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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS FEITICEIRAS DE SALEM / Anne e Serge Golon
AS FEITICEIRAS DE SALEM / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Fundada por um grupo de peregrinos puritanos ingleses em 1626, a pequena cidade portuária de Salem, situada no nordeste do Estado de Massachusetts, tornou-se famosa quando, em 1692, ali ocorreu uma série de julgamentos por feitiçaria, que ficaram conhecidos como a "caça às bruxas".

Um dos magistrados responsáveis pela condenação retratou-se cinco anos após o julgamento, o que rçâo impediu que dezenove pessoas fossem enforcadas.

A feitiçaria (e a caça à,s bruxas) sempre existiu na maioria das culturas. As feiticeiras foram culpadas por doenças e desgraças, além de acusadas de obterem seu poder maligno1 do Demónio, em rituais obscenos. No século XIV, a Igreja Católica iniciou violenta perseguição aos feiticeiros (sobretudo mulheres), e até o século XVII milhares de inocentes foram torturados e queimados em fogueiras. No Novo Mundo, entre os pioneiros educados pela Reforma, o medo às bruxas tornou-se histérico, resultando em episódios como o de Salem.

Nessa cidade, seguindo o marido, o Conde de Peyrac, Angélica vive momentos dramáticos entre as famosas feiticeiras...

"Vi-me no instante da morte", confessa Angélica.

"E me achei bela..."

Estendida seminua no grande leito entre brancos lençóis, Angélica suspeitou que finalmente chegara a hora de sua morte. Em meio ao delírio, reviu em imagens os acontecimentos cruciais de sua existência e, segundo diziam, isso ocorria no instante fatal.

O luar de verão penetrava pela janela entreaberta, que trazia até ela o ruído ritmado da ressaca e o chamado dos lobos-marinhos. Estava em Salem, cidadezinha da América cujo nome quer dizer "paz" e cujos habitantes jamais viviam em paz. Por um momento ela poderia jurar que se encontrava em Argel, à procura de seu amor desaparecido: Joffrey! Joffrey!

Levantando os olhos numa última e louca súplica aos céus, avistou os anjos. Viu-os nitidamente, franqueando a soleira do quarto. Tinham tamanhos diferentes, e a mesma beleza irreal, de uma juventude eterna. Mas estavam vestidos de preto, e traziam no peito a infamante marca vermelha!

Eram os Anjos da Morte.

Vinham buscá-la.

Um ano após o perdão de Luís XIV, que lhes permitiu reintegrar-se à sociedade francesa, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, estavam em visita a Salem, no litoral da Nova Inglaterra. A filha pequena, Honorina, os acompanhava, enquanto os dois filhos mais velhos, Florimond e Cantor, estavam na corte de Versalhes, cuidando das propriedades restituídas com o indulto e representando a família junto ao Rei-Sol. Mesmo nos últimos meses de gravidez, Angélica fazia questão de acompanhar o marido, cumprindo uma promessa secreta de nunca mais se separem.

 

 

 

 

O testemunho de um terrível massacre

Angélica olhou com compaixão para o adolescente que um guarda usando na cabeça uma espécie de bacia de barbeiro em aço, o capacete inglês, introduzia sem deferência na sala do Conselho, empurrando-o com a haste de madeira de sua alabarda.

Podia compreender a emoção desse jovem rendeiro das fronteiras, arrancado a suas lavouras e carneiros e projetado diante de um areópago de graves doutores vestidos de preto com peitilhos brancos, reunidos ao redor de uma mesa maciça, sob o o forro de uma sala mais escura ainda que suas vestes. Teria de fazer ali a narrativa do horrível massacre perpetrado lá em cima, ao pé das verdes montanhas, durante o qual perdera todos os seus.

Seus olhos piscos, não vendo de início senão essas faces muito brancas e severas cujos olhares estavam fixos nele, dirigiram-se a esse único rosto de mulher, que tinha uma expressão de bondade.

E, como percebesse também que essa grande dama muito bela dissimulava sob as dobras de um grande manto de seda os sinais de uma maternidade próxima, sentiu um nó na garganta, pois ela suscitava-lhe a lembrança de sua pobre mãe que, quase anualmente, carregava no ventre e punha no mundo uma criança. Mas essa visão e essa lembrança deram-lhe a coragem de iniciar sua narração e responder às perguntas que começavam a fazer-lhe com uma voz profunda, voluntariamente solene e lenta, como que para impressioná-lo mais. Estava pronto para dizer tudo.

- Como se chama?

- Richard Harper.

- De onde vem?

-           De Eden's Falls, no rio Annonnosuc.

Teve consciência dos olhares pesados trocados entre esses senhores de Salem. Examinavam-no, esmiuçando-o da cabeça aos pés, de sua cabeleira cor de palha eriçada, sua face queimada pelo sol, até seus pés nus, feridos pelas silvas e pedras agudas, metidos em sapatos grandes que lhe haviam emprestado. E novamente receou romper em soluços. Seus olhos baços de inglesinho prenderam-se de forma patética aos daquela mulher, a única presente, que lhe lembrava sua mãe, e após um-instante, sua perturbação dissipou-se. Um brilho claro parecia ir dos olhos da mulher para ele, e teve a impressão de que ela lhe dirigia um sorriso. Estava pronto para dar seu testemunho.

Isso durava desde a manhã.

Na véspera, Angélica e Joffrey de Peyrac, voltando de um périplo de quase dois meses ao longo das costas da Nova Inglaterra, que os levara até Nova York, ancoraram no pequeno porto de Salem.

Ali estavam de volta, numa visita de boa vizinhança e de negócios. Mas encontraram a pequena capital da colónia inglesa do Massachusetts em efervescência e, nos cais, notáveis e ministros reunidos numa sombria assembleia para os acolher.

As incursões dos franceses do Canadá e de seus aliados selvagens tinham se reiniciado, disseram-lhes, contra os estabelecimentos do norte da Nova Inglaterra.

E foi por isso que os responsáveis por esses Estados pediram a seus hóspedes, cuja visita consideravam como um sinal da ajuda do Senhor, para que assistissem ao conselho extraordinário que iria se reunir para avaliar a situação.

Na qualidade de vizinhos franceses e proprietários de estabelecimentos no Maine, que consideravam ligado ao Massachusetts, voltavam-se para o Conde de Peyrac, para pedir-lhe que lembrasse às autoridades de Quebec as promessas que lhes haviam feito, e para Angélica, por reconhecerem seu poder de deter os chefes índios; corria uma lenda de que os mais selvagens obedeciam a ela.

-          Se falam de Piksarett, chefe dos patsuiketts, fiquem sabendo que ignoro tudo a seu respeito há mais de um ano - defendeu-se ela.

- Havia franceses à testa das hordas que assaltaram as aldeias inglesas? - perguntou Joffrey. - Perceberam algum jesuíta conduzindo-os ao combate?

Era preciso ouvir as testemunhas.

Desde a abertura da sessão, na Council House de Salem, foram ouvidos os que escaparam dos massacres, que os arrendatários das colinas tinham recolhido, frequentemente feridos ou moribundos, e conduzido até a costa.

O primeiro fora um arrendatário desvairado e balbuciante, ainda sob o efeito das terríveis desgraças que o atingiram. Não tinha visto nada, nem franceses, nem jesuítas, nem selvagens, pois estava em viagem naquele dia. De sua aldeia e de sua casa reencontrara apenas cinzas e ruínas enegrecidas, seus velhos pais trespassados por flechas e escalpelados, sua mulher, seus filhos e seus criados desaparecidos, levados possivelmente como cativos lá para cima, do lado das regiões longínquas e inacessíveis do Saint-Laurent, onde os índios batizados pelos franceses, juntando ao horror de seu paganismo idólatra o de se paramentarem de cruzes e de terços papistas, os manteriam escravos, e nunca mais os reveriam.

Lágrimas escorriam pela face curtida do trabalhador, o que parecia agastar um pouco os puritanos representantes de Salem, pois interpretavam-nas como um sinal de recusa das provações enviadas pela Divina Providência. Além disso, todas essas pessoas vinham do Alto Connecticut, herdeiras dos dissidentes do Massachusetts que, periodicamente, se declaravam contrários às leis primeiras da colónia, e partiam para fundar sua própria igreja nas margens das tentadoras praias do grande rio a oeste. Mas, naturalmente, uma vez que os índios narrangasetts ou os abenakis, descendo do norte, os ameaçavam, esses libertários loucos, que achavam pesada a férula dos regentes, voltavam-se para o Massachusetts, cabendo aos habitantes de Boston e de Salem organizar expedições punitivas, como fora preciso fazer em 1637 com os pequots, que exterminavam os colonos do Connecticut, e mais recentemente, contra os narrangasetts.

Richard Harper falava, agitado como um moinho, com os olhos fixos em Angélica, cuja presença parecia insuflar-lhe forças para prosseguir até o fim.

Fez o relato, daí em diante clássico de tanto ser repetido, do despertar da família, numa manhã calma como as outras, do grupo inimigo que surgiu como um raio, devastando a cabana isolada, saqueando alguns bens: armas, ferramentas, víveres, e raptando os habitantes da casa que caíam em suas mãos para arrastá-los de camisola, descalços, atrás de si.

Havia quatro selvagens e dois franceses, afirmou.

Atrás deles, os prisioneiros, dentre os quais ele mesmo, seu pai, sua mãe, seus seis irmãos e irmãs, uma criada, andaram durante horas como uns danados. Os irmãos mais jovens, Benjamin e Be-noni, dois bebés gémeos, de alguns meses de idade, foram criados na mamadeira, pois a mãe não pudera amamentá-los.

Na primeira parada, numa clareira, os índios lhes arrancaram a cabeça; "por piedade", disseram eles, "por caridade!", pois não podiam fornecer-lhes leite durante toda essa dura viagem através da floresta e das montanhas rumo ao Canadá. "Por caridade", tentava explicar num inglês precário, para acalmá-la, um dos fidalgos franceses à mãe que urrava, louca de dor... Mas ela não queria escutar nada e urrava cada vez mais. No fim, um dos abe-nakis quebrou-lhe o crânio com seu tacape, pois seus gritos poderiam atrair no seu encalço os arrendatários ingleses de Springway, que não tardariam a perceber o rapto.

Depois, retomaram sua marcha arrastando as outras crianças, o pai aterrorizado, a jovem terrificada.

Ele, o mais velho, Richard, aproveitara-se da desordem e da balbúrdia causadas por esse triplo assassinato para se lançar no mato ali perto.

Ao ver a caravana desaparecer na outra extremidade da clareira sem que tivessem notado seu desaparecimento, não esperara mais nada e, correndo, saltando, conseguira distanciar-se de seus raptores. Andara durante vários dias e alcançara regiões habitadas. Confessava que, sob o aguilhão do terror, só pensava em fugir para o mais longe possível. Naquele momento, censurava-se por haver abandonado assim, sem sepultura cristã e à sanha dos animais carniceiros, sua pobre mãe, que revia constantemente em seus sonhos, jazendo, com o crânio despedaçado, junto a seus dois bebes decapitados...

A essa altura da narração, Angélica comprendeu que nao podia suportar mais e que precisava sair dali. Os rostos embaralhavam-se diante dela, em contrastes brancos e negros, brancos dos colarinhos, faces e barbas, negros das roupas e dos móveis, numa penumbra que a claridade do dia, dispensada pelas janelas com caixilhos com vidro pintado, mas conseguia atravessar. Emergindo do afresco em claro-escuro, a barba pontuda e o brilho do diamante que se balançava na orelha esquerda de Sir Thomas Cranmer, o representante do governador da Nova Inglaterra cujo sorriso picante mas amigável espreitava sua vertigem, e o perfil de pirata das Caraíbas, de fidalgo espanhol, de grão-senhor da Aquitânia em resumo, de seu esposo, o Conde de Peyrac, atrás do qual, de pé, o grande servidor negro Kuassi-Ba não se distinguia senão pela brancura de ágata de seus olhos e o penacho que guarnecia seu turbante, reconduziam Angélica a uma visão mais estável das coisas. Reunindo em torno de si seu amplo manto, levantou-se e saiu, abençoando a discrição dos costumes ingleses que permitiam a qualquer pessoa deixar uma assembleia sem ter de explicar-se e sem que ninguém comentasse o fato, pois indagar sobre os objetivos dessa ausência seria arriscar lançar na confusão inquiridor e inquirido.

Logo que chegou à rua, retirou o chapéu e o gorro. Seus cabelos colavam-se-lhe nas têmporas pelo suor que a inundava. Andou tão rapidamente quanto possível até a casa da Sra. Cranmer, onde tinham sido alojados. Seu mal-estar dissipou-se. Mas, quando quis estender-se na cama do grande quarto que tinham posto a sua disposição, sentiu uma dor lombar e teve a impressão, uma vez mais, de sufocar. Levantou-se então e se dirigiu para a janela. Pensava nessa nova maternidade que desejara tanto.

 

Reflexões à janela sobre ama gravidez desejada

"Por que desejei tanto isso?", perguntava-se Angélica de Peyrac, a bela condessa francesa das orlas americanas, de pé diante da janela que ela abrira, no primeiro andar da residência de Mrs. Ann Mary Cranmer, na cidade ativa e puritana de Salem, Estado do Massachusetts, Nova Inglaterra.

Não estava ainda realmente inquieta, apenas um pouco sufocada.

Seu olhar errava pelo horizonte embaciado, cor de pérola, para o qual fugiam em vagas sucessivas as rochas pardas descobertas pela maré baixa, enquanto, como mil pequenos espelhos esquecidos em seus ocos atapetados de sargaços, cintilava a água dos charcos que o mar deixava ao se retirar.

Era uma hora quente, quase meio-dia, no fim de um verão extenuante. Os ruídos do porto e dos estaleiros, à esquerda, se amorteciam.

Mas Angélica, tomada de uma súbita lassidão, não percebia realmente o que a cercava, ou não experimentava, ela, que habitualmente apreciava a contemplação do oceano, senão seu aspecto um pouco angustiante, suscitado pela visão de espaços infinitos.

Acrescida ao choque e à decepção que lhe havia causado a audição desses tristes acontecimentos, uma preocupação pessoal acabava de perturbar o estado de quietude e de felicidade permanente em que ela, de certa forma, se habituara a viver no último ano. Consciente de que certos perigos estavam prestes a ameaçar o equilíbrio dessa felicidade e que certa decisão tomada por ela alguns meses antes a tornaria responsável por isso, experimentava a necessidade de interrogar-se sobre o que a levava a empreender essa aventura que era de fato - receava percebê-lo naquele momento - uma loucura!

- "Por que desejei tanto isso?"

Não teria, uma vez mais, se deixado apanhar na armadilha pelos impulsos de sua natureza, que mordia a Vida como um fruto, sem se interrogar sobre o dia seguinte?

"Louca Angélica", repreendeu-se.

Não teria sido um capricho de sua parte?

Tudo ia tão bem... Tudo estava tão perfeito e sólido à volta deles, enfim!

Que necessidade tivera de exigir sabe lá que consagração a uma felicidade sem nuvens, a uma vitória que só se confirmava, quando, em plena saúde e cessando de temer pelos seus, podia dali em diante usufruir sem apreensões todos os encantos da existência?

Não tinha recebido da sorte, por muito tempo adversa, todas as respostas e todas as recompensas?

Não recebera da vida tudo o que uma mulher pode desejar? Um esposo que adorava e pelo qual sabia ser apaixonadamente amada, dois filhos belos e encantadores que, no brilho de sua primeira juventude, eram um dos ornamentos da corte da França, na qual sua animação e facúndia faziam maravilhas! Dixit a última carta de Florimond, o mais velho, trazida pelos primeiros navios da Europa. Perto dela, na América, restava-lhe uma filha mais nova, a pequena Honorina, querida por todos, que ela se divertia vendo crescer, esquecendo todas as provações que compartilharam, de combates, medo, solidão, nas quais ainda se censurava por pensar com muita frequência, pois estavam bem distantes no tempo.

Não conhecera, ao lado de Joffrey de Peyrac, seu esposo, todas as vitórias, e não vira realizarem-se em menos de três anos todos os milagres?

Entre outros, a prosperidade de seus estabelecimentos da América do Norte: Gouldsboro, nas margens do Atlântico, e Wapassu, no coração das florestas do Maine, fundados nas piores dificuldades, mas que atualmente, graças à sua aliança com a Nova Inglaterra, conheciam um rápido desenvolvimento. A paz reinava nessa espécie de mar interior a que chamavam baía Francesa, onde pululavam representações de diversas nações e das quais o Conde de Peyrac se tornara guia, se não o mestre incontestável, estendendo-se sua influência pacífica e ativa para o interior até as fronteiras do Kennebec, limite extremo de suas possessões.

Mais miraculoso ainda e determinando tudo, não tinham obtido, ela e ele, o perdão - quase "uma rendição em relação a eles - do maior monarca do universo, Luís XIV, rei da França, e isso depois de um longo conflito em que os três, Joffrey, o.vassalo vencido, ela, a súdita rebelde, ele, o soberano implacável, se infligiram os piores golpes? Isso ocorrera contra qualquer esperança. A notícia lhe fora levada quando se encontravam em Quebec, hóspedes do Sr. Fontenac, governador da Nova França, que sustentara sua causa e esperara com eles o veredicto do rei. Não continha nenhuma reserva. O rei da França, temido em todos os continentes, inclinava-se diante deles, os réprobos, os exilados, esquecendo as ofensas, devolvendo-lhes títulos e riquezas, abrindo-lhes de novo as portas do reino, chegando inclusive a esperar sua volta, deixando-os livres para determinar eles próprios o momento e as circunstâncias para isso.

Angélica, mulher satisfeita, mulher mimada, senhora de seu destino, que estava agora somente em suas mãos, protegida e defendida por todos os lados, livre para viver feliz e sem tormentos onde e com quem ela escolhera, que necessidade tivera de exigir mais uma vez do céu um presente, um benefício, um pequeno milagre a mais? Uma criança.

Suspirou e sacudiu a cabeça.

"Você será sempre a mesma!"

Levou a mão aos olhos. A reverberação das poças de água, como luíses de ouro jogados aos punhados através da planície de sargaços estendida à sua frente causava-lhe uma leve náusea. Viam-se algumas velas brancas bem distantes, balançando, como que incrustadas nas próprias rochas, na bruma dourada.

Ao pé da casa, havia uma praça de terra avermelhada e poeirenta onde transitavam alguns dos ativos habitantes de Salem, vestidos em sua maioria com roupas escuras e cobertos por um alto chapéu preto com aros de prata ou de aço na parte da frente, adotado pelos puritanos da Inglaterra por ocasião da Revolução de 1649, fomentada pelo austero Oliver Cromwell.

As mulheres, na maioria vestidas de azul cru, com toucas e grandes golas brancas, traíam por esse uniforme súa situação de "engajadas", isto é, de pessoas que não tinham acabado de pagar sua passagem para o Novo Mundo por anos de serviço junto àqueles que as comanditaram. O que não as impedia de ter o porte desenvolto e seguro de mulheres que, pelo menos uma vez, tinham decidido, aceitando atravessar o oceano, escolher sua própria servidão.

Toda essa multidão se deslocava diligentemente, como todo bom cidadão do Massachusetts absorvido pelo objetivo a atingir e a tarefa a cumprir, mas não a ponto de não lançar, de passagem, um olhar curioso e interessado para a residência de Sir Thomas Cranmer, onde sabia que os hóspedes de Gouldsboro tinham ficado, e ali divisar à janela aquela a quem chamavam, em quase toda parte, ao longo das margens e até nos estabelecimentos fronteiriços, "a bela francesa".

Pois, em Salem, como em todos os portos do mundo aonde os leva o mar, quer se queira ou não, quer se tema por sua alma ou se esteja disposto a perdê-la, embasbacavam-se diante de todos os espécimes da humanidade, por vezes sedutoras, sempre inquietantes, mas com os quais é contudo preciso tentar acomodar-se, se se quer comerciar.

A grande dama francesa não era uma desconhecida para a gente de Salem, e sabia-se muita coisa sobre ela, entre outras, a de que salvara, do cutelo de escalpo dos índios ou do cativeiro no Canadá, um grupo de lavradores ingleses do Androscoggin, ao norte, no Maine.

Sabia-se também que ela era esposa de um fidalgo dado a aventuras que, apesar de francês e provavelmente católico, mantinha excelentes relações com o Massachusetts, a ponto de mandar construir muitos de seus navios nos estaleiros da costa.

Sua vinda trazia pois um acréscimo de atividades à cidade, e dissimulava-se, sob a justificativa virtuosa dos negócios, o prazer que se tinha em observar suas equipagens, suas toaletes e seus costumes, naturalmente mais levianos e supostamente dissolutos, mas que se,desculpavam, pois eram franceses.

Entretanto, nesse dia, muitos homens, após lançar um olhar para a bela estrangeira de pé junto à janela, desviavam, prontamente os olhos e fingiam apertar os lábios com reprovação.

Não ficava bem, pensavam - e falariam sobre isso a suas mulheres, para instruí-las, e ao" Conselho, para adverti-lo -, que uma pessoa do seu sexo, cuja maternidade próxima era tão aparente e, além disso, vestida com roupas por demais suntuosas para um estado que exigia discrição e mesmo recato, se mantivesse assim à janela à vista de todos.

Realmente, era preciso ser uma papista desavergonhada, que não recebera nenhuma educação de pudor e de decência, para não só se permitir uma coisas dessas, mas ainda não parecer experimentar qualquer vergonha!

Angélica, vendo os olhares voltarem-se para ela, acabou por suspeitar das reações de alguns. Sabendo que os puritanos eram muito suspicazes nas questões carnais, sempre se esforçava por prevenir sua suscetibilidade reticente, mas havia amiúde alguns detalhes que lhe escapavam.

Compreendendo que chocava os transeuntes servindo dessa forma como espetáculo, Angélica retirou-se um pouco para o interior do aposento.

Tomada pouco antes por um atordoamento, quase uma sufocação, aproximara-se da janela para respirar um pouco. Agora se sentia melhor. Muito melhor. Desnorteara-se, pois, até aquele dia, sentira-se em plena forma e não tivera de suportar nenhum dos inconvenientes de seu "estado", como dizem as pessoas pudicas. E, no entanto, estava no sétimo mês de gravidez.

Convidada para a extravagante honraria de assistir ao Conselho dos edis de Salem, coisa que dispensaria perfeitamente, não hesitara em retribuí-la com o incomodo de vestir-se com um amplo manto, a fim de dissimular os sinais de sua próxima maternidade a esses austeros e pudibundos calvinistas que, entretanto, serviam a um Cristo que havia recomendado insistentemente a seus discípulos: "Crescei e multiplicai-vos!" Mas, para os severos representantes do credo presbiteriano, era preciso fazê-lo com o máximo de discrição possível, e seria ainda melhor se se pudesse fazê-lo por obra do Espírito Santo. Lembrando-se também de que São Paulo, de obediência farisaica, denunciara os cabelos da mulher como um dos instrumentos da tentação carnal, e que os puritanos estavam de acordo com ele sobre esse ponto, Angélica colocara na cabeça um lenço de tafetá e um chapéu de abas largas, que lhe cobria as têmporas e lhe dera uma terrível dor de cabeça.

Até ali, durante sua viagem, não sentira qualquer fadiga. Mas começava a sentir-se oprimida pelo pesado calor úmido que reinava no lugar, e não estava em condições de ouvir o que o conselho tinha para expor-lhes.

"Pensei que fosse desmaiar."

Imaginou aquela pobre mãe inglesa, morta, com o crânio despedaçado, junto a seus pequeno gémeos, que jaziam na relva junto à sua cabeça cortada, como bonecas quebradas... Tinha de recusar por todos os meios essa visão, senão ficaria de novo doente. No entanto, censurava-se por ter abandonado à sua sorte aquele pobre rapaz que entrara, segurando o chapéu redondo ornado por uma pluma, e que a fixava como se ela pudesse ressuscitar seus parentes.

O pior era que esses massacres, que sacudiam convulsivamente o Novo Mundo por todos os lados, tomavam a amplitude de fenómenos irreprimíveis, pois o sangue chamava o sangue.

Era melhor não pensar demais nisso por ora.

Angélica olhou o pequeno relógio que levava à cintura, sacudiu-o, depois, julgando-o parado, acertou-o com uma chave minúscula.

A manhã não ia tão tarde quanto ela julgava. Estava sozinha na casa, pelo menos era o que supunha, pois reinava um profundo silêncio, como se lacaios e criados tivessem subitamente se afastado. Onde estavam? No mercado? No ofício?

Acostumada por seu instinto, aguçado por uma vida de armadilhas e de perigos, a perceber rapidamente por sinais imperceptíveis certas reações humanas bem dissimuladas, Angélica ficara intrigada desde o início pelo comportamento de sua anfitriã em Salem, Mrs. Ann Mary Cranmer.

Com efeito, esta deixava perceber, por sua expressão carrancuda, que ela não compreendia porque consideravam normal que fosse ela a receber, toda vez que se apresentavam em Salem, hóspedes estrangeiros, como se os julgassem indignos de franquear as soleiras das casas realmente ortodoxas, por sua fé puritana. Os credos religiosos suspeitos poderiam trazer-lhes os miasmas deletérios do pecado... "

Angélica, tendo observado a atitude da dama que, ao mesmo tempo que os acolhia honrosamente, lhes fazia cara feia, obtivera de Joffrey uma explicação que lhe parecia correta.

Nascida Wexter, filha de Samuel, um dos mais piedosos e intransigentes fundadores da cidade, desposara, por amor, um anglicano notório, o encanador e muito aristocrático Sir Thomas Cranmer. Como era costume, após o casamento, deveria ter deixado, para sempre, mais ou menos banida, as margens de Salem e não mais existir senão para os seus e para os habitantes do Mas-sachusetts, ainda que reduzida ao estado de uma simples lembrança.

Mas essa solução radical mostrara-se de difícil aplicação.

Primeiro, porque o referido anglicano tinha um posto elevado na administração real. Depois, porque sabiam ser ele aparentado, por suas origens, a esse Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária, conselheiro de Henrique VIII que, nos primeiros tempos conturbados da Reforma, protegera o grande pregador escocês, John Knox, o qual, como todos sabiam, organizara o protestantismo radical da Inglaterra, de onde se originara o puritanismo, e, além disso, fora executado no reinado de Maria Tu-dor, a Católica, cognominada a Sangrenta.

Um sublime reconhecimento ordenava, portanto, que não se mostrasse por demais intolerante em relação a seu sobrinho-bisneto... Enfim, o honorável Samuel Wexter devia ter receado perder para sempre sua filha única e, até aquele instante, perfeita.

O casal foi assim aceito em Salem, e acostumaram-se com Sir Thomas Cranmer, suas rendas, seus brincos de pérola na orelha.

Seguidamente abandonada por ele, que não cessava de navegar entre Boston, a Jamaica e Londres, a filha de Samuel Wexter tornou-se mais rígida em sua posição e, como para compensar uma loucura que a colocara à margem de uma sociedade que ela aspirava edificar, ainda mais rigorosa na aplicação de seus deveres religiosos. Punição sumamente amarga: a facilidade com que lhe diziam, enviando-lhe possíveis sequazes de Satã: "Você pode recebê-los!"

Angélica puxou uma poltrona com espaldar revestido de tapeçaria e sentou-se um pouco afastada da janela, mas suficientemente perto para se beneficiar um pouco da brisa marinha. Salem, que quer dizer "paz" em hebraico, era uma pequena cidade estranha e encantadora, com seu amontoado de telhados de ripas com empenas pontudas, com cumeeiras de chaminés de cascalhos cinzentos ou de tijolos vermelhos, para os notáveis e os comerciantes ricos.

A legislação ali em vigor era estritamente teocrática, e as instituições, diretamente derivadas da Escritura Sagrada.

Mas ali floresciam os mais belos lilases do mundo. E, até o alto verão, seus cachos brancos e violeta roçavam os flancos sombrios das casas revestidos de extrato de nogueira. Nos jardinzinhos, carregados de plantas medicinais e de hortaliças, que acompanhavam cada moradia segundo a tradição estabelecida pelos primeiros imigrantes do Mayflower, viam-se luzir o amaranto e o verde-pálido das abóboras e cabaças, culturas generosas, proje-tando até as ruas, como serpentes velosas, as gavinhas de seus caules de grandes flores vermelhas visitadas pelas abelhas.

Agora que Angélica estava tranquilizada, julgava-se uma tola. Era inútil fazer-se naquele momento uma pergunta desse tipo: "Por que eu quis uma criança?" Saber-se-ão algum dia as razões que despertam ou acordam no coração de uma mulher essa grande necessidade vital de maternidade? Elas são únicas e múltiplas, todas evidentes; no entanto, nenhuma delas é a verdadeira, pois não são, de modo algum, razoáveis.   .

Angélica lembrava-se de ter começado a pensar nisso em Que-bec, quando via a pequena Ermelina de Mercourville precipitar-se ao seu encontro estendendo-lhe os braços. Não seria bom saborear os prazeres de uma maternidade nova, já que não pudera apreciá-los nas maternidades precedentes?

Reconstruir o ninho destruído, sacudido por tantas tempestades?

Mas, principalmente, e foi isso que pouco a pouco passou a prevalecer em seu íntimo à medida que tudo se reconstruía em torno deles é neles próprios, passara a desejar ter um filho dele. Dele, seu amor, -seu amante, seu refúgio e seu tormento, dele, o único, o homem de sua vida inteira, dele, Joffrey de Peyrac, com o qual estava casada havia quase vinte anos.

Ora, tendo alcançado, por uma luta inaudita, através das piores provações, dos caminhos mais tortuosos e imprevisíveis, mas também por uma constância que frisava a obstinação e uma vontade que poderia com frequência ser julgada culpável, em razão dos perigos nos quais ela se precipitara cegamente, tendo pois atingido seu objetivo, a realização de todos os seus sonhos: o amor, a felicidade, a paz junto àquele que tanto procurara, julgando-o morto, e do qual por pouco não a separaram novamente as intrigas e os mal-entendidós, como se o destino ciumento não aceitasse a perenidade de s"u amor tão poderoso, ela quisera concluir sua difícil reconquista, marcando-a com um selo inapagável.

Sonhara com um filho dele, como teria desejado um novo amante para forjar esse elo que encarnava para sempre um encontro excepcional.

O que era a prova de que tudo era novo entre eles.

Pois era preciso fazer-lhe justiça: a ideia .de uma loucura dessas não lhe teria ocorrido nos primeiros tempos de seu reencontro. Logo faria três anos que isso acontecera.

Quando voltava a pensar nisso, suas lembranças lhe pareciam muito longínquas e irreais, e ela mal se reconhecia. Como eram pouco caridosos um com o outro nessa época, censurando-se os golpes que a vida lhes infligira, esquecendo que tinham sido ambos vítimas e que nem isso os impedira jamais de se unirem mais estreitamente. Fora preciso aprendê-lo, e, nessa ocasião, ela se espantava com o que tinham atravessado juntos.

Como eram estranhos um ao outro, prontos a se rejeitarem, quase a se odiarem e, no entanto, sempre tão próximos, fascinados um pelo outro! Que milagre, quando pensava nisso! Se não tivesse havido essa irresistível atração de seus corpos, que os aprisionava a cada olhar, os unia com encantamentos, sonhos e apetites, desdenhando qualquer outra consideração, teriam podido superar tantos obstáculos, tanto mistério entre eles, tantas decepções e amarguras nascidas de tantas desgraças?

Bênção desse grande mistério dos sentidos que os tragava involuntariamente, os jogava nos braços um do outro, afogados em esquecimento, delícias, entregarído-se loucamente ao caudal cego que apaga o mundo.

Contra essa corrente de paixões que os arrastava num turbilhão de alegrias e de surpresas sem nome, o Diabo não pudera vencer a partida, apesar de assestar contra eles todas as suas baterias.

Pois o Amor é o principal inimigo do grande Destruidor.

Entretanto, só depois da experiência de Quebec, cidade francesa do alto norte da América, para onde tinham ido a fim de negociar uma reconciliação possível com o rei da França e seus compatriotas, e onde atravessaram, em família, um inverno insólito, mundano e movimentado, foi que ela se sentira diferente, invadida por um súbito desejo: ter mais um filho dele, um novo filho para uma nova vida!

Evocou essa volta.

Deixavam a pequena capital da Nova França, enfim liberta de seus gelos. Sua frota descia o rio Saint-Laurent, atravessava o golfo do mesmo nome e Angélica, a bordo do navio-almirante, o Goulds-boro, olhando pelo portaló, com Honorina, rebanhos de marsuínos-brancos que brincavam entre as ondas, conhecera momentos de júbilo intenso e de certeza, em que não mais intervinham qualquer sombra, qualquer inquietação.

Os problemas estavam resolvidos, as batalhas estavam ganhas, se não todas as batalhas, pelo menos as que havia entre eles. Durante esse inverno em Quebec, não souberam que estavam ligados para sempre por invisíveis e sutis cadeias que nada conseguiria quebrar? Tinham descoberto que, por mais selvagemente independentes que fossem um em relação ao outro, não podiam realmente viver, respirar, pensar, um sem o outro. Certamente, Joffrey era um homem misterioso, imprevisível, inalienável, e ela também, embora se julgasse, com a melhor boa fé e como o faz a maior parte das mulheres, muito transparente em seu comportamento e em suas intenções. Mas não se teriam amado tanto se fossem mais fáceis e submissos às leis comuns.

Então, enfim, com o espírito e o coração leves, começara a sonhar com esse novo filho e tivera vontade de oferecê-lo a si mesma, sem nenhuma razão a não ser a felicidade! Uma nova criança para uma nova vida.

Sentiâ-se mais jovem.e mais alegre do que jamais o fora. A pro-teção de um homem que a defendia e a livrava de todas as responsabilidades demasiado constrangedoras ou decisivas, a batalha ganha sobre o ostracismo do rei, deixavam-na livre de qualquer preocupação e cuidado, e no início isso era um tanto incomodo. Dava-se conta de que tivera até então uma vida séria demais. Pois, excetuando-se os poucos meses do sonho encantado vivido em Toulouse como uma pausa em seu destino atormentado, o que fora sua vida desde os seus vinte anos, quando se achara lançada na mais profunda miséria e na solidão?

Uma vida a lutar, a morder, a arranhar, a se defender, a se desculpar, por seus filhos, seu pão, sua honra...

Claro, não conservava senão más lembranças. Esses anos de combate não haviam deixado de ter diversões e distrações marcadas com frequência pelo humor, e ela soubera, sendo por natureza espontânea, rir, nessa oportunidade, da tolice da existência e rejubilar-se com os triunfos adquiridos-para saborear os momentos agradáveis roubados a essa cavalgada de sobrevivência. Não importa!

Nesse navio, seu navio, que os levava, como que fora do tempo, para um futuro que ela podia pressentir finalmente apaziguado e feliz, pareceu-lhe que chegara o momento de depor as armas e mudar tudo. Ser uma outra mulher. Aquela que ainda não pudera se permitir ser.

Recomeçar tudo, como há vinte anos. E o que haveria de mais novo do que uma criança?

Decidira: Sim, era isso.

Mas, como era livre, graças a seus "segredos" de curandeira, para governar os misteriosos acasos da concepção, continuou a esperar.

Esperou um pouco. A vida ensinara-lhe, de qualquer forma, a contemporizar, a moderar a presteza de seus impulsos. Não se tratava mais de estratégia militar, na qual se excedera na época de sua revolta contra o rei, e que exige um golpe de vista rápido e sem falha e a ação imediata, mas de alicerces da paz, tarefa à qual, muito frequentemente, as nações se aplicam com menos talento e zelo que na guerra.

Queria instalar-se nessa nova era feliz que os augúrios anunciavam, assegurar-se de que não era um logro, habituar-se ao estado de trégua e à existência cotidiana junto dele, seu amor de sempre, seu mestre e seu amigo. Era-lhe necessário mais ainda saborear a certeza desse entendimento amoroso que ela sentia queimar entre eles como uma chama ardente, suave e serena, que nada doravante poderia fazer vacilar.

Esperou Wapassu.

E como fosse costume de Joffrey de Peyrac ser o mais louco dos amantes, o mais intuitivo e o mais pródigo, foi ele que tornou a falar sobre o novo filho com o qual sabia que ela sonhava e que selaria seu Amor.

Tinha também ele o instinto de que seu destino, já tão movimentado, se encaminhava, não para um fim, mas para um começo?

Enquanto a neve continuava a amortalhar Wapassu, nessa época de inverno em que, nos fortes de madeira dos grandes espaços americanos, quase se esquecia da existência de outros seres humanos na terra, eles conceberam o filho do Amor.

Quando Angélica descobriu estar grávida, ficou extasiada, es-tupefata, embora devesse saber que as sábias misturas de medicinas, cuja supressão ou administração sabia tão bem dosar, conforme "segredos" que lhe ensinara desde a infância a feiticeira Melusina, deviam naturalmente levá-la aos resultados desejados. Mal podia acreditar!

Em abril, a criança se mexeu dentro dela e, dessa vez também, ela experimentou uma surpresa inaudita, deslumbrante.

Era pois tão simples obter do céu aquilo com que sonhava: um filho. Um filho para a felicidade...

Sentia-se tão feliz, num estado de euforia tão natural, que, à parte esses estremeções pelos quais "ele" revelou sua presença, chegava por vezes a pensar que não estava grávida. Todos os inconvenientes que acompanham o início da gravidez lhe foram poupados. Conservou-se por muito tempo magra. Não experimentando nenhuma fadiga e mesmo, parecia-lhe, sentindo-se mais bem-disposta e mais vigorosa que em tempos normais, não teve de mudar nada em sua ativa existência, nem nos projetos de viagens, que deviam se reiniciar na primavera rumo a praias onde se retomaria contato, não só com os habitantes do porto de Gouldsboro, mas ainda com o resto do mundo. Os navios levavam para ali os correios da Europa e, conforme aS notícias provenientes da baía Francesa, era raro que Joffrey de Peyrac não tivesse de elaborar um plano completo de navegação. O verão era, com efeito, um período de intensa atividade naval.

Naquele ano, o conde teve de ir a Nova York, viagem que lhe permitiria ao mesmo tempo visitar, na ida ou na volta, os mais importantes estabelecimentos da Nova Inglaterra, escalonados ao longo de toda a costa, de Nova York a Portland, passando por Boston, Salem e Portsmouth, onde tinha amigos e interesses.

Angélica quis acompanhá-lo. Calando-se sobre a promessa secreta que fizera a si mesma de nunca mais deixar Joffrey partir para onde quer que fosse sem ela, adiantou-se para convencer seu marido de que precisava a qualquer preço encontrar, lá pelos lados de Casco, seu amigo, o medecin's man inglês, George Sha-pleigh, ao qual tinha todo tipo de pergunta a fazer e junto ao qual devia se prover de remédios, especialmente das lascas de raiz de mandrágora, indispensáveis para o fabrico da "esponja sopo-rífera", cuja provisão estava esgotada. De qualquer maneira, arguiu, queria ver Shalpleigh antes do parto, pois ele possuía, no seu covil da ponta Maquoit, livros de medicina, os mais eruditos do mundo, e que ela queria consultar.

Enquanto o Arc-en-Ciel, altivo navio de mais de trezentas toneladas, recentemente saído do estaleiro de Salem, singrava rumo ao sul, dirigindo-se diretamente para a embocadura do Hudson, foram enviadas mensagens a Shapleigh, combinando um encontro em Salem para o início de setembro. Como o nascimento da criança estava previsto para o fim de outubro, o Arc-en-Ciel e a pequena frota de Peyrac teriam tempo de sobra para voltar a Gouldsboro, onde deveria ocorrer o parto.

A seguir, dependeria da estação e da chegada mais ou menos precoce dos primeiros frios para que o recém-nascido - princi-pezinho ou princesinha? - pudesse empreender seu primeiro périplo neste mundo, rumo às nascentes do-Kennebec, para ali atingir esse longínquo feudo de Wapassu, onde passariam o inverno, o que Angélica esperava muito. Apesar de todo o prazer que sempre sentia em reencontrar seus amigos de Gouldsboro, preferia sua vida retirada nas regiões afastadas àquela vida nas margens.

E atualmente, mais do que nunca, fazia-lhe falta o ar puro e vivificante do Maine.

O calor úmido das orlas, sufocante quando se distanciava do mar, a oprimia. Tinha dificuldade para retomar o fôlego por alguns instantes. Um medo horrível tomou conta dela. Pouco antes exaltada, vagando nas nuvens a ponto de o presente e o futuro lhe aparecerem revestidos das cores mais brilhantes, uma brusca recordação dos receios que a haviam aflorado derrubava seu oti-mismo, como uma barca virada por um vagalhão. O medo tornava-se pânico.

Angélica, nesse instante, sentia-se fraca e tocada pela grande apreensão das mães cuja carne está ligada a uma carne frágil. Responsável por essa criança, sentia-se também responsável pela desgraça que poderia atingi-la e que, talvez, já pesasse sobre ela, e censurava-se por sua impotência em afastá-la do perigo. Pois o filho da felicidade estava ameaçado. Essa dor que sentira no fundo de si mesma seria o anúncio de um perigo que, ao ser arrancado, muito mirrado ainda, do refúgio das entranhas maternas, o condenaria? Era demasiado cedo para que ele nascesse. Faltava ainda um mês inteiro...

Mas Angélica tinha ainda uma outra razão grave para recear pela sobrevivência desse filho tão desejado, tão sonhado e tão amado antecipadamente: os perigos de um parto prematuro, pois, havia alguns dias, ela estava quase certa de que eles eram dois.

 

Um pressentimento: serão gémeos?

De que outro modo interpretar essa sensação de agitação que começara a lhe parecer excessiva e a passagem, bem perceptível sob sua mão, quase visível sob a pele, de duas pequenas cabeças redondas?

"Quando o Céu se põe a cumulá-la!...", dissera a si mesma, inicialmente surpresa, entre incrédula e perplexa. E prestes a explodir de riso, na verdade encantada, dominara-se, dizendo-se que não havia motivo para rir e não sabendo realmente o que pensar.

O curso de sua vida, bem centrada em perspectivas razoáveis, não iria subitamente tomar proporções insólitas? Gémeos!... Decidira esperar para falar disso aos que a rodeavam e mesmo a seu marido. Mesmo porque, a frota de Joffreytle Peyrac lançava âncora em Salem, que não estava muito longe de Gouldsboro, e, no cais, algumas personalidades do estabelecimento vindas a negócios se apresentavam para os saudar. Ali estava o Sr. Manigault, importante armador que comerciava até nas Antilhas, o Sr. Mercelot, papeleiro rochelês, encarregado de estabelecer moinhos nas colónias inglesas, e sua filha Bertille, que lhe servia de secretária. Começou-se por trocar novidades sobre todas as famílias. Bertille Mercelot, a egoísta filha única do papeleiro, olhava Angélica com um sorriso irónico e satisfeito. Não seria ela, parecia dizer, que deixaria seu belo corpo deformar-se por uma maternidade.

Depois, os notáveis de Salem aproximaram-se, de fisionomia carregada - agora sabiam por quê -, a fim de convidá-los para o famoso Conselho, já na manhã seguinte, e Angélica, fazendo face a suas obrigações, resignava-se a não perceber George Shapleigh na multidão, ao mesmo tempo que pensava ser ele a única pessoa que teria desejado realmente encontrar à chegada. Ele teria dirimido suas dúvidas sobre o possível nascimento de gémeos e a teria tranquilizado. Tinha confiança, não apenas em sua ciência médica, mas também ém seus conhecimentos de velho mágico trocista. Ele não estava, portanto, presente, e era preciso sorrir para todos, instalar-se em casa de uma senhora inglesa de lábios apertados, sofrer as horas de insónia de uma noite de calor acachapante, dirigir-se na manhã seguinte ao tal Conselho.

Mobilizando toda a sua energia para não deixar de comparecer à reunião, Angélica não encontrara forças para se interrogar ainda mais sobre o enigma do tesouro que carregava em si - uma ou duas crianças? - nem para falar disso a Joffrey de Peyrac, que naturalmente era solicitado por todos os lados. Furtivamente, pousara por instantes sobre ela aquele olhar sombrio, cheio de fogo, que talvez adivinhasse nela a sombra de uma preocupação.

Angélica fazia questão de não deixar que os dissabores ou fraquezas de seu estado interferissem no bom andamento de seu périplo e nos imperativos das escalas. Não tinha temperamento para sofrer com isso. Ademais, pertencia a um século em que as mulheres faziam pouco das incomodidades de uma gravidez, sendo esse estado considerado, por educação, mais natural como constante do que o contrário. As mulheres da sociedade, menos ainda que as camponesas, não tinham tendência a se mimar em tais circunstâncias, e, em Versalhes, as amantes do soberano apresentavam-se, em trajes palacianos, na passagem do monarca, menos de uma hora após ter posto no mundo, numa antecâmara qualquer, por trás de um biombo, um pequeno bastardo real.

Era por isso que Angélica julgava seu desfalecimento matinal inexplicável. Levantou-se para dirigir-se à mesa sobre a qual estava colocada sua caixinha de viagem, contendo pentes, escovas, espelho, jóias e bugigangas de primeira necessidade, caixas de unguentos ou de maquilagem. Pegou um pequeno frasco e um vidro e encaminhou-se para o patamar, onde havia uma talha de apartamento com um reservatório e uma bacia de louça azul e branca ornamentada, talvez de Delft. Deixou escorrer a água da torneira de estanho para dentro do vidro, mais uma vez refletindo que esses puritanos, que pareciam desdenhar tanto os encantos da vida, tinham a arte de rodear-se de belos móveis e de obje-tos refinados, cuja proximidade compensava agradavelmente a severidade de costumes e de palavras que, por outro lado, ostentavam. Angélica, que apreciava o encanto característico de cada casa, apreciava aquela, habitada na penumbra por fulgores de madeira bèm encerada, de cobres bem polidos, de cristais ou de cerâmicas impecáveis. A colcha sobre a cama era de renda.

Angélica engoliu seu remédio. Era uma miscelânea de plantas que ela própria preparava e cuja eficácia conhecia. Já se sentia melhor, e o pesado odor de maresia lá de fora, misturado ao do piche derretido que vinha das docas e ao dos camarões fritos, que se intensificava na hora do almoço, parou de incomodá-la.

-          Senhora! Senhora!

Uma voz a chamava do lado de fora. Sorriu, voltando-se. para a janela. Kuassi-Ba, junto à casa, erguia para ela seu rosto negro.

- Meu amo mandou-me. Ele está preocupado.

- Diga-lhe que fique tranquilo. Eu estou bem.

Kuassi-Ba representava a atenção de Joffrey sobre ela. Imutável e fiel guardião, mais amigo do que servidor, depois de tantos anos ao lado do conde, atento ao menor sinal e adivinhando as mínimas mudanças de humor naquele com quem partilhara os trabalhos, as viagens, as desgraças, os perigos, e até a servidão nas galeras, ele era para Angélica como que a encarnação de uma solicitude que ela sentia jamais se desmentir.

Muitas vezes, ele surgia diante dela, transmitindo uma mensagem ou informando-se sobre seus desejos, esperava na soleira de uma porta para acompanhá-la ou então se apresentava carregando uma pequena salva de prata, na qual fumegava uma xícara de café turco, no exato momento em que ela daria sua bolsa e sua vida para beber uma, pois - e nisso é que havia uma certa magia naquilo que os unia aos três, ela, Joffrey e ele, Kuassi-Ba - era sempre com conhecimento de causa que ele aparecia.

Mais uma vez, Joffrey e seu servidor não deviam ter trocado senão um olhar para que o grande negro se esgueirasse como uma sombra para fora da sala do Conselho.

Sua presença familiar, benevolente e devotada de corpo e alma, mesclada ademais a uma indulgência e a uma admiração sem limites por tudo o que ela dizia ou fazia, reconfortou Angélica, e ela quase se surpreendeu por ter estado abatida instantes antes.

- Deve o amo despedir os regentes e vir ao seu encontro? - informou-se ele.

- Não, Kuassi-Ba, os assuntos que esses senhores precisam debater são muito graves. Eu esperarei pacientemente. Transmita-lhes minhas desculpas. Faça com que compreendam, o que, eu acho, já compreenderam muito bem, que, tendo essas tristes notícias me abalado profundamente, retirei-me a fim de meditar melhor sobre os meios de ajudá-los.

- Bem! Bem! - disse Kuassi-Ba, com um gesto de adeus e de bênção.

Afastou-se, escandindo, sobre os altos tacões de seus sapatos de fivelas, um passinho de dança.

O grave Kuassi-Ba, que se presumia ser um homem de idade, manifestava uma exuberância nova, desde que soubera da chegada entre eles de um "pequeno príncipe" ou de uma "pequena princesa". Como ficaria se viesse a saber que talvez fossem doisl... Os pulos de alegria não combinariam com seus cabelos brancos.

"Mesmo querendo satisfazer todos os votos de Kuassi-Ba", pensou, tornando a sentar-se na poltrona, "não posso deixar de recear essa perspectiva inesperada."

Tentou imaginar dois menininhos de olhos negros e cabelos espessos que se pareceriam com Florimond, ou não seria mais engraçado e mais encantador duas menininhas, também morenas, de olhar vivo e cálido? Não conseguia emprestar-lhes sua loirice ou seus olhos claros, pois sonhara com "o filho de Joffrey" e só conseguia imaginá-lo à sua imagem.

Mas dois!

O que aumentava sua perplexidade era lembrar-se da predição da adivinha Mauvoisin, a quem jamais levara a sério e que estivera ausente de suas lembranças durante inúmeros anos.

Isso ocorrera em Paris, numa época em que, sozinha e numa situação precária, trabalhava duramente para ganhar seu pão e o de seus filhos pequenos, Florimond e Cantor. Com duas amigas, que estavam como ela em dificuldades, e curiosas por saber se o futuro lhes seria mais clemente do que o presente, fora consultar Catarina Mauvoisin, que chamavam também La Voisin, em seu antro do Faubourg du Temple, frequentado, desde então, por toda. a Paris.

A feiticeira estava naquele dia bêbada como uma cabra. Vestida com seu manto bordado com abelhas de ouro, ela descera titubeando de seu trono e, encaminhando-se para as três belas jovens diante dela, dissera a cada uma, após olhar a palma de suas mãos: "O rei a amará", acrescentando para a mais modesta e deserdada: "E ele até a desposará!", o que deixara furiosa a terceira participante, que estava certa de ter o destino mais glorioso dentre elas.

Angélica ria ainda ao rever a cena. O que a perturbava é que, dirigindo-se de novo a ela, com o dedo em riste, a bêbada declarará: "Você terá seis filhos". Essa predição, enunciada com uma voz pastosa, parecera-lhe na época a coisa mais ridícula e incrível, e procurara esquecê-la logo.

Ora, com a passagem dos anos, não estava se encaminhando lentamente para a realização das predições da beberrona?

Três jovens mulheres soberbas, três poitevines, ligadas por amizade por sua origem provinciana, estavam naquele dia diante da feiticeira Mauvoisin, em Paris: Atenaís de Montespan, nascida Rochechouart, Angélica de Peyrac, nascida Sancée de Monteloup, e Francisca Scarron, nascida D'Aubigné.

Ora, naquele momento, uns vinte anos mais tarde, a bela Montespan triunfava em Versalhes, tornara-se a mais amada e a mais brilhante das amantes de Luís XTV, a obscura Francisca Scarron, cujos vestidos remendados iam longe, acabara de ser nomeada por ele marquesa de Maintenon, e Angélica, que se recusara ao monarca, não se preparava, em sua longínqua América, a pôr dentro em breve no mundo duas crianças, o que elevaria a seis o número dos que concebera?

"Seis! E talvez logo. Não", disse a si mesma, nervosa só de pensá-lo. "Logo, não! Seria desastroso para essas pequenas vidas! Seja como for, está fora de cogitação fazer o parto em Salem. Tenho de estar em Gouldsboro."

Por nada desse mundo, queria pôr seu filho - ou filhos - no mundo numa colónia da Nova Inglaterra; e os lilases de Salem, seus belos olmos em harmoniosos ramalhetes, não compensavam para ela a rígida atmosfera que faziam reinar em sua cidade essas terríveis pessoas de bem, uma cidade onde uma mulher grávida não podia respirar à janela sem que a apontassem com o dedo.

Olhou para o horizonte, sonhou em embarcar, singrar rumo a Portland, onde talvez encontrasse Shapleigh, rumo a Goulds-boro, onde sua amiga Abigail a cercaria de seus cuidados. E lá, estariam "em casa".

Uma sombra repentina se propagou, penetrando como uma onda tenebrosa no aposento, parecendo engolir os móveis e tapeçarias.

Um concerto de gritos estridentes se amplificou. Era uma revoada de pássaros, como ocorria a todo instante, em imensos lençóis que transpunham a própria cidade, sobre as margens de um continente ainda quase inviolado. Compreendia-se então que o ser humano tinha ali bem pouca importância, diante do pulula-mento animal, e que não eram essas poucas cidades e aldeias aqui e ali que faziam recuar infinitamente a floresta soberana.

Angélica por pouco não soltou um grito. O eco de uma voz odiosa sussurrava de repente em seus ouvidos: "Aprendi a odiar o mar porque você o amava, e também aos pássaros, porque os achava belos, assim como seu extraordinário vôo, quando passavam aos milhares em nuvens que obscureciam o céu!..." A Diaba!... Só um ser diabólico podia encontrar tais inflexões, de memória tão recente!

Angélica defendia-se por vezes inutilmente, mas conservava o obscuro pressentimento de que a Diaba - apesar de morta e enterrada - não dissera sua última palavra. Quando se odeia com tal força, não se pode prosseguir até no além seus projetos de vingança? Ela fora tão hábil, aquela mulher enviada pelo jesuíta para destruí-los!

A luz voltou bruscamente. Os pássaros abatiam-se lá longe em bruscos rastilhos de neve, cobrindo as rochas. Seus gritos diminuíam, e ouviam-se como eco os dos lobos-marinhos, que passavam em bandos ao largo. O mar se elevava.

Angélica arrependia-se de ter dito a Kuassi-Ba que tudo estava bem e que teria paciência.

Não podendo achar um serviçal de Mrs. Cranmer, perguntou-se onde estariam os seus... E onde estava a jovem Severina Berne, que trouxera para fazê-la ver um mundo menos rude e mais próximo, daí em diante, da civilização europeia do que seu estabelecimento de pioneiros de Gouldsboro? A gentil Severina, de dezesseís anos, bem que merecia passear por uma cidade animada como Nova York, e mesmo Boston e Salem,, depois de ter labutado corajosamente, desde os três anos, numa terra selvagem onde não existia, quando ali desembarcara com sua família vindo de La Rochelle, senão um forte de madeira e alguns casebres. Durante esse périplo ao longo das costas da Nova Inglaterra, Severina fora para Angélica uma companhia feminina agradável e que a distraía. Elas restabeleceram seu contato, reatando os laços de afeição quase familiar que as uniam desde que Angélica vivera em casa dos Berne, nos tempos de La Rochelle.

Ela também cuidava de Honorina, no barco e nas escadas. Hesitaram em trazer sua filhinha, que talvez ficasse melhor se calmamente instalada em terra, cercada pelos melhores cuidados em Wapassu ou em Gouldsboro, como o haviam feito durante algumas curtas viagens de verão.

Mas, dessa vez, Honorina manifestara-uma certa inquietação por ver Angélica afastar-se "em companhia" do futuro irmãozinho ou irmãzinha. Foi pelo menos assim que Joffrey de Peyrac interpretou as reflexões que ela proferiu várias vezes à socapa. Honorina dizia algumas vezes tudo o que pensava sobre certos pontos. Mas nao dizia tudo. Era preciso estar atento.

Aceitou a amizade de Severina e rejubilou-se com a viagem. Naquela manha, deviam ter ido passear juntas, pois havia mil coisas a ver.no porto e na cidade, com os entrepostos, armazéns e lojas abarrotados de mercadorias.

Angélica julgou ouvir suas vozes e, inclinando-se novamente à janela, avistou com efeito a adolescente, que dobrava a esquina, dando a mão à criança. Ambas estavam acompanhadas por um rapaz alto, vestido de roupa escura, como os puritanos do lugar, mas calçando botas e coberto por um chapéu de abas largas ornado por uma pluma, que não deixava de ter certa elegância. Severina e ele palestravam com animação e, foi o que pareceu a Angélica, em francês. O que, em todo caso, não era comum em Salem.

 

Natanael de Rambourg - Almoço no Arc-en-Ciel- O relatório de John Knox Matther - Noite de lua cheia entre puritanos

A porta de baixo estalou, e Severina chamou:

-          Dame Angélica! Avisaram-me que a senhora tinha voltado para casa de Lady Cranmer. Trago-lhe um francês que diz ser de sua província e deseja conhecê-la.

Surpresa, Angélica voltou para o patamar. O vestíbulo estava escuro, e ela não distinguiu muito bem os traços do recém-chegado. O rapaz tirara o chapéu e erguia para ela um longo rosto anguloso e pálido, a que não conseguia dar um nome, mas que lhe inspirava, no entanto, uma vaga reminiscência. Ao vê-la, soltou uma exclamação:

-          Oh! Madame du Plessis-Bellière, então é a senhora mesma! Eu não ousava acreditar nisso, apesar de todas as informações que recolhi por aí e das comprovações que me confirmavam sua vinda para a América.

Galgou com suas longas pernas as escadas, pulando os degraus de dois em dois, e, ajoelhando-se diante dela, beijou-lhe a mão com fervor.

Angélica continuava perplexa. Quem poderia ser esse jovem que a saudava pelo nome que ela usava outrora em Versalhes, quando ocupava um lugar entre as grandes damas da corte?

Ele se ergueu. Grande, magro e desengonçado, era uma cabeça mais alto que ela.

-          Não me reconheceu? Sou Natanael de Rambourg.

E, como ela ainda hesitasse:

- Nossas terras eram vizinhas das suas do Plessis, no Poitou. Toda a minha infância, brinquei e fiz mil estripulias com seu filho Florimond, e foi mesmo com ele que cometi a loucura de fugir para a América.

- Oh! Já me lembro! - exclamou. - Que surpresa, minha pobre criança!

Os nomes, as palavras, acabavam de ligar num raio algumas imagens antigas para atingir o eco de um duplo galope distanciando-se através das folhagens do parque de Plessis, e que ela ouvira no seio de uma noite aterradora.

Quase cambaleou, depois se recompôs.

-          Natanael! Mas claro! estou reconhecendo você!... Sente-se, então.

Retomava bruscamente o tratamento familiar que empregava outrora para com o pálido garotinho, já "comprido como um dia sem pão", dizia Bárbara, e que ela sempre vira arrastar-se atrás de seus dois rebentos, Florimond e Cantor, quando permaneciam no Plessis.

Escolta com a qual por vezes fingiam estar aborrecidos, expulsando-a, rejeitando-a, fazendo-a sofrer mil vexames, reintegrando-a em seguida em suas boas graças, quando se tratava de fomentar algumas explicações guerreiras ou alguns com-plôs contra as "pessoas adultas".

O domínio de Rambourg justapunha-se, com efeito, às terras do Plessis. Pertencia a uma família de nobreza bem antiga que aderira à Reforma, desde os primeiros sermões de Calvino. Hu-guenotes havia três gerações com poucos recursos financeiros, prolíficos - Natanael era o primogénito de oito ou dez filhos - religiosos fervorosos, tinham tudo para atrair sobre si a desgraça, a perseguição e a tragédia.

Naquele último verão que passara no Plessis, Florimond e Natanael encontravam-se com frequência, conspirando mais do que nunca.

-          Ele era tão tagarela, o Florimond - disse o rapaz, rindo -, tão imaginativo e tão convincente, que eu o segui!

Angélica instalara-se novamente na poltrona de espaldar alto. Precisava de um instante de repouso para acostumar-se à notícia.

- Minha querida - disse ela, dirigindo-se a Severina, que se preocupava por vê-la assim -, quer preparar-me uma tisana de passiflora, e"tfazê-la numa xícara bem quente? Tome, pega um saquinho em minha bolsa de medicamentos.

O visitante, dobrando suas pernas compridas, sentara-se num "quadrado" de tapeçaria, espécie de tamborete de crina que espalhavam pelas casas. -Angélica não podia acreditar que o estivesse vendo ali. Era um espectro!... Mais que isso!um sobrevivente.

Florimond, depois de ser reencontrado, nunca-dissera uma palavra sobre isso e, quando às vezes pensava a esse respeito, Angélica se prometia interrogar o filho acerca de seu companheiro de viagem. Depois, esquecia, guardando a impressão confusa de que os dois jovens aventureiros tinham se separado antes mesmo de embarcar.

Ora, ele estava na América.

O que lhe havia acontecido nesses últimos anos, além de ter crescido desmesuradamente?

Observando-o, Angélica disse a si mesma que, ainda assim, ele era mais bonito que seu pai, o pobre Isaac de Rambourg, ele também, magro e comprido, mas dotado de um folêgo prodigioso e que morrera soando desesperadamente a corneta, no alto de seu torreão, reclamando um socorro impossível, para ele, hugue-note, abandonado, no centro mesmo de Sua província, à crueldade dos dragões do rei, "os missionários de botas".

Ela sempre ouvira os sinistros apelos do corno de caça planando sobre a floresta, enquanto as primeiras chamas, incendiando Rambourg, jorravam pelas janelas do castelo.

Atormentada, notou que o rapaz não parecia a par do que acontecera com os seus. Falava deles no presente.

Angélica sentia-se incapaz de anunciar-lhe tão bruscamente que ele perdera toda a sua família e de evocar para ele um outro massacre, esse perpetrado no Velho Continente, depois da narrativa dos do Novo Continente que tivera de ouvir aquela manhã na assembleia dos ministros plesbiterianos.

E eis que, à sua simples evocação, a inquietante dor, surda e difusa, que acreditara sentir nos rins, se manifestava novamente. Suas preocupações mudavam de objeto; entretanto, as lembranças voltavam às margens de Salem, varridas por um vento louco, pela espuma do mar, por pássaros ruidosos, tão longe do bos-quezinho espesso e cerrado, dos campos estreitos cercados por caminhos vazios do Poitou, na França, onde se desenrolaram e se desenrolariam ainda as tragédias ocultas da perseguição. Um oceano estava entre eles.

-          É verdade que, naquele verão, estávamos muito aborrecidos no Plessis, Florimond e eu - dizia Natanael de Rambourg.

-          Lembra-se, senhora? Havia a soldadesca em toda parte, e até em sua casa, que não era, contudo, uma reformada. E esse... como é que se chamava, Montadour, que os comandava e se permitia mandar em todo mundo na região, católicos e protestantes, nobres e camponeses, que personagem horrível! Que época horrível!

Severina voltava trazendo uma tigela fumegante numa pequena bandeja de prata. Lançou um olhar de raiva para o intruso, agastando-se agora com sua presença, pois parecia que fatigava Angélica, cuja alteração de fisionomia ela notava.

Ficara encantada por ser abordada por ele nas ruas de Salem. Um jovem francês de boa linhagem, e huguenote como ela, não era coisa tão frequente. Mas agora que via a fisionomia tensa de Angélica, adivinhava, em sua delicadeza sombria, que essa visita era importuna, e seu único pensamento ela pô-lo para fora.

- Beba isso, senhora - disse com um tom peremptório -, essa bebida lhe fará bem com'esse calor. A senhora diz sempre que as bebidas quentes matam mais a sede que as frias. E, depois, deveria deitar-se um pouco e repousar.

- Creio que você tem razão, Severina. Caro Natanael, logo será hora de jantar. Deixe-nos sem' cerimonia e volte para nos ver à noite. Falaremos durante mais tempo.

- É que - disse ele, desdobrando-se com hesitação - não sei onde jantar.

- Corra até o porto e compre uma libra de camarões fritos-sacudiu-o Severina, empurrando-o para a porta -, ou então vá até a Taberna da Ancora Azul, o dono é um francês.

Sem se ofender, o jovem Rambourg pegou o chapéu, afastou-se para beijar a mão de Angélica e se retirou, quase alegre, lançando-lhe estas palavras, que lhe atravessaram o coração como um punhal:  

- A senhora me dará notícias sobre minha família. Talvez tenha alguma nesses anos todos... Eu enviei um ou dois recados. Mas não obtive nenhuma resposta.

- Ele deve ter-me ouvido falando francês com Honorina - explicava Severina -, e depois de nos seguir um bom tempo, apresentou-se e nos fez todo tipo de perguntas, como costumamos fazer, nós, franceses, de modo que depressa nos inteiramos sobre cada um: "De onde você é? De La Rochelle. Eu sou dos arredores de Melle, no Poitou. Quando chegou à América?", etc. Dame Angélica, o que há? A senhora não está com boa cara.

Angélica admitiu que o calor a extenuava. Mas ia beber tranquilamente sua tisana e não tardaria a sentir-se melhor.

-          Severina, faça-me um favor. Estou cansada de esperar nesta casa deserta sem poder me informar com ninguém. Todo mundo deve ter corrido ao porto para a chegada de não sei que na vio. Vá saber as novidades! Informe-se também sobre se o Conselho a que o Sr. de Peyrac está assistindo está acabando. E também, se não ouviram falar do velho medecirís man, George Shapleigh. Sua ausência é inexplicável, e estou impaciente, inquieta.

Severina precipitou-se para a escada e depois, para fora, decidida a parar toda a casa do Conde de Peyrac e a sacudir todos os solenes ingleses suscetíveis de dar-lhe informações sobre esse Shapleigh, pronta a penetrar em todas as tavernas da cidade. Mas iria antes procurar o Sr. de Peyrac, na Council House, sem preocupar-se com interromper uma assembleia tão solene, com aquele desrespeito pelos graves problemas dos homens que seu pai, mestre Gabriel Berne, lhe censurava frequentemente; mas ela estimava que os das mulheres não eram menos graves. E, no caminho, não deixaria de chamar a atenção de todos os membros da criadagem de Mrs. Cranmer e mandá-los de volta a suas obrigações, pois todas essas pessoas de bem, vestidas de azul ou de preto, criados ou criadas, enquanto falavam sem parar sobre a santidade de sua tarefa para a glória do Senhor e para o pagamento de sua travessia para o Novo Mundo, que deviam a seus amos, passavam o dia a ocupar-se com ninharias, segundo ela.

Angélica viu-a da janela, passando a toda pressa, e sorriu. Com a jovem Severina, que a adorava, não precisava preocupar-se.

Virando-se, percebeu na penunibra de um recanto como que um reflexo de fogo, alguma coisa vermelha que brilhava, e viu que ali estava Honorina, que devia ter sentido, como ela, necessidade de tirar seu gorro durante o passeio, o que explicava sua bela cabeleira ruiva solta e esvoaçando, devido ao vento do mar.

Honorina era como um duende. Mal Angélica a avistava, desaparecia de novo. Ouviu-a levando alguma coisa para o patamar e levantou-se para ir ver, dizendo-se: "Não, não estou perto de dar à luz, senão me sentiria mais viva e ágil". Todo mundo sabia que uma mulher, quando está prestes a dar à luz, sente-se tomada por uma nova energia que a impele a arrumar a casa, a se entregar a todo tipo de atividades; geralmente domésticas. Ora, Angélica sentia, ao contrário, uma grande lassidão.

Encontrou Honorina trepada num pequeno cofre, que empurrava para baixo do bebedouro, ocupada em encher com água um cálice de estanho.

Angélica chegou no momento em que as mãozinhas dela sabiam muito bem como se separar para fazer parar o filete de água e manter firme o recipiente que transbordava. Segurou-o e fechou a torneira.

- Estava com sede, minha querida? Devia ter-me chamado.

- E para você - disse Honorina, estendendo-lhe o cálice com as duas mãos. - Deve beber água para que os anjos desçam sobre você. Foi Mopuntuk quem me disse!

- Mopuntuk?

- Mopuntuk, o chefe dos metallaks. Você o conhece! Ele ensinou-a a beber água naquele passeio ao qual você não me levou...

Era uma lembrança um pouco vaga, mas já longínqua, dos primeiros dias de Wapassu, mas Honorina, quase um bebé na época, que via tudo, não esquecia nada, devia ser como os gatos. Para ela, o tempo não existia... Podia envolver-se numa situação que lhe tocara a imaginação, abolindo meses e anos transcorridos, como se tudo tivesse acontecido na véspera.

-          Ele disse que a água é pesada e que ela ajuda os anjos a descer sobre nós.

Tinha dito realmente isso? Angélica reunia suas lembranças, Mopuntuk devia ter falado mais de espíritos do que de anjos. A menos que ele fosse um índio batizado pelos missionários de Quebec. Honorina insistia.

-          A água ajuda os anjos a descer sobre nós e o fogo nos ajuda a subir para eles. Ele disse. Ê por isso que queimam as pessoas para que subam ao céu.

O que ela captara dos discursos do indígena?

-          Acredito em você - disse Angélica, sorrindo.

Honorina conhecia muito mais coisas do que ela sobre Wapassu, e não era de surprendér que sua intuição infantil percebesse, por trás dos discursos dos índios, mais claramente que os adultos, suas intenções e crenças.

- Um dia vou tentar - afirmou Honorina compungidamente.

- O quê?

- O fogo, para subir!

Angélica, que levava o cálice aos lábios, suspendeu seu gesto.

- Não, por favor! O fogo é mais perigoso, que a água.

- Então, beba!

Angélica bebeu, sob o olhar atento de sua filha. Agora, lembrava-se da devoção de Mopuntuk em relação às fontes. Dava-lhes grande importância e a induzira a andar um dia inteiro e a beber repetidamente, em lugares diferentes, repetindo que era preciso atrair a proteção dos espíritos sobre ela e Wapassu.

A água! Os poderes da água pura! Nunca refletira sobre o instinto atávico que levava os aldeões do seu Poitou natal para certas fontes da floresta.

Mas a água que estagnava na fonte de faiança de Mrs. Cranmer não tinha possivelmente essas mesmas qualidades e poderes; seja como for, era execrável. As criadas não deviam se dar ao trabalho de limpar com frequência suficiente o interior do recipiente. Angélica conteve uma careta, que não escapou ao olhar suspeitoso de Honorina.

-          Vou buscar água do poço para você - decidiu, despencando com presteza de cima do cofre.

Angélica só conseguiu detê-la à borda da escada. Já a imaginava, debruçada sobre a beirada do poço, preocupada em fazer subir um balde de água bem clara. Mutiplicou seus protestos e garantias de que não tinha necessidade de nada, para fazê-la desistir de seu projeto.

-          Veja, eu bebi. E agora, sinto-o, os anjos vão descer e me protegerão.

Enternecida, segurava entre as mãos a carinha redonda da criança para contemplá-la melhor.

-          Querida criaturinha - murmurou. - Como você é boa para mim e como eu te amo!

Alguém estava finalmente voltando, e um ruído de botas ressoou nas lajes do vestíbulo.

Dessa vez Honorina escapou. Reconhecera seu pai, o Conde de Peyrac. Com os braços ao redor de seu pescoço, sussurrou-lhe:

- Mamãe está triste, e não consigo consolá-la.

- Vou dar um jeito nisso - prometeu-lhe Joffrey de Peyrac, no mesmo tom de conivência.

- Nunca tive uma manhã tão longa - suspirou Angélica quando ele foi ao seu encontro.

- Nem eu. Compreendo-a e felicito-a por ter-se retirado. Que assembleia pavorosa, se é que se pode chamar assembleia àquilo... E fico pasmo por constatar o quanto o macho humano, seguro e confiante em si mesmo, não duvida da excelência de seus atos. Como não admirar, com efeito, a justeza de senso com que os melhores representantes dessa raça superior à qual o Criador me fez a graça de pertencer, tendo decidido convidar, por extraordinário, a seu Conselho, uma mulher cuja opinião têm em alta conta, sabem escolher o assunto a debater com ela.

Como era seu hábito, quando queria distraí-la de uma preocupação, conseguira fazê-la rir. Sua simples presença já a aliviava, dissipava sua ansiedade.

-          Não seja tão severo com seus patriarcas e seus doutores puritanos - disse ela. - Eles não me ocultaram as razões pelas quais desejavam minha presença entre eles. Não apenas não lhes quero mal por isso, mas absolvo-os. Gostaria qiie lhes garantisse que levei em consideração esse reinício da guerra indígena às fronteiras de suas colónias. Refleti, além disso, sobre o que poderíamos obter por intermédio de Piksarett.

- Oh! deixemos de lado guerras e massacres - disse ele num tom leve. - E um jogo que, ai de mim, não acabará tão cedo, e a razão quer que, embora lhe dando atenção, saibamos furtar às horas preciosas do cotidiano o cuidado de velar par nossa própria paz. Falemos pois do que a preocupa, minha querida. Vejo-a com traços tensos e olheiras, que a tornam certamente muito bela e comovente, mas...

- Shapleigh não chega - queixou-se ela.

- Enviei emissários em todas as direções. Eles o encontrarão. E nós o levaremos a Portlahd, se não tiver chegado aqui antes de nossa partida para Gouldsboro.

Ele a puxara para junto de si e dava-lhe beijinhos nas pálpebras.

- Alguma coisa a amedronta, meu amor. Diga-me o que é. Confie em mim. Estou aqui, perto de você doravante, para defendê-la, afastar de você qualquer perigo.

- Ai de mim! Trata-se talvez de uma provação que não está inteiramente sob seu poder afastar, pois é a Natureza que decidirá.

Talvez fosse apenas alarme falso, conveio, mas sua indisposição aquela manhã a fazia recear de repente que a criança viesse ao mundo prematuramente. E verdade, continuou para si mesma, que se sentia agora muito bem e adquirira a convicção de que esse parto, que, ontem ainda, lhe parecia muito distante, não podia estar iminente. Entretanto, não ficaria surpresa se ele ocorresse antes do previsto.

Com sabedoria, Joffrey observou-lhe que não havia nenhuma razão aparente para que houvesse uma mudança, pois sua saúde tinha sido até então perfeita. Mas, no momento, era preciso considerar que, se a criança nascesse, o calor esmagador, que assolava a todos na costa do Atlântico, seria um aliado para um bebe fraquinho superar as três ou mesmo quatro semanas iniciais.

Ela o escutava e admirava a bondade com que procurava, com o mesmo cuidado que dava a todas as coisas, argumentos preciosos nesse domínio bem feminino e que deveria ser estranho a um homem de aventuras, considerado por alguns como um pirata temível, um homem de guerra, seja como for, rude e sem fraquezas. Mas, para ela, para tranqulizá-la, reconfortá-la, ele tinha todas as delicadezas.

Afastou-se dele para sorrir-lhe. Mas seus grandes olhos verdes, como que empalidecidos, permaneciam dilatados e fixos.

- Há uma outra coisa - murmurou com um tom culposo.

Então confessou-lhe o que duplicava sua inquietação. Duplicava era exatamente a palavra. Duas crianças, isso podia anunciar uma felicidade dupla, mas tornaria precária sua sobrevivência, se conseguisse levar "o filho" tão sonhado até o fim da gravidez.

Ele viu que ela estava realmente terrificada, ansiosa e angustiada.

E subitamente, por sua expressão aterrorizada e a fragilidade que emanava dela, Angélica lembrou-lhe a criança-fada surgida das florestas do Poitou, a deliciosa aparição que se erguera diante dele, no sol, na estrada de Toulouse, e que fizera com que sua vida fosse sacudida, ele, o grão-senhor libertino que julgava ter conhecido todos os prazeres do mundo, nos tormentos, dilace-ramentos e transportes inexprimíveis de um verdadeiro amor.

E porque ela sempre estivera ali, porque podia dizer-se que ela nunca deixara de habitá-lo, porque ela soubera preservar as fontes misteriosas desse encanto, tão pronto a evaporar-se em tantas mulheres ao sopro árido ou medíocre da existência, e porque recebia a revelação ao mesmo tempo que o anúncio maravilhoso, mirífico, um pouco extravagante da doação dessas duas crianças que ela estava prestes a fazer-lhe, perguntava-se, não sem medo, se não estaria naquele momento conhecendo a maior alegria de sua vida de homem. A tal ponto- que as lágrimas lhe vieram aos olhos. E para ocultá-las, tomou-a novamente nos braços.

Apertando-a contra si, acariciando seus cabelos, roçando-lhe o corpo, começou a falar-lhe baixinho, dizendo-lhe que tudo estava bem, que não precisava ter medo de nada, que era o mais feliz dos homens, que seus filhos, anunciados por presságios muito auspiciosos, nasceriam belos e vigorosos, pois a Vida nunca nos causa tanto sofrimento quanto poderia fazê-lo, principalmente com aqueles que amam e que o provam sem mesquinharia, e repetia-lhe que ela não estava sozinha, que ele estava ali, que os deuses estavam çom eles, e que não se podia esquecer, enfim, de que em toda provação existe um recurso supremo: o Céu.

E acrescentou, com aquele sorriso que parecia ao mesmo tempo ridicularizar e desafiar um mundo incrédulo e pusilânime, que ele se comprometia, se sua saúde o exigisse, a enviar também emissários até lá, reclamar a ajuda do Todo-Poderoso.

Desejoso de ajudá-la a restabelecer-se e vendo que" ela sofria menos pela fadiga do que pela opressão, o Conde de Peyrac teve a feliz ideia de propor-lhe que fossem até o Arc-en-Ciel, seu navio que estava ancorado no porto, para fazer ali a refeição do meio-dia.

Um pouco de brisa marinha sopraria na coberta do navio e, de qualquer maneira, respirar-se-ia melhor lá do que em terra.

Severina e Honorina iriam se refazer, acompanhadas de Kuassi-Ba, em qualquer lugar atraente da cidade que elas pareciam já conhecer.

Queria ficar a sós com ela e que ela repousasse longe das preocupações urbanas. Nada melhor para encarar o futuro e o desconhecido do que distanciar-se um pouco.

Essa diversão chegou no momento exato-para revigorar a força e a coragem de Angélica.

Na coberta do Arc-en-Ciel, protegidos do sol, que brilhava como ferro em brasa, por uma grande lona estendida na parte dianteira da segunda ponte, foram servidos pelo Sr. Tissot, seu copeiro, que, quando faziam escala, se preocupava principalmente em levar para bordo víveres frescos e mercadorias de que se podiam prover nesses lugares: vinhos, rum, café, chá e, ali em Salem, claro, barricas de bacalhau seco numa quantidade impressionante. A reputação de qualidade dos produtos do secadonro mais antigo da costa, estabelecido pelos primeiros imigrantes, já estava firmada. Mas o copeiro evitava servi-lo à Sra. dé Peyrac, compreendendo que ela não apreciaria naquele momento aquele prato rústico, cuja abundância nessas paragens, geradora de grandes fortunas, fizera com que fosse denominado "ouro verde".

Ainda que pudesse demonstrar que se podiam fazer com ele pratos muito delicados.

Apesar do imprevisto de sua visita, não foi pego desprevenido. Apresentou legumes frescos e sumarentos, saladas, carnes assadas na brasa.

E, homem muito previdente, tinha uma reserva de grande quantidade de bebidas frescas preservadas no gelo, e sorvetes de frutas.

Angélica compreendeu que saíra naquela manhã do malfadado Conselho com o estômago quase vazio, pois a tigela de mingau de aveia (denominado porridgé), que as criadas de Mrs. Cranmer lhe apresentaram, não a inspirara muito, apesar de a terem encorajado a acrescentar-lhe creme e melaço.

Com efeito, após ingerir alguns bocados, ela ressuscitou. Antes de sair de casa, Joffrey de Peyrac lembrara-a de pegar seu leque. Era preciso realmente que estivesse bem aturdido e que tivesse esquecido os hábitos da corte da França para não ter pensado antes nesse modesto e encantador objeto, que ajuda as grandes damas a suportar a pressa nos salões ou nas antecâmaras do rei, e o calor que por vezes ali faziam reinar as sarças ardentes das velas acesas nos grandes lustres de cristal.

Reanimada, abanava-se suavemente, rejubilando-se com esse instante de repouso junto a seu marido, com um copo de água fresca ao alcance da mão.

De onde estavam podiam avistar a cidade, cujos contornos, apagados pela bruma de calor que velava no horizonte as curvas montanhosas dos Apalaches, assemelhavam-se a uma renda recortada por florões de bordados. Era o amontoado de empenas agudas formadas pelos telhados em- cumeeiras ou em meias-águas, grambell-roof ou lintooroof, nomes que designavam águas desiguais, descendo de um lado às vezes quase até o chão, e que faziam pensar que se haviam construído essas moradias acrescentando-lhes sempre alguma coisa a mais. O todo era um eriçado formado por um regimento de altas chaminés de tijolos em estilo elisabetano, que marcava a cidade pioneira com um sinal de elegância, vindo do Velho Mundo.

Contemplando-a assim de longe, tão pacífica na aparência e tocante em seu vigor e coragem de existir, Angélica sentiu um certo remorso.

- Você me compreende, não é? - disse a Joffrey. - Quando falei que não desejava que nosso, ou nossos fiihos, nascessem na Nova Inglaterra, não quis dizer que sinta hostilidades em relação a nossos vizinhos ingleses aos quais sei que você está ligado, há muitos anos, pelo interesse de empresas importantes e pelos quais partilho sua estima. Mas, o que me parece prejudicial a nosso filho é que ele veja a luz entre pessoas que têm da virtude uma imagem tão severa, um país onde se pode condenarum homem a duas horas de pelourinho porque, voltando de viagem após três anos de ausência, beija sua mulher em público num sábado. Foi o que me contaram, e isso aconteceu com o Capitão Kemble. Em Boston, é verdade. Mas parece que essas duas cidades, Boston e Salem, rivalizam na aplicação da mais intransigente lei divina e com o mesmo ardor e encarniçamento que empregam em rivalizar na excelência das construções navais ou na exploração do bacalhau.

Joffrey riu e não contestou a justeza de suas observações.

Ele reconhecia que trabalhar com os habitantes da Nova Inglaterra, quando se tratava de mandar construir um navio, de pagar em moeda de ouro ou prata pelos direitos sobre territórios incultos e disputados ou de lançar as bases de associações comerciais, cujos intercâmbios podiam ser feitos até na China ou nas índias, só apresentava aspectos positivos e até agradáveis. Pois, nesse domínio, era bom lidar com pessoas escrupulosas, de palavra, e para as quais o trabalho e o sucesso eram um dever, o que garantia seu encarniçamento e sua aplicação em levar a bom termo o que empreendiam, e a respeitar os contratos.

Mas felicitara-se mais de uma vez por não ter de viver sob sua jurisdição, pois as motivações que os haviam impelido para o Novo Mundo não tinham nada a ver com as suas.

Isso foi admitido desde o início em suas relações, pois senão nenhum negócio teria sido possível entre todos os indivíduos que povoavam as margens desse lado do Atlântico ou aqueles que começavam a povoá-las.

Angélica observou que era menos desprendida do que ele de uma certa necessidade de comunicar-se e ser compreendida por aqueles que o acaso de seus deslocamentos fazia encontrar.

Não tinham conhecido nessas pequenas cidades por vezes fervilhantes e exuberantes, onde se falavam todas as línguas, como em Nova York, ou mais perto em-Rhode Island, uma maneira de viver e de pensar que se coadunava perfeitamente com a deles, e que não deixava prever os exageros religiosos de seus vizinhos de Boston ou de Salem, nem o que ela entrevira acerca dos primeiros fundadores, os Pilgrim Fathers, quando conhecera o velho Josuah, o funcionário do comerciante holandês, no rio Kennebec?

E que, explicou-lhe Joffrey, Salem não era a filha desses Pais Peregrinos do Mayflower que alguns julgavam amáveis iluminados e que eram acusados de desembarcar no cabo Cod, em 1620, por um erro de rota, mas a do sólido pequeno contingente de puritanos congregacionalistas que, nove anos mais tarde, chegara a esses lugares. Eram conduzidos por um tal Endicott, que não brincava com a bússola e que levava em seus cofres um mapa de Sheffield em boa e devida forma, autorizando-os a fundar o estabelecimento do cabo Norte, da baía de Massachusetts.

Ele escolheu o lugarejo de Naumbeag, local julgado, por suas informações, "agradável e frutificante", fundou Salem, destinada a ser a sede da "Companhia da Baía de Massachusetts", que ele criou sem consultar ninguém.

Englobou-lhe, sem hesitar, os antigos Plantadores e alguns conseguiram ocupar altas funções sob seu cajado. Mas os últimos que chegaram eram calvinistas, cujo partido, na Inglaterra, reclamava a "purificação" do serviço religioso na Inglaterra, que caíra nos erros papistas.

O fortalecimento de sua disciplina religiosa tornou-se pois um dever da autoridade civil, e, com toda a naturalidade, os votos foram limitados aos membros da Igreja, pois a elaboração das leis que regem a instituição de uma sociedade virtuosa não podia ser confiada a irresponsáveis, a ignorantes ou a servos como os "engajados", endividados pelo preço de sua passagem. Esses burgueses, que tinham deixado uma vida fácil na Inglaterra para que não fosse alterada a pureza de sua doutrina, não estavam dispostos a tolerar nenhum relaxamento de costumes.

Angélica éscutava-o e, mais uma vez, maravilhava-se por ele conhecer tantas coisas e saber discenir tantas nuanças nesses diversos grupinhos que tinham abordado durante esse périplo, que ela não imaginara que pudesse ser tão enriquecedor e variado. Iam para a terra dos ingleses, pensara, e só isso. Mas era uma coisa muito diferente.

E descobrira, não só toda a história agitada.dos aventureiros do Novo Mundo, mas também todo um lado da existência de Joffrey de Peyrac que ela ignorava e que fizera com que apreciasse mais ainda o homem que amava: o homem de mil facetas, dotado sobretudo desse conhecimento do humano, que se unia nele a tantos outros dons e ciências, atraía para si amigos e aliados, tal era sua paixão de interrogar e escutar.

Joffrey propôs-lhe que ficasse a bordo e dormisse, mas ela declinou da oferta. Era preciso que o navio estivesse pronto para a aparelhagem, o que poria a tripulação numa intensa atividade desde o alvorecer, e, por outro lado, não queria magoar, desdenhando sua acolhida, os anfitriões que lhes franquearam sua casa.

O sol tornava-se menos ardente, e eram cerca de quatro horas da tarde quando voltaram para terra firme, escoltados pelo habitual grupinho de soldados espanhóis que"constituía a guarda pessoal do conde e que intrigava e subjugava tanta gente em toda parte por onde passavam. Sua situação de mercenários, a serviço de um grao-senhor francês, mostrava, desde a primeira abordagem, sua independência em relação a ele, que não devia sua fortuna senão a seus talentos, sem qualquer submissão a um dos soberanos deste mundo. Isso não deixava de agradar aos new-Englanders que, em algumas colónias às quais pertenciam, eram martirizados pelo verme roedor da liberdade diante da metrópole, sobretudo desde que fora proclamado pelo rei Carlos II o Novo Ato de Navegação ou Staple Act. Uma iniquidade!, afirmavam, aliás com veemência, tanto o puritano do Massachusetts como o católico de Maryíand.

Eles estavam bem.

Quanto a ele, sentia que não tiraria os olhos dela durante todo o dia. Se não tivesse experimentado tanto prazer em sentir sua atenção sobre si, ter-se-ia censurado por lhe haver participado inquietações tão pouco importantes. Sentia-se naquele momento totalmente refeita.

Apesar de tudo, rejubilava-se com o fato de, em consequência de seu desfalecimento, ter-se tomado a decisão de deixar o mais cedo possível as costas da Nova Inglaterra e zarpar para Goulds-boro, sem escalas.

Ainda que ele não dissesse nada, estava certa de que havia lançado um verdadeiro raide para encontrar Shapleigh e que tinha se informado sobre os médicos mais competentes que deveriam procurar, caso fosse preciso.

Mas Angélica não tinha muita confiança nos médicos, de onde quer que fossem, exceto os cirurgiões de navios, por vezes hábeis, mas pouco asseados. O povo rude da Nova Inglaterra devia se atracar com a doença como com o Diabo. Face a face.

Ao dar os primeiros passos, encontraram, por acaso ou por uma intenção calculada, o mui respeitável John Knox Matther, que os abordou, dando ao seu austero rosto uma expressão tão amena quanto possível. Tinham-no visto de manhã no Conselho, tendo vindo expressamente de Boston para assisti-lo. Angélica conhecia-o bem, pois recepcionara-o dois anos antes em Gouldsboro, por ocasião de um memorável banquete realizado na praia e no qual se viram brindar, reunidos em torno da mesma mesa comprida colocada sobre cavaletes e revestida de uma toalha branca, na mesma euforia bem francesa devida aos vinhos capitosos dessa nação, coriáceos delegados do Massachusetts e modestos religiosos franciscanos de burel cinzento, huguenotes franceses e curas bretões, piratas das' Caraíbas, oficiais da marinha real britânica frívolos e anglicanos, assim como fidalgos e colonos da Acádia, escoceses e até índios...

A mesma lembrança bastante feliz devia brilhar por trás da fachada impassível do Reverendo Matther, pois ele respondeu ao sorriso de reconhecimento de Angélica com uma mímica que poderia passar por um piscar de olhos, provando que não esquecera aqueles momentos excepcionais. Mas, encontrando-se naquele momento em seu território professoral e pastoral, não podia permitir-se evocar tais desbordamentos, que não eram aceitáveis senão por terem ocorrido, sob a égide francesa, num lugar neutro que escapava a todo controle e, por assim dizer, fora do tempo, como num sonho.

Ele apresentou seu neto, que o acompanhava, um rapazinho de quinze anos, rígido e frio, mas cujos olhos brilhavam num fogo .místico, como convém ao herdeiro de uma família cujos chefes sempre se assentaram no Conselho dos Anciãos de suas comunidades, e cujo avô quisera escolher como, patronímico o nome de um reformador escocês, John Knox, amigo de Calvi-no, que dera sua forma ao presbiterianismo, irmão do puritanismo e do congregacionalismo.

Ao ver esse adolescente, ninguém diria que soubesse falar e ler com facilidade o grego, o latim e um pouco de hebreu, como era dever de todo aluno da Universidade de Cambridge (Massachusetts), a que já começavam a chamar familiarmente de Har-vard, o nome do mecenas que consagrara uma parte de sua fortuna para que se edificasse, trinta anos antes, um templo do espírito nesse país desolado, batido pelos ventos do oceano e rodeado por pântanos horríveis, florestas impenetráveis e índios hostis, mas onde já começavam a despontar, como cogumelos, as casas de madeira com telhados pontudos.

John Knox Matther lembrou que, presente naquela manhã ao Conselho, apreciara a presença do Sr. de Peyrac.

-          Só um francês pode governar outros franceses, dizem. Somos suplantados pela dissimulação dos complôs que a Nova França trama contra nós.

Pediu ao neto que lhe passasse um saco, no qual se encontravam inúmeros maços de papéis, alguns dos quais estavam enrolados e selados por um lacre de cera.

-          Só posso falar disso com você - disse, após olhar à volta e tirar do saco a página de um relatório que ele segurava como se ele pudesse lhe explodir no rosto, como uma carga de pólvora mal acesa. - Você foi o primeiro a falar dos jesuítas, e eu não quis absolutamente insistir-no assunto, a fim de não aumentar a perturbação dos espíritos, mas tenho aqui um dossiê secreto, que corrobora suas suspeitas. Há vários anos venho reunindo os elementos desse dossiê. O eclesiástico no qual nós pensamos, Padre... - olhou o papel para certificar-se do nome que pronunciou com um sotaque pavoroso - d'Orgeval, um jesuíta, sempre fez passar sua correspondência por nossos estabelecimentos com uma audácia e uma insolência inusitadas, confiando-a a espiões, às vezes até a religiosos disfarçados. Comunícava-se assim mais rapidamente com a Europa, a França e a casa matriz de sua ordem, feudo papista de nossos piores inimigos. Conseguimos prender alguns desses mensageiros e apreender algumas missivas... Fica-se de cabelo em pé ao ler seu conteúdo. Da parte dele, assim como da de seus correspondentes, que exprimem diretamente o pensamento de seu rei ou de seus ministros, é um apelo ou um encorajamento a que nos façam guerra ou nos exterminem, mesmo que, isto está sublinhado, "nossos países estejam em paz". - Estendeu o papel. - Tome, olhe! aqui e aqui!

Punha-lhes sob os olhos folhas de papel, algumas das quais eram feitas de uma fina película de casca de bétula, papel rudimentar dos missionários franceses isolados, nas quais se podiam ler, numa caligrafia nervosa, certas frases como: "Nossos abenakis se encantam por saber que sua salvação depende do número de es-calpos que irão retirar da cabeça dos hereges. Isso combina melhor com seu costume do que a abnegação, e ganhamos almas para o Céu enfraquecendo um inimigo cujo ódio contra Deus e nosso soberano jamais se aplacará..."

Numa outra carta vinda da França e dirigida pelo Ministro Colbert ao superior dos jesuítas em Paris, citavam-se as frases de recomendação pelas quais o Padre d'Orgeval e sua ação na Nova França foram apresentados ao rei nestes termos: "Padre de grande mérito, excelente para reacender a guerra contra os ingleses, com os quais assinamos a paz, o que paralisa uma ação demasiado aberta, mas ele encontrará os pretextos... O que se soube sobre sua dedicação à causa de Deus e do rei nos fortaleceu em nossos projetos. Se ele continuar assim, Sua Majestade não nutrirá senão afeição por suas empresas e saberá mostrar seu reconhecimento, não regateando ajuda às missões que ele sustenta. Ele [o Padre d'Orgeval deve impedir qualquer entendimento com os ingleses..."

Angélica via que Joffrey, com o canto do olho, vigiava suas reações e deu-lhe a entender, por um sinal imperceptível, que não se preocupasse.

Contrariamente ao que sentira naquela manhã, as revelações do governador adjunto de Massachusetts, longe de impressioná-la, davam-lhe vontade de rir. Pois ele estava de tal modo estarrecida diante de tanto maquiavelismo e irritação, por um comportamento que lhe era totalmente ininteligível, que lhe inspirava pena. Ora, para eles isso não tinha nada de noyo e já o sabiam por experiência própria. O jesuíta erguera sua bandeira de guerra contra eles, desde que puseram os pés no Novo Mundo.

Enquanto falava, John Knox Matther arrastava-os a passos miúdos para outra direção. Dobrou suas cartas e pergaminhos e recolocou-os no saco dizendo que essas questões mereceriam ser debatidas num outro, lugar que não fosse na ponta de um cais, em pleno sol. Desculpou-se junto a Angélica e disse que lamentava tê-los retido assim de pé, mas que era assaltado por calafrios incoercíveis e as mais tenebrosas apreensões quando percebia, à vista desses documentos, que um representante da temível religião romana estava emboscado no fundo das florestas, entre os pagões vermelhos, obsedado pelo único pensamento de destruir aqueles que eram colonos pacíficos, vindos à América com um só pensamento, um único objetivo: viver, trabalhar e orar em paz. Pois esses homens e essas mulheres tiveram de fugir de sua própria pátria e se exilar nesse continente selvagem apenas para escapar das perseguições de diversos governos da Inglaterra, reais ou republicanos, uns adeptos do Diabo, outros demasiado fracos para manter a religião pura e invencível.

Infelizmente, por mais longe que tente fugir, o homem justo tem de encontrar a provação que exige dele uma renovação de seu comprometimento. Na América, era o jesuíta.

Com uma voz lúgubre, citou: "Mais temível que o lobo, que o índio cruel, que a floresta hostil é este inimigo do género humano que ninguém consegue deter: o índio selvagem induzido pelo jesuíta!"

A fim de mudar o rumo da conversa e desviá-lo de sua amarga preocupação, Joffrey de Peyrac perguntou-lhe como iam os estudos de seu neto. A voz de John Knox Matther, como a dos avós, ganhou inflexões mais serenas para reconhecer que o jovem Cotton dava-lhe a maior satisfação, tendo já obtido na Universidade de Harvard o grau de bacharel, conferido àqueles que sabiam traduzir em latim o texto original do Velho e do Novo Testamento, e o grau de mestre em humanidades, que o reconhecia capaz de redigir uma dissertação sobre lógica, filosofia, aritmética, geometria e astronomia.

Lembrando-se de que Florimond e Cantor haviam estudado dois anos em Harvard, sob a férula puritana, Angélica sentiu, pensando nisso, uma admiração real por seus dois filhos mais velhos.

Imperceptivelmente, o Reverendo John Knox Matther continuou a conduzi-los e perceberam que era para a taberna da Âncora Azul, dirigida por um francês. Compreendendo repentinamente que os estava levando para um lugar pecaminoso, explicou-lhes que desejava ensinar a seu neto como zelar pela boa ordem dos estabelecimentos daquele tipo e como admoestar os beberrôes apanhados em flagrante.

Felizmente, encontraram ali Severina e Honorina, ladeadas por seus guarda-costas e que já eram o centro de um grupo de amigos dentre os quais muitos franceses, inclusive o jovem Natanael de Rambourg.

Diante da ovação cordial de que foram objeto, a intervenção de John Knox Matther frustrou-se. A lição de pregação contra a bebedeira foi adiada para depois. Contentaram-se em beber cerveja com gengibre, moderadamente, separando-se em seguida.

Fora um dia tão ocupado, que Angélica, voltando para a casa de Mrs. Cranmer, teve a impressão de que percorrera a cidade inteira, cumprimentara todos os habitantes e assimilara uns cinquenta anos de história dos pioneiros.

Muitas pessoas estavam nesse estado de deliqúescência, disseram-lhe na taberna. Isso por causa do calor esgotante ou por estarem se aproximando da época de lua cheia, olho arregalado no fundo das noites, perturbando o sono dos homens.

O sol descia por trás do monte Gallows num céu verde-pálido, alaranjado na linha do horizonte. E a brisa marinha clemente começava a agitar o calor estagnante. O mar estava azulado e murmurante.

índios vagavam pelas ruas, furtivos e estrangeiros, e não hóspedes apreciados, como em Quebec e Montreal. As pessoas não os viam, e isso era preferível para eles, naqueles dias em que os refugiados do Alto Connecticut chegavam em andrajos, pés ensanguentados e visões mais sangrentas ainda na memória.

Na extremidade da praça, um grupo de pessoas olhava em direção ao mar e discutia com animação.       .   -

Quando Angélica e Joffrey cruzaram-se com eles, eles lhes explicaram que estavam intrigados pelos ladridos de focas que se elevavam ao longe, como se um rebanho imenso desses curiosos animais, que os franceses chamavam de lobos-marinhos e os ingleses, seal, sea-calf ou sea-bear, se aproximassem da praia, o que havia muito tempo não acontecia. i Dessa vez, a casa de Mrs. Cranmer parecia repleta de gente, como se, para fazer esquecer a deserção da manhã, toda a família e a criadagem houvessem se reunido e combinado um encontro ali.

Esperavam-nos perto de uma mesa onde estavam colocados xícaras de porcelana fina, copos de cristal, baleiras e compoteiras de prata.

E talvez fosse à presença do amável Lorde Thomas Cranmer, o genro intempestivo, de provocante anglicanismo, com seu colarinho de renda e seu gibão bordado, que se devesse, nessa casa puritana, tal mobilização em honra aos papistas forasteiros. Sua esposa, Lady Cranmer, lançava-lhe olhares perdidos, e era evidente que ela estava pronta a receber "pior ainda" se, nessa ocasião, lhe fosse dado encontrar-se junto a esse belo homem louro-arruivado, de barba pontuda e de que era esposa, mas ao qual raramente via, provavelmente porque não se sentia atraído por ela, nem por sua morada em Salem, onde seus próprios filhos o chamavam de "Si?" ou de "meu honrado pai", olhando-o com uma compunção misturada de medo.

Mrs. Cranmer tinha um rosto muito suave e harmonioso, que teria sido sedutor se ela não mantivesse os lábios tão apertados. E em sua testa, já estriada por rugas finas, percebia-se a tensão permanente causada por preocupações domésticas e pelos escrúpulos.

Um lenço de musselina ornado de rendas ocultava seus cabelos castanhos, mas - sem dúvida após muitas hesitações - dera um jeito para que aparecesse o brilhante de seus belos brincos pingentes, presente de seu esposo, do qual se mostrava evidentemente orgulhosa. Movimento de coqueteria e de vaidade que ela compensava pela falta de graça do peitilho do vestido, tão teso quanto uma golilha e tão prolongado e pontudo que, com sua estatura de varapau, ela parecia estar saindo de um funil.

O sogro, Samuel Wester, também estava ali, grande ancião de casaco preto, uma calota preta e quadrada pousada em seus cabelos brancos, que se juntavam, sobre a gola engomada, à sua longa barba branca.

Angélica aceitou uns confeitos e uma xícara daquela bebida de folhas de chá muito consumidas na região.

Surpreendeu-se de que não acendessem as velas, pois estava muito escuro sob o forro da sala de jantar. Seria por economia? O dia ainda estava claro. E subitamente os últimos raios de sol penetraram por todos os vidros, com grandes brilhos dourados, fazendo chamejar e reverberar, nas paredes, retratos e espelhos, revelando as madeiras bem enceradas dos móveis e mirando-se nas lajes de mármore pretas e brancas do vestíbulo.

Angélica retirou-se tão discretamente quanto possível e subiu para seu quarto. Ali, como no início do dia, sentiu o desejo de ficar de pé diante da janela aberta. E, ao se inclinar um pouco para descobrir a apoteose do poente, a dor surgiu, mas, dessa vez, não aguda e fulgurante, mas surda e ampla, a dor inimiga cuja presença gostaria de afastar com todas as suas forças.

Mas isso, a revolta, não servia mais para nada agora.

Ela se imobilizou, deixando o sinal temível desenvolver-se e depois decrescer, pois sabia que essa dor não podia ser enfrentada com igualdade, a não ser inclinando-se diante dela, abandonando-lhe o poder, a diretiva daquilo que se punha em marcha e ia se cumprir, a não ser aceitando tornar-se sua cúmplice...

Angélica não se mexia mais. Não pestanejava.

O céu verde entrava-lhe nos olhos, mais verde do que o estandarte do profeta, onde logo se inscreveria não um crescente, mas uma lua opalina, bem redonda, um escudo de prata.

Depois baixou as pálpebras.

"A sorte está lançada!", disse a si mesma.

"Oh! Meu Deus! A sorte está lançada!"

 

Dois anjos para Angélica

Vieram ao mundo de noite. Esse mundo que eram chamados a conquistar, saudaram-no com um grito valente, espantoso de se ouvir em criaturas tão mirradas que, colocadas na mão de um homem, mal a excederiam em tamanho.

Angélica fizera por eles tudo o que podia -e tudo o que dependia dela. Colocá-los no mundo, trazê-los à luz com a maior maestria e rapidez possíveis, poupando-lhes a fraqueza. Fazendo calarem-se todas as angústias, todos os alarmes, pensou apenas em cumprir da melhor forma possível sua tarefa de mulher. A angústia e os alarmes começaram em seguida quando, separados dela, sua sobrevivência dependeria tão-somente de suas próprias forças.

A matrona irlandesa - uma papista que acabaram por encontrar e convencer a assisti-la - não lhe ocultara, assim que a examinou, que se tratava de um nascimento duplo. Por isso, aceitou lucidamente as consequências desse veredicto desde o começo do parto. Duro combate! Mas, como em todo combate, era preciso consagrar-se a ele sem hesitar, sem tremer, lançar na batalha o melhor de si mesma.

Mal ouviu seus primeiros gritos. Esgotada, um pouco desvairada, foi distraída dos tormentos do instante pelo gesto de Jof-frey de Peyrac, que ela divisava de pé à sua cabeceira e que viu levantar os braços, a fim de fazer passar, por cima de uma cabeleira hirsuta e escura de occitânico, sua camisa branca de tecido fino, que ele vestira para a ocasião. Com ela cobriu suas mãos estendidas, onde a parteira pousou dois pequenos corpos indistintos e trémulos. Então, enrolou-os com infinitas precauções e aconchegou-os suavemente a seu peito moreno e vigoroso, assim como.tavia feito uns vinte anos antes para seu primogénito, Florimond.

Era um costume da Aquitânia que Angélica esquecera: A camisa do pail

Para a criança que acabara de deixar a segurança das entranhas maternas, a camisa do pai, símbolo de seu calor, de sua acolhida e de sua proteção, está ali, apresentada e oferecida por ele.

Foi quase a última visão de que teve consciência.

Sem conseguir sair verdadeiramente do aturdimento causado pelas dores do parto e do esgotamento das forças nele investidas, viveu numa espécie de latência, no seio da qual ouvia certas palavras, certas frases, via certas pessoas, enquanto outras desapareciam.

Onde estava Joffrey? Não o via mais, procurava-o com o olhar, lembrando-se dele como de um socorro desaparecido. Julgava avistá-lo, depois o perdia de novo, procurava ao seu redor. Tinha a cabeça vazia e não conseguia concatenar as ideias, embora soubesse claramente, com toda a lucidez, o que estava acontecendo.

Um grito agudo, que se elevava não longe para o centro de aposento, verrumava no âmago de seu ser uma angústia intolerável. Seu olhar detinha-se nos limites vagos de um berço.

Mrs. Cranmer, a anfitriã de pouca sorte, mandava descer do sótão, com muitas queixas, um berço suspenso, espécie de cesta trançada, guarnecido com um colchão de cascas de aveia, que fizera a viagem no Mayflower e que passava de um para outro na família.

Colocaram-no sobre uma mesa e nele deitaram as duas que ali cabiam perfeitamente.

Em algumas horas, dois dias apenas, por mais frágeis que parecessem, invadiram tudo, mobilizaram em torno da casa de empenas de Mrs. Cranmer os pensamentos de toda uma cidade e seu porto.

Um nascimento de gémeos-contém múltiplos sinais... hesitava-se em interpretá-los. Sobretudo para gémeos nascidos de tais personagens, católicas e francesas.

Deitados no berço que acolhera as primeiras gerações puritanas da América do Norte, os recém-nascidos ocupavam o centro do mundo e todavia não participavam dele absolutamente. Su extrema fragilidade os isolava, os rejeitava para o além. Não se ousava falar deles nem comentar sua presença, e por esse silêncio, Angélica compreendia que os circunstantes, instintivamente, não se decidiam a contá-los entre os vivos.

Podia iludir-se sobre as possibilidades de sobrevivência de crianças nascidas bem antes do tempo e tão frágeis? Apegando-se ao mínimo indício favorável, dizia a si mesma que o calor sufocante que reinava na baía e que a aniquilava, deixando-a ensopada de suor no oco de seu leito, talvez fosse a salvação para eles.

Teve, involuntariamente, sabendo perfeitamente o quanto essa energia primeira era enganosa e vã nos prematuros, alguns momentos de esperança ao vê-los mamar com vigor, ávidos e corajosos. Depois, suas forças puseram-se a declinar.

O silêncio que vinha agora do berço compungia seu coração com uma angústia mais opressiva que seus gritos do início.

Apresentavam-nos a ela que os alimentasse, desviando os olhos. E ela sabia que esse sono que os aniquilava contra seu seio, depois de alguns esforços, não era o da saciedade, mas o da fraqueza. Eles adormeciam e já a deixavam, deixavam este mundo, se distanciavam...

Falou-se de procurar-lhes uma outra ama-de-leite. Mas quem quereria amamentar crianças católicas nessa cidade? E depois, aliás, a questão não era essa. Sua mãe tinha leite. Muito leite. Mas do que era preciso para suas forças débeis. Falou-se de alimentá-los na mamadeira com leite de burra, mas não havia leite de burra naquela estação.

Mudaram para leite de ovelha. Mas eles vomitaram o que os fizeram ingerir e a seguir o recusaram, deixando escorrer o líquido para fora dos lábios.

Angélica ignorava ainda de que sexo eram as crianças e não pensara em informar-se. Ouvira perfeitamente repetirem à sua volta exclamações felizes e satisfeitas: "A escolha do rei! A escolha do rei!", o que significava que havia um menino e uma menina. Sabia, pois, mas isso não alcançara completamente seu entendimento e, ademais, pouco lhe importava. Eram apenas dois pequenos corpos, dois pequenos seres de carne, declinando para o túmulo. Colocavam-nos em seus braços como dois casulos brancos. Gostaria que os livrassem de suas faixas e exigiu que o fizessem. Queria pegá-los novamente, apertá-los contra si, nus, como quando estavam dentro dela.

A corrente que unia os três atravessava-os. como uma luz mágica. Mas a luz se enfraquecia, Angélica a sentia empalidecer acima dela, esvaziando-a de suas próprias forças. Ao final do segundo dia, foi-lhe preciso suportar o instante em que compreendeu que o menino ia morrer.

Era noite. Acabaram de acender as velas em belos castiçais de prata dourada, enquanto do lado de fora se completava, com o declínio da luz, o desenrolar impávido dos esplendores. O cre-i púsculo primeiramente, estirando-se sem fim, de um ouro pálido, depois a noite violeta sobre o mar.

Angélica estava sentada em seu leito, um leito de parte alguma, fora de todos os lugares, fora do tempo.

Segurava o bebe nu diante dela, entre os lençóis, entre os dois joelhos erguidos, contemplando-o, contemplando o apagar da vida nos traços imprecisos, delicados, de seu rosto miúdo, que se encovava, tomava uma coloração cerúlea. Ele tinha uma cabecinha redonda, calva, ambarina.

A obscuridade penetrava agora pela janela, que era preciso deixar aberta a fim de se poder respirar um pouco, e que trazia o ruído ritmado da ressaca e do chamado dos lobos-marinhos.

Quando a lua se levantasse, o ladrido das focas redobraria, celebrando seu aparecimento. Mas na hora em que o astro surgisse, traçando no horizonte uma linha de metal puro, a criança estaria morta.

Não lhe haviam dado ainda um nome. Iria morrer assim, anónimo?

Onde estava Joffrey? Esforçava-se por lembrar-se. Seu nome estava dentro dela coma um grande grito, mas seu desespero varria tudo, afogando seu chamado sob vagas sufocantes.

As palavras de um versículo bíblico que ouvira outrora os hu-guenotes recitarem, em suas ravinas da Vendée ou de Gâtine, nas noites igualmente escuras, batiam-lhe nas têmporas como dobres de sinos.

"O homem nascido de uma mulher

corre em dias..."

E voltava-lhe como um lamento:

"Corre em dias! corre em dias..."

Quão poucos dias teria vivido esse homenzinho, nascido dela! Mais precioso do que um tesouro.

Tão minúsculo, já invadira sua existência até a anular, a extraviar, a reduzir, a destruir, pois ele a destruiria, privando-a de sua presença nova.

-          Não morra! Não morra, meu amorzinho!

Fazia um esforço para pedir socorro, para se lembrar, mas o quarto estava vazio, o mundo estava deserto.

Estavam sozinhos, Mãe e Filho, vogando sobre os vapores de uma noite tenebrosa, a bordo de um escaler estranho, no seio de uma penumbra cheia de brilhos, espelhos, colunetas de madeira torneada, sedas do baldaquino e pregas das cortinas de brocado.

-          Não morra, meu amorzinho! eu lhe suplico! Não morra; se você morrer, eu também morrerei!

Subitamente, o menino jogou a cabeça para trás como um pássaro com o pescoço quebrado. Seus braços se distenderam e deslizaram.

Angélica, levantando os olhos numa última e louca súplica ao céu, avistou dois anjos. Viu-os nitidamente, franqueando a soleira do quarto.

Tinham tamanhos diferentes, mas uma mesma beleza irreal, o rosto pálido e luminoso, o sorriso cheio de doçura, irradiando seus traços puros marcados por uma juventude eterna. Suas longas cabeleiras, uma de um louro pálido, a outra de um louro dourado, caíam em cascatas em seus ombros. Mas estavam vestidos de preto.

E compreendeu. Não se surpreendia por distinguir em seus peitos, no lugar do coração, uma mancha vermelha, uma mancha de sangue, o sangue do coração das mães apunhaladas pela dor.

Eram os Anjos da Morte.

Vinham buscar a criança.

Recolocara-a na concavidade do braço a fim de sustentar a cabecinha demasiado pesada. Seu alento ténue diminuía.

Angélica olhava os anjos aproximando-se, mas a doçura de seus sorrisos e a serenidade de sua aparição fizeram que o grito dilacerante, que sentia se erguer dentro dela, não lhe ultrapassasse os lábios.

Deixou-os, sem qualquer revolta, pegar a criança querida.

Resignada, aniquilada, viu-os estendê-la diante dela, sobre a colcha, após revesti-la com um lençol. Sua mortalha, provavelmente... O anjo mais novo colocou as duas mãos no corpo inerte, acariciando-o, envolvendo-o com as palmas. O outro inclinava-se também, e era de seus olhos, de uma transparência azulada, que saía um brilho subjugante. Suas pesadas cabeleiras formavam como que uma cortina de tecido dourado em torno da criança agonizante.

Ela estremeceu bruscamente, depois se distendeu, sem dúvida num espasmo supremo, lançando seus pequenos pulsos para todos os lados, as perninhas enrijecidas. Seu rosto adormecido crispou-se,*enrugou-se, pareceu apagar-se, reduzindo-se a uma boca escancarada de onde escapou um grito penetrante. Simultaneamente, de seu minúsculo membro brotou, fonte de vida, um filete de água clara, inocente, de pureza magnífica.

- He is saved! - exclamou um dos anjos. - Ela está salvo. E o outro, voltando-se para Angélica, disse:

- Ele está com fome. Minha irmã, você tem leite para nutri-lo? Claro que sim, tinha leite.

Com a sucção veemente da boca do recém-nascido, Angélica sentia aplacar-se a dor de seus seios engurgitados, dor que se somava a todos os sofrimentos de seu corpo impotente durante essas longas horas em que, atravessando uma agonia da alma, perdera a consciência da realidade.

O quarto subitamente se encheu de gente, silhuetas moventes, ruidosas, que se entrechocavam, sobretudo mulheres, o rosto mergulhado em enormes lenços, que soluçavam - ou riam -, não sabia exatamente, rostos de homens congelados, marcados por uma espécie de medo e de embaraço, e também saias e vestidos de mulheres que iam e vinham.

E finalmente, nessa barafunda, ela o reconheceu, ele! Ele! grande, escuro, e não conseguia lembrar-se de seu nome, mas ela estava ali, ele voltara, e tudo estava bem. Tranquilizada, queria abandonar-se ao sono, mas, subitamente, sobressaltou-se, receando ter sonhado.

Onde estavam os anjos?

-          Afastam-se - dizia sua voz imperiosa.

Um braço a amparava. E, novamente, avistou-os, debruçados sobre o bercinho, que seu olhar fixava há um tempo que lhe parecia infinito, enquanto, num movimento conjunto cuja ordenação de bale muito bem regrada quase lhe causava náuseas - não compreendeu tampouco por quê -, a massa enlouquecida das saias, depois de ter-se imobilizado, dividira-se e se afastava dos anjos e do berço num movimento solene e irresistível, como o mar Vermelho, para que os hebreus passassem.

Nesse espaço permaneciam apenas os anjos e o berço, e Angélica compreendeu, por esse respeito - ou terror - que imobilizava as pessoas reunidas ali, que não era a única a vê-los, os enviados do céu.

Sempre serenos, doces e luminosos em seus vestidos cor de luto, com aquela mancha de sangue vivo no lugar do coração, voltaram para a cama de Angélica. O maior carregava com muita ternura e cuidado alguma coisa que quase não tomava lugar, nem parecia muito pesada ou incómoda.

-          Sempre se esquecem das mulheres - disse o anjo mais novo, rindo. - Mas vamos cuidar dela também.

A menininha, acordada, dava gritinhos queixosos. Mais vigorosa que o irmão, continuava a resistir, mas não tardaria a segui-lo ao túmulo.

Sob a carícia das longas e diáfanas mãos do anjo, expandiu-se como uma flor, abriu os grandes olhos de um azul escuro e enevoado, pareceu sorrir e agradecer com graça. Aceitou o seio com delicadeza, mamou compungidamente, paciente, sensata, decidida a viver. Seu gémeo, novamente nos braços dos anjos, dormia agora um sono sereno. E não era a um factício reflexo das velas que-ele devia essa renovação de um clarão róseo em suas bochechas, ainda há pouca tão lívidas!

-          They livel They suck! - repetia-se. E isso formava um zumbido de júbilo, estupor, medo, que subia, descia, rodeava a cama. - Eles vivem! Eles mamam!

"Terei bebido alguma coisa?", perguntava-se Angélica.

Sentia-se, com efeito, presa de uma embriaguez insólita. O dossel da cama balançava, os rostos se deformavam, os sons se desvaneciam e voltavam em seguida com um estouro súbito. Estava bêbada, sim, da embriaguez da felicidade reencontrada, devolvida muito subitamente, do triunfo da vida sobre a morte, elixir inigualável.

A febre começava a subir. Ela reconheceu os efeitos dessa febre que, desde o Mediterrâneo, a assolava por vezes. Dali a pouco ficaria escaldante de febre, gelando em seguida. No momento, essa vertigem, mesclada à alegria desmedida, não era desagradável!

Viu os dois anjos inclinar-se sobre ela e notou então que a mancha vermelha que tinham no lugar do coração não era de sangue, mas uma letra em tecido, um A recortado grosseiramente e costurado com grande pontos no tecido preto de seus vestidos.

"Uma sarja bem ordinária, a desses vestidos", avaliou. Depois, perguntou-se: "Será que bebi alguma coisa?"

Mas os arrebatadores semblantes dos seres seráficos permaneciam perplexos. Ouviu, vinda como de um buraco de sombra, uma voz de homem, a voz dele, que traduzia em inglês sua pergunta. Duas cabeças louras fizeram com veemência sinais negativos. Não, não lhe haviam dado nada para beber.

-          Mas já é hora de se cuidar, você também, pobre irmã - disse o anjo mais velho, com uma compaixão tão terna que Angélica desfaleceu, mais fraca ainda e mais aturdida.

Deslizaram-lhe sob os ombros um travesseiro de plumas em sua fronha de pano fino e fresco. Afundou-se nele, deixando fecharem-se sobre ela as vagas de um oceano de imobilidade e beatitude. Ia partir e encontrá-los finalmente, os mensageiros, os de sua infância, que outrora lhe prometiam baixinho "a nlais bela vida do mundo".

Mas, consciente, no último momento, do valor que possuía na terra e do que representava para os seres que a amavam e para todos os que, conhecidos ou desconhecidos, viviam de sua vida, teve forças para murmurar como uma promessa:

- Eu voltarei...

Perturbados, os presentes a julgaram morta, se desnortearam, depois se serenaram ao notar-lhe a respiração bastante precipitada, mas sinal de vida, que soerguia seu peito, e as manchas ardentes que marcavam seus pômulos, Um a um, meio contrariados, retiraram-se.

No fundo da noite, a lua se levantava sobre a baía de Massa-chusetts e, desenrolando sua bobina mágica, puxava sobre o horizonte um fio de prata, demarcando céu e terra, e Diana, uma estrela na testa, deusa dos velhos mundos, geradora de fertilidade e fecundidade, semeava, aos punhados, pelos sulcos das vagas junto às praias, mil vidrilhos cintilantes.

As focas vieram ali foliar, um bando completo de lobos-marinhos com brilhos de bronze que brincavam loucamente entre as cristas resplandecentes, sem se preocupar com os homens próximos e com essa gambiarra negra e oscilante que, num trecho de céu lunar, erguiam mastros e as vergas dos navios, no porto.

E, por instantes, seu canto grave se amplificava quando levantavam, num súbito conjunto, seus focinhos redondos, para fora das ondas - cabeças lisas, sem orelhas -, e bramiam para as nuvens orladas de luz que atravessavam o firmamento.

A gente de Salem ouviu.

Muitos pensaram, sem ousar comunicá-lo, que os lobos-marinhos, que havia decénios se mostravam ariscos e fugiam dos homens, não tinham ido à costa com tanta ousadia naquela noite senão para celebrar um acontecimento oculto do qual, uma vez mais, a casa de Mrs. Cranmer se fazia teatro - aquela mulher tinha cada uma! -, e cujas ressonâncias cósmicas, tão incalculáveis quando desastrosas, ultrapassariam de muito, em importância, receavam-no, aquele fato afinal bastante natural, apesar de contrariante, que representava o nascimento gemelar de duas crianças papistas e francesas em sua cidade de eleitos do Senhor, da Nova Inglaterra.

"O Deus, proteja dos espíritos impuros aquele cujo umbral está marcado pelo sangue do Cordeiro!"

 

Longo delírio entre a vida e a morte

A luz se intensificava.

Tal como o orvalho da aurora aspirado pelos raios de sol, ela se sentia partir rumo a essa luz cada vez mais branca, cada vez mais vasta, como se fosse uma abóbada ou um caminho infindável. Como o orvalho da aurora, ela se dissolvia, se evaporava, percebiam-se essência e quintessência, assim como um perfume que foge e treme, visível e invisível ao mesmo tempo. Levantada, ela partia, partia. Para lá, onde não mais existe dor nem receio.

A pontada de uma promessa voltou-lhe ao espírito, suspendeu a corrida eterna, fez com que perguntasse: "Será que ela virá comigo?"

Permanecia suspensa, estirada, dilacerada por uma nostalgia desmedida, mais torturante que todos os suplícios da terra.

"Não. Ainda não! Ele deve permanecer neste mundo."

Teve consciência de estar gritando involuntariamente.

- Então, eu não quero. Não posso! Não posso... deixá-lo sozinho.

E a luz se apagou. Uma lassidão apoderou-se dela, há pouco tão leve, oprimiu-a a ponto de sufocá-la, e um sangue fervente insuflou em suas veias o fogo da febre violenta que a fazia tiritar e bater os dentes.

O Cavaleiro de Malta, numa túnica guerreira vermelha, morria sob as pedras que lhe atiravam. Um projétil mais violento em pleno peito lançara-o no chão e, agora, via-se tão-somente, emergindo de um monte de pedregulhos, sua mão, os dedos crispados.

Por que, virado para Angélica, gritara-lhe, no momento de ser entregue aos furores da massa muçulmana: "Eu lhe dei seu primeiro beijo!"?

Tudo não passava de loucura, desvario. O que prevalecia dentro dela era decepção cruel. Estava pois em Argel, apenas sonhara que encontrara aquele a quem procurava, seu amor desaparecido: Joffrey! Joffrey!

Andara portanto em vão, atravessara em vão os desertos e os mares. Achava-se prisioneira. Prisioneira de Osman Ferradji, que lhe segurava a mão enquanto a febre a queimava com sua incandescência. Ouvia seu próprio fôlego, precipitado, entrecortado, assobiando entre seus lábios ressequidos. Ela ia morrer. "Não", repetia-se. "Não." Lute e triunfe. Você lhe deve isso. Pois mesmo que não o tenha encontrado, não posso... não posso deixá-lo sozinho! Ele precisa de mim. Precisa que eu sobreviva. Ele, o mais forte e livre dentre os homens. Ele me viu. Estou plantada em seu coração. Ele me disse. Não posso magoá-lo assim. Os outros o magoaram muito. E, no entanto, gostaria de partir para lá, onde toda a febre se aplaca. Não se deve morrer. Tenho de evadir-me do harém..."

"Colin vai chegar. Ele afastará Osman Ferradji. Já aconteceu antes. Ele me reconduzirá aos caminhos da liberdade, a Ceuta, onde o Sr. de Breteuil me espera, da parte do rei. Colin, Colin, perdoe-me."

"Quer dizer que ele não contou. Pois então seriam sete e não seis. E La Voisin, a feiticeira, dissera: seis. Ele nem sequer contou em meu destino. Nada! Um sopro! Psiu, cale-se! É um segredo. 'Pois', dizia a virago que se debruçava à sua cabeceira, todas as mechas de seu cabelo fora de sua touca suspeita,'... minha pequena dama, creia-me, não se deve lamentar nada... As crianças só complicam a vida da gente. Se não as amamos, são um estorvo. Se as amamos, tornamo-nos fracos..."

"Colin, Colin, perdoe-me! Leve-me. Apressemo-nos! Não quero que ele embarque e pense que o abandono."

"Onde ele está?"

Apesar de seu apelo, ele não vinha. Formas estranhas inclinadas para ela tentavam dominá-la, paralisá-la. Ela se debatia para escapar-lhes e correr.

O bramido agudo de uma voz infantil verrumava suas têmporas através da agitação martelante e extenuante dos fantasmas à sua volta, uma voz de menina aterrorizada, chamando sua mãe, uma voz que" reconheceu: Honorina. Honorina, que ela havia esquecido Honorina, que abandonara, Honorina, que os dragões do rei iam lançar ao fogo ou alancear.

Viu-a, brandida por eles, com seus cabelos numa auréola tão vermelha quando a do horrível Montadour e tão vermelha quanto esses horríveis barretes vermelhos dos dragões do rei, as longas mechas de seus barretes agitando-se como línguas obscenas em torno de suas caras pavorosas de mercenários, possuídos pela alegria cruel e debochada de imolar uma criança, jogada pela janela de um castelo em chamas.

Soltou um grito terrível, um grito de agonia.

E subitamente o silêncio retornou, e viu-se num quarto da casa de Mrs. Cranmer.

Estava em Salem, cidadezinha da América cujo nome quer dizer "paz" e cujos habitantes jamais encontram a paz.

Reconhecia muito bem o quarto e espantava-se por considerá-lo de um ângulo diverso e, no final das contas, divertido. Pois ela via tudo, como se pudesse detalhar a composição a partir do balcão do andar de cima.

O leito num canto, o baú, a escrivaninha, uma mesinha, uma poltrona, um espelho, tamboretes de tapeçaria, o conjunto perturbado e desarranjado pelo turbilhão de pessoas que entravam, se precipitavam, torciam as mãos, os braços, tornavam a sair, pareciam chamar e gritar. Mas esse ridículo bale, entrevisto em meio ao agradável silêncio, não a indispunha, empenhada como estava em descobrir-lhe o sentido, até ter notado que ele parecia ordenar-se numa espiral que recomeçava incessantemente ao redor de dois pontos: a cama no fundo de sua alcova, onde lhe pareceu divisar uma mulher deitada, e a mesa central sobre a qual estava colocada uma espécie de cesta de onde emergiam duas cabecinhas.

Duas rosas num ninho.

Soube que um sentimento de responsabilidade a prendia àqueles miúdos rebentos, manchas róseas, vaporosas, lado a lado, tão doces, tão bem-comportadas, tão sozinhas e distantes.

"Pobres coisinhas", pensou, "não as posso deixar."

E no esforço que fez para se aproximar deles, provocou a ruptura do silêncio, viu-se projetada numa cacofonia de ruídos fra-gorosos e estrondosos, de raios e de tempestade, atravessando uma obscuridade sombreada de trombas-d'água caindo como alabardas.

Seu coração quase estourava de alegria. Viu-o, andando a passos largos através das rajadas que inflavam sua capa. Então não havia sonhado! Sabia perfeitamente que o encontrara e que agora dirigiam-se juntos para Wapassu, sob cataratas de chuva. Chamou-o na tempestade.

"Estou aqui! Estou aqui!"

Parece não ouvi-la e continuou a andar, e ela via bem de perto seu rosto cavado e devastado que a chuva parecia mergulhar em lágrimas. Era uma cena alucinante, incoerente, pois, através da chuva que fazia crepitar tochas mais enfumaçadas que luminosas, distinguia muita gente, índios abrigados sob suas cobertas de comércio, os espanhóis de Joffrey cujas as couraças luziam, e esse chapéu pontudo, esse bacamarte à bandoleira, era Shapleigh, por quem esperara tanto. Mas quem era Shapleigh? "Devo estar doente ou estar sonhando." Sentia-se pouco à vontade. A obscuridade muito profunda era anormal. Mas não era um sonho, pois continuava a ouvi-lo. Ouvia a chuva que batia no telhado. Chuva, roncos, sussurros... Uma perna gorda, muito branca, a coxa rechonchuda à qual se somava a bola de um joelho, seguido de um tornozelo cheinho e de um pezinho atarracado, agitava-se perto dela, no escuro, como um grande verme obsceno e pálido...

"Desta vez, estou no inferno", pensou, de tal modo os movimentos convulsivos de criaturas indistintas que se debatiam na sombra lhe pareceram recriar esse bulício de copulações ferrenhas entre demónios e danados, que a Madre Saint-Hubert lhes mostrava, no convento de Poitiers, num grande livro intitulado A divina comédia, do poeta Dante Alighieri, e cujas gravuras que ilustravam "Os Círculos do Inferno" provocavam pesadelos nas "maiores", que ela queria que ficassem "avisadas". Só que, neste inferno presente, os demónios, como há pouco também os anjos, falavam inglês. Pois, quando, sustentados por um desencadeamento total de sopros e suspiros, as contorções e estremecimentos dessa perna branca - que parecia duplicada por outra perna do outro lado de um forte traseiro masculino - se apaziguaram, uma voz elevou-se, dizendo em inglês:

- Estou perdida! E você também, Harry Boyd.

O inferno parecia portanto reduzir-se àquele único par assustado, e as outras formas que ela adivinhava poderiam muito bem ser vacas em repouso num estábulo, ou carneiros num aprisco. Angélica, cansada dessas tolices, refletiu que, para fazer parar esse nefasto absurdo que lhe infligia tantas visões estranhas, possuía no meio do rosto, no lugar correto, duas pálpebras que lhe bastaria levantar, e dedicou todas as suas forças a esse difícil exercício, pois suas pálpebras pesavam como chumbo, soldadas, fechadas para sempre. Enfim, filtrou-se por elas um pouco de luz. Muito lentamente, abriu os olhos, reconheceu o dossel da cama, os pássaros de seda bordada que haviam habitado seus sofrimentos e seu delírio.

Uma luz, suave como mel, num velador de vidro tingido, iluminava a alcova.

Notas musicais... Era a chuva do lado de fora, pingando em gotas sonoras.

Voltou a cabeça, num esforço infinito, para perder de vista os pássaros, cujas asas sedosas começavam a agitar-se para uma decolagem, e viu os anjos, dessa vez sós, sentados à sua cabeceira, velando por ela. Não se surpreendeu. Depois do inferno, o paraíso. Mas o paraíso não é o céu, ponderou seu espírito anuviado, que jamais gostara de ficar inativo e reassumia seus direitos.

O paraíso é sempre terrestre. Como, aliás, também o inferno. O paraíso é a felicidade na terra pelo segredo transmitido da felicidade infinita. Olhando para essas duas criaturas tão belas à sua cabeceira, apoiadas uma à outra e misturando suas cabeleiras louras num movimento de abandono que aproximava suas cabeças fatigadas, soube que uma mensagem lhe era entregue, uma ínfima parcela do que julgara entrever quando subia rumo à luz infinita.

Nesse instante, os mensageiros do céu olhavam um para o outro. A claridade irradiante de seus olhos claros mesclava-se numa intensa expressão de reconhecimento arrebatado, e, por seus finos perfis cinzelados pelo dourado do velador, e tão próximos, soube que seus lábios, ignorantes da maldição dos corpos, frequentemente se uniam.

A letra "A" em seu peito, a letra escarlate, brilhava, tomava proporções imensas, e uma palavra se inscrevia em vermelho-fosforescente: Amor.

"Então é isso", disse a si mesma, "esse novo mandamento. Eu não tinha compreendido: o Amor."

Uma verdade deslumbrante, até então falsificada, truncada, mal compreendida, impunha-se, inscrevia-se em letras de fogo:

"Para lá dos corpos

Mas, pelos corpos,

O sorriso de Deus".

- Ela acordou!

- Voltou a si!

Os anjos cochichavam, sempre em inglês.

-          Minha irmã bem-amada, você nos reconhece?

Estava surpresa com esse tratamento familiar.

Eles se inclinavam sobre ela, e seus dedos tocavam a seda de sua longa cabeleira.

Então eles existiam. Assim, por meios deles, era doravante depositária de um grande segredo.

Os anjos trocaram um olhar de alegria triunfante.

- Ela renasce!

- E preciso chamar o Homem. Negro.

O Homem Negro, outra vez! Iriam recair nas loucuras tenebrosas? Angélica estava farta de delirar e de passar de um transe a outro.

Ela se esquivou, confiou-se ao sono como ao seio materno.

Dessa vez sabia que se tratava de um bom sono, um verdadeiro sono humano, profundo e reparador.

Um barulho de carroça martelava-lhe a cabeça.

Seria preciso fazer parar a passagem desses cavalos que arrastavam, no lado de .fora, pesadas carroças. Ela dormia muito, muito bem, por muito tempo.

- É preciso acordar...

- Meu amor, é preciso acordar...

- Desperte, queridinha! O deserto está longe. Estamos em Salem.

Vozes conjuravam-na e a incomodavam, repetindo: "Salem, Salem, Salem. Estamos em Salem, na Nova Inglaterra-. Acorde!"

Não queria contrariá-las, decepcioná-las. Abriu os olhos e estremeceu, pois seu olhar, assim que se habituou à luz ofuscante de um sol brilhante, recaiu primeiramente num negrinho de turbante que agitava um leque, depois, na face barbuda e loura de um gigante: Colin Paturel, o rei dos escravos de Miquenez, no reino de Marrocos.

Colin! Colin Paturel!

Ela o fixava com tanto medo de estar sendo vítima de alucinações, que Joffrey de Peyrac lhe disse suavemente:

-          Minha amiga, não se lembra de que Colin juntou-se a nós na América e que é atualmente governador de Gouldsboro?

Ele permanecia do outro dado da cama, e reconhecer seu querido rosto tranqiiilizou-a definitivamente. Maquinalmente, levantou as mãos para arrumar seu peitilho de rendas, atado de qualquer maneira.

Ele sorriu.

Agora, desejava reencontrar-se em Salem. Paz na terra aos homens de boa vontade. Eles enchiam o quarto. Na crua luz do sol - estava um lindo dia -, ela reconhecia, além do negrinho, dois chapéus pontudos dos puritanos, um índio de tranças compridas, uma encantadora indiazinha, um soldado francês de sobrecasaca azul, Ademar, depois, numerosas mulheres, em vasquinhas azuis, pretas, marrons, colarinhos e toucas brancas. Entre elas, havia três ou quatro donzelas, sentadas junto à janela diante das ondas de tecidos, as quais costuravam, costuravam como se a participação deles no baile do Príncipe Encantado dependesse de sua diligência.

-          E... Honorina? Honorina!

- Estou aqui - gritou uma vozinha aguda. E a cabeça de Honorina surgiu ao pé da cama, como um diabrete, os cabelos desgrenhados emergindo da colcha, sob a qual permanecera escondida durante horas.

- E...

Uma reminiscência angustiada fazia palpitar seu coração esgotado... duas rosas num ninho.

- As... as criancinhas?

- Elas estão bem.

Preocupações de mãe puseram-se a trotar em sua cabeça vazia. Alimentá-los? Seu leite? A febre devia tê-lo estancado ou tornado nocivo para elas.

Adivinhando seu tormento, todos os assistentes se precipitavam para explicar-lhe, tranquilizá-la, depois se calavam ao mesmo tempo, não querendo atordoá-la com o coro de suas vozes conjugadas.

Enfim, aos pedacinhos, juntando cada qual sua palavra, puseram-na a par dos acontecimentos, com precaução. Sim, seu leite havia secado e devia felicitar-se, pois, se a febre do ingurgitamento dos seios se juntasse àquela que a consumia... Oh! Santa Virgem!

Não, as crianças não sofreriam com isso. Haviam arranjado boas amas-de-leite para elas. Uma era a mulher de Ademar, a sólida Iolanda, que chegara no momento propício com seu gordu-chinho de seis meses. A outra, a nora de Shapleigh.

A nora de Shapleigh?

Explicavam-lhe tudo aos poucos. Ela não devia fatigar-se, apenas restaurar suas forças. A trama dos acontecimentos entrava nos eixos. Gostaria de saber como Shapleigh... E por que o negrinho?

Mas estava ainda fatigada demais.

-          Gostaria de ver o sol - disse.

Dois braços fortes - o de Joffrey de um lado, o de Colin, do outro - ajudaram-na a soerguer-se nos travesseiros e a sustentaram. Afastaram-se para que pudesse ver a luz, que entrava aos borbotões pela janela escancarada. E aquela reverberação de lascas de ouro ao longe era o mar.

Conservava a lembrança de uma tentação sublime que a arrastara, impelira para a estrada de uma luz sem fim. A lembrança, a sensação, se esfumavam... Essa deixava no fundo da alma como que uma poeira de nostalgia.

Em contrapartida, por sua vida resguardada entre os seres a quem adorava e que se apressavam à sua volta, cercando-a com sua cálida afeição, com seu amor, sua ternura, sua alegria por encontrá-la viva e por vê-la sorrir, soube que era a mulher mais feliz do mundo.

O pesado calor cedera à tempestade fragorosa. Na noite em que Angélica quase morrera, vento, raios, trovão, chuva fustigante, disputavam o céu e a terra. Quando voltou a si, durante a noite, restava apenas a chuva, lavrando a enseada, afogando as ilhas, transformando as ruas em regatos vermelhos, enquanto, dos telhados pontudos de empenas cortadas, a água escorria trauteando nos tonéis colocados na relva, nas esquinas das casas.

Quando a tempestade se acalmou, esse concerto de mil cascatas durou ainda muito tempo, permanecendo sozinho a encher as cercanias, até que, substituído pelos cantos dos pássaros sob a folhagens inundadas, sobrou apenas o ritmo sincopado dos escoamentos que caíam, depois se rarefaziam, em belas notas redondas e sonhadoras. E a cidade emergiu, graciosa, envernizada, cheia de brilhos de sol, que faziam fulgurar os frutos maduros nos vergéis e refletir os ornatos de pedaços de vidro ou de faiança incrustados nos rodapés das casas.

Isso durara três dias. Um verdadeiro dilúvio, que acreditaram destinado a escoltar o luto de uma bela jovem estrangeira e de suas criancinhas, e que ressuscitava, como foi observado, no exato momento em que o sol retomava seus direitos. O calor também reapareceu, mas respirava-se melhor.

Angélica conseguia com dificuldade escapar ao atordoamento e à fraqueza em que a mergulhara o acesso pernicioso da febre palustre, cujos germes conservava dentro dela desde o Mediterrâneo, e que se somara às perturbações do parto.

Continuava a flutuar na imprecisão, a cair no sono como na morte, a despertar, persuadida de que se escoara um tempo infinito e que jamais, jamais, deixariam Salem e chegariam a Wapassu.

Joffrey de Peyrac tranqiiilizava-a, dizendo-lhe que mal tinham chegado ao fim do verão e que ela estaria de pé em menos de dez dias, refeita em todo caso para embarcar no Arc-en-Ciel, onde poderia concluir sua convalescença. Assegurava-lhe também que estariam em Wapassu com seus pequenos príncipes bem antes do início do frio, sem por isso deixar de permanecer o tempo necessário em Gouldsboro.

Mas Angélica perdera a noção do tempo. Para ela, os minutos ram horas, as horas, dias e os dias, semanas.

Elias Kempton levou-lhe um de seus almanaques das estações que ele vendia ao longo dos rios e das costas, a fim de demonstrar-lhe que fazia apenas dois dias que ela recobrara a consciência.

Mas então, ela confundiu-se totalmente, e a dança das folhas de papel, cujas letras e imagens desfilavam à sua vista, provocou-lhe vertigem.

Que estava fazendo ali o mascate de Connecticut? Claro, ele estava ali! Por que não? Previra há muito tempo que estaria em Salem ao mesmo tempo que a frota de Peyrac. E o negrinho, que avistara ao despertar, não era outro senão seu pequeno ajudante Timóteo. E Mister Willoagby? Ofcourse. Mister Willoagby também estava em Salem. Com muito boa saúde e sempre faceto. Mas, introduzi-lo na casa seria aumentar demais as provações de Mrs. Cranmer.

Em seus primeiros momentos de lucidez, teve consciência de estar dando uma atenção ridícula aos menores detalhes das vestimentas daqueles que se debruçavam sobre ela. Reconhecia-os, mas dir-se-ia que seu pensamento não podia ir além de um olhar superficial, que era solicitado sobretudo por uma fita desamarrada, um colarinho branco ou regalos de um belo acetinado, a textura ou a cor de um tecido. Como as crianças, seu olho fixava-se, procurando, ao que parecia, compreender, recolocar seu espírito no ritmo confuso e desordenado, demasiado multíplice e diversificado, da materialidade das coisas.

Como fora atraída pela mancha vermelha no vestido dos anjos e como essa letra "A" mergulhara em seguida em seu delírio para cantar "Amor, Amor", o menor objeto, tecido ou fita, parecia-lhe dotado de vida própria, e sentia a necessidade de tocá-lo ou colocá-lo no lugar, como se quisesse apaziguá-lo e devolver-lhe seu caráter inerte.

Foi assim que, quando Joffrey de Peyrac se inclinou sobre ela, levantou maquinalmente suas mãos diáfanas e retificou o nó do jabô de renda, um pouco frouxo, depois alisou o colarinho da sobrecasaca, mal-assentado, gesto de uma meiga esposa preocupada com a aparência de seu esposo, mas que jamais faria, se estivesse lúcida. Era antes ele quem fazia a inspeção das pessoas de seu círculo, e como todo chefe de guerra zeloso de se apresentar em seu posto de comando ou ir para o combate impecável em sua toalete, não saía das mãos de seus valetes ou escudeiros senão impecavelmente vestido e adornado, dedicando aos seus e a seus homens a mesma vigilância cuidadosa.

Mas, durante o combate que ali se travara, não era surpreendente que ele mesmo tivesse se deixado levar por algumas negligências, e esse gesto de Angélica o fizera sorrir, de tal modo isso era ao mesmo tempo inusitado, encantador e terno da parte dela, e lhe trazia a prova de que ela estava de volta entre eles.

E ela, sentindo sob os dedos a rugosidade do bordado, continuou seu gesto a fim de acariciar um ombro firme e robusto; era como se tivesse tocado a terra, tivesse parado de se mover no éter, em meio aos fantasmas.

Esse sorriso acima dela era o sorriso dele. Durante toda essa "viagem", fora esse sorriso que receara não mais rever, e essa inquietação permaneceu como um minúsculo nódulo negro no seio da luz paradisíaca; e fora a saudade desse sorriso e desses lábios, cujo desenho bem-delineado e sensível, meio mouro, ela tanto amava que a fizera perguntar: Ele virá comigo? Sofrera a força de seu encanto, que a fizera voltar, pois deixara o caminho de luz e recomeçara a procurar entre as personagens de sua vida...

Por ora, tendo voltado ao mundo terrestre, precisava traçar as coordenadas, mais ou menos como os navegantes.

Retomou, pois, contato com o real. Muito rapidamente, era o que lhe afirmavam, mas de.um modo que ela, por seu lado, julgava caótico e lento.

Perturbada, temia incessantemente delirar. Carecia reatar acontecimentos e visões, aquilo que surpreendera ou compreendera através das brumas e dos dilaceramentos da febre ou de seu espírito perdido com as aproximações da morte, e recolocar objetos e pessoas nos devidos lugares. Não era coisa fácil, pois, com efeito, todo mundo estava às avessas depois desses dias de aflições terríveis, como se um tremor de terra tivesse abalado, não só a asa, mas a cidade, em sua ausência. E achava que todos tinham m ar desvairado e um comportamento hesitante, como se ti-essem sido virados no avesso como uma meia, constrangidos, as horas do drama, a mostrar um rosto próprio, cuidadosamente antido ao abrigo de todos os olhares até então, e que deseja-iam não ter nunca de revelar. Seria culpada? O que falara em seu delírio? Duas mulheres com austeras toucas brancas, muito estreitas, que ela via ir e vir sem distingui-las muito bem, uma atrás da outra, a primeira usando uma espécie de varinha, pareceram-lhe, mais do que ela mesma, uma fonte de enlouquecimento.

Alguém contou-lhe que, desde que haviam entrado na casa, tinham declarado que o berço não estava no lugar certo, nem o leito da parturiente, pois nesses lugares subiam para eles ondas nocivas saídas das falhas subterrâneas.

-          Olhem o gato!

Com efeito, nem bem mudaram o berço de lugar, o gato fora sentar-se e enrodilhar-se como uma bola no lugar em que ele estava anteriormente, o que era uma prova do que elas diziam, pois, como se sabe, os gatos, ao contrário dos homens, procuram essas feridas invisíveis da crosta terrestre para aí se recarregarem de forças telúricas.

- E a casa, então?

- A casa tampouco estava no lugar correto. Queimem-na! - disseram elas.

- São quacres mágicas - cochichou Mrs. Cranmer, inclinada para Angélica. - Elas são inquietantes.

Angélica olhou-a fixamente, intrigada por seu aspecto. Mal a reconhecia e, em dados momentos, não a reconhecia de modo algum e perguntava-se então quem seria essa mulher careteira, de boca agitada, tez acinzentada, olhos fundos, pupilas dilatadas, que se inclinava para ela, com os cabelos desgrenhados.

- Eu não compreendo - dizia ela - por que o consistório ainda não as expulsou da cidade! Por que está me olhando dessa maneira?

- Madame, é moda em Londres as mulheres usarem apenas um brinco?

Mrs. Granmer levou com presteza a mão ao lobo da orelha.

-          Oh! God! Esqueci-me de pôr o outro! Não sei mais onde estou com a cabeça. Incomodam-me cem vezes por dia, mesmo quando estou fazendo minha toalete. Tomara que não o tenha perdido!

E retirou-se rapidamente, gemendo.

Angélica censurou-se por tê-la desconcertado. Admoestava-se por ser mais indiferente às palavras que lhe dirigiam do que a essas bagatelas de vestuários. Mas isso a ajudava por ora a participar da vida, enquanto esquecia quase imediatamente as palavras que se pronunciavam diante dela. Havia perguntas que ela não ousava proferir, de medo que a julgassem novamente acometida pela febre. Perguntava-se, por exemplo, para onde teriam ido os anjos de longos cabelos louros, e sua ausência a entristecia. Não tinha, em todo caso, sonhado! Estava certa disso: eles tinham vindo, pois as crianças estavam vjivas.

Reconheceu-as imediatamente pela letra "A" vermelha bordada em seus corpetes, quando as duas mulheres de touca branca, que tanto atemorizavam Mrs. Cranmer, se inclinaram para ela com seus sorrisos seráficos, com o intuito de cuidar dela e arrumar-lhe a cama.

- Mas, onde estão seus cabelos? - exclamou.

- Debaixo das toucas - responderam-lhe, rindo. - Não era sem tempo. Mrs. Cranmer dramatizava tudo, mas nós estávamos na cama quando ele foi nos procurar para salvar a criança. Só tivemos tempo de pôr nossos vestidos comuns e segui-lo, com nossos cabelos caindo nos ombros. Durante dois dias não pudemos deixar sua cabeceira e a das crianças.

- Quem as foi procurar?

- O Homem Negro!

O espírito de Angélica vacilou de novo... O Homem Negro!

Um jesuíta! Sempre essa imagem mítica da predição! Depois, lembrou-se de que estavam na Nova Inglaterra, e se, na Nova França, os índios convertidos costumavam designar os religiosos da Companhia de Jesus pelo nome de "Togas Negras", havia, primeiro, poucas probabilidades de encontrá-los em Salem, onde eram considerados piores que o Diabo, segundo, o próprio Diabo podia ser designado pelo termo de Homem Negro pelos puritanos. Shapleigh referira-se a isso na primeira vez que o encontrara com seu bacamarte na floresta, e podia-se indagar se essa crença, fortemente ancorada nos espíritos, e que os teólogos confirmavam com todo tipo de referência, não nascera do medo que inspirava aos primeiros imigrantes, lançados numa costa hostil e desconhecida, a grande floresta primitiva e sem fim, repleta de animais selvagens e de pagãos, que começava a alguns passos de suas rústicas habitações. E isso era comprensível.

Pois, mais ainda que o mar das Trevas que conseguiram atravessar, a floresta era sua inimiga, opondo à sua marcha de pioneiros, desejosos de cultivar a terra nutridora, uma frente de árvores cerradas e não lhes concedendo esse pouco de terra arável senão à custa de esforços que os esgotavam. Ela recuava nessa floresta, possivelmente, levando seus demónios, mas ela era sem fim. Estabeleceu-se, pois, que o Homem Negro assombrava a floresta primitiva, reunindo sob seu cajado as criaturas pagãs que lhe eram submissas. Se o viajante solitário vindo do Velho Mundo porventura o encontrava, a aparição negra lhe estendia um livro grosso e pesado com uma fecho de ferro enferrujado e uma ponta metálica terminada em bico de pena.

"Escreva seu nome aqui", dizia Satã.

"Com que tinta?"

"Com seu sangue."

"Mas, e se eu me recusar?"

O Diabo então dava um risinho, desnudava o peito de seu interlocutor e apunha-lhe magicamente uma marca vermelha. Depois, ordenava:

"Assine agora! pois, seja como for, o inferno o marcou".

Assim, centenas, milhares de viajantes que se atrasavam ou partiam ao acaso, desdenhosos da força religiosa de sua comunidade, tinham sido marcados por Satã, principalmente nos primeiros tempos, pois, naquela época, os fiéis avisados se comportavam com mais prudência. Foi para lembrar esse terror salutar das obras de Satã, que espreita sempre o indisciplinado ou rebelde, que os virtuosos puritanos instituíram o uso da letra escarlate a ser usada pelo culpado em caso de escândalos particularmente revoltantes, mas que não necessitavam contudo da pena de morte, que só se aplicava aos assassinatos ou aos crimes de feitiçaria.

-          Quem foi mesmo, digam-me, que as procurou para salvar a criança? - perguntou novamente, após um longo instante de reflexão, que as duas quacres aproveitaram, com uma destreza que ela não teria censurado para lhe tirar a camisola, banhá-la dos pés à cabeça com água perfumada, fazer-lhe um curativo, vesti-la com roupa fresca, mudar os lençóis e a fronha.

E agora, vendo-as tão próximas e podendo distinguir a finura de sua pele lisa e fresca, a beleza de seus traços juvenis, compreendia por que não as reconhecera naquelas duas mulheres que aterrorizavam Mrs. Cranmer e as tomara por anjos. Pois tratava-se de mulheres bem jovens: uma delas, grande e empertigada, devia ter vinte e cinco anos, e a outra parecia recém-saída da adolescência.

A essa pergunta, trocaram um olhar malicioso de meninas arteiras, e a mais velha tomou a palavra:

- Perdoe-nos, minha irmã, por ter ousado chamá-lo de Homem Negro. Sabemos que ele não tem nada de diabólico. Mas nós o chamávamos assim nos primeiros anos em que ele vinha a Salem, pois, vestido com roupas escuras, com seus olhos e seus cabelos negros, ele nos assustava um pouco. Mas aprendemos a conhecê-lo e, quando foi nos procurar, nós o seguimos.

- Mas quem? - insistiu Angélica, inquieta com o fato de não entender direito e de ter ficado com o espírito perturbado ou de ter perdido a memória.

- Mas ele, o pirata francês de Gouldsboro.

Devia entender que Joffrey continuava a ser, aos olhos das populações do Massachusetts, o pirata francês? E devia entender então que fora Joffrey quem fora procurar... os anjos?

Adormeceu tão brusca e profundamente que, ao acordar, não podia acreditar que estivessem no mesmo dia e que não dormira senão uma horinha.

Mrs. Cranmer estava novamente ali, após encontrar o outro brinco, e Angélica, repousada, não apenas a reconheceu, mas ficou alegre ao vê-la, pois, consequenteínente, o que pôde saber de mais coerente sobre os acontecimentos ocorridos nos dias em que estivera inconsciente deveu-o a ela. Ela aparecia e desaparecia, mas Angélica tinha a impressão de que não deixava de estar atenta, fosse junto a seu leito, fosse no corredor entre a alcova e a parede, o que não deixava de ser exato, pois a pobre Mrs. Cranmer, transtornada pelo que se passava em sua casa, consciente de que não podia fazer nada e de que não lhe davam ouvidos, refugiava-se perto de Angélica, sentindo que ela, apesar de sua fraqueza, a ouvia atentamente. A inglesa mantinha assim uma leve esperança de que, inteirada de certas coisas, a Condessa de Peyrac pudesse intervir a seu favor. Foi, portanto, inicialmente, dela que Angélica obteve alguns esclarecimentos sobre aquelas a quem continuava a chamar de anjos. Isso se deu em três conversas, mas a história era tão longa e tão estranha, que Angélica conservou a impressão de ter escutado, durante dias e noites, um interminável conto oriental, como os que são relatados durante dias por certos mendigos, nas cidades islâmicas.

Mrs. Cranmer começou a remontar bem longe no passado, falando-lhe de um pequeno grupo de quacres que viera, dez anos antes, buscar refúgio em Salem, tendo a maior parte deles sofrido em Boston condenações de prisão e tortura.

Deram-lhes acolhida, mais para desacreditar o governador Wintrop, de Boston, do que por tolerância em relação aos membros de uma seita desconhecida, considerada uma das mais perigosas pelos teólogos do Massachusetts. Mas eram pouco numerosos e prometeram manter-se afastados, respeitar as leis civis e não se entregar a nenhum proselitismo de suas impudentes doutrinas. Entre eles, encontrava-se uma viúva muito jovem chamada Ruth Summers. Ora, ela pediu de chofre para ser admitida entre os puritanos de Salem, queixando-se de ter sido induzida por seus educadores quacres para fora dos caminhos da Verdade. A Verdade única que, como ficara cabalmente demonstrado, saíra pura e regenerada da Reforma, movimento religioso iniciado pelo inspirado monge alemão Martinho Lutero, sancionado pelo iluminado padre francês Calvino e que, depois de ter conhecido a purificação de seus erros, como o anglicanismo, graças à luta do grande filósofo escocês John Knox, instigador do puritanismo, encontrou sua expressão perfeita, abrindo caminho entre os "dissidentes", ou "nào-confõrmistas" perseguidos. No fim de um século, afastando-se do presbiterianismo hesitante, conseguira atingir a puríssima religio, a religião pura e sem mácula, da qual, depois dos profetas de Israel, a Epístola de São Tiago e todo o Novo Testamento, esboçavam os traços, na forma do "congregaciona-lismo", que servira de base ao estabelecimento da Carta de Mas-sachusetts e que se praticava em Salem.

Submeteram Ruth Summers a exames rigorosos. Teve-se de reconhecer que ela sabia do que estava falando e que estudara a fundo a questão, não fazendo, de modo algum, aos severos guardiães da lei, que presidiam os destinos do Estado, a injúria de confundi-los com tantos correligionários arrefecidos ou perdidos, a quem, por comodismo, costumavam, como eles, designar genericamente como "puritanos".

Como fosse muito inteligente e mostrasse muito tino nos negócios que realizava, aceitaram-na. Sua integração foi apressada por seu casamento com Brian Newlin, um habitante de Salem, que a notara durante o julgamento e desejava desposá-la.

Obtiveram a concessão de uma fazendola nas proximidades. E isso resultou em mais um casal exemplar na capital do Massa-chusetts, até o dia em que...

Ao chegar a esse ponto da narrativa, Mrs. Cranmer interrompeu-se, olhou à sua volta, depois se aproximou de Angélica. Sua voz baixou num sussurro. Até o dia em que Ruth Summers, que se tornou Ruth Newlin, esposa do honorável Brian Newlin - a voz de Mrs. Cranmer baixou mais ainda enquanto seus olhos se arregalavam -, "...avistou Noémia Shiperhall na lagoa..."

Tendo enunciado essa frase sibilina, Mrs. Cranmer endireitou-se. Depois, calou-se, como que esmagada pela revelação.

-          O que Noémia Shiperhall estava fazendo no lago? - perguntou Angélica, após um instante.

A dama apertou os lábios e assumiu um ar fugidio. Isso fora há muito tempo, e já não estava bem certa, disse num tom que provava que, pelo contrário, lembrava-se muito bem.

-          Em todo caso - continuou, meneando a cabeça -, os pais de Noémia não mereciam ter uma filha como aquela.

Mas foi interrompida pela chegada de uma criada e teve de parar aí.

Quando Mrs. Cranmer retomou seu relato - teria sido uma hora depois ou no dia seguinte? - Angélica esquecera a metade da história e perguntava a si mesma por que Mrs. Cranmer começara a contá-la. Todos esses nomes ingleses que se misturavam em sua cabeça...

Entrementes, tomara conhecimento do nome de seus próprios filhos: Gloriandra para a menina, Raimundo Rogério para o menino. Por que esses nomes? Quem os dera? E agora, pensando nisso, tinham-nos batizado? Um batismo secreto? Esse pensamento, esquecido por ela, sobre o batismo feito enquanto seu filhinho estava em perigo de morte, atormentou-a. Deveria realmente acreditar que se tornara irreligiosa?

Irreligiosa, talvez, mas não separada de Deus, pensou logo. "Eu te retirei e pus ao largo", dissera a voz, eco de um salmo cheio de ternura e solicitude.

Mrs. Cranmer parecia impaciente em prosseguir sua narrativa. ...Noémia Shiperhall, sempre se soubera, desde o seu nascimento, era uma feiticeira. Mas isso se confirmou definitivamente após a história da viúva Ruth.Summers, esposa de Newlin. Pois esta, tendo-a visto no lago, desceu imediatamente de sua car-riola, tomou-a nos braços, beijou-a na boca e levou-a a uma cabana que conservara dós tempos de solteira, no fundo da floresta. E, a partir desse dia, elas não se largaram mais. O que provava que Noémia Shiperhall era de fato uma feiticeira, mas também que Ruth Summers Newlin - que esqueceram completamente ter nascido quacre, pois ela era rigorosa no exercício das preces e não tinha havia muito qualquer relação com seus antigos correligionários - sempre fora, portanto, sob seus rigorismos aparentes, uma convertida mais do que suspeita. Pois, era normal que, possuindo uma fazendola, estábulos, celeiros e currais, sem falar dos entrepostos e da lojinha no porto, conservasse em segredo, na floresta, uma cabana aonde, como mais tarde se soube, ia frequentemente sozinha, pretextando que.ia vender no mercado suas salsichas e queijos? Ora, o que estava fazendo nessa cabana a não ser encontrar-se com o Diabo?

Daí em diante, elas ali viveram, infamadas por todos, acrescentando ao escândalo criado por sua torpeza o de recolher uma criança cigana, uma garotinha abandonada sob uma moita de su-magre por uma tribo nómade que um navio, inadvertidamente, deixara desembarcar. Esses selvagens e obscuros indivíduos julgavam ter chegado ao Rio de Janeiro, no Brasil, e tiveram de expulsá-los para o sul com seus macacos, seus rocins e suas carroças multicoloridas, esperando que, de cidades em aldeias, as dez ou doze colónias inglesas os fizessem chegar até a Flórida espanhola sem sofrer seus malefícios.

Não era pois de surpreender que o Sr. de Peyrac, para levá-las de suas cabanas até ali, tenha se munido de uma forte escolta. Tivera até de mandar guardar a porta da residência dos Cranmer por seus homens, de armas em punho, para manter à distância a multidão que se juntara ao vê-las e que não podia conter um resmungo diante de sua aparição de tal modo elas pareciam insolentes, com seus cabelos caídos nos ombros. Não adiantava fingirem que não tinham tempo para se pentear...

- Mas... de quem afinal você está falando? - reclamou Angélica.

- Ora, das infames criaturas que conspurcam minha casa! - exclamou Mrs. Cranmer, chocada por ver que Angélica, após uma história tão sombria e escandalosa, não se mostrasse indignada. Ah! aí estão!

As "infames criaturas" penetravam no quarto, sorridentes, carregando cada qual um bebé, acompanhadas pela criança cigana, uma adolescente de quinze anos, de pés descalços e olhos ardentes, coroada de flores e carregada com um cesto de belas frutas, pêras, maçãs e ameixas, que colocou sobre uma mesa, e com uma corbelha cheia de pétalas que começou a semear pelo chão, a fim de refrescar e perfumar o ambiente. A mais velha, enquanto recolocava os bebes no berço, dizia que, como o sol estava brilhando e o vento se abrandara, tinha levado os bebés ao jardim para dar seu primeiro passeio sob o céu de Deus.

Angélica fez um gesto a Mrs. Cranmer para que se aproximasse e disse-lhe a meia voz:

- Você falou tantas coisas... Agora, diga-me claramente: quem são elas?

- Mas, acabei de dizer-lhe!

- Você divagou. Essas mulheres não podem ser as pessoas de que falou. Elas são jovens demais!

A inglesa deu um sorriso, ao mesmo tempo entendido e triunfante.

- Ah! Você vê! Você também!

- Como, eu também?

- Você também pode constatar os efeitos de sua magia. E cochichou:

-          Dizem que... Satã deu-lhes o segredo da eterna juventude!

Por graça divina, Mrs. Cranmer foi chamada a outra parte, e Angélica suspirou de alívio ao vê-la desaparecer. Estava esgotada.

Quando reabriu os olhos, as duas mulheres de sorrisos seráficos inclinavam-se para ela com lençóis brancos e uma bacia de água quente.

Seu olhar devia refletir um certo desnorteamento.

- Minha irmã, tranqiiilize-se - disse a mais velha, passando várias vezes sua mão delgada diante dos olhos fixos de Angélica, como para distraí-la de um pesadelo.

- Como se chamam? - perguntou.

- Noémia Shiperhall - respondeu a caçula.

- Ruth Summers - disse a outra.

Pronunciavam "Noémia" e "Ruth" à maneira hebraica.

Era inacreditável!

"Elas têm o segredo da juventude eterna", dissera Mrs. Cranmer. Angélica, olhando para "seus" anjos, tranqúilizava-se por descobrir em seus rostos, mais pela expressão do olhar ou por uma ruga grave e madura dos lábios, a possibilidade de que tivessem vivido tantos acontecimentos longínquos e ocultassem, por trás de uma aparência primaveril de vinte anos, trinta ou trinta e cinco anos de idade.

Principalmente Ruth, a viúva Summers, a rendeira virtuosa... Essa história estava mal contada.

-          O que fazia Noémia Shiperhall no lago? - perguntou Angélica.

Preparando-se para erguê-la para retirar os lençóis, elas se interromperam e trocaram um meio sorriso.

-          Ah! Ela lhe contou isso! - disse Ruth.

Colocou os braços em volta dos ombros de sua amiga, e olharam-se em silêncio, com os olhos brilhantes.

-          Não era culpa dela - continuou, com doçura. - Ela nasceu assim. Ela via a cor da alma das pessoas em torno de suas cabeças e podia curar pela imposição das mãos. Assustava por seus poderes miraculosos. E foi a desgraça de sua vida, sobretudo quando se tornou muito bela. Pois os rapazes a cortejavam, mas não ousavam de modo algum se declarar e fugiam, dizendo que ela trazia a desgraça. Todavia, ela não é senão Beleza e Bondade.

Continuavam o olhar uma para a outra. Depois, parecendo lamentar ter de deixar as esferas do sonho, puseram-se diligentemente a dispensar a Angélica seus cuidados habituais, enquanto falavam e contavam sua história.

Em primeiro lugar, a história de Ruth Summers.

Pelas comoções morais que ela sofrera, em sua infância, pela perseguição sofrida por seus pais, a história de Ruth, nascida Mac Mahl, viúva Newlin, assemelhava-se estranhamente à de Guilhermina de Montsarrat, a senhora da ilha de Orléans, na Nova Inglaterra, cujo espírito ficou marcado por ter assistido, com a idade de sete anos, ao suplício de sua mãe, imolada como feiticeira numa fogueira qualquer das escalas da Lorena.

Mas, se Guilhermina passava a vida com essa chaga no coração por uma injustiça tão inexplicável quanto intolerável - "Olhe, feiticeirinha! olhe sua mãe na fogueira!" - e um ódio ardente pela gente da Igreja, e só encontrara paz afastando-se, se não dos vivos, pelo menos da sociedade comum e carneira que, dócil e satisfeita com suas leis e instituições, constitui o que se chama simplesmente as "pessoas comuns", ela, Ruth, que devia ter sido uma mocinha muito bonita, alta, de tranças louras, revoltou-se bem cedo contra o ostracismo de-que era vítima sua doce e meiga mãe. Com seu rosto iluminado, que sorria sempre, ela respondia aos insultos, às pancadas e escarros com uma inalterável cortesia, e ao chegar, ainda criança, com doze anos de idade, à América, consciente de estar numa terra onde não tinham por que se manterem velhas servidões de posição social, não compreendia o que desencadeava contra eles o ódio de pessoas que, como eles, tinham vindo da velha Inglaterra e que, como eles, trabalhavam arduamente, se enriqueciam com seu trabalho, tinham fé no mesmo Deus e veneravam o mesmo Cristo... Seus pais, talentosos e trabalhadores, prosperavam rapidamente em toda parte onde plantavam os primeiros pilares de suas casas, mas, assim que ficavam abastados, começavam as intrigas e ofensas por qualquer atitude deles, censurando-os, não por terem pregado, mas simplesmente por terem atravessado a aldeia.

Ruth invejava as pequenas puritanas que, seguras de seus direitos, nessa terra do Massachusetts, passavam em grupos diante de sua casa espetando os dedos como chifres e gritando: "Trema! Trema, diabinha!" Gostaria de misturar-se a elas e, também ela, ir fazer chifres para o bode expiatório chamado católico, qua-cre, evangelista ou batista. E, no entanto, poder-se-ia sonhar com atmosfera mais doce e serena do que a que reinava entre as famílias de sua seita, sob o teto de colmo das casas, no seio das pequenas aldeias ou vilarejos, que tinham de deixar mal acabavam de construí-las, e que uma turba odienta e tétrica vinha queimar depois que se iam, como se tivessem deixado ali os miasmas da peste?

Essa exclusão era ainda mais insuportável para a jovem Ruth do que os perigos de coerção que a ameaçavam.

Infelizmente para ela, era absolutamente impermeável à iluminação interior que movia a maior parte de seus correligionários e os ajudava a suportar tantas humilhações. Seu esforço para dissimular, a seus olhos, a secura e a revolta de seu espírito a esgotava. Na verdade, achava-os estúpidos por se vangloriarem dessa alcunha de quacres, os "tremedores", com que eram agraciados, porque um místico sapateiro de Leicestershire, George Fox, levantara-se. um dia de seu banquinho e saíra a proclamar pelos caminhos que era preciso tremer - to quake - diante de Deus e preocupar-sé apenas com o Espírito Santo.

Esse sapateiro não estava errado por pregar um pouco de bondade £ de misericórdia numa Inglaterra arruinada, onde católicos e reformados, puritanos e anglicanos se espicaçavam havia decénios, em nome de um deus de amor.

Mas Ruth teria preferido que George Fox continuasse a remendar seus sapatos em sua oficina de artesão, pois os adeptos da Sociedade dos Amigos levantaram-se aos milhares para segui-lo, e isso só serviu para fornecer novas vítimas aos carrascos, e novos fugitivos às rotas oceânicas.

Aos dezesseis anos, Ruth, pequena quacre itinerante da costa do Atlântico, desposou John Summers, quase da idade dela, mas grande e belo, com uma pele angelical, adolescente vigoroso, jovem trabalhador tenaz, piedoso, corajoso e sorridente. Amava-a, inconsciente da impetuosidade e da amargura que se desenvolviam dentro dela. Enriquecida, daí em diante, por uma nova força, ela decidiu resistir aos trotes de seus compatriotas, reclamando para os quacres o que também eles tinham vindo de tão longe buscar: a liberdade e o direito de rezar ià sua maneira.

Eles se vingaram então no jovem esposo e o condenaram ao pelourinho, por um pecadilho, zombando de que ele "tremesse" diante de sua mulher também e não soubesse fazê-la calar-se. Esqueceram-no - voluntariamente? - no banco de infâmia, numa noite gelada. Ele morreu.

Os clamores de Ruth Summers causaram grande escândalo, mas, uma vez mais - haveria nela alguma coisa que inspirava aos juízes medo e que eles não ousassem enfrentar? -, a puniram prendendo seus pais. Vergonhosamente flagelada na praça do mercado, sua mãe faleceu alguns dias depois. Tendo as feridas de suas costas se infeccionado, uma febre escaldante acabou com ela.

O pai foi condenado à amputação de uma orelha, sanção costumeira, conforme a lei, para o primeiro delito. No segundo delito, seria a outra. A execução não se consumou. Na véspera, foram avisar Ruth de que seu pai, na prisão, fraturara o crânio numa queda da escada.

Era preciso partir. Uma força súbita e decisiva movia Ruth Summers.

Convenceu a maior parte dos membros da Sociedade dos Amigos a subir para o norte e queimou ela mesma as casas que deixavam para trás.

Sabe-se que em Salem ela se separou dos seus, até aquele dia de inverno ou de outono em que... "avistou Noémia Shiperhall".

E agora era a história de Noémia.

-          Quando a vi pela primeira vez, ela estava mergulhada num lago gelado, até o pescoço, com o pálido rosto emergindo como uma grande flor de nenúfar - contou. - "Eles", junto ao bosque, esperavam, cantando salmos, que o Diabo saísse por sua boca.

Sim, sua boca estava entreaberta, pois ela ia expirar. Pobrezinha... O que mais eu podia fazer senão saltar de minha carriola e correr para arrancá-la a seu negro túmulo? O gelo já se fechava como um garrote em volta de seu pescoço, e, assim que a puxei para a margem, a camisola que vestia começou a gelar em seu corpo e a ponta de seus longos cabelos tornou-se quebradiça como vidro. Beijei-a nos lábios, seus pobres lábios azulados e gelados! Queria tanto comunicar-lhe meu alento, o calor de minha vida!

Não tivera tempo de desfazer o nó, também endurecido de gelo, da grande corda que, amarrada sob as axilas da jovem, alcançava o galho de uma árvore e passava por uma polia, que permitia que a erguessem da água de tempos em tempos, a fim de constatar se o mal ainda estava ali ou sé se podia considerá-lo definitivamente extirpado.

Correndo até sua carriola para pegar uma faca, a jovem fazendeira contentara-se em cortar a corda e, carregando Noémia Shiperhall nas costas, levara-a até sua cabana.

-          Contaram cada história sobre essa cabana! - ela ria-se, sacudindo a cabeça. - Em primeiro lugar, essa cabaninha não era, como se comentou, na floresta, mas junto à floresta... Meu marido, avisado do escândalo pelos boatos, foi até lá. Proibi-lhe franquear a soleira daquele refúgio, daí em diante sagrado, daí em diante, meu. Ele compreendeu e se retirou. Tracei, então, um círculo com pedras diante da casa, que não deveria jamais ser ultrapassado por ninguém. Isso aterrorizou a todos, não sei por quê. Parece que ninguém percebe que é um dever de cada um saber, .de acordo com o tempo e as circunstâncias, se preservar ou se livrar de constrangimentos insuportáveis.

Eu sentia que o serviço de Deus me mandava, daí para a frente, amar Noémia Shiperhall, defendê-la dos maus, ajudá-la a desenvolver seus dons benfazejos, o dom de curar, que o ódio a uma certa felicidade dispensada aos homens para ajudá-los a viver levava as pessoas infelizes e amargas a destruir com ela, já que não haviam conseguido sufocá-los inteiramente e destruí-los nela.

Ora, ela possuía o poder do Bem graças a suas mãos curado-ras. Os que sabiam disso começaram a procurá-la secretamente. Ajoelhavam-se diante do círculo de pedras e suplicavam nossa ajuda.

Mandei então construir uma espécie de celeiro um pouco mais longe, e começamos a curar os que nos eram trazidos.

Tudo isso era contado aos pedaços, entre dois rápidos afagos dispensados à parturiente ou aos bebés. Angélica escutava com avidez, como teria devorado uma migalha de pão após uma marcha extenuante, ou bebido a água fresca de um poço, ao voltar do deserto. Sim, era uma sensação de plenitude que lhe davam essas vozes e essas palavras, com seu sabor capitoso e cheio dos vivos fermentos de uma verdadeira história. Duas vidas: sofrimentos e alegrias verdadeiros, combates e desafios reais!

Um sopro épico arrastara para fora do caminho comum essas humildes criaturas, prometidas ao manto branco ou preto das quacres e à existência patética de um casal maldito, relegado àquele lugar distante, na pequena casa junto à floresta. Angélica as entendia, ligava-se a elas, experimentando nesse confronto uma espécie de segurança nova.

Longe de esgotá-la, essas narrativas, na verdade, a reanimavam. Sua convalescença evoluiu rapidamente sob o açoite tonificante desse intercâmbio, pois acabava de encontrar nessas duas mulheres seres que falavam a sua linguagem.

Enfraquecida, e por isso preocupada com o instante presente, jamais, desde os tempos remotos em que ouvia muito atenta as histórias da ama-de-leite Fantine, no velho castelo de Monteloup, se sentira tão absorvida pelas peripécias de uma história e tão impaciente por conhecer-lhe a continuação.

E um dom da infância amar tudo aquilo que a inicia. Ouvindo as duas "quacres mágicas" de Salem, Angélica reencontrava aquele gosto pela iniciação - que depois se arrefecera -, vivo, profundo, denso, cândido, ávido.

Surpreendia-se algumas vezes por compreender tão bem o inglês que elas falavam, que, no entanto, era rápido e eivado de palavras complicadas ou expressões de terror que ela ignorava. Linguagem apurada, de resto, pois ambas tinham feito estudos profundos e diversificados, uma vez que a educação das mulheres sempre foi considerada com seriedade nas seitas religiosas oriundas da Reforma, sendo um princípio para elas que tanto a mulher quanto o homem podiam oficiar e pregar a nova fé, e participar do exercício do culto.

Princípio difícil, seguidamente questionado.

São Paulo e suas epístolas, em que transparecia a misoginia bíblica - não foi ele, antes de sua conversão, um dos membros da seita dos fariseus? -, provocaram muitos atritos a esse respeito entre os presbiterianos e os congregacionalistas derivados do calvinismo.

Nessa época, um dos atos de acusação mais graves que imputavam aos quacres era, precisamente, o de que as mulheres pudessem realizar o ofício sagrado da transubstanciação do pão e do vinho.

Angélica estava, pois, diante de duas mulheres inteligentes e cultas, pitorescas em seus propósitos, hábeis e decididas em suas maneiras, caridosas, alegres e indulgentes, aptas porém a se defenderem corretamente. Sua exaltação - ou o que ela tachava como exaltação, no início de seu encontro - era para elas uma defesa necessária.

Para permanecer o que eram, objeto de escândalo, mas seguras de seu inteiro direito de o serem, precisavam afirmá-lo ou pelo menos lembrá-lo em voz bem alta sempre que podiam, especialmente quando as populações, domadas por algum tempo, acalmadas e como que seduzidas por elas e por seus "milagres", sofriam uma nova crise e pretendiam reconduzi-las, não aos caminhos da virtude comum, pois era demasiado tarde para isso, mas às cloacas tenebrosas da feitiçaria e do deboche, de onde só deveriam tirá-las para o julgamento e a forca.

Então, formavam-se cortejos. Intimidavam os juízes e- os regentes a desenrolar os pergaminhos e a colocar o capelo para o tribunal, e dirigiam-se aos urros para a casa junto da floresta. Alguns raivosos preparavam a corda, outros, a lenha e os archotes, prometendo ser os primeiros a atear fogo na palha dessa cabana diabólica, e todos se detinham, tão bruscamente quanto antes, junto ao círculo de pedras. Pois tinham pavor de que elas se mostrassem, tão belas, à soleira da porta, pedindo-lhes, com o dedo em riste, que voltassem para suas casas. Tinham ainda mais pavor de que não aparecessem, pois, nesse caso, supunham que haviam voado magicamente, pela chaminé, a fim de escapar ao castigo.

-          Conseguiram condenar-nos a levar em nossos corpetes a le tra "A" da palavra "adultério".

Da marca vermelha e infamante de Satã, subsistira apenas, na jurisdição do Massachusetts, o "A" para designar as mulheres culpadas de adultério, tendo o "B" de "blasfemador" ou o "T" de ladrão (thief) caído em desuso.

-          Eu aceitava a condenação - disse Ruth -, mas não era justo para Noémia, pois ela não traíra homem algum, já que não era casada...

Brian Newlin, o esposo ultrajado, dera queixa? Não. Procuraram fazê-lo confessar que sua esposa, trânsfuga de uma seita maldita, sorrateiramente infiltrada no seio de uma comunidade preservada, "espetara-lhe a agulhinha", tendo-o cumulado de todo tipo de desgraças.

Mas ele se manteve calado, e acabaram por deixá-lo em paz. Ele continuou sua vida como se nada tivesse acontecido, lavrando seus campos, ordenhando suas vacas, batendo sua manteiga, tosquiando seus carneiros, frequentando a meeting-house, u co menos sóbrio, um pouco mais taciturno do que antes.

-          Não receio por Brian Newlin - dizia por vezes Ruth, voltando o rosto para as colinas verdes, onde se encontrava a fazendola de que tinha sido proprietária. -'Os homens são lentos e resistem a descobrir outras luzes além das que receberam por passividade e conservaram por indolência, mas não menos aptos a acolhê-las e procurá-las.

Tinha bons augúrios sobre a transformação de um homem que a surpreendera, durante seus anos de vida em comum, por gostar de ler e reler em segredo, num pequeno volume de que não largava e que ela inicialmente julgara ser um livro de orações, os sonetos e epístolas de um poeta inglês, Gabriel Harvey, príncipe da rima e inovador do hexâmetro na poesia inglesa da Renascença e, como acontece com toda pessoa que se permite demolir certas teorias para substituí-las por novas, considerado suspeito de rebelião contra a ordem estabelecida!

- Quantas querelas inúteis! - disse Angélica -, não compreendo. Lembro-me de que, durante um périplo na baía de Casco, por ocasião de uma escala na ilha Longue, encontrei pela primeira vez os quacres. Não me pareceram perigosos, ao contrário. A noite estava fria, e uma dessas mulheres emprestou-me seu manto.

- Que poder temos nós contra o Medo? - observou Ruth. - O Bem causa medo. O Bem parece sempre mais incompreensível do que o Mal. E depois, o que as pessoas mais detestam é aquilo que perturba hábitos convenientes. Estou persuadida de que George Fox foi menos temido por haver suprimido todos os sacramentos do que por haver pregado que todos os homens eram iguais e ter-lhes recomendado que não tirassem o chapéu diante do rei. De minha parte, escandalizei menos os espíritos por intervir em favor de uma feiticeira do que por largar no caminho, sem preocupação, as mercadorias que eu ia vender na cidade.

 

O retorno à vida

Desde os primeiros momentos de seu retorno à vida, as duas jovens mulheres que cuidavam de Angélica empenharam-se com todas as energias em lhe proporcionar momentos de tranquilidade, sobretudo quando seu marido, o pai dos bebés, o pirata francês de Gouldsboro, que elas veneravam, ali aparecia. Graças a elas, o desfile das visitas tinha uma trégua, e Angélica podia conhecer instantes de intimidade familiar, de que são privadas as rainhas quando dão à luz, com a simples presença de Joffrey de Peyrac a seu lado.

Foi uma hora inesquecível aquela em que, pela primeira vez, Angélica, sentada em sua grande cama, e Joffrey, que a sustentava com o braço, puderam contemplar com felicidade seus filhos recém-nascidos. Essas mulheres, as quais Angélica ainda não sabia chamarem-se Ruth e Noémia, trouxeram-lhes uma grande almofada rendada. Dispuseram a almofada nos joelhos de Angélica, certificando-se de que isso não a fatigava muito - eles eram leves! -, depois se retiraram, montando guarda diante da porta; sua reputação de mágicas intimidava muito mais os curiosos e os visitantes, decepcionados e impacientes, do que as sentinelas espanholas ao pé da escada.

- Quer dizer então que vocês decidiram permanecer entre nós, meus principezinhos? - disse Peyrac, com doçura. - Quais são suas intenções?

As duas miniaturas, sobre a almofada rendada, fixavam neles seus olhares azulados, onde se entrevia como que o fundo de espaços infinitos.

-          São impressionantes! - disse Peyrac.

Sua voz soava orgulhosa e divertida. Angélica, maravilhada e ainda incrédula, persuadia-se de sua existência. Foi o momento da troca. Quatro personagens encontravam-se no pórtico de uma vida comum que prometia ser longa,- terna e Brilhante, após ter sido, nem Bem esBoçada, carregada pela tempestade.

Os dedos de Joffrey crisparam-se em seu omBro.

-          Que medo eu senti, meu amor - disse ele com uma voz sufocada. - Que medo você me fez passar!

Jamais o ouvira pronunciar a palavra "medo", jamais lhe conhecera essas inflexões angustiadas, mesmo à Beira do naufrágio ou nos maiores perigos.

Levantou os olhos para ele. Esse rosto próximo a ela, tão amado, vira-o atormentado pela mesma ansiedade, num sonho oBs-curo atravessado por raios e trovões, e tão real, que sentira o desejo de pousar os láBios em sua face marcada, encharcada de chuva. Ele andava a passos rápidos na tempestade... Havia tamhém Shapleigh, o fantasma.

- O que aconteceu com Shapleigh? - perguntou.

- Ele não estava longe, imagine, três quilómetros daqui. Prenderam-no e o mantiveram prisioneiro quando estava chegando a Salem. Os homens que eu mandara à sua procura liBertaram-no à força, mas havia o risco de uma escaramuça, pois eles eram pouco numerosos. Fui ao encontro deles.

- Ah! Era por isso então que os homens armados com tochas o cercavam... E você andava tão depressa soB a tormenta...

Joffrey de Peyrac olhou-a de lado, com um sorriso intrigado, mas não fez comentários soBre essa reflexão insólita.

-          Sim - confirmou -, cheguei Bem a tempo. Era novamente uma corrida decisiva em que estavam em jogo nossas vidas. Eu a havia deixado à Beira da morte, mas aquelas jovens cuidavam de você.

Teria, pois, de acreditar que ela era um fantasma quando o avistara na noite e o tocara, desejando Beijá-lo?

Os dois Bebês tinham fechado os olhos e eram apenas dois pequenos seres doces, respirando a serenidade e a felicidade de estarem com vida.

Inclinou a cabeça e, voltando-se, pousou os lábios na mão de Joffrey. O calor dessa mão morena que a sustinha, de dedos enérgicos que a apertavam com tanta solicitude inquieta, exaltou a ternura que sentia em abandonar-se contra seu ombro,

Sua fraqueza não era mais culposa. Podia ser fraca, pois ela estava ali. Recostado no leito, ele a envolvia com seu vigor, que jamais sentira tão intangível, vitalidade forjada pelas provações, . feridas e fadigas de uma vida de combate. Era naquele momento sua força, e já não precisava lutar.

Foi um momento delicioso. Um momento que recomeçava o que não deveria nunca ter sido interrompido outrora, ela junto dele, como estavam naquele exato momento, contemplando seu primogénito, num pequeno castelo do Béarn, ao pé dos Pireneus, na longínqua França.

Não sabia então o que lhes seria imposto, os caminhos imprevistos de seus destinos. Destino que o grande eunuco Osman Fer-radji anunciava com terror e admiração. "Eles se encontram... Li nas estrelas a mais estranha história do mundo entre esse homem e você... Ele vem de alhures... um homem do futuro."

Uma voz também dissera: "Não, ainda não, ele deve permanecer em terra..."

"Não sabemos nada", pensou ela. "Julgamq-nos senhores. Acreditamos que somos nós que organizamos tudo. Cada golpe do destino tem seu significado, através da nuvem."

-          Creio agora que estive à beira da morte - disse-lhe ela, em sua visita seguinte. - Pois revi toda a minha vida, e dizem que isso acontece no momento da morte. Eu me julgava em Argel. O mais horrível era compreender que, sendo prisioneira de Mulay Ismael, ainda não reencontrara você. Eu sentia uma decepção horrorosa.

Ele acariciou e percorreu com o dedo o perfil de seu rosto. Um pouco de ironia franzia suas pálpebras.

- Agora compreendo por que você falava em árabe em seu delírio. E chamava sem parar Colin Paturel, o rei dos escravos.

- Mas era preciso que ele me libertasse do harém para que eu pudesse encontrá-lo!

- Você reclamou tanto a sua presença que pedi a ele que viesse imediatamente a Salem.

- De Gouldsboro? Como pôde chegar tão depressa? - indagou, novamente inquieta de haver perdido a noção de tempo.

Ele riu e disse que estava brincando.

Com efeito, essa viagem estava prevista: Colin devia juntar-se a eles em Salem, onde haveria, por ocasião de sua passagem, uma reunião dos comerciantes de Gouldsboro, como Mercelot e Ma-nigault, com seus associados da Nova Inglaterra. A bordo encontravam-se Ademar e sua mulher Iolanda, e seu bebe de cinco meses.

Angélica estava por demais aérea para procurar outras explicações para o feliz acaso das circunstâncias.

Sim, claro, ela quase morrera. E não uma, mas duas vezes e até três, sem exagerar. Todo mundo estava de acordo sobre isso. Discutia-se somente qual havia sido o instante mais dramático, quando se acreditou realmente que tudo "estava acabado".

Para uns, fora quando ela se erguera com um grito terrível, que fazia eco aos uivos da pequena Honorina, num quarto ao lado, e se lançara para trás, rígida e lívida. Para outros, fora quando a tempestade estava mais forte e a noite, mais escura; como a febre a consumisse, sua respiração se acelerou de tal modo que se tornou imperceptível, e seu coração pareceu prestes a parar, por não poder bater nesse ritmo demente. Mas a crise mais grave, aquela durante a qual estivera na iminência de "escapar-lhes por entre os dedos", foi a primeira, quando viram em seus lábios, num rosto de cera, um sorriso paradisíaco. Pensavam que tinha adormecido. A atenção voltava-se para o pequeno "miraculado". Subitamente, seu esposo e as "mágicas" precipitaram-se para ela, e decorreram momentos terríveis, num silêncio em que se agitavam insondáveis decretos, em que combatiam forças incalculáveis.

O alento só retornara às testemunhas com o desaparecimento desse sorriso de um outro mundo, que a tornava tão bela... para a eternidade.

Vira-se a febre subir e marcar sua tez cerosa com uma vaga incandescência, mas tudo era preferível àquele sorriso.

O dia seguinte decorrera sem melhora. Mas, à noite, quando irrompia a tempestade, houve as duas outras crises, e acreditaram-

na perdida.   

Severina contou-lhe que, naquela noite, Honorina, que mantinham afastada e sob sua guarda, lançara-se subitamente ao chão, urrando como uma possessa, e mordendo os braços com todas as forças. Não teria conseguido dominá-la se uma das mulheres de cabelos compridos não tivesse aparecido finalmente para acalmá-la.

Severina, devorada pela inquietação, solicitava notícias. A cu-radora dizia-lhe que as crianças estavam salvas, mas que sua mãe, como que se oferecendo em sacrifício por suas vidas, estivera a ponto de expirar. Suas forças reunidas e as do amor que lhe dedicava seu esposo quase não conseguiam fazê-la retornar, ou melhor, mantê-la entre os vivos. Ninguém podia pronunciar-se ainda, pois acometera-a um acesso de febre palustre, que os romanos atribuíam ao ar malsão - mala ária - dos pântanos, e para a qual, como todos sabiam, não existia remédio. Tudo dependia da resistência do enfermo ao assalto da febre. A jovem, com a qual Severina imediatamente simpatizara, afirmara-lhe que ela e sua irmã fariam o possível para ajudá-la nessa luta, mas a fadiga do combate marcava seus traços. Teriam forças suficientes para deter a moribunda à beira do túmulo?

Severina, desnorteada e esquecida, permanecera sozinha, embalando Honorina em seus braços: "Eu rezei, senhora, espreitando os ruídos quase imperceptíveis e indecifráveis da casa, em meio ao fragor dos trovões".

Finalmente, surgindo da noite encharcada, como um tritão saindo de uma caverna submarina, o velho medecin's man, Shapleigh, aparecera na soleira da porta, e fora levado à cabeceira da Sra. de Peyrac, onde pudera administrar-lhe o remédio - uma de-cocção de cascas ou de raízes de árvores -, o único que poderia subjugar a incurável febre palustre, de tão antiga e sinistra reputação.

Angélica escutava e reconstituía com suas próprias lembranças os episódios de seu delírio.

- "Eles" me abririam o cérebro para saber meu segredo! - brincava George Shapleigh. - Mas eles podem arrebentar de febre... não tenho remédios para eles.

Pois pouco faltara, dessa vez, para que o réprobo das florestas americanas fosse enforcado. Haviam molestado sua pequena tribo, Maktara, a índia péquot com a qual ele vivia havia quarenta anos, seu índio rastreador, que era portanto seu filho, e a mulher deste, uma wapanoag.

O que mais o aborrecia era ter faltado ao encontro combinado com a Sra. de Peyrac.

Pusera-se, todavia, a caminho no tempo conveniente, deixando seu covil da ponta Maquoit, nos arredores de Sheepscott, com sua esposa índia, seu filho, sua nora, que carregava nas costas, bem amarrada a uma prancha num casulo de correias coloridas bordadas com contas, uma pequena quadrarona de inglês de alguns meses.

Mas, apesar de suas astúcias e desvios, ele fora reconhecido e aprisionado às margens de Naumbeag, no local das primeiras se-cadeiras de bacalhau da Companhia da Baía do Massachusetts. Nessas paragens, não se contentavam em querer-lhe mal pelo fato de viver nas florestas com uma mulher índia, tendo ratificado duas vezes seu pacto com o Diabo. Seu contencioso com o Massachusetts era mais grave. Periodicamente, os herdeiros de seu antigo amo, um boticário de Salem, vinham reclamar, indexando-o nas flutuações de libra esterlina, o preço de sua passagem pelo oceano, que ele atravessara quando era um jovem boticário de dezoito anos, e que jamais reembolsara.

-          Meus segredos, milady, só os revelarei a você. A você e às jovens "druidas".

Era como designava suas colegas .de magia, Ruth e Noémia, que, ao seu lado, tinham trabalhado para reter na terra, para a felicidade dos vivos, Angélica de Peyrac e os maravilhosos gémeos: Raimundo Rogério e Gloriandra.

-          Mas, por que esses nomes? - informou-se, finalmente.

Pelo que podia se lembrar, a escolha de um nome para o futuro bebé não tinha ainda sido debatida entre eles. Seu nascimento parecia-lhes então muito longínquo. Angélica desconfiava que Joffrey desejava uma menina, e fora escolhido o nome de Eleono-ra. Mas, para o menino, não.

Seu marido fez-lhe um resumo das deliberações que presidiram à escolha dos nomes, nos primeiros momentos de sua vinda ao mundo.

Glória era o patronímico da parteira irlandesa católica que a assistira da melhor maneira que podia, pobre mulher, e que, julgando as duas crianças condenadas a uma morte rápida, decidira batizá-las imediatamente. Sabendo que eram papistas como ela, batizou a menina com o nome de Glória e insistiu em que o Sr. Peyrac desse um nome de sua escolha ao menino.

- Então, vendo como que um reflexo dourado brilhar sobre a cabeça do pobrezinho, lembrei-me de Raimundo Rogério de Castillon, grande adversário dos bárbaros do norte durante o extermínio dos albigenses. Homem de vitórias, cognominado "o conde ruivo" pela lenda, pareceu-me de bom alvitre invocar a proteção de um vigoroso herói de minha província sobre essa frágil criatura, e decidi-me pelo nome de Raimundo Rogério.

Quanto a Gloriandra, era também uma transformação occitâ-nica que ele juntara ao nome de Glória. Um dia, quando ela estivesse menos impressionavel, ele lhe contaria a história que se ligava a esse nome.

A parteira irlandesa, Glória Hillery, casada em Nova York, exercera sua profissão sobretudo entre os holandeses, cujos costumes relacionados ao nascimento - numerosos e enternecedores num povo que gosta de crianças a tal ponto que as estraga com mimos e as torna insuportáveis - ela adotara. Se não se pudera beber o costumeiro "caldo quente", mexido com um longo bastão de canela ornado com fitas, ele enviara, entretanto, suas filhas em todas as direções para anunciar o nascimento aos vizinhos, aos parentes, e, na falta desses, as bravas irlandesas-holandesas correram ao porto para avisar as tripulações dos navios franceses.

Depois, a madre pusera-as a bordar os letreiros que deviam ser suspensos na porta da casa, formados por uma prancha recoberta de seda vermelha emoldurada por rendas. Para a menina, o centro da prancha estava dissimulado por um retângulo de cetim branco. Depois, vendo a morte aproximar-se, iminente, as mãos ágeis apressaram-se em compor letreiros de seda negra que iam substituir os outros, e com a eclosão da tempestade, um letreiro de tecido mais simples que enfrentaria a chuva, a fim de preservar os de seda e cetim.

Agora que todo perigo estava afastado e que o sol voltara, as ajudantes da parteira trabalhavam na confecção de vestidos sun-tuosos, destinados a um batismo maior ou às cerimónias em que os gémeos deveriam fazer sua aparição pública.

Assim, Angélica tomava conhecimento da identidade dessas donzelas bordadeiras, debruçadas dias inteiros sobre os panos e cos-urando à luz da janela, exceto quando Ruth e Noémia as expulsavam com grandes gestos como a um bando de galinhas e mandavam todo mundo para o patamar.

Pois o quarto não cessara de ser o teatro de mil fiapos de existências vividos por aqueles que iam até lá. Momentos de entusiasmo, de emoção, de lirismo, de terror sagrado, de quieta e calorosa promiscuidade, que só ali pareciam poder ser experimentados e que lançavam para as portas da casa de Mrs. Cranmer a metade da cidade e um número incalculável de delegações de tripulantes, vindos dos navios ancorados no porto. Fora preciso receber, por exemplo, os marinheiros do Arc-en-Ciel, do Mont-Désert e do Rochelais, alguns dos quais fizeram parte da escolta do Conde de Peyrac quando este partira para a casa das quacres em busca de socorro para seu filho moribundo, todos eles orgulhosos e rudes marujos, perturbados por tão estranha odisseia e que desejavam contemplar e admirar pessoalmente o "ressuscitado" daquela noite: Raimundo Rogério de Peyrac de Morens d'Irristru. Havia também aqueles ligados por necessidade a esses lugares e, para começar, as duas indispensáveis amas-de-leite, a nora de Shapleigh para Gloriandra, a acadiana Iolanda para Raimundo Rogério, ambas ladeadas, uma por seu marido índio, a outra, por sua robusta Mélanie, depois os criados da casa, requisitados para serviços incessantes, Agar trançando ou espalhando flores, a pequena Honorina, que não conseguiam afastar dali, Severina, seu anjo da guarda, Mrs. Cranmer, naturalmente... A todas essas visitas acresciam-se as idas e vindas dos familiares, que julgavam, também eles, ter um direito de presença indiscutível, fosse pela antiguidade de sua amizade, fosse pela importância do cargo que estavam acostumados a exercer junto à Sra de Peyrac, e que estavam decididos a preencher, custasse o que custasse, apesar dos acontecimentos. E via-se Kuassi-Ba, a pluma de seu turbante roçando às vigas do tetot aparecer ao pé do leito com seu material para café e as pequenas xícaras de faiança em suportes de madeira filigranada de prata. Era assistido por Timóteo e por uma outra criança negra de olhos selvagens, marcada por tatuagens azuis até a testa, e que eles tinham comprado num mercado de Rhode Island. Via-se também a um canto Elias Kempton, ocupado em vender noz-moscada à parteira irlandesa, afimando-lhe que suas nozes-moscadas não eram aquelas bolinhas de madeira camufladas que seus colegas mascates do Connecticut costumavam vender. Via-se ainda Ademar, surgindo, triunfante, após ter atravessado a cidade em seu uniforme de soldado francês, para trazer do Albergue da Ancora Azul um prato de tripas à moda de Caen feitas por ele mesmo e depois Shapleigh, com seu bacamarte, seus livros, e outros mais...

Severina, muito ativa, zangava-se com as criadas de vasquinhas azuis, molengas demais, carregava travesseiros com fronhas limpas, os lençóis e suas viras de renda, a fim de que Angélica ficasse como uma rainha recebendo seus súditos. Como boa rochelesa huguenote que era, Severina apreciava boas roupas-brancas e pilhava sem cerimónia os armários de Mrs. Cranmer. Esta estava alheia aos protestos, e Angélica, para curar feridas secretas que deviam envenenar a cada dia sua anfitriã, falava com ela e lhe agradecia mil vezes.

Vira-a soluçar em seu lenço quando se anunciava sua morte, e essa lembrança a tornava indulgente em relação à pobre dama.

Todos a amavam, todos, estava feliz por vê-los, mas, principalmente nos primeiros dias, ainda que se esforçasse com graça para não decepcionar ninguém, estava reconhecida a esses dois "anjos" por conseguirem, para ela e o marido, instantes de repouso.

Angélica não se cansava de contemplar os pequenos rostos, tão encantadores que só podia extasiar-se com eles: "Quem são vocês, pequenos príncipes?" Iam dar outro rumo a sua vida. Era evidente, bastava olhar para suas pequenas faces altivas, que o mundo e a história falariam deles e que só a mencionariam como mãe dos surpreendentes gémeos De Peyrac.

Mas isso não seria já atribuir-lhes intenções que não tinham? Esse ar altaneiro que os recém-nascidos ostentam não lhes viria, antes de mais nada, da dificuldade que têm em manter eretas suas cabecinhas oscilantes?

Ela ria: - Meus tesouros!

O menino, com seu crânio redondo revestido de uma penugem pálida, era-lhe mais próximo, pois o considerara moribundo e julgara que morreria de dor com essa separação.

Voltou-se impulsivamente para Joffrey, sentado ao seu lado.

- É uma coisa terrível ser mãe - murmurou, enquanto seus grandes olhos claros se assustavam. - Perdoe-me, meu caro senhor: creio que o esqueci nessas horas aterradoras, quando ele estava morrendo em minhas mãos.

- Eu me pergunto se não será ainda mais terrível ser pai - retorquiu num tom descuidado, que visava atenuar em sua memória o choque que experimentara. - Pois, nessas horas, o esquecimento foi concedido a você, não a mim. Existem torturas que aniquilam qualquer lembrança, qualquer raciocínio. Você era a presa dessas torturas. Eu sentia a expiação de meu corpo impotente diante de suas fraquezas ameaçadas. Certamente, para mim também o mundo se tornou deserto e tenebroso, mais insustentável e perigoso do que jamais o vi em qualquer tempestade ou batalha sangrenta. Mas não podia esquecer que você ali estava, pois era a única coisa que importava. Sua vida a ser salva, a desses dois pequenos seres que arrastavam a sua, e também a de Ho-norina, pois ela não sobreviveria a você. Uma derrota que eu não tinha o direito de aceitar, nem sequer encarar. Era responsável por sua salvação e estava... desarmado.

"Ele foi nos procurar", tinham dito Ruth e Noémia. "Quem?"

"O Homem Negro! O pirata francês de Gouldsboro." E elas desatavam a rir. Estavam brincando!... Nem pirata, nem Homem Negro! "Gostamos muito dele."

Agora que conhecia sua história, podia imaginar Joffrey de Pey-rac apressando-se para a cabana maldita junto à floresta, seguido por seu pequeno grupo, sob a abóbada murmurante no crepúsculo dos grandes olmos de Salem, detendo-se diante do círculo de pedras.

Ajoelhara-se na terra - ele, que recusara ajoelhar-se diante do rei - e gritara, estendendo os braços na direção da casa das feiticeiras:

"Venham! Venham! Eu as conjuro, minhas bem-amadas irmãs! Venham salvar meu filho que está morrendo!"

Angélica sorria olhando Raimundo Rogério. Aquela coisinha, ainda inacabada, que não tinha sequer um nome àquela altura, era já para ele "meu filho que está morrendo"!

- Você sabia da existência delas? Tinha ouvido falar de seus poderes? Você as conhecia?

- Ah! eu conheço um pouco todos os segredos da América - disse ele, rindo. - E minha tarefa! Se quero apoiar e salvar os meus, nessa terra selvagem, tenho de conhecer os segredos da América... Seus verdadeiros segredos.

Não eram absolutamente confidências que assim trocavam. Mas eles se aproximavam um do outro, e o drama comum partilhado inclinava-os a se revelarem mutuamente aspectos até então mantidos em segredo em seus pensamentos.

Sentiam-se arrastados por um súbita excitação que iluminava o espírito e liberava o constrangimento dos corações, à maneira de uma bebida capitosa que, momentaneamente, mudaria, a seus olhos, as cores da vida.

Sem dizer nada, Angélica se inquietava.

Inquietava-se por saber o que teria contado quando estava inconsciente, e, mais ainda, por compreender o sentido do que atravessara.

Se se revê a vida, pensava ela, é para exorcizá-la, ou apagá-la, ou para descobrir que ela não tem a importância que lhe atribuímos. Uma bolha na superfície da luz. Pois o que ela revivera - Argel, o castelo em chamas, a matrona à sua cabeceira dizendo: "Creia-me, minha pequena dama" -, isso não tinha nenhuma importância, e não a atormentara senão pela ausência de Joffrey e pelo medo ressurgido de tê-lo perdido para sempre. O resto estava apagado havia muito tempo.

Pois está apagado, esquecido, aquilo que pára de nos fazer sofrer. Teria sido para aprender isso que retornara seus passos a essas pegadas inúteis?

-          Conheço esses tipos de "viagens" - disse ele. - Já me aconteceu fazê-las também na enfermidade, no excesso de dor sob os tormentos do carrasco, ou em consequência do ensinamento de algum iniciado do Oriente, o que é mais interessante.

Ela preferia não falar de seu passeio fantasmagórico, mesmo a ele. Entretanto, revia-o com frequência, pois a experiência não deixara de ser picante. Acontecia-lhe, por exemplo, olhar para um canto do teto, surpresa por descobrir apenas as traves ao invés de uma galeria com balaustrada, de onde vira do alto todo o quarto, os móveis, as pessoas apressadas, os bebes em seu berço, uma mulher numa cama. Com efeito, começava a desconfiar que essa mulher imóvel era ela.

Havia, entre as pequenas criadas da casa, uma moça rechonchuda, particularmente estorvante, mas, principalmente, insolente e desagradável. Possivelmente para agradar a sua ama, Mrs. Cran-mer, não parava de resmungar contra os papistas, os estrangeiros, fingia penetrar com asco num quarto poluído por tantas presenças impuras, cujo odor dos pecados era ainda mais difícil de suportar do que o odor de seus corpos; sabia-se muito bem como todos esses franceses corruptos costumavam utilizá-los, ao cair da noite... Tomara Deus que, apesar dessa promiscuidade que se impunha, ela nunca os imitasse!

-          Você tem, no entanto, uma coxa bem branca e redonda, e bem leve - disse-lhe Angélica, que^ tendo recobrado suas forças, readquiria seu espírito mordaz.

Felizmente para a coitada, só estavam presentes as duas quacres e Severina. Pois Angélica continuava:

-          E não se priva tampouco, nas noites de tempestade, de oferecê-las a Harry Boyd.

A moça ficou cor de terra, e por pouco não caiu estatelada; om os olhos revirados, largou a xícara que estava segurando e omeçou a gaguejar.

- Quem? Quem lhe contou?

- Ninguém! Eu a vi!

A outra abria a boca, como um peixe fora d'água, conseguindo articular, numa negativa desvairada:

- Não é possível. A senhora não podia nos ver...

- E por que não poderia ver, ao passar...

- Ora, porque isso só aconteceu uma vez! E, naquele momento, a senhora estava na cama, morrendol

Pôs-se a soluçar de modo histérico, contando que tinha sido justamente por esse motivo, porque todo mundo estava transtornado, perturbado, e porque se gritava em toda parte que a condessa francesa morrera, que aquela coisa danada acontecera. Harry Boyd, um engajado, empregado de um comerciante vizinho, que vigiava a rotunda doméstica de Mrs. Cranmer, a cobiçava e a fizera saber de mil maneiras o que desejava dela, a ponto de ela ficar com a cabeça virada, compreendera a vantagem que podia tirar daquela barafunda. Tendo se relaxado a vigilância feroz exercida sobre os amores entre os serviçais, fora ao encontro da moça, saltando a barreira enquanto ela atravessava o pátio, debaixo de chuva, para ir buscar não sabia o quê, e a arrastara para o celeiro.

E daí eles tinham...

-          Acalmem-na - pediu Angélica -, ela me cansa.

Mas ela gritava ainda mais alto. Sabia o que a esperava: o pelourinho, o chicote, a prisão, a infâmia, o opróbrio, e a duplicação de seu tempo de engajamento.

Severina, diante da cara que ela fazia, pôs-se a rir até quase perder o fôlego, como só as francesas sabem rir, mesmo as hugue-notes. A xícara quebrada serviu de desculpa para a gritaria, quando vieram saber do que se tratava. A coisa não iria muito longe. Angélica não fazia questão de que se dissesse que ela passeava nos ares montada numa vassoura.

Mas, por que uma vassoura? Quais eram as razões pelas quais se atribuía às feiticeiras uma vassoura para cavalgar? Chega de brincadeiras! Não havia motivo para risos. E se os ingleses se mostravam mais obsedados pelo Diabo, não tendo os santos do paraíso para defendê-los, Angélica não podia esquecer que, do "lado" francês, ela fora igualmente vítima de um fanatismo quase idêntico. Fora preciso muita habilidade da parte deles, de Joffrey e dela, e o concurso de amizades sólidas e inteligentes, para atenuar e reduzir a nada as acusações do temível jesuíta D'Orgeval, que, a fim de se opor às empresas do Conde de Peyrac no Maine, a tinha acusado de possuir poderes maléficos.

E, no entanto, ele nunca os vira.

Ela acabara quase por esperar que ele não existisse. E quando, ao chegar a Quebec, souberam que o Padre d'Orgeval se exilara nas missões iroquesas, tomara consciência de que a vitória do primeiro confronto lhes era deixada. Mas, e a vitória definitiva? Pela primeira vez, naquele dia no Conselho, voltara-lhe a suspeita de que o ódio surdo que ele lhe dedicava não se desanuviara. E, frequentemente, como a asa de um pássaro das trevas - e ainda que soubesse que ela estava morta -, vinha-lhe o medo de que Àmbrosina, a cúmplice demoníaca do jesuíta, não tivesse ainda dito sua última palavra.

- Não se preocupe, minha querida - recomendava Joffrey, ao vê-la pensativa -, nosso navio saiu-se muito bem da tempestade. O vento soprava a nosso favor.

Queria saber se havia ainda refugiados do Alto Connecticut, e ele a dissuadia de se preocupar com essas questões com as quais nada podiam fazer naquele momento.

Salem reforçava suas muralhas de paliçada, e os fazendeiros dos arredores dirigiram-se em cortejo à missa do domingo, como outrora os homens com seus mosquetes, ladeando mulheres e crianças.

As milícias se reuniam para iriiciar uma expedição destinada a reforçar a defesa dos habitantes das fronteiras. O Estado do Maine permanecia, no entanto, protegido pelo tratado de paz que Joffrey de Peyrac assinara com o Barão de Saint-Castine...

Ela logo se levantaria. Desceria ao jardim para onde Ruth e Noémia, quando havia muitas visitas, carregavam o bercinho.

A partir desse momento, as forças retornariam para ela mais rapidamente ainda, e poderiam içar velas para Gouldsboro.

 

A leitura do taro - O Reverendo Weiter

Ruth e Noémia, ladeando a sombria Agar, coroada de folhas de parreira selvagem, intercediam pela pobre cigana.

- Milady leve-a para Gouldsboro. Soubemos que as pessoas mais diversas vivem ali sem problemas e que as mulheres são protegidas e encontram marido e dote. Parece até que uma mourisca desposou ali um oficial francês. Nós lhe suplicamos. Leve essa pobre criança, pois, aqui, receamos por ela. Uns a perseguem a pedradas, outros a acusam de induzi-los em tentação, na medida em que pensam em violentá-la, mesmo que talvez tenham de matá-la depois, pretextando que o Diabo é responsável por sua concupiscência. Ela poderia ter uma vida mais feliz lá...

Angélica começou por dizer-lhes que, primeiramente, a mourisca à qual aludira, educada pelas damas de Saint-Maur e beneficiada por uma bela pensão por uma madrinha misteriosa, não estava mais em Gouldsboro, mas em Quebec, e que ainda não arranjara marido. Na ocasião, isso se devia mais ao fato de a donzela ter pretensões muito determinadas quanto às qualidades que exigia de seu futuro marido, do que a uma discriminação dos jovens canadenses em relação à sua tez escura.

Isso posto, era preciso reconhecer que uma bonita e inocente moça como Agar, cuja sensualidade espontânea brilhava como um sol em pleno verão, ficaria mais à vontade e correria menos perigo em Gouldsboro do que na rigorosa e pudibunda Salem. Pois, no estabelecimento fundado por um fidalgo aventureiro como o Conde de Peyrac, havia uma mistura tal, que favorecia a liberalidade. Haviam parado de se indignar uns com os outros, recorrendo cada qual ao Governador Colin Paturel e às sólidas instituições que ele organizara para fazer reinar a ordem, a decência e a disciplina indispensáveis a um porto franco, a fim de que cada cidadão ali pudesse conduzir seus negócios sem perigo.

Fora os constrangimentos comuns, os habitantes de Gouldsboro aprenderam a inclinar-se diante da liberdade íntima dos outros. Fundado o estabelecimento, tanto na comunidade de huguenotes de La Rochelle como num contingente de piratas arrependidos, com Moças do Rei enviadas pelo Ministro Colbert para povoar o Canadá e moças francesas de origem acadiana, não havia nada mais a fazer senão amordaçar as reivindicações religiosas, e, mesmo, nacionais. Pois ali se encontravam igualmente ingleses das fronteiras, que haviam escapado a um massacre franco-índio, escoceses esquecidos pela expedição de Sir Alexander, aca-dianos da baía Francesa, etc. Agar não passaria despercebida, certamente, mas tampouco se arriscaria a inspirar em Gouldsboro esses sentimentos de repulsa, de terror e de execração que suscitava sua pessoa na Nova Inglaterra, e que um dia poderiam induzir certos fanáticos a maltratá-la.

Mas a filha dos ciganos, quando compreendeu de que estavam falando, pôs-se a gritar. Não queria deixar suas duas mães adoti-vas, nem Salem, nem nada do que compunha seu universo e, ao ouvi-la, seria de acreditar que tudo o que ela conhecera naquela sociedade, sob o teto de palha da cabana no bosque, ou sob os apupos de uma populaça cujas caretas odientas e ameaçadoras deviam diverti-la, mais do que assustá-la, não era senão encantamento.

Aliás, quem compreenderia sua linguagem? Com quem poderia se comunicar, uma criança sem raiz, de uma raça diferente, abandonada numa moita de sumagre, e para a qual o céu guiara os dois únicos seres do local nascidos sob a mesma estrela que a dos proscritos, e os únicos dispostos a recolhê-la e a amá-la?

Consciente de que, privando-a de sua luz, a lançariam num mundo mais sombrio, mais deserto e mais gelado que o fundo do oceano, ela se jogou aos pés de Ruth e de Noémia, suplicando-lhes que não a abandonassem.

- Vocês devem conservá-la ao seu lado - afirmou Angélica, quando haviam esgotado todos os argumentos para convencê-la. - Creiam-me, nós a acolheríamos de boa vontade, mas é evidente que ela não pode subsistir sem vocês. Ela morreria. Nesse instante, Mrs. Cranmer surgiu de trás das cortinas.

-          Então, se ficarem com ela, será preciso pregá-la em sua porta pela orelha - disse, num tom peremptório. - E esse o costume. Se um criado ou um engajado recusar a liberdade que ganhar, deverá ser pregado pelo lobo da orelha à porta de seu amo, para que fique claro aos olhos de todos que, daí em diante, ele pertence a esse amo e deve servi-lo até o fim de seus dias. E uma cerimonia à qual não se podem furtar. Espero que, dessa vez, respeitem a lei - insistiu ela, dirigindo-se a Ruth que, sem levar em conta sua intervenção, se dirigia para o berço dos bebés.

Mrs. Cranmer deixou-se cair numa poltrona colocada ao pé da cama para as visitas, a cabeça um pouco inclinada, como que resignada de antemão e esperar que se dignassem a lhe responder.

Mas, ao cabo de um instante, Angélica ouviu um leve ronco e, surpresa, a viu mergulhada num sono profundo.

- Noémia, o que você fez? - perguntou Ruth, sem se voltar.

- Eu a fiz dormir. Ela já estava começando a me irritar com suas tolices.

Ruth voltava, carregando a menina, que havia acordado.

- Noémia, suas travessuras vão nos custar caro! Noémia ria.

- Ah! Que importa! Estamos tão felizes!

Ela pulou e começou a dançar de alegria com Agar, que tinha o ar de uma borboleta, em seu vestido vermelho. Ruth Summers considerava com uma expressão de piedade divertida a dama adormecida.

-          Dizem que somos loucas, mas perto da loucura dela... Não há uma certa demência nesses preceitos que se devem aplicar para provar a Deus e a seus vizinhos que se é bom cristão? Pregar-Ihe a orelha! Oh! Que desvario! Cristo não veio ao mundo para abolir a barbárie dos corações? Mas eles esqueceram.

Ela ia e vinha, embalando a criança e monologando.

-          Nós curamos os doentes, nós nos amamos, nós pagamos o dízimo para a comunidade, e continuam mesmo assim a repetir por aí que somos "apartadas de Deus". Sacudia a cabeça.

-          ...Apartadas de Deus? Não, não o somos, eu afirmo! Mas, sim, poupadas, fora da loucura que se edificou à sombra de Seu nome, sim, nós fomos poupadas! Graças a Deus! "Ele nos retirou e nos pôs ao largo."

Noémia parara sua dança. Pegou uma mesinha e colocou-a no meio do quarto.

-          Tire suas cartas, Ruth, minha amiga! Temos de abrir e estender os tarôs diante da Heroína, para que ela aprenda o sentido da vida.

Agar jogava almofadas no lajedo. Ruth apresentou o bebé a Angélica.

-          Ela não é soberba? Está redondinha, e seus olhos estão ficando da cor do céu.

Colocou-a na cama de almofadas, e a pequena pôs-se a olhar à sua volta com atenção.

-          Agora, levante-se - intimou Ruth a Angélica - e instale-se nesta poltrona grande. Pois os arcanos devem ficar eretos para serem interpretados com conhecimento de causa.

Com sua ajuda, Angélica decidiu-se, perguntando a si mesma o que estariam tramando.

Noémia, depois de colocar a mesinha diante dela, pegou um grande saco de veludo. Ruth, sentada diante de Angélica, abriu-o e retirou um maço dessas compridas cartas coloridas, chamadas lâminas, no jogo de taro.

Explicou que essas cartas tinham repousado dois dias, sem serem tocadas ou manipuladas por ninguém. Tomara o cuidado, antes, de verificar o sentido em que seriam dispostas, pois as cartas do taro deviam ficar viradas para cima e não para baixo, o que levaria a interpretação para o lado medíocre ou negativo da existência e não para sua direção positiva, geradora de esperança e de alegria.

Haviam ensinado a Angélica, durante a infância, que as cartas se cercavam de um forte odor de enxofre, mas, mais tarde, sua passagem pelo Pátio dos Milagres a familiarizara com a arte das ciganas, cuja ciência inquietante as colocava de chofre na aristocracia das classes perigosas.

Tendo ouvido falar dos talentos de Ruth Summers, ela reconheceu que pretendia pedir-lhe uma demonstração. Receava apenas estar ainda demasiado fraca para participar da cerimónia.

Ruth sacudiu sua alta touca branca e afirmou que não havia momento privilegiado ou favorável para consultar o taro. O Herói ou a Heroína, isto é, o consulente, devia apenas sentir necessidade de fazê-lo.           

Avisou igualmente que utilizava o jogo das vinte e duas lâminas - vinte e uma, mais uma que é separada - oriundo dos nai-be, "cartas inocentes", postas em uso no século XIV.

Restaram vinte e duas figuras chamadas trunfos para o jogo de lazer e os arcanos maiores, para o da adivinhação.

Essas cartas, que ela acabara de pôr sobre a mesa, tinham sido dadas a ela por um marinheiro de origem veneziana, que fazia parte da tripulação de um navio, corsário ou pirata, vindo das Caraíbas, que arribava no porto.

Quando, num dia de mercado, depois de uma boa venda de seus animais e de seus queijos, Ruth, modestamente à sombra de seu esposo Brian Newlin, fora sentar-se na Taverna da Baleia Branca para matar a sede com uma cerveja, um marinheiro vestido com uma camisola de algodão rosa com flores, com um turbante verde, aros de ouro nas orelhas, levantara-se de chofre, com seu tapa-olho preto e seu papagaio no ombro e, apontando o dedo para ela, declarara com voz bem alta, num sabir meio inglês meio italiano, que ele não precisava de dois olhos para ver que, se havia uma só pessoa no mundo com o dom da vidência, essa pessoa era ela, aquela mulher sentada lá no fundo. E que ele estava pronto a ensinar-lhe a ler os tarôs, para acabar com aquele desperdício. Ora, depois dessa estranha tirada, viram Ruth Summers-Brian, nascida quacre e congregacionalista de obediência puritana por casamento, levantar-se, fascinada, e ir sentar-se à mesa do pirata caolho. A sessão de iniciação durara duas ou três horas, entre as névoas da fumaça dos cachimbos, enquanto o fazendeiro Newlin esperava pacientemente do lado de fora, junto à sua carriola, sob o nevoeiro. Primeiro incidente singular, que não deixara de ser lembrado pelo juízes, por ocasião do caso Shiperhall.

Ao deixar Salem, o cartomante das Caraíbas deixara-lhe o maço de lâminas coloridas - rosa para a carne, azul para a alma, dourado para o espírito -, das quais ela nunca se separava e que, nesse instante, apresentava a Angélica, pedindo-lhe para dividi-las em três partes, e depois para retirar de uma delas uma carta, que ela pôs de lado. A seguir, embaralhando novamente todas as cartas, abriu-as e pediu à consulente que retirasse sete cartas ao acaso.

Dispôs esse primeiro setenário em forma de estrela-de-davi, dois triângulos imbricados de um certo modo, com uma sétima carta no meio. A leitura seria feita virando-se as figuras de modo que os pés de uma ficassem voltados para a cabeça da outra, primeiramente a que estava em cima, depois a do lado oposto, e assim por diante para cada um dos braços da estrela, até a sétima do meio, muito importante, pois ela influenciava o veredicto geral dos outros "pares" descobertos anteriormente.

O primeiro jogo revelou-se dos mais esplendorosos.

O primeiro arcano virado foi o sol, que se achava diante da imperatriz: Angélica.

-          O sol banha e a ilumina. Ele lhe anuncia sucesso e brilho, a expansão em todos os domínios: sorte e proveito. Ele sempre a acompanhou. Revestiu-se do aspecto de um homem.

A seguir vieram os namorados e o imperador, que confirmavam que o amor a cumulava e protegia. "O amor a protege, por homens muitos poderosos... Dois, pelos menos, e existe multiplicação, muitos homens. Sinal de que o amor sempre a protegeu e mesmo salvou..."

Depois, a lua e a roda.

-          A mãe: renovação no ambiente. Um novo filho. Mas isso, nós já o sabemos! Em compensação, os irmãos e irmãs podem reaparecer...

Angélica dirigiu um olhar de surpresa para sua pitonisa de touca branca. Ruth Summers não podia saber que tinham visto Molines em Nova York e que este encontrara os rastros de Josselino de Sancé, seu irmão mais velho. Um velho valão de Staten Island o acolhera em sua chegada à América. Isso não datava do dia anterior, mas Molines seguiria a pista... O sétimo arcano do meio foi virado: o julgamento.

-          Esta carta aqui lhe traz o imprevisto.

Ruth não podia dizer se isso estava situado na vida conjugal ou nas relações com outra pessoa.

-          O imprevisto - disse, reunindo com um gesto em torno do arcano todas as outras cartas - é o sal de sua vida.

O segundo setenário, disposto por sua vez em estrela, começou pela conjunção do papa e do enforcado. A vidente tornou-se grave e sonhadora.

-          Aqui está um Homem de Bem - disse com uma doçura quase terna -, um homem encarregado de transmitir uma verdade esotérica, um religioso, pois o enforcado é, ao contrário, um sábio, um grande sábio.

Descobriu em seguida, sempre em contraponto, a morte e o eremita, e pareceu perturbada. Hesitava em falar e parecia querer recusar o veredicto. Finalmente, pronunciou com tristeza:

-          Um grave conflito apoderou-se da alma deste Homem Brilhante.

Depois, virou o diabo e a morte e tremeu.

-          A magia, a magia de Satã apoderou-se dele!

Precipitadamente, como que para buscar"um recurso supremo à catástrofe que ela entrevia, virou a última carta, no centro.

-          A papisal - exclamou.

E ficou com o dedo colocado sobre a imagem fatal, uma mulher sentada, tendo à cabeça uma tiara pontifical.

- Foi uma mulher que provocou a degradação e a destruição do Homem de Bem - continuou. E, erguendo os olhos para Angélica, anunciou numa voz monocórdia:

- Os dois estão possuídos e querem sua perda.

No silêncio que se seguiu, Angélica tentava não deixar perceber sua emoção.

A Papisa? O Homem Brilhante?

Não podia ser senão Ambrosina, a Diaba, e seu cúmplice e amante, o jesuíta Sebastião d'Orgeval, aquele cujo nome se evitara pronunciar no Colóquio.

A ingénua quacre mágica teria provavelmente desmaiado de horror se pudesse ver as personagens que suas palavras faziam emergir dos limbos de um passado não muito distante, pois, para ela, nascida numa seita oriunda da Reforma, um padre católico, um jesuíta, seria sempre a encarnação do Mal.

Mas a mulher malvada, a Papisa, Angélica desejaria observar-lhe que ela estava morta e enterrada.

E ele, o Homem Brilhante, não tinha mais nenhum poder, pois desaparecera entre os índios iroqueses.

Ouviu Noémia murmurar:

- Ele também está em seu túmulo...

- Não fale enquanto coloco o duplo selo de Davi - intimou Ruth.

Angélica, todavia, julgara sentir o pensamento de Noémia segundo o seu pensamento e suas perplexidades. Soube também que com essas palavras ela não lhe dava uma resposta, mas apenas uma indicação: "Ele também está em seu túmulo".

O terceiro setenário, a terceira estrela, concluía por um conjunto de dados já revelados. Ele podia às vezes resumir a "tonalidade" de toda uma vida, pelo menos um aspecto muito vasto e, sobre vários anos futuros, uma visão do que se cumpriria. E esse terceiro jogo se anunciava como dos mais cativantes, disseram-lhe as mágicas, pelas significações impressionantes dos sete arcanos que ainda seriam descobertos: o livre-arbítrio, a carroça, a justiça, a força, a temperança, as estrelas, o mundo.

Em que ordem eles surgiriam?

Como seriam suas alianças complementares?

Um desses arcanos simbólicos podia estar ausente, tendo sido retirado pela sorte, no início do jogo. Seria então substituído pelo louco, o libertino que o "mastim" morde no calcanhar, o mais enigmático de todos os signos, cuja presença transformava o sentido de todas as combinações.

Ora, a primeira carta que a mão de Ruth virou foi a carroça e, no lado oposto, o estranho louco, vestido de azul-celeste, a cintura cingida por um cordão dourado, o calcanhar mordido pelos dentes de um mastim negro.

Noémia deu um gritinho abafado.

- O que significa? - perguntou Angélica, com o coração batendo.      

- A Fuga! A Derrota: pelo menos, uma viagem indesejada que você terá de realizar, impelida pela mordida do mastim, que pode significar tanto a pressão de um inimigo irreconciliável como a vontade de Deus para dirigi-la forçosamente em seu caminho.

- ...E para onde talvez eu não queira ir! - exclamou Angélica. - Pare, Ruth - disse ela, categórica -, não quero ouvir mais nada. Nem sobre essa carroça, nem sobre a viagem, fuga ou derrota. Quero viver, quero ser feliz.

- Mas eu creio que o conjunto é mais que encorajador. É muito bom - afirmou Ruth, que mudara prontamente o resto da sentença.

- Não! Não quero saber nada. Quero sonhar, quero sonhar que não tenho mais inimigos. Sempre haverá tempo para enfrentar a prova, quando esta chegar.

- Você é uma sagitariana - admitiu ela, como se isso explicasse a rebelião de sua Heroína.

Angélica recusava a imagem demasiado nítida de um futuro com o qual na verdade não se preocupava, e que preferia descobrir ao acaso dos dias. Pois, sagitariana, isto é, profundamente ancorada no presente, e também por ser desse signo que ergue para o céu uma flecha impaciente, vivamente imaginativa, a pro-jeção de um futuro que ela não podia abordar plenamente consciente a desanimava.

Naquele momento, estava sonhando em conhecer enfim dias estáveis e ricos de felicidade cotidiana entre os muros de Wapas-su. Bastava de fugas e derrotas... Ruth a viu perturbada e pousou com bondade a mão em seu pulso.

-          Não se atormente, minha irmã. Esse terceiro setenário nos dá apenas a orientação de seu destino, e não vejo nele nenhuma desgraça calamitosa. Ao contrário, você é e será vitoriosa, posso afirmá-lo.

Não negava a influência demoníaca muito forte, más nesse dia, em que as cartas foram tiradas pela primeira vez, essa influência se encontrava dominada. E, o que quer que acontecesse, a vitória permaneceria soberba, serena e decisiva para ela.

-          Talvez. Mas não quero mais ouvir falar dessa carroça.

Um leve ressonar que pontuava sua discussão lembrou-lhes a presença de Mrs. Cranmer.

- Faça-a acordar, Noémia.

- Não. Enquanto ela dorme, a casa está tranquila. Contemplaram sua anfitriã, que continuava a dormir como um

bebe, dando vez por outra uns discretos roncos, que traíam a profundidade de seu sono.

-          Isso a faz repousar - disse Ruth Summers, uma enfermeira sagaz. - Essa mulher não é má, mas é cheia de contradições. Tem a cabeça cheia de tantos temores sem fundamentos e sem objeto que acaba ficando amarrada a eles a ponto de não poder respirar. A loucura atormenta os moradores desta casa, fora algumas criadinhas estouvadas, melhor para elas, e também...

Pareceu refletir.

-          ...O velho senhor, talvez? Pois os homens agem de maneira distinta das mulheres, quando começam a envelhecer. Enquanto, sob o aguilhão de uma liberdade maior, devida à perda de seus atrativos e que desperta nelas um desejo de desforra contra uma existência de servidão e de submissão, as mulheres amiúde se tornam autoritárias, bruscas, ou mesmo rabugentas e malvadas, os homens, ao contrário, por terem deposto as armas e a couraça, e não sentindo mais pesar sobre eles a dura responsabilidade dos combates, a defesa da vida das criaturas mais fracas, concordam em entregar-se à indulgência e à sabedoria, à benignidade de uma vida mais agradável, de que não puderam anteriormente desfrutar nem permitir-se a doçura. Então os vemos reunir-se, na indulgência e na meditação, àquilo que sempre foi o melhor de si mesmos... É o que acontece, creio, com o patriarca desses lugares, que foi, todavia, um legislador duro, mais duro que Wintrop, o fundador, que ele expulsou da cidade, dizem.

Enquanto falava, aquele a quem se referia apareceu na soleira, ocupando sua alta e digna silhueta, ainda ereta, quase todo o vão da porta, Parado no limiar e imóvel, parecia o retrato de um ancestral em sua moldura. Suas pupilas sem brilho examinavam as pessoas presentes com a mesma expressão distante, enigmática e benevolente que um bom pintor teria sabido dar a seu modelo, a fim de que pudesse conservá-la, durante séculos, para a edificação de seus-descendentes; um tantinho sorridente, um tanti-nho severa.

Por serem quatro mulheres - Angélica, aureolada com sua cabeleira clara, hierática na grande poltrona, Ruth, diante de seus tarôs ainda sobre a mesa, com Noémia ao lado, a cabeça pousada em seu ombro, e Agar a seus pés, trançando flores - cinco, se se contasse Honorina, cuja cabeleira ruiva brilhava num canto, e mesmo seis, por menos que se admita também como representante do eterno princípio feminino Gloriandra, com um nome mais longo que ela mesma -, o venerável Samuel Wexter, o único homem, tornou-se, nesse mesmo instante, o alvo de um único e mesmo olhar enigmático, alerta, e o da gorducha não lhe pareceu o menos insondável.

Todos esses olhares de mulheres voltados para ele, o Homem-Mestre, o Homem-Guardião, o Homem-Juiz...

"E tão pouco importante", pensou ele, sentindo o quanto era frágil no centro de uma tal força convergente. Seu sorriso se acentuou.

Foi até o berço, contemplou Raimundo Rogério de Peyrac, o único representante, fora ele, nesse quarto, do princípio masculino, e que dormia, minúsculo, inconsciente desse temível privilégio, e citou:

-          "O homem nascido de uma mulher

Corre em dias,

Farto de agitação,

Abre-se como uma flor,

Depois fenece,

E foge como a sombra sem se deter.

Eis o que me fazes compreender,

E a mim tu convocas ao tribunal?"

-          Primeiro ciclo do discurso do Livro de Jó, capítulo XIV - aprovaram Ruth e Noémia em uníssono, enquanto juntavam as cartas coloridas e as recolocavam no saco.

Angélica estava impressionada por ter ouvido um velho retomar as palavras que perturbavam seu espírito no momento em que o bebé agonizava.

Pediu ao patriarca que a desculpasse por recebê-lo em déshabillé, em sua "ruela", como se dizia em Paris.

Noémia deslocou uma poltrona e aproximou-a dele. Ele sentou-se, não parecendo muito surpreso ao ver numa outra poltrona sua filha, Mrs. Cranmer. Sua idade avançada o autorizava a penetrar na intimidade de um gineceu, e seu distanciamento dos negócios e da pregação dispensava-o de fazer um julgamento sobre as pequenas originalidades que aí encontrava, pois sabia-se que as mulheres têm sua própria maneira de governar seu lazer e de ordenar a intimidade de seu retiro.

Falou da bondade de Jesus Cristo que lhes conferira graças e felicidade durante os últimos dias.

Angélica não se habituava a ouvir essas personagens, barbudas, severas, intolerantes, resmungonas, na maioria de difícil convivência, apropriar-se, como aquela, de um amigo pessoal, a pessoa de Jesus Cristo, que os Evangelhos apresentam antes como um homem jovem e afável, cheio de indulgência com os pecados do mundo, de doçura e de ternura em relação às mulheres e crianças. Era quase certo que esse Mestre, esse Senhor, de quem se valiam, comentando cada uma de suas palavras, como se houvessem discutido durante horas no Templo de Jerusalém ou nas Câmaras do Colóquio ou da Meeting-House, com a mais franca amizade, era, pois, quase certo que, se estivesse vivo, não o teriam suportado nem tolerado tal como Ele era, e que Ele teria ido para o pelourinho muito mais rapidamente que em sua época, enquanto esperava a corda do carrasco. Ousou dizer isso a ele.

Samuel Wexter permitiu-se sorrir e não o negou. Disse que, com efeito, pouco lhe interessava a pessoa de Jesus encarnada em seu invólucro, a qual, intencionalmente sem dúvida, fora talhada num tecido bastante comum, bastante humilde para ser posta em dúvida historicamente, de tál modo os traços de Filho do Homem eram vagos e pouco numerosos, personalidade humana bastante neutra afinal, esboçada como um modelo comum para não se fazer notar e para agradar a todo o tipo de gente e, efeti-vamente, suprema habilidade, também às mulheres e às crianças.

O que fazia inclinar-se com adoração era esse fenómeno da Encarnação, prodigioso mistério que colocara ao alcance dos homens o próprio pensamento do Deus todo-poderoso.

O fato de o invólucro escolhido, repetiu, ser de pouco revelo não o atormentava, absolutamente. A fascinação exercida e o peso dos atos realizados por esse Jesus, filho de carpinteiro, só serviam para melhor demonstrar a intervenção divina através de um ser comum.

- Mas, justamente - retorquiu Angélica -, será que o desejo de agradar às mulheres e às crianças não demonstrara que Deus, em sua Encarnação, decidia centrar suas novas relações na afetividade, isto é, no Amor?

- Não confundamos afetividade com Amor - protestou o Reverendo Wexter.

- Por que não? - protestou ela. - Qual é a diferença? A não ser que a afetividade não seja se não uma ínfima parcela, uma raiz bem pequenina desse sentimento transcendente que o Amor representa, em sua essência, e que anima tudo, já que se pretende que Deus é Amor? E, de minha parte - acrescentou, diante de seu silêncio -, penso que esse Jesus, que não foi nem tão fraco, nem tão humilde como o senhor diz, mas um homem cheio de sedução e de charme, escolheu com pertinência essa personagem não apenas para lembrar que Deus é Amor, mas também para lembrar que Ele é amável e para tornar acessível esse mistério do sentimento do Amor, sobre o qual os homens da época tinham tão pouca noção. E hoje, Excelência, acredita que o novo mandamento é tão bem aceito? Um sentimento e não mais apenas uma lei?

O Reverendo Samuel Wexter franziu os brancos sobrolhos cerrados e a considerou pensativamente.

- Lamento que você seja uma mulher - murmurou - e felicito-me de que seja papista.

- Mas por quê?

- Por que não tenho de me preocupar com vê-la na fraqueza de seu espírito feminino, enveredar por caminhos tais que os padres, mesmo os de sua religião, por mais que estejam mergulhados no obscurantismo, não deixariam de julgar perigosos e inadequados para uma pessoa de seu sexo.

Ela concordou.

- Nisso, sir, tem razão. Quando se trata de decidir sobre a fraqueza do espírito feminino em relação ao espírito masculino, todos os ministros, de todos os cultos e seitas, concordam, e este é até um ponto de aproximação que seria bom sublinhar nos colóquios ou concílios que os príncipes das Igrejas, preocupados com o entendimento entre os cristãos, suscitam por vezes, sem obter grandes resultados. Mas ainda, por que deplora que eu seja mulher?

- Como homem, você poderia constituir, após estudos universitários e doutrinais evidentemente, em colégios onde apenas os homens são admitidos, um interlocutor dos mais válidos em discussões teológicas.

- Voltamos ao ponto de partida de nossa discussão. Por que os homens se outorgaram o monopólio das coisas de Deus? A fraqueza física da mulher, que, nos tempos primitivos, desequilibrou o poder entre os dois sexos, não deveria ser levada em consideração quando se trata das questões do espírito... Afinal, Adão e Eva, nus e animados pelo sopro de Deus no Jardim de Éden, eram iguais.

- Adão foi criado primeiro - exclamou o Reverendo Wexter, levantando um dedo para o céu.

- Devemos dar o poder às flores e aos pássaros por terem sidos criados antes de nós, seres humanos?

O patriarca permaneceu mudo, aparentemente sem réplica imediata. Depois, após um longo momento de silêncio, sorriu por entre sua longa barba.

- Eu poderia replicar-lhe que Eva foi formada da costela de Adão, o que poderia implicar uma certa dependência da mulher, mas você decidiria que o Criador quis formá-la de um material menos vulgar que a argila.

- Com efeito, é uma boa ideia!

- E também, designando-me esses dois magnífipcos recém-nascidos, saídos de sua carne e da semente de seu esposo, você me afirmaria, o que é justo, que isso não os torna inferiores quanto a seu valor como seres humanos, pois o destino de todo o ser humano é único e depende apenas dele e da vontade de Deus sobre ele, e não do fato de que tenha saído de uma outra criatura...

- O senhor me evita a fadiga de procurar argumentos.

- Que naturalmente teria encontrado. Mas... com efeito, quero lhe poupar a fadiga, pois, afinal, leio, pelos círculos em volta de seus olhos, que você é apenas uma mulher frágil - acrescentou com malícia e gentileza -, e que já discutiu e brigou demais por uma pessoa que quase não conseguimos trazer de volta à terra, há não muito tempo. Repouse.    

Levantando-se, ergueu, como para uma benção, sua mão branca, longa e diáfana para fora da manga debruada de pele de peti-gris de sua capa, que ele usava mesmo em dias de calor.

-          Desejo apenas dizer-lhe, milady, o quanto considero minha casa honrada por sua presença e pelos grandes acontecimentos que aqui se desenrolaram. Você traz consigo a graça e a efervescência de ideias e de imagens que constituem o encanto do Velho Mundo. Quando eu era criança, em Leyden, na Holanda, gostava de sentir a profusão do passado a cada esquina. Aqui, faltam-nos raízes. Somos como uma estaca fincada na terra. Queria também informá-la sobre o que vou dizer ao Sr. de Peyrac. Se o difícil equilíbrio que vocês mantêm na baía Francesa, e que permite aos povos dessas margens obrar pela paz, fosse rompido, e se esses franceses raivosos, seus amigos e compatriotas, e cujo braço é retido pelo Sr. de Peyrac, decidissem novamente invejar sua influência, quero que saibam, o governador do Massachusetts, e os membros do Consistório de Salem, em particular, os acolheriam sempre, a vocês e aos seus, de boa vontade. Seus primeiros filhos foram educados em nosso colégio de Harvard. Nossa Carta nos torna autónomos na escolha de nossas amizades e alianças. Nem o rei da França, nem o rei da Inglaterra, podem ditar nossa conduta nesse domínio, e nos consideramos um Estado livre sob os olhos de Deus.

Por diversas vezes já, as pequenas criadas tinham vindo mostrar seus focinhos à porta, sem ousar interromper o temível ancião. Era hora de sua ceia.

Angélica agradeceu-lhe, afirmou-lhe que era reconfortante para ela saber que tinham amigos indefectíveis entre os Estados da

Nova Inglaterra, apesar de seus títulos de franceses e de católicos, o que bem demonstrava que o entendimento entre os povos podia se realizar pelos homens de boa vontade.

Ele retirou-se.

- Não se deixem tentar por Boston - recomendou ainda.

Depois que ele saiu, Ruth e Noémia ajudaram Angélica a voltar para a cama. Ela estava fatigada, e elas a instalaram confortavelmente em seus travesseiros. Fechou os olhos imediatamente.

A conversa com o patriarca a fizera esquecer a carroça e seu louco com sua cinta dourada, e não sentia mais a emoção irritada que se apoderara dela quando Ruth se referira a ele.

Em compensação, lembrava-se da confiança com que falara da disposição encorajosa do terceiro setenário, no qual as forças nocivas eram "controladas" e no qual sua vitória "soberba, serena e decisiva" era absolutamente incontestável.

Isso coincidia com o sentimento de paz profunda que a inundava desde o nascimento das crianças e sua salvação. Alguma coisa acontecera e lhe dera a vitória. Ruth, atravessada por correntes de vidência e de adivinhação, aproximara-se tanto da verdade, que Angélica se assustara.

Falando da Papisa, do Homem Brilhante, Ruth dissera: "Eles querem sua perda!" E isso era bem verdadeiro! Ainda que não fosse, doravante, senão uma situação passada.

A Papisa, o Homem Brilhante tinham efetivamente pesado muito sobre a nova existência que Angélica e Joffrey de Peyrac iniciavam no Novo Mundo, depois de terem lutado tanto para se encontrar.

As influências nocivas, os complôs sorrateiros, entrelaçaram-se como lianas venenosas à trama de sua vida, tão precária, por outro lado. O que demonstrava que os combates da alma se travam e prosseguem em toda parte e em todos os lugares e, ,por vezes, suplantam os desafios já quase insuperáveis que são colocados pela sobrevivência num país selvagem, povoado por raças diversas.

Noémia murmurara: "Ele está no túmulo..."

O exílio de seu inimigo, Sebastião d'Orgeval, e o silêncio que se fizera em torno dele podiam ser considerados um túmulo moral que o impedia de agir e de se manifestar. Outrora adulado, ele jogou com sua lenda, com seus atrativos, para assentar seu poder sobre seres fracos: sua celebridade, sua beleza, seus sucessos mundanos, sua bandeira de guerra bordada, a piedade que inspiravam seus dedos mutilados pelas torturas, seus olhos azuis de brilho insustentável como o da safira...

Tinha espiões a seu serviço que levavam cartas até o rei, servidores fanáticos. Atualmente, tudo estava mudado. As paixões tinham se atenuado. Seu nome caía no esquecimento.

A tensão negativa acumulada distanciara-se como essas nuvens de tempestade muito negras que se afastam para o horizonte. Elas permaneceriam ali, talvez à espera, mas "dominadas", como se dizia, e ela sentia sobre ela, sobre os seus, sobre todos aqueles que amava, a proteção do céu.

Certeza embriagadora. A grande asa branca desdobrava-se deles como o pano de uma tenda em pleno deserto.

E, sem saber a que ponto seu pressentimento seria logo confirmado, Angélica se dizia que alguma coisa que acontecera havia diluído o perigo. E isso devia ter-se passado antes ou no momento do nascimento dos gémeos, e por isso seu destino fora marcado por tal ameaça.

Mrs. Cranmer abriu um olho esgazeado. .Sem dados precisos, sentia-se vítima de uma travessura, e, viradafpara a janela, considerou com desconfiança as luzes acentuadas do poente.

Depois, suspirou.

Dentro de alguns dias, essa gente ruidosa, que já colocara várias vezes em xeque seu domínio interior, a ponte de fazê-la perder sua dignidade e derramar lágrimas, embarcaria e, no inverno seguinte, estaria novamente entre crentes. As preces e tarefas virtuosas recomeçariam a escandir as horas do dia. A lembrança de suas provações do verão se apagaria.

Ela não sabia, pobre Lady Cranmer - que se fazia chamar, por humildade, mistress e não milady -, que, antes de encontrar a paz de sua consciência e de sua casa, ser-lhe-ia preciso passar por uma última provação, bem mais penosa e inconcebível que todas as outras.

 

Um jesuíta em Salem - Notícias do Padre d'Orgeval

O rumor amplificava-se. Não era o da tempestade, nem o do mar. O céu, no enquadramento da janela aberta, permanecia sereno. A maré estava em calmaria, e foi preciso que o surdo fragor, que rolava ao longe e se aproximava, explodisse subitamente, num rugido mais próximo, para que as nuvens de pássaros do mar, que, debicando, cobriam a planície de algas, levantassem voo, num grande estalejar de asas e de pios dilacerantes.

Esses gritos fizeram eco aos berros e invectivas que jorravam e se confundiam alternadamente, formando esse rumor confuso que Angélica ouvia. Uma multidão enfurecida virava a esquina. Os uivos agudos e prolongados das mulheres eram de dor ou de histeria? Os clamores reiterados dos homens eram de cólera ou de medo?

Ruth e Noémia precipitaram-se para a janela.

- Oh! God! - gritou Ruth, recuando, a mão sobre a boca, como se quisesse conter outras exclamações mais assustadas ainda. - Estou sonhando! Parece-me ter visto um desses terríveis padres papistas a quem você chamam jesuítas, madame! Mas aqui... em Salem!

Angélica não se conteve. Era a primeira vez que fazia o esforço de levantar-se sozinha, mas o impulso da curiosidade a susteve, e ela reuniu-se a Ruth e Noémia a uma das janelas, enquanto Severina, a cigana, e Honorina se precipitavam para a outra.

A multidão compacta e agitada chegava diante da casa. O en-capelamento dos chapéus negros em forma de pão de açúcar, dos gorros de lã dos marujos e dos práticos, das toucas brancas das mulheres, emergia, no centro, sacudido como uma bóia sobre as ondas, e oscilando sob os empurrões diversos e contrários que os apertavam de todos os lados, um grupo composto de perso-nagens-no mínimo insólitas, pois ela avistou em primeiro lugar um desses altos penachos eriçados em leque e mantidos pelas grutas de resina de uma cabeleira iroquesa. Penacho plantado de plumas, que flutuava acima das cabeças e até dos chapéus e que só podia pertencer a um gigantesco selvagem. A ponta de sua azagaia, que emergia, cintilava intermitentemente, assim como as cabeças das alabardas de três ou quatro milicianos do Conselho, que formavam, ou se esforçavam por formar, um círculo em volta das pessoas a serem protegidas, tentando ao mesmo tempo afastar os mais enraivecidos. Um homem de grande estatura, vestido com um jaquetão de couro de búfalo, sem mangas, com o chapéu de feltro atravessado, dava murros no ar, gritando para que abrissem passagem.

Depois, ela viu o jesuíta... Um movimento da turba revelou-o no centro dos soldados, enquanto o grupo chegava a alguns passos da porta de entrada. Era de fato um jesuíta em toda a verdade de sua toga negra e de sua barba, também negra, de seu crucifixo sobre o peito e das lapelas brancas de sua gola espanhola. Levando-se em conta o fato de que a sotaina estava em andrajos, o rosto, muito emaciado, e a barba em ponta, hirsuta e poeirenta, seu olhar imperioso e candente seria suficiente para denunciá-lo. Nesse olhar revelava-se todo o poder mágico - e para alguns, demoníaco - que os membros dessa ordem, que ousa depender apenas do nome de Jesus e confessar-se a serviço total dos papas de Roma, conseguem, acredita-se, pelo exercício de práticas ocultas, a fim de captar sem apelação as almas ignorantes ou demasiado fracas para resistir-lhes.

Assim, sob o olhar brilhante e perspicaz que o jesuíta, que surgira inopinadamente no centro de Salem, dardejava sobre a multidão alucinada que o insultava, a maior parte de seus agressores começou a se sentir como que "aspirada" para um abismo vertiginoso e suspendeu seus gestos de violência, enquanto outros, menos influenciáveis ou mais primitivos, acotovelavam-se e reclamavam passagem para atingi-lo e golpeá-lo.

Os próprios soldados que o major, na entrada da cidade, teve de lhe dar como escolta, para que fpsse conduzido sob proteção à casa de Mrs. Cranmer, deixavam-se impressionar pela reação de loucura coletiva, até ficarem como que paralisados, de armas na mão, não sabendo o que decidir, enquanto, diante de sua atitude timorata, enormes maganões, estivadores vindos do porto, enviavam sinais uns aos outros, decididos a tomar a ofensiva.

Junto ao eclesiástico, um adolescente louro, seu "dado" provavelmente, lançou-se diante dele para defendê-lo, e os agressores, que continuavam a não ousar tocar o jesuíta, podendo se desforrar no jovem francês, cumularam-no de uma saraivada de golpes - murros por parte dos homens, unhadas por parte das mulheres - a ponto de fazê-lo vacilar e de que sua cabeça loura desaparecesse, engolida sob os braços, como asas negras de corvos furiosos.

-          Eles vão ser linchados! - gritou Angélica. - Depressa! Abram a porta de baixo e deixem-nos entrar!

A essa voz, o jesuíta, sempre impassível diante do atropelo, ergueu os olhos para as janelas onde se debruçavam as mulheres.

-          Depressa, abram essa porta! Severina, saia por trás e corra a alertar nossos homens! Será que não existe um valete para abrir essa porta?

E como ninguém se mexesse no quarto, nem na casa, parecendo os moradores transformados em estátuas de sal, ela mesma desceu, agarrando-se à balaustrada. Não teria forças para mais que isso, mas conseguiu sacudir a inércia dos criados, que se mantinham no vestíbulo, imobilizados diante da porta que martelavam do lado de fora com murros insistentes, e eles puxaram os ferrolhos e trincos.

O homem de jaquetão de couro arremessou-se para dentro, blasfemando o torto e a direito, numa língua rude, e sustentando, com a ajuda do jesuíta, o rapaz, que tinham conseguido levantar, depois o grande selvagem empenachado. Os valetes quiseram fechar a porta sobre ele, mas o índio se insinuou como uma cobra, empurrando-os sem esforço, e os soldados penetraram atrás dele aos empurrões, nenhum deles disposto a enfrentar seus concidadãos, que poderiam se mostrar decepcionados por verem escapar sua presa e censurá-los.

Por sorte, os painéis de carvalho entalhados eram sólidos, e os ferrolhos e trancas, numerosos. A cólera da multidão cindiu-se.

Houve mais.

Um forte empurrão vindo do fundo da praça arrastou à força as pessoas mais próximas da casa contra a fachada e, sob o esmagamento irresistível, algumas espáduas vararam pela metade a grande janela do térreo, torcendo os frágeis braços de chumbo e quebrando os losangos de vidro colorido, que caíram no lajedo com um barulho cristalino.

O prejuízo não passou disso.

Entretanto, a confusão de ter danificado uma das mais belas casas de uma das mais ricas, piedosas e importantes famílias da cidade apoderou-se dos culpados e foi mais efetiva em acalmar os espíritos do que tinham sido os golpes de alabarda e as adjura-ções dos soldados.

Após um último grito consternado, o silêncio se estabeleceu. E quando Lorde Cranmer, acompanhado do Conde de Peyrac e sua escolta e do Conde d'Urville, à frente de um destacamento de marinheiros, chegaram, as pessoas, sem terem se dispersado inteiramente, tinham se acalmado. Grupos iam e vinham, olhando para a casa.

No momento em que o Massachusetts estava irritado pelos recentes ataques índios da Nova França, a chegada de um desses padres, que era visto como um espantalho e que apresentavam como um dos condutores de seus assassinos, só podia comover a população. E também aguçar sua curiosidade, pois poucas pessoas tinham tido a oportunidade de ver um jesuíta de perto. . "E se dessa vez for ele?", perguntara-se Angélica, quando estava inclinada à janela.

Um prodígio a mais em Salem! Estava pronta para isso!

Entretanto, a aparência do recém-chegado não correspondia à descrição tantas vezes feita: olhos azuis, cabelo castanho, o crucifixo marcado por um rubi...

A antecâmara já estava lotada quando Lorde Cranmer e Joffrey de Peyrac chegaram.

Acorria gente de todos os cantos da casa. O velho Samuel Wexter apareceu em sua capa, a longa barba cuidadosamente estendida sobre o colarinho engomado. O homem de jaquetão apostrofou-o em sua língua, que revelou ser o holandês, depois em inglês, dizendo-lhe que não estava mais disposto a prestar serviço ao seu próximo, quando se arriscava a tratar com seus carneiros raivosos do Massachusetts. Esses senhores do Consistório de Salem não tinham mais autoridade sobre suas ovelhas? Ele, Van Laan, ele era de Orange, às margens do rio Hudson, não longe do vale dos iroqueses, da nação dos mohawks, gente belicosa por excelência.

Um dia, contou, quando fora retirar as redes num riacho de salmões, vira surgir perto dele, "pintados" até os olhos e com um ar pouco convidativo, um pequeno grupo de seus poucos sociáveis vizinhos. Preferia isso ainda a um bando de abenakis, que, pensando ser ele inglês, teriam lhe causado muito mais problemas. Eles haviam se contentado em conduzi-lo até um de seus burgos de casas compridas, e lá fizeram-no compreender que ele não escaparia à feroz honra que os iroqueses reservam a seus prisioneiros, a "grelha", a não ser que se comprometesse a escoltar dois cativos brancos - um missionário jesuíta francês e seu acólito, um jovem francês do Canadá - até que fossem devolvidos a Teconderoga.

Teconderoga, o Homem do Trovão, ele não o ignorava, conhecendo sua reputação, era o cognome dado a um fidalgo francês que mantinha os fortes e que abrira várias pequenas minas de prata no interior do Maine. No verão, o Homem do Trovão não se encontrava mais em seu forte de Wapassu. Sabia-se que ele viajava pelos lados de Nova York. Ele, o homem branco, devia ajudá-lo a interpor-se junto aos yennglies. Um dos "principais" das Cinco Nações devia acompanhá-lo para testemunhar o cumprimento de sua missão. Deram-lhe o citado Tahutaguete, e eles se puseram a caminho, escoltados por dois jovens guerreiros, para os quais essa viagem devia ser uma iniciação no mundo branco. Longa viagem! A caminho, soube-se que Teconderoga se encontrava nas paragens de Boston e de Salem.

Foi preciso fazer um desvio na direção das montanhas. Falavam de grupos canadenses que atacavam as fazendas das fronteiras, e, responsável por seu jesuíta francês, Van Laan hão estava mais orgulhoso ao pensar em cair em suas mãos.

Angélica sentara-se nos degraus da escada. Noémia e Ruth, atrás dela, a imitaram. Um criado arrastou uma cadeira para Mrs. Cran-mer, que estava desfalecendo, trémula.

-          Por que em minha casa? Por que em minha casa? - murmurava.

A antecâmara estava superlotada, sendo o jesuíta o alvo de todos os olhares...

"Não é ele", disse a si mesma Angélica, que pensara inicialmente no Padre d'Orgeval.

Seu crucifixo de cobre e de madeira negra não tinha nenhuma incrustação de pedra preciosa. Em compensação, o "dado" canadense não lhe era desconhecido, nem o guerreiro iroquês. Este, grande, forte e musculoso, tinha uma cabeçorra enfeada por marcas profundas de varíola.

Não se sabia sobre qual deles se fixava mais a atenção dos olhares siderados, se sobre o jesuíta ou o grande^selvagem de penacho eriçado de plumas e que exalava um odor acre, irrespirável, no espaço confinado da antecâmara.

Foi ao iroquês que Joffrey de Peyrac se dirigiu primeiramente, em sua língua.

-          Eu o saúdo, Tahutaguete, amigo de Swanissit, chefe dos cayugas, do qual você me foi mensageiro por diversas ocasiões, antes que ele partisse para as regiões das grandes caças.

Retirou da algibeira um objeto, que entregou a seu interlocutor.

-          Aqui está o anel com que lhe presenteei da primeira vez que nos vimos, para que nos sirva para sempre como sinal de reconhecimento, e que você me mandou entregar hoje para que eu soubesse de sua vinda e de sua presença em nossas paragens. Por que não me esperou atrás do riacho que limita a colina ao norte? Eu me preparava para ir ao seu encontro, a fim de escoltá-lo

até a cidade dos eynnglies.

O iroquês lançou-se num discurso, acompanhado de gestos veementes que designavam várias vezes o jesuíta e, mesmo para aqueles que não compreendiam seu dialeto bárbaro, pareceu claro que ele o acusava de tê-lo obrigado a não esperar para entrar na cidade, partindo, ele e seu companheiro, na frente, para as portas das muralhas. Ambos fingiram, na ocasião, a indiferença insolente bem conhecida dos franceses em relação às opiniões dos guerreiros experimentados, exibindo-se aos yennglies que iam e vinham pelo caminho e que não teriam tardado em reconhecer neles inimigos duplamente detestáveis.

-          O que eu poderia fazer para detê-lo - concluiu, apoiado em sua defesa pelo holandês - a não ser quebrar-lhe a cabeça, o que poria fim à sua missão, tão próxima do objetivo final, e que me teria atraído o descontentamento de Utakê? O homem de Corlar e eu o seguimos portanto, deixando ao abrigo dos bosques nossos dois outros companheiros, ónondagas, mais prudentes que nós.

O jesuíta era de estatura média, mais baixo que alto, magro, mas mantinha-se tão ereto e rígido, como que plantado no centro do hall, num círculo de olhares inimigos ou pelo menos indignados, que, apesar de sua sotaina andrajosa, a barba e a cabeceira hirsutas e negras, que lhe conferiam um ar selvagem, as canelas esfoladas e os pés nus que se perdiam nos mocassins gastos, emanava de sua pessoa uma dignidade altiva, que, pouco a pouco, se impunha e hipnotizava a assistência.

O avesso puído de seu colarinho estava limpo, o que revelava com que energia ele lutara contra a decadência do corpo entregue ao suor e à gordura, tendo o cuidado, diariamente, apesar do esgotamento da caminhada e dos golpes que os iroqueses não poupavam a seu prisioneiro, de lavar sua roupa na água corrente de um regato.

-          Por que teimou em entrar nesta cidade inglesa? - perguntou-lhe vivamente o conde, voltando-se para ele. - Poderia ter desconfiado que os espíritos estavam predispostos contra os franceses aqui, e também contra seu hábito de religioso católico, em consequência dos recentes massacres que seus algonquinos e huronianos batizados são levados a empreender contra as pessoas das fronteiras de New Hampshire e do Alto Connecticut!

O jesuíta considerou-o em silêncio, com os olhos semicerra-dos, depois, acentuando sua expressão de arrogância -e fingindo surpresa perguntou com altivez:

-          Quem é o senhor, que fala tão bem nossa língua?

Joffrey de Peyrac não pôde deixar de notar um breve movimento de insolência, que sabia ser calculada.

- Você o sabe muito bem - retorquiu. - Sou aquele a quem devia ser levado.

- Ah! compreendo... Teconderoga, o Homem do Trovão, o amigo dos ingleses e dos iroqueses, em suma, o Sr. de Peyrac, gentil-homem francês. Pois bem, senhor, já que é assim, permita-me que me mostre chocado com sua atitude e que expresse meu pesar de que não tenha tido a cortesia de se apresentar logo de início a mim, como deveria acontecer entre compatriotas e cavalheiros. - Ele continuou: - Mas preferiu dirigir-se primeiro, e com que deferência, a esse pagão obtuso que não ignora ser um de nossos inimigos mais irredutíveis. Esta é uma atitude de desprezo, que deseja marcar diante desse pagão e desses hereges, para com seus irmãos de raça que renegou e para com um padre de sua religião. Se eu não sentisse essa intenção em seu comportamento, não o teria observado, pois não passo de um humilde missionário a serviço do mais humilde dos Salvadores, que desejou nascer carpinteiro e perecer no patíbulo da infâmia, mas fique sabendo que minha família nem por isso é de pouca importância.

Inclinou a cabeça numa breve saudação:

-          Reverendo Padre João de Marville, da Companhia de Jesus - concluiu. - E este é Emanuel Labour, um jovem seminarista de Quebec.

O conde retribuiu o cumprimento, mas não ficou desconcertado.

-          Meu padre, lamento tê-lo melindrado, de alguma forma. Mas, no que se refere a sua mercurial a propósito das honrarias que devo prestar a meus visitantes, surpreende-me que você, que persegue há tanto tempo as nações indígenas e iroquesas, me censure de ter-me dirigido em primeiro lugar ao grande chefe onondágua que o escolta. Além de conhecê-lo há muito tempo e de ser ele também de posição bastante elevada, eu lhe devia essa precedência, pois você não ignora que esses povos são sensíveis à consideração que se lhes dispensa, e prestar atenção a isso é ater-se à prudência mais elementar. Enfim, não preciso lhe sublinhar que, longe de negligenciá-lo, levei em conta o fato de que, sendo capitão de sua expedição, sua sorte e a desse rapaz estão em suas mãos... Tampouco ignora que, se lhe fosse permitido irritar-se e rachar-lhe a cabeça, nem eu nem esses senhores de Salem poderíamos fazer qualquer coisa pra intervir e dissuadi-lo de seu intento.

-          Que importa! É bom morrer na mão dos inimigos de Cristo e entre os inimigos dele. O sangue do mártir semeia a terra ingrata.

Como para dar razão à explicação de Joffrey de Peyrac, o gigantesco Tahutaguete, que achava que o jesuíta lhe tomara depressa demais a palavra, voltou a colocar-se no centro da cena.

Iniciou uma arenga em iroquês, que apenas um número restrito de pessoas podia acompanhar: Peyrac, os holandeses, os dois franceses e, nas grandes linhas, Angélica, que continuava a ter a impressão de sonhar ouvindo a voz rouca do iroquês, enquanto seu penacho exuberante, guarnecido de plumas de gralhas e de caudas de gambás, se agitava e roçava no lustre de pingentes de cristal do vestíbulo.

-          Oh! esse cheiro, estou desmaiando - gemia baixinho Mrs. Cranmer, que seus serviçais abanavam.

O forte aroma da gordura de urso, com que se untavam os selvagens para escapar às picadas dos insetos, logo suplantara o de cera de abelhas adicionada ao benjoim, com o qual estavam impregnados os belos móveis e a escada.

Quando o nomearam, Angélica reconheceu enfim o jovem "dado" canadense, Emanuel Labour, que ela encontrara em Que-bec. Era um rapaz gentil, de dezesseis anos de idade, que queria se tornar padre e cuidava das crianças no seminário. Ele fora à casa de Ville-d'Avray quando estava à procura do jovem Marcelino de L'Aubignière ou de Abbal Neals, que escapavam o tempo todo, e que ela convidara a comer um pedaço de bolo, divertindo-se. em tagarelar com ele.

Se não fosse isso, não o teria reconhecido. Antes de mais nada, ele crescera muito, o que era próprio de sua idade. -Mas, macilento, pálido e como que no limite de suas forças, ela não reconhecia nenhum sinal da antiga expressão feliz em sua fisionomia triste, marcada por urri trágico desespero.

Enquanto falava, Tahutaguete abriu uma espécie de sacola, que ele carregava à bandoleira, e como se perguntava com apreensão o que iria sair dela, ele exibiu dois longos cordões de couro em que estavam enfiadas contas brancas e azuis, e uma faixa mais larga e mais comprida, constituída por liames semelhantes de contas, cuja disposição formava um desenho.

Começou por estender ao velho Samuel Wexter os dois cordões, dando a entender por mímica que era uma coisa sem importância, mas que os representantes das Cinco Nações deviam entregar aos yennglies pelo menos dois "ramos" de porcelana, como eram designados, a fim de dar a conhecer suas intenções.

Peyrac traduzia:

- A vocês, yennglies de Salem, o grande chefe dos mohawks Utekauata envia esses dois "ramos" de porcelana. O primeiro contém sua palavra de que continuaremos a não fazer guerra aos "principais" de Salem.

Tahutaguete entregou a outra faixa a Peyrac. Esses colares ou "ramos" de wampum constituíam para as tribos, assim como para os indivíduos que eram seus depositários, um tesouro, pelo menos um tesouro de guerra, podendo ser negociado, e tinham valor de contratos ou de garantia de tratados. Frequentemente, também eram apenas simples mensagens que exprimiam, de modo codificado e acessível apenas aos iniciados, o anúncio de um acontecimento, uma confidência, uma advertência.

Tahutaguete disse que ele não traduziria o sentido do colar de wampum entregue a Teconderoga senão quando Toga Negra, que ele conduzira até ali, lhe tivesse entregue sua mensagem, objetivo de sua árdua e perigosa viagem, ato que terminaria a missão de que fora encarregado, e novamente, escutando-o, um sorriso amargo aflorava aos lábios enegrecidos e ressequidos do religioso.

- Que seja - disse o conde, virando-se para ele. - Qual é essa mensagem, padre?

- Não se trata de uma mensagem, mas de uma comunicação... de uma comunicação solene.

- Eu o escuto.

O Padre de Marville empertigou-se, fechou os olhos, pareceu hesitar diante da gravidade ou da vastidão de sua tarefa, e depois, fixando seu interlocutor, anunciou com uma voz cava:

-          Ao senhor, pois, Sr. de Peyrac, devo fazer o anúncio de uma terrível notícia. Nosso irmão em Jesus Cristo, o reverendo Padre Sebastião d'Orgeval, jesuíta, morreu como mártir entre os iroqueses.

Os assistentes repetiram e traduziram uns aos outros a notícia, cochichando, e os que não compreendiam nada da situação tremiam mais ainda que os outros.

-          Sim, ele morreu - continuou ele febrilmente -, eu o vi expirar após um longo martírio de que fui, assim como esse jovem, testemunha impotente: uma tortura mais horrível para nós do que teria sido partilhar a dele.

Pôs-se a descrever com riqueza de detalhes os suplícios infligidos ao Padre d'Orgeval por seus carrascos, que cuidaram para que ele não morresse depressa demais: sovelas incandescentes atravessando os feixes de músculos expostos, batismo de areia candente queimando sobre o crânio escalpelado, carvões ardehtes enfiados na órbita ocular da qual fizeram saltar o olho...

-          A Igreja Católica, Apostólica e Romana vai contar um novo mártir. Um santo a mais, para assegurar-lhe a vitória e, graças a suas relíquias, espalhar os milagres que testemunharão a bondade para com seus fiéis. Pude recolher alguns ossos...

Houve um recuo geral quando ele fez o gesto de abrir um saquinho de couro, que levava ao pescoço.

Ouviu-se um barulho surdo: no meio do círculo subitamente aumentado, o corpo do jovem canadense acabava de desabar, desmaiado, aos pés do jesuíta.

Compreendendo que todas as querelas das nações da América estavam prestes a se purgar em sua antecâmara, Mrs. Cranmer, apressadamente, mandou buscar Lady Wexter, sua mãe, que era uma mulher forte, cheira de disposição, mas que o barulho não incomodara,-pois era muito surda.

Ela chegou precipitadamente, as rendas e batistas de sua touca balançando graciosamente atrás dela, e sorriu, feliz por ver uma assembleia tão numerosa.

As criadas haviam, nesse ínterim, transportado o jovem Emanuel para o lajedo da cozinha e o inundavam com baldes de água.

O reverendo Padre de Marville considerara com um olhar frio o desfalecimento do jovem canadense. Teria sido preciso muito mais para comovê-lo e fazê-lo renunciar à oportunidade que lhe era conferida de fustigar, num discurso longamente meditado e amadurecido por ele, os inimigos de Deus e da Igreja, reunidos finalmente sob seus olhos.

-          Sim, podem rejubilar-se, hereges e renegados que são, todos vocês, implantados numa terra virgem que começaram, ai de mim, a semear com os germes do erro e da mentira. Ele morreu, aquele que se opunha de antemão a suas funestas doutrinas, pelo sólido baluarte de seu ensinamento da justa verdade. Ele morreu, aquele que, tomando a defesa dos pobres povos selvagens

dessas regiões, cujo extermínio vocês empreenderam, encorajou-os a defender as terras que lhes roubaram...

O velho Samuel Wexter avançou um passo e, com um gesto autoritário, conseguiu romper, como que cortando-o rente, o fio da homilia do pregador. Maciço sob sua capa negra, sua barba branca tremendo de cólera, julgava ter chegado o momento de entrar na liça.

Num francês com muito sotaque, mas apurado, e com uma voz que não receava se elevar ao diapasão de seu antagonista, martelando bem as palavras, exprimiu-se com vigor, apesar da moderação meritória.

-          Entendo muito bem sua língua, fatber, para julgar que está pronunciando, sob meu teto, contra nós, ingleses, que o acolhemos sem lhe causar qualquer dano, calúnias excessivas e que tenho o dever de refutar. Sua ignorância das razões que nos levaram a nos estabelecer em terra americana pode desorientá-lo. Viemos para esta terra virgem a fim de poder rezar em paz e não com um objetivo sanguinário e mercantil. Saiba que quando desembarquei, ainda criança, nessas praias, nenhuma desavença nos opunha aos habitantes dessas regiões, que nos pareceram naturalmente doces e amáveis. - Ele continuou: - Longe de querer afastá-los, estabelecemos elos da mais sincera e da mais útil amizade com o índio Squanto, que nos mostrou como plantar o milho e que veio colocar-se ao abrigo de nossas armas, que, além disso, poderiam ajudá-lo a obter a caça de que sua tribo necessitava. Essa amizade foi selada por um magnífico banquete de peruas selvagens e abóboras, cujo aniversário nos habituamos a comemorar, como um dia abençoado pelo Senhor.

- E a tribo dos peksuasacks, que denominam pequots, e que exterminaram num único dia, vendendo os sobreviventes como escravos no mercado de Boston? E a revolta dos narrangasetts, que acabam de sufocar em sangue?

- Esse índios, sem qualquer provocação de nossa parte, massacraram inúmeros colonos nossos e ameaçavam a sobrevivência de nossos estabelecimentos...

- Sem qualquer provocação de sua parte? - escarneceu o jesuíta. - Como explicam uma coisa dessas em povos que chamam de doces e amáveis?

- Foram vocês, franceses e padres da Babilónia, que os incitaram contra nós - impacientou-se o ancião -, por sermos ingleses e filhos da religião reformada. Foi assim, desde os primeiros tempos: não cessaram de instigá-los contra nós, vendendo-lhes armas e aguardente, prometendo a salvação a seus índios batiza-dos, se nos massacrassem a todos e nos expulsassem para o mar. E, para não nomear senão um responsável pela renovação da guerra indígena, aquele cujo falecimento acabou de nos anunciar, que ousava pôr-se à testa dos guerreiros vermelhos contra nossas aldeias, eu protesto que ele se mostrou odiosamente criminoso, pois tais atos ultrapassam as atribuições e as tarefas de um levita.

- Sobre esse ponto eu não o contradigo - aceitou o jesuíta, num tom que significava que estava pronto a fazer concessões -, mas nego profundamente que o Padre d'Orgeval tenha alguma vez participado dos reides de seus índios revoltados, ou desempenhado esse papel de guia dos selvagens que lhe atribui no assalto a suas aldeias.

- Você nega! - exclamou Samuel Wexter, ruborizando-se de cólera -, enquanto nós temos as provas mais convincentes de sua ação guerreira.

- Estou curioso de saber quais!

- Mas... e o testemunho dos que conseguiram escapar?

- Ora! Uns cretinos tjue ficam loucos só de ver apontar a pluma de um selvagem. É fácil para vocês, seus pastores, sugerir-lhes que viram a silhueta de um jesuíta soldado de Roma, dessa Roma que repudiaram e que querem derrubar por todos os meios, a fim de que possam difundir-se pelo mundo suas doutrinas infames.

- Temos provas irrefutáveis, father - proferiu o velho, que tremia de indignação -, mensagens apreendidas com espiões que esse D'Orgeval tinha a desfaçatez de colocar entre nós, não apenas para encaminhar mais rapidamente essas venenosas instruções para a Europa, quando o Saint-Laurent, tomado pelos gelos, fecha esse caminho aos novos franceses, mas também para observar, anotar tudo o que possa permitir a seus partidos guerreiros atacar-nos com mais segurança, e nos destruir com mais facilidade: situação de nossas defesas militares, número de nossos homens capazes de usar armas, tribos^ a serem conquistadas por presentes e até os traidores a serem embaídos entre nós, pois existem ovelhas negras até no seio do rebanho do Senhor. E você nega que o Padre d'Orgeval tenha enviado espiões a nossos Estados, nessas colónias que são territórios pertencentes à coroa da Inglaterra, que, no momento, que eu saiba, não se encontra em guerra com a França? Nega essas manobras desavergonhadas, multiplicadas por ele?

- Certamente.

- Eu possuo, no entanto, inúmeros desses libelos, tomados aos espiões que conseguimos interceptar e que tivemos a benignidade de soltar, pois eles eram franceses.

- Mentiras!

Uma voz de mulher se elevou.

-          Não, meu padre! Não são mentiras.

Era Angélica que, depois de ter prometido a si mesma exercitar-se na paciência, não podia deixar de intervir, vendo em que estado as provocações do jesuíta deixavam o velho.

-          Não são mentiras - afirmou. - Pelo menos uma vez fui testemunha do que Sir Samuel declara. Encontrando-me dos lados de Popham, viajei a bordo de uma barca cujo patrão, sob o disfarce de um marinheiro inglês, não era senão um desses espiões enviados à Nova Inglaterra pelo Padre d'Orgeval.

Ao som de sua voz, que ressoava com nitidez no silêncio restabelecido, o jesuíta voltou lentamente os olhos para ela.

Angélica poderia ter-se embaraçado, pois, convalescente, encontrava-se em négligé e sentada nos degraus da escada. Mas essa vestimenta de seda e rendas, muito correta e discreta, podia passar, na América, por uma toalete suntuosa: ademais, sentada assim a meio caminho do andar superior, cercada por todas as mulheres da casa, algumas das quais sentadas a seus pés, ela ocupava uma posição elevada, e, tal como uma rainha do alto de seu trono, podia considerar de cima o adversário. Por isso, sentia-se pronta a terçar armas sem nenhum problema.

Joffrey de Peyrac deu passo à frente, apressando-se a dirigir-se ao irascível eclesiástico, tão zeloso sobre a etiqueta.

-          A Condessa de Peyrac, minha esposa - apresentou.

O outro pareceu não ter ouvido: o olhar que dirigia à grande dama cercada por suas aias parecia ao mesmo tempo de gelo e de fogo, e somente ela poderia traduzir com justeza sua expressão. Vendo que ele nada dizia e parecia esperar que ela prosseguisse, continuou pois com calma e segurança:

-          Não lhe direi o nome desse espião, pois ele mesmo, ao chegar às margens da Nova França, não ocultava seu papel, nem as diretivas que havia recebido de seu superior, o Padre d'Orgeval, e a ordem que lhe fora dada de chegar incógnito à Nova Inglaterra! Era um membro de sua Companhia, o reverendo Padre Luís Paulo Maraicher de Vernon, e como estou persuadida de que ele não lhe é desconhecido, estou pronta a lhe dar sobre seu irmão em religião as informações que os convencerão da verdade de minhas afirmações. Durante uma viagem de vários dias, tive tempo de conhecê-lo muito bem.

-          Não duvido! - opinou, com um meio sorriso malicioso e insultante.

Bruscamente, como se se desinteressasse dela, virou-se para o velho Wexter, que estava dando, em voz baixa, instruções a um serviçal a fim de que fosse buscar em seu gabinete de trabalho a caixinha contendo os famosos documentos sobre os espiões papistas.

-          Não, é inútil, siri - lançou-lhe ele. - Conheço suas astúcias de herege! Pois não seria a primeira vez que esses senhores da Reforma se entregariam a grosseiras adulterações para aviltar e destruir a religião católica, apostólica e romana, a única verdadeira.

-          God's blood! - explodiu o ancião. - Pelo sangue do Senhor!

Movido pela fúria, ele esboçou um movimento para se lançar contra o provocador. Mas Joffrey de Peyrac e Lorde Cranmer se interpuseram.

E o Padre de Marville tirava assim sua desforra sobre seus infames inimigos, tratados finalmente de acordo com sua periculosidade. Mas tinha ainda alguma coisa a dizer.

Voltando-se para Angélica, apontou um dedo fulgurante para aquela cuja reputação estava carregada para ele de maldições e que julgara poder falar-lhe impunemente"com a civilidade dos corações puros.

-          Quanto à senhora... é a Dama do Lago de Prata - exclamou com uma voz sonora. - E não me engana. Pois fique sabendo que ele a acusou, senhora, antes de morrer, gritando: "Foi ela! foi ela! É por culpa dela que morro!"

Ele deixou o eco dessas palavras espalhar-se, continuando, a seguir, num tom surdo:

-          Mas a senhora receberá seu castigo por seus erros. E o senhor também - prosseguiu, virando-se para o Conde de Peyrac -, o senhor que se tornou escravo de uma Messalina e que, desdenhando o benefício dos povos, liga suas graves decisões aos caprichos licenciosos e fúteis de uma mulher sem consciência!

Dessa vez, na antecâmara de Mrs. Cranmer, era só pânico e indecisão. Os ingleses não compreendiam nada dos anátemas lançados pelo homem furioso, cuja obediência diabólica, tantas vezes denunciada por seus pastores, explodia naquele dia a seus olhos arregalados de medo.

Mas, tendo surpreendido a expressão selvagem daquele a quem chamavam o Homem do Trovão, Tahutaguete, o iroquês, adivinhou que seu aliado fora insultado e pulou, a mão no cabo de seu tacape, o olhar negro oscilando de um para outro desses brancos surpreendentes e tão estranhamente trajados, procurando de onde partiria o sinal que lhe daria permissão para rachar alguns crânios.

Reinava um silêncio tenso, carregado de ódios e medos.

Subitamente, esse silêncio foi rompido por uma fanfarra que eclodiu nos andares superiores e que parecia ao mesmo tempo uma gaita de foles escocesa e o guincho de leitões sendo degolados. Os antagonistas presentes foram forçados a calar suas querelas, a fim de determinar qual a origem do ruído, voltando-se todas as cabeças, como velas dóceis de um navio sob o sopro de ventos contrários, numa mesma direção, e a reconhecer, nesse concerto vigoroso, as vozes dos dois recém-nascidos encolerizados.

Após um momento de incerteza, as mulheres chamadas a seus deveres ergueram-se, como que movidas por uma mola, precipitando-se para cima.

No grande quarto deserto, diante de um tamborete que ela arrastara até o berço, Honorina contemplava, com uma expressão indecifrável, e efervescente revolta de Rogério e de Gloriandra.

Que instinto obscuro os fizera tomar consciência do desinteresse de que eram objeto?

Com os pequenos punhos fechados, lançaram-se a uma raiva atordoante, e ninguém conseguiu decidir quem, a menina ou o menino, urrava mais. Ruth e Noémia, debruçadas sobre os pequenos rostos, igualmente carmesim e ululantes, não conseguiam determinar de qual dos dois, a menina ou o menino, tinha cada uma se apoderado em sua precipitação, pois as toucas lhes haviam caído sobre o nariz e andavam de cá para lá e sacudiam-nos em todos os sentidos, com o objetivo de apaziguá-los.

Em todo caso, o incidente comprovou que Raimundo Rogério recuperara seu atraso em tamanho e vigor.

Severina precipitara-se para Honorina, submetendo-a a um interrogatorio em regra. Mas a menina lhe opunha um mutismo total, enquanto assistia à manifestação de revolta dos gémeos, com uma evidente satisfação.

Compreendendo que não ganharia nada em prosseguir sua investigação-, a adolescente acabou por levá-la para passear, e Ho-norina pareceu satisfeita."

 

"Sou seu escravo, Angélica"

Ruth suplicara a Angélica que voltasse para a cama, e foi com infinito prazer que ela retomou o contato com seus lençóis e sua posição horizontal.

Na sua vida bem-regrada de Salem, onde o encanto da casa compensava o rigor dos preceitos, a intrusão do jesuíta e do iroquês, emanações da floresta tão temida, acabava de romper para ela as delícias de uma convalescença em que flores, frutos, pratos delicados, visitas cordiais e presentes desempenhavam um importante papel.

Com efeito, não era uma surpresa! E por que manifestar tanta emoção? Pois o que o Padre de Marville anunciara já lhe tinha sido revelado pelo taro de Ruth Summers.

Vendo-as a ambas macambúzias e transtornadas à sua cabeceira, Angélica interpelou-as:

- Não poderiam ter usado seus poderes - perguntou-lhes - para suspender as diatribes desse furibundo, antes que ele pusesse todo mundo no ponto de se atracar?

Pegas de surpresa, as frágeis mágicas reconheceram que, diante desse espetáculo insólito, elas não tinham sido, no momento em que ele se desenrolava, nada mais que duas mulheres devoradas pela curiosidade. Além disso, apesar do rompimento com suas próprias seitas, continuavam a ser filhas da Reforma, que, havia mais de um século, conferia à tiara pontifical e a seus servidores uma auréola infernal.

Desconheciam a espécie do jesuíta, e achavam-na muito assustadora.

- O que ele anunciou?

- O Homem Brilhante morreu - disse-lhes. E fechou os olhos.

Os dois bebes tinham adormecido, esgotados, depois de consentirem em pegar o seio de suas respectivas amas-de-leite, que, em sua raiva, tinham recusado várias vezes.

As abelhas zumbiam.

Ruth puxou a cortina de chita estampada diante da janela, a fim de atenuar a luz viva e reverberante da baía,*e um suave silêncio fechou-se, como uma água dócil e indiferente, sobre o eco dos anátemas.

Angélica lamentava não poder abstrair-se totalmente da cena recente. As palavras ali trocadas volteavam em sua cabeça. Restabelecera um tanto brutalmente o contato com seus amigos franceses, seus amigos "lá de cima", e eis que lançava, para o norte, onde se escondiam as virulentas cidadezinhas canadenses - Quebec, Trois-Rivières e Montreal, a bordo de seu rio gigante, o Saint-Laurent -, o mesmo olhar de terror dos ingleses puritanos, que se agitam em suas praias atlânticas como uma colónia de pássaros cujos ovos são ameaçados por um tenaz e infernal predador.

Sua qualidade de francesa não lhe permitia ser poupada.

Em geral, ela se entendia bem com os homens da Igreja. Um de seus irmãos mais velhos, Raimundo de Sancé, era também um jesuíta, não havia nada melhor que os elos de família para temperar o respeito e a consideração que se devem aos homens de sotaina, e a dependência, na qual desejariam manter as pessoas comuns. Em Quebec, depois de alguns confrontos, o bispo da Nova Inglaterra, Monsenhor de Montmorency-Laval, sentia prazer em conversar com ela. O reverendo Padre de Maubeuge, superior dos jesuítas, aceitara ser seu confessor. O Padre Massérat, cuja vida ela salvara, concedera-lhe a sólida caução de sua amizade, quando a cidade estava dividida a respeito dela.

Restavam os adeptos do Padre d'Orgeval. O jesuíta Guérande que, no parlatório da matriz de Quebec, saíra da sombra de uma tapeçaria para lhe murmurar: "Por sua culpa, ele vai morrerV

E agora um outro, o Padre de Marville, acabara de lhe gritar: "Por sua culpa, ele morreu".

Talvez no dia seguinte fosse capaz de refletir sobre as mudar, ças que esse acontecimento ia acarretar, o desaparecimento de seu adversário mais feroz, em terras americanas, e seria sem dúvida razoável felicitar-se por isso, e mesmo rejubilar-se. Naquele momento, não podia fazê-lo.

Tinha dificuldade em entender essa notícia, a morte do padre, que, à sombra, nunca cessara de combatê-los, sem jamais se revelar. Havia muito tempo, ele não se manifestava mais, exilado lá pelos lados dos mares doces, mas sabiam que estava vivo e, sem dúvida, à espreita, esperando sua hora.

Ocorreu-lhe que fora a força de seu ódio, que concentrara essa ameaça tão diabólica sobre ela e as crianças que levava no ventre, que quase os fizera morrer.

Ora, na mesma hora, era ele que, ao longe, em suplícios atrozes, dava o último suspiro. E suas crianças eram salvas.

Mesmo que isso, pensando bem, não coincidisse no tempo, acreditava nesse pacto, de tal modo as forças contrárias que os designavam não deixavam, tanto para uma como para o outro, senão escolhas brutais: Vitória ou Derrota. Vida ou Morte.

-          No entanto, conservava a impressão de que não era assim que as coisas deveriam ter acabado.

Lamentava que ele tivesse desaparecido sem que tivessem podido olhar-se cara a cara: "Ele se ocultou até o fim..."

Sentiu um estremecimento glacial, e suas duas amigas, percebendo-o, trouxeram-lhe bilhas de argila cheias de água fervente e enroladas em panos de lã, e a fizeram engolir depressa um pouco do medicamento de Shapleigh, que tinha um gosto muito amargo.

Pouco depois, viu chegar seu marido, e reencontrou seu sorriso.

-          Agora sei qual a comédia que tenho de representar quando você me abandona por muito tempo, meu caro senhor. Mas não receie nada. Hoje, não se trata de febre palustre.

Ele tocou-lhe a testa, depois beijou-lhe a palma da mão.

-          A sessão a que você acabou de comparecer justificaria, se não uma recaída, pelo menos um estado febril.

Sentou-se, tirou as luvas, e havia um sorriso no fundo de seus olhos escuros. Tudo então pareceu ficar mais leve.

Confiou-lhe o aborrecimento que sentira por ter de abandoná-la naquela confusão, sem se informar sobre sua saúde nem a de seus vigorosos rebentos, que haviam oportunamente se introduzido no concerto das nações.

Os ingleses, totalmente desarvorados, não sabiam se deviam mandar ó jesuíta para a prisão, enforcá-lo ou absolvê-lo, para melhor esquecê-lo, e, uma vez mais, era ele, "o estrangeiro", o francês de Gouldsboro, apesar de maltratado por seu compatriota, quem devia atenuar os atritos e encontrar um lugar de repouso para os viajantes, por mais indesejáveis que eles fossem.

O padre francês e seu acólito tinham sido conduzidos à casa de tijolos, onde se alojavam em Salem os "estrangeiros", de preferência. Teriam como companhia católicos ingleses de Mary-land, que não podiam se recusar a ser vizinhos de um jesuíta.

Peyrac propusera a Tahutaguete e aos guerreiros que o acompanhavam alojá-los num entreposto do porto, do qual tinha concessão. O grande selvagem declinou da oferta. Os iroqueses não eram realmente amigos dos ingleses. Desprezavam-nos e desconfiavam deles.

"Existe tanto fogo na neve quanta verdade num yenngli", di' ziam zombando.

Eram neutros em relação a eles, porque, inimigos de seus inimigos, eles ajudavam indiretamente os ingleses, perseguindo o aniquilamento dos referidos inimigos, isto é, os franceses e seus aliados selvagens: huronianos, abenakis, algonquinos.

Mas queriam ser livres para fazer suas campanhas de vingança.

Os ingleses tomavam todo o cuidado para não quebrar a neutralidade suscetível dos iroqueses. Comunicavam-se com eles por intermédio dos moicanos, um ramo considerado ilegítimo pela Federação do Norte, mas os únicos índios a combater ao lado dos ingleses e a se mostrar aliados seguros deles.

O conde tirou do bolso o colar de wampum que lhe entregara Tahutaguete e que não tinha a importância de um tratado, nem a grandeza daquele que o chefe Utakê enviara a Angélica, no inverno da grande fome.

Este era apenas uma faixa simples de quinze centímetros por cinco. Seu desenho era primitivo, mas claro: via-se embaixo, contra a faixa azul-escura que o sublinhava dos quatro lados, a silhueta de um homem deitado, os membros dispostos numa certa desordem, o que significava ferimento ou morte violenta. Acima dele, quatro estacas ou postes erguidos ali estavam para esmagá-lo, talvez para contribuir para lançá-lo ao chão. Por essa imagem, Utakê lhes anunciava que seu inimigo estava morto e não podia mais prejudicá-los.

E para que não houvesse engano sobre a identidade da personagem estendida, as bordadeiras do wampum tinham desrespeitado a tradição que as obrigava a empregar para esses documentos oficiais apenas pedaços de koris, conchas duras, brancas, azul-escuras, azul-faiança ou violeta e, mais raramente, negras. No lugar do coração, fizeram questão de incrustar uma pequena lasca de pedra vermelha: o rubi de seu crucifixo.

-          Dessa vez, trata-se realmente dele.

Angélica chegara algumas vezes a imaginar que ele não existisse. Ele sabia cercar-se de personagens irascíveis, às quais encarregava de transmitir as decisões intransigentes, reservando a si. mesmo o papel de agradar, a fim de não chocar as almas fracas e sentimentais.

-          Lembra como nos tratou Guérande, quando foi ao nosso acampamento às margens do Kennebec? E ontem, esse Marville!

- disse ela.

Rememorando a cena da véspera. Angélica reconhecia que não se podia negar a coragem dos porta-vozes do Padre d'Orgeval.

Não era fácil atacar de frente um Joffrey de Peyrac, sobretudo em palavras, e as raras vezes em que fora testemunha de cenas desse tipo, foram feitas por indivíduos que teriam de certa forma o cérebro alterado.

Aliás, em certos momentos, não deixara de se indagar se, para o Padre de Marville, por mais jesuíta que ele fosse, os sofrimentos que padecera entre os iroqueses não lhe teriam de certa forma alterado o cérebro.

Isso atenuara a justa cólera que poderia ter-se apossado dela.

Sua atenção, com efeito, fora desviada por alguma coisa artificial, que não sabia definir exatamente, no próprio exagero de sua arrogância. Uma mentira se emboscava atrás de seus discursos, mas de que tipo? e em que momentos lhe viera essa suspeita? em que palavras percebera a fenda que ameaçava rachá-lo?

Em segundo plano, uma dor "verdadeira" dava às acusações furiosas e aos insultos do jesuíta uma trama patética.

E, como se acompanhasse a marcha de seu pensamento, Jof-frey de Peyrac murmurou, balançando a cabeça:

- Mesmo assim, eu me pergunto: o que aconteceu de tão horrível para que um homem de ferro como esse Marville tivesse ficado tão profundamente afetado?

- ...Aconteceu que... o Padre d'Orgeval morreu, Joffrey. E, creia-me, era um homem muito amado. Possivelmente, uma sedução calculada, que mantinha seu poder sobre as pessoas, como compreendi em Quebec. Mesmo aqueles que lhe viravam as costas e que tinham tomado nosso partido conservavam um certo sentimento por ele. E talvez isso o torne mais perigoso morto do que vivo.

- Reconheço que esses senhores da Companhia de Jesus não são fáceis de manipular nem de seduzir. Para dominar as consciências, seguiram um aprendizado rigoroso, uma formação esotérica e intelectual de vários anos. O segredo, a força, uma regra que comporta exercícios que levam à exaltação de qualidades excepcionais e certas afinidades ocultas, isso forma uma armadura sem falha. É exatamente por isso que são um exército, e seu superior é um general. Um exército que recebeu do papa, que eles defendem, privilégios exorbitantes, como aquele que diz que quem quer que "ataque a Ordem será passível de excomunhão, de fato e de direito". Mesmo um bispo...

- Ontem, quando esse Padre de Marville nos dirigia a palavra, e com que insolência!, tive a nítida impressão de que o Padre d'Orgeval falava por sua boca. Seu espírito talvez tenha penetrado nele.

Joffrey sorriu e disse que, depois de ter pensado em responder duramente e em fazer o religioso pagar bem caro seus insultos, pensara melhor. O Padre de Marville era renomado por seus ataques verbais e seu fanatismo. Voluntariamente, o Padre de Mau-beuge o mantinha afastado de Quebec, na frente das missões iroquesas, sempre perigosas e onde sua rabugice obtinha mais selvagens que a benignidade de seus predecessores.

Batizados ou pagãos, acabaram por temer tanto as suas imprecações como suas ameaças de inferno, e julgavam-no possuído pelo espírito de um carcaju, ou glutão, esse animal que eles temem por seu aspecto diabólico, suas vinganças sutis e tenazes.

- Vou me contentar em mandar protegê-lo e obter-lhe uma passagem num navio que vá para a Europa.

- Ele leva consigo cartas que nos caluniam e que poderiam nos prejudicar.

- Que importa! Não se podem reter todas as folhas mortas que o vento do Diabo carrega. Seus excessos talvez o prejudiquem! E depois, com toda a justiça, minha cara, reconheço que existe alguma verdade em sua última acusação contra mim, e se as palavras que ele empregou não tivessem visado dar uma imagem falsa e pejorativa daquela que ele me censurou de adular, eu teria rendido homenagens à sua clarividência. Pois isso é verdade, Angélica, você é tudo para mim, e estou a seu dispor, e sou seu escravo.

- Não fale muito alto - suplicou Angélica -, senão "eles" ainda o queimarão.

 

Emanuel Labour e o "vento do Diabo"

A visita movimentada à Casa dos Cranmer tivera para Angélica a vantagem de tirá-la da cama: tendo franqueado uma etapa difícil de sua convalescença e levantando-se espontaneamente e descendo as escadas, ela teve ânimo para continuar seus processos. No dia seguinte, renovou sua façanha, fez-se vestir e desceu ao jardim. Instalaram-na numa poltrona. Saboreou o sol, que era ainda um sol de verão, transformando-se em verde através das folhagens.

Um fino odor de cerejas silvestres chegou-lhe às narinas, entre os perfumes de frutos madurando; e o mais acentuado, que emanava do canteiro de ervas medicinais e aromáticas que toda dona-de-casa inglesa mantinha num canto de"seu jardim. O perfume de cereja era fugaz como um sonho. Ele voltava trazido por uma brisa imperceptível que fazia pensar num leve sopro quando o sentia aflorar sua face. Arrancou-se a seu entorpecimento quase voluptuoso. Queria andar pelas aléias. Deixando a poltrona que haviam colocado para ela à sombra de uma tília, levantou-se. Sem muita segurança ainda, saiu à procura das cerejas. Encontrou-as escondidas nas ervas secas que amareleciam à beira da aléia.

Não era mais que fantasia. O gosto pela vida que ela reencontrava, do seu discreto e delicioso sabor em sua língua.

Não se anunciava o tempo das bagas, que lançava todos os colonos do Novo Mundo setentrional, francês ou inglês, homens, mulheres, crianças, munidos de cestas, através dos grandes espaços de curtas folhas avermelhadas: bagas de todos os tipos, azuis, pretas, violeta, vermelhas, rosa, amarelas, ameixas, mirtilos, cássis, framboesas, e sobretudo aquelas que os franceses chamavam de "centáureas", frutinhas silvestres cheias de açúcar e de sol que, secas, preservariam os turistas de inverno contra o mal que ameaça aqueles que são privados, por longos meses, de legumes e de frutas frescas, o mal dos pioneiros e dos marinheiros, o escorbuto.

"Devem estar se preparando para a colheita, em Wapassu. Talvez cheguemos a tempo de ver os últimos mirtilos vermelhos", pensou.

O portão rangeu, alguém havia entrado e ia ao seu encontro pela pequena trilha invadida por ervas daninhas.

-          Sra. de Peyrac?

A voz se elevava, abafada e chorosa.

Voltando-se, viu o "dado" canadense de pé atrás dela. O reflexo das folhagens acusava a lividez de sua pele quase transparente. Parecia um fantasma.

- Não pude abordá-la ontem, Sra. de Peyrac.

- Emanuel! Você é Emanuel Labour, não é? Eu também o reconheci. Éramos bons amigos em Quebec. Você cuidava das crianças do seminário e teve oportunidade de ir à minha casa me distrair com nosso protegido, Abbal Neals, e Marcelino, o sobrinho do Sr. de L'Aubignière, que fugia o tempo todo. Soube depois que você quis consagrar dois anos de sua vida ao serviço dos jesuítas, em suas missões nos Grandes Lagos.

Ele aprovou com um ar triste.

- Foi uma promessa que fiz, por acasião da descida dos iro-queses em Quebec, de ir servir como "dado" se conseguisse salvar as crianças do cabo Tourmente...

- Você foi aceito. E cumpriu sua promessa. Posso adivinhar a que preço.

- Ai de mim! - murmurou.

Ela se surpreendeu com seu abatimento. Por mais terríveis que fossem as provações que ele acabava de atravessar, não deveriam ter afetado a tal ponto esse rapaz, que ela conhecera alegre e cheio de vida, filho do país e, como tal, resistente por natureza, resistência que tinha sido forjada por três anos de cativeiro, na primeira infância, entre os iroqueses, depois de ter visto todos os seus serem escalpelados.

E em Quebec, com frequência, se alegravam em descobrir tanta doçura, fé e delicadeza num adolescente que fora criado pelos selvagens. Não o reconhecia naquele momento. Ele não era o mesmo, alguma coisa o arrasara. Acreditou adivinhar que viera até ela como um animal ferido se arrasta, colocando sua última esperança num único ser, fora do qual ele sabe perfeitamente que só encontrará indiferença ou crueldade. Teria sido a morte do Padre d'Orgeval que o pusera à prova dessa forma? Ele baixava a cabeça, hesitando sem falar, olhando para as mãos, e ela notou o estado de um de seus polegares, encolhido e corroído por uma queimadura arruinada, malcurada. O osso da primeira falange apontava, calcinado.

- Minha pobre criança! Então você também padeceu suplícios?

- Oh, isso não é nada! - disse ele. - Eles me prenderam o dedo num cachimbo. Mas não é nada. Sofre-se de bom grado pela glória de Cristo, e eu gostaria de ter sofrido dez vezes mais, se isso pudesse evitar...

-          O quê?

Ele calou-se.

-          Compreendo. Você assistiu à morte daquele a quem decidiu servir e talvez se censure...

Ele sobressaltou-se como que tocado por uma dor mais insuportável que a que padecera sua carne e sob a qual permanecera impassível.

-          Não! Não!

Sacudia a cabeça com uma espécie de desespero.

-          Ah! Senhora - exalou enfim -, se soubesse! Não, não me censuro nada. Morrer como mártir é a sorte daqueles que vêm trazer a esses pobres bárbaros as palavras do Evangelho. Não posso lamentá-lo. Há outra coisa! Ah! não suporto mais! Esse segredo me sufoca!

Ela sentiu-o muito infeliz.

-          Confie em mim - disse, com bondade. - Somos compatriotas, como você sabe, e estamos prontos a apoiá-lo e a ajudá-lo, se você se sente solitário aqui, num país estrangeiro e, para você, inimigo.

Ele a olhava com os olhos fixos, e seus lábios tremiam.

- E que... Eu não queria trair...

- Isso nos diz respeito? - interrogou-o, presa de uma ideia súbita. - Compreendo! Você teria sabido de algum complô destinado a nos prejudicar?

- Não, não, não é isso... Eu lhe juro. E todavia, sim! que injustiça! Vejo um abismo aberto de torpezas e de mentiras, onde tudo o que dava sentido à minha vida desmoronou.

- Dê-me seu braço - disse ela. - Você está fraco e eu também, pois estive muito doente. Vamos nos sentar ali, sob aquela árvore, e você vai tentar pôr um pouco de ordem em seus pensamentos.

Deram alguns passos, e como o rapaz, que era de sua altura, estivesse mais fraco do que ela, teve de sustentá-lo. •- Parecemos dois velhinhos - admitiu Angélica. Notou que tivera sucesso em fazê-lo sorrir.

-          Teria sido Deus quem permitiu que a senhora estivesse nesta, cidade? Lembrei-me do dia em que a senhora foi em nosso auxílio, quando os iroqueses desceram ao cabo Tourmente, e me consolou com tanta bondade, reconfortando-me em meu sofrimento por ver mortos e escalpelados tantos de nossos bons mestres.

Calou-se.

- E os patos do cabo Tourmente chegaram...

- Ah! Os grandes patos brancos do cabo Tourmente, será que tornarei a vê-los um dia?

- Mas claro que sim, o que você receia? Basta que restaure suas forças!

Ergueu os olhos para ela e sentiu-se encorajado. Com ela, Quebec parecia-lhe próximo.

- Não conheci minha mãe. Os iroqueses escalpelaram os meus quando eu era bem pequeno. Não me lembro dela. A senhora me inspirou a saudade de minha mãe e, por isso, vim até aqui. Ela, em quem eu quase não pensava, a não ser para pedir a Deus em minhas preces que lhe desse o repouso eterno, pareceu-me que ela soprava em meus ouvidos: "Vá, vá, Emanuel, meu filho. Hoje você tem necessidade de uma mãe..." E encontrei forças Para sair a sua procura pela cidade.

- Você fez bem. Como vê, o papel de uma mãe nunca termi-

na junto a seu filho, mesmo quando ele é um homem feito e ela, pobre mulher, já não pertence a este mundo. Se me é proposto substituí-la junto a você, eu o farei com a melhor boa vontade. Pegou a mão daquele rapaz alto, que jamais conhecera a ternura e sorriu para ele.

-          Confie-se a mim. -Você veio com essa intenção, não é?

Ele hesitava ainda, torturado pelas dúvidas.

- É um segredo terrível. E ainda não estou certo de que ao revelá-lo não estarei me condenando ao inferno.

- Pouco importam suas dúvidas! Fale! Mais tarde veremos. Você não está em condições de decidir por si mesmo. Quem sabe? Talvez seja o serviço de Deus que exija de você um esforço, que tenha a coragem de dominar seus temores.

Expressara-se um pouco maquinalmente, uma vez que conhecia a forma de linguagem à qual o jovem seminarista estava acostumado. Compreendeu, pelo estremecimento dele, que encontrara as palavras certas e rompera a barreira atrás da qual sua consciência girava havia dias e se perdia.

-          Sim, a senhora tem razão - disse ele, bruscamente iluminado. - Agora vejo mais claramente. É meu dever, para o serviço de Deus, confiar-lhe a verdade... e por mais amarga e ofensiva que ela seja para mim. Vou falar.

Subitamente, calou-se, como que atingido por um raio, e todo o sangue retirou-se de suas faces, já lívidas e transparentes. Sentiu, no mesmo instante, uma presença perto deles e não pôde reter um sobressalto ao descobrir o jesuíta, a menos de um passo, diante deles, quase a tocá-los. Certamente ele também aprendera com os índios a andar sem fazer ruído. Dir-se-ia que surgira do solo. Fez uma breve saudação com a cabeça. Apesar de sua aparência de cortesia, um sombrio furor emanava de sua pessoa, contido, refugiado em seu rosto emaciado. O olhar que pousou no rapaz tinha um brilho tão duro que Angélica nele divisou uma ordem imperativa de silêncio.

- Que você faz aqui?

- Veio fazer-me uma visita - interpôs-se Angélica -, como fazia com frequência quando ficávamos em Quebec. Os franceses isolados em terra estrangeira gostam de se encontrar. Além disso, sinto-me feliz de que tenha pensado em dirigir-se a mim, como compatriota e mulher, para me pedir ajuda. Vejo-o em muito mau estado. As chagas de seu suplício infeccionaram, e a febre o atormenta.

Ela falava com clareza, a fim de não deixar ao intruso tempo de intervir.

-          Por isso eu lhe pedirei, meu padre, que o deixe sob minha guarda até que esteja curado e tenha recuperado um pouco suas forças. Pois, repito, ele necessita de cuidados, e o senhor não tem piedade de sua juventude nem do esgotamento em que se encontra, e, digo-lhe, se não se cuidar de reanimá-lo com prudência e uma alimentação apropriada, isso poderá ser-lhe fatal.

Dessa vez era o olhar do jesuíta que a convencia da inutilidade de suas palavras. Era um olhar inexpressivo. Ele não a via, não a veria jamais. Apenas via a imagem que fizera dela, o retrato que lhe haviam feito a seu respeito.

Todavia ele escutara, pois murmurou:

-          Certamente, não duvido que a senhora seja hábil em reanimar e reconfortar os jovenzinhos.

Angélica,, após se haver perguntado se ouvira direito, negligenciou a picada venenosa.

Fora subitamente de tal forma persuadida de que era preciso salvar de um perigo certo o pobre Emanuel, trémulo a seu lado, que nenhuma alusão pérfida podia abalá-la, e estava decidida a lutar para retê-lo junto dela, como teria lutado contra uma serpente prestes a picá-la, e cujos silvos e o olhar frio e cruel não devem ser levados em conta, se se quiser conservar o domínio necessário para triunfar.

- Seus propósitos seriam mais do que grosseiros e descorteses, meu padre, se não fossem ridículos. Ridículos, efetivamen-te, pois se dirigem a uma pessoa, ela mesma convalescente e que acaba de sair de um parto.

- Todavia, a senhora não me pareceu tão enfraquecida, ontem, quando, diante dos inimigos de seu país e de sua religião, ávidos por me verem desonrado, assim como, em minha pessoa, o habito que eu vestia, negou minhas afirmações.

- Por que elas são falsas, o senhor sabe muito bem disso, e, se se obstinasse-naquilo, a honra de sua ordem estaria sujeita a ficar ainda mais enlameada. Não retomemos essa querela.

- Ao contrário! O que está em jogo é muito grave. Trata-se da reputação de um santo.

- Bom, nesse caso, diga tudo!

Surpreendeu-se por vê-lo perturbar-se e fazer uma pausa, como se tivesse sido atingido por uma estocada, cujo sufocamento lhe custasse dominar.   

- Que está querendo dizer?

- O que disse. As provas são muito numerosas, e negá-las só encorajaria os ingleses a produzi-las com grande ostentação, ainda que a preocupação de se evitar uma ruptura entre a França e a Inglaterra fosse o objetivo louvável de seus protestos... erróneos.

-          A senhora me absolve, portanto, por havê-los pronunciado?

Ele tinha um sorriso estranho, insinuante.

Angélica perguntava-se o que lhe teria ocorrido ao espírito. Conteve um dar de ombros.

- Absolver? Mais uma palavra ridícula vinda de sua pessoa. Mas, realmente, posso encontrar desculpas à má fé de que deu prova ontem, diante desses estrangeiros.

- Desculpas? Quais? - apressou-se ã dizer, irónico.

Ela começava a sentir as agulhadas da exasperação percorrendo-lhe a espinha.

-          A fadiga e o pesar de ter visto perecer seu irmão em religião podiam tê-lo deixado fora de si mesmo. Mas eu acrescentarei com firmeza que não deixarei que continue a negar, para fazer recair sobre nós a responsabilidade pela morte do Padre d'Orgeval, como se ele nunca nos tivesse feito qualquer provocação - uma evidência da qual o Padre d'Orgeval ter-se-ia provavelmente vangloriado. Nào só ele enviava espiões à Nova Inglaterra, mas conduzia pessoalmente franceses e índios no caminho da guerra contra os hereges, entre os quais estávamos incluídos. - Angélica continuou: - Uma noite na floresta ouvi sua voz, que encorajava e absolvia aqueles que deviam morrer no dia seguinte pela glória de Cristo, matando muitos hereges. E uma outra vez, vi-o com meus próprios olhos, um Toga Negra que se erguia pára o assalto da aldeia inglesa de Brunswick Falis, arrastando atrás de si um exército de abenakis e de huronianos batizados que massacraram todos os habitantes.

- A senhora o reconheceu?

- Não, pois o senhor não ignora que ele jamais desejou encontrar-se em nossa presença. Mas reconheci seu estandarte. Branco, bordado nos quatro cantos com quatro corações trespassados por punhais. Um índio perto dele levava seu mosquete, o mosquete que vi colocado no altar da capela, em sua missão de Norridgewook, no Kennebec.

O Padre de Marville a escutava? Parecia devanear, distante, com um vago sorriso nos lábios.

-          Por isso, eu o preveniria, sem rodeios - concluiu. - Não hesitaria em dar a conhecer a verdade, toda vez que se fizer necessário. Sem falar que considero imprópria a defesa que o senhor faz de sua reputação, que só pode deformar sua verdadeira imagem.

O jesuíta se recompôs, como que picado por um inseto, e gritou:

- Sua inqualificável insolência a denuncia, senhora. Como ousa, uma mulher, dirigir-se nesse tom a um dos ministros de sua Igreja?

- Não há de minha parte nenhuma insolência, padre. Discutimos fatos de guerra, eu diria, quase fatos políticos.

- Esqueceu, ao fazê-lo, quem é e a quem fala. A política e a guerra não são absolutamente coisas de mulheres, menos ainda a perigosa indisciplina do pensamento e do raciocínio. Verifico que a senhora é exatamente aquela que me foi anunciada, perigosa e sutil, e indiferente à mais elementar obediência para com a Igreja Católica, na qual nasceu e foi batizada. Ora, a Igreja é o olho de Deus. Aquele que quer se furtar à sua vigilância e que despreza e insulta seus padres comete o maior dos crimes, do qual a senhora se tornou culpada mil vezes!

- De minha parte, constato que seu superior fanático soube fazê-lo partilhar sua inexplicável hostilidade em relação a mim. Ja que nunca me viu, o que significa essa antipatia expressa, nos casos mais benignos, por tantas campanhas caluniosas em detri-

mento de minha pessoa, ames mesmo, poder-se-ia dizer, que eu colocasse os pés em terras americanas?

-          Seu dom de adivinhação era grande, e ele soube imediatamente reconhecer o perigo que sua presença representava, senhora.

Ele soube, compreende? e o que há de surpreendente no fato de ter posto em açào tudo o que podia para contrapor-se a esse perigo? Então, sua presciência era falsa? Hoje, morto, vencido, aquilo que ele anunciou e receou no momento em que a senhora colocava o pé nessas praias não se cumpriu? - O jesuíta continuou:

- Privados de seu "pastor", os grandes territórios da Acádia tornaram-se um covil de hereges. Por ter ali se aventurado, um de nossos homens encontrou a morte. Alguma vez se esclareceram as causas do desaparecimento do Padre de Vernon, cujo testemunho a senhora teve a impudência de invocar, sem nenhum risco, já que ele também está morto? Na verdade, ele foi assassinado. Pelos seus homens, em Gouldsboro mesmo, seu feudo, do qual, doravante, não mais se pudera desalojar a população ímpia, a não ser pela violência das armas, como nosso Padre d'Orgeval, hoje mártir, preconizava.

Angélica, após haver tentado interrompê-lo, deixara-o concluir sua arenga. Calma, quase intrigada, ela o observava, sensível a uma vibração interior que acreditava discernir, "ouvir" nele, como um zumbido incessante que nada interrompia.

E, embora ele se mantivesse imobilizado, muito rígido, plantado como uma estaca na aléia, pareceu-lhe como que arrastado num turbilhão demente, do qual perdera o controle.

Como era mesmo essa expressão de que Joffrey se servira no dia anterior, e que a chocara, pois era uma imagem cuja realidade quase tangível percebera com frequência: o vento do Diabo! Um turbilhão invisível como uma tromba que aspira, desmantela, enlouquece aquele que por ele se deixa levar.

Não podia deixar Emanuel sair daquele jardim. Envolveu com o braço os ombros do frágil rapaz, que tremia, puxou-o e apertou-o contra si, num gesto de proteção e de defesa.

-          Tome cuidado, meu padre - disse ela, finalmente, quando ele se calou. - Cuidado com essa palavra que acabou de pronunciar: a violência. O vento do Diabo é forte e sopra em todos os sentidos do Novo Mundo, e devemos prevenir-nos contra ele, cuidar para não perder a cabeça na exasperação de nossas paixões ou no excesso de nossos receios. O honrado ancião que lhe dirigiu ontem suas exortações o fez de boa fé. Não é próprio dos levitas, com efeito, daqueles que pregam e ensinam a palavra divina, deixar-se contaminar pela violência nessas regiões selvagens, mas dir-se-ia que ninguém escapa a isso, nem mesmo os senhores, meus padres, que se consideram os mais armados para desistir às armadilhas de Satã. A tentação é sutil, pois dirige-se a sua sede de conquista para a salvação das almas e com um objetivo estimável de poder sobre elas. Mas o fim é o mesmo. O senhor acabou de fazer alusão ao desaparecimento do Padre de Vernon, que chama de assassinado. Ora, fique sabendo que o Padre de Vernon, por mais notável que tenha sido, tornou-se - talvez inconscientemente - um homem impulsivo e violento, e morreu em virtude dessa violência. Pois lutou até a morte com um ministro protestante inglês, ele também louco de ódio por aquele a quem chamava o "sequaz de Roma"! Dois homens de Deus. Compreeende? Mataram-se um ao outro, assassinaram-se mutuamente!

Acrescentou, revendo a cena e os dois corpos despedaçados do pastor e do jesuíta estendidos lado a lado, na praia de Gouldsboro:

-          Puseram-nos no mesmo túmulo!

A face do Padre de Marville, que a escutava com uma certa atenção, vincou-se, e seus olhos se arregalaram. Recuou um passo, mudo de horror.

-          Vocês fizeram isso? - exclamou enfim com estupefação. - Um herege deitado ao lado de um soldado de Cristo! Miseráveis!

Ousaram cometer essa infâmia! Um sacrilégio!

Suas pupilas se enchiam de um fogo terrível, que ganhou a intensidade de chamas fulgurantes, queimando e destruindo tudo o que se encontrava no âmbito de sua incandescência.

Eles deixaram a pálida face da mulher que o desafiava para pousar sobre a do jovem canadense. Com a mesma voz cava, que ressoava como se saísse de uma caverna, disse apenas uma palavra:

-          Venha!

Angélica sentiu deslizar sob sua mão o ombro magro do rapaz. Para retê-lo, seus próprios dedos não tinham mais força. E quando ele se afastou, o braço dela caiu, pesado como um chumbo, paralisado.

Via, erguidas, diante dela, duas silhuetas, a negra, imóvel, a outra, pálida e vacilante, depois ambas se nublaram, se apagaram num halo estranho.

Ruth e Noémia encontraram-na desfalecida sob as malvas-rosas, na relva folgazã, pontilhadas de cerejas silvestres.'

Tentou vagamente explicar-lhes o que acontecera.

Ruth Summers alarmou-se e zangou-se, mas sua cólera tomou um aspecto que Angélica não esperava.

- Não deveria submeter-se a ele, milady. Por mais fraca que seja, seu poder ultrapassa o dele. Mas vocês, papistas, se deixam intimidar demais por seus padres!

 

Uma morte inexplicada

-Ele o matou! Foi o jesuíta quem o matou!

Severina Berne precipitou-se como uma louca no quarto, a coifa meio arrancada pela corrida, e se lançou em direção ao leito, onde Angélica, apoiada nos travesseiros, com uma bandeja de prata sobre os joelhos, acabava de degustar o prato preferido dos bostonianos e outros puritanos do Massachusetts, aos sábados: fatias de pão preto torradas, regadas com xarope de ácer e creme.

O choque da jovem rochelesa, que se lançara sobre ela e se encolhia em seu ombro chorando muito alto, por pouco não derrubou o frágil edifício de porcelana e dos pequenos jarros de prata.

-          Ele o matou! Ele o matou!

-          Quem? O que está acontecendo? Tire esta bandeja daqui!

Severina obedeceu e voltou fungando, sacudida por soluços irreprimíveis.

Subiu de novo na cama e retomou seu lugar junto a Angélica, como uma criança encolhida sobre sua dor.

-          Ele o matou! Oh! É horrível! Ele o assassinou!

-          Quem? Mas fale de uma vez! - impacientou-se Angélica.

Julgou tratar-se de Natanael de Rambourg, o jovem huguenote do Poitou. Sabia que Severina o encontrava de vez em quando, e desconfiava que estivesse apaixonada por ele.

- Foi o jesuíta! esse ministro de Satã! Todo mundo viu! Ele o matou! Oh! pobre rapaz!

- Mas quem? Fale!

Angélica a sacudia, e tentava arrancá-la de seu regaço, onde ela se refugiava como uma criança que quer voltar para o seio materno.

A adolescente acabou por levantar um rosto vermelho e mar-moreado de lágrimas, e Angélica passou-lhe um lenço'. A pobre Severina retomou o fôlego e acabou dizendo, numa voz entrecortada:

- O jovem francês do Canadá! o doméstico daquele maldito!

- Emanuel Labour?

Severina assoava o nariz e contava que haviam pescado o corpo do jovem "dado" na madrugada daquele dia, nas águas do porto.

- Foi o jesuíta quem o matou! Viram-no. Oh! Dame Angélica, quero voltar para La Rochelle. Era minha cidade. São os jesuítas, esses monstros, que nos expulsaram de lá. Não quero ficar neste país de selvagens. Eu também, lá, tenho um património, a casa de meus ancestrais. E na ilha de Ré, nossa bela casa branca. Deranvna a nossa tia Demuris, porque ele abjurou e se tornou papista, é injusto. Se tivéssemos ficado lá, se todos nós tivéssemos ficado, nós, os huguenotes da França, eles não teriam podido nos espoliar, esses sequazes do papa, ladrões e assassinos. Acabaríamos por expulsá-los para fora de nossos muros...

- Severina, pare de divagar. Explique-se, o que aconteceu? O que viram?

A filha de mestre Berne acabou dando alguns fiapos das notícias que corriam. Tinham pescado o jovem canadense no porto. Sem vida. Nada mais.

Teria caído por descuido, embriagado de fraqueza?, perguntou-se Angélica, transtornada. Teria se lançado voluntariamente na água, o que parecia mais verossímil, dado o estado de desespero em que se encontrava no dia anterior, quando o vira pela última vez no jardim?

- Por que acusar o jesuíta?

- Porque todos aqui suspeitam que ele o encorajou a se matar.

- Viram-no batendo nele, empurrando-o?

- Não. Mas todos sabem que sua força oculta adormece a vontade daqueles a quem quer perder.

A tensão subia no pequeno quarto, onde se agitavam de novo os gorros e as saias das mulheres e os brincos de brilhantes de Mrs. Cranmer.

A grande Iolanda, a acadiana, cuja cabeça batia nas vigas do teto, ia e vinha, uma criança em cada braço, recolocava a menina no berço, no lugar de Raimundo Rogério, depois pegava-a de novo e procurava a outra. Acabou por explodir:

- Essa moça hetérica, ela não tem nada que falar assim de nossos padres! Evidentemente, nós, acadianos do fundo da baía Francesa, preferimos lidar com os monges franciscanos, irmãos recoletos ou capuchinhos, mas os jesuítas são religiosos bons e santos, valorosos missionários, e vários de meus irmãos e irmãs foram batizados pelo Padre Jeanrousse, que visita com frequência nossa região e nos faz belos sermões, cheios de ensinamentos de nossa bela religião.

- Vocês se deixam enganar por seus modos dissimulados, pobres tolas! - gritou Severina. - Não são- nada para eles, apenas um peão que deve ser mantido em seu campo. Com um olhar eles os adormecem e os tornam dóceis. Bem se vê que vocês não são daqueles que eles querem destruir e apagar da superfície da terra, como nós, da Religião Reformada. Para consegui-lo, todos os meios lhes servem, e a magia é sua arma. Todo mundo sabe que eles assassinaram o Rei Henrique IV, que era favorável aos huguenotes, guiando à distância a mão de Ravaillac... sim, minha cara, à distanciai

- Severina, cale-se e pare de dizer tolices. Se todos forem como você, com suas ideias loucas e erróneas sobre uns e outros, a terra não tardará a ficar deserta, com efeito!

- Por que ele iria matá-lo? - protestou a filha de Marcelina, a Bela. - Seu noviço! Um jovem e piedoso seminarista da Nova França! Você está louca, minha comadre!

- Menos que vocês, que acreditam neles! Como adivinhar o que se passa na cabeça deles, pois ali se encontra o Diabo? Não e a toa que têm tantos crimes nas costas, esses mágicos de Roma!

- Calem-se! Não quero mais ouvi-las! E cuidem de Honorina, senão ela vai recomeçar a morder os braços - atalhou Angé-hca, que avistou sua herdeira ali plantada, com todos os seus cabelos numa auréola vermelha.

- Minha amiga Severina, não chore. Mostre-o para mim! Vou matá-lo! - dizia ela.

Felizmente a nora de Shapleigh continuava impassível em seu canto, com sua tiara de contas barrando-lhe a testa de criança, continuando a amamentar, imperturbável, dois bebés de cabelos negros.

Decididamente, as horas de convalescença em que Angélica pudera desfrutar as delícias de Salem tinham sido breves, e era inútil esperar voltar ao estado de graça, quando o renascente sabor do mundo - sol, calma, certeza de felicidade, gosto de frutas, dos cremes e do mar com seus mariscos e ostras frescas, o chá dourado e repousante que recendia aos mistérios da China - ou a ternura e a amizade desarmada em torno de seu leito tinham sido colocados diante dela como um presente, uma única vez, sem falhas.

As notícias, que corriam pela cidade espalhando um vento de terror, chegavam.

As pessoas dirigiram-se à casa dos Cranmer, reclamando conselhos e consolo do grande e poderoso Samuel Wexter. Lembraram sua grande sabedoria, então livre para se expressar, pois não era reprimida pelas exigências do poder público e teológico.

Ora, o ancião, muito afetado pelo que ocorrera na antevéspera, enfiara-se na cama, e sua fraqueza, seu mutismo, sua palidez cerúlea, faziam recear por seus dias. Todos, inclusive os católicos de Maryland, tinham fugido da casa dos estrangeiros, onde se alojava o jesuíta. Abandonavam-no, aquele ser possuído pelo Mal, ali alojado. Aparentemente inconsciente da desordem e da loucura suscitados, o Padre de Marville, que recusara suas refeições, quis sair. Viu-se diante de uma multidão, em círculo, comprimida, compacta, que, ao vê-lo, soltou um grande clamor. Tendo, com um olhar, avaliado a situação, preferiu entrar novamente e fechar a porta.

Como nos dias precedentes, os edis voltaram-se então para o Conde de Peyrac, o único, a seus olhos, apto a controlar uma situação que, a cada hora que passava, se mostrava ao mesmo tempo impossível de se prolongar e de se resolver.

Viram-no encaminhar-se para a casa de tijolos vermelhos, cuja fachada, de belos tons framboesa e rosa fanada, rutilava, iluminada por um sol vibrante, como os israelistas da Bíblia deviam ter, outrora, tremendo com um medo sagrado, contemplado o Sumo Sacerdote, o único habilitado a conversar com o Eterno, entrar no Santo dos Santos. Por pouco não julgaram prudente atar-lhe ao tornozelo, como ao Grande Padre, um cordão que permitiria àqueles que esperavam do lado de fora retirá-lo do santuário se, porventura, ele fosse fulminado pelas forças do Além.

Depois de ter conversado com o Padre de Marville, Joffrey fizera-o sair da casa e da cidade, e o escoltara pessoalmente até uma angra afastada, onde, a preço de ouro, o conde obtivera os bons ofícios de um pirata incrédulo da Jamaica, que não era a favor nem de Deus nem do Diabo, nem de ninguém, e que se comprometera a conduzir seu precioso e indesejável passageiro até a ilha de Martinica ou até, por que não? até Honfleur, na França.

Se ainda não pudera pôr-se ao largo era porque esperava a hora da maré, amarrado pela popa e pela proa atrás de uma ilha na baía, e podia-se considerar o jesuíta a bordo fora de alcance.

Providências que não foram fáceis e exigiram tempo e negociações.

De modo que, quando Joffrey de Peyrac pôde apresentar-se em casa de Mrs. Cranmer e subir até o quarto de Angélica, ela já estava no auge da impaciência.

-          Então? - lançou-lhe. - O que aconteceu? Foi o jesuíta quem o matou?

Ele a considerou com ar pensativo, explodindo repentinamente numa sonora risada. Depois, inclinando-se, pegou-lhe o queixo entre dois dedos.

-          Não faça essa cara, pequena poitevine supersticiosa.

Mas ela estava com os nervos a flor da pele e, sem sorrir, afastou-o com a mão, suave mas firmemente.

-          O que pensa, Joffrey? Preciso sabê-lo.

Ele a contemplava: cabelos de lua, fada leve e um pouco irreal que tinha no fundo das pupilas essa nuança tão rara de esmeralda ou de um azul de gelo, essa expressão trágica e grave, sempre a mesma, que o apunhalara no coração, no caminho de Toulouse.

Milagre e maravilhas! Ela não mudara.

Por trás de sua aparência frágil o ser autêntico, duro e rutilante como um diamante, permanecera imutável. Devia-lhe a verdade.

-          Compreenda-me - insistiu ela. - Faz horas que estou cercada por mulheres de todos os credos, de todas as nações, que não param de me repetir que o pobre rapaz foi morto por seu mestre espiritual. O que há de verdade nisso? Diga-me a verdade. Vinda de você, eu a aceitarei sem ficar abalada, mas não me oculte nada.

Como de hábito, Ruth e Noémia conseguiram fazer um espaço vazio em torno deles. Estavam a sós.

Inclinou-se para mais perto ainda, pousou um beijo rápido em seus belos lábios entreabertos.

- Sim, é verdade, ele o matou!

- Por magia?

- Que dizer? Que realidade colocar atrás das palavras? Por magia? Digamos... por poder hipnótico.

Sentou-se na beirada da cama.

-          A criança estava muito enfraquecida, exausta, e tinha o coração dilacerado. Estava, pois, sem defesa contra uma vontade imperiosa que lhe ordenava destruir-se... Marinheiros da tripulação do Arc-en-Ciel viram-no atravessar o cais num passo de autómato e ouviram o barulho de sua queda na água. No momento em que se precipitavam, avistaram o Padre de Marville, imóvel, a alguns passos do lugar, na sombra de um entreposto. Não só ele não interveio, como, mais tarde, recusou-lhe a absolvição, dizendo que o rapaz tinha se suicidado, o que é o maior dos pecados. Eles foram me procurar. Eram os malteses. Estavam abalados. Compreenderam o que tinha acontecido, apesar de serem bons católicos do Mediterrâneo. Apesar, ou talvez por causa disso. E agora, tranqiiilize-se, meu anjo, você não é responsável por nada.

Ela se deixou cair sobre os travesseiros, pálida e desolada.

-          Pobre rapaz! é culpa minha.

Ele a tomou nos braços, apertando-a contra si, repetindo-lhe que ela não podia, por sua simples vontade, salvar o mundo, arrancá-lo a suas velhas obsessões, purgá-lo de suas loucuras arraigadas e, por vezes, necessárias.

De sua parte, não se inquietava, ainda que ela se indignasse por vê-lo ocasionalmente rir em circunstâncias trágicas, sabendo perfeitamente que era o riso daquele que, do alto da montanha, percebe que escapou de uma cloaca mortal onde, ali enviscadas, se debatem tantas consciências retas.

Tantas vezes ele vira morrer, matar, e tivera ele mesmo de dar a morte! Sabia que aquele era um ato simples para quem se dedica à defesa, não só de sua vida, mas de suas doutrinas e, por vezes, de outros ideais, mais importantes que a vida. Sabendo, como homem que era, que é um ato irresistível para aquele que se sente acuado e sem outra saída senão esse gesto, não se indignava tanto quanto ela ao supor um Padre de Marville, um guerreiro, capaz de realizá-lo.

- Pois - concluiu -, menos do que constatar que o jesuíta o matou, o que me perturba e inquieta é saber por que ele o matou.

 

O último prodígio de Salem

Salem e as costas do Massachusetts se distanciavam. O Arc-en-Ciel, de vento em popa, singrava rumo ao alto-mar. Logo o grande navio e as embarcações de escolta ficaram sozinhos entre céu e mar.

Essa vacuidade do horizonte era apenas temporária. Subiam de novo para o nordeste, e a vasta curva desenhada pelo litoral da Nova Inglaterra, que unia a baía Francesa, fechando-se na grande pinça da península da Acádia ou Nova Escócia, não tardaria a perfilar, à direita e à esquerda, os festões lineares.

Apareciam ilhas, isoladas ou em esquadros bem-dispostos ou dispersos.

Mas, durante alguns dias, estariam sozinhos, fora do mundo e de suas exigências, desligados de todos os mundos.

Assim que levantaram âncora, Angélica sentiu que Joffrey adivinhava seu desejo de prolongar ofarniente, vagando calmamente.

Assegurou-se que pretendia dar à viagem as aparências de cabotagem, que permitiriam ao mesmo tempo preparar uma transição entre os tumultos de Salem e os reencontros de Gouldsboro, e visitar e "estabelecer contato" com diferentes pontos do litoral, onde os esperavam amigos e negócios.

Ancorariam em Casco, em Popham, em Pemaquid, antes de zarpar, mais a leste, para a baía Francesa e ali fazer outras escalas, ao largo das ilhas, cujos habitantes aguardavam sua passagem para embarcar, com destino a Gouldsboro, os produtos de seus artesanatos ou de suas culturas.

O caso do jesuíta precipitara sua partida. A temível personagem desaparera no horizonte, mas continuava a reinar na cidade a maior excitação.

Era tempo de deixar a sós esses chapéus pretos e esses peitilhos brancos. Angélica renunciava a visitar Salem e a fazer ali suas compras, como planejara ao chegar.

Lamentava também nãoter podido visitar, à beira do bosque, a casa das mágicas.

Todavia, conseguira delas autorização para levar até Goulds-boro as duas "enfermeiras" e sua ajudante, prometendo-lhes que um navio as traria de volta a Salem antes do outono. Os bebes estavam ainda tão fraquinhos... Ela receava por eles e não poderia sentir-se em paz sem suas "protetoras". Suas forças morais e físicas ainda não haviam tampouco voltado completamente.

Verificou a que ponto estava fraca quando se viu pronta para deixar a casa de Mrs. Cranmer. Sua descida ao porto para o embarque representava sua primeira caminhada fora dos muros da casa.

Até o último momento, parecia que ia explodir não sabia o quê, o fogo do céu sobre Sodoma e Gomorra, a punição por tantos escândalos e coisas estranhas.

Ela vacilou, divisando, da soleira da porta, a praça onde a multidão se juntava. Homens, crianças, chegavam de todas as ruas, correndo. Angélica observou a barreira cerrada formada por vários destacamentos de marinheiros de seus navios, todos de uniformes brancos e azuis, e armados.

Hesitava em avançar, e ficou contente ao ver surgir ao seu lado Lorde Cranmer, que lhe ofereceu o apoio de seu braço.

Joffrey de Peyrac, com sua guarda espanhola, tomou a dianteira do cortejo.

Desembainhara a espada e a segurava com o braço estendido, um pouco afastada do corpo, com a ponta para o chão. Esse gesto, imitado por seus oficiais, podia passar por uma forma de saudação deferente, de homenagem cortês à população, e marcava também que, em sua soberba, os fidalgos franceses se mantinham alerta e prontos a fazer frente a qualquer eventualidade, pois tinham consciência de serem papistas e estrangeiros, em território puritano.

Angélica, fortalecida pela presença de seu cavaleiro servidor, penetrou com ele no caminho do porto, não sem antes se perguntar se alguns movimentos de hostilidade que, a intervalos, passavam como uma rajada de vento sobre o mar, não seriam provocados por seu próprio defensor, Lorde Cranmer, ele, o anglicano, o lacaio de um rei transviado, de um Stuart corrompido, Carlos II, soberano da Inglaterra, a cujo jugo deviam submeter-se os justos de Salem, e que se apresentava, com sua barba tingida de ruivo e seu brinco de pérola, à imagem de seu senhor.

Ou seria porque, atrás deles, carregando as crianças em seus opulentos vestidos de batismo holandeses, avançavam as "mágicas" da floresta? Ruth e Noémia tinham vestido para a ocasião pesadas capas pretas que, conforme a antiga moda alemã, eram dotadas de um capuz preto, cuja ponta, muito rígida, parecia prolongar-se infinitamente para trás. Eram constrangidas a se vestir assim quando apareciam na cidade, a fim de assinalar suas presenças impuras, como outrora os leprosos?

Angélica não testemunhara a espécie de motim que eclodira quando de sua passagem, na noite em que o Conde de Peyrac as conduzira até a casa de Mrs. Cranmer, a fim de afastar dali a morte.

Percebeu o medo e a repulsa misturados a esse silêncio compacto da multidão, que estava como que tomada por um surdo grito prestes a irromper. Todavia, não irrompeu.

O contraste formado pela candura branca dos pequenos pacotes de rendas contra o luto das rudes e inquietantes capas de penitentes, após ter desconcertado, suspendia o impulso das imprecações.

Essa caminhada não deixou de lembrar a Angélica, num outro contexto, sua entrada em Quebec.

Sem estar precedida de um tambor ou de um pífaro, e sem pajem para carregar a cauda de seu vestido, viu-se logo passando sob esse mesmo olhar de uma cidade muda, desafiadora, depois perplexa, mas que não desejaria, por nada desse mundo, se privar do espetáculo, nem de vê-la mais de perto.

- Se tivéssemos imaginado, o Sr. de Peyrac e eu - dizia Lorde Cranmer -, que seu deslocamento atrairia mais curiosos do que a vinda do governador da Nova Inglaterra ou do representante em Londres de Sua Majestade, eu teria posto uma carruagem à sua disposição, milady, embora a distância muito pequena nos tenha levado a crer que isso não fosse necessário.

- Não. Está bem assim. Pelo menos, terei o prazer de passear por Salem. Será que os habitantes da cidade me julgam responsável por todas as perturbações e desavenças que nossa escala entre eles lhe causou?

- Não creio - disse Lorde Cranmer, depois de lançar de ambos os lados uma olhada atenta -, estou habituado a ler nesses

tos de pau, e creio, poder afirmar que os habitantes de Salem ficarão reconhecidos por você ter possibilitado que se divertissem mais do que com a comédia, que não lhes é permitida, e sem incorrer nas censuras de seus pastores ou de sua consciência.

No percurso até o navio, a graça da infância, que se apresentava sob uma dupla imagem de rendas e bordados, amoleceu os corações severos. Viram-se nascer sorrisos, depois, quando se aproximavam do cais, ouviram-se hurras.

No instante de subir a bordo, os gémeos, que entravam em sua terceira semana de vida e que nem de longe haviam atingido o tempo em que deveriam ter vindo ao mundo, foram transferidos para cestas de palha trançada e, sobre a cabeça de dois marujos, franquearam a passarela para realizar sua primeira viagem sobre as ondas.

Da balaustrada de um navio vizinho, ancorado havia pouco, marinheiros com turbantes de tecidos floridos, argola na orelha, facões e pistolas na cintura, consideravam com um olhar carbun-culoso e entediado o cortejo agitado e multicolorido, e deram de ombros. Já haviam visto tanta coisa em todos os portos do mundo! Mas a notícia de que se tratava de gémeos recém-nascidos, filhos de um príncipe pirata de grande renome, provocou entre eles um movimento de simpatia e de curiosidade. Quando lhes mostraram aquela que tinha a honra de ser a mãe, que chegava com grande aparato e que lhes pareceu uma figura muito bela, digna dessa exibição de alabardas e de bandeiras, eles se juntaram às ovações.

Foi um atropelo. Comprimiam-se em volta de Angélica. Todos queriam felicitá-la e quase tocá-la. Alguns só então acreditaram em sua ressurreição. Ela avistou conhecidos, habitantes de Gouldsboro, o armador Manigault e o papeleiro Mercelot, acompanhado por sua filha Bertille, que o ajudava a manter a escrituração de seus negócios. Os dois homens apertaram-lhe a mão com afabilidade, dando confusas explicações por não a terem visitado durante sua convalescença, tendo de ir a Boston, e até a Provi-dence, para encontrar os mercadores com os quais negociavam. Os huguenotes mostravam-se muito industriosos, e Angélica preferia vê-los solicitados por seu trabalho, como em La Rochelle, a vê-los gemendo sobre a rudeza das margens, onde a perseguição do rei da França os exilara e onde deviam recomeçar sua existência, mais desprovidos que o mais ínfimo dos mendigos aos quais, outrora, grandes burgueses, davam esmolas. Ora, não tardaram muito a montar de novo na sela, e ela confirmou-lhes sua satisfação em vê-los empenhados em frutuosas operações comerciais - o estabelecimento de um moinho de papel no Massachu-setts, para Mercelot, a armação de navios e o envio de mercadorias que trocariam com as ilhas francesas do mar das Caraíbas e La Rochelle, para Manigault. Não os censurando, ela compreendia perfeitamente que era mais importante para eles lançar as bases de sua tratativa antes da volta da estação desfavorável do que perder, numa visita a uma convalescente, horas preciosas de verão. Sua amizade era por demais antiga para tais cerimónias e, com toda a simplicidade, declarou que tivera visitas e companhia mais do que suficientes.

Entretanto, não se poderia dizer que eles conseguiriam deixar Salem sem que um supremo turbilhão viesse lembrar-lhes que o vento que aí soprava com mais frequência era o "vento do Diabo".

Um incidente dos mais imprevistos estourou.

Entre os testemunhos desse triunfo, a filha do papeleiro Mercelot suportava com dificuldade suas manifestações. Essa jovem rochelesa, de resto muito mimada pela sorte e pela natureza, pois era bonita e bem-feita de corpo, parecia que nunca deixava de fazer pesar ao seu redor o rancor por não ter nascido, devido a um destino mal-avísado, rainha da França. Não apenas zangada por ter deixado de ser o alvo dos olhares no cais de Salem, onde todos aqueles puritanos - estava convencida disso - não deixavam de notar uma moça tão bonita e de a cobiçar, encontrava-se momentaneamente esquecida, apagada, pelo brilho e sucesso daquela que considerava uma rival, e cujo nome ouvia correr nos lábios admirados: The nice French woman! The nice French woman of Gouldsboro! (A bela francesa! A bela francesa de Gouldsboro!) Votou-lhe animosidade, e não pôde resistir a combater uma admiração tão estúpida, a seu ver inexplicável. Ou pelo menos tentar, se possível, perturbar com uma gota de agraço a satisfação que pudesse obter essa insuportável Condessa de Peyrac de se ver tão adulada e, aparentemente, tão admirada e amada. Insinuou-se até Angélica e conseguiu chamar-lhe a atenção, saltando-lhe ao pescoço e beijando-a com efusão, quatro vezes. Depois, a meia voz, disse-lhe, sem parar de sorrir, pondo à mostra todos os seus belos dentes, alvos e perolados:

-          Agora você está menos prosa, Dame Angélica, com seus gémeos recém-nascidos e seus cabelos brancoskNão é ridículo e imprudente? Na sua idade! Em todo caso, eu é que não vou perder minhas formas por causa de uma maternidade!

Angélica, naquele vozerio, não teria captado senão pedaços desse discurso pronunciado em francês por uma moça que ela não reconheceu imediatamente e que confundiu com uma inglesa, surpresa, além disso, de ter sido beijada quatro vezes nas duas bochechas - costume francês e provinciano, mas estranho na Inglaterra, onde tocar a ponta dos dedos numa saudação já era pouco apreciado -, não teria entendido nada, nem a alusão nem a intenção, se, perto dela, Severina Berne, que não perdera absolutamente nada das palavras de Bertille, a quem detestava, não tivesse explodido em imprecações:

-          Como pode ser tão maldosa, Bertille Mercelot! - gritou, indignada. - Seu coração destila inveja como um garrafão destila seu óleo rançoso! Parece que tudo o que se confere aos outros lhe foi retirado!

- Com que se mete, megera intrigante! Uma formiguinha preta e magricela como você pensa que ppde opinar sobre a beleza das mulheres que são mulheres de verdade, enquanto você não passa de uma moleca, que só presta para ser aia!

- Nasci na mesma rua que você em La Rochelle, e você só tem três anos mais do que eu. Na minha idade, você provocava todos os passantes que usavam calças compridas e, por causa de suas ações estúpidas, eu não me vangloriaria tanto de ser uma mulher de verdade, quando se tem semelhantes erros na consciência.

Bertille afastou-se com um sorriso desdenhoso e irónico, fingindo indiferença.

- Escute-me, pois, megera é você - gritou Severina, agarrando-a por sua gola de renda - jamais conseguirá marido, por mais bela que se julgue.

- Mas você esquece... esquece - protestou Bertille, que a outra sacudia como uma ameixeira -, esquece tola, que já tenho um... marido.

- Bom proveito para ele, pobre coitado! Ele não lhe distribui bastantes bofetadas. Desculpe-se por suas palavras malévolas. E depois, primeiro, Dame Angélica não tem cabelos brancos. Eles são como o ouro, todo mundo os inveja. Enquanto os seus, se não os enxagua com camomila... Veja, é puro mato...

Segurava em grandes punhados os cachos bem-arranjados de Bertille Mercelot, que gritava de dor e de raiva e que agarrou, por sua vez, a touca de Severina, cujos longos cabelos negros se lhe espalharam pelos ombros.

Tendo os curiosos de Salem recuado a pouca distância, na prudente preocupação de escapar às sobras do pugilato, formavam círculo e escutavam essa troca de palavras vivas, dizendo a si mesmos que a língua francesa era, decididamente, uma língua bem bonita, pois seu uso não tornava vulgares, a seus ouvidos, os propósitos que, supunha-se, eram um pouco amargos. Estimavam que suas cantantes e harmoniosas tonalidades comunicavam um lirismo dramático ao espetáculo que lhes ofereciam duas bonitas "papistas", pegando-se pelos cabelos e batendo-se como regatei-ras na poeira vermelha de sua cidade, tão sossegada...

Prontamente interrompido pelos punhos sólidos do£ hugue-notes rocheleses Mercelot e Manigault, esse incidente pôde ser considerado o último dos acontecimentos que haviam levado os "estrangeiros" ao Massachusetts, naquela temporada.

 

As distrações da travessia

- Essa Bertille tem um coração de pedra - chorava Severina, que Angélica, assim que chegaram a bordo, mandara chamar para junto dela a fim de lavar com água de benjoim seus arranhões. - Ela só semeia tristeza e discórdia. Foi por causa de suas co-queterias que o mouro do Sr. de Peyrac foi enforcado no grande mastro, durante nossa travessia do Atlântico. Está lembrada, Dame Angélica? Eu acordo de noite pensando nisso. Isso me dá pena, por causa daquele negro, mas também pelo Sr. de Peyrac, que foi obrigado a enforcar seu servidor, por causa dessa idiotazinha nojenta. Felizmente, Kuassi-Ba não estava a bordo naquela viagem. Senão teria sido ele que o Sr. de Peyrac seria obrigado a enforcar, o que teria sido mais horrível ainda que o mouro.

- Kuassi-Ba não se teria deixado arrastar por ela.

- Qual! com uma Bertille Mercelot tudo é possível. "Eles desencadearam a maldade dos homens e não podem mais deter seus cavalos" - citou.

- Pare de se preocupar com Bertille Mercelot! Ela não está a bordo e deve prosseguir viagem com seu pai para a Nova Inglaterra.

- Bem feito para os ingleses! Quando penso que ela ousou me tratar por formiga preta e magricela. E diante... diante...

Angélica sentia que Severina estava pensando na afronta sofrida diante do jovem e imenso Natanael de Rambourg, cujo rosto anguloso julgara ter avistado acima do marulho das cabeças e dos chapéus pontudos, no momento da partida.

-          Diga-me, Severina - perguntou -, você não reviu, antes da partida, aquele jovem poitevin, amigo de Florimond, que se apresentou tão inoportunamente em minha casa no dia em que se anunciava o nascimento das crianças?

- Vi, sim! - aquiesceu Severina, com um sorriso malicioso. - Duas ou três vezes. Mas ele é muito tímido, e não consegui convencê-lo a voltar a sua casa, sempre invadida por visitas.

- Que pena! Precisava comunicar-lhe umas informações sobre a família dele.

Muito contente consigo mesma, Severina confiou a Angélica que encorajara o rapaz a se associar ao grupo de huguenotes franceses que o Sr. Manigault reunira em Salem e recrutara para Gouldsboro. Entre eles estava o caridoso charentês, tapeceiro de seu Estado, em cuja casa Natanael se hospedava desde que chegara à capital do Massachusetts, não sabendo muito bem o que fazer com sua grande carcaça. Ele se encontrava em sua companhia a bordo do Coeur-de-Marie, um dos navios que escoltavam o Are-en-Ciel.

Angélica felicitou-a por ter tomado essa iniciativa. A obrigação que tinha a cumprir em relação a esse rapaz era penosa: anunciar-lhe a morte de toda a sua família, perpetrada havia seis anos, e que ele ainda ignorava. Agora que sabia que ele estava na esteira deles, essas tristes notícias podiam esperar. Mandaria chamá-lo um dia ao Arc-en-Ciel, para falar-lhe com cuidado.

Naquele momento, estavam deixando o porto, e Angélica quis subir ao tombadilho para uma última olhada.

Com o vento soprando favoravelmente, distanciavam-se rapidamente. A cidadezinha ao longe era apenas uma grinalda de empenas e de telhados pontudos, de chaminés de tijolos empurpurados pelo sol poente, que fazia cintilar os vidros das casas e, como que levemente polvilhados por uma poeira de diamantes, as guarnições de pedaços de vidros incrustados nos en-tablamentos e molduras das portas.

Ela se tornava azulada, sob o nácar do crepúsculo, salpicava-se pouco a pouco das luzes das velas acesas no coração das casas e se apagava atrás da sombra de suas ilhas, que os navios, após tê-las percorrido, deixavam por sua vez. Só se podia imaginá-la, à noite, muito devota e suave, vivendo apenas de preces e de trabalhos diligentes para o serviço do Senhor...

Desde a primeira noite, a vida se organizou a bordo do Arc-en-Ciel para uma alegre ceia à luz de velas na chamada Câmara das Cartas ou do Conselho, e que servia também como salão e sala de jantar para os oficiais.

Como fazia muito calor, apesar da aragem do mar, as janelas estavam abertas para um balcão que formava uma galeria acima do castelo de popa.

No andar superior, ficavam os apartamentos do Conde de Pey-rac e sua família, que tinha igualmente um balcão dominando o dos oficiais, onde se podia tanto dormir à noite, em grandes divãs dispostos à moda oriental, como repousar durante o dia, se o vento que sacudia a ponte central fosse forte demais.

Angélica despedira-se de Mrs. Cranmer, procurando todos os termos suscetíveis de atenuar-lhe a animosidade e o rancor, por tanto incómodo que causara sob seu teto e expressar-lhe seu reconhecimento pela abundância de serviços que recebera dela.

- Cara anfitriã, você foi nossa providência, e jamais a esquecerei.

Mas a filha de Samuel Wexter opôs a seus protestos uma máscara congelada de amargura e deixou-a ir-se sem uma palavra, depois de uma fria reverência, imitada por seus filhos, de pé à sua volta, jovenzinhas de gargantilhas e blusas com peitilhos com fitas de veludo, meninos enfiados em suas calças compridas e gibões pretos ou cinzentos, e mais enforcados que seus avós, com seus colarinhos até o pescoço.

Compreendeu melhor o sentido dessa frieza ao descobrir a bordo, a essa mesma mesa, Lorde Cranmer, que os acompanhava e que, sem se preocupar com sua triste esposa, abandonada a seus padre-hossos e à sua Bíblia, levantava alegremente seu cálice de vinho francês à saúde de seus hospedeiros.

Pobre Lady Cranmer! Angélica, agora a sós junto a Joffrey no balcão do castelo de popa, abençoava o céu por estar entre aquelas que, ao cair da noite, se encontram ao lado de seu amor.

O silêncio e uma nova solidão os envolviam, e eles conversavam, proferindo pequenas frases. Angélica fazia perguntas, a meia voz:

- Tive medo'- dizia ela, evocando as agruras das horas de Salem -, receava que Deus quisesse punir-me...

- Puni-la! Você cometeu algum pecado?

Ela ria, a testa apoiada ao ombro de Joffrey, abandonando-se à força tranquila de seu corpo, meio estirado junto ao seu, o calor de seu braço em torno dela, enquanto a brisa soprava em seus rostos uma doce aragem refrescante.

Os estalidos do navio pontuando o balouçar do marulho, a vibração dos ovéns respondendo à tensão dos guindastes, o ronco sincopado do vento distribuindo seu sopro através do sábio desdobramento das velas brancas, içadas ou derreadas segundo os caprichos da orquestra eólica, toda a vida palpitante do navio, Angélica a absorvia como um elixir que lhe devolvia sua energia, que ela se recriminava de haver deixado fugir.

- Parece-me que não sei mais nem ler nem escrever...

- Bobagens! O Gouldsboro deve trazer-nos da Europa caixotes cheios de livros escolhidos para nossos serões de inverno em Wapassu. Comece, pois, amanhã a se habituar novamente à leitura com os almanaques de Kempton. Encontrará neles mil coisas preciosas, conforme seu gosto, e que não fatigam o espírito.

Ao barulho do mar, ao entrechocar das vagas contra o casco, a todo o rumor que se eleva das profundezas de um navio, assim como aos cantos e aos chamados que caem das alturas, misturava-se, em surdina, a frágil gaita de foles do choro dos bebés. Vozes femininas lhe respondiam, embalando-os com uma canção plangente:

"My Bonnie is over the ocean,

My Bonnie is over the sea,

My Bonnie is over the ocean,

O bring back my Bonnie to me..."

-          Até os cantos de ninar aqui falam de oceano e de amor -- dizia Peyrac.

-          Acho que os bebes choram muito desde que estamos no mar - observava Angélica. - Talvez não gostem de navegar.

Joffrey zombava de sua candura de mãe inquieta. Mas para eles, os pais, a presença das pequenas vidas transformava essa nova navegação, dava-lhe uma outra dimensão, um outro sabor, que, das outras vezes, era a inauguração de uma aventura que começava.

Olharam-se, os olhos brilhantes de alegria e orgulho.

"Bring back, bring back,

Bring back my Bonnie to me, to me...

Bring back, bring back,

O bring back my Bonnie to me."

-          O que fizemos para merecer tanta felicidade? Joffrey, você acredita que o combate vai terminar, agora que nosso principal inimigo desapareceu?

Ele hesitava em responder. Depois, meneou a cabeça, tranquilizando-a, sorrindo-lhe com ternura.

-          Só sei de uma coisa, meu amor, ainda que evite proclamá-la com muita soberba. E que, tendo feito tudo para tirá-la de mim, hoje ele já não pode prejudicá-la, enquanto eu a tenho em meus braços e, inclinando-me sobre você, creio poder ler em seus olhos esse amor que faz minha vida e que ele jurara me roubar. Aí estão, como poderia reconhecer um estrategista, todas as aparências de uma completa vitória para nós, e de uma total derrota para ele. E inútil epilogar ou determinar se se trata do fim de uma fase de combate ou do fim do combate. Jamais subestimei as forças de nosso adversário místico e invisível que nos espreitava por trás das árvores. Ele foi designado para semear emboscadas sob os passos, todavia bem vacilantes, de nossa nova existência. Não sei se a morte marca o fim da batalha e o que ele pode ainda nos reservar do além, mas, considerando o ponto a que chegamos, ousaria dizer: Sim, meu amor, por ora, o combate terminou e nós ganhamos.

Haviam instalado, na ponte central, uma grande rede quadrada, de algodão das Caraíbas, puxada nos quatro cantos, guarnecia de almofadas, o que lhe permitia fazer sentar junto dela as crianças, uma ou.duas pessoas entre os visitantes. Dispostas à sua volta, havia também espreguiçadeiras de tapeçaria, tamboretes, grandes almofadas estofadas de crina para acolher as visitas e, por vezes, ali se reunia muita gente, para degustar sorvetes e conversar à sombra, sobretudo quando, com o navio ancorado, o vento diminuía e o calor aumentava.

Esse tempo bonito era bem melhor que as tempestades. A viagem tomou para ela uma feição muito a seu gostoi um interlú-dio durante o qual, fazendo o balanço das semanas que acabavam de passar, preparavam-se para abordar outras terras e outras tarefas. Em Gouldsboro, os preparativos para a invernagem iam preencher os dias de outono de uma febril atividade.

Mas era ainda verão, o tempo das empresas e dos projetos, como se semeia um sulco com o grão sobre o qual vai se fechar a gleba e que dará trigos vigorosos e múltiplos.

Esse verão não fora nem inútil nem maldito. Podia-se considerá-lo fecundo e cheio de promessas.

Perto da rede, os berços de vime em forma de barcos, cada um deles encimado por uma cobertura e apoiado em duas peças que permitiam balançá-los, eram.a visão mais encorajadora de se contemplar. Não se haviam ainda habituado ao aparecimento dessas minúsculas criaturas, e, desde o grumete até os oficiais, passando pelo mais tarimbado dos marinheiros e o mais arrogante dos quartéis-mestres, cada um deles não parava de solicitar a honra e o prazer de lançar um olhar às pequenas cabeças enfiadas entre o lençol e o travesseiro.

Levavam-nas aos apartamentos quando o vento soprava com violência ou o sol ficava demasiado quente.

-          Acho que eles choram muito, desde nossa partida - insis

tia Angélica. - Será que lamentam ter deixado Salem?

O berreiro dos recém-nascidos estragou um pouco o primeiro dia de viagem. Os palitos de açúcar da parteira irlandesa, as cantigas de suas filhas e seus passeios incansáveis e devotados ao longo da embarcação e os esforços de Noémia não produziram nenhum resultado.

-          E, no entanto, já adormeci bêbados, broncos, loucos - inquietava-se Noémia -, e estes, que caberiam em suas mãos, me resistem!

Observando a cólera dos gémeos, sob o olhar deprimido de suas amas-de-leite e de suas canções, Angélica e.as duas quacres, à noitinha, entreviram a verdade.

-          Quem sabe não estão sentindo falta do berço dos Cranmer? - disse Angélica.

E foi uma iluminação.

Cada uma delas havia secretamente pensado nisso, mas a agitação da partida relegara a segundo plano detalhes que teriam parecido fúteis no momento em que a arrumação das bagagens - sacos, cofres, malas para serem levados aos navios, coisas que não deviam esquecer - suplantava preocupações mais sutis.

Haviam pensado em embarcar aqueles pequenos aquecedores de cobre, que só se encontravam na Nova Inglaterra e que Angélica pretendia levar para Wapassu, sacos e sacos de feijão de Boston, tecidos e cobertas de lã escarlate ou azul de Limbourg, mas haviam mergulhado os gémeos num caos de uma incompreensível e angustiante ruptura. Não era a primeira, mas esta era injusta e devida ao estouvamento de pessoas adultas que perdem o controle quando se trata de se abalar para outros céus e de se prover de todos os bens deste mundo, em seu exílio.

Descuidadamente, tinham arrancado os gémeos da cesta dos pequenos pioneiros puritanos do Mayflower, deitando-os em berços diferentes.

-          Ruth! Noémia! - disse Angélica -, acho que eles ainda sentem necessidade de ficar perto um do outro, como estavam dentro de mim. E preciso colocá-los de novo juntos...

Houve também um conselho muito animado e controvertido, a respeito das faixas que lhes aprisionavam braços, pernas e cabeça.

Puseram-se de acordo quanto a adotar um meio-termo.

De dia, seria bom que as crianças pudessem agitar e estirar seus pequenos membros, mas, à noite, a sólida armação do cueiro devia proteger sua fragilidade, entregue a tanto espaço, e predispô-los ao sono.

Aparentemente, as decisões tomadas a seu respeito convieram aos bebés.

Os marinheiros que passavam imiscuíam-se no debate. Esses homens privados do lar, não tendo tido jamais tempo para ver crescer seus pimpolhos, quando os tinham, demonstravam muita acuidade, como se sua vida solitária lhes houvesse dado tempo para refletir sobre a infância.

Ele, o menino, não gosta de vento, prognosticava um deles, forte e de pele curtida como couro, a bochecha abaulada por um naco de tabaco, e é preciso abrigá-lo. Ela, a menina, gosta de barulho, de movimento à sua volta. Vocês verão, quando houver uma bela tempestade, como ela vai ficar satisfeita.

Mas Angélica gostava desse lugar no meio do navio, sob a grande coberta estendida, de onde podia seguir as idas e vindas da maioria dos passageiros, assistir à manobra dos gajeiros nos ovéns. Gostava de vê-los, quando soava um apito, voar, trepar e se dispor, alerta, como pássaros num ramo, ao longo dos grandes botalós que sustentavam a enxárcia das velas.

Admirava-lhes a agilidade e habilidade de esticar ou afrouxar as múltiplas velas, grandes ou pequenas, e imaginava a coragem e a força que era preciso para cumprir essas mesmas manobras durante as selvagens tempestades, enganchados com os pés descalços nos cordames das travessas, ao longo das vergas, enquanto o navio oscilante despencava até o fundo das vagas profundas como abismos e altas como montanhas, enrolando as velas e amarrando-as com os próprios nós de seus dedos, hábeis e calosos, muitas vezes esfolados pela aspereza do pano e das cordas, sob trombas-d'água da chuva ou dos vagalhões do mar.

Mas, quando o mar estava belo, como nesses dias, sentia-se que ficavam felizes por corcovear nas alturas, através de sua floresta de cordas e de mastros, que era seu domínio, e se ouviam suas vozes cantando e rindo.

Em sua rede, Angélica continuava a receber, como em sua "ruela". E visitantes, desejosos de conversar com ela, vinham de todos os lados.

Ademar trazia-lhe solenemente pratos preparados por ele, em sua homenagem. O Sr. Tissot e o cozinheiro de bordo admitiam o soldado desertor em seu domínio, porque ele revelava um inegável génio culinário em suas preparações e porque era, além disso, difícil livrar-se dele pelo raciocínio ou pela simples injunção de esvaziar o local, o que não se obtinha nem mesmo à força. E, quando se tratava de aprimorar uma receita para a Sra. de Pey-rac, esse militar timorato, alistado à revelia por um recrutador sem escrúpulos, e que não parava de tremer desde que despertara de uma nefasta bebedeira, sem um vintém no bolso e de partida para o Novo Mundo, esse militar a contragosto, que não escapava ao escalpo dos índios senão para ser ameaçado, de es-trapada pelos franceses e de forca pelos ingleses, não conhecia o medo quando estava com uma caçarola nas mãos, em vez de um fuzil, no intuito de elaborar uma obra-prima para Angélica. Tinha acertado duas receitas que ela apreciava - barquete de caranguejo ao creme e o peixe do sudeste, pratos já tradicionais entre os franceses ou escoceses das ilhas e das costas do Maine e da baía Francesa: bacalhau dessalgado, acompanhado de toucinho, de pepinos e de dois legumes que só se encontravam em algumas ilhas - ervilhas, que a Sra. MacGregor cultivava em Mo-négan, em memória de sua mãe, que trouxera a semente da França em sua primeira viagem, e um fruto, com o qual os piratas da América do Sul tinham dotado certos lugares não muito conhecidos, o tomate. Ambos, como se sabia, pratos servidos na mesa do rei da França, onde ainda eram considerados raros.

Aos poucos, Angélica acabara por esclarecer a presença, que se revelara providencial, do casal Ademar-Iolanda e de seu precioso bebé, em Salem. Embora disposta a admitir todas as intervenções celestes, a chegada deles a bordo do Coeur-de-Marie não era fortuita. A realização de um projeto de se instalar na Nova Inglaterra lhes ocorrera havia quase dois anos.

Quando estava cativo dos bostonianòs, o soldado francês Ademar, que o inglês Phipps e, depois, o tribunal de Boston, não sabendo o que fazer com ele, transferiram para Salem, atraíra a atenção do proprietário francês da taberna A Ancora Azul. Desse momento em diante, este quis empregá-lo em suas cozinhas, e até confiar-lhe a direção de um albergue de luxo que pretendia abrir, como tratista, para as altas personalidades da cidade e para os ricos estrangeiros de passagem. Depois de mandar procurá-lo ate no Canadá e de numerosas negociações, transmitidas de barcos a navios, Ademar, que nesse ínterim contraíra segundas e legítimas núpcias com a vigorosa acadiana Iolanda, filha de Marcelina, a Bela, aceitara voltar a viver entre os ingleses, dessa vez não como prisioneiro de guerra, mas visando uma carreira mais de acordo com sua capacidade nativa e mais lucrativa que a de soldado do rei da França, ainda que agravasse os perigos que pesavam sobre ele, como desertor do exército francês e traidor da pátria, que se passara para o inimigo.

- Mas então, você nos deve, a Raimundo Rogéfio e a mim, sua mudança de planos e a anulação de seus compromissos - disse Angélica, quando finalmente conseguiu elucidar toda a história. - O patrão da taberna A Ancora Azul deve nos odiar! O Sr. de Peyrac acertou as coisas com ele, a quem conhecia de longa data...

- Veremos mais tarde - assegurou Ademar, que, uma vez mais, se sentia em segurança sob a égide da Sra. de Peyrac. Quanto a Iolanda, não estava tão certa de querer ficar entre os English, uma vez que as relações dos acadianos da baía Francesa com eles sempre tinham sido mornas, admitindo-se geralmente que, quando num estabelecimento francês se via despontar uma bandeira inglesa, o melhor para os habitantes era pegar suas marmitas e se refugiar nos bosques junto aos índios mic-fpacs ou etchemins, esperando que esses malditos bostonianos acabassem de pilhar suas pobres barracas. Devendo ainda dar-se por muito felizes se não as incendiassem.

Nesse momento a paz reinava nas praias variegadas da tumultuosa French's Bay, as marés mais altas do mundo. Mas há lembranças que nos ficam no sangue, e Iolanda, a acadiana, não estava muito decepcionada com um pretexto que a reconduzia a sua terra natal.

Angélica, acertado esse ponto, adiou para a chegada a Goulds-boro as decisões a respeito das duas amas-de-leite, das quais dependia a saúde das frágeis crianças. Iolanda tinha paixão por seu bebé Raimundo Rogério, e seu próprio filho, de compleição robusta como ela e com o olhar arregalado e ingénuo de seu pai, não se mostrava enciumado em relação à pequena larva humana que partilhava com ele o leite de um seio generoso.

Mas o casal acadiano estaria disposto a acompanhar a caravana até Wapassu para o inverno? A questão ainda não fora abordada.

Quanto à pequena índia que aleitava Gloriandra, para ela também e para a família do velho medecirí's man Shapleigh, a questão permanecia em aberto.

Mas, de comum acordo, a trégua da travessia era respeitada, pois, não fossem esses dias no mar, em que, desligados das obrigações contraídas nas margens e ainda não absorvidos por aquelas que nos esperam do outro lado, não fossem tais momentos em que nos deixamos levar por um sentimento de liberdade e de irresponsabilidade, não havia certeza de que outros pudessem se apresentar.

Várias pessoas desejavam conhecer a receita das barquetes de caranguejo ao creme, uma espécie de massa assada no forno, ou de sonhos fritos em óleo, contendo um untuoso recheio de caranguejo, cozido em caldo de peixe, apimentado e acrescido de creme. O creme entrava também na confecção da pasta, devendo os ovos ser, de preferência, de perua, gansa, pata ou galinha-de-angola, mas não de galinha, e o óleo, de noz ou de girassol. Além de uma pitada de sal, dever-se-ia juntar, para fazê-la crescer, duas colheres de natrão, cujas placas se encontravam em jazidas espalhadas por todo o litoral, e que produzia outro tipo de fermentação, diferente da do levedo de cerveja.

Tinham de ser comidos bem quentes e, naturalmente, regados com creme azedo, depois de polvilhados com açúcar mascavo moído, ou cobertos de melado ou, na falta deste, de açúcar de ácer. Em suma, com um pedaço de gengibre ou de noz-moscada, um prato típico da Nova Inglaterra, retocado pelo génio inspirado da gastronomia francesa.

Havia discussões nas duas línguas, francês e inglês, que tendiam a estabelecer, tão acaloradamente como no caso do traçado das fronteiras, o que já se devia aos talentos da gastronomia nacional.

O clam-chowder, ensopado de mariscos, com leite, batatas e manteiga, vinha dos franceses pela palavra "chaudière", que havia dado "chaudrée" e depois "chowder".

Mas a sopa de lagostas e as clampie, tortas de mariscos ou outros moluscos, eram da "New England", da mesma maneira que,

em princípio,, tudo o que fosse regado com melado ou levasse condimentos, inexistentes entre os franceses, muito pobres para poder obtê-los", a menos que comerciassem com os ingleses ou com os navios das Caraíbas, se estes se apresentassem com boas intenções.

Nos primeiros dias," dir-se-ia que a Nova Inglaterra não sobrevivia em seus pensamentos senão por seus aspectos mais agradáveis: seus pratos numerosos, a doçura dos homens,-caracterizados pelos belos objetos, a variedade de seu comércio, que a cumulava dos melhores produtos do mundo inteiro por uma hábil manobra feita no Staple Act.

Liberados de seu jogo teocrático, os franceses ou os "estrangeiros", como eram considerados, e que a haviam ofuscado, só se lembravam de seu encanto, feito de inúmeros pequenos prazeres, que seus habitantes ficariam indignados de ver denunciados por esse título.

Mas não era um prazer poder, à noite, âncora lançada, velas pandas, dirigir-se à praia de uma ilha para um piquenique que reunia todos os passageiros numa dessas patuscadas de clambake, tão familiares a todos os barcos costeiros do lugar?

Num velho barril enterrado num buraco de areia, jogavam-se pedras bem quentes, recobertas imediatamente de algas úmidas, que serviam de colchão para os mariscos e ostras, depois, alternadas, camadas de algas e camadas de mariscos, lagostas, espigas de milho e batatas. Prendia-se por cima um velho pano de vela, sobre o qual se amontoava areia para deixar o todo cozer bem abafado durante duas horas.

Após haver estabelecido três pontos de cozimento, os grupos, que se formavam segundo a procedência dos navios, começavam a se misturar. Desde o primeiro piquenique, Severina foi procurar os protestantes franceses e esses adeptos de João Valdo chamados "os valdeses", passageiros do Coeur-de.-Marie. Voltou acompanhada por Natanael de Rambourg, e por seus amigos. Enquanto esperavam a refeição, faziam-se visitas de uns a outros, e aqueles que tocavam algum instrumento musical logo foram solicitados.

Depois do festim, regado com manteiga derretida e que se comia com os dedos, havia canções e danças.

Ninguém queria voltar a bordo e pensava-se em dormir na praia, sob a abóbada do céu, banhada por uma claridade verde e límpida de uma lua que não se avistava em parte alguma.

Angélica contou a Ruth e Noémia como, numa dessas ilhas, uma mulher quacre lhe emprestara sua capa.

Era o ano em que os índios abenakis tinham devastado a costa, e as ilhas onde eles faziam piquenique estavam então cheias de refugiados...

A calma voltara. As cidades incendiadas tinham sido reconstruídas. Quando olharam para a costa, de noite, viam-na povoada pelo salpicar das luzes douradas que tremiam por trás das janelas forradas com pergaminho azeitado ou pele de camurças esfomeadas. O número dos portos e das angras revelava-se pelos fogões de carvão de lenha, acesos nos braseiros de ferro, nas extremidades dos promontórios, ou assinalando ilhotas perigosas.

Elias Kempton, o massacre de Connecticut, também fazia parte da viagem.

Em primeiro lugar, Salem não era uma cidade onde pudesse ser apreciado, e seu urso, ainda menos. Mister Willoagby atraíra-lhe aborrecimentos desde que anciões, desses velhos sempre fortes mas que só têm memória para o que pode causar problemas para o próximo, se lembraram que Willoagby era o nome de um mui digno e reverenciado pastor, dos primeiros tempos da colónia, e ficaram escandalizados em vê-lo aplicado a um animal, ainda que fosse o mais inteligente dos ursos.

Depois, Kempton tinha inúmeras encomendas de sapatos sob medida para entregar no norte. E não somente em Gouldsboro e nos diversos estabelecimentos da Acádia, mas também na própria capital da Nova França, em Quebec, na Canadá, onde todas essas damas o esperavam. Não podendo, como inglês e herege, ir até lá sem a proteção do Conde de Peyrac, como da primeira vez, teria de encontrar pessoas de confiança para encaminhar suas mercadorias ao destinatário, fosse pela floresta, fosse pelo rio Saint-Laurent.

Como era penoso a um ativo mascate chocar-se com essas barreiras, erguidas pela tolice humana entre os povos, ainda que exista uma tão perfeita unidade de reações quando se trata do prazer de adquirir! Quem poderia, entre duas mulheres felizes ao experimentar um elegante sapato com o bico e o salto reforçado com uma chapinha de cobre, distinguir a francesa da inglesa calvinista, tão parecidos são-seus sorrisos?

Com a ideia talvez de levar os franceses presentes a sonhar com um possível acordo entre nações inimigas e encorajar a isso seu governador, e também por orgulho de um comércio que, nas colónias inglesas, tomara em algumas décadas proporções absolutamente brilhantes, ele sentia prazer em ler solenemente a lista de mercadorias que já se encontravam tanto em Salem como em Boston:

 

"Cobertores feitos com boa lã de Manchester   Garrafas, garrafões

Chapéus de palha

Rendas de Flandres

Abajures, lanternas,

Trompetas

Pólvora para canhão

Corpetes

Tintas para tecidos

Meias

CebolasSeda e batista

Candelabros, sinos

Pérolas, âmbar, marfim,

Coral, jaspePapel pergaminhado

Azeitonas

Couros

Tesouras

Sabonete

Utensílios para lavoura e diversos

Bonecas e brinquedos

Serrotes, machados, pregos

Guarnições de chaminés,

móveis (armários, cofres)

Cobre em chapas e em Varetas

Tijolos, peças para lareiras e fornos

Presas de elefante

Pás para fogo e outras

Meias de Paris

Luvas de anafaia de Paris

Tabaco do Brasil, de Saint-Christopher, da Virgínia, de Barbados

Mantos de Paris, coloridos e não coloridos

Mamadeiras

Especiarias

Passamanarias e tecidos de ouro e de prata   

Vitrais coloridos      

Ouro e prata e...      

Dentaduras 

Caixilhos, vidros para vidraças Cobres, balança doméstica e comercial Veludos Tapetes da Escócia, da China da Pérsia e de Veneza

Facas Fechaduras

Suco de limão em garrafão Agulhas, lunetas, binóculos     

Anzóis, utilidades domésticas     

Amido, cera 

Tapeçarias   

Sarjas

Açúcar Braceletes, botões, linhas

Escovas, telas para pintura, anéis Raladores

Carros puxados a cavalos,

carruagens, selas

Pó de esmeril

Vinagre"Aparelhos de louça franceses

Casemiras e lãs

 

O mascate assinalara o setor de tabacos, onde julgava que deveria figurar seu grosso tabaco preto de Connecticut, muito apreciado pelos homens do mar e dos índios, e também a ridícula falta de cebolas, o que não admirava nessas terras pobres de Mas-sachusetts, enquanto as ricas terras do belo rio Connecticut, derivado da palavra indígena "quinnehatukqut", o que significa "o longo estuário", podiam produzir em abundância e de ótima qualidade.

- Tínhamos tudo isso em La Rochelle - disse a jovem Seve-rina, bem-humorada. - Não há por que se surpreender.

Os últimos incidentes de Salem pareciam ter influenciado seu temperamento, e era em parte por ela se mostrar alternadamente distraída e triste que se escolhera para Honorina "anjos da guarda", pois a criança arriscava-se a ser negligenciada com todo esse movimento que havia em volta dos gémeos, que não deixava de ser perigoso a bordo de um navio.

Honorina já caíra no mar, em sua primeira travessia.

Joffrey de Peyrac apresentou-lhe três personagens para que ela escolhesse, segundo seu gosto, e Angélica sorria, vendo como ele soubera, conhecendo a menina, colocá-la na obrigação de aceitar ser vigiada, sem que isso fosse para ela um constrangimento insuportável e que ela teria afastado, se lhe tivesse sido imposto.

Havia um grumete escolhido entre os mais raquíticos, um homem de cabelos cinza que, devido a um ferimento no pé, estava condenado a alguns dias de inaçào, o que não o impedia de andar, mancando, e um maltês de bela aparência, do qual Honori-na era muito amiga e que já lhe havia descrito várias vezes, entre outras histórias, a casa de Ruth e Noémia, que ele tivera o prazer de conhecer quando fora para lá, escoltando o Conde de Peyrac.

Ele girava os olhos plenos de promessas maravilhosas e descrevia a cabana com uma verve quase oriental. Dizia que essa cabana, aparecida no fundo de uma clareira, atrás de um círculo de pedras brancas, toda enfeitada de flores, que subiam até o telhado de colmo, e refulgente de cabochões de vidros coloridos incrustados nas madeiras das vigas, lembrara-lhe a maneira como, no fundo dos mares, o polvo, que é um animal eclético e fantasista, ornamenta a entrada de seu habitat, acumulando em volta dela pedaços de vidro, de bilhas, conchinhas, coral, e tudo o que consegue recolher de brilhante à sua volta.

Honorina o teria escutado durante horas, mas seu coração terno não podia afastar o grumete, pois ela sabia que os grumetes têm uma vida dura nos navios, e não desejaria parecer desdenhar o homem de cabelos cinza porque ele estava ferido, tanto mais que ele sabia talhar muito bem com sua faca todo tipo de brinquedo e de figurinhas em madeira.

Foi decidido que os "quartos" de vigilância se sucederiam, e com seus três amigos, não faltariam a Honorina distrações, o que lhe deixaria menos tempo para refletir, reflexões que muitas vezes resultavam em iniciativas tão imprevistas como extraordinárias.

 

O espirituoso Lorde Cranmer

Quando o via chegar à coberta com seu passo balançado e seguro - o passo do Rescator -, com seu olhar sondando cada ponto do horizonte, o que não o impedia de prestar atenção aos propósitos de Lorde Cranmer, que o acompanhava, Angélica sentia seu coração estremecer de alegria, encher-se de uma cálida e terna admiração, de um sentimento de plenitude. Abandonava-se a esse sentimento com a íntima satisfação de dizer a si mesma que, no espaço limitado de um navio, ele não podia escapar-lhe facilmente e que, se ele desaparecia na volta de uma galeria ou de um bordo a outro, reaparecia pouco depois.

Nisso também, para uma mulher apaixonada, residiam as vantagens e as delícias da travessia. Tinha-o todo para si.

E, a cada vez, quando lhe eram dados tempo e quietude, descobria nele um detalhe novo que o tornava mais próximo, uma atitude, uma palavra, um comportamento, que lançavam uma nova luz sobre as riquezas daquele caráter, que sempre manteria um certo mistério.

O que ela trazia também dessa viagem de verão era ter estado mais longe do conhecimento do homem que ela amava. Até então, seu julgamento lhe parecia simplista. Talvez por receio, talvez porque, solicitada pelo combate, bloqueada diante de uma porta fechada onde se abrigavam seus corações, não visse para lá dessa presença: "Ele! que ele me ame! que eu nunca o perca mais, que eu não perca seu amor!"

A viagem no simbólico Arc-en-Ciel lhe permitia medir as linhas e os espaços transpostos.

Patenteara a extrema popularidade de Joffrey de Peyrac nessas regiões estrangeiras, onde era conhecido e esperado em toda parte.

Ele instaurara inúmeros pontos de armamento, lançara em todas as direções atividades diversas. Amigos seguros, associados, armadores ou comerciantes, flibusteiros ou doutos fundadores de cidades, em toda parte o procuravam homens com os quais ele soubera estabelecer, por algum interesse de negócios ou afinidade espiritual, sólidas e frutíferas relações.

Como o Rescator do Mediterrâneo, que dos Cavaleiros de Malta aos pequenos traficantes do pinio, dos corsários de Cândia ao grão-vizir da Sublime Porta, aos paxás de Argel, ao sultão do Marrocos, aos contrabandistas das ilhas espanholas ou das Costas da Provença, contava seus amigos e inimigos, e sabia ligar-se a uns e manter o respeito dos outros, da mesma forma que estava prestes a assegurar um lugar preponderante nesse oceano Atlântico, que iria se tornar o novo mar do mundo.

Admirava-se com isso, encantada de ver acolhê-los, em cada escala, grupos solenes ou entusiastas.

E pensava não se enganar imaginando que, até no coração das Caraíbas, onde ele fizera e refizera sua- fortuna, resgatando com suas equipes de mergulhadores malteses o ouro dos galeões espanhóis afundados, seu renome era tão difundido, de ilhas em arquipélagos, quanto um rastro de pólvora, e também estimado. Tampouco ficaria surpresa de saber que também o era através de todas as possessões espanholas e portuguesas, e até no Peru, pelos caminhos perigosos do istmo do Panamá, onde trotavam os comboios de mulas dos contrabandistas, levando o ouro do Peru, onde partilhavam o segredo das minas incas, ao amo de montanhas tão altas que seus picos tocavam o céu.

Ela, que se comprazera, na "época de chocolate", em ter em mãos os sonhos de diversos comércios que levavam à sua oficina o eco prestigioso de regiões longínquas, podia medir o que isso representava da parte de seu marido, em matéria de génio de organização, de faro, de jeito, de engenhosa diplomacia, de ciência e de competência, de ousadia e de mestria, de imaginação e de extrapolação tanto quanto de cálculos, de fé no homem e de comedida desconfiança.

A força de Joffrey era saber escolher ajudantes de ,toda a confiança. Todos os que se agrupavam sob seu comando ou que aceitavam representá-lo nos diversos pontos do mundo ofereciam uma característica comum: consideravam-se em seus lugares, tendo encontrado, a serviço dele, a independência de suas próprias vidas. Bastante interessados em suas empresas para saber que suas atividades não seriam inúteis e não os deixariam desprovidos, ficavam livres para conduzir seus próprios negócios sem entraves, sabendo que, com a escolha, não poderiam ter desejado melhor destino, melhor objetivo, que os que lhes eram dados viver e perseguir, por um tempo mais ou menos longo, segundo o contrato renovável com o Sr. de Peyrac.

Porgani, em Wapassu, Colin, em Gouldsboro, D'Urville, Barssempuy, Erikson nos navios, etc, considerava-os todos fidalgos de aventuras e não lhes prometia nada além da sorte que se liga à escolha de uma forma de existência cujo título definia os cargos: fosse uma época rica de façanhas, de perigos, de trabalhos e de tráficos, de onde poderiam se retirar munidos de um substancial pecúlio, ou mesmo, se sua habilidade e sua tenacidade o merecessem, de uma fortuna invejável, fosse segundo os riscos do ofício, a morte, que não deixaria nunca de espreitá-los, como a todo ser humano, mas com uma iminência mais cotidiana, em razão dos caminhos nos quais seriam obrigados a se engajar sob sua bandeira.

Nos navios da frota do Conde de Peyrac, o mestre e o piloto de alto-mar eram sempre convidados à mesa dos oficiais. Ele estimava que a importância de seus papéis, dos quais dependia inteiramente, depois de Deus, o êxito da viagem, merecia essa honra que lhes era, no entanto, recusada por um velho código da marinha em todas as outras embarcações, de todas as nacionalidades.

A independência de Joffrey e de Wapassu lhe permitia instituir e impor suas próprias leis, assim como sempre fizera no Mediterrâneo e nas Caraíbas e também quando reinava na Aquitânia, aparentemente vassalo de um jovem rei da França suspicaz, que dele se vingou.

Lorde Cranmer e Joffrey de Peyrac iam e vinham, caminhando pela ponte: Suas conversas, de aparência mundana, tinha também sua importância, e a presença a bordo do inglês, prevista intencionalmente, retirava a esses intercâmbios um aspecto de negociações oficiais, das quais os partidos mal-intencionados poderiam se apoderar. A bordo, estava-se ao abrigo, mais do que em terra, dos olhos dos espiões.

- A propósito de espiões - dizia Lorde Cranmer, e Angélica pegava alguns trechos, de passagem -, você não sabe tudo. Tenho em meu poder um documento de seu jesuíta que poderia despertar a guerra entre nossas duas nações. E, no entanto, estamos em paz há cerca de dez anos, fato raro entre a França e a Inglaterra. Mas vamos informar a Sra. de Peyrac a respeito disso. Após a vindita declarada e os anátemas lançados contra ela, o mínimo que se pode fazer é não mantê-la à margem dos segredos diplomáticos.

- Esses jesuítas pregaram-nos peças de péssimo gosto.

- Mais do que você pode imaginar! Samuel Wexter, quando de sua altercação com o Padre de Marville em Salem, não teve tempo de falar do mais grave: uma carta, enviada pelo Padre d'Orgeval a um fidalgo francês que se encontrava nas paragens do lado de Illinois, caiu nas mãos dos moicanos.

- Enviada quando e de onde? - perguntou Angélica.

Isso ele não sabia ao certo. Vários meses antes. Naquele momento, a informação valia para confirmar que a luta sorrateira e implacável tinha sido bem conduzida, e que as defesas que se lhe tinham oposto não eram fruto nem da má fé, nem da imaginação.

O mensageiro era um narrangasett, das tribos rebeldes. Sabiam-no ligado aos franceses do norte. Ele levava para o jesuíta mensagens em pequenas folhas de chumbo seladas, isso até Nova York e na Virgínia. Em caso de perigo, ele as engolia. Os moicanos encontraram a carta em suas entranhas. Levada a Boston, depois a Salem, nela se lia:

"Fui encarregado pelo rei Luís XIV de manter o estado de guerra com a Inglaterra por intermédio dos ataques indígenas...

Sebastião d'Orgeval"

Samuel não tivera tempo nem forças para brandir um documento tão terrível!

A retomada dos reides franco-indígenas no oeste suscitara inquietações pelo reinício dessas guerras intermináveis, tão funestas ao comércio. Mais do que nunca, confiava-se na diplomacia do fidalgo francês e em sua influência sobre as pessoas de Que-bec para pôr fim a essas crises, que atingiam os franceses do Canadá como convulsões epilépticas, sem que nenhuma tensão entre os reinos da França e da Inglaterra justificasse esses atos sangrentos que acabariam por lançar os soberanos de suas nações nos mais graves conflitos.

Por felicidade, os dois reis, Carlos II e Luís XIV, eram primos irmãos, por parte da irmã de Luís XIII, que desposara Carlos I da Inglaterra, o rei decapitado. As relações entre as duas cortes eram boas, quase familiares.

Às vezes Colin Paturel participava de suas conversações.

Lorde Cranmer falava com humor sobre questões religiosas que, pela paixão que inspiravam aos homens dessa época, fizeram derramar muito sangue, e fariam derramar mais ainda, e por culpa das quais o governador das colónias inglesas da América, anglicano, devia residir na Jamaica, não podendo seus administrados dos Estados continentais suportar, cada qual por uma razão diferente - puritanismo, luteranismo, catolicismo, e não se sabia o que mais -, os representantes da religião oficial da Inglaterra, sua pátria.

- Meu tio, o arcebispo de Cantuária, do qual levo o nome, pode ser considerado o primeiro bispo anglicano, pois ele edificou, desde as primeiras horas da Reforma, para seu príncipe Henrique VIII, "essa igreja católica sem papa", o que o rei exigia. Mas, sob a reação calvinista e já puritana, teve de devolver a alemã que havia desapossado. Depois, sob Maria Tudor, a Católica, foi preso e decapitado.

O esposo de Mrs. Cranmer reconhecia de bom grado que os colonos ingleses, ainda que lhe fizessem cara feia quando ele se apresentava em suas casas, eram os mais ativos súditos de Sua Majestade, mas também, fosse qual fosse seu credo, faltava-lhes uma certa disposição natural para se adaptar ao Novo Mundo. Ao contrário do escocês, do irlandês, e mesmo do holandês e sobretudo do francês, o inglês colonial e o puritano não souberam fazer o indígena se afeiçoar a eles. Desprezávam-no e perseguiam-no. Era um instinto profundo, em que ò horror à preguiça, à indolência, à sensualidade, à incultura e ao paganismo levantava uma barreira intransponível entre eles e essas "serpentes vermelhas", que deslizavam, silenciosas, invisíveis, entre as árvores de sua floresta impenetrável, nas profundezas da qual não podiam se perpetrar senão as piores abominações. Isso não tinha solução, nem jamais teria, e só podia piorar.

Para alguns Padres Peregrinos, cheios de loucuras e de ilusões, que tinham partilhado com os índios, tão desprovidos quanto eles, o peru com mirtilos do Dia de Ação de Graças para um John Eliot - anglicano -, que fora evangelizar os wapanoags, para um generoso Roger Williams, um cidadão de Salem, que, banido por seus intolerantes correligionários por suas "opiniões novas e perigosas", teve de fugir durante uma tempestade de neve e procurar refúgio junto a um de seus amigos índios entre os quais invernou antes de ir mais para o sul estabelecer em Rhode Island, na baía de Narrangasett, a plantação de Providence, onde todas as opiniões religiosas eram admitidas, por esses poucos loucos, desejosos de aplicar os princípios caridosos de sua fé cristã e viver na liberdade de consciência que tinham ido buscar ali, permaneciam uma boa centena de milhares de crentes, que a presença do índio revoltava e espantava e que eles preferiam esquecer, salvo quando ela se fazia lembrar a eles de maneira sangrenta. Pois esses piedosos ingleses eram realmente pacifistas. Tinham ido para ali sem nenhuma ideia de opressão sobre o indígena, nem de pilhagem. Tudo o que pediam era não ver os pagãos andarem sobre a terra que o Senhor lhes havia concedido e poder rezar em paz, segundo suas leis.

Joffrey de Peyrac era francês. Essa diferença constituía sua força e o designava como árbitro entre os dois mundos, de concepções e crenças opostas.

Os ingleses apreciavam nele uma aventura de imigração que se parecia com a deles. A maioria daqueles que fundaram esses Estados ingleses, desde a Virgínia até o Maine, não eram indigentes nem funcionários dependentes do rei como na Nova França. Eram burgueses, gente abastada, nobres. Haviam partido com suas famílias, seus bens, seus servidores e, amiúde, uma carta real que garantia sua independência quase soberana.

O fidalgo francês, tomando a seu cargo o desenvolvimento de um território disputado mas pouco povoado, garantindo-se com alianças de uns e de outros para ali se manter em paz, parecia-lhes um irmão e prefigurava a posição, que, sem confessá-lo, essas colónias díspares, de confissões inimigas mas de uma mesma alma pioneira, que mantinham certa liberdade em relação a Londres, sonhavam um dia obter: a independência.

Angélica, com sua intuição feminina, sentia a corrente subjacente de uma maneira mais nítida. Uma esperança ganhava vida. Pois, por eles e sobretudo por seus recém-nascidos, tão estranhos ainda e tão importantes já, não podia deixar de indagar em que mundo lhes seria possível viver. E, por ora, seu futuro semelhava-se a esse bote sem amarras, mas onde vinham se reunir os espécimes dos povos atormentados que tinham lançado âncora nas praias do Novo Mundo. Tendo, como pano de fundo, a massa agitada das tribos indígenas.

Enquanto os dois homens continuavam seu passeio, ela evocava suas escalas.

Tinham apenas passado ao largo de Boston e entrevisto, no plano de fundo da cidade, que tinha a aparência de uma grande cultura de cogumelos, com seus telhados pontudos amontoados, o cume longínquo do Massaposset, a Grande Montanha, à qual o Estado devia a corruptela de seu nome, Massachusetts. Boston, filha de Salem e tomada pela dura ambição de ser mais intransigente, mais ativa e mais eleita do Senhor que sua mãe...

Joffrey de Peyrac reservava-lhe uma visita para uma outra viagem. Conhecia ali muita gente para não ser obrigado a permanecer por muito tempo.

Fizeram escala no minúsculo Estado de Rhode Island and Providence's Plantation, ele também oriundo de Salem, mas num espírito totalmente diferente, se se considerasse que Roger Williams, jovem pastor cheio de ideal e querendo fazer respeitar a liberdade das consciências, tivera de fugir, e fundara, ao abrigo dos meandros da baía de Narrangasett, uma cidade generosa, aberta a todas as crenças: Providence.

Na foz do rio Hudson, o Yatcho e o Vlie-Booten dirigiam um bale animado. Essas embarcações vigorosas eram usadas tanto para os colonos das margens do rio que subiam até Orange, no norte, na entrada do vale dos iroqueses, como para o oceano, onde, depois de ter cabotado de ilha em ilha e de baía em-baía, podiam igualmente se lançar para a Europa. De sessenta a cem toneladas, vinham dos canais da Holanda, onde a água é o caminho para voltar para casa.

A Holanda dominava ainda na facúndia e jovialidade de Nova York, pequena cidade galharda, gulosa, menos importante que Boston, mas muito cosmopolita e que não esquecia que, antes de ter sido rebatizada com o nome do irmão do rei da Inglaterra - o Duque de York e de Albany -, tinha sido a Nieuwe Ams-terdam dos neerlandeses.

Viam-se ali brilhar contra o céu chaminés de telhas de Delft. Nova York e as margens do Hudson, até Orange-Albany, onde se falava mais de uma dezena de línguas: holandês, flamengo, valão, francês, dinamarquês, norueguês, syeco, inglês, irlandês, escocês, alemão e até o espanhol e o português, falado pelas comunidades judaicas que haviam fugido do Brasil para escapar às fogueiras da Inquisição espanhola...

Esses judeus dispersaram-se pelo Connecticut e Rhode Island e levavam consigo a joalheria, o hábito do ouro e dos investimentos no comércio.

E se, do outro lado do estuário, os habitantes de Nova Jersey, instalados em grandes casas de pedras pardas dos antigos colonos suecos, ostentavam um puritanismo tão exagerado, que uma criança de mais de dezesseis anos que jurasse diante de seus pais era passível de pena de morte, lá, pelo menos, nas ruas de Nova York, viam-se, eventualmente, casais beijando-se com a maior naturalidade.

Molines mandara construir ali uma casa de tijolos, em tudo semelhante àquela que ocupara no Poitou, quando geria os domínios dos Plessis-Bellière, na encruzilhada das terras dos Sancé de Monteloup e as dos Rambourg.

Mandara buscar a filha, o genro, os netos, esses já habituados a viver nas ruas, onde, segundo um costume holandês que diz que as crianças devem ser livres como os pássaros e que não perturbam com sua presença turbulenta a calma do lar nem estragam os belos assoalhos encerados, tinham já um aspecto menos sonso que seus parentes da mesma idade. O intendente Molines estava em sua casa em Nova York. Pretendia que um de seus ancestrais tinha sido um dos companheiros de Peter Minuit, o valão que, em nome do conde da Holanda, comprara aos índios manhattes, por sessenta florins, a quase ilha do mesmo nome, Man-Hat-Ta, que significava "terra celeste". Encontrara, pois, parentes e associados , que só esperavam por ele.

Os papéis que o rei da França lhe enviara, marcados por seu sinete, continuando a dar-lhe plenos poderes em qualquer circunstância, apesar de ser huguenote, permitiram-lhe fazer sair da França muitos de seus amigos ameaçados e a estabelecer, com os que aí permaneciam, redes comerciais que poderiam, caso a situação dos reformados franceses se agravasse com a revogação do Edito de Pacificação, tornar-se redes de evasão.

Ele estava gozando de plena saúde e continuava mais ativo que nunca.

E também em Nova York instaram para que fosse instalar-se ali. Seu lugar era aquele, diziam-lhe, e saberiam dar um belo impulso aos franceses, que, em sua maioria, vegetavam.

Mas por quê?, perguntava-se Angélica. O périplo deixava-lhe, ao contrário, apesar das tentações naturais de uma vida menos árdua e mais segura que a que haviam escolhido, uma certeza quanto a seu gosto pela independência, um desejo que lhes era próprio, a ambos, de manter, pelo menos em seu relacionamento exterior, um isolamento que ela sentia como uma necessidade. O mundo, os homens, sua sociedade, suas leis iníquas, seus princípios arcaicos, suas ideias preconcebidas, tinham-nos separado. Conservava em relação a eles uma desconfiança e um medo que renasciam cada vez que a agitação e a intriga humanas pareciam ameaçar esse amor, nem bem salvo, miraculosamente devolvido, renascente, mas pelo qual, à medida que ele se fortalecia e que ela desfrutava seu preço inestimável, receava, consciente de um tesouro que ela era a única, dizia-se às vezes olhando à sua volta, a única mulher a possuir na terra.

Apesar de todos os seus encantos, o inverno passado em Quebec, na febre sedutora das mundanidades francesas, tinha sido uma boa lição para ela.

Por isso, cada vez que, apanhada pelos encantos das viagens, das visitas, do prazer dos encontros, participava deles com todo o ardor e a animação de sua natureza sociável e amante de festas - conversar, rir, dançar, qualidades espontâneas que o rei sentira nela e que apreciava sobremaneira -, muito depressa, daí em diante, aspirava reencontrar "com ele" a solidão do mar ou da floresta, como o refúgio, o lugar preservado, onde pudesse reunir suas forças a fim de enfrentar o perigo emboscado por trás dos sorrisos e das solicitudes, e que frequentemente não soubera discernir a tempo. Um outro aspecto de sua natureza lhe aconselhava esse retiro, o mesmo que a lançava, quando criança, sob as árvores dos bosques impenetráveis, ávida por escapar a toda voz humana e a todo olhar, só podendo suportar a companhia da feiticeira Melusina, que lhe revelava seus segredos, desconhecidos pelos "outros"

Em sua existência atual, as margens pioneiras do Maine e da baía Francesa, e sobretudo a terra de ninguém muito vasta, muito deserta para topar ainda a parada de uma guerra entre as duas potências que a enquadravam por suas possessões, a França e a Inglaterra, essa região de montanhas e de lagos, difícil de penetrar, no centro da qual se encontrava Wapassu, preenchia essa função de mantê-los afastados, ocultá-los a todos, pelo menos durante uma estação: o inverno.

Contanto que tivesse uma sólida paliçada e armas para se precaver contra qualquer eventualidade, lojas bem-providas de víveres e bem-abastecidas de madeira para as lareiras e os fogões, podiam dizer que em Wapassu, durante os meses de inverno, estariam protegidos contra o mundo e suas querelas, o que era infinitamente repousante e benéfico para a saúde de seu amor.

Joffrey reconhecera, nas longas conversações que mantiveram, partilhar dessas mesmas reações e desejos, de ficar a sós "com ela", de escapar por um tempo à pressão industriosa e sobretudo desordenada dos humanos, embora lidasse com mais sangue-frio do que ela com sua intrusão agitada ou desgastante. Sua fortaleza interior era de bronze. Ela quase o invejava e se inquietava no receio de descobri-lo inacessível, e de que lhe escapasse. Então, ele afirmava, rindo, que ela era sua única fraqueza, a única capaz de abalar a fortaleza de bronze, o que provava que ela era muito mais forte do que ele, pois, com a ponta do dedo, podia fazer desmoronar colunas desse templo interior. Ela respondia que não acreditava nele e que ele havia provado que podia resistir a tudo.

- Não, a tudo não - murmurou Joffrey, envolvendo-a em seus braços fortes, num abraço ciumento e apaixonado, cobrindo-a de beijos exigentes, apertando-a com um brusco frenesi, no qual sentia passar, ecoando sua própria angústia de perdê-lo, a necessidade que tinha dela, e era surpreendente e delicioso percebê-la, vinda dele.

Ela jogava seus braços em volta de sua nuca quente e dura, que carregava, sem esmorecer, sem se dobrar, a carga de múltiplos desígnios e de tantas existências cuja vida e sobrevivência assegurava.

Considerando o que sabia sobre a vida de Joffrey, Angélica posse a pensar nele. Por diversas vezes, estupefata diante do que descobrira em sua pessoa, dissera a si mesma: "Não o conheço! Ele é demasiado vasto, demasiado grande! Ele me oculta muita coisa sobre si mesmo!"

Mas que pretensão querer conhecer tudo a respeito de um ser humano! Isso não existe. Sempre permanece uma parte desconhecida. Sua ternura e sua admiração cresciam em proporção com o mistério. Seu medo também.

Tentava aproximá-lo dela por outras imagens. Era o mesmo homem que lhe murmurava palavras de amor tão loucas, que se apoderava dela na noite, como se ela fosse o tesouro mais precioso do mundo e o único que temesse perder.

Um dia, em Quebec, a Sra. de Castel-Morgeat lhe observara, com um misto de inveja e de nostalgia: "Ele a olha sem parar".

E devia se lembrar de que era o mesmo homem, responsável por um império, que lhe dissera um dia, a ela, sua mulher: "Aonde você for, eu irei; se você ficar, ficarei", depositando a seus pés, e prestes a abandonar, se ela pedisse, esse. domínio que parecia ter-se dado ao trabalho de edificar apenas para ela.

O que não o impedia de investir, em tudo o que empreendia, talento, paixão e gosto pela vitória, dando a cadauma de suas tarefas um cuidado meticuloso, a cada um de seus papéis, as virtudes exigidas. Mestre a bordo de um navio, não passava por cima da dura disciplina, que permite a uma tripulação atravessar as provas da navegação. Algumas vezes a assustara, inquietara. Sentira-se sem poder sobre esse ser de aço. Mas era o mesmo ho-m, senhor da Aquitânia, que lançava moda em Quebec, escolhia com cuidado, entre as mercadorias vindas da Europa, os presentes a oferecer às damas e às "potestades", que dissera a Ho-norina: "Eu sou seu pai", mas também que perseguira Pont-Briand através do deserto gelado, para matá-lo em duelo, o que ainda não conseguira perdoar-lhe, não por causa de Pont-Briand, mas pelo medo que a espicaçara durante vários dias, quando pensava que não o veria voltar. O mesmo que quJeimara seu forte de Ka-tarunk com todas as suas riquezas em troca do sangue dos chefes iroqueses assassinados e que, ainda recentemente, em Salem, correra a ajoelhar-se diante da casa das quacres mágicas, supli-cando-lhes que fossem salvar "sua mulher e seus filhos bem-amados".

Homem estranho, estranho sob muitos aspectos, que permaneceriam para sempre imprevisíveis para ela.

Mas ela também o era para ele? Às vezes?

Certo dia, quando estava repousando no balcão do primeiro andar do castelo de proa, pois era um dia ventoso, chegaram-lhe aos ouvidos vozes vindas da sala de jogos. Reconheceu, no meio das onomatopéias guturais, Joffrey de Peyrac e Colin Paturel, que interrogavam os negros da África comprados pelo conde no bem-provido mercado de Rhode Island.

Angélica surpreendeu-se por ver seu marido ir pelos cais e praças de Newport, o porto desse pequeno Estado cuja capital se chamava Providence, examinando os "lotes" de escravos.

Com curiosidade, pela porta entreaberta, examinava o grupo que era formado, na penumbra da cabina, pelos sombrios filhos da Africa, sentados no chão aos pés de Joffrey de Peyrac e de Colin Paturel.

Havia um homem bem pequeno, que devia ser um indígena da floresta virgem, pois era atarracado e tinha traços bem marcantes e, perto dele, uma mulher grávida, que poderia ser sua esposa, uma negra muito grande, muito bela, e seu filho de cerca de dez anos de idade. Um homem de bela aparência, que, pela maneira como falava o francês, devia ser proveniente das Pequenas Antilhas, onde se começara, havia várias décadas, a importar negros para substituir os índios escravos desaparecidos.

Colin conversava com a grande mulher, cujo dialeto parecia compreender, e traduzia para Joffrey, quando este, que seguia parcialmente o diálogo, hesitava.

Via no claro-escuro movente, cujas zonas de luz e de sombra o balanço do navio mudava a seu bel-prazer, esses dois rostos de homens, tão diferentes: o perfil de Joffrey, abrupto, a arcada superciliar abrigando o olhar atento, penetrante, que adivinhava para além das mímicas, das expressões ou das palavras, o pensamento do interlocutor e, perto dele, a gaforinha loura de Colin, sua barba em desalinho, seus ombros maciços. Quando estava no mar, Colin se livrava de um certo jeito pesadão que tinha em terra, em seu papel de governador. A gente então se lembrava de que, desde a idade de grumete, ele não deixara de correr os mares, como muitos normandos.

Pôs-se a olhar para o marido, que não se sabia observado por ela, com uma curiosidade e um fascínio desmedidos. Gostava de seu perfil inclinado, do movimento de seus lábios, quando ele falava, e dos gestos de suas mãos, tão expressivos!

Percebia que ele conversava com aqueles pobres negros, vindos do fim do mundo, com a preocupação de oferecer a suas existências destruídas uma sorte que lhes parecesse aceitável.

Ela também tinha vontade de olhar constantemente para ele.

 

A verdade de Natanael Rambourg - Do sentimento de amar

-A senhora acredita que Kuassi-Ba vai se casar com a grande negra peuhtí - perguntou Severina, enquanto, num dia de calor, estavam degustando, à sombra da tenda, sorvetes de frutas, milagrosamente saídos das cozinhas do Sr. Tissot.

Angélica parou, com a colher suspensa a meio caminho dos lábios e, depois de refletir, exclamou:

- Mas então, teria sido com essa intenção que fizeram sua aquisição no mercado de Newport!

- E o que me parece! Não acha o mesmo?

Angélica repousou a colher no pires, de uma finura transparente, uma dessas porcelanas da China que só se encontravam na Nova Inglaterra:

-          Joffrey nunca me diz nada! Nunca me explica nada! Acho que ele pensa que me tornei por demais tola e perturbada pela doença para seguir os nós complicados de suas tratativas comerciais ou outras!

A jovem Berne, quase aplaudindo, pôs-se a rir, como se jamais tivesse ouvido nada mais engraçado que esse movimento de irritação de Angélica.

-          Antes de mais nada, a senhora não estava doente no dia em que ele a comprou. Apenas grávida, e nem se podia ver direito, e nós não tínhamos ainda chegado a Nova York! Depois, a senhora mesma me diz sempre que os fios e tramas das combinações do Sr. de Peyrac são tão complicados, maquiavélicos e habilmente tecidos, que até uma aranha se perderia neles, e que a senhora preferiria não saber tudo... Enfim, a senhora mesma, cara Dame Angélica, coloca tão facilmente a par de todas as ideias que passam pela sua cabeça as pessoas que a cercam? Ouvi também o Sr. de Peyrac proferir essa mesma queixa a seu respeito.

- Eu me rendo - admitiu Angélica. - Você é a sabedoria em pessoa, minha Severina. A melhor coisa, quando me surpreendo com seus atos, seria refletir e compreender-lhe a intenção ou, a rigor, pedir-lhe uma explicação, no momento oportuno.

Na verdade, ela ficara perturbada, para não dizer chocada, por seguir de longe as idas e vindas de Joffrey, que passava lentamente, seguido por Kuassi-Ba, pelos dois espanhóis armados, como de costume, mas também pelo capitão holandês do navio negreiro e por duas personalidades da Providence's Plantation que o recebiam, entre a "mercadoria" negra, sentada e dividida por lotes, no cais.

Com o Conde d'Urville e alguns amigos do lugar, ela esperava que lhes servissem a refeição no terraço de um belo café, cuja tabuleta era ornamentada por um soberbo ananás que acabavam de colher, recém-chegado das ilhas, e cujo perfume embriagador e delicado fazia pensar nas praias mais brancas e nos céus mais límpidos, nos coqueiros ao vento e nas borboletas como gemas sobre as flores vermelhas dos hibiscos.

Não sem mal-estar, Angélica seguira com os olhos a diligência de Joffrey, que parava, examinava, mandava que um ou dois escravos se levantassem para interrogá-los. De longe, sentia um frio na espinha, tanto isso lhe lembrava o batistan de Cândia ou de Argel. Na qualidade de antiga escrava do Mediterrâneo, estimava que era preciso mesmo ser inglês, desses ilhéus anglo-saxônicos do norte que não têm nenhuma ideia sobre o verdadeiro comércio da mão-de-obra servil, para ter imaginado que se podia fazer dos negros africanos trabalhadores forçados.

No Mediterrâneo, procuravam-se para as galeras turcos, cir-cassianos ou russos do sul e todas as variedades de cristãos. Mas era sabido que o homem negro, mesmo o mais vigoroso, não resistia a duas semanas no regime dos forçados. Por essa razão, nos mercados das escalas do Levante, compravam-se somente algumas mulheres negras para os haréns, e crianças, para transformá-las em eunucos ou objetos de prazer juntos aos paxás e príncipes.

Todavia, era obrigada a verificar que o mercado de trabalhadores negros em direção às ilhas do mar dasCaraíbas, para onde tinham começado a mandá-los, havia meio século, a fim de substituir os escravos índios desaparecidos, no trabalho da cana-de-acúcar e, em geral, na lavoura, se ampliava, e já pudera vê-lo em atividade em La Rochelle.

Mas ali, no porto da menor colónia inglesa do norte da América, nessa cidade de Newport, construída na extremidade da grande ilha de Aquidneck, batizada pelo descobridor Verrazano como ilha de Rhodes, em homenagem aos cavaleiros de São João de Jerusalém, que, no mesmo ano, em 1523, vencidos pelos turcos no Mediterrâneo, deviam deixar seu feudo de Rhodes e refugiar-se em Malta, essa ilha que, como um tampão, fechava a vasta baía complicada de ilhas e de penínsulas de Narrangasett, no fundo da qual se edificava Providence, Angélica não ficara pouco surpresa ao descobrir nesse pequeno canto de terra único, ali onde lhe haviam dito que Roger Williams introduzira o costume, tornado lei, da liberdade de pensamento e de expressão, o mais ati-vo e florescente mercado de escravos.

Aparentemente, não havia qualquer ilogicidade nesse fato.

O génio espiritual da Providence's Plantation and Rhode Is-land fora o de estabelecer a liberdade de pensamento.

Seu génio comercial fora compreender que, a meio caminho entre as terras pobres do norte e as ricas do sul, onde o menor quinhão de terra era logo transformado em campo de tabaco, e onde faltava mão-de-obra, o mais lucrativo dos comércios seria fornecê-la a eles.

As pessoas do Massachusetts invejavam-nos por terem tido antes deles essa ideia genial. Mas Rhode Island estava mais bem situada para organizar esse tráfico. Em seus barcos construídos nos estaleiros navais, ia buscar escravos na África ou nas ilhas das índias Ocidentais, enviava estes, já bem treinados no trabalho da terra, para a Virgínia, vendia os africanos nas Caraíbas, recebia em troca: melaço, açúcar e tabaco, fabricava rum, carregava todos esses produtos para o Massachusetts e Terra Nova, daí trazia vinhos franceses e bugigangas de Paris, que tornavam a ir para as ilhas, e bacalhau salgado em barril, que seria vendido a Portugal, antes que os navios apontassem novamente em direçào às costas da Africa.

Newport começava a ultrapassar em importância Boston e, de longe, Nova York.

A cidade era tão rica, que ali se estabeleceu um imposto de três táleres por habitante, que servia para pavimentar as ruas.

E era verdade que ali se comiam ananases e frutas das ilhas, além de uma abundância de mariscos com conchas tenras e de ostras pequenas ou grandes, verdes, azuis, douradas, creme ou cor de nácar e de prata, degustadas de todas as formas: cruas, em caldeiradas, em cozidos, como pie, fechadas entre dois círculos de massa, a que os franceses chamavam de "tourtes".

Esses ágapes não lhe bastaram para se reconciliar com o lugar, e, sem poder explicar a si mesma o motivo, não desejou conhecer Providence, a capital, onde se podiam discutir todas as teolo-gias sem se matar, e que era quase considerada a cidade santa do Novo Continente.

Sua conversa com Severina lembrou-lhe que seria também preciso receber o pobre Natanael de Rambourg, já que o acaso colocara em seu caminho esse rapaz de vinte anos que ela conhecera bem jovem, e que, quando criança, ia brincar no castelo com Flo-rimond e Cantor.

Severina e ela aproveitaram uma escala para convidá-lo a ir a bordo do Arc-en-Ciel. Ele subiu com desajeitamento a escada de portaló. Não devia ter pés de marinheiro.

Podia-se notar, em compensação, que procedera a mudanças em sua vestimenta, equipando-se de uma sobrecasaca de casemi-ra cor de tabaco, com os punhos e as abas dos bolsos guarnecidos de passamanarias douradas, um colarinho branco enfeitado com rendas e um cordão de seda amaranto com borlas franjadas, um par de sapatos com um couro mais fino que p de seus grossos borzeguins com fivela de aço, com a sola aberta num "bocejo". Devia ter feito alguns empréstimos entre seus amigos da ilha James.

O fato de ter reencontrado um pouco do quadro de sua vida anterior de fidalgote francês o teria incitado a essas procuras de elegância?

-          A menos que seja por meus belos olhos! - dizia Severina, com um riso fanfarrão.

Meio sentada contra o colchão que desbordava da rede, a pequena rochelesa apoiava-se sem cerimonia nas almofadas às quais se recostava Angélica, a quem ajudara a levantar-se para receber o visitante, e plantava seus belos dentes brancos numa maçã, com uma decisão sensual e alegre. Quisera estar ali presente, pois fora ela quem o conduzira pela primeira vez, em Salem, e começava a considerá-lo propriedade sua.

-          Ele é um pouco tonto, mas é um belo rapaz! Não, ele não é bonito - reconsiderava -, mas me agrada.

Com um olhar implacável, e ao mesmo tempo que trincava com grande fome de viver e uma desenvoltura afetada sua maça vermelha dos pomares de Salem, viu-o avançar pelo assoalho bem escovado do tombadilho superior, saudar à francesa, beijar a mão de Angélica e responder em termos corteses e precisos às perguntas que ela lhe fazia sobre sua situação e sua saúde. Em resumo, ele estava indo bem. No que se referia a sua saúde, não lhe devolveu a pergunta, e Angélica acabou por dizer a si mesma que havia pelo menos uma pessoa em seu círculo que não ouvira falar do nascimento dos gémeos, de que quase morrera, e que não se preocupara com as vidas ameaçadas. O jovem huguenote permaneceu de pé, apesar dos convites para que se sentasse. Provavelmente, tinha-se preparado com antecedência e repetido a si mesmo o que desejava expor à Sra. de Peyrac, quando a visse, pois, no final de alguns segundos, lançou-se em seu discurso, sem esperar que ela o convidasse a falar.

Decididamente, esse Natanael era jovem demais, e sua alta estatura enganava acerca de sua maturidade. Continuava a não parecer desconfiar do desaparecimento de sua família. O que o preocupava era o que se passara entre ele e Florimond e que, aparentemente, não deixara de preocupá-lo, permanecendo o dilema tão presente em seu espírito como se ainda tivesse catorze anos de idade. Dos desconfortos de sua aventura que poderia tê-lo marcado pelas fadigas, a rudeza da vida do mar, a frugalidade das refeições, com-que tinham de se contentar, ou as agruras dos enjoos, a apreensão pelo desconhecido - pois, nem um nem outro desses jovens rapazes sabia o que os esperava do outro lado do oceano -, Natanael de Rambourg só parecia ter retido a decepção que lhe causara aquilo que ele denominava "a amoralidade sem escrúpulos de Florimond".

- Ele era meio louco, o Florimond! - declarou -, e pude constatá-lo enfrentando as emboscadas de nossa viagem. Libertino e supersticioso como todos os católicos, naturalmente! E depois, que leviandade e que amoralidade nas coisas do amor!

Angélica ficava um pouco surpresa, e mesmo ligeiramente tocada por constatar no jovem Rambourg tais reservas em relação a seu cúmplice de fuga e amigo de infância, Florimond.

Na verdade, quando de sua primeira visita, tinha sentido vagamente nele uma sombra de frieza, mas, nessa memorável manhã do Poitou e de um passado que se esforçava por esquecer, tinha outras preocupações que não as de se indagar sobre o desacordo de dois adolescentes, ou melhor, duas crianças, na época, que haviam fugido da França e se lançado nessa louca aventura, cujas peripécias não podiam deixar de ser perigosas para sua pouca idade e sem riscos de desilusão ou de amargura.

Certamente, Florimond, que, aos treze anos, havia atravessado muitos perigos, tendo servido como pajem em Versalhes, adquirira uma flexibilidade de caráter e uma capacidade de adaptação que seu companheiro não possuía. Entretanto, Angélica tinha dificuldade em compreender que, quem quer que tivesse sido amigo de Florimond e tivesse sido seduzido por seu encanto, pudesse desligar-se dele por uma razão qualquer e não lhe devotar, até a morte, uma amizade tão delicada quanto eterna.

Enquanto escutava a diatribe do jovem fidalgo poitevin, revia seu Florimond como que emergindo de uma vida que lhe parecia totalmente estranha. Tinha realmente vivido com ele esses dias de medo? Como era corajoso o jovem Florimond! A despeito das ameaças que pesavam sobre eles e dos avatares que lhes infligiam, seu olhar negro permanecia alegre, e sentia-se que ele só a contragosto e em caso extremo concederia sua parte à tristeza. Mas, um dia, ele lhe dissera: "Mãe, é preciso partir! Quero reunir-me a meu pai".

E, não podendo salvá-la, fugira, arrastando consigo esse mesmo Natanael que agora se encontrava diante dela e deblaterava contra ele:

- Esse rapaz, que eu julgava meu amigo, revelou-se de um cinismo assustador - explicava Natanael de Rambourg, sacudindo a longa cabeleira de moça, que dava certa graça a seu rosto ossudo. - Ele pretendia que aprendera mais na corte sobre a perversão da vida do que entre os bandidos, e que encontrara mais negritude de alma e de espírito nos clérigos do que nos rudes marujos. E ousava afirmar que era a senhora, sua mãe, e sobretudo por seu exemplo, que era a senhora que lhe havia ensinado, por sua vida, onde realmente estavam a virtude e o heroísmo, que ele não esqueceria jamais a lição e que estava muito contente por ter de aplicá-la, pois era uma lição que nenhum magister nos colégios podia ensinar, pois nenhum livro escrito valia esse livro da vida, os textos religiosos ou filosóficos que havia percorrido, aprendendo mais com o homem, segundo ele, o que pode causar a perda de sua alma e de sua vida encarnada, que é, contudo, um dom muito belo, dizia ele - e como, senhora, eu poderia ouvir sem tremer tais palavras? -, todos os livros, e principalmente os religiosos, são concebidos para preparar o ser humano para cair numa armadilha terrível, armadilha da morte em que, estando sua alma e seu espírito adormecidos pelo veneno das doutrinas falaciosas e dos mandamentos que se dizem "vindos de Deus", os ensinamentos contribuíam para entregar esse corpo vivo, de pés e mãos amarrados, à mais precoce imolação, ao mais inevitável extermínio, à mais rápida descida ao túmulo, ao mais completo desaparecimento desta terra e da memória dos homens, seja pelo cutelo, pelo ferro, pelo fogo ou pela corda. Pois, sempre segundo sua filosofia, Florimond, seu filho, achava que a aplicação dos mandamentos e o respeito à virtude, que a tradição nos ensina e aconselha a obedecer, acarretam infalivelmente guerras, crimes, condenações, maldade, ódio!

- Ah! o que não dizia ele! - gemeu o pobre Natanael, levando as mãos aos ouvidos como se, nesses anos todos, as palavras do tagarela Florimond nào tivessem cessado de azucriná-los. - Ele pretendia que minha inocência e minha extrema defesa contra todo pecado rios mergulhavam, a ele e a mim, nos maiores perigos, atraindo para nós os malévolos que rondavam à nossa volta, despertando em cada um deles o criminoso nele adormecido, enquanto ele, dizia,"tendo aprendido por experiência e por seu faro a reconhecer o Bem no homem, e que raramente se encontra onde dizem estar, ele sabia que o importante não era evitar o encontro do Mal, mas escolher.

- Escolher?

- Sim! Ele pretendia que, atrás das aparências do Mal, nem sempre há más intenções, nem mesmo a maldade franca. E é verdade que ele sempre soube se arranjar e nos tirar das mais espinhosas situações. Protegeu-me e defendeu-me. Em compensação, proibia-me de intervir em qualquer coisa, dizendo-me que, sempre que eu abria a boca, duplicava as dificuldades que ele procurava aplainar, recomendando-me que o deixasse agir e, sobretudo, que não me mexesse e que "ficasse quieto num canto". Era sua fórmula... Não sei se ele se arranjava com uns e outros através de discursos ou de atos, mas é verdade que conseguimos, a maior parte do tempo, viajar com personagens de bom gosto e que pareciam contentar-se, em paga de seus serviços, com o prazer de nossa companhia. É preciso reconhecer que ele soube afastar de mim todo sofrimento e todo desagrado.

- Então, de que você se queixa? - perguntou Angélica, que se felicitava por conseguir ouvi-lo com paciência.

- Mas... de seus propósitos revoltantes e, talvez, de seus atos licenciosos! - exclamou Natanael, com a cólera de um pastor no púlpito. - Sem escrúpulos, libertino e ateu, era isso o que ele era! Esse rapaz que eu julgava meu amigo e que pensei partilhar, se não de minhas crenças, pois ele não era da Religião Reformada como eu, mas pelo menos de minhas concepções sobre a conduta de um homem de bem. Ele não parava de pôr em xeque minha fé, e até ria dela! Era terrível!... Compreende agora, senhora, como sofri? Ligado a ele, e não lhe podendo fugir, sentia minha fé vacilar sob os golpes de seus raciocínios especiosos e minha alma prestes a renunciar à sua salvação e a mergulhar lias chamas do inferno. Ah! quantas vezes lamentei tê-lo seguido! Sem ele...

-          Sem ele, você teria a garganta cortada, na própria noite em que partiu! E teria queimado em chamas mais reais, infelizmente, que essas hipotéticas chamas do inferno - interrompeu-o Angélica, que quase imediatamente lamentou sua resposta impulsiva.

Natanael, suspenso em seu impulso, olhava para ela, boquiaberto.

-          Que está querendo dizer? - balbuciou.

Angélica arrependeu-se por não ter tomado mais cuidado. Mas precisava terminar com isso.

-          Quero dizer... Ai de mim! Meu pobre rapaz, perdoe-me, tenho notícias bem cruéis para você... Quero dizer que, na noite de sua fuga do castelo de sua família, algumas horas após sua partida, os dragões do rei voltaram para o Rambourg e o Plessis. Tomaram de assalto sua casa e lhe atearam fogo... depois de ter exterminado todos os seus... Como vê - acrescentou -, um instinto seguro o guiou, você fez bem em seguir Florimond, pois lhe deve ainda estar vivo.

Timidamente, Severina deixou seu lugar e, aproximando-se do jovem, empurrou-o para uma cadeira a fim de obrigá-lo a sentar-se. Depois, levou-lhe um copo com um cordial, que ele engoliu maquinalmente. Tinha a expressão de alguém que não consegue apreender o sentido das palavras que ouviu.

Após um silêncio, deu um suspiro profundo e pareceu voltar a si.

- E a senhora diz que o Rambourg foi queimado?

- Em parte.

- E as terras?

- Elas permanecem, evidentemente! Se tivéssemos encontrado Mestre Molines em Nova York, ele poderia ter-lhe informado, pois, após as exaçòes cometidas no Poitou contra os protestantes, disse-me ele, se encarregou de zelar pelos bens abandonados dos reformados.

Ele permaneceu silencioso, pensativo ou derreado, não se podia saber.

-          Mas então - disse, como se compreendesse finalmente -, tenho de voltar para lá a fim de tomar posse de minha herança!

- Não sei de que material são feitos esses huguenates - observou Angélica, quando ele se retirou, preocupado mas sem manifestar outra emoção, e voltou para bordo do Coeur-de-Marie. - O rei da França talvez tenha razão quando considera que a Religião Reformada alterou, em seus adeptos, o -cafater atávico do francês, que é sensível e espontâneo, e que corria o risco de criar um Estado dentro do Estado.

Mas Severina, contra toda expectativa, admitia as reações de seu correligionário. Ela prestara menos atenção ao que Natanael dizia de Florimond, que ela pouco conhecia, do que à volubilidade e aos tormentos daquele que falava com uma santa e fogosa indignação.

Apreciava o género trágico e as homilias que se desenvolvem num amplo registro de lamentações, queixas e reivindicações.

- É preciso compreendê-lo! Há anos está habituado a viver sem sua família. Ele se dizia, talvez, de tempos em tempos: "Eu os reverei um dia... Mas quando?" E acabaram por não lhe fazer falta. Supondo-se que pouco a pouco compreenda que não os verá nunca mais, isso não mudará muita coisa em sua situação presente, sobretudo se seu património, lá longe, continua a ser dele.

- Você tem razão. No final das contas, é verdade, a juventude tem o coração duro. É raro que ela sofra por um laço rompido, quando não se confunde com a perda de uma fortuna ou de uma presença. Eu também, aos dez ou doze anos, vim embora para as Américas e estava tão seduzida por esse projeto, que não pensei nem em meu pai, nem em minha mãe, que, no entanto, eram muito bons e nos amavam com muita ternura. Não sei por quê, a lembrança volta-me com frequência, de uns tempo para cá, menos para me surpreender com a distância que existe entre o espírito e o coração de uma criança e os de um adulto, do que para me assustar com a mudança, eu diria quase a deformação, que a vida nos impõe. Para onde foi?, pergunto-me à vezes. Para onde terá ido, onde desapareceu a menina Angélica que não tinha coração, mas que sofria por tantas coisas, desconhecidas e inexprimíveis, das quais ninguém à sua volta tinha consciência?

-          A senhora julga que ele não tenha coração e que não gostava da família? - perguntou Severina, que mordiscava os lábios e descobria o inverso do que julgara compreender cinco minutos antes.

Levantara-se para ver distanciar-se a chalupa que levava o jovem visitante, depois voltou a sentar-se perto de Angélica.

- O que procura, Dame Angélica? - perguntou, vendo que esta procurava algo no saco de veludo que ela sempre carregava para o tombadilho.

- Uma carta! Escute, Severina, é uma carta que guardo comigo, porque gosto de a ler. Ela fala com tanta sabedoria do sentimento de amar, e com tanta verdade que, cada vez que a leio, descubro-lhe novas nuanças e novos sentidos. Há uma tal confusão em nossos apegos humanos, impostos ou espontâneos, tantas obrigações às quais devemos nos submeter sem um consentimento feito de coração, que essa carta nos ajuda a pôr um pouco de ordem em nossos deveres e na verdadeira significação da palavra "amar", que empregamos meio a torto e a direito. Escute...

Leu a caligrafia ordenada e regular que cobria uma folha, um pouco gasta nas dobras, tantas vezes manipulada.

-          "...E tive de reconhecer que nossas existências, tão dessemelhantes na aparência e de objetivos tão contrários, se aqueciam na mesma chama que engrandece tudo, que ela queime por um ser ou pela Santa Majestade de Deus: o Amor.

"Pois existem vários tipos de amor no mundo: o amor dos estranhos, o amor dos que passam, o amor dos pobres, o amor dos associados, o amor dos amigos, o amor dos pais... e enfim, o amor dos amantes. Somos tocados pela compaixão pelos estrangeiros quando sabemos que seu país é oprimido e saqueado. Amam-se os que passam, porque eles trazem algum lucro, os pobres, a quem se dá o supérfluo, os associados, pois sua perda é prejudicial, os amigos, porque sua conversação nos agrada e é deleitosa, os pais, porque deles recebemos o bem e receamos ser castigados por eles... Mas só o amor dos amantes penetra no coração de Deus e a eles nada é recusado. Esse amor raramente é encontrado, é verdade. Mas é o verdadeiro amor. Pois ele não conhece seus interesses, nem mesmo suas razões. A doenças e a morte lhe são indiferentes, a prosperidade ou a adversidade, a consolação ou a secura, tudo lhe é igual. E ele dá sua vida com prazer pela coisa amada." Severina escutara-a, não sem reticências. Adivinhava que a mis-sivista devia ser uma "papista" devota, uma freira.

- Eu não sou tão fria com as pessoas de meu circulo ou com as que encontro. Eu as amo - afirmou com veemência. - Essa mulher vive apenas por uma única chama...

- O amor dos amantes?

- Sim! E provavelmente é bem feliz, pois isso não é dado a todo mundo. - Honorina passou sua cabecinha sob os braços da mãe.

- Que está lendo? A morte do marido da Princesa de Clèves?

- Não. É uma carta que a Srta. Bourgeoys me enviou de Montreal. É uma religiosa - informou a Severina -, uma freira papista, como você diz. Veio para fundar Ville-Marie com o grupo do Sr. de Maisonneuve, e abrir ali uma escola para ensinar os filhos dos colonos e dos artesãos.

- Lembro-me dela - disse Honorina. -, nós a encontramos em Tadoussac e ela carregava uma criancinha doente que ela impedira que os marinheiros jogassem no mar.

Uma vez mais, Angélica surpreendeu-se com a memória prodigiosa daquele pedacinho de gente.

 

As emoções de Severina Berne

As reflexões de Natanael, ao falar de seu património, respondiam às preocupações de Severina, e um pouco mais tarde, ela retomou a discussão.

- Oh! Dame Angélica, é verdade, quero voltar a La Rochel-le. Por que saímos de lá? Eu também tenho um património. Gostava de minha casa e dos seus belos móveis. Tínhamos também campos fora dos muros da cidade e uma outra casa grande na ilha de Ré que os "papistas" deram a nossa tia Demuris porque ela se convertera. Isso é injusto e iníquo, e não deveríamos ter abandonado nossos bens.

- Severina, não acabamos de fazer juntas uma bela viagem?

- Sim, mas já estou farta de todos esses ingleses.

- Mas eles pertencem, como você, à Religião Reformada.

- Não é a mesma coisa. E depois, nós somos principalmente franceses. As pessoas de Salem me tratam por "papista", por causa de meus modos. Façam bom proveito! Prefiro meus modos aos deles. Eles são rígidos como estacas. Em La Rochelle, eu poderia ter encontrado um bom partido, rrias aqui, não terei escolha a não ser entre esses execráveis católicos ou estrangeiros. Os jovens reformados de Gouldsboro não têm nem religião, nem cultura, tão pouca, aliás, nesse lugar.

Honorina enlaçou-lhe o pescoço com os bracinhos.

-          Não chore, minha amiga Severina, gosto tanto de você! O que eu teria feito sem você, entre os ingleses?

Severina atravessava uma crise, e Angélica desejava vê-la recuperada antes que ela reencontrasse em Gouldsboro sua família, seu pai, Gabriel Berne, seus dois irmãos, Marcial e Laurier, sua madrasta, a doce Abigail, e suas meias irmãs nascidas em terras americanas.

- Pergunto-me por que os huguenotes franceses fracassaram em seus empreendimentos na América. Foi por causa de sua ligação com o rei e com o país? Com efeito, para se ter êxito, é só seguir o caminho de Champlain, um huguenote como os outros, mas que abjurou. Tornando-se católico, encontrou apenas vitória e glória. Tudo isso é claro. Abjure ou desapareça. Eis sua sina. Aqui ou lá, é a mesma. Não podemos sobreviver longe de nossa terra, desligados de nosso reino. Há muito tempo que compreendi que deveríamos ter ficado em nossa terra e defendido La Rochelle pelas armas.

- Mas, minha queridinha, seus pais quiseram fazê-lo, antes de você. Nunca ouviu falar do cerco de La Rochelle pelos exércitos do rei Luís XIII e do Cardeal Richelieu, seu ministro? Peça então à velha Rebeca, a única dentre vocês todos que assistiu a esse cerco, para lhe contar como, ainda jovem, ela teve de levar para a terra seus três filhinhos mortos de fome, numa cidade onde para sobreviver não havia nem couro para cozinhar ou roer. Seu esposo também tinha morrido de fome nas muralhas. Quando os protestantes de La Rochelle capitularam, os raros sobreviventes estavam reduzidos ao estado de esqueletos. Isso foi há cinquenta anos, não faz tanto tempo assim...

Mas para Severina, fazia muito tempo, e via-se que ela não po-. dia quase evocar a velha Rebeca, que ela sempre conhecera encarquilhada e enrugada como uma nêspera, sob os traços de uma mulher jovem com crianças pequenas.

Que lhe importava o passado? Era o seu presente que a atormentava.

-          Vivíamos bem em La Rochelle. Tínhamos bastante energia, dinheiro e paciência para contornar as intrigas. Acabaríamos ganhando. Por que nos forçou a fugir? Sem nem poder levar, sei lá, um lenço, as jóias de minha mãe que ela me deixou! Nada. Meu pai deixou-se influenciar. Ele só tinha olhos para a senhora.

Ela se enervava, reencontrando as expressões infantis e impertinentes de seus três anos, idade em que Angélica a conhecera.

Encontro que não fora pacífico, pois, como naquele momento, ela provocava os adultos, escondendo atrás das acusações sua inquietação e o desejo de compreender as catástrofes nas quais se sentia arrastada, à margem de sua jovem vida.

Angélica a conhecia bem e sabia que Severina desejava desesperadamente ser tranquilizada e que lhe afirmassem que o mundo iria entrar novamente nos eixos. Ora, essa era uma coisa que ela não podia prometer-lhe. Podia-se esperar tudo, mas a loucura humana era imprevisível e desmedida, e o equilíbrio frágil que cada um obtinha à custa de combates era sempre passível de se romper.

Via Honorina brincando com seu maltês, jogando uma bola que ele fizera para ela com uma bexiga cheia, revestida de couro. Ela ria às gargalhadas.

Honorina, que tinha sido um bebe entre seus braços na época em que ela mesma era acossada por todos os policiais do reino! Hoje, que ela, debruçada sobre os pequenos príncipes, presente do céu, sonhava apenas em cercá-los de uma infância maravilhosa, da qual só conservassem belas lembranças entre as flores de Wapassu e as praias de Gouldsboro, das descidas ao longo dos rios e passeios num belo navio, não se perdoaria pelo passado, pois era menos o que ela sofrera que a enchia de amargura do que os sofrimentos que tivera de infligir a Honorina, uma criança tão pequena, pela maldade dos homens.

- Como você é ingrata, Severina - disse ela -, e fala como uma cabeça-de-vento! É fácil queixar-se quando a gente se encontra ao ar livre, cercada de parentes e de amigos prontos a nos defender contra as opressões injustas ou os perigos, por todos os meios, e pelas armas, se necessário, quando se sabe que logo se vão encontrar os parentes, todos com vida, esperando-nos com impaciência e com amor, diante de uma sopa de mariscos ou uma grande travessa de pastéis - que nos defendem das agruras da fome -, um teto sobre a cabeça , por mais pobre que seja, para nos proteger contra as intempéries, um fogo bem quente para combater o frio, mesmo que seja uma pobre lareira de seixos, num canto perdido da América. Sim, você pode então queixar-se de ter sido espoliada e lamentar bens aos quais estava apegada e que não pôde carregar. Sim, pode então desdenhar todos esses tesouros que" possui aqui, e o mais inestimável, o de estar em segurança, entre os membros de uma comunidade que tem a vontade selvagem de te defender... Você não sabe o que é ser abandonada por todos, ser rejeitada por todos. Esqueceu bem depressa ou jamais compreendeu o que a ameaçava quando decidimos fugir, no momento em que isso ainda era possível, como os israelitas ameaçados, na noite de Páscoa, devem ter-se decidido a partir "antes que o faraó se desse conta". - Angélica concluiu: - Acredite-me. Nenhum exílio, nenhum sofrimento pela travessia ou dificuldades que nos esperavam aqui são comparáveis à miséria e infelicidade que, algumas horas mais tarde, teriam se abatido sobre você, separada dos seus para sempre. Seu pai e Marcial teriam sido mandados para as galeras. Laurier seria devolvido aos jesuítas, que você detesta tanto. Quanto a você, teria resistido às humilhações que teria de suportar, você, que é tão orgulhosa e altiva, a menor das quais seria ver-se um dia acuada à abjuração?

- Jamais!

- Deixe-me falar! A abjuração à qual você acabaria por consentir para se salvar do pior. Pois não se pode saber a que extremos podem ser levados juízes loucos ou a soldadesca que recebe permissão, que recebe ordens para maltratar à vontade seu mais frágil semelhante e que se entrega, desarmado, às violências. Nos últimos tempos, em La Rochelle, o pensamento do que poderia lhe acontecer me atormentava. E hoje, que a vejo salva, você lamenta seus bens, suas casas, e seu "belo partido" de La Rochelle!

Severina escutara-a baixando a cabeça cada vez mais. Finalmente, triste, ela disse:

-          Perdoe-me, Dame Angélica. A senhora tem razão. Eu sou má. Mas foi a aparição desse jesuíta que veio estragar toda a minha felicidade e a alegria desta viagem. Vi-o, continuando a nos perseguir até o fim do mundo, e teria desejado voltar a La Rochelle para abrigar-nos dentro de nossos muros. Perdoe-me! Não sou ingrata. Mas ele veio despertar meu medo. Gostaria, gostaria muito, de esquecer que eles existem.

 

A confissão de Colin Paturel

Para consolar Severina Berne, a pequena huguenote exilada, Angélica dedicou ainda alguns instantes a pregar-lhe com convicção as vantagens de sua situação atual, demonstrando a ela, como a si mesma, que eles tinham alcançado em alguns anos, graças à atividade de Joffrey, uma posição da qual ninguém poderia agora destituí-los. Lembrou-lhe que, desde Quebec, o rei da França não lhes era mais hostil, que os ingleses os consideravam parceiros e não mais inimigos, que tinham amigos entre os chefes índios. Quanto aos jesuítas, não se devia exagerar sua influência nesses territórios do Novo Mundo, e desejar que eles não mais existissem era um desses impulsos estéreis que não levam a nada. Viver era aceitar cumprir um destino neste mundo em que a sorte nos fizera nascer, entre outros destinos, diversos e dos mais opostos. Era preferível felicitar-se por ser o mundo tão variado. Era um fermento de vida que obrigava a criação a prosseguir e os homens, a mudar.

- Mas não se deve mudar quando se está com a verdade - protestou Severina, que não aprovava tanta lassidão moral.

Em compensação, as considerações sobre a sólida frota que o Conde de Peyrac e seus associados possuíam, a prosperidade de suas fundações, a evocação dos fortins que defendiam Goulds-boro, acalmaram sua ansiedade e acabaram por tranquilizá-la. Os jesuítas tão cedo não poderiam vencê-los.

Supondo-se que o quisessem.

O mais hostil dentre eles não se manifestaria mais. E, quem sabe - as coisas nem sempre acontecem como se espera -, dali a alguns anos" esses rumores sobre a possível revogação do Edito de Nantes não estariam esquecidos...

Isso posto e depois de beijar ternamente Severina para lhe comunicar sua confiança, Angélica se sentia esgotada por ter sido obrigada a voltar ao assunto dos Togas Negras. Embora não quisesse que eles deixassem de existir, teria desejado que fossem um pouco esquecidos.

Sim, teria gostado muito, quando se deixava balançar assim em sua grande rede, e agora que tinham se distanciado do feudo da virtude puritana, onde reinava a sombria e rígida desconfiança em relação aos impulsos do coração, o medo visceral da tentação e do pecado arrastando ao castigo eterno, teria gostado de dizer a si mesma, diante dessas paisagens tão cheias de suavidade pela doçura de seus coloridos, perpassados por uma graça folgazã e juvenil pelos movimentos de bale, que se respondiam e se misturavam, das vagas, dos voos de pássaros e dos embates inocentes dos lobos-marinhos, dos marsuínos-brancos, curiosos em torno de seus navios, teria gostado de dizer-se que tudo estava em paz e serenidade.

A morte do jovem Emanuel não lhe saía da cabeça. Tentara ocultar de Joffrey a impressão de culpabilidade que sentia.

"Poderia ter salvo aquela pobre criança, eu sei. Ele veio colocar-se sob minha proteção. Mas eu não estava preparada para isso. Pensei que podia discutir normalmente com um homem daquele tipo e que acabava de viver tantos acontecimentos anormais. Subestimei sua força... e minha fraqueza. Sou imperdoável!"

A fim de não ficar dando voltas em torno de pensamentos deprimentes, ela resolvera não falar do assunto. A gente sempre fala demais. Podia morder a língua por ter revelado ao Padre de Marville que o Padre de Vernon, jesuíta, fora colocado no mesmo túmulo que seu inimigo, o Reverendo Patridge, pastor con-gregacionalista, isto é, ultrapuritano e dissenter, ou seja, um reformado, um herege da mais bela espécie.

Apesar do selo bíblico aposto a tal julgamento, digno do Rei Salomão, era certo que, do lado contrário, isto é, protestante, não teriam ficado menos indignados se viessem a saber que um digno ministro calvinista, da puríssima religio, se encontrava deitado para a eternidade junto a esse temível sequaz de Satã e de Roma, um jesuíta.

No século em que viviam, não convinha divulgar essas coisas, e perguntava a si mesma o que lhe dera na cabeça de imaginar que espíritos tão sectários pudessem aprender uma lição, ao saberem disso.

Como se ela não tivesse entendido que o mundo chamado normal que os cercava estava muito mais afetado pela loucura do que aqueles a quem apontavam com o dedo!

Atormentava-se também por ter cometido o desatino de dizer ao vingativo religioso, que nesse momento vogava para a França, o nome de seu irmão jesuíta, Raimundo de Sancé de Mon-teloup.

Já não causara a ele tantos problemas, por diversas vezes? Primeiramente, por ocasião do processo de feitiçaria de seu marido, depois se tornara a Rebelde do Poitou. Sem contar os aborrecimentos que lhe atraíram seu irmão Gontran, o artesão pintor, que induzira os trabalhadores de Versalhes a se revoltar, e que fora enforcado.

Pobre irmão jesuíta! Devia amaldiçoá-los a todos eles! Se algum dia encontrasse Josselino, seu irmão mais velho, tentaria preveni-lo.

Ao largo do Casco, uma fina chuva caía. Aproximavam-se das regiões selvagens.

Angélica, tendo colocado nos ombros uma capa de pele de foca com capuz, que a protegia contra a umidade, andava pelo tombadilho olhando o horizonte molhado, no fundo do qual se adivinhava a sombra das margens.

Tinha de restaurar suas forças andando, pois logo terminaria sua vida de odalisca, que consistira em uma cama, numa rede guarnecida de almofadas, a receber suas visitas, comendo docinhos.

Apesar das recomendações que fizera a si mesma de não mais pensar nos jesuítas, era-lhe difícil não se lembrar da louca aventura que tivera ali, dois anos antes.

Fora nas paragens da ponta Maquoit, onde Shapleigh tinha sua cabana, que Colin Paturel a entregara ao espião de Deus, o jesuíta Luís Paulo de Vernon, que, sob o disfarce de um marinheiro inglês e com o nome de Jack Merwin, pilotava a barca White Bird e que viera capturá-la, por ordem de D'Orgeval.

E ninguém lhe tirava da cabeça que, entre as diretivas que esse jesuíta-espiâo recebera de seu superior, havia aquela, "inexpressiva", caso fosse muito difícil conduzir a Sr a. de Peyrac para a Nova França, de fazê-la desaparecer.

Senão, como interpretar sua atitude em Monégan, quando ela estava se afogando nas terríveis lamas gigantes da ressaca contra as falésias? De pé na ponta de um rochedo, Jack Merwin, imóvel, impassível, de braços cruzados, olhava-a sem se mover, enquanto ela se debatia.

É verdade que ele acabara mergulhando, no último momento, como que empurrado contra a vontade. Por pouco não se afogaram os dois.

Ele devia ter considerado uma covardia ter tido para ela, uma mulher perigosa, esse gesto de piedade, uma espécie de desobediência a seu chefe espiritual, e não ter deixado que se cumprisse o juízo de Deus.

Ora, vamos! Estava se tornando exagerada e fanática como Se-verina!

Todavia, Colin, antes de deixá-la descer para a barca White Bird, murmurara: "Tome cuidado, meu cordeiro... querem prejudicá-la!"

Joffrey reconhecia a força oculta dos jesuítas, que não hesitavam diante de nenhum meio para atingir seus fins.

E o Padre de Vernon escrevera ao Padre d'Orgeval, como que para se justificar, aquela carta que Angélica ainda possuía e que começava pelas seguintes palavras: "Sim, meu padre, você tem razão. A Diaba está em Gouldsboro, mas não é aquela que me designou..."

Se esses homens, duros mas ponderados, obrigados por sua situação e posição a olhar diariamente a realidade de frente, eles mesmos recusavam a ilusão, então não podia se censurar por ser a única, mulher fraca e muito imaginativa, a encarar aquilo que se tramava no invisível, entre o Paraíso e o Inferno.

Mesmo assim, não havia imaginado tudo o que se desencadeara naquele verão, por culpa de seu inimigo oculto, como resultado de sua habilidade e de suas astúcias silenciosas, tudo o que havia explodido na demência dos elementos e dos homens.

Os estabelecimentos das costas da Nova Inglaterra queimavam, o sangue corria, os que escapavam fugiam através da baía, os piratas saqueavam, os navios espatifavam-se nos recifes, e náufragos matavam os sobreviventes a cacetadas, nas praias... enquanto isso, levada pelo mar, a mulher, o demónio súcubo anunciado pela visionária de Quebec, pousava na areia de Gouldsboro seu pequeno pé, calçado de couro e de meias vermelhas com filetes dourados.

Esses lugares, esses horizontes, essas angras que ela reencontrava alegres, bucólicos, de onde subia o odor das frituras de peixe nas brasas ou do pez para calafetar os cascos dos navios, esses gritos das gaivotas e dos guinchos, lembravam-lhe o quanto seu amor perigara aquele ano.

O quão duramente tinham-se chocado, Joffrey e ela, de que modo tinham estado prestes a se odiar, num paroxismo de dúvidas um em relação ao outro, em que sangravam as antigas feridas da separação, de incompreensão mútua e de receios, julgando-se para sempre estranhos: inimigos. "Éramos ainda frágeis. Não estávamos preparados para sofrer tal assalto."

A prova pegara-os em cheio, como uma lâmina a esbofetá-los, e seu barco estivera a ponto de soçobrar.

Mas a prova é isso! É sua finalidade! conhecer suas forças, fazê-los superá-las para ir mais longe, sempre mais longe, até o mar apaziguado da felicidade que naquele momento gozavam.

Como, interrogou-se mais uma vez, aquele religioso, que, em seu orgulho, não pudera aceitar ser derrubado de seu pedestal, pudera pressentir que a única maneira de atingi-los era atacar seu amor? Por qual pensamento divinatório, poder de invocação, ele conseguia, presente em toda parte, comunicar suas ordens através da imensidade do país?

As mensagens sempre chegavam a tempo.

Se tivessem dito a Angélica que ele adivinhara a personalidade que se ocultava por trás do pirata Barba de Ouro, considerado cruel e intratável, e que ele comprara para mandá-lo bloquear Gouldsboro, ela não ficaria surpresa. E, no entanto, ele não podia saber, era impossível!

Será que o sabia? Tudo era possível.

Ele não hesitara diante de nada, até de fazer vir, para acabar com eles, sua alma danada, sua cúmplice feminina, sua penitência desmaiada, a companheira de sua infância sanguinária, cuja hábil perversidade ele conhecia tão bem: a Benfeitora, Ambrosi-na de Maudribourg.

Convocado, poderia também fingir ignorar tudo a respeito ou, ao contrário, saber tudo e ter agido para a salvação das almas.

A que tribunal expor tais fatos? diante de que juízes defender-se e pedir reparação? Nenhum ouvido poderia ouvir a narração deles e aceitar sua interpretação, e aqueles que tinham sido obrigados a imiscuir-se no assunto preferiam apagar-lhe a lembrança até em sua memória e fazer de conta que não haviam compreendido nada.

"Esqueçamos!", dissera o pequeno Marquês de Ville d'Avray, "senão iremos parar nos bancos da Inquisição."

Fora um negócio secreto. Bem poucas pessoas puderam compreender o que fora tramado.

Bastava abrir a boca para se falar demais.

"Tranquilize-se, meu coração", ter-lhe-ia dito Joffrey.

Ele era menos sensível à traição do que ela. E lhe explicaria: "É a força dos jesuítas e uma das faces de sua política consentir-se o melhor e o pior entre os membros de sua companhia. Detestáveis, como esse Marville, temidos pelos iroqueses, e santos autênticos, como Inácio, o fundador. Há para todos os gostos".

Eis que ele surgia junto dela, abraçando-lhe a cintura. E, consciente de seu nervosismo e da sombria cor de suas meditações, dizia-lhe: "Tranqüilize-se, meu coração".

Em dois anos, as praias reencontraram sua prosperidade. E as estações retomaram seu curso.

Somente os piratas continuavam a aparecer. Sempre houve piratas cruzando essas águas ricas, piscosas, frequentadas por pescadores de bacalhau e de baleia. O corsário dos mares, cujas velas despontam no horizonte, ou que dobra um promontório a centenas de braças, escorregando diretamente para vós, continuava a ser um dos flagelos correntes da costa do Atlântico e da baía Francesa.

Todo navegante devia mostrar-se vigilante. Os piratas com pavilhões pretos, flibusteiros das ilhas ou corsários que se julgavam com o direito de espoliar os pobres marinheiros, patrulhavam ativamente, caçadores à espreita, nos meses de verão, estação em que os navios chegavam da Europa, com seus carregamentos de mercadorias, os da França para reabastecer os postos ou estabelecimentos da Acádia, os da Inglaterra, da Holanda, e às vezes de Veneza e de Génova, para comerciar com as colónias da Nova Inglaterra. Era também, da índias Orientais ou da Africa, a volta das flotilhas saídas audaciosamente de Boston, Salem, Plymouth, Newport, ou New Haven, um ou dois anos antes, e que transportavam tecidos de seda, chá, escravos, especiarias.

Presas cobiçadas, nem sempre fáceis, mas numerosas, e várias vezes por dia, via-se o conde e seu capitão, D'Urville, em companhia de Lorde Cranmer e do Governador Paturel, quando ele estava a bordo, precipitar-se e galgar, a passos largos, a escada que subia para o tombadilho, a fim de examinar com a luneta a embarcação que o vigia da gávea acabava de assinalar.

Enquanto não. houvesse discernido e reconhecido seu pavilhão, sua provável identidade, suas intenções amigáveis, os navios e os pequenos barcos da escolta faziam uma manobra que os colocava em círculo defensivo diante do Arc-en-Ciel, assim como uma matilha parada, prestes a morder e esperando apenas um sinal para se lançar, isto é, se preparar para o tiro de advertência se o navio suspeito recusasse a se anunciar, depois enviar-lhe uma descarga de balas em suas obras vivas, se ele persistisse em avançar com demasiado ímpeto em sua direção. Não foi necessário, durante os encontros que tiveram nos poucos dias de travessia, chegar a isso.

Naquele dia, lançaram âncoras diante do arquipélago das ilhas de Mountjoy's para carregar fardos da célebre lã dos carneiros ali criados.

Angélica, instalada em seu lugar habitual, avistava o pequeno navio, ágil e rústico, de Colin Paturel, o Coeur-de-Marie, uma car-raca em estilo português, de um modelo um pouco arcaico, mas rápido e manejável, bordejando em volta de seu grande navio como um bom cão de guarda. Ela se lembrava de que Colin tinha sido, também ele, um desses piratas sem escrúpulos que assustavam ã baía Francesa, espoliando os bacalhoeiros e devastando os pequenos estabelecimentos costeiros ingleses, holandeses, escoceses ou franceses.

A bordo do Coeur-de-Marie, ele atacara Gouldsborò e fora rechaçado.

De pé, poderoso, na proa de seu navio, ficara à espreita de sua presa, sua barba e seus cabelos louros ao vento, ele, o temível Barba de Ouro, enquanto, nessas águas frias, de um azul de aço, desse mar oceânico, se refletiam as cores brilhantes do grande quadro pintado sobre a tutela do castelo de popa. Esse quadro representava, cercada de anjos, uma Virgem Maria, cujo belo rosto, os cabelos de uma lourice profana, o olhar com nuanças de água-marinha, lembravam os traços de uma mulher que Colin amara nas galés de Marrocos, com a qual fugira, e cuja imagem queria conservar em sua vida errante de pirataria. Sem desconfiar que um dia, muito distante, pelos lados da América, ele a reencontraria è que seria vencido, capturado, por aquele com o qual ela se casara.

Colin, o pirata, caído nas mãos do mestre de Gouldsborò, condenado ao enforcamento puro e simples e que, subitamente, fora apresentado por Joffrey como governador de Gouldsborò.

O que lhe teria ele prometido para obter sua concordância? Para que ele se inclinasse diante dele, seu rival, que lhe tirara tudo, inclusive a mulher que ele amava... O que posso fazer, dizia a si mesma com um suspiro, se Colin não conseguiu me esquecer?

Esses dois homens, Angélica observara-os pela janela do forte, Colin acorrentado, teimoso, e Joffrey indo e vindo em volta dele com seu jeito de lobo, e sobre a mesa as esmeraldas de Caracas, que brilhavam, saque tomado aos cofres do navio pirata, o Coeur-de-Marie, depois de sua derrota.

Confronto que vinha de longe. De um passado que cada um vivera de seu lado do Mediterrâneo, no desconhecimento do outro, e que estourava e se deslindava peio acaso louco, que os colocaria em presença um do outro por três vezes, anos mais tarde.

Estrondo de canhoneio. O batimento dos corações dilacerados por paixões, cóleras, ciúme, batendo violentamente como tambores de guerra, os golpes surdos do coração de Colin palpitando por ela, outrora, e mais tarde, e sempre. Depois, esses ruídos de combates, esses clamores, tinham-se enfraquecido, silenciado, como depois de uma tempestade esgotante, e lentamente, no mar calmo, com os despojos dos navios afundados como os de suas vidas devastadas, haviam-se formado as bases de uma aliança, de um acordo, de uma amizade.

"O que lhe teria prometido para obter sua submissão e seu assentimento... seu devotamento?"

Ela fechava os olhos, deixava a tepidez de um sol atravessado por ventos roçar seu rosto. Um sorriso lhe aflorava aos lábios.

"Um dia Colin terá de me contar o que Joffrey lhe prometeu."

Ela se entorpecia, quase adormecia, e subsistia com essa sensação de harmonia e de paz que planava acima dela e os cercava, como os vastos acordes de órgãos celestes que repercutiam em ecos nas ilhas. Um instante de felicidade pura, um estado de graça... Sob suas pálpebras, a luz tomava nuanças irisadas, como através dessas porcelanas da China, nas quais ela bebia, em casa de Mrs. Cranmer, o chá rosado, também da China, que lhe devolvera as forças. Sombras se moviam.

Entreabriu os olhos e estremeceu, distinguindo à sua cabeceira a alta silhueta de ombros fortes de Colin Paturel, que a observava. Como acabara de evocá-lo como o feroz Barba de Ouro, ficou um momento indecisa, depois se indireitou, sorrindo.

-          Sente-se perto de mim, senhor governador. É quase o úni

co neste navio a quem ainda não recebi em audiência.

Ele puxou para perto uma tina de madeira - que virou de borco, dizendo que aquela era uma cadeira capaz de suportar seu peso, melhor que as elegantes espreguiçadeiras de tapeçaria. Arrumou seu sabre de abordagem, que sempre carregava quando estava no mar.

-          Qual era seu sonho, senhora, para que nascesse em seus lábios esse doce sorriso? Com o que, ou com quem, sonhava?

Ela lhe devolveu sua malícia.

- Se eu lhe respondesse: "Com você, caro governador", acusar-me-ia de ser coquete ou hipócrita? No entanto, nada é mais verdadeiro. Colin, eu estava pensando em Barba de Ouro, que me capturou não longe daqui em seu navio, o Coeur-de-Marie, e que me entregou a um dos enviados do Padre d'Orgeval, encarregado por ele de me levar prisioneira a Quebec.

- O reverendo Padre de Vernon? Certamente, eu me lembro - disse Colin.

- Você não estava presente na casa de Lorde Cranmer quando o Padre de Marville veio nos anunciar a morte do Padre Sebastião d'Orgeval, mas a notícia lhe é conhecida. Acabaram-se agora suas perseguições e seus complôs. Você me censuraria se lhe .confessasse que me alegro com isso?

- Não, senhora. E, de sua parte, um sentimento normal. Uma sadia estimativa da situação. A ira com que se cumulou, injustamente, e os perigos por que ele a fez passar autorizam seu júbilo por estar doravante ao abrigo de suas conjurações.

- E todavia, não - disse Angélica, sacudindo a cabeça. - Na verdade, não me rejubilo. Confesso-lhe que meus receios não se apaziguaram totalmente, mas tomaram outro rumo. Eu sabia de onde vinham os golpes e quem era o inimigo. Esperava que um dia, encontrando-o, fosse possível atingir nele aquela parte de humanidade que ele possuía, e desarmar sua execração. Agora, é tarde demais. Ele deixou atrás de si, como o mar que se retira deixa uma espuma amarelada e estéril, aqueles que ele domesticou, doutrinou, formados para defendê-lo e que, talvez, vão continuar a conduzir contra nós uma ação tanto mais áspera quanto as considerem as últimas vontades de um santo.

Colin escutara-a com atenção.

Sacudiu a cabeça e disse que partilhava com o Sr. de Peyrac o sentimento de que nada podia deixar augurar uma mudança possível, depois desse acontecimento. Certamente, isso ainda não era conhecido na Nova França e nem o seria talvez antes do inverno, pois Utakê enviara as únicas testemunhas para o sul, na Nova Inglaterra.

Desde a estada do Sr. e Sra. de Peyrac em Quebec e o reconhecimento do rei, dos favores que ele lhes concedia, o vento mudara.

Esses acontecimentos de dois anos antes, por culpa dos quais eles todos tinham quase ficado loucos e perdido a cabeça ao mesmo tempo que a vida, eram coisa do passado. Desde que se exilara entre os iroqueses, nada lhes fizera evocar aquele que os tramara, tanto que o julgaram morto, por diversas vezes, antes de adquirir, recentemente, a certeza de sua morte.

Os acontecimentos se apagavam. As pessoas esqueciam, e, em suma, tinham outras coisas com que se preocupar. As periódicas expedições de policiamento naval tinham saneado a baía Francesa, e o comércio se desenvolvia num clima pacífico de boa vontade, de ambas as partes. A atividade em Gouldsboro era intensa.

Ela lhe fez ainda algumas perguntas. Tinha dificuldade em manter os olhos abertos, mas, com Colin, não se preocupava com isso. Se às vezes se aborrecia com essa languidez que persistia, estava decidida a ter paciência, pois não devia esquecer que tinha estado muito doente em Salem, que tinha transformado e desnorteado uma cidade inteira e que podia perfeitamente, considerando essas horas trágicas, conceder-se mais alguns dias de fraqueza.

Enquanto o escutava, examinava-o com os olhos semicerrados.

Ele perdera aquele rosto um pouco inchado e sanguíneo que traía sua decadência sob a aparência de Barba de Ouro, mas tampouco se parecia com Colin do Marrocos, o rei dos escravos, com seus músculos nodosos, mais jovem, apesar de maciço como um carvalho, homem-chefe ao qual se atribuía já quarenta anos e que não passava disso.

Estava mais pesado, apesar de ter perdido novamente todo o excesso de peso, mais gigantesco e mais distante. Um gigante solitário. Imaginou sua vida em Gouldsboro, ele, o governador, encarregado de todas as responsabilidades do porto e da população. Sempre só. O chefe. Num navio, não era a mesma coisa. Havia as escalas. Mas, em Gouldsboro, sob o olhar das comunidades protestantes, qual poderia ser sua vida privada? Nenhum boato escandaloso corria a seu respeito. Todavia, não fora um homem casto. Vangloriava-se de ser libertino, e não era bem assim. Mas era possuído por uma grande fome de amor, e que força, que potência em seus abraços!

Angélica fechou os olhos, intimou-se a pensar em outra coisa. Sempre afastava com firmeza a lembrança dos abraços de Colin.

Na verdade, ela não ignorava que, depois de Joffrey, ele era o homem que lhe inspirava mais desejo.

E era mais um daqueles desafios loucos de Joffrey, que não o ignorava tampouco, mais uma manifestação de seu gosto insensato pelo risco, ter proposto ao rival - em vez de executá-lo, como ele merecia e como era direito de Joffrey, o vencedor - passar para o seu serviço, mais próximo e mais investido em suas empresas, associar-se ao Conde e à Condessa de Peyrac, proprietários e senhores de Gouldsboro, aceitando o título e a função de governador da cidade.

Colin, o normando acorrentado, curvado sobre si mesmo como um leão vencido, teimoso, preferindo a morte por enforcamento a ceder aos argumentos, às ameaças que o outro lhe prodigalizava, o gascão de olhos de fogo, o fidalgo, o ganhador, > o Rescator, que reinava no Mediterrâneo e reinava agora sobre o arquipélago que Barba de Ouro quisera conquistar, que se sentava ao lado de Mulay Ismael, enquanto ele arrastava seus andrajos de escravo, o Rescator, o Conde de Peyrac, que triunfava no coração da princesa de lenda que ele, pobre marinheiro, amara. Enfim, ela vira Colin se reerguer e se inclinar em sinal de assentimento.

-          Diga-me, Colin - cochichou Angélica -, o que esse diabo de homem teria lhe prometido para que você se rendesse a suas exigências e aceitasse tomar a seu cargo Gouldsboro? Diga-me.

Paturel franziu as pálpebras sobre a fenda azul de seu olhar, e um sorriso que não dizia sim nem não corria em seus traços. Quando ele ostentava assim sua cabeça de normando, era inútil esperar tirar-lhe a menor confissão.

-          Está bem - disse ela, afundando-se novamente nas almofadas. - Não pergunto mais nada.

E devolveu-lhe sua expressão enigmática com alegria e sem rancor. Conheciam-se muito bem um ao outro. Perto dele, sentia ruir suas defesas interiores. Não receava, como com Joffrey, perder seu amor, o que, às vezes, pelo excesso do sentimento que ele lhe inspirava, pela importância vital que sua presença tinha para ela, a enchia de apreensão de ser privado dele, de vê-lo desaparecer, e da qual a segurança e a doçura de sua vida em comum não a haviam ainda curado completamente.

Com Colin, ao contrário, experimentava algumas vezes o sentimento repousante de uma confiança fraterna. Podia dizer-lhe tudo. Ele lhe perdoaria tudo. Não deixaria jamais de adorá-la. Podia calar-se perto dele.

Sentia novamente suas pálpebras bater e cair. O navio ancorado balançava suavemente. A ponte estava quase deserta àquela hora, pois muita gente estava em terra, sempre por causa dos carneiros que se ouviam balir ao longe, da lã, dos vinhos e dos queijos que também se encontravam ali.

As babás e amas-de-leite tinham levado ós bebes para os apartamentos do castelo de popa para abrigá-los do calor. Durante instantes, Angélica abria os olhos e sub-repticiamente lançava a Colin um olhar sonhador.

Seu pensamento vagabundeava no silêncio. Fora preciso esse nascimento dos gémeos em Salem para que lhe voltasse uma lembrança muito antiga: a época em que julgara carregar no ventre um filho de Colin. Assim, ele não contara.

Voltando do Marrocos para a França, tinha dentro de si essa promessa imperceptível do deserto. Pouco depois, perdera aquele fruto por culpa daquele cretino do Marquês de Breteuil, encarregado pelo rei de levar de volta a rebelde, sob boa guarda. Em seu medo de que ela escapasse de novo, ele a fazia passar o diabo naquelas estradas caóticas, e sua carruagem acabara por cair no abismo. Uma das consequências do acidente foi ter perdido a promessa. "Creia-me, minha pequena, dama, não se deve lamentar nada", dizia-lhe a matrona do burgo para onde a transportaram quando começou a perder sangue, "as crianças só complicam a vida. E depois, se isso a entristece tanto assim, sempre poderá conseguir que lhe façam outra!"

Reabria os olhos e olhava para Colin. Ele nunca soubera, nem ninguém. Seus lábios acostumaram-se a ficar selados sobre seu segredo. Segredo frágil e que não merecia suscitar as profundas emoções que sua divulgação acarretaria. Um problema de saúde. Um pequeno aborrecimento na vida de uma mulher. Só a ela cabia acomodar-se a isso. "Sempre tive sorte..." Pois a parteira revelara-lhe que se tratava de um "ovo claro", isso é, nada, um invólucro vazio, e isso atenuara seu sofrimento e apagara as imagens que ela começava, como todas as mulheres, a tecer em torno de um sonho que teria representado o amor de Colin, esse amor que ele arrastara consigo, através dos mares, e que ela sentia queimar como um fogo surdo dentro dele, sempre que se aproximava dela.

De longe, sua lembrança não a preocupava. Ele era um amigo, um irmão. Mas, perto dele, logo se sentia nervosa. "Uma questão de pele", como dizia a Polaca, perita nesses mistérios das atracas ou repulsas do amor. "A pele é tudo. Isso nos surpreende e não se sabe nunca por quê." O importante é sabê-lo e reconhecer sua fraqueza.

Não era muito egoísta achando absolutamente normal o isolamento de Colin e que ele se satisfizesse em se consumir de amor por uma dama distante e esquecida, como nos contos de cavalaria? Não deveria encorajá-lo a se casar? Houvera uma Moça do Rei, entre as náufragas, bastante fina e bonita, Delfina du Ro-soy, que se apaixonara por ele. Quando soube, Angélica julgara a ideia absolutamente extravagante e se felicitara de que Delfina tivesse encontrado em Quebec um esposo de sua conveniência, na pessoa de um jovem e amável oficial. E, ao meditar no assunto, continuava a não poder imaginar Colin Paturel, seu Colin, com uma esposa.

- Qual é a causa desse outro sorriso divertido que acaba de aflorar a seus lábios, senhora, enquanto cochilava? - perguntou Colin.

- Sempre sua pessoa, senhor governador. Eu pensava em seus encargos e me perguntava se algumas vezes não seriam pesados e bem ingratos para um homem só.

- Não estou nunca só - disse ele.

Num desses gestos espontâneos que tinha por ele, Angélica estendeu o braço e fez-lhe uma leve carícia na têmpora.

- Há aqui um reflexo branco em seus cabelos que eu não tinha visto.

- Esse reflexo apareceu de repente. Pode compreender, senhora, que a dor que senti junto a sua cabeceira, em Salem, quando seu fim estava próximo e certo, foi para mim mais do que dez anos de batalhas a serviço do grão-mogol? Era para ficar de cabelos brancos em alguns dias. Isso não tem nada de surpreendente.

       - Colin, que loucura!

O que ele acabara de dizer a emocionara e, por que ocultá-lo, causara-lhe prazer.

-          Vi-me naquele instante - disse ela -, naquele instante de minha morte. Não sei onde me encontrava exatamente, mas estava muito lúcida. Vi uma mulher numa cama, inanimada. Pouco a pouco, compreendi que essa mulher era eu, e - Colin, só a você posso confessá-lo - me achei bela.

Colin deu uma sonora gargalhada, que pôs à mostra seus dentes fortes, em contraste com sua barba loura.

-          Não estou brincando, Colin. Era completamente diferente do que costumo ver em meu espelho. Que me agrada, certamente, que não me preocupa com essas imperfeições que toda mulher é levada a aumentar, ingrata para com os atrativos que lhe dispensou a natureza e com os quais devia se alegrar. Sempre agradeci ao céu por ter-me reservado, já que ela me era reconhecida, esse favor inestimável que se chama Beleza, e nunca pensei julgar-me desprovida dela. Mas, naquela noite, era outra coisa. Eu me via, como direi? como uma estranha, como uma desconhecida, mas também como uma personagem maravilhosa, ornada de encantos que inspiravam o desejo de amá-la. Quase esqueci agora, mas, quando essa lembrança me volta, fico tão exaltada que parece que vou me elevar a alguns centímetros do chão...

O rude Colin escutava-a, inclinado para ela, com um sorriso enternecido. Achava-a tocante em suas confidências. Ela lia em seus olhos uma adoração sem limites.

-          Você se viu como nós a vemos, nós, que a amamos - disse ele -, nós, cujo coração você cativou, cujo ser acorrentou. Sim, provavelmente, naquele instante, você soube não só o valor que tinha aos olhos de Deus, mas também de que tesouro e de que encantamento preenche nossas vidas com sua presença. Não esqueça nunca, querida. Não esqueça essa verdade. Você mesma a ignorava. Não tinha suficiente consciência dela. É um pecado. Nunca duvide do que você trouxe à terra, do que brilha em você e do que há de inefável em sua pessoa. Se eles existem, aqueles que a entristecem e que "a odeiam, e se eles são tão numerosos a voar em torno de você, é que eles querem que você duvide, que se perca e que recaia no aviltamento da condição humana. Eles têm medo de você, os anjos negros da destruição e das trevas. Sabem que iluminar o coração de um homem é como acender uma luz e um fogo numa casa escura e gelada. - E concluiu: - E sabem com que derrota você os ameaça. Pois toda alegria experimentada na terra trabalha para a salvação do mundo.

 

Reencontro com os franceses

Aproximavam-se do objetivo, e, para lá de Wiscassett, a frota dirigiu-se para leste.

Lorde Cranmer julgava ter cumprido sua missão, para a qual tinha sido delegado pelo governador da Nova Inglaterra, junto ao Conde de Peyrac.

Habituado ao clima da Jamaica, esfregava as mãos uma na outra e achava que fazia frio. Olhava suspeitosamente para essas paragens consideradas inabitáveis, mais que perigosas, amaldiçoadas entre todas: reputação que crescera de lendas que iam daquela, indígena, do gigante Glooscap, voltando para o fundo da baía, o que explicava a vastidão de suas marés, até as dos conflitos e ataques de pirataria ou de guerra, que faziam de cada recanto, de cada praia, de cada estuário, o local de uma história sangrenta. Um verdadeiro rosário para peregrinação, de pilhagens e de saques, de atentados e de assassinatos.

Todos os estabelecimentos a leste de Wells eram considerados terra de ninguém, onde o governador do Massachusetts só se arriscava a ir a contragosto e do qual forçosamente se desinteressava.

A tragédia desses lugares, dizia ele, era que, desde o início, o direito de uns nunca deixou de limitar o interesse dos outros. Ora, para os ingleses, era vital manter-se ali, onde estava sua cor-nucópia da abundância, a reserva do pactolo no qual repousava a salvação e que já fazia seus filhos proclamarem com ar solene: "A Bíblia e o bacalhau salvaram a Nova Inglaterra".

O local era o mais rico de todos: perto das costas encontravam-se os mais produtivos pesqueiros, que confinavam com o melhor banco bacalhoeiro ao sul da península da Nova Escócia, que os franceses chamavam de Acádia peninsular, enquanto o Maine, reconhecidamente inglês; era a Acádia continental.

Ali também, nas margens norte e sul da French Bay e na hin-terlândia, encontravam-se as mais belas peleterias. E, se os ingleses haviam muito antes considerado o pequeno interesse desse comércio, a avidez da Nova França pelas peles, na qual repousava toda a sua economia, tornava os franceses mais ásperos na defesa desses domínios contra a intrusão inglesa, o que punha em perigo o comércio pesqueiro dos novos ingleses.

Enquanto navegavam ao largo da Nova Escócia, um encontro veio confirmar os fatos e a situação exposta pelo delegado do rei da Inglaterra e do representante de suas colónias inglesas da América do Norte, Lorde Cranmèr.

Viram-se, com efeito, as velas de um ágil naviozinho de cento e cinquenta toneladas, acompanhado de um sloop mais modesto e, antes de distinguir o pavilhão francês, reconheceu-se o Sans-Peur, do corsário dunquersense Vaneireicke, que, segundo uma tradição já estabelecida, visitava anualmente seu antigo amigo das Caraíbas, o Conde de Peyrac.

Puseram-se à capa, e o reencontro se realizou na coberta do Arc-en-Ciel.

Dentre as pessoas que subiram a bordo, encontrava-se o Sr. de la Roche-Posay, governador do estabelecimento francês acadia-no de Port-Royal, com o qual as pessoas de Gouldsboro mantinham as melhores relações de vizinhança.

Na véspera, Vaneireicke aceitara escoltar o sloop do Sr. de la Roche-Posay, que estava prestes a ser vistoriado por um iate de nacionalidade duvidosa, mas, supunha-se, inglês: primeiro ponto. A seguir, o fidalgo francês, tendo empreendido sua viagem para ir à frente do navio enviado de Honfleur por sua companhia mercante, proprietário do estabelecimento que, todos os anos, o alimentava de ferramentas, produtos indispensáveis, grupos de homens, soldados e armas, soubera de sua captura por flibusteiros da Jamaica, inglês também: segundo ponto.

Um em cada dois verões, o navio de Honfleur não chegava. O Sr. de la Roche-Posay seria mais uma vez obrigado a ir abastecer-se em Boston antes do inverno, o que nunca deixava de atrair para si a suspeita da administração em Quebec.

Enfim, alegrava-se com a presença a bordo do Sr. Paturel, pois, antes de voltar para casa, contava passar por Gouldsboro a fim de pedir-lhe que interviesse para pôr um paradeiro numa situação insuportável: não apenas trezentos barcos de pesca ingleses patrulhavam na baía Francesa, mas, neste ano, sem nenhum pudor, esses bostonianos não tinham hesitado em instalar sua seca-deira de bacalhau nas praias acadianas ou nas praias reservadas aos maluínos vindos da França para sua habitual temporada, e isso causara incidentes que foram controlados com violência: terceiro ponto.

Depois de ter escutado e prodigalizado as palavras de conforto e as promessas que se impunham, fizeram passar do Arc-en-Ciel à embarcação uma parte das mercadorias de que precisava e que não teria de ir mendigar em Boston, adornadas por diversos presentes para sua amável mulher e seus numerosos filhos, tão bem-educados, em seu grande forte de madeira de Port-Royal, por sua governanta, a Sita. Radegunda de Ferjac.

Havia, para as meninas, bonecas com rosto de cera pintada e trajes suntuosos como certamente nunca foram vistas em terras acadianas, tão esquecidas de seu governo, fosse de Paris ou de Quebec.

Lorde Cranmer pudera constatar de visu que as dificuldades e a penúria nas quais se encontravam os habitantes dos raros postos franceses da região não punham em grande perigo a indústria de pesca da Nova Inglaterra.

Mas sacudia a cabeça, cético:  

- Da Acádia ou do Canadá, esses franceses são raivosos.

Entretanto, as coisas podiam se resolver sem batalha. Sua viagem terminava. Um navio da marinha real inglesa, a bordo do qual se encontrava o Almirante Sherrylman, saiu de uma leve neblina e de uma angra onde estava amarrado de popa e proa e escondido havia dois dias, à espera do Arc-en-Ciel.

Tranquilo quanto ao futuro, graças a Peyrac, ao qual investira de plenos poderes - "Não há como os franceses para administrar os franceses", reconhecia, rindo -, despediu-se de seus anfitriões.

Depois de dirigir a Angélica seus votos e agradecimentos, inclinou sua pequena barba ruiva e pontuda sobre os dois beicinhos e sorriu.

Com ele, começava a apagar.-se, a diluir-se a imensa imagem de Salem e de seus prodígios.

Ruth e Noémia ainda estavam ali, mas tinham deixado de lado suas capas alemãs com capuzes pontudos exigidas em Salem e, envoltas em mantas que dissimulavam sua letra escarlate e cobertas com uma graciosa touca à francesa que deixava seus cabelos louros aureolar suas belas faces, quase voltavam a ser mulheres como as outras.

Entre esses estrangeiros que voltavam para casa e que aspiravam, no vento cortante do grande mar interior, esse clima de amável anarquia que lhes era familiar, poderiam passar por passageiras inglesas, retornando a um vilarejo escondido nas pregas de um estuário ou a uma pequena comunidade de uma ilha ocupada com a tecelagem e a lavoura.

 

Chegada ao Maine

No dia seguinte, as costas do Maine surgiram à vista. O Mai-ne, com um nome de província francesa, dado pelos ingleses em honra de sua rainha, esposa de Carlos I Stuart e filha de Henrique IV da França, duquesa por apanágio desse fundo angevino.

Que descobridor não ficaria encantado com a beleza selvagem e colorida do lugar, com suas costas recortadas, a vastidão infinita de seus estuários Piscatoga, Saco, Kennebec, Sheepscot, Da-mariscotta, Penobscot, Saint-Croix, Saint-Jean enrolando-se em torno das múltiplas ilhazinhas arborizadas, enroscando-se na concavidade de inumeráveis baías tranquilas, embocaduras de rios no labirinto bucólico, alternando com altas falésias róseas ou azuis escavadas de fiordes perigosos, ligadas por longas praias de areia fina? Além da muralha dessa costa acidentada e delirante, a floresta e as montanhas amontoadas, elevando-se cada vez mais alto, formavam uma imensa hinterlândia, escavada por milhares de lagos dos quais alguns tinham até quinze léguas de comprimento e outros não passavam de um olho redondo azul ou verde-esmeralda no negrume dos bosques.

Assim que a montanha de Camden defronte a Pentagouel foi reconhecida, houve muita animação a bordo. Todos foram para a proa. Mas, como era de se esperar, rolos de neblina apareceram e se puseram diante do navio. Era a acolhida tradicional da baía Francesa, tão célebre por seus nevoeiros como por sua marés.

Houve gritos de decepção. E alguns se dedicaram a ir procurar mantos, xales, cobertores. Envolveram-se os bebés, que tinham levado também para cima, ao castelo de proa, nesse momento tão emocionante de sua chegada a seu novo país. Mas ninguém queria tornar a descer e abrigar-se. O nevoeiro estava tão denso que quase não se via a ponta dos mastros, e o navio, com as vergas povoadas de fantasmas, pôs-se a navegar em marcha lenta. A água caía. em gotinhas douradas. A luz, lutando contra a opaca cortina úmida, dividia as nuanças de seu espectro, e viam-se tremer ondas azuis e verdes, laranja e ouro: arco-íris.

Entravam no país dos arco-íris com o qual sonhara Florimond, antes de partir à procura de seu pai.

Depois, quando o vento soprou, houve uma exclamação comum, e Angélica sorriu ao observar Severina e Honorina, que pulavam de alegria, soltando gritos entusiasmados, enquanto ao longe, emergindo de um estojo de espuma de um azul suave, desenhavam-se os dois mamilos rosados da ilha de Mont-Désert. Sua aparição, com suas belas tonalidades que variavam, ao sol, do rosicler ao púrpura, ou de uma ténue cor-de-carne, segundo os raios de luz que os acariciavam com seus pincéis de prata, filtrando através das nuvens, anunciava a aproximação de Goulds-boro. Mais algumas horas e a passagem oculta, que só era acessível com a maré alta, seria ultrapassada, e então se poderiam ver as casas escalonadas acima da praia e do porto e a franja escura que faria na margem a população reunida, à espera.

Severina e Honorina dançavam uma ciranda, rindo; os marinheiros jogavam seus gorros para o alto.

Angélica quis pegar um dos bebes no colo. Não se acostumava a pegá-los, de tão pequenos e inconsistentes que eram. Sempre tinha a impressão de que afundavam em suas mãos e de que podia perdê-los no meio de suas roupas brancas.

Como eram minúsculos quando dormiam assim! O sopro de vida que os animava era imperceptível. Eram serenos, palpitantes. Dormiam.

Em torno dela, dirigiam-lhe a palavra. Mostravam-lhe essas duas montanhas redondas, pousadas no mar, como mostrariam, no cais de chegada, parentes ovi amigos que os esperassem com alegria e impaciência.

O prazer evidente de Severina somava-se à alegria de Angélica. Para a pequena exilada, esse canto selvagem da dura América tornara-se um pouco "a terra natal", o lar, aquele lugar privilegiado onde estamos certos de nos encontrar em família e entre amigos, em casa.

Já era muito, pensava Angélica, ter conseguido criar, para fugitivos condenados à morte ou à prisão, um lugar viável onde pudessem mais uma vez desfrutar as doçuras da vida e esses momentos de felicidade, feitos da alegria de amar e de agir sob o céu de Deus, que são conferidos apenas aos seres livres.

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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