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O crime se esconde nas páginas deste livro sob inúmeros disfarces. Pode ser um crime de morte ou de trapaça. Pode surgir das sombras de uma ilha iluminada pelas estrelas, ou de algum canto obscuro de uma velha casa ao crepúsculo. Pode espreitar um padang verdejante encravado nas selvas da Malásia, ou uma tranqüila pensão resguardada da chuva numa noite de inverno, onde o chá é servido na sala de estar. Pode esconder-se entre os bonecos de um show de marionetes; pode aparecer à beira de uma praia de veraneio; ou seguir um homem até em casa.
Ninguém, naturalmente, deseja encontrá-lo, mas um bom conto de mistério é outro assunto. Uma história contada, digamos, por Donald Honig, que envolve uma velha fotografia de uma adorável jovem. Ou por Bill Pronzini, sobre um homem solitário que faz um favor a alguém. Ou o conto "Alguém Quer Assistir a um Assassinato?", em que as charadas constituem a chave do mistério. Ou a história de Bryce Walton sobre uma mulher que poderia - ou não - ter morrido num desastre de avião, e a importância do número sete na história.
Neste livro não faltam mistérios a solucionar e assassinos a identificar, e de vez em quando outros tipos de crime para deixar o leitor completamente intrigado.
A história de James Holding, "As Antigüidades Tang do Dragão Sofredor", por exemplo, narra o deslumbramento de um turista que descobre em Hong Kong, numa velha loja, um tesouro de lindas figuras Tang. E, por fim, o derradeiro conto deste volume, de autoria de Edwin P. Ricks, intitulado "A Isca e a Pista", constitui um régio presente para os amantes de histórias de crime, mistério e suspense.
Em realidade, qualquer dos contos deste livro concorre para fazer dele um dos melhores desta sensacional série Alfred Hitchcock Apresenta.
A Sra. Patrick Connors era uma mulher alta, de olhos castanhosclaros e um rosto fino, marcado por 30 anos de convivência com os homens errados.
- Meu filho Boyd morreu ontem, Sr. Fortune - disse ela em meu escritório. - E quero saber quem o matou. Tenho dinheiro.
Ela segurava a bolsa nas duas mãos, como se pensasse que eu pudesse arrancá-la. Trabalhava na bilheteria de um cinema que varava a noite na Rua 42 e uma nota de
dólar perdida era uma verdadeira tragédia para ela. Boyd fora seu único filho.
- Ele era um bom rapaz - comentei, o que não passava de uma mentira, mas ela era sua mãe. - Como foi que aconteceu?
- Boyd era um rapaz rebelde e andava em más companhias - retrucou a Sra. Connors. - Mas era meu filho e ainda muito jovem. O que aconteceu eu não sei. É por isso
que estou aqui.
- Como foi que ele morreu, é o que quero dizer.
- Não sei, mas morreu. Foi assassinato, Sr. Fortune. Nesse momento, meu lado onde perdi o braço começou a
formigar. Sempre acontece quando sinto que há algo errado, - O que diz a polícia, Sra. Connors?
O médico-legista diz que Boyd morreu de ataque cardíaco. A polícia não quer nem investigar. Mas eu sei que foi assassinato.
Meu braço estava certo, ele sempre está. Havia muita coisa errada. Os médicos-legistas de Nova York não cometem muitos erros, mas como dizer isso a uma mãe perturbada?
- Sra. Connors - disse eu - nós temos os melhores médicos-legistas do país aqui. Eles tiveram que fazer uma autópsia. Não foi por adivinhação.
-' Boyd tinha vinte anos, Sr. Fortune. Ele levantava peso, nunca ficou doente na vida. Era um rapaz jovem e saudável. Não ia ser fácil.
- Houve um caso de uma menina de quatorze anos que no ano passado, em San Francisco, morreu de aneurisma, Sra. Connors. A autópsia provou isso. Acontece, eu lamento.
- Há uma semana - disse a Sra. Connors - Boyd se alistou na força aérea. Queria ser tripulante. Eles o examinaram durante dois dias. Ele estava em perfeita forma
e foi aceito para treino de vôo. Ia partir em um mês.
Eu podia dizer a ela que os médicos cometem erros? Que médicos? Os médicos da Força Aérea ou os médicos-legistas? Será que eu podia me recusar sequer a investigar?
- Vou ver o que posso descobrir - respondi. - Mas os médicos-legistas e a polícia conhecem o trabalho deles, Sra. Connors.
- Desta vez eles estão errados - disse ela, abrindo a bolsa.
Levei quase a tarde toda para cercar o Sargento Hamm na sala do distrito policial. Ele praguejou contra as velhinhas, contra sua carga de trabalho e contra mim,
mas me levou para ver o médico-legista que trabalhara no caso de Boyd Connors.
- Boyd Connors morreu de um ataque cardíaco natural - disse o médico-legista. - Lamento pela mãe dele, mas a autópsia provou isso.
- Aos vinte anos? Algum sinal de ataques cardíacos anteriores? Alguma fraqueza congênita, alguma doença que ninguém soubesse?
- Não. Algumas vezes não existe doença nenhuma e há mais gente jovem morrendo do coração do que se sabe. Foi seu primeiro e último colapso.
- Ele passou no exame físico da força aérea para treino de vôo há uma semana - repliquei.
- Há uma semana? - O médico-legista franziu a testa. - Bem, isso torna o caso ainda mais incomum, concordo. Mas,, incomum ou não, ele morreu de um ataque cardíaco
natural,, ponto final. E no caso de o senhor ter alguma dúvida, já atestei mais mortes por ataques cardíacos do que a maioria dos médicos atesta resfriados comuns.
Certo?
Quando caminhamos até o carro do Sargento Hamm, estacionado em frente ao Necrotério do East Side, Hamm disse:
- Se ainda tem alguma idéia louca de que foi assassinato, como diz a mãe, eu lhe digo que Boyd Connors estava sozinho no próprio quarto quando morreu. Não havia
passagem para o quarto a não ser pela sala, nenhuma saída de incêndio, e só a Sra. Connors estava na sala. Certo?
- E - disse eu. - Ótimo. Hamm disse:
- Não acredite no dinheiro da velha, Danny. Vá cozinhando ela em água morna por algum tempo.
Depois de deixar Hamm, fui até o apartamento dos Connors, que ficava no quinto andar de um prédio sem elevador. Era um apartamento pobre e velho, mas arrumado -
um lar. Havia um bule de chá em cima da mesa quando a Sra. Connors me fez entrar. Ela me serviu uma xícara. Não havia mais ninguém lá, uma vez que o Sr. Patrick
Connors fora para longe há muito tempo.
Eu me sentei, tomei meu chá.
- Conte-me exatamente o que aconteceu.
- À noite passada Boyd voltou para casa por volta de oito horas - disse a mãe. - Parecia zangado e foi para o quarto. Uns cinco minutos depois, eu o ouvi gritar,
um grito abafado. Ouvi-o cair. Entrei no quarto correndo e o encontrei no chão, perto da escrivaninha. Chamei a polícia.
- Ele estava sozinho no quarto?
- Estava, mas eles o mataram de alguma maneira. Os amigos!
- Que amigos?
- Um bando da rua... os Anjos Noturnos. Ladrões e vagabundos!
- Onde ele trabalhava, Sra. Connors?
- Ele não tinha emprego. Só a força aérea, brevemente.
- Muito bem. - Terminei o chá. - Onde é o quarto dele? Era um quarto pequeno nos fundos, com uma cama estreita,
um armário 'cheio de roupas espalhafatosas, um conjunto de halteres e a habitual desordem de escovas, loção de barba, colônia e tônico capilar em cima da escrivaninha.
Não havia qualquer saída no quarto e nenhuma maneira de alcançá-lo sem passar pela sala; nenhum sinal de violência, nada que me parecesse uma possível arma.
Tudo o que consegui com minhas buscas foi uma caixa vazia e um papel de embrulho de farmácia, na cesta de papéis, e um vidro vazio de colônia masculina debaixo da
escrivaninha. Isso e três caixas de fósforos estavam debaixo do mesmo cômodo, um tubo de dentifrício se achava sob a cama, com roupa de baixo suja. Boyd Connors
não era um homem limpo.
Voltei para a Sra. Connors.
- Onde Boyd foi a noite passada? - perguntei.
- Como posso saber? - disse ela amargamente. - Andou com o bando, na certa. Pelos bares. Talvez com a namorada, Anna Kazco. Talvez tenham brigado, por isso é que
ele estava zangado.
- Quando Boyd decidiu se alistar na força aérea?
- Há duas semanas. Fiquei surpresa.
- Certo - disse eu. - Onde mora Anna Kazco? Ela me deu o endereço.
Saí e fui até o endereço que a Sra. Connors me dera. Uma mulher mais velha abriu a porta. Loura oxigenada, ela me mediu com os olhos até eu lhe dizer o que queria.
Então ficou com um ar infeliz, mas me deixou entrar.
- Sou Grace Kazco - disse a loura - mãe de Anna. Lamento por Boyd Connors. Eu desejava coisa melhor para minha
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filha, mas não sabia que ele era doente. A pobrezinha da Anna está desconsolada com o que aconteceu.
- Como a senhora se sente a respeito? - perguntei. Os olhos dela faiscaram para mim.
- Lamento, como disse, mas não estou perturbada. Boyd Conncrs não valia um monte de feijão. Agora talvez Anna consiga ...
A moça veio de lá de dentro.
- Consiga o quê?
Era pequena e morena, uma moça delicada com os olhos inchados de tanto chorar.
- Dar atenção a Roger, é isso! - disse a mãe asperamente. - Ele vai ser alguém na vida.
- Não havia nada de errado com Boyd!
- Exceto que ele só sabia falar, sonhar e não fazer nada. Um vagabundo de rua! Roger trabalha, em vez de sonhar.
- Quem é esse Roger? - perguntei.
- Roger Tatum - disse a mãe. - Um rapaz decente e trabalhador que gosta de Anna. Não vai fugir para se alistar em nenhuma força aérea.
- Depois da noite passada - disse Anna - talvez ele também não apareça por aqui novamente.
-- O que aconteceu à noite passada? - perguntei. Anna sentou-se.
- Boyd tinha um encontro comigo, mas Roger apareceu primeiro. Estava aqui quando Boyd chegou. Ficaram furiosos um com o outro. Mamãe disse a Boyd para sair. Ela
sempre defende Roger. Eu tinha marcado com Boyd e Roger não tinha o direito de aparecer, mas mamãe me deixou tão furiosa que eu disse aos dois que saíssem. Agi mal.
Boyd ficou zangado. Talvez isso tenha provocado o ataque cardíaco. Talvez eu...
- Pare com isso! - disse a mãe. - Não foi sua culpa. Sob os cabelos oxigenados e a maneira autoritária, ela era
apenas uma mãe tentando o melhor para a filha.
- Eles saíram quando você mandou? - perguntei. Anna anuiu.
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- Saíram juntos. Foi a última vez que vi o coitado do Boyd.
- A que horas foi isso?
- Às sete horas, eu acho.
- Onde posso encontrar este Roger Tatum? O que ele faz para viver?
- Ele mora na Greenwich, 110 - disse-me Anna. - Trabalha para a Farmácia Johnson, na Quinta Avenida. Arruma a loja, faz entregas, coisas assim.
- É só um trabalho temporário - disse a mãe. - Roger tem umas boas ofertas que está avaliando.
O nome da Farmácia Johnson me deu um estalo na cabeça. Onde eu já ouvira o nome? Ou vira?
Roger Tatum me fez entrar em seu quarto. Era um jovem baixo e magro que usava óculos sem aro e tinha boas maneiras; o tipo de rapaz de quem as mães gostam - educado,
trabalhador. Seu quarto era vazio, exceto por livros em toda parte.
- Eu soube a respeito de Boyd - disse Tatum. - Uma coisa horrível.
- Mas você não gostava muito dele, gostava?
- Eu não tinha nada contra ele. Só gostávamos da mesma garota.
- E de qual dos dois Anna gostava?
- Pergunte a ela - disse Tatum asperamente.
- Não que isso interesse agora, não é? - disse eu. Boyd
Coimors está morto, a mãe gosta de você, está tudo a seu favor.
- Suponho que sim - disse ele, observando-me.
- O que aconteceu depois que você saiu do apartamento delas com Boyd? Vocês saíram juntos? Brigaram, talvez?
- Não aconteceu nada. Nós discutimos na calçada. Ele foi embora e eu terminei de fazer minhas entregas. Não posso parar em lugar nenhum quando estou fazendo entregas
e estava atrasado. Então, tive que correr. Quando terminei de fazer as entregas, voltei para a loja, depois para casa. Fiquei aqui a noite toda depois disso.
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- Não houve briga na rua? Talvez você tenha derrubado Boid Connors. Ele podia ter-se machucado mais do que você pensou.
- Eu derrubar Boyd? Ele era duas vezes o meu tamanho.
- Você ficou sozinho o resto da noite?
- Fiquei. Acha que fiz alguma coisa a Boyd?
- Não sei o que você fez.
Eu o deixei ali em pé no quarto, com seus planos para o futuro. Será que ele tinha um motivo para matar? Não; as pessoas não costumam matar por uma moça de 18 anos
com tanta freqüência. Além disso, Boyd Connors morrera de um ataque cardíaco.
Deixei avisos em alguns lugares adequados, dizendo que gostada de falar com os Anjos Noturnos - por cinco dólares, sem pioblemas. Talvez eu conseguisse falar com
eles, talvez não. Não havendo mais nada a fazer, parei para tomar uns drinques, depois fui para casa dormir.
Por volta de meio-dia no dia seguinte, um rapaz baixo, magro e com o rosto marcado de espinhas, olhos frios e aparência faminta veio ao meu escritório. Usava a jaqueta
de couro e o uniforme de jeans desbotado e a fome estampada em seu rosto era a fome perpétua de muitas outras coisas além de comida do garuto de rua perdido. Parecia
ter 17 anos, com a maneira fria de alguém de 27 com experiência. Seu nome era Cario.
- Cinco dólares, o senhor ofereceu - disse Cario primeiro. Eu lhe dei cinco dólares. Ele não se sentou.
- A mãe de Boyd Connors diz que ele foi assassinado - comecei - O que você me diz?
- Qual é o seu interesse?
- Estou trabalhando para a Sra. Connors. A polícia diz que foi ataque cardíaco.
- Nós soubemos - disse Cario. Relaxou ligeiramente. - Boyd tinha uma saúde de ferro. Não tem nada a ver. Foi só isso que os tiras conseguiram concluir? A gente não
acredita.
- Boyd estava com você àquela noite?
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- Cedo. Foi ver a garota. Brigaram, Boyd apareceu lá pela loja de doces um pouco.
- A que horas?
-' Talvez sete e meia. Não ficou muito tempo. Foi pra casa.
- Por quê? Não estava se sentindo bem?
- Não. Estava legal - disse Cario.
Percebi o conflito no rosto dele. Sua vida inteira, com a experiência ganha através dos anos, quando cada dia significava mais do que um mês para a maioria dos rapazes,
o condicionara a nunca se oferecer a dar uma resposta sem uma pergunta direta. Mas ele tinha algo a dizer e por mais que procurasse escondê-lo não conseguia. Decidiu
falar comigo.
- Boyd estava com um embrulho - disse Cario finalmente, arrancando a frase da boca fina. - Ele levou esse embrulho pra casa.
- Roubado?
- Ele disse que não. Disse que achou. Estava feliz da vida. Disse que tinha encontrado o pacote na calçada e que o cara que perdeu podia se meter em encrencas.
Foi quando me lembrei de onde tinha visto o nome da Farmácia Johnson.
- Um embrulho quando chegou em casa? - repetiu a Sra. Connors. - Bem, não tenho certeza, Sr. Fortune. Talvez tivesse.
Atravessei a sala na direção do quarto de Boyd Connors. O papel amassado ainda se encontrava na cesta de papéis. A Sra. Connors estava negligenciando seu trabalho
doméstico, por causa da tristeza com a morte de Boyd. Havia um rótulo da Farmácia Johnson no papel amassado, com um endereço escrito: Rua 11 Leste, n? 3. A caixa
pequena e vazia não me disse nada.
Examinei todos os vidros de colônia, loção de barba e condicionador de cabelos - a caixa era do tamanho deles. Estavam todos pelo menos pela metade e velhos. Pensei
no vidro vazio debaixo da cama e apanhei-o; era uma colônia para homens, de boa qualidade - e vazia. Não tinha tampa. Procurei com mais
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cuidado, encontrei a tampa do outro lado do quarto, num canto, como se tivesse sido jogada. Era uma tampa de pressão, uma rápida virada e ele saía. Vi uma pequena
mancha no tapete como se algo tivesse sido derramado, mas as colônias se compõem principalmente de álcool, secam rápido.
Toquei o vidro cuidadosamente, examinei-o. Havia algo de estranho nele; não que fosse visível, era mais uma impressão, a sensação que ele dava. Parecia diferente,
mais pesado do que os outros vidros, e a tampa parecia mais sólida. Apenas uma ligeira diferença, algo que eu nunca perceberia se não estivesse procurando respostas.
Eu podia até estar errado. Quando se está pronto para achar algo suspeito, a mente pode pregar peças, achar o que deseja achar.
Decidi ir ver Roger Tatum novamente. Ele estava entretido com um livro, fazendo anotações quando cheguei.
- Não está trabalhando? Foi despedido, talvez?
- Só vou para o trabalho à uma hora - disse ele. - Por que estaria despedido?
- Você perdeu um embrulho que devia entregar ontem à noite, não perdeu?
Ele me fitou.
- É, mas como soube? E o senhor acha que o Sr. Johnson ia me despedir por isso? Não valia cinco dólares. O Sr. Johnson nem mesmo me fez pagar. Apenas me mandou
de volta esta manhã com outro vidro.
- Vidro de quê?
- Uma colônia para homem.
- Quando você perdeu o embrulho, reparou que ele tinha sumido?
- Só quando cheguei no endereço. Tinha sumido. Acho que deixei cair.
- Deixou cair - repeti. - Aconteceu alguma coisa no caminho entre a farmácia e a casa de Anna Kazco? Você parou em algum lugar? Teve um acidente e perdeu os embrulhos?
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- Não. Fui direto para a casa de Anna. Estava com todos os embrulhos quando saí de lá. Eu contei.
- Então sabe que perdeu o embrulho depois que saiu do apartamento de Anna Kazco.
- Sei, tenho certeza.
Minha próxima parada foi na Farmácia Johnson, na Quinta Avenida. O Sr. Yvor Johnson era um homem alto e pálido. Piscou os olhos quando olhou para mim por trás do
balcão.
- O embrulho que Roger perdeu? Não compreendo qual é o seu interesse nisto, Sr. Fortune. Um simples vidro de colônia.
- Para quem era?
- Para o Sr. Chalmers Padgett, um cliente regular. Ele sempre compra seus artigos de farmácia aqui.
- Quem é ele? O que faz?
- O Sr. Padgett? Bem, creio que ele é presidente de uma grande companhia de produtos químicos.
- Quem pediu a colônia?
- O próprio Sr. Padgett. Ele telefonou cedo naquele dia.
- Quem embrulhou a colônia?
- Eu mesmo. Pouco antes de Roger levá-la - disse ele lentamente.
Eu lhe mostrei o vidro vazio e a tampa. Ele os apanhou, olhou para eles. Olhou para mim.
- Parece ser o vidro. Um tipo padrão. Nós vendemos centenas de vidros.
- É o mesmo vidro? Tem certeza? Apalpe-o.
Johnson franziu a testa, examinou o vidro e a tampa. Debruçou-se sobre eles, levantou o vidro, examinou a tampa, bateu com o vidro levemente no balcão. Parecia intrigado.
- É estranho. Eu seria capaz de dizer que este vidro é de um material especial, muito forte. A tampa também. Parecem o mesmo; eu não teria notado se o senhor não
tivesse insistido, mas parecem mais fortes.
- Depois que o senhor embrulhou a colônia para o Sr. Padgett, quanto tempo levou para Roger Tatum levar as encomendas?
- Talvez uns quinze minutos.
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- Havia mais alguém na loja?
- Acho que havia alguns fregueses.
- O senhor e Roger deixaram os embrulhos que ele ia entregar sozinhos algum tempo?
- Não, eles ficam na prateleira aqui atrás até Roger leválos e... - Ele parou, piscou. - Ei, espere. Roger levou algum lixo para os fundos e o homem me pediu para
ver um vaporizador. Eu guardo o estoque grande, como o de vaporizadores, nos fundos. Fui apanhá-lo. Fiquei ausente talvez uns três minutos.
- O homem? Que homem?
- Um homem grande, de rosto vermelho. Com sobretudo e chapéu cinzentos. Ele não comprou o vaporizador e tive que leválo de volta. Fiquei bem aborrecido, posso lembrar.
- Roger levou os embrulhos logo depois disso?
- Levou.
Esta conversa levou-me a visitar o Sr. Chalmers Padgett, presidente da P-S Chemical. Não era uma companhia tão grande quanto Johnson achara e o serviço de informações
sobre indústrias não listava o que a companhia produzia exatamente.
Padgett me recebeu em seu rico escritório, próximo a Wall Street. Era um homem calmo e pálido, com um terno do tipo feito sob medida.
- Sim, Sr. Fortune, eu pedi a minha colônia habitual na Farmácia Johnson há alguns dias. Por quê?
- Alguém poderia ter sabido que o senhor a encomendou?
- Não sei, talvez. Acho que fiz o pedido daqui do escritório.
- O senhor é casado?
- Sou viúvo. Moro sozinho, se é o que quer saber.
-' O que o senhor faria quando recebesse um vidro de colônia?
- Faria? Bem, eu o usaria, suponho. Eu... - Padgett sorriu para mim. - Isso é muito estranho. Isto é, o senhor perguntar isso. De fato tenho uma mania... eu
cheiro as coisas. Vinhos, queijos, fumo. Creio que teria cheirado a colônia quase que imediatamente. Mas o senhor não podia saber disso.
- Quem poderia saber? Sobre esta mania?
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Quase todas as pessoas que me conhecem. É quase uma brincadeira.
O que a sua companhia produz, Sr. Padgett?
O rosto pálido fechou-se.
Lamento, mas grande parte do nosso trabalho é secreto, para o governo.
- Talvez algo venenoso como serpentina Rauwolfia? Ou coisa assim?
Eu passara na biblioteca para pesquisar. Chalmers Padgett olhou para mim alarmado e cheio de desconfiança,
- Não posso falar sobre o nosso trabalho secreto. O senhor...
Interrompi:
-' O senhor sofre do coração, Sr. Padgett? Tem um problema sério? Poderia morrer de um ataque cardíaco... facilmente? Ele me observou.
- O senhor andou investigando a minha vida, Sr. Fortune?
- De certa maneira - disse eu. - O senhor sofre realmente do coração?
- Sim. Não há perigo se eu for cuidadoso, calmo. Mas...
- Mas se o senhor morresse de ataque cardíaco, ninguém ficaria surpreso? Ninguém questionaria sua morte?
- Não haveria perguntas - disse Chalmers Padgett. Ele me analisou. - Uma de nossas subsidiárias, muito secreta, realmente produz serpentina Rauwolfia, Sr. Fortune.
Para uso do governo.
- Quem desejaria vê-lo morto, Sr. Padgett?
Meia hora depois, o Sr. Padgett e eu paramos para apanhar o dono da farmácia, Sr. Johnson. Padgett foi no banco de trás do carro com o Sargento Hamm e eu.
- Serpentina Rauwolfia - disse eu. - Você perguntou ao médico-legista?
- Perguntei - disse o Sargento Hamm. - Relaciona-se com tranqüilizantes comuns. Foi desenvolvida como um gás
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asfixiante para a guerra antes de nós desistirmos supostamente daquela linha de pesquisa. É só vaporizá-la sobre a pele, aspirá-la e a pessoa morre em segundos.
Deprime
o sistema nervoso central, pára o coração. É, o médico-legista me falou sobre isso. Diz que nunca viu um caso de uso desta droga, mas já tinha ouvido falar. Parece
que funciona instantaneamente. E a autópsia não mostra nada a não ser um ataque cardíaco comum. Uma arma espiã, de assassinos do governo. Nenhum policial em Nova
York conhece um caso assim. Quem pode obter esta substância?
- A P-S Chemical tem uma subsidiária que produz tal substância; em segredo - respondi. - Sob pressão num vidro, ela espirra no rosto de quem abre para cheirar.
Morte por ataque cardíaco. O vidro cai da mão da vítima, a pressão esvazia o vidro. Não fica nenhum vestígio - a menos que se examine o vidro cuidadosamente, com
experiência.
- No meu caso - disse Chalmers Padgett - quem teria examinado o vidro? Eu morreria de um ataque cardíaco e ninguém pensaria em assassinato. Era algo esperado. Eu
pedi a colônia e o vidro estava em meu apartamento. Ninguém teria reparado no vidro.
Paramos num prédio de apartamentos da Park Avenue e subimos todos ao
10o andar. O homem que estava em pé na elegante sala, quando o mordomo nos conduziu pelo apartamento,
era grande e tinha o rosto vermelho. Algo se modificou em seus olhos arrogantes quando ele viu Chalmers Padgett.
- É - disse o Sr. Johnson - é este o homem que me pediu para lhe mostrar o vaporizador, que ficou sozinho na loja com os embrulhos.
Chalmers Padgett disse:
- Há alguns anos nós temos discordado sobre como dirigir a companhia. Ele não vende a parte dele para mim e não tem dinheiro para comprar a minha. Vive como nababo.
Se eu morresse, ele ficaria com a companhia e um considerável seguro. E a única pessoa que ganharia com a minha morte. Meu sócio, Samuel Seaver. É a única pessoa.
- Vice-presidente executivo da P-S Chemical - eu disse.
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Uma das poucas pessoas que poderiam obter serpentina Rauwolfia.
O homem grande, Samuel Seaver, pareceu oscilar onde estava e não parava de fitar Chalmers Padgett. Seus olhos demonstravam medo, sim, mas confusão também, e incredulidade.
Ele planejara um crime perfeito. A morte de Chalmers Padgett teria sido indetectável, nenhuma dúvida quanto a assassinato. Ninguém teria reparado no vidro letal
de Seaver; ele pertencia ao quarto de Padgett.
Contudo Reger Tatu m perdera o embrulho, Boyd Connors o levara para casa e abrira o vidro. Boyd Connors não sofria do coração. A mãe dele não acreditou no ataque
cardíaco. O vidro não pertencia ao quarto de Boyd.
O Sargento Hamm começou a dizer.
- Samuel Seaver, você está preso sob acusação de ter assassinado Boyd Connors. É meu dever avisá-lo de que...
- Quem? - disse o homem graúdo, Samuel Seaver, desorientado. - Assassinato de quem?
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Stanley Abbott
UM TRANQÜILO VILAREJO
Eu viajava pela Malásia havia muitos meses, recolhendo material para um livro que tinha em mente, quando de repente fiquei cansado de tudo aquilo. Não podia esperar
para me ver livre do calor sufocante e úmido e da comida nativa picante. Até mesmo as cores brilhantes e o verde exuberante, que a princípio haviam parecido tão
excitantes e atraentes, tornaram-se insuportáveis.
Precisava de uma mudança. Sentia saudades do ar revigorante do norte da Califórnia no outono.
Para apanhar o pequeno vapor que segue para Cingapura duas vezes por mês, tomei uma embarcação nativa rio abaixo para Tenah Solor. Era pouco mais que um vilarejo
com algumas centenas de malaios, daiaques e a inevitável percentagem chinesa, reunidos próximo ao rio; acima, os bangalôs da população branca ficavam dispersos em
volta de um imenso gramado. Parecia um gramado inglês bem cuidado, exceto pelas altas cássias que o cercavam e encobriam os bangalôs.
Eu tinha que esperar quase uma semana e a idéia de passá-la neste povoado monótono, que parecia não ter-se modificado em um século, me inquietava. Instalei-me num
bangalô que pertencia ao delegado do distrito. Jeff Hawkins.
Hawkins era um solteirão e se oferecera para me receber. Tinha um ar bastante britânico e típico de militar, com seu
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conjunto de shorts e camisa caqui, e nos demos bem. Durante o dia ele tinha que cuidar de seu trabalho. À noite ficávamos na varanda, onde um nativo empregado da
casa
nos servia bebidas. Depois de uns dois drinques, se estivéssemos dispostos, caminhávamos até o clube para jogar urn partida de bridge.
O clube era um bangalô adaptado e alguns donos de plantações costumavam aparecer por lá com as esposas para um drinque. Foi lá que, uma noite, Jeff Hawkins me apresentou
aos Thorntons e perguntou a eles se gostariam de jogar uma partida. Harry Thornton disse que sim, mas que a esposa não jogava. Ela estava prestes a sair, mas enquanto
Jeff saía em busca de um quarto parceiro, ficou e conversou comigo. Fiquei feliz com isso, pois o marido tinha muito pouco a dizer e fazia muito tempo que eu não
punha os olhos numa garota tão bonita.
Harry Thornton tinha um rosto inteligente, mas um par de rugas profundas nos cantos da boca davam-lhe um ar desagradável. Embora eu não pudesse imaginar do que ele
podia se queixar, com uma esposa tão encantadora.
A maioria das mulheres que eu conhecera servia como desculpa do clima e da distância da civilização. Mas Mia era uma exceção. Sua maquilagem era impecável e o tom
de seus. olhos azuis-escuros e cabelo castanho-claro era realçado harmoniosamente por um vestido de algodão rosa.
Ela me disse que eles viviam ali havia cerca de 10 anos. Possuíam uma plantação de borracha e, agora que não havia mais problemas por parte das guerrilhas comunistas,
tudo corria bem. O preço da borracha era bom, e havia pouco do que reclamar, Exceto, conforme me disse com uma risada, que ela simplesmente não conseguia se acostumar
a guardar o batom na geladeira.
Cheguei a desejar que Harry Thornton não estivesse ali. Quando eu lhe disse que morava em San Francisco ela adorou, pois nascera lá e queria saber notícias. Reparei
que, enquanto conversávamos, ela ficava olhando para o marido. Talvez fosse apenas um hábito nervoso, mas tive a impressão de que talvez sentisse medo dele.
Jeff Hawkins voltou, acompanhado por um homem alto, e depois que Julia saiu fui apresentado a ele. Seu nome era Peter Endrik; tinha parte do sangue holandês, como
descobri depois. Possuía boa aparência de uma maneira um tanto chamativa e devia ter seus trinta e poucos anos, mas com todos os sinais de ser dado à bebida. Fiz
um esforço para não ser preconceituoso, mas não gostei dele. Endrik foi meu parceiro e toda vez que ele jogava mal tentava blefar. Não éramos parceiros dignos de
Jeff nem de Harry Thornton, que aproveitavam todas as oportunidades. Depois de cerca de uma hora de jogo, cansamos e não havia nada a fazer, a não ser pagar e nos
conformar.
Jeff Hawkins tinha algo a fazer, então fui para a sala de bilhar com Harry Thornton e tirei minha desforra na sinuca. De vez em quando ouviam-se risadas do bar e
mais tarde, quando saíamos, Peter Endrik veio até nós. Estava com um drinque na mão e cambaleava.
- Que tal uma partida, Harry? - perguntou numa voz grossa e ofensiva.
- Fica para outra vez, Peter... tenho de ir para casa - leplicou Harry Thornton quando tentávamos passar.
- Tem de ir para junto da mulherzinha, hem? - Endrik pôs a mão no ombro de Harry para se equilibrar. - Bem, transmita a ela o meu amor; ela vai gostar disso.
- E deu uma gargalhada.
Vi Harry Thornton enrijecer-se, depois empurrou Endrik e se virou para mim.
- Vamos sair daqui.
Não gosto de brigas, mas fiquei surpreso por ele deixar Endrik dizer aquilo sobre Julia sem fazer nada. Com a gargalhada zombeteira de Endrik nos acompanhando,
saímos em silêncio.
- Confesso que admiro seu autocontrole - disse eu. Harry Thornton respondeu, com um dar de ombros:
- É só um bêbado.
Mas havia um olhar sorumbático em seus olhos penetrantes e ele falou muito pouco ao atravessarmos o gramado.
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Mais tarde naquela noite, Jeff Hawkins e eu nos esticamos nas espreguiçadeiras da varanda. Estava muito agradável e tranqüilo. Uma brisa de ar fresco vinha do mar
e a lua acabara de aparecer, iluminando a selva que se estendia até a boca do rio, na margem distante.
Jeff virou-se para mim com um sorriso no rosto grande e vermelho.
- Bem, suponho que você está pensando no Romance e Mistério da selva malaia. - Havia um tom irônico em sua voz, mas não liguei. Como escritor estou acostumado a
isso e não posso dizer que o culpo quando penso em algumas coisas que escrevi sobre a Malásia.
- Não - repliquei - longe disso. Já fiz isso demais. - Então, continuei: - Tivemos um incidente no clube no começo da noite. - E lhe contei sobre a cena com Endrik.
- Eu gostaria que alguém desse uma boa surra nele - disse Jeff. - Peter é grande, mas fraco. E tenho certeza de que Harry poderia fazer isso, se quisesse.
- Há alguma coisa estranha nele - disse eu. - Tenho a impressão de que ele é uma mola em espiral... que tem algo reprimido.
- Sei o que você quer dizer - replicou Jeff. - Desde que estão aqui, Harry tem ciúmes de todo homem que dança com Julia ou que fala com ela. E ela é a mais bonita
em quilômetros e quilômetros. O que ele espera num lugar como esse? É claro que Peter se diverte com isso. Sabendo que Harry não tem senso de humor, ele se vinga
transformando-o no assunto de suas piadas.
Um empregado entrou na varanda com um bilhete para Jeff. Ele o leu, escreveu alguma coisa e o devolveu ao rapaz.
- Você deve ter causado boa impressão. Fomos convidados para ir à casa dos Thorntons amanhã à noite... para jantar e jogar bridge,
De repente as luzes diminuíram, voltaram e depois se apagaram completamente.
24
- Não ligue para isso - disse Jeff - sempre acontece. Temos um gerador velho e avariado e não há dinheiro para trocá-lo.
O empregado apareceu com um lampião a querosene e colocou-o sobre a mesa entre nós.
- Acho que Peter é a ovelha negra daqui - continuou Jeff. - O estranho é que ele não é mau sujeito quando está sóbrio, mas não vai durar muito do jeito que vai.
Este clima já acabou com homens melhores do que ele. Além disso, anda com as garotas malaias. Eu já o avisei que uma noite dessas ele vai acabar com um cris na garganta.
- Jeff limpou o cachimbo e bocejou.
- É hora de ir dormir. Tenho que acordar cedo amanhã.
Na casa dos Thorntons, na noite seguinte, estavam um inglês chamado Banvell e sua mulher, os quais eu conhecera no clube. Eu esperava que ambos jogassem bridge,
para que tivesse uma oportunidade de conversar com Julia.
Comemos um excelente rijstafel, servido por dois empregados malaios de paletó branco. Mas a conversa não foi de acordo com o jantar. Como sempre, Harry Thornton
tinha muito pouco a dizer. Então, de alguma maneira, o nome de Peter Endrik veio à baila e a Sra. Barwell virou-se para Julia.
- Ah, querida, esqueci de lhe dizer; você soube o que aconteceu no clube à noite passada?
O marido disse que aquilo não era importante, mas não houve nada que a detivesse. Não pude deixar de achar que a Sra. Barwell estava sentindo uma certa satisfação
em falar no assunto.
- E o que você acha que Harry fez a Peter Endrik? - perguntou ela. - Simplesmente o ignorou. Eu achei que ele foi magnífico, o senhor não achou, Sr. Mason? - Ela
olhou para mim, com o sorriso dos Bórgias no rosto rechonchudo.
Thornton deu de ombros, ao dizer:
- Ele estava bêbado.
25
Julia pousou os talheres e fitou-o, furiosa. Fez-se um estranho silêncio. Eu me senti feliz quando terminamos e voltamos para a sala.
Como os Barwells jogavam bridge, ficou arranjado que a Sra. Barwell jogaria a primeira partida e depois eu ficaria em seu lugar. Julia sugeriu que nos sentássemos
na varanda. Esta se estendia em volta da casa em todos os quatro lados e ela caminhou até a ponta mais distante, onde havia uma vista para a boca do rio. Percebi
que ela não estava interessada em falar de coisas tolas, então lhe ofereci um cigarro e ficamos sentados em silêncio, observando as mariposas adejando através dos
arbustos.
De repente, ela me surpreendeu ao perguntar:
- Você acha que eu conseguiria um emprego em minha cidade natal?
Não respondi imediatamente, pois percebi que por trás da pergunta havia mais do que parecia.
- É tão ruim assim? - perguntei carinhosamente.
Ela olhou para mim e anuiu, como se não se sentisse com forças para falar. Esperei enquanto ela lentamente amarrotava um lenço entre os dedos.
Pouco depois tudo veio à tona.
- Ele não fala uma palavra comigo há mais de seis meses. Você não imagina o que é isso. Dá recados aos empregados ou deixa bilhetes, mas não diz uma palavra. Não
sei o que fazer. Estou quase enlouquecendo.
Embora eu tivesse calculado que havia algo estranho em Thornton, fiquei chocado. Esta era uma forma de tortura mental tão covarde que eu não podia acreditar.
- Ele sempre foi assim? - perguntei.
- No começo não. Sempre foi ciumento, mas agora, se eu danço com alguém ou troco mais de uma dúzia de palavras com um homem, ele imagina o pior. Costumava quebrar
coisas e me bater. Agora não diz uma palavra. Uma vez levou quase um ano assim. Mas não suporto mais.
26
Ela baixou a cabeça para que eu não visse, mas na penumbra notei o brilho das lágrimas. Pus minha mão sobre a dela; deve ter sido o primeiro gesto de simpatia que
ela recebeu nesses últimos anos.
O barulho de passos ecoou na varanda. Julia levantou-se rapidamente e se afastou, enquanto Harry Thorton atravessava a varanda em nossa direção. Ela obviamente não
queria que ele percebesse que estivera chorando.
- Você quer um drinque? - ele me perguntou, mas seus olhos seguiram Julia. Ele não podia estar menos interessado no que eu queria.
- Não, obrigado. Já bebi muito - respondi.
Thornton ficou olhando para mim e pareceu bem longo o tempo em que nos encaramos. Eu tinha vontade de saber o que ele estava pensando. Depois achei que não ligava
para o que ele pudesse pensar. Estava pronto para me levantar e derrubá-lo ali mesmo, na própria varanda. Felizmente, ele se virou e saiu dali, sem dizer uma palavra.
Julia não tornou a aparecer e, quando fomos embora, Thornton deixou claro que não fazia questão de me ver novamente. Jeff deve ter percebido que algo acontecera,
mas não me perguntou. Em silêncio, atravessamos o gramado até seu bangalô.
Ambos fomos dormir, mas demorei muito a pegar no sono. Era óbvio que Julia precisava de ajuda, do contrário não teria dito o que disse. E era igualmente óbvio que
ela não amava Thornton. Então por que não o deixava? Só podia ser uma questão de dinheiro. Se eu estivesse certo, isso podia ser facilmente remediado. Eu podia emprestar-lhe
dinheiro para a passagem; tinha vários amigos em San Francisco que a receberiam e a ajudariam a encontrar um emprego. Tentei manter
qualquer sentimento em relação a Julia fora disso. Mas não pude deixar de pensar no que estaria acontecendo no bangalô deles e dei asas à imaginação. Era dia claro
quando peguei no sono.
Decidira contar a Jeff o que acontecera, pois queria seu conselho. Enquanto tomávamos um drinque naquela noite, contei-lhe o que Julia dissera.
27
Ele disse calmamente: Eu não sabia que ele era tão mesquinho assim.
- O que não consigo entender é por que ela não o deixou, nem pediu divórcio.
- Ah, ela ficaria pior do que nunca - disse Jeff. - Neste país ia receber uma ninharia, que não dava nem para viver.
Eu lhe disse como achava que podia ajudar com uma passagem e meus amigos em San Francisco. Ele olhou fixamente para mim por alguns momentos.
- Espero que você saiba em que está se metendo.
Eu estava prestes a dizer algo quando um estouro cortou o ar parado da noite. Pedia ter sido um tiro disparado a uma certa distância. Por um momento ficamos alerta,
escutando.
Jeff disse:
- Com certeza é Peter Endrik. Ele caça crocodilos no pântano com uma lanterna presa num rifle.
- Deve ser excitante.
- Excitante demais para mim. Um passo em falso e já era. Ficamos sentados durante algum tempo, olhando para o rio.
Jeff acabara de servir drinques quando ouvimos alguém correndo pelo gramado. Quase imediatamente um empregado malaio de paletó branco apareceu abaixo da varanda,
carregando uma lanterna.
- Tuan, vem depressa - disse, ofegante. - Vem depressa! Num instante estávamos fora da varanda e correndo pelo
gramado na direção das luzes de um bangalô. O rapaz nos conduziu através de uma ampla varanda até a sala. No chão ao lado de um sofá jazia Peter Endrik. Fora alvejado
no peito. Jeff arrancou a camisa dele e o examinou.
- Está morto - disse calmamente.
Peter estava deitado de costas e a alguns centímetros havia um revólver de seis balas. Jeff ajoelhou-se e olhou para o revólver sem tocá-lo.
- Um 38 - disse ele. - Vamos deixá-lo onde está por enquanto.
Falou com o empregado num dialeto que não consegui entender e quando seguiram lá para fora através de um jardim nos
fundos, para um caminho que contornava o gramado, fui atrás. Estava escuro e Jeff examinava o chão com uma lanterna.
-- O rapaz diz que a porta da frente estava trancada. Ele só voltou ha alguns minutos. Logo, quem matou Endrik deve ter entrado por este caminho, a única outra porta
existente.
Mas não se encontrou nada. Voltamos para dentro. A primeira coisa que reparei quando entramos na sala foi um ligeiro cheiro de almíscar - estranho porém familiar;
e depois que o revólver que estivera no chão desaparecera.
Corremos para a porta e a varanda. Embora procurássemos em toda parte e ficássemos escutando, não se ouviu nenhum barulho. Só podíamos ter ficado lá fora uns 10
minutos, mas isso bastara para alguém entrar furtivamente e pegar o revólver.
- Eu merecia um chute por ser tão idiota - gritou Jeff. Ficou olhando para o corpo de Peter Endrik durante algum
tempo, perdido em seus pensamentos. De repente, virou-se para mim.
- Vou até a casa dos Thorntons. Quer vir comigo?
O bangalô deles ficava no outro extremo da área verde. Quando chegamos lá, as luzes estavam acesas. Jeff disse em voz baixa:
- Se você não se importa, prefiro ficar com eles sozinho, mas queria que ouvisse o que for dito.
Concordei e Jeff foi em frente.
Quando ele entrou fiquei esperando; então me aproximei em silêncio da varanda, de onde podia ver Harry Thornton e Julia. Jeff contara a eles o que acontecera.
- Mas Jeff - dizia Harry Thornton - você não acha que temos alguma coisa a ver com isso, acha?
- É claro que não, Harry. Eu só queria saber se vocês viram ou ouviram alguma coisa. Mas, se não saíram de noite, como poderiam?
Julia disse:
- Eu entrei há meia hora, Jeff. Ouvi o tiro depois que saí da casa dos Barwells. Pensei que fosse Peter Endrik no pântano.
- Por que caminho você veio? - perguntou-lhe Jeff.
29
Pelo gramado. Sempre passo por ali; é um caminho mais curto que a estrada e menos escuro.
Então o mais próximo que você ficou do bangalô de
Endrik foi uns cem metros. Você viu alguma luz acesa?
- Não que me lembre. Havia luz em vários bangalôs, mas não posso dizer que reparei no de Endrik.
Jeff virou-se para Harry Thornton.
- Você disse que não saiu a noite toda? Thornton assentiu.
- Isso mesmo.
Jeff disse calmamente:
- Entretanto você foi visto por um empregado, não vou dizer de quem, perto do bangalô de Endrik.
Thornton empertigou-se na cadeira imediatamente. Abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse fazê-lo. Jeff o deteve.
-' Não se precipite, Harry. É melhor pensar calmamente antes de dizer qualquer coisa.
Por alguns momentos, ele olhou duramente para Jeff. Então, baixou os olhos.
- Foi um lapso meu - disse ele em voz baixa. - Eu saí realmente, mas só por alguns momentos. Estava preocupado com Julia. Fui ver se ela já estava voltando.
Julia olhou para ele com olhos espantados. Durante algum tempo ninguém pronunciou palavra.
De repente, as luzes diminuíram, voltaram e depois se apagaram completamente. Ouvi Thornton dizer:
- Esperem... vou apanhar um lampião.
Então, ouvi barulho de vidro quebrado. O silêncio que se seguiu pareceu interminável e eu começava a me perguntar o que acontecera quando ouvi Jeff dizer:
- Você está bem?
Um fósforo foi riscado e vi Thornton acendendo um lampião.
Entrei por aquela maldita porta -- disse ele, ao trazer o lampião e colocá-lo sobre a mesa. Estava esfregando a mão direita.
- O seu empregado não está aqui? - perguntou-lhe Jeff.
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Julia respondeu rapidamente:
- Deixei Hassan ir até sua aldeia esta noite... Thornton olhou para ela.
- Por que você fez isso? - perguntou.
- Ele disse que o pai estava doente. Jeff virou-se para Thornton.
- Então quando você saiu para procurar Julia, Hassan não estava aqui?
- Isso mesmo.
- Julia estava aqui quando você voltou? - perguntou Jeff calmamente.
Thornton olhou para Julia.
- Não, não estava.
Para minha surpresa, Jef levantou-se e disse que lamentava por tê-los incomodado. Saiu. Mal tínhamos dado alguns passos quando Jeff parou e pôs um dedo nos lábios.
Do bangalô podíamos ouvir vozes, mas não o que se falava. De repente, Thornton começou a gritar. Jeff disse:
- Eu estava imaginando que isso pudesse acontecer. Correu de volta e subiu na varanda. Eu o segui. Julia e
Thornton estavam em pé, de frente um para o outro com a mesa no meio, o lampião entre eles. O rosto de Thornton parecia terrível na luz verde-esbranquiçada.
- Você mentiu! Você estava no bangalô de Endrik; eu vi você entrar! - gritava ele.
- E daí? - retrucou Julia. - Fui fazer o que você devia ter feito se fosse um marido de verdade... dizer a ele que parasse de me insultar. Mas ele não estava
lá.
- Você é uma mentirosa! Ele era seu amante, não era? Responda - gritou Thornton. - Não era?
- Isso não é verdade. E se você não fosse tão louco de ciúmes saberia disso.
- Então por que o matou? Estava com ciúmes da garota malaia, não estava?
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Julia ficou ofegante e seu rosto empalideceu. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Thornton debruçou-se para ela por sobre a mesa e perguntou:
- Você imagina o que Jeff Hawkins poderia fazer se soubesse?
Julia ficou calada por um minuto; depois disse, calmamente:
- Se isso foi uma ameaça, talvez você possa dizer a ele o que estava fazendo lá fora no escuro.
Os lábios de Thornton moveram-se, mas não pronunciaram nenhum som. Ela o ameaçara. Ele estava incoerente de raiva e olhando para ela como um tigre pronto para atacar.
Vi uma veia saltada em sua cabeça, pulsando. Não gosto de pensar que ele pretendia jogar o lampião em cima da mulher, mas deve ter perdido o controle sobre si mesmo,
pois agarrou-o subitamente da mesa e, ao fazê-lo, ele escorregou de sua mão. Tentou apanhá-lo novamente, mas o lampião bateu numa ponta da mesa e caiu a seus pés.
Imediatamente as chamas o envolveram. Deixou escapar um grito lancinante.
Por um momento nenhum de nós se moveu. Estávamos paralisados de horror. Julia caíra ao tentar fugir. Nós a apanhamos e a arrastamos para a varanda na hora em que
o querosene que cobria o chão elevou-se com um rugido. Tentamos voltar lá dentro, mas não havia esperanças. As chamas estavam literalmente incontroláveis. Tivemos
que observar a distância o bangalô incendiar-se como uma tocha.
Só muito depois, quando Julia fora deixada aos cuidados dos Barwells, que Jeff disse algo que percebi que não queria admitir. Tínhamos voltado para o seu bangalô
e ele preparava um drinque.
- Se eu soubesse que ia terminar assim - disse ele - não teria feito o que fiz. Mas queria dizer a Thornton, na frente de Julia, que sabia que ele estava mentindo,
que sabia que ele tinha saído. Agora é difícil dizer qual deles matou Endrik.
- Você acha realmente que Julia podia ter feito isso? - perguntei.
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- Quem pode saber? - disse ele, me dando um drinque. - Depois de vinte e cinco anos aqui chega-se a acreditar-se que qualquer pessoa é capaz de qualquer coisa. Mas,
de certa maneira, não imagino Harry Thornton arriscando-se a tal ponto. De qualquer jeito, está tudo terminado. Endrik recebeu o que estava pedindo e Julia pode
reconstruir sua vida agora.
Ele olhou para mim como se esperasse algum comentário, mas eu não disse nada.
O vapor chegava na tarde seguinte. Eu não conseguia me decidir se devia ver Julia antes de partir. Adiei tanto que foi tarde demais. Então, escrevi um bilhete para
ela e zarpei para Cingapura, onde apanhei um avião para Manila. Tencionava ficar duas ou três semanas, mas depois de alguns dias não pude suportar. Telegrafei para
Jeff dizendo que ia partir para Hong-Kong, a fim de apanhar um navio de volta aos Estados Unidos, e que ele mandasse minha correspondência para o Palace Hotel.
Pensei muito em Julia. Não me decidia se fazia alguma diferença para meus sentimentos em relação a ela o fato de ter realmente matado Endrik.
Então, certa manhã, quando eu estava sentado no saguão do Palace, lendo minha correspondência, Julia entrou no hotel.
- George Manson! - gritou. - Não posso acreditar. - Ela acabara de chegar e nem ao menos fora até o quarto. - Podemos nos
encontrar daqui a uma hora? - perguntou.
Ela parecia radiante e feliz. Era difícil acreditar no que ela deixara para trás tão rapidamente. Eu queria perguntar-lhe uma coisa para a qual precisava de uma
resposta, então sugeri o jardim da cobertura, que estava sempre deserto de manhã.
Quando Julia se encontrou comigo, parecia calma e atraente. Conversamos sobre Tenah Solor. Ela vendera a plantação para uma empresa anglo-americana e fizera um bom
negócio. Quando me debrucei para acender seu cigarro, senti seu perfume e tive que fazer a pergunta. Por um momento não sabia como colocá-la; então decidi que a
única coisa a fazer era ser franco.
- Por que você voltou para pegar o revólver naquela noite, depois que Endrik foi alvejado? - perguntei-lhe.
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Ela empalideceu. Olhou para mim com olhos espantados.
Como você soube? - Sua voz foi pouco mais que um
sussurro.
- Seu perfume.
- Ah! Agora compreendo por que você foi embora sem me ver. Pensou que eu tinha matado Endrik.
Assenti.
Ela continuou:
- Era o revólver de Harry... por isso é que fui pegá-lo. Não, ele não matou Endrik, não sabia nada sobre isso, mas eu tinha que pegá-lo para protegê-lo. -Foi
Hassan, o nosso empregado.
- Hassan? - exclamei. - Como você sabe?
- Eu menti para Jeff - disse ela. - Cheguei em casa mais cedo do que disse e vi Hassan saindo do quarto de Harry. Ele passou correndo para os fundos de uma maneira
tão suspeita, que percebi que tinha alguma coisa em mente. Olhei no guarda-roupa de Harry e vi que o revólver sumira. Era sabido que Peter Endrik andava com a irmã
de Hassan. Hassan me disse que ele ia se casar com ela. É claro que Endrik não tinha a menor intenção de fazê-lo. Os malaios não aceitam isso; para eles só há
um castigo. Mas o que eu podia fazer? Se estivesse certa, não podia detê-lo, mesmo se fosse atrás dele. Estava sozinha e não havia tempo de mandar uma mensagem para
ninguém.
- Então, você estava em casa quando ouviu o tiro. Ela anuiu.
- E então me lembrei do revólver. Se Hassan o tivesse deixado lá, isso ia incriminar Harry. Por mais
que eu o odiasse, não podia deixar que fosse acusado de assassinato. Por isso me arrisquei daquela maneira.
Senti um tremendo alívio - e vergonha por ter duvidado dela.
- Tenho certeza de que Jeff Hawkins pensa que foi você - disse eu.
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Ela riu.
- Não vou perder o sono por isso. Aproximei-me e pus o braço em torno dela.
- Estou perdoado? - perguntei.
Ela assentiu e pôs a cabeça no meu ombro.
- Ainda me admiro com a maneira como nossos caminhos se cruzaram - disse eu. - Mais um dia e eu teria ido embora.
- Foi o destino, querido - murmurou ela.
Sorri para mim mesmo, pois numa carta de Jeff ele mencionara que Julia aparecera para se despedir e lhe perguntara onde eu estava.
Mas não disse uma palavra. E até hoje Julia não sabe. Afinal de contas, existem coisas que é melhor não dizer a uma mulher,
particularmente se ela for sua esposa.
Phil Davis
ALGUÉM QUER ASSISTIR A UM ASSASSINATO?
Se não fosse por minha mulher, provavelmente eu nunca teria suspeitado dos assassinatos. Houve quatro deles e um quinto estava programado. Os criminologistas não
viam nada no caso que lembrasse homicídio. Preferiram chamar de acidente a maioria, exceto pelo que foi registrado como suicídio.
Embora policiais e ladrões não fossem mais meu ofício, eu gostava de exercitar o cérebro. Quando trabalhava no Departamento de Polícia não era lá grande coisa -
só um curioso que gostava de esmiuçar casos suspeitos. Agora que estou aposentado (não pela idade, mas graças a um tio rico que morreu), podia me distrair sem ser
censurado.
O primeiro caso que chamaram de acidente não me causou nenhuma impressão. Deu-se com um veterinário que morreu devido a um aquecedor a gás com defeito. E
daí? Liam-se casos como esse todos os dias, certo?
Então, um carpinteiro fica com a mão presa numa serra elétrica, na própria loja, porém. Isso não costuma acontecer com freqüência a carpinteiros profissionais. A
um amador, sim. De qualquer maneira, encontraram o coitado dois dias depois perto do telefone, com o braço esticado, aparentemente tentando alcançar o telefone com
a mão que ainda estava presa.
Eu disse a meu amigo no distrito policial:
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- Tem alguma coisa errada aí, Marty. Um profissional não ia chegar perto de uma daquelas serras sem segurança. Como foi que ele fez isso?
Marty deu de ombros.
- Descuido - disse ele.
Assenti, com o cérebro pensando como se ainda pertencesse ao crânio de um detetive. Era possível que um carpinteiro fosse descuidado, mas antes que uma pessoa tenha
a mão serrada, a máquina deve estar tentando serrar algo mais além de mãos, certo? Não havia nenhum pedaço de madeira em lugar nenhum próximo àquela serra.
- Como pode? - perguntei a Marty.
Marty lançou-me um daqueles olhares tolerantes, suspirando:
- Ele não estava serrando madeira nenhuma, Hank. Bateu no interruptor acidentalmente enquanto a mão estava em cima da mesa.
Muito bem, é uma resposta. Arquivei o caso mentalmente.
Depois foi a vez do farmacêutico encontrado morto no quarto dos fundos da loja, envenenado com cianureto. Foi obviamente suicídio. Se um farmacêutico quiser se matar,
sabe como fazê-lo - rápida e facilmente.
Não discuti muito este caso. Era um suicídio óbvio, mas uma coisa que aparentemente não preocupou o departamento me intrigava. Todos esses três casos de morte ocorreram
numa tarde de segunda-feira, por volta de quatro e meia.
Marty jogou as mãos para o alto, aborrecido.
- Por que você não vai para casa - disse ele - e assiste aos filmes de crimes na televisão? Melhor ainda, escreva um.
Ignorei ambas as sugestões.
- Pense nisso - disse eu, insistindo no assunto. - Tudo acontece numa tarde de segunda-feira por volta de quatro e meia, com uma ou duas semanas de intervalo. Engraçado,
não é?
Marty não achou engraçado. Admitiu que era estranho e fez um discurso sobre a teoria da coincidência. Como sou paciente, não retruquei.
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Durante uma de minhas visitas regulares ao distrito, chegou um relatório dizendo que um certo Sr. Adams, dono da East Side Extermination Company, morrera sufocado
com a. fumaça de um veneno contra percevejo que estivera preparando. Eu disse para
mim mesmo: Assassinato Número Quatro? Pensei também: Por que não? Foi numa segunda-feira e por volta das quatro e meia da tarde.
Nora estava no seu lado da cama, tentando resolver a charada acróstica da semana enquanto eu olhava para o
teto, na esperança de encontrar alguma resposta lá em cima. O Sr. Adams, o exterminador de insetos, preparava fórmulas há 20 anos e tudo o que matava eram insetos.
Agora, mistura um material que qualquer aluno de química
sabe que é letal e... adeus, Sr. Adams. Como era possível? Marty me dissera, depois das investigações de rotina, que houvera uma troca de rótulos nos vidros. Mais
um profissional descuidado? Ora vamos... Nora guinchou:
- Consegui! Consegui!
Que façanha - mais uma charada acróstica resolvida.
- Ouça isso, querido - disse ela. - Esta é profunda mesmo.
Assumi minha atitude de "grandes façanhas" e disse:
- Fale.
- Não faça pouco caso, querido. Foi a charada mais difícil que já decifrei.
Olhei maliciosamente para seus seios bem-feitos, modelados pela camisola leve.
- Eu fazer pouco caso de você? Ela puxou as cobertas até o queixo.
- Sem-vergonha - disse ela.
Nora é sempre assim, uma pudica. Deslizei para o lado dela e pedi que lesse para mim a profunda solução da charada. Ela me lançou um olhar presunçoso e leu:
- "Para exterminar o exterminador, os insetos devem-se rebelar e devorar o devorador no dia seguinte à lua cheia."
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Ela esperou minha reação. Eu a deixei esperar porque não compreendi a charada.
- Bem? - disse ela, finalmente.
- O que há de tão profundo nisso? - Você não sabe o que significa?
- É para significar alguma coisa?
- Significa que a natureza um dia vai-se rebelar e nos destruir a todos porque temos brincado demais com ela.
- Não está mal - disse eu, reconhecendo de má vontade. - Como aquele exterminador do qual eu estava lhe falando. Passou a vida preparando drogas para matar percevejos.
agora a droga o matou. - Franzi a testa. - É uma coincidência engraçada.
- O quê?
- Leia a charada novamente.
Ela o fez e desta vez prestei bastante atenção.
- "Para exterminar o exterminador, os insetos devem-se rebelar e devorar o devorador no dia seguinte à lua cheia."
Concordei e enruguei a testa.
- Aquele dedetizador de insetos... a loja dele fica ao lado do Café Lua.
- E daí?
- Daí ele morre às quatro e meia, quando o Lua está cheio... de pessoas bebendo cervejas. A charada diz quando vai acontecer, onde e a quem.
- Com quem - corrigiu ela. Então, repetiu o que eu disse, com um rosto de desprezo: - ''Quando o Lua está cheio de pessoas bebendo cerveja." Você é capaz de coisa
melhor, Hank.
Eu ri.
- Minha sabedoria não é sempre brilhante. Mas ainda acho que é uma coincidência engraçada.
- Bem, você vai à casa de Teresa Trimble amanhã à noite. Pode perguntar a ela sobre isso.
- Quem é ela? - indaguei, franzindo a testa.
- A velhinha que faz as charadas para a revista.
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Minha mulher me lançava um daqueles sorrisos de provocação, obviamente divertida com minha cara intrigada. Então, devolvi a provocação, desanuviando o rosto e assumindo
uma atitude indiferente.
Ela não agüentou muito tempo.
Você não quer saber - disse ela - como vamos lá amanhã à noite? - Seu tom de voz demonstrava que ela perdera a batalha de provocação.
- Você está louca pra me dizer, não é?
- Eu mandei uma carta de fã a ela e ela nos convidou para jantar.
Virei os olhos para o teto.
Ótimo. Um jantar com uma velha que faz charadas estranhas.
- Ela é uma mulher notável. Sabe o que ela disse na charada da semana passada? Eu gravei. "O leão-marinho fala de repolho e o carpinteiro não fala nada, já que
não pode ser ouvido com o barulho." Sabe o que esta significa?
Não esperei que ela nie dissesse. Meu cérebro destrinchador de charadas funcionava como um computador em ação. Pulei da cama e fui até a escrivaninha de Nora.
- Ei! - ouvi-a exclamar.
Quero ver todas as outras charadas que você decifrou -
expliquei, remexendo nos papéis dela.
- Bem-vindo à inteligencia - disse ela presunçosamente. Lancei-lhe um olhar de despeito e voltei às charadas. Não
encontrei nada que dissesse algo sobre um farmacêutico ou um veterinário - não nessas palavras exatas - mas tinha o suficiente para me fazer pensar sobre a Srta.
Trimble. Estava ansioso pelo encontro do dia seguinte.
Esperamos na sala de estar enquanto Teresa Trimble foi buscar os comes e bebes. Seu apartamento podia ter inspirado um desenho de Charles Addams: a mobília de veludo,
os reposteiros emoldurados, as capas nos braços das cadeiras e o ligeiro aroma
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de sachê de rosas. Eu estava prestes a dizer a Nora que a sala não me agradava, quando ela falou:
- Não é um amor, Hank?
O que se pode dizer a uma pergunta como essa? Portanto concordei e deixei-a acreditar que a sala era encantadora.
A Srta. Trimble passou pelos reposteiros emoldurados carregando uma bandeja de sanduíches de mostarda e três copinhos de vinho. Era uma mulher pequena como um passarinho,
com seus 70 anos.
- Esta é uma ocasião tão feliz para mim - disse ela numa voz que farfalhava como se passasse por meio de salgueiros.
- Ficamos tão felizes de poder vir - disse Nora tão melosa que seria capaz de atrair um enxame de abelhas. - Segunda-feira é a noite em que Harry costuma jogar pôquer.
Assenti com um olhar do tipo ah-o-que-eu-perdi! A Srta. Trimble apressou-se a dizer:
- Bem, quando recebi sua carta tão gentil, cumprimentando minhas charadas, percebi que precisava conhecê-la. E quando você aceitou meu humilde
convite... - Ela parou de falar, fixando em Nora um olhar brilhante. Então, lentamente esticou a mão e tocou-lhe o rosto. - Você é tão jovem - disse ela baixinho.
- Tão
nova... - Parou de falar abruptamente quando pensou em algo. - Ah, tenho uma excelente idéia! Só um minuto! - Ela se virou e saiu e eu comecei a andar de um lado
para outro.
- Pare com isso - murmurou Nora. - Você não vai morrer se perder seu jogo de pôquer uma vez.
A essa altura eu estava na escrivaninha que ficava num canto, remexendo uns papéis. Nora me repreendeu asperamente:
- Hank, você não pode entrar na casa dessa senhora e começar a vasculhar...
- Ouça isso... - Era um rascunho da charada da próxima semana. - "O verde é seu negócio, embora trabalhe com muitos tons de amarelo. Negra é a natureza de sua alma
e a morte encontra descanso no rosa pálido."
Os olhos de Nora faiscaram.
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- Hank, você não pode...
- Que tal estou? - A voz da Srta. Trimble fez com que nos virássemos subitamente. Ela pusera vestido de uns 50 anos atrás, parando no reposteiro e fazendo uma pose
como se pedindo elogios.
Consegui dizer:
- Bonito. Como uma boneca de porcelana, Srta. Trimble.
- Que gentileza a sua, Sr. Barnes. Não uso esse vestido há
50 anos. Ele me traz lembranças maravilhosas. - Lançou um olhar terno e carinhoso para Nora. - E ao vê-la me lembrei de meus tempos de juventude. - Seu olhar voltou-se
para a bandeja que trouxera. - Ah, vocês não provaram meus sanduíches. Eles não vão fazer com que percam a fome para jantar, são muito leves. - Falou com uma ponta
de tristeza: - Embora eu tema que a mostarda não esteja lá muito boa. Não está tão fresca como devia. - Agora o rosto assumira um olhar de esperteza. - O meu verdureiro
anda negligenciando. Eu vou ter que mudá-lo.
Lá veio o meu cérebro novamente estalando.
- Seu verdureiro?
Ela anuiu afavelmente, depois apanhou um copo de vinho e levantou-o para Nora.
- Eu quero fazer um brinde a você, Sra. Barnes. À beleza... a quem encontrou a fé numa arte perdida. - Levara o copo à boca quando a atenção foi atraída para uma
gaiola vazia pendurada numa haste ali perto. Seus olhos enevoaram-se e ela permaneceu parada, olhando para a gaiola por alguns segundos. Percebeu a nossa reação
intrigada. - Perdi Jonathan há três semanas - explicou. - O veterinário foi tão descuidado. - Estendeu a bandeja. - Agora, não querem provar um sanduíche? Vão
ver como são refrescantes.
Estendi a mão para apanhar um sanduíche e acidentalmente derrubei um copo de vinho, que derramou no tapete.
- Ah, Hank... - começou a dizer Nora num tom de censura.
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Lamento, Srta. Timble. - Abaixei-me para enxugar o tapete com um guardanapo de papel, mas a Srta. Trimble me deteve,
- Não se preocupe, Sr. Barnes - disse ela. - O meu tapete ficou cheio de traças muito antes deste copinho de vinho. O dedetizador estava preparando uma solução
especial, mas aparentemente as traças foram mais espertas do que ele.
De minha posição curvada, levantei os olhos para ela e disse, cautelosamente:
- Por acaso é um dedetizador que tinha uma loja na Rua 47 Leste?
Ela reagiu com um sorriso surpreso.
- Ora, isso mesmo, Sr. Barnes. O senhor é cliente do Sr. Adams, também?
Eu me levantei lentamente.
- Não - respondi. E não creio que o Sr. Adams esteja em condições de aceitar mais trabalho.
Nora desviou o olhar de mim para a Srta. Trimble, aflita.
Em meu sono me ouvi repetindo:
- O verde é seu negócio embora trabalhe com muitos tons de amarelo. O verde é seu negócio..."
Então ouvi a voz da Srta. Trimble dizendo: "O meu verdureiro anda negligenciando. Vou ter que mudá-lo."
"O verde é seu negócio..." "Vou ter que mudá-lo..." Acordei subitamente e gritei:
- Ah, não! - Virei-me e comecei a sacudir Nora. - Meu bem... querida... benzinho!
Ela me olhou com olhos sonolentos.
- Descobri! - berrei. Então disse, numa voz mais baixa: - Estou com medo.
Nora bocejou para mim e disse:
- Descobriu o quê? Está com medo?
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- Acho que aquela estranha senhora vai mudar de verdureiro. Vai mudá-lo de vivo para morto. - Peguei o telefone.
-- Não é uma coincidência, Marty - disse eu. - Todas as suas mortes acidentais estão ligadas a essas charadas. - Nora tornou a encher nossas xícaras de café.
- Três e meia - murmurou Marty, estonteado. - Da manhã ainda.
Nora anuiu de acordo.
- Imagine... sonhos às três e meia da manhã!
- E deliciosos, também - disse Marty com a boca cheia. - Vou comer mais um.
Sacudi um maço de charadas resolvidas debaixo do nariz dele.
- Lembra-se do veterinário que morreu por causa de um aquecedor a gás com defeito? Aposto que você vai descobrir que foi ele quem cuidou do passarinho com asa quebrada
da Srta. Trimbíe. E o dedetizador que lutou uma batalha perdida com as traças do tapete dela. - Folheei o material. - Está tudo aqui: o carpinteiro, o farmacêutico.
E eu lhe garanto, Marty, que na próxima segunda-feira, às quatro e meia, um verdureiro vai morrer.
Marty suspirou.
- Me faz um favor, Hank? Que diabos é um verdureiro? Nora interveio, com seu superintelecto.
- Um homem que vende frutas e verduras. - Então ela me atacou com sua superlógica. - Nós jantamos com ela a noite passada, Hank. Por acaso ela agiu como uma mulher
que cometeu quatro assassinatos no mesmo número de semanas? E, se fez isso, por que falar disso numa charada?
- Quem é esta senhora? - Marty quis saber. - uma Lucrécia de Bergerac? Uma criminosa extraordinária? Eu não estou compreendendo muito bem, mas já investiguei suas
suspeitas antes e você estava certo; logo vou levar essa investigação avante também. Só não quero que digam nada ao chefe.
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Certo. - Eu me virei para minha esposa. - Nora...
Ela estava dormindo em pé, então eu fiz o que qualquer marido ex-detetive de sangue frio faria sob tais circunstâncias. Dei um berro em seu ouvido: - Nora!
A cabeça de Nora caiu para trás e ela recomeçou:
- Verdureiro é um homem que vende frutas e...
Ela parou de falar ao ver meu riso.
- Você já nos disse isso antes, querida - falei, indulgentemente. - O que precisamos saber agora é qual é o verdureiro que vai ser a próxima vítima.
Eu lhe dei esta tarefa.
Nora trabalhava bem. O verdureiro de Teresa Trimbíe era um homenzinho miúdo chamado Pincus. Sua loja ficava na Lexington Avenue, não muito longe do apartamento da
Srta. Trimbíe. Os fregueses chamavam-no de Pink, ou seja, rosa, como na última frase da charada: "A morte encontra descanso no rosa-pálido." Na segunda-feira seguinte,
Marty e eu nos plantamos em frente à loja de Pink. Às quatro e quinze mais ou menos, a Srta. Trimbíe apareceu na calçada e entrou na loja. Saltamos do carro e paramos
na entrada. Ouvimos o Sr. Pincus cumprimentar a Srta. Trimbíe amigavelmente. Ela queria saber se os cogumelos estavam prontos.
- Você me prometeu, Pink - disse ela naquela voz fina. - Hoje... segunda-feira... às quatro e meia. Lembra-se?
- É claro - disse Pincus. - Não acendi uma luz no porão a semana inteira. Eles devem estar excelentes. Volto num minuto.
O Sr. Pincus entrou por uma porta dos fundos e nós entramos pela da frente. A Srta. Trimbíe ficou surpresa.
- Ora, Sr. Barnes - disse ela - que prazer em vê-lo. Vai comprar os cogumelos do Sr. Pincus?
- Não exatamente. - Apresentei Marty.
- E um prazer conhecê-lo, Sr. Gordon. Marty disse:
- Obrigado.
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A Srta. Trimble virou-se para uma banca de caquis.
O Sr. Pincus diz que os caquis ficam machucados se a
gente apertá-los. Mas como se pode saber se estão maduros se não for assim? - Deu um apertãozinho num e me olhou com um sorriso de cumplicidade. - Ele nunca vai
descobrir.
A Srta. Irimble continuou examinando os caquis, dando um apertão aqui outro ali. Um relógio da parede deu uma badalada funesta. Obviamente estava adiantado. Então,
depois do que pareceu um momento eterno, olhei para o meu relógio e olhei para Marty.
- Que horas são no seu?
Antes que Marty pudesse responder, a Srta Trimble virou-se dos caquis e nos disse:
- São quatro e meia.
Foi a maneira como ela disse isso que levou Marty e eu a nos entreoiharmos, alarmados. Foi o bastante para Marty ir espiar na porta dos fundos.
- Foi muito gentil da parte da Sra. Barnes - dizia a Srta. Trimble - me visitar quarta-feira passada. Eu lhe ofereci meu chá de jasmim especial. Tenho um excelente
vendedor de chá...
Olhei com nervosismo para a porta dos fundos.
- Ela me contou - disse eu.
- Ela é tão jovem e tão bonita - continuou a Srta. Trimble. - O senhor é um homem de sorte, Sr. Barnes. Se dependesse de mim ela nunca envelheceria.
Reparei numa revista em cima do balcão ao lado dela. Era a mesma que Nora assinava - a revista com as charadas. Antes que eu pudesse fazer algumas perguntas sobre
esta, Marty veio da porta dos fundos, com as feições transtornadas de choque.
- Ele está morto - disse Marty, completamente incrédulo. A Srta. Trimble pareceu preocupada.
- E os meus cogumelos? - disss ela.
O Inspetor Crowley, um policial gordo, vermelho e suado com um tique nervoso de estalar os dedos, interrogava a Srta. Trimble
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no apartamento. Tive que tirar o chapéu pela maneira como ela permaneceu sentada, calma e controlada. Crowley estalou um dedo e disse:
- Diga-me novamente, Srta. Trimble, qual foi o significado da charada... - Ele começou a ler de uma cópia: - "Verde é seu negócio, etc. etc..."?
- Eu preferia que o senhor não fizesse isso - disse a Srta. Trimble.
- É meu dever fazer perguntas.
- Eu não quis dizer isso. Falo dos seus dedos.
Crowley lançou um olhar irritado para nós. Com a permissão de Crowley, assumi o interrogatório:
- A sua charada não era um aviso para o Sr. Pincus?
- Um aviso? - disse ela inocentemente. - Sobre o quê? Repeti a charada:
- '"O verde é o seu negócio, embora trabalhe com muitos tons de amarelo." - Eu lhe dei minha interpretação. - Isso significa que ele era um verdureiro, mas vendia
coisas amarelas como bananas, abóbora, pêras e coisas assim. Certo?
- É uma interpretação muito interessante, Sr. Barnes - disse ela. impressionada.
Continuei:
- "Negra é a natureza de sua alma." Essa foi a maneira da senhora dizer que não gostava dele?
- Ah, não, Sr. Barnes. Eu só lamentei por ele ter-me desapontado com a mostarda, só isso. De fato, eu gostava muito de Pink.
Assenti.
- Pink é rosa e a senhorita disse: "A morte encontra descanso no rosa-pálido." - Usei uma das minhas expressões mais amigáveis. - Agora, Srta. Trimble, isso foi
uma ameaça?
- O texto de todas as minhas charadas é sempre controverso - disse ela simplesmente. - Por isso é que são tão bemsucedidas. Cada um encontra seu próprio significado
nelas.
- Qual é o seu?
- Eu só gosto do jeito como soam.
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Marty interveio:
- A senhorita gostou do jeito que soou quando Pincus escorregou naqueles degraus do porão e abriu a cabeça no chão de cimento?
- Eu não ouvi nada - disse ela docemente. Foi a vez de Crowley.
- A senhorita entrou naquele porão, passou cera nos degraus e desatarraxou a lâmpada... não foi?
Marty acrescentou:
- E quanto ao dedetizador? A senhorita entrou no quarto dos fundos de sua loja e preparou a solução que o matou?
- E o veterinário - vociferou Crowley. - Aquele onde a senhorita levou seu passarinho. Foi a senhorita quem abriu o bico de gás do aquecedor enquanto ele fazia a
sesta?
- E o carpinteiro...
- O farmacêutico...
Eles subitamente pararam com o interrogatório para olhar para a Srta. Trimble, enquanto ela tirava uma pequena caixa de comprimidos de uma gaveta da mesa e punha
água de uma garrafa num copo.
- Não consigo me lembrar - disse ela - de quando tive uma noite tão estimulante. - Ela abriu a caixa de comprimidos e ofereceu-a para nós. - Hortelã?
Nora deixou escapar três "Ahs", um depois do outro. O primeiro quando lhe entreguei uma carta com selo de entrega rápida. Foi um "ah" cheio de admiração. Como se
no caso de ser para mim eu dissesse: "Ah? Quem será que me enviou uma carta por entrega rápida?" Mas minha esposa é uma dama. O segundo "ah" foi de surpresa quando
eu lhe disse que a carta era da velha gozadora acróstica. O terceiro "ah" veio quando ela abriu o bilhete.
"Uma cópia adiantada", dizia o bilhete, "da minha próxima charada. Espero sinceramente que vocês consigam resolvê-la."
Nora franziu a testa para mim.
- Por que você acha que ela fez isso?
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Eu não estava com estado de espírito para supor nada. Apanhei a charada e levei-a para Center Street, onde eles possuem computadores que decifram criptogramas,
mensagens
em código e todo tipo de coisas assim.
O computador resolveu a charada em três minutos, porém, por mais que a máquina fosse inteligente, não conseguiu me dar uma interpretação. Quando se trata de interpretações,
minha mulher e eu somos mais espertos do que as máquinas.
Mostrei a charada a Nora e ela não conseguiu nada.
Li e reli a charada: X mais muitos Y s é igual à morte, uma vez que nem ora com uma esperança encontrada nem ora com uma fé perdida podem deter a hora do destino
em que o sol se põe. Lancei um olhar preocupado a Nora.
- Não consigo decifrar nada.
- Você está numa bananosa, querido - disse ela. - Talvez devesse desistir.
Repeti o começo:
- X mais muitos Ys é igual à morte. Leia a próxima linha, benzinho. - Fechei os olhos e escutei.
- ... uma vez que nem ora com uma esperança encontrada nem ora com uma
fé perdida... Entendeu essa, amor?
Repeti a frase lentamente:
- ... que nem ora com uma esperança encontrada nem ora com uma fé perdida... - Abri os olhos. - O que você acha que ela quer dizer com "uma esperança encontrada"?
- Que tal "uma fé perdida"?
- É. Uma fé perdida. Uma esperança encontrada.
- Acho que de uma coisa se pode acusá-la: de erros de gramática - disse Nora.
- O que tem isso a ver? Ela deu de ombros.
- Nada. Só que ela não foi muito gramatical. Disse "nem, nem" e "ora, ora".
Senti os pêlos de minha nuca se eriçarem. Repeti a linha.
- ... Nem ora com uma esperança encontrada, nem ora com uma fé perdida. - Continuei: - ... nem ora com uma
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esperança encontrada... nem ora com uma esperança encontrada... nem ora com uma esperança encontrada..." - Mudei para: - ... nem ora com uma
fé perdida... nem ora com uma fé perdida... nem ora... - Dei um grito: - Nora! Nora quase caiu da cadeira.
- O quê?
- Nora perdeu a fé!
Ela engoliu seco e disse baixinho:
- Eu?
Os policiais estavam em nossa sala de estar na segunda-feira à tarde. Nora sentava-se na ponta do sofá, com um ar muito infeliz.
- O que devo fazer? - reclamou. - Ficar sentada aqui e esperar pela hora do destino? - Ela apontou para o relógio. - Vai ser daqui a uns cinco minutos.
-- Relaxe, querida - falei.
- Não há com que se preocupar, Sra. Barnes - disse Crowley. - Temos homens colocados em todo o prédio e um vigia perto da casa da Srta. Trimble.
Marty disse:
- De todos os casos em que já trabalhei, este é o mais absurdo. X mais muitos Ys é igual a uma paulada na moleira.
- Para seu governo, Marty - disse eu - o X se refere a mim como ex-detetive. E muitos Ys significa que fiz muitas perguntas. O que se acrescenta a...
Marty me interrompeu:
- Eu sei, eu sei. Mas e quanto àquela "hora do destino em que o sol se põe"?
Eu não estava bem certo quanto a esta parte da charada. Achei que era a maneira de a Srta. Trimble nos dizer que a ação teria lugar por volta de 4:30. Nessa época
do ano é a hora em que o sol se põe.
O telefone tocou e Crowley foi atender. Nora esperava que fosse uma trégua do encarregado do caso. Um dos homens que estivera de guarda próximo ao prédio da Srta.
Trimble nos disse
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que ela saíra há 30 segundos. Nora engoliu seco e fez uma piada de mau gosto:
- Alguém quer assistir a um assassinato?
Examinamos os relógios. O meu marcava 4:30, o de Marty
4:29 e o de Crowley 4:31.
Esperamos... esperamos... e esperamos. Nada.
Às 5:30 o telefone tocou novamente. O policial disse que a Srta. Trimble acabara de voltar para casa. Aparentemente saíra apenas para fazer umas compras.
Marty e Crowley me censuraram. Estavam cansados da minha perseguição-fantasma. Nora me censurou também. Estava farta de policiais, ameaças e das minhas profundas
interpretações acrósticas e suspeitas. Eu me censurei, depois sentei-me num canto, me remoendo.
Minha mulher, sendo o tipo de esposa que é, me acalmou com um comentário tipo "não se pode resolver todas elas", deu um beijo em minha nuca e me mandou para meu
jogo de pôquer das segundas à noite. Fiquei feliz em ir.
Eram 7:20 quando deixei o prédio. Se eu tivesse esperado até 7:30 teria encontrado Teresa Trimble chegando.
O jogo de pôquer foi na casa de George Bogin, a uns dois quarteirões dali. A mulher dele estava em Los Angeles, então ele começou o jogo cedo. Cheguei lá em cinco
minutos.
George olhou para mim, surpreso.
- Ei, pensei que você não vinha. Chamei Nate pra ficar em seu lugar.
Nate disse:
- Eu podia ceder meu lugar a você, Hank, mas estou apostando 150.
- Esqueça - repliquei. - Eu espero. George olhou para o relógio.
- Prometi telefonar para minha mulher às quatro e meia, Hank - disse ele. - Você pode ficar no meu lugar. Ela vai me prender no telefone uma hora.
Eu ri.
- Você está um pouco atrasado. São sete e meia agora.
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Ele se levantou da mesa e eu me sentei.
- Quatro e meia, hora de Los Angeles - explicou George.
Você sabe como é a Vera. Tudo tem que ser do jeito dela.
"Me telefona às quatro e meia, hora daqui." Você acha que ela ia dizer: "Me telefona às sete e meia daí?" Não. Tem que ser a hora dela. Tive que acrescentar a diferença
de três horas à hora dela e diminuir da minha hora. Pra fazer uma chamada telefônica tenho que dar uma de matemático. - Deu um tapa no meu ombro. - É um lugar de
sorte o meu.
Eu me sentei em frente ao rei e minha cabeça buzinava com uma mistura de charadas. Os rapazes me perguntavam se eu podia abrir. Me ouvi dizendo:
- ...A hora do destino em que o sol se põe... em que o sól se põe! - A cruel descoberta me chocou como um caminhão de 10 toneladas. Aquela senhora planejou tudo!
Eram quatro e meia no oeste! Dei um pulo da cadeira que fez as fichas voarem e caírem no chão, deixando um bando de jogadores de pôquer
surpresos.
Não sei quanto tempo levei para percorrer a distância entre o apartamento de George e o meu, mas quando entrei no saguão escava ofegante, com fôlego suficiente para
agradecer pelo elevador estar lá esperando.
Apertei o botão para o 12? andar e nada aconteceu.
- Merda, sobe! - apertei várias vezes e nada. Parti para as escadas.
Eu costumava ser um bom corredor quando jovem, mas alpinista nunca fui. Doze andares para mim eram uma montanha. Subi aquela montanha correndo como se fizesse isso
há anos. Continuo não sendo um alpinista - um corredor de montanhas, sim.
Cheguei no corredor do 12o andar a tempo de ver a Srta. Trimble apontando uma pequena pistola para Nora em frente à porta do elevador. Só que não havia elevador
ali - apenas um buraco fundo e vazio.
O rosto de Nora estava aterrorizado. Ela não me viu. Seus olhos apavorados estavam voltados para o cano da arma. A Srta.
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Trimble não me viu também - estava muito envolvida em seu jogo de assassinato. É desnecessário dizer que eu precisava ser cauteloso. Se fizesse alguma coisa,
a arma podia disparar ou Nora podia ser atirada para o buraco. Ou ambos. A Srta. Trimble dizia:
- Uma pessoa tão jovem, tão nova, tão bonita não deve envelhecer nunca. Mas fico feliz por poder evitar isso. - Seu rosto amuou-se. - Embora você tenha me desapontado.
Não devia ter permitido que seu marido encantador me fizesse tantas perguntas. Você perdeu a fé, Nora. Não percebe isso agora?
Caminhei pelo corredor lentamente, agradecendo ao senhorio pelo tapete grosso. Esperava que a Srta. Trimble não ouvisse o som de minha respiração.
- Isso é tão excitante - continuou ela. - Fazer charadas costumava ser monótono até eu pensar nesse jogo. Sabe, minha querida, eu não tinha certeza se ia conseguir
enganar seu marido, mas consegui. - Levantou a arma um pouco mais alto. Os olhos aterrorizados de Nora acompanharam-na. - Pise aí dentro, querida - disse ela. -
Apenas mais um acidente. Não foi difícil para mim prender aquela porta e fazer o elevador descer. Um contato, só isso. E agora o elevador nem mesmo sobe. Eu sou
muito boa em arranjar as coisas. - Ela a incitou gentilmente:
- Dê um pequeno passo para trás, querida. Vá...
Nora agora estava na beira do poço. Como sair dessa? Não havia tempo para pensar num plano.
- Bem, alô, Srta. Trimble - disse eu calmamente. Nora engoliu seco e a Srta. Trimble se virou e me olhou com
um ar surpreso de boas-vindas.
- Ora, Sr. Barnes - disse ela. - Que prazer nos vermos novamente.
Eu me adiantei lentamente, cauteloso. A arma estava virada para mim.
- A senhorita está muito bem com esse vestido - disse eu.
- Parece uma boneca de porcelana. - Repeti com um pouco de ênfase: - ... uma boneca de porcelana.
Ela se transformara.
- Que gentileza a sua - disse ela mecanicamente. - Faz
50 anos que não uso esse vestido... Ele me traz tantas... - Gentilmente, tirei a arma de suas mãos. Ela nem mesmo reparou. - Ele me traz tantas
lembranças... maravilhosas.
Nora cambaleou. Passei rapidamente pela Srta. Trimble e estendi o braço para evitar que ela caísse para trás no poço.
- Calma, benzinho - disse eu, baixinho. Então, num dos tons mais suaves, disse: - Vamos convidar a Srta. Trimble para tomar chá.
- Isso me lembra uma coisa - disse a Srta. Trimble. - Meu vendedor de chá misturou chá preto em meu chá de jasmim. Ele não devia ter feito isso.
Concordei com ela, enquanto a conduzíamos para a porta de nosso apartamento.
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Wiliam Jeffrey
A ILHA
Quando Flagg estaa a 200 metros na margem da ilha a favor do vento, ele desligou o motor do esquife e usou os remos para leválo o resto do caminho. Ele guardou
o bote na ponta de uma estreita faixa de praia que brilhava esbranquiçadamente na escuridão - o único lugar além da enseada feita pelo homem na margem norte onde
um bote podia ficar guardado a salvo. Inclinou a popa fora d'água, depois arrastou a pequena embarcação para um abrigo de pinheiros e samambaias densas. Não havia
lua e as estrelas piscavam friamente, distantemente, no céu da noite. Passavam alguns minutos das 11 horas.
Flagg sabia que a ilha tinha 400 metros de largura e 800 metros de comprimento, e conhecia todos os seus contornos e passagens; Churlak lhe dera um mapa de reconhecimento
aéreo pouco antes de Flagg deixar San Francisco para Seattle na tarde anterior. Ele partiu para o norte, contornando um monte de mata
cerrada. Vestido com roupa preta e capuz de lã preta, ele era apenas uma sombra desenhada contra as águas imóveis e negras do Estreito Rosário.
Alguns minutos depois, usando um outro caminho entre as árvores e ao longo da costa rochosa, ele chegou à enseada onde Parish guardava seu iate alugado de 20 pés.
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Parou nos pinheiros que circundavam a pequena enseada, para escutar os cachorros. Não ouviu nada, mas isso não queria dizer muito. Os cachorros eram Dobermans,
uma raça que, se bem treinada, atacaria tão silenciosa e rapidamente quanto um atirador de tocaia sob o manto da escuridão e os cachorros de Parish tinham a reputação
de ser bem treinados.
Havia dois barcos amarrados na extremidade do longo píer de madeira que parecia um dedo apontado para a enseada: o iate e um bote de 14 pés parecido com o que Flagg
usara. O bote sem dúvida pertencia ao homem chamado Denman, que era o encarregado permanente da ilha.
Flagg foi para um lugar onde pudesse olhar de cima para a trilha que ia do píer até a casa principal de tijolos e colunas. Esta ficava bem no alto do penhasco que
compreendia a parte oriental da ilha, resguardada por árvores. Não havia luzes aparentemente. Delineada contra o céu escuro, a casa possuía uma aparência gótica
que talvez divertisse Flagg em outra situação; o dono, um negociante de Seattle, a construíra para a esposa de seus cinqüenta e tantos anos. A esposa se cansara
dela e agora estava alugada a alguém que tinha dinheiro suficiente e desejo suficiente para querer viver em sua própria ilha particular. Parish tinha ambos em abundância,
mas suas razões eram mais fortes do que isso - o que trouxe Flagg até aqui.
Ele saiu das árvores, correndo silenciosamente com sapatos de lona, mantendo-se na sombra o mais que podia. Na base do cais, ele se agachou atrás de uma pequena
estrutura que poderia ter sido usada como abrigo de barcos. O silêncio era completo, exceto pelo bater suave e sereno da água contra as estacas de madeira, pelo
gumcho de um pássaro noturno na floresta ao redor. Não havia movimento em lugar nenhum.
Onde estavam os cachorros? Flagg se perguntou. Espeiara problemas com eles o tempo todo, razão por que trouxera consigo a faca de caça e a espingarda de ar comprimido
que estavam presas no cinto. Não se preocupara com Denman; o caseiro ia para cama cedo e deixava os cachorros vigiarem por si. Onde estavam então os cachorros?
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Flagg refletiu sobre a pergunta por algum tempo, e então decidiu que provavelmente estavam atrás de alguma coisa - esquilos, roedores - do outro lado da ilha. Não
tinha tempo para se preocupar com isso. Movendo-se cautelosamente, afastou-se do abrigo de barcos e começou a caminhar pelo píer, correndo
agachado para abaixar a silhueta contra o horizonte.
Quando alcançou a extremidade do píer, foi de joelhos ao lado do bote, entrou no mesmo e soltou o motor da estaca. Deixou-o afundar na água preta, parou para escutar
e então tirou os remos e jogou-os longe. Arrastou-se ao longo do navio e pulou para a popa, chegou ao compartimento do motor e levantou o encaixe. Levou 10 segundos
para remover o rotor e afundá-lo na água. Abaixou o encaixe, pulou para o píer novamente e correu de volta ao abrigo de barcos. O silêncio permanecia e não se via
nenhum movimento.
Flagg saiu e começou a correr encosta acima, movendo-se paralelamente ao caminho de conchas esmagadas. Teve que alcançar os jardins laterais agora e o único outro
caminho teria sido através da densa vegetação rasteira entre eles e o abrigo de barcos. Ficava mais vulnerável e exposto desta maneira, mas era mais silenciosa e
havia menos chance de atrair os cães.
Os jardins tinham sido feitos em fileiras, metade rocha e metade arbusto com faixas de grama. Formavam arcos até a face norte do penhasco, terminando com um rochedo
que dava para o estreito em um lado, e pequenos degraus de pedra cravados no penhasco no outro. Flagg embrenhou-se através de uma cerca e começou a subir os degraus
estreitos e escorregadios; do mapa aéreo, ele lembrava-se de que eles ligavam-se a um pátio que se estendia pelos fundos da casa.
Estava na metade dos degraus quando uma explosão abafada quebrou a paz noturna.
Flagg parou, com a mão direita na espingarda de ar na cintura. Fora a inconfundível explosão de uma espingarda e o tiro viera de cima à sua direita, a pouca distância.
Esperou mais um ou dois segundos, esforçando-se por ouvir, mas o silêncio voltara a reinar na noite. Subindo os degraus restantes dois de cada vez,
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ele chegou ao pátio e agachou-se atrás de um muro baixo de concreto. Estava com a espingarda de ar comprimido na mão agora, o dedo firme no gatilho, e escutou atentamente.
Uma sala do andar térreo à sua direita estava acesa, um brilho amarelo e fraco saindo por uma série de frestas de janelas e cortinas fechadas. Os fundos da casa
estavam tão escuros quanto a frente. Silenciosamente, Flagg caminhou entre os móveis de ferro batido de jardim espalhados pelo pátio, chegando a um lado das janelas.
Espiou pelo vidro e pela semi-opacidade das cortinas.
A sala era obviamente um escritório. Havia uma lareira pequena e enfeitada, cercada por estantes de livros com portas de vidro. Os nichos entre as estantes eram
cheios de pesados retratos a óleo, obscurecidos pelo tempo. Na extremidade do escritório havia uma pesada escrivaninha de madeira de lei do período imperial; em
sua superfície havia um cinzeiro de bronze, um lampião de haste comprida, com a coroa inclinada sobre uma máquina de escrever elétrica. Atrás da escrivaninha havia
uma cadeira giratória de couro, tombada para um lado, e sentado na cadeira um homem de cabelos brancos e rosto quadrado que Flagg sabia ser Eric Parish.
Parish parecia extremamente relaxado ali sentado, com as mãos cruzadas no colo, a cabeça repousando suavemente no colarinho alto e aberto da camisa branca. Seus
olhos estavam abertos e com as pálpebras semicerradas, como se cheias de sono. Do buraco escuro e redondo entre eles escorria sangue sobre o nariz num veio congelado.
Flagg pôs um par de luvas de couro finas para torcer a maçaneta de uma das portas; estava trancada. Com o cano da espingarda de ar comprimido ele quebrou um dos
vidros, enfiou a mão e destrancou a porta. O som de vidro quebrado não fora particuiarmente alto e o pátio permanecia vazio, a noite silenciosa. Ele entrou na sala,
rodeando os cacos de vidro agora em cima do tapete grosso, e correu até o homem morto.
Além do pequeno furo na testa de Parish, havia uma ferida aberta do tamanho de uma moeda de dólar que manchara seu cabelo branco de vermelho. Seguindo uma imaginária
trajetória,
Flagg encontrou um outro buraco no lambri de madeira atrás e a um lado de Parish. Virando-se então, ele viu a porta interna e achou óbvio que alguém que Parish conhecera
estivera ali em pé, talvez apenas entrando ou saindo - e Parish, voltado para aquela direção, fora alvejado antes de se dar conta da ameaça.
Flagg começou a fazer uma busca tanto no escritório quanto no corpo de Parish. A carteira, o anel de diamante e o relógio caro do morto não tinham sido tocados.
As gavetas da escrivaninha estavam cheias de miudezas, papel-ofício, um talão de cheques de um banco de Bellingham que mostrava um saldo polpudo. A máquina de escrever
elétrica ainda murmurava baixinho, mas não havia nenhum papel escrito nem datilografado na mesa, na máquina nem em qualquer outro lugar da sala. Flagg ficou olhando
para Parish com uma forte sensação de frustração e raiva impotente na garganta.
A missão de certa maneira se frustrara antes mesmo que ele conseguisse começar a cumpri-la. A morte de Parish em si não importava; o fato de os papéis terem sumido
é que complicava as coisas.
Parish fora um dos chefões da Organização na área de Washington D.C. durante anos, levando vida de prestígio político em Alexandria, Virgínia. Então houvera uma
morte em uma das Famílias, e uma subseqüente luta pelo controle; novos líderes apareceram em cena e Parish subitamente vira-se em perigo de ser afastado por sangue
jovem com laços mais fortes na Organização. Amargurado e vingativo, Parish denunciara o Círculo e então desaparecera de vista.
Pouco depois, a Organização soubera por meio de informantes que ele planejava escrever um livro. O livro, o maior e mais volátil porém, citando nomes e incluindo
documentação não só de fatos passados como de operações atuais também. Considerando-se sua posição na capital da nação, suas revelações teriam causado um escândalo
de proporções sem precedentes e ninguém, em nenhum dos lados da cerca legal, queria que isso acontecesse.
Mas Parish fora difícil de ser encontrado. Planejara bem, cruzando o país e alugando um navio e este esconderijo na ilha
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por procuração. A ilha era uma das menores numa série entre a costa do Estado de Washington e a ponta meridional da Ilha de Vancouver. De origem vulcânica, algumas
das ilhas eram bem grandes - como a Ilha das Orcas, que tinha sete pequenas comunidades. Outras eram locais de veraneio desconhecidos, capazes de abrigar apenas
uma ou duas casas, e eram retiros exclusivos dos ricos das proximidades de Seattle e Bellingham.
As águas que cercavam as ilhas eram frias e traiçoeiras, uma mistura de correntes do Estreito de Juan de Fuça e do Estreito da Geórgia. O continente só podia ser
alcançado por barco, particular ou o ferry, que fazia o percurso regular entre Sidney, Colúmbia Britânica e Anacortes em Washington, Eric Parish encontrara o lugar
perfeito onde escrever seu livro sem interferência - ou pelo menos assim achou.
Com milhares de informantes à sua procura, seu esconderijo finalmente fora localizado apesar de todas as suas precauções. O ramo de Washington D.C. da Organização
imediatamente entrara em contato com o cabeça da Divisão de Segurança da Costa Oeste, um homem chamado Churlak; e Churlak designara Flagg, seu auxiliar principal.
Flagg alugara um carro em Seattle e fora para Anacortes, então tomara o ferry-boat da manhã para a Ilha das Orcas e fora para o lado oposto até o povoado de Doebay,
o porto mais próximo da ilha de Parish. Já tinham sido feitos arranjos com um contato do noroeste e Flagg encontrara um barco esperando por ele ali, todos os acessórios
de que precisaria e a certeza de que Parish estava em casa. Ele esperara até as 10 horas e então começara a travessia fria e silenciosa.
A idéia não era matar Parish; sua morte súbita poderia ter causado mais problemas do que o livro em si, especialmente se Parish tivesse conseguido proteger-se com
algum tipo de seguro. A Organização não ficara muito preocupada com a publicação de um livro - sempre se escreviam livros sobre a Organização - contanto que aquele
só tratasse de assuntos passados e não de fatos que estivessem ocorrendo no momento em áreas como a capital da nação. A missão de Flagg era simplesmente falar com
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Parish, convencê-lo de que ele era vulnerável onde quer que se escondesse, persuadi-lo a entregar as anotações e papéis. Não conseguindo fazer isso, Flagg fora instruído
a pegar toda a documentação de uma maneira ou de outra.
Só que agora alguém chegara a Parish e aos papéis primeiro. Por quê? E quem? E qual fora o significado do tiro que Flagg ouvira ao subir os degraus externos? Fora
um tiro de espingarda, certo - não uma arma de calibre pequeno que matara Parish...
Flagg atravessou o escritório até a porta e passou por um corredor curto. A escuridão e o silêncio enchiam a casa maciça. Ele passou pelos cômodos do andar de baixo
- sala de visitas, cozinha, copa, aposentos dos empregados - e não viu sinal de ninguém. Uma escada em caracol conduzia aos quartos do segundo andar e uma rápida
busca lá em cima também foi infrutífera.
Embaixo novamente, Flagg foi para a entrada da frente, passou por uma ampla varanda cheia de cadeiras e poltronas de vime, com samambaias e plantas em caixas estreitas.
A um lado da casa, localizada entre as árvores, havia uma casa menor, obviamente onde morava o caseiro. Num aposento da parte fronteira uma luz fraca estava acesa,
iluminando palidamente a noite ao redor; não estava acesa quando ele examinara a casa da enseada anteriormente.
Com a espingarda presa firmemente na mão, Flagg desceu do alpendre e encaminhou-se para um grande ainieiro que crescia a alguns centímetros da porta da frente. Parou
ali, observando e na escuta. Depois de algum tempo, andou para frente, encostou-se na parede ao lado da porta. A casa estava silenciosa - silenciosa demais. Flagg
esticou a mão esquerda e girou a maçaneta da porta, sentiu-a abrir-se. Preparou-se, empurrou a porta e entrou na casa curvado, com a arma levantada e pronta.
Havia um homem alto e magro no meio do tapete redondo da sala, deitado de costas; com a cabeça quase arrancada do corpo. A parede atrás dele estava salpicada de
tiros, respingada de sangue, ossos e cérebro. Flagg deu um pontapé na porta, fechando-a, e revistou a casa rapidamente. Estava vazia exceto pelo morto, e não havia
sinal dos papéis desaparecidos.
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Ele saiu pela porta dos fundos. Pouco além da casa, num leito de folhas de pinheiro, ele descobriu a razão de não ter sido incomodado pelos cães; os dois Dobermans
lustrosos e negros jaziam duros e mortos uns 60 centímetros um do outro. Ambos tinham sido alvejados na cabeça com o mesmo tipo de arma que matara Parish.
Flagg passou a língua nos lábios secos e afastou-se nas sombras para o lado da mansão de tijolos e colunas. Permaneceu ali na escuridão, deixando os pensamentos
correrem livremente em sua mente, tentando arrumá-los. Parish morto; Denman morto; os cachorros mortos. Parish e os Dobermans mortos com um revólver, o caseiro com
uma espingarda. Quem? E por quê?
Bem, tudo bem. Não havia respostas para essas perguntas ainda. Ele tinha que encarar os fatos partindo do que sabia, do que parecia lógico. Para começar, fosse quem
fosse o responsável pela carnificina daquela noite estava atrás dos papéis e anotações para o livro de Parish, por alguma razão ainda desconhecida. Flagg os teria
encontrado se não fosse assim; Parish devia tê-los junto da máquina de escrever, onde obviamente estava trabalhando quando foi alvejado. Flagg sabia também que Parish
aparentemente fora morto por alguém que conhecia - um hóspede, talvez - e que era pouco provável, devido aos contornos da ilha, que outro barco do tamanho necessário
pudesse ficar escondido na costa.
Isto significava que o assassino na certa planejara usar ou o iate de Parish ou o bote do caseiro para escapar - e como Flagg inutilizara as duas embarcações, o
assassino, e os papéis, ainda estavam em algum lugar da ilha.
Flagg tinha que acreditar que as coisas estavam nesse pé; se fosse de uma outra maneira qualquer, não havia nada que ele pudesse fazer. Sua primeira idéia foi vistoriar
a enseada. Ele se afastou da casa novamente e correu em silêncio até a estrada de terra, descendo-a, deixando a escuridão camuflá-lo. Agachado no tronco de um carvalho,
ele olhou para o píer, para os barcos quase imóveis presos ali. Nada se movia.
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Flagg praguejou mentalmente. E agora? O assassino podia estar em qualquer lugar, escondido, à espera, procurando. Ele não tinha idéia do quanto o sujeito - supondo-se
que fosse um homem - conhecia a ilha. Uma coisa era certa, porém: se o assassino tivera a intenção de usar um dos barcos do cais, e ao descer os encontrara inutilizados,
sabia que havia mais alguém na ilha além dele; alguém vivo e com um objetivo.
O que ele faria, então?
Não sabia quem era Flagg, nem por que ele estava na ilha, mas tinha de saber que o intruso viera de barco - o único barco operavel agora. Só havia uma coisa ao seu
alcance: procurar o barco de Flagg e se apropriar dele.
A busca podia levar uma questão de minutos, se o sujeito conhecesse a ilha, ou uma hora ou mais se não conhecesse; mas eventualmente ele ia acabar encontrando a
praia de cascalho e o bote escondido. Se conseguisse fazê-lo antes que Flagg o encontrasse - se conseguisse fugir com os papéis de Parish - Flagg ficaria preso numa
ilha com dois mortos e uma missão fracassada.
Ele atravessou o caminho correndo e lançou-se na mata densa, movendo-se o mais rápido que podia na escuridão e num ambiente desconhecido. A floresta estava estranhamente
silenciosa, a não ser pelo ruído ocasional de um animal ou pássaro, e de certa maneira dava a impressão de vastidão muito desproporcional ao seu tamanho. Flagg sabia
que tomar o rumo errado era um perigo imediato e tentou manter o murmúrio do oceano forte no ouvido direito, dando uma olhada de relance vez por outra na mansão
visível acima do ombro esquerdo - dirigindo-se para o sul em linha reta o mais possível. A casa permanecia escura contra o céu mais claro da noite, mas a floresta
parecia continuar interminavelmente por uma série de pequenas encostas e vales, densa com arbustos e árvores. As sempre-verdes tomavam formas estranhas à proporção
que a urgência aumentava dentro de si e a estreita faixa de praia não aparecia.
Flagg subiu num morro, achando que podia ser aquele em que ele subira anteriormente depois de guardar o bote, mas além deste havia uma elevação mais alta, rochosa
e densa. Desceu o
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morro, atravessou o vale pequeno abaixo e trepou novamente por cima de vários troncos retorcidos que cresciam curvados devido ao vento. Quando alcançou o cume,
ofegante, viu a praia abaixo limpa e vazia e ainda com um ligeiro brilho branco.
Molhou a boca, espiando na escuridão. Não viu nada. O mais rápida e silenciosamente que pôde, desceu o morro até a praia, agachado, com as mãos na terra, segurando
em plantas e árvores para manter o equilíbrio. Apesar dos esforços para não fazer ruído, provocou uma pequena avalanche de pedras soltas e poeira. Chegou à base
do morro, então rodeou algumas pedras até ver onde arrastara o bote. O barco ainda estava lá - intocável.
A 300 metros além da extremidade da praia ficava um pântano, cheio de arbustos arrancados e abetos - um lugar onde se esconder, um lugar onde esperar. Flagg dirigiu-se
para lá, com a espingarda de ar comprimido segura junto ao corpo. Havia-se afastado uns dois passos quando uma explosão maciça, um flash brilhante de luz fragmentada,
irrompeu à sua direita.
Pedaços de terra e estilhaços de galhos de árvore e arbustos salpicaram a parte inferior de seu corpo juntamente com o tiro, uma chuva dolorosa deste como metralha
da explosão de uma granada de mão. O choque empertigou-o por um instante, depois, levado pelo reflexo, ele se jogou no buraco, rolando, arrastando-se na terra molhada
para a moita de espinheiro.
O assassino estivera ali o tempo todo, esperando num ponto estratégico no arbusto; não queria deixar nenhuma testemunha e queria saber quem era Flagg e foi isso
que o manteve na ilha. O coração de Flagg bateu dolorido contra as costelas quando ele virou o corpo no chão úmido. Sua espingarda sumira, perdida no primeiro choque
de impacto ou em seu mergulho desesperado para se abrigar. O assassino tinha o revólver e a espingarda que usara com Parish e os cães; Flagg não tinha nada agora,
exceto a faca guardada no cinto.
Levantou a mão direita e passou-a no corpo. Seu tronco estava ensangüentado, a faca também, mas ele sabia que não fora alvejado em cheio pela espingarda. Tirou a
faca, limpou a lâmina
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na perna da calça e segurou-a firmemente na mão direita, esperando.
Podia ouvir o assassino espreitando-o, vindo para terminar com tudo.
Coberto de lama, folhas e galhos, Flagg permaneceu imóvel para não trair sua posição. Sua única chance era que o sujeito não fosse familiarizado com luta na selva,
que estivesse muito seguro de si depois daquele primeiro e quase fatal tiro. Era difícil ver alguém deitado imóvel num poço de escuridão e Flagg contava com isso,
como elemento surpresa.
O assassino saiu do mato denso na encosta, alguns centímetros abaixo de onde Flagg se encontrava no momento do tiro. Estava a menos de 10 metros de onde jazia Flagg
agora. Em sua mão esquerda carregava uma pasta de couro, com uma espingarda de um cano segura no cotovelo; na mão direita uma pistola automática, apontada e pronta.
Vasculhou o arbusto com os olhos. Flagg esperou até o corpo do homem ficar meio virado de costas para ele e então levantou-se rapidamente e atirou a faca.
A altura do golpe foi certeira. A lâmina cortou a escuridão e desapareceu no lado direito do assassino, bem abaixo das costelas. O corpo dele enrijeceu-se numa pose
dura. Flagg já estava de pé e correndo para a frente. Pegou o cabo da faca na hora em que o assassino começou a se curvar para diante. A lâmina saiu facilmente.
O homem virou-se, encarando Flagg em cheio, os olhos deles apenas alguns centímetros afastados. Havia um olhar de surpresa no rosto transfigurado de dor, depois
o vazio. Ele caiu como um peso morto, com os olhos sem vida voltados para cima.
Pela primeira vez desde que o tiro alvejara seu corpo, Flagg sentiu dor em seu lado direito, no estômago. A frente de sua suéter preta estava com uma mancha escura
de sangue, que escorria em filetes por cima das calças; mas ele sabia que não estava ferido gravemente, que nenhuma das feridas era profunda. Podia enfaixar-se com
tiras de fazenda até chegar a um médico.
Ajoelhou-se, sentindo dor, puxou a pasta caída para si e abriu-a. Havia uma caneta-lanterna em seu cinto e Flagg a usou
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para examinar o conteúdo da pasta: as anotações de Parish, certo, e várias páginas datilografadas para o planejado livro.
Pôs lanterna no rosto e no corpo do morto. Era alto e magro, como o outro homem morto da casa do caseiro. Flagg virou-o levemente e vasculhou seus bolsos. Havia
uma carteira ali e dentro desta uma carteira de motorista da Califórnia, em nome de Thomas Sanders; mas o rosto do retrato não era o rosto do assassino.
Flagg repôs a carteira no bolso do morto, levantou-se com a pasta na mão direita. Pensava nos cães, nos dois Dobermans mortos, deitados a uns 60 centímetros um do
outro atrás da casa do caseiro; e pensava em como aqueles cachorros - e Eric Parish - haviam morrido com tiros de revólver, enquanto o homem da casa teve o rosto
dilacerado com um tiro de espingarda. Começava a fazer sentido agora. Dobermans treinados, como os de Parish, não teriam permitido que ninguém se aproximasse deles
o bastante para disparar uma única bala no cérebro, a menos que conhecessem tal pessoa e confiassem nela - e o único outro homem da ilha que eles teriam conhecido
e em quem teriam confiado era Denman, o caseiro.
Era Denman, então, quem jazia morto a seus pés.
O homem da casa era um sósia, talvez um conhecido de Denman, talvez um vadio que Denman chamara até a ilha por um ou outro pretexto; alguém com o mesmo corpo que
o caseiro da ilha, alguém que devia ser encontrado irreconhecível e com a carteira de Denman. Fora uma tentativa desastrada mas homens como Denman, que aceitavam
uma aposta por dinheiro, nem sempre eram racionais.
Flagg calculou que Denman descobrira o que Parish fazia na ilha, quem era realmente, e soubera também dos papéis e anotações incriminadores que Parish trouxera consigo.
Talvez acreditasse que podia vendê-los de volta à Organização - ou ao governo, se estivessem dispostos a fazer uma oferta em dinheiro. De qualquer maneira, desenvolvera
o plano e o pusera em ação naquela noite.
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Matara os cachorros em primeiro lugar, algum tempo antes, talvez dizendo a Parish que estava treinando tiro ao alvo para encobrir os sons dos tiros. Então atraíra
o sósia para a ilha e o instalara em sua casa. Mais tarde, entrara na mansão e no escritório, matara Parish e depois voltara à casa e usara a espingarda com o sósia.
Tudo certo e em ordem, devia ter pensado: um inexplicável, e conseqüentemente insolúvel, crime duplo numa solitária ilha do noroeste; um caso capaz de driblar a
polícia durante anos, se aceitassem a evidência de que o segundo morto era na verdade o caseiro. Denman poderia ter ido para qualquer lugar depois disso, usando
a identidade do sósia, para pôr os papéis no mercado a preço de ouro.
Flagg virou-se de costas para Denman, encontrou a espingarda de ar comprimido onde fora alvejado pela primeira vez e prendeu-a no cinto. Então, caminhou capengando
para onde guardara o bote e pôs a pasta na popa. Conseguiu arrastar o barco para as águas do estreito, abaixar a popa e fazê-lo navegar.
A polícia ia ficar desconcertada, sabia ele. Quando os corpos fossem descobertos, como o seria um desses dias por algum curioso do lugar, a polícia teria realmente
um mistério nas mãos, um mistério que provavelmente receberia atenção nacional e seria descrito numa daquelas revistas de crimes reais. Mas isso não era problema
de Flagg ele fizera a sua parte e era só isso que importava.
Ele apontou o bote para Doebay e saiu navegando pela noite.
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James Holding
AS ANTIGÜIDADES T'ANG DO DRAGÃO SOFREDOR
Debruçado sobre os objetos antigos espalhados em desordem sobre a mesa, Howard Mitchell foi tomado da súbita e quase intolerável excitação do colecionador ávido
que descobre um tesouro. Seu coração baqueou. Respirou fundo e debruçou-se mais atentamente para a figura de cerâmica do tocador de alaúde, agradecendo mentalmente
à funcionária de seu hotel em Hong Kong que lhe indicara o Empório do Dragão Sofredor, do Sr. Cheong.
A loja de antigüidades do Sr. Cheong apresentava uma miscelânea de supostas relíquias para vender ao turista crédulo, desde armas e armaduras chinesas até trapos
de costumes fulgurantes usados, sem dúvida, por nobres e prostitutas, antes de a China tornar-se A Nova China.
Mitchell sabia muito pouco sobre armaduras ou roupas antigas, mas gabava-se de um considerável conhecimento de cerâmica. E a menos que seus olhos o enganassem, descobrira
em meio às quinquilharias da loja de Sr. Cheong uma autêntica peça de cerâmica chinesa antiga. O tocador de alaúde era pequeno - com pouco menos de 15 centímetros
de altura - sem brilho e empoeirado, mas artisticamente moldado. Era exatamente o tipo de peça originalmente colocada nos túmulos de pessoas chinesas importantes,
séculos atrás.
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Há quanto tempo? Mitchell debruçou-se mais um pouco para observar melhor. Dinastia Tang? Quase certo e isto dataria o pequeno tocador de alaúde de uns 1.200 anos,
pouco mais ou pouco menos. E também faria o tocador de alaúde uma notável aquisição para a coleção de cerâmica que ocupava a maior parte do tempo e da atenção de
Mitchell, agora que sua esposa morrera e o deixara sozinho com seu dinheiro.
Ele se deu conta de passos abafados e levantou os olhos para deparar com um simpático cavalheiro chinês observando-o. O proprietário da loja, se fosse ele, usava
um surrado terno ocidental com colete e parecia tão velho quanto seu estoque de mercadorias.
- São antigüidades muito boas, senhor - disse a Mitchell com o ar de um homem que já recebeu milhares de turistas com as mesmas palavras. Seu inglês era excelente.
-' Falo com o Sr. Sheong? - perguntou Mitchell. O Sr. Cheong acenou com a cabeça.
- A seu serviço, senhor. Encontrou alguma coisa que o agrade? - Mitchell reparou que sob os cílios ralos, os olhos pretos do Sr. Cheong eram vivos.
Mitchell pigarreou e tentou falar casualmente:
- Esta... esta figura de cerâmica - disse ele, indicando o tocador de alaúde com um dedo indicador que tremeu ligeiramente de ansiedade - é uma antigüidade genuína?
- Eu só tenho antigüidades genuínas neste empório - replicou o Sr. Cheong brandamente, imperturbável com o ceticismo de Mitchell.
- De que período é a figura?
- Da dinastia Tang - disse Cheong, estendendo as mãos num gesto oriental. - É uma peça típica, eu lhe asseguro.
- T'ang! - falou Mitchell. Ele estava certo. - Quanto quer por ela?
Cheong deu um sorriso apologético e sacudiu os ombros estreitos.
- É uma peça muito boa, senhor. Uma autêntica Tang em boas condições é muito difícil de achar nesses dias, o senhor sabe.
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Ele acenou a cabeça na direção dos Novos Territórios e da China Vermelha além deles. - Portanto devo pedir um preço razoavelmente alto, o senhor compreende.
- Quanto?
- Mil dólares - respondeu Cheong, A ansiedade de Mitchell aumentou.
- Dólares de Hong Kong?
Novamente o sorriso ligeiramente depreciativo.
- Por favor, senhor, americanos. - Pareceu achar graça com a pergunta de Mitchell. - E devo avisar-lhe que não adianta barganhar comigo. Mil dólares é um preço muito
justo. Pergunte a qualquer pessoa que conheça antigüidades.
Mitchell teve uma sensação de constrangimento. Regatear senpre o deixava pouco à vontade.
- Não preciso perguntar a ninguém, Sr. Cheong - disse ele. - Eu sei que é um preço justo.
Como sabia realmente. O preço-base para figuras T'ang genuínas, agora muito em voga entre os cidadãos ricos dos Estados Unidos, ficava por volta de dois mil dólares
a peça. Há apenas um mês ele próprio pagara de bom grado a um negociante de Nova York 310 dólares por um soldado T'ang que não era tão perfeito quanto esta jóia
de tocador de alaude.
Pela primeira vez, ele estendeu a mão e tocou na figura, levantando-a cuidadosamente do lugar entre a mistura de objetos em cima da mesa.
- Vou levar esta, por favor. O senhor aceita cheques de viagem?
O Sr. Cheong anuiu. Mitchell não tinha certeza, mas achou ter visto um vislumbre de prazer nos olhos pretos do chinês.
- Obrigado - murmurou o Sr. Cheong. Apanhou a figura da mão de Mitchell, deixando poeira em seus dedos, e foi para trás de um balcão nos fundos da loja, onde começou
a embrulhar o frágil tocador de alaude em camadas e camadas de algodão e jornais velhos. - Existe mais alguma coisa em minha humilde loja que lhe interesse? - perguntou
com a humildade chinesa
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estereotipada enquanto embrulhava a peça. - Tenho outros artigos bons, senhor.
- É só isso - confirmou Mitchell. Estava muito feliz com a sorte que tivera. - A menos que o senhor tenha alguma outra dessas figuras T'ang à venda.
As mãos do Sr. Cheong pararam. Lançou um olhar para Mitchell.
- O senhor é negociante?
- Não, negociante não. Colecionador. De cerâmica... chinesa, etrusca, persa. Estou apenas começando, mas estou aprendendo. - Mitchell acenou para a peça que o
Sr. Cheong agora guardava dentro de uma caixa de papelão. - Reconheci que esta era uma beleza, de qualquer maneira.
O Sr. Cheong terminou de embrulhar o tocador de alaude e observou em silêncio Mitchell assinar os cheques de viagem e passá-los para ele. Pós os cheques numa gaveta
e voltou-se para Mitchell. Disse:
- Um momento atrás, comentei que a cerâmica T'ang é difícil de se achar atualmente. Eu dizia a verdade. Mas quando se tem os contatos certos na China Vermelha, essas
coisas podem ser arranjadas.
Mitchell refletiu sobre este comentário ambíguo por um momento, depois disse:
- O senhor está tentando me dizer que tem contatos na China Vermelha, Sr. Cheong?
Cheong anuiu com a cabeça.
- E que conseqüentemente o senhor tem mais dessas figuras T'ang disponíveis?
Cheong repetiu o aceno de cabeça.
- Ora, com os diabos! - desabafou Mitchell. A ansiedade apossou-se dele novamente, mas a cautela sobrepujou-a. Já vira muitas imitações passando por antigüidades
genuínas, para confiar na palavra de um chinês estranho. Mas havia o tocador de alaude. Que mal havia em ver? - Onde estão elas? - perguntou. - Aqui na loja?
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Onde mais? - O americanismo soava estranho da boca
do venerável Sr. Cheong, apesar de seu terno e colete ocidentais, que agora o faziam transpirar. - O senhor pode vir comigo, Sr...?
- Mitchell. - Ele seguiu Cheong até uma alcova encortinada, enfileirada com prateleiras de madeira. Cheong acendeu uma lâmpada no teto, puxando um barbante sujo,
e lá, inegavelmente, enfileiradas no fundo de uma das prateleiras, entre uma miscelânea de pulseiras, bules de chá e pauzinhos para comer cravejados de jóias, havia
uma série de pequenas figuras de cerâmica que pareceram a Mitchell tão autênticas quanto a peça Tang que ele já comprara.
- Eu as guardo aqui afastadas da beirada - explicou o Sr. Cheong - para evitar acidentes.
Com o coração batendo depressa, Mitchell passou os olhos rapidamente pela fileira de pequenas figuras: músicos, cavalos, soldados - 28 delas, em excelentes condições.
Apanhou uma, foi até a loja principal, examinou a figura à luz do dia na janela da frente e voltou até o Sr. Cheong.
Cheong sorriu.
- Peças da dinastia Tang autênticas - disse com seriedade. - Muito raras, em excelentes condições, muito baratas.
- Se forem genuínas - disse Mitchell, incapaz de conter sua suspeita, agora reacesa muito mais. - Como eu lhe disse, Sr. Cheong, sou muito inexperiente nesse negócio
de colecionar obras de arte e inseguro quanto à minha capacidade para distinguir peças genuínas de falsas. Mas o senhor deve convir que - passou um dedo na fileira
de figuras - é bom demais para ser verdade.
Cheong anuiu.
- Compreendo como se sente. Mas eu lhe disse que tenho bons contatos.
- Bons é uma palavra muito fraca. Sensacionais seria melhor, creio.
- Estas peças são genuínas - frisou o Sr. Cheong brandamente. - O senhor tem minha palavra. E apenas mil dólares
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cada peça. Se não deseja ficar com tantas peças Tang para si mesmo, pode usá-las para negociar com colecionadores amigos em troca de outras cerâmicas, não pode?
Mitchell lutou para se prender a seu ponto de vista. As figuras deviam ser falsas, talvez manufaturadas às centenas em alguma fábrica secreta de Hong Kong para venda
aos turistas. Começou a se arrepender de ter comprado o tocador de alaúde.
Cheong pareceu ler sua mente.
-' O senhor desconfia que são cópias modernas, Sr. Mitchell? Souvenirs para turistas?
- É. Lamento, mas desconfio.
- Não se culpe. Existem muitos em Hong Kong, eu sei disso. Mas não estas. Por que não se certifica de sua autenticidade?
- Como?
- Submetendo-as a um verdadeiro expert em cerâmica chinesa, talvez? Para se certificar?
- Quem o senhor tem em mente?
- O senhor é americano - disse o Sr. Cheong. - Mora em Nova York?
- Sim.
- Conhece a Filadélfia, então? Na Pensilvânia?
- Claro - retorquiu Mitchell, intrigado com a virada geográfica da conversa. - O que tem a Filadélfia?
- Um dos maiores especialistas em cerâmica chinesa do mundo - disse Cheong - mora na Filadélfia. O senhor pode fazê-lo autenticar estas figuras como verdadeiras
peças Tang.
Mitchell disse:
- O que este seu especialista pode fazer de bom por mim quando está na Filadélfia e as figuras estão aqui em Hong Kong?
- A avaliação destas peças pode ser arranjada sem risco financeiro de sua parte, se é o que quer dizer, Sr. Mitchell.
- Verdade? - disse Mitchell. - Como?
- Suponha que o senhor me pague hoje o preço atual de souvenir por estas figuras, como se fossem cópias. Então, depois de consultar o Dr. Kam Soon Fat na Filadélfia,
se ele achar que
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as peças são genuínas, o senhor pode me enviar pelo correio o preço adequado delas.
- O senhor quer dizer que confiaria em mim? O Sr. Cheong assentiu afavelmente.
- Assim o senhor arriscaria apenas cinco dólares americanos por cada um das figuras T'ang, Sr. Mitchell, até se certificar de que são autênticas.
Mitchell disse fracamente:
- Mas a questão da alfândega...
- Declare o tocador de alaúde com o verdadeiro valor - sugeriu Cheong - e declare estas outras 28 figuras como souvenirs do valor de cinco dólares a peça. Posso
lhe dar um recibo de venda para isso.
Mitchell ficou calado, considerando cobiçosamente a fileira de figuras de cerâmica da loja empoeirada de Hong Kong e pensando que gostaria muito de possuí-las, falsas
ou não - e deviam ser falsas. Mas se Cheong estava disposto a confiar nele, não seria indelicado de sua parte recusar?
Fez mais um comentário antes de cair na adorável tentação.
- Como o senhor conhece este Dr. Fat... era esse o nome? ... na Filadélfia?
- Eu não o conheço pessoalmente. Apenas sua reputação como um preeminente estudioso oriental. Todas as pessoas seriamente interessadas na arte chinesa o conhecem.
Ele é o chefe do Departamento de Estudos Orientais na Faculdade Widner. - O Sr. Cheong parou e olhou para Mitchell, duvidoso. - Se o senhor é colecionador de cerâmica
chinesa, Sr. Mitchell, fico surpreso de não ter ouvido falar dele.
- Ouvi - admitiu Mitchell, sorrindo. - Por isso é que vou aceitar sua oferta, Sr. Cheong. Vou levar todas essas vinte e oito figuras por cinco dólares cada, como
o senhor sugere, e lhe envio um cheque de vinte e oito mil dólares se o Dr. Fat assegurar que são autênticas. Obrigado por me vendê-las, Sr. Cheong. Sejam cópias
ou originais, não deixam de ser bonitas.
O Sr. Cheong concordou.
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- Isso é muito mais importante que o preço, não é? - Gentilmente, deu uma caneta-tinteiro a Mitchell para assinar mais dois cheques de viagem.
O Professor Kam Soon Fat, bacharel em artes, mestre em artes, doutor em artes, mestre em artes finas não fazia jus a seu nome. Com seus trinta e tantos anos, era
magro, quase macilento, e seu corpo fino não prometia engordar no futuro. O rosto de queixo pontudo e olhos observadores salvava-se da severidade pelos óculos -
óculos com lentes de meia-lua sobre os quais fitou o visitante, como um adolescente travesso experimentando os óculos do avô.
Mitchell sentou-se na cadeira que lhe foi indicada ao lado da escrivaninha do Professor Fat e pôs a valise de couro sobre os joelhos diante dele.
- Foi muito gentil de sua parte receber-me - disse ele. - Sei que o senhor tem uma agenda cheia.
- Nunca tão cheia que não possa ajudar um admirador da cerâmica chinesa como eu - respondeu o Dr. Fat. - Especialmente quando posso ganhar uma comissão ao fazê-lo.
- Seu inglês era fluente e sem sotaque. Lançou um olhar interrogativo a Mitchell. - O senhor compreende, eu gosto de dinheiro tanto quonto da arte oriental.
- Quem não gosta? - retorquiu Mitchell, divertido com a franqueza deste estudioso internacionalmente conhecido.
- Sua carta mencionou figuras da dinastia T'ang - disse o Dr. Fat. - O senhor tem razões para questionar sua autenticidade, diz.
- Sim. E vim consultá-lo para saber se tenho um tesouro nas mãos ou um conjunto de imitações. - Mitchell explicou que era ainda um amador no ramo dos colecionadores
e ainda não confiava no próprio julgamento. - Particularmente - disse ele
com um sorriso - quando a quantidade e a qualidade estão envolvidas.
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- Quantidade?
- Eu tenho vinte e nove peças aqui - disse Mitchell, abrindo a valise e começando a desembrulhar as figuras. - Todas adquiridas de uma única fonte ao mesmo tempo,
em uma transação.
- Compreendo. De uma fonte pouco segura então, pelo que entendi?
- Certo.
- Qualquer negociante de boa reputação, ou mesmo qualquer colecionador - acrescentou o Dr. Fat - poderia ter vinte e nove peças autênticas...
- Mas não a obscura loja de antigüidades onde as comprei - interrompeu Mitchell.
- Uma loja americana?
- Não, no Oriente. - Mitchell não viu razão para ser mais específico. -- O lugar é próprio para turistas. Logo é difícil acreditar, em minha opinião, que todas
essas figuras sejam genuínas.
À medida que desembrulhava as figuras, Mitchell colocava-as sobre a mesa do Dr. Fat. Por cima dos óculos, o Dr. Fat observou fascinado a coleção de cavalos, soldados
e músicos.
- São muito bonitas, não são? - murmurou. Seus olhos acariciavam as figuras. - É este o conjunto?
- É - disse Mitchell. - Vinte e nove.
O Dr. Fat olhou para as figuras sobre a mesa por um momento sem tocá-las. Depois, lentamente, estendeu a mão fina e pegou uma delas. Examinou-a cuidadosamente com
os óculos, virando-a de um lado para outro, sem deixar de observar nenhum pedacinho de sua superfície. Depois, tirou da gaveta da escrivaninha uma boa lente de aumento
e repetiu o exame, ainda mais detalhadamente. Finalmente pôs a peça de lado e repetiu o que fizera com uma segunda, murmurando algo num tom inaudível, completamente
absorto. Uma após outra, ele examinou cuidadosamente as 29 peças de cerâmica enquanto Mitchell ficou sentado na cadeira em silêncio, muito entretido para se aventurar
a fazer uma única pergunta.
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Quando o especialista terminou a inspeção, havia 28 figuras do lado direito de sua mesa e, à esquerda, uma única figura de cerâmica de um cavalo trotando. O Dr.
Fat empertigou-se, esticou-se, olhou por cima dos óculos para Mitchell e sorriu.
É o melhor que posso fazer, Sr. Mitchell - afirmou. -
Não há dúvida sobre vinte e oito de suas peças. - Acenou para
elas.
O coração de Mitchell apertou-se.
- Imitações? - perguntou.
- Absolutamente. Genuínas peças da dinastia T'ang, sem dúvida nenhuma. Eu ponho minha reputação à prova.
- Que maravilha! - exclamou Mitchell. - Pareciam tão peifeitas para mim, no entanto, eu não conseguia acreditar...
- Pode crer agora, tenho o prazer de lhe dizer. O senhor tem vinte e oito peças autênticas aqui, Sr. Mitchell. Quanto a
essa... - O Sr. Fat apontou para o cavalo à sua esquerda - eu não posso afiançar.
- O senhor acha que é uma imitação? - Mitchell sentiu um ligeiro alívio por não ser o seu tocador de alaúde.
- É possível, sim.
- O que o faz pensar assim? Ela não é exatamente como as outras?
- Não. Há uma minúscula diferença no barro que me preocupa. - O Dr. Fat ofereceu sua lente de aumento e Mitchell examinou o cavalo. Não viu nada de diferente, exceto
uma lasquinha em um casco. O Dr. Fat continuou: -- Esta peça pode simplesmente ter sido moldada com descuido há mil e duzentos anos atrás. Ou também pode ter apenas
doze anos em vez de doze séculos. - Sorriu para Mitchell. - O que faria uma grande diferença quanto ao valor.
Sim, ponderou Mitchell, quanto ele pagaria ao Sr. Cheong do Empório do Dragão Sofredor por uma possível imitação? Cinco dólares... ou mil? Ou algum preço intermediário?
Ele disse:
- Se o senhor não pode avaliá-la de acordo, imagino que ninguém possa.
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- Não é bem assim - respondeu o Dr. Fat - Se o senhor estiver disposto a arriscar mais cento e cinqüenta dólares numa possível imitação, existe uma maneira de determinar
se esta peça é genuína ou não, um certificado científico.
Mitchell ficou surpreso.
- Pensei que o senhor fosse a última palavra no assunto - admitiu.
O Dr. Fat deu de ombros.
- A última palavra viva, vamos dizer. Existe um método mecânico, novo, que também consegue distinguir ovelhas de cabras. Infalivelmente.
- Infalivelmente?
- É - disse o Dr. Fat. - Muito poucas peças de cerâmica me deixam em dúvida; talvez uma em cem, como o seu cavalo aqui. Mas sou humano e, conseqüentemente, passível
de falha. Assim, nesses casos raros, recomendo o uso deste método mecânico para resolver a charada. A técnica, devo dizer, é um notável exemplo da aplicação da ciência
à arte e o recuno a ela não só confirma ou desmente o meu julgamento sobre uma peça, mas também me faz sentir muito melhor ao aceitar um pagamento pelos meus serviços.
- O Dr. Fat juntou as pontas dos dedos, como uma torre de igreja, e deu um súbito sorriso infantil. -- O senhor está aí sentado, perguntando-se por que não lhe sugeri
a máquina infalível imediatamente, não é? - perguntou. - Se é muito mais confiável do que a opinião de um especialista?
Com a consciência pesada, Mitchell disse:
- Bem...
- Esta técnica também é muito mais cara - disse o Dr. Fat. - Cada peça de cerâmica submetida ao processo custa ao proprietário cento e cinqüenta dólares pela análise.
três vezes o meu preço... além de uma certa inconveniência. Assim, acho que apenas peças realmente questionáveis merecem o gasto.
- Fale-me sobre isso - disse Mitchell. - Nunca ouvi falar de tal processo.
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- Poucas pessoas conhecem. É muito novo, como eu disse. Foi inventado por um geoquímico da Universidade de Los Angeles e aperfeiçoado apenas muito recentemente no
Laboratório de Pesquisas de Arqueologia e História da Arte de Oxford. Até hoje, há apenas dois laboratórios no mundo capazes de fazer isto com sucesso. Um deles
fica em Oxford, é claro, e o outro, felizmente para nós, fica no Museu da Universidade aqui na Filadélfia. O método requer um equipamento muito caro
e instrumentos sofisticados. Esta é a razão do alto custo por cada análise.
-' Compreendo - disse Mitchell. Estava impressionado.
- O método em si é baseado no fato de que toda cerâmica contém pelo menos algum traço de isótopo radioativo, ou variedades atômicas, de elementos como urânio, tório
e potássio. Com o passar do tempo, depois que a cerâmica é moldada a fogo, esta radioatividade tende a destruir os cristais de quartzo, feldspato e outros minerais
do barro. O senhor está me compreendendo até agora? - perguntou a Mitchell, duvidoso.
- O senhor me deixou perdido a partir dos isótopos - disse Mitchell. - Minha linha era de forjas de aço. Mas, por favor, continue.
- Muito bem. Se uma peça de cerâmica for reaquecida anos depois, estes cristais danificados do barro irradiam uma ligeira luz azul, invisível a olho nu, mas facilmente
detectada com instrumentos especiais.
- Reaquecer? Como podem reaquecer uma peça de cerâmica como o meu cavalo sem destruí-la?
- Eles retiram uma amostra mínima da base de sua figura, onde não aparece, e aquecem a amostra a quinhentos graus centígrados. Se os danos da radiação cumulativa
estiverem presentes, a amostra vai irradiar a luz azul. Se a peça for falsa, de manufatura recente, a amostra não vai irradiar nenhuma luz... porque não houve
suficiente dano de radiação ainda.
- Parece complicado - disse Mitchell.
- E é. Pela quantidade de luz irradiada, a data de quando a peça foi moldada pode ser estimada. Sem muita precisão, mas o suficiente para detectar imediatamente
uma cópia recente.
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Mitchell olhou afetuosamente para seu cavalo de cerâmica que poderia ser falso. Ele disse:
- Então é possível obter uma resposta precisa sobre meu cavalo, aqui mesmo na cidade, por cento e cinqüenta dólares? Então eu ficaria certo?
O Dr. Fat assentiu.
- E recomendo isso honestamente. Então o senhor saberia o que comprou, sem dúvidas.
- O senhor disse que esta máquina confirma ou desmente o seu julgamento sobre uma peça questionável - frisou Mitchell. - Qual é o seu julgamento a respeito do meu
cavalo de cerâmica?
- Genuíno - replicou o Dr. Fat prontamente. - Estou sessenta por cento certo, mas quarenta por cento em dúvida.
Mitchell decidiu-se.
- Vamos descobrir ao certo, então. Como posso providenciar isto?
- Vou lhe dar um bilhete para o diretor do museu. -- Ótimo. E obrigado por tudo, Dr. Fat. Depois eu lhe digo o veredicto sobre o cavalo.
- Vou ficar ansioso por saber - disse o Dr. Fat.
Duas semanas mais tarde, o Dr. Fat recebeu um telefonema intei urbano de Hong Kong.
- Sobrinho? - perguntou uma voz fina acima do zumbido do satélite.
- Sim, tio - replicou o Dr. Fat, reconhecendo a voz apesar da distorção.
O Sr. Cheong, venerável proprietário do Empório do Dragão Sofredor, passou a falar em mandarim.
- Recebi um cheque pelo correio hoje, sobrinho, vinte e oito mil dólares. Do Sr. Mitchell. Achei que você gostaria de saber. Vou enviar a sua metade, como combinado.
- Bom - respondeu o Dr. Fat com satisfação. - Vamos torcer para que este seja apenas o primeiro de muitos golpes.
- Não vejo razão para não acreditar nisso. Tudo saiu direitinho?
-' Perfeito. Eu dei minha palavra solene quanto à autenticidade das vinte e oito imitações e levantei dúvidas a respeito da única peça autêntica da dinastia Tang,
o cavalo, recomendando que ele a examinasse mecanicamente. O que me faz lembrar uma coisa, tio, eu sou uma autoridade em cerâmica, o senhor sabe. Posso distinguir
figuras Tang genuínas sem sua ajuda. A lasca na pata do cavalo era quase flagrantemente evidente.
- Perdoe-me. Foi apenas uma proteção contra o erro. Não vai acontecer novamente. - O Sr. Cheong fez uma pausa. - O Sr. Mitchell não questionou nenhuma das imitações?
Só mandou examinar a peça genuína?
- Correto, tio. E quando o laboratório lhe deu o veredicto sobre o cavalo, ele não teve palavras para me agradecer por ser honesto sobre minhas dúvidas.
O Sr. Cheong riu baixinho.
- Eu já esperava isso. - Controlou sua alegria e continuou: - A mente ocidental é tão ilógica. Tira conclusões precipitadas baseadas em evidências insuficientes.
Por exemplo, se uma figura T'ang é genuína, as outras vinte e oito devem ser genuínas também. - Riu ironicamente.
- Sua própria conclusão, tio, ou alguma coisa que Confúcio disse? - riu o Dr. Fat também.
- Nenhum dos dois. Tive um professor de antropologia em Stanford na minha juventude - disse o Sr. Cheong. - Seu exemplo favorito desta tendência ocidental de tirar
conclusões precipitadas era o de um explorador que, voltando de uma viagem pelo sertão norte-americano, afirmou seguramente que os índios americanos caminhavam em
fila indiana. "Como você pode ter certeza disso?", perguntou um amigo e o explorador replicou: "Porque o único índio que encontrei caminhava dessa maneira." Percebe
o meu ponto, sobrinho?
O Dr. Fat disse:
- Percebo. Posso perguntar mais uma coisa?
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- É claro - afirmou o Sr. Cheong tolerantemente. - Os jovens devem aprender com os mais velhos.
- Como o senhor teve certeza de que Mitchell ia lhe mandar o dinheiro?
- Graças ao mesmo professor de Stanford - respondeu o Sr. Cheong. - Ele fez uma outra observação expressiva que eu nunca esqueci. Dizia respeito ao fato de que no
sistema de livre empresa americano, nenhum homem consegue ser completamente honesto enquanto não for financeiramente independente. Entretanto, quando a independência
financeira é alcançada, a maioria dos americanos é quase fanaticamente honesta, para compensar a falta de escrúpulos anterior, eu presumo. Assim, achei que podíamos
confiar no nosso Sr. Mitchell.
- Porque ele é financeiramente independente?
- É claro.
- E como soube disso? O Sr. Cheong riu.
- Muito simples, sobrinho. Sua prima, Hsien, que trabalha como funcionária no Hilton de Hong Kong, procurou o nome do Sr. Howard Mitchell no Who's Who da América
e no Dun e Bradstreet antes de mandá-lo à loja.
- Ah - disse o Dr. Fat com admiração. - O senhor pensa em tudo, tio.
- Você se saiu muito bem para um primeiro golpe, sobrinho. Congratulações.
- Obrigado. Pelo menos, mereço o crédito de ter dito ao Sr. Mitchell uma verdade inquestionável.
- Qual?
- A de que gosto de dinheiro, tanto quanto de arte oriental.
George Antonich
DESAFIO A UM JURADO
A tarde de segunda-feira passou-se, sufocante e abafada. Fiquei aliviado quando o Juiz Morton finalmente suspendeu a sessão. Do lado de fora, afrouxei a gravata
e respirei a brisa preguiçosa que vinha do lago. No estacionamento, parei ao lado do meu jipe, pensando se ia para casa comer um cozido requentado ou se parava para
tomar um drinque refrescante. O drinque venceu.
- Will! Will Kent!
Eu acabara de voltar para a calçada quando a voz estridente da Srta. Higby penetrou nos meus ouvidos. Estremecendo, parei - esperando pelas suas recriminações para
que eu pagasse a dívida antiga que tenho em sua papelaria-livraria
- Eu só queria lhe agradecer - explicou ela. - Recebi seu pagamento integral pelo correio esta manhã.
Completamente estupefato, não respondi. Ela continuou:
- Se você ainda quiser aquelas primeiras edições em que estava interessado, eu posso lhe arranjar.
- Tenho ido para casa depois do julgamento - murmurei, com a mente confusa. - Não tem me sobrado tempo para pensar em mais nada nessas últimas semanas.
- Como acha que tudo vai terminar? Eu pessoalmente acho que Manny Dell é culpado como um pecado... e duas vezes ruim!
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- Não quero falar sobre isso.
- Meu Deus, como você é teimoso!
- Lamento - respondi, ansioso por me livrar dela. - Mas como jurado, não devo discutir o caso com ninguém. - Passei por ela, dirigindo-me ao bar de Jim Goff, atordoado
com a inexplicável revelação. Eu não tinha pago um centavo da minha conta.
Jim Goff deve ter-me visto chegando. Tinha um tom collins já pronto quando entrei e me sentei no bar.
- Por conta da casa - disse ele.
Cheirei o drinque, desconfiado. Tomar uma bebida de graça por conta do mesquinho dono do bar era algo especial.
- Qual a razão disso tudo? - perguntei.
Rindo, ele apertou uma tecla da caixa registradora. Tirou um pedaço de papel, que colocou diante de mim. Era minha conta do bar, com o carimbo de PAGO.
- Recebi sua carta esta manhã. E o dinheiro. Você conseguiu vender uma história finalmente?
Murmurei alguma coisa novamente, passei por um grupo de jogadores de sinuca e me sentei numa mesa de canto. Devia voltar para minha cabana perto do lago, mas estava
esfalfado, irritado e intrigado. Esfalfado porque o julgamento de Manny Dell já se prolongava havia cinco semanas; irritado porque aquilo estava me impedindo de
escrever; e intrigado por causa dos acontecimentos estranhos dos últimos minutos. Primeiro a Srta. Higby, e agora Jim Goff. Eu não tinha mandado dinheiro nenhum
a ele.
Tomei meu drinque e tentei ignorar os ruidosos jogadores de sinuca ao refletir sobre o assunto. Como eu era o único Kent em Lakeport, era pouco provável que tanto
a Srta. Higby quanto Jim Goff confundissem minhas contas com as de outra pessoa. Meu único parente vivo era meu irmão Mike, um policial em San Francisco. Será que
ele havia pago as minhas contas? E por quê? Cinco anos mais velho que eu com meus vinte e seis, Mike não aprovara quando, depois de ficar isento do serviço militar
devido ao exame médico, eu decidira tentar a vida escrevendo.
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- Se você não fosse tão teimoso - disse ele - entrava para a polícia comigo e ia ser alguém.
Não, era muito pouco provável que meu irmão mais velho integrado no sistema pagasse minhas contas. A seus olhos, apenas o meu corte de cabelo tradicional impedia
que eu fosse qualificado como hippie. Mesmo que ele quisesse me ajudar, como saberia o que eu devia e a quem?
Suspirei e levantei o copo. Se havia uma coisa que eu aprendera no serviço militar, era nunca - mas nunca mesmo - questionar a boa sorte. Meu lema era: relaxe e
aproveite.
Uma pequena discussão irrompeu na mesa de sinuca, interrompendo meus pensamentos. Alguém disse:
- Como você conseguiu dar aquela tacada?
- Foi fácil - gabou-se o outro. - É só jogar do lado oposto!
Deprimido, guiei o jipe pela estrada do lado e entrei na garagem que eu dividia com a casa ao lado. Linda Barrei, uma professora de férias, acenou para mim. Uma
mulher alta e insignificante já passada, ela sorriu afavelmente para mim quando tirei as pernas compridas do jipe. A força do hábito me fez passar os olhos pelo
seu corpo, mas fosse qual fosse a feminilidade que possuía, esta ficava encoberta por um chapéu de palha mole, enormes óculos escuros e um conjunto de tweed largo
que podia servir como cobertor de cavalos. De certa maneira ficava feliz por ela ter alugado a casa, em vez das costumeiras estudantes de biquíni que conseguiam
distrair os pensamentos de um homem com o balanço dos quadris bronzeados. Com o julgamento em mente, meu trabalho negligenciado, e a charada do benfeitor desconhecido
na cabeça, eu não tinha tempo para pensar em mais nada.
Quando me virei para a cabana, ela gritou:
- Estou convidada?
- Convidada? Para quê?
- Ora, para sua festa, é claro! Vi as mercadorias que entregaram esta tarde!
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Srta. Barret, acho que ficou no sol muito tempo. Que
mercadorias?
Do Mercado Parker. O entregador teve que fazer duas viagens.
Corri até lá dentro. A geladeira estava superlotada de verduras e frutas frescas, ovos, manteiga e sucos. Boquiaberto, examinei o
freezer. Dentro havia pacotes de filés, costeletas e rosbifes - carne de primeira suficiente para fazer um churrasco no estilo texano. O armário de cozinha geralmente
vazio estava superlotado de
guloseimas enlatadas e a prateleira de bebida continha garrafas de bebidas
variadas que davam para abrir uma taverna.
Estonteado, fui para fora cambaleando, e dei com Linda Barret.
- Você disse que o Mercado Parker entregou tudo isso? Ela anuiu.
- Devem ter recebido o endereço errado.
- Mas não receberam - exclamou ela. - Eu vi a lista datilografada que você mandou. O entregador pediu que eu conferisse as coisas para ele, para ver se não tinha
esquecido nada.
Voltei para dentro. Não havia razão para telefonar para o mercado. O benfeitor-fantasma atacava novamente. Em vez de reagir contra isso, me esbaldei - os martinis
antes do jantar, o filé grelhado coberto com cogumelos e o Chianti geladinho. Era uma experiência rara para um homem que se vinha apertando a cada mês que passava.
Mais tarde, satisfeito, fui dormir sem recorrer ao tranqüilizante de costume.
Na terça-feira de manhã, fui para a cidade e tomei meu lugar na cabine dos jurados. O acusado, Manny Dell, parecia pálido e cansado. Tinha seus trinta e tantos anos,
mas o rosto atraente e jovem não condizia com a acusação de que era um assassino sádico, calculista e frio.
Baseado no que eu ouvira até agora, ainda estava indeciso. Gostasse ou não, eu estava no júri e pretendia cumprir meu dever
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com o máximo de justiça possível. Apesar do passado sórdido de Dell, eu estava decidido a fazer meu julgamento unicamente com base nos fatos relativos a este caso.
Em poucas palavras, o promotor acusava Manny Dell, o segundo homem do submundo de San Francisco, de ter matado uma tal Sandra Drake, sua amante. Dançarina exótica
de North Beach, ela se cansara dos acessos de ciúme de Dell e, numa tentativa de escapar de sua crueldade, fugira para Lakeport a fim de viver calmamente num apartamento
alugado. Por intermédio de um telefonema anônimo, Dell soubera de seu paradeiro. "Com más intenções", dissera o promotor, "e premeditação, Manny Dell foi a Lakeport
na escuridão da noite, procurou Sandra Drake e, num acesso de raiva por sua rejeição, matou-a!"
No final do dia, com a mente o mais desligada possível, me dirigi para o lago. O fim da tarde já estava bem planejado em minha cabeça: uma remada revitalizante para
os músculos em volta do lago, uma nadada refrescante, seguidas de mais uma refeição caprichada. Depois disso, bem alimentado e satisfeito, eu talvez pudesse bater
alguma coisa na máquina.
Linda Barret estava no ancoradouro, protegida do ar, do sol e da chuva por um enorme guarda-sol, o chapéu de palha mole, óculos escuros e o conjunto de tweed. Eu
me perguntava o que levara uma solteirona que não gostava de sol a escolher o lago para suas férias.
No momento em que abri a porta, percebi uma mudança. Dei uma olhada pela sala e vi que a máquina de escrever antiga tinha sumido. Em seu lugar, sobre uma nova escrivaninha
completa com uma cadeira confortável, havia uma lustrosa máquina elétrica portátil. Sobre a mesa havia resmas de papel-ofício, folhas de rascunho, carbono, pilhas
de selos e grandes envelopes pardos - tudo o que um escritor em início de carreira precisava mas não tinha meios de comprar em tanta quantidade. Havia uma folha
de papel na máquina de escrever. Eu me debrucei para ler a única frase datilografada em letras maiúsculas:
MANNY DELL É INOCENTE!
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Caí na cadeira nova, atordoado. Que tolo tinha sido! Só um idiota não teria percebido a ligação entre minha súbita boa sorte e o fato de que eu estava no júri de
Manny Dell. Alguém estava tentando me subornar, isso era óbvio. Ou será que era mesmo? Talvez eu estivesse tirando conclusões precipitadas. Isto é, que tipo de suborno
podia ser esse, quando não me tinham pedido nada diretamente? Ou estariam simplesmente me amaciando, esperando que eu me acostumasse às coisas boas jogadas em meu
caminho a ponto de não suportar me afastar delas?
Essa idéia me deixou perturbado - e furioso. Alguém tinha esmiuçado minha vida por completo. Seria esta e conclusão final a meu respeito - a de que eu podia ser
comprado com alguns dólares de comida e objetos? Não era algo muito adulador.
Preparei um uísque duplo e refleti sobre a situação. Talvez as coisas fossem apenas até aí. A equipe legal de Manny Dell podia usar isso como um ponto para barganha.
Se, quando o caso fosse para o parecer do júri, parecesse uma condenação para Dell, nada melhor para uma anulação do processo do que revelar o súbito enriquecimento
de um membro do júri. E como eu poderia explicar minha prosperidade repentina, se fosse interrogado?
De qualquer maneira, era uma excelente escapatória para garantir um outro julgamento. Mesmo se eu fosse ao advogado agora, o júri seria dispensado.
Ainda indeciso quanto à melhor atitude a tomar, eu me arrastei para a cama e caí num sono inquieto - um sono cheio de visões provocadoras de Manny Dell, completamente
absolvido, rindo ao olhar para a cela onde eu estava, acusado de aceitar suborno.
Na manhã de quarta-feira, sentindo-me esgotado, fui até o tribunal. Estranhamente, Manny Dell parecia ter passado uma noite que o rejuvenesceu física e mentalmente.
Seria minha imaginação ou foi uma piscadela de cumplicidade que ele me lançou? Eu me
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virei, furioso ao pensar que estava sendo usado. Entretanto, não tinha nenhuma prova concreta de que aquilo era obra de Manny Dell. Seria muito mais sensato, pensei
obstinadamente, se eu continuasse como se nada houvesse por algum tempo, para ver o que poderia acontecer.
O dia começou com um desfile de testemunhas, todas afirmando as contribuições polpudas e generosas de Dell a várias instituições de caridade. Seus pais tomaram lugar
no banco, chorosos, atestando suas excelentes qualidades, a mãe pondo a culpa dos problemas do filho na esposa ingrata que o abandonara. O advogado de Dell enfatizou
o ponto de que foi o abandono da esposa que levou o pobre Manny aos braços de outra mulher.
Dell, conduzido poi seu advogado de defesa, Jake Berman, foi tão convincente que achei difícil não aceitar suas respostas às acusações de promotoria. Era verdade,
admitiu ele, que soubera do paradeiro da amante e fora a Lakeport procurá-la. Mas não por ciúme nem por vingança, pois Manny Dell descobrira que quando Sandra Drake
desapareceu, haviam desaparecido também
50 mil dólares de seu dinheiro.
Deixei o tribunal achando que minhas simpatias tendiam para Manny Dell. Perguntava-me se estaria sendo influenciado por seu hábil advogado ou por minha própria tentativa
de justificar a conservação das coisas materiais que me seriam asseguradas por uma absolvição. Mas por que, uma voz interior persistia em dizer, Manny Dell sendo
inocente, iria tentar me comprar em primeiro lugar? Não fazia sentido.
Se eu tinha alguma dúvida de que alguém tentava me subornar, elas terminaram rapidamente com a carta na caixa do correio. Era do banco local, com meu talão
de cheques dentro. Meu saldo de oito dólares fora acrescido para um incrível saldo de cinco mil dólares.
Agora só me restava chamar o promotor e contar a sujeira toda a ele. Isto significaria a dissolução do júri, um novo julgamento para Dell e despesas adicionais para
os contribuintes, mas eu poderia salvar a pouca reputação que me restava.
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Antes que pudesse mudar de idéia, saí da cabana e fui até a casa de Linda Barret para telefonar. Quando bati, ouvi um ligeiro "entre" e entrei.
- Estou no banho - disse ela. - É o senhor, Sr. Kent? Eu lhe disse que sim.
- Vim usar seu telefone, se permitir.
- Saio num minuto - disse ela. - Espere, por favor. O senhor pode nos preparar um drinque. Gosto dos meus martinis bem secos!
Senti minhas sobrancelhas levantarem-se. Eu nunca pensara que ela bebesse outra coisa além de mate gelado. Entrei na cozinha; na pia havia garrafas de gim e vermute,
um jarro de martini, um misturador - e dois copos. Obviamente ela esperava alguém. De repente, me perguntei se este alguém não seria eu.
Misturei a jarra de drinques e fui para a sala quando a porta do banheiro se abriu. Linda Barret permaneceu ali por um longo momento, imóvel, como se posando para
uma fotografia de estrela de cinema - e bem que poderia. Não havia mais o chapéu de palha mole, os óculos escuros, nem o conjunto de tweed. Estava com uma camisola
comprida azul-clara, quase transparente - e aparentemente sem nada mais. Olhos azuis bem azuis num rosto finamente esculpido, com apenas um toque de frieza na boca
de lábios carnudos. Fiquei extasiado. Ela era bonita!
- Surpreso? - Ela caminhou para mim cheia de graça. Como não respondi, ela disse:
- Para quem você planejava telefonar? Para o promotor? Assenti apaticamente.
- Então, você deve ter recebido seu talão de cheques pelo correio...
Sentia-me tenso.
- Quem é você?
Ela sorriu e pegou o drinque.
- Sou a esposa de Manny Dell.
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Isto me deixou perplexo, mas explicou tudo. Quem mais podia ser responsável? Quem mais tinha acesso à minha cabana enquanto eu estava no tribunal todos os dias?
Meu talão de cheques, minhas dívidas, tudo ficava na velha escrivaninha. Ela simplesmente teve que revistá-la e pagar tudo pelo correio, usando minha máquina de
escrever para fazê-lo.
Como se estivesse lendo meus pensamentos, ela disse:
- É, fui eu. O que você acha da boa vida?
- Podia se tornar um hábito. Mas por quê? Por que eu?
- Você era a única pessoa lógica.
- Por quê? Porque eu estava quebrado, endividado e lutando pra me fazer na vida? Você achou que podia me comprar por um preço tão baixo?
Ela sacudiu a cabeça.
- Eu o escolhi por outra razão. Uma razão que deve envaidecê-lo, creia. - Parou para tomar um gole, analisando-me por cima do copo. - Eu o escolhi por causa de
sua ficha no Vietnam.
- O que isso tem a ver com o caso?
- Tudo. Você foi um herói, sabe. Li tudo que os jornais disseram sobre você. Como o helicóptero foi abatido com oito de vocês a bordo. Como você conservou os homens
juntos com força de vontade e coragem quando a maioria deles queria se entregar para os norte-vietnamitas. Como você foi maravilhosamente teimoso! Não se deixou
intimidar e convenceu a todos. No final, apesar das feridas na perna, trouxe-os todos a salvo de volta. Em resumo, você impôs sua vontade a eles.
- Exatamente como você quer que eu imponha minha vontade ao júri, certo?
Ela confirmou.
- Na verdade - disse - não creio que haja necessidade de nenhuma pressão da sua parte, afinal de contas. Já vi que a feição do caso está mudando. Acredito honestamente
que o júri vai considerar Manny inocente.
- Então por que todo o suborno?
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- A princípio, é claro, eu não podia ter certeza. Temi que a opinião pública ficasse contra meu marido. Podiam culpá-lo só por causa da reputação. Não ia ser a
primeira vez que alguém como Manny seria culpado por erros do passado impunes. Eu precisava ter você como um seguro contra essa possibilidade. Você era o meu ás.
Fiquei calado por muito tempo, zangado, até o drinque em minha mão esquentar.
- Bem - disse asperamente - o que fazemos agora?
- Isso fica inteiramente por sua conta. Se contar tudo, na certa haverá um novo julgamento e você vai perder tudo... inclusive seu status de herói.
- Isso é loucura! Eu não aceitei isso como suborno!
- Tente convencer os cidadãos decentes de Lakeport disso. - Ela riu com voz rouca. - Especialmente se eu espalhar que você me forçou a lhe dar essas coisas.
- Você faria isso?
- Posso fazer. Por outro lado, se não disser nada, continua com as coisas e ninguém fica sabendo.
- Mas continuo sendo seu trunfo... seu às do baralho?
- É claro. Eu não creio que o promotor pressione um ou mais jurados para uma acusação. Ele é um homem ambicioso. Condenar Manny seria um degrau para a escalada política
dele.
Minha mente trabalhava sem parar, avaliando tudo o que acontecera nesta incrível semana. Linda Barret-Dell me imprensava contra a parede. Pôr as cartas na mesa para
o promotor talvez me salvasse de acusações, mas não deteria as línguas maldosas, as sementes de suspeita lançadas nas mentes da gente da cidade. É claro que eu podia
arrumar as malas e sair da cidade, mas meu temperamento teimoso se recusava a considerar tal possibilidade.
Pus o copo na mesa e me levantei.
- Vou pensar no assunto - disse a ela.
- É melhor - disse ela. - Pode ter certeza, eu não hesitaria em destruí-lo. Você vai ter que fazer as coisas à minha maneira.
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Senti o cabelo na nuca começar a se arrepiar. Minhas mãos cerraram-se. Saí rapidamente da cabana, antes de fazer alguma coisa de que me arrependeria.
Quinta-feira foi um dia abrasador. No tribunal, o advogado de Manny Dell parecia calmo. De uma maneira serena, Jake Berman contestou a linha de raciocínio da promotoria.
Era verdade, admitiu, que seu cliente fora a Lakeport para se encontrar com Sandra Drake, mas pelo único motivo de recuperar o dinheiro que a garota roubara. Recuperara
o dinheiro? Não, disse Berman. Quando Manny Dell chegou, a Srta. Drake já estava morta, o apartamento revirado. Na pressa de deixar a cena do crime, ele bateu num
outro carro parado no estacionamento. Uma testemunha anotou o número de sua placa e deu uma descrição detalhada. Quando a patrulha rodoviária deteve seu carro, Manny
Dell foi encontrado carregando um 38 não detonado no coldre de ombro, mas Sandra Drake fora morta por um único tiro de uma arma pequena - uma arma de calibre 25
automática.
Eu não podia imaginar um sujeito como Dell usando uma pistola de calibre 25. É claro que a promotoria concluiu que Sandra Drake, atemorizada, puxara a arma para
se defender. Manny Dell lhe tirara a arma e a matara com a mesma. A arma do crime - e o dinheiro - não foram encontrados.
No final do dia eu estava convencido da inocência de Manny Dell. Minha decisão devia ter-me deixado feliz. Em vez disso, me deixou com uma dúvida da qual não consegui
me desvencilhar. No bar de Jim Goff, pedi um drinque e levei-o, passando pelos gritos ruidosos dos jogadores de sinuca, até a mesa de canto. Sentado, resmunguei
e enterrei a cabeça nas mãos. Sentia-me preso numa armadilha.
- Ei! - Berrou um dos jogadores. - Você tem certeza que essa tacada é certa?
- É só um bom controle da bola pelo lado inverso - vociferou o outro.
Olhei para o homem durante um longo momento, depois pus o drinque na mesa e fui até a cabine telefônica. Meu primeiro impulso foi chamar o promotor público, para
lhe dizer:
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"Olhe, tenho uma teoria que vai solucionar este julgamento!" Mas enquanto discava o número, sabia que a coisa não ia soar bem - e pareceria estranha. Desliguei
e depois disquei o número de meu irmão em San Francisco.
- Diabo, é isso aí! - grunhiu Mike quando lhe contei o que queria. - Tenho um dossiê completo dela em mente. A polícia toda está atrás dela.
- Por que todo esse interesse da polícia na Sra. Dell, Mike?
- Sabemos com segurança que ela é um arquivo ambulante das atividades criminosas do marido. Foi uma aluna brilhante em Berkeley, graduada com louvor e tudo isso.
Tem a maioria das atividades de Dell guardadas na cabeça.
- Você acha que ela falaria se você a encontrasse?
- É possível. Nós sabemos com certeza que Manny gostava de traí-la. Ela aceitava. Mas quando soube do caso com Sandra Drake, saiu do sério. Um informante nos contou
que ela ameaçou falar se Manny não parasse de andar com outras.
- Talvez - sugeri - ela tenha se cansado de tudo e fugido.
- Com o quê? - disse Mike. - Manny não dava dinheiro nenhum a ela. Soubemos que ela se mandou... se se mandou... apenas com a roupa do corpo.
- Por que você diz se ela se mandou?
É nossa opinião que Manny deu sumiço nela. Estamos esperando encontrá-la morta numa praia um desses dias.
Conversei com ele durante alguns minutos, depois desliguei e fui para a minha cabana. Uma brisa fresca soprava do lago. Era possível que aquela miserável e demorada
onda de calor logo acabasse. Eu ri. Talvez algo mais do que o tempo fosse mudar!
Linda Dell estava deitada na beira do lago, sobre uma toalha. Entrei na cabana e pus o calção de banho. Então preparei um jarro de martini - bem seco, muito especial.
Ela rolou para o lado e me sentei. Vendo a jarra, ela disse:
- Que boa idéia a sua! Servi-lhe um drinque.
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- Há algo que quero conversar com você.
- O que há para se falar?
- É sobre Manny. O caso vai ser entregue ao parecer do júri amanhã. Decidi aceitar sua proposta.
Observei-a atentamente. Tudo dependia de sua reação. Ela franziu os olhos.
- Você quer dizer que vai dar o veredicto de inocente?
- É claro que não! - Dei uma gargalhada. - Vou fazer exatamente o que você queria que eu fizesse desde o começo. Vou condená-lo
Ela olhou para o copo.
- Como você descobriu?
- Simplesmente não fazia sentido investir tanto dinheiro em mim quando Manny já estava absolvido. Mas foi preciso um jogo de sinuca para eu compreender isso.
- Um jogo de sinuca! Confirmei.
- Uma questão de tomar a posição contrária. Só que, no seu caso, psicologia contrária. Você fez realmente uma análise profunda a meu respeito, de todos os meus hábitos
e temperamento. Com o seu background de boa aluna, sabia que eu não tomaria nenhuma atitude que me fosse imposta. No minuto em que alguém diz que tenho de fazer
alguma coisa, geralmente faço o contrário. Pode chamar isso de uma maldita obstinação, mas você contava com isso. Queria que eu mandasse Manny para a câmara de gás.
Ela riu fracamente.
- Por que razão? - quis saber.
- Talvez por uma dúzia de razões - mas por duas em especial. Primeiro, você estava louca de ciúmes de Sandra Drake. Você a seguiu até Lakeport e a matou. Disfarçou
a voz e chamou Manny para dizer onde ela estava. Segundo, você está com os cinqüenta mil dólares desaparecidos. Quando largou Manny, largou tudo o mais. De onde
a não ser de Sandra ia conseguir o dinheiro pra me subornar?
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- O que vai fazer comigo? - murmurou ela. - Me entregar à polícia?
- Certamente não! Tenho outros planos para você.
Ela ficou calada durante algum tempo, depois se levantou sobre um cotovelo e se encostou em mim. Foi um gesto um pouco desajeitado por causa da jarra de martini
entre nós. Deu-me um beijo rápido então, tocando minha boca de leve.
- O que você quer, Will?
- A metade! - respondi. - A metade dos cinqüenta mil de Manny.
Linda não disse uma palavra até preparar um drinque para si e tomá-lo de um gole só. Então disse:
- Tenho pensado muito sobre você e eu, Will. Com Manny fora do caminho cinqüenta mil dólares é apenas uma gota no oceano. Eu sei onde ele guarda a grana alta...
e como chegar lá.
- E onde eu entro nisso?
Ela moveu os olhos timidamente, com o olhar de uma jovem experimentando a força de seu sexo.
- Talvez depois de algum tempo alguma coisa possa surgir entre nós. Algo significativo e importante. Algo que nunca tive com Manny.
- E se não surgir? Ela sorriu.
- Ainda é um bocado de dinheiro, Will. Um dinheiro doce e maravilhoso que pode permitir que você viva e trabalhe como desejar. - Serviu-se de mais um drinque. -
Você não seria obrigado a ficar comigo. Quando tudo terminar, pode pegar sua parte e ir para onde quiser.
- É uma oferta tentadora. Talvez eu aceite.
- Ótimo! - gritou. Então sentou-se subitamente, abraçando os joelhos. - Ah, essa brisa está tão gostosa! Vamos dar uma volta de barco!
A sugestão dela me apanhou de surpresa, mas concordei. Um passeio no lago talvez fosse a coisa certa. Levantei-me.
-' Vou preparar o barco - disse eu. - Tome outro drinque e vá se encontrar comigo.
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Estávamos no meio do lago quando Linda tirou o revólver da bolsa. Era uma arma pequena - de calibre 25, calculei.
- Lamento muito sobre isso realmente - disse ela. - Mas você não percebe? O dinheiro e a cumplicidade do que faríamos a Manny iam ficar sempre entre nós.
- Eu sei - repliquei. - Mas o que acontece quando um membro do júri desaparece... ou morre?
- Já pensei nisso - disse ela. Abafando um bocejo. - Manny vai ter um novo julgamento. A essa altura eu já vou ter limpado seu esconderijo secreto de dinheiro. Vai
haver um outro Will Kent no novo júri. Alguém que eu possa facilmente... convencer ... a fazer... o que...
A voz dela diminuiu lentamente e, quando a cabeça caiu, estiquei o braço e peguei a arma. Sorri. O martini bem seco e muito especial funcionara com perfeição. Eu
esperava que Jim Goff nunca tivesse a idéia de usar tranqüilizantes em lugar de vermute.
Linda ressonava tranqüilamente. O barco navegava à deriva. Pus a arma de lado e apanhei os remos. Quando fiz isso, minha voz interior disse: "Não! Apanhe a âncora,
seu bobo. A polícia está esperando encontrá-la morta! O dinheiro vai ser todo seu. Prenda a âncora em volta dos tornozelos dela. Você tem que fazer isso, Will.
Senti os cabelos na nuca começarem a se arrepiar. Peguei os remos e comecei a remar em direção à terra.
Simplesmente não gosto que me digam o que devo fazer - nem mesmo minha voz interior.
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Hal Ellson
QUARTO VAGO
A chuva gotejava no peitoril da janela onde ela estava, com os olhos cinzentos zangados e o queixo pontudo. Pingos de chuva tristes soavam como um canto fúnebre
além da cortina e do vidro; ela não ouviu, não reparou na rua deserta que descia na direção do rio. Estavam carregando a
maca varanda abaixo sem esforço, pois o morto não pesava mais que uma vara.
O miserável me enganou, pensou a Sra. Flynn, olhando para o lençol cinzento. Nenhum centavo no nome dele e me devendo o aluguel. Sacudiu a cabeça e observou a
maca deslizar para dentro do carro da funerária, a porta bater, o ajudante e o motorista com capas de chuva pretas e brilhantes acenarem para o policial ali em pé
e subirem
no carro. Quando o carro se afastou, o policial olhou para a casa e saiu caminhando, com a cabeça contra o vento do dia chuvoso de março.
- Bem, é isso - disse a Sra. Flynn em voz alta, virando-se de costas para a janela e apressando-se com as pernas curtas e gordas a ir até a porta do hall. Apenas
um lanço de escadas para o quarto vazio acima, mas estava ofegante ao chegar lá. A porta ainda estava aberta, o quarto escuro, silencioso e vazio como uma concha.
Outra mulher teria hesitado antes de entrar, mas não a Sra. Flynn. Ela entrou como o vento de março soprando pelo mundo lá fora e rapidamente fez o que tinha a ser
feito,
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varrendo o quarto, desfazendo a cama e tornando a arrumá-la, sem pensar absolutamente no ocupante anterior morto.
O vento chocalhara na janela quando ela terminou, a chuva martelava no vidro. Até os malditos elementos estão contra mim, pensou, pois era uma pessoa ambiciosa e
sua ambição não podia esperar.
Agora saiu rapidamente do quarto e desceu as escadas. Havia o aviso do vestíbulo, que devia ser pendurado apesar do tempo chuvoso. Abaixando-se, ela o apanhou e
abriu a porta da rua, levando uma rajada de vento e chuva gelada no rosto que a deixou sem respirar, mas não a deteve. Do lado de fora passou para o alpendre de
pedra abandonado, pendurou o aviso no gancho pontudo e voltou rapidamente para o vestíbulo, tremendo como uma galinha molhada. Estava preparada agora, a rede pronta
para o peixe certo. O problema era o terrível tempo de março.
De uma janela da frente, espiando através de uma cortina cinzenta, ela observou a rua deserta que agora estava semi-obscurecida por uma chuva de granizo gelado.
Finalmente, apareceu um homem da névoa escura. Uma vez perto da casa, ele parou e olhou para cima, alertado pelo barulho da placa balançando freneticamente com o
vento. Momentos depois, subiu os degraus e tocou a campainha. A porta se abriu diante dele e lá estava a Sra. Flynn, com o queixo pontudo e os olhos vivos perscrutando-o.
- Vi o seu aviso - começou ele.
-- Tenho um quarto para alugar - respondeu ela rapidamente, reparando nas roupas dele que eram direitas, mas não de qualidade. - O senhor deseja vê-lo?
- Desejo, mas primeiro...
- Custa dez dólares por semana se é o que deseja saber, pagamento adiantado.
Ele riu com isso e disse:
- Vou dar uma olhada rápida, se a senhora não se incomodar.
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Ela o levou até o andar de cima, mostrou o quarto, a cama, a escrivaninha, o abajur, o armário, sem se desculpar pela rachadura no teto nem pelo papel de parede
antigo.
- É um bom quarto antigo. Muito confortável - observou ele.
- O senhor vai ficar com ele?
- Já fiquei -- retrucou ele e tirou a carteira, bem usada mas de couro bom e bem arrumada com as notas, uma das quais ele tirou habilmente e entregou a ela.
- Isso garante meu aluguel por dez semanas - disse ele, sorrindo quando viu os olhos dela se iluminarem. - A menos que a senhora aumente o aluguel.
- É dez dólares e vai continuar sendo - respondeu ela rapidamente, não querendo perder um inquilino como aquele. - Eu sou a Sra. Flynn. Qual e o seu nome? Vou precisar
para os recibos.
- John Walker. E pode deixar os recibos para lá.
- Ah, o senhor confia muito nas pessoas. Vou enfiá-los por debaixo da porta, do contrário não fico descansada.
- Se isso a faz sentir-se melhor - disse ele, dirigindo-se para a porta. - Vou buscar minha mala.
Ela o acompanhou até embaixo e estremeceu de frio na porta da frente.
- Está um dia horrível - comentou. O senhor não gostaria de uma xícara de chá antes de sair num tempo assim?
- Obrigado. Talvez quando eu voltar - respondeu e saiu. De volta ao seu lugar na janela, ela correu para observá-lo
desaparecer na cortina rodopiante de neve que caía agora. O terrível dia de março não importava mais, pois desta vez tinha a pessoa certa, um inquilino com dinheiro
vivo em mãos.
John Walker voltou meia hora depois, parecendo um boneco de neve, e ela o esperava com o bule, as xícaras, os pires, a melhoprataria e a mais fina toalha de linho
na sala de visitas com teto alto.
100
- Ponha sua mala no chão e venha - disse ela, pegando em seu braço.
Ele riu e deixou-se levar pela porta.
- Muito bonita - ele comentou sobre a sala enquanto ela servia o chá. - Muito agradável.
- Um pouco antiga, mas eu gosto - respondeu ela, entregando-lhe a xícara e o pires.
Era um chá forte e bom, fumegante e quase preto, que precisava de açúcar e creme, os quais ele adicionou e mexeu. Então, levantou os olhos e a viu sorrindo para
ele.
- Nada como uma boa xícara de chá num dia como este - disse ela. - Fiquei com medo que não o agradasse.
- Ah, mas é muito bom, especialmente da maneira que a senhora o faz.
- Sem nenhum saquinho sujo de chá boiando em água tinta - ela riu, dando um tapinha na coxa. - Agora beba-o enquanto está quente.
Era um bom começo, exatamente como ela queria, e agora agradecia ao tempo horroroso do dia lá fora; a neve
parara e uma chuva gelada açoitava as janelas novamente.
Chá é uma excelente bebida, pensou a Sra. Flynn, lembrando-se do súbito acanhamento do Sr. Walker quando ela se ofereceu para levar uma xícara em seu quarto de vez
em quando. Seu prazer foi imenso, pois o homem cedera ao conforto. Isto era parte do plano, mantê-lo feliz como um pássaro enquanto ela se punha em ação para descobrir
o que queria saber.
Mas o Sr. Walker, simpático e dócil, não era de se abrir tão facilmente, apesar de toda a disposição em conversar horas a fio e sentar-se para tomar duas ou três
xícaras de chá irlandês. Nem seu quarto revelou nenhum segredo sobre ele, embora ela o revistasse diariamente à procura do que queria antes de agir.
Era atrás do dinheiro que ela andava e ele tinha. Estava tão certa disso quanto do sol que aparecia todos os dias. Mas onde
101
o guardava? Não era no banco. Ele não era desse tipo. Estava convencida disso.
Durante quatro semanas ela seguiu sua rotina, esperando-o deixar a casa de manhã, depois correndo ao andar de cima com vassoura e espanador para limpar e vasculhar,
mas sem sucesso. Ele não guardava nenhum dinheiro no quarto.
Na quinta semana ela desistiu de procurar. No final da sexta semana decidira mandá-lo embora quando descobriu o dinheiro que tinha certeza que ele possuía, bem guardado
no par de sapatos extra e coberto por um par de meias sujas. Lá estava ele, dez notas de 100 dólares que ela contou duas vezes com mãos trêmulas.
- Ah, eu sabia! - gemeu e contou o dinheiro novamente só pelo prazer de contar. Então, desceu para tomar uma xícara de chá e para fazer os preparativos. Era abril
agora, um belo dia com o frescor cálido da primavera no ar, que não lhe agradava muito. Mas às vezes abril fica tão inconstante quanto março e à tarde o ar se tornou
frio e a brisa suave refrescou de tal maneira que, ao anoitecer, açoitava a cidade com rajadas fortes.
A Sra. Flynn esperou à janela, mas o Sr. Walker não apareceu na hora de costume. Eram dez horas quando ele finalmente subiu o alpendre alto e abriu a porta.
- Ah, Sr. Walker, está atrasado e gelado - ela o recebeu no hall. - Seu chá está esperando, quentinho.
Mas pela primeira vez ele recusou. Estava cansado, explicou, fora um dia ruim, e subiu para o quarto.
A primeira vez que ele recusava seu chá. Era um mau sinal. Mais tarde, ela o ouviu descer as escadas e sair. A porta se fechou com um som melancólico e voltou a
se abrir dez segundos depois.
Ela correu até a porta e puxou-a para o lado.
- Algo errado, Sr. Walker?
- Nada - disse ele, começando a subir os degraus e parando com a testa franzida.
- O que é, Sr. Walker?
- Vou partir amanhã - disse ele. - Para Chicago.
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- O senhor está brincando - disse ela, empalidecendo.
- Gostaria que estivesse, mas não estou. Bem, foi uma estada agradável.
- Ah, então tome uma última xícara de chá - disse ela, desesperadamente.
- Obrigado, mas o chá vai me tirar o sono. Tenho que levantar cedo - replicou, começando a subir as escadas novamente.
- Em nome dos velhos tempos - disse ela atrás dele. - E o senhor não vai perder o sono. Vai dormir como um bebê.
Ele parou novamente, sorriu e disse:
- Bem, então - e desceu as escadas.
Ela o serviu na sala de visitas de teto alto e com ersaram por algum tempo. Então ele subiu, com o chá que ela envenenara já fazendo efeito.
De manhã estava morto.
- Era um bom homem - disse ela quando desceram o alpendre alto com o corpo sob um cobertor cinzento. Então ela entregou ao policial o casaco, a mala e um maço de
cigarros. - Não é muito - explicou - mas também ele não vai precisar de grandes coisas para onde está indo.
- É verdade - respondeu o policial e saiu do hall. A maca já estava no carro funerário. O policial desceu o alpendre, entregou o casaco e a mala e observou o carro
se afastar, depois saiu andando.
A Sra. Flynn fechou a porta e subiu as escadas correndo até o quarto do último inquilino. Ofegante, ela entrou e foi até o armário. Lá estavam os sapatos que ela
não entregara, com as meias sujas ainda enfiadas dentro deles. Ansiosamente, ela os apanhou e puxou as meias, mas o dinheiro desaparecera.
Levou-o consigo. Por que não olhei dentro dos bolsos antes de chamar a polícia? Gemeu e desceu as escadas, doente com o terrível erro que cometera, mas não tão perturbada
a ponto de não querer uma xícara de chá.
Serviu-se do chá, sentou-se durante algum tempo na sala de visitas de teto alto, depois se levantou e foi até o alpendre para pendurar seu funesto aviso mais uma
vez - Quarto Vago.
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Allen Lang
PARA O MÉXICO, COM AS VERDINHAS
Eles me soltaram às quatro horas de manhã, antes mesmo de os pássaros acordarem. Caminhei em linha reta do portão de ferro até o ônibus, sem olhar para a gaiola
de pedra onde eu acabara de ficar quatro anos. Olhei para os quilômetros de concreto para onde a estrada seguia morro acima na direção de Chicago. A distância faz
bem aos olhos quando a nossa vida ficou bloqueada por muros de nove metros nos últimos anos. Aspirei a poeira e a fumaça azul do ônibus. Cheirava a State Street.
Cheirava a lar.
Entreguei ao motorista a passagem que o estado comprara para mim e voltei para me sentar. Ia comprar minhas próprias passagens, montes delas, assim que pusesse as
mãos naqueles 25 mil dólares que Ears estava guardando para mim.
O velho Ears. Sem muito miolo, mas um sócio de verdade. Tínhamos feito serviços juntos desde o reformatório, até o arrombamento do armazém da Farmácia Hindu. Pura
falta de sorte aquilo. Estávamos feitos. Cinqüenta mil dólares no cofre e eu sabia a combinação. É claro que fui apanhado e levei uns socos, mas fora por causa de
um serviço que eu fizera dois anos antes. Os tiras não podiam me prender pelo serviço do armazém. Só queriam me dar uma fria por alguns anos, para poderem tomar
café e bater papo com os donos dos bares sem querer saber onde
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Salt e seu pé-de-cabra estavam trabalhando à noite. Não me importei muito. Todo mundo cai de vez em quando e 25 mil dólares é uma excelente compensação por quatro
anos num moinho de juta.
Recostei-me no banco de couro e deixei o barulho do motor e dos pneus no asfalto me embalarem para dormir. Em duas horas meus bolsos estariam cheios de notas altas
e eu estaria voando para o México como um pássaro graúdo. Enquanto isso, precisava de descanso.
- Tenho más notícias para você, Salty - disse Ears.
Provei a cerveja. Cerveja quente não era ruim, não depois de passar tanto tempo sem tomar cerveja.
- Más notícias? - perguntei. - Ears, você não vai estragar o meu primeiro dia fora da gaiola com tristezas, vai? - Tomei mais um gole de cerveja. Quente ela faz
a garganta arder, como champanha.
- Você está levando a coisa na brincadeira - disse Ears.
- Não estou levando nada - retruquei, acabando com a cerveja. - Você não me contou nada ainda. - Tirei outra lata do pacote de seis que eu trouxera comigo e
a abri. - É sobre você e Alice? - perguntei. Alice era minha esposa, mas nenhuma santa.
- Você deve ser psíquico - replicou Ears. - Você se importa se ela aparecer?
- Claro que não, chame Alice - retruquei. - Não me custa nada dizer alô a minha esposa.
Ears enfiou a cabeça sob a cortina que ficava pendurada em cima da porta do hall e berrou:
- Alice! - Voltou para a mesa. - Ela nunca acorda antes do meio-dia - explicou,
- Eu sei. Alice dizia que o ar da manhã era péssimo para sua aparência - disse eu. - Eu acho que tinha razão; sempre parecia um desastre de manhã. O que há entre
você e Alice? Ela se divorciou de mim?
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- Nós não pensamos em divórcio - explicou Ears. - Foi uma coisa gradativa. A gente acabou se acostumando um com o outro.
- Ears, você faz a coisa parecer verdadeiramente romântica - repliquei.
Alice arrastou-se de trás da cortina do corredor, parecendo a garota de um programa humorístico. Usava um roupão xadrez verde e cheirava ao gim da noite passada.
Deu um olhar enviesado para Ears.
- Por que diabo você está gritando? - perguntou.
- Diga alô ao nosso amigo, Alice - disse Ears.
- Salty! - berrou ela, como um jornaleiro vendendo edições extras. Caminhou uns passos na minha direção e me deu
um beijo grande e molhado. Eu preferia ser beijado por um camelo. - Pensei que você não ia voltar nunca mais - admitiu tentando se sentar no meu colo.
-i É o que eu soube - falei, me contorcendo na defensiva para que ela não pudesse chegar mais perto. E me esquivei para trás, a fim de evitar que me beijasse novamente,
talvez derramando minha cerveja. Alice então viu as latas de cerveja e abriu uma tão rápido que derramou por todo lado, mas principalmente no roupão verde. - Eu
soube que você e Ears estão muito íntimos agora - comentei.
- Aquele que não tem pecado deve atirar a primeira pedra - citou Alice, enxugando a espuma do lábio.
- Onde eu estava o único pecado é fumar no moinho de juta - disse a ela. - Mas vocês dois ainda são meus chapas.
- Salty, você é um amigão - disse Ears. Apanhou uma lata de cerveja.
- Salty é um ás. Eu sempre disse isso - afirmou Alice.
- Vou sentir sua falta, Alice - disse eu.
- Ela pode ir com você... - começou a dizer Ears.
- Eu não posso separar vocês dois - retorqui, rapidamente. Estou acostumado à tristeza, à solidão, Ears. Você só tem que me dar a minha parte do dinheiro da
Hindu e eu me mando: um homem solitário, porém mais esperto.
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- Quanto ao dinheiro... - disse Ears.
- A gente teve que fazer aquela viagenzinha... - começou Alice.
- ... Alice teve todas aquelas contas de médicos - disse Ears bem alto, tentando impingir sua mentira antes da dela.
- Quanto ao dinheiro! - berrei, sentindo o chão afundar sob meus pés. Agarrei Ears pelo colarinho, derrubando minha lata de cerveja. A espuma espirrou da lata como
uma daquelas bombas de barbear, por cima de Ears. Mas ele tinha outras coisas com que se preocupar. - Eu quero vinte e cinco mil dólares, Velho Camarada - avisei.
- Me dá o dinheiro, Ears!
Ears encolheu-se enquanto eu o segurava pelo colarinho, como um grande gato de estimação.
- Acabou, Salty - gemeu. - Gastamos todos os centavos. A minha metade e a sua ... as duas acabaram.
- Cinqüenta mil? - perguntei, soltando-o. Ele se jogou na cadeira e segurou a cabeça nas mãos. - O que vocês fizeram com ele? Pagaram a Dívida Nacional?
- Fomos à Cidade do México - explicou Alice. - E a Acapulco ... no México também. Eu comprei o cãozinho mais engraçado lá. Ele não sabia fazer nenhum som, exceto
com a barriga roncando: ronc, ronc.
- Você vai ter o narizinho quebrado mais engraçado, ronc ronc, se não parar de gemer - prometi. - Isso é realmente sensacional, companheiros. O meu velho camarada
se manda com a minha mulher e gasta o dinheiro que ganhei com quatro anos de prisão. Vocês estão me dando umas boas-vindas realmente calorosas.
- A gente não pensou que você fosse sair tão cedo - explicou Alice.
- Cale a boca - disse Ears.
Fui até o corredor e puxei a cortina. Havia malas ali com selos de hotéis mexicanos, malas de couro que devem ter custado o preço de uma vaca inteira. Havia algumas
daquelas pastas de papelão que custam dois dólares e meio numa loja barata
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e, finalmente, três sacos de compras cheios de camisas sujas enroladas e sapatos velhos.
- Estão pretendendo voltar para o México? - perguntei. Ears falou quase gemendo:
- Se uma passagem pra lua custasse dois dólares, a gente não chegava nem a Evanston, Illinois - disse ele. - íamos pra casa do meu irmão, fazer uma visita.
- No caso de você vir com uma arma - acrescentou Alice.
Abri a gaveta da cozinha, onde sabia que Ears guardava suas armas.
- Agora tenho duas armas - disse eu.
- Que Deus nos proteja! - disse Alice, segurando o pescoço como se fosse uma atriz numa peça ou num filme.
- Sabe quanto recebi? - perguntei. - Cinqüenta e quatro dólares, foi isso. Dinheiro que consegui fazendo carteiras na loja da prisão, e que vendia aos turistas que
vinham ver os homens no zoológico. Um negócio da China. Quinze paus por ano, foi o que consegui economizar enquanto vocês dois torravam os meus vinte e cinco mil.
Eu devia ter posto meu dinheiro no banco.
Alice ficou interessada.
Já que você tem cinqüenta e quatro dólares, Salty - sugeriu ela - que tal dar uma chegadinha no mercado pra comprar uma lata de café, mais cerveja e talvez ovos
e bacon? A gente não tem um pingo de comida, um grão de café na casa, tem, Ears?
- Cale a boca, Alice - disse Ears, como se estivesse cansado de repetir isso tantas vezes.
- Tudo bem, Ears - respondi. - Não posso deixar os dois pombinhos passarem fome. Volto num minuto com o bacon e a cerveja. - Guardei os dois revólveres de Ears no
bolso. - Espero que estejam aqui quando eu trouxer o café da manhã - avisei.
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Dei o Veredito ao meu bando enquanto tomávamos café.
- Decidi o que fazer - disse.
- Nada de violento, não é? - perguntou Alice.
- Eu vou violentar você, se não calar a boca - adverti.
Volte para o banheiro e penteie o cabelo, Alice. Se você
não tem um pente, ponha uma fronha na cabeça, se quer me fazer um favor.
- Eu disse a você que ele ia se vingar, Ears - falou Alice.
- Penteie! - gritei, levantando-me e elevando a mão como se fosse dar um bofetão, talvez até um soco. Alice saiu correndo descalça pela passagem encortinada.
Abri outra cerveja.
- Decidi como resolver a situação - expliquei. Pus as duas armas de Ears em cima da mesa.
- Um duelo? - perguntou Ears, afastando a cadeira da mesa.
- Não fale como um moleque de rua - retruquei.
- Você vai me entregar? - perguntou ele.
- Claro, se pudesse tirar proveito disso - falei. - Mas não ia lucrar nada. Você apenas ia para uma prisão boa e sossegada e se livrar de Alice durante alguns anos;
não quero lhe prestar esse favor, Ears. Você está atolado com Alice.
-' Isso não é maneira de falar da esposa - retorquiu Ears.
- Eu não estou falando da minha esposa. Estou falando da sua garota - expliquei. - Agora, aos negócios. Ears, há rios de dinheiro no lugar de onde vieram aqueles
cinqüenta mil da Hindu.
- Você quer que a gente assalte o armazém novamente? - perguntou Ears.
- Você é o sujeito mais imbecil que já conheci - repliquei. - Existem milhares de lugares para se assaltar, Ears, meu velho. Você vai assaltar esses lugares, um
atrás do outro, até conseguir os meus vinte e cinco mil dólares de volta.
- Eu tenho andado na linha, Salty - disse Ears. - Não pego numa arma nem num pé-de-cabra desde que você foi preso.
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- Ou você usa as suas ferramentas novamente - ameacei - ou vai acordar olhando para o teto de um hospital através das ataduras. Faça sua escolha.
Alice voltou, com o cabelo penteado e perfume espalhado pelo corpo todo. Estava com um vestido que devia ter vindo do México, pois num dos quadris tinha uma rosa
de pano do tamanho de um repolho. Ela se sentou na ponta da mesa, diante de mim, passando as mãos pelo cabelo.
- Está melhor assim, Salty? - perguntou-me.
- Não fique falando mole comigo enquanto você e Ears não me devolverem o que tiraram de mim - repliquei.
- Nunca ouvi tamanha insolência! - disse Alice, levantando-se da mesa.
- Alice pode ajudar a gente - eu disse a Ears.
- Posso o quê? - perguntou ela.
- Ears e eu vamos voltar a roubar - esclareci. - Eu decidi usar você como sócia muda.
- Qual é a minha parte? - perguntou ela.
- Você é a sócia muda, logo cale o bico - disse a ela.
- Que tipo de serviço você tem em mente, Salty? - perguntou-me Ears.
- Caixas de crédito, para começar - respondi. - Você e Alice têm cara de gente que está precisando urgente de um empréstimo, logo vão parecer naturais lá.
- Vamos ter que conseguir vinte e cinco mil dólares em caixas de crédito? - perguntou Ears.
- Talvez não tudo isso - respondi. - Mas deve haver umas mil dessas casas que cobram trinta e seis por cento de juros nesta cidade. Vamos limpar uma dúzia delas,
depois começar em outro lugar. Lojas de câmbio, prego, postos de gasolina.
- Bêbados - sugeriu Alice.
- Você está a fim de sentir o gostinho do meu tapa? - perguntei-lhe.
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Salty, será que a gente não podia voltar a assaltar com
escada e pé-de-cabra? - perguntou Ears. - Nunca fiz assalto a mão armada.
- Você precisa se aprimorar, Ears, aprender coisas novas - retruquei. - Vamos agir como eu disse, se estiver bom pra Srta. Princesa de Mônaco.
- Por mim tudo bem - disse Alice. - Já não basta um engaiolado na família.
- Quando chego ao ponto de poder olhar para um tira sem acessos de medo - disse Ears - lá vamos nós novamente. Pés-de-cabra, tênis, andar espreitando com arma na
mão. Eu acho que o meu destino é acabar na cadeia.
- O seu destino é me devolver os meus vinte e cinco mil - corrigi-o.
A nossa primeira caixa de crédito foi uma espelunca numa sobreloja, não muito longe do Loop. Tinha uma aparência decadente e suja e era iluminada pelo anúncio de
néon rosa do lado de fora da janela, dizendo: Dinheiro Fácil. Para ver como era o lugar, entrei sozinho e disse à garota do balcão que queria fazer o maior empréstimo
que pudesse.
- O senhor pode fazer a gentileza de esperar na Cabine Quatro, senhor? - ela me perguntou. Dei uma olhada na caixa registradora diante dela, depois assenti e entrei
na cabine.
Fiquei um pouco preocupado com que me concedessem realmente um empréstimo, então preenchi a folha com o nome de meu último diretor de prisão, disse que não tinha
emprego fixo há oito anos e que já estava com uma dívida de dois mil dólares. Dei o endereço residencial como aos cuidados da Caixa Postal em Chicago e disse que
queria cinco mil dólares para pagar minhas contas. Quando o gerente de crédito entrou e fechou a porta da Cabine Quatro, como um psicólogo de prisão preparando-se
para alguns demorados testes de manchas de tinta, não chegou nem a se acomodar na cadeira e já me empurrava porta afora. Eu não liguei. Conseguira o que queria.
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Vinte minutos depois, Ears e Alice estavam na Cabine Quatro, contando ao gerente de crédito sua triste história. Antes que Alice tivesse tempo de chegar ao ponto
de chorar, Ears estava com a arma apontada para o gerente de crédito.
- Vamos deixar de burocracias - disse Ears, dobrando o pedido falso e guardando-o no bolso.
- É - acrescentou Alice. Afinal de contas, ela queria ganhar uma parte do roubo.
- Vá andando na nossa frente, sorrindo - disse Ears. -- A gente não quer que você deixe transparecer que está acontecendo alguma coisa de errado.
- Se esse gorila sair correndo, eles vão saber que tem alguma coisa errada - disse Alice. - Aposto que a única vez que ele riu na vida foi no dia em que a mãe morreu.
Ele parece um verdadeiro agiota.
- Isso mesmo. Saia com a testa franzida - disse Ears. - Pense no revólver dentro do meu bolso; isso vai ajudar. Limpe a gaveta da caixa e nos dê tudo o que tiver
dentro, com um formulário de costume, para que as garotas pensem que é tudo legal.
O gerente de crédito foi até o balcão, com cara de quem estava com o apêndice supurado. Tirou as chaves da máquina e contou um maço de notas sobre um recibo de empréstimo.
Fiquei do lado de fora da porta, no alto da escada, no caso de J. Edgar Hoover chegar para fazer um empréstimo e reconhecer Ears.
-' Vamos levar os trocados também - disse Alice, debruçando-se sobre o balcão para ver as moedas na gaveta da caixa registradora. Ela passou a bolsa para o gerente
do outro lado do balcão. Ele a encheu de moedas. - É melhor você acompanhar a gente até lá embaixo - disse ela.
- Se eu fizer isso, as moças vão suspeitar de que há alguma coisa errada - explicou o gerente, olhando em volta como se algo estivesse errado.
- Elas não iam se atrever a mudar o papel-carbono - disse Alice - sem a sua autorização, muito menos dar o
alarme.
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Você parece ser um chefe mesquinho, senhor. É um privilégio roubar gente assim.
Corri para baixo antes que eles começassem a descer e estava no carro de Ears quando os meus sócios chegaram, deixando o gerente praguejando por ajuda. Entramos
no tráfego cheio e voltamos para a casa de Ears em meia hora.
- Vamos contar - disse eu.
Ears tirou o maço de dinheiro do bolso e jogou-o em cima
da mesa.
- Oitocentos e vinte dólares - disse ele. - O gerente contou pra nós. Alice deve ter mais uns dez paus em moedas.
- Não foi como o servicinho na Hindu, hem? - perguntei. Peguei o dinheiro da mesa, tirei 20 dólares e joguei-os para Ears. - A sua parte - disse eu. - Agora vocês
dois só me devem vinte e quatro mil e duzentos dólares. - Guardei o resto no bolso. - Lembrem-se de comprar um cinto de dinheiro esta tarde, certo?
- Miserável! - desabafou Alice.
- Quer me dar os seus trocados, como você chama? - perguntei. Alice calou a boca depressa. - Prepare alguma coisa pra gente comer. Ainda podemos pegar mais uns dois
ou três agiotas hoje.
Naquela tarde, meu bando assaltou mais três caixas de crédito. Em todos os lugares fizemos o mesmo. Eu entrava primeiro e dava uma olhada no escritório enquanto
fazia um pedido de empréstimo. Assim que era rejeitado, ia para o carro e contava a Ears e Alice como era o esquema. Eles faziam o serviço, enquanto eu montava guarda
do lado de fora da porta. Então voltávamos para o carro com o dinheiro.
Conseguimos apenas pouco mais de quatro mil dólares, os quais troquei por notas altas num banco e guardei no meu cinto de dinheiro.
- Mais uma semana - disse eu, assim que chegamos em casa depois da caixa de crédito número quatro - e vocês terão me devolvido tudo. Então a gente pode encerrar
o negócio e vai chegar a minha vez de ir curtir o México.
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- Encerrar o negócio? - repetiu Alice. - Salty, se houver ao menos cem caixas de crédito na cidade, a gente podia conseguir um milhão de dólares. Por que parar?
- Garota, você precisa de gente com miolo! - repliquei. - Olha, Einstein, por que você acha que foi tudo tão fácil? Eu lhe digo: porque ninguém tem assaltado caixas
de crédito há um ano ou mais. A partir de amanhã, haverá um segurança em todas as caixas de crédito daqui até Cicero. Vamos parar por aqui.
- Parece que Ears e eu devíamos ter uma parte justa, então - disse Alice. - Nós é que fizemos o trabalho pesado e só conseguimos uma merda de uns duzentos paus até
agora. E a gente é que tem de comprar a comida e a cerveja, pagar a conta de luz e tudo o mais.
- Vocês gastaram a sua parte no México - lembrei.
- Ears tem uma arma - disse Alice.
Eais franziu a testa e pôs a mão no revólver no bolso da perna.
- É claro que tem - concordei. - Mas Ears é meu camarada e um homem de honra. Certo, Ears?
Ears anuiu.
-• Além disso, ele tem medo de mim e também tenho uma arma. Nós ainda não somos sócios, Alice. Enquanto esse cinto de dinheiro não ficar do tamanho de um pneu de
caminhão vocês trabalham pra mim. Certo?
- Certo - disse Ears. - Agora guarde essa arma, tá legal?
- Acabe de comer - informei. - Você e eu temos mais um servicinho pra fazer esta noite.
- Mais um? - perguntou Alice. - Ei, Ears está cansado. Não está, benzinho?
- Foi um dia duro - admitiu Ears.
- É melhor se acostumar com a idéia que vai ser um mês duro - disse eu. - Vamos, Ears.
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Paramos o carro do outro lado da rua de uma loja de máquinas de escrever, esperando o dono fechar e pegar o carro para ir para casa. As luzes ainda estavam acesas
dentro da loja, a fim de amedrontar gente como nós, mas calculei que ninguém ia desconfiar se nos visse lá dentro, examinando o estoque. Iam pensar apenas que éramos
dedicados vendedores de máquinas de escrever.
Fiz um corte de meia lua na vidraça da porta com meu cortador de vidro, tirei o pedaço de vidro e enfiei a mão no buraco para destrancar a porta. Uma vez lá dentro,
peguei o cartão que dizia FECHADO e o coloquei do lado de fora da janela para tapar o buraco.
- Pra quê viemos aqui, Salty? - perguntou Ears, olhando à sua volta para o equipamento de escritório. - Por acaso precisamos de uma máquina de escrever pra fazer
dinheiro?
- Não se pode fazer dinheiro com uma máquina de escrever - repliquei. - Estamos procurando uma máquina que imprime cheques. Percebe, Ears, quando se dá a um homem
um cheque preenchido à mão, ele pode ficar desconfiado. Mas se você der um com os números vincados com tinta vermelha tudo bonitinho e feito à máquina, ele entrega
o dinheiro com um sorriso. Nós temos que pôr em circulação dez mil em cheques, antes de ficarmos sem tinta vermelha.
Assim, pusemos nossas luvas de trabalho e vasculhamos o lugar, andando por lá como se fôssemos os donos, no caso de alguém ver pela janela que estávamos lá dentro.
Pus minha chave falsa na fechadura da mesa do dono e ela se abriu com a maior facilidade. Lá, real como a vida, estava a nossa máquina e um bloco inteiro de cheques
em branco, todos com o nome da loja. Pus a máquina em cima da mesa e destaquei os cheques para imprimi-los.
- Acho que podemos passar todos eles esta noite, já que é sexta-feira - disse eu. - Lojas de bebidas, mercados abertos vinte e quatro horas e lojas de câmbio aceitam
cheques de pagamento nas noites de sexta-feira.
- Salty, estou cansado - disse Ears.
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- Você descansou na Cidade do México - respondi. - Ears, você tem que trabalhar muitas horas extras pra mim. Tente ser dócil e aceitar isso.
- Eu posso dizer com sinceridade que gostaria de nunca ter conhecido Alice - comentou Ears.
- Bem-vindo ao clube - disse eu. - Como devo preencher estes cheques? Qual é um bom pagamento semanal? Ando desatualizado com o padrão de vida.
- Ponha uns cento e trinta dólares - disse Ears. - É
um pagamento e tanto.
- Vamos fazer como se fosse o pagamento de duas semanas - decidi. Peguei uma máquina de escrever emprestada para pôr o nome de T. S. Woodward em cada cheque - ele
era o diretor do presídio, na prisão estadual - então passei cada um deles na máquina de cheques com a tecla marcando 259 dólares e seis centavos.
- O cara vai ter que vender um bocado de máquinas de escrever pra recuperar o prejuízo desta noite - comentou Ears.
- Talvez eu compre uma, pra ajudá-lo a sair dessa - disse eu. - Vamos. Vamos transformar isso em papel-moeda. - Peguei a máquina de cheques e também uma máquina
de escrever, para o caso de encontrarmos mais um talão de cheques em branco em algum lugar. Pegamos Alice e paramos em três lojas de bebida, uma após a outra, o
que fez Alice se sentir melhor. Em cada lugar peguei cervejas e uísque suficientes para fazer o pagamento de nosso cheque parecer um grande negócio ao gerente, depois
assinei T. S. Woodward em letras descuidadas como o diretor da prisão faz.
Não tivemos o menor problema. No mercado Alice comprou comida suficiente para alimentar um time de futebol toda a temporada e paguei com um outro cheque falso do
diretor. Com um dos cheques enchemos o tanque de gasolina, com um outro compramos para Alice uma dúzia de rosas e um cacto para a janela do banheiro.
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À meia-noite eu tinha mais 250 dólares em meu cinto de dinheiro e ele parecia um cinturão de aço. Mas era um peso agradável de carregar.
- Ainda falta um pouco mais de dezoito mil - comuniquei a Ears e Alice. - Quando conseguirmos isso, eu saio de suas vidas e parto de férias na semana que vem. Talvez
tente o México.
- Estou tão cansado - disse Ears - que se um tira chegasse agora eu não teria força nem de esticar as mãos para pôr as algemas. - Mas eu reparei que ele tinha força
pra levantar as duas doses de uísque que lhe servi.
- Estamos trabalhando demais - disse Alice.
- Vocês dois estavam comendo buracos de cinto quando apareci esta manhã - lembrei a ela. - Não estão com fome agora, estão?
- Você não devia ter usado o nome do diretor da prisão naqueles cheques - disse Ears.
- Ele não vai se importar - repliquei. - Boa noite,
crianças.
Eles se arrastaram pela cortina e me acomodei no sofácama, usando meu cinto de dinheiro como pijama. Fui dormir como se tivesse levado uma surra. Fora um longo dia.
Fiquei acordado das nove até o café, pensando. Logo, todos os gerentes de crédito, donos de lojas de bebidas e de mercados da cidade iam começar a dizer aos policiais
como eu, Ears e Alice nos parecíamos. Isso seria perigoso. Logo, tínhamos que conseguir o resto dos meus 25 mil dólares num golpe só.
Eu não disse aos meus sócios aonde íamos até estarmos
no carro.
- Vamos roubar um banco - comuniquei então. Alice riu como Peter Lorre.
- Por que não vamos pra Forte Knox, chefão? Quem lhe disse que você podia roubar um banco?
- Sozinho eu não podia - respondi. - Mas tenho dois gênios comigo.
- Agora mesmo, sem planejar nada? - perguntou Ears.
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- É a única maneira - disse eu. - Quando a gente começa a planejar, a usar cronômetros e a desenhar mapas, acaba ficando nervoso e deixa cair o dinheiro.
- Eu dirijo o carro da fuga - disse Alice.
- Ah, não - discordei. - Você ia ficar apavorada e desligada como um cachorro envenenado e Ears e eu teríamos que pegar carona ao sair do banco. Eu dirijo.
Nós três vamos entrar e deixar o carro na frente.
- Eu não tenho arma - disse Alice. - Você não vai me obrigar a fazer um assalto a banco desarmada, vai?
- Tem um lenço? - perguntei a ela.
- Pra quê? Pra fazer uma bandeira de trégua? Apanhei a bolsa de seu colo e tirei um lenço. Enrolei-o
em volta do batom.
- Alguém me arranje láps e um pedaço de papel.
- O que está fazendo? - perguntou Ears, me entregando um lápis e um pedaço de papel de bala branco.
- Escrevendo um bilhete: Isto é nitroglicerina. Um movimento em falso e vocês vão pelos ares. Ponha todo o dinheiro na bolsa e entregue rápido e calado. Moedas
não, só notas. Tenho amigos armados. O DETONADOR LOUCO.
- Isso é tolice - disse Alice, lendo por cima do meu ombro. - Você não vai enganar nenhum bancário com um tubo enrolado num lenço.
- É só ficar observando o que acontece - continuei. - Se há coisa mais fácil de que já ouvi falar, é enganar as pessoas. Tudo bem, Ears, comece a circular.
Eu aviso quando achar um banco que me agrade.
Era uma filial pequena do bairro. Entrei e abri uma caderneta de poupança em nome do Diretor Woodward, calculando que teria meus cinco dólares de volta com bastante
rendimento antes do dia terminar. Todas as caixas, com exceção de uma, tinham avisos dizendo DIRIJA-SE AO CAIXA AO LADO, POR FAVOR, na frente. O guarda, que estava
de pé na porta, era tão velho que não ousaria reagir e tão gordo que
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teria dificuldade em passar a mão por cima da barriga para pegar o revólver.
Voltei para o carro.
- Vamos a algum lugar pra matar o tempo com café - disse. - Só queremos entrar no banco antes da hora de fechar.
- Estou apavorada demais pra tomar café - disse Alice.
- Não fique apavorada - avisei. - Se não, você é capaz de derrubar a nitroglicerina e... BAM! - Ela deu um pulo e me olhou com raiva. - Se a gente conseguir o
bastante com esse serviço - continuei - talvez você e Ears fiquem com o bastante pra ter uma segunda lua-de-mel no México.
- Cale a boca, Salt - disse Ears. - Se eu levar esta senhora ao México outra vez, vai ser pia botar ela na arena das touradas.
- Você não falava comigo assim, Ears - disse Alice. - Eram só palavras de amor, me comparando a flores e coisas semelhantes.
Parei num drive-in e estacionei.
- Se vocês não se importam, prefiro não ouvir suas briguinhas de amor. E se fizerem mesmo outra lua-de-mel, vão para o Canadá, está bem? Eu vou para o México.
- Café puro - disse Ears à garçonete.
- Puro - concordou Alice. - Eu gostaria que eles servissem aquelas pílulas tranqüilizantes que eu li outro dia.
- Três cafés puros - disse eu à garçonete. Café tinha que adiantar.
Entramos no banco um minuto antes da hora de fechar. Abaixei a persiana da janela da frente.
- Obrigado - disse o guarda velho. - Eu ia fazer isso agora mesmo quando o senhor apareceu.
- É um prazer - disse eu.
- O que faço agora, Salty? - me perguntou Ears.
- Pegue a arma do guarda - mandei.
- Ei! - gritou o velho para Ears. - Pare com isso!
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Ears jogou a arma do guarda numa das fendas para papel usado em cima da mesa. Corri para o balcão a fim de ficar de olho nas datilógrafas, enquanto Ears usava a
arma para levar o guarda e os três clientes para um canto.
- Vamos fazer uma grande retirada - disse-lhes Ears.
- Do nosso dinheiro? - queixou-se uma velhinha.
- É segurado pelo governo, madame - explicou Ears.
- Mas ainda não depositei - disse ela, sacudindo uma nota de 20 dólares para Ears.
Ears arrancou o dinheiro e a caderneta da mulher.
- Faça o depósito da senhora - disse ao caixa. E quando os 20 dólares estavam anotados na conta dela, Ears lhe devolveu a caderneta.
- Obrigada - disse a velhinha e voltou a ficar parada sob a mira da arma.
Alice passou o bilhete pelo vidro da caixa. Levantou o batom enrolado no lenço para que o caixa pudesse vê-lo.
- Se eu ouvir o alarme disparar - advertiu ela - faço você em pedacinhos.
O caixa devolveu o bilhete.
- Onde está a bolsa? - perguntou. - Aí diz que tem uma bolsa para eu encher com dinheiro.
Alice assentiu e tirou a bolsa de compras dobrada de dentro do casaco.
- Encha aí, rapaz - disse ela. - E nada de movimentos em falso.
O caixa trabalhou rápido.
- Não deixe cair essa nitroglicerina - disse ele. - Só ia estragar o dinheiro.
- Depressa com isso, meu braço está cansado - disse Alice. Ela segurava o batom no alto, como a Estátua da Liberdade segura a tocha. - Coloque os rolos de pratas
e moedas também.
- Madame, o bilhete diz para não colocar moedas. A senhora devia ter trazido uma bolsa de pano se queria moedas; elas vão arrebentar esse saco de papel.
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- Tudo bem - concordou Alice. -- Nada de moedas.
- Vamos - berrei. O caixa levantou a janelinha e entregou a Alice a bolsa de dinheiro. Peguei o batom enrolado da mão de Alice. - Vocês todos deitados no chão
- comandei. - Quando a gente sair, vou trancar a porta da frente e não quero ninguém machucado.
- Detenham-nos, detenham os ladrões! - gritou um homem dos fundos do banco.
Atirei a uns três metros acima de sua cabeça e ele se jogou no chão. Alice, carregando a bolsa, estava na porta. O caixa se abaixara atrás do balcão, provavelmente
tapando os ouvidos. O gerente do banco recuava na direção de seu escritório. Empurrei Ears para frente e levantei o batom.
- Não! - gritou o guarda.
Não tive coragem de desapontá-lo, então guardei o batom no bolso e corri porta afora atrás de Ears.
Alice estava ao volante, levando o carro para a rua. A bolsa se achava no banco de trás.
- Se esconda, Ears - mandei. Ears agachou-se. - Os tiras vão procurar três pessoas e não duas.
Estávamos a três quarteirões do banco quando o alarme foi dado.
- Pé na tábua - disse a Alice. - Eles vão passar por nós.
- Olha lá um guarda! - gritou Alice. Continuou dirigindo, quase nos imprensando contra um carro de bombeiros que passou correndo por nós. O guarda que
amedrontara Alice deu um pulo na frente do carro. Ela parou.
O guarda veio até o carro e se debruçou na janela de Alice.
- Madame - disse ele - a casa de alguém podia ter pegado fogo pelo que a senhora acabou de fazer.
Ears levantou-se, escondendo a arma debaixo do braço.
- Brincando de esconder? - perguntou o guarda.
- Amarrando o sapato - explicou Ears.
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- É uma coisa pelo que não posso multar vocês - disse o guarda.
De repente havia mais sirenes na rua atrás de nós. O guarda pulou para o meio da rua e acenou aos carros para pararem no meio-fio.
- Vá em frente - gritei para Alice.
Alice nunca foi o que se pode chamar de uma boa motorista, mesmo quando tinha carteira. Na única vez em que isso importava, e que era neste momento, ela falhou.
Virando a esquina em duas rodas, bateu num hidrante.
Olhei no espelho retrovisor assim que pude. Meu nariz parecia quebrado e havia sangue em todo o rosto. Peguei o dinheiro espalhado no chão atrás - Ears devia ter
apanhado um maço de notas quando saltou - e guardei-o de volta na bolsa. Que par de sócios miseráveis eu tinha. Saltei e saí andando com a bolsa de compras, limpando
o sangue do rosto com a manga da camisa. Havia guardas em volta do carro batido agora, mas continuei caminhando como se não estivesse fazendo nada a não ser dar
uma volta. Sabia que quando um homem começa a correr na cidade, é trancafiado numa cela.
Joguei fora o batom e o lenço de Alice; não queria ser apanhado carregando nitroglicerina falsa. Virava as esquinas toda vez que podia, procurando um lugar para
lavar o rosto e me livrar da bolsa de compras. A maioria das lojas por onde eu passava estava cheia de pessoas. Finalmente, dei com uma papelaria empoeirada que
parecia vazia. Não havia guardas olhando para mim, então entrei.
Uma mocinha magra, usando guarda-pó marrom, veio dos fundos da loja, onde estava escuro o bastante para servir de ninho de morcegos.
- Posso lhe ser útil, senhor? - perguntou a moça, como se estivesse acostumada a pessoas sangrando no chão.
- Quero uma pasta grande - falei - com elásticos em volta para amarrar. Do tipo que os advogados usam.
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- Sim, senhor. Uma pasta para documentos. - Ela olhou para o meu rosto e tapou a boca com a mão. - O senhor está sangrando! - exclamou.
- Sou da Família Real Espanhola - expliquei. - Nós todos temos hemofilia.
- O senhor se cortou enquanto se barbeava? Tem uma pia lá nos fundos.
- Só quero que você me dê a droga da pasta, entendeu? - retruquei. Um nariz quebrado faz qualquer um ficar antipático.
-' Não estou acostumada a ser tratada assim - disse a moça. - Especialmente com uma compra de setenta e cinco centavos.
Tirei o revólver para que ela pudesse vê-lo.
- Por favor, apanhe a pasta - ordenei. - Vou pagar. Não é um assalto.
- Eu sabia que você era um desordeiro assim que o vi
- disse ela. - Conheço esse tipo de gente.
- Se quiser gritar e me denunciar, meu nome é Salt - disse a ela.
Ela pareceu ficar aborrecida.
- Não sou do FBI - respondeu ela. Ajoelhou-se e tirou uma daquelas pastas vermelhas que eu queria e me entregou.
- Está um pouco velha - disse - logo só vou cobrar cinqüenta centavos.
- Você é muito boazinha - disse a ela. Enfiei a mão na bolsa de compras e lhe dei uma nota, que por acaso era de
20 dólares. - Fique com o troco - disse.
- Não estou acostumada a aceitar dinheiro de gangsters
- replicou ela. Foi até a caixa registradora e me trouxe os 19 dólares e 50 centavos. - Você não quer limpar o rosto? - perguntou-me.
- Não, benzinho - repliquei. - Nós desordeiros não nos sentimos bem a não ser sangrando até a morte.
Ela observou enquanto eu tirava o dinheiro da bolsa e o guardava na pasta. Guardei-o todo, contando ligeiramente
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enquanto o fazia. Com o que estava no meu cinturão de dinheiro, eu tinha a quantia que Ears e Alice me tinham tirado e um pouco para gastar.
- Venha até aqui - disse a moça, caminhando na direção da caverna de morcegos.
Pus o dinheiro debaixo do braço e a segui, principalmente para ver se ela não tirava uma arma da mesa do chefe nem fazia alguma chamada para a polícia. Em vez disso,
ela abriu a porta para um lavabo, acendeu a luz e começou a molhar toalhas de papel na água quente.
- Sente-se - disse ela. - E tire essa camisa. Está horrível.
Fiz o que ela me disse; era mais fácil do que discutir. Ela limpou o sangue, começando por onde ele escorrera pelo meu peito e terminando em volta do nariz, onde
a toalha de papel me deu a impressão de ser um bastão de beisebol.
- Calma - falei. - Acho que está quebrado.
- Vocês criminosos não têm médicos duvidosos para extrair balas e repor ossos no lugar? - perguntou.
- Garota, eu sou Salt e não James Cagney - disse. - Meu nariz vai ficar bom sem nenhum médico. Talvez um pouco defeituoso, mas e daí? - Ela terminou o serviço com
toalhas frias, o que me fez sentir melhor. - Qual é o seu nome, garota? - perguntei.
- Não me chame de garota - replicou. - Beatrice. O seu é só Salt? Não tem outro nome?
- Nenhum que eu goste - disse. - Deixa eu me vestir, Bea. Tenho que me mandar.
- Que número de camisa você usa, Salt? - perguntou.
- Quarenta e quatro - disse eu. - Você vai me fazer uma suéter para o Natal?
- Talvez - disse ela e sorriu. - Por ora, você precisa de uma camisa limpa. Se sair na rua parecendo um perdedor de uma briga de galo, vai ser apanhado antes de
chegar ao fim do quarteirão. Espere aqui.
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Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Bea saíra correndo pela porta dos fundos. Levantei-me depressa, lavei o grosso do sangue da camisa e vesti-a. A camisa parecia
ter sido usada para embrulhar fígado, então deixei-a secar no corpo. Apanhei a pasta cheia de dinheiro e estava do lado de fora da porta da frente quando Bea saiu
de uma loja masculina a três portas dali.
- Salt! - gritou, como se quisesse acordar o Departamento de Polícia. - Aqui está sua camisa limpa!
Então, tornei a entrar na maldita loja, me perguntando de que adiantava ter saído da prisão se ia ser pajeado por garotas em vez de guardas. Tirei minha camiseta
molhada.
- Você não conseguiu outra dessas, conseguiu? - perguntei.
- Nos filmes, os criminosos não usam camisetas - disse Bea.
- Ainda bem que você não me tomou por um duque inglês - retruquei, abotoando minha camisa nova. - Ia detestar sair daqui de cartola e casaca. - Dei um dinheiro a
ela. - Pela camisa - disse.
- É presente de Natal, no caso de eu não conseguir lã para sua suéter - disse ela. - Aonde você vai agora?
- Para longe de você - disse eu.
- Por que, Salt? Se a polícia está procurando um homem sozinho, não vai procurar um homem caminhando com uma moça. Não é sensato? - Antes que eu pudesse responder,
ela tirou o guarda-pó, pôs um casaco e segurou meu braço. Peguei o dinheiro e acompanhei-a para fora da loja. - Está quase na hora de fechar, de qualquer maneira
- disse ela, fechando a loja.
-' Bea, você pode pegar cinco anos por isso - disse eu, arrancando meu braço do dela. - Se você for comigo, isso a torna uma assaltante de banco.
- Não sei nada sobre bancos - disse Bea. - Apenas aceitei seu convite para jantar. Obrigada, Salt. É, vou jantar com você.
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Suspirei.
- Se formos detidos - disse eu - você diz que eu a estava ameaçando com o revólver.
- Não seja bobo - retrucou Bea. - Você está a salvo comigo.
Pedimos uma pizza num pequeno restaurante italiano que não parecia ser freqüentado pelo delegado de polícia. Pedimos uma jarra daquele vinho que vem numa cesta,
o que me ajudou com o nariz quebrado. E a pizza quase me fez esquecer que Ears e Alice tinham-me jogado às feras há uma hora, deixando-me talvez sangrar até morrer
enquanto fugiam.
- Para onde vamos daqui? - perguntou Bea, quando o prato de pizza estava vazio.
- Pra casa - respondi. -- Você pra sua, eu pra minha.
- A minha é um apartamento de solteira - disse ela - pode esperar.
- Obrigado pela companhia - falei. Joguei uma nota de
10 dólares na mesa e me levantei.
- Sente-se, Salt - disse Bea, com uma voz carinhosa. Eu me sentei, um tanto cansado de qualquer maneira, com o vinho e tudo mais. - Você está fugindo, não está?
- Quer tirar minhas impressões digitais? - perguntei-lhe, estendendo as mãos.
- Deixe de ironias -. disse ela. - Salt, você precisa de mim para ir com você, para camuflar. Você pensa como um bandido em fuga, eu penso como uma turista.
Chamei a garçonete e paguei a conta, pedindo uma cerveja e um charuto para me ajudar a pensar.
- Você não é do tipo de garota - eu disse - que ia se prender a um sujeito como eu só por curtição.
Bea corou ligeiramente e bebeu um gole do vinho para se acalmar de novo.
- Não me interprete mal, Salt - disse ela. - O relacionamento que proponho é estritamente platônico.
- Quer dizer que vou ser um irmão para você? - perguntei, rindo para ela.
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- Certo - replicou Bea. - Vamos viajar como irmão e irmã. É uma boa.
- Ainda não estou conseguindo entender o seu ângulo - falei.
- Salt, tenho vinte e seis anos - afirmou Bea. - Em toda a minha vida, a única coisa excitante que me aconteceu foi quando eu tinha seis anos. Meu pai me levou
até um pátio de manobras e me deixou ficar numa cabine de locomotiva.
- Um programão mesmo - comentei.
- Sabe como me sinto, Salt? - perguntou. - Sinto-me como se estivesse do lado de fora da vida, olhando. Estou na periferia.
- Você está louca - disse eu.
- Eu posso escolher - disse ela. - Vou com você. Aonde nós vamos?
- Uns amigos meus curtiram demais o México - repliquei. - Eu tinha vontade de conhecer o lugar. Está bom pra você?
- Ótimo - disse Bea, apanhando a bolsa e levantando-a. Vamos, maninho. Temos coisas a fazer.
Chegamos ao México tipo A Volta ao Mundo em 30 Dias, usando de tudo a não ser trenó. Foi idéia de Bea, para tornar nosso caminho difícil de ser seguido. Fomos até
St. Louis num carro usado que comprei. Lá vendi o carro pelo preço de duas passagens de avião até Dallas, Texas. Então tomamos um trem até San Antônio, onde tomamos
uma cerveja e fiz Bea trocar todo o meu dinheiro em cheques de viagem com o nome dela. No caso de eu ser detido e levado de volta à Prisão de Statesville. Eu queria
uma amiga do lado de fora com dinheiro suficiente para pagar meu advogado: uma amiga que me amasse como uma irmã.
Bea conseguiu certidões de nascimento para que cruzássemos a fronteira e tomamos o ônibus até Nuevo Laredo, no México. Aquele Rio Grande foi o riacho mais miserável
que já vi, mas a mim pareceu mais bonito que o Mississippi em St. Louis.
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Especialmente com Bea enroscada em meu braço, como se aquele fosse o lugar onde ela desejasse estar.
Saltamos do ônibus e demos uma olhada por lá. Até os anúncios da Coca-Cola eram em língua estrangeira. Achei um táxi e disse ao motorista que queríamos um quarto
por um ou dois dias num lugar que não chamasse muita atenção. Ele riu, logo interpretando mal o meu relacionamento com Bea. Disse que seria difícil achar um quarto
em Nuevo Laredo naquele momento, pois a força aérea acabara de receber pagamento e andava por lá para assistir às touradas e outras coisas; mas ele tentaria. Paramos
num hotelzinho simpático, que parecia ter sido um reduto de Pancho Villa, chamado Veracruz.
Tentei explicar ao garoto da recepção do Veracruz que eu e Bea éramos irmãos, mas ele só tinha um quarto, disse. E qual era o problema, senor, já que éramos da mesma
família? Não falava um inglês claro o bastante, de forma que conseguíssemos entendê-lo sem pensar por algum tempo sobre tudo o que dizia. Por fim, ficamos com o
quarto, eu renovando meu pacto de não-agressão com Bea, para que ela se sentisse segura e como irmã. Então, saímos para conhecer o México.
Foi quando cometi um erro embaraçoso. Disse ao motorista de táxi que queríamos ver um lugar tipicamente mexicano e ele nos levou ao que parecia um bar, com um grande
letreiro de néon acima que dizia Casa de Maria, com vitrola automática e tudo mais. Num minuto percebi que não era lugar para uma irmã. Ia levar Bea para o hotel
imediatamente, mas ela disse que estava tudo bem. E a dama do lugar, que falava inglês, disse que não via por que não podíamos tomar uma cerveja, de qualquer maneira.
Então, concordei.
Bea sentou-se, tomando cerveja como se estivesse no Top of the Rock de Chicago, sem olhares nem perguntas embaraçosas, nem coisa alguma. Percebi então que Bea era
uma dama, se não me dera conta disso antes. Fiquei de olho nela, não que alguém pudesse confundi-la com alguma pessoa da casa, mas apenas porque alguns dos soldados
que entravam, passando pelo guarda da porta, estavam bêbados e talvez não percebessem que Bea era uma turista.
Bem, a dama que falava inglês sentou-se em nossa mesa e nos disse que era Maria; e aí dissemos nossos nomes. Pus algumas moedas na maquineta e dancei com Bea. Depois,
pagamos uma cerveja para todas as pessoas do bar, a fim de celebrar a estada no México. Maria nos disse que devíamos tomar tequila, já que estávamos ao sul da fronteira.
Ela trouxe algumas fatias de limão e uma terrina de sal e nos mostrou a maneira certa de beber. Não me lembro exatamente de como se faz; dá-se uma lambida no sal
e uma mordida no limão, ou o limão depois, não me lembro bem. Mas o que importa é que se beba tequila. Quando disse a Maria que Bea era minha irmã, ela simplesmente
riu e eu e Bea a acompanhamos. Pagamos tequila para todos e dissemos que precisávamos ir. Maria pediu ao guarda que chamasse um táxi para nós e voltamos ao Veracruz.
Nunca liguei muito para homens que se desculpam pelo que fizeram alegando que estavam bêbados ao fazê-lo; então, acho que não tenho desculpa
pelo que aconteceu naquela noite. Talvez eu pudesse pôr a culpa no fato de ter estado 48 meses preso, mas isso também não justifica. Nem o aroma das noites no México,
cheias de tempero como
um bolo de Natal - e as pessoas rindo e chamando-se umas às outras nas casas em volta. Mas realmente não tenho mais desculpas que um
motorista bêbado.
Bea estava sentada na ponta da cama ao meu lado, passando os dedos por onde o meu bigode começava a crescer. Aquele bigode foi idéia dela, para me fazer parecer
diferente. De qualquer maneira, ela dizia que eu parecia Marlon Brando em Viva Zapata, um filme que nunca passaram na prisão, quando me levantei e a beijei. Se ela
não tivesse retribuído meu beijo, eu teria dormido no chão, como planejara, mas ela retribuiu. Antes que eu tivesse tempo de mostrar a ela que estava cometendo um
terrível erro, eu a ajudava a cometê-lo.
129
Bea dormiu com um sorriso no rosto, parecendo um anjo de cabelos cortados, o que não me deixou mais à vontade. Levantei-me quando as galinhas começaram a cacarejar
e comecei a me barbear, feliz por não ter uma navalha. Podia ter cortado a garganta por ser tão canalha. Estava olhando para o meu bigode de dois dias no espelho,
prestes a raspá-lo como se ele fosse responsável pelo que acontecera, quando Bea acordou e falou comigo.
- Bom dia, querido - disse ela, espreguiçando-se na cama como uma gatinha.
- Vou me casar com você, Bea - disse eu imediatamente.
Ela riu e se levantou para ir até a pia e me abraçar, o que só fez com que me sentisse pior ainda.
- Para um graduado do reformatório, Salty, você é terrivelmente ingênuo - disse ela. - Quer saber de uma coisa? Em toda a noite passada no bordel só tomei um copo
de tequila. Estava sóbria como um juiz, Salty. Se alguém tirou vantagem de alguém, fui eu. Estou apaixonada por você desde que entrou na loja, como um garotinho
que acabou de perder uma briga, e começou a ser rude comigo. Não vim nessa viagem só por prazer, vim porque desde aquele primeiro instante tive vontade de ficar
perto de você.
Isso para mim foi maravilhoso, já que eu me sentia da mesma forma a respeito dela, embora não exatamente a partir do primeiro minuto que a vi. Pensei em Alice, minha
primeira mulher, e como ela vivera com Ears todo o tempo em que passei na prisão e o ajudara a gastar o meu dinheiro. Isso a fazia esposa de Ears, pela lei, e não
minha.
- Quero me casar com você, Bea - repeti. Eu lhe falei sobre Alice e tudo o mais. E ela disse que ia considerar minha proposta, se eu não me importasse de me modificar.
Fomos tomar café ao meio-dia.
Eu e Bea nos casamos na Cidade do México, que os mexicanos chamam de o Centro do Mundo. Tive que dar ao juiz meu verdadeiro nome, para tornar o casamento legal.
Bea sempre
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me chamava de Horatio depois disso, quando queria me irritar.
Eles não deixam os americanos trabalharem no México, mas nos deixam freqüentar a escola. Então, consegui um emprego numa garagem, sem ganhar nada, e o homem me ensinou
a consertar carros. Aprendi tudo sobre motores e carrocerias em espanhol, o que tornava a aprendizagem bem difícil; mas achei que enquanto houver motoristas de fim
de semana nos Estados Unidos, os mecânicos vão ter trabalho.
O que eu queria era voltar para casa com Bea. Não pertencíamos ao Centro do Mundo. Pertencíamos a algum lugar na ponta, nos arredores de Illinois ou Indiana. Eu
queria que morássemos numa casinha como gente normal, com crianças e contas a pagar, e que eu fosse para o trabalho todos os dias, para variar. Se não conseguisse
emprego como mecânico, estava pronto a fritar hamburgers, lavar carros ou mesmo ser um policial, se me deixassem - qualquer tipo de trabalho honesto que me permitisse
ser honesto e ficar com Bea pelo resto da vida. Tínhamos dinheiro para torrar, mas não podíamos fazer essas coisas que eu queria. Não podíamos voltar para casa.
E então Bea me disse que estava grávida.
Para celebrar a novidade, levei Bea a um lugar chamado El Taquito. É simplesmente o melhor restaurante da cidade, cheio de luzes, banderillas e monteras e até algumas
orelhas de touro. Não gosto muito de touradas, mas Bea gosta; e como amo Bea, então tolero touradas.
Quando tínhamos acabado de comer e íamos beber a segunda garrafa de vinho, peguei a mão de Bea:
- Vamos voltar pra casa - disse a ela.
- Gosto de ouvir isso, Salty - disse alguém atrás de minha orelha esquerda.
Dei um pulo, pronto para apanhar um estoque e sair do lugar duelando com Bea nos braços, como numa cena de Os Três Mosqueteiros. Mas era Ears. Ao lado dele, de óculos
e com uma câmera pendurada no pescoço, de shorts e uma blusa, como um pôr-do-sol, estava Alice.
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- Importa-se se a gente se sentar e conversar com você e a dama, Salty? - perguntou Ears, puxando uma cadeira para Alice.
Alice sentou-se e olhou em volta, como se quisesse saber se havia luz suficiente das velas para tirar fotografias.
- Lugarzinho de classe, não é? - perguntou. - Eu e Ears viemos aqui da primeira vez, então achamos que a gente devia dar uma olhada pra ver se o restante existia.
- Bea - falei - ele é Ears, de quem lhe falei. E esia é Alice. Alice, apresento-lhe Bea Salt.
- Salt? - berrou Alice, como se estivesse vendendo jornais. Uma coisa em Alice não mudara, sua voz. - Quem é ela, Salty? Sua irmã? Nunca soube que você tinha uma
irmã.
- Sou mulher dele, Alice - respondeu Bea.
Alice simplesmente levantou-se e berrou comigo, até eu e Ears lhe darmos um golpe de judô e a empurrarmos de volta à cadeira. O maitre apareceu e perguntou se a
senhora (referindo-se à Alice) tinha alguma reclamação a fazer sobre o serviço. Eu disse que não, ela não tinha. Ele se afastou, mas ficou nos observando da porta,
no caso de Alice recomeçar e ter que ser posta para fora. Apanhei uma das banderíllas da decoração, um pau com um prego preso, como se usa para apanhar papel no
Grant Park, só que mais enfeitado; fiquei com o mesmo pronto para bater na cabeça de Alice se ela começasse a estrebuchar novamente.
- Você está legal, Alice? - perguntou-lhe Ears.
- Ótima - disse Alice. - Fui chutada da sela, portanto é claro que estou ótima.
- Você está com uma cara boa, Salty - disse Ears.
- Mentira e você vai pró inferno - disse Alice. - Ele está tão feio como sempre. - Ela chamou um garçom e um apareceu, dando a impressão de querer estar com um pelotão
junto consigo. - Traga meio litro de scotch - disse Alice. - Nós temos que comemorar um casamento.
- Como vocês fizeram essa viagem? - perguntei a Ears.
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- Alice disse que a gente devia assaltar umas duas casas de câmbio - disse ele. - Deu certo, mas um dia vi meu retrato no Tribune e achei que era hora de arrumar
a trouxa e sumir.
- Eu nunca agradeci a vocês, sócios, pela maneira como vocês me safaram - disse eu, decidindo chegar aonde desejava.
- Acho que a gente não é bem-vinda aqui, Ears - disse Alice, começando a se levantar. Mas ela viu o garçom vindo em direção à mesa com uma garrafa e uma jarra de
gelo e resolveu ficar um pouco.
Então, Bea decidiu cortar a conversa.
- É melhor a gente ir andando, Salt - disse ela. - Estou começando a ficar com dor de cabeça.
- Você se casou com uma dor de cabeça - disse Alice. - É engraçado como essa mesma dor de cabeça dá pra nós duas. O que o seu marido está fazendo agora,
Bea? Ainda assinando cheques falsos?
- Salt é mecânico - disse Bea, dando a impressão de que gostaria de ter um chicote para usar em Alice.
- Mecânico! - disse Alice. - Mas como o poderoso está decadente! Um dia ele é o Napoleão do Crime, no outro remexe no carburador de um Ford. - Ela arrastou
a cadeira para trás. - Se as damas e os cavalheiros me dão licença, tenho que empoar o nariz.
Alice pegou a bolsa e foi para o toalete de senhoras. Até hoje não sei como ela fez isso, mas voltou para nossa mesa com o nariz empoado e um policial mexicano de
cada lado.
- Senor Salt - disse um dos guardas - esta senhora fez uma séria acusação contra o senhor. Peço-lhe que nos acompanhe até a delegacia. - Isto foi em espanhol que
compreendi o bastante para conseguir ler: O FIM.
- Não diga nada até eu conseguir um advogado - me disse Bea calmamente.
O mesmo policial assentiu com a cabeça.
- Madame, eu sou bilíngüe - disse ele, em inglês. - O seu conselho é excelente. Senor Salt, vamos?
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Alice olhou para mim feliz da vida, como se eu fosse uma mosca que ela tivesse acabado de esmagar.
- Obrigado, Alice - disse eu, sarcástico. Olhei em volta, procurando Ears, para agradecer a ele também; mas ele estava longe, ainda correndo.
A prisão da Cidade do México é a melhor em que já estive, mas é prisão. Prisão novamente, com Bea esperando um bebê e eu trancafiado por ter passado uma existência
tirando mossas de pára-lamas e ajustando rodas. Um par de policiais de Chicago veio para me levar e voamos para o norte.
A promotoria de Chicago me recebeu como resposta às preces de um promotor. Eles iam-me usar como bode expiatório para todos os crimes sem solução do Condado de Cook,
desde o golpe de Great Fire. Como Bea me disse, fiquei de boca calada e só falei com o advogado que ela escolheu para mim, sujeito que parecia já ter capacidade
para assumir seu próprio plano de ação.
Suei durante um mês na velha prisão do Condado, enquanto o estado se preparava para me condenar por roubar um banco.
Rapaz, como me senti perdido quando voltei para aquele tribunal! E despido, também, já que a primeira coisa que o promotor me mandou fazer foi raspar o bigode de
Zapata. Então, chamou o caixa do banco para depor, o sujeito que enchera nossa sacola de compras, e perguntou se ele via alguém na sala que se parecesse com um dos
assaltantes de banco que usara nitroglicerina. Eu vi Alice, na audiência, escondendo o rosto atrás de um jornal como se estivesse lendo os classificados. O caixa
me encarou, mas como se eu fosse um estranho. Acho que foi por causa do calombo no nariz, onde ele quebrara. Meu perfil estava diferente. Ele não me reconheceu.
Meu jovem advogado falou um pouco sobre provas puramente circunstanciais e o júri decidiu que outra pessoa devia ter levado aquela nitroglicerina para o banco e
carregado o dinheiro.
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Meu advogado apertou minha mão e eu estava prestes a sair para a rua com a multidão quando o guarda agarrou meu braço e pôs uma algema nele. O Condado de
Cook, pelo visto, estava apenas começando comigo.
Meu novo julgamento foi baseado na acusação de arrombar a loja de máquinas de escrever. Tudo o que a promotoria tinha como evidência era eu ter assinado aqueles
12 cheques com o nome de T. S. Woodward, o diretor da prisão de Statesville - eo fato de que aqueles cheques tinham vindo da loja. Meu advogado - ele freqüentou
a escola no Noroeste, é só o que posso dizer sobre ele, pois diz que não seria ético saber mais
- apresentou 20 cheques falsos feitos por pessoas diferentes, todos
com o nome de Warden Woodward, e misturou com um dos meus. O especialista em grafologia não pegou o cheque certo, então o júri disse que eu era inocente. Isso foi
ótimo para mim.
Calculei que ia ser acusado de falsificação no próximo julgamento, mas o promotor deve ter achado que não teria nenhuma chance, uma vez que eu tinha um advogado
tão esperto assim. Bea deve ter gasto vários dos nossos cheques de viagem para pagá-lo. Assim, o meu próximo julgamento não teve nada a ver com falsificação.
A velha Alice subiu no banco onde as testemunhas depõem, me chamou de monstro, chorou muito e disse a todo mundo como esperara por mim nos anos em que fiquei preso
e mentiras assim. Então, o júri decidiu que talvez eu fosse um monstro, afinal de contas.
- Apesar de sua interpretação ingênua da lei com respeito a casamento duplo - disse o juiz - a bigamia é, de acordo com os estatutos deste estado, um crime. - Eu
só consegui ver o chapéu velho e preto do bom juiz em cima da cabeça. - Contudo, visto que o réu parece considerar seu segundo casamento como concebido no céu, e
seu advogado nos assegura que ele pretende terminar sua carreira de poligamia nos braços da Esposa Dois, não podemos em consciência tratá-lo como uma ameaça em potencial
às jovens casadouras do
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Illinois. Conseqüentemente, Horatio Salt, nós o condenamos a uma pena na prisão do Condado de não menos que três e não mais que seis meses. - Bang! Bang!, ele bateu
com o martelo. - Está suspensa a sessão!
Alice divorciou-se de mim, dizendo que a magoei profundamente, e está vivendo com Ears em algum lugar do Oeste, onde a manhã chega mais tarde. Bea e eu nos casaremos
assim que eu sair, fazendo tudo novamente a fim de nos certificarmos que o nome do bebê seja Salt. Ela diz que quer chamá-lo de Júnior e juro sobre o meu cadáver
que sim. Um Horatio numa família é o bastante.
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James Cross
MILIONÁRIO POR CINCO MINUTOS
- O vício é um monstro de cara tão feia - citou o velho Sr. Rawlinson - que para ser odiado só precisa ser visto.
Tommy Russell olhou fixamente para suas unhas feitas que revelavam a existência de uma fina camada de esmalte. Os olhos do homem mais velho eram de um azul úmido,
raiados de branco e da vermelhidão de veias. Eram lacrimejantes e vagavam de um lado para outro. Russell preferia não olhar para eles. Quando ele olhava muito tempo,
descobriu, as pupilas pareciam escurecer e absorver luz e por um momento ele tinha a sensação de estar olhando para algo profundo e azul-escuro como o Atlântico
Norte.
- Mas, quando visto com freqüência, familiarizados com seu rosto - continuou o velho Rawlinson enquanto Tommy Russell cerrava os dentes e esperava que a voz
alta e desafinada parasse - primeiro toleramos, depois lastimamos e finalmente o acolhemos.
Russell ficou sentado em silêncio, esperando a essência do sermão, para o qual esta citação trêmula era apenas o começo. Quantos anos mais devo sofrer?, pensou.
- Estou falando de você, Thomas - disse o velho depois de uma pausa interminável - de sua conduta, de seus amigos, de seu modo de vida. Seu pai me fez
testamenteiro de
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seus bens. Ele foi bem claro a este respeito. Falamos sobre isso antes mesmo de o testamento ser redigido. Você tem uma renda muito razoável. Eram dez mil dólares
por ano quando o testamento foi feito e agora é quase o dobro. Mas no capital você não pode tocar, nem na renda adicional, enquanto eu não achar que você esteja
em condições de geri-lo. E até agora, Thomas, você não me deu nenhuma razão para achar que adquiriu sabedoria ou sensatez.
Russel sentiu a veia grande da testa pulsar incontrolavelmente. Por um momento, teve vontade de pular por cima da escrivaninha limpa e reluzente e agarrar o pescoço
fino e cheio de veias, apertando-o até o pomo-de-adão proeminente ficar esmagado sob suas mãos. Mas então a área fria e enrustida de seu cérebro assumiu o controle
e ele se deu conta de que o velho não podia viver para sempre e que, quando morresse, a fortuna seria toda de Tommy Russell, todos os cinco milhões.
- Lamento que o senhor pense assim, Tio Fred - disse ele afavelmente. - Eu acho que, mesmo pelos seus padrões, eu melhorei bastante.
- Tolice - respondeu o tio. - Não vi nada de melhoras. Você não vai receber o capital para dilapidar, não enquanto não tiver trinta e cinco anos; e isso é daqui
a quase sete anos; nem enquanto eu não morrer e você puder achar um testamenteiro mais tolerante. Embora você me ache um homem velho, tenho apenas sessenta anos
e ainda pretendo viver muitos anos.
- Não estou pedindo tudo - disse Russell. - Deixo isso por sua conta, mas estou um pouco apertado.
- Se você não consegue viver com uma renda de dez mil dólares por ano, é porque tem tempo demais para gastar dinheiro. Por que não arranja um emprego? Isso lhe
daria um salário decente e menos tempo para gastar a renda que tem.
- Acho difícil me imaginar trabalhando quarenta horas por semana em alguma coisa - replicou Russell. Ele percebeu o erro assim que falou, mas era tarde demais.
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- Receio que você tenha de arranjar um emprego ou modificar seu padrão de vida - retorquiu o tio secamente. - De qualquer maneira, sua renda vai continuar sendo
dez mil. Talvez isso o estimule a aceitar uma ou outra opção.
- Eu devo mais do que isso - disse Russel, lenta e cautelosamente.
- Se suas dívidas forem protestadas, você pode fazer um acordo com os credores ou ir à falência. Se, como desconfio, forem dívidas de jogo, devo lembrá-lo de
que na maioria dos estados tais dívidas não são cobráveis.
- Talvez não haja nenhuma maneira legal de cobrá-las, mas eles podem me arrancar os dentes numa esquina, ou, se ficarem muito descontentes, me jogar no East River
com um bloco de cimento amarrado nos pés.
- Eu ficaria muito triste se isso acontecesse, meu filho, particularmente porque então eu ficaria com os bens que seu pai deixou. No entanto, não tenciono pagar
suas dívidas de jogo.
Tommy Russell já vinha pensando no assunto até então, mas só agora percebera duas coisas: que seu tio gostaria de vê-lo morto e que não se sentia velho demais aos
60 anos para desfrutar da fortuna de Russell em seus últimos anos de vida; e que ele, Tommy Russell, ia assassinar o tio na primeira oportunidade que tivesse.
Assim que o tio morresse, o próximo encarregado dos bens seria um banco, que só ficaria feliz em agradar a um cliente de conta tão alta e liberar os bens imediatamente.
O assassinato era puramente uma questão de rapidez e segurança.
Por um momento, Tommy pensou na possibilidade do simples estrangulamento com sua echarpe de seda, ali mesmo naquele instante. A vontade de ver os olhos azuis úmidos
pulando das órbitas no rosto vermelho e moreno era atraente, mas ele a descartou imediatamente. Várias pessoas, desde o porteiro até o ascensorista, o tinham visto
chegar na suíte que o tio possuía em seu clube. Qualquer incidente ali o denunciaria rapidamente.
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Nas semanas que se seguiram, Tommy viveu frugalmente de sua renda e estudou os hábitos do tio em detalhes. No fim de dois meses sentia-se derrotado. Solteirão tipicamente
auto-suficiente, seu tio ficava resguardado do mundo 24 horas por dia: café da manhã no clube; uma visita ao corretor de imóveis, de táxi; almoço com um amigo; volta
ao clube para a sesta; coquetéis no clube ou fora com outros amigos; jantar no clube ou, como um solteirão rico e virtualmente qualificado, fazendo as vezes de homem
só num jantar entre amigos; ou uma ida ao teatro, novamente em grupo; e finalmente o retorno ao clube. Nunca ficava sozinho e a todo momento havia algum empregado
à vista ou testemunhas a evitar. O velho Rawlinson era o tipo do homem a salvo de uma morte violenta. Não dirigia. Em Nova York tomava táxis; em suas raras visitas
de fim de semana, tomava trens. Tinha um peso e uma constituição saudáveis para a idade; seu temperamento era sereno e controlado; seus quatro avós tinham vivido
até os 90; era moderado e abstêmio.
No fim de dois meses de cuidadosas investigações e planejamentos, Russell concluiu que o tio, entregue a causas naturais, possivelmente viveria mais do que ele e
que, pior ainda, era quase impossível matá-lo impunemente.
Uma noite ele se abriu com a amante do momento, quando estava no sexto conhaque. Phyllis ouviu tudo atentamente. Formara-se em psicologia e orgulhava-se de compreender
o comportamento e a motivação do homem. Não ficou chocada; a decisão de matar o tio tomada por Russell parecia lógica e econômica. O que a incomodava era sua incapacidade
de chegar ao ângulo da questão.
- Do jeito que ele vive - disse ela - não dá para se fazer.
- Então é melhor eu me acostumar a viver como um funcionariozinho qualquer nos próximos sete anos. Isso lhe agrada?
- Eu não disse que não se pode fazer. Só disse que você tem que mudar o modo de vida dele, quebrar sua rotina.
- Ele a mantém há trinta anos. O que devo fazer? Convidá-lo para uma caçada que ele nunca pensaria em fazer e
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então provocar um acidente? Afogá-lo numa canoa? Ele não chega perto da água em nada menor que um navio de cinqüenta mil toneladas.
- Que tal golfe? Empurrá-lo de costas num ferro Número
3 quando ele estiver em cima do montinho com você?
- Uma vez ele me disse que seu único esporte era carregar os caixões dos amigos que praticavam esportes.
- Bem, então a única maneira é mudar o ambiente dele e a melhor maneira de fazer isso é fazê-lo se casar.
- Ele tem sessenta anos e não liga para isso há muito tempo, com uma longa série de debutantes, pós-debutantes, divorciadas e viúvas se oferecendo a ele. Ele é imune.
- Uma mulher esperta conseguiria.
- Quem, por exemplo?
- Eu.
Russell parou por um momento para pensar.
- Sabe - disse ele lentamente - acho que você conseguiria. Você é jovem, sem ser jovem demais. É esperta, mas esperta demais para
conseguir representar praticamente todos os papéis que quiser. Acho que você é capaz.
-- Eu sei que sou e posso conseguir isso em três meses. Conheço esse tipo de solteirão velho.
- Você podia fazê-lo sair do clube e ir morar no interior, longe de tudo. E lá tudo pode acontecer. Benzinho, eu acho que você resolveu a questão.
- Só uma coisa - acrescentou ela. - Qual é o pagamento para os patos que servem de chamariz?
- Você se tornaria uma viúva rica. Creio que o velho vai deixar uns cinqüenta mil dólares. A maior parte do dinheiro dele está legada, vai pra Harvard quando morrer.
- Você já tentou viver com a renda de cinqüenta mil dólares? Só dá para comprar champanha. E você? Quanto você vai ganhar? Não tente me enganar; eu posso descobrir.
- Cerca de cinco milhões. O que você quer?
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- Quero que se case com a viúva. Você é mesquinho, mas já me acostumei e é divertido. Creio que a gente podia viver numa boa.
- Nós teríamos que esperar um pouco; não ia ser seguro.
- Sei disso. Só quero a sua promessa. Diga-me que vai se casar comigo depois que ele estiver morto e eu acredito. E lembre-se - continuou - nós íamos estar juntos
nisso. Seria a coisa mais inteligente para nós dois; e a mais segura.
- Benzinho, seria um prazer. Fisgue o velho, que eu arranjo tudo. Se você quer a minha promessa, pode ficar tranqüila.
Ele esticou a mão, puxando o queixo de Phyllis para beijála, pensando em como os anos de psicologia haviam-lhe ensinado pouco, se acreditava que um homem valendo
cinco milhões se casaria com ela.
- Benzinho - disse ele - vamos fazer isso depressa. Não quero esperar por você.
Quando aconteceu foi quase tão rápido quanto ela predisse. Russell levou Phyllis consigo propositalmente ao Central Park, onde o tio fazia freqüentemente o que chamava
de "caminhada saudável". No terceiro dia eles se conheceram. Foi uma questão de minutos para Russell levá-los para almoçar, a fim de comemorar com champanha um emprego
em vista, pagar a conta e deixar o velho Rawlinson com Phyllis enquanto ia para um encontro inexistente relativo ao emprego que descrevera. Durante o café e o conhaque,
Phyllis e Rawlinson tornaram-se amigos. Pela primeira vez na vida Rawlinson conheceu uma mulher que parecia atraente e inteligente e sem intenções matrimoniais.
Em uma semana ele a estava levando ao teatro e falando-lhe sobre suas teorias de arte dramática; falando-lhe sobre a arte helênica no Metropolitan. Em duas semanas
estava no apartamento dela para tomar um drinque. Em três semanas estava convencido de tê-la seduzido e que, como um homem honrado, devia casar-se. E, mais importante,
que gostara da sensação e tinha
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vontade de senti-la novamente. Phyllis lhe deu uma semana de remorso. Fora levada por sua experiência e sofisticação, disse a ele, mas não seria correto repetir
a experiência.
Não seria justo, Fred - disse-lhe ela, cheia de escrúpulo Naquela vez que me deixei levar foi uma coisa, mas se a
coisa se tornar normal, no que vou me tornar?
Um misto de inocência e cautela deve ter mostrado a Tio Fred o rumo da conversa, pois ele mudou de assunto, levou-a para casa cedo e não telefonou durante 10 dias.
Mas no final deste prazo descobriu que os prazeres inofensivos de sua vida anterior tinham-se tornado intensamente entediantes: o jogo de bridge tornou-se sem nexo
e sem atrativos; o teatro fazia-o dormir; ficava irritado com a conversa dos companherios de jantar; as transações da vida no clube lembravam-lhe que não lhe restavam
muitos anos e assustavam-no com um presságio de um iento declínio à inevitável solidão.
No fim de duas semanas pediu a Phyllis que se casasse com ele. Um mês depois casaram-se tranqüilamente na sala de um juiz com quem ele às vezes jogava bilhar. Houve
duas testemunhas. Uma foi o sobrinho do juiz. A outra foi Tommy Russell.
Russell modificara-se pouco, pensou Tio Fred. Parecia estar mais sossegado e mais sério. Talvez fosse o emprego que arranjara vendendo ações por comissão. Eu certamente
lhe devo muito. Se não tivesse esbarrado com ele no parque, nunca teria conhecido Phyllis.
Perguntava-se se deveria fazer algo quanto a aumentar a pensão do rapaz, mas pôs a idéia de lado. Deixá-lo com pouco dinheiro parece ter sido um benefício para ele,
mas vamos ver se consegue permanecer assim. Depois de um ano, mais ou menos, volto a pensar no assunto. E depois, se achar que a mudança é permanente, talvez libere
seus bens.
São Dênis, diz a lenda, caminhou 10 quilômetros e meio por Paris, levando na mão a própria cabeça recém-decepada.
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- Os dez quilômetros não me impressionam - comentou uma vez Madame du Deffand a respeito da caminhada do santo. - É o primeiro passo que conta. - E assim se deu
com Tio Fred. Uma vez dado o primeiro passo impossível, o resto processou-se facilmente.
Tinham acabado de voltar da lua-de-mel na Europa quando se mudaram para uma velha casa de fazenda restaurada em Conncticut. Acabaram-se as visitas diárias aos corretores,
os jogos de bridge e os jantares. Tio Fred desistiu ata de seu título do clube. Os velhos amigos, a maioria dos quais considerava uma viagem ao interior equivalente
a um safári, raramente o viam e pouco a pouco foram-se afastando. Ele não sentiu saudades. Estava muito ocupado no jardim, construindo uma churrasqueira cheia de
detalhes e pela primeira vez desfrutando (pois sua saúde era notável para a idade) de um relacionamento que, como Shaw dizia, combina o máximo da tentação com o
máximo da oportunidade.
Quando Tommy Russell foi convidado para jantar, ficou assombrado com a aparência do tio: seu andar estava vigoroso. os olhos claros, a voz grave, a risada retumbava
desagradavelmente. Ele parecia um homem 15 anos mais jovem e pronto para viver mais um quarto de século.
Phyllis é que envelhecera, finha olheiras escuras sob os olhos. Estava com um esparadrapo num pulso que queimara
na cozinha. Duas unhas estavam quebradas, ele reparou com desagrado, e não as pintava mais. O cabelo estava apenas limpo c mal penteado. Ainda estava atenta o bastante
para ouvir Tio Fred com admiração, para n r de
suas piadas, para lhe dar palmadinhas com um ar de posse de vez em quando; mas Roseli reparou que quando a atenção de Tio Fred se desviava dela um minuto, ela relaxava
de bom grado, caindo numa espécie de estupor.
A idéia de se casar com ela agora, mesmo por cinco milhões de dólares, era algo pouco atraente.
Ficaram a sós apenas uma vez naquela noite e só por alguns minutos.
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- Não agüento mais isso, Tommy - disse ela. - Vamos ter que fazer a coisa rápido.
- Eu tinha esperanças que o velho se matasse ... de causas naturais, muito mais simples por aqui; mas ele parece um homem de quarenta e cinco anos.
- Isso está me matando. Não tenho ajuda nenhuma, exceto pela faxineira. Tive que aprender a cozinhar. Tenho que ajudá-lo no jardim. Não consigo achar uma cabeleireira.
- Ele parece estar feliz.
- Deve estar. Pensei que você tinha dito que ele era tímido com as mulheres. Trabalho o dia inteiro e depois não consigo ter uma noite de sono. Nós temos
que fazer alguma coisa. Mais um mês e eu acabo pegando um machado e matando-o aqui mesmo.
- Venha a Nova York esta quinta-feira, até o meu apartamento. Está tudo arranjado. A gente pode fazer as coisas bem rápido e...
Ele parou de falar quando Tio Fred desceu as escadas cantarolando desafinadamente. Russell foi ver a churrasqueira sob os holofotes do pátio, viu os locais do jardim
de ervas e da piscina em projeto. Foi embora assim que teve uma chance e voltou para Nova York de carro.
Phyllis descobriu que não era tão fácil planejar um dia em Nova York como Russell parecia acreditar. Quando Tio Fred mudou seu modo de vida, afastou-se de tudo completamente.
Ele próprio não ia à cidade desde que tinham se mudado para Connecticut e não via razão para a esposa ir. Ele 3 queria por perto para fazer o que necessitasse ou
o que desejasse. Rompera definitivamente com seu antigo modo de vid.i investira numa esposa e não via razão de não tirar o máximo proveito de seu investimento.
Teria que ser uma desculpa muito boa, sabia Phyllis, e foi no dia anterior que ela a arranjou. A princípio ele não compreendia por que ela queria tomar um trem e
atravessar tamanha distância para ver o médico. Havia um clínico geral muito bom, apesar de velho, na cidadezinha vizinha e um hospital em
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Danbury. Foi necessário dar muitas pistas para que Tio Fred descobrisse por si mesmo.
- Pai - disse ele - na minha idade! Eu nunca podia ter imaginado.
- Ainda não estou certa, querido. Por isso é que quero ver o Dr. McPherson. Eu me sinto melhor com um médico conhecido. E você ficará bem aqui. Millie vai estar
em casa e eu volto cedo.
- Talvez eu deva ir com você - disse ele, um tanto na dúvida.
- Não. Estarei bem sozinha. E você não precisa se preocupar com Millie na cozinha. Vou preparar um ensopado na véspera e você pode esquentar na hora de comer.
No rosto de Tio Fred, o alívio de não precisar fazer a viagem ficou em conflito por alguns segundos com o desprazer de ficar sozinho. Depois, as duas emoções se
apagaram pela simples vaidade da paternidade.
- Muito bem, minha querida.
No dia seguinte à viagem, Phyllis ficou cansada. Fora uma longa jornada. Tinha sido obrigada a marcar uma consulta com o Dr. McPherson, no caso do marido telefonar
para ele a fim de perguntar por ela. Tinha apenas alguns dias antes de os resultados negativos do exame de sangue saírem. O plano de Tommy Russell era simples e
bom, mas requeria estudo e pesquisa. Finalmente, ele teve que conversar com o agente de seguros local no final da tarde.
Como esperavam, o agente de seguros não apreciou muito as possibilidades de segurar os objetos de valor da casa. A história cuidadosamente ensaiada que ela lhe contou
o fez sacudir a cabeça com desagrado.
- Alguns milhares de dólares em dinheiro - disse ele - e suas jóias. Tudo guardado em gavetas. Não, realmente, Sra. Rawlinson, não creio que alguém se interesse
em segurá-los sob estas circunstâncias. Sra. Rawlinson - continuou ele
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seriamente - aquele dinheiro devia estar depositado numa conta bancária e as jóias guardadas num cofre. Do jeito que estão agola, vocês se arriscam a perder tudo
em caso
de incêndio, para não dizer de roubo.
- Meu marido não gosta de bancos. Discordo disso tanto quanto o senhor, mas ele é uma pessoa mais velha e perdeu algum dinheiro na falência de um banco durante a
Depressão. As vezes fico com muito medo quando penso em como moramos isolados.
Tommy Russell examinara o terreno cuidadosamente e à sua maneira negligente, quase espontânea, recolhera muitas informações sobre os habitantes do lugar. Phyllis
sabia, por intermédio dele, que o agente de seguros jogava pôquer com um grupo que incluía o chefe de polícia, um grande falador, e que sendo agente de seguros e
diretor do banco local ao mesmo tempo, o que mais detestava eram as pessoas que guardavam dinheiro e jóias em casa, ao invés de depositá-los. O jogo de pôquer seria
na noite seguinte, sexta-feira, e por volta de sábado à tarde todos na vizinhança saberiam que o simpático Sr. Rawlinson e sua jovem esposa guardavam dinheiro e
jóias, em grande quantidade sempre crescente (conforme dizia a história), em sua casa isolada, a alguns quilômetros da cidade. Agora os passos preliminares estavam
dados e o passo final planejado para sábado à noite. Tommy Russell levara algum tempo para aprimorar o plano, porém uma vez em ação seria rápido concluí-lo.
A noite de sábado estava quente, com uma brisa suave soprando do sul, mais para temperatura de julho do que de outubro. Mas não havia quase trânsito nas estradas
secundárias quando o carro emprestado de Tommy Russell - as placas de Nova Jersey ele roubara do estacionamento em Danbury, meia hora antes - chegou na entrada da
casa de Tio Fred com os faróis apagados e estacionou nos fundos da casa, onde ficaria escondido da estrada.
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No bolso Tommy tinha uma entrada de camarote de teatro para um espetáculo a que ele já assistira e que, calculava, agora estava ainda no fim do segundo ato. Podia
fazer tudo rapidamente e retornar a Nova York, mudando as placas no caminho, a tempo de entrar ern algum lugar onde fosse conhecido para um drinque após o teatro
e comentar sobre o espetáculo com alguns amigos ou com o barman.
Empurrou a porta dos fundos cuidadosamente. Phyllis lubrificara as dobradiças naquela tarde, descera para tomar um copo de leite após o marido ter trancado a casa
à noite e destrancara a porta. Russell estava usando as luvas de couro de porco baratas, que calçara desde que deixara Nova York e que destruiria tão logo voltasse.
Deixou a porta entreaberta, depois foi até uma janela dos fundos. Havia um pedaço de pano perto de um galpão baixo ao lado da casa e ao lado deste uma machadinha.
Ele enrolou a cabeça do machado no pano e bateu no vidro próximo à fechadura da janela, ouvindo-o cair no chão do lado de dentro. Abriu o fecho rapidamente e levantou
a janela. Depois, voltou até a porta e entrou.
Em cima, Fred estava adormecido, mas a esposa ouviu o sinal e mexeu no ombro dele.
- Acorde, tem alguém lá embaixo.
Fred ouviu a porta dos fundos abrindo-se e fechando-se suavemente com o vento, batendo na esquadria. Não ouviu mais nada.
- É a porta - disse ele, mal-humorado.
- Você deve ter esquecido de fechar. Por favor, vá fechar, não consigo dormir.
- Está bem, está bem.
Ainda não estava completamente desperto quando chegou embaixo, movendo-se sem dificuldades no luar brilhante. Virara-se para a sala de jantar na direção da cozinha
e dera dois passos quando Russell, que estava agachado atrás da escada, recuou um passo atrás dele e o atingiu na cabeça com o machado duas vezes, na segunda quando
ele estava caindo. Russell sentiu o crânio frágil quebrar-se sob os golpes. Por um
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momento, ficou nauseado e tonto. Respirou fundo, sentindo a calma voltar. Então, ficou ali esperando.
O resto do plano era simples. Phyllis ia descer, alarmada com a demora do marido. Seria golpeada por trás, sem ver o atacante, e amarrada. Russell ia saquear a casa,
levando todas as jóias que encontrasse e os 50 dólares que eram o que Tio Fred realmente possuía em casa. E assim se passariam as coisas. Mais tarde, Russell, como
único parente do velho, ajudaria com os preparativos do funeral, aliviando a viúva aterrorizada de tal responsabilidade. Phyllis venderia a casa e se mudaria novamente
para Nova York. Da maneira mais natural, Russell continuaria a zelar pelo seu bem-estar; e, num ano ou rnais, eles se casariam tranqüilamente, sem provocar surpresa
nem suspeitas.
Ele a ouviu descer as escadas, ouviu-a parar na metade e falar cautelosamente:
- Fred, onde está você?
Foi aí que Russell decidiu modificar o plano original. Não se casaria com esta mulher, o tipo de esposa, disse para si mesmo com raiva, que planejava o assassinato
do próprio marido. Ela ultimamente não se vestia bem, estava se tornando petulante, bebendo muito. Ele nunca estaria a salvo com ela. Um momento de raiva e ela podia
confessar tudo, disposta a se entregar, contanto que levasse Russell junto. E se ele não se casasse com ela, Phyllis poderia chantageá-lo o resto da vida. Por que
um assaltante iria matar apenas o marido, pensou, e poupar a esposa, amarrando-a cuidadosamente? Não era nem ao menos sensato; a polícia começaria a investigar.
Mas matar os dois seria tão arriscado quanto um e não ficariam fios soltos.
Levantou o machado ensangüentado quando ouviu Phyllis dizer novamente, como ele a instruíra:
- Fred, onde está você?
Então, ela desceu as escadas e o viu ao luar, de pé ao lado do corpo de Tio Fred.
- Ele está morto?
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- Mortinho. Talvez dure umas duas horas em coma. Vamos acabar com isso.
Ele devia golpeá-la por trás quando ela entrasse na sala de jantar e visse o corpo do velho.
- Vamos - disse ele - vou ficar atrás de você.
Ele ia ficar atrás dela e golpeá-la como tinham planejado
- mas seria com o machado e ele se certificaria disso. Quanto ao velho, quando chegasse alguém para investigar já estaria morto.
Dera apenas um passo quando as luzes da sala se acenderam. Por um momento, ele pensou apenas que Phyllis de alguma maneira roçara no interruptor, com os punhos rendados
da camisola preta cheia de babados que usava.
- Desligue isso! Alguém pode ver da estrada.
- Preciso de um pouco de luz, Tommy - explicou ela.
- Não quer saber por quê?
- Só quero que você apague as luzes - disse ele, começando a se preparar para fazer isto por si.
Phyllis tirou o revólver do bolso. Era pequeno, calibre 25, mas estava apontado direto para ele e o buraco do cano parecia grande como um túnel.
-- O agente de seguros me deixou preocupada - disse ela - com todo aquele dinheiro
e e jóias na casa. Então comprei um desses, como ele me aconselhou. Não se preocupe
- continuou. - Eu sei usar.
- Você está louca. Qual é a vantagem de me matar?
- Cinco milhões de dólares.
- O que quer dizer? Não estamos casados, você não receberia um tostão do meu dinheiro.
- Seu dinheiro, Tommy? O que lhe faz pensar que é seu dinheiro?
- Vai ser meu depois que o velho morrer.
- Ele ainda não está morto, Tommy. O que acontece ao dinheiro se você morrer primeiro?
- Iria para o Tio Fred.
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- E ainda vai, Tommy. Ele ainda não está morto. E quando morrer, dentro de duas horas, o dinheiro vem para mim.
- Ele nunca vai sobreviver a tudo isso; está bem morto.
- Se houver um pouco de pulso, uma ligeira respiração, a mínima batida de coração, ele ainda está vivo. Se você morresse apenas cinco minutos antes dele,
ele herdaria naqueles cinco minutos antes de morrer e seus herdeiros ficariam com o dinheiro. Tem uma biblioteca na cidade, Tommy. Eu li tudo sobre isso
... no dia em que comprei a arma.
- Como você ia provar isso, sua bruxa idiota?
- Apareceu um assaltante, Tommy. Ele golpeou o pobre Fred com um machado, mas desci e atirei no escuro e ele morreu imediatamente. Então, acendi a luz e
vi que era Tommy Russell. Todo mundo sabe que Tonimy queria o dinheiro; todo mundo sabe que Fred lhe dava uma pensão pequena; eu sei que cies discutiram quando Tommy
veio jantar. Ele assassinou Fred e tentou fazer parecer um assalto; c teria me matado também. E quando a polícia chegar, ainda vai encontrar Fred semimorto. Mas
você não, Tommy. Você não vai estar respirando mais.
Por um momento, Russell achou que podia correr até ela e pegar a arma, mas o cano estava voltado bem para ele e sabia que não adiantava. Cinco minutos, pensou, fui
milionário por cinco minutos. O último sentimento que teve foi o da incredulidade.
- Adeus, Tommy - disse ela e atirou duas vezes nele, com bastante precisão, no coração e na cabeça. Mas foi muito cuidadosa. Debruçou-se sobre ele e testou sua respiração
com um espelho de bolsa. Só chamou a polícia quando estava absolutamente certa de sua morte. Enquanto esperava por eles, o pobre Fred gemeu uma ou duas vezes. Era
algo um tanto desagradável, mas ela sabia que não ia demorar muito. Afinal, a vida não se compõe só de coisas agradáveis.
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Robert 7
PRESENTE DE NATAL
Não havia neve e a temperatura estava a uns 20 graus e em alguns dos jardins da vizinhança os arbustos estavam verdes, assim como as palmeiras. Mas mesmo assim sabia-se
que era Véspera de Natal. As portas das casas ao longo da rua tinham guirlandas algumas delas iluminadas. Várias janelas estavam iluminadas com luzes vermelhas,
verdes e azuis. Através de algumas delas via-se o brilho de árvores de Natal. E, é claro, havia a música, que se podia ouvir vindo de algumas das casas, as velhas
canções conhecidas: A vê Maria, Noite Feliz, Natal Branco.
Tudo isso devia ser bom, porque o Natal numa cidade da Flórida é como o Natal em qualquer outro lugar, uma época boa, um tempo de paz. Mesmo quando se é policial.
Mesmo quando se tem que trabalhar na Véspera de Natal e não se pode estar em casa com a esposa e o filho. Mas não necessariamente quando se é policial de serviço
com mais quatro e se tem que apanhar um preso fugido e mandá-lo de volta, ou mais provavelmente matálo, porque ele era preso perpétuo e simplesmente não vai voltar.
No carro comigo estava McKee, um policial de Terceira Classe, que não fazia ronda havia alguns meses. Jovem, de olhos claros, faces rosadas, de tipo bem americano,
e muito, muito sério com relação ao seu trabalho. O que era bom; como devia ser.
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Estávamos estacionados a quatro casas da casa alugada onde a Sra. Bogen e os três filhos viviam.
Na mesma distância do outro lado da casa havia um seda no qual estavam o Tenente Mortell e o Detetive de Primeira Classe Thrasher. Moitell era um homem de boca franzida,
bem magro, de meia-idade e com uma expressão bem pouco humana nos olhos. Estava encarregado do caso. Thrasher era um tipo gordo e vulgar, um policial comum.
Na rua atrás da casa dos Bogens havia outro carro do distrito com dois outros policiais de Primeira Classe, dois sujeitos chamados Dodey e Fischman. Estavam lá atrás,
no caso de Earl Bogen escapar de nós e fugir pelos jardins para aquele outro quarteirão. Eu não creio que fizesse isso.
Depois de algum tempo McKee disse:
- Será que está nevando no norte? Aposto que está. - Mudou de lugar. - Nem parece Natal, sem neve. Natal com palmeiras, que coisa!
- É assim desde a primeira vez - lembrei a ele. Ele refletiu sobre isso. Depois disse:
- É. É isso aí. Mas continuo não gostando.
Comecei a perguntar por que ele vivia aqui no Sul; depois me lembrei de sua mãe. Ela precisava morar num clima quente; era isso que a mantinha viva.
- Sabe, sargento - disse McXce então - eu estava pensando; esse tal de Bogen deve ser maluco.
- Você acha isso porque ele é humano? Porque ele quer ver a mulher e os filhos no Natal?
- Bem, ele deve saber que há uma chance de ser apanhado. Se foi, vai ser pior para a mulher e para os filhos, não vai? Por que não podia ter apenas mandado presentes
para eles ou coisa assim e depois telefonar? Hem?
- Você não é casado, é, McKee?
- Não.
-• E não tem filhos. Logo, não posso responder a esta pergunta.
- Continuo achando que ele é maluco.
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Não respondi. Estava pensando em como podia pegar o miserável que nos tinha avisado sobre a visita de Earl Bogen à família no Natal, no ano seguinte, sem me meter
em encrencas. Planejava descobrir esse rato, um tipo capaz de delatar algo assim. Eu ia perturbar a vida dele se Bogen fosse apanhado.
Então, pensei no que o Tenente Mortell me dissera uma hora atrás:
- Tim - disse ele. - Receio que você não seja um policial muito bom. É sentimental demais. A essa altura devia saber que um policial não pode ser sentimental. Bogen
foi sentimental quando aleijou para o resto da vida aquele gerente da companhia financeira que ele pegou no último golpe? Ele se preocupou com a esposa e com os
filhos daquele homem? Deixe de ser bobo, está bem, Tim?
Esta foi a resposta que recebi ao sugerir que deixássemos Earl Bogen entrar, ver a família, curtir o Natal e apanhá-lo quando saísse. O que se tinha a perder?, eu
dissera. Vamos dar um tempo ao homem. Eu sabia, é claro, que Mortell não teria nenhuma participação nisso, mas tentara, de qualquer maneira. Embora eu soubesse que
o tenente ia pensar no mesmo que eu - que quando chegasse a hora de ir embora, Bogen se tornaria duas vezes mais difícil de ser apanhado.
A voz jovem e entediada de McKee interrompeu meus pensamentos:
- Você acha que ele vai estar realmente armado?
- Acho que sim.
- Ainda bem que Mortell nos disse para não dar colher de chá pra ele, que se fizer um movimento em falso, a gente manda bala. Mortell é um tira experiente.
- É o que dizem. Mas você já viu os olhos dele?
- O que é que têm os olhos dele? - disse McKee.
- Deixe pra lá - repliquei. - Parou um ônibus. Sabíamos que Earl Bogen não tinha carro; duvidávamos que
ele alugasse um ou pegasse um táxi. Devia estar sem dinheiro. Um ônibus do centro parou na esquina. Quando ele viesse, viria de ônibus, era o mais certo. Mas não
estava neste. Uma mulher
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sozinha saltou e virou a esquina da avenida. Soltei um ligeiro suspiro e olhei para o mostrador do meu relógio. Dez para as onze. Mais uma hora e dez minutos e estaríamos
livres; não aconteceria no nosso turno. Eu esperava que assim fosse. Era possível. O delator podia estar errado sobre a coisa toda. Ou podia ter acontecido algo
para mudar os planos de Bogen, ou pelo menos adiar a visita para o dia seguinte. Preparei-me para esperar o próximo ônibus.
McKee disse:
- Você já matou alguém, sargento?
- Não - respondi. - Nunca tive que matar. Mas já vi outra pessoa fazer isso.
- É? Como é que foi? - A voz de McKee soou excitada. - Isso é, para o sujeito que atirou? Como ele se sentiu?
- Não sei. Não peiguntei a ele. Mas sei como ele parecia. Parecia que ia ficar doente do estômago, como se devesse ter ficado mas não conseguisse.
- Ah - fez McKee, parecendo desapontado.
- E o cara que levou o tiro? O que ele fez? Nunca vi um sujeito alvejado por um tiro.
- Ele? - disse eu. - Ah, ele gritou.
- Gritou?
- É. Você já ouviu uma criança gritar quando prende os dedos numa porta? Foi assim que ele gritou. Foi alvejado na virilha,
- Ah, entendo - disse McKee, mas não parecia ter entendido realmente. Achei que McKee ia ser o que chamavam de um bom policial: um sujeito bom, são, completamente
insensível. Pela milionésima vez eu disse a mim mesmo que devia largar aquilo. Não depois da missão desta noite, nem no mês seguinte, nem na semana seguinte, nem
amanhã, mas agora. Seria o melhor presente de Natal do mundo que eu poderia dar a mim mesmo e a minha família. E ao mesmo tempo eu sabia que nunca faria isso. Não
sabia exatamente o motivo. Medo de não conseguir arranjar outro emprego; medo de terminar sendo um fardo para todos na velhice, como meu pai - estas eram algumas
razões, mas não
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tudo. Se eu disser como - depois da gente ser policial por tanto tempo isso entra no sangue, por mais que se odeií a profissão - vai soar falso. E ia soar ainda
pior se eu dissesse uma das razões que me prendem a essa profissão e que compensa as outras: a de que eu poderia fazer algum bem algumas vezes.
- Se eu tiver que atirar em Bogen - disse McKee - ele não vai gritar.
- Por quê?
- Você sabe como eu atiro. De perto, vou üar um tiro bem no olho dele.
- É claro que sim - concordei. - Só que você não vai ter essa oportunidade. Vamos pegá-lo calmamente. Não queremos tiros numa vizinhança como essa na Véspera de
Natal.
Então, vimos os faróis do outro ônibus parar na esquina. Saltaram um homem e uma mulher. A mulher virou para a avenida. O homem, de altura mediana mas muito magro,
e com os braços cheios de embrulhos, começou a subir a rua.
- Aí vem ele - disse eu. - Salte do carro, McKee. Nós dois saltamos, um de cada lado. O homem que vinha
na nossa direção não podia nos ver. A rua estava muito encoberta por guirlandas de pinheiros australianos plantados ao longo da calçada.
- McKee - disse eu. - Você conhece as ordens. Quando chegarmos perto dele, Thrasher vai alcançá-lo primeiro e apontar a arma nas costas de Bogen. Então, você agarra
as mãos dele e o prende com as algemas. Fico a uns passos atrás de você, fazendo cobertura. Mortell vai estar atrás de Thrasher, cobrindo-o. Entendeu?
-- Certo - disse McKee.
Continuamos seguindo, primeiro correndo um pouco, depois diminuindo o passo, a fim de bloquearmos Bogen, que vinha na nossa direção, bem em frente, antes que ele
alcançasse a casa onde estava a família, mas não antes que passasse pelo carro de Mortell e Thrasher.
Quando estávamos a apenas alguns metros de Bogen, ele passou por um espaço aberto, onde um fino raio de luar
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filtrava-se através de galhos de árvore. Bogen não estava de chapéu, só usava uma jaqueta, camisa e calças. Carregava uns seis pacotes, nenhum deles muito grande,
mas todos
embrulhados com papel colorido, papel laminado e fitas. O cabelo de Bogen estava bem cortado, em vez de comprido como nas fotografias dos arquivos policiais; e também
deixara crescer um bigode, mas nada disso serviu de disfarce.
Só então ele nos viu e hesitou. Então, parou. Thrasher, logo atrás, quase tropeçou por cima dele. Ouvi a voz áspera de Thrasher dizer:
- Largue os embrulhos e levante as mãos, Bogen. Agora!
Ele largou os embrulhos, que caíram a seus pés na calçada, dois deles se abrindo. Havia um carrinho de corrida num deles. Devia estar com um pouco de corda pois,
ao sair do embrulho, o motorzinho zumbiu e o carrinho disparou pela calçada por uns
90 centímetros. Do outro embrulho caiu uma bonequinha e ficou deitada de costas na calçada, com os olhos grandes e pintados olhando para cima. Era o que se chama
de boneca de cinema, eu acho; de qualquer maneira, estava vestida de noiva. De um dos outros pacotes começou a escorrer um líquido na calçada e calculei que fosse
uma garrafa de vinho.
Mas Bogen não levantou as mãos quando deixou cair os embrulhos. Virou-se de costas e o
som de seu cotovelo golpeando o rosto de Thrasher foi desagradável. Então,
ouvi a arma de Thrasher disparar quando ele apertou o gatilho num ato reflexo, mas o tiro saiu para o alto.
Levantei minha arma assim que Bogen pôs a mão dentro da jaqueta, mas nem cheguei a usá-la. McKee usou a dele. A cabeça de Bogen caiu para trás como se alguém o tivesse
esmurrado sob o queixo. Ele cambaleou para trás, contorceu-se e caiu.
Fui até Bogen com minha lanterna. A bala da arma de McKee penetrara no olho direito de Bogen e não havia nada ali agora a não ser um buraco horrível. Apontei a lanterna
apenas por um momento, não pude resistir, para o rosto de McKee. O rapaz estava muito branco, mas os olhos brilhavam de excitação
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e ele não parecia nem um pouco nauseado. Ficou passando a língua nos lábios, com nervosismo. Não parava de dizer:
- Ele está morto. Não precisa se preocupar com ele agora. Está morto.
Luzes se acenderam nas vizinhanças e as pessoas começaram a aparecer. Mortell gritou para elas:
- Entrem. Não tem nada para ver. É assunto da polícia. Voltem para dentro.
É claro que a maioria não fez isso. Saíram e olharam, embora não deixássemos que chegassem perto do corpo. Thrasher chamou a delegacia pelo rádio. Mortell me disse:
-' Tim, vá contar à esposa dele. E diga-lhe que terá de vir aqui para fazer a identificação final.
- Eu? -- disse. - Por que não manda McKee? Ele não é do tipo sensível. Ou por que não vai o senhor? Isso foi idéia sua, de qualquer maneira, tenente, lembra-se?
- Você está desobedecendo a uma ordem? Então, tive uma idéia.
- Não - repliquei. - Está bem. Eu vou.
Afastei-me e fui até a casa onde a esposa e as crianças de Bogen viviam. Quando ela abriu a porta, pude ver a sala parcamente mobiliada que, de certa maneira, não
parecia assim agora, à luz da árvore enfeitada. Vi os presentes colocados arrumadinhos em volta da árvore. E vi, espiando no canto de um quarto, os olhos aterrorizados
de uma garotinha de uns seis anos e de um menino com uns dois anos a mais.
A Sra. Bogen me viu ali em pé e ficou um pouco assustada.
- Sim? - disse ela. - O que é?
Pensei nos jornais, então. Pensei: "De que adianta? Vai sair nos jornais amanhã, de qualquer maneira." Então, me lembrei de que seria Dia de Natal; não haveria jornal
e poucas pessoas se dariam ao trabalho de ligar rádio ou televisão.
- Não fique preocupada - disse a ela. - Só estou comunicando o que aconteceu às pessoas da vizinhança. Pegamos um ladrão tentando roubar, madame, e ele saiu correndo
pela rua. Saímos atrás dele e tivemos que atirar. Mas já terminou tudo
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agora. Não queremos que ninguém saia, para não criar mais confusão. Portanto, voltem para a cama, sim?
Ela abriu a boca e os olhos com espanto.
- Quem... quem era? - indagou em voz baixa.
- Ninguém importante - disse eu. - Um jovem desordeiro. - Ah - fez ela então e vi o alívio estampado em seu rosto.
Percebi que minha intuição estava certa e que Bogen não a avisara de que viria; quisera fazer uma surpresa. Se não, ela teria compreendido tudo.
Eu lhe dei boa-noite e saí dali, ouvindo-a fechar a porta devagarinho atrás de mim.
Quando voltei para Mortell, disse:
- Pobre Bogen. Caiu na armadilha por nada. Os parentes nem estão em casa. Perguntei a uma das vizinhas e ela disse que foram para a casa da mãe da Sra. Bogen. Só
voltam depois do Natal.
- Ora, que merda - disse Mortell, observando os homens do carro do necrotério carregarem Bogen numa cesta.
- É - disse eu. Tinha vontade de saber o que Mortell faria comigo quando soubesse o que fiz; e sem dúvida ia descobrir, eventualmente. Agora não me importava. O
importante é que a Sra. Bogen e as crianças iam ter o Natal deles como planejado. Mesmo quando eu voltasse e contasse a ela o que acontecera, dentro de dois dias,
isso não anularia o que fiz.
Talvez não tenha sido muito o que proporcionei a eles, mas foi alguma coisa e me senti um pouco melhor. Não muito, só um pouco.
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Al Nussbaum
AQUELE QUE ESCAPOU
Era uma noite de sábado e eu estava em pé ao lado da estrada, patrulhando o tráfego que vinha de Tijuana. Quando parava um carro ao meu lado, eu fazia aos ocupantes
as perguntas de rotina: "Onde nasceu?" e "Está trazendo alguma coisa?"
De vez em quando eu examinava um caminhão ou mandava um motorista parar para uma investigação mais detalhada, mas não era com freqüência. Só o fazia quando recebíamos
alguma informação de um detetive ou quando as pessoas pareciam alegres e amigáveis demais, ou quando eu tinha uma de minhas intuições. Não tinha muitas intuições,
mas eram corretas em quase todos os casos, logo sempre dava atenção às mesmas.
Quando vi Jack Wilner, tive a intuição de que ele estava aprontando alguma. Ele estava numa das pistas opostas,
dirigindo-se para o México ao volante de um lustroso
conversível amarelo. A capota estava abaixada e o rádio ruidoso ligado numa estação de rock de San Diego. A coisa toda parecia muito chamativa - como os trejeitos
de um mágico para desviar a atenção dos espectadores.
Estava no começo do meu turno - eu pegava de oito da noite até quatro da manhã - então fiz uma anotação do número da licença dele com a intenção de fazer uma boa
inspeção quando ele voltasse.
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Fiquei de olho no carro, mas ele não voltou durante o meu turno. Dei as cópias do número da placa aos outros policiais da alfândega, além de uma descrição do carro,
e fui para casa.
Na noite seguinte, praticamente já me esquecera do conversível amarelo, mas na noite de sábado tornei a vê-lo. A capota estava abaixada, o rádio aos berros e ia
para Tijuana como antes. Tive o mesmo pressentimento anterior. Corri ao telefone e chamei a aduana, a alfândega mexicana, e pedi a eles que examinassem o conversível.
Quando voltei para a pista da estrada, vi a distância que o conversível tinha sido parado. Homens de uniforme caqui cercaram-no e dois deles estavam ocupados removendo
o forro das portas, enquanto outros examinavam a mala e debaixo da capota. Jack Wilner - é claro que eu não sabia o nome dele então - ficou de pé a um lado, fumando
um cigarro com indiferença. Era alto e magro e mesmo de longe pude ver que ele se vestia com a despreocupação dos jovens com relação à combinação de cores.
Fiquei ocupado com os carros que entravam no país e não tornei a olhar naquela direção durante quase uma hora. Quando o fiz, foi na hora em que o conversível se
afastava da aduana. Wilner virou-se a fim de acenar para os oficiais mexicanos enfileirados que o observavam, depois acelerou o carro.
Portanto, não tinham encontrado nada. Neste caso, pensei, ele deve estar contrabandeando alguma coisa para os Estados Unidos. Então, esperei que voltasse. Fiquei
por lá algum tempo depois que meu turno acabou e dei a descrição e a placa do carro novamente. Pedi a todos que tivessem o cuidado de transmitir a
descrição e o número para o próximo turno, se nenhum deles o detivesse.
Segunda e terça eram meus dias de descanso, mas telefonei para a alfândega em ambas as noites para saber se o conversível já tinha sido inspecionado. Não tinha -
e assim foi no resto da semana. O conversível não passou pela fronteira.
Mas na noite de sábado olhei para as pistas distantes, e lá estava ele, indo para o México outra vez.
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Observei-o boquiaberto e depois me amaldiçoei por ser tão burro. Só porque ele deixara o país neste ponto não significava que tivesse que voltar neste ponto. O
México e a Califórnia tinham mais de 160 quilômetros de fronteiras e havia muitos lugares por onde ele podia atravessar de volta para os Estados Unidos.
Até agora, minhas investigações sobre as atividades do motorista do conversível amarelo tinham sido apenas isso: minhas investigações. Isso não adiantava mais. Fui
até meu supervisor e falei-lhe de minhas suspeitas. Ele enviou avisos a todas as outras barreiras ao longo da fronteira da Califórnia com o México. Um oficial aduaneiro
tem que confiar nos informantes e no instinto. Os informantes são responsáveis por 90 por cento de suas prisões, mas pressentimentos como os meus são responsáveis
pelos outros 10 por cento.
Voltei ao meu posto e esperei. Seríamos avisados assim que o conversível fosse revistado, mas não recebemos nenhum aviso. Nenhum.
Então, na noite de sábado, no auge do rush, vi o conversível amarelo rumando para o México novamente.
A princípio achamos que ele fora revistado como previsto, e as pessoas da barreira não se tinham dado ao trabalho de nos avisar. Meu supervisor decidiu certificar-se,
porém, e mandou um chamado para descobrir onde o carro cruzara a fronteira de volta aos Estados Unidos.
Em meia hora ele obteve a resposta - em lugar nenhum. Nenhum dos postos de fronteira oficiais tinha visto o carro.
Em algum lugar ao longo da fronteira de 160 quilômetros, Wilner encontrara um meio de passar sem ser detido para uma revista da alfândega. Pôde então entrar no México,
carregar o carro com o contrabando que quisesse, e voltar para os Estados Unidos sem se preocupar com o pagamento de imposto ou temer uma prisão. Tínhamos que descobrir
onde estava o furo e apanhá-lo
Uma chamada telefônica ao escritório de veículos motorizados nos deu o nome de Jack Wilner e o endereço dele em San Diego. Seu apartamento ficou sob vigilância durante
24 horas, e
162
voltamos a esperar. Wilner esteve fora até quarta-feira, quando estacionou o conversível amarelo em sua vaga e entrou.
A não ser para compras e saídas normais a fim de resolver assuntos domésticos, ele permaneceu em casa até sábado à noite. Então, atravessou a fronteira para o México,
enquanto um carro cheio de agentes aduaneiros o seguia a uns 50 metros de distância. Observei o pequeno cortejo de meu posto e fiquei satisfeito. Estava seguro de
que o tínhamos apanhado e logo o prenderíamos.
Mas eu estava errado. Uma hora depois, os agentes voltaram. Tinham ficado presos no tráfego da Avenida Revolucion quando ele
virara subitamente próximo a Jai Alai Fronton. Perderam-no de vista.
Fiquei desapontado e eles muito zangados. Estavam certos de que a manobra dele fora deliberada, então pediram uma ordem de busca do carro quando ele voltasse. Se
encontrassem algo como maconha, Wilner estava encrencado.
Recebi permissão especial para acompanhar os agentes e estava no local quando Wilner voltou ao seu apartamento, na quarta-feira. Era óbvio, pelo jeito como seu queixo
caiu quando lhe apresentaram a ordem de busca, que ele não se perdera dos seguidores intencionalmente, no sábado. Até que lhe mostraram a ordem de busca, ele ignorava
ser suspeito de alguma coisa.
Examinamos seu carro e o achamos vazio - literalmente vazio. Devia ter sido lavado recentemente, tanto por dentro quanto por fora, pois até os cinzeiros estavam
vazios. Wilner observou-nos desmontar o carro e montá-lo novamente, mas não se mostrou tão à vontade quanto naquele dia na fronteira. Ficou lambendo os lábios e
mudando o peso de um pé para o outro. Pelo que sabia, a busca na fronteira fora rotina, mas esta certamente não era. Estávamos farejando algo e ele devia saber que
íamos ficar atrás dele até descobrir.
Foi por isso que me surpreendi ao vê-lo ir para o México no sábado à noite. Fiquei ainda mais surpreso ao vê-lo parar voluntariamente na aduana e entrar. Soubemos
mais tarde pelos agentes que o seguiam que ele pedira permissão para residência e providenciara todos os outros documentos necessários para uma
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permanência prolongada no México. Não ia voltar tão cedo: estava muito mais assustado do que eu previra.
Pensei muito sobre Wilner durante os meses seguintes. Na minha cabeça ele era aquele que escapou. Em todo o tempo que eu estava no serviço alfandegário, ele foi
o primeiro homem que escapou da prisão quando eu tinha certeza de que era um contrabandista.
Não tornei a ver Jack Wilner novamente por mais de um ano e então tive que ir ao México para encontrá-lo. Todas as primaveras havia uma corrida de iates de Newport
Beach a Ensenada. Há sempre de 300 a 400 barcos na corrida e eles atraem uma enorme multidão para assistir ao final. Fui até lá e encontrei Jack Wilner sozinho,
a uns três metros de mim.
Fui até ele e toquei em seu braço.
- Oi! - disse eu. - Lembra de mim?
Ele riu, um tanto incerto; depois o sorriso desapareceu, quando se lembrou. As pupilas desviaram-se quando ele procurou outros rostos mais conhecidos na multidão.
- Só vim aqui para ver a corrida - expliquei. - Encontrar com você não estava no programa.
Isso acalmou seu nenosismo e ele relaxou visivelmente. Ficamos lado a lado e observamos os barcos. À proporção que o dia se passou, ele se tornou mais amigável e
me falou um pouco sobre si. Era dono de um pequeno hotel e uma marina, a uns 32 quilômetros ao sul de Tijuana, e estava em Ensenada para dar uma olhada em alguns
barcos que pensava em comprar. Convidou-me a passar uns dias em seu hotel.
- Você comprou esse hotel com o lucro do contrabando? - perguntei arrojadamente. Eu queria fazer com que ele falasse sobre isso e tinha certeza de que ele nunca
falaria se eu tentasse ser inteligente e cheio de indiretas.
Ele sorriu, surpreso com minha franqueza.
- Não quero assinar uma confissão - disse ele, imitando um vilão de TV. Então, depois de alguns momentos, assentiu. - É, foi como consegui dinheiro para comprar.
- Não está mais contrabandeando?
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-- Não.
- É difícil de acreditar - retruquei. - Você deve ter sido muito bem-sucedido para conseguir comprar um negócio assim e poucos contrabandistas profissionais param
antes de ser apanhados.
- Eu tinha decidido parar se alguém suspeitasse de mim. Vocês andavam muito curiosos, então parei.
Compramos tacos de um vendedor ambulante e ficamos em pé, comendo-os.
- Nesse caso, você não vai se importar em me dizer como conseguia voltar para a Califórnia sem ser visto, quando todos os postos aduaneiros da fronteira estavam
de olho em você - disse eu.
- Não, não me importo. Era fácil. Eu simplesmente guardava minhas placas de licença debaixo da jaqueta e passava pela fronteira a pé - respondeu ele com um riso.
- Eu contrabandeava conversíveis amarelos, um novo toda semana.
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Fletcher Flora
NÃO POR AMOR EXATAMENTE
Olhando pela alta janela de batente, aberta no final da tarde, Marcus enxergava quilômetros através do amplo vale do rio além dos telhados multicoloridos e agrupados
de casas de subúrbio. Podia ver no vale, além de um brilhante fragmento prateado do próprio rio, um distante conjunto de fazendas e campos com os tons de vermelho,
marrom e verde-escuro do outono. Era uma vista bonita, convidativa e agradável para os olhos e ele teria gostado, se fosse possível, de ficar ali em pé e admirá-la
à vontade, pelo prazer de sua alma. Mas não era possível. A seus pés, no chão da pequena sala em que estava, uma sala com apenas três paredes, havia outra vista
que não era nem aprazível nem convidativa. Era o corpo de uma moça. E a moça estava morta e tinha prioridade, apesar de concedida com relutância, sobre os rios,
campos e fazendas no final de um ano que ainda não estava morto, mas apenas morrendo.
Com um suspiro baixinho, quase inaudível para o Sargento Bobo Fuller nas sombras atrás de si, ele baixou os olhos e agachou-se lentamente, apoiando-se num joelho.
A moça estava deitada com o rosto para o chão, a cabeça virada no chão verde-escuro, deixando exposto o perfil esquerdo de um rosto no qual a morte deixara os olhos
cegos abertos e os lábios contorcidos numa careta de raiva, dor ou de um esforço final. Seus pés apontavam
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para o lado aberto da sala em que Fuller estava, o corpo tocando uma mesa de metal presa a uma parede da sala e sustentada "do outro lado por um par de pernas finas
de aço. Os braços estavam atirados para a frente, os dedos das pequenas mãos curvados como garras, como se, no instante de morrer, ela tivesse procurado desesperadamente
um ponto de apoio na superfície lisa, para não ser arrastada pelos anjos negros que vieram buscá-la.
Bem, os anjos venceram e ela perdera e assim, pensou Marcus, perdera ele. Ficara com o que restara dela, que não era muito num mundo tão belo com fazendas coloridas.
E, afinal de contas, ninguém tinha culpa por ele ser o que era. Apalpou os cabelos louros e curtos da cabeça da moça, encontrando o lugar contundido atrás da coroa,
sentindo com desagrado o corrimento pegajoso nas pontas dos dedos. Levantou-se, suspirando baixinho novamente. Na mesa de metal, nada mais do que uma simples superfície
de trabalho, uma única cadeira reta, também de metal, foi colocada no lugar, com o assento inteiramente sob a superfície da mesa, as costas tocando a ponta
da mesma. Não havia livros, nem papéis, absolutamente nada, sobre a mesa.
- Ela foi golpeada por trás com algo liso e pesado - disse Marcus. - O que foi?
Na penumbra, o Sargento Bobo Fuller moveu-se e deu um passo à frente. Não gostava de Marcus, que tinha uma ligeira desconfiança disso, e sentia um perverso prazer
em falar apenas quando interrogado, e em dizer apenas o que era especificamente perguntado ou esperado. Quanto a Marcus, não partilhava da hostilidade de Fuller,
que geralmente achava divertida. Na verdade, achava Fulíer estimulante, um constante desafio ao seu melhor desempenho. Se não, teria feito o que Fuller aparentemente
desejava que fizesse. Teria requisitado outro policial para trabalhar junto consigo, permitindo que Fuller trabalhasse com alguém mais compatível.
- Ainda não encontramos a arma do crime - disse Fuller. - Deve ter sido escondida ou levada. Vamos continuar procurando, é claro.
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- Seis seções. Dezenas de milhares de livros em mais de mil prateleiras. Pode ter sido escondida atrás de uma delas. Vai ser uma trabalheira, Fuller.
- Se estiver aqui, vamos encontrá-la.
- Provavelmente não está. Boa sorte, de qualquer maneira.
Marcus deu um passo para trás, passando os olhos pela diminuta sala com um ar de casualidade, quase de indiferença, parando ligeiramente, apenas uma vez, quando
deu com a janela e a vista colorida a distância.
- Abby Randal - disse ele. - Foi esse o nome que você disse?
- Isso mesmo. Abby de Abigail.
- Eu acho que ela está morta há cerca de uma hoia. Você concorda?
- Sim.
- Gostaria de saber onde estão os livros e papéis dela.
- Livros e papéis? O que o faz pensar que ela estava com algum?
- Bem, essas salinhas no fundo de cada seção de estantes da biblioteca são para estudo. Normalmente, precisa-se de livros e papéis para estudar. Livros, pelo menos.
Gostaria de saber onde estão.
- Parece-me que se pode usar essas salas para outras coisas além de estudo, se a pessoa quiser. O que tenho em mente não exige livro nenhum.
- Você tem uma mente sórdida, Fuller, assim como eu. Briga de amor, você acha?
- Eu não diria isso. Já que pediu minha opinião, uma pessoa apaixonada não golpeia a outra na cabeça. O que quero dizer é que não se trata exatamente um ato de amor.
- Amantes de outrora, então. Uma despedida não muito amigável. O ciúme às vezes se torna maligno, Fuller.
Lá ia ele novamente. Exibindo-se, como sempre. Que diabos significava "outrora"?
Bem, Fuller não ia perguntar e podia, de qualquer maneira, não sendo nenhum tolo, adivinhar pelo contexto. Ex-amantes?
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Era isso que Marcus queria dizer? Se era, por que não falou
assim?
- Pode ser - disse Fuller.
- Bem, é melhor eu sair daqui agora, para que o pessoal possa entrar. Não que eles descubram alguma coisa que nós já não saibamos, o que não é muito. Devem chegar
a qualquer minuto. Você fez um bom trabalho, Fuller. Tudo sob controle.
Era um elogio merecido e Fuller devia ter gostado, mas não gostou. Na verdade, ficou ressentido. Viera sozinho, atendendo a um chamado, e fizera o necessário antes
de Marcus chegar, mais tarde; e aquilo, em sua opinião, não passava de um insulto sutil e deliberado, dando a entender que ele poderia ter feito menos.
- Obrigado - disse ele. - Vou esperar aqui pelo pessoal da perícia.
- Certo.
Marcus passou por ele rumo a um estreito corredor que seguia paralelo à fileira de pequenas salas de estudo. De sua posição, podia ver em linha reta uma das passagens
perpendiculares entre prateleiras de livros que se elevavam até o teto baixo da seção em que se encontrava. Na verdade, estava na Seção C da biblioteca da universidade,
no extremo oeste da cidade em que ele, Detetive Joseph Marcus, ganhava seu pão a crédito para a pensão de aposentadoria. A seção fora interditada temporariamente.
Exceto pelas luzes acesas na passagem para a qual Marcus olhava não havia nenhuma outra acesa.
- Deixe ver se entendi bem - disse Marcus. -- O nome do bibliotecário-chefe é Henry Busch. A moça que encontrou o corpo é Lena Hayes. O rapaz encarregado da biblioteca
esta tarde chama-se Lonnie Beckett. Certo?
- Certo. Eu disse a eles para esperarem no escritório do bibliotecário. Fica no andar seguinte, duas seções para cima. O senhor vai encontrá-los lá.
- Vou até lá. Continue com sua tarefa, Fuller.
Continuar com a tarefa, pelo que Fuller podia entender, no momento, nada mais era do que esperar onde estava, como um cão de fila. E foi o que fez, dirigindo-se
para isso até a janela..
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de onde observou o vale com um certo olhar de despeito que prejudicou uma adequada admiração do panorama. Marcus, por sua vez, seguiu pela passagem iluminada e
subiu dois lanços curtos de escadas de aço, virando à direita, por uma saída que o levou a uma ampla sala com teto alto. Olhando bem à frente através de um espaço
aberto, pôde ver uma outra sala mobiliada com mesas compridas, seis cadeiras em cada, e uma imensa variedade de livros em
prateleiras em volta das paredes. Imediatamente
à sua direita havia um nicho, fechado de dois lados por um balcão alto, a mesa de registro, e dos outros lados por duas paredes. Bem à sua frente, entre a mesa de
registro e outra parede, havia uma cerca baixa de madeira com um portão na mesma. O portão fechava-se automaticamente quando batido e a tranca, operada por um dispositivo
eletrônico, era aberta apenas se a pessoa encarregada da mesa fosse induzida a apertar um determinado botão. Isto, é claro, era para impedir a entrada de pessoas
sem carteirinha de sócio da biblioteca. Marcus não tinha carteirinha, mas era um privilegiado. Esperou no portão até um ruído lhe avisar que o botão estava sendo
apertado e passou com uma imensa sensação de liberdade para o pasto verdejante do outro lado da cerca.
No escritório do bibliotecário, encontrou os três que Fuíler dissera. Henry Busch era um homem alto e magro, com fios grisalhos no cabelo liso e escuro. Os fios
tinham uma aparência artificial, como se feitos cuidadosamente para dar efeito, mas seu rosto ascético fino e olhos sombrios, estes escondidos por trás de lentes
grossas como uma pesada armação de chifre, não confirmavam tal suspeita. Ele não era homem, concluiu Marcus, de alimentar a vaidade a tal ponto. Lonnie Beckett,
estranhamente, parecia uma segunda edição revisada e mais jovem de Busch. Mais ou menos da mesma altura, mesmo peso, mesmo formato de cabeça e rosto. O cabelo escuro
não tinha as mechas grisalhas, porém; nem os olhos os óculos. Lena Hayes era atraente. Marcus, que de certa maneira não esperara uma surpresa tão agradável numa
biblioteca, ficou agradavelmente surpreso. Seu cabelo castanho, cheio, curto e bem escovado, possuía o brilho suave de
madeira polida numa sala iluminada por um abajur. A suéter modelava-lhe o corpo admiravelmente e a saia curta, seguindo os ditames da moda, dava a perceber uma coxa
esguia e revelava uma perna bonita. O coração de celibatário no peito de Marcus, que apreciava outras vistas além de campos coloridos, começou a palpitar. Fosse
o que fosse que a adorável Lena estivesse estudando na faculdade, pensou, ela sempre podia ganhar a vida como uma ecdisiasta culta. E Fuíler que procurasse esta
no dicionário.
- Sr. Busch? - disse Marcus. - Sou o Tenente Marcus. Ou devo chamá-lo de doutor?
- Isso é tolice, tolice. Como preferir. - Busch adiantou-se e estendeu a mão. - Entre, tenente. Estávamos esperando pelo senhor.
- Eu sei que o senhor é muito ocupado - respondeu Marcus, apertando a mão. - Vou tentar detê-lo por pouco tempo.
- Está tudo bem. Estamos a seu dispor. Esta é a Srta. Lena Hayes e este rapaz é o Sr. Lonnie Beckett.
Marcus acenou com a cabeça para o par, na ordem em que foram apresentados, resistindo à tentação de se demorar com a primeira e negligenciar o último.
- Compreendo - respondeu - que vocês todos estavam ligados até certo ponto à infeliz ocorrência na biblioteca esta tarde.
- Não precisamente - disse Busch. - Estou aqui apenas porque sou o bibliotecário e, conseqüentemente, responsável pelo que acontece dentro de minha jurisdição. Foi
uma coisa horrível. Absolutamente inacreditável.
-' Tudo que acontece é crível - disse Maicus sensatamente. - Contudo, talvez possamos resolver o caso rapidamente sem muitos problemas.
- Esperemos que sim, mas temo que não possamos ajudar muito. O senhor é que vai decidir isso, é claro. Imagino que queira nos fazer algumas perguntas. Estamos prontos
a cooperar inteiramente, eu lhe asseguro.
- Ótimo. Não posso pedir mais. - Marcus sentou-se numa cadeira que lhe foi oferecida, enquanto Busch voltou ao seu lugar
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atrás da mesa. - Para começar, algum de vocês conhecia a vítima pessoalmente?
- De minha parte - disse Busch - eu a conhecia ligeiramente. Era uma aluna formada, preparando uma tese, e naturalmente vinha à biblioteca com freqüência para fazer
pesquisas. Nunca me pediu ajuda pessoal em nenhuma ocasião. Falei com ela, troquei algumas palavras e foi tudo.
- O senhor a viu quando veio à biblioteca hoje?
- Não.
Marcus voltou sua atenção para Lonnie Beckett.
- Soube que você estava na mesa de registro hoje quando ela entrou na sala. Deve ter sido você a
admiti-la.
- Sim, senhor. Fui eu.
- Ela falou com você?
- Falou. Não reparei quando ela chegou e ela me pediu para abrir a porta.
- Ela carregava alguma coisa? Algum livro ou papel, quero dizer.
- Acho que não. Não, tenho certeza que não. Ela sempre levava o material numa pasta e não estava com ela. Agora que estou parando para pensar nisso, lembro que não
trazia sequer uma bolsa.
- Isso não foi um tanto estranho? Afinal de contas, os alunos vêm a uma biblioteca para estudar. Geralmente precisam de certas coisas, não?
- Não necessariamente. Talvez ela só precisasse fazer alguma leitura de um livro da biblioteca.
- Entendo. Bem então, também pode ter vindo se encontrar com alguém. De qualquer maneira, voluntária ou involuntariamente, ela se encontrou com alguém, e foi morta
por tal pessoa.
- Obviamente.
O comentário foi bastante inocente, uma simples admissão de uma verdade óbvia, mas Marcus achou que foi feito com uma sutil ponta de sarcasmo. Não que seu comentário
merecesse qualquer resposta melhor; a pura verdade raramente requer um comentário, especialmente quando apoiada por um corpo. Ainda
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assim, ele não tinha certeza se simpatizava com Lonnie Beckett. Achava que os homens de seus vinte e tantos anos deviam ter uma certa consideração pelas senilidades
de homens com seus quarenta e poucos. Mesmo os rapazes, acrescentou azedamente para si mesmo, que fossem por demais espertos e autoconfiantes. Consciente de um ligeiro
preconceito, ele tomaria cuidado para tender
para o outro lado.
- Como você diz - repetiu - obviamente. Gostaria de saber se você pode fazer a gentileza de responder à minha primeira pergunta, que o Sr. Busch já respondeu no
que concerne a ele. Conhecia pessoalmente Abby Randal?
- Conhecia. - Lonnie Beckett debruçou-se e esfregou as palmas das mãos nos joelhos, como se estivessem suando, e Marcus teve a satisfação de perceber que ele não
era, afinal de contas, tão seguro de si como tentava parecer. - Acho que seria melhor explicar o nosso relacionamento agora. Não gostaria que fosse mal interpretado
depois, se por acaso viesse à tona.
- É sensato de sua parte - replicou Marcus. - Sempre preferimos evitar desentendimentos, se possível.
- Bem, a verdade é que saí com Abby algumas vezes neste último verão. Ficamos aqui para os cursos de verão, fizemos amizade e saímos algumas vezes juntos.
- Quantas quer dizer com algumas vezes?
- Ah, não sei. Não gravei. Digamos umas doze vezes.
- É um número redondo. O que vocês faziam durante esses
encontros?
-' Nada de mais. íamos a shows no centro, a umas duas festas. Na maioria das vezes, só caminhávamos pelo campus e conversávamos sobre várias coisas. Abby tinha uma
cabeça boa e uma língua afiada. Achei uma companhia agradável para sair por algum tempo, mas depois perdi o interesse.
- Imagino que se pode chegar a conhecer bem uma pessoa só em se passear conversando. Que tipo de pessoa você diria que
ela era?
- Inteligente, já disse. E franca. Isto é, franca no bom sentido. Ela era realista e sabia o que queria. Creio que não tinha
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muitos escrúpulos em perseguir seus objetivos. Veio de uma família simples, acho. Ela me falou que os pais morreram. Suponho que teve de cortar um dobrado e vencer
muitos obstáculos para fazer a faculdade e a graduação. Dizia muitos palavrões, mas a gente não ligava e quase nem reparava. Acho que era parte de suas defesas,
parte da rudeza que precisou adquirir para chegar onde estava. Talvez eu a esteja fazendo parecer muito crua, mas não era assim de fato. Era perspicaz e tinha uma
sensibilidade e um bom gosto inesperados em muitas áreas. Creio que poderia ser chamada de autêntica. Talvez fizesse jogo sujo, se precisasse, mas não tinha nada
de falso.
- Acho que posso formar uma idéia. Uma moça inteligente, franca, basicamente honesta, mas capaz de tirar o máximo proveito de suas oportunidades.
- Isso.
- Mas não é só. Ela era bonita também. Mesmo morta. Reparei isso lá na sala. De modo geral, moças bonitas têm mais oportunidades do que a maioria.
- Ela era bem atraente, creio. Mas não o meu tipo. Marcus teve a súbita impressão de que este comentário não
visava apenas a ele. Todo o tempo tivera a sensação de que ele era apenas
ostensivamente o interlocutor principal neste assunto. Lonnie Beckett olhava para ele enquanto
falava, mas se dirigia a Lena Hayes. Estava, na verdade, fazendo uma confissão. Marcus estava certo disso e reparou pela primeira vez, lançando um rápido olhar,
que o dedo anular de Lena tinha um pequeno diamante. Suas mãos, descansando no colo, torceram-se e voltaram ao normal. Erguendo os olhos rapidamente, viu que o rosto
dela tinha uma expressão de desdém, como se as infidelidades insignificantes do verão fossem de pouca ou nenhuma importância. Como de fato eram, pensou Marcus. A
menos que, emendou, tivessem levado de alguma maneira a um assassinato.
- Cada um com seu gosto - disse ele. - Srta. Hayes, conhecia Abby Randal intimamente?
- Não.
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Ela não disse que isso significava bem o bastante, mas deu a entender. O efeito foi alcançado, pelo menos nos ouvidos de Marcus, sem a mínima ponta de escárnio,
e ele lhe deu pontos por sua compostura, se não por compaixão
- Você, porém, descobriu o corpo. Deve ter sido um choque.
- Não foi exatamente uma experiência agradável.
- O que fez quando o descobriu?
-' Fui imediatamente à mesa de registro e contei a Lonnie, que foi chamar o Sr. Busch.
- Não gritou?
- Não sou muito dada a gritos.
- Queria saber se atraiu atenção. Por isso perguntei.
-' Não, não atraí. Tenho certeza de que, mesmo agora, apenas algumas pessoas sabem o que aconteceu. Não havia mais ninguém naquela seção na hora e o Sr. Busch imediatamente
interditou o lugar para todos os alunos e empregados. Ah, muita gente sabe que tem alguma coisa errada, é claro, mas não sabem exatamente o quê.
- A senhorita parece ser uma pessoa sensata, Srta. Hayes. Estou certo de que a polícia aprecia isto. Diga-me, qual era a sua intenção em ir àquela seção em particular
àquela hora?
- Eu não estava indo para aquela seção em particular. Estava indo a Iodas as seções. As luzes de cada passagem são controladas por um interruptor no final. Os alunos
devem acendêlas quando precisam e apagá-las ao sair. Só que muitas vezes não o fazem. Não apagam, quero dizer. Eu estava vistoriando as seções para fazer isso. Geralmente
faço duas ou três rondas por dia. Estamos fazendo uma contenção de despesas.
- Parece interessante. Sendo assim, então, deu com o corpo de Abby Randal por acaso em meio à sua ronda.
- É. Vi o corpo e fiz como lhe disse.
- E agiu muito bem, devo dizer. - Marcus virou-se novamente para Lonnie Beckett. - Há quanto tempo antes de o corpo ser descoberto você estava na mesa de registio?
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- Meu expediente começou ao meio-dia. Isso quer dizer que eu já estava lá havia duas horas.
- Sim. Pode me dizer quem você admitiu na biblioteca naquele espaço de tempo?
- Ah. não. - Lonnie Beckett sacudiu a cabeça, aparentemente admirado com a pergunta. - Acho que seria impossível.
- Impossível? Por quê? Você está querendo dizer que há um regulamento contra isso?
- Não, nada disso. Só que não tenho certeza. Admitir alunos é uma coisa tão rotineira. Se eu o reconheço, aperto o botão. Se não o reconheço, olho a carteirinha
e então aperto o botão. Estou sempre ocupado, e quase nem reparo nas pessoas que deixo entrar, muito menos lembrar. Isto é, eu posso lhe dar uma lista comprida daqueles
que freqüentam a biblioteca regularmente, um ou outro dia, mas não daqueles que entraram esta tarde especificamente.
- Você se lembrou de Abby Randal, não lembrou? Chegou a se lembrar que ela não estava com pasta nem bolsa.
- Só porque aconteceu isso com ela. Se não tivesse acontecido nada, eu nem estaria certo agora se tinha vindo esta tarde ou não. Talvez, se eu tentar, possa ter
certeza sobre algumas pessoas, mas não teria a menor noção das horas em que chegaram e saíram.
- Você se lembra da hora em que Abby Randal chegou?
- Não. Se adivinhasse, talvez não acertasse.
- Assim não ajuda muito.
- Lamento.
- Bem, se por acaso você se lembrar com certeza de alguma coisa, anote. - Marcus voltou abruptamente ao ponto de partida, que era Henry Busch. - Existem outras entradas
para a biblioteca?
- É claro. Pelo menos uma em cada andar do prédio, além de uma porta externa que leva ao estacionamento nos fundos.
- Alguém poderia ter entrado esta tarde na biblioteca por uma dessas portas?
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- É possível, acho, mas pouco provável. É do regulamentomantê-las fechadas o tempo todo. As únicas pessoas que as usam regularmente são os empregados da biblioteca
que têm as chaves.
- Então qualquer empregado podia ter entrado por uma delas?
- Sim. - Esta pergunta provocou uma expressão furtiva de desagrado no rosto fino do bibliotecário, como se ele considerasse tal implicação justificável e fora de
cogitação. - Qualquer pessoa, como eu disse, que tivesse uma chave.
- Estas portas podem ser abertas por dentro sem chave?
- Podem. Cada uma possui uma barra. Quando a barra é abaixada, a tranca se abre.
- Nesse caso, pelo menos, são saídas possíveis. O assassino pode ter saído da biblioteca por alguma delas.
- É verdade.
- Bem, está muito bem. Espero que não tenhamos muitas complicações. - Marcus levantou-se abruptamente e deu um tapa na coxa, aparentemente impaciente com toda a
dificuldade e sordidez do caso. - Acho que é melhor eu sair daqui e deixar que vocês voltem a suas funções. Antes, porém, gostaria de saber onde Abby Randal morava.
O senhor tem um catálogo de alunos ou coisa assim?
- O novo ainda não saiu. - Henry Busch virou-se para Lonnie Beckett. - Pelo que disse, você saiu com a Srta. Randal no verão passado, Lonnie. Talvez possa dizer
o endereço dela ao tenente.
- Na época ela morava num quarto na Morgan Street, 812 - disse Lonnie. - Talvez ainda estivesse morando lá. Eu não sei.
Dirigia-se a Lena Hayes novamente. Qualquer informação atual desconhecida. O namoro de verão terminado, rejeitado e lamentado no ar frio de outono. Por favor, querida,
não podemos perdoar e esquecer? Marcus não sabia. Só pôde anotar o endereço e despedir-se.
Tornou a entrar pelos corredores da biblioteca novamente e viu Fuller no caminho. O médico-legista viera e se fora e Abby
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Randal, numa cesta, estava prestes a ir. Dois peritos terminavam uma investigação rotineira que provavelmente não os levaria a nada. Deixando Fuller para arrematar
as coisas, ele desceu pela biblioteca para um andar mais baixo, onde usou a porta externa e passou pela ambulância da polícia no estacionamento de concreto.
Contornou a biblioteca, subindo um lanço de escadas íngreme para o aclive em que ficava o prédio e, assim, de volta para o carro na rua. Saiu lentamente do campus
e alcançou a Morgan Street, na qual, em ordem decrescente, encontrou o número
812. A casa tinha dois andares e fora pintada de branco há muito tempo. Possuía uma varanda alta na entrada, que Marcus atravessou para chegar à porta. A senhoria,
que atendeu depois de algum tempo ao toque da campainha, era uma senhora idosa, com o ar triste e acabado de alguém que estava expirando lenta e interminavelmente,
com um sussurro de vida através de uma respiração lenta. Era uma das muitas viúvas que moravam perto do campus e complementavam sua pensão com o aluguel de quartos
para estudantes, concluiu Marcus.
Depois de se identificar, Marcus pediu permissão para examinar o quarto de Abby Randal. A senhoria, após expressar a surpresa esperada com o que talvez fosse um
pedido impróprio, fez questão de saber a razão. Marcus não fez objeção em lhe dizer o que logo seria de conhecimento geral e contou-lhe, intensificando seu choque
a tal ponto que por um momento ele temeu que o Seguro Social fosse perder uma pensionista. Ela se recuperou o bastante, porém, para acompanhá-lo ao andar de cima.
Permaneceu na porta, recostando-se no umbral para se apoiar, enquanto Marcus examinava o quarto e os objetos da última inquilina.
Podia ter-se poupado de tal incômodo. Havia poucas roupas penduradas no armário, um par de sapatos altos e outro de baixos no chão embaixo. Havia uma estante cheia
de livros bons, a maioria brochuras de qualidade, e nas paredes, destoando do fundo de papel desbotado, umas cópias razoáveis de dois excelentes
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quadros. Não havia nada de errado com o gosto de Abby Randal, mas ela obviamente não tinha recursos financeiros para satisfazê-lo. Não havia cartas, nem uma única
carta.
Aparentemente, além de ser órfã, como dissera Lonnie Beckett, ela possuía poucos amigos. Ou os amigos não escreviam. Se escreviam, Abby não guardava suas cartas.
Não havia nada, em resumo, que indicasse quem era realmente, ou quem tinha razão para matá-la. Na gaveta de cima de uma cômoda, Marcus encontrou 23 dólares e teve
vontade de saber onde ela conseguira o dinheiro. Bem, provavelmente o ganhara trabalhando e isto era algo que ele talvez precisasse descobrir. Por enquanto, podia
traçar um certo esboço de seu caráter. Uma moça bonita. Uma moça inteligente, franca. Uma moça pobre com bom gosto.
-' Quem eram os amigos dela? -- perguntou. - Tinha muitos amigos?
- Não muitos. - A senhoria ainda respirava com dificuldade devido à notícia inesperada, ou às escadas, ou a ambas. - Era agradável com as outras três moças que vivem
aqui, mas não o que se poderia chamar de amigável. No verão passado saiu com um rapaz, mas acho que isso terminou. Ela me disse que o nome dele era Beckett, Lonnie
Beckett. É tudo o que sei, exceto quanto ao Sr. Salle - acrescentou.
- Salle? Quem é ele?
- Richard Salle, um dos professores da universidade. É jovem, apenas um assistente, creio. No verão passado ele ensinou francês à Srta. Randall. Ela estava preparando
uma dissertação e precisava de noções de leitura para fazer parte da pesquisa.
- Compreendo. Talvez o Sr. Salle possa me dar mais algumas informações sobre Abby Randal. A senhora sabe onde posso encontrá-lo?
- Não de cor. Ele deve ter o nome no catálogo da cidade, se tiver telefone.
- Bem, não há mais nada a fazer aqui. Vamos dar uma olhada no catálogo.
Desceram as escadas e a senhoria acendeu uma luz no hall para que Marcus pudesse enxergar a letra miúda no catálogo.
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Ao localizar os nomes começados por S, ele seguiu com o dedo
até Salle, Richard.
Wymore Hall - disse em voz alta. - Isso é no campus, não é?
pode-se dizer que sim. Fica ligeiramente fora. É reservado para bacharéis da faculdade, mas eles aceitam alunos de
graduação, se houver quarto para eles depois que o corpo docente está instalado.
A senhora foi muito útil. - Marcus fechou o catálogo
e se dirigiu para a porta. - Muito obrigado.
Foi um prazer poder ajudar. Pobre Srta. Randal! Pobrezinha!
É, pensou Marcus, ao voltar para o campus, pobrezinha. Achava que aquela era uma boa descrição de tudo o que restara de Abby Randal na biblioteca. Começava a escurecer
e ele dirigiu com os faróis acesos. Atravessando o campus, chegou a Wymore Hall, do outro lado. Era um prédio comprido de tijolos com dois andares. Dentro, além
de um vestíbulo, ficava uma saleta onde havia abajures acesos aconchegantemente. No vestíbulo, um rapaz fazia serviço burocrático. Marcus disse:
- Eu gostaria de ver o Sr. Salle. Detetive Joseph Marcus
chamando.
O título funcionou como um passe de mágica, como ele previra. Disseram-lhe para ficar à vontade na saleta e o Sr. Salle, que acabara de chegar, seria chamado imediatamente.
Marcus agiu como lhe foi dito e, aproximadamente cinco minutos depois, o Sr Salle apareceu. Era um rapaz de cabelo louro claro bem aparado, modelando um crânio bem-feito,
e ingênuos olhos azuis. Seu aperto de mão foi firme.
Tenente Marcus? - disse ele, sem a preocupação de
disfarçar uma certa apreensão natural. - Sou Richard Salle. Em que posso lhe ser útil?
Estou fazendo uma investigação sobre uma certa Srta.
Abby Randal - respondeu Marcus. - Parece haver poucas informações a respeito dela e achei que o senhor talvez pudesse me fornecer alguns detalhes.
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- Temo que não. Também sei muito pouco sobre ela.
- O senhor lhe ensinou francês este verão, não?
- Correto. Mas aulas de francês não são particularmente reveladoras. Posso saber por que o senhor está interessado em Abby?
- Ela foi assassinada.
- Pelo amor de Deus! -- Richard Salle ficou boquiaberto por um momento e os olhos azuis pareceram ficar cegos com o choque súbito. - Onde? Quando? Como?
- O senhor tem jeito para perguntar sobre novidades, Sr. Salle - Marcus se permitiu um ligeiro sorriso. - Na sala de estudos da biblioteca. Esta tarde. Com um golpe
na cabeça.
- Que coisa chocante! Gostaria de poder ajudá-lo de alguma forma.
- Talvez possa. Vamos ver. Quantas vezes o senhor viu Abby Randal este verão?
- Eu a vi duas noites por semana durante aproximadamente uns três meses.
- É bastante. Certamente deve ter conhecido alguma coisa sobre ela nesse tempo.
- Não muito. Ela era inteligente e aprendia com rapidez, mas não acho que isso seja particularmente significativo.
- Não particularmente. Onde se encontravam para essas aulas? - perguntei.
- Ah, em vários lugares. Ás sessões eram bem informais. Às vezes usávamos uma sala de estudos da biblioteca. Outras vezes ficávamos sentados num banco no campus.
Algumas vezes combinávamos estudo e cerveja em algum barzinho do campus.
- Compreendo. E ela nunca lhe fazia confidencias? Nem mesmo enquanto tomavam cerveja?
- Nunca. Mantínhamos um relacionamento bem impessoal.
- Isso é péssimo. Eu tinha esperanças de que um relacionamento professor-aluna tivesse desenvolvido um pouco de sentimento. Às vezes isso acontece, eu sei.
- Não o nosso. Lamento desapontá-lo.
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Bem, os desapontamentos para mim são rotina. Deparo-me com eles freqüentemente.
Soou uma buzina lá fora e Richard Salle, ouvindo-a, jogou a cabeça para trás. Para Marcus, era apenas uma buzina de um carro qualquer, mas para Salle, aparentemente,
tinha um caráter distinto.
- É minha noiva - explicou. - Ela ficou de me apanhar a essa hora.
Vamos sair para jantar cedo. Talvez o senhor a conheça. O pai dela é uma figura preeminente do
estado. Membro do Conselho da universidade, em primeiro lugar. Leonard Manning, o Manning.
Marcus ficou impressionado. Membro do Conselho da Universidade era o mínimo. Além disso, possuía muitos milhões de dólares e trazia o governador pelo nariz. Um policial
comum não podia deixar de ficar impressionado. Marcus percebeu, com desagrado, que Richard Salle tinha consciência disso quando disse o nome. Não, é claro, que se
pudesse culpá-lo por querer valorizar uma boa coisa. A filha de um Manning seria um achado para um professor-assistente, envolvendo o efeito de um salto astronômico
de posição em 15 de abril. Rapaz de sorte. Rapaz de muita sorte. Se as coisas corressem bem, ele nunca teria necessidade de trabalhar 30 anos para uma aposentadoria.
- Já ouvi falar dele - disse Marcus. - Se o senhor estiver pronto para sair, eu o acompanho.
- Lamento realmente por ter que sair assim tão rápido. Lamento também não ter ajudado mais. Vou pensar, porém, e ver se consigo me lembrar de alguma coisa que Abby
disse, qualquer coisa que seja, que talvez lhe possa ser útil.
- Obrigado. Eu lhe agradeço, se puder fazer isso. Saíram juntos até o meio-fio, onde Marcus se desviou para
pegar seu próprio carro. A luz da entrada iluminava o automóvel caro que esperava Richard Salle e Marcus pôde ver a filha de Manning atrás do volante, procurando
algo na bolsa. Ao vê-la sentiu uma espécie de perversa satisfação. Ela podia ter acesso ao bolso sem fundo do pai, pensou, mas nunca se aproximaria de Atlantic City
quando a aparência fosse o cartão de visita. Era
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um tanto confortador saber que não se pode ter tudo ao mesmo tempo.
Confortado dessa maneira, Marcus se dirigiu para o Departamento de Polícia. Fez algumas anotações, escreveu um relatório e saiu para comer. Tendo comido e estando
de folga, parou num bar, tomou três cervejas e assistiu ao seriado "A Lei de Burke" na TV. Gostava de ver esta série porque Amos Burke fazia sua profissão parecer
muito fácil. Marcus não se ressentia com isso. Sua inveja tinha uma qualidade de afinidade que se entrosava com o bar e as cervejas. Depois que Amos resolveu seu
caso, Marcus levou o seu próprio caso para casa, ainda sem solução, e foi dormir com ele.
Na manhã seguinte, no Departamento de Polícia, ficou preso na mesa durante umas duas horas, depois do que passou mais meia hora falando com o chefe. Voltando à sua
mesa para apanhar o chapéu e dar uma escapulida, foi apanhado no ato pelo médico-legista, um homenzinho de pele marcada com a expressão dispéptica de quem sofria
de um problema crônico de cinismo ou gases. Parecia tão frágil fisicamente como se qualquer corrente de ar pudesse ameaçá-lo, mas era, na verdade, tão forte quanto
um fio de arame. No momento, de qualquer maneira, estava seguramente ancorado na cadeira de Marcus.
- Eu geralmente escrevo meus laudos num relatório - disse ele - mas desta vez achei que devia ter o prazer de lhe contar pessoalmente.
- Divirta-se - replicou Marcus. - Prazer de me contar o quê?
- Um exame superficial de sua última vítima revela que ela sofria de uma condição física conhecida que às vezes é um problema, mas raramente é fatal. Não era virgem.
- Ah? - Marcus afundou na cadeira e recosijou-se. - Tem certeza?
- Lógico que tenho. Isso é facilmente diagnosticado quando sustentado por um sério caso de gravidez.
- Entendi, doutor. Quanto tempo de gravidez?
- Uns três meses.
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- Estranho. Muito estranho. - Marcus fechou os olhos, aparentemente preparando-se para tirar um cochilo. - Eu estava criando uma imagem dela em minha mente e,
de certa maneira, a imaginara muito realista e esperta para ser apanhada assim.
- É melhor repensar o caso.
- Talvez. Talvez não. Talvez eu tenha perdido algum ângulo.
- Como por exemplo?
- Como por exemplo ela ser realista e esperta o bastante para arranjar as coisas deliberadamente.
- Você está imaginando coisas. Este é o problema com vocês, seus policiais fantasiosos. Alguém apresenta um fato científico e vocês o aproveitam para criar um conto
de fadas. De qualquer maneira, se estiver certo, o arranjo não foi muito bem-sucedido. Foi fatal, isso sim.
- Agora você é que está imaginando coisas. Como sabe que foi esse o motivo do crime?
- Ora, vamos, Marcus. Enquanto não aparecer um melhor, este serve.
- Bem, isso não é imaginação. É uma verdade, se já ouvi alguma. - Marcus de repente levantou-se e pegou o chapéu. - Tenho que correr, doutor. Obrigado pelo brilhante
diagnóstico. Não pensei que fosse capaz disso.
Saiu para o corredor, deixando o velho médico a sós para engolir o comentário desagradável e, 20 minutos depois, subia os degraus da biblioteca da universidade.
Lá dentro, continuou a subir, parando no andar em frente à mesa do encarregado. Lonnie Beckett estava trabalhando em seu lugar. Cumprimentou Marcus polidamente mas
sem muito entusiasmo.
- Bom dia, tenente - disse ele secamente. - Procurando alguém?
- Esperava encontrar a Srta. Hayes aqui. Há algo que desejo esclarecer com ela.
- Lena está em aula. - Lonnie olhou para o relógio no braço direito. - Vai sair daqui a uns seis minutos.
- Onde fica a sala?
- No Grover Hall. E o prédio de pedra logo depois da curva na frente da rua. Mas talvez eu possa lhe dizer o que deseja
saber.
- Não creio que possa. Há outra coisa, porém. Você me disse ontem à tarde que Abby Randal era franca e esperta, mas isso não é tudo. Por que não me disse que ela
também era capaz de ser muito generosa?
- Não sei o que o senhor quer dizer com isso. Generosa com quê? Eu lhe disse que ela possuía pouco dinheiro. Não tinha muito para poder ser generosa.
- Todas as moças têm alguma coisa. Como diria o meu amigo Fuller, não é exatamente amor. Às vezes passa por amor.
O rosto fino de Lonnie Beckett estava tenso e contraído. Seu lábio inferior começou a tremer e ele o prendeu com os dentes por alguns segundos. Marcus observou-o
com uma espécie de curiosidade clínica, como se seu interesse fosse puramente acadêmico.
- Não acredito - disse Lonnie finalmente. - Abby não
era desse tipo.
- Não? Bem, talvez não. Talvez ela tenha descoberto alguma outra maneira de ficar grávida. Não, compreenda, que eu não o respeite por tentar proteger a reputação
de uma moça. Incidentalmente, reparei ontem que a Srta. Hayes estava usando um anel de diamante no dedo direito. Tive a intuição de que você o pôs ali.
- Tem razão. Fui eu.
-' Congratulações. Vamos esperar que ela o deixe onde você o colocou.
Virando-se, Marcus desceu as escadas, deixou o prédio e fez a curva no caminho para Grover Hall. Havia um banco de pedra na calçada e ele se sentou ali à luz pálida
e fria do sol. Acendeu um cigarro e esperou, levantando a gola do casaco em volta do pescoço. Devia ter posto um sobretudo. O compus se achava praticamente deserto
no momento, com os estudantes presos em meio milhar de salas, mas logo depois estava apinhado deles durante um breve intervalo de seu cativeiro. Marcus observou-os
atentamente,
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procurando Lena Hayes, mas achava, com pesar, que seria um milagre conseguir descobri-la em meio a essa multidão que se dispersava rapidamente em todas as
direções. Teve sorte, porém, pois lá estava ela, vindo rapidamente pelo caminho graças a um horário cheio. Esperou até ela passar diante dele; então se levantou,
tocando o chapéu.
- Alô, Srta. Hayes - disse.
- Ah, Tenente Marcus. - Ela parou, encarando-o, mas impaciente por retomar seu caminho. - Lamento não dispor de tempo
agora. Tenho outra aula.
- Tudo bem. Vou caminhando ao seu lado, se não se incomodar.
- O que o senhor quer saber de mim não pode esperar? Estou livre daqui a uma hora.
- Vou tentar não atrasá-la para sua aula. Posso carregar seus livros?
- Não, obrigada.
Ela recomeçou a andar e Marcus acompanhou-a. Gostaria muito que ela o tivesse deixado carregar seus livros. Havia muito tempo, muito mesmo, que não fazia tal coisa
para uma jovem tão adorável.
- A senhorita me disse ontem - disse ele - que estava apagando as luzes das salas da biblioteca quando descobriu o corpo de Abby Randal. Onde ficam os
interruptores? Em que extremidade das prateleiras, quero dizer?
- Há interruptoies dos dois lados.
- Quais a senhorita usava?
-' Os que ficam perto da escada, naturalmente. Por que ia andar tanto até o outro lado e depois voltar às escadas, quando estava pronta para subir ao próximo andar?
- Mas foi exatamente o que fez, Srta. Hayes; pelo menos uma vez. Do contrário, não poderia ter visto o corpo de Abby Randal no chão daquela salinha no fim da fileira.
Não estou certo?
- É claro que não. Voltei lá por uma razão muito justa. Quando cheguei à passagem que termina em frente à porta da salinha, as luzes estavam apagadas, como deviam,
mas reparei
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um livro no chão, perto da onde eu estava. Acendi as luzes para poder recolocar o livro na prateleira onde devia ficar, e então vi que havia vários livros no chão
por toda a passagem. Parecia que alguém os tinha tirado das prateleiras de propósito, só para dar trabalho. De qualquer maneira, atravessei a passagem e repus os
livros, e foi assim que cheguei ao lugar e vi o corpo.
- Diga-me, Srta. Hayes. De que prateleira eram os livros?
- Da última de baixo, bem perto do chão.
- Todos eles?
- Não achou isso estranho?
- Não. Só achei que era uma molecagem. É mais difícil recolocar os livros das prateleiras de baixo. A gente tem que ficar acocorada para fazer isso. Se a gente não
tiver cuidado, perde o equilíbrio e despenca tudo.
- A senhorita deve ter ficado bem aborrecida.
- Para falar francamente, fiquei furiosa. Então descobri o corpo, é claro, e esqueci aquilo.
- Posso entender. É este o seu prédio?
- É. Vou ter que correr, se não me atraso. É só isso que o senhor desejava me perguntar?
- É.
- Não vejo que diferença possa fazer.
- Faz muita diferença. Obrigado, Srta. Hayes.
Ele a viu correr para o prédio, cheio dos fantasmas de temporadas passadas, e depois virou-se com um suspiro e voltou para o carro. Ficou sentado algum tempo atrás
do volante. Estava estranhamente indeciso em fazer o que restava a ser feito e resolveu voltar ao departamento e tentar incumbir Fuller da tarefa. Fuller provavelmente
não se importaria, ainda mais que isso lhe daria uma oportunidade de bancar o chefe por algum tempo. Naquele meio tempo, ele, Marcus, podia preparar-se para a parte
mais deprimente da questão, que era acusar pessoas de coisas que nunca deviam ter feito. Assim decidido, voltou ao Departamento de Polícia e deixou um recado com
o sargento da recepção para lhe
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enviar Fuller quando este chegasse. Foi quase uma hora depois que Fuller apareceu.
- Se o senhor quer saber se encontramos a arma ou não
- disse Fuller - não encontramos.
- Bem, eu não me preocuparia mais com isso. Provavelmente foi uma chapa de chumbo ou algo que podia ser carregado numa pasta ou debaixo de um casaco. Gostaria de,
saber se você pode me fazer um favor.
- Faço qualquer coisa - respondeu Fuller cautelosamente.
- Faz parte do meu trabalho.
- Você sempre faz seu trabalho, Fuller.
- Obrigado. Qual é o favor?
- Vá até a universidade e traga o assassino de Abby Randal. Não tem pressa, porém. Quando for conveniente para você.
O rosto de Fuller transformou-se lentamente em pedra. Deliberadamente, como se levado por grande cautela, ele se sentou na cadeira livre e cobriu os joelhos com
as palmas das mãos grandes. Falou com uma imensa reserva, olhando para a parede acima, além de Marcus.
- Só isso. Vá e traga o assassino de Abby Randal, Fuller. Quando lhe for conveniente, Fuller. - Baixou os olhos até as mãos e virou-as sobre os joelhos, movendo
os dedos. - Talvez o senhor não se importe de me dizer como soube de repente quem é o assassino.
- É fácil, Fuller. Eu sei porque Abby Randal me disse.
- Ah, isso explica tudo, então. Foi apenas uma questão de falar com um fantasma. Nunca tive o privilégio de conversar
com um fantasma. Como o senhor sempre consegue fazer coisas interessantes?
- Não foi nenhum fantasma, Fulíer. Ela me disse antes de morrer.
- Tive a impressão de que o senhor nunca a tinha visto antes de morrer.
- E não vi, Fuller, mas ela deixou uma mensagem.
- Eu sou só um sargento burro, creio. Não sei ler muito. Provavelmente não teria recebido a mensagem se ela a
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tivesse escrito em sangue, o qual havia nenhum; ou na poeira do chão, que também não existia.
- Ela escreveu a mensagem em livros, Fulier. Concluímos no começo que ela havia sido morta naquela saiinha onde foi encontrada, mas não foi. Só foi lá para morrer.
Suspeitei disso mesmo no começo, porque a cadeira estava arrumadinha debaixo da mesa, como você se lembra. Ela obviamente não estava lá havia muito tempo, de qualquer
maneira, mas isso não excluía a possibilidade de ser golpeada ao entrar. Era isso que a posição do corpo sugeria. Eu soube esta manhã, contudo, que ela foi atacada
no outro extremo da passagem, O assassino devia tê-la golpeado outras vezes para ter certeza de que estava morta, mas ficou com medo de se demorar por lá, é claro,
e fugiu. Isso foi um erro, porque Abby Randal não morreu. Não naquele momento. Ela era forte. Era inteligente. Mesmo morrendo, com dor e medo, pensou numa maneira
de nos deixar o nome do assassino. Arrastou-se pela passagem, puxando livros da prateleira de baixo para deixar o caminho marcado e nos dizer que havia uma razão
para fazer isso. Quando chegou naquela salinha, estava onde queria. Arrastou-se para dentro e morreu. Por quê? Por que, Fuller?
- Creio - respondeu Fuller, com imenso sarcasmo e um certo desespero - que quis morrer com privacidade.
- Não. Ela foi se arrastando para lá porque esta era a única maneira de apontar o assassino. Você sabe como se chamam aquelas salinhas de estudo, Fullei? Chamam-se
saletas. Tem um sujeito lá na faculdade cujo nome é Richard Salle. Ele ensinou francês a Abby Randal no verão passado e tinha muito a perder, diga-se
Maming, tornando-se um papai prematuio com a mamãe errada. Ele disse que os encontros com Abby foram informais e devem ter sido. E eu lhe garanto, Fuller, que o
último foi ontem à tarde,
dentro da biblioteca.
- São essas todas as provas que o senhor tem? Pode ser verdade, mas vai levar muito tempo para provar.
- Certo. Isso não basta para que o promotor do distrito leve a julgamento. Vamos descobrir mais alguma coisa, porém.
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Não é muito difícil descobrir provas circunstanciais quando se sabe onde procurar. De qualquer maneira, não vamos precisar delas realmente. Falei com Salle ontem
à noite e conheço o tipo. Ele vai se quebrar como um ovo sob pressão. Mas como podemos conseguir uma confissão, se você não o trouxer aqui?
Fullet levantou-se. Sacudiu a cabeça como se para colocá-la em ordem.
- Se o senhor conseguir fazer o sujeito confessar, foi um grande trabalho - disse ele. - Tenho que admitir.
- Não estou orgulhoso disso - disse Marcus. - Foi tudo obra de Abby Randal. Eu só apareci depois para colher os louros.
Bryce Walton
NÃO-IDENTIFICADA E MORTA
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De repente, Fred Nebel estava sóbrio e dirigia-se para o telefone em meio à ressaca de uma manhã de sábado. Apenas o nome de Rudy Weldon fora mencionado no boletim
especial de notícias que despertara a bebedeira de fossa de Nebel. O boletim dissera que todos os passageiros haviam morrido, mas não mencionara nenhum outro nome,
nem o número de passageiros.
Deus do céu, por que concluíra tão rapidamente que a esposa era um deles? Não se conclui uma coisa assim sem fatos, pensou com a consciência pesada, ao discar. É
preciso ter certeza primeiro.
Pacientemente, a mulher do Daily News de Los Angeles disse:
- Lamento, mas não podemos dar a lista de mortos enquanto não for feita uma identificação completa dos corpos e uma notificação dos parentes.
- Mas minha esposa podia estar naquele avião. Luella Nebel.
- Apenas quatro passageiros foram mais ou menos identificados. O nome de sua esposa não consta desses quatro.
- Havia mais de quatro?
- Havia.
- Que informações a senhora pode me dar? -• O desastre ocorreu há três horas - ela parecia ler de um teletipo. - O Beechcraft bimotor explodiu e incendiou-se.
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Os restos das vítimas estão sendo removidos para a capela de A. Ribesto e Filhos, em Ten Palms, onde a identificação vai ser completada. A única testemunha do desastre,
um pastor chamado Steven Myerson, relatou que o avião pareceu perder altitude quando se aproximava dos Morros de San Padres e bateu e se incendiou a uns cem metros
da casa dele. Acredita-se que o avião talvez estivesse sobrecarregado. Até agora, apenas quatro dos sete passageiros foram identificados e...
- Obrigado - interrompeu Nebel - muito obrigado. - Ele quase deu uma gargalhada ao desligar. Era irônico que, entre as muitas excentricidades de Luella, a que ele
considerava mais insuportável fosse agora responsável pela feliz certeza de que ela estava viva. Ficara surpreso ao descobrir que Luella era muito supersticiosa
com relação a gatos pretos, escadas, espelhos quebrados, números de azar. Seu psiquiatra dissera que ela precisava de uma crença em magia porque as pessoas haviam
falhado com ela. Mas Nebel não falharia. Talvez seu medo do número de azar, sete, não tivesse falhado também.
Ela nunca seria a sétima passageira. Depois de estar casado há um ano com Luella, ele sabia pelo menos isso a respeito da esposa.
Fez uma chamada interuibana para Rudy Welton, próximo a Ten Palms, e ficou ouvindo o toque distante e nervoso. Permaneceu imóvel, de olhos fechados. Mas as pálpebras
não conseguiam afastar a imagem de Luella projetada por seu cérebro. Olhou com sentimento de culpa para os pedaços de papel rasgado no tapete, o bilhete que Luella
lhe escrevera dizendo que ia passar o fim de semana na casa de Rudy Weldon, que ele não ficasse com ciúmes, que ela só estava entediada, que talvez eles saíssem
no novo avião de Rudy até Big Bear, e beijos. Ele ficara furioso, muito mesmo, antes que pudesse evitar. E então se embebedara.
O toque continuou. Apertou os olhos, como se sua vida dependesse de uma resposta absolutamente necessária. Encheu um copo de uísque. Nunca bebera tanto quanto nos
últimos meses...
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- Lamento. O senhor quer que continue tentando e o chame depois?
Sua boca caiu. Os olhos imploravam com o fone, um olhar tenso e assustado.
- Sim, é claro, continue tentando.
Levantou-se. Recusava-se a acreditar que Luella estava... morta. Ela não teria ido naquele vôo. Seu comportamento era por demais imprevisível e irresponsável para
ele esperar que ela o avisasse. Ninguém respondia na casa de Weldon, mas isso nãc significava necessariamente que todas as pessoas hospedadas lá tinham ido naquele
vôo. Absolutamente. Os que não haviam embarcado sem dúvida, a esta altura, já teriam ido embora; e quem os culparia? Luella podia estar em Ten Palms. Talvez estivesse
confortando amigos e parentes aflitos. Talvez estivesse muito perturbada e precisando dele.
Tentou chamar a capela de A. Ribesto e Filhos, em Ten Palms, mas a linha estava ocupada. Quando conseguiu completar a ligação, ninguém queria falar com ele.
Quis saber por que simplesmente não comparavam a lista de convidados da casa de Weldon com o número de passageiros. Se só houvesse sete hóspedes, isso significava
que todos eles tinham ido no vôo. Teriam uma lista dos mortos. Mas não era tão simples assim, parecia.
- Os amigos e parentes podiam tirar conclusões erradas - disse a mulher. - A identificação deve ser positiva antes que possamos divulgar tal lista de mortos - disse
mais alguma coisa sobre responsabilidade moral.
Nebel ficou sentado como um passageiro abandonado numa sala de espera de estação. Era um homem grande ficando grisalho e seu rosto cheio estava tenso de ansiedade
confusa. Como não podia suportar a tensão da espera, decidiu pegar o carro e ir até Ten Palms. A hacienda de Rudy Weldon ficava no caminho. Quando se dirigia para
a porta, o telefone tocou.
- Alô! - gritou Nebel. - Alô!
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- Continue - disse a telefonista. Uma voz fraca de mulher disse:
Falar, querida? Por favor diga com quem. Estou certa de que estive lá.
Um tipo de silogismo desesperado ocorreu a Nebel ilusoriamente. A voz era a de uma mulher bêbada.
Luela ficava bêbada em lugares como a casa dos Weldons. Luella
era mulher. Esta mulher podia ser Luella.
- Luella? - perguntou.
Ouviu o toque de ligação cortada. Chamou novamente. Não houve resposta. Lutando contra um desânimo que o consumia, saiu pela porta dos fundos, atravessou o pátio,
passando pela churrasqueira, até a garagem. A cúpula do supermercado da rua residencial estava iluminada pelo sol de abril.
A batida sólida e pesada da porta de seu carro grande e convencional foi confortadora. Tentou ignorar o vazio deixado pela ausência do MG de Luella. Não aprovava
aquele MG. Não gostava de carros esportivos. Davam a impressão de abandono, deixavam-no inquieto. Luella dirigia o dela como se não ligasse a mínima para sua vida
nem para a de ninguém. Uma vez disse que ligava tanto para a vida quanto para a barba branca e comprida de Deus, o que era uma citação de Baudelaire. Ela ligava,
é claro. O psiquiatra de Luella disse que ligava. Disse que sua maneira descuidada de dirigir originava-se de um desprezo a si mesma, uma sensação de inutilidade.
Testava a todos e a tudo. "Será que ele vai me amar apesar do que eu fizer? Será que o destino me ama o bastante para me poupar, mesmo que eu arrisque a vida?"
Sem aquele psiquiatra, Nebel não saberia nada sobre a esposa. Ele respeitava o psiquiatra. Tudo se transformava numa lógica simples, facilmente compreensível e incontestável.
Era confortador saber que uma autoridade parecia otimista quanto às possibilidades de melhora de Luella e a uma rápida modificação de suas perturbações emocionais
profundas.
Ele a conhecera naquela festa maluca - o tipo de festa a que quase nunca ia - e se casara com ela três dias depois. Ela
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lhe parecera tão adorável, jovem, encantadora e inteligente. Ninguém poderia ter imaginado quanta perturbação emocional havia por trás de uma máscara tão bonita.
A complexidade...
Nebel era um motorista cauteloso, que acreditava em sua habilidade e considerava todos os outros veículos e pedestres à vista como uma ameaça em potencial. Mas apenas
na metade da estrada reta e ensolarada para Ten Palms, entre áridos morros de arenito e barrancos salpicados de cactos, reparou, com um tipo de choque dormente,
que o velocímetro marcava 120 quilômetros por hora. E o ponteiro continuava subindo.
Algo inteiramente novo e terrivelmente estranho aconteceu a. Nebel. Seu ser conhecido, controlado pareceu encolher-se e havia uma sensação de pulsação, de destino,
de terrível necessidade. Queria rir de seu desafio ao cuidado e à razão. Havia uma sensação incontrolável de rendição a alguma coisa e seu rosto subitamente brilhava
de suor.
Estava dirigindo numa espécie de estupor, de suspensão de sentimentos. Uma distorção irreal que se abatera sobre as coisas. O deserto, com sua paisagem monótona,
não dava impressão de movimento. O ar zunia. O metal vibrava fracamente. Os carros por que passava sem dificuldade pareciam imóveis. Desligamento, distorção, a sensação
horrível de se ver indo de encontro ao desastre, indefeso, um tipo de espectador que sabia que estava muito mais...
A faixa da estrada do deserto pareceu expandir-se, estender-se infinitamente, mergulhada em imagens cintilantes. O ponteiro passou dos 170...
Nebel permaneceu algum tempo estacionado na sombra das iúcas do acostamento. Ainda podia ouvir os ecos de advertência de seus próprios gritos nos ouvidos. Esfregou
os olhos, depois arrancou a mão como se tivesse sido apanhado num ato de fraqueza.
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Não era só o uísque, a tensão, a fadiga. Algo mais estava à espreita, uma loucura dentro de si - parecida com a de Lucila, talvez - de que nunca suspeitara antes.
Novamente dirigiu com cuidado - por todo o caminho até a hacienda de Rudy Weldon. Mas a cautela não era a mesma. Agora era autoconsciente. E a cada quilômetro sentia
o corpo retesar-se com a tensão. Como se ele fosse um daqueles ciclistas que vira uma vez, quando criança, pedalando por um arame alto.
O MG azul de Luella não estava entre os outros carros estacionados no pátio. Deu um longo suspiro de alívio. Sentiu-se até bem quando lhe ocorreu que talvez Luella
nem tivesse vindo para a casa de Weldon. Podia simplesmente ter dito que viria aqui passar o fim de semana. Ela sabia como ele desprezava aquele pessoal rebelde
e existencialista que se sentava ao redor de mesas à luz de velas, lendo Baudelaire e fumando chá. O psiquiatra explicara como ela iria a extremos para testar o
amor de Nebel, por se sentir indigna dele.
Mas o fato de o carro dela não estar aqui significava uma coisa definitivamente - que se ela tivesse estado aqui não saíra no avião de Rudy.
Nebel pensou em ir até Ten Palms. Não, era melhor confirmar pelo menos, ver se Luella estivera aqui, e se tivesse estado, descobrir onde fora.
Quando caminhou através de cactos floridos até a varanda ampla de colunas, uma súbita brisa de ar quente pareceu ressecar-lhe o rosto, esticar a pele com força sobre
as maçãs do rosto. Acima do telhado vermelho, os picos de morros áridos estavam cobertos de uma luz amarelada suja.
As pesadas portas de carvalho estavam ligeiramente abertas. Ele bateu algumas vezes, depois entrou numa sala comprida e fresca, forrada com caibro. Havia a lareira
apagada de um lado. Do outro, uma armadura observou-o da base de uma escada. Passou os olhos rapidamente pela sala, vendo sem atenção
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os restos trágicos de um smorgasbord estragado, almofadas brilhantes rodeando uma enorme mesa de café de sequóia, canecas de cerâmica manchadas de batom, velas grandes
como seus braços ainda brilhando em tocos de sebo. Ele estremeceu ligeiramente, depois caminhou por uma atmosfera de melancolia pesada até a borda da mesa e preparou
uma dose dupla de uísque. Teve a impressão de ouvir uma gargalhada silenciosa. Ficou parado, escutando. Chamou várias vezes. Nenhuma resposta. Mas alguém estivera
aqui quando ele telefonara de Van Nuys.
- Buuuu!
Nebel derramou metade do uísque quando se virou. Uma morena alta e magra, com a pele bronzeada, usando uma blusa fina e um par de calças de toureiro, levantou-se
do sofá próximo à lareira. Esticou uma perna comprida para cima e mexeu os dedos pintados de verde como um macaco
- Pode me servir alguma coisa, também, por favor, benzinho? - Sacudiu um copo vazio e analisou-o. - É atemorizante. Eu me sinto como um fantasma porque devia estar
morta. Devia estar. Mas não fui no vôo, percebe? Fiquei bêbada e apaguei e quando acordei... eles tinham ido embora.
- O que você está bebendo?
- Qualquer coisa pura e que ajude a esquecer.
Ele lhe deu um copo de uísque puro. De perto, o rosto dela parecia lânguido, os olhos embaçados. Mas eram olhos bonitos e por trás deles ele sentiu coisas enterradas
e transformadas.
- Você parece estranho, também, meio arrasado. Sente-se. - Ele sentou numa almofada.
- Está procurando fantasmas, benzinho? Se eu acreditasse neles, estaria ouvindo um coro deles agora, mas não acredito Mas em vampiros eu
acredito e creio seja em que forma for. Como os repórteres. Pessoas que fazem perguntas mórbidas.
- Meu nome é Fred Nebel.
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- Foi você quem ligou feito um louco! Você? Deus, Luella fez uma descrição tão errada de você. Eu imaginei algo com olhos úmidos, lentes bifocais, como um pequinês.
O telefone começou a tocar. Nebel deu um pulo.
- Deixe pra lá, benzinho. E aqui está você, grande, cabeludo, do tipo Charles Bickford. São Bernardo, uma força ingênua etc. Aquela Luella!
O toque persistente do telefone deu nos nervos abalados de Nebel. Ele começou a se levantar.
- Não, benzinho. Eu já disse a eles quem estava aqui passando o fim de semana. Para o diabo com os vampiros, sejam eles da raça, credo ou cor que forem.
- Reparei que o carro de Luella não está lá fora. Queria saber aonde ela foi, ou se chegou a vir aqui.
- Luella disse que lhe deixou um bilhete, benzinho, como a gente faz com o leiteiro, ou algo assim.
- Sim, mas...
- Luella estava aqui sim - disse a mulher. - Por acaso, meu nome é Barbara.
- Você sabe aonde ela foi então? - perguntou Nebel. Sua voz saiu com um som apertado. Reprimiu um impulso de
gritar para o telefone que recomeçara a tocar.
- A arma favorita de Luella, Fred. Deixar as pessoas na incerteza. A arma favorita da era freudiana... a desculpa oficial de tédio, tédio, tédio. Esposa se manda
no fim de semana, isto é porque é uma neurótica.
O telefone parou de tocar, mas deixou um silêncio perturbador. Barbara tomou o uísque como se fosse Coca-Cola.
- Você sofre, eu sei. Mas é difícil ser compreensivo com o inferno
conjugal. Como disse Sartre, o inferno é um restaurante onde as pessoas se servem. Mas o sofrimento
cai bem em você Fred, o deixa másculo. Quero dizer, o suor, barba. Você fuma Marlboro? Me mostre sua tatuagem.
- Tudo o que me interessa, Barbara, é saber onde Luella foi. O carro dela não está aqui. Ela foi a algum lugar. Tente se lembrar.
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Barbara apertou os olhos. Seus lábios carnudos esticaram-se numa linha fina e apertada.
- Eu me lembro bem. Luella estava aqui, é claro. Ela sempre estava onde quer que um homem estivesse preso a alguém momentaneamente.
Nebel começou a enfurecer-se. Ao mesmo tempo sentiu uma espécie de medo culposo.
- Isso não é da sua conta. Só quero que me diga aonde ela foi, se souber. Se não souber, me diga.
- Perdoe minha rudeza, mas Luella era problema meu, sim. Pessoas problemáticas como Luella se tornam problemas para todos os que as cercam. Eu odiava a pequena
Luella. Sabe. eu era apaixonada por Rudy. E a pequena e indefesa Luella de olhos grandes não saía do pé dele. A pequena Luella não se satisfazia com nada, especialmente
se a coisa pertencesse a outra pessoa. Como os chamados filhos irresponsáveis da natureza, ela não tinha o menor respeito pela propriedade privada.
Nebel enxugou a boca com a mão aberta.
- Barbara... me diga só aonde Luella foi. É só isso que quero saber.
- Quando estou bêbada, não me importo muito com o que digo ou faço, nem com nada, Fred. E estou realmente bêbada. Nunca mais vou ficar sóbria. Do contrário,
podia achar que o que aconteceu importa e não poderia viver com essa idéia. Eu amava o velho Rudy.
Barbara olhou para o maxilar de Nebel, para o nervo que se contorcia ali.
- Luella se tornou uma obsessão pra você agora. Ouça... comece agora, livre-se da sua obsessão.
- Pelo amor de Deus, ela saiu de carro e foi a algum lugar e você...
- Ah... você diz que tem certeza de que ela saiu de carro porque o carro dela não está aqui? Eu compreendo, Fred. Lamento, lamento. Mas o carro dela nunca esteve
aqui... nunca.
- Você disse que Luella estava aqui.
199
- É, mas não o carro. E tem uma historinha sórdida por trás disso. O carro dela quebrou em algum lugar na estrada. Ela telefonou... pobrezinha da Luella, tão
indefesa, você sabe. Rudy saiu e foi buscá-la. Levaram um tempo pra voltar... um tempão.
Nebel esfregou a mão nos olhos. Sentia um aperto na garganta. Então Luella estivera aqui. E não saíra no carro. Então...
O telefone começou a tocar. Mas agora tinha um som monótono, distante, sem nexo. Uma voz dentro de Nebel sussurrou...
- O que você está fazendo neste maldito lugar? Vá, vá embora, vá para casa, vá para algum lugar, qualquer lugar, antes que seja tarde demais.
- Luella estava naquele avião? - Não conseguia perguntar isso. Não conseguia dizer nada.
Mas Barbara conseguia. Não só podia, como diria, sabia Nebel com uma certeza horrível. Barbara nunca pararia de falar.
- Eu gostava muito de Rudy. Apesar de louco e rebelde, ele era autêntico. Luella era só falsidade. Só falsidade, não havia uma Luella verdadeira em nada que fazia.
Nenhuma essência. Um camaleão. Fingindo ser uma coisa ou acreditar numa coisa, mas todo o tempo sendo várias outras pessoas ou coisas. Nada de verdadeiro. A sua
psiconeurose, sua vida amorosa, tudo falso também. Uma representação, uma diversão, uma charada.
Ela podia ser louca, mas não queria se curar. Nunca houve uma verdadeira Luella para se curar. Luella era apenas uma fantasia da sua pequena imaginação ambiciosa.
O telefone devia ter parado, pois agora recomeçou a tocar, Nebel ficou sentado, estonteado, ouvindo essa mulher horrível, coerente e bêbada falando de Luella no
tempo passado. Agarrou seu pulso.
- Onde está Luella?
- Eu disse aos jornalistas quem eram os hóspedes que estavam aqui - respondeu ela, aumentando a voz. - Atendi telefonemas a manhã toda. Não sabe como me
sinto? Quero dizer,
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os hóspedes de fim de semana estavam todos aqui numa festa, rindo, entende, tentando animar as velhas festas de sempre. Então, de repente... eles... eles
estavam mortos e acabados.
Ele a sacudiu. Ela riu estridentemente. Agarrou os pulsos dele com as duas mãos. O copo se despedaçou no chão. Percebendo o terror de dar pena por debaixo da máscara
dela quando suas mãos curvaram-se em pânico, ele a soltou rapidamente.
- E então não havia mais ninguém - disse ela. - Ninguém a não ser Barbara sozinha no limbo. Eu talvez sentisse pena de mim mesma se ficasse sóbria. Eu amava Rudy.
Nebel levantou-se. Começou a se dirigir para a porta. - Aonde você vai, Fred?
- Achar Luella.
Ela gritou para ele. Ele se virou.
- Você está vivo, Fred. Não procure Luella. Não quer continuar vivo? Você devia se sentir feliz por estar livre. Tudo bem, estou bêbada. Vou lhe dizer uma coisa,
benzinho. Ela está morta. Luella está morta. Bem morta. Completamente morta. Morta, morta, morta!
- Você está mentindo! - gritou Nebel, levantando a mão para ela. Barbara cambaleou para trás e caiu esparramada. Ele ficou olhando para a mão aberta, depois para
o rosto espancado da mulher. Ela riu para ele.
- Não seja bonzinho, Fred. Me bata novamente. Você está começando a parecer humano. Como se sente? Nunca bateu numa mulher antes? Nunca bateu em ninguém? Você
foi feito pra isso. Bate com vontade. Só que devia bater na pessoa certa
A voz dele não soara como a voz de sempre. Suas ações eram as ações incríveis e chocantes de outra pessoa. Dirigira o carro a mais de 170 quilômetros por hora; espancara
esta mulher.
Ele se sentou e cobriu o rosto com as mãos.
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Ouviu a voz dela como se através de uma parede.
- O que está tentando provar, Fred? Que ela está realmente morta? Não percebe como é um homem de sorte?
- Cale a boca! - rosnou ele por entre as mãos. - Por que está descontando o ódio em cima de mim?
- Gosto de você, Fred. Você é grande e bom. Por que você fez isso, Fred? Porque tem mais de quarenta anos e Lucila parecia tão jovem e inocente? Era agradável ter
a velha libido estimulada por uma coisinha doce de apenas vinte e dois anos? Dê-se por feliz por esse tipo de infantilidade não ser contagioso. Vejo tudo isso
em você, os velhos valores, responsabilidade, lealdade. Luella nunca ouviu falar deles. Zombava de você, ridicularizava-o. Ria de você gastar cem dólares por
semana com aquele charlatão de Beverly Hills. Eu não sou contra psiquiatria. Mas o médico dela é um dos charlatães mais mercenários desde Cagliostro.
Ele tirou as mãos do rosto lentamente e olhou para ela.
- Quantos hóspedes havia aqui?
- Oito.
- Só? E os empregados?
- Nenhum. Os empregados têm olhos compridos. Falam.
- E você não foi no vôo. Sete foram, o que significa que você está me dizendo que minha mulher... que ela foi...
- Foi isso que falei. Mas não vou repetir. Havia sete passageiros. Só havia mais sete além de mim. A pequena Luella tinha que ter ido. E é isto, meu bom homem.
- Você disse que estava bêbada demais para ir. Você viu realmente Luella subir no avião?
Ela olhou para ele, sem censura, nem reprovação, nem piedade, apenas teórica.
- Muito bem, Fred. Eu estava apagada como um peru de Natal. Eu não a vi subir no avião.
Ele se levantou e respirou fundo.
- Obrigado, Barbara. Então devem ter levado outra pessoa. Você compreende, minha mulher era muito supersticiosa. Não aceitava uma placa de carro do Departamento
de Trânsito
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com o número sete. Não marcava encontros no dia treze. Tinha pavor de números de azar. Para algumas pessoas o sete é
um número de sorte; para ela era veneno. Logo, sei que ela não pode ter sido a sétima passageira.
Barbara deu de ombros.
- Então eles podem ter levado outra pessoa. É possível. Tudo é possível. - Estava com os olhos molhados. - Lamento, Fred - murmurou. - Lamento mesmo que você tenha
de sofrer por nada. Todos nós devíamos ficar jovens eternamente.
- Adeus, Barbara - disse ele e foi para a varanda. Caminhou até o carro, entrou e bateu a porta.
- Fred!
Quando ele olhou para Barbara atravessando o pátio correndo, o sol estava bem forte, baixo e refletindo num ângulo de seus olhos.
- Aonde você vai, Fred?
- Achar Luella.
O rosto dela estava próximo ao seu. Os olhos eram ternos
e escuros.
- Lamento por tê-lo magoado, mas não lamento pelo que disse. As pessoas como ela magoam pessoas como você porque você é decente. Você não vai desistir, não é? Pessoas
como você nunca desistem.
- Ela era minha mulher... não tinha nenhum amigo de verdade.
-' Eu compreendo. Mas... estou sóbria agora, você me deixou sóbria. Não posso mais ficar aqui sozinha, não sóbria.
- Por que não vai para casa? - ele perguntou carinhosamente.
- Eu vou. Vou pra casa agora mesmo, Fred. Ouça, veja se me liga um dia desses. O telefone está no catálogo de North Hollywood. O nome é Barbara Allerson. A, de Afrodite.
Nebel saltou do carro.
- Encha o tanque - disse ao rapaz do posto Shell, um garoto de camisa de flanela e calça jeans justa. Olhou para a
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rua principal de Ten Palms, fervendo no sol da tarde, entre brilhos ofuscantes de cassinos, bares, anúncio de pizzas, cachorro quente e cerveja, lojas. Seus olhos
estavam injetados e a boca decidida. -- Examine o óleo. Talvez precise de um quarto. Examine os freios. Volto daqui a pouco.
O garoto abriu a tampa do tanque de gasolina.
- Soube do desastre de avião esta manhã?
- Soube.
- Parece que tinha uma artista de cinema no avião também. Avião particular, de um cara chamado Weldon. Ele mora perto daqui. O avião caiu bem em cima daquele morro
ali. Matou os sete de uma vez.
Nebel não disse nada. Não sentia muita coisa agora, também, exceto uma estranha sensação de injustiça. Se não conhecesse Luella o bastante para saber que ela não
teria sido a sétima passageira daquele avião, então não conhecia Luella absolutamente. Não sabia nada sobre Luella. Se era possível estar casado com alguém, casado
há um ano, e não saber nada absolutamente sobre esse alguém, nem uma coisa, então não se podia confiar em si mesmo também, nem um pouco.
- Quem eram os sete passageiros? - perguntou Nebel.
- Não sabem ainda - disse o garoto. - Estão no necrotério identificando os corpos. Quem pode gostar de trabalhar num necrotério? Não eu.
- Onde é... o necrotério?
O garoto lhe disse. Ficava a dois quarteirões dali e um quarteirão distante da rua principal. Nebel foi até lá, onde a capela ficava ao lado da igreja. Havia um
monte de pessoas no local. Alguém trouxera carrocinhas de cachorro-quente
e sorvetes.
Uma pessoa disse para outra:
- Steve Myerson viu o acidente e quase
foi o numero oito. O avião quase aterrizou no telhado dele. Ele contou tudo e agora é astro de TV. Apareceu no noticiário
e tudo mais. Como se fosse uma celebração pra Steve. Não vejo ele assim tão animado desde o último Quatro de Julho. Ele está vibrando.
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Bem, isso é lógico - respondeu a outra pessoa. - Ele não aparece por aqui sem a velha desde o último Quatro de Julho.
Mas Nebel se encaminhava para o policial de uniforme caqui, de pé diante da porta da capela.
- Meu nome é Fred Nebel - disse ele. O policial esfregou as botas, e olhou por cima da cabeça de Nebel. - Já estão todos identificados, guarda?
O guarda sacudiu a cabeça.
- Todos menos um, Sr. Nebel.
- Existe uma possibilidade de minha mulher estar...
- Eu sei. Tenho uma lista dos sete hóspedes que provavelmente estavam naquele avião, Sr. Nebel. Estou com ela aqui.
- Sei que o nome de minha mulher está nesta lista. Mas também estou certo de que ela não estava no vôo - disse Nebel.
O guarda mexeu com os pés e depois enxugou o rosto gordo e suado com um lenço úmido. Olhou por cima da cabeça de Nebel e não disse nada.
- Vocês identificaram seis deles, menos minha esposa - disse Nebel. - Não é?
O guarda puxou um papel molhado e dobrado do bolso da camisa e olhou para o mesmo.
- Sua esposa não está na lista.
- E quanto à sétima pessoa então? - perguntou Nebel. - É homem ou mulher?
- É... mulher - disse o guarda. - E talvez o senhor esteja certo, Sr. Nebel - acrescentou rapidamente - pode não ser sua esposa. Ainda não sabemos quem é.
- Eu sei que não é minha esposa - disse Nebel. O sol de fim de tarde queimava suas pupilas.
O guarda sacudiu a cabeça, embaraçado e quase sem poder falar.
- Bem, recebemos uma lista de hóspedes de uma Srta. Barbara Allerson da casa dos Weldons. Havia oito convidados lá e a Srta. Allerson não foi. Sua esposa era
um dos sete. É
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claro que acho que o número sete pode ser outra pessoa, mas por outro lado não parece...
- Eu sei que minha esposa não podia estar naquele avião - reafirmou Nebel.
- Espero sinceramente que o senhor tenha razão, Sr. Nebel. Eles não conseguem descobrir nada que identifique este número sete. Está completamente irreconhecível,
sem aliança, nem nada que possa identificá-lo, nada, absolutamente nada. Vão ter que examinar fichas médicas e dentárias, radiografias dentárias e ossos
quebrados. É a única maneira.
- Nós estávamos casados há um ano - disse Nebel. -- Minha mulher não fez nenhum tratamento dentário, nem quebrou nada.
- Bem, Sr. Nebel, nós gostaríamos de algumas informações. Só para o caso de precisarmos, compreende? Para que possamos investigar. De onde ela vem? Nasceu
aqui? Se pudéssemos investigar em outras cidade, onde ela talvez tenha ficha dentária, médica, bem... podemos ter absoluta certeza de que não é sua
esposa dessa maneira, compreende, Sr. Nebel? Pode nos fornecer informações deste tipo?
Nebel hesitou.
- Imagino que o senhor não tenha sabido dela desde o desastre - disse o guarda, inquieto. - Não tem idéia de onde mais ela possa ter estado, ou coisa assim?
- Logo vou saber - disse Nebel. - Mas lhe darei todas as informações que puder. - O guarda pegou um bloco e um lápis. - O nome de solteira dela é Luella Sawyer.
Nasceu em Lakeville, Arkansas. Teve um padrasto até os cinco anos, depois passou o resto da vida até os dezoito num orfanato em Lakeville. Então, acho que ela
foi trabalhar num banco lá. Três anos depois, veio para Los Angeles.
Nebel sentiu-se um pouco tonto. Desceu as escadas, ouvindo o guarda murmurar algo. Mas não deu atenção e continuou.
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Sentou-se num bar, bebendo cerveja e ouvindo o ritmo das manivelas de caça-níqueis por muito tempo. Telefonou para casa algumas vezes, mas não houve resposta. Devia
ter ficado em casa, disse para si mesmo. Estaria lá quando ela telefonasse, c" chegasse.
Sentou-se numa mesa de canto e ficou entretido com lembranças.
Estava solitário e amedrontado, quando a conheceu naquela festa e se casaram três dias depois... e na manhã seguinte à primeira noite da lua-de-mel em Miami, lá
estava ela na varanda, completamente nua, alimentando os pombos calmamente. Alguém chamou a polícia. Nebel conseguiu convencê-los de que Luella era sonâmbula. Aquilo
foi o começo. O começo das extravagâncias, comportamentos irresponsáveis de uma pessoa complexa e incrível. Descobrindo que ela sumira, nunca sabendo onde estava,
nem quando voltaria. Telefonando para hospitais, delegacias. Uma criança num adorável corpo de mulher. E como se poderia ter adivinhado? Mas depois disso você ama,
se sente responsável. É como ter responsabilidade por algo adorável, precioso e indefeso. Nenhuma ansiedade, dor ou irritação lhe importavam agora.
Ela estava aqui por trás de seus olhos fechados como estivera na primeira vez que a vira, radiante e sempre jovem, imprudente e iluminando salas escuras e vazias.
Estava com ele agora, o hálito em seu rosto, as mãos e lábios acariciando-o, a conhecida fragrância de alfazema de seu perfume
ao redor, seu calor aquecendo-o.
Sou eu o responsável por meu irmão, minha irmã?
- Mais uma, senhor?
Ele levantou os olhos para a garçonete.
- Claro - respondeu.
E pela primeira vez em muito tempo pensou em seu primeiro casamento, em sua primeira esposa. Lembrou-se de tudo e lembrou-se com bastante clareza de sua força suave
e cálida, da cor de seus olhos e de como ela acenara e lhe soprara um beijo naquela noite, antes de atravessar a neve para apanhar um
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bonde e ir até a casa da mãe porque esta estava gripada. Lembrou-se até do grito, e de sair correndo sem camisa pela neve e vê-la ali, uma mancha escura e molhada
sob as rodas do caminhão.
- Ora vamos, Fred - dissera ela.
- Eu não posso, tenho que estudar - retrucara ele.
E tudo de que se lembrara durante anos depois disso era que se tivesse ido com ela aquilo nunca teria acontecido.
Nunca aconteceria novamente, dissera. Lembrava-se de dizer isso, também, várias vezes, ao caminhar a noite toda na neve. E durante anos e anos não acontecera.
Não acontecera desta vez também.
Mas só o desejo não adiantava. A idéia de que aconteceu era um velho mito que Nebel nunca aceitara. Todos concluíram que o sétimo corpo da capela de A. Ribesto era
o de Luella Nebel. Havia todas as razões para tal conclusão. E o único fato para sua conclusão de que não era Luella dificilmente convenceria alguém. Barbara sabia
que Luela estava morta. Luella estivera na casa de Weldon. Havia apenas sete hóspedes além de Barbara. Pela lógica, o sétimo corpo não identificado na capela era
Luella.
Mas Nebel insistia que não podia ser. Ou estaria insistindo que não deveria ser? Estaria com medo de enfrentar a verdade? Ele se sentiria responsável, como se sentira
pela primeira mulher, e sabia que simplesmente não podia suportar isso.
Luella usava vários anéis. Usava um colar e brincos. Sempre levava uma carteira. O esquadrão de busca podia ter deixado de ver alguma coisa facilmente. Mas ele não.
Se houvesse algum objeto de Luella lá em cima, nos destroços, ele veria; e saberia.
Saiu do bar. O sol já havia-se posto quando ele pegou o carro e as indicações de como alcançar o lugar do acidente e subir pelos morros. Ao subir pela estrada sinuosa
à luz clara do luar, percebeu algo mais. Percebeu que queria estar lá em cima, sozinho, onde aquelas pessoas morreram. Tinha uma
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estranha e inexplicável sensação de que, lá em cima, sozinho, chegaria mais perto da verdade. Tinha que saber.
E de qualquer maneira, quando descobrisse a verdade, fosse qual fosse, preferia estar sozinho.
A lua parecia equilibrada sobre o pico dos morros áridos. Nebel vasculhou os destroços por algum tempo com a lanterna, depois sentou-se numa rocha e sentiu a pressão
lenta e firme do vento do deserto. Este sussurrava a seu redor através da grama chamuscada, das pedras escurecidas, de pedaços de ferragens derretidas, de farrapos
escuros e disformes.
Vasculhara os destroços e não encontrara nada. E continuava a dizer a si mesmo que não encontraria nada, então por que continuar procurando? Era ridículo. Por que
duvidar da própria intuição que era tão forte? Volte para Ten Palms. Provavelmente já identificaram aquela sétima vítima. Volte e telefone para casa, vá para casa,
Luella na certa está lá esperando, assustada.
E se não for assim, se for ao contrário, você vai descobrir logo também. Não se pode ter certeza absoluta de tudo o tempo todo.
Algo se moveu, um ruído, atrás das rochas escurecidas. Seu coração bateu quando ele se levantou e teve a impressão de sentir o perfume de Luella misturado ao cheiro
de terra queimada, grama chamuscada, restos mortos.
Caminhou) lentamente na direção do barulho, debruçou-se sobre o topo da rocha e acendeu a lanterna. Como um animal preso e hipnotizado por um brilho súbito na noite,
o homem levantou-se e olhou para a luz, piscando, seu rosto de uma palidez suja e cinzenta. E respirava pesadamente, deixando à mostra um riso dentuço para algo
desconhecido e invisível.
Nebel desligou a lanterna. Contudo, conseguiu enxergar ainda, claramente, o rosto, as marcas nas faces como rugas de cicatrizes, os ombros largos, as mangas esfarrapadas.
A camisa rasgada, sem alguns botões. As mãos e pulsos dos dois braços
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com queimaduras feias e recentes. A vermelhidão das queimaduras ainda brilhava ao luar como as garras de caranguejos.
E aqueles botões lhe caindo da mão sobre a pedra quando o homem se esticou, assustado.
- Só estou dando uma olhada, sabe - explicou o homem. - O senhor me assustou.
- Desculpe - respondeu Nebel. Encontrou ailguns botões?
- Uns botões velhos, só isso. Só estava dando uma olhada. É quase na área dos fundos da minha casa, de qualquer maneira. Meu nome é Steve Myerson Eu vi o desastre,
a coisa toda. Moro logo ali embaixo. Pensei que ia cair bem na minha cabeça. Ficou quente, mais quente que o inferno. O morro todo parecia uma fornalha. Está procurando
alguma coisa?
- Sim, estou. Eles identificaram seis dos sete corpos lá na Capela de Ribesto. O sétimo ainda não foi identificado.
- Não?
- Não. Não tem nada que identifique. Então eu estava procurando, vendo se talvez alguma coisa tivesse ficado esquecida.
- Bem, eles sabem quem é - disse Myerson. - É só uma questão de verificar, eu acho. Sabem quem era a sétima pessoa que estava no avião, mas acho que têm que ter
certeza.
Nebel estremeceu então. Ouviu-se o uivo queixoso e demorado de um cão vindo de um lugar ali abaixo do morro. Era um cachorro grande e estava um pouco curvado,
for mando uma sombra retorcida sob o luar.
- Aquele cachorro maldito. Não pára de uivar. Eu acabo matando esse bicho. A minha velha se mandou, sabe, me largou. e o cachorro não pára de
uivar por causa dela.
Nebel viu o brilho dos olhos de Myerson, nos quais não havia nenhum calor, nenhuma confiança, mas um medo frio que se acendia e se apagava como uma lâmpada. O cachorro
deu outro uivo demorado.
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Bem!! tenho que voltar pra minha cabana - disse Myerson. Quando'começou a se afastar, Nebel foi atrás dele. Myerson parou.
Talvez você tenha algo para beber lá embaixo -
sugeriu Nebel. - Estou precisando de uma bebida.
Myerson olhou para ele. Finalmente disse, numa espécie de muxoxo:
O senhor é detetive ou jornalista?
- Não. Só tenho um interesse especial naquela sétima mulher não-identificada, cujo corpo encontraram aqui esta tarde. Sabe, eu sei que não é quem
eles pensam.
- Compreendo - retrucou Myerson. - Claro, pode descer pra tomar um ou dois tragos. Tenho um conhaque lá, uísque também. Trouxe da cidade hoje.
- Obrigado - respondeu Nebel. Seguiu os movimentos grandes mas silenciosos de Myerson morro abaixo, ao longo de um caminho estreito e sinuoso através de salvas
murchas.
Myerson dizia:
- Eu crio cabras. Disseram no rádio que eu era pastor de ovelhas. Não sou pastor de ovelhas coisa nenhuma. Cabras. E são uma dor de cabeça. Às vezes não sei se vou
conseguir continuar. Mas o leite de cabra dá dinheiro.
- Sua mulher não gostava de cabras, Myerson? Myerson começou a praguejar e a atirar pedras
morro abaixo, para um bosque de choupos onde o cachorro continuava a uivar.
- Cala a boca, Queeny, senão eu te meto uma bala. Ouviu?
Tinham passado por uma cerca onde uma cabana pequena de dois cômodos lançava uma luz pálida de querosene através de uma porta aberta. Myerson abriu mais a porta.
- Entre e fique à vontade. Não é lá essas coisas, mas é um lar - riu Myerson.
- Já ouvi cachorros uivando assim - disse Nebel. Sempre por alguma pessoa morta.
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Myerson pôs a mão na parede e pulou agachado pelo rastro de luz. Um machado de dois fios girou acima do rosto enfurecido e corado de Myerson.
Nebel saiu da luz. Sentia o estômago apertado como se amarrado por uma corda.
- Matar-me não vai adiantar nada - disse. Correr também não ia adiantar muito pra Nebel. Não sabia a direção das estradas e o terreno era íngreme e rochoso. - Eles
vão descobrir de quem é aquele corpo, ou era. Que era da sua mulher.
- Não vão descobrir por você, porém. Não agora, seu... seu... enxerido...
O machado zumbiu e Nebel recuou. A parede da cabana o deteve como se ele estivesse imprensado. O machado voltou como a cabeça de uma cobra pronta para dar o bote.
Nebel deslizou para baixo contra as tábuas, depois rodou por baixo do machado, rolou e sentiu os pés escorregarem nas pedras ao tentar se pôr de pé novamente. A
sombra de Myerson inclinou-se sobre ele, o machado delineado contra a lua.
Naquele momento ali deitado, o medo avivou algo latente em Nebel. E o ódio foi como um fogo ardendo dentro dele. Foi ainda mais violento por estar há tanto tempo
reprimido, como uma carga de dinamite explodindo, uma enchente arrebentando um dique, um relâmpago num céu vazio. Explodiu súbita e completamente. E ele se levantou
com um grito rouco sob o machado que descia. Levou com o cabo deste no ombro e agarrou o punho de Myerson com as duas mãos, sentiu a pele queimada deslizando sob
seus dedos como a pele de um pêssego podre.
Soltou a mão direita e deu um soco no estômago de Myerson. Este cambaleou e se engasgou, soluçou ligeiramente e tentou levantar o machado outra vez. Nebel golpeou-o
duas vezes na boca. Myerson caiu para trás, bateu contra o lado da cabana e caiu de mãos e joelhos. Nebel bateu em seu punho e o machado deslizou morro abaixo. Quando
Myerson se levantou, Nebel o golpeou e, finalmente, prendeu-lhe as mãos, colocou-as cruzadas atrás da nuca.
Depois apanhou o machado.
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Uma hora depois, Myerson, confessou tudo ao xerife de Ten Palms. Vira o acidente e as chamas e golpeara a mulher, deixando-a inconsciente; depois, empurrara-a para
lá numa carreta e a jogara no fogo. Todos sabiam que a Sra. Myerson ameaçara deixar o marido há algum tempo e seu desaparecimento não teria provocado suspeitas.
Myerson imaginara que os corpos ficariam completamente queimados, ou pelo menos se concluiria que havia sete passageiros no avião. Ela recuperara os sentidos por
tempo bastante para lutar terrivelmente. Rasgara a camisa de Myerson, arrancara os botões. Suas mãos e pulsos ficaram muito queimados.
- Eu tinha uma forte intuição de que minha esposa não podia ser aquela sétima passageira - explicou Nebel. - No entanto, havia sete passageiros. Então, vi Myerson
lá em cima. apanhando aqueles botões, e reparei que faltavam botões em sua camisa. Tive outra intuição quando ele falou sobre a esposa têlo deixado. E vi aquelas
mãos queimadas. O que realmente me fez ter certeza foi aquele cachorro uivando, não por alguém que foi embora, mas por alguém morto.
Quando Nebel entrou no estacionamento de sua casa em Van Nuys, reparou que a luz da sala da frente estava acesa. Não entrou na garagem. Parou na entrada, depois
atravessou o jardim da frente até a porta e abriu-a.
- Freddy, querido!
Viu Luella ali de pé, numa camisola transparente, e sabia que ela estava muito atraente com a mesma. Mas Nebel não olhou com atenção. Ouviu-a dar risinhos e balançar
os braços numa pequena dança e sentiu a mesma fúria crescer dentro de si e as mãos cerraram-se. Mas depois a tensão passou. Talvez levasse algum tempo para sentir
uma raiva tal como a que sentira esta tarde. Talvez nunca mais sentisse.
Entrou no quarto sem dizer nada, jogou algumas roupas numa mala pequena e atravessou a sala na direção da porta. Ela correu para ele, então parou. Ainda ria, mas
seu riso soou grotesco
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e irreal. Ele viu um tipo de selvageria por baixo do rosto gozador, algo maldoso e ruim em seus olhos enquanto ela ria mais estridentemente e berrava.
- Mas, querido, hoje é Primeiro de Abril!
- Eu sei - respondeu Nebel. - Acabei de me lembrar disso quando chegava aqui em casa de carro.
Fechou a porta.
Dirigiu na escuridão silenciosa da rua residencial rumo às luzes brilhantes do Ventura Boulevard. A familiaridade talvez ofuscasse a percepção. Mas uma forte necessidade
podia cegá-lo para a realidade.
Parou ao lado da Loja Owl e entrou, à procura da cabine telefônica. As crianças tornam a vida suportável para si mesmas, pensou, com o faz-de-conta e a fantasia,
com esta capacidade de enganar a si mesmo. E era possível continuar sendo criança durante anos. Mas também era terrível. Terrível permanecer jovem por tanto tempo.
Procurou o número no catálogo de North Hollywood. Então discou Hollywood 7-1313.
- Alô - disse, depois que uma voz sonolenta respondeu. - É Afrodite?
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Edwin P. Hicks
A ISCA E A PISTA
Virando o barco para sair da enseada, vi o outro barco abaixando-se e voltado na minha direção. Ele veio rapidamente, com toda a força de um motor de popa de 40
cavalos-vapor, e só diminuiu a velocidade quando no último segundo o sujeito grandalhão da popa desligou o motor completamente. Formaram-se enormes ondas e o Lucy
- é o nome do meu barco - balançou violentamente. Se isso tivesse acontecido na rua, nos velhos tempos, eu teria multado o sujeito por falta de cuidado na direção.
Era meu vizinho de cabana de pesca, Bill White, que eu conhecera no dia anterior, com dois companheiros. White, que tinha seus 60 anos e que se dizia ser dono de
um campo de petróleo em Oklahoma City, estava vestido como um dândi - casaco vermelho, boné vermelho e calças caqui. O homem da proa, de altura mediana e
mal vestido, tinha seus 45 anos. Segurava um par de binóculos e riu insolentemente para mim, divertindo-se com
a maneira de meu barco balançar. Meu senso de ex-policial me disse que este cavalheiro era inimigo de policiais e perigoso.
- Ei, Joe Chaviski - cumprimentou White. - Esses são meus companheiros de pesca, Frank Caprino e Jim Brown. Frank estava observando você com o binóculo e o viu
pegar aquela perca grande. Aí achamos que devíamos vir até aqui para ver o
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que você estava usando. Onde esta a perca? Vamos ver o tamanho dela.
Não sabia que vocês estavam interessados no peixe -
respondi. - Não estava precisando dele para comer, então o soltei novamente
Brown praguejou. Caprino cuspiu na água.
- Eu não entendo sujeitos como você que viajam quilômetros para pescar e depois, quando têm a sorte de apanhar um grande, o soltam de novo - admitiu Caprino com
um riso de despeito.
Sangue de policial não esquenta com muita facilidade. Estamos acostumados a provocações. Ignorei Caprino e olhei para Brown. Aqui estava um jovem difícil de se lidar.
Era moço - com vinte e poucos anos - e grande - tinha pelo menos ums
115 quilos e provavelmente 1,86m de altura. Seus ombros eram ombros de um lutador de boxe peso pesado, e o peso
compunha-se de tendões e músculos. Não havia gordura em toda sua constituição. O rapaz era um espécime físico perfeito.
Caprino estava pronto para matar ao primeiro movimento e sabia-se o que esperar, mas Brown era o mais perigoso, porque não se podia ter certeza do que faria. O rosto
de Brown era bronzeado, mas os olhos eram azuis. Parecia um rapaz grande, amigável e inocente - inocente demais. Graças a experiências desagradáveis, eu linha muito
respeito por rapazes com cara de menino. Nunca se podia prever o que um delinqüente juvenil de cara simpática como Brown faria.
Falei com White:
- Eu estava pronto para sair daqui. Pode ficar na enseada, se quiser.
Caprino riu quando dei partida no motor. Soltou o binóculo até a ponta do fio de couro em volta do pescoço e pôs a mão direita por baixo do casaco, num enchimento
abaixo do ombro esquerdo. Naquele instante, White pôs uma mão no braço de Caprino, como um homem aquietando um cachorro bravo prestes a pular em cima de um estranho.
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Fiquei feliz em escapulir dali e atravessei o lago até uma floresta de copas de árvore mortas, que se estendia fora d'água. Aí procurei uma pequena bóia na superfície,
entre as copas de árvore. Este marco, uma prancha de madeira, presa por arame no fundo, demarcava um leito de peixinhos.
Encontrando o marco, amarrei o barco, preparei duas varas de bambu, linhas, iscas, feitas de peixinhos, e comecei a pescar. Esta era a maneira de pescar de um preguiçoso.
Fiquei ali horas, cochilando, aproveitando o sol quente de outubro. Os peixes começaram a aparecer por volta de 1:30 da tarde. Pesquei até ficar cansado, restringindo-me
a apenas algumas das grandes pranchas. Então, em uma hora ou mais, o rebuliço acabou, os peixes voltaram a dormir e eu também.
Enquanto cochilava ali, meio acordado, sonhei com o passado. Pensei em minha esposa Lucy, em cuja homenagem batizei o barco. Lucy estava morta há mais de cinco anos
agora. E pensei em Johnson e Sauer, jovens vaqueiros selvagens, que eu transformara em pessoas sociáveis, embora o esforço quase me tenha matado. E, com uma espécie
de força física, empurrei de volta ao túmulo os 11 homens que eu matara durante meus 30 anos de polícia. Então, pensei em Billy Hearston. Billy foi um bom amigo.
Ele brigara comigo quando era patrulheiro-recruta - naqueles dias obscuros e remotos do passado. Eu ficava encarregado de patrulhar da Primeira Avenida até a Main
Hotel, Alley, enquanto Hearston cuidava da Ailey até a Rua 13. Trabalhávamos sete noites por semana, em turnos de 12 horas. Se um guarda fizesse alguma prisão, tinha
que se apresentar à Corte Municipal no dia seguinte para testemunhar. Uma apresentação na Corte significava uma ou duas horas a mais de uniforme, durante as
24 horas do dia. Nosso salário era de 80 dólares por mês, mas isso era um bom salário naquela época.
Dia após dia, apareciam bêbados na minha área. Dia após dia, eu os encaminhava devidamente pela Main Hotel até a prisão da cidade - e me apresentava de olhos sonolentos
e rosto vermelho no dia seguinte na Corte.
217
Uma noite, parecia que não haveria bêbados, e eu esperava comer alguma coisa e depois afundar na cama. Estava cansadíssimo. Cinco minutos antes de terminar meu
expediente, uma alma perdida apareceu na Alley. Agarrei o coitado pelos ombros e o sacudi.
- Me diga uma coisa - berrei - por que vocês bêbados sempre têm que aparecer na minha área?
- Ora... - replicou o bêbado, entre soluços - aquele outro guarda lá da rua me disse pra vir até nqui e falar com o senhor.
Então, minha cabeça se iluminou. Na tarde seguinte, logo depois das cinco, pouco depois de começar meu turno da noite, encontrei Billy Hearston na Main Hotel. Bill
era tão grande quanto eu - com uns 120 quilos e 1,80 de altura. Fui falar com ele.
- Seu isso-e-aquilo! - berrei para ele.
- Que negócio é esse, Joe? - perguntou Billy, rindo de orelha a orelha.
- Por que diabos você sempre manda os seus bêbados pra minha área, me fazendo perder duas horas de sono todos os dias? -i Esbofeteei Billy em cheio, com tanta força
que soou como uma chicotada.
Ao se recuperar, Billy devolveu a bofetada. Durante cinco minutos fizemos um exercício de tabefes na cara - todos os dois teimosos como dois bezerros enfiando as
cabeças no pasto. Ainda estávamos brigando quando o Chefe Ingersoll apareceu e nos segurou pelo colarinho.
- O que vocês dois estão fazendo? Tentando se matar?
O chefe nos levou para o escritório, nos deu um sermão sobre a dignidade de nossos uniformes, ameaçou suspender um mês de salário e depois nos mandou de volta para
nossas áreas de patrulha, rindo como cordeirinhos.
Uma semana depois, soubemos que o major, que morava num apartamento do outro lado da rua, vira a briga e chamara a polícia.
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- Venha cá correndo, chefe, antes que dois de seus guardas se estapeiem até morrer!
Pobre Billy. Morreu alvejado por japoneses numa ilha do Pacífico Sul, em 1944.
Mas todo aquele tempo em que fiquei ali dormindo no sol de outono - sorvendo seu calor e tomado de uma grande saudade de Lucy - o dândi de Oklahoma, Bill White,
o leão-de-chácara Hank Caprino e o gigante com cara de menino, Jim Brown, não me saíram da cabeça.
Havia algo errado com aquele trio. Eu sentia isso sabia disso - e no entanto sabia também que criminosos, gangsters, marginais, não pescam nem caçam e não vão para
o campo por lazer. E então disse para mim mesmo: Ora, com os diabos, Joe Chaviski, você não é mais um tira. Mas minha mente ainda era a mente de um tira.
O pôr-do-sol estava uma faixa escarlate acima dos pinheiros quando dirigi o barco de volta para a enseada onde eu apanhara o peixão ao nascer do sol.
Hank Caprino se preparara para sacar uma arma aquela manhã, pescador ou não. Eu não vira o revólver, mas vira o movimento e tinha certeza de que ele me teria matado
se White não o detivesse. E aqui estava eu, longe da base, sem nenhuma arma de fogo. Deixara em casa tudo que me lembrasse do trabalho.
Lancei uma grande isca artificial no raso, sem sucesso; depois voltei para terra, para minha cabana, para uma refeição rápida e uma cama macia. Ao chegar vi uma
faixa de luz sob o postigo abaixado da janela na cabana ao lado da minha. E o som de um rádio me disse que White, Caprino e Brown estavam em casa. Eu esperava que
eles o desligassem logo e me deixassem dormir.
Mas antes que eu entrasse, o gigante com cara de bebê, Jim Brown, apareceu.
- Sr. Chaviski, venha até aqui e tome um drinque conosco. Vai lhe fazer bem.
- Não, obrigado, Brown, estou cansado. Acho que vou comer um pouco e dormir.
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- Deixe disso, Chaviski. Pegamos uns peixes. A gente quer mostrar eles a você.
Segui o rapaz até a cabana. O lugar estava pesado de fumaça e, o rádio alto, a ponto de estourar os tímpanos.
- Desligue essa droga desse rádio - gritou White, que parecia ser o único na sala que não estava bebendo. Como ninguém se mexesse, o próprio White desligou.
- Olhe, Sr. Chaviski, seguimos seu sistema e apanhamos uns bons hoje - disse Brown.
Caprino disse algo que ficou entre um rosnado e uma risada.
Um quarto homem entrou na sala, vindo da cozinha. Tinha seus 45 anos, era louro, com 1,80 de altura, embora com um afundamento no peito, e o maxilar comprido terminasse
num queixo entrado. Seus olhos eram embaçados e verdes e, através da cortina de fumaça, o recém-chegado parecia um cadáver ambulante. Estava com uma caçarola preta
e pesada na mão, cheia de peixe defumado. Ele empilhou o peixe quente num prato sobre a mesa e Caprino e
Brovin precipitaram-se sobre o peixe com garfos. O cozinheiro macilento disse, com uma voz de cana rachada:
- Podem se esbaldar. Tem outra caçarola cheia como essa.
- Sente-se - disse White. - Sente-se, Chaviski, e jante conosco.
Eu me sentei e um prato de peixe, surpreendentemente bemfeito, foi colocado diante de mim.
Todos pusemos mãos à obra e comemos o peixe com avidez. Eu estava faminto como um lobo e os outros pareciam estar do mesmo jeito.
- Eu não o apresentei ao nosso cozinheiro - disse White, quando o sujeito magro acabou de limpar a mesa e voltou para a cozinha. - Ele é meio pirado... não
regula muito bem da cabeça. - White deu um tapinha na testa. - Mas é o melhor cozinheiro de sete estados. O nome é Lenny Hamm. Levou uma bala de metralhadora no
peito em Omaha Beach.
- Eu não o vi esta manhã - disse eu.
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- Ah, a gente o apanhou mais tarde, depois que ele arrumou a cabana. Ele não é pescador, mas gosta de dar uma volta no lago vez por outra, quando sai numa excursão
de pescaria.
- Bem, obrigado pelo jantar. Poupou-me um bocado de trabalho. Onde você apanhou esses peixes?
- Pouco depois do lugar onde o vimos esta manhã. Voltamos ao cais e compramos umas buchas de superfície como as que você estava usando.
- Você fala dos Luckies?
- É. Da mesma cor, mesmo tamanho, tudo igual.
- Bem, às vezes eles aparecem lá. Nunca se sabe. Pensei que tinham pescado com isca de minhocas, porém.
- Não, apenas aquelas que você estava usando hoje de manhã.
Quando voltei para minha cabana estava intrigado. Não se pegam peixes pequenos com iscas grandes de superfície, como patos Lucky, e muito raramente à tona d'água.
Quando um peixinho bate numa isca artificial é algo que parece uma minhoquinha através da água e geralmente a alguns metros de profundidade. Mas então comecei a
ficar com sono. Ia ouvir as notícias antes de dormir.
Liguei o rádio e só achei rock em três estações. Não era hora de notícias. Mudei para avisos policiais - e imediatamente me reanimei. A polícia de Blakely City e
a delegacia do Condado de Garland mandavam chamados urgentes. O Banco Nacional de Blakely fora roubado ao meio-dia por quatro bandidos com máscaras de meias. Os
quatro tinham fugido serenamente com 45 mil dólares em dinheiro, num conversível vermelho com placa do Texas. O conversível fora encontrado uma hora depois, no bosque
perto da interseção da Rodovia 270 e uma estrada da floresta, a cerca de 40 quilômetros ao noroeste de Blakely City, e ao pé de uma serra a 400 metros, ao sul da
ponta meridional do Lago Pine Valley.
Uma caçada de quatro estados aos assaltantes estava em andamento, mas até então os policiais seguiam uma trilha
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infrutífera. Ouvi as descrições físicas dos quatro. Havia um homem alto e "rande, dois de altura mediana, enquanto a descrição do quarto variava. Uns diziam que
era alto,
outros diziam que era curvado. Mas máscaras de meias pretas tinham escondido as feições dos bandidos completamente.
Desliguei o rádio depois de algum tempo, apaguei as luzes da cabana e voltei ao salão de jantar do pavilhão de pesca. Dois pescadores com as esposas assistiam a
uma luta na televisão. Sam Willoughby, funcionário do pavilhão, arrumava coisas atrás da pia. Jim Taylor, encarregado das docas, estava na ponta do balcão, jantando.
Fui até o balcão e escolhi um banco próximo a Taylor. Pedi um sorvete de baunilha. Adoro sorvete de baunilha.
- Os quatro sujeitos da cabana ao lado da minha, eu estava pensando, eles foram de carro a algum lugar durante o dia? - perguntei a Sam, ao tomar o sorvete.
Sam enxugou a mancha de água do balcão.
- Você também? - disse ele, baixo.
- O que você quer dizer?
- Meia dúzia de policiais andaram por aqui desde aquele assalto a banco em Blakely City. Revistaram todas as cabanas esta tarde, por dentro e pró baixo, inclusive
a sua, e todos os carros. Não encontraram nada.
- Nenhuma arma?
- Nada a não ser um rifle calibre 22, para atirar em cobras e atirar a esmo, como os que muitos pescadores têm. Seus amigos tinham um 22.
- E quanto ao carro, esteve em algum lugar hoje?
- Que eu saiba não. Taylor diz que todos os quatro passaram o dia no lago pescando, como todas as outras pessoas. Não é, Jim?
Taylor anuiu.
- Eles saíram em dois barcos. Foi a primeira vez que levaram dois barcos desde que estão aqui.
- O que não consigo entender - expliquei, rindo - é como eles apanham peixes. Chamaram-me para jantar hoje e
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disseram que pegaram os peixes com iscas de superfície... patos grandes do tipo Lucky. Nunca ouvi nada parecido antes.
Taylor riu.
- Aqueles pobres-diabos! Estão aqui desde o começo da semana e não pegaram um peixe. Então, um sujeito que pegou mais peixes do que precisava hoje deu uma parte
a eles, quando chegaram na mesma hora na doca, por volta de quatro da tarde. Foi aquele cara ali na esquerda, que está assistindo às lutas. Ele
vai contar tudo a você.
- Agora sim - respondi. - Eu bem que sabia que eles não tinham pegado os peixes do jeito que disseram. Você disse que eles ficaram no lago o dia todo e não pescaram
nada?
- Nunca vi pescadores piores em toda minha vida. Saíram logo depois de você... três deles num barco. Voltaram três horas depois e alugaram outro barco, como eu
disse. Disseram que iam levar o cozinheiro para dar um passeio. Em poucos minutos ele tomou o barco... um sujeito alto, curvado e de aparência doentia. Brincaram
dizendo que ele não era pescador de coisa nenhuma, mas ele não ligou. Ele e o sujeito moreno de cara antipática entraram num barco e o rapaz grandão e o velho Oklahoma
entraram no outro. Os dois barcos saíram novamente para o lago, na direção que você tomou. Não saíram do lago até por volta de quatro horas ou pouco mais, como eu
disse, e estavam realmente ridicularizando o cozinheiro. Disseram que estavam transferindo a caixa de gelo de um barco para outro e o cozinheiro deixou-a cair.
Ela afundou uns 15 metros na água, com cerveja
e tudo.
Taylor pagou a conta, pegou um palito e saiu do restaurante.
- Tem alguma coisa com esses seus quatro vizinhos que não lhe agrada, Joe? - perguntou Willoughby, bem baixo para que Taylor não pudesse ouvir.
- Tem - respondi. - Talvez seja porque eu não consiga perder o hábito de pensar que ainda sou policial. Você sabe que não se pode anular trinta anos de uso de distintivo
e revólver em dois meses.
- Acho que não.
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Você já viu esses quatro sujeitos por aqui alguma vez?
- Não - retrucou Sam - nunca.
- Quando os guardas revistaram a cabana deles e o carro tem certeza que não encontraram
nada... nada mesmo?
- Estavam limpos - disse Willoughby - exceto por aquele rifle calibre 22, como eu lhe disse. Geralmente levavam o rifle com eles no barco, mas hoje não. Não
havia nada de estranho... nada.
Fui até o pescador, que assistia ao último round de uma luta na televisão. O homem levantou os olhos e anuiu, mas esperei que o round terminasse e dessem o resultado.
- A que horas os peixes começaram a aparecer para você hoje?
- Por volta de onze horas... até uma e meia ou duas, creio. Dois sujeitos apareceram por volta de meio-dia. Perguntei a eles que horas eram... sempre deixo
meu relógio na cabana para não molhá-lo. Disseram que era meio-dia. Os coitados não tinham pescado nada o dia todo, sabe Deus por quê. Mais tarde eu os encontrei
na doca quando chegavam e lhes dei oito ou dez peixes.
Levei algum tempo para pegar no sono. Os sujeitos da cabana ao lado eram mais quentes que fornalha, me parecia, e no entanto tinham estabelecido álibis em todo o
lago. Não podiam ter roubado o banco de Blakely. Quando se está no lago pescando, não se pode estar roubando bancos; e era lá definitivamente que estavam os quatro,
Ah, bem, talvez eu estivesse ficando velho - o cérebro mais fraco ou coisa assim. Tudo em mim me dizia que eu estava sentado bem em cima de um assalto a banco que
devia desvendar - e no entanto nada se encaixava na história toda. Os quatros estiveram no lago, como eu. Tinham sido vistos por todo o lago e o carro não deixara
o acampamento de pesca o dia todo. Então, desliguei minha mente fraca e fui dormir.
O sol já estava alto quando cheguei no lago na manhã seguinte. Dormira uma hora a mais e a velha ferida da Marinha em meu quadril esquerdo me doía. Isto era sinal
de que o tempo ia
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mudar. Ao leste o céu estava vermelho também. "Vermelho de manhã, é advertência para o marinheiro; vermelho de noite, é prazer para o marinheiro." As percas tinham
lido os sinais também, muito antes de mim. Ainda estavam ariscas, como estiveram ao pôr-do-sol. Bem, se começassem a aparecer marolas no lago, eu me retiraria e
iria para a cabana dormir, ou iria até Blakely dar uma passada na delegacia e ver se tinham alguma pista -algum indício sobre os assaltantes.
Usei os remos para entrar silenciosamente na enseada e então joguei tudo o que tinha na caixa de iscas para as percas, mas elas não mordiam. Então, bem devagarinho,
comecei a sair da enseada, passando a ziguezaguear ao fazê-lo, tencionando pescar em águas fundas. Algo me bateu nos olhos - figurativamente.
Puxei o barco, virando-o, e levei-o de volta ao centro da enseada. Sim, eu não estava vendo coisas. A uns 30 metros da margem havia um marco de madeira flutuando
-< uma prancha de pinho nova, de uns 90 centímetros de comprimento, com um arame de cobre novo preso conduzindo às profundezas da água! Tal marco é freqüentemente
usado por pescadores ou homens do lago por várias razões - para marcar um bom lugar de pesca, para servir como guia de direção ou marco de profundidade. Ontem de
manhã este marco não estava aqui. Podia ter estado ontem à noitinha, porque já era tarde quando passei por ali e eu podia estar a alguns metros dele sem vê-lo.
Conduzi o barco rumo ao marco. Peguei o arame de cobre e comecei a puxá-lo. Havia algo tremendamente pesado preso a ele no fundo. Debrucei-me para puxar, e a coisa
começou a se mover. Comecei a puxá-la para cima lentamente, enquanto o barco tombava para o lado.
Mão após mão, levantei o fio de arame brilhante, uns 7,5 m dele. Então, a alguns metros de profundidade, consegui ver o que era - metal brilhante. Era uma grande
caixa de gelo de pesca, com a tampa fechada com cadeado - e presa à caixa por arame havia uma bolsa de borracha!
Bufando e me esfalfando, consegui pôr a coisa toda no barco, com arame e tudo, e fiquei ali sentado ofegante, como um
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porco-do-mar. O barulho de um motor de popa à toda velocidade se fez ouvir, vindo do meio do lago. Virei-me e vi um barco vindo na minha direção, cortando um enorme
sulco
na superfície. Era hora de sair dali.
Na hora em que liguei o motor, o outro barco estava a uns
200 metros. Dirigi-me para a margem, com o acelerador aberto ganhando velocidade e me arrancando. O outro barco vinha bem atrás de mim, a toda, fazendo a água espirrar
para os lados. Três dos meus vizinhos estavam no barco e vinham atrás de mim, sem dúvida. Quando eu estava a toda velocidade, o outro barco ganhara uma distância
de 100 metros.
Fomos para a margem norte, com meu motor de 25 cavalosvapor agora a toda força. White e Caprino acenavam as mãos e berravam. O ronco dos motores não me deixou ouvir
o que diziam, mas eu sabia muito bem o que queriam dizer. Se me apanhassem, eu ia parar no fundo do lago, com arame e caixa de pesca presos, mas sem nenhuma bóia
para marcar o lugar do corpo.
Algo que não era uma abelha atingiu o topo da caixa de gelo e ricocheteou num zumbido estridente pelo lago. Estavam usando o rifle! Abaixei os meus 120 quilos o
máximo que pude por trás do motor e continuei acelerando, rumo a uma pequena ilha à frente. Ao passar pela ilha, fiz uma volta de 90 graus na direção do porto, depois
inverti o curso completamente, dando a volta na ilha, e rumei de volta para o meio do lago.
A manobra, que pegou White e companhia de surpresa, recuperou um pouco a distância, mas não muito. O vento
estava refrescando e no meio do lago pequenas marolas começaram a aparecer. Mirei um ponto rochoso na margem oposta, a uns dois metros e meio de distancia, observando
a superfície à frente atentamente e agradecendo
ao bom Deus por ter enchido o tanque de gasolina antes de sair naquela manhã.
Passou-se um minuto, e avistei o que procurava, mais um marco, uma prancha de madeira flutuando na superfície e presa a um fio. Fiz uma volta para estibordo em volta
deste marco, dobrando como se pretendesse inverter o curso novamente.
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O barco perseguidor virou imediatamente e cortou o arco do meu curso, ganhando assim 50 metros de vantagem. Duas balas zuniram pelo meu ouvido. Caprino se aproximava!
E então aconteceu - o que eu queria! O barco que me perseguia foi de
encontro a um recife com uma batida ressoante e os três ocupantes saíram voando pelo ar. Apareceram
um por um, espirrando água e praguejando Caprino, Hamm e depois White viram-se com água pela cintura, a uns 800 metros da
margem. O barco com a proa despedaçada afundara e o rifle se perdera no choque.
Diminuí a velocidade e dei a volta, parando a uns 50 metros do trio enlameado.
- Agora vocês estão presos num banco de areia e advirto-os a ficarem onde estão e não tentarem se mover, a menos que sejam excelentes nadadores de canais, A água
tem quinze metros de profundidade em todas as direções e as ondas estão subindo. Fiquem onde estão, sejam bons meninos e talvez consigam ficar com o nariz de fora.
-' Mas eu nem sei nadar! - balbuciou White. Parecia realmente aterrorizado.
- É uma pena!
Na doca, chamei Jim faylor para me ajudar a levantar a pesada caixa e a bolsa de borracha do barco, dizendo-lhe para ficar de olho nelas.
No pavilhão fiz uma ligação para o Departamento de Polícia de Blakely.
- É, todo ele! - respondi. - Eles usaram barcos em vez de carro para fugir e puseram o dinheiro numa sacola de borracha dentro de uma caixa de isopor. Puseram as
armas e os outros apetrechos em outro saco de borracha, prenderam tudo a um marco flutuante com arame e afundaram as coisas no lago... para ficar lá até as
coisas esfriarem. Provavelmente também esconderam dentro d'água as máscaras e as roupas usadas no assalto, presas com pedras... e estavam com as roupas de pesca
por baixo das que tiraram.
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É, capitão, eles estão encalhados num recife, indefesos
como moscas num mosqueiro... três deles. É, vou pegar o quarto e deixá-lo pronto para entrega especial quando vocês chegarem
aqui.. Podem demorar o tempo que quiserem.
Sam Willoughby estava assustado.
- O grandalhão está lá na cabana. Eu o vi há apenas alguns minutos. - Sam tirou algo do balcão e me entregou uma automática calibre 45.
-- Abaixe esta arma - disse eu. - Armas matam pessoas. Fique fora disso, Sam. Não tem nenhuma arma naquela cabana. Você mesmo disse isso. Acho que ainda sou homem
o bastante para pegá-lo.
- Mas não é tão jovem quanto ele. E ele é tão grande quanto você, Joe!
- Isso vai separar os homens dos garotos, Sam.
Fui mancando até a cabana, tentando arrumar todas as peças no caminho. Não tenho o raciocínio muito rápido. Tudo que é óbvio levo uns 30 minutos para compreender
quando meu cérebro está trabalhando bem. Mas consegui entender tudo no caminho. O cozinheiro, Lenny Hamm, que não saiu com os três na primeira vez no dia do assalto,
já estava em Blakely City. Foi ele quem roubou o carro de fuga e o estacionou no bosque acima da margem do lago. Então, na hora marcada, ele os encontrou na margem
e o levaram de volta até um ponto próximo à cabana. Ele saltou do barco então, foi para a cabana, enquanto os outros três voltaram à doca e alugaram outro barco
a motor. Esperaram na doca e Hamm foi ao encontro deles depois de, aparentemente, ter acabado as tarefas domésticas.
Os quatro então dispararam pelo lago nos dois barcos, rumo a locais de pesca conhecidos, mas uma vez longe das vistas da terra deram a volta e rumaram para a margem
sul. Lá atracaram os barcos, pegaram as armas em algum esconderijo na margem, andaram uns 800 metros pela serra até o carro escondido -
e entraram em Blakely na hora marcada para roubar o banco ao meio-dia. Voltaram com o dinheiro, abandonaram o carro, desceram o morro e logo estavam de volta aos
barcos. Então fizeram
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o possível para serem vistos em todo o lago, mentindo para o pescador ao dizerem que era meio-dia - hora do assalto - quando já eram quase duas horas. O resto todos
sabiam
Não bati na porta de meu vizinho de cabana - simplesmente girei a maçaneta e entrei. Talvez eu não conseguisse dominar o rapaz, mas queria tentar. Brown leu meus
pensamentos e não perdeu tempo. Saiu da cama de lona como um touro enraivecido, dando um soco com a mão direita que bateu de leve em minha orelha esquerda ao perder
o alvo. Dei um soco em sua barriga com meu punho direito em forma de gancho, apliquei um golpe de judô, enganchando-lhe a nuca com a esquerda, e saí debaixo de seu
queixo caído com uma joelhada. Foi um golpe e tanto para um velho. Jim Brown não ia pensar que eu era velho. Isto é, não ia pensar assim quando acordasse e desse
com todos aqueles policiais de Blakely.
Alfred Hitchcock
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