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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS FRANGAS / Caio Fernando Abreu
AS FRANGAS / Caio Fernando Abreu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A MELHOR HISTORIA sobre galinhas que eu conheço chama-se A vida íntima de Laura. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que As galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas. De gente também. Bem no finzinho lá do livro dela, a Clarice diz assim: “Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte”.

Foi por isso que resolvi escrever esta história. Eu gostava muito da Clarice e queria agradar um pouco a ela. Ela ja morreu, mas sempre acho que a gente pode continuar querendo agradar a quem já morreu. Gosto de pensar que quem já morreu fica num lugar quentinho, que a gente não vê, cuidando de quem ainda não morreu. E se você quiser agradar a essa pessoa, é só fazer coisas que ela gostava. Aí ela fica ainda mais quentinha e cuida ainda melhor da gente.

Pois como eu sei umas histórias de galinhas bem engraçadas, vou tentar contar elas pra Clarice e pra vocês, certo? Mas antes de começar tenho que explicar que gosto muito mais de chamar galinha de franga do que de galinha. Por quê? Olha, pra dizer a verdade, nem sei direito. Quando olho para uma galinha, acho ela muito mais com cara de franga. Acho mais engraçado. Ou só acho que acho, nem sei. Faz tanto tempo que digo franga que agora já acostumei.

A história que quero contar é uma história de frangas. Mas se você quiser dizer que é uma história de galinhas, tudo bem. Pode dizer, eu não me importo.

Antes de começar tenho que explicar também que nasci numa cidade muito pequena, numa casa com um pátio enorme. Hoje em dia as pessoas quase não moram mais em casas com pátios. Nem enormes nem pequenininhos. Principalmente as que moram em cidades grandes.

Eu também moro agora numa cidade grande. Mas isso só vou contar daqui a pouco.

 

 

 

 

O que eu ia dizendo é que no pátio enorme dessa casa em que eu nasci tinha todas as coisas que têm em pátios. Uma porção de árvores, por exemplo. A que eu mais lembro é uma pereira. No verão ela enchia de peras. Daquelas meio avermelhadas, que nem bochecha de bebê gordinho. Tinha também formiga, passarinho, cachorro. Os cachorros mudavam muito, porque uns iam embora, outros ficavam velhos e morriam. Tem casa que cachorro muda muito. A nossa era dessas.

Mas eu me lembro bem de dois. Um era o Faruque. Ele tinha esse nome porque era o mesmo de um rei da Pérsia que estava muito na moda, naquele tempo. A Pérsia agora virou Irã, nem tem mais rei. O Faruque não era rei nem nada. Pra ser bem sincero, era um cachorro bem vagabundo até. Desses que adoram roer as pernas das cadeiras. Acho que pensava que tudo era osso.

Me diga você: que rei você conhece que gosta de roer osso ou perna de cadeira? É por isso que eu digo que o Faruque não era rei coisíssima nenhuma. Mas era ótimo. Também, não precisa ser rei pra ser legal, não é?

A minha mãe, que sempre foi boa pra dar nomes, foi quem acho que Faruque é nome de cachorro mesmo. Que nem Duque ou Rex. Só que Faruque é muito mais original: nunca mais encontrei outro cachorro com esse nome.

O outro que eu lembro não era cachorro, era uma cadela. Como ela era muito grandona e desajeitada — e acho também que todo mundo estava com preguiça de inventar um nome — , a gente chamava ela de Cadeluda.

O pátio era tão enorme que tinha três partes. Uma ficava ao lado da casa. Era mais um jardim que um pátio. Era cheio de hortênsia, uma flor bem grande — como é que eu vou explicar? Uma flor assim feita de cachos com florzinhas azuis, brancas ou cor-de-rosa. As lá de casa eram das azuis. Tinha também um jasmineiro tão cheiroso que dava até tontura na gente, umas margaridas e uma bergamoteira.

Você sabe o que é ber-ga-mo-tei-ra?

Pois é a árvore que dá a bergamota, entendeu? Não? Tá bom, eu explico. É que tudo isso aconteceu bem lá no Sul do Brasil. Lá tem umas coisas que também tem aqui, só que a gente chama de outro nome. Bergamota, por exemplo, é essa frutinha amarela que em outros lugares chamam de mexerica.

Sempre achei que ela tinha mais cara mesmo era de bergamota. Assim como o Faruque, mesmo não sendo rei, tinha a cara perfeita dum Faruque. Assim que nem chamar galinha de franga. E agora eu estou pensando que o bom, quando a gente conta uma história, é poder chamar as coisas como a gente quer chamar, não como todo mundo chama. Experimente só, você vai ver.

Outra coisa boa de inventar uma história é que você pode ir contando aquilo que tem vontade de contar. Foi assim que eu comecei a falar das frangas e acabei falando no pátio. Depois parei de falar no pátio e comecei falar no que eu estava inventando.

Agora me lembrei do pátio e vou continuar.

 

Na segunda parte do pátio tinha aquela pereira que eu já falei. Tinha também um tanque de lavar roupa e uma parreira de uvas pretas, brancas e cor-de- rosa. As cor-de-rosa eram as mais doces. Claro que também eram as que todo mundo gostava mais, que ninguém é bobo.

Esquisito é que as uvas cor-de-rosa sempre eram as últimas a amadurecer. Desde dezembro, ficava todo mundo de olho nelas, na maior impaciência. Lá pelo Natal, amadureciam as pretas. As brancas só amadureciam no meio de janeiro, na época do aniversário do meu irmão, Gringo. Mas as cor-de-rosa... Meu Deus, como as diabas demoravam: só na altura do Carnaval. Isso que todo dia a gente cuidava.

Acho que era implicância delas. Pura birra. Ou medo de serem comidas, sei lá. Quem pode saber se uma fruta sente coisas, que nem a gente? Eu é que não. Vezenquando acho que até as pedras sentem. (Por falar nisso, você sabia que tem umas pedras que não param nunca de crescer?) Outra coisa que eu penso quando me lembro daquelas uvas cor-de-rosa é que, na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mas isso é pensamento de gente grande, deixa pra lá.

(Vocês já repararam como estou dispersivo? Dispersão é quando a gente começa a contar uma coisa, aí interrompe e começa a contar outra, no meio daquela, depois começa a contar de novo a primeira coisa, e interrompe também para contar uma terceira. Por aí vai. Prometo que daqui a pouco vou me controlar. Mas por enquanto estou bem dispersivo mesmo.)

Bem, naquela parte do pátio tinha também um poço. Esse poço tem uma história tão estranha que eu não posso deixar de contar.

A gente nunca sabia onde tinha água. Claro, a água fica no fundo da terra, a gente não vê ela. Aí, para descobrir, o meu pai mandou chamar um descobridor de água muito famoso na cidade. Ele veio com uma forquilha enorme — um pedaço de madeira assim meio parecido com a letra Y. O homem segurava as duas pontas de cima da forquilha e a ponta de baixo ficava apontando para a terra.

Ele ficou a tarde inteira caminhando pelo pátio. Quando chegou atrás da pereira, nem te conto. Pois não é que a tal da forquilha começou a se mexer sozinha? Então ele garantiu que ali tinha água.

A gente duvidou e fez pouco. Mas meu pai chamou uns outros homens, que eram uns fazedores de poços muito famosos na cidade. Eles começaram a cavar, cavar, cavar, muito fundo. Pois não é que, lá naquele fundo bem fundo, tinha água mesmo?

Esse é um dos mistérios mais misteriosos que eu me lembro. Se você não acredita, meu pai, minha mãe e meus irmãos estão de prova até hoje. É só falar com eles, lá no Sul. O telefone é (51) 233-4197.

Nessa segunda parte do pátio, tinha também uma casinha de madeira cheia de coisas que a gente não usava mais, e minha mãe chamava de galpão. Galpão é mais ou menos isso que noutros lugares chamam de barraco.

Dum lado do galpão, ficava a casinha que vezenquando era do Faruque, da Cadeluda, do Rex ou do Duque. Do outro, estava o galinheiro, O galinheiro ficava, então, bem ali onde terminava a segunda parte do pátio e começava a terceira.

Essa era a maior de todas. Meio que dava medo na gente de tão misteriosa. Quase ninguém ia lá, cheio de mato, de sombra, de grama alta. Tão alta que todo mundo pensava que podia ter cobra ali no meio. Acho que não tinha, pelo menos nunca ninguém viu uma. Mas cadê coragem pra ir lá conferir? Eu é que não tinha mesmo, nem me envergonho de dizer.

Por causa desse medo, a gente sempre parava de brincar ali por perto do galinheiro mesmo. Por isso também a gente olhava tanto as galinhas...

Ah, mas me bateu de novo a tal dispersão: sabe que também tinha uma horta por ali? Eu já ia esquecendo, deixa eu contar rapidinho, depois volto pro galinheiro. Era tão bonita, a horta.

Uma das coisas boas de quem mora numa casa com um pátio assim enorme é que pode ter uma horta e plantar. Hoje em dia as pessoas só compram legumes. Na feira, na quitanda, no supermercado, você sabe.

Mas você sabia que os plantadores botam remédio nesses legumes pra eles crescerem mais, e mais depressa? Juro que é verdade: esses remédios são o maior veneno. Então, pensa bem: se você plantar você mesmo o seu legume, você não vai botar veneno nele, certo? Nem vai se importar se ele não crescer muito, porque não vai precisar chamar a atenção de ninguém na feira.

Daí que a gente tinha uma porção de legumes sem veneno nenhum. Alface, cenoura, couve-flor, repolho, pimentão, cebola, rabanete, vagem, mandioca e até uns pés de milho altos, com aquela espécie de cabeleira loura. Milho era o que eu mais gostava. Já couve-flor eu achava que deviaera botar na sala, enfeitando, não na panela. Couve-flor é tão bonita, você já reparou?

Mas, com aquele monte de legumes, era só ir lá e colher. Não precisava comprar.

E o galinheiro? Pois o galinheiro era pertinho de onde a gente mais brincava. Daí que eu acho que veio esse meu gosto por galinhas, de tanto ver elas ciscando e cacarejando o dia inteiro. Mesmo agora, morando numa cidade grande, sem um pátio enorme como aquele, continuo tendo um galinheiro.

Como?

Pois é justamente essa história que estou querendo contar. Sai pra lá, dispersão...

 

Como quase todo mundo numa cidade grande, moro num apartamento. Sei, agora você vai me perguntar assim: mas como é que você consegue ter um galinheiro dentro de um apartamento? Pois não é que tenho mesmo? Bem, claro que não é um galinheiro de verdade. Mas, aqui entre nós, também não estou nem um pouco me importando com o que é ou o que não é de verdade.

Eu comecei esse galinheiro meio sem querer. No começo, nem me dava conta que estava criando frangas em cima da geladeira. Só depois que tinha umas três foi que comecei a prestar atenção.

Agora pensei outro pensamento de gente grande. É assim: vezenquando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você também começa a prestar atenção na existência dela. Quando a gente começa a gostar duma pessoa, é bem assim.

A mais antiga delas é a Ulla. Ela tem esse nome esquisito porque veio de um país chamado Suécia. Esse é um nome muito comum lá, que nem Maria aqui. A Ulla é assim toda pequenininha, gordinha, marrom-clara com o bico amarelo.

Quem me deu a Ullafoi um amigo, o Augusto. Ele morou muito tempo na Suécia, depois mudou para um país ali perto, a Noruega, onde só tem gente loira e alta. Cada vez que o Augusto me escreve, pede notícias da Ulla. Eu sempre respondo: vai bem, mandou lembranças. E mandou mesmo, ela é supereducada.

Ganhei a Ulla faz uns quatro anos. Como o galinheiro ainda não existia, ela viajou comigo por uma porção de lugares. Até na Bahia já foi, e adorou. Imagina que na terra dela não faz calor, não tem palmeiras nem samba.

Depois que mudei pra este apartamento, ela veio morar no meu quarto. Agora estou olhando pra ela e achando que ela não está nem um pouco assustada por estar aqui de novo. É que a Ulla já se acostumou com esses livros todos e com o barulho da máquina de escrever.

Logo depois da Ulla, veio a Gabi. Quem me deu a Gabi foi uma amiga minha que acho que é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Depois de mim, é claro. O nome dela é Cacaia. Pois agora não é que me lembrei que foi com a Cacaia que aprendi a falar franga em vez de galinha?

A Cacaia mora no Rio de Janeiro, mas vezenquando vem a São Paulo me visitar.

Um dia ela chegou de viagem e perguntou assim:

— Adivinha o que eu trouxe de presente pra você?

Eu disse:

— Um disco.

Ela disse:

— Er-ra-do. Tenta de novo.

Eu disse:

— Um livro.

Ela disse:

— Puxa, mas você só pensa em disco e livro? Erradíssimo. Pode tentar só mais uma vez, senão não ganha nada.

Eu disse:

— Um... um... um...

Ela falou:

— Uma franga!

Não é que era mesmo, gente?

Ela me deu um pacotinho que fui desembrulhando, desembrulhando até encontrar a Gabi. A Cacaia me contou que ia passando por um camelô nordestino, em Copacabana, quando olhou e viu um tabuleiro cheio de frangas. Aí ficou encantada e escolheu a que parecia mais franga de todas. Era a Gabi.

A Gabi parece meio de verdade. Mas é falsa, claro. Ela tem penas de verdade. Os pés e o bico são de cartolina; a crista de pano vermelho. Mas ela é bem assim da cor de uma franga mesmo. Meio despenteada, como toda franga que se preza.

A Gabi ficou morando uma porção de tempo na sala, perto dos discos. Como a Cacaia me garantiu que ela era nordestina (da Paraíba, tenho quase certeza), eu sempre colocava uns forrós e uns xaxados pra ela ouvir. Aí comecei a notar que, quando eu colocava algum disco da Elba Ramalho, a Gabi ficava toda animadinha. Até hoje fica: é nordestina mesmo.

Acontece que toda criança que chegava em casa inventava de arrancar as penas da pobre Gabi. É que o lugar onde ficam os discos é baixinho, qualquer criança alcança. Não que eu não goste de criança, mas a coitada estava ficando toda depenada, horrorosa.

Foi por isso que resolvi colocá-la em cima da geladeira. Para que a Gabi não se sentisse muito sozinha, peguei a Ulla no quarto, coloquei ao lado dela. Vi que as duas tiveram uns desentendimentos no começo, porque a Ulla fala português muito mal e a Gabi só fala com sotaque nordestino. Nenhuma conseguia compreender direito a outra. Mas aos pouquinhos foram se acostumando. Hoje são grandes amigas.

 

Depois disso, vieram as três irmãs: Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth. Elas andam sempre juntas, porque são de madeira e estão pregadas numa tabuinha. Aí você puxa uma cordinha que tem embaixo e elas começam a bicar feito umas desesperadas, como se estivessem comendo milho.

A Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth fui eu mesmo que comprei. Isso foi num dia meio triste. Eu estava caminhando com um amigo meu, o Jacob, no centro da cidade, ali perto da Praça da República, O Jacob é outro que adora frangas. Como ele é desenhista, até desenha umas de vez em quando. E desenha tribem, umas frangas da pesada.

Mas aquele dia tinha acontecido uma coisa de gente grande com a gente: nós tínhamos sido despedidos do trabalho. Estávamos caminhando meio de bobeira quando vimos as três. Eram umas gracinhas: verdes e amarelas, com a crista vermelha, uns olhos azuis bem redondinhos. Elas pareciam tão alegres naquela esquina, bicando sem parar, que de repente a gente ficou alegre também.

Eu falei assim:

— Jacob, você sabia que franga dá sorte?

Aí ele comprou três e eu comprei mais três. Não é que deram sorte mesmo? Hoje em dia eu e ele temos um trabalho bem melhor que o outro, graças a Deus. Ou às frangas.

Tive certeza que a Ulla e a Gabi iam gostar muito delas. Pois dito e feito: a-do-ra-ram. É que a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth são muito novinhas ainda, não incomodam ninguém. Só perguntam o tempo todo, são frangas perguntadeiras: o que é isto, o que é aquilo. Como a Gabi e a Ulla são muito sabidonas, até ensinam coisas pra elas.

Foi quando coloquei as três em cima da geladeira é que me dei conta que estava formando um galinheiro. Aí corri, peguei A vida íntima de Laura e coloquei embaixo delas, que nem um tapetinho. Pronto: ficaram ótimas.

 

A próxima que chegou foi a Otília. E de novo a Cacaia estava envolvida na história. Eu gosto muito de mar. Como São Paulo não tem mar, vez em quando vou ao Rio de Janeiro só pra ir à praia. Quase sempre fico na casa da Cacaia. Uma noite, a gente ia voltando pra casa quando passamos num parque de diversões e resolvemos brincar um pouco.

A gente estava saindo do trem fantasma quando vi a Otília. Ela estava numa daquelas barraquinhas onde tem uma porção de coisas. Você joga uma argola e, onde a argola cair, você ganha aquilo que a argola argolou, quer dizer, pegou.

Eu de cara fiquei louco pela Otília. Inclusive porque já tinha visto uma igualzinha na casa duns amigos meus, que também adoram frangas: a Maria Emília, o Reinaldo e o Ruy.

E a Maria Emília tinha me garantido que a Otília dela tinha muito bons sentimentos.

Mas acontece que a minha pontaria é péssima. Sou daqueles que não acerta num elefante a três passos de distância. Aí a Cacaia disse que jogava a argola pra mim. Na terceira argolada, mirou bem e argolou em cheio a franga. Tive a impressão que a Otília até deu uma cacarejada, de puro gosto. E a primeira coisa que falou foi que estava doida de vontade de vir para São Paulo morar com a Ulla, a Gabi e as três Marias.

A Otília, nem te conto, é empinadíssima. Toda de louça bege, com um olho preto e um bico meio aberto, como se estivesse sempre reclamando de alguma coisa. Ela é carioca de nascimento, fala tudo chiadinho, adora praia, pizza e chope. Gosta de viajar, também. Ela contou pra Ulla que uma vez fez uma excursão pela Europa. Só que era daquelas de visitar uns vinte países nuns dez dias. Então ela mistura tudo. Outro dia ouvi ela dizendo, toda importante:

— Sabe, Ulla, o que eu mais gostei em Londres foi... da Torre Eiffel.

A Ulla, que sabe que a Torre Eiffel fica em Paris, e é muito bem-educada, nem disse nada. Só piscou um olho pra mim. Mas a Otília mistura tanto as coisas que até hoje pensa que a Ulla nasceu na Suíça, não na Suécia. A Ulla nem corrige mais. Outro dia a Ulla veio me contar em segredo que a Otília despreza a Gabi, porque as únicas viagens que a Gabi fez foram da Paraíba para o Rio de Janeiro, e depois do Rio de Janeiro para São Paulo. Ainda por cima é analfabeta. A Ullacontou que a Gabi disse assim:

— Mas por que é que uma franga precisa saber ler, Otília?

— Pra saber das coisas, ora — respondeu a Otília, toda estufada. E começou a ler o jornal. Ela adora ler jornal. Principalmente notícias sobre frangas. Que, aliás, são muito raras, não sei se vocês já repararam.

A Gabi é boa gente, não fica chateada. O divertimento principal dela é ensinar coisas para a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth.

Que coisas ela ensina? Ah, são coisas bem de franga. Pra gente pode parecer até meio besta, mas pra uma franga é interessantíssimo, quer ver?

Grão de milho, por exemplo, tem um jeito certo de bicar. Não pode ser de lado, senão ele pula fora. Tem que ser bem em cima. E uma bicada só, bem rapidinho. É esse tipo de coisa que a Gabi ensina. Não falei que parecia meio besta? Só que, como a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth só pensam em comer, acham da maior importância. E deve ser mesmo.

 

A outra que chegou depois foi a Juçara.

A Juçara, gente, é um caso à parte. Pro meu gosto pessoal, cá entre nós — e que ninguém nos ouça, senão sai a maior briga dentro do galinheiro, daquelas de voar pena —, bem, a Juçara é a mais bonita de todas. A Jacqueline, que mora comigo, também acha. E isso que a Jacqueline entende horrores de franga também.

Quem me deu a Juçara foi o Pedro. O Pedro mora lá no Sul, tinha vindo passar uns dias em São Paulo. Toda pessoa que vem passar uns dias aqui em casa tem primeiro que ser apresentada às frangas. Senão elas fazem o maior escarcéu na hora em que a pessoa vai abrir a geladeira pra comer alguma coisa. Tem coisa mais barulhenta que escarcéu de franga? É aquela gritaria, aquele cá-cá-cá, có-có-có, voa pena pra tudo que é lado. Uma zona.

Franga, eu já disse, tem muito medo de quem não conhece. Sempre acham que vão torcer o pescoço delas, depenar e enfiar numa panela pra servir no almoço de domingo. Acho que têm razão, coitadas. A maioria das pessoas só pensa numa franga como uma coisa que a gente pode comer, não gostar.

Estas aqui de casa estão acostumadas só comigo, com a Jacqueline e com a Lourdes, a empregada. Que está proibidíssima de torcer o pescoço delas, depenar e cozinhar. Quando avisei a Lourdes disso, ela ficou meio espantada:

— Ué, gente, mas como é que eu ia cozinhar elas se elas não são de verdade?

A Ulla me piscou um olho, eu não disse nada. Só pisquei o olho de volta pra ela. Como é que a gente vai explicar pra uma pessoa que qualquer coisa pode ser de verdade, é só a gente acreditar nela?

O que sei é que as frangas adoraram de paixão o Pedro. As três Marias até paravam de bicar quando ele chegava perto. A Otília ficava toda nervosa, falou até em mudar de penteado. Umas frangas, mesmo.

Pois um dia o Pedro trouxe da rua a Juçara, de presente. Já falei que ela é lindíssima, não é? Pois é mesmo. Tem a cabeça e o peito inteirinhos brancos, depois o corpo, até o rabo, é azulmarinho com bolinhas brancas.

Você já viu uma franga azul com bolinhas brancas até o rabo? Nem eu, nunca tinha visto. Pelo menos até conhecer a Juçara. Além disso, ela tem as pernas amarelas e está em cima duma coisinha verde que parece capim. É toda empinadinha, mais empinada que a Otília, só que não é metida como ela.

Na loja disseram pro Pedro que a Juçara veio da ilha de Marajó, uma ilha imensa, lá em cima, perto do Pará. Será que é por isso que ela é toda empinadinha assim? Deve ter o maior orgulho de ter nascido numa ilha...

Com o tempo, fui descobrindo que a Juçara é muito séria e adora comida natural. Em vez de bicar milho, por exemplo, ela só bica arroz integral. Tem horror de comida em lata, de barulho de cidade, automóvel, televisão. E sabe histórias incríveis do tempo em que ainda era meio índia e morava lá em Marajó. Outro dia contou uma que achei tão linda. Até vou repetir aqui pra vocês.

Vocês conhecem o chorão? Aquela árvore assim alta, magra, meio despencada, com uns galhos compridos até o chão? Pois diz a Juçara que o chorão não era assim.

Era uma árvore toda esticadinha, muito orgulhosa e antipática. Ela morava na beira de um lago bem clarinho. Pois imagina que o Chorão — que naquele tempo não se chamava chorão, mas salgueiro — inventou de se apaixonar pela Lua. Só que o Lago também se apaixonou, ao mesmo tempo.

Ficavam os dois, o Chorão e o Lago, todos suspirosos quando a Lua aparecia atrás da montanha, ao anoitecer. Tantas caras e bocas fizeram que um vaga-lume muito fofoqueiro ouviu a história da tal paixão e foi contar pra Lua.

A Lua, claro, ficou muito envaidecida. Quem que não gosta que os outros se apaixonem pela gente? Pois a Lua mandou dizer aos dois apaixonados que, na próxima sexta-feira, quando estivesse bem cheia e aparecesse atrás da montanha, o pretendente que estivesse mais bonito, na hora ela ficava noiva.

O Chorão ficou na maior empolgação. Fez amizade com o vaga-lume, interesseiro que era. E pediu a ele que chamasse todos os amigos vaga-lumes para enfeitá-lo todo, na sexta-feira de tardezinha. O pobre do Lago era muito desajeitado e humildezinho. Até tentou se enfeitar um pouco, mas os enfeites todos scorregavam na superfície dele e acabavam afundando.

Quando chegou a sexta-feira, o Chorão estava lindaço, cheio de vaga-lumezinhos vaga-lumeando brilhosos nos galhos. Parecia uma árvore de Natal. E tão atrevido! Debochava horrores do pobre Lago, que só tinha uns peixinhos muito assustados espiando de vez em quando. A Juçara diz que aquele salgueiro estava um nojo, de tão exibido e certo de que ia ficar noivo da Lua.

Mas acontece que, na hora em que a Lua apareceu atrás da montanha, ela viu todo aquele brilho do salgueiro refletido — onde? Ora, nas águas do pobrezinho do Lago, umas águas muito limpinhas e quietas. Claaaaaaaaro que ela achou o Lago muitíssimo mais bonito. Aí ficou noiva dele na hora, e nas sete noites de lua cheia vem se banhar nua nas suas águas quentinhas. O salgueiro? Ah, ficou tão desapontado que começou a despencar, despencar, despencar até virar essa árvore tristonha que a gente agora chama de chorão.

Não é bonita a historinha da Juçara? Você pode achar um pouquinho triste, também, mas eu acho ótimo que o chorão tenha sido castigado pelo seu orgulho. Daí, penso também outra coisa de gente grande: não adianta muito você se enfeitar todo pra uma pessoa gostar mais de você. Porque, se ela gostar, vai gostar de qualquer jeito, do jeito que você é mesmo, sem brilhos falsos.

A Ulla me disse depois que a Juçara contou a história bem alto, num dia em que a Otília estava insuportável, agredindo sem parar a pobre da Gabi. Quem sabe assim a Otília se toca um pouco, não é?

 

Mas ainda está faltando uma franga que não falei.

Pois é a Blondie, gente. A Blondie eu ganhei faz pouco tempo, do Valdir. Depois da Cacaia, o Valdir é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Aliás, pra gostar de frangas, entre o Valdir e a Cacaia, não sei quem ganha. A decoração da casa dele é toda à base de frangas. Na sala tem até um móbile de frangas de papel. Quando o vento bate, elas ficam cacarejando pra todo lado. Dá gosto ver.

O Valdir gosta tanto de frangas que chegou a dar de presente pra namorada dele, a Lena, uma camiseta com três frangas desenhadas bem no peito. Eu faço aula de dança junto com a Lena, lá no Viola, e juro que quando ela faz aula vestindo a tal camiseta de frangas ela dança muito, mas muito melhor. Não estou dizendo tem horas que frangas fazem bem pra qualquer pessoa? A Blondie é norte-americana, por isso tem esse nome, que na língua que eles falam lá quer dizer lourinha. E é justamente isso que ela mais é: inteirinha amarela, com o bico e os pezinhos cor de laranja. A Blondie tem um botãozinho do lado direito, que você vira e ela sai bicando sem parar. O que estiver pela frente, ela bica.

Acho que foi principalmente por isso que ela e as irmãs Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth se deram tão bem. As quatro juntas só pensam em bicar o tempo todo. E bicam qualquer coisa — não são como a Juçara, que é naturalista e só bica arroz integral.

A Blondie foi muito bem recebida no galinheiro. Pela Gabi nem se fala, porque a Gabi gosta de todo mundo. Franga, gente — menos cozinheira. Pela Ulla, porque as duas são estrangeiras. E como a Ullaé muito culta e também fala inglês, as duas podem falar bastante. Imagina que até a Otília recebeu bem a Blondie: ela acha muito chique ser estrangeiro. E a melhor coisa do mundo pra ela, a mais importante, é ser chique. Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, nem se fala: enfim, uma companhia para bicar sem parar.

A única que teve umas dificuldades, no começo, foi a Juçara. É que a Blondie adora coca-cola, e come muita porcaria, hambúrguer, cachorro-quente, catchup, coisas enlatadas. A Juçara achava um horror, mas acabou desculpando. Agora, vira e mexe, estão as duas de papo. A Juçara conta histórias de índio; a Blondie conta histórias de caubóis: dá tudo certo.

Mas o que a Blondie mais gosta mesmo é de um bom rock-and-roll. É só botar um disco da Rita Lee e virar o botãozinho dela que ela já sai dançando. Numa boa, acho que aprendeu com a Lena.

 

Agora que já contei a história de cada uma delas, vou colocá-las de novo em cima da geladeira. Mas acho que elas gostaram de ficar uns dias no meu quarto.

A Ulla, que é a mais minha amiga e me conta tudo que elas falam, me disse há pouco que até a Otília achou muito chique essa porção de livros. A Gabi, coitada, analfabeta, perguntou — imaginem — pra que serviam. A Ulla disse que de vez em quando tem vontade de ensinar ela a ler, mas depois pensa que a Gabi é muito burra, não vale a pena.

Por natureza, franga é mesmo meio burra. Umas mais, outras menos. Tem exceções, claro. A Juçara, por exemplo, eu acho triinteligentinha, Mas a Gabi... Já falei sobre isso com a Jacqueline, ela também acha a Gabi burríssima. Mas melhor ser burra e boazinha como ela do que burra e metida como a Otília, não é?

(Ai, que medo me deu agora que a Gabi e a Otília descubram que ando falando essas coisas pra vocês!)

Mas mesmo que a Gabi soubesse ler, ela não ia se importar nem um pouco. A Gabi nunca guarda mágoa de ninguém. Pensando bem, acho que ela é a mais franga de todas. Porque franga que se preza é assim mesmo: boa o tempo todo, nunca pensa em machucar ninguém. E burra de pedra.

Vai ver, é por isso mesmo que gosto tanto de frangas. Pensando melhor, também porque quando eu era criança brinquei tanto perto daquele galinheiro que fiquei conhecendo bem a intimidade delas. A intimidade de uma franga é a coisa mais bonita que tem. Exatamente porque é meio boba.

Não é que pensei outra coisa de gente grande? Esta é assim: tudo que parece meio bobo é sempre muito bonito, porque não tem complicação. Coisa simples é lindo. E existe muito pouco.

Às vezes penso que quando eu puder, um dia, morar de novo numa casa com um pátio enorme — nem precisa ser muito enorme — vou ter galinheiro de verdade.

Já pensou?

Aí podia até ter um cachorro que se chamasse Faruque — esse ia ser o Faruque II, mais nome de rei ainda. Ou então uma cadela que se chamasse Cadeluda. Nossa! Pensei agorinha que podia também ter uma horta que nem aquela que falei. Como a casa ia ser minha, eu ia colocar couve-flor na sala, em vaso, que nem rosa. Até um poço de água encontrada com forquilha, podia ter. E peras. E uvas cor-de-rosa. E legumes sem veneno nenhum.

É que vezenquando dá uma saudade na gente dessas coisas. São todas coisas simples. Meio bobas, muito bonitas. Que nem as frangas.

Mas tudo bem. A gente sempre pode inventar. Inventar é uma das melhores coisas que tem no mundo. A Otília ainda não descobriu, mas a coisa mais chique do mundo é inventar. Que nem a Clarice, que inventou a história da Laura.

Só que eu não inventei quase nada da Ulla, da Gabi, da Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, da Otília, da Juçara, da Blondie. Elas existem mesmo, são bem como eu disse. Estão em cima da geladeira aqui de casa pra quem quiser ver. Vem tomar um guaraná comigo que eu te mostro.

Se você quiser, invente uma história e mande pra mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem. E, se você não tem um pátio enorme nem um galinheiro de verdade, também pode inventar um em cima da geladeira ou em qualquer outro cantinho. Eu gosto muito quando acordo de manhã e vou fazer café na cozinha. Aí as oito frangas cacarejam e repetem assim, oito vezes, uma cada uma:

— Bom dia!

— Bom dia!

— Bom dia!

— Bom dia!

— Bom dia!

— Bomdia!

— Bom dia!

— Bom dia!

Não é que dá certo? Quase sempre, o dia é bom mesmo. Principalmente quando eu invento sem parar.

Pois não estou falando o tempo todo que franga, além de ser um bicho bom de ter por perto, dá sorte? Se elas não existissem, eu nem tinha escrito esta história. E acho que escrever uma história é uma coisa muito boa. O coração da gente fica mais quentinho e a gente gosta mais das pessoas.

A coisa que uma pessoa mais precisa na vida é gostar das outras pessoas e ser gostada, também. Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou desta? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também.

Qualquer dia conto outra, combinado?

 

 

                                                                  Caio Fernando Abreu

 

 

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