Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AS FERAS DE TARZAN
Raptado
‑ O assunto está envolvido em mistério... ‑ disse d'Arnot. ‑ Sei, através das melhores fontes de informação, que nem a polícia nem os agentes especiais da investigação fazem a menor ideia de como foi levado a cabo. O que sabem, o que toda a gente sabe, é que Nikolas Rokoff se evadiu.
John Clayton, «lord» Greystoke ‑ que tinha sido Tarzan dos Macacos ‑ estava sentado, em silêncio, no apartamento do seu amigo, o tenente Paul d'Arnot em Paris, e fitava pensativamente a lustrosa biqueira do seu sapato.
Na sua mente agitavam‑se muitas recordações ‑ evocadas a propósito da evasão do seu grande inimigo, da prisão militar francesa onde cumpria uma pena de prisão perpétua, conforme a sentença ditada em consequência do testemunho do homem da selva. Pensava em tudo o que Rokoff fizera em tempos para o matar, e compreendia que isso seria menos do que nada em comparação com o que faria agora, estando novamente em liberdade.
Tarzan trouxera recentemente a mulher e o filho para Londres, a fim de se esquivarem aos desconfortos e perigos da estação das chuvas na vastíssima propriedade que adquirira em Uziri ‑ a terra dos selvagens guerreiros Waziris sobre cujos imensos domínios ele reinara.
Atravessara o Canal, para uma breve visita ao seu velho amigo, mas as notícias da evasão do russo haviam ensombrado o seu passeio, de maneira que, embora tivesse chegado pouco antes, estava já a pensar em regressar a Londres, sem mais demora.
‑ Não receio por mim, Paul... ‑ disse ele, finalmente. ‑ Muitas vezes, no passado, destruí os planos de Rokoff para atentar contra a minha vida. Mas agora tenho de pensar noutros. Ou me engano muito, ou Rokoff atacará de preferência através de minha mulher e do meu filho, porque sem dúvida compreende que de nenhuma outra forma me pode ferir mais profundamente. Tenho de voltar imediatamente e ficar com eles até que Rokoff seja recapturado ‑ ou morto.
Enquanto os dois amigos conversavam, em Paris dois outros homens falavam em voz baixa, numa pequena vivenda dos subúrbios de Londres. Ambos eram morenos e de aspecto sinistro.
Um deles usava barbas, mas o outro, cuja cara tinha a palidez doentia dos presidiários, tinha apenas a barba por fazer. Era esse quem falava:
‑ Tens de rapar a barba, Alexis. Com isso ele reconhecer‑te‑ia no mesmo instante. Vamos separar‑nos agora, e quando voltarmos a encontrar‑nos a bordo do «Kincaid»... espero que tenhamos connosco dois respeitáveis hóspedes que mal imaginam o passeio que eu lhes preparo.
«‑Haverá prazer e proveito, entre outras boas coisas, para recompensar os nossos esforços, meu caro Alexis. Graças à estupidez dos franceses, que fizeram tudo para esconder a minha fuga, durante muitos dias, tive todas as possibilidades de preparar os pormenores da nossa aventura, de maneira que é quase impossível falhar. Dentro de duas horas devo ir a caminho de Dover com um dos «convidados», e amanhã à noite, se seguires exactamente as minhas instruções, seguirás com o outro... se ele voltar a Londres tão depressa como eu suponho. Agora adeus e boa sorte...
Três horas depois um distribuidor de telegramas batia à porta do apartamento de d'Arnot.
‑ Um telegrama para «lord» Greystoke... ‑ disse o rapaz, ao criado que o atendeu. ‑ É aqui?
O criado confirmou e, assinando o recibo do telegrama, levou‑o a Tarzan, que estava já a preparar‑se para voltar a Londres. Tarzan abriu o sobrescrito e empalideceu, ao ler.
‑ Leia isto, Paul... ‑ disse ele, entregando o telegrama a d'Arnot. ‑ Já aconteceu... O francês leu:
«Jack raptado do jardim, cumplicidade novo criado. Vem depressa. Jane».
Quando Tarzan saltou do automóvel que tinha ido buscá‑lo à estação, e galgou os degraus da sua casa de Londres, encontrou Jane completamente desesperada, mas sem lágrimas. Rapidamente, ela contou‑lhe tudo o que conseguira saber sobre o desaparecimento do menino.
A criada do bebé tinha estado a passeá‑lo no seu carrinho, ao longo do passeio em frente da casa, para que ele apanhasse sol ‑ quando um táxi parara à esquina da rua. A criada não dera qualquer atenção especial ao carro, notando apenas que nenhum passageiro se havia apeado e o táxi ficara parado com o motor a trabalhar, talvez à espera de alguém que viria da residência diante da qual se detivera.
Quase imediatamente o novo criado, Cari, viera a correr desde a casa dos Greystoke, dizendo à rapariga que a senhora queria falar‑lhe por um instante... e que ele olharia pelo menino até ela voltar.
A rapariga havia contado depois que não tivera a menor suspeita quanto ao que Cari dissera, até ao momento em que havia chegado à porta da casa. Aí, porém, lembrara‑se de dizer a Cari que tivesse cuidado em não deixar que o menino apanhasse sol nos olhos... e ao voltar‑se ficara surpreendida ao ver que o homem conduzia apressadamente o carro até à esquina, onde a porta do táxi se abrira mostrando a cara escura de um indivíduo que estava lá dentro.
Instintivamente ocorrera‑lhe a ideia de que o menino corria perigo, e soltando um grito descera os degraus da entrada e precipitara‑se ao longo do passeio... na direcção do táxi junto do qual Cari estava agora a entregar o menino ao homem moreno.
Antes que ela pudesse alcançar o veículo, Cari saltara para dentro dele, ao lado do outro homem, fechando a porta. No mesmo instante o motorista tentou pôr o táxi em movimento, mas qualquer coisa funcionava mal e isso dera tempo a que a rapariga se aproximasse. Saltando para o estribo, ela tentara arrancar o menino das mãos do homem que o segurava, e entretanto, lutando e gritando, não desistira nem mesmo quando o táxi se pusera em movimento. Só quando o automóvel havia passado já diante da casa dos Greystoke, e seguia a boa velocidade, Cari tinha dado um violento soco na cara da criada, fazendo‑a cair do estribo. Entretanto os gritos dela haviam alarmado o pessoal e alguns dos donos das residências próximas, assim como alarmaram «lady» Greystoke. Jane observara a corajosa atitude da rapariga e ela própria correra para o táxi, mas já era demasiado tarde.
Isto era tudo o que se sabia, e Jane Clayton não tinha a menor ideia de quem pudesse ter sido o raptor do filho... até que o marido lhe contou da fuga de Rokoff, da sua evasão da prisão francesa onde devia ter ficado até ao fim dos seus dias.
Enquanto Tarzan e Jane ponderavam sobre qual seria o caminho a seguir, o telefone tocou, na biblioteca. Tarzan foi rapidamente atender.
‑ «Lord» Greystoke?... ‑ perguntou uma voz de homem, no outro extremo da linha.
‑ Sim.
‑ O seu filho foi raptado... ‑ continuou a voz ‑ ... e só eu posso ajudar a encontrá‑lo. Conheço quem deu o golpe, e de facto fui cúmplice da combinação. Devia compartilhar do resgate, mas agora os outros estão a querer intrujar‑me e para me vingar deles estou pronto a ajudá‑lo a recuperar o menino... na condição de que não me castiguem pela parte que tive no assunto. Que diz?
‑ Se me levar até onde está o meu filho... ‑ respondeu Tarzan ‑ ... nada terá a recear de mim.
‑ Está bem... mas deve ir sozinho quando se encontrar comigo. Já me basta ter de confiar em você, não posso deixar que outros saibam quem eu sou.
‑ Onde e quando posso encontrá‑lo?... ‑ perguntou Tarzan.
O outro indicou o nome e o endereço de um bar no cais, em Dover ‑ um estabelecimento frequentado por marinheiros.
‑ Venha aí pelas dez horas da noite, hoje. Nada ganharia em chegar antes. Entretanto o seu filho estará em segurança, e eu posso levá‑lo aonde ele se encontra. Mas tenha cuidado em ir só e em não avisar a Scotland Yard. Conheço‑o bem e estarei à espreita. Se alguém o acompanhar, ou eu vir tipos que me pareçam ser agentes da polícia, não aparecerei e você perderá a última oportunidade de recuperar o seu filho.
Com estas palavras, o homem desligou. Tarzan repetiu a Jane o resumo da conversa. Ela pediu‑lhe para que a deixasse acompanhá‑lo, mas Tarzan fez‑lhe ver que isso poderia ter como resultado que o homem cumprisse a sua ameaça de não os ajudar. Separaram‑se assim, ele para ir sem demora a caminho de Dover ‑ e ela, aparentemente, para ficar em casa à espera de saber do que iria passar‑se.
Nem remotamente supunham o que ambos teriam de passar antes de voltarem a encontrar‑se, ou a que distância.., ‑ mas para quê antecipar os acontecimentos futuros?
Durante dez minutos depois da partida de Tarzan, Jane Clayton caminhou de um lado para o outro, agitadamente, sobre a espessa alcatifa da biblioteca. O seu coração de mãe estava profundamente ferido com o que acontecera ao seu menino. Na sua mente revolvia‑se um turbilhão de receios e de esperanças. Embora o seu raciocínio lhe dissesse que tudo estaria bem indo Tarzan sozinho, em obediência às instruções do telefonema, a sua intuição dizia‑lhe que não podia pôr de lado a ideia de graves perigos que poderiam ameaçar o marido e o filho.
Quanto mais pensava no assunto, mais se convencia de que o telefonema podia ser um ardil para que eles permanecessem inactivos enquanto o menino era escondido em lugar seguro, ou levado para longe de Inglaterra. Ou talvez tivesse sido apenas um engodo para levar Tarzan a cair nas mãos do implacável e demoníaco Rokoff.
Ante esta ideia, Jane deteve‑se bruscamente, com uma sensação de horror. Olhou de relance para o grande relógio que havia a um canto da biblioteca. Era tarde para poder apanhar o comboio de Dover, no qual partiria Tarzan. No entanto havia outro comboio, um pouco mais tarde, que poderia levá‑la ao porto do Canal ainda a tempo de chegar ao endereço indicado pelo homem, ligeiramente antes da hora marcada. Chamando uma criada e o motorista, deu‑lhes rápidas instruções. Dez minutos depois seguia ao longo das ruas cheias de gente, a caminho da estação.
Eram dez menos um quarto, nessa noite, quando Tarzan entrou na miserável taberna da zona das docas, em Dover. Mal tinha dado dois passos no interior, um homem com a cara meio escondida por um «cachecol» passou por ele, dizendo a meia voz:
‑ Venha, «milord».
Tarzan deu meia volta e seguiu o homem, para a viela mal iluminada. O homem encaminhou‑se para a escuridão de um cais onde grandes montes de sacos e de caixas projectavam sombras mais densas. Parou aí.
‑ Onde está o menino?... ‑ perguntou Greystoke.
‑ Naquele barco que tem as luzes acesas, além.
Na obscuridade, Tarzan tentou distinguir as feições do indivíduo, mas ficou com a impressão de que nunca o vira antes. Se tivesse visto que se tratava de Alexis Paulvitch, teria imediatamente compreendido que também se tratava de traição... e que o perigo espreitava cada um dos seus movimentos.
‑ Ele está agora sem guarda... ‑ disse o russo. ‑ Os que o levaram não receiam ser descobertos, e com excepção de dois membros da tripulação, a quem fiz beber bastante «gin» para estarem calados durante umas horas, não há mais gente a bordo do «Kincaid». Podemos ir a bordo e voltar trazendo o menino, sem qualquer receio.
‑ Vamos... ‑ respondeu Tarzan, simplesmente. O homem conduziu‑o a um pequeno bote amarrado ao cais. Embarcaram e Paulvitch pegou nos remos, fazendo rumo ao pequeno vapor. No momento, Tarzan nem sequer prestou atenção ao facto de que a chaminé do vapor deixava escapar fumo. Todos os seus pensamentos se concentravam na ideia e na esperança de que dentro de instantes teria o filho nos braços.
Do barco pendia uma escada, que os dois homens subiram prontamente e sem ruído. No convés, o russo apontou para um alçapão um pouco adiante.
‑ O menino está lá em baixo... ‑ disse ele. ‑ É melhor ir buscá‑lo, porque se ele se vir nos braços de um estranho pode começar a chorar. Eu fico de guarda, aqui.
Tão ansioso estava Tarzan por recuperar o filho, que não pensou sequer nas estranhas condições de tudo aquilo. O convés do «Kincaid» estava deserto, embora o vapor estivesse sob pressão, e os rolos de fumo que saíam da chaminé pareciam indicar que partiria dentro de momentos. Mas Tarzan nada viu.
Pensando que ia buscar o seu menino, apressou‑se a descer a escada, sob o alçapão. Em baixo a escuridão era total. Mas... mal tinha descido três ou quatro degraus quando o alçapão se fechou pesadamente.
No mesmo instante, mas tarde demais, Tarzan compreendeu que caíra numa ratoeira... e que em vez de recuperar o filho se deixara apanhar pelos seus inimigos. Embora saltasse e tentasse levantar o alçapão, não o conseguiu.
Acendeu um fósforo e olhou em volta. Verificou que o compartimento onde se encontrava havia sido separado do resto do porão, e que o alçapão era o único meio de entrar ou sair. Era evidente que aquilo tinha sido preparado para lhe servir de prisão.
O compartimento estava vazio. Se o menino se encontrava de facto a bordo do «Kincaid», não era decerto ali.
Durante vinte anos, desde a infância à idade adulta, Tarzan havia percorrido os caminhos da selva sem qualquer companhia humana, fosse qual fosse. Nesse período mais impressionável da sua vida, aprendera a receber o prazer e a desgraça tal como as feras os recebem. Assim, não se desesperou nem esbravejou contra o destino... Ficou simplesmente à espera do que viria a acontecer ‑ sem que isso significasse deixar de estar alerta para fazer tudo o que pudesse em sua defesa. Examinou a sua prisão, experimentou cada uma das tábuas grossas e rijas que formavam as paredes, e mediu com os olhos a altura a que ficava o alçapão.
Abandonado
Quando Tarzan e o seu guia desapareceram nas sombras do cais, um vulto de mulher, com um espesso véu a cobrir‑lhe a cara, adiantou‑se pela ruela e entrou na taberna de onde os dois homens haviam saído momentos antes. À porta, parou e olhou em volta. Depois, como tendo‑se assegurado de que estava realmente no lugar que buscava, entrou resolutamente.
Duas dezenas de marinheiros, meio embriagados, e de «ratos» de cais, olharam curiosamente para aquela mulher bem vestida ‑ um espectáculo sem dúvida raro naquele meio. A mulher dirigiu‑se imediatamente para a empregada da taberna, que atrás do balcão a fitava com um olhar onde havia rancor e inveja.
‑ Viu um homem alto e bem vestido? Deve ter entrado aqui há momentos, e decerto saiu com outro que estava à espera dele.
A empregada da taberna respondeu afirmativamente, mas acrescentando que não vira qual o caminho que os dois homens haviam tomado. Um marinheiro, que se aproximara para ouvir a conversa, informou que uns minutos antes, quando ia a entrar, se cruzara com dois homens que tinham seguido na direcção do cais de carga.
‑ Indique‑me a direcção em que foram... ‑ pediu a mulher, metendo uma moeda na mão do marinheiro.
Saíram e encaminharam‑se para o cais, seguindo por momentos à beira de água até que avistaram um bote que nesse momento se encostava a um pequeno vapor.
‑ Ali vão eles... ‑ disse o marinheiro.
‑ Dou‑lhe dez libras se encontrar outro bote e me levar àquele vapor... ‑ quase gritou a mulher.
‑ Então temos de ir depressa para apanharmos o «Kincaid»... ‑ volveu o homem. ‑ Há três horas que está a tomar pressão, à espera de um passageiro que deve ser aquele. Disse‑mo um dos da tripulação, ainda não há meia hora.
Enquanto falava, o marinheiro dirigiu‑se à ponta do cais, onde estava amarrado outro bote. Ajudou a mulher a descer e pegou nos remos. Não tardou que alcançassem o vapor, e o marinheiro acrescentou então:
‑ As tais dez libras, hem?
Sem perder tempo a contá‑las, a mulher meteu‑lhe na mão um punhado de notas. Um relance bastou para que o marinheiro visse que tinha mais do que a conta. Sem uma palavra, ajudou a mulher a subir pela escada e aguentou o bote em baixo, na esperança de que a rendosa passageira quisesse voltar para terra.
Mas nesse momento o ruído do cabrestante e o
raspar de uma corrente indicaram ao marinheiro que o «Kincaid» ia levantar ferro. Um instante depois ouviu o barulho da hélice... e não tardou que o vapor começasse a afastar‑se lentamente. Quando recomeçou a remar, o marinheiro ouviu ainda um grito agudo, de mulher, que vinha do tombadilho do «Kincaid».
Resmungou:
‑ Pouca sorte... Assim como assim podia ter ficado com o dinheiro todo que ela levava...
Quando Jane Clayton subiu ao convés do «Kincaid», viu que o vapor estava, aparentemente, deserto. Não havia sinais daqueles que seguira, nem de qualquer outra pessoa. Pôs‑se então a procurar o marido e o filho, esperando contra toda a esperança que poderia encontrá‑los.
Encaminhou‑se em primeiro lugar para a cabina, construída parte acima e parte abaixo do tombadilho. Daí, por um corredor e uma escada, alcançou a zona habitualmente ocupada pelos oficiais... e na sua pressa assustada não notou que uma porta se fechava, adiante. Havia portas de ambos os lados e ao fundo um compartimento grande... que estava deserto.
O silêncio envolvia‑a, pesado e espesso... e nesse silêncio o bater do seu coração parecia‑lhe ecoar doidamente. Foi empurrando portas que cediam facilmente à pressão dos seus dedos, e espreitando para o interior de cada camarote.
Estavam vazios, todos... mas ao empurrar a porta do último, do lado direito, foi agarrada por um homem que a fez entrar de roldão. O choque súbito arrancou à mulher um grito agudo... um único grito porque o homem lhe tapou a boca, brutalmente.
‑ Não até estarmos mais longe de terra, minha cara... ‑ disse o homem. ‑ Então poderá gritar tanto quanto quiser...
Só então «lady» Greystoke se apercebeu de que o vapor estava em andamento... e de relance reconheceu a cara coberta de barba mal cortada, do seu captor.
‑ O sr. Thuran! Nikolas Rokoff!... ‑ murmurou, quando o homem afrouxou a pressão da mão.
‑ Seu devotado admirador... ‑ replicou o russo, com uma vénia.
‑ O meu filho?... ‑ exclamou Jane, ignorando o cumprimento. ‑ Onde está ele? Entregue‑mo! Não pode ser tão cruel... não pode ser tão destituído de compaixão... O meu filho está neste vapor? Por favor, leve‑me aonde ele está!
‑ Se fizer o que eu lhe disser... nenhum mal acontecerá ao seu filho... ‑ respondeu Rokoff. ‑ Mas lembre‑se de que veio aqui porque quis, voluntariamente... e tem de aceitar as consequências. Eu nem me atreveria a pensar que teria tanta sorte... ‑ acrescentou o miserável, como se falasse consigo mesmo.
Fechou a porta do camarote, deixando lá dentro a sua prisioneira, e dirigiu‑se para a coberta.
Durante vários dias, Jane não voltou a ver o russo.
A explicação estava no facto de Rokoff não aguentar o mar, e o mau tempo que o «Kincaid» teve de enfrentar, logo no início da viagem, obrigou‑o a recolher‑se sob os efeitos do enjoo.
O único visitante da jovem era um sueco, o pouco hábil cozinheiro do vapor, que lhe levava a comida. Chamava‑se Sven Anderssen... e o seu único grande orgulho era o facto de escrever o seu apelido com dois ss. Era um tipo alto e ossudo, com um comprido bigode amarelado e pele sardenta. Tinha as unhas invariavelmente sujas, e quando o via aparecer, com o polegar mergulhado no molho da carne estufada, que parecia ser o seu prato favorito ‑ tantas vezes o apresentava ‑, Jane perdia a pouca vontade de comer que ainda tivesse.
Os olhos pequenos e muito azuis, do homem, nunca fitavam Jane de frente. No olhar, como em toda a sua aparência, havia o ar vagamente sinistro de um felino ‑ e esse ar em nada era favorecido pela comprida faca que ele trazia sempre à cintura, sob a corda engordurada que lhe prendia o avental. Ostensivamente tratava‑se de um símbolo do seu ofício, mas Jane tinha a convicção de que ele não hesitaria em se servir da faca para outros fins menos pacíficos. O sueco aparecia sempre com um ar sombrio, embora Jane o recebesse habitualmente com um sorriso e com agradecimentos pela comida ‑ que na maior parte das vezes atirava ao mar, pela vigia, assim que ele fechava a porta.
Durante esses dias de angústia, duas interrogações se agitavam constantemente no espírito de Jane ‑ o paradeiro do marido e o do filho. Acreditava que o menino estivesse a bordo do «Kincaid», possivelmente vivo, mas não podia saber se Tarzan tinha, ou não, sido morto ao cair em poder do seu feroz inimigo. Conhecia o ódio que o russo nutria por Tarzan, e não imaginava outro motivo para o ter atraído ali... a não ser para o matar em relativa segurança... e vingar‑se das derrotas anteriores e dos anos passados na prisão.
Tarzan, por seu lado, na escuridão da sua cela, ignorava por completo que sua mulher estivesse também prisioneira a bordo do «Kincaid». O mesmo sueco que servia Jane levava‑lhe as refeições, mas, embora em várias ocasiões Tarzan tivesse tentado fazê‑lo falar, nada conseguira.
Tarzan tinha esperado saber, por ele, se o seu filho estava a bordo do «Kincaid», mas a resposta a essa pergunta, ou a qualquer outra, era sempre a mesma:
‑ Acho que vento vai soprar não tarda, e com força!
Assim, ao cabo de várias tentativas, Tarzan desistiu. Durante semanas, que pareceram meses aos dois prisioneiros, o pequeno vapor navegou ‑ não sabiam para onde. O «Kincaid» parou apenas uma vez para meter carvão, mas logo continuou a sua viagem que parecia interminável.
Rokoff visitou Jane Clayton apenas uma vez, depois de a ter fechado no camarote. Apareceu emagrecido e olheirento, em consequência do prolongado enjoo... e o fim da sua visita era o de conseguir da jovem um cheque de uma larga quantia, em troca da garantia da sua segurança pessoal e do regresso a Inglaterra.
‑ Quando me deixar desembarcar em segurança e num porto civilizado, com o meu marido e o meu filho... ‑ respondeu Jane ‑ ... pagar‑lhe‑ei, em oiro, o dobro da quantia que pede. Mas até então e seja em que condições for, não obterá um único cêntimo, nem qualquer promessa de pagamento.
‑ Vai entregar‑me o cheque que eu quero... ‑ volveu o miserável, com um riso duro ‑ ... ou nem você, nem o seu filho, nem o seu marido, voltarão a qualquer porto, civilizado ou não.
‑ Não posso confiar em si... ‑ disse Jane. ‑ Que garantia tenho eu de que não fará isso mesmo ainda que eu lhe pague?
‑ Pense bem... ‑ retorquiu Rokoff, voltando‑se para sair do camarote. ‑ Lembre‑se de que tenho o seu filho... e se por acaso ouvir os gritos de dor de uma criança torturada, terá de reconhecer que é pela sua teimosia que o menino ‑ o seu filho ‑ estará a sofrer.
‑ Não fará isso!... ‑ exclamou Jane. ‑ Não poderá ser tão repugnantemente cruel...
‑ A crueldade não será minha, mas sua... ‑ volveu o russo ‑ ... por permitir que o seu filho sofra por uma ninharia de dinheiro.
O resultado foi que Jane preencheu um cheque, por uma quantia considerável, e o entregou a Nikolas Rokoff que saiu do camarote com um sorriso de satisfação.
No dia seguinte o alçapão foi levantado, sobre a cela onde estava Tarzan, e no rectângulo de luz, em cima, apareceu a cara de Paulvitch.
‑ Suba... ‑ disse o russo ‑...mas não esqueça que apanhará um tiro se fizer qualquer movimento para me atacar ou atacar alguém aqui.
O homem da selva subiu rapidamente para a coberta. À sua volta, mas a respeitosa distância, estavam seis marinheiros armados com rifles e revólveres. Em frente estava Paulvitch. Tarzan olhou em redor, procurando Rokoff. Tinha a certeza de que o patife devia estar a bordo, mas não o viu.
‑ «Lord» Greystoke... ‑ disse Paulvitch ‑ ...pela sua repetida e irreflectida interferência nos planos do sr. Rokoff, conseguiu colocar‑se, e colocar a sua família, nesta desafortunada situação. Não tem de se queixar a não ser de si mesmo. Como deve calcular, o sr. Rokoff foi obrigado a grandes despesas para financiar esta expedição, e como a culpa disto é toda sua, é perfeitamente natural que ele se dirija a si para ser reembolsado. Devo ainda acrescentar que só acedendo às justas exigências do sr. Rokoff pode evitar muito desagradáveis consequências para sua mulher e para o seu filho, e ao mesmo tempo continuar vivo e recuperar a liberdade.
‑ Qual é a importância?... ‑ perguntou Tarzan. ‑ E que garantia tenho eu de que cumprirá a sua parte do acordo? Tenho poucas razões para acreditar em dois patifes tais como você e Rokoff, bem sabe.
- Não está em situação de insultar... ‑ volveu
o russo, corando. ‑ Não tem nenhuma outra garantia além da minha palavra, mas tem a certeza de que o mataremos se não passar o cheque que pedimos. A não ser que seja mais imbecil do que eu suponho, deve calcular que eu teria grande prazer em dar ordem a estes homens para dispararem. Só não o faço porque temos outros planos para o castigar, e a sua morte anularia esses planos.
‑ Responda a uma pergunta... ‑ disse Tarzan. ‑ Meu filho está a bordo deste vapor?
‑ Não... ‑ respondeu Paulvitch. ‑ Está noutro lugar, e em perfeita segurança. Viverá se você obedecer às nossas justas exigências. Se for necessário matá‑lo, a você, não haverá razão para não matar também o pequeno... Desaparecendo você, desaparecerá aquele a quem queremos castigar através do rapaz... e ele seria para nós apenas um motivo de perigos e embaraços. Como vê, só pode salvar a vida de seu filho se salvar a sua própria, e só pode salvar a sua vida preenchendo o cheque.
‑ Muito bem... ‑ retorquiu Tarzan. Sabia que os bandidos não hesitariam em pôr em prática qualquer das ameaças feitas por Paulvitch, e havia uma vaga possibilidade de salvar o menino, cedendo às exigências deles. Tirou do bolso a caneta e o livro de cheques. ‑ Quanto?... ‑ perguntou.
Paulvitch indicou uma quantia enorme... e Tarzan mal pôde disfarçar um sorriso. A ambição dos patifes ia perdê‑los, pelo menos no que se referia ao resgate.
Propositadamente, hesitou e discutiu, mas Paulvitch manteve‑se firme. Por fim Tarzan preencheu o cheque, por uma quantia maior do que aquela que tinha na sua conta... naquele Banco.
Quando entregou o papel sem valor a Paulvitch, olhou por acaso para estibordo do «Kincaid». Com surpresa, viu que o navio estava a poucas centenas de metros da terra. Uma selva tropical, densa, descia até quase à beira de água, para além viam‑se alturas cobertas de florestas.
Paulvitch notou a direcção do olhar de Tarzan. ‑ Vai ficar em liberdade, ali... ‑ disse ele.
O plano de Tarzan, para se lançar sobre o russo e estrangulá‑lo, foi posto de parte. Pensou que aquela era a costa do continente africano, e sabia que, se o deixassem ali, em liberdade, poderia encontrar com facilidade relativa o caminho para a civilização.
Paulvitch recebeu o cheque.
‑ Dispa a sua roupa... ‑ disse ele a Tarzan. ‑ Ali não precisará dela.
Tarzan protestou, mas quando o russo apontou para os marinheiros armados... começou a despir‑se, devagar.
Um escaler foi descido e, sob escolta armada, o filho da selva foi conduzido para terra. Meia hora mais tarde os marinheiros estavam novamente a bordo do «Kincaid», e o vapor começava a afastar‑se.
Enquanto, parado na praia estreita, Tarzan via o vapor partir, apareceu ao tombadilho um vulto que bradou para atrair a sua atenção. O homem da selva preparava‑se para ler um papel que um dos marinheiros lhe entregara antes de saltar novamente para o escaler, mas ao ouvir o brado levantou a cabeça. Viu um homem de barba curta, moreno, que ria chocarreiramente e erguia nos braços o vulto de um bebé. Tarzan esboçou um movimento para se lançar à água e perseguir o vapor... mas compreendeu a futilidade da tentativa e parou.
Ficou imóvel, com os olhos fitos no «Kincaid» até que o vapor desapareceu atrás de um promontório da costa. Da selva, atrás dele, olhos ferozes, raiados de sangue, espreitavam‑no sob pêlos duros e espessos. Macacos pequenos saltavam nas ramadas das árvores. De mais longe veio o grito de um leopardo. Mas John Clayton, «lord» Greystoke, estava cego e mudo... sentindo a angústia e a raiva de ter perdido a oportunidade de lutar pelo filho... porque acreditara numa afirmação do lugar‑tenente do seu
feroz inimigo.
‑ Tenho pelo menos uma consolação... ‑ pensou. ‑ Jane está em segurança, em Londres. Felizmente que ela não caiu em poder desses miseráveis...
Atrás dele, o animal de pêlo espesso e rijo, que tinha estado a observá‑lo, aproximava‑se furtivamente.
Onde estavam os sentidos apurados do homem
da selva?
Onde estava a sua capacidade de distinguir ruídos?
Onde estava o seu prodigioso olfacto?
Feras em redor
Lentamente, Tarzan desdobrou o papel que o marinheiro lhe entregara. A primeira leitura mal impressionou a sua mente embotada pela angústia... mas por fim toda a medonha significação do terrível plano de vingança surgiu, clara, ante a sua imaginação. O papel dizia:
«Isto explicar‑lhe‑á a natureza das minhas intenções relativamente a seu filho e a você. Nasceu entre os macacos, como um macaco, e viveu nu, na selva. Restituo‑o ao seu ambiente. Mas o seu filho subirá um degrau na escala do progresso. É a lei da evolução. O pai era um animal, o filho será um homem. Não viverá como uma fera, na selva, mas usará uma tanga e argolas de metal, talvez uma argola no nariz. Será criado numa tribo de selvagens canibais.
Eu podia ter acabado com você, matando‑o, mas isso diminuiria a duração do castigo. Morto, não sofreria ao pensar no destino do seu filho.! Mas vivo, e num lugar de onde não poderá sair para procurar ou para socorrer o seu filho, sofrerá pior do que a morte enquanto viver, imaginando o horror da vida dele.
Isto é uma parte do seu castigo, por ter ousado opor‑se a N.R.
P.S. ‑ O resto do seu castigo relaciona‑se com o que irá acontecer a sua mulher, mas deixo isso à sua imaginação.»
Quando Tarzan acabou de ler, um ligeiro ruído, atrás dele, trouxe‑o de volta, num sobressalto, às realidades do presente. No mesmo instante os seus sentidos despertaram ‑ e voltou a ser Tarzan dos Macacos.
Os dois anos que haviam decorrido desde que Tarzan saíra da floresta com a sua companheira a quem salvara, muito pouco haviam diminuído o poder e a força que tinham feito dele o senhor da selva. As vastas propriedades em Uziri haviam‑lhe tomado muito do seu tempo e da sua atenção, e aí ele tivera amplo terreno para manter e treinar a sua quase sobre‑humana capacidade de força. Mas, nu e desarmado, enfrentar o grande gorila que tinha agora na sua frente, era uma prova que ele não teria desejado em qualquer período da sua existência.
Não tinha outro recurso, porém, se não o de lutar contra o furioso animal... utilizando apenas as armas com que a natureza o dotara. Por cima do ombro do gorila, podia distinguir as cabeças e os ombros de talvez mais uma dúzia de outros animais da mesma espécie ‑ os grandes antropóides da selva.
Sabia, no entanto, que era muito pouco provável que o atacassem, porque a possibilidade de raciocinar sobre o valor de uma acção concentrada, contra um inimigo, estava acima das capacidades dos gorilas. Se assim não fosse, de há muito que eles seriam os dominadores das zonas onde vivem, tão tremendo é o poder de destruição dos seus dentes e dos seus músculos.
Com um grunhido rouco, a fera lançou‑se ao ataque. Mas Tarzan aprendera, entre os civilizados, certos processos de luta científica que eram desconhecidos na selva. Alguns anos antes teria oposto força à força, mas agora esquivou o corpo num movimento ágil e, quando o gorila, levado pelo impulso, passou adiante, desferiu‑lhe um tremendo soco na região do estômago.
Soltando um rugido de dor e de raiva, o antropóide dobrou‑se ao meio e caiu no chão, mas quase no mesmo instante começou a levantar‑se. Antes que o conseguisse, porém, o homem da selva saltou para cima dele ‑ e nesse instante «lord» Greystoke voltou a deixar cair o superficial verniz da civilização. Mais uma vez era a fera, o animal da selva que gozava o prazer da luta. Mais uma vez era Tarzan, filho de Kala. Os seus dentes brancos e fortes cravaram‑se na garganta do gorila. Dedos fortes afastavam as presas do animal, ou os punhos batiam com a força de grandes martelos no focinho coberto de espuma.
Em volta deles, em círculo, os outros gorilas olhavam, apreciando a luta. Soltavam grunhidos guturais quando viam o sangue de ambos os contendores. Mas ficaram em silêncio, espantados, quando o poderoso animal de pele branca saltou para o dorso do seu peludo adversário e, passando‑lhe os braços de aço sob as axilas, cruzou as fortes mãos na nuca do gorila... de maneira a impedi‑lo de utilizar os dedos como garras, e mais ainda de poder morder. A fera tinha apenas o recurso de rolar sobre a erva espessa, mas nem assim conseguia libertar‑se.
Da mesma maneira como Tarzan dominara Terkoz, anos antes, assim dominava agora aquele adversário. Os antropóides ouviam estalar as vértebras do pescoço do seu rei, que se limitava a gemer e a guinchar numa agonia. Então, de súbito, ouviram um estalo mais forte, como o quebrar de um grosso ramo sob a fúria do vento. A cabeça do adversário de Tarzan pendeu para a frente, flacidamente, e a luta cessou.
Os olhos pequenos e ferozes dos antropóides fitaram o animal de pele branca, que se erguia devagar, e depois voltaram‑se para o chefe... com espanto por o não verem levantar‑se e atacar uma vez mais. Viram então o recém‑chegado poisar um pé sobre o corpo do inimigo morto, e lançar para os ares o grande brado de vitória dos gorilas ‑ e nesse momento compreenderam que o seu chefe morrera.
O brado de vitória, assustador, foi repetido através da floresta, num som rolante. Nas ramadas, os pequenos macacos interromperam os seus guinchos.
As aves aquietaram‑se. Da distância veio o grito de uma pantera, e de mais longe ainda o rugido poderoso de um leão.
Foi o antigo Tarzan quem olhou os grandes animais na sua frente. Foi o antigo Tarzan quem sacudiu a cabeça, como para afastar os cabelos que lhe pendiam sobre a testa ‑ um antigo gesto, de quando os cabelos espessos e compridos lhe chegavam aos ombros e por vezes lhe tapavam a cara, em momentos onde a vida ou a morte dependiam de poder ver.
Tarzan sabia que devia esperar um ataque da parte daquele, entre os outros, que se sentisse mais apto a substituir o rei morto. Sabia, pelo que vira na própria tribo, que acontecia por vezes um estranho, depois de matar o rei, tomar a chefia da tribo, com o acordo dos companheiros do chefe morto.
Por outro lado, se ele não fizesse qualquer tentativa para os seguir, os gorilas afastar‑se‑iam devagar e mais tarde lutariam entre eles, para discutir a supremacia de um. Não ignorava que poderia ser chefe daquela tribo, se quisesse. Mas não via qual a vantagem que poderia tirar disso, na sua situação actual. Um dos gorilas mais novos, um esplêndido animal soberbamente forte, aproximava‑se de Tarzan, rosnando e mostrando ameaçadoramente os dentes. Rígido e imóvel como uma estátua, o homem da selva olhava‑o. Recuar, um passo que fosse, seria precipitar o ataque. Ser o primeiro a atacar seria igualmente precipitar a luta, ou fazer fugir o adversário ‑ tudo dependia da coragem deste.
Ficar imóvel era a melhor atitude. O gorila, conforme o costume, aproximar‑se‑ia mais, sempre ameaçador, grunhindo e mostrando as medonhas presas. Daria uma volta em redor do adversário... Foi o que fez o gorila.
Podia ser apenas uma tentativa de intimidação... mas também podia ser, tão instável é a mente dos antropóides, o prelúdio de um ataque feroz, lançado sem aviso. Quando a fera deu a volta, Tarzan voltou‑se também, fitando‑o sempre. Compreendia que se tratava de um jovem que nunca se sentira, ainda, apto para derrubar o antigo chefe, mas que um dia o tentaria. Era um animal de grande estatura, com mais de dois metros e fortíssimo. Os seus formidáveis braços chegavam quase ao chão, mesmo quando ele estava de pé, e as presas eram excepcionalmente agudas e compridas. Como os outros da sua tribo, era apenas ligeiramente diferente daqueles entre os quais Tarzan havia sido criado.
No primeiro instante, o homem da selva sentira uma excitação de esperança ao ver os antropóides ‑ a esperança de que, por um capricho da sorte, aqueles pudessem ser os seus antigos companheiros. Mas, ao vê‑los mais de perto, tinha reconhecido que pertenciam a uma espécie ligeiramente diferente.
Enquanto o gorila caminhava lentamente à sua volta‑um tanto como faz um grupo de cães quando um cão estranho aparece entre eles ‑, Tarzan teve a ideia de experimentar se a linguagem da sua tribo era igual à daqueles antropóides. E disse:
‑ Quem és tu, que ameaças Tarzan dos Macacos?
O gorila estacou, surpreendido, mas logo respondeu na mesma linguagem primitiva, tão inferior, na escala das línguas, que era na verdade idêntica à dos animais com quem Tarzan vivera os seus primeiros vinte anos.
‑ Sou Akut... Molak morreu, eu sou rei. Vai‑te, ou mato‑te!
‑ Tu viste a facilidade com que matei Molak... ‑ volveu Tarzan. ‑ Da mesma maneira poderia matar‑te, se quisesse ser rei. Mas Tarzan dos Macacos não quer ser rei da tribo de Akut. Só quer viver em paz, neste território. Sejamos amigos. Tarzan dos Macacos pode ajudar‑te, e tu podes ajudar Tarzan dos Macacos.
‑ Não podes matar Akut... ‑ disse o outro. ‑ Ninguém é tão forte como Akut. Se não matasses eu matá‑lo‑ia, porque Akut está pronto para ser rei. Em resposta, o homem da selva lançou‑se sobre o gorila, que enquanto falava havia descuidado ligeiramente a sua vigilância. Caíram ambos, mas Tarzan havia calculado tão bem os seus movimentos que, antes mesmo de tocarem o chão, já tinha agarrado Akut da mesma maneira como agarrara Molak.
Lentamente começou a exercer pressão sobre as vértebras do pescoço do gorila ‑ mas tal como em tempos idos dera a Kerchak a oportunidade de se render e viver, fez agora com Akut, no qual via a possibilidade de um aliado de grande força e valor. Deu‑lhe também a escolher entre viver e ser amigo, ou morrer como morrera Molak, o chefe até então invencível.
‑ «Ka-goda»?... ‑ murmurou Tarzan.
Era a mesma pergunta que havia feito a Kerchak, e na linguagem dos macacos significava mais ou menos : « ‑ Rendes‑te?»
Akut estremeceu, lembrando‑se talvez do medonho estalido que ouvira pouco antes da morte de Molak. Mas não queria desistir de ser rei, e voltou a debater‑se com tremenda fúria, para se libertar. Então Tarzan aumentou ainda mais a pressão, e Akut gemeu: «‑ Ka‑goda»...
Tarzan afrouxou um pouco o golpe, dizendo: ‑ Podes ainda ser rei, Akut. Tarzan disse‑te que não lhe interessa ser rei. Se alguém contestar o teu direito, Tarzan ajudar‑te‑á.
Largou o gorila. Este levantou‑se, devagar, sacudindo a cabeça e grunhindo, colérico. Voltou para junto dos outros, fitando um a um os mais fortes, os que talvez pudessem contestar os seus direitos. Mas nenhum o fez. Em vez disso, deram‑lhe passagem. Momentos depois todo o bando desapareceu na selva, e Tarzan ficou novamente só.
Tinha algumas feridas, resultantes da sua luta com Molak, mas não se impressionava com o sofrimento e suportava‑o com a calma e a força de ânimo dos animais da selva ‑ com os quais aprendera a viver.
Tarzan pensou que a sua primeira necessidade era ter armas de ataque e de defesa, pois o encontro com os gorilas, e as vozes distantes de Numa, o leão, e de Sheeta, a pantera, lhe diziam que a sua vida não ia ser fácil nem segura.
Era apenas um regresso à antiga existência de lutas e perigos ‑ à existência dos que caçam e são caçados. As feras espreitá‑lo‑iam, como noutros tempos, e nunca haveria um momento, entre os dias selvagens e as noites cruéis, em que não pudesse ter de recorrer às armas primitivas que lhe seria possível fabricar com os materiais de que dispunha.
Encontrou, na margem, a extremidade de uma pedra de sílex... e ao cabo de muito trabalho conseguiu separar uma lasca estreita, com cerca de trinta centímetros de comprimento e menos de um centímetro de espessura. Uma das arestas era bastante afiada, perto da ponta. O rudimento de uma faca. Levando isso, internou‑se pela selva e procurou até encontrar um tronco caído, de certa espécie de madeira rija que conhecia bem. Daí cortou um ramo curto e direito, do qual aguçou um dos extremos. Então cavou um pequeno buraco redondo na superfície do tronco caído, onde introduziu pedaços de casca de árvore, bem secos e esmigalhados. Depois enfiou no buraco a ponta aguçada do ramo que preparara, e sentado sobre o tronco fez girar rapidamente, entre as palmas das mãos e em ambos os sentidos, a haste desse ramo. Não tardou que uma ténue coluna de fumo se desprendesse, e um momento depois uma chama subia. Tarzan juntou prontamente ramos secos, sobre esse princípio de fogueira, e dentro em pouco as labaredas erguiam‑se.
Tarzan meteu então no lume a extremidade da sua faca de sílex. Quando ficou sobreaquecida, retirou‑a e tocou um ponto, perto do gume, com uma gota de saliva. Na zona molhada, uma delgadíssima camada estalava e desprendia‑se. Assim, muito devagar, o homem da selva iniciou a demorada operação de dar gume à sua primitiva faca de caça.
Não tentou sequer fazer tudo de uma vez. Ao princípio contentou‑se em ter um gume de cinco ou seis centímetros, com o qual cortou um rijo arco flexível, um cabo para a sua faca, um sólido cacete e uma boa provisão de flechas.
Escondeu estas últimas numa árvore alta, perto de um ribeiro, e aí construiu também uma plataforma com uma cobertura de folhas de palmeira. Anoitecia quando terminou estas tarefas, e Tarzan tinha fome. Notara, durante a breve incursão que fizera através da selva, que no ribeiro, a curta distância da sua árvore, havia um ponto onde os animais costumavam vir beber. De ambos os lados o terreno estava muito pisado e lamacento, o que indicava que animais de todas as espécies, e em grande número, iam ali. Para lá se encaminhou, silenciosamente, saltando de ramo em ramo, a toda a altura das árvores, com a graça e a facilidade dos macacos. Se não fosse a angústia que lhe apertava o coração, ter‑se‑ia sentido feliz por ter voltado à antiga vida livre da sua adolescência.
Apesar dessa angústia, todavia, reencontrava pequenos hábitos e maneiras que na verdade faziam mais parte dele mesmo do que as maneiras e hábitos adquiridos durante a sua permanência no mundo civilizado. Se os seus pares da Câmara dos Lordes pudessem vê‑lo naquele momento, decerto desviariam o olhar, chocados e horrorizados.
Em silêncio, curvou‑se sobre uma das ramadas mais baixas de um dos gigantes da floresta, debruçado sobre a trilha, e os seus olhos penetrantes, como os ouvidos atentos, espiavam a selva de onde viria o seu jantar. Não teve de esperar muito tempo.
Mal se havia instalado numa posição cómoda, as pernas dobradas sob o corpo como fazem as panteras ao preparar o salto, quando Bara, o gamo, se aproximou da água. Mas não vinha só.
Atrás do gracioso animal vinha outro que o gamo não podia ver nem farejar, mas cujos movimentos Tarzan podia seguir do ponto onde se encontrava. O homem da selva não podia saber exactamente que espécie de animal seguia o gamo a uma distância de uns cem metros. Distinguia apenas os movimentos, mas tinha a certeza de que devia ser uma fera de grande porte... e que as suas intenções, quanto a Bara, eram iguais às dele próprio. Talvez Numa, ou Sheeta, a pantera. Em qualquer caso, Tarzan podia ver o seu jantar desaparecer nas garras de um deles, a não ser que Bara se movesse mais rapidamente do que o fazia naquele momento, e se aproximasse do rio. No mesmo instante em que Tarzan pensava nisto, algum ruído quase imperceptível, feito pela fera, chegou aos ouvidos do gamo, porque parou por um instante, sobressaltado e trémulo, para logo, num salto, se precipitar na direcção da água... e de Tarzan. Era sua intenção, decerto, atravessar o ribeiro, no vau pouco fundo, e fugir na margem oposta.
A menos de cem metros dele, vinha Numa.
Tarzan podia ver claramente o leão, agora. Bara ia a passar em baixo. Conseguiria escapar? Foi exactamente nesse instante que Tarzan saltou e caiu sobre o gamo.
Outro instante bastaria para que Numa os alcançasse, a ambos, de modo que, se o homem da selva queria jantar nessa noite, ou em qualquer outra, teria de agir rapidamente.
Assim que caiu sobre o animal, derrubando‑o, Tarzan agarrou‑o pelos chifres e, numa torção rápida e seca, quebrou‑lhe as vértebras do pescoço, matando‑o. O leão rugia furiosamente, agora a poucos metros de distância, quando Tarzan lançou o gamo para um ombro e, segurando uma das pernas entre os seus dentes fortes, saltou para uma das ramadas baixas que pendiam sobre ele.
Agarrou a ramada com ambas as mãos e impeliu o corpo para cima, içando‑se a tempo de esquivar as garras de Numa, que pulara nesse instante. O grande corpo fulvo recaiu no chão, falhando o golpe, enquanto Tarzan levava a sua presa para a segurança de um ramo mais alto. Num gesto irreprimível, que ressurgia também do seu passado, Tarzan fez caretas para a fera que o fitava com raiva, em baixo, e até, por instantes, agitou o corpo do gamo para que Numa visse bem o jantar que havia perdido. Depois, com a sua tosca mas afiada faca de sílex, Tarzan cortou uma fatia de carne dos quartos traseiros de Bara. Enquanto o leão rosnava, caminhando de um lado para o outro como para aturdir a sua raiva, John Clayton, «lord» Greystoke, comia gulosamente a carne crua e sangrenta ‑ e nunca um requintado jantar, num dos luxuosos clubes londrinos, lhe parecera tão saboroso.
O sangue quente sujava‑lhe a cara e as mãos, e o cheiro invadia‑lhe as narinas ‑ o cheiro preferido por todos os carnívoros selvagens.
Quando acabou de comer, Tarzan deixou o resto da carcaça pendurado num ramo da mesma árvore, e, seguido por Numa, que ainda tentava vingar‑se, encaminhou‑se para o abrigo distante, que construíra noutro tronco e onde dormiu até à manhã seguinte, acordando quando o sol já ia alto...
Sheeta
Os dias que se seguiram foram ocupados por Tarzan a completar as suas armas e a explorar a selva. Completou o arco com os tendões do gamo que matara na sua primeira noite ali, e embora tivesse preferido, para tal fim, as tripas de Sheeta, contentou‑se com o que tinha ‑ esperando a oportunidade de matar um desses grandes felinos.
Entrançou também uma comprida corda de ervas compridas e resistentes, igual há que muitos anos antes usara para atormentar Tublat, e que mais tarde se tornara uma arma terrível e eficiente nas suas mãos. Fabricou ainda uma bainha e um cabo para a sua faca, uma aljava para as flechas, e com a pele de Bara fez um cinto e uma espécie de tanga. Então partiu à descoberta do território onde se encontrava. Não era a antiga e, para ele, familiar costa ocidental do continente africano, pois o litoral estava voltado para Leste ‑ o sol nascente surgia do mar, além da selva.
Mas Tarzan tinha também a certeza de que não estava na costa oriental de África, pois que o «Kincaid» não passara pelo Mediterrâneo, nem pelo Canal de Suez, nem pelo Mar Vermelho ‑ nem navegava há bastante tempo para dar a volta ao Cabo da Boa Esperança. Tarzan não conseguia saber onde estava.!
Por vezes pensava se o vapor teria atravessado o largo Atlântico para o deixar nalgum ponto selvagem da costa da América do Sul, mas a presença de Numa, o leão, provava‑lhe que não podia ser assim.
Enquanto Tarzan seguia o seu caminho solitário através da selva, numa direcção paralela à costa, começou a sentir‑se invadido por um desejo de companhia, e pouco a pouco pôs‑se a lamentar o facto de não se haver reunido aos gorilas. Não voltara a vê‑los desde o primeiro dia... quando a influência da civilização era ainda muito forte nele. Agora estava mais perto do antigo Tarzan, e embora compreendesse que pouco havia de comum entre ele e os antropóides... considerava que estes sempre eram melhor companhia do que nenhuma.
Avançando devagar, por vezes de ramo em ramo e de outras vezes simplesmente caminhando ao longo da trilha, ia comendo o que apanhava pelo caminho. Tinha percorrido cerca de uma milha, ou pouco mais, quando a sua atenção foi atraída pelo cheiro de Sheeta que se aproximava do lado do vento.
Sheeta, a pantera, era um encontro que alegrava Tarzan, pois tinha em mente utilizar as longas e rijas tripas do animal para o seu arco, e também pensava em se servir da pele para fazer uma nova aljava e uma nova tanga. Assim, o seu descuidado avanço foi substituído por um cauteloso e silencioso deslizar através da selva. Rápido agora, ia em perseguição do grande e feroz felino ‑ e mau grado o seu nobre nascimento não era na realidade menos selvagem do que a presa que buscava.
Ao aproximar‑se, não tardou a compreender que, por seu lado, a pantera também perseguia alguma caça. Momentos depois, trazido da sua direita pelo vento que soprava levemente em várias direcções, chegou às suas narinas o cheiro forte e intenso de um grupo de gorilas.
A pantera havia‑se empoleirado numa grande árvore, quando Tarzan a avistou, e em baixo, para além, o homem da selva viu Akut e o seu pequeno bando que descansavam numa clareira. Alguns dos antropóides dormitavam apoiados aos troncos, enquanto outros procuravam vagamente qualquer coisa de comer.
Akut era o que estava mais próximo da pantera.
O grande gato estava agachado sobre um sólido ramo, escondido aos olhos de Akut pela densa folhagem, esperando pacientemente até que o antropóide se aproximasse ao alcance do seu salto. Deslizando como uma sombra, Tarzan alcançou a mesma árvore onde estava a pantera, uns metros mais acima. Empunhava na mão esquerda a delgada e comprida faca de sílex. Teria preferido usar o laço, mas a folhagem espessa não lhe permitiria atirá‑lo com segurança.
Agora Akut aproximava‑se da árvore onde a morte espreitava. Sheeta avançou vagarosamente as patas traseiras, ao longo da ramada. Então, de repente,! com uma espécie de medonho grito, saltou sobre o macaco.
Mas, uma ínfima fracção de segundo antes que a pantera saltasse, outro animal de presa havia saltado sobre ela, lançando um brado feroz. Quando o sobressaltado Akut olhou para cima, viu a pantera quase sobre ele... e sobre o dorso da pantera o animal de pele branca que o derrotara dias antes, perto da grande água.
Os dentes do homem da selva estavam cravados no pescoço da pantera, o seu braço direito apertava‑lhe a garganta, e a mão esquerda, empunhando uma delgada tira de pedra, desferia poderosos e repetidos golpes no flanco do felino, atrás da espádua esquerda. Akut teve apenas tempo para saltar de lado, a fim de não ficar sob os dois monstros da selva, que lutavam.
A pantera e o homem da selva caíram pesadamente no terreno, junto do grande antropóide. Sheeta gritava, rosnava e rugia horrivelmente, mas o seu adversário, silencioso agora, não a largava. Implacável e firme, a faca de pedra cravava‑se na pele e na carne de Sheeta, subia e descia de novo ‑ até que o felino tombou de lado e, com uma última crispação das garras, ficou imóvel.
Então a fera de pele branca poisou um pé sobre a carcaça da sua vítima e levantou a cabeça, soltando o seu brado terrível.
Akut e os outros gorilas olhavam, com pasmo, o corpo inerte da pantera e o vulto erguido do homem que a vencera.
Tarzan foi o primeiro a falar.
Salvara Akut em obediência a uma ideia definida, e conhecendo as limitações da inteligência do gorila, sabia que tinha de expor muito claramente a sua intenção, para que ele compreendesse.
‑ Eu sou Tarzan dos Macacos... ‑ disse ele. ‑ Grande caçador, grande lutador. Junto da água grande poupei a vida de Akut quando podia matá‑lo e ser rei da tribo de Akut. Agora salvei Akut de morrer nas garras de Sheeta, a pantera. Quando Akut ou a tribo de Akut estiverem em perigo, chamem Tarzan, assim... ‑ e o homem da selva fez ouvir o grande brado com que, na tribo de Kerchak, chamavam os ausentes nos momentos de perigo. ‑ E também... ‑ continuou ‑ ... quando ouvirem Tarzan chamar desta maneira, Akut e a sua tribo hão‑de lembrar‑se do que Tarzan fez por Akut, e irão muito depressa. Vai ser como Tarzan diz?
‑ «Hu!»... ‑ fez Akut. E, em coro, todos os
outros gorilas deram também o seu acordo: ‑ «Hu!»
Quase a seguir, os gorilas voltaram a procurar
comida como se nada tivesse acontecido, e John Clayton, «lord» Greystoke, fez como eles.
Tarzan, no entanto, notou que Akut se mantinha quase constantemente junto dele, olhando‑o por vezes com uma expressão que parecia de maravilhado pasmo. E de uma vez teve um gesto que Tarzan nunca vira fazer a um gorila, nos muitos anos que vivera entre eles... Tendo encontrado um pedaço de alimento particularmente saboroso, ofereceu‑o a Tarzan.
Quando a tribo caçava, o corpo moreno e luzidio do homem da selva quase se confundia com a espessa pelagem castanha dos seus companheiros. Por vezes roçavam uns pelos outros, nalguma passagem estreita, mas os gorilas tinham aceitado a presença de Tarzan de tal maneira que o consideravam um deles, como Akut ou outro.
Por vezes uma fêmea com cria guinchava e mostrava os dentes se o via aproximar‑se, ou um gorila mais jovem fazia o mesmo se estava a comer e Tarzan passava perto. Mas, nessas coisas também a atitude seria a mesma para qualquer membro da tribo.
Por seu lado, Tarzan sentia‑se perfeitamente à vontade entre aqueles ferozes e peludos precursores do homem primitivo. Punha‑se prontamente fora do alcance das fêmeas que rosnavam ‑ pois assim faziam todos os gorilas, a não ser durante os ocasionais ataques de fúria assassina ‑ e rosnava em resposta aos outros, mostrando os dentes como eles faziam. Assim voltou ao ambiente dos primeiros anos da sua vida ‑ como se nunca tivesse tido a experiência de conviver com criaturas da sua própria espécie.
Durante quase uma semana vagueou pela selva com os seus novos amigos, em parte por desejo de companhia, e também para que a sua presença se fixasse de maneira firme na memória dos antropóides ‑ memória que é sempre de curta duração.
Por experiências anteriores, sabia que lhe conviria ter, prontos a ajudá‑lo, aqueles animais de terrível e poderosa força.
Quando se convenceu de que os gorilas se recordariam dele quando chegasse o momento, decidiu retomar a sua exploração do território. E um dia, muito cedo ainda, partiu para o Norte, seguindo sempre uma linha paralela à costa, e viajou rápida mente até ao anoitecer.
Quando surgiu o sol, na manhã seguinte, Tarzan viu‑o elevar‑se quase exactamente à sua direita, estando ele na praia, em vez de aparecer, como anteriormente, diante dele. Concluiu daí que a linha de costas se encurtava para Oeste. No segundo dia continuou a avançar com a mesma rapidez ‑ e quando Tarzan diligenciava ser rápido jornadeava a meia altura das árvores, com a velocidade de um esquilo. Nessa noite o sol desapareceu para além da linha do horizonte, novamente adiante da praia, e assim o homem da selva verificou aquilo de que já suspeitara.
Rokoff havia‑o deixado numa ilha. Devia ter calculado isso, desde o primeiro momento. Se algum plano do miserável russo pudesse tornar a sua situação ainda mais desesperada, diminuindo ainda mais as possibilidades de procurar o filho, era decerto o premeditado plano de o deixar numa ilha selvagem e desabitada ‑ ou apenas habitada pelas feras.
Sem dúvida que Rokoff seguira para o continente negro, onde lhe seria relativamente fácil entregar o pequeno Jack nas mãos de uma tribo de canibais para que fosse criado entre eles conforme a ameaça que fizera.
Tarzan estremeceu ao pensar no que o menino sofreria em tal vida, mesmo que ficasse em poder de uma tribo ou de um bando cujas intenções, a seu respeito, fossem as melhores. Ele próprio tinha suficiente experiência dos selvagens africanos mais primitivos, para saber que mesmo entre eles poderiam existir rudimentos de caridade e de humanidade.! Mas a vida dessas tribos era tecida de constantes privações, de perigos e de sofrimento.
Um canibal! O seu pequeno Jack transformado num canibal! Era uma ideia terrível... Os dentes aguçados, a pequena face medonhamente pintada...
Tarzan gemeu, baixinho, num gemido onde havia um intenso rugir de cólera contida. Se pudesse sentir a garganta do russo entre os seus dedos de aço! E Jane!
Que torturas de medo, de dúvida, de angústia, devia estar a sofrer. Tarzan sentia que a sua própria situação era menos terrível do que a dela... pois ao menos ele sabia que um dos entes a quem amava estava em segurança... ao passo que Jane ignorava tudo a respeito do paradeiro do marido e do filho. Era tanto melhor para Tarzan o facto de não conhecer a verdade, porque esse conhecimento teria multiplicado por cem o seu próprio sofrimento.
Enquanto avançava, agora vagarosamente, pela selva ‑ a mente ocupada por sombrios e dolorosos pensamentos ‑ chegou aos seus ouvidos um estranho som raspante que não conseguiu interpretar. Cautelosamente, moveu‑se na direcção de onde vinha o som... e avistou uma grande pantera presa sob um
tronco caído.
Quando Tarzan se aproximou, a fera voltou a cabeça para ele, rosnando, debatendo‑se para se libertar. Mas uma forte ramada pesava‑lhe sobre o dorso, e a multidão de ramos pequenos, enovelados, que lhe seguravam as pernas, não lhe permitiram mover‑se mais do que alguns centímetros em qualquer direcção. O homem da selva parou diante do felino indefeso, colocando uma flecha no arco, resolvido a matar o animal que, de outra maneira, acabaria por sucumbir à fome. Mas, quando esticava o arco... deteve‑se
subitamente.
Para que havia de privar a fera da liberdade e da vida, quando lhe seria tão fácil restituir‑lhe ambas? Tinha a certeza, porque a pantera conseguia mover todos os membros, de que não havia fractura de espinha, nem das patas.
Afrouxando a tensão do arco, recolocou a flecha na aljava e aproximou‑se mais do animal. Os seus lábios emitiam o som acalmante, ronronante, que os grandes felinos deixam ouvir quando estão satisfeitos. Era o mais que podia fazer para de algum modo comunicar as suas boas intenções, pois nada mais conhecia da linguagem das panteras, embora a dos leopardos da sua selva lhe tivesse sido quase familiar. A pantera deixou de rosnar e observou atentamente o homem. Para levantar o enorme peso do tronco, de sobre o animal, era preciso pôr‑se ao alcance das terríveis garras ‑ e quando tivesse removido o tronco Tarzan ficaria à mercê do grande felino.
Mas Tarzan ignorava o medo. Tendo tomado a sua decisão, agiu prontamente.
Sem hesitar mais, aproximou‑se da confusão de ramos, junto da pantera, continuando a emitir o mesmo som ronronante. O felino voltava a cabeça na direcção dele, olhando‑o atentamente... quase interrogativamente. As garras continuavam saídas... mas menos ameaçadoras.
Tarzan curvou‑se, apoiou um dos formidáveis ombros à face inferior do tronco ‑ e ao fazer isso as suas pernas nuas roçaram os pêlos sedosos da fera, tão perto estava dela.
Lentamente, Tarzan moveu os seus poderosos músculos.
A grande árvore, com os seus ramos entrelaçados, ergueu‑se pouco a pouco, libertando a pantera, que se apressou a rastejar para fora da sua prisão. Então Tarzan deixou que o tronco recaísse pesadamente ‑ e os dois animais selvagens ficaram a olhar‑se, imóveis.
O homem da selva sorria, sombriamente; sabia que arriscava a vida salvando a pantera... e não se surpreenderia se ela o atacasse assim que se visse livre. Mas a fera não fez isso. A alguma distância da árvore, olhava o homem que saía de entre os ramos.
Quando voltou a parar, Tarzan ficou a três ou quatro passos de Sheeta. Podia ter saltado para os ramos mais altos das árvores próximas, onde a pantera não se atreveria a segui‑lo.
Mas qualquer coisa, talvez o prazer do perigo, fê‑lo aproximar‑se do felino, como para descobrir se algum primitivo sentimento de gratidão influenciaria no seu comportamento.
Quando Tarzan se aproximou mais, a pantera desviou‑se para um lado, cautelosa. O homem da selva seguiu adiante, quase a roçar a cabeça do animal, e encaminhou‑se para a floresta. Então o grande felino seguiu‑o.
Durante horas, Tarzan não conseguiu compreender se a pantera o seguia por um sentimento de amizade... ou se queria conservar ao seu alcance uma presa possível, para quando tivesse fome. Mas acabou por se convencer de que era a primeira das duas causas que impelia a fera.
Mais tarde, nesse dia, o cheiro de um gamo fez com que Tarzan saltasse para uma árvore. Pouco depois, tendo apanhado o animal com o auxílio da sua corda, chamou Sheeta, emitindo um ronronar semelhante ao anterior, de que se servira para a tranquilizar, mas levemente mais forte e mais agudo... semelhante ao que os felinos faziam ouvir quando caçavam aos pares. Quase imediatamente houve um brusco pisar de mato, e o longo e musculoso corpo do animal surgiu perto dele.
Ao ver o corpo de Bara, e ao cheirar o sangue, a pantera correspondeu ao grito. Um momento mais tarde, lado a lado, os dois poderosos animais devoravam a presa.
Durante alguns dias, o estranho par vagueou pela selva, sem se separar. Quando um deles apanhava caça, chamava o outro... e assim se alimentaram bem e com frequência.
Em certa ocasião, quando devoravam um javali que Sheeta abatera, Numa, o leão, sombrio e terrível, surgiu perto deles. Com um rugido colérico, Numa saltou, para os afastar. Sheeta pulou para as moitas próximas, e Tarzan para a mais próxima árvore. Mas aí o homem da selva tirou do ombro as voltas da sua corda, e quando Numa, as garras sobre a carcaça do javali, erguia a cabeça, em desafio... o laço caiu‑lhe em volta do pescoço, puxando‑o bruscamente para trás. Tarzan içou o leão até que só as patas traseiras tocavam no terreno, e no mesmo instante chamou Sheeta, enquanto amarrava a extremidade da corda a um sólido ramo.
Quando a pantera apareceu, em resposta ao seu grito, Tarzan saltou para o terreno, ao lado do leão quase suspenso e furioso, e com a sua longa faca atacou‑o de um lado, enquanto Sheeta o atacava do outro. Assim, em poucos segundos, Numa deixou de se debater e ficou imóvel, pendente da corda, morto.
Os gritos selvagens subiram no silêncio, unidos num só grito apavorante com que o homem e a fera clamavam vitória.
Quando os ecos se esbateram na distância, uma vintena de guerreiros negros, que estavam a varar na praia a sua piroga de guerra, entreolharam‑se, assustados.
Mugambi
Quando Tarzan deu a volta completa à ilha, e fez várias incursões pelo interior, a partir de vários pontos, convenceu‑se de que era a única criatura humana que se encontrava ali. Em parte alguma encontrara sinais de que outros homens tivessem estado ali, mesmo temporariamente. Mas sabia também que a vegetação da selva invade rapidamente qualquer lugar e apaga em curtos dias todos os vestígios que possam ser deixados pela passagem do homem.
No dia seguinte à morte de Numa, Tarzan e Sheeta encontraram a tribo de Akut. Ao ver a pantera, os gorilas dispersaram‑se, fugindo, mas Tarzan acabou por conseguir reuni‑los.
Tinha‑lhe ocorrido a ideia de que seria uma experiência interessante, a de tentar reconciliar aqueles inimigos hereditários. Entregava‑se com empenho a qualquer tarefa que ocupasse o seu tempo e o seu espírito, além da habitual tarefa de caçar para comer.
Nos seus momentos de ócio, as recordações dolorosas invadiam‑no intoleravelmente.
Comunicar o seu plano aos gorilas não era especialmente difícil, apesar de que a exiguidade do vocabulário tornava necessárias muitas repetições. Mas meter no pequeno cérebro selvagem, de Sheeta, a ideia de que devia caçar com os gorilas e não caçar os gorilas, era uma proeza que quase excedia as possibilidades do homem da selva.
Tarzan, entre outras armas, possuía uma comprida e rija clava. Tendo segurado a pantera com a sua corda, usou a clava, com certa liberalidade, sobre o lustroso corpo da fera, para a fazer fixar na memória que não devia atacar aqueles animais peludos, vagamente semelhantes a ele. Os gorilas, tendo compreendido a aplicação da corda, aproximavam‑se mais.
Que o felino não se tivesse atirado a Tarzan, era uma espécie de milagre que talvez fosse em parte explicado pelo facto de que, em duas tentativas de revolta, Tarzan lhe dera com a clava no focinho, ponto extremamente sensível, incutindo assim, na pantera, um saudável respeito por aquela arma.
É discutível que a causa da sua original dedicação a Tarzan persistisse ainda na mente da fera, embora sem dúvida tivesse ainda uma vaga noção subconsciente, ajudada pelo hábito adquirido de caçarem juntos durante os últimos dias. Isso talvez fosse um dos motivos por que o animal se submetia aos tratamentos que Tarzan lhe dava ‑ e que bastariam para que ele se lançasse à garganta de qualquer outra criatura.
Por outro lado, havia também o poder da inteligência do homem, exercendo a sua influência sobre o animal de classe inferior ‑ e no fim de contas seria naturalmente esse o facto principal do domínio de Tarzan sobre Sheeta e sobre os outros animais da selva, que uma vez ou outra se haviam deixado domesticar por ele.
Seja como for, aconteceu que dias depois o homem, a pantera e os gorilas vagueavam pela selva, caçando lado a lado, abatendo as presas que compartilhavam uns com os outros. E, de todo o estranho grupo feroz e selvagem, nenhum era seguramente mais terrível do que o poderoso animal de pele morena e lisa ‑ que poucos meses antes tinha sido um vulto familiar nos grandes clubes londrinos.
Por vezes os animais separavam‑se para seguir as suas próprias inclinações, durante horas ou durante todo o dia. Foi numa dessas ocasiões, quando o homem da selva seguira, de árvore em árvore, na direcção da praia, e fora estender‑se sobre a areia, ao sol... que do alto de um pequeno promontório, a curta distância, olhos atentos e penetrantes o descobriram.
Por momentos, aquele a quem pertenciam os olhos ficou imóvel, fitando com espanto o vulto do grande selvagem branco estendido ao sol. Depois voltou‑se, fazendo um sinal para outros que estavam atrás. Logo outro par de olhos apareceu, e outro, e outros ainda, até que perto de duas dezenas de guerreiros selvagens, medonhamente adornados e pintados, se estenderam sobre o ventre, na crista das rochas, observando o branco.
Estavam do lado oposto àquele de onde soprava o vento, de maneira que Tarzan não pôde sentir o cheiro deles, e como se encontrava quase de costas para os negros, também não pôde ver o cauteloso avanço deles, sobre as pedras e depois através da erva espessa, na direcção da praia.
Eram todos negros altos e fortes, com toucados bárbaros e caras grotescamente pintadas. Muitas argolas de metal, e penas de várias cores, sublinhavam ainda a sua aparência feroz.
Na base dos rochedos, continuaram a avançar cautelosamente, meio dobrados, na direcção de Tarzan que não os pressentia. Todos eles empunhavam as suas maças de guerra.
O sofrimento mental que os pensamentos de Tarzan lhe provocavam, exercia sobre os seus sentidos uma acção embotadora. Foi assim que os negros puderam chegar quase a seu lado, antes que ele sentisse que já não estava sozinho na praia. Todavia, a sua mente e os seus músculos reagiram no mesmo instante, e levantou‑se de um salto no momento exacto em que um ligeiro ruído lhe indicou uma presença estranha. Quase ao mesmo tempo os guerreiros saltaram, brandindo as mocas e lançando brados de guerra... mas o primeiro encontrou morte imediata sob um golpe da clava. Então o grande vulto ágil e poderoso saltou para o meio deles, desferindo tremendos golpes para a direita e para a esquerda, com tal fúria e precisão que os negros debandaram em pânico.
Vários deles tinham ficado estendidos no terreno, mas os sobreviventes reuniram‑se a curta distância e, depois de um breve conciliábulo, voltaram a avançar, empunhando agora as pesadas lanças. O homem da selva olhava‑os, de braços cruzados, um meio sorriso a iluminar‑lhe a bela face. Viu‑os avançar num pequeno semicírculo, entre ele e a selva...
Tarzan compreendeu que tinha poucas possibilidades de escapar quando todas as grandes lanças fossem atiradas contra ele, ao mesmo tempo. Para escapar, só tinha dois caminhos... O mar, ou forçar a passagem entre os seus atacantes. A sua situação era na realidade perigosa... quando uma ideia lhe ocorreu, que o fez alargar mais o sorriso. Os guerreiros estavam ainda a alguma distância e avançavam devagar, à sua maneira, fazendo enorme ruído com os seus brados e batendo fortemente com os pés no chão, numa espécie de dança.
Foi então que o homem da selva lançou uma série de estranhos gritos, onde havia qualquer coisa de fantástico... que obrigou os negros a deterem‑se, surpreendidos. Olharam uns para os outros, como a interrogar‑se, porque aquele som era de tal maneira medonho que os seus próprios brados se tornavam insignificantes, em comparação. Tinham a certeza de que nenhuma garganta humana poderia emitir tais sons, e todavia tinham visto, com os seus próprios olhos, aquele homem branco abrir a boca e soltar o pavoroso grito.
Mas a hesitação durou apenas um momento, e pouco depois, todos ao mesmo tempo, voltaram a avançar sobre o adversário. Quase no mesmo instante, porém, um ruído brusco, na selva, atrás deles, deteve‑os novamente. Voltaram‑se... e o que surgiu aos seus olhos teria feito gelar o sangue de homens mais corajosos do que os Wagambi.
Saltando a vegetação densa, apareceu uma enorme pantera, de olhos luzentes, mostrando as longas presas num grunhido feroz... e atrás dela uma vintena de gigantescos gorilas corriam sobre os negros, aproximando‑se rapidamente. As feras de Tarzan acorriam ao seu apelo.
Antes que os Wagambi pudessem refazer‑se do seu espanto, as feras atacaram‑nos por um lado... e Tarzan pelo outro. Nodosas mocas foram brandidas, algumas pesadas lanças foram atiradas, e embora dois dos gorilas caíssem para não mais se levantarem, assim caíram também os negros de Ugambi.
As presas e as garras de Sheeta rasgavam e retalhavam os negros. Os grandes dentes de Akut degolaram muitos deles, e Tarzan estava em toda a parte, incitando os seus ferozes aliados e cortando uma vida a cada golpe da sua longa faca.
Num momento os negros dispersaram, os poucos sobreviventes correndo cada qual para seu lado, mas dos vinte que haviam descido do promontório apenas um conseguiu escapar à chacina. Esse foi Mugambi, chefe dos Wagambi do Ugambi, e quando ele desapareceu entre a vegetação espessa, só os olhos penetrantes do homem da selva viram a direcção da sua fuga.
Deixando os seus aliados a devorar a carne das vítimas ‑ carne que ele não poderia sequer tocar ‑ Tarzan perseguiu o único sobrevivente da sangrenta luta. Do alto do promontório avistou o negro, que corria desesperadamente para uma piroga de guerra varada na areia, bastante acima da rebentação. Silencioso como uma sombra, o homem da selva correu atrás do aterrorizado negro. No seu cérebro nascera um plano, no momento exacto em que tinha avistado a piroga. Se aqueles homens tinham vindo de outra ilha, ou do continente, por que não haveria ele de utilizar a embarcação para se dirigir aos territórios de onde eles tinham vindo? Era evidentemente um território habitado e sem dúvida com ocasionais ligações com o continente ‑ se não fosse no próprio continente.
Uma pesada mão caiu sobre um ombro de Mugambi antes que este soubesse, sequer, que havia sido seguido, e quando se voltou para lutar... dedos de aço agarraram‑lhe os pulsos e lançaram‑no ao chão, sob o peso do gigante branco, antes que ele pudesse desferir um só golpe para se defender.
Tarzan falou então ao homem que derrubara, usando a linguagem dos negros da Costa Ocidental.
‑ Quem és tu... ‑ perguntou.
‑ Mugambi, chefe dos Wagambi.
‑ Poupar‑te‑ei a vida... ‑ disse Tarzan ‑ ...se me ajudares a sair desta ilha. Que dizes?
‑ Ajudar‑te‑ei... ‑ volveu Mugambi. ‑ Mas agora que mataste todos os meus guerreiros, não sei se eu próprio poderei partir... porque não há ninguém para remar, e sem remadores não é possível atravessar a água.
Tarzan endireitou‑se e deixou que o negro se levantasse. Era um magnífico exemplar, quase o correspondente, em negro, do gigante branco e esplendidamente forte que o enfrentava.
‑ Vem... ‑ disse o homem da selva, começando a andar na direcção de onde vinham os grunhidos das feras que se banqueteavam. Mugambi recuou, apavorado. ‑ Eles... matam‑nos!
‑ Não. Pertencem‑me... ‑ volveu Tarzan. O negro hesitava ainda, temendo aproximar‑se das horríveis criaturas que devoravam os corpos dos seus guerreiros, mas Tarzan forçou‑o a acompanhá‑lo, e pouco depois ambos emergiam da selva em frente da cena horrível que se desenrolava na praia. Ao verem o negro, as feras grunhiram ameaçadoramente, mas Tarzan adiantou‑se para junto delas, arrastando o trémulo Wagambi.
Tal como ensinara os gorilas a aceitar Sheeta, ensinou‑os a adoptar Mugambi, e com muito maior facilidade. Mas Sheeta parecia não ser permeável à ideia de que havia sido chamada para devorar os guerreiros de Mugambi, e no entanto lhe proibiam agir da mesma forma com o chefe. Todavia, porque comera lautamente, contentou‑se com o passar em redor do aterrorizado negro, soltando grunhidos baixos e ameaçadores enquanto fitava nele os seus olhos de fogo.
Mugambi, por seu lado, agarrava‑se a Tarzan, de maneira que o homem da selva mal pôde conter o riso ao ver a que situação lamentável o medo conduzia um chefe de guerreiros. Mas, por fim, agarrou o felino pela pele do pescoço e fê‑lo aproximar‑se de Mugambi, batendo‑lhe duramente na ponta do focinho de cada vez que ele rosnava ou grunhia.
Ao ver aquilo ‑ um homem que castigava, com as mãos nuas, um dos mais ferozes e poderosos animais da selva ‑ Mugambi abria muito os olhos, ao ponto de quase lhe saltarem das órbitas... e o seu respeito por Tarzan transformou‑se numa espécie de maravilhada adoração.
A educação de Sheeta progrediu de tal maneira que dentro de pouco tempo deixou de dedicar a sua esfomeada atenção a Mugambi ‑ e o negro começou a sentir‑se ligeiramente menos apavorado junto da pantera. No entanto, dizer que Mugambi se sentia perfeitamente feliz, seria não respeitar a verdade. Os seus olhos rolavam constantemente de um lado para o outro, quando uma ou outra das feras se aproximava dele, de maneira que, durante a maior parte do tempo, mostrava exclusivamente a parte branca dos globos oculares.
Juntos, Tarzan, Mugambi, Sheeta e Akut, no dia seguinte, foram postar‑se perto do vau do ribeiro, para apanharem um gamo que aparecesse. A um sinal de Tarzan todos saltaram ao mesmo tempo ‑ e Mugambi ficou convencido de que o pobre gamo já estava morto, de medo, mesmo antes de lhe tocarem.
Mugambi acendeu uma fogueira para assar a carne que lhe coube como quinhão, mas Tarzan, Sheeta e Akut devoravam a sua parte, crua, mordendo a plenos dentes e rosnando uns para os outros quando algum deles se adiantava pelo quinhão do vizinho.
No fim de contas, não era estranho que as maneiras do homem branco estivessem mais perto das feras, do que as do negro selvagem. Todos nós somos criaturas de hábitos, e quando a aparente necessidade de dominar os nossos impulsos deixa de se fazer sentir, caímos fácil e naturalmente nos costumes que um longo uso radicou em nós.
Desde criança Mugambi fora habituado a comer carne assim, depois de exposta ao lume, ao passo que Tarzan nunca provara alimentos cozinhados senão depois de adulto, e só nos últimos três ou quatro anos. Portanto, não só um hábito de muitos anos o levava a comer carne crua, mas também as suas preferências de paladar o conduziam a considerar que a carne cozinhada perdia grande parte do seu sabor.
O facto de ele comer a carne assim, crua e em sangue, ou devorar restos de carcaças que por suas mãos enterrara no chão dias antes, assim como a sua capacidade de se alimentar de pequenos roedores e de insectos, pode parecer‑nos repugnante, a nós que fomos sempre «civilizados». Mas ele tinha sido ensinado, desde a infância, a comer essas coisas. Em igualdade de circunstâncias, e vendo que as pessoas à nossa volta faziam o mesmo, nós próprios não hesitaríamos em consumir alimentos que não nos pareceriam menos saborosos do que os acepipes a que de facto estamos habituados ‑ acepipes esses que um selvagem olharia com repulsa, em muitos casos.
O hábito cria na verdade uma segunda natureza.
Por exemplo: há uma tribo, nas proximidades de Lake Rudolph, que não come carne de carneiro nem de vaca, ao passo que uma tribo vizinha come essa carne habitualmente. Não muito longe, outra tribo aprecia carne de burro ‑ coisa repugnante para os componentes de agrupamentos em redor. Quem pode dizer que comer caracóis, pernas de rã e ostras, é menos repugnante do que comer carne de veado, crua?
Os dias seguintes foram ocupados por Tarzan em improvisar, com delgadas tiras de cascas de árvores, laboriosamente unidas, uma vela para a piroga. Desistira de ensinar os macacos a manejar os remos, embora conseguisse meter alguns deles na comprida embarcação e passeá‑los em águas calmas, enquanto ele próprio e Mugambi remavam. As tentativas que fizera para os levar a imitar os seus movimentos não haviam tido resultado, porque os gorilas eram incapazes de concentrar a atenção. Seriam necessárias longas semanas para os ensinar.
Havia uma excepção, no entanto, e essa excepção era Akut. Quase desde o primeiro momento mostrou interesse por aquele novo desporto ‑ o que revelava um escalão de inteligência muito mais lato do que o dos outros animais da sua tribo. Parecia compreender a finalidade dos remos, e Tarzan, embora com as dificuldades do restrito vocabulário dos antropóides, explicou‑lhe como aqueles movimentos, com os remos, podiam ser vantajosamente realizados.
Tarzan soube, por Mugambi, que o continente africano ficava a relativamente curta distância da ilha. Ao que parecia, os Wagambi haviam‑se aventurado longe demais na sua piroga. A forte ondulação e o vento tinham‑nos arrastado para longe de terra. Depois de remarem durante toda uma noite, pensando que iam com rumo ao continente, tinham chegado ali... ainda convencidos que era a costa de onde haviam partido. E o próprio Mugambi só veio a saber que se tratava em verdade de uma ilha quando Tarzan lho disse.
O chefe Wagambi tinha bastante receio de navegar à vela, porque nunca vira antes tal coisa. As suas terras ficavam muito para a nascente do largo rio Ugambi, e fora aquela a primeira vez que alguém da tribo havia chegado ao mar.
Tarzan, por seu lado, estava convencido de que, com um bom vento do Oeste, conseguiria alcançar o continente. De qualquer modo, resolveu que seria preferível morrer no mar a ficar indefinidamente naquela ilha que não devia sequer figurar nos mapas, e à qual nunca aportaria um navio.
Foi assim que, quando começou a soprar vento de feição, embarcou para a aventura, levando consigo a mais estranha tripulação que alguma vez cruzou os oceanos.
Mugambi e Akut iam com ele, e Sheeta, e uma dúzia de grandes gorilas da tribo de Akut...
A medonha tripulação
A canoa de guerra, com a sua carga selvagem, rumou lentamente para a abertura nos recifes, através da qual devia passar para alcançar o mar largo. Tarzan, Mugambi e Akut remavam, pois a costa não deixava que o vento alcançasse a pequena vela.
Sheeta deitou‑se à proa, aos pés do homem da selva. Tarzan considerava que era bom manter a pantera tão afastada quanto possível dos outros membros da sua espantosa tripulação. Pouca ou nenhuma provocação bastaria para fazer com que o felino atacasse qualquer que não fosse o homem da selva, a quem, era evidente, considerava agora como seu amo.
À popa ia Mugambi, diante dele Akut, e entre Akut e Tarzan os doze grandes gorilas olhavam em volta, desconfiados, talvez a procurarem a selva da qual se iam afastando.
Tudo correu bem até que a piroga passou para além dos recifes.
Aí o vento enfunou a vela, fazendo com que a tosca embarcação galgasse as ondas, mais altas à medida que iam alcançando o largo.
Com os balanços da grande piroga, os gorilas começaram a assustar‑se. Ao princípio moveram‑se, inquietos, mas logo depois puseram‑se a grunhir e a gemer. Com dificuldade, Akut conseguiu aquietá‑los, por momentos... mas quando uma onda maior, acompanhada por uma brusca rajada de vento, fez saltar a piroga, pouco faltou para que eles a fizessem voltar‑se, apavorados, antes que Tarzan e Akut os sossegassem mais uma vez. Por fim acalmaram‑se, talvez por se habituarem aos estranhos movimentos da embarcação, e não voltaram a dar mais dificuldades.
A viagem foi quase fácil, daí em diante. O vento manteve‑se, e após dez horas de navegação a linha escura de terra surgiu ante os olhos cansados mas atentos de Tarzan. Era quase noite e isso impedia‑os de ver se estavam, ou não, perto da foz do Ugambi. Tarzan resolveu deixar seguir a piroga, levada na rebentação das ondas, e alcançar terra no ponto mais próximo, para esperarem o nascer do dia.
A embarcação voltou‑se assim que tocou na areia, e imediatamente foi rolada pelas vagas enquanto toda a estranha tripulação tentava alcançar terreno enxuto. Apanhados por outras ondas, foram derrubados uma vez e outra... até que finalmente todos conseguiram firmar‑se em terra, perto da piroga que uma vaga maior deixara também em seco.
Durante o resto da noite os gorilas ficaram em grupo, para se aquecerem uns aos outros junto de uma fogueira que Mugambi acendeu. Tarzan e Sheeta agiram de maneira diferente, porém. Nenhum deles receava a noite na selva, e a fome levou‑os a internar‑se pela escuridão em busca de uma presa.
Seguiram lado a lado, ou um atrás do outro quando a trilha era demasiado estreita, até que Tarzan sentiu o cheiro de um búfalo. Não tardou que avistassem o animal no meio de um denso aglomerado de moitas e de juncos, perto de um rio.
Aproximaram‑se furtivamente do búfalo, Sheeta pela direita e Tarzan pelo lado esquerdo. Caçavam juntos havia já bastante tempo e entendiam‑se facilmente, a um simples ronronar.
Por instantes ficaram em completo silêncio, a curta distância da presa, e então, a um sinal de Tarzan, Sheeta saltou sobre o dorso do búfalo, cravando‑lhe os dentes no pescoço. Instantaneamente o animal levantou‑se e pulou, com um mugido de raiva e de dor, mas ao mesmo tempo Tarzan atacou‑o pelo lado esquerdo, brandindo a faca e cravando‑a repetidas vezes por detrás da espádua. Uma das mãos do homem da selva agarrava‑se aos pêlos compridos, junto da cabeça do búfalo, e não os largou quando o animal enfurecido se lançou em desesperada corrida, tentando escapar à morte. Sheeta, com os dentes e as garras cravados no dorso da presa, mordia e rasgava. Durante várias centenas de metros o poderoso animal correu ainda, sem conseguir livrar‑se dos seus ferozes inimigos ‑ até que a faca de Tarzan lhe acertou no coração.
Então, com um mugido rouco que parecia um gemido, o búfalo caiu morto. Tarzan e Sheeta comeram a carne quente e sangrante, até se fartarem.
Depois, ambos se deitaram na espessura das moitas, a cabeça do homem descansando sobre o flanco da pantera, e dormiram. Mal amanheceu, comeram de novo e Tarzan encaminhou‑se para a praia, para chamar os gorilas a fim de comerem também.
Akut e os seus companheiros devoraram o resto do búfalo e procuraram lugares onde dormir, enquanto Tarzan e Mugambi partiam em busca do grande rio Ugambi. Tinham percorrido apenas algumas centenas de metros quando avistaram um largo curso de água ‑ que o negro imediatamente reconheceu como sendo aquele ao longo do qual ele e os seus companheiros haviam remado na piroga de guerra, no princípio da sua desafortunada viagem.
Os dois homens seguiram o rio, até ao mar, e verificaram que desaguava numa ampla baía a não mais de uma milha do ponto onde a piroga alcançara terra, na noite anterior. A descoberta alegrou Tarzan, pois sabia que nas proximidades dos cursos de água poderia encontrar aldeias indígenas‑‑e confiava em que alguém pudesse dar‑lhe notícias de Rokoff ou do seu filho. Era quase certo que Rokoff se libertaria do menino o mais depressa possível, depois de se haver desembaraçado de Tarzan.
Com a ajuda de Mugambi, endireitou a piroga e voltou a pô‑la na água, tarefa tornada difícil pela rebentação que continuamente rolava sobre o areal. Por fim conseguiram o que queriam, e em breve estavam a remar na direcção da foz do Ugambi. Aí encontraram considerável dificuldade em entrar no rio, contra a corrente normal tornada ainda mais forte pela maré vazante, mas aproveitando as irregularidades da margem, que provocavam breves remansos, ao escurecer haviam alcançado um ponto quase em frente daquele onde as feras de Tarzan tinham ficado a dormir.
Prendendo a piroga a um tronco que se debruçava sobre a água, dirigiram‑se para a espessura da selva e não tardaram a encontrar os gorilas, que apanhavam frutos selvagens a curta distância do ponto onde o búfalo caíra morto. Sheeta não estava em qualquer sítio onde pudessem vê‑la, nem regressou nessa noite. Tarzan pensou que a pantera talvez tivesse partido em busca de outros animais da sua espécie.
Cedo, na manhã seguinte, o homem da selva conduziu os gorilas na direcção do rio, e enquanto caminhava soltava a espaços o grito de aviso que a pantera estava habituada a reconhecer. Em dado momento, um grito parecido se fez ouvir, a distância, e cerca de meia hora depois o vulto esguio e coleante de Sheeta surgiu da selva, no momento em que os gorilas entravam desajeitadamente na piroga.
O grande felino, arqueando o dorso e ronronando como um gato contente, roçou‑se repetidas vezes contra o homem da selva até que, a um sinal deste, foi ocupar o seu lugar à proa da piroga, num salto ágil. Quando embarcaram, descobriram que os gorilas eram apenas dez. Faltavam dois, e embora Akut e Tarzan os chamassem durante quase uma hora, nenhum deles apareceu.
Eram os mesmos que tinham mostrado relutância em partir da ilha, e que mais se haviam assustado durante a viagem. Tarzan convenceu‑se de que os dois antropóides tinham deliberadamente fugido, de preferência a viajarem de novo pela água.
No momento em que o grupo voltou a desembarcar, pouco depois do meio‑dia, um negro nu espreitou‑os por entre a folhagem densa da margem ‑ e logo desapareceu, caminhando para a nascente do rio, antes que o descobrissem. Como um gamo, correu ao longo da trilha até que, ansioso por comunicar as notícias, entrou numa aldeia indígena, algumas milhas acima do ponto onde Tarzan e as suas feras haviam saltado em terra, para caçar.
‑ Vem outro homem branco!... ‑ gritou o negro, ao chegar diante da cubata junto da qual estava sentado o chefe. ‑ Outro homem branco, com muitos guerreiros! Vêm numa piroga de guerra, para matar e roubar tal como fez o outro branco de barbas escuras, que partiu há pouco tempo!
Kaviri ergueu‑se de um salto. Tivera contacto recente com os processos dos homens brancos, e o seu coração de selvagem estava cheio de azedumes e ódio contra eles. Um momento depois o som rolante dos tambores de guerra fazia‑se ouvir na aldeia, chamando os caçadores que estavam na floresta e os homens que andavam nos campos.
Sete canoas de guerra foram levadas para o rio e tripuladas por vários guerreiros de caras pintadas e grenhas hirsutas adornadas de penas.
Longas lanças se enristavam de ambos os lados de cada piroga, quando as ligeiras embarcações começaram a descer o rio. Os músculos dos remadores moviam‑se sob pele de lustroso ébano. Os tambores tinham‑se calado e não se ouviam os sons roucos das trompas primitivas, feitas com chifres de búfalos. Kaviri era um astuto guerreiro, e não queria correr riscos que pudesse de algum modo evitar. Seguiria silenciosamente ao longo do rio, com as suas pirogas, e atacaria o homem branco, de surpresa, antes que as armas de fogo pudessem causar grandes baixas entre a sua gente. Então, pela força do número, esmagá‑lo‑ia, bem como aos negros que o acompanhavam.
A piroga de Kaviri ia um pouco adiante das outras, e ao dobrar uma curva do rio, onde a corrente a arrastava com mais ímpeto, chegou à vista do inimigo que Kaviri buscava.
Tão perto estavam as duas pirogas que Kaviri teve apenas tempo para ver de relance a face do homem branco que vinha à proa, antes que as embarcações chocassem e os guerreiros de Kaviri se erguessem, gritando e atirando as lanças contra os inimigos. Mas um instante depois, quando Kaviri pôde compreender qual era a tripulação da piroga do homem branco... ele teria dado todos os seus adornos para estar em segurança na sua aldeia agora distante. Mal as duas embarcações chocaram, os grandes gorilas de Akut surgiram, grunhindo ameaçadores, do fundo da piroga de Tarzan, e estendendo os longos e poderosos braços arrancaram as lanças das mãos dos homens de Kaviri.
Os negros sentiram‑se dominados pelo terror, mas nada mais podiam fazer senão lutar. As outras pirogas aproximavam‑se rapidamente, agora, e os seus ocupantes pareciam ansiosos por combater, porque pensavam que os seus adversários eram homens brancos e carregadores nativos.
Rodearam a embarcação de Tarzan, mas quando os guerreiros viram quais eram os inimigos que tinham de enfrentar, todas as pirogas, menos uma, deram meia volta e fugiram, a toda a força dos remos, rio acima. A que não fugiu havia‑se aproximado demasiadamente antes que os seus ocupantes compreendessem que iam lutar com feras e não com homens. Tarzan fizera um rápido sinal a Sheeta e a Akut, de maneira que, antes que os negros pudessem afastar‑se, as duas feras saltaram ‑ Sheeta numa das extremidades, com um rugido de fúria, e Akut na outra, grunhindo assustadoramente. As pressas e as garras da pantera causaram tremendos estragos, e os grandes dentes amarelados de Akut rasgaram gargantas... atirando para a água os corpos despedaçados e abrindo caminho para o centro da piroga.
Kaviri estava tão ocupado com os inimigos que haviam invadido a sua própria piroga, que nada podia fazer em auxílio dos ocupantes da outra. O branco, de enorme estatura e espantosa força, arrancara‑lhe a lança com tanta facilidade como se ele, o temível Kaviri, não tivesse mais forças do que uma criança recém‑nascida. Tudo o que o chefe negro podia fazer era tentar vender cara a vida... mas não tardou a compreender que os seus desesperados esforços de nada valiam contra a formidável força e espantosa agilidade do seu adversário... que o agarrara pela garganta e o vergava impiedosamente para o fundo da piroga.
A cabeça de Kaviri começou a andar à roda... tudo se tornou confuso diante dos seus olhos. Debateu‑se ainda, mas acabou por ficar inconsciente.
Quando voltou a abrir os olhos, descobriu, com funda surpresa, que estava ainda vivo. Encontrava‑se solidamente amarrado, no fundo da sua piroga... e em frente dele uma enorme pantera parecia vigiá‑lo. Kaviri estremeceu e apressou‑se a fechar novamente os olhos, esperando que a fera saltasse sobre ele e pusesse termo à sua agonia de medo.
Mas um momento depois, não sentindo as garras da pantera rasgarem‑lhe as carnes, atreveu‑se a olhar outra vez. Atrás da pantera estava o gigante branco que o tinha vencido. O branco manejava um remo, e exactamente adiante, Kaviri pôde ver alguns dos seus próprios guerreiros, desarmados, que remavam também ‑ vigiados pelos grandes gorilas.
Tarzan, notando que o chefe negro recuperara os sentidos, falou‑lhe:
‑ Os teus guerreiros dizem‑me que és o chefe de uma numerosa tribo e te chamas Kaviri...
‑ Sim...
‑ Por que me atacaste, quando eu vinha em paz?
‑ Outro branco chegou aqui, há três luas. Vinha também em paz... Mas quando lhe demos de presente uma cabra, e leite, e frutos, atacou‑nos com as suas espingardas e matou muitos dos meus. Depois seguiu o seu caminho, levando todas as cabras e alguns dos nossos jovens e das nossas mulheres.
‑ Eu não sou como esse outro branco... ‑ volveu Tarzan. ‑ Nenhum mal te teria feito se não me atacasses. Diz‑me... como era a cara desse mau branco? Procuro um a quem quero castigar, e talvez seja esse.
‑ Era um homem com uma cara má, usava uma grande barba escura e... e era um demónio... Sim, era um demónio...
‑ Levava com ele uma criança?... ‑ perguntou Tarzan, tendo quase a impressão de que o seu coração parava enquanto esperava a resposta do negro.
‑ Não, «bwana»... ‑ respondeu Kaviri ‑ ... a criança branca não estava com ele... estava com o outro grupo.
‑ Outro grupo?... ‑ exclamou Tarzan. ‑ Qual outro grupo?
‑ O grupo que o homem branco, mau, perseguia. Nesse grupo ia outro homem branco, uma mulher, e seis carregadores Mosula. Passaram pelo rio três dias antes de chegar o branco mau. Julgo que fugiam dele.
Uma mulher branca... e uma criança... Tarzan estava intrigado. A criança devia ser Jack, o seu filho... Mas quem poderiam ser a mulher e o homem? Seria possível que um dos cúmplices de Rokoff conspirasse com alguma mulher... que decerto acompanhara o russo... para lhe roubar o menino?
Se era isso, a intenção devia ser, sem dúvida, a de levarem o menino de volta para a civilização, e aí pedirem uma recompensa, ou guardarem a criança em seu poder, exigindo resgate.
Mas agora que Rokoff os perseguia pelo interior das terras, ao longo do grande rio, era quase seguro que acabaria por alcançá‑los. A não ser, o que era ainda mais provável, que fossem apanhados e mortos pelos próprios canibais do Alto Ugambi, aos quais Rokoff possivelmente resolvera entregar o menino.
Enquanto Tarzan falava com Kaviri, as pirogas haviam continuado a subir o rio, na direcção da aldeia. Quando chegaram, os guerreiros de Kaviri poisaram os remos no fundo das embarcações, que eram três, olhando de soslaio, com pavor, para os seus estranhos companheiros. Três dos gorilas de Akut haviam sucumbido durante a luta, de maneira que apenas restavam sete ‑ oito contando o próprio Akut ‑ oito enormes e fortíssimos animais. E havia Sheeta, a pantera, e havia Tarzan, e Magambi...
Os guerreiros de Kaviri pensaram que nunca tinham visto tão medonha tripulação, em tudo o que contavam de vida. Esperavam a cada momento ser derrubados e despedaçados por algum dos seus captores. Na verdade eram precisos os esforços conjugados de Tarzan, de Mugambi e do inteligente Akut, para impedirem que as feras se lançassem sobre os negros nus que viam à sua volta... e cujo pavor acicatava mais a pantera e os gorilas.
Na aldeia de Kaviri, Tarzan parou apenas o tempo necessário para comer o que os negros lhe ofereceram, e para combinar com o chefe o recrutamento de uma dúzia de homens que serviriam de remadores.
Kaviri estava mais do que pronto a satisfazer todos os desejos do homem da selva, na esperança de que assim apressaria a partida dos seus espantosos hóspedes. Mas não tardou a descobrir que era mais fácil prometer remadores do que arranjá‑los, porque, quando as suas intenções foram conhecidas, os que ainda não haviam fugido para a selva apressaram‑se a desaparecer sem mais perda de tempo. Assim, quando Kaviri se dispunha a indicar a Tarzan quais seriam os homens que o acompanhariam... verificou que era ele o único homem da sua tribo que estava na aldeia .
Tarzan não pôde conter um sorriso.
‑ Não parecem muito desejosos de nos acompanhar... ‑ disse ‑ ...mas fica onde estás, Kaviri, e não tardarás a ver de novo a tua gente.
Então o homem da selva levantou‑se e, chamando as suas feras, deu ordem a Mugambi para ficar em companhia de Kaviri e desapareceu na selva, levando consigo Sheeta e os gorilas.
Durante meia hora o silêncio da floresta foi apenas perturbado pelos vagos ruídos da vida selvagem, que pareciam aumentar ainda o peso da solidão. Kaviri e Mugambi ficaram sentados no interior da paliçada que rodeava a aldeia. Esperavam.
De repente, ambos ouviram a distância um som medonho, no qual Mugambi reconheceu o espantoso brado do homem da selva. Imediatamente, de todos os lados surgiram gritos e rugidos, dos quais sobressaía, de quando em quando, o grito rouco mas mais agudo da pantera esfomeada...
Traição
Os dois selvagens, Kaviri e Mugambi, sentados diante da cubata de Kaviri, entreolharam‑se ‑ e Kaviri mal podia dominar o terror que o invadia.
‑ Que é isto?... ‑ sussurrou.
‑ É «bwana» Tarzan, com os seus companheiros... ‑ volveu Mugambi. ‑ Mas não sei o que estão a fazer... a não ser que estejam a devorar os guerreiros que fugiram.
Kaviri estremeceu e olhou com pavor para a orla da floresta. Em toda a sua vida de selvagem nunca ouvira tão pavorosos gritos.
Os uivos e os rugidos aproximavam‑se... e agora distinguiam‑se também gritos de mulheres, e crianças e de homens. Durante longos vinte minutos o som horrível continuou a fazer‑se ouvir... até que pareceu surgir de muito perto da aldeia. Kaviri levantou‑se de um salto, para fugir, mas Mugambi agarrou o ‑ porque tais eram as ordens de Tarzan.
Uns momentos depois, uma horda de selvagens surgiu da selva, correndo a abrigar‑se nas cubatas. Fugiam como gado assustado, e atrás deles, impelindo‑os como o gado deve ser impelido, vinham Tarzan, e Sheeta e os medonhos gorilas de Akut.
Não tardou que Tarzan parasse diante de Kaviri, com o seu habitual e tranquilo sorriso.
‑ O teu povo voltou... ‑ disse ‑ ... e agora vais poder designar os que me acompanharão para manejar os remos da minha piroga.
Trémulo, Kaviri levantou‑se, chamando a sua gente para que saísse das cubatas. Mas ninguém lhe respondeu.
‑ Diz‑lhes... ‑ sugeriu Tarzan ‑ ...que se não saírem, os meus amigos irão lá buscá‑los.
Kaviri assim fez, e num instante todos os homens da aldeia apareceram, olhando com pavor as feras que andavam de um lado para o outro.
Rapidamente, Kaviri designou uma dúzia de guerreiros para acompanharem Tarzan. Os pobres diabos quase empalideceram ante a perspectiva de ficarem perto da pantera e dos macacos, nos estreitos limites da piroga, mas quando Kaviri lhes explicou que não havia outra solução ‑ que «bwana» Tarzan os perseguiria, com as suas feras, se eles tentassem escapar‑se ‑ resignaram‑se a ir ocupar os seus lugares, aos remos da embarcação.
Foi com um fundo suspiro de alívio que Kaviri os viu desaparecer para além de uma curva do rio.
Durante três dias o estranho grupo internou‑se sempre mais profundamente no coração da vasta região selvagem que se alonga para além das duas margens do quase inexplorado Ugambi.
Três dos negros fugiram, nesse espaço de tempo, mas porque alguns dos gorilas haviam finalmente aprendido a manejar os remos, Tarzan não os perseguiu.
Na verdade ter‑lhe‑ia sido possível viajar muito mais rapidamente ao longo da margem, mas pensava que lhe seria mais fácil manter reunida a sua tripulação selvagem, conservando as feras na piroga tanto quanto lhe fosse possível. Duas vezes por dia desembarcavam para caçar e comer, e de noite dormiam numa das margens ou em qualquer das inumeráveis ilhotas do rio.
Adiante deles, os indígenas fugiam, apavorados, e assim só encontravam aldeias desertas, no seu caminho. Tarzan estava desejoso de interrogar algum dos negros que viviam perto do rio, mas até então isso não tinha sido possível.
Por fim resolveu seguir ele próprio por terra, deixando os outros continuar pelo rio. Explicou a Mugambi qual era a sua ideia, e disse a Akut que devia obedecer às indicações do negro.
‑ Voltarei dentro de uns dias... ‑ disse. ‑ Agora vou adiante para saber o que aconteceu ao homem branco, mau, a quem procuro.
Quando pararam, Tarzan saltou para a margem e não tardou a desaparecer na selva.
As primeiras aldeias que encontrou estavam desertas ‑ o que indicava que as notícias da aproximação do estranho bando corriam rapidamente, precedendo‑o. Mas ao anoitecer avistou, a distância um grupo de cubatas, rodeado por uma tosca paliçada no interior da qual havia umas duas centenas de nativos.
As mulheres preparavam a refeição da noite, quando Tarzan alcançou os ramos baixos de uma árvore que se debruçava para o interior da paliçada. O homem da selva não sabia exactamente de que maneira poderia entrar em comunicação com aquela gente, sem os assustar ou sem despertar os instintos guerreiros dos negros. Não tinha qualquer desejo de combater, agora. A sua missão era muito mais importante do que lutar com cada tribo que o acaso pusesse no seu caminho.
Por fim imaginou um plano, e depois de se assegurar que não podia ser visto pelos que se encontravam em baixo, emitiu uma série de rosnidos, imitando os de uma pantera. Todos os olhos se voltaram para a densa folhagem da árvore. Escurecia, e os negros não podiam distinguir o que se ocultava entre as ramadas. Assim que compreendeu ter atraído a atenção deles, Tarzan soltou o grito mais agudo e assustador da fera que personificava, e então, mal agitando as folhas, saltou para o chão, no exterior da paliçada, e correu como um gamo na direcção da porta.
Aí, bateu repetidas vezes nos troncos ligados com lianas, gritando, na língua dos nativos, que era um amigo e procurava comida e abrigo para a noite. Tarzan conhecia bem a maneira de ser dos negros. Sabia que os rosnidos e os gritos ferozes da pantera, na árvore, os haviam assustado, e que aquelas pancadas na porta da paliçada os encheriam de pavor. O facto de não lhe responderem não o surpreendeu, pois os nativos receiam todas as vozes que se fazem ouvir, de noite, no exterior das suas paliçadas, atribuindo‑as sempre a algum demónio da selva, ou a qualquer visitante fantástico. Mas continuou a chamar.
‑ Deixem‑me entrar, amigos!... ‑ gritou. ‑ Sou um branco e persigo o outro branco mau, que passou há uns dias por aqui. Quero castigá‑lo pelo mal que ele lhes fez e me fez... Posso provar que sou amigo, subindo à árvore onde está a pantera e fazendo‑a fugir para a selva antes que ela os ataque. Mas se não prometerem deixar‑me entrar e tratar‑me como amigo, então a pantera poderá atacá‑los e devorá‑los...
Por momentos houve silêncio. Depois a voz de um velho fez‑se ouvir, no interior da paliçada.
‑ Se és um branco e um amigo deixar‑te‑emos entrar... mas antes terás de afastar a pantera...
‑ Está bem... ‑ disse Tarzan. ‑ Escutem e ouvirão a pantera fugir diante de mim...
O homem da selva voltou imediatamente para a árvore, e desta vez fez barulho ao içar‑se para os ramos, imitando ao mesmo tempo o rosnar da fera ‑ para que os negros se convencessem de que ela ainda ali estava. Quando alcançou um ponto onde os troncos se debruçavam sobre a aldeia, sacudiu com força a árvore, bradando ameaças... gritando à imaginária pantera que fugisse ou morreria ali.
Em resposta às suas ameaças ouviam‑se os grunhidos e os rugidos do animal enfurecido.
Depois saltou para o outro lado da gigantesca árvore e daí para o chão, correndo na direcção da selva, batendo nos troncos e continuando a imitar, mais fracos, os rugidos da pantera... como se esta se afastasse rapidamente da aldeia.
Minutos depois voltava a bater ao portão da paliçada, gritando:
‑ Já pus em fuga a pantera! Abram e deixem‑me entrar...
Durante longos momentos ouviu a discussão entre os negros, no interior da paliçada, mas finalmente cerca de meia dúzia de guerreiros abriram a pesada porta, ou antes, entreabriram‑na e espreitaram para fora... receosos da estranha criatura que iriam encontrar ali. Não ficaram muito tranquilos ao ver um branco quase nu, mas quando Tarzan lhes falou brandamente, reafirmando as suas boas intenções, abriram mais a porta e deixaram‑no entrar... para logo a fecharem a toda a pressa.
Tarzan encaminhou‑se em passo calmo ao longo da rua central da aldeia, dirigindo‑se para a cubata do chefe. Não tardou a ver‑se rodeado por muitas dezenas de olhos curiosos, de homens, mulheres e crianças.
Interrogando o chefe, soube que Rokoff passara pelo rio cerca de uma semana antes... que tinha chifres na testa, olhos vermelhos... e era seguido por um milhar de demónios.
Mais tarde, o chefe acrescentou que Rokoff havia permanecido na aldeia durante um mês inteiro.
Apesar de que nada daquilo condizia com o que dissera Kaviri ‑ que o russo partira três dias antes, levava incomparavelmente menos «demónios» com ele e não tinha excrescências córneas na testa ‑ Tarzan não ficou surpreendido. Conhecia bem os negros selvagens, e sabia de que maneira funcionava a imaginação deles.
O que lhe interessava saber era que estava na boa pista... e que a pista conduzia para o interior. Em tais circunstâncias, Rokoff não poderia escapar‑lhe.
Ao cabo de várias horas de interrogatório, repetindo perguntas insistentemente, Tarzan ficou a saber que outro grupo passara por ali, alguns dias antes do russo ‑ e que esse grupo era constituído por três brancos, um homem, uma mulher e um menino, com uns quantos Mosulas.
Tarzan explicou ao chefe que os seus companheiros o seguiam, numa piroga, que chegariam provavelmente no dia seguinte e que deviam ser bem recebidos, sem medo, pois Mugambi não os deixaria fazer mal a quem quer que fosse, desde que não lhes mostrassem hostilidade.
‑ E agora... ‑ concluiu ‑ ... vou estender‑me debaixo desta árvore, para dormir. Estou cansado. Não deixes que ninguém me incomode.
O chefe ofereceu‑lhe uma cubata, mas Tarzan, que conhecia por experiência as habitações dos pretos, preferiu o ar livre.
Além disso tinha os seus planos, que seriam mais fáceis de executar ficando perto da árvore. Deu como razão o seu desejo de estar a postos para o caso de a pantera voltar, e com isto o chefe prontamente concordou com o que ele queria.
Tarzan sempre verificara que tirava bons resultados da táctica de deixar os negros com a impressão de que possuía poderes mais ou menos miraculosos. Podia ter facilmente entrado na aldeia sem ser através da porta, mas considerava que uma súbita e inexplicável desaparição, agora que já soubera o que pretendia, deixaria uma impressão mais profunda nas suas mentes infantis. Assim, quando toda a gente adormeceu, na aldeia, levantou‑se, saltou para os ramos da árvore e desapareceu, silenciosamente, na treva e no mistério da selva nocturna.
Durante todo o resto da noite, Tarzan avançou rapidamente ao longo das copas das árvores, a meia altura ou saltando entre os ramos mais altos. Quando a jornada era fácil, preferia as ramadas mais altas porque aí o seu caminho era iluminado pelo luar. Mas estava de tal maneira habituado, com todos os seus sentidos, ao mundo sombrio da selva onde nascera, que lhe era possível, mesmo na sombra mais densa, perto do chão, mover‑se à vontade e com rapidez. Qualquer de nós, numa rua da cidade, não anda mais facilmente ‑ nem de longe com tanta velocidade ‑ do que o homem da selva na treva onde nós nos sentiríamos perdidos.
De madrugada parou, para comer, e então dormiu algumas horas, retomando o caminho cerca do meio‑dia.
Por duas vezes encontrou indígenas, e embora tivesse grande dificuldade em se aproximar deles, ambas as vezes o conseguiu, vencendo receios ou hostilidade, e soube que continuava na pista do russo.
Dois dias depois, continuando a subir o Ugambi, chegou a uma grande aldeia. O chefe, um negro de aspecto feroz, com os dentes aguçados que muitas vezes indicam hábitos de canibalismo, recebeu‑o com aparente amizade. Tarzan estava bastante cansado e resolvera repousar durante oito ou dez horas, para se sentir forte e lesto quando alcançasse Rokoff‑ o que, tinha a certeza disso, não demoraria muito.
O chefe da aldeia disse‑lhe que o branco de barbas partira dali na manhã do dia anterior, e que sem dúvida ele poderia alcançá‑lo dentro em breve. Quanto ao outro grupo, o negro afirmava não o ter visto, nem ter ouvido falar a tal respeito.
Tarzan não gostou do aspecto nem das maneiras do negro, que embora mostrando‑se amistoso parecia disfarçar mal um certo desprezo por aquele branco meio nu, que viajava sem carregadores e não trazia presentes para oferecer. Mas precisava de descanso e comida, duas coisas que na aldeia encontrava com menos esforço do que na selva, e como não sabia o que era ter medo do que quer que fosse, deitou‑se à sombra de uma cubata e não tardou a adormecer.
Mal se havia afastado do chefe, quando este chamou dois dos seus guerreiros e lhes sussurrou ordens. Um momento depois os dois homens corriam pela trilha do rio, na direcção do Leste.
Na aldeia, o chefe mantinha um silêncio total.
Não permitia que se aproximassem do visitante adormecido, nem que alguém cantasse ou falasse em voz alta. Parecia extremamente solícito em não consentir que perturbassem o sono do hóspede.
Três horas mais tarde, duas pirogas aproximaram‑se em silêncio, vindas do curso superior do Ugambi. Vinham depressa, sob os esforços dos remadores negros. Na margem do rio estava o chefe da aldeia, à espera, e ao ver as pirogas ergueu horizontalmente a sua lança, acima da cabeça, como num sinal combinado com os que vinham.
E tal era de facto a razão da sua atitude ‑ cuja significação era de que o homem que chegara à aldeia dormia pacificamente. À proa das duas pirogas vinham os dois homens que o chefe enviara três horas antes. Não podia haver dúvidas de que lhes havia dado ordens para procurarem e trazerem os outros, o sinal tinha sido combinado com eles.
Momentos depois as duas pirogas encostavam à margem. Os indígenas desembarcaram, e com eles meia dúzia de homens brancos. Eram homens de mau aspecto, mas nenhum deles tão repulsivo como o de barba negra que os comandava.
‑ Onde está o branco que os teus mensageiros disseram ter chegado à aldeia?... ‑ perguntou ele ao chefe.
‑ Vem comigo, «bwana»... Tenho tido a aldeia em silêncio, para que ele estivesse ainda a dormir quando tu chegasses. Não sei se é aquele que te quer mal, mas fez muitas perguntas a teu respeito e a sua aparência é a do que julgavas seguro no sítio a que chamas a Ilha da Selva. Se não me tivesses contado isso, eu não o reconheceria e ele teria seguido para diante... para te matar. Se for um amigo e não um inimigo, nenhum mal houve, «bwana»... Mas se for um inimigo... eu gostaria muito de ter um rifle, e munições.
‑ Fizeste bem... ‑ volveu o branco ‑ ... e terás o rifle e as munições, quer ele seja amigo ou inimigo, contando que me ajudes.
‑ Ajudar‑te‑ei, «bwana»... ‑ disse o chefe. ‑ E agora vem ver o branco que dorme na minha aldeia.
Com estas palavras, o chefe voltou‑se e encaminhou‑se para a cubata, a cuja sombra Tarzan dormia tranquilamente. Atrás do chefe e do homem de barba preta iam os outros brancos e cerca de uns vinte guerreiros. Todos caminhavam em completo silêncio.
Quando deram a volta à cubata, cautelosamente e em bicos de pés, um duro sorriso crispou os lábios do branco, ao avistar o adormecido homem da selva. O chefe olhou‑o, interrogativamente, e ele fez um aceno de cabeça, como a indicar‑lhe que não se enganara nas suas suspeitas. Então voltou‑se para os que o seguiam, apontando para o homem adormecido, e indicou‑lhes, por gestos, que o agarrassem e amarrassem.
No instante seguinte uma dúzia de patifes saltou sobre Tarzan, e tão depressa trabalharam que ele ficou solidamente amarrado antes de poder fazer qualquer esforço para se defender.
Então os captores voltaram‑no, e quando Tarzan viu a multidão que os rodeava, distinguiu a expressão cruel de Nikolas Rokoff. O russo teve um riso áspero, e aproximou‑se.
‑ Porco! Não aprendeste ainda a ficar longe de Nikolas Rokoff? Toma, para boas‑vindas... ‑ disse, dando um pontapé brutal na cabeça do homem caído e amarrado. ‑ Esta noite, antes que os meus amigos etíopes te devorem, dir‑te‑ei o que já aconteceu à tua mulher e ao teu filho, e quais os planos que tenho para o futuro deles!
A dança da morte
Através da vegetação densa e luxuriante, na escuridão da noite, um corpo poderoso e coleante avançava em completo silêncio, sobre as fortes patas almofadadas.
Só dois pontos brilhantes, de um fulgor amarelo‑esverdeado, reluziam de quando em quando, reflectindo a claridade do luar que, aqui e além, penetrava através do dossel de folhagem que o vento agitava levemente.
Por vezes a fera parava, erguendo a cabeça, farejando... De outras vezes saltava agilmente para as ramadas baixas das árvores, mas logo descia e retomava o seu avanço para Leste. Parecia empenhada em chegar a algum lado, tão empenhada que esquecia a fome e deixava passar, no negrume da selva, vultos esquivos que logo desapareciam, mas que teria apanhado se quisesse, com um simples distender dos músculos poderosos.
Durante toda a noite a fera manteve o seu avanço solitário, e ao romper da madrugada deteve‑se apenas o tempo necessário para apanhar um gamo que devorou rapidamente. Voltou a caminhar durante horas, e escurecia de novo quando alcançou a alta paliçada que rodeava uma aldeia indígena.
Deu a volta à paliçada, como uma sombra de morte silenciosa e súbita, farejando o chão. Até que parou num ponto onde o muro de troncos passava imediatamente atrás de umas quantas cubatas. Aí farejou de novo. Depois, levantando a cabeça, com as orelhas enristadas, pareceu ficar à escuta.
O que ouviu não era som que pudesse ser captado por ouvidos humanos, mas o sentido de audição do animal era incomparavelmente mais apurado, e o que distinguiu... transmitiu‑lhe uma mensagem ao cérebro. Então uma estranha transformação se operou naquela massa de músculos, que um momento antes se fixara numa imobilidade de bronze.
Como se assentasse sobre fortes molas, subitamente libertadas, a fera subiu no espaço, brusca e silenciosamente, e alcançou o alto da paliçada, para logo saltar, com o mesmo fantástico silêncio, para o estreito espaço entre os troncos e as traseiras das cubatas.
Na rua central da aldeia, mais adiante, as mulheres acendiam grande número de pequenas fogueiras, sobre as quais colocavam panelas de barro, com água. Ia haver um festim, antes que a noite se adiantasse muito. Perto de um grosso poste, ao centro do círculo formado pelas fogueiras, um grupo de guerreiros conversava. Todos tinham o corpo coberto de grotescas listas de cor, pintadas sobre a pele negra ‑ listas brancas, azuis e ocre. Círculos também de cores rodeavam‑lhes os olhos e a boca, e sobre as grenhas crespas, endurecidas com barro, usavam penas e pedaços de arame.
Toda a aldeia se preparava para o festim. Numa cubata, a um lado do círculo onde iria realizar‑se a selvática orgia, a vítima que ia ser sacrificada aos bestiais apetites dos negros esperava o seu fim, solidamente amarrada.
Tarzan, tensos os músculos formidáveis, fazia pressão contra as cordas que o prendiam. Mas as cordas haviam sido fortemente reforçadas, por instigação do russo, de maneira que nem os músculos do homem da selva conseguiam afrouxá‑las. A morte!
Tarzan havia encarado a sorrir, cara a cara, Medonho Caçador, em muitas ocasiões. E voltaria a sorrir, nessa noite, quando compreendesse que o fim estava próximo. Mas agora os seus pensamentos não se ocupavam dele próprio ‑ ocupavam‑se daqueles a quem amava e que sofreriam por causa da sua morte.
Jane nunca saberia de que maneira ele morrera, e por isso Tarzan dava graças a Deus. Por isso e por saber que ela estava a salvo, no meio da civilização de uma das grandes cidades do mundo. Salva e entre amigos dedicados, que fariam o possível para a animar na sua tristeza. Mas o menino!
Tarzan sentia uma crispação interior, ao pensar nele. O seu filho! E agora ele ‑ o poderoso senhor da selva ‑ ele, Tarzan, rei dos Macacos, a única criatura, em todo o mundo, que poderia encontrar e salvar o menino, libertá‑lo dos horrores que os planos de Rokoff lhe reservavam ‑ tinha sido apanhado como uma criatura estúpida e tola. Morreria dentro de poucas horas, e com ele morreria a última esperança de socorro para o seu filho.
Durante a tarde, Rokoff tinha ido vê‑lo para gozar a sua vitória, para lhe bater. Mas não arrancara uma só palavra nem um só gemido ao gigante prisioneiro. Assim, acabara por desistir, reservando o golpe final, a tortura pior, para o último instante, exactamente antes que as lanças dos canibais deixassem Tarzan para além de todos os sofrimentos. Queria que a morte do seu inimigo fosse uma coisa infernal, em que as torturas físicas e as torturas morais se juntassem num derradeiro golpe. Só então Tarzan saberia onde estava sua mulher ‑ que ele supunha ainda em segurança, em Londres.
O crepúsculo invadia a aldeia, e o homem da selva podia ouvir o progresso dos preparativos da tortura e do banquete. Podia imaginar, porque várias vezes a tinha visto, a dança da morte. Apenas... agora ele seria a figura central, amarrada ao poste.
A tortura da morte lenta, enquanto os guerreiros, girando em volta, o cortariam pouco a pouco, com demoníaca habilidade, mutilando‑o sem o deixarem inconsciente ‑ não o aterrorizava. Era imune ao sofrimento, e ao espectáculo do sangue, e à morte cruel.
Mas nem por isso diminuía nele o desejo de viver, e enquanto houvesse no seu corpo uma centelha de vida, a esperança e a determinação não o deixariam. Bastava‑lhe que a vigilância afrouxasse por um instante... Sabia que a sua mente astuta e os seus gigantescos músculos lhe abririam um caminho para escapar... e vingar‑se.
Enquanto ali estava, pensando quase furiosamente em cada possibilidade de se salvar, chegou às suas narinas sensíveis um cheiro débil mas conhecido. No mesmo instante todas as suas faculdades despertaram e ficaram alerta. Então os seus ouvidos apurados captaram o som de uma presença silenciosa lá fora, atrás da cubata onde ele estava.
Os lábios de Tarzan moveram‑se, e embora não emitisse qualquer som audível para ouvidos humanos fora da sua prisão ‑ ele sabia que a presença nocturna o registaria. Sabia de quem era essa presença, porque o seu olfacto lho havia dito.
Um instante depois ouviu o ruído macio de um corpo coberto de pêlos sedosos... que roçava o alto da paliçada junto da qual se erguia a cubata. Patas almofadadas pisaram o terreno, num rumor quase imperceptível. Depois a parede de colmo, da cubata, foi aberta para deixar passar o corpo alongado do animal que veio encostar a ponta do focinho ao pescoço de Tarzan.
Era Sheeta, a pantera.
A fera andou em volta do homem caído, soltando brandos gemidos. Havia um estreito limite para a comunicação entre ambos, e assim Tarzan não podia saber se Sheeta entendia o que tentava dizer‑lhe. Podia ver que ele estava amarrado e sem defesa, decerto. Mas isso seria o bastante para que a pantera compreendesse o perigo que ele corria? O que a trouxera ali? O facto de ter vindo podia indicar que entenderia outras coisas... Mas, quando Tarzan aproximou do focinho da fera as suas mãos amarradas... o animal não compreendeu que era preciso morder e cortar as cordas... e lambeu os pulsos e os braços do prisioneiro.
Alguém se aproximou da cubata. Sheeta, rosnando surdamente, recuou para a sombra. O visitante não ouviu o rosnido, porque entrou. Era um guerreiro selvagem, alto e forte, nu e cruel.
O negro aproximou‑se de Tarzan e picou‑o com a ponta da lança. Dos lábios do homem da selva saiu um estranho, fantástico som... e em resposta um vulto poderoso e esguio saltou da sombra da cubata, como um raio. No mesmo instante o guerreiro foi derrubado. Garras agudas rasgaram‑lhe o peito, dentes agudos destroçaram‑lhe a garganta.
O negro teve ainda tempo de soltar o seu último brado... um brado de terror e de morte, no instante em que a pantera saltara, rugindo. Depois fez‑se silêncio, um silêncio profundo onde se ouvia apenas o rasgar das carnes e o estalar dos ossos entre os dentes de Sheeta.
O grito e o rugido tinham sido ouvidos lá fora, e todo o rumor cessara. Mas um momento depois ouviram‑se vozes excitadas, vozes agudas de medo, vozes duras, de comando.
Tarzan e a pantera distinguiram o ruído dos passos de muitos homens... e então, com grande surpresa de Tarzan, o felino largou os restos da sua vítima e desapareceu sem rumor, pelo mesmo buraco por onde entrara.
O homem da selva distinguiu o quase silencioso roçar do corpo de Sheeta pelo alto da paliçada, e depois mais nada. Do outro lado da cubata os selvagens aproximavam‑se.
Poucas esperanças lhe restavam de que a pantera voltasse. Se tivesse a intenção de o defender, teria ficado junto dele ao sentir a aproximação dos negros. Tarzan conhecia as estranhas reacções dos grandes animais da selva ‑ sabia como podiam ignorar o medo em face da morte, mas como por vezes se assustavam perante simples ameaças. Talvez que o medo dos negros encontrasse algum eco no sistema nervoso da pantera, contagiando‑a e obrigando‑a a fugir. Encolheu os ombros. Que importava? Tinha contado com a morte, e no fim de contas que poderia Sheeta ter feito além de derrubar dois ou três negros, antes que as espingardas dos brancos a derrubassem também? Se a pantera o tivesse libertado das cordas, tudo seria diferente... mas essa tarefa excedia a compreensão do felino. Agora havia desaparecido, e Tarzan tinha de abandonar toda a esperança.
Os negros estavam agora diante da porta da cubata, espreitando, apavorados, para a escuridão interior. Dois deles seguravam pequenos archotes na mão esquerda, empunhando na direita as lanças. Mas recuaram, com medo, sobre os que vinham atrás e os empurravam.
O grito de morte do guerreiro, misturado com o rugido da pantera, enchera‑os de terror ‑ mas agora o silêncio da cubata parecia‑lhes mais ameaçador ainda. Por fim, um dos portadores de archotes teve uma ideia ‑ a ideia de atirar o tição a arder para dentro da cubata. Por instantes o clarão do lume iluminou o espaço interior, antes que o archote caísse no chão e se apagasse.
Viram o vulto do prisioneiro branco, ainda amarrado como o haviam deixado, e no centro da cubata outro vulto igualmente imóvel, com a garganta e o peito horrivelmente destroçados.
O espectáculo apavorou mais os negros do que o teria feito a presença de Sheeta, porque viam apenas o resultado do feroz ataque a um dos seus companheiros. Não vendo o que causara aquilo, os seus cérebros, já toldados pelo medo, atribuíram tudo, imediatamente, a causas sobrenaturais ‑ e com essa espantosa ideia deram meia volta e fugiram, doidos de pavor, derrubando todos os que se encontravam no caminho da sua fuga.
Durante cerca de uma hora Tarzan ouviu apenas as vozes excitadas que pareciam vir da outra extremidade da aldeia. Era evidente que os negros estavam a tentar ganhar coragem para se aproximar novamente da cubata. De quando em quando erguia‑se um brado selvagem, do género daqueles que os negros soltam, para se animar, em plena luta.
Por fim, foram dois dos brancos que se aproximaram, trazendo archotes e rifles. Tarzan não se surpreendeu ao ver que nenhum deles era Rokoff. Sabia que nenhuma força levaria o grande cobarde a enfrentar o perigo desconhecido que espreitava no interior da cubata.
Quando os indígenas viram que os dois brancos não eram atacados, entraram também. Falavam em sussurros apavorados, olhando para o corpo mutilado do companheiro. Os dois brancos tentaram, em vão, conseguir que Tarzan falasse. A todas as suas perguntas ele abanava simplesmente a cabeça, sorrindo duramente. Por fim, apareceu Rokoff.
Ficou lívido ao ver os despojos sangrentos do negro, a expressão de pavor que a morte fixara para sempre.
‑ Vamos... ‑ disse ele ao chefe ‑ ... é preciso acabar com este demónio, antes que ele possa voltar a fazer o mesmo a outro dos teus guerreiros.
O chefe deu ordens para que Tarzan fosse conduzido para o poste, mas decorreu bastante tempo antes que ele conseguisse que algum dos homens se atrevesse a tocar no prisioneiro. Por fim, quatro guerreiros mais novos arrastaram Tarzan para fora da cubata, e uma vez fora daquele lugar de pavor todos pareceram recuperar a coragem perdida.
Uma vintena de guerreiros uivantes empurrou Tarzan ao longo da rua da aldeia, e amarrou‑o ao poste em volta do qual continuavam a arder as pequenas fogueiras, com as panelas de barro cheias de água.
Quando, por fim, Tarzan ficou amarrado solidamente, parecendo indefeso e para além de qualquer possibilidade de socorro, Rokoff conseguiu retomar a habitual coragem... de quando não havia qualquer perigo. Aproximou‑se do homem da selva e, apanhando a lança de um dos selvagens, foi o primeiro a feri‑lo. Um fio de sangue correu ao longo da pele lisa do gigante branco, brotando do golpe numa ilharga, mas nenhum gemido passou pelos seus lábios.
O sorriso de desprezo com que fitou Rokoff enfureceu o russo. Largando a arma precipitou‑se sobre o homem amarrado e bateu‑lhe com os punhos e com os pés. Então agarrou de novo a lança e esboçou o gesto de a cravar no coração de Tarzan... mas nem assim conseguiu apagar o sorriso de desprezo. Doido de fúria, o eslavo ia vibrar o golpe...
O chefe negro saltou sobre ele e deteve‑lhe o braço, gritando:
‑ Basta, homem branco! Se nos roubas o preso e a dança da morte, tu mesmo tomarás o lugar dele!
A ameaça bastou para que Rokoff se aquietasse, mas, a alguma distância, continuou a insultar o seu inimigo. Disse‑lhe que ele próprio comeria o seu coração... alongou‑se sobre os horrores da vida futura do filho de Tarzan... afirmou que Jane Clayton não escaparia à sua vingança.
‑ Pensa que a sua mulher está segura, em Londres... Imbecil! Neste momento está em mãos de um homem de baixa condição, e muito longe de Londres e da protecção dos seus amigos. Só pensava dizer isto quando pudesse levar‑lhe, à Ilha da Selva, as provas do que acontecia. Mas agora você vai morrer, da morte mais espantosa que um homem branco possa imaginar... e que isto sirva para aumentar os seus tormentos antes que o último golpe de lança o deixe para além de todas as torturas.
A dança começou então, e os brados dos guerreiros abafaram as palavras com que Rokoff queria aumentar a tortura do homem da selva. Os selvagens saltavam, iluminados pelos clarões oscilantes das fogueiras, que emprestavam uma nova dimensão aos seus corpos pintados.
A memória de Tarzan evocou uma cena semelhante, quando ele salvara d'Arnot de uma situação como aquela, antes que o golpe final o acabasse. Mas quem havia agora que pudesse salvá‑lo, a ele? Ninguém, no mundo, poderia libertá‑lo da tortura e da morte.
A ideia de que aqueles monstros humanos o devorariam quando terminasse a dança da morte, não o apavorava. Não aumentava os seus sofrimentos, como teria aumentado os de qualquer outro homem branco, porque durante muitos anos da sua vida Tarzan tinha visto as feras devorarem as presas abatidas.
Não tinha ele próprio lutado para disputar o braço de um gorila morto, naquele distante Dum‑Dum em que vencera Tublat e conquistara o respeito da tribo de Kerchak?
Os negros dançavam cada vez mais perto. O círculo apertava‑se. As lanças começavam a espicaçar‑lhe o corpo, nos primeiros golpes que precediam os golpes mais fundos.
Já não demoraria muito, agora.
O homem da selva ansiava pelo ferro da última lansa, que poria fim à sua agonia.
E foi então que, das profundidades da selva, veio um estranho som, agudo, mistura de bramido e de rugido.
Por instantes os negros estacaram, e no silêncio súbito o prisioneiro lançou para a noite um grito semelhante, mais assustador e mais terrível ainda.
Durante alguns minutos, os guerreiros hesitaram. Depois, incitados pelo chefe e por Rokoff, saltaram para acabar a dança e a vida de Tarzan... Mas, antes que outra lança tocasse a pele morena do homem da selva, um corpo escuro, como um raio de ferocidade e de fúria, surgiu da cubata onde ele tinha estado prisioneiro. Com os olhos relampejantes, Sheeta, a pantera, apareceu ao lado do seu senhor.
O terror imobilizou por momentos os brancos e os negros. Todos os olhos se fitavam nos poderosos dentes do felino.
Só Tarzan viu o que, atrás da pantera, surgia pela abertura da cubata...
Nobreza ou vilania
Pela vigia do seu camarote no «Kincaid», Jane Clayton vira o marido ser levado para a margem da ilha coberta de densa vegetação... e meia hora depois compreendera que o navio retomava a sua rota, afastando‑se.
Durante vários dias não viu mais ninguém além de Sven Anderssen, o taciturno e repulsivo cozinheiro. Perguntou‑lhe por várias vezes o nome da ilha onde haviam deixado Tarzan.
‑ Acho qu'o vento vai soprar não tarda, e com força... ‑ foi a única e constante resposta do sueco.
Jane chegou à conclusão de que era aquela a única frase que ele conhecia, em inglês, e deixou de o interrogar. Mas nunca deixou de o receber com um sorriso e de agradecer as nauseabundas refeições que ele trazia.
Três dias depois de haverem desembarcado Tarzan, os tripulantes do «Kincaid» lançaram ferro na foz de um grande rio. Foi então que Rokoff voltou a apresentar‑se a Jane.
‑ Chegámos, minha cara... ‑ disse ele, com um sorriso nojento. ‑ Venho oferecer‑lhe segurança, liberdade e comodidade. O meu coração deixou‑se impressionar pelo seu sofrimento, e estou disposto a compensá‑la o melhor que posso... O seu marido era um animal primitivo... sabe bem isso, pois que o encontrou na sua selva nativa, tão selvagem como as feras que eram as suas companheiras. Quanto a mim sou um «gentleman», não apenas nascido de sangue nobre mas educado da maneira que cumpre a um homem de qualidade.
«Assim, cara Jane, ofereço‑lhe o amor de um homem culto e requintado, um sentimento que muito lhe faltou nas relações com o macaco com o qual, por impensada decisão de rapariga, esteve casada. Eu amo‑a. Basta‑lhe dizer uma palavra e não terá qualquer outra preocupação... até mesmo o seu filho lhe será restituído são e salvo.»
Do lado de fora da porta, Sven Anderssen parou, com a refeição do meio‑dia que trazia à prisioneira. Sobre o pescoço comprido e magro, a sua cabeça inclinava‑se para um lado, com os olhos semicerrados e os ouvidos atentos, na atitude de quem escuta intensamente. Até mesmo o seu comprido bigode amarelo parecia prestar atenção.
Quando Rokoff acabou de falar, esperando a resposta, a expressão de surpresa, na face de Jane, transformou‑se numa expressão de repugnância. Estremeceu, ao dizer:
‑ Não me teria surpreendido, sr. Rokoff... se tivesse tentado submeter‑me pela força aos seus vis desejos... mas que seja bastante tolo para acreditar que eu, mulher de John Clayton, possa pertencer‑lhe voluntariamente, mesmo para salvar a minha vida... é coisa que nunca teria imaginado. Sabia que é um patife, sr. Rokoff, mas não o supunha tão profundamente estúpido!
Os olhos de Rokoff semicerraram‑se, e uma intensa vermelhidão substituiu a habitual palidez doentia da sua face. Deu um passo para Jane, em atitude ameaçadora.
‑ Veremos quem é estúpido, no fim... ‑ disse, entre dentes ‑ ... quando eu a tiver subjugado à minha vontade, e o seu teimoso plebeísmo americano lhe tiver custado tudo aquilo que ama ‑ incluindo a vida do seu filho. Pelos ossos dos meus avós, que porei de parte todos os meus planos para retalhar o coração dessa criança, diante dos seus olhos! Aprenderá o que significa insultar Nikolas Rokoff!
Jane voltou‑lhe as costas, com um ar cansado. ‑ Para que serve... ‑ disse ela ‑ ...espraiar‑se pelas profundidades a que pode chegar o seu espírito de vingança e o seu carácter repugnante? Nem ofertas nem ameaças podem mover‑me. O meu filho não está ainda em condições de julgar por si mesmo, mas eu, sua mãe, posso prever que, se ele sobrevivesse até chegar a ser um homem, faria voluntariamente o sacrifício da sua vida para defender a minha honra. Amo‑o tanto quanto é possível, mas não compro a vida dele por tal preço. Se o fizesse, o meu filho amaldiçoaria a minha memória até ao último dos seus dias.
Rokoff estava agora completamente enfurecido, ante o seu fracasso de domar Jane pelo terror. Por ela não sentia mais do que ódio, mas a sua mente desequilibrada agarrara‑se à convicção de que, se Jane lhe cedesse ao preço da sua vida e da vida do filho, a taça da sua vingança ficaria mais cheia... podendo apresentar como sua amante, nas capitais da Europa, a mulher de «lord» Greystoke.
Aproximou‑se mais. A raiva e o desejo contorciam‑lhe as feições. Num salto de fera, atirou‑se sobre ela e, apertando‑lhe o pescoço com ambas as mãos, fê‑la cair sobre o beliche.
No mesmo instante a porta do camarote abriu‑se ruidosamente. Rokoff, que tentava subjugar a sua vítima, voltou‑se... e viu o cozinheiro sueco. No olhar de Anderssen havia agora uma expressão de total estupidez. Vinha de boca aberta, com o queixo pendente. Ocupou‑se a colocar e arrumar a refeição sobre a pequena mesa, a um canto do camarote. O russo olhava‑o com raiva.
‑ Que significa isto?... ‑ berrou. ‑ Como se atreve a entrar sem pedir licença? Saia!
‑ Acho qu'o vento vai soprar não tarda, e com força... ‑ volveu o sueco, dispondo de outra maneira os poucos pratos, sobre a mesa.
‑ Saia daqui ou eu atiro‑o lá para fora, miserável estúpido!... ‑ rugiu Rokoff, dando um passo na direcção do sueco.
Anderssen continuou a sorrir totalmente, mas a sua mão deslizou para o cabo da comprida faca que trazia entalada na corda que lhe segurava o avental gorduroso.
Rokoff viu o movimento e deteve‑se bruscamente. Então voltou‑se para Jane.
‑ Dou‑lhe até amanhã... ‑ disse ele ‑ ... para reconsiderar sobre a sua resposta à minha oferta. Todos irão a terra, com um pretexto qualquer, menos você e a criança, Paulvitch e eu. Ninguém nos interromperá quando eu lhe oferecer o espectáculo da morte do seu filho.
Falou em francês, para que o cozinheiro não pudesse entender a sinistra significação das suas palavras. Quando acabou de falar saiu e atirou com a porta, sem olhar para o sueco.
Assim que ele saiu, Sven Anderssen voltou‑se para «lady» Greystoke. A expressão de imbecilidade com que mascarara os seus pensamentos, deu lugar a uma expressão astuciosa.
‑ Ele pensa qu'sou tolo... ‑ disse - ... mas ele é
tolo. Eu sabe francês.
Jane, olhou‑o, surpreendida.
‑ Compreendeu o que esse homem disse, então?
‑ 'tá visto que sim... ‑ volveu o sueco, com um
largo sorriso.
‑ E compreendeu o que ele tentava fazer, quando entrou para me defender?
‑ Você fica para mim... ‑ explicou Anderssen. ‑ Ele tratar‑me como um cão. Eu ajudá‑la, senhora. Esperar, e eu ajudar... Eu estar na Costa Oeste muitas vezes.
‑ Mas como pode ajudar‑me, Sven... estando todos esses homens contra nós?
‑ Acho... ‑ retorquiu Sven Anderssen ‑ ... qu'o vento vai soprar não tarda, e com força...
E, com estas palavras, voltou‑se e saiu por sua vez do camarote.
Embora Jane Clayton duvidasse das possibilidades de Sven a ajudar, de qualquer modo, sentia‑se profundamente grata por aquilo que ele já tinha feito. A sensação de ter um amigo, entre todos os inimigos que a rodeavam, trouxe‑lhe o primeiro conforto desde o início da longa viagem do «Kincaid».
Não voltou a ver Rokoff, nem qualquer dos outros, nesse dia, até que Sven lhe trouxe a refeição da noite. Tentou fazê‑lo falar sobre os planos que ele tinha para a ajudar, mas tudo o que obteve em resposta foi a habitual previsão, sempre nas mesmas palavras, sobre as futuras condições do vento. O homem parecia ter recaído na sua espessa estupidez.
Todavia, quando, algum tempo depois, o sueco saiu novamente do camarote levando os pratos sujos e vazios, disse em voz muito baixa.
‑ Conserve seus vestidos e enrole os cobertores. Eu vir buscar, não tardar muito.
Ia sair, mas Jane tocou‑lhe num braço.
‑ E o meu menino? Não partirei sem ele...
‑ Não partir sem ele, eu dizer... ‑ respondeu Anderssen. ‑ Eu ajudar, não complicar tudo...
Quando a porta se fechou, Jane sentou‑se sobre o beliche, desnorteada. Que devia fazer?
Assaltavam‑na suspeitas sobre o futuro procedimento do sueco... Mas poderia a sua situação ser pior do que já era? Não, nunca poderia ser pior, ainda mesmo que tivesse de acompanhar o próprio diabo... pois este, ao menos, tinha a reputação de ser um «gentleman». Jurando a si mesma que não sairia do «Kincaid» sem levar o seu menino, enrolou os cobertores, prendendo‑os com uma corda, e deixou‑se ficar vestida... à espera. Cerca da meia‑noite ouviu bater muito de leve à porta.
Rápida, atravessou o camarote e correu o fecho interior do batente. O sueco entrou. Trazia num braço um volume, possivelmente os seus próprios cobertores, e levantava a outra mão num gesto a pedir silêncio. Falou, num murmúrio:
‑ Tome isto... e não faça barulho quando vir ‑ É seu filho...
Mãos lestas receberam o volume que o sueco trazia, e braços sedentos de ternura apertaram o menino contra o peito. Jane tremia e as lágrimas corriam‑lhe pela cara, na emoção do momento.
‑ Depressa... ‑ disse Anderssen. ‑ Não perder tempo.
Agarrou os cobertores que Jane preparara, e fora do camarote apanhou também os seus, que deixara no chão. Então conduziu Jane para a amurada do barco, ajudou‑a a descer a escada de corda, e segurou o menino até ela se instalar no bote que esperava em baixo. Um momento depois, cortando a corda que prendia o bote ao «Kincaid», curvou‑se sobre os remos embrulhados em trapos e começou a dirigir o bote para a foz do Ugambi.
Anderssen remava como alguém que soubesse bem o que ia fazer, e quando, meia hora depois, a lua se mostrou numa aberta das nuvens, viram à esquerda a embocadura de um pequeno afluente do Ugambi. Foi para essa estreita passagem que o sueco dirigiu a proa do bote.
Jane conjecturava sobre se o homem saberia de facto aonde queria ir. Ignorava que, nas suas funções de cozinheiro, ele estivera nessa mesma tarde, com outros, naquele caminho, e fora até uma pequena aldeia de negros onde regateara a compra das poucas provisões que eles tinham para vender ‑ e aí construíra os pormenores da aventura a que se lançavam agora.
Embora fosse noite de lua cheia, a superfície do rio estava imersa em profunda escuridão. As árvores gigantescas, que cresciam ao longo das margens, formavam uma alta abóbada sobre a água. Lianas e trepadeiras pendiam graciosamente das ramadas, enquanto outras se enroscavam desde a base dos troncos até aos ramos mais altos.
De vez em quando a calma superfície da água era agitada pelo aparecimento de um crocodilo, sobressaltado pelo rumor dos remos, ou um bando de hipopótamos, grunhindo e bufando, deslizava da lama da margem para o abrigo do rio. Da selva densa, de ambos os lados do estreito curso de água, vinham os gritos nocturnos dos carnívoros ‑ o riso rouco das hienas, o rugido distante de algum leão, ou o grunhido áspero de uma pantera. E sempre, em volta, os sons esquivos e fantásticos da selva, sons que Jane não sabia reconhecer mas que pareciam ainda mais ameaçadores pelo mistério que os envolvia.
Sentada à popa do bote, Jane apertava o menino contra o peito, e por causa dele, porque o tinha nos seus braços, sentia‑se mais feliz naquela noite do que havia sido em longos dias de angústia e ansiedade. Embora tudo à sua volta fosse perigo e ameaça, embora não soubesse que destino a esperava, ou quando viria esse destino, Jane pensava apenas na manhã que não podia tardar muito ‑ ela assim o julgava ‑ e na luz do sol que lhe permitiria voltar a ver os olhos muito negros do seu pequenino Jack.
Por várias vezes tentou distinguir‑lhe as feições, mas a escuridão não a deixava ver se não os contornos da facezita arredondada e adormecida. Então voltava a aconchegá‑lo ao peito.
Eram talvez três horas da madrugada quando Anderssen impeliu o bote para uma das margens, diante de uma clareira onde, à luz vaga da lua que quase tocava o horizonte formado pelas inumeráveis copas das árvores em redor, se distinguiam os vultos de umas quantas palhotas rodeadas por uma «boma» de arbustos espinhosos.
O sueco chamou várias vezes antes de obter resposta ‑ e só a obteve porque era esperado, tal é o receio dos indígenas quanto a qualquer voz que venha da escuridão da noite. Então Anderssen ajudou Jane a desembarcar, amarrou o bote, pegou nos cobertores e encaminhou‑se adiante dela na direcção da aldeia.
À entrada foram recebidos por uma indígena, mulher do chefe a quem Anderssen pagara para o ajudar. A criatura levou‑os para a palhota do chefe, mas o sueco disse que preferia dormir cá fora, ao ar livre. Assim, tendo cumprido o que devia, a mulher deixou‑os entregues a si próprios.
O sueco, depois de explicar, à sua rude maneira, que as palhotas estavam sem dúvida imundas e povoadas de bicheza, estendeu os cobertores de Jane, sobre o terreno, e a alguma distância estendeu os seus, deitou‑se e dispòs‑se a dormir.
Levou algum tempo antes que a jovem pudesse encontrar uma posição relativamente confortável sobre o terreno duro, mas por fim, com o menino nos braços, totalmente exausta, acabou por adormecer. Era dia claro quando acordou. À sua volta estavam cerca de duas dezenas de indígenas que a olhavam, curiosos ‑ quase todos eram homens, porque entre os negros são sempre os homens que mostram curiosidade na sua forma mais exagerada. Instintivamente Jane apertou mais o menino contra si, mas em breve viu que os negros nem remotamente pensavam em fazer‑lhe mal, ou à criança. De facto um deles ofereceu‑lhe uma cabaça com leite ‑ uma cabaça suja de gordura e de fumo, em cujo bocal se viam restos de leite coalhado e azedo. Mas a intenção do negro comoveu‑a, e a sua face iluminou‑se por momentos com um daqueles sorrisos quase esquecidos, cujo encanto tornara famosa a sua beleza em Baltimore, como em Londres.
Pegou na cabaça, com uma das mãos, e de preferência a magoar o negro, levou‑a à boca, mal podendo conter a náusea provocada pelo cheiro repugnante. Foi Anderssen quem lhe valeu. Tirando‑lhe a vasilha, bebeu uma boa porção do seu conteúdo e restituiu‑a ao negro, com um presente de contas azuis.
O sol brilhava agora intensamente, e embora o menino continuasse ainda a dormir, Jane mal podia conter o desejo de olhar a facezinha adorada. Os indígenas haviam‑se afastado, a uma ordem do chefe que estava agora a falar com Anderssen, a curta distância.
Enquanto Jane hesitava entre perturbar o sono do menino, levantando a ponta do cobertor que lhe protegia os olhos, do sol intenso, ou dominar ainda a sua ansiedade ‑ reparou que o cozinheiro falava na linguagem do negro.
Estranho homem aquele, realmente. Até ao dia anterior Jane supusera‑o ignorante e estúpido. Agora, em vinte e quatro horas, soubera que ele não só falava inglês, embora à sua maneira, como falava francês e conhecia o dialecto dos negros da Costa Ocidental.
Considerara‑o velhaco, cruel e indigno de confiança, e todavia, até onde ela tinha razões para acreditar, demonstrara ser o contrário de tudo isso. Parecia quase impossível de acreditar que ele a servisse por razões de puro e nobre cavalheirismo. Havia decerto alguma intenção mais profunda, algum plano que ele não tinha ainda revelado.
Jane conjecturava sobre isto, e ao olhar para ele, ao ver os olhos muito juntos e esquivos, as feições repulsivas, estremecia ‑ porque estava convencida de que nenhum altruísmo podia esconder‑se sob tal aspecto.
Estava a pensar nestas coisas, e a hesitar ainda sobre se deveria arriscar‑se a acordar o menino, quando este se agitou nos seus braços e emitiu um som balbuciante que fez bater excitadamente o coração de Jane. O menino acordara! Agora podia vê‑lo, alegrar‑se finalmente...
Rápida, afastou a ponta do cobertor. Anderssen estava a olhar para ela, nesse momento. Viu‑a levantar‑se quase de um salto, cambaleando, segurando a criança nos braços estendidos, os olhos fitos, com horror, na pequenina face redonda e nos inocentes olhos que pestanejavam à luz.
E depois ouviu o grito sufocado de Jane, viu‑a dobrar os joelhos e cair no chão, desmaiada.
O sueco
Quando os guerreiros, agrupados pelo medo diante de Tarzan e de Sheeta, compreenderam que se tratava de uma pantera verdadeira, em carne e osso... que havia sido a pantera que interrompera a dança da morte, animaram‑se um tanto ‑ porque no meio daquele círculo de lanças até a poderosa Sheeta estava perdida.
Rokoff incitava o chefe para que ordenasse aos guerreiros que desferissem o golpe de morte, projectando as lanças, e o negro dispunha‑se a dar essa ordem... quando os seus olhos seguiram a direcção do olhar de Tarzan.
Então, com um brado de terror, o chefe voltou‑se e fugiu, correndo como um gamo para a saída da paliçada. Os guerreiros olharam também, para verem qual a causa daquele medo, e igualmente fugiram, gritando ‑ porque, diante deles, tornados ainda maiores, os seus vultos enormes, pela luz da lua e pelo clarão das fogueiras, estavam os medonhos gorilas de Akut.
No instante em que os indígenas se voltavam para fugir, o brado selvagem de Tarzan fez‑se ouvir acima dos gritos dos negros ‑ e, em resposta, Sheeta e os gorilas lançaram‑se, rugindo, sobre os fugitivos. Alguns dos guerreiros tentaram enfrentar as feras de Tarzan, mas apenas para serem despedaçados pelas garras e pelos dentes dos animais. Outros foram abatidos enquanto fugiam, e só quando a aldeia ficou vazia de negros, Tarzan pôde chamar os seus companheiros. Mas não tardou a compreender que nenhum deles, nem mesmo o relativamente inteligente Akut, era capaz de interpretar o seu desejo de se libertar das cordas que o prendiam ao poste.
Com tempo, talvez a ideia penetrasse nas suas mentes embotadas, mas entretanto muitas coisas podiam acontecer ‑ os negros poderiam regressar em força para reconquistar a sua aldeia... e os brancos podiam alvejá‑los a distância, com os rifles, da segurança das árvores em redor. Tarzan podia até morrer de fome, amarrado ali, sem que eles compreendessem.
Quanto a Sheeta, essa tinha uma compreensão ainda mais limitada do que a dos macacos, embora Tarzan tivesse de se maravilhar ante o que ela havia feito. De que a pantera tinha verdadeira afeição por ele, não podia duvidar. Agora, que os negros haviam debandado, o grande felino andava lentamente de um lado para o outro, diante do poste, esfregando‑se contra as pernas dele e ronronando como um gato satisfeito.
Tarzan também não duvidava de que Sheeta havia discorrido sozinha até chegar à ideia de ir buscar o auxílio dos gorilas. Era sem dúvida um animal invulgar.
A ausência de Mugambi preocupava Tarzan. Tentou saber, por Akut, o que acontecera ao negro. Intimamente, receava que, fora do seu domínio, as feras se tivessem lançado sobre Mugambi, devorando‑o. Mas, a todas as suas perguntas, o gigantesco gorila apenas respondia com acenos de cabeça na direcção da selva de onde ele próprio surgira.
Passou o resto da noite, e Tarzan continuava amarrado ao poste. Pouco depois das primeiras luzes do dia, os seus receios começaram a confirmar‑se, quando avistou vultos furtivos de negros que se moviam cautelosamente para além da clareira, na orla da selva. Os guerreiros regressavam...
Com a luz do dia, a sua coragem chegaria talvez para atacar o pequeno grupo de feras que os expulsara na noite anterior. O resultado da luta era fácil de prever, se os selvagens conseguissem dominar o medo. Contra a força do número, as lanças e as flechas envenenadas, a pantera e os macacos poucas possibilidades tinham de sobreviver.
Que eles tentavam decidir‑se a atacar, tornou‑se bem visível momentos depois, quando começaram a mostrar‑se, em bandos cada vez mais numerosos, na orla da clareira, dançando e saltando, gritando e brandindo as lanças.
Tarzan sabia que aquela manobra continuaria até que os negros alcançassem um estado de histerismo feroz, suficiente para se lançarem ao ataque ‑ mas assim mesmo duvidava de que eles levassem até ao fim o seu intento, à primeira tentativa. Mais provavelmente recuariam antes de alcançar a paliçada, voltariam ainda, atacariam de novo... e só à terceira ou quarta vez entrariam na aldeia, quando se sentissem quase seguros de poderem dominar as feras. Tal como Tarzan supusera, a primeira carga deteve‑se pouco adiante ‑ um forte e agudo brado de homem da selva bastou para que os negros debandassem. Durante mais meia hora voltaram a gritar e a saltar, até que se lançaram, num novo ímpeto. Desta vez aproximaram‑se da porta da paliçada... mas quando Sheeta e os gorilas correram sobre eles, fugiram novamente, gritando e desaparecendo na floresta.
Mas não tardou que as danças e os uivos voltassem a repetir‑se. Desta vez Tarzan não duvidava de que os negros entrariam na aldeia e completariam o trabalho que um punhado de brancos resolutos teria feito à primeira tentativa.
Ter tido a salvação tão perto... e ficar novamente perdido apenas porque não podia fazer com que os seus companheiros compreendessem o que ele queria, era desesperador... mas Tarzan não podia sentir no seu coração qualquer azedume contra eles. Tinham feito o melhor que podiam... e agora iam morrer com ele, num esforço vão para o defender. Os negros preparavam o terceiro ataque. Alguns tinham‑se aproximado já da paliçada, e incitavam os outros para que os seguissem. Um momento mais e toda a horda uivante avançaria através da clareira.
Tarzan pensava apenas no filho... perdido algures na selva cruel. O seu coração sangrava pelo menino que ele já nem sequer poderia tentar salvar. Isso, e a ideia dos sofrimentos de Jane, era o que pesava no seu corajoso ânimo, durante aqueles momentos que ele supunha serem os últimos da sua vida. Tinha sido socorrido quase na última extremidade‑ e no entanto o socorro falhara. Era o fim de toda a esperança.
Os negros vinham a meio da clareira, quando a atenção de Tarzan foi atraída pela atitude de um dos gorilas. O animal olhava na direcção das cubatas. Tarzan olhou também... e com infinito alívio viu o vulto ágil de Mugambi, que corria para ele.
O gigantesco negro ofegava, como em consequência de um intenso esforço físico e de uma não menos intensa excitação nervosa. Correu para junto do poste, e quando os primeiros negros alcançaram a entrada da paliçada, a faca de Mugambi cortou as últimas cordas que prendiam Tarzan.
Na aldeia estavam caídos os corpos dos negros que haviam sido abatidos pelas feras, na noite anterior. Tarzan apanhou a lança e a pesada clava de um deles, e com Mugambi a seu lado e o bando de feras à sua volta, correu ao encontro dos guerreiros quando eles estavam no recinto limitado pela paliçada.
Feroz e terrível foi a luta que se seguiu, mas não tardou que os negros debandassem em pânico ‑ mais em consequência do pavor que os tomara ao verem um gigante branco e outro negro, que combatiam de parceria com a pantera e os gorilas, do que por verdadeira incapacidade para vencerem o relativamente pequeno grupo que os enfrentava.
Um prisioneiro caiu em poder de Tarzan, e o homem da selva interrogou‑o, numa tentativa de saber o que acontecera a Rokoff e ao seu grupo. Com a promessa da liberdade em troca da informação, o negro contou tudo o que sabia a respeito dos movimentos do russo.
Ao que ele disse, nessa manhã, muito cedo, o chefe da aldeia havia tentado convencer os brancos a acompanhá‑lo e, com os seus rifles, abater as feras. Mas Rokoff parecia ter ainda mais medo, do gigante branco e dos seus companheiros, do que os próprios negros. Sob nenhuma condição quis voltar à aldeia. Em vez disso, ele e o seu grupo haviam continuado a subir o rio, a toda a pressa, depois de ter roubado umas quantas pirogas que os negros tinham escondidas na margem. Da última vez que os vira, fugiam à força de remos manejados pelos homens de Kaviri. Assim, mais uma vez, Tarzan e as suas feras se lançaram na perseguição do filho do homem da selva, e do seu raptor. Durante dias e dias atravessaram uma região quase completamente desabitada, apenas para saberem, por fim, que iam na pista errada. O pequeno bando era agora ainda menor, pois três dos gorilas de Akut haviam caído na luta, na aldeia. Agora, com Akut, eram cinco gorilas ‑ além de Sheeta, Mugambi e Tarzan.
Não haviam tido mais notícias dos três brancos que seguiam atrás de Rokoff ‑ o homem e a mulher e a criança.
Quem seria o homem e a mulher, Tarzan não podia saber, mas a ideia de que a criança era o seu filho bastava para que não pensasse, sequer remotamente, em abandonar a perseguição. Tinha a certeza de que Rokoff seguia os três fugitivos, e confiava por isso em que, mantendo‑se na pista do russo, se aproximaria do momento em que poderia salvar o seu filho dos perigos e horrores que o ameaçavam.
Ao voltar para trás, depois de ter perdido a pista de Rokoff, Tarzan reencontrou‑a no ponto onde o russo se afastara do rio e seguira na direcção do Norte. A mudança só era explicável pelo facto de a criança ter sido possivelmente desviada do rio, pelos dois que a tinham em seu poder.
Em nenhum ponto do caminho, todavia, Tarzan conseguiu informações concretas, que confirmassem a passagem da criança. Nenhum indígena interrogado a tinha visto, ou sabido da passagem do pequeno grupo ‑ embora todos soubessem da passagem do russo, directamente ou por terem ouvido a outros.
Era difícil, para Tarzan, encontrar maneira de comunicar com os nativos, pois assim que viam os seus companheiros, todos se sumiam apressadamente na selva. A única alternativa era fazer o que já havia feito antes ‑ seguir adiante e apanhar de surpresa algum guerreiro que encontrasse sozinho na floresta.
Um dia em que seguia um negro, surpreendeu‑o no momento em que ia atirar uma lança sobre um homem branco caído entre o mato, ao lado da trilha.
O branco era uma criatura que Tarzan havia visto várias vezes, e a quem reconheceu imediatamente. Estavam gravadas na sua memória as feições repulsivas ‑ os olhos muito juntos, a expressão velhaca, o bigode amarelado e pendente.
No mesmo instante Tarzan recordou‑se de que aquele homem não figurava entre os que acompanhavam Rokoff na aldeia onde ele estivera prisioneiro. Vira‑os, a todos, e aquele não estava lá. Podia haver apenas uma explicação, e era ser aquele o que fugira com a mulher e a criança ‑ e a mulher seria então Jane. Agora compreendia o sentido das palavras de Rokoff.
Tarzan empalideceu ao ver a cara do homem, doentia, vincada pelos vícios. Na testa do homem da selva surgiu repentinamente, marcada a vermelho‑vivo, a cicatriz da antiga ferida que recebera durante a sua luta com Terkoz.
Aquele homem pertencia‑lhe, o negro não lho roubaria. Com este pensamento, Tarzan saltou sobre o guerreiro e desviou a lança antes que ela pudesse atingir o alvo. O negro, empunhando a sua faca, voltou‑se para enfrentar o novo inimigo, enquanto o sueco, estendido no mato, assistia a um duelo como nunca tinha sonhado ver ‑ um branco meio nu lutando com um negro meio nu, corpo a corpo, primeiro com as armas grosseiras dos homens primitivos, e depois com unhas e dentes, como as feras.
Durante os primeiros momentos Anderssen não reconheceu o branco, e quando, finalmente, se lembrou de que já vira antes aquele gigante, abriu muito os olhos, surpreendido de que aquele animal enfurecido pudesse ser o elegante inglês que estivera prisioneiro a bordo do «Kincaid».
Um nobre inglês! Conhecia a identidade dele através de «lady» Greystoke, durante a viagem ao longo do Ugambi. Antes disso, nem ele nem os outros tripulantes tinham sabido quem eram os prisioneiros. A luta não durou um minuto. Tarzan fora obrigado a matar o seu antagonista, que não quisera render‑se. O sueco viu o vencedor levantar‑se, poisar um pé sobre o pescoço quebrado do vencido e soltar o pavoroso brado de triunfo dos gorilas. Estremeceu.
Quando Tarzan se voltou para ele, a sua cara exprimia uma frieza cruel, e os grandes olhos cinzentos significavam morte.
‑ Onde está minha mulher?... ‑ disse o homem da selva. ‑ E o meu filho?
Anderssen tentou responder, mas um ataque de tosse sacudiu‑o dos pés à cabeça. Tinha uma flecha cravada no peito, e quando tossiu saltou‑lhe sangue pela boca e pelas narinas.
Tarzan esperou. Como uma imagem de bronze ‑ dura, fria e implacável ‑ ficou diante do homem. Queria arrancar‑lhe todas as informações que pudesse, e então matá‑lo‑ia.
A tosse e a hemorragia cessaram, e o ferido tentou falar. Tarzan curvou‑se para o ouvir.
‑ A mulher e o filho?... ‑ repetiu. ‑ Onde estão?
Anderssen apontou para a trilha, sussurrando: O russo... levar...
‑ Como chegou aqui? Por que não está com Rokoff?
‑ Eles... apanhar‑nos... ‑ disse o sueco, numa voz tão fraca que Tarzan mal conseguia entender as palavras. ‑ Apanhar‑nos... Eu lutar... mas negros fugir... Então eles apanhar‑me quando eu estar ferido... Rokoff dizer que me deixava para as hienas... Pior que matar... Levou a sua mulher... e o menino...
‑ Que fazia você com a minha mulher e o meu filho? Aonde os levava?... ‑ Na voz de Tarzan havia uma fúria terrível, um ódio que ele dificilmente dominava. ‑ Que mal fez a minha mulher ou ao meu filho? Fale depressa, antes que eu o mate. Ponha‑se em paz com Deus... Diga‑me tudo, mesmo o pior... ou rasgo‑o com as unhas e os dentes. Já viu que posso fazer isso!
Uma expressão de profunda surpresa apareceu na face do sueco.
‑ Hem?... ‑ murmurou. ‑ Eu não lhes fazer mal... eu tentar salvá‑los do russo... A sua mulher... foi boa para mim... no «Kincaid»... e às vezes eu ouvir a criança chorar... Ter mulher e filho... em Cristiânia... e não poder vê‑los separados... e em poder de Rokoff... Eu... parecer que vir para... fazer mal?... ‑ perguntou ainda o desgraçado, indicando a flecha cravada no peito.
Havia qualquer coisa no tom e na expressão do homem, que convenceu Tarzan de que ele dizia a verdade. Mais convincente do que tudo era o facto de que Anderssen parecia mais ressentido do que assustado. Sabia que ia morrer, e as ameaças de Tarzan não tinham qualquer efeito nele... mas era evidente o seu desejo de que o inglês soubesse a verdade e não o julgasse um miserável. Tarzan ajoelhou‑se junto dele.
‑ Perdoe... ‑ disse, simplesmemte. ‑ Não pensei que houvesse alguém, junto de Rokoff, que não fosse um patife... Vejo que me enganei. Mas tudo isso tem agora de ceder o lugar a uma coisa mais importante... que é levá‑lo para um sítio onde esteja mais confortavelmente e onde eu possa ver a sua ferida. Temos de o curar o mais depressa possível...
O sueco sorriu, abanando a cabeça.
‑ Vá procurar a sua mulher e o seu filho... ‑ murmurou. ‑ Eu estou... como se já tivesse morrido. Mas... não me agrada... pensar nas hienas... Não quer acabar comigo?
Tarzan estremeceu. Um momento antes estivera prestes a destroçar aquele homem... mas agora seria tão incapaz de o matar como de matar o seu melhor amigo. Levantou um pouco a cabeça do sueco, para o mudar de posição.
De novo a tosse sacudiu Anderssen, e o sangue correu outra vez. Depois ele ficou de olhos fechados.
Tarzan curvou‑se mais, supondo‑o morto mas os olhos azuis, muito juntos, abriram‑se e fitaram‑no.
‑ Acho qu'o vento vai soprar... não tarda... e com força... ‑ sussurrou Sven Anderssen.
E morreu...
Tambdusa
Tarzan cavou uma sepultura para o sueco, o homem sob cujo aspecto repulsivo se escondera o coração de um verdadeiro «gentleman». Era tudo o que podia fazer, na selva cruel, por aquele que sacrificara a sua vida ao serviço de sua mulher e do seu filho.
E então recomeçou a perseguição de Rokoff. Agora, que tinha a certeza de que a mulher branca, na selva, era realmente Jane, e que ela havia caído nas mãos do russo, parecia‑lhe que, apesar da espantosa rapidez com que se deslocava, se movia com a lentidão de um caracol. Era‑lhe difícil seguir a pista porque havia muitas pegadas noutro ponto, entrecruzando‑se, seguindo ora numa direcção ora na oposta, bifurcando‑se e ramificando‑se em todos os sentidos. As pegadas dos homens brancos estavam apagadas pelas dos indígenas carregadores que os seguiam, e sobre estas marcavam‑se as das feras e de outros animais da selva.
Era um atarefa estranhamente difícil, no entanto Tarzan não a largava nem por um instante. Confrontado o sentido da vista com o do olfacto, empregava toda a sua capacidade no empenho de não perder a pista. Mas, obrigado por isso mesmo a demorar o seu avanço, a noite surpreendeu‑o num ponto onde tinha praticamente a certeza de se ter desviado outra vez do verdadeiro caminho.
Sabia que os seus amigos seguiriam a sua própria pista, e assim tivera o cuidado de a deixar tão aparente quanto possível, roçando‑se pelas lianas e trepadeiras, e deixando todas as possibilidades para que o seguissem pelo faro.
Quando escureceu, começou a cair uma chuva densa e pesada. Nada havia que Tarzan pudesse fazer, a não ser recolher‑se ao abrigo precário de uma árvore até que amanhecesse. Mas as primeiras luzes do dia não puseram termo à chuva que caía.
Durante toda uma semana o céu esteve toldado de nuvens. Chuva e vento apagaram os restos da pista que Tarzan tentava em vão acompanhar. E durante todo esse tempo não encontrou um só indígena, nem avistou os seus companheiros ‑ que talvez tivessem também perdido a sua pista durante a tempestade. O terreno era‑lhe desconhecido, e assim também não podia ajuizar exactamente o rumo que seguia, visto que durante os dias não podia ver a posição do sol, e nas longas noites não havia lua nem estrelas que pudessem guiá‑lo.
Quando, na manhã do sétimo dia, o sol reapareceu, encontrou Tarzan à beira do desespero. Pela primeira vez na sua vida perdera‑se na selva. Que isso lhe houvesse acontecido especialnemte naquela altura, parecia uma crueldade inimaginável. Algures, naquela terra selvagem, sua mulher e seu filho estavam em poder do demoníaco Rokkoff.
Que horríveis sofrimentos não teriam suportado durante aqueles sete dias, em que a natureza se empenhara em anular os esforços de Tarzan? O homem da selva conhecia bem o russo, e não podia duvidar de que ele, enfurecido por Jane se ter escapado uma vez ‑ e sabendo‑se perseguido por Tarzan, não perderia tempo em pôr em prática qualquer plano de vingança que a sua mente satânica houvesse concebido.
Mesmo agora, que o sol voltara a brilhar, o homem da selva continuava a não saber em que direcção devia seguir. Sabia que Rokoff se afastara do rio em perseguição de Anderssen, mas ignorava se o russo continuaria a seguir para o interior, ou voltaria ao Ugambi.
Tarzan vira que o rio, no ponto onde ele o deixara, se tornava estreito, apertado entre as margens que forçavam a corrente, mais rápida, que a transformavam em torrente, decerto não navegável, mesmo para pirogas, senão a grande distância e perto já das nascentes. Todavia, se não havia voltado para o rio, em que direcção seguiria Rokoff?
Pelo rumo seguido por Anderssen, na sua fuga com Jane e o menino, Tarzan estava convencido de que o homem havia tentado a tremenda proeza de atravessar o continente africano, até Zanzibar. Mas não podia saber se Rokoff se atreveria a uma tão perigosa viagem.
O medo podia impedi‑lo, agora que conhecia o grupo horrível que o perseguia, a essa tentativa... pois não ignorava que Tarzan exerceria sobre ele a vingança merecida.
Por fim o homem da selva decidiu prosseguir para Nordeste, mais ou menos na direcção da África Oriental Alemã, até encontrar indígenas que pudessem dar‑lhe informações sobre o russo e o seu bando.
No segundo dia depois de ter cessado a chuva, Tarzan chegou a uma aldeia indígena cujos habitantes fugiram para o mato no mesmo instante em que o viram. Enfurecido e disposto a não perder a possibilidade de obter informações, o homem da selva perseguiu‑os até que conseguiu apanhar um jovem guerreiro. O negro ficou tão espantosamente apavorado que não esboçou sequer um gesto de defesa. Largou as armas e deixou‑se cair no chão, fitando no seu captor os olhos muito abertos.
Foi com extrema dificuldade que o homem da selva o tranquilizou, pelo menos em parte, o bastante para conseguir dele informações coerentes sobre a causa do seu pavor. Com muitas insistências e rodeios, soube finalmente que um grupo de brancos passara pela aldeia, vários dias antes. Esses homens haviam falado de um terrível diabo branco que os perseguia, e que era acompanhado por um assustador bando de demónios.
O negro reconhecera Tarzan como sendo o diabo branco que havia sido descrito ‑ e tinha esperado ver, atrás dele, uma horda de demónios disfarçados em gorilas e panteras.
Era flagrante, por detrás daquele ardil, a mente astuciosa e tortuosa de Rokoff. O russo tentava tornar tão difícil quanto possível a marcha de Tarzan, voltando contra ele o terror supersticioso dos nativos. O guerreiro acrescentou que o homem branco, que comandava o grupo, lhe prometera uma fabulosa recompensa se eles matassem o diabo branco. Os negros da aldeia estavam mais do que dispostos a ganhar essa recompensa, se a ocasião se apresentasse, mas ao verem Tarzan tinham fugido apavorados ‑ tal como os carregadores de outro branco lhes haviam dito que aconteceria.
Verificando que o homem da selva não lhe fazia mal, o indígena recobrou enfim alguma coragem e, por sugestão de Tarzan, acompanhou o «diabo branco» até à aldeia, gritando, durante o caminho, aos seus companheiros que regressassem... «porque o diabo branco prometera não lhes fazer mal, se eles se apresentassem e respondessem a umas quantas perguntas».
Um a um os negros foram voltando à aldeia, mas era evidente que os seus receios não haviam desaparecido, pois olhavam constantemente de soslaio para o homem da selva, apreensivos e temerosos. O chefe foi um dos primeiros a regressar à aldeia, e era sobretudo a ele que Tarzan queria interrogar. Assim, não perdeu tempo. O homem era baixo e forte, com um aspecto invulgarmente vicioso e grandes braços de chimpanzé. Tinha uma expressão de arteirice reles.
Só o supersticioso terror, originado pelas histórias que ouvira aos brancos e negros do grupo do russo, o impedia de se lançar sobre Tarzan, com os seus guerreiros, e de o matar, porque a tribo mantinha inveterados hábitos de canibalismo. Mas o medo de que estivesse realmente perante um diabo, e de que pudessem surgir da selva, a qualquer momento, os demónios que o acompanhavam, evitava que M'ganwazam pusesse em prática os seus desejos ferozes.
Tarzan interrogou‑o cuidadosamente, e comparando as informações dele com as que obtivera do jovem guerreiro, concluiu que Rokoff e o seu grupo retiravam, aterrorizados, na direcção da distante Costa Oriental. Muitos dos carregadores do russo já o haviam abandonado. Naquela mesma aldeia, Rokoff fizera enforcar cinco, por tentativas de roubo ou deserção. Todavia, a julgar pelo que o M'ganwazam ouvira aos negros ainda não completamente dominados pelo medo do russo, era provável que ele não conseguisse caminhar por muito tempo antes de perder todo o seu pessoal, desde os carregadores ao capataz. A intenção geral era de o abandonarem à mercê da selva.
M'ganwazam negou que ouvesse qualquer mulher ou criança branca, no grupo, mas, mesmo na altura em que ele falava, Tarzan ficou convencido de que o patife mentia. Por várias vezes o homem da selva abordou o assunto, sob diferentes ângulos, mas sem conseguir apanhar em contradição o repugnante canibal, quanto à presença de uma mulher e de uma criança.
Tarzan pediu comida, que lhe foi fornecida depois de muitas demoras e hesitações. Depois tentou falar com alguns dos guerreiros, especialmente com aquele com quem Tarzan falara em primeiro lugar, mas a presença de M'ganwazam selou‑lhes os lábios. Por fim, convencido de que aquela gente sabia muito mais do que dizia, sobre o paradeiro do russo e sobre o que acontecera a Jane e ao menino, Tarzan resolveu passar a noite na aldeia, com a esperança de conseguir saber mais alguma coisa.
Quando informou o chefe sobre a sua decisão, ficou surpreendido ao notar a modificação da atitude do negro. De uma aparente suspeita e hostilidade mal disfarçada, M'ganwazam transformou‑se num hospedeiro solícito e atencioso.
Nada era suficientemente bom para o seu hóspede. A melhor cubata da aldeia seria para ele, e para esse fim o chefe mandou sumariamente sair de lá a mais velha das suas mulheres, enquanto ele próprio ia ocupar a cubata de uma das mais novas. Se Tarzan se tivesse recordado nesse momento do prémio oferecido, teria imediatamente compreendido a mudança de atitude de M'ganwazam.
Conseguir que o gigante branco dormisse numa das cubatas, facilitaria grandemente a tarefa de ganhar a recompensa prometida, e assim o chefe insistiu vivamente para que Tarzan, sem dúvida cansado das suas longas viagens, se retirasse cedo para o «conforto» da nada convidativa habitação.
Por muito que Tarzan detestasse dormir numa cubata, resolvera aceitar a ideia, na esperança de poder convencer algum jovem guerreiro a conversar junto da fogueira que é habitualmente acesa no interior dos pouco amplos abrigos, aos quais enche de fumo. Talvez isso lhe permitisse descobrir a verdade que procurava. Mas recusou‑se a deixar que a velha negra fosse expulsa, e declarou que preferia partilhar a cubata de um guerreiro, de preferência a incomodar a pobre criatura.
A velha exibiu um sorriso sem dentes, ao ouvir a resposta de Tarzan, e como a mudança ainda convinha melhor aos planos do chefe ‑ visto que poderia rodear Tarzan de um bando de assassinos escolhidos‑ este também concordou, e em consequência Tarzan ficou instalado numa cubata perto da porta da paliçada.
Nessa noite havia uma dança em honra de um grupo de caçadores recentemente regressados, e por tal motivo, visto que todos os guerreiros iam tomar parte das festas, Tarzan ficou sozinho na cubata.
Logo que o homem da selva se instalou na ratoeira, M'ganwazam chamou os jovens guerreiros a quem mentalmente escolhera para passarem a noite com o diabo branco. Nenhum deles se mostrou muito entusiasmado com o plano, pois todos tinham um medo supersticioso do estranho guerreiro branco. Mas as ordens de M'ganwazam eram leis para o seu povo, e assim ninguém se atreveu a recusar o dever que lhe competia cumprir.
Enquanto M'ganwazam expunha em pormenor o seu plano, aos guerreiros sentados à sua volta, a velha desdentada, a quem Tarzan poupara uma noite ao relento, não se afastou do grupo, aparentemente ocupada em deitar mais lenha na fogueira que os iluminava e aquecia, mas na verdade desejosa de não perder uma só palavra do que diziam.
Tarzan dormira talvez uma hora, ou duas, a despeito do tremendo barulho feito pelos participantes da festa, quando os seus sentidos apurados ficaram subitamente alerta ante um ruído furtivo no interior da cubata. A fogueira esmorecera, reduzida a um punhado de brasas, o que parecia tornar ainda mais densa a escuridão em volta. O homem da selva teve a noção de uma presença que se aproximava furtivamente.
Duvidava de que se tratasse de um dos seus companheiros «de quarto», visto que os ruidosos festejos continuavam. Quem poderia então ser, que com tantas cautelas se aproximava?
Quando a presença estava quase ao seu alcance, Tarzan levantou‑se e, de um salto, alcançou a outra extremidade da cubata, empunhando a lança.
‑ Quem se aproxima de Tarzan dos Macacos, como um leão com fome na escuridão da selva?... ‑ perguntou, a meia voz.
‑ Silêncio, «bwana»... ‑ disse uma voz roufenha. ‑ Sou Tambudza, aquela a quem tu não quiseste ocupar a cubata deixando uma pobre velha no frio da noite...
‑ E que quer Tambudza de Tarzan dos Macacos?
‑ Foste bom para mim, para quem ninguém mostra bondade, e eu venho avisar‑te em pagamento do que fizeste.
‑ Avisar‑me de quê?
‑ Nganwazam escolheu os jovens guerreiros que devem dormir aqui... Eu estava perto quando ele lhes falou, e ouvi as ordens que lhes deu. Quando as danças se prolongarem mais pela madrugada, eles virão para aqui...
«‑ Se estiveres acordado, eles fingirão ter vindo para dormir, mas se estiveres a dormir matar‑te‑ão. Se ainda não dormires, esperarão que adormeças para te atacar e matar‑te. M'ganwazam quer receber a recompensa oferecida pelo outro homem branco.
‑ Tinha‑me esquecido da recompensa... ‑ murmurou Tarzan, como se falasse consigo mesmo. Depois perguntou: ‑ Quando espera M'ganwazam receber a recompensa, e como, visto que esses meus inimigos partiram e não sabem para onde foram?
‑ Oh, eles não foram longe... ‑ respondeu Tambudza. ‑ M'ganwazam sabe onde eles estão. Os seus mensageiros podem facilmente apanhar o grupo, que avança muito devagar.
‑ Onde estão eles?... ‑ perguntou Tarzan.
‑ Queres encontrá‑los?... ‑ perguntou por sua vez a velha.
Tarzan fez um aceno afirmativo. ‑ Não posso dizer‑te onde eles estão, de maneira que consigas encontrá‑los sozinhos, mas posso levar‑te lá, «bwana».
Absorvidos na conversa, nenhum deles notara o vulto que rastejava na escuridão da cubata, atrás de ambos, nem o viram quando saiu.
Era o jovem Buulaoo, filho do chefe e de uma das suas mulheres mais novas ‑ um garoto vingativo e mau, que odiava Tambudza e procurava todas as ocasiões para a espiar e comunicar ao pai as mais pequenas faltas.
‑ Vamos então... ‑ disse Tarzan. ‑ A caminho... Isto já Buulaoo não ouviu. Corria ao longo da rua da aldeia, dirigindo‑se para o ponto onde o seu repelente progenitor se ocupava a beber uma espécie de cerveja indígena, ao mesmo tempo que observava as danças.
Assim, aconteceu que Tarzan e Tambudza saíram cautelosamente da aldeia e desapareceram na selva... mas quase ao mesmo tempo dois ágeis e robustos mensageiros saíram também e foram na mesma direcção, embora por outra pista.
Quando estavam suficientemente longe da aldeia para poderem falar sem ser por murmúrios, Tarzan perguntou à velha se tinha visto uma mulher e uma criança, brancas.
‑ Sim, «bwana»... ‑ respondeu Tambudza ‑ ...havia uma mulher branca, e um menino ainda muito pequeno... que morreu na aldeia, com as febres, e lá ficou enterrado...
Um negro patife
Quando Jane Clayton voltou a si, viu Anderssen de pé junto dela, com a criança nos braços. Olhou‑os, a ambos, com uma expressão de horror.
‑ Que acontecer?... ‑ perguntou o homem. ‑ Estar doente?
‑ Onde está o meu filho?... ‑ exclamou ela, ignorando a pergunta.
Anderssen estendeu a criança para Jane, mas a jovem abanou a criança.
‑ Não é o meu! Você sabia isso... É tão miserável como o russo!
Os pequenos olhos azuis do sueco abriram‑se muito, numa expressão de surpresa.
‑ Não ser? Mas... disse‑me que a criança que estar no «Kincaid» ser seu filho...
‑ Não este... ‑ volveu Jane, em voz apagada pela angústia. ‑ O outro? Onde está o outro? Deviam então ser dois... eu não sabia deste...
‑ Não haver mais crianças... Eu pensar que esta ser sua... Eu... eu ter pena.
Anderssen parecia aflito, agitava‑se, ora num pé ora noutro. Tornou‑se evidente, para Jane, que ele dizia a verdade ao afirmar a sua ignorância sobre a identidade do menino.
Nesse momento a criança começou a chorar e a agitar‑se nos braços do sueco, ao mesmo tempo que estendia as mãozitas para Jane. O apelo da pobre criaturinha indefesa emocionou‑a profundamente. Com um pequeno grito, levantou‑se e, tomando o menino nos seus braços, apertou‑o contra o peito.
Durante alguns minutos chorou em silêncio, a face escondida no vestidinho sujo do bebé. O primeiro choque de desapontamento, de que o menino não fosse o seu adorado Jack, dava agora lugar à grande esperança de que alguma espécie de milagre houvesse arrancado o seu filhinho das mãos de Rokoff, no último instante antes de o «Kincaid» partir de Inglaterra.
Havia também o apelo daquele pequenino ser abandonado, sem amor de ninguém, nos horrores da floresta selvagem. Foi este o pensamento, mais do que qualquer outro, que abriu ao inocente o seu coração de mãe, apesar da amarga desilusão sofrida.
‑ Não tem qualquer ideia sobre quem possam ser os pais deste menino?... ‑ perguntou ela a Anderssen.
O homem abanou a cabeça.
‑ Não... ‑ disse ele. ‑ Se não é o seu pequeno, não saber de quem ser. Rokoff dizer que ser seu... e eu penso que ele acreditar isso... Que fazer agora com ele? Eu não poder voltar ao «Kincaid»... Rokoff mandaria os outros matar‑me. Mas senhora poder ir... Eu levar senhora até ao mar... e depois um desses negros levar ao navio. Hem?
‑ Não, não!... ‑ exclamou Jane. ‑ Por nada no mundo! Antes morrer do que voltar a cair nas mãos desse homem! Seguimos para diante e levamos connosco este pobre menino! Se Deus o permitir, seremos salvos, de uma maneira ou de outra!
E assim retomaram a fuga através da floresta, levando com eles meia dúzia de Mosulas para carregar provisões e as tendas que Anderssen tinha escondido no fundo do bote, ao preparar a evasão. Os dias e as noites de fadiga e privações, de angústia e de medo, fundiram‑se de tal maneira num único pesadelo longo e terrível, que Jane em breve perdeu a noção do tempo que passava. Quase não podia dizer se haviam caminhado durante dias ou durante anos. O único ponto luminoso naquela escura eternidade era a criança, o pobre menino desconhecido cuja fraqueza total, cuja sacrificada inocência tinham encontrado o caminho do coração de Jane. De certo modo preenchia o doloroso vácuo deixado pelo rapto do verdadeiro filho. Nunca poderia ser igual, decerto, mas dia a dia a jovem senhora sentia‑se mais presa ao pequenino ser abandonado, e por vezes ficava sentada, de olhos fechados, embalando o menino e a ilusão de que lhe pertencia pelo sangue.
Durante algum tempo, o avanço para o interior foi extremamente lento. Sabiam, por indígenas que encontravam de longe em longe, vindos do litoral para alguma excursão de caça, que Rokoff ainda não descobrira em que direcção tinham fugido. Isto, e o desejo de tornar a longa viagem tão suportável quanto era possível para «lady» Greystoke, levava Anderssen a caminhar devagar, em breves percursos cortados por numerosas paragens.
O sueco insistia em transportar o menino, enquanto caminhava, e de inumeráveis outras maneiras fazia o que podia para ajudar a jovem senhora a poupar esforços. O homem havia ficado profundamente pesaroso ao saber do seu engano quanto à identidade do menino, mas uma vez convencida das suas verdadeiras intenções e da sua bondade, Jane não quisera que ele se censurasse mais, a si mesmo, por um erro de que nenhuma forma poderia ter evitado.
Ao termo de cada dia de marcha, Anderssen ocupava‑se de erguer um abrigo tão confortável quanto podia, para Jane e para o menino. A tenda ficava sempre no lugar mais favorável, e a «boma», em volta, era sempre a mais forte e menos transponível que os Mosulas sabiam construir.
A comida dela e da criança era a melhor que podia ser encontrada nas limitadas reservas de provisões, e eram para Jane as mais saborosas peças de caça que o sueco conseguia abater com o seu rifle. Mas o que mais impressionava Jane era a constante delicadeza, a constante bondade do homem, para com ela.
Que uma tal nobreza de carácter pudesse esconder‑se sob um exterior tão pouco agradável, era uma causa de permanente admiração para Jane, até que o cavalheirismo nato do sueco, a sua permanente simpatia e gentileza, transformaram a sua aparência, pelo menos aos olhos da jovem senhora que acabou por descobrir a expressão desses nobres sentimentos dulcificando as feições e emprestando‑lhes mesmo uma espécie de beleza.
Haviam começado a caminhar mais depressa, desde o momento em que souberam que Rokoff estava apenas a alguns dias de marcha atrás deles, tendo conseguido descobrir a direcção da fuga. Foi então que Anderssen tomou o caminho do rio, comprando uma piroga a um chefe cuja aldeia ficava a curta distância do Ugambi, na margem de um afluente.
A partir de então o pequeno grupo de fugitivos avançou rapidamente ao longo do grande rio, e tão depressa avançaram que deixaram de ter notícias dos seus perseguidores. Quando, finalmente, alcançaram um ponto onde o Ugambi deixava de ser navegável, abandonaram a piroga e internaram‑se pela selva. Aí o caminho voltou a ser mais lento, tornando‑se ao mesmo tempo mais árduo e mais perigoso.
No segundo dia depois de se afastarem do Ugambi, a criança adoeceu com febre. Anderssen compreendeu qual seria o fim inevitável, mas não teve coragem para dizer a verdade a Jane ‑ pois tinha visto a jovem senhora dedicar‑se tão apaixonadamente ao menino como se ele fosse do seu próprio sangue.
Quando o estado do bebé tornou impossível seguirem adiante, o sueco afastou‑se da pista que até então haviam acompanhado, e ergueu o acampamento numa clareira natural, perto de um pequeno rio.
Aí Jane dedicou todos os seus instantes aos cuidados do menino ‑ e como se a sua angústia e ansiedade não tivessem ainda atingido os limites máximos do que ela podia suportar, um dos carregadores Mosulas, que se tinha afastado para explorar a selva em volta, trouxe a notícia de que Rokoff e o seu grupo estavam acampados a curta distância dali... e evidentemente lhes seguiam a pista até àquele riozito, ponto que a todos parecera tão excelente como esconderijo.
Esta informação apenas podia significar uma coisa... e era que tinham de levantar o acampamento e continuar a fugir, fosse qual fosse o estado do menino. Jane Clayton conhecia bastante o russo para saber que ele a separaria da criança assim que os descobrisse ‑ e sabia também que isso teria como resultado a imediata morte do menino.
Enquanto avançavam entre a espessa vegetação, seguindo uma antiga pista de caça que a selva quase completamente invadira, os carregadores Mosulas desertaram, um a um.
Os negros tinham sido relativamente firmes na sua lealdade... enquanto não se haviam julgado em perigo de ser apanhados pelo russo e pelo seu bando. Entretanto, tinham ouvido tantas coisas sobre as atrocidades praticadas por Rokoff, que o terror acabara por dominá‑los... e agora, sabendo‑o tão perto, fugiam sem olhar para trás, abandonando os três brancos.
Anderssen e a jovem continuaram. O sueco ia à frente, para abrir caminho entre o mato nos numerosos pontos onde a selva invadira a pista, e assim era necessário que Jane carregasse com a criança.
Caminharam durante todo o dia, mas ao fim da tarde compreenderam que tinham falhado. Podiam ouvir, atrás deles, o ruído feito por um numeroso «safari» que avançava ao longo da trilha desbravada por Anderssen. Quando se tornou evidente que não tardariam a ser alcançados, Anderssen escondeu Jane atrás de um grosso tronco de árvore, cobrindo‑a, e ao menino, com mato.
‑ Há uma aldeia a cerca de uma milha de distância. .. ‑ disse ele. ‑ Os Mosulas disseram‑me isso, antes de desertarem. Eu tentar desviar o russo da sua pista, e então senhora partir para a aldeia. Julgo que o chefe ser amigo dos brancos... os Mosulas dizer que sim. De qualquer modo, é tudo o que eu poder fazer. Ao cabo de algum tempo senhora convencer o chefe a levá‑la à aldeia dos Mosulas, outra vez perto do mar... e algum tempo aparecer navio na foz do Ugambi, com certeza. Então estar bem. Adeus e boa sorte para si, senhora.
‑ Mas... aonde vai você, Anderssen?... ‑ perguntou Jane. ‑ Por que não se esconde também aqui, e depois me acompanha?
‑ Eu dizer ao russo que a senhora ter morrido... ‑ sorriu o sueco ‑ ... e assim ele não procurar mais.
‑ E por que não pode vir ter connosco depois de lhe dizer isso?... ‑ insistiu Jane.
Anderssen abanou a cabeça, respondendo:
‑ Não acreditar que eu possa ir ter com ninguém, depois de dizer ao russo que senhora morrer.
‑ Não está a dizer‑me que ele... o mata?... ‑ exclamou Jane, sabendo intimamente qual seria a resposta.
O miserável Rokoff não hesitaria em assassinar o sueco, para se vingar dele. Anderssen respondeu apenas recomendando‑lhe silêncio, com um gesto, ao mesmo tempo que apontava para a trilha por onde tinham vindo.
‑ Não me importo... ‑ sussurrou Jane. ‑ Não deixarei que morra para me salvar... se de algum modo puder evitar isso. Dê‑me o seu revólver. Sei servir‑me de uma arma, e juntos talvez nos seja possível mantê‑los a distância até encontrarmos maneira de escapar.
‑ Não dar resultado, senhora... Só servir para sermos ambos apanhados, e então eu não poder valer‑lhe. Pensar no menino, senhora, e no que acontecer, a ambos, se voltar a cair nas mãos de Rokoff. Para bem do menino, fazer o que eu dizer. Tomar meu rifle e munições... dever precisar deles.
Meteu a arma e o cinturão sob o mato, ao lado de Jane. E partiu.
A jovem viu‑o internar‑se no mato, ao encontro do «safari» que se aproximava. Em breve desapareceu atrás de uma curva na pista.
O primeiro impulso de Jane foi segui‑lo. Com o rifle poderia ajudá‑lo... e por outro lado não podia encarar a ideia de ficar sozinha à mercê da selva, sem um único amigo.
Começou a rastejar sob o mato, na intenção de correr atrás de Anderssen o mais depressa que pudesse. Ao aconchegar o menino contra o peito, olhou a pequenina face. Como estava vermelha! Como era estranho o aspecto do pequenino! Aproximou da sua a face dele... e sentiu‑a escaldante de febre.
Com um pequeno grito de pavor, Jane levantou‑se bruscamente, na trilha da floresta. O rifle e a cartucheira ficaram caídos no chão... esquecidos... Esquecido o perigo, e Anderssen, e Rokoff...
Tudo o que turbilhonava na sua mente conturbada pelo medo... era a ideia apavorante de que aquele pequeno ser, tão indefeso... fora atacado pela terrível febre da selva... e que ela nada podia fazer para minorar o seu sofrimento... o sofrimento horrível que por força sentiria durante os intervalos em que estivesse consciente... em parte...
A sua única ideia era encontrar alguém que pudesse ajudá‑la... alguma mulher que tivesse filhos... Com essa ideia veio a lembrança da aldeia de que Anderssen falara. Se pudesse lá chegar... a tempo... Não havia um instante a perder. Como uma corça assustada, voltou‑se e correu pela trilha, na direcção que o sueco indicara.
Longe, atrás dela, ouviu súbitos brados, detonações‑ e depois silêncio. Compreendeu que Anderssen encontrara o russo.
Meia hora mais tarde entrou, cambaleante e exausta, numa pequena aldeia de palhotas. No mesmo instante foi rodeada por mulheres, crianças e homens. Ávidos, curiosos, excitados, crivaram‑na de perguntas que ela não entendia e a que não podia responder. Tudo o que sabia fazer era, em lágrimas, apontar para a criança que gemia agora nos seus braços, e repetir incansavelmente:
‑ Febre... febre... febre...
Os negros não entenderam as suas palavras mas compreenderam a causa da sua angústia. Uma mulher ainda nova empurrou‑a para uma cubata, e com a ajuda de outras começou a fazer o pouco que podia para sossegar a criança e atenuar a sua agonia.
O feiticeiro veio e acendeu uma pequena fogueira diante do menino, pondo qualquer coisa a ferver numa vasilha de barro, ao mesmo tempo que fazia estranhos gestos sobre a infusão, entoando um cântico monótono. Por fim, mergulhou no líquido uma cauda de zebra e, continuando a murmurar encantações, deixou cair algumas gotas na face do menino.
Depois de ele sair, as mulheres sentaram‑se em volta, lamuriando e gemendo. Jane teve a sensação de que ia endoidecer... mas sabendo que elas faziam aquilo por bondade de alma, aguentou o pavoroso pesadelo daquelas horas, quase aturdida de sofrimento.
Devia ser perto da meia‑noite quando ouviu agitação na aldeia. Ergueram‑se vozes de negros, em discussão, mas ela não podia entender as palavras. A certa altura distinguiu sons de passos que se aproximavam da palhota onde ela estava com a criança ao colo. O menino permanecia agora muito quieto, e as pálpebras meio erguidas mostravam o branco dos olhos.
Jane Clayton olhou para a pequenina face, com uma expressão de pavor. Não era o seu filho... não era a sua carne e o seu sangue... mas sentia‑o bem dentro do seu coração... concentrara nele uma ternura desesperada que era quase maternal. Compreendia que o fim estava próximo, e embora essa ideia a aterrorizasse, desejava que a morte viesse depressa para pôr termo ao sofrimento do pequenino ser.
O som de passos, que ela tinha ouvido, deteve‑se à entrada da palhota. Houve uma conversa sussurrada, e um momento depois m'ganwazam, chefe da tribo, entrou. Jane mal o tinha visto, porque as mulheres haviam tomado conta dela logo que entrara na aldeia.
m'ganwazam, via‑o agora, era um negro de aparência bestial, com todas as marcas da degenerescência bruta. Parecia mais um gorila do que uma criatura humana. O chefe tentou falar a Jane, sem resultado, e por fim chamou alguém que tinha ficado lá fora.
Em resposta ao seu chamado entrou outro negro ‑ um homem completamente diferente de M'ganwazam, na verdade tão diferente que Jane compreendeu dever pertencer a outra tribo. Esse negro agiu como intérprete, e quase à primeira pergunta que M'ganwazam fez por intermédio dele, Jane percebeu que o chefe da aldeia queria arrancar‑lhe informações, por qualquer razão.
Achou estranho que o homem parecesse interessado no que ela tencionava fazer, e especialment na direcção que ela seguia quando interrompera a sua jornada. Mas, não vendo qualquer motivo para se calar, disse a verdade. No entanto, quando ele lhe perguntou se esperava encontrar o marido ao fim da viagem, abanou a cabeça, negativamente.
Então, sempre através do intérprete, M'ganwazam explicou a razão da sua visita.
‑ Soube há pouco... ‑ disse ele ‑ ... por uns homens que vivem perto da grande água, que o seu marido a seguiu durante muitos dias, subindo o Ugambi, e acabou por ser atacado e morto por uns guerreiros indígenas. Digo isto para que não perca tempo numa longa viagem, se espera encontrar o seu marido. O melhor é voltar para trás, na direcção da costa.
Jane agradeceu... embora sentisse o coração dilacerado por aquele novo golpe. Mas tinha sofrido tanto, nos últimos tempos, que a sua sensibilidade parecia embotada a mais sofrimentos.
Com a cabeça baixa, ficou sentada, os olhos fitos, sem ver, na face do bebé que tinha ao colo. M'gan‑wazam saiu da palhota. Algum tempo depois ouviu outra vez um som de passos, e alguém entrou. Uma das negras que estavam diante dela atirou com um punhado de ramos secos para a fogueira que se apagava lentamente.
As chamas subiram de repente, iluminando o interior da palhota... e mostrando claramente a Jane que o menino estava morto. Talvez tivesse morrido longos minutos antes.
Um soluço abalou Jane, que instintivamente apertara a criança contra o peito.
Por momentos houve, no interior da palhota, um silêncio total. Então as negras recomeçaram a gritar e a gemer, num alarido medonho. Perto de Jane, um homem tossiu e disse o nome dela.
Num sobressalto, a pobre senhora levantou a cabeça... e viu o sorriso sardónico de Nikolas Rokoff...
Fuga
Por momentos, Rokoff continuou a sorrir sarcasticamente, olhando para Jane. Depois fitou o menino que ela tinha no regaço. Jane tapara a pequenina face com uma dobra da manta ‑ de maneira que, para quem não soubesse a verdade, a criança parecia adormecida.
‑ Entregou‑se a muitas dificuldades e complicações desnecessárias... ‑ disse o russo ‑ ...para trazer o menino a esta aldeia. Eu próprio o teria trazido... e poderia poupar os cansaços e os perigos da jornada. Mas creio que devo agradecer‑lhe por me ter livrado dos incómodos de trazer tão longe uma criança... Esta é a aldeia à qual eu o havia destinado desde o princípio. M'ganwazam vai educá‑lo cuidadosamente, e fará dele um bom canibal... Se você voltar alguma vez à civilização, terá muito em que pensar ao comparar o luxo e os confortos da sua vida... com os aspectos da vida do seu filho na aldeia dos Waganwazans.
«‑Volto a agradecer‑lhe que o tenha trazido aqui... e agora devo pedir‑lhe que mo entregue, para que eu o possa confiar aos seus tutores...
Rokoff calou‑se e estendeu os braços para receber a criança. Sorria diabolicamente. Mas, com grande surpresa dele, Jane levantou‑se e, sem uma palavra de protesto, entregou‑lhe o menino.
‑ Aí o tem... ‑ volveu ela, devagar. ‑ Mercê de Deus... está para além do seu poder de fazer mal.
Compreendendo num relance o que significavam as palavras dela, Rokoff levantou a manta que tapava a cara do menino, procurando a confirmação dos seus receios. Jane observava‑o atentamente.
Durante dias estivera intrigada, perguntando a si mesma se Rokoff conheceria a identidade da criança. Se tivera dúvidas, todas desapareceram ante a expressão de terrível cólera que contorceu as feições do russo, ao ver a face morta do pequenino... e ao compreender que o seu mais intenso desejo, na vingança, havia sido anulado por um poder mais alto.
Quase atirando a criança morta para os braços de Jane, Rokoff entregou‑se a um paroxismo de fúria, batendo com os pés no chão, brandindo os punhos fechados e gritando pragas. Por fim parou diante da jovem senhora, curvado sobre ela.
‑ Está a rir‑se de mim, hem? Julga que me venceu... mas eu lhe mostrarei, como mostrei ao miserável macaco a quem chama marido... o que custa interferir nos planos de Nikolas Rokoff!
Roubou‑me a criança... impediu‑me de fazer dela o filho de um chefe canibal! Mas... ‑ e o miserável fez uma pausa, para que toda a significação da ameaça se gravasse na mente de Jane ‑ ... posso fazer da mãe a mulher de um canibal... e é isso o que farei... .quando eu próprio me tiver servido dela!
Se pensara em arrancar a Jane qualquer sinal de terror, falhou miseravelmente. Jane estava para além de tudo. A sua mente e os seus nervos estavam demasiadamente embotados ante o sofrimento e os choques. Com espantada surpresa, descobriu a sombra de um sorriso quase feliz, nos lábios dela. Jane pensava, com o coração grato, que aquele pobre inocente morto não era o seu Jack... e, melhor ainda, que Rokoff não conhecia a verdade.
Gostaria de lhe ter atirado à cara com essa verdade, mas não se atreveu. Se ele continuasse a pensar que o menino era o seu filho, o verdadeiro Jack ficaria mais seguro. Ela não fazia ideia de onde ele estava ‑ nem sequer sabia se vivia ainda, mas no entanto existia a possibilidade de que vivesse.
Era muito provável que, sem o conhecimento de Rokoff, aquele menino tivesse sido posto no lugar de Jack, por um dos cúmplices do russo... e que naquele exacto momento estivesse a salvo, entre amigos, em Londres... onde muita gente tinha a possibilidade e o desejo de pagar qualquer resgate que o traiçoeiro agente do russo pudesse pedir para restituir o filho de «Lord» Greystoke.
Jane pensara nisso centos de vezes, desde que descobrira que a criança que Anderssen lhe entregara, a bordo do «Kincaid», não era o seu filho. E fantasiar todos os pormenores desse sonho tinha sido para ela, no meio do seu sofrimento, uma fonte de alegria. Não, o russo nunca saberia que aquele menino não era o dela. Compreendia que a sua situação era desesperada... Tendo morrido Tarzan... e tendo morrido Anderssen, não havia ninguém no mundo, que ao mesmo tempo, desejasse salvá‑la e soubesse onde ela estava.
Sabia que a ameaça de Rokoff não era vã... Tinha a certeza de que ele faria, ou tentaria fazer, o que havia dito. Mas, se o pior se concretizasse... isso significaria apenas uma libertação um pouco mais breve de todas as angústias que havia suportado. Encontraria maneira de pôr termo à vida antes que o russo pudesse atormentá‑la a esse ponto.
Agora apenas precisava de tempo ‑ tempo para pensar e para se preparar para o fim. Sentia que não poderia dar o último passo, o terrível passo para a morte, senão quando tivesse perdido toda a esperança de se salvar. Não lhe importava a vida se não pudesse recuperar o filho, mas essa possibilidade não estava ainda completamente afastada. Assim, viveria até ao instante em que a morte fosse a única solução para escapar a Rokoff.
‑ Vá‑se embora... ‑ disse ela ao russo. ‑ Vá‑se embora e deixe‑me com o meu morto. Não lhe basta ainda o que fez? Que mal lhe fiz eu, para que insista em atormentar‑me?
‑ Você paga pelos pecados do macaco que escolheu quando poderia ter o amor de um «gentleman»... de Nikolas Rokoff... ‑ ripostou ele. ‑ Mas para que serve discutir o caso? Vamos enterrar aqui a criança, e você voltará comigo, para o meu acampamento. Amanhã trago‑a de volta e entrego‑a ao seu novo marido... o encantador M'ganwazan. Vamos!
Estendeu as mãos para o pequeno cadáver, mas Jane, que se levantara, desviou‑o.
‑ Eu quero enterrar o corpo... ‑ disse ela. ‑ Mande alguns homens abrir uma sepultura fora da aldeia.
Rokoff estava desejoso de acabar com aquilo e levar a sua vítima para o acampamento. Pareceu‑lhe ver em Jane uma expressão de apatia e resignação ante o destino. Saindo da palhota, fez‑lhe sinal para que o seguisse. Um momento depois, com os seus homens, escoltou Jane para fora da aldeia. Junto de uma grande árvore, os negros cavaram uma sepultura pouco funda.
Embrulhando o pequeno corpo num cobertor, Jane estendeu‑o ternamente na cova... e voltou a cabeça para não ver a terra que enchia novamente o buraco aberto no chão. Murmurou uma oração pela alma da criança sem nome... que encontrara o caminho do seu coração de mãe.
Então, de olhos enxutos, mas com a angústia a torturá‑la, seguiu o russo através do negrume da selva, ao longo da estreita pista sinuosa que ia desde a aldeia de M'ganwazam, o canibal, ao acampamento de Nikolas Rokoff, o infame.
De ambos os lados, na impenetrável espessura da selva, onde as árvores gigantescas se erguiam entrelaçando as suas copas e interceptando o luar, perpassavam furtivamente vultos de feras. Um leão rugiu, perto, e a terra pareceu vibrar ao poderoso som.
Os carregadores acenderam archotes e agitaram‑nos acima da cabeça, para afugentarem os animais de presa. Rokoff incitava‑os em voz trémula, onde havia terror.
Os rumores da selva trouxeram nitidamente à memória de Jane recordações de dias e noites passados em circunstâncias semelhantes, com o seu deus da floresta ‑ o intemerato e indomável Tarzan. Então nunca sentira medo, embora a selva fosse nova para ela... e até mesmo o rugido do leão lhe parecera belo, de uma estranha e terrível beleza.
Como tudo seria diferente, agora, se Jane soubesse que Tarzan estava ali, na escura selva, e a procurava. Então teria uma razão para viver... e todas as razões para ter esperança em que seria salva. Mas Tarzan estava morto... embora a ideia lhe parecesse impossível de aceitar.
Parecia que não haveria lugar na morte, para o grande e belo corpo e para os poderosos músculos. Se a notícia da morte de Tarzan lhe tivesse sido dada por Rokoff, Jane saberia que era falsa. Mas não pensava que M'ganwazam tivesse qualquer razão para a enganar. Ela não sabia que o russo havia falado com o negro, pouco antes de este ter entrado na palhota.
Por fim chegaram à tosca «boma» que os carregadores de Rokoff haviam erguido em volta do acampamento. Aí, encontraram desordem e agitação. Jane não compreendeu de que se tratava, mas viu Rokoff entregue a um dos seus ataques de raiva, e por palavras que apanhou aqui e além soube que tinha havido novas deserções durante a ausência dele, e que os desertores haviam levado a maior parte das provisões e das munições.
Quando desabafou a sua fúria sobre os que restavam, o russo voltou para onde deixara Jane sob a vigilância de dois marinheiros brancos. Agarrou‑a rudemente por um braço e começou a arrastá‑la na direcção da sua tenda. A jovem senhora debateu‑se, lutando para se libertar, enquanto os dois marinheiros olhavam e riam.
Rokoff não hesitou em recorrer à brutalidade violenta, quando viu que era difícil arrastar a sua vítima. Bateu repetidas vezes na cara de Jane, até que, meio desmaiada, ela cessou a resistência.
O criado russo acendera a lanterna, e a um gesto do patrão saiu da tenda. Jane tinha caído no chão. Pouco a pouco, o seu aturdimento passava... e ela começava a pensar rapidamente. Os seus olhos percorreram o interior da tenda, notando todos os pormenores do equipamento que continha.
Agora o russo agarrara‑a e estava a levantá‑la, tentando arrastá‑la para a cama de campanha que estava a um lado. Do cinturão dele pendia um revólver de grande calibre. Jane fitou a arma... A certa altura, fingindo perder novamente os sentidos, ficou à espreita da oportunidade. Não podia falhar...
E a oportunidade veio quando Rokoff ia içá‑la para cima da cama de campanha. Um ruído, lá fora, fê‑lo voltar a cabeça... e no mesmo instante Jane apoderou‑se do revólver...
Rokoff virou‑se imediatamente, fitando‑a, compreendendo o perigo. Jane não se atrevia a disparar, porque a detonação atrairia os outros e, morto Rokoff, a situação dela não melhoraria. Pensou nos dois miseráveis que se haviam rido ao ver que o russo lhe batia. Mas, quando o eslavo esboçava um movimento de recuo, Jane levantou o pesado revólver e bateu‑lhe com toda a sua força, entre os olhos, com a coronha da arma.
Sem um grito, Rokoff caiu como um saco subitamente despejado, no chão. A jovem senhora ficou imóvel... Por instantes, pelo menos, estava livre das repugnantes tentativas do miserável.
Ouviu outra vez, fora da tenda, o ruído que distraíra a atenção de Rokoff. Não sabia o que era, mas temendo o regresso do criado e a descoberta do corpo inerte do russo, deu um passo para a lanterna e apagou‑a. Na escuridão total, parou por momentos, para reunir ideias e esboçar um plano de fuga.
À sua volta tinha um acampamento de inimigos. Para além desses inimigos era a escuridão da selva povoada por feras, e por homens ainda piores do que as feras. Havia poucas, ou nenhumas, probabilidades de sobreviver, mesmo só por uns dias, aos perigos constantes que teria de enfrentar. Mas a ideia de que já escapara incólume a tantos perigos e de que algures no mundo havia uma criança que talvez naquele momento chorasse por ela, deu‑lhe a decisão necessária para levar a cabo a proeza que parecia impossível, e atravessar aquela terra de horrores para alcançar o mar e a remota hipótese de socorros que poderia encontrar aí.
A tenda de Rokoff estava exactamente ao centro da «boma». Em volta erguiam‑se as tendas e abrigos dos outros brancos e dos carregadores negros. Passar através de tudo isso e achar a maneira de sair da «boma», parecia uma tarefa demasiadamente recheada de obstáculos. E no entanto não havia outra solução.
Ficar na tenda até que a descobrissem seria anular tudo o que fizera até então para se libertar. Assim, furtivamente e com todos os sentidos alerta, encaminhou‑se para as traseiras da tenda. Não tardou a verificar que não havia qualquer abertura daquele lado, mas apoderou‑se da faca de mato que pendia do cinturão do russo e fez um rasgão na lona, suficiente para passar através.
Saiu, sem rumor. Com infinito alívio viu que todos estavam, pelo menos aparentemente, a dormir. Ao clarão oscilante das fogueiras que começavam a apagar‑se, avistou uma única sentinela, que dormitava sentada, no lado oposto da «boma».
Caminhando de maneira a manter a tenda entre ela e o ensonado vigilante, passou pelo meio dos abrigos onde dormiam os carregadores e alcançou a barreira de moitas espinhosas. Do outro lado, na escuridão da selva, um leão rugiu.
Ouviu o riso rouco de uma hiena, e os sons furtivos da passagem de outros animais.
Por um instante, Jane hesitou. A ideia de que as feras rondavam, na escuridão, era apavorante. Mas logo começou a abrir caminho através da «boma». Não tardou a ter os dedos em sangue, picados e rasgados pelos espinhos, mas continuou até abrir uma passagem. E, por fim, atravessou o obstáculo.
Atrás dela ficava um destino pior do que a morte, às mãos de criaturas que se diziam humanas. Na sua frente havia a morte quase certa... era apenas morte súbita, piedosa e decente.
Jane afastou‑se do acampamento, resoluta, e um momento depois a selva misteriosa fechava‑se em volta dela.
Na solidão da selva
Tambudza, conduzindo Tarzan na direcção do acampamento do russo, avançava muito lentamente ao longo da sinuosa trilha ‑ porque era velha e as suas pernas inchadas e trôpegas não a deixavam ir depressa.
Assim, os mensageiros enviados por M'ganwazam, para avisarem Rokoff de que o gigante branco estava na sua aldeia e seria assassinado nessa noite, chegaram ao acampamento do russo antes que Tarzan e a velha percorressem metade da distância. Os mensageiros encontraram o acampamento em plena agitação.
Rokoff havia sido encontrado estendido na sua tenda, inconsciente, a sangrar em consequência de uma forte pancada na cabeça. Quando recuperou os sentidos e verificou que Jane Clayton fugira, a sua fúria explodiu. Correu pelo acampamento, de um lado para o outro, empunhando o seu rifle, disposto a matar as sentinelas que haviam deixado fugir a prisioneira, mas alguns dos outros brancos, sabendo que já estavam em situação difícil por causa das numerosas deserções provocadas pela crueldade do russo, agarraram‑no e desarmaram‑no.
Então chegaram os mensageiros de M'ganwazam, mas mal haviam contado a sua história e Rokoff se preparava para partir com eles na direcção da aldeia, chegaram outros dois negros, ofegantes em consequência da desesperada corrida através da selva, gritando que o grande gigante branco se escapara e já vinha a caminho para exercer a sua vingança contra os inimigos.
Estabeleceu‑se instantaneamente uma espantosa confusão, no recinto da «boma». Os negros ficaram aterrorizados ante a ideia da aproximação do gigante branco, que percorria a selva acompanhado por um bando de gorilas e panteras. Antes que os brancos compreendessem o que acontecia, o pavor supersticioso dos indígenas fê‑los desaparecer no mato ‑ tanto os carregadores como os mensageiros de M'ganwazam ‑ mas mau grado a pressa não se esqueceram de levar com eles tudo o que tinha algum valor e puderam apanhar.
Assim Rokoff e os sete marinheiros brancos viram‑se sós ‑ e roubados ‑ em plena selva. O russo, como era seu costume, censurou os companheiros, lançando sobre eles todas as culpas da situação quase desesperada em que se encontravam. Mas os marinheiros não estavam na disposição de suportar mais insultos e pragas.
No meio do discurso do russo, um dos homens empunhou um revólver e disparou sobre ele. A pontaria do marinheiro era lamentável, mas o gesto apavorou Rokoff, que correu a refugiar‑se na sua tenda. Enquanto corria, os seus olhos fitaram‑se na orla da floresta, para além da «boma», e o que viu encheu‑o de tal terror que quase esqueceu os sete homens atrás dele. Estes, furiosos, disparavam desordenadamente sobre o vulto que fugia.
O que Rokoff viu foi a figura gigantesca de um branco quase nu, que surgia do mato.
Entrando na sua tenda, Rokoff não se deteve e passou através da abertura que Jane abrira nessa noite, horas antes. O apavorado eslavo meteu‑se pelo rasgão, como um coelho em fuga, passou pela brecha que a sua vítima abrira... e quando Tarzan se aproximou do acampamento, vindo pelo lado oposto, Rokoff desapareceu na selva, pelo mesmo caminho que Jane tomara.
Quando entrou na «boma», tendo a seu lado a velha Tambudza, Tarzan avistou os sete marinheiros... mas estes também o viram e, reconhecendo‑o, apressaram‑se a correr para um dos lados, em fuga. O homem da selva teve tempo para ver que Rokoff não se encontrava entre eles... e deixou‑os fugir. A quem procurava era ao russo, e esperava ir encontrá‑lo na sua tenda. Os marinheiros decerto pagariam na selva as suas infâmias ‑ pensou Tarzan E sem dúvida não se enganou, pois foi a última vez que os viu.
Vendo que a tenda de Rokoff estava vazia, Tarzan ia partir em busca do russo ‑ quando Tambudza lhe sugeriu que a ausência do branco era decerto causada por algum recado que m'ganwazam lhe enviara, dizendo que o homem da selva estava na aldeia.
‑ Foi com certeza para lá... ‑ disse a velha. ‑ Se queres apanhá‑lo, vamos voltar já.
Tarzan pensou que aquela era possivelmente a verdade do que se passara, de modo que não perdeu tempo a procurar a pista do russo e partiu velozmente para a aldeia, deixando Tambudza segui‑lo com os seus vagares. A sua esperança era de que Jane estivesse ainda em poder de Rokoff. Se assim fosse... em menos de uma hora arrancá‑la‑ia das garras do russo.
Sabia agora, evidentemente, que m'ganwazam era um patife, e poderia ter de lutar para recuperar Jane. Teve pena de que Mugambi, Sheeta, Akut e os outros gorilas não estivessem com ele, pois sabia que, sozinho, não ia ser fácil libertar Jane dos dois patifes... o infame Rokoff e o repugnante M'ganwazam.
Com grande surpresa, não encontrou Jane nem o russo na aldeia, e não perdeu tempo a interrogar o traiçoeiro negro. Tão súbito foi o seu aparecimento, e tão rápida a sua desaparição na selva, ao ver que não estavam na aldeia aqueles a quem buscava, que M'ganwazam, o velho patife, não teve sequer tempo para pensar em detê‑lo.
Saltando de árvore em árvore, voltou velozmente ao acampamento que deixara pouco antes... pois era ali que, com mais probabilidades, poderia apanhar a pista de Jane e do russo. Chegando à «boma», deu atentamente uma volta pelo exterior da barreira, até que, em frente de uma brecha aberta entre os espinhos, viu sinais da passagem de alguém que se internara na selva espessa. O seu apurado olfacto disse‑lhe que ambos aqueles a quem buscava tinham saído do acampamento naquela direcção. Um momento depois seguia a pista.
Bastante à frente de Tarzan, Jane corria quanto podia ao longo de uma trilha aberta pelos animais da selva... apavorada ante a ideia de que em qualquer momento lhe surgisse ao caminho uma fera... ou um homem pior do que uma fera. Enquanto corria, esperando contra toda a esperança que aquele caminho a levasse ao grande rio, encontrou‑se subitamente num lugar que conhecia.
A um lado da trilha, por detrás de uma grande árvore, estava um pequeno montículo de mato solto ‑ enquanto Jane vivesse, aquele ponto na selva estaria indelevelmente gravado na sua memória. Tinha sido ali que Anderssen a escondera... e dali partira para sacrificar a sua vida numa vã tentativa para a livrar de Rokoff.
Jane lembrou‑se bruscamente do rifle e da cartucheira de balas que o sueco lhe entregara no último momento. Até então esquecera isso, por completo. Empunhava ainda o revólver que tirara a Rokoff, mas esse poderia ter, quando muito, seis balas ‑ insuficientes para que ela pudesse ter comida e defesa na sua longa jornada até ao mar.
Com a respiração suspensa, procurou por entre o mato, mal se atrevendo a esperar que a arma e as munições ali estivessem ainda. Mas estavam! Com infinito alívio, encontrou o rifle e a cartucheira.
Suspendeu o cinturão do ombro, e empunhou com firmeza a pesada espingarda de caça. Uma sensação de segurança invadiu‑a. Foi com uma nova esperança de bom êxito que retomou a sua caminhada.
Nessa noite dormiu na bifurcação de ramos de uma árvore ‑ como Tarzan lhe contara que costumava fazer ‑ e cedo, na manhã seguinte, continuou a caminhar. Nessa tarde, quando ia atravessar uma pequena clareira, sobressaltou‑se ao ver um grande gorila que surgia da selva, do lado oposto àquele onde ela se encontrava.
O vento soprava através da clareira, entre ambos, e Jane não perdeu tempo, indo colocar‑se contra o vento para que o gorila a não descobrisse pelo olfacto.
Devagar, o monstro avançava através da clareira, farejando o chão de quando em quando, como se seguisse uma pista. Mas, quase imediatamente, atrás dele apareceu outro, e outro, e ainda outro... até que cinco enormes gorilas ficaram diante de Jane que, encolhida atrás de um tronco, crispava as mãos no rifle, disposta a usá‑lo se fosse necessário.
Angustiada, viu que os gorilas paravam no centro da clareira, juntando‑se em grupo e olhando para trás, como se esperassem a vinda de outros. Jane desejava ansiosamente que eles se afastassem. Sabia que, em qualquer momento, uma mudança de vento podia fazer com que farejassem a sua presença... e se assim fosse a sua espingarda seria praticamente inútil contra os formidáveis músculos e os poderosos dentes das feras.
Os seus olhos fitavam alternadamente os gorilas e a orla da selva para onde eles olhavam... até que compreendeu por que razão tinham parado e o que esperavam. Outro animal vinha atrás deles. Um instante depois de ter notado um movimento furtivo entre o mato, fiu uma pantera surgir no mesmo ponto de onde haviam aparecido os gorilas.
Rápido, o felino trotou na direcção do grupo dos antropóides. Jane pasmou ao ver que estes pareciam apáticos, e um momento depois o seu pasmo transformou‑se em espanto. A pantera reunira‑se aos gorilas, que continuaram indiferentes, e sentara‑se tranquilamente, lambendo o pêlo do peito e das patas ‑ o que parece ser uma ocupação constante dos felinos. Se Jane se havia surpreendido ao ver o entendimento que parecia existir entre aqueles inimigos, hereditários, foi com uma sensação de dúvida, quanto à sua própria integridade mental, que viu um negro alto e forte surgir por seu turno da selva, e juntar‑se ao grupo formado pela pantera e os gorilas. Ao avistar o homem, a primeira ideia de Jane foi de que ele iria ser despedaçado pelas feras ‑ e soergueu‑se, levando o rifle ao ombro para intervir na medida das suas forças.
Mas o negro falava com as feras ‑ na realidade parecia dar‑lhes ordens numa linguagem estranha.
Então todo o bando se pôs novamente a caminho, atravessando a clareira e desaparecendo do lado oposto.
Com uma breve exclamação de incredulidade e de alívio, Jane levantou‑se e fugiu, ansiosa por se afastar do pavoroso grupo... ignorando que meia milha atrás dela, um homem que vinha pela mesma trilha se encolhia, gelado de pavor, atrás de uma termiteira, enquanto as feras e o negro passavam a curta distância dele.
O homem era Rokoff... mas ele reconhecera o grupo como sendo os aliados de Tarzan. Assim que o bando seguiu, Rokoff lançou‑se em corrida através da selva, na ânsia desesperada de se afastar dali.
Aconteceu assim que, quando Jane chegou à margem do rio que esperava poder descer em direcção ao mar e a uma possível salvação ‑ Rokoff estava a muito curta distância atrás dela.
Na margem, a jovem senhora viu uma grande piroga que havia sido puxada para terra e amarrada a um tronco. Era a solução do seu problema de alcançar o mar, se conseguisse empurrar a embarcação para a água. Rapidamente, desfez o nó da corda e pôs‑se a empurrar a proa da piroga, com todas as suas forças. Mas não tardou a concluir que a tarefa era impossível.
Estava quase exausta quando lhe ocorreu a ideia de acumular pedras na popa da embarcação, a parte que mergulhava na água, e então fazer oscilar a proa para baixo e para cima, na esperança de que o peso a arrastasse para o rio.
À falta de pedras, que não encontrou, descobriu troncos e ramos que a corrente arrastava devagar. Juntou‑os e empilhou‑os... até que, por fim, com imenso alívio, viu a proa levantar‑se ligeiramente da lama da margem, enquanto a popa, mergulhando mais, era impelida pela corrente do rio e se deslocava lentamente... mas para ficar imóvel de novo, pouco adiante.
A piroga assentava pesadamente, ao meio da parte inferior, sobre uma elevação de terra, e agora que os troncos amontoados por Jane haviam feito desaparecer o relativo equilíbrio que a grudava ao chão, era possível fazê‑la deslizar aos poucos, correndo entre a popa e a proa. A jovem senhora assim o percebeu, e não tardou que a embarcação entrasse na água, embora apenas umas polegadas de cada vez. Os esforços coroados de êxito absorveram de tal maneira Jane... que não viu o vulto de um homem que estacara, ofegante, junto de uma árvore, na orla da clareira.
O homem observava‑a com um sorriso feroz, mas Jane não o via... Agora a piroga estava quase toda dentro de água, e um último impulso, dado com uma vara, lançá‑la‑ia na corrente do rio. Jane saltou para dentro da piroga, apanhou uma das compridas varas que estavam no fundo e usou‑a, dando o impulso necessário. Foi nesse momento que levantou os olhos e avistou o homem. Era Rokoff.
O russo corria agora para ela, gritando‑lhe que parasse ou faria fogo ‑ uma ameaça impossível de cumprir porque não dispunha de qualquer arma. Mas Jane nada sabia dos sucessivos contratempos que o miserável sofrera, e pensou que os outros bandidos o seguiam ainda. Todavia não se resignava a cair novamente nas mãos do russo. Antes quereria morrer. Mais um instante... e a piroga seguiria rio abaixo.
Quando se afastasse da margem, ficaria livre de Rokoff. Não havia ali qualquer outra embarcação, e nenhum homem, menos ainda o russo cobarde, se atreveria a nadar num rio povoado de crocodilos.
Por seu lado, Rokoff pensava mais em fugir do que em qualquer outra coisa. Teria desistido de todos os seus propósitos para que ela o deixasse fugir na piroga... teria feito todas as promessas para isso. Mas pensou que não seria necessário. Viu que poderia facilmente agarrar a proa da piroga... e que não precisava de fazer qualquer promessa ‑ embora, se as fizesse, em nada se sentisse obrigado. Apenas lhe repugnava a ideia de implorar um favor de alguém que pouco antes o atacara e lhe fugira.
No seu espírito já nasciam ideias de vingança... a vingança que levaria a cabo durante os longos dias e noites em que a piroga seguisse ao sabor da corrente.
Mas um último esforço de Jane libertou finalmente a embarcação, no momento em que o russo ia agarrá‑la. A mão de Rokoff falhou...
Então Jane quase se sentiu desmaiar, pelo efeito da reacção depois dos horríveis momentos de angústia. Os seus lábios começavam a murmurar uma oração... quando viu o russo saltar sobre qualquer coisa que deslizava sobre a lama, na direcção da água.
E Jane apavorou‑se novamente... porque afinal estava ainda ao alcance do miserável. O que Rokoff apanhara... era a extremidade da corda que tinha servido para amarrar a piroga... e cuja outra extremidade continuava solidamente atada à ponta da embarcação.
Descendo o Ugambi
A meio caminho entre a aldeia dos Waganwazans e o Ugambi, Tarzan encontrou os seus companheiros, que seguiam devagar ao longo da antiga pista. Mugambi mal podia acreditar que as pistas do russo e da mulher que o homem da selva procurava... passassem tão perto do caminho que o bando percorrera. Parecia inacreditável que duas criaturas brancas tivessem passado a tão curta distância, sem serem pressentidas pelo faro apurado das feras, ou pelos ouvidos atentos e alerta.
Mas Tarzan mostrou‑lhe dois pontos, junto de uma árvore e por detrás de uma termiteira, onde a mulher e o homem deviam ter‑se escondido enquanto eles passavam.
Desde o primeiro instante, Tarzan compreendera que Jane e Rokoff não tinham seguido juntos. A pista indicava distintamente que a jovem seguira consideravelmente à frente do russo, ao princípio, embora depois, pouco a pouco, o infame eslavo fosse encurtando essa distância.
As pegadas de Jane haviam sido cobertas por marcas deixadas por animais selvagens, e estas, por sua vez, tinham sido obliteradas pela passagem do russo... que portanto ia bastante atrás. Mas mais longe já as pegadas do russo se sobrepunham às de Jane, sem outras marcas, o que indicava que um menor espaço de tempo decorrera entre umas e outras... e portanto uma distância menor entre ambos... Já perto do rio, Tarzan compreendeu que o russo ia apenas a umas centenas de metros de Jane.
Sentia que deviam estar próximos, e com um brado de excitação lançou‑se velozmente ao longo da trilha, adiantando‑se a Sheeta e aos gorilas. Saltando como um esquilo, de árvore em árvore, alcançou a margem do rio no ponto exacto em que Rokoff correra para Jane quando ela impelia a piroga para a água. Na lama da margem estavam claramente marcadas as pegadas de ambos... mas nenhum deles se avistava.
Era evidente que haviam empurrado uma piroga para o rio, embarcando à beira da corrente... e quando Tarzan correu rapidamente pela margem, por entre as árvores que se debruçavam sobre a água, viu a distância, no momento em que desaparecia numa curva, uma piroga à deriva... em cuja popa se distinguia o vulto de um homem.
Quando Mugambi e os seus ferozes companheiros chegaram ao rio, viram o homem da selva que saltava de um banco de areia para outro, e daí para outros ainda que se estendiam em linha mais ou menos recta entre o ponto onde eles estavam e um pequeno promontório que se erguia imediatamente antes de uma curva do rio. Para o seguir era necessário que os gorilas ‑ e também Sheeta, que detestava a água ‑ dessem uma larga volta. Mugambi conduziu‑os tão rapidamente quanto possível, na peugada do gigante branco.
Meia hora de rápida viagem através dos bancos de areia e de lama, e sobre o promontório, levou Tarzan, por um atalho, à curva do rio sinuoso. E aí, em baixo, levada pela corrente, avistou a piroga à popa da qual ia Rokoff.
Jane não estava com o russo.
Ao ver o miserável, o homem da selva lançou o seu brado feroz... e ao mesmo tempo a cicatriz na sua testa tomou o tom vermelho que a cólera lhe emprestava.
Rokoff estremeceu violentamente ao ouvir o brado terrível. Encolhido no fundo da piroga, com os dentes a bater, viu o homem a quem temia mais do que a qualquer outra criatura no mundo ‑ e que corria rapidamente para a beira do rio.
O russo sabia que estava a salvo, ou supunha‑o, porque não imaginava que Tarzan se atrevesse a nadar naquelas águas. Mas o pavor dominava‑o... e esse pavor transformou‑se em pânico quando viu que Tarzan mergulhava intemeratamente no rio. Em largas e firmes braçadas, o homem da selva nadava agora na direcção da piroga que a corrente arrastava.
Trémulo, Rokoff agarrou num dos remos caídos no fundo da embarcação, e em gestos desordenados tentou aumentar a velocidade desta... para escapar à morte que se aproximava. Na margem oposta, a água agitou‑se por momentos, e sem que qualquer dos homens o visse, um vulto sinistro dirigiu‑se para o nadador meio nu.
Tarzan conseguira finalmente agarrar‑se à popa da embarcação. Rokoff paralisado pelo medo, não conseguia mover‑se. Mas nesse momento o homem da selva avistou o vulto que nadava sob a água... e reconheceu‑o.
As poderosas mandíbulas do crocodilo fecharam‑se sobre a perna direita de Tarzan... que tentou libertar‑se e içar‑se, batendo com o pé livre nos olhos do sáurio. Talvez o tivesse conseguido, se o russo não visse a possibilidade de escapar e vingar‑se... com a ajuda daquele aliado imprevisto. Dominando o terror, Rokoff levantou‑se, correu para a popa e desferiu um violento golpe com o remo, na cabeça de Tarzan. Os dedos do homem da selva largaram a borda da piroga.
Houve uma curta luta à superfície, depois um redemoinho na água... e apenas as bolhas de ar que subiam do fundo indicaram o ponto onde Tarzan dos Macacos, senhor da selva, desaparecera sob as águas escuras do Ugambi.
Enfraquecido pelo medo, Rokoff deixou‑se cair no fundo da piroga. Por momentos não conseguiu compreender a sorte que tivera ‑ tudo o que via era o vulto do gigante branco que silenciosamente se debatia e mergulhava. Mas, lentamente, o que tal coisa significava acabou por surgir na mente do russo... e um sorriso de alívio e de triunfo encurvou‑lhe os lábios. A sua satânica alegria, porém, foi de curta duração, pois quando começava a congratular‑se, considerando‑se relativamente seguro para completar a sua jornada até ao mar, um barulho formidável irrompeu na margem, perto dele.
Quando olhou, espantado... Rokoff avistou Sheeta cujos olhos tinham um fulgor de ódio e de morte, e em volta dela os gorilas de Akut. À frente do pavoroso grupo, um gigantesco guerreiro negro brandia os punhos, bradando ameaças terríveis.
O pesadelo da longa jornada, descendo o Ugambi com o bando medonho correndo sempre atrás dele, dia e noite, seguindo‑o ou precedendo‑o, desaparecendo por vezes durante horas para logo reaparecer mais terrível e mais furioso, reduzia o russo a uma sombra de si mesmo. Os cabelos embranqueceram‑lhe e as faces cavaram‑se... Os olhos cansados mal distinguiram o mar que finalmente surgiu na sua
frente.
Tinha passado diante de aldeias de negros. Uma vez ou outra alguns guerreiros haviam saltado para as pirogas, dispostos a deitar‑lhe a mão.,, mas de cada vez as feras de Tarzan haviam surgido para o pôr em fuga.
Em nenhum momento da pavorosa viagem avistou a piroga de Jane. Nem uma só vez voltou a vê‑la, desde o instante em que agarrara a corda da embarcação... para logo a largar ao ver que a jovem senhora lhe apontava ao peito um rifle de grande calibre, que apanhara no fundo da piroga...
Rokoff largara a corda e vira‑a desaparecer, ficar fora do seu alcance, mas um momento depois tinha corrido ao longo da margem até chegar a um pequeno afluente, na embocadura do qual deixara a piroga em que ele e o seu grupo haviam subido o rio, em perseguição de Jane e de Anderssen.
Que acontecera à jovem senhora?
Na mente do russo havia poucas dúvidas do seu fim. Decerto fora apanhada pelos guerreiros de uma das aldeias diante das quais tivera de passar. Pelo menos... os inimigos humanos de Rokoff tinham desaparecido ‑ assim ele julgava. Mas na verdade teria preferido que ambos estivessem vivos... se isso pudesse libertá‑lo da ameaça das pavorosas criaturas que o perseguiam inexoravelmente, gritando e rugindo ao longo da margem.
Das feras de Tarzan, a que apavorava mais o miserável Rokoff era a pantera, cujos dentes agudos pareciam encher de terror os seus dias... e cujos olhos fosforescentes brilhavam mesmo de noite, seguindo‑o, na escuridão da selva.
Ao avistar a foz do Ugambi, o russo sentiu‑se reanimado, apesar de tudo... porque ali, nas águas amareladas da baía, estava o «Kincaid», ancorado. Rokoff dera ordens para que os tripulantes, que haviam ficado a bordo sob o comando de Alexis, fossem meter carvão ao porto mais próximo enquanto ele se internava por terra, subindo o rio.
E agora apetecia‑lhe gritar de alegria, ao ver que o «Kincaid» estava já de volta... a tempo de o salvar!
Desesperadamente, numa tremenda excitação nervosa, ora remava com todas as suas forças, ora se punha de pé na piroga, agitando um remo acima da cabeça e gritando para chamar a atenção dos que estavam a bordo. Mas, por mais que gritasse, nenhuma resposta vinha do convés silencioso do pequeno vapor.
Na margem, atrás dele, o eslavo avistava o medonho bando. Mesmo naquele momento ‑ pensava ele ‑ poderiam arranjar maneira de o alcançar... até no convés do «Kincaid», a não ser que de bordo os repelissem com armas de fogo. Mas que poderia ter acontecido àqueles que deixara no navio? Que teria acontecido a Paulvitch? Seria possível que o navio estivesse abandonado e que, no fim dos pavorosos dias e noites em que tentara fugir à morte, viesse encontrar ali a mesma terrível morte... quando já se julgava a salvo?
Continuou a remar, com fúria, na direcção do navio, e ao cabo do que lhe pareceu uma eternidade... a piroga encostou ao casco do «Kincaid». Da borda do barco pendia uma escada, mas quando o russo a agarrou, para subir, ouviu em cima um brado de aviso e, levantando a cabeça, viu o cano de um rifle apontado para ele.
Depois de Jane Clayton, com o rifle apontado para o peito de Rokoff, ter conseguido mantê‑lo a distância até que a piroga fosse arrastada pela corrente do Ugambi, para além do alcance do russo, a jovem senhora não perdera tempo e começara a remar para o meio do rio, onde a corrente era mais rápida. Durante os longos dias e as noites intermináveis, nunca deixara de manter a embarcação num rumo quase equidistante das duas margens, para aproveitar ao máximo o impulso do rio. Só nas horas de maior calor se havia deixado levar, sem usar os remos, estendida no fundo da embarcação e com a cara tapada por uma folha de palmeira. Só nesses momentos descansava.
Entretanto Rokoff, por seu lado, usara pouco a cabeça durante a sua jornada. O pavor impedia‑o de pensar, e a presença constante das feras levava‑o a aproximar‑se da margem oposta àquela onde elas estavam... e onde a corrente do rio era cortada por remansos e bancos de areia. E assim, embora houvesse iniciado a descida do rio pouco tempo depois de Jane, ela alcançara a baía várias horas antes dele.
Ao avistar o navio ancorado nas águas calmas, Jane sentira‑se invadida por uma grande esperança... que logo desaparecera ao compreender que se tratava do «Kincaid». Todavia, era demasiado tarde para recuar, pois a corrente que a arrastava na direcção do navio era excessivamente forte para que ela pudesse contrariá‑la, remando. Assim, para não ser levada para o mar, só podia escolher entre tentar conduzir a piroga para uma das margens... ou abordar o «Kincaid».
Jane sabia que na margem poucas esperanças poderia ter de sobreviver, visto não fazer ideia de qual o caminho para a aldeia dos amistosos Mosulas, onde estivera com Anderssen.
Não estando Rokoff a bordo, era talvez possível que, oferecendo uma ampla recompensa aos tripulantes que encontrasse, eles se deixassem convencer a levá‑la a um porto civilizado. Era uma hipótese que valia a pena verificar... se na verdade conseguisse chegar ao vapor.
A corrente arrastava‑a, e Jane compreendeu que só à custa de um tremendo esforço conseguiria não ser levada para longe. A bordo do vapor parecia não haver vivalma. Nem um brado, nem um vulto na amurada, mesmo quando a piroga estava já muito perto... Com receio de que a maré vazante a levasse mais para além do «Kincaid», para o alto mar, Jane gritou... mas sem obter resposta.
Então, num esforço desesperado, levou a piroga a roçar o casco do vapor, à proa... e na passagem agarrou‑se à corrente da âncora. Corajosamente, firmando os pés para que o bote não deslizasse sob ela deixando‑a pendurada, calculou o impulso, apanhou a escada de corda, com degraus rígidos, que pendia da amurada, e soltou simultaneamente a corrente e a piroga. Um momento depois, levando o rifle em bandoleira, estava no convés do «Kincaid». Não havia ninguém.
A sua primeira tarefa foi explorar o navio. Empunhando a arma, pronta a servir‑se dela sem hesitação se fosse necessário, não levou muito tempo a descobrir por que razão o «Kincaid» parecia deserto. Os marinheiros que haviam ficado a guardar o vapor tinham‑se deixado vencer pelo álcool e dormiam profundamente, no porão da proa.
Com um arrepio de repugnância, Jane voltou a subir ao convés, e o melhor que pôde fechou e prendeu o alçapão, por cima da cabeça dos homens adormecidos. Então procurou a despensa, e depois de ter saciado a fome pôs‑se de guarda, em cima, disposta a não deixar fosse quem fosse entrar no navio sem ter aceitado as suas condições.
Durante bastante mais de uma hora nada aconteceu, no rio, que fosse motivo de alarme... mas então Jane viu surgir uma piroga tripulada por um homem. A piroga aproximava‑se do «Kincaid, pouco tempo decorreu antes que Jane reconhecesse Rokoff... e foi assim que, quando o russo tentou subir a bordo, viu um rifle apontado para ele.
Quando o russo descobriu quem o impedia de subir, ficou furioso, praguejando e ameaçando terrivelmente. Mas, ao verificar que essa táctica não conseguia demover Jane dos seus propósitos, nem sequer assustá‑la, recorreu às súplicas e às promessas.
Mas a jovem senhora teve apenas uma resposta para todas as propostas... e foi que nada neste mundo a persuadiria a permitir que Rokoff entrasse a bordo do «Kincaid». E com tal firmeza falou, que o russo ficou com a certeza absoluta de que Jane o mataria se ele insistisse em subir.
Deste modo, não tendo outra alternativa, o repugnante cobarde largou a escada e, com risco de ser arrastado para o mar largo, conseguiu alcançar terra na margem mais afastada da baía, no lado oposto àquele onde as feras de Tarzan se mantinham, ameaçadoras.
Jane Clayton compreendeu que o miserável nunca teria forças para, sem ajuda, levar a pesada piroga a subir a corrente do Ugambi e aproximar‑se do «Kincaid», e assim deixou de ter qualquer receio de ser atacada por ele. Pareceu‑lhe que o grupo de feras, que avistava na margem, era o mesmo que havia encontrado na selva, na parte superior do rio, vários dias antes. Na verdade seria inadmissível que houvesse vários grupos compostos por gorilas, uma pantera e um negro... mas por outro lado não podia imaginar por que razão as feras haviam também descido o rio.
Perto do fim do dia, Jane foi bruscamente alarmada ao ouvir os gritos do russo, no outro lado da corrente. Um momento depois, olhando na direcção do ponto para o qual ele acenava gritando, assustou‑se ao ver um escaler de um navio que se aproximava vindo da parte alta do Ugambi. Tinha a certeza de que só podiam ser os membros da tripulação do «Kincaid», que haviam desaparecido ‑ implacáveis inimigos e rufiões.
Na escuridão da noite
Quando Tarzan compreendeu que havia sido apanhado por um dos grandes crocodilos do rio, não fez o que qualquer outro homem teria feito, isto é, não perdeu toda a esperança entregando‑se ao destino.
Em vez disso, encheu os pulmões de ar antes que o sáurio o arrastasse para debaixo de água, e com todo o poder dos seus músculos lutou para se libertar. Mas, naquelas condições, o homem da selva pouco mais podia fazer do que excitar o monstro e fazê‑lo mergulhar mais depressa.
Tarzan sentia que os seus pulmões não aguentariam muito mais... e num impulso de raiva fez o que lhe era possível para se vingar da fera, tentando cravar‑lhe no corpo a sua rija e delgada faca de pedra. Sem o largar, o crocodilo arrastou‑o para um terreno lamacento... e Tarzan, que já não podia conter por mais tempo a ânsia de respirar, encontrou‑se inesperadamente com a boca e o nariz fora de água.
À sua volta a escuridão e o silêncio eram totais... o silêncio e a escuridão de um túmulo. Sentia a seu lado o arfar do corpo escamoso do crocodilo... que parecia esforçar‑se também para respirar. Durante alguns minutos nada mudou, mas de repente, depois de um último sobressalto, o sáurio ficou imóvel... largando‑o. Tarzan içou‑se mais sobre a lama e descobriu, com espanto, que o crocodilo estava morto. A lâmina de sílex alcançara‑o nalgum ponto vulnerável, e a ferida tinha sido mortal.
Então o homem da selva endireitou‑se, tacteando. Não tardou a compreender que se encontrava numa espécie de caverna, sob a margem, um compartimento subterrâneo que parecia grande bastante para abrigar meia dúzia de monstros do rio. Sem dúvida que o único meio de entrar ou sair era aquele que o sáurio utilizara, sob a água.
Era preciso sair dali... mas as probabilidades de poder alcançar o leito do rio, e subir à superfície, pareciam mínimas. A passagem devia ser sinuosa... e, pior que tudo, havia a possibilidade de encontrar no caminho outro crocodilo que regressasse ao que era evidentemente o refúgio deles. No entanto, porque não existia outra alternativa, Tarzan encheu de ar os pulmões e mergulhou na água que nem sequer podia ver, avançando por instinto, guiado pelo roçar do próprio corpo contra as paredes do túnel.
A perna que havia sido mordida pelo crocodilo estava profundamente lacerada, mas o osso não se quebrara, nem músculos ou tendões haviam sido atingidos de maneira a não poderem funcionar. Tarzan sentia apenas uma dor intensa, mas nada mais.
No entanto estava habituado ao sofrimento físico, e isso não o preocupou. O que importava era poder ainda utilizar a perna.
Nadou rapidamente ao longo da passagem, que primeiro descia e depois subia até alcançar o leito do rio, a curta distância da margem. Quando chegou à superfície, Tarzan avistou duas enormes cabeças, de outros monstros que estavam bastante perto. Aproximavam‑se mais, para o atacar. Tarzan levantou um braço, agarrou uma ramada de árvore, que pendia sobre o rio e, içou‑se num só impulso.
Foi exactamente a tempo, porque apenas pudera firmar‑se sobre a ramada quando os grandes maxilares dos crocodilos se fecharam em vão, com um ruído impressionante. Durante alguns minutos, o homem da selva deixou‑se ficar estendido, a descansar. Depois os seus olhos fitaram atentamente a superfície do Ugambi, até onde podia vê‑la... mas não havia sinais do russo ou da piroga.
Quando descansou e ligou a perna ferida, Tarzan partiu de novo em perseguição da piroga que a corrente arrastava. Viu que estava na margem oposta àquela por onde viera ao entrar no rio, mas isso não tinha qualquer importância pois que o russo seguia pela água. No entanto, com grande contrariedade, Tarzan teve de reconhecer que a perna lhe doía demasiadamente e que lhe dificultava a marcha, Só a grande custo podia avançar um pouco mais depressa do que a passo, no terreno, e nas árvores era ainda pior, além de mais perigoso.
Pela velha negra Tambudza, Tarzan soubera uma coisa que lhe enchia agora a mente de dúvidas e ansiedade. Ao dizer‑lhe que o menino morrera, a velha acrescentara que a mulher branca, embora angustiada, lhe havia afirmado não se tratar do seu filho.
Tarzan não via razão para pensar que Jane achasse útil negar a sua identidade ou a da criança. A única explicação que encontrava era que a mulher que havia acompanhado Anderssen não podia ser de facto Jane. Quanto mais pensava no caso, mais se convencia de que o filho morrera e Jane continuava realmente em Londres, ignorando tudo do que havia acontecido. Sendo assim, a sua interpretação das palavras do russo havia sido errada... ele arrastara consigo, desnecessariamente, o peso de uma dupla angústia. Esta ideia animou‑o de algum modo ‑ apesar do desgosto que sentia pela morte do menino. E que morte horrível! Mesmo o animal selvagem que era, no fundo, o verdadeiro Tarzan, imune aos sofrimentos e horrores da selva, estremecia ao pensar no que sofrera, até morrer, o pobre pequenino inocente.
Enquanto avançava, dolorosamente, em direcção à costa, deixou que o seu cérebro ponderasse tão profundamente todos os crimes que o russo praticara contra aqueles a quem ele amava‑‑que a cicatriz da testa se manteve quase sempre rubra, o que era indício de uma raiva violenta e feroz, brutal e impiedosa.
Por vezes ele próprio se sobressaltava, surpreendendo‑se a rosnar e a rugir como uma fera.
Se ele pudesse haver às mãos o miserável russo!
Por duas vezes, durante a caminhada para a costa, indígenas belicosos saíram das suas aldeias para o atacar... mas quando ouviam o terrível brado de desafio dos gorilas, e viam o gigante avançar para eles, sumiam‑se na selva de onde não voltavam senão muito tempo depois de ele ter passado.
Embora o seu avanço lhe parecesse desesperadamente lento, na verdade caminhava à mesma velocidade da piroga que descia o rio adiante dele. Foi assim que alcançou a baía ao escurecer do mesmo dia em que Jane e o russo haviam chegado ao termo da longa jornada através do Ugambi.
A escuridão começou a envolvê‑lo quase imediatamente, tão curtos são os crepúsculos tropicais, de maneira que Tarzan, embora habituado a ver durante a noite, mal distinguia o que se passava à sua volta. A sua ideia era procurar ao longo da margem a pista do russo e da mulher que o precedera. Que o «Kincaid», ou qualquer outro vapor, pudesse estar ancorado a poucas centenas de metros dele, não podia sequer imaginar, pois não havia a bordo qualquer luz.
Quando começava a procurar, a sua atenção foi subitamente atraída por um ruído de que não se apercebera antes ‑ o furtivo bater de remos na água, a alguma distância da margem e cerca do lado oposto àquele onde ele se encontrava. Imóvel como uma estátua, ficou à escuta.
A certa altura o ruído cessou, para ser seguido por outro que o ouvido apurado do homem da selva interpretou como sendo causado pelo roçar de pés calçados nos degraus de uma escada que certamente devia pender de um navio. E no entanto, até onde Tarzan podia ver, não havia qualquer navio ali nem decerto haveria num raio de milhares de milhas.
Enquanto permanecia assim, sondando a obscuridade da noite em que nuvens espessas impediam mesmo a vaga claridade das estrelas, surgiu subitamente da treva, vindo de algures diante dele, o ladrar brusco de várias detonações, logo seguido por um agudo grito de mulher.
Ferido como estava, e tendo ainda nítidas na memória as recordações da terrível experiência por que passara, Tarzan não hesitou quando as notas estridentes daquele grito rasgaram o silêncio e a treva. De um salto, transpôs as moitas e mergulhou na água. Então, em poderosas braçadas, nadou na noite impenetrável, a direito, tendo apenas por guia os ecos daquele grito, e por companhia os monstros que povoavam o Ugambi...
Os movimentos do bote que havia atraído a atenção de Jane, a bordo do «Kincaid», haviam sido notados por Rokoff numa das margens, e por Mugambi e o seu bando de feras na margem fronteira. Os gritos do russo levaram o bote na sua direcção, e depois de uma rápida troca de palavras, entre ele e os ocupantes da embarcação, seguiram na direcção do «Kincaid».
Mas, antes que tivessem percorrido metade da distância entre a margem e o navio, uma espingarda detonara no convés deste último... e um dos marinheiros, à proa do bote, curvou‑se e caiu na água.
Depois disso os remadores avançaram com mais cautelas, e quando o rifle de Jane voltou a disparar e outro marinheiro tombou, o bote voltou para a margem, onde ficou enquanto houve luz de dia.
O bando de feras, na margem oposta, tinha sido dirigido pelo guerreiro negro, Mugambi, chefe dos Wagambi. Só ele sabia quem podia ser inimigo e quem podia ser amigo do gigante branco que se perdera lá para trás.
Se as feras pudessem alcançar o bote, ou o «Kincaid», rapidamente teriam destroçado todos os que lá se encontrassem, mas a água do escuro rio era, para elas, um obstáculo tão grande como poderia ter sido o vasto mar.
Mugambi sabia alguma coisa dos acontecimentos que haviam levado Tarzan à Ilha da Selva, e da perseguição aos brancos, movida ao longo do Ugambi. Sabia que o homem da selva procurava a mulher e o filho que havia sido raptado pelo infame branco a quem tinham perseguido pelo interior da selva e agora novamente na direcção do mar.
O guerreiro negro pensava também que esse branco tivera artes de matar Tarzan, o gigante a quem ele, Mugambi, aprendera a respeitar e a estimar como nunca estimara os maiores chefes da sua tribo. E assim, no espírito selvagem de Mugambi, gravara‑se a inabalável resolução de alcançar o assassino e vingar a morte do homem da selva.
Mas quando viu o bote que descera o rio, e no qual Rokoff embarcou e seguiu na direcção do vapor, compreendeu que só uma piroga lhe permitiria transportar as feras e chegar ao alcance do inimigo.
Desta maneira aconteceu que, mesmo antes de Jane ter disparado o primeiro tiro, as feras de Tarzan haviam desaparecido na selva.
Depois que o russo e o seu novo grupo, formado por Paulvitch e alguns homens que haviam ficado no «Kincaid» para tratarem de reabastecer de carvão o navio, retiraram ante os seus tiros, Jane compreendeu por seu lado que havia conseguido apenas breves tréguas... e com essa compreensão veio a decisão de fazer uma audaciosa tentativa final para escapar a Rokoff.
Tendo esta ideia em mente, abriu negociações com os dois marinheiros que fechara no porão da proa, e tendo‑os levado a aderir aos seus planos, sob pena de morte se lhe fossem desleais, libertou‑os no momento em que a escuridão começava a envolver o navio.
Empunhando o revólver para os forçar a obedecer, deixou‑os sair, um de cada vez, revistando‑os cuidadosamente para se assegurar de que nenhum deles estava armado. Quando concluiu essa operação, mandou‑os cortar o cabo que prendia o «Kincaid» à amarração, porque o seu temerário plano consistia em deixar seguir o vapor à deriva, no mar, entregando‑se à mercê dos elementos que decerto seriam menos cruéis do que Rokoff... se ele conseguisse apanhá‑la.
Havia também a possibilidade de que o «Kincaid» fosse avistado por qualquer navio que passasse. Sabia, pelos dois homens, que o vapor estava bem abastecido de comida e água, e como a época das tempestades já estava longe, era quase razoável confiar no êxito final do seu plano.
A noite era espessamente escura, nuvens pesadas pairavam a baixa altura sobre a água e sobre a selva ‑ e apenas para oeste, onde o vasto oceano se alongava para além da foz do rio, havia uma sugestão de vaga claridade. Era uma noite perfeita para as intenções que ia pôr em prática.
Os seus inimigos não podiam ver o que se passava a bordo do navio, nem notar a sua marcha enquanto a corrente o levasse para o mar. Antes que amanhecesse, a maré vazante deixaria o «Kincaid» em plena corrente de Benguela, que acompanha a costa de África na direcção do norte, e porque o vento soprava do sul... Jane esperava estar longe do Ugambi antes que Rokoff se apercebesse da partida do navio.
De pé junto dos dois homens que trabalhavam, a jovem senhora deixou escapar um suspiro de alívio quando a corda acabou de ceder e ela compreendeu que o vapor ia afastar‑se da embocadura do selvático Ugambi. Mantendo os marinheiros sob a ameaça do rifle, levou‑os para o convés, na intenção de voltar a fechá‑los no porão da proa. Mas por fim, deixando‑se influenciar pelas suas promessas de dedicação, e pelos argumentos de que poderiam ser‑lhe úteis, consentiu em deixá‑los ficar em cima.
Durante alguns minutos o «Kincaid» derivou rapidamente na corrente... mas de súbito, com um violento choque, parou a meio da embocadura do rio. Tinha encalhado num banco de areia que divide em dois canais a saída do Ugambi, a cerca de um quarto de milha do mar. Por momentos o vapor ficou imóvel. Depois, o impulso da água fê‑lo voltar lentamente a proa na direcção da margem, recomeçando a seguir à deriva.
No mesmo instante, quando Jane se congratulava porque o navio estava novamente livre, chegou aos seus ouvidos, vindo do ponto onde o «Kincaid» estivera ancorado, um ruído de tiros... e um grito agudo de mulher, um grito de pavor.
Os dois marinheiros ouviram os tiros e ficaram convencidos de que eles anunciavam a aproximação do russo. Porque na verdade não lhes agradava o plano que os deixava a bordo de um vapor à deriva, sussurraram juntos, rapidamente, combinando a maneira de dominar a jovem senhora e chamar em socorro deles Rokoff e os outros homens.
Pareceu que o destino favorecia as suas intenções, porque o ruído dos tiros distraiu a atenção de Jane Clayton que, em vez de continuar a vigiá‑los como pensara fazer, correu para a proa do «Kincaid» a fim de tentar sondar as trevas na direcção de onde, no meio do rio, tinham vindo as detonações.
E os dois homens aproveitaram a ocasião para se aproximarem furtivamente dela, por detrás.
O som raspante dos sapatos de um deles fez com que Jane se apercebesse do perigo ‑ mas o aviso veio tarde. Ao voltar‑se, ambos os patifes saltaram sobre ela... e ao cair Jane avistou, vagamente desenhado na claridade vaga que iluminava o distante mar, o vulto de outro homem que galgava a borda do «Kincaid».
No fim... os seus corajosos esforços para alcançar a liberdade haviam miseravelmente falhado. Com um soluço abafado, desistiu da luta desigual.
No convés do «Kincaid»
Quando Mugambi desaparecera na selva, com as feras, tinha em mente um plano definido. Era preciso apoderar‑se de uma piroga, na qual pudesse transportar os seus espantosos companheiros para bordo do «Kincaid». E não demorou muito a encontrar o que procurava.
Escurecia quando viu uma piroga varada na margem de um pequeno afluente do Ugambi, num ponto onde tinha a certeza de a achar. Sem perder tempo, fez com que as feras de Tarzan entrassem na embarcação e empurrou esta para a corrente do rio. Tão rápida fora a ocupação da piroga, que o guerreiro não notara sequer que ela estava ocupada. O vulto enroscado, que dormia no fundo, escapara completamente à sua atenção, na escuridão da noite que descia.
Mas apenas haviam iniciado a jornada quando o rosnido de um gorila que estava exactamente diante dele, fez com que Mugambi visse o vulto encolhido e apavorado que tremia, entre ele e o antropóide. Com espantada surpresa, o guerreiro compreendeu que se tratava de uma mulher indígena, ainda muito nova. Tendo, com dificuldade, impedido o gorila de a atacar, Mugambi conseguiu, com dificuldade não menor, atenuar os receios da pobre rapariga. Ao que ele conseguiu entender, a criatura fugira da aldeia para não ser obrigada a casar com um velho a quem odiava ‑ e fora refugiar‑se na piroga que havia encontrado na margem do pequeno rio.
Mugambi não desejava a presença dela... mas estava ali. E, de preferência a perder tempo para ir deixá‑la na margem, levou‑a consigo.
Agora os gorilas já tinham de algum modo aprendido a manejar os remos, embora desajeitadamente, e a piroga deslizou com relativa rapidez ao longo do Ugambi, em plena escuridão. Foi ainda com dificuldade que Mugambi conseguiu distinguir a sombra do vapor, mas como o «Kincaid» estava entre ele e o mar sobre o qual a treva era menos espessa, pôde avistá‑lo ‑ o que talvez não tivesse conseguido estando numa das margens.
Ao aproximar‑se, Mugambi ficou profundamente surpreendido por notar que o vapor parecia fugir diante da piroga, e só momentos depois compreendeu que de facto o «Kincaid» se deslocava com a corrente. No momento em que ia incitar os seus improvisados remadores a avançarem mais depressa... os contornos de outra piroga surgiram bruscamente da escuridão, a menos de três metros da sua.
Quase simultaneamente os ocupantes da outra embarcação aperceberam‑se da proximidade, mas nos primeiros instantes não puderam reconhecer a espantosa tripulação da piroga de Mugambi. Um homem, à proa, soltou um brado de intimação, quando o choque ia dar‑se... mas em resposta ouviu o grunhido ameaçador de uma pantera e viu na escuridão, diante dele, os olhos fosforescentes de Sheeta, que se erguera e parecia disposta a lançar‑se ao ataque.
No mesmo instante Rokoff compreendeu o perigo que corriam, ele e os seus companheiros. Bradou uma ordem para que estes disparassem sobre os ocupantes da outra piroga, e foram essas detonações e o grito apavorado da jovem indígena, que Tarzan e Jane tinham ouvido.
Antes que os desajeitados e lentos gorilas pudessem impelir a piroga de maneira a abordarem a outra, esta deu meia volta e afastou‑se a toda a força dos remos manobrados pelos marinheiros que, tomados de pavor, tinham como única ideia a de se refugiarem no «Kincaid», agora visível para eles.
O vapor, depois do choque contra o banco de areia, libertara‑se e continuara a seguir à deriva na direcção do mar, mas agora o impulso da vazante era menor. A maré, quase na embocadura do Ugambi, forma uma corrente que volta para trás, perto das margens, e dando uma volta completa se junta novamente à corrente central que desce para o mar. Assim, agora, o rio estava a aproximar o «Kincaid» e Jane dos inimigos que vinham perto.
Quando Tarzan havia mergulhado no rio, o vulto do «Kincaid» não era visível para ele, e ao nadar em plena escuridão não podia supor que o pequeno navio estava tão perto. Guiava‑se apenas pelos sons que chegavam aos seus ouvidos, vindos das duas pirogas.
Involuntariamente, Tarzan pensava no que lhe acontecera dias antes, nas águas daquele mesmo rio, mas embora sentisse o passar de vultos meio submersos que roçavam as suas pernas, não foi agarrado. E de repente esqueceu completamente os crocodilos, ao ver surgir diante dele uma escura massa... num ponto onde julgara encontrar o rio aberto.
O que quer que fosse, estava tão perto que duas braçadas bastaram para que Tarzan lhe tocasse... e sentisse que estava junto do casco de um navio. Rápido, içou‑se até à borda do «Kincaid»... e foi então que o seu ouvido apurado distinguiu sons de luta, no convés. Avançou, no mesmo instante. Agora a lua subira no horizonte, e embora o céu estivesse ainda coberto de nuvens, uma vaga claridade iluminava a cena, diante de Tarzan... permitindo‑lhe ver dois homens que lutavam com uma mulher e acabavam de derrubá‑la.
Tarzan ignorava se aquela mulher seria a mesma que, com o menino, acompanhara Anderssen na fuga para o interior, embora suspeitasse disso, e também não sabia que o destino o levara de novo, caprichosamente, a bordo do «Kincaid». Mas não perdeu tempo a fazer conjecturas. Havia uma mulher que corria perigo ante dois miseráveis, e isso bastou.
A primeira noção que os marinheiros tiveram de que uma nova força surgira a bordo do vapor, foi quando se sentiram agarrados por mãos que pareciam de ferro... e foram levantados no ar, obrigados a largar a presa.
‑ Que significa isto?... ‑ perguntou uma voz forte e calma.
Não tiveram tempo para responder, porém. Ao ouvir a voz, Jane erguera‑se no mesmo instante e, num salto, lançara‑se, com um pequeno grito de maravilhada alegria, na direcção do homem que parecia ter surgido da noite. ‑ Tarzan!... ‑ gritou ela.
O homem da selva projectou os dois marinheiros contra a amurada do navio, do lado oposto, onde eles ficaram aturdidos e apavorados‑‑e com um brado de incrédulo espanto tomou nos braços a jovem senhora.
Foram breves os momentos do encontro, porém. Mal tinham tido tempo para se reconhecerem, quando as nuvens se abriram deixando passar a claridade do luar... e mostrando os vultos de meia dúzia de homens que, galgando a borda, saltavam para o convés do «Kincaid». Um dos primeiros a aparecer foi
Rokoff.
Quando a luz brilhante da lua equatorial iluminou o convés, e o russo compreendeu que o homem, na sua frente, era «Lord» Greystoke, guinchou histericamente, apavorado, dando ordens aos outros para que disparassem sobre Tarzan e Jane.
Tarzan empurrou Jane para trás da cabine junto da qual se haviam reencontrado, e de um salto lançou‑se sobre Rokoff.
Os homens que rodeavam o russo, pelo menos dois deles, levantaram os rifles e dispararam. Mas os outros, mais atrás, estavam ocupados de maneira diferente‑porque pela escada trepava um bando medonho.
Primeiro apareceram cinco enormes gorilas, feras de aspecto quase humano, mostrando os agudos dentes... e logo atrás um gigantesco guerreiro negro que brandia uma lança. Mas, depois do guerreiro, surgiu, num salto, outra fera ‑ aquela que os marinheiros mais temiam... Sheeta, a pantera, com os olhos fulgurantes da excitação da luta.
Os tiros disparados contra Tarzan tinham falhado o alvo, e no instante seguinte as mãos do homem da selva teriam agarrado Rokoff... se o miserável cobarde, esgueirando‑se por detrás de dois marinheiros, não tivesse corrido como um doido a refugiar‑se no porão da proa.
Por instantes a atenção de Tarzan foi distraída pelos dois homens que tinha na sua frente, de maneira que deixou escapar o russo. Em volta dele, Mugambi e os gorilas atacavam ferozmente os patifes apavorados.
Ante a terrível ferocidade dos animais, os marinheiros fugiram em todas as direcções ‑ aqueles que ainda estavam em condições de fugir, pois os dentes dos gorilas e as garras de Sheeta já tinham feito vítimas. Quatro deles, no entanto, conseguiram alcançar o porão de proa, onde esperavam barricar‑se. Aí encontraram Rokoff, e furiosos pela deserção do russo no momento do perigo ‑ além de ressentidos pelo tratamento desumano que ele lhes dera desde o princípio ‑ aproveitaram com furioso prazer a oportunidade que lhes era oferecida para se vingarem.
Apesar dos rogos e das súplicas abjectas do russo, agarraram‑no e empurraram‑no para o convés, entregando‑o à mercê das feras de que eles próprios haviam fugido.
Tarzan viu o homem cambalear para fora do porão, e reconheceu‑o. Mas outros olhos o avistaram ao mesmo tempo.
Sheeta, com brasas no olhar, encaminhou‑se lentamente para o homem aterrorizado. Quando Rokoff viu o que o ameaçava, os seus gritos agudos encheram a noite... e ficou com os joelhos a tremer, paralisado pelo horror da morte que se aproximava devagar.
Tarzan deu um passo na direcção do russo, possuído do feroz desejo de matar. Finalmente, tinha ao alcance das mãos o assassino do seu filho. Era seu o direito da vingança.
Uma vez Jane conseguira detê‑lo quando ele quisera fazer a sua própria justiça e dar a Rokoff a morte tão amplamente merecida. Mas agora ninguém o deteria. Os seus dedos poderosos crispavam‑se espasmodicamente, enquanto ele se aproximava do trémulo russo... Foi então que viu Sheeta rastejar, prestes a privá‑lo da satisfação do seu ódio.
Tarzan chamou a pantera, duramente... mas as suas palavras pareceram quebrar o transe de terror em que o russo mergulhara. Num impulso súbito, soltando um grito agudo, Rokoff correu na direcção da ponte... perseguido pela pantera, que parecia não ter ouvido a voz de Tarzan.
O homem da selva ia precipitar‑se atrás de ambos, quando sentiu que lhe tocavam de leve num braço. Voltou‑se e viu Jane, a seu lado.
‑ Não me deixes... ‑ sussurrou ela. ‑ Tenho medo...
Tarzan olhou por cima do ombro de Jane. Em volta deles estavam os terríveis gorilas de Akut. Alguns dos antropóides aproximavam‑se da jovem senhora, rosnando ameaçadoramente.
O homem da selva fê‑los recuar, com um brado. Por instantes havia‑se esquecido de que eram feras, incapazes de diferençar amigos de inimigos. Todos os seus instintos de feras haviam sido despertados pela luta recente contra os marinheiros, e agora todos os que não pertencessem ao bando eram carne para devorar.
Tarzan voltou‑se de novo para o russo... pesaroso por ter de abandonar a ideia de se vingar por suas mãos ‑ a não ser que o infame Rokoff conseguisse escapar a Sheeta. Mas não havia qualquer possibilidade disso. O eslavo refugiara‑se na extremidade da ponte... e aí, novamente imobilizado pelo terror, trémulo e de olhos muito abertos, fitava a fera que se adiantava vagarosamente para ele.
A pantera quase rastejava, com o ventre a roçar as tábuas, rosnando surdamente. Rokoff tinha a face lívida, e grossas bagas de suor corriam‑lhe pela testa.
Em baixo, no convés, via os antropóides... e não ousava fugir nessa direcção. Naquele mesmo momento um dos gorilas agarrara um dos varões da escada de ferro e içava‑se, grunhindo.
Em frente estava Sheeta.
Rokoff continuava sem poder mover‑se. As suas pernas tremiam. Soltava gritos inarticulados. Com um gemido mais agudo, caiu de joelhos ‑ e foi então que Sheeta saltou, derrubando‑o de costas.
Quando as garras da fera começaram a rasgar o peito e a garganta do russo, Jane Clayton desviou o olhar, horrorizada. Mas Tarzan não. Um frio sorriso de satisfação encurvou‑lhe os lábios. A cicatriz na sua testa, que pouco antes se colorira de rubro... retomou o tom da pele bronzeada e desapareceu.
Rokoff debateu‑se, furiosa e inutilmente, contra a morte que por fim caíra sobre ele. Os seus inumeráveis crimes foram expiados em cada momento do seu medonho fim.
Quando o corpo, despedaçado e sangrante, se imobilizou... Tarzan deu um passo em frente, a uma súplica de Jane, na intenção de arrancar os despojos às garras de Sheeta e dar‑lhes uma sepultura humana. Mas o grande felino levantou a cabeça, com um rugido feroz, sem largar a sua presa, ameaçando mesmo o homem a quem adorava à sua maneira selvagem. E Tarzan, de preferência a ter de matar o seu companheiro da selva, desistiu do seu intento.
Durante todo o resto da noite, Sheeta agachada sobre os pedaços sangrentos do que tinha sido Nikolas Rokoff, triturou os ossos, devorou. A ponte do «Kincaid» estava coberta de sangue.
Quando o sol subiu no horizonte, na manhã seguinte, de Nikolas Rokoff apenas restavam ossos...
Do bando de Rokoff, apenas Paulvitch parecia ter escapado, pois não o encontraram. Quatro estavam prisioneiros no porão de proa. Os outros estavam mortos.
Com esses quatro homens, Tarzan fez acender as caldeiras do navio. O contramestre era um desses, e o filho da selva deu‑lhe ordem para conduzir o «Kincaid» à Ilha da Selva. Mas a manhã apresentava‑se tempestuosa, grandes vagas galgavam o rio quebrando‑se sobre as margens, e um vento furioso começou a soprar. O contramestre não se atrevia a fazer‑se ao mar com um tempo assim. Durante todo o dia o vapor permaneceu ao abrigo da embocadura do rio. À noite o temporal amainou, mas foi considerado preferível esperar pela nova manhã antes de se aventurarem a navegar ao longo dos sinuosos canais que, de ambos os lados do banco de areia, conduziam do Ugambi para o mar.
Durante o dia, as feras de Tarzan andaram de um lado para o outro, no convés do «Kincaid», tendo sido avisadas por Tarzan e por Mugambi de que não deviam atacar ninguém a bordo. Mas à noite foram levadas para o porão.
A alegria de Tarzan não conhecera limites ao saber, por Jane, que a pobre criança que morrera na aldeia de M'ganwazam não era o filho de ambos. Quem seria o infeliz menino, ou o que acontecera ao pequeno Jack, não tinham possibilidade de saber, visto que Rokoff estava morto e Paulvitch desaparecera. No entanto, a esperança continuava aberta... e até terem provas positivas da morte do filho, essa esperança animava‑os.
Todavia, parecia evidente que Jack não havia sido levado para bordo do «Kincaid». Anderssen teria sabido, se assim não fosse... e o heróico sueco afirmara a Jane, repetidas vezes, que o menino que lhe entregara era o único que estivera no «Kincaid» desde a partida de Dover.
Paulvitch trama vingança
Enquanto, no convés do «Kincaid», Jane e Tarzan contavam um ao outro os pormenores das aventuras por que haviam passado depois de se terem despedido na sua casa de Londres, alguém os olhava, escondido numa das margens.
Pela mente do homem que espreitava passavam planos após planos, sobre a maneira de impedir a partida de «Lord» e «Lady» Greystoke‑porque enquanto houvesse uma centelha de vida no cérebro vingativo de Alexis Paulvitch, ninguém a quem ele considerasse inimigo estaria em segurança.
Plano após plano era imaginado e posto de parte, uns por impraticáveis e outros porque indignos da vingança que as suas queixas exigiam. Tão mergulhada em raciocínios distorcidos estava a razão do miserável lugar‑tenente de Rokoff, que ele não podia sequer entender a verdade do que havia entre ele e o homem da selva ‑ a verdade da diferença entre ambos, nem ver que sempre as culpas haviam estado com ele e com o infame Rokoff, nunca com o inglês nem com Jane.
E, com a rejeição de cada plano, Paulvitch chegava sempre à mesma conclusão... e era de que nada podia fazer enquanto metade da largura do Ugambi o separasse do objecto do seu ódio. Mas como transpor aquela faixa de água infestada de crocodilos? Não havia sequer uma piroga, a não ser na aldeia dos Mosulas, e Alexis Paulvitch não tinha qualquer certeza de que o «Kincaid» continuasse ali ancorado enquanto ele fizesse a longa jornada até à aldeia distante, e voltasse com uma embarcação.
Mas não havia qualquer outra solução, e assim, convencido de que só dessa maneira poderia alcançar a sua presa, Paulvitch, brandindo um punho irado na direcção do «Kincaid», afastou‑se do rio.
Caminhando apressadamente pela selva, a sua mente revolvia a ideia fixa da vingança, esquecendo mesmo o seu pavor pelo mundo selvagem através do qual avançava.
Derrotado e escarnecido a cada momento pela roda da fortuna, que sempre reagia segundo a sua própria maldade ‑ vítima principal dessa mesma maldade, Paulvitch era cego ao ponto de imaginar que a sua maior felicidade consistiria em persistir nos planos que sempre o haviam conduzido, e a Rokoff, a sucessivos desastres ‑ e que para Rokoff tinham tido como fim uma morte horrível.
Enquanto o russo caminhava a custo pela selva, em direcção à aldeia dos Mosulas, no seu cérebro tomou forma um plano que lhe pareceu mais realizável do que qualquer outro encarado até então.
Voltaria de noite ao «Kincaid», e uma vez a bordo procuraria os membros da antiga tripulação, que tivessem sobrevivido aos azares da malfadada expedição. Com a ajuda deles tentaria reconquistar o vapor, arrancando‑o a Tarzan e às suas feras.
Na cabina havia armas e munições, e escondida num compartimento secreto da mesa que estava nessa mesma cabina, havia uma máquina infernal cuja construção ocupara grande parte do tempo livre de Alexis, numa altura em que estivera altamente colocado na confiança dos revolucionários niilistas do seu país natal. Isto tinha sido antes de ele se ter vendido, em troca de dinheiro e de imunidade, à polícia de Petrogrado. Paulvitch teve uma crispação ao recordar as acusações que lhe haviam sido feitas por um dos seus antigos camaradas, no momento de ser enforcado.
Mas era na máquina infernal que ele pensava agora, sobretudo. Poderia fazer muito com ela, se conseguisse havê‑la às mãos. Dentro da pequena caixa de madeira rija, escondida na mesa da cabina, havia suficiente poder de destruição para varrer, num segundo, todos os inimigos que estavam a bordo do «Kincaid».
Alexis Paulvitch passou a língua pelos lábios, saboreando antecipadamente a sua vitória, e apressou as pernas cansadas, para não chegar demasiado tarde e poder executar os seus intentos.
Tudo dependia, evidentemente, de quando o «Kincaid» partisse.
O russo compreendia que nada poderia ser feito à luz do dia. A escuridão deveria ocultá‑lo quando se aproximasse do navio... pois se fosse visto por Tarzan ou por Jane Clayton, nem chegaria a lá entrar.
Calculava que o vento tempestuoso seria causa a impedir que o vapor levantasse ferro, e se o tempo se mantivesse assim até à noite as probabilidades seriam todas a seu favor, pois decerto o homem da selva não tentaria navegar ao longo do estreito canal durante as horas de escuridão.
Passava bastante do meio‑dia quando Alexis chegou à aldeia dos Mosulas, na margem do afluente do Ugambi. Aí foi recebido com suspeita e hostilidade pelo chefe indígena, o qual, como todos os que de algum modo tinham entrado em contacto com ele ou com Rokoff, tivera também razões de queixa da cobiça, da crueldade ou da depravação dos dois russos. Quando Alexis pediu para utilizar uma piroga, o indígena recusou sombriamente e expulsou‑o da aldeia... Rodeado por guerreiros ameaçadores, que pareciam esperar apenas um pretexto para o atravessarem com as suas lanças, o russo nada mais podia fazer se não obedecer. Uma dúzia de negros escoltou‑o até aos limites da clareira, deixando‑o aí com um aviso para nunca mais voltar a aparecer na aldeia.
Furioso, mas tentando dominar a sua raiva, Alexis Paulvitch internou‑se pela selva... mas uma vez longe da vista dos guerreiros, parou e ficou à escuta. Podia ouvir as vozes dos negros que voltavam para a aldeia, e quando teve a certeza de que não o seguiam, encaminhou‑se para o mato à beira do rio.
Estava ainda decidido a apoderar‑se de uma piroga. A sua própria vida dependia de alcançar o «Kincaid» e recrutar a ajuda dos marinheiros sobreviventes, pois ficar abandonado ali, entre os perigos da selva africana, onde atraíra a inimizade dos nativos, era o equivalente a uma sentença de morte.
O desejo de vingança agia com quase igual intensidade para o impelir a pôr em prática o seu plano. Era na verdade um homem desesperado, esse que se escondia entre o mato, junto do rio, procurando avidamente com o olhar uma pequena piroga que, com relativa facilidade, pudesse ser manobrada com um único remo.
O russo não teve de esperar muito tempo para ver uma dessas pequenas embarcações, feitas pelos Mosulas, aparecer numa curva do rio. Um rapaz remava preguiçosamente na direcção do meio da corrente, vindo de um ponto ao lado da aldeia. Quando chegou aonde queria, o rapaz parou de remar e deixou que a água o levasse, devagar, enquanto ele se estendia, indolente, no fundo da primitiva embarcação.
Ignorando a presença de um inimigo invisível que o espreitava de entre o mato, o rapaz deixou‑se arrastar pela corrente remansosa ‑ enquanto Paulvitch o seguia ao longo da margem, a poucos metros de distância.
Cerca de uma milha para além da aldeia, o jovem negro utilizou o remo e impeliu a piroga para a margem. Alexis, encantado com a sorte que levara o remador para o lado onde ele estava, e não para o lado contrário, onde ficaria fora do seu alcance, escondeu‑se no mato, perto do ponto onde a piroga ia tocar em terra. A corrente parecia mais lenta, como relutante em alcançar o grande rio onde se perderia e iria mais tarde morrer no grande mar. Igualmente lentos eram os movimentos do jovem Mosula, que conduziu a piroga para junto de uma árvore cujos ramos se debruçavam sobre a água.
O russo espreitava. Os seus olhos cruéis, demoníacos, fitavam a cobiçada piroga, mediam a estatura do rapaz negro... como a pesar as suas possibilidades se uma luta fosse necessária. Só uma extrema necessidade poderia levar Alexis a encarar a hipótese de lutar. Mas agora tratava‑se, realmente, de uma extrema necessidade.
Tinha ainda tempo, exactamente o tempo preciso para alcançar o «Kincaid» ao anoitecer. O negro imbecil nunca mais ia sair da piroga? Paulvitch agitava‑se, inquieto. O rapaz bocejava, espreguiçando‑se. Com exasperante lentidão examinou as flechas na sua aljava, experimentou o arco, verificou o gume da faca de caça que lhe pendia do cinto.
Voltou a olhar o rio, hesitou, e acabou por se estender no fundo da piroga, depois de um encolher de ombros. Era óbvio que ia dormir umas horas, antes de se internar pela selva no ponto que escolhera para caçar.
Alexis Paulvitch endireitou‑se, e com os músculos tensos ficou por instantes a observar a sua vítima.
O negro fechou os olhos, e não tardou a adormecer. Era o momento!
O russo aproximou‑se, furtivamente. Um ramo seco estalou sob os seus pés, e o rapaz negro agitou‑se levemente. Paulvitch empunhou o revólver e apontou‑o. Por instantes ficou imóvel, tenso, mas o jovem negro não chegou a despertar. O russo aproximou‑se mais. Não podia disparar se não tivesse a certeza de ferir de morte a sua vítima, com a primeira bala. Estava perto do Mosula. O cano da arma quase tocava o peito do rapaz adormecido.
Agora apenas a ligeira pressão de um dedo separava o jovem negro da eternidade. Teria quinze anos, talvez dezasseis. Sorria, decerto a sonhar.
Mas Alexis Paulvitch não era homem para se impressionar com tais pormenores. Apoiou o cano da arma sobre o coração do negro e apertou o gatilho. A detonação rolou sobre as águas inquietas. Um pequeno buraco na pele de ébano do rapaz...
Um sobressalto, o último, já inconsciente, e o negro mergulhou no sono final, aquele sono de que ninguém acorda.
O assassino saltou rapidamente para a piroga, para junto do corpo do assassinado. As suas mãos agarraram um braço e uma perna, içaram o corpo, empurraram‑no para fora. Um mergulho na água... o vulto alongado de um crocodilo que vinha buscar a inesperada oferta... e a piroga ficou na posse do miserável branco.
Desamarrando a corda que prendia a embarcação, Paulvitch agarrou o remo e impeliu desesperadamente a piroga para o meio do estreito rio, na direcção do Ugambi próximo.
A noite caía quando Alexis alcançou o largo rio. O russo sondava constantemente a escuridão que se adensava, tentando adivinhar nas trevas, à sua frente, o vulto do «Kincaid». O vapor estaria ainda ancorado no Ugambi, ou o homem da selva ter‑se‑ia arriscado a enfrentar o mar ainda revolto e os bancos de areia do canal?...
Enquanto seguia na escuridão, fazia a si mesmo estas perguntas e muitas outras... as mais inquietantes das quais eram relativamente ao que lhe aconteceria se o «Kincaid» já tivesse partido, deixando‑o entregue aos horrores da selva. Não sabia exactamente em que ponto se encontrava... e angustiava‑se ao pensar que o navio já ali não estava... quando, numa curva da corrente, avistou a relativamente curta distância a luz de uma lanterna, no convés do «Kincaid».
Alexis a custo reteve um brado de alegria. O vapor estava ali! A vida e a vingança não lhe fugiam.
Parou de remar no mesmo instante em que avistou a luz, e em silêncio deixou a piroga suja de sangue deslizar sobre as águas lamacentas. Só uma vez ou outra utilizava o remo, para manter o rumo. A corrente levava‑o para o «Kincaid».
Um momento depois a piroga roçava brandamente pelo casco do navio, quase sem ruído. Deixou‑a seguir até à proa, perto da qual pendia a escada. Tremendo de excitação nervosa, o russo imobilizou‑se. Em cima tudo parecia adormecido.
Então prendeu a piroga e, içando‑se furtivamente, alcançou o convés. A ideia de um encontro com as feras de Tarzan fez com que um longo arrepio lhe percorresse o corpo... Mas não podia recuar...
O convés estava deserto, não havia sinais de guardas. Paulvitch encaminhou‑se cautelosamente, dobrado, todos os sentidos alerta, na direcção do porão da proa. O silêncio mantinha‑se. O alçapão estava levantado... Olhando para baixo, o russo viu um dos homens da tripulação que lia à luz de uma lanterna, junto dos beliches dos marinheiros.
Nem por um momento deixou de fitar o homem‑Conhecia‑o bem, era um dos rufiões que mais eficientemente haviam colaborado nos planos de Rokoff. Paulvitch fitava‑o, pronto a recomendar‑lhe silêncio se ele o avistasse e tivesse algum sobressalto. Começou a descer a escada vertical.
Só então o marinheiro o viu, mas o seu espanto foi curto, logo substituído por uma expressão rancorosa ao reconhecer o russo. Murmurou:
‑ Pelo inferno! De onde raio vem você? Pensávamos que devia estar finalmente a contas com o demónio... e já não era cedo. O «lord» vai ficar satisfeito quando souber...
Paulvitch aproximou‑se, de mão estendida, com um sorriso ‑ como se o outro fosse um amigo há muito perdido e agora reencontrado. Mas o marinheiro ignorou a mão e não retribuiu o sorriso.
‑ Venho para os ajudar... ‑ murmurou Paulvitch. ‑ Vamos livrar‑nos do inglês e das suas feras, e não haverá qualquer risco para nós quando voltarmos à civilização.
Podemos surpreender o homem e a mulher, enquanto dormem, e liquidá‑los, assim como ao negro. Depois será fácil desfazermo‑nos das feras. Onde estão?
‑ Estão em baixo... ‑ volveu o marinheiro ‑ ...mas tenho uma coisa para lhe dizer, Paulvitch. Você pode tirar o sentido de nos voltar contra o inglês. Já o aturámos demasiado, a você e ao outro patife que morreu, e ou me engano muito ou você não tarda a ir juntar‑se a ele. Trataram‑nos como cães, e se você imagina que lhe temos alguma simpatia, mais vale tirar daí o sentido.
‑ Quer dizer... que vão voltar‑se contra mim?... ‑ balbuciou Paulvitch.
O outro confirmou com um aceno de cabeça, mas depois de uma breve pausa, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia, voltou a falar:
‑ A não ser que você faça com que valha a pena deixá‑lo ir embora antes que o inglês o encontre aqui...
‑ Vocês... seriam capazes de me abandonar... na selva? Eu... eu morreria em menos de... de uma semana... ‑ gaguejou o russo.
‑ Na selva talvez possa escapar... ‑ atalhou o outro. ‑ Aqui não pode. Se eu acordar os meus camaradas, o mais certo é meterem‑lhe uma faca no corpo, mesmo antes que o inglês lhe deite as unhas. A sorte que você teve foi encontrar‑me, a mim.
‑ Vocês estão doidos?... ‑ quase gritou Paulvitch.
‑ Não sabem que o inglês os fará enforcar assim que chegar a um sítio onde a lei possa apanhá‑los?
‑ Nada disso .. Ele disse‑nos que os culpados eram só você e Rokoff... e que nós tínhamos sido simples instrumentos, ou lá o que foi. Está a ver? Durante meia hora o russo ameaçou e suplicou... Por vezes parecia ir chorar, de outras vezes prometia fabulosas recompensas... ou castigos pavorosos. Mas o marinheiro não cedeu, tornou perfeitamente claro que o russo só tinha a escolher entre dois caminhos... ou ser entregue a «Lord» Greystoke... ou pagar condignamente para poder sair vivo do «Kincaid»... e «condignamente» significava entregar tudo quanto tinha, até ao último botão e à ultima moeda... quer tivesse essas coisas consigo ou escondidas na cabina onde fora o seu camarote.
‑ E você vai ter de resolver isso depressa... ‑ concluiu o marinheiro ‑ ... porque eu quero dormir. Que vai ser? O «lord» ou a selva?
‑ Há‑de arrepender‑se disto... ‑ rosnou o russo.
‑ Cale‑se! Se começa a armar em esperto mudo de ideias e entrego‑o já ao inglês!
Paulvitch encolheu‑se. Não queria cair em poder de Tarzan, se o pudesse evitar, e embora a selva o apavorasse parecia‑lhe menos terrível do que a morte que merecia, e decerto iria ter às mãos do inglês.
‑ Está alguém a dormir no meu camarote?...
‑ Não... «Lord» e «Lady» Greystoke estão no camarote do capitão, e o contramestre tem o dele. Não há ninguém no seu.
‑ Então vou lá buscar as coisas de valor...
‑ Eu vou com você, para evitar que faça alguma asneira... ‑ disse o marinheiro, subindo a escada atrás dele.
À entrada da cabina, o marinheiro parou, para ficar de guarda, deixando passar Paulvitch. O russo apressou‑se a reunir as suas coisas, o preço por que ia pagar uma segurança duvidosa, e quando colocou tudo sobre a mesa ficou imóvel, tentando encontrar uma ideia que lhe permitisse a salvação ou a vingança.
Foi nesse momento que voltou à sua memória a pequena caixa preta, escondida sob o tampo da mesa a que se apoiava. A expressão do russo tornou‑se diabólica, os seus olhos brilharam, logo a seguir retirou a caixa do seu esconderijo. Tinha acendido uma lanterna, suspensa de uma das vigas do tecto, para poder procurar as suas coisas... e agora, colocando a caixa sob a luz, levantou‑lhe a tampa.
Dentro da pequena caixa havia dois compartimentos, num dos quais estava colocado um mecanismo de relógio. Havia também uma bateria de pilhas secas, ligada ao mecanismo. Um dos fios atravessava a delgada divisória e voltava. O que havia no segundo compartimento não era visível, porque tinha uma tampa fixada com qualquer coisa que parecia alcatrão. Na parte inferior da caixa, sob o mecanismo de relógio, havia uma chave... que Paulvitch retirou e aplicou na haste que servia para dar corda.
Brandamente, Paulvitch fez girar a chave, abafando o ruído com algumas peças de roupa que puxou para cima da caixa.
Escutava atentamente, ao mesmo tempo, tentando captar algum ruído que indicasse a aproximação do marinheiro ou de alguém mais. Mas ninguém veio.
Quando acabou de dar corda, o russo fixou um ponteiro do pequeno mostrador do mecanismo de relógio. Então voltou a fechar a caixa e colocou‑a novamente no esconderijo sob a mesa. Um sinistro sorriso crispava‑lhe os lábios, enquanto, depois de ter apanhado as coisas que juntara, apagou a luz e saiu, encaminhando‑se para o marinheiro que estava a meia dúzia de passos da porta.
‑ Aqui tem as minhas coisas... ‑ disse o russo. ‑ Agora deixe‑me partir.
‑ Primeiro quero ver‑lhe os bolsos... ‑ volveu o homem. ‑ Pode ter esquecido qualquer coisita que não vai servir‑lhe de nada na selva, mas que em Londres pode fazer‑me jeito. Ah, cá está!... ‑ acrescentou o marinheiro, tirando um rolo de notas do bolso interior do casaco do russo.
Paulvitch rosnou uma praga... mas nada ganharia com discutir... De si para consigo pensou que o homem não chegaria a Londres para gozar o produto do seu roubo.
Foi com dificuldade que o russo dominou o desejo de ameaçar o marinheiro com uma sugestão do destino que o esperava, e a todos os que se encontravam a bordo do «Kincaid». Mas, receando despertar suspeitas, atravessou o convés e desceu, em silêncio,
para a piroga.
Um minuto depois remava na direcção da costa, para ser absorvido pelo negrume da selva e mergulhar nos horrores de uma existência medonha que, se ele a pudesse imaginar, o levaria a procurar até morte certa, no mar, de preferência a suportá‑la.
O marinheiro, depois de se assegurar de que Paulvitch desaparecera, voltou ao porão da proa, onde escondeu o que roubara, e deitou‑se.
Na cabina que pertencera ao russo, o silêncio da noite mal era perturbado pelo quase imperceptível ruído do tiquetaque da máquina infernal que ia desencadear, sobre o malfadado «Kincaid», os efeitos devastadores da vingança de Alexis Paulvitch.
O fim do «Kincaid»
Pouco depois do amanhecer Tarzan foi ao convés, para observar o tempo. O vento amainara, o céu estava sem nuvens, as condições pareciam ideais para iniciar a viagem de regresso à Ilha da Selva, onde ficariam Sheeta e os gorilas. E depois - o lar.
Tarzan despertou o contramestre e deu instruções para que o «Kincaid» partisse tão cedo quanto fosse possível. Os outros membros da tripulação, confiantes na afirmação que ele lhes fizera, de que não seriam punidos pela sua parte nos crimes dos dois russos, entregaram‑se alegremente às suas tarefas. As feras, libertadas do seu encerramento nocturno no porão, vagueavam pelo convés ‑ o que causava constantes arrepios aos marinheiros, na memória dos quais estava ainda bem nítida a recordação da ferocidade com que haviam sido destroçados e devorados os seus antigos companheiros. Mau grado seu, os homens olhavam a cada instante por cima dos ombros, receosos e desconfiados. No entanto, sob a vigilância de Tarzan e de Mugambi, a pantera e os gorilas continham os seus instintos, e na verdade os homens que trabalhavam no convés corriam muito menos perigo do que supunham.
Por fim, o «Kincaid» seguiu ao longo do Ugambi, nas últimas centenas de metros do grande rio, e a sua proa começou a cortar as águas do Atlântico. Tarzan e Jane contemplavam a linha da costa, coberta de vegetação espessa, que ia ficando para trás, e pela primeira vez o homem da selva sentia que se afastava sem pena do continente onde nascera. Nenhum navio o poderia ter levado com a rapidez que ele desejava, porque diante dele tinha a tarefa de descobrir o filho perdido.
E no entanto o «Kincaid» seguia a boa velocidade, porque não tardaram a avistar as colinas baixas da Ilha da Selva, no horizonte a oeste.
No camarote que fora de Alexis Paulvitch, a caixa preta continuava a fazer ouvir o seu quase imperceptível tiquetaque, numa monotonia aparentemente infindável... Mas segundo a segundo, inexoravelmente, um pequeno ponteiro girava... muito devagar... aproximando‑se de outro... E, quando esses dois diminutos ponteiros se encontrassem, o movimento da máquina acabaria bruscamente ‑ e para sempre.
Jane e Tarzan estavam na ponte, a olhar a Ilha da Selva. Os homens da tripulação encontravam‑se à proa, vendo também surgir do mar as colinas espessamente arborizadas. As feras dormiam, à sombra. Tudo parecia em paz a bordo do pequeno vapor.
De repente, sem aviso, a cobertura da cabina foi projectada no ar, uma densa nuvem de fumo cobriu o «Kincaid», erguendo‑se também no espaço, uma tremenda explosão sacudiu o vapor, da proa à popa. No mesmo instante, uma confusão turbilhonante invadiu o convés. Os gorilas de Akut, aterrorizados pela explosão, saltavam de um lado para o outro, guinchando e rosnando. Sheeta deu um formidável pulo e depois firmou‑se nas patas, agachada, soltando rugidos que faziam gelar o sangue aos tripulantes do «Kincaid». Mugambi também tremia. Só Tarzan e Jane se mantiveram calmos. Mal os destroços haviam começado a cair e já o homem da selva estava no meio das feras, aquietando‑as, falando‑lhes num tom baixo e calmo, afagando‑as e dizendo‑lhes, como só ele podia dizer‑lhes, que o perigo imediato cessara. Um exame rápido revelou que o maior risco era, agora, o fogo. As chamas já lambiam as paredes de madeira da cabina destruída, e alastravam para a coberta inferior através do enorme buraco aberto pela explosão.
Por milagre, nenhuma das pessoas ou animais que iam a bordo tinha sofrido a mais ligeira beliscadura em consequência da explosão, cuja origem ficaria para sempre envolta em mistério para todos ‑ excepto para o marinheiro que sabia que Paulvitch estivera a bordo na noite anterior... e se demorara exactamente naquela cabina onde tinha tido o seu camarote. Esse adivinhou a verdade... mas calou‑se. Nada de bom poderia resultar, do conhecimento da verdade, para esse homem que permitira a entrada nocturna, no navio, do inimigo mortal de todos quantos iam a bordo ‑ entrada que o russo havia aproveitado, sem a menor dúvida, para colocar a sua máquina infernal. Nada... era bem melhor não divulgar esse segredo.
Quando as chamas começaram a espalhar‑se, Tarzan compreendeu que, fosse o que fosse que provocara a explosão, espalhara em volta, sobre as estruturas de madeira, algum produto altamente inflamável, porque a água das bombas fazia com que as labaredas alastrassem em vez de diminuírem. Um quarto de hora depois da explosão, grossos rolos de fumo começaram a subir do porão principal do navio condenado. O incêndio atingiu a casa das máquinas. e o «Kincaid» imobilizou‑se no seu rumo para terra. O fim era tão certo como se as águas já se houvessem fechado sobre o vapor.
‑ É inútil permanecer mais tempo a bordo... ‑ disse Tarzan ao contramestre. ‑ Não sabemos se irão dar‑se outras explosões, e como é impossível salvar o navio, o que temos a fazer é descer os botes para a água e seguir na direcção da ilha.
Não havia realmente outra alternativa. Só os marinheiros puderam ir buscar os seus haveres, porque o fogo não alcançara ainda o porão de proa, ao passo que devorava rapidamente tudo o que ficava em volta da cabina onde se dera a explosão.
Dois escaleres foram descidos, e porque o mar estava completamente calmo, puderam alcançar a ilha sem a menor dificuldade. Ávidas e ansiosas, as feras de Tarzan farejavam a atmosfera familiar da sua ilha, enquanto os botes se aproximavam da praia, e mal as quilhas haviam tocado na areia quando Sheeta e os gorilas de Akut, saltaram e correram para a selva.
Um sorriso ligeiramente triste encurvou os lábios de Tarzan, ao vê‑los partir.
‑ Adeus, amigos... ‑ murmurou. ‑ Foram bons e fiéis... e hei‑de sentir a vossa falta...
‑ Eles voltarão, não é verdade, querido?... ‑ perguntou Jane, ao lado de Tarzan.
‑ Pode ser que voltem e pode ser que não... ‑ disse o homem da selva. ‑ Sentiram‑se sempre pouco à vontade desde que foram forçados a confiar em várias criaturas humanas... ou pelo menos a não lhes tocar. Mugambi e eu éramos os que eles suportavam melhor, porque ambos somos apenas, de certa maneira, meio humanos. Mas tu, e mesmo os membros da tripulação, são demasiadamente civilizados para as minhas feras... e é de vocês que fogem. Sem dúvida acham que é difícil dominar os seus instintos na proximidade de carne tão perfeitamente boa para comer, sem correr o risco de dar uma ou outra dentada de quando em quando, por engano...
‑ Eu penso que é de ti que fogem... ‑ respondeu Jane, rindo. ‑ Estás sempre a impedi‑los de fazer qualquer coisa que eles não vêem a menor razão para não fazer. Como crianças, estão sem dúvida encantados por esta possibilidade de fugir aos rigores da disciplina paterna. Mas se voltarem... espero que não o façam durante a noite...
‑ Ou com fome... ‑ riu Tarzan.
Durante duas horas, depois de terem desembarcado, ficaram a olhar o vapor que ardia. A distância trouxe‑lhes o eco de uma segunda explosão. Então o «Kincaid» tombou de lado e afundou‑se em escassos minutos.
A causa da segunda explosão era muito menos misteriosa do que a da primeira. Era evidente que as caldeiras haviam rebentado, quando alcançadas pelas chamas. Mas a origem de tudo aquilo deu muito que pensar aos homens agrupados na praia.
Menos a um, decerto...
Outra vez na Ilha da Selva
A primeira ocupação do grupo foi localizar água doce e instalar um acampamento, pois todos sabiam que a sua permanência na Ilha da Selva poderia prolongar‑se durante meses, ou mesmo durante anos. Tarzan sabia onde ficava o ribeiro mais próximo, e para lá dirigiu o grupo. Aí, os homens entregaram‑se às tarefas de construir abrigos e toscas peças de mobiliário, enquanto Tarzan se internava pela selva em busca de carne, deixando Mugambi e a jovem Mosula em companhia de Jane. De facto, Tarzan nunca confiaria a guarda de Jane a qualquer dos ex‑tripulantes do «Kincaid».
Jane era, de todos, quem mais sofria em consequência da situação, pois o golpe nas suas esperanças e as angústias do seu coração não se relacionavam com as suas próprias privações, mas sim com a ideia de que nunca mais viesse a saber do destino do filho, ou a fazer qualquer coisa para o descobrir.
Como era natural, a sua imaginação pintava com as mais negras cores a sorte do seu pequenino Jack.
Durante duas semanas, o grupo dividiu o seu tempo entre as várias tarefas que haviam sido designadas a cada um. De dia era mantida uma vigilância constante, desde o nascer ao pôr do sol, sobre um penhasco a curta distância do acampamento. Aí, pronto para ser aceso a qualquer momento, estava um montão de ramos secos, e ao lado, numa alta vara cravada no chão, ondulava ao vento uma bandeira, improvisada com uma camisa vermelha que havia pertencido ao contramestre do «Kincaid».
Mas nunca, no horizonte, apareceu uma vela ou um penacho de fumo que recompensassem a ansiedade dos vigias, cujos olhos se cansavam de percorrer a imensidão deserta do oceano, até aos limites do horizonte.
Foi Tarzan quem sugeriu, por fim, que tentassem construir uma embarcação que os levasse ao continente. Só ele podia ensiná‑los a preparar toscas ferramentas, e quando a ideia tomou raízes na mente dos homens, todos se mostraram ansiosos por começarem a trabalhar.
Mas enquanto o tempo ia passando, e a natureza dos esforços necessários se tornou progressivamente mais difícil, os homens começaram a resmungar e a discutir entre eles, de maneira que aos outros perigos se juntavam agora os das desconfianças e disputas.
Tarzan receava, cada vez mais, deixar Jane entre aqueles homens brutais e violentos. Mas era preciso caçar, porque nenhum outro podia, com igual segurança, partir e voltar trazendo carne. Por vezes Mugambi substituía‑o, mas a lança e as flechas do negro não obtinham nunca os mesmos resultados da faca e da corda do homem da selva.
Por fim, os homens do «Kincaid» começaram a abandonar o trabalho, e frequentemente partiam para a selva, em grupos de dois, para explorar o terreno
e caçar.
Enquanto as coisas iam de mal a pior entre o grupo de náufragos na costa leste da Ilha da Selva, um outro acampamento se formava na costa norte. Aí, numa angra abrigada, estava uma pequena escuna, a «Cowrie», cujo convés, poucos dias antes, se cobrira de vermelho com o sangue dos oficiais e dos marinheiros fiéis. A «Cowrie» tinha iniciado uma época má, a partir do momento em que embarcara homens como Gust, e Momula, o maior, e o terrível facínora que era Kai Shang, de Fachan.
Havia outros, também, dez ao todo, a escória dos portos dos Mares do Sul. Mas Gust, Momula e Kai Shang eram os ardilosos cérebros do grupo. Haviam sido eles os instigadores do motim... para que pudessem apoderar‑se da enorme quantidade de pérolas recolhidas pelos mergulhadores e que constituíam a valiosa carga da «Cowrie».
Tinha sido Kai Shang quem assassinara o capitão, enquanto este dormia, e Momula, o maori, quem comandara o assalto ao oficial de quarto. Gust, muito à sua maneira, arranjara forma de delegar nos outros a tarefa de matar. Não porque Gust se embaraçasse com escrúpulos a tal respeito ‑ além daqueles que resultavam de uma invulgar preocupação com a sua segurança pessoal. Num assassínio há sempre um certo elemento de risco... e era esse elemento que Gust preferia evitar.
No entanto, agora que o trabalho estava feito, o sueco aspirava à posição de principal comandante dos amotinados. Havia mesmo chegado ao ponto de se apropriar de certas coisas que tinham pertencido ao capitão da «Cowrie» ‑ e de as usar... pois se tratava de prendas de vestuário que incluíam marcas exteriores de autoridade, como galões e quejandas.
Fu Chang irritava‑se. Não tinha simpatia por qualquer espécie de autoridade, fosse qual fosse, e nem a menor intenção de receber ordens de um reles marinheiro sueco.
A semente da discórdia já encontrara terreno fértil, portanto, no acampamento dos amotinados do «Cowrie», na costa norte da ilha. Mas Kai Shang compreendia que tinha de agir com cautela, pois apenas Gust, entre todos, tinha bastantes noções de navegação para os levar dali, dar a volta ao Cabo e alcançar outros mares mais propícios, onde lhes seria possível encontrar compradores para as pérolas ‑ compradores que não fizessem perguntas.
Um dia antes de terem avistado a Ilha da Selva, e de descobrirem a pequena angra onde a «Cowrie» estava agora ancorada, o vigia assinalara no horizonte o penacho de fumo e as chaminés de um navio de guerra, ao Sul. A hipótese de serem interceptados por um cruzador de patrulha, e interrogados, não agradava a nenhum deles, de modo que haviam resolvido esconder‑se durante alguns dias até que o perigo
passasse.
E agora Gust não queria partir de novo, insistindo em que o cruzador andava seguramente à procura deles. Kai Shang objectara que isso não podia ser, visto que ninguém mais, além deles próprios, sabia o que se passara na escuna. Gust não se deixava convencer. Na verdade meditava num plano que aumentaria em cerca de cem por cento o seu quinhão do valor das pérolas. Só ele podia fazer navegar o «Cowrie», e portanto os outros não podiam ir‑se embora e deixá‑lo ali. Mas a ele, Gust, nada o impedia de, levando homens suficientes para a manobra, abandonar na ilha o maori e o chinês, com metade da tripulação, e fazer‑se ao mar assim que se apresentasse uma oportunidade.
Era essa oportunidade que Gust espreitava. Algum dia havia de chegar uma altura em que Kai Shang, Momula e três ou quatro dos outros se afastariam do acampamento, para caçar ou para explorar a ilha. E o sueco dava voltas ao miolo para arranjar um plano que os fizesse ir para longe da «Cowrie», onde não a pudessem ver.
Com tal fim organizava frequentes expedições de caça, mas o demónio da perversidade, que parecia habitar na alma de Kai Shang, fazia com que o chinês nunca estivesse disposto a caçar, a não ser na companhia de Gust.
Um dia, Kai Shang falou secretamente com Momula, comunicando‑lhe as suas suspeitas em relação ao sueco. Momula foi de opinião que deviam ir imediatamente espetar uma faca nas entranhas do traidor.
Na realidade Kai Shang nada sabia além daquilo que a sua própria perfídia imaginava ‑ apenas atribuía ao sueco as intenções que ele poria em prática se tivesse possibilidades de o fazer. Mas não ousou deixar que Momula matasse o único homem que sabia alguma coisa de navegação e os podia levar dali para fora. No entanto, resolveram que não haveria qualquer mal em pregar um valente susto a Gust, de maneira a forçá‑lo a partir. Com esta ideia em mente, Momula procurou o homem que a si mesmo se nomeara comandante do grupo.
Quando o maori abordou o assunto da partida imediata, Gust opôs as suas habituais objecções ‑ que o navio de guerra devia andar a patrulhar o oceano, no Sul, exactamente na linha de navegação que teria de ser a da «Cowrie», na previsão de que eles procurassem alcançar o Índico. Momula troçou dos receios do sueco, afirmando que ninguém, a bordo de nenhum navio de guerra, poderia ter notícias do motim, ou desconfiar deles.
‑ É aí que você se engana!... ‑ exclamou o sueco. ‑ É por isso que devem considerar‑se felizes por terem convosco um homem instruído, que lhes diga o que devem fazer. Você é um selvagem ignorante, Momula, e não sabe que existe a telegrafia sem fios.
O maori deu um salto, levando a mão ao cabo da sua comprida faca.
‑ Eu não sou selvagem!... ‑ bradou.
‑ Homem... eu estava só a gracejar... ‑ apressou‑se a explicar Gust. ‑ Somos velhos amigos, Momula. Não podemos zangar‑nos um com o outro, sobretudo quando Kai Shang só pensa em nos roubar as pérolas. Se ele pudesse encontrar um homem que entendesse de navegação, deixar‑nos‑ia de um momento para o outro. Toda a conversa dele, a respeito de partirmos já, é porque tem algum plano para se ver livre de nós!
‑ Mas essa coisa da telegrafia... ‑ insistiu o maori. ‑ Que tem a ver com a nossa demora aqui?
‑ Ah, sim... ‑ volveu Gust, coçando a cabeça e pensando se o maori seria na verdade bastante selvagem para aceitar a patranha que ele ia largar. ‑ Ah, sim... Bem vê... todos os navios de guerra estão equipados com o que eles chamam um aparelho de telegrafia sem fios... Esses aparelhos permitem‑lhes comunicar uns com os outros, a centos de milhas de distância, e também lhes permitem... ouvir tudo o que se diz a bordo de qualquer navio... Ora você sabe bem que, quando se começou a dar tiros e o resto... a bordo da «Cowrie»... todos falaram aos gritos... e não há dúvida de que no cruzador ouviram tudo. Claro que podem não ter ouvido o nome da escuna... mas ficaram a saber que por aqui perto uma tripulação se tinha revoltado e liquidara os oficiais.
Portanto é mais que certo estarem à espreita e revistarem todos os barcos que encontrem. Talvez não estejam longe daqui...
Quando acabou de falar, o sueco manteve o ar sério e digno de alguém que tivesse concluído uma exposição perfeitamente clara e indiscutível, de maneira a evitar qualquer suspeita no espírito brutal do maori. Momula ficou sentado, em silêncio, a olhar para ele. Depois levantou‑se.
‑ Você é um reles mentiroso!... ‑ exclamou. ‑ Se amanhã não tivermos partido, não terá ocasião para voltar a mentir, porque já ouvi dois homens dizerem que estavam desejosos de lhe meter uma faca no corpo, e se insistir em ficar eles fazem isso mesmo.
‑ Vá e pergunte a Kai Shang se não existe a telegrafia sem fios... ‑ retorquiu Gust. ‑ Ele lhe dirá que existe e que os navios podem comunicar uns com os outros, a grandes distâncias. E depois diga a esses dois homens que querem matar‑me... que se o fizerem nunca terão oportunidade para gozar do seu quinhão, pois só eu posso conduzi‑los a qualquer porto.
Assim, Momula foi ter com Kai Shang e perguntou se havia alguma coisa chamada telegrafia sem fios, e se por meio dessa coisa os navios podiam comunicar uns com os outros, embora separados por centos de milhas. O chinês confirmou que havia.
Momula estava intrigado... mas continuava a querer sair da ilha e estava disposto a correr todos os riscos, no mar, de preferência a ficar ali mais tempo.
‑ Se ao menos houvesse mais alguém entendido em navegação... ‑ gemeu Kai Shang.
Nessa tarde Momula foi caçar, em companhia de dois outros maoris. Dirigiram‑se para o Sul, e ainda não se haviam afastado muito do acampamento quando foram surpreendidos pelo som de vozes, adiante deles, na selva.
Ignoravam que qualquer outra criatura humana, além do grupo deles, estivesse na ilha... e sabiam que ninguém do grupo os havia precedido... O primeiro impulso foi o de se porem em fuga... aterrorizados pela ideia de que houvesse fantasmas na selva ‑ talvez os fantasmas dos oficiais e marinheiros assassinados a bordo da escuna.
Mas Momula era ainda mais curioso do que supersticioso, e por isso dominou o seu natural pavor do sobrenatural. Fazendo sinal aos outros dois para o imitarem, começou a avançar sobre as mãos e os joelhos, rastejando sem ruído na direcção de onde tinham vindo as vozes. De súbito, na orla de uma pequena clareira, deteve‑se, respirando fundo, com alívio. Diante deles estavam dois homens... em carne e osso... sentados sobre um tronco caído e falando com ares graves e concentrados.
Um desses homens era Schneider, o contramestre do «Kincaid», e o outro um marinheiro chamado Schmidt.
‑ Acho que podemos fazê‑lo, Schmidt... ‑ estava Schneider a dizer. ‑ Uma boa piroga não é difícil de construir, e três de nós podemos alcançar o continente, à força de remos, no espaço de um dia, se o vento estiver de feição e o mar razoavelmente calmo. Não há vantagem em esperar que os homens construam um barco bastante grande para cabermos todos... tanto mais que todos eles estão fartos de trabalhar como escravos. Não temos nada que ver com o inglês... Ele que olhe por si... ‑ fez uma pausa e, olhando para o outro, a fim de observar o efeito das suas palavras, acrescentou: ‑ Mas podemos levar a mulher... Seria pena deixar uma criatura tão bonita nesta maldita ilha dos diabos.
Schmidt fitou‑o por sua vez, sorrindo:
‑ É então aí que está o ponto, hem? Podia ter começado por dizer isso, homem... E que ganho eu se o ajudar?
‑ A mulher pagar‑nos‑á bem se a levarmos de volta para a civilização... ‑ volveu Schneider ‑ ...e eu lhe digo o que vou fazer... Do que ela pagar, metade será para mim e a outra metade a dividir por vocês... pois precisamos de mais um homem para nos ajudar. Estou farto disto, e quanto mais depressa desandar, melhor será. Que diz você?
‑ Por mim está certo... ‑ declarou Schmidt. ‑ Sozinho não poderia alcançar o continente, e os outros estão todos como eu. Portanto, visto que só você entende de navegação, é o tipo que me serve.
Momula ouvia atentamente. Conhecia um bocado de todas as línguas que se falam nos mares, e por mais de uma vez tinha trabalhado a bordo de navios ingleses. De maneira que entendeu bastante bem o que Schneider dissera a Schmidt, desde que estava a escutar.
Levantou‑se e deu um passo na clareira. Schneider e o outro ficaram tão sobressaltados como se tivessem visto um fantasma. O contramestre levou a mão à coronha do seu revólver... mas Momula levantou um braço, em sinal de que as suas intenções eram pacíficas.
‑ Sou amigo... ‑ disse ele. ‑ Ouvi o que disseram, mas não tenham receio que eu vá repeti‑lo. Posso ajudá‑los e vocês podem ajudar‑me...‑dirigia‑se especialmente a Schneider. ‑ Você sabe conduzir um navio, mas não tem navio. Nós temos um, mas ninguém que entenda de navegação. Se você quiser vir connosco sem fazer perguntas, deixá‑los‑emos levar o barco aonde quiserem... é uma escuna à vela, sem motores... depois de termos desembarcado num certo porto cujo nome direi depois. Pode levar a mulher de quem estava a falar, e nós também não faremos perguntas. Convém?
Schneider quis mais informações, mas recebeu apenas aquelas que o maori entendeu dar‑lhe. Então Momula sugeriu que deviam ir falar com Kai Shang. Os dois homens da tripulação do «Kincaid» seguiram Momula e os seus companheiros, até um ponto na selva que ficava perto do acampamento dos amotinados. Aí, Momula deixou‑os escondidos enquanto ia procurar Kai Shang, tendo avisado os maoris para vigiarem os marinheiros, não fossem eles mudar de ideias e tentar fugir. Schneider e Schmidt passaram a ser praticamente prisioneiros, embora não o soubessem.
Alguns minutos depois Momula voltou com Kai Shang, a quem contara rapidamente os pormenores da boa fortuna que lhes surgira. Por fim o chinês falou com Schneider, até que, mau grado as suas naturais suspeitas sobre a sinceridade de qualquer criatura, ficou convencido de que o contramestre do «Kincaid» era quase tão patife como ele próprio, e estava na verdade desejoso de deixar a ilha.
Assentes esses dois pontos, não lhe restavam dúvidas de que Schneider merecia confiança como comandante da «Cowrie»... pelo menos por agora. Mais tarde, Kai Shang arranjaria maneira de o obrigar a submeter‑se às suas ordens.
Quando Schneider e Schmidt partiram em direcção ao seu próprio acampamento, iam incomparavelmente mais animados do que haviam estado em qualquer outro dia, nos últimos tempos. Agora, ao menos, viam uma possibilidade realizável de deixar a ilha, num barco apto a navegar. Não haveria mais trabalhos forçados para construir uma embarcação, nem teriam de arriscar a vida num barco toscamente feito, que tanto poderia alcançar terra como afundar‑se de um momento para o outro.
Além disso iam ter ajuda para raptar as mulheres ‑ pois, quando Momula soubera que havia uma jovem negra no acampamento deles, insistira em que ela fosse levada juntamente com a branca.
Por seu lado, ao voltarem ao seu acampamento, Kai Shang e Momula levavam a convicção de que já não precisavam de Gust. Encaminharam directamente os seus passos na direcção da tenda onde ele devia estar àquela hora do dia ‑ pois embora tivesse sido mais confortável permanecer a bordo, haviam decidido, de comum acordo, que seria mais seguro acampar em terra. Cada qual sabia que os outros eram demasiadamente patifes para que qualquer pudesse descer a terra sem preocupações, ficando os remanescentes a bordo. De maneira que não era permitida a ida a bordo senão a grupos de dois ou três homens, de cada vez ‑ ou todos juntos.
Enquanto Kai Shang e Momula se dirigiam para a tenda de Gust, o maori verificou, com o polegar calejado, o gume da sua faca... O sueco ter‑se‑ia sentido profundamente inquieto se tivesse notado aquele gesto... ou se soubesse quais as ideias que se agitavam na mente de Momula.
Mas aconteceu que Gust se encontrava nessa altura na tenda do cozinheiro, a qual ficava a curta distância da sua. Ouviu a aproximação de Momula e de Kai Shang, mas evidentemente não suspeitou de nada em especial. O acaso, porém, fê‑lo olhar na altura em que os dois homens iam prestes a entrar na sua tenda... e notar na atitude deles alguma coisa que não concordava inteiramente com uma visita amistosa. De relance, avistou a faca que Momula escondia atrás das costas. O sueco abriu muito os olhos, e uma estranha sensação percorreu‑lhe as raízes dos cabelos. Quase empalideceu, sob o bronzeado da pele... e saiu precipitadamente da tenda do cozinheiro. Não era homem que precisasse de longas explicações, a respeito de coisas que lhe pareciam demasiado óbvias.
Tão seguramente como se tivesse ouvido a combinação entre o chinês e o maori, compreendeu que Momula e Kai Shang iam ali para o matar. O facto de saber que era o único a poder conduzir a «Cowrie», havia sido até então suficiente garantia da sua segurança. Mas alguma coisa acontecera, sem que ele soubesse, que fizera os outros pensar na vantagem de o assassinar.
Sem se deter, Gust atravessou a praia, correndo, e desapareceu na selva. Tinha medo da selva... Sons estranhos e realmente assustadores vinham da escuridão do mato, do denso emaranhado de plantas que cobriam a misteriosa região para além da praia.
Mas, se temia a selva, Gust ainda tinha maior medo de Kai Shang e de Momula. Os perigos da selva eram mais ou menos problemáticos... ao passo que o perigo que o ameaçava, às mãos dos seus companheiros, era perfeitamente definido e podia exprimir‑se em algumas polegadas de aço, ou nas voltas de uma ligeira corda. Tinha visto Kai Shang garrotear um homem em Paisha, numa escura viela por detrás da casa de Loo Kotai. Receava mais ainda a corda do que a faca do maori, mas na verdade receava ambas demasiadamente para ficar ao alcance de qualquer delas. Assim, escolheu a selva...
A lei da selva
No seu acampamento, por meio de ameaças e de promessas de recompensa, Tarzan conseguira finalmente ter quase pronto o casco de uma ampla embarcação. Grande parte do trabalho, no entanto, fora feito por ele próprio e por Mugambi, além da tarefa de fornecerem de carne o acampamento.
Schneider, o contramestre, resmungava a cada passo... até que por fim abandonou por completo o trabalho e se internou na selva, para caçar em companhia de Schmidt. Declarou que tinha necessidade de descansar, e Tarzan, de preferência a agravar ainda mais o mal‑estar que tornava a vida no acampamento quase insuportável, deixara que os dois homens se afastassem, sem os censurar.
No dia seguinte, todavia, Schneider fingiu uma atitude de remorso pelo que tinha feito, e pôs‑se a trabalhar com vontade. Schmidt também trabalhava com aparente boa disposição, e Tarzan felicitou‑se a si mesmo por ver que os homens pareciam ter finalmente compreendido a necessidade do trabalho que lhes era exigido em cumprimento dos seus deveres relativamente ao resto do grupo.
Foi com uma sensação de alívio, que não tivera durante muitos dias, que ele partiu ao princípio da tarde na direcção de um ponto no interior da ilha, onde Schneider e Schmidt diziam ter visto, na véspera, um pequeno bando de gamos e corças.
A direcção indicada por Schneider era a do sudoeste, e para aí se encaminhou o homem da selva» saltando agilmente de ramo em ramo.
Enquanto ele seguia nessa direcção, do lado norte da ilha vinham uns seis homens de mau aspecto, avançando cautelosamente através da selva como quem se prepara para pôr em prática qualquer malvadez. Esses homens pensavam que ninguém os observara... mas atrás deles, e quase no momento em que haviam partido do acampamento, um outro homem, alto, seguia‑os. Nos olhos deste indivíduo havia uma expressão onde o ódio e o medo se misturavam, a par de uma intensa curiosidade. Por que motivo Kai Shang, Momula e os outros iriam tão furtivamente para o Sul? Que esperariam eles encontrar aí? Gust sacudiu a cabeça, de testa estreita, com um ar perplexo. Mas havia de saber. Segui‑los‑ia até conhecer os planos deles ‑ e então, se pudesse contrariar esses planos, fá‑lo‑ia sem hesitação.
Ao princípio tinha pensado que eles o procuravam... mas em breve reflectiu que não devia ser isso. Na verdade, expulsando‑o do acampamento, os outros haviam conseguido o que queriam. De resto, Kai Shang e Momula nunca se teriam dado a tanto trabalho para o matar, a não ser que isso pudesse render‑lhes dinheiro. Portanto, visto que Gust não tinha dinheiro consigo, era evidente que eles procuravam outra coisa.
A certa altura, os homens a quem Gust seguia pararam e esconderam‑se entre a folhagem, na trilha de caça pela qual tinham vindo a caminhar. Gust, para melhor os observar, subiu a uma árvore, atrás deles, escondendo‑se também entre os ramos, para que o não descobrissem.
Não teve muito que esperar até que viu aparecer um homem branco, desconhecido, que avançava também cautelosamente pelo lado sul da trilha. Ao avistarem o recém‑chegado, Momula e Kai Shang saíram do seu esconderijo e foram ter com ele. Gust não conseguiu ouvir a conversa, mas viu que o homem desaparecia novamente pelo mesmo caminho que o trouxera.
O homem era Schneider. Perto do acampamento, desviou‑se e foi dar uma volta para aparecer pelo lado oposto... a correr e respirando com dificuldade. Excitadamente, encaminhou‑se para Mugambi.
‑ Depressa... ‑ gritou ele. ‑ Esses malditos gorilas apanharam Schmidt e vão dar cabo dele se não lhe acudirmos rapidamente. Só você pode afastá‑los! Leve Jones e Sullivan... pode precisar de ajuda... e vá o mais depressa que puder... Siga a trilha da caça, para o Sul... cerca de uma milha... Eu fico... estou cansado demais para poder acompanhá‑los...
E o contramestre do «Kincaid» deixou‑se cair no chão, ofegante, como se estivesse exausto. Mugambi hesitou. Tinha ficado ali para guardar as duas mulheres... Não sabia o que fazer, mas foi então que Jane, tendo ouvido a história de Schneider, juntou as suas súplicas às do contramestre.
‑ Não perca tempo... ‑ pediu ela. ‑ Nós estaremos em segurança aqui, visto que o sr. Schneider fica connosco... Vá, Mugambi! É preciso salvar o pobre homem!
Schmidt, que estava escondido no mato, perto do acampamento, riu silenciosamente. Mugambi, obedecendo ao pedido da jovem senhora ‑ embora ainda hesitante quanto ao que devia fazer ‑ partiu em corrida para o Sul, seguido por Jones e Sullivan.
Mal ele tinha desaparecido quando Schmidt se levantou e correu para o Norte, através da selva. Minutos depois, a cara amarelada de Kai Shang surgiu na orla da clareira. Schneider viu o chinês e indicou‑lhe, com um gesto, que o caminho estava livre.
Jane Clayton e a jovem Mosula estavam sentadas à entrada do abrigo da primeira, de costas voltadas para os bandidos que se aproximavam. A primeira indicação que qualquer delas teve sobre a presença de estranhos no acampamento, foi a brusca aparição de meia dúzia de patifes andrajosos.
‑ Venham!... ‑ ordenou Kai Shang, ordenando às duas mulheres que o seguissem.
Jane levantou‑se de um salto e olhou em volta, procurando Schneider... e viu‑o atrás dos recém‑chegados, de pé e sorridente, sem mostras do cansaço de que se queixara pouco antes. Ao lado dele estava Schmidt. No mesmo instante a jovem senhora compreendeu que tinha sido vítima de uma armadilha.
‑ Que significa isto?... ‑ perguntou ela, dirigindo‑se ao contramestre.
‑ Significa que encontrámos um navio e podemos partir da Ilha da Selva... ‑ respondeu ele.
‑ Por que fez com que Mugambi e os outros fossem para a selva?
‑ Eles não nos acompanham. Só vamos nós, você e a Mosula.
‑ Venham!... ‑ repetiu Kai Shang, agarrando um pulso de Jane.
Um dos maoris puxou a jovem negra, por um braço, e quando ela gritou bateu‑lhe brutalmente.
Mugambi corria através da selva, na direcção do Sul, seguido a distância por Jones e Sullivan. Percorreu velozmente uma milha, na sua pressa de socorrer Schmidt... mas não conseguia ouvir nem ver quaisquer sinais da presença do marinheiro ou dos gorilas de Akut.
Por fim parou, soltando os estranhos brados que Tarzan e ele usavam para chamar os antropóides. Não obteve resposta. Jones e Sullivan juntaram‑se a ele, enquanto o guerreiro negro repetia os seus gritos. Durante mais de meia hora Mugambi procurou em vão, gritando de quando em vez.
E por fim a verdade surgiu na sua mente. Rápido, sem um momento mais de hesitação, deu meia volta e precipitou‑se na direcção do acampamento, correndo como um gamo assustado. Minutos depois irrompia na clareira, e no mesmo instante viu que os seus receios se confirmavam... «Lady» Greystoke e a jovem negra haviam desaparecido, e Schneider também.
Quando Jones e Sullivan chegaram por seu turno, o gigantesco guerreiro lançou‑se sobre eles, disposto a matá‑los, considerando‑os cúmplices do que se havia passado. Mas os dois marinheiros, aterrorizados, conseguiram por fim convencê‑lo ‑ em parte ‑ de que nada sabiam.
Hesitavam agora, pensando na direcção em que teriam seguido as mulheres e os seus raptores... e quais os desígnios de Schneider ao preparar o golpe... e foi nesse momento que Tarzan saltou de uma árvore e correu através da clareira, na direcção deles. Os olhos penetrantes de Tarzan viram imediatamente que alguma coisa havia acontecido, e quando Mugambi contou o que se passara... cerrou os dentes e franziu o sobrolho, pensando.
Que esperava o contramestre conseguir, levando Jane, numa pequena ilha de onde não teria maneira de escapar à vingança de Tarzan? O homem da selva não considerava que o patife pudesse ser estúpido a tal ponto... e por isso mesmo teve uma vaga intuição da verdade.
Schneider nunca teria feito tal coisa se não estivesse razoavelmente seguro de que poderia sair da Ilha da Selva com as suas prisioneiras. Mas por que razão teria levado também a jovem negra? Devia haver outros, um dos quais quisera a Mosula.
‑ Venham... ‑ disse Tarzan. ‑ Só há uma coisa a fazer, que é seguir‑lhes a pista...
Mal havia acabado de falar quando um homem alto e desajeitado emergiu da selva, no lado norte da clareira, e se encaminhou directamente para o grupo. Era completamente desconhecido para qualquer dos quatro, nenhum dos quais sonhara sequer a possibilidade de existirem outras criaturas humanas na Ilha da Selva.
O homem era Gust, e entrou directamente no assunto.
‑ As vossas mulheres foram raptadas... ‑ disse ele. ‑ Se querem tornar a vê‑las venham depressa e sigam‑me. Se não nos apressarmos, a «Cowrie» estará no mar largo quando nós chegarmos à angra.
‑ Quem é você?... ‑ perguntou Tarzan. ‑ E que sabe do rapto de minha mulher e da jovem negra?
‑ Ouvi Kai Shang e Momula conspirarem com dois homens deste acampamento. Eles tinham querido matar‑me e eu tive de fugir. Agora vou pagar‑lhes na mesma moeda! Venham!
Gust conduziu Tarzan e os seus companheiros, em passo rápido, através da selva, na direcção do Norte. Chegariam a tempo? Dentro de minutos teriam a resposta a esta pergunta.
Quando, finalmente, o pequeno grupo atravessou a última barreira de mato, e a angra e o mar surgiram em frente... compreenderam que o destino havia sido realmente cruel, pois a «Cowrie» já tinha as velas ao alto e se deslocava lentamente para a saída do abrigo, em direcção ao oceano.
Que poderiam fazer? Tarzan arfava, não de cansaço, mas de emoção. O último golpe parecia ter caído sobre ele... e se alguma vez na sua vida tinha podido perder toda a esperança, era agora... ao ver a escuna que levava Jane para qualquer destino desconhecido e horrível... a escuna que se deslocava tão graciosamente sobre a água quieta... ao mesmo tempo tão próxima e tão medonhamente distante.
Em silêncio, Tarzan continuou com os olhos fitos no barco. Viu‑o fazer rumo a Leste... e finalmente desaparecer para além de um promontório... a caminho de não sabia o quê. Então Tarzan curvou‑se, escondendo a face entre as mãos.
Já escurecia quando os cinco homens regressaram ao acampamento, na costa Leste. A noite anunciava‑se quente e pesada. Nem um sopro de vento agitava as folhas das árvores, ou encrespava a superfície lisa do mar. Só uma ondulação fraca e lenta morria no areal, mansamente.
Tarzan nunca vira o grande Atlântico tão ameaçadoramente em paz. Estava de pé à beira de água, olhando o mar na direcção do continente, a mente cheia de tristeza e desespero... quando da selva, atrás dele, veio o bramido rouco de uma pantera.
Havia qualquer coisa de familiar naquele som, e Tarzan, voltando a cabeça, respondeu‑lhe. Um momento depois o vulto alongado de Sheeta surgiu na claridade que envolvia a praia.
Não havia luar, mas o céu estava recamado de estrelas que brilhavam. Em silêncio, a fera aproximou‑se do homem. Havia muito tempo que Tarzan não encontrava a sua companheira de lutas, mas o ronronar de Sheeta indicava‑lhe que ela não o havia esquecido.
O homem da selva percorreu com os dedos o pêlo sedoso da pantera, e quando ela se aproximou mais, roçando‑se contra as suas pernas, acariciou‑a, continuando a olhar o mar.
E então teve um sobressalto... O que era aquilo? Os seus olhos penetrantes sondaram a noite. Então voltou‑se e chamou os homens que se haviam sentado sobre as mantas, a fumar. Vieram a correr... mas Gust hesitou ao ver a companhia de Tarzan.
‑ Olhem!... ‑ exclamou Tarzan. ‑ Uma luz! A luz de um barco! Tem de ser a «Cowrie», apanhada pela calmaria... Podemos alcançá‑la! Esse bote pode levar‑nos facilmente! Gust resmungou:
‑ Todos eles estão bem armados... Não poderemos apoderar‑nos da escuna... nós os cinco...
‑ Somos seis, agora... ‑ volveu Tarzan, apontando para Sheeta. ‑ E em meia hora seremos mais. Sheeta vale por vinte homens, e os que eu posso chamar valem pelo menos cem... Você não os conhece...
Tarzan voltou‑se na direcção da selva, ergueu a cabeça e repetiu, por várias vezes, o espantoso brado com que os gorilas chamam os seus companheiros.
Da selva não tardou a vir um brado semelhante, e outro, e ainda outro. Gust estremeceu. Que espantosa gente era aquela a que o destino o fizera juntar‑se? Kei Shang e Momula não seriam preferíveis àquele gigante branco que afagava uma pantera e chamava as feras da selva?
Poucos minutos depois os gorilas de Akut surgiam do mato e corriam para a praia, onde os cinco homens estavam já a contas com o casco do bote grosseiramente construído, tosco e pesado. Foram precisos esforços hercúleos para levar a embarcação para a água. Os remos dos dois botes do «Kincaid» ‑ botes que haviam sido arrastados para o mar logo na primeira noite, por uma tempestade súbita ‑ haviam sido usados para estacas centrais das tendas improvisadas com a lona de velas. Muganbi e os dois marinheiros foram buscá‑los, e quando Akut e os seus companheiros se reuniram na praia, tudo estava pronto para embarcarem.
Mais uma vez a medonha tripulação estava ao serviço do homem da selva. Os três outros homens ‑ pois Gust não pôde ser convencido a acompanhá‑los, empunharam os remos, e não tardou que a desajeitada embarcação começasse a mover‑se lentamente na direcção da luz que, ao longe, baloiçava devagar à popa da escuna.
Um marinheiro sonolento estava de guarda no convés da «Cowrie», enquanto, num camarote em baixo, Schneider caminhava de um lado para o outro furioso, discutindo com Jane Clayton. A jovem senhora encontrara um revólver carregado numa gaveta de um dos móveis do camarote onde fora encerrada, e agora mantinha o miserável em respeito, apontando‑lhe a arma.
A jovem Mosula estava ajoelhada junto dela, enquanto Schneider caminhava irritadamente de um para outro lado, perto da porta, ameaçando, prometendo, por vezes suplicando... inutilmente.
De repente, do convés em cima veio um brado e um tiro. Por um instante, Jane Clayton descuidou a sua vigilância, olhando para a clarabóia do camarote. Nesse mesmo instante Schneider saltou sobre ela.
A primeira indicação que o vigia teve, de que havia outra embarcação num raio de centenas de milhas da «Cowrie», veio quando avistou a cabeça e os ombros de um homem, que surgiam acima da borda da escuna. No mesmo instante levantara‑se soltando um grito e disparando a arma. Tinham sido essa detonação e esse brado que Jane ouvira.
No convés, a calma de momentos antes transformou‑se num turbilhão de fúria. Os tripulantes da «Cowrie» acorreram, armados de revólveres e de sabres, alguns deles empunhando as compridas facas que habitualmente usavam. Mas o alarme viera de masiado tarde. Já as feras de Tarzan estavam no convés, com Tarzan, Mugambi e os dois marinheiros do «Kincaid»!
Diante dos ferozes animais, a coragem dos amotinados oscilou e cedeu. Os que dispunham de armas de fogo, dispararam alguns tiros, ao acaso, e fugiram para os pontos onde supunham poder refugiar‑se. Alguns treparam pelo cordame dos mastros. Mas, aí, os gorilas de Akut moviam‑se ainda mais facilmente do que eles.
Com gritos de pavor, os maoris eram arrancados das altas vergas. As feras, fora do domínio de Tarzan que fora em busca de Jane, desencadearam toda a sua fúria sobre os desgraçados que lhes caíam nas garras.
Sheeta havia derrubado um homem e começara a devorá‑lo... quando viu que Kai Shang, corria a refugiar‑se num camarote. Qualquer coisa, na atitude do chinês, irritou a pantera... que largou a sua presa e correu sobre ele, com um rugido. Kai Shang gritou de pavor, empurrou a porta de um compartimento e tentou fechá‑la... mas era tarde. O grande corpo de Sheeta chocou no batente, e um instante depois Kai Shang gritava, num paroxismo de terror, encolhido ao fundo de um beliche.
Sheeta saltou sobre ele... e assim terminaram os dias de Kai Shang, de Fachan. Durante longo tempo a pantera rasgou, devorou, triturou ossos...
Um segundo, não mais decorrera entre o momento em que Schneider se havia lançado sobre Jane, desarmando‑a... e o momento em que Tarzan apareceu à porta do camarote. Um segundo depois Schneider sentia dedos de aço apertarem‑lhe o pescoço. Tentou voltar a cabeça, para ver quem o atacava... e os olhos quase lhe saltaram das órbitas ao ver Tarzan.
Duramente, inexoravelmente, os dedos do homem da selva apertaram a garganta do miserável. Schneider tentou suplicar, gritar... mas nenhum som saía.
Num movimento de instinto, Jane tentou agarrar os braços de Tarzan... impedi‑lo de matar... Mas ele abanou a cabeça.
‑ Não outra vez... ‑ disse, calmamente. ‑ Já antes permiti que miseráveis como este vivessem... e em consequência disso ambos sofremos. Desta vez não, e nunca mais... Desta vez farei com que este patife nunca mais possa trair ninguém... atacar ninguém...
E, com um gesto brusco, Tarzan partiu as vértebras do pescoço do homem e deixou‑o cair, com repugnância, como um imundo farrapo que era. Então encaminhou‑se para o convés, seguido por Jane e pela jovem Mosula.
Aí, a luta havia terminado. De todos os homens da «Cowrie», apenas haviam escapado Momula, Schmidt e mais dois, que se haviam refugiado no porão de proa. Os restantes tinham tido o fim horrível que largamente mereciam...
O sol da manhã iluminou uma cena de horror, no convés da escuna... mas desta vez o sangue que cobria as tábuas brancas era o de culpados, não o de inocentes.
Tarzan fez sair do porão os quatro homens que lá se haviam escondido, e sem qualquer promessa obrigou‑os a limpar o barco e a ajudar na manobra. A alternativa era a morte imediata. Um vento fresco surgira com as primeiras luzes do dia, e com o velame içado a «Cowrie» fez rumo à Ilha da Selva onde, pouco depois, Tarzan embarcou Gust ‑ e se despediu de Sheeta e dos gorilas de Akut, libertando‑os para que voltassem à sua selva e à sua existência natural.
As feras não tardaram a desaparecer entre o mato denso.
É duvidoso que qualquer dos animais soubesse que Tarzan ia partir ‑ a não ser, talvez, no caso de Akut, o mais inteligente de todos eles. Akut não se apressou a correr para a selva... Ficou parado no areal, a olhar o escaler que voltava para a escuna transportando o gigante branco.
E, até tão longe quanto os seus olhos puderam galgar a distância, Jane e Tarzan, no convés da «Cowrie», viram o vulto solitário do grande antropóide, imóvel no areal onde as ondas morriam...
Três dias depois a «Cowrie» encontrou‑se com a corveta da Marinha Real inglesa, a «Shorewater», e «Lord» Greystoke, pela rádio de bordo, estabeleceu comunicação com Londres. Foi assim que ele teve a notícia que, mais do que qualquer outra, encheu de alegria o seu coração e o de Jane ‑ o pequeno Jack estava são e salvo na casa de Londres.
Só quando chegaram à grande cidade puderam saber os pormenores da notável série de circunstâncias que haviam permitido que o menino ficasse a salvo.
Acontecera que Rokoff, receando levar a criança, de dia, para bordo do «Kincaid», a escondera numa espécie de asilo para crianças abandonadas, onde iria buscá‑la à noite, para a levar.
O seu cúmplice e lugar‑tenente, Paulvitch, correspondente aos longos anos de aprendizagem junto do infame patrão, acabara por ceder ao espírito de cobiça e de traição que sempre havia caracterizado Rokoff ‑ e traíra‑o por sua vez. Engodado pela ideia do imenso resgate que poderia receber se devolvesse o menino são e salvo, revelara o segredo do nome dos pais à mulher que dirigia o asilo, e combinara com ela a substituição da criança, por outra, sabendo perfeitamente que Rokoff não daria pela troca... ou só tarde demais viria a saber do truque.
A mulher prometera guardar o menino até que Paulvitch voltasse a Inglaterra... mas ela, por seu turno, fora tentada a trair pelo engodo do oiro. Assim, pusera‑se em comunicação com o notário de «Lord» Greystoke, para restituir a criança.
Esmeralda, a velha ama negra cuja ausência em férias, na América, por alturas do rapto do pequenino Jack, havia sido por ela própria considerada como origem de toda a calamidade, tinha voltado e reconhecera positivamente a criança. O resgate havia sido pago, e dez dias depois do rapto... o futuro «Lord» Greystoke estava em casa de seus pais, sem ter sofrido com a experiência.
Desta maneira, a última e a maior das muitas infâmias de Rokoff havia falhado miseravelmente, em consequência do espírito traiçoeiro que ele desenvolvera no seu único amigo, e acabara pela morte do repugnante russo... dando a «Lord» e «Lady» Greystoke uma paz que nunca poderiam ter tido enquanto o seu feroz inimigo vivesse.
Mas agora Rokoff acabara realmente a sua carreira de crimes, e embora o destino de Paulvitch fosse desconhecido, havia todas as razões para supor que ele sucumbira aos perigos da selva.
Assim, até onde Tarzan e Jane podiam saber, estavam livres das ameaças dos dois homens ‑ os únicos inimigos que Tarzan alguma vez tivera ocasião de recear porque atacavam cobardemente, através daqueles a quem ele mais amava.
Foi um grupo familiar perfeitamente feliz, aquele que se reuniu em Greystoke no dia em que Jane e Tarzan desembarcaram da «Shorewater».
Vinham acompanhados por Mugambi e pela jovem Mosula a quem ele encontrara no fundo de uma piroga, certa noite, na margem de um pequeno afluente do Ugambi. A jovem negra preferira não deixar o seu novo amo e senhor, e nem queria pensar em voltar para a sua tribo e para o casamento do qual haviam tão resolutamente fugido.
Tarzan propusera‑lhes que se instalassem nas suas vastas propriedades africanas, nos territórios dos Waziris, e para lá seguiriam tão cedo quanto se apresentasse uma oportunidade .
Talvez voltemos a encontrá‑los, a todos, entre a grande selva e as enormes planícies onde Tarzan viveu e que nunca pode esquecer.
Quem sabe?
ARA ‑ Raio, ou relâmpago.
ARAD ‑ A lança de Tarzan.
ASKARIS ‑ Soldados de infantaria, africanos.
BALU ‑ Cria de macaco; por extensão: qualquer cria; criança.
BARA ‑ Veado, gamo ou corça.
BOLGANI ‑ Chimpanzé.
BOMA ‑ Paliçada.
BULAMUTUMUMO ‑ «Deus».
BUNGALOW ‑ Casa de um só andar, com uma varanda em volta.
BUTO ‑ Rinoceronte.
BWANA ‑ Tratamento respeitoso.
DANGO ‑ Hiena.
DJAGGERNAT ‑ Cidade industânica, religiosa.
DUM‑DUM ‑ Dança dos macacos grandes.
DURO ‑ Hipopótamo.
GIMLA ‑ Crocodilo.
GO‑LAT ‑ Rei dos macacos grandes.
GOMANGANI ‑ Negro (formado de GO ‑ preto ‑e
MANGANI ‑ macaco grande).
GORGO ‑ Búfalo.
GORO ‑ Lua.
GOZAN ‑ Nome de macaco; significa «pele preta».
HISTAH ‑ Serpente.
HORTA ‑ Javali.
KAGODA! ‑ Interjeição, na linguagem dos macacos grandes.
KERCHAKS ‑ Tribo de macacos grandes.
KOTA ‑ Tartaruga.
KUDU ‑ Sol.
MANGANI ‑ Macaco grande.
MANU ‑ Macaquinho.
NUMA ‑ Leão.
PAOCO ‑ Zebra.
PAMBA ‑ Rato.
PISAH ‑ Peixe.
SABOR ‑ Leoa.
SHEETA ‑ Pantera.
SIMBA ‑ Um cão.
SKA ‑ Abutre.
TANTOR ‑ Elefante.
TARMANGANI ‑ Homem branco (formado de: TAR ‑ branco ‑ e MANGANI ‑ macaco grande).
TARZAN ‑ Significa «pele branca».
WAMABOS ‑ Tribo de negros antropófagos.
WAPPI ‑ Antílope.
WAZIRIS ‑ Tribo de negros de boa índole.
XUJA ‑ Cidade dos doidos (imaginária).
ZU‑TAG ‑ Significa «pescoço grosso».
Edgar Rice Borroughs
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