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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS GARRAS DA AGUIA / Simon Scarrow
AS GARRAS DA AGUIA / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Um relâmpago difuso como que imobilizou, por um instante, o agitado tumulto em redor do navio. Por todo o lado o movimento espumoso do mar pareceu deter-se, enquanto as sombras dos marinheiros e do cordame se destacavam com nitidez no convés brilhantemente iluminado da trirreme. Em seguida, a luz desvaneceu-se e a escuridão abateu-se uma vez mais sobre a embarcação. Nuvens negras voavam a baixa altitude, roçando nas ondas cinzentas vindas de norte. Embora a noite ainda não tivesse caído, aos aterrorizados passageiros e tripulação parecia que a luz do Sol há muito tinha abandonado o mundo. Apenas o mais ténue laivo de um cinza leve, lá longe para oeste, indicava a sua passagem. O comboio naval estava irremediavelmente disperso, e o prefeito que comandava a esquadra de trirremes recentemente colocada ao serviço praguejava irado. Com uma mão agarrava firmemente um estai, enquanto a outra era usada para lhe proteger a vista dos jorros de água gelada, à medida que examinava as espumosas cristas das ondas que os cercavam.
Apenas dois navios da sua esquadra permaneciam visíveis, negras silhuetas surgindo à vista quando o navio-almirante era elevado na crista de uma grande vaga. Estavam ambos para leste, já muito afastados, e para lá deles estaria o resto da escolta, dispersa pelo mar bravo. Talvez conseguissem ainda entrar no canal que conduzia a terra, a Rutúpias. Mas para o navio- almirante não havia qualquer esperança de alcançar a grande base de abastecimento que equipava e alimentava o exército romano.

 

 

 

 

 

 

Mais para o interior, as legiões estavam confortavelmente instaladas e em segurança nos seus quartéis de Inverno, em Camaloduno,(1) preparando-se para retomar a
campanha para a conquista da Britânia. Ali no mar, apesar do enorme esforço dos homens nos remos, a embarcação estava a ser afastada de Rutúpias.
Depois de olhar, através das ondas, para a escura linha da costa britânica, o prefeito reconheceu com amargura que a tempestade tinha
(1) No volume anterior desta série,"O Voo da Águia", a cidade é referida como Camulodónia. Penso que ambas as designações estão correctas.
levado a melhor, pelo que ordenou que recolhessem os remos. Enquanto considerava as opções que lhe restavam, a tripulação içou rapidamente na proa uma pequena vela
triangular, para ajudar a manter a embarcação estável. Desde que a invasão tinha sido lançada no Verão anterior, o prefeito tinha atravessado muitas vezes esta extensão
de mar, mas nunca em tão aterradoras condições. Na verdade, nunca antes vira o tempo mudar tão depressa. Nessa manhã, que agora parecia já tão distante, o céu tinha
estado limpo, e uma fresca brisa de sul prometera uma rápida travessia desde Gesoríaco. Normalmente nenhum navio saía para o mar no Inverno, mas o exército do general
Pláucio estava a precisar de abastecimentos. A táctica da terra queimada do comandante britânico, Carátaco, significava que as legiões dependiam de um fornecimento
regular de cereais provenientes do continente para se aguentarem durante o Inverno sem esgotarem as reservas necessárias para a continuação da campanha na Primavera.
Portanto, comboios de navios tinham continuado a atravessar o canal sempre que o tempo o permitia. Nessa manhã, o prefeito tinha sido enganado por uma natureza pérfida
e ordenado a partida para Rutúpias das suas carregadas embarcações, nunca imaginando que haveriam de ser apanhados por aquela tempestade.
Precisamente quando a costa da Britânia aparecera à vista por cima da agitada superfície, um aglomerado de nuvens adensara-se a norte, ao longo do horizonte. A brisa
num instante se tornou mais forte, mudando abruptamente de direcção, e os homens da esquadra viram, com crescente terror, como as nuvens negras se lançaram sobre
eles como ávidas bestas espumantes. A borrasca assaltou a trirreme do prefeito, que liderava o comboio, com terrível brusquidão. O vento gritante apanhou de súbito
a embarcação pelo vão, inclinando-a tanto que a tripulação se viu obrigada a abandonar as suas tarefas e a agarrar-se ao que estava mais à mão, para evitar ser lançada
borda fora. À medida que a trirreme se endireitava pesadamente, o prefeito deitou uma olhadela aos outros navios do comboio. Alguns dos transportes, de fundo chato,
tinham-se voltado, e junto às negras bossas dos seus cascos pequenas figuras subiam e desciam no mar espumante. Algumas acenavam de forma patética, como se acreditassem
realmente que as outras embarcações tivessem possibilidade de os ir salvar. Por esta altura o comboio já estava disperso, e cada navio lutava pela sobrevivência,
ignorando o que se passava com os outros.
Com o vento veio a chuva, grandes gotas geladas zurzindo obliquamente a trirreme e picando a pele com o seu impacto. Depressa os marujos se tornaram lentos e desajeitados
no que faziam, devido ao frio que entorpecia os ossos. Embrulhado na sua capa à prova de água, o prefeito constatou que, se a tempestade não acalmasse rapidamente,
o capitão e os
seus homens perderiam decerto o controlo do navio. E a toda a volta o mar enfurecia-se, dispersando os navios em todas as direcções. Por qualquer capricho da natureza,
as três trirremes da frente do comboio sofreram o maior impacto da tempestade, sendo rapidamente afastadas dos outros navios - a trirreme do prefeito mais ainda.
A tempestade bramira ao longo de toda a tarde e não mostrava sinais de acalmia com o aproximar da noite.
O prefeito rememorou o seu conhecimento do litoral britânico e examinou a costa mentalmente. Calculou que já tinham sido arrastados ao longo da costa para bem longe
do canal que conduzia a Rutúpias. Os brancos e abruptos penhascos que rodeavam o povoado de Dúbris estavam à vista, a estibordo, e teriam ainda de combater a tempestade
por algumas horas, antes de poderem tentar alcançar uma área segura da costa.
O capitão do navio cambaleou pelo convés agitado até perto dele e saudou, ao aproximar-se, mantendo uma mão firmemente agarrada ao corrimão de popa.
- Que é? - gritou o prefeito.
- O fundo do porão! - retorquiu o capitão, com a voz rouca do esforço de bradar ordens por cima do vento gritante, durante as últimas horas. Apontou o dedo para
o convés, para se assegurar de que era entendido.
- Estamos a meter demasiada água!
- É possível retirá-la?
O capitão inclinou o ouvido para o prefeito.
Inspirando fundo, o prefeito colocou a mão ao lado da boca e gritou:
- É possível retirá-la?
O capitão abanou a cabeça.
- Então e agora?
- Temos de correr com a tempestade! É a nossa única esperança para nos conservarmos à superfície. Depois, arranjar algum sítio seguro para desembarcar!
O prefeito abanou exageradamente a cabeça para mostrar que tinha compreendido. Muito bem, então. Teriam de encontrar algum sítio onde acostar o navio. A trinta ou
quarenta milhas de distância dali, os rochedos abruptos da costa davam lugar a praias de seixos. Se a rebentação não estivesse demasiado bravia, seria possível acostar.
Tal poderia causar sérios danos à trirreme, mas antes isso do que a certeza de perder o navio e toda a sua tripulação e passageiros. Ao pensar nisso, a mente do
prefeito dirigiu-se para aqueles que se abrigavam algures sob os seus pés, uma mulher e os seus filhos. Tinham sido confiados aos seus cuidados, e deveria fazer
tudo ao seu alcance para os manter a salvo.
- Dê a ordem, Capitão! Vou lá para baixo.
- Sim, senhor! - O capitão saudou e virou-se para a coberta entre os castelos, onde os marujos se amontoavam, junto à base do mastro. O prefeito observou por um
momento o capitão a rugir as suas ordens e a apontar para a vela ferrada na verga ao topo do mastro. Ninguém se mexeu. O capitão gritou a ordem outra vez, e depois
pontapeou selvaticamente o marujo mais próximo. O homem encolheu-se, o que fez com que levasse novo pontapé. Então agarrou-se ao cordame e começou a subir. Os outros
seguiram-no, agarrando-se aos estais enquanto subiam a custo os enfrechates que baloiçavam, e se distribuíam pela verga. Os seus pés descalços e gelados tentavam
firmar-se nas cordas enquanto eles se moviam pouco a pouco acima do convés. Só quando todos os homens estivessem em posição é que podiam desfazer os nós e libertar
a vela até aos ilhós dos primeiros rizes. Seria pano suficiente para permitir manobrar a embarcação enquanto esta era levada pela tempestade. Cada relâmpago desenhava
brevemente a negro as silhuetas do mastro, da verga e dos homens, contra um ofuscante céu branco. O prefeito reparou que o relâmpago fazia com que a chuva parecesse,
por um momento, parar em pleno ar. Apesar do terror que lhe invadia o coração, sentiu um arrepio de excitação perante aquela fantástica exibição dos poderes de Neptuno.
Por fim todos os homens se colocaram em posição. Firmando as suas sólidas pernas no convés, o capitão pôs as mãos em concha e virou o rosto para cima, em direcção
ao mastro.
- Desfraldar!
Dedos entorpecidos labutavam freneticamente nos nós de couro. Uns eram menos desajeitados que outros, o que fez com que a vela se desprendesse da verga de forma
irregular. Um súbito estridor através do cordame anunciou o reatar dos mais selvagens esforços da tempestade, e a trirreme sentiu a sua cólera. Um marinheiro, num
estado mais debilitado do que os seus camaradas, perdeu a mão e foi violentamente arremessado para a escuridão, tão depressa que nenhum dos que viram o sucedido
repararam onde ele caíra, no mar. Mas não podia haver pausas nos esforços dos tripulantes. O vento empurrava com violência as partes expostas da vela e, antes que
os marujos conseguissem atar os rizes, quase que a arrancou das suas mãos. Assim que trataram da vela, os homens deslocaram-se ao longo da verga e penosamente desceram
para o convés; o seu ar alterado testemunhava o estado de frio e exaustão em que se encontravam.
O prefeito dirigiu-se para a braçola da escotilha, na popa, e, com cuidado, curvou-se para entrar no interior muito escuro. A pequena cabina parecia anormalmente
tranquila, depois dos gritos e agressões do vento e da chuva no convés. Um som de choro atraiu-o à popa, onde as tábuas se uniam numa curva, e o clarão de um relâmpago
que entrou pela
escotilha revelou a mulher lá refugiada, os braços envolvendo os ombros de duas crianças. Tremiam, agarrados à mãe, e o mais novo, um miúdo de cinco anos, chorava
inconsolavelmente, o rosto molhado das borrifadelas de água, de lágrimas e ranho. A irmã, três anos mais velha, estava apenas sentada, silenciosa, mas de olhos esbugalhados
de terror. A proa da trirreme elevou-se de repente sobre uma onda enorme, e o prefeito quase tombou sobre os seus passageiros. Apoiou um braço contra o casco, e
depois estatelou-se para o lado oposto. Demorou um bocado a recuperar o fôlego, e a voz calma da mulher ouviu-se, vinda do escuro.
- Vamos conseguir, não vamos?
Outro relâmpago revelou o pânico estampado na face pálida das crianças.
O prefeito resolveu não mencionar que tinha decidido tentar acostar a trirreme. Seria melhor poupar os seus passageiros a mais ansiedade.
- Claro, minha senhora. Estamos a ser levados pela tempestade mas, assim que passe, subiremos outra vez a costa até Rutúpias.
- Compreendo - replicou a mulher, inexpressivamente, e o prefeito percebeu que ela tinha lido nas entrelinhas. Era evidentemente uma mulher inteligente, que fazia
jus à sua nobre família e ao seu marido. Deu um abraço tranquilizador aos seus filhos.
- Ouviram, meus queridos? Em breve estaremos quentinhos e secos.
O prefeito lembrou-se que tremiam e maldisse a sua falta de atenção.
- Um momento, minha senhora. - Os seus dedos entorpecidos lutaram com a fivela que prendia a sua capa impermeável, junto ao pescoço. Praguejou à sua falta de jeito,
mas então o fecho soltou-se. Tirou a capa dos ombros e ofereceu-a, na escuridão.
- Aqui tem, para si e para os seus filhos, minha senhora.
Sentiu que a capa era retirada da sua mão.
- Obrigada, Prefeito, é muito gentil da sua parte. Vamos lá aninhar-nos debaixo desta capa, meninos.
O prefeito dobrou os joelhos e envolveu-os com os braços, na tentativa de manter algum calor e conforto, quando uma mão lhe tocou gentilmente no ombro.
- Senhora?
- Chama-se Valério Maxêncio, não é?
- Sim, minha senhora.
- Então, Valério, abrigue-se debaixo desta capa connosco. Antes que o frio o mate.
O uso casual do seu nome próprio chocou o prefeito por um
instante. Depois murmurou um agradecimento e juntou-se à mulher debaixo da capa. O miúdo tremia violentamente, sentado entre eles, e de vez em quando o choro tomava
conta dele.
- Calma. Não nos vai acontecer nada, vais ver - disse o prefeito, suavemente.
Uma série de relâmpagos ilminou a cabina, e os dois adultos entreolharam-se. O olhar da mulher interrogou-o, e ele fez um movimento de cabeça. Um grande volume de
água fria e argêntea inundou a cabina, através da escotilha. As enormes tábuas da trirreme rangiam por todos os lados, a sua estrutura sujeita a forças com que os
seus construtores nunca tinham sonhado. O prefeito sabia que as juntas da embarcação não aguentariam muito mais daquela violência e que o mar acabaria por a afundar.
E todos os escravos das galés, a tripulação e os passageiros se afundariam com ela. Praguejou brandamente, incapaz de se conter. A mulher adivinhou-lhe os sentimentos.
- Valério, a culpa não é sua. Nunca poderia ter previsto isto.
- Eu sei, minha senhora. Eu sei.
- Ainda nos podemos salvar.
- Sim, minha senhora. Se o diz.

Ao longo da noite, a tempestade arrastou a trirreme costa abaixo. Empoleirado a meia altura no cordame, o capitão desafiava o frio cortante, à procura de um sítio
onde pudesse acostar a trirreme. Sempre consciente do facto de que o navio manobrava de forma cada vez mais lenta. Sob o convés, alguns escravos tinham sido desacorrentados
para ajudarem a tirar água. Sentados em fila, passavam os baldes de mão em mão, despejando-os borda fora. Mas este trabalho não era o suficiente para salvar o navio;
limitava-se a adiar o momento inevitável em que uma onda maciça se despenharia sobre a trirreme e a afundaria.
Um queixume desesperado chegou aos ouvidos do capitão, vindo dos escravos ainda acorrentados aos seus bancos. A água já lhes chegava aos joelhos e, para eles, não
haveria esperança de salvação quando o navio naufragasse. Outros poderiam sobreviver durante algum tempo, agarrados a destroços, antes do frio acabar com eles, mas
para os escravos o afogamento era certo, e o capitão compreendia bem a histeria deles.
A chuva transformou-se em saraiva e, depois, em neve. Densos flocos brancos redemoinhavam com o vento e acumulavam-se na túnica do capitão. As suas mãos estavam
a perder toda a sensibilidade, pelo que tomou consciência de que devia voltar para o convés, antes que o frio o
enfraquecesse e o fizesse largar o cordame. Mas ao primeiro movimento para baixo vislumbrou, por cima da proa, a escura forma de uma ponta de terra. Meia milha adiante
a espuma branca saltava e escorria sobre as rochas afiadas na base de um penhasco.
O capitão desceu rapidamente para o convés, apressando-se até à ré, em direcção ao homem do leme.
- Rochas à frente! Força nisso!
O capitão atirou-se ao manípulo de madeira e esforçou-se, juntamente com o piloto, contra a força do mar encapelado que dominava a larga pá do leme, no exterior
do navio. A trirreme respondeu lentamente, e o gurupés começou a afastar-se das rochas. Ao clarão dos relâmpagos conseguiam ver os reluzentes dentes negros das fragas
por entre as ondas que sobre elas quebravam. O rugido da rebentação sobrepunha-se até ao uivo do vento. Por um momento, o gurupés recusou-se a orientar-se para o
mar aberto, e o coração do capitão encheu-se de um negro e frio desespero. Depois, por um feliz acaso, o vento fez com que a proa rodasse e se desviasse das rochas,
a pouco mais de trinta metros adiante.
- Isso mesmo! Mantém-na assim! - gritou ele ao piloto.
Com o pouco pano aberto no mastro principal retesado perante a força do vento, a trirreme acelerou subitamente para a frente, emproada sobre o mar bravio. Passadas
as rochas, o promontório deu lugar a uma praia de seixos, para lá da qual a terra subia, avistando-se algumas árvores enfezadas e dispersas. As ondas revoluteavam
na praia, em grandes extensões de espuma branca.
- Ali! - O capitão apontou. - Acostaremos ali.
- Com aquela rebentação? - gritou o piloto. - Loucura!
- É a nossa única hipótese! Vá, ao leme, comigo!
Com a pá do leme orientada na direcção oposta, a trirreme aproou à praia. Pela primeira vez o capitão permitiu-se acreditar que ainda poderiam sair vivos da tempestade.
Até se riu, exultante por ter desafiado o pior da cólera que o grande Neptuno era capaz de lançar contra aqueles que se aventuravam nos seus domínios. Mas, com a
segurança da praia quase ao alcance deles, o mar impôs finalmente a sua vontade. Uma grande vaga emergiu das profundezas escuras do oceano e elevou a trirreme mais
e mais, até o capitão ter dado por si a ver a costa directamente por baixo. E logo que a crista da onda passou sob ele, o navio caiu como uma pedra. Com um duro
embate, que fez saltar toda a tripulação, a proa ficou empalada numa rocha, não muito longe da base do promontório. O capitão rapidamente se levantou, e o convés
imóvel debaixo das suas botas revelou-lhe que o navio já não flutuava.
A onda seguinte forçou o navio a rodar sobre o eixo, tanto que a
popa ficou mais próxima da praia. Um som lacerante vindo da frente ilustrava os danos que estavam a ocorrer. Lá de baixo vinha o berreiro dos escravos, à medida
que a água escorria, em cascata, ao longo de todo o comprimento da trirreme. Dentro de momentos haveria de se imobilizar, e ondas sucessivas esmagá-la-iam, e a todos
a bordo dela, contra as rochas.
- Que aconteceu?
O capitão virou-se e viu o prefeito Maxêncio a sair da escotilha. A escura forma da terra ali perto, e o negro reluzente das rochas molhadas na sua base, explicavam
tudo. O prefeito gritou através da escotilha para que a mulher trouxesse os filhos para o convés. Depois virou-se de novo para o capitão.
- Temos de os tirar daqui! Tem de chegar a terra!
Enquanto a mulher e os filhos se amontoavam na parte lateral da popa, Valério Maxêncio e o capitão esforçavam-se para amarrar alguns odres inflados. Em volta, a
tripulação prevenia-se com o que quer que encontrasse que pudesse flutuar. A gritaria vinda de baixo intensificou-se até se transformar em guinchos de terror abjecto
que arrepiavam a espinha, à medida que a trirreme se ia afundando no mar escuro. Os gritos cessaram abruptamente. Um dos tripulantes no convés gritou e apontou para
a escotilha da coberta principal. A água tremeluzia, já quase ao nível da grade. A única coisa que impedia o navio de se afundar era a rocha onde a proa estava encaixada.
Agora, qualquer onda grande acabaria com eles.
- Aqui! - gritou Maxêncio para a mulher com os filhos. - Rápido!
À medida que as primeiras ondas começaram a rebentar sobre o convés, o prefeito e o capitão ataram os passageiros aos odres. A princípio o rapaz protestou e agitou-se,
em pânico, enquanto Maxêncio tentava passar a corda em volta da sua cintura.
- Pára com isso! - A mãe esbofeteou-o. - Fica quieto.
O prefeito agradeceu com um gesto de cabeça, e acabou de atar o rapaz às bóias improvisadas.
- E agora? - perguntou ela.
- Esperem na popa. Quando eu disser, saltem. Depois batam os pés tanto quanto puderem, até à praia.
A mulher parou, olhando para os dois homens.
- E vocês?
- Seguir-vos-emos logo que possível. - O prefeito sorriu. - Agora, senhora. Por favor.
Permitiu que ele a conduzisse até à ré e, com cuidado, pôs as pernas do lado de fora; depois, agarrando nos seus filhos, um de cada lado, ganhou coragem para saltar.
- Mamã, não! - chorou o rapaz, vendo o mar bravio por baixo dos pés. - Por favor, mamã!
- Élio, vai correr tudo bem. Prometo!
- Senhor! - berrou o capitão. - Ali! Olhe ali!
O prefeito voltou-se e, através da tempestade salteada de neve, viu uma onda monstruosa precipitar-se sobre eles, com o vento a fustigar-lhe a crista, e a espalhar
espuma em jorros brancos. Mal teve tempo de se virar para a mulher e gritar-lhe que saltasse. Em seguida, a onda desabou sobre a trirreme e fê-la rolar sobre as
rochas. Os tripulantes que se encontravam na coberta principal foram arrastados. Ao atirar-se para a água, junto ao leme, Maxêncio vislumbrou ainda uma última vez
o capitão, agarrado à grade da escotilha principal, os olhos fixos no destino lúgubre que estava prestes a engoli-lo. Uma treva gelada envolveu o prefeito, e antes
que pudesse fechar a boca, o seu nariz e garganta encheram-se de água salgada. Foi enrolado vezes sem conta, enquanto os seus pulmões se inflamavam, ansiando por
ar. Precisamente quando julgava que ia morrer, os seus ouvidos encheram-se, por um instante, com o ruído da tempestade. Desapareceu imediatamente, mas então a sua
cabeça veio de novo à tona. O prefeito tentou respirar, batendo os pés para se manter à superfície. O mar agitado elevou-o, e conseguiu ver a praia a curta distância.
Da trirreme, não havia sinais. Nem vivalma da sua tripulação. Nem tão-pouco da mulher com os filhos. A ondulação aproximou-o um pouco mais das rochas, e a ideia
de ser feito em bocados fez o prefeito ganhar forças para nadar até à praia.
Por várias vezes esteve certo de que as rochas seriam o seu destino. Mas enquanto se esforçava, debilitado como se sentia, para chegar à praia, o promontório começou
a protegê-lo das ondas mais ferozes. Finalmente, exausto e desesperado, sentiu os pés rasparem no fundo de seixos. Depois, o refluxo afastou-o da praia novamente,
pelo que bradou a sua raiva aos deuses, por lhe negarem a salvação nesse último momento. Determinado a não morrer ainda, cerrou os dentes e investiu num derradeiro
esforço supremo para alcançar a praia. Por entre a espuma agitada de uma nova onda foi dolorosamente atirado contra os seixos, e preparou-se então para resistir
ao refluxo quando o mar recuou. Antes que a onda seguinte rebentasse na praia, Maxêncio trepou pela inclinada rampa de seixos e deixou-se cair, completamente extenuado
e arquejante.
Ao seu redor continuava a fúria da tempestade, e rajadas frescas de neve voluteavam pelo ar. Agora que estava a salvo, em terra, o prefeito deu-se conta de quão
frio o seu corpo se encontrava. Tremia violentamente enquanto tentava invocar energia para se mover. Antes que o pudesse fazer, apercebeu-se de um agitar das pedras
na proximidade, e alguém se sentou a seu lado.
- Valério Maxêncio! Sente-se bem?
Surpreendeu-se com a força da mulher quando esta lhe pegou e o virou de lado. Ele assentiu com a cabeça.
- Venha, então! - ordenou ela. - Antes que gele.
Colocou um dos braços dele sobre o seu ombro e serviu-lhe mais ou menos de apoio, praia acima, em direcção a uma ravina pouco profunda em que se adivinhavam as formas
negras de algumas árvores enfezadas. Aí, ao abrigo de um tronco caído, as duas crianças estavam enroladas na ensopada capa do prefeito.
- Agasalhem-se. Todos, vá.
Ela juntou-se a eles, e os quatro amontoaram-se tão juntos quanto podiam, entre as dobras molhadas, tremendo violentamente à medida que a tempestade prosseguia e
a neve caía sobre eles. Olhando na direcção do promontório, Maxêncio não via sinais da trirreme. Era como se o seu navio-almirante nunca tivesse existido, de tão
completa que tinha sido a sua desaparição. Parecia que mais ninguém sobrevivera. Ninguém.
Ouviu um súbito arranhar de seixos acima do uivo do vento. Por momentos pensou que o tinha imaginado. Depois o som regressou e, dessa vez, podia jurar que também
havia vozes.
- Há mais sobreviventes! - Sorriu para a mulher, pondo-se de joelhos. - Aqui! Aqui! - chamou.
Um vulto escuro apareceu à entrada da ravina. Depois surgiu outro.
- Aqui! - O prefeito acenou. - Aqui!
Os vultos imobilizaram-se um momento; depois um deles chamou, mas o sentido das suas palavras perdeu-se no vento. Ergueu uma lança e fez sinal para alguém.
- Valério, não faça barulho! - ordenou a mulher.
Mas era tarde demais. Tinham sido vistos, e mais homens se juntaram aos primeiros. Aproximaram-se cautelosamente dos romanos que tiritavam. Quando estavam mais perto,
o tímido reflexo da neve permitiu que as suas fisionomias se fossem lentamente tornando visíveis.
- Mamã - sussurrou a rapariga. - Quem são eles?
- Caluda, Júlia!
Quando os homens estavam apenas a uns passos de distância, um relâmpago distante iluminou o céu. No seu brilho pálido, os homens ficaram brevemente expostos. Sobre
mantos de peles grosseiramente cortadas, cabelos desgrenhados esvoaçavam ao vento. Mais abaixo, olhos ferozes flamejavam em rostos quase completamente tatuados.
Por momentos, nem eles nem os romanos se mexeram ou disseram uma palavra. Então, o pequeno Élio não se conseguiu conter mais e um grito fino de terror absoluto rasgou
o ar.

II

- Estou certo de que era aqui perto - resmungou entredentes o centurião Macro, lançando o olhar a uma escura vereda que dava para o cais. - Alguma ideia?
Os outros três trocaram um olhar, enquanto batiam os pés na neve. Ao lado de Cato - o jovem optio de Macro - estavam duas mulheres nativas, da tribo dos Icenos,
envoltas em quentes e esplêndidos mantos adornados de peles. Tinham sido criadas por pais que há muito haviam antecipado o dia em que os Césares estenderiam os limites
do seu império à Britânia. As raparigas tinham aprendido latim desde muito cedo, com um escravo instruído proveniente da Gália. Como consequência, o seu latim tinha
um sotaque cadenciado, um efeito que Cato achava bastante aprazível aos ouvidos.
- Ouve lá - protestou a rapariga mais velha. - Disseste que nos levavas a uma pequena cervejaria agradável. Não vou passar a noite a andar para cima e para baixo
pelas ruas geladas até que encontres precisamente a que procuras. Entramos na próxima que virmos, de acordo? -Olhou para a amiga e para Cato, com os olhos ferozes
exigindo o assentimento deles. Ambos concordaram de imediato.
- Deve ser por esta rua - respondeu Macro rapidamente. - Sim, agora me lembro. É ali.
- É bom que seja. Senão levas-nos a casa,
- Tudo bem. - Macro ergueu uma mão como que para a aplacar.
- Vamos lá.
Com o centurião à frente, o pequeno grupo seguiu caminho pela estreita vereda, rodeada pelas cabanas escuras dos Trinobantes. A neve caíra durante todo o dia, cessando
apenas pouco depois do anoitecer. Camaloduno e a paisagem circundante jaziam sob um denso manto de brilhante alvura, e a maioria das pessoas estava dentro de casa,
aconchegadas em torno de lareiras fumarentas. Apenas os mais resistentes jovens da
cidade se juntavam aos soldados romanos na procura de recantos onde pudessem desfrutar de uma noite de bebida, de canções entoadas em tom roufenho e, com alguma
sorte, de uma rixa ou outra. Os soldados, munidos de bolsas abauladas com o peso das moedas, deslocavam-se até à cidade desde o vasto acampamento que se estendia
mesmo às portas de Camaloduno, junto à sua entrada principal. Quatro legiões - mais de vinte mil homens
- passavam o Inverno em aquartelamentos rústicos de madeira e turfa, esperando impacientemente pela chegada da Primavera, para que a campanha para a conquista da
ilha pudesse recomeçar.
Tinha sido um Inverno especialmente rigoroso, e os legionários, encerrados no seu acampamento e limitados a uma imutável dieta de guisado de vegetais e cevada, estavam
irrequietos. Sobretudo desde que o general lhes adiantara uma porção do donativo oferecido ao exército pelo Imperador Cláudio. Este bónus fora dado para celebrar
a derrota do comandante britânico, Carátaco, e a queda da sua capital, Camaloduno. As gentes da cidade, envolvidas neste ou naquele mister, rapidamente recuperaram
do choque da derrota e tiraram partido da oportunidade de limpar os bolsos aos soldados acampados à sua porta. Um grande número de cervejarias tinha aberto para
abastecer os legionários com toda a variedade de cervejas locais, bem como com vinho enviado do continente por mercadores dispostos a arriscar os seus navios nos
mares de Inverno, em troca de preços elevados.
Os locais que não faziam dinheiro com os seus novos senhores viam com desprazer como os estrangeiros bêbados cambaleavam entre as cervejarias e o aquartelamento,
cantando em altos berros e vomitando ruidosamente pelas ruas. Como era de esperar, os anciãos da cidade acabaram por se cansar da situação, e enviaram uma delegação
ao general Pláucio. Lembraram educadamente que, no interesse da aliança que fora recentemente forjada entre os Romanos e os Trinobantes, seria bom que não continuasse
a ser permitido aos legionários entrarem na cidade. Compreensivo quanto à necessidade de preservar as boas relações com os nativos, o general também sabia que se
arriscaria a um motim caso negasse aos seus soldados uma forma de escoar as tensões que acompanhavam sempre os longos meses passados nos quartéis de Inverno. Assim,
foi alcançado um compromisso, e o número de passes a distribuir pelos soldados foi racionado. A consequência foi que os legionários ficaram ainda mais determinados
a envolverem-se em pândegas frenéticas de cada vez que lhes era permitida a entrada na cidade.
- Cá estamos! - disse Macro triunfalmente. - Disse-vos que era
aqui.
Estavam diante de uma pequena porta guarnecida de tachões, no
piso térreo de um edifício de pedra. Uma janela com portinholas fechadas via-se alguns passos ao lado, para quem subisse a vereda. Um caloroso brilho vermelho delineava
o rebordo das portinholas, e podia-se ouvir o ruído das conversas no interior.
- Ao menos deve estar quente - disse a rapariga mais nova, tranquilamente. - Que achas, Boudica?
- Acho bem que esteja - replicou a sua prima, e alcançou a aldraba da porta. - Vamos lá então.
Horrorizado com a perspectiva de ser precedido por uma mulher ao entrar numa taberna, Macro meteu-se atabalhoadamente entre ela e a porta.
- Oh, por favor, permitam-me. - Sorriu, numa tentativa de demonstrar boas maneiras. Abriu a porta e enfiou-se pela entrada. O pequeno grupo seguiu-o. O ar quente
e fumarento envolveu-os, e o brilho do fogo e de várias candeias de sebo pareceu-lhes muito forte, depois da escuridão do beco. Algumas cabeças viraram-se para inspeccionar
os recém-chegados, e Cato reparou que muitos dos clientes eram legionários de folga, vestidos com espessas túnicas e capas militares, vermelhas.
- Fecha a porta! - alguém gritou. - Senão ainda congelamos,
caralho.
- Tento na língua! - gritou Macro de volta. - Há senhoras na
sala!
Um coro de apupos soou dos restantes clientes.
- Podes crer que há! - Perto, um legionário riu-se, ao apalpar o rabo a uma empregada de bar que passava, carregando uma mão cheia de jarros vazios. Ela gritou,
e rodopiou para lhe infligir uma forte bofetada, antes de fugir para o balcão na parte mais afastada da cervejaria. O legionário esfregou a face inflamada e riu-se
de novo.
- E recomendas tu este sítio? - resmungou Boudica.
- Dá-lhe uma oportunidade. Diverti-me bem aqui da outra vez. Tem atmosfera, não achas?
- Decerto que tem atmosfera - disse Cato. - Pergunto-me é quanto tempo levará até se levantar uma rixa.
O centurião lançou-lhe um olhar assassino antes de se virar para as duas mulheres.
- E as senhoras, o que vão querer?
- Um assento - respondeu Boudica, de modo áspero. - Um assento servirá muito bem, por ora.
Macro encolheu os ombros.
- Vê lá isso, Cato. Procura um sítio sossegado. Eu vou buscar as
bebidas.
Enquanto Macro abria caminho através da multidão até ao bar, Cato olhou em volta e viu que o único lugar vazio era uma mesa raquítica flanqueada por dois bancos,
mesmo junto à porta por onde tinham acabado de entrar. Puxou pela extremidade de um banco e inclinou a cabeça.
- Aqui têm, senhoras.
Boudica franziu o lábio perante a tosca mobília que lhe era apresentada, e poderia mesmo ter recusado o lugar caso a sua prima não a tivesse rapidamente acotovelado,
incitando-a. A mulher mais nova chamava-se Nessa, e era uma Icena de cabelo castanho, olhos azuis e faces redondas. Cato estava bem ciente de que o seu centurião
e Boudica tinham combinado trazê-la para que ele se distraísse enquanto o casal mais velho continuava a sua peculiar relação.
Macro e Boudica tinham-se conhecido pouco depois da queda de Camaloduno. Uma vez que os Icenos tinham oficialmente uma posição de neutralidade quanto à guerra entre
Roma e a confederação das tribos resistentes aos invasores, Boudica estava mais curiosa que hostil em relação aos homens vindos do grande império para lá do mar.
Os anciãos da cidade tinham-se apressado a granjear a simpatia dos seus novos governantes, e convites para festas inundaram o acampamento romano. Até mesmo os centuriões
menores como Macro se viam solicitados. Na primeira dessas noites conheceu Boudica. A princípio, a sua natureza franca desagradou-lhe; os celtas pareciam ter uma
atitude desagradavelmente igualitária relativamente ao sexo fraco. Vendo-se ao lado de um centurião, que por sua vez se via ao lado de um barril da mais forte cerveja
que já tinha encontrado, Boudica imediatamente começou a atormentá-lo com perguntas sobre Roma. A princípio a sua abordagem sem rodeios levou Macro a supô-la apenas
mais uma das mulheres com cara de cavalo que constituíam a maioria da classe alta bretã. Mas à medida que ia aguentando o interrogatório, ia a pouco e pouco ficando
cada vez menos interessado na cerveja. Resmungando a princípio, depois com vontade, à medida que ela o conduzia, astuciosamente, a uma discussão mais aberta, Macro
falou com ela de uma forma que nunca antes fizera com uma mulher.
No final da noite sabia que queria ver de novo aquela animada Icena, e balbuciou um pedido para que se encontrassem novamente. Ela aceitou com prazer, e convidou-o
para uma festa que ia ser dada por um seu parente na noite seguinte. Macro fora o primeiro convidado a chegar, e manteve-se num silêncio embaraçado junto ao banquete
de carnes frias e cerveja quente, até Boudica surgir. Depois observou horrorizado como ela o acompanhava bebida atrás de bebida. Antes de ele perceber o que se passava,
ela tinha-lhe colocado um braço sobre os ombros, apertando-o fortemente contra si. Olhando em redor, Macro viu o mesmo atrevimento
nas outras mulheres celtas, e estava a tentar reconciliar-se com os estranhos costumes desta nova cultura, quando Boudica lhe plantou um beijo ébrio nos lábios.
Momentaneamente alarmado, Macro tentou libertar-se do seu poderoso abraço, mas a rapariga entendeu as suas contorções como sinais de ardor, e limitou-se a renovar
o seu amplexo. Por isso, Macro entregou-se e beijou-a também, e nas alcoólicas asas da paixão enfiaram-se debaixo de uma mesa num canto escuro, e passaram a noite
em confusos abraços. Só os efeitos da cerveja impediram que a sua atracção mútua fosse consumada. E Boudica fora suficientemente decente para não armar discussão
por causa disso.
Desde então tinham passado a encontrar-se quase diariamente, e por vezes Macro convidava Cato para se juntar a eles, mais por pena do rapaz, que tão recentemente
tinha visto o seu primeiro amor ser assassinado pelas mãos de um traiçoeiro aristocrata Romano. Silencioso e tímido a princípio, Cato fora pouco a pouco atraído
pela sociabilidade contagiosa de Boudica, e agora os dois eram capazes de manter uma conversa durante horas. Macro sentia-se, aos poucos, posto de lado. Apesar de
Boudica dizer que apenas tinha relações com adultos, Macro não se sentia seguro. Daí a presença de Nessa - sugerida por Macro. Uma rapariga a quem Cato se poderia
dedicar enquanto ele continuava a cortejar Boudica.
- O teu centurião costuma frequentar sítios como este? - perguntou Boudica.
- Nem sempre tão bons como este. - Cato sorriu. - Devias sentir-te honrada.
Nessa não captou o tom irónico e fungou de aversão perante a ideia de que alguém, no seu perfeito juízo, achasse um privilégio ser levado a tal espelunca. Os outros
dois reviraram os olhos.
- Como é que conseguiste autorização para sair? - perguntou Cato a Boudica. - Julguei que naquela noite em que tivemos de te levar a casa fosse rebentar um vaso
sanguíneo ao teu tio.
- Quase que rebentou. O pobre do velhote nunca mais foi exactamente o mesmo desde aí, e só concordou em deixar-nos sair com uns primos afastados se tivéssemos escolta.
Cato franziu as sobrancelhas.
- Onde está a escolta, então?
- Não sei. Separámo-nos na multidão, perto do portão da cidade.
- De propósito?
- Claro. Por quem me tomas?
- Nem ousaria sequer insinuá-lo.
- És muito sensato.
- Prasutago até se deve ter mijado de preocupação! - Nessa dava risadinhas. - Podem apostar que irá procurar em todas as casas de bebidas de que se lembrar.
- O que nos mantém bem a salvo, uma vez que o meu querido parente - mais um primo, a propósito - nunca se lembraria deste sítio. Duvido até que alguma vez se tenha
aventurado nestas ruelas por trás do cais. Não haverá problema.
- Se nos encontrasse - os olhos de Nessa abriram-se muito -, enlouqueceria! Lembras-te do que ele fez àquele rapaz atrébate, que tentou meter conversa connosco?
Julguei que Prasutago o fosse matar!
- Provavelmente era o que aconteceria, se eu não o tivesse impedido.
Cato inquietou-se.
- Um tipo grande, esse vosso parente?
- Enorme! - Nessa riu-se. - Sa! Enorme é a palavra certa.
- Com um cérebro inversamente proporcional ao físico - acrescentou Boudica. - Por isso nem sequer penses em discutir com ele se ele aparecer. Limita-te a correr.
- Estou a ver.
Macro voltava do bar, de braços erguidos para manter as canecas e o jarro acima da multidão. Poisou-os na superfície áspera do banco e, educadamente, encheu cada
caneca de barro até à borda com vinho tinto.
- Vinho! - exclamou Boudica. - Sabes mesmo como mimar uma senhora, centurião.
- A cerveja acabou - explicou Macro. - Isto é tudo o que eles têm, e não foi nada barato. Por isso bebam e apreciem.
- Enquanto nos for possível, senhor.
- Hã? Que foi, rapaz?
- Estas senhoras só aqui estão porque escaparam à companhia de um parente muito volumoso, que provavelmente anda, agora mesmo, à procura delas, e nada bem disposto.
- O que não é de admirar, numa noite destas - disse Macro, encolhendo os ombros. - Mas agora estamos bem longe do frio. Temos fogo, bebida e boa companhia. Que mais
se pode pedir?
- Um assento perto do fogo - deu como resposta Boudica.
- Vamos fazer um brinde. - O centurião ergueu a sua caneca.
- A nós! - Macro levou a caneca aos lábios e emborcou o vinho de uma só vez, depois bateu com a caneca na mesa. - Ahhhh! Assim, sim! Alguém quer mais?
- Espera um pouco. - Boudica seguiu-lhe o exemplo e emborcou a sua caneca.
Cato conhecia os seus limites no que dizia respeito ao vinho, e limitou-se a abanar a cabeça.
- Tu é que sabes, rapaz, mas o vinho é tão bom como uma pancada na cabeça para te ajudar a esquecer os problemas.
- Se o diz, senhor.
- Ah, pois digo. Principalmente quando se tem más notícias a dar.
- Macro olhou sobre a mesa, para Boudica.
- Que notícias? - perguntou ela bruscamente.
- A legião vai ser enviada para sul.
- Quando?
- Daqui a três dias.
- É a primeira vez que oiço falar nisso - disse Cato. - Que se
passa?
- Suponho que o general quer usar a Segunda Legião para impedir Carátaco de fugir pelo sul do Tamisa. As outras três legiões poderão passar a pente fino o lado norte
do rio.
- O Tamisa? - Boudica franziu as sobrancelhas. - Mas isso é muito longe. Quando é que a tua legião volta para aqui?
Macro estava prestes a dar uma resposta suave e tranquilizadora, quando reparou na expressão desapontada no rosto de Boudica. Compreendeu que a honestidade era o
melhor curso a seguir nessa situação. Era preferível que Boudica soubesse já a verdade e não ficasse mais tarde ressentida com ele.
- Não sei. Talvez daqui a uns quantos períodos de campanha, talvez nunca. Tudo depende de quanto tempo mais vai Carátaco continuar a lutar. Se o derrotarmos rapidamente,
a província poderá ser pacificada de imediato. Por enquanto, aquele sacana manhoso continua a realizar ataques repentinos aos nossos postos de abastecimento, e ao
mesmo tempo vai tentando negociar com outras tribos para que se juntem a ele na resistência.
- Não podes culpá-lo por lutar bem.
- Se isso nos mantiver separados um do outro, posso. - Macro alcançou-lhe a mão e apertou-a afectuosamente. - Esperemos portanto que ele seja suficientemente esperto
para perceber que nunca poderá vencer. Então, depois da província ser pacificada, peço uma licença, e venho ter contigo.
- Esperas que a província seja pacificada assim tão rapidamente?
- Boudica irritou-se. - Ai! Quando é que vocês, romanos, aprendem? Carátaco lidera apenas as tribos que estão sob o domínio dos Catuvelaunos. Há muitas outras tribos,
na sua maioria demasiado orgulhosas para se deixarem liderar em batalha por outro chefe, e decerto demasiado
orgulhosas para se submeterem docilmente ao domínio romano. Olhem, a nossa própria tribo. - Boudica apontou para ela própria e para Nessa. - Os Icenos. Não conheço
nenhum guerreiro que sonhe tornar-se súbdito do vosso Imperador Cláudio. É claro que vocês tentaram aliciar os nossos chefes com promessas de aliança e uma parte
do espólio obtido das tribos que Roma derrotar no campo de batalha. Mas, aviso-vos, no momento em que tentar tornar-se na nossa governante, Roma pagará um elevado
preço. A voz tinha-se tornado estridente, e por um momento os olhos brilharam-lhe num desafio através da mesa. Alguns dos que bebiam nos bancos próximos viraram-se
para olhar, e as conversas acalmaram por momentos. Depois, as cabeças voltaram-se para a frente, e o ruído aumentou de novo, lentamente. Boudica serviu-se de outra
caneca de vinho e emborcou-a antes de continuar, mais calmamente.
- É verdade para a maioria das outras tribos também. Acredita.
Macro olhou-a fixamente e assentiu devagar, enquanto pegava de
novo na mão dela, e a segurava gentilmente na sua.
- Desculpa-me. Não pretendia desconsiderar o teu povo. A sério. Não sou muito bom com palavras.
Os lábios de Boudica desenharam um sorriso.
- Deixa lá, compensas doutras formas.
Macro olhou de relance para Cato.
- Achas que podias levar aqui a rapariga até ao bar por um bocado? A senhora e eu precisamos de falar.
- Sim, senhor. - Cato, sensível à delicadeza da situação, rapidamente se levantou do banco e estendeu o braço a Nessa. A jovem olhou para a prima, que lhe fez um
sinal vago com a cabeça.
- Está bem. - Nessa sorriu. - Tu tem cuidado, Boudica, sabes como estes soldados são.
- Sa! Eu sei cuidar de mim!
Cato não duvidava. Tinha acabado por conhecer Boudica bastante bem durante os meses de Inverno, pelo que sabia que o centurião tinha poucas hipóteses. Conduziu Nessa
até ao balcão através da multidão de bêbados. O empregado de bar, um velho gaulês, a julgar pelo sotaque, tinha abandonado a moda romana que imperava no continente,
e usava uma túnica ricamente decorada, nos ombros da qual repousavam as suas tranças. Estava a lavar canecas num balde de água suja e olhou para cima quando Cato
bateu no balcão com uma moeda. Limpando as mãos ao avental, aproximou-se e ergueu as sobrancelhas.
- Duas canecas de vinho quente - pediu Cato, antes de perguntar a Nessa. - Pode ser?
Ela disse que sim com a cabeça, e o empregado agarrou em duas canecas e dirigiu-se a um velho caldeirão de bronze, colocado numa grelha enegrecida sobre tições meio
apagados. Vòluteava vapor do interior e, mesmo onde se encontrava, Cato conseguia sentir o cheiro das especiarias que se sobrepunha ao da cerveja e ao omnipresente
cheiro acre da humanidade. Cato, alto e magro, olhou para baixo, para a sua companheira icena, à medida que ela observava ansiosamente o gaulês mergulhar uma concha
no caldeirão para agitar a mistura. Cato franziu as sobrancelhas. Sabia que devia tentar meter conversa, mas nunca tivera jeito para isso, pois temia que o que quer
que dissesse soasse falso ou simplesmente estúpido. Além disso, não estava para aí virado. Não que Nessa não fosse atraente aos seus olhos - quanto à sua personalidade,
só podia imaginar -, simplesmente continuava amargurado por causa de Lavínia.
A paixão que sentira por Lavínia correra-lhe como fogo pelas veias, mesmo depois dela o ter traído e ter corrido para a cama do canalha do Vitélio. Antes de Cato
conseguir convencer-se a desprezá-la, Vitélio tinha arrastado Lavínia para um conluio para matar o Imperador, assassinando-a depois a sangue frio para encobrir as
provas que o incriminariam. A imagem das negras tranças do cabelo de Lavínia sobre o sangue que lhe escorria da garganta cortada invadiu o pensamento de Cato e fê-lo
sentir-se enjoado. Desejava-a mais do que nunca.
Toda a paixão que lhe restava servia para cultivar um ódio figadal pelo tribuno Valério, tão grande que nenhuma vingança seria suficientemente terrível. Mas Vitélio
tinha regressado a Roma com o Imperador, aclamado como herói, depois da sua frustrada tentativa de assassínio. Assim que se tinha tornado claro que os guarda-costas
do Imperador evitariam o crime, Vitélio saltara sobre a assassino, matando-o. E agora o Imperador considerava o tribuno como o seu salvador, e a sua gratidão não
encontrava nenhuma recompensa ou honra que bastassem. Com o olhar fixo na distância, a expressão de Cato endureceu-se ao ponto dos lábios ficarem finos de azedume,
o que atemorizou a sua companheira.
- Que é que se passa contigo?
- Hã? Desculpa. Estava a pensar.
- Acho que nem quero saber.
- Não era nada acerca de ti.
- Espero que não. Olha, aí vem o vinho.
O gaulês regressou ao balcão com duas canecas fumegantes, cujo rico aroma despertou até as papilas gustativas de Cato. Aceitou a moeda que Cato lhe deu e voltou-se
de novo para o balde onde lavava a loiça.
- Olha lá! - chamou Cato. - E o meu troco?
- Não há troco - resmungou o gaulês, por cima do ombro. - O preço é este. Graças às tempestades, há pouco vinho.
- Mesmo assim...
- Não gostas dos meus preços? Então vai-te foder e procura outro sítio onde beber.
Cato sentiu o sangue fugir-lhe da face e a ira fez com que cerrasse os punhos. Quase gritou, e mal conseguiu conter a terrível raiva e o desejo de desfazer o velho.
Com o regresso do auto-controlo, sentiu-se horrorizado pelo momento por que passara, dada a racionalidade de que se orgulhava. Envergonhado, olhou em volta para
ver se alguém tinha reparado em quão próximo estivera de se revelar um pateta. Apenas um homem olhava na sua direcção, um gaulês entroncado, curvado sobre a outra
extremidade do balcão. Observava Cato com atenção e uma mão movera-se em direcção ao punhal que tinha numa bainha de metal pendurada no cinto. Obviamente, um tipo
contratado para segurança do velho gaulês. Encontrou o olhar do optio, e ergueu a mão para lhe mostrar um dedo, sorrindo tenuemente com desdém, como que avisando
o jovem para que se comportasse.
- Cato, há um lugar perto do fogo. Vamos, - Nessa empurrou-o devagar do balcão, na direcção da lareira de tijolos, na qual os toros sibilavam e estalavam. Cato resistiu
ao toque por um instante, mas depois lá cedeu. Escolheram caminho por entre os clientes, com cuidado para não entornarem o vinho quente, e sentaram-se em dois bancos
baixos, junto a outros que apreciavam o calor do fogo.
- Que é que foi aquilo? - perguntou Nessa. - Parecias mesmo assustador ali ao balcão.
- Parecia? - Cato encolheu os ombros, e em seguida sorveu da sua caneca fumegante.
- Sim, parecias. Julguei que te ias a ele.
- E ia.
- Porquê? Boudica disse-me que eras do tipo calmo.
- E sou.
- Então, porquê aquilo?
- É pessoal! - replicou Cato bruscamente. Depois, rapidamente se arrependeu. - Desculpa, não queria soar assim. É só porque não quero falar disso.
- Compreendo. Então vamos falar de outra coisa.
- Por exemplo?
- Não sei. Pensa tu nalguma coisa. Fazia-te bem.
- Está bem; olha, aquele primo da Boudica, Prasutago, é assim tão perigoso quanto parece?
- Pior. Ele é mais do que um simples guerreiro. - Cato viu a expressão de medo no rosto dela. - Possui outros poderes.
- Que tipo de poderes?
- Não... não posso dizer.
- Tu e a Boudica correrão algum perigo quando ele vos vir outra
vez?
Nessa abanou a cabeça enquanto sorvia da sua caneca, deixando cair algumas gotas de vinho na parte da frente do vestido, onde brilharam por momentos à luz das chamas,
antes de serem absorvidas.
- Oh, há-de ficar vermelho de raiva e gritar um bocado, mas não mais que isso. Depois da Boudica lhe fazer olhinhos, rebolará e esperará que ela lhe faça cócegas
na barriga.
- Gosta dela, então?
- É como dizes. Está caidinho de todo. - Nessa esticou o pescoço para olhar através da sala para a amiga, que estava inclinada sobre a mesa, a palma da mão na face
de Macro, afagando-a. Voltando-se de novo para Cato, sussurrou-lhe confidencialmente, como se Boudica pudesse de alguma forma ouvi-la:
- Aqui entre nós, ouvi dizer que Prasutago se apaixonou mesmo por ela. Assim que a Primavera chegar, vai levar-nos à nossa aldeia. Não me surpreenderia que ele aproveitasse
a ocasião para pedir ao pai de Boudica permissão para a desposar.
- O que é que ela sente por ele?
- Oh, decerto que aceitará.
- A sério? Porquê?
- Não é todos os dias que o próximo rei dos icenos nos pede a mão em casamento.
Cato assentiu lentamente com a cabeça. Boudica não seria a primeira mulher que conhecia a colocar a promoção social à frente da realização emocional. Decidiu que
não contaria nada disto ao seu centurião. Se Boudica ia abandonar Macro e casar-se com outra pessoa qualquer, ela que lhe dissesse.
- É pena. Ela merece melhor.
- Claro que merece. É por isso que anda metida com o teu centurião. E também quer divertir-se tanto quanto conseguir, enquanto pode. Duvido que Prasutago lhe dê
muita liberdade quando estiverem casados.
Um estrondo repentino ressoou por trás deles. Cato e Nessa viraram-se e viram que a porta da cervejaria tinha sido aberta a pontapé. Comprimindo-se através dela,
encontrava-se um dos homens mais volumosos que Cato alguma vez vira. Ao endireitar-se, de forma desajeitada, a sua cabeça tocou no tecto de colmo. Praguejando zangado
na sua língua,
curvou-se de novo e avançou para onde pudesse manter-se erecto, e dar uma boa olhadela aos clientes em redor. Tinha bem mais que um metro e oitenta de altura, com
largura a condizer. Os músculos protuberantes sob a pele peluda dos seus antebraços fizeram com que Cato engolisse em seco, ao compreender, com um sentimento de
inevitabilidade, quem era o recém-chegado.

III

- Oh, não! - Nessa estremeceu. - Agora é que vão ser elas.
À medida que Prasutago mirava em volta os clientes que bebiam, Cato e Nessa mantiveram-se silenciosos e tentaram evitar que ele os visse, enquanto ao mesmo tempo
o iam mantendo debaixo de olho. No recanto perto da porta, Boudica e Macro estavam fora do campo de visão do recém-chegado, e ela gesticulou para que o romano se
enfiasse debaixo do banco. Ele fez que não com a cabeça. Ela abanou o dedo para baixo, insistentemente, mas o centurião manteve-se inflexível. Passou a perna sobre
o banco, pronto para enfrentar o recém-chegado. Boudica emborcou rapidamente a sua caneca e meteu-se ela própria debaixo do banco, comprimindo-se contra a parede
mais afastada de Prasutago. Ao fazê-lo, deu um safanão na mesa, e a caneca caiu da borda e fez-se em bocados no chão.
Prasutago sacou de um punhal de debaixo da capa e rodou, pronto a saltar sobre qualquer inimigo que avançasse à sorrelfa por trás dele. Ao ver Macro de pé, mediu-lhe
a estatura atarracada, e então o guerreiro iceno desatou a rir às gargalhadas.
- Estás-te a rir de quê? - rosnou Macro.
Nessa apertou o braço de Cato e disse, aflita:
- O teu amigo é louco!
- Não - sussurrou Cato. - O vosso parente é que corre perigo. Está embriagado e lixou a paciência ao Macro. É melhor ter cuidado.
Prasutago deu uma palmada pesada no ombro do centurião e disse algo conciliador na sua língua. O punhal desapareceu de novo para dentro da capa.
- Tira a mão! - rugiu Macro. - Podes ser uma viga do caraças, mas já fiz tombar homens bem mais rijos que tu.
O guerreiro ignorou-o e virou-se para os outros clientes, continuando a busca pelas suas parentes desaparecidas. Nessa tinha-se levantado Para melhor ver o confronto,
e foi demasiado lenta a esconder-se de novo.
- Ahhh! - troou o gigante, e começou a abrir caminho, afastando à bruta todos os que lhe apareciam pela frente. - Nessa!
Antes de poder considerar a sensatez da sua acção, Cato meteu-se entre os dois, de mão erguida para parar o guerreiro que se aproximava.
- Deixa-a em paz! - A voz tremeu-lhe quando se apercebeu da estupidez do seu acto.
Prasutago deu-lhe uma pancada que o afastou para um lado, agarrou Nessa pelos ombros e, como seria de esperar pela descrição do homem, começou a berrar com ela.
Cato levantou-se do chão e atirou-se ao bretão. Prasutago mal abanou. No momento seguinte, uma mão pesada bateu lateralmente na cabeça de Cato, que começou subitamente
a ver tudo branco, antes de cair como uma pedra, sem sentidos.
Junto à porta, Macro levantou-se.
- Agora passaste os limites, querido!
Meteu-se pela multidão adentro até a lareira. Atrás de si, Boudica debatia-se para sair de debaixo do banco.
- Macro! Pára! Ele mata-te.
- Ele que tente, o sacana.
- Pára! Imploro-te! - Correu atrás dele, e agarrou-o pelos ombros.
- Larga-me, mulher!
- Por favor, Macro!
Prasutago sentiu a agitação atrás de si e fez uma pausa no severo tratamento que dava a Nessa, para poder olhar sobre o ombro. De repente, afastou Nessa para um
lado e rodou o corpanzil, rugindo uma torrente de palavras numa mistura de alívio e raiva. Macro parou a curta distância do gigante, procurando em volta alguma coisa
que pudesse usar como arma, para equilibrar a contenda. Agarrou uma muleta que estava no chão, ao lado de um indígena inconsciente, e brandiu-a como se fosse um
bastão. Mas antes que pudesse dar um passo em direcção a Prasutago, uma forte pancada na parte de trás da cabeça derreou-o - Boudica tinha-lhe batido com um jarro
de barro. Atordoado e desorientado, Macro debateu-se para se colocar de gatas.
- Deixa-te estar! - sibilou Boudica. - Deixa-te estar e mantém-te calado, se sabes o que é bom para ti.
Ela avançou para o primo, de olhos a dardejar e boca cerrada em ultraje. Prasutago continuava a berrar e a agitar os enormes braços. Boudica parou em frente dele
e esbofeteou-o na cara, repetidas vezes, até a sua boca se calar e os seus braços ficarem inertes, junto ao corpo.
- Na, Boudica! - protestou ele. - Na!
Ela esbofeteou-o uma vez mais, e apontou-lhe um dedo à cara,
desafiando-o a dizer mais alguma coisa. Os olhos dele inflamaram-se e cerrou os dentes, mas não proferiu palavra. Os outros clientes assistiam em silêncio, fascinados,
à espera do próximo passo no confronto entre o guerreiro brutamontes e a altiva mulher que de forma tão destemida o desafiara. Por fim, Boudica baixou o dedo. Prasutago
fez que sim com a cabeça, e falou-lhe calmamente, com um ligeiro aceno em direcção à porta. Boudica chamou Nessa e conduziu-os para a rua. Parando um momento, Prasutago
enfrentou os clientes da taberna, desafiando quem quer que fosse a rir-se dele. Depois, afastando do caminho, com um pontapé, o optio prostrado, saiu, apressando-se
a alcançar as raparigas antes que elas desaparecessem de novo.
Todos os clientes no estabelecimento tentavam espreitar pela porta aberta, atentos a algum sinal de que o guerreiro ia voltar. A conversa reatou-se pouco a pouco;
o velho gaulês acenou com a cabeça para o segurança, e o homem foi até à porta e fechou-a. Dirigiu-se depois, despreocupadamente, até Macro.
- Estás bem, amigo?
- Já estive melhor. - Macro esfregou a cabeça e fez uma careta.
- Merda! Aquela doeu.
- Não me admira nada. Que mulher.
- Oh, sim!
- Mas salvou-te a pele. A ti e ali ao rapaz.
- Cato! - Macro apressou-se até ao optio, que estava apoiado no cotovelo, abanando a cabeça. - Ainda estás connosco?
- Não tenho a certeza, senhor. Parece que me caiu uma casa em
cima.
- Não andou longe disso! - riu o segurança. - Aquele Prasutago tem a mão muito pesada.
Cato olhou para cima.
- Oh, a sério?
O gaulês levantou Cato e limpou-lhe a palha da túnica.
- Agora, se os dois cavalheiros não se importarem, gostaria que abandonassem o local de imediato.
- Porquê? - perguntou Macro.
- Porque eu assim o digo, olha o caralho - replicou o segurança, com um sorriso. A seguir, acalmou-se um pouco. - Não se provoca assim um guerreiro iceno de elevado
estatuto. Especialmente quando bêbado. Nem quero pensar no que acontecerá ao negócio do meu patrão, se Prasutago regressar com alguns amigos e vos encontrar ainda
aqui.
- Achas mesmo que voltará? - perguntou Cato, olhando nervosamente para a porta.
- Assim que descobrir alguma ligação entre as amigas e vocês os dois. Por isso, é melhor porem-se a andar, não?
- É justo. Vamos, Cato. Vamos procurar outro sítio onde beber.
Cobrindo-se cuidadosamente com as capas, Macro e Cato curvaram-se para passar sob o lintel. O raio de luz alaranjada que incidia sobre a neve na vereda desapareceu
abruptamente quando a porta foi firmemente fechada atrás deles. Não havia sinais de Prasutago nem das duas mulheres, a não ser as marcas na neve, que seguiam pelo
beco acima.
- E agora? - perguntou Cato.
- Conheço outro sítio. Não tão bom quanto este. Mas há-de servir.
- Não tão bom...
- Queres uma bebida ou não?
- Quero, senhor.
- Então cala-te e segue-me.
Na peugada do exército romano tinham vindo comerciantes de luxúrias e vícios para satisfazer todos os gostos. Tinham chegado chulos fenícios, que montaram os seus
bordéis ambulantes na zona menos convidativa de Camaloduno. Celeiros e armazéns decrépitos tinham sido comprados ao desbarato e decorados de forma espalhafatosa,
com pinturas descritivas do que se oferecia lá dentro, juntamente com os preços. Os mais ambiciosos dos chulos também vendiam álcool a preços exorbitantes àqueles
que esperavam a sua vez. Isto levou a um crescimento no número de pequenas casas de bebida, todas elas rivalizando na atracção de clientela. E depois havia os charlatães
e mágicos do costume, garantindo cura para todos os padecimentos, desde a sífilis à impotência, e vendedores ambulantes que dispunham de uma ilimitada variedade
de artigos - espadas que nunca embotavam, amuletos que desviavam as flechas, pares de dados que 'magicamente' calhavam sempre no VI, bainhas protectoras feitas do
mais fino revestimento de estômago de cabrito. Cato já estava familiarizado com este tipo de coisas; os distritos mais insalubres de Roma estavam apinhados de comerciantes
do mesmo tipo, que ofereciam uma variedade ainda maior de prazeres carnais e remédios miraculosos.
Macro levou Cato para um edifício de madeira baixo, numa rua mal iluminada, onde um fio de desperdícios humanos corria pelo meio do caminho estreito; um desagradável
risco escuro na neve remexida. Lá dentro, o ar estava pesado com o fedor de perfume barato, destinado a afastar a mente dos clientes dos odores ainda menos agradáveis
que lhes atingiam as narinas. Os dois legionários entraram para uma sala sombria, com chão de ripas de madeira. Mesas e bancos estavam dispostas à toa pelo sítio,
e o balcão do bar repousava sobre dois barris. O proprietário e duas das suas
raparigas estavam sentados com a enfadada expressão de quem já viu tudo, pouco ajustada à decoração da parede, que mostrava desenhos de homens e mulheres rindo,
ocupados em experiências anatómicas de tremenda complexidade.
Apenas duas das mesas estavam ocupadas por alguns legionários que tinham vindo tomar uma bebida imediatamente depois de acabarem a ronda. Amontoados sobre um jarrão
de vinho, usavam algumas das novas armaduras segmentadas. No canto mais afastado estava sentado um grupo de oficiais subalternos da Segunda Legião. Um deles olhou
para os recém-chegados, e um largo sorriso espalhou-se instantaneamente pelo seu rosto.
- Macro, meu rapaz! - rugiu, num tom demasiado alto, que fez o trio que estava no bar olhar com irritação. - Vem cá para bebermos qualquer coisa.
Enquanto os outros se apertavam no banco, Macro fez as apresentações.
- Rapazes, este é o meu optio. Cato, este monte de gajos ensopados em vinho são a nata do corpo de oficiais da legião. Com uma luz melhor poderias até reconhecer
uma ou duas caras. Apresento-te Quinto, Balbo, Cipião, Fábio e Pamésio.
Os homens olharam para cima, com os olhos turvos, e cumprimentaram com a cabeça. Era evidente que já tinham bebido muito.
- Um bom grupo de rapazes - disse Macro, sentidamente. - Cumpri serviço com eles antes de se tornarem centuriões. É a primeira vez que temos oportunidade de estar
todos juntos desde que fui promovido. Um dia, se viveres tempo suficiente, estou certo de que te juntarás a nós no csenturiato, não é rapazes?
À medida que os outros rugiam a sua aprovação, Cato fez o melhor que pôde para não parecer consternado perante a possibilidade, e serviu-se de uma bebida. Era mais
uma variedade do carrascão importado da Gália, e Cato fez uma careta quando o líquido azedo lhe irritou a garganta ao descer.
- Pomada forte, hã? - Balbo sorriu. - Juntamente o tipo de coisa que te prepara para um ajuste de contas com as miúdas.
Cato não tinha intenção de ir tão longe, se as mulheres ao balcão eram representativas da profissão. Além disso, a única mulher que tinha na mente era Lavínia, e
a melhor maneira de a tirar da cabeça era, por ora, beber.
Vários copos de vinho mais tarde, os seus olhos começaram a sentir-se como se estivessem perpetuamente a andar à roda, e era pior quando os fechava. Precisava de
se concentrar em algo, e o seu olhar vagueou até
ao grupo de legionários na outra mesa e às armaduras segmentadas que usavam.
Golpeou Macro com um dedo:
- Aquilo vale alguma coisa, senhor?
- Aquilo? Qual aquilo?
- Aquele conjunto que eles envergam. Em vez da cota de malha.
- Aquilo, meu rapaz, é o novo tipo de armadura com que as legiões estão a ser equipadas.
Parnésio levantou a cabeça que tinha estado apoiada nos seus braços cruzados, e gritou como se estivesse na parada:
- Armadura, segmentada, legionários que a usam! Podes crer que é isso, miúdo!
- Ignora-o - sussurrou Macro a Cato. - Ele trabalha na secção de equipamento.
- Bem me parecia.
- Oh! Vocês aí! - gritou Macro para a outra mesa. - Cheguem cá. Aqui o optio quer ver as vossas novas armaduras.
Os legionários trocaram olhares. Finalmente um deles ripostou:
- Não pode dar-nos ordens. Estamos fora de serviço.
- Estou-me a cagar para isso. Mexam daí esses cus - gritou Macro. - e JÁ!
Primeiro um, depois os outros, levantaram-se da mesa e aproximaram-se, submissos. Mantiveram-se ao lado da mesa, enquanto os oficiais examinavam o seu equipamento
com alguma curiosidade.
- Como é que assenta? - perguntou Macro, levantando-se do banco para um exame mais próximo.
- Bastante bem, senhor - respondeu o primeiro a ter-se levantado do seu lugar. - Mais leve que a cota de malha. E mais resistente. É feita destas tiras sólidas.
- Parece uma merda. Como te consegues mexer dentro disso?
- É articulada, senhor. Ajusta-se aos movimentos.
- Não me digas. - Macro puxou pela armadura, e depois levantou a capa, atrás. Aperta-se com estas fivelas, estou a ver.
- Sim, senhor.
- Fácil de vestir?
- Sim, senhor.
- Cara?
- Mais barata que a cota.
- Como é que é isso do pessoal da Vigésima ser a única legião a receber este equipamento? Por combaterem muito não é com certeza.
Os oficiais riram-se por o legionário se ter irritado com a insinuação.
Mal conseguiu recuperar a calma o suficiente para responder:
- Não sei, senhor. Sou um mero soldado.
- Pára de lhe chamar senhor - sibilou um dos outros legionários.
- Não temos que o fazer.
- Não o consigo evitar.
- Não o faças! - disse o legionário, firmemente. - Senão que sentido tem estarmos fora de serviço?
- Tu! - Macro enfiou um dedo no peito do homem. - Vê se te calas! Falas quando te mandarem, porra, e não antes. Percebeste?
- Percebi - replicou o homem, firmemente. - Mas não obedeço a ordens.
- Ai obedeces sim, caralho! - Macro lançou o punho contra o diafragma do homem, e praguejou violentamente quando aquele colidiu com a nova armadura. Com a outra
mão, bateu-lhe na cara, fazendo-o cambalear até junto dos seus camaradas. Macro rodopiou com o impulso e foi colidir com o homem em que tinha batido, no meio do
riso geral.
- Muito bem, rapazes, postos não são para aqui chamados. Toca a malhar!
Todos os oficiais, menos Cato, se atiraram aos legionários que, tal como o optio, se limitavam a olhar estupefactos - até os primeiros golpes serem aplicados. Depois,
recuperadas as capacidades alcoolizadas, os legionários responderam ao ataque e o bar encheu-se do ruído de mesas e bancos a partirem-se. O empregado de bar apressou
as mulheres para fora da sala.
- Anda, Cato! - chamou Macro de debaixo de um legionário.
- Atira-te a eles!
De passo pouco firme, Cato fez pontaria ao legionário mais próximo e investiu num soco tão forte quanto pôde. Falhou por completo, atingindo em vez disso a parede
e raspando os nós dos dedos. Tentou de novo, e dessa vez a pancada acertou na parte lateral da cabeça de um homem, com uma sensação dolorosa, desagradável. Cato
deu conta de um punho voando na direcção da sua cara e, pela segunda vez nessa noite, viu tudo branco. Com um grunhido colocou-se de joelhos, e tentou recompôr-se,
abanando a cabeça. Quando a visão lhe voltou, viu um legionário de pé, diante dele, com um banco erguido acima da cabeça. Instintivamente atirou a cabeça com força
para a frente, acertando entre as pernas do homem. O legionário dobrou-se devido ao impacto e deixou-se cair para o lado com um uivo de dor, as duas mãos colocadas
entre as pernas.
- Bem jogado, rapaz! - rugiu Macro.
A pancada na cabeça e o excesso de vinho consumido fizeram a cabeça de Cato andar à roda de uma forma horrível. Tentou pôr-se de pé
e não conseguiu, mas, através dos gritos e do som de mobília a partir-se, conseguiu distinguir, à distância, o som de pés a marchar.
- Prebostes! - alguém gritou. - Fujam daqui!
A rixa cessou abruptamente e deu-se uma competição louca para chegar até às traseiras do bar. A porta principal abriu-se e apareceu uma esquadra de soldados de capa
negra. Cato foi posto em pé por Macro e atirado, literalmente, na direcção da pequena porta das traseiras que os outros zaragateiros já transpunham. Num turbilhão
de imagens, Cato viu-se na rua, correndo desajeitadamente atrás de Macro. O centurião separou-se do grupo principal e meteu-se por uma ruela estreita. Os sons da
perseguição já tinham diminuído quando Cato se apercebeu de que se perdera de Macro. Parou e encostou-se a uma parede de madeira, para ganhar fôlego. O mundo à sua
volta rodopiava doentiamente e ele desesperava por vomitar, mas nada mais havia dentro de si que bílis a subir-lhe à garganta.
- Macro! - chamou. - Macro!
Uma voz gritou na vizinhança, e o som de armaduras a baterem tornou a crescer.
- Merda! Que é que eu fiz?
Uma mão agarrou-o pelo braço e puxou-o para um lado, através de uma porta, para a escuridão de um edifício. Algo lhe bateu com força no estômago e Cato caiu de joelhos,
arquejando. Lá fora ouviram-se passos na neve, mas depois o som foi morrendo.
- Desculpa lá isso - disse Macro, ajudando Cato a levantar-se.
- Precisava de te calar por um momento. Não era para aleijar. Estás bem?
- Nã... não! - ofegou Cato. - Sinto-me mal!
- Deixa isso para depois. Temos coisas melhores para fazer. Chega
aqui.
Cato foi empurrado por uma porta que dava para um pequeno quarto iluminado por uma única candeia. Duas mulheres estavam sentadas num par de camas com ar andrajoso,
e sorriram mal Macro apareceu na porta.
- Cato, estas são a Broann e a Deneb. Diz olá às raparigas.
- Olá, raparigas - resmungou Cato. - Quem são elas?
- Não sei bem. Acabei de as conhecer. E como se vê, estão livres de momento. A Broann é minha. Ficas com a Deneb. Diverte-te.
Macro foi ter com a Broann, que sorria com entusiasmo treinado, um efeito que era de algum modo estragado pela falta de dentes da frente. Piscando o olho a Cato,
Macro retirou-se com ela para trás de uma cortina esfarrapada.
O optio virou-se para encarar a Deneb e viu uma mulher com a cara tão maquilhada que a sua idade era impossível de determinar. Umas
quantas rugas nos cantos da boca sugeriam uma maturidade que apontava para o dobro dos anos de vida do seu cliente. Ela sorriu e agarróu-lhe as mãos, puxando-o até
à cama. Quando Cato se ajoelhou entre as suas pernas, Deneb levou a mão ao seu vestido folgado e abriu-o ao longo do corpo, revelando um grande par de seios com
mamilos castanhos-escuros e uma rala e dura escova de pêlos púbicos. Cato olhou-a de cima a baixo por um momento. Ela fez-lhe sinal com a mão para que se aproximasse.
À medida que se acercava dos seus lábios pintados de cor púrpura, o vinho finalmente levou a melhor e ele tombou para a frente, inconsciente.

IV

O general Pláucio parecia velho e cansado, reflectia Vespasiano, enquanto via o seu comandante aplicar o sinete do anel numa série de documentos que um escrivão
do quartel-general lhe ia passando. O cheiro intenso do lacre queimado fazia-lhe impressão no nariz, e Vespasiano recostou-se na cadeira. Era típico do exército
romano que ele e Pláucio se reunissem a esta hora tardia numa noite escura de Inverno. Outros exércitos podiam passar o Inverno a amolecer nos seus boletos, mas
os homens de Roma mantinham-se em forma com exercícios regulares, e os seus oficiais preparavam minuciosamente a renovação das operações na Primavera.
A campanha anterior tinha acabado razoavelmente bem. As legiões de Pláucio tinham desembarcado numa costa hostil, e caminhado através das terras dos câncios, combatendo
constantemente; tinham atravessado o Mead Way e o Tamisa, antes de terem tomado Camaloduno, a capital da tribo dos catuvelaunos, que lideravam a confederação contra
Roma. Apesar dos consideráveis talentos do comandante inimigo, Carátaco, as legiões tinham esmagado as forças britânicas em duas batalhas amargamente disputadas.
Infelizmente, Carátaco não caíra em seu poder, e, naquele preciso momento também o chefe britânico fazia os seus preparativos para continuar a opôr-se à tentativa
de adicionar a Britânia ao vasto império de Roma.
A despeito das rigorosas condições do Inverno setentrional, Pláucio manteve a sua cavalaria activa, enviando-a em longas missões pelo coração da ilha, com ordens
explícitas para se limitar a observar o inimigo e evitar o confronto. No entanto, algumas patrulhas tinham caído em emboscadas, das quais chegava notícia através
de alguns sobreviventes assustados. Outras patrulhas desapareceram totalmente. Tais perdas eram um problema grave para um exército com uma cavalaria já de si deficitária,
mas a necessidade de informações sobre Carátaco e as suas forças era
premente. Tanto quanto o general Pláucio e o seu estado-maior puderam descobrir, Carátaco tinha retirado para montante no vale do Tamisa com o que restava do seu
exército. Nessa região, o rei dos catuvelaunos tinha estabelecido um pequeno número de bases avançadas, de onde destacamentos de quadrigas e cavalaria ligeira realizavam
ataques súbitos ao território ocupado pelos romanos. Várias colunas de abastecimento tinham sido interceptadas e a comida e equipamento levados, ficando apenas no
terreno restos de carroças queimadas e os corpos chacinados dos soldados que as escoltavam. Os bretões tinham mesmo conseguido saquear um forte que vigiava a passagem
do Mead Way, e queimado a ponte de barcas aí instalada.
Estes ataques ocasionais tinham um impacto mínimo na capacidade de luta das legiões na próxima campanha, mas levantavam o moral dos bretões, o que era uma preocupação
para o quartel-general. Muitas das tribos que no Outono passado se tinham rapidamente disponibilizado para estabelecerem pactos com Roma, mostravam-se agora mais
distantes. Um grande número dos seus guerreiros tinha-se juntado a Carátaco, repugnados com a alacridade com que os seus chefes se tinham inclinado perante Roma.
A Primavera testemunharia Pláucio e as suas legiões enfrentando um exército britânico renovado.
O ano que passara muito tinha ensinado a Carátaco sobre os pontos fortes e fracos das forças romanas. Vira a firmeza férrea das legiões, por isso não tornaria a
lançar os seus bravos guerreiros contra uma parede de escudos que não podiam quebrar. A táctica de ataque e fuga que tinha passado a empregar era uma preocupante
indicação da forma que tomaria o conflito no futuro. As legiões podiam ser as senhoras do campo de batalha, mas a sua lentidão facilmente permitiria às forças bretãs
passarem em torno e por entre elas e levar a destruição às suas linhas de abastecimento. Os bretões não voltariam a ser tão estúpidos a ponto de fazerem frente às
legiões. Em vez disso evitariam as investidas directas e flagelariam o flanco e a retaguarda das forças romanas.
Vespasiano interrogava-se se haveria forma das legiões lidarem com tais tácticas. Localizar com precisão e destruir Carátaco e os seus homens seria como tentar afundar
uma rolha com um martelo. Sorriu amargamente perante a analogia; a comparação era, infelizmente, demasiado boa.
- Pronto! - O general Pláucio fez pressão com o anel sobre o último documento. O escrivão tirou-o rapidamente de cima da mesa e pô-lo debaixo do braço, junto dos
outros.
- Apronta-os para serem imediatamente despachados. O mensageiro embarca no primeiro navio que partir pela manhã.
- Sim, senhor. É tudo por hoje, senhor?
- Sim. Logo que os despachos estiverem prontos, poderás mandar os teus escrivães de volta às casernas.
- Agradeço-lhe, senhor. - O escrivão saudou e apressou-se a sair antes que o general mudasse de ideias. A porta fechou-se e Pláucio e o comandante da Segunda Legião
ficaram sozinhos no escritório.
- Vinho? - ofereceu Pláucio.
- Seria bem-vindo, senhor.
O general Pláucio levantou-se rigidamente da sua cadeira e esticou os braços ao dirigir-se ao jarro de bronze que estava num suporte, sobre a chama delicada de uma
candeia a óleo. Ténues vapores volutearam, vindos do jarro, quando Pláucio lhe pegou e deitou generosas porções em duas taças de prata. Voltou para a secretária
e poisou-as, sorrindo com satisfação enquanto agarrava com as mãos a sua taça quente.
- Acho que nunca poderia vir a gostar desta ilha, Vespasiano. Húmida e pantanosa a maior parte do ano, Verões curtos e Invernos frios. Não é clima para homens civilizados.
Por muito que goste da carreira militar, preferia estar em casa.
Vespasiano sorriu, e assentiu com a cabeça.
- Não há lugar como ela, senhor.
- Estou determinado a fazer desta a minha última campanha - continuou o general num tom mais sombrio. - Estou a ficar velho para esta vida. É tempo de dar lugar
a uma nova geração de generais. Quero apenas voltar para a minha herdade perto de Pompeia e passar o resto dos meus dias saboreando a vista sobre a baía de Capri.
Vespasiano duvidava que o Imperador Cláudio concordasse em dispensar os serviços de um general tão experiente, mas manteve-se em silêncio para que Pláucio pudesse
desfrutar do seu devaneio.
- Parece um lugar tranquilo, senhor.
- Tranquilo? - O general franziu as sobrancelhas. - Já nem tenho a certeza se ainda sei o que a palavra quer dizer. Passei demasiado tempo no campo de batalha. Para
ser honesto, já nem estou certo se aguentaria reformar-me. Talvez seja só deste lugar. Estou aqui apenas há alguns meses e já nem o posso ver. E o raio do Carátaco
só me cria dificuldades a cada passo que dou. A sério que pensei que o tivéssemos vencido definitivamente na última batalha.
Vespasiano assentiu com a cabeça. Todos o tinham pensado. Apesar da batalha quase ter estado perdida, graças às tácticas patetas do Imperador, as legiões tinham
por fim conseguido dominar e esmagar os guerreiros nativos. Carátaco, e o que restava das suas melhores tropas, abandonara o campo de batalha. Numa situação normal,
os bárbaros teriam aceitado a derrota, e implorado a paz a Roma. Mas não estes malditos
bretões. A eles parecia-lhes muito melhor continuarem a lutar e a serem chacinados, e a ficarem com as suas terras arruinadas, do que serem pragmáticos e chegarem
a acordo com Roma. Os mais hostis de todos eram os druidas.
Alguns deles tinham sido capturados após a última batalha e estavam agora presos num aljube especial, sob forte vigilância. Vespasiano estremeceu de repulsa ao relembrar
a sua visita aos druidas. Eram cinco, envergando mantos escuros e usando amuletos de cabelo entrançado nos pulsos. O cabelo deles estava atado atrás e endurecido
com visco; o seu cheiro nauseabundo agrediu as narinas do legado, enquanto os olhava curioso do outro lado das grades de madeira. Todos tinham um crescente negro
tatuado na testa. Um dos druidas distinguia-se dos outros, um homem alto e magro, chupado de cara, e com uma longa barba branca. Impressionantes eram as suas sobrancelhas,
uma massa de espessos pêlos pretos, sob as quais uns olhos negros reluziam em profundas cavidades. Nada disse na presença de Vespasiano, manteve-se apenas de pé,
olhando ameaçadoramente para o romano, de braços cruzados e de pés firmados e ligeiramente afastados. Durante algum tempo Vespasiano limitou-se a observar os outros
druidas conversando em tom baixo e sombrio, até que o seu olhar se voltou a desviar para o líder, que não deixara de o fitar. Os finos lábios do druida abriram-se
num sorriso largo que mostrava os dentes amarelos e aguçados, que pareciam ter sido limados. Um riso seco e áspero fez calar os seus seguidores, que se viraram para
Vespasiano. Um a um, juntaram-se à zombaria. Vespasiano aguentou-a um bocado, e depois, irritado, voltou-lhes costas e afastou-se do recinto.
Estes bretões eram crianças patetas, decidiu Vespasiano, relembrando o comportamento dos líderes das tribos que tinham comparecido perante Cláudio para demonstrar
a sua lealdade após a derrota de Carátaco. Arrogantes e estúpidos, e demasiado caprichosos e vaidosos. O vazio das suas palavras de amizade começava já a tornar-se
óbvio, e muito mais sangue, deles e das legiões, seria derramado antes da ilha ser conquistada.
Que desperdício. Como sempre, o maior sofrimento caberia aos nativos que ocupavam os mais baixos patamares daquela sociedade bárbara. Vespasiano duvidava que eles
ficassem muito preocupados se a classe de guerreiros que os liderava desaparecesse e fosse substituída por Roma. Tudo o que desejavam era colheitas decentes para
aguentarem o próximo Inverno. Era esse o limite da sua ambição, e enquanto os seus suseranos resistiam a Roma, a sua precária existência seria desgastada pelas marés
da guerra que iam varrendo a terra. Proveniente de uma família que só recentemente ascendera à aristocracia, Vespasiano era sensível à realidade
daqueles que viviam longe da vista dos ricos e poderosos, e tinha pronta simpatia para com a sua situação. Não que isso o ajudasse no que quer que fosse; via-o como
mais uma prova da sua inaptidão para a posição social que possuía. Invejava discretamente a automática afectação de superioridade tão evidente na atitude e comportamento
daqueles que descendiam de famílias ancestrais da aristocracia.
Todavia, fora dessas mesmas qualidades que quase resultara a destruição de Cláudio e do seu exército. Em vez de ter tido em conta a perícia com que Carátaco resistira
a Roma até à data, o Imperador tinha encarado o comandante britânico como se este não passasse de um selvagem, com os mais rudimentares conhecimentos de táctica,
e nenhuns de estratégia. Tal deplorável avaliação do inimigo quase se verificara fatal. Se Carátaco tivesse estado no comando de um exército mais disciplinado, um
Imperador diferente estaria agora a governar em Roma. Talvez o mundo fosse melhor sem estes aristocratas perpetuamente envaidecidos, considerou Vespasiano, mas rapidamente
percebeu que tal ideia não passava de um sonho, e pô-la de parte.
Tendo percebido o erro que era lançar um exército mal treinado contra as disciplinadas colunas das legiões, Carátaco reorganizara as suas forças em pequenas colunas
ágeis, com ordens estritas para conseguir pequenas vitórias, com tão poucos custos quanto possível. Talvez assim Roma se convencesse de que os bretões davam demasiado
trabalho, e desistisse da ilha. Mas Carátaco não contara com a tenacidade das legiões. Não importava quanto tempo levasse, não importava quantas vidas custasse,
a Britânia haveria de ser adicionada ao império - pois assim o ordenara o Imperador. Era essa a simples verdade das coisas. Enquanto Cláudio fosse vivo.
Pláucio voltou a encher a sua taça e ficou a olhar para o vinho condimentado.
- Temos que tratar do Carátaco. A questão é: como? Ele não quererá arriscar-se noutra batalha campal, independentemente de quantos homens mais tenha recrutado. E
nós não podemos dar-nos ao luxo de o evitar e avançarmos mais para o coração da ilha. Chacinar-nos-ia antes do fim da próxima campanha. Carátaco tem que ser eliminado
antes da província poder ser pacificada. É esse o nosso objectivo imediato.
Pláucio olhou para cima e Vespasiano assentiu com um acento.
O general esticou-se para um dos lados da secretária para alcançar um grande rolo de velino e, com cuidado, desenrolou o mapa até ficar aberto entre ele e o legado.
Grande parte das notas a tinta preta estavam bem nítidas, já que tinham sido adicionadas ao longo do Inverno, à medida que as patrulhas de cavalaria forneciam mais
e mais informação sobre a
configuração do terreno. Vespasiano estava impressionado com os detalhes do mapa, e disse-o.
- Está bom, não está? - respondeu o general, com um sorriso de satisfação. - Estão a ser preparadas cópias para si e para os outros legados. E espero que comunique
de imediato ao meu quartel-general se encontrar mais alguma coisa que mereça ser anotada.
- Sim, senhor - disse Vespasiano, antes de compreender todas as implicações da ordem que recebera. - Segundo entendi, a Segunda irá operar independentemente do resto
do exército assim que atravessarmos de novo o Tamisa?
- Claro. Por isso destacar-vos-ei logo que possível. Quero-o a si e à sua legião prontos para marcharem contra Carátaco assim que começar a época de campanha
- Quais são as ordens?
O general Pláucio sorriu outra vez.
- Pensei que apreciaria uma oportunidade para me mostrar do que você e os seus homens são capazes. Muito bem, é bom ver que lhe apraz. - Apontou um dedo para sul
do estuário do Tamisa. - Caleva. Eis onde se estabelecerão até à Primavera. Já coloquei sob o seu comando parte da armada do canal. Juntar-se-ão a vocês assim que
o Verão começar. Servir-vos-ão para obterem abastecimentos durante a campanha, e para manter o rio livre de inimigos. E enquanto você bloqueia o acesso à parte sul
da ilha, eu vou forçar o Carátaco a abandonar o vale do Tamisa, em direcção ao norte. Pelo fim do ano já devemos ter empurrado a frente até uma linha que irá da
costa oeste aos pantanais dos icenos.
- Para esse fim utilizarei a Décima Quarta, a Nona e a Vigésima Legiões, avançando pelo norte do vale do Tamisa. A maior parte dos ataques súbitos das colunas nativas
vêm dessa direcção. Entretanto, a Segunda Legião atravessará de novo o rio e avançará pela margem sul. Deverá fortificar quaisquer pontes ou vaus por que passar.
Isso significará entrar no território dos durotriges, mas teríamos que os enfrentar mais cedo ou mais tarde. Os relatórios dizem que eles possuem algumas fortificações
em cumes de montes, alguns dos quais terão de ser tomados, e rapidamente. Acha que consegue dar conta disso?
Vespasiano considerou a situação.
- Não deve ser um grande problema, desde que tenha artilharia suficiente. Mais do que a que tenho agora.
Pláucio sorriu.
- É o que todos os meus legados dizem.
- Talvez, senhor. Mas se quer que eu tome esses fortes, e guarde os locais de travessia do Tamisa, então precisarei de artilharia.
Pláucio assentiu.
- Muito bem. Tomo nota do seu pedido. Verei o que se pode fazer. Vamos lá voltar ao plano. O objectivo é cercar Carátaco pouco a pouco, e obrigá-lo a dar batalha,
ou a continuar em retirada, para longe das nossas linhas de abastecimento, e do território que já ocupámos. Acabará por não ter para onde fugir e será forçado a
lutar connosco, ou a render-se. Alguma pergunta?
Vespasiano olhou para o mapa, projectando sobre ele os movimentos que o general tinha acabado de descrever. O plano parecia correcto em termos estratégicos, se bem
que ambicioso, mas a perspectiva de dividir o exército era preocupante, especialmente por não haver nenhuma informação precisa sobre o tamanho do novo exército de
Carátaco. Nada garantia que o líder britânico não optasse por operações mais convencionais para enfrentar uma legião isolada. Se a questão era evitar que Carátaco
se escapulisse para o sul do Tamisa, teria de haver uma força preparada para lhe negar a travessia em todos os pontos em que tal era possível, e esse papel tinha
calhado à Segunda. Vespasiano olhou para cima.
- Porquê nós, senhor? Porquê a Segunda?
O general Pláucio fitou-o por um momento antes de responder.
- Não tenho de lhe dar justificações, Legado. Apenas ordens.
- Sim, senhor.
- Mas preferiria que eu o fizesse.
Vespasiano não disse nada, desejando deixar a impressão correcta do soldado imperturbável, embora ardesse de curiosidade. Encolheu os ombros.
- Estou a ver. Muito bem, Legado, as ordens serão entregues por escrito no seu quartel-general amanhã de manhã. Suponho que queira partir cedo, se o tempo estiver
bom.
- Sim, senhor.
- Ainda bem. Agora, acabemos o vinho. - Pláucio encheu ambas as taças e levantou a sua num brinde. - Que a campanha termine rapidamente, e que gozemos uma bem merecida
licença em Roma!
Beberam um gole de vinho tépido. Pláucio sorriu ao seu subordinado.
- Imagino que lhe agrade a ideia de voltar para a sua esposa.
- Mal posso esperar - replicou Vespasiano calmamente, ciente da comoção que qualquer menção à sua esposa lhe causava. Tentou desviar a atenção do general. - Calculo
que também deseje regressar ao convívio com a sua família.
- Ah! Aí estou em vantagem. - Os olhos de Pláucio brilharam maliciosamente.
- Senhor?
- Não necessito de voltar a Roma para os ver. Eles vieram ter comigo. Na verdade, devem estar a chegar, mais dia, menos dia...

V

O gelo cobria o solo quando a Segunda Legião se pôs em marcha através dos portões do vasto aquartelamento. O mar de lama que se tinha formado para lá dos baluartes
de turfa durante os meses húmidos do princípio do Inverno tinha gelado até ficar com a consistência de uma rocha, e estava agora coberto por um denso manto de neve
que se compactava sob os pés dos legionários. Os tocos das árvores cortadas reluziam sob a sua capa de gelo brilhante, e marcavam o caminho para oeste, até ao distante
Tamisa. Acima do horizonte claramente definido por trás da legião, o sol brilhava num céu de intenso azul, como só um dia límpido de Inverno pode produzir.
O ar estava tão frio que só o facto de respirar fundo fazia alguns dos homens tossir à medida que caminhavam carregados de equipamento. Sob as suas botas ferradas,
a neve era triturada e o gelo quebrado. Os menos seguros dos seus passos, na retaguarda da coluna, escorregavam e lutavam para manterem o equilíbrio enquanto seguiam
a densa massa da legião. Na frente, batedores a cavalo destacavam-se e percorriam a trote a paisagem branca que se abria à frente da legião, deixando pequenos jorros
de neve cintilante atrás de si. Os cavalos, revigorados pelo ar cortante e pela oportunidade de praticar algum exercício, mordiam o freio, espevitados. As pequenas
nuvens provenientes da respiração dissipavam-se ao longo de toda a coluna de homens e bestas, enquanto seguiam as sombras oblíquas à sua frente, bem nítidas sobre
a neve.
Cato sentia uma alegria difícil de expressar por estar vivo num momento assim. Depois dos longos meses enclausurado no vasto acampamento com as outras legiões, apenas
com as curtas rondas, os enfadonhos exercícios e treinos com armas para contrariar o tédio da rotina diária, a marcha de hoje era uma libertação. Os seus olhos percorreram
a paisagem, bebendo da beleza perfeita do campo britânico em finais de Inverno. Bem envolto na capa, e com as luvas de lã calçadas, depressa o aqueceu o passo
firme da marcha. Até mesmo os seus pés, que lhe tinham doído horrivelmente quando a legião se reunira à primeira luz da manhã, se sentiram confortáveis, após a primeira
milha percorrida. A sua boa disposição era apenas ligeiramente temperada pela expressão carrancuda no rosto do seu centurião, que marchava a seu lado, à frente da
Sexta Centúria da Quarta Coorte. Macro sentia já a falta das casas de bebida e da vida regalada de Camaloduno.
O sentimento era mútuo. De uma só vez, partiam cerca de um quarto dos clientes habituais desses estabelecimentos. Os empresários que tinham invadido a cidade vindos
dos portos da Gália depressa regressariam ao continente, assim que o resto do exército começasse os seus preparativos para reiniciar a guerra contra Carátaco e os
seus aliados. A depressão de Macro não era totalmente provocada pela negação dos prazeres oferecidos pelos fornecedores de bebidas e mulheres. Partia, e as coisas
com Boudica não tinham ficado bem.
A seguir à noite em que Boudica e Nessa tinham fugido de Prasutago, os parentes das raparigas tinham resolvido evitar mais saídas delas com soldados romanos. Apenas
uma vez se tinham voltado a encontrar, e muito brevemente. Um abraço rápido nas traseiras de um estábulo, com póneis e gado olhando-os curiosos, mastigando as suas
rações de Inverno. Macro tentara tirar o máximo partido da ocasião - demasiado até para o gosto da jovem icena. Quando lhe sentiu os dedos demasiado íntimos para
o seu gosto, esquivou-se ao seu abraço apaixonado, afastou-se para trás, sobre a palha, e deu-lhe uma bofetada.
- Para que é que fizeste essa merda? - perguntou Macro, alarmado.
- Que tipo de rapariga pensas tu que eu sou? - redarguiu ela.
- Não sou nenhuma prostituta barata!
- Nunca disse que o eras. Estava só a aproveitar bem a situação. Pensei que estivesses a fim disso.
- A fim disso? Que tipo de convite é esse?
Macro encolheu os ombros.
- O melhor que se pôde arranjar.
- Estou a ver. - Boudica olhou-o ameaçadoramente durante um momento, e Macro afastou-se dela, amuado e mal disposto. Ela teve pena, aproximou-se e acariciou-lhe
a face. - Desculpa, Macro. Não me apetece fazer nada com todos estes animais a olharem. Demasiado público para o meu gosto. Não que eu não queira, mas tinha planeado
algo um pouco mais romântico.
- Porque raio é que um estábulo não há-de ser romântico? - queixou-se Macro.
E foi aí que as coisas arrefeceram subitamente. Sem uma palavra, Boudica arranjou rapidamente a túnica e a capa, voltando a esconder os seios. Lançando um último
olhar zangado a Macro, pôs-se de pé e saiu decidida do estábulo. Ele tinha ficado furioso por ter sido abandonado daquela maneira, e recusara-se, por uma questão
de princípios, a ir atrás dela. Agora arrependia-se amargamente. Antes de Camaloduno desaparecer de vista, ao passarem para o lado mais distante de uma serrania
baixa, Macro olhou para trás, pesarosamente. Ela estava ali, algures entre os telhados de colmo cobertos de neve que jaziam sob a longa e baixa nuvem de fumo. Ele
tinha desenvolvido sentimentos tão profundos por aquela fogosa nativa, que o seu sangue ardia de desejo à mínima lembrança da proximidade física com ela. Amaldiçoou-se
por ser um idiota romântico, e desviou o olhar da cidade, passando-o pelos elmos da sua centúria, até chegar ao optio.
- Estás-te a rir de quê?
- A rir-me, senhor? Não me estou a rir.
Nas fileiras da Segunda Legião havia farta especulação sobre a missão que os esperava. Alguns homens até se questionavam se a legião estava a ser retirada da ilha,
agora que Carátaco tinha sido completamente derrotado. Os legionários mais experientes grunhiam o seu desprezo contra tais rumores; os rápidos e inesperados ataques
que os bretões faziam às forças romanas desde o Outono, provavam que os nativos não tinham ainda sido vencidos. Os veteranos conheciam bem a natureza da campanha
que tinham pela frente: um exaustivo e perigoso período de avanço e consolidação contra um inimigo astuto, que conhecia o terreno intimamente e que apenas emergiria
do seu esconderijo para lutar quando a vantagem fosse totalmente sua. A ameaça de um ataque nunca os abandonaria. Muito provavelmente, os legionários destinados
a morrer durante a campanha nunca haveriam de ouvir a flecha que os mataria, nunca haveriam de ver o dardo a ser lançado, ou o punhal espetado nas costas ao fazerem
uma simples patrulha em redor de um acampamento. O inimigo mais não seria que uma sombra vigiando as poderosas legiões, raramente visto, mas sempre pressentido.
Este tipo de guerra era bem mais difícil que uma dura marcha e uma batalha desesperante. Requeria uma tenacidade que apenas as legiões poderiam proporcionar. A perspectiva
de vários anos de campanha a percorrer a brumosa vastidão da Britânia azedava as mentes dos veteranos, à medida que a Segunda Legião marchava em direcção à sua nova
base de operações.
O amargo tempo do mês de Março não abrandou durante dois dias,
mas ao menos o céu permaneceu limpo. Ao fim de cada dia, Vespasiano insistia que se construísse um acampamento de marcha em face do inimigo que implicava a escavação
de um fosso externo de três metros e meio de profundidade e a construção de um baluarte de terra com três metros, para proteger a legião e o comboio das bagagens.
No final do dia de marcha, os exaustos legionários tinham que trabalhar duramente pela noite fora para quebrar o solo gelado com as ferramentas para abrir trincheiras.
Somente quando as fortificações estivessem terminadas é que os homens, enfiados nas suas capas, poderiam fazer fila para receberem a sua fumegante ração de papa
de cevada e porco salgado. Mais tarde, de barrigas já cheias e membros aquecidos no calor das fogueiras do acampamento, os homens arrastavam-se para o interior das
suas tendas de pele de cabra e enroscavam-se debaixo de todos os cobertores que possuíam. Voltavam a emergir com a luz azul-pálida da madrugada para enfrentar um
mundo coberto de gelo, que reluzia ao longo das dobras das tendas e das cordas que as firmavam. Os homens encolhiam-se para se protegerem das cruas manhãs de Inverno
antes dos oficiais os despertarem para a vida com ordens para desmontarem as tendas e se prepararem para o dia de marcha.
No terceiro dia, o tempo instável da ilha tornou-se mais ameno e o denso manto branco de neve começou lentamente a afrouxar o seu jugo sobre a paisagem. Enquanto
os legionários davam as boas-vindas ao calor do sol, a fusão da neve depressa transformou o caminho num lamaçal glutinoso, que sugava as rodas das carroças e as
botas da infantaria. Foi com algum alívio que, no quarto dia, desceram a pequena ladeira que dava para o vale do Tamisa e avistaram imediatamente os baluartes da
enorme base militar construída no Verão anterior, quando as legiões tinham realizado a primeira travessia do grande rio. A base estava agora guarnecida por quatro
coortes de auxiliares batavos(2). A infantaria dos batavos fora ali deixada enquanto os esquadrões de cavalaria patrulhavam o vale, procurando e perseguindo qualquer
dos grupos de ataque de Carátaco que encontrassem. No interior da base, as provisões tinham-se acumulado ao longo de todo o Inverno, já que os navios provenientes
da Gália continuavam a atravessar o canal até Rutúpias sempre que o tempo o permitia. Dali, as barcaças subiam o estuário do Tamisa, transportando as provisões até
à base que ladeava o rio. A última parte da linha de abastecimento era constituída por pequenas colunas de carroças, que faziam o seu percurso sob forte vigilância
até aos postos avançados, guarnecidos por pequenos destacamentos de tropas auxiliares.
Esta linha de defesa tinha sido organizada pelo general Pláucio, para manter Carátaco à distância. Uma vã tentativa, que saíra furada. Pequenos corpos de tropas
inimigas penetravam regularmente nas linhas romanas,
(2) Os batavos eram uma tribo germânica, que cedo se aliou ao Exército Imperial Romano. Eram excelentes cavaleiros e exímios nadadores.(Nota da correctora) 53

a coberto da noite, para atacarem as caravanas de abastecimento e para se vingarem das tribos que tinham passado para o lado do invasor. De vez em quando dava-se
um ataque mais ousado, e eram chacinadas as diminutas guarnições de uma série de postos avançados. Quase não passava um dia sem que uma mancha de fumo distante no
céu limpo de Inverno indicasse mais um ataque a uma coluna de abastecimento, a uma aldeia nativa ou a um posto avançado romano. Os comandantes das coortes auxiliares,
encarregados de defenderem a área, nada mais podiam fazer do que contemplar com desespero a evidência do falhanço do plano para conter Carátaco e dos seus homens.
Antes da Primavera chegar, e do tempo melhorar, o ponderoso peso das legiões romanas não poderia ser de novo lançado contra os bretões.
A chegada da Segunda Legião ao acampamento no Tamisa proporcionou-lhes apenas uma breve pausa no trabalho diário de construção de um acampamento provisório. No dia
seguinte, o legado ordenou que atravessassem a ponte para a margem sul. Só nessa altura é que as mentes com maiores capacidades estratégicas nas fileiras se começaram
a aperceber do papel da legião na campanha que se avizinhava. Uma vez na margem sul, a legião virou para oeste e avançou rio acima durante mais dois dias, por um
caminho que os engenheiros tinham grosseiramente preparado com uma mistura de troncos de árvores e ramos. O caminho, depois, virou para sul, e no princípio da tarde
do terceiro dia a legião encontrou-se no sopé abrigado de um longo monte. Seria a partir dali que a Segunda Legião iniciaria o seu ataque ao território dos durotriges,
assim que a época de campanha começasse.
Enquanto a caravana com a bagagem e as carroças com a artilharia eram duramente manobradas pela ladeira enlameada acima, o corpo principal da legião marchava até
ao extenso cume do monte. Foram dadas ordens para que descarregassem os fardos e começassem a entrincheirar. Enquanto os homens da Sexta Centúria começavam a trabalhar
na sua secção do fosso defensivo, o centurião Macro olhou para sul.
- Ó Cato! Aquilo ali não é uma cidade ou coisa parecida?
O optio foi ter com ele e olhou para onde o outro apontava. A algumas milhas de distância uns fios finos de fumo subiam em redemoinho, quase invisíveis contra a
densa escuridão do anoitecer de Inverno que se aproximava. Podia ser uma ilusão de óptica, mas Cato pensou que via as linhas ténues de uma povoação nativa de alguma
dimensão.
- Julgo que seja Caleva, senhor.
- Caleva? Sabes alguma coisa sobre a cidade?
- Estive a falar com um mercador em Camaloduno, senhor, que tem um entreposto na costa. Fornece vinho e cerâmica aos Atrébates.
Estamos no território deles, e Caleva é a capital da tribo. É a única povoação que se veja, segundo o mercador.
- E o que é que ele estava a fazer em Camaloduno?
- Estava a ver se expandia o negócio. Tal como os outros como
ele.
- Disse-te alguma coisa útil ali sobre os nossos amigos?
- Útil, senhor?
- Se são leais, como é que são numa luta. Esse tipo de coisa útil.
- Ah, estou a ver. Só disse que os atrébates são amigáveis para com ele e os outros mercadores. E agora que o general voltou a colocar o rei Vérica no trono, devem
ser leais a Roma.
Macro fungou.
- Esse dia ainda está para vir.

VI

O dia seguinte foi passado na construção das fortificações do acampamento principal da legião, e na instalação de uma série de postos avançados a norte, sobranceiros
ao Tamisa, e a oeste, para prevenir incursões por parte dos durotriges. Na manhã a seguir à sua chegada, um grupo de cavaleiros aproximou-se do acampamento, vindo
da direcção de Caleva. A coorte de serviço foi imediatamente mandada para as muralhas, e a notícia foi levada ao legado. Vespasiano apressou-se até à torre de vigia
e, arquejando fortemente por causa da subida apressada, olhou para a colina. A pequena coluna de cavaleiros trotava com indiferença em direcção ao portão, e na sua
vanguarda esvoaçava um par de estandartes, um com uma serpente britânica, o outro com a insígnia de um vexilo(3) romano destacado da Vigésima Legião.
O ranger da escada anunciou a chegada do tribuno superior da legião. Gaio Plínio tinha sido recentemente destacado para essa posição, substituindo Lúcio Vitélio,
que seguia agora a caminho de Roma e de uma brilhante carreira como um dos favoritos do Imperador.
- Quem é, senhor?
- Vérica, imagino.
- E os nossos?
- A sua guarda pessoal. O general Pláucio enviou uma coorte da Vigésima para apoiar a causa de Vérica, quando ele reclamou o trono. - Vespasiano sorriu. - No caso
dos atrébates decidirem que ficariam mais felizes sem o seu novo senhor. É melhor ir ver o que eles querem.
O tosco portão de madeira abriu-se para dentro para que os cavaleiros entrassem. Sobre o solo lamacento, num dos lados do caminho, uma centúria apressadamente reunida
formava para receber os hóspedes. À frente da coluna montava um homem alto com o cabelo cinzento caindo solto. Vérica tinha sido um homem imponente na sua juventude,
mas a idade e os anos de desgaste no exílio tinham-no reduzido a uma figura frágil e
(3) Objecto em forma de bandeira, utilizado no período clássico do Império Romano como estandarte. (Nota da Correctora)
arqueada, que desmontou com lassidão do seu cavalo para cumprimentar Vespasiano.
- Bem-vindo, Majestade! - saudou Vespasiano, e, após uma breve hesitação, Plínio seguiu o exemplo do legado, engolindo a sua aversão por tal deferência para com
um mero nativo, embora rei do seu povo. Vérica caminhou rigidamente até ao legado e apertou o antebraço que lhe foi estendido.
- Saudações, Legado! Espero que o Inverno tenha sido gentil para si e para os seus homens.
- Ainda não deu cabo de nós. - Vespasiano acenou com a cabeça para a lama escorregadia que havia por todo o lado.
- Nem queríamos que fosse doutro modo! - sorriu Vérica, contente com a piada. Depois virou-se para os cavaleiros, cujas bestas excitadas se mostravam impacientes
e resfolegavam perante o ambiente pouco familiar. - Centurião! Podes ordenar aos homens que desmontem. Depois, por favor, junta-te a nós!
Ao lado do porta-estandarte que segurava o vexilo, um oficial romano saudou e rapidamente deu a ordem.
Vespasiano virou-se para o seu tribuno superior:
- Plínio, vê se lhes arranjas algo que os aqueça.
- Sim, senhor.
- Agradeço-lhe, Legado. - Vérica sorriu. - Também gostaria de uma bebida. Julgo que me lembro de ter tido uma certa empatia por um vinho de Falerno que você tinha
da última vez que estivemos juntos.
- Com certeza, Majestade. Ainda tenho um pouco. - Vespasiano obrigou-se a sorrir. Já só existia uma escassa quantidade desta colheita superior nos seus armazéns
privados, e chateava-o ter de partilhá-lo. Mas as ordens do general Pláucio tinham sido explícitas: todos os esforços deveriam ser feitos para que se mantivessem
as boas relações com os aliados que Roma tinha feito entre as tribos desta ilha. O sucesso ou fracasso da invasão estava na corda-bamba, já que Roma mostrava grande
parcimónia na atribuição de tropas para o desempenho dessa tarefa. Pláucio não se atreveria a avançar sem ter a certeza que os seus flancos estavam protegidos por
tribos leais a Roma. Por isso, cada homem do seu exército, independentemente do posto que possuía, teria que se comportar com a maior cortesia na presença das tribos
aliadas a Roma, ou sofrer a ira do general. O que incluía fornecer vinho de Falerno àqueles que viam a bebida puramente pela sua capacidade inebriadora.
- Presumo que já conheça o centurião Públio Pólio Albino. - Vérica apontou para o oficial que se dirigia a passos largos para eles. O
centurião atirou uma saudação ao legado e colocou-se em sentido à retaguarda do rei.
- Centurião. - Vespasiano cumprimentou com um aceno de cabeça, antes de se virar de novo para o seu hóspede.
- Albino é um dos melhores. Espero que vos tenha servido bem.
- Não me posso queixar.
Vespasiano olhou para Albino, mas a expressão do centurião não se alterou perante o fraco elogio que recebera, justificando assim a escolha do general para uma tarefa
que requeria um alto grau de tacto diplomático e tolerância.
- Como vão os treinos dos seus homens, majestade?
- Vão bem. - Vérica encolheu os ombros, claramente nada preocupado com os esforços de Roma para garantir uma estrutura estável ao seu governo. - Estou demasiado
velho para me interessar por questões militares. Mas atrevo-me a dizer que o centurião Albino está a fazer um bom trabalho. Com a qualidade dos efectivos da minha
tribo, não terá grandes problemas em produzir um eficaz corpo de homens para assegurar que a minha vontade é executada. Hã, centurião?
- Não me posso queixar, Majestade.
Vespasiano disparou-lhe um olhar admoestador, mas o centurião manteve o olhar fixo e inexpressivo.
- Sim, bem, penso que nos podíamos retirar para o interior bem mais agradável das minhas tendas. Se me seguirem.

Sentados em volta de um braseiro de bronze, com um novo toro crepitando sobre os tições incandescentes, Vespasiano e os seus dois hóspedes bebiam vinho de taças
de prata e absorviam o calor. À sua volta, pedaços de lama manchavam os finos padrões dos tapetes entrançados espalhados pelo chão de placas de madeira, e Vespasiano
praguejava para dentro à necessidade de ter de ser tão fiel às ordens do seu comandante sobre a hospitalidade para com os nativos.
- Como está o general Pláucio? - perguntou Vérica, aproximando-se do braseiro.
- Está bom, Majestade. Ele manda cumprimentos e espera que esteja bem de saúde.
- Oh, tenho a certeza de que ele está realmente preocupado com isso! - Vérica soltou um riso abafado. - Eu não lhe seria muito útil se estivesse morto. Os Atrébates
não derramaram lágrima alguma quando Carátaco me expulsou, e pouca afeição houve nas boas-vindas quando me
viram regressar com uma guarda pessoal romana. Quem quer que me suceda, terá muito mais sucesso na conquista do coração das nossas gentes se anunciar uma aliança
com Carátaco em vez do vosso Imperador Cláudio.
- Os Atrébates arriscar-se-iam às terríveis consequências de permitirem que um tal homem reclamasse o vosso trono?
- O trono pertence-me porque o vosso Imperador assim o quis
- veio a calma resposta.
Vespasiano julgou ter detectado um traço de amargura no tom do velho. Se Vérica fosse mais novo, teria provocado alguma preocupação ao legado. Mas a idade parecia
ter criado um desejo de paz e serenado a ardente ambição que alimentara as brilhantes realizações do jovem Vérica. O rei britânico sorveu um pouco de vinho antes
de continuar.
- Roma terá paz com os Atrébates enquanto o centurião Albino e os seus homens estiverem por cá para garantirem que a palavra do Imperador é respeitada. Mas com Carátaco
à solta, e movendo-se à vontade por entre as legiões para punir as tribos cujos líderes passaram para o vosso lado, poderá compreender por que é que alguns do meu
povo desafiam a minha lealdade para com Roma.
- Sim, claro, compreendo isso, Majestade. Mas decerto que os poderá fazer ver que as legiões acabarão por esmagar Carátaco. O resultado não poderá ser outro. Disso
estou eu certo.
- Ah, sim? - Vérica ergueu as sobrancelhas, e abanou a cabeça em sinal de escárnio. - Nada nesta vida é certo, Legado. Nada. E menos ainda, talvez, a derrota de
Carátaco.
- Ele será derrotado muito em breve.
- Então veja lá isso, ou não poderei responder pela lealdade do meu povo. Em particular, devido ao raio daqueles druidas a agitarem as coisas ainda mais.
- Druidas?
Vérica assentiu.
- Tem havido alguns ataques a pequenas aldeias e povoados na costa. A princípio pensámos que fosse um pequeno grupo de durotriges. Quer dizer, até nos terem dado
informações mais detalhadas. Ao que parece estes atacantes não se contentaram com o mero roubo e algumas mortes. Nada foi poupado. Nem um só homem, mulher ou criança.
Nem os animais. Cada casa, cada cabana, independentemente de quão humilde, foi queimada. E o pior ainda estava para chegar. - Vérica fez uma pausa para dar mais
uma golada no seu vinho, e Vespasiano reparou que a mão que segurava a taça tremia. Vérica emborcou a taça, e rapidamente fez sinal a Albino para que lha enchesse.
Fez sinal para parar apenas quando o vinho tinto quase tinha chegado à borda.
- É melhor seres tu a contar, Albino. Afinal, estiveste lá. Tu viste.
- Sim, Majestade.
Vespasiano deu a sua atenção ao centurião, um homem cheio de cicatrizes e bem marcado pelo tempo de carreira. Albino era magro, mas os músculos do seu antebraço
estavam bem definidos. Tinha o aspecto de quem pouca coisa conseguia chocar, e falava da forma brusca e inexpressiva de um profissional calejado.
- Depois de se ter sabido em Caleva dos primeiros ataques, aqui o rei enviou-me com uma centúria para investigar, senhor.
-Uma centúria apenas? - Vespasiano estava horrorizado. - Isso está longe do tipo de precaução a que o exército se dá, Centurião.
- Pois está, senhor - replicou Albino, com uma leve inclinação de cabeça indicando Vérica, que estava ocupado a dar mais uma grande golada no vinho de Falerno do
legado. - Mas julguei prudente que o resto da coorte ficasse e continuasse a tratar dos interesses do rei.
- Sim, com certeza. Continue.
- Sim, senhor. A dois dias de marcha de Caleva, encontrámos o que restava de uma aldeia. Examinei a área com cuidado antes de nos aproximarmos. É como o rei Vérica
diz, nada ficou vivo, nem sequer uma única casa ficou de pé. Mas só encontrámos uns quantos cadáveres, todos homens, senhor.
- Devem ter levado os outros como prisioneiros.
- Foi o que eu pensei, senhor. Havia alguma neve no solo, pelo que pudemos seguir-lhes o rasto muito facilmente. - Albino interrompeu-se para olhar directamente
para o legado. - Não tinha intenção de fazer nada estúpido, senhor. Quis apenas ver de onde tinham eles vindo, para depois fazer um relatório completo.
- Muito bem.
- Seguimos então o rasto por mais um dia, até que, mesmo antes do anoitecer, avistámos fumo vindo de um pequeno monte. Pensei que fosse outra aldeia a ser saqueada.
Rastejámos pela encosta acima, silenciosamente, e depois ordenei aos homens que ficassem onde estavam enquanto eu continuava sozinho. A princípio ouvi mulheres e
crianças a gritarem, depois o próprio fogo, não muito longe do cume do monte. Já era noite cerrada quando me consegui aproximar o suficiente para ver o que se passava.
- Fez uma pausa, sem saber como continuar sob o minucioso exame do seu superior, e olhou num ápice para Vérica, que tinha parado de beber e olhava o centurião com
uma expressão assustada, mesmo já tendo ouvido a história antes.
- Então, desembuche, homem! - ordenou Vespasiano, que não estava com disposição para cenas dramáticas.
- Sim, senhor. Os druidas construíram um enorme boneco, feito de verga e ramos entrelaçados. Era oco, e encheram-no com todas as mulheres e crianças. Já ardia bem
quando vi o que se estava a passar. Alguns dos que estavam lá dentro ainda gritavam. Porém, não por muito tempo...
- Premiu os lábios, e ficou, por momentos, cabisbaixo. - Os druidas ficaram a olhar ainda por algum tempo, depois montaram e saíram dali, pela noite. Como sombras,
envoltos em mantos pretos. Portanto, juntei-me aos meus homens e regressámos imediatamente a Caleva, para participar.
- Esses druidas!
De preto, dizes?
- Sim, senhor.
- Mais alguma característica que os distinguisse, ou insígnia?
- Estava a anoitecer, senhor.
- Mas havia fogo.
- Eu sei, senhor. Eu vi-o...
- Tudo bem. - Vespasiano percebia, mas era decepcionante que um centurião veterano se deixasse distrair dos detalhes importantes. Voltou-se para Vérica.
- Li algo sobre os sacrifícios humanos dos druidas, mas isto deve ter outro significado. Talvez um aviso sobre o destino que espera aqueles que estão do lado de
Roma?
- Talvez. - Vérica assentiu. - Quase todos os os cultos druídicos se juntaram a Carátaco. E agora, ao que parece, até os do Tugúrio da Lua Negra.
- Lua Negra? - Vespasiano franziu o sobrolho por um instante, até que a memória das instalações para os prisioneiros, no exterior de Camaloduno, se transformou numa
imagem clara na sua mente. - Esses druidas têm um crescente negro na fronte, não têm? Uma espécie de tatuagem. Uma lua negra.
- Conhece-los? - As sobrancelhas de Vérica ergueram-se.
- Conheci alguns. - Vespasiano sorriu. - Hóspedes do general Pláucio. Fizemo-los prisioneiros após a derrota de Carátaco junto a Camaloduno. Agora que penso nisso,
foram os únicos druidas que capturámos. Os outros estavam todos mortos, a maior parte pelas próprias mãos.
- Não me surpreende. Vocês, romanos, não são conhecidos por serem tolerantes com os druidas.
- Isso depende de quem é o Imperador na altura - respondeu Vespasiano, irritado. - Mas se os druidas preferem a morte ao cativeiro, porque é que os Lua Negra se
deixaram aprisionar?
- Acreditam serem os escolhidos. Não têm permissão para se matarem.
São os servos de Cruach, aquele que traz a noite. A seu tempo, assim reza a lenda,, erguer-se-á e quebrará o dia em mil bocados, e remará para sempre sobre um mundo
de trevas e sombra.
- Parece desagradável. - Vespasiano sorriu. - Não posso dizer que me interesse conhecer esse Cruach.
- Os seus servos já são suficientemente tenebrosos, como Albino pôde verificar.
- É verdade. Questiono-me por que será que as tribos desta ilha os toleram.
- Por medo - disse Vérica prontamente. - Se Cruach alguma vez vier, o sofrimento daqueles que o veneram não será nada comparado com os eternos tormentos dos que
prejudicaram os seus servos e zombaram dele.
- Estou a ver. E qual é a sua posição quanto à questão, Majestade?
- Acredito naquilo que é importante para o meu povo pensar que eu acredito. Por isso rezo a Cruach, assim como aos outros deuses, as vezes que forem precisas. Mas
os seus sacerdotes, esses druidas, são outra história. Enquanto atacarem as minhas aldeias e chacinarem o meu povo, posso mostrá-los como extremistas. Fanáticos
perversos que adoram o mais terrível dos nossos deuses. Duvido que muitos dos atrébates, ou de qualquer outra tribo, derramem quaisquer lágrimas se esta facção particular
de druidas for completamente exterminada. - Desviou o olhar de Vespasiano, para o coração do fogo incandescente. - Espero que Roma resolva a questão o mais depressa
possível.
- Não há ordens específicas a respeito de druidas - respondeu Vespasiano. - Mas o general deixou claro que quer as terras dos Atrébates em segurança antes da campanha
da Primavera começar. Se isso significa ter de lidar com esses druidas da Lua Negra, então os nossos interesses coincidem.
- Ainda bem. - Vérica pôs-se de pé, e os romanos, educadamente, levantaram-se dos seus assentos. - Estou cansado, vou voltar para Caleva com os meus homens. Deve
querer dar uma palavrinha aqui ao centurião.
- Sim, Majestade. Se não for muito incómodo.
- Não. Vemo-nos mais tarde, então, Albino.
- Sim, senhor. - O centurião saudou em resposta à despedida do rei britânico, com tanta formalidade respeitosa quanto possível, enquanto Vespasiano acompanhava o
seu hóspede até ao exterior da tenda. Depois Vespasiano voltou, deitando um olhar ressentido ao jarro vazio em cima da mesa, antes de fazer sinal para o centurião
se sentar de novo.
- Parece-me que Vérica está a encontrar algumas dificuldades para reafirmar a sua autoridade.
- Suponho que sim, senhor. Não temos tido muitos problemas com os Atrébates. Parecem mais sombrios que revoltosos. Os Catuvelaunos foram senhores muito duros, e
a mudança de governo pode não ter melhorado muita coisa, mas também não as piorou.
- Espere até eles conhecerem alguns agrimensores romanos - murmurou Vespasiano.
- Bem, sim, senhor. - O centurião encolheu os ombros; as depredações da burocracia civil que se seguiria às legiões não eram problema seu. - De qualquer maneira,
Caleva e as áreas mais próximas estão pacificadas. Mantenho permanentemente duas centúrias em patrulha local. Uma terceira faz uma ronda maior ao longo das aldeias
fronteiriças do lado dos Durotriges
- Alguma das patrulhas encontrou druidas?
O centurião negou com a cabeça.
- Desde aquela vez que os vi, nunca mais, senhor. Tudo o que encontrámos foi os destroços das aldeias e os cadáveres. Eles estão a cavalo, claro, o que significa
que estamos em desvantagem, uma vez que persegui-los está fora de questão.
- Então conceder-lhe-ei metade do meu destacamento montado enquanto estivermos colocados perto de Caleva. Preciso do restante para as minhas próprias patrulhas.
Sessenta dos batedores montados da legião não iriam ter grande impacto nos ataques dos druidas, mas eram melhor que nada, e Albino agradeceu com um movimento de
cabeça.
- Como vai o treino dos locais?
Um tremor de desespero revelou-se na expressão do centurião, a máscara do seu sólido profissionalismo momentaneamente afastada.
- Não digo que seja impossível, senhor. Mas também não digo que tenho grandes esperanças.
- Ah, sim?
- Oh, eles são rijos - disse Albino, de má vontade. - Mais que muitos dos homens que servem com as águias. Mas quando se tenta fazê-los treinar de uma maneira formal
e disciplinada, é uma merda dum desastre completo. Perdoe o meu gaulês, senhor. Não há coordenação possível; é cada um por si, num ataque doido ao inimigo. A única
coisa que aceitam é o treino individual com armas. Mas, mesmo assim, usam as espadas que lhes demos como se fossem cutelos de magarefe. Passo a vida a dizer-lhes
que doze centímetros de ponta afiada são melhores que qualquer gume, mas não consigo convencê-los. Simplesmente não podem ser treinados, senhor.
- Não podem? - Vespasiano ergueu as sobrancelhas. - Decerto
que um homem com a sua experiência pode levá-los a praticar. Já lidou com casos difíceis antes.
- Casos difíceis, senhor. Não raças difíceis.
Vespasiano assentiu. Todos os celtas que tinha conhecido partilhavam da mesma arrogante crença na sua inata superioridade cultural, e manifestavam um profundo desprezo
por aquilo a que chamavam as efeminadas maneiras das civilizações romana e grega. Estes bretões eram os piores. Estúpidos por demais, concluía Vespasiano.
- Faça o que puder, Centurião. Se eles não aprendem com quem é melhor que eles, também nunca serão uma ameaça para nós.
- Sim, senhor. - O olhar de Albino descaiu desanimadamente.
O som abafado de uma trompeta ouviu-se fora da tenda. Momentos
depois escutaram ordens a serem dadas. O centurião olhou para o legado, mas Vespasiano recusava-se a ser visto como um homem que se deixasse perturbar por qualquer
acidental distracção. Reclinou-se na sua cadeira para dirigir a palavra ao centurião.
- Muito bem, Centurião. Enviarei um relatório ao general a dar conhecimento da sua situação e desses ataques dos druidas. Entretanto, vá continuando com o treino,
e mantenha as patrulhas. Podemos não nos livrar dos druidas, mas ao menos saberão que andamos atrás deles. Os batedores montados ajudarão com certeza nessa tarefa.
Tem mais alguma coisa para acrescentar?
- Não, senhor.
- Pode ir.
O centurião agarrou no elmo, saudou e saiu rapidamente da tenda.
Vespasiano estava ciente que a gritaria aumentara, e o tinir de armas e armaduras indicava que um grande número de homens se deslocava. Era difícil resistir ao impulso
de correr lá para fora e ir ver o que se passava, mas amaldiçoar-se-ia se se permitisse comportar-se como um jovem tribuno excitado no seu primeiro dia no exército.
Forçou-se a pegar num rolo de pergaminho e a começar a ler os últimos relatórios sobre o estado das suas forças. Ouviram-se passos sobre as placas de madeira mesmo
à entrada da tenda.
- O legado está? - alguém gritou às sentinelas que guardavam a entrada da tenda de Vespasiano. - Então deixem-me passar.
As cortinas de couro abriram-se, e Plínio, o tribuno superior, entrou, ofegante. Engolia ansiosamente:
- Senhor! Tem de vir ver isto.
Vespasiano ergueu os olhos das linhas de números no pergaminho.
- Acalme-se, tribuno. Isso são lá modos de um oficial superior se comportar.
- Senhor?
- Não se anda para aí a gritar pelo acampamento, a menos que seja a maior das emergências.
- Sim, senhor.
- Estamos em grande perigo, Tribuno?
- Não, senhor.
- Então mantenha a cabeça fria e dê o exemplo ao resto da legião.
- Sim, senhor. Peço desculpa, senhor.
- Muito bem, então. Que me tem a dizer assim de tão urgente?
- Alguns homens aproximam-se do acampamento, senhor.
- Quantos?
- Dois homens, senhor. E há mais alguns que ficaram ao pé das
árvores.
- Dois homens? Então porquê essa algazarra toda?
- Um deles é romano...
Vespasiano esperou pacientemente durante um momento.
- E o outro?
- Não sei, senhor. Nunca tinha visto nada assim.

VII

À sexta centúria tinha saído em sorte o segundo turno da guarda. Depois de um pequeno-almoço apressado de papa de aveia fumegante renderam a centúria que patrulhava
os muros do acampamento fortificado. O centurião que tinha acabado de sair de serviço informou Cato, sucintamente, acerca dos cavaleiros vindos de Caleva. Era meio
da manhã, e a luz do sol inundava os baluartes. Cato semicerrou os olhos, já que tinha deixado as sombras frescas das tendas bem alinhadas mesmo antes de começar
a subir. Foi obrigado a proteger a vista por um momento.
- Bela manhã, Optio! - saudou um legionário. - Hoje até é capaz de fazer calor.
Cato virou-se para o homem; um grande e rotundo jovem com uma cara risonha e uns quantos dentes tortos que lembravam os restos de um dos círculos de pedras pelos
quais a legião passara no Verão anterior. Magro como era, e com a pouca gordura que possuía, graças à sua maneira nervosa de ser, Cato tinha dificuldade em manter-se
quente, pelo que ainda tremia dentro da sua capa de lã bem enrolada. Limitou-se a dizer que sim com a cabeça ao legionário, pois não queria que o homem o visse a
bater os dentes. O legionário era um dos substitutos recentes, um gaulês que dava pelo nome de Horácio Fígulo. Era um soldado capaz, e a sua natureza bem-disposta
tinha-o tornado popular na centúria.
Num súbito sobressalto de consciência, Cato apercebeu-se de que Fígulo era da mesma idade que ele. Da mesma idade, e, no entanto, os poucos meses que tinha a mais
de serviço com as águias faziam com que ele avaliasse este recruta com o olhar frio de um veterano. Um espectador ocasional poderia com certeza confundir o optio
com um veterano; as marcas das terríveis queimaduras que sofrera no Verão anterior eram bem visíveis. E, contudo, a sua barba era tão esparsa que seria risível pensar
sequer em fazê-la. Fígulo, por contraste, partilhava da fisionomia peluda dos seus antepassados celtas; o nítido crescimento de finos pêlos claros
nas suas faces e queixo exigia a atenção quase diária de uma lâmina bem amolada.
- Olhe para isto, Optio! - Fígulo encostou o seu dardo ao baluarte e procurou qualquer coisa dentro da capa, durante um bocado, até encontrar uma noz. - Tenho andado
a praticar isto toda a semana.
Cato susteve um resmungo. Desde que a centúria tinha assistido ao espectáculo de um prestidigitador fenício itinerante, há várias semanas atrás, o jovem Fígulo andava
a tentar imitar o repertório de truques do ilusionista - com pouco sucesso. O pretenso mágico segurava a noz para que ele a inspeccionasse.
- O que é isto?
Cato olhou para ele durante um momento, e depois revirou os olhos para o céu, com um abanar da cabeça.
- É uma mera noz, certo, Optio?
- Se o dizes - replicou Cato, entredentes.
- Ora, como sabemos, as nozes não têm o hábito de desaparecer de repente. Não é?
Cato disse que sim com a cabeça.
- Agora, veja! - Fígulo fechou as mãos e agitou-as uma sobre a outra, à medida que ia entoando um som o mais parecido possível com as palavras mágicas do fenício.
- Ogwarz farevah! - Com um último movimento, abriu subitamente as mãos vazias diante do rosto do optio. Pelo canto do olho, Cato vira a noz desenhar um arco no ar,
antes de cair para o lado de fora do baluarte.
- Para onde acha que a noz foi? - disse Fígulo, piscando o olho.
- Bem, deixe-me mostrar-lhe!
Levou a mão à orelha de Cato e franziu as sobrancelhas. Cato suspirou, exasperado. O legionário inclinou a cabeça para examinar o espaço por trás da orelha de Cato.
- Um momento. Raios a partam, devia estar aqui.
Cato deu-lhe uma palmada na mão.
- Ao trabalho, Fígulo. Já desperdiçaste demasiado tempo.
Com um último confuso olhar à orelha de Cato, o legionário pegou no dardo e virou a atenção para a vastidão branca do território dos Atrébates. Apesar do gelo ter
adornado o mundo com a sua reluzente renda, a neve por debaixo começava a derreter, lentamente, e o solo nu revelava-se já nas encostas viradas a sul dos montes
circundantes. O rosto do recruta mostrava um misto de embaraço e confusão, e Cato sentiu pena dele.
- Boa tentativa, Fígulo. Só precisas de um pouco mais de prática.
- Sim, Optio. - Fígulo sorriu, e Cato desejou instantaneamente
que o não tivesse féito, puramente por uma questão de estética. - Mais prática, vou tratar disso.
- Sim, está bem. Mas mais tarde. Mantém os olhos atentos ao inimigo, entretanto.
- Sim, senhor!
Cato deixou-o e continuou a sua ronda no sector do forte que lhe tinha sido confiado. Do outro lado, o centurião Macro supervisionava o resto da centúria. Através
das linhas de tendas estendidas ao brilho do sol que subia no céu, Cato conseguia ver a figura pequena e poderosa pavoneando-se ao longo do baluarte oposto, de mãos
atrás das costas, a cabeça virada em direcção ao distante Tamisa, e a Camaloduno, ainda mais além. Cato sorriu ao imaginar no que pensava o seu centurião. Apesar
da sua ocasional criancice, da sua paixão pela bebida e da sua natureza de mulherengo, Macro deixara que a escultural Boudica mexesse com ele. Nunca tinha ocorrido
ao centurião que uma mulher pudesse ser uma companheira perfeita, que o igualasse em quase todos os campos do comportamento masculino, e o afecto que sentia por
ela era claramente evidente para o optio, e para os outros homens que o conheciam melhor. Enquanto outros centuriões e optios piscavam o olho uns aos outros e gozavam
em voz baixa acerca de uma vida vivida sob o domínio de uma mulher como aquela, Cato sentia-se feliz pelo seu centurião.
- Chamem a guarda! - gritou uma voz.
Cato virou-se instantaneamente na direcção do grito e viu Fígulo a apontar para oeste, onde a floresta se estendia até ao cume. Um ângulo do baluarte impedia a visão
de Cato. Praguejou, e correu até onde Fígulo estava postado.
- Que se passa?
- Homens, senhor! Ali! - Fígulo apontou o dedo ao longo da crista do monte, em direcção à floresta. Ao olhar para a paisagem, Cato nada viu de invulgar.
- Lembra-te do treino! - gritou. - Indica-me o lugar como deve
ser!
O recruta levantou o dardo e, cuidadosamente, apontou-o para a
floresta.
- Ali, senhor.
Cato colocou-se por trás de Fígulo e olhou ao longo do comprimento do dardo. Para lá da ponta oscilante, por entre as árvores na orla da floresta, vultos montados
sobre cavalos emergiram lentamente das sombras silvestres, e dirigiram-se ao espaço aberto e salpicado de neve à frente dos baluartes da legião. Aí se detiveram;
dez homens a cavalo, vestidos de preto, com as cabeças ocultas por grandes capuzes.
Em volta de Cato, as restantes centúrias da coorte de piquete apressavam-se a guarnecer os baluartes, dispersando-se ao longo daquele lado do acampamento fortificado,
armadas e prontas para enfrentarem qualquer ataque súbito. Uma trombeta dava sinal à coorte, e Macro corria pelo passadiço para se juntar a eles.
Os cavaleiros separaram-se, e surgiu então um homem a pé que cambaleava para a frente, de braços atados atrás das costas. Uma corda pendia-lhe do pescoço, segura
pelo cavaleiro que seguia a seu lado. O homem a cavalo, bem como os seus companheiros, estava vestido de preto e usava um estranho elmo com um elaborado par de chifres,
que fazia lembrar uma árvore desfolhada no Inverno. As duas figuras aproximaram-se do forte, o homem a pé tropeçando e tentando manter o equilíbrio para que a corda
segura pelo seu captor não o sufocasse.
- Que se passa? - Macro tinha chegado, ofegante. - Quem são
eles?
- Não sei, senhor.
- Quem chamou a guarda?
- Foi o Fígulo, senhor.
Macro virou-se e procurou o recruta.
- Fígulo! Vem cá! E depressa, rapaz!
Fígulo apressou o passo ao longo do baluarte e parou diante do centurião, fazendo um ruído seco ao pousar o dardo, e pondo-se em sentido. Macro observou-o cuidadosamente,
com uma expressão severa.
- Chamaste a guarda?
- Sim, senhor. - O legionário preparou-se para uma dura reprimenda do centurião. - Lamento, senhor.
- Lamentas? Lamentas mas é o caralho, rapaz! Fizeste muito bem. Agora volta para a tua posição.
Demorou algum tempo para que o jovem obtuso se apercebesse de que tinha sido elogiado, e o seu rosto abriu-se num sorriso desdentado.
- É para hoje, Fígulo! Para hoje!
- Ah, sim, senhor! - Virou-se e afastou-se rapidamente, deixando o centurião a abanar a cabeça, os lábios cerrados de espanto perante a qualidade de alguns dos homens
que se vira obrigado a aceitar para repôr os efectivos da sua centúria. Para lá de Fígulo avistou a crista vermelha de um tribuno surgindo acima do monte de elmos
que reluziam dourados à luz do sol. Plínio abriu caminho por entre a multidão no baluarte e inclinou-se sobre a paliçada, olhando as duas figuras, agora a pouco
mais de meia milha do fosso exterior. O homem a pé vestia os restos esfarrapados de uma túnica vermelha orlada a dourado. Plínio virou-se e avistou Macro.
- Aquele homem ali à frente é romano! Passe a palavra aos
batedores, para que montem e se preparem para uma perseguição. Vou chamar o legado.
- Sim, senhor! - Macro virou-se para Cato. - Ouviste-o. Vai procurar o centurião dos batedores e transmite-lhe as ordens. Eu encarrego-me dos homens aqui. Não posso
deixar que se comportem como um monte de imbecis numa corrida de quadrigas.
Macro começou a bramar imprecações e ordens aos homens amontoados ao longo do baluarte, enquanto Cato se pôs a caminho dos estábulos, junto à tenda do legado. Quando
voltou, os homens estavam bem distribuídos pela paliçada, observando as figuras distantes a caminhar pela neve, em direcção ao forte. O legado e o tribuno mais graduado,
arquejante, tinham chegado pouco antes, e olhavam fixamente e em silêncio para o espectáculo.
- Que raio é que aquele homem tem na cabeça? - admirou-se Vespasiano.
- Chifres, senhor.
- Que são chifres vejo eu, caraças. Mas por que é que os tem sobre a cabeça? Deve ser incomodativo.
- Sim, senhor. Devem ser alguma espécie de símbolos religiosos.
- Plínio encolheu-se com o olhar ameaçador que o seu superior lhe lançou. - Provavelmente...
Mesmo no limite do alcance das fundas, o cavaleiro puxou a corda com força, e os que estavam no muro puderam ouvir claramente o grito agudo de dor do prisioneiro.
O cavaleiro desmontou e atirou a corda para o lado. O romano caiu de joelhos. Estava visivelmente exausto, e a cabeça pendeu-lhe para a frente. Mas o seu descanso
foi curto. O cavaleiro deu-lhe uma pancada na cabeça e apontou em direcção ao forte. Os homens no baluarte ouviam gritos, mas não conseguiam perceber-lhes o sentido.
O romano ergueu a cabeça, firmou-se e gritou para os que se encontravam no muro.
- Oiçam!... Tenho uma mensagem para o comandante dessa legião... Ele está aí?
Vespasiano pôs as mãos em concha ladeando a boca e respondeu:
- Fala! Quem és?
- Valério Maxêncio... prefeito da esquadra de Gesoríaco.
Os homens no baluarte sobressaltaram-se por um oficial de tão alta patente estar nas mãos dos druidas, e comentários ansiosos percorreram a paliçada.
- Silêncio! - rugiu Vespasiano. - O próximo a falar será açoitado! Centurião, certifica-te de que apontas os seus nomes!
- Sim, senhor.
Para lá do muro, Maxêncio chamou de novo, com a voz forçada e fraca, amortecida pela neve que cobria o solo.
- Ordenaram-me que falasse em nome dos druidas da Lua Negra... O meu navio naufragou perto da costa, e os sobreviventes, uma mulher, os seus filhos e eu, fomos capturados
por um grupo de durotriges... Entregaram-nos aos druidas. Em troca destes prisioneiros, os druidas querem os seus camaradas de volta. Cinco druidas do primeiro anel
foram aprisionados pelo general, no Verão passado... Este homem, supremo sacerdote da Lua Negra, é o seu líder. Dá-vos até à Festa do Primeiro Rebento, de hoje a
trinta dias, para que atendam ao seu pedido... Se os druidas não forem libertados até à altura da festa, os prisioneiros serão queimados vivos, como sacrifício a
Cruach.
Vespasiano recordou as palavras do centurião Albino e estremeceu. A ideia da sua própria esposa e filho a gritarem entre chamas crepitantes assolou-lhe a mente,
e os seus dedos agarraram-se firmemente à paliçada, enquanto se debatia com a terrível imagem.
O cavaleiro inclinou-se até perto da cabeça de Maxêncio, e, aparentemente, disse-lhe algo. Depois recuou e abriu o seu manto preto. Maxêncio chamou uma vez mais.
- O druida deseja que fiquem com um... símbolo da sua determinação quanto ao assunto! - Atrás dele, algo brilhou à luz do sol. O druida tinha puxado de uma enorme
foice de lâmina larga de dentro do seu manto. Agarrou-a com ambas as mãos, afastou os pés para se firmar, e levou a foice atrás.
No último momento Maxêncio pressentiu o destino terrível que o druida lhe reservara, e começou a voltar-se. A foice rasgou o ar, até encontrar e atravessar o pescoço
do prefeito. Foi um gesto tão rápido que alguns dos que observavam do baluarte pensaram que o druida tinha falhado. Depois, a cabeça do prefeito rolou para o lado,
caindo sobre a neve. Um jorro de sangue arterial brotou do pescoço decepado e esparrinhou-se no solo branco. O druida limpou a lâmina ensanguentada na neve. Em seguida,
embainhando-a sob o manto, pontapeou o torso do prefeito, montou, com indiferença o cavalo, e esporeou-o de volta até aos seus camaradas, que esperavam na orla da
floresta.

VIII

Vespasiano virou-se, as mãos em concha ladeando-lhe a boca enquanto bramia:
- Enviem os batedores! Tragam-me aqueles druidas!
Os cavaleiros da legião não tinham visto a decapitação e estavam mais alerta do que os seus camaradas atordoados que guarneciam a paliçada. Num instante o portão
se abriu, e doze batedores montados saíram a galope. O decurião rapidamente avistou os druidas na orla da floresta e deu a ordem de ataque. Os cascos dos cavalos
batiam pesadamente, fazendo saltar bocados de neve, à medida que os batedores se dispersavam, com as capas de lã adejando ao vento. O druida que matara Maxêncio
virou a cabeça com chifres pára olhar, depois deu com os calcanhares nos flancos da sua montada, esporeando-a em direcção aos seus camaradas, que já iam desaparecendo
nas sombras da floresta.
Vespasiano não ficou para ver a perseguição; correu para o portão, saindo a correr pela neve estaladiça, até ao corpo do prefeito da armada. Atrás dele seguiram
os homens da Sexta Centúria, impelidos por Macro, que temia pela segurança do seu comandante. Mas, a alguma distância do corpo, os legionários hesitaram, por aversão
e pela superstição que os druidas inspiravam. Muitas das histórias que haviam escutado sentados sobre os joelhos dos pais evocavam os poderes negros e sinistros
dos magos celtas, e os legionários sentiam-se relutantes em aproximarem-se demasiado. Mantiveram-se em silêncio, o seu fôlego voluteando como névoa no ar frio; o
único som era o matraquear distante dos cascos e da erva rasteira a ser pisada, à medida que os batedores montados perseguiam os druidas.
Vespasiano parou diante do torso, que jazia de lado. O sangue ainda corria lentamente dos vasos sanguíneos cortados no pescoço. Maxêncio vestia apenas uma túnica
cingida com cinto, cujos restos esfarrapados estavam agora ensopados e escurecidos. Uma bolsa de couro volumosa tinha sido atada ao seu cinto. Lutando contra a náusea
que lhe subia à garganta,
Vespasiano inclinou-se, debatendo-se com o nó que prendia a bolsa. Os seus dedos tremiam ao tentar desatar a corda. Só queria fugir do sangue que reluzia sobre
a neve, e da presença horrível da cabeça do prefeito, que estava a menos de dois metros de distância. Felizmente a cabeça tinha rebolado de maneira a ficar virada
para o outro lado, por isso tudo o que ele via era o cabelo escuro e emaranhado.
Por fim o nó desatou-se. Vespasiano levantou-se e afastou-se vários passos, antes de examinar a bolsa. Um cordel fechava-a na extremidade, e só algumas moles protuberâncias
indicavam que continha alguma coisa. Tentou não imaginar o que teriam os druidas deixado na bolsa, e forçou-se a desatar o cordel. No escuro interior da bolsa viu
um fraco brilho dourado, e agarrou-o. Os seus dedos tocaram num bocado de tecido e num par de anéis, retirando-os para a luz do sol. Um era bastante pequeno e liso,
mas largo. Inscrita no interior, em maiúsculas grossas, estava a frase 'Filius Plautii'. O outro anel era bem mais ornado, e trazia um ónix, sobre o qual estava
um camafeu com um elefante em osso branco contra o fundo castanho-escuro, polido. O tecido era de uma lã muito fina, talvez do debrum de uma toga. Ao longo de uma
das extremidades corria vima linha de tinta púrpura, o antigo antigo que indicava que o proprietário provinha de uma família senatorial.
Vespasiano sentiu um frio repentino, bem maior do que era justificado pela já avançada manhã de Inverno. Frio e má-disposição, quando compreendeu a ligação entre
o prefeito e o conteúdo da bolsa. Tinha de enviar de imediato uma mensagem ao general Pláucio. Colocou cuidadosamente o tecido e os anéis de volta dentro da bolsa
e pigarreou. Olhou para cima, para Macro.
- Centurião!
- Sim, senhor!
- Arranje maneira de levar o corpo para o acampamento. Leve-o para a tenda hospitalar. Quero-o pronto para ser cremado o mais rápido possível. E certifique-se de
que é... de que ele é tratado com respeito.
- Certamente, senhor.
O legado caminhou para o portão, cabisbaixo, considerando silenciosamente as terríveis implicações daquilo que tinha descoberto na bolsa. A família do general estava
agora nas mãos dos druidas. Os mesmos druidas que andavam a espalhar terror pelas aldeias vizinhas e pelos povoados atrébates. Como teriam eles sido capturados?
Os bretões não se podiam gabar de possuírem navios capazes de destruir os navios imperiais. E, de qualquer forma, Maxêncio e os seus passageiros teriam feito a travessia
de Gesoríaco até Rutúpias, a bem mais de cem milhas de distância da terra dos Durotriges e dos seus aliados druidas. Uma tempestade devia ter afastado
o navio do seu curso. Mas porque não tentara o prefeito chegar à costa dos Atrébates, em vez de se ter deixado arrastar para tão longe, costa abaixo, para os territórios
governados pelos inimigos de Roma? Por um momento, Vespasiano amaldiçoou o prefeito pela sua loucura, antes que sentimentos tão inapropriados acerca de um homem
que morrera de maneira tão terrível o fizessem sentir culpado. Talvez Maxêncio tivesse tentado acostar o seu navio em solo amigo, no fim de contas, mas não o tivesse
conseguido fazer devido à fúria da tempestade.
O barulho fraco da perseguição vindo da floresta tomou, abruptamente, um novo tom. Gritos distantes acompanhados do tinido agudo do embate de armas. Vespasiano e
os legionários da Sexta Centúria viraram-se na direcção da floresta. Os sons de peleja rapidamente se intensificaram, e depois morreram.
- Formar quadrado! - bramou Macro. - Formação cerrada.
Os homens reagiram de imediato, e apressaram-se a formar em
torno do corpo do prefeito. Vespasiano abriu caminho até ao centro e desembainhou a sua espada. Cruzou o olhar com Macro e fez-lhe sinal para o corpo e para a cabeça
que ainda jaziam sobre a neve. O centurião virou-se para os seus homens.
- Vocês os dois! Fígulo e Sertório! Aqui.
Os escolhidos abandonaram as linhas e apressaram o passo até ao centurião.
- Fígulo, coloca-o sobre o teu escudo. Vocês os dois carregá-lo-ão até ao portão. Eu levo o outro escudo.
Fígulo olhou para o corpo ensanguentado do prefeito com uma expressão de repugnância no rosto.
- Não te preocupes, rapaz, o sangue há-de sair do escudo sem grandes problemas. Só precisará de uma boa esfregadela. Agora, vá, toca a mexer!
Enquanto os dois homens se curvavam para desempenharem o seu trabalho macabro, Macro virou-se para Cato.
- Tu podes levar a cabeça.
- A cabeça? - Cato empalideceu. - Eu?
- Sim, tu. Apanha-a - disse Macro bruscamente, depois lembrou-se que o legado estava presente. - Ah, e certifica-te que a transportas com respeito.
Ignorou o olhar de indignação de Cato e apressou-se a ir ter com o legado, que se encontrava, agora, na orla da formação, para ter uma visão mais clara da floresta.
Cato baixou-se, rangendo os dentes, e agarrou a cabeça do prefeito com uma mão. Ao primeiro toque que deu ao cabelo escuro e ondeado os
seus dedos recuaram. Engoliu em seco, nervosamente, e obrigou-se a agarrar cabelo suficiente para garantir que não se soltaria. Depois, lentamente, levantou-se,
segurando a cabeça afastada de si, com o rosto virado para longe dele. Mesmo assim, as excrescências glutinosas dos tendões e o sangue que coagulava, suspenso do
pescoço cortado, fizeram com que a bílis lhe subisse à garganta e Cato desviou logo o olhar.
Um cavalo sem cavaleiro saiu das árvores e cavalgou de volta ao acampamento da Segunda Legião. Seguiram-se-lhe outros dois, e depois mais um, desta vez com um batedor
na sela, meio curvado, dando com os calcanhares na besta para que se apressasse até à Sexta Centúria. Nada mais saiu das árvores, que permaneceram quietas e silenciosas.
- Não devia ter ordenado uma perseguição - disse Vespasiano, serenamente.
- Pois não, senhor.
O legado virou-se para Macro, de sobrancelhas franzidas, zangado devido à crítica implícita. Mas ele sabia que o centurião tinha razão. Devia ter pensado melhor.
Vespasiano sentiu-se enjoado perante a tranquilidade com que tinha enviado os batedores para a desgraça.
Mesmo junto aos escudos da Sexta Centúria o batedor sobrevivente refreou selvaticamente o seu cavalo, que se empinou com um relincho espavorido, levantando uma nuvem
de neve. O batedor largou as rédeas e tombou do cavalo.
- Está ferido! - gritou Macro. - Ponham-no atrás dos escudos!
Rápido!
O homem mais próximo correu até lá, agarrou no batedor e arrastou-o para dentro da formação. Caiu bruscamente, com uma mão agarrada ao estômago, onde um rasgão ensanguentado
na sua túnica revelava um longo golpe, tão profundo que expunha parte dos intestinos. Macro ajoelhou-se para examinar o ferimento. Agarrou na bainha da capa do batedor
e fez-lhe um corte com o punhal. Depois desembainhou a arma e arrancou uma tira larga. Enrolou-a rapidamente em torno do batedor e atou bem as extremidades. O homem
gritou e depois cerrou os dentes.
- Pronto! Isto há-de servir até o levarmos aos médicos militares.
- O que aconteceu? - Vespasiano inclinou-se sobre o batedor.
- Fala, homem! Que vos aconteceu?
- Senhor, eram uma data deles... à nossa espera no interior da floresta... íamos-lhes no encalço... depois, de repente, apareceram de todos os lados, berrando como
animais selvagens... Não tivemos hipótese... Fizeram-nos em pedaços. - Os olhos do batedor abriram-se muito por um momento, aterrorizados pela viva memória do pavoroso
inimigo. Depois os seus olhos voltaram a fixar-se no legado. - Eu ia na retaguarda da
coluna, senhor. Assim que percebi a situação, tentei virar a minha montada. Mas o trilho era estreito, o meu cavalo estava assustado, não quis dar a volta. Então,
um dos druidas saiu de entre as árvores e atingiu-me com a foice... Eu atingi-o com a minha lança, senhor! Acertei-lhe bem! - Os olhos do batedor luziram de triunfo
selvático, antes de se fecharem devido a uma onda de dor que o percorreu.
- Basta, rapaz - disse Vespasiano, gentilmente. - Guarda o resto para o teu relatório oficial, depois dos médicos te terem tratado.
De olhos fechados com força, o batedor disse que sim com a cabeça.
- Centurião, ajude-me aqui. - Vespasiano pegou no homem pelas axilas e, com cuidado, levantou-o. - Ajude-me a pô-lo nas minhas costas.
- Nas suas costas, senhor? Não é melhor dizer a um dos homens que o faça, senhor?
- Que raio, homem! Eu levo-o.
Macro encolheu os ombros, e fez o que lhe pediram. O batedor pôs os braços em volta do pescoço do legado e Vespasiano inclinou-se para a frente, agarrando nas pernas
do homem.
- Pronto. Macro! Destaca um homem para conduzir esse cavalo, depois toca a andar.
Macro deu a ordem para a centúria se dirigir ao acampamento. Em formação cerrada, a marcha era necessariamente lenta, por muito que os homens desejassem apressar-se
de volta para a fortificação. No centro da formação, o legado cambaleava sob a sua carga. Num lado, Fígulo e Sertório carregavam o corpo de Maxêncio, sobre o escudo
de Fígulo. Cato caminhava ao lado deles, olhando fixamente em frente, o braço dorido de o manter esticado para que a cabeça estivesse o mais longe possível de si.
Macro, que marchava na retaguarda da formação, olhava constantemente em direcção à floresta, tentando detectar sinais dos druidas e dos seus seguidores. Mas nada
se movia na orla da floresta, que permanecia em absoluto silêncio.

IX

A neve quase que derretera, três dias depois, e apenas pedaços isolados brilhavam ainda, nas depressões e fendas onde o fraco sol de Inverno não conseguia chegar.
Os primeiros dias de Março aqueceram um pouco mais o ar e o caminho sob as botas da Quarta Coorte tornou-se escorregadio com a lama. Marchavam para sul, vindos de
Caleva, patrulhando a fronteira dos durotriges, na tentativa de desencorajar mais ataques. A missão era mais um gesto de apoio dos romanos para com os atrébates
do que uma real tentativa de desencorajar os durotriges e os seus sinistros aliados druidas. Os relatórios que chegavam a Vérica acerca da devastação que acontecia
nas aldeias mais pequenas tinham-no desanimado tanto, que implorara a Vespasiano que passasse à acção. Portanto, a Quarta Coorte e um esquadrão de batedores, acompanhados
de um guia, foram destacados para uma patrulha pelas aldeias e povoados fronteiriços, para deixarem claro que a ameaça dos durotriges estava a ser levada a sério.
A princípio os aldeãos ficavam nervosos devido aos estranhos uniformes e idiomas estrangeiros dos legionários, mas tinha sido ordenado à coorte que se comportasse
de forma exemplar. Abrigo e comida eram pagos com moedas de ouro e os romanos observavam respeitosamente os costumes locais, os quais eram explicados pelo guia de
Vérica, Diómedes. Era um agente que trabalhava para um mercador na Gália, e vivia entre os atrébates desde há muitos anos. Falava o dialecto celta destes com fluência.
Tinha-se até casado num clã guerreiro que era suficientemente liberal para tolerar que uma das suas filhas menos estimadas se tornasse esposa do pequeno e gentil
grego. Com a sua tez cor de azeitona, os negros caracóis oleosos, a barba cuidadosamente aparada e fino vestuário continental, Diómedes não se podia parecer menos
com os rudes nativos com que escolhera viver por tanto tempo. Todavia, tinham-no em grande consideração, tanto que o cumprimentavam calorosamente em cada povoado
por que a coorte passava.
- Que usó tem esta gente para o ouro? - resmungou Macro, à medida que o centurião mais antigo da coorte contava moedas para o chefe da aldeia, em troca de várias
pilhas de carne salgada - pedaços compridos e mirrados, amarrados com tiras de couro. Os centuriões da coorte tinham-se reunido para serem apresentados ao chefe,
e agora permaneciam a um lado com o guia grego, enquanto se concluíam os negócios.
- Oh, ficaria surpreendido. - Diómedes sorria, mostrando os dentes manchados. - Bebem tanto vinho quanto conseguem comprar. Apreciam realmente o da Gália, fiz uma
pequena fortuna com esse material ao longo dos anos.
- Vinho? Eles bebem vinho? - Macro deu uma vista de olhos às variegadas cabanas circulares por ali dispersas e aos diminutos redis, no interior de uma frágil paliçada,
que apenas tinha como objectivo manter os animais selvagens no exterior.
- É claro. Você já provou as bebidas locais. Servem, se o objectivo é ficar bêbado, mas não têm graça nenhuma.
- Aí tens razão.
- E não é só o vinho - continuou Diómedes. - Compram tecidos, cerâmica, utensílios de cozinha e assim. Apreciam fortemente as exportações do império. Mais uns anos
e os atrébates quase que chegarão ao primeiro degrau da civilização. - Diómedes pareceu triste.
- Porque estás tão sorumbático?
- Porque então chegará a altura de partir.
- Partir? Pensava que te tinhas estabelecido aqui.
- Apenas enquanto houver dinheiro para se fazer. Quando este lugar fizer parte do império, ficará cheio de mercadores e a minha margem de lucro desaparecerá. Terei
de partir. Talvez mais para norte. Ouvi dizer que a rainha dos brigantes tomou gosto pela vida civilizada. - Os olhos do grego luziram de entusiasmo com a perspectiva.
Macro via Diómedes com a aversão especial que reservava aos vendedores. Depois lembrou-se de algo.
- Como é que eles podem pagar todas essas coisas que tu importas?
- Não podem. É a beleza da coisa. Não há muita moeda por aqui, só algumas tribos é que começaram a sua própria cunhagem. Por isso, deixo-os fazer trocas em géneros.
Faço muito melhor negócio assim. Em troca dos meus bens, aceito peles, cães de caça, e joalharia, qualquer coisa que dê um bom lucro lá no império. Ficaria perplexo
com o que a joalharia celta vale em Roma agora. - Olhou para otorque(4) em volta do pescoço de Macro. - Por exemplo, esse berloque. Podia fazer uma fortuna com isso.
- Não está à venda - disse Macro firmemente,
(4) Bracelete ou colar, geralmente em ouro, usado pelos povos antigos. ( Nota da Correctora)
Levando automaticamente uma mão ao torque de ouro. O pesado ornamento tinha já sido usado ao pescoço por Togodumno, um chefe dos catuvelaunos e irmão de Carátaco.
Macro tinha-o morto em combate singular pouco depois da Segunda Legião ter chegado à Britânia.
- Dar-lhe-ia um preço justo.
Macro fungou.
- Duvido. Enganar-me-ias tão depressa como a um destes nativos.
- Ofende-me! - protestou Diómedes. - Nunca pensaria tal coisa. Para si, Centurião, pagaria um bom preço.
- Não. Não o vendo.
Diómedes cerrou os lábios e encolheu os ombros.
- Não agora. Talvez mais tarde. Durma sobre o assunto.
Macro abanou a cabeça dizendo que não e encontrou o olhar de um dos
outros centuriões, que o olhava com simpatia. Estes mercadores gregos tinham-se espalhado por todo o império, e até além das suas fronteiras, mas eram todos iguais
- oportunistas à procura de ganhos financeiros. Viam toda a gente pelo que podiam tirar deles. Macro sentiu uma súbita repulsa.
- Não preciso de dormir sobre o assunto. Não o quero vender, especialmente a ti.
Diómedes franziu as sobrancelhas e semicerrou os olhos, durante um momento. Depois abanou a cabeça devagar e fez o seu sorriso de vendedor outra vez.
- Vocês, militares romanos, pensam deveras ser melhor do que todos, não é?
Macro não respondeu, limitou-se a levantar um pouco o queixo, o que fez com que o grego desatasse a rir. Os outros centuriões pararam a conversa tranquila que estavam
a ter e viraram-se para Macro e Diómedes. O grego levantou as mãos, apaziguadoramente.
- Peço desculpa, a sério. É que já estou tão familiarizado com essa atitude. Vocês, soldados, julgam que só vocês são os responsáveis pela expansão do império, por
adicionarem províncias ao inventário territorial do Imperador.
- Exactamente - assentiu Macro. - É mais ou menos isso.
- A sério? E, então, onde estariam vocês agora sem mim? Como é que ali o vosso superior faria para comprar provisões? E não acaba aqui. Porque é que acha que os
atrébates acolhem assim os romanos, em primeiro lugar?
- Não sei. Não me interessa, na verdade. Mas já sei que mo vais dizer de qualquer maneira.
- Será um prazer, Centurião. Muito antes do primeiro romano
mostrar a cara no canto menos civilizado deste mundo, um mercador grego como eu já viaja e negoceia com os nativos. Aprendemos as suas línguas e os seus costumes,
e apresentamos-lhes os produtos do império. A maior parte das vezes estão ansiosos para deitar as mão aos acessórios da civilização. Coisas que vemos como normais,
vêem-nas eles como símbolos de estatuto. E tomam gosto por isso. Nós alimentamos-lhes esse gosto, até se tornarem dependentes dele. Na altura em que vocês aparecerem
a estes bárbaros, já eles faziam parte da economia imperial. Mais umas gerações e eles tinham-vos implorado para deixarem que eles se tornassem uma província romana.
- Balelas! Só balelas - replicou Macro, espetando o dedo no grego, e os outros centuriões assentiram. - A expansão do império depende da espada, e da coragem para
manejá-la. Vocês apenas andam por aí a vender ninharias a estes ignorantes para vosso próprio lucro. E nada mais.
- Claro que o fazemos pelo lucro. Senão porque haveria alguém de se arriscar numa vida de perigos e privações como esta? - Diómedes sorriu, na tentativa de aligeirar
o tom da discussão. - Queria apenas realçar os benefícios que Roma tira dos negócios que temos com estes nativos. Se, de alguma forma mínima, os do meu género ajudaram
a abrir caminho às conquistadoras legiões de Roma, então estamos imensamente felizes por isso. As minhas desculpas se esta modesta ambição o ofende de alguma forma,
Centurião. Não era minha intenção.
Macro abanou a cabeça.
- Está bem, então. Desculpas aceites.
Diómedes sorriu.
- E se mudar de ideias em relação ao torque...
- Grego, se o mencionas outra vez, juro que...
- Centurião Macro! - chamou Hortênsio, o centurião superior.
Macro desviou instantaneamente o olhar de Diógenes, e pôs-se em
sentido.
- Senhor?
- Acabe com a conversa e forme os seus homens. O mesmo para os outros, vamos continuar.
Enquanto os centuriões se apressavam de volta às suas unidades, bramando ordens, os aldeões puseram rapidamente a carne salgada dentro de uma das carroças de provisões.
Assim que a coluna foi formada, Hortênsio acenou com a cabeça aos batedores montados, para que fossem à frente, e depois ordenou que a infantaria avançasse. Os rostos
assustados dos aldeões atrébates eram um testemunho eloquente do medo que tinham de, mais uma vez, ficarem desprotegidos, e o chefe da aldeia implorou a Diómedes
que convencesse a coorte a ficar. O grego tinha as suas ordens
e, de forma educada mas firme, desculpou-se e apressou-se a ir ter com Hortênsio. Assim que a Sexta Centúria, em serviço de retaguarda atrás da última carroça, marchou
para o exterior da aldeia, Cato sentiu-se envergonhado por os irem deixar assim, continuando os druidas e os seus seguidores, os durotriges, a praticar ataques junto
da fronteira.
- Senhor?
- Sim, Cato.
- Deve haver alguma coisa que possamos fazer por esta gente.
Macro abanou a cabeça.
- Não, nada. Por que perguntas? Que querias que fizéssemos?
- Deixar alguns homens. Deixar uma das centúrias para os defender.
- Uma centúria a menos tornaria a coorte muito mais fraca. E quando é que isso teria fim? Não podemos deixar uma centúria em cada aldeia por que passarmos. Não somos
suficientes.
- Bem, então, armas - sugeriu Cato. - Podíamos deixar-lhes algumas das armas sobressalentes que temos nas carroças.
- Não, não podíamos, rapaz. Podemos vir a precisar delas. E eles não estão treinados para as usar, seria um desperdício. E vamos lá parar com a conversa. Temos uma
longa marcha à nossa frente, hoje. Não gastes o fôlego.
- Sim, senhor - replicou Cato, calmamente, evitando o olhar acusador dos aldeões que estavam no portão da aldeia.

Durante o resto do dia, a Quarta Coorte arrastou-se ao longo do caminho lamacento em direcção a sul, ao mar, e a um pequeno povoado, sito ao lado de um canal que
ia dar a um amplo porto natural. Diómedes conhecia bem o povoado - tinha ajudado a construí-lo, na primeira vez em que pusera os pés na Britânia, há muitos anos
atrás. Era agora o seu lar. Noviómago, nome por que era conhecida a aldeia, crescera rapidamente e adquirira uma ditosa mistura de mercadores, os seus agentes e
as suas famílias. Os imigrantes e os seus vizinhos nativos viveram lado a lado e em relativa harmonia ao longo dos anos, segundo Diómedes. Mas agora, os durotriges
atacavam a sua terra, e os atrébates culpavam os estrangeiros de provocarem os druidas da Lua Negra e os seus seguidores. Diómedes tinha muitos amigos em Noviómago,
bem como a sua família, e andava preocupado com a sua segurança.
À medida que a coorte marchava, um sol fraco arrastava-se através de um céu plúmbeo, num arco baixo. Quando o crepúsculo começava a
adensar-se sobre a coorte, um brado repentino soou da frente da coluna. Os homens levantaram o olhar do caminho em que antes haviam estado concentrados, por o cansaço
e o peso dos fardos lhes fazer curvar as costas. Uns quantos batedores montados cavalgavam pelo caminho abaixo, vindos de um cume próximo. A voz do centurião Hortênsio
chegou claramente à retaguarda da coluna, quando ele deu ordem para a coorte parar.
- Temos problemas - disse Macro calmamente, enquanto via os batedores a informarem Hortênsio. O comandante da coorte assentiu com um gesto de cabeça e depois mandou
de novo os batedores para a frente. Virou-se para a coluna, com uma mão ao lado da boca.
- Oficiais, para a frente!
Cato tirou a carga do ombro, pousou-a na beira do caminho e correu atrás de Macro, sentindo um arrepio, devido à expectativa, subir-lhe pela espinha acima.
Assim que todos os centuriões e optios estavam presentes, Hortênsio expôs a situação.
-Noviómago foi atacada. Tudo o que resta dela está para lá daquele monte. - Apontou o polegar por cima do ombro. - Os batedores dizem que não vêem nada a mexer-se,
por isso, ao que parece, não há sobreviventes.
Cato olhou para Diómedes, que estava ligeiramente afastado dos oficiais romanos, e viu que o guia grego olhava para os próprios pés, de rosto profundamente franzido.
Cerrou, de repente, os maxilares, e Cato apercebeu-se de que o homem estava à beira das lágrimas. Com uma mistura de compaixão e embaraço, por testemunhar o sofrimento
privado de outra pessoa, voltou os olhos de novo para Hortênsio, enquanto o comandante da coorte dava as ordens.
- A coorte formará uma linha mesmo abaixo do cume; então avançaremos até ao topo e depois desceremos a encosta, até ao povoado. Darei ordem para parar a uma curta
distância de Noviómago, e depois a Sexta Centúria entrará na aldeia. - Virou-se para Macro. - Dê uma vista de olhos e depois faça o seu relatório.
- Sim, senhor.
- Em breve ficará escuro, rapazes. Não temos tempo de montar um acampamento provisório, por isso teremos de reparar as fortificações da aldeia o melhor que pudermos,
e acampar lá durante a noite. Vamos lá a isso, então.
Os oficiais voltaram às suas centúrias e chamaram a atenção dos seus homens. Com a coorte já em disposição de alerta, Hortênsio bramou a ordem para que formassem
em linha. A Primeira Centúria volveu à direita, depois rodou, para formar uma linha de duas filas de homens. As centúrias
seguintes seguiram-lhe o exemplo, expandindo a linha para a esquerda. A centúria de Macro foi a última a colocar-se em posição, e mandou parar assim que o flanco
direito ficou lado a lado com a Quinta Centúria. A coorte manteve-se quieta por um momento, para que os homens se preparassem, e depois foi dada a ordem para que
avançassem. As linhas duplas de soldados avançaram, agitadas, pela ladeira pouco íngreme, até ao cume. À sua frente, o mar estendia-se na distância, cinzento e agitado.
Mais próximo havia um amplo porto natural, a partir do qual um largo canal entrava terra adentro, até ao povoado. A superfície do canal agitava-se, devido a uma
brisa fria. Não havia navios ancorados, e apenas uns quantos barcos pequenos se encontravam em terra, na praia. Os homens estavam tensos com a expectativa do que
lhes revelaria o outro lado do monte e, à medida que o solo começou a declinar, as ruínas de Noviómago apareceram à vista.
Os atacantes tinham consumado tão bem a destruição quanto o tempo lhes permitira. Somente os negros contornos das persistentes estruturas de madeira, as que se tinham
aguentado, mostravam o sítio onde as casas e as cabanas haviam estado. Em volta jaziam os restos carbonizados das paredes e telhados de colmo. Grande parte da paliçada
fora deitada abaixo violentamente e atirada para o fosso à sua frente. O facto de não se ver fumo indicava que já tinham passado alguns dias desde que os durotriges
tinham arrasado completamente o lugar. Nada se movia entre as ruínas, nem um animal sequer. O silêncio era apenas quebrado pelo som áspero dos corvos que habitavam
a pequena mata ali perto. Em ambos os flancos da coorte os batedores montados espalhavam-se, à procura de sinais do inimigo.
O tinir do equipamento dos legionários pareceu a Cato exageradamente alto, enquanto marchava em direcção ao povoado. À medida que tentava manter-se a par e passo
com os outros, uma verdadeira proeza para o seu andar esgalgado, os seus olhos varriam os arredores de Noviómago, à procura de algum sinal que indicasse uma cilada.
A luz ia morrendo, a fria paisagem de Inverno enchia-se de carregadas sombras, e o optio agarrou-se mais às braçadeiras do seu escudo.
- Alto! - Hortênsio teve de esforçar a voz para ser ouvido acima do vento. A linha dupla parou e permaneceu quieta durante um bocado, antes da ordem seguinte ser
dada. - Pousar carga!
Os legionários pousaram a carga no chão e deram cinco passos em frente, para ficarem livres do equipamento de marcha. Agora, as suas mãos direitas seguravam apenas
dardos; estavam prontos para lutar.
- Sexta Centúria, em frente!
- Em frente! - Macro retransmitiu a ordem, e os seus homens abandonaram a linha, aproximando-se do povoado num ângulo oblíquo.
Cato sentiu o coração acelerar-lhe quando se aproximaram das ruínas enegrecidas, e uma trémula agitação de energia nervosa fluiu-lhe pelo corpo, enquanto se preparava
para qualquer encontro súbito. Depois de passarem pelo fosso, Macro fez a centúria parar.
- Cato!
- Sim, senhor!
- Leva as primeiras cinco secções e entra pelo portão principal. Eu levo as restantes, e vamos entrar pelo lado virado para o mar. Encontramo-nos no centro da aldeia.
- Sim, senhor - respondeu Cato, e um repentino arrepio de medo obrigou-o a acrescentar: - Tenha cuidado, senhor.
Macro parou e olhou-o com desprezo.
- Tentarei não torcer o tornozelo, Optio. Este lugar está tão sereno como uma sepultura. A única coisa que ainda se move ali são os espíritos dos mortos. Agora,
toca a mexer.
Cato saudou e virou-se para as linhas de legionários.
- Primeiras cinco secções! Sigam-me!
Marchou sem parar até ao que restava do portão principal, os seus homens esforçando-se por acompanhá-lo. O trilho bem marcado conduzia suavemente aos grandes toros
que constituíam o portão principal e a passagem fortificada que antes protegia a entrada. Mas já não existia portão, tinha sido selvaticamente cortado dos seus gonzos
de corda e feito em pedaços. Cato escolhia por onde ir entre os estilhaços. De ambos os lados o fosso fazia uma curva em torno do pequeno baluarte e da paliçada
destruída. Os legionários seguiam silenciosos, de olhos e ouvidos atentos a algum sinal de perigo na tensa atmosfera que os envolvia.
Do outro lado do portão arruinado, toda a extensão de destruição deixada pelos durotriges era evidente. O lugar estava cheio de potes partidos, de roupa feita em
farrapos e dos restos de tudo aquilo que representava os bens materiais das pessoas que ali tinham vivido. À medida que os homens se distribuíam de ambos os lados,
Cato olhou em redor e surpreendeu-se por não haver sinais de corpos; nem tão-pouco restos de animais. Tirando os pequenos redemoinhos de cinza que a brisa criava,
nada se mexia no silêncio arrepiante.
- Dispersar! - ordenou Cato, encarando os seus homens. - Procurem em tudo quanto é sítio. Procuramos sobreviventes. Venham relatar-me o que viram assim que atingirmos
o centro da aldeia!
De armas prontas, os legionários escolhiam cautelosamente o caminho através dos edifícios destruídos, utilizando a ponta dos dardos para sondar algum montículo de
destroços. Cato observou, por um momento, a progressão dos legionários, antes de lentamente subir o caminho cheio
de cinza que ia do portão ao coração de Noviómago. A ausência de corpos perturbava-o. Tinha-se preparado para os horrores que eventualmente o esperassem, mas a
ausência de qualquer sinal das pessoas e animais que aqui moravam era quase pior, pois a sua imaginação tomou conta dele, enchendo-o de maus e terríveis presságios.
Amaldiçoou-se furiosamente. Era possível que os atacantes tivessem surpreendido a aldeia, a tivessem tomado sem luta, e tivessem levado os habitantes e os seus animais
como presas. Era a resposta mais verosímil, garantiu a si próprio.
- Optio! - Uma voz chamou-o, perto dali. - Chegue aqui!
Cato correu em direcção à voz. Perto dos restos de um recinto em
pedra para animais, um legionário encontrava-se perante uma grande cova, coberta por uma pele. Tinha levantado um dos lados e apontava para baixo com o dardo.
- Ali, senhor. Dê uma olhadela a isto.
Cato juntou-se a ele e olhou para o buraco. Tinha mais ou menos três metros de um lado ao outro, e era tão fundo como um homem. A terra em volta da orla estava solta.
Lá dentro, no escuro, viu um monte de carne seca, vários cestos com cereais, baixelas de prata gregas e algumas arcas pequenas. Era óbvio que o buraco tinha sido
escavado há pouco tempo, e sem dúvida para armazenar o saque dos atacantes. Tinham-no coberto com a pele para impedir que animais selvagens lá entrassem. Cato pôs
de lado o escudo e desceu até às arcas. Abriu a tampa da que estava mais próxima. No seu interior encontrou vários ornamentos celtas feitos a partir de prata e bronze.
Pegou num espelho e foi-o rodando para admirar a fina mão-de-obra dos padrões em espiral nas costas. Voltou a metê-lo na arca e reparou nos mais variados torques,
colares, copos e outros recipientes, todos da mais alta qualidade. Poucas destas coisas deviam ter sido usadas pelos habitantes de Noviómago. Deviam tê-las adquirido
em trocas com as tribos nativas e armazenado durante o Inverno, antes de as enviarem para a Gália, onde os representantes comerciais dos mercadores poderiam obter
um preço elevado por elas. Agora os durotriges tinham-se apoderado delas e tinham-nas escondido, sem dúvida com a intenção de as recuperar quando estivessem de volta
dos ataques que iam praticando por todo o território dos atrébates.
Cato tremeu ao imaginar o que aquilo implicava. Fechou com estrondo a tampa da arca e trepou para fora do buraco.
- Procura os outros e trá-los até ao centro da aldeia o mais rápido possível. Eu vou tratar de encontrar o centurião. Toca a mexer!
Cato apressou-se através dos restos quebradiços dos edifícios queimados, onde só as madeiras mais resistentes e as paredes de pedra enegrecidas se mantinham em pé.
Ouviu Macro a dar ordens, e seguiu a voz do
centurião. Avistou-o e a alguns dos seus homens quando emergiu de entre as paredes de dois dos mais sólidos edifícios erigidos em torno do centro de Noviómago; encontravam-se
ao lado do que parecia um poço tapado, com cerca de três metros de diâmetro. Um parapeito, à altura da cintura, rodeava-o, e tudo estava coberto com uma pele de
forma cónica. Por mais estranho que parecesse, os atacantes não tinham tocado na cobertura, aparentemente a única coisa que não tinham tentado destruir.
- Senhor! - Cato chamou à medida que corria até eles. Macro desviou o olhar do poço, com uma expressão distraída no rosto. Ao ver Cato, assumiu uma postura rígida
e foi ao seu encontro.
- Encontraste alguma coisa?
- Sim, senhor! - Cato não conseguia controlar a sua excitação nervosa ao fazer o relatório. - Há um buraco cheio de objectos saqueados perto do portão principal.
Devem tencionar regressar por aqui. Senhor, pode ser a nossa oportunidade de lhes armar uma cilada!
Macro concordou solenemente com a cabeça, aparentemente pouco interessado na possibilidade de emboscar os atacantes.
- Estou a ver - disse.
O impulso de Cato para continuar a falar da sua descoberta foi cortado pela estranha seriedade do seu superior.
- Que se passa, senhor?
Macro engoliu em seco.
- Encontraste alguns corpos?
- Corpos? Não, senhor. Nenhum. É curioso.
- Pois é. - Macro premiu os lábios e apontou o poço com o polegar. - Então, é porque devem estar todos ali dentro.

X

À luz que desaparecia, o centurião Hortênsio tornou-se uma silhueta indistinta, cujos pormenores eram imperceptíveis, as mãos poisadas sobre a pedra e espreitando
para o interior do poço. Macro e os seus homens mantiveram-se atrás, salvaguardando-se ao máximo de algum espírito dos mortos que por ali se tivesse demorado. Diómedes
estava sentado, só, encostado à alvenaria enegrecida de uma construção arruinada. De cabeça curvada, rosto enterrado nos braços, e corpo tremendo de mágoa.
- Isto está a ser muito duro para ele - murmurou Fígulo, baixinho.
Cato e Macro trocaram um olhar. Ambos tinham visto o retorcido amontoado de corpos mutilados que quase enchia o poço. Tendo em conta a dimensão da aldeia, deviam
ser centenas. O que mais horrorizava Cato era que nenhuma criatura viva tivesse sido poupada. O emaranhamento de corpos incluía até os cães e as ovelhas dos aldeões,
assim como mulheres e crianças. Os atacantes tinham deixado bem claro qual seria o destino daqueles que se aliassem a Roma. O jovem optio cambaleara perante a negra
visão do poço, e tinha sentido um gelado horror e desespero, quando os seus olhos tinham caído sobre o rosto de um jovem, pouco mais que um miúdo, estendido no topo
da pilha. Entre melenas louras e desgrenhadas, dois espantosos olhos azuis fixavam-se esbugalhados num terror eterno. A boca do rapaz pendia aberta, deixando ver
pequenos dentes brancos. Tinha sido morto com uma lança espetada no peito, pelo que a parte de cima da sua roupa de lã grosseira estava negra de sangue seco. Cato
virara-se, curvara-se e vomitara.
Agora, meia-hora mais tarde, sentia-se frio e cansado, com a tristeza profunda dos que enfrentavam pela primeira vez a absoluta negrura da vida. A morte violenta
era algo com que tinha vindo a lidar desde que se juntara às águias, há pouco mais de um ano. Tão pouco tempo, reflectiu. O exército tinha conseguido enrijecê-lo
sem que realmente se desse conta
disso, mas perante o sanguinário trabalho dos druidas da Lua Negra, foi consumido pelo horror e pelo desespero. E, ao mesmo tempo que a sua mente tentava assimilar
as acções de homens que ultrajavam todos os padrões de comportamento aceitável, uma vontade firme e crescente de exercer sobre eles uma vingança selvática ameaçava
dominá-lo por completo. A imagem do rosto do rapaz passou-lhe de novo pelo pensamento e, instintivamente, colocou a mão no punho da espada, apertando-o com força.
Agora, os mesmos druidas tinham em sua posse uma família romana, destinada, sem dúvida, ao mesmo fim que os habitantes de Noviómago.
Macro tinha reparado no movimento. Por um momento quase se sentiu tentado a poisar uma mão paternal no ombro do seu optio e a confortá-lo. Tinha vindo a afeiçoar-se
ao optio, e tendia a esquecer-se que Cato tinha pouca experiência quanto à absoluta brutalidade da guerra. Era difícil de acreditar que o desastrado rato de biblioteca
que tinha aparecido, na Germânia, junto com os outros recrutas esfarrapados, fosse o mesmo homem que este oficial subalterno cheio de cicatrizes que agora se encontrava
ao seu lado em silêncio. O rapaz tinha já ganho a sua primeira condecoração por valentia; a fálera polida brilhava sobre a armadura do optio. Não restavam dúvidas
quanto à sua coragem e inteligência, e se sobrevivesse à vida severa das legiões o tempo suficiente, um grande futuro o esperava. Contudo, ainda não passava de um
rapaz, dado a penosos constrangimentos que Macro não podia entender. Ainda menos do que compreendia as disposições ocasionais do rapaz, quando parecia que se fechava
em si mesmo e se embrulhava todo num emaranhado de trilhos mentais sem fim.
Macro encolheu os ombros. Se ao menos o rapaz não pensasse tanto, acharia a vida bem mais fácil. Ele pouco tempo tinha para a introspecção, que apenas atrapalhava
o que era importante e que impedia um homem de fazer as suas coisas. Era melhor deixar isso para aqueles intelectuais ociosos lá de Roma. Quanto mais depressa Cato
aceitasse esse facto, mais feliz seria.
Fígulo continuava a manifestar aversão pela despudorada exibição das emoções de Diómedes.
- Raios partam os gregos! Dramatizam tudo. Demasiada tragédia e muito pouca comédia nos seus teatros, é esse o problema.
- O homem perdeu a família - disse Macro calmamente. - Por isso faz-lhe o favor de calares essa boca de merda antes que ele te oiça.
- Sim, senhor. - Fígulo esperou um momento, e depois, com indiferença, afastou-se dali, como que procurando algo com que se distrair enquanto a centúria esperava
novas ordens.
O centurião Hortênsio já tinha visto o suficiente, e dirigiu-se a passos largos para junto de Macro.
- Que confusão desgraçada que ali vai.
- É verdade, senhor.
- É melhor chamar os seus rapazes para que o encham. Não temos tempo para um enterro como deve ser. De qualquer maneira, não sei quais os requisitos locais para
o fazer de forma correcta.
- Pode perguntar ao Diómedes - sugeriu Macro. - Ele há-de
saber.
Viraram-se ambos para olharem para o guia grego. Diómedes tinha levantado a cabeça, e olhava para o poço, as feições contorcidas enquanto tentava lutar contra a
sua mágoa.
- Acho melhor não - decidiu o centurião Hortênsio. - Pelo menos por enquanto. Eu tomarei conta dele enquanto você trata do poço.
Macro concordou com um aceno, antes de lhe ocorrer outro pensamento.
- E quanto aos despojos que o meu optio encontrou?
- Que tem isso?
Cato olhou para cima, exasperado com a incapacidade do centurião mais graduado para reconhecer o significado do seu achado. Antes de poder dar voz a qualquer explicação
insubordinada, Macro interveio.
- O optio calcula que os atacantes tencionam voltar para virem buscar os despojos.
- Ah, sim? - Hortênsio olhou ameaçadoramente para o jovem optio, irritado com o facto de um soldado tão jovem e inexperiente presumir perceber as intenções do inimigo.
- Qual seria então a razão de os terem posto de lado, senhor?
- Talvez seja algum tipo de oferenda aos deuses deles. Quem
sabe?
- Não me parece - contestou Cato, calmamente.
Hortênsio franziu o sobrolho.
- Se tens alguma coisa a dizer, di-lo como deve ser, Optio - disse com brusquidão.
- Sim, senhor. - Cato pôs-se em sentido. - Quis apenas sugerir que, na minha opinião, os atacantes puseram aquilo de lado para depois o levarem consigo quando regressarem
ao território dos Durotriges. E é tudo, senhor. Além do facto de eles poderem estar de volta a qualquer momento.
- A qualquer momento, hã? - Hortênsio escarnecia dele. - Duvido. Se eles forem inteligentes já estão escondidos e em segurança lá de onde vêm.
- Mesmo assim, senhor, o rapaz poderá ter razão - disse Macro.
- Devíamos pôr uma atalaia nalgum lugar alto.
Macro, eu não nasci ontem. Estão a ser tomadas precauções. Os batedores montados andam a guardar as proximidades da aldeia. Se alguém se aproximar, serão vistos
muito antes de representarem uma ameaça para nós. Não que acredite que os atacantes ainda andem por aí.
Mal tinha acabado de falar, um trovejar de cascos soou através do crepúsculo. Os três oficiais viraram-se, e, momentos mais tarde, um batedor cavalgou até ao centro
da aldeia. Obrigou a montada a parar e deslizou da sela abaixo.
- Onde está o centurião Hortênsio?
- Aqui. Faz o relatório!
O homem correu até lá, saudou e respirou fundo.
- Uma coluna de homens aproxima-se, senhor! A duas milhas
daqui.
- De que direcção?
O batedor virou-se e apontou para leste, para lá de uma passagem entre dois montes, onde um trilho acompanhava a costa.
- Quantos são?
- Duzentos, talvez mais.
- Certo. Que está o teu decurião a fazer?
- Mandou o esquadrão de volta às árvores do monte mais próximo. Excepto dois homens, sem cavalos. Mantêm a coluna sob vigilância.
- Muito bem. - Hortênsio abanou a cabeça de satisfação e dispensou o batedor. - Agora, vai. Diz ao decurião que se mantenha escondido. Enviarei um mensageiro com
novas ordens assim que puder.
O batedor correu de volta ao cavalo, enquanto Hortênsio se virava para os outros oficiais e forçava um sorriso.
- Bem, jovem Cato. Parece que poderás ter razão. Se sim, então aqueles druidas e os seus amigos irão ter uma surpresa dos diabos.

XI

- Para variar, está a nevar - queixou-se Cato, ao avistar a primeira neve que caía do céu nocturno. Soprava um vento frio, vindo do mar, e trazia uma massa de flocos
brancos que caíam em torvelinho sobre os homens da Quarta Coorte, escondidos nas ruínas da aldeia. O tempo limpo dos últimos dias tinha deixado o solo seco, mas
a neve começou logo a cobri-lo, sarapintando as escuras capas e escudos dos legionários que tremiam em silêncio.
- Não durará muito, Optio - sussurrou Fígulo. - Olhe ali! - Apontou para uma nesga de céu, ao lado da escura trama de nuvens. Estrelas e um tímido crescente reluziam
tenuemente num céu quase negro.
Parecia já ter passado muito tempo desde que a noite caíra, e a tensa expectativa dos homens apurava-lhes os sentidos enquanto esperavam que os atacantes caíssem
na cilada. A Sexta Centúria estava dissimulada entre as ruínas do centro da aldeia. Ao espreitar por cima das paredes de pedra de uma cabana, à altura do peito de
um homem, Cato não conseguia ver nenhum dos outros membros da centúria, embora a sua presença fosse evidente. Assim como o era a dos mortos empilhados no poço ali
perto. A imagem do rapaz morto apareceu inoportunamente na cabeça de Cato, e a sua amarga vontade de exercer uma vingança terrível sobre os druidas e seus seguidores
veio de novo à tona.
- Onde raio se meteram aqueles sacanas dos bretões? - resmungou, calando-se imediatamente, furioso consigo mesmo por ter mostrado impaciência em frente dos seus
homens. À excepção de Fígulo, tinham-se sentado em silêncio, tal como lhes tinha sido ordenado. A maior parte eram veteranos amadurecidos que tinham sido colocados
na Segunda Legião no Outono anterior, com o objectivo de lhe restabelecer os números. A unidade de Vespasiano sofrera graves perdas nas primeiras batalhas da campanha,
mas tivera a felicidade de poder escolher em primeiro lugar os substitutos de entre as reservas embarcadas da Gália.
Quer que vá dar uma olhadela, senhor? - perguntou Fígulo.
- Não! - refilou Cato. - Senta-te quieto, desgraçado. Nem mais
um pio.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor.
O recruta afastou-se uma certa distância, o que fez com que Cato abanasse a cabeça em desespero. Sozinho, aquele idiota ainda estragaria os planos delineados à pressa
pelo centurião Hortênsio. No curto espaço de tempo antes da coluna inimiga ter aparecido à vista da aldeia, duas centúrias tinham sido dispostas dentro da própria
aldeia; as outras quatro esconderam-se no fosso defensivo, prontas a fecharem o perímetro onde encurralariam os atacantes. Os batedores montados estavam reunidos
na orla de um bosque ali perto, e tinha-lhes sido ordenado que avançassem assim que o sinal de ataque fosse dado. Verificariam então se algum bretão conseguia escapar
da aldeia, perseguindo-o em seguida. Não que Cato lhes quisesse dar tal oportunidade.
Os destroços chamuscados da aldeia estavam já a desaparecer sob um fino manto de neve. Enquanto Cato esperava o inimigo, a textura da neve já caída lembrava-lhe
a mais fina seda, e de repente começou a pensar em Lavínia - jovial, fresca e repleta de um entusiasmo vital e contagioso. Mas logo essa imagem desapareceu e foi
substituída pela sua aterrada expressão de morte. Cato obrigou a visão a sair-lhe do pensamento e tentou concentrar-se noutra coisa qualquer. Ficou surpreendido
ao ver-se a pensar em Boudica - o rosto fixo dela, de sobrancelha arqueada, fazendo a branda expressão escarninha com que ele tinha particularmente simpatizado.
Cato sorriu.
- Senhor! - silvou Fígulo, meio levantado. Os outros homens da divisão olharam para ele com irritação.
- Que é? - Cato olhou em redor. - Julguei ter-te dito que te mantivesses de bico calado.
- Algo se passa! - Fígulo apontou o dedo em direcção ao lado oposto da aldeia.
- Cala-me essa boca! - rugiu Cato, entredentes, elevando o punho para enfatizar a ordem. - Baixa-te!
Fígulo acocorou-se, escondendo-se. Depois, com todo o cuidado, Cato olhou para o espaço aberto junto ao poço. Os seus olhos esforçavam-se por captar algum sinal
de movimento. O baixo gemido do vento frustrava-lhe a audição, e foi por isso que, apesar da escuridão, ele viu o inimigo antes de o ouvir. O escuro contorno de
uma das ruínas do lado oposto mudou de forma, depois, lentamente, um vulto emergiu entre duas paredes de pedra. Um cavaleiro. No limiar da praça parou o cavalo e
ficou sentado muito quieto na sua montada, como que farejando o ar à procura
de sinais de perigo. Por fim, o cavalo relinchou e levantou o casco, fazendo um golpe negro na neve. Em seguida, dando um estalido com a língua que se ouviu nitidamente,
o bretão fez avançar a sua montada em direcção ao poço. A sua forma escura moveu-se lentamente através dos remoinhos de neve, e Cato teve a nítida sensação de que
os olhos do homem sondavam as ruínas silenciosas. Baixou-se por detrás da parede o máximo que pôde, de modo a não deixar de ver por cima da pedra enegrecida. Quando
o cavaleiro alcançou o poço, parou de novo, e depois contornou a borda para olhar melhor lá para dentro. A mão de Cato agarrou-se bem ao punho da sua espada, e,
por um momento, a tentação de desembainhá-la tornou-se quase insuportável. Depois, obrigou-se a largá-lo. Os homens à sua volta estavam suficientemente tensos para
entrarem em acção ao mais pequeno sinal que ele desse para investirem. Mas tinham de esperar pela trombeta. Hortênsio observava do cimo de um monte tumular, fora
da aldeia, e apenas faria sinal para fechar a emboscada quando todos os atacantes estivessem entre as ruínas, no interior do portão principal. As ordens tinham sido
claras: nenhum homem devia mexer-se um centímetro sequer até o sinal ser dado. Cato virou-se para os seus homens, acenando silenciosamente para que se baixassem.
Pelò modo como estavam acocorados, segurando os escudos e os dardos, pôde ver que estavam prontos para avançar.
Perto do poço, o cavaleiro inclinou-se calmamente para o lado, reunindo ruidosamente um muco, e escarrando-o para o buraco. A fria vontade de vingança que Cato sentia
transformou-se momentaneamente numa terrível raiva ardente que lhe acelerou o sangue ao longo das veias. Lutou contra o impulso, cerrando os punhos de tal maneira
que sentiu as unhas cravarem-se-lhe dolorosamente nas palmas das mãos. O durotrige parecia convencido de que nenhum perigo o ameaçava a ele e aos seus companheiros
e, despreocupado, virou o seu cavalo e trotou para fora do centro da aldeia, em direcção ao portão principal. Cato olhou para os seus homens.
-O sinal em breve será dado - disse-lhes ele, baixinho.-Quando aquele batedor lhes der sinal de que podem avançar, os druidas e os seus companheiros marcharão pelo
portão adentro. Vêm reaver o saque e provavelmente pretendem passar aqui a noite. Devem estar cansados e desejosos de repouso. O que os deixará descuidados. - Cato
desembainhou a sua espada e apontou-a aos seus homens. - Lembrem-se, rapazes...
Alguns dos veteranos não conseguiram evitar um riso abafado por terem sido tratados por rapazes pelo jovem optio, mas respeitavam o seu posto, e rapidamente puseram
de lado o divertimento. Cato respirou fundo, para disfarçar a impaciência.
- Lembrem-se, é para entrar a matar. Temos ordens para fazer prisioneiros, mas não se arrisquem desnecessariamente por causa disso.
Sabem bem como o centurião detesta ter de escrever mensagens a comunicar falecimentos às famílias. Ele não será rápido a perdoar-vos se se deixarem matar.
As palavras de Cato produziram o efeito desejado, pelo que a terrível tensão criada pela espera amainou, e os homens sorriram de novo.
- Vamos lá. Toca a levantar, erguer os escudos e preparar os dardos.
Os vultos dos homens levantaram-se, e por entre o vasculhar de pés sobre os grandes flocos de neve, os seus ouvidos puseram-se à espera que o sinal da trompeta soasse
sobre o baixo gemido do vento. Mas ainda antes do sinal se ouvir, os primeiros bretões apareceram vindos do portão principal. Homens a pé, conduzindo os seus cavalos
e conversando em tom satisfeito, agora que o seu dia de marcha tinha chegado ao fim. Emergiram lentamente da escuridão dos edifícios queimados e reuniram-se na grande
praça junto ao poço. À medida que Cato os ia nervosamente observando, o número de atacantes crescia, até que mais de vinte andavam por ali, e outros se lhes juntavam,
surgindo da noite. A mastigação e o bater das patas dos cavalos misturava-se com o tom alegre dos bretões, que parecia insuportavelmente alto, depois do longo período
de silêncio forçado. Cato receou que os seus homens não conseguissem ouvir o sinal da trompeta devido ao barulho. Apesar da quietude deles, dava-se conta da sua
crescente ansiedade. Se o sinal não fosse dado em breve, os homens da Sexta Centúria, dispersos como estavam, poderiam ficar em desvantagem numérica face àqueles
a quem pretendiam armar a cilada.
Ouviu-se um grito áspero vindo do centro da massa agitada de atacantes. Um homem a cavalo abria caminho através deles e despejava uma torrente de ordens. Os bretões
calaram-se e rapidamente a multidão despreocupada se transformou em soldados prontos a agirem à voz de comando. Uns quantos homens destacados para essa tarefa ocupavam-se
das montadas, enquanto os outros formavam em frente do cavaleiro. Para grande frustração de Cato, o melhor momento para iniciar o ataque estava a perder-se. A menos
que Hortênsio desse o sinal de imediato, o inimigo poderia ainda organizar-se o suficiente para oferecer uma resistência eficaz.
Justamente enquanto amaldiçoava o atraso, Cato deu-se conta de um homem caminhando na sua direcção. O optio abaixou-se silenciosamente, olhando fixa e ansiosamente
para o contorno da parede de pedra acima da sua cabeça. Quando o bretão se aproximou, parou e mexeu desajeitadamente na sua capa. Houve uma pausa antes de um som
de líquido a ser vertido chegar aos ouvidos do optio. O bretão libertou um longo suspiro de satisfação enquanto se aliviava contra a parede de pedra. Alguém o chamou,
e Cato ouviu o homem rir-se ao virar-se para responder, batendo
descuidadamente nas pedras soltas que se encontravam no topo da parede arruinada. Um calhau tombou para o outro lado, em direcção à cabeça de Cato. Instintivamente
ele encolheu-se e a pedra foi embater na parte lateral do elmo, com um pesado som metálico. A cabeça do atacante apareceu por cima da parede, em busca da fonte de
tal ruído. Cato susteve a respiração, na esperança dele e dos seus homens não serem vistos. O guerreiro durotrige inspirou fundo e deu um berro a avisar os seus
camaradas que atravessou a escuridão e se ouviu acima dos outros sons com surpreendente nitidez.
- Levantem-se! - rugiu Cato. - A eles!
Pondo-se de pé, deu com a espada curta na escura forma da cara do bretão, sentindo o impacto percorrer-lhe o braço à medida que o grito esganiçado do atacante lhe
soava aos ouvidos.
- Usem os dardos! - A voz de Macro ouviu-se ali perto. - Dardos primeiro!
Os vultos dos legionários surgiram das ruínas que circundavam os durotriges.
- Lançar dardos! - rugiu Macro. Com um esforço audível, os homens em torno de Cato lançaram os dardos, no reduzido ângulo empregue contra inimigos tão próximos,
e as longas hastes voaram em direcção à densa massa dos durotriges. O ruído surdo do impacto levou os homens feridos a gritarem instantaneamente, e fez com que os
cavalos relinchassem de dor, ao serem atingidos pelas perversas pontas de ferro dos dardos.
Cato e os seus homens galgaram a parede, de espada desembainhada e pronta a usar.
- Mantenham-se perto de mim! - gritou Cato, ansioso por evitar que os seus homens se misturassem com os bretões. Hortênsio tinha sublinhado aos seus subordinados
que os homens deviam ser mantidos sob rigoroso controlo durante a emboscada. O exército romano tinha uma saudável aversão a lutar de noite, mas esta oportunidade
de armar uma cilada e destruir o inimigo era demasiado providencial para ser desperdiçada, até mesmo para um centurião tão regrado como Hortênsio.
- Reunir! - gritou Macro, um pouco afastado, e a ordem foi repetida pelos líderes de todas as divisões, à medida que pequenos grupos de legionários se aproximavam
dos bretões. Atrás dos seus largos escudos rectangulares os olhos dos romanos dardejavam, à procura do inimigo mais próximo no qual pudessem usar a espada. Cato
pestanejou devido a uma rajada de vento lhe ter soprado vários flocos de neve para a cara, dificultando-lhe momentaneamente a visão. À sua frente emergiu um enorme
vulto. Dedos agarraram na extremidade superior do seu escudo, a centímetros do seu rosto, e afastaram-no violentamente para o lado. Instintivamente, Cato esticou
o braço para a frente, colocando no movimento todo o peso do seu
corpo. O bretão manteve-se firmemente agarrado, e a extremidade inferior do escudo subiu, batendo-lhe com força no meio das pernas. Grunhiu, afrouxou a pressão e
começou a dobrar-se. Cato, para lhe dar uma ajuda, bateu violentamente com o punho da sua espada na nuca do homem. Passou por cima da forma prostrada, olhando em
volta para se certificar de que a sua divisão ainda o acompanhava. Atrás dos seus escuros escudos rectangulares, os legionários avançavam de ambos os lados, lutando
ombro com ombro à medida que chacinavam a agitada massa do inimigo. A resistência à emboscada não era organizada, os bretões lutavam apenas para se libertarem dos
mortos e dos feridos, e da confusão de equipamento e dardos partidos que os atrapalhava. Os que conseguiam escapar desse caos, tentavam desesperadamente abrir caminho
por entre os escudos cerrados e as mortais lâminas das espadas curtas dos romanos. Mas muito poucos escapavam, e com uma fria e inexorável eficácia, os legionários
avançavam, matando tudo o que encontravam.
Depois, acima dos gritos e berros dos homens e do tinir das armas, uma estridente nota soou por toda a aldeia, quando Hortênsio deu, tardiamente, o sinal de ataque.
Para aproveitar o que restava do elemento de surpresa, o centurião lançou os seus homens contra a coluna britânica que ainda entrava na aldeia. O alto clamor do
grito de guerra da coorte surgiu de todos os lados e o grupo de guerreiros durotriges parou onde estava, demasiado atordoado, por momentos, para reagir. As restantes
centúrias emergiram do fosso defensivo da aldeia, multiplicando-se sobre o brilho da neve acabada de cair, em direcção aos seus inimigos. Os druidas que lideravam
os bretões tentaram reagrupar os seus homens e fazê-los formar para que enfrentassem a ameaça, mas depressa os legionários os alcançaram, destroçando-os.
Com fervor renovado, a Sexta Centúria lidou com os poucos bretões que restavam ainda vivos entre a carnificina em redor do poço da aldeia. A lâmina de Cato tinha
ficado presa nas costelas de um dos atacantes e, com uma rosnadela, ele pôs uma bota no estômago do homem e libertou a espada. Ao olhar para cima, teve apenas tempo
de saltar para trás quando um cavalo se empinou à sua frente, com as narinas infladas e os olhos esbugalhados de terror devido aos gritos e ao tinir das armas que
preenchiam a noite. Acima da cabeça do cavalo avultava a silhueta do guerreiro que debalde tentara fazer os seus homens formar para enfrentarem os romanos. Brandia
numa mão uma longa espada, bem lá no alto e afastada do seu cavalo assustado. Fixou o olhar em Cato e lançou a espada com toda a sua força. Cato pôs-se de joelhos
e ergueu o seu escudo na direcção de onde a espada vinha. O choque deu-se com grande estrondo, mesmo acima da saliência do escudo, e tê-lo-ia trespassado totalmente
se não tivesse batido
no reforço de metal do lado mais próximo do cavalo. Assim, a lâmina ficou presa, e quando o guerreiro tentou retirá-la, puxou o escudo para si juntamente com a
espada. Rosnando a sua frustração, o homem atingiu Cato com a bota, na parte lateral do elmo do optio. Este ficou atordoado por um momento, mas depressa recuperou
e atingiu a perna do adversário com a espada. O bretão uivou de raiva e instigou o cavalo para esmagar o romano. Nada habituado a cavalos na sua vida civil, e com
o respeito que um soldado de infantaria tem pelos perigos ligados à cavalaria, Cato esquivou-se aos cascos letais. Mas a pressão dos legionários atrás dele não lhe
dava muito espaço para se afastar. Cato puxou o seu escudo com toda a força e, com um ruído seco de estilhaços, a espada e o escudo separaram-se. O bretão bateu
com os calcanhares e, selvaticamente, puxou as rédeas, o que fez com que a sua montada se empinasse, com os cascos a agitarem-se perigosamente. Cato rebolou por
baixo da barriga do cavalo, protegendo o corpo com o escudo bastante danificado, e espetou a sua espada nos órgãos vitais do animal.
O cavalo debateu-se ferozmente para se livrar da lâmina, empinando-se tanto que caiu para trás, esmagando o cavaleiro. Antes do bretão tentar sequer libertar-se
do animal mortalmente ferido, um legionário deu um salto para a frente e acabou com ele com um golpe rápido na garganta.
- Fígulo! O cavalo também! - ordenou Cato, enquanto se afastava dos cascos do animal ferido, que ainda se agitava. O jovem legionário dirigiu-se à cabeça da besta
e abriu-lhe uma artéria com um rápido corte de espada. Cato estava de novo em pé, olhando em volta à procura de mais um inimigo, mas não havia nenhum. A maioria
dos bretões tinha morrido. Alguns dos feridos queixavam-se, mas seriam ignorados até haver tempo para acabar-lhes com o sofrimento com um golpe misericordioso. O
resto tinha fugido, debandando desordenadamente por entre os destroços da aldeia, na tentativa de escapar às cruéis lâminas daqueles que os atacavam.
Os legionários estavam impressionados com a rapidez com que tinham conseguido subjugar o inimigo, e, por momentos, permaneceram tensos e acocorados, prontos para
lutar.
- Sexta Centúria! Formar!
Cato viu a forma atarracada do seu centurião afastando-se do monte de corpos ao pé do poço.
- Vamos, rapazes! Formar! Isto não é nenhuma porra dum exercício! Toca a mexer!
Os homens, bem treinados, responderam instantaneamente, apressando-se até junto do centurião, formando uma pequena coluna sobre o solo nevado. Macro viu que não
faltava ninguém nas linhas de soldados, pelo que abanou a cabeça com satisfação. O inimigo tinha tido muito pouco
tempo para conseguir ferir mais do que apenas alguns homens da centúria de Macro. Saudou Cato com um aceno, assim que este tomou o seu lugar à frente dos homens.
- Tudo bem, Optio?
Cato abanou a cabeça afirmativamente, arquejando.
- Então, de volta ao portão, rapazes! - gritou Macro. Deu uma palmada no ombro de Fígulo. - E não poupem os cavalos!

XII

A neve ondeava suavemente em redor, enquanto os legionários seguiam pelo trilho que ia dar ao que restava do portão, donde os sons de guerra abafados pelo vento
se arrastavam até eles. Cato reparou que o vento tinha abrandado um pouco. Nesgas de céu prateado iam aparecendo entre as nuvens, permitindo a entrada da luz das
estrelas e do ténue crescente. O brilho que o manto de neve reflectia deixava entrever as fugidias formas dos bretões entre as ruínas. Por um momento, Cato sentiu
a raiva e a frustração aumentarem perante tal visão. Era possível que escapassem antes de a sede de vingança dos legionários ser saciada. Então, um sorriso frio
aflorou-lhe os lábios. Talvez fosse ele o único que desejava fazer o inimigo pagar por aquilo que vira no poço. Talvez os veteranos que marchavam pelo trilho abaixo
apenas vissem o inimigo em termos profissionais. Um adversário a ser vencido e destruído; nem mais nem menos.
Ao aproximarem-se do portão arruinado viram uma grande massa negra de guerreiros durotriges agitando-se entre as ruínas, sem qualquer organização. Alguns indivíduos
trepavam pelos restos do baluarte de terra, procurando uma forma de escapar através da paliçada de madeira despedaçada e do cordão de aço da linha dos legionários
do outro lado. Alguns dos atacantes poderiam escapar, mas só alguns, pensou Cato para si próprio, com fria satisfação.
- Alto! - ordenou Macro. - Ali estão eles, rapazes, prontinhos para despachar. Mantenham-se próximos e lembrem-se de olhar antes de atacar. Há que chegue para todos,
não têm de matar nenhum dos nossos! Formar linha!
Enquanto a linha da frente da coluna permanecia onde estava, as colunas seguintes tomaram posição nos lados, até que a centúria formou uma linha de duas filas de
homens, sobre os destroços. Enquanto esperava que a ordem para avançar fosse dada pelo centurião, Cato reparou num
pequeno grupo de durotriges que se separou dos seus camaradas e se escapuliu para a escuridão de algumas cabanas arruinadas.
- Senhor!
- Que é?
Cato empunhou a espada e usou-a para apontar para as cabanas.
- Ali. Alguns deles estão a tentar escapar.
- Estou a vê-los. Não podemos permitir essa brincadeira - decidiu Macro. - Leva metade dos homens e trata deles.
- Sim, senhor.
- Cato, nada de heroísmos. - Macro reparara na sombria disposição que se tinha apoderado do seu optio, desde que o rapaz tinha testemunhado o horror no interior
do poço, e queria que ele percebesse que não admitiria tolices. - Apanha-os, simplesmente, e depois regressa para aqui com os homens.
- Sim, senhor.
- Eu avanço primeiro. Depois de mim, poderás prosseguir.
Cato disse que sim com a cabeça.
- Esquadrões à minha esquerda... avançar!
Com Macro a marcar o passo, as primeiras cinco secções avançaram, de escudos virados para o inimigo e espadas na mão. A escura massa de bretões recuou perante a
muralha de escudos que se aproximava, e os seus gritos de desespero e pânico alcançaram um novo tom de terror, à medida que a silenciosa linha de soldados romanos
se aproximava deles. Os mais corajosos de entre os durotriges saíram da multidão, de armas em riste, prontos para morrer em combate, fiéis ao seu código de guerreiro.
Mas eram demasiado poucos para que isso mudasse alguma coisa, e foram rapidamente dominados e chacinados. Momentos mais tarde ouviu-se o bater pesado dos escudos
e o tinir das espadas, à medida que Macro e os seus homens iam desbravando caminho por entre a multidão agitada.
Cato virou-se e inspirou bem fundo o ar frio.
- Os restantes, sigam-me!
Contornando a peleja que decorria perto do portão, conduziu os homens pela vereda sinuosa por onde o pequeno grupo de durotriges tinha desaparecido. Nesta zona da
aldeia, as cabanas não tinham sido muito destruídas pelo fogo. Paredes de pedra, à altura do peito, e restos de estruturas de madeira erguiam-se por todo o lado,
à medida que corriam atrás do inimigo. As suas couraças rangiam e as suas bainhas e protecções lombares tilintavam quando a neve cedia sob as suas botas. À sua frente,
o caminho estava marcado pela passagem, ainda há poucos momentos, dos durotriges; um rasto nítido para os romanos seguirem. Depressa se tornou óbvia para Cato a
razão porque o pequeno grupo se tinha dirigido naquela direcção,
ao recordar-se do buraco com os despojos que tinha descoberto anteriormente. Tinham ido em busca de quaisquer despojos que pudessem levar com eles.
O estreito trilho fazia uma curva apertada, e um ténue silvo alertou Cato mesmo a tempo de se proteger com o escudo. Um machado de lâmina dupla resvalou na extremidade
do seu escudo e foi direito à cara do legionário que o seguia imediatamente. Com um som repugnante, a pesada lâmina arrancou completamente o topo do elmo e da cabeça
do homem. Nem sequer gritou, ao cair para trás, espalhando os miolos ensanguentados sobre os camaradas mais próximos. Um enorme guerreiro durotrige surgiu à frente
de Cato. O homem soltou um grito selvático quando viu o dano que a sua arma tinha causado. A lâmina, na continuação da trajectória, tinha-se ido enterrar profundamente
numa viga de madeira. O guerreiro durotrige rosnou, depois libertou o machado com um forte puxão, que lhe provocou uma explosiva arfada. O movimento expô-lo por
um breve momento, e Cato enfiou-lhe a espada no diafragma, sentindo o sólido impacto de uma boa investida. Mas ao invés de cair para trás, mortalmente ferido que
estava, o enorme bretão pareceu simplesmente ter ficado ainda mais enraivecido com o golpe. Rugiu um grito de guerra e saiu da sombra da parede que tinha usado para
se esconder, para se ir colocar no meio da vereda, onde tinha espaço para manejar o seu enorme machado à vontade. Com as duas mãos fazia-o descrever grandes arcos,
e desafiava os romanos a aproximarem-se.
Por um momento, Cato encolheu-se todo para trás, e com ele os seus homens, à medida que a lâmina silvava através do ar. O optio olhava com terror, imaginando os
ossos esmagados pelo impacto, caso algum homem suficientemente tolo se aventurasse ao alcance dos movimentos circulares da arma. A cada instante que hesitava, Cato
sabia que aumentavam as hipóteses dos companheiros do bretão escaparem. Mas apoderara-se dele um terror que o congelava, que lhe arrepiava a espinha e lhe liquefazia
as tripas. Estava chocado por se ver assim, a tremer. Todas as fibras do seu ser lhe ordenavam que se virasse e corresse e deixasse os seus homens lidar com aquele
aterrador gigante. Mas com esse pensamento, invadiu-o uma vaga amarga de auto-desprezo e repulsa.
Cato retesou-se, observando os movimentos do machado, à espera de uma aberta. Quando a arma passou rente ao seu escudo, cerrou os dentes e atirou-se ao bretão, enfiando
novamente a espada no corpo do homem. Este grunhiu com o impacto, depois ergueu o joelho e afastou Cato com um pontapé. A sua bota acertou na coxa do optio, quase
o derrubando. Cato atacou de novo, desta vez atirando o escudo à cara do homem, enquanto ia revirando a espada dentro do seu adversário, tentando alcançar um órgão
vital. Sangue, quente e pegajoso, verteu-se sobre a sua espada e mão, porém o guerreiro durotrige continuava a resistir, rugindo de dor e desafio. Deixou cair o
machado e agarrou-se à cara e à garganta de Cato com as suas mãos enormes e poderosas. O optio arfava em agonia, enquanto a sua traqueia ia sendo esmagada pelas
mãos do bretão. Com um braço preso na braçadeira do escudo, Cato largou a espada e tentou afastar a mão que lhe apertava a garganta. Outros homens estavam já ao
seu lado, batendo com os escudos no gigante e espetando-lhe as espadas em todo o lado. Resistia a tudo, rugindo profundamente, um som de pura raiva animal, e, ainda
assim, continuava a agarrar o seu adversário, estrangulando-o. Cato, já perto de perder os sentidos, pensou que a morte estava seguramente próxima, mas, de repente,
o apertão afrouxou. Meio tonto, ouviu o som molhado dos golpes de espada dos legionários a acabarem brutalmente com o bretão.
Com um profundo e áspero suspiro, o homem tombou de joelhos; as mãos desprenderam-se da garganta de Cato, caindo ao longo do corpo. Um dos legionários, por prudência,
deu-lhe ainda um pontapé no peito e ele caiu para trás, sobre a neve remexida, finalmente morto.
- Sente-se bem, Optio?
Cato estava encostado à parede de pedra, com dificuldade em respirar, à medida que o sangue lhe pulsava na garganta. Abanou a cabeça, tentando que as tonturas lhe
passassem.
- Sobreviverei - disse, engasgado. - Temos que ir atrás dos outros... Vamos.
Alguém lhe passou a espada de punho de marfim que o centurião Béstia lhe tinha legado, e ele continuou vereda acima. O terror que sentia ao pensar na possibilidade
doutra emboscada pesava contra o desejo de continuar em frente, mas, mesmo assim, forçou-se a correr, determinado a não deixar que os seus homens se apercebessem
quanto ele se sentia como uma criança assustada, perdida no meio de um pesadelo aterrorizante. Cada sombra, em cada um dos lados da ruela, se afigurava às profundezas
mais negras do inferno, de onde indescritíveis horrores ameaçavam emergir.
Depois, a vereda dobrou a esquina, e mesmo em frente estava o buraco com os despojos. A cobertura tinha sido puxada para trás e, do outro lado, avistavam-se ainda
uns quantos inimigos, vergados pelo peso do saque e debatendo-se para alcançarem os seus camaradas, que tinham posto a sensatez acima da ganância.
- Apanhem-nos - disse Cato com a voz arranhada.
Os legionários correram em frente, em formação aberta. Este combate seria homem a homem - a muralha de escudos não seria necessária. Soltando o grito de guerra da
legião, "A Augusta!", caíram sobre os bretões como se estes fossem ratazanas num celeiro. Mesmo à frente de Cato, um
romano alcançou um guerreiro durotrige que arrastava um enorme fardo pela neve. O bretão pressentiu o perigo atrás de si e virou-se, com o braço ' erguido, aterrorizado,
à medida que uma espada curta se erguia acima dele. Cato deu por si a maldizer a falta de treino do legionário - a espada curta era feita para espetar e não para
cortar, e o homem deveria saber disso e não deixar que o desejo de sangue se sobrepusesse ao que tinha aprendido nos treinos. Parecia um maldito recruta no primeiro
dia. A expressão veio-lhe inesperadamente à cabeça, chocando-o por momentos, até se aperceber, com um sorriso amarelo, de como estava mesmo embrenhado na realidade
militar.
O bretão gritou quando a espada lhe mutilou grosseiramente o antebraço, quebrando-lhe o osso, o que fez com que o membro saltitasse como um peixe acabado de pescar.
Ao passar a correr pelo legionário, Cato gritou:
- Usa a arma como deve ser!
O legionário abanou a cabeça dizendo que sim, reconhecendo o erro, e depois virou-se para pôr fim ao ganido da sua vítima com a ponta da espada.
Cato passou por mais corpos estatelados na neve, com despojos espalhados à sua volta - escuras trouxas de tecido de onde saíam taças e pratos de prata, peças pessoais
de joalharia e, algo bizarro, um par de bonecos esculpidos em madeira. Algum guerreiro durotrige que encontrara um presente para levar aos filhos, imaginou Cato.
Ficou perplexo ao pensar que os homens que tinham desencadeado uma destruição tão terrível naquela aldeia, que tinham sido capazes até de massacrar as crianças mais
pequenas, pudessem ter filhos. Desviou o olhar dos bonecos, e viu vultos indefinidos escapando através do que restava da paliçada, perseguidos por romanos arquejando
roucamente devido à perseguição e à excitação da batalha.
Cato subiu o talude inclinado e coberto de erva até às toscas estacas de madeira da paliçada. Do outro lado do fosso, dispersos pela paisagem branca que se estendia
pela distância, estavam os negros vultos dos que tinham conseguido escapar à chacina na aldeia. Alguns dos seus homens juntaram-se a ele, ansiosos por irem atrás
do inimigo.
- Alto! - Cato gritou com força, apesar da garganta dorida. Vários homens continuaram a perseguição, e Cato teve de gritar outra vez, esforçando-se por tornar clara
a sua ordem. - Alto aí!
- Senhor! - protestou alguém. - Eles estão a fugir!
- Posso muito bem ver isso, porra! - refilou Cato, furioso. - Não há nada que possamos fazer. Já não os conseguiríamos apanhar, agora. Teremos de esperar que os
batedores montados os vejam.
A disciplina e o bom senso detiveram os homens. Com o peito dorido dos esforços feitos, e o vapor da respiração voluteando em torno das
suas cabeças, ficaram a ver o inimigo fugir nas trevas. Cato tremia, por um lado devido ao vento frio que soprava ainda mais intensamente ali junto à paliçada, por
outro devido à libertação da tensão nervosa.
Teria passado assim tão pouco tempo desde que se tinham precipitado sobre o inimigo no centro da aldeia? Forçando-se a concentrar-se, deu-se conta de que toda a
questão não podia ter demorado muito mais do que um quarto de hora. O vento não trazia sons de combate, portanto a escaramuça junto do portão também devia já ter
terminado. Tudo tinha acabado bem depressa. Relembrou a primeira batalha de todas em que tinha participado. Numa aldeia na Germânia, não muito diferente desta. Mas
essa luta desesperada tinha durado toda a tarde e toda a noite, até aos primeiros raios da madrugada. Por breve que esta luta tivesse sido, a mesma exultação ardente
por ter sobrevivido inflamou-lhe as veias, fazendo-o sentir-se de algum modo mais velho e mais sábio.
A garganta doía-lhe horrivelmente, e era uma agonia engolir ou virar a cabeça em qualquer direcção. Aquele enorme guerreiro durotrige quase tinha acabado com ele.

XIII

O ténue brilho cor-de-rosa do céu lançava uma sombra ainda mais pálida sobre a neve espalhada sobre as ruínas da aldeia. Como se a própria terra tivesse sangrado
durante a noite, pensou Cato, enquanto se levantava rigidamente do canto da parede onde tinha estado a descansar, tapado com a sua capa. Não tinha dormido. Tinha
estado demasiado desconfortável para isso; a sua magra constituição física fazia-o sentir o frio de forma mais intensa que os veteranos mais musculados e enrijecidos
da legião, como Macro. Como de costume, o ressonar intenso do centurião preenchera a noite até ser hora de acordar e cumprir o turno de guarda que competia à sua
centúria. Depois de ter ido acordar o oficial que se lhe seguia na escala de serviço, voltara num instante a um sono profundo, com um ruído gutural que igualava
o som de um distante tremor de terra.
Enquanto se levantava, uma leve camada de neve caiu silenciosamente das dobras da capa de Cato. Sacudiu o restante com lassidão e espreguiçou-se. Escolhendo caminho
sobre o cascalho, aproximou-se da forma volumosa de Fígulo e, devagar, tocou-lhe com a ponta da bota. O legionário barafustou e virou-se para o outro lado, sem abrir
os olhos, e Cato teve de lhe dar um pontapé.
- De pé, soldado.
Mesmo sendo novo no exército, Fígulo sabia quando lhe tinha sido dado uma ordem, e o corpo dele respondeu depressa, apesar do atraso do cérebro.
- Acende uma fogueira - ordenou Cato. - E assegura-te que a fazes num espaço limpo, onde não haja nada inflamável.
- Como, senhor?
Cato olhou bem para o legionário, desconfiado de que ele o estivesse a gozar. Mas Fígulo olhava para ele sem expressão, sem vestígios de fingimento nos seus traços
simples, e Cato sorriu.
- Não acendas a fogueira ao pé de coisas que ardam.
- Ah, percebo. - Fígulo assentiu. - Vou já tratar disso, Optio.
- Se faz favor.
E lá foi Fígulo, sem pressas, coçando o seu traseiro dormente. Cato observava-o, e deu um estalido com a língua. O rapaz era demasiado incapaz e imaturo para as
legiões. Deveria sentir-se um pouco esquisito ao fazer um julgamento desses sobre alguém que era alguns meses mais velho que ele, mas isso já não acontecia. A experiência
trouxera-lhe mais sabedoria do que alguma vez a idade lhe poderia ter dado, e era isso que interessava no exército. Uma sensação de bem-estar percorreu o corpo de
Cato com mais essa prova de que estava cada vez mais integrado na vida de soldado.
Enrolando-se bem na sua capa, Cato saiu das cabanas arruinadas onde a Sexta Centúria tinha passado a noite. Vários dos homens já se tinham levantado e estavam sentados,
ramelentos e semi-conscientes, observando o dia a raiar num céu limpo. Alguns traziam marcas da escaramuça da noite anterior; trapos manchados de sangue atados em
volta da cabeça e dos membros. Apenas alguns homens da coorte tinham sido mortalmente feridos. Os bretões, pelo contrário, tinham sido feitos em pedaços. Perto de
oitenta jaziam imóveis junto ao portão, e mais de vinte estavam amontoados perto do poço. Os feridos e os prisioneiros eram mais de cem, colocados no que restava
de um celeiro, sob o olhar cauteloso de metade de uma centúria, destacada para os vigiar. Alguns druidas tinham sido levados vivos, bem amarrados e atirados para
um dos buracos dos despojos.
Ao caminhar pela neve endurecida em direcção aos buracos, Cato viu Diómedes agachado, a olhar fixamente para os druidas. Uma tira de tecido envolvia-lhe a cabeça,
e sangue seco manchava-lhe uma das faces. Não olhou para cima, quando o optio se aproximou, e não dava sinais de vida, tirando o vapor que exalava. Cato permaneceu
alguns passos afastado a um lado, durante um momento, à espera que o grego reparasse na sua presença, mas ele não se mexia, apenas olhava para os druidas.
Quanto a estes, estavam deitados de lado, de mãos bem atadas atrás das costas e com os pés também atados. Não estavam amordaçados, mas não tentavam falar, apenas
olhavam, enraivecidos, para os guardas, enquanto tremiam sobre o solo gelado. Ao contrário dos outros bretões que Cato tinha encontrado, estes homens tinham cabelo
comprido, mas não usavam visco para o alisar. Volumoso e emaranhado, tinham-no atado num longo rabo-de-cavalo desgrenhado, enquanto as barbas eram usadas soltas.
Cada homem trazia uma lua negra tatuada na fronte e usava mantos pretos.
- Cambada de nojentos - disse Cato, sombriamente, por alguma razão não querendo que os druidas o ouvissem. - Nunca vi nada como eles.
- Considera-te, então, sortudo, romano - resmungou Diómedes.
- Sortudo?
- Sim - silvou Diómedes, virando-se para o optio. - Sortudo. Sortudo por não teres escumalha tão cruenta e malévola a habitar as vossas fronteiras, sem nunca saber
quando irão aparecer entre vós, espalhando o terror. Nunca imaginei que tivessem a coragem de atacar tão profundamente no território dos Atrébates. Nunca. Agora,
todos os que aqui viviam estão mortos, todos os homens, mulheres e crianças. Todos chacinados, e atirados para o poço. - As sobrancelhas de Diómedes franziram-se
e os seus lábios premiram-se fortemente, por um momento. Depois pôs-se de pé e colocou uma mão dentro da capa. - Não vejo razão de manter vivos estes cabrões. Canalha
desta merece apenas um destino.
Mesmo contando com o facto de Diómedes ter ajudado a encontrar a aldeia e ter família entre os corpos amontoados no poço, Cato ficou surpreso com a intensidade arrepiante
das suas palavras. O grego começou a retirar o braço de dentro da capa e Cato, apercebendo-se do seu intuito, levantou instintivamente as mãos para o impedir.
- Bom dia! - saudou uma voz alegre.
Cato e Diómedes viraram-se e viram o centurião Hortênsio dirigir-se a passos largos até eles. Cato pôs-se em sentido e saudou; Diómedes franziu o sobrolho e, devagar,
recuou da beira do buraco. Hortênsio pôs-se ao lado deles, olhando para os druidas e sorrindo com satisfação.
- Grande negócio! Uma pequena fortuna para a coorte, pelos resultados da venda de prisioneiros, e uma palmadinha nas costas dada pelo legado por termos capturado
estas belezas. Pouquíssimo trabalho para os carniceiros dos nossos médicos. E agora, uma bela manhã para marchar de volta à legião. Estamos com sorte, Optio!
- Sim, senhor. Quantos perdemos nós ao todo?
- Cinco mortos, doze feridos e uns quantos arranhões.
- Os deuses foram bondosos, senhor.
-São melhores para uns que para outros-acrescentou Diómedes, sombriamente.
- Bom, sim, isso é verdade - assentiu Hortênsio. - Porém, agora já apanhámos os sacanas. O que porá fim aos seus jogos.
- Não, centurião, não será assim tão simples. Há muitos mais druidas e guerreiros durotriges nas nossas fronteiras, à espera de continuarem o "jogo". Muitas mais
pessoas morrerão antes de vocês, romanos, acabarem com os druidas.
Hortênsio ignorou a desconsideração. As legiões só começariam a campanha quando fosse prudente fazê-lo. Nenhuma provocação por parte
do inimigo e nenhuns apelos para que Roma honrasse a sua aliança com os Atrébates mudaria isso. Mas quando viesse o tempo de atacar os durotriges e os seus líderes
druidas, não haveria misericórdia, e as férreas legiões avançariam para criar uma nova fronteira para o império. Hortênsio deu um sorriso de compreensão ao grego,
pousando-lhe uma mão firme sobre o ombro.
- Diómedes, terás a tua vingança, mas a seu tempo.
- Poderia ter a minha vingança agora... - Diómedes acenou com a cabeça em direcção aos druidas, e Cato viu a negra expressão de assassino no rosto do grego. Se o
comandante da coorte lhe desse permissão, Diómedes garantiria que a sua vingança seria tão demorada e dolorosa quanto possível. Por um momento, a memória daquilo
que vira no poço fez Cato sentir-se inclinado a apoiar a cruenta sede de vingança do homem. A sua consciência despertou, porém, e ele estremeceu perante a disponibilidade
que tinha agora para a violência.
Hortênsio abanou a cabeça.
- Não pode ser, Diómedes. Vamos levá-los ao legado, para serem interrogados.
- Eles não falarão. Acredite em mim, centurião, não tirará nada
deles.
- Talvez. - Hortênsio encolheu os ombros. - Talvez não. Temos alguns rapazes no quartel-general treinados na arte de soltar línguas.
- Não obterão nada.
- Não estejas tão certo.
- Estou a dizer-lhe, nada conseguirão. É melhor fazer deles um exemplo, aqui e agora. Matá-los, mutilá-los, tal como eles fizeram a outros. Depois deixaríamos as
cabeças deles espetadas em estacas, como um aviso do que espera os seus companheiros.
- Boa ideia - concordou Hortênsio. - Poderia bem desencorajar os seus companheiros, mas não pode ser. Foram-me dadas ordens a respeito destes rapazes. Todos os druidas
que caírem nas nossas mãos serão levados para serem interrogados. O legado precisa deles em condições, caso esteja a pensar em trocá-los pela família romana que
os druidas têm em sua posse. Desculpa, mas é assim.
Diómedes aproximou-se do centurião. Hortênsio ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas não vacilou nem recuou perante a expressão de raiva no rosto que agora estava
a centímetros de distância do dele.
- Deixe-me matá-los - disse Diómedes, sombriamente, entre-dentes. - Não suportarei viver enquanto aqueles monstros ainda respirarem. Tem de morrer, Centurião. Tenho
de fazê-lo.
- Não. Agora, sê um bom rapaz e acalma-te.
Cato via como Diómedes olhava ameaçadoramente para a cara do centurião, com os lábios trementes, à medida que tentava controlar a sua raiva e frustração. Hortênsio,
pelo contrário, devolveu calmamente o olhar, sem vestígio algum de emoção na expressão.
- Espero apenas que viva sem lamentar essa decisão, Centurião.
- Estou certo que não.
Os lábios de Diómedes mudaram para um sorriso fino.
- Uma ambígua escolha de palavras. Esperemos que os deuses não se sintam tentados pela sua falta de cuidado.
- Os deuses farão o que lhes convier. - O centurião encolheu os ombros, e depois virou-se para Cato. - Volta para a tua centúria. Diz ao Macro que prepare os seus
homens para a marcha assim que puder.
- Depois do pequeno-almoço, senhor?
Hortênsio espetou o dedo no peito de Cato.
- Mas ouviste-me dizer alguma coisa sobre a merda do pequeno-almoço? Hã, ouviste?
- Não, senhor.
- Muito bem. Nunca interromper um oficial antes de ele ter acabado de dar as ordens - disse Hortênsio, no tom ameaçador de um instrutor militar, continuando a espetar-lhe
o dedo, como que para enfatizar o pretendido. - Fá-lo outra vez e ainda te meto os tomates a servirem de pisa-papéis. Percebido?
- Sim, senhor.
- Ainda bem. Ora bem, quero a coorte em formação, do lado de fora do portão, assim que o sol tiver nascido totalmente.
- Sim, senhor! - Cato fez a saudação, virou-se e afastou-se a passo rápido. Ainda olhou para trás uma vez, e viu Hortênsio a ter uma última conversa serena com Diómedes.
- Aí está o optio! - Fígulo sorria ao levantar-se. Junto dos seus pés, um pequeno rasto de fumo voluteava gentilmente no ar frio da manhã.
- A fogueira está a ir bem. Mas não foi fácil.
- Deixa isso - resmungou Cato. - Vamos partir.
- E então o pequeno-almoço?
Por momentos Cato sentiu-se tentado a submeter Fígulo à mesma reprimenda que recebera de Hortênsio. Mas isso seria grosseiro, e um desprezo do trabalho tido pelo
legionário para acender a fogueira.
- Lamento, Fígulo. Nada de pequeno-almoço. Apaga o fogo e prepara-te para partir.
- Apago o fogo? - A expressão de Fígulo foi semelhante à de alguém a quem morre um animal de estimação muito querido. - Apago o meu fogo?
Cato suspirou; depois, rapidamente, usou a parte lateral da sua bota para fazer um pequeno monte de neve e cobrir os galhos que ardiam a fogo lento. Com uma cuspidela
de vapor e um silvo, a pequena labareda extinguiu-se.
- Pronto. Agora põe-te a mexer, soldado.
Macro tinha acabado de acordar quando Cato voltou à zona em que se encontrava a Sexta Centúria. Assentiu com a cabeça em resposta às ordens dadas, e depois espreguiçou-se,
dando um ronco profundo, antes de se virar e começar a berrar aos homens.
- De pé, seus ociosos de merda! De pé! Vamos partir!
Um coro de lamentos e queixas atravessou as ruínas.
- Então e o pequeno-almoço? - alguém perguntou.
- Pequeno-almoço é para os fracos! - replicou Macro, irritado.
- Toca a mexer!
À medida que os homens se levantavam e pegavam penosamente nas suas armaduras, Macro andava por ali a distribuir pontapés encorajantes àqueles cuja lentidão era
mais óbvia. Cato apressou-se até ao seu volume de carga. Uma vez tudo bem preso, debateu-se com a sua cota de malha e já apertava o cinto da espada, quando um homem
de outra centúria surgiu a correr.
- Onde está Macro? - O homem arquejava.
- O centurião Macro encontra-se ali. - Cato apontou por cima de uma parede arruinada e o homem dirigiu-se para lá.
- Espera! - gritou Cato. Ficava chateado com a mania que alguns dos homens das outras centúrias tinham de deixar o despeito que sentiam pela sua mocidade passar
por cima do respeito devido ao seu posto.
O homem parou; depois, com alguma relutância, virou-se para encarar o optio e pôs-se em sentido.
- Assim está melhor - disse Cato, com um movimento de cabeça. - Da próxima vez que me dirigires a palavra, tratas-me por optio, ou senhor. Entendido?
- Sim, Optio.
- Muito bem. Podes prosseguir.
O homem deixou de se ver quando contornou a parede, e Cato continuou a colocar o equipamento. Momentos depois o homem reapareceu, dirigindo-se ao portão, e depois
surgiu Macro, à procura do seu subordinado.
- Que se passa, senhor?
- É aquele cretino do Diómedes. Fugiu.
Cato sorriu, devido à aparente falta de senso daquela frase. Para onde haveria o grego de ir? E, ainda mais importante, por que razão fugiria da segurança da coorte?
- Mas não é tudo - continuou Macro, com uma expressão severa. - Pôs inconsciente um dos rapazes que vigiava os druidas, e depois estripou-os, antes de desaparecer.

XIV

- Hmmm. Isto não está nada bonito - resmungou o centurião Hortênsio. - Aquele Diómedes fez um belo serviço.
Os mantos dos druidas tinham sido arrancados e cada um deles golpeado desde a virilha até às costelas. Uma mistura de vísceras reluzentes estendia-se numa piscina
de sangue sob cada homem. Com uma convulsão, o vómito subiu à garganta de Cato, asfixiando-o com o seu gosto amargo. Virou-se, quando Hortênsio começou a dar instruções
aos outros centuriões.
- Não há sinais do grego. É uma pena. - Hortênsio franzia o sobrolho, zangado. - Se apanho aquele gajo, dou-lhe cabo do canastro. Ninguém mata os meus prisioneiros,
a não ser que mos tenha comprado primeiro.
Os outros oficiais concordaram, num murmúrio. Prisioneiros para ser vendidos como escravos eram obtidos com grande risco pessoal, e arranjavam-se tão raramente que
não podiam ser desperdiçados de forma tão ligeira, mesmo sendo uma questão de vingança. Se Diómedes reaparecesse, Hortênsio decerto insistiria numa compensação.
Ele ergueu uma mão, para acalmar o burburinho.
- Voltaremos à legião com os outros prisioneiros. São demasiados para que os enviemos sob guarda, a coorte ficaria demasiado fraca. E sem o grego para falar por
nós, duvido que nos recebam bem nas outras aldeias dos atrébates que ainda teríamos de visitar. Por isso, é melhor voltarmos.
Era uma infracção às ordens, mas a situação solicitava-a, pelo que Macro moveu a cabeça em concordância.
- Agora - continuou Hortênsio. - Alguns daqueles sacanas conseguiram escapar com os cavalos, e podem crer que foram a correr para os seus queridos companheiros mais
depressa do que os espargos cozem. A mais próxima fortificação dos durotriges está a um dia de distância. Se eles estiverem a preparar uma força para virem atrás
de nós, não os deveremos
ver pelo menos durante mais um dia. Vamos aproveitá-lo. Forcem a marcha; temos que pôr a maior distância possível entre nós e este sítio antes da noite. Alguma pergunta?
- E quanto aos corpos, senhor?
- Que têm os corpos, Macro?
- Vamos simplesmente abandoná-los?
- Os durotriges que cuidem dos deles. Quanto aos nossos e aos locais, já tomei providências. Foram dadas ordens ao esquadrão de cavalaria para que colocassem os
nossos homens dentro do poço, juntamente com os locais, e o cobrissem, antes de nos seguirem. É o melhor que se pode arranjar. Não há tempo para piras funerárias.
Além disso, penso que os locais preferem a inumação.
Os romanos estremeceram de repugnância ao pensarem em sujeitar os mortos à decomposição gradual. Era uma das práticas mais repugnantes empregadas pelas nações menos
civilizadas do mundo. A cremação era um fim limpo e decente para a existência corpórea.
- Voltem para as vossas unidades. Partimos de imediato.
O sol desenhava uma parábola baixa ao longo do céu límpido, no segundo dia de marcha da coorte, no regresso à Segunda Legião. A noite anterior tinha sido passada
num acampamento provisório montado à pressa, e, apesar do esforço exaustivo para quebrar o solo gelado para fazer o fosso e o baluarte interior, o frio e o medo
do inimigo impediram os homens da coorte de dormirem. Desde a primeira luz do dia que Hortênsio não permitia que se parasse para descansar, e vigiava os homens como
um falcão, caindo subitamente sobre qualquer legionário para o repreender, caso mostrasse sinais de ter abrandado o passo, e manejando livremente a sua vara de videira
se fosse necessário um encorajamento extra. Mesmo estando o ar frio, e a neve compactada em gelo sob os pés, os homens depressa começaram a suar sob o peso dos fardos
que carregavam. Os prisioneiros bretões, ainda que acorrentados, não levavam carga e, por isso, marchavam com facilidade. Um deles, ferido nas pernas, tinha-se atrasado
no final do primeiro dia. Hortênsio pusera-se frente a ele, dando-lhe com a vara, mas o homem limitara-se a encolher-se numa bola protectora, e não se levantou.
Hortênsio abanou severamente a cabeça, espetou a vara no chão e, com um único movimento, tirou a espada e cortou a garganta ao bretão. O corpo foi deixado pelo caminho,
enquanto a coluna foi avançando. Desde então, mais nenhum prisioneiro caíra.
Sem períodos de descanso para aliviar a pressão das pesadas
cargas sobre os ombros dos homens, a marcha foi uma agonia. As linhas de soldados resmungavam contra os oficiais, num murmúrio azedo que aumentava de tom à medida
que se forçavam a pôr um pé à frente do outro. Poucos haviam dormido desde a noite anterior ao ataque aos durotriges. Pelo princípio da tarde do segundo dia, à medida
que o sol começava a descer em direcção ao horizonte cinzento de Inverno, Cato perguntava-se quanto tempo mais conseguiria suportar o esforço. A sua clavícula estava
a ficar esfolada pela carga, os olhos picavam-lhe de cansaço, e cada passo disparava dores da sola dos pés.
Olhando em redor para o resto da centúria, Cato podia ver as mesmas expressões de esforço gravadas em cada rosto. Mesmo quando o centurião Hortênsio desse ordem
de parar, os homens ainda teriam o trabalho desgastante de preparar o acampamento provisório. Só de imaginar ter de escavar o solo gelado com a sua picareta, Cato
sentia-se arrasado. Como tantas vezes antes, amaldiçoou-se por estar no exército, e a sua imaginação fugiu para o relativo conforto da vida de que anteriormente
desfrutara como escravo no palácio imperial, em Roma.
Mesmo quando se rendia à necessidade de fechar os olhos e saborear a imagem de uma pequena secretária arrumada, junto ao brilho quente e bruxuleante de um braseiro,
Cato foi de novo puxado para a realidade por um grito repentino. Fígulo tinha tropeçado e caído, e gatinhava a tentar recuperar o seu equipamento disperso. Dando
graças, Cato saiu da coluna, largando a sua carga para ir ajudar Fígulo a levantar-se.
- Agarra nas tuas coisas e volta para o teu lugar.
Fígulo assentiu com a cabeça e apanhou a sua canga.
- Oh, minha mãe! Que raio se passa aqui? - Hortênsio gritava, enquanto se apressava ao longo da coluna e se dirigia para os dois homens.
- As senhoras não estão a ser pagas à hora! Optio, é um dos teus?
- Sim, senhor.
- Então por que é que não lhe estás a espetar uns pontapés?
- Senhor? - Cato enrubesceu. - Pontapés? - Olhou para a coluna, em direcção a Macro, na esperança de ser apoiado pelo seu centurião. Mas Macro era um veterano, e
sabia quando não devia intervir numa confrontação, pelo que nem sequer olhou.
- Surdo e estúpido? - troou Hortênsio, junto da cara dele. - Só os mortos é que têm licença para sair da formação na minha coorte, percebido? Se mais algum cabrão
tentar o mesmo, vai desejar estar morto! Percebido?
- Sim, senhor.
A um lado, Fígulo continuava, apressadamente, a pôr o seu equipamento na canga. O centurião chefe voltou-se.
- Ouviste-me dizer que te podias mexer?
Fígulo abanou a cabeça que não e a vara do centurião foi bater na parte lateral do elmo do legionário com um forte ruído metálico.
- Não te oiço! Tens uma boca, caralho. Usa-a!
- Sim, senhor - ripostou Fígulo, cerrando os dentes devido à dor estonteante na cabeça. Largando o equipamento, pôs-se em sentido.
- Não, senhor. Não disse que me podia mexer.
- Muito bem! Agora, agarra no teu escudo e no teu dardo e deixa o resto. Da próxima vez pensarás duas vezes antes de deixar cair o equipamento.
Fígulo ardia devido à injustiça da ordem recebida. Custar-lhe-ia vários meses de pagamento para arranjar novo equipamento.
- Mas, senhor, estava cansado, não consegui evitar.
- Não conseguiste evitar! - gritou Hortênsio. - Não conseguiste evitar? TU TENS DE EVITÁ-LO, CARALHO! Mais uma palavra e corto-te os tendões por trás dos joelhos
e deixo-te aqui para os druidas. Agora, volta para o teu lugar!
Fígulo agarrou nas suas armas, e deitando um olhar penoso à canga e aos seus pertences dispersos, correu de volta para o lugar vazio na Sexta Centúria donde tinha
saído. Hortênsio voltou a sua cólera para Cato. Chegou-se mais perto, e falou num sussurro ameaçador.
- Optio, se tiver de intervir outra vez para disciplinar os teus homens, juro que te dou cabo do canastro e te abandono ao inimigo. Que pensarão os outros homens
de te pôres a agir como uma ama? Antes de perceberes, já eles se estarão a deixar cair como moscas e a queixarem-se de que estão muito cansados. Tens de os aterrorizar
o suficiente para que não pensem sequer em descansar. Faz isso, e salvar-lhes-ás a vida. Mas se te portares como ainda há pouco, cada soldado que ficar para trás
e que o inimigo matar, será culpa tua. Percebes?
- Sim, senhor.
- Espero bem que sim, florzinha. Porque, se há coisa que...
- Inimigo à vista! - gritou uma voz distante, e na frente da coluna
surgiu um dos batedores montados, galopando à procura de Hortênsio. O cavalo imobilizou-se em frente do centurião. Ao lado, os homens da coorte continuavam a sua
marcha, pois não tinha sido dada nenhuma ordem em contrário; mas o grito do cavaleiro tinha feito todas as cabeças erguerem-se, e os homens olhavam em redor à procura
de sinais do inimigo.
- Onde?
- Lá à frente, no caminho, senhor. - O cavaleiro apontava para a distância, onde o caminho fazia uma curva à volta de uma colina coberta por um bosque. O resto do
esquadrão, pequenas figuras escuras que
contrastavam com a paisagem cheia de neve, formava uma linha de combate no local onde o caminho começava a contornar o monte.
- Quantos são?
- Centenas, senhor. E têm quadrigas e alguma infantaria pesada.
- Estou a ver. - Hortênsio abanou a cabeça e bradou a ordem para que a coorte parasse. Virou-se de novo para o batedor. - Diz ao teu decurião que os mantenha sob
observação. Que me informe se eles tomarem alguma iniciativa.
O batedor saudou, voltou o cavalo e cavalgou pesadamente em direcção às distantes figuras do esquadrão, salpicando de neve as caras dos homens da infantaria, à medida
que ia passando.
Hortênsio aproximou da boca as mãos em concha:
- Oficiais! A mim!
- Já nos resta pouca luz - murmurou Cato, olhando ansiosamente para o céu.
Macro assentiu, mas manteve os olhos na densa linha dos guerreiros inimigos, que impediam a passagem no vale estreito pouco adiante. Não era costume dos bretões,
mas aqueles homens mantinham-se imóveis e silenciosos, a infantaria pesada ao centro, a infantaria ligeira de ambos os lados e uma pequena força de quadrigas em
cada um dos flancos. Bem mais de mil homens, calculava ele. Contra os quatrocentos e cinquenta efectivos da Quarta Coorte, a desproporção não cheirava nada bem.
O esquadrão de cavalaria já não estava com eles; Hortênsio tinha ordenado que contornassem o inimigo e se despachassem até ao quartel-general da legião, para solicitarem
ao legado que enviasse uma coluna para os socorrer. A legião estava a mais de vinte milhas de distância, mas os batedores deveriam alcançá-la durante a noite, se
tudo corresse bem.
A coorte tinha outro problema; era como uma caixa vazia, já que no centro, rodeados por metade de uma centúria de legionários nervosos, estavam acocorados os prisioneiros
feitos na aldeia. Estavam excitados, e esticavam os pescoços para avistarem os seus camaradas, sussurrando urgentemente uns aos outros, até que um berro severo e
uma brutal pancada de escudo lhes detinha a língua. Mas era como tentar represar uma corrente forte, e assim que uma secção se calava, os sussurros começavam noutra
parte qualquer.
- Optio! - Hortênsio gritou ao oficial encarregue dos prisioneiros. - Fá-los calar! Mata o próximo bretão que abrir o bico.
- Sim, senhor! - O optio virou-se para os prisioneiros e
Dessembainhou a espada, desafiando-os a emitir um som. A sua postura foi deveras eloquente e os nativos encolheram-se num silêncio sombrio.
- E agora, que se passará? - questionou Macro.
- Por que é que eles não nos atacam, senhor?
- Não faço ideia, Cato. Não faço ideia.
À medida que a luz no céu diminuía e o crepúsculo se impunha, as duas forças mantinham-se numa confrontação silenciosa. Cada uma esperava que a outra se rendesse
à necessidade imperativa de fazer qualquer coisa que acabasse com a tensão que lhes esgotava os nervos. Macro, mesmo sendo um veterano, deu-se conta de que batia
com os dedos na orla do escudo, mas só se apercebeu disso por causa do olhar de lado que o seu optio lhe lançou. Afastou a mão, estalou os dedos suficientemente
alto para que Cato estremecesse, e pousou a palma da mão sobre o punho da sua espada.
- Bem, nunca antes vi tal coisa - começou, em modos de conversa. - Ou os durotriges têm um grande domínio próprio, como eu nunca vi numa tribo celta, ou têm ainda
mais medo de nós do que nós deles.
- E qual das duas acha que é, senhor?
- Acho que não apostaria muito que eles estejam com medo.
Enquanto ele falava, a linha inimiga abriu-se para deixar passar
alguns homens. Com um arrepio de medo, Cato viu que o seu líder usava chifres sobre a cabeça, e que ele e os cavaleiros que o seguiam estavam envoltos nos mesmos
mantos pretos que tinham usado perante o baluarte da Segunda Legião, quando o líder deles decapitara o prefeito da armada, Maxêncio. Com uma lenta, deliberada e
ameaçadora atitude, os druidas fizeram os seus cavalos avançar em direcção à coorte, parando depois calmamente, mesmo fora do alcance dos dardos. Durante um momento,
o único movimento foi o das patas dos seus cavalos a baterem no solo. Depois, o líder levantou uma mão.
- Romanos! Desejo falar com o vosso comandante! - O sotaque era acentuado, traindo a origem gaulesa do druida. A sua voz profunda ecoou claramente pelas rampas cobertas
de neve que ladeavam o vale.
- Ele que avance!
Macro e Cato viraram-se para olharem para Hortênsio. Os lábios dele desenharam uma careta de desprezo, por um momento, mas recuperou o controlo ao aperceber-se do
perigo em que a coorte se encontrava. Os homens mais próximos viram-no engolir em seco, retesar a espinha, deixar as linhas de soldados e seguir, confiante, em direcção
aos druidas. Enquanto observava, Cato sentiu um formigueiro na parte de trás do pescoço, devido ao receio. Decerto que Hortênsio não seria tolo ao ponto de acabar
como Maxêncio. Cato inclinou-se para a frente, mordendo o lábio.
- Tem calma, rapaz - disse Macro, com um rugido brando.
- Hortênsio sábe o que faz. Por isso, não deixes transparecer os teus sentimentos, que pões o mulherio nervoso. - Indicou, com a cabeça, os homens da Sexta Centúria,
e aqueles que o ouviram, sorriram. Cato corou e ficou quieto, esforçando-se por evitar qualquer expressão facial à medida que Hortênsio se aproximava dos druidas.
O centurião chefe parou a uma curta distância dos cavaleiros, e ali ficou, de pés afastados, com a mão sobre o punho da sua espada. Ambas as partes falaram, mas
os sons eram demasiado fracos para se perceberem. A troca foi breve. Os cavaleiros permaneceram onde estavam enquanto Hortênsio dava vários passos para trás, antes
de se virar lentamente e voltar para a segurança da coorte. Uma vez dentro da parede de escudos, chamou os oficiais. Macro e Cato apressaram-se a juntar-se aos outros,
todos ardendo de desejo para saberem o que se tinha passado entre Hortênsio e os sombrios druidas.
- Dizem que nos deixam passar livremente. - Hortênsio fez uma pausa, e sorriu de esguelha aos seus oficiais. - Desde que libertemos os prisioneiros.
- Balelas. - Macro cuspiu para o chão. - Devem pensar que nascemos ontem.
- Precisamente o que eu penso. Disse-lhes que libertaríamos os seus companheiros quando chegássemos ao aquartelamento da Legião. Não engoliram essa, e propuseram
um compromisso: libertamos os prisioneiros quando avistarmos o campo.
Os oficiais consideraram a proposta, cada um medindo a possibilidade da coorte chegar ao acampamento, sem os prisioneiros, antes dos bretões traírem o acordo e tentarem
fazê-los em pedaços.
- Teremos montes de oportunidades de fazer mais prisioneiros mais tarde, durante a campanha - sugeriu um dos centuriões, parando de falar mal Hortênsio se começou
a rir, abanando a cabeça.
- Aquele sacana do Diómedes lixou-nos bem!
- Senhor?
- Eles não querem aquela cambada! - E Hortênsio apontou o dedo para os bretões acocorados no solo. - Referem-se aos druidas que capturámos na aldeia. Os que o merdoso
do Diómedes liquidou.

XV

- Voltem às vossas unidades. - Hortênsio deu a ordem sombriamente. - Digam-lhes que se preparem para avançar. Assim que eu der o sinal.
Os oficiais apressaram-se até junto das suas centúrias. Cato olhou para os druidas, que esperavam a resposta de Hortênsio à sua proposta. Teriam uma resposta muito
em breve, reflectiu, e viu-se a desejar desesperadamente que a coorte conseguisse apanhá-los antes de eles fugirem nos cavalos.
Os homens da Sexta Centúria tinham esquecido a exaustão e escutavam atentamente, à medida que Macro e o seu optio avançavam ao longo da linha de soldados, preparando-os,
calmamente, para a ordem que viria em breve. Mesmo com pouca luz, Cato conseguia ver o brilho determinado nos olhos dos legionários, enquanto verificavam se tinham
os elmos seguros e se certificavam que empunhavam correctamente os seus escudos e dardos. Esta iria ser uma batalha em forma, ao contrário daquela louca emboscada
que tinham realizado na aldeia. Nenhum dos lados teria o benefício da surpresa. Nem a competência táctica teria relevância. Apenas o treino, o equipamento e a coragem
pura determinariam o resultado. Ou a Quarta Coorte abria caminho através dos bretões, ou seria destroçada a tentá-lo.
A Sexta Centúria fazia o lado esquerdo da frente da formação rectangular. À sua direita estava a Primeira Centúria, e três outras centúrias compunham os flancos
e a retaguarda da formação. A última centúria servia de reserva, e metade dela guardava os prisioneiros. Macro e Cato foram para o centro da primeira linha da sua
centúria e esperaram pela ordem de Hortênsio. No caminho, à frente da coorte, os druidas aperceberam-se que algo se passava. Esticaram os pescoços para tentarem
espreitar sobre a parede de escudos, à procura de sinais dos seus camaradas. O líder deu com os calcanhares e aproximou a sua montada dos legionários. Pôs uma mão
junto à boca.
- Romanos! Dêem-nos a vossa resposta! Agora, ou morrem!
- Quarta Coorte! - rugiu Hortênsio. - Avançar!
Com as botas batendo na neve gelada, a coorte avançou na direcção da massa silenciosa dos durotriges que os aguardavam. Assim que a parede de escudos se moveu, os
druidas fizeram os cavalos dar meia-volta e galoparam de volta à segurança dos seus seguidores. Por trás da orla metálica do seu escudo, os olhos de Cato sondaram
os vultos que barravam a passagem da coorte, e depois olharam ansiosamente para além deles, para o caminho que conduzia à segurança do campo da Segunda Legião. A
sua mão direita firmou-se no punho da sua espada, colocando a lâmina na posição horizontal.
À medida que a distância entre as duas forças encurtava, os druidas latiam ordens aos guerreiros durotriges. Estalando as rédeas e gritando instruções e encorajamento
aos seus cavalos, os condutores das quadrigas manobraram nos flancos, de forma a poderem investir sobre qualquer abertura que surgisse na formação romana. Os eixos
chiavam e as pesadas rodas troavam, e os carros avançavam perante o olhar ansioso dos legionários. Cato tentava tranquilizar-se, dizendo a si mesmo que tinham pouco
a temer dessas antiquadas armas. Desde que as linhas romanas se mantivessem firmes, as quadrigas podiam ser vistas como pouco mais que uma distracção desagradável.
Desde que a formação se mantivesse firme.
- Aguentem firme a linha! - gritou Macro, quando alguns dos homens mais nervosos começaram a adiantar-se aos seus camaradas. Tendo sido repreendidos, os homens ajustaram
o passo, e as linhas de soldados ordenaram-se, para apresentarem ao inimigo uma parede de escudos sem falhas. Os durotriges já não se encontravam a mais de cem passos
de distância, e Cato conseguia distinguir os traços fisionómicos dos homens que mataria ou por quem seria morto nos próximos momentos. A maior parte da infantaria
pesada do inimigo usava cotas de malha sobre as túnicas e polainas coloridas. Barbas desgrenhadas e tranças pendiam dos seus elmos polidos, e cada homem trazia consigo
uma lança de guerra ou uma espada longa. Embora estivessem organizados como uma unidade, era óbvio, devido à sua irregular linha de escudos, que não tinham tido
grande treino quanto à manutenção de uma formação.
Cato deu-se conta de um estranho som de algo a assobiar, que se elevava acima do ruído da neve a ser pisada e do tinir dos equipamentos, e olhou para a infantaria
ligeira que ladeava o centro da formação inimiga.
- Fundas! - Alguém gritou das linhas romanas.
O centurião Hortênsio reagiu de imediato:
- Primeiras duas linhas! Escudos em cima e em baixo!
Cato agarrou bem o seu escudo e agachou-se ligeiramente, para que a extremidade inferior do seu escudo lhe protegesse as canelas. O legionário imediatamente atrás
dele levantou o seu escudo sobre Cato. O processo repetiu-se ao longo das duas primeiras linhas de soldados, para que a frente da formação romana fosse protegida
da rajada Um momento depois, os sons assobiantes subiram abruptamente de tom, e foram seguidos por silvos. Uma algazarra ensurdecedora preencheu o ar, à medida que
os projécteis embatiam contra os escudos romanos. Cato estremeceu quando o canto do seu escudo foi atingido por um projéctil de chumbo. Mas a linha dos soldados
romanos não vacilou e continuou a avançar decidida, enquanto os projécteis continuavam a amolgar os escudos com o som de mil marteladas. Todavia, vários gritos mostraram
que alguns projécteis tinham atingido o seu alvo. Os homens que tombavam eram rapidamente substituídos pelos legionários das linhas seguintes, e as suas figuras
contorcidas ficavam a aguardar que os homens encarregues de recolher as baixas os colocassem numa das carroças da coorte que avançavam ruidosamente no centro da
formação.
A trinta metros de distância da agitada massa da linha inimiga, Hortênsio ordenou que a coorte parasse.
- Linhas da frente! Preparar dardos! - Os que ainda tinham um dardo para atirar, depois da luta na aldeia, esticaram o seu braço direito para trás e afastaram os
pés, prontos para a ordem seguinte. - Lançar dardos!
À luz fraca, parecia que um fino véu negro se erguia desde as linhas romanas, descendo sobre a agitada massa de durotriges. A um ruído esmagador seguiram-se logo
gritos, à medida que as pesadas pontas dos dardos dos romanos trespassavam escudos, armaduras e carne.
- Desembainhar espadas! - bradou Hortênsio, acima do estrépito. Um ruído metálico soou de todos os lados da formação quadrada quando os legionários empunharam as
suas afiadas espadas curtas, apontando as pontas ao inimigo. Quase no mesmo instante ouviu-se, vindo de trás, o som rude das trompetas de guerra dos bretões, e com
um tremendo grito de guerra eles avançaram contra os romanos.
- À carga! - gritou Hortênsio, e com os escudos bem firmes, à frente, e as espadas ao nível da cintura, as linhas da frente romana atiraram-se ao inimigo. O coração
de Cato batia-lhe fortemente contra as costelas e o tempo pareceu abrandar - o suficiente para que imaginasse ser morto ou terrivelmente ferido por um dos homens
cujos rostos selváticos estavam só a uns metros de distância. Uma sensação fria atravessou-lhe as entranhas, antes de encher os pulmões e soltar o seu próprio grito
selvagem, determinado a destruir tudo o que se metesse no seu caminho.
As duas linhas chocaram, o ruído de lanças, espadas e escudos parecendo
uma enorme onda a quebrar numa costa rochosa. Cato sentiu o seu escudo vibrár ruidosamente, ao embater em carne. Um homem arfou uma vez quando o ar foi impelido
para fora dos seus pulmões, e outra vez quando o legionário ao lado de Cato espetou a espada na axila do bretão. O homem tombou, e Cato, com um pontapé, afastou-o
para o lado, enquanto atacava o peito desprotegido de um bretão que brandia o machado sobre o crânio de Macro. O bretão viu a investida, pelo que se atirou para
trás, fugindo da ponta da espada de Cato, que assim apenas lhe feriu o ombro, em vez de o matar. Não gritou quando o sangue lhe escorreu pelo peito. Nem quando Macro
lhe espetou a espada com tal ferocidade que o trespassou de um lado ao outro. Uma expressão alarmada estampou-se-lhe no rosto destroçado, depois caiu entre os outros
mortos e feridos na neve remexida e agora manchada de sangue.
- Em frente, rapazes! - gritou Cato. - Mantenham-se juntos e espetem-lhas bem!
Ao seu lado, Macro sorriu em aprovação. Finalmente, o optio agia como um soldado numa batalha. Já não se acanhava em bradar encorajamentos a homens muito mais velhos
e experientes que ele, e mantinha a cabeça suficientemente fria para saber como a coorte devia lutar para sobreviver.
Os bretões mais pesadamente equipados atiraram-se à parede de escudos dos romanos com uma selvajaria fanática que horrorizou Cato. Os nativos com armadura mais leve
atacavam ambos os flancos da formação romana, bradando os seus gritos de guerra e incitados pelos druidas. Os sacerdotes da Lua Negra mantinham-se um pouco atrás
da linha de combate, descarregando pragas sobre os invasores e gritando aos nativos que fizessem desaparecer aquele bando de romanos do solo britânico, que eles
conspurcavam com os estandartes da águia. Mas o fervor religioso e a coragem cega não lhes protegiam os peitos sem couraça. Caíam em grande número perante as investidas
letais das espadas pensadas para tratar depressa e bem de heroísmos daquele género.
A infantaria pesada britânica acabou por se aperceber das graves perdas que se amontoavam à frente do quadrado blindado, mantendo-se a linha romana unida e resoluta.
Os durotriges começaram a tentar evitar o contacto com as terríveis lâminas que se espetavam neles vindas dos escudos que não os deixavam ver o inimigo.
- São nossos! - berrou Macro. - Em frente! Forcem-nos a retirar!
Os durotriges, bravos como eram, nunca antes tinham encontrado tão eficiente adversário. Era como lutar contra uma enorme máquina de ferro, desenhada e construída
puramente para fins bélicos. Avançava sem
piedade, convencendo todos os que se punham no seu caminho que só podia haver um resultado para os que a desafiavam.
Um grito de angústia e medo saiu da garganta dos durotriges e percorreu as agitadas linhas de guerreiros, ao aperceberem-se de que os romanos levavam a melhor. Os
homens já não desejavam atirar-se desnecessariamente a esse quadrado andante de escudos impenetráveis, que abria caminho através de espadas e lanças. À medida que
os durotriges da frente recuavam, os homens na retaguarda começaram também a recuar, a princípio somente para manterem o equilíbrio, mas depois os seus pés ganharam
velocidade como se tivessem vontade própria - levando-os para longe do inimigo. Seguiram-se mais homens e depois dezenas, logo centenas de bretões abandonaram a
densa massa dos seus camaradas, fugindo caminho abaixo.
- Não se atrevam a parar! - rugiu Hortênsio da linha da frente da Primeira Centúria. - Continuem a avançar. Se pararmos, morremos! Em frente!
Um exército menos experiente teria parado logo ali, cheio da excitação de ter levado a melhor sobre o inimigo, estremecendo de emoção por ter sobrevivido, e impressionado
pela carnificina que tinha produzido. Mas os homens das legiões continuaram a avançar por trás de uma sólida parede de escudos, as espadas em posição e prontas para
atacar. Muitos tinham atingido a idade adulta sob a vontade férrea da disciplina militar, que os despira do macio e maleável material humano, dando-lhes a forma
de guerreiros mortíferos, totalmente subordinados à vontade e à palavra de comando. Depois de uma brevíssima pausa para compor as linhas de soldados, os homens da
Quarta Coorte avançaram decididamente caminho abaixo, através do vale.
O sol pusera-se por trás do horizonte e a neve tomou um tom azulado, à medida que o crepúsculo se aproximava. De ambos os lados, as encostas estavam cobertas de
durotriges dispersos, observando em silêncio o quadrado a passar. Aqui e ali, os seus líderes, e os druidas, estavam ocupados a persuadir os seus homens a reagruparem-se,
à custa de muita vontade e de muitos cruéis golpes com a face das suas espadas. As trompetas de guerra lançavam toques de incitamento e, gradualmente, os guerreiros
começavam a recuperar o senso.
- Nada de abrandar! - ordenou Macro. - Mantenham o passo!
As primeiras unidades inimigas a reorganizarem-se começaram a
marchar atrás da coorte. A formação em quadrado servia para protecção, não para velocidade, e as unidades ligeiras dos bretões ultrapassaram facilmente os romanos.
Enquanto a noite caía, os homens da Quarta Coorte estavam desconfortavelmente cientes da escura massa de homens que
passava ao seu lado, ao longo das encostas, preparando uma nova tentativa de impedir a passagem dos legionários. E desta vez, reflectiu Cato, os durotriges deviam
ter preparado uma forma de ataque mais eficaz.
As marchas nocturnas são difíceis, para não dizer pior. O solo é praticamente invisível e estende inúmeras armadilhas para o pé incauto: uma toca de coelho oculta
ou uma pedra podem torcer facilmente um tornozelo ou partir um osso. A irregularidade do solo ameaça a todos os momentos desmanchar uma formação, fazendo com que
os oficiais tenham de andar, incansavelmente, para cima e para baixo das linhas, para assegurarem que o passo se mantém regular e que não se criam espaços na unidade.
Para além destas dificuldades, há ainda o problema maior de encontrar o trajecto a seguir. Sem sol para guiar os homens e, caso o tempo esteja coberto, sem estrelas,
pouco mais resta que a fé para estabelecer um rumo para a marcha. Para os homens da Quarta Coorte, os problemas de marchar à noite eram particularmente preocupantes.
A neve cobrira o caminho que eles tinham tomado para sul alguns dias antes, e Hortênsio viu-se obrigado a seguir ao longo do vale, avaliando prudentemente cada declive
e elevação, para verificar se a coorte mantinha a direcção correcta. De ambos os lados, os sons produzidos pelos bretões invisíveis desgastavam os nervos exaustos
dos homens, enquanto iam arrastando os pés para a frente.
Cato estava mais cansado do que alguma vez estivera em toda a sua vida. Cada tendão do seu corpo implorava por descanso. Tinha as pálpebras demasiado pesadas para
as manter abertas, e o frio já não era a distracção que tinha sido ao princípio do dia, alimentando agora o desejo de escapar para um sono profundo e quente. Insidiosamente,
a sua mente brincava com a ideia e, lentamente, minava a resolução que combatia a necessidade de descansar que cada músculo gritava. Esqueceu o mundo que o rodeava,
as linhas de legionários e o perigoso inimigo, que espreitava, invisível. O passo monótono da marcha ajudava ao processo, fazendo-o sucumbir por fim ao desejo de
fechar os olhos, só por um bocado, só para afastar por um momento a horrível sensação que os fazia arder. Pestanejou, só para se orientar, e depois os olhos fecharam-se-lhe
outra vez, quase que por vontade própria. E devagar o queixo descaiu-lhe em direcção ao peito...
- Força nessas pernas, caralho!
Os olhos de Cato esbugalharam-se, e o seu corpo encheu-se com o tremor que advém de se ter sido acordado à força. Alguém lhe apertava o braço com muita força.
- Que é?
- Ias adormecendo - sussurrou Macro, não querendo que os homens ouvissem. Arrastou Cato para a frente. - Quase me caíste em cima. Volta a fazê-lo e corto-te os tomates.
Mantém-te acordado.
- Sim, senhor.
Cato sacudiu a cabeça, apanhou uma mão cheia de neve e esfregou-a na cara, acolhendo o efeito restaurador daquele toque gelado. Pôs-se ao lado do centurião, sentindo
vergonha da sua fraqueza física. Mesmo estando no fim das suas forças, não o deveria mostrar, nunca em frente dos homens. Nunca mais, prometeu a si próprio. Forçou-se
a manter-se atento aos homens, à medida que a coorte se ia arrastando pelo vale. Com maior regularidade, movia-se para lá e para cá nas linhas de soldados, lançando
ordens àqueles que mostravam sinais de se irem atrasar.
Passadas algumas horas da noite, Cato apercebeu-se de que o vale começava a estreitar. As negras encostas, muito ligeiramente mais escuras que o céu acima delas,
começavam, em ambos os lados, a ficar mais íngremes.
- Que é aquilo ali à frente? - perguntou Macro, de repente. - Ali. Tens os olhos melhores que os meus. Que é que achas?
Ao longo da neve que se estendia à frente da coorte, via-se uma linha indistinta de um lado ao outro do vale. Notava-se algum movimento, e Cato esforçou-se para
ver se percebia melhor o que era. Um som de algo a girar começou a ouvir-se no ar gelado da noite.
- Erguer escudos!
Cato deu o alerta momentos antes dos projécteis das fundas saírem da escuridão e atingirem a coorte com um som de estilhaços metálicos. A pontaria era compreensivelmente
má, e muitos dos projécteis passaram por cima dos legionários ou acertaram no solo antes de chegarem à coorte. Mesmo assim, alguns gritos e lamentos se ouviram acima
da agitação.
- Coorte, alto! - bradou o centurião Hortênsio. A coorte parou, cada homem encolhendo-se por trás do seu escudo, enquanto o som giratório das fundas começava de
novo a ouvir-se. A rajada seguinte foi tão imperfeita quanto a primeira, e as únicas baixas, desta feita, deram-se no grupo de prisioneiros que estavam sob guarda
no centro da formação.
- Preparar espadas!
À ordem respondeu, das linhas de legionários, um som áspero de metal. Depois, a coorte voltou a imobilizar-se.
- Avançar!
A formação hesitou por um momento, antes de começar a caminhar com um passo regular. Na linha da frente da Sexta Centúria, Cato já conseguia ver mais detalhes do
que se encontrava adiante. Os durotriges tinham construído uma barricada grosseira de troncos de árvores e ramos,
que se estendia de um lado ao outro do estreito vale e se prolongava ainda um pouco pelas duas encostas. Por detrás desse ligeiro obstáculo, pululava uma negra horda
de homens. As fundas já não lançavam projécteis em rajada, pelo que o silvo áspero dos arremessos era quase constante. Cato estremeceu com aqueles sons e enfiou
a cabeça abaixo da orla do escudo, enquanto a coorte avançava na direcção da barricada. Houve mais gritos nas linhas de legionários à medida que a distância encurtava,
e os fundibulários podiam apontar melhor. O espaço entre a coorte e as árvores derrubadas ia diminuindo cada vez mais, até que, finalmente, os homens da frente se
depararam com o emaranhado de ramos. Do outro lado, o inimigo tinha parado de usar as fundas, brandindo agora lanças e espadas, gritando os seus gritos de guerra
na cara dos romanos.
- Alto! Destruir a barricada! Passem a palavra! - Macro berrava, ciente de que a sua ordem mal se podia ouvir com todo aquele barulho.
Os legionários rapidamente embainharam as espadas e começaram a puxar os ramos, agitando desesperadamente o emaranhado de arvoredo. Enquanto os homens destruíam
as improvisadas defesas dos durotriges, um selvático troar ouviu-se por trás da centúria. Cato olhou para trás e viu uma massa negra a dirigir-se, sobre a neve,
para as duas centúrias na retaguarda da formação em quadrado. Hortênsio ordenou, com um rugido, que as centúrias se voltassem e enfrentassem a ameaça.
- Bela cilada! - rosnou Macro, enquanto arrancava um grosso toro da barricada e o passava aos homens atrás de si. - Despachem isto o mais rápido possível!
À medida que os durotriges investiam contra a retaguarda da formação, os legionários da frente desbaratavam a barricada, desesperados devido à consciência de que
se a coorte não continuasse a avançar, ficaria encurralada e seria aniquilada. A pouco e pouco a barricada foi removida, e foram abertas pequenas passagens da largura
de um homem. Macro passou rapidamente a palavra de que ninguém deveria enfrentar o inimigo sozinho. Deviam esperar pelas suas ordens. Alguns dos durotriges, porém,
não eram assim tão prudentes, precipitando-se sobre os romanos no momento em que surgia uma oportunidade. Pagaram caro pela sua impetuosidade, sendo chacinados no
momento em que alcançaram os romanos. Mas as suas mortes atrasavam o trabalho dos legionários. Finalmente, havia várias passagens abertas com espaço para vários
homens passarem, e Macro gritou a ordem para que desembainhassem as espadas e formassem nas passagens.
- Cato! Vai para o flanco esquerdo e toma o comando. Quando eu der a ordem, passa para o outro lado e forma-os lá tão depressa quanto possível. Percebeste?
- Sim, senhor!
- Põe-te a mexer!
O optio atravessou as linhas da centúria e depois correu até ao flanco esquerdo da formação.
- Abram alas aí! Abram alas! - gritava Cato, abrindo caminho de volta à frente. Viu uma passagem na barricada, a um dos lados. - Aproximem-se de mim! Quando o centurião
der a ordem, passamos para o outro lado todos juntos!
Os legionários amontoaram-se em torno do seu optio e juntaram os escudos, para que o inimigo tivesse poucas hipóteses de investir contra eles, quando passassem para
o outro lado. E assim esperaram, de espadas prontas e ouvidos atentos, pela ordem de Macro, tentando escutá-la acima dos gritos de guerra dos durotriges.
- Sexta Centúria! - A Cato pareceu-lhe que a voz do centurião soara muito distante. - Avançar!
- Agora! - gritou Cato. - Mantenham-se juntos!
Afastando um pouco o escudo, para amortecer algum possível impacto, Cato conduziu-os, certificando-se de que todos se mantinham juntos e preservavam a integridade
da parede de escudos. Apesar de os ramos maiores terem sido removidos, o solo estava juncado com restos de troncos, por isso cada passo tinha de ser dado com cuidado.
Logo que os durotriges se aperceberam da estratégia dos romanos, a sua gritaria alcançou um novo grau de raiva, e precipitaram-se sobre os legionários. Cato sentiu
alguém bater-lhe no escudo, e investiu com a espada rapidamente, sentindo um contacto de raspão com um adversário, antes de recolher a lâmina para voltar a usá-la.
Em ambos os flancos, e atrás, os homens da centúria passavam pela barricada, penetrando a negra massa de bretões que se encontrava do outro lado.
Decerto que os druidas tinham contado com as rajadas de projécteis e com a barricada para impedir os romanos de avançar, guarnecendo-a com a infantaria ligeira,
enquanto a infantaria pesada atacava a retaguarda da formação romana. Os legionários, bem armados, facilmente criavam espaço nas linhas inimigas e, quantos mais
legionários passavam a barricada, mais a frente se ia alargando. Os durotriges, com o seu armamento ligeiro, estavam completamente à sua mercê. Mesmo a sua coragem
temerária pouco podia fazer para alterar o resultado. Em breve, as centúrias que seguiam à frente da formação romana tinham formado uma linha contínua do outro lado
da barricada destruída.
Já uma vez os bretões tinham enfrentado a implacável máquina assassina de Roma, e mais uma vez não lhe conseguiram resistir, abandonando o combate e escapulindo-se
pela noite. Ao vê-los fugir, Cato baixou
a espada e apercebeu-se de que tremia. Se de medo ou de exaustão, já nem ele sabia. A sua mão estava agarrada de um modo tão forte ao punho da espada, que a dor
era quase insuportável. Ainda assim foi precisa toda a sua força de vontade para fazer a mão desprender-se. Depois, apercebendo-se do que o circundava, viu a linha
de corpos estatelados ao longo da barricada, muitos ainda contorcendo-se e gemendo devido aos ferimentos.
- Primeira e Sexta Centúrias! - Hortênsio gritava. - Continuem! Avancem cem passos e parem!
A linha romana moveu-se para a frente, e, lentamente, as centúrias dos flancos e as carroças de provisões meteram-se pelas passagens e foram colocar-se nos seus
lugares na formação em quadrado, levando os prisioneiros sobreviventes consigo. Apenas as últimas duas centúrias permaneciam do outro lado da barricada, cedendo
continuamente sob o ataque violento dos melhores guerreiros durotriges. Enquanto a sua centúria estava parada, Macro ordenou a Cato que fizesse uma rápida vistoria
aos efectivos.
- Então?
- Catorze baixas, pelo que consegui apurar, senhor.
- Tudo bem. - Macro abanou a cabeça com satisfação. Temera que o preço da carnificina tivesse sido mais alto. - Vai pôr o centurião Hortênsio a par da situação.
- Sim, senhor.
Não foi difícil encontrar Hortênsio; uma torrente de ordens e gritos de encorajamento ouvia-se por entre os sons da batalha, apesar da voz transportar agora consigo
a aspereza da exaustão extrema. Hortênsio recebeu a informação e fez um rápido cálculo mental.
- Isso perfaz mais de cinquenta perdas no total, e ainda faltam as coortes da retaguarda. Quanto tempo achas que falta para o alvorecer?
Cato tentou concentrar-se.
- Talvez quatro, cinco horas.
- É demasiado tempo. Precisamos de todos os homens na formação. Não nos podemos dar ao luxo de manter homens a guardar... - O centurião chefe tomou consciência de
que não tinha alternativa. - Teremos de nos livrar dos prisioneiros - disse ele, com nítida amargura.
- Senhor?
- Vai ter com o Macro. Diz-lhe que junte alguns homens e liquide os prisioneiros. Certifiquem-se de que os corpos são postos ao pé daqueles que acabámos de matar
do outro lado da barricada. Não faz sentido dar ao inimigo mais razões para nos odiar. De que estás à espera? Vai!
Cato saudou e correu de volta ao seu centurião. Uma onda de náusea subiu-lhe do estômago ao passar pelas formas ajoelhadas dos prisioneiros. Amaldiçoou-se por ser
um tolo fraco e sentimental. Não tinham
esses mesmos homens chacinado os seus prisioneiros? E não os tinham apenas morto, tinham torturado, violado e mutilado. O rosto do rapaz loiro de olhar fixo, sem
vida, entre os corpos amontoados dentro do poço, passou-lhe novamente pelo pensamento, e lágrimas amargas de raiva confusa brotaram-lhe na face, temperadas pela
ideia de injustiça. Tanto que tinha desejado a morte a todos os membros da nação dos durotriges e agora, chegada a hora de matar aqueles prisioneiros, alguma estranha
reserva de moralidade fazia-o sentir que aquilo estava errado.
Também Macro vacilou ao ouvir a ordem.
- Matar os prisioneiros?
- Sim, senhor. E imediatamente.
- Estou a ver. - Macro olhou para a expressão tenebrosa do jovem optio e tomou uma decisão rápida. - Vou tratar disso, então. Fica aqui. Mantém os homens em formação
e preparados, só para o caso daquelas cabeças duras dos bretões se lembrarem de tentar outro ataque.
Cato fixou o olhar na neve remexida que se estendia perante a coorte. Mesmo quando se ouviram choros e lamentos pedindo piedade, atrás de si, a pouca distância,
recusou-se a voltar-se e encarar a origem dos sons.
- Olhem para a frente! - gritou ele para os homens mais próximos, que se tinham virado para verem de onde vinham os sons.
Por fim os sons esmoreceram, e os últimos gritos foram abafados pelo som da peleja na retaguarda da formação. Cato aguardava novas ordens, entorpecido pelo frio
e pela exaustão, e o espírito vergado pelo peso do sanguinário gesto que o centurião Hortênsio tinha ordenado. Por muito que tentasse justificar a execução dos prisioneiros
com a necessidade de garantir a sobrevivência da coorte, ou com uma bem merecida retribuição pelo massacre dos atrébates de Noviómago, sentia ser errado tê-los morto
a sangue frio.
Macro voltou, a passo lento, através dos seus homens, para a sua posição na linha da frente da centúria. Pôs-se ao lado de Cato, sorumbático e silencioso. Cato olhou
para o seu superior, um homem que tinha vindo a conhecer durante o último ano e meio. Depressa tinha aprendido a respeitar Macro pelas suas qualidades enquanto soldado,
e, mais importante, pela sua integridade enquanto ser humano. Apesar de hesitar chamá-lo de amigo à sua frente, uma certa intimidade crescera entre eles. Não como
pai e filho, mais como irmão mais velho e batido e irmão mais novo. Macro, sabia Cato, via-o com orgulho e sorria perante as suas proezas.
Para Cato, Macro possuía todas as qualidades a que ele aspirava. O centurião vivia bem consigo próprio. Era um soldado, e somente um soldado, sem qualquer outra
ambição na vida. Não se submetia à tortuosa auto-análise que Cato infligia a si próprio. As actividades intelectuais a
que tinha sido encorajado a entregar-se, ao crescer como um membro da casa imperial, não o tinham preparado para a vida nas legiões. De todo. O elevado idealismo
traduzido por Virgílio na sua visão do destino de Roma
- o de civilizar o mundo - não tinha nada a ver com o horror puro daquele combate nocturno, nem com a necessidade militar que tinha levado os prisioneiros a serem
mortos.
- Acontece, miúdo - resmungou Macro. - Acontece. Temos que fazer o que for preciso para vencer. Temos de fazer o que for preciso se queremos ver a luz do dia seguinte.
Porém, não o torna mais fácil.
Cato olhou fixamente para o seu centurião, antes de acenar tristemente com a cabeça.
- Coorte! - Hortênsio rugiu da retaguarda da formação. - Avançar!
A última centúria tinha atravessado a barricada e formado novamente do outro lado, enquanto se ia defendendo dos ataques cada vez mais desesperados da infantaria
pesada dos durotriges. Mas assim que se tornou claro que a tentativa de encurralar e destruir a coorte tinha falhado, a vontade de lutar pareceu deixar os durotriges,
daquela forma estranha e indefinida com que um sentimento comum se espalha por uma multidão. Cautelosamente, afastaram-se dos romanos e limitaram-se a ficar em silêncio
a ver a coorte a afastar-se deles. As desafiadoras linhas de legionários permaneciam intactas, e tinham deixado um rasto de cadáveres de nativos atrás de si. Mas
a noite estava longe de ter acabado. Faltavam ainda longas horas antes de a madrugada estender os seus primeiros ténues dedos sobre o horizonte. Tempo suficiente
para ajustar contas com os romanos.

A coorte movia-se através da escuridão; uma compacta formação em quadrado ao redor das carroças que transportavam as baixas. Os choros e lamentos dos feridos faziam
coro a cada solavanco, desgastando os nervos dos seus camaradas ainda ilesos. Estes esforçavam-se por ouvir o inimigo a aproximar-se, e amaldiçoavam os feridos e
a chiadeira e o ruído das rodas das carroças. Os durotriges ainda andavam por ali, e seguiam de perto a coorte. Projécteis rasgavam a escuridão, a maior parte acabando
contra os escudos, mas de vez em quando acertavam num alvo e reduziam a força da coorte em mais uma unidade. As linhas cerravam-se e a formação estreitava-se mais,
à medida que a noite prosseguia. E os projécteis não constituíam o único perigo. As quadrigas que a coorte deixara de ver ao anoitecer troavam agora ao longo das
ladeiras, e de vez em quando lançavam-se sobre os legionários com cruentos e arrepiantes gritos de guerra. Depois, no último
momento, voltavam a afastar-se, tendo já atirado as lanças contra as linhas romanas. Estas, quando por vezes encontravam um alvo, infligiam golpes ainda mais terríveis
que os projécteis.
O centurião Hortênsio gritava ordens durante tudo isto, e ameaçava aqueles mais susceptíveis ao medo com terríveis castigos, enquanto ia encorajando os restantes.
Quando os durotriges vociferavam injúrias da escuridão, Hortênsio respondia na mesma moeda, em grande gritaria.
O céu começou finalmente a ficar iluminado, a leste, recebendo lentamente uma pálida luminescência, até que não restaram dúvidas de que a madrugada se aproximava.
Pareceu a Cato que a manhã estava a nascer apenas pela vontade dos legionários, à medida que cada homem olhava ansiosamente a luz crescente. Lentamente a paisagem
à sua volta começou a mostrar ténues sombras cinzentas, e os legionários puderam ver os seus inimigos novamente, vagas figuras espalhadas por ambos os flancos, vigiando
de perto a coorte à medida que esta se ia debatendo, exausta e moída, embora ainda intacta e pronta para reunir forças para resistir a uma derradeira investida.
Mais à frente, o solo começou a subir para uma pequena crista, e quando as linhas da frente da centúria chegaram ao cimo, Cato olhou e viu, a não mais de três milhas
de distância, os contornos bem definidos dos baluartes do acampamento fortificado da Segunda Legião. Sobre a fina e escura linha da paliçada pairava uma névoa castanha
de fumo, e Cato apercebeu-se de quão faminto estava.
- Já falta pouco, rapazes! - gritou Macro. - Chegaremos a tempo do pequeno-almoço!
Mas enquanto o centurião falava, Cato apercebeu-se de que os durotriges se reuniam para outro ataque. Uma última tentativa de obliterar o inimigo, que conseguira
evitar ser destruído durante toda a noite. Um esforço último para exercerem a vingança devida pelos seus camaradas, cujos corpos jaziam espalhados ao longo da linha
de marcha da Quarta Coorte.

XVI

- Ontem à tarde, dizes? - Vespasiano arqueou as sobrancelhas, quando o decurião da cavalaria acabou de fazer o relatório.
- Sim, senhor - respondeu o decurião. - Mas já mais noite que tarde, senhor.
- Então por que é que demoraste até de madrugada para chegar à legião?
O olhar do decurião fraquejou por instantes.
- Ao princípio, dávamos com eles para onde quer que fôssemos, senhor. Parecia que estavam por todo o lado, cavaleiros, quadrigas, infantaria - tudo. Por isso a meio
da noite mudámos de direcção e tentámos contorná-los. Pouco depois apercebi-me de que estava perdido e tive de arriscar uma direcção. Antes do alvorecer estávamos
muito para leste, senhor. Demorou um bocado até avistarmos Caleva. Depois fomos tão céleres quanto pudemos, senhor.
- Estou a ver. - Vespasiano analisou a expressão do decurião, à procura de algum sinal de artifício. Não toleraria que nenhum oficial pusesse a própria segurança
acima da dos seus camaradas. Coberto de lama e claramente exausto, o decurião manteve-se em sentido, com toda a dignidade que conseguiu reunir. Houve um silêncio
tenso enquanto Vespasiano olhou para ele. Por fim, disse:
- Quantos eram os durotriges?
Agradou-lhe ver o decurião parar para considerar a pergunta antes de responder, em vez de tentar aplacar o legado com um palpite à pressa.
- Dois mil... talvez até dois mil e quinhentos, mas não mais, senhor. Talvez um quarto fosse infantaria pesada. Os restantes eram tropas ligeiras, algumas armadas
de fundas, e provavelmente umas trinta quadrigas. Foi tudo o que consegui ver, senhor. Poderão ter aparecido mais durante a noite.
- Em breve o saberemos. - Vespasiano acenou com a cabeça para
a entrada da tenda. - Tu e os teus homens estão dispensados. Alimentem-se e descansem.
O decurião saudou, virou-se rapidamente e foi-se embora. Ainda ele não tinha saído e já Vespasiano gritava pelo oficial de serviço do estado-maior. Um momento depois
um dos tribunos subalternos, um jovem do clã dos Camilos - todo ele túnica aperaltada e cara, e nada de cérebro
- irrompeu pela tenda adentro, empurrando o decurião para o lado.
- Tribuno! - troou Vespasiano. Tanto o decurião como o tribuno estremeceram. - Agradecia que não tratasses os teus colegas oficiais com esses modos tão brutos!
- Senhor, estava apenas a responder a...
- Chega! Se se voltar a repetir, digo aqui ao decurião que te leve numa patrulha prolongada, que dificilmente esquecerás.
O decurião sorriu, deliciado com a ideia daquele fino e jovem traseiro aristocrático esfolado por uma sela de cavalaria. Depois deixou a tenda, para ir ter com os
seus homens.
- Tribuno, passa a ordem de alerta à legião. Quero que a Primeira, a Segunda e a Terceira Coortes se preparem para partir logo que possível. O resto que guarneça
os baluartes. Será uma acção rápida, não serão precisas rações. Quero-os formados no caminho, no portão do sul. Entendido?
- Sim, senhor!
- Então, se fazes favor, trata disso.
O jovem voltou-se e correu para a porta da tenda.
- Tribuno! - Vespasiano chamou-o de imediato.
O tribuno voltou para trás, e ficou surpreendido por ver um sorriso vago no rosto de Vespasiano.
- Quinto Camilo, tenta mostrar um profissionalismo calmo no desempenho dos teus deveres. Verás que te ajudará nas relações com os teus colegas oficiais, e será menos
alarmante para os homens sob o teu comando. Ninguém gosta de pensar que o seu destino está nas mãos de um menino de escola crescido.
O tribuno corou fortemente, mas conseguiu reprimir o embaraço e a raiva. Vespasiano acenou com a cabeça na direcção da porta, e o tribuno, dando meia volta, foi-se
embora, muito hirto.
Fora bastante duro, mas de agora em diante Camilo seria mais cauteloso quanto ao seu comportamento. A forma como se evoluía à frente dos oficiais de carreira e dos
soldados era determinante na estima com que estes olhavam para as classes mais altas da sociedade romana. Vespasiano sabia bem que os jovens aristocratas que serviam
nas legiões eram, de um modo geral, olhados com desprezo pela soldadesca. Este lastimável estado de coisas era ainda piorado pela arrogante imaturidade de jovens
como Camilo.
As distinções sociais entre os militares eram já uma questão delicada, não era preciso pôr sal nas feridas. Se no futuro Camilo conseguisse dar a ideia de que era
um profissional confiante, esse facto contribuiria significativamente para abrandar o ressentimento dos homens que um dia tivesse de comandar em batalha.
Os pensamentos de Vespasiano voltaram ao assunto que tinha estado a ponderar antes das notícias sobre a situação difícil da Quarta Coorte terem chegado até ele.
Continuava sem resposta à mensagem que tinha enviado ao general Pláucio. O mensageiro poderia ter-se atrasado, claro. As estradas eram de baixa qualidade, mesmo
com o tempo bom. Mas, mesmo assim, já deveria ter tido notícias do general.
Mais um dia, decidiu. Se não recebesse notícias até à manhã seguinte, enviaria outra mensagem ao general. Entretanto, as trombetas tocaram a reunir; os legionários
deviam estar a sair aos tropeções das suas tendas, praguejando à medida que se esforçavam por prender as armaduras e as armas. Todos os homens tinham sido treinados
para responder instantaneamente ao toque, e o legado não era excepção.
- Chamem o meu escravo pessoal! - gritou Vespasiano.

Subir as escadas para olhar da torre de vigia sobre o portão do sul serviu para relembrar Vespasiano de que, ao longo dos últimos meses, tinha perdido a sua boa
forma. Passou a custo pelo alçapão, tendo depois de se encostar ao corrimão por um momento, arquejando pesadamente. Devia ter feito isto antes de ter posto a sua
couraça moldada.. O peso do bronze prateado junto com o resto do equipamento exigia um redobrar do esforço para subir a escada. Demasiada burocracia e pouco exercício,
reflectiu Vespasiano, arruiná-lo-iam para a vida militar. Aos trinta e cinco começava a sentir os primeiros sintomas da meia-idade, e era humano o bastante para
preferir os confortos do lar às agruras das campanhas. A comissão militar de Vespasiano terminaria no ano que se seguia, e a perspectiva de regressar a Roma, com
todas as oportunidades de bem-estar implícitas, era deveras reconfortante. Valeria a pena perder um membro se isso garantisse que escapava do desagradável clima
daquela ilha perpetuamente húmida e chuvosa. No entanto, nenhum dos nativos que conhecera em Camaloduno, e com quem interagira socialmente, se queixara minimamente
do clima britânico, quando ele levantara a questão. A humidade deve ter-lhes dado cabo do cérebro, concluiu Vespasiano, com um sorriso irónico.
Levantou o olhar, clareou a mente, e concentrou-se na situação que se lhe revelava à luz do sol matinal. Em baixo, as resistentes portas do sul
estavam abertas, e por elas marchava a Primeira Coorte, que possuía o dobro dos efectivos normais. Em seguida marchariam duas outras coortes, perto de dois mil
homens no total. Vespasiano estava confiante de que esta força seria mais do que suficiente para afugentar os durotriges que flagelavam as distantes fileiras da
Quarta Coorte, a qual mal se via no topo de um monte distante. Calculou que a Quarta ainda estaria a mais ou menos três milhas de distância, o que significava que
os reforços só chegariam até ela dentro de cerca de uma hora. A Quarta Coorte deveria ser capaz de aguentar os durotriges durante pelo menos esse tempo. Vespasiano
sentia-se satisfeito com o modo como as coisas corriam. Em vez de perder semanas a consolidar as fortificações dos atrébates e a perseguir os bandos de durotriges,
os seus líderes druidas tinham-nos entregue nas mãos da Segunda Legião. Se hoje conseguissem derrotá-los rapidamente, a próxima campanha começaria realmente bem.
As escadas rangeram, pelo que olhou nessa direcção. Um homem portentoso tentava passar pelo alçapão. Com mais de um metro e oitenta, e com ombros a condizer, o prefeito
do acampamento da Segunda Legião era um veterano de cabelos cinzentos e com uma cicatriz lívida que ia da testa até à face. Sendo o oficial de carreira mais graduado
na legião, era um soldado com uma experiência e coragem imensas. Na ausência ou morte de Vespasiano, seria Sexto quem assumiria o comando da legião.
- Bom dia, Sexto. Vens ver a batalha?
- Claro, senhor. Como é que os rapazes da Quarta se estão a aguentar?
- Não vão mal. Ainda em formação e a dirigirem-se para aqui. Quando lá chegar com os reforços já deve estar tudo acabado.
- Talvez - replicou Sexto com um encolher de ombros, enquanto observava de olhos semicerrados a peleja longínqua. - Tem a certeza de que deve liderar a coluna de
socorro, senhor?
- Achas que não devia?
- Para ser franco, senhor, acho que não. Os legados devem cuidar da legião como um todo, e não andarem por aí a tratar de assuntos menores.
Vespasiano sorriu.
- Que é o que tu deves fazer, suponho.
- Sim, senhor. É isso mesmo.
- Mas eu estou a precisar de exercício. E tu não. Por isso sê um bom camarada e olha pelas coisas aqui durante uma hora ou pouco mais. Tentarei não dar cabo da tua
Primeira Coorte.
Ambos riram com vontade; os prefeitos de acampamento eram nomeados depois de comandarem uma Primeira Coorte, e mantinham
sempre uma atitude protectora em relação à última Coorte que tinham liderado no campo de batalha.
Vespasiano virou-se e dirigiu-se para a escada, metendo-se facilmente pelo alçapão. De novo no chão, parou junto ao portão, onde o seu escravo pessoal lhe colocou
cuidadosamente o elmo e lho apertou bem com as tiras de couro no queixo. A Terceira Coorte passava naquele momento pelo portão, para se juntar à coluna já formada
do lado de fora. Vespasiano sentiu um arrepio de excitação fluir-lhe pelo corpo, ao ver-se a liderar a coluna que ia em auxílio da Quarta Coorte. Depois do tédio
do longo Inverno, de ter passado a maior parte do tempo no interior do aquartelamento temporário, eis que surgia a oportunidade de voltar a sentir-se um verdadeiro
soldado.
Vespasiano permitiu que o seu escravo desse um último puxão às tiras vermelhas da sua couraça e depois virou-se e saiu do acampamento, para tomar a sua posição na
frente da coluna. Antes de passar o portão, um grito agudo vindo da torre de vigia fê-lo parar.
- Cavaleiros aproximam-se de nordeste!
- Que será agora? - resmungou Vespasiano, batendo zangado com a mão na coxa. Para lá do portão via as três coortes à espera de partir em auxílio dos seus camaradas.
Mas não podia abandonar a legião sem saber se de facto o acampamento estaria a ser ameaçado noutra frente. Por outro lado, qualquer atraso no envio de auxílio à
Quarta Coorte custaria vidas. A coluna teria de partir imediatamente. E uma vez que ele tinha de investigar o que se passava a nordeste, seria preciso encontrar-lhe
outro comandante. Olhou para a torre de vigia.
- Prefeito de acampamento!
Um rosto, escuro contra o céu, espreitou por cima da paliçada.
- Sim, senhor?
- Toma o comando.

Depois de Vespasiano atravessar o acampamento e subir à torre de vigia do portão do norte, viu-se outra vez desesperadamente sem fôlego. Agarrando-se ao corrimão
e arquejando fortemente, deu um último olhar à coluna de reforços que serpenteava através do campo ondulado na direcção da escura massa de minúsculas figuras que
representava a Quarta Coorte. Garantidamente, Sexto tentaria que a operação de resgate fosse levada a cabo com o menor número de baixas possível. Os prefeitos de
acampamento, por norma, já há muito tinham ultrapassado a detestável - e perigosa
- sede de glória que alguns dos oficiais menos antigos abraçavam. Para
ser honesto, os homens da coluna de socorro estariam provavelmente mais seguros com Sexto no comando do que com ele próprio. Este pensamento, porém, pouco aliviou
a frustração que sentia por ter tido de ceder o comando ao prefeito de acampamento.
Assim que começou a respirar mais facilmente, Vespasiano voltou-se e dirigiu-se à sentinela que vigiava o lado norte.
- Onde estão então esses malditos cavaleiros?
- Agora não os estou a ver, senhor - respondeu a sentinela nervosamente, temendo que o legado pudesse pensar ser um falso alarme. Continuou apressadamente: - Meteram-se
naquela cova ali, senhor. Mesmo agora. Devem estar a surgir a qualquer altura, senhor.
Vespasiano olhou na direcção indicada, para um vale pouco profundo que se estendia paralelamente ao acampamento, a cerca de uma milha de distância. Mas o único sinal
de vida era um fino fio de fumo que subia de um pequeno grupo de cabanas de colmo. Esperaram em silêncio, a sentinela cada vez mais nervosa enquanto desejava que
os cavaleiros reaparecessem.
- Quantos eram, viste?
- Uns trinta, senhor.
- Dos nossos?
- Estavam demasiado distantes para que pudesse ter a certeza, senhor. Talvez tivessem capas vermelhas.
- Talvez tivessem? - Vespasiano virou-se para encarar a sentinela, um homem já maduro, que devia estar com as águias há bastante tempo. Decerto o tempo suficiente
para saber que uma sentinela devia apenas relatar pormenores de que estivesse certo. O legionário manteve-se firme sob o olhar do legado, e revelou-se suficientemente
astuto para se abster de fazer mais comentários. Vespasiano fervilhou por dentro, por ter sido desviado das suas intenções originais. Se tivesse sabido mais cedo
quantos cavaleiros eram, poderia ter encarregue Sexto do assunto. Bem, mas agora era tarde de mais, reflectiu ele, e seria despropositado descarregar isso naquela
nervosa sentinela. Seria melhor mostrar um ar de imperturbabilidade, e reforçar a imagem de comandante tranquilo que ele apresentava perante os homens da sua legião.
- Olhe, senhor! - A sentinela apontou sobre a paliçada.
Uma linha de elmos emplumados surgiu subitamente do vale. Acima deles esvoaçava um galhardete de cor púrpura.
- É o general em pessoa! - silvou a sentinela.
Vespasiano sentiu o coração pesar-lhe. O general tinha então recebido a sua mensagem. Tinha já conhecimento do perigo terrível em que a sua família se encontrava.
Lembrando-se da sua esposa grávida e do seu
filho pequeno, Vespasiano podia compadecer-se do general. Mas esse sentimento não aliviava a sua preocupação quanto ao estado de espírito do general.
Vespasiano deu-se conta de repente de que a sentinela o estava a observar.
- Que se passa, soldado? Nunca viste um general antes?
A sentinela corou, mas antes de poder responder Vespasiano mandou-o descer a escada para ir avisar o centurião de serviço de que o general Pláucio estava a chegar.
As formalidades habituais devidas a um general comandante tinham de ser preparadas rapidamente. Vespasiano permaneceu na torre de vigia até a sentinela regressar,
observando o galope brando da coluna a aproximar-se do portão do norte. A guarda montada do general vinha à frente, seguida do próprio Pláucio e de alguns oficiais
do estado-maior. Com eles montavam duas figuras encapuçadas, e a seguir vinha a secção da retaguarda, que escoltava cinco druidas atados às suas montadas.
Quando se aproximaram mais, Vespasiano pôde ver como os cavalos suavam dos flancos; os animais tinham sido, obviamente, levados aos limites das suas capacidades,
na tentativa do general de chegar até à Segunda Legião tão depressa quanto possível.
Vespasiano apressou-se a descer da torre e a tomar posição na guarda de honra que tinha formado em ambos os lados da entrada. Daria boa impressão cumprimentar o
general pessoalmente. O ruído dos cascos dos cavalos era já claramente audível, e Vespasiano acenou com a cabeça ao centurião que comandava a guarda de honra.
- Abram o portão! - gritou o centurião. A trave que o cerrava foi levantada e colocada a um lado e em seguida, com um profundo rangido, as portas foram tão abertas
quanto possível. Fora mesmo a tempo, já que momentos depois os primeiros elementos da guarda pessoal do general refrearam os cavalos mesmo à entrada do campo, esperando
que Pláucio entrasse primeiro. O general, seguido dos oficiais do seu estado-maior, abrandou o passo da montada enquanto o centurião da guarda bradava as suas ordens.
- Guarda de honra... apresentar armas!
Os dardos, assentes no chão, inclinaram-se num ângulo, ao que o general ripostou com uma saudação dirigida às tendas do estado-maior, onde os estandartes da Segunda
Legião estavam guardados num sacrário temporário. Pláucio parou junto a Vespasiano e desmontou.
- Que bom é vê-lo, General! - Vespasiano sorriu.
- Vespasiano. - Pláucio cumprimentou-o com a cabeça. - Precisamos de falar, imediatamente.
- Sim, senhor.
- Mas primeiro, por favor, certifique-se que a minha escolta... e os
meus companheiros -indicou os oficiais do estado-maior e as duas figuras encapuçadas - certifique-se de que ficam bem instalados, num lugar sossegado. Os druidas
podem ficar atados e junto aos cavalos.
- Sim, senhor. - O legado chamou o centurião de serviço com um aceno e deu-lhe as instruções. Os cavalos, completamente estoirados do esforço a que tinham sido submetidos,
resfolegavam profundamente, as narinas brilhantes.
O séquito do general levou os cavalos para os estábulos, e o centurião de serviço conduziu os oficiais do estado-maior, cobertos de lama, até à tenda da messe dos
tribunos. As duas figuras encapuçadas seguiram silenciosamente os outros. Vespasiano olhou-os com curiosidade, ao que Pláucio sorriu levemente.
- Explico-lhe mais tarde. Agora temos de falar sobre a minha esposa e os meus filhos.

XVII

Assim que os exaustos homens da Quarta Coorte avistaram o campo da Segunda Legião, um grito de alegria espontânea brotou-lhes dos lábios. Os durotriges e os druidas
que os lideravam não obteriam sucesso na sua tentativa de aniquilar a coorte. A uma escassa hora de distância encontrava-se a segurança dos baluartes e o fim do
pesadelo em que o centurião Hortênsio os tinha levado até ao limite da resistência. Mas, se o alento dos romanos fora renovado com a visão do acampamento, igualmente
o fora a determinação do inimigo para destruir a coorte antes que os seus camaradas os viessem socorrer. Com um uivo selvático, os durotriges caíram sobre as cerradas
linhas da formação romana.
O escudo e a espada de Cato há muito que se tinham tornado uma carga intolerável, e os músculos dos braços ardiam-lhe em agonia devido ao peso. Embora tivesse partilhado
da alegria dos seus camaradas ao avistar o acampamento, a distância que havia ainda a percorrer encheu-o de desespero. O mesmo desespero que um náufrago sente quando,
em pleno mar encrespado, avista uma praia ao longe. Mal esse pensamento lhe tinha aflorado à mente quando um grande troar de raiva se escutou em volta dos flancos
e da retaguarda do quadrado, à medida que os durotriges atacavam. O baque surdo dos escudos e o som metálico das armas soavam agora com maior intensidade. A formação
romana vacilou e depois parou, devido ao impacto do ataque, gastando um momento a firmar, de novo, a parede de escudos.
Assim que Hortênsio percebeu que a coorte estava a aguentar-se, deu a ordem para continuar a avançar. O quadrado oco arrastou-se novamente em frente, defendendo-se
dos frenéticos guerreiros que continuavam a atormentá-lo. As baixas romanas eram já tão numerosas que pouco espaço restava nas carroças agrupadas na pequena área
no centro da formação. De expressões desoladas, os feridos viam os camaradas dar o seu melhor naquela luta desigual. Cada solavanco que as carroças davam gerava
novos
gemidos e lamentos no seu interior, mas não havia tempo para parar nem para cuidar dos feridos. Naquelas desesperantes circunstâncias, Hortênsio poucos homens podia
dispensar para darem atenção aos feridos, e só os ferimentos mais sérios tinham tido direito a cuidados rudimentares.
A Sexta Centúria, na frente do quadrado, tinha uma visão nítida do campo da legião. Cato estava fascinado pela vista, mas o passo de caracol a que a coorte seguia
servia apenas para o convencer de que nunca lá chegariam. Os durotriges destroçariam os legionários exaustos muito antes de alcançarem a segurança dos baluartes.
- Mas que raio estão eles a fazer para ali? - Os olhos de Macro flamejavam de amarga frustração ao ver a pacífica calmaria no acampamento. - Merda das sentinelas,
devem estar cegas. Espera até lhes deitar a mão ao pêlo...
Num dos flancos, a infantaria pesada dos durotriges, reagrupada após o feroz combate nocturno, apressava-se a ultrapassar o quadrado. Cato nada mais podia fazer
que olhar em desespero, pois o plano dos bretões era óbvio. Quando cem passos os separavam da coorte, a coluna inimiga moveu-se obliquamente em relação ao quadrado
romano, desdobrando-se rapidamente numa linha de combate, com um pequeno grupo de fundibulários em cada um dos flancos. E dali não se mexeram, berrando à coorte
em desafio, à medida que a parede de escudos se aproximava.
Durante toda a noite os legionários tinham levado a melhor, mas agora encontravam-se para além dos limites da resistência. Nem uma hora tinham dormido em quase três
dias de marcha árdua. Olhos remelentos e doridos espreitavam dos seus rostos imundos e com a barba por fazer há vários dias. Os romanos mais jovens, da idade de
Cato, tinham pouca barba, mas o seu ar desolado fazia-os parecer muito mais velhos. A retaguarda e os lados do quadrado já não mantinham uma linha firme e começavam
a ceder sob a inflexível pressão dos seus adversários, mais descansados, e que agora, finalmente, sentiam o cheiro da vitória. Depressa o quadrado deixou de ser
quadrado, para se tornar um bloco disforme de homens lutando pela própria sobrevivência. A voz do centurião Hortênsio, áspera e quebrada, mais uma vez se fez ouvir
acima do barulho da batalha.
- Aí vêm eles, rapazes! A legião está a chegar!
Na frente do quadrado Cato olhou por cima das linhas de bretões
- a uns quarenta passos de distância, agora - e viu as coortes saírem uma a uma do portão sul do acampamento, os elmos polidos reluzindo à luz do sol matinal. Mas
estavam a milhas de distância, e podiam não chegar a tempo de salvar os homens da Quarta.
- Continuem a avançar! - gritava Hortênsio. - Continuem a avançar!
Cada passo que davam encurtava a distância entre as duas colunas romanas. Cato cerrou os dentes e apontou a espada à movimentada massa da infantaria pesada dos durotriges.
- Cuidado! - gritou Macro. - Projécteis!
Os romanos conseguiram proteger-se mesmo a tempo atrás dos seus escudos, quando a primeira rajada lhes foi dirigida, na diagonal, vinda dos flancos da linha inimiga.
Imediatamente a seguir, os durotriges soltaram um urro e carregaram sobre eles. O ruído seco dos projécteis a embaterem na frente do quadrado demonstrava que os
fundibulários tinham feito boa pontaria. Mas um dos projécteis passou sobre a cabeça de Cato e foi atingir uma das mulas que puxavam as carroças no centro da formação.
Desfez-lhe o olho e a órbita e, com um berro de agonia, a mula começou a dar saltos violentos, aterrorizando as três outras bestas presas à mesma carroça. Num ápice
a carroça guinou para o lado, e com um guinchar do eixo, que se contorcia, inclinou-se lentamente para um lado e virou-se. Os feridos foram cuspidos para fora da
carroça, ficando à mercê dos cascos agitados das mulas apavoradas. Um homem, esmagado pela parte lateral da carroça, soltou um terrível gemido, antes de asfixiar
no sangue que lhe jorrava da boca. E ali ficou, sem vida. O zurro agudo da mula ferida encheu o ar e fez Cato arrepiar-se. Os feridos, arrastando-se pelo chão, tentavam
desesperadamente escapar do alcance das mulas aterrorizadas, mas muitos eram pisados antes de se conseguirem libertar. Depois, uma outra carroça se virou, e novos
gritos de terror e dor romperam o ar.
- Coorte! Alto! - gritou Hortênsio. - Tratem da porra das mulas!
Avançou em direcção ao animal que tinha iniciado todo aquele caos e enterrou-lhe a espada na garganta, só depois a retirando. O sangue jorrou. Por momentos a mula
ficou a olhar, estupidamente, para a poça vermelha junto dos seus cascos. Depois, os seus joelhos cederam e estatelou-se no sangue, na lama e na neve.
- Matem-nas todas! - berrou Hortênsio, empurrando os soldados mais próximos para os animais aterrorizados.
Tudo acabou rapidamente, e os feridos sobreviventes foram amontoados nas carroças ainda intactas. A coorte já não se mexeria dali, a não ser que quisesse abandonar
os seus feridos à vingança sanguinária dos durotriges. Por momentos Cato perguntou-se se Hortênsio seria suficientemente frio para salvar o que restava da sua coorte
e tentar ir ao encontro da coluna de reforços. Mas ele manteve-se fiel ao credo do centuriato.
- Fechar linhas! Fechar linhas em torno das carroças!
Os legionários que lutavam à retaguarda e aos lados recuaram lentamente, utilizando as espadas quando os durotriges atacavam a parede de
escudos, seguindo-a até os romanos se terem compactado num pequeno grupo à volta das carroças. Os legionários que tropeçavam e caíam, à medida que iam cedendo terreno,
eram espezinhados e esquartejados pelos bretões. Cato mantinha-se junto de Macro, metido atrás do escudo e arremetendo contra aquele mar de rostos e braços inimigos
à sua frente.
- Cautela, rapaz! - preveniu Macro. - Estamos em cima das
mulas!
Cato pôs o pé na poça de sangue e sentiu a textura áspera da pele da mula contra a barriga da perna. De ambos os lados os homens da Sexta Centúria deparavam-se,
de costas, com os corpos dos animais, e viam-se demasiado ocupados com os durotriges para os poderem contornar ou trepar. Com um rugido de desafio, Macro golpeou,
com a ponta da espada, a cara de um inimigo. Enquanto o homem caía, aproveitou para passar por cima do flanco da mula.
- Vá, Cato!
Por momentos o optio enfrentou dois bretões, jovens como ele, mas de constituição mais robusta e cabelo com cristas brancas e aguçadas. Um trazia uma lança de guerra
de lâmina larga, enquanto o outro se armara com uma espada curta que tinha tirado a um romano morto. Ambos fizeram uma finta, a fim de distraírem o optio o suficiente
para lhe infligirem um golpe fatal, mas ele mantinha o escudo em movimento, expondo-o primeiro a um lado e depois ao outro, com os olhos saltando da lança para a
espada em sucessão rápida. Não se atrevia a tentar passar por cima da mula morta com os dois guerreiros à espera que a sua guarda afrouxasse. De repente a ponta
da lança arremeteu contra ele. Cato moveu o escudo instintivamente para parar a arremetida, o que fez com que a ponta da lança se desviasse para baixo. Vendo uma
oportunidade de ataque, o outro bretão, com um salto para a frente, investiu contra o estômago de Cato. Uma mão rude agarrou o optio firmemente pelas pegas da couraça
e puxou-o por cima do corpo do animal. A espada não lhe acertou e Cato ficou estatelado no chão, contorcido e arquejando.
- Quase que te apanhavam, ali! - Macro riu-se e ajudou Cato a pôr-se de pé. Esforçando-se por respirar, agarrado ao peito, Cato não pôde deixar de ficar pasmado
com a forma exultante como o centurião lidava com a perspectiva da morte iminente. Que coisa estranha, esta loucura - esta euforia - de batalha, reflectiu Cato.
Era uma pena não viver o tempo suficiente para estudar aquele fenómeno aprofundadamente.
Os homens da Quarta Coorte fecharam instintivamente as linhas numa elipse irregular em torno dos seus camaradas feridos. O inimigo pululava em volta deles, atacando
os escudos romanos num frenesim crescente, na tentativa de destruir a coorte antes de a coluna de socorro a alcançar;
esta dirigia-se ao local em passo rápido, mas ainda se encontrava longe.
Na selvagem intimidade do coração da peleja, a mente de Cato estava miraculosamente limpa de quaisquer pensamentos, excepto o de ter de tirar a vida do inimigo e
preservar a sua. O escudo e a espada eram extensões naturais do seu corpo. Defendendo-se dos golpes com um, e atacando com a outra, Cato movia-se com a mortal eficácia
de uma máquina bem treinada. E ao mesmo tempo, pequenos detalhes, imagens momentâneas da luta gravavam-se a fogo na sua memória: o acre fedor do suor das mulas e
o odor adocicado do sangue; o solo remexido sob as suas botas enlameadas; os rostos salpicados de sangue de amigos e adversários, todos rosnando de modo selvagem;
e o frio pungente da manhã de Inverno, que lhe arrepiava o corpo exausto.
Os durotriges estavam a dar cabo dos homens da coorte um a um.
Os feridos eram arrastados para o centro e os mortos eram atirados para fora da formação, para impedir que os seus corpos se tornassem um perigo para os pés dos
companheiros ainda vivos. E mesmo assim a coorte resistia; os inimigos mortos empilhavam-se à frente dos seus escudos, e os durotriges tinham de lhes passar por
cima para chegarem até aos legionários. Tornavam-se então alvos perfeitos para as espadas curtas, à medida que vacilavam em equilíbrio precário sobre a irregular
massa de mortos e moribundos, da qual os gritos de terror dos ainda vivos soavam acima dos baques nos escudos e dos tinidos agudos dos choques do metal.
A intensidade do momento furtou a Cato toda a consciência da passagem do tempo. Permaneceu ombro a ombro com o centurião de um lado e o jovem Fígulo do outro. Mas
este não era já o mesmo jovem de ar calmo e distraído, perpetuamente fascinado por um mundo tão diferente do esquálido local onde nascera, em Lutécia. Fígulo tinha
sido golpeado acima de um olho; a carne rasgada pendia-lhe da sobrancelha e tinha metade do rosto coberto de sangue. Tinha os gentis lábios arreganhados, num rosnar
selvagem, e ia silvando e cuspindo com o esforço da batalha. Os meses de treino podiam nunca ter existido; à medida que a agonia e a raiva o possuíam, ele investia
e golpeava com a espada curta de um modo que nunca fora o pretendido. Mesmo assim, os durotriges afastavam-se dele, atemorizados pela sua terrível cólera. Levou
a espada atrás para outra investida, e foi acertar com o cotovelo mesmo no nariz de Cato. Durante um momento o optio foi ofuscado por um clarão, antes de chegar
a dor.
- Olha aí! - gritou-lhe Cato ao ouvido.
Mas Fígulo estava completamente desligado de qualquer chamada de atenção. Franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça uma vez, depois atirou-se de novo à refrega com
uma rosnadela gutural. Um bretão que brandia um machado de guerra de cabo comprido atacou Cato. Este ergueu o
escudo e deixou-se cair de joelhos, rangendo os dentes, já imaginando o impacto. O golpe fendeu a madeira, rasgando-a até atingir o peito de um
- corpo estendido aos pés de Cato. O ímpeto do guerreiro fê-lo continuar para a frente, direito à ponta da espada de Cato, que lhe trespassou a clavícula até atingir
o coração. Caiu para o lado, levando com ele a espada de Cato. O optio apanhou a arma mais próxima, uma espada longa celta, com um punho cheio de ornamentos. Achou
a arma, que lhe não era nada familiar, desconfortável nas mãos, quando tentou brandi-la como se fosse uma espada romana.
- Vamos lá, sacanas! - Macro rosnava e apontava a ponta da espada ao adversário mais próximo. - Vá, venham! Quem é o próximo? Vá lá, estão à espera de quê, seus
maricas de merda?
Cato gargalhou, parando assim que se deu conta de que o riso atingira o histerismo. Abanou a cabeça para sacudir uma tontura repentina, e preparou-se para voltar
ao combate.
Mas não havia já necessidade disso. As linhas dos durotriges tornavam-se menos densas à sua frente. Já não berravam os seus gritos de guerra, nem brandiam as suas
armas. Limitavam-se a recuar, afastando-se do anel de escudos dos romanos, até que um espaço de cerca de trinta passos se abriu entre as forças, repleto de corpos
e armas partidas. Aqui e ali gemiam homens feridos, contorcendo-se pateticamente. Os legionários ficaram mudos, à espera do próximo passo dos bretões.
- Que se passa? - perguntou Cato, naquele silêncio súbito. - Que andam eles a tramar agora?
- Não faço a mínima ideia - replicou Macro.
Deu-se um repentino barulho de passos; os fundibulários e os arqueiros tomaram posição na linha inimiga. Depois, um momento de pausa, antes de uma ordem ser dada
por trás das linhas de durotriges.
- Agora é que vai ser bonito - resmungou Macro, e em seguida virou-se rapidamente para o resto da coorte e deu o alerta. - Protejam-se!
Os legionários agacharam-se e protegeram-se debaixo dos seus escudos fendidos. Os feridos podiam apenas encolher-se nas carroças onde estavam e rezar aos deuses
para que os poupassem à rajada que aí vinha. Arriscando uma espreitadela pelo espaço entre o seu escudo e o de Fígulo, Cato viu os arqueiros puxarem atrás as cordas
dos arcos, enquanto se ouvia o som crescente das fundas a girar. Uma nova ordem foi dada, e a rajada dos durotriges libertada à queima-roupa. Flechas e projécteis
precipitaram-se violentamente em direcção às desordenadas fileiras da coorte, juntamente com lanças e espadas apanhadas no campo de batalha - até pedras, tal era
o desejo ardente dos durotriges de destruir os romanos.
Cato agachou-se o máximo que pôde debaixo do seu escudo rachado,
estremecendo com o tremendo ruído da cortina de mísseis a quebrarem-se e a baterem contra escudos e corpos. Olhou em volta e deu com o olhar de Macro, sob a sombra
do seu próprio escudo.
- Chove pouco, chove... - Macro sorriu tristemente.
- A história da minha vida no exército até agora, senhor - replicou Cato, tentando sorrir para acompanhar a aparente intrepidez do seu centurião.
- Não te preocupes, miúdo, isto passa.
Mas o ataque repetiu-se, com intensidade renovada, e Cato encolheu-se com medo enquanto esperava o inevitável - a agonia paralisante de uma ferida de um projéctil
ou de uma flecha. Cada momento que passava incólume parecia-lhe um verdadeiro milagre. Depois, de repente, a barragem cessou. O ar ficou estranhamente calmo. Os
cornos de guerra dos inimigos soaram e Cato apercebeu-se de que havia movimento, mas não se atreveu a olhar, não viessem mais mísseis a caminho.
- Preparem-se, rapazes! - gritou Hortênsio, ali perto. - Eles vão carregar outra vez sobre nós. A qualquer momento. Quando eu disser, levantem-se e preparem-se para
quebrar a investida.
Mas ela não aconteceu; apenas um ruído de equipamento e armas em movimento, à medida que os durotriges se afastavam do anel de escudos romanos e marchavam na direcção
oposta ao acampamento da Segunda Legião. O inimigo foi ganhando, gradualmente, velocidade, até que já marchava em passo acelerado. Uma escassa linha de guerreiros
protegia a retaguarda da coluna, olhando frequente e nervosamente para trás.
Macro, com cuidado, pós-se de pé e fez menção de seguir o inimigo em retirada.
- Bem, macacos me... - Rapidamente embainhou a espada e colocou uma mão junto à boca. - Oi! Onde é que vão, seus panascas?
Cato ficou alarmado.
- Senhor! Que é que está a fazer?
Os gritos de Macro foram apreciados pelos outros legionários e um coro de insultos e assobios perseguiu os durotriges na sua retirada através da pequena crista e
do vale que se seguia. Os insultos dos romanos continuaram ainda algum tempo, antes de se tornarem em gritos de alegria e triunfo. Cato virou-se e viu a frente da
coluna de socorro surgir no caminho junto a eles. Sentiu-se como se uma onda de felicidade delirante o tivesse inundado. Deixando-se cair no chão, poisou a espada
e o escudo e deixou a cabeça cair, em repouso, nas mãos. Cato fechou os olhos e respirou fundo ainda algumas vezes antes de, com grande esforço, os abrir de novo
e olhar para cima. Uma figura destacou-se da frente da coluna e correu para eles. Quando o homem se aproximou, Cato reconheceu a constituição rochosa
do prefeito de acampamento. Quando Sexto estava mais próximo dos sobreviventes da coorte, abrandou e abanou a cabeça devido à terrível imagem que presenciava.
Montes de corpos estavam espalhados pelo solo e empilhados ao redor da coorte. Centenas de flechas estavam espetadas no solo e saíam de corpos e escudos, quase todos
sem possível reparo, de tão danificados que estavam. Por trás dos escudos sobressaíam as formas imundas e ensanguentadas dos legionários exaustos. O centurião Hortênsio
abriu caminho por entre os seus homens e dirigiu-se ao prefeito de acampamento, de braço levantado em saudação.
- Bom dia, senhor! - mesmo esforçando-se ao máximo por disfarçar, a voz denunciou o desgaste a que estivera submetido. - Estava a ver que não apareciam, porra!
Sexto apertou-lhe a mão, ignorando o sangue coagulado de uma ferida na palma do centurião. O prefeito de acampamento pôs-se, de mãos nas ancas, a acenar com a cabeça
em direcção aos sobreviventes da Quarta Coorte:
- E que raio de formação de merda vem a ser isto? Devia pôr-vos todos de faxina durante um mês!
Ao lado de Cato, Fígulo observava o centurião e o prefeito de acampamento a cumprimentarem-se. A princípio ficou calado, depois cuspiu para o chão.
- Merda de oficiais! Não te metem nojo?

XVIII

Com um esgar momentâneo, o general sentou-se numa cadeira almofadada. Vários dias sentado numa sela não lhe tinham feito bem às costas, e à mais leve pressão sentia
dores. A sua expressão foi gradualmente relaxando, e aceitou a taça de vinho aquecido que Vespasiano lhe ofereceu. Estava um pouco quente demais, mas Pláucio precisava
de uma bebida e de algo quente no estômago para lhe tirar o torpor do resto do corpo. Por isso, despejou a taça e fez um gesto a pedir mais.
- Há novidades? - perguntou.
- Nenhumas, senhor - respondeu Vespasiano, enquanto lhe voltava a encher a taça de vinho. - Apenas aquelas que lhe comuniquei quando ainda se encontrava em Camaloduno.
- Bem, e alguma informação útil, qualquer que seja? - continuou Pláucio, esperançoso.
- Ainda não, mas tenho uma coorte a regressar de uma patrulha na zona da fronteira com os durotriges. Pode ser que tenham conseguido alguma informação útil. Parece
que se meteram em sarilhos no regresso. Enviei algumas coortes para assegurar que chegam em segurança.
-Ah, sim. Deve ser a escaramuça que vi ao longe, enquanto cavalgávamos para o campo.
- Sim, senhor.
- O comandante da coorte que apresente um relatório mal chegue ao acampamento. - O general franziu o sobrolho por um momento, de olhar fixo nas espirais de vapor
saindo da taça que segurava. - Compreende... tenho de o saber o mais depressa possível.
- Sim, senhor. Com certeza.
Vespasiano sentou-se em frente do general, e um silêncio incomodativo instalou-se. Aulo Pláucio era o seu oficial comandante desde há quase um ano, mas ele não sabia
como se lhe dirigir num nível mais pessoal. Era a primeira vez desde que conhecera Pláucio - comandante das quatro
legiões e das doze unidades auxiliares encarregues de invadirem e conquistarem a Britânia - que o general se revelava um homem como os outros, um marido e pai consumido
pelo receio que sentia pela sua família.
- Senhor?
Pláucio continuava a olhar para baixo, com o dedo acariciando gentilmente a borda da sua taça.
Vespasiano tossiu.
- Senhor.
O general levantou o olhar, cansado e desesperado.
- Que hei-de eu fazer, Vespasiano? Que faria você?
Vespasiano não respondeu. Não podia. Que pode um homem dizer perante uma terrível situação em que outro se encontra? Caso os druidas tivessem em seu poder Flávia
e Tito, tinha quase a certeza de que o seu primeiro e mais poderoso instinto seria agarrar num cavalo e ir em busca deles. Para os libertar ou morrer a tentar. E
se fosse tarde demais para os salvar, então desencadearia a mais terrível das vinganças contra os druidas e os seus seguidores, até que ele próprio fosse também
morto. Pois o que seria a sua vida sem Flávia e Tito - e sem a criança que Flávia trazia no ventre? Vespasiano sentiu um aperto incómodo na garganta. Para se livrar
desses pensamentos, levantou-se abruptamente e foi até à entrada da tenda gritar por mais vinho. Quando voltou para o lugar já se tinha recomposto, embora se sentisse
furioso consigo mesmo devido àquilo que considerava a sua fraqueza. O sentimentalismo não era permitido a um qualquer oficial anónimo; num comandante de legião,
era equivalente a crime. E num general? Vespasiano lançou um olhar furtivo a Pláucio e estremeceu. Se alguém tão altivo e poderoso como o comandante do exército
tinha tanta dificuldade em esconder a sua mágoa íntima, que esperança poderia haver para um homem de estatuto inferior?
Com um esforço visível, Aulo Pláucio despertou da sua introspecção e encarou o legado. O general franziu o sobrolho por um momento, como se incerto de quanto tempo
estivera absorto no seu próprio desespero. Depois sacudiu a cabeça enfaticamente.
- Tenho de fazer qualquer coisa. Preciso de arranjar maneira de a minha família ser salva antes que o tempo se esgote. Faltam apenas vinte e três dias para que o
prazo dado pelos druidas acabe.
- Sim, senhor - respondeu Vespasiano, ponderando bem a sua próxima pergunta, para que não se notasse qualquer tipo de censura. - Vai trocar os prisioneiros druidas
pela sua esposa e filhos?
- Não... pelo menos por enquanto. Não antes de tentar resgatar a minha família. Não permitirei que um bando de assassinos supersticiosos ditem os seus termos a Roma!

- Compreendo. - Vespasiano não estava de todo convencido. Por que razão teria então o general trazido os druidas consigo, de Camaloduno? - Nesse caso, que plano
tem em mente para recuperar a sua família, senhor?
- Ainda não me decidi - admitiu Pláucio. - Mas o principal é agir rapidamente. Quero a Segunda Legião pronta para partir o mais cedo possível.
- Pronta para partir? Partir para onde, senhor?
- Quero que a campanha comece cedo. Pelo menos, que a Segunda Legião comece cedo. As minhas ordens são que a sua legião avance para o território dos durotriges.
Deverão destruir todas as fortalezas de monte e todas as povoações fortificadas. Não farão prisioneiros, nem guerreiros nem sequer druidas. Quero que cada tribo
desta ilha saiba o preço do assassínio de um prefeito romano e de fazer reféns romanos. Se os druidas e os seus amigos durotriges possuírem alguma sensatez, devolver-me-ão
a minha esposa e os meus filhos imediatamente, e implorarão a paz.
- E se não o fizerem?
- Começaremos então a matar os druidas que temos prisioneiros, deixando o líder para último. Se isso não os fizer ceder, destruiremos tudo o que se atravessar no
nosso caminho. - A terrível determinação na voz de Pláucio não deixava lugar para dúvidas. - Que nada sobreviva, compreendido?
Vespasiano não respondeu. Aquilo era loucura. Loucura. Compreensível, mas loucura, em todo o caso. Nada fazia sentido, em termos estratégicos. Mas sabia que tinha
de lidar com o general cuidadosamente.
- Quando quer que a minha legião avance?
- Amanhã.
- Amanhã! - Vespasiano quase se riu com o ridículo da coisa. Quase, até se ter apercebido do brilho nos olhos do seu superior. - Está fora de questão, senhor.
- Porquê?
- Porquê? Por onde começar?... O solo ainda não está suficientemente firme para os carros de artilharia e as carroças pesadas poderem andar. O que significa que
só poderíamos transportar comida para três, talvez quatro dias. E não tenho a menor ideia das capacidades do inimigo-
- Pensei nisso. Trouxe comigo um bretão que conhece bem a área. Foi em tempos um iniciado druida. Ele e o seu intérprete servir-lhe-ão de guias. Quanto às provisões,
pode marchar com meias rações, para começar. Mais tarde, poderá utilizar a frota para se abastecer através do rio, e eu
enviar-lhe-ei todos os carros leves que puder dispensar. Poderá até localizar alguns esconderijos de comida do inimigo. O Inverno está quase a chegar ao fim, mas
eles devem ter reservas escondidas, que a sua força poderá aproveitar. E para lhe possibilitar atacar as fortalezas no cimo dos montes, decidi transferir a artilharia
da Vigésima para a sua unidade...
- Mesmo que encontremos os fortes deles, não teremos meios de apoiar um ataque aos baluartes se a artilharia ficar atolada. Os nossos homens serão chacinados.
- Quão formidáveis podem ser essas fortificações? - disse Pláucio, sarcasticamente. - Afinal de contas, esses selvagens nunca ouviram sequer falar da arte do cerco.
Os seus baluartes e paliçadas só servem para manter afastados alguns lobos esfaimados e os assaltantes de passagem. Estou certo de que um homem com o seu engenho
conseguirá assaltar tais fortificações sem sofrer muitas baixas. Ou acha que comandar uma legião é uma tarefa demasiado pesada, ou perigosa?
Vespasiano agarrou com força o braço da sua cadeira, para evitar pôr-se de pé com um salto e responder com furia contra tal insinuação. O general tinha ido longe
de mais. Enviar a Segunda Legião para uma missão mal planeada era loucura que bastasse, mas diminuir os seus protestos sensatos com acusações de incompetência e
cobardia era um insulto em forma. Os olhos de Pláucio zombaram dele ainda por um momento, friamente, depois o general franziu o sobrolho e voltou a olhar para a
sua taça.
- Perdoe-me, Vespasiano - disse Pláucio, calmamente. - Peço desculpa. Não devia ter dito isto. Ninguém neste exército seria capaz de pôr em causa as suas qualidades
como legado. Como disse, perdoe-me.
Pláucio olhou para cima, e a expressão apologética que Vespasiano procurava não estava lá; o arrependimento do general era apenas retórico, expresso para os levar
de novo a considerar os seus planos lunáticos.
Vespasiano mal pôde esconder a frieza na sua voz ao responder:
- O meu perdão é insignificante comparado com o perdão de que o meu general irá precisar dos cinco mil homens desta legião, e dos seus familiares, caso insista para
a Segunda Legião levar adiante esses planos mal concebidos. Senhor, não seria mais do que uma missão suicida.
- Não exagere. - Pláucio colocou a taça numa mesinha e inclinou-se na direcção do legado. - Muito bem, então, Vespasiano. Não lhe vou ordenar que execute este plano.
Vou pedir-lhe que o faça. Não tem você também uma família sua? Não compreenderá você que demónios me obrigam a isto? Por favor, aceite fazer o que lhe peço.
- Não. - Vespasiano abanou a cabeça. - Não o posso permitir. O que o aflige, Pláucio, é uma tragédia pessoal. Não a transforme numa
tragédia pública. O império não poderá suportar mais desastres como Varo.(5) O senhor é um general em serviço activo. No campo de batalha, a sua família é constituída
por todo o exército. Os homens são como seus filhos. Confiam em si para que os conduza sensatamente, e não para que os exponha a riscos desnecessários.
- Por favor, poupe-me a essa retórica barata, Vespasiano. Não sou nenhum plebeu inconstante lá no forum.
- Não, não é... Deixe-me apresentar-lhe outro argumento. Pense nos sentimentos que nutre pela sua esposa e pelos seus filhos. Tal como disse, também eu tenho uma
família, e só imaginá-los nas mãos dos druidas é um tormento horrível. Mas o seu caso é real e, em face disso, esta minha torturada imaginação não passa de uma débil
imitação. Agora, multiplique essa dor por mil, ou mais. É a medida do sofrimento que trará às famílias e aos amigos dos homens que enviará para a morte, se mantiver
a ordem para que a Segunda Legião avance amanhã, sem as provisões e armamento adequados.
Pláucio fechou os olhos e esfregou a fronte enrugada, como se isso pudesse, de algum modo, aliviar-lhe o sofrimento. Vespasiano observou-o cuidadosamente, tentando
adivinhar se os seus argumentos tinham tido êxito. Se o general não mudasse de ideias, Vespasiano sabia que teria de se recusar a liderar a Segunda no dia seguinte.
E isso arruinaria completamente a sua carreira. Mas ao menos não teria nada a ver com os planos temerários e fúteis do general. Desafiaria Pláucio a encontrar outro
homem para nomear como legado. Assim que considerou tal ideia, Vespasiano compreendeu que o seu substituto seria escolhido pela disponibilidade para fazer o que
o general queria, e não pela capacidade de liderança. Um legado com tais características serviria apenas para tornar ainda pior o inevitável desastre. Vespasiano
apercebeu-se de que estava entre a espada e a parede. Desistir do comando seria aumentar os já tremendos riscos que ameaçavam os seus homens. Manter-se no posto
dar-lhe-ia pelo menos a possibilidade de limitar os danos. Silenciosamente, amaldiçoou a sua sorte.
O general abriu os olhos e olhou para cima.
- Muito bem, Vespasiano. Quando é que a Segunda Legião poderá estar pronta para atacar os durotriges?
- Com as carroças de provisões e a artilharia?
Pláucio disse que sim com a cabeça, relutantemente, e o desespero de Vespasiano recuou. Tinha conseguido a concessão crucial. Por mais incapaz que o resto do plano
fosse, pelo menos a Segunda Legião teria uma possibilidade. Olhando para Pláucio, calculou que o general já tinha cedido tudo o que estava disposto a ceder.
(5) Públio Quintílio Varo, um militar romano,que no comando de 3 legiões, foi derrotado na Batalha da Floresta de Teutoburgo, a 11 de Setembro de 9 D.C. . Ao
ver-se encurralado, Varo suicidou-se com a sua própria espada. Vários oficiais fizeram o mesmo. A Maior parte do exército foi massacrada e os sobreviventes escravizados.
(Nota da Correctora.)
- Vou precisar de vinte dias.
- Vinte! Isso é quase o prazo todo..
- Admito que são menos vinte dias para os procurar, mas há que imaginar o que seria perder uma legião. Além disso... - A mente de Vespasiano acelerou.
- Além disso o quê?
O legado apressou-se a encaixar todas as peças dentro da sua cabeça antes de continuar.
- Bem, senhor, poderá demorar vinte dias para que a legião esteja pronta para partir, mas porquê esperar tanto tempo para começar a procurar a sua família?
- Não estou com disposição para rodeios obscuros. Fale de uma vez, Legado, e como deve ser.
- Por que não enviar alguns homens para irem examinar as aldeias e os fortes enquanto a legião se prepara para avançar? Esse homem que trouxe consigo, o iniciado
druida. Disse que ele conhecia os durotriges. Ele poderia liderar os homens, e tentar descobrir onde está a sua família. Quem sabe, talvez até consigam, eles próprios,
resgatá-los. É com certeza melhor do que meter a Segunda Legião ao barulho; isso avisaria os druidas e faria com que a sua família estivesse em constante movimento.
- Vespasiano fez uma pausa. - É provável que nunca os recuperemos caso nos fiemos em estratégias tão brutas. Se estiverem cativos num desses fortes e lhe pusermos
cerco, de certeza que os druidas os matam antes de nos darem uma oportunidade sequer de o conquistar.
O general Pláucio avaliou a proposta durante um momento.
- Não me agrada. Não posso arriscar uma tentativa de resgate por um grupo de homens. Isso levaria a minha família à morte mais rapidamente do que outra coisa qualquer.
- Não, senhor - contrariou Vespasiano com firmeza. - Quanto a mim, acho que é a nossa melhor alternativa. Se esse seu bretão conhece de facto os cantos à terra e
as suas gentes, temos boas possibilidades de encontrar os reféns antes do inimigo ser alertado para o avanço da Segunda.
Pláucio franziu as sobrancelhas.
- A sua melhor alternativa passou depressa a boa possibilidade.
- O que é melhor do que fraca ou nenhuma, senhor.
- Tem alguém em mente para esta missão?
- Não, senhor - admitiu Vespasiano. - Ainda não tinha pensado nisso. Mas precisaríamos de homens com muita iniciativa. Engenhosos, bons lutadores, caso se torne
necessário...
Pláucio olhou para cima.
- Que tal aquele centurião que você encarregou de reaver o cofre
de César com o pagamento dos soldados, depois do desembarque? Ele e o optio. Fizeram um bom trabalho, se bem me lembro.
- Pois fizeram - disse Vespasiano, como que reflectindo. - Fizeram um trabalho mesmo muito bom...

XIX

- Vamos lá, oh belezas dorminhocas! - rugiu o centurião Hortênsio, metendo a cabeça dentro da tenda de Macro. Ele dormia profundamente no seu leito, ressonando com
um som grave. A um lado, Cato estava caído sobre a secretária onde estivera a compilar dados sobre as baixas da Sexta Centúria, quando a irresistível necessidade
de descansar o vencera finalmente. Lá fora, na linha de tendas da centúria, os homens também dormiam profundamente, e o mesmo se passava com o resto da Quarta Coorte.
Excepto com o centurião-chefe Hortênsio. Depois de ter dado atenção aos feridos e de ter ordenado que se preparasse uma refeição quente para a coorte, fora fazer
o relatório.
Ver-se na presença não apenas do legado mas também do comandante de todas as forças romanas na Britânia tinha sido uma surpresa. Cansado como estava, Hortênsio pôs-se
em sentido, olhando de forma rígida em frente, enquanto relatava, sucintamente, a história da patrulha da Quarta Coorte. Dando apenas os detalhes, sem floreados,
Hortênsio fez o relatório com a formalidade inexpressiva de um profissional com muitos anos de serviço. Respondeu às perguntas deles no mesmo tom. À medida que o
interrogatório prosseguia, Hortênsio apercebeü-se de que o general parecia querer mais do que as suas respostas poderiam oferecer. O homem parecia estar obcecado
até com o mais ínfimo detalhe respeitante aos druidas, e ficou horrorizado quando soube que Diómedes assgssinara os prisioneiros druidas.
- Matou-os a todos?
- Sim, senhor.
- Que fizeram aos corpos? - perguntou Vespasiano.
- Atirámo-los para o poço, senhor, e em seguida enchemo-lo. Não quis dar mais razões aos seus companheiros para nos dificultarem a vida.
- Pois, suponho que não - replicou Vespasiano, dando um olhar
rápido ao general. As perguntas continuaram durante mais algum tempo, até que o general se mostrou satisfeito e fez um gesto curto em direcção à porta. Vespasiano
ficou irritado com o facto de o general ter dispensado o veterano centurião com tamanha indiferença.
- Mais uma coisa, Centurião - disse Vespasiano.
Hortênsio parou e voltou-se.
- Senhor?
- Fez um excelente trabalho. Duvido que muitos homens pudessem ter conduzido a coorte como você o fez.
O centurião inclinou levemente a cabeça, agradecendo o elogio.
Mas Vespasiano não tinha vontade de deixar a questão por ali. Colocou grande ênfase nas palavras seguintes:
- Estou certo de que haverá algum louvor ou prémio pelo seu desempenho...
O general Pláucio olhou para cima:
- Ah, sim... sim, claro. Algum prémio.
- É muito gentil da sua parte, senhor. - Hortênsio dirigiu a resposta ao seu legado.
- Nada disso. É uma questão de merecimento - apressou-se Vespasiano a dizer. - Uma última coisa. Far-nos-ia a gentileza de nos enviar o centurião Macro e o seu optio?
Imediatamente, se fizer o favor.
Cato tinha mergulhado a cabeça numa barrica com água gelada, para ficar mais acordado perante o seu legado, e estava num estado lastimável quando ele e Macro entraram
na tenda do quartel-general. Tinha o cabelo preto colado à testa, e gotas de água corriam-lhe por ambos os lados do nariz, caindo sobre a túnica e criando grandes
manchas escuras nesta.
Macro olhou-o de lado e franziu as sobrancelhas, decerto esquecido da sua própria figura. Desde que tinham chegado ao acampamento tinham apenas tirado os cintos
e a armadura, e mantinham vestidas as túnicas sujas, rasgadas e manchadas de sangue que tinham usado ao longo dos últimos três dias de marcha e luta. Nem sequer
tinham cuidado dos ferimentos, cortes e arranhões superficiais, mas que tinham deixado sangue seco nos braços e nas pernas. O escrivão principal do legado franziu
o lábio quando lhes pôs a vista em cima, ao aproximarem-se da sua secretária, no exterior da tenda de viagem do general; aqueles dois dificilmente contribuiriam
para melhorar a reputação da legião aos olhos do general. O escrivão acrescentou um nariz torcido à sua expressão de desagrado, quando os dois homens pararam diante
dele.
- Centurião Macro? Não teria sido possível apresentar-se aqui em condições mais respeitosas, senhor?
- Disseram-nos que viéssemos o mais cedo possível.
- Sim, mas mesmo assim... - O escrivão olhou com desaprovação para Cato, que pingava demasiado perto da sua preciosa papelada. - Podia ao menos ter deixado que o
optio secasse primeiro.
- Já cá estamos - disse Macro, demasiado cansado para se irritar com o escrivão. - É melhor avisar o legado.
O escrivão levantou-se do banco.
- Esperem aqui. - Entrou na tenda, desviando a pele que a tapava.
- Faz alguma ideia do que se trata, senhor? - Cato esfregou os olhos: o choque refrescante da água fria já tinha passado.
Macro abanou a cabeça.
- Lamento, rapaz. - Tentou lembrar-se de alguma falta que, sem darem por isso, ele ou os seus homens pudessem ter cometido. Algum dos recrutas deve ter sido apanhado
a aliviar-se na latrina dos tribunos outra vez, pensou ele. - Duvido que estejamos metidos em grandes sarilhos, por isso tem calma.
- Sim, senhor.
O escrivão reapareceu. Pôs-se a um lado da entrada da tenda, segurando a pele que a tapava para que eles passassem.
- De qualquer modo, vamos já saber - disse Macro baixinho, ao seguir à frente. Lá dentro, arqueou as sobrancelhas ao ver o general, tal como Hortênsio o fizera antes
dele. Em seguida marchou até junto dos oficiais superiores e pôs-se em sentido. Cato, mais jovem e sem a firmeza do centurião veterano, foi pôr-se ao seu lado desajeitadamente,
assumindo então a postura correcta, tão bem como pôde. Macro saudou o seu legado.
- Centurião Macro e Optio Cato apresentam-se conforme ordenado, senhor.
- À vontade - ordenou Pláucio. O general lançou-lhes um olhar reprovador, antes de se virar para Vespasiano. - São estes os homens de que falávamos?
- Sim, senhor. Acabados de regressar da patrulha. Não os apanhou no seu melhor.
- Ao que parece. E são mesmo de fiar?
Vespasiano assentiu, desconfortável por estar a falar dos dois homens como se eles não estivessem presentes. Já tinha reparado que os membros das linhagens aristocráticas,
como Aulo Pláucio, tinham a tendência de considerar as classes mais baixas como meros elementos do cenário, sem tomarem em conta, por um momento que fosse, o quão
esmagador era
ser-se tratado dessa forma. O avô de Vespasiano tinha sido centurião, como aquele homem à frente deles, e só as reformas sociais do Imperador Augusto tinham tornado
possível que homens de origens humildes pudessem agora alcançar os mais altos cargos em Roma. Vespasiano e o seu irmão mais velho, Sabino, poderiam eventualmente
tornar-se cônsules, o mais alto posto a que um senador podia almejar. Mas os senadores das famílias mais antigas continuariam ainda assim a olhar de alto os Flávios
e a trocar comentários insidiosos sobre a falta de classe daqueles arrivistas.
- Tem mesmo a certeza? - persistia Pláucio.
- Sim, senhor. Sem dúvida. Se há alguém capaz de realizar esta tarefa, são estes dois.
Apesar da exaustão, a curiosidade de Cato despertou, e ele ficou mais atento. Mal conseguia não olhar para o centurião. Fosse qual fosse essa "tarefa", vinha directamente
do topo, e seria uma oportunidade de se distinguir e provar aos outros homens da legião e, mais importante, a ele mesmo, que era merecedor da tira branca de optio
que usava no ombro.
- Muito bem - disse o general. - Informe-os, então.
- Sim, senhor. - Vespasiano rapidamente organizou os seus pensamentos. Segundo as novas ordens, a Segunda deveria redirigir o seu ataque para o coração do território
dos durotriges, em vez de dar apoio à campanha principal a norte do Tamisa. A mente de Vespasiano estava a ser martirizada pelos riscos que isto representava para
si e para os seus homens, dois dos quais teria agora de enviar para uma morte quase certa. Uma morte, além do mais, às mãos dos druidas, que se certificariam de
que todas as oportunidades de produzir sofrimento durante o processo seriam aproveitadas.
- Centurião, lembras-te com certeza da morte do prefeito da armada, Valério Maxêncio, há alguns dias atrás?
- Sim, senhor.
- Lembras-te das exigências que foi forçado a anunciar antes de ser morto?
- Sim, senhor - repetiu Macro, e Cato assentiu, recordando perfeitamente a cena.
- Os reféns que ele mencionou, que eles queriam trocar pelos druidas que capturámos em Camaloduno, são a esposa e os filhos do general Pláucio.
Tanto Cato como Macro ficaram atónitos, não podendo evitar olharem para o general, que estava sentado e de olhar fixo no colo, quase sem se mexer. Cato reparou nos
ombros descaídos do homem, e na sua expressão perturbada. Por um momento, Cato sentiu pena do general, até a vergonha de tal sentimento o embaraçar. Quando Aulo
Pláucio olhou para
cima e deu com o olhar dele, foi como se sentisse que tinha revelado mais de si do que devia. O general endireitou os ombros e concentrou-se no que o legado dizia,
com uma expressão severa e alerta.
- O general Pláucio autorizou-me a enviar um pequeno grupo para o território dos durotriges, para procurar e, caso se dê a oportunidade, resgatar a sua família,
a Senhora Pompónia e as duas crianças, Júlia e Élio. Ele recorda-se da forma discreta como vocês recuperaram o cofre de César, no ano passado, e eu concordo com
a sua escolha para o desempenho desta tarefa. - Vespasiano fez uma pausa, para que as suas palavras assentassem.
- Centurião, sei do teu valor, e aqui o optio não tem que me provar mais nada. Não vos quero iludir; esta missão é mais perigosa do que qualquer outra coisa que
já vos tenham pedido para fazer. Não vos obrigarei a ir, mas não sei de mais ninguém na legião capaz de obter sucesso nesta tarefa. A decisão é vossa. Mas, caso
se saiam bem, o general e eu certificar-nos-emos de que serão generosamente recompensados. Não é verdade, senhor?
O general Pláucio assentiu.
Macro franziu as sobrancelhas;
- Tal como fomos recompensados depois de termos recuperado aquele cofre...
- Falou num pequeno grupo, senhor - interrompeu Cato rapidamente. - Suponho então que eu e o centurião não estaremos sozinhos.
- Não. Há mais dois, bretões, que conhecem a área. Serão os vossos guias.
- Estou a ver.
- Um deles é uma mulher - interveio o general. - Será o vosso intérprete. O outro foi em tempos um iniciado druida, na ordem da Lua Negra.
- Como aqueles sacanas com que tivemos de lidar - disse Macro.
- Como saberemos que esse tipo é de confiança, senhor?
- Não sei se podemos confiar nele. Mas foi o único que encontrei que conhece bem a área e que aceitou guiar romanos pelo território dos durotriges. Está ciente dos
riscos. Se ele e a mulher forem descobertos ao serviço de Roma, certamente serão mortos.
- A menos que nos conduzam para alguma armadilha, senhor. Entregar aos druidas mais dois reféns para poderem negociar.
Pláucio sorriu tristemente ao centurião.
- Se eles estavam preparados para assassinar um prefeito da armada só para mostrar que falavam a sério, duvido que lhes interesse fazer reféns mais dois soldados.
Centurião, não confundas as coisas; se vocês forem apanhados pelo inimigo, o melhor que podem esperar é uma morte rápida.
- Assim sendo, senhor, acho que não me quero alistar a mim e ao rapaz como voluntários nessa vossa missão. Seria pura loucura.
Pláucio não disse nada, mas Cato reparou que ele agarrava os braços da cadeira com tanta força que os tendões dos seus braços se evidenciaram como paus nodosos.
Quando a sua fúria diminuiu um pouco, falou numa voz forçada:
- Isto não é nada fácil para mim, centurião. Os druidas têm em sua posse a minha família... Tens família, tu?
- Não, senhor. Ter família não condiz com a vida de soldado.
- Percebo. Então mal podes fazer uma ideia de como esta questão me atormenta e o quanto me custa ter de vos pedir que vão em busca deles.
Macro cerrou fortemente os lábios, para impedir a saída de uma resposta instintiva. Depois, a sua habitual calma sob pressão voltou a exprimir-se.
- Peço permissão para falar livremente, senhor.
O general semicerrou os olhos.
- Isso depende do que tiveres para dizer.
- Muito bem, senhor. - Macro elevou o queixo e pôs-se em sentido, quieto e silencioso.
- Está bem, Centurião. Fala livremente.
- Obrigado, senhor. Percebo muito bem o que quer dizer. - Tinha o tom da voz quebrado devido à fadiga e a um desprezo mal dissimulado. - Está numa situação difícil
e quer que eu e o meu optio arrisquemos as nossas vidas por si. E como somos plebeus, somos dispensáveis. Que hipóteses teremos nós, a passear pelo meio do território
inimigo com o raio de uma mulher e um charlatão qualquer? Envia-nos para a morte, e sabe muito bem disso. Mas pelo menos tentou fazer algo, para que se pudesse sentir
melhor. Entretanto, aqui o rapaz e eu já teremos as cabeças separadas dos corpos, ou sido queimados vivos. Penso que isto resume bem a situação... senhor.
Cato empalideceu perante aquela tão incaracterística explosão de Macro, e olhou ansiosamente para os oficiais superiores. A expressão indignada no rosto de Vespasiano
era muito menos assustadora do que o escuro brilho nos olhos do general.
- Eu ofereço-me como voluntário, senhor! - disse Cato, abruptamente.
Os outros três olharam para ele surpresos, instantaneamente esquecidos da tensa confrontação que só podia ter acabado mal para Macro. Cato lambeu os lábios rapidamente
e abanou a cabeça, como que para enfatizar o que dissera.
- Tu? - As sobrancelhas do general elevaram-se.
- Sim, senhor. Permita-me. Farei o melhor que puder.
- Optio - disse Vespasiano. - Não duvido da tua coragem, nem da tua inteligência. E possuis um certo expediente, não o nego. Mas acho que é pedir de mais a um homem
só.
- Que mal é um homem - acrescentou o general. - Não enviarei um rapaz para fazer o trabalho de um homem.
- Não sou um rapaz - replicou Cato friamente. - Já há mais de um ano que sou soldado. Já fui condecorado, e já provei que sou de confiança. Senhor, se realmente
acha que esta missão tem poucas hipóteses de sucesso, então a perda de um homem é decerto melhor que a perda de dois ou mais.
- Não tens de fazer isto - sussurrou Macro.
- Senhor, estou decidido. Irei.
Macro olhou irritado para Cato. O rapaz estava maluco, completamente; ao primeiro obstáculo daria com os burros na água. Pensar em Cato - inegavelmente inteligente
e corajoso, mas ainda um pouco ingénuo e com arestas por limar - à mercê de um qualquer bretão matreiro, mais a respectiva mulher, consternou Macro. Raios partissem
o rapaz! Raios o partissem! Nunca o poderia deixar ir sozinho.
- Muito bem, então! - Macro virou-se para o general. - Eu vou. Se é para fazer alguma coisa, mais vale fazê-la bem.
- Obrigado, Centurião - disse calmamente o general. - Verás que não sou ingrato.
- Se regressarmos.
Pláucio encolheu simplesmente os ombros.
Antes que a conversa pudesse de novo degenerar, Vespasiano levantou-se e gritou para que lhe trouxessem mais vinho. Depois colocou-se entre o general e os dois subalternos,
e indicou assentos num lado da tenda.
- Devem estar fatigados. Sentem-se para bebermos alguma coisa enquanto eu mando chamar os batedores bretões. Agora que concordaram em ir, é melhor que os conheçam.
O tempo urge; temos apenas vinte e dois dias antes de terminar o prazo dado pelos druidas. Partirão amanhã, de madrugada.
Macro e Cato dirigiram-se para os assentos, onde repousaram os corpos cansados nas confortáveis almofadas.
- Mas que merda foi aquela? - sussurrou Macro, furioso.
- Senhor?
- Que te disse eu sobre te apresentares como voluntário? Não ouves nada do que te digo?
- Então e o cofre, senhor? Nessa altura alistou-nos como voluntários.
- Não, porra, não foi nada disso! Foi o legado que me obrigou a fazê-lo. Mas nem ele tem coragem para ordenar a alguém que faça isto. Já viste a merda em que nos
meteste?
- Não tinha de se oferecer também, senhor. Eu disse que ia sozinho.
Macro bufou com desprezo, e abanou a cabeça desesperado, devido à ingenuidade com que o optio parecia abraçar a oportunidade de sofrer uma morte triste e solitária
num qualquer canto escuro daquela terra bárbara. Por sua vez, Cato questionava-se que mais poderia ter feito naquelas circunstâncias. O exército romano não tolerava
o tipo de insubordinação a que Macro se entregara - muito menos perante um general. Que raio se passara com ele? Cato amaldiçoou-se a si e ao centurião por igual.
Tinha dito a primeira coisa que lhe viera à cabeça, e agora sentia-se mal ao pensar em se aventurar pelas terras dos druidas, com a certeza da sua própria morte.
Para além disso, havia apenas uma raiva fria direccionada àquela parte de si que tanto quisera poupar o centurião à cólera do general.
Um som leve de couro a raspar fez Cato levantar o olhar. Um escravo tinha entrado na tenda, carregando uma bandeja de bronze com seis taças e um delgado jarro cheio
de vinho tinto. O escravo poisou a bandeja e, a um movimento de cabeça de Vespasiano, encheu as taças sem entornar uma única gota. Cato observava-o, e por isso não
viu os bretões que tinham também entrado na tenda, até que eles se aproximaram da mesa. O antigo iniciado dos druidas era enorme, e elevava-se acima dos oficiais
romanos. Ao seu lado estava uma mulher alta, envolta numa capa com o capuz para trás, revelando um cabelo vermelho elaboradamente entrançado. O general cumprimentou-os
com um aceno de cabeça, e Vespasiano endireitou os ombros quase sem dar por isso enquanto contemplava a mulher de forma apreciativa.
- Não me fodam! - sussurrou Macro quando a mulher se virou ligeiramente e lhe viram o rosto. - Boudica!
Ela ouviu dizerem o seu nome e virou-se na direcção deles, os olhos abrindo-se em surpresa. O seu companheiro voltou-se para ver para onde ela olhava.
- Oh, não! - Cato encolheu-se com o olhar fulminante do gigante. - Prasutago!

XX

Quando Cato acordou, tinha uma tremenda dor de cabeça que lhe fazia latejar a testa. Estava escuro lá fora, e só uma pequena greta mostrava que a pele que tapava
a entrada tinha sido fechada mas não atada. Sem noção das horas, fechou os olhos e tentou voltar a dormir. Mas era inútil; pensamentos e imagens surgiam das margens
da sua consciência, e recusavam-se a ser ignorados. Ainda não tinha recuperado das noites de marcha e combate, e agora ia ingressar numa louca e nova aventura, exactamente
quando o seu corpo mais precisava de repouso. Apesar da ansiedade deixada pela longa reunião da noite anterior, ele tinha adormecido rapidamente assim que se pusera
debaixo dos cobertores. Os outros homens da sua secção estavam já a dormir, e Fígulo, como de costume, resmungava no meio dos sonhos.
Quando os homens da Sexta Centúria se levantassem de madrugada, o seu centurião e o seu optio já teriam abandonado o acampamento. Isso seria a menor das mudanças
que o seu pequeno mundo sofreria. Seria a última manhã em que iriam acordar como camaradas de uma mesma unidade. A Sexta Centúria seria desmantelada, e o seu efectivo
distribuído pelas outras centúrias da coorte, preenchendo assim as perdas destas.
Macro ficara mortificado quando Vespasiano o informara da decisão. A Sexta Centúria era sua desde que tinha sido promovido ao centuriato, e Macro tinha desenvolvido
o habitual e feroz orgulho e sentido de protecção típicos do primeiro comando de um oficial. Desde que tinham chegado à Britânia, ele e os seus homens tinham travado
juntos numerosas batalhas sangrentas e amargas escaramuças. Muitos tinham sido mortos, outros tantos estropiados e enviados de volta a Roma, para uma dispensa antecipada.
As vagas nas linhas de soldados tinham sido preenchidas por uma série de novos recrutas. Poucos eram os rostos que permaneciam dos oitenta homens que originalmente
encontrara na parada, pela primeira vez, há um ano e meio atrás. Mas, apesar dos homens irem e virem, a
centúria - a sua centúria - perdurara, e Macro tinha começado a vê-la com uma extensão de si próprio, que respondia à sua vontade, e orgulhava-se da eficiência do
seu tremendo esforço nas batalhas. Perder a Sexta Centúria era como perder um filho, por isso Macro sentia-se zangado e despojado.
Mas, que mais se havia de fazer?, tinha o legado argumentado com ele. A centúria não podia ser deixada sem líder enquanto esperava que o seu comandante voltasse,
e as outras centúrias precisavam de substitutos experientes. O general Pláucio tinha-se já servido de todos os substitutos destinados às legiões da Britânia e não
haveria mais reforços nos meses seguintes. Quando a missão terminasse e Macro regressasse à legião, ser-lhe-ia dado o primeiro comando que vagasse.
Cato olhara para Macro, e o centurião encolhera os ombros com pesar. O exército não respeitava equipas bem forjadas; se o legado já tinha tomado a decisão, não havia
mais nada a fazer.
- E quanto ao meu optio, senhor? - perguntara Macro. - Caso voltemos.
Vespasiano olhara para o alto e magro jovem durante um momento, e depois sacudira a cabeça.
- Trataremos dele. Talvez um posto temporário entre o meu pessoal, enquanto não vaga um lugar na lista de optios.
Cato tentara não mostrar decepção; ser colocado numa centúria diferente da de Macro não era uma perspectiva muito apelativa. Levara meses a conseguir o respeito
do centurião e a convencê-lo de que era merecedor do posto de optio. Quando se juntara à legião, Cato, um ex-escravo imperial, fora alvo de amargos ressentimentos
e de muita inveja devido à sua rápida promoção, que se devia à intervenção do próprio Imperador. O pai de Cato servira com distinção entre o pessoal imperial, e
à sua morte o Imperador Cláudio libertara o rapaz e enviara-o para se juntar às águias, com um generoso empurrão até ao primeiro degrau da escada promocional. Fora
um gesto bem intencionado, só que alguém tão distante como o Imperador não fazia ideia da amargura com que os homens das classes mais baixas da sociedade reagiam
ao óbvio nepotismo.
Cato detestava relembrar-se das suas primeiras experiências da vida na Segunda Legião: a severa disciplina dos instrutores militares, mais estrita com ele do que
com qualquer outro recruta; as sovas apanhadas às mãos de um cruel ex-condenado chamado Pulcher; e, talvez mais que tudo, a franca desaprovação do seu centurião.
Isso magoara-o mais que tudo, e levara-o a querer dar provas de si a cada oportunidade. Agora, a luta pelo reconhecimento do seu valor teria de começar de novo.
Ainda por cima, tinha uma certa consideração pessoal por Macro, ao lado do qual tinha
travado as mais terríveis batalhas da campanha até à data. Não iria ser fácil habituar-se ao estilo de um outro centurião.
Vespasiano reparara na expressão do optio e tentara dar-lhe algumas palavras de conforto:
Deixa lá. Não poderias continuar a ser um optio para sempre. Um dia, mais cedo até do que pensas, quem sabe, terás a tua própria centúria.
Vespasiano não duvidava que tinha tocado na ambição mais profunda do rapaz. Todos os jovens que ele conhecera sonhavam com honra e promoções, mesmo que soubessem
ser pouco provável conseguirem-no. Mas este era bem capaz de lá chegar. Provara ser corajoso e inteligente, e com uma pequena ajuda de alguém numa posição elevada
e influente, garantir-se-ia que serviria bem o império.
Uma vez que as hipóteses dele e de Macro regressarem à Segunda Legião eram mínimas, as palavras generosas de Vespasiano soaram especialmente vazias. Eram típicas
do encorajamento banal que todos os comandantes davam àqueles que teriam de encarar uma morte certa, e Cato sentiu desprezo por si mesmo, por se ter deixado levar,
momentaneamente, pela lábia do legado. A amargura desse pensamento permaneceu com ele ao longo da noite.
- Estúpido! - resmungou consigo mesmo, dando voltas no colchão recheado de fetos. Puxou bem o cobertor por cima da cabeça de modo a evitar o frio. Mais uma vez tentou
adormecer, banindo da mente todos os pensamentos, e uma vez mais os subtis embustes da insónia trouxeram-lhe ao pensamento o encontro da noite anterior.
A surpresa deles ao avistarem Boudica e o seu perigoso primo tinha-se espelhado nos rostos do general Pláucio e de Vespasiano, quando estes se aperceberam que os
recém-chegados eram conhecidos do centurião e do seu optio.
- Estou a ver que já se conhecem. - Pláucio sorriu. - Isso só facilitará as coisas.
- Não estou certo disso, senhor - replicou Macro, medindo cautelosamente o guerreiro bretão que se elevava acimadele. - Da última vez que nos encontrámos, aqui o
Prasutago não pareceu ter grande afecto por romanos.
- A sério? - Pláucio olhou firmemente para Macro. - Não pareceu ter grande afecto por romanos, ou grande afecto por ti?
- Senhor?
Deverias saber, Centurião, que este homem se ofereceu como voluntário para ajudar como pudesse. Assim que dei conhecimento aos anciães icenos que a minha família
estava cativa, este homem avançou e
ofereceu-se como voluntário para fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para me ajudar a recuperá-la.
- Confia nele, senhor?
- Tenho que confiar. Que outra escolha tenho? E vocês trabalharão em conjunto com ele. É uma ordem.
- Pensei que nos tivéssemos oferecido como voluntários, senhor.
- E ofereceram, e agora que o fizeram, obedecerão às minhas ordens. Terão de cooperar totalmente com Prasutago. Ele conhece a terra e os costumes dos durotriges,
e também sabe muito sobre as práticas e locais secretos dos druidas da Lua Negra. É a nossa melhor hipótese. Por isso olhem por ele, e prestem atenção ao que ele
vos disser, ou melhor, ao que aqui a senhora vos traduzir do que ele disser. Ao que parece, também já a conheciam.
- Pode dizer-se que sim, senhor - respondeu Macro calmamente, e cumprimentou-a formalmente com a cabeça.
- Centurião Macro - retorquiu ela. - E o seu adorável optio.
- Senhora. - Cato engoliu nervosamente.
Prasutago lançou um olhar irado a Macro durante um momento, depois serviu-se de uma taça de vinho do legado, bebendo-a tão depressa que, de ambos os lados da taça,
jorraram gotas vermelhas que lhe escorreram pelos pêlos louros do bigode ornado.
- Que original - disse Vespasiano num tom baixo, as sobrancelhas arqueadas de ansiedade quando o bretão voltou a pegar no jarro para uma terceira taça.
- Como parecem aprovar... - Boudica fez companhia a Prasutago e encheu a sua taça até cima. - A um regresso seguro.
Levou a taça aos lábios e bebeu até à última gota, depois poisou a taça com um baque. Boudica sorriu perante as expressões escandalizadas do general e do legado.
Havia um mundo de diferença entre ela e os timoratos códigos de conduta a que estavam habituados entre as mulheres romanas das classes altas.
Prasutago murmurou qualquer coisa, dando um toque de cotovelo a Boudica para que ela traduzisse.
- Ele diz que o vinho não é mau.
Vespasiano sorriu sem vontade e sentou-se.
- Muito bem, chega de formalidades. Não temos muito tempo. Centurião, vou dar-vos instruções tão completas quanto possível, e depois irão descansar. Deixarei prontos
cavalos, provisões e armas, para que possam deixar o acampamento antes da madrugada. É importante que o vosso grupo não seja visto a abandonar a legião. Viajarão
a maior parte do tempo de noite, e descansarão durante o dia. Caso encontrem alguém,
precisarão de ter uma história preparada. O melhor será fingirem que são saltimbancos. Prasutago fará o papel de lutador, oferecendo-se a candidatos que queiram
desafiá-lo. Ela fará de sua esposa. Vocês os dois vão ser dois escravos gregos, ex-soldados, comprados para servirem de protecção nesta terra bravia. As tribos do
Sul da Britânia estão habituadas à vinda e ida de mercadores, comerciantes e saltimbancos.
Uma imagem das vítimas assassinadas da aldeia queimada passou pela mente de Cato.
- Desculpe-me, senhor, mas, dado o modo como trataram os atrébates, que é que o faz pensar que não nos matarão imediatamente?
- O facto de isso serem questões tribais; não se mija à porta da própria casa. É evidente que se atacam outras tribos, mas não se pode desencorajar o comércio vindo
do exterior. É assim que as coisas funcionam em todas as tribos dos limites do império. Porém, é bom que sejam cautelosos. Os druidas são um elemento desconhecido
no meio desta história. Não sabemos o que farão os durotriges estando eles sob a sua influência. Prasutago é quem mais apto está para lidar com qualquer situação
estranha com que se deparem. Prestem-lhe muita atenção, e façam o que ele vos disser.
- Prestar-lhe-ei atenção, isso é certo - disse Macro discretamente.
- Acha mesmo que isso resultará, senhor? - perguntou Cato. - Não irão os durotriges desconfiar de forasteiros, agora que têm um exército romano acampado à sua porta?
- Admito que não será um grande disfarce, mas decerto fará com que ganhem algum tempo, caso necessitem. Reconhecerão Prasutago em alguns sítios, o que deverá servir
para alguma coisa. Tu e o optio devem manter-se fora de vista tanto quanto possível e deixar que Prasutago e Boudica abordem os durotriges ou quaisquer aldeias que
encontrem. Eles tentarão obter notícias da minha família. Sigam todas as pistas até ao fim, e encontrem-nos.
- Julgava que só tínhamos mais vinte dias, senhor, antes do prazo dado pelos druidas acabar.
Pláucio respondeu-lhe:
- Sim, é verdade. Mas, caso o prazo tenha terminado e... e o pior tenha acontecido, gostaria de lhes poder dar um funeral decente. Mesmo que tudo o que reste seja
cinza e ossos.
Uma mão agarrou o ombro de Cato e abanou-o rudemente. Os seus olhos pestanejaram e o corpo ficou rígido com o súbito despertar.
- Shhh! - sibilou Macro na escuridão. - Não faças barulho! Está na hora de partir. Tens o teu equipamento?
Cato disse que sim com a cabeça, só depois reparando que estava ainda demasiado escuro para que Macro o conseguisse ver:
- Sim, senhor.
- Muito bem. Vamos, então.
Ainda cansado, e relutante em deixar o relativo calor da tenda, Cato arrepiou-se ao sair, arrastando o fardo que tinha preparado antes de dormir. Numa túnica extra
tinha embrulhado a sua cota de malha e a couraça, juntamente com a espada e o punhal. Elmo, escudo e tudo o mais seriam reunidos pelo pessoal do quartel-general
e mantidos em armazém até ao seu regresso. Cato tinha poucas dúvidas de que, num futuro próximo, as suas coisas viriam a tornar-se propriedade de outrem.
Enquanto seguia Macro ao longo da linha de tendas, em direcção aos estábulos, o medo do que o futuro lhe reservava começou a pôr em causa a sua determinação em levar
a bom cabo a missão. Era tentador fazer-se tropeçar numa das espias das tendas e fingir ter torcido um tornozelo. Na escuridão, poderia bem passar por uma desculpa
credível. Mas conseguia imaginar a dúvida e o despeito que Macro e o legado certamente sentiriam, mesmo que não o expressassem. A perspectiva dessa vergonha fê-lo
desistir da ideia e caminhar com maior prudência, não fosse o acidente acontecer realmente. Além do mais, não poderia deixar Macro meter-se pelas profundezas do
território inimigo apenas com Prasutago e Boudica por companhia. Seria demasiado fácil para o guerreiro iceno cortar a garganta de Macro enquanto ele dormisse. Mas
não tão fácil se fizessem turnos para olharem um pelo outro. Não havia maneira de fugir a isto, concluiu carrancudo. Se ao menos Macro não tivesse sido tão malcriado
para o general, ele não teria tido de intervir. Agora, graças a Macro, estavam os dois tramados.
Resmungando baixinho para si mesmo, Cato esqueceu-se de prestar atenção ao sítio onde punha os pés. Uma corda apanhou-lhe a canela e ele caiu de borco com um grito
agudo. Macro voltou-se logo.
- Calado! Queres acordar o acampamento todo?
- Desculpe, senhor - sussurrou Cato, enquanto se esforçava para se pôr de novo em pé, com o pesado fardo nos braços.
- Não me digas, caíste e torceste o tornozelo.
- Não, senhor! Claro que não!
Alguém se agitou dentro da tenda:
- Quem está aí?
- Ninguém - soltou Macro bruscamente. - Volta a dormir... Vamos, rapaz, e vê onde é que pões os pés.
Ao lado da cavalariça, uma luz brilhava frouxamente no interior da grande tenda onde estavam armazenadas as aparelhagens e as armas de
cavalaria. Cato seguiu Macro até ao interior, onde uma candeia a óleo iluminava a cena. Prasutago, Boudica e Vespasiano aguardavam-nos.
- É melhor mudarem-se já - disse Vespasiano. - Os vossos cavalos e animais de carga estão prontos.
Largaram os fardos e despiram-se até ficarem em tanga. Sob o curioso olhar de Boudica, Cato apressou-se a cobrir-se com uma nova túnica, e enfiou, pela cabeça, a
sua camisola de cota de malha. Meteu-se na couraça, prendeu as bainhas da espada e do punhal, e agarrou a capa militar.
- Não! - Vespasiano interrompeu-lhe o gesto. - Isso não. Usem aquelas. - Apontou para um par de capas castanhas, sujas e usadas, cheias de lama. - É melhor que não
se pareçam muito com soldados, quando chegarem ao território dos durotriges. E usem estas tiras de couro em volta da cabeça.
Passou-lhe dois bocados de couro, largos no meio e adelgaçados nas pontas.
- Os gregos usam-nas para segurarem o cabelo. O vosso corte de cabelo à militar é um pouco evidente, por isso usem-nas, e metam os capuzes, e assim talvez se façam
passar por gregos, à distância. Desde que não se metam à conversa com ninguém.
- Tudo bem, senhor. - Macro fez uma careta quando pegou na tira de couro, atando-a depois em volta da cabeça. Prasutago observava Macro, enquanto que Boudica sorria
abertamente a Cato.
- De alguma forma pareces mais convincente como escravo grego do que alguma vez o foste como legionário.
- Obrigado. Muito agradecido.
- Deixem isso para depois - ordenou Vespasiano. - Venham
comigo.
Acenou a Prasutago e conduziu-os até ao exterior. Presos aos postes encontravam-se quatro cavalos com cobertores sobre o dorso, cobrindo o ferro da legião. Em cada
flanco dos animais pendia um saco, e ao lado encontravam-se dois póneis carregados com mais provisões.
- Bom, é melhor porem-se a caminho. O oficial de serviço no portão espera-vos, para que se possam esgueirar sem que algum idiota dê o alerta. - O legado avaliou-os
uma última vez e depois deu uma rápida palmada no ombro de Macro. - Boa sorte!
- Obrigado, senhor.
Macro tomou fôlego e atirou uma perna para cima do cavalo, para ganhar balanço para o corpo. Um desgracioso momento de imprecações abafadas seguiu-se, antes que
ele estivesse devidamente sentado e agarrasse firmemente as rédeas. Sendo mais alto, Cato conseguiu montar o seu cavalo com um pouco mais de estilo.
Prasutago segredou alguma coisa a Boudica e Macro voltou-se.
- Que é que ele disse?
- Questionava se não seria melhor tu e o teu optio viajarem a pé.
- Oh, a sério? Diz-lhe então que...
- Chega, centurião! - soltou Vespasiano com brusquidão. - Partam.
O guerreiro e a mulher icenos montaram com facilidade e viraram os cavalos na direcção do portão do campo militar. Atrás deles, Macro e Cato puxaram as longas rédeas
dos animais de carga e seguiram caminho. À medida que os cascos batiam na lama gelada do caminho, Cato lançou uma última olhadela por cima do ombro. Mas Vespasiano
já se dirigia de volta ao calor da sua tenda, e foi rapidamente engolido pela escuridão.
Mais à frente surgiu o portão e, quando se aproximaram, uma ordem foi dada quase em surdina. A tranca rangeu ao ser recolhida, e uma das portas abriu-se para dentro.
Ao saírem, um punhado de legionários observou-os em silêncio, curiosos mas obedientes às estritas instruções para não fazerem qualquer pergunta. Do outro lado dos
baluartes, Prasutago bateu com as rédeas e conduziu-os ladeira abaixo, em direcção à floresta donde os druidas tinham surgido com o prefeito da armada, alguns dias
antes.
Sem o seu elmo e escudo e fora da reconfortante segurança da fortificação, Cato sentiu-se, de repente, terrivelmente exposto. Isto era pior que avançar para uma
batalha. Muito pior. Adiante estendia-se o território inimigo. E este inimigo era diferente de qualquer dos outros que os romanos tinham enfrentado. Olhando para
oeste, onde a terra era tão escura que quase se confundia com a noite, Cato perguntava-se se os seus olhos o ludibriavam, ou se o negrume ali era ainda mais negro
devido às sombras dos druidas da Lua Negra.

XXI

Pela altura em que o sol já tinha subido do leitoso horizonte até um monótono céu cinzento, eles tinham já mergulhado profundamente na floresta. Cavalgaram ao longo
de um trilho bem pisado, que serpenteava através de nodosos troncos de velhos carvalhos, cujos ramos retorcidos se tornavam mais nítidos com o intensificar da luz.
Alguns dos ramos mais altos estavam bem preenchidos de ninhos, e o áspero crocitar dos corvos enchia o ar à medida que os pássaros negros observavam, com olhos gananciosos
e especulativos, o pequeno grupo passando lá baixo. O solo da floresta estava repleto de folhas mortas, negras. A neve quase desaparecera e o ar estava frio e húmido.
A sombria atmosfera era opressiva, e Cato olhava ansiosamente para os lados, atento a qualquer sinal do inimigo. Ia na retaguarda, e atrás de si, arrastando-se através
das folhas húmidas, ia apenas um pónei de carga. Imediatamente à frente, ia o outro pónei, preso à sela de Macro. O centurião, de cabeça descoberta e agitando-se,
inquieto, sobre a sua montada, parecia indiferente ao pesado ambiente. Tinha bem maior interesse na mulher à sua frente. Boudica tinha o capuz posto e, tanto quanto
Cato se dera conta, não tinha olhado para trás desde que tinham abandonado o campo fortificado.
Isso confundia-o; julgara que Boudica ficaria contente por ver Macro novamente. Mas tinha-se notado uma clara frieza na sua atitude para com eles os dois durante
a noite anterior, na reunião. E agora este longo silêncio, desde que tinham deixado o acampamento. Prasutago ia à frente, parecendo maior que nunca sobre a sela
do maior cavalo que lhe tinham conseguido arranjar. Conduzia-os pelo trilho num passo calmo e despreocupado, considerando com indiferença o caminho à sua frente.
Tinha-os ignorado aquando da reunião, ouvindo e falando apenas ao legado, através de Boudica.
Cato olhava para a vasta cabeleira de Prasutago e perguntava-se de quanto se lembraria o gigante daquela noite em Camaloduno, quando, bêbado
e zangado, tinha apanhado a prima a beber numa cervejaria cheia de romanos. O que quer que tivesse acontecido depois dessa noite parecia ter afectado, de algum modo,
Boudica, e diminuído a sua amizade por Macro. Talvez Nessa estivesse certa. Boudica e Prasutago talvez fossem mais do que meros primos um para o outro.
De todos os bretões que podiam ter-se oferecido para ajudar o general, parecia típico das perversas Parcas que governavam a vida de Cato que tivessem de ser Prasutago
e Boudica. Esta missão era já suficientemente perigosa, reflectiu Cato, sem terem que ser consideradas as tensões resultantes do caso entre Macro e Boudica, e da
consequente afronta ao orgulho aristocrático de Prasutago, em cada raiz e ramo da sua família.
E depois, ainda havia o conhecimento particular de Prasutago acerca dos durotriges e dos druidas da Lua Negra. Quase todas as crianças romanas cresciam a ouvir histórias
tenebrosas sobre os druidas e a sua magia negra, sacrifícios humanos e bosques sagrados embebidos em sangue. Cato não era excepção, e tinha visto por si próprio
um desses bosques no Verão anterior. A terrível atmosfera do sítio mantinha-se ainda, com vívidos detalhes, na sua memória. Se era esse o mundo em que Prasutago
se integrara em tempos, então quanto do homem era ainda druida, e não completamente humano? Que espécie de lealdade poderia Prasutago ter ainda para com os seus
antigos mestres e companheiros iniciados? Resumir-se-ia o seu desejo de ajudar o general a um mero plano traiçoeiro para entregar dois romanos nas mãos dos druidas?
Cato refreou a imaginação. O inimigo não se daria a tanto trabalho para capturar um mero centurião e um optio. Censurou-se por pensar como um rapazinho paranóico
e por ter exagerado tão monstruosamente a sua própria importância.
Fê-lo relembrar um dia no palácio imperial, há muitos anos atrás, quando era pouco mais que um miúdo e tinha gostado de uma pequena colher em marfim trabalhado que
tinha visto sobre a mesa de um banquete. Tinha sido muito fácil fúrtá-la e metê-la entre as dobras da túnica. Num local sossegado do jardim examinara-a, admirado
com o fabuloso trabalho do cabo, com os seus golfinhos e ninfas sinuosamente entrelaçados. De repente ouvira gritar e o som de pés a correr. Espreitara à volta de
um arbusto, e vira um pelotão de pretorianos que corria das portas do palácio para o jardim, e começava a procurar por entre a topiaria. Cato ficara aterrado por
o furto da colher ter sido descoberto, e por agora os homens do Imperador andarem à caça do ladrão. A qualquer momento ele seria apanhado com as provas na mão, e
atirado para o chão à frente dos olhos frios de Sejano, o comandante da guarda pretoriana. Se uma fracção do que os escravos do
palácio sussurravam entre eles fosse verdade, Sejano cortar-lhe-ia a garganta e atiraria o seu corpo aos lobos.
Os pretorianos aproximaram-se cada vez mais do esconderijo onde Cato tremia, mordendo o lábio, não fosse soltar uma lamúria e atrair as atenções. Depois, mesmo quando
um braço robusto e musculado se metia pelo arbusto onde ele estava acocorado, ouviu-se um grito distante.
- Caio! Encontraram-no! Vamos.
A mão retirou-se, e pés afastaram-se pesadamente através das lajes de mármore. Cato quase desmaiou de alívio. Tão discretamente quanto possível esgueirou-se de volta
ao palácio e voltou a pôr a colher no lugar. Depois regressou ao pequeno quarto que partilhava com o pai e esperou, rezando para que a colher reposta fosse rapidamente
encontrada, e que a gritaria esmorecesse e o mundo voltasse à sua segura normalidade.
Era já tarde quando o seu pai regressou dos escritórios do secretariado imperial. À fraca luz de uma candeia a óleo, Cato viu-lhe a expressão de ansiedade nas linhas
do rosto, e depois os olhos cinzentos tremeluziram em direcção ao filho, surpresos por o rapaz ainda estar acordado.
- Devias estar a dormir - sussurrou.
- Não conseguia dormir, papá. Demasiado barulho. Que aconteceu? - Cato fez a pergunta tão inocentemente quanto conseguiu. - A guarda pretoriana andava a correr de
um lado para o outro do palácio. Sejano apanhou mais algum traidor?
O pai deu-lhe um sorriso triste como resposta.
- Não. Sejano nunca mais apanhará nenhum traidor. Foi-se.
- Foi-se? Deixou o palácio? - Uma repentina ansiedade inflamou-se na mente de Cato. - Isso significa que já não posso brincar mais com o pequeno Marco?
- Sim... isso mesmo. Macro... e a irmã... - O rosto do seu pai contorceu-se num trejeito devido ao terrível tratamento aplicado aos inocentes filhos de Sejano, durante
os sanguinolentos acontecimentos do dia. Depois, inclinou-se sobre o filho e beijou-lhe a fronte. - Eles foram com o pai. Receio que não os poderás voltar a ver.
- Porquê?
- Depois eu explico-te. Daqui a alguns dias, talvez.
Mas o pai nunca lho explicou. Em vez disso, Cato veio a saber tudo, na manhã seguinte, pela boca dos outros escravos, na cozinha do palácio. Com a notícia da morte
de Sejano, a primeira reacção de Cato foi sentir um grande alívio por os acontecimentos do dia anterior não terem tido nada a ver com o facto de ter furtado a colher.
Toda a ansiedade, a terrível previsão da sua captura e castigo, deixaram os seus ombros de criança. Isso era tudo o que importava para ele nessa manhã.
Agora, mais de dez anos depois, o seu rosto enrubescia-se ao lembrar-se disso. Aquele momento, e outros parecidos, surgiam frequentemente na sua mente, atormentando-o
até sentir aversão por si mesmo. Tal como o seu exagerado medo fazia nesse momento, e voltaria com certeza a fazer no futuro. Parecia não conseguir escapar àqueles
cansativos momentos de rigorosa auto-análise, e perguntava-se se alguma vez conseguiria viver em paz consigo próprio.
O céu manteve-se de um cinzento triste durante o resto do dia, e não se ouvia sequer um sussurro de brisa na floresta. A quietude e as árvores imóveis provocavam
um nervosismo latente nos cavaleiros. Cato convenceu-se de que, em circunstâncias menos perigosas, a severa estética invernal emprestaria à floresta uma espécie
de beleza. Mas agora cada ruído saído da vegetação rasteira ou estalar de ramo, fazia-o sobressaltar-se na sela e sondar ansiosamente as sombras.
Seguindo ao longo de uma curva do trilho, passavam por um espinhoso emaranhado de amoras silvestres. De repente, uma grande agitação soou do interior do matagal.
Macro e Cato atiraram para trás as capas e desembainharam as espadas. Os cavalos e os póneis, resfolegando das narinas e de olhos muito abertos, assustados, empinavam-se
e tentavam recuar. O matagal agitou-se, e um cervo saltou para o meio do caminho. Sangrando de numerosos arranhões e lançando o seu hálito vaporoso no ar frio e
húmido, o cervo apontou a armação ao cavalo mais próximo, agitando-a ameaçadoramente.
- Cuidado! - gritou Macro, de olhos postos nas brancas e aguçadas extremidades dos chifres. - Saiam do caminho!
No meio da confusão de cavalos e póneis, o cervo viu uma aberta, e meteu-se por lá. Enquanto os cavaleiros se esforçavam para controlar as suas montadas, o animal
correu pesadamente para as profundezas da floresta, do outro lado do trilho, levantando grandes molhos de folhas caídas.
Prasutago foi o primeiro a dominar o seu cavalo, em seguida olhou para os romanos e desatou às gargalhadas. Macro lançou-lhe um olhar raivoso, depois reparou que
ainda segurava a espada curta, pronta para usar. Numa súbita descarga de tensão, devolveu a gargalhada ao guerreiro iceno e embainhou a espada. Cato fez o mesmo.
Prasutago balbuciou qualquer coisa, e depois puxou as rédeas e pôs-se, de novo, a caminho.
- Que é que ele disse? - perguntou Macro a Boudica.
- Que não sabia quem saltou mais alto, se tu, se o cervo.
- Muito engraçado. Diz-lhe que ele também não me ficou atrás.
- É melhor não - aconselhou Boudica. - Ele é um bocado
sus ceptível em questões de orgulho.
- Ah, é? Então temos algo em comum, afinal. Agora, diz-lhe o que eu disse. - O olhar de Macro não vacilou enquanto tentava forçar Boudica a fazer-lhe a vontade.
- Vá, diz-lhe o que eu disse.
Prasutago olhou para trás, por cima do ombro.
- Vamos! Nós ir! - gritou ele, continuando depois na sua língua, já que esgotara o conhecimento que tinha do latim.
- Senhor - interveio Cato, discretamente. - Por favor, não insista. Ele é o único que conhece o caminho. Não o contrarie.
- Contrariar! - bufou Macro. - O estupor está a pedi-las.
- Não podemos dar-nos ao luxo de parar para vocês trocarem uns tabefes - disse Boudica. - O Cato tem razão. Não podemos deixar que rivalidades mesquinhas se desenvolvam
se queremos salvar a família do teu general. Acalma-te.
Macro premiu os lábios e olhou para ela, irritado. Boudica encolheu simplesmente os ombros, virou o seu cavalo e seguiu Prasutago. Sabendo bem como o temperamento
de Macro ia e vinha, Cato manteve-se calado, olhando vagamente para o lado, até que, com uma imprecação abafada, Macro esporeou o cavalo para avançar, e o pequeno
grupo continuou o seu caminho.
Saíram da floresta ao anoitecer. As sombras e as árvores antigas ficaram para trás, e o espírito de Cato ficou um pouco mais aliviado. À frente deles o solo descia
gentilmente para uma zona húmida junto ao rio que serpenteava até ao horizonte em ambas as direcções. Algumas ovelhas salpicavam os prados, ocupadas a alimentarem-se
dos verdes rebentos expostos pela neve derretida. O trilho virava à direita depois de descer e seguia pela distância. A uma milha, uma fina coluna de fumo subia
de uma grande cabana circular, por detrás de uma paliçada. Prasutago apontou naquela direcção e disse qualquer coisa a Boudica.
- É ali que passaremos a noite. Há um vau não muito distante, onde poderemos atravessar o rio pela manhã. Devemos ficar a salvo ali, durante a noite. Prasutago conheceu
o proprietário do local há uns anos atrás.
- Há uns anos atrás? - disse Macro. - As coisas podem mudar em poucos anos.
- Talvez. Mas eu não quero passar a noite ao relento até ter de ser
mesmo.
Quando a montada de Boudica se adiantou, Macro inclinou-se para a frente na sela e agarrou-lhe no ombro.
- Espera. Alguma vez teremos de falar.
- Alguma vez, sim - confirmou Boudica com um aceno de cabeça. - Mas não agora.
- Quando?
- Não sei. Quando chegar a altura. Agora larga-me, por favor, que me estás a aleijar.
Macro procurou-lhe nos olhos algum sinal do afecto e do espírito livre que conhecera, mas a expressão de Boudica pareceu-lhe cansada e vazia de emoções. Deixou cair
a mão e, batendo rápido os calcanhares, Boudica impeliu o seu cavalo adiante.
- Raio das mulheres - refilou Macro. - Cato, meu rapaz, um conselho. Nunca te metas com elas. Podem fazer coisas estranhas ao coração de um homem.
- Eu sei que podem, senhor.
- Claro. Desculpa, esqueci-me.
Relutante em pensar na dolorosa memória de Lavínia, Cato deu um puxão às rédeas do pónei e seguiu em direcção à distante quinta. Os céus plúmbeos ficavam cada vez
mais escuros com o desaparecer da luz, e a paisagem tomava os esbatidos tons das sombras cinzentas. A paliçada e a cabana tornaram-se indistintas, à excepção de
um ponto cor-de-laranja que se via na entrada da cabana, e que lhes acenava com a promessa de calor e abrigo do frio da noite.
Quando se aproximaram, os portões da paliçada fecharam-se rapidamente e uma cabeça emergiu das sombras acima das estacas afiadas, para bradar um aviso. Prasutago
gritou em resposta, e quando já estavam perto o bastante para que a sua identidade fosse confirmada, os portões foram abertos outra vez e o pequeno grupo impeliu
as bestas a entrar. Prasutago desmontou e dirigiu-se a um homem baixo e atarracado, que não parecia ser muito mais velho que Cato. Apertaram os antebraços um do
outro, numa saudação formal mas amigável. Ao que parecia, o lavrador que Prasutago conhecera estava há já três anos morto e enterrado num pequeno pomar por trás
da paliçada. O filho mais velho tinha morrido no Verão anterior, a lutar contra os romanos, na batalha da travessia do Medway. O filho mais novo, Velocato, tomava
agora conta da quinta, e lembrava-se bem de Prasutago. Deitou uma olhadela aos companheiros de Prasutago e disse algo baixinho. Prasutago riu-se, e respondeu com
um curto aceno de cabeça na direcção de Boudica e dos outros. Velocato olhou-os fixamente durante um momento, antes de acenar também.
Fazendo-lhes um gesto para que o seguissem, conduziu-os através do lamacento interior da paliçada, até uma linha de currais grosseiramente
construídos. Dois outros homens, mais velhos, encontravam-se ocupados a atirar comida para o lado onde o gado se encontrava, e pararam um ' momento para observarem
os recém-chegados enquanto estes levavam as montadas até uma pequena cavalariça. Lá dentro, os cavaleiros, exaustos, retiraram as selas aos cavalos, tendo o cuidado
de deixar os cobertores a cobrir a marca da legião. Tendo as selas, as provisões e o equipamento sido cuidadosamente arrumados a um lado, o anfitrião arranjou-lhes
alguns cereais e depressa os cavalos mastigavam satisfeitos, a respiração condensada a espalhar-se sobre eles no ar frio.
Já estava completamente escuro quando se dirigiram à cabana grande, com a sua isolante cobertura de colmo. O lavrador fê-los entrar e cobriu a entrada com uma pesada
cortina de couro. Depois da frescura cortante do ar lá fora, o cheiro a fumo no interior fez Cato tossir. Mas ao menos estava quente. O chão da cabana inclinava-se
em direcção à lareira, onde a lenha crepitava e assobiava entre as tremeluzentes chamas cor-de-laranja que se erguiam do brilho quente na base do fogo. Acima das
chamas estava, apoiado num tripé de ferro, um caldeirão enegrecido. Curvada, pesadamente, sobre o vapor que saía do caldeirão, encontrava-se uma mulher grávida.
Amparava as costas com uma mão, enquanto ia mexendo o conteúdo com uma longa concha de madeira. Quando eles se aproximaram ela olhou para cima e saudou com um sorriso
o marido, antes de dardejar um olhar para as visitas e a sua expressão se tornar desconfiada.
Velocato indicou uns bancos confortavelmente grandes colocados a um dos lados da lareira e convidou as visitas a sentarem-se. Prasutago agradeceu-lhe e os quatro
viajantes repousaram com gratidão os seus membros rígidos e doridos. Enquanto Prasutago conversava com o camponês, os outros olhavam satisfeitos para as chamas e
absorviam o calor. O rico aroma a carne guisada que saía do caldeirão fez Macro sentir-se desesperadamente esfomeado, e ele lambeu os beiços. A mulher reparou e
ergueu a concha. Acenou com a cabeça na direcção dele e disse qualquer coisa.
- Que está ela a dizer? - perguntou ele a Boudica.
- Como hei-de eu saber? Ela é atrébate. Eu sou icena.
- Mas ambas são celtas, certo?
- Só porque somos da mesma ilha, não quer dizer que falemos a mesma língua, sabes?
- A sério? - Macro adoptou uma expressão de surpresa inocente.
- A sério. Toda a gente no império fala latim?
- Não, claro que não.
- Então como é que vocês romanos se fazem entender?
- Falamos mais alto. - Macro encolheu os ombros. - As pessoas normalmente percebem o sentido do que se está a dizer. Se isso não resulta, partimos-lhes a cara.
- Não tenho dúvidas disso, mas, por tudo o que é sagrado, não tentes isso aqui. - Boudica abanou a cabeça. - Quanta sagacidade, a desta raça de senhores... Por acaso,
até percebo alguma coisa deste dialecto. Ela estava a oferecer-te comida.
- Comida! Bem, por que não disseste logo? - Macro abanou vigorosamente a cabeça à mulher do lavrador. Ela riu-se e dirigiu-se a um largo cesto de verga que estava
junto da lareira e tirou de lá umas tigelas, as quais colocou sobre o chão de terra batida. Com a concha, pôs o caldo de carne fumegante nas tigelas e passou-as
em volta, as visitas primeiro, como ditavam os costumes. Do cesto de verga surgiram também umas pequenas colheres de madeira; momentos depois, uma quietude abateu-se
sobre a cabana, quando todos se dedicaram à refeição.
O caldo de carne estava a escaldar, pelo que Cato teve de soprar cada colherada antes de a pôr na boca. Olhando melhor para a tigela, apercebeu-se de que tinha sido
feita em Samos, a faiança barata manufacturada na Gália e exportada para a maior parte do império ocidental. E para lá dele, ao que parecia.
- Boudica, podes perguntar-lhe donde vieram estas tigelas?
As duas mulheres esforçaram-se a conversar durante um momento, antes da questão ser entendida e ser dada uma resposta.
- Fez uma troca com um comerciante grego.
- Grego? - Cato acotovelou Macro.
-Hã?
- Senhor, a mulher diz que arranjou estas tigelas dum comerciante
grego.
- Eu ouvi, e então?
- O comerciante chamava-se Diómedes?
A mulher assentiu e sorriu, depois falou rapidamente a Boudica, no tom musical da língua celta.
- Ela diz que gosta do Diómedes. Diz que ele é um encanto. Tem sempre um pequeno presente para as mulheres e um talento assaz engenhoso para apaziguar os seus maridos,
a seguir.
- Acautelem-se com os gregos que trazem presentes - resmungou Macro. - Esses tipos saltam para cima de tudo o que mexe, seja mulher ou homem.
Boudica sorriu.
- Pela minha experiência, devo dizer que vocês, romanos, não são
muito melhores. Deve ser alguma coisa que põem em todo aquele vinho que vocês, raças do Sul, tanto gostam de beber.
- Estás a queixar-te? - perguntou Macro, olhando para Boudica com atenção.
- Digamos que foi educativo.
- E suponho que já tenhas aprendido tudo o que querias sobre os homens de Roma.
- Mais ou menos, sim.
Os olhos de Macro brilharam de cólera na direcção de Boudica, antes dele voltar ao caldo e continuar a comer em silêncio. Uma tensão incómoda preencheu o ar. Cato
mexeu o seu caldo e trouxe a conversa de volta a um assunto menos delicado: Diómedes.
- Quando foi a última vez que ela o viu?
-Há dois dias atrás.
Cato parou de mexer o caldo.
- Passou por aqui a pé - continuou Boudica. - Ficou só para comer e foi-se logo embora, para oeste, para o território dos durotriges. Duvido que vá ter muito que
negociar por lá.
- Ele não anda em trabalho - disse Cato discretamente. - Já não. Ouviu, senhor?
- Claro que ouvi. Esta missão já é perigosa o suficiente, sem esse grego a agitar ainda mais as coisas. Espero que eles o encontrem e o matem rapidamente, antes
que nos cause mais problemas.
Continuaram a comer em silêncio, e Cato não voltou a tentar manter a conversa viva. Ponderou as implicações que as notícias sobre Diómedes tinham. Ao que parecia,
ter morto os prisioneiros druidas não tinha sido suficiente para o grego. A sua sede de vingança estava a levá-lo ao coração do território dos druidas da Lua Negra.
Sozinho, poucas hipóteses teria, e poderia pôr os durotriges em alerta para a chegada de estranhos. O que aumentaria ainda mais os riscos que os quatro já enfrentavam.
Absorto, Cato comeu outra colher de caldo, mastigando um pedaço de cartilagem.
A hospitalidade de Velocato e da sua esposa incluiu um prato com bolos de mel, depois de terem acabado de comer o caldo de carne. Cato retirou um bolo e reparou
no desenho geométrico no prato. Inclinou a cabeça para olhá-lo mais de perto.
- Mais um artigo do grego, imagino - disse Boudica, enquanto se servia de um bolo. - Deve conseguir viver bem disso.
- Aposto que sim - disse Macro, e mordeu um bolo. Os seus olhos iluminaram-se instantaneamente, e abanou a cabeça em sinal de aprovação, na direcção da anfitriã.
- Bom!
Ela irradiou alegria e ofereceu-lhe outro.
- E porque não? - disse Macro, cuspindo migalhas para a túnica.
- Vamos, Cato! Abastece-te, rapaz!
Mas Cato estava perdido em pensamentos, olhando fixamente para o prato até este ser levado e recolocado no cesto de verga. Tinha a certeza de já o ter visto antes,
e ficou muito perturbado por o ver de novo. E logo ali, onde não tinha razão para estar. Enquanto os outros comiam os bolos com satisfação, ele teve de se forçar
a mastigar o seu. Olhava para Velocato e para a esposa com uma sensação crescente de desconforto e ansiedade.
- Tens a certeza de que estão a dormir? - sussurrou Macro.
Boudica deu uma última olhadela às formas quietas que se avistavam sob os abafos de pele nas baixas padiolas e abanou a cabeça em sinal positivo.
- Muito bem, então Prasutago que diga o que tem a dizer.
Previamente, o guerreiro iceno tinha pedido discretamente a Boudica que desse a saber aos outros que queria dar-lhes uma palavrinha antes de entrarem, no dia seguinte,
em território durotrige. O anfitrião tinha insistido em abrir uma pipa de cerveja e tinha feito brindes suficientes para garantir uma alegre bebedeira, antes de
cair para cima da mulher e adormecer. Agora respirava com aquele profundo ritmo de quem não iria acordar tão cedo. Sobre os ocasionais ressonos ruidosos vindos das
sombras, Prasutago deu instruções ao resto do grupo, num tom baixo e sério. Observava de perto os outros à medida que Boudica ia traduzindo, para se certificar que
a gravidade das suas palavras era assimilada.
- Ele diz que, depois de atravessarmos o rio, temos de ser vistos o menos possível. Esta pode bem ser a última noite em que desfrutamos de abrigo. Não faremos fogueiras
à noite se houver a mais pequena possibilidade de serem avistados pelo inimigo, e evitaremos ao máximo o contacto com os durotriges. Investigaremos durante mais
vinte dias, até terminar o prazo dado pelos drúidas. Prasutago diz que, se até lá não encontrarmos nada, voltamos para trás. Ficar na região mais tempo seria demasiado
perigoso, dado que a vossa legião vai marchar contra os durotriges daqui a poucos dias. No momento em que o primeiro legionário puser o pé no território dos durotriges,
qualquer estranho que viaje pelas suas terras será visto como um potencial espião.
- Não foi isso o acordado - protestou Macro sombriamente. - As ordens eram para encontrar a família do general, viva ou morta.
- Não se o prazo tiver expirado, diz ele.
- Ele seguirá as ordens como os outros.
- Fala por ti, Macro- disse Boudica. - Se Prasutago for, eu também irei, e vocês ficam por vossa conta. Não concordámos em suicidarmo-nos.
Macro olhou zangado para Boudica.
-Nós? Quem é este "nós", Boudica? Da última vez que estivemos juntos, este tipo não passava de um parente afastado que não resistia a fazer de paizinho para ti e
para a tua amiga. O que é que mudou?
- Tudo - respondeu Boudica, rapidamente. - O que passou, passou, e o que quer que esteja para vir não deve ser manchado pelo passado.
- Manchado? - As sobrancelhas de Macro arquearam-se. - Manchado? Foi então isso que eu fui para ti?
- É o que és para mim agora.
Prasutago silvou. Indicou com a cabeça os donos da casa e advertiu Macro com o dedo, avisando-o de que baixasse o tom. Depois falou calmamente a Boudica, que lhes
retransmitiu as suas palavras.
- Prasutago diz que o trajecto que planeou nos fará passar através do coração do território dos durotriges. É lá que encontraremos as maiores aldeias e povoações,
o tipo de sítios onde a família do vosso general poderá estar cativa.
- O que acontecerá se formos apanhados? - perguntou Cato.
- Se formos apanhados, e entregues aos druidas, vocês e eu seremos queimados vivos. Ele enfrentará uma morte bem pior.
- Pior? - fungou Macro. - O que poderia ser pior?
- Ele diz que seria esfolado vivo, e depois oferecido aos cães, aos bocados, ainda enquanto respirasse. A pele e a cabeça seriam pregados a um carvalho, na mais
sagrada das clareiras, como aviso aos druidas de todos os níveis sobre o destino que aguarda aqueles que traírem a irmandade.
-Oh...
Deu-se um breve silêncio. Depois Prasutago disse-lhes que fossem dormir. Amanhã entrariam em território inimigo, e precisariam por isso de estar frescos e sempre
atentos.
- Só mais uma coisa - disse Cato, brandamente.
Prasutago tinha começado a pôr-se de pé, e abanou a cabeça ao
optio.
- Dormir agora!
- Ainda não - insistiu Cato e, com ar chateado, Prasutago voltou a sentar-se. - Podemos ter a certeza de que o lavrador é de confiança?
- sussurrou Cato.
Prasutago explicou de forma impaciente, e fez um gesto a Boudica para que traduzisse.
- Diz que conhece Velocato desde que ele era ainda um rapazola. Prasutago confia nele e põe as mãos no fogo por ele.
- Oh, isso é sem dúvida tranquilizador - disse Macro.
- Mas não percebo como é que Velocato pode viver aqui, mesmo à porta dos durotriges, e não recear ataques - persistiu Cato. - Quer dizer, se eles aniquilaram uma
aldeia inteira, bem no interior das terras de Vérica, porque é que pouparam este lugar?
- Qual é a tua ideia? - perguntou Boudica, aborrecida.
- Precisamente esta. - Cato alcançou o cesto de verga que estava junto à lareira, tirando de lá a escudela de prata, rapidamente mas com cuidado, de forma a não
fazer barulho. Mostrou o prato a Macro. - Tenho quase a certeza de que já vi isto antes, naquele buraco que continha o saque, em Noviómago. Deixámos tudo lá, está
lembrado, senhor. Não havia espaço nas nossas carroças.
- Lembro-me. - Macro suspirou pesarosamente. - Mas se este é o mesmo prato, como veio aqui parar?
Cato encolheu os ombros, relutante em dar voz à sua suspeita. Se ele acusasse Velocato de estar a trabalhar para o inimigo, Prasutago poderia não reagir muito bem.
- Suponho que pode ter sido um negócio do Diómedes. Mas se é o mesmo prato, então Velocato só o pode ter recebido do grupo de atacantes. Imagino que os durotriges
sobreviventes tenham lá voltado para irem buscar o espólio, assim que nos fomos embora.
- Ou talvez o próprio Velocato estivesse no grupo de atacantes
- acrescentou Macro.
Enquanto Boudica traduzia do latim, Prasutago olhou fixamente para o prato e em seguida levantou-se de repente, virou-se na direcção de Velocato e começou a desembainhar
a espada.
- Não! - De um salto, Cato segurou Prasutago pela mão que brandia a espada. - Não temos provas. Posso estar errado. Matá-lo não nos serviria de nada. Só iria alertar
os durotriges para a nossa presença, se o encontrassem morto.
Boudica traduziu e Prasutago franziu o sobrolho, pronunciando uma série de pragas. Largou o punho da espada e cruzou os braços.
- Mas se estiveres certo acerca deste Velocato - Macro apontou -, então não podemos permitir que viva para contar a qualquer um que nos viu. Teremos de o matar,
a ele e aos outros, antes da madrugada.
Cato ficou chocado.
- Senhor, não é necessário fazer isso.
- Tens uma ideia melhor?
O jovem optio pensou rapidamente, sob o olhar atento dos outros.
- Se Velocato colabora com os durotriges, podemos usar isso a nosso favor, certificando-nos de que tudo o que ele possa dizer a quem quer que seja serve os nossos
fins.

XXII

Partiram outra vez pela escuridão fora, seguindo Velocato por um caminho que ia dar ao vau. Tinham comido ao pequeno-almoço os restos frios do caldo de carne, insuficiente
conforto entre a névoa húmida e fria que pairava sobre a água gélida e que ocultava os salgueiros alinhados na margem. À beira do vau, Velocato permaneceu a um lado,
observando-os a montar. Quando estava tudo a postos, Prasutago dobrou-se sobre a sela e agradeceu calmamente ao seu anfitrião, apertando-lhe a mão. Depois, enquanto
o camponês voltava para as sombras negras dos salgueiros, Prasutago esporeou o seu cavalo e a quietude foi perturbada pelo chapinhar dos cavalos a entrarem no rio.
O choque da água gelada irritou os animais, pelo que começaram a relinchar em protesto. A água chegava até aos flancos dos cavalos, e cobriu as botas de Cato, aumentando-lhe
ainda mais a desgraça. Tentou consolar-se pensando que, ao menos, a corrente lavaria alguma da porcaria que se tinha agarrado aos seus pés nos últimos dias. Não
pela primeira vez, Cato desejou voltar a ser escravo ao serviço do palácio imperial, em Roma. Podia não ser livre, mas ao menos não estaria sujeito ao interminável
desconforto de um legionário em campanha. Nesse momento, ele teria dado a alma em troca de algumas horas exsudando num dos banhos públicos que havia em Roma. Em
vez disso, tremia descontroladamente, com os pés cada vez mais dormentes, e, quanto ao futuro que se avizinhava, parecia prometer apenas uma morte terrível.
- Estamos contentes? - sorriu Macro, ironicamente, montando a seu lado.
- Estamos fodidos! - completou Cato o dito militar, com sentimento.
- Isto foi ideia tua, lembras-te? Bem que devia ter-te deixado ir sozinho, pá.
- Sim, senhor.
O leito do rio subia gradualmente até à outra margem, e os cavalos
emergiram ansiosamente da água gélida. Olhando para trás, por sobre a agitada superfície da água, não se conseguia ver quase nada do outro lado, a última visão que
teriam de terra amiga. Para o caso da suspeita de Cato sobre Velocato ter razão de ser, meteram-se primeiro rio acima, afastando-se das fortalezas dos durotriges,
e aumentaram o passo para um trote rápido, para que o som dos cascos a bater no caminho chegasse até ao agricultor, no caso de ele estar à espera e à escuta entre
os salgueiros.
Uma milha depois, pararam, viraram para sudoeste, e continuaram discretamente com os cavalos a passo através daquela fria e húmida terra, até voltarem a encontrar
o caminho para o interior, que partia do vau. Quando a primeira luz do dia começou a infiltrar-se através da escuridão, Prasutago acelerou o passo, temendo que fossem
apanhados em espaço aberto ao alvorecer. Seguiram pelo caminho galopando brandamente, até que o solo em volta se tornou mais firme e as zonas húmidas deram lugar
a prados e, depois, a maciços de árvores mais poderosas. Daí a pouco entraram numa pequena floresta. Seguiram pelo trilho ainda durante um bocado, e depois cortaram
por um atalho tortuoso que os levou até uma área nas profundezas da floresta onde cresciam os pinheiros, perenes e de tronco recto. À medida que os ramos mais baixos
se tornaram mais densos, tiveram de desmontar e levar os cavalos a pé. Por fim, o caminho estreito começou a abrir até formar uma clareira. Cato ficou surpreso por
ver uma pequena cabana, de madeira, mas com um dos lados apoiado na turfa. A toda a volta estavam levantadas estruturas em madeira. Por cima da porta pendia um crânio
de cervo com uma armação espectacular. Nada se mexia.
- Pensei que fosse suposto evitarmos os indígenas - sussurrou Macro a Boudica.
- E é - ripostou ela. - Isto é uma cabana de caça dos druidas. Passaremos aqui o dia, descansando. Seguiremos pelo caminho principal ao anoitecer.
Já aliviados os cavalos da carga e presos, Prasutago empurrou para o lado a pesada pele de couro que servia de porta da cabana, e entraram. Como de costume, o chão
era de terra batida e uma estrutura de ramos de pinheiro suportava o colmo bem enfeixado do telhado. Um abundante cheiro a pinheiro e mofo invadiu-lhes as narinas.
Havia uma pequena lareira numa extremidade, sob uma abertura no telhado, e uma série de simples catres de madeira, alinhados junto à parede de trás. Os fetos com
que tinham sido revestidos estavam ligeiramente húmidos, mas serviriam.
- Parece suficientemente confortável - disse Macro. - Mas estamos mesmo seguros aqui?
- Estamos - replicou Boudica. - Os druidas só usam a cabana no Verão, e a maior parte dos durotriges temem em demasia os druidas para que se aventurem por estas
zonas.
Macro testou um dos leitos com a mão, depois estatelou-se sobre os ruidosos fetos.
- Ahhh! A isto é que eu chamo conforto.
- É melhor que descansem o máximo que puderem. Temos um grande caminho pela frente, quando escurecer.
- É para já.
Cato deitou-se no catre ao lado, de olhos já a pesarem-lhe só de pensar em dormir. Uma ansiedade incomodativa quanto à credibilidade de Velocato tinha-lhe tirado
o sono na noite anterior, e a mente pesava-lhe agora de exaustão. Estendeu-se e tapou-se bem com a capa. Fechou os olhos doridos e a sua mente rapidamente se afastou
dos severos desconfortos do mundo real.
Prasutago olhou para os romanos com um vago toque de desprezo, virando-se depois em direcção à porta. Macro apoiou-se logo no cotovelo.
- Onde é que pensas que vais?
Prasutago fez um gesto rápido em direcção à boca:
- Encontrar comida.
Macro olhou fixamente para o bretão, questionando até que ponto poderia confiar nele.
Prasutago respondeu ao olhar dele por um momento, e depois virou-se e saiu da cabana. Um clarão de luz diurna invadiu o interior, antes da pele de couro cair de
novo sobre a entrada; depois, tudo ficou calmo e silencioso no tugúrio. Graças ao seu instinto de veterano para descansar tanto quanto pudesse, Macro adormeceu quase
instantaneamente.
Acordou sobressaltado, de olhos esbugalhados, perplexo devido à teia de ramos de pinheiros acima da sua cabeça. Depois, o seu sentido de orientação voltou e Macro
lembrou-se que estava na cabana. A pálida qualidade da luz que passava através de uma pequena fenda na parede mostrava que a noite se aproximava. Tinha dormido quase
todo o dia. Ouviu o remexer de galhos do outro lado da divisão, o que o fez olhar nessa direcção. Boudica estava agachada ao lado da lareira, com um monte de ramos
ao pé. Agarrou outra mão cheia enquanto ele observava. Não havia sinais de Prasutago, nem barulho no exterior. Cato dormia ainda profundamente, de boca aberta, e
a sua respiração era acompanhada por um estalido ocasional que vinha do fundo da sua garganta.
- É altura de falarmos - disse Macro baixinho.
Parecia que Boudica não o tinha ouvido, já que continuou a mexer nos galhos, arranjando-os num montículo em volta de fetos secos que tirara de um dos catres.
- Boudica, eu disse que era altura de falarmos.
- Eu ouvi - respondeu, sem se virar. - Mas para quê? Entre nós está tudo acabado.
- Desde quando?
- Desde que me comprometi com Prasutago. Vamos casar assim que regressarmos a Camaloduno.
Macro sentou-se, com as pernas fora do catre.
- Casar? Com ele? Quando é que isso foi decidido? Nem um mês passou desde a última vez que nos vimos. Nem sequer o podias ver à frente, nessa altura. Pelo menos,
era o que davas a entender. Andas a brincar, mulher?
- Brincar? - Boudica repetiu a palavra com um ténue sorriso. Depois voltou-se e encarou-o. - Acabaram-se as brincadeiras para mim, Macro. Sou uma mulher, agora,
e esperam que me comporte como tal. Assim mo disseram.
- Quem é que to disse?
- A minha família. Depois de me terem batido. - Os olhos dela fitaram o chão. - Parece que lhes causei algum embaraço, após aquela última noite em que estivemos
na taberna. Quando cheguei a casa do meu tio, estavam todos à minha espera. Lá arranjaram maneira de descobrir. O meu tio levou-me para o estábulo e vergastou-me.
Não parava de gritar que o envergonhara, a ele, à família, e à tribo. À medida que me vergastava. Eu... eu não sabia que alguém podia sentir tanta dor...
Macro tinha apanhado algumas tareias quando mais jovem - das mãos de um centurião brandindo uma vara de videira com toda a brutalidade que o oficial conseguira reunir.
Lembrava-se bem da agonia, pelo que compreendia aquilo por que ela tinha passado. Raiva e pena irromperam dentro de si. Levantou-se do leito e foi sentar-se ao lado
dela.
- Pensei que ele me fosse matar - sussurrou Boudica.
Macro pôs-lhe o braço em volta do ombro e apertou-a, para a reconfortar. E sentiu o corpo dela reagir ao tocar-lhe.
- Não, Macro. Por favor, não me toques. Não consigo.
O arrepiante desespero da rejeição enregelou as entranhas de Macro. Franziu as sobrancelhas, zangado consigo mesmo por ter permitido que aquela mulher lhe tivesse
invadido o coração daquela maneira. Podia imaginar os outros centuriões a rirem-se com desprezo, entre copos, caso alguma vez tomassem conhecimento da sua paixão
por uma rapariga
nativa. Andar metido com elas, era uma coisa; criar laços emocionais, era outra. Era exactamente o patético comportamento que ele próprio, antes, tanto criticara.
Lembrava-se de ter gozado com Cato, quando o rapaz andava caído pela jovem escrava, a Lavínia. Mas isso tinha sido apenas uma inofensiva paixoneta de adolescente;
era justamente o tipo de coisas que se esperava dos jovens, antes que as severas exigências da idade adulta lhes fechassem o acesso às experiências com tudo o que
a vida tem para oferecer. Macro tinha trinta e cinco anos, quase mais dez que Boudica. Era verdade que havia relações com maiores diferenças de idade, mas eram muito
justamente metidas a ridículo pela maior parte das pessoas. A diferença de idade, que tanto o encantara há alguns meses atrás, zombava agora dele. O centurião sentia-se
como um daqueles velhos patéticos que frequentavam o Circo Máximo, para tentarem a sua sorte com mulheres novas o suficiente para serem suas netas. A comparação
fê-lo arder de vergonha. Agitou-se, desconfortável.
- Então, obrigaram-te a nunca mais me veres?
Boudica disse que sim com a cabeça.
- E tu aceitaste.
Virou-se para ele, a face contorcida pela amargura.
- Que mais podia eu fazer? Disseram que me bateriam outra vez, se fosse apanhada com outro romano. Acho que preferia morrer a isso. De verdade. - A sua expressão
suavizou-se. - Desculpa, Macro. Não posso arriscar. Tenho de pensar no meu futuro.
- No teu futuro? - Macro mostrou-se desdenhoso. - Queres dizer, casar com Prasutago? Tenho que admitir, isso é que foi um raio duma surpresa. Por que concordaste
com isso? Quero dizer, ele não é propriamente a seta mais afiada da aljava.
- Não. Não é. Mas está bem colocado para o futuro. Um príncipe iceno, com casa em Camaloduno e uma crescente reputação na tribo. Anda agora a desenvolver uma útil
relação com o teu general. Com esta missão, ganhará a gratidão de Pláucio.
- Eu não acreditaria muito nisso - resmungou Macro, que sabia bem quão breve podia ser a gratidão do general.
Boudica olhou-o de forma curiosa. Vendo que ele não desenvolvia a ideia, continuou:
- Se conseguirmos encontrar a família do general, Prasutago terá mais ligações com Roma que qualquer outro bretão. E se Roma acabar por conquistar esta ilha, as
pessoas que o ajudaram serão com certeza recompensadas.
- Essas pessoas, e as esposas dessas pessoas.
- Sim.
- Estou a ver. Bem, mudaste muito de há um mês para cá. Mal te reconheço.
Boudica sentiu-se ofendida com o seu tom cínico e virou o rosto. Macro não se arrependeu do seu comentário, mas, ao mesmo tempo, não conseguia forçar-se a detestar
Boudica o bastante para que se sentisse bem a insultá-la. Tentou ainda encontrar algum sinal da rapariga impudente e afectuosa por que se apaixonara em Camaloduno.
- És mesmo assim tão fria?
- Fria? - A ideia parecia tê-la surpreendido. - Não. Não sou fria. Tento apenas aproveitar o que posso do que me foi imposto. Se eu fosse um homem, se tivesse poder,
então as coisas seriam bem diferentes. Mas sou uma mulher, o sexo fraco, e tenho de fazer o que me dizem. É a única escolha que tenho, por agora.
Houve uma pausa antes de Macro arranjar coragem para falar.
- Não; tinhas outra escolha. Podias ter-me escolhido a mim.
Boudica virou-se e olhou-o de perto.
- Estás mesmo a falar a sério, não estás?
- Muito. - O coração de Macro elevou-se ao ver Boudica sorrir. Depois, ela deixou cair o olhar e abanou a cabeça.
- Não. Está fora de questão.
- Porquê?
- Não seria vida para mim. Seria banida da minha tribo. E se te fartasses de mim ao fim de algum tempo? Não me restaria nada. Eu sei o que acontece a essas mulheres,
tornam-se reles e patéticas, e seguem o exército vivendo dos restos da legião, até adoecerem ou até que algum bêbado mais violento acabe com elas. É isso que desejas
para mim?
- Claro que não! Não haveria de ser assim. Eu tomaria conta de
ti.
- Tomarias conta de mim? Não me pareces muito convincente. Perderia as minhas raízes, e ficaria à tua mercê, no teu mundo. Não aguentaria. Apesar do que aprendi
sobre a vida para lá das terras dos icenos, continuo irremediavelmente icena. E tu, romano. Posso falar a tua língua muito bem, mas isso é o máximo que admito que
Roma penetre o meu ser; e não me venhas com as tuas insinuações porcas, se fazes favor!
Ambos sorriram durante um momento, e depois Macro levou a sua rude mão de soldado à face dela, maravilhado com a sua suavidade. Boudica permaneceu quieta. Depois,
muito ternamente, os seus lábios roçaram a palma da mão dele com um beijo suave que enviou um arrepio pelo braço de Macro acima. Ele inclinou-se, devagar, para ela.
Ouviu-se um ruído surdo no exterior da cabana. O couro que pendia sobre a entrada foi desviado para um lado. Macro e Boudica afastaram-se
um do outro. O centurião agarrou nalguns galhos e começou a parti-los aos bocados e a passá-los a Boudica, que acabava de acender o fogo. Um vulto tapou a luz da
entrada. Macro e Boudica lançaram um olhar à silhueta.
- Prasutago?
O homem entrou, arrastando atrás de si a carcaça de um pequeno veado. A luz iluminou o rosto do guerreiro iceno, revelando uma expressão vagamente divertida nos
seus olhos.

XXIII

Durante os cinco dias que se seguiram, internaram-se mais profundamente no território dos durotriges, cavalgando cautelosamente ao longo dos trilhos, à noite, e
procurando sítios para se esconderem e descansarem, durante o dia. Prasutago parecia incansável, nunca dormindo mais que algumas horas. Cada etapa da viagem era
planeada por ele de forma a levá-los até próximo de uma aldeia. Descansava até ao meio-dia, depois esgueirava-se até à povoação, em busca de sinais dos reféns romanos.
Ao anoitecer, voltava com carne para os outros, que eles cozinhavam a fogo brando, agachados em volta para receberem o máximo de calor que pudessem das chamas, no
ar penetrante da noite. Depois de comerem, apagavam a fogueira e seguiam Prasutago, à medida que ele ia escolhendo caminho pelos trilhos bem batidos. Cada quinta
e pequena aldeia eram cuidadosamente contornadas, e faziam-se paragens frequentes enquanto o guerreiro iceno se certificava, antes de continuarem, de que o caminho
estava livre. Mesmo antes de amanhecer, ele abandonava o trilho e levava-os para o bosque mais próximo, não os deixando parar enquanto não descobrissem uma depressão
no solo da floresta onde o grupo pudesse descansar, durante o dia, sem ser visto.
Tapavam-se com as capas e com os cobertores das suas montadas, e dormiam tão bem quanto podiam nessas tão desconfortáveis condições. Havia sempre um de atalaia durante
o dia, e os quatro faziam a sua vez, permanecendo calado entre as sombras da floresta, a curta distância de onde estavam acampados.
Cato, mais novo e magro que os outros, era o que mais sofria devido ao frio, e o seu sono era incerto e interrompido. A temperatura tinha baixado até gelar, no segundo
dia, e o frio penetrante da terra gelada pôs-lhe as articulações das ancas tão duras, que mal conseguia mover as pernas quando acordava.
No quinto dia, levantou-se uma neblina. Prasutago deixou-os, como de costume, para ir explorar a aldeia próxima. Enquanto esperavam, esfomeados, que ele voltasse
com a refeição do dia, Boudica e os dois romanos fizeram uma fogueira. Soprava uma leve brisa pela floresta, pelo que tiveram de construir, em volta do fogo, uma
protecção contra o vento, com terra turfenta. Cato reuniu alguns ramos caídos, fazendo pausas frequentes para esfregar as ancas e aliviar as dores nas articulações.
Quando já tinha reunido lenha que bastasse para manter o fogo aceso durante as próximas horas, deixou-se cair entre Boudica e o centurião, os quais se tinham sentado
em lados opostos da fogueira. A princípio ninguém disse nada. O vento aumentava, com persistência, e eles envolveram-se mais nas suas capas, protegendo-se do frio
mordaz. A alguns passos dali, os cavalos e os póneis permaneciam num silêncio sombrio, com as crinas lisas esvoaçando a cada lufada de ar.
Restavam agora apenas quinze dias para o fim do prazo dado pelos druidas. Cato duvidava de que encontrassem a família do general a tempo. Não fazia sentido estarem
ali. Não havia nada que pudesse ser feito para evitar que os druidas assassinassem os seus reféns. Nada. Cinco dias de tensa caminhada através de território inimigo
tinham-no esgotado, e Cato achava que não conseguiria aguentar muito mais. Frio e sujo, mental e fisicamente exausto, não estava em condições de continuar à procura
dos reféns, quanto mais resgatá-los. Era uma missão para loucos, e os hostis olhares que cada vez mais Macro lançava na sua direcção, convenceram Cato de que nunca
seria perdoado pela sua estupidez - presumindo que haveriam de regressar à Segunda Legião.
Acima do negro entrelaçado dos ramos agitados, o céu escurecia, e não havia ainda sinais de Prasutago. Por fim, Boudica pôs-se de pé e esticou os braços para trás,
dando um profundo grunhido.
- Vou só andar um pouco até ao caminho - disse ela. - Para ver se há sinais dele.
- Não - disse Macro firmemente. - Deixa-te estar sentada. Não podemos arriscar.
- Arriscar? Quem é que no seu perfeito juízo se aventuraria num dia como este?
- Além de nós? - Macro deu um riso abafado e desconsolado.
- Até tenho medo de pensar.
- Bem, mas eu vou na mesma.
- Não, não vais. Senta-te.
Boudica manteve-se em pé e disse, calmamente:
- Eu julgava mesmo que fosses um homem melhor do que isso,
Macro.
Cato enrolou-se um pouco mais na sua capa e fixou a fogueira por acender, desejando poder desaparecer dali.
- Estou só a ser prudente - explicou Macro. - O teu homem deve estar de volta em breve. Não tens de te preocupar com ele. Por isso, deixa-te estar sentada.
- Desculpa, mas preciso de cagar. Não aguento mais. Por isso, se não me deixas ir a um local discreto, terei de fazê-lo aqui.
Macro corou de vergonha e raiva, sabendo que seria estúpido acusá-la de estar a mentir. Com a frustração, cerrou os punhos.
- Vai lá, então! Mas não te afastes e volta logo para aqui.
- Demoro o tempo que demorar - ripostou de volta, e meteu-se pelas sombras da floresta.
- Raio da mulher! - resmungou Macro. - Merda mais todos os comprometimentos. Queres um conselho, rapaz? Nunca te metas com elas. Só dão trabalho.
- Sim, senhor. Não deverei acender a lareira?
- O quê? Ah, sim. Boa ideia.
Enquanto Cato raspava as pederneiras junto às acendalhas, Macro continuava a ver se Boudica e Prasutago voltavam. Uma pequena chama cor-de-laranja pegara aos bocados
de musgo seco, pelo que Cato a passou, com cuidado, para a fogueira, tomando cuidado para que se não apagasse com o vento, protegendo-a com o corpo. Os ramos atearam
rapidamente; e logo estava a aquecer as mãos diante de uma chama crepitante, assim que o fogo pegou aos toros com que ele o alimentara. Um frouxo brilho cor-de-laranja
reflectia-se hesitantemente nas árvores circundantes, à medida que a noite se ia aproximando.
Boudica não voltou a aparecer, e Cato começou a pensar se alguma coisa teria acontecido aos dois bretões. Mesmo se nada tivesse acontecido, conseguiria Boudica encontrar
o caminho de volta até eles, na escuridão? E se tivessem sido capturados pelos durotriges? Torturá-los-iam para obterem informações sobre cúmplices? Andariam já
os durotriges à procura dele e do centurião?
- Senhor?
Macro desviou a cara do bosque escuro.
- Que foi?
- Acha que lhes aconteceu alguma coisa?
- Como queres que eu saiba? - soltou Macro bruscamente. - Podem ter ido negociar um preço para nós com as gentes locais, digo eu.
Foi uma parvoíce dizer aquilo, e Macro arrependeu-se quase imediatamente. Fora por causa da ansiedade que sentia por Boudica, preocupado com o que lhes aconteceria,
caso Prasutago não voltasse. As
alternativas não eram esperançosas para dois legionários romanos metidos numa floresta escura, em pleno território inimigo.
- A mim pareceu-me suficientemente leal - disse Cato, ansiosamente. - Não confia nele, senhor?
- É bretão. Os durotriges podem ser de uma tribo diferente, mas ele tem bem mais em comum com eles do que connosco. - Macro fez uma pausa. - Vi pessoas a venderem
compatriotas a Roma em quase todas as fronteiras em que fiz serviço. Estou-te a dizer, Cato, ainda não viste nada até cumprires serviço na Judeia. Até as próprias
mães eles vendem, se acharem que isso os ajudará a prejudicar um rival ou outro. Esta gente não é muito melhor. Repara como quantos desses nobres britânicos exilados
andaram a negociar com Roma com o fim de recuperar os seus reinos. Eles prostituem-se a quem quer que seja em troca de um bocado de poder e influência. Prasutago
e Boudica não são diferentes. Manter-se-ão fiéis a Roma enquanto isso for do seu interesse. Depois verás o verdadeiro valor deles como amigos e aliados. Toma nota
do que te digo.
Cato franziu as sobrancelhas.
- É mesmo isso que pensa?
- Talvez. - O rosto desgastado de Macro passou de repente para um sorriso bem-humorado. - Mas ficaria mais do que feliz se estiver errado!
Ouviu-se um som de um ramo a partir-se ali perto. E os romanos estavam já de pé, tendo desembainhado as espadas num instante.
- Quem está aí? - chamou Macro. - Boudica?
Com o roçar de folhas mortas e mais ramos a estalarem, duas figuras saíram das sombras escuras para o tremeluzente brilho do fogo. Macro sentiu um alívio e baixou
a espada.
- Mas onde raio se meteram vocês?
Prasutago sorria e falava excitadamente, à medida que se aproximava do fogo, e deu uma pancada amigável no ombro de Macro. Como de costume, trouxera alguma carne
com ele - um leitão, que pendia do seu cinto, preso a uma tira de couro. Prasutago atirou a carcaça para o chão, para perto do fogo, e continuou a falar. Boudica
traduziu tão rapidamente quanto pôde.
- Diz que os encontrou, a família do general!
- O quê? De certeza?
Ela abanou a cabeça dizendo que sim.
- Ele esteve a falar com o chefe local. Tem-nos cativos noutra aldeia, apenas a algumas milhas daqui. O chefe dessa aldeia é um dos mais fiéis seguidores dos druidas.
É o responsável pelo corpo de guardas deles. Recruta os rapazes mais prometedores das povoações em redor, depois treina-os
para serem fanaticamente leais aos seus senhores. Quando acaba, os jovens preferem morrer a desapontar o chefe. Há alguns dias atrás ele esteve na aldeia que Prasutago
acabou de visitar. Tinha vindo reclamar a sua quota de novos recrutas. Esteve a beber com os guerreiros locais, e foi nessa altura que deixou escapar que tinha a
seu cargo alguns reféns importantes.
Prasutago acenava afirmativamente com a cabeça, de olhos brilhando de excitação por prever alguma acção.
- É bom, romano! Sim?
Macro olhou fixamente o rosto radiante do guerreiro iceno, durante um momento, e todo o desconforto dos últimos dias foi varrido numa onda de alívio por terem alcançado
o primeiro objectivo da sua missão. O próximo passo seria bem mais arriscado. Mas, por agora, Macro estava contente, e retribuiu a expressão excitada de Prasutago
com um sorriso caloroso.
- É bom!

XXIV

Cato afastou as canas e avançou lenta e silenciosamente, tentando chegar ao montículo onde deixara Macro anteriormente. À sua volta, o ar frio e húmido era denso
devido ao cheiro da vegetação apodrecida. Os seus pés esborrachavam uma lama que lhe deixava as pernas negras, à medida que ia avançando o mais discretamente possível,
arrastando, atrás de si, o ramo cortado de um azevinho. O solo, finalmente, tornou-se firme e ele avançou agachado, escolhendo o trajecto pela margem acima, de olhos
e ouvidos atentos a qualquer sinal da presença do centurião.
- Pssst! Aqui.
Uma mão saiu de entre as canas, no cimo do montículo, e acenou. Cato avançou, tentando não agitar as canas, não fosse alguém na aldeia estar a olhar naquela direcção.
À sua frente estava a área que tinham desbastado em silêncio, antes da alvorada. Macro estava deitado sobre os juncos, espreitando por entre os restos secos e castanhos
da vegetação do Verão anterior. Cato largou a extremidade do ramo que arrastara e deitou-se no chão, ao seu lado. Do outro lado do montículo as canas estendiam-se
ao longo de um rio que corria lentamente, contornando uma aldeia durotrige e oferecendo-lhe, assim, uma defesa natural. No lado oposto da aldeia erguia-se um alto
baluarte, encimado por uma resistente paliçada atravessada por um portão estreito. A aldeia em si era a habitual triste cena que parecia ser o melhor que os mais
rústicos dos celtas conseguiam edificar. Uma confusão de cabanas circulares, feitas de caniçadas e argamassa, sem qualquer regra, encimadas por telhados de canas
cortadas da margem do rio. Da ligeira elevação do montículo, Cato e Macro tinham uma boa vista da aldeia.
A maior das cabanas ficava na margem mesmo em frente ao local ocupado pelos dois romanos, e possuía a sua própria paliçada. No interior desta alinhavam-se outras
cabanas mais pequenas. Num dos lados do
recinto erguiam-se vários grossos postes. Os dois romanos sabiam bem para que serviam - para a prática de espadas. Mesmo enquanto observavam, alguns homens com mantos
pretos saíram de uma das cabanas mais pequenas, tiraram os mantos, e desembainharam as suas longas espadas. Cada um deles escolheu um poste e começou a atacá-lo
com golpes giratórios bem treinados. Ouviam-se claramente os sons das batidas secas, do outro lado do rio. Cato desviou o olhar para uma estranha estrutura ligada
à cabana grande. Parecia ser uma cabana pequena de função indeterminada. Mas não tinha janelas, e a única abertura visível era uma porta pequena, de madeira, fechada
por uma trave maciça, e no exterior. Outra figura de manto preto guardava a entrada, de lança numa mão, e a outra repousando na orla de um escudo pousado no chão.
- Algum sinal dos reféns, senhor?
- Não. Mas se estiverem nalgum sítio desta aldeia, é naquela cabana que devemos apostar. Vi alguém levar um jarro e pão para lá não há muito tempo.
Macro desviou o olhar da aldeia e baixou-se de novo sobre o monte de canas cortadas, que rangeu.
- Tudo em ordem?
- Sim, senhor. Os cavalos estão a salvo naquele pequeno vale que Prasutago nos mostrou. Eu e Boudica combinámos um sinal para o caso de haver problemas. - Cato indicou
o ramo de azevinho.
- Se eles demorarem muito, ainda fica escuro antes de começarmos - disse Macro baixinho.
- Prasutago disse que me daria o tempo suficiente para voltar aqui, e que então avançariam.
- Quando os deixaste, estavam no vale?
- Sim, senhor.
- Estou a ver. - Macro franziu o sobrolho, elevando-se em seguida e pondo-se em posição de continuar a observar a aldeia. - Então acho que vamos ter de esperar um
bocado mais antes deles aparecerem.
Apesar dos meses de Inverno estarem quase no fim, estava ainda frio, e a constante chuva miudinha tinha-lhes ensopado a roupa. Pouco depois, Cato batia os dentes
e tremia. Contraiu os músculos para tentar lutar contra a sensação. Estes últimos dias tinham sido os piores da sua vida. Para lá do desconforto físico que tinham
sofrido, o medo constante da descoberta e o terror das consequências tinham feito de cada momento uma tortura para os nervos. Agora, deitado na margem húmida do
rio, as pernas cheias de porcaria malcheirosa, gelado até aos ossos e desejoso de uma refeição quente e decente, ele começou a sonhar maneiras de abandonar a legião
de forma honrosa. Não era a primeira vez que pensava em sair do exército. Nem de perto. Esta fantasia era-lhe familiar, e concentrava-se na busca de um meio através
do qual conseguisse acesso a uma pensão militar, sem que para tal tivesse de sofrer uma lesão incapacitante. Infelizmente, as mentes argutas dos escrivães do império
tinham elaborado e analisado cuidadosamente os regulamentos muito antes de Cato nascer, e não tinham deixado praticamente qualquer hipótese de fraude. Mas tinha
que existir uma falha algures, algum modo de bater o sistema.
Macro grunhiu de repente:
- Aí vêm eles. Devem ter estado a dar uma rapidinha.
- Perdão?
- Nada, miúdo. Ali estão eles, no caminho, em frente ao portão.
Cato olhou para lá da aldeia e viu duas pequenas formas cinzentas, montadas, a emergirem da floresta. À medida que eles trotavam corajosamente pelo caminho, em direcção
à aldeia, a sentinela no portão virou-se e chamou um pequeno grupo de homens amontoados em volta de uma fogueira. Responderam ao chamamento de imediato e subiram
os rústicos degraus no interior do baluarte. Prasutago e Boudica desapareceram da vista quando se aproximaram do portão. Vendo os aldeões na paliçada brandindo as
suas armas, Cato sentiu uma aflição momentânea. Mas, momentos depois, os portões abriram-se e os dois icenos entraram.
Foram cercados de imediato, e agarradas as rédeas das suas montadas. Até do outro lado do rio Macro e Cato conseguiram ouvir Prasutago gritar indignado e lançar
o seu desafio, já representando o papel de lutador itinerante. Um dos aldeões saiu dali a correr, desaparecendo entre as cabanas, antes de surgir de novo quando
irrompeu no cercado que rodeava a cabana grande. Entrou rapidamente, e logo reapareceu na companhia de uma figura alta e hirta, cujo manto preto estava preso no
ombro por um grande broche de ouro. Seguiu a sentinela de volta ao portão principal, sem pressa. Entretanto Prasutago continuava a lançar o desafio aos aldeões com
a sua voz profunda e ressoante, e pela altura em que o chefe da aldeia apareceu já uma enorme multidão se tinha reunido ao pé do baluarte. O chefe furou por entre
o amontoado até aos visitantes, que ainda se encontravam montados. Prasutago mostrou a quantidade certa de arrogância ao cruzar os braços e manter-se quieto por
um momento. Depois, com indiferença, lá passou a perna por cima do cavalo e desmontou. Mesmo assim era mais alto que o chefe, e elevou o queixo para enfatizar o
seu olhar de desprezo.
Prasutago lançou de novo o desafio. Desta vez desapertou a fivela da capa e atirou-a a Boudica, que também tinha desmontado e ficado
ao pé dos cavalos, tendo-se apoderado das rédeas que os aldeões tinham agarrado. O guerreiro iceno despiu a túnica e ficou em tronco nu, de braços levantados e punhos
cerrados, exibindo os músculos para deleite da multidão.
- Exibicionista de merda! - resmungou Macro. - Para ali a pavonear-se como se fosse um gladiador pago para dar prazer a alguma rica puta velha! Mais uma pose daquelas
e vomito.
- Calma, senhor. Faz tudo parte do plano. Olhe para ali, para o
recinto.
Os homens que treinavam com os postes tinham parado, e apressavam-se a embainhar as espadas e a vestirem os mantos pretos. Quando saíam do cercado, o guarda que
estava à porta da suposta prisão deu alguns passos na direcção deles e chamou-os. Recebeu um grito severo como resposta e, com uma expressão carrancuda, voltou ao
seu posto.
- É a nossa oportunidade! - Macro recolheu-se atrás do montículo e começou a despir-se. Olhou para Cato. - Vamos lá, rapaz! Toca a despachar.
Com um suspiro de resignação, Cato arrastou-se para trás, sobre os juncos, e começou a despir-se. Tirou a capa, a couraça e a cota de malha, e, por último, a túnica.
Quando tirou a última peça de roupa molhada de cima do corpo o ar frio fez-lhe pele de galinha e ele arrepiou-se terrivelmente. Macro olhou com reprovação para a
sua fraca constituição.
- É melhor que te alimentes como deve ser e que faças exercício quando voltarmos à legião. Estás uma lástima.
-obrigado, senhor.
- Vamos lá a tirar as botas. A única coisa que precisas é da tua espada, e da tua bóia.
As capacidades natatórias de Cato eram, no máximo, rudimentares, como resultado da falta de prática e de um enraizado medo e aversão à água. Macro passou-lhe um
odre inflado.
- Encher isso custou-me o último trago da boa pomada.
- Ah, não o atirou fora?
- Claro que não. Era um mássico. Não se pode deitar tal coisa fora, por isso acabei com ele. Ajuda a afastar o frio. Bom, aqui o tens. Agora vê lá se não te afogas.
- Sim, senhor.
Cato apertou bem o cinto da espada à cintura e seguiu Macro até ao outro lado do montículo, com cuidado, para que não agitasse as canas ao avançar. Olhou uma última
vez para o portão da aldeia, onde Prasutago e um dos aldeões já se preparavam para lutar. Precipitaram-se um sobre o
outro, e a assistência soltou um grito de excitação.
- Mexe-te, porra! - sibilou Macro a Cato.
A água parada e estagnada entre as canas estava muito fria, e Cato arrepiou-se quando se agachou junto a Macro. A água gelada mordia-lhe a pele, quase como se o
queimasse. Os dois romanos arrastaram-se por entre as canas até à orla do rio. Quando a outra margem surgiu à vista, meteram-se dentro de água, deixando só as cabeças
de fora. Sob a superfície, os braços de Cato seguravam firmemente o odre inflado.
- Bem, aqui vamos nós - murmurou Macro. - Faz o menos barulho possível. Nada de chapinhar, ou estamos liquidados.
O centurião lançou-se na corrente fraca e foi calmamente nadando pela água. Inspirando fundo, Cato afastou-se da margem e seguiu Macro, mexendo as pernas para ir
atrás do centurião.
O rio tinha talvez cinquenta passos de largura naquele local, mas a Cato a distância parecia insuperável. Tinha a certeza que o odre se havia de romper e que ele
se havia de afogar, ou que o frio insuportável o mataria. O perigo de ser visto pelo inimigo e ser morto por uma lança era a menor das suas preocupações. Pelo menos
assim acabava-se a terrível agonia de estar metido até ao pescoço naquela corrente gelada.
Nadaram em direcção às traseiras da cabana maior. E a lentidão com que progrediam, de dar em dóido, era um mal necessário para que não fossem localizados. Quando
saíram da água, Cato já tinha deixado de sentir os dedos dos pés e das mãos. Também Macro sofria, e tremia descontroladamente quando ajudou Cato a subir para a margem
do rio, e depois lhe esfregou os membros vigorosamente, tentando dar-lhe alguma sensibilidade. Depois subiram pela margem, e prepararam-se para contornar a cabana
e investigarem a pequena edificação ao lado. Macro acenou com a cabeça a Cato, para que ele se preparasse, mas Cato não conseguia parar de tremer, e mal sentia as
mãos; empunhar a espada com firmeza foi um tremendo esforço.
- Estás pronto?
Cato disse que sim com a cabeça.
- Vamos.
O ânimo e os gritos da luta atingiram um crescendo abrupto, dando-se depois uma profunda lamentação colectiva. Prasutago derrubara o seu primeiro adversário. No
repentino sossego, Macro levantou a mão, para que Cato parasse. O guerreiro iceno lançou um novo desafio. Alguém o aceitou, e os gritos de novo se ouviram.
- Vamos. - Macro avançou lenta e silenciosamente para a frente, agachado, servindo-se da mão livre para se equilibrar. Subiram uma pequena elevação de terra no cimo
da margem, e depois encostaram-se
à parede de trás da cabana principal. Com os pulmões ainda doridos do esforço de atravessar o rio, e tremendo de frio, Macro progrediu ao longo da parede. Atrás
dele, Cato esforçava-se por ouvir se algum aldeão se aproximava. Macro avistou a esquina da cabana mais pequena e parou, colando-se à parede. Acima do telhado conseguia
ver a ponta da lança do guarda e, por baixo, o topo do seu elmo de bronze. Macro baixou-se, quase sem respirar, e avançou devagar até ao ângulo que a cabana fazia
no sítio onde se juntava com a maior. Encostado à parede, fez um gesto a Cato, pára que este avançasse. Escutaram durante um momento, mas não veio nenhum barulho
da parte da frente da cabana. Macro fez sinal a Cato para que ele não se mexesse, e avançou muito devagar em direcção à esquina.
De espada pronta, espreitou com cuidado e viu o guarda a dois metros de distância, no exterior da pequena porta. A despeito da espada, do elmo e do longo manto preto,
não passava de um rapaz. Macro deixou de espreitar e procurou algo no solo sob os seus pés. Apanhou um duro torrão de terra e preparou-se para o atirar.
De repente o guarda começou a falar. Macro congelou. Alguém respondeu ao guarda - uma voz baixa, ali perto; de repente Cato apercebeu-se de que vinha do interior
da cabana. Apontou o dedo para a parede atrás dele, e Macro assentiu com a cabeça. Alguém devia estar preso juntamente com a família do general. Antes do guarda
poder responder, Macro atirou o torrão, em arco, por cima do telhado da cabana. No momento em que aterrou com um baque surdo, ele levantou-se e virou a esquina.
Tal como esperava, o guarda virara-se para investigar o som, e antes que pudesse reagir ao barulho dos passos, Macro tapou-lhe a boca com a mão. Puxou a cabeça do
guarda para trás e enfiou-lhe a espada pelo manto preto, com a ponta dirigida para cima, por baixo das costelas, até ao coração. O guarda ainda se sacudiu e agitou
violentamente durante um momento, impotente devido ao forte amplexo de Macro. Os seus movimentos depressa se tornaram fracos, e depois pararam. Macro segurou-o um
pouco mais, só para ter a certeza, e depois levou o corpo para trás da esquina e deixou-o encostado à parede da cabana.
A voz no interior da cabana chamou.
- É melhor pormos termo àquilo - sussurrou Macro. - Antes que alguém oiça.
Seguindo à frente, Macro apressou-se até à trave da porta, fê-la deslizar e atirou-a para o chão. Com um forte impulso, empurrou a robusta porta de madeira para
dentro. A luz vinda do exterior foi cair no rosto pestanejante de outro homem de manto preto. Ele tinha-se erguido sobre um braço, e tentava agora alcançar a espada
que jazia ao seu lado. Macro atirou-se
para a frente, bloqueando o bretão com o seu corpo-, e deu-lhe com o punho da espada na parte lateral da cabeça. Soltando um gemido, o bretão imobilizou-se, inconsciente.
- Senhor! - avisou Cato, mas antes de Macro poder responder ao aviso uma figura surgiu do escuro no fundo da cabana, de lança pronta para atacar o flanco de Macro.
Ouviu-se um estrondo quando Cato deu uma espadeirada na haste da lança, e a lâmina em forma de folha se enfiou na terra batida, a alguns centímetros do peito palpitante
de Macro. O impulso do bretão levou-o a continuar para a frente, e Cato pôs a espada a jeito para o homem se precipitar sobre ela, com a garganta em direcção à ponta.
A lâmina atingiu-lhe o cérebro e o bretão morreu instantaneamente.
- Merda! Foi por pouco! - Macro pestanejou, olhando para a lança espetada no chão, junto ao seu peito. - Obrigado, rapaz!
Cato acenou enquanto retirava a espada do crânio do homem. Com um leve estalo, a espada libertou-se, manchada de sangue. Apesar de todas as mortes que já vira no
seu curto período de serviço nas águias, Cato estremeceu. Já tinha morto homens anteriormente, em batalha, mas aí era instintivo e não havia tempo para reflectir
sobre o assunto. Ao contrário daquele caso.
- Está aqui alguém? - chamou Macro, esforçando-se por ver na escuridão da cabana. Não houve resposta. Uma extremidade da divisão estava cheia de toros. Na outra,
umas formas indistintas jaziam amontoadas no chão, em volta do jarro e do que restava do pão que Macro vira entrar na cabana há pouco tempo atrás.
- Minha senhora? - chamou Cato. - Senhora Pompónia?
Não houve movimento, nem barulho, nem sinais de vida na cabana. Cato sopesou a espada e aproximou-se lentamente, com uma sensação de desespero a crescer-lhe nas
entranhas. Tinham chegado tarde de mais. Com a ponta da espada levantou os farrapos e desviou-os para o lado. Por baixo havia uma pilha de mantos de lã e de peles
de animais. Material para leitos; nada de corpos. Cato franziu as sobrancelhas por um momento, depois abanou a cabeça.
- Uma armadilha - disse ele.
- Hã?
- A família do general nunca esteve aqui, senhor. Os druidas devem ter adivinhado que tentaríamos resgatá-los, e quiseram afastar-nos do sítio onde realmente têm
os prisioneiros. Por isso espalharam o rumor de que os prisioneiros estavam cativos nesta aldeia. Prasutago recebeu essa informação, e aqui estamos nós. Armaram-nos
uma cilada.
- E nós caímos - disse Macro. O alívio por não ter encontrado
corpos transformava-se agora, rapidamente, num temor gélido. - Temos de sair daqui.
- E os outros?
- Podemos fazer-lhes sinal quando regressarmos ao montículo.
- E se os durotriges descobrirem os corpos dos seus homens antes de conseguirmos fazer sinal?
- Paciência.
Macro empurrou Cato para fora da cabana, fechou a porta e apressou-se a recolocar a trave. Mantendo-se agachados, correram pelas traseiras da cabana grande e deslizaram
pela margem abaixo, até ao rio. Cato recuperou o seu odre nas canas junto à margem e avançou pelo rio, batendo os dentes à medida que a água gelada lhe ia subindo
até ao peito. Depois bateu os pés, desesperado, tentando acompanhar o centurião. A travessia parecia estar a levar mais tempo. Cato tentou aperceber-se dos primeiros
gritos que indicariam que o inimigo tinha descoberto os corpos mas, felizmente, o arraial ao pé do portão continuava em bom ritmo e, por fim, tolhido de frio, seguiu
Macro para o meio das canas na outra margem.
Momentos mais tarde estavam sentados ao pé dos seus equipamentos e roupa, cada um com a respectiva capa bem enrolada no corpo tiritante. Macro virou-se na direcção
da aldeia, onde Prasutago e o seu mais recente adversário estavam enganchados numa pega vacilante. Num dos lados, a meia altura no baluarte, estava Boudica.
- Lá está ela. Faz o sinal - ordenou Macro. - Rápido.
Cato pegou no ramo de azevinho e segurou-o verticalmente sobre o solo mole, um pouco abaixo do cimo do montículo.
- Será que ela viu, senhor?
- Não sei... Não. Oh, merda.
- Que se passa, senhor?
- Está alguém a voltar ao cercado.
Enquanto Macro observava, a figura envolta num manto preto passou pela cabana pequena sem olhar e continuou, passando junto aos postes de treino de espadas, antes
de entrar numa das outras cabanas pequenas e desaparecer de vista. Macro respirou fundo de alívio, depois voltou a olhar para o portão da aldeia. Boudica permanecia
quieta, como se estivesse a ver a luta. Mesmo quando Prasutago fez o seu adversário estatelar-se no chão, Boudica não reagiu. Depois, de repente, ela levou a mão
ao capuz e pô-lo.
- Ela já viu! Baixa já isso!
Cato baixou o ramo rapidamente e arrastou-se para o pé do centurião. Prasutago mantinha-se erecto, perto do portão, a sua extraordinária
arrogância evidente mesmo àquela distância. Os aldeões clamavam por mais um desafiante. Quando Boudica se aproximou de Prasutago para lhe entregar a túnica e a
capa, o barulho da multidão ganhou um tom de ira. O guerreiro chefe, penas negras adornando-lhe o elmo, confrontou Prasutago. O iceno abanou negativamente a cabeça,
e esticou a mão a pedir o dinheiro que lhe deviam por ter derrotado os oponentes. O chefe gritou, furioso, e despiu a sua capa, desafiando-o ele próprio.
- Nem te atrevas! - sibilou Macro.
- Senhor! - Cato apontava para o recinto. O homem que tinham visto anteriormente saíra de novo da cabana e dirigia-se para o portão do cercado com uma bolsa a baloiçar
na mão. Mesmo antes de passar pelo estreito portão, parou e olhou para a cabana pequena. Gritou qualquer coisa, esperou, e voltou a gritar. Não recebendo resposta,
dirigiu-se para a cabana, atando a bolsa ao cinto.
Macro voltou a olhar para o portão da aldeia, onde Prasutago ainda se encontrava, a cabeça erguida de forma altiva, aparentemente considerando o desafio do chefe.
Macro esmurrou o solo com o punho.
- Sai daí, estúpido!
No recinto, o guerreiro durotrige tinha já chegado perto da cabana pequena. Voltou a chamar, desta vez furioso, de mãos nas ancas e manto puxado atrás dos cotovelos.
Depois olhou, por acaso, para o chão. Imediatamente se agachou, examinando com os dedos qualquer coisa que estava junto aos seus pés. Olhou para cima, e a mão dirigiu-se
à sua espada. Pondo-se de pé, o durotrige contornou a cabana cautelosamente. Parou quando viu o corpo encostado à parede.
- Agora é que vão ser elas - murmurou Cato.
Junto ao portão, Prasutago fez menção de desistir e vestiu, por fim, a túnica e a capa. A multidão gritou com desprezo. O chefe virou-se para os seus e pôs os braços
no ar, em triunfo, por o adversário ter recusado enfrentá-lo. No cercado, o durotrige retirou a trave da porta e entrou na arrecadação. Um momento depois, irrompeu
do interior e correu para o portão, gritando desvairadamente.
- Prasutago, meu sacana, sai daí! - rosnou Macro.
O iceno saltou para o dorso do cavalo que Boudica agarrava pelas rédeas. Depois, por entre o escárnio dos aldeões, os dois cavalgaram para fora da aldeia, tentando
não se mostrar demasiado apressados. Tinham já andado uns cinquenta passos em direcção à floresta quando o guerreiro durotrige chegou à multidão e furou até chegar
ao chefe. Momentos depois, este estava a bradar ordens. A multidão calou-se. Alguns homens apressaram-se até ao recinto e o chefe seguiu-os, mas depois deteve-se,
virou-se e apontou para o portão, em direcção a Prasutago e Boudica. O
que quer que tivesse gritado, os icenos conseguiram ouvi-lo e imediatamente incitaram os cavalos e galoparam em direcção à floresta, para salvar 'as suas vidas.

XXV

- Merda, alguém os pôs de sobreaviso! - soltou Macro. - Quer dizer, isto não é o tipo de cilada que se arme só para o caso de ser precisa. Se foi ele, hei-de lhe
arrancar os tomates e comê-los ao pequeno-almoço. - E apontou o dedo a Prasutago, que estava sentado numa árvore tombada, mastigando uma tira de carne seca.
Macro olhou ameaçadoramente para Boudica.
- Diz-lhe.
Ela rodou os olhos para cima, cansada e frustrada.
- Diz-lhe tu. Queres mesmo lutar? Com ele?
- Lutar? - Prasutago parou de mastigar e a sua mão direita deslizou, discretamente, até ao cinto da espada. - Tu lutar comigo, romano?
- Estás a começar a conseguir meter nesse cérebro pequenino a maior língua do mundo, não estás, ó miolos de serradura?
Prasutago encolheu os ombros.
- Tu querer lutar?
Macro pensou por um momento, e depois abanou a cabeça.
- Pode esperar.
- Isso não tem qualquer sentido - disse Cato. - Prasutago encontra-se em tanto perigo como nós. Se alguém avisou os durotriges da nossa chegada, tem de ter sido
outra pessoa. Aquele lavrador, por exemplo. Velocato.
- É possível - admitiu Macro. - Tinha um ar esquisito, esse tipo. Então e agora? O inimigo já sabe o que andamos a tramar. Estarão alerta onde quer que nós vamos.
Aqui o miolos de serradura não poderá ir a mais lado nenhum falar com as gentes locais, para ver se obtém informações sobre a família do general. Diria que, agora,
já não temos nenhuma hipótese de os encontrar. Resgatá-los está fora de questão.
Cato teve de concordar. O lado racional da sua mente sabia que eles deveriam abandonar a missão e retornar à Segunda Legião. Cato acreditava
que Vespasiano possuía informações suficientes para ver que eles tinham feito tudo o que podiam antes de regressarem. Seria imprudente continuar, se os durotriges
andavam à caça deles. Como as coisas estavam, seria já suficientemente perigoso tentar chegar a território amigo. Mas, ao mesmo tempo que a consciência do perigo
se entranhava na sua consciência, Cato não conseguia deixar de pensar no perigo bem maior em que a família do general se encontrava. Castigado com uma imaginação
vívida, deu por si a imaginar a esposa e os filhos de Pláucio vivendo em terror, dia após dia, perante a perspectiva de serem colocados dentro de uma daquelas efígies
de verga que os druidas gostavam de construir. E aí seriam queimados vivos, e a imagem dos seus rostos, a gritarem, atingiu Cato de uma forma tão realista que o
fez estremecer. O filho do general, que ele nunca conhecera, assumia os traços do rapazito louro que vira no poço...
Não. Não podia deixar que isso acontecesse. Olhar para trás e viver sabendo que não fizera nada para evitar a morte da criança, seria insuportável. Esta era a irredutível
verdade da situação. Não importava o quanto se penalizasse por ser presa das emoções, por ser demasiado sentimental para agir de acordo com a razão objectiva, não
podia desviar-se do curso de acção ditado por um perverso instinto, tão profundo que não era possível analisá-lo.
Cato virou-se para Macro.
- Está a dizer que devíamos voltar para trás, senhor?
- Faz sentido. Que é que achas, Boudica? Tu e ele?
Os icenos trocaram algumas palavras. Prasutago não parecia muito interessado na proposta do centurião, e apenas Boudica parecia ter uma ideia; ao que parecia incitava-o
à acção. Por fim, desistiu, e olhou para o seu regaço.
- Então? Qual é a opinião do nosso druida residente?
- Tanto lhe faz. Pertencem à vossa gente, as pessoas que supostamente temos de salvar. Pouco lhe importa se vivem ou morrem. Se os quiserem abandonar para serem
queimados, é com vocês. Diz que será um interessante teste de carácter.
- Teste de carácter, hã? - Macro olhava friamente para o guerreiro iceno. - Ao contrário de vocês, nós, romanos, sabemos como tomar decisões difíceis. Não nos metemos
a atacar à bruta e a morrer estupidamente. Vejam só até onde vos levaram os vossos heroísmos cretinos. Fizemos o que pudemos aqui. Agora vamos descansar, e começaremos
a marchar de volta à legião quando a noite cair.
Macro olhou para Cato. O optio devolveu-lhe o olhar, mas sem expressão. O que perturbou Macro.
- Que foi, rapaz?
- Senhor? - Cato sobressaltou-se, como que saído de alguma espécie de transe, e Macro lembrou-se que tinham dormido pouco nos últimos dias. Devia ser disso. - Estava
só a pensar...
Macro sentiu um grande peso deprimi-lo; quando Cato começava a partilhar o que lhe ia na mente, pendia sempre para o complicado, o que era muito cansativo para aqueles
que tentavam acompanhar o que ele dizia. Por que raio se recusava Cato a ver o mundo da mesma forma simples que os outros homens? Esta era uma das grandes frustrações
que Macro tinha de sofrer na sua relação com o optio.
- Em que é que pensavas, exactamente?
- Nisso tem razão, senhor. O melhor a fazer é sair daqui e afastarmo-nos o máximo possível desses druidas. Não faria sentido arriscar desnecessariamente.
- Pois não. Não faria.
- O general decerto compreenderá a sua linha de raciocínio, senhor. Certificar-se-á de que ninguém o acusará de falta de... como direi... de falta de fibra moral.
- Falta de fibra moral? - Macro não gostou do som da frase. Fazia-o passar por um civil ocioso. Macro era o tipo de homem que ficava ressentido por o descreverem
como falho do que quer que fosse, e lançou, por isso, um olhar acusatório ao seu optio. - Não me venhas agora com as tuas baboseiras empoladas, rapaz. Diz apenas
o que pensas, de forma clara. Estás a dizer que poderemos vir a ser acusados de cobardia quando voltarmos à legião? É isso?
- Poderemos ser. O que seria um erro compreensível, claro. Algumas pessoas diriam que mal fizemos uma tentativa e achámos que chegava. Naturalmente, o general compreenderá
as implicações da perda do disfarce de Prasutago. Mesmo que isso tivesse significado a morte da sua família, ele tentaria com certeza convencer os outros de que
não tínhamos tido outra alternativa. Com o tempo, todos perceberiam e entenderiam a nossa visão da coisa.
- Hmmm. - Macro abanava a cabeça lentamente, pressionando os grossos nós dos dedos contra a testa, como se isso o ajudasse a concentrar a mente cansada. Precisava
de tempo para pensar naquilo.
- Iremos o mais leves possível, não é, senhor? - continuou Cato, com ânimo. - Acho que será melhor descartarmo-nos de tudo que não seja mesmo necessário. Que nos
possa empatar enquanto corremos de volta à legião.
- Ninguém vai correr de volta a lado nenhum!
- Desculpe, senhor. Não foi isso que eu quis dizer. Desejava apenas que nos despachássemos.
- Ah, sim? Deixa-te mas é estar quieto. E deixa a carga em paz.
- Senhor?
- Eu disse para não lhe mexeres. Não vamos voltar para trás. Pelo menos, ainda não. Não até termos procurado um pouco mais.
- Mas acabou de dizer...
- Cala-te! Já me decidi. Vamos continuar a busca. Mais alguém tem algo a objectar? - Macro virou-se para os icenos, com o queixo espetado, desafiando-os a enfrentá-lo.
Boudica esforçou-se por não se rir. Prasutago, como de costume, compreendera outra coisa e acenou com a cabeça, vigorosamente.
- Nós lutar agora, romano?
- Não. Agora não! - soltou Macro, exasperado. - Quando tivermos um pouco mais de tempo, e só se te portares bem até lá. Está bem? É melhor certificares-te de que
ele percebeu, Boudica.
Prasutago parecia desapontado, mas o seu natural bom humor superou qualquer tendência para amuar. Chegou-se a Macro e deu, com a enorme mão, uma calorosa palmada
no ombro do centurião.
- Ah! Tu bom homem, romano. Nós amigos, talvez.
- Não contes com isso. - Macro sorriu-lhe tão docemente quanto a sua cara de duro veterano permitia. - Entretanto, temos de decidir qual o próximo passo a dar.
Cato tossiu.
- Senhor, ocorreu-me agora que talvez os druidas tenham um lugar secreto, sagrado, do qual só eles saibam.
- Sim. E então?
- Então, podíamos questionar Prasutago quanto a esse ponto. Afinal de contas, ele já foi um iniciado. Poderia perguntar-lhe se os druidas possuem um lugar desses,
um lugar onde a família do general possa estar cativa em segurança.
- É verdade. - Macro contemplou o guerreiro iceno, pensativamente. - Parece-me que aqui o nosso homem nos tem escondido alguma coisa. Pergunta-lhe, Boudica.
Ela voltou-se para o parente e traduziu. A expressão do guerreiro mudou completamente. E abanou a cabeça.
- Na.
- Não parece que lhe tenha agradado muito a ideia. Que se passa?
- Ele diz que não existe nenhum lugar desses.
- Está a mentir. E mente mal. É bom que lho digas. E diz-lhe que quero a verdade, imediatamente.
Prasutago abanou a cabeça outra vez, e começou a afastar-se de
Macro, até que a mão do centurião agarrou o pulso do guerreiro iceno com um aperto de ferro.
- Já chega de merdas! Quero a verdade.
Durante um bocado os dois homens olharam-se fixamente, de rostos tensos e inflexíveis. Depois Prasutago abanou a cabeça, e começou a falar calmamente, em tom resignado
e temeroso.
- Há um bosque sagrado - traduziu Boudica. - Treinaram-no lá, durante uns tempos... Foi onde falhou na sua iniciação do segundo anel. Os druidas chamam-lhe o bosque
do crescente sagrado. É o lugar onde um dia Cruach surgirá e reclamará o mundo para si. E pode ser em qualquer dia. Até que esse momento chegue, o seu espírito pairará
como uma sombra negra sobre cada pedra, cada folha e cada erva do bosque. Ouve-se o frio estertor da sua respiração através dos troncos das árvores. Prasutago avisa-os
que Cruach sentirá imediatamente a vossa presença, e não terá misericórdia para com os inimigos dos seus servos. Nenhuma misericórdia.
- Já vi o suficiente deste mundo para saber que a única coisa que há a temer são os outros homens - disse Macro. - Se o teu primo está com medo, diz-lhe que lhe
dou a mão.
Boudica ignorou o último comentário e continuou o aviso de Prasutago.
- Ele diz que o bosque fica numa ilha no meio de um pântano enorme, a dois dias de distância. Há um passadiço que leva à entrada principal, que está sempre fortemente
guardada. Nunca conseguiríamos entrar por aí.
- Então há uma outra entrada - adivinhou Cato, sagazmente.
- Uma entrada que Prasutago descobriu?
- Sim. - Boudica olhou rapidamente para o parente, e ele acenou-lhe que continuasse. - Ele costumava usá-la para ir visitar a filha do homem que chefiava os guardas
dos druidas. Ela engravidou, e logo que os druidas descobriram que ele tinha quebrado o voto de celibato, foi expulso da ordem.
Macro desatou às gargalhadas, fazendo os outros olhar ansiosamente em redor, mas nada se mexeu entre as árvores circundantes.
- Ai, não posso! - Macro limpou os olhos e sorriu a Prasutago. - Não consegues mesmo resistir a um raio de um desafio, pois não? Expulso devido a um rabo de saias...
Essa é muito boa! Sabes, afinal acho que ainda nos vamos dar bem.
- Quanto à tal entrada. - Cato aproximou-se de Boudica. - Alguém mais sabe da sua existência?
- Prasutago acha que não. É uma série de baixios ao longo da água. E acaba num matagal na orla da ilha, perto do bosque em si. Prasutago diz
que marcou o caminho com uma série de estacas, bem distanciadas umas das outras.
- E ele consegue encontrá-lo outra vez? Depois destes anos todos?
- Acha que sim.
- Não tenho grande esperança - disse Macro.
- Talvez não consiga - disse Cato. - Mas é a única alternativa que nos resta, senhor. Ou a aceitamos, ou seguimos para casa de mãos a abanar. E em ambas as hipóteses
acartaremos com as consequências.
Macro olhou fixamente para Cato durante algum tempo, antes de lhe responder.
- Tu tens mesmo jeito para animar as pessoas, não tens?

XXVI

- Os vossos amigos druidas encontraram um bom sítio para se esconderem do mundo - murmurou Macro, à medida que se esforçava por ver por onde ia, através da escuridão.
Ao seu lado, Prasutago grunhiu, dizendo alguma coisa, e lançou um olhar a Boudica, que lhe sussurrou uma tradução rápida das palavras do centurião.
- Prasutago concordou com vigor. - Lugar seguro para druidas. Lugar mau para romanos.
- Acredito. Mas vamos para lá na mesma. Que achas, rapaz?
Cato contemplava o cenário através do emaranhado dos ramos.
Tinham-se detido numa pequena elevação junto a um lago de águas salobras, através das quais avistavam uma ilha de dimensões apreciáveis. Parte dela parecia natural,
mas havia indícios de que o resto tinha sido construído por mãos humanas, mantendo-se no lugar graças a um entrançado de troncos e estacas enterradas no fundo macio
do lago. Um denso amontoado de freixos e salgueiros crescia na ilha, junto à margem. Por baixo dos ramos, via-se uma paliçada alta, e nada mais se conseguia avistar
para além dela. À direita do local em que se encontravam existia um longo e estreito passadiço que se estendia através do lago, em direcção a um portão alto e fortificado,
a entrada para a ilha e para o mais sagrado e secreto dos bosques dos druidas.
- Isto está bem pensado, senhor. A passagem é suficientemente longa para os manter fora do alcance dos arcos e das fundas, e é tão estreita que limita qualquer ataque
a uma frente de dois ou três homens. Mesmo contra um grande exército, os druidas poderiam, se tivessem os homens certos, aguentar-se durante vários dias, talvez
até um mês, ou assim.
- Boa avaliação - aprovou Macro, com um aceno da cabeça. - Tens aprendido muito neste último ano. Que recomendas, não tendo nós um exército para atacar?
- A entrada principal está definitivamente fora de questão, agora
que eles foram alertados para a presença de Prasutago. Parece que não temos escolha. Teremos de tentar a entrada de que ele falou, senhor.
Macro olhou para a água sombria que os separava da ilha dos druidas. Não havia uma margem firme nas proximidades, apenas emaranhados de canas e árvores rasteiras
que se erguiam acima da lama escura e turfosa. Se fossem apanhados a chapinhar por ali, não teriam escapatória. Considerou a confiança que o guerreiro iceno mostrava
em encontrar o caminho, mesmo na escuridão. Prasutago tinha jurado pelos seus mais sagrados deuses que os conduziria até à ilha em segurança. Mas teriam de confiar
nele, e segui-lo com precisão.
- Iremos assim que anoiteça - decidiu Macro. - Nós os três. A mulher fica.
- O quê? - Boudica virou-se para ele, fula.
- Calma! - Macro acenou na direcção da ilha. - Se encontrarmos a família do general mas não conseguirmos regressar, alguém terá de cavalgar até à legião e dizer-lhes.
- E como é que eu vou saber isso?
Macro sorriu.
- Ninguém chega a centurião se não for capaz de se fazer ouvir à distância.
- Tem toda a razão - murmurou Cato.
- Mas porquê eu? Por que não fica antes o Cato? Precisarás de mim para traduzir.
- Não serão necessárias grandes conversas. Além disso, eu e o Prasutago começamos a entender-nos. Ele já consegue dizer algumas palavras. Numa língua de jeito, quero
eu dizer. Não é verdade?
Prasutago disse que sim com a cabeça cabeluda.
- Portanto, levanta bem essas orelhas. Se eu gritar por ti, ou se algum de nós o fizer, é o sinal. Tê-los-emos encontrado. Não esperes mais tempo. Voltas para os
cavalos, montas um, e cavalgas como o vento. Informa Vespasiano de tudo.
- Então e vocês? - perguntou Boudica.
- Se ouvires algum de nós gritar, é porque, provavelmente, essas serão as nossas últimas palavras. - Macro levantou a mão e agarrou-lhe gentilmente o ombro. - Percebeste
tudo?
- Sim.
- Muito bem, então; este é um lugar tão bom como qualquer outro para se esperar. Ficas aqui. Assim que escurecer, despir-nos-emos até ficarmos só com as túnicas
e as espadas e seguiremos Prasutago até à ilha.
- Para variar - disse Macro calmamente - estamos metidos em água gelada até aos tomates.
O cheiro a podridão que saía das águas agitadas pelos seus passos era tão pungente que Cato pensou que ainda vomitava. Era pior do que qualquer outra coisa que tivesse
cheirado antes. Pior até que a fábrica de curtumes que uma vez visitara com o seu pai, fora dos muros de Roma. Os robustos curtidores, há muito imunes ao fedor,
tinham-se desmanchado a rir ao verem um miúdo, no asseado libré do palácio imperial, a vomitar as tripas para dentro de um balde com vísceras de carneiro.
Ali, no mangue, o hediondo cheiro da vegetação apodrecida combinava-se com o odor a desperdícios humanos e o fedor adocicado da carne apodrecida. Cato tapou o nariz
com a mão e engoliu a bílis que lhe subia à garganta. Pelo menos a escuridão poupava-o à visão dos detritos que flutuavam junto dos seus joelhos. À sua frente, para
lá do largo vulto negro de Macro, mal conseguia ver a alta figura de Prasutago conduzindo-os através dos juncos. As canas faziam barulho à medida que o bretão avançava,
lentamente, de estaca em estaca. Muitas delas ainda se encontravam no lugar, e Prasutago perdeu-se apenas uma vez, caindo, com um grito agudo, para uma zona mais
funda. Imobilizaram-se os três, no meio da agitação das águas, de ouvidos atentos a algum sinal de alarme vindo da negra massa da ilha dos druidas. Quando a superfície
da água se aquietou de novo, Prasutago regressou cautelosamente a solo mais firme, e lançou um sorriso frouxo ao centurião.
- Muito tempo eu não vir aqui - sussurrou.
- Tudo bem - disse Macro calmamente. - Agora, cala-me essa boca e concentra-te no trabalho.
- Hum?
- Mexe-te, foda-se.
Saíram por fim de entre os juncos, e Prasutago parou. A ilha parecia ainda distante, mas Cato reparou que o ponto em que se encontravam era aquele em que os juncos
mais se aproximavam dela, e compreendeu então por que escolhera Prasutago este trajecto para as suas escapadelas nocturnas. Não havia mais estacas na água para se
guiarem. Prasutago mudava de posição e olhava fixamente para a ilha. Vendo para onde ele estava a olhar, Cato distinguiu dois troncos de pinheiros mortos que se
destacavam entre as árvores da ilha. Estavam tão perto um do outro que, de determinados ângulos, pareciam um só tronco, e Cato percebeu que era graças a esse alinhamento
que Prasutago se guiava através da água até à ilha. O iceno seguiu, devagar, para a esquerda, e depois fez um gesto aos outros para que o seguissem.
Caminhando lentamente, com a água a agitar-se, gentilmente, em torno dos seus joelhos, o pequeno grupo seguiu em direcção à agourenta sombra negra da ilha dos druidas.
O cheiro fétido começava a diminuir à medida que eles avançavam e se afastavam dos juncos. Cato permitiu-se respirar fundo algumas vezes, enquanto seguia cuidadosamente
em fila, atrás dos outros. Sob os pés, o solo parecia estranhamente macio e cedia, apenas com a ocasional firmeza de algum ramo de árvore. Por um momento questionou-se
como conseguira Prasutago construir aquela passadeira subaquática. Depois decidiu que devia apenas ser a emaranhada acumulação de matéria morta, que o bretão devia
ter encontrado por acaso, e da qual tirara bom partido. Cato sorriu para si próprio. Provavelmente, bom partido. Mas tinha provocado a sua expulsão da ordem da Lua
Negra.
Ter pensado nos druidas fez-lhe a mente voltar logo ao presente. O negro contorno da ilha surgia cada vez maior contra o cinzento escuro do céu nocturno, e dava
a sensação de que a ilha flutuava não sobre a água, mas sobre a bruma etérea que se levantava do lago. Parecia, sem dúvida, assaz sinistro, pensou Cato. O temor
na expressão de Prasutago sempre que mencionava o local, nos últimos dois dias, sugeria que algo de ainda pior estava à espera deles. Mas o que é que neste mundo
poderia ser assim tão terrível que assustasse o enorme guerreiro? A imaginação de Cato pôs-se a funcionar, em busca de uma resposta, e sentiu um arrepiante dedo
de terror a subir-lhe pela espinha. Amaldiçoou-se pelo momento de fraqueza e superstição, mas enquanto caminhava suavemente nas águas escuras, os seus sentidos,
alerta, continuaram a exagerar cada som e sombra ondulante. Precisou de fazer um grande esforço para impedir que a sua imaginação invocasse demónios invisíveis espreitando
das margens da ilha sagrada dos druidas.
Estavam agora suficientemente perto da margem para que os maiores ramos das árvores mais velhas os sobranceassem. Ao olhar para cima através das contorcidas gavinhas
negras dos ramos, Cato viu as estrelas, frias e quietas acima da bruma. Depois virou-se e olhou, através da água sombria, para onde Boudica os esperava. Perguntou-se
se alguma vez a voltaria a ver, e deu por si a querer desesperadamente olhar, uma vez mais, para ela. Esse inesperado desejo foi bastante chocante, e Cato admirou-se
com o momento de auto-revelação.
Quando Macro lhe agarrou o braço, ele desequilibrou-se para trás e agitou a água.
- Não faças barulho! - silvou Macro. - Queres que todos os druidas da Britânia saibam que estamos aqui?
- Desculpe.
Macro voltou-se de novo para Prasutago, que murmurava alguma coisa entredentes. As palavras sussurradas fluíam num tom e ritmo diferentes do discurso do dia a dia,
e Macro apercebeu-se que devia ser algum tipo de reza. Quando o bretão se calou, o centurião tocou-lhe gentilmente no ombro.
- Vamos, companheiro.
Prasutago mirou-o durante um momento, em silêncio e quieto como uma pedra, antes de anuir gravemente com a cabeça e de continuar a caminhar lentamente. Neste local
a margem era constituída por verga reforçada por troncos empilhados, e ficava meio metro acima da água gelada. Içaram-se para cima dela tão silenciosamente quanto
possível, mas, inevitavelmente, houve água que escorreu, esparrinhando-se e soando perigosamente alto. Prasutago olhou ansiosamente para as sombras sob as árvores,
certo de que teriam sido ouvidos. Mas nada se mexeu, nem o mais pequeno sopro agitou o mais frágil dos ramos. Os três mantiveram-se parados durante algum tempo,
agachados e à escuta. Cato tremia, enquanto esperava que Prasutago desse sinal para avançarem. Continuaram caminho ao longo da margem, durante uma curta distância,
até chegarem a um trilho que mergulhava entre as árvores negras. Pareceu a Cato que a noite se tinha subitamente tornado mais fria, como se soprasse uma brisa, mas
o ar estava totalmente estático.
- Ali em baixo? - sussurrou Macro.
- Sa. Vocês vir, mas shhh!
À medida que seguiam em silêncio pelo trilho, a escuridão fechava-se sobre eles, impenetrável como tinta, e o ar parecia ficar cada vez mais frio, com um toque de
humidade. Cato contava os passos que dava, tentando manter uma clara imagem mental da ilha, à medida que iam penetrando no interior. Pouco depois de chegar a cem,
as árvores abriram-se, deixando ver o bem-vindo mas vago brilho das estrelas. O trilho acabava abruptamente numa cerca de madeira, na qual havia uma porta. Mantinha-se
fechada por um simples trinco, cuja lingueta se accionava através de uma corda. Prasutago pôs-se à escuta por um momento, mas o coração da ilha estava tão opressivamente
silencioso como a sua orla, e o único som que Cato conseguia detectar acima do rápido bater do seu coração, era o chamar de um alcaravão, lá ao longe, no pântano.
Prasutago puxou suavemente pela corda, a lingueta subiu, e ele abriu a porta com um pequeno empurrão. Entrou, deixando os dois romanos agachados à entrada; um momento
depois, a sua cabeça reapareceu, fazendo-lhes sinal para avançarem.
Do outro lado da cerca abria-se uma clareira ampla. Era aproximadamente circular e tinha cabanas de colmo alinhadas em volta. O solo era duro e nu; as botas militares
dos dois romanos soaram secamente sobre a
sua superfície, antes de Cato e Macro tomarem mais cuidado e darem cada passo o mais suavemente possível. Dominando o centro da clareira, estava uma enorme cabana
circular, diante da qual se elevava um estrado. Uma cadeira de madeira esculpida, de grandes proporções, repousava no centro do estrado, e fixa ao alto encosto estava
a maior armação de veado que Cato alguma vez vira. Diante do estrado podiam-se observar os restos de uma fogueira, sobre uma enorme grade de ferro. Os tições quase
apagados davam um frouxo tom cor-de-laranja aos fios de fumo que voluteavam para cima, noite adentro.
Nada se movia na clareira. Nenhum dos archotes nos suportes de ferro existentes à frente de cada cabana estava aceso. Não havia sinais de vida. E, no entanto, uma
presença pesada parecia pairar sobre a clareira, como se algo os observasse das sombras. Não que Cato pressentisse uma qualquer cilada, era apenas a sensação de
que alguém, ou alguma coisa, sabia da presença deles. Dirigiram-se em silêncio à entrada da primeira cabana e entraram. Estava escuro, demasiado escuro para que
discernissem alguma coisa, e Macro praguejou em voz baixa.
- Assim não dá; precisamos de luz - sussurrou.
- Senhor, isso seria loucura! - silvou Cato. - Seríamos logo vistos.
- Vistos por quem? Não há aqui ninguém. E já há algum tempo, olha para a fogueira
- Então onde estão eles?
- Pergunta-lhe - Macro apontou o dedo a Prasutago.
O bretão percebeu do que falavam e respondeu, com um encolher de ombros:
- Druidas irem. Todos irem.
- Nesse caso, vamos lá arranjar alguma luz - insistiu Macro. - Precisamos de nos certificar de que não nos escapa nada.
Foi buscar um archote ao suporte mais próximo e enfiou-o nos tições, fazendo uma nuvem de fagulhas rodopiantes subir no ar. O archote flamejou. Levantando-o diante
de si, Macro voltou à primeira cabana e enfiou-se lá para dentro. O brilho tremeluzente do archote iluminava o interior com uma luz vacilante. Num dos lados havia
várias camas, cobertas de mantas e peles de animais. Do outro lado estava um altar, ao qual estavam encostadas duas pequenas harpas. Um conjunto de escudelas de
madeira e copos de barro estavam amontoados junto a uma tina de água.
- Não há sítio para cozinhar - disse Cato.
- Eles não cozinhar - disse Prasutago. - Pessoas trazer comida para druidas.
- A viver às custas do povo, hã? - Cato abanava a cabeça. - Quando se fala de sacerdotes, é o mesmo por todo o lado.
Macro estalou os dedos.
- Quando tiverem acabado a vossa fascinante conversa teológica, digam, para que possamos passar às próximas cabanas. Procurem pistas que possam estar ligadas à família
do general.
Revistaram cada cabana minuciosamente, mas para lá dos escassos haveres dos druidas, nada encontraram que indicasse que algum romano tivesse estado ali.
- Vamos tentar na cabana grande - sugeriu Cato. - Imagino que seja onde o chefe dos druidas vive.
- Vamos lá, então - concordou Macro.
- Na.
Os romanos voltaram-se para Prasutago. Estava plantado à porta da última cabana em que tinham estado, com um olhar de terror extremo. E abanava a cabeça, como que
implorando.
-Eu não entrar!
Macro encolheu os ombros.
- Como queiras. Vamos, Cato.
A entrada era tão imponente como a cabana em si. Duas enormes ombreiras de madeira, com o dobro da altura de um homem, encimadas por um lintel esculpido em horríveis
formas de rostos inumanos, selváticos, uivando, de dentes arreganhados. Nas bocarras jaziam corpos meio consumidos de homens e mulheres, as bocas escancaradas de
terror. As imagens eram tão fortes que Macro parou no limiar e ergueu o archote para observar melhor.
- Que diabo é isto?
- Imagino que seja o que o porvir reserva à humanidade, quando Cruach se erguer e reclamar o que é seu.
Macro virou-se para Cato, de sobrancelhas arqueadas:
- Achas mesmo? Espero nunca esbarrar contra esse Cruach numa rua escura.
- Também o espero, senhor.
Assim que entraram depararam-se com várias pesadas peles de animais dependuradas, as quais impediam completamente a visão do interior. Macro desviou-as e entrou
nos aposentos do chefe dos druidas. Levantou o archote e soltou um assobio.
- Mas que contraste!
Cato acenou em concordância, à medida que o seus olhos percorriam as peles que cobriam a maior parte do chão, as grandes camas acolchoadas a um lado, a enorme mesa
de carvalho e as cadeiras adornadas. Sobre
a mesa estavam os restos de um festim. Diante das cadeiras havia grandes escudelas, com nacos de carne ainda gordurosos. Ao lado de cada escudela, grandes pedaços
de pão e queijo. Cornos de bebida estavam apoiados em suportes de ouro intrincadamente decorados no estilo celta.
- Parece que os druidas superiores sabem o que é viver bem. - Macro sorriu. - Não admira que queiram manter os olhares indiscretos longe daqui. Mas o que os terá
feito abandonar o local assim com tanta pressa?
- Senhor! - Cato apontou para o fundo da cabana. Numa área de solo descoberto encontrava-se uma pequena jaula de madeira. A porta estava escancarada. Aproximaram-se.
O interior estava vazio, além de um recipiente para as necessidades, que felizmente estava tapado. Cato olhou mais de perto e inclinou-se para o interior da jaula,
tentando alcançar a tampa, que não passava de um bocado de tecido.
- Duvido que eles estejam aí dentro - disse Macro.
- Pois não, senhor. - Cato segurou o material e levantou-o para melhor o inspeccionar à luz do archote. Era seda, guarnecida de debrum, e estava suja.
- Que cheirinho que foste destapar! - Macro torceu o nariz. - Tapa isso.
- Senhor, isto é a prova de que temos andado à procura. Veja! - Cato segurava o material para que o seu centurião o pudesse ver. - É seda. Feita em Roma, e quem
a fez coseu-lhe um pequeno emblema no canto.
Macro inspeccionou o fino desenho: uma cabeça de elefante - o símbolo dos Pláucios.
- É isso! Eles estão aqui. Ou estiveram, pelo menos. Mas onde estão agora?
- Devem ter partido com os druidas.
- Talvez. É melhor examinarmos o local para ver se encontramos mais sinais da família do general, ou do que lhes tenha acontecido.
Quando saíram da cabana, Prasutago não conseguiu esconder o alívio que sentia por estar novamente na companhia de outros seres humanos. Macro mostrou-lhe a seda.
- Eles estiveram aqui.
- Sa! Agora nós ir, sim?
- Não. Continuamos a procurar. Há mais algum sítio na ilha para onde possam ter sido levados?
Prasutago olhou-o sem expressão. Macro tentou uma forma mais
simples.
- Vamos continuar a procurar. Outro lugar? Sim?
Prasutago pareceu ter compreendido, e virou-se para apontar um
trilho que levava às árvores directamente opostas à cadeira com os chifres.
- Ali.
- O que há para aquelas bandas?
Prasutago não respondeu, e continuou a olhar fixamente na direcção do trilho. Macro reparou que ele tremia, e sacudiu-lhe os ombros.
- O que há para ali?
Prasutago desviou o olhar do trilho e virou-se para ele, com os olhos esbugalhados de terror.
- Cruach.
- Cruach? Esse vosso deus das trevas? Deves estar a gozar.
- Cruach! - insistiu Prasutago. - Bosque sagrado de Cruach. Lugar dele neste mundo.
- És muito falador quando estás acagaçado, não és? - Macro sorriu. - Vá, companheiro. Vamos lá falar com esse Cruach. Ver do que é que ele é feito.
- Senhor, será sensato? - perguntou Cato. - Encontrámos aquilo que procurávamos. Onde quer que a família do general esteja, já não é aqui. Devíamo-nos pôr a mexer
antes de sermos descobertos.
- Não antes de inspeccionarmos o bosque - replicou Macro firmemente. - Já chega de balelas. Vamos.
Com Macro na dianteira, os três homens atravessaram a clareira e seguiram pelo trilho. O archote tremeluzia, iluminando os rugosos troncos dos carvalhos que ladeavam
o caminho.
- A que distância fica?
- Perto - sussurrou Prasutago, mantendo-se próximo do archote tremeluzente.
As árvores estavam silenciosas em redor deles; nada se mexia, nem uma coruja ou qualquer outra criatura nocturna. Era como se a ilha estivesse sob algum feitiço,
decidiu Cato. Em seguida, apercebeu-se de que o cheiro a podridão tinha regressado. Com cada passo dado ao longo do trilho, intesificavam-se o aroma da morte e o
adocicado fedor da putrefacção.
- Que foi aquilo? - Macro parou abruptamente.
- O quê, senhor?
- Cala-te! Escuta!
Os três tinham parado, de ouvidos à escuta, tentando aperceber-se de algo mais do que o sonoro crepitar e silvar do archote. Então Cato ouviu-o: um gemido em tom
baixo, que subia e descia, até acabar numa lamúria. Depois, uma voz murmurou algo. Palavras estranhas, que ele não conseguiu perceber.
- Espadas - ordenou Macro baixinho, e os três homens tiraram as espadas das bainhas.
Macro avançou, e os seus companheiros seguiram-no nervosamente, de sentidos alerta, a tentar perceber de onde vinha o som. À frente deles, o trilho começava a alargar,
e da escuridão surgiu uma estaca com uma forma arredondada no topo. À medida que se aproximavam, a luz do archote foi iluminando as manchas escuras que corriam pelos
lados da estaca, e a cabeça empalada na extremidade.
- Merda! - resmungou o centurião. - Quem me dera que os celtas não fizessem estas coisas.
Mais estacas surgiram, cada uma com sua cabeça, em vários estados de decomposição. Estavam todas viradas para o trilho, pelo que os três transgressores caminhavam
sob o olhar dos mortos. Mais uma vez o ar pareceu a Cato tornar-se mais frio do que devia, e estava prestes a comentar o facto quando um novo gemido quebrou o silêncio.
Vinha do fundo do bosque, para lá do círculo de luz vacilante que emanava do archote. Desta vez, o gemido subiu de intensidade e tornou-se numa lamúria lancinante
de agonia que atravessou as trevas e congelou o sangue dos três mortais.
- Nós ir! - sussurrou Prasutago. - Nós ir agora! Cruach vir!
- Balelas! - replicou Macro. - Nenhum deus soa assim. Anda mas é daí, meu maricas! Vê se não te amedrontas agora.
Quase teve de arrastar o bretão na direcção do som; Cato seguiu-o, também relutante. Na verdade, teria de bom grado dado meia volta e fugido dali, mas isso significaria
abandonar a segurança do brilho que emanava do archote. A ideia de se ver perdido e sozinho no terrível e obscuro mundo dos druidas, fê-lo manter-se tão próximo
dos outros quanto possível. Um outro gemido ergueu-se na noite, mais perto agora; à frente deles surgiu a pedra Usa de um altar e, do outro lado, estava a criatura
que entoava os gemidos de agonia que combinavam tão bem com o hediondo local.
- Mas que diabo é aquilo? - perguntou Macro, espantado.
A não mais de quinze passos, para lá do altar, a figura de um homem contorcia-se em movimentos lentos. Estava suspenso de uma viga de madeira, com os antebraços
atados à sua superfície áspera. Estava empalado numa longa haste de madeira, que lhe entrava no corpo mesmo por trás dos testículos. Enquanto eles olhavam, o homem
tentou elevar-se, forçando as cordas que lhe atavam os braços. Surpreendentemente, conseguiu aguentar-se um momento, antes da sua força se esgotar e ele deslizar
de novo para baixo, provocando mais um terrível gemido de agonia e desespero. O som inumano acabava em rogos e imprecações, numa linguagem quase tão familiar a Cato
como o seu próprio latim.
- É grego, o que ele está a falar!
- Grego? Impossível... A não ser... - Macro aproximou-se mais do homem, e ergueu o archote. - É o Diómedes...
O grego agitou-se ao ouvir o seu nome, e esforçou-se por abrir os olhos, mostrando-lhes um brilho de desespero no olhar.
- Ajudem-me! - disse em latim, por entre os dentes cerrados.
- Por piedade, ajudem-me!
Macro olhou para os seus camaradas.
- Cato! Sobe a essa viga e corta-lhe as cordas. Prasutago! Eleva-lhe o corpo!
O bretão desviou o olhar do terrível espectáculo e, sem ter compreendido, fixou Macro, que rapidamente explicou com gestos da mão que tinha livre a acção de elevar,
apontando, em seguida, para Diómedes. Prasutago assentiu com a cabeça e apressou-se a cumprir a ordem. Agarrou no grego pelas pernas e elevou-o, aguentando, sem
dificuldades, todo o peso de Diómedes nos seus poderosos braços. Entretanto Cato, sem muito jeito para proezas atléticas, esforçava-se por trepar a um dos postes
que suportavam a viga. Com um suspiro de impaciência, Macro aproximou-se e pôs-se de costas para o poste.
- Usa os meus ombros para subires!
Já sobre a viga, Cato arrastou-se até à primeira corda. A sua espada encontrou algumas dificuldades para cortar a grossa corda, mas por fim o braço esquerdo do grego
ficou livre, pendendo-lhe junto ao corpo. Cato alcançou a outra corda e, um momento depois, o outro braço estava também livre. O optio saltou para o chão.
- Agora vamos lá tirar-lhe a estaca. Eleva-o, meu idiota!
Prasutago percebeu e, com toda a força dos seus braços, começou
a elevar o grego, para o tirar da haste que lhe penetrava profundamente no corpo. Ouviu-se um som molhado, de sucção, proveniente da ferida, e, depois, o som abafado
de algo a raspar em ossos. Diómedes lançou a cabeça para trás e ganiu aos céus.
- Merda! Tem cuidado, estúpido!
Com um movimento final, Prasutago elevou o grego, retirando-o da haste e, com cuidado, deitou-o sobre o altar. Um escuro jorro de sangue saiu da horrível ferida
onde antes tinha sido o ânus de Diómedes, e Cato estremeceu ao ver aquilo. O grego gemia e tremia, e os seus olhos reviravam-se nas órbitas, enquanto sofria a terrível
e mortal agonia. Estava muito próximo da morte.
Macro inclinou-se para o ouvido do grego.
- Diómedes, estás a morrer. Nada poderá evitar isso. Mas podes ajudar-nos. Ajuda-nos a lixar os sacanas que te fizeram isto.
- Druidas - arquejou Diómedes. - Tentei., fazer com que pagassem... Tentei encontrá-los.
- E encontraste-os, pois.
- Não... Apanharam-me antes... Trouxeram-me para aqui... e fizeram-me isto.
- Viste alguns dos outros prisioneiros?
Um espasmo de dor contorceu-lhe as feições. Quando abrandou, assentiu com um movimento da cabeça.
- A família do general...
- Sim! Viste-os?
Diómedes cerrou os dentes.
- Estavam... aqui.
- Onde estão eles agora? Para onde foram levados?
- Foram-se embora... Ouvi alguém dizer... que seriam levados para a Grande Fortaleza. Chamam-lhe Mai Dun... O único lugar seguro... depois de terem descoberto...
que tinham sido traídos por um druida.
- A Grande Fortaleza? - Macro franziu as sobrancelhas. - Há quanto tempo foi isso?
- Esta manhã... acho - sussurrou Diómedes. A sua força esvaía-se tão depressa como o sangue que saía da ferida aberta. Teve uma convulsão quando um outro espasmo
de agonia lhe dilacerou o corpo. Uma das suas mãos agarrou a túnica do centurião.
- Por piedade... mata-me... já - silvou, por entredentes.
Macro olhou, durante um momento, para aqueles olhos desvairados, e depois respondeu gentilmente:
- Está bem. Serei rápido.
Diómedes agradeceu com um aceno e fechou os olhos.
- Segura no archote - ordenou Macro, passando-o a Cato. Então levantou o braço esquerdo do grego, expondo-lhe a axila, e olhou para o rosto de Diómedes.
- Quero que saibas o seguinte, Diómedes. Juro por todos os deuses que hei-de vingar-te, a ti e à tua família. Os druidas pagarão por tudo o que fizeram.
A expressão do grego amenizou-se, e Macro espetou-lhe a espada pela axila, até ao coração, com um rugido animal, devido ao esforço. O corpo de Diómedes contraiu-se
por um momento, e a sua boca abriu-se num arquejo, quando o impacto do golpe lhe expulsou dos pulmões o último fôlego. Depois, o seu corpo ficou inerte, e a cabeça
descaiu para o lado, os olhos vítreos. Ninguém falou durante algum tempo. Macro retirou a lâmina, e limpou-a aos farrapos sujos da túnica do grego. Então elevou
os olhos, encarando Prasutago.
- Ele falou na Grande Fortaleza. Conhece-la?
Prasutago assentiu, ouvindo as palavras, mas incapaz de tirar os olhos de Diómedes.
- Podes levar-nos lá?
Prasutago anuiu de novo.
- A que distância fica?
- Três dias.
- Então é melhor pormo-nos a mexer. Os druidas levam um dia de avanço. Se nos esforçarmos, talvez os apanhemos antes de chegarem a essa tal Grande Fortaleza.

XXVII

- Não os vamos conseguir apanhar, pois não? - disse Cato a Boudica, enquanto mastigava um bocado de carne que mais parecia couro.
Depois de Diómedes ter morrido, eles tinham-se apressado a regressar para junto de Boudica, para iniciarem imediatamente a perseguição aos druidas. Mesmo depois
de alvorecer, Macro ordenara que continuassem; a necessidade de alcançarem os druidas e os seus prisioneiros antes deles se poderem abrigar na Grande Fortaleza era
mais importante que o risco de serem descobertos. Da apressada tradução feita por Boudica tinha ficado claro que, uma vez dentro dos vastos baluartes da fortaleza,
protegidos por uma numerosa guarnição de guerreiros seleccionados - a guarda pessoal do rei dos durotriges -, estaria fora de hipótese o resgate dos reféns. A família
do general seria ou um elemento de troca - caso Aulo Pláucio se permitisse ser tão humilhado ao ponto de destruir a sua carreira -, ou queimada viva numa efígie
de verga, sob os olhares dos druidas da Lua Negra.
Por isso os dois romanos e os seus guias icenos tinham galopado incessantemente ao longo de toda a noite e ainda pelo dia seguinte adentro, até se tornar claro que
os animais estavam exaustos e que se iriam abaixo e morreriam se fossem forçados a continuar. Pararam então e levaram os cavalos para um cercado em ruínas de uma
quinta abandonada, e deram-lhes o que restava das rações que os póneis transportavam. No dia seguinte, antes do raiar da alvorada, partiriam de novo.
Prasutago fez o primeiro turno de vigia, enquanto os outros comeram e tentaram dormir, envoltos nas capas, sob o ar frio do princípio da Primavera. Macro, como de
costume, caiu num sono profundo assim que se enrolou na sua capa. Mas a mente de Cato estava inquieta, atormentada pelo terrível destino de Diómedes e com a expectativa
do que tinham pela frente, por isso ele não se conseguia acalmar e adormecer.
Quando já não aguentava mais, destapou-se e pôs-se de pé. Foi pôr mais uns troncos sobre as brasas da fogueira e serviu-se de um pedaço da carne seca que tinha no
saco da sela. A carne estava dura como madeira, e só se conseguia engolir depois de bem mastigada. O que era bom, pois tinha assim algo com que se entreter. Ia no
segundo pedaço de carne quando Boudica se juntou a ele ao pé do fogo. Tinham arriscado fazer uma pequena fogueira, escondida pelos muros destroçados da quinta abandonada.
O telhado de colmo tinha ruído, e agora as chamas lânguidas lambiam o que restava da madeira do telhado que Cato tinha cortado em pedaços para queimar.
- Talvez os apanhemos - respondeu-lhe ela. - O teu centurião acha que sim.
- Então e se os apanharmos? - perguntou Cato calmamente, dando um olhar rápido ao centurião ressonante, aconchegado como se fosse uma trouxa. - Que conseguirão três
homens fazer contra sabe-se lá quantos druidas? Ainda por cima deve haver uma escolta, com certeza. Será suicídio.
-Não vejas sempre as coisas pelo lado mau-censurou-o Boudica.
- Nós somos quatro, e não três. E Prasutago vale bem dez guerreiros durotriges. Do que conheço do teu centurião, também é um lutador formidável. Os druidas irão
passar algumas dificuldades com esses dois. Trouxe comigo o meu arco, e até as minhas pequenas flechas de caça podem matar um homem, se tiver sorte. E sobras tu.
És bom a lutar, Cato?
- Aguento-me bem. - Cato abriu a capa e bateu com os dedos na fálera com que tinha sido condecorado por ter salvo a vida de Macro numa escaramuça há um ano atrás.
- Não recebi isto por trabalho de escrivão.
- Estou certa que não. Não pretendi desacreditar-te, Cato. Tento apenas calcular as nossas hipóteses contra os druidas e, bem, não tens propriamente a constituição
ou o aspecto de um assassino.
Cato sorriu-lhe tenuemente.
- Tento não o parecer, na verdade. Não acho que seja esteticamente aprazível.
Boudica riu-se abafadamente.
- As aparências não são tudo. - Ao dizer isto, virou a cabeça para o centurião adormecido, e Cato viu-a sorrir. A ternura da sua expressão contrastava com a tensão
e a distância que pareciam existir entre ela e Macro recentemente, e Cato apercebeu-se que a icena ainda lhe tinha mais afecto do que queria admitir. Todavia, a
relação entre o centurião e aquela mulher não lhe dizia respeito. Cato engoliu o bocado de carne que tinha estado a mastigar e meteu o resto no saco.
- As aparências podem de facto iludir - concordou Cato. - Quando te vi pela primeira vez, em Camaloduno, nunca teria adivinhado que gostavas destas aventuras de
capa e espada.
- Podia dizer o mesmo de ti.
Cato corou, e depois riu-se da sua própria reacção.
- Não és a única a achá-lo. Demorou-me muito a conseguir alguma aceitação na legião. Não é culpa minha, ou deles. Não é fácil aceitar ter um rapaz de dezassete anos
a mandar em ti, feito optio apenas porque o pai foi um fiel escravo no secretariado imperial.
Boudica olhou-o fixamente.
- Isso é verdade?
- É. Não pensas com certeza que sou suficientemente velho para ter merecido tal promoção devido aos anos de serviço exemplar, pois não?
- Querias ser um soldado?
- Ao princípio, não. - Cato sorriu timidamente. - Quando era mais novo, estava muito mais interessado em livros. Queria ser bibliotecário, ou talvez mesmo escritor.
- Escritor? Que faz um escritor?
- Escreve histórias, ou poesia, ou peças de teatro. Decerto que vocês também os têm aqui, na Britânia.
Boudica abanou a cabeça.
- Não. Temos algumas palavras escritas. Que nos foram passadas pelos antigos. Apenas alguns conhecem os seus segredos.
- Então como fazem para preservar as histórias? A vossa história?
- Com isto. - Boudica apontou para a cabeça. - As nossas histórias passam de geração em geração através do que ouvimos e depois contamos.
- Parece um método muito pouco fiável de manter os registos. Não acontece existir a tentação de mudar a história que se conta?
- Mas é essa a intenção. O que interessa é a narrativa. Quanto melhor se tornar, mais valor terá; quanto mais embelezada for, mais cativará a audiência; e mais ricos
nos tornaremos como pessoas. Não é assim que se passa em Roma?
Cato considerou o assunto durante um momento, em silêncio.
- Não é bem assim. Alguns dos nossos escritores são contadores de histórias, mas muitos são poetas e historiadores, e orgulham-se de relatarem os factos e apenas
os factos.
- Que aborrecido. - Boudica fez uma careta. - Deve haver alguém treinado para contar histórias como fazem os nossos bardos. De certeza.
- Alguns - admitiu Cato. - Mas esses não são tidos na mesma estima que os escritores. São meros artistas.
- Meros artistas? - Boudica riu-se. - Acredita, vocês são um povo estranho. O que é que produz um escritor? Palavras, palavras, palavras. Meras marcas num pergaminho.
Um contador de histórias, um dos bons, claro, produz um feitiço que leva a sua audiência a partilhar um outro mundo. Poderão alguma vez as palavras escritas fazer
isso?
- Às vezes - disse Cato, na defensiva.
- Só se for para os que sabem ler. E, de mil romanos, quantos sabem ler? Porém, todos os que ouvem poderão disfrutar de uma narrativa. Então e agora, o que é que
é melhor? As palavras lidas ou as ditas? Hã, Cato?
Cato franziu o sobrolho. A conversa estava-se a tornar perturbadora. Muitas das verdades eternas do seu mundo corriam o perigo de serem minadas, caso ele aceitasse
a visão que Boudica lhe oferecia. E, tanto quanto sabia, as palavras escritas eram a única maneira segura de se preservar a herança de uma nação. Tais registos podiam
falar às gerações futuras de um modo tão fresco e preciso como quando foram escritos. Mas que utilidade teriam para a massa de iletrados que pululava pelo império?
A esses bastava a tradição oral, com todos os seus pontos fracos, e nem queriam outra coisa. Que as duas tradições pudessem ser complementares era um anátema para
a sua visão da literatura, e isso não admitiria. Os livros eram os meios definitivos para o crescimento de uma mente. Contos folclóricos e lendas eram meros paliativos
para divertir e distrair o ignorante do verdadeiro caminho para o aperfeiçoamento pessoal.
Este pensamento levou-o a avaliar a natureza da mulher à sua frente. Ela estava claramente orgulhosa da sua raça e da sua herança cultural, e tinha sido, também,
educada. Além do mais, como poderia ela compreender tão bem o latim?
- Boudica, como aprendeste a falar latim?
- Do mesmo modo que qualquer pessoa aprende a falar uma língua estrangeira: com muita prática.
- Mas porquê latim?
- Também falo algum grego.
As sobrancelhas de Cato arquearam-se apreciativamente. Era uma proeza digna de nota, numa cultura tão retrógrada, pelo que ficou curioso.
- De quem foi a ideia de aprenderes essas línguas?
- Do meu pai. Reparou há muitos anos no caminho que as coisas estavam a tomar. Já nessa altura a nossa costa tinha sido visitada por mercadores de todo o mundo.
Se bem me lembro, o grego e o latim sempre fizeram parte da minha vida. O meu pai sabia que um dia Roma cederia à
tentação de se apoderar desta ilha. Quando esse dia chegasse, aqueles que conhecessem a língua dos soldados da águia tirariam maiores proveitos da nova ordem. O
meu pai achava-se demasiado velho e ocupado para aprender uma nova língua, por isso foi-me dada essa tarefa, falando depois por ele nos seus negócios com os comerciantes.
- Quem te ensinou?
- Um velho escravo. O meu pai importou-o do continente. Tinha ensinado antes os filhos de um procurador, em Narbonense. Quando eles se tornaram adultos, o procurador
deixou de precisar do tutor e pô-lo à venda. - Boudica sorriu. - Julgo que deve ter sido um pouco chocante para ele, quando chegou à nossa aldeia, depois de tantos
anos numa casa romana Bem, o meu pai era duro com ele, e ele, por sua vez, era duro comigo. Por isso aprendi latim e grego, e pela altura em que o tutor morreu,
já eu era fluente o bastante para defender os interesses do meu pai. E, agora, dos vossos.
- Dos nossos?
- Quer dizer, dos de Roma. Parece que as mentes mais velhas e sábias entre os icenos acham que devemos vincular o nosso futuro ao de Roma. Por isso damos o nosso
melhor para nos tornarmos fiéis aliados e servidores de Roma nas suas guerras contra as tribos suficientemente patetas para resistirem às legiões.
Não escapou a Cato o toque de ressentimento nas palavras dela. Alcançou o diminuto monte de lenha e colocou mais um bocado de telhado cortado na pequena fogueira.
A madeira seca ateou de imediato, crepitando e silvando, e as labaredas iluminaram os traços de Boudica com um rubor que a tornou ao mesmo tempo bastante bonita
e aterradora; o coração de Cato acelerou. Nunca antes a tinha achado atraente, uma vez que era a mulher de Macro, e que tinha estado de luto interior por Lavínia.
Mas agora, ao olhar furtivamente para Boudica, sentia um desejo inexplicável por ela. Quase de imediato se acautelou contra tais sentimentos. Se Prasutago suspeitasse
que ele se sentira atraído pela sua futura esposa, como reagiria? Se aquela cena que se passara na taverna em Camaloduno servia de exemplo, era melhor deixar Boudica
em paz.
- Parece-me que não aprovas totalmente a política dos anciães da vossa tribo.
- Já ouvi falar no modo como Roma tende a tratar os seus aliados.
- Boudica afastou os olhos do fogo, mas o seu olhar manteve-se cintilante.
- Na minha opinião os anciães não sabem onde se estão a meter. Uma coisa é fazer um pacto com uma tribo vizinha, ou conceder direitos comerciais a algum mercador
grego. Outra, é brincar à política com Roma.
- Roma não costuma ser ingrata para com os seus aliados -
protestou Cato. - Acho que Cláudio gostaria de ver o seu império como uma família de nações.
- Oh, a sério? - Boudica riu-se da sua ingenuidade. - Então o vosso Imperador é uma figura paternal, pelo que suponho que vocês, legionários, são os seus filhos
mimados. As províncias, suas filhas, férteis e produtivas, mães da riqueza do império.
Cato pestanejou com aquela absurda metáfora, e quase deu uma gargalhada.
- Será que não vês o que significa ser-se um aliado de Roma?
- continuou Boudica. - Vocês roubam-nos a identidade. Como julgas que pessoas como Prasutago vêem isso? Achas mesmo que ele aceitará com resignação um qualquer papel
que o vosso Imperador lhe dê? Ele preferiria morrer a entregar as armas e tornar-se lavrador.
- Então é parvo - replicou Cato. - Nós oferecemos ordem, e melhores condições de vida.
- Segundo os vossos termos.
- São os únicos que conhecemos.
Boudica lançou-lhe um olhar ríspido, e depois suspirou.
- Cato, tu tens bom coração. Consigo vê-lo. E não te estou a atacar. Apenas questiono as intenções daqueles que orientam as tuas energias. Acho que és suficientemente
inteligente para o fazer também, com certeza. Não tens de ser como a maior parte dos teus conterrâneos, como ali o teu centurião.
- Pensava que gostavas dele.
- Eu... gostei. Ele é um homem bom. É tão ferozmente honesto como Prasutago é orgulhoso. E também é atraente.
- É? - Agora Cato estava completamente atónito. Nunca teria descrito Macro como sendo bonito. O rosto marcado pelo tempo e com cicatrizes assustara-o quando encontrara
o centurião pela primeira vez, era Cato um recruta recente. Mas havia nele um charme calmo e honesto, o que fazia com que os homens da sua centúria fossem de uma
lealdade inabalável. Mas o que seria que atraía as mulheres?
Boudica sorriu, ao ver a expressão atónita e confusa de Cato.
- Estou a falar a sério, Cato. Mas isso não chega. Ele é romano, eu sou icena, e a diferença é demasiado grande. E Prasutago é um príncipe do meu povo, e poderá
um dia ser rei. Tem ligeiramente mais a oferecer do que o boleto de um centurião. Por isso, deverei fazer o que a minha família deseja e casar-me com Prasutago,
e ser fiel ao meu povo. E espero que Roma mantenha a sua palavra e deixe os reis dos icenos continuarem a governar o seu povo. Somos uma nação orgulhosa, e só poderemos
suportar a aliança que os nossos anciães negociaram com Roma se formos
tratados como iguais. Se chegar o dia em que, de alguma forma, sejamos desonrados, então vocês, romanos, ficarão a saber quão temível a nossa cólera pode ser.
Cato olhava-a com admiração expressa. Ela seria um desperdício como mulher de um legionário; quanto a isso não restavam dúvidas. Se alguma vez alguma mulher tivesse
nascido para ser rainha, era Boudica; todavia, a sua indiferente, e até cínica, rejeição de Macro magoava-o bastante.
Boudica bocejou e esfregou os olhos.
- Chega de conversa, Cato. Devíamos ir descansar.
Enquanto ele alimentava o fogo, Boudica pôs a sua capa grossa sobre si e bateu na mochila, ajeitando-a para deitar a cabeça. Satisfeita com o conforto possível,
piscou o olho a Cato e, virando-se de costas para o fogo, enroscou-se, pronta para adormecer.
Na manhã seguinte comeram alguns biscoitos e saltaram ainda perros para o dorso dos cavalos. Os póneis já não eram precisos, pelo que foram libertados e entregues
a si mesmos. A sul, a várias milhas de distância, um fino fio de fumo subia languidamente pelo céu limpo, e, mais abaixo, viam-se as formas escuras de cabanas, na
curva de um rio. Fora aí que os druidas tinham passado a noite, disse-lhes Prasutago. À distância, era visível um grupo de homens a cavalo escoltando uma carroça
coberta. Não era ainda claro para Cato como iriam os quatro enfrentar um grupo muito maior de druidas e, mesmo assim, saírem vitoriosos. Quanto a si, Macro sentia-se
frustrado, já que não podiam fazer muito mais do que seguir o inimigo de perto, esperando que surgisse uma oportunidade para tentarem um resgate. E os druidas aproximavam-se,
cada vez mais, das inexpugnáveis defesas da Grande Fortaleza.
O dia primaveril foi passando lentamente, enquanto Prasutago os conduzia ao longo de caminhos estreitos, mantendo os cavaleiros e a carroça à vista, e encurtando
a distância que os separava apenas quando não havia perigo de serem vistos. Esta táctica requeria um exaustivo grau de vigilância. Ao entardecer encontravam-se ainda
a alguma distância do inimigo, mas suficientemente perto para verem que a carroça era protegida por uma vintena de druidas nos seus identificativos mantos pretos.
- Porra! - disse Macro, franzindo os olhos. - Vinte contra três não dá lá muito jeito.
Prasutago encolheu simplesmente os ombros e impeliu o cavalo através de um caminho com vegetação rasteira que serpenteava por uma
encosta acima. Os druidas deixaram de se ver por um momento, encobertos por umas árvores. Os outros trotaram atrás dele, até pararem no caminho mesmo antes de chegarem
ao cume do monte; dali conseguiam ver os druidas lá em baixo, dirigindo-se ainda para sudeste. Macro ia na retaguarda, observando a coluna, quando Cato, de repente,
puxou as rédeas, fazendo Macro puxar também as dele, selvaticamente, de modo a evitar chocar com a montada de Cato.
- Oi! O que é que pensas que estás a fazer, caralho?
Mas Cato ignorou o seu centurião.
- Com um caraças... - murmurou ele, abismado, ao olhar para o panorama que se estendia à sua frente.
Ao colocar o seu cavalo ao lado do de Cato, também Macro pôde ver o número de baluartes de terra sucessivos que se erguiam na planície diante deles. Tendo desenvolvido
recentemente a sua capacidade de análise do terreno, Cato identificou as rampas em curva e contra-curva que levavam ao portão mais próximo, e os redutos defensivos
bem posicionados, perante os quais qualquer atacante se veria alvo de múltiplas rajadas de setas, lanças e projécteis de funda. No mais alto dos baluartes do forte,
ele mesmo construído no cume de um monte, uma robusta paliçada rodeava o recinto. De uma ponta à outra, Cato estimou que o forte devia medir aproximadamente meia
milha. Na planície abaixo da fortaleza, a paisagem com arvoredo disperso era dividida por um rio que serenamente descrevia os seus meandros.
- Estamos feitos - disse Macro calmamente. - Se os druidas levarem a família do general em segurança para dentro daquilo, ninguém os tirará de lá.
- Talvez - replicou Cato. - Mas quanto maior é a fortificação, mais dispersas estão as sentinelas.
- Oh, isso é bom! Importas-te que eu te cite um dia destes?
Idiota!
Cato teve a humildade de corar embaraçado devido à observação precoce, e Macro abanou a cabeça com satisfação. Não podia ser, miúdos armados em espertos. Mais adiante,
Prasutago voltara o cavalo e estava a apontar para o forte com o braço erguido. Enquanto falava, iluminava-o um halo de luz solar, brilhante contra o céu azul.
- A Grande Fortaleza...
- Não, a sério? - rosnou Macro. - Obrigado pela informação.
Apesar da resposta sarcástica, Macro ainda estava a avaliar com o
seu olho profissional a estrutura, e questionava-se se poderia ser tomada pela Segunda Legião. Apesar do bem planeado percurso de acesso aos portões através dos
baluartes, não havia sinais de que a fortaleza tivesse sido
desenhada para resistir às capacidades de um exército moderno e bem equipado.
- Senhor! - Cato interrompeu-lhe o raciocínio, e Macro ergueu uma sobrancelha, zangado. - Senhor, olhe!
Cato apontava na direcção contrária à da Grande Fortaleza, para os druidas e para a pequena carroça coberta que eles escoltavam. Só que já não estavam a escoltá-la.
Próximos do seu abrigo, os druidas tinham posto as suas montadas a trote e a coluna de cavaleiros ia já bem mais adiante que a carroça. Dirigiam-se directamente
para o portão mais próximo. À sua frente, o caminho contornava um bosque, e depois dirigia-se para uma ponte estreita sobre o rio. A excitação de Cato aumentou,
quando fez uma rápida estimativa das velocidades relativas dos druidas a galope, da carroça e deles próprios. Abanou a cabeça com entusiasmo.
- Temos hipóteses.
- É a nossa oportunidade! - bradou Macro. - Prasutago! Olha para aquilo!
O guerreiro iceno percebeu imediatamente a situação e acenou vigorosamente com a cabeça.
- Nós ir.
- E a Boudica? - perguntou Cato.
- Que é que tem? - soltou Macro. - De que é que estamos à espera? Vamos!
Macro deu com os calcanhares nos flancos do seu cavalo e atirou-se ladeira abaixo, em direcção à carroça.

XXVIII

À medida que carregavam pela encosta abaixo, o vento rugia aos ouvidos de Cato e o coração batia-lhe com força no peito. Há poucos momentos atrás seguiam caminho
através de um trilho pouco usado. Agora, o destino tinha-lhes dado uma magra hipótese de salvarem a família do general, e Cato sentia já o terror desvairado provocado
pela acção iminente. Olhando para a frente, reparou que o forte estava agora oculto pelas árvores que ladeavam o caminho. A menos de meia milha de distância a carroça
rolava sobre sólidas rodas de madeira, puxada por um par de póneis hirsutos. Os dois druidas no banco do condutor ainda não tinham dado conta de que se aproximavam
cavaleiros, estando por isso sentados direitos, esforçando-se para tentar vislumbrar os baluartes da Grande Fortaleza. Atrás deles, por cima do eixo da carroça,
uma cortina de couro escondia os prisioneiros. À medida que os cascos do seu cavalo calcavam o solo, parecia impossível a Cato que ainda não tivessem sido percebidos,
e ele lançou uma prece a um qualquer deus que o ouvisse para que fizesse com que não fossem vistos durante mais algum tempo. O suficiente para que os druidas não
lançassem os póneis num trote rápido, e não tivessem assim ocasião para alertar os companheiros que iam mais à frente.
Mas, ou os deuses ignoravam este pequeno drama humano, ou conspiravam cruelmente com os druidas. O companheiro do condutor olhou de repente para trás e deu um salto
no banco, gritando e apontando para os romanos que se aproximavam. Com um estalido seco que se ouviu nitidamente, o condutor chicoteou a larga garupa dos póneis
e a carroça avançou, pesadamente e aos solavancos, o eixo chiando em protesto. O outro druida caiu para trás do banco, depois colocou as mãos em concha e gritou
por ajuda, mas os seus camaradas estavam já para lá da curva do arvoredo, e os seus rogos passaram despercebidos.
Cato estava agora suficientemente perto para se aperceber dos rostos dos druidas através da crina agitada do seu cavalo, e viu que o condutor
tinha cabelo cinzento e excesso de peso, enquanto que o seu companheiro era um jovem pálido, magro e de rosto macilento. A luta acabaria rapidamente. Com sorte,
conseguiriam libertar os reféns e abandonar as proximidades do forte muito antes que os druidas a cavalo começassem a estranhar o tempo que a carroça estava a demorar.
Sob as frenéticas instigações do condutor, a carroça deslocava-se cada vez mais depressa, saltando e sacudindo-se violentamente ao longo dos sulcos da estrada, à
medida que ia fazendo a curva em volta das árvores, em direcção à ponte. Os perseguidores estavam já próximos, dando aos calcanhares para apressar as suas montadas
transpiradas.
Ouviu-se um grito agudo de pânico vindo de trás. Cato olhou e viu o cavalo de Boudica cair violentamente de cabeça, as pernas traseiras apontando para o céu. Boudica
foi projectada para a frente e, instintivamente, encolheu a cabeça e o corpo mesmo antes de atingir o chão. Rebolou sobre os montículos cobertos de erva, gritando.
Os seus companheiros abrandaram. O cavalo contorcia-se no chão, a espinha partida, as pernas da frente esforçando-se em vão para levantar os quartos traseiros. Mal
refeita, Boudica levantou-se, cambaleante.
- Deixem-na! - gritou Macro, esporeando o seu cavalo. - Alcancem a carroça antes que seja tarde de mais!
Os druidas tinham ganho uma distância considerável em relação aos seus perseguidores. A carroça sacudia-se freneticamente, a umas centenas de passos da ponte; em
breve estaria à vista do forte e dos cavaleiros druidas. Dando com os calcanhares de forma selvagem, Cato seguiu atrás do centurião, com Prasutago ao lado. Galopavam
ao lado do caminho, evitando os perigosos sulcos, e à sua frente podiam ver o couro atado com cordas na parte de trás da carroça. O druida mais jovem olhava para
trás, com o rosto cheio de medo.
Ao fazerem a curva apareceram à vista as maciças muralhas do forte, pelo que Cato forçou o cavalo a um último e desesperado esforço, e rapidamente alcançou a carroça.
As enormes rodas de carvalho maciço atiravam-lhe bocados de lama para a cara. Ele pestanejou, pôs a mão no punho da espada e desembainhou-a, de tal forma que se
ouviu o som do metal a raspar. À sua frente, Macro ultrapassara o condutor, metendo-se no caminho dos póneis. Dando relinchos aterrados, estes tentavam parar, mas
eram forçados a avançar pelos arreios, devido à velocidade adquirida pela carroça que seguia atrás deles aos solavancos. Cato mantinha a espada baixa e a um dos
lados, pronta a investir. Quando tinha o banco do condutor ao seu alcance, deu-se um movimento súbito e o jovem druida atirou-se contra ele. Caíram ambos para o
chão. O impacto bloqueou a respiração a Cato e, ao bater com a cabeça na terra, um clarão cegou-o. Recuperando
a visão, deparou-se com a face do druida a centímetros da sua. Depois, à medida que, lhe escorria saliva por entre os dentes podres, o druida arfou, olhos esbugalhados
de surpresa, e tombou para a frente.
Cato desviou o corpo inerte e viu o punho da espada metido no tecido preto do manto do druida. A lâmina não se via, apenas uma mancha alastrando em redor do punho.
A espada tinha-se enfiado mesmo pelas entranhas do druida, sob as suas costelas, apanhando-lhe os órgãos vitais. Com um trejeito, pôs-se de pé e puxou-a. A lâmina
soltou-se, com um som de sucção repugnante. O optio apressou-se a olhar em volta, tentando localizar o outro druida.
Estava já morto, encostado à cobertura de couro, com o sangue a jorrar-lhe da garganta, onde Prasutago o tinha golpeado com a sua longa espada celta. O guerreiro
iceno tinha desmontado e cortava já as cordas que atavam a cobertura da carroça, na parte de trás. Do interior chegou-lhes aos ouvidos um guincho abafado de criança.
Cortada!" as últimas cordas, Prasutago desviou a cobertura e enfiou a cabeça no interior. Novos gritos rasgaram o ar.
- Está tudo bem! - gritou Boudica, em latim, correndo pelo caminho acima. Falou asperamente a Prasutago, na sua língua nativa, e afastou-o para o lado. - Está tudo
bem. Estamos aqui para vos salvar. Cato! Anda cá! É melhor que vejam um rosto romano.
Voltando a meter a cabeça na parte de trás da carroça, Boudica tentou parecer calma.
- Estão aqui connosco dois oficiais romanos. Estão salvos.
Ao chegar ao pé da carroça, Cato olhou para o interior sombrio. Estava lá uma mulher sentada, com os braços em volta dos ombros de um miúdo pequeno e de uma rapariga
um pouco mais velha, ambos choramingando, de olhos muito abertos de terror. As roupas que usavam já tinham sido de qualidade, mas agora estavam sujas e rasgadas.
Pareciam pedintes, encolhidos e assustados.
- Senhora Pompónia - Cato tentou parecer confiante. - Sou um optio da Segunda Legião. O seu marido enviou-nos para vos encontrar. Aqui está o meu centurião.
Cato desviou-se para que Macro se aproximasse. O centurião gesticulou a Prasutago, para que ele fosse vigiar o caminho que conduzia ao forte.
- Estão todos inteiros? - Macro olhou para a mulher e para as duas crianças. - Ainda bem! Toca a mexer. Antes que aqueles sacanas voltem.
- Não posso - respondeu a senhora Pompónia, levantando a bainha esfarrapada da sua capa. Tinha em volta do tornozelo uma argola de
ferro, que um espigão, também de ferro, prendia ao estrado da carroça.
- E as crianças?
A senhora Pompónia abanou a cabeça em sinal negativo.
- Muito bem, então, vamos a sair da carroça, crianças, para poder libertar a vossa mãe.
Mas as crianças chegaram-se ainda mais para junto da mãe.
- Vá, vão lá, façam o que ele diz - disse gentilmente a senhora Pompónia. - Estas pessoas estão aqui para nos ajudarem e para nos levarem de volta ao vosso pai.
A rapariga arrastou-se hesitante sobre as tábuas da carroça, até à ponta desta, e deixou-se cair para os braços de Boudica. O rapaz escondeu a cara contra a mãe
e agarrou-se fortemente às pregas da capa dela, com os seus pequenos punhos. Macro franziu o sobrolho.
- Olha lá, miúdo, não temos tempo para lamechices. Toca a sair.
- Isso não vai ajudar nada - refilou Boudica. - A criança já está suficientemente assustada.
Segurando a rapariga sobre uma anca, estendeu uma mão ao rapaz. Com um empurrão suave da mãe, ele deixou, a custo, que o tirassem da carroça. Agarrou-se à perna
de Boudica, olhando ansiosamente para Cato e para Macro.
O centurião subiu para a carroça e examinou a corrente que prendia o pé da mulher.
- Merda! É um espigão de ferro, não tem fechadura.
O forte espigão de ferro que fechava a argola precisava, para ser removido, de uma ferramenta própria, aguçada. Macro desembainhou a espada e, com cuidado, colocou
a ponta desta na extremidade do espigão. A senhora Pompónia olhava alarmada, tremendo instintivamente.
- Preciso que não se mexa.
- Vou tentar. Seja cuidadoso, Centurião.
Macro disse que sim com a cabeça, e tentou empurrar, gradualmente, o espigão de ferro. Vendo que resistia, aplicou mais força, tendo o cuidado de manter a ponta
da espada na extremidade do espigão. Os músculos dos braços inchavam-lhe, e ele rangia os dentes, enquanto se esforçava para libertar a mulher. A lâmina escapou-se,
indo bater no estrado da carroça, muito perto do pé da senhora Pompónia.
- Desculpe. Vou tentar outra vez.
- Por favor, despache-se.
Um grito dado por Prasutago fez Cato levantar o olhar. O guerreiro iceno dirigia-se, caminho abaixo, para a carroça, falando muito rapidamente. Boudica fez que sim
com a cabeça.
- Ele diz que vêm aí. São quatro. A cavalo.
- A que distância?
- A um quarto de milha da ponte.
- Não temos muito tempo, então.
- Estou a tentar libertá-la o mais depressa que posso - grunhiu Macro, ao aplicar de novo a espada contra o espigão. - Pronto! Acho que cedeu um bocado.
Cato apressou-se até à frente da carroça. Endireitou o corpo do druida gordo e firmou-lhe o chicote entre as pernas. Depois fez um gesto a Prasutago, para que levasse
o corpo do druida jovem para as árvores. Prasutago chegou ao pé do cadáver e, sem o menor esforço, pô-lo ao ombro. Contornou, a cavalo, os póneis diante da carroça,
e atirou-o para as sombras da orla da floresta.
- Escondam os nossos cavalos! Onde está o da Boudica?
- Está morta - disse Boudica. - A queda partiu-lhe a espinha. Tive de a deixar para trás.
- Três cavalos... - O medo gelou Cato. - E nós somos sete. Poderíamos levar dois num cavalo, mas três?
- Teremos de tentar - disse Boudica firmemente, dando um abraço reconfortante às duas crianças. - Ninguém vai ser deixado para trás. Como vai isso com o espigão,
Macro?
- Não vai, gaita! O espigão é pequeno de mais. - Macro saiu da carroça. - Espere um pouco, minha senhora. Volto num instante. Agora...
- Olhou para cima, para o caminho, tentando ver na luz fraca. Quatro vultos negros dirigiam-se à ponte estreita. - Vamos ter que tratar primeiro daqueles ali. E
depois tentar de novo forçar a corrente. Se tiver de ser, corto aquela merda. Todos para a floresta. Por aqui.
Macro agarrou em Boudica e nas crianças e levou-as de junto da carroça para as sombras das árvores. Passaram por cima do druida estatelado e acocoraram-se junto
dos cavalos que Prasutago tinha preso a um pinheiro.
- Desembainhar espadas - disse Macro baixinho. - Sigam-me.
Conduziu Cato e Prasutago até se colocarem a uma distância de
quinze metros da frente da carroça, agachando-se enquanto esperavam os druidas. Os póneis presos aos arreios, diante da carroça, mantinham-se tão quietos e silenciosos
como o corpo do condutor sobre o banco. Os três homens aguardavam, de sentidos atentos aos primeiros sinais da aproximação dos druidas. Então cascos troaram sobre
as tábuas da ponte.
- Esperem que eu avance primeiro - murmurou Macro. Olhou para a expressão esquisita de Prasutago e tentou explicar de um modo mais simples. - Eu lutar primeiro,
depois vocês. Percebeste?
Prasutago disse que sim com a cabeça, e Macro virou-se para
Cato.
- Muito bem, sê rápido e sangrento. Temos de os matar a todos. Nenhum poderá escapar para ir dar o alerta.
Alguns momentos depois os druidas avistaram a carroça e chamaram. Não obtendo resposta, chamaram de novo. O silêncio fez com que se acautelassem. A uns cem passos
de distância, moderaram o ritmo de avanço dos cavalos, e trocaram umas palavras.
- Merda! - silvou Macro. - Não vão morder o isco.
O centurião fez um movimento para se levantar, mas Cato fez algo de impensável e impediu, com a mão, que o seu superior se mostrasse.
- Espere, senhor. Só um bocado.
Macro ficou tão espantado com o descaramento do seu optio que parou o tempo suficiente para ouvir os druidas quando estes se começaram a rir levemente. Depois continuaram
a avançar. Cato apertou o punho da espada e contraiu-se, pronto para seguir Macro e atirar-se ao inimigo. Através da teia dos ramos mais baixos, Cato conseguia ver
os druidas aproximarem-se, em fila, ao longo do caminho. Ao seu lado, Macro praguejava; não poderiam agora avançar sem atraírem as atenções.
- Deixem o último para mim - sussurrou.
O primeiro druida passou por eles, e gritou ao condutor, aparentemente fazendo troça dele. Prasutago sorriu com o que ele disse, e Macro deu-lhe uma forte cotovelada.
O segundo druida também passou, no momento em que o líder gritou de novo, mais alto desta vez. Um dos póneis assustou-se com o barulho e tentou recuar. A carroça
rodou ligeiramente e, à vista de todos, o corpo do condutor tombou lentamente para o lado e caiu para o chão.
- Agora! - bradou Macro, saltando das sombras e dando o seu grito de guerra. Cato fez o mesmo, ao atirar-se ao segundo druida. À sua direita, Prasutago balançou
a sua longa espada, num lento arco cinzento, dirigido à cabeça do seu druida. O golpe aterrou com um baque medonho e o homem caiu bruscamente da sela. Armado com
uma espada curta, Cato fez como lhe ensinaram e enterrou-a com força e lateralmente no seu alvo. O impacto levou o druida a expirar explosivamente. Agarrando-lhe
no manto, Cato puxou-o selvaticamente para o chão, onde empregou de novo a espada, cortando rapidamente a garganta do druida.
Ignorando o som gorgolejante da derradeira respiração do homem, Cato olhou em volta, de espada pronta. Prasutago dirigia-se ao primeiro dos cavaleiros. Tendo sobrevivido
à investida repentina, o druida tinha desembainhado a espada e virado o cavalo. Batendo com os calcanhares, foi direito ao guerreiro iceno. Prasutago foi forçado
a desviar-se do golpe que o
druida lhe dirigiu com a espada. Praguejando, este bateu outra vez com os calcanhares e galopou na direcção de Cato. O optio manteve-se firme e de espada erguida.
O druida rosnou selvaticamente perante a temeridade do homem que, armado apenas com a espada curta das legiões, enfrentava um inimigo a cavalo e brandindo uma espada
longa.
Com o sangue latejando-lhe nos ouvidos, Cato viu o cavalo dirigir-se a ele, o cavaleiro levantando a espada bem alto, preparando o golpe mortal. Ao sentir o bafo
quente das narinas do cavalo, Cato deu com a espada com toda a força contra os olhos do animal, rolando depois para o lado. O cavalo relinchou, cego de um olho,
sentindo a agonia do osso esmagado na sua fronte. Empinou-se, malhando com as patas dianteiras, e fez o seu cavaleiro cair antes de seguir desvairado pelo caminho
fora, de cabeça a abanar, soltando escuros jorros de sangue. Pondo-se novamente de pé, Cato apressou-se a percorrer a curta distância que o separava do cavaleiro,
que desesperadamente tentava erguer a sua arma. Com um agudo tinir de lâmina contra lâmina, Cato desviou o golpe e enterrou a sua espada no peito do druida. Aterrados
com o ataque, os dois cavalos sem cavaleiro fugiram pela escuridão.
Cato voltou-se para ver como Macro se estava a dar com o último druida. A trinta passos de distância, desenrolava-se um duelo desigual. O druida tinha recuperado
da surpresa do ataque antes de Macro o ter alcançado. Com a sua longa espada desembainhada, arremetia agora contra o centurião atarracado, que tinha ido dar a volta,
para bloquear o caminho na direcção da ponte.
- Dava-me aqui jeito uma ajuda! - gritou Macro, enquanto erguia a espada para bloquear outro golpe.
Prasutago corria já em seu auxílio, e Cato foi a seguir. Antes de qualquer um deles ter alcançado o centurião, este tropeçou e caiu. O druida, aproveitando a oportunidade,
arremeteu com a espada, inclinando-se sobre o centurião. A lâmina atingiu-o com um ruído seco, e raspou-lhe no crânio. Sem uma palavra, Macro caiu para a frente
e, durante um momento, Cato só conseguiu olhar, pasmado e aterrorizado. Um uivo raivoso dado por Prasutago fê-lo recuperar a acção, e Cato voltou-se para o druida,
determinado a liquidá-lo. Mas o druida era suficientemente inteligente para não enfrentar dois inimigos ao mesmo tempo, e sabia que tinha de chamar por ajuda. Virou
o cavalo e galopou pelo caminho acima, de volta ao forte, gritando pelos seus camaradas.
Embainhando a espada cheia de sangue, Cato caiu de joelhos ao lado da figura imobilizada de Macro.
- Senhor! - Cato agarrou em Macro pelos ombros e deitou-o de costas, tremendo devido à ferida com muito mau aspecto na cabeça dele.
A espada do druida tinha-o golpeado até ao osso, tirando-lhe ainda um bocado do escalpe. O sangue cobria o rosto sem vida de Macro. Cato meteu-lhe a mão dentro da
túnica. O coração do centurião ainda batia. Prasutago estava ajoelhado ao seu lado, abanando a cabeça pesaroso.
- Vamos lá! Agarra-lhe nos pés. Vamos levá-lo para a carroça.
Carregavam o centurião inerte, quando Boudica saiu de entre as
árvores, guiando as crianças pela mão. Parou ao ver o corpo de Macro. Ao seu lado, a rapariguinha estremeceu ao avistá-lo.
- Oh, não...
- Ele está vivo - grunhiu Cato.
Deitaram Macro delicadamente no interior da carroça, enquanto Boudica foi buscar um odre que estava debaixo do lugar do condutor. Ela empalideceu ao olhar pela primeira
vez para a ferida do centurião; depois tirou a rolha do odre e despejou água sobre o sangrento emaranhado de pele e cabelo.
- Dá-me esse pano que tens ao pescoço - ordenou ela a Cato, e ele rapidamente o desatou e passou-lho. Com uma careta, Boudica recolocou a tira de escalpe no seu
lugar, sobre o crânio de Macro, e atou bem o pano em volta da ferida. Depois retirou o pano que Macro tinha ao pescoço, que já estava manchado do seu sangue, e atou-o
também. O centurião não recuperou os sentidos, e Cato ouviu-o respirar com dificuldade.
- Ele vai morrer.
- Não! - disse Boudica ferozmente. - Não. Estás a ouvir? Temos que o levar daqui para fora.
Cato voltou-se para a senhora Pompónia.
- Não podemos partir. Não sem a senhora e os seus filhos.
- Optio - disse a senhora Pompónia calmamente -, agarra no teu centurião e nos meus filhos e partam daqui agora. Antes que os druidas voltem.
- Não. - Cato abanava a cabeça. - Iremos todos.
Ela mostrou o pé preso:
- Não posso. Mas vocês têm de salvar os meus filhos. Peço-vos. Não podem fazer mais nada por mim. Salvem-nos.
Cato obrigou-se a olhar para o rosto dela e viu o rogo desesperado dos seus olhos.
- Temos de ir, Cato - disse Boudica, ao lado dele. - Temos de ir. O druida que escapou foi avisar os outros. Não há tempo. Temos de ir.
O coração de Cato afundava-se num buraco de negro desespero. Boudica tinha razão. A menos que cortassem o pé da senhora Pompónia, não haveria maneira de a libertar
antes dos druidas voltarem em força.
- Podia tornar a coisa mais fácil para mim - disse a senhora
Pompónia, acenando cautelosamente com a cabeça na direcção dos filhos.
- Mas primeiro leve-os daqui.
O sangue de Cato gelou-se-lhe nas veias.
- Não está a falar a sério?
- Claro que estou. Ou isso ou ser queimada viva.
- Não... Não consigo.
- Por favor - sussurrou ela. - Peço-lhe. Por piedade.
- Nós ir! - interrompeu Prasutago, com um berro. - Eles vir! Rápido, rápido!
Cato desembainhou a espada instintivamente, e apontou-a ao peito da senhora Pompónia. Ela fechou os olhos.
Boudica desviou-lhe a lâmina.
- Em frente das crianças não! Deixa-me primeiro pô-las no cavalo.
Mas era tarde de mais. O rapaz tinha-se apercebido do que se estava a passar, e os olhos dele esbugalharam-se de terror. Antes de Boudica ou Cato poderem reagir,
tinha já trepado para a carroça e agarrava-se tenazmente à mãe. Boudica agarrou o braço da filha de Pompónia, não fosse ela atrás do irmão.
- Larguem-na! - gritou ele, as lágrimas a escorrer pelas faces sujas. - Deixem-na! Não vou deixar que façam mal à minha mamã!
Cato baixou a espada, e disse, num murmúrio:
- Não consigo fazê-lo.
- Tem de o fazer - silvou a senhora Pompónia, por cima da cabeça do seu filho. - Levem-no. Já!
- Não! - gritou o rapaz, e cerrou as mãos no braço da mãe. - Não vou deixar-te, mamã! Por favor, mamã, não me obrigues a ir!
Acima do choro do rapaz, Cato ouviu um outro som: gritos indistintos, vindo da direcção do forte. O druida que escapara à emboscada devia ter alcançado os seus camaradas.
Tinham muito pouco tempo.
- Não vou fazê-lo - disse Cato com firmeza. - Prometo encontrar outra solução.
- Que outra solução? - lamentou-se a senhora Pompónia, perdendo por fim a sua compostura de patrícia. - Eles vão queimar-me viva!
- Não, não vão. Juro-lhe. Pela minha vida. Vou libertá-la. Prometo-lhe.
A senhora Pompónia abanou a cabeça, desesperada.
- Passe-me o seu filho.
- Não! - gritou o rapaz, esquivando-se a Cato.
- Os druidas vir! - gritou Prasutago, e todos eles conseguiam ouvir, ao longe, o bater de cascos de cavalos.
- Agarra na rapariga e vai! - ordenou Cato a Boudica.
- Para onde?
Cato pensou rapidamente, reconstruindo na mente a disposição do terreno que tinham atravessado durante o dia.
- Aquele bosque por onde passámos, a quatro ou cinco milhas de distância. Vão para lá. Já!
Boudica fez que sim com a cabeça, agarrou a rapariga pelo braço e dirigiu-se para as árvores, onde desatou os cavalos. Cato chamou Prasutago e indicou Macro, ainda
inconsciente.
- Leva-o.
O guerreiro iceno pegou facilmente em Macro e levou-o nos braços.
- Com cuidado!
- Confiar em mim, romano. - Prasutago olhou para Cato, e depois voltou-se e dirigiu-se aos cavalos com o seu fardo, deixando Cato sozinho na parte de trás da carroça.
A senhora Pompónia agarrou o filho pelos pulsos.
- Élio, agora tens de ir. Porta-te bem. Faz o que eu te digo. Eu fico bem. Mas tu tens de ir.
- Não quero - choramingou o miúdo. - Não te vou deixar,
mamã!
- Tem de ser. - Ela afastou-o pelos pulsos, passando-o a Cato. Élio lutava freneticamente para se soltar da mãe. Cato agarrou-o pela cintura e puxou-o devagar para
fora da carroça. A mãe observava tudo com lágrimas nos olhos, sabendo que nunca mais voltaria a ver o seu pequeno. Élio chorava e contorcia-se enquanto Cato o segurava.
A alguma distância, ouviu-se o som de cascos sobre madeira, quando os druidas chegaram à ponte. Boudica e Prasutago esperavam, já montados, junto das árvores. A
rapariga mantinha-se sentada em silêncio, à frente de Boudica. Prasutago, segurando com firmeza o corpo do centurião, agarrava também as rédeas do último cavalo,
e Cato sentou nele o rapaz, antes de saltar ele próprio para a sela.
- Vão! - ordenou aos outros, e eles lançaram-se caminho fora, para longe do forte. Cato lançou um último olhar à carroça, consumido pela culpa e pelo desespero,
e depois esporeou o cavalo.
Quando o cavalo largou num trote, Élio soltou-se e escapou a Cato. Rebolou um bocado, levantou-se e correu de volta para a carroça, tão rapidamente quanto as suas
pequenas pernas lhe permitiam.
- Mamã!
- Élio! Não! Volta para trás! Por favor!
- Élio! - gritou Cato. - Volta para aqui!
Mas era escusado. O rapaz tinha chegado à carroça, trepado lá para dentro e precipitara-se nos braços da sua mãe chorosa. Cato ainda voltou o cavalo para a carroça,
mas via já movimento ao fundo, no caminho.
Soltou uma imprecação, depois puxou as rédeas, e galopou atrás de Boudica e Prasutago.

XXIX

Nunca na sua vida inteira Cato se sentira tão miserável. Os quatro, mais a rapariga, Júlia, estavam sentados nas profundezas de um bosque pelo qual tinham passado
durante o dia. Já tinha anoitecido quando encontraram as ruínas de uma velha mina de prata, e tinham parado no interior das escavações para descansarem e deixarem
que os cavalos exaustos recuperassem dos seus duplos fardos. Júlia choramingava para si mesma. Macro estava deitado, coberto pela sua capa e pela de Cato, ainda
inconsciente, num estertor.
Os druidas tinham tentado encontrá-los, espalhando-se pela área e gritando uns para os outros de cada vez que pensavam ver alguma coisa. Por duas vezes ouviram sons
de perseguição, gritos distantes abafados pelas árvores, mas já há algumas horas que não ouviam nada. Mesmo assim, mantinham-se em silêncio.
O jovem optio sentia-se atormentado pelo destino da senhora Pompónia e do filho. Os druidas tinham ceifado demasiadas vidas nos últimos meses, e Cato não iria permitir
que pusessem termo a mais duas. Todavia, como poderia ele honrar a sua promessa de os resgatar? A senhora Pompónia e Élio estavam agora presos naquela vasta fortaleza,
com baluartes maciços e altas paliçadas, mais uma atenta guarnição. Salvá-los era o tipo de tarefa que apenas os heróis míticos conseguiam levar a bom termo, e a
amarga auto-análise de Cato levava-o a concluir que era demasiado fraco e assustadiço para ter a mais remota possibilidade de o fazer. Se Macro não tivesse sido
ferido, talvez se sentisse mais optimista. O que faltava ao pequeno Macro em capacidade de previsão e pensamento estratégico, sobrava-lhe em coragem e força. Quanto
maiores fossem as dificuldades, mais determinado se tornava o centurião em superá-las. Era essa a principal qualidade do homem que se tinha tornado seu amigo e mentor,
e Cato sabia que era precisamente essa qualidade que lhe faltava a ele próprio. Agora, mais do que nunca, precisava de Macro ao seu lado, mas o centurião
jazia aos seus pés, à beira da morte, ao que parecia. A ferida teria acabado de imediato com um homem mais fraco, mas o denso crânio de Macro e a sua resistência
física mantinham-no do lado de cá do Estige, por ora.
- E agora? - sussurrou Boudica. - Temos de decidir.
- Eu sei - replicou Cato, de forma irritada. - Estou a pensar.
- Pensar não chega. Temos de fazer alguma coisa. Ele não vai sobreviver muito tempo se não tiver os cuidados adequados.
Ela disfarçava mal a emoção na voz, e fez Cato lembrar-se do interesse pessoal dela em Macro. Ele tossiu, para desobstruir a garganta e disfarçar a emoção na sua
própria voz.
- Desculpa, não estava nada a pensar.
Boudica deu uma risada breve.
- É assim mesmo, miúdo! Bem, vamos lá falar, agora. Temos de levar Macro de volta à legião, se queremos que ele sobreviva. E também precisamos de levar a rapariga
daqui.
- Não podemos voltar todos. Os cavalos não aguentariam. E de qualquer das formas, eu preciso de estar aqui, perto do forte, onde poderei ficar atento às coisas e
ver se haverá alguma hipótese de salvar a senhora Pompónia e o rapaz.
- Que poderás fazer tu sozinho? - perguntou Boudica, mostrando aborrecimento. - Nada. É assim. Nós demos o nosso melhor, Cato. Quase conseguimos fazer aquilo por
que viemos. Mas não resultou. É tudo o que há a dizer. Não faz sentido sacrificares a tua vida. - Ela pôs-lhe a mão no ombro. - A sério. É como é. Ninguém poderia
ter feito mais.
- Talvez não - concordou ele, relutantemente. - Mas ainda não
acabou.
- Que poderias tu fazer agora? Diz-me honestamente.
- Não sei... Não sei. Mas não vou desistir. Dei a minha palavra.
Durante um momento, Boudica fitou as quase indistintas linhas do
rosto do optio.
- Cato...
- Que é?
- Tem cuidado - disse Boudica suavemente. - Promete-me isso, ao menos.
- Não posso.
- Muito bem. Mas deves saber que consideraria o mundo um lugar mais pobre sem ti. Não o deixes antes do teu tempo.
- Quem sabe se não é este o meu tempo? - replicou Cato em tom severo. - E agora não é altura para filosofar sobre isso.
Boudica olhou para ele com uma expressão triste e resignada.
- Atamos Macro a um dos cavalos - prosseguiu Cato. - Tu e a
rapariga levam os outros dois. Saiam da floresta pelo lado contrário ao que usámos quando aqui chegámos; isso deve deixar-vos longe dos druidas. Vão para leste,
e não parem até alcançarem território atrébate. Se Prasutago estiver correcto, não levarão mais que um dia. Volta à legião o mais cedo possível e conta tudo a Vespasiano.
Diz-lhe que ainda aqui fiquei com Prasutago, e que vamos tentar resgatar a senhora Pompónia, se houver uma oportunidade.
- E depois?
- Depois? Imagino que Vespasiano terá algumas instruções a enviar-me. Prasutago e eu utilizaremos esta floresta como base. Se nos enviarem mensagens, façam-no para
aqui. É melhor que construas um mapa mental do percurso, no teu caminho de volta, para que os homens de Vespasiano nos possam encontrar.
- Se houver uma mensagem, eu própria a trarei.
- Não. Já te arriscaste demasiado nisto tudo.
- É verdade, mas duvido que algum romano seja suficientemente inteligente para seguir as minhas indicações até aqui.
- Escuta, Boudica. Isto é perigoso. Fui eu que escolhi ficar aqui. Não quero também ficar com o peso da tua vida na minha consciência. Por favor.
- Volto o mais rápido que conseguir.
Cato suspirou. Não se conseguia argumentar com o raio da mulher, e não havia nada que ele pudesse fazer para a impedir.
- Como queiras.
- Muito bem, então, vamos lá pôr Macro na sela.
Com a ajuda de Prasutago, Macro foi levantado do chão com delicadeza, e posto sobre o cavalo, onde foi bem atado às extremidades da sela. A cabeça, cheia de ligaduras,
pendeu-lhe, e pela primeira vez desde que fora ferido murmurou de forma incoerente.
- Já não o ouvia a falar assim desde a última vez que estivemos a beber - susurrou Boudica. Depois voltou-se para Júlia e conduziu-a, calmamente, em direcção a outro
cavalo. - Upa.
Júlia recusou-se a mexer-se, e olhou receosamente para a sombra do cavalo. Boudica foi invadida de repente por um mau pensamento.
- Sabes montar, não sabes?
- Não... Um bocadinho.
Instalou-se um silêncio atordoado enquanto Boudica remoía a novidade. Qualquer celta, homem ou mulher, aprendia a montar quase antes de saber correr. Era tão natural
como respirar. Voltou-se para Cato.
- Vocês têm mesmo um império?
- Claro.
- Então como raio é que andam de um lado para outro? A pé não é, de certeza.
- Alguns de nós montam - replicou Cato, irritado. - Chega de conversas. Põe-te daqui para fora.
Prasutago içou a rapariga para cima do cavalo e meteu-lhe as rédeas nas mãos inseguras. Depois de montar, Boudica pegou nas rédeas do cavalo de Macro e deu um estalido
com a língua. A sua montada ainda estava cansada, e foi preciso encorajá-la com um forte golpe dos calcanhares.
- Toma conta do meu centurião! - gritou-lhe Cato.
- Tomarei - respondeu ela, suavemente. - E tu toma conta do meu prometido.
Cato procurou com a vista a enorme figura de Prasutago e perguntou-se por que haveria aquele brutamontes de precisar que tomassem conta dele.
- Não o deixes fazer nada estúpido - acrescentou Boudica, antes dos cavalos desaparecerem na escuridão.
- Ah, está bem.
Ficaram lado a lado, até deixarem de ouvir os cavalos a atravessar a floresta. Então Cato tossiu e virou-se para o guerreiro iceno, não sabendo bem como demonstrar
a Prasutago que agora era ele quem tomaria o comando.
- Precisamos de descansar, agora.
- Sim descansar - concordou Prasutago. - Bom.
Deitaram-se sobre o tapete macio de caruma que cobria o solo da
floresta. Cato tapou-se bem com a sua capa e enroscou-se, repousando a cabeça sobre o braço. Por cima dele, nos pequenos espaços entre a folhagem, as estrelas cintilavam
por entre o vapor da sua respiração. Noutra altura ter-se-ia impressionado com aquela beleza silvestre, mas nessa noite as estrelas pareciam tão duras e frias como
gelo. Apesar do cansaço, Cato não conseguia dormir. A lembrança de ter sido obrigado a abandonar a senhora Pompónia e o seu filho aterrorizado vinha-lhe constantemente
à cabeça, atormentando-o por causa da sua impotência. Quando essa imagem se apagou, foi substituída pela visão aterradora da ferida de Macro, e por muito que rezasse
aos deuses pedindo-lhes que poupassem a vida do centurião, estava no exército há tempo suficiente para saber que aquela ferida era quase de certeza fatal. Era uma
fria avaliação clínica mas, no fundo, Cato não acreditava que o centurião morresse. Não Macro. Não tinha ele sobrevivido àquele desesperado combate final nos pântanos
perto do Tamisa, no Verão anterior? Se conseguira ultrapassar essa situação, então decerto sobreviveria a esta ferida. Ali perto, na escuridão, Prasutago agitou-se.
- Cato.
- Sim?
- Amanhã nós matar druidas. Sim?
- Não. Amanhã nós observamos os druidas. Agora, vê se descansas.
- Huh! - grunhiu Prasutago, e a sua respiração mudou, gradualmente, para o ritmo profundo de quem dorme.
Cato suspirou. Macro já ali não estava, e agora ele tinha ficado na companhia daquele celta louco. Não negava que o homem dava jeito num combate mas, se tinha o
físico de um boi, tinha também o cérebro de um rato. A vida, decidiu o optio, tinha uma maneira curiosa de facilmente transformar uma situação difícil em algo de
muito pior.

XXX

Ao início da manhã seguinte Cato e Prasutago dirigiram-se cautelosamente até à orla da floresta, onde se lançaram ao solo, rastejando pela erva fria e molhada. As
árvores estendiam-se por uma encosta suave; olhando para baixo, para o caminho no vale, não viram sinais dos druidas que os tinham perseguido na escuridão. Do lado
oposto do caminho erguia-se outro monte coberto de árvores. Para lá dessa colina ficava o local onde tinham falhado o resgate, como Cato bem sabia. Ao lembrar-se
disso, invadiu-o uma onda de angústia, mas rapidamente pôs o pensamento de lado e se concentrou na memória que tinha do terreno. Do monte mais afastado, deveriam
ter uma boa vista dos maciços baluartes da Grande Fortaleza. Cato fez sinal a Prasutago e apontou para uma pequena ravina na encosta em que se encontravam, repleta
de giestas e, nalguns locais, de silvas. Servir-lhes-ia de protecção, enquanto desciam o monte. Depois teriam de ser rápidos na travessia do caminho, até alcançarem
a floresta do outro lado.
Embora o céu estivesse limpo, estava-se ainda no princípio da Primavera e o sol pouco aquecia naquela altura do dia. O esforço de se arrastar através das silvas,
a que se juntava a ansiedade pela possibilidade de serem descobertos, permitiu que Cato se mantivesse quente, mas assim que pararam no sopé da colina o seu corpo
começou a tremer de frio. Preocupado com o facto de Prasutago poder pensar que ele tremia de medo, Cato tentou controlar os instintos corporais e arranjou forma
de aquietar os membros. Mantendo a cabeça baixa, sondou os arredores. Nada se movia, à excepção da erva agitada pela leve brisa. Ao seu lado, Prasutago rufou com
os dedos no solo, impaciente, e inclinou a cabeça na direcção das árvores do outro lado do caminho.
Cato fez sinal com a cabeça, e ambos correram pelo espaço aberto, atravessaram o caminho, e alcançaram as acolhedoras sombras das árvores. Abaixaram-se, e Cato pôs-se
à escuta de algum sinal que revelasse terem
sido vistos, mas o sangue que lhe latejava aos ouvidos abafava qualquer som. Puxou Prasutago mais para o interior da floresta, através dum denso matagal emaranhado.
O terreno subia acentuadamente, até que se aproximaram do cume e o chão se tornou mais plano. Os dois detiveram-se pesadamente junto de uma árvore tombada, coberta
do musgo e do líquen de séculos. Arquejando, Cato sentiu-se, de repente, muito tonto, e para não tombar para o lado teve que se suster com ambas as mãos. Prasutago
aproximou-se e amparou-lhe os ombros.
- Tu descansar, romano.
- Não. Não estou cansado - mentiu Cato. Estava exausto, mas ainda mais premente era a fome que sentia. Há dias que não comia nada de jeito, e os efeitos começavam
a tornar-se claros.
- Comida. Precisamos de comida - disse ele.
Prasutago anuiu com um gesto de cabeça.
- Tu ficar aqui. Eu procurar.
- Está bem. Mas tem cuidado. Que ninguém te veja. Percebeste?
- Sa! - Prasutago franziu o sobrolho, devido ao aviso desnecessário.
- Vai lá, então - murmurou Cato. - Não te demores.
Prasutago acenou um adeus e desapareceu entre as árvores, ao longo do cume do monte. Cato deixou-se deslizar até ao chão e encostou-se ao musgo macio do tronco.
Fechou os olhos e inspirou profundamente o ar perfumado da floresta. Durante algum tempo a sua mente esvaziou-se e ele descansou pacificamente, aplacando os sentidos
enquanto escutava os diferentes cantares dos pássaros nos ramos acima dele. De vez em quando sobressaltavam-no os ruídos feitos por outros animais a andarem pela
floresta, mas nunca ouviu vozes, e os sons rapidamente se afastavam. Era estranho encontrar-se sozinho pela primeira vez desde há meses, e saborear a peculiar serenidade
advinda do facto de não ter ninguém por perto. Mas esse sentimento eufórico depressa desapareceu quando a sua mente começou a examinar a situação em que se encontrava.
Macro já ali não estava, nem Boudica. Só restavam ele e Prasutago. O conhecimento da área e dos costumes dos druidas que o guerreiro iceno possuía eram vitais. Ele
dizia até ter alguma familiaridade com o forte onde a senhora Pompónia e o filho estavam presos.
A imagem do rapaz assustado a correr para a mãe afligia-o. Cato amaldiçoou-se por não ter ido atrás de Élio, mesmo estando os druidas tão próximos e cavalgando em
direcção à carroça. Cato e o rapaz poderiam ter escapado. Duvidava disso, mas não deixava de ser uma possibilidade. Uma possibilidade que Vespasiano e Pláucio não
o deixariam esquecer, se alguma vez ele regressasse à legião e contasse a história. A sua severa auto-punição
era já fardo suficiente para ter ainda de levar com os oblíquos olhares de desprezo de homens que poriam em causa a sua coragem.
Passaram-se horas e, quando o sol começou a descer do zénite, Cato decidiu que já tinha descansado o suficiente. Não havia ainda sinais de Prasutago, pelo que se
sentiu algo preocupado. Mas não havia nada que pudesse fazer para acelerar o regresso do outro; só esperava que ele não tivesse caído nas mãos dos druidas, e que
tivesse encontrado comida.
Cato olhou em redor, para as árvores ali perto, e escolheu uma que tinha muitos ramos, para lhe facilitar a subida. Ramo após ramo, trepou à árvore até o tronco
se ter tornado tão fino que baloiçava com o seu peso. Com um braço apertando a casca áspera da árvore, Cato afastou os ramos mais finos. Tinha perdido o norte, e
não conseguiu encontrar o forte à primeira. Depois mudou cautelosamente de posição e tentou outra direcção, avistando o extenso prado que ladeava o rio. Conseguiu
localizar a ponte de madeira e seguiu com a vista o caminho que levava ao forte.
O tamanho dos baluartes inspirou-lhe novo temor. Quantos homens teriam trabalhado ali, e durante quantos anos, para criarem aquele vasto monumento ao poder dos Durotriges?
Quantos homens iria custar a Roma tomar de assalto o forte, quando chegasse a altura das legiões marcharem para oeste? Claro que seria a sua legião, a Segunda, que
iria ser encarregue de tomar de assalto aqueles baluartes. A legião mal tinha conseguido levar a melhor sobre os bretões em batalhas clássicas. Conseguiriam eles
tomar aquela enorme fortaleza? Cato lera acerca da arte de pôr cerco, enquanto criança, mas ainda não tinha tido qualquer experiência do género desde que se juntara
às águias. Só de imaginar assaltar aqueles baluartes de terra ficava com suores frios.
Um ruído pesado, vindo do solo, assustou-o, e quase largou o tronco. Cato espreitou para baixo através dos ramos e viu Prasutago olhando em volta, à sua procura.
Junto ao tronco da árvore jazia um porco, com um rasgão ensanguentado no pescoço.
- Cá em cima! - chamou Cato.
Prasutago inclinou a cabeça para trás e riu-se ao avistar Cato. Fez menção de agarrar um dos ramos mais baixos.
- Não. Fica aí. Desço já.
Já no solo, Cato deitou ao porco um olhar apreciativo.
- Onde é que o arranjaste?
- Uh?
- Onde? - Cato indicou o porco.
- Ah! - Prasutago apontou ao longo do cume do monte, e representou um vale e outro cume por mímica. Depois parou, de sobrolho franzido,
pensando na melhor maneira de explicar a próxima parte por gestos. Mas a palavra veio-lhe por fim:
- Quinta!
- Arranjaste-o numa quinta?
Prasutago disse que sim com a cabeça, com um sorriso largo.
- E havia alguém por lá?
Prasutago desenhou uma linha ao longo do próprio pescoço.
- Ah, boa! Era mesmo isso que precisávamos - disse Cato, chateado.
" Prasutago levantou a mão, tentando aplacá-lo.
- Escondi corpo. Ninguém encontrar.
- Folgo em ouvi-lo. Mas quando derem pela falta dele? Hã, seu
idiota?
Prasutago encolheu os ombros enormes, como se isso não fosse problema dele. Virou-se para o porco.
- Nós comer?
- Sim. - O estômago de Cato roncou. Ambos se riram espontaneamente do barulho. - Nós comer. Agora.
Já experiente no assunto, Prasutago estripou o porco com o seu punhal, juntando num monte reluzente os órgãos não comestíveis. Depois empurrou-os para o oco de um
tronco, excepto o fígado, que guardou para mais tarde. Depois de ter limpo as mãos ensopadas de sangue a bocados de musgo húmido, começou a reunir galhos.
- Fogo, não - ordenou Cato. Apontou para cima, na direcção do forte. - Fumo, não.
Prasutago tinha claramente sonhado com porco assado e por momentos sentiu-se frustrado por o ir comer cru. Mas depois encolheu os ombros e desembainhou o punhal
outra vez. Cortou grosseiramente algumas fatias do lombo do porco e atirou uma a Cato. Na carne rósea viam-se sangue e membranas brancas, mas o romano enterrou avidamente
os dentes na carne ainda quente, e forçou-se a mastigá-la.
Depois de se terem saciado, o iceno colocou a carcaça dentro do tronco oco e cobriu a abertura com alguns ramos. Descansaram então, fazendo turnos até ao cair da
noite; nessa altura desceram a encosta, levando com eles o porco. Afastaram-se do forte, até encontrarem um pequeno abrigo providenciado por um carvalho caído, que
tinha escavado a terra com as suas numerosas raízes. Aí se esforçaram por acender uma pequena fogueira, servindo-se de musgo seco e das pederneiras que Cato tinha
na
mochila. Quando finalmente o fogo ateou, foram-no alimentando, e assaram o porco. Cato estava sentado com os braços em volta dos joelhos, diante do brilho vermelho
e do calor das chamas, apreciando o crepitar da gordura e o cheirinho da carne. Por fim, Prasutago levantou-se e trinchou-a, colocando, sobre uma pedra junto a Cato,
grandes nacos de carne fumegante. Banquetearam-se até não poderem comer nem mais uma fatia, deixando-se depois adormecer, quentinhos e de barriga cheia.
Nos dois dias que se seguiram, fizeram turnos de vigia ao forte, e viram uma fila constante de nativos a dirigir-se para lá. Também havia carroças, e pequenos rebanhos
de animais, incluindo ovelhas, trazidos das pastagens primaveris, mesmo estando iminente a altura das ovelhas parirem. Era óbvio que os durotriges se preparavam
para um cerco, o que significava que tinham recebido notícias de que um inimigo se dirigia naquela direcção. Naquele momento, o inimigo só podia ser Roma; a Segunda
Legião devia ter iniciado a sua marcha. A pulsação de Cato aumentou ao aperceber-se disso. Dentro de poucos dias, talvez, os legionários estabeleceriam um anel de
aço em torno da fortaleza, e os druidas não poderiam escapar com os seus prisioneiros. A esposa e o filho do general serviriam como elementos de troca, para aliviar
os termos da rendição do forte - a não ser que os durotriges fossem tão loucos como os druidas e optassem por enfrentar Roma até ao fim. Nesse caso, não haveria
muita esperança para a senhora Pompónia e para Élio.
Cato tinha estabelecido com Prasutago que no terceiro dia um deles regressaria ao sítio onde Boudica os deixara; ela não poderia voltar antes disso. Portanto, ao
anoitecer, Cato atravessou sorrateiramente o caminho, e dirigiu-se à floresta. Apesar de estar certo de se lembrar do trajecto que ele e Prasutago tinham percorrido,
as árvores pareceram-lhe estranhas, no escuro, e não encontrou as ruínas da mina de prata. Tentou refazer o caminho, mas só conseguiu ficar ainda mais perdido. À
medida que a noite avançava, a precaução deu lugar à pressa, e a vegetação rasteira estalava e era varrida sob os seus pés. Estava quase a chegar ao ponto de chamar
por Boudica, quando um vulto escuro surgiu detrás de uma árvore mesmo à sua frente. Cato desviou a capa e desembainhou a espada.
- Da próxima vez que queiras chamar a atenção, sopra uma trompeta. - Boudica deu um riso abafado. - Pensei que tinha dado com algum dos elefantes de Cláudio que
se tivesse perdido.
Durante um momento Cato ficou apenas a olhar fixamente para a figura de Boudica; depois, com um riso nervoso, baixou a espada e respirou fundo.
- Merda, Boudica, assustaste-me!
- Estavas a pedi-las. Onde está o meu primo?
- Está bem. Está a vigiar o forte. A não ser que tenha ido novamente caçar porcos nalguma quinta.
- O quê? Deixa lá. Explicas-me depois. Agora escuta-me. Não temos muito tempo, e eu tenho uma coisa muito assustadora para te contar.

XXXI

No horizonte, o céu nocturno começava a mostrar o brilho pálido da madrugada, pela altura em que Cato e Boudica chegaram ao abrigo onde Prasutago esperava. O cavalo
dela ficara preso a uma árvore perto da mina de prata, com um saco cheio de ração para ter com que se entreter. Os dois icenos abraçaram-se calorosamente, obviamente
aliviados por verem que o outro estava bem e em segurança. Se bem que dizer-se em segurança era abusar um pouco, reflectiu Cato. Estar acampado numa floresta nem
a uma milha de distância de inimigos selvagens não era assim tão seguro.
Boudica aceitou de bom grado um bocado de porco frio, mas cheirou com desconfiança antes de lhe dar uma dentada.
- Quanto tempo tem este delicioso petisco?
- Quase três dias. Ainda deve estar em condições de se comer.
- Bem, estou cheia de fome, por isso obrigada. - Mordeu um pedaço de carne acinzentada e mastigou. - E agora, as novidades. Terão de me desculpar por falar enquanto
como.
- Tudo bem - assentiu Cato, impacientemente.
- Consegui chegar a uma aldeia atrébate na noite a seguir a deixar-vos. Disseram-me que um exército romano tinha passado por ali durante o dia. Ainda estavam a recuperar
da experiência. De qualquer das formas, parti de imediato e alcançámos Vespasiano umas horas depois. A Segunda Legião está a avançar directamente para a Grande Fortaleza.
Vespasiano tem como objectivo tomá-la primeiro, como exemplo para outros durotriges que tenham a intenção de resistir-lhe noutros fortes.
- Faz sentido - disse Cato. - Atacar em força. E Macro, como
está?
- Macro foi logo levado para o hospital de campanha.
- Ainda está vivo?
- Por enquanto. O médico-chefe não se mostrou muito esperançoso, mas, também, eles nunca se mostram - acrescentou rapidamente,
depois de ver a expressão de Cato. - Vespasiano ficou contentíssimo por ver a filha do general, mas depois mostrou-me uma coisa que tinha sido atada a uma seta e
disparada por cima do portão do acampamento, logo após anoitecer... - Boudica fez uma pausa.
- Continua.
- Era um dedo. Um dedo pequeno. No bocado de tecido que o atava à seta vinha uma mensagem dos druidas da Lua Negra. Um dos batedores nativos traduziu. Dizia que
o dedo era do filho do general, e era um aviso para que não houvesse novas tentativas de resgate.
Cato sentiu-se enojado.
- Estou a ver - murmurou.
- Não, não estás. Pláucio deixou ordens a Vespasiano para que, se acontecesse algum mal à sua família, a cabeça do druida mais importante entre os prisioneiros fosse
cortada e enviada aos durotriges. Os outros são para ser mortos de dois em dois dias, e as suas cabeças também enviadas, até que libertem os membros sobreviventes
da família do general.
- Eles vão ser mortos no momento em que a primeira cabeça chegue, não é?
- Se tiverem sorte.
- E Vespasiano já cumpriu a ordem?
- Ainda não. Enviou a filha do general de volta ao pai, juntamente com um pedido de confirmação das ordens.
- Que Pláucio dará, quando ouvir a história da filha.
- Imagino que ele reaja dessa forma, sim.
Cato fez uns cálculos rápidos:
- Isso foi há dois dias. Dando um total de quatro dias para que a mensagem seja entregue ao general e as ordens confirmadas, e mais um dia para que a cabeça chegue
ao seu destino... isso significa que temos dois dias, três no máximo. Não mais.
- Concordo.
- Estamos feitos... - Cato baixou o olhar para as suas mãos entrelaçadas, depois continuou, pensativo. - A não ser que Vespasiano retarde a execução das ordens.
- Talvez o faça - concordou Boudica. - Mas acho que ele tem outros planos. A Segunda Legião alcançará o forte daqui a dois dias. Acho que ele pretende tomar de assalto
a fortaleza o mais rapidamente possível e resgatar a família do general.
Cato ficou chocado.
- Os druidas nunca o permitiriam. Matariam os reféns no momento em que os muros fossem transpostos. Só encontraríamos cadáveres.
Boudica assentiu:
- Mas qual é a alternativa? É como se eles já estivessem mortos.
- E, olhando para Cato:
- A não ser que alguém se introduza lá dentro e os salve antes da legião chegar.
Cato devolveu-lhe firmemente o olhar. Tal como Vespasiano, também ele não tinha por onde escolher.
- Temos de tentar. Tem de haver uma entrada. Prasutago deve saber.
O guerreiro iceno levantou a cabeça ao ouvir o seu nome. Não fora capaz de seguir a discussão, pelo que fitava as chamas, com um ocasional olhar de contentamento
para Boudica. Ela virou-se para ele e falou-lhe na língua nativa.
Prasutago abanou firmemente a cabeça.
- Na Nenhuma entrada.
- Tem de haver alguma - replicou Cato, com desespero. - Alguma pequena abertura. Qualquer coisa. Algum buraco na paliçada. É só o que queremos.
Prasutago olhou fixamente para o optio, admirado com a expressão de completo desespero que via no seu rosto.
- Por favor, Prasutago. Dei a minha palavra. Se existe uma entrada, tudo o que precisarás de fazer é levar-me até lá. A partir daí, irei sozinho.
Depois de Boudica ter traduzido, Prasutago pensou um bocado, cuspiu para o fogo, e anuiu devagar com a cabeça, antes de responder à sua prima.
- Ele diz que poderá haver uma maneira de entrar. Há um escoadouro no outro lado do forte, oposto ao portão principal. Talvez seja possível trepar por lá e entrar.
Ele leva-te lá, amanhã à noite, mas será tudo. Depois ficarás por tua conta. Ele esperar-te-á ao pé da boca do escoadouro, mas mal oiça alguma coisa sairá logo dali.
- Combinado - concordou Cato. - Diz-lhe que lhe estou grato.
Prasutago riu-se quando Boudica traduziu.
- Ele diz què não quer a gratidão de um homem que vai conduzir para a própria morte.
- Estou-lhe grato na mesma.
Cato sabia que o risco do que ia tentar era tremendo. Poderiam ser descobertos ao tentarem trepar os baluartes, e era provável que o escoadouro estivesse a ser vigiado,
principalmente depois da tentativa de resgate. E,
uma vez lá dentro, que fazer? Onde iria ele procurar, dentro daquela fortaleza repleta de durotriges e druidas da Lua Negra? Mesmo que conseguisse passar despercebido
e encontrasse a esposa e o filho do general, conseguiria ele libertá-los, sozinho, no coração da maior fortificação do inimigo, e pô-los a salvo?
Num mundo mais racional, Cato teria desistido da ideia. Mas tinha dado a sua palavra à senhora Pompónia. Tinha visto o terror nos olhos do rapaz. Tinha sido testemunha
das terríveis atrocidades que os druidas da Lua Negra tinham infligido a Diómedes, e à pacífica aldeia de Noviómago. O rosto da criança loura, imerso nos seus pensamentos
nesses últimos dias, surgiu de novo, numa súplica fria. E ainda havia Macro. O centurião estava praticamente morto, e estivera pronto para dar a vida para resgatar
a família do general.
O peso de tudo o que vira e experimentara era esmagador. Não havia nada de racional naquilo. Era algo de muito mais forte que o empurrava. Não havia razão no mundo,
reflectiu sombriamente - apenas um mar infindo de compulsões irracionais, que mudava com as marés e levava os seus destroços humanos para onde quer que fosse. Era-lhe
tão impossível virar as costas a uma última tentativa para resgatar a esposa e o filho do general, como alcançar a lua e tocar-lhe.
Quando se levantou de manhã, Cato preparou-se para a sua sorte. Mastigou entorpecido o que restava do porco frio, depois subiu ao cimo do monte. Havia mais guerreiros
durotriges a dirigirem-se para o forte, e assentou quantos eram na tabuinha de cera que trazia na mochila. Caso ele não regressasse, a informação poderia ao menos
ser útil a Vespasiano. Boudica entregá-la-ia ao legado.
Enquanto Boudica fazia o seu turno em cima da árvore, Prasutago desapareceu misteriosamente e, durante algum tempo, Cato interrogou-se se o guerreiro iceno conseguiria
levar avante a impossível tarefa que os esperava à noite. Mas, ao mesmo tempo que se questionava, realizou que essa questão nem se punha. Prasutago provara ser um
homem de palavra. Se ele dissera que o conduziria até ao escoadouro do forte, fá-lo-ia.
Prasutago reapareceu finalmente, pouco antes do sol descer por trás das árvores, mergulhando a floresta em escuridão; trazia um saco cheio de raízes e folhas. Acendeu
uma pequena fogueira e começou a ferver as plantas na sua caçarola, produzindo um odor tão forte que irritou as narinas de Cato. Boudica foi juntar-se a eles.
- Que faz ele? - Cato acenou com a cabeça na direcção do caldo borbulhante.
Ela trocou umas palavras com Prasutago e depois respondeu:
- Está a fazer tintas. Caso entres na fortaleza, vais precisar de te
misturar com os nativos, tanto quanto possível. Prasutago vai pintar-te e untar-te o cabelo com visco.
- O quê?
- Ou isso ou ser morto mal te vejam.
- Está bem, pronto - cedeu Cato.
À luz e ao calor da fogueira, despiu a túnica e ficou apenas em tanga, enquanto Prasutago se ajoelhou à sua frente e traçou uma série de padrões azuis espiralados
pelo seu torso e braços. O iceno completou o trabalho fazendo padrões mais pequenos e intrincados na cara de Cato, pintando com uma concentração intensa, que Cato
nunca antes vira nele. Enquanto o primo trabalhava, Boudica preparou o visco e espalhou-o pelo cabelo de Cato. Ele estremeceu com a sensação de formigueiro no couro
cabeludo e depois forçou-se a permanecer quieto, quando Boudica protestou.
Por fim, os dois icenos afastaram-se e admiraram a sua obra.
- Como estou?
Boudica riu-se.
- Pessoalmente, acho que darias um grande celta.
- Obrigado. E agora, podemos ir?
- Ainda não. Tira a tanga.
- O quê?
- Tu percebeste o que eu disse. Tens de parecer um guerreiro. Põe a minha capa em volta do corpo. Sem mais nada.
- Não me lembro de ter visto nenhum dos outros durotriges totalmente nus. Não me parece que seja habitual.
- E não é. Mas a Primavera chegou. É a altura a que nós, celtas, chamamos Primeiro Rebento. Na maioria das tribos os homens andam nus durante dez dias, em honra
da Deusa da Primavera.
- À excepção dos icenos, naturalmente. - Cato olhou para Prasutago.
- Naturalmente.
- É um pouco voyeur, essa vossa deusa.
- Gosta de avaliar o talento - explicou Boudica, no gozo. - Nalgumas tribos, todos os anos um jovem é escolhido pela sua aparência e torna-se noivo dela.
- Como é que é isso?
- Os druidas arrancam-lhe o coração e deixam que o seu sangue fertilize as plantas em torno do altar. - Boudica riu-se da expressão de horror dele. - Relaxa, eu
disse algumas tribos, das mais selvagens. Mas tenta não parecer muito formoso.
- Existem tribos mais selvagens que os durotriges?
- É claro. Aqueles ali no forte não são nada comparados com
algumas tribos do Noroeste. Vocês, romanos, hão-de perceber isso na devida altura. Vá, tira a tanga, se fazes favor.
Cato desatou-a e, dando um olhar embaraçado a Boudica, deixou cair o pedaço de tecido. Ela não conseguiu evitar uma espreitadela, e sorriu. Ao lado, Prasutago deu
uma gargalhada abafada e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- Que foi que ele disse? - perguntou Cato, zangado.
- Perguntou se as mulheres romanas já teriam reparado que andam muito mal servidas.
- Ah, sim? Ele quer saber, é?
- Pronto, rapazes, já chega. Tem trabalho a fazer. Aqui tens a minha capa, Cato.
Ele agarrou nela e passou-lhe a tanga.
- Toma conta disto.
Prendeu a fivela no ombro, e Prasutago procedeu a uma última inspecção.
Abanou positivamente a cabeça e deu com o punho no ombro de
Cato.
- Vamos! Nós ir!

XXXII

O crescente já se erguia no céu quando Prasutago e Cato abandonaram a floresta e se dirigiram à Grande Fortaleza. Um vento fresco arrastava farrapos de nuvens argênteas
através da escuridão salpicada de estrelas. Prasutago e Cato atravessaram a correr os prados que circundavam os baluartes, atirando-se ao chão e rastejando assim
que as nuvens deixavam a lua descoberta. A chegada iminente dos primeiros elementos da Segunda Legião fizera com que todos os rebanhos de ovelhas dos arredores tivessem
sido recolhidos no forte, e Cato agradeceu o facto desses animais nervosos não estarem por perto; a luz pálida da lua já chegava para atrapalhar.
Cerca de duas horas mais tarde, tanto quanto Cato pôde calcular, chegaram ao outro lado da Grande Fortaleza. Prasutago conduziu-o directamente à escura massa do
primeiro baluarte. Estendia-se pela planície o som vago dos cantares e do festim, vindo do forte no topo do monte. À frente de Cato, Prasutago continuava a avançar,
olhando constantemente para a direita e para a esquerda, à medida que o solo começava a inclinar-se, no limite do primeiro baluarte.
Parou, e depois atirou-se para o chão, e Cato fez o mesmo, de olhos e ouvidos atentos. Então Cato viu-os: dois homens recortados contra o céu estrelado, patrulhando
o topo do primeiro baluarte. A conversa deles ouvia-se lá em baixo e, pelo tom animado, não estavam a ser tão diligentes quanto deviam. Era claro que a severa disciplina
implícita no dever de uma sentinela das legiões não se aplicava aqui. Quando a patrulha passou, eles ergueram-se e começaram a escalar a rampa relvada do baluarte.
A inclinação era grande e Cato depressa começou a arfar devido ao esforço da escalada, imaginando já quão difícil aquilo seria com armadura e equipamento completo,
caso a Segunda Legião lançasse um ataque ao forte.
Chegados ao topo do baluarte, deitaram-se de novo. Agora que estava realmente a atravessar as defesas, Cato sentia-se ainda mais
siderado com a escala do forte. Um trilho estreito percorria o primeiro baluarte, acompanhando toda a extensão que ele conseguia ver ao luar. Do outro lado, o solo
descia abruptamente até um profundo fosso, antes de se elevar de novo para dar forma ao segundo baluarte. Lá em baixo, no fosso, havia um estranho padrão entrelaçado
que Cato não conseguia distinguir bem. Depois apercebeu-se do que era. Uma série de estacas afiadas, enfiadas no solo em diferentes ângulos, à espera de empalar
qualquer atacante que chegasse até ali. Não restavam dúvidas de que o fosso entre o segundo e o terceiro baluartes continha mais dessas estacas maldosas.
- Vai - sussurrou Prasutago.
Atravessaram o trilho da patrulha agachados e desceram, meio a correr, meio a deslizar, o outro lado do baluarte, tomando cuidado em ir travando, ao aproximarem-se
das pontas aguçadas no fundo. As estacas tinham sido inteligentemente colocadas, de forma a que alguém que tentasse evitar uma se deparasse de imediato com outra.
Qualquer tentativa de um grupo se precipitar por ali resultaria num banho de sangue, e Cato rezou para que Vespasiano tivesse o bom senso de não tentar um assalto
frontal. Se sobrevivesse a esta noite, era vital que avisasse o legado dos perigos que esperavam os seus legionários.
Só com as capas a prenderem-lhes os movimentos, Prasutago e Cato escolheram rapidamente caminho por entre as estacas e começaram a escalar o segundo baluarte. Era
apenas ligeiramente mais pequeno que o primeiro, e os membros de Cato doíam-lhe quando alcançaram o cimo. Conseguiam agora ver a paliçada no topo do terceiro e último
baluarte. Era difícil dizer, no escuro, mas Cato calculou que a muralha de madeira devia ter, pelo menos, uns três metros de altura; mais do que suficiente para
deter qualquer inimigo suficientemente temerário para tentar um ataque frontal. Um olhar rápido para ambos os lados do trilho revelou que o caminho estava livre,
pelo que se esgueiraram para o outro lado e desceram para onde mais estacas os esperavam, lá em baixo. Quando lá chegou, Prasutago não começou a escalar a última
rampa, seguindo antes ao longo da base desta, durante um bocado, olhando continuamente na direcção da paliçada.
Sentiram o cheiro do escoadouro antes de terem visto; um revoltante odor a dejectos humanos e restos de comida putrefacta. O solo sob os seus pés tornou-se lamacento
e escorregadio, à medida que avançavam. Poças escuras de porcaria tinham-se acumulado em volta das estacas. Depressa as poças deram lugar a um malcheiroso pântano
de excremento, que enchia o fosso e reluzia ao luar. Avistava-se um grande monte de desperdícios e imundícies, com a forma de um enorme cone cuja base assentava
no fosso, e cujo vértice se situava lá em cima, numa estreita vala que levava à paliçada.
Prasutago agarrou no braço do optio e apontou para a vala. Cato assentiu e então começaram a subir na direcção da última linha defensiva do forte. Quanto mais subiam,
mais intenso era o mau cheiro. Tornou-se tão forte que Cato começou a asfixiar, e sentiu a bílis subir-lhe à garganta. Lutou desesperadamente para não vomitar, não
fosse o som atrair atenções. Chegaram por fim à paliçada e descansaram um pouco ao lado do escoadouro nauseabundo. Uma pequena estrutura de madeira tinha sido construída
sobre ele, projectando-se para fora da paliçada. No meio havia uma abertura quadrangular, por onde eram despejados os desperdícios e os dejectos. Não havia sinais
de vida na paliçada acima deles, tirando o ruído distante dos durotriges bebendo a eito. Prasutago desceu para a vala, tomando cuidado para não escorregar no chão
viscoso. Colocou-se directamente por baixo da abertura, agarrou-se à base da paliçada à sua frente, e acenou a Cato.
A imagem de alguns durotriges a passar junto à paliçada e a pararem para uma cagada mesmo na orgulhosa cabeça do iceno passou pela ideia de Cato, que foi incapaz
de conter um riso abafado. Prasutago olhou para ele, furioso, e apontou energicamente a abertura.
- Desculpa - sussurrou Cato, ao aproximar-se. - Foi dos nervos.
- Tirar capa - ordenou Prasutago.
Cato desabotoou a fivela e deixou cair a capa de Boudica. Ao ficar de repente nu, começou a tremer violentamente.
- Subir! - silvou Prasutago. - Para cima de mim.
Cato colocou as mãos sobre os ombros do guerreiro e elevou-se até que os seus joelhos ficaram ao nível da cabeça do outro. Depois tentou alcançar a abertura com
uma mão. Debaixo dele, Prasutago gemia, esforçando-se por se manter firme mas vacilando por um momento assustador. Cato esticou os braços, e agarrou a estrutura
de madeira. Içou-se devagar, até conseguir colocar um cotovelo na abertura e depois, num movimento rápido, um pé. O resto foi fácil; ficou então deitado sobre as
tábuas de madeira, com o coração aos saltos, olhando para o coração da fortaleza que se estendia à sua frente.
Ali perto havia uma vasta extensão de cercados para animais, pouco firmes, cheias de porcos e ovelhas que esquadrinhavam calmamente os montículos de ervas que lhes
tinham deixado prontos no interior de cada cerca. Uns quantos campónios estavam ocupados a colocar, com as suas forquilhas, ração de Inverno dentro de um extenso
cercado que continha cavalos. À direita, ao longe, estendia-se uma variedade de habitações redondas cobertas de colmo, agrupadas dos dois lados de uma enorme cabana,
fantasticamente iluminada pelo brilho de uma grande fogueira que
ardia no amplo espaço aberto à frente. Uma multidão estava sentada, em grupos, perto das chamas, bebendo e incitando um par de gigantes que lutava diante das chamas
e cujos movimentos projectavam no chão longas sombras dançantes. À medida que Cato observava, um deles foi atirado ao chão e um estridor irrompeu dos espectadores.
À esquerda havia um recinto à parte. Uma paliçada interna estendia-se ao longo do terreiro, sem aberturas excepto por um portão. De cada um dos lados deste, um braseiro
projectava brilhantes círculos de luz. Quatro druidas, cada um armado de uma longa lança de guerra, aqueciam-se junto dos braseiros. Ao contrário dos seus aliados
durotriges, não bebiam e mantinham-se alerta.
Cato enfiou a cabeça pela abertura por onde tinha entrado.
- Volto já. Espera aqui!
- Adeus, romano.
- Eu volto - sussurrou Cato, exasperado.
- Adeus, romano.
Cato levantou-se cautelosamente e desceu a curta rampa que levava da paliçada ao terreiro, seguindo por entre as cercas dos animais. Algumas ovelhas olharam para
ele enquanto passava, com a habitual desconfiança de uma espécie cuja relação com o homem era alimentar. Viu uma forquilha de madeira no chão, perto de uma cerca,
e abaixou-se para a apanhar. O coração batia-lhe com força, e todos os seus nervos lhe diziam para sair dali. Precisou de toda a sua força de vontade para continuar,
caminhando devagar em direcção ao cercado que os druidas guardavam, e mantendo-se o mais possível afastado dos camponeses. Se alguém tentasse meter conversa com
ele, estaria perdido. Cato parava em cada redil, fingindo inspeccionar os animais, por vezes atirando mais feno para o interior das cercas. Se alguns animais ficavam
momentaneamente perplexos com as rações extras, rapidamente ultrapassavam o choque e se atiravam a elas com vontade.
O portão do recinto dos druidas estava aberto, pelo que Cato conseguiu avistar algumas cabanas mais pequenas, e mais druidas acocorados em volta de pequenas fogueiras,
todos embrulhado nos seus mantos pretos. Mas a entrada era pequena, por isso não dava para ver muita coisa. Cato aproximou-se tanto quanto pôde, avançando ao longo
da linha de redis, até ficar a não mais de cinquenta passos do portão. De vez em quando arriscava um olhar naquela direcção, tentando não parecer óbvio que o fazia.
A princípio os guardas ignoraram-no, mas depois um deles deve ter achado que Cato se estava a demorar muito por ali. O guarda levantou a lança e aproximou-se dele
devagar.
Cato voltou-se para o redil mais próximo, como se não tivesse visto
o homem, e apoiou-se na forquilha. O coração batia-lhe violentamente, e deu por si com um tremor nos braços que não era devido ao frio. Devia fugir dali, pensou,
e quase pôde sentir a ponta de aço frio da lança do druida a rasgar a noite e a ir-se espetar nas suas costas, enquanto fugisse. Esse pensamento encheu-lhe a mente
de terror. E se o homem lhe dirigisse a palavra? O fim seria decerto o mesmo.
Ouvia já as passadas do druida; depois o homem chamou-o. Cato fechou os olhos, engoliu em seco, e virou-se com tanta calma quanto possível. O disfarce que Prasutago
lhe arranjara ia ser realmente posto à prova, mas nunca em toda a sua vida Cato se tinha sentido tão romano.
A não mais de dez passos de distância, o druida gritou-lhe qualquer coisa, e apontou a lança para as distantes cabanas dos durotriges. Cato ficou a olhar, de olhos
muito abertos, e apertou mais a forquilha. O druida gritou-lhe novamente e avançou, exasperado, na direcção de Cato. Este não se mexeu, plantado no chão e tremendo,
e o druida voltou-o com brusquidão e deu-lhe um pontapé no traseiro, empurrando-o para longe do cercado e encaminhando-o para junto dos campónios que tomavam conta
dos animais. Levantou-se um coro de gargalhadas ásperas dos outros guardas junto do portão, à medida que Cato se afastava de gatas. Avistando-lhe as nádegas, o druida
atirou-lhe com a lança, e só falhou porque Cato se lembrou de correr para longe dali. O druida ainda lhe gritou alguma coisa, provocando mais gargalhadas nos seus
camaradas, e depois virou-se e voltou para o seu posto.
Cato correu, através das cercas, até estar certo que estava fora do campo de visão dos druidas. Agachado, esforçou-se por recuperar o fôlego, ao mesmo tempo aterrado
e feliz por ter conseguido escapar. Tinha facilmente dado com o recinto reservado aos druidas, mas agora teria de encontrar maneira de lá entrar. Levantou-se e olhou
por cima dos redis, através do bafo dos animais agrupados, na direcção do cercado. A menos que os seus olhos o enganassem, fazia um bojo, e o portão estava mais
chegado a um lado. Se ele conseguisse aproximar-se pelo outro lado, junto à paliçada do forte, talvez encontrasse uma maneira de entrar, fora da vista dos druidas
que estavam junto do portão.
Cato dirigiu-se de volta ao escoadouro, através das cercas, até se ver a duzentos metros de distância dos guardas. O solo em volta das cercas não tinha erva, e apresentava
uma extensão de lama remexida. Cato deitou-se de barriga para baixo e, rastejando, avançou penosamente, contornando as cercas até ao ponto de junção do recinto dos
druidas com a paliçada exterior. As estacas do cercado eram aí mais baixas, quando se juntavam às da paliçada, e talvez existisse um ponto por onde pudesse entrar.
Forçou-se a avançar devagar, para que nenhum dos seus
movimentos despertasse a atenção dos guardas. Se o apanhassem de novo, já não haveria brincadeiras grosseiras. Pareceu-lhe levar horas, mas, finalmente, viu-se para
lá da curva do cercado, fora do campo de visão dos guardas, pelo que resolveu arriscar uma corrida até ao ângulo das duas paredes. Com um último olhar na direcção
dos guardas, pôs-se de pé e correu a distância que faltava até onde o cercado se juntava com a paliçada, agachando-se na sombra junto à base de ambos. Depois, deu
outra olhadela. Não havia sinais de que tivesse sido visto. Trepou a rampa até à paliçada exterior e olhou por cima do cercado.
O interior estava repleto de druidas, muitos mais do que aqueles que entrevira junto das fogueiras. Muitos dormiam no chão, e Cato presumiu que haveria mais dentro
das cabanas que preenchiam o recinto. Alguns estavam acordados, e trabalhavam em construções de madeira que faziam lembrar as estruturas das catapultas romanas.
Os druidas estavam, evidentemente, a criar a sua própria forma rudimentar de artilharia. Os seus olhos sondaram o cercado, mas a esposa e o filho do general podiam
estar em qualquer das cabanas. Recusando-se a desesperar, Cato examinou as cabanas uma vez mais. Quase tinha desistido quando reparou na gaiola. Ao lado de uma das
maiores cabanas, meio oculta pela sombra do telhado de colmo, havia uma pequena jaula de verga, com traves de madeira a barrar a entrada. Atrás das traves, estavam
dois rostos, mal visíveis à luz pálida do luar, observando os druidas a trabalhar. De cada um dos lados da entrada estava um guarda armado.
O coração de Cato encolheu-se quando viu os infelizes prisioneiros. Não havia maneira de os salvar, nenhuma mesmo. No momento em que tentasse galgar o cercado, seria
visto. E mesmo que, devido ao mais incrível milagre, o não fosse, como conseguiria ele, sozinho, tirá-los da prisão? O destino tinha-lhe permitido chegar até ali,
mas não mais adiante.
Cato abaixou-se, sabendo que não havia maneira de chegar aos reféns sem que fosse morto. Sempre sentira que esta missão era uma loucura, mas obter confirmação desse
facto não o aliviava de todo. Não havia mais nada que pudesse fazer. Tinha de sair dali imediatamente.
Voltou para o buraco do escoadouro, tão cautelosamente como quando se aproximara do cercado. Quando teve a certeza que ninguém o veria, inclinou-se sobre a abertura.
- Prasutago... - sussurrou.
Uma sombra levantou-se e deslizou até ele. Quando o guerreiro iceno se pôs debaixo do buraco, Cato desceu; mas não se conseguiu agarrar, tombou e deslizou na direcção
da vala. Uma mão forte agarrou-o pelo tornozelo e deu-lhe um puxão, obrigando-o a parar, a menos de meio metro
do monte de excrementos e urina que escorria num fio pela vala. Prasutago puxou-o para a erva que a ladeava e prostrou-se a seu lado, a seguir.
- Obrigado - disse Cato, ofegante. - Pensei mesmo que ia ficar na merda, ali.
- Encontrar eles?
- Sim - respondeu Cato, amargamente -, encontrei-os.

XXXIII

A Segunda Legião chegou no dia seguinte, ao meio-dia. Da árvore que tinham estado a utilizar como torre de vigia, Cato viu um grupo de cavaleiros a aproximar-se
da Grande Fortaleza, vindos de leste. Mesmo não sendo possível estar certo da sua identidade a tal distância, a dispersão era característica dos batedores que eram
enviados à frente do exército romano. Cato sorriu, deleitado, e, muito contente, deu um soco no tronco da árvore. Depois de tantos dias miseráveis escondido nas
terras dos durotriges e dormindo ao relento, sempre com medo de ser descoberto, o facto da Segunda Legião estar próxima encheu-o de uma ânsia calorosa e reconfortante.
Era quase como rever a família mais chegada, pelo que se deixou comover bem mais do que julgava possível. Antes de poder chamar Prasutago, teve que ultrapassar o
doloroso aperto de emoção na garganta. O topo da árvore abanou de modo alarmante, quando o guerreiro iceno a trepou para se juntar a ele.
- Cuidado, homem - grunhiu Cato, agarrando-se melhor. - Queres que toda a gente saiba que estamos aqui?
Prasutago parou uns ramos abaixo de Cato, e apontou na direcção do forte. Os batedores da legião também tinham sido vistos pelo inimigo, e a última das patrulhas
dos durotriges marchava em direcção ao portão principal. Em breve, todos os nativos estariam cercados, confiantes na sua capacidade de resistir à tentativa dos romanos
para se apoderarem da Grande Fortaleza. Já não havia risco para Cato e Prasutago; a pressão de andarem escondidos tinha terminado para eles, e Cato suspirou de alívio.
- Anda lá, então. Mas vê se não partes o tronco.
- Hã? - Prasutago olhou para cima sem ter percebido nada.
Cato apontou para a pequena espessura do tronco.
- Tem cuidado.
Prasutago agitou o tronco, na brincadeira, quase fazendo Cato largá-lo, e depois assentiu com a cabeça.
Cato rangeu os dentes, irritado. Olhou para leste, para lá dos batedores, esforçando-se por ver o primeiro sinal do corpo principal da Segunda Legião.
Passou-se quase uma hora até que a vanguarda emergiu da distante paisagem de montes e floresta. Um vago brilho ondulante assinalou a primeira das coortes, à medida
que o sol batia nos elmos e nas armas. Lentamente, a frente da legião transformou-se numa longa coluna, como uma serpente deslizando devagar através da paisagem.
Oficiais do estado-maior, a cavalo, acompanhavam a coluna dos dois lados, para cima e para baixo, assegurando que nada impediria o seu avanço regular e disciplinado.
Em cada um dos flancos, a alguma distância da legião, mais batedores preveniam algum possível ataque de surpresa do inimigo. Mais à retaguarda rolava a massa escura
dos carros com a bagagem e a artilharia, depois, e finalmente, a coorte que as protegia. Cato estava surpreendido com o tamanho da caravana da artilharia. Era bem
maior que o habitual para uma legião. De alguma forma, o legado arranjara reforços. Ainda bem, pensou Cato, olhando para o forte. Seriam necessários.
- Está na hora de irmos falar com Vespasiano - murmurou Cato, dando depois uma pancadinha na cabeça de Prasutago, com a bota.
- Desce, pá!
Rapidamente deixaram o cimo do cume do monte e foram ter com Boudica, e Cato deu-lhe as novidades. Depois, saíram cautelosamente da floresta e seguiram para leste,
em direcção à legião. Passaram por uns quantos casebres, onde, em tempos mais pacíficos, os camponeses faziam a sua vida, trabalhando na agricultura e criando ovelhas
e porcos, talvez até vacas. Agora estavam vazias, e todos os fazendeiros, as suas famílias e animais, se tinham refugiado no interior da Grande Fortaleza, em busca
de protecção contra os terríveis invasores que marchavam sob as asas das suas águias de ouro.
Cato e os companheiros passaram pelo lugar onde a carroça dos druidas tinha sido atacada há alguns dias atrás, e repararam que ainda havia sangue, seco e escuro,
nos sulcos deixados pelas rodas da carroça. Uma vez mais Cato pensou em Macro, e sentiu-se inquieto por ir saber qual teria sido a sorte do seu centurião, quando
chegassem à legião. Parecia impossível que Macro pudesse morrer. O entrançado de cicatrizes que o centurião trazia na pele, e a sua confiança ilimitada na sua própria
indestrutibilidade, eram testemunhas de uma vida que, embora cheia de perigos, era peculiarmente cativante. Era fácil imaginar Macro velho e curvado, numa colónia
qualquer para veteranos, dali a muito tempo, contando constantemente histórias dos seus dias de exército e, no entanto, não demasiado velho para se embebedar e gozar
de um geriátrico pugilato. Era-lhe quase
impossível imaginá-lo frio e morto. E, contudo, aquele golpe na cabeça, tão severo, ameaçava o pior. Cato descobriria em breve as consequências, e isso assustava-o.
Os batedores apareceram quando eles atravessavam a ponte de tábuas. Um decurião de aspecto pretensioso - com plumas impecáveis e botas de couro até ao joelho - veio
ao encontro deles, escoltado por metade do seu esquadrão. O decurião desembainhou a espada e bradou uma ordem de ataque.
Cato pôs-se à frente de Boudica, abanando os braços. Ao seu lado, Prasutago parecia confuso, e virou-se mesmo para ver a quem atacava a cavalaria. A alguma distância
da ponte, o decurião refreou o cavalo, e levantou a espada para que os seus homens abrandassem, claramente desapontado ao ver que os três vagabundos andrajosos não
iriam querer lutar.
- Sou romano! - gritou Cato. - Romano!
O cavalo do decurião parou a centímetros da cara de Cato, e o animal bafejou-lhe o cabelo.
- Romano? - O decurião franziu o sobrolho, olhando Cato de cima a baixo. - Não acredito nisso!
Cato olhou para baixo, para a sua túnica aberta, e viu os desenhos espiralados que Prasutago lhe fizera, e depois tocou na face, apercebendo-se que também ela devia
ter ainda os restos do disfarce que usara na noite anterior.
- Ah, estou a perceber. Esqueça isto, senhor. Sou o optio da Sexta Centúria, Quarta Coorte. Estou em missão a pedido do legado. Preciso falar-lhe de imediato.
- Ah, sim? - O decurião estava ainda longe de acreditar, mas ocupava um posto demasiado baixo para assumir a responsabilidade de uma decisão sobre este desgraçado
e os seus companheiros. - E esses, suponho, também são romanos.
- Não, são batedores icenos, que trabalham comigo.
- Hmmm.
- Preciso de falar com o legado urgentemente - relembrou Cato.
- Logo veremos, quando chegarmos à legião. Por agora, montem com os meus homens.
Três batedores, os infelizes contemplados, foram destacados para a tarefa e, de má vontade, ajudaram Cato e os outros a subirem para trás deles. O optio pôs os braços
em volta do seu cavaleiro e o homem resmungou:
- Vê lá se te agarras é à sela, se não queres levar.
Cato fez o que lhe disseram, e o decurião ordenou que a coluna fizesse meia-volta e conduziu-a ladeira acima, a trote. Ao atingirem a crista,
Cato sorriu perante o trabalho que a legião já realizara, apesar de ter chegado há apenas uma hora. À frente deles, a pelo menos uma milha de distância, via o habitual
destacamento de escaramuça. Mais próximo, o corpo principal da legião trabalhava duramente na construção de um acampamento provisório, o fosso exterior já escavado
e a terra a ser compactada no interior para formar o baluarte de defesa. Por trás do acampamento, os veículos da legião dirigiam-se ainda em direcção às suas posições.
Mas não havia agrimensores atarefados a marcar o terreno em torno da fortaleza dos Durotriges.
- Não vão fazer a circunvalação? - perguntou Cato. - Porquê?
- Pergunta ao teu comparsa, o legado, quando falares com ele
- respondeu o batedor, com maus modos.
Durante o resto da curta viagem, Cato manteve o silêncio e, mais dificilmente, o equilíbrio. O decurião ordenou que a patrulha parasse assim que passaram a área
demarcada para um dos quatro portões principais do campo. O centurião de serviço levantou-se da sua secretária e dirigiu-se para lá. Cato conhecia-o de vista, mas
não lhe sabia o nome.
- Mas que raio trazes tu aí, Mânlio?
- Encontrei-os a dirigirem-se para o forte, senhor. Ali o miúdo diz que é romano.
- Ah, diz? - O centurião sorriu.
- Pelo menos fala bem latim, senhor.
- Dará um bom escravo, então. - O centurião sorriu mais ainda.
Cato fez a saudação.
- Optio Quinto Licínio Cato, senhor. Regresso deuma missão que desempenhei a pedido do legado.
O centurião olhou para Cato de perto, depois estalou os dedos, quando o reconheceu.
- Tu és da centúria daquele tarado do Macro, não é?
- Macro é meu centurião, sim, senhor.
- O desgraçado.
Cato sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo, mas antes de poder perguntar sobre Macro, o centurião de serviço ordenou ao decurião que informasse directamente
o quartel-general e mandou avançar a patrulha. Trotaram pela ampla avenida entre as áreas marcadas para os legionários erguerem as suas tendas de pele de cabra,
quando o fosso e a muralha do acampamento estivessem terminados. No centro do terreno, a tenda do legado já estava montada, e vários cavalos pertencentes aos oficiais
do estado-maior estavam presos a uma trave improvisada. O decurião mandou a patrulha parar e desmontou, fazendo sinal a Cato e aos outros para que o seguissem de
imediato.
- Estes aqui querem ver o legado - anunciou ele ao comandante da guarda pessoal de Vespasiano. - Foi o centurião de serviço que os enviou cá.
- Esperem aqui.
Momentos depois, uns exaustos Cato, Boudica e Prasutago foram incitados a entrar pelo secretário pessoal de Vespasiano. A princípio Cato pestanejou. Era assaz difícil
sair dos sofrimentos dos últimos dias para a luxúria dos confortos proporcionados ao comandante da Segunda Legião. Tinha sido colocado soalho, e, sobre ele, no centro
da tenda, estava a larga mesa de campanha de Vespasiano, rodeada de bancos almofadados. Em cada um dos cantos brilhava um braseiro, aquecendo agradavelmente o interior
da tenda. Num dos lados, uma mesa baixa continha uma escudela com carnes frias e um jarro meio de vinho. Atrás da sua secretária, Vespasiano acabou de assinar um
documento, passando-o de volta a um escrivão e mandando-o logo embora. Depois olhou para cima, deu um sorriso de boas-vindas e acenou com as mãos na direcção dos
bancos no outro lado da mesa.
- Se eu fosse a ti, mudava de aparência o mais rápido possível, optio. Não queres com certeza que algum idiota de um recruta te confunda com um dos nativos e te
espete com a lança.
- Não, senhor.
- Suponho que gostarias de uma boa refeição e de outros confortos caseiros.
- Sim, senhor - Cato apontou para Boudica e Prasutago. - Todos
nós.
- Assim que vos tiver interrogado - replicou Vespasiano, concisamente. - Boudica deu-me alguns detalhes, há uns dias atrás. Presumo que ela vos tenha contado o que
se tem passado aqui pelo mundo. Que novidades há do vosso lado, então?
- Os druidas ainda têm em sua posse a esposa e o filho do general, lá no forte, senhor. Vi-os a noite passada.
- A noite passada? Como?
- Entrei lá dentro. É por isso que estou cheio destas coisas, senhor.
- Entraste lá dentro? És louco, optio? Sabes o que te acontecia se fosses apanhado?
- Faço uma ideia, sim, senhor. - As sobrancelhas de Cato franziram-se, ao lembrar-se do destino de Diómedes. - Mas prometi à senhora Pompónia que a salvaria. Dei-lhe
a minha palavra, senhor.
- Foste um bocado impetuoso, não?
- Sim, senhor.
- Deixa lá. É minha intenção tomar de assalto o forte o mais cedo possível. Recuperá-los-emos desse modo.
- Desculpe, legado - interrompeu Boudica. - Prasutago conhece os druidas. E disse-me que eles os não deixariam viver. Se virem que a legião está quase a tomar o
forte, não terão razões para os poupar.
- Talvez, mas se Pláucio confirmar a ordem de execução dos prisioneiros druidas, morrerão na mesma. Pelo menos, assim, poderemos salvá-los na confusão do ataque.
- Senhor?
- Sim, optio?
- Eu vi o interior do forte. Está a pensar tomá-lo pelo portão principal?
- Claro. - Vespasiano sorriu. - Presumo que aproves a ideia.
- Senhor, a área onde os druidas se encontram é do outro lado da fortaleza. Terão tempo mais que suficiente para chegar lá e matar os reféns quando perceberem que
o jogo está perdido. Não temos hipóteses de os bater dessa forma, senhor. Boudica tem razão. No momento em que irrompermos pelo portão principal, eles serão mortos.
- Estou a ver. - Vespasiano ponderou durante um momento.
- Então não tenho escolha. Terei de esperar pela resposta de Pláucio. Se ele rescindir a ordem de execução, poderemos ainda negociar a questão com os druidas.
- Eu não poria muitas esperanças nisso - disse Boudica.
Vespasiano franziu-lhe o sobrolho, e depois voltou-se de novo para
Cato.
- A situação não está com muito boa cara, pois não?
- Não, senhor.
- Que me podes dizer sobre a situação no interior do forte? Quantos teremos de enfrentar? Que armas possuem?
Cato previra a pergunta e já tinha a resposta pronta.
- Não mais que oitocentos guerreiros. Duas vezes mais de não-combatentes, e talvez uns oitenta druidas. Estavam a construir uma coisa que lembrava uma catapulta,
por isso deve esperar-nos fogo intenso quando avançarmos, senhor.
- Quanto a isso, estaremos ao nível deles, aliás, acima - disse Vespasiano, com satisfação. - O general transferiu a artilharia da Vigésima Legião para a minha.
Poderemos mandar-lhes para cima com quanto quisermos, para os mantermos afastados enquanto as coortes de assalto atacam o portão.
- Espero que sim, senhor - disse Cato. - O portão é a única alternativa. Os fossos estão cheios de estacas.
- Também pensei que estivessem. - Vespasiano levantou-se. - Não há mais nada a dizer. Mandarei que vos preparem comida quente e um banho. É o mínimo que vos posso
oferecer pelo vosso trabalho.
- Obrigado, senhor.
- E a minha imensa gratidão a ti e ao teu primo. - O legado inclinou a cabeça na direcção de Boudica. - Os icenos não acharão Roma ingrata, no que respeita à vossa
assistência neste assunto.
- Para que servem os aliados? - Boudica sorriu, fatigada. - Esperaria o mesmo de Roma, caso fossem os meus filhos que estivessem em perigo.
- Sim, claro - assentiu Vespasiano. - Sem dúvida.
Acompanhou-os à saída da tenda e abriu graciosamente a cortina de couro. Cato parou à saída, com uma expressão preocupada no rosto.
- Senhor, mais uma coisa, se for possível.
- Claro, o teu centurião.
Cato confirmou com a cabeça.
- Ele está... Sobreviveu?
- Estava vivo da última vez que ouvi falar dele.
- E ele está aqui, senhor?
- Não. Enviei os nossos feridos escoltados para Caleva, há dois dias atrás. Montámos lá um hospital. O teu centurião terá todos os cuidados possíveis.
- Ah. - A incerteza renovada pesou fortemente no coração do optio. - Foi o melhor a fazer, suponho.
- Sim, foi. Terão de me desculpar, agora. - Vespasiano estava prestes a virar-lhes as costas e a voltar para a secretária, quando se ouviu uma vozearia no lado de
fora da tenda.
- Que raio se está passar lá fora?
Passando por Cato, desviou as cortinas de couro e avançou pela lama, lá fora. O optio e os outros seguiram-no. Não havia necessidade de perguntar a razão para toda
aquela comoção; qualquer homem na Segunda Legião o podia ver. No monte da Grande Fortaleza ia surgindo acima da paliçada um tipo qualquer de estrutura. O sol já
ia baixo no céu a oeste, e as silhuetas da grande massa do forte e da estranha geringonça estavam rodeadas por um vivo brilho cor-de-laranja. Muito devagar ia atingindo
a sua posição, manobrada por cordas puxadas por mãos invisíveis. Enquanto olhava, a terrível compreensão do que estava a testemunhar atingiu Cato como uma pancada,
e as suas entranhas congelaram.
A construção estava quase na vertical, pelo que se tornou claro do que se tratava: um enorme homem de verga, de forma imperfeita mas evidente,
negro contra o pôr-do-sol, excepto onde era trespassado pelos raios de luz do poente.
O legado virou-se para Boudica e disse discretamente:
- Pergunta ao teu homem quando é que ele pensa que eles irão deitar fogo àquilo.
- Amanhã à noite - traduziu ela. - Aquando da festa do Primeiro Rebento. Será quando a esposa e o filho do general morrerão.
Cato aproximou-se do legado.
- Acho que a mensagem do general já não tem importância alguma, senhor.
- Pois não... Atacaremos logo pela manhã.
Cato sabia bem que qualquer ataque teria de ser precedido de um bombardeamento insistente das fortificações. Só então poderiam os legionários tentar entrar por uma
brecha. E se os defensores se mostrassem suficientemente resolutos para derrotar as tentativas dos romanos?
Um pensamento desesperado atingiu Cato; a sua mente acelerou e arquitectou rapidamente um plano louco e cheio de riscos terríveis, mas que lhes podia oferecer uma
última hipótese de salvarem a senhora Pompónia e Élio das chamas do homem de verga.
- Senhor, poderá ainda haver uma hipótese de os salvar - disse Cato. - Se me puder dispensar vinte homens dos bons, mais Prasutago.

XXXIV

Muito antes do amanhecer já o espaço diante do portão principal da fortaleza dos durotriges se enchera de movimento: o rítmico bater de pesados barrotes para compactar
e nivelar o solo, com o fim de criar bases para a artilharia; o constante rolar dos carros de artilharia que eram trazidos para a frente, para descarregarem as balistas
e as catapultas. Os homens esforçavam-se, grunhindo, para colocar as pesadas engrenagens de madeira nos encaixes. As munições eram descarregadas e colocadas ao lado
das armas e depois o pessoal respectivo verificava sistematicamente a torção das cordas e as rodas dentadas, oleando cuidadosamente os mecanismos de lançamento.
Os durotriges tinham-se colocado ao longo dos muros de defesa do portão, tentando ver o que se passava na escuridão lá em baixo. Tentaram atirar flechas a arder
em grandes arcos brilhantes na direcção das linhas romanas, na esperança de vislumbrarem a natureza dos preparativos dos inimigos. Mas os seus arcos de curto alcance
nem sequer conseguiam enviar as setas para lá do baluarte exterior, deixando-os assim na ignorância dos planos dos romanos. Estes tinham enviado grupos de escaramuça
que avançaram na escuridão e travaram cruentas pelejas com patrulhas durotriges, nas imediações do portão; finalmente, os nativos cansaram-se de se tentar aproximar
da actividade inimiga, e recolheram todos para o interior da paliçada, à espera que amanhecesse.
Ao primeiro raio de luz, Vespasiano ordenou à Primeira Coorte que se fosse posicionar e se preparasse para avançar. Pequenas equipas de engenheiros, equipadas com
escadas e um aríete, acompanhavam-na. Uma centúria tinha sido munida de arcos próprios para fornecer apoio a curta distância, quando a coorte estivesse pronta para
forçar o portão principal. Todos estavam prontos, fileiras pouco animadas de homens silenciosos, pesadamente couraçados, de armas afiadas e corações cheios da tensão
e do receio habituais perante um ataque tão perigoso. Travar uma batalha
campal não era nada, comparado com isto, e até mesmo o mais verde dos recrutas entre eles o sabia.
No momento em que as balistas deixassem de disparar contra a paliçada, uma chuva de flechas, metralha de funda e pedregulhos cairia sobre a Primeira Coorte. Uma
vez que a rampa de acesso fazia curvas, um ou outro dos seus flancos ficaria exposto à descarga do inimigo, antes ainda de alcançarem a entrada principal. Depois
teriam de suportar mais descargas, enquanto estivessem a tentar romper o portão. Só então poderiam enfrentar o inimigo. E era natural que os homens, depois de sofrerem
tamanho castigo, exigissem retribuí-lo em sangue, assim que os durotriges estivessem ao alcance das suas espadas. Vespasiano tinha por isso advertido pessoalmente
cada um dos oficiais da coorte para a missão de Cato e do seu grupo, e para a necessidade de se esforçarem ao máximo para fazer prisioneiros. Disse-lhes que precisaria
de escravos vivos se queria alguma vez renovar a sua casa na Colina Quirinal, em Roma. Eles riram-se ao ouvir essa afirmação, como ele sabia que fariam, e Vespasiano
teve esperanças que isso fosse suficiente para impedir que Cato e os seus homens fossem chacinados de imediato, quando os legionários finalmente irrompessem pelo
forte.
- Tudo a postos, senhor - informou o tribuno Plínio.
- Muito bem. - Vespasiano saudou-o e olhou por cima do ombro.
O horizonte, a leste, estava a ficar visivelmente mais claro. Voltou-se de novo para a frente e admirou a indefinida imensidão do forte. O homem de verga elevava-se
acima da paliçada, o emaranhado de verga e ramos castanho-avermelhados tornando-se lentamente visível, à medida que a madrugada avançava e bania os tons monocromáticos
da noite. As equipagens da artilharia mantinham-se quietas, observando o legado, esperando pela ordem de abrir fogo. Vespasiano tinha conseguido reunir cerca de
cem balistas funcionais, e cada uma delas estava agora pronta para que os braços de torsão fossem accionados. Os mísseis de ponta de ferro tinham já sido postos
nos canais; as negras pontas reviradas apontavam para as fortificações ao redor do portão principal. Os primeiros raios de sol bateram nos elmos de bronze brilhante
dos durotriges alinhados na paliçada, observados pelos legionários na escuridão fria lá em baixo. A luz foi descendo devagar ao longo das rampas dos baluartes.
Vespasiano fez sinal com a cabeça a Plínio.
- Artilharia! - rugiu Plínio, com as mãos em concha ladeando a boca. - Preparar!
O ar da madrugada encheu-se do som de alavancas e de homens fazendo esforço, à medida que as cordas dos braços de torção eram enroladas e faziam tensão contra os
projécteis. Quando a última equipa acabou
de aprontar a arma, o barulho cessou e uma calma peculiar caiu sobre o cenário.
- Abrir fogo! - gritou Plínio.
Os chefes das equipas empurraram as alavancas para a frente, e nos ouvidos de Vespasiano ressoou o estalo agudo dos braços de torsão quando a tensão acumulada foi
libertada. Um véu de linhas escuras dirigiu-se de forma célere contra a paliçada. Tal como sempre acontecia, alguns dos projécteis ficaram curtos, e enterraram-se
nas rampas. Outros foram longe demais e desapareceram para lá da paliçada - onde podiam, mesmo assim, provocar danos. Os homens ajustariam o ângulo dos engenhos,
conforme o sítio onde os mísseis anteriores tinham caído. Contudo, a grande maioria tinha acertado em cheio à primeira. Vespasiano conhecia já o impacto daqueles
projécteis, mas mesmo assim ficou maravilhado com a destruição causada. Toros inteiros foram despedaçados pelas pesadas flechas de ponta de ferro, estilhaços saltaram
pelo ar; em breve, a paliçada ficou com o aspecto de uma boca repleta de dentes estragados.
O segundo arremesso foi menos uniforme que o primeiro, já que as equipas mais eficientes se despacharam mais depressa e depressa a disparidade que havia no tempo
dos disparos deu origem a um bombardeamento contínuo. A paliçada estava a ser brutalmente demolida, e os guerreiros durotriges suficientemente parvos para se deixarem
estar, gritando em desafio, pagaram o preço respectivo. Vespasiano observou sem surpresa quando um homem enorme, que agitava uma lança, foi apanhado por um míssil
mesmo no peito, fazendo-o simplesmente desaparecer de vista. Outro foi atingido na cara, e a cabeça foi completamente arrancada. O tronco permaneceu hirto durante
um momento, depois tombou.
Menos de uma hora depois, as fortificações do portão estavam em completa ruína, as estacas da paliçada reduzidas a tocos salpicados de vermelho. Vespasiano dirigiu-se
ao seu tribuno superior:
- Manda a coorte avançar, Plínio.
O tribuno virou-se para o trombeteiro e ordenou-lhe que desse o sinal para avançar. O homem levou o bocal aos lábios e tocou uma série de notas agudas e crescentes.
Quando a chamada alcançou os baluartes, os centuriões da Primeira Coorte deram ordem para avançar, e duas largas colunas começaram a marchar em direcção às rampas
de acesso ao portão. O sol ia ainda baixo, e os elmos dos homens enviavam mil reflexos contra os olhos dos seus camaradas que observavam a peleja a partir do campo
fortificado da legião. Uma reserva substancial de homens mantinha-se a postos para reforçar a Primeira Coorte, caso os durotriges dessem conta dela. Outros legionários
tinham sido enviados durante a noite para ocuparem posições em redor da fortaleza, prontos para interceptarem qualquer
tentativa de fuga do inimigo, caso o portão fosse derrubado. Nada tinha sido deixado ao acaso.
A Primeira Coorte, acompanhada pelo seu destacamento de engenheiros, subiu a primeira rampa de acesso, mas imediatamente ficou paralela à paliçada, depois de fazer
a primeira curva; alguns dos mais bravos dos defensores apareceram logo junto das ruínas da paliçada, atirando flechas, ou projécteis de funda, contra as fileiras
de legionários, e as baixas romanas começaram a suceder-se. A maior parte eram feridos, e tentavam cobrir-se com os seus largos escudos, enquanto esperavam para
serem levados para a enfermaria. Outros eram mortos de imediato e ficavam quietos, espraiados sobre a rampa.
Por cima das cabeças da Primeira Coorte, o fogo de barragem continuava a devastar as fortificações, mas em breve poria em perigo os próprios soldados romanos. Vespasiano
não queria ainda dar ordem de cessar fogo, preferindo arriscar um tiro falhado a permitir ao inimigo que regressasse em massa aos destroços das fortificações e lançasse
uma chuva de mísseis sobre os legionários.
A coorte chegou à segunda curva e pareceu dobrar-se sobre si mesma quando continuou a subir em direcção ao portão principal. Os mísseis assobiavam já a menos de
vinte metros acima das suas cabeças, e os oficiais do estado-maior em volta de Vespasiano começavam a ficar ansiosos.
- Só mais um pouco - murmurou o legado.
Ouviu-se o ruído de algo a rachar vindo da área de artilharia, e Vespasiano voltou-se. O braço de um dos engenhos tinha-se quebrado, devido à tensão. Um coro de
lamentos ergueu-se entre os oficiais. O míssil arremessado pelo engenho que se tinha quebrado falhara o alvo e tinha ido atingir uma fileira de legionários à altura
do segundo baluarte, derrubando-os violentamente e deixando-os num monte desordenado. As fileiras seguintes vacilaram durante um momento, até que um centurião, furioso,
se atirou a eles com uma vara de videira, e eles lá continuaram.
- Cessar fogo! - gritou Vespasiano aos homens da artilharia.
- CESSAR FOGO!
Os últimos projécteis passaram sem problemas sobre as cabeças da Primeira Coorte, felizmente; depois houve um silêncio arrepiante, antes dos defensores se terem
apercebido de que já não havia perigo. Rugindo o seu grito de guerra, saíram a correr dos abrigos e enxamearam o que restava das fortificações que ladeavam e encimavam
o portão principal. Poucos
momentos depois, uma rajada de flechas e pedras caiu sobre os homens da Primeira Coorte. O comandante, o mais antigo e experiente centurião da legião, deu a ordem
para formar em tartaruga e, num ápice, uma parede de escudos cobriu a coorte pelos lados e por cima. O avanço diminuiu imediatamente de velocidade, mas os homens
ficaram protegidos dos projécteis que vinham de cima, que agora se limitavam a chocalhar sem perigo contra os escudos justapostos. O som desses impactos era perfeitamente
audível lá em baixo, onde Vespasiano e o seu pessoal assistiam.
A Primeira Coorte fez a última curva, e atingiu a zona entre um bastião e o portão principal. Este era o momento mais perigoso do assalto. Os homens estavam sob
fogo vindo de dois lados e não podiam usar o aríete contra o portão enquanto o bastião não fosse tomado. O centurião sabia o que fazer e, com calma e num tom comedido,
ordenou à Primeira Centúria da coorte que abandonasse a formação. Os homens dispersaram então abruptamente e treparam a íngreme ladeira do bastião. Os durotriges
que tinham sobrevivido ao fogo de barragem atiraram-se sobre os atacantes, tirando partido da altura de onde saltavam. Vários legionários caíram sob as armas do
inimigo, rebolando pela ladeira abaixo. Mas os bretões que restavam eram poucos para conseguirem reter os romanos por muito tempo, e depressa os golpes certeiros
das espadas curtas dos legionários acabaram com eles.
Assim que a situação no bastião se resolveu, os homens armados com os arcos especiais ocuparam-no e começaram a disparar contra os defensores do portão principal,
abrigando-se atrás dos escudos da centúria que tinha conquistado o bastião enquanto preparavam a próxima flecha. Os durotriges redirigiram os seus disparos contra
a nova ameaça, aliviando a pressão sobre a formação que se encontrava na base do portão. Então os engenheiros avançaram com o aríete e, ao abrigo dos escudos da
tartaruga, iniciaram um assalto lento e ritmado contra as fortes vigas de madeira do portão.
O seco bater do aríete chegou aos ouvidos de Vespasiano, e a sua mente voltou-se para Cato e para o seu pequeno grupo, que se encontravam no outro lado do forte.
Também eles ouviriam o aríete, e começariam a avançar.
Junto à vala de escoamento, no outro lado do forte, o monte de dejectos e lixo tomou, de repente, vida. Se ali estivesse alguma sentinela de guarda, dificilmente
acreditaria nos seus olhos quando um pequeno grupo, aparentemente de guerreiros celtas, emergiu do nauseabundo monte e
subiu por ambos os lados da vala, dirigindo-se à abertura que dava para o interior da paliçada.
Enquanto os engenheiros tinham estado ocupados a nivelar o solo, um pequeno grupo de legionários, os melhores homens da antiga Sexta Centúria da Quarta Coorte, tinham
seguido discretamente em torno do forte, sob o comando do seu optio e do alto guerreiro iceno a quem tinham sido apresentados nessa mesma noite. Nus, os corpos decorados
com os desenhos azuis dos celtas, estavam equipados com espadas longas de cavalaria, que passariam bem por armas nativas, para quem olhasse de relance. Prasutago
tinha-os conduzido através dos baluartes e dos fossos cheios de estacas, até ao monte de porcaria malcheirosa. Lá, tinham-se escondido entre a merda e os despejos,
mudos e com expressões enojadas, e esperado, sem se mexerem, pela madrugada e pelo ataque de aríete contra o portão principal.
À primeira distante pancada do aríete, Cato afastou para o lado a carcaça podre de veado sob a qual se tinha escondido, e trepou, de gatas, até à estrutura de madeira.
Com uma agilidade natural, Prasutago escalou pelo outro lado da vala, fazendo Cato lembrar-se de um macaco que uma vez vira nos jogos em Roma. Em volta deles estava
o resto dos homens que Cato tinha seleccionado, rijos e, a maior parte, de origem gaulesa, para que as hipóteses de se fazerem passar por bretões fossem maiores.
Quando chegaram ao cimo da vala, já as pancadas do aríete se tinham tornado regulares, como que num dobre a finados pelo forte e seus defensores. Cato apontou para
o espaço sob a abertura e, como da outra vez, Prasutago colocou-se em posição. Cato subiu para cima dele e, com cuidado, meteu a cabeça pela abertura, à luz do dia,
desta vez. O terreiro à sua frente estava deserto. Mais à direita, para lá da figura gigantesca do homem de verga, uma escura massa de homens estava amontoada junto
do portão principal, à espera de se poderem precipitar sobre a Primeira Corte, no momento em que o aríete atravessasse a densa madeira do portão. Entre eles estavam
também alguns dos mantos pretos dos druidas, e Cato sorriu de satisfação; diminuía assim o número de inimigos a enfrentar.
Passou para cima, e agarrou a mão do homem seguinte. Um a um subiram através da abertura e rastejaram até ao redil mais próximo. Por fim, só Prasutago faltava, e
Cato firmou-se bem contra o estrado de madeira, antes de estender a mão a Prasutago. O guerreiro iceno agarrou o antebraço de Cato e içou-se, apoiando-se na orla
da abertura assim que pôde.
- Os icenos são todos tão pesados como tu? - arfou Cato.
- Não. Meu pai - maior que eu.
- Porra, ainda bem que vocês estão do nosso lado.
Rastejaram até junto dos outros homens, e depois Cato conduziu-os através das cercas, em direcção ao recinto dos druidas. Chegados ao último cercado, fez sinal aos
homens para que se mantivessem quietos, e depois espreitou, devagar, através de uma cerca de vimes, praguejando ao avistar dois druidas que guardavam a entrada do
recinto. Estavam agachados e mastigavam grandes pedaços de pão, aparentemente nada preocupados com a luta desesperada junto do portão. Cato virou a cabeça para trás
e fez sinal aos seus homens para que se mantivessem abaixados. Tinham de se manter fora de vista até que o portão principal caísse, e rezar para que os druidas não
tivessem ainda executado os seus reféns.
- Isto não está a correr nada bem - queixou-se Vespasiano, observando a distante batalha junto do portão. A maior parte dos homens no bastião tinha sido atingida,
e os disparos bretões tinham voltado a concentrar-se nos legionários amontoados junto ao portão. O solo em redor estava já repleto de escudos vermelhos e cinzentas
cotas de malha romanas.
- Podíamos retirar, senhor - sugeriu Plínio. - Fazer outra barragem e depois tentar outra vez.
- Não - replicou Vespasiano, de forma curta. Plínio olhou para ele, esperando uma explicação, mas o legado manteve-se em silêncio. Abrandar a pressão junto do portão
poria Cato e os seus homens em perigo. Tanto quanto sabia, eles podiam até já estar mortos, mas tinha de assumir que aquela parte do plano decorria como previsto.
Só Cato poderia salvar os reféns. Tinha de lhe ser dada essa oportunidade. O que significava que a Primeira Coorte teria de permanecer sob os disparos, no lado de
fora do portão. Havia uma outra razão para que continuassem lá. Se ordenasse que voltassem para trás, perderiam muitos mais homens no caminho. Depois, enquanto as
balistas fizessem outra barragem, os sobreviventes do primeiro assalto teriam de esperar, sabendo que teriam de enfrentar outra vez todos os perigos do ataque. Vespasiano
imaginava perfeitamente o que isso provocaria no moral das tropas. O que eles precisavam agora era de encorajamento, algo que fortalecesse a sua determinação.
- Traz-me o meu cavalo, e outro para o portador da águia.
- O senhor não vai até lá, pois não? - Plínio ficou chocado.
- Traz-me os cavalos.
Enquanto os cavalos não vinham, Vespasiano prendeu o elmo. Olhou para o portador da águia e sentiu-se assegurado pela compostura do homem, uma das principais qualidades
exigidas aos que eram escolhidos para a honra de transportar a águia para a batalha. Escravos trouxeram os
cavalos, a correr, e entregaram-lhes as rédeas. Vespasiano e o portador da águia montaram.
- Senhor! - chamou Plínio. - Se lhe acontecer alguma coisa, quais são as suas ordens?
- Que tomem o forte, claro, ora essa!
Batendo rapidamente os calcanhares, Vespasiano apressou o seu cavalo até ao sopé da rampa, cavalgando através do espaço aberto, com o portador da águia mesmo atrás
dele, as rédeas numa mão, o estandarte na outra. Galoparam rampa acima, fazendo a primeira curva e continuando a subir. Aqui jaziam as primeiras baixas romanas,
homens atingidos por flechas ou esmagados por pedras, o sangue fazendo poças no chão em volta das hastes com penas que pareciam brotar do solo. Os feridos, ao verem
os cavaleiros aproximarem-se, arrastaram-se para fora do caminho, alguns tentando dar vivas ao legado, ao vê-lo passar como um relâmpago.
Fizeram outra curva e refrearam os cavalos ao alcançarem a centúria que fazia a retaguarda da Primeira Coorte.
- Desmontar! - gritou Vespasiano sobre o ombro ao portador da águia, e rodou a perna por cima do dorso do cavalo. Foram localizados de imediato pelos defensores
acima deles, e um momento mais tarde o cavalo de Vespasiano relinchou de dor quando uma flecha se espetou no seu flanco. Empinou-se, agitando as patas dianteiras,
antes de partir à desfilada pela rampa abaixo. Mais flechas e projécteis de funda caíram mesmo em torno do legado. Olhou em volta e apanhou um escudo do chão, caído
ao lado do seu proprietário morto. O portador da águia procurou também um. Avançaram ambos por entre as compactas fileiras de soldados diante deles.
- Abram alas! Abram alas! - gritou Vespasiano.
Os legionários abriam caminho ao som da sua voz, alguns com uma expressão atónita.
- Mas que raio está ele a fazer aqui? - questionou um jovem, admirado.
- Julgavas que ias ficar com os inimigos todos para ti, não, rapaz?
- gritou Vespasiano, enquanto passava. - Vamos lá, rapazes, vima última tentativa, depois ajustaremos contas com aqueles sacanas!
Um clamor dissonante irrompeu dos homens à medida que Vespasiano e o portador da águia avançavam em direcção ao portão e as flechas e os projécteis de funda lhes
atingiam os escudos. Quando chegou ao solo plano diante do portão de madeira fortificado, Vespasiano tentou não mostrar o desespero que sentiu ao ver o panorama.
A maior parte dos engenheiros estava morta, em montes em torno das suas escadas e ao lado do aríete. Este estava agora a ser manobrado por legionários que tinham
tido de pousar os seus escudos para agarrarem no grosso barrote de carvalho com a extremidade em ferro. Mesmo enquanto olhava, outro homem tombou, atingido no espaço
entre o elmo e a cota de malha. O centurião mandou para o lugar um substituto, mas o legionário hesitou, olhando ansiosamente para os rostos selváticos que lhe berravam
do topo do portão.
Vespasiano avançou.
- Sai-me da frente, rapaz!
Largou o seu escudo e agarrou na pega de corda, juntando-se ao rítmico balançar dos outros homens no aríete. Quando este embateu contra o portão com um som esmagador,
Vespasiano conseguiu perceber que as enormes vigas começavam a ceder.
- Vamos lá, homens! - gritou aos que estavam no aríete. - Não estamos a ser pagos à hora!
Mal os durotriges viram o legado, soltaram um grande clamor de desafio e voltaram as suas armas contra o comandante inimigo e contra o homem que transportava o maldito
símbolo da águia. Os homens da Primeira Coorte ripostaram com um berreiro ensurdecedor e um esforço renovado, lançando os dardos que lhes restavam contra as fileiras
dos durotriges. Outros apanharam projécteis de funda, para os arremessarem contra os defensores.
Outro homem tombou ao lado do aríete. Desta feita, o centurião atirou o escudo para o chão e tomou o lugar vago. Uma vez mais o aríete foi impelido para a frente.
Com um estalo, a viga central do portão partiu-se em duas, fazendo com que o resto das tábuas ficassem fora do sítio. Através das fendas os romanos podiam ver os
rostos desabridos dos durotriges e dos druidas amontoados do outro lado. Através de uma fenda estreita, Vespasiano localizou a trave que trancava o portão.
- Ali! - Levantou a mão para apontar. - Apontem para ali!
Ajustaram rapidamente a pontaria do aríete, e de novo deram balanço, forçando a fenda a abrir-se mais. A trave que trancava o portão estremeceu nos suportes.
- Mais força! - gritava Vespasiano, acima do estridor. - Mais força!
Cada pancada estilhaçava mais as madeiras, até que, com um derradeiro choque selvagem, a trave quebrou. Os portões cederam imediatamente.
- Aríete para trás!
Recuaram vários passos e pousaram-no. Alguém passou um escudo a Vespasiano. Ele enfiou o braço esquerdo nas braçadeiras e desembainhou a espada, mantendo-a, horizontalmente,
à altura da anca. Respirou fundo, pronto para conduzir os seus homens através do portão.
- Porta-estandarte!
- Senhor!
- Fica junto de mim, rapaz!
- Sim, senhor!
- Primeira Coorte! - bradou o legado o mais alto que pôde. - Avançar!
Com um profundo clamor de centenas de gargantas, os escudos escarlates atacaram os portões e esbarraram contra as fileiras dos nativos que gritavam do outro lado.
Metido na fileira da frente da Primeira Coorte, Vespasiano mantinha o seu escudo em cima e forçava a densa massa de humanidade à sua frente, à medida que ia perfurando
carne com a sua lâmina, torcendo-a e puxando-a violentamente para trás, antes de atacar outra vez. Em redor, homens gritavam, lançavam os seus gritos de guerra,
grunhiam com o esforço de cada investida e de cada golpe, berravam em agonia quando os feriam. Os mortos e feridos tombavam para o chão, e os ainda vivos lutavam
para se protegerem sob os escudos, tentando evitar que fossem espezinhados até à morte.
A princípio, a densa massa de romanos e de durotriges quase se misturava, nenhum dos grupos cedendo um centímetro sequer. Mas, à medida que os homens iam caindo,
os nativos começaram a ceder terreno, a recuar perante a parede de escudos dos romanos. O solo debaixo das botas de Vespasiano estava escorregadio devido à lama
amassada pelo sangue quente. O seu maior receio no momento era que os pés lhe falhassem e ele escorregasse.
A Primeira Coorte avançava, abrindo caminho através dos durotriges. Os defensores, incitados pelos druidas que se encontravam entre as suas fileiras, lutavam com
coragem desesperada. Amontoados como estavam, as suas espadas longas e as suas lanças de guerra tornavam-se quase impossíveis de manejar eficazmente. Alguns largaram
as armas que empunhavam e passaram a utilizar os seus punhais, tentando afastar os escudos dos romanos e apunhalar os homens escondidos por trás deles. Mas eram
poucos os durotriges que tinham armadura, pelo que a sua carne exposta era presa fácil para as espadas letais dos legionários.
Aos poucos, os durotriges desagregavam-se, caindo na retaguarda da turba, um a um e dois a dois, e os homens lançavam olhares aterrados à aproximação implacável
da águia dourada. Uma linha de druidas mantinha-se atrás dos defensores, e ia tentando, com desdém, que os menos corajosos dos seus aliados voltassem para a peleja.
Mas em pouco tempo já muitos nativos fugiam da terrível máquina assassina dos romanos, e os druidas não o podiam evitar. As portentosas fortificações em que os durotriges
tanto tinham confiado de nada tinham servido, tal como a promessa
dos druidas de que Cruach os protegeria naquele dia e fulminaria os romanos. Tudo estava perdido, e os druidas também o sabiam.
Atrás da linha dos druidas estava uma alta figura negra, com um elmo com chifres, que gritou uma ordem. Os druidas voltaram-se, ao ouvi-la, e viram o seu líder a
apontar para trás, para o recinto do outro lado do forte. Puseram-se em formação cerrada e correram para o seu último reduto.
- Está feito! - disse Cato em tom baixo aos seus homens. - Já estão a entrar. Agora é a nossa vez!
Pondo-se de pé, fez sinal aos homens para que o seguissem. Corriam nativos pelo terreiro, fugindo do portão principal e dos legionários. Muitos eram mulheres e crianças,
fugindo do desastre que caía sobre os seus homens. Esperavam conseguir escapar do forte pelos baluartes e desaparecer nas cercanias. Os primeiros tinham alcançado
as cercas, não muito longe de onde Cato estava, quando ele decidiu avançar.
Com Prasutago ao lado, e os homens pintados num grupo desordenado atrás dele, Cato correu até à entrada do cercado. Os dois guardas tinham-se posto de pé, para verem
como iam as coisas no portão principal, dando apenas um olhar desdenhoso aos nativos que se aproximavam. À medida que a distância ia encurtando, um dos guardas gozou
com ele. Cato levantou a sua espada de cavalaria.
- A eles! - gritou aos seus homens, e correu para o druida. A surpresa foi total, e antes do perplexo druida poder reagir, Cato desviou-lhe a lança para o lado e
atingiu-o na parte lateral da cabeça. A carne abriu-se, o osso partiu-se, e o homem tombou para o chão.
Prasutago tratou do outro guarda e depois abriu o portão com um pontapé. Era um portão frágil, cujo papel era apenas o de desencorajar a entrada, e não resistir
a um assalto determinado. O portão cedeu e os poucos druidas ainda no interior do recinto voltaram-se com o barulho, alarmados, devido à repentina invasão do seu
solo sagrado por aqueles homens pintados, seus supostos aliados. A confusão momentânea teve o efeito que Cato esperava, e todos os seus homens passaram o portão
antes dos druidas reagirem. Agarrando em lanças, fizeram por se defender dos furiosos atacantes que brandiam espadas e se precipitavam sobre eles. Cato ignorou o
tinir das armas. Correu em direcção à jaula. À sua frente, um druida saiu de uma cabana, de lança na mão. Deu uma olhadela à escaramuça e virou-se para a jaula,
sopesando a sua lança.
Não havia dúvidas quanto à sua intenção, pelo que Cato continuou
a avançar, correndo o mais rápido que podia, de dentes arreganhados devido ao esforço. Mas o druida estava mais próximo, e Cato apercebeu-se de que não ia conseguir
alcançá-lo. Quando o druida chegou ao pé da jaula e levou a lança atrás para a atirar, ouviu-se um guincho vindo lá de dentro.
- Hei! - gritou Cato, ainda a vinte passos de distância.
O druida olhou por cima do ombro, e o optio lançou a espada com toda a força. À medida que a lâmina girava no ar, o druida virou-se e desviou-a com a ponta da sua
lança. Cato continuou a correr na direcção da jaula. O druida baixou a ponta, fazendo mira ao estômago do romano. No último instante, quase em cima da ponta perversamente
farpada da lança, Cato atirou-se para o chão e rebolou contra as pernas do druida. Foram ambos de encontro às barras da jaula. O impacto foi pior para Cato que para
o druida, e antes de poder sequer respirar, o homem saltou-lhe para cima do peito e lançou-lhe as mãos ao pescoço. A dor foi imediata e intensa. Cato agarrou as
mãos do homem, esforçando-se por as afastar, mas o druida era grande e bem constituído. Mostrava dentes amarelos, enquanto tentava sufocar o seu inimigo. Sombras
negras começavam a manchar as margens da visão de Cato, que em vão dava com os joelhos nas costas do homem.
Um par de mãos delgadas saíram de entre as barras da jaula e cravaram-se na cara do druida, tentando chegar-lhe aos olhos. Instintivamente, o druida levou as mãos
aos olhos para se proteger, uivando de agonia, e Cato deu com o punho no queixo do homem, fazendo com que a cabeça dele saltasse para trás. Cato deu-lhe outro murro,
desviando-o em seguida para o lado. Enquanto o druida estava deitado no chão, atordoado, Cato levantou-se, recuperou a espada e golpeou-lhe a garganta.
Virou-se para a jaula.
- Senhora Pompónia!
Agarrando as barras, o rosto contra as mãos, a esposa do general olhava, algo desconfiada, para aquela figura pintada.
- Estou aqui para a salvar. Afaste-se para o fundo da jaula.
- Eu conheço-o! Você é o da carroça!
- Sim. Agora, afaste-se.
Ela virou-se e gatinhou para o fundo da jaula, pondo-se diante do filho, para o proteger. Cato começou a golpear as cordas que prendiam a porta ao resto da estrutura.
A cada golpe, pedaços de madeira saltavam e tiras de corda iam-se soltando, até que um dos lados da porta ficou solto. Cato poisou a espada e afastou as barras.
- Saiam! Vamos, vamos embora!
Ela esgueirou-se para fora, arrastando o filho por uma mão. A outra mão do miúdo estava cheia de ligaduras. Élio tinha os olhos esbugalhados
de terror, e um gemido permanente saía-lhe da garganta. A senhora Pompónia mal se aguentava em pé; depois de dias a fio agachada na jaula, tinha as pernas rígidas
e doridas. Cato avaliou a situação no cercado; havia corpos espalhados por todo o lado. A maior parte usava os mantos pretos dos druidas, mas havia meia dúzia dos
seus homens entre eles. O resto estava em redor de Prasutago, muitos sangrando de feridas.
- Por aqui - disse Cato à senhora Pompónia, quase que a arrastando na direcção dos seus homens. - É seguro. Eles estão comigo.
- Nunca pensei que voltaria a vê-lo - disse ela, com uma admiração reservada.
- Dei-lhe a minha palavra.
Ela sorriu vagamente.
- Pois deu.
Juntaram-se aos outros homens e viraram-se para o portão.
- Agora só precisamos de arranjar maneira de chegar até à Primeira Coorte - disse Cato, com o coração a bater fortemente no peito, em parte devido aos esforços feitos,
em parte devido ao entusiasmo e ao orgulho de se ter saído bem. - Vamos!
Deu um passo em direcção ao portão e parou. A entrar no recinto vinha uma figura alta, vestida de preto, e com uma foice reluzente numa mão. O chefe dos druidas
avaliou a cena num relance, e rapidamente se deslocou para o lado e gritou uma ordem. O resto dos seus homens entrou aos molhos para o interior do cercado, de olhos
brilhando e de lanças apontadas a Cato e ao seu pequeno grupo. Sem esperar por ordem alguma, Prasutago rugiu o seu grito de guerra e atacou os druidas, seguido por
Cato e pelos seus homens. A senhora Pompónia escondeu a cara do filho contra a sua túnica e baixou-se com ele, incapaz de olhar para a refrega.
Desta vez, a luta entre romanos e druidas estava mais equilibrada. Estes não tinham sido surpreendidos, e o seu sangue estava já excitado pelas experiências junto
ao portão principal. A batalha era desregrada, espadas batendo em hastes de lanças ou desviando golpes, num tinir desesperado. Incapazes de usarem as suas lanças
eficazmente naquele espaço confinado, os druidas usavam-nas como bastões, lançando fortes pancadas contra os romanos e bloqueando as estocadas das suas espadas.
Cato deu por si a lutar contra um druida alto e magro, com uma barba negra. O homem não era parvo nenhum, pelo que desviou perfeitamente as primeiras arremetidas
de Cato, fazendo depois uma finta para a esquerda, antes de contra-atacar com a ponta da sua lança. Cato saltou para o lado, demasiado tarde para evitar ser atingido
na coxa. Quando o homem ia a puxar a lança para trás, Cato desviou-a para o lado com a mão que tinha livre, e saltou para a frente, enterrando a ponta da sua espada
no ventre do homem. Retirou
então a lâmina, voltou-se e procurou pelo chefe dos druidas. Estava junto do portão, observando a luta com um olhar frio.
Vendo Cato aproximar-se, agachou-se, a foice erguida e ao lado, pronta para ser manobrada de forma a decapitar ou desmembrar o seu atacante. Cato lançou a sua espada
para a frente, mantendo um olho na foice reluzente. O chefe dos druidas desviou-se para trás, batendo contra o poste do portão com um baque surdo. Cato atacou de
novo, e desta feita a foice dirigiu-se ao seu pescoço. Cato saltou para a frente, para dentro do alcance da arma, e deu com o punho da sua espada na cara do chefe
dos druidas, o mais forte que pôde. A cabeça do homem esbarrou contra o poste, e ele perdeu os sentidos, deixando a foice escorregar para o chão.
Logo que se aperceberam que o seu líder tinha sido derrotado, os outros druidas largaram as armas e renderam-se. Alguns não foram suficientemente rápidos, morrendo
antes dos legionários perceberem que eles se tinham rendido.
- Acabou! - gritou Cato aos seus homens. - Estão acabados!
Então os homens apaziguaram a sua fúria e arrebanharam os druidas, com os peitos pintados inchando a cada inspiração enquanto recuperavam o fôlego. Cato acenou a
Prasutago, para que viesse ter com ele, e, juntos, mantiveram-se ao pé do portão, de espada pronta, desencorajando quaisquer durotriges em fuga de tentarem entrar
no recinto para escapar aos romanos. Junto ao portão principal a batalha também já estava terminada, e os escudos vermelhos dos legionários dispersavam-se pelo terreiro,
chacinando quem ainda se atrevesse a resistir-lhes. Por cima do portão arruinado estava o porta-estandarte, com a sua águia dourada brilhando à luz do sol.
Uma pequena formação de legionários vinha em marcha rápida pelo terreiro na direcção do cercado, e Cato viu a crista vermelha do legado sobressaindo acima dos outros
elmos. Virou-se para Prasutago:
- Olha pela senhora e pelo seu filho. Vou fazer o relatório.
O guerreiro iceno concordou com a cabeça e embainhou a espada, tentando não parecer muito intimidador ao dirigir-se à esposa do general. Cato manteve a espada na
mão quando saiu do cercado, e levantou a outra numa saudação ao legado, agora claramente visível e sorrindo de satisfação. Uma onda quente de contentamento invadiu
Cato. Tinha mantido a sua palavra, e o boneco de verga que se elevava acima do forte não iria, afinal de contas, reclamar as suas vítimas. Reparou que todo o seu
corpo tremia, embora não soubesse se dos nervos, se da exaustão.
Atrás dele, a senhora Pompónia deu um grito.
- Cato! - gritou Prasutago.
Mas antes que ele pudesse reagir, algo lhe atingiu as costas. Perdeu
o fôlego de forma violenta e caiu de joelhos. Sentia qualquer coisa parecida a um punho no interior do seu peito. O seu corpo estremeceu quando o objecto lhe foi
arrancado das costas. Uma mão agarrou-lhe o cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás, e Cato viu o céu azul e, em seguida, o sorriso escarninho de triunfo no rosto
do chefe dos druidas, enquanto erguia a sua foice ensanguentada. Aquele era o seu sangue, apercebeu-se Cato; e, fechando os olhos, esperou que a morte viesse.
Ouviu vagamente Prasutago gritar com raiva, depois o chefe dos druidas teve uma convulsão, e apertou com força os cabelos de Cato. Caiu uma chuva quente sobre ele.
Chuva quente? O outro afrouxou o aperto. Cato abriu os olhos mesmo no momento em que o corpo do druida caiu ao seu lado. A curta distância, a cabeça do homem rebolou,
ainda metida no elmo com chifres. Depois, Cato caiu de borco. Estava ciente da dureza do solo na sua face, e de alguém a agarrar-lhe o ombro. Depois ouviu Prasutago
a gritar, quase indistintamente:
- Romano, romano, não morrer!
E o mundo tornou-se negro.

XXXV

Parecia-lhe estar tremeluzindo entre um profundo e incônscio sonho e momentos de realidade aguda e dolorosa. Não havia, de todo, qualquer noção da passagem do tempo,
apenas desconexos fragmentos de experiências. O som de queixumes kkkvindos de todos os lados, as suas fontes indistintas no escuro. A vaga silhueta das costas de
um homem sentado num banco, junto à sua cabeça. Um cheiro a mulas. Debaixo de Cato havia rodas rangendo, e o momento desvaneceu-se e as trevas voltaram. Mais tarde,
sentiu mãos rodarem-no gentilmente, deitando-o de barriga. Tiraram-lhe algo que tinha em volta do peito, e um homem, de voz distante, susteve a respiração.
- Está complicado. Sobretudo danos musculares. A lâmina atingiu-lhe uma costela que, graças aos deuses, está intacta. Se tivesse quebrado...
- Sim?
- Os fragmentos podiam ter-lhe penetrado nos pulmões, o que causaria uma infecção e finalmente, hum, a morte, senhor.
- Mas vai recuperar?
- Oh, sim... Tem todas as hipóteses disso. Perdeu bastante sangue, mas parece ter uma constituição suficientemente forte, e eu tenho uma experiência considerável
no que respeita a ferimentos destes, senhor.
- Tem experiência com ferimentos causados por foices?
- Não, senhor. Com lacerações resultantes de pontas afiadas. Ferimentos provocados por foices são raros. Não é arma que se costume usar em batalha, se me perdoar
o atrevimento de generalizar, senhor.
- Veja é se olha por ele, e certifique-se que ele é colocado em instalações adequadas ao seu posto, quando chegarem a Caleva.
- Sim, senhor. Enfermeiro! Limpe esta ferida e mude-lhe o penso!
- Eu preferia mesmo que fosse você a mudar-lhe o penso e, hum, a limpar-lhe o ferimento.
- Sim, senhor! É para já, senhor!
Cato sentiu algo a sondar-lhe as costas, a meio delas, e depois, uma sensação agonizante de formigueiro. Tentou protestar, mas apenas balbuciou algo, ficando depois
inconsciente.
A vez seguinte que acordou foi tão gradual como a sombra a percorrer um relógio de sol. Cato apercebeu-se de uma luz vaga através das suas pálpebras. Ouviu sons
- o barulho abafado de uma rua agitada. Fragmentos de vozes humanas, falando uma língua que ele não compreendia. A dor nas suas costas tinha-se transformado num
latejo regular, como se algum gigante com punhos do tamanho de pedregulhos lhe estivesse a martelar a carne. Quando Cato pensou na ferida, lembrou-se do chefe dos
druidas brandindo a sua foice reluzente, e abriu os olhos alarmado. Tentou virar-se de costas. E o monótono latejar passou logo a uma pontada agonizante, fazendo
Cato gritar e voltar a cair sobre o peito.
Soaram passos sobre o soalho, e momentos depois Cato sentiu uma presença atrás de si.
- Vejo que está acordado! E a ver se abre a ferida nas suas costas.
Tch!
Dedos sondaram a área em redor do ferimento. Depois, o homem foi para o outro lado da cama e ajoelhou-se. Cato viu a cor de azeitona e o cabelo escuro e oleado típicos
dos naturais das regiões leste do império. O homem usava a túnica preta do corpo médico, ornamentado a azul. Um cirurgião, portanto.
- Bem, centurião. Apesar dos seus esforços, o dreno não saiu do sítio. Decerto ficará contente por saber que quase não há pus, esta manhã. Excelente. Vou já tratar
de lhe fechar a ferida e colocar uma ligadura nova. Como se sente?
Cato humedeceu os lábios.
- Com sede - murmurou.
- Imagino que sim. - O cirurgião sorriu. - Vou pedir vinho aquecido para si, antes de lhe fazer os pontos. Viriíio misturado com uma ervas interessantes; nem dará
por nada, e irá dormir como um morto.
- Espero que não - sussurrou Cato.
- É esse o espírito! Em breve já se poderá pôr de pé. - O cirurgião levantou-se. - Agora, se me der licença, tenho outros pacientes que precisam da minha atenção.
O nosso legado parece querer manter-me sempre ocupado.
Antes de Cato ter podido perguntar o que quer que fosse, o cirurgião já se tinha ido embora, afastando-se a passo rápido. De cabeça imóvel,
Cato deu uma olhadela ao espaço. Parecia encontrar-se numa pequena cela com paredes de madeira e argamassa. O cheiro a humidade indicava que a argamassa devia ser
ainda bastante recente. A um canto estava uma arca pequena. A sua armadura, com as suas fáleras distintivas, estava no chão, junto da arca. Cato sorriu, ao ver os
medalhões - fora o próprio Vespasiano que lhas tinha entregue, depois de ter salvo a vida de Macro, na Germânia... Mas onde estaria Macro, agora? Depois Cato lembrou-se
do terrível ferimento de que o centurião fora vítima. Decerto teria morrido. Mas não tinha alguém dito que ele tinha sobrevivido? Cato tentou lembrar-se, mas o esforço
venceu-o. Alguém lhe pôs a mão sob a cabeça, erguendo-a com cuidado. Cato sentiu o cheiro doce do vinho aquecido com especiarias, e entreabriu os lábios. O vinho
não estava demasiado quente, e Cato lentamente esvaziou a taça que o enfermeiro segurava. O calor espalhou-se-lhe pelo estômago, pelo corpo, e deu por si com uma
sonolência agradável, depois de lhe terem poisado de novo a cabeça sobre o grosseiro material do travesseiro. À medida que a sua mente ia adormecendo, Cato, com
o deleite de um soldado para pequenos luxos, sorriu por lhe terem dado um quarto só para ele. Quando o Macro soubesse...
Aquando da próxima vez que acordou, Cato estava ainda deitado de barriga para baixo. Conseguia ouvir os gritos e a azáfama de muitos homens. O enfermeiro tinha acabado
de mudar-lhe os lençóis e de o limpar. Sorriu-lhe, quando Cato abriu os olhos e o fixou.
- Bom dia, senhor.
Cato sentia a língua grossa, pelo que acenou ligeiramente com a cabeça para devolver o cumprimento.
- Parece muito melhor, hoje - continuou o enfermeiro. - Pensei que não se fosse aguentar, quando o trouxeram para aqui, senhor. Deve ter sido um golpe em cheio,
o que o druida lhe deu.
- Sim - respondeu Cato, tentando não se lembrar. - Onde estou?
O enfermeiro franziu o sobrolho.
- Aqui, senhor. No novo bloco hospitalar do novo quartel que foi construído em Caleva. Um trabalho rápido. Só espero que não nos caia em cima.
- Caleva - repetiu Cato. Isso era a dias de distância do forte dos druidas. Devia ter estado inconsciente durante toda a viagem. - Que algazarra é aquela?
- Mais baixas que chegam da frente. Ao que parece, o legado tomou
mais um dos fortes deles. Estamos com falta de espaço, e o chefe está pelos cabelos, tentando reorganizar as coisas... - E a voz do enfermeiro deixou de se ouvir.
- E a minha vida seria bem mais fácil se os meus ajudantes trabalhassem mais em vez de se entregarem a conversas futeis com os pacientes.
- Sim, senhor. Perdoe-me, senhor. Vou-me já embora. - O enfermeiro apressou-se a sair do quarto e o médico contornou a cama para falar com Cato. Deu-lhe o seu melhor
sorriso para pacientes.
- Parece-me mais animado!
- Já mo disseram.
- Vamos lá. Tenho boas e más notícias. As boas notícias, é que a sua ferida está a sarar muito bem. Julgo que daqui a um mês, ou assim, já estará de pé.
- Um mês! - protestou Cato, ao contemplar a ideia.
- Sim. Mas não terá de passar o tempo inteiro de barriga para baixo.
Cato fixou o cirurgião por um momento.
- E as boas notícias, quais são?
- Ah ah! - riu-se o cirurgião, amavelmente. - Bem, a questão é que estamos um pouco apertados relativamente ao espaço, e embora normalmente nem sonhe fazer destas
imposições aos oficiais que tenho sob os meus cuidados, temo que vá ter mesmo que partilhar.
- Partilhar? - Cato franziu o sobrolho. - Com quem?
O cirurgião inclinou-se mais para ele, olhando sobre o ombro de Cato, na direcção da porta.
- Ele é um pouco desagradável. Passa a vida a resmungar, mas tenho a certeza que irá respeitar a sua privacidade e não barafustar tanto. Peço desculpa, mas não tenho
onde o meter.
- Como se chama ele? - murmurou Cato.
Antes do cirurgião poder responder, houve uma agitação junto da porta e foram soltas imprecações.
- Cuidado, seus parvalhões! - rosnou uma voz familiar. - Não sou nenhum aríete com que possam andar às pancadas.
Seguiram-se mais imprecações.
- Quem é esse com quem me vão pôr? Se ele falar durante o sono, arranco-vos os tomates.
Os enfermeiros debatiam-se ao contornar os pés da cama de Cato, e poisaram o seu paciente, com um baque, na cama ao lado da dele.
- Oi! Cuidado, cambada de inúteis. Sei qual é o vosso número!
Cato olhava para a situação, sorrindo amigavelmente. O centurião
Macro estava tão branco como uma toga e tinha a cara pálida e magra por
baixo das ligaduras apertadas. Mas ali estava ele, vivo da costa e em forma. Com Macro a ressonar no mesmo quarto, nunca mais iria ter uma noite de descanso decente.
- Ora viva, senhor.
- Viva para ti também! - ripostou Macro, depois os seus olhos pestanejaram e abriram muito, e ergueu-se sobre um cotovelo, sorrindo com manifesto prazer ao avistar
o seu optio. - Com mil diabos! Cato! Bem, eu... eu... É bom ver-te de novo, rapaz!
- Digo o mesmo, senhor! Como está a cabeça?
- Dói-me como o caraças! Como uma ressaca constante.
- Que desagradável.
- Então e tu? Que aconteceu?
- Um druida espetou-me uma foice nas costas!
- Tá bem! Uma foice nas costas? Estás a gozar, é o que é!
- Centurião Macro - interrompeu o cirurgião. - Este paciente precisa de repouso. Não o deve excitar. Por isso, acalme-se, por favor, que eu vou ver se lhe arranjo
algum vinho.
Perante a promessa de vinho, Macro calou-se. O cirurgião e os enfermeiros deixaram o quarto. Só quando teve a certeza de que eles já iam longe, é que ele se virou
para Cato e continuou, sussurrando:
- Ouvi dizer que salvaste a esposa e o filho do general, ainda que com um dedo a menos, disseram-me, mas, de resto, intactos. Belo trabalho! Devem vir a caminho
umas medalhas.
- Isso seria bom, senhor - replicou Cato, cansado. Ele queria dormir mais, mas a alegria de rever o seu centurião fê-lo sorrir.
- Que se passa?
- Nada, senhor. Estou apenas contente por ver que ainda se encontra entre nós. Pensei mesmo que tinha ido desta para melhor.
- Morto? Eu? - gritou Macro, ofendido. - Eram precisos bem mais que uns quantos druidas de merda para me deitarem abaixo! Espera só até deitar outra vez a mão àqueles
sacanas. Hão-de pensar duas vezes, antes de me apontarem a espada. Estou-te a dizer.
- Folgo em ouvi-lo. - Cato sentiu de repente as pálpebras a pesarem-lhe; sabia que tinha mais qualquer coisa que precisava dizer-lhe, mas de momento escapava-lhe.
Ao seu lado, Macro queixava-se por estar confinado a uma cama, e que se ouvisse o cirurgião dizer-lhe para dormir mais uma vez que fosse, ainda faria jarreteiras
das entranhas do homem. Então Cato lembrou-se.
- Desculpe, senhor.
- Sim?
- Posso pedir-lhe um favor?
- Claro que podes, rapaz! Diz lá.
- Importa-se de me deixar adormecer primeiro?
Macro olhou-o com indignação, durante um momento, depois, irritado, atirou com a almofada ao seu companheiro.
Uns dias mais tarde tiveram visitas. Tinham mudado Cato de posição, deitando-o agora de costas, ainda com ligaduras, mas muito mais confortável. No espaço entre
as cabeceiras das camas de Cato e de Macro estava uma tábua, sobre a qual eles estavam a jogar dados, por insistência de Macro. A sorte tinha estado do lado de Cato
durante toda a manhã, e os montículos de pedrinhas que usavam para fazer as suas apostas, estavam já muito desiguais. Macro olhava pesarosamente para o último lance
de dados de Cato e para as poucas pedras que lhe restavam.
- Achas que me podias adiantar algumas das tuas, caso eu perca esta jogada?
- Sim, senhor - respondeu Cato, fechando com força os maxilares para não deixar escapar um bocejo.
- És um gajo porreiro, miúdo! - Macro sorriu, apanhou os dados e agitou-os nas mãos em concha. - Vamos lá! O centurião precisa de botas novas...
Abriu as mãos, largou os dados, que rebolaram e pararam.
- Seis! Toca a pagar, Cato!
- Oh, muito bem, senhor! - Cato sorriu, com alívio.
A porta abriu-se e eles olharam, vendo Vespasiano entrar no quarto, segurando uma trouxa de lã contra o peito. O legado fez-lhe um gesto com a mão, quando os dois
tentaram, ridiculamente, assumir algo parecido à posição de sentido.
- Estejam à vontade. - Vespasiano sorriu. - É uma visita privada. Apesar de me ter afastado da campanha para vir resolver um problemazinho que Vérica está a ter
com os seus súbditos. Trouxe umas pessoas para vos verem, antes deles voltarem para casa.
Afastou-se para permitir que Boudica e Prasutago entrassem. O guerreiro iceno teve que se baixar ao passar pela entrada, e pareceu ocupar mais do que devia do espaço
do quarto. Deu um grande sorriso aos dois romanos estendidos nas camas.
- Ah! Cabeças dorminhocas!
- Não, Prasutago, velho amigo - replicou Macro. - Fomos feridos. Mas suponho que não saibas nada acerca disso. Ou não fosses tu o tamanho pedregulho que és, e por
aí fora.
Quando Boudica traduziu, Prasutago desatou a rir. No espaço fechado do quarto, o ruído era ensurdecedor, e Vespasiano estremeceu. Por fim, Prasutago controlou-se,
e sorriu, irradiando alegria, a Cato e Macro. Depois disse qualquer coisa a Boudica, e as palavras saíram-lhe hesitantes, como se se sentisse embaraçado.
- Ele gostaria que vocês soubessem que se sente unido a vocês por um laço fraternal - traduziu Boudica. - E que, se alguma vez se quiserem juntar à nossa tribo,
ele consideraria tal facto uma honra.
Macro e Cato olharam um para o outro com embaraço, antes de Vespasiano se ter inclinado sobre eles, sussurrando ansiosamente.
- Por amor a Júpiter, vejam lá o que vão dizer. O que ele acabou de sugerir é uma honra e tanto. E nós não queremos ofender os nossos aliados icenos. Percebido?
Os dois pacientes disseram que sim com a cabeça, e depois Macro respondeu.
- Diz-lhe que, hum, é muito generoso da parte dele. E que, se alguma vez deixarmos a legião, iremos ter com ele, com toda a certeza.
Prasutago sorriu alegremente, e Vespasiano soprou de alívio.
- E então - continuou Macro -, quando partem?
- Assim que vos deixarmos - respondeu Boudica.
- Camaloduno?
- Não. De volta à nossa tribo. - Boudica olhou para baixo, para as mãos. - Temos de nos preparar para o casamento.
- Sa! - Prasutago acenava alegremente com a cabeça, pousando a sua manápula sobre o ombro de Boudica.
- Estou a ver. - Macro forçou um sorriso. - Os meus parabéns. Desejo-vos muitas felicidades.
- Obrigada - disse Boudica. - Isso é muito importante para
mim.
Um silêncio difícil adensou-se desconfortavelmente, até que Vespasiano o interrompeu.
- Desculpem. Pretendia ter-vos informado logo. O general envia cumprimentos aos quatro. Na verdade, o que ele disse foi que acredita que a missão que vocês efectuaram
para salvar a sua família será o emblema das relações entre Roma e os seus aliados icenos. Pláucio acha que nenhuma recompensa poderia estar à altura do grande serviço
que vocês lhe prestaram... Foi este, pelo menos, o conteúdo principal da sua mensagem.
Macro piscou o olho a Cato e sorriu amargamente.
- Acho que ele falou do coração - continuou Vespasiano. - Acho mesmo. Até tenho medo de pensar no que teria acontecido se eles tivessem sido mortos. Toda a invasão
teria degenerado num esforço maciço para
exercer vingança sobre os druidas. Não que ele alguma vez o admitisse. E, apesar de vos não ter recompensado, autorizou-me a preparar umas condecorações, e a tratar
de uns pequenos ajustes quanto aos vossos postos.
Vespasiano poisou a trouxa que trazia aos pés da cama de Macro, e desembrulhou-a com cuidado. A primeira coisa a sair foram duas fáleras de ébano, embutidas a ouro
e prata, uma para cada um.
Enquanto Cato segurava o medalhão com reverência, o seu legado continuou a desembrulhar a trouxa.
- Mais uma coisa para ti, Optio. - O legado aproximou-se mais dele, de repente, sorrindo para si próprio.
- Senhor?
- Não é nada. Apercebi-me apenas de que esta foi a última vez que te tratei por tal.
Cato franziu o sobrolho, pois ainda não tinha percebido. Vespasiano afastou a última dobra da trouxa de lã, revelando um elmo que tinha uma crista atravessada, e uma vara de videira.
- Trouxe-os da secção de equipamento, esta manhã - explicou Vespasiano. - Assim que Pláucio autorizou a promoção... Vou pô-los aqui no canto, junto com o resto dos
teus haveres, se achares bem.
- Não, senhor - replicou Cato. - Passe-mos, por favor, senhor. Gostaria de os ver.
O legado sorriu ao passar-lhos.
- Claro que gostarias.
Cato segurou no elmo com ambas as mãos e fitou-o, inchado de orgulho e emoção. Tanto que teve que disfarçar, com a mão, uma lágrima que lhe começava a humedecer
o canto do olho.
- Espero que te sirva - disse Vespasiano. - Senão, leva-o de volta aos armazéns e exige um que sirva. Duvido que os intrometidos dos escrivães te venham a dar muito
trabalho de agora em diante, Centurião Cato.

 

 

NOTA DO AUTOR

Um dos mais resistentes símbolos da Grã-Bretanha pré-romana é o enorme complexo de fortificações em Maiden Castle, no Dorset. Impressiona o olhar de cada visitante
e convoca uma empatia imaginativa para com aqueles que tiveram de tomar de assalto essas fortificações aparentemente inexpugnáveis. No entanto Maiden Castle, tal
como muitas outras fortalezas situadas em elevações, não representou nenhuma dificuldade para as legiões, pelo que foi tomado de assalto e conquistado num curto
espaço de tempo. Poderemos perguntar-nos por que razão continuaram os durotriges a manter-se fiéis à crença que tinham nas capacidades defensivas desses fortes,
ao mesmo tempo que estes eram sistematicamente destruídos pelos romanos. Não lhes faltavam exemplos de um método mais eficaz de enfrentarem as legiões. Carátaco
obtinha bem mais sucesso com as suas tácticas de guerrilha. Mas apesar disso, os durotriges continuaram a enclausurar-se nos seus fortes quando a Segunda Legião
avançou sobre eles. Talvez uma fé cega na promessa de uma derradeira salvação, oferecida pelos seus líderes espirituais, os tenha mantido lá.
Em contraste com os volumes de evidência que existem sobre a história romana, pouco se sabe sobre os antigos bretões e os seus druidas. O que se sabe destas gentes
foi-nos passado através das lendas, das descobertas arqueológicas e dos escritos pouco isentos de raças mais dadas à literatura, e quase nada através de uma herança
escrita. O que se pode supor é que os druidas eram tidos em grande consideração e que inspiravam temor. Estavam espalhados pelos reinos celtas e eram frequentemente
procurados para fornecerem conselhos, e para fazerem a arbitragem entre tribos que se disputassem. Os druidas eram os guardiães da herança cultural e memorizavam
vastas quantidades de versos épicos, de folclore e de precedentes legais, que eram passadas ao longo das sucessivas gerações de druidas. Formavam uma espécie de
cimento social entre os pequenos reinos belicosos que, a dada altura, cobriam a Europa. Não admira que os
druidas fossem o alvo principal da propaganda romana e tivessem sido severamente reprimidos sempre que algum território celta era adicionado ao florescente império
romano.
Todavia, pode ter existido um lado mais negro nos druidas, se quisermos acreditar em algumas das fontes antigas. Se se fizeram sacrifícios humanos, foi no contexto
de uma cultura que tinha grande orgulho em coleccionar e preservar as cabeças dos seus inimigos; uma cultura que criara métodos de tortura e execução que causavam
repulsa até aos romanos, cujo amor pela carnificina na arena está bem documentado.
Devido à sua dispersão geográfica e às suas particularidades culturais, os druidas não eram um corpo homogéneo, pelo que teriam as suas facções, muito à imagem das
religiões contemporâneas que se defrontam sobre as suas interpretações dogmáticas. Os druidas da Lua Negra são ficcionais, mas representam a franja de extremismo
que existe em todos os movimentos religiosos. De certa forma, são uma resposta à reinvenção ingénua e nostálgica da cultura druídica que desfila em redor de Stonehenge
em certas alturas do ano. E, no momento em que termino esta obra, representam também uma adequada advertência acerca do extremismo a que o fanatismo religioso pode chegar.

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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