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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


As Feras do Submundo / Clark Darlton
As Feras do Submundo / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As Feras do Submundo

 

Exploravam o planeta Afzot e deram com um laboratório galáctico...

Estamos no ano 2.113 da cronologia terrana. Para os habitantes da Terra, pois, desde a gloriosa aterrissagem na Lua de uma nave tripulada, movida a propulsão química — ponto de partida da verdadeira Cosmonáutica — ainda não se passaram cento e cinqüenta anos.

Apesar de este período de tempo ser demasiadamente exíguo em comparação com a cronometria cósmica, o Império Solar, criado e conduzido por Perry Rhodan, conseguiu se transformar na pedra angular do poderio galáctico.

Ê claro que na magna missão que se impuseram, os terranos encontraram grandes auxiliares — pensemos apenas no arcônida Crest, no Ser do planeta Peregrino, Atlan, nos swoons e Gucky, o rato-castor! Porém esta missão jamais atingiria seus objetivos, sem a atuação destemida dos terranos, que trazem na alma a vocação do idealismo.

A nova ameaça, oriunda do intercosmo, o espaço entre as galáxias, coloca todos os seres responsáveis diante de um problema insolúvel: como se pode lutar contra agressores cujas espaçonaves são praticamente indestrutíveis? E, um “encontro” se dá no planeta Afzot, onde trabalha um cientista ara sob a orientação dos acônidas...

Os agentes secretos do Império Solar dão com um laboratório galáctico e aí descobrem As Feras do Submundo...

 

                                  

 

O corpo marrom-escuro estirou os músculos, estufou sua figura amorfa, movendo-se lentamente na superfície do líquido alimentício.

“Lá em cima”, pensou ele, “está acontecendo alguma coisa.”

A resposta veio de alguém que ele não podia ver, pois não possuía olhos:

— Sim, algo confuso!

O corpo escuro esperou por outras reações, mas não vieram.

“Ah!”, pensou ele, “já despacharam alguém.”

— Sim! — foi a resposta. — Vieram apanhá-lo enquanto dormia. Ouvi seus gritos desesperados.

“A qualquer momento, vai nos acontecer a mesma coisa. Mas, que pode ser isto lá em cima?”

— Ao examinar a consciência, chego à conclusão de que os terranos estão no meio disso...

“É verdade. Em toda parte, onde o desenrolar das coisas é prejudicado, lá estão os terranos.”

Seus músculos se relaxaram, caindo de novo no fundo do vaso. Fossem ou não os terranos, ele não podia mesmo alterar nada.

 

O céu resplandecia num azul-claro e a luz cintilava com seus dardos impiedosos na superfície destruída do planeta. Morros arrasados, cavernas profundas e vastas extensões de areal desfilavam sob o fogo das explosões. Ron Landry olhava fascinado o espetáculo que se desenrolava na tela do vídeo e, de tanta excitação, não tinha tempo para refletir.

Reinava silêncio total no depósito de carga da gazela. Os homens, sentados nos bancos laterais e apoiados na parede, olhavam para o teto... Ou estavam de olhos fechados? Tudo passara depressa demais. O gigantesco aparelho fragmentário surgira num piscar de olhos das profundezas do infinito e todo mundo a bordo da Annino sabia que a luta, que ia começar, só podia terminar com a destruição das vinte naves terranas. Não demoraram a tirar as conseqüências desta certeza. Já estavam se encaminhando para os girinos, quando surgiu Ron Landry, os reuniu e os colocou numa gazela, que partiu na mesma hora, estando agora na direção do planeta Afzot.

Não sabiam quase nada a respeito deste mundo, mas o pouco já era suficiente para desejarem ter ficado na Terra, se chateando com um trabalho burocrático em algum escritório da Frota Espacial. Afzot era do tamanho de Mercúrio e muito parecido com Marte. Era desabitado. Combinação mais infame era difícil de se encontrar.

O fato de que a missão que tinham de cumprir em Afzot era um osso duro de roer, não lhes servia de consolo.

E sobre o último item, de que se tratava de um planeta desabitado, ainda pairava alguma dúvida a respeito. Afzot estava na zona de influência dos acônidas e seu cérebro central, Frua, distava vinte anos-luz do Sistema Azul. O aparecimento do monstruoso aparelho fragmentário dos pos-bis dera oportunidade ao comando da Frota Solar de fazer penetrar imperceptíveis, no fragor da batalha, até o planeta Afzot, dez homens sob o comando de Ron Landry. Aliás, que esta penetração continuasse clandestina era ainda apenas uma esperança. No momento, a gazela se movimentava a uma altura de vinte quilômetros da superfície do planeta. Mas as circunstâncias pareciam favoráveis. Se existissem mesmo acônidas em Afzot, deviam estar observando o combate espacial entre o aparelho fragmentário e as vinte unidades terranas, deixando de perceber o pequeno aparelho que, no momento da confusão, se desgarrara do grupo e rumara para o solo do planeta.

Tinham, pois, uma missão — e ao mesmo tempo a sensação de terem deixado na mão, covardemente, aqueles lá em cima que desesperadamente lutavam contra o monstro fragmentário dos pos-bis, certos de que a derrota total seria seu destino. Por este motivo é que todos estavam calados e, a cada relâmpago que tremulava na tela do vídeo, fechavam os olhos com remorso.

Os homens em melhor estado psicológico eram Major Ron Landry e naturalmente seu co-piloto, Capitão Randall, sentados lado a lado. Tinham alguma coisa a fazer e não havia tempo para pensar em outros assuntos, pois teriam que levar a gazela sã e salva até o solo do planeta.

Mas lá estava um que gozava de posição privilegiada. Era o sargento Meech Hannigan, que não tinha mesmo nenhum escrúpulo de consciência, pois realmente nem possuía consciência. O bom é que somente Ron Landry, Larry Randall e também o barbudo Lofty Patterson, sentado num canto e tirando uma soneca, sabiam deste pormenor.

Meech Hannigan era um robô.

 

Com respeitável velocidade, o aparelho terrano, do formato de um disco voador, disparava entre cadeias de montanhas. O fundo do vale era quase plano e tinha a forma característica das extremidades arredondadas de uma cratera, deixadas talvez pela passagem em sua superfície de um grande meteoro.

Cerca de trinta quilômetros devia ter o vale, separando dois braços da montanha. Meech Hannigan, sem maior esforço, já localizara focos energéticos, isto é, numerosos pontos de produção e de consumo de energia, escondidos em diversas partes do terreno acidentado. Os campos de dispersão atingiam seus órgãos sensoriais. A recepção, porém, ainda estava demasiadamente fraca para se determinar com alguma exatidão o local de sua procedência.

Ron Landry parecia satisfeito. Se existisse ali algum esconderijo dos acônidas, estava mais do que certo que sua entrada era nas fraldas dos morros. Seria muito mais problemático se Meech Hannigan tivesse que fazer esta pesquisa em terreno desértico e plano. Por enquanto, as coisas corriam dentro da lógica.

Lá em cima, a batalha parecia terminada. O céu resplandecia num azul-escuro, quase roxo, e o sol, pequeno e alaranjado, dardejava seus raios por entre as grimpas das montanhas, atingindo os fundos vales.

Ao ver surgir, no paredão do oeste, uma reentrância, Ron freou a gazela. Positivou-se que a grande fenda era a boca de uma caverna, cuja base devia estar a uns cem metros acima do nível do vale. A abertura era suficientemente larga para a passagem do aparelho.

Assim mesmo, Ron hesitou por um instante. Cada segundo a mais, naquele extenso vale, aumentava o perigo de serem localizados, portanto seu primeiro cuidado seria achar um esconderijo para a gazela. Ron olhou para Larry Randall e este concordou apontando para a tela do vídeo.

— No fundo parece ser melhor ainda — respondeu ele a pergunta não expressada.

E tinha plena razão. Depois de uns duzentos metros, as paredes recuavam formando um panelão de três vezes o diâmetro da gazela. Do ponto de vista geométrico, aquela gruta parecia um cone truncado, estreitando-se as paredes para cima quase concentricamente, terminando num grande buraco a trezentos metros de sua base. A luminosidade lá dentro era relativamente fraca, pois o sol alaranjado Frua não era suficiente para iluminar bem o planeta desértico. Lá no fundo da caverna era tão escuro como na Terra numa noite sem luar.

Ron pousou a gazela num canto da base do cone de tal maneira que, mesmo que o adversário usasse refletores, não os veria. Todos os aparelhos foram desligados. Ron sabia que com isto incorria num grande perigo — estava impossibilitado de dar partida instantânea. Os geradores necessitavam de, pelo menos, cinco minutos e as turbinas de propulsão oito para o pré-aquecimento. Por outro lado, era mais do que provável que os acônidas possuíam, como os terranos, instrumentos para rastrear qualquer tipo de energia. Seria apenas questão de tempo, para que fosse descoberto o funcionamento dos aparelhos.

Os homens não se mexeram, quando cessou totalmente o zumbido dos instrumentos. Ron ainda examinou um por um. Depois ficou olhando para seus homens, pois conhecia seus pensamentos. Sabia que seu remorso, o sentimento de ter deixado na mão os colegas, era inútil, mas não lhes podia dizer isto. Desafivelou o cinturão e se levantou.

— Sargento Hannigan! — ordenou ele.

Meech se levantou com toda elegância e presteza e o chão trepidou com seus passos.

— Pegue seus instrumentos, saia da gazela e tente fazer lá fora uma orientação mais exata.

— Perfeitamente, senhor — disse apanhando uma mochila plástica que devia conter os instrumentos.

Caminhou para a comporta, cuja escotilha interna se abriu automaticamente diante dele, e desapareceu. Momentos depois sua sombra foi vista na tela do aparelho.

Já estava à saída da caverna, mas a escuridão era tão forte que mesmo uma sensível câmara de televisão não o conseguia pegar nitidamente.

Ron voltou para sua poltrona e a virou de tal modo que passou a ter logo à vista o quadro de comando. Sem avisar a ninguém, desligou com um simples toque de dedo o campo de gravitação artificial que até então atuava no interior da nave. Este campo de gravitação também produzia vibrações periféricas e de dispersão. Era necessário desligar tudo que significasse o menor risco de ser rastreado pelos acônidas.

A mudança de clima não foi nada agradável. Ron teve a impressão de que o estômago lhe estava virando do avesso, contorceu-se e respirou profundamente. Atrás dele alguém tossia forte. Ron prendeu a respiração, sentou-se na poltrona e contou até dez. Era uma invenção dele e sempre dera resultado em mudanças repentinas de gravidade. Expirou lentamente e se virou para trás. Seus homens estavam de rosto pálido. Alguém atrás soltou um gemido. Lofty Patterson deu um passo à frente e o resultado foi que quase bateu com a cabeça no teto. Desceu devagar, resmungando:

— Zero vírgula dois normal, isto não é nada para mim!

 

Para Meech, uma gravidade menor não significava nada, a não ser que podia se locomover com muito mais facilidade. A mochila, já deixada na saída da caverna, não seria mais necessária, pois tudo que era essencial para um rastreamento energético ele já possuía embutido “sob” o uniforme. Avançou rapidamente com suas passadas que eram verdadeiros saltos, atingindo o ar livre no vale.

Levou uns dois minutos para averiguar que não havia ninguém nas proximidades. Um homem normal — isto é, que não usasse armas energéticas nem produtores de energia ativada — ele não poderia mesmo localizar. Mas tinha de supor que, neste mundo deserto, quase sem ar, ninguém se aventuraria a sair livremente sem qualquer meio de proteção. Até mesmo o dispositivo de calefação individual de um uniforme comum, teria ele descoberto sem dificuldade, pois, para não perder nada, desligara todos os instrumentos, com exceção do conjunto de recepção e transmissão do capacete. O terrível frio de oitenta e cinco graus Celsius negativos, que ia penetrando devagar no seu uniforme, não o afetava em nada.

Examinou bem as rampas de saída da caverna e constatou que ofereciam boas possibilidades para uma rápida subida. Continuou sua marcha e atingiu a parte superior do vale. Depois do terreno mais plano, começava um aclive de cascalhos e pedras maiores que levava até o alto do morro. Com seus olhos penetrantes, observou bem o flanco leste do morro e constatou que não chegaria lá em cima. A rocha era muito lisa e sem ranhuras ou pontos de apoio. Resolveu, então, fazer sua base de observação em outro ponto, onde se encontravam os flancos leste e sul da montanha, e logo começou a execução do plano.

No caminho para o novo posto, estava observando curioso o terreno em volta, fazendo uma imagem clara da superfície de um planeta, onde o frio e a gravitação mantinham o equilíbrio para conservar o pouco de atmosfera existente. Fazia realmente uma imagem, pois tudo que via era guardado por um sistema complicado de lentes em um microfilme.

Meech notou que estava em contradição com seu sistema de previsão de probabilidades, requinte eletrônico do seu complicado automatismo. Com outras palavras, surpreendeu-se grandemente com a presença de vegetação em Afzot, vegetação esta que em si não dava para espantar ninguém. Era apenas um emaranhado de folhagem retorcida que subia pelas rachaduras das pedras e também um pouco de musgo pardacento, em pequenos trechos. Meech fez uma nova constatação, aliás novidade para ele, de que a matéria, por suas leis intrínsecas, esgota todas as possibilidades para um desenvolvimento maior. Na escala de classificação da Botânica, musgos e trepadeiras não estavam exatamente nos mais baixos níveis de formação. Era de qualquer maneira interessante como a natureza saía vitoriosa num mundo de fatores ecológicos tão ingratos.

Com a curiosidade despertada por esta constatação, Meech começou também a olhar um pouco mais para a fauna, chegando à conclusão de que esta não existia, pois, em volta de grandes extensões de ilhas vegetais, não via o menor vestígio de vida animal.

Com estes conhecimentos do ambiente, prosseguiu seu caminho. Daí para frente só estava dando atenção ao que registravam os instrumentos de rastreamento. O tempo todo estava sentindo aquela irradiação indefinida que fizera com que Ron Landry procurasse um esconderijo nessa cadeia de montanhas. Reparou agora que a recepção aumentava de intensidade à medida que subia a montanha.

Ao chegar a seu objetivo, deitou-se no chão, onde o uniforme cinza-escuro desaparecia na tonalidade do ambiente. Surpreendentemente, do alto da montanha o terreno caía quase íngreme, dando a Meech uma visão ampla de todo o vale e das muitas irregularidades topográficas da região. Investigou o quadro imenso à sua frente, quase palmo a palmo, pedra por pedra, morro por morro. Mas em ponto algum lobrigou sinais de vida inteligente. Os acônidas deviam estar bem camuflados.

Aliás, não para os órgãos de alta sensibilidade de Meech. Recebia bem nitidamente os raios de dispersão de suas máquinas e podia dizer, com exatidão de até um metro, de onde vinham.

O vale diante dele corria estreito, mas muito fundo, e o sol poente não chegava mais aos pontos baixos, desaparecia nas trevas impenetráveis. O lado oposto a Meech não era um paredão fechado, mas uma sucessão de montes e colinas numa ondulação até agradável à vista. Algumas destas colinas tinham ramificações que penetravam no vale, outras acabavam bruscamente em despenhadeiros. Era uma região muito bem fechada e de difícil penetração. Mesmo sem os aparelhos de rastreamento, Meech chegaria à idéia de que, se havia acônidas no planeta, tinham de estar ali nesse vale acidentado, num esconderijo subterrâneo naturalmente.

O senso de percepção de Meech indicava um ponto no lado leste do vale, a cerca de trinta metros do seu solo, no meio de grandes extensões de rocha pardacenta, que se erguiam quase vertical do vale, formando agulhas graníticas de mil ou mais metros de altura. Examinou detalhadamente este trecho da rocha, mas mesmo assim não chegou a ver sinais da passagem de seres inteligentes. Os acônidas deviam ter dado muita importância à camuflagem.

O robô fez um apanhado de todo o conjunto em sua memória fotográfica e começou o caminho de volta. Sua missão estava cumprida.

 

Muito afastado do cenário dos acontecimentos de Afzot, Perry Rhodan recebeu a seguinte mensagem:

 

O Governo de Ácon concorda com que se iniciem conversações sobre a formação de uma coalizão galáctica para defesa do perigo extragaláctico. Propõe-se que as negociações comecem o quanto antes possível e, como local das conversações, sugere-se a capital do planeta-pátrio de Ácon.

 

O administrador não conseguiu evitar um sorriso irônico, ao acabar de ler o texto decifrado. Quem trouxe a mensagem foi Reginald Bell, seu substituto na administração do Império Solar.

Bell ficou parado, observando a reação de Rhodan.

— Uma única nave fragmentária em Afzot... — disse com sarcasmo.

— E naturalmente umas bombas bem fortes na face do planeta desabitado — acrescentou o administrador.

— E os ilustres senhores já propensos para entrar em entendimentos.

Rhodan não esquecia os dias e semanas anteriores em que fizera tudo para trazer os acônidas a uma coalizão ou ao menos para discutirem com os terranos e com os arcônidas um pacto de cooperação. A Galáxia corria perigo, ameaçada por seres mecânicos, equipados com componentes orgânicos no cérebro e provenientes do espaço extragaláctico. Deram-lhes o nome de pos-bis, robôs biopositrônicos com um pouco de substância orgânica numa parte do cérebro que os tornava capazes de atos emocionais. Sua técnica superava em muito o que os terranos e arcônidas possuíam. Enquanto era do conhecimento da Defesa Terrana, também os acônidas não tinham nada que chegasse aos pés dos pos-bis. Somente uma ação em conjunto e um intercâmbio eficiente de conhecimentos poderiam salvar a Galáxia.

Os acônidas, no entanto, não estavam ainda compenetrados da seriedade do assunto. Recusaram propostas de negociações como inúteis e desnecessárias.

Até que surgiu a nave fragmentária no sistema Frua. Ao menos agora sabiam alguma coisa do perigo iminente pela presença da esquisita nave espacial, um monstro cúbico de proporções absurdas, com milhares de torres e reentrâncias aparentemente sem sentido. A nave fragmentária, certamente à procura de matéria-prima, devastava a superfície gelada do mais afastado dos quatro planetas do sol Frua com bombas nucleares de muitas centenas de megatons, sugando para o interior de seu bojo toda massa de vapor e fogo levantada pelas explosões.

Em Afzot, o terceiro planeta do sistema, começaram a surgir indícios de vida. Os aparelhos de rastreamento das naves terranas transmitiam sucessivos impulsos de uma estrutura semelhante a dos grandes aparelhos de transmissão. Portanto, havia acônidas em Afzot — um planeta tido até então como inabitável. Os acônidas estavam apavorados, pois não possuíam espaçonaves de nenhum tipo para poderem enfrentar os ataques dos pos-bis, E o outros meios de defesa parece que não existiam também em Afzot.

Quando a nave fragmentária se deslocou do quarto planeta para Afzot, Perry Rhodan recebeu o primeiro pedido de socorro. Respondeu que estaria pronto a enviar parte de sua frota para Afzot se os acônidas estivessem dispostos a entrar em entendimentos para uma coalizão. Como resposta, recebeu mais um pedido de socorro. Repetiu sua exigência e junto com o terceiro pedido de auxílio veio a aceitação do que Rhodan propunha.

Vinte unidades da frota terrana tomaram a direção de Afzot. A nave dos pos-bis já começara em Afzot o mesmo processo que utilizaram no quarto planeta de Frua. O pânico se apoderara dos acônidas. Contudo os vinte aparelhos dos terranos tanto fizeram ao monstro dos pos-bis, que este teve que sair do planeta. Devia estar muito danificado, pois horas depois se ouviu uma tremenda explosão nas profundezas do infinito. Somente poderia ter sido a explosão de uma nave fragmentária.

Afastara-se, pois, o perigo e, fiel a seu compromisso, os acônidas reafirmaram sua vontade de entrarem em negociações para uma ação em conjunto.

Bastou uma única nave dos pos-bis para levá-los a compreender a situação — e o adversário tinha centenas de milhares delas.

 

Não causou nenhum espanto nos seis homens, não enfronhados nos segredos da missão, o fato de que Meech Hannigan voltou a bordo da gazela com um plano que suportava qualquer objeção; um plano tecnicamente perfeito. Ainda mais que Meech era um simples sargento. Mas, era o único que conhecia bem o terreno.

Ron Landry escolheu dois homens para ficarem vigiando a gazela, dando-lhes ordem estrita de manterem os aparelhos de rádio desligados. Combinou-se um sinal em código para caso de extrema urgência. Só quando uma das duas partes desse este sinal é que o rádio poderia ser utilizado.

Poucos minutos depois, oito homens deixaram a pequena nave espacial. Nos bolsos estufados do uniforme espacial levavam tudo que era necessário para sobreviver oito semanas num mundo hostil a qualquer tipo de vida: alimentação concentrada, que por um inteligente dispositivo podia vir diretamente do bolso para a boca, medicamentos, principalmente os que impediam, sem perigo para a saúde, a eliminação de fezes por um período mais longo, material de desinfecção, conservando a atmosfera dentro do traje espacial isenta de germens, mesmo que seus portadores passassem dois meses sem oportunidade de se lavarem — e naturalmente instrumentos e ferramentas de todos os tipos.

Ron Landry estava convencido de que não iriam passar oito semanas afastados da civilização e privados de suas benesses. Mas era bom estar preparado para o pior.

O pequeno grupo atingiu a saída da caverna no exato momento em que o sol alaranjado de Frua desaparecia no poente. Com a rapidez característica das ondas de ar quente, a noite caiu sobre a região. Ron Landry, que até então era o último da fila, passou para frente. Pelo transmissor de capacete, que não ia além de cinco metros, perguntou a Meech:

— Ainda se lembra da subida, sargento?

Intimamente maldizia a ordem do Coronel Quinto de ocultar perante todo mundo a verdadeira natureza de Meech Hannigan. É claro que o robô se lembrava do caminho da subida, guardara tão bem em sua memória positrônica cada passo a ser dado, que daqui até o fim do mundo saberia percorrê-lo mesmo na maior escuridão. É claro que sua óptica possuía um sistema de ultra vermelho que lhe possibilitava enxergar no escuro, como os gatos. Mas não, tinha que fazer estas perguntas.

— Perfeitamente, senhor! — era a resposta comedida de Meech.

— Então vamos começar a subir. Depois de trinta metros, faça uma pausa e com o aparelho de ultra vermelho nos ilumine aqui atrás. Sargento Pardo, acompanhe o sargento Hannigan com sua lanterna de ultra vermelho, de modo que todos nós o possamos ver. Cada um decore bem os passos, para não ficar em dificuldades depois. Entendido?

Um murmúrio de confirmação se ouviu de todos e Meech começou a caminhada, subindo a rocha íngreme com incrível facilidade. Eric Pardo, como fora ordenado, iluminava atrás dele.

Ao atingir a altura determinada, Meech parou, virou-se para o lado e jogou o feixe de luz no paredão. E os homens começaram a escalada, sob os apelos de Ron, para andarem mais depressa. A luz ultra vermelha tinha grande vantagem — com a condição, porém, de que ninguém, fora do portador, possuísse o respectivo filtro. Ron Landry não ia supor que uma viatura acônida, transitando à noite, estivesse equipada com o jogo completo de uma instalação do ultra vermelho. Em caso afirmativo, a utilização da “luz invisível” não traria muita vantagem. Quanto mais cedo chegassem ao alto e pudessem prescindir da iluminação, tanto mais seguros estariam.

Levaram ainda uma hora até atingirem o cume do penhasco que dominava todo o vale. E ninguém os impediu. Quando Meech estava para reencetar a caminhada, levando o grupo a atravessar o aclive de cascalho, disse como que falando para si mesmo:

— Não consigo ver nada de estranho.

Ron se sentiu mais aliviado. Combinara com Meech que “nada de estranho” seria um rastreamento de energia proveniente de uma viatura inimiga que se aproximava. Não havia, pois, acônidas na redondeza. Pelo menos não foram descobertos.

Em longa fila, os homens subiam pela encosta de cascalho, sem nada para os atrapalhar. Uma única vez, houve uma interrupção.

Isto foi quando, na escuridão da noite, quase no zênite, surgiu um clarão de intensa luminosidade, transformando o deserto de pedras num mar de luz azul-claro. A marcha parou e Ron ordenou que todos se atirassem no chão para se defenderem.

O clarão desapareceu tão depressa como veio, restando apenas uma nuvem de brilho mais fraco que foi se diluindo à luz das estrelas. Ron deixou passar alguns minutos, para recomeçar a marcha. Não se fez nenhum comentário sobre o estranho fenômeno. Cada um pensava algo diferente. Nas proximidades de Afzot explodira ou uma bomba ultrapotente ou uma nave de grande porte. Mas ninguém sabia se fora terrana, arcônida ou um dos monstros dos pos-bis.

“Até agora tudo corre normalmente e de acordo com o planejado”, pensou Ron Landry.

 

No ponto em que o flanco sul e o leste da cadeia de montanhas se interligavam, encontraram um abrigo. Ron Landry e Meech se afastaram do grupo para pesquisarem o terreno. Meech, a quem bastava a claridade das estrelas para investigações sumárias, observou atentamente o terreno acidentado em frente à escarpa do vale e constatou que não havia nenhum indício da existência de vida inteligente. Fez esta comunicação quando o resto da turma já estava bem longe e fora do alcance dos aparelhos de rádio do capacete. Em vista disso, Ron voltou ao grupo. Tinha a intenção de descansar um pouco. Em cinco horas estaria terminada a noite e, no momento, não havia outra coisa a fazer, do que esperar. Partiriam de novo com o raiar do sol e percorreriam o caminho que Meech demarcara para atingir o outro lado do vale.

Não estava escrito que haveriam de encontrar a entrada do esconderijo subterrâneo dos acônidas. Meech Hannigan fazia os rastreamentos sempre em linha reta e seria mesmo querer demais que a procurada entrada estivesse exatamente no ponto em que Meech descobrira fortes irradiações de campos de dispersão. Dependendo das circunstâncias, teriam que procurar durante muitos dias, sendo que cada minuto sem cobertura representava um grande perigo. A situação não estava nada cor-de-rosa, pelo menos não tanto como o Coronel Quinto havia pintado a bordo da Annino — provavelmente para debelar possível estado de pânico.

Perdido em seus pensamentos, Ron tateava pelas trevas a dentro seguindo as pegadas do robô. Parou ao ouvir o ruído, só depois que Meech lhe fez um sinal. O som não parecia com nada que ouvira até então. Na rala camada de ar de Afzot, qualquer ruído tinha outra ressonância e os microfones do capacete o distorciam ainda mais.

— Não consigo perceber nada, senhor — sussurrou Meech.

Ron pensou em um animal, mas em Afzot não existia nenhuma fauna, ou melhor, não podia existir. Num mundo deste, até o musgo das rochas tinha que passar fome. Podia ser até uma pedra que despencara. O ruído tinha alguma semelhança com a batida seca do cascalho.

Ron virou a cabeça para saber de onde vinha, mas os microfones não eram muito sensíveis quanto à direção, não se podendo, pois, deduzir nada.

Lá do alto rolou uma pedra e Ron deu um pulo para o lado, passando rente dele um bom pedaço de um bloco do paredão, rumo ao fundo do vale.

— De volta para o esconderijo! — ordenou.

Os poucos metros foram vencidos rapidamente. Parecia estar alguma coisa armada contra eles, pois mais pedras continuaram a rolar, parecendo uma avalancha que se desencadeava do paredão do vale. Lá embaixo, no acampamento subterrâneo, os homens já estavam de sobreaviso, pois ouviram também o rolar das pedras, mas não sabiam a causa, como Ron também não.

Era necessário saber com certeza o que se passava. Meech não pudera fazer nenhum rastreamento, pois não havia nenhuma viatura inimiga na região. O risco não era demasiadamente grande se acendesse a lanterna de ultra vermelho e desse uma busca na redondeza do acampamento. Deu instruções a Lofty Patterson a respeito.

Lofty regulou o jato de luz da lanterna e começou a vasculhar tudo, fazendo a luz penetrar as fendas e reentrâncias, pontas salientes e passagens estreitas. Ron ouvia o respirar nervoso dos homens em seu capacete. Entretanto não escutava uma palavra.

Os segundos corriam. Numa hora, Lofty quebrou o silêncio, queixando-se de que seu braço começava a doer. Não terminou a frase, pois, no mesmo momento, o feixe de luz deu com alguma coisa escura, semelhante a uma corda, certamente não de pedra, que se movia. Como se aquilo temesse a luz, retirou-se para o alto, tentando sair do círculo luminoso. Mas os raios do farol o perseguiram e Lofty viu surgirem outras cordas, primeiro separadas umas das outras, depois convergindo num ponto fora dos raios do farolete. Deu um impulso no feixe de luz e apareceu então a parte superior da rocha.

O veterano e experimentado Lofty Patterson sentiu um calafrio lhe percorrer o corpo. Alguém gritava de peito cheio:

— Deus tenha piedade de nós!

À primeira vista, parecia algo diabólico. Pendia quase vertical no paredão de granito, sustentado por trinta ou quarenta pernas que mais pareciam cordas flexíveis, estufando o corpo semi-esférico, num ritmo acelerado. A semi-esfera era recoberta por um pêlo brilhante, de onde sobressaíam três olhos do tamanho de uma bola de futebol, que fitavam arregalados e imóveis a claridade do ultra vermelho. O monstro era tão volumoso que causava espanto ver as pernas tão finas sustentarem aquele imenso peso de mais de cinco metros de diâmetro.

“Cinco metros no mínimo”, pensava Ron. “Estufado será ainda maior!”

Foi só por alguns segundos que Ron perdeu o autodomínio. Enquanto os homens olhavam perplexos para cima, deu a seguinte ordem:

— Retirem-se lentamente. Sargento Hannigan, fique aqui ao meu lado. Lofty, não desligue o farol. Mantenham as armas engatilhadas.

Não desprendeu o olhar do estranho ser. Ruídos metálicos lhe diziam que suas ordens foram cumpridas. O feixe de luz tremulava enquanto se retirava passo a passo. Vagarosamente para não assustar o monstro, a mão de Ron desceu para a cintura, apanhando a arma no coldre. Destravou-a num movimento ágil e a levantou a tal altura que podia fazer fogo a qualquer momento que fosse necessário.

A gigantesca “aranha” não se movia. Já no centro do círculo luminoso, não recolhia mais suas pernas alongadas.

“Coisa estranha”, observou Ron, “é que o animal pode captar os raios ultra vermelhos, pois em toda a Galáxia são poucas as espécies que possuem esta peculiaridade...”

Lofty teve alguma coisa para dizer:

— Já estamos distantes trinta metros, Ron. Se nos afastarmos mais, a lanterna não pega.

— Está bem — respondeu Ron — fiquem onde estão. Meech, pegue uma pedra e atire nela.

Na excitação do momento, ninguém percebeu que o sargento Hannigan fora chamado simplesmente pelo prenome.

Meech obedeceu imediatamente, agachando-se devagar e, apanhando uma pedra de uns dois quilos, a atirou com muita rapidez... mas ninguém reparou. O monstro foi atingido em cheio, entre dois dos olhos brilhantes. Ron notou como, sob a densa camada de pêlo, o corpo afundou bastante com a violência do impacto.

— Cuidado! — gritou Lofty.

O aviso foi supérfluo, pois Ron viu muito bem como a gigantesca semi-esfera se ergueu com incrível rapidez, apoiada nas delgadas cordas de suas pernas, balançando o corpo ameaçadoramente. O monstro tomava posição de ataque. Como se precisasse de mais ar no momento de excitação, estufou-se em ritmo acelerado. Ron ergueu o cano da arma e reparou pelo canto do olho que Meech estava também pronto para atirar.

Algumas das pernas tipo corda começaram a se mover na pedra lisa, procurando apoio, enquanto mais outras também desciam, até que o espantalho recuou para nova posição.

— Mais um passo — disse Meech, em voz bem clara — e abrimos fogo.

As cordas desceram mais e Ron, fascinado, contemplava como as extremidades achavam apoio até em pequenos vãos para sustentar o amorfo corpanzil que pesaria cerca de dez toneladas, ou seja, pelo menos duas ou três na gravidade de Afzot. E com que elegância e agilidade aquelas pernas varriam do caminho pequenos empecilhos ou contornavam os maiores. Ron estava tão enlevado na contemplação que quase não viu quando o monstro deu um galeio para frente. Instintivamente se agachou e colou o dedo no gatilho. Ao seu lado, Meech fez um rápido movimento e Ron por uma fração de segundo desviou o olhar do monstro, mas percebeu com o rabo do olho que o balofo corpo de aranha estava para pular. Num rápido galeio para a esquerda, Ron se desviou no exato momento em que se jogou contra ele aquela aparição antediluviana.

O salto o levou para fora do alcance do farol, mas antes de se erguer, Ron já estava controlando a situação. Meech Hannigan estava quase encostado no paredão. Mais para a esquerda, a luz da lanterna refletia nas armas dos homens em torno de Lofty.

Da aranha não se via mais sinal. Ron queria saber o que acontecera, mas a voz não lhe saiu da garganta.

No receptor do capacete soou uma voz humana, voz feminina, suave e curiosa ao mesmo tempo, dizendo na língua acônida:

— Extraordinário! O fugitivo não está aqui, Gostaria de saber onde se esconde.

Ron entendeu logo e sabia agora o motivo por que Meech fizera aquele movimento brusco.

— Lofty! Apague a luz! — gritou com toda força dos pulmões, a fim de que o veterano o pudesse ouvir além do alcance normal do transmissor regulado para poucos metros.

 

“Foi embora, como estou notando”, dizia mentalmente o corpo marrom-escuro, rolando preguiçoso no líquido viscoso.

— Isso é verdade — foi a resposta. — Desapareceu sem deixar rastro, naturalmente por iniciativa própria.

“Gostaria de saber como se faz isto”, emitiu o corpo estranho com uma inflexão de lamúria. “Embora deseje também desaparecer, nunca conseguirei realizar este sonho.”

— Não somos ainda perfeitos — disse-lhe o interlocutor.

“Somos o essencial. Mas para chegarmos à perfeição, falta-nos um bom número de órgãos.”

— É a velha história que já conheço. O problema é como conseguir tais órgãos.

O interlocutor não respondeu nada. “Ele nunca falou nada a respeito?”, foi a pergunta seguinte.

— Creio que conhecemos apenas uma parte do conteúdo de sua personalidade, isto é, a parte que nos deu espontaneamente. É com isto que existimos. O resto de sua consciência, ele guarda em segredo.

“Por quê?”

— Não sei. Talvez tenha receio de que criemos nossos próprios órgãos e fujamos, como o fez o Draak.

“Isso é possível.” E com a volubilidade, característica de sua natureza, o corpo estranho mudou de assunto ainda emitindo mentalmente. “Que aconteceu com o barulho todo que havia sobre nós? Onde estão os terranos? Devo ter cochilado muito.”

— O barulho cessou de repente e dos terranos não há o menor sinal.

“Sinto muito”, lamentou o corpo amorfo e, se possuísse de fato uma boca, teria agora dado um grande suspiro. “Gostaria tanto de ver um dia um terrano...!”

 

Um voz masculina respondeu:

— Mais cedo ou mais tarde haveremos de encontrá-lo. No momento não temos pressa alguma, Draak vai conseguir se manter aqui fora. Foi feito para isto.

Ron compreendeu. A voz masculina falava a língua acônida com um sotaque muito carregado e aliás um sotaque que Ron conhecia. Além disso, já sabia alguma coisa sobre a mirabolante aranha gigantesca.

Lofty apagara a lanterna há muito tempo. Talvez tivesse ouvido também o diálogo entre os dois seres invisíveis e reagiu por conta própria, pois Ron estava crente de que seu salto para o lado o levara a mais de cinqüenta metros afastado de Lofty. Era distância demais para o transmissor do capacete, mesmo admitindo que, poucos instantes antes, Ron o regulara para vinte metros.

Ron levantara-se lentamente e voltara logo para onde estava. A aranha devia ter notado de alguma maneira secreta a aproximação dos dois seres que queriam cientificar-se a respeito de algo. Foi por isso que escapulira assim tão afobadamente. O que Ron supôs ser um ataque, não passou de uma fuga desabalada.

Chamou por Meech que logo respondeu. Pela escuridão a dentro, Ron veio correndo.

— Que foi, Meech?

A resposta do robô veio calma e sem demora.

— Uma fonte de energia não muito forte. Acho que se trata de uma nave de porte médio. Três quilômetros de altura acima de onde estamos, direção vinte graus e raio vetor no máximo quatorze quilômetros.

Ron imaginou mais ou menos a direção. A nave devia estar atrás do píncaro da montanha na hora da captação, píncaro este a cujos pés estava localizado o acampamento. Era uma notícia tranqüilizante.

— Podem eles ter visto o clarão de nosso farol? — perguntou por cautela.

— É improvável — retrucou Meech. — Do lugar onde estavam, poderiam ver no máximo luz de dispersão. Se não estiverem preparados para captar ou medir a fraca luz ultra vermelha, não perceberam nada.

Ron se acalmou. Os dois da tal nave estavam à procura de um monstro em fuga e não de luz difusa ultra vermelha. Ron queria fazer outra pergunta, mas Meech não lhe deu tempo.

— A nave está se afastando — disse ele.

Quase no mesmo instante, Meech ouviu de novo a voz feminina:

— Estamos já de volta?

Tinham que usar trajes espaciais no interior das naves e conservar os transmissores ligados no maior volume. Do contrário não seria possível ouvirem a conversa.

— Sim — respondeu o homem de sotaque. — Não tem mais sentido. Draak é um espertalhão, consegue se esconder por semanas inteiras, se sabe que estamos à sua procura. Nossa única chance é pegá-lo de surpresa.

Ouviu-se nitidamente um suspiro.

— Sei bem como você consegue isso facilmente, Tats. Como é que um animal pode saber que alguém está no seu encalço?

— Oh! Afinal de contas, Draak não é um animal — respondeu o homem de sotaque. — Possui determinadas faculdades que não existem em animais normais.

Havia uma ponta de orgulho na voz de Tats. Com sua última observação, pareceu terminada a conversa. Não se ouviu mais nada.

Em contrapartida, aumentou a atenção de Meech. Seus sentidos positrônicos acompanhavam a nave, deixando Ron, sentado a seu lado, a par do que via. Seu transmissor estava regulado de tal modo que só Ron o podia ouvir.

— Fizeram uma curva para o norte — explicava o robô. — E estão agora de volta. Provavelmente tencionam voar para o vale. Sim, estão a onze quilômetros, direção trezentos e cinqüenta e cinco, altura quase zero.

Ron estava num crescendo de tensão e expectativa, pois aí estava a grande chance. A nave vinha do esconderijo dos acônidas e para lá voltaria e Meech a seguia com toda atenção.

— Estão brecando — disse Meech. E meio minuto depois:

— Apenas três quilômetros ao norte daqui, seguindo agora o rumo do oeste. Terão que se chocar contra o paredão se não...

Interrompeu a frase. Quase no mesmo momento, Ron notou a língua de luz clara que surgiu mais adiante no vale de um dos flancos da montanha. Devia ser luz ultra vermelha, que ele via através do filtro. O robô não precisou dizer mais nada. No forte clarão observava o disco da nave penetrando de encontro ao foco de luz, até desaparecer no interior da montanha. Depois disso, a claridade sumiu.

— Guarde bem o lugar, Meech, amanhã temos que ir para lá.

 

Durante a noite, Ron alterou seu plano. Não acreditava que a entrada para o esconderijo dos acônidas, que era tão grande a ponto de poder entrar uma nave de tamanho médio, não fosse fortemente vigiada. Mas assim mesmo, continuou na decisão tomada. Dificilmente os acônidas de Afzot haviam de supor que os terranos teriam penetrado no sigiloso esconderijo. Deviam estar acreditando ainda que ninguém sabia da existência de sua colônia ou base no planeta Afzot.

Deste lado, não havia, pois, nenhuma dificuldade. A entrada tinha que ser conquistada à força, mas os acônidas acabariam sabendo de tudo — os acônidas incumbidos da vigilância. Portanto deviam ser raptados e levados para longe, antes que alguém pudesse suspeitar de alguma coisa. Isto é, suspeita sempre teriam, ao constatarem o desaparecimento dos sentinelas. Mas, num mundo como Afzot, havia milhares de razões para justificar o sumiço repentino de um punhado de homens. Ninguém chegaria à idéia maluca de que foram seqüestrados por agentes da Terra.

Ron escolheu, entáo, mais quatro homens para levarem os acônidas aprisionados através do vale e das escarpas até a gazela. Os quatro deviam participar do ataque e partir imediatamente com os presos. Ron cronometrara a ação para dez minutos após o pôr do sol. Agindo rapidamente, os homens estariam de volta à gazela, antes do nascer do dia.

Ainda na mesma noite, mal desaparecera o pequeno aparelho, Ron Landry se pôs a caminho com sua gente, mandando-os descer para o vale e passar para o paredão oeste. A dois quilômetros do ponto onde, a cinqüenta metros acima do nível médio do vale, se achava a entrada do esconderijo dos acônidas, fizeram uma parada. Ainda faltavam alguns minutos para o nascer do sol. O local escolhido para o repouso era de tal conformação que não poderiam ser descobertos facilmente. O pessoal procurou se acomodar no chão e dormir algumas horas. Meech também simulou estar dormindo, embora na realidade fosse quem sustentasse todo o esquema de defesa de Ron, para o caso de acontecer algo inesperado.

O dia de cindo horas passou sem novidade. Restaurados pelo curto mas bom repouso, logo depois de escurecer venceram a última etapa até a entrada do esconderijo. Não havia nenhum indício de que o inimigo tivesse percebido a presença dos agentes terranos. A calma era tal que fez Ron desconfiar. Pediu que Meech Hannigan averiguasse se os acônidas podiam ter percebido algo estranho e se mantinham na espreita, preparando uma boa cilada. Mas as informações de Meech não eram completas. Sua resposta continha a mesma porcentagem de possibilidade para o sim e para o não.

Cerca de uma hora após a partida do local de repouso, o comando já estava ao pé da rocha, onde na noite anterior desaparecera o aparelho acônida. Já do outro lado do vale, Ron observara que uma passagem na rocha, estreita e cheia de despenhadeiros, subia lentamente o paredão, terminando numa faixa de dois metros de largura, rente da abertura do esconderijo. Esta faixa tinha espaço suficiente para abrigar os homens no momento decisivo. Os muitos desfiladeiros, porém, causavam mal-estar a Ron. As rochas eram lisas e íngremes, não dando muita chance nem a alpinistas bem treinados. Os despenhadeiros eram também profundos demais para permitir aos homens que se salvassem com um salto, favorecidos pela baixa gravidade do planeta. Se os acônidas quisessem lhes preparar uma cilada, este seria o local adequado. Bastava bloquear a trilha estreita e alcantilada na entrada e na saída. O que ficasse de permeio estava mais do que engaiolado, pior que gato no saco.

Apesar disso, deu ordem para que os homens subissem, enquanto ele encerrava a fila. De vez em quando tentava se sugestio-nar com o pensamento de que os acônidas nada teriam percebido da presença dos terranos. Mas só se livrou do pensamento pessimista quando chegou à entrada da gruta, sem que nada acontecesse.

As estrelas espalhavam uma claridade muito tênue e Ron pôde ver a rocha íngreme que dava para a entrada. Não tivessem visto ontem a nave que ali entrou, jamais chegaria à idéia de que aqui haveria outra coisa além de pedra bruta. Os acônidas conseguiram camuflar de tal modo a entrada de seu abrigo clandestino, que não se via o menor indício de nada. Mas o major constatou que estava no lugar certo. A recepção dos raios de dispersão de aparelhos que consumiam energia era muito intensa, especialmente numa determinada direção. A única explicação para isto era que o paredão de rocha era mais fino num lugar do que nos outros, o que demonstrava a existência de uma caverna por detrás do paredão de granito. E esta concavidade não era outra coisa senão o hangar clandestino onde ontem se refugiara a estranha nave.

As dimensões da comporta de entrada eram mais ou menos previsíveis e Ron postou sua gente de tal forma que poderiam entrar em frente ampla assim que ela se abrisse. Mandou então Meech Hannigan para cima. O robô se afastou logo da passagem estreita e se agarrou numa saliência da rocha, a uns oito metros mais para cima. Estava ali dependurado, com bom campo de visão, parecendo escutar alguma coisa dentro da rocha. Nenhum dos demais membros da expedição, alheios aos segredos táticos, levou a mal que fosse novamente Meech o escolhido para uma missão especial. O robô era tido como especialista em Eletrônica. Diziam até que era capaz de resolver as mais difíceis complicações no ramo, se lhe dessem tempo suficiente. E considerando bem, era verdade!

 

Meech Hannigan sentiu o funcionamento do mecanismo eletrônico da vigilância do portão no momento em que pulou para seu posto de observação. O dispositivo positrônico tentava dar o alarma. Alguém se aproximava da comporta sem transmitir os sinais convencionados.

Mas o robô compreendia a linguagem daquele mecanismo. Deu um grande impulso de comando, fazendo com que o mecanismo deixasse de funcionar, um milionésimo de segundo antes que fosse dado o alarma.

Depois disso, examinou os componentes eletrônicos do mecanismo de acionamento da comporta. Para ele, tinha que ser baseado em Positrônica, pois seu próprio “organismo”, embora muito mais complicado, era construído pelos mesmos princípios. O primeiro, o mecanismo do portão de entrada, era simples, quase primitivo. E não era de admirar, pois não tinha outra coisa a fazer a não ser receber os impulsos e, ou abrir o portão ou dar o alarma, conforme fossem os sinais, verdadeiros ou falsos. Por este motivo, Meech não lhe podia fazer nenhuma pergunta, pois não tinha possibilidade de lhe responder. Tinha que examinar unidade por unidade, com impulsos rápidos e específicos, que correriam pela fiação e teriam que parar em algum ponto, pois o mecanismo não os podia elaborar.

Desta maneira precisou de dez segundos para obter as informações indispensáveis. Depois disso, sabia com toda certeza como deviam ser os impulsos para o mecanismo automático ceder e abrir o portão.

Deu a entender a Ron em que ponto estavam as coisas.

O chefe deu uma rápida olhada nos seus homens e ordenou:

— Engatilhem as armas; não pensem nada de como possam ser as coisas aí dentro. Será certamente diferente do que vocês imaginam. Fantasias bobas atrapalham.

A imagem que ele mesmo fazia, inconscientemente, procurou afastar da cabeça. Queria ver a comporta como ela era realmente. Se esperava encontrar um amplo recinto onde só havia um mesquinho corredor, perderia com isto algum segundo precioso até se adaptar ao ambiente real.

Quase sussurrando, deu a ordem a Meech:

— Estamos prontos, vamos embora!

Meech emitiu o impulso, sentindo a reação do cérebro eletrônico do portão, isto é, como o impulso se ramificou em dezenas de direções, passando através de muitos cabos, filtros e finalmente atuando no circuito de comando de mecanismo de abertura. Sabia que o mecanismo tem a inércia inata das coisas puramente mecânicas e esperou um segundo inteiro.

Viu então como, à sua direita, no cinza-escuro da rocha, surgiu uma faixa de um brilho ofuscante que foi se ampliando...

 

Dor-Par estava realmente despreparado. Iniciara as duas horas de vigília com a certeza de que tudo correria na maior tranqüilidade. Não havia nenhum aparelho fora; portanto, não haveria também nenhuma entrada e tudo estava em ordem na positrônica do portão automático. Adnil, seu companheiro de sentinela, levaria no máximo um quarto de hora para fazer a inspeção no hangar. Depois disso, poderiam jogar annoj para passar melhor o tempo.

Pelo menos, assim pensava ele, Dor-Par. Quando a comporta de fora começou a abrir de repente, compreendeu imediatamente que alguma coisa iria atrapalhar todo seu plano.

Quando a pesada chapa de ferro começou a girar a seu lado, com o ranger de sempre, e o sombrio céu da noite surgiu diante de seus olhos arregalados, Dor-Par puxou o capacete para baixo e apertou os botões que o fechavam hermeticamente. Sem perder tempo, pulou para a saída da espaçosa guarita de vidro que servia de abrigo para os sentinelas de serviço. Gritou por Adnil, enquanto aguardava desesperado que a portinhola da guarita se abrisse para ele. Como de costume, Adnil levou algum tempo até responder:

— O que há? — perguntou espantado.

— Venha para frente! A comporta se abriu! Alguma coisa está errada aqui.

A portinhola da guarita se abriu e ele pulou para o recinto das comportas que ligava o interior da guarita de vidro com o semi-vácuo das comportas do hangar. Durante os poucos segundos que a câmara das comportas externas precisava para compensar a pressão do ar, não conseguiu ver nada.

— Sim, mas o que foi? — perguntou Adnil, com ar de pateta.

— Venha para cá, seu bobo! — disse-lhe Dor-Par pelo transmissor do capacete. — E não pergunte mais nada.

— Está bem — retorquiu Adnil. Dor-Par ouviu o ruído ritmado do destravamento, enquanto Adnil veio correndo pelo corredor do hangar. Abriu-se então a comporta externa e o primeiro sentinela surgia na luz clara do grande recinto. Ao lado dele se abria, numa moldura quadrada, um pedaço do céu estrelado. Na parte inferior do quadro aguardava uma fila de figuras cintilantes, todas elas olhando para ele.

Atônito, Dor-Par ouviu no receptor do capacete uma voz estranha:

— Fiquem onde estão, não se movam e não digam uma palavra.

O primeiro pensamento de Dor-Par foi dar um grito bem alto. Mas percebeu a tempo os danos das armas. Eram oito, contou ele. O grito de alarma lhe custaria a vida e isto era um preço muito caro.

— Que conversa é esta? — resmungou Adnil de algum lugar lá nos fundos.

Dor-Par não se atreveu a virar a cabeça. O som dos passos apressados de Adnil ficou mais forte. Devia estar agora nem perto.

— O quê? Quem são estes, Dor-Par?

O primeiro não respondeu, mas um dos estranhos explicou:

— As instruções valem para você também. Não se mova e feche a boca, nenhuma palavra!

A cabeça de Dor-Par começou a funcionar. Não sabia o que os estranhos tencionavam, mas parecia impossível que tivessem sucesso. Seus transmissores de capacete eram perfeitamente ouvidos também lá nos fundos do hangar. Bastaria que alguém entrasse pela comporta interna e ouvisse a conversa. No mesmo instante a base estaria de alerta e Pfamat enviaria pelo menos trezentos homens para acabar com os intrusos.

Mas então se lembrou de que os intrusos haviam conseguido abrir a comporta de fora, sem que a positrônica desse o alarma. Compreendeu então que os estranhos, fossem quem fossem, eram certamente mais espertos do que ele pensava.

Quatro deles se destacaram das extremidades e caminharam para frente. Dois cercaram Adnil, os outros dois fizeram a mesma coisa com Dor-Par, que parecia muito curioso, querendo saber o que pretendiam com ele. Virou a cabeça para poder ver seu adversário. Quem sabe através da viseira poderia saber de onde eram os intrusos?

E conseguiu seu intento. Através do vidro da viseira percebeu um rosto corado, com dois olhos alongados e um nariz cuja ponta se levantava para o alto. Abaixo das narinas, um estranho amontoado de cabelo dos dois lados.

“Terranos”, pensou Dor-Par. “Devem ser terranos!”

Esta constatação criou uma situação mais desfavorável para eles. Terranos eram adversários muito sérios. De todas as raças da Galáxia eram os mais eficientes e sabiam o que queriam. Dor-Par refletia se valia ou não a pena arriscar um grito de socorro. Mas antes que chegasse a fazê-lo, explodiu alguma coisa nas suas costas. Terrível dor de queimadura lhe percorreu o corpo. Dor-Par ficou rígido e caiu resfolegante no chão. Estava inconsciente quando seu capacete tocou o solo.

 

O sargento Pardo meteu no bolso o aparelho de choque.

— Está tudo pronto por lá? — perguntou sem se virar.

Responderam afirmativamente. Cada dois terranos pegaram um acônida sem sentidos, pelos pés e pelos braços, e os levaram para os quatro homens postados na primeira linha. Depois, subiram um pouco mais, pelo dispositivo antigravitacional.

— Façam tudo para atingirem a outra face do vale antes de o sol nascer — inculcou-lhes Ron Landry. — Não percam nem um segundo.

Em silêncio, puseram-se a caminho, levando os dois prisioneiros. Ron os acompanhou com o olhar até desaparecerem na escuridão, após o que penetrou pelo recinto a dentro.

— Feche a comporta, Meech!

E segundos depois o pedaço quadrado do céu estrelado não se via mais. Já da comporta interior Ron estava observando todo o recinto, que com seus vinte metros de largura era mais ou menos a metade do espaço interior. Já a uns dez metros da comporta, a abertura se alargava para cima em paredes oblíquas, formando um enorme círculo. Grandes filas de lamparinas a gás enchiam toda a abóbada de luz esbranquiçada de grande intensidade. Ao reflexo destas luzes cintilavam oito naves do tipo visto na noite anterior. A largura do hangar, Ron calculou em cem metros. Não com muita nitidez, podia ver nas paredes do fundo uma seqüência de portas metálicas. O pensamento de que a qualquer momento podia sair alguém delas, não lhe era nada agradável. O local não oferecia nenhuma chance de se defenderem.

Apesar disso, dedicou alguns instantes a observar atentamente a guarita de vidro onde estivera sentado Dor-Par. O fato de que os acônidas proporcionavam aos sentinelas o luxo de uma cabina com ar pressurizado e em contrapartida tinham uma comporta, que ligava a cabina ao recinto, de funcionamento muito lento e antiquado, foi realmente uma grande vantagem para os terranos.

Dor-Par perdera tempo para fechar seu capacete e para sair da cabina de vidro. Se pudesse reagir no primeiro instante, certamente teria havido um combate e ninguém duvidava de que a refrega não seria notada pelos acônidas que estavam do outro lado das paredes.

Meech ajudava no exame da cabina de vidro. Não tinha mais motivos de constrangimento, pois os homens que ficaram com Ron conheciam sua identidade. Em pouco tempo, ele se certificou de que não havia instrumentação para registro automático de presença alheia. Se os dois prisioneiros acônidas não voltassem, não haveria nenhuma possibilidade de se descobrir o que acontecera na base clandestina.

Esta descoberta simplificou mais as coisas. Ron e sua gente tinham agora apenas um empecilho para vencer — o recinto amplo e sem possibilidades de cobertura. Ron estava convencido de que do outro lado das paredes havia mais possibilidades de se esconderem. Se conseguissem sair dali sem complicação, não existiria mais perigo.

Puseram-se a caminho, passando por entre as pequenas naves. Levaram um quarto de hora para aqueles ridículos cem metros, porque tinham de parar atrás de cada aparelho e esperar um pouco até poderem continuar. No final do quarto de hora ficaram sabendo que poderiam ter feito os cem metros correndo. Nenhuma das pesadas portas se movera e tudo estava na maior calma. A atividade no interior da base acônida parecia ser muito restrita.

Ron mandou que Meech abrisse uma das portas, o que o robô fez com a rapidez de sempre. A porta rolou para o lado, aparecendo a entrada para uma eclusa. A comporta externa se fechou automaticamente e o ar começou a entrar na pequena câmara. A parede de trás se afastou para o lado e a forte lâmpada da eclusa desenhou um quadriculado claro no chão da câmara, que estava completamente escura.

Ron saiu admirado e desconfiado.

A gravidade artificial da eclusa o atingiu como se fosse um choque.

 

Um véu leitoso se movia preguiçoso através da água. Atenta e um tanto nervosa, Con-Ki o observava através do espesso vidro, tentando compreender como uma coisa daquela podia ter inteligência.

Quando o véu chegou à outra extremidade da chapa de vidro, espalhando-se para todos os lados, Con-Ki apertou um botão no quadro de comando, diante de seu assento. De algum lugar caiu uma porção de um concentrado alimentício de cor escura, penetrando na água.

A reação do véu leitoso foi instantânea. Deixou de se mover e quedou tranqüilo n,água, até que o pacote alimentício penetrou na área mais escura. Aí recomeçou o movimento do véu, que com grande agilidade se concentrou e se condensou, chegando quase a formar uma massa compacta. No centro desta massa, já invisível, estava o pacote do concentrado marrom.

Por alguns minutos, ficou tudo parado, após o que o véu começou de novo a se mexer, espalhando-se pela água em elegantes movimentos. Simultaneamente, afastou-se da chapa de vidro. Con-Ki continuou olhando para ele, até desaparecer na escuridão dos fundos.

Notou alguma coisa em sua máquina. Enquanto escrevia, pensava em Kule-Tats, que lhe começava a causar preocupação. Aquele véu neblinoso era obra dele, ou falando mais exatamente, já havia conseguido a substância básica, e partindo daí, com mais algumas complicações, chegou a criar o estranho ser.

Mas quem é que podia imitá-lo em todo o mundo?

Con-Ki se encostou no espaldar da cadeira, olhando pensativa para a água clara além da parede de vidro. Tinha de guardar seus pensamentos para si mesma, raciocinava ela. Qualquer especialista em Biofísica teria dado dez anos de vida para poder trabalhar junto de um homem como Kule-Tats. Quando reconhecia que fora ela a escolhida para este destino, sentia uma sensação de mal-estar, que certamente seria interpretada como ingratidão ou mesmo histeria.

Os aras não tinham culpa de terem uma estatura de mais de dois metros de altura e serem secos como palha de trigo maduro. Horríveis. Não eram responsáveis por não terem nenhuma semelhança com o ideal masculino de Sphinx.

Mas, no fundo, não era nada disso, pensava ela, que realmente a preocupava. Era a maneira fria, quase frívola, como Kule-Tats manobrava com a vida e a morte como se fossem simples resistências ou capacitores num circuito elétrico. Era a consciência de cooperar com um homem que, em se tratando de coisas que nos outros provocavam horror ou respeito, nele não encontravam nada de humano.

Ingrata, histérica, Con-Ki preferia ficar em casa e continuar como especialista em Biofísica, menos célebres do que era agora. Mas na forma em que estavam as coisas, nada se podia modificar.

Afzot significava exílio, banimento, ao menos por cinco anos.

 

A segunda coisa que Ron estranhou foi que a chapa transparente da viseira ficou embaciada. É verdade que a instalação de ar anulou em poucos segundos este fenômeno. Mas, nem com isso, estava respondida a pergunta por que os acônidas estabeleceram uma câmara quente e úmida sob a superfície de um planeta seco e gelado.

Lofty Patterson e Larry vinham atrás dele. Ron os avisou da brusca alteração da gravidade. Estavam, pois, preparados, mas mesmo assim gemeram de dor quando o choque os atingiu.

Meech, como sempre, foi o único que não sentiu a passagem de um ambiente para o outro. A pergunta, em que local estranho haviam caído, nem ele podia responder.

Lofty, no momento, estava ocupado com algo mais útil.

— O ar está respirável — disse ele acendendo a placa fosforescente de seu analisador de pulso. — Umidade do ar cem por cento; temperatura quarenta e dois graus Celsius. Se todo mundo julgar que vai agüentar isso, podemos dispensar o capacete.

Ron Landry concordou com a idéia. Com o aperto de um botão, soltou o travamento do capacete e o empurrou para trás. A lufada quente e úmida que lhe veio de encontro ao rosto parecia pior do que o choque da gravitação.

— Santo Deus das galáxias, como isto aqui está catingando! — suspirou Lofty.

— Como repolho podre — confirmou Meech.

Lofty olhou admirado.

— Que que um robô pode entender de repolho podre?

— O suficiente para analisar este cheiro — respondeu Meech.

— Pare de dizer besteira — interveio Ron. — Meech tem razão, Lofty, ligue sua lanterna.

Obedeceu prontamente. No ar úmido, o feixe de luz se tornou um cone de linhas bem limitadas e muito claro. Errou um pouco à direita e à esquerda, através da escuridão, até que atingiu alguma coisa e parou.

Ron não estava crendo no que via e a seu lado dizia Larry:

— Desligue, Lofty, sua lanterna está bêbada.

Mas a imagem ficou. Na frente deles, a uns vinte metros, surgiu uma árvore de bom tamanho, cujas folhas carnudas cintilavam entre o verde e o azul.

Lofty virou um pouco a mão e deixou o cone luminoso ir para outro rumo. Apareceram outras árvores, com densa vegetação de permeio, uma selva emaranhada, uma floresta virgem sob a crosta de um planeta estéril.

— Muito bem... — disse Ron Landry — quem me der uma explicação para isto, ganha uma caixa de uísque...

E o uísque ficou para ele mesmo.

 

Hesitantes, acabaram aceitando a existência de uma mata virgem. Uma coisa, porém, estava clara: não cresceu naturalmente. Terrenos pedregosos e desérticos como Afzot não tinham condições de produzir uma vegetação tão luxuriante sob sua superfície. A questão era então: para que servirá esta selva?

Ron Landry e seus homens vieram para Afzot a fim de investigarem qual o tipo de base clandestina os acônidas estavam montando e para constatar se as obras que ali se realizavam tinham qualquer relação com o surgimento da raça extragaláctica dos pos-bis, que eram um misto de robôs com seres orgânicos. Ron sentia-se consciente de sua missão quando estava decidindo se devia prolongar a pesquisa ou voltar para o grande recinto, passando pela eclusa, para procurar outra porta.

A mata virgem devia ter alguma coisa que ver com os problemas que os acônidas tentavam resolver em Afzot. Podia, pois, muito bem ficar ali para melhor observar o segredo da floresta.

Lofty já apagara há tempo sua lanterna, mas Ron ainda tinha na memória o azul e verde das folhas carnudas. Como é que uma folha podia ter estas cores em plena escuridão?

Ron resolveu que tinham de examinar melhor para responder a esta pergunta. Deu ordem de continuarem a caminhada. E Lofty foi instruído a acender a lanterna mais amiudadamente para mostrar o caminho. Não parecia haver acônidas nestas trevas e Meech Hannigan não captava outros impulsos além dos que vinham das profundezas do bloco de granito, provavelmente da estação de geradores da base.

Sem grande esforço, atingiram a margem da floresta virgem. O chão, até então liso e com revestimento de asfalto, era constituído agora de um húmus brilhante em meio a grande umidade. Ron apanhou um punhado desse húmus e cheirou. A massa emanava um intenso cheiro de mofo. A floresta devia existir já há muito tempo e gerações de plantas haviam surgido e desaparecido. Meech também fez o mesmo gesto, mas levou o punhado de terra na direção dos olhos e adaptou suas lentes para um exame microscópico. Em poucos segundos descobriu vinte e três espécies diferentes de bactérias, das quais só conhecia quatro. Isto não queria dizer que as outras dezenove eram desconhecidas dos terranos. Os conhecimentos microbiológicos do robô eram grandes mas não completos. No enriquecimento de sua memória foi posto maior valor em outras informações.

A floresta por sua vez parecia quase uma muralha intransponível. Ron dividiu seu pessoal para a direita e para a esquerda, mas em qualquer direção a selva formava a mesma massa compacta e homogênea. Em outras circunstâncias, Ron não levaria a sério este empecilho. Mesmo o mais denso emaranhado tropical não resistiria aos raios ceifadores das armas térmicas. Mas o disparo de armas térmicas significava a produção de fortes campos de dispersão, certamente seriam rastreados e medidos pelos instrumentos acônidas. Ron não podia fazer outra coisa do que mandar Meech para abrir um caminho na densa vegetação.

O robô se transformou num “elefante furioso” e atrás dele surgia uma trilha de mato desbravado, suficientemente larga para andarem em fila. Ron e os seus seguiram Meech, penetrando assim com rapidez para o âmago da selva. De tempo em tempo, Lofty Patterson acendia a lanterna, surgindo a cor intensa da vegetação.

Mas, quando Ron ordenou ao robô que parasse por um instante e o crepitar dos galhos quebrados e das folhas que farfalhavam cessou, voltando o silêncio total, ouviram alguma coisa da atividade secreta que se desenrolava no coração da selva.

Lofty assustado deu um pulo para trás ao ouvir um ruído esquisito na vegetação baixa, ruído que logo mudou de modulação, passando para o zumbido agudo de uma serra. Jogou o feixe de luz na direção de onde vinha o sibilo, mas não viu nada. Em algum lugar, mais para o alto, ouvia-se logo depois uma série de estalos ritmados como de um chicote de boiadeiro. Parecia vir da esquerda, foi se avolumando e desapareceu pela direita. Ron estremeceu com o pensamento de que tipo monstruoso de nave poderia provir este barulho.

Um suave borbulhar, como de uma panela de água fervendo, vinha da esquerda. À direita, dentro da escuridão, dava a impressão de existir uma tubulação de vapor; ouvia-se nitidamente o chiado.

— Não sei não — disse Lofty, muito desconfiado — mas não gostaria de ficar aqui sozinho.

Enquanto isto, os pensamentos de Ron iam para outro rumo. Tinha grande experiência com florestas virgens de diversos planetas e sabia como animais mais desenvolvidos reagiam à presença de um estranho. Lembrava-se do alarido indescritível provocado por cães-do-mato em Geron, quando, com sua gente, queria armar acampamento à margem de um rio. Ainda tinha também no ouvido a gritaria infernal dos macacos na selva amazônica, na Terra. Sabia, pois, que os animais das grandes florestas reagiam do mesmo modo em toda a Galáxia, suposto naturalmente que tivessem atingido um certo grau de desenvolvimento.

Esta mata, porém, era quase silenciosa, havendo somente ruídos menores e isolados e nenhum deles soava como se viesse de fato da boca de um animal. A conclusão tirada era a seguinte: nesta estranha selva não havia animais em maior escala de desenvolvimento.

“Talvez não passem”, pensou Ron, “do nível dos répteis.”

O pensamento não era assim tão absurdo. Nas florestas da Terra primitiva, não havia propriamente fauna. Por que então não poderia existir uma floresta semelhante também sob a superfície de Afzot? De uma maneira singular, esta cadeia de pensamentos levou Ron a uma outra idéia, cujo fio não quis perder mais. Dizia respeito à função da floresta, o objetivo que tinham os acônidas em implantá-la aqui. O interesse de Ron se voltou para este lado. Se a idéia estivesse certa, então eles, os intrusos, teriam descoberto um segredo vital de Afzot.

Guardou sua idéia, por enquanto, exclusivamente para si. Mandou que Meech penetrasse mais, enquanto ele e seus homens o seguiam. Felizmente, depois de um quarto de hora de penoso abrir picada, Meech deu com uma trilha, mais ou menos bem pisada, onde a caminhada rendia muito mais. Mas mesmo assim, o robô ocupava o primeiro lugar na fila. Meia hora mais tarde, parou de repente e virando-se para Ron, disse baixo:

— Água pela frente, senhor!

Ron aguçou os ouvidos e acreditou ouvir o marulhar suave. Sua curiosidade aumentou. Será que os acônidas, além da floresta, tinham também criado um lago aqui embaixo? Deixou que Meech prosseguisse. Poucos minutos depois, a densa vegetação da mata se abriu dos dois lados e o cone luminoso de Lofty Patterson bateu na superfície da água em leve movimento. Lofty levantou a lanterna e iluminou mais para longe. Porém a luz era fraca e não atingiu o outro lado do lago. Considerando que o farolete de Lofty era relativamente forte, não havia dúvida de que estavam diante de um verdadeiro lago.

A floresta não chegava bem até a margem, havendo de permeio uma faixa de areia. Ron examinou a estreita praia à procura de pegadas. E havia bastante. As mais importantes delas davam a impressão de sacos arrastados numa determinada direção. Por mais que investigasse no meio de tantos sinais, não descobriu nenhum rastro de animal de qualquer tipo, o que veio reforçar sua teoria sobre a fauna da floresta. Ordenou que se fizesse uma pausa para descanso, de, pelo menos, algumas horas. E, julgando que a trilha por onde vieram era de animais, resolveu desviar um pouco mais para o lado. Não tinha nenhum prazer em dar de encontro com um monstro que viesse na trilha da água. Deitaram-se diretamente na areia e o preguiçoso marulhar da água os embalou mais depressa no sono. Apenas Meech estava acordado. Ouvia com interesse positrônico na escuridão a dentro e tentava classificar os diversos ruídos.

 

“Ele está tão esquisito nos últimos tempos”, emitiu o corpo marrom-escuro.

— Exato, como se não fosse mais dono de seus pensamentos — respondeu seu interlocutor invisível. — Nervosismo é o que se chama isto.

“Só queria saber o porquê disso. De todos que examinei, foi sempre o único que quase não tinha pensamentos inúteis.”

— Quem sabe está acontecendo alguma coisa que o deixa inseguro?

“Pode ser, mas gostaria de saber o que é.”

O estranho diálogo foi interrompido. Veio de fora uma onda de pensamentos esquisitos, captados pelos interlocutores.

“Ele está chegando”, pensaram os dois e pararam logo de pensar.

Aquele em quem estavam pensando, penetrou no recinto em que se encontravam os dois dialogantes. Com cuidado, mas muita curiosidade, começaram a pesquisar seu consciente, pois queriam saber o que o deixava nervoso. Mas o examinado se mostrou dono de seus pensamentos e não deixou que nenhuma distração o traísse.

 

O lado da sombra mudava depressa e quando a luz bateu de chapa em seus olhos, Ron acordou assustado, levantando-se logo. Olhou para cima, onde os raios de um sol alaranjado o ofuscaram. Levou a mão em palma na frente dos olhos e se virou. Lisa como a face de um espelho, estava diante dele a superfície da água, formando ao longe uma densa coluna de vapor que tudo escondia.

Em cima, um céu de um azul intenso. Ron levou alguns instantes até voltar plenamente a si. Lembrou-se do hangar cheio de aparelhos que haviam atravessado, da comporta por que passaram e do choque com a gravidade. Haviam caminhado por cerrada mata virgem e finalmente chegaram a um lago. O lago ainda estava aí, mas a escuridão não havia mais. O sol estava claro e dali a uma hora deveria fazer muito calor.

“É isso”, pensou ele, “devem ter criado um sol artificial em sua caverna da mata virgem.”

Olhou para seus companheiros. Meech já se pusera a caminho, o que se podia perceber pelas pesadas pegadas do robô, à margem da mata. Podia-se ver uma pequena abertura onde Meech devia ter passado, naturalmente atrás de alguma coisa importante.

Larry dormia ainda, deitado de lado. Sob o uniforme espacial que refletia a luz do sol, seu peito subia e descia compassadamente a cada respiração. Mais afastado jazia Lofty Patterson que não estava ainda acordado, mas se remexia de um lado para o outro. Provavelmente iria abrir os olhos logo. Ron caminhou para ele, seria bom que visse uma cara amiga assim que acordasse. Não seria nada agradável olhar de repente para a luz direta de um sol artificial, de cuja existência nem sabia.

O cuidado de Ron se positivou muito útil, embora fosse por outro motivo. Enquanto olhava para Lofty, que continuava se remexendo, viu vagamente uma coisa que se movia por entre a barba escura. Ajoelhou para poder ver melhor e percebeu uma espécie de berne que certamente estava tentando penetrar na pele de Lofty, isto é, injetar nela um de seus ovos. O nojento inseto era quase da espessura de um dedo e já devia estar metendo o ferrão na pele de Lofty, pois este remexia-se muito e tentava fazer movimento com a mão. Ron pegou o verme e o arrancou do rosto do colega. Um delgado fio de sangue escorreu pelo queixo e era de estranhar como Patterson não gritou de dor.

Num gesto de nojo, Ron atirou o verme para o lago. No mesmo momento a água começou a cintilar e alguma coisa se mexia no espelho do lago. Num instante cessou tudo e voltou a placidez da água quase parada. Bastante aliviado, Ron concluiu que os habitantes do lago se encarregaram de vingar o terrano. Isto mostrava também que seria quase suicídio querer se banhar no lago e Ron chegou à conclusão de que, em vez de ter nojo, devia mandar examinar o verme, pois, em todo o episódio, havia uma coisa muito estranha — o fato de Lofty não ter sentido dor nenhuma...

Despertou finalmente Lofty, sentou-se na areia e olhou atônito em volta.

— Santo Deus das galáxias! Que que houve?

Ron o tranqüilizou, continuando sempre a observá-lo.

— Esta caverna aparentemente é mais perfeita do que pensávamos. Os acônidas criaram um sol artificial. E isto explica por que as folhas das árvores são tão verdes.

Os olhos de Lofty ainda se moviam inquietos.

— Onde está Meech?

— Não sei. Deve andar ai por dentro da selva, à procura de alguma coisa.

Lofty foi se acalmando, bocejou e passou a mão pelo queixo e, ao deparar com sangue, perguntou admirado:

— Que é isto? Será que alguma coisa me mordeu?

— Você não sente mesmo nada? — perguntou Ron, interessado.

— Não. Que devo sentir?

Ron lhe contou o ocorrido. Incrédulo, Lofty levou o dedo para o local e apalpou bem.

— Interessante, não sinto mesmo nada. Ron não disse nada, apenas olhava pensativo para algum lugar.

— Como pode ser isto? — perguntou de novo perplexo.

— Muito simples, Lofty — explicou Ron. — Foi um verme com poderes anestésicos.

— Poderes o quê?

— É um animal que enquanto está mordendo, inocula simultaneamente um sedativo, de maneira que não se sente dor.

Lofty olhava de boca aberta.

— Isto... isto não existe, é impossível.

Ron meneou a cabeça.

— Claro que não existe, isto é, pelo menos a nossa ciência não conhece um animal assim. Mas, tente apenas imaginar o que se poderia fazer com um bicho deste. Uma nuvem destes insetos devoraria um exército inteiro, sem que ninguém notasse nada.

Lofty compreendeu então o pensamento que estava atrás da figura.

— Você pensa que alguém... — hesitou em concluir.

— Sim, penso que alguém cria estes animais, os acônidas, para falar mais claramente.

Larry Randall acordara entrementes. A conversa entre Ron e Lofty suavizou sua surpresa com o sol artificial.

— Quer dizer então — interveio Larry — que esta caverna aqui não é outra coisa que um enorme laboratório, não é?

— Tenho receio que sim — disse Ron, concordando.

Dois ou três segundos depois, ouviram gritos de Meech Hannigan.

— Atenção! Perigo! Venham para cá.

Como que atingido por um raio, Ron se virou para trás. Na orla da floresta, estava Meech, excitado, gesticulando com um dos braços. Preso no outro braço, trazia uma coisa que Ron não conseguiu identificar. À esquerda do robô e um pouco mais para trás, levantava-se uma coisa escura acima das copas das árvores, parecendo um grande balão. Meech fez um gesto para mostrá-lo, embora não pudesse vê-lo do ponto em que estava.

— Venha para cá, depressa!

Ron foi o primeiro a pular para frente, dizendo:

— Vamos depressa, Meech está falando Sério.

Lofty e Larry começaram a correr. O balão aumentava de tamanho, como se lá dentro houvesse alguém trabalhando com uma possante bomba de ar. Aumentava e subia. Até o lugar onde Meech estava não era mais de cem metros e Ron, agora, passou a ser o último do grupo. Já havia percorrido a metade da distância, quando surgiu na frente dele alguma coisa sem forma estável, de pêlo pegajoso, rompendo a vegetação com muito barulho. Devia ser algo semelhante ao que estava subindo lá atrás. Não se movia propriamente do chão, mas aumentava simplesmente como se fosse insuflado. Uma pêra de dimensões fantásticas, escura, revestida de um pêlo pegajoso, tão exótica que Ron ficou fascinado, esquecendo-se de fugir, o que quase lhe foi fatal.

Com um impulso repentino, o monstro amorfo estufou de tal maneira que sua superfície elástica tocou Ron. Queria correr, mas não podia mais: uma parte de seu uniforme espacial estava colada no ser estranho!

Enrijecido de pavor viu como o ser horripilante quase o envolveu com seu corpo flácido. Compreendeu que tinha que agir com rapidez, se quisesse escapar da cilada. Tentou tirar a arma do coldre, mas quando foi movimentar o braço, o pêlo pegajoso se moveu também e o apertou mais, prendendo-lhe o braço.

Tudo escureceu em volta dele, pois o pêlo que se dilatava lhe envolveu o rosto. Não enxergava mais nada. O corpo do horrendo animal exalava um cheiro nauseabundo e Ron começou a tossir e ter ânsias de vômito. E enquanto suas forças cediam sob a vontade de vomitar, o pêlo flácido o envolveu mais ainda, tirando-lhe toda possibilidade de escapar.

Ouviu um bramido surdo e reflexos de luz forte cintilavam diante de seus olhos quase cerrados. Suava no corpo todo e o suor lhe escorria em bicas, enquanto o mau cheiro era insuportável. Reparou então que o que julgava ser suor, era bem outra coisa. O pêlo do monstro segregava uma solução que catingava horrivelmente. Apesar do pânico, Ron levou poucos segundos para compreender o que estava acontecendo. O animal o envolvera completamente, era, portanto, sua presa. Com outras palavras, já o começava a digerir com aquele líquido!

Num ato de desespero, entre o estado de consciência e o de quase desfalecimento, fez a última tentativa para se libertar. Com o resto das forças que lhe sobravam, esperneava contra a massa informe. Tentou esticar os braços e levantar os pés. Num assomo de fúria chegou até a berrar, sem o perceber.

Mas logo notou que tudo era inútil. A parede em volta dele não se movia e o estado de inanição estava chegando.

E como despedida, num sarcasmo do destino, ouviu de súbito um sibilo estridente que vinha do alto. Mas, na mesma hora, a pressão cedeu de todos os lados. Podia mover os braços e empurrou os cotovelos para fora de tal maneira que pôde tocar na arma. Sacou-a, ergueu o cano e atirou.

Ninguém poderia prever o que aconteceria se alguém num âmbito exíguo assim fizesse uso dos poderosos raios térmicos. Ron não se preocupou com as conseqüências. Um feixe de fogo cintilante foi de encontro ao monstro. O primeiro tiro fizera um rombo, pelo qual podia escapar! Fê-lo o mais rápido que pôde, continuando a atirar. O calor quase o sufocou, mas sabia que estava vencendo. O monstro não podia ser infinito, se continuasse atirando em linha reta, haveria de chegar à pele externa.

Acima dele deviam estar acontecendo coisas singulares, pois o sibilo agudo passou para gritos alucinantes. No alto parecia haver uma tempestade. A pele do animal se mexia agora em grandes convulsões e Ron era jogado de um lado para o outro. Mas com a mira instintiva, produzida pelo medo de morrer, trabalhava sempre na mesma direção, causando ao monstro um prejuízo irreparável.

Mais tarde não soube explicar como conseguiu achar a saída, pois, nos últimos minutos, não conseguia mais coordenar os pensamentos, agia como uma máquina. Só parou quando viu de repente a luz do sol. Desceu, escorregando num trecho de pele lisa, e caiu na areia úmida.

Ouviu vozes excitadas. Alguém o pegou pelos braços e o arrastou depressa pela areia. Neste momento um estampido seco veio de alguma parte. Virou a cabeça e viu pedaços de pele escura espalhados pela redondeza, como se fossem fragmentos de um balão rebentado no ar. Com esforço conseguiu imaginar que devia ser o corpo do animal monstruoso que há instantes atrás tentava digeri-lo. Como num caleidoscópio, via tudo confuso e sem nexo. Viu o paredão verde-escuro da floresta, encimado por uma fila de balões que pareciam parados no ar. Ao virar a cabeça viu duas pernas do uniforme cintilante, provavelmente de Meech, em rápidos movimentos. Atrás dele, fulgia a areia e à direita surgiu Lofty Patterson com expressão de quem estava muito preocupado.

— Está tudo bem? — perguntou ele.

Ron abanou a cabeça e isso parecia uma afirmação.

— Por aqui — gritou Larry, de qualquer lugar. — Já estou com o motor ligado.

“Motor!”, pensou Ron admirado. “De que motor está falando?”

De repente seus pés não estavam mais tocando na areia. Meech devia tê-lo pegado nos braços. A próxima coisa que sentiu foi uma almofada macia nas costas e à sua frente surgiu uma parede verde-claro de metal plastificado. Alguém disse:

— Vamos embora!

Alguma coisa começou a roncar e ouvia o murmúrio da água. O paredão da floresta desapareceu e acima de Ron só havia o azul do céu. Ninguém olhava para ele. Mordeu os dentes e se ergueu um pouco. O que viu o deixou confuso. Estava num barco, via sua proa pontuda que se erguia da água com a velocidade. Larry Randall estava pilotando na frente. Lofty Patterson e o robô, só conseguiu vê-los quando se virou para trás. Estavam ajoelhados, observando a paisagem que fugia.

— Que aconteceu? — perguntou Ron, com a voz embargada.

Lofty se virou para ele.

— Não há tempo agora, estão vindo atrás de nós.

Ron olhou por cima de seus ombros. A fila dos balões estava em movimento e se afastava da floresta no sentido do lago. Não restava dúvida atrás de quem eles se encontravam.

 

Parecia difícil a Con-Ki reconhecer sua insegurança.

— O ventre está pronto — disse pela segunda vez ao homem de costas para ela, imóvel, sentado diante de uma alta escrivaninha. — Que devo fazer com isto?

O homem alto e magro virou-se lentamente, com os olhos saltados para fora — o que fazia Con-Ki pensar num sapo — e encarou calmo a moça.

— Primeiramente é um abdômen e não um ventre — corrigiu sério — e segundo, pensava que já tivéssemos acertado tudo isto.

Con-Ki se irritou.

— Sei disso — respondeu. — Mas não seria a primeira vez que o senhor muda de opinião. Antes de iniciar o trabalho, gostaria de saber se tudo vai continuar como antes.

Kule-Tats fez o sinal afirmativo calma e lentamente. Dava a impressão de não se lembrar mais do assunto. Mas era muito difícil tirar alguma conclusão da expressão fisionômica de Kule-Tats.

— É, fica como está — respondeu pensativo.

Sua voz era estranhamente alta, quase berrada, como aliás em todos os aras. Mas o singular é que apesar disso tinha uma aparência de distinção, mesmo quando falava.

— Mas verifique primeiro se o abdômen está ligado corretamente com o dispositivo de abastecimento. Depois, submeta-o aos testes alternados, como foi combinado. A estrutura já está no ponto de poder suportar a cada dez segundos a mudança de ambiente e não tem sentido prático diminuir este pequeno intervalo. Do contrário, obteremos um ser vivo que só será capaz de sobreviver num mundo de alteração constante de ambiente. Queremos um que possa agüentar todos os ambientes, da duração que tiverem.

“Tudo isso ele já disse umas seis vezes”, pensou Con-Ki. “Alguma coisa não deu certo, pois ele em geral não repete nada.”

Olhou mais uma vez com muita atenção para o recinto alto e sem janelas onde Kule-Tats punha em prática seus estudos teóricos. Depois começou a caminhar. A porta automática ainda não se abrira para ela, quando parou e olhou para trás.

Kule-Tats estava olhando para ela.

— O senhor está com algum problema? Não que eu queira me intrometer em sua vida particular, mas ultimamente...

O ara a interrompeu com um gesto da mão direita.

— Sim, tenho alguns cuidados, mas não estão ainda maduros para serem discutidos. Quando chegar a hora, você será a primeira com quem falarei a respeito.

Con-Ki saiu. Achou muito singular que Kule-Tats confessasse ter cuidados. Mergulhada nos seus pensamentos, caminhou ao longo do corredor bem iluminado até a entrada do seu laboratório. Parada junto da porta, percorreu o grande recinto com um olhar preocupado.

A enorme janela nos fundos unia o laboratório com os aparelhos de medição. Nas paredes laterais, viam-se as câmaras de ensaio, também ligadas ao laboratório com extensas janelas de vidro. O centro era formado por complicada instrumentação: quadros de ligação, estantes com enzimas e outros produtos, e também instrumentos de medição de todos os tipos, incluindo um refinado sistema de computação.

Con-Ki foi para uma das câmaras de ensaio, olhando através da janela de vidro. Num pequeno recipiente, estava a parte traseira de um verme. A pele era cinza, se bem que ali parecia incolor devido à iluminação artificial. Uma série de tubos finíssimos ligavam este semi-inseto a uma caixa no canto da câmara. Con-Ki observava com atenção o pulsar do pedaço de vida, que tinha todos os órgãos na parte traseira de um Inseto. Era através destes delgados tubos que os órgãos se mantinham em atividade.

Ela leu em voz baixa a temperatura da câmara de ensaio.

— Trezentos e quinze graus absolutos, umidade do ar trinta e oito por cento, gravitação um vírgula cinco do normal.

Sob a chapa de vidro havia um quadro de comandos. Inclinou-se para apertar um botão. O dedo vacilou uns segundos, moveu-se depois resoluta e o apertou com força.

A partir daí a parte traseira do verme estava num... inferno... Seu meio ambiente alternava bruscamente a cada dez segundos e sem transição. Temperaturas de cem graus absolutos cambiavam com outras de quatrocentos, a umidade do ar oscilava bruscamente de zero a cem por cento e a gravitação de um e meio até zero vírgula oito. Ali dentro surgiam tempestades e amainavam logo depois. A luz se transformava num inferno azul, caindo depois a um vermelho incandescente para voltar ao verde peçonhento.

No meio desta confusão toda, o semi-verme tinha sintomas de vida regular. Era a parte perfeita de um inseto. Um animal que podia viver em qualquer ambiente. Um animal que, sem meios aritificiais, poderia viver em qualquer planeta da Galáxia.

Con-Ki sentiu orgulho e nojo ao mesmo tempo.

 

Ron estava armado, não precisava, pois, ficar deitado aí, apenas olhando o que os outros faziam para ele e por ele. Arrastou-se para a popa do barco. Meech se virou para ele e disse:

— Tenho que lhe chamar a atenção, senhor, de que sua constituição física ainda não...

Ron fez um sinal com a mão.

— Está certo, Meech. O tempo não dá agora.

Começou a tossir, a sentir dores dilacerantes nos pulmões. Entre Lofty e Meech, arranjou uma brecha e estava contente por poder se encostar e segurar em alguma coisa. Tirou a arma para fora e estava admirado de não a ter perdido naquela confusão.

— Que tipo de fantasma foi aquele? — perguntou com dificuldade.

Lofty queria responder, mas Meech chegou na frente.

— Seres de constituição completamente estranha, com nenhuma semelhança ou parentesco longínquo com as espécies conhecidas da Galáxia. Possuem uma peculiaridade. Em virtude dos músculos no interior do corpo, podem estabelecer um vácuo e desta forma conseguem voar em qualquer direção. No estado normal, são uma massa informe do tamanho de um porco comum da nossa Terra. Não se podem perceber outros órgãos em seu corpo e por isso não estamos em condições de explicar como executam vôos programados ou dirigidos.

Ron queria fazer mais algumas perguntas importantes, mas Meech continuou:

— Acho que estão agora ao alcance de nossas armas.

O mais adiantado dos balões encontrava-se numa posição oblíqua atrás do barco. Ron viu pelo movimento da água que a velocidade do barco era boa, talvez cinqüenta ou sessenta quilômetros por hora. Para os ocupantes do barco parecia até uma pequena tempestade. Mas os balões parecia não terem a menor dificuldade em acompanhar o barco.

— Mais algumas explicações para a técnica da defesa — disse Meech calmo, mas apressado. — Não basta acertar uma vez só no balão, pois possuem uma certa propriedade de curar na hora os ferimentos recebidos. São necessários pelo menos de sete a nove bons tiros para fazê-lo cair. Os disparos devem ser feitos um depois do outro, pois assim que sentem a nossa reação aumentam a violência do ataque.

Ron levantou o cano da arma, apontou com cuidado e disparou. Sibilando, os raios térmicos rasgaram o ar num feixe de luz esbranquiçada, atingindo o balão. E pôde ver o rombo aberto no corpo estranho, quase do tamanho de uma cabeça, fechando-se quase em seguida.

Um décimo de segundo depois, Ron compreendeu o que Meech queria dizer com o processo rápido de defesa. Como uma pedra, o balão despencou para a direção da água. No princípio, Ron acreditou haver atingido mortalmente o monstro. Talvez então as observações de Meech não estivessem certas. Esperava ver o animal bater morto na superfície do lago.

Ao invés disso, interrompeu a queda a uns cinqüenta metros da água, na altura da popa do barco, e investiu com toda força e velocidade.

— Agora estamos fritos — disse Lofty, ao lado de Ron, colocando, com toda calma, o cotovelo na quina do barco e dando três tiros consecutivos.

Mas o balão continuou descendo e Ron viu o manto escuro se estender sobre eles. Resoluto abriu fogo sem parar.

Foi o fim do monstro. Com um forte chiado, o ar penetrou pelos rombos dos raios térmicos no vácuo do interior do animal e o balão se “desarmou”, caindo sua carcaça vazia na água e afundando aos poucos.

Neste meio tempo, Meech se encarregou dos outros atacantes e Ron se deu ao luxo de observar como Meech procedia, quando viu que, mais para trás, outras seis carcaças estavam para cair na água. Parecia que Meech dava um tiro só em cada balão, mas não era assim. Na realidade eram quase dez disparos para cada um, numa sucessão muito rápida.

“Sem Meech”, pensou Ron, “estaríamos perdidos.”

A agilidade do sargento liquidava os inimigos, como se fossem pires de louça nas competições de tiro com objetivo móvel. Os monstros não tinham chance de se aproximarem do barco. Quando já dezesseis deles boiavam pelo lago ou já haviam afundado, parecia que os outros estavam desistindo, vendo que nada conseguiam. Mudaram de direção e voltaram para terra firme.

Ron se recostou, tirando o suor da testa.

— Santo Deus! Que fauna dos diabos! Sentia-se muito fraco. Deixou-se cair para o lado e descansou apoiado no braço direito. Lofty continuava ainda olhando os últimos balões que ainda boiavam preguiçosos. Meech, como sempre vigilante, percorria todo o horizonte com suas poderosas lentes.

— Opa! É verdade — começou Ron — você ainda está me devendo uma explicação: de onde veio este barco? E como consegui escapar da horrenda massa pegajosa?

Sem se desviar de sua severa vigilância, o robô respondeu:

— A segunda pergunta é mais fácil de responder, senhor. Lofty Patterson e o Capitão Randall conseguiram se pôr a salvo ainda a tempo. Quando percebemos que o animal o pegara, começamos a atirar. Basicamente, presenciamos a mesma coisa que há poucos minutos. A pele cicatrizou oito vezes depois do ferimento aberto. Para o fechamento do nono rombo, a capacidade de resistência não deu mais. O corpo cedeu. Foi o que lhe deu a possibilidade de escapar.

— E eu estava crente que o fizera por força própria. E agora, qual é a história do barco?

— Este barco, eu achei... — Fez uma pausa, depois continuou em voz mais forte: — Água em movimento à frente, Capitão Randall! Alguma coisa vem em grande velocidade contra nós.

Ron se levantou e olhou para frente. A mesma coisa fez Larry, para poder ver melhor.

— Não consigo ver nada — gritou ele.

O vento trouxe suas palavras para a popa. Ron comprimiu os olhos e viu ao longe, no horizonte, uma linha fina em ondulação, espalhando-se para a direita e para a esquerda, ao menos era o que imaginava ver.

“Espuma”, pensou ele. “Um vagalhão ou coisa semelhante.”

— Podemos desviar? — perguntou a Meech.

— Não, senhor, encontramo-nos, aparentemente, no centro das águas inquietas. Parece-me difícil conseguirmos escapar. De qualquer maneira temos que manter a direção da esquerda. Cada metro que nos aproximarmos do fim da onda, pode ser decisivo para nossa sorte.

Falara suficientemente alto, de maneira que até Larry o podia ouvir apesar do vento na direção do barco. Larry pegou o leme e o virou para a esquerda bruscamente. O barco se ergueu sob o impacto da rápida manobra, ficando com três quartos fora d’água, continuando depois com mais velocidade.

Através do pára-brisa de vidro do assento do piloto, Ron via crescer a crista de espuma e se convenceu de que era um enorme vagalhão que corria contra eles. Larry continuava modificando o rumo, e o barco prosseguia em ângulos de quarenta e cinco graus na direção da linha da espuma. Era a rota que oferecia mais chance de salvação, mesmo assim muito duvidosa.

Lofty Patterson se ergueu de boca aberta, olhando atônito a onda que se aproximava.

— Santo Deus das galáxias! Que será isto?

Não esperou resposta e tão logo não iria mesmo receber. Ron também estava horrorizado, vendo como a onda crescia em altura. Atrás dela se podia esconder uma casa de tamanho médio. E ainda distava alguns quilômetros. Quando chegasse ao barco, estaria cinco ou seis vezes maior.

De repente, Meech começou a falar:

— São animais. Devem estar com uma fome terrível. Andam atrás das carcaças dos tais balões que abatemos.

 

Con-Ki perdeu logo o interesse pelo abdômen do verme que parecia suportar bem todas as intempéries artificiais. Olhando para o relógio, constatou que já estava na hora de fazer sua rotineira viagem de inspeção, o que lhe causou visível alívio, pois poderia deixar o laboratório por algumas horas.

Ao descer pelo poço antigravitacional para pegar lá embaixo o bote, ia pensando em Kule-Tats. No fundo, não tinha nada contra ele. Normalmente era até um homem muito bom, se bem que este “bom” se referia mais ao seu modo de ser do que à sua aparência. Esta era, para ela, monstruosa. Todas as pessoas que não tinham o devido respeito diante dos mistérios da criação eram para Con-Ki monstruosas.

“Mas o que quer dizer mesmo ‘o devido respeito’?”, pensou enquanto o portão do poço, feericamente iluminado, se abriu para os lados. “Quem sabe tudo isto não passa de puros preconceitos? Talvez o erro esteja em mim, que devo perder umas horas para refletir melhor sobre estas coisas, para compreender Kule-Tats.”

Resolveu que haveria de fazer isto, mesmo para tranqüilizar-se um pouco mais. Já mais descontraída, ficou contente de encontrar vazio o ancoradouro dos barcos, com o comprido e estreito cais de uns quinhentos metros quadrados de água escura e tranqüila. Não gostaria de ter hoje as enfadonhas conversas sobre experiências científicas, que sempre se realizavam ali embaixo.

Caminhava tranqüila ao longo do cais com sua fila de barcos. Podia pegar qualquer um deles, mas já estava acostumada a sair com Kathy. Ultimamente não havia muito movimento ali e o barco estava no mesmo lugar em que o deixara há vinte horas atrás, a três metros da eclusa.

Con-Ki pulou para dentro do barco e se ajeitou no banco do piloto. Apertou um botão no painel e uma capota transparente de metal plastificado saiu das laterais do barco, cobrindo todo o espaço onde estava a moça. A visão era total. Travou a capota com um campo magnético formado por um gerador que acabara de ligar. E o motor começou a roncar, desprendendo o barco da beira do cais, sendo que a comporta externa já estava se abrindo.

Vieram-lhe à memória as muitas viagens que fizera antes da chegada de Kule-Tats e, sem notar, seus pensamentos estavam de novo concentrados no cientista ara, enquanto o barco penetrava na eclusa e a comporta interna se fechara e o nível da água começou a subir sob as luzes exageradamente fortes.

Por que motivo Kule-Tats viera para Afzot? Até então eram só os acônidas que trabalhavam aqui, onde construíram o maior laboratório bioquímico da Galáxia. Um laboratório onde podiam ser reproduzidas, em múltiplas seções, todas as condições de vida de quase todos os planetas da Galáxia.

Todos pensavam na Galáxia que o campo da Biofísica e da Bioquímica era quase exclusividade dos aras. Ninguém jamais falara da atuação dos acônidas. Talvez, uma das causas disso fosse o fato de que Sphinx se havia isolado do resto do Universo e, secretamente, os acônidas estavam convencidos de que sua ciência nada devia aos aras.

Por que então mandaram buscar Kule-Tats, o ara? Que tinha ele demais? Por que lhe colocaram à disposição todas as possibilidades técnicas de experimentação na base de Afzot? Por que lhe deram prioridade em tudo?

Con-Ki estava se lembrando agora de que Kule-Tats chegara a Afzot mais ou menos na mesma época em que surgiram os primeiros boatos de que uma raça extragaláctica penetrara na Via Láctea. Falando com mais exatidão, Kule-Tats surgiu um pouco depois destes boatos. Ela nunca se preocupara em saber se havia alguma verdade nestes boatos sobre a invasão de uma raça estranha. Somente agora é que estava vendo nexo entre uma coisa e outra.

Neste meio tempo, a eclusa já estava com água até em cima e o barco flutuava automaticamente no líquido revolto. Apagaram-se as luzes e reinou escuridão por uns instantes na frente da capota transparente. Depois apareceu uma claridade difusa, como se alguém acendesse uma lanterna a muitos metros de distância. Sem que Con-Ki nada fizesse para isto, o barco se pôs em movimento e passou pela sombra das pilastras da comporta, saindo da eclusa. Lá fora, imprimiu maior velocidade e o barco levantou a proa para o ar. Depois de poucos minutos os raios do sol inundavam o interior da pequena embarcação, que fazendo uma curva suave, ainda com a proa elevada, entrou mais devagar e com mais segurança num grande mar.

Não precisava se incomodar com a direção. O cérebro eletrônico do barco sabia onde ela queria ir. Encostou-se na poltrona e ficou olhando pensativa para a superfície quase imóvel da água.

Mais para frente, à direita, emergiu uma gigantesca cobra-chicote, levantou o corpo a uma altura de quinze metros, batendo selvagemente com suas centenas de nadadeiras alongadas contra a água. Con-Ki via tudo com interesse.

“Deve estar sentindo muito calor”, pensou. “Está na hora de intercalarmos um dia de inverno.”

 

Num outro ponto da base de Afzot reinava também grande inquietação. Pfamat, comandante da base acônida, também um cientista, quebrava a cabeça para saber o paradeiro dos sentinelas da eclusa do nordeste, Adnil e Dor-Par. Que teria acontecido por lá? Os dois desapareceram de uma hora para outra, sem deixar vestígios. Aparentemente não houve luta, nem presença de estranhos. Além disso não se deu alarma, que seria a primeira coisa a acontecer. O galpão do hangar, atrás da eclusa, estava intacto e, no interior da base, não entrou ninguém, conforme os exames feitos pelo próprio comandante.

Com outras palavras, estavam diante de um enigma, Adnil e Dor-Par desapareceram juntamente com dois uniformes espaciais. Não era, porém, de se supor que tivessem feito uma viagem de exploração por conta própria. Num caso desse teriam se utilizado de uma viatura de qualquer tipo, ao invés de irem a pé.

Por questão de prudência, Pfamat tocou o alarma da base apesar de não saber propriamente o que estava fazendo, pois não era bem o caso de alarma. Alarmar por quê? O estado de alerta devia durar algumas horas. Se nada acontecesse, isto é, se os dois sentinelas continuassem na lista dos desaparecidos, a base voltaria à ordem do dia. O episódio, aliás, nem chegara ao conhecimento das equipes de estudos científicos.

 

O “diálogo” era intenso.

— Creio que tenho uma pista para explicar sua intranqüilidade.

O corpo marrom-escuro dirigiu toda sua atenção ao interlocutor e perguntou:

“Será que me descuidei de alguma coisa?”

— Talvez, sim. Esteve antes aqui e desta vez não conseguiu esconder bem seus pensamentos. Estava pensando nos terranos.

“Terranos...”, repetiu o corpo marrom. “Gostaria de saber que tipo de ser é este...”

— Quem sabe vamos ter que lidar com eles? — foi a resposta consoladora. — Estava pensando tão nervosamente como se estivessem aqui perto.

 

Com um bramido infernal, o vagalhão foi de encontro ao barco e o atirou para o alto. Ron Landry se agarrou na borda e olhou para frente. Embaixo dele, na água agitada, cintilavam os corpos de milhares de animais. Dorsos largos, recobertos de escamas, comprimiam-se contra os ferrões pontiagudos. E os corpos escorregadios de serpentes marítimas cruzavam a confusão de tentáculos escuros. E isso tudo, num enorme pandemônio, tocava para frente a onda de ataque que erguera o pequeno barco.

Quando o barco do alto se despencou, batendo ruidoso na superfície do lago, Ron sentiu o estômago revirar. Ouviu Larry gritando alguma coisa. As mãos agarravam firmes as bordas da embarcação e lá fora os horrendos animais pareciam esperar por um banquete. Mas o pior passara. A embarcação se agitava loucamente, mas ainda estava inteira, resistira à violência do impacto. Um montão de carne, sem forma definida, estatelou-se ao lado de Ron, no seu mesmo banco. Sem pestanejar, pegou-o e o atirou para fora do barco, ficando em suas mãos um pouco da massa pegajosa. Limpou-as, sem olhar, no próprio uniforme.

— Conseguimos escapar! — gritou Meech.

Mas, por enquanto não parecia ainda realidade. O mar continuava encapelado e o barco prosseguia a dança macabra para a morte. Mas os animais marinhos haviam desaparecido. Contra o reflexo do sol, Ron viu o exército atacante tomar os rumos do leste.

Esgotado, deixou-se cair para trás e ficou olhando, parado, para o céu azul. O barco e o mar voltaram lentamente ao normal e o ronco das vagas de ataque sumiu com a distância.

Levou um pouco de tempo até que os pensamentos de Ron se coordenassem. Acontecera muita coisa nos últimos minutos.

Em que caldeirão dos diabos haviam eles caído? E quase morrido? Que pretendiam os acônidas com tais instalações esdrúxulas? Seria de fato uma espécie de laboratório? Será que eles já haviam encontrado pronto este “mundo debaixo de outro mundo” quando aqui chegaram?

Olhou em volta e não avistou terra. A não ser às suas costas. O que pensava ser um lago, era um mar.

Lembrou-se de repente que havia uma porção de coisas sobre as quais nada sabia. Levantou-se e devagar caminhou através do barco, já em condições normais, indo para frente, onde Larry estava tentando voltar ao rumo de antes. Meech o acompanhou sem ser solicitado, enquanto Lofty permaneceu sentado onde estava, olhando atento; para o mar?

Sentou-se ao lado de Larry.

— Então, que comédia é esta?

Larry olhou para ele rindo.

— Infelizmente sou um dos que sabem apenas uma migalha da história. Você devia perguntar aqui ao “sabe-tudo”.

Ron se virou para o lado.

— Então, vamos lá, Meech, que que está acontecendo?

— Há essencialmente só duas coisas sobre as quais não foi informado ainda, senhor. Hoje de manhã, logo depois do nascer do sol, saí um pouco do meu posto de vigilância, pois estava tudo em calma em volta de nós, e também porque estava observando por muito tempo um animal que rolava pela mata virgem. Acreditei que este animal se sentia muito seguro, e fui atrás dele para pegá-lo. Consegui, e fiz então uma descoberta que, se eu tivesse permanecido parado de sentinela, teria feito somente tarde demais. Descobri que em volta de nosso acampamento estavam postados alguns animais tão pequenos que a princípio não me pareciam perigosos. Não me preocupei, pois, com eles, e comecei a fazer outro plano.

“Pareceu-me então uma grande verdade o que o senhor disse a respeito destas instalações subterrâneas. Poderia tratar-se, de fato, de uma estação experimental. Se assim fosse, então deveria haver, do outro lado do mar, alguma espécie de viatura, supondo-se naturalmente que lá existisse alguma coisa de que os acônidas precisavam de vez em quando. E esta embarcação certamente se encontraria no ponto mais próximo do cais de onde saímos. Achei de fato este barco, escondido no meio da vegetação.

“Quase no mesmo instante em que descobri o barco, reparei que os pequenos animais, de que falei, começaram a se mexer, estufaram-se no ar como balões. Os indícios eram de grande perigo. Corri de volta para o acampamento e chamei sua atenção. Infelizmente não pude fazer coisa melhor, tinha que convencê-los a virem para o meu lado, pois só no barco estaríamos seguros. Estou feliz por termos escapado destes monstros metamorfoseados.”

Ron olhou para ele espantado.

— Você está feliz? Então... — mas lembrou-se de alguma coisa. — Onde está o animalzinho que você capturou?

— Está aqui comigo — respondeu tranqüilo o robô, metendo a mão no bolso. — É um daqueles balões monstruosos no estado de não insuflado.

Ron nunca se levantou tão depressa. Afastou-se e bateu com as costas no pára-brisa.— Você ficou maluco! — disse para Meech. — Estamos contentes de estarmos livres destes bichos e você...

Meech riu calmamente.

— Não há motivo para preocupação, senhor. Logo que apanhei este bichinho, embora nada soubesse de sua natureza, matei-o com uma boa dose de raios gama. Está inofensivo.

Na sua mão espalmada estava algo de três ou quatro centímetros de diâmetro. Ron olhou incrédulo e se aproximou hesitante.

— Você está um tanto doido, Meech. Os balões tinham um diâmetro de pelo menos vinte metros e você vai querer que eu acredite que em seu estado normal eles sejam só isto?

Olhava para Meech como a querer uma resposta. O robô, ao invés de lhe responder, esticou mais o braço e Ron, temeroso, tocou no corpúsculo escuro. Dava a sensação de seco e duro, Ron queria pegar, mas alguma coisa o deteve, talvez medo. Meech veio em seu auxílio. Virou o braço e deixou a bolinha escura cair na mão dele.

Ron sentiu uma tremenda pancada na palma da mão e nem percebeu o que se passou. Alguma coisa parecia querer lhe quebrar os dedos, houve um baque surdo de coisa muito pesada caindo no fundo da embarcação. O barco estremeceu e a bolinha rolou no chão. Ron olhava perplexo e Lofty veio cambaleante da popa, sorrindo disfarçadamente.

— A mesma brincadeira boba ele fez comigo — disse Lofty.

— E você também ficou quieto para rir de mim, não é? — disse Ron, numa cólera simulada.

Lofty balançou a cabeça e bateu com a mão no ombro duro de Meech.

— Eu, não. Foi este aqui que me pediu segredo.

Boquiaberto, Ron olhava para o robô.

— Foi você.

Com um gesto acanhado, Meech pediu desculpas.

— Sinto muito, senhor, se o assustei. Meu raciocínio me dizia que estava agindo corretamente ao arranjar alguma maneira de desviar sua atenção dos terríveis acontecimentos de hoje e distraí-lo um pouco.

— Obrigado — respondeu Ron, seco. — Acho que você o conseguiu parcialmente.

E apontando para o diminuto animalzinho no chão:

— Qual é o peso dele?

— Cento e oitenta e dois quilos, senhor.

— E sua densidade?

— Cerca de seis mil gramas por centímetro cúbico.

— Santo Deus das galáxias! — disse Larry. — Como é possível?

— Embora a matéria esteja constituída conforme certos pontos de vista convencionais — respondeu Meech prontamente — existem no entanto forças intermoleculares e mesmo interatômicas de grande influência... provavelmente do próprio cérebro do animal. Alterações podem se realizar à vontade. Assim, surgem grandes volumes com a correspondente diminuição de densidade da matéria, conservando, porém, o mesmo peso. As forças intermoleculares são influenciadas de tal forma que se transformam em tecidos diferentes, conforme as necessidades do momento.

— Espere um pouco — interrompeu-o Ron. — Isto é então o estado de exceção. No estado normal, diz você, o corpo tem uma densidade média de seis mil gramas por centímetro cúbico.

A pergunta de Larry não foi pois respondida. Que tipo de matéria é esta que no estado normal tem uma densidade tão elevada assim?

Meech fez uma cara de quem não se sentia à vontade. Parecia mesmo embaraçado.

— Será que me esqueci? Provavelmente. Mésons são partículas que ficam entre os prótons e os elétrons. Em conseqüência de sua massa maior, a trajetória dos mésons é substancialmente menor e daí então sua alta densidade.

A explicação deixou no ar um silêncio que era um misto de dúvida e de surpresa. Só depois de uma pausa foi que o robô continuou:

— Peço para não me julgarem uma autoridade, para poder falar ex-cathedra, numa coisa tão importante como esta. Em questões limítrofes, ou seja, de temas discutíveis, meus conhecimentos às vezes não são suficientes para uma explicação cabal. Mas lhes garanto que examinei cuidadosamente o material e achei nele propriedades tão polivalentes que posso afirmar que ele provém, ou de um mundo desconhecido da Galáxia... ou realmente não vem de nossa Galáxia.

Ron estava atento.

— Qual é o coeficiente de probabilidade para a primeira hipótese?

— Minha resposta vai depender de uma avaliação, senhor — disse Meech com modéstia. — Não é conhecido o número de planetas habitados ou mundos, como dizemos, em nossa Galáxia. Podemos chegar a um cálculo de que, mais ou menos, um por cento de todos os planetas foi um dia, no decorrer dos milênios, visitado e examinado por um descendente das três maiores raças. No entanto, podemos fazer afirmações concretas sobre as características mesmo de planetas inexplorados, de acordo com as leis da Astrofísica, cujo instrumento mais importante é a espectroscopia.

“Felizmente são bem conhecidas as condições sob as quais se originam os átomos mesônicos como portadores de matéria. Não me é, pois, difícil dizer que entre os planetas examinados astrofisicamente não se encontra nenhum que apresente estas condições. Não nos esqueçamos que um bom número destes planetas escaparam à observação dos astrofísicos porque não puderam ser examinados. Portanto, se um destes planetas assim desconhecidos não possuir, não apresentar, surpreendentemente, as citadas condições, teremos então que constatar que a matéria corpórea dos balões não vem da nossa Via Láctea.”

— Por que motivo “surpreendentemente”? — quis saber Ron.

— Porque se deve supor que as condições para a constituição dos átomos mesônicos não podem ser circunscritas a um único sistema solar. Estas condições só podem ter surgido em conseqüência de certos fenômenos no decorrer da evolução de um grupo estelar. Teríamos, pois, de supor que uma fase inteira da evolução sideral passou despercebida às nossas pesquisas, o que acho improvável, com uma margem de segurança de um décimo de milésimo de erro.

Ron não disse nada, pois em algum lugar, bem no fundo do seu consciente, havia uma luzinha começando a acender. Seria a ação em Afzot, que de início parecia não se adequar bem no quadro dos acontecimentos da Galáxia nos últimos tempos, e agora viria fechar o círculo lógico? Até agora só se conheciam, entre outras, duas perigosas raças extragalácticas: os laurins e os pos-bis. Isto é, os pos-bis não se podia propriamente chamar de raça. No fundo, não passavam de robôs. Mas uma quantidade relativamente pequena de substância orgânica, embutida no seu corpo de robô, lhes conferia a faculdade de ter sentimentos. O ódio dos pos-bis contra toda forma de vida orgânica, provinha unicamente da diminuta quantidade de substância orgânica. Por mais paradoxal que isso pudesse parecer, era a verdade.

Ron duvidava de que os acônidas pudessem se “apoderar” de um laurin. Não lhes seria mais fácil do que aos muitos comandos de ação dos terranos, que nada conseguiram em muitas tentativas. Os laurins eram invisíveis, portanto incapturáveis. Ninguém jamais chegou a vê-los objetivamente, muito menos botar a mão num deles. Mas os pos-bis também não eram presa fácil, mas podia-se pegá-los, com muito jeito e muito sacrifício.

“Mas, para que tudo isto?”, pensou Ron. “Os animais-balões não têm nada a ver com os pos-bis. Sua parcela orgânica provém de uma só matéria que não existe em nossa Galáxia.”

— Mais uma pergunta, Meech — disse Ron de repente. — A matéria não pode ser feita artificialmente?

Meech abanou a cabeça.

— Não, senhor. Não existe neste universo nenhum laboratório com meios suficientes para produzir átomos mesônicos estáveis.

Ron virou-se para trás. O barco voltara ao rumo de antes. Exatamente neste momento, quando ninguém esperava, Meech Hannigan fez uma interessante observação:

— Terra à vista, senhor, uma ilha!

Naturalmente que nenhum dos três conseguiu ver. Passaram-se bons minutos até que surgiu aos olhos dos demais uma faixa de terra plana, meio envolta na neblina. Mas Meech já tinha mais novidade:

— Rastreamento de energia — disse ele. — Encontra-se nas proximidades da ilha um barco de motor ligado.

 

Sob os raios do sol quente, já havia algum tempo que Con-Ki apertara o botão para recuar a capota transparente para a parte da popa. O vento provocado pela velocidade se quebrava no pára-brisa. Aparecia a ilha e Con-Ki fez com que o barco se alçasse alguns centímetros acima do nível da água e num forte galeio embicou mais da metade do barco num leve aclive da margem e saltou, com toda calma, na areia pardacenta. Cruzou as mãos nas costas e olhou para o céu azul.

Espaireceu por uns momentos, procurando esquecer um pouco os pensamentos sobre Kule-Tats e suas culturas de animais estranhos. Não queria estragar aqueles momentos.

Quando, finalmente, resolveu apanhar seus instrumentos no barco, estava novamente feliz e contente consigo mesma, como sempre fora, antes da chegada do ara.

Conscientemente examinou com o radar-sonda as águas em volta e observou uma série de reflexos que indicava a presença de um, cardume dos doze-olhos. Olhou para o relógio e sorriu feliz. Por esta hora, esperava-se encontrar ali os doze-olhos, pois era o momento da desova dos três-pés e não havia alimento mais cobiçado pelos doze-olhos que os três-pés.

Com muito capricho continuou examinando as águas. Logo reparou nos reflexos esbranquiçados e inquietos produzidos pelos corpos escamosos dos três-pés que vinham das águas mais fundas. Na realidade, estes peixes eram maiores que seus inimigos figadais, os doze-olhos, mas não dispunham de bons meios de defesa. Não estavam, pois, à altura dos doze-olhos com seu veneno paralisante, com as garras finas como teias de aranha, mas muito resistentes e principalmente com sua exótica propriedade de apanhar pedras e cascalhos no fundo do mar e atirá-los como granadas de canhão.

Emocionada, Con-Ki acompanhava a reação dos doze-olhos que perceberam agora o cardume dos três-pés, os quais naturalmente também notaram a presença do inimigo. Mas tinham vindo para cá para a desova, como o faziam diariamente nesta época, e nada poderia detê-los nesta operação, mesmo que os doze-olhos devorassem um bom número deles.

Começou o ataque dos doze-olhos, atirando-se com intensa voracidade contra o cardume em desova. Era uma cena de causar compaixão, ver, como apesar de tudo, os três-pés continuavam nadando na direção de antes, levados apenas pelo instinto de desovar. Mas os vorazes doze-olhos desmantelaram sua marcha ordenada para a desova.

Por toda parte boiavam os três-pés mortos, desaparecendo da tela do vídeo à medida que iam sendo devorados pelo inimigo vencedor. Não durou mais que um quarto de hora e tudo se acalmou. Os doze-olhos saciaram-se. Consumiram em pouco tempo três ou quatro vezes mais que o volume do próprio corpo. Abandonaram os restos de suas vítimas e desapareceram na direção do alto-mar.

Con-Ki era toda zelo profissional. A experiência dos doze-olhos contra os três-pés foi uma das mais importantes do momento e ela se sentia muito lisonjeada por ter sido incumbida de observar tal experiência. Os três-pés eram uma espécie relativamente muito desenvolvida, eram eles que concentravam todo o interesse da pesquisa. Os doze-olhos representavam apenas o inevitável contratempo em sua vida. Os doze-olhos não passavam de meros bandidos. A questão que interessava era saber quem sairia vitorioso: a voracidade dos doze-olhos ou a fertilidade dos três-pés. Com a resposta a deste dilema, o grande projeto dos acônidas atingiria um novo estágio, dando um passo decisivo para seu objetivo: criar um ser universal, que como espécie poderia sobreviver em qualquer ambiente.

Con-Ki fez uma série de anotações num bloco de papel que fora apanhar no barco. Não desligara ainda o pequeno radar-sonda. Servia para observar os três-pés em sua marcha para o local da desova e para saber se os doze-olhos já haviam desenvolvido algum tipo de comunicação, de tal maneira que um outro cardume de sua espécie pudesse receber o alarma para apanharem os três-pés quando voltassem da desova.

Con-Ki deixou de lado o bloco de anotações e se concentrou na pequena tela verde do radar. Não esperava ver nada de importante. Mas uma mancha de um clarão vivo se acendeu bem no centro da tela. Con-Ki quase caiu de susto.

Lá fora, apenas a uns duzentos metros da margem, movia-se um barco, vindo na direção da ilha. Estava tripulado. Pulou depressa para seu bote e pegou o cinturão com a arma. Afivelou-o na cintura enquanto observava o barco.

Os membros da tripulação portavam uniformes como nunca vira em sua vida...

 

— Ela nos descobriu — exclamou Lofty Patterson. — Santo Deus! Que beleza de mulher!

De binóculos na mão, Larry Randall observava a ilha e deu razão a Lofty. A moça lá na frente estava vestida conforme a temperatura do ambiente: short bem curto, mostrando belas pernas, e uma blusa muito sumária, mostrando... e nada mais.

Correra agora para o bote e apanhara um cinturão com arma e munição. Larry viu como o afivelou na cintura, e começou a rir.

— Ela não está brincando. Pretende nos acertar.

Reduziu a velocidade do bardo e o deixou seguir na direção da ilha. A moça na margem sacou a arma e destravou-a. Mantinha a pistola apontada para a direção certa. Quando o barco chegou a vinte metros da margem, ela gritou:

— Sejam quem for, levantem as mãos e desçam.

Larry observou-a mais profundamente. Seu rosto demonstrava curiosidade e incerteza. A arma na mão parecia lhe transmitir um pouco de autoconfiança, mas tinha tudo, menos vontade de lutar. Falou em acônida e na mesma língua respondeu Larry.

— Não temos nada contra a senhora, não precisa se assustar. Além disso não posso levantar as mãos, do contrário o barco perde o rumo.

A jovem compreendeu o argumento. Hesitou um momento, mas disse depois:

— Não faça nenhum movimento suspeito.

Larry levou o barco para a areia e o deixou bem firme.

— Devemos descer? — perguntou à jovem.

— Sim, venham até aqui para que eu os possa ver melhor.

Continuava ainda com a arma engatilhada. A situação começou a ficar preta. Alguma coisa podia irritar a moça e obrigá-la a apertar o gatilho, mas contra a vontade, movida mais pelo nervosismo.

— Permita-me dizer mais uma vez, minha senhora — disse Larry, deixando aflorar nos lábios um sorriso cativante. — Não viemos para cá como inimigos. E além de tudo, estamos em suas mãos. Não fique, portanto, nervosa. Seria prejudicial a nós todos se a senhora, por distração, apertasse o gatilho, não é verdade?

Larry era um homem esbelto, de estatura média e de cabelo marrom. Podia se gabar na Terra de ser muito feliz com todas as mulheres, deixando sempre ótima impressão. Mas aqui a situação era outra. As moças acônidas poderiam ter outro ponto de vista, outra reação. Aquela que estava à sua frente, com todas as suas palavras só reagiu abaixando uns centímetros o cano da arma.

— Quem são os senhores e de onde vêm?

A pergunta era esperada e a resposta de Larry já estava pronta há mais tempo.

— Somos terranos e estamos chegando de algum ponto do leste.

Con-Ki levou um susto tão grande que quase deixou cair a arma. Teve que fazer um esforço para não perder o controle.

Terranos!

A raça que, há poucas gerações, saiu de seu planeta-pátrio e penetrou no cosmo, dando logo o que falar. Terranos, a gente intrépida que já por mais de uma vez deixara o reino de Ácon em dificuldade e frustrara todas as tentativas de seus habitantes em dominar a Terra ou de destruir seu poderio.

Terranos, a raça mais jovem e mais eficiente de toda a Galáxia.

O susto foi se amainando e a curiosidade de Con-Ki subiu uns graus. Examinou o mais jovem dos dois homens e constatou que simpatizava com ele. Era pena serem terranos. O outro era velho e parecia muito alegre. Podia-se quase acreditar que em toda sua vida não fizera outra coisa a não ser se divertir. Voltou os olhos de novo para o mais jovem. Em pensamentos, devia estar comparando estes homens com aquele com quem tinha de lidar no laboratório, achando-o ossudo e seco à vista destes terranos.

— Como é que os senhores entraram aqui? — perguntou, tentando imprimir à voz um tom mais áspero. — E o que pretendem?

Larry sentou-se comodamente na areia.

— A primeira pergunta vou lhe responder mais tarde — disse. — A resposta à segunda é a seguinte: Queremos muito descobrir o que os acônidas estão fazendo de secreto aqui em Afzot e se eles sabem alguma coisa que também gostaríamos de saber.

Con-Ki não deu a perceber a surpresa que lhe causou a franqueza da resposta.

— São portanto espiões, não é?

Larry concordou tranqüilamente.

— É o nome mais ou menos adequado.

— Os senhores sabem que liquidamos sumariamente os espiões?

— Não, não sei não. Não há ainda uma regulamentação interestelar sobre o tratamento dos espiões. Estou curioso para saber como os acônidas vão resolver isto. Aliás, agora que estamos presos em suas mãos, a senhora nos podia explicar o que é isto aqui.

Fez um amplo gesto, abrangendo todo o mar.

— O que vocês estão vendo — disse prontamente e com alguma vaidade — é uma estação experimental biofísica. Nós mesmos a construímos e...

— Sim, isto eu estou vendo — interrompeu-a o terrano com uma indiferença quase ofensiva. — Mas que procuram os acônidas aqui?

— Um ser que possa sobreviver em qualquer ambiente imaginável.

O terrano fez uma fisionomia de surpresa.

— Ser inteligente?

— Não necessariamente. Quando obtivermos o ser do nosso ideal, vamos cuidar naturalmente de acelerar sua evolução de tal forma que chegue a ser inteligente.

O terrano abanou a cabeça em sinal de reconhecimento.

— E seus resultados atuais?

— São muito promissores, mormente desde que Kule-Tats está conosco nas pesquisas.

— Kule-Tats? Quem é ele?

— Um cientista ara. Conseguiu bons resultados em poucas semanas. Mais do que nós durante o ano todo.

Larry concordou mais uma vez. Não mostrava surpresa.

— Bem — disse finalmente — creio que é este o homem que vamos levar.

Con-Ki ficou tão estupefata que levou alguns segundos até conseguir um sorriso irônico, como convinha a uma idéia tão maluca.

— Por minha parte, julgo que os únicos que devem ser levados são os senhores e aliás diretamente para Sphinx, onde serão processados.

O terrano a olhou de baixo para cima...

— É a senhora quem o diz. — Levantou-se depois e acrescentou: — Agora é melhor a senhora deixar cair a arma. A brincadeira acabou.

Con-Ki arregalou os olhos.

— Por que devo fazer isto?

— Olhe em volta, por favor.

Estava para fazê-lo, mas se lembrou de que podia ser uma cilada. Larry olhou para ela hesitante.

— Nós vamos juntos — propôs ele. — Vire-se devagar.

Sem esperar sua resposta, Larry virou-se. Lofty fez o mesmo. Con-Ki não teve outro remédio senão se virar devagar. E quando seu olhar atingiu a orla da floresta, viu os dois homens que estavam parados junto às primeiras árvores, de armas engatilhadas.

Quis correr de volta para pegar o barco, mas mal fizera o primeiro galeio um raio claro percorreu o espaço atingindo-a. Perdeu os sentidos na hora.

Em vista das muitas armas engatilhadas, Meech Hannigan resolveu empregar os raios de choque, a fim de evitar sérias complicações.

 

Assim que recuperou os sentidos, viu o rosto do terrano de cabelo marrom à sua frente. Sabia logo o que acontecera. Não podia pensar em outra coisa a não ser: “Os senhores me prenderam. Tenho que dar o alarma antes que entrem no coração da estação experimental.”

O conhecido olhar se dissipou, surgindo outro diferente, mais sério e objetivo. Dois olhos castanhos fitavam Con-Ki como se ela fosse um tronco de madeira que estava sendo examinado.

— Como se sente a senhora? — perguntou uma voz profunda que vinha daquele rosto.

— Bem — respondeu Con-Ki, seca. — Como se fica depois de um choque artificial.

— Sinto muito por termos de agir assim, mas se a senhora considerar as circunstâncias, vai compreender que não podíamos agir de outra maneira.

Con-Ki levantou a mão direita e virou a palma para cima.

— Que diferença faz agora?! — disse friamente.

— Oh! Não diga isto — a voz estranha tinha um tom de calor. — Seu bem-estar tem muita importância para nós, pois assim que a senhora se sentir melhor, vai nos levar à presença de Kule-Tats.

Con-Ki se revoltou.

— Não, não, isso nunca! — gritou para o homem de cabelo marrom.

Ele nem piscou o olho.

— Nada de promessas antecipadas — disse em tom calmo. — Temos ótimos meios para anular decisões apressadas, não nos agrada aplicá-los. Contudo, num caso como este, talvez seja necessário...

Con-Ki cerrou os olhos. Naturalmente estaria pensando que os terranos lhe haveriam de arrancar os dedos, um por um, até que ela dissesse o que eles queriam.

“Estes bárbaros”, pensou.

— Então, levante-se — disse a voz.

Con-Ki obedeceu. No mesmo instante em que viu os dois barcos, teve uma idéia. Com muito jeito, levantou o braço e consultou o relógio. Seu coração palpitou forte, desesperado, ao ver que já era bem tarde. Faltava apenas uma hora para o pôr do sol.

“Sim, é esta a única chance...”, meditou.

Os terranos conversavam numa língua que ela não entendia. O maior deles, com os olhos castanhos e os cabelos louros, apontava de vez em quando para os barcos. Con-Ki parecia indiferente, pois seus planos não dependiam de que barco usaria.

O louro mais alto se decidiu pelo barco com que ela chegara. Ordenou-lhe que embarcasse e a levou para o banco de trás. O lugar não era muito confortável e Con-Ki teve que desistir da idéia de executar seu plano sem que ninguém percebesse. Mas isto não tinha maior importância, o resultado seria o mesmo, Não podia pensar em si mesma numa situação desta. Tinha que defender a base.

O rapaz esbelto, com quem falara antes e a quem os demais chamavam de Larry, sentou-se no assento do piloto. Con-Ki notou que manejava com segurança todos os controles. Por uns momentos sentiu admiração por ele, lembrando-se depois de que admiração seria a última coisa que se podia sentir por um espião terrano.

Como é que haviam penetrado até aqui? Como podiam quatro terranos aterrissar em Afzot e entrar na base, sem que ninguém os tivesse notado? E por que estavam pretendendo ver Kule-Tats?

Estava agora indignada contra si mesma por ter se deixado dominar tão facilmente. Se tivesse percebido a tempo que, fora dos dois terranos, ainda havia mais dois que penetraram escondidos pelo interior da ilha, enquanto conversava despreocupada com os primeiros, a coisa estaria agora mais favorável para ela.

O barco já estava singrando o mar e Con-Ki teve que responder a umas perguntas sobre que direção tomar. E o fez, aliás, com prontidão e quase boa vontade. Larry imprimiu maior velocidade e a embarcação raspava a água com a proa erguida.

O louro, que estava sentado ao lado de Con-Ki, perguntou:

— Quanto tempo levaremos?

— Com esta velocidade, um pouco mais de uma hora. Mas pode perder as esperanças, pois logo atrás da eclusa vamos...

Com um gesto firme, ele fez com que parasse de falar.

— Não se preocupe conosco. Saberemos achar nosso caminho. Vim aqui para lhe contar uma coisa.

Con-Ki olhou surpresa para ele e sua voz parecia mais resoluta quando falou:

— Obrigada, não tenho necessidade de ouvir nenhuma história.

— Mas esta a senhora tem que ouvir. Começou então a contar e o fez com tanto jeito que logo ela se pôs a acompanhar com muito interesse. Além do mais, o que estava relatando era mesmo interessante. A história tratava de duas raças extragalácticas que há já alguns meses penetraram pela primeira vez na Via Láctea e estavam causando sérias dificuldades às frotas dos terranos e dos arcônidas. Falou também de como estas duas raças eram completamente diferentes de tudo que se conhecia na Galáxia e exigiam um estudo mais profundo para se descobrir qual era sua natureza, como pensavam e como se comunicavam, antes que se empreendesse uma campanha planejada para combatê-las.

O relato passou depois para os assuntos de Afzot. O terrano afirmou que no corpo de certos animais — Con-Ki os conhecia, eram a última criação de Kule-Tats — havia uma matéria de procedência não galáctica. Estava, pois, de pé a suspeita de que Kule-Tats conseguira esta matéria de uma das duas raças extragalácticas e com ela fazia suas experiências. Sem ainda saber disso, os governos da Terra e de Árcon haviam solicitado a Sphinx cooperação na luta contra o inimigo comum. O pedido fora recusado várias vezes. Então, sem despertar suspeitas, um comando de ação aterrissou em Afzot, a fim de obter provas concretas de que Kule-Tats estava operando com a mesma matéria que lá fora, no espaço extragaláctico, era altamente cobiçada. Caso a suspeita fosse comprovada, Kule-Tats seria preso e levado para um laboratório terrano.

— Compreendo — disse Con-Ki, após ter o terrano terminado — que o senhor se sinta autorizado para executar seu plano. De mim, porém, não esperem nenhuma cooperação. A não ser que se declarem prontos para se apresentarem perante a administração da estação experimental, assim que passarmos pela eclusa.

O terrano deu uma risada de deboche.

— A senhora sabe exatamente o que irá acontecer. A administração da base está presa às decisões do governo de Sphinx. Acha que vão mover um dedo para ajudar? Haverão de nos prender e mandar o quanto antes para Sphinx.

— Tenho receio de que o senhor tenha razão.

Olhou para fora do barco. O sol, no poente, tocava a água e em poucos minutos desapareceria.

— Vamos, pois, executar nosso plano primitivo — disse o louro. — Gostaria de lhe aconselhar a não tentar impedir nossa ação.

Ela se levantou, como se quisesse espairecer um pouco. Num lance de vista, sondou o ambiente. Nos bancos do piloto estavam Larry e o quarto terrano, chamado Meech. O homem mais velho, o de barba, achava-se recostado, quase cochilando, portanto, não precisava ter medo dele.

— Só uma única vez — disse ela.

E, antes que o terrano pudesse compreender que estava fazendo alusão ao seu último conselho, deu um pulo para frente e num único galeio pôs-se de pé atrás dos dois que estavam sentados nos bancos do piloto. Curvou-se para frente e apertou o botão do mecanismo do ejetor do assento e deu um galeio para trás, rolando no banco traseiro. O barco a ajudou neste movimento, pois balançou... Ouviu-se, então, uma forte explosão. Con-Ki se deitou de costas e procurou ver o resultado de seu golpe inesperado.

Seu olhar percorria o céu azul-escuro à procura de alguma coisa. Em algum ponto lá em cima devia surgir logo a mancha branca do pára-quedas, onde estavam presos os bancos dianteiros com os dois pilotos terranos. Não via, porém, nenhum pára-quedas flutuando no ar, por mais que investigasse o firmamento. Teve um calafrio de medo. Que teria ocorrido? Será que teria assassinado os dois? Onde estavam eles?

A proa do barco dava a impressão de ter sido local de uma explosão de bomba. A descarga do mecanismo de ejeção arrancara não só o banco do piloto, mas também os instrumentos de navegação. Este dispositivo de ejeção dos pilotos foi instalado com o objetivo de salvá-los no caso de o barco ser atacado por um animal, contra o qual os meios de defesa do próprio barco e dos tripulantes não fossem suficientes. A força e a direção do ejetor estavam calculadas de tal maneira que projetavam o piloto e seu assistente para uma distância bem longe do possível animal atacante. Este mecanismo só estava instalado no banco da frente, do piloto, pois o barco foi planejado somente para duas pessoas.

Con-Ki se levantou, mas mão firme pousou em seu ombro, fazendo-a estremecer. E um terrano disse em tom de amigo:

— A senhora errou o cálculo, olhe só para o outro lado.

Obediente, virou a cabeça e ficou dura de surpresa vendo os dois pontos que se aproximavam do barco pelo lado esquerdo. Segundos depois podia reconhecer os semblantes dos dois terranos que estavam no banco do piloto. Não foram atirados a mais de cem metros, o que parecia muito pouco.

O terrano parecia captar os pensamentos dela.

— Para que peso foi construído este ejetor do assento dianteiro?

“Ele me deve ter observado enquanto estava fingindo espairecer de pé aqui atrás”, pensava ela.

— Trezentas libras, ou seja, cento e sessenta quilos.

O terrano sorriu.

— Veja onde está o erro. Só um dos dois pesa dez vezes mais esta quantia.

Pensava ela que o terrano estava caçoando, mas neste instante o primeiro dos nadadores alcançou o barco. Era o mais calado, com quem não conversara ainda. Pegou na borda do barco e subiu com facilidade, até mesmo com certa elegância. Mas o barco quase virou com isso. Con-Ki teve que se agarrar em Ron para não cair.

— Ele tem uma conformação quase toda de metal plástico — explicou-lhe o terrano louro. — É um robô...

 

Surpresa foi tudo que o corpo marrom-escuro podia sentir. Atingiu-o então um pensamento do seu interlocutor invisível.

— Você ainda está aí?

“Sim”, respondeu o corpo confuso, continuando apavorado no fundo do seu invólucro. “Que está acontecendo?”

— Está nos tocando para fora.

— “Para onde?”

— Como posso saber? Continua ainda pensando nos terranos e cada vez mais intensamente.

O corpo se acalmou um pouco. Podia, em certas circunstâncias, tornar-se interessante.

 

Quase no mesmo tempo, Pfamat lembrou-se das estranhas circunstâncias sob as quais Kule-Tats, o ara, obtivera permissão para trabalhar na base da Afzot. Do ponto de vista de Pfamat, Kule-Tats chegou um dia com um documento de autorização do governo central de Sphinx na mão, descarregou sua enorme bagagem e se pôs a trabalhar. Naturalmente Pfamat consultara Sphinx, pois documentos podem ser falsos. Mas não houve falsificação. Mais ainda, Pfamat recebera instruções de considerar os desejos de Kule-Tats como verdadeiras ordens e dar toda prioridade a seus projetos. Como justificação foi dito que o ara trabalhava com um novo material biofísico e que provavelmente ia ter o sucesso, que o velho plano acônida previa para cinqüenta anos, em menos de um ano. Diante de tanta magnitude científica e burocrática, Pfamat tinha que se curvar e não duvidar mais da posição de Kule-Tats, como a autoridade máxima, daí para frente em toda a base.

Mas agora estava com algumas dúvidas. Adnil e Dor-Par ainda continuavam sumidos e não havia nenhuma explicação plausível para o fato. Teria Kule-Tats armado alguma cilada com o governo de Sphinx para poder trazer mais aras para a base? Ou teriam os aras já penetrado na base e simplesmente trucidado os dois guardas? Com um aliado ali dentro, tudo isto seria possível.

Quanto mais pensava no assunto, mais se lhe arraigava esta suposição. Mesmo para uma raça tão sofisticada e avançada como os aras, a estação experimental, biofísica em Afzot devia ser um motivo de inveja. Não seria de estranhar se um dia tentassem se apoderar de todo o planeta.

Pfamat resolveu falar diretamente com Kule-Tats. Quem sabe durante a conversa surgiria qualquer indício? Não perdeu tempo, pôs-se a caminho do laboratório do ara. No intimo se alegrava também com a expectativa de que Con-Ki lhe viesse sorridente ao encontro.

Não achou, porém, nem Con-Ki nem Kule-Tats. Ninguém vira os dois no correr das últimas três horas. Em compensação, encontrou na mesa do escritório de Kule-Tats um aviso escrito em papel comum que livrou o cientista ara de qualquer suspeita e jogou um pouco de luz no caso Adnil-Dor-Par.

Na tira de papel, lia-se o seguinte:

 

Uma tropa de assalto dos terranos penetrou na base. Esta gente é muito perigosa. Vou-lhes ao encontro, tentando prendê-los. Fique tranqüila, mas chame a atenção de todos. Estou levando comigo um transmissor codificado e vou tentar surpreender os terranos na região sul do setor C. Quando lhe der o sinal do código, venha em meu auxílio. Saí muito apressado, mas o comandante está a par de tudo.

 

Pfamat não sabia, aliás, nada disto. Voltou correndo para seus aposentos e encontrou um bilhete de Kule-Tats, trazido pelo correio automático, dizendo mais ou menos a mesma coisa que havia lido antes.

Ali estava, pois, a explicação. Terranos penetraram na base. Como conseguiram isto, era um mistério para Pfamat, ao menos por enquanto. Mas haveriam de ser presos e viria então o julgamento. Lastimável era que o ara Kule-Tats saíra sozinho. Devia estar mais protegido, embora fosse um homem inteligente e não iria se expor inutilmente.

Pfamat convocou toda sua gente, embora já não fossem tantos, pois há quatro dias de Afzot tivera que utilizá-los contra o ataque da nave fragmentária. Mas deviam ser suficientes para um punhado de terranos.

 

No espaço de cinco minutos, a temperatura caiu para dez graus. A preocupação com Con-Ki devido a seus trajes leves, para as horas de sol forte, desviou os terranos de seus problemas. Mas a moça recusou tudo.

Positivou-se que não se poderia mais botar o barco para funcionar. Se os dados de Con-Ki estivessem certos, a distância até a eclusa era de cerca de vinte quilômetros e seria uma temeridade querer nadar toda esta distância.

Além do mais, acrescia agora a brusca queda da temperatura, sobre o que Con-Ki não queria se externar. Ron Landry estava convencido de que as condições meteorológicas dentro da gigantesca caverna dos pesquisadores acônidas eram produzidas artificialmente e de que Con-Ki sabia exatamente de tudo, inclusive até quanto a temperatura podia cair. No entanto, não queria forçá-la a dizer o que não queria. No íntimo, admirava sua tenacidade. No momento era quem mais sofria as conseqüências de sua própria cilada.

Quando, depois de mais três minutos, o frio caiu para trinta graus Celsius abaixo de zero, Meech Hannigan tirou seu traje espacial e com ele abrigou a jovem acônida. Ela recusou a princípio, apesar de estar semicongelada.

A escuridão em volta era impenetrável. No céu artificial não se planejaram estrelas e o liso espelho da água gelou num instante. Ron teve então uma idéia maluca: se continuasse assim, poderiam fazer a pé os vinte quilômetros, andando na crosta de gelo. O pensamento foi tomando corpo com o termômetro que baixava cada vez mais, estando agora — depois de vinte minutos — a setenta e três abaixo de zero. A crosta de gelo lá embaixo estava tão grossa que Meech se atreveu a dar uns passos sobre o mar. Ron tomou então a decisão de fazer a pé o percurso sobre o gelo. Meech recebeu a incumbência de carregar nos ombros Con-Ki. Era de se supor que ela se recusasse a caminhar e com isso retardaria o avanço de todos.

Haviam naturalmente colocado os capacetes espaciais, e o aparelho de rádio no traje espacial de Con-Ki foi cuidadosamente desligado. Além disso, Lofty, numa boa medida de cautela, retirou todas as armas dos bolsos do traje de Con-Ki. Assim, a moça não poderia mais pensar em outra cilada.

Moviam-se rapidamente. Depois de cinco minutos, os raios da lanterna de Lofty não conseguiam mais atingir o barco que deixaram para trás. Se aproveitassem bem a superfície livre do mar congelado, fariam os vinte quilômetros em três horas.

Ron se perguntava o que poderia acontecer aos animais do mar, pois, com esse frio estúpido, poderia haver um congelamento até uma profundidade de algumas centenas de metros. Será que morreriam congelados? Eram seres pouco evoluídos e suportavam temperaturas que outros seres mais evoluídos jamais agüentariam.

Ron se lembrou também que os acônidas tentavam criar em Afzot um ser universal que devia suportar um frio de mais ou menos setenta graus. Mas quando pensou quanta judiação de milhões de animais era necessária para isto, não quis mais continuar com estes pensamentos.

Já haviam caminhado uma meia hora, quando Meech parou de repente.

— Esquecemos uma coisa — disse tão alto que todos podiam ouvir. — O barco tem um transmissor automático de pedido de socorro. Deve ter se ligado automaticamente, estou ouvindo nítidos sinais dele.

Meech falara em acônida e ao ouvir suas palavras um mundo de esperanças se esboçou dentro de Con-Ki...

Ron não perdeu tempo. Raciocinou friamente. O pedido de socorro deslocaria para lá pequenos aparelhos voadores e haveriam de encontrar o barco sinistrado e também as cinco pessoas que caminhavam no gelo.

Restava apenas uma saída: por baixo.

— Meech, desça a moça por um instante.

O robô obedeceu na hora.

— Pegue o fuzil pesado com Lofty e comece a abrir um túnel através do gelo.

Meech pegou o fuzil com toda calma, dizendo:

— Permita-me dizer, senhor, que também para mim a única saída era esta.

— Obrigado, Meech, isto me tranqüiliza. — disse Ron, falando com toda sinceridade.

— Fiquem um pouco para trás de Meech, pois o calor será grande.

Esta solicitação foi dirigida aos demais. Formaram uma fila, a uns cinco metros do robô. Ninguém mais precisava prestar atenção em Con-Ki. Estava ali de ombros encolhidos e certamente não pensava mais em resistir. De qualquer maneira, Ron não a perdia de vista.

Meech abria caminho com os raios térmicos. Regulou o cone e o melhor ângulo para evitar a dispersão do calor. Um feixe de raios de meia abertura e de luminosidade não excessiva saiu do cano do fuzil contra o paredão de gelo.

O resultado foi imediato. Um rombo se abriu na crosta de gelo, penetrando enviesado para o fundo. Já depois de poucos segundos, a cavidade estava tão grande que Meech entrou nela, desaparecendo dos olhos dos outros.

— Já estou a vinte metros, senhor, acho que podem me acompanhar.

Ron o acompanhou em silêncio. O túnel escavado a fogo era da altura de um homem e Meech abriu mais o ângulo dos raios térmicos, pois a água se congelava rapidamente diminuindo um pouco a altura. Meech esperava por Ron.

— Qual é a velocidade da perfuração? — perguntou Ron.

— Não mais do que três quilômetros por hora — respondeu o robô. — E isto só enquanto a perfuração continuar horizontal. Com o calor reinante dos raios, não dá tempo da água congelar.

O fuzil continuou seu trabalho. Os raios possantes provocavam pequenos regatos de água, a princípio morna. Meech se movia mais depressa. Lofty, que fechava a fila, tinha às vezes dificuldade em arrancar a bota de uma recém-formada crosta de gelo, o que lhe dava ocasião para umas expressões não muito recomendáveis.

Ron tinha umas tantas perguntas a fazer e como parecia que Con-Ki chegara ao ponto mais baixo de sua força de resistência, era o momento apropriado. A jovem acônida lhe ia respondendo prontamente. Sabia agora a quantos metros de profundidade estava a eclusa em relação ao nível do mar e como funcionava o dispositivo de abertura. Sabia também como continuava o caminho depois da eclusa e onde havia possibilidades de se esconder. E depois que todas as suas perguntas foram respondidas, disse-lhe também por que todas estas informações seriam para os terranos completamente inúteis.

— Duas horas depois do nascer do sol, a temperatura é elevada novamente, do valor atual para duzentos e noventa graus absolutos. O gelo se derrete num instante. Não temos nenhuma chance de chegarmos à eclusa até lá.

 

O pedido de socorro automático do barco avariado foi naturalmente captado pela base. Mas como Pfamat estava com todos os homens a serviço de Kule-Tats, só pôde mandar um único aparelho para prestar socorro aos passageiros do barco. Depois de uma hora, voltou o socorro dizendo que lá estava realmente o barco acidentado no meio do gelo, não havendo, porém, nenhum vestígio do piloto. Pfamat se deu por satisfeito, achando que dentro da base ninguém podia ter um “acidente sério”.

“O piloto”, pensava ele, “haveria de se salvar a pé e horas depois apareceria são e salvo.”

O caso foi, pois, esquecido e toda a atenção de Pfamat agora se concentrava na zona sul do setor C.

 

A situação era catastrófica, mas não sem esperança. Duzentos e noventa graus absolutos não eram mais do que dezessete Celsius. Não chegava a ser quente, ia depender da capacidade do gerador de calor o tempo necessário para derreter o gelo. Talvez se conseguisse ganhar algumas horas.

Fora disso, havia sempre a possibilidade de se entregarem às autoridades acônidas. Com isso, naturalmente, chegaria à luz do dia que a Terra estava tentando obter informações por vias inteiramente não diplomáticas e a diplomacia teria sempre que ser mantida... Por outro lado, porém, salvar-se-iam quatro vidas preciosas e um robô muito importante e isto valia a pena. Ron considerava todas as suposições.

Enquanto isto, os terranos e a acônida continuavam sua caminhada a trinta metros sob a crosta de gelo do mar artificial, quase em total silêncio. A imensa massa de gelo começava agora a se mexer, pois, devido ao ar incluído, o gelo assumira um volume específico maior do que a água. O oceano congelado necessitava, pois, de maior espaço do que antes em estado líquido. Gelava de cima para baixo. Não podia se expandir para baixo...

Tinha pois que começar a rebentar por cima e foi o que aconteceu para susto de todos.

Já haviam marchado mais de uma hora, quando reboou um estrondo surdo naquele mundo de gelo. Larry Randall notou como a moça do lado dele estremeceu de medo. Meech deu logo uma explicação, que aliás não minorou muito a dramaticidade do ambiente.

Com o primeiro trovão glacial, a calma desfez-se...

Dava a impressão de que imensos blocos de gelo abriam caminho forçado para se expandirem e se separarem dos outros. Um destes trovões se deu perto do túnel.

Pôde-se ouvir nitidamente o chiado produzido pela corrente de ar que se originou para encher os espaços vazios.

Tempos depois, os raios cortantes de Meech deram no vazio. Ron viu por sobre os ombros do robô um vão estreito e fundo, cuja extremidade não conseguiu distinguir à luz da lanterna. Grandes blocos de gelo abriam fendas pelo deslocamento. O túnel aberto por Meech vinha terminar numa destas fendas, cuja profundidade não se podia medir. A situação era mais do que ameaçadora.

Ron deixou a decisão para Meech. Parecia inútil forçar uma inteligência orgânica numa situação desta, enquanto o robô com seus infindáveis poderios conseguiria num segundo ponderar todas as possibilidades. Era o único que podia fazer alguma coisa.

Mas até Meech estava indeciso no fim do túnel, parado como se não soubesse o que fazer.

— Que há, Meech? — perguntou Ron, irritado.

Tinham agora campo aberto sobre si e, conforme sua opinião, o comando que tinha a missão de procurar os acidentados devia estar por perto. Meech levou alguns segundos para responder.

— Não estou sentindo nenhuma irradiação de dispersão. Não há nenhum aparelho perto de nós.

E, como se quisesse fazer uma brincadeira, acrescentou:

— Só se for um motor de gasolina.

Ron levou algum tempo até tirar todas as conseqüências da comunicação de Meech. Virou-se repentinamente para trás e perguntou a Con-Ki:

— A senhora acha possível que a tenham esquecido assim tão depressa?

— Não — veio a resposta da voz fraca da acônida. — A operação de busca deve estar em pleno andamento.

Meech, porém, não conseguia encontrar nada. O espaço acima deles estava livre e Ron tomou uma decisão.

— Vamos subir. Meech, abra um caminho através desta fenda. Se já desistiram de nos procurar, podemos caminhar mais rapidamente sobre a superfície gelada.

O robô começou seu trabalho e seu fuzil foi cavando uma passagem, abrindo um túnel em leve aclive. Em menos de dez minutos estavam a céu aberto na superfície gelada do mar-lago.

Estava diferente de antes. O chão de gelo não era mais liso, mas cheio de irregularidades, causadas pelos blocos que se levantaram com a dilatação. Visto sob a luz da lanterna de Ron, parecia uma paisagem da Lua com os trechos áridos de pedras e areia. Aqui caminhariam bem mais rápidos que no túnel, mas não com mais facilidade.

Meech continuou firme, assegurando que não havia nenhuma viatura por perto. Enquanto Ron — apesar da convicção de Con-Ki, que afirmara que a busca continuaria até encontrá-la — deu mais crédito ao fiel robô. Ela devia estar muito confusa e não percebia que suas ameaças ajudavam ainda mais os terranos.

— Pode ter acontecido alguma coisa inesperada na base — disse Ron, se opondo às advertências da acônida. — A busca pode ter sido interrompida ou mesmo cancelada. Meech nunca se engana em tais coisas.

Estavam caminhando resolutos, apesar dos blocos de gelo, que lhes dificultavam os passos, com pequenas subidas e descidas. Onde os blocos eram altos demais, tinham que contorná-los. Apesar disso, depois de meia hora, Meech disse que tinham andado mais que no túnel.

A noite estava quase findando e, no leste, já se viam os albores do novo dia. Os acônidas regularam o sol artificial de acordo com os fenômenos naturais do planeta Afzot. A noite durava só cinco horas.

O sol surgiu finalmente no horizonte; uma esfera alaranjada, sem nenhuma irradiação aparente de calor. O gelo adquiriu uma claridade cintilante. Ron procurava em vão os aparelhos acônidas.

Uma hora e meia após o nascer do sol, podia-se ver o litoral que subia íngreme.!

Con-Ki explicou que os laboratórios estavam no interior daquelas elevações à beira do mar e que cada laboratório possuía uma janela à altura do nível d’água, por onde se podia observar os peixes. Estava agora mais alegre, parecendo ter desistido de qualquer resistência. Ninguém, porém, sabia a causa disso, se era Larry Randall, que com sua gentileza de cavalheiro a ajudava o tempo todo a passar por sobre os blocos de gelo e a pular sobre fendas perigosas, ou qualquer outra coisa.

Pouco tempo depois, a temperatura começou a subir, como predissera Con-Ki e Ron pediu mais pressa. A jovem parecia no fim de suas forças e teve que voltar para os ombros de Meech. Por mais que se esforçassem, o litoral íngreme parecia cada vez mais afastado. A alteração da temperatura desceu tão rápida como na noite passada. Em poucos minutos passou de muitos graus abaixo de zero para dezessete acima. Ron, Lofty e Larry abriram seus capacetes.

Naturalmente o gelo começou a derreter sob a influência do ar bem mais quente. Com estalos e chiados, foram se formando rachaduras na superfície até então estática. Blocos de gelo boiavam já em enormes poças d’água. No íntimo, Ron não podia negar admiração pelo modo como os acônidas dominavam os fenômenos meteorológicos e, portanto, o clima de sua estação experimental. Que energia colossal não seria necessária para derreter esta massa enorme de milhões e milhões de metros cúbicos de gelo, como se fosse uma pequena poça gelada à beira da estrada?!

Mas a admiração pela tecnologia fenomenal dos acônidas deu lugar logo aos cuidados pelo próprio destino. A superfície de gelo estava em movimento e, em menos de meia hora, restariam apenas blocos avulsos de gelo boiando no mar. E dentro de uma hora, certamente nada mais de gelo. O litoral acidentado distava ainda pelo menos cinco quilômetros. As rachaduras no gelo obrigavam os terranos a darem grandes voltas. Já tinham dúvidas se ainda chegariam à eclusa sem serem vistos.

Mesmo assim, Ron Landry os estimulou a um derradeiro esforço. Meech corria na frente, com a moça nos ombros e determinava o caminho. Em fração de segundo era capaz de perceber a camada de gelo que estava quebrando ou o local muito escorregadio e camadas que não agüentariam mais o peso de um homem. Com a segurança de um sonâmbulo, achava uma trilha no meio dos vários empecilhos.

O litoral surgia, agora, mais nítido com suas escarpas. Pela primeira vez perceberam que a distância diminuía e pela última vez Ron cobrou novo ânimo, uma esperança selvagem, de que atingiriam seu objetivo. No entanto, momentos depois, aconteceu o inevitável...

Num grande fragor, rompeu-se o bloco em que caminhavam, da massa restante. A água entrou pelas laterais e chegou até onde estavam pisando. Ron e os seus estavam com água fria até os tornozelos. Tocado pelas forças que se libertaram da grande massa, o bloco rumou para o alto-mar e só parou diante de um outro que estava mais para frente.

Meech estava no canto sudeste da pequena ilha de gelo flutuante.

— Podemos nadar — propôs a Ron.

Ron olhou preocupado para sua gente. Não tinha coragem de fazer a Meech a pergunta que tinha na ponta da língua. “Qual é a nossa chance?” E, por sua vez, Meech não fora criado para sentir os cuidados dos seres orgânicos. Haveria de dar sua resposta baseado em dados materiais, mais ou menos na proporção de sessenta para quarenta. Se calhasse o lado negativo dos quarenta, isto seria igual à morte de quatro seres. Seu traje espacial não fora planejado para “navegar”. Podia-se com ele nadar e mergulhar, mas agüentava só um determinado tempo. Certamente não quatro quilômetros e meio, ainda mais na situação de “depauperamento” em que estavam.

Pela primeira vez em toda esta missão, Ron sentiu a grande responsabilidade que lhe pesava no ombro. O bloco de gelo, já derretendo, haveria de agüentar ainda vinte ou vinte e cinco minutos. Se desse imediatamente o pedido de socorro, os acônidas os viriam buscar. Com isto estariam salvas as quatro vidas humanas e... traída a intenção secreta do governo terrano. Por outro lado, que possibilidades ainda teriam? Esperar por um milagre que os libertasse do mar de gelo e os levasse para o interior da base, sem que os acônidas percebessem?

“Tem de acontecer um milagre”, pensou Ron e tomou uma rápida decisão.

Meech já havia posto no chão Con-Ki. Ela estava ali enrolada no uniforme do robô, grande demais para ela.

— A senhora conseguiu finalmente o que queria — disse Ron. — Estamos exatamente no ponto de nos entregarmos sem condições.

Levantou a cabeça e olhou para ele. A cúpula do capacete lhe chegava até a boca, tinha rugas na testa e seu olhar estava triste, mas mesmo assim havia energia em seu ser.

— Sinto muito — respondeu ela. — Digo-o sinceramente. Pensei muito sobre todas estas coisas, acho que vocês estavam no caminho certo. Haveria de me arrancar um braço, se com isso pudesse reparar o mal que...

Larry se aproximou, envolveu-a com o braço, apertando-a contra si. Con-Ki não disse nada. Ron botou de novo o capacete e ligou o transmissor. Já estava para começar a falar, quando Meech o interrompeu.

— Não precisa mais usar o rádio, senhor. Ali na frente vem o primeiro barco.

Uma coisa pequena surgira um ou dois metros para fora d’água e vinha a grande velocidade na direção deles. A princípio parecia um torpedo de corpo muito grosso. Depois desapareceu uma parte da carcaça e surgiu um belo barco, como aquele em que fizeram um bom trecho da viagem. Havia só um homem dentro.

Parecia muito estranho a Ron, chegando mesmo às raias da temeridade, um acônida enfrentar quatro terranos. Lembrou-se então que o piloto do barco podia até nem saber do comando de ação dos terranos e que ele passasse talvez por ali por mera curiosidade.

A situação ficou ainda mais confusa quando Con-Ki pulou de repente e começou a gritar com toda a força:

— É Kule-Tats!

Segundos depois Ron reconheceu que ela tinha razão. A compleição alta e seca era a característica irrefutável da raça dos aras. O homem sentado no barco, parecia estar de pé.

Com uma curva elegante, levou o barco até junto do bloco de gelo. Brecou e saltou. Parecia se alegrar com alguma coisa, se é que Ron estava interpretando bem sua fisionomia. Seus olhos, quase fora das órbitas, tinham um brilho de júbilo.

— Até que enfim os encontrei — disse em acônida. — Entrem aqui, não temos muito tempo a perder.

Ron estava perplexo.

— Encontrei-os!?... — repetiu Ron, mecanicamente. — O senhor nos procurou?

— E como! — confessou Kule-Tats. — Aliás, o senhor também a mim, não é?

— Como o senhor sabe disto?

A pergunta veio como um tiro disparado à queima-roupa.

Kule-Tats fez um gesto de incerteza.

— Não se pode falar em saber — respondeu. — Supus apenas. Acho que não é vaidade exagerada quando me considero o homem mais “interessante” de Afzot... do ponto de vista científico, naturalmente.

— Ah!... — disse Ron, sem ainda nada compreender. — Por que não temos tempo a perder?

Kule-Tats sorriu, e foi a primeira vez que Ron viu um ara sorrindo.

— Os acônidas estão atrás do senhor... ou não acredita nisto?

— Sim... Espere um momento... e o senhor?

— Eu?

Kule-Tats virou-se e observou cuidadosamente toda a região do mar coalhada de blocos de gelo.

— Eu... eu queria ser raptado por sua gente para chegar à Terra, exatamente como era sua intenção.

Entraram no barco. Ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo, fora Meech, talvez, que naturalmente não dizia nada. Ron Landry sentou-se no banco do piloto ao lado de Kule-Tats. O ara arrancou o barco do meio do gelo e tomou a direção nordeste. Assim que chegou ao trecho sem gelo, acelerou ao máximo.

— Eu lhe seria muito grato — começou Ron, agora já completamente dono de sua mente fria e audaciosa — se o senhor me quisesse explicar que significa tudo isto.

Kule-Tats deixou escapar de novo um sorriso beatífico.

— Creia-me, terrano! — exclamou exuberante de alegria. — Estou feliz com a situação em que me encontro. Nós aras temos raramente o prazer de nos deliciarmos com as surpresas de um terrano. O seu e o meu povo não se deram bem até agora, não é verdade? Nós é que ficamos no prejuízo...

Ron ficou a cismar: “O que pretende? Uma discussão política?”

— Como mero cientista em Afzot — começou Kule-Tats, mudando de repente de assunto — não se fica a par dos acontecimentos do mundo lá fora. Tem-se que procurar informações por conta própria, caso se queira saber de alguma coisa. Como ara, sou um indivíduo sedento de saber. Por intermédio de Pfamat, comandante da base, fiquei ciente, por exemplo, do ataque iminente da nave fragmentária. Pfamat sabia também das conversações em curso entre os governos terrano e acônida. Os terranos foram solicitados para mandarem reforços para expulsar a nave fragmentária. Como Pfamat não podia saber se as negociações tiveram ou não êxito, enviou pelo transmissor fictício a maior parte de sua gente para Sphinx, a fim de ficarem em lugar seguro. Manteve aqui só o indispensável.

“Soube também que as conversações tiveram pleno êxito. Uma pequena frota terrana começou a lutar com a monstruosa nave dos pos-bis, obrigando-a a debandar, ficando Afzot em segurança. O assunto parece resolvido. No entanto me pergunto se os terranos não perceberam os abalos estruturais provocados pelo teletransporte de Pfamat e com isso sua atenção se volveu para Afzot...? Pensei então que, no fragor da batalha em Afzot, seria muito fácil mandar um comando de ação para cá, sem que os acônidas nada percebessem. Propus-me então ir lá fora para examinar.

“Agora, não é tão fácil assim deixar a base. Tem-se que ter um bom motivo. Deixei então que Draak fugisse, Draak é minha aranha gigantesca, e dei como pretexto que iria procurá-la. Sei que os terranos são tão curiosos como minha raça. Fiz então um vôo num aparelho pequeno, em companhia de Con-Ki e descobri logo o clarão de sua lanterna ultra vermelha. Minha suposição estava, pois, certa. Veio-me então a idéia de que, quando quisesse sair de Afzot, precisaria de ajuda de outrem. E por que o senhor não me iria ajudar, não é verdade? Tinha que lhe mostrar o verdadeiro caminho.

“A bordo do pequeno aparelho conversei muito com Con-Ki através do rádio do capacete, ligado a todo volume, de maneira que os senhores tinham que nos ouvir. Prestaram atenção, seguiram a direção do aparelho e descobriram a entrada para a eclusa. O primeiro passo estava dado. Todos os demais, até este último, tinha que deixar por conta dos senhores. Por exemplo, atravessar a eclusa sem serem notados. Eu os acompanhei de longe. Meus parabéns. Ninguém podia fazê-lo mais inteligentemente do que os senhores.

“Tinha intenção de observá-los durante sua penetração na base e de me apresentar assim que chegassem à minha presença. Queria que me levassem para a Terra. Para meu azar, os senhores mudaram de rumo. De todas as saídas que havia na galeria do hangar, os senhores tomaram exatamente a única que levava para os setores de experiências. Perdi-os de vista e fiquei por algum tempo muito nervoso. Se os acônidas os encontrassem e prendessem, meu plano falharia.

“Felizmente os encontrei de novo. O barco de Con-Ki dispõe dê uma aparelhagem de escuta, sem que ela nada soubesse a respeito. Assim acompanhei sua viagem da ilha para o litoral sudeste, a sabotagem de Con-Ki e sua caminhada pelo gelo. Sabia naturalmente do transmissor automático de pedido de socorro e contava com que o descobrissem ou Con-Ki soubesse de sua existência e que haveriam de caminhar num túnel cavado no gelo assim que o alarma automático começasse a soar. Seria montada uma grande expedição de procura e assim que o gelo derretesse na manhã seguinte, os senhores seriam descobertos e aprisionados, mesmo que estivessem escondidos sob a camada gelada. Tinha, pois, que fazer alguma coisa.

“Chamei a atenção de Pfamat: um grupo de terranos penetrara no setor secreto das experiências e pretendia mesmo deixá-lo inutilizado. Meu aviso não pegou Pfamat desprevenido, pois há muito tempo quebrava a cabeça sobre o desaparecimento dos dois guardas na entrada dos laboratórios. Avisei a Pfamat que esperava encontrar os terranos no setor C e que contava com sua ajuda assim que lhe transmitisse o sinal do código. Aliás, isto me faz lembrar uma coisa, desculpem-me um segundo.”

Tirou do bolso uma caixinha escura e apertou um botão que sobressaía da chapa de cima.

— Isto põe o transmissor codificado em funcionamento — explicou rindo. — Coloquei o transmissor com muito cuidado na região sul, no setor C. Ele vai agora dar sinais ou pedidos de socorro durante um minuto e meio e depois explodirá automaticamente, de maneira que ninguém ficará sabendo desta instalação secreta. Aliás o trecho sul do setor C está a setenta quilômetros daqui. Podemos ficar sossegados.

Enfiou a caixinha no bolso.

— É isto... e então me aproximei de sua gente com o barco. Estava crente de que iam precisar dele. E eu também, pois queria fugir com os senhores.

Ron parecia contente com estas explicações. Até então entendera tudo. Só uma questão ainda estava mal esclarecida...

— Por que razão o senhor quer desaparecer daqui?

Kule-Tats dirigia o barco com toda calma.

— Isto é de novo uma história muito longa — disse com ar tranqüilo e alegre. — Vim para cá, porque planejava uma série de experiências que só podiam ser feitas com as infinitas possibilidades desta estação de Afzot. Soube de Afzot através de uma pessoa de confiança, pois a existência da base experimental é segredo absoluto. Voei para Sphinx e entrei em contato com as autoridades. Aceitaram-me, talvez pelo motivo de eu já saber alguma coisa sobre Afzot e porque me queriam tirar do caminho. Por isso foi que talvez nunca mais receberia permissão para sair de Afzot, a não ser para ser conduzido a uma prisão de Sphinx, pelo resto da vida...

Hesitou por um instante.

— Comecei então a fazer experiências e... as possibilidades eram mesmo excelentes, mas o quociente intelectual dos acônidas não o era. Não estou falando agora da ciência, mas da capacidade de uma visão mais ampla para futuros aperfeiçoamentos, de poder distinguir o essencial do secundário e de rejeitar uma série de preconceitos e... mesmo pensar um pouco mais cosmopoliticamente. Isso os acônidas não sabem de maneira alguma. Para isso, viveram demasiadamente fechados numa segregação jacobinista.

“Vi logo que em Afzot poderia fazer experiências que chamariam a atenção dos acônidas, mas jamais atingiria meu objetivo. Os acônidas estão ocupados exclusivamente em criar um animal universal. Precisam de um ser que possa viver em qualquer planeta da Galáxia. O plano é de fato grandioso e de amplo descortínio. Eles vão ter sucesso nisso e um dia todos os planetas da nossa Via Láctea serão habitados. Começaram com um plasma celular que trouxeram de uns planetas, cujos sóis foram bombardeados por certas irradiações. Este foi o passo decisivo. A conseqüente evolução da matéria-prima pode ser acelerada agora facilmente.

“Criei para eles alguns seres altamente desenvolvidos, que nunca imaginaram. Isto me trouxe um certo prazer por algum tempo. Mas, com o correr dos anos, se tornou monótono. Quase não podia mais continuar meu plano, pois o governo de Sphinx me deu todos os poderes, mas apenas enquanto estavam em consonância com a finalidade precípua da estação.

“Este é o motivo por que quero ir para a Terra. Os terranos são os únicos que em breve poderão montar uma grandiosa estação experimental e haverão também de reconhecer a importância do meu projeto. Enquanto estou informado, estão interessados nestes segredos...”

Ron ouvia com atenção.

— De que segredos o senhor está falando?

Kule-Tats se virou para trás e apontou para dois recipientes que estavam abrigados sob o banco traseiro. Continham uma substância clara, aparentemente viscosa. Em cada um dos recipientes boiava um corpo marrom-escuro.

— Disto aqui — respondeu o ara. — Estes dois corpos contém juntos vinte gramas da matéria orgânica que os pos-bis levam consigo em seus corpos robotizados.

 

O corpo marrom-escuro interrompeu seu júbilo mental sobre o fato de que entrara finalmente em contato com os terranos.

“Naturalmente ele disse 'estes dois corpos', pensando em nós dois.”

— Sim — respondeu o seu interlocutor. “Referiu-se a nós em conjunto. Portanto você tem que ser muito semelhante a mim. É mais do que evidente, não é?”

“Estou muito contente, pois, pelo menos agora, posso ter uma idéia de como você é ou deve ser.”

— Obrigado, igualmente!

 

Sete horas mais tarde, o comando de ação de Ron Landry se encontrava a bordo da nave capitania da frota terrana, que estava aguardando a volta do valoroso grupo a algumas horas-luz do sistema de Frua. Comando este agora aumentado de quatro prisioneiros, isto é, os dois guardas da eclusa, um biofísico da raça dos aras e sua assistente acônida.

Con-Ki e Kule-Tats foram apresentados imediatamente a Perry Rhodan, enquanto Ron Landry fazia o relatório a Nike Quinto, que já há mais tempo viera de bordo da Annino para a nave capitania. O coronel logo depois foi tratar com terranos mais graduados e por enquanto Ron estaria livre de ouvi-lo lamentar-se da pressão sangüínea. Mas instantes depois Nike foi desforrar-se em Ron Landry.

O cabeça do comando de ação em Afzot, apesar de cansado, ouviu pacientemente. Por ele, Nike Quinto poderia ficar a vida toda falando sobre sua doença, isto é, pressão alta. Assim que parasse de falar da sua suposta pressão alta, o assunto passaria para coisas que não agradavam a Ron, embora não tivesse nada com isso.

Embora Nike já tivesse começado com suas lamúrias sobre seu estado de saúde, estas lamentações não duraram muito. Olhou de repente para Ron Landry e disse com cara de preocupado:

— Compreendo também que as coisas não estão boas para o seu lado e você está preocupado e sei o porquê. Este cabeça-de-vento chamado Kule-Tats disse ao comandante da base que queria capturar uma tropa de assalto dos terranos. Você naturalmente está preocupado com o fato de que os acônidas tenham feito reclamações diplomáticas a respeito, não é?

Ron concordou espantado.

— Sim, mas como é que o senhor sabe de tudo isto?

— Os que sofrem de pressão alta podem ler os pensamentos — disse Quinto, sério. — Não sabia disso ainda? Mas, realmente, não precisa se incomodar. Kule-Tats agiu com premeditação. Que teria acontecido se dissesse apenas para Pfamat: “Alguns arcônidas estão em via de penetrar na base!” Pfamat não daria a menor importância e responderia: “Deixe entrar, por isso não vamos interromper nosso lanche.” Kule-Tats precisava de um nome para assustar Pfamat. Felizmente ou infelizmente, como se queira, nossa fama na Galáxia é tal que todos nos respeitam. Kule-Tats conseguiu seu objetivo.

“Por outro lado, fiquei sabendo pelo Capitão Randall, com quem troquei umas idéias, que você não deixou nenhum vestígio que possa trair sua origem. Pfamat não tem, pois, outro argumento a não ser a declaração de Kule-Tats. Se eu fosse ele, não comunicaria nada a Sphinx. Se os acônidas nos acusarem, vamos bancar os inocentes e sorrir, afirmando que não sabemos de nada. E o caso está liquidado.

“Fora isso, tenho que lhe transmitir um grande elogio da mais alta instância. O caso da Missão Afzot foi executado com a maior perfeição possível, é a opinião do administrador. A matéria que Kule-Tats trouxe, trata-se, aliás, do cérebro artificial que ele mesmo criou, contém alta porcentagem da matéria orgânica que os pos-bis trazem dentro de si. De onde Kule-Tats conseguiu isto, é segredo absoluto. Também não sei. De qualquer maneira, já fez muita experiência. Antes, tinha até muito mais, como ele diz. Fez com isso o cérebro de uma parte de seus fabulosos animais. Nossos cientistas vão estudar o caso e contam com a colaboração de Kule-Tats.

“Mais...! Estão em andamento conversações com o governo de Sphinx. Nossa ação em Afzot empolgou os acônidas. Um belo dia, poderemos confessar, por via diplomática, nossa intervenção na base de Afzot e lhes restituir os prisioneiros. A jovem Con-Ki, porém, resolveu ficar conosco para sempre. A nave fragmentária também nos deu o sucesso esperado. Mas... espere uma coisa. É você o único que sabe da coisa?”

— Sim, juntamente com Meech Hannigan.

— Ah! É verdade, ele sabe de tudo. Nike Quinto se levantou e foi para a tela do vídeo no fundo.

— Se os acônidas souberem — disse Nike — que nós não precisamos fazer outra coisa a não ser camuflar uma antiga espaçonave com torres e fachadas cúbicas, aparecer diante do sistema Frua e atirar algumas bombas, haveriam de declarar guerra contra nós nesta mesma hora.

Virou as costas e Ron caiu numa gargalhada.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

                      

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