremos livres. Eu... Será assim, não é? – perguntou convencida disso.

       Foi Alma quem a fitou com incredulidade.

       -Acho que você é lesa. Só pode ser isso! – ela levantou da grama e tencionou se afastar, mas voltou e encarou Joan com magoa no olhar. Rancor do mundo – Tubã vai esquecer de nós. Quando formos trancafiadas, ele se esquecerá de todas nó! Ele faz tudo que o pai e o irmão mandam! Ele tem uma família! Eles o convenceram a casar-se com uma moça de boa família! Tubã seguirá o exemplo do Primeiro Guardião. É assim que será! Uma a uma trancadas. Sem chances, sem saída, sem retorno! É nosso destino!

       -Não diga isso, Alma! – Eleonora segurou o braço de Alma, que a empurrou - O que você quer? Assustar Joan?

       Alma fitou a amiga, e por um segundo, pareceu fraquejar em seu ódio contra o mundo. Ela não queria magoar Joan. Mas estava no limite do autocontrole. Os meses aproximavam-nas do nascimento das asas e então, da desgraça total.

       -Alma está certa – disse Driana triste, fitando Eleonora – Egan sequer é irmão de verdade de Tubã. Ele não tem uma família, tanto quanto nos não temos uma. Não possuí influencia alguma para nos ajudar! Precisamos encontrar um modo de fugir.

       -Fugir da clausura é impossível. – disse Joan, olhos arregalados, assustada.

       -Ah, isso, é o que dizem para que acreditemos. Eu ouvi uma conversa, entre duas carcereiras. Elas bebem como um gambá quando não estamos vendo. E eu deixei elixir proibido suficiente para que a língua delas ficasse bem soltinhas...

       -Onde conseguiu elixir proibido? – perguntou Eleonora, olhos brilhantes.

       -Eu roubei, por que da surpresa? Eu precisava de respostas! Não há magia alguma protegendo a clausura. Apenas parede e chaves. Depois de trancafiada, usam uma coleira com veneno no pescoço da fada, para inibir o uso do seu dom. Essa é a única razão para nenhuma fada fugir.  – seu sorriso era sugestivo.

       -Fugir? – perguntou Joan – E como faríamos isso?

       Lembrar-se de suas amigas era como cravar um punhal em seu coração. A saudade a corroia. O medo, o susto. Pensar em como estaria sendo a fuga para Eleonora, com tamanha responsabilidade sobre seus ombros. Ou Driana, angustiada e sem notícias. E pobrezinha, Alma, sempre tão odiosa e odiando o mundo. Temia que ela cometesse um desatino! E mais do que isso, temia que Tubã se metesse em alguma confusão e se perdesse delas para sempre!

       Angustiada, Joan rumou para a cozinha, levando consigo o lenço camuflado. Enquanto as cartas estivessem escondidas ali, ninguém as encontraria.

       Esperava encontrar Hector e algum alimento pronto. Depois de tantos anos de fome e alimentando-se de restos, ela estava acostumando-se rápido demais a vida de fartura. Era incrível como uma boa vida pode levar uma pessoa à dependência total!

       Sorrindo desse tolo pensamento, e dessa futilidade, entrou e procurou por Hector.

       -Hector? Você está aqui? – procurou-o inclusive na portinhola que dava para a dispensa, onde às vezes o gordo cozinheiro escondia-se para conversar com seu coelho. – Anesi, onde está, Hector? – Ela perguntou para o grande e farto coelho.

       Encolhido em um canto, o animal estava acuado. Joan agachou-se e fez um carinho no pelo do animal, sussurrando em sua língua de fada:

       -Eu sei o que acontece com você, querida Anesi e tenho tanta pena que dói. Mas escute o que eu digo, quando eu estiver livre, eu vou achar um modo de ajuda-la. Não precisa temer as fadas. Não somos as culpadas por sua tragédia. Não julgue todas, pelo que uma única fada lhe fez.

       O coelho não poderia lhe responder, é obvio que não.

       Joan levantou e sorriu para o animal, e pretendia sair da pequena dispensa e procurar por Hector em outro lugar quando foi barrada por algo.

       Uma sombra que a encurralou contra a parede e acertou-lhe uma pancada na cabeça antes que tivesse a oportunidade de olhar para trás e enxergar seu opositor.

       Não houve tempo para grandes pensamentos. Joan caiu no chão com um baque seco.

       Um peso morto, que facilmente foi erguido e levado para longe da cozinha e para fora do castelo.

 

       Joan acordou, mas não conseguiu abrir os olhos. Estava relegada a escuridão total. Moveu-se no chão, ela tinha certeza que estava no chão, o que era estranho, porque não era mato, não era grama e não eram pedras em construção. Era terra. Terra seca. Ela não fazia menor ideia de onde dentro do castelo poderia haver terra seca. Provavelmente em lugar algum.

       Com sorte, ainda estaria dentro de algum aposento o que não fazia sentido algum, e por isso mesmo ela duvidava.

       Ela tornou a se mover com dificuldade, quem quer que a tenha acertado havia feito com vontade. Sua cabeça doía, mas ela duvidava que estivesse seriamente ferida.

       Com algum esforço, conseguiu se apoiar e sentar-se. Havia rochas em torno, ela apoiou as costas, mas mesmo assim não conseguiu levantar.

       Suas mãos estavam soltas, o que era uma surpresa, pois imaginou que estivesse amarada, tateou o chão descobrindo que era terra batida misturada a pequenas pedrinhas minúsculas. Nada que pudesse ser usado como arma.

       Alguém havia lhe acertado a cabeça ainda dentro da cozinha, e provavelmente não era obra de Hector, pois com a força que o cozinheiro possuía haveria de ter-lhe matado na hora.

       Talvez a culpa fosse de Zoé. Era um pouco estranho, ela deveria estar desesperada para agredi-la dentro do castelo, correndo risco de ser flagrada por humanos. Mas se fosse Zoé duvidava que estivesse viva para ter este tipo de pensamento e dúvida. E também duvidava que estivesse amarada sobre um chão de terra, há esta hora estaria no castelo aguardando o julgamento a mercê da rainha louca Santa, e teria imediatamente reconhecido o cheiro do castelo.

       Sendo assim deveria ser um terceiro agressor, quem poderia ter interesse nela? Matilde poderia ter feito isso. Mas leva-la para um local de terra seca? Matilde não iria tão longe ou apenas lhe faltaria recursos para ir tão longe.

       Joan apurou os ouvidos na ansiedade de ouvir algo. Não havia nada para ouvir. Nem canto de passarinho, nem o movimento dos galhos das árvores dançando ao sabor do vento. Ela estava longe do mato denso, longe de tudo que fosse planta e animal.

       O que era ainda mais estranho. Talvez Zoé houvesse lhe batido na cabeça apenas para leva-la para longe, esperando mantê-la prisioneira enquanto não a levasse para a rainha Santha. Se assim o fosse, ainda havia esperanças. Tornou a concentrar-se e ouviu uma conversa distante.

       Na verdade eram várias conversas distantes, vozes femininas. E de onde poderiam estar vindo? Normalmente este tipo de burburinho era costumeiro entre fêmeas agrupadas. Algo extremamente comum nos pavilhões lacrados do Ministério do Rei, quando todas falavam baixinho, todas juntas, cada indivíduo em seu grupo de amigas. Era burburinho distante e sempre acarretavam críticas, brigas, safanões das carcereiras. Às vezes castigos que duravam semanas. Mas ela estaria no meio de fêmeas?

       Não era possível, no castelo não havia tantas humanas que pudessem agregar tamanho contingente de vozes. Joan poderia estar na vila dos aldeões e se fosse assim ela estaria amarrada. Puxou o pé e descobriu que apesar das mãos estarem livres seu pé estava acorrentado. Típico, aquilo não era coisa de humanos. Não se acorrenta o pé de um humano. Acorrentam-se as mãos. Costuma-se acorrentar uma fada pelo pé, pois ela possui asas.

       Por um segundo Joan tentou lembrar-se de algo muito importante que deveria ter esquecido naquela confusão de sentimentos.

       Algum pensamento importante, que lhe fugia da mente por causa do alienamento causado pela agressão sofrida. Sua cabeça doía e era impossível pensar com clareza. Num rompante, tomou ciência que o assunto tão importante atentava para a existência das suas asas!

       Estava longe da Guardiã Zoé. E se era possível estar longe de Zoé, era também possível ter recuperado seu dom e principalmente o uso indiscriminado de suas asas.

       Por isso ela estava acorrentada pelo pé e não amarrada pelas mãos!

       Em um movimento continuo tateou a venda que lhe cobria os olhos, ansiosa para livrar-se desse empecilho que a impedia de ver onde estava.

       Assustadíssima descobriu que não poderia retirar aquilo, pois não era uma venda presa por um nó. Ela estava usando uma espécie de máscara nos olhos, feita em metal, àquilo lhe cobria a testa e os olhos e era acorrentado logo abaixo do seu pescoço, e mal permitia que sua boca ficasse de fora. Apavorada, ela tentou  encontrar um local onde pudesse bater  e quem sabe, soltar o metal.

       Obviamente, descobriu da forma mais dolorosa, que não era possível fazer isso sem ferir ainda mais sua cabeça. Agora sabia que a dor insistente não vinha na pancada que lhe infringiram e sim, daquela coisa que a aprisionava. Um segundo de pânico e ela pensou onde estaria, e se ficaria ali para sempre. Passar o resto de sua vida com aquela máscara de metal cobrindo parte do seu rosto era ma possibilidade assustadora!

       Mesmo em pânico, Joan chegou à conclusão de que se fosse Zoé, não usaria dessa crueldade absoluta. Estaria morta, como a verdadeira Condessa, ou então, nas mãos da rainha Santha e seu amante Lucius.

       No caso de Matilde, em especial, a pobre infeliz não teria tanto rancor para um ato vil destes, tão pouco, tantos recursos. No máximo estaria no vilarejo, bem longe de Rowell e sua família.

       Mas então, quem poderia ter feito isso com ela?

       Se Joan acreditasse nas religiões humanas, como Molly acreditava, nesse instante estaria rogando por clemência e ajuda divina. Mas ela acreditava em formas divinas, como a natureza e suas inesgotáveis fontes de magia, sempre interligadas com os seres mágicos.

       Afinal, em sua situação atual, um pouco de positivismo viria bem a calhar!

       Procurando qualquer tábua de salvação Joan apalpou as costas na busca frenética por suas asas. Felizmente, se é que podia ver algo positivo em sua situação atual, o dom de Zoé não parecia incidir sobre ela devido a distância. Suas asas estavam reveladas, provavelmente encontraram caminho para fora do seu corpo enquanto estivera inconsciente.

       O alivio momentâneo quase a fez esquecer-se do perigo. Ter o domínio de suas asas e de seu dom para camuflar-se era uma tênue garantia contra seu algoz. Joan ouviu ruídos aproximando-se, ruídos de pés.

       Assustada, encolheu-se contra as pedras e tratou de exigir de seu dom obediência, camuflando-se diante dos olhos de quem lhe causava medo. Ela sempre tinha uma sensação diferente quando camuflada.

       Joan ouviu uma voz alta e definida, era voz masculina. Havia uma ausência total de cheiro, ela não reconhecia o odor expelido pelo possível macho que a sondava. Não era um cheiro de um elfo ou de qualquer criatura mágica que pudesse reconhecer pelo olfato. Uma criatura mágica sempre sabe quando outro de sua espécie está próximo e neste caso ela não conseguia identificar com precisão o odor que farejava.

       E, pelo contrário o cheiro da fêmea que deveria estar acompanhando seu algoz, era pungente. Sentia o cheiro dela mesmo que a distância. Era um cheiro bem mais forte que o odor natural de uma fada.

       -Ela está escondida? – a voz que perguntava era definitivamente masculina.

       -Sim. Mas eu posso vê-la, não se preocupe. Não importa que ela use seu dom para se camuflar tão bem assim. – a voz da fêmea era simples, clara e sem rouquidão.

       Sua decisão não deixava dúvida sobre cada palavra dita. Ela queria dizer e dizia. Era estranho, pois criatura alguma poderia vê-la, essa possibilidade não existia. A menos que a Guardiã Zoé não fosse a única fada com o dom da revelação em um raio de quilômetros. E se isso fosse possível, aí sim, Joan obteria a confirmação de que era uma entre as quatro fadas mais azarada do Monte das Fadas, quiçá do mundo todo!

       -Tem certeza? Eu quero vê-la. – disse o possível humano.

       -E como eu farei isso? Não posso reverter o dom de uma fada. Eu posso mantê-la presa até você voltar. É a única coisa que posso prometer.

       -Eu não quero mantê-la presa. Eu quero que você amare as asas da fada e serre-as. Eu preciso apenas das asas. – ele disse com um tom de voz que fazia parecer que este tipo de diálogo era corriqueiro e totalmente aceitável em sua vida.

       Imóvel, assustada e indignada, Joan ouviu o som de uma faca ou espada sendo retirada de sua bainha.

       -Você não pode fazer isto aqui. Não posso permitir que as asas desta criatura sejam cortadas na frente do meu povo. Deve leva-la para longe daqui.

       -Pelo preço que estou pagando em ouro você deveria fazer isto e muito mais. – o humano reclamou.

       -Manterei essa criatura guardada por apenas uma noite. – a fêmea que conversava com o humano não se vergou diante das reclamações.

       -Amanhã sedo estarei aqui e levarei a fada para um lugar discreto onde eu possa fazer o serviço. – ele disse.

       -Serviço? Eu posso saber quem seria tolo o bastante para lhe pagar por asas? O que fará com asas de uma fada? Elas não servem para nada. Depois de decepadas e apartadas de sua progenitora, durarão por dois dias, ainda vistosas, e então, estarão mortas e murchas. Já vi acontecer. Os Caçadores de Fadas costumam livrar-se das pobres infelizes quando não agradam os compradores, cortando as asas e abandonando as fadas a própria sorte, perdidas na floresta. As asas ficam largadas pelas estradas e para nada servem, nem para alimento de algum animal esfomeado servem. Viram menos que nada. No máximo servem de adubo para o chão. Então, me pergunto por que você deseja as asas desta fada?

       -Quem lhe disse que quero as asas? Eu quero corta-las, não disse que preciso das asas. – ele falava através de jogos verbais.

       -Oh, por favor! Você não me engana, Edward. Para alguma coisa você quer estas asas. Ou a fada já estaria morta! Eu não entendo porque cortar as asas e perde-las. Seja sincero, precisa destas asas para outros fins. É uma encomenda feita para outra pessoa? – a voz dessa fêmea estava carregada de veneno. – eu o vi com aquela humana. Aquela que fede a um cheiro estranho e pelo que vi ela é louca e perigosa.

       -Você não viu nada. – disse Edward.

       Joan reconhecia o nome Edward, mas lhe custava crer que o humano que falava aquelas atrocidades fosse o irmão de Rowell.

       Joan pensou estar ouvindo um gemido de dor, e ponderou que ele estivesse machucando a fêmea. Se ela pudesse estar enxergando, veria que ele segurava o rosto da fêmea de homem-lagarto apertando os dedos em seu queixo e bochechas enquanto olhava em seus olhos amarelados e dizia:

       -Você não vê e não ouve. E principalmente, não abre sua boca para contar o que não sabe. Não meta-se nos meus negócios e me obedeça. – ele soltou-a e apontou para Joan - mantenha esta fada presa por uma noite, nas primeiras horas da manhã virei busca-la. Deixe as asas separadas, preciso delas ainda frescas.

       -E onde eu guardarei isso? Caso não tenha notado não estou em um local onde eu possa fazer isso!

       -Os meios que encontrara para executar minhas ordens é problema seu. Deixe-a pronta.

       -Não é mais prático levar a fada com você e cortar as asas somente no momento do uso? Elas estarão frescas. O sangue ainda correrá pelas hastes. É muito mais prático.

       Ouve um silêncio. Provavelmente Edward estava pensando nisso. Sua mente considerava se era possível que tantos anos de fracasso tivessem por explicação a simples insistência em repetir o mesmo erro de usar asas já cortadas. Talvez a fêmea de homem lagarto estivesse com a razão. O sangue ainda correndo pelas hastes poderia facilitar a aceitação e fundição do sangue mágico com o sangue de Sophie. Quem sabe este fosse o grande erro de todos aqueles anos?

       -Você acha que as asas dela são boas? - Ele perguntou.

       E, pelo som engraçado de escárnio que a fêmea deixou escapar diante da pergunta estúpida ela duvidava da esperteza de Edward. Talvez, fizesse troça deste tipo de comportamento.

       -A fada possui asas tão boas quanto quaisquer outras. O que você pergunta, não tem lógica. É uma fada e suas asas são úteis para uma de sua raça. Elas voam. Não há o que debater sobre seu funcionamento.

       -Eu pergunto, porque são asas curtas e feias. – ele disse - Não são asas bonitas. São pequenas demais, eu pessoalmente nunca vi asas tão miúdas.

       -A fada é pequena. Deveria ter pensado nisso antes de escolher uma fada com estas características físicas. O tamanho das asas de uma fada não costuma incidir em seu funcionamento. Está é a única coisa que posso lhe afirmar, pois não sou especialista nesta raça. Meu povo não possui asas. Sorte nossa ou você teria feito coisa ainda pior conosco.

       -Não fiz nada com seu povo. Vocês foram responsáveis pela sua própria desgraça. Não me culpe por aquilo que você procurou. – havia sim um tom de deboche naquela voz. – devo ir agora. Quanto a você... Sabe muito bem as regras. Ande por fora da linha que eu tracei e todos de sua raça pagaram por sua insubordinação.

       -Não precisa me lembrar das minhas obrigações todas às vezes em que nos encontramos! Manterei esta criatura a salvo – referia-se a Joan - não encostarei um dedo nas asas, não serei inconsequente a ponto de estragar seus planos e fazer uma pobre criatura sofrer em vão. Longe de mim impedi-lo de fracassar mais uma vez. A prisioneira é sua, todinha sua.

       -Não me julgue por ter uma prisioneira quando é você que inventou este conceito. – ironizou, maledicente. – não é nada diferente do que faz com seu elfo.

       -Não vou discutir sobre este assunto com você. Trouxe a mercadoria e a ordem está dada e compreendida. Suma daqui antes que infecte nosso refúgio com a sua podridão. Se não vier busca-la até o meio do dia eu a deixarei em algum lugar para ser encontrada pelos humanos ou pelos Guardiões que a caçam. Não tenho a menor intenção de atrair vingança para meu povo.

       Joan ouviu o som do riso de Edward, um riso de quem duvida da ameaça feita. Era óbvio que a fêmea de homem lagarto não estava em condições de contrariá-lo ou rebelar-se. Neste tipo de relação, onde um manda e o outro obedece por coação, não é esperado ou aceito que o lado frágil encontre forças para reagir sem um prévio planejamento.

       Ela era oprimida de algum modo e nem mesmo a altivez em sua voz poderia esconder isto.

       No chão, escondida Joan ouviu a aproximação e deduziu que seria ele. Ela não conseguia ver por conta da máscara de metal em seu rosto, mas Edward usava a espada para cutucar o chão de terra seca esperando encontrar um corpo sólido que lhe mostrasse que a fada estava mesmo ali. Ouviu a voz da outra fêmea dizendo:

       -Eu no seu lugar não iria querer ferir a fada. As asas são ligadas ao seu corpo físico e irão se resentir e demorar a recuperar-se juntamente com a fada. – era uma mentira velada.

       Qualquer fêmea possuía o conhecimento de que não era desse modo que funcionava a anatomia de uma criatura de sua raça. A agressão no corpo não insidia na execução das funções das asas. Neste ponto asas e fada eram quase independentes. Talvez por isso fosse tão mais fácil que as asas se recuperassem de um ferimento do que qualquer outra parte do corpo.

       As palavras de explicação haviam sido registradas e mesmo que Edward recolocasse a espada de volta a bainha, não aceitaria sair por baixo em uma discussão. Aproximou-se da fêmea de homem-lagarto e provocou-a com um tapinha amigável em seu rosto e partiu.

       Helana ficou imóvel, como quem espera que o perigo esteja longe para retornar a vida normal.

       Joan ouviu os passos distanciarem-se e deduziu que ele havia ido definitivamente. A seguir foi à vez da outra fêmea que a abandonava.

       Sozinha, ouviu as vozes ressurgirem, e eram vozes de fêmeas. Em determinado momento pensou ter ouvido a voz de um elfo, e então os gritos começaram. A fêmea que estivera ali até então gritava furiosa, e era de esperar que estivesse nervosa e agressiva após ser tratada como uma escrava pelo humano Edward.

       Joan ficou quieta, encolhida e com frio. As horas foram passando, e a noite alastrando-se. O lugar onde estava era muito frio, e pelo visto deveria pegar pouco sol.  Joan não percebeu que tremia, quando levantou e tentou soltar o pé sem sucesso.

       Suas asas. Ela parou com as tentativas, quando esse pensamento de puro horror lhe veio à mente. Era alvo do tráfico de fadas? O que seria dela sem suas asas? Sem forças, ela voltou a sentar no chão e recolheu as pernas para junto do peito e escondeu a cabeça nos joelhos, mesmo com o peso da máscara de ferro, e encolheu-se, refugiando-se em seu medo, as lágrimas correndo sob o metal.

       Poderia aceitar tudo na vida, menos perder suas amigas. Menos perder Rowell. E suas asas? Ela poderia viver sem elas agora que descobrira a liberdade de voar?

       É claro que não! Tornou a levantar, em um rompante e esmurrou as pedras onde a corrente estava presa, com um sofisticado sistema de soldas.  Desesperada não reparou que estava visível. Esqueceu completamente de manter-se camuflada...

         

       Helana não esperava encontrar a cena que se distendia sob seus olhos.

       O elfo era um prisioneiro temporário. Elas precisavam de seu material genético e dada a situação de fragilidade do macho, por conta de ser caçado como um traidor do reino, ninguém daria por sua falta.

       As ordens eram muito simples: alimenta-lo com o mínimo para a sobrevivência. Garantir-lhe o mínimo de higiene para que não lhes transmitisse germes e usa-lo para o coito enquanto fosse necessário.

       Se conseguissem umas duas ou três gestações, poderiam libertá-lo.

       Mas nunca em seus planos imaginou que encontraria o fanfarrão sendo tratado como um rei! Ele contava histórias, e as fêmeas riam, em sua volta, uma fogueira acesa no centro, a conversa correndo solta, enquanto uma das fêmeas, uma jovem e bonita, ainda casta, pois não era época de reprodução, pois era muito jovem ainda, desvelava-se em cuidados para com o elfo.

       Era isso? Ela ficava dois dias longe de casa e a carência afetiva de suas conterrâneas o transformariam em uma espécie de sultão?

       Irritadíssima Helana acabou com a brincadeira, gritando e dispersando suas irmãs de raça e sangue. Uma a uma elas foram respondendo e obedecendo, mesmo que magoadas.

       Por fim, um longo e gritado discurso para a jovenzinha casta, lembrando-a sobre o fato de estarem guardando seu ventre para o coito com outro de sua espécie, um homem-lagarto, para que assim a raça fosse totalmente pura.

       Sentado no chão, Tubã fitava sua histeria com humor. Ele fizera de propósito. Conquistar, dispersar, e atacar. Era sua estratégia. Aproveitar da ausência daquela fêmea eternamente furiosa e agressiva e conquistar afeição de suas súditas.

       Uma delas, inclusive contou-lhe que Helana era a líder entre elas. Desde a morte do líder, Ethanael, que a fêmea havia adquirido o posto de governo. Supunha, Tubã, por ligação de sangue. Aquele homem-lagarto deveria ser seu pai, ou irmão mais velho. E agora, ele estava convencido que ela não era intocável, pois seu ataque de fúria era prova que havia acertado na mosca.

       Helana parou de gritar, e ao ficar sozinha com Tubã fitou-o com fúria assassina.

       -Você ri – ela disse com voz amarga – Você ri!

       Ele não disse nada, apenas ostentou o seu melhor sorriso na face e ergueu as sobrancelhas como quem a provoca.

       Fora de si, Helana avançou sobre Tubã e o fez erguer-se, empurrando-o para longe do fogo, prensando-o contra uma rocha escura e pontiaguda, que machucava suas costas.

       Cara a cara, ela avisou, seus belos olhos amarelados, largos, úmidos e refletindo a dor e a raiva que um ser carrega ao ser humilhado e desafiado.

       -Enquanto você brinca – ela segurava-o pelas laterais da túnica que Tubã vestia – o mundo está desmoronando sobre nossas cabeças. O mundo mágico está se desfazendo sob nossos pés. Enquanto você mede forças comigo, tudo que ama está se perdendo. E você ri? – ela empurrou-o outra vez e Tubã gritou reclamando – Está doendo? Acredite, as desgraças nem começaram ainda! A dor que sente não é nada comparado com o que vai acontecer a qualquer momento!

       Helana parecia aguardar uma resposta. Tubã notou que era um assunto sério, mas o que ele faria? Não tinha a menor ideia do que ela dizia!

       -É verdade que Eleonora é rainha? – ele gritou de volta, e essa pergunta parecia ter maior relevância do que qualquer outra coisa.

       -Você é inacreditável! – ela soltou-o, mas Tubã agarrou seu braço, e Helana, em um reflexo ágil, uso o punhal que sempre mantinha na cintura para imobiliza-lo outra vez, a lâmia abaixo do seu queixo. – Eleonora, a fada fugitiva é rainha. Mas por pouco tempo. Não se pode ser rei quando o seu mundo desaba! E é exatamente isso que está acontecendo! E você? Rindo! Desafiando-me! Seu imprestável! – ela o puxou pelos cabelos e o levou para a entrada de uma das cavernas, uma que estava vazia. – Em três meses, você não emprenhou nenhuma das fêmeas! Todas férteis e saudáveis! Você não serve para nada! É desperdício de comida!

       -Então me mate! – ele revidou, e finalmente deixou de lado a parcimônia que sempre o fazia afável.

       Empurrou à fêmea e ela lutou. Acabou no chão, comendo terra, como era esperado, pois não tinha treinamento de luta. Mas não era um bobo! Era um trapaceiro!

       Num movimento ágil agarrou a ponta da longa cauda da fêmea de lagarto e mordeu-a.

       Ela gritou e soltou-o, caindo de joelhos no chão. Um pouco pela dor, outro pouco pelo susto. Tubã soltou a cauda e gargalhou diante da sua expressão de susto. Essa expressão aos poucos se tornou desamparo e Tubã não soube o que fazer quando ela não conseguiu esconder o tremor das mãos e as lágrimas.

       -Todos serão mortos – ela disse entre lágrimas, e gemidos de fúria – Não importa o que façamos, está tudo perdido. Eleonora é rainha, mas isso aconteceu tarde demais. Não há volta.  – ela sentou contra uma das rochas e ele rastejou de joelhos no chão e sentou ao seu lado.

       -Lora é inteligente. Ela não permitiria que nada de errado acontecesse – defendeu a amiga e grande paixão.

       -Ela é apenas uma fada inexperiente. Ela não tem ideia do que está acontecendo. A pobre infeliz será a primeira a morrer. – ela contou, retirando o punhal da cintura e deixando ao seu lado, pois a machucava na cintura – Ela está prenhe. – contou e o modo como o surpreendeu a fez sorrir com amargura – Os Conselheiros estão vendidos, entregaram suas esperanças e poder nas mãos do primeiro que ofereceu ouro abundante. Com exceção de Túlio, os demais estão vendidos. Os Guardiões... – ela riu com humor negro – Sem os quatro principais Guardiões, o que será do reino dependendo da proteção de seis meninos bobos, cobertos de músculos e nenhuma agilidade no uso de suas próprias armaduras? O Reino de Isac será tomado e destruído e sua querida Eleonora será a primeira a morrer, provavelmente antes mesmo de sua cria nascer!

       -Você está falando de Lucius? De Santha? – Tubã perguntou,  nada fazia sentido, ela não falava exatamente o que acontecia.

       -Sim. Mas agora não há volta. Está feito. Acho que nem mesmo Santha sabia o que acontecia pelas suas costas. É questão de tempo, Tubã, e todos estaremos perdidos.

       -Se isso é verdade, porque insiste tanto em reproduzir? Não faz sentido. – ele acusou.

       Um sorriso carregado de veneno e ela respondeu:

       -Em breve não haverá um só elfo saudável nessa terra. Eu tenho esperanças de encontrar um macho de minha espécie no futuro. Por isso, preciso manter nossa gente viva e saudável. Não importa como. Não importa o preço disso.

       -Você disse que todos nós estaremos mortos em breve. E mesmo assim, acha que conseguirá manter sua gente a salvo? Você enlouqueceu? – ele perguntou e ela negou com um movimento da cabeça.

       -Não. Eu estou do outro lado. E do outro lado, é que vou conseguir a segurança que precisamos.

       -Isso não faz sentido algum. – Tubã disse pensativo.

       -É. Não faz. – ela concordou, recuperou o punhal e levantou. – Não me desafie outra vez, elfo. Estou no limite com sua raça. Não queira ser ao primeiro a morrer.

       -Porque não avisa Egan? – doía falar isso.

       Pensar em Eleonora e Egan juntos, e principalmente, em seu amado irmão emprenhando a fêmea que ele amava, mas sentir ciúme, inveja e magoa, não o impedia de ver Egan como ele realmente era. Um herói. O mundo ficaria em paz e seguro se ele pudesse falar com Egan e lhe contar o que acontecia.

       Era assim desde pequeno. Egan sempre mantinha o mundo calmo, seguro, e em ordem. Ao menos era assim que mantinha o mundo de Tubã. Não havia sujeira que Egan não conseguisse limpar.

       -Acha que um único Guardião poderia salvar a todos nós? – Helana debochou.

       -Sim – ele respondeu sem pestanejar.

       -Não pode estar falando sério – ela duvidou.

       -Egan pode faze o que ele quiser.  Egan sempre salva a todos nós. – Tubã afirmou outra vez.

       Helana maneou a cabeça e tencionou afastar-se quando Tubã a fez parar com o peso de uma pergunta inocente:

       -Quem é Ethanael?

       Pena que ele não pudesse ver a expressão de Helana para saber o que ela sentia. Angustia, dor, saudade. Ela afastou-se e ele não impediu, ou tentou mantê-la junto dele mais tempo.

       Ao menos agora sabia que Eleonora estava perdida para ele. Pertencia ao seu irmão. Angustiado, ele socou o chão e o único retorno obtido foi à dor.

       Não ficaria ai sendo tratado como um reprodutor, enquanto o perigo rondava Eleonora. Ela não poderia lhe pertencer, se era verdade que agora pertencia a Egan e estava prenhe, mas isso não mudava seus sentimentos. Amar era isso, pensou angustiado, sufocando o ciúme e a amargura.

       Nem um único beijo trocado em tantos anos. Nunca conseguiu coragem para tanto e agora, era melhor que isso não houvesse mesmo acontecido. Seria pior se conhecesse o sabor da paixão entre eles.

       -O que aconteceu? - perguntou uma voz vinda da escuridão.

       Era Clarita, a fêmea jovem e doce, que sonhava com um grande amor e que esse amor fosse de sua mesma espécie. Ela falava sobre isso, e cantarolava lindos cânticos românticos. Era muito bonita, suave e generosa e lhe trazia comida extra pelas costas de suas conterrâneas.

       Possuía cabelos escuros, bem curtinhos, a pele esverdeada ainda muito verde folha, típica coloração de sua raça na juventude. Ele sorriu e disse:

       -Sua líder me bateu mais uma vez, ela gosta bastante de agredir - disse com amargor e Clarita aproximou-se percorrendo a parede, pois ela era a que mais gostava de andar pelas paredes e teto, outra característica típica da juventude em sua raça.

       -Nem sempre foi assim. - ela saltou para o chão perto dele. - Antes, quando tudo era seguro e éramos um povo maior... Helana não era nossa líder e não agia assim.

       -É mesmo? E o que aconteceu? Porque ela ficou assim? - insistiu, querendo saber a verdade.

       -Eu não sei. Os mais jovens não possuem permissão para conhecer os segredos da líder. A única coisa que sei, é que depois que Ethanael morreu e o bebê sumiu, Helana se tornou líder e tem se mantido ausente por muito tempo. Isso faz uns dois anos... Foi quando... - Clarita parou de falar e baixou cabeça triste com alguma lembrança.

       -Não pare. Eu quero saber o que aconteceu com seu povo. - ele insistiu e ela piscou graciosamente, e disse:

      -Eu gosto de você, Tubã. É tão bonito... E faz mágicas. Eu gosto de você. - ela disse e sorriu corada como qualquer adolescente boba - É uma pena que não seja da minha raça. Eu sou a única fêmea em idade de procriar, que nunca o fez com outra raça. Meu ventre está sendo preservado para quando encontrarmos alguém de sangue puro. Como nós. Eu espero que se esse macho exista e que ele seja tão bonito quanto você. - eram devaneios de uma menina sonhadora e Tubã sentiu-se mal por usar disso para obter informações:

       -O que aconteceu com os machos do seu povo? Onde eles estão? - perguntou sério.

       -Você não sabe? Achei que todas as criaturas mágicas soubessem... Há dois anos atrás fomos atacadas, e mataram todos os machos da nossa raça. Deixaram apenas as fêmeas vivas e agora somos prisioneiros de nossos assassinos. Se não trabalharmos para eles... Seremos as próximas eliminadas.

       Isso explicava porque Helana dizia trabalhar com o 'outro lado'. Sério, ele tentou não demonstrar o desgosto em sua face. A jovem ofereceu-lhe alimento e ele aceitou. Não adiantava insistir, a jovem não sabia mais nada.

       Afinal, o que estava acontecendo pelas costas do Reino de Isac?

 

      Helana fitou de pé fitando a cena patética. A fada da clausura guinchava, e lutava contra corrente que a mantinha prisioneira. Um pouco caída no chão, um pouco de pé, ela tentava desesperadamente livrar-se da prisão imposta pelas correntes. Revelada aos olhos de sua algoz, tão inocente.

       Sangue corria pela canela da fada, onde o grilhão cortava e marcava a pele. A máscara em ferro bruto que cobria seus olhos e parte do rosto, com toda certeza iria ferir sua pele tão bonita e pálida.

       Uma pena ferir uma flor tão delicada, que por único crime, fora nascer e florescer ao lado de outras flores nascidas para morrer cedo.  Um lindo e perfumado jardim de lindas flores predestinas a prisão.

       Apenada, Helana pensou em si mesma e em seu povo, que até poucos anos atrás era livre e absoluto sobre si mesmo, e agora era escravo das escolhas alheias. Vergado ao desejo de um insano.

       Ela fechou os olhos com força, pensando na certeza absolta de Tubã a cerca de Egan, o Primeiro Guardião. Seria possível? Uma terceira alternativa em um jogo de xadrez, marcado para acabar com o xeque mate?

       Furiosa e desconcertada, Joan gritou mais uma vez, e escorregou caindo sobre o chão, ralando os joelhos dolorosamente, seus gritos não eram pela dor e sim pela exasperação e impotência diante de mais uma prisão. Esse era seu destino? Seria prisioneira?

       Porque fugir das acusações de assassinato se o seu fim sempre seria esse? As correntes!

       Joan estava se rendendo a angústia, e prestes a desistir de uma fuga, coisa que sempre acontecia com ela no passado, sempre esperando que Alma, Eleonora e Driana a ajudassem, quando sentiu mãos pesadas e rudes mexendo na máscara em sua cabeça.

      Em pânico tentou se soltar e afastar o perigo, mas a criatura não permitiu. Segundos de coração acelerado, pele arrepiada e completo alienamento, como quem sente a morte aproximar-se e finalmente aquilo foi retirado de sua cabeça e jogado no chão.

       Os olhos verdes e límpidos de Joan fitaram a figura peculiar de alto a baixo, e por mais que estivesse com mil perguntas na mente a única frase que fez sentido foi:

       -Você é da mesma raça que Marmom... - sim, ela vinha lidando com a aflição de ver um ser mágico tão peculiar limitado a uma vida regrada entre os humanos que desconheciam sua condição. Isso pairava em sua mente.

       Pela expressão na face da fêmea, suas palavra fizeram sentido.

       -É por causa do menino que não a mato agora mesmo. - Helana disse com força, afastando-se da fada que jazia no chão.

       -Você é cúmplice de um humano que atenta contra todas as leis do nosso povo. Quem é você e porque eu estou aqui? - perguntou debilmente, pois duvidava que lhe respondesse com a verdade.

       -Interessante. Muitos a descreviam como uma completa estúpida. Agora vejo que aparentemente o termo 'esperta' lhe cai melhor. - Helana sorriu - Gosto disso, é preciso ser um pouco dissimulada para sobreviver no mundo em que vivemos.

       -Eu não sou dissimulada. - ela reclamou na mesma hora.

       -Mas também não é frágil como a descreveram. Quem está errado? Quem a descreveu, ou quem acreditou em você?

       Para essa pergunta Joan ao queria ter resposta. Sim, até pouco tempo atrás ela era frágil e boba.

       -Eu tive que aprender a me defender - disse altiva, olhos fixos na fêmea de lagarto. Porque se justificaria para seu carcereiro?

       -Edward é irmão do humano com quem se deita - disse Helana, acocorando-se no chão, para que os olhos ficassem na mesma altura e não perdessem aquele contato visceral.

       Sua cauda se movia nervosamente pelo chão e Joan ignorou a beleza de sua raça, para atentar-se apenas em suas palavras.

       -Rowell é muito diferente do irmão. Ele é bom e honesto - defendeu-o imediatamente.

       -Mas não sabe quem você é. Ele não sabe de nossa raça, das criaturas mágicas. Ele não sabe com o que o irmão está lidando. As barbaridades que ele já fez.

       -E você sabe? Porque ele precisa das minhas asas? - quis saber, ignorando a dor na cabeça, que aumentava e se acentuada. Moveu as mãos e procurou por ferimentos, mas não havia nada. Somente a dor.

      -Ele precisa de asas, não necessariamente as suas, qualquer fada serve. Há muitos anos Edward vem contrabandeando fadas. Ele contrata Caçadores de Fadas e de recompensa e paga em nossa moeda, altos valores. Já ouvi falar de muitas tentativas. Ele já tentou criar as fadas desde a infância, para pegar suas asas. Já tentou comprar fadas de todas as cores e dons. Nenhuma nunca teve serventia. Até conhecer você. Eu não posso negar que ele tem sua razão. Suas asas se adaptam a qualquer situação. Talvez se adaptem ao que ele tem em mente... - ela disse pesarosa.

       -E o que ele tem em mente? - Joan perguntou, lutando para não chorar pelo medo.

       -Uma aberração. No momento certo você saberá de tudo. Por hora... Eu preciso saber até onde você iria pelo duque Mac William.

       -Como assim? - duvidou dessa pergunta.

       -Até onde você iria pelos humanos, fada da clausura? - insistiu na pergunta.

       -Não sou uma fada da clausura - sentindo um ódio ferino, Joan avançou na direção de Helana sendo barrada pela corrente que puxou seu pé e impediu-a de avançar mais. Com sangue nos olhos, de tanto ódio, Joan avisou - Não posso ser chamada assim, agora sou uma fada livre!Não importa quantas correntes use, eu sou uma fada livre! Nada mais pode me por medo! Mesmo que eu perca minhas asas, ainda assim, eu serei livre! E ninguém, criaria ou humano, pode tirar isso de mim!

       Sua voracidade e o desejo de vida em seus olhos contaram uma estória para Helana. Aquela fada estava disposta a tudo pela sobrevivência.

       -A causa de Edward para querer suas asas não são seu pior defeito. Ele tem tramado contra o mudo mágico. Ele sabe de nós, eu não sei como, mas ele tem ligações e influência. Eu não sei de tudo, como ele tem feito ou quem são os seus parceiros. Eu sei apenas que ele vai destruir tudo. A começar pela rainha.

       -Santha? - Joan sentou, agora bem mais perto de Helana, apenas duas fêmeas destruídas pelas circunstâncias falando sobre as desgraças que se abatiam sobre suas cabeças.

       -Não. Santha foi destituída. Lucius está nas masmorras. Mesmo assim, o estrago que ele fez não pode ser revertido. A Rainha possui um escolhido, mas ele não está presente. Ela está sozinha, prenhe e vulnerável. E o fim se aproxima. Quando ela cair, será questão de tempo para que todos os outros lideres caiam também. Eu serei um desses lideres. Achei que ficar do lado de Edward poderia garantir a sobrevivência do meu povo, mas isso não vai acontecer por que... - ela não queria falar mais, mesmo assim, o modo puro como os olhos da fada a olhavam, sem maldade alguma, a fazia sentir a compulsão de contar todos os seus pecados.

       -Eu não vou conseguir participar das atrocidades que ele faz, tão pouco as fêmeas que sobraram do meu povo. Vamos sucumbir e ir contra ele em algum momento. E isso será nosso fim. Não podemos fugir... Não possuímos asas, e dependemos de um habitat ideal para procriar.

       -Ao pé do desfiladeiro? - Joan disse pensava - minha amiga Driana lia muito na clausura. Ela me contou um dia sobre os homens-lagarto. Eu entendo o que diz. É difícil escolher um lado. Eu ainda não sei como fazer isso. Você disse que Rainha Santha caiu? Eu tenho medo da resposta... Mas a nova rainha, você fala de Eleonora não é?

       -Sim, a única em herança genética. O que sobrou de Santha. Ela escolheu o Primeiro Guardião, ou trocou sua liberdade por ajuda, eu não sei como se deu essa escolha. O que sei é que ela está com os dias contatos. - foi sincera.

       -Impossível. Se o reino for atacado os guardiões o defenderão. Mesmo os guardiões de menor importância, são bons em luta e erguerão suas espadas. E todos os machos em treinamento? Eles farão frente e defenderão a rainha! - argumentou, sem compreender.

       -Os guardiões? O Primeiro Guardião está em uma busca pela fada Joan, a única que resta desaparecida, em uma caçada que visa salvá-la das garras da Guardiã Zoé. Edward não é burro, ele tem levado os guardiões cada vez mais longe. Atrapalhando seu caminho, despistando. Egan não vai encontra-la tão cedo.

       -Você disse que sou a única que resta desaparecida? - Joan sentiu uma dor opressiva no coração - E Driana e Alma? Onde elas estão?

       -Driana está na companhia do Segundo Guardião, Acheron. Eles ajudam nas buscas por você. Eu não sei onde estão ou se estão próximos. Alma, até onde eu sei, juntou-se ao Terceiro Guardião e estão no Vilarejo sem Fim, lidando com uma situação que é nova por lá.

       -Alma... Juntou-se a um macho? - Joan queria sorrir, mas faltava ânimo para isso - isso é uma grande surpresa.

       -A grande surpresa será um ataque inesperado a guardiões inexperientes e tolos que não poderão salvar as próprias bundas quando o pior acontecer. Os Conselheiros... Eles se vergaram aos deslumbramentos de poder de um novo líder. Eles não sabem que esse líder é um humano. Sabem apenas a história contada por muito ouro e regalias. Em breve, Joan, eles facilitaram uma invasão e o reino será tomado. Sei que os duendes estão a favor desses planos.

       -Isso não é possível! - Joan não queria acreditar - Como isso pode acontecer?

       -Como você acha? Lucius. Acha mesmo que a única razão em convencer Santha a livrar-se do rei, era esconder o nascimento de uma cria indesejada? Tenha paciência. Ele queria ser rei. Tomar o poder. E para isso usaria da ajuda dos duendes. Incitar o ódio entre eles foi o primeiro passo. Agora são seus aliados, e eles estão por toda parte. É por isso que não posso fazer nada além de ficar ao lado de Edward e rezar para que ele falhe em seus panos.

       -Não - Joan negou - você pode fazer muito mais do que isso! Podemos encontrar os Guardiões. Avisa-los do perigo!

       -Não. Eu não posso. Se eu me afastar da minha gente... Edward saberá que o traí e matará a todas. Da minha gente, sobrou apenas fêmeas, Joan. Ele assassinou todos os nossos machos. - ela disse escondendo o desespero dessa lembrança.

       -Marmom é de sua raça. Ele é...? - a pergunta ficou no ar.

       -Sim, ele é o último macho da nossa espécie vivo. O último com sangue puro. Nossa única esperança de continuação da espécie. Por isso eu zelo por ele. Eu o vejo sempre que posso. Mas não são muitas as oportunidades.

       -Marmom tem mãe viva?  - perguntou interessada.  Se não possuía sangue humano, havia a chance de ter uma mãe viva.

       -Sim, Marmom é meu filho - ela admitiu.

       Diante dessa declaração Joan pensava no que poderia dizer. Que entendia seu sofrimento? É claro que não. Não era progenitora de crias, não entendia esse sentimento. Joan nunca pariu e também nunca conviveu com uma mãe de verdade. Não sabia nada sobre esse sentimento de maternidade intenso que unia progenitora e cria.

       -Eu tenho cuidado do menino. Gosto muito dele - foi à única coisa que conseguiu dizer - Rowell o ama como filho. O pobre humano não tem ideia de quem é Marmom. Ele possui irmãos, uma irmã e um irmão. E eles o amam. Quanto a isso não se preocupe.

       -Minha maior preocupação é Edward. Ele usa Marmom para me obrigar a segui-lo e obedecê-lo. Ele o roubou de mim.

       -Quando? - perguntou, precisando saber toda a estória.

       -Isso não é da sua conta - ela disse e levantou, andando para longe.

       -Você não pode fazer nada, está acuada... Mas eu posso fazer muita coisa! - disse Joan, antes que ela sumisse.

       A bela criatura esverdeada, coberta por roupas mínimas e feitas em peles e couro parou e a encarou.

       -Você não pode ir contra Edward. Mas eu posso. Eu posso tentar conversar com Zoé. Ela é uma Guardiã, não é? Tem asas, dom, e armadura. Ela pode juntar os outros Guardiões facilmente e poderemos contratacar a tempo!

       Essa possibilidade fez sentido na mente de Helana, que tornou a andar para perto.

       -Como? Como faríamos isso? - ela quis saber.

       -Eu não sei - Joan admitiu - É uma possibilidade. Zoé me odeia, precisaremos de uma prova para que ela acredite em mim. Quanto tempo acha que temos até o ataque ao Reino de Isac acontecer?

       -Pelo que sei, primeiro Edward quer resolver a questão das suas asas - ela foi sincera - Depois... É questão de dias.  - a fêmea de lagarto engoliu em seco e Joan abriu um sorriso, para surpresa de Helana.

       -Como se chama? - perguntou-lhe Joan.

       Estranhando a pergunta, respondeu:

       -Helana. - sua voz era ativa e o sorriso de Joan aumentou em sua face aparentemente tão inocente.

       -Edward não é tão esperto quanto parece. Ajude-me a fugir, Helana. É isso que faremos. Você me ajuda, e eu a ajudo.

       -Fugir não vai adiantar, ele vai se voltar contra mim! - ela negou.

       -Não, ele não vai saber que eu fugi. Pelo adiantado da hora, ele deve estar bêbado em algum canto do castelo. Está é sua fraqueza, e aposto que você não sabia dos vícios dele, não é? Eu sei por que desfruto da intimidade da família do duque. Eu volto, e ajo como se nada houvesse acontecido. Quando ele a procurar, haja como se não soubesse o que aconteceu e que não sabe do que ele está falando! Ele vai acreditar ser culpa da bebida. Que está tendo alucinações. Ganharemos tempo. Tempo para convencer Zoé a nos ajudar. Tempo para encontrar os Guardiões.

       -Isso é loucura. Ele vai aprisiona-la outra vez! - Helana foi lógica.

       -Não, agora eu sei o que ele pretende. Ficarei um passo a frente e tomarei cuidado. Ele não pode me atacar na frente de todos! Vai dar certo. Eu volto, e acho um modo de convencer Zoé. E se não conseguir... Eu saio na busca pelos guardiões. Mesmo sozinha, eu posso sair ao castelo e avisar Eleonora, avisar o Terceiro Guardião que acompanha Alma. Agora eu sei onde ele está, você mesma disse que ele está no Vilarejo Sem Fim! Com minhas asas, eu o encontro em poucos dias! Qualquer ajuda é bem vinda. Iremos armar contra o ataque! Acabar com as chances de rebelião contra o reino!

       -Isso pode dar certo... - Helana mal acreditava no que ouvia, aparvalhada com essa nova possibilidade até então não plausível, sem a ajuda de uma fada.

       Aproximou-se e tocou o pé de Joan, onde o metal feria a carne delicada. Olhou em seus olhos e disse:

       -Tanto tempo de opressão. Será que uma fadinha de asas miúdas pode salvar a todos nós?

       Era uma pergunta retórica.

       Será que aquilo que nos desperta pena pode ser nossa salvação? Que o frágil e desprotegido pode ser mais forte que o mal que ronda e atormenta?

       Joan queria acreditar que sim!

                     

       Era impressionante o que poderia ser feito em poucas horas. De volta ao castelo, Joan pousou os pés no concreto e segurou-se na murada de pedras para não cair. Seu corpo todo tremia compulsivamente.

       Helana, agora sua aliada a soltara e cuidara do ferimento em sua canela. Camuflada, Joan respirava fundo e lutava contra o choro. Sabia onde era o lugar que Edward gostava de dormir e beber. Percorreu os corredores alerta, a luz do luar, e quando avistou seu corpo caído no chão em uma poça de álcool e urina, e quem sabe vômito, ela aproximou-se e cuidadosa para não o despertar, colocou uma garrafa de elixir proibido em suas mãos, depois de espalhar o líquido pelo corpo do humano.

       Helana lhe conseguira uma garrafa e a ideia era deixa-lo confuso. Elixir proibido era fortíssimo uma das bebidas mais fortes de todo mundo mágico, e capaz de produtor as piores alucinações. Quando acordasse ele pensaria estar sob o efeito da bebida.

       Joan sufocou um grito de medo quando ele abriu os olhos e olhou diretamente para ela. Claro, não podia ver o que seu dom escondia. Não viu a fada curvada sobre ele, com olhos arregalados de puro pânico, cabelos ruivos, e roupas rasgadas e sujas.

       Não viu nada, ergueu a garrafa e bebeu alguns goles antes de fechar os olhos e tornar a cair em um pesado sono induzido pelo porre.

       Aliviada, Joan correu pelo castelo. Uma rápida parada no quarto das crianças para espiar se Marmom dormia bem. Depois de saber da origem do menino e de sua desgraça, ela sentia vontade de aperta-lo em seus braços e lhe dar todo o amor do mundo.

       A criança dormia calmamente em seu berço. Na cama ao lado, o herdeiro do título de duque, Tommy, sonhava e reclamava em seu sono agitado. Joan aproximou-se e fez um carinho em seus cabelos, acalmando-o. O menino entrou em um sono calmo e ela afastou-se, e saiu do quarto. Não sem antes olhar com afeição para Alice que dormia em uma cama perto da parede.

       Eles estavam bem. Era ela quem remoia a carência e o medo sentido naquelas apavorantes horas nas mãos de Edward, com medo do que aconteceria com suas asas.

       Ela percorreu os corredores e parou diante da porta do quarto do duque. Sim, o que ela faria agora? Precisava encolher suas asas, e mantê-las escondidas, pois Rowell não sabia quem era. E quando amanhecesse, e Zoé se aproximasse suas asas não mais poderiam ser reveladas. Era uma catástrofe. Poderia fugir agora mesmo e procurar por Eleonora.

       Joan permaneceu imóvel travando um debate moral dentro de si que definiria todas as suas chances de sobrevivência. Acreditar no interior de um ser? Acreditar que poderia haver alguma bondade dentro de Zoé? Que ela, uma guardiã, poderia colocar em primeiro lugar seu dever, e esquecer-se de seu rancor pessoal?

       Crer em outro ser vivo apenas e somente com a credulidade de que todo ser nasce bom?

       Ela fechou os olhos, sabendo previamente que estaria enganada, mesmo assim, apostando todas as suas fichas no bom coração de Zoé.

       Alma sempre a acusava de pensar na bondade das criaturas. Driana a questionava de porque ser assim, e Eleonora apenas a abraçava e dizia que nem todas as pessoas são boas, e nem todas são más e é preciso apostar sempre no bem. Se esperarmos sempre pelo mal, ele se alastra e ganha força.

       Joan sentiu suas asas se encolherem e seu dom indo embora, quando quis se revelar.

       Agora não havia volta. Estava decidido. Andar sempre para frente, disse Joan. Mesmo que sinta tanto medo que seus dentes batam sem parar uns nos outros. Mesmo que saiba que está errada, que no fundo, nunca obteria êxito.

       Abriu a porta e entrou. Encontrou Rowell acordado. Ele estava deitado, um livro nas mãos. Ergueu os olhos para ela, com acusação.

       Joan fungou e limpou a bochecha onde suspeitava poder haver uma lágrima e aproximou-se da cama. Subiu sobre ela e rastejou na direção do humano.

       Ele não disse nada quando ela escondeu o rosto em seu peito e começou a chorar. Suas roupas estavam sujas, rasgadas, e ele viu um curativo mal feito em sua canela. Afastou os cabelos vermelho para ver as feias marcas em sua testa, escondidas pela cabeleira espessa.

       O cheiro impregnado em sua roupa era bem característico. Cheiro de floresta.

       -Saiu do castelo? - Ele perguntou sério.

       -Sim - ela respondeu, envergonhada demais para mentir para ele.

       -Vai me contar o que aconteceu? Como saiu e voltou sem que ninguém notasse? Vai me contar quem a machucou?

       -Não - ela negou, mortificada.

       Rowell não respondeu nada.

       Joan ergueu o rosto, e fitou-o com olhos de súplica:

       -Eu voltei, não voltei? - era um pedido de compreensão.

       -Joan... Você está machucada - ele disse, pois não podia ficar a par disso!

       -Eu preciso que mantenha segredo disso, Rowell. Ninguém pode saber que eu sai e voltei. Por favor. Ajude-me. - implorou.

       Sabia que abusava do amor de Rowell. Era pedir demais para alguém como ele, que visse algo errado acontecer com alguém que ama e não fazer nada para impedir!

       -Isso vai se repetir? - ele perguntou sério, guardando a raiva, e olhando-a com expressão fechada, algo passional.

       -Eu espero que não. - foi franca.

       -Esteve com outro homem? Por isso está machucada? - ele precisava de algumas respostas, mesmo que superficais.

       -É claro que não. Minha vida é uma confusão, mas a única certeza é que não deixaria outro se deitar comigo. Eu amo você, duque. Só você. - tranquilizou-o.

       -Está machucada - ele fez um carinho em sua testa - isso me corta o coração. E não posso fazer nada para punir o agressor?

       -Não. Manter segredo sobre minha saída pode ser uma forma de punir o agressor. Isso o deixa mais tranquilo?

       -Saber a verdade me deixaria tranquilo, Joan, mais nada pode me tranquilizar depois de vê-la machucada assim - ele foi franco.

       Seu jeito resignado a deixou triste, mas não queria perder sua noite ao lado do duque por causa do que aconteceu.

       Era uma lógica estranha, mas fazia sentido em sua cabeça. Pensar que em breve poderia estar apartada de Rowell a fazia querer aproveitar cada pequeno segundo ao seu lado. Principalmente na intimidade de um quarto.

       Carinhosa, Joan o provocou com beijos na altura do queixo e ele a afastou e girou sobre a cama, acariciando a pele de sua testa onde alguns vergões atestavam a presença de uma ferramenta de tortura que a deixou em pânico.

       -Eu não quero abusar de você - ele foi sincero, e beijou a área machucada - Durma um pouco.

       -Eu estou bem, Rowell. O pior já passou. Não sou tão frágil quanto aparento! - negou, decidida a convencê-lo a toca-la, pois aquela noite desejava tudo e mais um pouco!

       -Você é tão frágil quanto aparenta. - ele negou e acalmou-a com beijos doces em sua face.

       Ela sorriu apesar da frustração.

       -Eu quero que permaneça neste quarto, Joan. Fique descansando o dia todo. Não levante com o amanhecer. Um pouco de conforto e regalias fará bem para você. - ele sugeriu e ela não notou as segundas intenções por de trás da oferta.

       -Eu poderia gostar disso - ela disse sorrindo.

       Aquele belo sorriso sem maldade que o encantava. Rowell não cansava de admirar tanta doçura e ingenuidade.

       Será? Era isso que se escondia sob o sorriso de Joan? Apavorado com o rumo que sua mente tomava, e sobre a desconfiança que nascia em si diante de suas atitudes estranhas, Rowell abafou o apelo da mente com um beijo naquela boca suculenta.

       Correspondido com a candura de uma mulher apaixonada. Verdadeiramente apaixonada. Ele sabia diferenciar um beijo de amor, de um beijo de obrigação ou reles paixão.

       Nos primeiros anos de casamento com Sophie, ele não notou o que acontecia sob seu teto. Tão pouco se importava. Ela era bonita, nada especial, mas era bonita e elegante. Sabia se portar e comandar o trato com os empregados. Entendia-se com Matilde, o que sempre foi muito importante para ele. Uma mulher que não enfrentasse sua mãe e a questionasse. A única alegria da vida de Matilde era comandar o castelo, e muito jovem, Rowell não sabia como lidar com seus abusos sem causar-lhe sofrimento. Então, ele ficou imensamente aliviado de encontrar uma boa esposa, que além de agradável ao leito, também pudesse ser uma boa companhia para sua mãe.

       Nas primeiras semanas, ele sabia que Sophie viera com um filho em seu ventre. Não era tolo. Notava os sintomas. Ela estava grávida, e com medo de contar. Foi quando a confrontou e ela lhe contou que havia feito de tudo para livrar-se do bastardo, sem sucesso.

       Rowell não se importava com a paternidade da criança. Preocupava a descendência de seu sangue e do ducado. Mesmo assim, ele tentou entender que Sophie havia sido trazida para aquele casamento contra a vontade, tal como ele, e assim como ele tinha um passado, a jovem também tinha lembranças e responsabilidades passadas.

       Infelizmente, ou felizmente, ele ainda não sabia, a gravidez não vingara. Muitos meses de sofrimento, ela se culpava por ter atentado contra aquela criança e arrependida lhe pedira um filho. Para lhe suprir a dor da perda.

       O que ele faria? Consentira-lhe esse pedido, mesmo que ambos fosse bastante distantes como um casal, empenhando-se o máximo possível. E no inverno seguinte, Sophie deu a luz a Alice.

       Depois disso o casamento entrou nos eixos, e ele se orgulhava e viver em paz, e de ter um casamento confortável. Sem atropelos. Sem traições. Ao menos nos primeiros anos, fora assim.

       Quando nasceu Antônio, hoje chamado carinhosamente de Tommy, realizada, Sophie anunciara que cumprira sua missão de dar-lhe um herdeiro homem para ostentar seu título. E que não desejava deitar-se com ele outra vez, a menos claro, que fosse necessário outro herdeiro, no caso de algo acontecer com Tommy e essa criança não viesse a tonar-se um homem feito que pudesse receber o título de duque.

       Apesar do significado disso, Rowell não podia dizer que se ressentira. Era tudo muito natural entre eles. Sem amor, era fácil lidar com esse tipo de acontecimento sem absorver como uma rejeição. Ele viveu bem pelos quatro anos seguintes, vez ou outra, usando dos serviços de jovens da taverna. Seu foco era cuidar do ducado Mac William, o orgulho de seu pai, a qual deveria manter em segurança.

       Seu filho Tommy crescia saudável e próspero. Alice era a graça do castelo encantando a todos com seus modos e sua impertinência. E o convívio com Sophie era agradável. Ela era uma boa companhia.

       Mas algo mudou em uma primavera, quando ela lhe pedira outro filho. Queria ser mãe outra vez.

       Ele não entendeu essa necessidade, mas vindo de uma mulher dedicada à família, aos filhos e a vida religiosa, supunha ser um apelo da maternidade gritando em seu coração. Foi quando ela engravidou a terceira vez.

       Longos meses de sofrimento físico e então, um parto de um dia inteiro de gritos e choro. Sophie padeceu por horas e horas, em vão, pois tão logo o filho abriu os olhos, os dela se fecharam para sempre.

       -O que foi? - perguntou Joan quando o beijo acabou e notou o modo intenso como Rowell a olhava.

       -Eu pensava em minha esposa.  - ele disse com sinceridade - Em como tudo foi superficial entre nós. Desde o começo, nunca houve amor. Pensava em tudo que perdi ao lado dela. - admitiu.

      -E o que ela perdeu? - perguntou suave - amar você, Rowell é muito bom. Ela perdeu uma chance que não volta mais.

       -Apesar dos pesares, sinto que ela tenha partido tão cedo, afinal, era a mãe dos meus filhos e eles ainda são tão pequenos - disse deitando ao seu lado e a aconchegando ao seu peito.

       -Eu não sei... - Joan baixou os olhos, com medo de assusta-lo - Se você está pronto para saber disso... Mas não tem a mínima possibilidade de Marmom ser filho de Sophie. 

       -Como pode ter tanta certeza? - ele quis saber, apertando a carne de seu ombro com os dedos, sem notar, pois o assunto o deixava tenso.

       -Porque eu conheço a mãe de Marmom.  - admitiu.

       -Joan... - ele imediatamente tentou sentar, mas ela o conteve.

       -Eu não posso contar quem é ou onde acha-la. Ainda não, basta saber que é alguém valoroso. E que eu não sei onde está a cria que Sophie pariu. Ou se ela existiu de verdade. Ou se está viva ou morta. E tão pouco, posso lhe contar mais do que isso.

       -Simples assim? Eu ouço isso e fico quieto, esperando você me contar a verdade? - ele não poderia fazer isso, ia além das suas forças.

       -Rowell - ela disse com firmeza, estranhando seu jeito, sentando na cama, e afastando-se dele - Não haja como se eu devesse algo a você. Eu cheguei aqui depois de tudo ter acontecido! Não tenho por obrigação contar-lhe nada!  O que sei, faz parte da minha vida, e do meu passado, não do seu! Se por acaso, e por capricho do destino, nossas estórias se enredaram e entrelaçaram e me fizeram conhecer uma informação que lhe interessa... Bem, fique feliz. Provavelmente você nunca saberia a verdade!

       -Você fala como se isso realmente fosse real. Como se fizesse sentido agir desse modo!  - ele exasperou-se.

       -E faz sentido! - Joan saiu da cama e encarou-o com o mesmo sentimento - Faz sentido porque eu faço parte de um mundo e você de outro! Creia, se uma única revelação feita por mim o deixou assim, será o inferno quando souber tudo!

       -E quando isso vai acontecer?  - ele jogou de volta, tão irritado quanto ela.

       -Quer saber? Eu vou para o quarto das servas. É melhor assim - Joan resolveu desistir daquela conversa - Eu garanto que corro risco algum neste castelo. Não mais do que já passei. Tenha uma boa noite, Rowell!

       Pelo contrário, ela esperava que ele se arrependesse e não a deixasse sair. Isso não aconteceu. Ainda na porta, ela virou e olhou para ele com pesar:

       -Eu não posso provar nada do que disser, Rowell. Nada! E eu sei que a sua gente não lida bem com certas coisas, ainda mais sem provas - disse incerta. - Eu não tinha obrigação nenhuma de lhe falar sobre Marmom. Eu estou contando o que posso. Eu lhe juro, estou contando o que posso, porque não quero mentir ou omitir nada de você!

       -E voltamos ao mesmo impasse - ele disse estendendo uma das mãos em sua direção - É melhor dormimos agora, amanhã será um longo dia. Eu não vou sossegar enquanto não desvendar o assassinato que aconteceu dentro das portas do meu castelo! É uma questão de honra.

       Joan aceitou o convite e voltou para junto dele. Antes de deitar desabotoo o vestido e deixou-o no chão, notando o olhar do duque sobre o seu corpo nu. Deitou-se sob as cobertas e ele despiu as roupas fazendo o mesmo, sem esconder o sorriso de malícia. Era fácil esquecer-se das responsabilidades e dúvidas na presença de Joan.

       A pior parte de tudo era que agora, assassina ou não, Joan não poderia acusar Zoé. Precisava da ajuda da Guardiã. Seus crimes poderiam ser julgados depois. Era egoísmo seu, pois o crime era contra uma humana, mas visto que pensava na necessidade de sobrevivência de um povo, ela pensava ser melhor conservar Zoé livre de prisões humanas.

       Joan abraçou o seu humano, e ergueu o rosto para olhar em seus olhos e saber se estava tudo bem entre eles ou não. Havia angustia e conflito no olhar de Rowell, e não poderia ser de outro modo. Aflita abraçou-se a ele como isso pudesse resolver todos os seus problemas e a exaustão emocional e física a pegou de surpresa.

       Rowell notou que sua fadinha bonita e doce havia adormecido. A serva Molly falava pelos cantos que Joan parecia um anjo. Ele pensava o contrário, que ela parecia uma pequena e suave fada do campo. Mas o assunto fadas era perigoso.

       Seres místicos eram lendas e como tal deveriam ser tratadas. Sophie contava estórias de fadas nos campos e florestas, nos montes, e Alice gostava dessas historinhas para dormir.

       Sorrindo, ele beijou sobre os cabelos ruivos e perfumados e pensou em sua sorte e em seu azar.

       Amar não o fazia um completo estúpido. Confiar em Joan não eliminava o perigo a qual ela vinha se expondo. A partir da manhã seguinte, ele a seguiria. Iria descobrir sozinho o que Joan lhe escondia.

 

       Nas primeiras horas da manhã, Rowell despertou, e descobriu que Joan acordava ainda mais cedo do que ele. Ela estava na varanda, onde pouco tempo atrás haviam se encontrado e decidido por passar uma inesquecível noite um nos braços do outro. Ele a encontrou e abraçou por trás, surpreendo-a.

       -Acordou cedo - ele disse suave, cheirando seu cangote.

       -Eu sempre acordo cedo. De onde vim, acordávamos de madrugada para começar os trabalhos do dia. Eu raramente os fazia. Minhas amigas sempre cumpriam minhas tarefas, para poupar minha saúde. Mesmo assim, eu as acompanhava, e isso aconteceu desde que me lembro como... - quase disse 'fada' -... Como criatura viva. - mudou a frase e o sentido continuou o memo.

       -Em meu forte você pode dormir até a hora que desejar. Não precisa madrugar. Cabe aos homens o trabalho pesado. - ele disse galante.

       Joan virou em seus braços e olhou-o com ironia velada.

       -E para as mulheres pobres e desvalidas cabe o trabalho braçal também? Amante do duque não precisa fazer nada? Isso é justo para você, duque Mac William?

       -Desde que não fui eu quem criou as regras do mundo, sim, é justo - ele gostava desses entraves verbais. Pensavam muito diferentes e ainda assim se complementavam com argumentos que faziam lógica na mente de ambos.

       -Pois eu acho que uma boa organização poderia colocar o trabalho do castelo em dia sem exigir tanto sofrimento das criadas. Mas Matilde - ela fez uma careta de desgosto - não sabe o que quer dizer a palavra 'organização'.

       -Minha mãe, Joan. Um pouco de tato para lidar com ela, está bem? - pediu e ela apenas ergueu uma sobrancelha de dúvida.

       -Hum, eu vou pensar nisso - prometeu e tentou não sorrir diante da seriedade no rosto de Rowell. - Eu preciso ir. Quero ver Marmom antes de... - calou-se novamente a tempo de conter o que diria -... Fazer o que tenho que fazer.

       -Certo. Mais segredos. - ele acusou de forma mansa.

       -Um segredo a mais, um a menos... Que diferença faz? Depois de tanto esconder a verdade, tudo parece real, não é mesmo? - ela ironizou e Rowell salpicou um beijo na ponta de seu nariz, arrancando-lhe um sorriso involuntário, enquanto afastava o rosto, por conta das cócegas.

       -Depende. Seu amor é mentira? - ele perguntou, tentando não alimentar magoas entre eles.

       -De modo algum - garantiu.

       -Então, temos uma verdade a qual nos apegar, visto que o meu sentimento também é sincero. - ele sorria ao dizer isso.

       -Eu vou agora. Provavelmente nos veremos apenas a noite... E eu estou previamente avisando que talvez saia do castelo sem que você note ou qualquer outro e que talvez, eu demore alguns dias para voltar. Meia verdade também conta como sinceridade?

       -Não. Conta como meia mentira. - ele fez questão de salientar.

       -Melhor que uma mentira inteira eu sei que é. - fazer graça era seu modo de aliviar o momento. Rowell pretendia beija-la e por isso, Joan escapou passando por baixo do braço dele e correu para a porta, enquanto ria.

       Porque não? Ser séria o tempo todo era cansativo. O mundo estava desmoronando a sua volta, mas ela gostava daquele mundo e não abriria mão dele assim tal facilmente!

       Sozinha, naqueles longos corredores Joan cruzou com Molly e Liara em seu trajeto e perguntou-lhes sobre a Condessa.

       Aparentemente a condessa estava ocupada com ordens no castelo, e principalmente mudanças na dinâmica do trabalho. Fervendo só de pensar naquela Guardiã desalmada ousando tentar roubar seu lugar dentro do castelo, Joan correu para o lugar onde ela deveria estar.

       Liara lhe dissera que a última vez que a viu estava com Matilde perto da torre principal. Esperava sinceramente que Zoé não houvesse atirado Matilde da torre, porque sinceramente não poderia adverti-la, pois seria bem merecido. E a recíproca era totalmente verdadeira!

       Se Zoé e Matilde fossem da mesma raça, poderiam ser mãe e filha. Diante desse pensamento, Joan quase relaxou a tensão do que faria.

       Como indicado, após percorrer boa parte do castelo, finamente encontrou Zoé observando a floresta em torno do forte com saudosismo.

       -Eu também sinto falta - ela disse para surpreender Zoé, e conseguiu.

       A Guardiã não olhou para trás, mas inclinou o rosto para o lado deixando claro que a ouvira.

       -Sinto fala de tudo, do ar puro, das árvores, da natureza ao alcance das mãos. Não é estranho? Eu nunca fui livre e então... Sinto falta disso?

       -Você é estranha. - Zoé completou, finalmente olhando para ela - porque está surpresa com isso?

       Ignorando a ofensa, Joan aproximou-se.

       -Sei que está com raiva de mim por causa de Rowell. Mas é injusto. Eu cheguei primeiro, nos apaixonamos. É justo que ele não a queira e sim a mim. Ele é o meu escolhido. Não pode se intrometer nisso.

       -Meu problema com você não se atenta aos humanos - Zoé aproximou-se apenas um pouco, ambas frente a frente - Porque veio até mim? Julguei que se manteria afastada o maior tempo possível.

       -É o que eu queria fazer - admitiu - Mas eu... Tenho algo a contar. Algo que é do seu interesse tanto quanto é do meu. - ela explicou - Será que pode por um minuto esquecer quem é e quem eu sou e me ouvir?

       -E para você, Joan, quem eu sou? - Zoé quis saber.

       Tomando aquilo como o começo de uma profunda conversa sobre mal entendidos do passado, Joan baixou os olhos, triste.

       -Eu sempre tive medo de você. Sempre tão forte. Determinada, você sempre me olhou como se eu fosse um inseto que a incomodava profundamente. Quando a via de longe, ou de perto, não importava, sempre sentia seus olhos sobre mim. Eu sei que me detesta há muito tempo e não sei a causa.

       -Eu esperava que você dissesse a verdade - Zoé a pressionou.

       -A verdade? Você é uma guardiã e deveria zelar por aqueles sob sua proteção! Deveria me proteger e não caçar! Deveria ouvir o que eu tenho a dizer! - exasperou-se e jogou isso na cara de Zoé - Eu merecia um pouco de compaixão! Somos da mesma raça! Somos fêmeas, e estamos vivendo sob as mesas regras opressoras!

       -Isso parece conversa daquela sua amiga Driana. Não é ela que gosta de incitar politicagem? - era uma referência ao dia que Driana a enfrentara para defender Joan, invocando as leis do reino de Isac.

       -Eu sempre acreditei que os guardiões eram justos e lutavam por nós, os desprotegidos de qualquer natureza. Tubã sempre idolatrou o irmão, o primeiro Guardião Egan. Por causa das histórias que ele contava eu cresci acreditando que sempre poderia confiar na proteção de uma armadura. Porque seria diferente com você? Me diga, Zoé, porque precisamos ser inimigas?

       O modo como Zoé a olhava quase a fazia crer que acompanhava e compendia o que dizia. Que essa pergunta mexia com seus sentimentos. Engolindo em seco, Joan tomou coragem para aproximar-se e perguntar:

       -Você quer isso? Lutar contra uma fada da clausura? Uma das infortunadas do Ministério do Rei? Justamente uma das que não possuem armas para lutar contra você? Eu estou diante de você, Zoé, sem usar meu dom, sem usar minhas asas, eu estou diante de você com um pedido a fazer: que me ouça. Uma única vez. Me ouça e não me julgue pelo que ouviu da boca de Santha, a louca.

       -E que tipo de pedido uma criatura como você pode ter a me fazer? - ela jogou e volta.

       Em outro momento, menos desesperada por ajuda, Joan poderia ter notado seu excesso de suavidade, ou a parca trégua imposta por Zoé, que vindo da Guardiã era algo inacreditável e inaceitável. Nada de agressão ou ameaça. Apenas parcimônia e audição afiada.

       Coberta de cautela. Mas Joan não notou nada disso. Tola, continuou falando:

       -Que me ouça. Esqueça por um minuto as ordens que recebeu dos Conselheiros e que me ouça. Eu direi a verdade e somente a verdade.

       -E que garantias me dá de sua palavra? - Zoé perguntou com um meio sorriso que Joan não entendeu como sendo irônico. Tão pouco notou que a Guardiã movia o olhar negro e intenso em uma direção além da presença de Joan.

       Logo atrás, havia alguém as espreitando, mas Joan não notou, e seguiu falando:

       -E quer garantia maior do que minha entrega? Estou sem minhas armas, Zoé. Mesmo assim, eu possuo uma arma que nem mesmo você pode lutar. Eu poderia convencer Rowell a manda-la embora, ou então, a me levar para longe daqui. Não seria difícil, Matilde está sempre histérica sobre me expulsar do castelo - não resistiu a uma careta ao lembrar-se da bruxa má que era também sua futura sogra - Mas eu não estou fazendo nada disso. Estou aqui, de pé diante de você, pedindo a chance de contar toda a verdade que você desconhece.

       Zoé mediu-a de alto a baixo e disse:

       -Está bem, você tem seu ponto. Fale, vou ouvir o que tem a dizer, Joan.

       O uso de seu nome a surpreendeu. Zoé sempre a tratava por insultos bastante feios. No entanto, ter uma brecha para conversar com Zoé era algo tão inesperado, pois previa uma luta incansável para conseguir falar com ela, que não concebia a possibilidade de desperdiça-la.

       Respirando fundo, Joan pensou por onde começaria.

       -Eu não sou como você pensa. Eu não sou uma usurpadora. Tenho o direito de estar aqui, eu amo Rowell, não me pergunte como isso pode acontecer, eu não sei. Mas não foi intencional. Não foi.

       -E como isso aconteceu? Como alguém como você simplesmente surge do nada e se envolve com humanos? - Zoé era propriamente evasiva, mas Joan não notou.

       -Você sabe da minha história, de como sou perseguida e caçada. Não há nada sobre mim que não saiba Zoé. - alegou.

       -Sim, mas eu sei a versão que me contaram. Eu quero saber sua versão dos fatos - ela piscou melancolicamente, chateada e entediada com aquela conversa toda.

       -Eu não ajudei a assassinar o rei. Eu poderia, mas não fiz isso. Todas nós poderíamos ter feito. É claro que sim. Com o meu dom poderíamos e conseguiríamos passar pela segurança e chegar aos aposentos do rei. Alma poderia convencer Santha a ajudar, e Eleonora poderia sim ter se deitado com Rei Isac, e não há sombra de dúvidas que com dom ou sem dom, Driana conseguiria arquitetar esse plano infalível. Mas seja sincera, você notou algum plano de fuga? Seria um tanto estúpido da parte, assassinas indiferentes e sanguinárias como nós, não arquitetar rotas de fuga?

       Era uma pergunta válida.

       -Santha enganou o rei. Ela teve uma cria antes do casamento, ainda na clausura. Ela e Lucius se livraram da cria, mas como a vida é feita de coincidências, Reina encontrou a fêmea e a levou para o Ministério do Rei - Joan contou. - Essa cria era Eleonora. Você não lembra? Da semelhança entre as duas? São praticamente idênticas.

       -Sim, isso é verdade. - ela disse séria.

       -Pois bem, não é segredo para ninguém que a idade de Eleonora data vinte anos. Nossas asas nasceriam em breve, e Lucius contou a Santha do risco que corriam. As asas de Lora seriam uma prova irrefutável de seu crime. Por isso armaram contra Eleonora. Mas veja, todos olhariam para Eleonora com maior atenção quando soubessem do crime. Ela precisava desviar a atenção. E por que não criar um crime de vingança? Fadas da clausura na eminência da prisão definitiva, voltando-se contra o bom e justo rei que as provinha mesmo tendo uma vida de infortúnio desde os seus nascimentos miseráveis? Viramos as vilas no afã de que Guardiões e Conselheiros não reparassem em Eleonora! - disparou tudo, com receio que Zoé começasse a se irritar e não quisesse mais ouvir - Eu fiquei sabendo, de fontes confiáveis, que existe uma nova rainha. Que Egan, o Primeiro Guardião salvou e resgatou Lora. Que ela é rainha agora. Sendo assim, não cabe a você questionar as leis e regras, devemos as duas retornar ao castelo. Zoé.. - deu um passo em sua direção e com uma coragem que não sabia que possuía segurou a mão de Zoé.

       A fada Guardiã não era acostumada ao toque de outro ser. Ela congelou no lugar e por dentro Joan sabia que Zoé era alguém muito solitário e triste.

       -Eu a perdoo por tudo que tem me feito, e o que me fez no passado, Zoé, e não guardarei rancor. Tenho certeza que Rainha Eleonora será justa se você confessar o que fez para a humana... A verdadeira condessa. Se me ajudar agora eu intercederei a seu favor! Por favor, precisamos voltar para o castelo e conversar com Lora!

       -É isso que tem a dizer? Que é uma fada? Uma fada de verdade? Com asas e tudo? E que eu sou... Como foi mesmo que você chamou... Guardiã?

       Com um sorriso malvado, Zoé puxou a mão e sem compreender Joan disse:

       -Sim, você é uma Guardiã, dona de uma armadura. Você é uma das protetoras do Reino de Isac, no Monte das Fadas...

       -E eu também sou uma fada? - a pergunta soou estúpida aos ouvidos de Joan.

       -Sim, uma das mais poderosas do mundo mágico... Zoé, eu não entendo? Porque você esta falando assim?

       -Você é louca, ratinha. Louca de pedra.  - ela disse bem diante de sua face, enquanto olhava além de Joan - Eu lhe disse, Rowell, ela é louca. Insana. Tomada por um espírito maligno ou algo assim! Ouça o que diz? Que é uma fada? Eu tenho ouvido essas sandices há muito tempo. Eu contei que a conheço, você não quis acreditar em mim! Sua insanidade é conhecida há muitos anos, por isso ela vivia resguardada junto a seus familiares. Bem longe daqui!

       O riso de Zoé fez Joan olhar para trás em pânico.

       Lá estava Rowell de pé encarando as duas, ao seu lado Edward seu irmão, e mais além Matilde.

       O ódio nasceu no coração de Joan como uma erva ruim. Ela olhou para a guardiã e não pode se controlar. Avançou sobre ela e derrubou-a no chão.

       -Uma armadilha! Eu não acredito que me pegou em uma armadilha! - gritou.

       -Não é assim que se pegam os ratos? Com armadilhas? - Zoé a girou e imobilizou-a no chão, o vestido de veludo bonito e elegante sungado, revelando pernas e coxas ágeis.

       O movimento de luta não passou despercebido por Rowell, que atraiu a atenção de Zoé, ao aproximar-se e tentar retira-la de sobre Joan.

       Ele conseguiu o que queria, mas tomada pela raiva de ser traída mais uma vez, e cansada de sempre apanhar quieta, Joan ergue-se e a primeira coisa que fez foi engalfinhar as duas mãos nos longos e crespos cabelos da condessa.

       Adeus penteado bonito e sofisticado. Descabelada, Zoé fez o mesmo, agarrando os longos cabelos ruivos de Joan, em uma típica briga de mulheres. Rowell tomou Joan pena cintura e a puxou para fora da briga, e por ser a mais leve a delicada, ela precisou soltar os cabelos de Zoé, mas não sem arrancar um pequeno chumaço.

       Apertou com os dedos, e berrando todos os tipos de palavrões que conhecia em sua língua de fada, foi levada para longe e largada sobre o chão. Rowell abaixou-se e tapou sua boca com pressa e algo nos olhos que a assustou.

       -Cale a boca, Joan. Pare de falar essa língua estranha! Será que não vê o que está fazendo?

       A briga e os gritos haviam atraído atenção de serviçais e agregados. Até mesmo um dos arqueiros que sempre fazia guarda por aqueles corredores abertos, próximo às tores mais altas estava vendo o que acontecia, curioso e provavelmente cheio de pressa para reassar as fofocas.

       -Ela está mentindo, Rowell! - Joan soltou o aperto, e gritou - Ela me odeia!

       -Quita, fique quieta - ele implorou - quieta, Joan. Apenas fique calada!

       Como se ela pudesse ficar calada!

       -Não adianta falar com ela, Rowell. - disse Zoé, recuperada da briga, ainda sem ar, com um brilho de satisfação puro nos olhos - Está em uma crise. Ela não sabe onde está ou quem com conversa. A pobrezinha me ataca, mas não sabe o que está fazendo. É um risco para si mesma e a todos nós.

       Rowell olhou para Zoé duvidando de suas palavras.

       -Eu a conheço a muito tempo. Nunca imaginei que a encontraria justamente aqui! Que lástima. Joan é filha de um dono de taverna, do condado de onde venho, a pobre nasceu saudável, mas com os anos... Ela tendia a fazer mal para as pessoas. Passou a ser mantida em casa, resguardada pelas três irmãs. Mas ela matou as pobrezinhas, uma tragédia que jamais será esquecida enquanto eu viver! Ela é perigosa. O que aconteceu na outra noite... Foi apenas o começo.

       -Não - ele negou - Eu não acredito em nada que diz.

       -O que eu digo? - Zoé perguntou sorrindo diabolicamente - Mas você ouviu da boca de Joan.

       Rowell não podia contestar esse argumento. Ouvira uma louca história saída da boca de Joan. Ela se machucou na noite passada e não quis lhe contar como. Poderia estar ferindo a terceiros e a si mesma. Angustiado, ele não pode manter o olhar sobre ela e Joan percebeu que ele acreditava em Zoé.

       -Não, não, não, Rowell, não acredite nela - Joan tentou abraça-lo desesperada por Rowell pensar essas coisas - eu não sou louca! Não sou!

       -Não é seguro mantê-la aqui fora, ela pode fugir. Ela faz muito isso. Joanna, esse é seu verdadeiro nome. Ela sempre foge de sua casa. É muito triste sua situação. - Zoé merecia um prêmio por mentir tão bem.

       Confuso, dividido entre o que via e ouvia, e sobre o que sentia, Rowell pegou Joan pelos braços e ajudou-a a levantar, afastou os cabelos de seu rosto e fitou seus olhos com piedade:

       -Vamos para o quarto, você precisa deitar um pouco, Joan.

       -Não - ela afastou-se, atormentada pelo fato dele não crer em suas palavras - Está achando que eu sou louca? É isso? Eu disse que não contaria sobre mim porque você pensaria exatamente isso sobre mim! Rowell, eu não estou mentindo!

       -É claro que não - interrompeu Zoé - não podemos esquecer que para ela esse mundo imaginário é real. Ela fala a verdade sobre o que vê. É uma mente perturbada e muito perigosa, Rowell. Foi ela quem matou a aldeã e trouxe sua cabeça para o quarto. Pense, querido duque, a próxima vítima pode ser um de nós, ou quem sabe, um de seus filhos.

       Era uma temática sensível para Rowell: a segurança de seus filhos.

       Honra e amor sendo colocados a prova.

       -Não - disse Joan- Não faça isso, Rowell. Eu não estou louca! - é claro que ele não poderia lidar com a dúvida total - Matilde, me ajude, diga a eles que não estou louca!

       Ela recorreu a única pessoa que poderia entendê-la.

       -Matilde, eu sou como você! Matilde, me ajude!

       O modo como Rowell a pegou nos braços e forçou-a com delicadeza a se calar, era o modo que ele encontrava de protegê-la de si mesma e proteger a sua mãe da lembrança de quando algo semelhante aconteceu a ela.

       -Boca fechada, Joan - ele disse baixinho enquanto a levava no colo para dentro do castelo e então para dentro de seu quarto, sendo seguido de perto por Zoé, algumas criadas e o arqueiro que precisava saber se haveriam ordens dadas ou não pelo duque a cerca do acontecido.

       Ficou para trás Edward, o irmão de Rowell, confuso e incerto sobre o que ouvira. Ele virou-se para Matilde, que estava petrificada ao seu lado, em choque por estar diante de uma cena acontecida consigo mesma no passado!

       -O que aconteceu aqui, afinal? - ele perguntou confuso.

       Confuso desde que acordou, e descobriu que tivera um vívido sonho na noite anterior, um em que colocara em prática o desejo de Sophie, ao raptar a fadinha Joan.

       -Aconteceu o de sempre. A jovem é louca. Você não ouviu? - Matilde disse com raiva na voz. - Não tem vergonha de estar bebendo assim tão cedo?  - ela jogou sobre ele sua frustração antes de sair apressada atrás do filho.

       Edward não a seguiu. Dividido entre a satisfação de ver a jovem fora de circulação o que facilitaria o momento de aprisiona-la para valer, e não apenas em sonhos induzidos pelo álcool. E o peso de ter que retira-la de dentro do quarto do próprio irmão para fazer isso, Edward também se colocou a andar. Atrás de outra garrafa de vinho que o fizesse pensar e ser menos culpado sobre suas decisões.

 

       Joan não quis falar na presença de Zoé. Rowell a deixou na cama, e afugentou todos os curiosos.

       -O boato vai se alastrar. - ele disse assustado - Precisamos negar com veemência qualquer comentário sobre você falar em línguas. Está me entendendo, Joan? Isso é sério.

       Ela não entendia o porquê, mas se ele parecia assim desesperado por tão pouco, ela acenou concordando. Não entendia como funcionava a religião de Rowell e o domínio que exercia sobre todos os humanos.

       Muito menos as atrocidades cometidas em seu nome. Ou os medos, crenças e punições impostas por regras expressas contra magia e bruxaria. Infelizmente Joan não entendia o que queria dizer isso. O que era falar em línguas para alguém da religião de Rowell.

       -Ela não entende o que diz, Rowell. A pobrezinha não compreende nada. É louca - Zoé fez questão de lembrar.

       -Pobrezinha? Você tem chamado Joan de 'ratinha' desde que chegou. Não se faça de bozinha agora - ele disse furioso, afastando das duas, fechando a porta do quarto com a chave e encarando-as. - Eu quero ouvir a versão das duas.

       -Ora, Rowell... - Zoé chegou a tentar falar.

       -Agora - ele mandou, voz pesada e exigente.- Joan, quero ouvi-la primeiro. Sem interrupções. - era um aviso bem direto para Zoé. - Sente-se - ele mandou, apontando para um poltrona do outro lado do quarto.

       "Isso aí, Zoé, eu cheguei primeiro", pensou, Joan, vingativa. Sentou-se na beirada da cama, e olhou de um para o outro:

       -Eu não menti em nada que eu disse. - foi categórica - A floresta que cerca seu ducado... Você a vê como um lugar comum. Para o meu povo o nome é Monte das Fadas. Divide-se em pequenos vilarejos e florestas distintas. Eu nasci na Vila das Fadas, nos arredores do Castelo. Você não pode ver o castelo, porque é humano, mas na companhia de um ser mágico você poderia vê-lo. É por isso que eu dizia não querer falar disso sem poder provar!  - ela disse exasperada, levantando da cama e andando em torno, remoendo o que dizer - Eu não sei quem são meus pais. Eu fui deixada no orfanato, chamado de Ministério do Rei, quando era um bebê. Cresci sendo cuidada pelas carcereiras, que me perdoe, mas são muito parecidas em comportamento com Matilde. - não era hora de ofender a mãe do duque, mas ela queria ser totalmente sincera - Eu cresci ao lado de amigos muito queridos. Driana, Eleonora, Alma. E não posso esquecer-me do elfo Tubã. Há poucos meses atrás Eleonora foi acusada de assassinar nosso rei. Fomos acusados de cumplicidade. Por isso fugimos. Cada uma de nós se escondeu, e somos perseguidas por Guardiões do Reino de Isac. Para meu azar e desgraça, sou perseguida pela única Guardiã fêmea que existe e que dotada de um dom que neutraliza o meu. - desesperada, pois estava na face de Rowell que ele não acreditava, Joan lembrou-se de algo e puxou o vestido para baixo, revelando as costas - Olhe, Rowell, na outra noite você disse que havia marcas nas minhas costas. E agora? Você ainda vê as cicatrizes?

       Rowell aproximou-se e deslizou uma das mãos pela pele lisa e sem marcas.

       -Não, as cicatrizes sumiram.

       -É claro que sim! Não eram cicatrizes! Meu dom pode esconder e camuflar. E minhas asas se escondem dentro da minha pele. Por causa de Zoé não consigo retira-las e usa-las! Mas com o tempo, minha natureza fica impaciente e tenta se libertar. E as marcas que viu são a prova disso! Ontem à noite eu saí do castelo e usei minhas asas! Vai levar alguns dias para que elas voltem a me machucar e tentarem rasgar a pele a força.

       -Rowell, se o que ela diz é verdade, porque voltaria para o castelo e para essa situação? Afinal, eu sou seu algoz não é? - Zoé debochou.

       -Acontece, que enquanto você mede forças comigo e tenta se vingar seja lá pelo que, o mundo está acabando sob nossos pés!  -Joan se esqueceu de Rowell e voltou-se para Zoé furiosa - Eu fui pega ontem à noite! Levada até um grupo de fêmeas de lagarto! Alguém queria minhas asas, e esse alguém, está tramando tomar o poder e destruir o nosso mundo! Por isso eu voltei! Para avisa-la e pedir ajuda, porque apesar de ser uma escrota, você ainda é uma Guardiã! - apontou para Zoé com fúria.

       -Veja, é uma pena, mas são delírios de uma mente perdida em loucura - Zoé sorriu - Eu posso contar o que sei sobre essa mulher, Rowell? Antes que ela faça sua mente sã se perder como a dela?

       Era uma clara insinuação sobre o que acontecia com um Duque que vai contra as leis de seu Rei. Rowell engoliu em seco, tenso, e acenou com a cabeça:

       -Essa mulher nasceu assim. Não aparentava ser louca até alguns meses atrás, foi quando atacou suas três irmãs e as matou com uma crueldade impressionante. Ela alegava que as três eram guardiãs de um reino de fadas. A família achou que ela merecia a chance de recuperar-se e a manteve presa em casa, mas ela fugiu, e como pode ver, conseguiu vir longe mesmo sozinha. Quando ela fala que eu sou uma Guardiã, em sua mente, isso faz sentido, todos que a desagradam são os vilões tentando caça-la. Vê? Ela repete o mesmo padrão. É questão de tempo para que mais tragédias se abatam sobre seu teto, Duque Mac William. É por isso que eu não gosto dela, não sou uma mulher doce. Para mim, os loucos devem ser abatidos antes que cometam um mal maior aos sãos.

       -Oh, é claro que sim, sua mentirosa! - Joan alegou, olhos vermelhos de ódio - Quando isso tudo acabar você vai se sentir tão imbecil! Tão estúpida! Lora é rainha agora, e você vai pagar pelos seus crimes contra mim!

       -Engraçado, eu pensei que o 'nosso' mundo estivesse as portas de ser destruído - Zoé usou suas palavras contra ela.

       -Tenho pena de você, Zoé, está tão errada. - Joan abrandou a raiva e descobriu que não adiantava de nada bater contra ela - E será tão arrependida quando descobrir que eu estou falando a verdade!

       O modo sincero como Joan disse isso quase desconcertou Zoé. E foi essa expressão de dúvida de Zoé que fez Rowell duvidar da condessa.

       -Então é isso? O nome verdadeiro de Joan é Joanabeth? - ele jogou verde, usando um nome errado para confundi-la e pescar uma mentira, pois Zoé usara o nome Joanna, há poucos minutos atrás. Era uma sutil trapaça para descobrir se a condessa mentia ou não. Raramente um mentiroso é atento a os mínimos detalhes. Joan repetia sempre o mesmo padrão, sempre com os mesmos requintes em seus mínimos detalhes.

       -Sim - Zoé disse apressada - Acho que ela prefere um nome falso para se esconder do que realmente é.

       -Certo - ele disse sério - Eu quero ficar a sós com Joan. 

       -Rowell não é prudente que faça isso. - Zoé negou.

       -Saia - ele mandou e era o único aviso que viria dele.

       Frustrada, Zoé obedeceu por falta de alternativa melhor.

       Sozinhos, Joan esperou que o duque dissesse algo.

       -Não é seguro ficar nesse quarto. Enquanto não descubro qual das duas mente mais, e eu sei que as duas mentem - foi taxativo - vou coloca-la no quarto da torre.

       -Não, Rowell, eu quero ficar com você... - ela apelou para o amor entre ambos e tentou abraça-lo, mas Rowell segurou seus pulsos e afastou-a.

       -Se você estiver mentindo é um lugar seguro para que eu saiba que não fugirá. E se estiver falando a verdade é seguro e garantido que na torre ninguém poderá lhe fazer mal. - ele lhe deu uma parca esperança sobre ter dúvidas ainda.

       Joan acenou concordando.

       -Enviarei uma carta ao Condado de onde Zoé vem e tentarei encontrar provas do que ela diz - ele alegou soltando-a

       Joan sorriu triste e disse:

       -Será perca de tempo. Ela vai destruir suas expectativas e impedir que a carta chegue ao seu destino. Quer saber quem fala a verdade? Olhe bem para mim e olhe bem para ela. Zoé tem asas. Ela não pode escondê-las como eu posso. Olhe por baixo de suas roupas e verá as asas.

       -Joan - ele tocou seu rosto, e segurou-o com ambas as mãos, olhando em seus olhos - A condessa ofereceu seu leito, e ela sabia que ficaria nua diante do meu olhar.

       -Hum, ela acharia um modo de não retirar a parte de cima das roupas. Fadas usam muitos estratagemas para manter suas asas incólumes.  - de repente, ela lembrou-se de algo e seus olhos brilharam - Você precisa olhar as costas de Zoé de surpresa, sem que ela note sua intenção.

       -Farei isso, eu prometo, mas agora, preciso deixa-la segura, Joan. Segura de quem a estiver importunando, mesmo que seja sua mente a causa dessa perturbação - ele beijou gentilmente sua testa e a aninhou contra seu peito, apenado.

       Mortificada, ela agarrou-se em sua roupa e a ele, e sufocou o choro de indignação. Havia caído na armadilha de Zoé, era fato.

       Rowell tinha todas às razões do mundo para duvidar de suas palavras! A Guardiã estava jogando para ganhar.

       Mas ela se esquecera de um pequeno detalhe: Joan estava decidida a vencer.

       Minutos mais tarde foi deixada sozinha no quarto da mais alta das torres. Rowell precisava cuidar do ducado, e também investigar a morte ocorrida ali dentro. E agora, mais do que nunca, acalmar seu povo sobre a existência de uma mulher tomada pela loucura dentro das portas do castelo.

       Guardando a fúria dentro de si, para usar contra Zoé mais tarde, ela andou até a janela a descobriu que ao afastar a cortina, haviam grades protegendo a saída. Observou o céu azul e seu coração apertou dolorosamente. Ouviu a chave ser girada na fechadura e ficou imóvel enquanto via Matilde entrar.

       -Este foi meu quarto por muitos meses - ela disse assim que trancou a porta por dentro e encarou-a - É muita coincidência duas mulheres enlouquecidas contando a mesma história em um mesmo castelo, com diferença de poucas décadas. Isso me veio a mente no instante que ouvi a ladainha da condessa.

       -Como é que pode? - Joan disse quase sorrindo - Um pouco de lucidez, afinal. Você não estava louca no passado. Eu sou uma fada e posso provar. Primeiro, vou lhe provar o meu dom. Quando entrei em seu quarto e a apavorei, foi usando o meu dom de fada. Todo o tempo eu estava lá dentro do seu quarto, rindo de você.

       Sua confissão fez Matilde indignar-se.

       -E nesse momento se você for ao quarto do duque e revirar o chão, encontrará um lenço invisível, onde dentro escondi suas cartas, felizmente não camuflei as cartas apenas o lenço. Precisará usar o tato e não os seus olhos. Se puder acreditar em um lenço invisível, poderá crer em uma fada. - foi direta.

       -E se eu acreditar em você? O que vai mudar? - Matilde desafiou-a.

       -Zoé não presta e ela esta ao lado do seu filho e seus netos. - era um argumento e Joan aproximou-se e ficou bem pertinho de Matilde - Admita, somos iguais. Eu posso imaginar a felicidade que seria provar a todos que fadas existem e que você não estava louca. Todos que riram de você, que duvidaram de você... Todos que ainda a olham com piedade. Eu estou errada?

       Nenhuma resposta.Matilde virou as costas e saiu.

       Passada a coragem, Joan sentou na cama e enterrou o rosto nas mãos lutando contra o choro de medo e indignação.

       Presa outra vez.  Em sua existência insignificante isso não era novidade, ou era?

         

       Joan aguardou que Rowell voltasse ainda naquele dia. Tola ilusão. Ele não apareceu.  Quatro dias mais tarde, ela estava começando a se convencer que não estava sendo cuidada e sim aprisionada. Ele não aparecia, nem mesmo para dizer-lhe que não acreditava nela.

       Sozinha naquele quarto, a um passo de enlouquecer mesmo, Joan fitava o céu, o pouco que conseguia ver pela pequena janela coberta por grades.

       Suas costas doíam, e ela sabia que eram suas asas tentando sair. Naquela manhã em especial, estava melancólica, tomada pela saudade de suas amigas, e, sobretudo de uma nova saudade, que apertava seu coração perigosamente. Saudade de Rowell, de Marmom, de Tommy e de Alice.

       Saudade de Molly, Liara, do cozinheiro Hector e seu coelho de estimação. Saudade inapropriada, mas típica de quem se apegou e se apaixonou por uma nova vida. O que seria dela longe daqueles humanos?

       Inconformada, ela passou uma das mãos pelos cabelos e encostou a cabeça contra as grades, pensando em Helana, a fêmea de lagarto. A essa altura ela sabia do seu infortúnio. Tinha certeza disso e deveria estar impaciente por ajuda.

       Matilde não havia voltado para dizer se encontrou ou não o lenço com suas cartas, vindo de Matilde era bem capaz de ter encontrado e optado por deixa-la jogada aos lobos. E porque não? As duas viviam em pé de guerra. Matilde via-se as voltas com duas inimigas: Joan e Zoé. Uma livrou-se da outra. Agora era questão de tempo para Matilde livrar-se de Zoé.

       Amargurada e angustiada, ela ficou quieta, cantarolando sem palavras apenas som uma cantiga antiga que Eleonora sempre cantava no quarto onde viviam no Ministério do Rei. Isso ajudava a acalma-la, reconfortar em meio a tantas dúvidas e aflições.


       De olhos fechados ela ouviu a chave virar na fechadura e imaginou que fosse Molly trazendo seu almoço. A pobrezinha sempre que vinha lhe trazer as refeições era rápida e apavorada, com medo de Joan. O que era amizade e idolatria, rapidamente virou medo e coação.  E isso era tão triste... Ela secou uma lágrima triste e olhou para suas visitas.

       Nossa, quanta alegria, ela pensou revoltada. Rowell, o seu duque Mac William, finalmente viera vê-la, e junto dele, ao seu lado, como uma parceira e amiga deve ser, estava a guardiã Zoé.

       Doeu em sua vaidade ver a fada tão bonita e bem cuidada, enquanto ela vagava por aquela torre vestindo apenas a longa camisola, despenteada e descuidada. Baixou os olhos, envergonhada, e não se dignou a falar com nenhum dos dois.

       -Ela não deve lembrar quem somos - disse Zoé - É algo típico da doença...

       -Que cínica. Eu sei quem são, só não quero olhar para os dois - ela disse séria.

       Rowell esperava por isso. Dias sem procura-la. Um olhar na direção de Zoé e ele conteve o que queria verdadeiramente dizer:

       -Houve complicações por conta do que aconteceu. Tive que me afastar para abafar os boatos sobre o duque Mac William ter escolhido uma mulher louca como esposa.   - ele foi bastante superficial em sua explicação.

       Joan olhou bem para ele.  Barba por fazer, expressão cansada. Lembrava muito o Rowell que ela conheceu acamado e abatido. Ele estava abalado com o que aconteceu. Sofrendo tanto quanto ela.

       -E agora? Como estão as cosias? - perguntou calma, não querendo brigar.

       -As pessoas estão esquecendo aos poucos. Eu convenci Liara de que você estava bêbada na ocasião. Que bebeu além da conta. Me desculpe por isso, mas a única forma de combater um boato é alimentando outro.  - ele desculpou-se esperando uma brecha para aproximar-se.

       Mas Joan estava distante dele, emocionalmente fechada para sua emoção. E não podia culpa-la por isso!

       Ela não se aborreceu com isso. Eram palavras que faziam sentido aos ouvidos de Joan.

       Não importava as desculpas usadas. Estava banida da vida do duque. Ela entendia o significado de grades em suas janelas. De pé, diante da janela coberta por grades, Joan observou mais uma vez o céu azul coberto por nuvens brancas. Encostou a face na grade outra vez e fechou os olhos, enquanto ignorava as palavras que ouvia.

       -Acha mesmo que ela está louca? Você não acha que pode estar confundindo Joan com outra pessoa?  – Rowell perguntou a Zoé, e Joan imaginava que isso era alguma espécie de confronto entre ambas.

       -Você não ouviu quando ela me falou sobre fadas e poderes mágicos? – perguntou à condessa belamente vestida ao seu lado.  – pobrezinha, perdeu o juízo. Isso acontece muito quando uma mulher passa por tudo que ela passou. Uma vida de privações, pobreza, abusos. Muitos irmãos, pouca individualidade, ouvi boatos que ela sempre foi adoentada. É uma vida que propicia o surgimento de doenças.

       Joan não suportou mais. Olhou para Zoé, a guardiã que a caçava. As duas mantiveram o olhar desafiador. Joan baixou os olhos, não suportava esse tipo de tratamento. Arrastou-se para a cama, e deitou. Vestia apenas uma camisola e um penhoar. Os cabelos estavam desgrenhados, ela não pensava muito em vaidade depois de ter sido presa naquela torre.

       -Eu não consigo acreditar que Joan... – Rowell conteve as palavras e aproximou-se da cama – Algumas vezes é um mal passageiro. Ela pode estar confusa.

       Afinal, isso aconteceu com sua própria mãe no passado e ela se recuperou.

       Zoé correu os olhos pelo humano, com recalque e ciúme na face, mas ele não notou. Muito próximo, sentou ao lado dela na cama e acariciou os cabelos ruivos e longos de Joan enquanto dizia:

       -Eu gostaria de ter Joan na mesa de jantar essa noite. O ar da noite há de fazer bem para sua saúde.

       Zoé não queria concordar.

       -Acha prudente expor seus filhos a uma aldeã insana? Não seria mais apropriado manda-la de volta para a vila? Para que seja cuidada por seus familiares?

       Rowell olhou para Zoé com dúvida no rosto. Sim, era prudente e apropriado.

       -Joan cuidou de mim. É minha vez de cuidar dela. – ele disse e se afastou.

       Joan fechou os olhos com raiva, mas não se intrometeu na conversa. Quando ouviu Zoé tentar convencê-lo mais uma vez a desistir do jantar, sentou na cama, e segurou a mão de Rowell, revertendo o jogo de Zoé a seu favor:

       -Fica mais um pouco comigo? Eu tenho medo de Zoé – ser louca lhe conferia uma liberdade arrebatadora contra Zoé, e a guardiã descobriria isso do pior modo. – Ela é uma fada, tem asas e o dom de ver tudo que escondo dela. Eu tenho asas, Rowell. Mas não posso mostra-las na presença de Zoé, pois o dom dela me impede de revelar minhas asas. É culpa do meu dom que as esconde. Mas um dia... Eu vou mostrar a verdade. Fique mais um pouco comigo. Por favor. Eu tenho medo de Zoé. Ela vai me machucar se me deixar sozinha com ela.

       Louca ou não, Joan ainda detinha toda sua afeição.

       -Saia – Rowell disse para Zoé, sem lhe dignar um único olhar – e feche a porta.

       -Não faça isso. Não é seguro expor-se a uma situação dessas, Rowell. – Zoé disse furiosa.

       -Eu mandei sair – ele insistiu, segurando a mão de Joan e sorrindo para ela, com piedade aliada a outros sentimentos.

       Não restou outra alternativa que não fosse sair. Zoé fechou a porta atrás de si e lutou contra o susto ao descobrir que Edward a esperava no corredor, em frente à porta.

       Com um olhar de aviso, Zoé afastou-se. Edward era um problema, sempre rondando pelos cantos. Eles não conversavam, mas ela sentia os olhos do verme sobre ela. Em alguns momentos tinha a impressão de que o humano a seguia e espreitava pelos corredores.

       O humano olhou para a porta fechada e lutando contra muitos sentimentos contraditórios, fugiu dali antes de ser arrebatado por suas secretas vontades.

       Joan deixou-se acomodar na cama, os longos cabelos vermelhos espalhados sobre o travesseiro e piscou graciosamente para Rowell.

       -Quer ouvir sobre o mundo mágico, Rowell?

       Ele engoliu em seco e acenou concordando.

       -É claro que sim.  – ele queria agradá-la, mesmo que lhe doesse achar que Joan perdera sua mente inteligente e doce para a insanidade.

       Joan sorriu e começou a contar. Prepara-lo para quando a verdade viesse à tona e a vida de Rowell mudasse totalmente. Para quando não fosse possível impedir a guerra entre o mundo dos humanos e o mundo mágico.

       Uma guerra que era realidade, e não mais um sonho distante de Lucius, o amante da rainha Santha.

       -Tudo que Zoé disse sobre mim é mentira. O que ela diz sobre si mesma é mentira. Você conseguiu ver as asas de Zoé? - perguntou triste com a ideia de Rowell se deitando com outra fêmea que não ela.

       -Convenientemente desde que a acusou, a Condessa resolveu fechar-se em pudor e recato - ele disse irônico - Não tive chances de ver seu corpo, quanto mais conferir suas supostas asas.

       -É, eu deveria ter imaginado. Zoé não tem interesse verdadeiro em você. É apenas um modo de me punir. Ela sempre me detestou, mas eu não sei a razão. Sempre foi muito raro nos vermos. Eu cresci em um orfanato, e pouco saíamos das masmorras, com exceção das nossas fugas, ou para executar trabalho domestico no castelo. Quando acontecia era fugindo das regras. Você não sabe como é, Rowell, crescer sem família, sem proteção de nenhuma natureza. Eu... Tive sorte. Fui amada e protegida. Minhas amigas cuidaram de mim. Agora eu fico pensando como era para elas. Quem cuidava delas? Principalmente Alma, sempre brigando e me defendendo. Ela apanhava em meu lugar.  E agora eu sei como dói apanhar. E não apenas no corpo. - ela baixou os olhos, envergonhada - Dói no coração, e na dignidade apanhar sem razão. Sendo inocente.

       -Joan... - ele fez um carinho em seu rosto e ela sorriu, afastando as lembranças dolorosas.

       -Eu quero lhe contar sobre elas. Sobre quem é cada uma delas. De um modo que ainda não pude contar. Eu sei que acha mesmo que eu sou louca - disse magoada.

       -Não, estou desconfiado disso - ele corrigiu e ela até sorriu, pois ele tentava não magoa-la demais - é verdade. Eu não sei em quem acreditar ou no que acreditar. Minha mãe foi taxada de insana, e é a pessoa mais lúcida que conheço.

       -Eu não sei se Matilde é tão lúcida assim - ela tentou fazer graça e ele sorriu.

       -Eu estou apaixonado por você, Joan. E não vou acreditar que enlouqueceu. Eu não posso acreditar nisso. Farei algo que meu pai não teve tempo de fazer: esperar. Esperarei que isso tudo passe e a verdade venha à tona. Eu não acredito em tudo que a Condessa falou. Mas eu ouvi o que você disse, com sua própria boca. Não se esqueça disso.

       -Hum - ela fez um som de desprezo e tentou sorrir - quer ou não ouvir sobre minhas amigas? Debater minha sanidade não nos levará a lugar algum.

       -Conte-me sobre elas - ele concordou e Joan estendeu os braços pedindo que ficasse com ela na cama.

       Era uma tentação sem tamanho. Não queria abusar de Joan sem saber seu estado real de sanidade. Mesmo assim deitar ao seu lado, segurando-a de conchinha era uma tentação quase insuportável!

       Abraçou-a, e moldou sua coxa com uma das mãos ouvindo o gemido delicioso que ela esboçou.

       -Não podemos - ele explicou, em eu ouvido, cheirando seu cangote, e beijando atrás da orelha de um modo que a fez se roçar contra ele.

       -Isso é tão estúpido. Eu sei que não sou louca. Olhe minhas costas, Rowell, e diga se não acha isso estranho... - ela disse com voz mansa.

       Rowell baixou o tecido amplo da camisola e conferiu suas costas, as cicatrizes que vira no outro dia estavam de volta, porém bem mais fortes. Quase como se houvesse realmente algo querendo sair dali.

       Sem palavras para falar do assunto, ele ouviu Joan falar, e preferiu cobri-la outra vez, e simplesmente ouvir, sem falar nada:

       -Falarei primeiro de Alma. Ela sempre me protegeu. Minha amiga é a mais velha de nós quatro. Ao menos é o que acreditamos. É impossível para uma órfã da clausura saber sua idade exata. Alma não é como nós. Ela é má. - doía falar isso - tem algo ruim dentro dela. Algo que assusta às vezes. Mas ela nunca deixou isso domina-la. Acho que nossa presença a continha. Eu tenho pensado todos os dias em Alma e sobre como ela está se controlando. Eu morro de medo de saber que ela se perdeu. - suspirou pesarosa.  - As fêmeas da minha raça nascem sem dom e sem asas, nascem sem distinção alguma. Com o passar dos anos, o dom se manifesta aos pouquinhos... Mas não é nada definitivo. As carcereiras costumavam nos testar para irem se preparando com o que teriam que lidar no futuro. Aos vinte anos, nossas asas nascem. Chamamos de o padecimento das asas, ou nascimento, junto com as asas nosso dom aflora completamente. Assim como entramos no cio. Eu estava no cio quando fizemos amor pela primeira vez - sorriu diante da lembrança - mas você é um humano então eu não devo ter sofrido do cio como acontece com as outras fadas - explicou - O nascimento das minhas asas aconteceu aqui, em seu castelo - sorriu dessa lembrança - Meu primeiro voo foi aqui também. Quando você estava doente, eu lhe perguntei se acreditava em magia e você disse que não. Lembra-se?

       -É claro que me lembro - ele concordou, ouvindo sem opinar ou interrompe-la.

       -Pois bem, naquele dia eu voei até a divisa entre o seu mundo e o meu. Onde a floresta deixa de ser dominada pelos humanos e passa a ser território das fadas. Foi lá que busquei ervas que sabia que poderiam salvá-lo, pois possuem propriedades que os humanos não conhecem. Eu fiquei lhe dizendo que não fizera nada demais em ajuda-lo e era verdade, pois o poder dessas ervas são amplamente conhecidos em nosso mundo, e seu uso bastante corriqueiro.  - respirou finamente, pois falava sem respirar. - Estou falando rápido demais?

       -Sim, está um pouco eufórica - ele sorriu e a beijou de leve na testa.

       Joan aproveitou do momento para lhe roubar um beijo nos lábios, um beijo rápido, pois ela queria contar tudo.

       -Estou feliz em finalmente poder lhe contar sobre mim... - confessou - Alma sempre me defendeu. Era para a cama dela que eu corria durante a noite, quando estava com medo. Ela fingia não gostar, mas eu sei que gostava de cuidar de mim - havia muita ternura em sua voz -O dom de Alma se estima ser o poder de controlar com o tom de voz. As carcereiras chamam de hipnotismo com a voz. Um dom muito útil, se me permite opinar. Já Driana é a mais inteligente de todas nós. Ela nunca luta com armas ou força física. Não, ela não precisa. Às vezes ela irrita uma criatura com suas palavras diretas ou seus discursos chatos, mas ela não nota que faz isso. Tudo que sei na minha vida, foi adquirido através de Driana, pois as fadas do Ministério do Rei não tem direito ao estudo. Nem preciso dizer que o dom de Driana é a inteligência e sagacidade. Isso enlouquecia as carcereiras. Inclusive Zoé, a guardiã, pois contra aos argumentos de Driana não há quem possa se rebelar! Você não iria gostar de entrar em um debate com ela! Não mesmo!

       -E a outra? A terceira fada? Como disse que ela se chama? - ele perguntou aninhado a Joan, ouvindo sua estória com um duplo sentimento: desconfiança e interesse.

       -Eleonora. Você iria acha-la tão linda, Rowell. Toda branquinha, como uma nuvem no céu... Lora é...

       Sua intenção de conversar foi suprimida pelo barulho de alguém destrancando a porta. Ambos olharam para o intruso e Joan surpreendeu-se em encontrar Matilde com a bandeja contendo seu almoço.

       -É inapropriado que permaneça na torre, Duque Mac William, enquanto sua noiva, a Condessa, almoça sozinha, na única presença de Alice.

       Rowell pareceu querer enfrentar sua mãe por conta da reprimida. Mas ela estava coberta de razão, e não cabia a ele tentar se justificar, principalmente quando cometia um engano que poderia trazer consequências para todos que dependiam de seu título.

       Rowell fez um carinho discreto em Joan e levantou da cama. Perto de Matilde, ele beijou a testa de sua mãe e pediu:

       -Seja gentil com Joan. Trate-a bem na minha ausência. Estou colocando-a aos seus cuidados, mãe, não a maltrate - era um pedido de filho e não de duque.

       Até então, apesar de saber da afeição entre eles, Joan ainda não testemunhara o carinho dispensado por Rowell para com Matilde. Sorriu com ternura diante dessa nova faceta revelada pelo duque.

       Antes de sair do quarto na torre, Rowell olhou para ela uma última vez e Joan lhe sorriu, esperando que ele entendesse que não o odiava por não crer em suas palavras. Afinal, se ela fosse humana e criada com a mente fechada para tudo que é inacreditável, também não acreditaria em histórias de fadas e guardiões.

       Matilde esperou Rowell sair e fechar a porta para colocar a bandeja sobre uma mesinha e mover-se pelo quarto, aproximando-se da pequenina janela onde havia grades.

       -Sabe por que dessas grades? – perguntou com voz tensa, distante, perdida em lembranças enquanto tocava aquelas grades.

       Pela expressa facial de Matilde as lembranças não eram nada boas.

       -William mandou instalar essas grades quando fui trazida para cá, trinta anos atrás – ela contou sem esperar por sua resposta. Olhou bem para Joan e continuou – ele acreditava que estava me protegendo. Eu não poderia pular em meio a um surto de loucura.

       -Acha que é por isso que Rowell me trouxe para cá? – perguntou triste.

       -Olho para você e vejo a mim mesma. – disse Matilde – Eu não estava louca. E você? Está louca? – perguntou com algo no olhar que fez Joan sorrir e manear a cabeça negando.

       -Encontrou o lenço, não foi? – deduziu.

       -Não. Eu espiei e vi quando a Condessa encontrou. Ela escondeu de mim e me mandou cuidar da minha vida imunda. E outros tantos palavrões que não cabe mencionar agora – disse com amargor.

       -Não deixa de ser bem feito que seja tratada com o mesmo desprezo com que trata todas as serviçais desse castelo - Joan disse em disparada, sem medir se deveria ou não.

       -Essas coisas existem. Eu me contradisse a vida toda. Mesmo meu querido William achava que tive um surto passageiro. Ele nunca acreditou em mim. Mas eu sei que era real. O que vi era real. Não é?

       -E o que você viu? – perguntou.

       -Uma mulher parecida com qualquer humana normal. Mas ela tinha asas amarelas, longas e brilhantes. Ela saltou da murada mais alta e cortou os céus voando alto. Eu deveria ter ficado quieta, mas o deslumbramento me fez contar para todo mundo. Levou meses para que entendesse que lutar contra o que diziam era pior. Foi Hector quem me convenceu a calar-me. Depois de tanta desgraça, eu deveria apenas me calar e me desmentir. Cruel não é? – ironizou.

       -O que posso dizer? – Joan apontou a si mesma com desdém e tristeza – Zoé é uma fada perigosa. Não deve confronta-la, Matilde. Não gosto de você, mas não quero que seja ferida por Zoé.

       -Anos atrás... Eu contei com ajuda para reverter o jogo a meu favor – ela confessou e o que parecia um sorriso surgiu na face de Matilde.

       Era estranho vê-la sorrir. Parecia que a humana não sabia como fazer isso. Sua expressão suavizava quando lidava com o filho e os netos, mas nunca um sorriso verdadeiro.

       -Eu descobri o que acontecia e tive ajuda para mudar tudo. Agora eu me pergunto se a história deve se repetir. Se eu devo ajuda-la a reverter o que acontece contra você.

       -E porque não? Se eu ficar trancafiada aqui, em algum momento Rowell cederá as pressões e casará com Zoé. Ela faria isso pelo capricho de me punir. É isso que você quer? Zoé infernizando seus passos e corrompendo seus netos?  - Joan estava sentada na cama, e afastou os cabelos do rosto, olhos brilhando com sinceridade – Podemos nos odiar, mas nem mesmo você pode negar o meu amor por Rowell. Eu o amei, Matilde, naquele corredor, escovando o chão e ouvindo a voz dele pela fresta da porta do quarto... Eu o amei no momento em que o vi. E amo tudo que vem dele. Amo seus filhos, seu ducado... Eu acho que poderia até amar você, se parasse de usar aquele maldito cajado e infernizar todo mundo! – não resistiu a uma pequena provocação.

       -Hector me ajudou muito. Ele me convenceu a parar de tentar convencer os outros que eu estava certa. Acho que não sabe, que ninguém mais lembra, mas éramos muito amigos. William, o pai de Rowell, Hector, o cozinheiro, Anesi a pajem que me acompanhava, e eu, vinda da vila para em casar com o duque. Ele me viu em uma visita aos aldeões. Eu vivia com minha família e lavorávamos o trigo. Foi de longe, eu o vi de longe... – ela queria dizer mais do que isso, ela apaixonara-se pelo pai de Rowell ainda sem contato algum, como aconteceu entre Rowell e Joan.

       -Anesi deve ter sido uma bela mulher antes de ser transformada em coelho. – pela surpresa de Matilde, ela sabia que acertara em cheio em falar sobre isso – Deve ser tão doloroso perder a chance de ser a verdadeira esposa do duque, e ainda perder sua melhor amiga, pois um coelho não conta como boa amizade. Se eu perdesse uma das minhas amigas... Não sei o que faria. – disse pesarosa – Talvez eu possa ajuda-la, Matilde. Quando tudo isso acabar, sei que minha amiga Driana pode encontrar algo em seus estudos para ajudar Anesi.

       -Existe mesmo um mundo lá em cima, naquelas montanhas distantes? – Matilde perguntou olhando pela janela, provavelmente em dúvida sobre a própria sanidade, por considerar as palavras de Joan.

       -Me ajude e quem sabe um dia eu a levo até lá com minhas asas – Joan barganhou.

       O modo como Matilde a olhou era controverso. Parte sua admirava a criatura diante de si, outra parte repudiava.

       -Eu não quis ver, mas eu sabia o que você era. Desde o dia que coloquei meus olhos sobre sua carcaça magrela, eu soube quem você era. Ainda na vila, eu não sei porque a trouxe comigo.

       -É claro que sabe. – Joan duvidou, arrumando a gola da camisola, e levantando-se, para se aproximar de Matilde. – Porque me trouxe para o forte?

       Matilde olhou-a fixamente. Por fim admitiu:

       -Seu olhar. Eu vi o medo em seu olhar, o desamparo. Fui por isso que a trouxe mesmo indo contra tudo que acredito.

       Nenhuma das duas estava feliz com a revelação. Nenhuma das duas queria ter razões para gostar uma da outra.

       -Existe uma saída da torre, que não passa pelos vigias que Rowell colocou para protegê-la. – finalmente Matilde disse – Foi por onde eu entrava e saia da torre durante os meses em que fiquei presa, sendo cuidada. – ironizou.

       -Me tire daqui, Matilde, e eu poderei obter minhas asas - ela disse com olhos brilhantes. – Eu preciso ver Hector.

       -Por quê? – Matilde duvidou, desconfiando dela.

       -Porque ele pode me ajudar a tirar Zoé do castelo. – disse empolgada com uma ideia que lhe vinha à mente – mas primeiro precisa me ajudar a sair do castelo. Para bem longe de Zoé.

       -Eu devo estar realmente louca em ajuda-la – disse Matilde percorrendo o chão com um dos pés. Até encontrar o som oco que indicava a saída secreta. Curvou-se no chão e tateou o tapete, afastando-o e revelando o alçapão.

       Joan juntou-se a ela, e juntas puxaram a pesada portinhola. Era estreito e apertado e Matilde disse:

       -Siga sempre reto. Quando encontrar uma porta, aguarde, eu irei busca-la.

       Era perigoso confiar em Matilde. Ela poderia simplesmente coloca-la em uma armadilha. Mesmo assim, acenando, Joan entrou.

       Desceu uma escadinha apodrecida. Tremula, quando seus pés tocaram o chão de pedra, ela respirou aliviada. A escuridão era total. Assustada, ela tateou as paredes sujas e lutando contra o nojo e asco, usou disso para se guiar pelos caminhos estreitos.

       Depois de muito tempo, quem sabe horas, ela chegou a uma barreira. Uma parede, e depois de procurar muito encontrou uma maçaneta. Era a porta que Matilde se referira. Lutando contra o desespero de estar sozinha na escuridão total, ajeitou-se no chão e ficou esperando por Matilde.

       E foi a mais longa espera de toda sua vida.

 

       Um pequeno sorriso estampou os lábios de Driana enquanto observava Acheron lidar com as roupas humanas. Ele movia os ombros largos sem parar, e parecia irritadíssimo com as tiras de couro que prendiam a túnica na altura da cintura, carregadas de pequenos bolsos e sacos.  As roupas do aldeão que lhe vendera bens humanos eram muito pequenas para seu porte físico, e desconfortáveis. Ele andava agindo como a fúria de uma fera presa em uma gaiola.

       Ele olhou em sua direção e Driana tentou esconder o sorriso, os longos cabelos negros, presos em muitas trancinhas, cobrindo parcialmente seu rosto, enquanto ela fingia arrumar uma dobradura em sua ampla saia, do vestido amarelo que usava, e fazia de tudo, menos encara-lo.

       Ela evitava um surto de riso e Acheron não poderia culpa-la por isso. Enquanto Driana parecia uma linda princesa vestida com roupas fidalgas e bem cortadas, realçando seus traços angelicais, ele parecia um urso apertado em calças finas que marcam lugares bastante indiscretos.

       Afinal porque os humanos precisavam usar aquelas roupas constrangedoras?

       A carroça havia finalmente chegado ao seu destino. Acheron esperava que o aldeão que os acompanhava negociasse a entrada. Ele olhou para trás na carroça, onde escondido pelo feno à criatura Mikazar mantinha-se silenciosa, pois sua aparência física não passaria despercebida em nenhum lugar, sobretudo entre os humanos.

       -Espero que lembre que é uma entrada rápida, Driana – ele disse com quase aviso na voz, olhando para sua fêmea escolhida.

       -O que quer dizer com isso, Acheron?  - ela perguntou de boba, pois já imaginava a resposta. Uma sobrancelha erguida no alto da testa que o alertava sobre o perigo de continuar naquela conversa.

       -Você sabe. Sem ficar arrumando desculpas para conhecer o povo e o método que eles vivem. A ideia é entrar, pegar Joan e ir embora. Sem estudos, sem conversas, e sem amizades – ele tinha a voz forte e ela admirava o esforço que fazia para não ser ouvido pelos humanos que ainda conversavam com o aldeão que após algumas moedas de ouro ficara bastante feliz em ajudar os forasteiros. – E sem arrumar nenhuma confusão que eu tenha que resolver.

       -Pois eu lhe digo o mesmo. Nada de usar sua espada, brutamontes – ela alfinetou – E lembre-se que os humanos não alimentam o habito de rugir quando contrariados. - ele devolveu a mesma moeda.

       -Não tenho intenção de me misturar aos humanos ou agir como eles - Acheron avisou - Se fizesse isso, a primeira providencia a tomar seria deixar você e arrumar uma noiva nos moldes humanos. Uma humana bonita e quieta. Bem quieta mesmo.

       -E como seria essa noiva, eu posso saber? - Driana não conteve o ciúme imediato, perdendo a noção da brincadeira expressa na afirmação.

       -Ela seria apenas bonita. Sem conversas desgastantes, sem desafios, sem argumentos. Apenas um corpo bonito e uma personalidade submissa - ele desafiou e ela afastou o olhar, ridicularizando:

       -Permita-me primeiramente o assombro de ouvi-lo pronunciar as palavras' personalidade' e 'submissa' em uma única frase. Eu nem sabia que seu vocabulário tinha esse alcance.

       Um som parecido com um rugido de irritação foi à resposta e Driana sorriu e inclinou-se no banco de madeira da carroça onde estava sentada ao lado do enorme elfo, segundo Guardião Acheron, o príncipe fugitivo de longínquas terras geladas.

       Ela tocou sobre seu antebraço peludo, coberto por pelos espessos e louros sob uma pele morena de sol. O toque era quente e carregado de sentimento. Mas parecia algo trivial, não fosse o apelo de uma fada sob o autocontrole de seu macho escolhido.

       Ela beijou seu queixo com afeição e sussurrou:

       -Nada de rugidos, Acheron. Nada de rosnados, também. - ela atiçou e quando o elfo virou o rosto e fixou os olhos nos seus, Driana quase abandonou a intenção de irrita-lo. Aquele elfo era poder puro, e ela acariciou o lugar onde sua mão repousava, e tornou a ajeitar-se no acento com o coração acelerado e a circulação sanguínea enlouquecida.

       Era por causa dessas e outras, que alguém como ela se perdeu por um elfo selvagem e sem grandes apegos a literatura ou estudo.  Quando os corpos se encostavam e os olhos se encontravam, qualquer pensamento sumia. E ela ainda achava isso perigoso.

       Ainda bem que haviam resolvido as pendências entre eles e em breve se casariam. O pequeno sorriso no rosto da fada de cabelos negros e franja sobre os olhos, sempre despertava curiosidade em Acheron. Se ela estava pensando sobre ele ou principalmente, se ela estava pensando sobre os dois.

       Depois de dividirem-se em dois grupos, Acheron e Driana havia seguido para o forte Mac William e o pai e irmãos de Driana para o Vilarejo sem Fim, onde encontrariam Alma e Solon.

       A angústia de saber sobre Alma havia chegado ao fim quando Mikazar trouxera recados do vilarejo contando sobre Alma e sua parceria com Solon. Eles vivenciavam algo grandioso por aqueles lados, e Driana mal podia esperar para juntar-se a ela e conhecer seu trabalho mais a fundo.

       Sentimento esse que se estendia a Eleonora, e, sobretudo a Joan.  As suspeitas de que Joan estaria no castelo se acentuaram quando eles ouviram falar sobre uma amante do duque Mac William.

       Os boatos e fofocas pareciam ser costumeiros entre os humanos, tanto quanto eram entre as fadas e elfos. Supostamente o Duque possuía uma amante ruiva e delicada, bonita e encantadora, recém-chegada ao castelo para trabalhar como criada. Que as brigas entre Matilde, a governanta do duque, intitulada pelas más línguas como mãe verdadeira do duque, rebotavam tortura e escândalos assombrosos.

       Como dissera Acheron "onde há fumaça, há fogo". Com sorte encontrariam Joan de uma vez, e poderiam as quatro se reunir outra vez e esquecer o passado de sofrimento!

       Com esperança aliada a expectativa, Driana sorriu para Acheron quando os portões do forte foram erguidos e a carroça foi conduzida para dentro.

       Sua pequena Joan, pensou Driana emocionada. Mal podia esperar para segurá-la em seus braços e jurar-lhe que tudo ficaria bem e que estava finalmente protegida!

       O que Driana não sabia, era que a pequena Joan não era mais tão desprotegida assim.

      Assustada, talvez. Mas desprotegida não. Desde que aprendeu a revidar, Joan não queria e não aceitava mais ser desprotegida. De olhos fechados, ela ignorava a escuridão total, e torcia para não ter sido abandonada por Matilde.

       Horas se passaram, e quando ela ouviu barulho vindo de fora, do outro lado daquela porta sentiu um alivio inexplicável.

       -Matilde? É você? - sussurrou, esperando a confirmação.

       -E quem mais perderia tempo precioso para ajuda-la? - foi à resposta enviesada que veio abafada pela barreira que era a porta de madeira.

       Sim, tanta doçura só poderei remeter a Matilde. Sempre adorável, pensou Joan, irônica.

       Tensa, Joan aguardou que a velha fechadura sucumbisse à pressão exercida pela chave e os empurrões de Matilde. Aquela porta deveria estar trancada, e os corredores sem uso, há no mínimo trinta anos.

       Ao finalmente ver a carranca desagradável de Matilde Joan quase abraçou a megera, tamanho era o alívio que sentia.

       -Acha mesmo que Hector concordará? - Perguntou Joan seguindo os passos da governanta.

       Matilde a levou por corredores estranhos até desembocarem em outra porta.

       -Hector não tem escolha. Você é um problema que precisa ser extirpado.

       -Espero que com isso esteja tentando dizer que sou alguém merecedor de ajuda. - corrigiu Joan.

       O modo sujo como Matilde a olhou lhe deu uma pista significativa do que ela pensava sobre o assunto. As duas deixaram a despensa, por uma passagem secreta, e Joan foi a primeira a avistar Hector.

       O humano cortava legumes para o jantar enquanto seu coelho repousava aos seus pés. Ao vê-las, parou de trabalhar e disse:

       -Imagino que a história esteja se repetindo - a expressão do cozinheiro era bastante obvia, principalmente ao reclinar-se na cadeira, sua túnica mal contendo sua enorme barriga - o que as duas querem comigo? Da última vez perdi meus melhores amigos. – ele disse com pesar na voz e na postura – E também perdi Anesi.

       -Desta vez é diferente, Hector! A história é igual, mas lhe garanto que o final será diferente!

       Joan aproximou-se de Hector e ajoelhou-se no chão, ao lado de Anesi e pegou o coelho nos braços.

       -Olhe para ela, Hector. O que fizeram com Anesi no passado pode ser desfeito! Eu ainda não sei como, mas sei que a resposta está no mundo mágico, o mundo de onde eu vim! - prometeu.

       Para sua surpresa, o homem retirou o coelho de suas mãos e levantou-se levando o animal para longe, como quem deseja protegê-lo.

       -Não me contou que é uma fada - ele acusou.

       -É claro que não. Você acredita que as fadas são más. E eu não posso mudar seu pensamento com palavras. Apenas ações. Me ajude, Hector, e eu posso provar que existem fadas bondosas! Por favor! - apelou para o emocional do homem, com suplica no olhar verde.

       -Você está nisso, Matilde? - ele apontou Joan, como quem cobra da humana uma posição.

       -O que posso lhe dizer? É minha chance, Hector, de provar que nunca estivesse louca. Além do mais... O que você prefere? Essa coisa como senhora do forte, ou a outra? A condessa?

       Joan ignorou que era chamada de 'coisa' e esperou que Hector pensasse por um instante.

       -E o que eu tenho que fazer? Cortar a garganta daquela cobra com minha faca? - ele satirizou, pois estava cheio das ofensas de Zoé, a suposta condessa. Cheio de suas reclamações de que a comida parecia lavagem.

       -Não, não precisará tanto! - Joan sorriu e o abraçou em um impulso - Obrigada, Hector, obrigada por acreditar em mim! Eu farei tudo que puder por Anesi! Eu lhe juto isso!

       -Diga a ele o que tem em mente - Matilde cortou seus agradecimentos, impaciente - Precisa voltar para torre antes que deem por sua falta!

       -Está bem, está bem! - ela revirou os olhos, pois Matilde era extremamente desagradável. - Eu preciso que coloque algo no chá de Zoé. Algo que a faça dormir como uma pedra.

       -Hum, a cobra gosta de beber leite morno antes de dormir. Posso colocar uma coisinha ali... Que a fará bastante calma por algumas horas - ele disse em tom conspirador, piscando para Joan que sorriu para ele.

       -Eu sabia que podia contar com você, Hector! Eu posso ver o tamanho do seu coração! É imenso! - ela elogiou emocionada. - Precisa ser essa noite.

       -E assim será - ele prometeu, o olhar para seu coelho Anesi.

       O cozinheiro não falaria sobre a esperança de salvar sua amada Anesi, não, ele não falaria sobre isso. Apenas a incentivava com ajuda. Era o certo a fazer, pois Joan carregava no olhar um brilho de vida e bondade que o cativou desde o primeiro instante em que a vira!

       -Vamos de uma vez, você tagarela sem parar - reclamou Matilde pegando-a pelo braço, preocupada sobre alguém aparecer e flagrá-la na cozinha.

       -Estou indo - Joan reclamou ao ser empurrada sem gentileza alguma para a despensa, por onde entraram novamente na passagem secreta.

       -Está noite eu preciso sair do castelo antes de pegar Zoé. Sabe como eu posso fazer isso? - perguntou a Matilde, seguindo-a pelos corredores escuros.

       -Eu sei todos os caminhos para dentro e fora desse forte - a mulher disse com a voz brava de sempre.

       -Hum, eu deveria ter puxado seu saco para ser sua amiga. Seria mais vantajoso - ela brincou e o modo como Matilde a olhou, fez Joan sorrir.

       -Quando escurecer, após o jantar irei buscá-la. Não saia sem mim. Se o fizer, não venha atrás de ajuda quando fizer tudo errado - Matilde avisou.

       -Porque você é assim tão malvada comigo? Com todas as serviçais?- Joan perguntou enquanto seguia a mulher pelos coredores- Afinal, o que fizemos para você?

       -Nada - ela disse sem olhar em sua direção - vocês nunca fazem nada. São apenas ratos traiçoeiros espiando a vida de seus senhores e depois os apunhalando pelas costas. Agora vá, não quero que notem sua falta e me culpem por isso.

       -Como se Rowell pudesse repreendê-la. Se quer saber, ele é um santo em aturar tudo que você faz e ainda paparica-la. - Joan enfrentou Matilde, e a governanta a fez parar e segurou seu braço com força:

       -Lave a boca quando falar sobre o meu filho - ela avisou - Eu não estou ajudando você. Eu estou me livrando da condessa. Lembre-se disso: quando tudo acabar  será a hora de nós duas colocarmos nossos assuntos em dia.

       -Não temos assuntos em dia. Suas cartas estão com Zoé, você pode pegá-las de volta quando nos livrarmos dela. E depois... - Joan baixou os olhos envergonhada pelo que diria - eu irei embora.

       -Embora? - Matilde a soltou, surpresa pela confissão.

       -Meu mundo está correndo perigo. Eu preciso avisar algumas fadas queridas que possam salvar a rainha Eleonora - era estranho referi-se a sua amiga como rainha, mas sua mente era treinada para atentar-se ao respeito que seu rei merecia. - Depois eu volto. Não sei quando. Mas volto.

       -É claro, como uma peste a envenenar a todos nós: você volta. - Matilde ofendeu e Joan nem se deu ao trabalho de responder.

       -Eu dou conta do alçapão. Você pode ir agora - dispensou Matilde, pois definitivamente não estava com disposição para atura-la mais do que o necessário!

       O olhar de Matilde lhe prometia represaria. Em breve as duas se enfrentariam. Dois inimigos aliados em nome de uma única causa em comum? Isso não pode prestar.

       Lutando para expurgar a angustia, Joan encontrou a escada e o alçapão e voltou para o quarto na torre.  Precisou trocar as roupas, sujas pela imundice dos corredores, e deitar-se, pois estava sem ar e cansada.

       Exaustão total. Suas costas doíam muito, onde as asas lutavam para sair.  Ela virou-se de lado e tentou descansar um pouco, pois mais tarde haveria uma longa luta por sobrevivência e ela esperava ser a vitoriosa.

       Era hora de Zoé pagar o mal que lhe fazia e só de pensar nisso... Um sorriso pairava em seus lábios.

 

       Rowell observava a entrada dos forasteiros em seu forte. A desculpa esfarrapada não lhe convenceu, mas ao ouvir que a jovem procurava por sua irmã perdida, chamada Joan, ele não pensou duas vezes em deixa-los entrarem. O homem era absurdamente alto e largo. Tantos músculos que era impossível imaginar um trabalho normal que lhe desse essa complexidade física. Louro da cabeça aos pés, moreno do sol, bonito como poucos homens que Rowell conhecera na vida. Era impossível não reparar.

       Chamava-se Acheron. Sem títulos, sem referência ao seu nascimento ou terras. O que era estranho. A jovem era pequena e simplória, bonita, mas nada exagerado. Contrastava imensamente com o homem cabeludo, pois era mais baixa e observava a tudo com olhar interessado. Ela vestia um longo vestido amarelo com uma pesada capa que cobria suas costas.

       Rowell afastou o pensamento insistente sobre a desnecessidade de uma capa como aquela.

       A jovem pegou no braço do gigante, mas ele não parecia entender que ela queria lhe dar o braço. Ela disse algo baixinho que o irritou, e o gigante pegou seu braço e enganchou no dela. Então a jovem sorriu e continuou a andar, bastante satisfeita em ser atendida.

       Quando chegou diante do Duque Mac William, que os aguardava em frente à porta principal do castelo, em frente à escadaria, os dois se curvaram em um comprimento desajeitado.

       -Seu nome - Rowell apontou a jovem, sem saber por que aquele sexto sentido que o diz para ter cuidado.

       A jovem olhou para seu acompanhante e abriu a boca para falar, quando foi interrompida pela chagada inesperada da Condessa.

       Zoé aproximou-se e pousou uma das mãos no ombro de Rowell. Seu sorriso morreu em sua face no instante em que viu Acheron. Retirou a mão, como que queimada por fogo.  Então ela olhou com verdadeiro horror para a jovem.

       -Me chamo Driana. - a moça disse olhando fixamente para Zoé - Vim em busca da minha irmã. Chama-se Joan. Na vila disseram que uma jovem deste nome vive nesse forte sob a proteção do duque... - ela olhou com carinho para o gigantesco homem que parecia desconfortável ao seu lado -... Nós viemos de longe. Venho reclamar o direito de levar minha irmã comigo para casa.

       -Joan - ele pronunciou o nome com pesar. Baixou os olhos, penando sobre a jovem.

       Driana era seu nome.

       -Driana? - ele verbalizou seu nome e então perguntou - a jovem capaz de decorar uma biblioteca inteira em um único dia? - ele revidou.

       - E também, capaz de enlouquecer um santo com seu palavreado inacabável - Acheron completou.

       Driana retirou o braço do seu e olhou para ele com seriedade e irritação.

       -Pelo visto minha irmã falou de mim. - ela sorriu - Eu posso vê-la?

       Apesar de falar com o duque, os olhos da mulher estavam grudados em Zoé. Elas se conheciam.

       -Onde ela está? - a jovem avançou um passo como se pretendesse invadir o castelo e procurar sozinha por todos os cômodos - Joan? - ela elevou a voz, como se esperasse ser ouvida - Onde está ela?

       -Joan não está aqui. Porque não entram e se juntam a minha família no jantar? Gostaria de ouvir a história de vocês - Rowell disse com seriedade.

       -Não - Driana comeou a se exaltar - Eu sei que ela veio para esse ducado como amante do duque! Joan não é assim! Onde ela está?

       O homem louro a segurou por trás e apenas isso a impediu de entrar a força no castelo. Ela olhou para trás e se calou, pois o homem tinha poder de decisão sobre ela.

       -Ignore o descontrole de Driana. Muito tempo na estrada, ela precisa de um copo de água e algum tempo de descanso.  - ele argumentou, e com um olhar de aviso, que dizia para ela se calar. - Onde esta a jovem?

       -Como eu disse, o jantar seria uma ótima oportunidade de conversarmos sobre Joan.

       Driana não queria conversar. Não mesmo. Ela olhou para Acheron cobrando dele uma atitude. Era irracional para alguém como ela. Era a primeira a concordar que o elfo não podia simplesmente retirar a espada da cintura e obrigar os humanos a contarem do paradeiro de Joan, mesmo assim, olhava para Acheron como se lhe cobrasse essa atitude!

       O duque Mac William adentrou as portas do castelo e ficou claro que deveriam segui-lo. Remoendo a raiva e o medo, Driana passou pertinho de Zoé e disse aos sussurros:

      -Se eu souber que você feriu Joan... Eu nem sei o que faço, mas eu faço. - era um aviso desesperado de quem não sabe ameaçar, mas sabe que não aceitara uma tragédia sem lutar.

       -Onde esta a fada fugitiva, Zoé? - como Segundo Guardião, Acheron detinha o poder de inquirir a quarta em hierarquia.

       -Porque está aqui com essa fada assassina? - Zoé perguntou de volta, olhos arregalados, injetados de ódio.

       -As fadas foram inocentadas. Eleonora é rainha agora - ele disse com voz decidida.

       -Isso é impossível - Zoé disse e virou as costas para os dois, seguindo o duque.

       -O que esse animal fez com Joan, Acheron? - Driana ficou parada no meso lugar perguntando com a voz carregada de angustia.

       -Não aconteceu nada de ruim com sua amiga. Creia no que digo. Zoé não é tão ruim quanto todos pensam.

       -Ela é pior - disse Driana, seguindo-os pelo castelo.

       Não reparou na construção de pedras, nas esculturas ou no trabalho bonito de tapeçaria. Muito menos no caprichado jantar.

       Bebeu muita água, pois estava com sede, sentou-se ao lado de Acheron e fitou a comida sem apetite. Apenas o duque e Zoé na mesa, além dos dois.

       -De onde vocês disseram que vieram? - Rowell perguntou, olhar fixo no gigante.

       -Não dissemos de onde viermos - foi Driana quem respondeu por ele - Eu não vou ficar de brincadeiras. Quero minha amiga de volta!

       -Amiga? Não era irmã?

       A pergunta calmamente feita pelo duque desconcertou Driana por um segundo. A emoção de estar perto de ter Joan em seus braços novamente depois de tanta aflição a tirava da sua natural concentração.

       Ela não sabia que Rowell estava cansado daquelas mentiras sem fim. Zoé, Joan e agora Driana.

       Lembrava-se do modo carinhoso que Joan contava sobre Driana, mas lembrava-se também das mentiras de Zoé sempre Joan ter assassinado suas irmãs. Irmãs, amigas, o que eram afinal? Confusões de uma mente perturbada? Perseguidoras perigosas?

       Ele somente sabia que protegeria Joan de todos, até mesmo daqueles forasteiros.

       Driana ocupou a boca com vinho, temendo dizer a coisa errada.

       -A jovem se encontra em seu poder, duque Mac William? - foi Acheron que tomou à dianteira. Por mais que machucasse o orgulho feminista de Driana, ele sabia sim como lidar com esse tipo de negociação - Possuo ouro suficiente para compensar sua perda.

       Sim, comprar uma fêmea, fosse humana ou fada, irritava profundamente Driana. E pelo visto o duque também se ressentia disso.

       -Joan esta na vila, eu não sei por que vieram ate aqui. Ela foi deixada na casa de uma tecelã. Perderam a viagem vindo até aqui. Não somos amantes, a pobre menina não serviu para criada. Tem saúde frágil - ele mentiu, e odiou-se por isso.

       -Eu poderia ver suas criadas? Uma a uma? - perguntou Driana a queima roupas.

       Rowell sorriu para ela ao dizer:

       -Não. Espero que aproveitem o jantar e desfrutem do alimento - ele levantou da cadeira e fez sinal para a aproximação de dois escudeiros - Espero que tenha uma boa viagem de volta à vila.

       Era a última palavra do duque. Furiosa, Driana chegou a levantar para brigar, mas o modo como Acheron segurou seu pulso a fez parar.

       -Isso é verdade? - ele perguntava para Zoé enquanto fazia Driana sentar-se novamente.

       -Eu não sei. Eu não sei de mais nada. A última vez que pus meus olhos sobre a imunda fugitiva da clausura, ela estava presa na torre. Depois, eu não sei. Do jeito que Rowell é apaixonado por ela e protetor... É bem capaz de ter levado-a embora por uns tempos. Ele não faria mal para a ratinha. Ele apegou-se a ela.

       -Como pode uma guardiã falar desse modo sobre uma fada desprotegida? - Driana perguntou com asco - Eu tenho nojo de você. Quando tudo isso acabar, irá entender-se com a rainha. E sabe o que a aguarda não é? Eleonora elegeu Egan como seu rei. Tudo mudou.  Você pagará por suas ofendas e por cada chaga que causou em Joan! Isso não é uma ameaça, é uma constatação! - ela empurrou uma das taças de metal com a mão, sem querer, mas esta rolou para o chão e caiu esparramando o vinho sobre o chão de pedras. Nervosa, Driana escondeu o rosto nas mãos e ficou calada, enquanto tentava se controlar.

       -As quatro fadas passaram o inferno de provação por conta das mentiras de Santha. É nosso dever protegê-las, Zoé - ele afirmou mediando-a de alto a baixo com desgosto - Olhe para si mesma, rancorosa e feia. Disputando a atenção e afeição de um humano que não a quer?

       -Não fale do que não sabe Acheron! - Zoé levantou furiosa.

       -Não sei? Eu reconheço o cheiro de uma fêmea interessada por um macho à distância! - ele também levantou - Troque essas roupas, vista sua armadura e limpe essa cara pintada como as humanas! Você é uma Guardiã!

       -Não, eu sou mais do que isso. Eu tenho um coração, sabia?  -ela jogou de volta - Não, você não sabia. Você nunca reparou em mim! Nunca! Sempre atrás das fadas delicadas e sorridentes! Sempre pensando em aceitar os convites de Tubã e casar-se com uma das fadas da clausura, enquanto eu estava ao seu lado trabalhando e vivendo o pior da vida ao seu lado!

       -De novo esse assunto Zoé? - ele reclamou, olhou para Driana e meio que ficou sem jeito - Houve um tempo em que pensamos em casamento, mas era algo conveniente para nós dois. - explicou.

       -Eu acho que vou vomitar - disse Driana com nojo. - Dormiram juntos?

       -Não - Zoé negou imediatamente - Eu gosto de estar aqui. Não quero ir embora!

       -Eu nem vou discutir isso. Temos uma missão a cumprir. Depois você vai para a onde quiser e faz o que bem entender da sua vida! - disse Acheron - mas agora, vai trocar essa roupa e nos acompanhar ao vilarejo atrás de Joan. Não é um pedido, é uma ordem do seu imediato superior!

       Zoé engoliu em seco, e pareceu decidir se queria ou não entrar nesta luta.

       -Eu quero ir agora - disse Driana - Se Joan está na vila escondida eu quero acha-la o mais rápido possível! Esta... Está Guardiã - o modo como disse e olhou para Zoé era bastante ofensivo e demonstrava toda sua revolta - pode nos encontrar lá.

       Claro, Acheron não ousaria irrita-la ainda mais. A pressa de Driana em encontrar sua amiga não poderia ser contrariada pelos desmandos de Zoé, ou pelas pendências do passado entre eles.

       Obedeceu a sua fada escolhida e a seguiu para fora do castelo.

       Algumas horas mais tarde estavam de volta à vila.

       Zoé subiu para seu quarto no castelo e arrasada arrancou parte do vestido, ficando apenas com o corpete apertado e a saia fina que usava por baixo. Seus cabelos longos e cheios estavam soltos e ela esmurrou a porta logo depois de despir as roupas e gritou de ódio.

       Santha a enganou. Enganou a todos eles e as fadas do Ministério do Rei eram inocentes! Como isso pode acontecer? Ela nunca se enganava com as criaturas! Porque esse ódio todo para com a fadinha Joan?

       Sufocando a fúria contra Santha, e seu plano ardiloso, ela arrastou-se até a cama e deitou, mordendo o lábio para não chorar e ser fraca. Ser enganado doía terrivelmente. Ainda mais para ela, que somente foi aceita como Guardiã porque a rainha Santha intercedeu em seu favor e convenceu seu rei de que uma fêmea como guardiã poderia ser produtivo para a segurança!

       Sufocada com as próprias emoções, o que não era muito habitual para Zoé, levantou e andou pelo quarto, o belo corpo cor de ébano seminu e coberto por curvas generosas e longilíneas. Acuada, não sabia exatamente o que deveria fazer.

       Avistou o copo de leite, que ordenara que as criadas colocassem em seu quarto todas as noites, e bebeu avidamente, pois sentia sede e isso a reconfortaria.

       Em meio ao turbilhão de emoções, não notou de imediato que havia algo estranho. Seus olhos ficaram vesgos, sem foco. Sua respiração foi perdendo força, seus pensamentos embaralhando e quando notou estava caindo ao chão, como uma pera pobre, cai do pé.

 

       Joan esperava pela vinda de Matilde com expectativa. Sentia suas asas, agora recolhidas em suas costas, e sorria. E foi assim que a governanta a encontrou.

       -Está sorrindo – ela reclamou, como se qualquer tipo de felicidade vinda de Joan a incomodasse profundamente.

       -Sim, eu não preciso sair do castelo, acho que Zoé está sem o domínio de seu dom, porque minhas asas voltaram!  - sua felicidade era genuína.

       -A cobra está no quarto. É provável que o sonífero tenha sido bebido e esteja desacordada. Precisamos ir – ela tencionou abaixar-se em busca do alçapão que conduzia para a passagem secreta, mas Joan fez o mesmo e tocou sua mão impedindo.

       -Não é preciso, Matilde – disse com algo no olhar que impediu que a mulher reclamasse – Fique perto, eu a levarei ao meu lado.

       -Irão nos ver – Matilde alegou, ressabiada.

       -Não, eu estou novamente com o domínio do meu dom. Ninguém nos verá. Andaremos livremente pelo castelo. – explicou e manteve uma das mãos de Matilde sobre seu ombro. – Assim, verá que é a forma mais adequada de andar pelo castelo em nossa situação.

       -Eu... – Matilde achava que a jovem era louca. Agora estava confirmado isso!

       Mesmo assim, as duas saíram da torre. Andaram pelos corredores livremente, até passarem por Molly, e Liara que levava pela mão o pequeno Marmom. Elas passaram bem ao seu lado, e não a viram. Menos Marmom que podia fareja-las. Matilde estava tensa, mas Joan explicou:

       -Marmom não pode nos ver, mas fareja meu cheiro de fada. É algo da nossa raça. As criaturas mágicas se farejam.

       -Meu neto é humano. – Matilde disse com a proteção de uma leoa diante de sua cria.

       -Não, ele não é. E jamais será feliz entre os humanos. Sua raça é peculiar, Matilde. Marmom não é filho de Rowell, ou da duquesa Sophie. Ele tem uma mãe, que chora sua falta e faz de tudo para protegê-lo, mesmo que a distância. Vai chegar o momento em que a verdade virá à tona e você deve apoiar Rowell e não causar-lhe mais sofrimento!

       Como esperado a represaria a Matilde a fez soltar de Joan e acelerar o passo. Ninguém estranharia vê-la andando livremente pelos corredores. Estressada com Matilde, Joan acelerou o passo e a encontrou diante da porta da condessa. As duas entraram e Joan sorriu ao ver a guardiã caída no chão.

       -Eu deveria ter pensando nisso antes, teria me livrado dessa daí bem mais cedo... - disse pensativa, olhando para Zoé com nojo. - Ela está apenas adormecida, não é? – perguntou abaixando-se para checar que ela respirava.

       -Sim... Oh, Deus – Matilde continuava de pé, e apoiou as costas na porta fechada encarando a imagem da fada caída no chão.

       Mais precisamente encarando suas asas.

       -São lindas não é? – Joan tocou as estruturas rugosas e macias e sorriu – É uma pena que Zoé desperdice tanta beleza sendo amarga. – era uma contemplação melancólica da realidade.

       -Eu nunca pensei que veria uma criatura dessas assim... Tão de perto. – Matilde confessou sua face lívida de sentimentos contraditórios.

       -Você precisa ver as asas em funcionamento. Se tudo der certo... Posso trazê-la de volta para o castelo voando. – prometeu e gostou de ver a expressão de Matilde mudar de total amargura para uma esperança quase infantil.

       -Você voa? – a pergunta era boba, mas Matilde era humana e fazia sentido em sua cabeça.

       -Sim, agora vamos leva-la antes que alguém apareça. – pediu Joan ocultando o sorriso.

       Com cuidado para não machucar a guardiã, agarrou por baixo de seus braços, e Matilde pelos pés e ergueram-na. Era pesada e Matilde blasfemou com rancor:

       -Como pesa essa cobra.

       -Fada – corrigiu Joan tentando sorrir – Cobras não voam.

       -Mas abutres sim – Matilde corrigiu.

       Joan sorria enquanto mantinha seu lado perigosamente perto do chão, pois lhe faltava força física para carregar Zoé e ainda manter intacto a camuflagem que induzia olhos alheios a não verem nada além de corredores vazios, enquanto percorriam o castelo e tiravam Zoé de lá.

       Felizmente Matilde não mentira sobre conhecer muitos caminhos secretos para sair do castelo. Horas mais tarde, finalmente deixaram a carcaça de Zoé no meio do mato, a um quilometro do castelo. Exausta, Joan apoiou-se na primeira árvore que encontrou e quase tombou para o chão, puxando ar, pois estava a mercê de um desmaio.

       -Precisamos voltar – Matilde estava coberta de suor, mas em melhor estado que Joan – Ela está acordando!

       Joan olhou para Zoé e sorriu. Aproximou-se e agachou-se diante dela, virando com delicadeza seu rosto moreno, para que a visse. Por olhos marejados e nublados ainda envolvida pelo sonífero, Zoé a enxergou e o medo tomou conta de seus olhos.

       -Sim, sou eu, Zoé. A ratinha imunda que você pode destruir com o poder de suas mãos. Sabe, o que você fez comigo não tem perdão. O medo, a coação, a perseguição. Você me deixou com tanto medo que eu desejei desaparecer da face da terra, e isso não é justo, pois o mundo pertence a todas as criaturas vivas, e não a você. Eu fui privada do meu dom, e das minhas asas, pois eu não podia contar com elas para me defender. E você? Basta-lhe contar com asas e dom? Um dom de revelar na me parece deveras útil e menos que seu oponente tenha algo a esconder... – Zoé tentou pronunciar seu nome e afastar-se, mas Joan segurou-a com força pela nuca e olhou bem dentro dos seus olhos ao dizer – Eu espero que aprecie o sentimento. Que desfrute da sensação de desamparo. Eu espero, que se torne alguém melhor depois disso. Que saiba que do lado fraco também há valor. – sem remorso, ela retirou a tiara que cobria a testa de Zoé e estendeu como um troféu para que Matilde visse – Um Guardião pode comandar sua armadura, não importa quantos pedaços faltem. Mas não uma fêmea. Driana me contou que as fêmeas não possuem domínio total de suas armaduras, por isso são raramente escolhidas. Eu me pergunto... Sua armadura a obedecerá sem essa tiara? – ela viu o pânico infiltrar-se pelas sombras do sono e levantou-se, levando consigo a tiara – Eu lhe desejo sorte, Zoé. Isto... – ela olhou para a armadura – Será um belo colar no pescoço de alguma humana depois de derretido e vendido.

       Com um olhar de prepotência, Joan virou as costas e Matilde a seguiu, embora apenada dos gemidos de Zoé que ainda afetada pela bebida tentava, mas não conseguia revidar ou lutar.

       Andando rapidamente, sem nunca olhar para trás, Joan ouviu a pergunta de Matilde:

       -Fará isso? Destruir essa coisa? – apontou a tiara nas mãos de Joan e ela sorriu, entre um gemido que parecia um quase choro, ela sorriu e negou:

       -Não. Eu nunca faria isso. Nunca. – era verdade. Entregaria aquele pedaço de armadura para o primeiro Guardião que encontrasse, ou para Eleonora.

       Mas não custava dar um susto em Zoé. Lutando contras as lágrimas, contra um choro de vingança e dor, pois lhe doía causar medo e coação a uma criatura viva, ela parou e olhou para trás como quem deseja voltar.

       -Em minutos aquela cobra estará de pé e virá atrás de você, - Matilde alertou-a.

       -Ela não poderá entrar no castelo, sabendo que estou com minhas asas sob meu domínio. Todos notariam nossa briga.  – Joan suspirou e escondeu a joia nas vestes e abriu apressada alguns botões do vestido, nas costas. – Nem todas as fadas podem esconder suas asas como eu faço. Tem haver com meu dom. – explicou olhando nos olhos de Matilde enquanto sentia suas asas escaparem de sua prisão.

       Era um alivio sem precedentes.  Algo que para ela era normal, para Matilde era inacreditável.

       -Então? Não vai dizer que minhas asas são pavorosas? – ela perguntou, sem querer admitir que sua opinião lhe importava.

       -Se você ficar com meu filho... Como serão os filhos? Terão... Asas? – Matilde mal respirava, vendo asas abertas e em toda sua glória. Apesar de curtas, as asas de Joan eram inquietas e belas.

       -Eu não sei responder essa pergunta. Até onde sei é imprevisível. Se a natureza favorecer minha raça, as fêmeas terão asas, se forem machos, terão orelhas pontudas e olfato e força acentuada. Mas a raça humana pode ser favorecida e serem crianças totalmente humanas. – confidenciou.

       -Isso não é aceitável – Matilde foi taxativa.

       -Eu imaginava que diria isso. – Joan revidou incomodada em ser rejeitada por ser o que era – Voltará andando? – perguntou com um olhar esperançoso.

       -Que Deus me ajude, eu quero saber como é... – Matilde olhou para o céu e então para as asas de Joan - Se você me jogar lá de cima... Eu nem sei o que farei com você!

       Joan pensou em apontar a incoerência de sua frase, mas preferiu ignorar e bater suas asas subindo o suficiente para estender os braços para Matilde e a humana segurar-se em suas mãos e pulsos.

       Não foi um voo alto, Joan não possuía muita força, mas foi o suficiente para encantar o coração ferido de Matilde e leva-las de volta rapidamente para o castelo...

       Em sua empolgação, Joan não viu a carroça que cortava a estrada, levando Driana e Acheron, pois era prudente manterem o disfarce. De volta ao castelo, Matilde apressou-se a sumir, pois não queria lidar com a fada Joan. Decepcionada com essa rejeição. Joan voltou para a torre. Naquele frenesi levou um susto ao descobrir que Rowell a aguardava na torre. Ficou parada na porta, encarando a figura solitária que observava o céu através daquela pequena janela.

       -Rowell - ela chamou baixinho. Camuflou suas asas. Não sabia o que fazer.

       Era assim, estava lívida diante dele.

       O modo como o duque a olhava era de partir o coração.

       -Eu achei que tinha partido para sempre – ele disse com algo no olhar que a fez culpada – que houvesse desaparecido para sempre.

       -Não, eu lhe disse que mesmo partindo, ainda assim, eu voltaria.  – ela defendeu-se – você me prendeu, Rowell. E não acredita em mim quando digo que não estou louca. O que esperava que eu fizesse? Ficasse aqui esperando Zoé tomar tudo que é meu? Minha liberdade, meu humano, e minha vida? Não, eu precisava fazer alguma coisa por mim mesma. O tempo de ser cuidada passou.

       -Como eu posso ouvir esse tipo de coisas e ainda acreditar em você? – ele perguntou, magoado – Eu não sei em quem a creditar. Eu não sei quem você é, Joan. Eu não sei. E mesmo assim, algo me diz que isso não faz a mínima diferença. E isso é loucura. Ou estamos ambos loucos, ou ambos sãos. Eu preciso saber da verdade.

       -Rowell, eu não tenho tempo para lidar com brigas. Eu descobri que muitas coidas ruins estão acontecendo pelas nossas costas. Eu preciso ir embora. Eu... Somente voltei ao castelo para lhe provar minha palavra e mostrar quem eu sou. Depois eu preciso partir.

       - Isso não é justo, Joan. – ele aproximou-se, mas Joan afastou um passo para trás e ergueu a mão para impedi-lo de chegar mais perto – está me repudiando?

       -Não. Eu estou dizendo que entrei em seu mundo, Rowell, eu entrei sem pedir permissão e sem avisar, eu menti e escondi quem eu sou, e isso causou toda essa confusão. Agora, é justo que você entre em minha vida, mas sabendo previamente onde está se metendo. Se quiser me mandar embora do seu coração depois que me conhecer como realmente sou, eu vou entender. – ela baixou os olhos com receio – Mentira, não vou entender. Nem aceitar, mesmo assim precisa ver com seus próprios olhos ou nunca acreditará em mim!

       Rowell enxergou a dor em sua face, saber que seu amor não é suficiente para que a confiança seja absoluta.

       -Joan, se eu não fosse um duque e não possuísse uma família para proteger... Pessoas que dependem de mim e da minha proteção... Eu não hesitaria um instante em acreditar em você. – ele a segurou, enlaçando os dedos nos seus, em sua mão direita, olhos nos olhos. – quem você é de verdade, Joan? Apresente-se a mim, eu quero conhecê-la.

       Emoção embargou a garganta de Joan e ela apertou sua mão com força, e piscou, afastando a emoção e as lágrimas.

       -Lembra quando você me chamava de ‘fadinha’? O carinho que você usava para me chamar assim? – perguntou soltando sua mão e andando pelo quarto, pensativa.

       -As fadas são pequenas e delicadas, não são? Como você. Elas cabem na palma da mão e possuem asinhas coloridas. Eu já li contos de fadas sobre elas para que Alice dormisse. E também, as fadinhas sorriem como se o mundo fosse feito de bondade e alegria. E é assim que eu a vejo. Do tamanho da palma da minha mão - ele olhou para a própria mão, com carinho – É isso que você é, Joan? Uma fadinha do campo, pousada na palma da minha mão?

       Era uma visão romantizada, e ela mal podia evitar as lágrimas;

       -Não – negou e em uma das voltas que fez pelo quarto, permitiu que suas asas se revelassem – Eu não caibo na palma de sua mão, Rowell, eu caibo em seus braços, completamente em seus braços abertos. – explicou, sem negar que era uma fada. – Afastei Zoé e seu dom, agora posso mostrar quem sou.

       Sim, finalmente, pensou Joan.

       Rowell correu os olhos pela figura a sua frente. Ainda era a sua Joan. Pequenina, delicada, com os olhos mais puros e verdes que ele viu em sua vida. Os mesmos cabelos longos e vermelhos. As mesmas sardas atiçadas pelo sol na pele clarinha. A mesma boca úmida e suculenta. O mesmo cheiro de mato e água fresca.

       A mesma Joan. Com exceção de asas de borboleta em suas costas, era sua primeira descrição, pois não conhecia outro inseto ou animal que possuísse asas, além de lindas borboletas e passarinhos coloridos. Curtas, fartas e vermelhas. Eram assim as asas de Joan.

       -Eu fiz a maior besteira da minha vida – ele disse exasperado ao se conscientizar disso.

       O encanto se quebrou e Joan mal acreditou no que ouviu sair da boca de Rowell.

       -É verdade, você é uma fada –ele afirmou para si mesmo.

       Envergonhada ela se encolheu e disse:

       -Eu vou embora, deve ser melhor assim... - esperava a estranheza e quem sabe um pouco de medo, mas nunca uma confissão de erro. Tudo que viveu em seus braços não poderia ter sido um erro!

       -Eu fiz algo errado sobre você, Joan - ele tentou toca-la, mas sua mão esbarrou em sua asa quando ela se virou - São macias... Como sua pele. - ele deslizou os dedos pelas estruturas delicadas e o encanto em seu olhar confundiu Joan - Achei que estivesse protegendo-a, mas estava errado. Precisa saber que o que fiz, foi achando que a protegia - ele disse exasperado.

       -Não está dizendo que ficar comigo foi um engano? - ela perguntou quase sem voz depois desse susto!

       -E como poderia ser um engano? - ele mantinha a mão sobre a estrutura de suas asas, mas os olhos nos seus, em um olhar carregado de confiança e sentimentos profundos - Eu não sei como expressar o que estou sentimento nesse momento. Eu nunca vi um milagre diante dos meus olhos. Eu não...

       Joan pousou os dedos da mão em seus lábios calando as palavras de Rowell.

       -Eu não sou um milagre, Rowell. Sou real, sou como você. Em sua espécie, é um humano de valia. Na minha espécie, sou uma fugitiva que agora sabe que é livre, mesmo assim, tem responsabilidades com sua raça. Eu preciso ir e encontrar ajuda e salvar a todos nós.

       -Não vai partir sozinha, é tempo de Edward, meu irmão, tomar frente do ducado. Ele não pode se esconder por trás de uma garrafa de vinho para sempre. Eu irei ajuda-la, não vou deixar que corra perigo!

       -Não! - ela negou veemente - Não! Seu irmão não pode ficar cuidando de sua família! Eu sinto muito, Rowell, mas tenho minhas razões para não confiar nele!

       Não iria lhe contar agora, era tudo muito sórdido para merecer atenção. A prioridade era avisar Eleonora do risco que se abatia sobre sua cabeça!

       -Vieram busca-la, Joan. Como você disse que aconteceria - ele contou e pela expressão de Joan, era claro que não esperava por isso.

       Acreditava que não seria abandonada, mas não esperava que fosse possível prioriza-la dentro daquela situação toda.

       -Quem? - a pergunta soou frágil.

       Joan deslizou a mão pelo braço de Rowell, e apoiou-a em seu ombro, precisando ser segura, pois a emoção fragilizava seu corpo, tanto quanto sua alma.

       -Uma mulher chamada Driana e seu noivo Acheron - ele respondeu e ela soltou um riso de surpresa e alivio.

       -Driana! Eu esperava por Alma, mas deveria saber que Driana me acharia mais facilmente! Ela não é mulher, Rowell, é fada como eu. E Acheron... É um elfo, um Guardião. 

       Ela encostou a cabeça em seu ombro e Rowell sussurrou em seu ouvido:

       -Eu não sei como toca-la, Joan. - era uma confissão deliciosa de ouvir. Tanto cuidado e carinho, a fez erguer os olhos e sorrir como quem pede um beijo.

       -Somente você sabe como me tocar, Rowell - confidenciou. - Não tenha medo, minhas asas não quebram. - seu sorriso alargou-se - continuo sendo a mesma fêmea que conheceu. Eu já tinha minhas asas quando me deitei com você. Isso não muda nada entre nós.

       -Eu mandei sua amiga embora, tive medo que estivesse aqui para machuca-la. Perdoe, eu não sabia de nada. Na dúvida, optei por conserva-la longe do perigo. - ele encostou os lábios em sua testa e envolveu-a com os braços inclusive suas asas que Joan fechou e manteve junto das costas.

       -Você mandou Driana para a vila, não foi? - deduziu - Ela ficará inconformada quando descobrir que alguém conseguiu ludibria-la. - riu contra seu peito, escondendo assim a emoção que sentia - Me leve até Driana. Depois disso estarei protegida, lhe juro. Eu vou, mas volto para você. Quero que fique e cuide de sua família. Eu quero os dois mundos, Rowell, e não fazê-lo escolher um dos lados.

       Rowell queria acreditar nisso.

       Mas temia soltar o aperto dos braços e perde-la. Depositou todo seu amor e esperanças em uma criatura com asas e importância maior que a dele.

       Se Joan partisse para sempre, o que seria dele?

       Era um abraço de muito mais do que amor, era de necessidade. Rowell a fez erguer o rosto e a beijou. Uma tentativa de selar aquele momento, e acalmar ambos os corações. Aquietar o medo de que as diferenças entre os dois mundos, tão distintos, pudessem separa-los para sempre.

       Para Joan aquele beijo representava aceitação de sua espécie e uma promessa de esperança para os dois. Talvez por isso seu coração estivesse expresso em um beijo apaixonado.

       Estavam tão envolvidos que quase não ouviram as batidas frenéticas naquela porta. Era Liara aos gritos, chamando pelo duque.

       -O que está acontecendo? - Joan perguntou, sendo colocada de lado, como se Rowell não quisesse que a vissem. Mais do que rapidamente ela camuflou suas asas, pois não mais desejava esconde-las dentro da pele. Era muito perigoso, pois Zoé poderia se recuperar e querer vingar-se e Joan não desejava ser pega de surpresa.

       Liara parecia em choque. Ela falava sem parar sobre algo que aconteceu em um dos corredores abertos do castelo próximo a uma das guaritas onde ficava um dos arqueiros.

       -Foi Molly quem viu, senhor - dizia Liara, engasgando com o choro.

       -O que Molly viu? - ele perguntou olhando para Joan com receio de alguém ter visto-a com suas asas.

       -Uma criatura surgiu do nada... Foi Molly quem viu! Eu não vi nada! - seu horror desmentia essa afirmação. Temia ser tachada de louca também - Quase pegou o menino, mas avançou sobre Alice...

       A mera menção do nome de sua filha tornou Rowell outro homem.

       As duas precisaram correr para acompanhar sua corrida para fora da torre e pelo castelo.

       Matilde encontrava-se no lugar indicado por Liara e consolava Molly. O pequeno Marmom e o irmão Tommy estavam ao cuidado de outras criadas, em segurança.

       -Onde está Alice?  - ele perguntou vorazmente.

       -A criatura a levou! Foi horrível! Surgiu com suas imensas asas brancas e arrastou a menina de perto de mim! Foi horrível, senhor, foi horrível! - Molly chorava enquanto contava. - Eles foram para lá! - ela apontou um ponto qualquer nas montanhas e Rowell olhou para Joan em busca de reconhecimento.

       -O que vai fazer, Rowell? - perguntou Matilde, esquecida de sua costumeira formalidade. Era sua neta, e o desespero suprimia qualquer estúpida regra que ousasse ter contra familiaridade entre mãe e filho.

       -Trazer minha filha de volta, custe o que custar - ele avisou, e puxou Joan pelo braço, para longe, depois de ordenar sobre levarem as crianças para o quarto do duque e ordens sobre mais segurança.  - Sabe para onde levaram Alice?  - ele perguntou, lutando contra o desespero.

       -Pela localização que Molly indicou... Só pode ter sido levada para o castelo do Rei Isac... Da rainha Eleonora - disse rápida, quase se confundindo - Rowell, - fez ele para e disse - Eu tenho uma ideia de quem pode estar por trás do sequestro de Alice, mas você precisa acreditar em mim e aceitar ajuda.

       -Eu acredito em você. - ele concordou - Pode parecer que não, mas acredito.

       -Driana e a Acheron podem ajudar a trazê-la de volta, mas eu preciso acha-los e enviar um recado para... - as palavras iam feri-lo, mas precisavam ser ditas -... Para a mãe de Marmom. A verdadeira mãe. Ela pode ajudar a proteger o forte na sua ausência. Porque se levaram Alice para o Monte das Fadas... É um assunto que só você pode resolver. Por que... Envolve seu irmão. Eu não posso falar mais nada agora. Vem comigo, eu posso nos levar para o vilarejo em minutos.

       Ela disse e revelou suas asas abertas e bateu-as com precisão tirando os pés do chão.

       Do alto, estendeu uma das mãos para Rowell e esperou.

       Era hora de saber até onde ia à confiança do Duque Mac William em relação a fada Joan...

         

       Joan mantinha um voo baixo, pouco acima de um metro, para acompanhar as passadas de Rowell. Infelizmente lhe faltou força para dar conta de percorrer todo o caminho até a vila dos aldeões carregando-o. Rowell não estava chateado em ter que andar, pelo contrário ainda parecia administrar o fato de ter percorrido quilômetros mata a dentro voando sobre a copa das árvores.

       Ele olhava para ela o tempo todo e Joan meio que esperava que dissesse algo sobre isso. Afinal, a mulher que o fez apaixonado pela primeira vez em toda sua vida nesse exato momento batia asas e voava ao seu lado, como se isso fosse à coisa mais natural do mundo.

       Sua filha adorada sequestrada por uma possível criatura com asas, quem sabe uma fada. Aquilo era complicado demais para alguém compreender e aceitar em tão pouco tempo. E de um modo estranho, fazia todo sentido do mundo.

       Joan e suas respostas esquivas sobre sua vida, e sua chegada abrupta ao forte, fugindo de algo ou alguém que ele não sabia identificar. Seu comportamento sempre ambíguo, seu modo de falar e agir. Seu jeito especial, distinguindo-a de todas as demais mulheres que ele conheceu.

       As várias conversas estranhas de Alice sobre sua mãe voltar para busca-la com lindas asas e promessas de conhecer o mundo ao seu lado. Aquilo sempre o preocupou, pois achava tratar-se de saudade e delírios de amor por sua mãe perdida tão prematuramente. Mas não era nada disso, alguém lhe fazia promessas e enganava sua cabecinha e seu coração. Alguém com asas, uma fada provavelmente.

       -Quais os tipos de criaturas que possuem asas você conhece, Joan? - ele perguntou afinal, depois de tanto silêncio.

       Um suspiro de desgosto e ela respondeu:

       -Fadas, apenas fadas possuem asas, Rowell. Elfos nascem com outras características. Eu não sei de outras criaturas que possam ter asas. Driana deve saber se existem outras, mas no caso de Alice, eu tenho certeza que foi uma fada - explicou envergonhada.

      Desceu de seu voo e tocou os pés no chão, para ficar mais próxima dele.

       -Está acontecendo uma revolução em meu mundo, e muito antes de nos atingir, já atingia o seu mundo, Rowell. Pode parecer loucura, mas a causa da nossa desgraça começou entre os humanos.

       Rowell parou de andar e ela encostou os dedos nos seus, enlaçando sua mão na dele.

       -Não faça perguntas agora, não vale a pena perder tempo falando disso. Cada segundo que conversamos é tempo perdida na busca por Alice e... Na minha busca por ajuda ao meu mundo. Precisamos encontra Driana e Acheron. Ele é Guardião. Ele pode fazer por nós o que sua espada não pode, Rowell. Ou minhas asas. - explicou.

       -É a minha filha. Eu já não sei se tenho um filho perdido, se trocaram meu filho por Marmom. Já não sei se também vou perder Marmom por causa disso. Eu já não sei de mais nada. Não posso pensar em abrir mão de Alice, ou deixar essa responsabilidade nos ombros de outro.

       -Não é um outro qualquer, Rowell. É um Guardião. É dever proteger e amparar aqueles que necessitam de ajuda. Se uma fada sequestrou uma humana, ainda mais uma criança, não importa a raça, um guardião deve procurar e salvar a criança.

       -Um Guardião? Que não protegeu uma de suas fadas e vai salvar a minha filha, que não é de sua raça? Eu acho que não, Joan, - ele apertou sua mão com carinho, mas soltou-a, em um claro sinal de que se afastava não apenas da conversa, mas também da fada.

       Lhe faltou palavras para tentar convencê-lo do contrário.

       Como imaginava, e até esperava, as diferenças de pensamento e de vida os separariam. Por um momento essa certeza foi tão forte que vendo Rowell afastar-se pela estrada, com passos rápidos, ela pensou em desistir de tudo. Do amor, da salvação, da ajuda. Simplesmente jogar tudo fora e desaparecer.

       Baixou o rosto e fechou os olhos com força. Quanta tolice. Se o amor fosse fácil, não seria tão raro.

       Neste momento de confusão e disparate, Joan chegou a bater suas asas e tencionar levantar voo para emparelhar com Rowell, pois depois de obter suas asas era bem mais aprazível voar, do que caminhar e menos cansativo também, pois ela nunca foi muito resistente em longas caminhadas. Mas nunca chegou a sair do solo.

       Algo agarrou sua canela e a segurou para baixo. Joan gritou ao cair e Rowell virou a tempo de ver algo pequeno e rápido soltar a canela da fada, que jazia agora caída e retirar algo das vestes.

       Algo pequeno, meio metro no máximo, caso chegasse a tanto, com uma juba vermelha que parecia sair de todos os lados, cabeça, pescoço e afins. Sua bocarra revelava dentes enormes e pontiagudos, e Rowell sacou a espada e derrubou a pequena criatura no chão ante que pudesse ferir Joan.

       Rápido, o animal fugiu e Rowell lutou para alcança-lo. Era humano e não detinha dons ou força extremada como elfos, mas era sagaz na luta e tinha um bom olho para caçar.

       A espada sob o queixo do animal o paralisou. Normalmente Rowell não fazia perguntas ao ser atacado, ou defender um dos seus.  Lâmina estava por um fio de derramar sangue, quando o grito de Joan pedindo clemência o distraiu por um segundo. Era uma criatura mágica e ela não concebia a ideia de ver isso acontecer.

       Mas de fato o que o parou foi um rugido e uma fera partindo para cima dele. Rowell nem viu de onde veio o elfo, mas foi derrubado pelo peso do monstro de músculos e gritos de animal. Acheron era exímio lutador, e na pressa de defender Mikazar se esqueceu da espada e investiu como faria um urso, típico de sua terra natal. Cabeceou o humano, que caiu no chão.

       A partir daí a luta física começou. Um soco inesperado tonteou Acheron, mas ele era bom em imobilizar seus opositores e quase conseguiu fazer isso com Rowell. Acabaram os dois longe um do outro, separados por um metro de estrada, enquanto Acheron retirava a pesada espada da cintura, Rowell fazia o mesmo com sua lâmina forjada por um artesão de seu forte, que preparava as mais resistentes e belas espadas de toda região.

       Os dois machos, humano e elfo enfrentavam-se, olhos nos olhos, quando Acheron foi atacado pelas costas, algo que agarrava em seu pescoço e tencionava levanta-lo do chão.

       Era uma fada! Atacado por uma fadinha diminuta! A pequena conseguiu embaralhar seus cabelos logos e louros e arrancar-lhe um brado de dor com os puxões, mas não conseguiu arrasta-lo um milímetro do chão que fosse.

       Indignado ele segurou as canelas da fadinha e a puxou para baixo, mas não conseguiu derruba-la, pois ela desapareceu diante de seus olhos, assustado, Acheron soltou-a. Sentiu um empurrão nas costas e usou a espada no ar, tentando atacar quem o atacava de volta.

       -Pare! Pare, Acheron! - ogrito veio de entre as árvores, de uma fada que voava com perfeição, com rapidez e determinação, com longas asas negras, surgidas de filamentos pontiagudos, lindos e únicos - Pare!

       Os berros e Driana o fizeram parar na mesma hora, e mesmo assim manter sua postura de luta, espada em risque.

       A fada que o atacava se revelou e parou de ataca-lo, parando no ar.

       -Joan! - o grito de Driana, revelava tanto desespero quando o que obrigava Joan a descer ao chão, pois a emoção atrapalhava manter seu ritmo de voo.

       O cansaço e o esforço de atacar Acheron também acabavam com suas forças.

       -Parem de lutar agora! - Driana desceu ao chão e gritou para os dois, colocando-se entre eles - Guardem as espadas! Enlouqueceram os dois?

       Seu berro furioso foi respondido na mesma medida por Acheron, que tinha esse péssimo hábito de resolver todos os seus conflitos com berros:

       -Este humano mentiu para um Guardião! Escondeu a presença da fada em seu castelo! Ele começou!

       -Eu nem vou me dar ao desplante de responder isso - Driana disse furiosa.

       -Eu não menti por querer - Rowell disse no mesmo tom, arfante da luta - Eu protegia Joan!

       -De um Guardião? - Acheron parecia prestes a retomar a luta.

       -E porque não? Alguém precisava proteger a fada que sua própria raça vem caçando! - Rowell não colaborou atiçando ainda mais a briga.

       -Chega! - pediu Joan, voz falhando, olhos fixos nos dois elfos - Isso é culpa de Zoé! Ela espalhou mentira sobre mim, ela fez todos pensarem que eu era louca! Ela confundiu Rowell com suas mentiras - ela estava prestes a chorar de angustia e susto depois dessa luta, que poderia ter sido mortal - Rowell só quer o meu bem! Ele só tem feito o que os guardiões não fizeram! - no último resquício de autocontrole ela gritava, apontando para Acheron, descontrolada e com os nervos a flor da pele - Vocês não me protegeram! Rowell sim!

       -Oh, Joan... - Driana correu até ela e tentou abraça-la - Oh, querida, eu tentei acha-la de todos os modos. Eu sei que demorei demais, me perdoe, mas sempre que nos aproximávamos alguma luta aparecia, algum imprevisto surgia... - Driana tocou seu rosto, e Joan olhou em seus olhos, lágrimas correndo em sua face - Eu tive tanto medo de não chegar a tempo, Joan. - ela puxou sua amiga para um abraço e Joan agarrou-se a suas roupas com o desespero de quem nunca achou que conseguiria.

       Com a garganta engasgada, Rowell olhava para as duas juntas, e de repente tudo fazia sentido. Humano ou mágico, a emoção é a mesma. Baixou a espada e afastou-se alguns passos, sem saber se havia mesmo espaço para ele na vida de Joan.

       Bastava olhar para o elfo Acheron para saber que a diferença entre humano e elfo era enorme. Será que com o tempo ela não sentiria falta da continua convivência com sua raça?

       -Acalme seu coração, Joan. Eleonora esta salva. Alma está em segurança. Acharemos Tubã e eu tenho certeza que ele também está bem. - Driana dizia com a voz embargada - Acabou. O medo acabou, somos fadas livres, querida. Livres.

       Joan ergueu a cabeça e olhou nos olhos de sua amiga. Não queria ser ela portadora de tão trágica notícia. Não era justo que justamente ela tão frágil de saúde e força precisasse portar essa responsabilidade!

       -A guardiã Zoé está na floresta. - e afastou-se e olhou para eles com sofrimento estampado na face - Matilde e eu a dopamos e levamos para a floresta - ela notou o modo como Rowell a olhou com pasmo e nem tentou explicar - Eu fiquei com isso - ela retirou a parte da armadura que roubara. - Isso não me pertence. Eu não quero ficar com isso.

       Sua mão tremia ao erguer a tiara de ouro. Acheron adiantou-se para tirar essa responsabilidade das mãos da fadinha.

       -Está tudo bem, Eleonora irá resolver tudo isso, Joan. Não se preocupe. O mal entendido entre fadas da clausura e guardiões está explicado e Zoé entenderá. - Driana achava ser esse o problema, e que sua antiga rincha com a Guardiã selvagem fosse à causa de sua dor.

       -Não é isso. Driana, não é nada disso. O que a rainha Santha fez não foi nada comparado com o que está acontecer. Lucius criou uma luta maior, e fomos a distração para que isso acontecesse! - exasperou-se.

       Esse sentimento a fez procurar distância de Driana e Acheron. Era sua melhor amiga, mas ela não sabia como começar a contar as desgraças e acabar com a felicidade que via no rosto de Driana.

       Apesar de não ser sua intenção, Joan afastou-se para perto de Rowell e silenciosamente pediu que segurasse sua mão. Ele o fez, mas ela sabia que algo não estava bem.

       Driana não gostou nada de ver sua amiga perto do humano. Sua mente privilegiada entendia toda a situação sem precisar de palavras. Joan criara um vínculo o humano, algo comum quando um dos envolvidos está emocionalmente frágil e dependente de afeição, como era o caso de Joan.

       -Vamos conversar sobre isso, Joan, em outro lugar apropriado, que não seja entre os humanos - ela disse e estendeu uma das mãos em sua direção.

       Como se Joan pudesse escolher entre um ou outro.

       -Não, Driana. A filha de Rowell foi levada por uma fada. Por uma de nós!

       -Isso não é possível - foi Acheron quem estranhou - Fadas e humanas não se misturam. Tem sido assim por séculos - havia um tom de aviso na voz do elfo e Joan maneou a cabeça.

       -Infelizmente isso não é verdade. A raiz de toda a nossa desgraça começou a partir de humanos aliados a elfos.  Um elfo e um humano envolvidos no mesmo plano! Então, Driana, por mais que eu a ame, não haja com superioridade de raça em relação à Rowell!

       -Eu não faço isso, Joan! - Driana negou imediatamente chocada.

       -Ah, você faz isso o tempo todo, mesmo entre os de sua raça - disse Acheron - Como sabe que o sequestro foi realizado por uma fada? - ele tomou à dianteira.

       Joan baixou o rosto, envergonhada.

       -Eu sei muitas coisas. É injusto que as informações tenham vindo parar justamente em minhas mãos... Mas, existe uma líder do povo lagarto - ela tinha até medo de olhar para Rowell e saber o que ele pensava ouvindo tudo isso - ela me contou detalhes do que acontece. Lucius arquitetou uma tomada de poder junto a um humano. Um humano que caça fadas há anos, e contrata Caçadores de Fadas em troca de ouro. - ela mal podia olhar para Rowell ao contar isso!

       -Solon falou sobre isso, a fada Alma foi sequestrada por um elfo que caçava em nome de um humano - lembrou Acheron.

       -Alma está bem agora, não é? - perguntou Joan assustada com essa informação.

       -Sim, ela está na companhia do Guardião Solon, no Vilarejo sem Fim. Ela está bem e feliz - garantiu Driana sabendo exatamente o medo que afligia Joan. - Ela não cometeu nenhum ato repreensivo, Joan, não se preocupe com Alma. Você precisa contar tudo que sabe. Tenho certeza que os acontecimentos só parecem sérios. A menina humana deve ter ido passear sozinha... Os humanos fazem isso, Joan. Entram na floresta sem conhecimento algum da natureza e se perdem. Eles não respeitam nosso mundo ou o entendem...

       -Driana - surpresa pelo preconceito que encontrou em sua amiga, Joan mal acreditou que essas palavras saíssem de sua boca - logo você tão intelectual pensar esse tipo de coisa? Alice é uma menina ainda! Ela não tem permissão para sair do castelo sozinha! Os humanos não entram na floreta por desrespeito, e sim necessidade! Se não podem ou não querem nos ajudar, ao menos não nos atrapalhem! - ela jogou com essa verdade - Estamos perdendo tempo com essa conversa fiada!

       -Joan! - surpresa, principalmente porque sua pequena Jon viraria mesmo as costas para ela, Driana a alcançou e segurou pelo braço - Me desculpe. Eu nunca convivi com os humanos. Perdoe-me. Conte-nos o que sabe. Não aceito que precise procurar ajuda em outro lugar!

       -Venha, Joan, sua amiga não quer saber dos meus problemas - Rowell tomou partido e pelo modo como as pessoas mais importantes da vida de Joan se olhavam, ela soube que não podia aceitar esse antagonismo todo.

       -Isso é inaceitável! Eu não vou a lugar algum com quem não acredita em mim! E isso serve para você também Rowell!

       Uma vida toda sendo oprimida, e agora que era livre, e por isso, não aceitaria continuar nesse trajeto de humilhação e submissão.

      -Joan - a voz de Driana soou magoada, e ela aproximou-se da fada ruiva, enquanto suas asas eram recolhidas em suas costas, tornando-as um aspecto de 'dobradas'. - Eu nutri um desespero por encontrá-la e durante todas essas semanas de afastamento, eu só pensei em encontrar você e as outras. Eu não posso conceber que me afaste depois de tanta luta. Eu acredito em você. Não pense o contrário. Mas é muito difícil ter que lidar com os humanos, quando eu nunca pensei sobre eles. O mesmo deve acontecer com o humano Rowell - ela olhou de esguelha para o duque. - Me perdoe por parecer arrogante. Tudo que eu desejo é tê-las nos meus braços e protegê-la, preferencialmente levando-a daqui em segurança.

       -Rowell não é um humano qualquer, Driana. É o meu humano. Respeite-o. - Joan respondeu igualmente magoada.

       -Não - Driana sorriu condescendente - É um humano. E você é uma fada. O que quer que tenha acontecido nesse meio tempo... Deve ser pensado com calma. Não se deve misturar as raças sem a certeza absoluta do que isso significa - Driana ponderou.

       -É um pouco tarde para dizer isso não é? Eu já sei o que significa. - Joan foi firme em sua decisão.

       -Ignore as palavras de Driana. Ela pensa mais do que sente - disse Acheron com tom de aviso, olhando para a sua fada escolhida com algo de recriminação - Conte sobre o que sabe, fada livre. Não me interessa com quem se deita, e sim o que você sabe.

       Driana revirou os olhos revoltada com essa agressividade animal. Típico de Acheron. Olhando desconfiada para o humano, e sabendo que era olhada do mesmo modo, Driana esperou que Joan falasse tudo que sabia.

       -Zoé tem me caçado desde o dia em que me escondi no castelo. Eu achei que ela fosse meu maior problema, mas isso não era verdade - disse tensa - A duas noites eu fui levada do forte. - olhou para Rowell que ficou surpreso com essa revelação - Eu fui sequestrada e levada para um lugar escondido na base do penhasco. Um humano me levou para ser... - quase lhe faltou o ar ao lembrar-se disso - Eu fui levada para uma fêmea da raça dos lagartos. A líder das fêmeas. Helana é seu nome. - contou.

       -Sim, esse é o nome da líder. Ela tomou o poder quando os machos foram extirpados após uma peste devastadora - disse Acheron.

       -Não. Não, isso é mentira! Nunca houve uma doença que pudesse extirpar essa raça! - Driana surpreendeu-se e revoltou-se com a falta de conhecimento de Acheron - A imunidade física dos corpos dos lagartos são praticamente impenetráveis! Doença alguma poderia extinguir todos, ainda mais, por seleção de sexo!

       -Driana está certa. Essa foi uma desculpa inventada para impedir que soubessem da verdade. Os machos da raça foram eliminados. As fêmeas ficaram a mercê de um algoz. Um humano que tem usado as fêmeas para cometer crimes e agir sob suas ordens.

       -Eu não acredito nisso. Como ele poderia controla-las?  - Acheron duvidou.

       -Muito simples: ele guardou um único macho da espécie. Um único puro de sangue. A única chance de no futuro a raça se perpetuar sem miscigenação. Acho que mesmo os humanos sabem o que isso significa.

       Rowell a segurou pelo braço de um modo que deixava claro ter chegado à conclusão de quem era esse último exemplar masculino da espécie.

       -Eu sinto muito, Rowell. Marmom é um bebê ainda, tem poucos anos de vida, e é criado entre os humanos, por isso Helana não pode invadir o forte e resgatar o próprio filho. E também, ela teme um massacre de suas fêmeas caso faça isso. A pobre fêmea teve o filho roubado, teve a família destruída e ainda por cima, luta como pode para manter sua espécie viva!

       -E você disse que tudo isso aconteceu por conta de um humano? - Driana via o sentido naquela história. Tudo parecia se encaixar.

       -Helana me contou que há anos esse humano encomenda fadas, e usa as asas das pobres infelizes para... Uma humana vem tentando apropriar-se das asas de fada. Não me perguntem como isso poderia acontecer, mas é por causa disso que ele vive uma vida dupla.

       -Ele quem? - a pergunta soou dura.

       Joan esperava por isso. Olhou nos olhos de Rowell e pousou uma das mãos em seu queixo onde a barba começava a pinicar. Ele estava bastante abatido desde que a prendeu na torre, achando que era para seu bem e recuperação. Um homem tão honesto e doce e que não merecia essa decepção.

       -Eu acho que você já sabe de quem eu falo - ela disse doída de ser a causadora desse sofrimento - Edward.

       A expressão de Rowell confirmou que o duque já imaginava que seu irmão poderia estar por trás de algo assim. O duque era inteligente o bastante para juntar os pontos e deduzir que os sumiços de seu irmão e suas desculpas esfarrapadas poderiam facilmente esconder algo obscuro. Além disso, é preciso uma grande obscuridade na alma para justificar um vicio tão permanente e intenso quanto o que Edward alimentava, sempre bebendo.

       -Edward me levou para Helana, achando que ela estava do seu lado para tudo. Mas nos aliamos contra ele. Eu dei uma esperança para Helana e ela apegou-se a isso. Ele ordenou que cerrasse minhas asas. Depois poderia me matar ou jogar na floresta. - contou revivendo aquelas lembranças e aquele medo. Olhou para o Guardião e disse - Edward é irmão do Duque Mac William.

       -O mesmo humano que nos despistou para não encontra-la - Acheron disse com empáfia, ainda desconfiado do humano - E querem me convencer que ele é inocente?

       -Não deve ser muito difícil convencê-lo do que quer que seja - Rowell retribuiu na mesma moeda agredindo o Guardião - Eu sabia que Joan era caçada, só não sabia por quem. Eu não estava errado ao deduzir que vocês dois são perigosos.

       -Rowell, não diga isso - Joan ficou incomodada, mesmo assim não saiu do seu lado. - Eu espero que as pendências entre raças não se sobressaiam a necessidade de avisar Helana que um dos guardiões está do nosso lado e que agora podemos avisar Eleonora do que está acontecendo!

       -Infelizmente é precioso mais do que isso para evitar uma tomada de poder - Driana disse pensando no assunto com sua mente privilegiada. - É preciso um plano. Primeiro de tudo, encontrar esse humano chamado Edward. Descobrir os detalhes da tomada do poder. Encontrar Egan em primeiro lugar. Avisar o guardião Solon. Não podemos impedir uma revolta com apenas um humano, um Guardião e duas fadas. - ela foi taxativa.

       -Não reclame, Driana, querida, há poucas horas pretendia fazer isso contando com um humano e uma única fada - Joan tentou sorrir e Driana não pode evitar de fazer o mesmo.

       -É preciso voltar ao forte - Rowell definiu a situação - Primeiro, tentar encontrar Edward, se ele é responsável por tudo isso é provável que tenha fugido ao saber da chegada de um... Guardião - para ele ainda era novo conhecer esse ser e esse cargo - Se tudo começou dentro dos portões do forte Mac William, então é possível que muitas respostas ainda estejam lá.

       -Matilde? - Joan imaginou que fosse isso, por isso entrelaçou os dedos nos seus, e apertou sua mão com carinho - Rowell está certo, podemos começar pelo forte. Existem repostas esperando para serem conhecidas.

       -Isso não é inteligente - Driana negou - Lora precisa ser avisada do que acontece.

       -Não. Os Conselheiros estão vendidos, Driana. Os Guardiões que fazem guarda são todos jovens e inexperientes. Será um massacre ainda maior se tentarem lutar agora. Não sabemos o dia exato que invadirão o reino de Isac.  - foi Acheron quem completou.

       -Os Conselheiros podem estar confusos. - Driana apelou.

       -Você acha mesmo isso? Aquelas cobras peçonhentas são ressentidas com tudo. Sempre se organizando contra as leis do rei e tentando causar empecilhos para o trabalho dos guardiões. - Acheron discordou, olhando para o humano. - Mostre o caminho para sua terra, humano.

       -Como queira, elfo - foi à resposta no mesmo tom.

       Joan mal podia acreditar que os dois mundos se hostilizariam em meio a uma catástrofe. Que depois de tano esperar ser encontrada, precisaria enfrentar mais uma batalha de egos entre humanos e elfos. Ela podia entender o que acontecia na mente de Rowell sendo hostilizado por uma raça de poder superior, mas não conseguia entender porque um elfo se rebaixaria a responder.

       -Acheron não entende porque uma fada trocaria um elfo por um humano. É uma agressão ao ego de macho da raça - disse Driana aos sussurros.

       -Mas eu amo Rowell. Isso não deveria bastar para que o respeitem? - perguntou de volta, olhando nos olhos de sua amiga.

       Driana não possuía resposta para essa pergunta. Bem da verdade ela não queria responder. Não sabia se aceitaria ou não essa relação entre fadas e humanos. Ainda mais achando que esse sentimento todo era fruto da carência de Joan.

       -Será mais rápido cobrirmos a distância por ar - ela informou mudando de assunto drasticamente - Levo Acheron, estou acostumada com esse peso morto - era uma critica carregada de afeto. - você dá conta de levar... O humano?

       -Por um trecho sim - Joan contou cansada de tentar mudar o modo de agir de Driana e Acheron.

       -Já é o bastante - Driana tentou incentiva-la, mas algo não poderia ser igual depois de constatar que sua amiga não aceitaria o amor que sentia por um humano.

       O modo como Joan baixou o olhar e manteve-se ao lado do humano deixou claro o que sentia. De pé, Driana ficou observando a pequena Joan interagir com o humano, com palavras baixas, murmuradas, e gestos doces, enquanto se preparava para um novo voo.

       Não concebia perder a pequenina Joan para a vida humana. Não depois de tanta luta e provação.

       -Será nosso primeiro voo juntas - Driana disse para tomar sua atenção para si - é uma pena que o momento seja estragado pela presença de machos. - tentou fazer a fada vermelha sorrir.

       -Eu senti muita falta sua, Driana - Joan afastou-se de Rowell e abraçou-a espontaneamente, o que era um alivio - Você terá uma surpresa com minhas asas. E vai morrer de inveja!

       -Dificilmente. Minhas asas são lindas, negras e gigantescas. Você viu? Elas se dobram! - Driana não pode conter o orgulho de suas próprias asas.

       -Ah, mas as suas asas não fazem o mesmo que as minhas! - Joan esperou, pois os machos precisavam de um instante para prender suas armas, ou elas cairiam durante o voo e permitiu que suas asas se escondessem.

       A expressão de Driana era bastante obvia. Ela não aceitava perder.

       -Mesmo assim... São asas pequeninas. As minhas são gigantescas e negras, facilmente camufladas na mata. As suas? Vermelhas e berrantes. Um perigo na floresta.  - Driana sempre precisava sair por cima de uma discussão.

       O riso cristalino de Joan foi musica para os ouvidos de Driana, sobretudo para os de Rowell que não a ouvia rir assim há dias. Ele estendeu uma das mãos em sua direção chamando-a para junto de si, e depois de sorrir para Driana, ela foi ao encontro de seu macho escolhido, fosse ele, da raça que fosse.

 

       A seriedade de Rowell era esperada, mas também assustadora. Sua mulher era um ser carregado de mistérios. Sua filha sequestrada. E seu companheiro de luta relutante e desaforado, sempre o olhando com superioridade de raça.

       Dentro do castelo, o duque ignorou todas as perguntas sobre como entrou e de onde vinha. Ignorou tudo, seguindo a passos duros na direção de onde encontraria as respostas para suas perguntas. Logo atrás, vinha Joan correndo para acompanhar suas passadas, e o elfo gigantesco acompanhado da fada intransigente, chamada Driana.

       A porta foi praticamente arrombada, pelo horário do dia, Rowell sabia que sua mãe estaria no quarto, rezando, escrevendo suas nostálgicas cartas ou se punindo com a solidão, enquanto via a vida passar enfurnada entre quatro paredes.

       Matilde não fazia nem uma coisa, nem outra. Ela estava sentada em uma cadeira de balanço, chorando, nas mãos uma boneca de pano, vestida com esmero.

       -Você a achou?- foi à primeira pergunta ao ver o filho entrar pela porta sem aviso - Encontrou Alice?

       -Ainda não - ele disse sério, correndo os olhos pelo quarto. Tommy e Marmom tiravam um cochilo na cama de Matilde, perto da avó, protegidos por seu zelo.

       Joan aproximou-se da cama, e fez um carinho no pequeno lagarto que dormia com um paninho na boca, para ser mastigado por sua dentição de lagarto. Tommy recebeu um afago no cabelo espesso e macio e piscou os olhos claros idênticos aos do pai, e voltou a dormir.

       Aliviada de ver que os meninos estavam bem, prestou atenção na conversa entre Matilde e Rowell.

       -E porque está aqui? Agora você sabe quem essa aí é de verdade - apontou Joan - e sabe também o que levou Alice. Porque está aqui, Duque?

       -Eu não sou um duque, sou o seu filho - ele foi taxativo, cansado de lidar com os melindres de Matilde - E eu preciso da verdade, mãe. Da verdade que você sempre escondeu.

       O modo como Matilde baixou as vistas e demorou a responder deixou claro que não ouviriam a verdade vinda de sua boca. Muitos anos de mistérios e segredos, ela não sabia por onde começar.

       -Talvez Hector saiba e possa nos contar - disse Joan, apenada de Matilde - Precisamos da verdade, Matilde, porque Edward também está por trás do sequestro de Alice.

       -A verdade? - a pergunta de Matilde soou doida - A verdade do porque escrevo cartas para um homem que partiu muito cedo? A verdade do porque não posso contar que sou mãe do duque e fazer um carinho em meus netos, sem o medo que vejam e nos denunciem ao rei? Pra que falar sobre uma verdade, quando todos nós sabemos que a verdade não tem o poder de mudar a realidade.

       -Como não? - Joan levantou de onde estava e aproximou-se de Matilde retirando a boneca de suas mãos e desse modo tentando atrair sua atenção - Graças à verdade agora sou uma fada livre. Não sou mais caçada como um animal, ou preciso me esconder. Você teme a verdade, porque nunca conheceu o poder que ela exerce sobre a vida de uma criatura viva!

       -A verdade trará Alice de volta? - a pergunta de Matilde cortou o coração de Joan.

       -Espero que ajude a entender o que acontece com Edward e onde ele pode estar escondido. - disse Rowell. - Meu próprio irmão... O que levou meu próprio irmão a tramar contra mim? O que eu fiz contra ele? O que eu fiz de errado, mãe?

       -Nada - ela disse conformada - O que eu fiz de errado, Rowell, para ser apagada da sua história? Para ser a governanta e não a mãe do duque? Tudo por culpa de uma coisa insignificante como essa daí! - ela apontou Joan - se eu tivesse prestado atenção! Se eu tivesse percebido antes... Mas eu não via a maldade! Eu não via!

       Como sempre, agredia Joan, e pelo menos era uma forma de ver a boa e velha Matilde de sempre na ativa. Aquela apatia toda assustava Joan.

       -E o que você não conseguia ver com clareza, Matilde? - perguntou Joan com candura, ajoelhando-se perto da cadeira de balanço. Matilde estendeu a mão e tocou seu queixo olhando fundo em seus olhos verdes claros, e límpidos, como duas estrelas.

       -Porque o mal sempre ostenta uma expressão tão pura? - perguntou a humana com dor profunda em seu peito diante das lembranças. - Aposto como não sabia que seu pai, Hector e eu éramos os melhores amigos de todo o mundo, não é?

       Matilde se esqueceu de Joan em prol de olhar para o filho. Rowell negou com a cabeça, pois de fato era uma surpresa.

       -Sim, William não se importava com títulos. Ele era amigo de Hector, o cozinheiro, como se fossem da mesma classe social. Do mesmo modo que escolheu uma aldeã sem família ou posses para ser sua esposa. Eu fui à escolhida de William, e foi uma escolha feita por amor. Quando vim para o forte, para esperar o casamento, eu trouxe comigo minha grande amiga, quase uma irmã, seu nome era Anesi. Éramos apenas nós duas no mundo, uma era a família da outra. Logo nos quatro nos tornamos inseparáveis. Hector e Anesi se apaixonaram. - ela sorria das boas lembranças.

       -Mas Anesi é o nome do... Coelho de Hector - ele disse surpreso.

       -Não. Anesi é o nome de uma amiga inestimável que foi arrancada de mim. - Matilde disse triste, a dor em sua face não conseguia se tornar lágrimas e isso era de cortar o coração. - Um dia, Rowell, faltando poucos meses para o casamento... Uma aliança, onde o Rei estaria presente, eu vi uma coisa. No alto da torre, eu estava andando, pensando, eu gostava de ir lá... Eu gostava da paz e do sossego. Eu não podia imaginar que era uma armadilha. Eu deveria ter sido raptada naquela noite. Mas não foi o que aconteceu. Eu vi uma criatura com asas. Uma fada. Ela olhou para mim e bateu suas asas com graciosidade. Eu nunca senti tanto medo na minha vida. Eu gritei, pedi ajuda, corri, chorei. Eu contei, Rowell, contei o que vi e não aceitei me desmentir, por isso fui taxada de louca. Demente, tomada por maus espíritos. Seu pai esperou meses para casar-se. Ele tentou esperar. Mas eu continua falando sobre o que vi. Me recusava a me desmentir. Eu não entendia que muito melhor que me sequestrar, era me desacreditar. E eu não percebi. Seu pai precisava se casar. Era necessário, o rei viria em poucas semanas e não seria nada agradável causar irritação ao rei - ela ironizou.

       -Fo quando meu pai casou com outra mulher? - ele deduziu.

       -Ainda não. Pedi a Anesi que se casasse com o rei. Hector e William até fizeram um pacto. Seria um casamento de fachada. Em alguns meses Anesi partiria com Hector e todos ficaríamos felizes outra vez. Mas então, algo aconteceu. A fada que eu vi... Ela transformou Anesi em um coelho no dia da cerimônia.  O rei hospedado em um quarto, e a noiva transformada em um coelho no cômodo ao lado... Foi um desespero sem fim, até que... William percebeu que uma das criadas era parecida com Anesi. Elas eram mulheres comuns, sem grande diferença física e o rei não notaria a diferença...  Foi um casamento rápido, o rei passou alguns meses no forte. Eu notei que precisava me calar. Uma noite eu sai da torre, e encontrei a duquesa conversando com aquela fada. A causadora da minha desgraça. Eu a confrontei, e foi quando ela riu e jogou na minha cara a minha tolice. Que sempre foi a intenção dela, ser a escolhida do duque. Levou tempo, mas eu fui descobrindo a verdade sobre ela. Contei a William e ele se afastou. Eu estava grávida de você Rowell e temia que algo acontecesse. Você nasceu, e ela também deu a luz a uma criança morta. Fizemos a troca. Ninguém soube, nem mesmo ela. Era o segredo mais absoluto de nossas vidas. Ela se divertia me vendo cuidar do futuro sucessor do ducado, refestelando-se na minha desgraça, sem saber que eu cuidada do meu próprio filho. Você tinha quatro anos quando ela apareceu grávida de Edward. Nenhum de nós se importou se o menino possuía sangue nobre ou não. William me jurava que nunca havia se deitado com ela, que a primeira criança também não era dele. Eu acreditava nas suas palavras. Sabíamos tanta coisa dela... Mas como nos livraríamos de uma duquesa? - era uma pergunta válida.

       -E quem era essa fêmea? De verdade, quem ela era? - perguntou Joan.

       -Um cruza de fada com um humano - o olhar de Matilde era poderoso - Ela nasceu sem asas. Ela teve uma filha antes do casamento, com um elfo. Uma tentativa de obter uma fada com asas. Eu não sabia quem era essa menina, ou onde ela estava. Na ocasião deduzi que estivesse morta e que Edward fosse uma nova tentativa frustrada de ter uma raça pura. A duquesa era obsecada com a raça. Eu sempre tive dúvidas se isso tudo era real ou não. Eu sabia o que via, mas não podia acreditar. Quando ela morreu... Foi um grande alivio. Ajudei a criar Edward como se ele fosse da família, era uma criança e não tinha culpa dos erros dos adultos. Criei meu filho ao lado de William. Vivemos felizes por muitos anos, não foi, Rowell?

       O humano concordou e Joan levantou e ficou perto de Rowell, como uma lembrança do que precisavam saber.

       -Tem mais alguma coisa que eu não saiba? - ele perguntou magoado.

       -Sempre tem um segredo ou outro a ser descoberto - disse Joan pensativa - nunca conhecemos toda a vida que veio antes de nós - ela pensava muito nisso. Sobre suas origens. Uma incógnita sem solução.

       -Sophie era a filha desconhecida da duquesa. Ela foi criada longe daqui. E veio para se apossar do que lhe pertencia.

       -Ela veio grávida - disse Rowell surpreso com revelação - Acha que era uma tentativa de...?

       -Cruzar seu sangue com o sangue de elfo? Faz sentido que ela não conseguisse vingar a gestação - deduziu Joan - quando mais mistura nas raças, mais difícil uma cria pura. Impossível, a gestação é praticamente impossível.

       -Eu achei que ela quisesse um filho. Quando nasceu Alice ela parecia feliz - ele disse amargurado sem entender.

       -É provável que ela esperasse alguma manifestação mágica - disse Joan apenada, olhando pra trás, para encontrar Driana na porta, sem entrar, observando-os, com Acheron ao seu lado. - a fêmea sempre manifesta algum vestígio do seu dom ainda na infância. Depois, aos vinte anos, ou próximo a isso, as asas nascem e o dom floresce. Mas Alice não tem vestígios de maga. Eu não senti nada vindo dela. Ou de Tommy. São humanos. Puxaram a você, e não a Sophie. Embora, que a miscelânea no sangue de Sophie não permitiria qualquer vestígio de magia.

       -Alice sempre disse que a mãe vinha encontra-la e tinha lindas asas - Rowell disse pensativo e olhou para Joan com horror no olhar - É por isso que Edward precisa de asas de uma fada?

       -Sim, Sophie está viva. Só pode ser isso. Ela quer ter asas. - Joan encostou o rosto no ombro de Rowell apavorada sobre isso.

       -Isso é abominável - disse Driana chamando atenção para si. Os olhos de Matilde se arregalaram para a estranha, principalmente para suas asas negras dobradas em suas costas.

       -Oh, Deus, existem mais de vocês? - ela disse com horror olhando para Joan.

       -Não responda, Driana - Joan pediu apressada, antes que uma discussão começasse - Está humana é mãe de Rowell. É uma cruz a carregar, mas é a mãe de Rowell... E nos entendemos. Do nosso jeito, mas nos entendemos.

       -Eu odeio você, sua coisinha - Matilde disse furiosa - olho para você e lembro dessas servas imundas sempre espreitando seus senhores, esperando um momento para passar a perna e roubar nossos homens!

       -Ah, por favor, Matilde! - Joan perdeu a calma - Até num momento desses? Onde você acha que está Edward?

       -Eu não sei. Ele foi embora. Eu acho que foi. Não o encontrei para me ajudar com a segurança do forte. Ele deve ter partido ou participado do sequestro de Alice.

       Derrotada, essa era a expressão de Matilde. Pobre humana, pensou Joan.

       -E agora? O que faremos? - a fada ruiva olhou para Rowell.

       -Eu vou atrás de Alice. Mas não posso deixar o forte desprotegido. - ele tocou sua mão que segurava em seu ombro, como quem pede ajuda e Joan sorriu. Algo deles, algo íntimo e somente deles.

       Ela sabia exatamente o que ele lhe pedia. E era doloroso para alguém tão orgulhoso como Rowell.

       -Eu vou pedir ajuda a Helana. Ela quer proteger Marmom. E precisa de abrigo para seu próprio povo, pois ao descobrir da traição, Edward vai se voltar contra os lagartos e não há como saber exatamente quem está ao lado dele e o poder de destruição!  Precisa... Falar com sua gente, Rowell. Explicar o que acontece, convencê-los a aceitar a presença e proteção dos lagartos.

       -Você fala como se isso fosse normal - ele reclamou, mas não era exatamente uma reclamação.

       Joan sorriu, um sorriso bastante triste e roçou um beijo doce e carinhoso de apoio em sua bochecha antes de sussurrar:

       -Prepare o seu povo para aceitar a mudança. Eu vou avisar Helana.

       Não era um pedido por permissão. Era um modo suave de pedir que não ficasse com medo por ela.  Driana não gostava de ver sua amiga tocando um humano. Era difícil de assistir. Ciúme puro. Egoísmo puro. Ela olhou para o chão, recusando-se a ver que mais alguém no mundo detinha o amor de Joan.

       A florzinha delicada e suave que era uma das poucas razões de crer na beleza. Quantas e quantas vezes naquele confinamento de medo e solidão, no Ministério do Rei, Driana não olhou para a face doce de Joan para se convencer que a vida pode criar mais do que desespero e sombras? Que pode criar beleza e meiguice, nascida e criada em meio à dor e o desespero?

       E agora, alguém era digno de ter essa precocidade em mãos? De afasta-la de suas amigas?

       -Vem comigo, Driana?

       A pergunta macia foi sua salvação. Resgatada daquele buraco horrendo onde era soterrada pelo ciúme e recalque, Driana sorriu e segurou a mão que Joan lhe oferecia.

      -Já era hora de voarmos juntas pela primeira vez - disse Driana contente.

       Joan nem perdeu tempo respondendo. Não era uma razão para voar que a agradasse.

       -Não seja egoísta, fada livre - a voz de Acheron a repreendeu - Mikazar as acompanhará por terra - não era um pedido e sim um aviso.

       Driana olhou para ele com ceticismos, mas não recusou a oferta.

       -Melhor não fazer isso, mãe - a voz de Rowell fez Joan sorrir, ainda no corredor, pois ele tentava impedir Matilde de ver o que era Mikazar. Protegia o emocional fragilizado de sua mãe.

       -Não faça isso, Joan, não se apaixone por ele. É um humano. - pediu Driana baixinho.

       -Acheron é um Guardião - disse Joan com voz perniciosa, enquanto andavam pelo castelo, pelos caminhos que Joan conhecia de cor. Seu dom as camuflava e protegia dos olhares.

       -E isso é empecilho? Somos da mesma raça! - Driana argumentou.

       Joan parou d andar e olhou bem para Driana:

       -Os guardiões nos prosseguiram, caçaram e assustaram. Rowell me protegeu, amparou e amou. Você quer realmente falar sobre quem merece ser amado?

       -Esse assunto não acabou aqui, Joan. Espero que Eleonora não permita essa loucura. Ela é rainha agora. Não é possível que aceite isso!

       -Eu juro, Driana, que se não a conhecesse e soubesse como você é intransigente, eu realmente ficaria magoada com você - infelizmente Driana era racional demais para aceitar argumentos puramente emocionais.

       -Suas crias serão mestiças e desprovidas de asas e dons - Driana alegou enquanto andavam rapidamente, lado a lado.

       -Não necessariamente. - provocou-a.

       -Vai contar com a possibilidade de uma exceção? - havia horror na voz de Driana.

       -Porque não? - ela perguntou e para horror de Driana parecia sincera.

       Para Driana era inconcebível contar apenas com a sorte para embasar uma tomada de decisão!

       -Eu vou fazer de conta que não ouvi isso. Eu não ouvi isso. Não ouvi mesmo!

       Apesar dos pesares Joan ria. Era Driana, e esse comportamento era esperado dela!

       As duas chegaram à torre mais alta onde a murada fornecia espaço suficiente para duas fadas abrirem suas asas e alçarem voo.  De mãos dadas às duas se lançaram no vazio da imensidão sob seus corpos e rapidamente ganharam dimensão e altura, ascendendo em direção às nuvens de um céu ensolarado...

 

       De cócoras, Tubã comia os restos que confiscara do pós-almoço das fêmeas, e observava calado a tensão na face de cada uma delas. Principalmente da líder. Calada, introspectiva e nervosa a fêmea de lagarto mantinha-se armada, com espada e arco, e parecia vigiar o acampamento constantemente. Dia e noite. Preocupado, ele pensava naquela corrente prendendo seu pé. Depois que retiraram a corrente do pescoço, ele achou que poderia ter alguma liberdade, mas a corrente em seu pé era um constante lembrete da sua situação de prisioneiro.

       Ele havia se deitado com todas as fêmeas adultas, em idade de procriar, apenas Helana mantinha-se longe e ele supunha que a líder não quisesse misturar as raças.

       Ela permanecia intocável, sempre carrancuda e nervosa. Às vezes gritava com as outras fêmeas sempre em sua língua. Ele não entendia, mas sabia que falavam dele.

       Sem apetite ele deixou os restos e se recostou contra a pedra, onde ficava sempre preso a corrente.

       Seu modo irritado de agir chamou atenção de Helana que desviou o olhar da comida, do prato com alimento, e cravou o olhar amarelado sobre ele. Olhar penetrante, profundo, que parecia arrancar dele as verdades escondidas. Quando o olhava desse modo um profundo arrepio corria a espinha de Tubã e ele duvidava se era medo ou ansiedade.

       O pensamento insano de porque essa fêmea em especial não queria deitar-se com ele.

       -Deitou com meu irmão? - ele perguntou de surpresa, e pareceu tão surpreso quanto Helana com a pergunta verbalizada.

       A resposta era não, mas ela não lhe daria o prazer de ouvir isso da sua boca.

       -O que esta acontecendo? Porque o armamento? - nenhuma resposta - Escute, eu estou preso - ele puxou a pesada corrente e era como se tentasse exibi-la ao olhar da fêmea - se algo acontecer eu serei o primeiro a morrer. Não sou da sua raça, mas sou uma criatura viva e não lhe fiz nada. Eu não ergui um dedo contra seu povo. Pelo contrário, fui preso e ainda assim colaboro com sua causa... - tentou não ostentar uma expressão sem vergonha ao dizer isso - depois que soube da necessidade de proteger a espécie da extinção.

       Por um segundo, um único e fugaz segundo, pensou ter visto riso no olhar severo. Mas foi muito rápido e logo desapareceu.

       -Eu não vou fugir.  - ele disse mudando a estratégia - Para onde eu iria? Se você sabe quem sou, sabe também porque estava me escondendo... E sabe que não tenho para onde ir.

       Helana afastou o prato e encarou-o. Apetite perdido.

       -Está errado. Eu lhe disse que Eleonora é rainha agora. E você é um elfo livre. As correntes não são necessárias, é inofensivo como um filhote de unicórnio. - ela desmerece-o e isso o ofendeu em sua hombridade.

       -Então porque ainda estou preso?  - era quase um esperneio infantil da parte de Tubã e ela sabia disso.

       -Porque precisamos do seu sêmen. E você fugiria. Não aguentaria a pressão. E de qualquer modo não é seguro para um elfo desprotegido enfrentar a floresta agora. Existe uma guerra começando, elfo. E você não quer estar em outro lugar, acredite no que eu digo.

       -Me solte, eu preciso encontrar Joan e ajuda-la. Ela não pode ficar sozinha. Se o que diz é verdade. Eleonora está protegida. Alma sempre soube se virar sozinha, não precisa da proteção de ninguém e Driana... Bem, ela é esperta e capaz de se manter escondida. Mas Joan é frágil demais para... Espere, por que está rindo? - ele perguntou irritado, pois ela sorria debochada.

       Um olhar cínico, e ela o ignorou. Com um grito em sua língua quando ele tentou insistir em falar, e um empurrão usando seu cajado, que o lançou contra a pedra. O mais triste disso tudo era admitir para si mesmo que cada vez que Helana o ofendia e agredia mais excitado o deixava.

       A única fêmea de lagarto, entre todas que ele não podia ter.

       -Sua amiga, Joan, não é essa fadinha desprotegida que você pensa que é. A vida a forjou em aço. É o que acontece quando o lado feio da vida se apresenta. A criatura muda. Ela está do meu lado, lutando por uma chance para nossos povos. Espero em breve ter notícias dela.

       -Joan sabe que estou aqui? - ele perguntou surpreso com a informação adquirida.


       -Porque saberia? Você é um assunto de menor importância.

       Seu pouco caso o deixou mudo. Exasperado.

       Duas fêmeas de lagarto atrapalharam a conversa. Uma delas era baixinha, e cheinha e olhava para ele com um sorriso de dar gosto, mas esperava pela permissão de se aproximar. A mais fêmea mais velha disse algo para Helana, que a fez olhar para ele com surpresa. Elas conversaram em silêncio um tempo.

       Quando as fêmeas se juntaram as demais, Helana levantou e aproximou-se dele. Um olhar de dúvida, de incerteza. Ela retirou a longa e pesada espada da cintura e Tubã se encolheu, assustado.

       Provocar aquela criatura selvagem nunca era uma boa ideia. apavorado, Tubã ergueu os braços instintivamente para se defender quando Helana ergueu a espada e desceu com fúria, e um brado de guerra.

       Sabia que era seu fim, mas a dor não veio e ele espiou por entre a proteção de seus braços. A lâmina afiadíssima cortou a corrente em duas, e ele estava livre. Ela guardou a espada e afastou-se.

       -Hei! O que é isso? - ele gritou, sem compreender, apontando para a corrente.

       -Você é um elfo livre outra vez, pode partir - ela avisou, sem olhar na sua direção, de costas.

       -Por quê?  -ele gritou, querendo saber a resposta.

       -Três fêmeas estão prenhes e duas desconfiavam disso. Finalmente confirmamos. Cinco crias. É um bom número. Você pode ir. Não precisamos mais de você.

       Tubã mal acreditou que estivesse sendo dispensado. Assim, sem aviso? Sem reconhecimento do seu 'esforço' e dedicação? Aturdido, descobriu que não queria ir embora e deixar aquele grupo de mulheres para trás.

       Afeiçoado a elas, não gostava da ideia de nunca mais vê-las. Era um sentimento contraditório e nada fácil de compreender. Não era algo sexual.

       A sorte dos dois, algoz e prisioneiro, foi que a conversa não precisou seguir por aquele caminho estranho.

       Uma sombra no céu, fez com que ambos erguessem o olhar.

       Sol era coberto por duas fadas que revoavam a uma altura segura para não serem pegas por Caçadores de Recompensa, ou de qualquer outro perigo que rondasse a floresta e o rochedo sob o abismo...

         

       Joan soube que Rowell não contara a verdade para seu povo no instante em que seus pés tocaram o chão de pedra e encontrou seu olhar culpado. Logo atrás dela, Driana pousava e sua expressão de represaria indicava que entendia o mesmo.

       -Eu contei sobre o sequestro e sobre a necessidade de respeitarem a autoridade de Matilde. Eu deixei uma mulher a comando de um ducado, Joan. É muito mais do que a maioria desses homens e mulheres podem suportar. Eu não sei como contar sobre você. Sobre todos vocês. Eu não sei como fazer isso.

       Era preciso muita humildade para admitir tal fraqueza.

       Magoada, Joan aproximou-se e estendeu as duas mãos para segurar no pescoço do seu humano, correndo os dedo para uma caricia em sua nuca. Encostou os lábios nos seus e sussurrou:

       -Haverá um dia em que não será necessário que humanos temam o que é mágico. E neste dia, Rowell, todos saberão que seu líder é um homem de coragem. Um pioneiro entre os seus.

       Os olhos azuis sempre tão vivos e esperançosos refletiam uma profunda apatia. Derrota, Rowell assumira a derrota muito antes do necessário. Acuada, Joan pensou em como lhe explicar o que aconteceria.

       Em momentos dezenas de fêmeas de lagarto estariam desembocando dos tuneis secretos de Matilde e seria inevitável o confronte entre humanos e criaturas mágicas.

       Assustada, e esse medo se refletindo em seus olhos, Joan sentiu um toque suave no ombro. Era Driana, cobrando-lhe atenção.

       -Use seu dom de fada. Sua dádiva, Joan. Use-a para esconder quem somos.

       -Eu... Não sei se posso. – Joan duvidou, ainda muito perto de Rowell. – Não sou tão poderosa assim! Eu mal consigo me camuflar...

       -Isso acontece, pois seu dom não está em uso. Se esforce. – Driana disse com sua voz sempre empostada e arrogante.

       -Se eu conseguir... Como devem parecer? – Joan perguntou olhando para Rowell.

       -Como humanos – disse Driana, respondendo por ele – Não deve ser muito difícil imitar a aparência humana. São todos iguais.

       Joan não queria esse tipo de discussão. Rowell estava sendo compreensivo com Driana. O brilho de guerra estava outra vez no olhar de Rowell, e ele enlaçou sua cintura, enquanto dizia:

       -É uma fada muito arrogante, Driana. Eu me surpreendo que tenha o amor de Joan.

       -Parece que Joan resolveu surpreender a todos nós – Driana sussurrou.

       -Chega! Driana, procure por seu elfo escolhido. E Rowell.... Me leve até o lugar de onde Helana virá? Por favor, quero que seja o primeiro a vê-la.  É a mãe de Marmom, vocês dois precisam se conhecer.

       Rowell não queria conhecer aquela mulher que lhe tiraria Marmom. O menino não era como os outros. Naturalmente, não se encaixava entre os seus. Os humanos, como chamava Joan.

       Com o coração apertado, ele manteve uma força na mão que segurava sua cintura, um aperto que desejava dizer a ela que não poderia deixa-la ir. Afinal, Joan era como Marmom, não fazia parte do mundo dos humanos.

       -Vamos – disse Joan, ignorando sua amiga propositalmente. 

       A vida estava suficientemente difícil para perder tempo com o ciúme doentio de Driana. A fada das asas negras sempre foi a mais ciumenta e possessiva. A mais difícil de lidar. Ser inteligência demais nem sempre é uma benção. Driana sempre foi astuta para tudo, menos para o trato humano.

       -Está tão calado – ela cochichou para Rowell quando finalmente entraram na torre, onde ficava a entrada no chão, por onde ela saia e entrava ajudada por Matilde quando estivera presa, confundida com uma mulher enlouquecida.

       -Não é fácil, Joan. Eu saí daquela cama, e de repente, o mundo está de pernas para o ar – ele confessou – Você tem sido a luz da minha vida. – ele foi sincero, de um modo que apenas quem ama pode ser – Mas e o que eu sou para você? Um empecilho?

       -Rowell...? Como pode dizer isso? – surpreendeu-se.

       -É tão doce, tão pura. Eu me abonei do seu sentimento, eu monopolizei seu afeto. Desviei seu olhar para a minha vida, e agora está presa a mim. Isso não é justo, seu mundo tá tão mais bonito que o meu. Você merece viver em um lugar bonito, repleto de pessoas boas e cores. Um mundo onde cortar o céu com suas asas seja possível e admirado. – ele disse com emoção na voz.

       -Um mundo bonito? Mais bonito que o seu? Eu vi um pai sobre uma cama sacrificar-se em nome de sua filha, disposto a abdicar de seu título, e até mesmo da inocência de sua filha, para que ela se casasse e pudesse ser protegida por esse matrimônio, e assim proteger a vida de todos os aldeões sobre o ducado de Mac William. Eu vi algo que não sabia que existia, Rowell. O mundo bonito em que vivi toda minha vida, aprisiona jovens sem família e as prende em uma masmorra por toda a vida, até o dia de sua morte, por não saber o que fazer com seu nascimento infortunado. O lindo mundo onde vivo, faz uma mãe tentar assassinar a filha, pois ela representava a perda de um trono. Eu vivo em um mundo bonito, onde voar entre as nuvens é um prazer que custa caro! A qualquer momento uma fada pode ser abatida em pleno voo e vendida como souvenir para elfos e outras criaturas mágicas. Eu vivo em um mundo colorido e mágico que está ao alcance de qualquer criatura, e no entanto, regras e leis estúpidas nos tornam intocáveis! Existem injustiças sangrentas em seu mundo, Rowell. E boa parte delas, se reflete no meu mundo. Há morte em nome do rei. Há vida em nome do rei. Há ouro comandando a vida de todas as criaturas, há soberba e luxo. E, sobretudo, há medo. O mesmo medo que você sente agora, eu senti minha vida toda. A única verdadeira diferença entre o seu mundo e o meu, Rowell, é que os perderam a capacidade de sonhar e acreditar.  – tocou o rosto de seu humano com candura, lágrimas nos olhos verdes, como duas folhas jovens, em um ramo de alecrim.  – E o amor, Rowell, é o mesmo em qualquer mundo que eu viva. Mas o amor que sinto por você, esse sim, é capaz de unir o que homem ou criatura jamais conseguiu unir. Em minutos surgirá por essa escotilha criaturas que nunca imaginou ver em sua vida – ela podia sentir o cheiro das fêmeas.

       Mesmo sem ouvir passos, elas eram silenciosas e eximias guerreias, capazes de camuflar qualquer som. Mas o cheiro era pungente.

       -Receba e acolha essas criaturas. Com o tempo, sua gente fará o mesmo. Com o tempo, Rowell.

       A voz era tão suave que encantava, hipnotizava, mesmo que esse não fosse seu dom de fada. Era a voz macia do querer, e seu coração falava por ela. Eram palavras sussurradas por sua alma. E nada poderia ser mais forte do que isso.

       Gentilmente, com medo de quebrar o encanto, Rowell segurou-a pela cintura e aproximou seus lábios de sua testa, acalmando o medo que havia entre os dois.

       -Me ajude a suportar a perda, Joan – ele pediu com voz embargada – Marmom é parte de mim. – ele não queria chorar ou mostrar fraqueza.

       Mas sua filha corria perigo, e agora, Marmom seria tirado dele. Era demais para aguentar.

       -E Marmom sabe disso – ela garantiu, olhando em seus olhos com o mesmo sentimento – Aquele que ama não esquece, nem mesmo com a distância. Não lamente a partida de Marmom, comemore o encontro de uma mãe e seu filho, veja a mágica que há nosso, querido Rowell. Se você puder ver a mágica desse encontro, então, será capaz de suportar a saudade e a perda.

       Podia ver um receio sem igual no humano. Rowell temia perder tudo que amava.

       -Tenha esperança – ela pediu, lutando para que as lágrimas não descessem por seu rosto – Por favor, Rowell, tenha esperança. Eu tive, e não me arrependi.

       Quis lhe contar do medo imenso que sofreu sozinha e abandonada naquela vila de humanos quando Tubã partiu sem olhar para trás deixando-a completamente sozinha, acreditando que essa era a única forma de conserva-la viva.

       E no final, a justiça prevaleceu. O bem ainda não vencera o mal, mas havia uma esperança.

       -Eu sempre amei o meu irmão. Não sei onde errei com ele – Rowell confessou e ela tentou sorrir.

       -Talvez não houvesse erro ou acerto. Talvez apenas humanos e criaturas confusas, perdidas e desesperadas para ter segurança e felicidade – pensou em Rainha Santha, a rainha louca, que provavelmente tivera razões para abandonar a própria filha em prol de uma liberdade que jamais conheceu – Quem sabe, Rowell, seu irmão apenas esteja perdido, precisando de você?

       -Depois de assassinar fadas e quem sabe, humanos? – ele maneou a cabeça em negativa – Nem mesmo seu puro coração, Joan, poderá perdoar isso. O que dizer do meu calejado coração?

       A verdade é sempre dolorosa, e ainda assim, libertadora.

       -Elas estão vindo – disse Joan apenada, e confiante que nada poderia ser feito com palavras ou lágrimas.

       Demorou mas a vida lhe ensinou que o choro não resolve os problemas. Alivia a alma, mas não alivia as dores do corpo e do coração. Às vezes, a luta é o único modo de matar o medo e vencer o inimigo.

       O inimigo vem pela frente, pensou Joan, mas o medo... Não, o medo age pelas costas.

       -Elas? – perguntou Rowell, mantendo-se ao seu lado, soltando-a, para que não fossem um casal apaixonado, e sim o senhor e senhora daquele forte.

       -São todas fêmeas – ela corou – Eu sinto muito, Rowell, mas elas precisam e tentaram copular enquanto estiverem aqui. Eu deveria ter falado sobre isso antes de trazê-las, mas...

       -Copular? – ele entedia o sentido disso, mas não como ela poderia falar desse modo desprovido de romantismo.

       -Sim, copular. Às vezes as espécies precisam disso: reprodução. Seja paciente com elas, um dia pode ser minha reaça na mesma situação... Ou a sua.  – avisou.

       Romantismo a parte, fazer amor era divino, e as criaturas de seu povo entendiam isso. Mas quando uma raça está à beira da extinção total, o amor e o romantismo devem ser deixado de lado. 

       O alçapão foi empurrado com força bruta e Joan segurou a mão de Rowell, para que ele não a deixasse sozinha. Era o duque do forte, e seria natural que as fêmeas de lagarto preferissem negociar com ela, uma fada, do que com um humano. Mas Joan não era duquesa. Ainda... Pensou, e sorriu para ele.

       O humano não podia saber por que do sorriso, mesmo assim aliviava seu coração ver um sorriso doce e cálido. Aquela jovem, aquela fada, era uma luz em sua vida escura.

       O alçapão cedeu e uma voz foi ouvida, e logo um corpo apareceu. A fêmea falava em sua língua nativa, provavelmente acalmando as demais fêmeas.

       Sujas de terra e poeira, dos tuneis e caminhos obscuros, pois eram muitas e preferiam rastejar nas paredes do que andar com dois pés, as criaturas finalmente saíram uma a uma, pelo buraco do alçapão.

       Tenso, gelado, era assim que Joan sentia seu humano. Umas trinta fêmeas se encolheram na torre, algumas preferindo as paredes e o teto. Os olhos de Rowell seguiram uma delas, que ágil e pequena, correu pela parede com seu longo rabo, sua cor esverdeada, bem clarinha, e seus olhos amarelados. Ela possuía ranhuras na pele, e era mal coberta por panos e peles de esquilo em suas partes íntimas.

       -Por favor, ela precisa descer – pediu Joan, referindo-se a jovem que corria pela parede de pedras. – São bem vindas aqui, e estarão seguras atrás dessas portas. Mas... Helana, como contar a todos os humanos, assim, de uma única vez? Olhe para vocês. Olhe para mim. Eles são humanos, não conhecem nosso mundo. – apelou – eu posso tentar camufla-las. É a melhor forma de mantê-las junto aos humanos sem causar horror ou pânico. Isso a ofende?

       Não queria causar dissabor entre elas, e algo desse tipo pode acabar com a mais sólida das amizades.

       -Sim, isso nos ofende. – ela disse altiva – É o líder dos humanos?

       -Desde ducado, sim – disse Joan, respondendo por Rowell – Existem outros lideres, aos quais Rowell se reporta, e eles não entenderiam quem você é, Helana.

       -É o líder dos humanos? – a fêmea de lagarto insistiu na pergunta, espada na mão, a lâmina baixa, mesmo assim, cada poro pedindo por luta.

       -Sim – ele respondeu entendendo que ela não queria saber de outros lideres, e sim do líder daquele ducado em especial – Eu nunca vi algo como você. Perdoe meu pasmo. – ele encontrou a voz, e Joan olhou de um para o outro, buscando por interesse.

       Helana era bonita e Rowell parecia bastante inclinado a se apaixonar por raças distintas, como ela própria.

       -Rowell é o meu escolhido, nenhuma delas pode tentar cruzar com ele! – Joan acabou envergando pela conversa, trazendo o assunto à tona muito cedo – Eu quero dizer... Ele tem uma fada escolhida, não deve cruzar com outra de seu povo, pois as crias pertenceriam a ele. Não esqueçam que sobre essa terra, o título que prevalecesse é o humano e devemos respeitar esse direito.  – ela baixou a cabeça envergonhada, pois é claro que as outras fêmeas sabiam do seu ciúme imediato.

       Uma delas disse algo em sua língua e mortificada, ela assistiu Helana calar os burburinhos.

       -Deixamos o elfo lá embaixo. Ele falava sem parar e nos atrasava – disse Helana, mudando o assunto – Podemos sair? É preciso avaliar o forte e definir os pontos de defesa. Se começarmos agora, até a noite teremos total domínio sobre a segurança do local.

       Aturdido com a rapidez que tudo acontecia, Rowell acenou concordando.

       Joan soltou a mão dele, e concentrou-se. Não era fácil. Não mesmo. Ela nem sabia se conseguiria. Aos poucos Rowell foi observando algumas belas aldeãs surgindo entre as fêmeas de lagarto. Quando Joan terminou o que fazia, todas elas se pareciam, vestiam e agiam como humanas. Humanas com pouca roupa é verdade, mesmo assim humanas.

       -Eu as apresentarei aos meus homens de confiança – ele disse sério, apontando a porta.  – Você vem? – ele estendeu a mão para Joan que sorriu orgulhosa e estava quase saindo com ele, quando parou e disse:

       -Não, não, não. Eu quase esqueci! Tubã! Vá, ajude-a, eu estarei com você em breve – salpicou um beijo rápido nos lábios de Rowell e correu para o alçapão, gritando o nome de Tubã.

       Rowell ficou de pé observando o vazio da torre.

       Tudo acontecia tão rápido.

       Lá embaixo, Joan não demorou a encontrar Tubã amordaçado e amarrado.

       -Tubã! Eu não acredito! – ela quase zombou, abaixando-se no chão de cócoras para soltar as cordas. Ficou muito próxima e ele perguntou no mesmo instante em que a mordaça foi tirada:

       -Eleonora é mesmo rainha?

       -Sim, Eleonora agora é uma rainha. Rainha do Monte das Fadas – ela disse, os longos cabelos ruivos cobrindo sua face e encantando qualquer olhar masculino que estivesse perto – Não faça nenhuma piadinha infame, Tubã – avisou sabendo bem o que passava pela mente maliciosa do amigo – se fizer qualquer piadinha sobre o cheiro de cio, ou ausência dele, eu juro que o deixo aqui!

       Tubã não resistiu a rir. Era bom estar com sua amiga outra vez.

       -Driana está aqui. E ela é escolhida do Guardião Acheron, não ouse rir dela! Driana anda com o humor de um duende logrado!

       Finalmente solto, Tubã levantou e a surpreendeu com um abraço apertado.

       -Ainda bem que acabou. Que essa perseguição toda acabou! Estou morrendo de fome. Onde acho comida nesse lugar?

       Joan sorriu. Sim, esse era Tubã.

 

       A expressão de Matilde era angustiante. As humanas Molly e Liara cuidavam dos meninos, e o modo como Molly olhava para Joan era assustadoramente frágil. Ela agora sabia da verdade. Infelizmente descobrira pela boca nada gentil de Matilde.

       Liara evitava olhar para as duas criaturas com asas que estavam no mesmo recinto que ela. Seu pavor cheirava a fuga. A pobre humana parecia prestes a decidir se deveria ir embora, ou ficar. Dentro dos portões do forte era protegida.

       Molly, pelo contrário parecia desesperada por olhar e decorar cada nuance das fadas. A ponto desde olhar insistente irritar profundamente Driana. Como se sua amiga não estivesse suficientemente incomodada com as fêmeas de lagarto, que viram em Acheron um partido e tanto para gerar crias fortes e resistentes, pois o Guardião era uma muralha de força e vitalidade.

       Quando Rowell regressou com Helana, havia se passado menos de uma hora, mas a ansiedade transformava esse tempo em algo insuportável de aguardar.

       -Eu garanto a segurança desse forte e dos humanos – disse Helana, achando que devia satisfações para Joan, pois de um modo totalmente inesperado, a fadinha havia se tornado uma líder para seu povo. As salvara de um caminho destrutivo e trazia esperança para sua raça, e quem sabe, todas as demais. – Em troca da proteção que estas muralhas garantem para minha gente. É uma troca justa – ela falava, e seus olhos acompanhavam cada movimento da criança que brincava perto de Liara.

       O modo como Rowell olhou para o filho era de cortar o coração. A real vontade do duque era pegar o filho nos braços e sair fugido dali, para protegê-lo e mate-lo consigo.

       Mas era um desejo egoísta. O menino não era de sua raça, e isso era facilmente notado não apenas em aparência e comportamento, mas também em propensão em achegar-se a Joan. Sempre querendo o carinho da fada.

       As raças se reconheciam. Entrosamento natural.

       -Marmom, querido, venha cá – Joan chamou, abaixando-se para interceptar a corrida empolgada do menino. Ergueu-o no colo, e riu, libertando os cabelos do ataque dos dentes vorazes da criança – quero que conheça algumas pessoas, Marmom. – disse com voz meiga, atraindo a atenção do menino – Não, não coma meu cabelo, querido. – ela fez um afago no rosto do menino e ele escondeu o rostinho em seu pescoço, manhoso. – Veja, essa fada rabugenta é minha amiga Driana – mostrou ao menino, arrancando um suspiro exaltado de Driana - esse elfo enorme é Acheron. Ele é um guardião. Quem sabe um dia não lhe ensinará a lutar? Já pensou? Um homem lagarto unindo sua força ao poder de uma armadura? – era um modo doce de explicar ao menino quem era. E pelo modo como Rowell olhava os dois, isso o mortificava e doía em seu coração. – E esta, é a líder do seu povo, Marmom. Você já a conhece, não é mesmo? Seu nome é Helana. Você a conhece, Marmom?

       Era um pergunta retórica. Tão logo os olhos levemente amarelados do menino viram por de trás do disfarce e camuflagem que Joan criara para Helana, reconheceu-a e estendeu os braços em sua direção, pedindo colo.

       Joan ouvia o menino chamando Helana por algumas palavras de seu dialeto, e imaginava que nas vivitas feitas à criança, Helana conversava em sua língua. De seu canto, Tubã aproximou-se e Helana afastou-se com o menino no colo, no mesmo instante, como quem deseja se proteger e proteger a cria.

       Longe de todos, apenas os dois, sem mais segredos, sem mais medos.

       -Quem é o menino? – perguntou Tubã, confuso.

       -É filho de Helana – contou Joan, orgulhosa de ver mãe e filho finalmente juntos, sem segredos. – O humano Edward liderou um ataque que exterminou os homens lagarto, inclusive o marido de Helana, líder de seu povo. E aprisionou suas fêmeas. Marmom é o último macho de sangue puro de sua raça. – ela explicou baixinho, seus olhos procurando pela imagem de Rowell. Ele olhou para Tommy, um menino bem mais crescido, mas ainda inocente. Ele não entendia nada de diferenças de raças.

       Aonde o irmão ia, ele ia atrás. Era assim que funcionava. Nada mais natural que procurar por Marmom, com uma bolinha de pano nas mãos, chamando-o para brincar.

       A fêmea Helana olhou para a criança humana com assombro. Seu primeiro e único impulso foi afasta-los. O tempo de mentiras acabou, Marmom era seu filho e teria o nome do pai. Não aquele nome humano.

       Observando o modo como Helana parecia prestes a chutar a criança humana para bem longe, afastando o filho dos humanos definitivamente, e sem saber, causando uma briga e rachadura entre a frágil aliança de criaturas e humanos, Tubã num impulso aproximou-se e pegou o menino humano e o colocou sobre o os ombros.

       -Crianças gostam de jogar bola, Helana. Deixe o menino brincar – ele não esperou permissão, roubou-lhe Marmom e Joan sorriu orgulhosa de seu amigo.

       -Não se preocupe – disse Joan para Rowell – Tubã é maravilhoso com crianças. – observou que o elfo saiu da sala, levando as crianças para longe de toda a agitação. Infelizmente Marmom poderia ser o pivô de uma briga. Estavam todos tensos e a lucidez se perde em momento de tensão. A pobre Liara seguiu correndo, pois era se dever cuidar das crianças do duque, mesmo que isso lhe causasse medo e assombro.

       -É tempo de partir – disse Rowell nada convencido que aquilo era uma boa ideia. – Já esperei tempo demais. Alice precisa de mim.

       -Vá – disse Helana – Seu povo está seguro. Nossas diferenças serão acertadas quando retornar.

       Era um claro aviso que precisariam discutir sobre o menino Marmom.

       -Isso mesmo, chega de imprevistos -disse Driana incomodada com a demora – Acheron despachou Mikazar para que avise Alma e Solon. Precisamos reunir o maior número possível de Guardiões. Ainda resta Egan para ser avisado.

       -Minha mãe – Rowell aproximou-se de Matilde e a beijou na testa, confortando-a – fique de olho no forte. O ducado está sobre suas ordens. Não gaste sua energia contra aliados, e sim, contra os inimigos – era um aviso para que não se envolvesse em brigas com aquelas criaturas que os ajudavam.

       -Traga Alice de volta – pediu Matilde, com voz embargada.

       -É o que farei. – ele prometeu. Virou-se para Joan e ela aproximou-se com o coração acelerado dentro do peito.

       -Não tenha medo, Duque, vamos encontrar Alice e trazê-la de volta. Tenha fé.

       O Duque Mac William não podia ter fé, ele precisava de ação. Mas o humano Rowell, o homem apaixonado, tinha esperanças. E era isso que importava.

       Era tempo de erguer a espada e lutar. E com essa certeza, humano e criaturas, partiram do forte em direção ao Monte das Fadas.

       Em algum lugar próximo ao castelo, Egan foi impedido de saber de tudo que acontecia através da boca de um Guardião de confiança, como era Acheron. Pelo contrário.

       Encontrou Zoé. Na beira de um rio, suja, zonza e aos prantos. Primeiramente não entendeu o que dizia. Depois, tudo fez sentido. Algo perigoso acontecia e Zoé apenas trouxera um empecilho a mais para a fada Joan.

       Foi preciso paciência e um tempo inútil para convencer a guardiã a levantar e seguir com ele. Precisava de suas asas para chegar ao castelo em tempo menor. Zoé entre choro e mãos tremulas lhe disse que havia perdido sua armadura. Agora era apenas uma fada comum, sem proteção.

       Era apenas uma fada com dom e asas.

       Apenas isso...

         

       Do alto de um voo desengonçado, Joan olhou para baixo, e viu o mesmo que Rowell: fêmeas de lagarto cobrindo cada pedaço do telhado, das torres, e muradas, entrosadas aos humanos, com suas armas em mãos e prontas para a luta.

       Um novo tempo estava para começar naquele ducado. Um novo tempo estava para começar no Monte das Fadas.

         

       O ar parecia menos respirável dentro das portas do castelo do Rei Isac. Eleonora sentia na pele a hostilidade. Não sabia por que ou o que levou a isso, mas sentia o desagrado. Era perita em identificar o nojo e rechaço. Uma fada da clausura aprende a lidar com a rejeição desde a tenra idade.

       Ela retirou-se do jantar, deixando a mesa repleta de Conselheiros e seus familiares, e foi ajudada por Reina, seu braço direito. Ou muito mais do que isso, sua amiga, sua mãe não de sangue, mas sim de coração.

       As duas andavam pelos corredores silenciosos.

       -O que está acontecendo, Reina? Porque eles estão assim? – perguntou ao sussurros, enquanto ambas andavam rapidamente, como se estivessem sendo perseguidas.

       -Eu não sei. Túlio anda preocupado. Na verdade, ele anda nervoso. Algo acontece, Eleonora. Ainda não sabemos o que é. Mas os Conselheiros tramam algo. – ela a escoltou até a torre mais alta, onde ficava o quarto do Rei, antigo quarto de Isac e Santha.

       Em breve, Eleonora pretendia mudar de dormitório, pois aquele lugar lhe dava pesadelos. Mas por hora, precisava preocupar-se com suas amigas e Tubã. Alma estava segura, Driana também. Mas ainda restava encontrar e salvar Joan. Pensar em sua fadinha de olhos delicados e expressão assustada, cortava seu coração.

       Reina a levou diretamente para a cama, pois Eleonora vinha sentindo-se péssima. Ela deitou, mas não deixou Reina ir. Segurou sua mão e perguntou angustiada:

       -Egan encontrará Joan viva, não é?

       -É claro que sim, querida – Reina a abraçou e Eleonora escondeu o rosto em seu ombro, precisando ser confortada.

       -Miquelina não viu nada sobre Joan? Você não pode pedir a ela que...? – insistiu, e era uma conversa sempre abortada pelas desculpas de Reina.

       -Miquelina não gosta das fadas do Ministério do Rei. Ela dirá se vir algo. Não adianta pedir por ajuda. Ela negará a menos que haja razão para interferir.

       -Isso não é justo! – Eleonora revoltou-se – Eu sou uma rainha! Ela me deve obediência!

       -Ora, por favor, Eleonora, Miquelina nunca respeitou nem mesmo Santha que impunha respeito baseado em medo! Acha que respeitará uma fada da clausura? – a voz de Reina era forte e dolorosamente verdadeira.

       -Porque não diz de uma vez, Reina? Ninguém me respeita. Os Conselheiros estão armando contra mim! Eu sinto! Eu posso sentir, algo está errado. Algo acontece. Olhe para mim quando falo! – exigiu, pois Reina afastava-se e andava pelo quarto – Olhe para mim! Estou murchando! O ar está seco, está sem vida, sem viço! O ar está ralo, sem calor, sem frio! Eu sinto! O tempo muda, e eu nunca vi uma mudança dessas, nem mesmo nos piores invernos ou verões! O que está acontecendo? Quem está agindo contra o clima? Quem além de mim poderia fazer isso?

       -Não deve se preocupar com isso, Eleonora. Pense em seu estado. Egan voltará em breve e tudo ficará bem – ela disse nervosa – apegue-se a essa certeza. Tudo ficará bem.

       -Não! Eu quero saber o que deixa Túlio nervoso! Porque o primeiro conselheiro está nervoso?

       Reina demorou em responder. De costas, ela deixou de lado os cuidados com uma bela peça de roupa e olhou para Eleonora com angustia.

       -Porque os Conselheiros não o obedecem mais. Eles o ignoram. Os Guardiões... São apenas seis guardiões jovens. Eles obedecem cegamente aos Conselheiros. O povo obedece aos Conselheiros. Acho que era por isso que Isac amava tanto Santha... Ela impunha respeito baseado no medo, e esse medo trazia obediência. Você... Você trás afeição de um povo sofrido e escravizado. Apenas isso. Você terá a eterna gratidão e obediência dos fracos, Eleonora. Daqueles que não impõe poder de luta. Você é um alvo frágil. É o que está acontecendo.

       -Serei traída? – a pergunta soo gélida, mas ela tremia.

       Sua mão pousada sobre o ventre, onde o primeiro herdeiro do reino crescia. As roupas largas disfarçavam a cria, mas as fêmeas sabiam. O cheiro de uma fada prenhe era facilmente captado pelas outras fêmeas. Era possível que alguma delas houvesse contado aos Conselheiros?

       -Mas o que eles ganham me tirando do poder? Nenhum deles pode assumir. - era uma dúvida baseada em lógica e nas leis do Reino.

       -Eu não sei. Mas você precisa ficar aqui. Não saia sem mim. Eu... Túlio pediu que cuidasse de você. Eu não posso protegê-la se estiver longe de mim.

       -Ninguém pode me proteger – Eleonora disse séria. – Se a traição acontecerá dentro do castelo, eu preciso fugir. – ela disse séria – Eu não me envergonho, Reina, eu fujo e protejo o direito de sucessão. – ela olhou para a própria barriga – eu preciso proteger minha cria até o retorno de Egan.

       -Não pode fugir, Lora. Eles não deixarão – Reina explicou, a força e determinação sempre presente em sua personalidade, desapareceram enquanto falava – Eu não deveria lhe contar... Seu estado é tão delicado... Estamos presas. Cercadas. Túlio não pode interferir. Ele está sendo vigiado. Será morto se erguer um dedo contra os Conselheiros. Nada poderemos fazer sem os guardiões Egan, Acheron, Solon e Zoé.

       -Será... Será que... Oh, não, Reina, isso explica uma dúvida que sempre tive – ela disse a beira do choro.

       Vestida com um vestido branco, coberto por pedras delicadas e brancas como a roupa, com um longo manto azul claro, também coberto por pedraria, nos pés sandálias trançadas e na cabeça uma tiara passando sobre a testa com lindos diamantes, que constatavam com sua tez muito clara, seus olhos quase sem cor, e seus longos e ondulados cabelos louros, praticamente descoloridos. Suas asas recolhidas em suas costas e escondidas pelo manto.

       -Do que fala, Eleonora? – Reina aproximou-se da cama, e o olhar perdido de Eleonora despertou seu medo maior.

       -Eu sempre entendi a ideia de Santha em acusar quatro fadas. Isso esconderia minha descendência. O que nunca entendi... Foi porque Lucius permitiu essa estupidez.

       -Estupidez? – Reina não entendeu.

       -Sim, qual líder em sã consciência enviaria de uma única vez seus únicos guardiões de força e treinamento capazes de defender seu reino? O lógico seria enviar um Guardião experiente e outros de menor valia. Agora faz sentido... Se Lucius pretendia tomar o poder... Ele faria isso à revelia do desejo de liberdade de Santha. Ele a enganaria, Reina. Ele tiraria seu trono.  – era a dedução mais lógica.

       -Não sinta pena dela – disse Reina, sabendo muito bem que o coração bondoso de Eleonora sofreria pela mãe desnaturada que a traiu.

       -Eu não sinto – Eleonora mentiu, e Reina sabia que era apenas para tentar agrada-la. Para dizer-lhe sem palavras que era sua escolhida, sua mãe substituta, e seu amor era todo dela, e que seus sentimentos por Santha eram confusos e deslocados, orbitando entre piedade e outro sentimento inominável, de não ter tido a chance de conhecer a verdadeira Santha.

       Por mais que amasse Reina, não podia pedir que entendesse o que uma fada condenada a clausura sentia. Os mistérios que se camuflavam em seu coração.

       Ano após ano vendo Alma perdendo o controle e o juízo, uma bomba prestes a explodir, presa entre quatro paredes, tentando não enlouquecer completamente. Ver Driana com a cabeça enfurnada em livros, em uma eterna busca por uma saída, uma alternativa, uma lei ainda não explorada, que pudesse ser burlada, mesmo sabendo que seria uma busca vã. Ou ver Joan chorando pela reclusão eminente. Sim, Reina não entendia nada disso, era profundo demais para alguém que nasceu livre compreender.

       Mesmo assim não desejava machucar o coração de Reina.

       -Não falaremos mais dessa fada imunda. Eu vou buscar algo para você comer. Mal tocou no jantar. E meu neto merece ser cuidado com todo zelo – ela disse carinhosa, aproximando-se para um beijo suave em sua testa.

       Reina saiu e Eleonora não se acalmou.

       Sim, fugir era sua única alternativa. Ela não queria ser rainha. Poderia facilmente viver feliz em uma casinha na floresta, ao lado de Egan, de sua cria, e de suas amigas. Prezar sua linhagem e sua família era seu único desejo.

       Uma guerra destruiria o mundo mágico, mas ela não deixaria que destruísse também sua vida.

       Na inércia de não saber o que fazer com a liberdade que afastara suas amigas de si, impedia seu grande amor de estar perto, e de quebra colocava sua vida e a vida de sua cria em risco, Eleonora levantou e aproximou-se do gigantesco espelho no canto do quarto. Ao lado uma penteadeira coberta de perfumes, joias e luxo. Ela retirou a tiara da testa e soltou o manto dos ombros, o tecido diáfano caindo sobre o encosto de uma cadeira de veludo e metal dourado.

       Com o peito pesado de medo e angustia, Eleonora ergueu os olhos para o espelho e o que viu a deixou imóvel. Seu reflexo duplicado?

       Não, não dera uma vertigem, ou algo assim.

       Havia duas mulheres, uma jovem, e outra austera, ambas parecidas, quase idênticas, não fosse a diferença de idade, ambas refletidas na mesma imagem.

       A primeira com sua beleza esfuziante, juvenil e cuidada. Cabelos brilhantes, pele cristalina e olhos brilhantes de uma esperança que jamais poderia ser extinta.  A segunda apática, suja, e abatida, os olhos sem vida, sem brilho. A esperança perdida. A vida roubada, o preço pago pelos próprios desejos de domínio e soberba.

       Passado o susto, Eleonora se moveu, e pegou o punhal que sempre ficava sobre a penteadeira, uma lâmina pequena e perfeita para uma fada frágil usar contra seu oponente.

       -O que você está fazendo aqui? – perguntou, virando para ela e erguendo a arma, como uma oferta, pois não hesitaria em usar a lâmina se necessário.

       -Você me deixou ir – disse Santha, sem mover um dedo para aproximar-se ou fugir de uma possível agressão – Me deixou ser livre.

       -Não. Eu não fiz isso.  – Eleonora negou – O que você quer?

       -Avisa-la. – disse Santha com voz sem viço. Sem vida.

       -Avisar? O que você pode ter para me dizer que possa me interessar? – sua mão tremia.

       -Um humano trama contra seu reino, rainha – disse Santha, um passo para frente – Um humano lidera uma revolta. Estará morta antes do amanhecer do novo dia.

       -Está mentido. Quer seu trono de volta? – Eleonora acusou e sua voz cresceu um tom, em fúria – Não basta tudo que já me fez na vida?

       -Eu posso provar. Esse humano rouba asas de fadas. Ele trará sua amante louca, para tomar o trono. Você me deu a liberdade, Eleonora, e eu não pude ser livre. Não era meu destino. Roubaram a liberdade de mim outra vez.

       Eleonora temeu sua movimentação. Santha apenas virou de costas e deixou o manto surrado e fétido que usava cair no chão, revelando roupas em trapos e uma imagem devastadoramente cruel, que fez o punhal cair das mãos de Eleonora e despertou um som de horror de Reina, que naquele instante abria a porta do quarto e adentrava.

       As costas de Santha eram uma cena devastada. Asas cerradas, feridas abertas, ainda cicatrizando. O medo de toda fada.

       -O humano rouba asas de fada. Eu tive azar, Caçadores de Fada me apanharam. Eu nunca fui livre. Não sabia para onde ir ou onde me esconder. Eu nem sabia que existiam Caçadores de Recompensa. Eu não sabia de nada disso – disse Santha com voz perdida e viçosa.

       -E como poderia? – foi Reina quem disse – Vivou toda uma vida de luxo e poder, mas nunca olhou para seu povo! Todas as leis que protegiam os humildes foram vetadas por Isac, e eu sei que era você quem o convencia! Nessa cama – Reina apontou a cama majestosa que adornava o quarto – Nessa cama, você fazia a cabeça do rei contra as boas leis! Instruída por Lucius! Alguma vez perguntou ao seu amante a razão disso?

       -Não – disse Santha, olhando para sua antiga pajem, que cuidava de sua vaidade e suas necessidades de rainha caprichosa e cheia de vontades – Fui pega e levada para uma caverna. Eu não preciso dizer o que aconteceu depois. Levaram minhas asas. Minhas lindas asas. – ela baixou os olhos, lágrimas não existiam mais. Oca, sem lágrimas, era como se sentia – Eu ouvi tudo, o que fariam, e por que. Nenhum deles achou que sobreviveria para contar a alguém. Eu não valia a venda. Não servia para mais nada, fui deixada para morrer. Como pode ver, não foi o que aconteceu.

       -Que lástima – disse Reina rancorosa – Pelo que vejo, mãe e filha sobrevivem a tentativas de assassinato com muito propósito – era uma lembrança que fizera algo muito parecido com Eleonora, quando esta era apenas um bebê desprotegido.

       -O que você quer, Santha? – perguntou Eleonora, recuperada do choque – Compaixão? Ajuda? É isso que você quer de mim? É o que veio buscar?

       -Não – ela disse aproximando-se do enorme espelho, ficando ao lado de Eleonora, e com um sorriso de pavor, disse – Que feia, estou tão feia.

       -Você sempre foi horrorosa – disse Reina – Sempre que eu a via, sentia um embrulho no estômago. A coisa mais feia que já vi na vida. Olhar para sua bela face sempre me despertou apenas medo e horror.

       -Eu não fui sempre assim – disse Santha olhando-se no grande espelho com piedade da linda mulher que fora um dia. – Não tente entender, Reina, aquilo que lhe é desconhecido – ela dizia, seus olhos encontrando os olhos de Eleonora através do espelho – Eu nem sempre fui horrorosa. Nem sempre.

       Eleonora não duvidava disso. No Ministério do Rei, quando era penas uma órfã desesperada por liberdade, quem sabe, Santha houvesse sido alguém valoroso? Mas ponderar sobre seu caráter não mudaria nada. O que está feito, está feito. Os Conselheiros estão vendidos. Com exceção de Túlio, os demais estão vendidos para o humano. Os guardiões de menor importância se reportam unicamente a eles. Eles creem em um ataque de duendes e seguiram as ordens dos Conselheiros. Não sabem das enormes mentiras por detrás de cada Conselheiro. Do ódio e do rancor que cada um guarda. É o que acontece quando se perde àquilo que mais ama – ela disse com propriedade – A perda de uma armadura. Um verdadeiro Guardião sabe abrir mão de sua armadura em prol da juventude. Mas poucos foram agraciados com a possibilidade de passa-las para seus filhos e de algum modo, ainda possuí-las. A maioria guarda rancor e ódio. E esses sentimentos são poderosos – olhou para Reina e afastou-se do espelho. Era impossível não olharem para as feridas horrendas em suas costas. Ainda abatida, mesmo que fraca e cansada.

       -Haverá uma guerra, e nenhuma fada ou elfo erguerá um dedo contra guardiões. No instante em que os guardiões erguerem suas espadas, tudo estará perdido. A guerra decidida, e sua morte é uma certeza definida – ela disse apática – A única forma de impedir é escondendo-a dos olhos dos Conselheiros enquanto os guardiões experientes voltam.

       -Como sabe que os guardiões estão voltando para o castelo? – perguntou Eleonora insegura do que ouvia ser verdade.

       -Quando se vive em surdina, aprende-se a ter olhos e ouvidos apurados. Eu estive na companhia de uma duende muito bem informada – olhou diretamente para Reina que sabia de quem falava.

       -E Lucius? Ele está nisso não é? – Reina perguntou aproximando-se para ficar entre as duas fadas, mantendo Eleonora sob sua proteção, mesmo que não pudesse de fato protegê-la.

       -Acho que descobrirá que Lucius foi morto em sua cela – ela disse com olhos vazios, carregados de demência e vingança.

       -Você o matou? – Eleonora perguntou surpresa.

       -Isso a admira? Eu conheço esse castelo como a palma da minha mão. Eu não atentei contra você, porque o trono não mais me interessa. – Santha revidou – É rainha, Eleonora. E deve proteger seu poder. Esconda-se enquanto a luta acontece. Guardião Acheron está a caminho com suas amigas.

       -Todas elas? – a pergunta soo frágil e Santha nada respondeu.

       -Pegue o punhal, Reina – disse Santha – Acho que isso lhe dará um prazer indescritível. – ela disse quase sorrindo.

       -O que devo fazer com o punhal? – perguntou Reina engolindo em seco.

       -O que você sempre desejou fazer. – ela explicou – Me dê um belo vestido, Eleonora e uma sua joia preferida. E seu perfume mais usado.

       Eleonora olhou para Reina como quem pergunta se deve mesmo fazer isso. O modo como Reina a olhou era indescritível. Dez minutos mais tarde, vestida, e penteada, Santha aproximou-se da cama e disse:

       -Durante vinte anos este foi meu leito. O meu lugar no mundo. Quando a porta se fechava, meus pecados ficavam do lado de fora e eu era protegida e amparada. Nos braços de Isac. Quando a porta se fechava, eu conhecia o amor. Eu amei e fui amada. Eu não sei se alguém merece isso. Se eu mereci. Mas esse leito foi o único lugar onde fui verdadeiramente livre. – angustia em seu olhar, finalmente se refletiu em lágrimas e ela olhou para a filha com esse sentimento – Eu não a amei, Eleonora. Eu não pude amar a cria que vinha do desespero e da desistência. Eu não amei Lucius, ele era meu apoio na desgraça. Eu não amei a mim mesma. Eu não peço perdão. Eu não sei como fazer isso. Deixou-me viver meses atrás, e agora eu escolho que você viva. Isso não vai redimir tudo que fiz. Faça de conta que hoje é seu nascimento. E hoje estou lhe trazendo ao mundo. Apenas faça de conta que eu fiz minha parte e lhe fui uma boa progenitora.

       Eleonora não entendeu o que isso significava, até ver Reina aproximar-se da cama com o punhal em mãos.

       -Vista uma roupa simples e uma capa longa, que cubra seus cabelos e seu rosto – disse Reina, com tensão na face e voz. – Olhe para o outro lado e cubra seus ouvidos, Eleonora.

       -Não, Reina, você não pode fazer isso... – Eleonora apelou, ao entender.

       -Obedeça! – Reina gritou, empurrando Eleonora na direção do biombo que separava as roupas do               quarto – Vista-se!

       -Reina, não faça isso! – tentou segurá-la, mas Reina a manteve imóvel e olhou fundo em seus olhos, o punhal em uma das mãos, e a outra agarrava o rosto de Eleonora e a mantinham imóvel.

       -Eu a resgatei da morte, Lora, e você foi minha razão de viver por todos esses anos. Não permitirei que a tirem de mim. Santha entende. Eu entendo. Olhe para si mesma e para sua barriga, pense em sua cria, e entenderá também.

       Era um momento de desequilíbrio, ou quem sabe, pela primeira vez na vida, de lucidez total. Eleonora ficou ali, sem ver o que acontecia. Olhos arregalados, medo, dor, eram sentimentos que não sabia definir. Suas mãos agarraram o metal gelado do biombo, ouvindo os passos de Reina pelo quarto.

       -Faça – ela ouviu o sussurro de Santha e ouviu um sussurro ainda menor de Reina:

       -Se pudesse ser tudo diferente...

       Eleonora não viu, mas Santha deitou-se na cama, bem no centro, a cabeça apoiada nos limpos e perfumados travesseiros e sorria. Sim, ela sorria para sua pajem, sua companheira de uma vida toda. Onde sempre houve ódio, havia agora amor.

       Amor por uma única pessoa: Eleonora. Reina ergueu o punhal e Santha fechou os olhos, ela pensava em Isac e na dor de sua ausência, que finalmente chegaria ao fim.

       O punhal desceu e encontrou abrigo entre os seios da fada. O pequeno grito de agonia, veio de Reina e não de Santha, que não gemeu ou gritou, apenas piscou os olhos, em quanto a vida partia. No final, apenas uma poça de sangue pequena e um punhal caído no chão.

       Reina ficou olhando para o corpo sem vida. Eleonora saiu de trás do biombo vestida como Reina pediu, e aproximou-se com um lenço nas mãos. Tomou o punhal das mãos de Reina e limpou-o para afastar seu cheiro de fada, e jogou a arma em um canto qualquer.

       -Parece que esse quarto é fadado as tragédias e artimanhas – disse Reina, sem reação diante do que fizera.

       -Para onde eu vou, Reina? – perguntou sem saber o que fazia.

       Sem olhar para a cama, onde o corpo jazia. Ela lutou para não olhar. Era como ver um espelho refletir a si mesma, era como ver o passado e presente fundindo-se em um único caminho. Era deveras triste, sombrio e louco. Ela não podia chorar, e temia agarrar-se ao corpo sem vida, pedindo pelo amor que nunca recebeu.

       Era forte demais, tremia por dentro, e por fora. Era grandioso demais. Olhar para Reina e vê-la como uma assassina, olhar para si mesma e saber que era cúmplice. Olhar em torno e enxergar três fadas tentando salvar uma decência que se abrigava em seu ventre. Amor que não nasceu ainda, mas mudava toda a história de um povo.

       -Para o Ministério do Rei. Para Miquelina. Ela vai abriga-la. Ninguém a procurará naquele inferno.

       Era verdade, o orfanato fora destituído, mas as carcereiras ainda viviam lá, numa espécie de revolta contra as ordens da rainha. O lugar era um monumento à solidão.

       -Vá. Tem poucos minutos para esconder-se. – Reina a beijou em uma das bochechas e Eleonora correu para a porta.

       Percorreu os corredores em surdina, o coração acelerado e uma das mãos sobre o ventre. Era sua cria e de Egan. Era um futuro rei ou rainha. Era seu amor, e não permitiria que nada acontecesse com sua cria.

       Nem que para isso precisasse desaparecer para sempre!

 

       Escondida nas masmorras, em um quartinho usado como dormitório pela carcereira Miquelina, Eleonora espiava tudo que acontecia nos pátios, através de uma pequena abertura coberta por grades, que servia de janela, ou de entrada de ar, difícil saber como o castelo fora planejado, pois estava de pé desde o reinado do Rei Ulder.

       Ela enxergava fadas e elfos em uma correria desesperada, uma movimentação anormal. A rainha fora assassinada em seu leito, e os Conselheiros erguiam uma pira na região central do povoado, para que ela fosse exibida como uma oferenda. Na verdade era um modo de apagar definitivamente a lembrança de uma doce e bondosa rainha. Para que não restassem dúvidas de sua partida.

       Com horror e lágrimas nos olhos, ela assistiu por aquelas frestas, o corpo de Santha ser queimado e velado.  Naquele desespero, ela encolheu-se em um canto escuro e abraçou a si mesma, com medo. Em seu ventre sua cria se movimentava, lembrando-a de tudo que perderia caso fosse apanhada.

       Do lado de fora do castelo, Acheron foi o primeiro a pousar os pés no chão coberto de grama verde. A fada Driana o lançou, descartando o peso desnecessário. E furiosa, gritou:

       -Chegamos tarde! Olhem! É posicionamento de guerra! Venha, Joan – ela pegou a amiga pela mão e as duas alçaram novo voo.

       Observaram tudo. Minutos mais tarde as duas juntaram-se a Acheron e Rowell.

       -É inútil tentarmos entrar por ar. Arqueiros estão posicionados – disse Driana horrorizada.

       -Fadas estão colocadas nas muradas mais altas. Elas usam... Algo em seu pescoço, um espécie de coleira. – disse Joan sem entender o que via.

       Acheron praguejou e explicou:

       -Há alguns anos atrás Lucius tentou aprovar o uso de coleiras com veneno embutido e liberado no caso de uma desobediência. Era para uso de fadas. Para que elas fossem obedientes às leis do reino. É claro que essa arma foi abolida. – ele maneou a cabeça, incrédulo – Eu deveria saber que os Conselheiros usariam isso nas fadas que se negassem a colaborar.

       -Não podemos entrar por ar – disse Driana – Nem por terra. Eu passei muitos anos pesquisando como fugir do reino – confessou – e sem ajuda de dentro é impossível. Não há rotas ou caminhos secretos. A única entrada e saída é pela porta da frente – ironizou.

       -Algo me diz que isso acontecerá – apontou Rowell notando algo que eles não viram até então.

       O portão principal estava baixando, e apenas a porta de segurança, forjada em aço puro era erguida. Ele mesmo mantinha esse tipo de segurança em seu forte e nunca, nem mesmo nas batalhas mais brandas, ele manteve a primeira das portas erguida. Jamais.

       Rowell sacou a espada e disse:

       -Estamos sendo vigiados. – era uma dedução lógica.

       O caminho em torno do castelo estava sendo vigiado.

       -Nenhum Guardião atacará um superior em hierarquia – disse Acheron e o som irônico de Driana o fez olhar para ela com fúria comedida.

       -Vista sua armadura, Guardião. Hoje será o dia em que lutará contra sua própria gente – disse Driana, abrindo as asas, que estavam recolhidas em suas costas.

       Era hora da luta. O som ensurdecedor de rugidos era um indicio de que algo realmente sairia do castelo.

       -Lá em cima! – gritou Joan, a primeira a notar.

       Fadas voavam além dos portões e de suas mãos bolsas eram miradas e jogadas sobre eles.

       -Oh, não! Corram! – gritou Driana prevendo o que era.

       Ela ergueu voo e juntou-se as fadas, tentando impedir que soltassem aquelas armas contra Acheron e o humano. Eram bolsas contendo formigas carnívoras, aos quais, uma vez encontrado carne, amontoam-se e devoram a vítima em segundos. Ela lutou, mas não conseguia sozinha. Por isso ganhou distância, levando-as para longe. Foi quando olhou para trás que viu uma das fadas gritar e cair. Então, com outra aconteceu o mesmo.

       Era Joan invisível, pegando-as de surpresa e nublando seus pensamentos e visões. Mas não conseguiria fazer isso com todas. Driana tocou na mão de Joan e elas ficaram invisíveis, voltando ao chão, para perto do Guardião.

       Vestido em sua armadura, Acheron criou um escudo de poder, onde as formigas eram queimadas ao tocar essa parede invisível. As duas fadas pousaram entre ele e Rowell, e Joan disse:

       -Eu posso tentar entrar. – ela avisou – Eu sei que posso!

       -Não adianta! – disse Driana – eles nos querem lá dentro. E não é por razão amigável!

       Nem precisava dizer isso. Quando o portão se ergueu, eles viram o que os aguardava.

       Duendes de todas as espécies, tamanhos e cores, fortemente armados formavam um exercito. Eles começaram a sair e os quatro andaram cada vez para mais longe. De entre eles, surgiu um cavalo com um Guardião sobre ele.

       Acheron baixou o escudo, e com um olhar avisou que não se movessem.

       Era de praxe uma tentativa de acordo.

       O Guardião era o mais jovem, o décimo Guardião, quase uma criança ainda.

       -Qual a situação, Folson? – gritou Acheron de uma distância segura.

       -A Rainha foi morta essa manhã. A guerra está declarada. Os Conselheiros nos contaram tudo – ele disse impaciente por luta – Sabemos de tudo sobre os panos dos guardiões em tomarem o poder!

       -Foi isso que os Conselheiros disseram? – Acheron não se surpreendeu. – E é por mentiras que você veste sua armadura?

       -Não! Visto minha armadura, pois ela acusa perigo! Rendam-se e serão julgados pela lei do reino! Talvez, julgados com alguma clemência! – o jovem tornou a dizer.

       Um pobre pião sendo sacrificado para o envio de um recado desprezível.

       -E quem rege o castelo? Os Conselheiros? – ele perguntou só para checar.

       -Rendam-se! – o jovem não sabia responder, não fora informado sobre nada disso.

       -É meu pupilo, Guardião. Como ousa erguer a espada para quem lhe ensinou a lutar?

       As palavras de Acheron pesaram nos ombros do jovem. Foi uma fração de segundos, e uma flecha vinda do arco de um duende pois início a luta, pois o cavalo se assustou e o décimo Guardião também. Ergueu sua espada e investiu contra Acheron.

       Os duendes avançaram, e mesmo no uso de sua armadura, Acheron foi cercado por todos eles.

       -Não! – gritou Driana em pânico de perder seu elfo escolhido, alçando voo, mas sendo segura por Joan.

       -Fique! – Joan pediu, e empurrou a amiga para longe da luta. Fechou os olhos e ergueu ambos os braços na direção dos duendes.

       Imediatamente ao seu desejo, um gigantesco duende surgiu, uma imagem criada por seu dom de fada, mas que deveria assusta-los.

       Uma distração tão grandiosa que assustou a todos eles, que recuaram. Mas assustou também Acheron que vacilou por um instante e quase foi alcançado pelo fio da espada do décimo Guardião.

       O que o impediu de conhecer a morte naquele momento exato, foi a pequena lâmina que atravessou o punho do jovem Guardião, ferindo entre a proteção da armadura e a palma da mão, e fez a espada escorregar de sua mão, roubando a força que o jovem tinha.

       Um punhal lançado por Rowell.

       Espadas começaram a se chocar, em um mar de fúria. Joan permaneceu atrás de Rowell, enquanto seu gigante duende de mentirinha esmagava duendes de verdade. Era o peso da ilusão derrubando-os, refletindo no corpo uma paralisia temporária. Aos poucos eles foram se erguendo e descobrindo que era faz de conta.

       Nessa hora a luta tornou-se impossível de vencer, e Acheron considerava um recuo nada elegante ou corajoso, mas não precisou comunicar sua decisão a ninguém. Um clarão veio do céu. Uma guardiã vestida em sua armadura de cor escurecida, voando com suas asas imponentes.

       Ela lançava lanças pequenas e pontiagudas, e vinha acompanhada de Egan, o primeiro Guardião.

       Três guardiões dariam conta de duendes. A luta poderia ser vencida.

       Joan manteve-se a uma altura segura, mas foi surpreendida quando um duende acertou uma corda em seu pé e a desceu para o chão. Seus berros de medo e asco fizeram eco aos berros de guerra dos demais duendes que investiram sobre ela. Um momento de puro horror, mãos, pés, bocas, toques. Eles tentavam imobilizá-la e prender a fada.  Driana tentou livra-la dos duendes, mas suas asas enroscaram nas mãos e espadas, e ela gritou de dor quando um dos duendes acertou um punhal afiado e rasgou um pedaço da asa, cortando um dos filamentos. Ela caiu, e virou vítima junto com Joan.

       Não adiantava debater-se, ou tentar chocar o peso do corpo contra eles. Eram muitos e apesar do tamanho diminuto, eles eram fortes e usavam proteção em pulsos, peito e pernas. Driana sentiu os dedos da mão quebrarem ao tentar acertar um deles na face, e acabar por acertar o elmo que protegia o rosto do duende.

       Joan ouvia os gritos de Driana, mas não podia fazer nada. Em um surto, ela berrou o mais alto que pode, e suas piores lembranças do Ministério do Rei vieram a tona, e ela as colocou pra fora, criando um cenário horrível.

       Uma queda vertiginosa sob ela, Driana, e os duendes que as subjulgavam. Uma sensação de queda tão forte e tão horrível, que mesmo sabendo que era apenas algo criado pela sua mente e dom, Joan berrou em pânico.

       O que dizer dos duendes? Cada qual tentou fugir daquela sensação, mas acabaram confusos e perdidos, e não foram pareô para Driana que enfurecida, ergueu-se e passou a chutá-los para longe, sua mente lógica e sagaz nem um pouco atingida pela ilusão criada por Joan. O que Driana não viu foi que os duendes cediam sob o peso da espada dos dois guardiões, sob as garras afiadas de Zoé e a espada furiosa do humano Rowell, que infelizmente tinha sangue mágico em suas mãos.

       Não viu que uma lavra de elfos e fadas vinham do portão do castelo, e eram fadas com dons. Todas presas pelas coleiras, destinadas a se transformarem em guerreiras, quando na verdade eram apenas camponesas criadas para cuidar de suas famílias. Fadas do Ministério do Rei. E até mesmo as esposas viúvas de rei Isac. Nenhuma fada, jovem ou velha, foi poupada.

       De costas, Driana não viu uma de essas fadas apontarem em sua direção suas mãos e delas pequenas farpas afiadíssimas surgirem e serem arremessadas em sua direção. Mas Acheron viu. De longe, ele sabia que não conseguiria chegar a tempo para salvar sua fada escolhida. O humano Rowell estava perto. Bem mais perto. Em um arremeto de desespero, Acheron retirou a parte da armadura que cobria seu braço e arremessou na direção do humano:

       -Use! – ele gritou, e o humano não teve tempo para pensar.

       Correu em direção as farpas, secretamente confiando em uma criatura que nunca antes em sua vida viu, ou soube da existência. Se as farpas atingissem Driana, atingiriam também Joan, que no chão, parecia dominada pela própria imagem criada. Imagem essa que mantinha os duendes no chão, lutando contra suas próprias mentes.

       Foi tudo muito rápido, um clarão provocado pela armadura e as farpas foram remetidas de volta para a fada, que infelizmente foi sacrificada por seu próprio dom. A armadura de Acheron protegeria sua fada escolhida, reconhecendo o perigo.

       Driana caiu no chão e Joan acordou de seu quase transe, sendo que ambas foram erguidas pelas mãos fortes de Rowell que cambaleou pelo baque do poder de uma armadura de guardião.

       De longe, Acheron respirou aliviado diante do bem estar de sua fada escolhida e exigiu o retorno de sua armadura, que obedeceu.

       -Formação! – gritou Egan, sempre no comando.

       Ele era o primeiro Guardião e cabia a ele a decisão de quando torna-los uma única formação de poder. Algo raramente usado.

       Zoé pousou os pés no chão, asas abertas, e ficou ao lado de Acheron. Ela olhou para o gigante louro e então para a fada Driana, que ao longe era apoiada por sua amiga e seu humano escolhido.

       O humano que cativou o coração de Zoé, mas não a fez esquecer-se do amor antigo por um guardião que não tinha olhos para ela.

       -Eu sempre te amei – ela disse para Acheron, para surpresa dele – Porque você não pode me amar?

       -Verdade? – ele gritou, furioso – Verdade que você vai falar disso agora?

       A fera era sempre raivosa. Ela adorava isso no guardião.

       -Por que ela? – Zoé perguntou – Porque elas merecem o amor e eu não? Porque são frágeis?

       -Frágeis? – ele gritou de volta encarando os olhos de Zoé – Frágil? Enquanto você brincava de ser humana, as fadas lutavam por suas vidas!

       Essa verdade não cabia espaço no coração, mas sim na mente de Zoé.

       Talvez não houvesse nada de errado com ela, ou com as fadas da clausura. Talvez o amor apenas não escolhe, acontece.

       Em formação, os três olharam para os guardiões mais jovens que também se organizaram formação para luta.

       Seis guardiões, mesmo que inexperientes, em domínio de suas armaduras. Geralmente dois guardiões evitavam lutar, pois seria uma luta longa e mortal. Seis contra três? Os três se olharam sabendo muito bem o que aconteceria.

       -Isso vai ser uma carnificina. – disse Egan.

       As fadas presas por coleiras não eram culpadas de ter que lutar. Eram vítimas. Os elfos erguiam suas espadas, pois aquelas fadas eram suas esposas, mães, e filhas. Era uma luta de fracos e vítimas, contra seus heróis. Covardes que se escondiam sob a proteção daqueles que são subjulgados e os heróis, os guardiões que deveriam protegê-los, serviam de peões de um jogo fétido.

       -Sou o primeiro Guardião – Egan gritou, acima do barulho de luta, fazendo com que os seis guardiões ordenassem a parada da batalha. – Eu ordeno que recuem imediatamente!

       -A Rainha está morta – gritou um deles, Folson, tomando o comando para si – Agora sabemos que guardiões e fadas se uniram para tomar o poder dos Conselheiros e matarem a todos nós! Lutamos por justiça!

       -E as coleiras nas fadas? – gritou Egan apontou as fadas – Isso é justiça? Onde está rainha Eleonora?

       -Morta! Seu corpo ainda queima na pira! – um deles gritou e apontou para um ponto acima das muradas do castelo, onde fumaça era vista – Morta em seu leito!

       Egan permaneceu olhando para a fumaça, perdido das palavras.

       -Isso não é verdade! – o grito veio de trás, um grito de dor, era Joan que gritava – Isso não é verdade! Eu saberia! Meu coração saberia! – Rowell a segurava, para que ela não avançasse contra os guardiões – Reina! Onde está Reina! Onde ela está?

       -Eu não sei – respondeu Folson – Reina não está no castelo. Fugiu.

       -Reina está com Eleonora! Lute por sua rainha, Guardião! – gritou Egan – Minha mãe nunca abandonaria Eleonora, mesmo na hora da morte! Ela está viva, olhe para suas atitudes! Atacará seu mestre?

       Anos e mais anos treinando aqueles garotos, era um peso considerável de gratidão sobre os ombros de cada um deles.

       -Lutamos pelo reino. Servimos a um povo e não aos guardiões – Folson ordenou, em formação com os outros guardiões.

       -Lutam pelos Conselheiros! – gritou Egan de volta – E pagarão pela insubordinação!

       -Eu acho que não – disse o Guardião, desafiador - É hora de mudanças, primeiro Guardião. É hora de mudanças.

       Sim, aquele Guardião também estava vendido. Palavras nada resolveriam.

       Era a hora temida.

       Mesmo as fadas com suas coleiras, afastaram-se, temendo participar do confronto. Os duendes sobreviventes se afastaram sorrateiros, e Driana, com sua asa ferida, puxou Joan para longe, obrigando-a a ir embora com ela.

       O humano ergueu sua espada, mas Driana o impediu:

       -Não. Eles vão se matar. Tudo morrerá com eles. – era a constatação obvia.

       Quando a luta terminasse, toda a vida ao redor estaria destruída. O poder mágico de cada armadura era letal. Raramente usado em sua totalidade.

       Driana pensava sobre a fumaça, pensava sobre a possível morte de Eleonora, sobre o que fazer. Ela escorregou, não conseguia andar.

       -Eu posso acabar com a mente deles. Eu posso – disse Joan desesperada para evitar aquilo – Eu preciso me aproximar.

       -Venha – disse Rowell, segurando sua mão – eu a levo até eles.

       -Não. Você é humano. Precisa encontrar Alice e salvá-la. Precisa ir daqui, Rowell. Fuja! – Joan o empurrou e para surpresa dos dois, começou a correr na direção da luta dos guardiões, içando voo para o alto para chegar mais rápido.

       Em seu desespero de chegar perto o bastante para em uma última esperança, impedir o confronto, ou ao menos atrasa-lo, criando imagens que pudesse confundir os seis guardiões, Joan não viu ou ouviu a movimentação que acontecia em suas costas.

       Som de patas quebrando pedras e surrando o chão com seu peso. Som de asas e de corrida frenética.

       Abismada, Driana assistiu uma imensidão de fadas e elfos surgirem do meio da floresta, com espadas, e asas, todos livres para lutar. Entre eles, gigantescos raptores, um deles muito branco e determinado, levando em seu lombo uma determinada fada, que o guiou diretamente na direção de Joan, em pânico de ver a fadinha cometer uma loucura sem volta.

       De pé sobre o lombo do animal, Alma pegou o pé de Joan em pleno voo e a trouxe para baixo, sobre o lombo do animal.

       Joan olhou para ela incrédula, mas não houve tempo para conversa. Os guardiões haviam finalmente percebido o que acontecia, e Alma parou o raptor selvagem, rugindo com seus potentes dentes e bocarra assustadora, ao lado dos três guardiões, e para maior surpresa outro raptor posicionou-se, com Solon sobre o lombo.

       -Quatro guardiões! – ele gritou para os demais – Quatro contra seis! Um número bastante justo!

       O medo estampou-se na face dos mais novatos.

       Principalmente com os elfos e fadas desconhecidos e com expressões selvagens que se aglomeravam atrás dos guardiões. Na multidão, Driana e Rowell. Algo grandioso acontecia ali.

       -O que é isso? – gritou Folson – Os Conselheiros não falaram nada sobre isso!

       -Os Conselheiros estão vendidos! Barganharam a cabeça de cada um de vocês em troca do poder e do trono! Tolos, são tolos se voltando contra seus mentores! – gritou Joan corajosa demais para quem era salva na última hora.

       -De onde essas criaturas vieram? – Folson disse a si mesmo.

       -Do mundo subterrâneo – gritou Solon – e eles lutarão até a morte por justiça! Quando tombarmos – ele referia-se aos quatro – Eles seguiram adiante. Cada fada e elfo lutará por justiça, mesmo que estejamos mortos!

       -Que seja assim – disse Folson – Não temeremos os traidores! – ele ergueu seu escudo e gritou para os demais – Pelo Reino! Lutem por suas vidas!

       Imediatamente ao aviso de Folson, um grito estridente ecoo nos ouvidos de todos. Acostumados, o povo subterrâneo mantinha cera nos ouvidos, um estratagema de quem sabia que precisaria usar do dom mortal de grito. E foi assim que a luta recomeçou.

       Escondida, Eleonora ouviu um grito inconfundível.

       Era Alma! Era Alma quem participava da luta. Ela não poderia permanecer escondida enquanto a luta acontecia. Não mesmo!

       Ela saiu de seu esconderijo e não encontrou obstáculos enquanto esgueirava-se até a mais alta das torres. Lá, deixou cair à capa que escondia seu corpo e face e abriu as asas brancas, quase transparentes com padrões espetaculares tramados em cada pedacinho. Asas de estrela, como dizia Reina. Asas que mais pareciam joias.

       Ela viu a luta do alto da torre. Guardiões, armaduras, espadas, fadas, asas, dons. A desgraça se abatia em corpos que pendiam para o chão sem vida. Na multidão ela avistou Joan, destacando-se com seus longos cabelos vermelhos. Ela viu alguém estanho, que não cheirava a criatura mágica. Um humano? Sim, ela via um humano lutando e defendendo uma fada caída no chão. Era Driana?

       Seu coração apertado pelo que faria. Eleonora ergueu as asas e subiu ao céu. Do alto, ela fechou os olhos e lamentou cada vida perdida, cada dor, cada lágrima que seria derramada. Seus olhos se abriram no exato momento que o sol desapareceu e a escuridão total tomou conta do Reina das Fadas. Da mais distante das nuvens escuras veio o primeiro raio.

      Esse raio caiu sobre a terra, extravasando uma carga poderosa de poder, quebrando em duas uma armadura, levando com ela seu guardião. O disseminador da discórdia. Folson foi o primeiro a cair. E a culpa era unicamente de suas escolhas erradas. Ao não ouvir a verdade, e insistir na luta, Folson não teve experiência suficiente em luta para perceber que sua própria armadura não lhe respondia, por não reconhecer o perigo.

       Uma sequência de raios poderosos, e as lutas foram extirpadas, enquanto cada criatura tentava proteger a si mesmo, contra a chuva de raios.

       -Eleonora! – o berro de surpresa, felicidade e necessidade veio de Joan, ao avistar sua amiga, depois de tantos meses de afastamento.

       Infelizmente, Eleonora não podia ouvi-la e atende-la.

       -Para dentro do castelo! – foi Egan quem gritou na multidão, orgulhoso de sua rainha. – Peguem os Conselheiros!

       Ele avisava as fadas, pois os guardiões não poderiam sair dali.

      Rowell ergueu a fada Driana no colo, e foi ajudado por Alma e seu raptor, e a colocou no lombo de seu animal.

       Desse modo correram por entre elfos e fadas, e fugiram da chuva de raios. Egan olhou para cima em determinado momento, esperando que Eleonora parasse. A luta fora dispersada, mesmo assim, ela não parou.

       Era uma rainha e parte disso era a responsabilidade perante o povo sob sua proteção. Mostrar aos inimigos que quando necessário à fúria de sua rainha cairia sobre eles.

       Mesmo que essa rainha fosse doce e bondosa, ainda assim, seria impiedosa contra seu inimigo e voraz na proteção de seu povo.

       De uma coisa Santha tinha total razão. A força impõe medo.

       Eleonora vinha descobrindo que não é possível esperar respeito de seus inimigos. Então, ao menos o medo deveria servir como coação.

       O vento abundante veio acompanhar os raios e em poucos minutos, envolvia apenas os cinco guardiões jovens que restaram como resistência. Eles foram erguidos pelo vento e lançados no ar, jogados de um lado ao outro, como bonecos de pano.

       Frente a isso as fadas com coleiras pararam de lutar, e procuram um lugar seguro para se esconder.

       Firme em seu propósito, Eleonora diminuiu o poder dos raios, mas não os exigiu até ver todos os guardiões desertores caídos no chão, de joelhos, ou desmaiados.

       O medo imperou, principalmente quando ela pousou no chão e manteve pequenos feixes de raios leves, que incidiram sobre cada coleira pressa aos pescoços das fadas. Com o poder único de quebra-las com tanta força e rapidez que o veneno não teve força suficiente para alcançar a pele das fadas antes que o metal cedesse e caísse no chão, sem ferir a nenhuma delas.

       Seus elfos, partiram para proteger suas fadas e Egan baixou a espada ao entender que a luta havia acabado. Ao menos entre guardiões.

       Depois do susto de achar que Eleonora poderia ter sido apanhada, Egan não hesitou em capturar sua fada rainha em seus braços, ela tentou se afastar, ainda enérgica por causa da adrenalina da luta, mas ao reconhecer seu cheiro, acalmou-se em seus braços, agarrada ao seu pescoço.

       -Onde está Reina? – ele perguntou baixinho em meio aquela confusão toda.

       -Eu não sei – ela foi sincera, afastando o rosto de seu ombro para olhar em seus olhos sempre tão sinceros – Santha voltou. Ela deu a vida para me ajudar, para salvar a todos nós. Ela não era tão má, Egan. Não era tão má.

       Seu choro era de rasgar o coração de quem a queria bem. Apertando-a em seus braços, Egan olhou em volta.

       Olhou para o caos e morte, sem nem saber por onde começava.

       -Egan... Ainda bem que você voltou a tempo – ela disse com um meio sorriso entre as lágrimas – Ainda bem.

       -A tempo? – ele perguntou, sem muita condição de prestar atenção a isso, não em meio a destruição que assistia a sua volta.

       -Nossa cria. Precisamos nos casar, para que você possa assumir nossa cria.

       Egan afastou-se dela, o suficiente para olhar em seus olhos, e então, para sua barriga. Era verdade, estava ali. Uma barriga que a roupa queria disfarçar, mas não conseguia.

       Sem palavras para expressar o que sentia, Egan a abraçou e tomou no colo.

       Era hora de cuidar da Rainha do Monte das Fadas.

         

       Alma desmontou o raptor e com ajuda do humano amparou Driana. Ela foi colocada no chão, em um canto discreto, entre as barracas de comércio da vila. Sua asa estava perigosamente ferida. Os ossos dos dedos de sua mão, feridos.

       -Eu estou bem – dizia Driana – Onde está Acheron?

       Um bufo irritado, e Alma manifestou sua insatisfação de ver a amiga precisar e querer o Guardião.

       -Onde ele está? – insistiu Driana.

       -Vivo. Todos estão vivos. – garantiu Joan, ajoelhada ao lado de Driana, segurando sua mão não ferida, com lágrimas nos olhos.  – Quem precisa de cuidados é você.

       De pé, Rowell observava aquele luta. Era muito parecido com seu próprio forte, embora construído com pedras de cor atípica para os humanos. Era tudo tão igual e tal diferente.

       Do alto de uma das torres ele pensou ter visto o brilho de uma lâmina, talvez uma espada. Mas não era nada disso, era o brilho da malha de metal que cobria o peito de um cavaleiro do rei, uma que continha o brasão de sua família, e que fora roubada de seu forte, e na confusão das últimas semanas, ele não se deu ao trabalho de pensar nisso. Rowell olhou para Joan e para os outros.

       -Como chego lá em cima? – ele perguntou e as três fadas cravaram os olhos sobre ele.

       -Quem é esse humano? – perguntou Alma enviesada, pretendendo levantar e colocar o dito homem para fora dali a pontapés.

       -É Rowell. Por favor, Alma – era um pedido de Joan, pedia que se acalmasse.

       Enquanto Joan levantava a falava com Rowell, ouviu Driana falando em sua língua de fadas:

      -É o humano de Joan. Como pode isso? Ela entregou o cio a um humano.

       -Joan não pode ter feito isso. Eu mato esse infeliz por ter se aproveitado da inocência e ingenuidade de Joan... – Alma dizia transtornada.

       Joan olhou para as duas com surpresa, mas não disse nada.

       -Venha, Rowell, eu lhe mostro como chegar lá em cima.  – puxou-o pelas mãos.

       Um longo olhar para Alma, pois se contorcia de saudades de abraçar sua amiga. Mas ela rechaçava Rowell com maior voracidade que Driana, e primeiramente afastaria os dois, evitando uma tragédia.

       Joan estava tão exausta que mal deu conta de levar Rowell até a torre mais alta. Exaurida quase caiu de joelhos no chão.

       Preocupado, Rowell tentou ampara-la, mas Joan empurrou-o.

       -Vá. Encontre Alice. Eu preciso respirar um pouco.

       Era verdade, o ar faltava e ela sentia-se a beira de um desmaio.

       Ele não queria deixar sua querida Joan para trás. Mas era sua filha quem detinha toda sua preocupação naquele momento. Dois amores diferentes, mas igualmente preciosos, e era impossível escolher entre uma e outra.

      Com determinação, Rowell correu pelos corredores em busca de Edward. Somente ele teria a audácia de vestir sua roupa de cavaleiro, roubada, e espiar a luta por de trás da segurança de uma torre.

       Um rato covarde!

       Estava certo. Encontrou Edward tentando arrombar uma porta, pois provavelmente sabia que seus planos acabaram e a fuga era sua única alternativa.

       -Fugindo outra vez, Edward? – ele perguntou, espada nas mãos, acoitando o irmão.

       -Não exatamente – ele respondeu com ironia – eu chamo isso de saída estratégica.

       -É mesmo? E posso saber o que você faz nesse mundo de fadas e elfos?

       Ambos se ironizavam.

       Suor abundante corria no rosto de Edward. Ele pareceu vacilar, e olhar para lâmina do irmão com pesar.

       -Escute, Rowell, somos irmãos. Eu sei que isso diz muito para você. Irmãos.

       -Meio irmãos. E agora vejo que isso faz toda a diferença. Me traiu. Sequestrou minha filha! Onde está Alice?

       -Não fui eu quem levou Alice. Na verdade – ele foi quase sádico – eu evitei isso por muito tempo. Eu não fiz nada contra nossa gente, não pode me culpar por nada! Nunca ergui um dedo contra nossa gente! Não sou um assassino!

       -Matar fadas e elfos não contam como assassinato? – Rowell perguntou enojado do próprio irmão.

       -E porque contariam? Eles não são nossa raça. Olhe em volta, Rowell. Se eles desejarem tomar o que é nosso, acha que teríamos alguma chance? – tentou colocar intrigas em sua mente – Eu fiz o que deveria fazer!

       -Mentira! Você caça fadas e rouba suas asas. O que isso tem a ver com a nossa vida? Com manter nossa raça a salvo? Admita, Edward, você tem feito tudo isso por causa de Sophie!

       Edward baixou os olhos por um instante.

       -Eu deveria saber que aquela fada vermelha causaria problemas. – ele disse seco – ela me enganou. Em deveria saber que não era um sonho ter sequestrado-a. Ela lhe contou sobre Sophie?

       -Minha mãe me contou sobre Sophie – ele contou e Edward riu irônico, e displicente, sequer tentava erguer a espada para se defender, caso fosse atacado.

       -Eu deveria saber que a bruxa ranzinza sabia de tudo. Sophie quer ter asas, Rowell. Ela quer ser uma fada completa, mesmo que seu sangue mestiço não permita. E eu quero fazer tudo por ela. Eu faço tudo por ela.

       -Por quê? Porque faz tudo por Sophie? Qual a ligação entre vocês dois?

       -Porque eu tenho sangue de elfo, mas não sou elfo. Minha mãe deitou-se com tantos de sua raça quanto pode, mas nunca conseguiu uma cria perfeita. Nunca. Eu sei o que é saber que poderia ser um ser maravilhoso e completo e, no entanto, ser isso – apontou para si mesmo com desdém – Eu quero que Sophie tenha o que deseja. Ela me completa.

       -São irmãos de sangue? – ele perguntou surpreso, com a revelação de Edward não ser seu irmão – Isso é incesto, Edward! Isso é errado!

       -Errado? Olhe em volta! Estamos em um castelo de fadas e elfos, Rowell! Não existe certo ou errado! Existe nossa vontade! Junte-se a mim, e poderemos dominar esse mundo. Imagine as maravilhas que faremos juntos, usando do poder dessas fadas? Você pode imaginar? Rei algum terá poder sobre nós!

       -Você está louco, e culpa disso é de Sophie. Onde ela está? – ele perguntou furioso por descobrir finalmente o que Sophie fizera com a cabeça de seu irmão.

       Edward nunca foi muito forte emocionalmente.

       -Sophie? – ele sorriu – Ela tem o que tanto desejou. Finalmente eu pude dar a ela seu maior sonho! Veja com seus próprios olhos, Rowell. Veja o que você perdeu, meu irmão!

       A insanidade gritava pelos lábios de Edward.

       Rowell avançou para o irmão, sem ver o que o espreitava por ar. Uma fada o atingiu pelas costas e ergueu-o do chão aproximadamente uns dois metros, antes de joga-lo de volta. Por sorte, ele caiu sobre a murada, e não pendeu em uma queda fatal.

       -Não, Sophie! Não foi esse o combinado! – a voz de Edward o surpreendeu.

       Seu irmão o ajudou, puxando-o de volta, para que não caísse – Rowell não merece ser ferido! Você prometeu!

       Tão louco, tão frágil. Seu irmão estava perdido entre o mundo da sanidade e da total loucura. Incrédulo, ele viu Sophie pousar, longas asas brancas, com padrões divinos desenhados. Asas lindas, mas que apodreciam do centro para as laterais. A mulher estava com expressão cadavérica.

       -Cale-se, Edward – ela disse com voz sussurrada, muito fraca, pois vinha perdendo alguns sentidos básicos como a fala e a audição. – Rowell sempre mereceu isso. Por não ver meu sofrimento.

       -Seu sofrimento?  - ele gritou – O sofrimento de uma duquesa respeitada e protegida por todos? Eu sempre fui fiel enquanto você era minha esposa! Eu sempre a respeitei! O que mais você queria?

       -Asas! Eu queria ter minhas asas! Eu queria ter meu dom! – ela gritou histérica – E você? Tão ignorante sem saber de nada.... Edward é o único que me entende. O único que me amou de verdade!

       A face doente se transformava por conta da loucura. Era horrível de ver.

       -E agora você conseguiu o que você tanto quis? – ele ironizou – porque o que eu vejo são asas podres!

       -Não! – ela berrou, negando-se a ver a verdade – Eu consegui! Esse reino é meu!

       -Não! A luta acabou, eles são os vitoriosos – Rowell apontou o povo lá em baixo, que adentrava o castelo, finalmente em paz entre si.

       -Isso não pode ser verdade... – Sophie olhou para Edward e pela forma como seu amante baixou a cabeça, soube que isso acontecia. – Não! – ela apoiou-se na murada, olhando para baixo com desgosto. – Não! Mil vezes, eu não aceito! Não! Isso tudo é meu! Eu sou uma fada! Uma fada!

       Seus berros foram calados pela imagem de uma fada feita de pequenos pontos brilhantes, que surgia do céu. Ela possuía asas lindas, longas e cor de rosa, e aproximava-se de Sophie com as duas mãos estendidas em sua direção.

       Era uma ilusão criada para a mente de Sophie. Joan havia alcançado-os a tempo de ver parte de briga. Sophie estava a um passo de tocar a fada e erguer-se sobre a murada, provavelmente caindo, quando um brado de ódio foi ouvido, e finalmente Edward mostrou que mesmo em sua loucura havia escolhido uma posição, e que isso não tinha volta, contrariando as esperanças de Rowell.

       O humano ergueu a espada e avançou sobre Joan, que perdida nas imagens que criou, não percebeu nada até que o grito foi extinto e sangue verteu pela boca de Edward, a centímetros de onde ela estava.

       A ponta da espada do humano estava prestes a tocar sua barriga, e a morte teria sido certa, caso Rowell não houvesse impedido, acertando o irmão pelas costas.

       Edward caiu ao chão, sem vida, e o encanto de Joan se desfez. Logo ela que inocentemente acreditava acabar com tudo sem derramar sangue da família de Rowell...

       Seus olhos claros, límpidos e sempre tão puros, estavam maculados pelo horror que viam, e Rowell baixou os seus, envergonhado de cometer um ato contra a vida humana, justamente na frente de sua fadinha inocente.

       -Edward! – livre da imagem criada por Joan, Sophie deu-se conta do que acontecia e ajoelhou-se no chão, perto do amante desfalecido. – Não, acorde, abra os olhos... Querido, não me deixe. Não agora. Por favor...

       Apenada do sofrimento daquela humana, que tinha sangue de fada, mas a mente distorcida entre os dois mundos, Joan aproximou-se um passo, no afã de acudir e não de atacar.

       Sophie ergueu os olhos vermelhos de choro e ódio e avançou sobre ela. Tão rápida quanto às cobras, agarrou o pescoço de Joan com as mãos e içou voo. Sem ar, Joan debateu-se, tentando chuta-la em vão. Foi levada aos céus, e suas asas pequenas se moviam desesperadamente, tentando conseguir velocidade para escapar.

       O estrangulamento a fez perder os sentidos por alguns instantes. Quando abriu os olhos, foi para ver um borrão escuro, que cortou o céu em velocidade inacreditável para uma fada, agarrando as asas falsas de Sophie e separando-as parcialmente do corpo humano, tão frágil e retalhado daquela experiência medonha. Sophie acabou soltando Joan, e as duas caíram vertiginosamente.

       Sophie sem poder voar, despencou diretamente para o chão em uma queda feia, que culminou com seu corpo estatelado nas pedras de uma coluna, antes de escorregar e cair no chão, entre as barracas do mercado do vilarejo.

       Joan tentou bater suas asas, mas seus sentidos estavam falhando e ela viu tudo escuro, e por isso, não conseguiu manter o ato de voar. Teria caído e tido destino idêntico ao de Sophie se não houvesse sido pega por braços fortes e levada de volta, em segurança, para junto de Rowell.

       Seus sentidos voltaram, e ela pode ver quem a salvou. Por um instante sua mente não conseguiu apartar realidade e fantasia, e gritou de medo, pedindo ajuda. Rowell a trouxe para seus braços, amparando-a, enquanto Joan se agarrava a ele em completo pânico. Ainda não conseguia entender que a guardiã Zoé, que lhe prometera uma morte lenta e horrenda era a mesma criatura arrependida que salvava sua vida.

       De cabeça baixa, Zoé olhou para o chão, esperando por algo. Que dissessem o que deveria fazer. Rowell mal acreditava que a criatura lindamente vestida de fada, e guardiã, fosse à mesma fidalga que se passara por sua noiva e tentara seduzi-lo.

       -Joan – ele afastou seu rosto de seu peito, e olhou em seus olhos, precisando despertá-la do medo – Eu preciso da sua ajuda. Você conhece esse castelo. Onde Sophie pode ter escondido a minha filha? Para onde ela levaria Alice?

       -Eu não sei... – ela choramingou, e tentou pensar – Eu não sei, mas... Ela queria ser rainha... Ela poderia estar usando o quarto do Rei Isac, onde Eleonora tem mantido seu quarto. Mas eu não tenho certeza de nada...

       Seu choro cortava o coração. Em meio ao susto, ao choque, Joan não conseguia entender que aquilo era o final de um ciclo, de uma guerra, e que em breve, o sofrimento iria embora. Ela somente sentia o frio do pesar, e permitia que o horror dominasse seus sentidos.

       -A ala real fica por ali – disse Zoé com voz seca, sem olhar diretamente para a fada, apenas para Rowell. – Joan tem razão. Aquele é o único lugar viável para alguém que se considerava uma rainha.

       Tomados dessa certeza, os três seguiram para os aposentos reais. Joan não queria ir, mas seguiu-os. Zoé ao seu lado? O mundo estava louco?

       Depois de deixa-la na floresta e levar parte de sua armadura, no mínimo Zoé iria querer vingança eterna contra a ratinha da clausura que ousara desafia-la! Imagine ficar ao seu lado em uma luta? Inconcebível!

       A porta do quarto de Isac estava trancada e Zoé a arrombou com seu poder de guardiã. O som da explosão foi ensurdecedor, mas o estrago causado na porta de madeira maciça eficaz.

       O quarto estava vazio. A cama vazia. Sem sinal de que alguém estivera ali, ou ainda estivesse.

       Quem notou foi Joan. Atrás do biombo onde a rainha se trocava todas as manhãs, havia um espelho cobrindo parte da parede, e Joan notou algo. Uma sombra.

       Foi ela quem deu a volta no biombo e olhou. Havia uma fada no chão, talvez desmaiada.

       -Me ajuda... – ela ouviu o sussurro e percebeu que não era uma fada e não estava desmaiada.

       O horror correu suas veias ao afastar o fino manto que cobria as costas de Alice.

       -Oh, não! Não, pobrezinha, não.... – ela mal conteve o susto, quanto mais o horror.

       Completamente nua, a menina pendia de costas para cima, mal respirando, lágrimas cobrindo seu rosto, e horror em seus olhos. Em suas costas dois cortes enormes, onde foram encaixadas duas asas menores, talvez de fadas recém-agraciadas com asas e dom. As costuras eram precárias, e a rejeição da carne eminente. A dor que a menina deveria estar sentindo era visceral.

       Joan mal notou quando Rowell viu e Zoé também.

       -Eu vou ajuda-la, querida – Joan prometeu, as mãos tremendo, enquanto afastavam o cabelo de Alice de sua face, pois estavam manchados de sangue.

       Ergueu o rosto para Rowell, como quem implora ajuda.

       -Eu estou aqui, filha – ele abaixou-se e começou a ajeitar o corpo fragilizado da filha em seu colo, para levá-la para a cama.

       -Pai... – a menina chorou agarrada ao pai, finalmente sentindo-se acolhida.

      -O que é isso? – perguntou Zoé, capturando no chão um animal estranho. Talvez um inseto.

       -Eu não sei – disse Joan.

       Sua mente imediatamente soube quem poderia responder essas perguntas.

       Por isso, saiu do quarto correndo, sem dar satisfações...

         

       -Eu não sei o que dizer, é um absurdo que tenha permitido sua mulher chegar a esse ponto – disse Driana, enquanto observava Alice, que depois de muito chorar, estava adormecida.

       -Sophie não é minha mulher – Rowell defendeu-se – Eu acreditava em sua morte. Como teria controle sobre o que acontecia com Sophie?

       Um som irônico veio de Driana. Com sua asa machucada, e sua mão enrolada em um curativo, Driana olhava para ele com escárnio.

       -Me parece obvio o que aconteceu aqui. Esse Still – apontou o inseto que Zoé guardara em um porta joias de vidro transparente. – Foi usado para sugar a essência de alguma fada com poder que interessava aos humanos. Provavelmente o sangue de Joan quando foi sequestrada por Edward, o humano. – Driana fazia questão de frisar que Rowell e sua família eram apenas humanos. – Essa essência deve ter sido importante para fazer o corpo de Sophie aguentar tanto tempo as asas costuradas em seu corpo. Joan pode reter suas asas para seu corpo. É uma adaptação notável. Nunca li ou ouvi sobre um dom dessa magnitude. Sendo assim, o poder de adaptação deve estar presente no sangue de Joan. Se isso fez a humana suportar as asas de uma fada, e até mesmo voar com elas, é possível que ajude o corpo da menina humana a se recuperar da retirada das asas.

       -Driana – Joan chamou seu nome, para que ela ouvisse – Alice não é apenas uma menina humana, não fale nesse tom rancoroso e superior. É uma mestiça. Alice tem sangue de fada. Sophie tinha sangue de fada. Está desprezando um ser que pertence a sua raça. Não seja assim, por favor.

       -Joan está certa – foi à voz de Eleonora que impediu que Driana revidasse – Eu não quero, e não aceito, qualquer forma de preconceito dentro do Reino das Fadas. Sim, eu não pretendo que chamem meu reinado de Reinado de Eleonora, como acontecia com Isac que se autonomeou. É um reinado de fadas e elfos, sou apenas um símbolo e impedimento para que cada um tome a soberba como status de vida. – ela ficou perto de Joan e lhe sorriu – Joan ama esse humano, e esse amor estende-se para a pequenina humana que sofre essa cama, vítima da loucura alheia. Eu fui vítima dessa loucura, Driana. Alma, Joan... Você, Driana, foi vítima dessa loucura. Não importa de onde vem, ou quem é. As vítimas devem se unir e assim serão fortes. Acha que pode ajudar a menina a se recuperar? – perguntou a Driana com olhar carinhoso.

       -Acho que sim – ela acabou por ceder – Esse Still pode suportar mais um pouco de essência de fada. E depois... Posso passar isso para a humana... Para Alice – ela se vergou a verdade dita por Eleonora. – Reina pode me ajudar, não pode? Ela é especialista em ervas curativas.

       -Sim, ela está com Túlio. Egan e os outros estão com os Conselheiros. Ele nos chamará quando tudo estiver calmo. – Eleonora disse sorrindo com simpatia para todos naquele quarto – Eu sei que o momento não é adequado, mas... Estamos juntas outra vez. Não permitamos que qualquer pensamento perturbador nos separe.  – pediu.

       Um som de irritação fez com que olhassem para a quieta Alma, que andou pelo quarto, e sem muita gentileza, pegou o inseto de dentro do porta joia e o bicho debateu-se em suas mãos. Driana que tivera o desprazer de ter um deles em sua pele, quando era apenas o garoto Jô, afastou-se com asco, e Alma, pelo contrário, não possuía nojo ou esses trejeitos femininos de repugnância quando tratava de assuntos assim revoltantes.

       -O pescoço é o melhor lugar - sugeriu Driana – Joan é pequenina, seu sangue não deve ser drenado em demasia. Fiquemos atentas a isso.

       -Vá ensinar uma fada a voar, Driana – ironizou Alma, retrucando – eu sei o que estou fazendo.

       -É claro que sabe – Driana ironizou – Vejam como Alma ficou sabichona desde que começou a se deitar com um elfo...

       O olhar sujo de aviso que Alma lhe ofertou arrancou um sorriso da fada Driana. Joan não conseguiu sorrir, não ainda.

       Manteve os olhos nos de Alma, enquanto ela ajudava a colocar aquele inseto repugnante em sua pele. Deitou-se perto de Alice, pois isso demoraria um tempo. Seus olhos correram para Rowell, tão deslocado entre as fadas.

       -Rowell, porque você não fica com os machos? – perguntou suave – Tenho certeza que existem assuntos pendentes entre eles. Ajudem-nos. É preciso contar a Egan, e aos demais, sobre Helana.

       Ele olhou para a filha e apesar de não saber se era certo ou errado, confiava em Joan o bastante para deixar a vida de sua filha amada em suas mãos. Um olhar de pesar, e pena, para sua menina tão magoada e ferida e ele saiu do quarto.

       Zoé o seguiu e Joan quase levantou para impedir. Não queria Zoé perto de Rowell!

       -Acalme-se, Joan, existem muitos assuntos pendentes para serem resolvidos. Não quer resolver tudo agora, quer? – perguntou Eleonora, sorrindo. – Diga-me, onde ficou Tubã afinal?

       -Eu não sei – disse Joan – A única coisa que eu sei, é que ele está no ducado de Mac William, ajudando as fêmeas de lagarto a cuidarem do forte.  E que ele está magoado e provavelmente furioso com sua escolha, Lora. – disse, exaurida de tanta luta.

       -Tubã vai fazer um pandemônio quando confronta-la junto a Egan – alertou Driana, sentando na cadeira em frente à penteadeira para cuidar do machucado em suas mãos.

       A silenciosa Alma nada dizia, apenas ajudou-a a cuidar do machucado, sem opinar.

       -Eu não sei o que aconteceu – disse Eleonora depois de algum silêncio – Eu não sei como pode ter se passado apenas alguns meses. Éramos fadas da clausura. E agora? O que somos?

       -Uma rainha? – perguntou Joan, quase sonolenta, pois o inseto drenava suas forças.

       -Eu escolhi Egan por amor. – disse Eleonora, acariciando os cabelos ruivos e sedosos de Joan, pois ela precisava de afeto e carinho – E a sua escolha, Driana? Foi baseada em amor? Eu sei que a escolha de Alma foi amor. Já falamos sobre isso, nos encontramos algumas semanas atrás.

       Alma ignorou o comentário, mas um corado em sua face denunciava seus sentimentos.

       -Tenho afinidades com Solon – Alma disse entre dentes, contradizendo Eleonora, detestando esse tipo de conversa.

       -Eu escolhi Acheron por amor sim – disse Driana. – Não que alguém possa entender isso. Ele é basicamente um cavalo sem cérebro... Mas muito bem dotado. – reclamou, com escárnio.

       Eleonora riu suave e Joan ao menos sorriu.

       -Eu quero ficar com Rowell. Ele é humano, terá que aceitar isso, Driana. – ela disse com voz mansa, cansada.

       -Vá contando com isso – disse Driana, em negativa.

       Um puxão forte de Alma, ao cuidar de seu machucado, fez a fada erguer os olhos e encontrar muitos sentimentos ali.

       -O que, eu não estou certa? Ele é um humano, Alma! – ela reclamou e outro puxão foi seu aviso.

       -Eu viverei longe daqui – disse Alma afinal – E você? Onde você viverá Driana?

       -Onde Acheron quiser. – admitiu.

       -Eu sou rainha, não posso sair do reino. E não faria isso mesmo que pudesse. Quero ficar ao lado de Egan. E aqui é o lugar de um guardião. – admitiu Eleonora.

       -Sim, é isso o que eu quero dizer – afirmou Alma, lhe bastando esse argumento.

       -Desculpe, mas terá que ser mais especifica do que isso, Alma – Driana reclamou, apesar de saber muito bem o que ela queria dizer.

       -Joan ficaria sozinha? É esse seu desejo para Joan? A solidão?

       Driana abriu a boca, mas som algum saiu.

       -Ela pode viver aqui, no reino. Encontrar um elfo bom que a acolha. Alguém que ela...

       -Goste? – sugeriu Eleonora – Você tem direito ao amor, mas Joan merece um simples ‘gostar’?

       -Não é nada disso – reclamou Driana, observando a mão finalmente enfaixada. Baixou os olhos, e quando os ergueu, lágrimas pareciam prestes a correr – Quem poderá cuidar de Joan melhor do que nós? Esse humano?


       -Se ele a ama, saberá cuidar dela do mesmo modo que nós – disse Eleonora.

       -Alma – Driana apelou para a mais protetora de todas elas. – Ouça a voz da razão!

       -Joan não precisa mais ser cuidada. Acaso não percebeu, Driana, que foi Joan quem teve que lidar com tudo isso?               Que foi ela quem juntou os guardiões e proporcionou uma chance de luta?               Que Joan não é mais inofensiva e assustada? Ela cresceu. Suas asas nasceram. Seu dom aflorou. Ela é poderosa. É forte. Ela é capaz de cuidar dos humanos e viver entre eles. Não serei eu a impedi-la de ser feliz.

       -Falou à fada que prefere o lombo de um raptor – Driana ironizou baixinho e Alma respondeu com um safanão em seu ombro. A reclamação aguda de Driana era de praxe.

       Certas coisas não mudam, pensou Eleonora sorrindo para suas amigas.

       Ela se curvou na cama e encostou a cabeça na cintura de Joan, e mal percebeu que lágrimas de alivio corriam em sua face.

       -Estamos juntas de novo. E somos livres. De resto, aprenderemos a viver, não é necessário brigar.

       -Não estamos brigando – disse Driana levantando e aproximando-se de Eleonora, deitando-se ao lado delas na cama – Não estamos brigando, não é mesmo, Alma?

       -De modo algum. – ela disse com voz embargada. Era Alma, e o ato de sentar no chão, perto da cama, era uma grande demonstração de afeição.

       -Bom, nunca brigaremos. Enfrentamos tanta coisa juntas... E também separadas. Jamais haverá brigas entre nós. Eu aceito, e acolho cada um dos escolhidos por minhas amigas. E é assim que deve ser.

       -Sim – concordou Joan, sonolenta, e reclamou baixinho que aquele inseto estava devorando-a.

       Um riso manso alegrou as quatro. Alice achou por bem acordar naquele instante e a primeira coisa que fez foi chamar pelo pai. Joan, ao seu lado, não podia fazer muita coisa, estava refém do Still.

       Restou a Eleonora levantar e abraçar a menina, acalmando-a. Mesmo dizendo que não aceitava, Driana tentou acalma-la com palavras. Era muito sofrimento para uma fêmea tão jovem, fosse ela da raça que fosse.

       Uma hora mais tarde, acordada, porém mais calma, Alice, aceitou o cálice com um conteúdo estranho que lhe foi entregue.  O modo mais rápido era a ingestão. Disfarçado o gosto com ervas e chás, e a menina mal notou o que bebia até acabar com todo o conteúdo. Era sangue de fada, mas Alice não precisava saber disso. Jamais.

       Driana havia encontrado Reina e as duas entraram no quarto, a tempo de ver a menina sendo consolada por Joan, agora bastante desperta.

       Ela ajudou a deitar a criança de lado, com as costas expostas.

       Era uma imagem devastadora.

       -Querida, eu quero lhe mostrar um lindo lugar. – disse Joan com voz embargada, de piedade e sofrimento por ver Alice penar daquele modo – Apenas relaxe. – usou seu dom para criar na mente da menina um lindo jardim, onde ela podia brincar com seu irmãozinho Tommy e Marmom, e com seu pai, e avó. Um lindo campo de flores amareladas e perfumadas, onde toda aquela família desfrutava de um lindo dia de sol. Joan incluiu-se nessa imagem, pois era muito bonito para ignorar.

       E foi desse modo, que impediram a menina de ver Reina cortando as asas implantadas em suas costas e abrindo os pontos, para arrancar aquilo do corpo da humana. O corpo de Alice tremia a se resentia da dor e penação, mas a mente da criança não sentia e nada percebia.

       Quanto mais doloroso e feio o processo, mais bonito o jardim criado por Joan em sua mente, e mais feliz o momento compartilhado com sua família.

       Quando acabou, Reina costurou as feridas, duas linhas paralelas que sempre marcariam a pele de Alice e foi Alma quem pegou os restos e juntou em uma bacia, levando para fora do quarto. Eleonora estava em um canto do quarto, enjoada da gestação, lutando para não ser atingida pelas fortes imagens.

       Quando regressou, Alma tocou o braço de Joan, para que ela voltasse para junto delas, mesmo que a menina continuasse presa nesse lindo sonho.

       Um dia para Alice aquilo tudo teria sido um longo e estranho sonho.

 

       Um longo e estranho sonho, como o que vivia Helana. As fêmeas se misturavam com os humanos, e ela mantinha-se a par, evitando contato. Em um dos quartos, com Marmom perto. Ele brincava sobre a cama, brincava com o brinquedo que ela lhe trouxera em uma das muitas visitas escusas que fazia ao menino.

       Ela havia vestido uma roupa comum, e mantinha os cabelos soltos, deixando que o filhote conhecesse sua mãe, e a conhecesse como verdadeiramente era. A guerreira existia, mas na intimidade, Helana era bem mais do que isso.

       Ela pensou ter ouvido uma batida na porta, e ignorou. Deveria ser a governanta Matilde tentando tirar Marmom de perto dela. Isso acontecia o tempo todo.

       -Posso entrar? – a voz era de Tubã.

       Ele já havia entrado.

       -Saia – ela mandou séria.

       -Acho que não – ele apontou o  filhote de lagarto. – Eu fico impressionado em como ele parece adaptado. Pensa em leva-lo embora quando partir?

       -E de que outro modo poderia ser? A cria me pertence. – ela disse convencida disso.

       -Ele é macho. Precisa conviver com outros de seu sexo.  – ele avisou – Aqui ele tem irmãos. Têm súditos. Aqui ele é feliz.

       Helana não respondeu a essa colocação. Não queria falar sobre isso.

       -Então, você foi casada – ele disse sentando em uma poltrona. Desgostoso da distância levantou e aproximou-se da cama, fazendo caretas para o filhote que interagiu com ele, para horror de Helana.

       -Isso não é da sua conta.  – ela desmereceu.

       -Não é mesmo.  – ele concordou – Sente falta dele?

       -Todos os dias – ela disse sem pensar. Sentia falta de Ethanael todos os dias, todos os minutos.

       Os sentimentos em seu coração eram um mistério perigoso para Tubã. E ele nunca foi se aventurar por perigos que não desse conta. Helana era um desafio a ser conquistado, e ele desconfiava de suas próprias intenções ao querer sua atenção para si.

       O forte estava repleto de fêmeas de lagarto esperando atenção de um macho que pudesse lhe dar afeto. E onde ele estava? Procurando sarna para coçar-se.

       -Não pode manter sua linhagem sem um macho. Se vai levar Marmom com você, precisará do convívio de um macho. Ele precisa aprender a ser um guerreiro.

       -Espero que não esteja falando de si mesmo, ou terei que rir na sua cara – ela disse com seriedade.

       Ele não era um exemplo de guerreiro. Era uma boa vida.

       -Você entendeu o que eu disse. Alguém com quem aprender a ser do seu gênero.

       -Não – ela disse séria – Conseguimos crias, elfo. Não precisamos mais de você. Sua colaboração chegou ao fim. – ela sorriu quando Marmom saiu da cama, e correu pelo quarto, brincando com os objetos que para ele eram rotineiros de sua vida.

       -Acha que ele se acostumará a viver sem companhia? Sem os irmãos? Sem sua família? – Tubã foi corajoso ao ariscar sentar na beirada da cama, e o olhar dela o fez levantar e desistir.

       -Eu sou a família de Marmom. E não era esse o nome que escolhi. Me roubaram o direito de criar minha cria. É justo que eu o leve comigo. Ele precisa crescer dentro dos seus costumes!

       -Eu não contesto isso. Só acho que deveria entrar em acordo com o humano, o duque deste forte. Ele precisa ter contato com os irmãos.

       -Você não sabe do que está falando – ela negou, afastando o olhar do seu.

       -Não? Eu acho que um novo tempo está para começar. Se Eleonora é rainha... E Egan seu rei... – ainda o incomodava falar sobre isso – Será um novo tempo, Helana. Um tempo de prosperidade. E sua gente não pode continuar do jeito que está. As fêmeas são adoráveis – ele disse sonhador – elas merecem companhia. Sei de elfos que ficariam maravilhados em ter a chance de conhecê-las e casar-se com elas.

       -Enlouqueceu? Meu povo não pode viver assim, somos diferentes. Caso não tenha notado, nossa genética exige mudanças. Precisamos do rochedo, do frio, do molhado. Não somos como elfos e fadas. Além disso... Eu soube que existe uma colônia de uma raça igual a minha além do horizonte. Não sei onde fica, mas eu tenho esperança de encontra-los.

       -E levará Marmom em uma cruzada além do horizonte?  - ele perguntou.

       Ambos sabiam da resposta dessa pergunta.

       É claro que não sujeitaria uma cria tão pequena, o último macho de pura linhagem de sua espécie, a uma viagem penosa e que poderia perdurar por anos, sem a certeza de uma conclusão satisfatória.

       -E o que sugere? Que eu abandone minha cria? – ela perguntou com ironia, embora soubesse que o que Tubã dizia fazia sentido.

       -Eu acredito que precisará de ajuda, e Eleonora poderá fornecer essa ajuda. Que Joan é uma fada excepcional, incrível e doce, e que ela será uma mãe substitua esplêndida.

       -Não – Helana negou, se recusando a aceitar isso – Eu não vou perder minha cria.

       -Isso é possível? Ele reconhece seu cheiro. E com sorte, não será uma cruzada tão longa que perca o crescimento de Marmom.

       -Acredita mesmo nisso? – ela duvidou – Aqui, querido, seu brinquedo – Ela ergueu o boneco feito de couro e Marmom negou com um movimento da cabeça, preferindo mastigar uma almoçada – Ele parece gostar tanto de viver aqui. – disse pesarosa.

       -Talvez isso seja bom – Tubã disse corajosamente, não por desejar magoa-la, mas sim por ver a realidade – Quando o humano voltar com Joan, eles serão um casal. Criarão as crianças humanas e terão suas próprias crias mestiças. É um bom lar diversificado. Marmom nem se destacará tanto assim... – ele esperava fazê-la sorrir – Pense, é um bom arranjo esse. Procurar em outros povoados por sua espécie. Uma chance de continuação. Isso pode levar alguns meses. Pode ser uma aventura.

       -Não está sendo convidado para essa aventura – ela fez questão de frisar.

       -Porque não? Você não é saberia abordar outros povoados. Poderia ser mal interpratada com essa mania de aprisionar e procriar. Outras fêmeas podem não ser tão afáveis diante da ideia de compartilhar seus machos.

       Era uma verdade incontestável.

       -Eu quero que você saia, elfo - ela apontou a cama – Eu posso pegar minha espada e tira-lo a força. Escolha.

       Tubã andou até a porta e acenou para Marmom, fazendo o filhote de lagarto responder com o riso infantil, e disse para Helana:

       -Eu não sirvo para lutar, isso nos dois sabemos. Mas sou bom contando histórias. Você trás a comida para casa, fêmea, e eu espalho a palavra.... – ele mesmo sorriu de seu gracejo, e a expressão de Helana era apropriada para quem sacaria a espada a qualquer momento e se livraria de um incomodo – Eu perdi meu lugar no mundo. Não posso voltar para casa e assistir Eleonora e Egan juntos. Não agora. Não tão cedo. E você?  O que tem a perder?

       -Saia! – ela gritou, encerrando a conversa.

       Marmom correu para a cama, e ela o recebeu nos braços. Era da mesma espécie, progenitora e cria, se reconhecendo. Por mais que Tubã a irritasse e tirasse sua paciência, ainda assim ele estava coberto de razão.

       Com o coração apertado, Helana abraçou seu filho e fechou os olhos, guardando na memória esse momento feliz...

 

       O amplo salão real, onde antigamente Rainha Santha e Rei Isac promoviam festas regadas a luxo e diversão, ou reuniões enfadonhas e desgastantes, de interesse puramente dos Conselheiros, estava repleto de um seleto grupo de fadas e elfos. De espécies estranhas, como um humano e Mikazar. Eleonora sorriu para o amigo, conhecido em um deserto perigoso, em seu pior momento.

       Cinco guardiões, muito arrependidos, desprovidos de suas armaduras e de suas espadas, aguardavam a palavra da rainha. Egan observou-a andar pelo salão, acompanhada por suas três amigas.

       Em pensar que toda aquela aventura havia começado por causa de uma única fada e suas três amigas. Eleonora sentou no trono, não por desejo, e sim necessidade, pois estava cansada e tremula, enjoada e precisando de descanso. Alma permaneceu ao seu lado, como um cão de guarda, enquanto Driana e Joan permaneceram sentadas sobre o degrau que acompanhava os tronos.  A fada vermelha estava visualmente esgotada.

       -Mikazar – disse Eleonora – Aproxime-se.

       O ser obedeceu e Eleonora apontou para a direita onde havia um espaço, onde no passado os Conselheiros se mantinham sentados, para que ele se acostumasse a se posicionar ali.

       -Por onde andou, meu caro amigo? – ela perguntou sorrindo para a criatura.

       -Mikazar obedeceu ordens minhas, Lora – disse Alma – Ele buscou e encontrou alguém que sabe muito e tem ainda mais a dizer.

       Um jovem elfo ergueu uma duende, coberta por uma capa, e a criatura manteve-se silenciosa até ser levada para junto da rainha.

       -Essa criatura vende seus serviços para quem pagar mais. Foi ela quem me abrigou a pedido de Miquelina. E foi ela quem recebeu pagamento da guardiã Zoé para cuidar de uma humana, enquanto tomava seu lugar junto aos humanos.

       O assunto intrigou Eleonora que olhou para a guardiã Zoé e então perguntou:

       -E onde está essa humana?

       -O corpo eu não sei – respondeu Joan, intrometendo-se, ainda magoada com a lembrança – mas sua cabeça foi deixada sobre minha cama, para me assustar.

       Sim, ela nutria rancor por Zoé.

       -Assassinato de humanos? – Eleonora levantou e fez um gesto para que Zoé se aproximasse.

       De cabeça baixa ela andou até a rainha e ficou a sua frente.

       -Confessa seu crime? – Eleonora perguntou, torcendo pela resposta ser negativa.

       -Não. Paguei para que a duende cuidasse da humana. Apenas isso. Queria seu lugar, não sua morte.

       -Isso é verdade? – Eleonora perguntou a duende.

       A velha duende não gostava de conversar, mas sabia a hora de cantar como um passarinho. Surpreendeu Alma com sua tagarelice espontânea.

       -Sim. Uma humana apareceu em minha cabana. Ela tinha asas costuradas em suas costas. Eu não luto com fadas, sejam elas verdadeiras ou não. Deixei que levasse a humana. Esse é meu trabalho, eu não luto, apenas acolho.

       Eleonora olhou para Egan, que de entre os guardiões, não queria tomar seu lugar. Cansada ela estendeu uma das mãos em sua direção como quem pede ajuda. Andou de volta para o trono e sentou-se. Ele olhou para a duende e disse:

       -Crimes entre humanos e criaturas mágicas não são previstos em nossa lei. A assassina está morta. Não sei como poderia julgar um crime dessa magnitude. Imagino que novas leis devam ser criadas, visto que as raças se entrosaram fatidicamente – ele concluiu.  – O acertado é manter essa história em segredo. Não é necessário que mais humanos saibam do monte das fadas. Quanto aos crimes cometidos pela duende... Pelas leis de Isac aceitar ouro em troca de proteção é crime. Duendes não tem permissão para trabalharem nas imediações do castelo.

       Eleonora olhou para Egan e quase sorriu.

       -Existe relevância na interferência dessa fêmea de duende em tudo que aconteceu? -ela perguntou petulante, olhando para Alma e então, Joan.

       As duas negaram, pois de fato não as interessava o que a duende fazia ou deixava de fazer.

       -Mikazar deve me fazer esse favor - Eleonora disse, tomada dessa ideia – Percorra o Monte das Fadas e cadastre todas as famílias de duendes. Preciso saber o nome e o oficio de todos eles. Definir interesses e limites entre trabalho e crime.  Não é justo que eles sejam privados do trabalho honesto, seja em suas terras, ou nas nossas.

       Era um cargo de confiança para quem sempre se escondeu no deserto com medo de ser visto. Era também um desafio. Até onde iria a lealdade de Mikazar? Ele era capaz de suprimir seus medos por lealdade a Rainha Eleonora? Pelo visto sim.

       Egan mandou que levassem a duende em segurança até sua casa. Era o mínimo que poderiam fazer.

       Zoé, ao ver o que acontecia abriu a boca para falar.

       -Cale-se – disse Eleonora, guardando a raiva para mais tarde – Não é hora de falar com você, Guardiã. Não se dê demasiado valor. Primeiro, quero saber o que foi feito dos Conselheiros.

       Era uma pergunta para Egan. Ele era o rei. Ainda não empossado, mas era seu rei e cabia a ele definir o que fazer com os traidores.

       -Meu pai e o pai de Solon, estão nas masmorras acompanhando a adaptação dos demais. Estes são os únicos inocentes, rainha. – ele contou, com uma sombra de tristeza na face.

       Era seu pai e o pai de Solon. Os únicos não vendidos.

       -Todos os demais eram cúmplices do humano que desejava tomar o poder e destruir nosso mundo? – perguntou Driana, surpresa, não deveria, mas ainda se surpreendia com a ambição desmedida.

       -Isso a surpreende? – perguntou Eleonora – E Lucius? É verdade que ele...?

       -Sim, o corpo foi encontrado em sua cela. – Egan contou, medindo seu tom, se ela estava ou não abalada com isso. – O corpo na pira, era de Santha, a fugitiva. Ela participou da tomada do poder?

       -Sim – respondeu Eleonora, para surpresa de suas amigas.

       Santha havia ajudado a salvá-las. Mas isso não a eximia de seus crimes. Ela conspirou ao lado de Lucius e isso levou toda aquela situação a um ponto insuportável, e as mortes e perdas daquela luta eram consequência de seus atos. E de um modo estranho, Santha ficaria feliz em saber que sua imagem de Rainha intocável e maldosa estaria resguardado. Que ninguém saberia que era fraca e singela, com um coração ferido.

       Mesmo assim, no fundo do coração. Eleonora havia destruído o rancor e o ódio, e guardaria para sempre aquele singelo sentimento de ser amada, nem que fosse um pouquinho, pois foi preciso amor para que uma fada sacrificasse sua existência por uma cria que nunca desejou.

       -A rainha deseja mais tempo para lidar com esse assunto? – perguntou Egan, pois não deveria decidir por ela.

       Eleonora apenas piscou e negou com a cabeça.

       -E os guardiões? – perguntou Alma, olhando para eles com fúria  mortal – Não podem ficar sem punição.

       -Não, eles não podem. – Eleonora não queria lidar com isso.

       -Elfos com treinamento e armaduras – disse Egan pesarosos – O que fazer com desertores que carregam o peso da responsabilidade de uma armadura?

       -Não somos desertores – o primeiro deles a se manifestar, foi o guardião Ildegar. Ele havia sido de inestimável ajuda para Egan e Eleonora quando precisaram provar que ela não mentia – Os Conselheiros deixaram claro que uma guerra acontecia. Eu mesmo vi o corpo sem vida da rainha. Lutávamos pelo reino. Menos Folson. Agora vejo que ele lutava por si mesmo. – era luto o que se via em sua face.

       Um amigo morto, um Guardião morto em batalha, ainda mais um traidor. Uma ferida que jamais iria cicatrizar entre eles. Uma eterna rachadura entre os guardiões.

       -Eu, por mim, jogaria todos eles nas masmorras – disse Alma, rancorosa – Onde já se viu permitir que colocassem coleiras em suas fadas! Em suas mães, esposas, e filhas!

       -Os Conselheiros juraram que era obra dos inimigos! – Ildegar defendeu a todos eles. – Pergunte a Túlio, ele viu tudo! Egan, a palavra de seu pai pode nos inocentar! Folson era o único que conversava com os outros Conselheiros. Nós – ele apontou os outros guardiões – apenas seguíamos ordens, baseadas em tudo que ouvimos. No que  vimos, e no que nossa mente se convenceu que era certo! Somos guardiões, mas dependemos de ordens! Na ausência dos guardiões de primeira escala, nos reportamos aos Conselheiros! Tem sido assim há séculos!

       -Conversa de covarde – disse Driana. Levantando e aproximando-se do Guardião jovem. Ela tinha a asa costurada em uma das hastes, coberta por emplastos e medicada, pois estava ferida e levaria um bom tempo para voltar a voar. Sua mão enfaixada também era uma lembrança dos péssimos momentos. – Conversa fiada. Não mascarem a verdade. Não são criminosos, mas são covardes. Covardes demais para se rebelarem contra as ordens dos Conselheiros! Sem o primeiro Guardião, ficaram perdidos como fadinhas tolas e sem dom! Estúpidos! Eleonora, eles merecem uma punição a contento para aprenderem a ser machos de culhões e não fadinhas mimosas brincando de roda-roda enquanto fingem proteger o reino! – seu desabafo era verdadeiro.

       -Verdade seja dita, Eleonora, - foi Alma quem se manifestou – nenhum deles presa por grande esperteza – seu escárnio incluía sim os guardiões de primeiro escalão – Onde já se viu perseguirem fadas sem asas e sem dons? Quem em sã consciência acreditaria cegamente em Lucius? Ou Santha? Eles sempre foram imundos!

       -Os primeiros guardiões terão seu momento de explicar, Alma – Eleonora colocou panos frios na raiva de Alma – quanto aos guardiões de menor hierarquia, deixo aos cuidados do Primeiro Guardião a punição. E esta deve ser exemplar – ela completou, num aviso que sendo seu rei ou não, ela queria ver àqueles rapazes folgados pagarem pela própria estupidez.

       -Sua ordem será cumprida, Rainha Eleonora – o tom de Egan era seco – Quanto à armadura de Folson, o mais sensato é mantê-la guardada até que algum dos elfos em treinamento possa disputa-la e merecê-la. Ele era muito jovem e não deixou descendentes...

       -Ainda bem – sussurrou Alma, não tão baixo que não fosse ouvida, e não constrangesse Solon com seu comportamento azedo.

       -Deveria criar uma lei que impedisse guardiões burros e estúpidos de procriar, Lora. Mas temo ser tarde demais para isso – disse Driana amarga, referindo-se a cria que Eleonora esperava.

       E se fosse sincera, havia a grande possibilidade de ela própria estar prenhe de Acheron. Melhor não jogar pedra em teto alheio, quando o seu era feito de cristal delicado.

       Era justo que causassem constrangimento naqueles que lhe causaram mágoa e sofrimento. Os cinco jovens foram dispensados e pela humilhação sofrida nenhum deles teria coragem de questionar qualquer punição que Egan pudesse inventar.

       Entre aliados, o suspiro de Eleonora era de alivio e cansaço, e foi Joan quem lhe perguntou se não desejava voltar ao quarto, onde pudesse descansar. Ela negou e olhou para Egan como quem diz que não tem mais interesse em tomar decisões ou manter sua postura de rainha.

       -Existem leis, e estas leis precedem de séculos. Para cada Guardião, deve haver um Conselheiro. Força e razão. Uma aliança preciosa e necessária. O que nos restou foram nove guardiões e dois Conselheiros. Essa conta é injusta.

       -Nem tanto – disse Acheron, tomando a palavra – Oito desses Conselheiros não serviam para nada.

      Driana foi à única que sorriu. Sim, mesmo com seus modos pouco gentis, Acheron era capaz de dizer uma bela e grande verdade.

       -Baseado nisso, sugere uma mudança na lei? – perguntou Egan.

       -O que Acheron quer dizer – disse Driana, lapidando o raciocínio de seu elfo escolhido – É que o tempo irá corrigir essa defasagem. Para cada Guardião aposentado, surgirá um Conselheiro. É assim que deve ser. O assunto de maior urgência, se me permitem trazer a voz da razão, é definir o que será feito com o humano. Ou define-se uma aliança, ou lidaremos com ele. – era claro que ela preferia a segunda opção – A guardiã Zoé é outra questão a ser tratada. E sem dúvidas, o fato do Primeiro Guardião tornar-se Rei, muda a hierarquia entre os guardiões, o que me faz pensar que a natural escolha seja Solon, o terceiro Guardião, que prima pela astucia e comportamento afável – ela olhou para um incrédulo Acheron e sorriu – Sejamos realistas, Acheron, lhe falta traquejo para lidar com tantas personalidades diferenciadas. É incapaz de apaziguar.

       -Escute, Rainha Eleonora, eu lhe devolvo de bom grado sua amiga. Fique com ela, eu não tenho paciência para suas ironias – Acheron definiu, no limite do autocontrole com sua fada escolhida.

       Driana apenas revirou os olhos e tornou a sentar aos pés de Eleonora, ao lado de Joan, que pousou a cabeça em seu ombro e sussurrou algo para ela, que repassou a Eleonora em tom baixo.

       -Uma aliança será firmada entre humanos e elfos, mas não vejo relevância suficiente para minha presença durante essa longa e desgastante conversa. Egan pode muito bem cuidar disso, com ajuda de Túlio e Reina. Eu não tenho interesse em interferir - ela disse, e olhou para o calado humano – Ofereço como cortesia por sua boa vontade em negociar uma aliança, a mão de minha fada preferida, Joan. Ela deve ser sua esposa, e cuidar de seu lar. Em troca, uma aliança entre os dois mundos deve ser firmada. Uma aliança de sigilo, e votos de colaboração. Mas não responda agora. Esse assunto é para depois, entre elfos e machos de todas as espécies existentes no Monte das Fadas.  Quando a Zoé... – ela ergueu a voz e olhou para guardiã com verdadeiro asco – Caçou uma de sua raça. Subjulgou e caçou sem dó. Sem a piedade esperada de uma fêmea. Isso me assusta.

       A fada guardiã não ousou dizer palavra alguma em sua própria defesa.

       -Esse assunto não merece debate.  A armadura deve ser deixada aos cuidados de Egan. De hoje em diante não lhe pertence mais. Seu treinamento não poderá ser executado dentro do castelo ou em qualquer outro recanto do Monte das Fadas.  Será uma fada como qualquer outra, e dependerá de seus talentos como fêmea e do seu dom. Como todas nós. Sem regalias. – ela disse com firmeza.

       Ninguém ousou dizer nada contra sua ordem. Era uma punição justa.  Mesmo assim a expressão de Joan alertou Rowell de quem ela não concordava. Afastou-se de Driana, e levantou. Aproximou-se de Zoé e então, olhou para Eleonora:

       -Tem o desejo de ser uma rainha justa, Lora. E isso não é justiça, é vingança. Zoé não fez nada diferente dos outros. Acheron caçou Driana, inclusive desonrou-a. Solon caçou Alma. Perdoe-me, minha querida Lora, mas Egan a caçou como a um animal. Porque culpar apenas Zoé? Ou punirá a todos eles. Ou inocentará a todos de seus crimes contra fadas do Ministério do Rei. Forneça uma segunda chance a Zoé. Ou puna a todos.

       -Quer que esqueça como essa fada a perseguiu e aterrorizou, Joan? – Eleonora chocou-se – Eu entendo o que diz. Mas nós somos capazes de nos defender! Você nunca foi capaz de fazer isso! E ela sabia! Zoé é experiente, ela sabia que de todas nós, você sempre foi a mais frágil! A mais delicada! Ela sentiu prazer à vida toda em persegui-la! Isso precisa ser punido.

       -Para mim, basta a verdade. Zoé é uma boa guardiã. Ela salvou minha vida no final. Não é de todo mau. Há bondade, muito camuflado, mas há alguma bondade nessa guardiã.  – ela sorriu para Eleonora e tentou não parecer tão triste – Eu só quero saber por que me perseguiu a vida toda. Porquê desde que eu era pequena, sempre me ofendeu e assustou. Por quê? O que eu lhe fiz?

       Zoé manteve os olhos sobre Joan. Por um segundo pareceu que ela não responderia. Que talvez, não houvesse nada para responder.

       -Eu era como você. – disse Zoé – sempre assustada. Sempre com medo. Sempre me escondendo. Um dia, um Caçador de Fadas me roubou da minha família – ela contou sem pestanejar, olhos nos olhos, para que Joan entendesse de onde vinha sua magoa – Eu perdi tudo e tudo ficou para trás. Muitos anos servindo a um dono, como uma serva, ele não tinha interesse no corpo de fada, ou na venda de asas ou cio. Ele queria trabalho pesado. Ele me ensinou a usar a espada e a roubar. Atacar elfo nas estradas. A usar roupas de elfo e atacar, como um animal. Um dia – ela tinha lágrimas nos olhos, mas era de raiva e não de dor. Ou era apenas a dor mascarada por fúria – Um dia eu roubei de uma fada bem trajada. Ela estava em um longo passeio na floresta ao lado de um elfo. Era Santha. Era Lucius. Ele não me deu atenção, não notou que eu não era um elfo. Mas Santha... Ela notou o meu cheiro de fêmea. Ela me prendeu e trouxe para o castelo. Mas antes disso, ela colocou uma espada em minhas mãos e me levou até o acampamento onde ficávamos escondidos. Ela disse que se eu vingasse minha desgraça, então poderia sobreviver nesse mundo horrível. Foi o que eu fiz. Eu matei o Caçador de Fadas, com a espada, eu tirei sua vida. Estava livre. Sem amarras. Santha me trouxe, como traria um animal exótico. Ela implorou ao rei Isac que permitisse meu treinamento. Que a entretia ter uma fada sendo treinada como guardiã. Foi Santha quem intercedeu por mim. Foi ela quem me fez o que sou hoje. Eu nunca questionaria uma palavra dita por ela. Jamais.

       -E porque eu? Porque me odiar? O que lhe fiz? – Joan ainda não entendia.

       -Você e sua expressão assustada. Porque as fadas e elfos sentiam pena de você? Nunca ninguém sentiu pena de mim.

       Era recalque. Era magoa por um passado que não poderia ser mudado e que Zoé via e revia, todas às vezes, quando enxergava a fadinha andando pelo castelo. Era como ter sua vida trazida a tona. Joan se tornou um alvo, mas era apenas um bode expiatório.

       -Peça perdão pelo que me fez, Zoé. – pediu Joan. – Eu posso perdoa-la. Mesmo que seu pedido seja falso, ainda assim, posso perdoa-la.

       Não era uma imposição. Era um pedido justo.

       -Eu lhe peço perdão. – Zoé disse e curvou-se de joelhos, causando desconforto imediato em Joan – É um pedido sincero.

       Joan curvou-se também e a fez levantar.

       -Se é um pedido sincero, não necessita humilhar-se. Eu acredito. Mas peço que não se aproxime do meu humano. Nunca mais. – era um aviso ciumento.

       Como fada poderia perdoar. Mas como fêmea, não poderia perdoar que mexesse com seu macho escolhido.

       -Eu não o quero. Eu queria disputa-lo com uma das fadas da clausura e obter sucesso, onde antes eu falhei – ela disse penosa, de alguma lembrança do passado.

       -Sendo assim – foi Egan quem encerrou a situação – Zoé, eu peço que ajude na limpeza dos corpos. Será bom que se afaste por uns dias do convívio das fadas. Até a raiva minguar.

       -Sim, senhor – ela disse e com uma mesura, saiu do salão sem olhar para mais ninguém.

       -O que ela quis dizer com ter falhado anteriormente? – Eleonora perguntou, olhando com desconfiança para Egan.

       -Não se preocupe, Lora – a voz desgostosa era de Driana – A péssima ideia de deitar-se com a guardiã veio de Acheron, não que isso me surpreenda, ele é cheio dessas boas ideias. – ela ironizou.

       -Existe algum crime a ser reparado? – Eleonora perguntou, e esperava que Acheron fosse sincero.

       -Não. Éramos conscientes do que fazíamos. Não abusei do cio de uma fada. Zoé havia tido outros companheiros antes de mim. – ele pareceu adoravelmente constrangido com esse assunto – Eu não notei que ela esperava casamento. Francamente eu não notei nada diferente. Ela nunca foi muito romântica...

       -E como notaria? – ironizou Driana – Acho errado tratar uma fêmea com a mesma lei que um macho. Se a permissão para a disputa das armaduras incluírem as fêmeas, e isso se tornar regra em seu reinado, sugiro Eleonora, que acirre as leis. Algo sobre manter a boca grande de elfos fechadas, e não espalhando suas ideias de casamento com fadas da clausura, enquanto se deitam com suas colegas de guarda!

       Sim, ela estava furiosa com a indelicadeza de seu elfo escolhido. Mais do que isso, furiosa com uma fêmea do passado de Acheron conviver com ela.

       -Assuntos de menor interesse, Driana, você deveria saber que não deve sobrecarregar sua rainha com assuntos de menor interesse – disse Alma, cheia das pirraças de Driana.

       Amar sua amiga, não a fazia surda para seu palavreado constante e diversas vezes, irritante.

       -Acabou?  - Perguntou Joan – Posso voltar para junto de Alice?

       O modo como Eleonora, Driana e Alma a olharam quase a deixou culpada. Deveria querer estar com elas, e não com uma estranha. Mas elas estavam bem, Alice estava ferida e assustada. E Joan se recusava a envergonhar-se de amar a família de Rowell.

       -Sim, os assuntos urgentes acabaram – garantiu Egan – A rainha deve se deitar. Está pálida.  – era um aviso de que esperava que ela se cuidasse e deixasse os piores cuidados com ele.

       Afinal, havia corpos e muita sujeira para ser reparada. Muita dor a ser remexida.

       -Porque não subimos todas para a torre? A menina vai apreciar companhia de fadas. – disse Driana, tentando sorrir para o humano, mas sem conseguir exprimir grande simpatia.

       Joan escondeu um sorriso. Era louvável o esforço que Driana fazia para superar seu preconceito contra humanos. Joan aproximou-se de Rowell e o beijou de leve na bochecha, com recato e sussurrou:

       -Estou cuidando de Alice. Não fique preocupado com ela. Os elfo o aceitarão como um dos seus, basta que ouça e acate nossas leis.

       Rowell nada respondeu, algo no olhar do humano não a agradou. Ele parecia como uma criatura que desejava fugir a qualquer momento. Por isso, Joan segurou em seu braço e implorou:

       -Não diga que somos diferentes e isso basta para justificar que me deixará para trás. Lora é rainha, ela tem seu tempo de decidir o que é melhor para nós. Ela pede tempo para falar sobre nossa situação. Por favor, espere. Alice não pode viajar agora. Espere junto de nós. Conheça minha terra. Por favor.

       -Como se eu pudesse deixa-la – ele disse com irritação e também algo de desespero na voz. Era uma complicação que sua fada de olhos puros, fosse mesmo uma fada!

       Joan sorriu e afastou-se dele, não sem antes olhar para Egan com esperanças de que o Primeiro Guardião, e também rei, pudesse cuidar bem do humano em sua ausência.

       -Não seja tão protetora – foi Alma quem avisou – Se ele não aguentar algumas horas em nosso mundo, não aguentará uma vida ao seu lado.

       Era a mais pura e límpida das verdades.

       E talvez, a mais dolorosa também.

         

       Foram necessários três dias para que Alice estivesse bem o suficiente para interagir em uma conversa. A menina mal entendia o que se passou com ela. Sentia falta de sua avó e perguntava pelos irmãos o tempo todo. Na terceira manhã, quando Alice andava pelo quarto, ajudada por Alma, pareceu ser o momento certo para explicar-lhe exatamente o que lhe aconteceu.

       Na noite deste dia, finalmente foi decidido que era a hora de partir.  Rowell ouviu calado todas as instruções do primeiro Guardião sempre mantendo os olhos fixos em sua Joan, tão distante, sempre acompanhada e protegida por suas amigas.

       Um ressentimento brando alertava que era normal que as mulheres desejassem sua companhia, pois em breve as quatro estariam apartadas por muito tempo. Era assim a vida, mesmo em raças distintas, a distância é um fardo a ser carreado entre fêmeas e mulheres.

       Joan não era a única a partir. O castelo estava recuperado, cada elfo e fada vivendo sua vida, tentando superar o que aconteceu e sobretudo, esquecer a traição dos Conselheiros.

       Era quase noite, quando Joan pisou sobre a grama macia e úmida da chuva daquele tarde.  Seus pés nus se esbaldaram nessa sensação e ela sentou no chão, e fechou os olhos, respirando o ar puro e alimentando seu espírito com essa boa lembrança.

       Desde sua mais tenra idade era isso que faziam: fugir das claustrofóbicas instalações do Ministério do Rei, e reunirem-se ali, muitas vezes em brincadeiras, em outras vezes, apenas abraçadas obsevando o céu, e tecendo planos de um futuro que parecia cada dia mais improvável de ser realizado.

       Em meio ao silêncio e paz, Joan ouviu os passos pesados de Alma e a voz inconfundível de Driana reclamando de algo. Sorriu, pois era inevitável sorrir das briguinhas de ambas.

       Quando abriu os olhos, Driana já havia deitado na grama, ao seu lado, e Alma ajudava Eleonora a sentar. Ela escondia dos outros, mas não delas. Uma ornada barriga de quase cinco meses de gestação. Breve daria a luz. Ao futuro rei ou rainha do Monte das Fadas.

       Vestida com um vestido bastante bordado e caro, onde suas asas eram libertadas pelo decote das costas, Eleonora mantinha os longos cabelos louros, quase brancos, em uma trança frouxa, na cabeça uma tiara de pedras preciosas. Sem brincos, ou colares. Ela sorriu de alguma reclamação de Driana e olhou para Joan, sua fadinha vermelha. Agora com suas asas, lindas asas vermelhas.

       Os olhos verdes de Joan encontraram os seus. Sua bonequinha, tão bonita e doce. Como permitir que ela fosse embora? Principalmente para uma vida diferente da sua?

       -Meu casamento com Egan acontecerá em duas semanas.  – disse depois de algum silêncio prolongado. – Espero que saibam que é uma ordem a presença das quatro no casamento.

      -Espero que diga isso a Acheron, ele tem pressa em partir – disse Driana, observando o céu, pois a noite vinha sorrateira, e com ela, o azul profundo e escuro, banhando as nuvens com sua melancolia – Eu quero conhecer o lugar onde nasci, e deveria ter sido criada. Conviver com meu pai, minha irmã e meus irmãos. Acheron me ofereceu um ano. Depois, ele precisa voltar. E eu aceitei. Estamos evitando fazer longos planos. Ele sempre teve o desejo de viver em uma casinha na floreta, longe de tudo e dos problemas...  – ela sussurrou e olhou para as três fadas com um meio sorriso de quem tem planos que não agradariam Acheron – Eu quero leva-lo de volta para o lugar de onde ele veio!

       -Típico, você sempre quer obrigar os outros a pensarem como você. – disse Eleonora, pensativa sobre esse tema – Mas nesse caso, eu concordo com seus planos. Acheron nasceu para ser rei, e desse modo deve ser. O medo não deve encobrir seu destino.

       -Veja, é isso que eu tenho tentado dizer a ele! – Driana alegou, espantada do modo simplório com que Eleonora definia toda a questão.

       -Já pensou em conversar com ele, em vez de fazer sermões? – perguntou Alma, de pé, segurando em uma das mãos uma flor de pétalas roxas e perfume adoçado.

       Driana ouviu, mas não revidou. Era verdade. Talvez precisasse ser menos complexa.

       -De qualquer modo, isso me levará para longe do Reino. Lora, você não ficara magoada, não é? – Driana tocou sobre o braço de Eleonora, e esta sorriu.

       -E porque eu ficaria? – Eleonora curvou-se e beijou sua testa – Acheron a quer, quem sou eu para interferir? De outro modo, imagine o custo para achar um elfo que a suportasse?

       Driana riu, não havia outro modo de revidar.

       -Quero conhecer sua família, Driana. Tente trazer seus irmãos e seu pai para o casamento. Seria adorável conhecê-los. – pediu Eleonora.

       -Farei isso.  – Driana tinha os olhos fixos em Alma – então? Não vai nos contar nada sobre Solon? Sobre sua vida no Vilarejo sem Fim? Tem mantido segredo tão grande, que começo a duvidar dessa união...

       -Se eu não conto detalhes, é porque você faz perguntas demais. Não há o que contar. Solon e eu estamos acertados. Viveremos juntos e se possível, ajudaremos a criar um ambiente adequado para o povo do subsolo. Depois disso... Eu não sei. Talvez voltemos para o castelo, talvez não.

       -Eu não acredito que não tenha mais nada a contar! – Eleonora reclamou – Admita, vocês dois vivem bem juntos, não é um acerto, Alma! É amor!

       -Eu nunca neguei isso. Mas não vou cansar seus ouvidos com minhas de amor... – ela ironizou e sentou ao lado delas, de pernas dobradas, nada feminina, com seus cabelos longos, repartidos e castanhos, agora brilhantes e vistosos, prova que sua vida era saudável e feliz ao lado de Solon

       -Eu ainda não sei. Mas... Penso que carrego uma cria. Mas não é certeza ainda. – contou com o se nada fosse nada.

       -Oh, Alma! – grito feliz de Eleonora, ou o som de surpresa de Driana, nada se comparava ao olhar de Joan. Ela estendeu uma das mãos e tocou a barriga de Alma.

       -Porque demorou tanto a nos contar? – quis saber.

      -Porque ainda não tenho certeza. E se for, tenho muitos meses para isso. Enfim, é apenas uma cria.

       -Alma, não seja assim – pediu Joan – É a sua cria, e de algum modo, é cria de todas nós. Você sabe disso, não sabe?

       Era uma pergunta bem vinda. Alma apenas acenou e concordou.

       -Eu viverei com Rowell. Espero que isso não as magoe. – disse Joan por fim, recuperada da surpresa de saber que Alma poderia esperar uma cria, assim como Eleonora. – Eu gosto dele, não como elfo ou humano. Eu gosto de quem Rowell é por dentro. Do seu coração. Ele passou tanta tristeza na vida. Quando o conheci estava a beira de desistir de tudo em nome da segurança dos filhos. Como eu posso não amar alguém assim?

       -E se um dia você acordar e perceber que o que sentia era apenas gratidão? – perguntou Driana, para mostrar que ainda não concordava.

       -E se um dia você acordar e perceber que era apenas atração física e sexo? Ou acha que nenhuma de nós pensou isso ao descobrir seu súbito interesse em Acheron? – jogou Joan de volta.

       Sem voz, muda pelo argumento, Driana apenas negou, envergonhada:

       -Não é nada disso. Eu gosto dele por outras razões também. Não por... Sexo.

       -Então, eu amo Rowell por muitos outros motivos, além de gratidão. – disse Joan taxativa.

       -Suas crias serão mestiças. Você sabe o que acontece não é? Poderão fazer parte da sua vida no Monte das Fadas, mas se não possuírem características de elfos e fadas, serão rejeitadas e viverão melhor entre os humanos. – Eleonora lembrou-a disso.

       -Eu não vejo como isso possa ser algo ruim. Criarei minhas proles com amor e respeito. Não vou permitir que a diferença de raças seja um estorvo em nossa felicidade. O que me importa saber é... Aceitaram Rowell e as crias que dele vier? Ou precisarei perdê-las para ter o amor da minha vida?

       -É claro que não – Driana respondeu, surpresa por Joan sentir-se assim, - Mas aviso, algumas vezes irei visita-la, e não quero ser tratada como uma invasora pela gente de Rowell. Diga isso a ele. Somos irmãs, antes dele a conhecer. Não é justo que nos afastem.

       -Nada poderá nos afastar! – disse Joan – Jamais! Sobrevivemos, Driana. Olhe para nós – ela olhou para cada uma delas – Somos vitoriosas. E estamos juntas! Nada no mundo poderá nos separar! Apenas unir!

       Driana até pensou em lhe dizer que isso era puro idealismo, mas visto que até Alma estava participando desse delírio de felicidade, ela apenas sorriu e deixou-se levar pelo entusiasmo de Joan ao falar de sua vida entre os humanos.

       -Vocês se lembram de quando ficávamos aqui e espiávamos a vida daqueles que tem liberdade? – perguntou Eleonora, agora de pé, ao lado das três.

       Elas menearam a cabeça concordando.

       -Pois bem, agora somos parte disso. Somos livres.

       De mãos dadas as quatro sorriam.

       Sim, eram livres. 

       E pela primeira vez, voaram juntas. De volta para o castelo.

       De volta para seus amores.

 

       Na manhã seguinte, Egan apoiava Eleonora, um braço em torno de suas costas, enquanto observavam a despedida de Alice. Muitos queriam ver a menina humana, agora recuperada, andar com seu pai, e sorrir agradecida pela ajuda obtida entre estranhos.

       Levariam muitos anos para o horror sair de sua mente. Mas ver um mundo novo, e saber que existe generosidade, acalentava um pouco a tristeza.

       O trajeto por terra seria muito penoso para Alice, por isso, Eleonora observava suas amigas preparem-se para levantar voo.

       Alma, a mais forte de todas, levaria o humano. Driana levaria a menina Alice e por mais que contrariasse Joan, a guardiã Zoé seria a segurança velada, cuidando no céu da segurança das fadas aliadas a rainha.

       Era tempo de dizer adeus, mesmo que temporário.

       E ao contratio de meses atrás, dessa vez, não havia lágrimas e sim sorrisos. E a promessa de um retorno rápido.

       Quando elas saíram do campo de visão, Eleonora virou-se a abraçou Egan, escondendo o rosto em seu pescoço.

       -Não chore – ele disse baixo, para acalma-la – Joan está feliz.

       -Eu sei. Eu também estou feliz. E você, Egan? – ela ergueu seus olhos, e procurou nos dele a sinceridade total. – Está feliz?

       Referia-se a prole que carregava.

       A resposta de Egan não veio com palavras. Um beijo, para selar o companheirismo, a atração e a felicidade de ser um casal. Apenas um beijo para alinhavar as arestas e mostrar a Eleonora o quanto sentira sua falta e como estava feliz em estar de volta!

       E quando o beijo acabou, eles sorriram e voltaram para dentro do castelo de mãos dadas. Um novo começo para o Monte das Fadas.

       Um novo começo para todos eles.

 

       Joan ainda olhava para o céu, quando os portões do castelo foram erguidos. Eles entrariam como qualquer humano faria. Nada de tumultuar ou chamar atenção para o mundo das fadas. Por isso a despedida foi rápida e o olhar para o céu era saudoso.

       Sentindo sua dor, o sentimento horrível da separação, mesmo que consentida, Alice segurou sua mão, em parte como consolo, em parte querendo um afago. E depois de tudo que ela passou, Joan sentia ainda mais simpatia pela menina.

       De volta ao castelo, Joan estava ansiosa para ver todos. Sobretudo uma pessoa.

       A primeira coisa que notou foi que o lugar estava impecável. Cada homem em seu posto, cada empregado em seu devido lugar.

       Helana e sua rigorosa condução dos subalternos.

       -Joan! – o grito animado veio de Tubã, que a cercou e ergueu nos braços, para um abraço de amigos. Mas o olhar do duque não reconhecia essa amizade, por isso Tubã a colocou de volta no chão e beijou sua mão com recato exagerado que a fez sorrir e tornar a abraça-lo enquanto contava:

       -Finalmente paz, Tubã! Tudo acabou! Eleonora exige seu retorno! Nem preciso dizer que Reina está ansiosa para vê-lo!

       -Hum, eu também estou ansioso para ver Eleonora e Egan juntos – ele ironizou, com um pouco de veneno na voz.

       -Não – disse Joan – Eles estão felizes! Eleonora vai parir em pouco tempo. Seja compreensivo. Eles se amam! E você é muito bem vindo ao reino, se não for cabeça dura e não causar problemas! – ela disse sorrindo.

       -Eu não quero voltar e vê-los juntos. Ainda não. – ele confessou e por mais que não quisesse ver, Joan entendia esse sentimento.

       Tubã não amava Eleonora como fêmea, mas isso apenas o tempo lhe mostraria.

       -E onde está Matilde? – ela perguntou ansiosa.

       -Está aí algo que nunca pensei em ver – disse Rowell, discretamente afastando-a de Tubã, sem exibir o ciúme, mas revelando-o para olhos mais atentos.

       -Tenho algo para Matilde! Venha, querida – ela suavemente abraçou Alice – Vou leva-la para seu quarto. O que me diz?

       -Eu quero ver meus irmãos – ela pediu baixo, muito cansada.

       -Eu a levo – disse Rowell, tomando a filha no colo. Era recomendação de Reina que Alice andasse um punhado de tempo por dia. Mas nada que a exaurisse.

       No caminho cruzaram com varias fêmeas de lagarto e Joan apenas as cumprimentou enquanto seguia com Rowell para o quarto de Alice. Quando a viu deitada e em segurança, beijou o rosto do seu humano como quem pede desculpas e saiu do quarto. Ainda faltava uma coisa a fazer.

       Uma devolução por assim dizer.

       Na cozinha do castelo, ela encontrou a familiar cena de sempre. Hector sentado em sua cadeira, tão gordo e suado, descascando suas batatas, enquanto conversava com seu coelho.

       -Olá – ela disse para se fazer notar.

       É claro que ela enxergou o brilho de expectativa e clamor nos olhos do humano. Ele a enxergava, e a tomava, como uma chance de salvação para sua amada Anesi.

       Por isso, Joan não o cansou com palavras.

       -Eu não sei se é o bastante, Hector. Eu apenas posso torcer para que seja. – disse abaixando-se no chão, de joelhos e segurando o gordo coelho em seus braços.

       Hector retirou o animal de seus braços e o manteve quieto em seu colo. Joan retirou das vestes um pequeno tubo com liquido esbranquiçado.

       -Uma amiga muito querida, Reina, ela acredita que meu dom é capaz de alterar muito a fisionomia de outros corpos. Que eu posso recriar e adaptar. Que talvez, minha essência de fada, aliada a outros compostos, que apenas ela compreende, pois é seu dom de fada saber lidar com ervas, possa expurgar de Anesi a magia ruim que a prendeu nesse corpo. É uma tentativa. Eu lhe juro, mesmo que falha, eu continuarei tentando, Hector.

       Era uma promessa que Joan pretendia cumprir.

       O coelho não gostou nada daquilo. Quando forçou-o a engolir aquilo, a gritaria do animal era de dar dó. Quando acabou, Joan levantou.

       -Pode demorar algum tempo. – Ela disse com um sorriso empolgado – Eu preciso ficar com Alice e Rowell. Mas eu volto para saber como Anesi está indo.

       Hector não lhe deu muita atenção. Esperança havia tomado o coração do humano, e todos os pensamentos dele eram para a mulher que amava e que estava prisioneira de si mesma, naquele corpo de coelho.

       Joan correu pelo castelo, na busca por Matilde. Queria vê-la e, sobretudo contar sobre a vitória de seu povo. Sobre como Zoé estava fora da vida delas para sempre e sobre permanecer ao lado de Rowell como esposa. Era bom que as duas se entendessem.

       O que encontrou ao regressar ao quarto de Alice foi uma Matilde furiosa, discursando sobre a desgraça de ter um povo de fadas dentro de seu castelo e sobre o que fizeram com a sua neta. O olhar de pânico de Alice era quase cômico. Ela tentava falar, explicar que a culpa era de sua mãe, pobre mulher ensandecida com os anos, mas Matilde não ouvia.

       -Oh, aí está ela. A culpada de tudo! – Matilde apontou-a com desprezo.

       -A culpada? - Joan entrou e tentou sorrir para Molly que ajudava a cuidar de Alice e lhe sorriu constrangida pelos gritos de Matilde - Não fui eu quem incentivou o casamento de Rowell com Sophie. Muito menos que guardou segredo da possibilidade dela estar viva e sobre sua origem. - disse pactualmente, pois essa era a única linguagem que Matilde entendia - Espero que baixe seu tom de voz, Matilde. Gritos me incomodam, e devido ao fato que serei Duquesa de Mac William em breve... Seria bom que adequasse seu tom de voz ao meu gosto.

       -Não nesta vida - disse Matilde entre dentes.

       -Por favor - Joan desmereceu sua agressão e sorriu para Rowell, que tentou não retribuir - Quer saber? Existe apenas um modo de você me aceitar - confidenciou e sentou na beirada da cama, olhando para Alice que já sabia desse segredo, que envolvia sua avó.  - Eu proponho uma trégua, Matilde. Uma troca, se preferir o termo.

       -Nada que você tenha me interessa - ela disse decidida, cruzando os braços com força, enquanto enxotava Molly do quarto e fechava a porta, para que a criada não ouvisse as intrigas de seus senhores. Típico de Matilde.

      -Pois bem, em duas semanas, minha grande amiga Eleonora irá se casar. Eu irei até o Monte das Fadas, na companhia de Rowell, Alice e Tommy. Iremos acompanhar a cerimônia que se estende por três dias, como manda nossos costumes. Eu poderia leva-la conosco. Para conhecer o mundo das fadas e elfos e ver como vivemos. Mas eu sinto que não devo levar alguém que grita, briga e causa transtornos o tempo todo. E Rowell concorda comigo, não é meu amor?

       -É verdade, mãe - ele disse sorrindo, aproximando-se da cama, para pousar ambas as mãos nos ombros de Joan, apoiando-a nessa afirmação - O mundo das fadas é um lugar calmo e sereno. Não é justo levarmos fúria e desentendimentos agora que tudo finalmente está em paz. - ele piscou para Alice.

       -Vovó, o reino das fadas é lindo! - disse Alie, mesmo que ainda convalescendo, ela sorria e se empolgava a falar disso - As fadas são lindas, vovó! A natureza, o céu... A rainha Eleonora... Parece um punhado de algodão branco, toda clarinha... E suas asas... São... - faltaram palavras para a menina descrever seu encanto.

       -Esplêndidas? - sugeriu Joan - Eleonora é peculiar. E apreciadora dos humanos. Ela gostaria de conhecer minha... Sogra - a palavra também não na agradava em nada. - Porque não vai ao seu quarto, Matilde? Eu deixei uma coisa para você sobre sua cama. - disse Joan com ares de mistério.

       -Eu não quero nada vindo de você - ela disse taxativa.

       -Está bem. Então, pegue e ponha no lixo. Ou dê para alguém. Só acho que a mãe de Rowell merece mais do que vestir-se como uma governanta. Que merece ser assumida. Eu sinto dizer isso, Matilde, mas Edward está morto. É uma pena. Mas com sua morte... Bem, não há quem exija o direito ao ducado. Estou certa, Rowell? - tocou sua mão e olhou para ele, pois quando lhe explicou isso fez sentido, mas passado os dias, ela esqueceu um pedaço das leis dos humanos e poderia estar se confundindo.

       -Sim - ele beijou o topo de sua cabeça, sobre seus cabelos perfumados. - Edward era o único que poderia questionar meu direito ao ducado. Com sua morte, mesmo que me entristeça o que aconteceu, estamos livres de qualquer cobrança e podemos contar para todos quem é minha mãe verdadeira. Não é necessário que seja uma governanta para justificar sua presença dentro o castelo, ou seu direito a comandar. Com as bodas - ele fez questão de lembrar - caberá a Joan cuidar das criadas e a você, minha mãe, caberá ajudar na educação dos nossos filhos, pois Joan não entende muito do nosso mundo.

       -Levará algum tempo para que eu saiba como funcionam todas as regras e leis de sua sociedade. - Joan disse com um sorriso - Eu posso cuidar do forte. Mas sozinha, não poderei cuidar da instrução das crianças de Rowell, e com o tempo, dos meus próprios filhos.

       -Seus filhos serão como Sophie - disse Matilde - Loucos como Sophie.

       -Não. A miscelânea de raças não faz isso a uma criatura, mãe - ele disse conciliador - Crianças bem criadas e muito amadas jamais serão como Sophie e Edward.

       -Eu não sei se gosto disso - Matilde afirmou - Mas não vejo ninguém me pedindo permissão. Então, o que posso fazer?

       -Pense, Matilde, sou eu, ou qualquer outra. Rowell não ficaria sozinho para a vida toda - Joan tentou anima-la, mas a única coisa que conseguiu foi alimentar seu mau humor característico, e sua saída prematura, pois apesar de fingir bem, ela não conseguia esconder seu desejo de ver o que Joan lhe trouxera e deixara em seu quarto, sobre a cama.

       Aliviada, Joan manteve sua mão unida a de Rowell, aguardando a chegada de Liara com Tommy e Marmom. O que não aconteceu. A demora os instigou a procurar pelas crianças. Alice, exausta, havia pegado no sono, então os dois deixaram o quarto na busca pelas crianças.

       -Espero de coração que o lagarto não tenha levado Marmom embora - Rowell disse nervoso e Joan apertou sua mão com força, para acalma-lo.

       -Fêmea de lagarto. Há uma linha tênue entre a ofensa e a verdade, Rowell. Tome cuidado, ou não conseguirá interagir com Helana.

       -Algo me diz que não vamos ter um bom convívio. Eu não vou permitir que leve Marmom - ele parou de andar e olhou para Joan, os dois no corredor, quase em frente a um dos quartos, onde no passado Joan lavava os corredores até a exaustão. Rowell lhe fez um carinho no rosto, mas a verdade não podia ser oculta, mesmo que o amor pedisse por benevolência. -Eu sei que não havia filho algum, e que Sophie provavelmente mentia sobre a gravidez, ou se havia criança, pertencia a algum elfo, ou outra criatura qualquer. E eu não sei o paradeiro dessa criança, se é que ainda vive. Mentira ou não, Marmom se tornou uma realidade na minha vida. É meu filho. Eu não abrirei mão dele.

       -A escolha não é sua - ela foi sincera - Um dia, ele crescera e terá ódio por quem o apartou de sua mãe. É assim que as criaturas, sejam fadas ou humanos, agem e sentem. Permita que Helana crie o próprio filho e desse modo jamais perderá o amor de Marmom.

       -Para você é fácil dizer isso, Joan, você não é como eu. Não é egoísta. É acostumada a partilhar e dividir, eu sei que acha que amor não se prende, mas não é verdade.  Eu não sei se conseguirei deixar meu filho ir embora.

       -É claro que conseguirá. Se você o ama de verdade, permitirá que seja feliz. Além do mais... Posso conversar com Helana, convencê-la a deixar o pequeno vir aqui de vez em quando. Pode ter uma aliada, Rowell, ou uma inimiga. A escolha é somente sua.

       -E quer me convencer que irá aceitar essa escolha sem tentar me convencer a ceder? – ele sorriu, um sorriso triste, mas era uma forma de sorrir e mostrar a ela que entendia a situação, e seu ponto de vista.

       -Apenas converse com Helana. Você é pai. Mas ela é mãe. Há de ter um meio termo para essa questão. Não tome atitudes inesperadas. Não haja por impulso. É hora de ponderar e ser flexível. – sugeriu.

       -Esse conselho vindo de uma fada fugitiva que se acoitou em meu forte, não parece ser um conselho muito válido. – ele curvou-se para beijar de leve a ponta do nariz arrebitado de Joan, e a fada abriu um lindo sorriso, apreciando sua espontaneidade romântica.

       -Pense que agora sou uma fada livre, e que se não houvesse ponderado e agido com cautela ao me esconder seu forte... Hoje poderia ser tudo diferente, e não nos conheceríamos. – ela sugeriu, enlaçando seu pescoço com os braços.

       -Eu quero pensar em uma vida sem tantas tristezas, Joan. – ele confidenciou, lidando com a magoa de ter perdido o irmão pelo fio da própria espada. De ter visto sua esposa, a mulher que um dia dividiu a vida com ele, tornar-se uma inimiga cruel. De ver a filha, sua adorada Alice, ser atacada e fragilizada e quase perder a vida. Tantos sentimento ruins ainda permaneceriam junto dele, mesmo depois disso tudo. E perder Marmom apenas tornaria o sentimento maior e mais forte.

       -A vida será bonita e feliz, Rowell, se você libertar-se dos sentimentos de posse e retenção. Marmom pertence ao mundo e não a você ou a Helana. Quem o cria não importa, desde que ele esteja presente em nossas vidas.

       -É assim que se sente sobre suas amigas? Não sente a falta? O afastamento? – ele quis saber, preocupado.

       -Agora é tudo diferente. Se eu tiver saudade, posso trocar cartas, e visitar minhas amigas. Existe a liberdade, Rowell. Eu não preciso domina-las e impedi-las de serem felizes, obrigando-as a permanecerem ao meu lado, ou me privando da felicidade, e permanecendo ao lado delas, para que sejamos unidas e não exista saudade. – explicou – Basta compreensão e aceitação.

       -Eu não tenho seu sua generosidade, Joan. – ele lembrou-a disso – Não tenho o coração tão puro quanto o seu. Ajude-me a aceitar.

       O modo como Rowell a olhava era de acelerar o coração e amolecer os joelhos. Como negar esse pedido?

       -Eu estou ao seu lado, Duque. Sempre ao seu lado.

       Diante dessa promessa, não havia como temer, pensou Rowell. Joan guardava no olhar uma pureza de princípios que não poderia ser contestada. Ao seu lado, ele sentia-se capaz de enfrentar qualquer medo e sofrimento.

       Um casal, pronto para o amor. Era novo para ele também.

       Sorrindo, Joan o levou pela mão em direção ao futuro.

         

       Seu poder de ilusão teve fim, quando as fêmeas de lagarto anunciaram a partida. Horas depois de retornarem, estavam diante delas. Era novo para a família de Rowell conviver com criaturas tão únicas e complexas, mesmo assim, era hora de falar de limites e parcerias. Não era um assunto que interessasse Joan, ela não tinha o dom da política, mesmo assim, permaneceu sentada em uma pedra, com Marmom no colo, brincando com seu brinquedo favorito feito em couro.

       Ao seu lado Tubã interagia com ela, aos cochichos querendo saber mais sobre o reino das fadas e sobre sua família. Que seu pai e mãe adotivos estavam bem, que Egan estava controlando tudo, e se saindo bem como rei. Que Eleonora estava feliz e linda, prestes a dar a luz a sua primeira cria e que perguntava por ele, e clamava sua volta. Que a saudade que sentia do melhor amigo não poderia ser apagada pela felicidade conjugal. Era outro tipo de saudade.

       Tubã olhava para Helana e Rowell conversando e discutindo assuntos sobre fronteiras, e então maneou a cabeça dizendo a Joan:

       -Eu não quero voltar ao reino agora. Eu não levaria nada de bom dentro de mim. Faria mal para meu irmão. Eu não quero disputar com ele o amor de uma fada. Egan é tudo para mim nessa vida. Ele é meu irmão – ele disse com olhos carregados de sentimentos – Eu nem sei se eu amo Lora, como pensava amar.

       Joan olhou para a fêmea de lagarto e então para seu amigo:

       -Por causa dela?

       -Eu não sei. E acho que não vou descobrir isso choramingando por causa de Lora e Egan. Eu terei que voltar para conhecer a cria. É da mina família, é do meu sangue. Quero ver meu sobrinho, e falar para Egan dos sobrinhos dele, que deixei na barriga das fêmeas de lagarto. Meu pai vai me matar quando souber disso – eles trocaram um sorriso, pois não era do mesmo sangue, mas era como se fosse – Serei tio, e quero conhecer meu sobrinho, mas não quero sentir raiva de Eleonora e Egan.

       -E nem deve. Eles não lhe deviam nada. Você nunca pediu Eleonora em namoro. Nunca tentou um beijo. Não pode culpa-la por não saber, ou não crer, em suas tentativas amorosas.

       -Acha, Joan, que se eu tivesse tentado, Eleonora aceitaria meus sentimentos? – ele perguntou de cabeça baixa, pensativo.

       -Sinceramente? Eu acho que você nunca pediria, Tubã.

      Era a mais simples das verdades. Ele nunca pediria Eleonora em namoro. Pensava em casamento, para salvá-la da clausura, mas agora, vendo de longe, ele já não sabia mais se era amor ou gratidão. Pois afinal, se ela não houvesse pedido, Reina nunca teria adotado o menino Tubã, e ele não teria uma família maravilhosa.

       -Essa vida é tão complicada- ele reclamou, e Joan sorriu.

       O menino Marmom achou por bem naquele momento morder o braço de Tubã que o pegou no colo e levantou, erguendo-o acima da cabeça, em uma brincadeira típica de machos, o que arrancou um riso doce de Joan, vendo-os juntos.

       De longe, Rowell olhou para sua Joan, rindo feliz, na companhia do elfo, e sentiu o ciúme. Eram da mesma raça. Entendiam-se naturalmente. Esse sentimento ruim durou o tempo de Joan afastar os olhos de Tubã, procurando pela imagem de seu humano e lhe sorrir apaixonada.

       As fêmeas de lagarto aguardavam ordens de sua líder, e haviam partido para o rochedo, obviamente sabendo de algo que o humano e Joan ainda não sabiam. A decisão sobre o que Helana faria com sua vida e a vida de suas irmãs de raça.

       -Sabe o que ela decidiu? – perguntou a Tubã.

       Ele sorria para a criança, mas negou com a cabeça, pois não tinha a menor ideia do que a fêmea de lagarto desejava. Helana lhe era um mistério. O que acontecia em seu coração era um segrego bem guardado. Ele sabia que ainda amava o marido assassinado. Que amava o filho, que lhe fora roubado. Que amava sua gente e sua raça. E que seguia a risca suas obrigações. Ele conhecia seu forte senso de justiça e união. E sabia também que ao seu lado, sentia-se protegido e feliz, e que se ela desse a menor condição, ele a levaria para a cama, pois a atração que sentia por seu corpo singular e seus olhos arredios vinha consumindo-o. Talvez ele soubesse demais sobre Helana, e por causa disso, ela não saia de seu pensamento.

       A aproximação de Rowell e Helana fizeram Joan sentir um arrepio de medo. Uma oração singela, para que Helana não levasse o menino do castelo.

       -Partirei na busca de um povo de raça semelhante a minha. Sei que existe uma colônia de lagartos não muito longe do Monte das Fadas. Eu posso encontra-los, mas não sei quanto tempo levarei. Eles se escondem, e será custoso encontrar o rastro da toca onde vivem. Até lá... Preciso de um lugar para minhas irmãs permanecerem. Um lugar próximo ao rochedo. Um lugar onde as fêmeas mais jovens possam ser cuidadas por uma criatura de sangue mágico. Que entenda a necessidade de mantê-las puras para a cruza com outro de nossa raça. O humano concordou em acomodar minhas irmãs por um tempo indeterminado – ela disse a Joan, que ouviu surpresa. – E eu lhe confio, fada Joan, o cuidado com as fêmeas de descendência pura, para que elas possam ser uma continuidade de nossa raça. Assim como Marmom é uma esperança de continuidade de nossa descendência e não pode ser sacrificado em meu nome. – ela olhou com carinho par ao filho, que a reconhecia pelo cheiro, e lhe oferecia o brinquedo.

       Helana aproximou-se e pegou o menino no colo, com todo seu carinho de mãe.

       -Dizia a Helana que será uma longa cruzada – Rowell explicou – Eu aceito suas mulheres... Fêmeas – ele mudou a palavra diante do olhar dos três, pois as criaturas mágicas não entendiam esse modo de referir-se – e manterei o sigilo sobre seu povo, inclusive, fingindo não saber que essas fêmeas se deitam com os homens do meu forte e procriam. Não será fácil. Será um longo trabalho explicar a todos eles quem são e o que são. É uma tarefa quase impossível, que me comprometo em realizar, em troca da confiança de Helana.

       -E porque você precisa da confiança de Helana? – perguntou Joan, sabendo muito bem porque Rowell fazia isso.

       -Porque eu quero ter a presença de Marmom, mesmo que em visitas ocasionais – ele disse com olhos fixos no filho – Para mim, ele é, e sempre será, meu filho.

       De costas para os dois, Helana fechou olhos, e apenas Tubã notou. Ele aproximou-se e fez um carinho no menino, mas seus olhos estavam à caça dos olhos de Helana. É claro que ela se lembrava da conversa tida entre eles, e sobre a decisão acertada para o futuro de Marmom.

       Mas nem sempre o justo e o correto, são a atitudes mais fáceis de por em prática.

       -É uma longa caminhada em busca de raças iguais a minha – disse Helana, afastando-se de Tubã. – É um caminho perigoso e Marmom... Ele é o último macho da minha espécie com sangue totalmente livre de miscigenação. Ele é a certeza da nossa continuidade. Sendo assim, não posso leva-lo comigo.

       Sua voz era dura, mas seus olhos ardiam de lágrimas e dor materna.

       -Oh... – foi Joan quem se apenou dela, mas Rowell pousou uma das mãos em seu ombro, calando suas palavras de conforto.

       -Eu cuido de Marmom na sua ausência – ele disse decidido, e com a voz carregada de emoção – Não importa quanto tempo leve, eu crio Marmom. Ele terá irmãos, uma mãe e um pai. Mas saberá quem é sua mãe e que você o buscará um dia.

       Era uma oferta.

       -Minhas irmãs o ensinaram a ser um de nós. – ela disse entregando o menino para o colo de Rowell. – E eu sei que ele não sentira minha falta agora. É muito pequeno para lamentar minha partida.

       Mesmo tendo entregado Marmom, ela conservava uma das mãos tocando o cabelo da criança, como se afastar-se fosse impossível.

       -Marmom será bem cuidado. Tratado como criatura e não humano. Eu lhe prometo isso, Helana – disse Joan emocionada – E tenha fé, sua busca será curta. Com sorte, encontrará outros de seu povo muito antes do que espera.

       -Eu gostaria de ter sua confiança – disse Helana.

       -Saiba que, quando Joan diz que acredita em algo, é porque acontecerá. A esperança que ela carrega, torna os sonhos realidade – Rowell disse com tanto amor na voz que Joan quase o beijou ali mesmo, em meio a uma triste despedida.

       -Acreditarei nisso – disse Helana com voz embargada. – Eu não voltarei por um bom tempo. E em breve, minhas irmãs estarão de volta. Confio no acordo feito entre nós.

       Ela afastou-se do menino e disse algo em sua língua, que prontamente o menino entendeu, e acenou com sua mãozinha, e Joan imaginava que fosse uma carinhosa despedida.

       Helana virou-se e as lágrimas foram substituídas por um carranca raivosa. Ela chegou a dar alguns passos para longe quando parou, e retirou o chicote da cintura. Joan gritou de susto quando o chicote correu o ar e agarrou-se em torno de Tubã, levando-o para junto dela. Imediatamente um arco de metal estava em torno de seu pescoço e ele sorriu.

       -Tubã! – Joan pareceu assustada.

       -Não, não, não! – ele impediu-a de impedir – Tenham uma boa vida e mande lembranças a Lora e Egan. Eu? Sou um prisioneiro agora. O que posso fazer? Eu tenho que cumprir esse triste destino... Opa! – ele reclamou, pois ela não o levava com gentileza, e sim com força.

       -O que foi isso? – perguntou Rowell, sorrindo quando os dois desapareceram do campo de visão.

       -Isso foi Tubã arrumando uma namorada – ela disse sorrindo toda boba diante da certeza que seu amigo viveria uma história de amor com uma fêmea que merecia amar e ser amada. – E veja só quem ficará conosco? – ela perguntou rindo feliz, fazendo carretas para Marmom, que respondeu querendo seu colo.

       Sorrindo, os dois abraçaram-se, com o menino entre eles. Um beijo apaixonado para selar esse momento de alegria. Um dia Helana voltaria, e quiçá fosse logo. Mas enquanto isso, Marmom ficaria entre eles, e para essa felicidade não havia descrição possível.

       Longe do castelo, Tubã parou de andar e puxou a corrente, obrigando-a a parar.

       -Olhe, eu gosto de ser acorrentado por você. Mas convenha, eu não irei fugir. E não serei de serventia alguma estando preso desse jeito. – ele disse petulante.

       -E como eu saberei que não irá fugir?  -ela perguntou no mesmo tom, sem abaixar a guarda.

       -Hum, me mantenha limpo, alimentado e satisfeito e eu não vou a lugar algum. Por favor – ele pediu com um meio sorriso.

       Helana aproximou-se e tirou a corrente. Sabia muito bem o que aconteceria. E esperava por isso. Tubã a pegou pela cintura, e Helana deixou-se agarrar.

       Não era seguro apaixonar-se outra vez, muito menos por um fanfarrão. Ela dividiu a vida por um curto tempo com um macho de sua espécie, forte e guerreiro, e agora, escolhia um elfo bobo e brincalhão? Era uma trapaça da vida, mas lhe fazia bem, e ela estava cansada de sofrer.

       Permitiu que Tubã a beijasse, no meio da floresta, entre as árvores, tendo apenas o vento e o céu como testemunha. Quando o beijo acabou, a surpresa era dos dois. O sentimento despertado e dividido era maravilhoso. Não era consolo, gratidão, ou necessidade de companhia. Era amor e paixão.

       Helana gemeu de surpresa e contentamento, quando o elfo, sempre tão pastelão, a girou de costas contra uma árvore, e começou a baixar suas roupas. Assim, no seio da natureza, os dois se fundiram, e se aceitaram, tornando aquilo o começo de uma longa história de amor...

 

       Era uma noite de festa. A família toda reunida. Joan estivera com Alice, e ela estava bem o bastante para juntar-se a eles na mesa de jantar. Tommy, seu irmão estava ao seu lado, ouvindo atentamente sobre todas as aventuras da irmã no Monte das Fadas. Ele ouvia com interesse infantil e também espanto. Liara, a pobre serviçal ouvia calada, com medo de ser a azarada a ter que acompanhá-los na viagem próxima, quando voltariam ao recanto das fadas para um casamento. Ela realmente não queria participar disso. E quanto mais dizia isso a si mesma, maior era a vontade de ouvir sobre fadas, elfos e duendes. Talvez por isso Molly apenas disfarçasse o sorriso, e fingisse não rir do interesse da colega de trabalho.

       A mesa estava servida, Joan estava sentada em seu lugar de futura Duquesa, com Rowell segurando sua mão enquanto lhe fazia gracejos que aceleravam seu coração. Marmom estava muito ocupado correndo atrás das saias de Molly, enquanto ela servia mais vinho, distraída demais para perceber o que acontecia a sua volta. Era o adorável mundo das crianças pequenas, onde tudo se resume as brincadeiras e ao lado lúdico.

       Joan havia acabado de confidenciar a Rowell que as crianças adorariam conhecer as arenas onde aconteciam os treinamentos para Guardião quando Matilde surgiu.

       Sumida desde a manhã, quando eles chegaram, Matilde surgiu vestindo o presente que Joan lhe trouxera. Era um vestido de Reina. Muito parecido com a veste humana, um longo vestido, com mangas triangulardes e decote quadrado, era verde intenso, com bordados e pedras delicadas. Era uma roupa costurada com capricho. Uma roupa digna da mãe do Duque Mac William, e que Joan esperava, seria a primeira de muitas roupas que Matilde teria, e que não seriam iguais às roupas das criadas. Desconfortável com a roupa, ela ainda mantinha os cabelos presos em um coque, e a expressão rígida estava presente.

       -Está linda, minha mãe – Rowell levantou para recebê-la – Fico feliz que esteja usando o presente de Joan;

       -Que opção eu tenho? Ou é ela, ou outra qualquer. – Matilde disse e olhou para o filho com emoções que suas palavras mascaravam, mas seus olhos revelavam. – Quero que conheça alguns amigos, Rowell. – ela tinha as mãos tremulas e todos olharam para a porta, por onde Hector surgiu, trazendo pela mão uma jovem bonita, de pele clara, coberta por sardas. Olhos castanhos, e expressão um pouco assustada. Bem jovem, uns vinte anos. – Hector você já conhece. A jovem se chama Anesi. Ela deve viver no castelo, junto de Hector. Não me peça para explicar sua procedência, Rowell. Essa aí poderá explicar melhor do que eu – apontou Joan.

       Joan seria eternamente ‘essa aí’. Era melhor conformar-se. Contente de ter podido ajudar Hector, ela levantou e correu para abraçar o cozinheiro e então, seu coelho, agora em sua verdadeira forma.

       -Venham, há lugar na mesa para mais dois! – Joan convidou, sorrindo contente.

       Ao lado de Rowell ela olhou a mesa cheia e lutou para não chorar de felicidade. Sua vida sempre foi tão vazia, apenas suas amigas, e o desespero da clausura. E agora a mesa era repleta e ela tinha uma família.

       Vendo sua emoção, Rowell segurou sua mão e apertou com carinho, apoiando-a incondicionalmente.

       Era assim, o amor nasce, fluí e salva. E Joan nunca antes se sentiu tão feliz. Perdida nos olhos de seu amor ela sentiu-se amparada e acarinhada, isso, claro, até o riso de todos estourarem quando Liara começou a saltar e gritar assustada, com Marmom escalando pela parede, pois aparentemente o menino achara por bem aprender a escalar justamente na hora do jantar...

 

       A noite chegou para aliviar o fardo da conversa e explicação. Muitas perguntas, muito o que fazer, muitas pessoas com as quais lidar. Joan estava exausta e Rowell também. Mas era uma exaustão diferente, que trás a tranquilidade de uma vida que começaria baseada em paz e liberdade.

       Por insistência de Matilde, e seus ataques de recato, os dois não dividiriam um quarto até o casamento, que deveria acontecer em breve. Joan pretendia esperar o casamento de Eleonora acontecer, e quem sabe, com discrição pedir que ela e Egan ministrassem o ritual de casamento entre fada se elfos, para ela e Rowell, mesmo ele sendo humano. Não havia necessidade de convidados ou comemorações, bastava uma voz de autoridade, nesse caso a rainha, para abençoar aquele casamento nos moldes mágicos. Mais tarde, repetiriam a cerimônia entre humanos, mas então, quando isso acontecesse, nenhuma de suas amigas estaria presente, e Joan sentiria falta delas. Por isso o desejo de casar-se com discrição entre os seus.

       Era um desejo secreto que somente revelaria junto de suas amigas, e não possuía a menor relevância para quem percorria os corredores na solidão de uma bela noite sem estrelas, apenas uma lua gigantesca, que cobria boa parte do horizonte.

       Se não houvesse um profundo amor dentro de seu coração, Joan subiria aos céus em um voo para aproveitar aquela noite tão bonita, mas havia um amor esperando sua presença e ela aproveitava de seu dom para andar pelo castelo sem ser vista. Ou, como preferia pensar, sem ser abordada por Matilde.

       Menos nervosa, porém ainda odiosa. Levaria muito tempo para Matilde deixa-la em paz. Expurgado o uso de seu cajado e findado seu poder de governanta, ela não poderia mais tratar mal as criadas. No entanto, levaria muito tempo para baixar a guarda e aceitar sua nora.

       Como se Joan se importasse. Depois de tantas lutas sofridas, Matilde era a menor de suas preocupações. Com um sorriso, Joan voltou a andar em direção a torre, e então, pelos corredores, para o corredor que mais a interessava.

       Aquele onde esfregara o chão, e ouvira pela primeira vez a voz do Duque.

       Joan ainda era a mesma fêmea, com sentimentos fortes e inexplicáveis cada vez que ouvia aquela voz forte e sensual. Mas não era mais a mesma fêmea amedrontada que temia todas as decisões tomadas, tanto as suas, quando as de terceiros.

       Ela sabia que Rowell a esperava. Eles eram um casal, e não precisavam das bobagens de Matilde como impedimento para dormirem juntos. Depois da primeira noite dividida, Joan estava ansiosa para deitar-se com Rowell outra vez. Bem da verdade, estava nervosa com isso. Seu coração acelerado mesmo antes de tocar a maçaneta da porta.

       Ainda em seu quarto, agora separado das criadas, mas longe do aposento do duque, Joan havia se banhado e cuidado da pele e dos cabelos. Se perfumado e vestido um dos vestidos que Eleonora lhe dera. Eram túnicas bonitas e adornadas. Algo para ser usado na privacidade de seu quarto, junto de seu humano escolhido. Joan era uma jovem noiva em sua lua de mel, e Eleonora entendia isso, mesmo que não conhecesse as regras e leis dos humanos.

       A túnica era rosada, um tom muito claro, e fluído, com tecido leve e suave, que cobria seu corpo com delicadeza e sensualidade. As mangas longas, a bainha cobria seus pés cobertos por sandálias feitas em couro de dragão.

       A frente da túnica possuía muitos botões minúsculos, fechando-a de alto a baixo. Seus cabelos longos estavam escovados e brilhantes, jogados para trás, em suas costas. Uma tiara de pedrinhas e contas enfeitava sua cabeça, com franginhas de contas brilhantes em sua testa, enquanto a rede decorada estendia-se ao longo de suas madeixas, misturando-se a elas.

       Joan imaginava que Rowell preferia ir atrás dela, e não o contrário, mas visto que era ela quem se camuflava, não havia razão para exageros de orgulho masculino.

       Sentindo um gostoso arrepio na espinha, de antecipação, Joan permitiu que seu dom criasse uma camuflagem em torno de si, abriu a porta e entrou. Rowell parecia tão ansioso quanto ela, observando a varanda do quarto, sem sair para ela. Segurava a cortina com dedos aflitos, e quando olhou para a porta, na sua direção, não viu nada além do vazio.

       Sua vida sem Joan era uma vazio imensurável e cada minuto esperando por ela, era uma agonia. Talvez fosse romântico demais, ou exagerado demais, no entanto, estava amando pela primeira vez em sua vida, e se converteria a um bobo romântico se isso fizesse feliz sua pequenina fada.

       Quieto, escutou um suave respirar perto de si e não se assustou. Não pode evitar o sorriso que mostrou a Joan que havia percebido sua presença.

       Ela não se revelou, permaneceu ao seu lado, camuflada.

       -Eu fico olhando para fora, além do horizonte, e me pergunto o que mais tem por lá que eu não saiba. – ele disse baixo, confidenciando seus mais íntimos pensamentos – Existe tanta coisa além do que os meus olhos podem ver. Um dia eu gostaria de conhecer todas as criaturas, e todas as terras que o horizonte esconde. Mas minha vida é aqui. Quem sabe um dia, quando Tommy for mais velho eu possa viajar e conhecer o horizonte. Você quer ir comigo, Joan?

       -Está me propondo, que um dia viveremos no reino das fadas? – ela revelou-se, surpresa com essa oferta.

       -Estou apenas dizendo que não desejo roubar a vida que você tinha. Eu desejo que seja feliz. – Rowell soltou a cortina, escondendo o luar lá fora, e olhou unicamente para Joan.

       Aqueles olhos de floresta eram mais bonitos do que qualquer paisagem. Ele não precisava olhar para a lua para perder-se em mistério e beleza. Ele possuía sua própria fadinha e ela era linda de olhar.

       Ela sorriu e corou. O modo como era olhada, causava um corado em sua face, não por vergonha, mas por calor.

       -Eu serei feliz ao seu lado. É o que importa para mim. – ela confidenciou, olhando para a cama. – E você? Será feliz ao meu lado?

       Era uma provocação. Eles não queriam conversar. Havia muita saudade esperando recompensa. Abnegação e entrega. Nada de angustia. Mais um olhar para a cama, e Joan andou pelo quarto, para que ele a visse bem, com as chamas das velas proporcionando uma visão adequada de seu corpo.

       -Eu já disse como está bonita? Parece um anjo.  – ele não resistiu a comentar - ou uma linda fada de asas vermelhas. Quero ver suas asas, Joan. Não as esconda de mim, não na intimidade do nosso quarto.

       Esse pedido era dolorosamente erótico. Uma promessa de aceitação total. Atiçada, ela olhou para Rowell por um curto momento, como quem pergunta se ele aguentaria ou não o que ela tinha em mente. O cio não existia mais. O sentimento deveria ter ido embora, no entanto seu corpo queimava na ansiedade de deitar-se com o humano, e esse sentimento vinha crescendo desde que se preparou e percorreu os corredores do castelo até ali.

       Com as mãos tremulas, ela tocou o primeiro botão da túnica. Rowell livrou-se do colete de couro que usava, e da camisa, no mesmo tempo em que ela levou para chegar à metade dos botões, na altura da cintura.

       O tecido ainda cobria cada curva, e ele fixou os olhos no pouco de pele que revelava. Joan não afastava os olhos do humano. No movimento rápido de livrar-se dos sapatos e meias, de soltar o cinto, arrancar a calça. Ela queria assisti-lo tanto quando ele queria assistia-la. Quando os botões alcançaram a altura de seu quadril, Joan parou.

       Rowell vestia apenas a roupa íntima e ela gostava do que via. Corpo coberto por músculos proporcionais, peito coberto de pelos negros, ombros largos e poderosos, onde ela desejava arduamente agarrar-se.

       Sua face era um festival de emoções. Desde o queixo quadrado e tenso, a mandíbula travada, tensa pelo sentimento que o consumia. Os olhos escurecidos, um mar de azul tomado pela negritude de uma tempestade em alto mar...

       Joan engoliu em seco, e afastou os dois lados da túnica, deslizando o tecido pelos ombros, permitindo que escorregasse para o chão, aos seus pés.  Saiu das sandálias e da roupa, com um passo para o lado.

       Suas asas foram libertas e ela moveu os ombros para aliviar o peso de carregá-las. Eram curtas, farfalhantes e bonitas. Vermelhas. Intensas. Rowell correu os olhos pela nudez da fada.

       Pelos seios pequenos, claros e corodados por bicos rosados e aveludados. Pela barriga lisa e delicada, pelos quadris arredondados, vale onde escondia sua feminilidade, entre uma penugem vermelha idêntica a seus cabelos.

       Joan usava apenas a joia em seus cabelos, mais nada. Queria que Rowell a visse. Por isso andou pelo quarto e de costas para seu amante, retirou a decoração de seus cabelos e deixou sobre o criado mudo, oferecendo a ele uma visão total de seu traseiro e costas cobertas pelos longos cabelos vermelhos ondulados.

       Rowell aproximou-se e foi nesse momento que Joan virou-se para ele e encarou seus olhos com algo de excitante e profundo no olhar.

       -Eu te amo, humano – ela disse com voz pastosa, rouca e sexy. Tomada por um desejo de possuir e marcar a ferro. Aquele humano era seu.

       -Joan... – ele ergueu a mão para toca-la e foi nesse momento que ela desapareceu diante de seus olhar.

       Rowell a vira fazer isso antes, mas não assim, diante dele, num momento como aquele. Imóvel, ele esperou para saber o que ela tinha me mente.

       Joan não podia ser vista, mas ao contrário, a expressão da face de Rowell era deliciosa de assistir.

       Aproximou-se dele, e ajoelhou-se, tocando a roupa íntima e baixando-a com um movimento firme. Ele notou, e chegou a tentar afastar-se, a princípio desconfiando do que via e sentia. Então parou, e sorriu.  Um sorriso que poucas pessoas entenderiam.

       Confiança. Essa era a palavra chave entre os dois.

       Joan mordiscou os lábios e não resistiu ao livra-lo da roupa. Seu corpo era bonito e bem feito, e ela descobrira que amava o trabalho pesado dos humanos, pois graças a isso Rowell possuía um corpo invejável.

       Tocou-o diretamente onde desejava, sem joguinhos. Ele gemeu, sem ver as mãos que o tocavam ou a boca que o envolveu. Era diferente de tudo que passou em sua vida sexual. Ele não via, apenas sentia. Tenso, entregou-se ao prazer, tateando em torno de si até sentir a maciez do cabelo de Joan, e pousar uma das mãos ali, acarinhando e guiando seus movimentos.

       Joan olhou para a expressão do duque e satisfeita em vê-lo de olhos fechados, gemendo, mordiscou com força, para aumentar a sensibilidade. Ela não admitiria, mas na solidão do quarto de Eleonora, entre amigas, ela ouviu relatos bastante precisos de Driana. Sempre detalhista ela não a poupou dos detalhes sobre o que fazia com o Guardião Acheron e sobre o que ele gostava. Mesmo a introspectiva e brava Alma reveleara um segredo ou outro, que envolvia caricias bastante íntimas e reveladoras. Dicas preciosas para quem desejava agradar seu humano e mostrar a ele que a diferença entre espécies não minguava o desejo, a paixão e a vontade.

       Abocanhado pelos lábios de Joan, o duque apenas se deixou conduzir. Sua mão acariciava os cabelos e tateou seu pescoço, para acariciar a região sensível atrás da orelha, e Joan quase engasgou, pois era muito aprazível ser provocada assim. Por isso, afastou seu dom o bastante para que Rowell pudesse vê-la amando-o daquele modo, apenas alguns segundos, para que admirasse sua boca em torno de si e seus olhos emocionados. Poucos segundos e então desapareceu outra vez.

       Joan queria lhe dar prazer e mostrar-lhe que as diferenças não lhe diziam nada. Gostava de seu corpo, de sua essência, de sua personalidade. Nunca antes foi atraída pelo sexo ou pelos machos elfos. Nunca pensou nisso, mesmo quando sabia da inerência do padecimento das asas e do cio. Sempre foi um tanto alienada em relação a namoros. O assunto mais próximo a ela nessa área era o constante interesse de Tubã por Eleonora e as brincadeiras e implicâncias que isso trazia.

       Ousada, manteve o ritmo do carrinho, drenando sua rigidez e causando-lhe espasmos incontroláveis de prazer. Sentia as mãos de Rowell tentando acaricia-la, e precisava guia-lo, por isso se revelou outra vez e levantou. Não porque não quisesse continuar tocando-o, mas porque estava ansiosa por estar unida a ele.

       Depois da primeira vez, ela vinha sentindo a vontade acumular e o desejo culminar em um atrevimento incomum. Rowell lhe despertava a sexualidade e ela estava bem contente com isso. Ao andar pelo quarto, nua, exibida diante dele. Sua intenção era chegar à cama e tentar uma clássica sedução elegante. Mas Rowell a pegou antes disso. Joan quase gritou, entre a surpresa e o frisson, ao ser agarrada por trás e prensada contra o corpo do seu amante. Ele devorava nua nuca com beijos e suas mãos procuravam suas curvas, longe de ser gentil. E não era isso que Joan desejava? Despertar-lhe o descontrole e dedicação de seu amante?

       -Rowell...- ela gemeu quando foi levada para a cama, e colocada de joelhos no colchão.

       Rowell não respondeu, tão pouco queria conversar. Saudade misturada a desespero de quem temeu perder para sempre a única mulher que amou. Joan na fazia parte do seu mundo e suas amigas haviam deixado isso bastante claro para ele. Por longos dias ele temeu que ela dissesse a qualquer momento não querer voltar com ele. Que preferia ficar em um reino mágico e lindo, e deixar a vida humana e feia para trás. Tomado por esse desespero, Rowell não completou o ato, como ela esperava. Pelo contrário, puxou-a de frente e abraçou-a:

       -Me diga por que voltou comigo. Porque não ficou com suas amigas, Joan?

       -Porque eu te amo - ela respondeu, adorando o modo brusco, o modo como ele parecia precisar dessa informação. - Porque você quis que eu viesse com você?

       -Pela mesma razão. Eu te amo como nunca amei outra mulher. - ele disse sério.

       -Não, o termo correto é fêmea. Sou fêmea, uma fada. Não sou mulher, uma humana. Acostume-se a isso, Rowell.

       -E você? Vai se acostumar com isso? - ele quis saber, preocupado.

       -Eu estou bastante confortável com isso, desde o dia em que ouvi sua voz através do vão da porta do seu quarto... - ela disse maliciosa, salpicando beijos no queixo e bochecha do humano. Então, ousada afastou-se e girou, engatinhando sobre a cama, para que ele visse todas as suas formas e a desejasse ainda mais.

       Olhou para trás, e sorriu pedindo que ele viesse.

       Assim que Rowell subiu na cama, e agarrou seus francos, consumando a união, Joan desapareceu do seu olhar outra vez.

       Ele urrou de prazer, o erotismo potencializado a níveis inexplicáveis.

       Não importava raça, ou costumes. Eram apaixonados e as diferenças se tornavam qualidades quando nos braços um do outro. Com o tempo, superariam tudo, e tornariam a vida juntos o caminho certo, uma única história.

       Sem rótulos. Sem grilhões, apenas liberdade e amor.

 

       A jovem andava pela floresta com passos delicados e sem medo. Ela murmurava uma antiga canção de ninar enquanto colia folhas e pétalas de flores amarelas, com poderes curativos.  Seu nome era Nora.

       Era filha do Duque Mac Willian e da Duquesa Joan. Irmã do futuro Duque Tommy, atualmente ocupado com suas lutas a mando do Rei. De Alice, a Condessa de Marcellovos, casada com o conde, e feliz em viver em seu próprio condado, com a bela família que criou.

       Irmã também de Marmom, o macho lagarto que não possuía seu sangue, e sim o seu coração. Ela sorria, enquanto fazia seu trabalho e sentia em suas costas os olhos do macho.

       Ela fingia não saber que era obervada de algum lugar sobre a copa das árvores. Que Marmom não a seguira até ali, protetor e desejoso de um momento a sós com ela. Sua mãe, Joan aprovava o sentimento entre ambos, mas seu pai Rowell, ainda mantinha reservas sobre dois irmãs crescidos juntos, tornarem-se enamorados.

       A mãe biológica de Marmom, Helana vinha tentando convencer o filho a casar-se com alguma das fêmeas que ele emprenhou no último verão. Era preciso gerar crias de sangue nobre em sua raça, e depois de encontrarem uma colônia vizinha de criaturas da mesma raça, havia uma grande quantidade de jovens fêmeas de lagarto a escolher. Sorte dos dois, que Tubã, o marido de Helana, apoiasse o enteado em seu desejo de escolher sua fêmea por amor e não raça.

       Marmom era filho de criação do duque. Apenas isso. Ela tinha o sangue do duque. Eles podiam se envolver.

       De qualquer modo nada poderia acontecer até o dia fatídico do padecimento de suas asas.

       O momento aproximava-se. Ela sentia na carne a punção fada que havia dentro de si desejando sair. Aos seis anos, sua tia Eleonora descobrira que ela manifestava um principio de dom, que sugeriria que sua metade fada dominaria sua metade humana.

       Passado tantos anos, seu corpo alcançava o amadurecimento e ela começava a sentir os primeiros efeitos do padecimento das asas. Sobretudo a aproximação do cio. Nora não era boba. Era por isso que Marmom a seguia para todo lado. Além de atraído pelo seu cheiro de fêmea também temia que outro elfo, ou humano, a alcançasse nesse período. Ciúmes. Ela gostava disso.

       Terminando seu trabalho, ela olhou pra cima, e encontrou os olhos amarelados grandes e com íris escura, mirando-a de entre os galhos das árvores. Quando Nora nasceu, Marmom não vivia mais no castelo, vivia com sua progenitora, entre os de sua raça. Na ocasião o menino possuía quase cinco anos, contados em idade humana.

       Mas ele sempre os visitava por longos períodos. Eram irmãos, antes mesmo de saberem o que era ser macho e fêmea. Talvez por isso o amor houvesse nascido com tanta naturalidade.

       Sorrindo para Marmom, ela lutou para não corar e começou a andar, avisando-o sem palavras que planejava voltar para o castelo.

       Nora possuía dois irmãos mais jovens, Nito e Faul, mas eles eram bobos demais para entenderem de cio. Eles haviam puxado o sangue humano de seu pai, e isso fazia com que se interessassem mais por luta do que por assuntos mágicos. Se bem que aos doze anos, qualquer menino pensa mais em luta do que em situações enfrentadas por fêmeas, sejam elas humanas ou fadas.

       Seus passos eram rápidos e ela arfou de antecipação quando ouviu passos na grama em torno de si. Marmom haviam optado pelo chão e andava logo atrás dela. Sempre vestido com calça, camisa de linho e colete de couro, ele preferia pés descalços, e mantinha os cabelos longos, na cintura, trançados com tiras de couro. Na face às marcas tatuadas de seu povo, e o verde quase escuro de sua pele, pois ele amadureceu e essa coloração escurecida era típica dos machos de lagarto.

       Nora olhou para trás, e apressou o passo. Não tinha medo dele, pelo contrário. Temia o sentimento que vinha nutrindo dentro de seu coração e que parecia inflar e tomar forma agora que o cio ditava seus sentidos e a razão desaparecia. Apressou o andar, e a cesta de palha em seu braço balançava perigosamente perto de cair e ser esquecida.

       -Não! - ela gritou, rindo e desmentindo sua negativa vergonhosamente quando foi alcançada e trazida para junto do corpo do macho de lagarto. - Não, Marmom... Papai não permitiu ainda. Não! - ela ria agora, e ele fazia o mesmo, cheirando seu pescoço.

       Sim, ele farejava seu cheiro de cio e ela queria que ele sentisse esse cheiro. Era tudo muito animal.

       -Você não quer? - ele perguntou com aquele brilho de desejo nos olhos que não poderia jamais ignorar.

       Sua resposta teria sido um sim gritado e gemido se não fossem atrapalhados por um voo rasante que os separou. Era sua tia Alma. Os dois foram apartados e ela a empurrou e puxou pelo braço, com um brado de raiva que espantou Marmom.

       Nem adiantava argumentar com Alma e pedir sigilo do que vira estava fora de questão. Ela foi praticamente arrastada par ao castelo.

       -Estes humanos, parecem que não entendem o que é o cio - lamentou Eleonora quando as viu.

       Mais uma vez Nora estava enfurnada no quarto. Entendia a razão, mas não aceitava muito bem isso.

       -Não sejamos severas com Nora. - disse Joan, aproximando-se da filha e lhe fazendo um carinho no rosto - Ela não sabe o que a espera durante o cio. E está apaixonada. Não está, querida?

       -Eu só não quero ficar aqui dentro como uma prisioneira. - ela reclamou, sentando na beira da cama.

       -E você quer cruzar com Marmom? - Driana perguntou andando pelo quarto, com a mesma sobriedade petulante de sempre.

       -Que pergunta, Driana! Não envergonhe Nora! - reclamou Eleonora.

      -Não é vergonha que o sinto. É a verdade. Eu quero cruzar com Marmom. E quero falar com o pai, ele precisa aceitar. Eu sou fada. Não humana. Ele precisa entender.

       -Seu pai entende. - Joan esclareceu - Ele apenas pensa sobre você e Marmom... E tem ciúmes dos dois.

       Os anos haviam passado, mas não modificado a delicadeza e beleza etérea de Joan. Mesmo com as roupas de humanos, ela era linda como um arco íris. Nora era basicamente uma cópia fiel de sua mãe. Seus irmãos eram parecidos com Rowell. E nesse momento deveriam estar correndo atrás dele, seguindo o pai como sombras.

       -Eu não quero outro - disse Nora com convicção na voz.

       Decisão de fêmea que escolheu seu macho. Não havia a menos possibilidade de negociação.

       -Bem, os sonhos de Rowell sobre ajuda-la a passar pelo cio sem consumação estão descartados - disse Joan sorrindo para a filha - então, rainha, o que eu faço? Como agradar minha raça e ainda por cima, atenuar o gênio de Rowell sobre a castidade da filha?

       -Case os dois antes do nascimento das asas. Uniremos fadas e lagartos. Depois, é da conta de Rowell lidar com seus próprios sentimentos - disse Eleonora.

       O tempo lhe fizera bem.  Joan sorriu para a amiga e acenou com a cabeça concordando. Não era uma ordem de uma rainha, mas era bom fingir que era. Assim Rowell não reclamaria tanto.

       -Passará toda sua vida ao lado desse macho. É essa sua escolha, Nora? - perguntou Alma, do canto do quarto.

       -E não tem sido assim minha vida toda, tia? - perguntou Nora. - Eu não sei viver sem ele.

       -Como argumentar com os apelos do coração? - quis saber Driana e era uma pergunta sem resposta.

       As quatro se olharam e sorriram. Havia sido assim com elas, e se repetia com seus filhos e filhas.

       Unidas pelo acontecimento do nascimento das asas de Nora, as quatro estavam juntas, no castelo dos humanos. Crias e mais crias, avolumavam-se pelo castelo, e naquele momento era Alma quem espiava pela janela, fingindo não estar preocupada por onde andariam os seus. Eram homens feitos, mas ela não confiava neles quando relacionado a fêmeas, mesmo que fossem humanas. Não queria saber de aturar uma humana vivendo entre os seus. Bastava lidar com Rowell e sua gente. Alma era assim, e nada mudaria seu modo de pensar e sentir.

       -É melhor tornar esse casamento algo simplório. Não chamar muita atenção. E precisa ser rápido - sugeriu Driana sempre inteligente. - Acheron gostaria de ver isso. - disse pesarosa e com saudades.

       Tanto Solon quando Acheron não puderam estar reunidos para aquele momento. Acheron era rei. E Solon líder de um povo. Muita responsabilidade. Egan estava ocupado com o trono, e as fadas estavam sozinhas, desfrutando de um momento entre elas. Assuntos de fêmeas, como diria Egan.

      Estava na face das três fadas que sentiam saudades de seus escolhidos, e no caso de Driana era ainda pior, pois apenas sua filha a acompanhava. Os rapazes haviam ficado com o pai.

       Era uma visita curta. Apenas algumas semanas para atenuar a saudade. Uma vez a ano, revezavam-se sobre onde estariam. Mas passavam bastante tempo juntas, para recordar os velhos tempos e substituir a saudade mortificante uma da outra, pelo sentimento de reencontro e amor incondicional que uniu fêmeas sem parentesco e as tornaram irmãs.

       Nora ainda reclamava de ter sido interrompida em seu encontro romântico, quando Alma reclamou:

       -Ele ficará ali o dia todo? - ela olhava pela janela e as três fadas aproximaram-se para ver Marmom na parede. Ele era um lagarto, subir paredes era sua especialidade.

       -Bem, parece que precisamos vigiar essa janela - disse Joan sorrindo - Eu vou falar com Rowell - ela não conseguia conter um sorriso - ver se conseguimos trazer Helana e Tubã a tempo de realizar um casamento. E quando eu digo 'a tempo', refiro-me antes que ele invada esse quarto. - apontou para a janela, e era um aviso para Nora.

       O sorriso da filha era malicioso. Nora suspirava e criava ilusões sobre o cio. Sob o olhar exigente de Driana, que falava sem parar sobre a magnitude de uma cruza entre fada e lagarto, e que a cria resultante seria deveras única, sob o olhar repreensivo de Alma, que mirava o macho, com olhar assassino, pois se ele ousasse avançar mais, teria uma desagradável surpresa. E principalmente sob os cuidado de Eleonora, que bem mais afável ao romantismo juvenil preferia separar uma roupa bonita para que a fada usasse mais tarde, de preferenciais em suas bobas. E foi sob o olhar irritado de Rowell, que Joan falou sobre a situação de Nora e Marmom.

       -Não - ele disse sem pestanejar - Um casamento mágico? Não mesmo. Minha filha será entregue a um marido, como manda as leis do meu povo - ele disse sério, enquanto fechava o livro de registro de contas do castelo, pois era um duque atento aos detalhes.

       -Escute, Rowell - Joan ajoelhou-se no tapete ao lado da cadeira e pousou as mãos em suas coxas, para acalmar seu mal juízo a cerca dos jovens - Nora é fada. Não é humana apenas. O cio vai acontecer, e ela vai fugir para que isso aconteça. Você prefere sua filha na floresta, ou prefere sua filha aqui, casada com alguém que conhecemos e também amamos? Eleonora tem poder para uni-los. Mais tarde... Você pode realizar uma cerimônia da sua religião. Por hora, é o melhor a fazer pelos dois.

       -E se eles descobrirem que foi uma loucura e que não se amam? - ele perguntou sério.

       -Eu lembro que perguntei a mesma coisa quando você resolveu aceitar que Alice se casasse com um conde que ela nunca havia visto na vida! E você disse que era a coisa mais normal do mundo - lembrou-o.

       -E é. Eles são felizes. Você não leu a última carta de Alice? - ele perguntou desconversando.

      -Eu li. E você tem prestado atenção devida a Nora? Ela vai sofrer, Rowell. Se não consumar o cio, ela vai ter dores horríveis. É isso que você quer? - apelou para chantagem emocional.

       -Não - ele disse, revoltado - Eu só não quero minha filha casando tão cedo.

       -Cedo? Alice casou com dezessete anos! E você disse que ela estava ficando velha para o matrimonio! Nora tem vinte anos! Não seja hipócrita!

       -Sim, mas Alice é minha questão. Nora é sua questão. As regras de um povo não se aplicam a outro. - ele barganhou seu entendimento.

       -Aceite o casamento, Rowell. Pense pelo lado bom: finalmente Marmom será seu filho de verdade, e parte da sua família. O destino os uniu. E logo você quer separa-los?

       É claro que esse argumento mexia com o humano. Rowell curvou-se para beija-la na testa então segurou seu queixo, dizendo:

       -Como sempre, você é a voz da esperança. Eu aceito as bodas.

       -É claro que aceita. Você é o melhor homem do mundo - ela elogiou, e o beijou.

       Infelizmente ela não podia se deixar render e ficar em seus braços. Precisou quebrar o delicioso beijo e levantar. Era melhor correr antes que o pior acontecesse, e sem o consentimento de Rowell. Sorrindo, ela correu do quarto.

       Rowell apenas sorriu. Era duquesa e elegante quando precisava ser. Mas era totalmente fada e alegre, e às vezes, esquecia-se de suas obrigações e voltava a ser a fadinha que ele conhecera há vinte anos atrás e que mudara sua vida para melhor. Rowell tornou a escrever em seu livro de contas, e esperou pelo som de passos e risos que viriam quando as quatro fadas voltassem da torre, onde ficava o quarto de Nora.

       Joan entrou no quarto, pronta para dar a boa notícia.

       -Tarde demais, Joan - disse Eleonora - Nora fugiu. - apontou a janela.

       -Fugiu? Como ela conseguiu fugir? - perguntou correndo até a janela, para tentar ver algum rastro da filha.

       -Foi um segundo de distração. Estávamos conversando sobre a roupa que ela usaria para as bodas, quando ouvimos um barulho e... Pronto! Ela havia fugido com Marmom pela janela.

       -Eu não acredito! Rowell vai ficar furioso e com razão! - ela ficou parada diante da ampla janela. Ao seu lado, suas melhores amigas. Então, a indignação para com o comportamento da filha foi embora e ela sorriu - Acha que os dois estão na floresta?

       -É claro que não. Marmom é esperto. Vai levar Nora para longe do risco e da concorrência. O cheiro de um elfo, nesse momento, poderia acabar com as chances dele de cruzar. - foi Driana quem se lembrou disso - Ele a levará para algum lugar secreto e seguro, e provavelmente os dois voltaram assustadíssimos ao descobrirem que as asas nascem antes do ápice do cio. Ele é macho. Não saberá lidar com esse momento. Prepare a comida e a festa, eles estarão de volta ao sinal do primeiro filamento de asa que esteja nascendo!

       Era uma verdade crua. Mas era assim mesmo.

       -Quanto romantismo, Driana - disse Eleonora sorrindo.

       As quatro riram, pois era exatamente isso que aconteceria. Então o sorriso abrandou e Joan olhou para o horizonte, antes de perguntar:

       -Alguma de vocês ainda lembra como era não ser livre?

       Pergunta profunda e forte.

       -Às vezes eu tenho certeza que ainda estou no Ministério do Rei, prisioneira de um daqueles quartos imundos. Daí eu acordo e vejo Solon ao meu lado, e sei que o passado ficou para trás. - disse Alma, pensativa.

       -Eu penso como teria sido se não houvéssemos sido acusadas injustamente de assassinato. Como teria sido? - Eleonora divagou.

       -Provavelmente Tubã arrumaria alguma forma estranha de nos ajudar. Mas não seria igual. Não seriamos tão felizes.  - admitiu - E falando em felicidade, acha que eles sentem nossa ausência? - perguntava para Alma e Driana.

       -Os elfos? É claro que sim. Principalmente os meninos - Driana confidenciou.

       -Meninos? Nossas crias são adultas, Driana - disse Joan, lembrando-a disso  - O que me faz pensar que em breve será a filha de Eleonora, a ter suas asas. Será nesse momento em que nos reencontraremos?

       -Não. Sandrine terá suas asas ano que vem, isso é muito tempo. Acho que Egan vai convencer Edgar, meu primogênito, a casar-se. Ele quer que seja um rei responsável, e que tenha uma família para apoia-lo antes de se tornar um Guardião. Pobre Egan, está na eminência do rechaço da armadura. É uma pena. Mas ele é rei, e terá no que pensar. - tentou se consolar disso.

       -Acheron sente o mesmo. - divagou Driana - Eu até pensei em ter mais uma cria, para ocupar os pensamentos dele nesse perigoso de transição. Mas não sei. Fico na dúvida se Acheron vale esse sacrifício. - era uma brincadeira suave.

       -Solon está falando muito nisso. Ter mais crias. Agora penso se não é uma crise por causa da armadura - disse Alma surpresa.

       -Bem, pelo visto não somos tão livres assim - disse Joan sorrindo - Estamos incondicionalmente presas a esses machos que roubaram nossos corações.

       -E quer saber? - disse Eleonora, tornando olhar para o horizonte, saudosa - Eu não me importo nem um pouco em ser prisioneira do amor de Egan.

       Um suspiro românico e apaixonado e as fadas se abraçaram, olhando o horizonte. Lá fora, a floresta majestosa parecia saber dos segredos que mantém o mundo erguido e vivo. E dentro de cada fada, cada coração parecia saber dos segredos que mantém as criaturas vivas e pulsantes.

       E esse mesmo segredo, unia dos seres vivos de modo inexplicável.

       E esse segredo nada mais era do que a liberdade...

 

                  Segundo Final - Alternativo

 

        Fazia muitos anos que tudo aconteceu. Eleonora presenciava o casamento de seus filhos, e dos filhos de suas amigas. Vinte anos passados, muitos sonhos realizados. Muita felicidade compartilhada com seus elfos escolhidos, e no caso de Joan, seu humano escolhido.

       Muita saudade e muitos reencontros felizes. Valia a pena viverem separadas, pois cada reencontro era regado por alegrias imensuráveis. A vida separou-as de modo agradável e suave. Eram felizes em seus lares e, sobretudo, amadas.

       Quem poderia dizer que esse belo destino pertenceria a uma fada condenada a clausura?

       Com um aperto no coração, Eleonora olhou para o horizonte, muito além do abismo, onde um mundo escondia-se em imensidão escura e misteriosa. O casamento da filha de Joan com o humano Rowell havia chegado ao fim, e a festa acabado.

       Havia sido preciso procurar pelos fugitivos, e levá-los para o castelo de Eleonora, a tempo do nascimento das asas de Nora.

       Era ali, naquele recanto que ela queria estar. Sozinha para pensar. Ou nem tão sozinha, visto que ouviu os passos de suas amigas e não precisou olhar para elas para saber quem era. O cheiro, a presença, o simples ato de respirar... Eram unidas de um modo que jamais alguém poderia entender.

       União nascida do medo e do desespero.

       -Faz vinte anos hoje - ela disse com voz mansa.

       Não houve resposta. Ela olhou para Alma, Driana, e Joan. Elas sabiam do que se referia.

       Driana lembrava com clareza daquela tarde enfadonha, quando empoeirada da cabeça aos pés ela se escondia das carcereiras, com livros roubados do quarto de Miquelina, rezando para não ser pega.

       Ela queria encontrar alguma brecha na lei para tirar Eleonora da masmorra, pois estava injustamente pagando pelo crime de Tubã. Ele roubara a tiara da rainha e não era merecido que Eleonora pagasse por isso!

       "Foi quando ouviu Miquelina queixar-se com Reina, que não deveria estar ali, devido ao avançado da hora:

       -Eu não posso fazer nada pela órfã. A culpa é de seu filho adotivo. Resolva-se com ele - reclamava Miquelina.

       -Escute, eu não quero que fiquem reparando em Eleonora. Ela é parecida demais com Santha. Será que não vê? Ela só pode ser a filha perdida, renegada, e abandonada de Santha! Eu tenho esperanças de tirar Lora daqui antes que suas asas nasçam. Antes que Santha descubra. Tenho medo do que ela fará contra Eleonora. Do que ela fará para defender seu trono e sei reinado!

       -Eu não posso fazer nada. Não adianta pedir ajuda! - Miquelina, simplesmente negou. As duas andavam rapidamente e tendo ouvido o que não devia, Driana havia perdido completamente o interesse nos livros e as leis.

       Quando voltou ao quarto, havia contado para Alma e Joan. E dois dias mais tarde, para Eleonora quando ela foi trazida de volta, livre das punições pelo suposto roubo da coroa da Rainha Santha.

       Os dias passaram, mas a indignação não.

       -Se ela é minha mãe... Eu sou sua primogênita! Eu terei direito ao trono! E olhe onde eu estou? - Eleonora olhou em torno de si com amargura - Sendo presa por tocar na coroa que me pertence por direito de nascimento?

       Sua pergunta pesou entre elas. Era mais um dia de sofrimento. Joan estava doente outra vez, febril. Era o ar pesado e fétido dos corredores mofados. Fazia mal aos seus pulmões. Alma estava em um canto, tentando não pensar muito nessa revelação. Saber que é relegada ao abandonado já era suficientemente triste. Não era preciso saber que uma rainha estava presa por causa do egoísmo de outra criatura, ainda mais sua progenitora!

       Driana, por sua vez, quase abriu a boca para falar, mas se arrependeu.

       -Eu... - acabou por falar - Eu não consigo controlar minha mente, às vezes, por mais que eu lute, as ideias vêm à minha mente e me tomam. E eu tenho medo de dizer em voz alta. Eu tenho medo de compartilhar o que pensei. - ela admitiu.

       -Por quê? - perguntou Joan, acamada, mas prestando atenção na conversa.

       -Porque uma vez instituída, a ideia não pode ser retirada, mesmo não executada, ela ficará a vida toda permeando a mente e tomando espaço. Um dia, ela se torna maior do que a mente. Eu não quero fazer isso com nenhuma de vocês.

       -Eu não reclamaria de ter em que pensar. - disse Alma - qualquer coisa é melhor do que pensar na Clausura.

       Como se Driana não estivesse suficientemente tentada a falar.

       -Se Santha abandonou Eleonora para a morte... Ela faria qualquer coisa para esconder seu nascimento. Não é verdade?

       Todas concordaram.

       -E quem é seu capacho? Seu pau mandado? - ela conspirou, aliviando o fardo de sua privilegiada mente administrar tudo isso sozinha - Lucius. Alma, você pode contar a ele, e fazer esquecer que você disse? Você pode engana-lo. Você pode hipnotiza-lo com sua voz. Ele colocaria tanto medo em Santha que... Ela precisaria achar um modo de livrar-se de Eleonora.

       -Oh, nossa, que grande amiga, você é! Além de enclausurada, você quer que eu seja perseguida e morta, também? - Eleonora indignou-se.

       -De modo algum! Mas... - ela levantou e começou a andar pelo quarto. - E se fossemos até o quarto do Rei? Joan, você pode nos levar até lá, não é? Ninguém nos notaria, não com o dom de Joan se manifestando. Não é tão forte, mas ela conseguiria nos levar em um curto percurso, até o quarto do rei. Não conseguiria?

       Joan apenas maneou a cabeça, ouvindo atentamente.

       -E o que faríamos no quarto do Rei? - perguntou Alma, sempre raivosa.

       -Entrar. Alma, você hipnotizaria Santha. Ela estaria tão desesperada por livrar-se de Eleonora, que faria isso. Ela mataria o rei e acusaria Eleonora. Não, não, ela não faria isso. Ela ama o Rei - disse Driana, angustiada com o derramamento de ideias em sua mente - Ela seria hipnotizada, copularia com o rei para espalhar seu cheiro de fêmea sobre ele, e se ela não quisesse mata-lo, nem mesmo hipnotizada, uma de nós faria. - havia frenesi em sua voz. - Com o rei morto, Santha estaria frágil. Lucius nem precisa ser hipnotizado, ele colocará suas asas de fora e tentará dominar o reino! Eu tenho certeza, ele iria ordenar uma caçada. Viraríamos mártir. Reina nunca nos deixaria ser presas, contaríamos com ajuda dela. Alguns meses e seriamos mártires. Nem precisa dizer que Santha e Lucius juntos, disputariam o trono. E uma vez, nascidas às asas de Lora... Santha seria acusada pelo crime. Incriminados, os dois seriam banidos. E Eleonora seria...  A nova rainha. E tudo teria um fim. O Ministério do Rei. A clausura. O desespero. O medo de todas essas fadas. De todas nós. - ela parou de falar, sem fôlego.

       A ideia havia sido extirpada de sua mente e agora era real. Por isso, Driana temia tanto sua capacidade de elaborar.

       O silêncio foi pesado. Como uma flor tentando lutar contra o peso de uma rocha. Não havia como escapar da devastação total. Agora elas permaneceriam o restante de suas vidas enclausuradas, sabendo que além de rainha, Eleonora também poderia ser o alicerce para uma fuga, e possível liberdade total.

       Pior que a prisão, era o infortúnio de ver sua única chance de ser livre escapar de suas mãos!

       -Santha atentou contra a vida de sua própria cria em prol da liberdade. Será que é isso? A liberdade vale esse crime? - perguntou Eleonora, desconcertada, indo sentar no chão, perto da cama de Joan.

      Sua amiga, sempre tão frágil estendeu uma das mãos e tocou seu ombro, em um meigo afago, que desejava lhe dar força. Mesmo que Joan não pudesse ser forte, ela desejava apoiar Eleonora. Era seu modo de amar. Incondicional.

       -Eu faço.

       A voz rouca e fria, veio da cama de Alma, onde ela estava sentada, encolhida contra a parede, o rosto apoiado nas pernas.

       -O que você faz? - perguntou Eleonora.

       -Se Santha não quiser fazer... Eu mato o rei. Ele não vale muita coisa mesmo. Olha o que faz com os órfãos. Machos escravizados, fêmeas prisioneiras. Eu faço. Posso até desfrutar disso.

       -Ninguém disse que executaremos essa loucura - disse Eleonora, surpresa - é apenas mais uma das ideias estapafúrdias de Driana!

       -Ah, qual é? Podemos fazer isso hoje, com a raiva pela sua prisão, como motivação, ou daqui a um ano, dois, ou dez., mas agora que foi dito... Sabemos que faremos.  - ela foi sincera. - Eu não vou morrer na clausura. Não vou.

       Sim, nenhuma delas faria isso.

       -Podemos fazer isso - disse Joan de sua cama - Eu sei que posso tentar.

       -Isso faria de nós... Assassinas - disse Driana.

       -Ou sobreviventes. - disse Alma. - Elfos começam guerras por bem menos do que isso. Com motivações bem menos importantes. Eu faço. Se Santha não fizer, o que eu duvido, aquela lá é uma doida varrida completa... Mas se ela não fizer. Eu faço.

       Novamente o silêncio.

       -Precisaríamos voltar para o quarto. Deitar e fingir que nada aconteceu. Porque se Reina vier atrás de nós, para nos ajudar a fugir, como imagino que ela faria... Precisamos estar aqui, inocentes de tudo.

       -E se nos pegarem? - perguntou Eleonora. - E se nos pegarem? Nossos dons não são completos ainda, não poderíamos lutar contra guardiões.

       -Seremos mortas. Mas veja pelo lado bom: não há clausura na morte. - disse Alma, como sempre amargurada.

       -E como começaríamos? - Joan perguntou, sentando e olhando para Alma. - Quem começa?

       -Nós vamos mesmo fazer isso? - perguntou Eleonora chocada.

       -A liberdade. Ela vale qualquer preço? - perguntou Driana.

       -Eu não sei - respondeu Alma - Eu só sei que não quero morrer na clausura. Não quero vir uma vida prisioneira, sem ter comedido crime algum. Eu não quero viver assim. Não quero. Não aguento mais. Não aguento.

       Era raro ver Alma esmorecer. Mas ela refletia na face à loucura interna de todas elas. E foi nesse momento, que o elo foi selado entre elas.

       -Esse é momento. Joan, é com você agora.

       Sim, e foi com Joan que tudo começou, pensou Eleonora, recordando. Um dia mais tarde, depois de tudo elaborado e refletido, Joan levou-as em segurança, camufladas, pelos corredores, em direção da alcova do rei. E foi assim que entraram no quarto e Alma sussurrou no ouvido da rainha, adormecida. Para que ela acordasse e não fizesse barulho.

       Sussurrou no ouvido do rei para que ficasse imóvel e não visse o perigo. Foi Eleonora quem se deitou ao lado do rei espalhou seu cheiro sobre ele, mesmo que não copulassem. Foi necessário que Santha realizasse o ato, para confundir os aromas, de uma fêmea e de outra, para soerguer dúvida no futuro. E quando a copula acabou, foi de mãos dadas que as três falas aproximaram-se de Santha e Alma lhe sussurrou no ouvido o que deveria fazer.

       Joan escondeu o rosto no peito de Alma enquanto era abraçada. Ela não queria ver. Eleonora assistiu, assim como Driana e Alma. Foi muito rápido. Esperaram alguns minutos, para ter certeza do ato realizado, e saíram do mesmo modo que entraram, após uma ordem no ouvido da rainha para que despertasse em alguns minutos e se conscientizasse de ter executado o crime.

       Elas correram pelos corredores, e voltaram aos seus quartos, sem serem vistas. 

       -E agora? - perguntou Joan tremendo da cabeça aos pés.

       -A inocência total cobra seu preço - disse Driana, assustada, segurando Joan perto de si para que ela não tivesse um ataque de nervos ou coisa parecida.  - Alma, por favor, nos faça inocente outra vez. Inclusive você mesma. Achei que conseguiríamos sem isso, mas... Não somos assim. Precisamos ser inocentes outra vez, por favor, faça isso. Por vinte anos.  Então, um dia para recordar. Faça! Agora!

       Sua ordem foi atendida. As quatro deram as mãos e fecharam os olhos enquanto Alma, em voz alta alma disse:

       -Essa noite nunca aconteceu. A conversa que tivemos nunca aconteceu. Estávamos dormindo quando o rei foi morto. Em exatos vinte anos, a lembrança voltará em nossa mente. Um dia para recordar. Então, novamente o esquecimento. - hipnotizou-as e a si mesma.

       Quando Eleonora voltou a abrir os olhos, Reina a despertava em pânico, falando sobre assassinato, rei, rainha e uma inesperada fuga."

       E foi desse modo que elas se tornaram caça para os guardiões. Foi desse modo que tudo aconteceu. Não foi crueldade. Foi sobrevivência.

       -Mais algumas horas e esqueceremos outra vez - alertou Driana, as quatro diante do penhasco, mãos na murada do castelo, olhando para a imensidão do abismo - Eu vejo agora, que não me arrependo.

       -Tão pouco eu me arrependo - disse Alma convicta.

       -Tenho pena de Isac. Tudo poderia ter sido diferente - disse Joan.

       -Pena não é arrependimento - alertou Driana.

       Sim, pena não era arrependimento. Lado a lado, elas esperaram o dia acabar, as horas passarem e o esquecimento retornar.

       E quando isso aconteceu, a vida tornou a fazer sentido e seu curso a seguir como deveria te sido desde o dia do nascimento de Eleonora.

 

                                                                                M a r j a  

 

                      

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