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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS IRMÃS DE DAVID / Moira Forsyth
AS IRMÃS DE DAVID / Moira Forsyth

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS IRMÃS DE DAVID

 

- Estás a ver esta fotografia? Esta aqui; é a minha mãe, Faith, a percorrer o trilho entre os maciços de Lilases. Não é uma boa fotografia... o Sol está por detrás dela, o que impede que se lhe veja o rosto.

 

Eleanor estava ajoelhada entre várias caixas de cartão prensado, mostrando a fisionomia de desamparo de alguém que sabia de antemão que tinha um dia cheio de afazeres, mas que passara a manhã a reler cartas antigas, fazendo uma viagem ao passado. Baixou o olhar para a fotografia que segurava.

 

- Ela tem uma aparência tão franzina, tão pequena, que até se podia julgar que era um garoto com estas calças e a camisa com o colarinho aberto. Mas era assim que costumava vestir-se quando todas as outras mães usavam saias e camisolas. - Começou a espalhar os retratos, que os anos haviam esbatido, em forma de leque no soalho. - É o jardim em Pitcairn. Encontrei este maço de fotografias esquecido dentro de um sobrescrito no fundo de uma caixa cheia de livros. Olha, está aqui uma em que estamos todos... isto é, com a excepção do meu pai. Deve ter sido ele quem tirou esta fotografia. Eu devo ter uns oito ou nove anos, não achas? Tenho a franja muito comprida e por isso é que estou a franzir o nariz. A Marion está mesmo atrás de mim... e o David, é claro. Duas irmãs bem-comportadas, ao lado uma da outra, a olharem para a câmara fotográfica, e o David, recusando endireitar-se, preferindo tentar caminhar sobre as mãos.

 

Eleanor interrompeu-se, reunindo o resto das fotografias, batendo com elas para as juntar, como se fossem um baralho de cartas.

 

- Costumo associar esse dia com a tia Alice, embora não saiba bem por que razão. E o incêndio... alguma vez te falei do fogo que deflagrou na quinta dos Mackies? No celeiro? Esse episódio foi o grande drama da nossa meninice... quer dizer... pelo menos na altura pareceu-nos. Com certeza que te falei desse assunto. Mas, seja como for... fazia muito calor; no dia em que tirámos este retrato estava a trovejar. Houve um temporal durante a tarde e toda a gente disse que se ao menos tivesse chovido na noite anterior o fogo não teria tido oportunidade de se propagar. Talvez tenham sido tirados com a câmara da Alice, não me parece que ela esteja em nenhum destes retratos. - Pegou numa outra fotografia, ficando a vê-la uma vez mais. - Aqui estamos todos no banco das traseiras... a tia Mamie também está connosco, o que significa que a tia Alice não devia estar longe. E o David... que andava por perto para estragar tudo outra vez.

 

Sentou-se sobre os calcanhares, mostrando uma expressão sonhadora, pensando como era estranho que uma fotografia pudesse contar a verdade em relação a um determinado momento, mas, no entanto, não passava de outra mentira na urdidura apertada que era a vida de todos eles. Um retrato que falseava a realidade.

 

- O quê? - perguntou Eleanor, erguendo o olhar e despertando do sonho em que as recordações a haviam mergulhado. Não, tens razão. Numa altura destas, não é boa ideia estar a rever fotografias antigas. Só quando se muda de casa ou nos morre alguém é que fazemos isto, não é verdade? Em ocasiões em que as perturbações já são mais do que suficientes. - Eleanor voltou a guardar os retratos no sobrescrito amarelado pelo tempo e já com um canto rasgado. - Certo, é isso mesmo. Já me chega de tanto remexer no passado... Acho melhor voltar a guardá-las dentro da caixa.

 

As casas antigas movimentam-se pela calada da noite, numa tentativa para distenderem músculos cansados, rangendo e gemendo ligeiramente. O que não tem nada de mais, não tem a mínima importância; são pequenos ruídos que chegam a dar, em toda a sua familiaridade, uma sensação de segurança.

 

Faith despertou de um sonho que não conseguiu agarrar quando começou a dissipar-se. Todavia, ainda deixou qualquer coisa, um sabor na boca, um sentimento de consternação. John continuava a dormir, soltando um ligeiro assobiar por entre os dentes. Dentro de momentos, decerto começaria a ressonar, obrigando-a a dar-lhe uma cotovelada ao de leve no flanco. A casa, o quarto, estava tudo muito frio. Faith pôs-se à escuta, perguntando a si mesma o que é que a teria despertado: o sonho ou o choro de uma criança? Na hipótese de ter sido um dos filhos, voltaria a fazer-se ouvir, Mamã, um chamar fraco que ecoaria pela galeria; ela levantar-se-ia para ver o que se passava. Mas não ouviu mais nada. Apenas o ranger quase imperceptível das tábuas do soalho, o assentamento da caixilharia de uma janela, uma corrente de ar que levantava a ponta de um tapete leve. Frio; Faith chegou-se mais ao marido, mas não foi capaz de voltar a adormecer. Decorridos alguns momentos, levantou-se de mansinho da cama, estendendo a mão para o roupão. Tencionava ver se as crianças estavam bem, tranquilizando assim a inquietude que se apossara de si.

 

No quarto das meninas, Marion dormia de costas, hirta como um soldado, tendo em cada um dos lados uma boneca de cabelos anelados. A luz do luar entrava por uma pequena abertura nos cortinados, o que lhe permitia ver as crianças; constatou que Marion estava bastante quieta e dela não saía um único som. Faith inclinou-se por cima da cama da garota a fim de escutar a respiração da filha. Recordou-se da frequência com que fizera aquilo, muito em especial durante a primeira infância, nessas noites aterradoras em que os recém-nascidos parecem ter uma fragilidade de cristal, a tão pouca distância do nascimento, da morte.

 

Eleanor enrolara-se completamente sobre si mesma, com a roupa da cama toda desalinhada, os livros e o ursinho de peluche espalhados pelo chão. Faith endireitou os cobertores e, com cuidado, tirou o polegar da boca de Eleanor. Alguns segundos depois, quando a mãe saiu do quarto, a garota voltou a meter o dedo na boca, começando a chuchar vigorosamente sem sequer ter despertado.

 

No quarto de David, os cortinados estavam completamente abertos, como se ele se tivesse levantado da cama para os abrir já depois de se haver deitado (na esperança de conseguir avistar a raposa); os vidros estavam emoldurados por uma leve camada de gelo cintilante. Desde que tinha adormecido, David afastara os cobertores para trás, e o seu corpo formava um ângulo recto com o colchão, com uma perna pendurada para fora da beira da cama. Quando a mãe o endireitou, ficou a olhá-la com uma expressão de surpresa, olhos escuros muito abertos sem verem nada.

 

- Está tudo bem - segredou Faith -, volta a adormecer.

 

David fechou os olhos e ela foi à janela para fechar os cortinados. No jardim, o luar passeava-se entre as árvores, iluminando o solo sob uma luz de um azul-prateado, por baixo de um firmamento pontilhado por um sem-número de estrelas. As sombras deslocavam-se, separando-se e deixando ver uma figura etérea que parecia flutuar acima do relvado. Faith pensou na mulher do latoeiro que aparecera por ali havia algumas semanas, tendo a impressão de estar a vê-la à porta das traseiras, sob uma chuvada inclemente. Trazia um bebé ao colo, um menino robusto e de cabelos negros que devia ter mais ou menos um ano, o qual se debatia nos braços da mãe, esperneando incansavelmente. Apesar do rosto emagrecido e tornozelos ossudos, era por de mais evidente que a mulher estava grávida e a prová-lo a barriga enorme por baixo do cordão com que apertava o casaco.

 

Faith acolhera a mulher na sua cozinha aquecida; esta trazia apenas algumas pegas para vender. O rapazinho, que ela pusera no chão, apressou-se a ir na direcção do gato e deste para o fogão com o forno ligado, ignorando a voz lamuriada da mãe quando tentou aquietá-lo.

 

- Tem onde ficar? - perguntou Faith, sentindo um aperto no coração quando eles se preparavam para se porem a caminho, a mulher aquecida pelo chá, levando meia dúzia de pãezinhos embrulhados em papel vegetal, que ela guardara dentro da sua sacola de pano que já estava molhada.

 

- Sim, temos a carrinha - respondeu a mulher, fazendo, para grande surpresa de Faith, o sinal da cruz que desenhou no ar. Que Deus a abençoe, minha senhora. Deus a abençoe - repetiu, acrescentando mais algumas palavras que o vento levou no seu bramido que se fazia ouvir no jardim, levantando-lhe a orla do casaco. Por baixo usava uma saia de um tecido fino que se agarrava às pernas desnudadas. Faith disse uma única palavra, ”cachopos”, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça, sentindo-se satisfeita por os seus filhos se terem mantido na sala de estar onde brincavam, sem terem tido noção da presença da mulher do latoeiro e do filho.

 

Mais tarde, John disse que Dan Mackie, da Mains, lhe contara que a mulher passava por ali todos os anos. O filho mais velho morrera de pneumonia; era acompanhada por um homem bastante grosseiro, o qual costumava fazer uns biscates nas quintas das proximidades.

 

- O Dan diz que duvida que sejam nómadas que se deslocam em grupo... em grande parte, mantêm-se juntos. Este casal é muito metido consigo próprio.

 

- E não falta muito para que ela dê à luz outro cachopo.

 

- É verdade... as coisas são assim mesmo.

 

- Na cidade as pessoas como eles... - começou Faith a dizer com alguma hesitação. - Sei bem que há muitos na mesma situação, mas não nos vêm bater à porta, isto é... regra geral não vêm.

 

- Tens tido uma vida muito fácil - retorquiu o marido na brincadeira, pespegando um beijo na cabeça de cabelos escuros antes de ir buscar mais carvão para o lume. - Criada na zona do West End de Edimburgo.

 

- Ora essa! - ripostou ela. - Tu é que quiseste viver no campo.

 

Mas nenhum deles deu continuidade ao assunto: tinham decidido de comum acordo deixar Aberdeen, uma decisão a que haviam chegado na mesma altura e pelas mesmas razões.

 

- Queremos que as crianças sejam criadas no campo - haviam eles dito aos amigos quando venderam a casa onde viviam na cidade, depois de terem descoberto Pitcairn. Mas essa não era a razão verdadeira.

 

Faith suspirou, fechando os cortinados da janela do quarto de David. Não era a mulher do latoeiro que atravessara o jardim, era apenas uma sombra ou talvez uma raposa que andasse por ali, como David acreditava. Dan Mackie dissera que ultimamente avistara uma que rondava por perto. Com o pensamento nas galinhas, ela sentia mais receio desta intrusão do que da de qualquer mulher de latoeiro ou de qualquer fantasma. Em Pitcairn não existiam fantasmas. A casa estivera desocupada durante o ano anterior a eles se terem mudado para lá. Depararam com um interior bafiento e com ratos, além de um ninho de pombos no sótão, mas era preciso não esquecer que Miss Sutherland, a última da sua família a viver naquela casa, morrera num lar para a terceira idade, tendo deixado como testemunho da sua existência nada mais sinistro de que um carrinho de mão, um agasalho velho num barracão e na despensa uma dúzia de boiões de louça que as sobrinhas não acharam que valesse a pena levar consigo. Quando compraram a casa, Faith e John também adquiriram algumas peças de mobiliário, uma vez que não tinham meios para poderem mobilar uma casa tão grande logo de uma assentada, mas as gavetas estavam todas vazias, exceptuando um ou dois botões deixados numa cómoda. Por conseguinte, ambos tinham começado uma vida nova em Pitcairn, limpando de cima a baixo, preparando a vivenda para a sua família.

 

Faith virou-se para David, observando-o enquanto ele dormia, agora mergulhado num sono tranquilo. Aconchegou os cobertores mais junto do corpo do filho, após o que saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Ao longo da galeria, a luz do luar filtrava-se pelas portas dos quartos que estavam desocupados. Caso não fossem devidamente fechadas, as maçanetas rodavam como que por vontade própria e as portas deslizavam pelo linóleo que revestia o chão, mantendo-se abertas. Quartos vazios, frios e escassamente mobilados com as peças de mobília de mogno e carvalho que haviam pertencido a Miss Sutherland, por detrás dessas mesmas portas. Dois anos depois de se terem mudado ainda não haviam conseguido encher a casa, não tendo dinheiro para a decorar com mobílias novas. Faith sabia que todos pensavam que ela é que optara por comprar uma casa tão grande, o que levara avante por insistência sua. Porém, ao fim e ao cabo, ela é que fora criada nos subúrbios luxuosos de Edimburgo, tendo estudado num colégio particular, uma garota com talento, com futuro, a qual descera um pouco na escala social ao casar com John Cairns. Contudo, tinha sido John quem quisera adquirir aquela casa que ele próprio descobrira, tendo decidido que a queria comprar, assim como os terrenos que a circundavam, espaço, sossego e a distância que passaria a haver quer em relação à família dela quer à dele. Faith teria preferido ter continuado a viver na cidade. Ainda que Aberdeen não fosse Edimburgo, isso não impedia que tivesse uma azáfama citadina; era uma cidade próspera e com bastante movimento.

 

Faith caminhava pela galeria, deslocando-se, como ocasionalmente continuava a fazer, com a graciosidade de uma bailarina, apoiando o peso do corpo sobre a parte dianteira da planta do pé quando o assentava no chão, movendo a perna para fora num movimento da anca ao tornozelo, com o peito do pé virado para o tecto. Como se estivesse num palco. Aconchegou o roupão ao corpo e encaminhou-se para o seu quarto. Mas, quando já se aproximava da porta, houve qualquer coisa que lhe despertou a atenção, fazendo-a parar e suster a respiração. A mesma sombra outra vez, esguia e escura, deslocando-se pelas escadas em direcção às trevas do piso térreo, onde o vestíbulo não estava iluminado, salvo pela luz que se filtrava através das frestas das portas fechadas das divisões no rés-do-chão. Pouco mais era do que um movimento ao de leve dos cortinados pesados da janela alta das escadas que davam acesso à galeria, para logo se sumir na escuridão. Sei quem tu és, disse Faith, dirigindo-se à sombra. E chegaste demasiado atrasada.

 

Tinha-se chegado a uma decisão com que todos concordavam. Não havia como voltar atrás, tanto quanto à sombra no jardim, como a que dizia respeito à das escadas, o que também se aplicava à própria Faith. Fechou a porta do quarto antes de voltar a deitar-se.

 

Numa ocasião, quando Marion tinha onze anos e Eleanor e David nove e sete, respectivamente, os três haviam ficado aos cuidados das tias Mamie e Alice. Os pais estariam fora durante duas noites.

 

- Porque será que aparecem sempre nas piores alturas? - gritou Faith, sacudindo a farinha que se agarrara às mãos quando Marion entrou na cozinha para lhe dizer que o Ford Anglia já vinha pelo caminho particular da casa. Era um automóvel novo, mas o pai dizia que a caixa de velocidades estaria avariada dentro de seis meses, dada a maneira como Mamie conduzia.

 

- Vai ajudá-las a trazerem os sacos para dentro - instruiu Faith, que fazia uma tarte para eles comerem ao jantar, depois de ela e John se terem ido embora. - Estou quase a acabar.

 

Marion e Eleanor saíram pela porta das traseiras, contornando a casa até à entrada da frente. Estava-se a meio do Verão e os canteiros que ladeavam a porta da frente floriam cheios de sardinheiras e de lobélias, trepadeiras em tons de branco e alfazema. A brisa que empurrava velozmente as nuvens espessas pelo firmamento agitou o lenço de Mamie quando esta saiu do carro, quase sem respiração, tal o esforço que fizera para que as duas chegassem sãs e salvas depois da longa viagem de Aberdeen até ali.

 

- Ora bem, deixa-me olhar com atenção para vocês - disse ela, colocando Marion e Eleanor de costas contra costas. - Mas que par! De cada vez que vos vejo cresceram quinze centímetros! E onde é que o David se meteu?

 

- Saiu com o Stanley. O Stanley é o melhor amigo dele - explicou Marion.

 

- Aposto que foram para o bosque - acrescentou Eleanor.

 

Mamie trazia uma mala em pele de um tom bege, além de vários sacos de viagem, incluindo uma caixa para chapéus. Por seu lado, a bagagem de Alice resumia-se a uma mala castanha. Porém, ainda faltava tirar uma planta envasada dos recônditos do Ford Anglia, assim como uma caixa que continha biscoitos, um embrulho do talho de que Mamie era cliente habitual (do papel castanho já tinha escorrido um pequeno fio de sangue viscoso - Eleanor recusou-se terminantemente a pegar na carne), e, por último, um bolo Dundte numa lata e uma caixa de chocolates.

 

- Já preparei mais que o suficiente para eles comerem - disse Faith, manifestamente ofendida, ao ver toda aquela comida que Marion e Eleanor colocaram em cima da mesa da cozinha.

 

- Estou certa disso, mas os cachopos são capazes de comer este mundo e o outro - retorquiu Mamie, que acabara de entrar na cozinha, tirando o chapéu. A cabeleira de cabelos tufados tinha-se acachapado, apressando-se ela a afofá-la depois de se ter olhado ao pequeníssimo espelho fixo na parede, ao lado da ombreira da porta das traseiras. (Aquele era o espelho de que as crianças se serviam, tendo de subir para cima de um banco para verem se estavam ”asseadas e arranjadas” antes de irem para a escola.) - Deus me valha, pareço um trapo!

 

- Estás muito bem - afirmou Alice, que tinha entrado na cozinha silenciosamente, sem que ninguém desse por ela. Ela e Faith entreolharam-se, acenando com a cabeça, num gesto de saudação, mas sem se beijarem ou abraçarem. Alice não era o género de tia que se entregasse a grandes efusões de ternura. Contudo, as raparigas sentiam-se atraídas por ela, indo atrás de si para todo o lado, observando-a, ouvindo-a e fazendo-lhe perguntas. Davy era mais chegado a Mamie, a qual tinha sempre guloseimas nas algibeiras. Mas, desta feita, o garoto pôs-se a andar assim que recebeu o seu pacote de Smarties e o chocolate, o que fez com o intuito de partilhar os doces com Stanley, que esperava por ele no esconderijo dos dois perto do pomar de macieiras.

 

Mais tarde, as três crianças e as duas tias juntaram-se na porta da frente para acenar as suas despedidas aos pais que se afastavam no automóvel. Estes também tinham adquirido um carro novo; o que as crianças mais invejavam era a viagem que eles fariam no Morris Oxford azul. Até ao momento, o mais longe que tinham ido era a igreja para as lições de catequese.

 

- Quando é que eles regressam? - perguntou Eleanor, puxando a manga do casaco de Mamie.

 

- No domingo - respondeu Alice -, antes da hora do jantar.

 

David pegou no pau que o acompanhava sempre para onde quer que fosse, contornando a casa enquanto raspava a parede com a ponta do pau.

 

Mamie colocou um braço em volta dos ombros de Eleanor, apertando-a num gesto de afecto. Dela emanava uma fragrância de um perfume adocicado misturado com o cheiro a mentol das pastilhas que tomava para a azia.

 

- Não vale a pena estarem ralados. Têm as vossas tias para tomarem conta de vocês... Vamo-nos divertir muito, não é verdade?

- Eleanor esquivou-se do braço dela, afastando-se. Mamie meteu outra pastilha de mentol na boca. - Deus me valha, tenho as entranhas às avessas!

 

- Tu comes depressa de mais - adiantou Alice.

 

- Afinal, o que é isso da azia? - perguntou Eleanor, seguindo atrás de Mamie pelo corredor até à cozinha. Imaginava o coração de Mamie a deflagrar em chamas dentro do corpo, para depois se acalmar até ficar apenas um clarão vermelho. Não admirava, pois, que lhe doesse.

 

- É a minha velha inimiga - disse Mamie. - Mas agora vamos lá a ver quem é que vai ajudar a lavar a louça? Onde é que a vossa mãe guarda o avental?

 

Alice, porém, já o tinha tirado da parte de trás da porta de um

 

Nota: Azia: - Heartburn, em inglês, literalmente, ”coração a queimar”. (N. da T.)

 

armário, tendo começado a lavar a louça. Marion estava a postos com um pano, enquanto Eleanor se mantinha atrás da irmã à espera da louça para a arrumar. Mamie instalou-se à mesa da cozinha, tirando o maço de cigarros da sua mala de mão.

 

Durante a tarde, Alice arrancou as ervas daninhas dos canteiros do jardim da frente, mostrando a Marion como é que se fazia, enquanto Mamie se refastelava na espreguiçadeira no relvado, lendo The People’s Friend. Eleanor estava sentada ao lado da tia, fazendo uma cadeia de malmequeres.

 

- Esta é a mais comprida que consegui fazer até hoje.

 

- Tens toda a razão. - Contudo, pouco depois, quando a garota ergueu o seu trabalho para mostrar os progressos que fizera, Mamie já tinha adormecido, respirando com a boca aberta e com as pernas abertas, pondo à mostra uma saia de baixo arrendada e a parte de cima das coxas gordas onde as meias de vidro acabavam. Eleanor esforçava-se por não olhar para as pernas da tia.

 

Na primeira noite, Mamie contou-lhes uma história antes de adormecerem. David foi ao quarto das meninas, sentando-se na cama de Marion e encostando-se ao corpo maciço e confortável de Mamie, sentindo na face a macieza da camisola de angorá que ela dizia ter sido tricotada com lã de pêlo de coelhos brancos. Nas histórias, à semelhança do que se passava com as conversas, os assuntos eram sempre sobre a sua pessoa.

 

- Não sou capaz de inventar coisas - comentou ela. A Alice é que tem imaginação para isso. - Aquela história em particular estava cheia de descrições das roupas que Mamie e o tio Tom Marshall, um homem que David nunca tivera o prazer de conhecer e de quem Marion e Eleanor não guardavam muitas recordações, haviam usado aquando do casamento. Pouco depois, Mamie estava lançada e felizmente não ouviu o que David disse entre dentes: ”Isso outra vez, não, por favor.”

 

Marion deu-lhe um pontapé à socapa, para que o irmão se calasse, mas, lesto, ele conseguiu furtar-se ao pé dela. Manifestamente aborrecido, sentou-se no soalho e começou a brincar com a casinha de bonecas. Entretanto, a tia Mamie chegou à parte em que descreveria a morte atroz do tio Tom (trabalhava na polícia e morrera num acidente de viação); ela recordava-se do funeral ao pormenor, a saia e o casaco pretos que usara na ocasião, sem se esquecer do chapéu com véu. Esse episódio tivera lugar quando Marion tinha três anos. Para qualquer dos três garotos, era difícil imaginar o período que antecedera a mudança de Mamie, tendo esta deixado a Escócia para ir viver com a sua prima Alice, pelo que, na perspectiva das duas meninas, aquilo parecia-lhes ser uma história inventada.

 

- Mas, continuando... - prosseguiu Mamie. - A Alice tinha um apartamento muito acolhedor, mas não havia espaço para a minha cangalhada toda, não é verdade? Portanto, o que é que nós fizemos?

 

- Compraram a casa ao lado do parque - adiantaram Marion e Eleanor em coro.

 

- Isso mesmo, para que as duas cachopas e o cachopito que eu conheço possam ir ao lago dar de comer aos patos quando vão visitar as tias.

 

Enquanto ela falava, Eleanor virou-se, deparando com David que sacudia a casa das bonecas de um lado para o outro com todo o vigor.

 

- Pára com isso! - gritou a garota, levantando-se de supetão da cama.

 

- Porque é que hei-de parar? - perguntou David, mostrando-se perplexo e interrompendo o que estava a fazer. - É um tremor de terra. A mobília tem de ficar partida e as pessoas morrem todas.

 

- Não, não vai acontecer nada disso.

 

Durante a luta em que ambos se engalfinharam, a casinha de brincar caiu no chão entre os dois com grande estrondo: uma das chaminés soltou-se e a parte da frente estalou, quebrando-se ao mesmo tempo que os bonecos e o respectivo mobiliário se espalhavam pelo soalho. Ninguém deu pela entrada da tia Alice no quarto, mas, em apenas alguns momentos, ela conseguiu arrumar tudo, restaurando a calma. Entretanto, Mamie desceu as escadas para ir buscar cola com que repor a chaminé no telhado, enquanto a casa já fora colocada a direito e pelo menos o mobiliário voltara para dentro de casa, ainda que não tivesse sido colocado nos respectivos lugares. David disse que lamentava muito o sucedido, se bem que o seu semblante indicasse não compreender o motivo por que teria de se desculpar.

 

- Agora que já pedi desculpa, conte-me uma história - pediu ele num tom de lamúria. - Eu estava aborrecido, nunca ninguém me conta nenhuma história. - Porém, Alice apressou-se a levá-lo para o seu quarto.

 

- Amanhã - prometeu-lhe a tia. - Amanhã conto-te três histórias... uma para cada um de vocês.

 

- Mas têm de ser inventadas - avisou ele.

 

- Inventadas - concordou a tia enquanto lhe aconchegava a roupa da cama e corria os cortinados.

 

Alice sabia como contar histórias. Era uma mulher sem nada que a distinguisse das demais, mas esse não era o caso no tocante as suas histórias.

 

- Vamos ter a primeira história no quarto do David - disse ela -, porque assim ele não poderá armar uma grande confusão, partindo os brinquedos de toda a gente.

 

- A culpa não foi minha.

 

- Não, foi por culpa do fantasma mau - concordou Alice. David parou quando já se preparava para se deitar.

 

- Que fantasma mau?

 

- Põe-te debaixo dos cobertores - ordenou Alice. - Isso mesmo. As meninas... já estão instaladas? - Eleanor e Marion sentavam-se no pequeno sofá. Ambas estavam tão crescidas que só apertadas é que cabiam, mas tinham os braços à volta uma da outra, com o cabelo comprido de Eleanor a fazer cócegas no queixo de Marion, enquanto as pantufas desta, em forma de coelhos, lhe caíam dos pés para o soalho com um ruído suave. Esperavam que a tia começasse a contar as histórias prometidas.

 

- A tia disse que havia um fantasma - insistiu David, persistente. - Está dentro desta casa?

 

- Está por todo o lado - respondeu a tia Alice - onde haja meninos que se portam mal. Então, sempre que alguém faz uma maldade, existe outro ser que pode ser culpabilizado.

 

David mostrava uma expressão confusa, mas, como queria ouvir a sua história, encostou-se à almofada, abraçado ao cão de pano azul cujas orelhas já tinha mordido quase por completo, tendo-as reduzido a alguns papos.

 

A história de David era a da Acendalha. Era uma história bastante comprida que já perto do fim quase o pusera a dormir. Eleanor tinha o polegar na boca, apesar de numa ou duas vezes Marion ter tentado tirá-lo com um estalido de sucção. A tia Alice pôs-se de pé, aconchegando David entre os lençóis. Em seguida, levou um dedo aos lábios, fazendo sinal às garotas para que se mantivessem caladas. Em silêncio, as duas saíram do pequeno sofá e foram para o seu quarto, caminhando em bicos de pés.

 

A tia Alice não tinha um cheiro característico como a tia Mamie, além de ser magra e sem os contornos do corpo que o tornassem confortável. Chegada ao quarto das raparigas, ficou junto da janela, magra como um espeto, com a sua saia azul-marinho e camisola, enquanto elas rezavam a oração da noite e se deitavam.

 

- Vamos ver uma coisa - começou ela a dizer enquanto fechava os cortinados -, já está a ficar tarde... e que tal se eu vos contasse uma história esta noite e a outra fica para amanhã, antes da chegada da mamã e do papá? - Mas as duas garotas queriam as duas histórias naquele momento. Alice suspirou antes de começar a contá-las.

 

A história de Eleanor era sobre a Pequena Sereia. As duas começaram a chorar quando ouviram a descrição de como os pés dela tinham ficado dilacerados devido às pedras aguçadas, como ela se havia sacrificado por amor. Posteriormente, quando tomou conhecimento daquilo, Faith comentou:

 

- Por amor de Deus, essa história de terror! O que é que terá passado pela cabeça da vossa tia? - Faith preferia histórias como O Que Katy Fez a seguir e Mulherzinhas, era de opinião de que as histórias deviam enaltecer o bom comportamento, tendo sempre uma moral. Não tinha paciência para contos de fadas e parecia francamente irritada com a tia Alice, aliás, ela dava a impressão de estar sempre um pouco irritada com Alice. O que era uma atitude estranha porque, na opinião das crianças, era a tia Mamie que era capaz de se mostrar realmente irritante.

 

Quando a história de Marion começou a ser devidamente contada, Eleanor também já tinha adormecido. Marion, contudo, sentava-se a direito na cama, sentindo-se especial e determinada a manter-se acordada.

 

- Se a tia me contar a história - sugeriu a garota -, depois posso contá-la à Eleanor e ao Davy. - Receava que Alice pensasse que não valeria a pena estar a contar a história só para uma criança.

 

Lá fora ainda havia alguma luz do dia, ouvindo-se o chilrear dos pássaros, os quais não sabiam que já era hora de os meninos irem para a cama. A noite estava perfumada com a fragrância dos goivos e dos alissos de aroma doce que enchiam os canteiros que bordejavam a casa. Alice sentara-se num cadeirão de vime, entrelaçando as mãos sem anéis no regaço. O seu timbre de voz era baixo, parecendo que vinha de muito longe, da terra onde os contos de fadas tinham origem.

 

- Era uma vez... - começou ela - uma princesa que gostava de fazer tudo à sua maneira. Era uma menina muito teimosa e por isso, quando a mãe, a rainha, lhe dizia: ”Não descalces os sapatos e não dispas o casaco para não te constipares”, ela desobedecia-lhe sempre. Costumava sair de casa nos dias mais frios, usando apenas um vestido leve próprio para festas e calçando umas sandálias prateadas. Apesar disso, ela nunca adoecia, portanto, convenceu-se de que devia ter razão, enquanto a mãe estaria enganada.

 

Marion começou a pressentir que as consequências não tardariam, sentindo-se indecisa sem saber se a sua simpatia devia ir para a princesa malcomportada ou para a rainha sofredora de há muito.

 

- Ela costumava sentar-se na margem do rio - continuou Alice -, mergulhando os pés descalços na água. A mãe dizia: ”Não faças isso, podes apanhar uma constipação que será a tua morte.” A verdade é que ela não ligava importância ao que a rainha lhe dizia. O que aconteceu foi o seguinte: os peixes chegaram para lhe beijar os dedos dos pés, dando-lhes pequenas dentadinhas muito suaves que lhe faziam cócegas, mas de que ela gostava.

 

Subitamente, a tia Alice inclinou-se para a frente e levantou os cobertores da cama de Marion, tocando-lhe nos dedos dos pés com as mãos geladas. Com um gritinho, Marion encolheu as pernas.

 

- Não faças barulho! - advertiu a tia Alice, acenando com a cabeça na direcção de Eleanor que continuava a dormir.

 

Sorrindo, Alice voltou a sentar-se.

 

- Então, num dia muito trágico, com os outros peixinhos veio um muito grande, a nadar pelas águas escuras, e, quando viu os outros peixes que beijavam os dedos dos pés da princesa, pensou logo que ela devia ser uma coisa boa para se comer. - Marion apercebeu-se da coisa má prestes a ser revelada, desejando que Alice parasse de contar a história. Sabia, no entanto, que o fim teria inevitavelmente de ser contado. - Portanto, este peixe enorme aproximava-se por entre as águas do rio, assustando os mais pequenos que se puseram em debandada quando deram pela aproximação dele. E agora, queres saber o que é que aconteceu a seguir? O que é que esse peixe monstruosamente grande fez?

 

- Não - respondeu Marion numa voz que mal se ouvia. Não quero que me diga. - Mas Alice disse, mau grado a resposta dela.

 

- Começou por mordiscar-lhe os dedos dos pés, suavemente, mas depois gostou tanto dela - a princesa tinha um sabor tão doce - que abriu a bocarra enorme, mostrando os dentes todos muito aguçados e começando a trincar-lhe os dedos dos pés, arrancando-lhos um a um, até não restar nenhum, continuando a morder-lhe os pés, arrebatando-lhe os dedos todos, sem deixar um único.

 

- Eu pedi-lhe que não me contasse! - exclamou Marion, tapando os ouvidos com as mãos.

 

- Não te inquietes, no fim tudo se compõe.

 

Depois foi o fim da história: a procura de uma feiticeira, um príncipe que apareceu inesperadamente, o qual foi capaz de levar a cabo as tarefas que se impunham, uma aventura e, eventualmente, um feitiço que teve o condão de fazer com que os dedos dos pés da princesa voltassem a crescer. Marion, que mais tarde tentou narrar todos estes acontecimentos a Eleanor e a David, meteu os pés pelas mãos quando chegou a essa parte, tendo desistido de continuar. Talvez tivesse adormecido antes do fim da história. Não tinha a certeza.

 

- Seja como for - finalizou. - Sei que os dedos voltaram a crescer-lhe.

 

- Pobre princesa - observou Eleanor com um suspiro de pesar.

 

- No entanto, a verdade é que era malcomportada.

 

- Eu sou um tubarão - disse David, soltando um rugido e atirando-se aos pés de Eleanor -, e vou começar por comer o dedo grande do teu pé!

 

- Ora bem - disse Faith, entrando no quarto. - Quem me dera ter ficado fora de casa durante mais tempo, se é assim que vocês tencionam continuar a comportar-se.

 

- Não - apressou-se Marion a dizer, abraçando a mãe pela cintura. - Não queremos que volte a ir para longe, nunca mais!

 

Faith abraçou a filha com força, fechando-a no círculo dos seus braços. Tinha as suas próprias razões que a haviam levado a sentir algum mal-estar durante todo o fim-de-semana em que se ausentara de casa.

 

- Até vocês serem bastante mais crescidos, o teu pai e eu não tencionamos ausentar-nos outra vez.

 

Nessa mesma noite, quando foi ver se os filhos estavam bem antes de ir para a cama, sentiu um grande alívio ao constatar que os três dormiam serenamente.

 

- Não és capaz de imaginar as histórias com que as duas catatuas lhes encheram a cabeça - comentou ela, falando com John quando se preparavam para se deitar.

 

- Pois bem, de que é que estavas à espera. Nem uma nem outra tem a mínima experiência com cachopos. - Durante uns momentos, ficaram a olhar um para o outro em silêncio. Pouco depois, John acrescentou: - E agora apaga a luz. - O que Faith fez e ambos se prepararam para dormir.
Sábado à tarde: a High Street cheia de famílias. Eleanor, sentada a uma mesa do café, inclinou-se para a frente, batendo no vidro da janela.

 

- As raparigas estão ali... olha. No outro lado da rua - disse ela, voltando a bater no vidro.

 

- Elas já nos viram - retorquiu Marion, acenando com a mão; as filhas de ambas tentavam furar por entre as pessoas que andavam a fazer compras; pouco depois, ouviram a sineta da porta do café quando as garotas entraram, encaminhando-se para a mesa.

 

- Vamos ao Woolworth’s para comprar qualquer coisa bem cheirosa como prenda de aniversário da Emma.

 

- Dê-me um bocadinho do seu bolo, mamã - pediu Claire, inclinando a cabeça de cabelos louros e abrindo a boca; Eleanor deu-lhe uma colherada de bolo de chocolate. Num movimento rápido, a língua rosada lambeu um pedacinho da cobertura do bolo que se tinha agarrado ao lábio superior. - Que delícia, está muito saboroso.

 

- Vão-se embora - ordenou Eleanor. - Estamos a tentar tomar uma chávena de chá em paz e sossego

 

- Está bem.

 

- Importa-se de me dar mais algum dinheiro? - pediu Eilidh, tocando no braço de Marion. - Comprei uma revista e o papel para embrulhar as prendas custou...

 

- Quanto é que queres? Toma.

 

- Obrigada - agradeceu a garota.

 

- Até logo.

 

Eleanor e Marion ficaram a observar as raparigas que se afastavam, seguindo pela High Street e inclinando-se uma para a outra enquanto se riam à socapa.

 

- Como elas têm pernas compridas - comentou Marion -, ou será apenas impressão minha por causa das calças que trazem vestidas?

 

”E assim, aqui estamos nós”, pensou Eleanor enquanto as duas cabeças, uma de cabelos louros e a outra de cabelos pretos, desapareciam no interior do Woolworth’s. ”Aqui estamos nós, a comer bolo à tarde enquanto as nossas filhas planeiam festas, presentes e idas a discotecas; as nossas filhas são como éguas jovens a espinotearem por campos verdejantes, com crinas ao vento, experimentando os limites do território.”

 

- Tens uma expressão esquisita no rosto - disse Marion. O bolo não está a saber-te bem?

 

- Está óptimo - ripostou Eleanor, irritada, afastando o prato que tinha à frente e servindo-se de outra chávena de chá. - Estava a pensar em... tempos idos.

 

- Oh!

 

- Estás recordada - continuou Eleanor, acrescentando um pouco de leite ao seu chá - do esconderijo que o David e o Stanley, o melhor amigo dele, tinham ao fundo do jardim em Pitcairn? Não permitiam que ninguém, além de eles dois, lá entrasse. Mas, quando finalmente entrámos lá, tudo o que encontrámos foi alguns paus e papéis que tinham embrulhado guloseimas.

 

- Por que carga de água é que te lembraste disso?

 

- Não sei. Ocorreu-me ao pensamento, sem mais nem menos respondeu Eleanor, percorrendo a toalha de mesa com a ponta do dedo, fazendo um arabesco com um pouco de açúcar derramado.

- Pergunto a mim mesma por onde é que ele andará.

 

- Acho melhor não voltarmos a pensar nesse assunto. É como se andássemos em círculos sem chegar a lugar nenhum. Ele acabará por aparecer, é o que acontece sempre. Além do mais, o pai tem passado muito bem.

 

- Eu sei. Aparentemente, ele acabou por aceitar esta situação... estou a referir-me à maneira como o Davy desaparece sem dizer nada a ninguém.

 

- Acabou por se habituar - retorquiu Marion. - Sabes... acho que desde que ele continue a ter a casa de Pitcairn e o jardim sente-se feliz.

 

- Provavelmente, tens razão - concordou Eleanor. Ambas se viraram outra vez para poderem ver pela janela, como se esperassem que Claire e Eilidh reaparecessem. Porém, as duas mulheres continuavam a ver em pensamento o extenso jardim de Pitcairn, como se vissem o pai num passo firme a percorrer o trilho com o seu carrinho de mão, agora com mais lentidão e com um carrego menor, o que acontecia desde que sofria de angina do peito. Era como se o observassem, no espaço nítido que a imaginação lhes proporcionava, num lugar genuíno, como se estivessem a vê-lo em carne e osso.

 

Pouco depois, Marion começou a juntar as suas coisas e Eleanor voltou-se para pegar na sua mala de mão.

 

- De quem é a vez de pagar? - perguntou esta.

 

- Acho que sou eu - respondeu Marion, abrindo a carteira e tirando a quantia certa de entre as moedas. - Tenho a certeza de que é a minha vez. Além do mais, para variar, tenho dinheiro trocado.

 

Eleanor esperou junto da porta enquanto Marion conversava com Joan, que estava de serviço à caixa registadora, acerca do tempo e da operação a que a mãe da última fora submetida. Pouco depois, as duas irmãs saíram para a High Street, onde uma rabanada de vento abriu o impermeável de Eleanor.

 

- Tenho de dar aulas durante toda a semana - disse Marion -, por isso, só te posso telefonar na sexta-feira.

 

- De acordo. Vou ter de ir à cidade... mas tenciono voltar cedo.

 

- Está bem. Não achas que está a ficar mais frio?

 

- Sim, o tempo está de enregelar os ossos.

 

”Sentirei eu o frio mais do que a Marion?”, perguntou-se Eleanor enquanto percorria a High Street a caminho do parque de estacionamento. ”Ambas devíamos ser rijas, fomos criadas numa casa fria onde não havia aquecimento central. Usávamos camisolas interiores e meias grossas de lã cinzenta, além de casacos de fazenda azul, durante os meses de Inverno, com cachecóis à volta do corpo, atados nas costas como se fossem xailes. Com certeza que devíamos parecer umas barriquinhas, agasalhadas para nos defendermos do vento que soprava de oriente, protegidas contra a neve dos longos Invernos.”

 

Junto do quiosque das revistas, Claire e Eilidh faziam parte de um grupo de raparigas. Não muito longe delas, dois ou três rapazes exibiam-se, fazendo equilíbrio sobre as rodas traseiras das suas motocicletas, empurrando-se uns aos outros e chamando-se em voz alta para darem nas vistas. As raparigas saudaram Eleanor quando esta passou por elas; constrangidos, os rapazes ficaram a olhar para ela.

 

- Não te esqueças de que o jantar é às seis - lembrou Eleanor. - Esta noite tenciono sair. Como é que vais para casa...? Queres vir comigo agora?

 

- Não. Cá me hei-de arranjar - respondeu Claire depois de alguma hesitação. - A mãe da Sarah ficou de a vir buscar. Ela pode deixar-me no caminho da quinta.

 

- De acordo.

 

Quando Eleanor se decidiu a comprar a pequena moradia, Claire tinha nove anos, pelo que era preciso levá-la de automóvel onde quer que tivesse de ir: para a escola, reuniões de escuteiras, aulas de natação, aulas de bale... Eleanor mal conseguia recordar-se desse período de uma vida tão diferente. Esquecera-se mesmo do nome das mães e das garotas com quem Claire costumava brincar. Além de Barbara, a sua melhor amiga, e da filha, Hannah, a melhor amiga de Claire, todos os outros nomes se confundiam, indiferenciados na sua memória. Agora, Claire estava prestes a fazer quinze anos e ambas viviam num mundo inteiramente diferente. Quando escolheu a pequena vivenda onde viviam no campo, Eleanor imaginara manhãs tranquilas e noites em silêncio, ouvindo o vento a agitar a ramagem das árvores, e com muito espaço para poder respirar. Não tinha previsto a impaciência de Claire face ao isolamento em que viviam, como não lhe passara pela cabeça que haveria de chegar o dia em que ela própria não desejaria manter-se sozinha, tão distante dos outros.

 

Ela e Claire viviam na última de três pequenas vivendas numa zona rural. A quinta tinha mudado de dono antes de ela se ter mudado, de regresso à região norte, pelo que as moradias eram vendidas separadamente. A do meio fora comprada por Jim e Edie, os quais haviam vivido sempre naquela área. Jim trabalhara na quinta até se ter reformado. A outra vivenda tinha sido comprada por alguém que passara a alugá-la como casa de Verão, após o que a pusera à venda. Estivera desabitada durante todo o Inverno anterior. Com a chegada do Verão, tinha sido adquirida por um casal que se mudara para lá em finais de Agosto, mas Eleanor ainda não tivera grandes contactos com eles. Por vezes, via dois automóveis estacionados à porta, mas durante o dia não dava pela presença de ninguém em casa.

 

Eleanor era a proprietária da casa que tinha o jardim com mais superfície. Dedicava-lhe grande parte do tempo, mas os seus esforços não pareciam ter feito grande diferença no relvado mal cuidado nem nos canteiros onde as plantas cresciam um pouco ao acaso. Na casa ao lado, Jim e Edie tinham flores e legumes em carreiros bem alinhados, assim como um relvado macio como feltro verde.

 

O interior da pequena vivenda estava frio quando chegou a casa. Eleanor pendurou o casaco e dirigiu-se apressadamente para a cozinha onde o Rayburn a mantinha aquecida. Pôs-se de costas para o calorífero, deixando que o calor lhe subisse até ao pescoço, pousando as mãos na barra de metal onde os panos da louça estavam pendurados. Momentos depois, afastou-se, indo buscar o avental pendurado na porta das traseiras e começando a preparar a refeição da noite.

 

Pouco antes das dezoito horas, Claire chegou a casa, batendo com a porta e descalçando os sapatos de ténis com as biqueiras no corredor estreito.

 

- Olá, o que é o jantar? A Sarah vem buscar-me às sete e um quarto. A essa hora tenho de estar ao fundo da estrada. Há tempo para tomar um duche?

 

Mãe e filha tinham-se sentado à mesa para comer quando o telefone começou a tocar. Claire arrastou a cadeira para trás.

 

- Eu atendo... pode ser que seja a Eilidh.

 

- Diz-lhe que telefonas mais tarde - avisou Eleanor quando a filha já se afastava, mas esta regressou escassos momentos depois.

 

- É o avô John.

 

- Oh, vou já. - Eleanor colocou o prato no forno para que a refeição não arrefecesse.

 

- Paizinho?

 

- A Marion tem mais que fazer, além de só dizer coisas à toa, por isso decidi telefonar-te.

 

- Pai, importa-se que eu lhe telefone daqui a pouco. Estávamos a jantar.

 

- Está bem, afinal de contas, não te telefonei para te empatar. Pensei que talvez quisesses saber que o David regressou a casa.

 

- Quando? - perguntou Eleanor.

 

- Chegou esta tarde, como se tivesse caído do céu. Ainda bem que hoje não era o dia de eu ir jogar golfe.

 

- Chegou sozinho?

 

- Sim - confirmou o pai.

 

- Então... como é que ele está? Por onde é que tem andado este tempo todo em que não deu notícias?

 

- É melhor que venhas até cá e que sejas tu mesma a fazer-lhe essa pergunta.

 

- Durante quanto tempo é que ele tenciona ficar?

 

- Sabes bem como ele é, nunca diz nada. Pouco tempo, calculo eu.

 

- Suponho que a Claire podia ficar em casa da Marion. Esta semana ela tem de dar aulas, portanto, não poderá ir a casa do pai.

 

- Vai jantar, não deixes que a comida arrefeça.

 

- O pai está bem?

 

- Estou óptimo, cachopa, estou como sempre.

 

- Ainda bem; então, telefono-lhe dentro em pouco. Talvez nos vejamos na quarta-feira.

 

Claire lia uma revista enquanto comia. Quando a mãe voltou a sentar-se à mesa ergueu o olhar.

 

- O avô está bem?

 

- Está, mas o teu tio David apareceu de repente.

 

- Há séculos que não o vejo... desde que era pequena. Ele passou uns tempos connosco quando o pai ainda estava vivo, não é verdade?

 

- Sim, muitas vezes. Nessa altura, ele trabalhava em Londres.

 

- Onde é que ele vive agora?

 

- Oh, acho que... talvez em Edimburgo - respondeu Eleanor.

 

- Mamã, ele é seu irmão, tem obrigação de saber isso!

 

- Ele nunca pára muito tempo no mesmo lugar - retorquiu Eleanor, rindo-se.

 

- Ele tenciona fazer-nos uma visita?

 

- Não sei. O avô quer que eu vá a Aberdeen para o ver.

 

- Posso ir com a mãe?

 

- Tens aulas, por isso não podes ir.

 

- Eu podia faltar e não faria qualquer diferença; nesta altura as aulas são bastante aborrecidas. Seja como for, não estamos a aprender nada de novo.

 

- Não sejas pateta, Claire.

 

- Eu até gostava dele... do tio David. De todas as vezes que nos visitava, costumava trazer presentes, aqueles bonecos que pareciam pessoas, a mãe lembra-se? Ainda os tenho guardados no sótão.

 

- Foi o David que te ofereceu isso? - Eleanor começou a pensar nesse outro mundo, em Berkshire, a casa nova, e lan a chegar a casa às sete da tarde no comboio de Londres, no meio de uma enchente de pessoas que todos os dias iam trabalhar na capital. O calor dentro do automóvel, Claire sacudida de um lado para o outro no assento de trás, e as outras mulheres com as suas crianças pequenas e cães, à espera no parque de estacionamento onde não se via uma única árvore, sob um sol escaldante de Junho que aquecia o pavimento asfaltado, reflectindo-se no metal dos carros. Até que, finalmente, lan saía do comboio com os outros homens, com o casaco preso por um dedo por cima do ombro, o nó solto da gravata, todo amarrotado e suado depois da viagem de Londres, trazendo o Evening Standard dentro da pasta.

 

- Não me parece que seja justo. A mãe pode ir para qualquer lado sempre que lhe apetece, enquanto eu tenho de ir todos os dias à escola, o que é uma chatice - protestou Claire, amuada, afastando o prato enquanto Eleanor ia à cozinha, onde a luz do dia já desaparecera quase por completo, obrigando-a a acender a luz eléctrica; ouvia os pingos de chuva que batiam contra a janela.

 

- O que estás a dizer é um disparate. Eu nunca vou a lado nenhum - disse Eleanor, empilhando os pratos e levantando a mesa.

 

- Vou tomar duche, não é verdade? - perguntou Claire.

 

- Não gastes a água quente toda. - Mas a filha já tinha saído da cozinha. Eleanor mergulhou nos seus devaneios, e com uma mão-cheia de talheres começou a recordar os anos em que estivera casada, pensando no irmão David.

 

Às dezanove horas levou Claire de automóvel até ao fundo da estrada da quinta, ao encontro da mãe de Sarah no portão. Chovia com muita intensidade e ficaram sentadas no escuro, com a chuva a escorrer em catadupa pelas janelas; o motor do carro continuava a trabalhar, para que a temperatura no interior se mantivesse aquecida, e as luzes estavam ligadas para que a mãe de Sarah pudesse ver o automóvel.

 

- Os vidros estão a ficar todos embaciados - observou Claire, limpando o vidro da janela do seu lado com a manga do agasalho, perscrutando a escuridão com uma expressão abstracta.

 

- Amanhã vou-te buscar a casa da Emma, não é verdade?

 

- Sim. Mas eu telefono-lhe. Talvez à hora de almoço. - Virou-se para Eleanor. - Onde é que a mãe vai?

 

- Vou sair com o Andrew. O novo médico do consultório do Fergus.

 

- Oh! Ele é o seu novo namorado?

 

- Estou velha de mais para ter namorados. Para já não mencionar que o conheço há muito pouco tempo. - Eleanor apressou-se a continuar, sem dar oportunidade à filha de lhe fazer mais perguntas. - Vamos ao cinema. Ele ficou de me ir buscar às sete e meia, pelo menos, espero que sim... Olha, ali estão elas - acrescentou ao avistar os faróis de outro automóvel que rodava lentamente pela estrada. Claire pegou nas suas coisas, colocando o saco-cama debaixo do braço.

 

- Tem cuidado... não ponhas os pés nas poças – advertiu Eleanor ao mesmo tempo que buzinava à guisa de saudação dirigida à mãe de Sarah, após o que começou a inverter a direcção do carro. Tomou um duche de água morna, maldizendo Claire, mas estava pronta quando o carro de Andrew parou à porta da pequena moradia.

 

- Tiveste uma boa semana? - perguntou ele, saindo do automóvel.

 

- Óptima. Espera aí... É o meu telefone que está a tocar? Ouvia-se o som da campainha que vinha de dentro de casa. - Estás de serviço?

 

- Não, não... mesmo que estivesse, tenho o bíper.

 

- É melhor eu atender - disse Eleanor.

 

- O filme começa às oito e um quarto - gritou Andrew quando ela já ia a meio caminho de casa. - Se não nos pusermos já a caminho, vamos chegar atrasados. - Mas ela já tinha começado a abrir a fechadura da porta, entrando e dirigindo-se apressadamente para o corredor.

 

- Graças a Deus, pensei que tinhas saído. Preciso desesperadamente de falar com alguém que não seja de idade.

 

- Olá, David.

 

- Olá, Eleanor... está tudo bem contigo? O pai disse que vinhas até cá, mas as tias Mamie e Alice encontram-se de visita e também estão a dar comigo em doido.

 

- Oh, as tias. Elas dão com ele em doido. David, tenho muita pena, mas já estava de saída. Neste momento não posso falar contigo, se não, perdemos o princípio do filme. Só voltei atrás porque ouvi o telefone a tocar.

 

- E, telepaticamente, sabias que era eu e que estava a passar por um mau bocado.

 

- Não digas disparates, claro que não estás a passar por um mau bocado. Apenas aborrecido. - ”E bêbedo”, acrescentou Eleanor em pensamento ao aperceber-se disso. No mínimo, ele já teria tomado uns copos. - Olha uma coisa, prometo que te telefono amanhã. - Tinha consciência de que Andrew estava à sua espera, um homem que mal conhecia, na rua. E, contudo, o que ela queria realmente fazer era continuar no corredor frio a falar com o irmão.

- Encontramo-nos na quarta-feira, como eu disse ao pai. Ou então... David, tu podias vir até minha casa. Ainda há pouco a Claire disse que gostaria de te ver.

 

- A belíssima Claire... Ela continua loura e lindíssima?

 

- Claro que sim, e agora ainda mais - retorquiu Eleanor, rindo-se.

 

- Estás bem? - perguntou Andrew, que entretanto surgira à entrada. - Vamos chegar atrasados e depois não nos deixarão entrar.

 

- De acordo, peço desculpa. Vou já. David, sou obrigada a desligar, tenho uma pessoa à minha espera. Não, conto-te tudo mais tarde. Até depois.

 

- Era o meu irmão - explicou Eleanor enquanto Andrew seguia em excesso de velocidade pelo caminho de terra batida, entrando na estrada principal sob a chuvada que mal permitia que se visse um palmo à frente do nariz. - Tínhamos perdido o contacto um com o outro. Mas ele acaba sempre por aparecer, mais cedo ou mais tarde - acrescentou ela, tendo a percepção de que aquele homem, com o qual só se encontrara duas vezes, e com quem simpatizava, nada mais do que isso, estava irritado. - Desculpa - continuou Eleanor. - Ouvir a voz dele sem estar à espera foi uma espécie de choque.

 

- Então, onde é que ele está neste momento?

 

- Em casa do meu pai. Em Pitcairn.

 

- Isso mesmo, na casa da tua família. Não foi isso que o Fergus disse? Onde é que fica?

 

- Em Aberdeenshire. - Sim, pensou ela, o meu lar, onde passei a minha meninice. De súbito, a luz dos faróis iluminou qualquer coisa de fugida que desapareceu logo a seguir. - Tem cuidado! O que era aquilo? Era grande de mais para ser um coelho. Eleanor ainda se voltou para trás, mas a escuridão era demasiado cerrada para conseguir ver fosse o que fosse.

 

- Talvez uma raposa - alvitrou ele. Naquele momento, percorriam a A9 e ele já reduzira a velocidade. Dava a impressão de que a irritação lhe tinha passado.

 

- Peço desculpa - repetiu Eleanor. - Não foi minha intenção fazer-te esperar.

 

A verdade é que a atmosfera da noite sofrera uma alteração e o filme, escolhido por ele, e com que concordara porque Marion lhe dissera que ele era muito simpático, acrescentando que já era tempo de ela voltar a sair com homens, foi projectado no ecrã sem tocar em nenhuma das suas emoções. Os seus pensamentos eram preenchidos por David e pelo passado. Tinha-se esquecido da sensação de empolgamento que ele era capaz de suscitar, até mesmo do outro lado de uma linha de telefone. ”Quero falar com ele”, disse Eleanor em pensamento. ”Quando chegarmos a casa, quero telefonar-lhe ou ir a Aberdeen já amanhã para poder vê-lo de novo.”

 

- Queres ir tomar um café? - sugeriu Andrew quando saíram do cinema e já iam a caminho do automóvel. - Ou tens de ir já para casa?

 

Eleanor reflectiu no convite. Qual seria o seu significado? Desde a morte de lan que saíra apenas com dois homens, e este era um deles. A primeira saída não primara pelo êxito. Ela desconfiara de que o homem em questão só estava interessado em meter-se na cama consigo; ficara com a impressão de que o indivíduo não sabia bem o que fazer para conseguir ter relações sexuais com uma mulher. Pior ainda, ele maçara-a. Agora, Eleanor estava a pensar que o mais certo seria Andrew também vir a revelar-se um homem maçador e, verdade fosse dita, seria preferível não lhe dar a ideia de que aquele conhecimento tinha futuro, que pudesse dar em alguma coisa. David deixara-a consternada, fazendo com que tudo tivesse ficado diferente.

 

- De acordo - respondeu ela por fim -, sim. Obrigada. Lamentou de imediato ter aceite o convite, tendo-se sentido preocupada durante todo o caminho até à rotunda de Tore, onde reuniu toda a sua coragem para lhe dizer que afinal estava a sentir-se cansada; portanto, se ele não se importasse, a verdade é que preferia ir para casa. - Mas - acrescentou, já a lamentar ter mudado de ideias -, se quiseres, podemos tomar café em minha casa.

 

- Não - recusou ele. - Uma vez que estás cansada, é melhor deixarmos para outra altura. - Denotaria ele algum sarcasmo? Eleanor não foi capaz de dizer, sentindo-se corar e grata por estar escuro dentro do automóvel, o que o impedia de a ver. O que ela queria, concluiu, era manter com ele uma relação estritamente de amizade. Agora David havia regressado, pelo que ela passaria a ter um amigo com quem podia contar, sem ter de passar pelo incómodo que era começar por tentar conhecer uma pessoa com quem se iniciava uma relação.

 

Durante o resto do percurso até casa de Eleanor, ambos debateram, com a maior cortesia, o filme.

 

- Continuo sem perceber - dizia Eleanor quando o carro já se aproximava da sua pequena vivenda -, como é que o homem que tinha a arma soube que estavam na Suíça. Esse género de filmes, para mim, é um mistério. São demasiado complicados.

 

- Bem... Em vez disso, aqui temos uma coisa verdadeiramente simples - retrucou Andrew desligando o motor e virando-se para ela, de modo a que Eleanor soubesse que tinha a intenção de a beijar, e que, caso ela estivesse de acordo, aquilo poderia levar (agora ou mais tarde) a uma relação sexual. Assim, Eleanor retribuiu-lhe o beijo, embora sem entusiasmo, sem estar segura se gostaria, ou não, de ter o rosto dele, de expressão calma, tão próximo do seu. ”Oh, como me sinto cansada”, pensou ela. ”Além do mais, o meu período deve estar para chegar, por isso é que estou a sentir-me assim.” Mas afastou a boca, encostando-se com um suspiro ao peito dele. Tinha a impressão de pairar acima de ambos, observando alheadamente enquanto ele lhe acariciava o ombro, tentando dar-lhe outro beijo.

 

- Depois, ligo-te - prometeu ele, passados alguns momentos.

 

- Sim - retorquiu ela -, isso seria simpático da tua parte. A meio da noite, Eleanor acordou uma vez, perguntando-se onde é que estaria. Tinha sonhado com Pitcairn e com David.

 

Marion entrou na cozinha.

 

- Era a Eleanor - disse ela. - O David apareceu como que caído do céu... está em casa do pai.

 

- O quê? - perguntou Fergus que, a muito custo, desviou a atenção do suplemento desportivo do jornal.

 

- O David está em casa do meu pai.

 

- O teu irmão David? Mas onde é que ele tem estado durante este tempo todo?

 

- A Eleanor não sabe, só falou com o meu pai. No entanto, na quarta-feira vai lá a casa, tenciona passar o dia com eles.

 

- E quanto a ti?

 

- Tenho de dar aulas durante toda a semana - respondeu ela, sentando-se em frente do marido, olhando-o do outro lado dos restos do pequeno-almoço de domingo. - É possível que vá até lá no próximo sábado, isto é, se não estiveres de serviço. Estás?

 

- Não, no próximo fim-de-semana cabe ao Andrew. Com certeza que a Eleanor não se importa de ficar com os miúdos.

 

- Sim, eu sei, mas é complicado por causa do futebol do Ross e da dança da Kirsty. Em relação à Eilidh não há problema, ela já sabe tomar conta de si própria. - Sim, já reparei nisso. Onde é que ela foi desta vez?

 

- Já te tinha dito... Está em casa da Emma MacDonald. Ontem à noite houve uma festa de anos e ela dormiu lá.

 

- Muito bem - disse ele, dobrando o jornal. - Suponho que se queres que eu trate do barracão...

 

Marion calçou as botas e vestiu o casaco, indo atrás de Fergus pelo jardim. Entraram no barracão, bastante desarrumado, detendo-se entre a bicicleta velha de Ross e as prateleiras onde Fergus tinha as suas ferramentas.

 

- Acho que a água entra algures pela janela - disse Marion.

 

- Não, está seca - retorquiu Fergus depois de ter passado a mão pelo peitoril. - Vamos lá a ver de onde é que vem a água.

 

- Deixo-te entregue a essa tarefa - acrescentou Marion, virando-se, preparada para sair. - É melhor ir andando. - Mas, depois de deixar o marido, começou a caminhar pelo jardim, à procura de sinais de estragos provocados pelas chuvadas e ventania da noite anterior. Os girassóis de Eilidh estavam tombados de lado, mas os caules eram resistentes, pelo que não se haviam quebrado. Marion pegou num vaso vazio e começou a apanhar as maçãs caídas no relvado. Enquanto as colocava dentro do recipiente, sentia o cheiro rico e cálido a húmus. - A terra precisa de ser sachada murmurou -, talvez no próximo fim-de-semana, se não chover.

 

Já dentro de casa, o som do televisor ligado na sala de estar, onde Ross e Kirsty se encontravam sentados nos sofás, ela embrulhada no roupão enquanto discutia qual o programa que deviam ver, chegava-lhe à cozinha. Marion fechou a porta antes de ligar o rádio.

 

Durante a tarde, ela e Fergus ficaram entregues a si próprios. Ross foi para casa de um amigo; a mãe de Fergus foi buscar Kirsty para a visita semanal à bisavó, e para levar o cão a passear ao longo da praia, saída que a garota aproveitou para comer uma quantidade excessiva de guloseimas com o chá. Eilidh fora para casa de Eleanor com Claire e ainda não voltara. Marion tencionava ir tratar do jardim; mas, primeiro, queria ler o jornal. Fergus passava pelas brasas junto da lareira, com o jornal a querer escorregar-lhe dos joelhos. No silêncio que envolvia a casa, Marion também se sentia sonolenta. O firmamento escurecia e, uma vez mais, recomeçou a chover. Com o bater da chuva contra as janelas, Fergus acordou com um ronco, pegando no jornal.

 

- O que é que foi?

 

- Nada - respondeu Marion. - Estavas a dormir.

 

- Estava? Que horas são? Alguma hipótese de me fazeres uma chávena de chá?

 

Marion levantou-se para lhe preparar um chá e pouco depois ambos se instalaram confortavelmente a tomá-lo, enquanto ele falava do seu trabalho e na possibilidade de ter de precisar de um quarto sócio; por seu turno, Marion pensava na ida de Eleanor a Aberdeen, perguntando-se qual seria agora o aspecto de David.

 

- Sei que devia sentir-me satisfeita - continuou ela quando, pelo menos de momento, puseram de lado o quarto sócio - por ele ter regressado a casa. Bem vês, o meu pai fica sempre tão contente por o ver. Mas a verdade é que o David... e é horrível dizer uma coisa destas, o David... só arranja problemas.

 

- Bem, ele é um pouco... dá a impressão de não ser capaz de assentar, não achas? Durante alguns anos trabalhou na polícia, não é verdade? Na Metropolitana?

 

- Sim, mas isso já foi há muito tempo. Sabes que sim. Acho que foram eles que acabaram por o pôr na rua.

 

- E agora, o que é que ele faz? O teu pai disse alguma coisa a esse respeito?

 

- Quanto à polícia, essa devia ter sido a última opção dele. Isso ou o Exército. Ele nunca gostou de nenhum tipo de disciplina. Suponho que na altura se tenha sentido entusiasmado com essa perspectiva. Actualmente, não sei em que é que ele trabalha. Só espero que tenha um emprego qualquer para que não esteja a explorar o pai durante semanas a fio. Como bem sabes, não seria a primeira vez que isso acontecia. Lembras-te... depois de a minha mãe ter morrido?

 

- Ora bem, o mais provável foi o teu pai ter ficado satisfeito na altura por ter a companhia do filho.

 

- Não sei se isso é verdade - replicou Marion, cerrando os lábios num trejeito de reprovação. - Aquilo que me parece é que sempre que o David anda por perto acontece qualquer coisa. Qualquer coisa que dispensaríamos.

 

- Como o quê? - perguntou Fergus, servindo-se de outra fatia de bolo e apanhando as migalhas que lhe caíram na camisola uma a uma. Marion afastou o prato.

 

- Não comas mais bolo - disse ela. - Pensei que querias perder peso.

 

- Nesse caso, não devias fazer bolos tão bons.

 

- De que é que estávamos a falar? Ah, sim, do David. Pois bem, para começar, no ano em que nos casámos. Todo esse assunto.

 

- Ele era apenas um garoto - redarguiu Fergus. - Mas acabou por arranjar emprego, não é verdade? Depois disso, viveu em Londres durante algum tempo.

 

- Sim, e depois, quando a Eleanor e o lan se mudaram para o Berkshire, ele começou a passar temporadas em casa deles. Pouco depois de terem casado, ela adoeceu, esteve gravemente doente durante algum tempo. Foi um vírus qualquer... estás recordado? Depois disso, ele resolveu ir para o estrangeiro, pelo menos foi o que a Eleanor pensou. Quando regressou, é que decidiu ir para a polícia. Com certeza que não te esqueceste do ano em que ele veio visitar o meu pai por altura do Natal, até veio com a Eleanor e o lan, e tiveram um acidente de automóvel em Stonehaven.

 

- Sim, estou a lembrar-me disso. A Eleanor estava grávida e perdeu o bebé, não foi?

 

- Teve um aborto espontâneo já no hospital, na noite a seguir ao dia do acidente. Quantos anos é que o Ross tinha... Mais ou menos cinco? Portanto, a Eilidh e a Claire deviam ter uns... o quê?, dois anos e meio? Foi um Natal horrível.

 

- Não sei bem se devas culpar o David por esse acidente, nem tão-pouco pelo aborto da tua irmã. Não era ele que ia ao volante, pois não?

 

- Não, o lan é que ia a guiar. Mas a culpa foi do condutor da carrinha. Acho que os travões não estavam em boas condições continuou Marion, acabando de beber o seu chá e pousando a caneca. - Contudo, a verdade é que ele andava por perto, passando todos os fins-de-semana em casa deles, isto é, entre namoradas. Foi por essa altura que correram com ele da Polícia Metropolitana. Na ocasião, ele disse que se tinha demitido, mas eu tenho a certeza de... Não se cansava de dizer que ia outra vez para o estrangeiro, afirmava que dessa vez tencionava ir para os Estados Unidos, mas nunca chegou a ir. Pouco depois, o lan teve o ataque de coração.

 

- Por conseguinte, o que tu estás a tentar dizer é que ele dá azar à pobre Eleanor. É isso?

 

- Não só à Eleanor. Eu nem sequer quero pensar nesse facto.

 

- Suponho que todas as famílias tenham a sua ovelha ranhosa, não te parece? - perguntou Fergus.

 

- Bem... é um facto que ele nunca fez nada que se possa considerar de realmente mau. Pelo menos, de que tenhamos conhecimento. - Marion fez uma pausa. - Quer dizer... ele é meu irmão e gosto muito dele, mas...

 

Entretanto, ouviram o bater da porta da frente.

 

- Olá - gritou Eilidh do fundo do corredor.

 

Fergus levantou-se e espreguiçou-se, espalhando mais migalhas pelo chão.

 

- Está na hora de fazer qualquer coisa.

 

- Também acho - ecoou Marion colocando as canecas num tabuleiro e começando a endireitar os jornais e a sacudir os almofadões. - A festa foi boa? - perguntou a Eilidh quando esta entrou na sala.

 

- Posso comer uma fatia desse bolo? Sim, foi muito boa.

 

- Vai buscar um prato. Não faças... não interessa; dado o estado em que o teu pai deixou a sala, suponho que não tenha grande importância.

 

- A Claire disse que a mãe dela vai a Aberdeen na quarta-feira porque o tio David está de visita ao avô. A Claire pode ficar cá em casa?

 

- Tenho a certeza que sim.

 

- A tia Eleanor disse que mais tarde falava com a mãe acrescentou Eilidh, enroscando-se no lugar ainda morno onde o pai estivera sentado. Ele despenteou-lhe os cabelos quando já se preparava para sair da sala. - Mamã?

 

- O quê? - respondeu Marion, parando com o tabuleiro nas mãos.

 

- É muito esquisito, não acha? Quer dizer... o tio David não dar notícias durante tanto tempo. Não sou capaz de imaginar que nós fôssemos capazes de fazer isso. Por exemplo, se o Ross fosse para o estrangeiro, ou qualquer coisa assim, e nós não soubéssemos por onde é que ele andava... Não sou capaz de imaginar uma coisa dessas.

 

- Dada a maneira como vocês dois andam sempre à bulha, nunca me teria passado pela cabeça que isso pudesse incomodar-te.

 

- Isso é diferente. Quando a mãe era mais nova, o tio David, como é que ele era? Eu pensei que ele fosse uma pessoa simpática... Lembra-se daquele ano em que veio a nossa casa e nos trouxe uma árvore de Natal, absolutamente supergigantesca, e também montanhas de bolas de vidro? A mãe até disse que eram um perigo porque a Kirsty ainda mal andava.

 

- Mas que memória que tu tens, Eilidh! Eu até já me tinha esquecido disso. - Mas tal não correspondia à verdade, sabendo de antemão o que viria a seguir, antes mesmo que a filha voltasse a abrir a boca.

 

- Não foi nessa altura que o Timmy ficou incrivelmente doente e até tivemos de chamar o veterinário, apesar de ser Natal, mas ele acabou por morrer mesmo assim? Quer dizer, o Timmy, não o veterinário.

 

- Sim, foi - confirmou Marion, pensando para consigo que aquele fora outro Natal pavoroso.

 

- Foi horrível. Ele era um cão tão bonito, não era? Era, muito em especial, do Ross. Nunca tive nenhum cão que fosse só meu. O Toby já está tão velho que mal consegue mexer-se.

 

- Não comeces com isso, Eilidh - admoestou a mãe.

 

- A propósito, onde é que o gato anda?

 

- Com certeza absoluta que está na tua cama.

 

Na cozinha, enquanto arrumava a louça, Marion continuava a pensar no Natal em que David tinha ficado em casa deles. Nesse ano, Eleanor e lan haviam decidido não ir ao Norte, optando por passar o Natal em casa dos pais de lan. No entanto, apesar da ausência deles, no dia de Natal a casa estivera cheia de gente: a mãe de Fergus, os pais desta, David, o pai de Marion e as duas tias. Onde é que aquela gente toda teria dormido? Provavelmente, as tias com a mãe de Fergus. Teria sido assim? A única coisa que recordava com clareza era o spaniel a vomitar na copa, após o que tinha caído inconsciente no cesto onde dormia depois de olhar para ela com uns olhos cheios de tristeza, como se lhe pedisse desculpa pelo seu estado. Durante toda a ceia de Natal, Marion e Ross levantaram-se da mesa várias vezes para verem como é que Timmy estava a passar. Foi tudo o que ela conseguiu fazer para que Ross não abandonasse a mesa por completo. Eu não tenho fome, mamã, dissera o garoto. Finalmente, decidiram chamar o veterinário já ao princípio da noite. Todos defronte do televisor, Eilidh a ler, o pobre do cão cada vez mais fraco e Ross muito calado. E David? David junto dela na cozinha.

 

- Liguem para o veterinário, deve haver alguém que tenha ficado de serviço. São pagos para isso. E sabem fazer-se pagar muito bem. Telefona. - O que Marion fizera.

 

Porém, no fim, Timmy acabara por morrer. Tinha um cancro, um mal de que decerto já sofria muito antes do Natal. Por isso, como era evidente, teria sido impossível que David tivesse alguma coisa a ver com a morte do animal. Além do mais, a sua presença fora um grande conforto; ele é que se oferecera para falar com Ross, reconfortando-o pelo desgosto com a morte do cão, o único que tinha conseguido fazer com que o garoto saísse do seu quarto.

 

Marion despiu o avental e foi telefonar a Eleanor.

 

- Divertiste-te quando saíste com o Andrew?

 

-- Sim, foi muito agradável - respondeu Eleanor.

 

- E o filme era bom?

 

- Oh, perseguições de carro e coisas no género. Para te ser franca, tenho de dizer que não percebi muito bem.

 

- A Claire pode ficar cá em casa na quarta-feira. Só tens de lhe dizer que venha com a Eilidh e que traga as coisas de que precisa para a escola na quinta-feira.

 

Resolvido aquele assunto, começaram a falar de David e do pai de ambas, mas Marion não foi capaz de se obrigar a dizer: ”Ele só traz má sorte”, ou: ”Tem cuidado”, o que queria ter conseguido fazer. Mas eram ideias demasiado extravagantes. Ao fim e ao cabo, Eleanor é que, das duas, tinha muita imaginação; um motivo acrescido para não lhe pôr ideias daquelas na cabeça. Foi correr os cortinados. A hora já tinha mudado e talvez fosse por isso que durante todo o dia se sentira tão sonolenta e apática. Pensar nos meses sombrios que tinham pela frente fazia com que se sentisse deprimida. ”Quem me dera poder ir a Pitcairn com a Eleanor”, pensou Marion. Estariam todos presentes menos ela. Porém, afastou aquele pensamento, resignando-se a ver televisão e a passar a roupa a ferro. Não tinha tempo para se sentir cabisbaixa.

 

- Ora vamos lá a ver - começou Fergus a dizer mais tarde, quando já se preparavam para se deitar. - Lembraste-te de mudar a hora no despertador?

 

- Os relógios estão todos certos... e tu, não te esqueceste de ajustar o aquecimento central?

 

- Já o ajustei, mas nunca sou capaz de me lembrar. Estamos a ir para a cama uma hora mais tarde ou mais cedo?

 

- Mais tarde - respondeu Marion.

 

- Não admira que eu esteja a sentir-me tão cansado.

 

- Também eu. Andei exausta durante toda a semana. Para dizer a verdade, há algum tempo que me sinto assim.

 

- Fazes coisas a mais. Já chega, larga isso - disse ele porque, uma vez mais, Marion arrumava o que ele deixava desarrumado, endireitando as calças. - Vem-te deitar.

 

O que ela fez; deitaram-se abraçados um ao outro, ficando a conversar durante algum tempo antes de darem um beijo de boas-noites. Pouco depois, ela deitou-se de lado e ele aninhou-se junto dela, com os joelhos por detrás dos de Marion e uma mão nos seios. Mas os dedos dele começaram a acariciá-la, a pressioná-la.

 

- Oh, Fergie, queres realmente... Tenho tanto sono. - Apesar dos seus protestos, os dedos dele continuaram a explorá-la até que ela percebeu que ele não a acariciava como se quisesse fazer amor (o que, a ser o caso, algum tempo depois ela ter-se-ia mostrado receptiva), o que a levou a deitar-se de costas.

 

- O que é?

 

- Pensei... na sexta-feira, à noite, quando nós... mas não tive a certeza. Marion, não sentes uma impressão aí?

 

- Ora, os médicos nunca param de trabalhar - retorquiu Marion na brincadeira, mas a verdade é que levou a mão ao seio, sentindo um calafrio quando apalpou.

 

- Aqui? - indicou ele.

 

- Sim - respondeu ela numa voz sumida, sentando-se de novo e ligando o candeeiro da mesa-de-cabeceira.

 

- Com certeza que não é nada de importância, mas, seja como for, quero que vás ao consultório da Mary Mackay.

 

- Mas tu tens obrigação de saber.

 

- Sim, mas não quero ser o que... Não quero... Tens de ir ao consultório da Mary. Quando for trabalhar amanhã, tenciono marcar-te uma consulta. A que horas é que voltas da escola?

 

Com quatro dedos, Marion continuava a apalpar o peito, fazendo pressão. Não sentia nada, tinha sido um falso alarme. Mas não, ali estava outra vez.

 

- Parece ser o tipo de caroço que se desloca.

 

- Da última vez não passava de uma insignificância. Estou a referir-me ao pequeno susto que tivemos depois do nascimento da Kirsty.

 

- Esse era diferente. Era duro, não se deslocava.

 

- Tens a certeza? - perguntou Fergus.

 

- Era um vaso mamário que estava bloqueado ou algo no género. Seja como for, desapareceu espontaneamente. - Naquele momento, Marion estava tão receosa que isso a levou a sentir-se irritada. - Deus do céu, Fergus, explica-me o que se está a passar! Tens obrigação de saber!

 

- Tenho a certeza de que não é nada de importante. Lamento se estou a ser...

 

- Não, tens razão e agiste bem em dizer-me. Vou consultar a Mary, Estou a pensar em ir depois do trabalho. Por volta das cinco decidiu Mary, voltando a deitar-se. - Muito bem. Está satisfeito?

 

Uma vez mais, Fergus tomou-a nos braços, mas ela tinha o corpo rígido sem conseguir conciliar o sono, tocando e apalpando o seio vezes sem conta, como se perseguisse o caroço de tamanho ínfimo que se recusava a imobilizar-se. ”Portanto”, pensou ela, ”isto era o que um dia longo e monótono, igual aos outros, se preparava para me trazer.”

 

- Senti-me aborrecida - disse Marion a Fergus. - Andei todo o dia contrariada. Mas agora, quem me dera sentir o mesmo aborrecimento. Quem me dera que nada disto estivesse a acontecer.

 

Fergus puxou-a mais para junto de si, mas, pouco depois, acabou por mergulhar no sono. Marion não fazia tenção de contar aquilo a ninguém, nem sequer a Eleanor. Pelo menos, até ter alguma certeza. Guardaria aquele segredo apenas para si. Mesmo assim, não foi capaz de adormecer, vendo em pensamento camas de hospital, despedindo-se dos filhos, fazendo planos para o seu próprio funeral. Mas aquele era um exercício estúpido e sem qualquer utilidade. ”Vê se te compões, mulher! Trata-se apenas de um carocinho sem importância, não é nada de mais.” Inclinou-se para Fergus, aquecendo-se na carne firme do corpo do marido e escutando a sua respiração. ”Não vou morrer. Tenho mais que fazer para poder adoecer. Seja como for, tenho de assistir ao crescimento dos meus filhos. Sozinho, o Fergus jamais conseguiria educar as raparigas. Além disso, tenho de arranjar as coisas de maneira a que a Eleanor assente com o Andrew, ou outro homem qualquer que seja como deve ser. Certificar-me de que o pai está bem, e ainda há o assunto de Pitcairn. A Eleanor não saberia o que fazer em relação a isso, precisa de mim para falar a esse respeito.” (Tanta apalpação fazia com que sentisse os seios doridos; o caroço tinha desaparecido de novo.) Um tanto descabidamente, ocorreu-lhe que comprara um saco de bolbos de narcisos amarelos havia um mês, tendo tencionado plantá-los por baixo das macieiras, e acabara por se esquecer completamente deles. O saco continuava na garagem, com os bolbos à espera de serem plantados.

 

Por fim, Marion conseguiu adormecer, sonhando com salas de espera de hospitais, além de andar à procura de um lugar para plantar os bolbos no jardim de Pitcairn.

 

Por vezes, quando Eleanor ia a Pitcairn de automóvel, costumava primeiro passar por Aberdeen para fazer compras. Desta feita, optou por ir directamente para casa do pai por uma estrada secundária, uma vez que não tinha dinheiro para gastar no centro feericamente iluminado da cidade, com as suas novas arcadas cheias de lojas. Aquilo de que ela precisava era de um emprego.

 

lan deixara-a com uma vida confortável. Beneficiara da subida no preço das casas na região do Sul de Inglaterra, o que se verificou depois de ela e lan terem feito sacrifícios para poderem comprar a vivenda em Berkshire. Agora já não tinha nenhuma hipoteca, havendo dinheiro suficiente numa conta destinada a pagar os estudos universitários de Claire - isto é, se ela quisesse tirar um curso superior. Eleanor suspirou, em parte por causa de Claire e em parte por ser obrigada a abrandar devido a um tractor que não podia ultrapassar senão após descrever a próxima curva. Não, na verdade, ela tinha o suficiente, a pensão dava para cobrir as despesas básicas, além de poder contar com um pequeno rendimento que lhe advinha de uns investimentos que fizera com o dinheiro da venda da casa. Mas não dispunha de nada que fosse supérfluo, não havendo dinheiro nenhum que pudesse dizer ser exclusivamente seu. Entretanto, o caminho sinuoso deu lugar a uma recta, o que lhe permitiu ultrapassar o tractor, mas mais à frente tinha um camião que levantava jactos de água do pavimento molhado. Eleanor adoptou uma atitude de resignação, decidindo parar no Baxters para comer qualquer coisa.

 

Caso dissesse ao pai: ”Estou a precisar de um emprego”, ele diria: ”Sim, é uma pena que não tenhas acabado o curso, ao contrário da Marion.” Na altura, não lhe parecera que isso tivesse grande importância, quando ela, pela primeira vez, agira contra a vontade dos pais, casando-se com lan assim que ele terminara o seu curso universitário e partindo com ele para a região mais remota do país. Os pais queriam que ela completasse os três anos que lhe faltavam para acabar o curso, o que lhe permitiria ficar habilitada profissionalmente. O lan diz que em Londres há muitos empregos. Em qualquer dos casos, de que é que um curso em Belas-Artes me poderá servir? Uma pena, pensava Eleanor agora, ligando os limpa-vidros; a chuva miudinha que o camião que seguia à sua frente projectava à sua passagem bloqueava-lhe a visão através do pára-brisas. ”É uma pena que eu tenha estado com tanta pressa, tão desesperada com medo de poder vir a perdê-lo, tão receptiva em aceitar que a única coisa que tinha importância era a maravilhosa oferta de emprego que ele me fez, a sua própria carreira. No fim, em que é que isso me beneficiou?”

 

O primeiro ano de casada não revelou ser a aventura gloriosa que ela esperara com tanta expectativa. Cheia de saudades de casa e sem ter um objectivo de vida, Eleanor começara a trabalhar numa livraria, ao que se seguira um emprego numa agência de imobiliário, de onde se despediu toda satisfeita quando engravidou. Depois de ela e Claire se terem mudado de volta à região norte, trabalhou durante algum tempo no escritório de um solicitador, em Dingwall, um emprego que fora arranjado por Marion. Trabalhara temporariamente como substituta de uma ”assistente de propriedades”. Quando a assistente de propriedades efectiva recuperou do seu internamento hospitalar, regressando ao trabalho, Eleanor voltou a ficar desempregada. Não se podia dizer que tivesse ficado sem fazer nada, dizia a si mesma. Mas os seus poemas e as suas aguarelas pareciam-lhe actividades triviais, além de não lhe aumentarem os rendimentos. Havia ocasiões em que Eleanor se perguntava se a sua vida teria sido diferente se tivesse sido capaz de dizer ”não” à mãe havia tantos anos.

 

- Não, não quero tirar um curso universitário, quero ir para uma escola de Belas-Artes. - Mas a verdade é que existira a possibilidade de não ter sido aceite numa escola de Belas-Artes; o professor dissera-lhe que as suas qualificações académicas não eram suficientes. Agora compreendia que ele quisera dizer que ela não tinha talento suficiente.

 

Fochabers. Eleanor saiu da estrada e estacionou defronte do Baxters, subindo os degraus do parque de estacionamento até ao restaurante; levantou a gola do impermeável. Tinha recomeçado a chover. Pediu uma sopa de legumes e uma sanduíche, sentando-se a uma das mesas encostadas à janela e pondo-se a olhar para a chuva. Estava a prever chegar a Pitcairn por volta das duas e meia da tarde, o mais tardar às três horas.

 

A última parte da viagem era a mais agradável: a estrada que tão familiar lhe era, as árvores de grande porte com a sua folhagem em tons dourados e avermelhados de princípios de Novembro, apesar de algumas das folhas já terem começado a cair. Entretanto, a chuva parou: por entre as nuvens surgiu um buraco de contornos irregulares, dando passagem a uns raios solares enfraquecidos que banharam o pavimento de luz. Como sempre, Eleanor pensou que aquela casa era o seu verdadeiro lar, prestes a surgir à sua frente depois da próxima curva, com as pequenas vivendas à direita (Ruby vivia na última), os correios e a loja e bar, o Pitcairn Arms, e, à esquerda, semioculta pela folhagem do Verão, mas que agora estava bem visível, a placa onde se lia: Mains of Pitcairn 1; Pitcairn House 2. Eleanor reduziu a velocidade, entrando no caminho estreito.

 

Havia outras vivendas que ladeavam o caminho: pequenas moradias nos dois lados da via, com jardins de solo plano, bem cuidados, e algumas estufas recentes nos extremos virados a sul. Em tempos, mas muitos anos antes de eles terem comprado a casa, aquelas terras haviam feito parte de Pitcairn, tal como a quinta. Os terrenos da quinta tinham sido parcelados e vendidos em talhões, embora a casa da quinta continuasse no mesmo sítio, mal se avistando a sotavento da colina à sua direita. Agora, também tinha uma estufa, mas os pinheiros-bravos haviam sido cortados. Actualmente, a quinta era um viveiro gerido por uma das filhas dos Mackies, juntamente com o marido desta. Não Eileen, que fora a ama delas, mas a rapariga mais velha que, agora, era uma mulher de meia-idade com filhos já crescidos.

 

Quando Eleanor chegou ao caminho particular da casa do pai, um caminho sinuoso para a esquerda, começou a ouvir o ruído de conchas fragmentadas debaixo dos pneus. Os portentosos castanheiros-da-índia, à entrada do caminho, soltaram as suas folhas segmentadas em cinco, que naquela altura do ano estavam amarelecidas, agitando-as por cima do automóvel de Eleanor à sua chegada.

 

E ali estava a casa. De traçado rectilíneo e aspecto sólido, construída naquele granito prateado que refractava os raios solares em centelhas de luz, intensificando a luminosidade em seu redor. Quando o Sol se escondia por detrás de uma nuvem, o granito adquiria um tom acinzentado e frio. Naquele dia, os raios solares, ainda que fracos, filtrados através do claro-escuro da folhagem pouco cerrada das árvores, era suficiente para banhar a vivenda na sua luz de cambiantes amarelos, emprestando-lhe a sua melhor aparência. Eleanor conduziu o automóvel para as traseiras, seguindo para o telheiro que sempre haviam utilizado como garagem. Pegou no saco de viagem (ao fim e ao cabo, pernoitaria ali uma noite) e entrou em casa pela porta das traseiras.

 

Deparou com David sentado à mesa da cozinha, a ler o Press and Journal. Ao ouvir a porta que se abria, ergueu o olhar, levantando-se de imediato quando a irmã entrou.

 

- Olá... finalmente, conseguiste chegar!

 

- David... deixa-me olhar bem para ti! - O irmão tinha deixado crescer uma barba tão espessa e escura como o cabelo. Dava-lhe um aspecto diferente: ficava com uma fisionomia menos juvenil. Mas era preciso não esquecer que ele estava mais velho. Havia dois anos que Eleanor não o via. David estendeu os braços abertos, envolvendo a irmã. Estava mais corpulento do que ela se recordava, mais robusto, cheirando a tabaco misturado com uma fragrância floral, a que se aliava o seu próprio odor, pele, suor, cabelo, o cheiro familiar que ela tão bem conhecia. - Oh, David! - exclamou ela e, absurdamente, as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

 

- Muito bem - proferiu David, ajudando-a a despir o casaco e puxando uma cadeira para que ela se sentasse. - Conta-me tudo... fala-me da Claire, da Marion e da prole dela, conta-me tudo acerca de todos.

 

- Tu é que deves ter muito que contar - retorquiu Eleanor, rindo-se. - Aposto que o pai já te contou tudo o que há a dizer a nosso respeito. Seja como for, não há nada de especial que te possa contar; todos temos umas vidas monótonas sem nada digno de importância. E tu, por onde é que tens andado?

 

- Um pouco por toda a parte. Tenho andado por aí, ao acaso respondeu David com um sorriso rasgado, pegando nas mãos frias dela com as suas que estavam quentes. Ele e Marion tinham o mesmo tipo de mãos: dedos compridos e fortes, como os do pai. Eleanor pôs-se a olhar para as mãos dos dois, observando os seus dedos, de pele pálida e um pouco azulada devido ao frio, que começavam a ficar rosados com o calor que vinha das mãos do irmão.

 

- O pai? Onde é que está? - perguntou Eleanor.

 

- Hoje é um dos seus dias de golfe. Em princípio, tenho de preparar o jantar. Óptimo, agora podes ser tu a tratar disso.

 

- Ei, tu cozinhas muito melhor do que eu. Seja como for, não encontrarás comida nenhuma; nesta casa nunca há nada que se coma. Vamos lá, David, quero que me contes tudo. Não posso voltar para a Marion, dizendo-lhe: ”Oh, ele andou por aqui e por ali.”

 

Acho que ela faz tenções de vir até cá no sábado, a menos que decidas voltar comigo. E que tal se viesses? Quanto tempo é que estás a pensar passar com o pai?

 

- Òh... algum tempo. Estás com um aspecto magnífico... uma verdadeira viúva alegre, não é?

 

- Bem, pelo menos estou a sentir-me melhor.

 

- A vida nas terras altas deve fazer-te bem. Talvez eu deva experimentar.

 

- Tencionas mudar-te outra vez?

 

- Tenho um apartamento em Edimburgo. É alugado; portanto, posso sair quando bem me apetecer.

 

- E quanto a um emprego... estás a trabalhar?

 

- Neste momento, estou entre empregos. Mas comigo é sempre em frente.

 

- Oh, David, não és capaz de assentar de uma vez por todas?

 

- Ao que tudo indica, parece que não. Mas estou a acompanhar os tempos, a mudança da meia-idade, mudar de emprego. Sabias que a média de vezes que uma pessoa muda de carreira profissional ao longo da sua vida é de cinco?

 

- Pois bem, está a parecer-me que já ultrapassaste um pouco essa média.

 

- E não estou a falar de empregos - continuou ele, ignorando o comentário da irmã. - Trata-se de carreiras. Grandes alterações.

 

- Isso quer dizer que já não trabalhas em seguros?

 

- Bem... A última coisa era uma espécie de sociedade com uns fulanos... Importávamos vestuário.

 

Aquilo parecia ainda mais improvável do que os seguros. Mas, de súbito, Eleanor recordou-se de uma tarde em Londres, mais concretamemte, em Oxford Street, quando David, de folga (nessa altura, trabalhava na polícia), se tinha encontrado com ela para comprarem qualquer coisa por ocasião do baptismo de Ross. Recordava-se de como ele se mostrara interessado por chapéus e roupas, que tinham de condizer sempre. Nessa época, ele gastava bom dinheiro em roupas para si próprio, usando camisas de seda e casacos de pelica macia. Eleanor voltou a observar a aparência do irmão, a barba, as calças de ganga e a camisola desbotada de jogar râguebi.

 

- Que tipo de roupas? - perguntou Eleanor.

 

- Vestuário para adolescentes. Está continuamente a mudar, por isso é preciso estar sempre um passo mais à frente. Vendíamos aos armazenistas, por grosso.

 

- E então, o que é que se passou? O negócio não correu bem? David jamais admitiria que o que quer que fosse em que se metesse tivesse sido um fracasso, o que ela sabia de há muito.

 

- Correu bem... muitíssimo bem - respondeu ele com um encolher de ombros. - Mas, que diabo, a dada altura não nos restava alternativa senão metermo-nos no negócio como retalhistas, e os outros fulanos não tinham a experiência necessária, para não mencionar a falta de interesse por parte deles. E depois... o colapso do mercado asiático pôs fim a essa possibilidade... Era aí que nos abastecíamos.

 

- No entanto, eu pensaria que devido a esse abrandamento do mercado, conseguirias obter as mercadorias a um preço mais barato... uma vez que a libra passou a estar mais forte, além de tudo o mais, não é verdade?

 

- Porém, as coisas não funcionam dessa maneira. Eles têm outros clientes e nesta altura não estão muito interessados em fazer negócio connosco. Significaria que estaríamos a vender por um preço inferior ao do custo dos fornecedores asiáticos. Até mesmo com a mão-de-obra extremamente barata.

 

- Oh... Mas então... - Eleanor não era capaz de ver o mínimo sentido no que ele lhe dizia. A verdade é que em relação a David nunca se podia ter a certeza de nada.

 

- Queres uma chávena de chá? - ofereceu ele, levantando-se para pôr a chaleira ao lume e continuando a falar enquanto tirava as canecas do armário e o leite do frigorífico.

 

- Não, agora a Internet é que está a dar. Tenho um amigalhaço que anda a ensinar-me a concepção de páginas na Net, e a maior vantagem é ser uma coisa que se pode fazer em qualquer sítio. Decidi comprar o equipamento informático necessário... isto é, já estou bastante adiantado, e os programas mais adequados; até podia trabalhar a partir de Achiltibuie se me apetecesse. Em Ullapool, Lochcarron, Skye. O local não é relevante.

 

- A maneira como estás a debitar esses nomes - disse Eleanor -, até parece que já fizeste uma viagem pelas Highlands da Escócia.

 

- Talvez tenha feito.

 

- Isso quer dizer que tencionas mudar-te outra vez?

 

- Tenho andado a pensar nisso - replicou David, atarefado com as saquetas de chá, após o que começou a procurar a lata dos biscoitos. - Meu Deus, tens toda a razão. O pai não tem nada que se coma nesta casa. O que é que ele estava à espera que eu fizesse para o jantar desta noite? Uma sopa de tomate em lata e meio boião de compota? É tudo o que consigo encontrar.

 

- Eu sei. A última vez que a Marion esteve cá, foi direitinha a Aberdeen e abasteceu-se de mercearias que comprou no Safeway.

 

- Ele disse-me que há pouco tempo abriu uma grande superfície a mais ou menos oito quilómetros daqui - adiantou David, levando o chá para a mesa. - Estou a pensar em levá-lo até lá amanhã. - Ambos ficaram a olhar para as respectivas canecas. Achas que o leite está estragado?

 

- Provavelmente - retrucou Eleanor. Um pouco a medo, ambos provaram o chá, fazendo caretas um ao outro e pousando as canecas na mesa.

 

- Quanto tempo é que tencionas ficar? Amanhã podias vir às compras connosco.

 

- Não posso, tenho de voltar para casa logo de manhã. Olha uma coisa, porque é que não vens comigo? O pai está bem... As vezes a Ruby cozinha para ele, além de que ele costuma fazer muitas refeições no bar com os parceiros de golfe.

 

- Talvez decida aceitar o teu convite. Posso aproveitar para dar uma vista de olhos por aí. Esta noite vou telefonar ao Phil.

 

- Phil... é o amigo que te vai ajudar com as páginas da Net?

- perguntou Eleanor.

 

- Ele faz muito mais do que isso. É o Phil Amers.

 

- Portanto, decidiste voltar comigo?

 

- Sim, porque não? Pelo menos, por uns dias.

 

- Óptimo. - Eleanor sorriu-lhe. - Muito bem, fico satisfeita. Seria óptimo se decidisses mudar-te para o Norte. A família ficaria reunida.

 

- Estás a pensar em tentar persuadir o pai a vender a casa, convencê-lo a mudar-se também?

 

- Não, nada disso - replicou Eleanor com um abanar de cabeça.

 

- Ora vamos lá a ver - continuou David, encostando-se todo para trás na cadeira e inclinando-a sobre as pernas de trás. - Conta-me coisas de ti e da Marion.

 

O que ela fez e ambos continuaram a conversar até o pai chegar a casa. Pouco depois, foram ao Pitcairn Arms onde comeram frango com batatas fritas para o jantar, uma vez que quando deram por eles, depois de tanta conversa, já o supermercado tinha fechado, pelo que não puderam comprar o necessário para cozinhar.

 

- O pai tem andado a alimentar-se como deve ser? - perguntou Eleanor. Ele comia devagar, mas desapareceu tudo o que tinha no prato, sendo evidente que a comida lhe soubera bem.

 

- Ando muito bem tratado - respondeu ele. - A Ruby costuma fazer uma panela de sopa e às vezes prepara uma carne estufada ou outra coisa que traz para eu comer.

 

- Alguém quer tarte de maçã? - perguntou David, acenando aos dois com a ementa. - Com sorvete?

 

- Só têm isso, tarte de maçã ou sorvete?

 

- Também podes comer um bolo que veio direitinho do congelador do supermercado.

 

- Aposto que a tarte de maçã tem a mesma proveniência disse Eleanor. - Não, eu fico-me pelo café. E quanto ao pai, o que é que lhe apetece?

 

- Para mim, mais nada. Estou satisfeito. Não sou muito dado a doces. Só quero uma chávena de café. E que tal se tomássemos um uísque? - Ele e David começaram a discutir qualidades. O pai era um bom conhecedor de uísques, o que Eleanor sabia por o ter ouvido a debater o assunto em inúmeras ocasiões. Quanto a David, que aparentava ser um homem tão seguro de si mesmo, o que é que ele sabia realmente?

 

- A despensa está vazia, pai - continuou Eleanor, retomando o assunto que estava a incomodá-la logo que os pratos foram levantados e o café foi servido juntamente com o uísque.

 

- Estou óptimo. Nos últimos tempos não tenho tido grande apetite.

 

- É possível que sim, mas, apesar disso, precisa de ter algumas coisas em casa... pelo menos, leite e pão. Vamos fazer o que o David sugeriu... Amanhã vamos ao Asda para lhe comprar mercearias antes de eu voltar para casa.

 

- Estou a pensar em ir com a Eleanor para passar uns dias em casa dela - disse David. - O pai importa-se se eu for?

 

- Por mim, podes ir à vontade. Vais ver uma grande diferença nos cachopos.

 

Antes de se ir deitar, Eleanor inspeccionou a despensa, fazendo uma lista. Teria de falar com Ruby antes de se ir embora. Entretanto, o pai meteu a cabeça pela abertura da porta da cozinha.

 

- Vou lá para cima. Ultimamente tenho-me deitado cedo, em especial nos dias em que vou jogar golfe.

 

Sozinha na cozinha fria, Eleanor começou a dar conta do pó, da sujidade à volta das torneiras, do chão que estava a precisar de ser varrido. O que é que Ruby andaria a fazer nos últimos tempos? Decerto que não faria grande coisa. A verdade é que ela também estava a envelhecer, devia andar quase pelos setenta anos. Talvez tivesse chegado a altura de contratar outra pessoa para tratar das limpezas em casa do pai. Mas Ruby já trabalhava para eles há tantos anos, era ela quem tratava da casa, aproveitando para pôr as coscuvilhices em dia quando a mãe era viva, ao mesmo tempo que lhe fazia companhia, desde que ela e os irmãos andavam na escola secundária. David sentara-se na sala de estar. Ergueu uma garrafa de uísque.

 

- Queres um?

 

- Não tem pão nem manteiga em casa, mas a bebida é coisa que não lhe falta. De acordo, mas só um pouquinho.

 

David levara um aquecedor eléctrico para a sala, uma vez que a lareira a carvão não fora acesa. A sala já tinha começado a aquecer. Sentaram-se nas poltronas, cada um do seu lado da lareira. David instalou-se na do pai, enquanto Eleanor se sentava na poltrona que a mãe costumava ocupar.

 

- Esta casa está a ficar bastante suja - comentou ela. - Olha para a carpete. Desde que a mãe faleceu... está tudo muito desleixado.

 

- A casa é muito grande só para ele - retorquiu David, passando-lhe um copo para a mão com uísque até meio.

 

- Credo, não consigo beber isto tudo!

 

- Experimenta.

 

- Ora bem... - Ficou a sentir o ardor na garganta depois do primeiro gole. - David, quem é que pagou o jantar? Fui à casa de banho e quando voltei a conta já estava paga e vocês preparados para se virem embora.

 

- Paguei eu.

 

- Queres que eu te dê a minha parte?

 

- Nem pensar! Fui eu quem convidou. - ”Isto quer dizer que ele tem dinheiro”, deduziu Eleanor em pensamento. Era tão frequente o irmão não ter dinheiro, ou então aparecer com muito, o qual dava a impressão de se sumir repentinamente.

 

O segundo uísque desanuviou-os a ambos: Eleanor tornou-se expansiva e ficaram os dois a conversar durante muito tempo, com a sala a adquirir uma atmosfera pesada, mas finalmente aquecida. Mais tarde, já no quarto frio que em tempos havia sido das duas raparigas, e depois apenas de Eleanor, ela agarrou-se a uma botija de água quente, apercebendo-se de que David não lhe contara grande coisa a respeito da sua vida. Encorajara-a a falar de Claire e de como era a sua vida na Escócia, tendo-lhe ela falado também de Andrew. Seria tão conveniente se ela conseguisse gostar dele. Pelo menos, era o que Marion pensava.

 

- O que tu estás a dizer - observava David - é que ele não é ”o tal”. Está bem por agora, mas não é realmente o homem que tu procuras.

 

- Ora, como é que eu hei-de saber isso? Durante toda a minha vida, só tive um namorado a sério com quem acabei por casar. Não posso dizer que sei mais do que a Claire a esse respeito, e ela está apenas no princípio.

 

- Um bom ponto por onde começar.

 

- Será? - Eleanor ajeitou-se na poltrona, instalando-se numa posição mais confortável. - E quanto a ti? Porque é que ainda não encontraste uma mulher como deve ser para te casares e assentares?

 

- Sempre que me vês, fazes-me essa pergunta.

 

- É uma coisa que pergunto sempre a mim mesma. Se casasses e tivesses filhos, talvez acabasses por assentar.

 

- E isso é o que se deve fazer, não é verdade? Assentar?

 

- Para te ser franca, não sei. Mas a verdade é que serviu para os nossos pais. A Marion também não se dá mal com a situação... Ela sente-se feliz.

 

- Será? Com o precioso Fergus, o bom doutor? Ele tem um mau efeito em mim, faz com que eu me sinta um verdadeiro cabeça-no-ar.

 

- Os homens não podem ser... cabeças-no-ar - declarou Eleanor, rindo-se à socapa.

 

- Sendo assim, frívolo, sem préstimo. Não sei como é que o corpo humano funciona, só sei quais os efeitos do álcool no estômago, na cabeça e no espírito. Não sei como fixar prateleiras às paredes, arranjar uma torneira que pinga ou reparar uma máquina de cortar relva. Não sou um homem na verdadeira acepção da palavra.

 

- Com certeza que és suficientemente homem - interpôs Eleanor - para conseguires apaixonar-te por alguém.

 

- Oh, isso... - Mas ele recusava-se a comprometer-se. Tinha havido uma mulher de nome Sally, de que Eleanor tivera conhecimento, mas a relação terminara. Eleanor desconfiava que a mulher em questão teria casado.

 

Já na cama, ela virou-se, enrolando-se sobre si mesma, mas, mesmo assim, não conseguia aquecer o corpo. O quarto, com a mobília que tão familiar lhe era, não tinha nada de pessoal, dada a ausência de qualquer dos produtos de maquilhagem das duas irmãs, roupas e brinquedos; porém, mesmo na escuridão, Eleanor sabia que a estante continuava por baixo da janela com fileiras de livros de Enid Blyton, as edições muito lidas de Mulherzinhas, A Dream of Sadler’s Wells, assim como outros favoritos. No guarda-vestidos, um roupão velho que protegia o seu vestido de noiva. Apercebeu-se de que o quarto estava tão frio que cheirava a humidade. E se a casa precisasse de reparações de maior? Parte da madeira do peitoril das janelas estava apodrecida, no que ela reparou pela primeira vez, e a pintura das superfícies exteriores da caixilharia já começara a lascar, mostrando a madeira por baixo. O pai passava a maior parte do seu tempo a cuidar do jardim. A mãe é que se preocupava com a manutenção da casa. ”E se eu tivesse um homem”, pensava Eleanor, sentindo-se confusa nas primeiras fases do seu sono, ”será que ele trataria de tudo isso se eu lhe pedisse?” Tomadas eléctricas, prateleiras, o barracão no jardim que estava a cair aos bocados. Sonhou que Claire tinha um namorado, um rapaz já adulto, com barba.

 

Na manhã seguinte, bastante cedo, Eleanor foi à loja ao lado dos correios, onde comprou um pão de forma às fatias (do dia anterior), manteiga (muito cara) e leite (cem por cento gordo). O pai precisava de gorduras suplementares, decidiu ela, visto que no último ano tinha emagrecido e ficado com as feições mais encovadas. Pagou o que lhe pareceu de mais pelos géneros alimentícios que comprou, regressando a casa no seu automóvel com o intuito de preparar o pequeno-almoço dos três. Pouco depois de ter chegado, Eleanor viu Ruby que pedalava na sua bicicleta com o inseparável cesto de vime. Entrou na cozinha ainda com o chapéu de lã e as luvas calçadas, o que completava com um casacão almofadado, olhando à sua volta com as bochechas rosadas. Por baixo do chapéu, viam-se os cabelos grisalhos, que já rareavam, fofos e encaracolados, formando uma espécie de halo.

 

- Olá, Eleanor, estás boa?

 

- Estou óptima, Ruby, e tu, como é que tens passado? Em forma, pelo que vejo, é só olhar para ti a pedalar naquela bicicleta.

 

- Não por muito mais tempo - retrucou Ruby, pendurando o casaco. - Tenho um joelho que não me deixa em paz.

 

- O joelho?

 

- O médico diz que é por causa da artrite. - Com estas palavras, começou a subir a perna das calças, mostrando uma pele com manchas e um joelho avermelhado. Estás a ver? Estás a ver como está inchado?

 

- E dói-te?

 

- Eu não sou daquelas pessoas que passam a vida a queixar-se

 

- respondeu ela com uma expressão desdenhosa. Voltou a baixar a perna das calças e foi buscar uma bata de um tecido sintético. Vieste visitar o teu irmão - continuou ela enquanto procurava qualquer coisa na arrecadação das vassouras, reaparecendo com uma vassoura e uma pá e indo buscar o aspirador e um pano do pó.

 

- Sim, cheguei ontem - confirmou Eleanor.

 

- Estou a ver que ele deixou crescer a barba - comentou Ruby, não mostrando qualquer dúvida quanto ao que pensava daquilo, pelo que não precisava de pedir a opinião da outra mulher.

 

- E como é que a Marion e os cachopos estão? O pequeno Ross cresceu bastante quando esteve cá no Verão passado.

 

- Está quase tão alto como o pai.

 

- E o doutor?

 

- Está bom.

 

- Falei-lhe do meu joelho... e ele ajudou-me muito. É melhor do que o jovem doutor Cleland do hospital. Esse... escreve tudo o que a gente lhe diz, mas nunca diz nada. Sai-se do consultório com outra receita, sem fazer a mais pequena ideia do mal que nos aflige.

 

Ruby começou a desenrolar o cordão flexível do aspirador, mas sem fazer menção de ligar a ficha à tomada. Eleanor foi ao lava-louça para passar a chávena por água.

 

- E quanto a ti? Já arranjaste algum homem?

 

- Achas que eu devia casar outra vez, é isso? - perguntou Eleanor, rindo-se.

 

- Na tua idade, não é natural não ter um homem. Estás muito magra. Porque é que ainda não arranjaste outro homem?

 

- Talvez já tenha arranjado.

 

- Hum... - Ruby estreitou os olhos e fungou. Se não via uma aliança de casamento, o que quer que existisse entre um homem e uma mulher, para ela, não teria o mínimo significado. Dando a impressão de ter perdido o interesse no assunto, levou o aspirador para fora da cozinha. Eleanor ouviu o barulho do aparelho a funcionar na galeria acima de si. Fechou a porta da cozinha e começou a ler a sua lista das compras. Mais tarde, talvez falasse com Ruby acerca da despensa vazia, mas ainda não se sentia com disposição para abordar esse assunto com ela. Qualquer coisa a que chamava ressaca fazia com que se sentisse irritadiça, além de ter dores de cabeça. O que é que Ruby... ou David, ou qualquer outra pessoa... tinha a ver com o facto de ela ter um homem ou não? ”Não quero nenhum homem”, concluiu ela. ”A única coisa que eu quero é pôr algumas prateleiras na sala de estar e arranjar o autoclismo da casa de banho.” Um homem que seja habilidoso. E uma botija maior de água quente.

 

- Estás pronta? - perguntou David entrando na cozinha, vindo do jardim onde estivera a fumar um cigarro. Eleanor cheirou o fumo que se agarrara às roupas do irmão, juntamente com o ar húmido de Novembro.

 

- Onde é que está o pai?

 

- No barracão. Ele também quer comprar umas coisas de jardinagem no Asda.

 

- De acordo. Vou só dizer à Ruby onde é que vamos.

 

Chegados ao supermercado, David comprou cerveja e uísque para levar consigo para o Norte; entretanto, o pai desapareceu na secção de jardinagem no extremo mais afastado, cabendo a Eleanor comprar os géneros de mercearia. Feitas as suas compras e depois de as ter guardado no automóvel, regressou ao supermercado à procura dos dois; aproveitou para ver se havia algum artigo de roupa interior de marca em promoção, um presente para Claire. Em seguida, teriam de se pôr a caminho; não queria ser obrigada a conduzir à noite.

 

Subitamente, quando passava pela secção de bricolagem, continuando a procurar o pai e o irmão, Eleanor parou. Houve alguém atrás de si que quase lhe bateu com o carrinho cheio de compras.

 

- Desculpe - disse ela -, peço desculpa. - Mas, mesmo assim, continuou sem se mexer, a empatar o caminho de todos os que queriam passar por ali. lan. E ali estava ele bem presente, com o seu fato e gravata, de aspecto muito cuidado, um homem bem-parecido e com um ar de competência. Eu estava em segurança. Eu estava em segurança quando tu te encontravas junto de mim. Agora, não há nada que me ofereça segurança. Era a casa que ameaçava desmoronar-se à volta do pai. Não lhe era difícil ver que a vivenda Pitcairn estava cada vez mais deteriorada, sem ninguém que fizesse as reparações que eram indispensáveis. Contudo, se decidissem vendê-la, como é que o pai conseguiria sobreviver? ”No que me diz respeito, a tua mãe continua presente nesta casa”, dissera-lhe ele alguns meses depois da morte dela. As outras pessoas, bem-intencionadas (muito em especial, as tias), comentavam: ”Ele tem de se mudar. Ele não pode continuar a viver sozinho naquele casarão enorme.” Mas Marion, Eleanor e David haviam concordado que o pai ficaria com o coração despedaçado se fosse forçado a abandonar aquela casa. Ele contara com o apoio dos filhos, certo da compreensão dos três, pelo que nenhum deles teria coragem para lhe dizer que chegara a altura de vender a casa. ”Logo que o lan faleceu, eu deixei Heatherlea”, pensou Eleanor. Continuou imobilizada, a olhar para as correntezas de chaves de parafusos e pontas de brocas, até que as imagens ficaram desfocadas devido às lágrimas que lhe arrasavam os olhos; a sensação de perda adensou-se em seu redor.

 

- Estavas aqui - disse David, carregado de sacos que chocalhavam com os movimentos. - Eleanor? Estás a sentir-te bem?

 

- Estou - respondeu, pestanejando com força e tirando um lenço de papel da bolsa para se assoar. - Só que me pus a pensar... estar aqui, em Pitcairn, contigo... calculo que tenha sido isso que me trouxe tantas recordações.

 

- O quê? - Mas ele sabia. - Tu estás bem, Eleanor, estás muito melhor do que alguma vez estiveste com ele.

 

- Estarei?

 

- Sim - respondeu ele, convicto.

 

- A culpa não foi minha - acrescentou ela.

 

- Não - concordou ele; ficaram a olhar um para o outro.

 

- Ou terá sido?

 

- Não - repetiu David.

 

- Vamos procurar o pai - sugeriu Eleanor, respirando fundo.

 

Depois de terem almoçado, meteram-se no carro e regressaram a casa. Ruby fizera sopa de lentilhas.

 

- Se pusermos uma colher ao alto nesta sopa, ela fica de pé comentou o pai de Eleanor. - Até se agarra às costelas. A sopa da Ruby é o que me aguenta durante a semana toda.

 

No caminho de acesso à casa, Ruby tinha passado por eles, com o gorro de lã todo puxado para as orelhas, a pedalar vigorosamente.

 

Depois de terem lavado os pratos e de David ter emalado as suas coisas, ele e Eleanor puseram-se a caminho. John Cairns ficou na porta da frente, acenando-lhes num gesto de despedida.

 

- Volta dentro em breve - dissera ele a Eleanor. - Na próxima vez que vieres, traz a Claire.

 

Tinha um aspecto tão emagrecido e frágil, sozinho na porta da frente daquele casarão tão grande, com as roupas muito coçadas que vestia quando tratava do jardim, as quais usava, e Eleanor sabia, durante a maior parte do tempo. Um homem idoso e magro, de feições encovadas e nariz aquilino. Sentiu-se invadida por um sentimento de culpa por deixar o pai sozinho.

 

A caminho de casa, a conversa dos dois irmãos centrou-se principalmente em Marion e nas crianças. David irritava Eleanor por tanto remexer nas cassetes de música, substituindo-as constantemente enquanto criticava os seus gostos musicais.

 

- Deixa-me em paz - exclamou ela por fim. - É o tipo de música de que eu gosto. Tens de abordar esse assunto com a Marion, ela é que é a entendida na matéria.

 

- Continua a tocar?

 

- Ocasionalmente. Diz que não tem tempo para praticar. Começou a ensinar música à Eilidh, mas tenho a impressão de que se deixou disso. A Eilidh perdeu o interesse.

 

- Mas a Marion está bem, feliz e contente?

 

- Ora, sabes como ela é, aguenta tudo e mais alguma coisa, cuida das necessidades de todos. A mulher perfeita de um médico. Acho que se sente feliz. Às vezes chego a invejá-la. Não é bem inveja, essa é a palavra errada. Mas ela aparenta ter tudo... família, dá aulas quando bem lhe apetece, um bom casamento e uma casa encantadora.

 

- Esplêndido! - exclamou David. - Fico contente pelo facto de as coisas correrem bem pelo menos a um de nós.

 

- Estás a querer dizer que tu não... que eu... que não somos felizes? - Ambos desataram a rir, como crianças que tivessem feito uma maldade nas costas dos adultos, sentindo-se culpados, mas sem remorsos.

 

A viagem para o Norte pareceu mais fácil por ser a direcção certa em que se devia viajar. Quando chegaram a Elgin, David já passava pelas brasas. Seguiam pela tarde que escurecia, cada vez mais próximos de Marion, de casa.

 

- A maneira como falas a esse respeito - dissera Fergus quando ainda não conhecia Marion a fundo -, até parece que há muitas gerações que a tua família vive em Pitcairn.

 

- Não - admitiu Marion, embora isso fosse o que ela teria preferido ser a verdade. - O meu pai comprou a casa quando herdou dinheiro depois da morte da minha avó. Isso e o facto de ter sido promovido a gerente e depois a director. Profissionalmente, a vida corria-lhe muito bem.

 

- Em que é que ele trabalhava?

 

- Numa empresa de transportes por via terrestre. Esse emprego foi-lhe oferecido com a incumbência de organizar os horários e os livros de contabilidade. Ele tirou um curso de contabilista, mas não gostava do lugar onde trabalhava; acho que as funções eram extremamente enfadonhas. Seja como for, quando ele começou, a empresa tinha apenas meia dúzia de camiões. Mas foi crescendo a pouco e pouco... o Eddie Shanks teve muito êxito profissional... pelo que o meu pai também foi beneficiado. Neste momento, a empresa deve dispor de uns trinta ou talvez mesmo cinquenta camiões. Também passou a dedicar-se ao ramo das mudanças e armazenagem.

 

- Oh! - exclamou Fergus; a manhã começava a despontar. Ele trabalha para a Shanks.

 

E fora assim que a família tomara posse da Casa Pitcairn: reflectia o seu novo estatuto social. Pelo menos, era o que Marion e Eleanor acreditavam enquanto cresciam. Descobriram que as pessoas assumiam, devido à semelhança do nome, ”Cairns”, e o nome da vivenda, que entre os dois devia existir alguma associação de família. Porém, quando perguntaram à mãe sobre isso, Faith tinha-lhes respondido de modo muito vago.

 

- Ora bem, é muito possível que há muitos anos tenha existido qualquer ligação. De qualquer maneira, a casa ajusta-se a nós da forma como somos. Sinto-me como se tivesse vivido aqui durante toda a minha vida.

 

David era o que mais se enquadrava naquela realidade. Marion tinha quatro anos, e Eleanor quase dois, quando David nasceu. Nenhuma das duas guardara qualquer recordação da gravidez da mãe, enquanto Eleanor nem sequer se recordava de uma existência sem que David estivesse presente. Marion lembrava-se de lhe terem dito que tinha um irmão, olhando à sua volta na expectativa de ver a chegada de um rapaz. Mais tarde, foi-lhe mostrado um recém-nascido, bem agasalhado numa envolta branca, com a face avermelhada, que a seguir foi colocado num carrinho de bebé.

 

- Estranho - observava Marion sempre que falavam sobre aquele assunto, o que faziam de vez em quando, recordando a meninice das duas, comparando as recordações que ambas guardavam.

 

- Quando eu estava grávida da Kirsty, costumava abordar a gravidez, ao pormenor, com o Ross e com a Eilidh... Ela mostrava-se tão interessada. Queria sentir o bebé a mexer-se dentro da minha barriga, ouvi-lo. Costumava falar com ele. Era tão engraçado... Estávamos no supermercado e ela tocava-me na barriga, dizendo: ”Aqui é a secção dos doces, mas tu não podes comer nenhum.”

 

Eleanor limitava-se a acenar com a cabeça, uma vez que só se achava graça às crianças quando se tratava dos nossos próprios filhos. Mas, fosse como fosse, era frequente sentir que jamais conseguiria dedicar tanto amor a um filho (talvez mesmo até em relação a Claire) como Marion dedicava aos seus.

 

- Contudo - prosseguiu esta - suponho que nessa altura ela era mais crescida. Pelo menos, um pouco mais crescida do que eu era quando o David nasceu. Além disso, hoje em dia, as crianças têm uma percepção muito mais clara das coisas.

 

No entanto, quando ambas regressavam ao passado, não era para se recordarem de David durante a sua primeira infância, mas sim dele já rapazinho, e dos problemas em que ele se metia constantemente, os sarilhos que arranjava às duas. Quando ele fizera quatro anos, a família mudara-se da casa onde vivia numa encosta de solo de granito, próximo do Parque Westburn, não muito distante da escola, para a Casa Pitcairn, que se situava no campo, no meio de nenhures. Marion recordava-se da casa em Aberdeen e Eleanor também afirmava o mesmo (houve um ano em que vimos o fogo-de-artifício da janela do nosso quarto. Quando caí, até bati com a cabeça no portão). Por seu lado, David dizia a quem o queria ouvir que nascera em Pitcairn.

 

- És um mentiroso - trocava Marion. - Além do mais, és demasiado novo para te lembrares.

 

A mudança fez-se no Outono e nos primeiros tempos Marion sentira-se infeliz. Nas redondezas não vivia mais nenhuma família, pelo menos numa distância que pudesse ser percorrida a pé, com a excepção dos Mackies da quinta, e os filhos destes já eram adolescentes. De vez em quando, caso os pais se ausentassem, Eileen Mackie ia tomar conta deles, alturas em que Eleanor aproveitava para experimentar pintar as unhas com o verniz vermelho de Eileen. David recusava-se a ir deitar-se, tendo havido uma ocasião em que ele assomou ao cimo das escadas, pondo-se a rugir como um leão, mas escorregou, dando um trambolhão pelas escadas abaixo, só parando quando chegou ao fundo.

 

- Ele está sempre a fazer asneiras destas - declarou Marion, observando a cena, sem qualquer mostra de emoção, enquanto Eileen embalava David, que não parava de berrar, e Eleanor chorava de medo ao lado desta. - Talvez eu devesse telefonar ao médico? Sei como telefonar.

 

Eileen, porém, optou por chamar a sua mãe, tendo-se concluído posteriormente que David não se magoara com gravidade.

 

- A minha mãe disse que amanhã deviam ver se ele está bem

- informou Eileen quando Faith e John chegaram a casa. - Lamento muito o sucedido, Mistress Cairns, eu já o tinha deitado, mas ele não parava sossegado na cama.

 

Eleanor e Marion haviam saído sorrateiramente do quarto que partilhavam, espreitando pelos balaústres. Os pais estavam no vestíbulo; o pai usava um fato escuro e a mãe um vestido preto e uma mantilha rendilhada, onde a luz incidia com reflexos de púrpura e índigo sempre que ela se mexia. Ao pé do pai e de Eileen, esta anafada e de pele muito branca, a mãe parecia uma borboleta ínfima. Visto lá de cima, o cabelo dela dava a impressão de ser uma touca de um negro cintilante, mas conseguiam ver o couro cabeludo do pai, ligeiramente rosado, por baixo do cabelo de um castanho-claro, muito bem penteado. Um pouco mais tarde, Eileen foi-se embora e a mãe começou a subir as escadas, fazendo com que as duas garotas regressassem apressadamente ao quarto, deitando-se. Mas ela foi primeiro ao quarto de David, o qual, apesar de dorido, tinha adormecido, uma vez que não sofrera nada de grave. Em seguida, foi ao quarto das duas, levando consigo a fragrância do perfume que costumava usar, misturado com o cheiro a charutos e o aroma rico a comida: tudo cheiros característicos do mundo exótico de onde acabara de chegar, regressando para junto dos filhos.

 

Na manhã seguinte, começou a limpar os armários da cozinha, vestida com um par de calças e uma camisola velha, com os cabelos presos dentro de um lenço. Mostrava-se irritada, pelo que as raparigas se mantiveram afastadas dela.

 

Na primeira Primavera que passaram na Casa Pitcairn, Marion começou a mostrar-se mais animada. Todos os dias - agora mais compridos -, depois de virem da escola, exploravam os jardins. A um canto, andavam a construir uma nova capoeira; iam passar a ter ovos frescos, dissera Faith. Nas manhãs de sábado, o pai costumava levá-los a passear, parando para encher o seu cachimbo e servindo-se dele para apontar para aquilo em que queria que os filhos reparassem.

 

- São framboeseiras, precisam de levar estacas. Mesmo assim, dão muitos frutos em Agosto... Mais um ano e vocês poderão trepar àquela árvore.

 

- O David, não - comentou Eleanor, que era alta, da mesma altura que Marion, apesar de esta ser mais velha.

 

- Aposto que o David também conseguirá trepá-la - retorquiu o pai, rindo-se. - Duvido muito que sejam capazes de o impedir. Mas há-de cair umas quantas vezes, se não estou enganado e conhecendo-o como conheço.

 

A recolha dos ovos era uma tarefa de que Marion fora incumbida, uma vez que era a mais velha dos três, além de ser a mais atinada. Mas havia ocasiões em que uma ou outra galinha punha os ovos fora do sítio, pelo que os três tinham de os procurar. Estavam a acostumar-se a viver no campo, embora Marion continuasse a sentir falta de crianças da sua idade. Às vezes havia uma ou outra colega de escola que ia lanchar a sua casa. Eleanor recordava-se dessas garotas como se fossem sempre a mesma, mas Marion afirmava que eram várias. Violet foi a que durou mais tempo: era uma miúda muito atinada, sempre com o cabelo comprido bem penteado, em tranças muito apertadas; usava vestidos muito limpos e meias brancas. Comia muito pouco, dando a impressão de gostar apenas de feijão com molho de tomate de lata, o que Faith nunca comprava, e batatas fritas, o que costumava comer-se aos sábados em casa dos Cairns, enquanto o pai ouvia no rádio os resultados dos jogos de futebol, altura em que todos tinham de se manter em silêncio. Marion e a amiga costumavam desaparecer no primeiro andar, rindo-se à socapa por detrás da porta fechada do quarto. Quanto a Eleanor, mantinha-se perto da mãe a lamuriar-se.

 

- Elas não me deixam entrar, apesar de o quarto também ser meu.

 

- Vai à procura do David.

 

- Não sei onde é que ele está.

 

- Mais razão para o ires procurar... Vai ver onde é que ele foi. Deve estar no jardim.

 

Eleanor passara os meses de Verão a andar cabisbaixa pelos jardins: as plantas estavam todas exageradamente crescidas, sem que ninguém cuidasse delas, o que se devia ao facto de a Primavera ter sido muito chuvosa, prolongando-se até Junho, ao que se seguiu o calor repentino de Julho. Fazia muito calor e o Sol desferia os seus raios ardentes do alto de um firmamento muito azul. Eleanor dava pontapés nas pedras, esfolando as sandálias. Havia uma galinha de penas castanhas que bicava o caminho diante dos seus pés. Um dos gatos instalara-se junto de um arbusto, olhando como que hipnotizado para um ponto acima de si, os olhos fixos num pássaro invisível, ignorando a presença de Eleanor. Não avistou qualquer sinal de David.

 

- Davy! - chamou em voz alta, mas depois tentou um tom de voz diferente, não lhe agradando o timbre esganiçado com que o chamara. - Davy! - Desta feita, num tom mais profundo, quase numa voz roufenha: - Davy! - Continuou a chamar sem obter resposta. Era possível que ele pensasse que era o pai quem chamava por si, caso ela conseguisse fazer uma voz mais grossa. Chegou ao muro a que subiu, sentando-se escarranchada numa parte que não tinha muito musgo e que estava seca. Num dos lados, tinha o jardim, as macieiras e os arbustos que davam frutos de baga, assim como o trilho que atravessava aquela parte, dividindo a secção que dava para a capoeira das galinhas e a da horta separada em vários canteiros, após o que se estendia pelos maciços de lilases até à casa. No outro lado do muro, um lugar que agora lhe era familiar, ainda que não inteiramente conhecido, havia os campos com o gado que se reunia em manadas pelos cantos, como se os animais esperassem que, finalmente, começasse a chover; aqui e ali viam-se pequenas moradias com os vidros das janelas a reflectirem os raios solares. Mais ao longe, avistavam-se as colinas. E ainda mais à distância, à esquerda, se ela passasse a perna para o outro lado, posicionando-se de frente, conseguia ver o arvoredo onde, em Outubro, se podiam colher amoras, sendo frequente que David se aventurasse sozinho por entre as árvores ou acompanhado por um rapaz da aldeia, Stanley, cujo pai trabalhava como marceneiro; a família vivia junto dos correios e da mercearia. Ao princípio, Faith não encorajara o filho a fazer amizade com Stanley; pensavam que o garoto era rude. Mas, pouco depois, a mãe deste faleceu de morte súbita, o que fez com que ela se condoesse do garoto. Depois disso, ele passou a ter autorização de ir a casa deles tantas vezes quantas lhe apetecesse, sendo frequente jantar com a família. O pai, de luto, passava cada vez mais tempo no Pitcairn Arms.

 

Talvez David andasse pelo bosque, com Stanley. Eleanor desceu pelo outro lado do muro, caindo sobre a vegetação alta. Na extremidade do arvoredo, avistou uma coluna de fumo. Não se tratava de uma fogueira: David não tinha autorização para fazer fogueiras sozinho. Na verdade, não lhe era permitido andar com fósforos, tendo havido uma discussão bastante acesa havia apenas uma semana quando ele e Stanley tinham pegado fogo a uns papéis no esconderijo dos dois, ao fundo do jardim. Faith avistara o fumo da janela da cozinha, apressando-se a correr porta fora. Os dois rapazes haviam recuado, com uma expressão no rosto que era um misto de curiosidade e orgulho, que logo a seguir deu lugar a uma sensação de empolgamento quando as chamas pegaram, e as folhas secas por baixo dos papéis começaram a estalar juntamente com os galhos que eram rapidamente consumidos pelas labaredas.

 

Agora, quanto mais Eleanor se aproximava, melhor via a espiral de fumo, concluindo que afinal o fumo vinha de uma fogueira. Aproximando-se mais, detectou sinais da presença de outras pessoas: viu roupas espalhadas pela vedação e um cão preso por uma corda comprida, puxando-a numa tentativa vã para se soltar enquanto ladrava; também viu uma criança pequena que corria pelas proximidades, além de um homem que apareceu de fugida a gritar. Pouco depois, avistou uma carroça que aquelas pessoas deviam ter puxado pela vereda que circundava o outro lado do bosque, caminho que numa direcção seguia para Smiddy e para Mains Pitcairn pela oposta. Acima da fogueira, viu uma panela de ferro suspensa de uma armação feita com paus; às narinas chegava-lhe o cheiro de um cozinhado com carne. Inclinada sobre a fogueira, encontrava-se uma mulher que vestia uma blusa e saia comprida escuras, com um chapéu de homem puxado para o rosto, ocultando-lhe as feições. Eleanor hesitou, receando aproximar-se mais. Quando a mulher ergueu a cabeça, dando pela presença da garota, esta virou-se, desatando a correr e atravessando a erva molhada até chegar ao lugar seguro no muro.

 

- São viajantes - dissera a mãe, mas Violet informara que eram ciganos, torcendo o nariz arrebitado perante o prato de salada com fiambre e língua de vaca, segredando a Marion que não gostava de tomate porque as sementes cresciam dentro do estômago.

 

- Para onde é que eles estão a viajar? - perguntou Eleanor à mãe.

 

- Eles limitam-se a andar de um lado para o outro - respondeu o pai, sentando-se à cabeceira da mesa.

 

- Não te aproximes deles - advertiu Faith enquanto punha os copos de água na mesa, mas Violet não bebia água sem mais nada.

 

- Não há sumo? - perguntou Marion como se não soubesse que a mãe dissera que o camião que distribuía a Lemonade Hay não tinha parado. - Ela costuma beber sumo em casa dela.

 

- Há leite - ofereceu Faith -, ou água.

 

Mais tarde, Violet compensou as carências da refeição, comendo dois pratos cheios de sorvete com gelatina, o que a mãe servira porque Marion tinha uma convidada. Depois, já na sala de estar, Violet regalou as crianças da família Cairns com os seus conhecimentos a respeito dos ciganos.

 

- São uma gente muito porca - afirmou ela. - A minha mãe não me deixa falar com os filhos deles. Eles nem sequer andam na escola.

 

- Mas são obrigados a ir à escola.

 

- A assistente social costuma andar atrás deles, mas às vezes não é capaz de os apanhar. Já se mudaram para outro lugar qualquer.

 

- Então, durante quanto tempo é que tu achas que eles tencionam ficar no nosso bosque?

 

- Eu e o Stanley - informou David - estivemos mesmo ao pé deles. Fomos ao acampamento.

 

- Eles são imundos - reiterou Violet. - Metem nojo. Nunca tomam banho e não têm casas de banho como deve ser.

 

- Sendo assim, como é que... - Eleanor interrompeu-se, mas Violet abanou a cabeça, cerrando os lábios.

 

- O cão não faz mal - acrescentou David. - O cão é muito amigável; se gostar das pessoas, não morde nem nada disso. E têm dois rapazes, mais novos do que o Stanley e eu. O mais velho parece que nunca andou na escola - informou com um suspiro.

 

- Ele sabe ler? - perguntou Marion. David respondeu-lhe com um encolher de ombros.

 

- Se eu for apanhada a falar com os ciganos, levo uma tareia com o cinto - disse Violet, fungando com uma expressão de desdém.

 

- És uma medricas - ripostou David com uma careta risonha, inclinando-se todo para trás em cima do braço do sofá, acabando por cair estatelado no chão e rebolando sobre si mesmo. Medricas! Medricas! - ouvia-se a voz dele enquanto continuava a rebolar, até que se pôs de pé, saindo da sala, enfadado com a presença de Violet.

 

Faith voltou a avisá-los na manhã seguinte. Era sábado e, apesar de ainda ser cedo, hora do pequeno-almoço, Stanley já tinha chegado, batendo à porta das traseiras à procura de David.

 

- Quero que vocês dois se mantenham afastados do acampamento dos ciganos... David e Stanley, porém, já corriam pelo quintal fora, pelo que a resposta de David tanto podia ter sido de aquiescência como não. Faith suspirou, concentrando a sua atenção nas duas garotas. - E isto também vos diz respeito.

 

- A Violet diz que eles têm pulgas - informou Marion, dirigindo-se tanto à mãe como à irmã enquanto empilhava a louça cuidadosamente junto do lava-louça. - Portanto, a mãe não tem de se preocupar. Não tenciono nem chegar perto do acampamento.

 

- Bem, não sei se... - Faith não sabia o que dizer.

 

- Não fazem mal a ninguém, pois não? - perguntara John na noite anterior, quando Dan Mackie tinha passado por lá para debater o que deviam fazer quanto àquele problema.

 

- Não, mas não gostei nada da fogueira junto do arvoredo alegou Dan. - A erva está muito seca e por isso não é preciso muito para pegar fogo.

 

- Tenciona correr com eles daqui para fora?

 

- Não quero que se instalem nas minhas terras; que vão para mais longe. - Mas Dan mostrava uma expressão de dúvida; empurrou o boné para trás, esfregando a testa. - Eu podia falar com o Archie, duvido muito que ele os autorize a permanecer nas suas terras.

 

Ele e John ficaram a conversar do lado de fora da porta das traseiras, apesar de estar muito calor; Dan tinha as mangas arregaçadas, mostrando a pele dos braços, bronzeada e curtida pelo tempo, assim como a da garganta que o colarinho aberto permitia ver. Um pouco mais abaixo do pescoço, a pele era macia e de uma brancura leitosa, visto nunca estar exposta às condições climatéricas. Faith mantinha-se à porta da cozinha, ouvindo o que os dois homens diziam enquanto pensava na mulher. Recordava-se de uma cigana que aparecera por ali havia alguns anos, durante o primeiro Inverno que passaram em Pitcairn, uma mulher com uma criança na barriga e outra pela mão. Tinha a certeza de que se tratava da mesma família de ciganos.

 

- Eles têm alguma carrinha? - perguntou ela. - São os mesmos que cá estiveram há uns anos, não é verdade? Nessa altura, tinham uma carrinha.

 

- Sim, há vários anos que eles não têm pouso certo - confirmou Dan. - Houve uma ocasião em que os deixei dormir no palheiro, mas o homem dela fuma e por isso não me senti muito tranquilo. - Virou-se para Faith. - Desta vez, eles devem estar muito em baixo... Têm uma carroça onde trazem tudo o que possuem e que ele próprio puxa; não vi nenhuma carrinha.

 

- Pois bem - interveio John -, eles precisam de um abrigo qualquer. O ar está muito pesado... estou em crer que teremos uma tempestade nos próximos dois dias.

 

- O que é que lhes acontecerá? - perguntou Faith. - Ela com dois garotos pequenos e o bebé.

 

- Não me agrada muito - retorquiu Dan com um encolher de ombros -, mas suponho que ela possa abrigar-se outra vez na Mains - concedeu ele. - Ela e os cachopos. O homem dela é que eu não quero no meu palheiro. Da última vez que ela esteve cá, antes de se ir embora vi que tinha um olho negro. Está-me a parecer que ele lhe levanta a mão. - A fisionomia de Dan, que já era de poucos amigos, contorceu-se ainda mais numa expressão de reprovação.

 

Faith voltou para dentro de casa, sentindo no peito um aperto de piedade eivado de receio. Talvez conseguisse desencantar algumas roupas de recém-nascido; pelo menos, poderia fazer isso pela mulher. Havia algum tempo que tinha a intenção de arrumar o sótão. Já na cozinha, levantou a louça do jantar que ficara na mesa, o que fez com energia e rapidez, esforçando-se por não pensar na cigana.

 

Agora era sábado de manhã e a ameaça de temporal continuava a pairar no ar. Todavia, o céu estava muito azul, sem se avistar uma única nuvem. Eleanor percorreu o trilho que a levaria ao seu lugar favorito no muro. O fumo que vinha do acampamento dos ciganos começou a dissipar-se lentamente, desaparecendo em direcção ao firmamento sem sequer uma brisa que o agitasse. Avistou dois rapazes, mais novos do que o irmão, que corriam de um lado para o outro, enquanto o cão saltava entre os dois a ladrar incessantemente. Eleanor esperava, aguardando David e Stanley, mas não avistou sinal de nenhum dos dois garotos. Decorridos alguns momentos, desceu do muro, começando a encaminhar-se para casa. Viu os rapazes que entretanto haviam regressado ao quintal, sentados ao lado um do outro de pernas cruzadas enquanto jogavam às cartas. Então, repentinamente, tão de súbito que pareceu que ela se materializara, avistou a mulher que Eleanor vira no dia anterior, com a sua saia comprida e chapéu de homem. Vista de perto, era mais magra e mais jovem. Calçava umas botas de cano curto, atadas com um cordão em lugar de atacadores; entre o cimo das botas e a orla da saia via-se que não trazia meias e tinha as pernas peludas. Estendia qualquer coisa aos dois rapazes. Na outra mão trazia uma cesta ampla. Eleanor chegou ao quintal no momento em que David se encaminhava para casa a fim de chamar a mãe. A mulher virou-se para Eleanor.

 

- Compra-me um pouco de urze para te dar sorte, minha querida; queres que te leia a sina? - Eleanor respondeu-lhe com um abanar de cabeça, dando alguns passos atrás. Então Faith apareceu e, para grande espanto da filha, convidou a mulher a entrar na cozinha.

 

As crianças deixaram-se ficar junto da porta das traseiras, ouvindo a conversa que decorria no interior. A voz da cigana, apesar de rouca, era suave, com uma cadência musical que eles nunca tinham ouvido, enquanto ela ia desfiando o rosário das suas agruras; Faith reagia com um abanar de cabeça. Mas, no fim, acabou por comprar à cigana algumas molas para a roupa e um bocado de renda. Pouco depois, a mulher saiu, parando quando deparou com as crianças.

 

- Tem aqui dois cachopos encantadores - disse ela. - Dois e não mais, embora lhe tenha vindo outro. E há-de vir a perder um outro. - Com estas palavras, tocou ao de leve na cabeça de David que se contorceu todo. - Este garoto é um perigo, muito estouvado. Tem de se manter de olho nele. Mas nunca deve receá-lo. Voltou-se para Faith. - Estou-lhe muito agradecida, minha senhora, é uma pessoa muito bondosa. Que Deus a abençoe.

 

- Tudo um rol de disparates - comentou Faith depois de a cigana se ter ido embora. - Não disse coisa com coisa. Parece que sentem que têm de dizer uma data de palavras à toa para que as pessoas lhes comprem qualquer coisa.

 

Marion afastou-se com o bocado de renda. Eleanor nem sequer lhe quis tocar. David sentou-se a comer bocados de massa crua do bolo que a mãe estava a preparar, entretendo-se a brincar aos soldados com Stanley, para o que se servia das molas da roupa.

 

Depois do jantar, quando Eleanor foi até ao fundo do jardim para ver os ciganos, verificou que já se tinham ido embora e tudo o que restava da sua presença era o pedaço de solo enegrecido onde haviam feito a fogueira, assim como um bocado de tecido que ficara preso na madeira da vedação.

 

Não tardou muito a esquecer-se deles enquanto procurava David. Ele e Stanley haviam saído de novo assim que acabaram de jantar. Era suposto que o irmão acompanhasse o amigo até ao fim do caminho, às oito e meia da noite, após o que teria de ir para dentro a fim de se deitar. Contudo, às nove e meia ele ainda não tinha aparecido. John e Faith saíram à sua procura, no que eram ajudados pela luz diurna, uma vez que os dias eram mais compridos em Agosto; no horizonte, o firmamento de uma tonalidade de pérola começara a adquirir tons rosados.

 

As dez e meia, trouxeram-no de volta para a casa, tendo ele ido para a cama no meio da reprovação geral. Às onze horas, o celeiro dos Mackies deflagrava em chamas, qual fornalha a arder intensamente.

 

Todos ficaram a pé durante a noite inteira: às crianças foi proibido saírem de casa, o que não as impediu de se instalarem à janela do quarto dos pais, observando o clarão vermelho que iluminava o céu, cada vez mais intenso, enquanto ouviam as sirenes dos carros dos bombeiros, os gritos, o estalar horroroso da madeira em chamas. David corria de uma janela para à outra, tentando observar o incêndio do melhor ângulo que lhe fosse possível ter, rosto pálido e olhos que pareciam arder como carvões, com uma respiração ofegante. As raparigas sabiam que o melhor era ignorarem-no; era frequente que Faith dissesse que ele se deixava levar pelo entusiasmo e, fosse como fosse, continuava em maus lençóis no que dizia respeito aos pais.

 

Faith acabou por ter de ir ao quarto, ordenando-lhes que se fossem deitar. O pai continuava na Mains, onde passaria toda a noite.

 

- Que grande tragédia para os Mackies - observou ela. A palha e os fardos de feno... o celeiro completamente destruído. É horrível. - Mas ela falava consigo própria e não com os filhos. Com gestos bruscos, aconchegou as filhas, entalando os cobertores de modo a ficarem bem apertados, como se mal as visse, com o pensamento concentrado num outro lugar qualquer que não ali. Deixaram-se ficar deitadas com o corpo rígido, imobilizadas pelos cobertores, enquanto ela se dirigia para o quarto de David, ouvindo-a a falar com ele em voz baixa, mandando-o calar.

 

Quando ela já percorria a galeria, ele chamou pela mãe.

 

- Dorme - retorquiu ela sem se deter.

 

Já no piso térreo, Faith fez chá e preparou sanduíches para os homens, para os que continuavam a fazer todos os esforços para extinguir o fogo que devorava o palheiro, sufocando por causa do fumo espesso e negro que enchia o ar. As raparigas dos Mackies, Susan e Eileen, estavam com ela, assustadas e chorosas, assim como Ruby, que viera da aldeia, e a Mrs. Masson dos correios. As duas garotas ouviam as vozes das mulheres, que ora se elevavam ora se aquietavam, juntamente com o entrechocar da louça. O clarão das chamas voltou a iluminar o quarto e elas só conseguiram conciliar o sono aos primeiros alvores da manhã.

 

Anos mais tarde, continuariam a dizer entre si, sempre que ouviam falar de um incêndio:

 

- Lembras-te da noite em que o celeiro dos Mackies ficou destruído pelo fogo?

 

Era o fogo que ficara gravado na memória das duas e não as mortes, as quais foram mantidas ocultas durante algum tempo, um assunto de que ninguém falava diante das crianças.

 

- Então, o que é que pensas dele? - perguntou Claire. A sua voz era abafada porque estava a roer as unhas. Tinha-as deixado crescer para a festa de Emma, mas agora, pelo menos durante algum tempo, tencionava continuar a roê-las. Mais tarde, voltaria a deixá-las crescer para a festa de Natal na escola. Gostava da sensação que os dentes lhe proporcionavam quando trincavam um novo bocado de unha, a maneira como podia mordiscar ao longo de uma unha comprida e de sentir a textura lascada na boca antes de cuspir o fragmento.

 

- De quem... do tio David? - perguntou Eilidh. Esta nunca roía as unhas. Entretinha-se a pintá-las de verde e preto alternadamente, e o ambiente estava impregnado do cheiro a acetona. Acho que é boa pessoa.

 

O quarto de Eilidh era confortável. O calor que irradiava das duas, que não paravam de conversar, embaciara os vidros das janelas. Eilidh sentava-se num banco diante do espelho do seu toucador; Claire instalara-se na cama, com um almofadão nas costas e um gato adormecido em cima dos pés.

 

Eilidh abanava a mão, cujas unhas acabara de pintar, para que o verniz secasse mais depressa.

 

- A minha mãe diz que a seguir ele vai ficar em vossa casa.

 

- É verdade, a minha mãe tem andado a arrumar o quarto de hóspedes. Desde que nos mudámos que está cheio de caixas. Agora está a pôr tudo no corredor, o que me obriga a ter de passar por cima das caixas para conseguir entrar no meu quarto.

 

- Não percebo porque é que ele não continua aqui - disse Eilidh -, uma vez que a nossa casa é muito maior do que a tua.

 

- Não te esqueças de que a tua mãe tem o teu pai com quem falar, enquanto a minha não tem ninguém.

 

- Ela continua a sentir a falta do teu pai?

 

- Suponho que sim - respondeu Claire com um encolher de ombros. Eilidh quisera acrescentar: ”E tu?”, mas sabia que havia ocasiões em que Claire não gostava de falar sobre esse assunto.

 

- O tio David não veio carregado de presentes, pois não? - comentou Claire. - Quando ele ficou em nossa casa, em Inglaterra, costumava chegar sempre carregado de prendas.

 

- Sim, ele fez o mesmo quando esteve em nossa casa por ocasião de um Natal. Mas a minha mãe disse que ele agora está teso.

 

- Achas que está?

 

- Bem, a verdade é que ele não tem emprego, pois não? acentuou Eilidh.

 

- Não. Mas está a pensar em fazer qualquer coisa com computadores.

 

- A sério? Ele é maluco de todo, não achas? Sabes o que quero dizer... como quando, na Noite das Bruxas, ele se mascarou para os miúdos todos que nos vieram bater à porta, e, em vez de a abrir e ficar sossegado, como todas as mães e pais costumam fazer, dava um salto e saía com uma máscara no...

 

Ambas começaram a rir-se à socapa.

 

- Sim, lembro-me bem, e a pequenita, a Rosie Macleod, desatou a chorar!

 

- E a minha mãe disse: ”David, estás a aterrorizar as crianças!”

 

- E ele respondeu: ”Estamos na Noite das Bruxas, não é verdade?” - lembrou Claire aos guinchos, perdida de riso. Ria-se tanto que o gato, assustado, saltou da cama. - Tens razão - disse a Eilidh. - Como quando ele anda sempre a cantar aquelas canções que são francamente ordinárias, e a tia Marion a fazer uma cara carrancuda...

 

- Ela diz que um dia destes ele há-de acabar por se portar assim na presença do reverendo, ou quando Mistress Wylie estiver de visita, quando for buscar as coisas para a quermesse, ou para o que quer que seja, ele há-de começar a cantar em voz alta.

 

- No entanto, a verdade é que ele tem uma boa voz. O tio David tem um grande sentido musical, como a tia Marion.

 

- Ele não é nada como a minha mãe - contrapôs Eilidh, rindo-se. Voltou a virar-se para o espelho, concentrando-se nas unhas da outra mão. - Agora não me faças rir, se não, borro as unhas todas.

 

Fez-se silêncio entre as duas, enquanto Eilidh se concentrava em manter as mãos firmes e Claire folheava a Bliss. Ergueu a revista para mostrar várias fotografias à prima de um rapaz de expressão amuada que tinha uma franja que lhe caía por cima de um dos olhos.

 

- Qual é que achas que é melhor? Esta ou aquela?

 

Eilidh virou-se por uns momentos, apontando com a ponta de uma unha negra.

 

- Aquela - indicou.

 

- Esta ou esta?

 

- Não, não gosto de nenhuma dessas.

 

- E esta?

 

- Essa, sim.

 

Claire voltou a recostar-se no almofadão, examinando as fotografias em questão.

 

- Ele é lindíssimo, não achas? A minha mãe diz que o tio David era muito bem-parecido quando era mais novo. Bem-parecido.

- Incapaz de imaginar aquilo, elas entreolharam-se, fazendo caretas e começando a rir-se de novo.

 

- E claro que nessa altura ele não tinha barba - acrescentou Eilidh.

 

- Só há pouco tempo é que ele deixou crescer a barba adiantou Claire. - Além do mais, disse-me que tencionava cortá-la.

 

- Queres saber que mais? - perguntou Eilidh virando-se de novo para a prima. - Ele é mais parecido com a tua mãe do que com a minha.

 

- Ele não se parece nada com a...

 

- Tens razão, excepto o serem os dois altos. Mas a verdade é que ele não é parecido com ninguém da nossa família.

 

- Nem com o avô? - perguntou Claire.

 

- Bem... um bocadinho - concedeu Eilidh. - Mas nem por isso. Têm os olhos diferentes e as feições dele não são nada parecidas.

 

- É estranho, não achas, a maneira como às vezes, na mesma família, as pessoas são tão parecidas e outras vezes não? - acrescentou Claire, levantando-se da cama para ir sentar-se na ponta do banco de Eilidh. Ficaram a olhar solenemente para as respectivas imagens reflectidas no espelho: uma de cabelos escuros e a outra loura; Eilidh de rosto de formas arredondadas e Claire com um rosto fino de forma oval e olhos azuis muito rasgados, pestanas fartas como o pai tivera; a mão forte de Eilidh junto da de Claire de ossatura fina. Contudo, eram bastante parecidas, se bem que nenhuma das duas concordasse com isso, tanto uma como a outra preferindo a aparência física da prima. Não eram capazes de ver (sempre à procura de imperfeições) as linhas semelhantes do queixo, a curvatura dos lábios, todas as parecenças que partilhavam, quanto mais não fosse por ambos serem jovens e possuírem as mesmas características genéticas.

 

- Queres saber uma coisa? - perguntou Claire.

 

- O quê?

 

- Estás a ver... ele canta e está sempre a dizer piadas, não é verdade? Cá para mim, anda muito preocupado com qualquer coisa.

 

- Com quê?

 

- Não sei - admitiu Claire.

 

- Na verdade - retorquiu Eilidh -, tenho a impressão de que há qualquer coisa que está a incomodar a minha mãe. Ela tem andado um pouco ríspida.

 

- Achas que é a síndroma pré-menstrual?

 

- Não, ela acabou de ter o período, mas continua a estar muito irritadiça. Depois, desfaz-se em desculpas, mostrando-se muito simpática. O que não se enquadra nada na sua maneira de ser; regra geral, o estado de espírito dela não sofre grandes variações.

 

- Será a menopausa? - alvitrou Claire.

 

- Ela ainda é muito nova para isso, não achas?

 

Não conseguiram chegar a conclusão nenhuma. Só sabiam o que liam na Bliss e na Sugar, revistas que se concentravam no outro extremo do espectro hormonal.

 

- Talvez - sugeriu Claire - as duas andem preocupadas com a mesma coisa.

 

- Ao princípio pensei que a minha mãe estava a começar a sentir-se chateada por ter o tio David em nossa casa.

 

- Mas porquê? Ele é tão divertido!

 

- Sim, mas tenho a impressão de que ele bole um bocado com os nervos.

 

Fez-se um silêncio em que ambas reflectiam no comportamento dos adultos que as deixava atónitas. Porém, pouco depois, Claire atirou-se de novo para a cama, recomeçando a folhear a sua revista.

 

- Olha, vamos preencher este inquérito que nos diz qual o tipo de rapaz que mais se sente atraído por nós.

 

No andar de baixo, Eleanor tinha acabado de bater à porta das traseiras, entrando na cozinha.

 

- Olá, sou eu.

 

- A Claire está lá em cima - disse Marion, sem se virar, continuando de frente para o lava-louça.

 

- O que é que se passa? - perguntou Eleanor, olhando para as costas da irmã, reparando nos ombros tensos. - Passa-se qualquer coisa... É por causa do David?

 

- Oh, não o posso culpar - respondeu Marion com um sorriso, voltando-se de frente para a irmã. Eleanor sentiu-se como se o coração lhe tombasse aos pés, como se dentro do seu peito houvesse qualquer coisa que tivesse realmente caído no chão. - Não é nada - disse Marion -, quase de certeza que não é nada de importante.

 

Sentaram-se à mesa da cozinha, ficando a olhar uma para a outra.

 

- Queres uma chávena de chá ou outra coisa qualquer?

 

- Não, não te incomodes com isso. O que é que aconteceu?

 

- Nada - respondeu Marion. No entanto, contou a Eleanor o que era esse nada, esclarecendo o assunto, dizendo que a Mary Mackay ainda não tinha a certeza, mas que dentro em pouco, na próxima semana, ia fazer uma biópsia. No espaço de duas semanas, saberiam quais os resultados.

 

- Ela disse que em oitenta por cento destes casos os resultados não indicam nada de anormal. Que não são malignos.

 

- Isso quer dizer que só estão a fazer análises, não é verdade?

- retorquiu Eleanor, estendendo a mão, como se quisesse agarrar o ombro da irmã, instilando-lhe confiança através do contacto físico. Mas acabou por recolher a mão, não querendo empolar demasiado o assunto, uma vez que a própria irmã parecia estar a encarar a situação com calma. Marion ia conseguindo aguentar-se, sorrindo enquanto se levantava da mesa para pôr a chaleira ao lume. Por conseguinte, Eleanor também não podia ir-se abaixo, esforçando-se por não pensar no pior.

 

- Está tudo bem - continuou Marion. - Sei em que é que estás a pensar. Já passei por tudo isso... até já imaginei o meu funeral, não que pudesse assistir, não achas? Pensei em tudo isso.

 

- Oh, meu Deus, não... seja como for, é curável, não é verdade? As pessoas não morrem por coisas dessas. Além do mais, detectaste o caroço numa fase prematura, o que é uma vantagem. Apressadamente, acrescentou: - Seja como for, tu própria disseste que, regra geral, isso não constitui nenhum problema de maior... quase de certeza que não é nada de importância.

 

- Isso mesmo - concordou Marion.

 

- Pois bem, então...

 

- Suponho que ainda não acredite realmente que faço parte dos oitenta e tal por cento. Por uma vez na minha vida... - Interrompeu-se, sorrindo. - É apenas um estado de pânico que mal é perceptível. Ao fim e ao cabo, ninguém na nossa família teve uma coisa como esta, tanto quanto eu sei, portanto, é muito pouco provável que... e, como tu disseste, é curável.

 

No entanto, naquele momento Eleanor tinha a percepção daquilo por todo o corpo, mal podendo esperar pela oportunidade de pôr as mãos nos seus próprios seios, o que ansiava fazer mais do que qualquer outra coisa, para poder apalpar cada centímetro de pele, a explorar.

 

- Podias fazer uma mamografia - sugeriu Marion -, caso venha a verificar-se que é... sabes o que quero dizer... só para ficares mais tranquila. - Muito ao de leve, quase que como se não lhe tocasse, Marion pousou uma mão no ombro da irmã enquanto colocava a caneca de chá em cima da mesa.

 

- Mas, Marion, tu é que... - Eleanor agarrou na caneca quente, ansiosa por encontrar que fazer com as mãos, as quais poderiam, caso contrário, ficar como que perdidas, começando a procurar algo que ela sabia (evidentemente) não estar lá.

 

- De qualquer maneira - prosseguiu Marion, sentando-se com o seu chá -, não vale a pena estarmos a pensar no assunto até termos a certeza do que se passa.

 

- Exceptuando o facto de não podermos impedir-nos de...

 

- Não. Eu esforço-me por pensar noutras coisas, e quando estou a trabalhar, ou quando estou ocupada a fazer qualquer coisa, consigo fazer isso sem dificuldades de maior. Para te dizer a verdade, estou em crer que me será muito mais fácil quando o David for para tua casa.

 

- Contaste-lhe o que se passa?

 

- Não. Não sei porquê, mas não quero que ele aborde este assunto na presença do Fergus. O Fergie anda muito preocupado, o que não me passa despercebido. Apesar de estar a demonstrar ter muito tacto - acrescentou ela com um suspiro. - Para não dizer que o mais certo seria o David descair-se em frente das crianças. Não faz sentido nenhum estar a dizer seja a quem for e o que quer que seja a este respeito, pelo menos, por enquanto. Eu nem sequer tinha intenção de te contar...

 

- Oh, Marion!

 

- É verdade, se bem que não houvesse grandes possibilidades de tu não te aperceberes de que existia qualquer coisa que não estava bem. A Eilidh também anda desconfiada. Ela é tão perceptível em relação a assuntos desta natureza.

 

- Suponho que seja porque está a crescer - retorquiu Eleanor.

 

- Também o Ross, mas calculo que os rapazes vivem num mundo muito seu, não reparam em nada do que se passa à sua volta. Quanto à Kirsty, ela ainda é muito novinha.

 

- O que é que tencionas dizer-lhes a respeito da biópsia?

 

- Tenciono dizer-lhes apenas que tenho de ir para o hospital para fazer uns exames. E que talvez tenha de ser operada - respondeu Marion.

 

- Uma operação?!

 

- Claro que sim, Eleanor. Se vier a descobrir-se que é maligno, eles não vão ficar à espera. A verdade é que não me resta qualquer alternativa.

 

As duas mulheres levaram simultaneamente as mãos aos seios. As de Marion afastaram-se de imediato.

 

- Suponho que dependa de até que ponto está adiantado disse ela.

 

- Mas eles não... pelo menos inteiramente...?

 

- É provável.

 

- Oh, Marion - exclamou Eleanor com os olhos rasos de lágrimas, começando a chorar. Marion foi buscar uma caixa de lenços de papel para a irmã.

 

- Toma. Olha uma coisa... verás que tudo correrá pelo melhor.

 

- Desculpa, lamento muito, sou tão patética. Tu é que devias estar a chorar e não eu. Peço muita desculpa.

 

Marion pestanejou com força, sorrindo à irmã.

 

- Acredita que já chorei, e muito. Chorei. Mas só uma vez. Agora sinto-me mais animada. Foi uma fase passageira em que senti pena de mim mesma. E suponho que tenha sentido medo. Mas a Mary Mackay foi extremamente eficiente, explicando-me todo o processo.

 

- Estou a ver. - Sentindo-se envergonhada, Eleanor assoou-se outra vez, olhando de frente para Marion. - Desculpa... há alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar?

 

- Sou capaz de te pedir que ajudes com as crianças. Ou talvez o David possa vir até cá... podia aproveitar para fazer alguma coisa de útil.

 

- Deus me valha, tu estás farta dele. Mas isso não interessa, amanhã já ele estará em minha casa; creio que está a planear regressar a Pitcairn no próximo fim-de-semana.

 

- Eu não estou farta dele. Gosto muito do David, para não mencionar que as crianças acham que ele é extraordinário. Contudo, acho que não me agrada a maneira como ele aparece e desaparece no seio da família, como se não interessasse que, durante meses a fio, até mesmo anos, ele se dê ao incómodo de se manter em contacto connosco, enviar cartões de aniversário, nem nada no género. Além do mais, ele e o Fergus, verdade seja dita, não se dão nada bem.

 

- Não são almas gémeas - observou Eleanor.

 

- Não se pode dizer que sejam - concordou Marion. As duas irmãs ficaram em silêncio por uns momentos.

 

- E quanto a dizer ao David? - perguntou Eleanor. - Tencionas dizer-lhe alguma coisa?

 

- Suponho que tenha de lhe dizer.

 

- Queres que seja eu a dizer-lhe? - ofereceu-se Eleanor.

 

- Não, eu trato do assunto - respondeu Marion com alguma hesitação. - Ou... tens a certeza de que não te importas? Mas não faças do assunto um bicho-de-sete-cabeças, por favor, Eleanor.

 

- Não, não faço. - Olhou para o relógio de parede. - Acho que é melhor levar a Claire para casa.

 

- Eu chamo-as para que desçam - disse Marion, levantando-se da mesa. - O Fergus tem de operar esta noite, por isso, ainda nem sequer comecei a preparar o jantar. Mas acho melhor principiar a mexer-me.

 

No primeiro andar, as garotas liam a ”Página dos Problemas” das revistas, enquanto o gato ronronava na cama entre as duas.

 

- Estás a ver esta rapariga? - perguntou Claire. - É tal e qual como eu. Eu também sou tão melancólica... - Suspirando.

- Tu tens muita sorte, Eilidh, não és minimamente melancólica.

 

- Às vezes também fico maldisposta - afirmou Eilidh. - Especialmente com o Ross.

 

- Também tens muita sorte por teres um irmão.

 

- Mas não o Ross.

 

- Bem, talvez não o Ross - admitiu Claire, e ambas desataram a rir-se.

 

- Está na hora do Neighbours - anunciou Eilidh accionando o comando à distância em direcção ao seu televisor portátil. Entoaram em coro o tema musical de abertura do programa, imprimindo uma ênfase exagerada às palavras, cantando em voz tão alta que Marion foi obrigada a subir as escadas para lhes dizer que estava na hora de Claire ir para casa.

 

Na tarde seguinte, Fergus levou David para casa de Eleanor.

 

- Já que estou aqui, vou aproveitar para dar uma olhadela ao autoclismo da tua casa de banho - ofereceu-se ele. - A Marion disse-me que estava a dar-te alguns problemas.

 

- Obrigada. Vou pôr a chaleira ao lume.

 

Na cozinha, enquanto preparava o chá, Eleanor ouvia o barulho das descargas de água, intercalado pelo entrechocar de ferramentas. David instalara-se na sala de estar a falar com Claire. O saco de viagem dele estava a bloquear a passagem para o corredor, com o casaco que ele atirara para cima do saco. Eleanor deixou o bule na beira do aquecedor, levando o saco para cima, para o pequeno quarto que servia de arrecadação e onde David passaria a dormir. Já tinha aberto o sofá-cama de que não se desfizera porque naquela casa deixara de ter quarto de hóspedes, além de não ter espaço para ele nas outras divisões da casa. Tinha um candeeiro de mesa-de-cabeceira e colocara alguns cabides nos ganchos atrás da porta. Os cortinados eram largos e compridos de mais porque os aproveitara da outra casa, não se tendo ainda dado ao trabalho de os arranjar de acordo com as medidas da nova janela. Eram de veludo cor-de-rosa e em tempos haviam estado pendurados num acolhedor quarto de hóspedes, cujas paredes eram revestidas de papel Laura Ashley. Agora não condiziam nada com o tecido axadrezado com que o velho sofá-cama estava forrado, nem tão-pouco com a alcatifa castanha de que ela tencionava livrar-se dentro de pouco tempo.

 

Há vários anos, quando Claire ainda era pequena, recebiam com frequência visitas dos amigos de lan que ficavam com eles durante algum tempo (assim como familiares de Eleanor), pelo que ela fazia muito gosto no quarto de hóspedes: flores, uma caixa de lenços de papel rosa e uma taça de vidro sempre cheia de biscoitos caseiros. Eleanor suspirou, pensando naquela fase da sua vida enquanto com o pé empurrava uma caixa meio cheia de livros para um canto.

 

No piso térreo, Fergus já se tinha servido de uma chávena de chá.

 

- Já está arranjado - anunciou ele quando Eleanor desceu para a cozinha.

 

- A sério? Esplêndido... obrigada.

 

- Não tens que agradecer. Mas agora tenho de me ir embora. Da soleira da porta das traseiras, Eleanor ficou a vê-lo afastar-se

 

pelo caminho de piso irregular. No jardim da vivenda ao lado, Jim apanhava as folhas à pouca luz do dia que chegava ao fim. Quando Fergus passou, cumprimentou-o levando a mão ao boné e acenando a Eleanor quando o viu. Ela abeirou-se da vedação.

 

- O meu irmão veio passar uns dias comigo - informou ela.

- O Fergus veio trazê-lo.

 

- O seu irmão, a sério? - replicou Jim endireitando-se. Eleanor já começara a ver a cabeça de Edie a assomar à janela

 

da sala de estar, acenando-lhe com a mão num gesto hesitante. Eleanor sorriu-lhe e Edie saiu para o jardim.

 

- O irmão da Eleanor veio passar uns tempos com ela - informou Jim, e Edie deu um pequeno salto.

 

- E vai ficar muito tempo? Mas que surpresa tão agradável, minha querida, terá quem lhe faça companhia. Um pouco de companhia é sempre bom. Eu até costumo dizer ao Jim que a Eleanor se aguenta muito bem sozinha, mas mesmo assim deve sentir-se muito solitária, ainda é muito nova, minha querida, é uma pena.

 

- Tenho a Claire - retrucou Eleanor, que agora já sabia que Edie se limitava a proferir o que lhe ia na cabeça: não tinha nenhuma espécie de filtro, ao contrário do que acontecia com a maior parte das pessoas, entre a fala e o pensamento.

 

- Sim, de facto tem a Claire, uma cachopa encantadora. Eu até costumo dizer ao Jim que deve ser um grande conforto ter uma jovem tão rija como ela. Há que notar que nós nunca tivemos a sorte de ter uma menina, só tivemos um rapaz, mas os rapazes vão às suas vidas, não é verdade? Mas a Eleanor poderá contar sempre com a sua menina. Encantadora, costumo eu dizer ao Jim, ela é encantadora e muito inteligente - continuou Edie a falar à toa, dando outro saltinho. - Ora bem... estamos para aqui a empatá-la.

 

- Bom, tenho de ir para dentro, para dar ao David o chá que lhe preparei.

 

Porém, Edie indicou-lhe com um gesto que se aproximasse mais, o que Eleanor fez. Já era quase noite; o rosto pálido e de feições miúdas de Edie não parava por baixo do seu.

 

- Sabe... na casa ao lado - começou Edie a dizer, acenando com a cabeça na direcção da terceira moradia -, ouvem-se gritos. A altas horas da noite; até os ouvimos na nossa casa, não é verdade, Jim? Gritos até muito tarde. E música, mas não aos berros, eu própria não me sinto incomodada com a música. Até gostamos de ouvir uma boa melodia, ainda temos o nosso gramofone. E a Robbie Shepherd, ouço-a todos os dias.

 

- A gritar?

 

Jim pigarreou e desviou o olhar, mostrando-se constrangido.

 

- A gritar - confirmou Edie. - E depois, vejo-a a sair de casa e a meter-se no carro, arrancando a toda a velocidade. Já de madrugada - acrescentou, olhando para Eleanor com um acenar de cabeça. - Mas mudemos de assunto; está a ficar frio, vá para dentro. Estamos a empatá-la, Jim, e já está na hora do jantar.

 

Quando Eleanor se aproximava da porta de sua casa, David assomou à soleira.

 

- Já tomaste o chá? Vai ficar requentado. A Edie esteve a contar-me os escândalos dos vizinhos. Não me parece que os tenha visto mais do que muito de fugida.

 

- Adoro a tua casa pequenina.

 

- Óptimo... também eu.

 

Ambos se sentaram à mesa da cozinha, cada um com a sua caneca de chá. Ouviam o som da televisão que vinha da sala de estar.

 

- E a Claire, gosta?

 

- Da casa? - perguntou Eleanor.

 

- De viver aqui.

 

- Sim, gosta. Tem uma data de amigas, além de poder ir facilmente a casa da Eilidh, também gosta dos gatos e dos cães da prima, e tudo o mais.

 

- E quanto a ti... já não tens nenhuns gatos nem cães?

 

- Não. Pouco depois de nos termos mudado para aqui, o gato cor de gengibre, que já estava velho... estás recordado dele?, morreu apanhado numa armadilha. O Jim, o marido da Edie, encontrou-o à beira do bosque, perto da clareira. A verdade é que depois disso não me apeteceu nada arranjar outro animal.

 

- Lamento - disse David.

 

- Ficámos consternadas, como é evidente. De vez em quando, a Claire pede-me que arranje um cão, mas não sei se é boa ideia. Neste momento, não quero nada a que me possa prender. - Eleanor fez uma pausa, bebendo o chá em silêncio, enquanto pensava que além de Claire não havia nada a que estivesse emocionalmente ligada, por conseguinte, o que é que quereria dizer com aquilo? Era muito difícil que viesse a conseguir um emprego.

 

- Onde é que eu vou dormir? - perguntou David, interrompendo-lhe os pensamentos.

 

- Eu mostro-te.

 

- Lembras-te do quarto de hóspedes tão bem decorado que tinhas em Heatherlea? - perguntou David, olhando em redor, quando já estavam no andar de cima.

 

- Heatherlea! - O som da palavra, naquele momento, parecia-lhe estranho. Pertencia a outro tipo de vida.

 

- Os subúrbios em tudo o que têm de melhor, não era? A taça com os biscoitos, aquela coisa com folhos à volta da cama.

 

- Tu eras a única visita que comia os biscoitos - retorquiu Eleanor, rindo-se.

 

- O quê? Estás a dizer-me que eram sempre os mesmos biscoitos?

 

- Não sejas disparatado. Caseiros e feitos de fresco sempre que alguém nos visitava. Mas a verdade é que, além de ti, mais ninguém os comia. Suponho que os outros deviam fazer muita cerimónia.

 

- Eu costumava ficar com os lençóis cheios de migalhas por os comer na cama enquanto lia.

 

- Engraçado - comentou Eleanor quando já desciam as escadas estreitas. - Neste momento, até me custa a acreditar que alguma vez tenha vivido lá... na nossa vivenda com quatro quartos, com a garagem para dois automóveis e cada quarto com a sua casa de banho. Estas novas urbanizações são horríveis, com os jardins planos e quase sem vegetação nenhuma, apenas uma amostra de relva recentemente semeada, em que todos se sentem envergonhados com a pobreza dos respectivos jardins. Como se não fossem todos iguais.

 

- E então, sentes saudades de todo aquele luxo?

 

Eleanor parou ao fundo das escadas, voltando-se para o irmão.

 

- Às vezes sinto falta daquela vida.

 

- Não fiques triste, não tive a intenção de...

 

Com um gesto, ela indicou-lhe que não tinha importância, mudando de assunto. ”Nem sequer tu”, pensou Eleanor, ”serás capaz de me obrigar a reviver tudo isso uma vez mais.” Por uns momentos, Eleanor desejou que ele tivesse continuado em casa de Marion ou que tivesse voltado directamente a Pitcairn.

 

No entanto, algum tempo depois, enquanto jantavam, por insistência de David e de Claire, à luz de velas, um jantar acompanhado de vinho para todos (com uma expressão cheia de solenidade, Claire tomou um pouco, dizendo que era amargo e depois começou com umas risadinhas tolas), Eleanor sentiu-se satisfeita com a presença do irmão. O jogo do estás lembrado... foi estranhamente indolor quando o passado de Claire foi posto na mesa como que para arejar.

 

- É agradável - disse a garota quando, bastante mais tarde, a mãe lhe foi dar as boas-noites. - O tio David recorda-se do pai e da nossa antiga casa, e da Marmelade, dos meus ursinhos de peluche e de me levar à escola. Nem sequer se esqueceu da minha amiga Hannah. Ninguém aqui sabe dessas coisas, com excepção da mãe, que fica sempre muito triste quando falamos desses assuntos.

 

- Oh, Claire...

 

- Não faz mal, eu agora mal penso nessas coisas. No entanto, o tio David faz com que eu me lembre outra vez dos bons momentos.

 

- Óptimo - redarguiu Eleanor, afastando uma madeixa de cabelo que caíra para o rosto da filha e inclinando-se para lhe dar um beijo de boas-noites.

 

No andar de baixo, David lavava a louça do jantar.

 

- Obrigada - agradeceu Eleanor. - Já me tinha esquecido de que deixámos a louça suja. - Suspirou. - Está-me a parecer que também me vou deitar. Levantei-me muito cedo para que a Claire chegasse a horas à camioneta para a escola.

 

- Não te prendas por mim - disse David, secando as mãos no pano com que limpara a louça, deixando-o todo amarfanhado ao lado do lava-louça. - Vou até lá fora fumar um cigarro. E depois vou ver um pouco de televisão. Não consigo adormecer antes das duas... estou habituado a ficar a pé até tarde. Mas prometo que não farei barulho nenhum.

 

Enquanto se preparava para se deitar, Eleanor pensou: ”Não lhe disse nada a respeito da Marion. Ela não sabe bem por que razão é que esteve a adiar. Mas é errado que ele ainda não saiba.” Enquanto fechava os cortinados, ouviu vozes no jardim, imobilizando-se. Então, apercebeu-se de que Jim também saíra de casa para fumar o último cachimbo do dia, e ele e David tinham começado a conversar junto da vedação.

 

Mais tranquila, Eleanor foi para a cama, onde ficou a ler até ouvir o bater da porta da frente, depois de David ter entrado. Apagou o candeeiro da mesa-de-cabeceira e deitou-se para dormir.

 

A última vez que Eleanor e Marion viram a mãe com vida fora durante uma visita que tivera lugar havia dois anos. Tinham ido a Aberdeen para fazer as compras de Natal, tendo decidido fazê-lo numa quarta-feira por haver menos movimento, com a intenção de voltarem à cidade na manhã de quinta-feira a fim de acabarem de fazer as compras. Marion teria de dar aulas nos dois últimos dias úteis da semana.

 

- E não posso faltar se quiser comprar tudo o que as crianças querem - dissera ela a Eleanor quando seguiam viagem de automóvel na tarde de segunda-feira.

 

- Sabes que eles estão todos satisfeitos com a nossa visita anunciou Eleanor. - A mãe e o pai. E acho que é por irmos só as duas.

 

Já começara a escurecer quando saíram da estrada principal, pelo que a casa se encontrava envolta em sombras; só uma das janelas da frente é que tinha luz, constataram elas quando já percorriam o caminho particular. Todavia, alguém ouvira o barulho do carro, e a porta abriu-se quando desligaram o motor. O pai e a mãe apareceram à porta, emoldurados pela luz de tons amarelos que vinha do vestíbulo.

 

- Fizeram boa viagem? - perguntou Faith, inclinando-se para a frente e beijando as duas filhas quando estas chegaram ao cimo dos degraus do alpendre. - Entrem, entrem, a noite está fria. O pai leva o carro para a garagem.

 

Assim que entraram no vestíbulo aquecido, sentiram o cheiro familiar de Pitcairn: a cera para o soalho, o carvão na lareira e um odor adocicado e a humidade, que podia bem ter vindo da fruteira com maçãs em cima do aparador. Numa jarra de vidro azul, em cima da mesa com incrustações de latão, havia uns crisântemos definhados e no soalho encerado viam-se uns tapetes de retalhos feitos pela avó. Pouco depois, instalaram-se na sala de estar onde o pai já acendera a lareira. Marion e Eleanor instalaram-se no sofá Chesterfield, estendendo as pernas. Com as biqueiras, Eleanor descalçou os sapatos.

 

- Chá? Querem uma chávena de chá? Não quisemos começar a jantar sem vocês chegarem.

 

Elas haviam parado pelo caminho, pelo que não lhes apetecia comer nada, nem tão-pouco tomar chá, mas, na casa dos pais não tinham coragem para recusar fosse o que fosse; ali, voltavam a ser as raparigas de antes, com uma mãe que se encarregava de acudir às suas necessidades.

 

- Boa ideia. A mãe quer que a ajude?

 

- Não, não. O pai vai buscar o tabuleiro. Deixem-se ficar sentadas.

 

- É tão agradável voltar a casa - comentou Eleanor, recostando-se toda para trás e fechando os olhos.

 

A luz das chamas da lareira reflectia-se no fio dourado do serviço de chá que pertencera à avó, o qual só saía da cristaleira quando não havia crianças em casa que o pudessem pôr em perigo. Numa ocasião, Eleanor dissera: ”Adoro este serviço de chá”, e desde então que Faith servia sempre o chá nele quando ela e Marion iam visitá-los. Também havia pãezinhos de gengibre barrados com uma espessa camada de manteiga, mas a verdade é que Faith não queria que elas os comessem.

 

- Ficarão sem apetite para o jantar - disse ela, mas, mesmo assim, cada uma comeu um dos pãezinhos, acompanhando-os com o chá enquanto se aqueciam defronte da lareira onde o pai não parava de acrescentar carvão.

 

Falaram da família, das crianças, de casas e, no caso de Marion, do marido desta. Eleanor saíra uma ou duas vezes com um professor da academia, no entanto, não mencionou essa relação. Gostara do concerto e do filme, mas o homem aborrecera-a, o que ela lamentava. Por isso, não achou que valesse a pena mencionar esse assunto.

 

- A Mamie e a Alice vêm almoçar cá a casa amanhã... Assim, vocês não terão de ir visitá-las - informou Faith.

 

- Oh, as tias! - exclamaram Marion e Eleanor em uníssono, gemendo e rindo-se.

 

- Óptimo - concluiu Eleanor. - Vou adorar ver as tias. Elas estão sempre na mesma.

 

- Pensei que fosse precisamente por isso que elas te buliam com os nervos - retorquiu Faith que não se esquecera de um comentário de impaciência expresso por Eleanor havia vinte anos.

 

- Ora, a mãe sabe bem o que eu quis dizer. Mas, agora, isso não me incomoda, para lhe ser franca, até acho que me inspira uma certa segurança. Nos últimos anos, a minha vida sofreu alterações que chegam e sobram.

 

- Isso é verdade, cachopa - concordou John, pousando uma mão no ombro da filha quando se levantou para recolher os pires e as chávenas, levando o tabuleiro para ajudar a mulher.

 

Comeram na cozinha.

 

- Suponho que amanhã terei de servir a refeição na casa de jantar - disse Faith. - Ultimamente, mal temos comido lá... nem sequer ligamos o aquecimento. Não posso dizer que a casa de jantar me agrade muito hoje em dia.

 

- Isso acontece porque mal a utilizam - redarguiu Marion.

- As divisões que não são usadas adquirem uma atmosfera desconfortável.

 

- Como o quarto de hóspedes na minha casa - adiantou Eleanor. - Seria de pensar que numa casa tão pequena não existissem divisões que não são utilizadas. Mas está cheia de caixas.

 

- Ainda?

 

- Não tenho outro sítio onde possa guardar a tralha.

 

- Talvez devesses deitá-la fora - sugeriu a mãe.

 

- A maior parte consiste em caixas com livros. Os livros não são coisas que se deitem fora, mãe.

 

- Oh, livros - retorquiu Faith erguendo o olhar.

 

- Provavelmente - começou Marion a dizer - a mãe continua a associar esse quarto com as aulas de balé.

 

- Muito possivelmente. Se o teu pai fizesse como eu lhe pedi e se visse livre de todos aqueles espelhos...

 

- Vamos lá a ver - interveio John entrando na conversa -, não vamos voltar a repisar esse assunto. É uma questão de se conseguir encontrar alguém a quem sirvam para alguma coisa.

 

Faith limitou-se a um abanar de cabeça, sorrindo ao marido.

 

- Passemos adiante; conta-lhes as novidades, John. Deixemos o assunto dos espelhos.

 

- Que novidades? - perguntou Eleanor; o seu olhar ia da mãe ao pai, mas via pela expressão no rosto de ambos que se sentiam satisfeitos. Portanto, não era nenhuma má notícia. John levantou-se e foi buscar os óculos que guardava na escrivaninha, pegando num sobrescrito que estava em cima do móvel.

 

- E a respeito do David - anunciou Faith antes que o mando tivesse tempo de voltar a sentar-se. - Recebemos notícias do David.

 

- Finalmente!

 

- O quê... é uma carta?! - exclamou Eleanor. - Deus do céu, não sou capaz de o imaginar a escrever uma carta!

 

- Bem, é mais uma pequena nota. Num postal de tamanho muito reduzido - adiantou John, tirando-o de dentro do sobrescrito. Numa das faces, via-se uma reprodução de uma Madonna de Botticelli; na outra, tinha umas quantas palavras rabiscadas à pressa. Sentindo um choque quase imperceptível, Eleanor apercebeu-se de que aqueles rabiscos largos, feitos a tinta preta, lhe traziam recordações ao pensamento. Imobilizou-se, ouvindo com toda a sua atenção enquanto o pai lia.

 

- Vou mudar-me para Edimburgo antes do Natal. Por fim, vou voltar a ser um escocês. Depois dou mais notícias. Beijos para todos.

 

Enquanto apreendiam o sentido daquelas palavras, todos se mantiveram em silêncio.

 

- Ora bem - disse Marion.

 

- Não faço a mais pequena ideia do que ele quer dizer com voltar a ser um escocês. Estou a partir do princípio de que pelo facto de ter passado a viver em Inglaterra não tenha deixado de ser um escocês - comentou Faith, começando a juntar os pratos do jantar.

 

- Ele indicou algum endereço? - perguntou Marion, tirando o postal das mãos do pai. - Não... nada, nem sequer um número de telefone.

 

- No entanto, ele diz que depois dava mais notícias - retorquiu John, tirando os óculos e limpando as lentes. - Diz que volta antes do Natal.

 

- Agora me lembro, era disso mesmo que eu vos queria falar. O Fergus quer saber... queremos todos saber se vocês este ano querem passar o Natal em nossa casa?

 

Os pais entreolharam-se antes de lhe responderem.

 

- Têm a certeza?

 

- Temos de contar com a Mamie e a Alice...

 

- Mas elas também estão convidadas - atalhou Marion, pondo de parte qualquer objecção que os pais pudessem apresentar. Podem ficar em casa da mãe do Fergus. Cá nos havemos de arranjar. Ou... - acrescentou ela, olhando para a irmã com um sorriso de orelha a orelha. - Ou a Eleanor pode tirar as caixas do quarto que serve de arrecadação.

 

- Também têm de contar com o David - acrescentou o pai.

- O vosso irmão tenciona estar cá pelo Natal.

 

- Talvez - disse Faith, levantando-se da mesa. - Vai espevitar o lume, John. Vamos tomar o café na sala.

 

Mais tarde, Eleanor bateu à porta do quarto de Marion. Esta estava sentada na cama com um casaco de malha por cima dos ombros, folheando a selecção de revistas da mãe, Woman and Home, para adormecer.

 

- Queres ler alguma? - perguntou à irmã.

 

- Não, já tenho a Scots Magazine e a Reader’s Digest.

 

- Pensei que relias sempre O Que Katy Fez a seguir quando estás de visita a casa dos pais?

 

- E leio. Mas, nos últimos tempos, uma noite não é o suficiente. Acabo por adormecer. Seja como for, adoro ler essa página da Reader’s Digest... como é que se chama? Sabes ao que me refiro, ”Flagrantes da Vida Real”.

 

- Por amor de Deus! Porquê?

 

- Porque, em grande parte, a vida não é assim mesmo. A vida é como... não sei bem, algo diferente. Não se assemelha em nada ao que vem escrito na Reader’s Digest- observou Eleanor, sentando-se na beira da cama. - Neste quarto está um frio de enregelar.

 

- Eu sei. Como de costume, o aquecimento central foi desligado às nove horas.

 

Fizeram uma careta uma à outra.

 

- Crescemos habituadas a isto - acrescentou Eleanor. - Como é que conseguimos sobreviver?

 

- A muito custo - respondeu Marion.

 

- Suponho que sim. - Eleanor começou a folhear uma das revistas que a irmã já tinha posto de parte. - A mãe não mostra grande entusiasmo em relação ao David, não te parece?

 

- Não se pode censurá-la.

 

- O pai está todo entusiasmado.

 

- Como sempre. O David continua a ser o seu menino querido - retorquiu Marion com um suspiro, encostando-se contra as almofadas. - A mãe sempre foi mais ríspida com ele, na verdade, do que connosco.

 

- E achas que, pelo menos no que diz respeito ao David, ela tem razão?

 

- Estou convencida de que sim. Ele porta-se tão mal para com eles. Por que razão é que não pode escrever, telefonar-lhes, certificar-se de que os pais têm a morada dele? Ao fim e ao cabo, não é pedir de mais. O que diabo é que ele anda a fazer que possa ser tão secreto?

 

Eleanor limitou-se a um encolher de ombros, pelo que Marion prosseguiu.

 

- Mas tu deves saber, ainda que mais ninguém saiba. Quer dizer... houve uma altura em que ele ficou imenso tempo em tua casa.

 

- Sim - confirmou Eleanor mordendo o lábio, enquanto folheava várias folhas com receitas de culinária.

 

Em silêncio, Marion ficou a olhar para a irmã por uns momentos.

 

- Pois bem - disse por fim -, amanhã temos as tias Mamie e Alice. Vamos ter montes de novidades e de conselhos.

 

- As tias. Tu não queres de verdade que elas passem o Natal connosco, pois não?

 

- Se não for assim, com quem mais é que elas poderão passar o Natal, uma vez que o pai e a mãe estarão connosco? - replicou Marion com um sorriso. - Se ficassem sozinhas, com certeza que a ceia de Natal seria uma galinha de meter dó de tão pequena, e elas a infernizarem a vida uma à outra.

 

- Portanto, em vez disso, passam o Natal connosco, pondo-nos a todos doidos, não é verdade? - retorquiu Eleanor, rindo-se.

- Face a isto, tens de deixar que eu te ajude. Posso fazer um pudim.

 

- Não, muito obrigada, eu conheço os teus pudins. Podes pôr a mesa com as decorações de Natal; também podes dobrar os guardanapos. Conheço bem as tuas capacidades, Eleanor Cairns, e podes acreditar que pudins não faz parte dos teus talentos.

 

Como que espantadas, ficaram a olhar uma para a outra.

 

- A saber... - disse Eleanor. - Não estou a imaginar ninguém a tratar-te por Marion Cairns.

 

- Lamento, não sei porque...

 

- Não tem importância, também nunca gostei muito do apelido do lan. Mas, na época em que nos casámos, não era costume que as mulheres ficassem com os seus próprios apelidos. Eleanor Cooper. Hum. Não vai comigo. Mas talvez eu tenha voltado a ser solteira. É bom pensar que podemos voltar a ser jovens.

 

- É porque estamos aqui.

 

- Pvaparigas de novo. E o David, achas que continua a ser ”o rapaz”?

 

- Na perspectiva do pai, continua.

 

- Estou enregelada - afirmou Eleanor com o corpo rígido. Tenho de ir buscar uma botija de água quente antes de me deitar.

 

- Temos de nos levantar cedo - avisou Marion. - Quero estar no Marks às nove e meia.

 

- Sim, de acordo - replicou Eleanor, anuindo com um gemido, após o que foi para o seu próprio quarto.

 

Sempre que estavam em Pitcairn dormiam nos mesmos quartos que tinham quando eram adolescentes, quando Marion exigiu ter um quarto que fosse só seu, tendo-se mudado do que ambas haviam partilhado durante a sua meninice. Por essa razão, o seu quarto sempre exibira um ar mais adulto do que o de Eleanor, uma vez que esta se recusava a deixar o quarto onde dormia desde muito pequena, com a faia do lado de fora da janela e o papel de parede com rosinhas cor-de-rosa e miosótis azuis. Contudo, agora os quartos eram bastante semelhantes, com camas de corpo e meio e estantes baixas que o próprio pai fizera, assim como guarda-fatos quase vazios, contendo apenas os vestidos de noiva das duas e os que cada uma usara como dama de honor no casamento da outra. A estante de Marion estava repleta de livros acerca de raparigas que haviam seguido as carreiras de hospedeiras aéreas, enfermeiras e bailarinas: na prateleira de cima, havia uma fileira de coelhos em cerâmica que alternavam com figurinhas de porcelana vestidas com tutus cor-de-rosa. Os livros de Eleanor eram os clássicos juvenis: as aventuras de Enid Blyton e Mulherzinhas, junto dos School Fríend anuais. Na prateleira de cima, ela optara por uma série de conchas marinhas que coleccionara há muito tempo, as quais neste momento já estavam tão quebradiças que algumas começavam a lascar e a quebrar-se. Os cartazes dos artistas mais célebres, as roupas e os produtos de maquilhagem, bem como os discos de trinta e três rotações, havia muito que tinham sido levados. Todavia, a infância permanecia; a adolescência sumira-se no tempo. Não admirava, pois, pensava Eleanor, aninhando-se junto da botija que enchera com água a ferver, que sempre que regressava à casa onde fora criada tivesse a sensação de voltar a ser criança.

 

Sem o fazer propositadamente, o que nem sequer desejava, começou a reflectir sobre David, a pensar na temporada em que ele ficara em sua casa, a última vez em que o vira. No Ano Novo. Em Janeiro. Gelo negro, e os carros funerários que se deslocavam com tanta lentidão no ar gélido, que davam a impressão de se deslocarem em silêncio. Não se ouvira um único som ao longo de todo o trajecto até ao crematório. Contudo, era forçoso que se tivessem ouvido barulhos depois disso. Os cânticos religiosos, as palavras, as despedidas, conversas dispersas. Mas Eleanor só guardava aquele silêncio na sua recordação, assim como não se esquecera do caixão a deslizar num silêncio e quietude feitos de vazio. Desejava pensar noutras coisas. Porém, a sua mente não lhe obedecia. Acabou por ligar o candeeiro da mesa-de-cabeceira e recomeçou a ler o Reader’s Digest até sentir as pálpebras pesadas que se fechavam, decidindo apagar a luz e tentar, uma vez mais, adormecer, sentindo-se como que entorpecida e pesada, com a cabeça vazia de quaisquer pensamentos.

 

Marion despertou cedo, como era seu hábito. A mãe já se encontrava no andar de baixo. As portas dos quartos de Pitcairn continuavam a manter-se abertas, mas a alcatifa que agora revestia o soalho impedi-as de bater contra as ombreiras ou que se abrissem. Aos ouvidos de Marion chegava o som abafado da telefonia, sintonizada na Rádio 4, ligada na cozinha. Ficou deitada a ouvir a voz sóbria, mas pouco perceptível, do locutor que lia o noticiário, embalando-se na ilusão de que voltara a ser uma jovem, uma filha, alguém que não era obrigado a levantar-se, vendo-se confrontada com a tarefa de acordar uma família, ajudando toda a gente a organizar-se para o dia que teriam pela frente. Porém, o pensamento de que teria de fazer as compras de Natal impedia-a de voltar a adormecer; tinha de se levantar da cama.

 

A luz da cozinha estava acesa; lá fora, surgiam os primeiros alvores do dia que banhavam o jardim. Faith fazia bolos. Com gestos suaves, ergueu a massa estendida em círculo, colocando-a cuidadosamente sobre uma base de tarte.

 

- Estás muito madrugadora - disse ela, olhando para a filha.

 

- É verdade - retorquiu Marion com um encolher de ombros. - Há muitos anos que não consigo ficar deitada até tarde.

 

- Ora bem, quiseste ter a tua própria família - adiantou a mãe com um sorriso, começando a estender a massa para a segunda base.

 

- O que é que está a fazer?

 

- Tarte de maçã. Também estou a pensar em fazer um pudim, já que a Mamie e a Alice vêm almoçar.

 

Marion encheu a chaleira.

 

- Não tenho grande coisa como cereais para o pequeno-almoço - continuou Faith, observando a filha. - O teu pai só gosta de papas de aveia.

 

- Eu faço umas torradas - disse Marion, andando de um lado para o outro na cozinha que tão familiar lhe era. - Com certeza que se sente aliviada por ter tido notícias do David - acrescentou enquanto preparava o chá e esperava que o pão torrasse.

 

- Ora, há muito que desisti de me preocupar com ele. Marion sabia que aquilo não correspondia à verdade.

 

- Acho que ele já tem idade suficiente para olhar por si próprio - declarou a filha.

 

- Pelo menos, foi o que ele sempre pensou - acrescentou Faith, beliscando as extremidades da massa da tarte e colocando a forma na despensa. Em seguida, começou a limpar a mesa, levantando os utensílios de que se servira. Marion sentou-se à outra cabeceira, barrando a torrada com compota.

 

- No entanto, ele é um irresponsável - continuou, referindo-se ao irmão.

 

- Ora, Marion - começou a mãe a dizer, interrompendo o que estava a fazer e erguendo o olhar -, as pessoas costumam dizer que é mais fácil criar os rapazes... sabes? Ouço as outras mulheres a dizerem isso a respeito dos filhos. Mas no que nos toca, isso não é verdade. O David sempre foi o mais difícil de educar.

 

Marion pensou em Ross, um garoto sossegado e com quem não era difícil lidar.

 

- Acho que já em criança ele sempre criou muitos problemas. Faith sentou-se inopinadamente, continuando com o pano na mão.

 

- Eu costumava culpar o Stanley - disse ela. - Estás lembrada desse cachopo, o Stanley?

 

- Claro que me lembro. Quando éramos miúdos, ele nunca largava a nossa casa.

 

- Eu costumava dizer que a culpa era dele... ser criado sem mãe e com um pai que passava a vida no Pitcairn Arms - acrescentou Faith com um suspiro. - Mas o problema estava no David. O David é que era o chefe. Do que eu me apercebi daquela vez em que o Stanley veio a nossa casa para nos dizer o que tinha acontecido ao David. E anos antes... - interrompeu-se hesitante.

 

- O quê?

 

- Ele e o David largaram alguns foguetes. Foi no bosque, ao cimo do caminho... Por um triz numa ocasião não pegaram fogo à capoeira. E foi tudo ideia do David... ele sentia-se fascinado pelo fogo. Eu vivia aterrorizada, a pensar que eles poderiam pegar fogo a qualquer coisa quando não houvesse ninguém por perto para os impedir. - A fisionomia de Faith contraiu-se.

 

- A verdade é que nunca causaram nenhum dano realmente grave - protestou Marion. - Limitaram-se a fazer uma ou duas fogueiras... não foi?

 

Faith levantou-se da mesa, passando o pano pelo tampo da mesa para apanhar o resto das migalhas, recolhendo-as na mão em forma de concha quando chegou à extremidade.

 

- Penso que não - disse ela por fim. - Só espero que não tenha passado disso. - Ergueu o olhar para o relógio de parede. É melhor ires acordar a Eleanor, se querem chegar cedo à cidade. Nesta altura do ano é um castigo arranjar um lugar onde se possa estacionar.

 

- É verdade - concordou Marion levantando-se da mesa. Vou ver se ela já está acordada.

 

Estiveram ausentes durante toda a manhã, voltando a horas de um almoço tardio, com o assento traseiro do automóvel cheio de sacos com compras.

 

- E então? - perguntou Faith quando as duas entraram na cozinha. - Correu tudo bem?

 

- Sim - respondeu Marion.

 

- Não - respondeu Eleanor.

 

- Deixa-te disso, Eleanor, compraste montanhas de coisas.

 

- Odeio ir às compras.

 

- Eu já não tenho coragem para ir às compras - confessou Faith, baixando o lume onde tinha uma panela de sopa que tapou.

- Doem-me as pernas. Nos tempos que correm, as lojas já não têm cadeiras onde uma pessoa possa descansar um bocado. - Foi buscar as carcaças ao cesto do pão. - O meu problema é estar a ficar velha.

 

- Não, não está - contradisse Eleanor, enlaçando a mãe pela cintura, a sua mãe tão franzina que, ultimamente, parecia ainda mais pequena e mais frágil. Mas Faith sacudiu a filha, sorrindo e colocando o pão numa cestinha.

 

- Já não sou tão ágil como costumava ser. Como o pai também não é.

 

Com os braços cheios de compras, Marion deteve-se, detectando na voz da mãe uma entoação de cautela, quase como um aviso.

 

- Mas ele sente-se bem?

 

- Sabes como é, a angina do peito...

 

- Quando... quando é que ele soube que tinha isso? - perguntou Marion, pousando os sacos no chão enquanto Eleanor se imobilizava a meio de despir o casaco.

 

- Há já uns dois meses que ele tem dificuldade em respirar, mas não consegui convencê-lo a ir ao médico. E depois, há umas duas semanas, teve dores no peito durante a noite; decidi chamar o Martin Cleland na manhã seguinte.

 

- A mãe nunca nos disse nada a esse respeito!

 

- Não havia nada a dizer. Não valia a pena estar a preocupar-vos.

 

- Mas... o que é que os médicos tencionam fazer?

 

- Ora, já está marcado ele ir ao hospital para lhe inserirem uma espécie de balão numa artéria, ou qualquer coisa assim. Não me perguntem porque eu não sei bem como é. Para já, anda a tomar uns comprimidos e o Martin disse-nos que não havia motivos para estarmos com preocupações. Mas o especialista é que tem de decidir... Estou a referir-me a essa coisa do balão. Tem uma consulta marcada para Dezembro.

 

Marion e Eleanor ficaram caladas por uns momentos, observando a mãe que cortava manteiga, colocando pequenos pedaços dentro de uma mameigueira com flores, continuando a preparar a refeição sem olhar para as filhas.

 

- Quem me dera que a mãe nos tivesse dito - resmungou Eleanor, pendurando o casaco.

 

- Vou levar as compras lá para cima, para as tirar do caminho

- disse Marion, apanhando os seus sacos do chão.

 

- Fazes bem. Eleanor, leva a manteiga e o pão.

 

A lareira da casa de jantar já fora acesa, aquecendo um pouco o ambiente. Porém, aquela divisão continuava a ter uma atmosfera sombria, cheirando um pouco a bafio. Encostado à parede do lado esquerdo, oposta à janela, havia um piano, há muito desafinado, onde Marion praticara as suas escalas e onde a mãe, ou Ruby, tinham tocado para as aulas de balé. A mesa comprida de madeira muito polida já estava posta com os copos e os talheres e as portas da cristaleira ao lado da lareira estavam semiabertas, mostrando as prateleiras onde se via mais louça de vidro, guardanapos e jarras que não andavam a uso. Era uma casa de jantar bastante comum, raramente utilizada e com um ligeiro cheiro a mofo. Porém, quando se viravam para a parede à direita da porta, as coisas mudavam de figura. A toda a extensão da parede viam-se espelhos de corpo inteiro e a meio da altura havia uma barra de madeira. Enquanto Eleanor colocava o pão e a manteiga na mesa, viu-se reflectida naquele mundo de espelhos que reflectia outra mesa de refeições e outras cadeiras, a outra lareira onde as chamas ardiam por detrás de uma grade de ferro, o único ruído que quebrava o silêncio, a outra Eleanor loura e com uma expressão solene, com os cabelos caídos para a frente. Então, tudo aquilo se dissipou, apenas por um momento, e ela viu a fila de garotas com os seus fatos de balé e sapatilhas cor-de-rosa, cabeças direitas em posição e braços arqueados, um, dois, três; um, dois, três, estômagos recolhidos e, uma vez mais, um, dois, três...

 

- Vamos lá a ver - disse a voz de Faith por detrás dela -, podes pôr os guardanapos brancos.

 

- Quem me dera que o pai se visse livre destes espelhos.

 

- Ora, há anos que ele anda a prometer-me isso mesmo. E a sala com outra decoração. Este papel de parede é tão tristonho e há muito que devia ter sido substituído.

 

- Podia ficar uma casa de jantar muito acolhedora... com a lareira e a janela panorâmica.

 

- Agora não vale a pena estar com esse trabalho. Esta casa é demasiado grande só para nós dois. Só vamos almoçar aqui porque é a única maneira de manter a Mamie fora da minha cozinha.

 

- Mas não estão a pensar em mudar, pois não?

 

- Não, nem pensar. Estou velha de mais para essas andanças. Havemos de ficar em Pitcairn até morrermos. Depois, tu, a tua irmã e o David podem fazer o que bem vos aprouver.

 

- Não diga isso. O pai e a mãe hão-de viver para sempre.

 

- Não haja dúvida! - ripostou Faith rindo-se. Ergueu uma mão. - Já serão elas? - Começou a ouvir-se o ruído ensurdecido do motor do Morris Minar das tias, que já percorria o caminho particular.

 

Eleanor saiu para o corredor, dirigindo-se para a porta da frente, mas o pai chegou antes dela. Achou que ele estava com um aspecto muito encovado, mas continuava a caminhar com passos enérgicos, o que indicava que não poderia estar gravemente doente. A angina do peito era uma coisa bastante comum, não era? Ninguém morria dessa anomalia. No entanto, quando voltassem para casa poderiam pedir a Fergus que as esclarecesse melhor.

 

Com alguma dificuldade, Mamie e Alice saíram do Morris Minor; Mamie vinha vestida em tons de púrpura e azul, toda ela era lenços a adejar ao vento e uma fragrância adocicada, uma mulher anafada que se movimentava como se fosse uma borboleta, com os anéis a reflectirem a luz daquele sol ameno de Novembro quando mexia as mãos. Mais sóbria, Alice vinha atrás dela, magra e muito a direito, parecida com o irmão; vestia um casaco e usava um chapéu de um cinzento sóbrio.

 

Eleanor sentia o coração apertado de ansiedade por causa do pai, tentando pôr o passado para trás, a pequena mensagem superficial de David, onde não se detectava a mínima preocupação fosse pelo que fosse; desceu as escadas a correr ao encontro das tias, pegando no ramo de flores que Mamie lhe estendia e nos embrulhos que Alice trazia.

 

- Eles pareceram-me estar bastante bem, a mãe e o pai, não achaste? - perguntou Marion na manhã seguinte quando já iam de regresso a casa. - Tenciono pedir ao Fergus que me informe mais sobre a angina do pai. No entanto, não me parece que haja motivos para preocupação; o que é que te parece?

 

- Ambos estão bem - tranquilizou-a Eleanor. - A mãe nunca esteve doente, pois não?

 

- É por causa do exercício físico que ela costumava fazer quando era mais nova, o bailado e tudo o mais.

 

- E as aulas... lembras-te? Quando andávamos na academia e ela queria ganhar um pouco de dinheiro para os seus alfinetes.

 

- Achas que foi por causa disso que ela dava aulas de dança? perguntou Marion, mostrando-se surpreendida. - Pensei que foi por sentir saudades de dar aulas, além de que nós estávamos a ficar mais crescidas, e é preciso não esquecer que no bailado clássico ambas éramos uma nulidade. Portanto, ela decidiu ensinar todas essas aspirantes a Fonteyns.

 

- Aquelas rapariguinhas horríveis nas manhãs de sábado, a guincharem e a rirem-se que nem umas tolas. Durante quanto tempo é que a mãe deu essas aulas?

 

- Durante alguns anos... mais ao menos quando o David deixou a escola, não foi? Já não me recordo. Seja como for, ela nunca ganhou muito dinheiro com isso. Quantos pais é que estavam dispostos a levar os filhos tão longe para terem aulas de balé... no meio de nenhures?

 

- E aqueles espelhos horrorosos - comentou Eleanor.

 

- É verdade - concordou Marion, rindo-se. - Se uma pessoa estiver na cabeceira da mesa do lado da lareira, fica-se com as costas quentes, mas nesse caso é-se obrigado a ficar sentado a olhar para nós próprios a comer.

 

- Sim, e a parte de trás da cabeça da Mamie, sempre a acenar para cima e para baixo e eu a esforçar-me por não olhar. - Durante todo o almoço, Eleanor tivera consciência do seu reflexo no espelho, assim como do traseiro anafado de Mamie, o cabelo branco e fofo, menos na nuca, deixando ver o couro cabeludo de um tom rosado. Até mesmo quando desfiavam as recordações e os mexericos, no que a maior parte da conversa em família se centrava, ela conseguira visualizar uma vez mais aquela fileira de garotas, a saltitar pela sala, enquanto Ruby matraqueava as teclas do piano e a mãe, pequena e morena, gritava instruções às suas pequenas alunas.

 

- Já estamos quase em casa... graças a Deus - disse Marion, observando a fiada de luzes ao longo da Ponte Kessock, um clarão que reflectia Inverness, como uma bruma avermelhada que se estendia pelo firmamento de um azul-escuro. Sentia-se apreensiva por não saber se teria comprado os presentes mais adequados, começando a lamentar ter convidado toda a gente a passar o Natal em sua casa. Mas as coisas acabariam por correr bem: no fim, tudo correria às mil maravilhas. Cerrou as pálpebras e encostou-se para trás enquanto Eleanor continuava a conduzir, encurtando a distância até casa.

 

Veio a concluir-se que Marion não tinha razões para se preocupar com o Natal. Três semanas depois, o pai telefonou-lhe às oito da manhã quando ela tentava fazer com que Ross se levantasse da cama para ir tomar duche, e Fergus deixava queimar as torradas na cozinha.

 

- Paizinho? O que é que se passa? - Ficou com o coração sobressaltado, pressagiando más notícias.

 

- É a tua mãe. Pensei que era melhor avisar-vos, a ti e à Eleanor. Ontem à noite tive de chamar o médico porque ela não estava a sentir-se bem.

 

- O que é que aconteceu... Ela está bem?

 

- Bem... não. Não se pode dizer que esteja bem. Ainda está no hospital. Teve uma pequena trombose. O médico diz que não é muito grave, mas ela ainda não recuperou a consciência, não fala nem nada.

 

- Oh, meu Deus!

 

- Daqui a pouco vou outra vez para o hospital - continuou o pai. - Mas pensei que vocês haviam de querer saber que ela foi internada.

 

- Mas até que ponto é que o estado da mãe é grave? Olhe uma coisa, pai... nós vamos para aí. E depois pensou: ”Hoje tenho de ir a Dingwall, eles estão a contar comigo, só posso partir depois das aulas. Vou ter de guiar de noite.” Apercebeu-se pela entoação na voz do pai de que o estado da mãe era grave e como ele estava abalado. Não havia outra hipótese, teriam de partir imediatamente.

 

- Não, não é preciso, ela há-de pôr-se boa. O médico disse que as primeiras vinte e quatro horas é que eram mais problemáticas. Ainda não podem avaliar a gravidade das lesões, se ela conseguir recuperar... Dizem-me que as pessoas que sofrem deste tipo de ataques costumam recuperar bem. - Aclarou a garganta. - Em qualquer dos casos, ela não podia estar em melhores mãos. As enfermeiras são extremamente simpáticas. Depois da visita, prometo telefonar-te outra vez.

 

- Ouça uma coisa, pai... Hoje tenho de dar aulas. Telefone à Eleanor, ou então ligue para o bloco operatório e peça para falar com o Fergus. O pai disse que ia ao hospital, posso telefonar-lhe para lá?

 

- Não tenho a certeza. Provavelmente. Sim, estarei no hospital. Para ver como é que ela está a reagir.

 

Marion verificou que tinha a pulsação acelerada. O dia estava a escurecer e a ficar confuso, e, quando pousou o telefone, não sabia o que fazer em primeiro lugar.

 

A mãe morreu nessa mesma manhã. Eleanor telefonou-lhe para a escola; apressadamente, saiu da sala de aulas para atender o telefone na secretaria. Sabendo de antemão qual a notícia que estava prestes a receber, mas sem querer acreditar no que o coração lhe dizia.

 

- Fiquei sem saber o que fazer - disse Eleanor, a voz cheia de lágrimas, que tentava conter. - Lamento muito, Marion, devia ter esperado que chegasses a casa para te dar esta notícia, mas senti que tinhas de saber sem mais perda de tempo.

 

Marion regressou à sala de aulas, continuando a trabalhar até ao fim do dia. Ela e Eleanor iriam a Aberdeen na manhã seguinte, depois de terem tratado de tudo o que tinham a tratar.

 

Claire iria para casa de Marion, depois da escola, onde pernoitaria. Marion tirou comida congelada do frigorífico, previamente cozinhada, e fez uma lista das coisas que Fergus teria de fazer: encontrar alguém que levasse Kirsty às aulas de dança; lembrou a Ross para não se esquecer do equipamento de futebol; engomou a roupa que havia para engomar; certificou-se de que alguém ficava encarregado de dar o comprimido ao gato, já bastante velhote, assim como alimentar os outros animais e deixar o catálogo da Betterwear na soleira da porta. Quando Eleanor se ofereceu para conduzir, aceitou com um suspiro de alívio.

 

Enquanto ambas percorriam a A96, começou a cair uma ligeira camada de neve que parecia descer do ar ao encontro do automóvel. A Casa Pitcairn estava envolta numa atmosfera agressivamente fria; as lareiras não haviam sido acesas, jornais espalhados pela mesa da cozinha e a louça por lavar no lava-louça. As duas irmãs começaram a arrumar, antecipando uma vida em Pitcairn sem a presença da mãe.

 

- Não se preocupem com as limpezas - disse o pai ao deparar com Eleanor munida de uma vassoura e a pá do lixo, preparada para varrer o tapete das escadas.

 

- Queremos que o pai fique com a casa limpa e arrumada.

 

- Tenho a Ruby - alegou ele. Talvez ela possa passar a vir mais um ou dois dias por semana. - Eleanor compreendeu que ele já pensara naquele assunto. - Sabem que a vossa mãe teria tratado da casa sem a Ruby. Dizia que não era preciso, uma vez que éramos apenas os dois. Mas eu consegui persuadi-la. Além do mais, a Ruby era uma companhia. Ela é uma pessoa sempre muito animada.

 

- Contudo, ela também não está a ficar mais nova, pai. Acha que ela vai querer passar a trabalhar mais horas? Talvez a Susan Mackie... Qual é o apelido dela de casada? Estou sempre a esquecer-me... talvez ela conheça alguém.

 

- Veremos - replicou ele, o que significava que o assunto ficaria por ali. - Mas adiante... Vim aqui para vos dizer... Onde é que está a Marion?

 

- Na cozinha, acho eu. Ela disse que ia arranjar qualquer coisa para comermos.

 

- Bem... estive a falar ao telefone com a Alice. Elas disseram que passavam por cá; achas que a comida chega também para as duas?

 

- Tenho a certeza de que haveremos de nos arranjar – retorquiu Eleanor, indo falar com Marion. - As tias estão a caminho. Achas que temos comida que chegue para elas?

 

- Devias ver o congelador, Eleanor. A mãe guardava tudo com etiquetas... sopa, estufados, até parece que estava a prever o que ia acontecer. Há comida suficiente para alimentar o pai durante meses a fio.

 

- Contudo, a verdade é que ela não sabia, Marion. Foi uma tragédia que aconteceu, assim sem mais nem menos, não achas?

 

- Claro que surgiu de repente. Ela sempre foi uma pessoa muito organizada... tinha sempre refeições preparadas. Na verdade, ela cozinhava comida a mais só para eles dois.

 

- Ela era como tu - observou Eleanor, apercebendo-se disso pela primeira vez. - Tu és como a mãe... o que, à primeira vista, não pareces. Mas também és muito metódica, tal como ela é... era. Oh, Marion...

 

- Eu sei - redarguiu Eleanor, partilhando do mesmo desgosto. Ficaram a olhar uma para a outra; Eleanor esforçava-se por conter as lágrimas.

 

- Muito bem - disse ela, virando costas à irmã. - Vou tirar mais sopa do congelador.

 

Mamie mostrava-se chorosa; Alice parecia a mesma de sempre, apenas com uma expressão um tudo-nada mais grave do que o habitual. Mamie abraçou as duas irmãs, dizendo: Oh, meu Deus, ainda há uma semana estivemos com ela e não nos apercebemos de nada. de estranho, Alice tocou no ombro de Marion, dizendo-lhe que a morte da mãe tinha sido um grande choque. Pareceu-lhes que não valia a pena sentarem-se para comer, mas ter de organizar as coisas (tu sentas-te ali, não, assim está bem. Cá me arranjo... de que é a sopa?) era um alívio. Mamie a protestar que só queria muito pouco, numa altura daquelas ninguém tinha um apetite por aí além, mas acabou por comer uma tigela cheia de sopa e várias sanduíches. Alice, para grande perplexidade de Eleanor, também comeu com bastante apetite, mostrando-se quase alegre quando Marion encheu as chávenas de café. O pai mal tocou na comida, tendo-se levantado da mesa antes de qualquer delas ter acabado a refeição, saindo para o jardim depois de ter dito que tinha de fazer qualquer coisa.

 

- Vai atrás do pai - disse Marion a Eleanor em voz baixa enquanto Mamie e Alice disputavam a tarefa de levantar a mesa e lavar a louça. - Ver se ele está bem.

 

Eleanor calçou as botas e vestiu o casaco, atravessando o jardim. Encontrou o pai junto do muro perto da capoeira, agora abandonada, com o olhar perdido para lá dos campos, fixo no arvoredo. Eleanor teve uma recordação repentina de si própria, escarranchada no muro, a observar a família do latoeiro, ouvindo o ladrar do cão dos ciganos.

 

- Está a sentir-se bem, pai? - perguntou ela dando-lhe o braço.

 

- Estou, sim, cachopa - respondeu ele, aplicando-lhe uma pancadinha afectuosa na mão, mas sem mudar de posição; ambos ficaram ali, em silêncio, por uns momentos. Por que razão é que ela teria morrido?, perguntava-se Eleanor. Ele ia sentir-se tão sozinho.

 

- Paizinho, está recordado daquela família... dois garotos pequenos... a mulher apareceu à porta da nossa cozinha e leu-nos a sina. Estou em crer que ela passava por aqui todos os anos, com a família, mas só consigo recordar-me dessa vez. Suponho que eram latoeiros, costumavam montar um acampamento... ali - acrescentou ela apontando na direcção do bosque. O pai não lhe deu réplica de imediato. Pensando que ele já se teria esquecido daquele episódio, Eleanor prosseguiu: - Havia outra coisa. Por qualquer razão, na minha recordação, eles estão associados àquele incêndio terrível nas terras dos Mackies. No celeiro... O palheiro não ardeu?

 

- Ardeu, sim.

 

Eleanor verificou que ele não se havia esquecido. O pai abanou a cabeça.

 

- Pobres almas - disse ele. - Sim, recordo-me bem deles. Ela e os cachopos. Durante alguns anos, apareciam por cá sempre no Verão. O marido fazia biscates nas quintas das proximidades, mas o homem era uma criatura em que não se podia ter confiança. As pessoas só lhe davam trabalho porque tinham pena dela. O que é que te levou a pensar neles, numa altura destas?

 

- Não sei. Acho que foi de ter vindo aqui... Foi daqui que os vi pela primeira vez - respondeu Eleanor, recordando-se uma vez mais desse trecho do seu passado, ela própria escarranchada em cima do muro, e depois lembrava-se de ter corrido para casa sem motivo aparente. - Ela também tinha um bebé, não tinha? Além dos dois rapazes.

 

- O que aconteceu foi horrível - continuou o pai; do seu timbre de voz transparecia algo que era mais do que pesar pela tragédia de pessoas que mal conhecera, havia mais de trinta anos. Eleanor fitou o pai.

 

- O quê? - perguntou, mas, enquanto falava, a sua memória como que se abriu.

 

- Morreram no incêndio no celeiro dos Mackies.

 

- Com que então foi isso. Estou recordada desse fogo.

 

- O Dan hesitou muito em permitir que eles se abrigassem lá por uma ou duas noites. Acho que acabou por recusar porque não gostava nada da maneira de ser do homem. Contudo, o tempo estava incerto, ameaçando um temporal. No entanto, eles devem ter acabado por procurar abrigo no palheiro, quando os Mackies já se tinham deitado.

 

- Morreram todos? - perguntou Eleanor, vendo-se a si própria e à irmã à janela, observando o clarão das chamas que iluminavam o céu.

 

- Não, só a mulher e o bebé. Os garotos conseguiram sair... quem sabe, talvez não estivessem na quinta. Já não me lembro, mas sei que o homem tinha ido para o bar e ainda não regressara. Na manhã seguinte, deram com ele, perdido de bêbedo, caído numa vala, sem saber nada do que acontecera à família. - John Cairns virou-se, seguindo em direcção ao jardim com o intuito de voltar para casa.

 

- O que foi feito das crianças? - perguntou Eleanor, indo atrás do pai.

 

- Ora, a Assistência Social deve ter tomado conta deles. Como é que se chama agora, os Serviços Sociais? Não faço a mais pequena ideia do que aconteceu ao sujeito. Nunca mais voltei a pôr-lhe a vista em cima.

 

Eleanor deteve-se quando chegou ao banco junto da porta das traseiras, voltando-se para um último olhar ao jardim. O pai também parou, à espera que ela entrasse em casa. Os maciços de lilases estavam despidos de folhas e, à luz fraca de Novembro, o jardim adquiria tons acastanhados e acinzentados.

 

- Foi uma tragédia horrível - comentou Eleanor. - Como é que... quer dizer, alguma vez chegaram a descobrir qual o motivo do incêndio?

 

- O homem fumava. O fogo pode bem ter sido ateado pela ponta de um cigarro. Foi precisamente por essa razão que o Dan não lhes queria dar abrigo no celeiro.

 

- Mas foi a mulher e o bebé que morreram queimados.

 

- Uma tragédia. Sabes, Eleanor... há algumas pessoas que dizem que às vezes a vêem, batendo às portas de suas casas, com o cachopo ao colo.

 

- O fantasma dela? - perguntou Eleanor.

 

- Sim, mas eu não tenho pachorra para histórias dessas. Tal como a tua mãe também não tinha. Mas a Ruby jura a pés juntos que já a viu por aqui. Por que motivo é que essa alma penada haveria de assombrar esta casa, quando morreu na Mains, é coisa que só Deus saberá.

 

- Mas ele tinha saído! - contrapôs Eleanor. - Como é que podem ter dito que o incêndio foi por culpa dele?

 

- A ponta de um cigarro pode ficar a arder devagar durante muito tempo sem que ninguém dê por isso - replicou o pai, hesitante. - A tua mãe alguma vez te falou desse assunto?

 

- A mãezinha? Não, porquê? Eu guardo algumas recordações do incêndio... bem, da excitação que nos causou quando éramos garotas. Não foi nessa noite que o David desapareceu? Que ficou fora de casa até tarde com o Stanley?

 

- Nós encontrámo-lo muito antes de o incêndio ter pegado afirmou o pai com ênfase. - Não, não, apesar de a tua mãe sempre ter desconfiado que ele teve alguma coisa a ver com isso... Ele e o Stanley, sempre a brincarem com fósforos. Eles eram os dois terríveis, uns cachopos sempre prontos para fazerem uma fogueira. Mas não tenho a mínima dúvida... ele estava em casa muito antes de o incêndio ter deflagrado. Nem sequer sei se nessa noite ele esteve nas terras da Mains. Seja como for, tanto um como o outro negaram ter ido à quinta.

 

Eleanor ficou a pensar na combustão lenta por baixo da palha, o fumo a começar a evolar-se e depois a primeira labareda.

 

- Ele e o Stanley costumavam brincar com esses garotos disse ela.

 

- Que garotos?

 

- Os filhos do latoeiro.

 

Antes que o pai lhe pudesse dar resposta, Alice abriu a porta da cozinha.

 

- Estamos de partida - anunciou ela. - Voltaremos amanhã de manhã, só para ver se vocês estão bem, se precisam de alguma coisa.

 

- Não há necessidade disso - ripostou John Cairns quando ele e Eleanor entravam na cozinha, fechando a porta. - Os Chisholm ficaram de passar por cá ainda esta tarde. Telefonei-lhes ontem e combinámos que viriam... o funeral realiza-se na sexta-feira. Portanto, não preciso de nada.

 

Alice pareceu hesitar. Falou directamente para o irmão, como se Eleanor não estivesse presente.

 

- Quero dar-te uma palavrinha - disse ela -, antes de nos irmos embora.

 

Mamie estava na sala de estar com Marion; Eleanor ouvia a voz da tia, a resmungar, quezilenta. O seu olhar desviou-se do pai para Alice, apercebendo-se das parecenças entre os dois e como, pela primeira vez, o pai parecia ter envelhecido tanto como a irmã, a despeito da diferença de sete anos que os separava. Entre os dois sentia uma tensão que não compreendia, o que a levou a querer proteger o pai.

 

- Isso pode esperar - afirmou ele, passando a mão pelos olhos.

 

- Como queiras - concordou Alice, se bem que não se tivesse mexido. Pouco depois virou-se para Eleanor. - Importas-te de perguntar à Mamie se já está pronta para ir, Eleanor?

 

- Está bem - aquiesceu ela saindo da cozinha, cuja porta Alice se apressou a fechar depois de ela ter saído. Por uns momentos, ainda pensou em esperar, em encostar-se à porta para poder escutar o que diziam. Mas é claro que não poderia fazer uma coisa dessas. Inesperadamente, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe, uma nota de advertência, um conselho. Apressou o passo pelo corredor, indo ao encontro de Marion.

 

Durante a tarde, foram falar com o padre e com o cangalheiro. Às seis, Marion começou a cozinhar uma refeição para a qual nenhum deles tinha apetite. Na sexta-feira, voltariam a Pitcairn acompanhadas das respectivas famílias; as duas ficariam durante o fim-de-semana. Era preciso fazer alguma coisa com os pertences de Faith.

 

- O problema é que... - começou Marion a dizer enquanto preparava um bule de chá antes de se irem deitar - não sei se terei coragem para isso.

 

- Nesse caso, podemos adiar, se o pai não se importar - sugeriu Eleanor. - Ainda me custa a acreditar que a mãe tenha falecido, que daqui a pouco não voltará para casa - acrescentou com um suspiro de tristeza. - Quem me dera que tivessem trazido o corpo para aqui, em vez de o terem levado para a agência funerária. O velório devia ser aqui.

 

Marion serviu o chá em canecas, pousando o bule.

 

- A verdade é que isso agora não tem importância. Quer dizer... ela nunca mais voltará a estar aqui.

 

- É isso mesmo que estou a dizer. Ainda me custa a crer que ela tenha morrido.

 

- Pois bem, vamos ter de nos habituar à ideia.

 

- Ainda não - retorquiu Eleanor com os olhos rasos de lágrimas. - Ainda não.

 

O pai aparentava estar muito calmo, como se conseguisse suportar o desgosto melhor do que Eleanor, tendo começado a acreditar no que lhes havia acontecido. Contudo, continuava a falar de Faith como se ela ainda tivesse uma opinião a dar que devesse ser levada em consideração.

 

- Ela haveria de querer que vocês duas escolhessem as roupas e que ficassem com as poucas jóias que tinha. Levem o que quiserem. São coisas que não me servem para nada.

 

- Não há necessidade de estarmos a fazer as coisas à pressa replicou Eleanor.

 

- Como queiram - retrucou ele, parecendo aceitar o que as filhas queriam, ficando a olhar para a lareira que Marion acendera e colocando as mãos em forma de concha à volta da caneca de chá. Pouco depois, acrescentou: - Mas, cachopas, há uma coisa que não me sai do pensamento. Uma coisa que para ela tem de ser feita sem mais perdas de tempo.

 

Marion e Eleanor entreolharam-se. Tinham falado daquele assunto durante a viagem até ali, incapazes de decidir o que fazer a esse respeito.

 

- O David - disse Marion.

 

- Temos de falar com ele. Ele não sabe absolutamente nada do sucedido.

 

- Como é que haveria de saber - explodiu Eleanor, encolerizada -, se ele não se mantém em contacto connosco? - Sentia, por baixo daquele desgosto tão recente, que estava encolerizada consigo própria, uma vez mais, assolada por um sentimento de culpa. ”Foi por causa de mim que ele não se manteve em contacto, que não tem dado notícias.”

 

O pai foi buscar o postal de David, dentro do sobrescrito em que ele o enviara. Mas o carimbo dos correios estava esborratado.

 

- Seja como for, foi remetido de Londres - concluiu Marion. WC qualquer coisa.

 

- Apenas significa que ele o pôs no correio no centro da cidade - notou Eleanor. - Talvez seja onde ele trabalha. Tenho uns números de telefone, não sei bem onde, numa agenda velha, que são de um ou dois dos amigos dele. Vou ter de os procurar.

 

- Isso mesmo, tenho a certeza de que, se quisermos, acabaremos por o encontrar - comentou Marion, dando uma palmada afectuosa no joelho do pai.

 

- Assim é que é. Eu não quereria que ele não fosse ao funeral. Seria terrível se ele não estivesse presente.

 

Eleanor sentiu algo que se assemelhava bastante a uma espécie de ciúme, enquanto observava o pai que se encostava para trás na poltrona onde se sentara, sem olhar para as filhas, mas sim como se fitasse qualquer coisa do passado, como se pensasse em David.

 

Na manhã seguinte, ele despediu-se delas à porta, acenando-lhes quando partiram. Quando se viraram para um último acenar de despedida, ambas viram o fantasma da mãe ao lado dele, franzina e muito direita junto do marido, que tinha os ombros descaídos, iluminados pela luz que vinha do vestíbulo por detrás dos dois; a hera de folhas em tons de amarelo pendia dos dois vasos altos de pedra que ladeavam a porta da frente. Ficaram com a impressão de terem visto uma cortina que era afastada na janela do quarto dos pais no primeiro andar, apenas uma ilusão óptica da luz, um reflexo do sol no vidro.

 

- Sinto-me tão mal por o deixar sozinho - observou Eleanor. Pestanejou num esforço para conter as lágrimas, engolindo em seco.

 

- Não tarda, estaremos de volta - prometeu Marion. - São só dois dias.

 

Durante muito tempo, ambas se mantiveram em silêncio, seguindo estrada fora. Nos dois lados, a paisagem era sombria, despida de vegetação, e o firmamento de um cinzento de pedra, pesado. Depois de terem passado por Inverurie, Marion quebrou o silêncio.

 

- Lembras-te da minha amiga, a Violet?

 

- Não era ela que tinha uns totós incrivelmente compridos?

 

- Sim e sempre com uns vestidos muito bonitos. Pelo menos, era o que me pareciam na altura - acrescentou Marion.

 

- Sim, recordo-me da Violet. Ela estava em nossa casa quando a cigana apareceu. Ou logo a seguir... Ela até disse que os ciganos eram porcos.

 

- De que é que estás a falar?

 

- Da família do latoeiro. Com certeza que te lembras da mulher.

 

Eleanor estava prestes a contar à irmã o que o pai lhe dissera, quando esta prosseguiu:

 

- Sabes, a Violet não acreditou em mim quando eu lhe disse que a mãe fora bailarina... e que se apresentara em palco. Tivemos uma discussão enorme por causa disso. Acusou-me de estar a inventar histórias e eu fiquei extremamente irritada com ela.

 

- A Violet tinha uma visão da vida muito restritiva, tanto quanto me recordo.

 

- Suponho que sim. Ela não queria estudar na academia... preferia trabalhar na Esslemont e Mackintosh, em Aberdeen, a vender vestuário de senhora. O que acabou por fazer. Mas adiante, entrámos pela porta das traseiras, a mãe estava a fazer qualquer coisa na cozinha e eu disse-lhe: ”A Violet não acreditou quando eu lhe disse que a mãe foi uma bailarina. Diz que eu estou a mentir.” - Marion fez uma pausa, recordando-se do sentimento de cólera, do quanto se sentira magoada, acreditando que a mãe esclareceria a situação sem deixar qualquer margem para dúvidas.

 

- O que é que a mãe disse?

 

- Nada. - Levantou a saia... era Verão e, para variar, usava um vestido, e começou a dançar pelo jardim... a fazer entrechats, dando uns saltos em que os pés batem no ar, e depois começou a rodopiar. Foi espantoso.

 

E então Marion e Eleanor (esta última não assistira a este episódio, mas agora imaginava-o) viam a mãe de novo, transformada, a mãe franzina mas que nada parecia abalar, a rodopiar pelo jardim até ao relvado, com as galinhas de penas castanhas a cacarejarem alvoroçadas, enquanto ela passava por elas fazendo as suas piruetas, as saias a adejarem e a cabeça ligeiramente inclinada para trás, a fisionomia composta e como que distanciada do que a rodeava. Subitamente, a mãe parou, imobilizando-se com uma postura muito a direito junto do depósito de carvão, segurando a fímbria da saia com os dedos graciosamente curvados, após o que fez uma vénia muito acentuada.

 

- Oh, Marion - proferiu Eleanor cega pelas lágrimas, obrigada a abrandar a velocidade, encostando à berma e parando o carro.

 

- Que grande decepção que devemos ter sido para ela comentou Marion, contendo o choro que lhe embargava a garganta, num esforço para se rir. - Duas raparigas que eram uns autênticos trambolhos para a dança, grandes de mais.

 

- A Kirsty... - retorquiu Eleanor, assoando-se. - A Kirsty tem muito jeito para o balé.

 

- Sim, suponho que ela tenha talento para o bailado. Ainda que seja o tipo de dança das Highlands.

 

Dentro do automóvel começou a ficar frio, mas continuaram paradas, como que incapazes de prosseguirem o caminho, apanhadas pelo passado.

 

- É melhor continuarmos - sugeriu Marion por fim. Eleanor, que já não pensava na mulher do latoeiro, rodou a chave na ignição, ligando o motor. Retomaram a viagem, aumentando a distância entre elas e Pitcairn, que ia ficando cada vez mais para trás.

 

Quando teve a certeza de que tinha um cancro, Marion foi para casa, vestiu o blusão impermeável e calçou as botas, seguindo de carro pela velha estrada de Evanton em direcção a Cnoc Fyrish. Tencionava subir a colina, ficando sentada por baixo do monumento durante algum tempo, após o que desceria a encosta e iria para casa, a fim de falar com as outras pessoas.

 

A colina tinha uma altura aproximada de apenas trezentos metros; uma boa caminhada de uma hora até ao cimo. Era um passeio que fizera muitas vezes com o marido e com os filhos; também já tinha subido até ao cume com Eleanor, logo depois de a irmã se ter mudado para ali. No cimo havia uns arcos amplos, em pedra, erigidos pelo trabalho esforçado dos homens da região que passaram a trabalhar para Hector Munro depois de este ter regressado do cerco de Serangapatum coberto de glória. Os arcos representavam os portões da cidade indiana. Marion explicara tudo isto a Eleanor durante essa primeira caminhada que haviam feito juntas até ao cimo da colina, quando Eleanor enviuvara havia pouco, sendo necessário que se lhe falasse constantemente, contando-lhe o que quer que fosse com o objectivo de impedir que se entregasse ao desgosto. Pelo menos era o que os outros aconselhavam, mas Marion não se sentira muito certa quanto a essa espécie de terapia.

 

- Portanto, destinou-se a dar trabalho aos homens, foi? perguntou Eleanor quando já atravessavam o arvoredo no sopé da colina.

 

- Foi essa a ideia dele.

 

Recordava-se de quando haviam chegado ao cume da colina, com uma mão apoiada num dos pilares de pedra, Eleanor virando-se para ela e dizendo:

 

- Não serviu para nada, não é verdade? Terem de arrastar todos esses blocos pesadíssimos de pedra pela encosta da colina... Um trabalho sem o mínimo de dignidade e que não ajudaria em nada o futuro das famílias desses homens, não foi?

 

Marion concordara. As duas irmãs ficaram sentadas em silêncio, enquanto bebiam o chá que Marion trouxera num termo, com as costas encostadas aos blocos de pedra dura. Ficaram a olhar para Sutors, em Cromarty, do outro lado do estuário, observando as velas dos barcos, tão pequenos à distância, em Invergordon. À luz do Sol de Maio, a paisagem adquiria tonalidades de azul e verde, ocre e castanho, uma terra rica e fértil com a vegetação que a Primavera fizera desabrochar.

 

- Tudo isto é tão bonito - comentara Eleanor. - Ainda bem que vim viver para aqui.

 

- Também me sinto contente - replicou Marion, e essa foi a última vez que tentou distrair a irmã, conversando ininterruptamente com ela. Os campos, a superfície cintilante da água, Cairngorms muito ao longe, a sul, envolta em brumas - era tudo isso que aquietava o espírito e não as conversas.

 

Naquele momento, agasalhada para se proteger do frio de Novembro, Marion recordava-se dessa escalada com Eleanor, tão pouco familiarizada com aquela região, que fora preciso pô-la ao corrente de todas as histórias locais. Porém, agora a irmã pertencia ali. Marion sentiu que desta vez também deveria ter ido acompanhada da irmã. Contudo, ainda não tinha telefonado a Eleanor. Só o pessoal do hospital e Fergus é que estavam a par da sua doença.

 

No cimo da colina, o vento soprava com força, obrigando-a a fechar o fecho de correr do casaco Goretex e puxando o capuz para o rosto. A luz do dia estava a dar lugar ao lusco-fusco; por isso, logo que estivesse pronta, teria de começar a descer a encosta. Só tencionava recuperar a respiração. Naquele dia, as colinas tinham um aspecto sombrio, não permitindo que se admirasse a panorâmica de que habitualmente se desfrutava daquele ponto alto. Nem sequer se conseguia avistar Sutors. Mas, no estuário, havia duas ou três embarcações iluminadas como se fossem árvores de Natal, com as luzes a cintilarem naquele fim de tarde tristonho. Marion tocou num dos pilares de pedra, sentindo a superfície fria mesmo através da luva. Tanto esforço perdido só para que as gerações vindouras pudessem contar a história de Munro. No entanto, sentia-se satisfeita por ter decidido ir até ali. Era muito possível que dentro em pouco não estivesse em condições físicas de poder fazer aquela caminhada até ao cimo da colina. Poderia decorrer um ano até que pudesse voltar a fazê-lo.

 

Naquele momento, porém, tinha de descer, ir para casa e falar com Eleanor e com os filhos, além de também ter de falar com o pai. Era em situações como aquela que se desejava a presença de uma mãe, para nos dizer que tudo acabaria por se resolver a contento. Todavia, talvez as coisas acabassem por não correr pelo melhor. Cancro. Cancro. Repetiu a palavra por várias vezes para si própria, até a ter esvaziado de todo e qualquer significado, apenas duas sílabas, como se fosse um cântico semelhante a um mantra, apenas duas sílabas. Can-cro, can-cro.

 

Mesmo assim, deixou-se ficar com a luz do dia que desaparecia, imobilizada, atemorizada.

 

Em finais de Novembro, Marion ficou internada no hospital para a operação que lhe removeria o seio esquerdo, extraindo assim o tumor canceroso, um acto cirúrgico que foi coroado de êxito. Marion pareceu estar a recuperar bastante depressa, mostrando-se muito animada quando a iam visitar ao hospital.

 

- As boas notícias - disse ela a Eleanor e a David sentados em cadeiras à beira da sua cama -, não foi o que o Fergus disse?, é eles não começarem com os tratamentos antes da passagem do ano... Acho que primeiro tenho de fazer mais exames clínicos. Isso quer dizer que poderei ter um Natal mais ou menos em paz e sossego, sem ter de me preocupar com os efeitos secundários.

 

- Efeitos secundários? - perguntou David com uma expressão alheada enquanto folheava uma revista, endireitando-se na cadeira.

 

- Por causa da quimioterapia - esclareceu Marion.

 

- Portanto... já tens a certeza de que vais fazer esse tratamento?

 

- Não que me apeteça - redarguiu Marion, cabisbaixa -, tenho de reconhecer. Os médicos acham que será por um período de seis meses. O mais certo é não poder trabalhar grande coisa durante esse período.

 

- Aí está uma coisa com que não deves preocupar-te - atalhou Eleanor. - Só tens de te pôr boa.

 

- A maneira como as coisas acontecem... É tão irónico - observou Marion suspirando. - Por altura da Páscoa vai abrir uma vaga a tempo inteiro, e, antes de tudo isto, andei a pensar em candidatar-me. No ano que vem, a Kirsty começa a estudar na Escola Primária Número Sete e é na mesma escola; seria tão conveniente. Eu até tinha começado a pensar que poderia voltar a dar aulas a tempo inteiro. - Marion interrompeu-se, respirando fundo. Até isto me ter acontecido.

 

Eleanor murmurou-lhe palavras de conforto, dizendo-lhe que tudo haveria de correr bem, no que acreditava, muito embora estivesse a pensar que se a irmã arranjasse um emprego a tempo inteiro, não teriam oportunidade de se encontrar com tanta frequência e, verdade fosse dita, ela é que devia tentar arranjar um emprego. ”Só tenho uma filha, e nem sequer tenho marido”, mas repreendeu-se ao contemplar a hipótese de arranjar emprego com pouco entusiasmo, pensando que teria de sair de casa todas as manhãs, entrando numa qualquer rotina que nem sequer era capaz de imaginar, quanto mais desejá-la. Mas, fosse como fosse, por agora, concluiu que a sua presença era necessária em casa, para poder dar apoio a Marion e a Fergus, ajudando-os a ultrapassar aquela situação adversa.

 

David mostrava-se desassossegado por se encontrar na enfermaria. Desde que Eleanor lhe falara da doença de Marion que ele se comportara como um animal encurralado que só queria libertar-se, mas sabendo que não devia ir-se embora. O seu estado de espírito alternava-se, ora amuado, sofrendo, mas sem expressar os seus sentimentos, ou falando de mais, sugerindo terapias alternativas de que ouvira falar ou tinha lido algures, cada uma mais disparatada do que a anterior, na opinião de Eleanor. Naquele momento, levantou-se da cadeira, começando a andar de um lado para o outro; pouco depois foi até à janela e ficou a olhar para o parque de estacionamento no lado oposto ao do hospital, banhado pelos raios solares do Inverno.

 

- Vejam-me bem este tempo - comentou Marion, carrancuda, seguindo David com o olhar. - O Outono mais tristonho em muitos anos, mas assim que venho para o hospital, o Sol decide começar a brilhar.

 

- Mas no fim-da-semana já podes ir para casa - lembrou Eleanor, tentando animá-la.

 

David afastou-se da janela, aproximando-se da cama.

 

- Vou até lá fora fumar um cigarro, de acordo?

 

- Tu não gostas nada de hospitais - replicou Marion com um abanar de cabeça acompanhado de um sorriso.

 

- Ora bem, quem é que gosta? - retrucou ele, dando a impressão de estar na defensiva. - Ficarei muito satisfeito quando te vir daqui para fora - acrescentou, baixando-se para dar um beijo à irmã. Marion sentiu a barba áspera na face quente, assim como o cheiro a tabaco e a alho. David saiu da enfermaria, percorrendo o corredor num passo leve, agora que ia a caminho da rua.

 

- Ele anda inquieto - comentou Marion. - E não é só por vir ao hospital, não te parece?

 

- Sabes bem que ele nunca está sossegado em parte nenhuma declarou Eleanor, que se sentia irritada com o comportamento do irmão. Inexplicavelmente, quando se precisava dele, alheava-se, parecia tornar-se insubstancial. Ninguém podia contar com o seu apoio. Pensou em Fergus, na dedicação que ele votava a Marion, as rugas de ansiedade na sua fronte que se haviam aprofundado ao longo das últimas semanas. Depois, olhou para a irmã, observando o que David não gostava de ver, o que enchia Fergus de preocupação, apercebendo-se daquilo que ela própria receava: Marion afogueada e com um aspecto de cansaço, o cabelo baço e colado à cabeça, sem os reflexos acobreados que normalmente exibia. A camisa de dormir cor-de-rosa e, por baixo dela, um sutiã com alças largas que continha apenas um seio com vida, enquanto a outra metade estava cheia de algo acolchoado que (à primeira vista) parecia não mostrar nenhuma anomalia. Mas isso não correspondia à verdade. Eleanor sentia o coração a bater mais depressa. Com que frequência é que ela teria de ir àquela enfermaria nos tempos mais próximos, sentar-se à beira da cama a que Marion estaria confinada, sentindo-se doente só por ter de a ver no hospital: tudo aquilo lhe era demasiado familiar, o cacifo atravancado, a pequena mesa com rodízios onde estavam os cartões com votos de melhoras, uma garrafa com limonada, lenços de papel, várias revistas... E por cima da cabeceira da cama, as rosas de estufa, ainda bastante fechadas e que nunca chegariam a abrir, que Fergus trouxera no primeiro dia de hospitalização.

 

Marion recostou-se para trás, fechando os olhos.

 

- Ai de mim - disse ela. - É com satisfação que irei para casa. - Momentos depois, voltou a sentar-se a direito. - É uma coisa que eu não sou capaz de compreender no David, como ele não parece querer isso. Voltar para casa.

 

- Sim, mas é preciso não esquecer que ele não tem um lar a que possa regressar.

 

- Excepto Pitcairn.

 

- Razão que, muito provavelmente, o leva a aparecer por lá de quando em vez - retorquiu Eleanor, vendo as horas no seu relógio de pulso. - Acho melhor ir-me embora, juntar-me a ele a caminho do carro. - Começou a vestir o casaco, levantando-se da cadeira.

- Detesto ter de te deixar sozinha.

 

- Não te preocupes com isso. O Fergus vem mais tarde.

 

- Sei que sim. - As duas irmãs olharam-se. - Talvez as coisas não sejam tão más como estamos a pensar que serão.

 

- A quimioterapia? Temos de esperar para ver.

 

- Marion, estive a pensar... - começou Eleanor, relutante em deixar a irmã - ... sobre o Natal.

 

- Oh, meu Deus, não te inquietes com isso. Estou contente por ter comprado as prendas para as crianças antes de ter vindo para o hospital.

 

- O que é mais do que eu fiz. E que tal se fôssemos para Pitcairn. A família toda? O David podia ficar com o pai... o que ele em qualquer dos casos já tencionava fazer. Eu posso cozinhar... isto é, o David e eu podemos cozinhar. Até posso ir um ou dois dias antes para pôr a casa em ordem. Assim não precisarás de ninguém que trate das coisas em tua casa, e as tias continuarão a poder passar o Natal connosco. Se estivesses de acordo, tudo o que tinhas a fazer era sentar-te no carro durante a viagem até casa do pai. O resto ficaria por conta de todos nós.

 

- Oh, não sei, Eleanor - replicou Marion, mostrando-se duvidosa -, os miúdos gostam de passar o Natal em casa.

 

- Pensa no assunto - aconselhou Eleanor calçando as luvas.

- Acho que, por uma vez, os miúdos não se importariam. E o Fergus está bastante de acordo, ao contrário do que eu pensei. Disse-me que é a favor da minha sugestão, desde que tu te sintas satisfeita com a ideia. Seria apenas por dois dias, desde a véspera de Natal até à manhã do feriado do dia a seguir ao Natal; continuarias a poder estar em casa no dia da festa que a mãe de Fergus organizou para esse dia, se é que ela vai levar a ideia avante. Também podes usar esse dia como uma desculpa para não ires... Como queiras.

 

Marion sorriu à irmã, recostando-se nas almofadas da cama.

 

- Ora bem - disse ela -, vou ver o que é que a família tem a dizer quanto à tua sugestão. Prometo-te que pensarei no assunto.

 

- Vou-me embora - disse Eleanor, fazendo-lhe uma festa no braço. - Amanhã cá estarei.

 

Do lado de fora das portas automáticas, David, com as mãos nos bolsos do seu casaco Barbour (que comprara quando tinha tido a intenção de viver no campo para começar uma criação de galináceos raros), esperava que a irmã saísse.

 

- Perguntaste-lhe a respeito do Natal?

 

- Ela disse-me que ia pensar no assunto.

 

- Óptimo, agora só temos de convencer o Fergus.

 

- Por que razão estás tão interessado nisso? Podíamos limitarmos a reduzir as coisas, tentar impedi-la de cozinhar tantas tartes e Pudins e não convidar mais ninguém.

 

- Não daria resultado - replicou ele quando já se dirigiam para o parque de estacionamento. - Em qualquer dos casos, eu sou todo a favor de grandes reuniões de família por ocasião do Natal, sou bom nesse tipo de reuniões familiares.

 

Eleanor começou a pensar nos Natais que o irmão passara com Marion, assim como com ela própria, já ambas adultas e casadas. Espectaculares e muito festivos, acabando sempre em tragédia. Não, o que estava a pensar não era justo, isso só tinha acontecido em duas ocasiões, e... Meteu a chave na fechadura da porta do automóvel, olhando para David por cima do tejadilho.

 

- Desde que tenciones manter-te por perto para ajudares disse ela por fim.

 

- Bom, não posso prometer ficar até ao Hogmanay - ripostou ele com um encolher de ombros. - Tenho uns amigos que querem ir esquiar e é muito possível que me decida a ir com eles. Mas prometo que ficarei até ao dia de Natal.

 

- Esquiar? Pensei que não tinhas dinheiro?

 

- Despacha-te, aqui fora está um frio de enregelar; vamos para casa.

 

Já na rua, tendo parado por causa dos semáforos, Eleanor voltou a abordar o mesmo assunto.

 

- Esquiar? Não tinha conhecimento de que tu sabias esquiar!

 

- Há muita coisa a meu respeito que tu desconheces - observou ele, olhando pela janela; Eleanor não lhe podia ver o rosto.

 

- Mas isso é uma coisa cara, não é verdade? O equipamento que é necessário e tudo o mais?

 

- As luzes já estão verdes - indicou David. Ela meteu a mudança e arrancou. David cruzou os braços; observando-o pelo canto do olho, viu que o perfil dele era austero, como se ocultasse qualquer segredo. Mas, logo a seguir, o irmão deu a impressão de se descontrair. - Tenho um negócio em vistas - continuou ele. Devo ganhar uns milhares de libras. Pelo menos, será o suficiente para umas férias antes de me lançar no trabalho da Internet.

 

- Isso quer dizer... que vais mesmo levar essa ideia para a frente? - perguntou Eleanor, que não acreditava no que ele dissera quanto ao negócio que tinha em vista. Às vezes pensava que ele nunca dizia a verdade em relação ao que quer que fosse, como se, já há muito tempo, o irmão se tivesse perdido no seu próprio dédalo de mentiras.

 

Nota: Hogmanay - Termo que na Escócia designa o Ano Novo. (N. da T.)

 

- É o que tudo indica. Mas, neste momento, o Phil está a trabalhar em Perth, por isso vou ter de ir até lá por algum tempo.

 

Apenas uma quinzena antes, ela ter-se-ia sentido magoada perante aquela perspectiva que a deixaria decepcionada. Mas agora, quase se sentia aliviada. Não sabia porquê, mas o facto de ele estar ou não presente tinha menos importância. O que interessava era o bem-estar de Marion, que ela melhorasse. Marion não podia morrer. Se isso acontecesse, a vida de todos sofreria grandes alterações. Contudo, não lhe servia de nada estar com pensamentos desses. Todavia, Eleanor não era capaz de impedir que a sua mente se centrasse, com carácter obsessivo, nesse medo atroz. Marion era o núcleo a que todos se agarravam. Quando a mãe falecera, esta já tinha deixado de ser o centro da vida deles; os filhos haviam crescido e começado a formar as suas próprias famílias. Era a ordem natural das coisas face à morte. Eleanor começou a pensar no funeral da mãe, pensamentos que a abalaram com tal força que teve de abrandar antes de chegar à rotunda de Tore, o que fez mesmo a tempo; começou a pensar que era possível que David partisse de novo sem destino certo e, se Marion morresse, possivelmente ele não estaria presente. Eleanor pôs-se a imaginar o funeral da irmã, o rosto pálido das crianças, a igreja à cunha e as inúmeras flores. Mas nada de David.

 

Quando Faith falecera, ele só tinha aparecido no último minuto. Chegou a casa dos pais quando o resto da família já se encontrava de saída no vestíbulo, as tias e John, Fergus e Marion perto de Eleanor. As crianças estavam na sala de estar, a ver televisão num silêncio respeitoso, enquanto eles esperavam pelos carros enviados pela agência funerária, que os transportariam ao cemitério. Mas esse silêncio foi quebrado quando surgiu um automóvel no caminho de acesso à casa, fazendo ranger o saibro debaixo dos pneus, ao que se aliava o chiar dos travões, tão diferente do rolar digno de um veículo pesado sobre o piso de pedras, acompanhado do trabalhar ensurdecido dos motores dos Daimlers de que tinham estado à espera. Eleanor, Marion e Fergus entreolharam-se; num movimento repentino, o pai encaminhou-se para a porta da frente.

 

- Recebi a mensagem - disse David. - Lamento muito, lamento muito, pai. - Reparou nas gravatas negras e nos fatos de cor sóbria. Deixou-se ficar à chuva com as suas calças de ganga e camisola, com um aspecto juvenil, magro e com a barba por fazer.

 

- Entra, meu filho - convidou o pai. - Estou contente por teres podido vir.

 

Mais tarde, Marion disse a Eleanor que sentira o cheiro a álcool no hálito de David quando este a abraçou, mas Eleanor achou que a irmã devia estar enganada.

 

- Ele teve de fazer uma viagem muito longa - protestou ela.

- Disse que veio de Birmingham. Foi obrigado a guiar durante toda a noite. Com certeza que o que sentiste não foi o cheiro a bebida.

 

Marion, porém, limitou-se a cerrar os lábios, sabendo que tinha razão.

 

Ele ficara depois do funeral, depois de os outros terem regressado a suas casas, aparentemente sem possuir qualquer emprego que exigisse a sua presença e pouco tempo depois também não tinha dinheiro. Durante várias semanas, David pouco mais fez além de dormir e ver televisão. Mas, então, ele e John decidiram demolir a velha capoeira e David começou a falar em construir outra, onde poderiam fazer uma criação de galináceos raros em Pitcairn. Eleanor deduziu que, algures, devia ter algum dinheiro para poder ter comprado aquele casaco Barbour, assim como as botas verdes de borracha.

 

Ela tinha feito a viagem para passar um fim-de-semana com o pai, incentivada por Marion, que queria saber o que é que David andaria a fazer; posteriormente, ficou satisfeita por não ter levado Claire consigo. Partiu na manhã de domingo de regresso a casa quando o pai se preparava para ir à igreja, aproveitando a oportunidade para falar com ele na cozinha, uma conversa em que ambos se haviam mostrado pouco à vontade.

 

- O David bebe tanto como... bem, com frequência?

 

- Ontem à noite, emborcou uns bons copos - respondeu John. Pegou na Bíblia e nas chaves do carro. - É novo, precisa de companhia, estou em crer que vai ficar em casa de uns amigos até arranjar trabalho. Algures na área de Edimburgo, diz ele.

 

- Acho que está em muito boa altura de arranjar um emprego certo - retorquiu Eleanor.

 

- Ele é um explorador - comentara Marion. - Sei que é uma coisa horrível de se dizer a respeito de um irmão, mas detesto saber que está em casa do pai há já tanto tempo. E o pai é tão vulnerável.

 

- O quê?

 

- Ora bem, de onde é que lhe vem o dinheiro? Não tem nenhum a que possa chamar seu.

 

- Decerto que a viver em Pitcairn, as necessidades monetárias dele não serão muitas.

 

Todavia, naquele momento, Eleanor já sabia do casaco encerado novo, das garrafas vazias junto do caixote do lixo da cozinha. Beijou o pai, despedindo-se antes de este ir para a igreja. Quando ele voltasse a casa à hora de almoço, já estaria de viagem a caminho do Norte. David não apareceu e ela não queria ter de ir ao quarto do irmão para se despedir dele. Mais tarde, arrependeu-se, uma vez que, dois dias depois desse fim-de-semana, ele abandonou Pitcairn, dizendo ao pai que ia trabalhar para Edimburgo. Desde então, não dera notícias a nenhum deles até ter aparecido em Pitcairn em Outubro desse mesmo ano.

 

Por conseguinte, ali estava ele, no automóvel, sentado ao lado da irmã enquanto ela guiava ao longo do último quilómetro até Dingwall.

 

- Tenho de parar no supermercado - disse Eleanor.

 

- Podíamos aproveitar para tomar um copo - sugeriu ele.

 

- Não, não podemos, tenho de me apressar para poder estar em casa quando a Claire chegar.

 

- Ela já tem quinze aninhos... não se importará se chegares um pouco atrasada.

 

- Tem catorze anos. Só faz anos em Abril. O que tu devias saber... É no dia a seguir ao do teu aniversário. Antigamente, nunca te esquecias do dia dos anos dela, quando era pequenina.

 

- Mas por que razão não podemos parar no Queen Mary para beber uma cerveja rápida?

 

- Já são quase cinco horas. Não temos tempo. Além do mais, não me apetece ir ao Queen Mary - acrescentou Eleanor.

 

- Tens toda a razão. Esse bar é uma autêntica espelunca. Acho que chegou a altura de eu voltar para Edimburgo... para poder tomar um copo num local minimamente decente.

 

- Pois bem, se é isso que conta para ti.

 

- Ajuda muito.

 

Entretanto, Eleanor chegou ao parque de estacionamento do supermercado, desligando o motor.

 

- Vou dar um salto até ao velho Queen Mary enquanto fazes as tuas compras, de acordo? - anunciou David. - Só para tomar uma cerveja. Depois podes ir buscar-me.

 

- Mas eu só tenho de comprar um frango e uns pacotes de leite... - começou Eleanor a dizer.

 

David saiu do carro, tamborilando duas vezes no tejadilho numa batida sincopada antes de bater com a porta.

 

- Boa menina. Até daqui a pouco.

 

Quando ela o foi buscar ao bar, deparou com ele embrenhado numa grande conversa com um grupo de homens que Eleanor reconheceu vagamente, mas que não sabia quem eram. Os temas da conversa eram o futebol, as coisas espantosas que os computadores conseguiam fazer, a situação em que o mundo se encontrava... assuntos que ela não desejava abordar.

 

- Olá! - saudou David, agora muito animado. - O que é que queres tomar, uma cerveja pequena?

 

- Tenho de conduzir, David, além de ter de voltar para casa.

 

- Certo. Óptimo. Deixa-me só acabar esta caneca. - Mas a verdade é que ele ainda mal começara; devia ir na segunda cerveja. Eleanor instalou-se num banco alto ao balcão, ao lado do irmão, à espera que ele estivesse pronto para se ir embora. Uma vez mais, recusou a bebida que ele lhe ofereceu, sentindo algum mal-estar. Os homens observavam-na pelo canto do olho e um deles cumprimentou-a, mas não tardou muito que voltassem a concentrar-se nas suas bebidas e nas conversas que ela interrompera. Durante alguns minutos, Eleanor ficou sentada com um olhar alheado, sentindo-se aborrecida, após o que desceu do banco.

 

- Olha uma coisa - interveio ela, tocando no braço de David, que naquele momento estava de costas. - Tenho mesmo de me ir embora. - Estava à espera que ele voltasse a protestar, ou que se recusasse a deixar o bar. E nesse caso, o que é que ela faria? Aquela situação era-lhe familiar, forçar David a sair de um bar. Mas antes nunca se sentira muito incomodada com isso, sempre que haviam ido ao Red Lion, próximo da casa onde vivera nos arredores, em Berkshire, ela, lan e David. Nessas ocasiões, não se importara de fazer companhia ao irmão, uma vez que não tinha crianças à sua espera em casa. lan era sempre o primeiro a levantar-se, manifestando vontade de se ir embora.

 

A verdade, porém, é que David acompanhou-a sem grandes manifestações de relutância. Já no carro, ele mostrou-se contrito.

 

- Desculpa, desculpa. Mas o Guy insistiu em oferecer-me uma caneca. O que é que eu podia fazer? - perguntou, despenteando o cabelo da irmã. - Não estás zangada comigo, pois não?

 

- Não faças isso.

 

-- Estás zangada comigo. Peço desculpa. - Recostou-se no assento, olhando pela janela para a escuridão da noite, como uma criança amuada por lhe terem ralhado. Eleanor ajeitou o cabelo com uma expressão mais conciliadora.

 

- Não gosto de chegar tarde a casa quando a Claire está à minha espera.

 

- Claro que não. Tens toda a razão. Eu é que sou um estupor.

 

- Não, não és - retorquiu Eleanor, rindo-se. - Acontece que gostas demasiado de bares. E de beber.

 

- É o meu passatempo - admitiu ele, outra vez mais animado. Chegados a casa, foi ele quem levou os sacos das compras para dentro. Claire fora para o quarto e não ligara o aquecimento. A vivenda estava fria e às escuras. Eleanor correu pelas escadas acima para ir ver a filha e, quando voltou a descer, verificou que David já tinha tirado as compras dos sacos. No entanto, dado que até mesmo depois de várias semanas com ela parecia não saber qual o lugar das coisas, aquilo não lhe serviu de grande ajuda. Encostou-se ao aquecedor Rayburn, observando Eleanor, enquanto esta guardava as coisas nos armários, comendo o canto de um pão de forma.

 

- Estava a pensar - começou David a dizer - em ir até Pitcairn na sexta-feira. Podia começar a preparar a casa para o Natal.

 

- Podias aproveitar para limpar as casas de banho - sugeriu Eleanor. - A Marion está sempre a dizer que desde que a mãe morreu estão sempre imundas. E durante algum tempo, devias acender a lareira na casa de jantar todos os dias. Isso ajudará a que a casa fique mais acolhedora.

 

- Estou a pensar em arranjar uma árvore de Natal... uma que seja enorme, como as que tínhamos quando éramos miúdos. E aquela caixa com os enfeites... continua guardada no sótão?

 

- Deus do céu, devem estar todos cheios de poeira e muito provavelmente partidos.

 

- Posso comprar enfeites novos - adiantou David.

 

- Pensei... - Eleanor interrompeu-se.

 

- Para dar à casa um ar verdadeiramente festivo - acrescentou David, olhando para a irmã. - Prometo acender as lareiras.

 

- Bem... eu posso ir um dia antes da véspera de Natal - ofereceu-se Eleanor.

 

- Nesse caso, podes limpar as casas de banho. Eleanor deu-lhe com o pano da louça.

 

- Espera e vais ver... Vou obrigar-te a trabalhar, logo que chegar! Agora a sério, David, temos de nos certificar de que tudo está aquecido e confortável por causa da Marion.

 

- Claro que sim. Eu sei - retorquiu ele, esfregando as mãos.

- Muito bem. O que é que há para o jantar?

 

- Oh... escalopes de frango.

 

- Deixa-me ser eu a prepará-lo. Primeiro é preciso pô-lo a fritar. Tens cebolas e um pimento-encarnado?

 

Eleanor deixou que fosse ele a cozinhar a refeição, indo acender a lareira da sua própria casa. Pouco tempo depois, começou a sentir o cheiro do frango a fritar; da cozinha saía um aroma a comida bem apaladada.

 

- O que é que o tio David está a cozinhar? - perguntou Claire, entrando na sala de estar onde Eleanor descobrira três latas vazias de cerveja atrás do sofá, assim como um cinzeiro cheio de beatas.

 

- Que coisa, detesto que ele fume aqui dentro... o que ele sabe muito bem. Bem, eu já tinha sentido o cheiro. - Olhou em redor.

- Parece-me que está muito criativo com o frango e com os pimentos.

 

Claire ficou a olhar para a mãe enquanto esta despejava o cinzeiro na lareira.

 

- A verdade é que ele não fuma aqui dentro, mãezinha. Só traz o cinzeiro para dentro depois de fumar à entrada da frente. Eu disse-lhe que não devia deixar as beatas no jardim.

 

- Disseste? Fizeste muito bem.

 

- Durante quanto tempo é que ele vai ficar em nossa casa?

 

- Na sexta-feira partirá para Pitcairn, para ajudar o teu avô. Estávamos a pensar... depende de como a tia Marion se sentir, mas pensámos que podíamos passar o Natal em Pitcairn.

 

- Mas eu não quero ir. Quero passar o Natal em casa da Eilidh, como fizemos o ano passado.

 

- Não estás a perceber... vamos todos. A família toda.

 

- E a tia Marion nessa altura já não está no hospital?

 

- Não, vai ter alta dentro de um ou dois dias. Por isso, podíamos ir para baixo uns dias mais cedo, só tu e eu. Para nos certificarmos de que a casa está aquecida e tudo como deve ser. Para que a Marion se sinta confortável.

 

- Sim, se a mãe quiser. No entanto, não posso faltar à festa da escola.

 

- Não, claro que não. Não faltarás a nada.

 

- Mamã?

 

- O que é?

 

- Passa-se qualquer coisa estranha na casa ao fundo da rua - disse a garota.

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Sabe como a Edie está sempre a dizer que ouve gritos e sei lá que mais?

 

- Ora, a Edie é uma exagerada. É uma mulher nervosa e, além do mais, não tem mais que fazer, por isso mete-se na vida dos outros.

 

- Sim, mas ela tem razão. Nessa casa vive um fulano que é tarado. Pelo menos, eu acho que ele é doido. Tem uns cabelos muito encaracolados e arruivados. Eu seria incapaz de gostar de alguém que tivesse cabelos cor de cenoura, e a mãe?

 

- O quê? Ora... não sei

 

- Não podia.

 

- De acordo, não podia.

 

- Seja como for, hoje vi-o sair a correr...

 

- O quê? Quando?

 

- Eu vinha pelo caminho até casa e ainda não estava completamente escuro, mas não faltava muito. Portanto, não consegui vê-lo muito bem, mas ouvi-o a gritar com alguém. A olhar para trás, para casa, e a gritar... acho que era com a mulher, mas eu não cheguei a vê-la. Depois, ele viu-me vir pelo caminho e parou de gritar; seria de pensar que se sentisse embaraçado, não é verdade? Mas ele só me disse: ”Olá, estás boa?”, e...

 

- Isso quer dizer que falaste com ele, não foi?

 

- Bem... eu só lhe respondi... ”Sim” ou outra coisa no género. Mais nada, nem sequer parei para lhe falar. Mas depois vi uma mulher que saiu atrás dele... Ela estava mais do que furiosa, acho eu. Tinha vestido um casaco, um casaco preto comprido, e um chapéu, por isso, não consegui ver-lhe a cara e, como eu já disse, era quase noite. Ela começou a berrar com ele, e...

 

- Pelo que me estás a dizer, deve ser um casal que gosta de dar nas vistas - atalhou Eleanor com um sorriso. - Porque é que estavam a gritar?

 

- Oh, não sei... coisas no género... ”Não te atreverias” e ”Oh, isso é o que tu pensas”, sei lá.

 

- Há casais que se fartam de discutir, mas isso não quer dizer grande coisa.

 

- A mãe e o pai não costumavam discutir - ripostou Claire, não aceitando a justificação de Eleanor. - O pai e a mãe da Eilidh também nunca discutem.

 

- Não, mas...

 

- Bom, de qualquer maneira, acho que ela não chegou a ver-me. Nessa altura já eu ia a passar pela casa do Jim e da Edie, quer dizer, nem me passou pela cabeça parar, não acha? Mas, de repente, ela disse: ”Quando voltares para casa, já me terei ido embora de vez.”

 

- Ou, meu Deus! Viste algum carro junto da casa? Não reparei.

 

- Não, era isso que eu estava a fazer lá em cima. Bem, durante algum tempo. Depois pus-me a fazer o trabalho de casa de Biologia.

 

- O quê... estavas a bisbilhotar?

 

- Depois do que eu lhe disse, não se passou nada de especial. Além do mais, estava escuro. Mas ele foi-se embora no automóvel e nem sequer tinha vestido um casaco. Pouco depois, ela saiu de casa e pôs uma data de malas e sacos dentro do outro carro, no vermelho.

 

Eleanor dirigiu-se para a porta da frente, observando o caminho. A única luz que avistou vinha da janela da sala de estar da casa de Jim e Edie. Logo a seguir, Jim devia ter fechado os cortinados porque deixou de a ver.

 

- Não há lá nenhum - disse Eleanor, aproximando-se de Claire, que tinha ido atrás dela.

 

- Está a ver? Ela abandonou-o. Excitante, não acha?

 

- Bem...

 

- Pergunto a mim mesma se ela voltará para casa - acrescentou a garota.

 

- É o mais provável. Foi apenas uma discussão.

 

- A mãe discutia com o pai? Pelo menos, não discutia desta maneira, não me lembro de vos ter ouvido. Aos gritos e coisas assim.

 

- Não. De vez em quando, é claro que também discutíamos. Como toda a gente. - Eleanor foi pôr mais lenha na lareira, agora que as chamas já tinham pegado. Claire foi atrás da mãe, como se quisesse continuar a falar sobre aquele assunto. Porém, ao invés, pegou numa revista que estava no sofá metida entre os almofadões e levou-a para a ler no andar de cima, no seu quarto. Eleanor sentou-se na sala. Começou a recordar-se dos silêncios cheios de frieza de lan e o seu próprio choro de frustração. No entanto, nada de discussões entre os dois. Era impossível discutir com alguém que se remetia ao silêncio com uma expressão reprovadora, o qual deixava bem claro que tinha razão e que a outra pessoa é que estava errada.

 

- Pois bem, ele tinha razão - proferiu ela em voz alta. O marido tinha sempre razão. ”Pára com isso”, disse a si própria. ”Pára de matutar nisso.” Não faltava muito para o Ano Novo, altura do ano em que ela pensava sempre na mesma coisa. Mas agora de que é que lhe servia estar a magicar naquele assunto? Havia coisas bastante mais importantes em que pensar... em Marion, assim como no que David tencionava fazer com a sua vida, e em Pitcairn. E no Natal.

 

- O rancho está pronto! - gritou David da cozinha. Eleanor levantou-se para ir chamar Claire para a mesa.

 

- Em Pitcairn - dizia Marion -, quando se estava doente, tínhamos direito à lareira acesa no quarto. Era tão confortável, ver as chamas durante a noite.

 

- Tenho muita pena - retrucou Fergus -, mas, nesta casa, terás de te contentar com o sistema de aquecimento central. Marion observava o marido enquanto ele tentava pendurar a sua saia. A saia escorregou do cabide por duas vezes, o que o fez praguejar entre dentes.

 

- Quem me dera que me deixasses levantar, só isso, mais nada

- disse ela. Na esperança de ser bem-sucedido desta feita, Fergus empurrou o cabide bem para o fundo do guarda-fatos. Em seguida, virou-se para Marion recostada nas almofadas da cama.

 

- As pessoas têm a mania de subestimar sempre até que ponto é que se sentem cansadas quando vêm do hospital. Amanhã já poderás levantar-te.

 

- Mas que tirano que tu me saíste - resmungou Marion, mas recostou-se nas almofadas com um suspiro de alívio. - Estar em casa é uma maravilha.

 

- Óptimo - disse ele, baixando-se para lhe dar um beijo; Marion agarrou-lhe o braço.

 

- Obrigada - agradeceu.

 

- Deus do céu, obrigada por quê?

 

- Por teres ido ao hospital visitar-me todos os dias, por teres mantido a casa em ordem, por teres feito tudo o que fizeste.

 

- A Eleanor veio cá muitas vezes e a Eilidh também foi uma grande ajuda.

 

- Eu sei.

 

- E agora... queres que diga à Eilidh que te traga uma chávena de chá?

 

- Mais daqui a pouco. Fica mais um minutinho, Fergie. Ele sentou-se na beira da cama, pegando na mão de Marion.

 

- Lamento muito - disse ela.

 

- Lamentas...?

 

- O hospital não te devolveu a mesma mulher. Agora estou diferente.

 

- Para mim, continuas a ser a mesma - retorquiu ele, levantando-se da cama e apertando-lhe a mão antes de a largar.

 

- Fergie...

 

- Não, precisas de descansar. Temos muito tempo para conversar.

 

Mas ele não queria conversar. Do que ela se apercebeu. Desta vez, deixou que ele se fosse embora, ficando à espera de Eilidh.

 

- Sente alguma coisa estranha? - perguntou a garota. Agora que não tinha de visitar a mãe no hospital, parecia capaz de fazer perguntas. Na enfermaria, ela e Ross sentavam-se sem quase se mexerem, pouco à vontade, até encontrarem qualquer coisa com que embirrar um com o outro, ao ponto de Fergus se ver forçado a repreendê-los, após o que ambos se deixavam ficar sentados com expressões de amuo. Quanto a Kirsty, subia para a cama para poder ler todos os cartões que a mãe recebera com votos de melhoras. Pouco depois, Fergus dava dinheiro às crianças para que fossem ao café ao lado do hospital, ficando sentado a sós com Marion, a falar do trabalho, das notícias locais e a queixar-se de David.

 

- O que é que pode parecer estranho? - perguntou Marion, bebendo pequenos goles de chá.

 

- Ter só uma... a mãe sabe o que quero dizer.

 

- Bem... um pouco.

 

- Mas não se nota nada - apressou-se Eilidh a dizer para a tranquilizar.

 

- Mais tarde tenciono comprar sutiãs melhores. Este é apenas temporário.

 

- E dói-lhe alguma coisa?

 

- Só um bocadinho. A cicatriz está a contrair-se enquanto os tecidos saram por baixo. Mais nada.

 

- Oh...

 

- Gostavas de ver? - perguntou Marion depois de alguma hesitação.

 

- Não, não vale a pena - respondeu Eilidh, recuando alguns passos.

 

- Não faz muita impressão... está apenas um bocado avermelhado e dorido. Mas não te preocupes com isso, mostro-te quando tiver sarado por completo, só com uma cicatriz esbranquiçada e direitinha.

 

- Sim... se a mãe quiser.

 

Marion pousou a chávena de chá na mesa-de-cabeceira.

 

- Os médicos foram muito cuidadosos, muito atenciosos. Não tem um aspecto tão mau como... bem, como se pudesse pensar.

 

- Ainda bem. - Naquele momento, Eilidh mantinha-se aos pés da cama, manifestamente nervosa. - Mamã?

 

- O que é?

 

- A mãe vai ter de voltar para o hospital?

 

- Sim, sabes bem que tenho.

 

- Mas eles conseguiram tirar o cancro todo, não é verdade?

 

- Espero bem que sim. Mas, quando for, só terei de ficar por umas horas de cada vez. Talvez tenha de ficar uma noite ou outra.

 

- Então isso quer dizer que ainda tem o cancro?

 

- Não é bem isso... Os médicos querem ter a certeza de que estou completamente curada.

 

- Estou a perceber.

 

- Está tudo bem - acrescentou Marion para a tranquilizar, estendendo a mão à filha. - Vou ficar completamente curada.

 

Depois da aula de dança dos Highlands, Kirsty foi ao quarto, aninhando-se ao fundo da cama da mãe.

 

- A mãe está doente, por isso, devia ter aqui um dos gatos.

 

- Oh, com que então a regra é essa?

 

- Quando eu tive varicela, a mãe deixou que o Snooker ficasse na minha cama.

 

- Mas eu não estou doente. Amanhã já posso levantar-me. Só tive de fazer uma operação de nada.

 

Entretanto, Ross apareceu à porta do quarto, mas Kirsty, que não deu pela chegada do irmão, exclamou:

 

- Oh, eu sei! O pai explicou-me a operação... Disse que uma das tuas maminhas tinha ficado avariada e os médicos tiveram de a cortar.

 

- Ele nunca disse isso, és uma disparatada! - interveio Ross, corado que nem um tomate. - A mãe está a sentir-se bem?

 

- Estou óptima. Só estou na cama para fazer a vontade ao vosso pai. Amanhã já hei-de andar por aí como de costume.

 

- Ainda bem - retrucou o garoto, descendo as escadas para o andar de baixo.

 

- Ele sente-se confundido - disse Eilidh. Estava sentada ao toucador da mãe, entretida a tirar as tampas dos frascos e boiões, metendo o dedo pequeno dentro dos cremes e espargindo os pulsos e o pescoço com pequenas quantidades dos perfumes da mãe. O que, regra geral, estava proibida de fazer, mas, dada a situação, Marion achava que agora não valia a pena estar a incomodar-se com aquilo.

 

Kirsty deslocou-se pela cama, aproximando-se mais da mãe.

 

- Mãezinha, acha que volta a crescer? - perguntou a garotinha.

 

Por baixo de água, os peixes mordiscavam e mordiscavam, e a princesa começou a ser comida a pouco e pouco, Marion fechou os olhos e contou até três antes de voltar a abri-los, afagando os cabelos da filha e afastando-os do rosto.

 

- Não, claro que não, Kirsty - respondeu. Os olhos de Kirsty abriram-se desmesurados, reflectindo uma expressão de horror.

 

- Toma - interveio Eilidh -, também podes pôr um bocadinho de perfume.

 

Desejosa de que a distraíssem, Kirsty saiu da cama para ir ver o que Eilidh estava a fazer. Sentindo-se exausta, Marion recostou-se nas almofadas.

 

Na manhã seguinte, quando Eleanor passou lá por casa, Marion estava sentada à mesa da cozinha a escrever cartões de boas-festas.

 

- Põe a chaleira ao lume - disse ela. - Está-me a apetecer tomar um café.

 

- Tenho a certeza de que, se este ano não enviasses cartões nenhuns, ninguém se importaria.

 

- Não, provavelmente não, mas para o ano que vem é possível que eu sinta ainda menos vontade de os escrever. Nunca se sabe. E é uma coisa que não se pode deixar de fazer dois anos seguidos.

 

- Foi o que eu fiz.

 

- Isso foi uma situação muito diferente - contrapôs Marion levantando-se da cadeira, deixando os cartões de Natal em três pilhas muito alinhadas numa das cabeceiras da mesa, após o que guardou os que não utilizara dentro da caixa.

 

- Porque é que os separaste em três montinhos?

 

- Uns estão à espera de cartas e outros de embrulhos - respondeu Marion começando a fazer o café. - O resto vai por correio nacional e já estão selados.

 

- Tu és uma pessoa tão organizada.

 

- Mas podes acreditar que este ano não é o que sinto.

 

- Não te preocupes; não terás de fazer mais nada.

 

- De verdade?

 

As duas irmãs sentaram-se com as respectivas canecas de café.

 

- O Fergus acha que foi boa ideia - acrescentou Eleanor. Não teríamos ido com a ideia para a frente se ele não estivesse de acordo.

 

”Eu quero ficar em minha casa”, pensou Marion. Todos os Natais em que David estava presente tinham acabado em tragédia. Acontecia sempre qualquer coisa de mal. Naquela situação, Marion não tinha forças para enfrentar fosse o que fosse além da ansiedade que sentia, o que carregava como um fardo que cada vez lhe pesava mais. Mas não podia dar voz aos seus pensamentos. Eleanor estava cheia de planos para o Natal.

 

- Quando chegarmos, a casa já estará bem aquecida... portanto, não tens de te preocupar com isso. Prometi ao Fergus. O David e eu certificar-nos-emos de que...

 

- Sim, eu sei - atalhou Marion.

 

- A verdade é que tu não queres passar o Natal em Pitcairn, pois não? - perguntou Eleanor, pousando a sua caneca. - Pensei que podia ser como quando éramos crianças. Os miúdos vão adorar e falo mesmo a sério quando digo que tenciono cozinhar e tratar de tudo.

 

- Acredito que sim.

 

- O pai já encomendou um peru... dos caseiros, do aviário biológico daquelas pessoas que compraram a quinta dos Mackies, a Mains.

 

- Óptimo. - Marion pensou que não havia maneira de desfazer o que estava combinado. E quem sabe?, talvez nessa altura já estivesse a sentir-se bastante melhor, talvez encarasse a viagem de maneira diferente.

 

- Estás com um aspecto cansado - observou Eleanor. Queres que faça alguma coisa... que estenda a roupa, que aspire a casa, qualquer coisa?

 

- Não é preciso, está tudo feito.

 

- Oh, Marion...

 

- A mãe do Fergus antecipou-se. Chegou às nove da manhã.

 

- Ela ainda cá está?

 

- Não, já foi para o café da manhã na igreja.

 

- Talvez também devêssemos convidá-la a passar o Natal em Pitcairn, não te parece?

 

- Não, isso seria ir longe de mais - replicou Marion rindo-se.

- Ela já planeou ir a Dundee, para casa do Stuart e da Cathy.

 

- Estou a ver.

 

- Queres mais café? - perguntou Marion, levantando-se da mesa. - Podemos levá-lo para a sala... Ela acendeu a lareira esta manhã para que a sala estivesse confortável.

 

Marion sentia uma sensação estranha por estar sentada a tomar café, sem fazer mais nada, numa manhã de semana.

 

- Toda a gente se tem mostrado extremamente simpática acrescentou. - A verdade é que não me deixam fazer nada. - Perguntou a si mesma se as coisas continuariam assim por muito mais tempo, durante todo o período em que teria de se submeter aos tratamentos de quimioterapia. Sentia-se aterrorizada só de pensar nesses tratamentos, mas não partilhou os seus receios com Eleanor, a qual estava a contar-lhe qualquer coisa a respeito do seu vizinho do lado, que tinha sido abandonado pela mulher.

 

- Nesse caso, tem cuidado contigo. Esses costumam ser o tipo de homens mais perigosos - advertiu Marion com um sorriso, pensando que estava na altura de Eleanor arranjar um namorado. Mas não um que fosse casado, nenhum que lhe trouxesse complicações. Era uma pena que a saída dela com Andrew não tivesse dado em nada, o qual era muito boa pessoa, além de não ter qualquer compromisso amoroso.

 

- Ora, não precisas de te preocupar - ripostou Eleanor. Ele é muito magricela e tem uns cabelos muito ruivos e encaracolados. Além do mais, a Claire disse-me que é impossível gostar de alguém com cabelos cor de cenoura.

 

As duas irmãs passaram uma hora juntas, fazendo planos para a consoada do próximo Natal. Mais tarde, já depois de Eleanor se ter ido embora, Marion pensou em ir para a cozinha fazer uma sopa, mas acabou por adormecer no sofá, tendo sido acordada por Eilidh quando esta chegou da escola para almoçar. Kirsty comia na escola, uma vez que ficava longe de mais para ela poder vir a pé para casa. Ross já se encontrava na cozinha, preparando para si próprio várias sanduíches.

 

- Deus me valha! Que horas são?

 

- Não se preocupe, mamã, nós cá nos arranjamos.

 

O que era verdade. Marion ficou a observar os filhos, tentando não ligar às migalhas que eles deixavam cair no chão, o lava-louça cheio de pratos sujos, o sumo de laranja que haviam entornado.

 

- Quer uma sanduíche, mãezinha?

 

- Não, Eilidh, não me apetece. Estive a passar pelas brasas e por isso ainda não tenho fome.

 

Era o dia em que Fergus dava consulta, uma vez por semana, na aldeia, pelo que só chegaria a casa lá mais para o fim da tarde. Marion sentou-se à mesa da cozinha, ficando a ver os filhos a embirrarem um com o outro enquanto comiam.

 

- Até logo, mamã. - Batendo com a porta, mochilas às costas, ambos voltaram para as respectivas escolas, a conversarem enquanto percorriam o caminho de acesso à casa. Marion foi até à janela da sala de estar, observando os filhos a caminho da escola. No portão, encontravam-se duas garotas da vizinhança que esperavam por Eilidh, assim como um rapaz da turma de Ross que se juntou a eles quando já caminhavam pela estrada. Desde que conseguisse melhorar, pensava Eleanor, falando consigo própria, a sua doença não afectaria os filhos, não prejudicando significativamente a rotina diária dos garotos. Passou a mão ao de leve pelo sítio onde o seio estivera, apalpando a macieza do tecido acolchoado, o que lhe dava uma sensação estranha por não ceder ao tacto, muito embora não possuísse a firmeza de um seio. ”Mulher, vê se te recompões!”

 

Decorrida uma semana, já com o organismo liberto dos efeitos da anestesia, com os tecidos saudáveis a sararem sem qualquer problema, Marion já tratava da lida da casa como de costume.

 

- Ela está óptima - diziam as pessoas amigas a Eleanor e a Fergus. ”sim”, respondiam estes, ”ela está a aguentar-se bastante bem”. Na verdade, Marion sentia-se maravilhosamente em forma; tinha afastado do pensamento a ideia dos tratamentos, problema com que só se preocuparia depois da passagem do ano.

 

- Eu podia muito bem tratar das coisas para o Natal - disse ela a Fergus -, mas ninguém conseguirá demover a Eleanor; temos de passar o Natal em Pitcairn. O que é que achas?

 

- Para mim está tudo bem, de uma maneira ou de outra. Além do mais, não há necessidade nenhuma de tu estares com canseiras. Será uma mudança, não achas? Para não mencionar que a minha mãe nesta altura já tem tudo combinado para passar o Natal em Dundee.

 

- De acordo. Sendo assim, faremos como está combinado. Entregou-se aos preparativos natalícios. David, que de momento se encontrava em Pitcairn, telefonava com regularidade. Tinha descoberto os ”telefonemas em conferência”, pelo que ele, Eleanor e Marion falavam simultaneamente pelo telefone sempre que queria abordar qualquer coisa com as irmãs.

 

- Vamos lá ver - disse ele numa dessas ocasiões, uma semana antes do Natal -, já tenho a árvore de Natal, mas pensei que os garotos talvez gostassem de a enfeitar. Por isso, já comprei uma data de bolas e coisas no género.

 

- Queres que eu leve as minhas coisas para a árvore? - perguntou Eleanor.

 

- Não, a menos que sejam prateadas ou brancas. A árvore vai ficar toda enfeitada com ornamentos brancos e prateados.

 

Eleanor riu-se; Marion fungou, duvidosa. Nenhuma delas sabia se haveriam de acreditar no que o irmão dizia. Estaria ele a brincar?

 

- Esperem até ver a árvore.

 

- Não me importo nada - respondeu Eilidh quando Marion lhe perguntou a respeito da árvore de Natal. - Se a mãe quiser, posso ajudar a enfeitá-la.

 

- Enfeitar a árvore?! - ecoou Ross enquanto Marion verificava a lista de coisas a fazer. - Que árvore?

 

- A do tio David. Em Pitcairn.

 

- É um bocado longe de mais para ir enfeitar uma árvore de Natal, não é? E quanto à nossa própria árvore?

 

- Ross, por amor de Deus, estás farto de saber que vamos todos passar o Natal a Pitcairn.

 

- Ah, vamos? Ninguém me tinha dito nada - retorquiu ele a caminho da cozinha, onde ia à procura de mais qualquer coisa para comer. - Posso comer uma fatia do bolo de Natal? - perguntou quando viu que a mãe vinha logo atrás de si.

 

- Nem pensar. Vamos levar o bolo connosco - declarou Marion, olhando à sua volta e avistando as galochas Wellington no alpendre. - Não admira que estejamos a enregelar dentro de casa... houve alguém que deixou a porta do alpendre aberta. Ross, vai buscar um saco ao armário e guarda as galochas todas lá dentro.

 

- Porquê?

 

- Porque é melhor que as levemos connosco.

 

- Para quê?

 

- Para podermos andar pelo campo. Os caminhos podem estar muito lamacentos.

 

- Mas eu não costumo fazer caminhadas. Entretanto, Kirsty surgiu na cozinha logo atrás da mãe.

 

- Mesmo assim temos de ter a nossa própria árvore, mamã! Eu disse que tínhamos de ter a nossa própria árvore de Natal, não temos?

 

Todo aquele plano, compreenderam Marion e Eleanor, enquanto procediam à contagem decrescente, estava a transformar-se numa autêntica expedição.

 

- Será como os Natais que costumávamos ter em Pitcairn quando éramos crianças - disse Marion à sua família. - Mas ainda melhor.

 

- O que é que esses Natais tinham de tão bom? - perguntou Eilidh.

 

- Ainda vamos a tempo de eu poder enfeitar a árvore de Natal do tio David? - queria Kirsty saber.

 

Em sua casa, Eleanor regou as plantas e reduziu o aquecimento. Em seguida, foi à casa ao lado para oferecer a Jim e a Edie uma garrafa de vinho do Porto e para lhes dizer onde é que estaria nos próximos dias.

 

- Oh, que bonito, uma reunião de família! - exclamou Edie, agarrando a garrafa de vinho do Porto como se a abraçasse. - Não era preciso estar a incomodar-se. Muito gentil da sua parte, não achas, Jim? Mas nós prometemos ficar de olho, o Jim ficará de olho em sua casa, se bem que isto por aqui seja sossegado, nunca se sabe, e o vizinho do lado... - Neste ponto, Edie indicou com um gesto da cabeça a vivenda do lado. - Ao que tudo indica, está sozinho em casa. Ultimamente só tenho visto um automóvel. Não que ele se mantenha em casa durante muito tempo. Trabalha nos barcos petroleiros, foi o que a Betty dos correios me disse, costuma estar fora durante muito tempo. - Edie interrompeu-se, dirigindo-se para a árvore de Natal com as suas luzes intermitentes. Os cortinados estavam semicorridos, o que permitia que do lado de fora se visse a sala. - Tenho aqui uma coisinha para a Claire; ela gosta de receber prendas, não é verdade? Todas as crianças gostam de abrir prendas.

 

- Ora, não precisava de estar a...

 

- E agora veja se conduz com cuidado e tenha um bom Natal. Esteja descansada que daremos uma olhadela pela sua casa, o Jim encarrega-se disso.

 

Eleanor saiu da casa dos vizinhos, agradecendo-lhes, e Jim acenou-lhe num gesto de assentimento, assegurando-a de que tudo estava bem antes de voltarem a entrar em casa. A moradia ao lado estava completamente às escuras, não se vendo nenhum automóvel parado à entrada.

 

Na manhã anterior à véspera de Natal, Eleanor e Claire puseram-se a caminho. Marion e o resto da família partiriam no dia seguinte. Quando soube que Eleanor já iniciara a viagem para casa do pai, Marion sentiu uma quebra repentina em todo o seu entusiasmo e energia. Ainda pensou em preparar um doce com conhaque, manteiga e açúcar, mas deu consigo com todos os ingredientes à sua frente, incapaz de decidir que quantidade deveria utilizar. Acabou por voltar a guardar tudo. Talvez no dia seguinte ainda tivesse tempo, e, se não tivesse, pois bem, agora era coisa que não lhe importava por aí além.

 

- Está tudo em ordem? - perguntou Fergus quando chegou a casa vindo do hospital.

 

- Acho que sim.

 

- Quem é que vai dar de comer às tropas?

 

Marion tinha pedido a uma das suas vizinhas que tratasse da comida dos gatos e que olhasse pelo cão enquanto estivessem fora.

 

- A Sue ficou de cuidar dos animais. Não me posso esquecer de lhe deixar uma garrafa de vinho como presente de Natal.

 

- Tenho de dizer que começo a pensar que isto está a dar-te mais trabalho do que terias, caso tivéssemos decidido passar o Natal em casa - comentou ele.

 

- Reparaste nisso - retorquiu Marion com um sorriso.

 

- Deus nos valha. Só espero que mereça a pena - acrescentou Fergus, enlaçando Marion que se encostou ao seu peito. - Durante esta semana, qualquer pessoa poderia pensar que tu e a Eleanor estavam a preparar-se para uma viagem ao Pólo Norte. Nunca vi tanta comida em toda a minha vida.

 

- Vamos precisar dela, vamos ter de alimentar... meu Deus, quase uma dúzia de pessoas. É preciso não esquecer que o pai nunca tem nada de comer em casa.

 

- Mas pensei que o David ficara de se encarregar de tudo retorquiu Fergus.

 

- Tudo o quê? Sabes bem que não se pode confiar no David. Era precisamente isso que o marido receava.

 

- Não te preocupes - dissera-lhe Eleanor, tentando tranquilizá-lo -, tudo correrá às mil maravilhas. Garanto-te que a casa estará aquecida e que tudo se achará em ordem. - Acontecia que, das duas irmãs, Marion é que era a organizada. Era evidente que Eleanor era mais competente do que David, mas a verdade é que tambem era um bocado cabeça-no-ar, pensava Fergus, sempre no seu mundo imaginário. O que se devia, considerava ele, ao facto de ter enviuvado muito nova. Precisava de assentar em termos emocionais; era como se efectivamente nunca tivesse assentado. Claro que naquela altura não valia a pena dizer nada disso. Tudo o que poderia fazer era certificar-se de que chegariam todos inteiros, trazendo-os de regresso a casa depois do Natal.

 

Nessa mesma noite, quando foi deitar-se, não conseguiu evitar um suspiro, desejando que passassem o Natal em casa.

 

- Não te sentes feliz, pois não? - perguntou Marion quando ele foi para a cama.

 

- Não faças caso. Estou a ficar velho e chato. Gosto de estar sentado diante da minha lareira.

 

- Quem me dera que tivesses dito isso há mais tempo. Pensei que querias que eu fosse.

 

- Mulher, eu só queria que não estivesses com trabalheiras!

 

- Ora, não será por muito tempo. Antes do Hogmanay já estaremos em casa.

 

- E ainda bem - retorquiu Fergus, tomando-a nos seus braços.

 

Ficaram enlaçados à luz do candeeiro, o rosto dela encostado ao peito dele, a respiração morna que ele sentia na sua pele, os cabelos que lhe faziam cócegas no pescoço. Que estranho, pensava Marion, que a faceta que os outros (a mãe dele e Eleanor incluídos) consideravam uma falha na maneira de ser do marido - ser tão previsível, um feitio que primava pela uniformidade - fosse o que ela mais amava nele.

 

- Não te preocupes - tranquilizou-o ela. - Não me importo que sejas aborrecido. É o que eu mais gosto em ti.

 

- Então, ainda bem, não é? - Fergus desligou o candeeiro e ambos se acomodaram para dormir. Momentos depois, Marion virou-se com um pequeno suspiro, aninhando-se na curvatura do corpo do marido.

 

Era assim que costumavam adormecer, como colheres arrumadas numa gaveta, dissera-lhe ele havia vários anos, continuando a dizê-lo, sem ver a mínima necessidade em alterar as suas palavras, uma vez que lhe tinham servido bem até à data. Com uma diferença - agora, a situação havia mudado, mudado para sempre. Nessa primeira noite depois de ela ter tido alta do hospital, virara-se daquela maneira nos braços dele, aninhando o rabiosque na barriga dele, encostada à região pélvica, com o queixo dele apoiado na sua cabeça e o braço à volta do corpo, envolvendo-lhe o seio esquerdo com a mão. Mas o seio não se encontrava presente, a sua forma arredondada e cheia na palma da mão dele. Apenas o acolchoado do penso de gaze, por baixo do qual havia uma superfície plana, uma cicatriz que estava a sarar. Nenhum deles, a despeito do muito que haviam conversado antes de se deitarem, tinha previsto realmente aquele momento. Os olhos de Marion encheram-se de lágrimas, tendo-se voltado e ficado outra vez de frente para o marido, para verificar, cheia de tristeza e consternação, que ele também chorava.

 

Marion nunca vira o marido a chorar. Às escuras, confortaram-se um ao outro e, apesar de ela desejar dizer qualquer coisa, queria assegurar-se de que ele não se importava, bem no seu íntimo sabia que ele jamais se sentiria incomodado por si próprio, mas sim por causa dela. Tal como ele sabia de antemão que o mesmo se aplicava em relação ao que ela sentia. Mas nada poderia evitar aquelas emoções. Depois de tantos anos de casamento, era impossível mudar a posição em que se costuma ficar, obrigar-se a dormir virado para o lado contrário, na outra metade da cama.

 

Posteriormente, Marion concluiu que havia sido nesse momento que tivera toda a percepção da mudança, uma alteração que seria permanente. Nenhum do desconforto de que viria a sofrer, as náuseas, a queda do seu belo cabelo, o cansaço, a incerteza atroz, lhe causou uma dor tão aguda e definitiva como esse momento em que se deitara na cama com Fergus, na primeira noite que passava fora do hospital.

 

A casinha das bonecas chegara no Natal em que Marion tinha nove anos. Ninguém tentara fingir que o Pai Natal a havia trazido pela chaminé; todos na família sabiam que fora oferecida às duas garotas pelo pai e pela mãe, um presente conjunto, além de saberem que fora construída por um amigo da tia Alice, o qual tinha muito jeito com as mãos. Também ninguém tentara embrulhá-la. Colocaram-na junto da árvore de Natal no vestíbulo, com uma fita dourada a que alguém dera um laço à volta de uma das chaminés. Ao princípio, quando acordaram a meio da noite para mexer atrapalhadamente nos embrulhos ao fundo das camas de ambas, ouvindo o ranger do papel que envolvia as prendas, apalpando as meias de lã cheias de coisas pequeninas e sentindo no fundo a firmeza arredondada de uma tangerina, acharam que não iriam receber nenhuma casa de bonecas.

 

- Onde é que estará? - perguntara Eleanor numa voz segredada.

 

Chegada a véspera de Natal, David teve autorização para dormir no quarto das irmãs, no divã de campanha do pai dos seus tempos no exército. Habitualmente, ele caía a meio da noite, ficando deitado como uma crisálida esverdeada dentro do saco-cama. Naquele momento, David despeitou ao som das vozes sussurradas das duas.

 

- Onde é que está a casa das bonecas? - perguntou ele enquanto se contorcia para sair do saco-cama. Todos estavam a par desse presente. Tinham existido demasiados palpites e trocas de palavras segredadas para que eles pudessem duvidar. Até ao momento.

 

- Lembras-te de que disseste que havia uma rapariga na tua turma cujos pais punham sempre as prendas de Natal junto da árvore? - perguntou Eleanor à irmã.

 

- Sim e só as abrem depois do pequeno-almoço. - Nenhum deles era capaz de acreditar numa crueldade daquelas.

 

- Então, vamos lá abaixo - urgiu David -, para vermos se está ao pé da árvore.

 

Assim, num passo sorrateiro, os três esgueiraram-se escadas abaixo em fila indiana, com Marion à frente, debruçando-se sobre o corrimão a espreitar. O vestíbulo estava às escuras. Então, David, sem se importar com as consequências (ao fim e ao cabo, era Natal e ninguém era repreendido durante o Natal, além do mais, ele ainda nem sequer fizera cinco anos, pelo que ninguém o culparia por nada) começou a correr à frente das irmãs, saltando para conseguir chegar ao interruptor, inundando o vestíbulo de luz. Pestanejaram e cambalearam porque os olhos não estavam preparados para aquela luminosidade súbita, mas depois de se ajustarem avistaram-na.

 

Era perfeita. A maior parte dos presentes, descobriu Eleanor mais tarde à medida que foi crescendo, eram uma desilusão. Não correspondiam às promessas que a expectativa inspirava, à sua esperança: os contornos misteriosos debaixo do papel que os embrulhava, o roçagar electrizante do papel quando era rasgado. Todavia, a casa das bonecas era uma prenda perfeita - melhor do que Marion ou Eleanor haviam previsto que pudesse ser. Marion abriu a porta da frente com muito cuidado. No interior viram mobílias, cortinas, carpetes de tamanho ínfimo, toda uma vida à espera de ser vivida em miniatura. A casa até tinha uma família: pai, mãe e filha. Estas pequenas figuras haviam sido feitas de arame e depois revestidas com enchumaços de algodão; exibiam rostos pintados que com a passagem do tempo começariam a ficar descorados, tendo de ser pintados de novo com canetas Eiró. Era difícil manter as expressões originais: a mãe, com uma fisionomia que reflectia uma resignação serena; o pai, com um semblante enérgico e de bigode; a criança, com uma expressão risonha e faces rosadas. Mas Eleanor, a quem esta tarefa coubera, fazia o melhor que lhe era possível. A família era um pouco rígida, pelo que não conseguiam sentar nenhum dos seus membros como devia ser nas cadeiras em miniatura; por isso, costumavam estar na cama com muita frequência, ou então ficavam de pé. David adoptou o pai como sendo a sua pessoa, enquanto Marion optou pela mãe e Eleanor ficou com a filha.

 

À medida que David foi crescendo, cada vez era mais raro brincar com a casa das bonecas. Tinha outras coisas que o interessavam mais; além disso, era demasiado bruto para um brinquedo tão delicado. Estava sempre a partir qualquer coisa e as garotas não queriam que o pai da família de brincar levasse uma vida tão arriscada e cheia de terror, o que David provocava sempre. Apesar disso, quando as duas se sentiam aborrecidas e com falta de ideias, a verdade é que David animava as coisas.

 

Quando Marion adoeceu, naquele longo Inverno em que ela tinha doze anos, brincava muito com a casa das bonecas durante a convalescença. Depois disso, pareceu que crescera de mais para se interessar por aquele brinquedo, passando a ser Eleanor quem brincava mais com a casinha. No que dizia respeito a Eleanor, a casa das bonecas estava sempre presente, à sua espera, e valia sempre a pena abrir a porta da frente para ver o que a família estava a fazer. Por vezes, fazia-lhes um jornal em miniatura ou um balouço de cartão que colocava num jardim imaginário; havia ocasiões em que os levava a passear num dos carrinhos de David, quando ele não se encontrava por perto para discutir com ela. Quando recuperou da doença, Marion queria companhia, e Eleanor, que não gostava muito de Violet ou das outras amigas, amiúde brincava sozinha.

 

Eleanor não se recordava de muito mais desse Natal perfeito, como não conseguia diferenciá-lo completamente dos outros Natais passados em Pitcairn. Na sua memória formavam um todo. Talvez fosse por essa razão que Marion se sentia incapaz de explicar a Eilidh e a Kirsty o que é que os Natais em Pitcairn tinham de tão especial.

 

Quando Eleanor começou a conduzir lentamente pelo caminho particular, verificou que David se mantivera à espreita da chegada delas. Assim que saíram do automóvel, ele abriu a porta da frente, ficando na soleira, iluminado pela luz do vestíbulo atrás de si, um clarão mais luminoso do que o habitual. Disse-lhes que parassem quando já subiam os degraus do alpendre.

 

- Esperem. Fechem os olhos, as duas.

 

- Porquê? - perguntou Claire, mas fizeram como David lhes dizia, permitindo que ele as conduzisse até dentro de casa.

 

- Agora!

 

Tudo o que conseguiram proferir foi um ”Oh!” de admiração, ficando sem respiração e a olhar, espantadas. A árvore de Natal devia ter uma altura de quase dois metros e oitenta. Cintilava feericamente com um milhar de luzes brancas e prateadas, com uma cascata de fitas acetinadas que caíam a partir de cima, onde havia uma fada de um prateado resplandecente, mesmo no topo da árvore.

 

- Fixe! - exclamou Claire. - Que linda!

 

- Oh, David, está uma maravilha, a sério que sim... Fecha a porta, Claire, para que o frio não entre... Oh, David, como é que tu conseguiste trazê-la até aqui?

 

O irmão levou a ponta do dedo a um lado do nariz, com uma expressão misteriosa.

 

- Confia em mim - disse ele. - Um homem que tem um atrelado e a quem dei cinco libras.

 

- Fixe - voltou a dizer Claire, observando a árvore mais de perto, contornando-a devagar até onde lhe era possível. David colocara-a junto das escadas, tendo por detrás os painéis de madeira escura envernizada. - Olhe, mãezinha... veja os animais e tudo tão pequenino!

 

Eleanor aproximou-se mais da árvore. Entre os ramos, descortinou as fitas prateadas entrelaçadas neles no meio de animais de vidro em miniatura, os quais reflectiam centelhas de luz junto de todo o tipo de enfeites natalícios também de vidro, um misto de prateados e verdes sob a forma de pequenos embrulhos, velas e sinos.

 

- David! - exclamou com a respiração suspensa. - Esta árvore deve ter custado uma fortuna! Onde é que foste arranjar tudo isto?

 

- Em Londres. Fui até lá na semana passada de avião, só por um dia.

 

- O quê?! Estás a brincar.

 

- Não, estou a falar a sério - replicou ele, manifestamente satisfeito consigo próprio.

 

- Mas eu pensei que... - Achava que o irmão não tinha dinheiro e recordava-se de Marion ter dito: ”ele é um explorador”, começando a sentir-se preocupada.

 

- Vendi o meu carro.

 

- Que carro?

 

- Foi o Phil... ele é que o vendeu a meu pedido. Tinha-o deixado em Edimburgo. Recebi um cheque num montante bastante jeitoso. Portanto, pensei que podia fazer qualquer coisa especial com esse dinheiro... para toda a família.

 

- Eu nem sequer sabia que tinhas automóvel.

 

- Era um MG. Sempre que tenho uns dinheiros a mais é o carro que costumo comprar.

 

- Há já muitos anos... aquele pequeno carro vermelho... Um automóvel de dois lugares. Eleanor e David, a sós, haviam dado uma volta nele. Recordava-se de lan na soleira da porta da frente com Claire, que ainda era muito pequena, ao colo, a vê-los enquanto se afastavam. E antes disso, lan a estudar para os exames de fim de curso, Eleanor e David ausentes durante uma tarde de domingo, deixando-o a estudar, os dois num bar nos arredores da cidade onde comeram sanduíches acompanhadas de cerveja. David a conduzir a grande velocidade pelos caminhos rurais.

 

- Um MG - repetiu Eleanor, interrompendo os pensamentos que a haviam transportado ao passado.

 

- Infelizmente, deixou de existir. Mas não te preocupes... a passagem aérea para Londres até foi barata e a verdade é que ainda fiquei com algum dinheiro. As coisas para a árvore não foram muito caras. De qualquer maneira, eu precisava de falar com um sujeito que vive em Londres. Para tratar de uns negócios por concluir.

 

- Onde é que está o avô? - perguntou Claire. Tinha acabado de inspeccionar a árvore de Natal.

 

- Deve estar algures no jardim. Foi apanhar as verduras para comermos amanhã.

 

- Vou dizer-lhe que já chegámos. Está bem, mamã?

 

- Sim, vai procurá-lo. David, dá-me uma ajuda, temos montes de coisas que é preciso trazer para dentro.

 

Bastante depois, quando a família já estava toda dentro de casa, Claire disse à mãe:

 

- Foi naquela altura que o Natal começou, não foi? Quando vimos a árvore. - Mas Kirsty, que só chegou na véspera do dia de Natal, ficou lavada em lágrimas quando a viu.

 

- O tio tinha dito que podíamos ajudar a enfeitar a árvore! Cheio de remorsos, David levou-a ao jardim para cortarem uma

 

boa pernada de uma das árvores.

 

- Esta é só tua - afirmou ele. - Vamos procurar os enfeites de Natal antigos e podes ficar com esta árvore no teu quarto.

 

- Eu também quero luzes - ripostou Kirsty, olhando-o com uma expressão carrancuda. - Quero uma árvore como deve ser. Esta é só um ramo.

 

David foi à cozinha onde Marion preparava tudo aquilo de que precisava para assar o peru.

 

- O que é que posso fazer? - perguntou ele. - A Kirsty não quer nada comigo, odeia-me e já me deu uma descompostura.

 

- Não sejas parvo - admoestou Marion. - Passa-me essas cebolas.

 

- Podias comprar-lhe uma dessas árvores artificiais, das mais pequenas - sugeriu o pai a David. - No Asda eles têm árvores dessas.

 

- Uma ideia brilhante. É isso mesmo. Kirsty, onde é que estás? Fergus e Ross tinham saído para rachar madeira. Quando Marion começou a preparar o peru enquanto Eleanor tratava dos pratos e dos talheres, Fergus entrou com um cesto cheio de lenha.

 

- Onde é que querem que eu ponha isto?

 

- Na casa de jantar - respondeu Eleanor, pegando no cesto. Fergus descalçou as botas, deixando-as do lado de dentro da porta das traseiras.

 

- Pensei que estava decidido que ficarias sentada sem fazer nada, deixando que os outros tratassem de tudo - disse ele a Marion.

 

- Pára com isso, sinto-me lindamente. A Eleanor fica com o estômago às voltas se tiver de preparar o peru.

 

- Estamos a falar da mesma Eleanor que afirmou que trataria de tudo?

 

- Eu não me importo. Além do mais, não gosto de ficar sentada sem fazer nada.

 

- Pois bem, vê se tratas de descansar depois de teres preparado o galináceo.

 

- Não estejas com coisas, estou a sentir-me muito bem. Fergus optou por deixá-la em paz a rechear um peru depenado

 

que se recusava a cooperar e que na óptica dele tinha um aspecto obsceno. Percebia bem a aversão que Eleanor sentia. Seriam eles capazes de o comer?

 

Eleanor pedira um aquecedor portátil à filha dos Mackies, tendo-o colocado no vestíbulo, agora bem aquecido.

 

- Não me recordo de alguma vez ter visto a parte da frente da casa aquecida - comentou John, detendo-se junto do aquecedor com as mãos estendidas para o calor. - Isto é óptimo, mas deve gastar muito. Trabalha a gás? Espero que tenham uma bilha sobresselente.

 

- O David ficou de ir buscar uma ao Asda... quando for com a Kirsty para lhe comprar uma árvore de Natal.

 

Ross mostrava-se aborrecido e, o que era muito invulgar, Eilidh e Claire pareciam não querer passar todos os minutos na companhia uma da outra. No entanto, Marion e Eleanor tentavam ignorar o estado de espírito dos filhos o melhor que podiam, arranjando coisas que eles pudessem fazer (o que eles não queriam, preferindo continuar a sentir-se aborrecidos), acabando por lhes permitir que vissem tanta televisão quanto lhes apetecesse.

 

Entretanto, David regressou com Kirsty, acompanhados de uma pequena árvore de Natal, e Eleanor deteve-o no vestíbulo.

 

- Alguém já se lembrou de ir a casa da Ruby? Quando é que ela cá esteve?

 

- Oh, esqueci-me de te dizer. Ela está constipada. Há mais de uma semana que não vem cá.

 

- Por amor de Deus. Um de vocês já devia ter-nos dito isso. Vou visitá-la - disse ela a Marion. - Ao menos que haja uma de nós que a vá ver. Até é possível que ela queira vir cá amanhã, não te parece?

 

- Com certeza que já foi convidada a passar o dia de Natal noutro sítio qualquer - retorquiu Marion. - Isto é, caso se sinta melhor. Mas o pai costuma oferecer-lhe sempre uma garrafa de xerez e uma caixa de chocolates. Pergunta-lhe se já passou por casa dela.

 

Eleanor encontrou o pai no jardim defronte da casa, ao fundo do caminho onde fora cortar azevinho a pedido de Claire.

 

- Mãe, olhe para isto, com tantas bagas - gritou Claire ao ver a mãe. - Ontem, quando chegámos, vi este azevinho. O avô nem sequer tinha reparado.

 

- A seguir, com certeza que vais querer que eu também apanhe hera para compor o ramalhete - resmungou ele, atirando outra ramagem para dentro do carrinho de mão. Claire ficou a olhar para o avô com uma expressão abstracta.

 

- Oh! - exclamou ela por fim. - Azevinho e hera.

 

- Parece que estão a falar de duas solteironas já velhotas observou Eleanor, calçando as luvas. Lá fora fazia frio. - Vou até à casa da Ruby. O pai já lhe deu as prendas de Natal?

 

John fechou o pequeno escadote de que se servira, colocando-o debaixo do braço. Claire pegou nos braços do carrinho de mão, pronta para seguir em direcção à casa.

 

- Já tratei de tudo. Na despensa está uma garrafa de xerez que é para ela. E talvez lhe possas comprar alguns doces... com certeza que a mercearia ainda está aberta.

 

- De acordo. Alguém quer vir comigo?

 

Claire já se pusera a caminho, levando o carrinho de mão.

 

- Eu vou ajudar o avô a pôr o azevinho. A mãe podia pedir ao Ross que fosse consigo - sugeriu a garota. - Ele só está a ver televisão.

 

Na cozinha andavam todos numa grande azáfama. Eilidh ajudava a mãe a envolver as salsichas em fatias de toucinho fumado. O peru estava pronto a ir para o forno: também se achava coberto de fatias de toucinho rumado e nozes achatadas de manteiga já dentro da assadeira, numa prateleira da despensa. Eleanor tentou não olhar para o bicho quando foi buscar a garrafa de xerez.

 

- É melhor eu embrulhar isto, não achas? Trouxeste algum papel de prendas?

 

- Está para aí algures - respondeu Marion, que tinha uma mancha de gordura na face, além de estar muito corada.

 

- Há alguma hipótese de me arranjarem uma chávena de chá? perguntou Fergus metendo a cabeça por entre a porta entreaberta.

 

- O que é que andas a fazer? - perguntou-lhe ela.

 

- Tenho estado a ver televisão com o Ross. Precisas de alguma coisa? - acrescentou Fergus, entrando na cozinha para encher a lareira. - Daqui a pouco vais sentar-te, estás a ouvir? Eu faço o chá.

- Deu uma palmadinha afectuosa no ombro da filha. - Não deixes que a tua mãe se canse de mais. Ainda nem sequer estamos no dia de Natal.

 

- Eu sei - atalhou Eleanor, detendo-se com a garrafa de Bristol Cream. - Isto é horrível... O plano era nós fazermos tudo. Em princípio, a Marion devia estar a descansar.

 

- Isso mesmo, como se ela estivesse disposta a fazê-lo - ripostou Fergus com um suspiro, enlaçando Marion com um braço, após o que foi buscar canecas ao armário atrás de si.

 

- Tenciono ir a casa da Ruby - explicou Eleanor. - O David diz que ela está constipada.

 

- Deixa-me instalar a Marion com os pés levantados e uma chávena de chá na mão e depois posso ir contigo - ofereceu-se Fergus.

 

- Óptimo. A Ruby vai adorar ver-te. Sempre foste o preferido dela... Assim, pode dizer-te tudo acerca da perna que lhe dói tanto.

 

- Deus me valha, mas, pensando melhor... - Fergus fez uma careta sorridente, mostrando que estava a brincar.

 

Já era noite quando Fergus, ao volante, saiu do caminho particular, entrando na estrada principal, seguindo em direcção aos correios e à mercearia onde Eleanor ficou hesitante entre uma caixa de Quality Street e outra de Black Magic, desejando poder ter comprado algo mais interessante para oferecer a Ruby nesse Natal.

 

Ruby estivera a dormitar junto da lareira, mostrando-se ruborizada e desorientada quando abriu a porta. Porém, pareceu encantada ao ver os dois.

 

- Entrem, não fiquem aí... Oh, o doutor também veio! Está com muito bom aspecto. A família está boa? - Deteve-se à porta da sua pequeníssima sala de estar, com uma tosse violenta que a levou a bater no peito com o punho fechado, como se isso pudesse ajudar. - Apanhei uma grande gripe, essa é a verdade. Terrível. Sinto as pernas como se não tivesse forças, nem podem imaginar como me sinto. Mas entrem, entrem, estejam à vossa vontade, sentem-se.

 

Com movimentos felinos, o gato de olhos amarelados saiu do sofá, desaparecendo para fora da sala. Actualmente, Ruby vivia sozinha, já que o filho, adulto, saíra de casa e o marido havia morrido há muitos anos. A sala estava atravancada com imensa mobília, não se vendo a superfície de um único móvel que não tivesse um naperom de renda, cães e cavalos de louça, assim como retratos emoldurados. O fogo ardia intensamente na lareira, pelo que a sala estava demasiado aquecida. Eleanor despiu o casaco logo que entrou na sala, tentando sentar-se o mais afastada possível da lareira.

 

- Tomam uma chávena rápida? Tenho um bolo de Natal que é uma maravilha. A Susan Mackie, não me lembro do apelido de casada dela, ontem passou por cá e trouxe-me um bolinho. Comprou-o no Marks and Spencer, muito saboroso.

 

Não havia maneira de poderem recusar o chá e o bolo. Fergus olhou para Eleanor, piscando-lhe o olho.

 

Pouco tempo depois, o chá estava pronto: chávenas e pires de porcelana fina decorados com miosótis num tabuleiro coberto por um toalhete bordado, e o bolo de Natal, de compra, assim como biscoitos secos.

 

- Nos últimos tempos deixei-me de fazer bolos - disse-lhes Ruby enquanto servia o chá. - Só para mim, não vale a pena estar com esse trabalho. Mas de vez em quando ainda faço uns scones. O teu pai gosta muito.

 

Eleanor reparou na mão que lhe tremia enquanto lhes passava as chávenas nos respectivos pires, apercebendo-se dos cabelos hirsutos, já muito grisalhos, que começavam a rarear-lhe nas fontes; a doença dera-lhe uma aparência ainda mais franzina, de quase fragilidade. ”Ela está envelhecida”, pensou Eleanor. ”Não pode continuar a tratar de Pitcairn nem do pai.”

 

Perguntaram por toda a gente cujo nome lhes ocorreu: os Mackies, que se haviam mudado para Ellon, e Eileen que passara a viver em Glasgow com a sua própria família; pelo filho de Ruby e a mulher deste, os quais viviam na Nova Zelândia com os filhos; as pessoas que costumavam gerir os correios, mas que agora se tinham aposentado. Eleanor sentia-se sonolenta e confortável, com o gato que regressara sorrateiramente, tendo-se instalado no seu colo.

 

- Que maçador, põe-o no chão - disse Ruby. - É uma criatura horrorosa. Eu costumava deixá-lo lá fora, mas ele também está a ficar velho, como eu. Gosta de ficar diante da lareira. - Uma vez mais, ofereceu-lhes bolo, mas, desta feita, ambos agradeceram declinando, estava muito bom, mas tinham de se ir embora.

 

- É verdade - continuou Ruby, que não queria que se fossem já embora -, como é que está o teu irmão? Já sei que ele regressou a casa.

 

- Está óptimo. Vai começar a trabalhar em Edimburgo.

 

- Não me digas, eu sempre pensei que ele vivia num outro planeta, sempre um cabeça-no-ar. Tu e a Marion eram muito bem-educadas, umas cachopas cheias de boas maneiras, mas o Davy... parecia que tinha um diabinho dentro de si, sempre a fazer maldades. - Abanou a cabeça perante aquelas recordações de outrora. Lembras-te do Stanley Robertson, aquele rapaz de quem ele era inseparável?

 

- Sim, sim, o Stanley. O que é feito dele?

 

- Só te posso dizer que decidiu seguir as pisadas do pai... começou a trabalhar como aprendiz de marceneiro.

 

- É verdade - disse Eleanor começando a recordar-se.

 

- Mas o Jimmy era terrível por causa da bebida. Perdeu muito trabalho por causa desse vício. Uma pena... todos diziam que trabalhava como poucos. Mas a vida é assim mesmo. O Stanley podia ficar à frente do negócio quando o pai bebia de mais. E a mãe ter morrido, quando o Stanley tinha o quê... sete, nove anos? Um homem não pode ser mãe e pai ao mesmo tempo. Pelo menos o Jimmy Robertson não era capaz - concluiu ela com um abanar de cabeça que manifestava pesar.

 

- Mas... o que é que foi feito do Stanley? Ele não se casou quando ainda era muito novinho?

 

- Sim, com a Irene Walker. Uma rapariga que era uma doidivanas... - Neste ponto da conversa, Ruby interrompeu-se. Quanto ao Stanley, foi para a tropa quando o pai chegou ao ponto de já não poder trabalhar. Ao princípio, a Irene até gostou que ele se tivesse alistado... um uniforme janota e um salário certo. Mas ele foi destacado para prestar serviço na Alemanha e ela não podia ir com ele. Ficaria demasiado longe da mãe.

 

- Mas que grande apoio que ela lhe deu, não? - comentou Eleanor, sarcástica. Recordava-se de uma rapariga loura com um ”só esganiçado e que pintava os olhos com um traço exageradamente acentuado a negro, a qual empurrava um carrinho de bebé onde trazia uma criança pálida. Seria filho de Stanley?

 

- E agora, o que é feito do Stanley?

 

- Houve uns problemas quaisquer na Alemanha, mas, especificamente, não sei ao certo. Só sei que ele saiu do exército.

 

- Talvez tenha sentido saudades da Irene e do bebé - alvitrou Eleanor.

 

- Ora, nessa altura já ela tinha arranjado outro homem - ripostou Ruby com uma expressão desdenhosa. - Amancebou-se com ele em Aberdeen. Tanto quanto me lembro, ele andava na faina da pesca.

 

Eleanor pensou que a mulher tinha descido na vida, conhecedora como era da escala social na óptica de Ruby.

 

- Mas o pobre do Stanley - prosseguiu esta -, ele era um rapaz que tinha mudado muito... começou a beber como o pai. Num bar qualquer em Aberdeen, teve uma rixa com outro rapaz que ficou gravemente ferido.. - Interrompeu-se para imprimir mais suspense à sua narrativa; o seu olhar ia de Eleanor a Fergus sucessivamente. - Está na prisão.

 

- Na prisão!

 

- Em Craiginches, vai para três anos. Li a notícia no PÓst, mas quem primeiro me contou foi a Doreen dos correios.

 

Quando se despediram de Ruby, esta agradeceu-lhes a garrafa de xerez e a caixa de chocolates.

 

- Sabes - começou Fergus a dizer quando já rolavam estrada fora -, tenho o pressentimento horrível de que ela deve ter umas vinte garrafas de Harveys Bristol Cream guardadas na cristaleira.

 

- Valha-me Deus, és muito capaz de ter razão - concordou Eleanor, rindo-se. - Mas, Fergus, consegues imaginar o pobre do Stanley na cadeia? Pergunto a mim mesma se o David terá conhecimento disso.

 

- Esta situação assim não serve, Eleanor, o teu pai vai ter de encontrar alguém que lhe trate da casa.

 

- Sei que sim - concordou ela.

 

- Que idade é que a Ruby tem? No mínimo, é da idade dele.

 

- Suponho que sim.

 

- E a julgar pelo estado em que Pitcairn tem estado sempre que vimos cá... nos últimos tempos, ela não tem feito grande coisa.

 

- Não. Isso é verdade. - No entanto, sentia-se curiosamente irritada por ter sido Fergus a dizer o que ela própria sabia. Não se recordava da mesma Ruby que ela conhecera, não era capaz de a imaginar na cozinha com Faith, ou a virar do avesso a sala de estar de uma ponta à outra num belo dia de Primavera, com as janelas todas abertas, a mobília toda arredada dos seus lugares habituais, as carpetes a serem batidas depois de penduradas nas cordas da roupa. E Stanley. Fergus não se interessava pelo que pudesse acontecer a Stanley. Eleanor mal conseguia esperar pela oportunidade de contar a Marion e a David, e esses, sim, interessar-se-iam.

 

Logo que chegaram a casa, tudo isto se sumiu da cabeça de Eleanor. Ao ir arrumar o escadote na arrecadação, o pai tinha escorregado, fazendo uma entorse no tornozelo. Estava sentado numa poltrona na sala de estar, com a perna da calça arregaçada e o pé a adquirir uma coloração que ia do azulado ao preto, além de estar a inchar.

 

- Oh, graças a Deus... vocês estiveram fora horas a fio - disse Marion à guisa de saudação. - O pai escorregou, caiu e magoou o tornozelo. Estou em crer que se trata apenas de uma entorse. Vai ver o que se passa, Fergus.

 

Fergus achou que era uma entorse grave, mas jamais emitiria uma opinião clínica com relação ao paciente de outro médico. Portanto, a alternativa era ir a Aberdeen, ao Royal Infírmary, para que o pé fosse radiografado.

 

- Oh, meu Deus - disse Marion com um suspiro -, e logo na véspera de Natal. O tráfego deve estar horrível. Pai, acho melhor jantarmos primeiro, e entretanto o Fergus pode ligar-lhe o tornozelo.

 

- Deixem-se disso, sinto-me bem. Não preciso de ir a nenhum hospital.

 

- O David podia levá-lo - sugeriu Fergus, pousando suavemente o pé do sogro e endireitando-se. - Ele não está a fazer mais nada.

 

- Não, mas... - Marion puxou o marido de parte. - Tem estado a beber durante toda a tarde, desde que veio do supermercado com a Kirsty. Não está em condições de se sentar ao volante do automóvel.

 

- O quê? - perguntou Eleanor, que tinha ouvido aquela troca de palavras.

 

- Temos de levar em consideração que estamos no Natal. Tenho a certeza de que habitualmente ele não costuma beber desta maneira durante a tarde - comentou Marion, mostrando-se agastada. - No entanto, a verdade é que não quero que ele conduza o pai onde quer que seja.

 

No fim, foi John quem se recusou a ir ao hospital. Caso o tornozelo piorasse, disse ele, David levá-lo-ia ao hospital no feriado a seguir ao dia de Natal. As estradas teriam pouco movimento, pelo que a viagem se faria sem dificuldades de maior. Fergus acabou por concordar, fazendo o melhor que estava ao seu alcance com uma ligadura elástica.

 

Ao longo de todo o dia, houvera entre as crianças uma discussão, que se mantinha em estado latente, quanto ao sítio onde os presentes de Natal deveriam ser colocados. Kirsty continuava a querer acreditar no Pai Natal, uma ficção que o pai, a mãe e os irmãos alimentavam, uma vez que ela era a mais nova da família, sendo-lhe permitido crer nisso durante tanto tempo quanto lhe aprouvesse, à semelhança do que acontecera com eles próprios quando eram crianças. Por volta da hora do jantar, haviam conseguido chegar a um consenso em que concordaram que o Pai Natal só vinha por causa das crianças pequenas, enquanto os outros recebiam os seus presentes que eram oferecidos pelos pais e mães.

 

- É uma verdadeira idiotice - observou Eilidh falando com Claire -, porque ela está farta de saber que o Pai Natal não existe.

- No entanto, conjuntamente, decidiram que os presentes dos adultos e os oferecidos pela família seriam colocados junto da árvore de Natal, enquanto as prendas que Kirsty receberia do Pai Natal, assim como as meias bem repletas de presentes de toda a gente, apareceriam, como que por milagre, aos pés da respectiva cama, como era habitual. Eleanor e David ofereceram-se para ficar a pé até mais tarde, a fim de tratarem de tudo o que era necessário fazer com vista ao que fora decidido.

 

Por volta da meia-noite, a casa estava mergulhada em silêncio com todos os outros já deitados. Eleanor e David, sentados na sala de estar, alimentavam o fogo da lareira enquanto David bebia o vinho que restara da refeição da noite. Eleanor podia ver a maneira como os olhos do irmão não se focavam nela quando a olhava, a par do modo expansivo como se expressava, concluindo que ele estava extremamente embriagado. Mas, apesar disso, encontrava-se em perfeita lucidez. Foi a primeira vez que teve oportunidade de lhe relatar o que se passara na visita a Ruby.

 

- Quase me esquecia. Lembras-te do rapaz com quem costumavas brincar... o Stanley?

 

David empurrou um tronco mais para o centro das chamas, provocando uma chuva de fagulhas. Ergueu o olhar com as faces congestionadas.

 

- Sim, lembro-me bem do Stanley. Claro que me recordo. O meu velho compincha.

 

- Está na cadeia. Foi a Ruby que nos disse.

 

- Estás a brincar...? - perguntou David olhando-a fixamente.

 

- Não. A Ruby contou-nos a história toda.

 

- Meu Deus! Enfim, calculo que um de nós estaria destinado a acabar assim.

 

- Fiquei francamente chocada.

 

- Como seria de esperar. Não é preciso muita coisa para que a nossa Eleanor fique chocada.

 

- Não sejas cínico. Não sabes o que estás a dizer. Coitado do Stanley.

 

- O que é que ele fez? Assaltou algum banco?

 

- Uma rixa num bar. Ofensa corporal agravada ou algo no género - respondeu ela.

 

- Jesus Cristo!

 

- Ele nunca me deu a impressão de ser uma pessoa violenta continuou Eleanor, parecendo-lhe estar a ver o miúdo magricela com cabelos louros cortados quase à escovinha, o garoto que era a sombra de David, sempre atrás dele. Porque o chefe era David, sendo este que organizava as brincadeiras todas. Recordava-se da última vez em que Stanley estivera em Pitcairn, acanhado, na soleira da porta das traseiras, perguntando pela mãe dela, o que acontecera havia mais de vinte anos.

 

- Ela não está a sentir-se bem - dissera Marion, barrando-lhe a entrada. - De que é que queres falar com a minha mãe?

 

- Pensei que era melhor dizer a Mistress Cairns o que se passa com o Davy - replicara ele, manifestamente pouco à vontade. Para dizer à tua mãe e ao teu pai que ele está bem.

 

Ao ouvir aquilo, Marion deixara-o entrar dentro de casa.

 

- Onde é que ele está?

 

- Nesta altura já deve estar em Londres.

 

- Em Londres?! - Marion agarrou Stanley por um braço, sentindo os ossos por baixo da pele. Como que encurralado, Stanley retraiu-se.

 

- Ele foi à boleia - explicou o rapaz. Marion reparou nas olheiras fundas, vendo como ele devia estar cansado, absolutamente exausto.

 

- Eu vou chamar a minha mãe - disse Marion.

 

- Como é que estás, Stanley? - perguntou Faith, que não tardou a chegar. - Vou pôr a chaleira ao lume. Senta-te, fica à vontade.

 

- Não, obrigado, não posso demorar-me - retorquiu Stanley, retrocedendo. - Lamento muito, Mistress Cairns, ele queria que eu também fosse para Londres. Mas não fui capaz de deixar o meu pai.

 

- Então, decidiste voltar para casa, não foi? - perguntou Faith, mostrando uma calma extraordinária, a única das quatro pessoas que se encontravam na cozinha a não denotar a mínima agitação ou consternação.

 

- Sim. E agora tenho de ir para casa, o meu pai é que me trouxe e está à minha espera na carrinha.

 

- Onde é que te separaste do David?

 

- Perto de Newcastle, não sei bem onde. Ele apanhou outra boleia... num Jaguar. Era um automóvel grande.

 

- Ainda bem para ele - atalhou Marion, que sentia um misto de cólera e azedume.

 

- Obrigada por nos teres vindo dizer... mas agora não obrigues o teu pai a esperar. - Empalidecida e com uma expressão onde não se adivinhava qualquer emoção, Faith acompanhou Stanley até à porta.

 

Teriam ficado a falar do lado de fora?, perguntava-se Eleanor naquele momento. A mãe teria feito mais perguntas ao rapaz? Só se recordava de Marion a sair da cozinha, batendo com a porta, uma coisa que ela nunca fizera em toda a sua vida.

 

Pôs as recordações de parte, obrigando-se a regressar ao presente.

 

- Davy - começou a dizer. O irmão estava sentado na cadeira numa posição de abandono, completamente alheado da presença da irmã, sem ouvir o que ela dizia. Pouco depois, mexeu-se.

 

- Tínhamos um esconderijo disse ele. - O Stan e eu. Mais ninguém estava autorizado a entrar.

 

- Não havia mais ninguém, além da Marion e de mim própria- ripostou Eleanor com um suspiro.

 

- Houve uma ocasião, não me recordo em que ano, em que apareceram alguns miúdos... os filhos do latoeiro. Ficaram aqui durante mais ou menos uma semana.

 

- Sim, eu sei. A mulher veio bater à nossa porta... a mãe até lhe deu dinheiro, tendo-lhe comprado umas coisas.

 

- Acho que ela lia a sina, não é verdade? - perguntou David, interrompendo a irmã. - Ela comentou qualquer coisa à mãe a nosso respeito... a mãe até disse que era um disparate.

 

- Foi isso mesmo. Não me recordo com exactidão do que ela disse, mas é possível que a Marion não se tenha esquecido. A mãe comprou-lhe um bocado de renda... de que eu gostei logo, mas a Marion é que ficou com ela. Nunca mais voltei a ver essa renda.

 

- Coitado do pobre Stanley... Seja como for, a cigana nunca lhe leu a sina.

 

- Não, mas ela...

 

- Em que choça é que ele está?

 

- Craiginches, em Aberdeen.

 

- Talvez eu me decida a ir visitá-lo, para lhe levar uma lima escondida num bolo, ou qualquer coisa assim.

 

Eleanor sabia que o irmão não iria à cadeia. Subitamente, dava a impressão de ter ficado acabrunhado, taciturno, pondo-se a olhar fixamente para as chamas da lareira.

 

- Tenho a certeza de que o Stanley há-de conseguir sobreviver a essa situação - observou Eleanor. - Pelo menos, tem um trabalho a que voltar. Além do mais, está livre daquela mulher horrível, a Irene. A pena não é muito longa e a Ruby não me disse quando é que tudo aconteceu. Até pode ser que nesta altura já tenha saído em liberdade.

 

- A culpa não foi minha - disse David, soerguendo a cabeça.

 

- Claro que não! Como é que a culpa podia ser tua? Há vários anos que nem sequer o vês.

 

- Estás enganada, vi-o, sim - adiantou David, endireitando-se na cadeira e estendendo a mão para a garrafa para se servir de outra bebida. - Numa ocasião, quando estive em Aberdeen há mais ou menos... o quê? Uns cinco anos. Ele tinha recomeçado a trabalhar como marceneiro. Claro que desta vez não trabalhava para o pai, mas sim numa marcenaria de grandes dimensões. Fazia muito trabalho para as autoridades municipais, de acordo com o que me disse. Pareceu-me estar bem. Até fomos tomar uma cerveja.

 

- Aí tens. Se calhar ele nem sequer foi o responsável por essa rixa no bar.

 

- O velho Stan era muito facilmente influenciado pelos outros.

 

- Vocês dois estavam sempre a arranjar problemas - acrescentou Eleanor.

 

- E tu não sabes da missa a metade, Eleanor.

 

- Ah, não?

 

- Não sei se sabes, mas eu não sou boa pessoa - adiantou ele com um encolher de ombros. - Nunca fui.

 

- De que é que estás para aí a falar?

 

- De culpa - respondeu David, tomando um gole de uísque e voltando a pegar na garrafa. - No fim, acabarei por ser consumido pelas chamas do inferno, minha querida irmã. Um fim bastante apropriado.

 

O que quereria ele dizer com aquilo? Eleanor estivera a falar com o pai ali, no jardim, acerca da noite em que o palheiro dos Mackies pegara fogo. Não tenho dúvida nenhuma. Ele estava em casa antes de o incêndio ter começado. Uma ponta de cigarro pode ficar a arder em combustão lenta durante muito tempo. Fitou o irmão, as pálpebras que lhe pesavam nos olhos, o trejeito nos lábios, numa expressão de desprezo por si próprio. Ela não quis saber aquilo que talvez não fosse verdade, ou mesmo possível.

 

- Já estás bêbedo - comentou Eleanor. - Anda, já bebeste mais do que a tua conta. - Levantou-se e tirou-lhe a garrafa das mãos. - Vamos tratar dos presentes. Com certeza que a Kirsty já deve ter adormecido. - Olhou de relance para o relógio por cima da lareira. - Não pude assistir ao serviço religioso desta noite. Durante os últimos anos tenho podido ir porque a Edie toma conta da Claire. No ano que vem, quem sabe... talvez ela queira acompanhar-me.

 

- Costumas ir à igreja? - perguntou David dando a impressão de se ter recomposto, olhando para a irmã sem ocultar uma expressão de surpresa.

 

- Às vezes. De vez em quando, penso que talvez haja uma maneira de se ser... perdoado. Percebes o que quero dizer?

 

O irmão desviou o olhar e com a biqueira do sapato empurrou um tronco que estava junto da grade de protecção. Foi cair com um clarão vermelho de faíscas no meio das chamas.

 

- Isso não é para mim - disse ele. - Não é para mim.

 

- Vamos lá, Davy. - Eleanor estendeu a mão para o ajudar a pôr-se de pé. - Está na hora de ires para a cama.

 

Na manhã seguinte, voltaria a ser Natal. Ao pensamento de Eleanor acorreram todas as recordações que guardava de Natais passados da sua meninice quando assomou à janela do seu quarto, olhando para o jardim. O firmamento desanuviara-se, permitindo que a luz do luar empurrasse as sombras através do relvado e por entre as árvores. Durante alguns segundos, pareceu-lhe ver a mulher do latoeiro, a cigana que lhes batera à porta para lhes ler a sina. ”Como se nós agora quiséssemos saber”, pensou Eleanor, fechando os cortinados.

 

- Correu tudo às mil maravilhas - reconheceu Marion, falando com Eleanor quando já iam de regresso às suas casas. Claire e Eilidh, uma vez mais amigas, sentavam-se no banco de trás, remetendo-se ao silêncio à medida que a viagem progredia; quando passaram por Keith, já ambas dormitavam. Fergus seguia no veículo à frente com Ross e Kirsty.

 

- Sim, é verdade, correu tudo muito bem - concordou Eleanor. - Estou em crer que todos passaram um bom Natal.

 

”Conseguimos escapar”, pensou Marion para consigo, ”não aconteceu nada de mal.”

 

- No entanto, foi um Natal bastante comprido - disse em voz alta. - Estou contente por irmos a caminho de casa.

 

- Só espero que o pai esteja bem. O David prometeu-me que o levava ao hospital para ser radiografado antes de ir para Edimburgo.

 

- Bem, ele diz que vai para Edimburgo. Não vi sinal nenhum de que estava a fazer as malas, não achas?

 

- O mais certo foi ele ter estado à espera que nos viéssemos embora.

 

- Queres saber uma coisa? Sinto-me aliviada - continuou Marion - por não estarmos a criar os nossos filhos num lugar tão isolado. Vivemos no campo, do que não há dúvida, todavia, estamos a apenas dez minutos de Dingwall, além do mais, nos tempos que correm, toda a gente se desloca de carro.

 

Eleanor parou numa rua estreita de aldeia atrás de um automóvel estacionado, a fim de permitir as manobras de um camião que estava a inverter a direcção. Marion olhou para trás, observando as duas garotas adormecidas, inclinadas de lado e com as bocas de lábios macios entreabertas. Claire tinha a cabeça no colo de Eilidh.

 

- Bem vês - prosseguiu ela -, sinto-me francamente convicta quanto ao tipo de infância que proporcionamos aos nossos filhos. Nunca havia dito isto antes, mas suponho que agora me seja permitido e sei que não te importas. - Olhou para Eleanor, que continuava concentrada no tráfego. - Quando o lan morreu, a morte dele fez com que tudo me parecesse bastante precário. Pensei: ”O que é que eu faria?” Fiquei incapaz de imaginar o que faria no teu lugar... fechei os olhos à situação, persuadi-me de que com certeza uma tragédia no seio de uma família deixá-la-ia destroçada, e chateei e voltei a chatear o Fergus por causa da nossa casa. Nessa altura, vivíamos na pequena vivenda nos arredores de Muir of Ord, lembras-te? De qualquer maneira, era demasiado pequena, especialmente depois de a Kirsty ter nascido; por isso, eu tinha razão, de facto, precisávamos de uma casa maior. Mas era mais do que isso. Eu queria uma moradia como deve ser, é claro que não almejava nada como Pitcairn; nos tempos que correm é impossível ter uma casa dessas, seria ridículo pensar nisso.

 

- Contudo, Dunvegan é uma casa grande, Marion - disse Eleanor, interrompendo a irmã.

 

- É uma casa apropriada para uma família - afirmou Marion -, aquilo que eu efectivamente desejava. Sempre quis que os meus filhos tivessem uma meninice cheia de felicidade e em segurança, a par de espaço e liberdade, muito embora com mais pessoas do que nós tivemos na nossa infância. Companhia. Nós vivíamos demasiado isolados em Pitcairn.

 

”Neste momento também me sinto isolada”, quis dizer Eleanor, mas conteve as palavras. Sabia que Marion receava que a estrutura familiar, que ela cimentara com tanta determinação, estivesse em risco. A casa podia ser abalada por um tremor de terra: ao fim e ao cabo, nenhum deles estaria em segurança.

 

- Vamos parar? perguntou Eleanor.

 

- Acho que não vale a pena, uma vez que as garotas estão a dormir. A menos que queiras fazer uma pausa, parar de guiar por uns momentos.

 

- Não, agora só quero é chegar a casa. Pensei que tu talvez gostasses de fazer uma paragem.

 

O cuidado que elas tinham quando falavam uma com a outra, dando consigo próprias a sós e com pouco de que falar depois de um Natal com tanta gente. Era inegável que todos haviam desfrutado da ocasião, pensava Eleanor, apesar de Marion se ter esforçado excessivamente em termos físicos.

 

- Não achaste que a tia Alice ontem se comportou de uma maneira um pouco estranha? - perguntou pouco depois.

 

- Estranha... como?

 

- Acho que ela está a ficar... com vistas estreitas. Retraí-me toda de cada vez que a Claire abria a boca. A Alice consegue ser tão reprovadora.

 

- Não reparei - retorquiu Marion. - Na minha opinião, a Mamie é que está a ficar exagerada com a idade. Come de mais e depois queixa-se das indigestões, acha que realmente vale a pena ouvir o discurso da rainha, mas depois adormece diante do televisor.

 

- Deus nos valha, tens toda a razão - concordou Eleanor’rindo-se. - A verdade é que ela é muito boazinha e pensa que as crianças são todas maravilhosas. Já a Alice é diferente... sempre foi. E quando éramos pequenos... ainda te lembras daquelas histórias estranhíssimas que ela nos contava? Depois de as ouvir, eu até costumava ter sonhos maus.

 

- Contudo, ela não é o tipo de pessoa que se pensaria ser dada a fantasias - retrucou Marion com uma expressão cismadora. Como tu dizes, por vezes ela parece ter vistas estreitas. Mas é uma mulher muito prática e independente. O que sempre foi forçada a ser... durante muitos anos teve de ganhar para a sua própria subsistência.

 

- O que é que ela fazia... trabalhava num escritório, não é verdade?

 

- Era assistente de um advogado, o que tu devias saber. O pai estava sempre a dizer que ela devia ter tirado o curso de Direito, que tinha cabeça para isso. Porém, nesses tempos, as raparigas não tiravam cursos universitários. Ele foi o que teve mais estudos.

 

- Em princípio, as raparigas eram para casar. Pergunto a mim mesma por que motivo é que ela nunca casou. Quando nova, era bastante bonita. Talvez um pouco severa, mas bonita. Não que os retratos a preto e branco nos digam muita coisa.

 

- Ora bem, o facto de a Mamie ter decidido ir viver com ela não ajudou muito para que isso se concretizasse.

 

- Oh, nessa altura já ela ia a caminho dos quarenta - lembrou Eleanor. - Ela é... o quê? Uns sete ou oito anos mais velha do que o pai?

 

- Mais ou menos o mesmo que a Mamie.

 

- Com a diferença de que parece beneficiar de uma juventude perpétua. Até certo ponto - acrescentou Eleanor.

 

- O que tu queres dizer é infantilidade - atalhou Marion com um sorriso.

 

- Eu não sou assim, pois não? - exclamou Eleanor. - Não decidi ir viver para perto de ti porque não sou capaz de gerir a minha própria vida sozinha?

 

- Não sejas tola. Tu vives na tua própria casa, completamente independente. Além do mais, tens a Claire. Acho que o facto de termos filhos nos torna mais maduras, o que é uma consequência inevitável da maternidade. A Mamie nunca teve filhos. Não parece ser capaz de fazer seja o que for sem a Alice, não concordas?

 

Alice, porém, mantivera-se distante de Mamie depois da ceia de Natal, o que não passara despercebido a Eleanor. Mamie sentara-se diante do televisor e Kirsty havia-se aninhado junto dela. Alice ainda ficou na cozinha, onde tudo já tinha sido arrumado, com a louça guardada nos armários. A carcaça do peru fora colocada em cima da mesa, assim como o que restara do pudim de Natal, os brindes que haviam saído dos doces. Mamie levara os chocolates para a sala de estar onde as crianças se tinham instalado, com John a passar pelas brasas na sua poltrona; Marion fora obrigada a sentar-se diante da lareira. Apenas Eleanor e David é que haviam ficado na cozinha com Alice. David servira um uísque para si mesmo.

 

- Alguém quer? - perguntou, erguendo a garrafa.

 

- Para mim, não - declinou Alice com um estremecimento.

- Deus me valha, não era capaz de tocar numa gota de álcool. Seja como for, não sou capaz de beber uísque, para mim é como se fosse um remédio.

 

Exactamente - replicara David com uma careta risonha.

 

- Eu também não, obrigada - recusou Eleanor com um abanar de cabeça.

 

Pouco depois, Alice despiu o avental, pendurando-o atrás da porta da despensa.

 

- Ora vamos lá a saber, quem é que quer ir apanhar um pouco de ar fresco? - Olhou para David enquanto este erguia o copo.

 

- Uma coisa muito má para a saúde - ironizou ele -, o ar fresco. Por mim, não; acho que vou adormecer defronte de um programa horrível qualquer que a televisão esteja a transmitir. Em princípio, é o que se deve fazer no dia de Natal.

 

Eleanor deduziu que Alice tinha ficado decepcionada. À luz crua da cozinha, parecia mais velha, com uma pele esbranquiçada e o cabelo agora quase completamente grisalho. Durante vários anos (e quando é que teria deixado de ser assim?) continuara a ter muitas madeixas de cabelo castanho-escuro.

 

- Se quiser, eu vou consigo - ofereceu-se Eleanor.

 

Os olhos cinzentos de Alice pousaram-se em Eleanor, embora não parecessem estar a vê-la com olhos de ver.

 

- Se te apetecer, minha querida - replicou ela. - Não quero afastar-te da televisão se...

 

- Não, não tem importância. Acho que até me está à apetecer tomar um pouco de ar fresco.

 

Quando ela e Alice saíram da cozinha para darem o seu passeio, David servia-se de outra bebida.

 

- Ele anda a beber de mais - disse Eleanor a Alice quando começaram a percorrer o caminho particular. - Está na altura de ele arranjar um emprego certo.

 

- Ele disse-me que já arranjou trabalho - retrucou Alice, que parecia satisfeita com essa perspectiva. - Diz que dentro em pouco vai para Edimburgo... que já arranjou um apartamento, ao que parece.

 

- Que tipo de emprego? - perguntou Eleanor, que não acreditava. Ele não lhe dissera nada a esse respeito, nem tão-pouco a Marion.

 

- Seguros. - David comunicara aquilo às tias porque lhe parecera que fosse uma profissão respeitável e segura. Não havia garantia nenhuma de que isso correspondesse minimamente à verdade.

 

- Ele voltou a ser, uma vez mais, como era - continuou Alice -, agora que rapou aquelas barbas horríveis.

 

- Pelo menos ficou com uma aparência mais jovem - concordou Eleanor.

 

O dia estava a chegar rapidamente ao fim quando alcançaram os portões, saindo para o caminho rural.

 

- Que direcção é que devemos tomar? - perguntou Eleanor ao ver que Alice hesitava. - Talvez pudéssemos ir pelo caminho que vai dar à Mains, dando a volta por detrás dos correios. Mas não me parece que tenhamos tempo para uma caminhada dessas. Não tarda que se faça noite.

 

No entanto, Alice queria apenas dar um pequeno passeio ao longo do caminho, fazendo o mesmo percurso no sentido inverso. De repente, ficara com um aspecto de cansaço e o ritmo da sua passada, que até então fora enérgico, abrandou substancialmente. Quando chegaram à curva onde havia um desvio para a Mains, ela deteve-se, apoiando-se ao poste de uma vedação.

 

- Está a sentir-se bem, tia Alice?

 

A interpelada não respondeu durante uns momentos. Com alguma dificuldade, recuperou a respiração. Sentindo-se alarmada, Eleanor estendeu a mão para a amparar.

 

- Estou bem, cachopa - respondeu por fim, dando uma pancadinha na mão de Eleanor e avançando um ou dois passos. Talvez fosse melhor voltar para trás, não achas?

 

- Tem a certeza de que se encontra em condições de caminhar? - ”E se não estiver?”, perguntou a si própria, receosa. ”O que é que poderei fazer?”

 

Contudo, Alice já principiara a andar num passo estável e a respiração começava a normalizar-se.

 

- Estou bem, não há razão para te preocupares. De vez em quando sinto-me um bocado esquisita. - Fitou Eleanor com um olhar penetrante. - Não quero que digas uma palavra à Mamie a este respeito. Ela ficaria terrivelmente preocupada, nunca mais haveria de se calar.

 

- No entanto, talvez fosse boa ideia ir ao médico, não lhe parece?

 

- Já fui.

 

- Oh!

 

- Não há motivo para preocupações - acrescentou Alice num tom de voz em que tentava retirar importância ao assunto. Decorridos uns momentos, acrescentou: - E quanto à Ruby... foste visitá-la?

 

- Fui ontem. Tinha a intenção de a convidar para jantar connosco, mas ela já fora convidada pelas pessoas que agora tomam conta dos correios. Fiquei com a impressão de que é muito amiga deles.

 

- Ora, a Ruby não estaria à espera de ir a lado nenhum para a ceia de Natal - atalhou Alice. - Chegou a altura de ela arrumar as botas.

 

Entretanto, tinham chegado aos portões, voltando a percorrer o caminho de acesso à casa, mas desta feita num passo mais lento. Na semiescuridão, Pitcairn cintilava com a luz que vinha do interior: parecia que todas as janelas estavam iluminadas. ”A casa devia estar sempre assim”, pensava Eleanor, ”Cheia de gente, cheia de vida.”

 

- Porque é que as luzes estão todas acesas? Esta gente nova não pensa nas contas da electricidade - comentou Alice com um abanar de cabeça. - Acho que o teu pai devia vender esta casa. O que devia ter feito logo que a tua mãe faleceu. A Mamie e eu temos muito espaço em nossa casa... não que eu esteja a sugerir que ele venha viver connosco. Mas podia arranjar um pequeno apartamento confortável na cidade, perto de nós, para que pudéssemos ficar de olho nele.

 

- Oh, tia Alice! - exclamou Eleanor sem poder evitá-lo. Sabe muito bem que ele detestaria isso... O meu pai adora esta casa. ”E seja como for”, pensou para com os seus botões, ”quem é que deve ficar de olho em quem?”

 

- Como queiras - ripostou Alice, parando; ambas ficaram a olhar para a casa. - Era um belo retiro, para os dois. - Havia qualquer coisa na entoação da voz dela que se poderia classificar de irritação. Eleanor aguardava, interrogando-se. Pouco depois, Alice dirigiu-se para casa e ela foi atrás da tia.

 

Na viagem de regresso, Eleanor teve vontade de contar este episódio a Marion, mas, depois de o ter revisto em pensamento, já Marion estava demasiado sonolenta. Assim, concentrou os pensamentos na sua casa e no Hogmanay que estava à porta.

 

- O que é que tencionas fazer? - perguntara ela a David.

 

- Vou a uma festa - respondeu ele. - O Phil e o sócio vão dar uma festa em Perth. E depois seguimos para Edimburgo.

 

- Pensei que ias formar uma sociedade com o Phil?

 

- A namorada dele meteu-se no assunto, uma coisa assim.

 

- Oh, estou a ver, uma sociedade dessas.

 

- E quanto a ti... vais para casa da Marion? Ou vais sair com um namorado?

 

- Pára de tentar tirar nabos da púcara. Não tenho nenhum namorado.

 

- E quanto a esse tal Andrew?

 

- Ele é simpático, mas há um pensamento que não me sai da cabeça: por que razão com trinta e muitos anos ele ainda está solteiro?

 

- Realmente, isso é bastante misterioso.

 

- Mas adiante - continuou Eleanor abanando a cabeça. Também me pergunto o mesmo a teu respeito. Mas tu já... bem, tanto quanto sei já viveste com, pelo menos, uma mulher. Não que alguma vez o tenhas admitido. Mas o Andrew é diferente. É o tipo de homem sólido em quem se pode confiar. O material de que os maridos são feitos.

 

- Perfeito - ripostou David.

 

- Estás a ser sarcástico.

 

- Bem, estou mesmo a ver-te... a fazeres a mesmíssima coisa outra vez.

 

- O quê?

 

- Isso agora não interessa.

 

- O quê?

 

- Deixa isso... Desculpa. Peço desculpa por te ter perguntado sobre a passagem de ano. Sei que é um dia que detestas.

 

- É verdade, David, odeio. E também sabes por que razão.

 

- Sim, mas talvez devesses ser mais como eu... pôr isso para trás das costas. Continuar em frente.

 

Claro que sim, exactamente o que ele fizera. Continuar em frente. David não levava o passado consigo, ao contrário do que ela fazia. Punha-o para trás das costas. As coisas não haviam resultado; alguém o tinha deixado ficar mal; o banco recusava-se a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava; ele encontrava-se sempre à frente dos tempos, ninguém ainda estava preparado para o que ele tinha a oferecer. Nunca nada era por sua culpa: nada a apontar-lhe, nenhum vestígio de responsabilidade alguma vez se agarrava a David. Até mesmo em relação à morte de lan, nunca passara pela cabeça de Eleanor culpar David, o sentimento de culpa que ela própria experimentava era de tal maneira avassalador que não deixava lugar a outras ideias. Fora Marion quem dissera: ”Ele traz a tragédia consigo, ainda não te apercebeste disso?”

 

Naquele momento quando Marion se pôs a bocejar e a espreguiçar-se, recomeçando a falar, disse como se tivesse ouvido os pensamentos de Eleanor:

 

- Estou contente por o David ir passar o Hogmanay fora. Ele que leve a sua má sorte para outro lugar qualquer. Que não venha estragar o nosso Ano Novo.

 

- Marion!

 

- Desculpa. Estava para aqui a dormitar. Tive um sonho estranho acerca do ano em que o Timmy morreu. - No assento de trás do carro, as raparigas também se agitaram, despertando da sua sonolência. Marion chegou-se a Eleanor, dizendo-lhe em voz baixa:

- Desculpa. Estou a ficar enervada por causa da ida ao hospital na próxima semana. É uma perspectiva que está a deixar-me acabrunhada.

 

- Eu sei. Não tem importância - retorquiu Eleanor, estendendo a mão e tocando afectuosamente no joelho da irmã.

 

- Onde é que estamos? - perguntou Claire ainda com uma voz sonolenta, como se estivesse a lamuriar-se. - Espero que não falte muito para chegarmos a casa.

 

- Sim - afirmou Eleanor numa voz tranquilizadora. - Estamos quase a chegar a casa.

 

Logo que entrou em casa, por sua vontade, Claire teria saído imediatamente, desta feita, para ir a casa de Sarah.

 

- Então, vou só telefonar-lhe, mãezinha. Eu prometi ligar-lhe assim que voltássemos.

 

Eieanor deteve-se no corredor estreito da pequena vivenda, começando a abrir a correspondência que fora entregue da véspera do dia de Natal, protelando a tarefa enfadonha que era desemalar as coisas que levara para casa do pai.

 

- Está bem - retorquiu, embora não estivesse a prestar atenção ao que a filha lhe dizia. Recebera um cartão de boas-festas de uma vizinha dos tempos em que vivera em Heatherlea, a única amiga dessa altura com quem continuava a manter contacto. Era acompanhado de uma pequena missiva em que ela lhe dava notícias dos filhos, do emprego e das férias que passara em Cornwall. Fora dactilografada; todos a quem enviara cartões de Natal teriam recebido a mesma mensagem: OJoe e eu divorciámo-nos na Primavera. Tem sido um ano difícil, mas, apesar disso, consegui ficar com a casa porque fui promovida em Outubro. Espero que a vida te esteja a correr bem. Barbara.

 

Por detrás das palavras, nas entrelinhas, sentindo um aperto no coração, Eleanor ficou a saber dos gritos intercalados de silêncios prolongados, discussões cheias de azedume, uma história de vida que não lhe fora contada. Joe e Barbara. Decorrido tanto tempo, mal era capaz de recordar as feições de qualquer um dos dois, não obstante ter mantido uma amizade bastante íntima com ambos durante os primeiros anos de vida de Claire e Hannah. Sempre achara que Barbara era uma pessoa mais competente e de personalidade mais vincada do que Joe; no entanto, haviam parecido dar-se bem, ficando-se com a impressão de que teriam sido um casal feliz. Os casamentos das outras pessoas, pensou ela, tantos segredos. Pousou o resto das cartas, sem disposição para as abrir.

 

Não tencionava dizer nada a Claire sobre aquele assunto, não havia necessidade. Contudo, ansiava por fazer isso mesmo. Naquilo em que ela pensava agora como sendo a vida de antigamente de ambas, Claire e Hannah eram inseparáveis, indo sempre juntas para as lições de balé aos sábados e à natação nas noites de quinta-feira. Claire era a única pessoa com quem ela podia falar sobre essa outra vida. Contudo, esta estava embrenhada numa grande conversa ao telefone, tendo-se instalado no quarto da mãe. Irritada com o total alheamento da filha, que ignorava a sua presença, Eleanor pousou a sua mala de viagem no chão e desceu para a cozinha; ligou o Rayburn e depois foi acender a lareira na sala de estar.

 

- Devíamos ter a nossa própria árvore - comentou Claire que, finalmente, se dignou sair do quarto, enquanto Eleanor se via a braços com uma chaminé que não estava a extrair o fumo como devia ser. - A casa tem um aspecto francamente desleixado. Por que motivo há este cheiro tão intenso a fumo?

 

- Queres fazer o favor de calar a boca, Claire? E vai buscar-me umas folhas de jornal... depressinha! Deus queira que não haja nada a entupir a chaminé. Porque será que está a deitar tanto fumo? Ergueu uma folha de jornal diante da grade de protecção da lareira, sentindo-se sufocada devido ao fumo e com uma sensação de derrota que a irritava.

 

- Mãezinha, posso... - Claire interrompeu-se, hesitante, apercebendo-se de que aquela não era a melhor altura. - Vou desemalar as minhas coisas, de acordo?

 

- Sim, sim, vai arrumar. - Finalmente, a lareira dava a impressão de querer pegar. Eleanor afastou a folha de jornal da lareira, amachucou-a e atirou-a para as chamas, onde se ateou de imediato. Em seguida, subiu para o quarto e começou a arrumar as suas coisas.

 

Ao fim da tarde, sentia-se tão desassossegada como Claire, tendo concordado em levá-la de automóvel a casa de Sarah. Quando a convidaram para tomar um café, aceitou com prazer. Entretanto, Claire e Sarah desapareceram no quarto desta última. Eleanor sentou-se na confortável sala de estar de Andrea onde dois labradores de pelagem de um castanho-dourado se haviam instalado junto da lareira onde estava mais quente; o pêlo dos cães tinha um cheiro desagradável, molhado e a secar depois de um passeio ao ar livre. Junto da janela de sacada havia uma árvore de Natal e em cima da mesa viam-se várias caixas de chocolates. Eleanor ouvia o barulho (gritos e bipes) de duas crianças pequenas, que não deviam estar muito longe, que se entretinham com um jogo de computador.

 

Andrea começou a falar do Natal e dos familiares mais idosos, dizendo também que não sabia o que fazer com toda a comida que restara da consoada. Eleanor tomou um café que acompanhou com duas fatias de bolo. Em tempos, Andrea fizera com que se recordasse de Barbara: bom gosto, dinheiro suficiente para todas as pequenas bugigangas decorativas nos peitoris das janelas, cuidadosamente escolhidas por serem invulgares. O marido de Andrea estava a fazer qualquer coisa na garagem, com a ajuda do irmão mais velho de Sarah. De quando em vez, vinha à sala para perguntar qualquer coisa, voltando a sair. Havia uma atmosfera naquela casa, a qual também se reflectia na calma de Andrea e na sua voz plácida, que indicava que tudo corria pelo melhor, que nada era sujeito a grandes alterações.

 

Eleanor sentiu-se avassalada por um sentimento de nostalgia, ansiando por ir para casa, regressar à pequena vivenda (onde, muito provavelmente, as chamas já se teriam extinguido na lareira), apetecendo-lhe estar sozinha com a filha. Claire mostrou-se amuada quando a chamaram, não querendo ir para casa.

 

- Vamos dar uma festa no Hogmanay - informou Andrea enquanto mãe e filha vestiam o casaco já à porta da frente. - Faria muito gosto em que vocês as duas viessem... A Sarah tenciona convidar algumas amigas.

 

- Oh, mãezinha, por favor. A Sarah quer que eu... Posso vir, não posso?

 

- Depois vê-se. Mas o mais provável é poderes vir à festa.

 

- Mas a Eleanor também vem, não é verdade? - insistiu Andrea, dando-lhe uma palmadinha amigável no braço.

 

- É possível que eu passe o Ano Novo em casa da Marion. Mas é muito simpático ter-me convidado para a sua festa.

 

- Se lhe apetecer, pode aparecer à vontade... não precisa de me avisar com antecedência. Por volta das oito da noite.

 

- Eu não sou obrigada a ir a casa da tia Marion, pois não? perguntou Claire numa voz persistente quando as duas já seguiam a caminho de casa.

 

- Não, não és obrigada a ir. Podes ir à festa em casa da Sarah.

 

- Mas eu quero que a mãe também venha... A mãe da Sarah quer que venha. E eu também. Porque é que a mãe não pode vir comigo à festa?

 

- Pode ser que me decida a ir, ainda não sei - replicou Eleanor. Fez-se um silêncio de algum mal-estar.

 

- Sei que não gosta do Hogmanay. Se preferir, não me importo de ficar em casa, mãezinha.

 

- Vais ver que estarei lindamente - tranquilizou-a Eleanor num timbre de voz muito mais afectuoso, sentindo-se envergonhada.

- É muito possível que acabe por aceitar o convite da Andrea... É-me indiferente. Até podes dormir em casa da Sarah, se quiseres.

 

- Tem a certeza?

 

- Claro que sim.

 

Não se sentia com disposição para ir a festas, como seria de esperar. Num pequeno frasco, que guardara na gaveta das meias e da roupa interior, restavam-lhe dois comprimidos para dormir. Desde a morte de lan que ela fazia a mesma coisa em todas as noites de passagem do ano: tomava um comprimido para dormir e ia para a cama. Na manhã seguinte, já estava no dia de Ano Novo e a noite tristonha ficara para trás. Até agora, Claire era muito novinha para querer ficar a pé. No ano anterior, Fergus e Marion tinham convidado algumas pessoas para passarem o Hogmanay em sua casa e ela e Claire tinham ido até lá. Podia-se dizer que a noite havia sido tolerável. Mas, apesar de ter ido, Eleanor insistira em sair antes da meia-noite, tendo deixado Claire com Eilidh e voltado sozinha no seu automóvel, para casa, onde se encontravam os soporíferos que lhe proporcionariam uma boa noite de sono. Não bebera nada antes nem depois. Qualquer que fosse a ocasião, durante os últimos cinco anos nunca bebera mais do que um copo de vinho ou um uísque. David, como seria de esperar, decidira enveredar pela outra opção, bebendo cada vez mais: continuavam a procurar o olvido, uma maneira que os impedisse de se concentrarem nos seus pensamentos.

 

Este ano, dissera a Marion: ”É possível que eu decida ir à festa da Andrea”, mas, para si própria, proferira: Tenciono ir para a cama. No fim, nem sequer levou Claire à festa: havia outra mãe que levaria a filha de automóvel e combinaram que pelo caminho pararia em casa de Eleanor. Já com a mochila e o saco-cama, Claire ainda hesitou quando chegou à porta.

 

- Tenciona ir até lá mais tarde, mãezinha? A mãe e o pai da Michelle disseram que iam.

 

- Não me parece.

 

- Isso quer dizer que tenciona ir a casa da tia Marion? Com certeza que não está a pensar em ficar sozinha em casa?

 

- Não, não fico. E agora só tens de pensar em divertir-te... Amanhã telefona-me se quiseres que eu te vá buscar.

 

- Só lá mais para o fim do dia. Vamos ficar a pé até muito tarde - declarou a garota, inclinando-se para a frente e dando um beijo apressado à mãe. - Feliz Ano Novo, mãezinha.

 

Eleanor abraçou-a por breves momentos, saboreando a doçura dos cabelos e da pele da filha; depois, Claire soltou-se, pondo-se a caminho; pouco depois, o carro desapareceu pela estrada fora.

 

A casa de Jim e Edie estava às escuras, com as luzes da árvore de Natal desligadas. O casal havia ido para casa da irmã de Jim, em Aviemore, estando previsto que só regressassem dentro de dois dias. A pedido deles, Eleanor ”ficara de olho” na casa. Defronte da última moradia, encontrava-se um Saab já antigo e na janela da frente via-se luz. O homem de cabelos cor de cenoura, que fora abandonado pela mulher, devia estar a passar o Hogmanay sozinho. Por uns instantes, Eleanor sentiu-se invadida pela curiosidade, mas logo a seguir desinteressou-se. Voltou a entrar em casa.

 

À noite, porém, ameaçava eternizar-se e o livro que andara a guardar para ler nessa altura provou ser uma desilusão. Acabou por se decidir a sair para andar um pouco a pé, caminhando até aos portões da quinta, após o que regressaria pelo mesmo caminho. Deteve-se quando chegou à porta da frente de sua casa, a pensar se deveria fazer aquilo ou não. A noite estava estrelada e o céu limpo com a Lua a três quartos, muito luminescente e cheia. Diante da vivenda do fundo, o Saab azul tinha as luzes ligadas. Queria aquilo dizer que o homem se preparava para sair? Ao que tudo indicava, afinal não passaria a noite sozinho... teria uma festa a que tencionava ir, familiares ou amigos com quem estar. Então, quando transpôs a porta, apercebeu-se de que não havia ninguém dentro do automóvel e a porta da moradia estava fechada. Ele devia ter saído e voltado, tendo-se esquecido de desligar as luzes. Eleanor vestiu o casaco e saiu de casa.

 

Quando chegou à última moradia parou. Se a intenção dele fosse passar aquela noite em casa sozinho, o que parecia ser o caso, só lá para o fim da manhã seguinte é que voltaria a sair, altura em que teria a desagradável surpresa de verificar que tinha a bateria descarregada. Eleanor pousou a mão no portão, empurrando-o e começando a percorrer o caminho de acesso à casa. Ouviu música que vinha do interior, apesar de não ouvir voz nenhuma. Bateu três vezes à porta. Momentos depois, o homem de cabelos arruivados surgiu à entrada.

 

- Boa noite! - saudou ele. - Entre - convidou, dando uns passos atrás.

 

- Agradeço, mas não posso... Só vim dizer-lhe que se esqueceu de desligar as luzes do carro.

 

- É verdade - replicou o homem, espreitando pela porta. Agradeço por me ter avisado. - Passou por ela caminhando até ao automóvel; abriu a porta e desligou os faróis. ”Ele é daqui”, deduziu Eleanor, ”vive aqui há já algum tempo”, o que ela concluiu ao ver que o automóvel não estava fechado à chave. Era escocês, mas não foi capaz de perceber de onde seria oriundo.

 

- Permite que lhe ofereça uma bebida? Ou preparava-se para ir a qualquer lado?

 

- Não, saí só para dar um pequeno passeio - respondeu Eleanor.

 

- Um passeio?

 

- A noite está muito agradável - ripostou ela na defensiva.

 

- De facto está - concordou o homem, mantendo-se no caminho junto dela; ambos olharam para o firmamento.

 

- Acho que a acompanharei, isto é, se não houver objecção da sua parte. - Pegou num casaco pendurado num dos cabides de parede do vestíbulo. A casa dele, uma réplica exacta da de Eleanor, tinha um ambiente alegre, com a alcatifa carmim que revestia o soalho das escadas e do vestíbulo, onde se viam várias fileiras de fotografias pequenas, emolduradas, penduradas nas paredes. - Não se importa que eu vá consigo, pois não?

 

- Não, claro que não - replicou ela, mas, verdade fosse dita, havia de admitir que fora apanhada de surpresa, sentindo-se um tanto ou quanto constrangida.

 

Ele fechou a porta só no trinco e ambos começaram a caminhar pelo caminho particular lado a lado.

 

- Chamo-me Gavin Soutar - apresentou-se o homem. E você chama-se Eleanor, não é verdade? Ouvi a Edie tratá-la por Eleanor.

 

Ela apercebeu-se de qualquer coisa que fez um voo rasante por cima da sua cabeça, tão baixo que parou sobressaltada.

 

- O que era aquilo? - perguntou em voz alta.

 

- Não se inquiete... parece-me que foi um morcego - elucidou ele, pousando a mão no braço dela. - Decerto que devem andar mais alguns por aí. - Eleanor ficou parada junto dele e pouco depois surgiram mais dois ou três morcegos, de tamanho ínfimo, saídos das árvores e voando por cima da cabeça dos dois. Não tardaram a desaparecer.

 

- Não me diga que ficou assustada?

 

- Não, nem pensar. Só rui apanhada de surpresa, mais nada.

- Começou a pensar nos morcegos que costumavam voar pelo sótão de Pitcairn e em David aos gritos, sempre que algum lhe passava a rasar a cabeça.

 

- Há quanto tempo é que vive aqui? - perguntou ele, quando já caminhavam pela beira da estrada.

 

- Há mais de quatro anos e meio. Antes de me mudar para aqui, vivia no Berkshire.

 

- O que é que a levou a optar pelas Highlands? Nasceu aqui?

 

- Não, não nasci, mas a minha irmã habita perto, pelo que me pareceu ser o melhor sítio para viver com a Claire, a minha filha. Nessa altura, ela tinha apenas nove anos e a Eilidh, a prima, a mesma idade.

 

- A Claire é a miúda loura de pernas altas?

 

- Precisamente.

 

- A outra loura de pernas altas.

 

Estaria ele a tentar arrastar-lhe a asa? Eleanor não tinha a certeza. Já haviam chegado aos portões da quinta e se ainda fosse dia, poderiam avistar o estuário. À luz da Lua, Eleanor só conseguia distinguir os reflexos do luar na superfície da água.

 

- Quer continuar a caminhar? - perguntou Gavin.

 

- Estava a pensar que conseguiria ver o estuário. Mas talvez não. Este é o meu passeio preferido, até aqui e por este caminho adiantou Eleanor, apontando para o percurso a que estava a referir-se, para lá da quinta, pelo cimo da colina. - A vista é magnífica e por ali pode-se ir até ao Miradouro de Neil Gunn.

 

- Sei que sim - corroborou ele. - E você tem toda a razão... a vista é lindíssima. - Ambos se deixaram ficar em silêncio por uns momentos, olhando para a panorâmica que à noite não se conseguia avistar. - Vamos - incitou ele pouco depois -, está um frio de rachar. Venha até minha casa para partilhar comigo uma garrafa de vinho.

 

- Bem...

 

- Está a apetecer-me ter um pouco de companhia - acrescentou, fitando-a, do que Eleanor se apercebeu, mas não ergueu o olhar para os olhos dele; em vez disso, retomou o caminho de regresso às vivendas. - Quem sabe... talvez lhe apeteça também ter um pouco de companhia - continuou ele, ajustando a passada à dela. - Ou estava a planear sair mais tarde? Onde é que a encantadora Claire foi?

 

- Foi a uma festa. Em casa de uma amiga.

 

- Esta é a pior noite do ano - afirmou ele -, ou talvez seja a melhor. Depende do lugar onde se decida passá-la ou da pessoa com quem se estiver.

 

Eleanor não lhe deu réplica, incapaz de dizer fosse o que fosse em que teria de admitir qualquer coisa. Seguiu-o até casa dele. Chegada à sala de estar, do mesmo tamanho e configuração da sua, mas que apesar disso era bastante diferente, parou na ombreira da porta. A sala era iluminada por uma luz difusa, cheia de sombras que tremeluziam, projectadas por uma dúzia, ou mais, de velas colocadas na prateleira da lareira, em cima da escrivaninha, nas estantes e à volta do perímetro do soalho, entre a carpete e o rodapé.

 

- Você saiu e deixou estas velas todas acesas?!

 

- Está a pensar que agi de modo estúpido... que é perigoso?

 

- E se por acaso uma das velas tivesse tombado para o soalho?

- perguntou Eleanor.

 

- Tem toda a razão - admitiu ele com uma expressão acabrunhada.

 

- Dão um ambiente maravilhoso... só que... são tantas... O que o levou a acender tantas velas?

 

- Ora - proferiu ele com um encolher de ombros -, sabe como é. Um desafio à escuridão - justificou, pegando numa garrafa de vinho tinto meio cheia que estivera junto da lareira. - Mas é melhor sentarmo-nos, não acha?

 

À luz das chamas das velas e da lareira, pela primeira vez Eleanor pôde observá-lo com clareza. Era magro e parecia estar em boa forma física, uma cabeça mais alto do que ela. Entretanto, ele ofereceu-lhe um copo de vinho.

 

- Ora bem, vamos lá a pôr este ano horrível na rua, bebamos as borras que nos deixou - disse ele, sentando-se no chão diante da lareira, de pernas cruzadas e erguendo o copo num brinde.

 

- Isso quer dizer que teve um mau ano?

 

- Bem, para lhe ser franco, tenho de dizer que as últimas semanas não foram... - interrompeu-se com outro encolher de ombros e um sorriso, dando a impressão de que aquilo lhe era indiferente.

 

Vendo que ele não tencionava acrescentar mais nada, depois de ter tomado um pouco do vinho agradável e aveludado, ela adiantou:

 

- Ultimamente tem vivido sozinho, não tem? A sua mulher... foi para fora?

 

- Ora, deixe-se disso - redarguiu ele, rindo-se. - Tenho a certeza de que a Edie já a pôs a par de tudo. Fui abandonado. AKate foi-se embora... voou para fora do ninho.

 

- Oh, lamento muito.

 

- Não tem importância. Pelo menos uma vez na vida, toda a gente devia passar um Hogmanay sozinho, não lhe parece? Quanto mais não seja, pela experiência - acrescentou ele, preparando-se para lhe encher o copo.

 

- Não, estou bem assim. Nos últimos tempos quase deixei de beber.

 

- Com a diferença de que, como é evidente - continuou ele, ignorando o que ela lhe dissera -, ao fim e ao cabo, não estarei sozinho. Não está com pressa de se ir embora, pois não? Vai fazer a passagem do ano comigo, de acordo?

 

- Sim, está bem. - Como é que ela poderia deixá-lo? Era muito possível que Gavin não se sentisse tão animado como pretendia aparentar, talvez se sentisse muito infeliz se ela o deixasse sozinho. Dava a impressão de estar ansioso por que ela ficasse. Portanto, talvez, a despeito de tudo, ela fosse capaz de passar aquelas últimas horas, bastante sombrias, acordada, dando pela passagem delas. Eleanor tentou descontrair-se, recostando-se nos almofadões do sofá.

 

- Este vinho é muito agradável - comentou ela.

 

- O meu pai sempre gostou de um bom borgonha.

 

- O seu pai?

 

- É o que ele costuma oferecer-me todos os Natais. Uma caixa de vinho.

 

- Que maravilha, logo uma caixa!

 

- Ele sabe que será deveras apreciado - replicou Gavin, inclinando-se para ela. - Tome mais um pouco deste belo vinho.

 

- Não, a sério que não, ultimamente, mal tenho tocado...

 

- A ceia festiva foi em casa do meu velhote - continuou ele.

- E você, onde é que passou a noite de Natal?

 

- Eu também fui a casa do meu pai - respondeu Eleanor. Toda a família esteve presente... a minha irmã, a família dela, as minhas tias, a Claire, eu e o meu irmão.

 

- Deve ter sido uma grande festa.

 

- De facto, foi. E a sua consoada...

 

- Apenas eu e o meu pai.

 

- E a sua mãe...

 

- Saiu de casa, já lá vão muitos anos. Fartou-se das parlapatices do meu pai. Actualmente, está casada com outra pessoa.

 

Eleanor não sabia bem o que pensar daquela confidência. Parecia-lhe uma maneira deveras estranha de alguém falar dos seus pais.

 

- Suponho que cada família seja diferente - optou por dizer.

 

- Portanto, a sua mulher... ela...

 

- Não éramos casados.

 

- Peço desculpa, pensei que...

 

- Não. Não chegámos a ir tão longe. De facto, só começámos a viver juntos há um ano.

 

- Tenho um irmão que é como você - disse Eleanor, trocista.

 

- O David. Não pára em lado nenhum, recusa-se a assumir qualquer compromisso. Seja com quem for.

 

- É a doença dos homens modernos; não é isso que está a pensar?

 

- Ora bem, não são assuntos que me digam respeito. Você e a... Kate. No entanto, com certeza que esteve apaixonado por ela prosseguiu Eleanor, cada vez mais bem-disposta por causa do vinho que, de facto, era muito bom, sem pensar na quantidade que já lhe havia servido, não se dando conta das vezes que ele voltava a encher-lhe o copo, que, por sinal, era bastante grande.

 

- Claro que sim, durante algum tempo - admitiu ele, acabando o vinho que restava na garrafa, dividindo-o pelos copos dos dois. - E quanto a si?

 

- O quê, quanto a mim? - perguntou Eleanor.

 

- A sua vida, os seus amores, os seus desgostos. Não esqueçamos que estamos no Hogmanay. Falemos do passado, para depois o deitarmos fora. É o que tenciono fazer.

 

- A sério? - perguntou ela, ficando a pensar no que ele dissera, ou tentando pensar. Tinha a sensação de que tudo começava a ficar à distância e em liberdade, como se o mundo se tivesse alargado pelas costuras. - Sim, é isso mesmo. Também tenho de me libertar do passado.

 

- Óptimo. Dispomos... - Gavin interrompeu-se, vendo as horas no relógio de pulso. - Dispomos de mais ou menos uma hora para fazermos isso.

 

Eleanor já tinha deixado de se preocupar com as horas, se bebia muito ou não; isso exigia-lhe demasiado esforço. Com certeza que ali nada lhe poderia acontecer e não adviria mal nenhum ao mundo caso tomasse uns copos de vinho. E, assim, os dois começaram a aquecer diante da lareira, com ela a ouvi-lo falar, apreendendo a maior parte do que ele lhe dizia, rindo-se quando Gavin afirmava alguma coisa que a divertia. Quando deu por si, já era quase meia-noite, o que a abalou um pouco, tomando consciência da hora e do momento.

 

- Temos de ir até lá fora - sugeriu ele, levantando-se do chão. Pegou na mão de Eleanor, ajudando-a a erguer-se do sofá, equilibrando-a quando ela cambaleou um pouco ao sentir os efeitos do vinho.

 

Ambos se detiveram na vereda estreita que atravessava o jardim, continuando com os respectivos copos na mão, à espera que os últimos minutos do ano passassem.

 

- É possível que consigamos ouvir as badaladas do sino - disse Eleanor, sentindo frio e as ideias mais claras no ar gelado da noite.

- Decerto que ouviremos os sinos de Dingwall. A noite está tão calma. - Pouco depois, começaram a ouvir as badaladas da meia-noite que soavam à distância, naquela noite em que nada bulia. Ele baixou a cabeça, dando-lhe um beijo, primeiro, na face fria e depois, inclinando-lhe o queixo para cima com a ponta do dedo, nos lábios, com a boca que ainda estava quente e com sabor a vinho, um beijo suave e demorado, até que ela afastou o rosto, dizendo em voz alta, numa entoação aguda e elevada: - Pois bem, cá vai... Feliz Ano Novo!

 

- Muito bem - disse ele quando já tinham voltado para dentro de casa -, vou abrir a primeira garrafa do novo ano.

 

- Vou ter de ir para casa - adiantou Eleanor com alguma hesitação.

 

- Está a brincar? A noite ainda é uma criança. Não me deixe já. Sentir-me-ei tristonho e começo logo a pensar na Kate.

 

- Está bem, de acordo... mas só fico mais um bocadinho. Desta vez, ele sentou-se junto dela, no sofá. Algumas das velas já se haviam derretido por completo, extinguindo as chamas. As que restavam como que tremeluziam a medo, muito embora a maior parte da luz viesse das chamas da lareira a que, entretanto, ele acrescera mais toros.

 

- Com certeza que existirá alguma razão... - começou ele a dizer, voltando a encher-lhe o copo. - Quer dizer, uma razão em especial, que a leve a não gostar desta noite?

 

- Ora... - Eleanor não se achava capaz de lhe dar resposta, nem tão-pouco de pensar.

 

- Descontraia-se - continuou ele. - Não creio que em toda a minha vida alguma vez tenha beijado uma mulher tão tensa.

 

- Eu não estou... Eu... - Eleanor deteve-se. Ele tinha uns olhos cor de avelã; as rugas finas emprestavam-lhe uma expressão de bom humor, de troça. Parecia-lhe que o rosto dele estava muito próximo, cheio de simpatia. ”Vou dizê-lo”, pensou ela sem sentir o mínimo pejo. - O meu marido morreu no Hogmanay. E tem razão, detesto as passagens de ano. Nem sequer sei porque é que estou aqui, como é que sou capaz de me aguentar. Devo estar... Devo estar embriagada.

 

- Não quer contar-me o que aconteceu?

 

- Não. Nunca mais quero voltar a pensar nisso - ripostou ela com os olhos rasos de lágrimas, vendo as feições dele desfocadas; ele e as chamas da lareira transformaram-se num prisma de cores radiantes sem qualquer significado.

 

- Sabe de que é que eu gostaria?

 

- Não. De quê? - perguntou Eleanor, pestanejando com força e deixando que as lágrimas lhe corressem pelas faces; pelo menos voltara a conseguir focar a visão, distinguindo-lhe a fisionomia com nitidez contra o clarão das labaredas, um contraste escuro.

 

- Gostaria de fazer sexo consigo, neste preciso momento confessou ele.

 

Eleanor não lhe deu resposta. Parecia-lhe impossível conseguir ter um pensamento coerente, incapaz de articular o que quer que por acaso lhe ocorresse à mente. Ficou a olhar para ele, mas pareceu-lhe que ele era alguém que se encontrava muito à distância, como se o avistasse através de um longo túnel. Imobilizada, Eleanor raciocinou que algures, muito no fundo do seu pensamento, deviam existir palavras, uma frase, uma maneira de lhe poder responder. E nessa parte consciente, que se mantinha num rodopio constante, deu-se conta de que estava muito embriagada.

 

- Peço desculpa - disse Gavin. - Estou a comportar-me de uma maneira absolutamente grosseira. Peço-lhe que me desculpe.

 

Quando ele começou a aproximar-se dela, a luz das chamas a reflectir-se no cabelo sedoso emprestava-lhe rubor às faces: todo ele tremeluzia, como que lançando centelhas de desejo por ela, em cambiantes de ocre e dourado. Na garganta de Gavin, onde o colarinho estava desabotoado, ela viu uma ligeira pulsação, por baixo dos pêlos encaracolados, como fios de cobre. Eleanor cheirava o vinho tinto no hálito de Gavin, sentindo o calor intenso que irradiava do corpo dele, tão forte que tinha a sensação de estar a ser aquecida pela sua pele e não pelo calor que irradiava da lareira. Estava a sentir-se entontecida; fechou os olhos.

 

Quando acordou, Eleanor sentia o corpo rígido e frio; o fogo na lareira dera lugar a um monte de cinzas arrefecidas. Lá fora ainda era noite, uma escuridão igual à que reinava dentro de casa, o que lhe permitia ver o céu pontilhado de estrelas e uma fatia prateada da Lua através da janela sem cortinas. Um pouco a medo, começou a mexer-se, como se quisesse certificar-se de que as suas pernas continuavam no devido lugar. Sentiu um pé gelado que se encostava ao outro. Eleanor soergueu a cabeça.

 

Verificou que estava deitada no sofá, coberta pelo que lhe pareceu ser uma manta de viagem, áspera e com muito pêlo, embora fosse tão leve que a sua respiração fazia com que se soerguesse. Sentia o corpo enregelado até ao queixo. Mas, apesar disso, tinha a impressão de que a cabeça lhe escaldava, além de ter a garganta ressequida, sentindo a bexiga muito quente, como se ameaçasse rebentar, dolorosamente inchada. Devagar, começou a levantar-se, fazendo um esforço para se recordar de onde estava, perguntando-se onde é que seria a casa de banho. Tinha sonhado que andava à procura, por um corredor vazio e bastante comprido, de uma sanita que estivesse em boas condições, uma casa de banho cuja porta se fechasse. Continuaria ela a sonhar? Ou, pelo contrário, estaria mesmo a percorrer um corredor estreito, do tamanho e configuração exactamente como o da sua própria casa, se bem que não fosse o seu, indo a uma casa de banho que conseguia estar mais fria do que a sua, decorada em tons de azul-escuro ao invés de cor-de-rosa, onde a um canto havia uma pilha de revistas National Geographic e toalhas sujas por cima da banheira, assim como vários artigos para a barba sobre uma prateleira. Reparou em todos estes pormenores quando se deixou cair pesadamente na sanita, começando a urinar muito e sentindo o cheiro a amónia morna que se evolava como se fosse vapor. Pôs-se de pé, puxando as calças de ganga para cima. Não tinha acontecido nada. Ela devia ter ficado inconsciente e ele decidira deitá-la no sofá.

 

Voltando a sentar-se no sofá, continuando às escuras enquanto tentava descobrir onde é que os sapatos teriam ficado, Eleanor reflectia, procurando chegar a uma conclusão: aquela situação seria a favor ou em desabono dele? O facto de ele ter optado por deitá-la no sofá, após o que teria ido para a sua própria cama. Se é que ele se deitara no quarto. ”Devo continuar embriagada”, pensou Eleanor. ”E porque é que eu não ligo as luzes?” Deteve-se por uns instantes, pondo-se à escuta, mas ouviu apenas o piar de um mocho.

 

Foi então que um dos pés encontrou um dos sapatos. Ali estava ele por fim. Casaco. Na noite anterior, tinha vestido um casaco. Contudo, não era capaz de se recordar de onde o deixara.

 

Desistindo, pelo menos de momento, saiu pela porta da frente, dirigindo-se para a sua própria casa. Quando chegou diante da vivenda de Jim e Edie deteve-se. Uma vez mais, ouviu o piar do mocho acompanhado do roçagar súbito de asas. Sentiu um esvoaçar quase rente à sua cabeça. Mas não conseguira ver que tipo de animal a sobrevoara, o qual, entretanto, desaparecera. Quando ergueu os olhos para o firmamento já era tarde de mais. Como o céu estava límpido e tão cheio de estrelas. O ar estava tão gélido que fazia com que os olhos lhe doessem, além de lhe dificultar a respiração. Mesmo assim, deixou-se ficar por mais um minuto ao frio, como se estivesse a pô-lo à prova, sentindo desconforto, mas, do mal o menos, bem desperta. ”Já estamos no novo ano”, pensou Eleanor. ”Consegui ultrapassar o Hogmanay. Já estou no ano seguinte.” Agora já podia ir para casa e ficar sozinha. Só então é que recomeçou a andar, regressando à sua própria casa. Chegada à porta, que deixara fechada apenas no trinco quando fora a casa de Gavin com a única intenção de lhe dizer que ele se tinha esquecido de desligar as luzes do automóvel, o que acontecera no ano anterior, havia já muito tempo, empurrou-a toda para trás.

 

Já na cozinha de sua casa, Eleanor fez um chá, embora não tivesse bebido muito; em seguida, encheu a chaleira que pôs ao lume para ferver a água com que encheria as botijas de água quente com que se foi deitar depois de ter tomado um comprimido de paracetamol. Achou a fronha extremamente gelada, sentindo a região posterior dos pés e das costas escaldadas porque a água das botijas estava muito quente. Começou a pensar em partes do que tinha sucedido na noite anterior: a caminhada no escuro, as velas e o sabor afrutado do vinho. De tudo o que ele lhe dissera, recordava-se só de uma coisa: Quero fazer sexo consigo. Mas teria ele realmente dito isso? Não fora: Quero fazer amor/ir para a cama/dormir consigo - tudo expressões que ela conhecia. Seria assim que as pessoas hoje em dia se referiam ao assunto? ”Pois bem, não sei dizer”, pensou Eleanor para consigo. Como é que ela poderia saber? Quereria isso dizer que o sexo era algo que se fazia, como um jantar fora ou uma noite em que se saía. Talvez, ao fim e ao cabo, ela tivesse sonhado tudo aquilo. E contudo, dentro de si sentiu como que uma centelha de qualquer coisa que poderia classificar de lascívia. Não que ela também fosse muito conhecedora dessa matéria, decorrido tanto tempo desde a última vez em que experimentara essa espécie de emoções. Sentindo-se envergonhada, Eleanor virou-se, tentando adormecer.

 

É claro que ela desejara o marido, sexualmente, sentindo saudades da sua presença, muito em especial durante as suas ausências, tendo-o surpreendido (talvez mesmo espantado) quando ele regressava e ela o recebia de braços abertos, enlaçando-o pelo pescoço com um entusiasmo que não era frequente ele ver nela. Mas de que teria ela saudades? Agora sabia que sempre anseara por algo que não conseguira encontrar quando faziam amor, a despeito do quanto ele se pudesse mostrar paciente e atencioso. Eventualmente, acabou por aprender a não confiar naquela moinha, um tanto vaga, no calor a estender-se pelas coxas, o fluxo de luxúria que tão traiçoeiro era, uma vez que isso culminava sempre numa frustração tão grande.

 

”Mas consegui ultrapassar isso”, disse para consigo própria, aninhando-se ainda mais debaixo dos cobertores, desviando os pensamentos da imagem de lan que pertencia a um passado perigoso. Estava naquela fase que antecedia um sono profundo, perdendo o controlo da imaginação que enveredava por onde bem lhe apetecia. Sentiu-se percorrida por um pequeno estremecimento, mas finalmente começou a aquecer, conseguindo conciliar o sono.

 

- É um tipo de homem bastante interessante e já fez um monte de coisas muito diferentes. Além de ter opiniões bem firmes a respeito de vários assuntos que jamais me passaram pela cabeça. Eleanor explicava isto, falando de Gavin a Marion. Tinha ido visitar a irmã depois de esta se ter submetido ao primeiro tratamento de quimioterapia. Marion admitiu que não se tratara de uma experiência agradável, reconhecendo, todavia, que não fora tão mau como inicialmente receara que fosse. De facto, estava a sentir-se bastante bem.

 

- Se os tratamentos continuarem assim - dissera ela a Fergus -, não terei grandes problemas.

 

- Veremos. Vamos ver como é que as coisas correm - limitou-se Fergus a dizer, apertando-lhe os ombros numa manifestação de afecto.

 

As duas irmãs estavam na sala de estar da casa de Marion. Durante todo o dia, a geada gelada que cobria o relvado não conseguira derreter e lá fora já começava a escurecer, trazendo consigo um orvalho que era gelo. Marion levantou-se para fechar os cortinados.

 

- Para onde é que disseste que a mulher dele tinha ido? perguntou, voltando a sentar-se, pegando na camisa do uniforme escolar de Ross para pregar um botão.

 

- Eles não são casados. Ela era apenas namorada dele. Na verdade, não sei o que é feito dela. Ele disse-me que tinha ido viver para casa de uma amiga, ou talvez seja uma prima, não me lembro. A vivenda é dele... ela morava num apartamento em Inverness, mas neste momento está alugado.

 

- Uma situação complicada - observou Marion, cortando a linha com os dentes.

 

- Não me pareceu que ele esteja à espera que ela volte adiantou Eleanor com uma entoação de voz de onde transparecia alguma dúvida. Gavin procedia como qualquer homem solteiro sem compromissos, contudo, gostaria de ter a certeza quanto a isso.

 

- Portanto... tens... tens saído com ele? - perguntou Marion à irmã. Estar no hospital era o mesmo que achar-se completamente fora do mundo; até mesmo depois de uma estada que se limitava a uma única noite, era impossível não ficar com a sensação de que muita coisa devia ter acontecido no mundo durante a sua ausência.

 

- Bem, não se pode dizer que tenhamos saído juntos. Quer dizer, praticamente, ele vive na casa ao lado, além de estar de licença em terra até ao fim da próxima semana; por isso, tenho-o visto todos os dias. Ele vem tomar café a minha casa e já me convidou, assim como à Claire, para jantar em casa dele.

 

- Ele sabe cozinhar?

 

- Bem, suponho que sim. Mas isso é o que vamos ficar a saber na próxima sexta-feira. Depois disso, ele andará no mar durante duas semanas.

 

- O que é que ele faz, nas plataformas petrolíferas? - perguntou Marion.

 

- Qualquer coisa que tem a ver com a perfuração e com produtos químicos - respondeu Eleanor, mostrando-se bastante vaga a respeito do assunto. - É um trabalho bastante técnico... mas sei que não tem de usar capacete de protecção nem tem de andar de volta do equipamento pesado da plataforma - acrescentou ela, se bem que não lhe tivesse perguntado nada a esse respeito. O convívio entre os dois limitava-se a conversas sobre literatura, política e às caminhadas pelas colinas, sem nunca terem abordado especificamente o trabalho dele.

 

- Por conseguinte - retorquiu Marion enquanto enrolava a linha à volta do novo botão, dando um último ponto para maior segurança -, conseguiste pôr para trás das costas o horror que sentias por homens de cabelos ruivos.

 

- Isso era coisa da Claire! - exclamou Eleanor com um sorriso. - Mas não estejas para aí a pensar que simpatizo com ele ou coisa assim. Mas tenho de reconhecer que é muito agradável ter alguém que venha bater-nos à porta para dar dois dedos de conversa. Ele é uma pessoa agradável para se ter por perto, pode-se continuar a engomar a roupa ou a fazer seja o que for que se esteja a fazer no momento. E aqui há dias, conseguiu arranjar a janela de guilhotina da cozinha, que estava empenada.

 

- Tens vivido muito sozinha - declarou Marion.

 

- Isso não é verdade; como é que eu podia sentir-me sozinha se tenho a Claire, para não mencionar vocês, que vivem tão perto de nós?

 

- Sim, mas sozinha no sentido de... não sei bem como explicar.

 

Eleanor, diz-me se, por vezes, não te arrependes de te teres mudado para aqui, deixando os teus amigos, a vida que tinhas em Inglaterra?

 

- Porque é que perguntas isso, lamentas que eu me tenha mudado para aqui? - perguntou Eleanor, mostrando uma expressão de perplexidade.

 

- Claro que não. Mas há ocasiões em que não posso deixar de pensar que foi egoísmo da minha parte querer que viesses viver para perto de mim, que talvez tenha tentado influenciar-te quando não devia ter feito uma coisa dessas.

 

- Não! Que isso nem sequer te passe pela cabeça. Este é o meu lar e, seja como for, agora os meus amigos estão todos aqui.

 

Marion, acompanhando a irmã à porta, interrogava-se quanto à vida solitária que ela levava. Sim, tinha pessoas amigas, mas não eram tantas como isso. Eleanor precisava de fazer qualquer coisa de útil ou mesmo de um emprego. Era necessário que tivesse um objectivo de vida.

 

Entretanto, Eilidh anunciou a sua presença quando deixou cair a mochila da escola no vestíbulo com um barulho ensurdecido, após o que entrou na cozinha.

 

- Olá, mãe, está a sentir-se bem?

 

- Sim, estou óptima.

 

- Peço desculpa por me ter atrasado... Fomos até ao fundo da rua. O Ross foi jogar futebol; ele não lhe disse?

 

- Sim, e o teu pai hoje vai ficar no hospital até mais tarde, por isso, vamos jantar mais tarde.

 

- Estou a morrer de fome... Posso comer agora?

 

Entretanto, Kirsty, que viera mais cedo da escola primária, escorregou pelas escadas escarranchada no corrimão com as costas inclinadas para trás.

 

- Posso comer um pacote de batatas fritas? - perguntou. ”É assim mesmo que eu quero as coisas”, pensou Marion para com os seus botões enquanto as filhas se instalavam no chão, estendidas defronte do televisor e espalhando migalhas pelo soalho, ao mesmo tempo que embirravam uma com a outra por causa do programa que cada uma queria ver. ”Quero que tudo se passe da maneira mais vulgar que seja possível, não quero estar doente.” Detestava aquelas interrupções no quotidiano da sua vida, tendo-se mostrado ressentida e irritada durante a semana toda. Agora sentia as náuseas que como que lhe subiam ao peito, alojando-se na garganta, mas engoliu com força, tentando ignorar o desconforto que ameaçava apoderar-se de si. Pensou que estava era a precisar de uma chávena de chá.

 

Quanto a si, Eleanor deixara de desejar que a sua vida se mantivesse como até então. Quando se esforçava por levar uma vida sem alterações de maior, fizera-o tendo sempre em mente o bem-estar de Claire, o que tinha vindo a acontecer ao logo dos últimos anos, e as grandes mudanças (o falecimento de lan, a mudança de regresso à Escócia) haviam sido o suficiente para a inquietar, provocando-lhe um sentimento de insegurança durante tempo de mais. Naquele momento, verificava que as coisas se tinham mantido imutáveis ao longo de demasiado tempo. Ela também descobrira aquilo que não era capaz de confessar facilmente aos outros: que a vida era bastante mais fácil desde que haviam passado a ser só as duas. Na verdade, era uma vida que preferia à de outrora. As outras pessoas tinham comentado (decorrido um intervalo no mínimo decente) que ela acabaria por encontrar outra pessoa, que voltaria a casar, mas ela própria nunca acreditara que isso viesse a acontecer, uma vez que até ela mesma se tinha surpreendido quando se decidira a casar. Ao fim e ao cabo, nenhuma mulher estaria à espera de vir a ser a escolhida por um homem como lan duas vezes na vida, alguém atraente e bem-sucedido na vida, o qual tinha sempre resposta para tudo. Fergus era o outro género de marido que Eleanor conseguia compreender. Não era uma pessoa enérgica e ambiciosa como lan havia sido, mas era um homem de quem se podia depender e, ainda que não primasse pela imaginação, num aspecto era muito parecido com lan: o tipo de homem que sabia sempre o que fazer face a uma situação de crise, por mais inesperadas e graves que as circunstâncias pudessem ser. Marion dizia que Fergus andava preocupado, mas tudo o que Eleanor via era calma e confiança. Muito embora parecesse andar apreensivo, nunca o vira receoso, o que era um alívio. Se Fergus estava à espera de que tudo acabasse por se resolver a contento, decerto seria isso que viria a verificar-se.

 

Esta não era a impressão com que Eleanor ficara quanto à maneira de ser de Gavin Soutar, o qual parecia não se cansar de confessar que era uma pessoa em quem não se podia confiar, admitindo as suas próprias faltas sem o menor pejo, até mesmo com satisfação. Porém, quando ele entrava na pequena vivenda de Eleanor, esta ficava com a sensação de que a casa se iluminava, enquanto ela própria se sentia com mais energia, com a impressão de que aconteciam coisas interessantes na sua vida. No entanto, mantinha-se na defensiva na presença de Claire.

 

- Onde é que a mãe arranjou estas flores? - perguntou Claire pouco depois.

 

- Foi o Gavin quem as trouxe.

 

- Com que então... estou a ver... com que então o Gavin ofereceu-lhe flores. Tenha cuidado, mãezinha, está-me a parecer que ele tem um fraquinho por si.

 

- Não sejas disparatada. Estavam em promoção no Tesco e só por isso é que ele comprou uma data delas para si próprio e um ramo que me ofereceu.

 

- Um homem que compra flores para si próprio? Estranho.

 

- Não tem nada de estranho, Claire. A casa dele é tão agradável, cheia de livros e de CDS e de tapetes muito coloridos - especificou Eleanor, começando a arranjar espaço na mesa da cozinha onde Claire espalhara as coisas para fazer os trabalhos de casa. Desculpa, mas preciso de um pouco de espaço na mesa.

 

- Estou quase a acabar.

 

- Seja como for - continuou Eleanor, que partia ovos para dentro de uma tigela -, na próxima sexta-feira terás oportunidade de ver a casa dele.

 

- Ah, sim? E como é que isso vai acontecer?

 

- Vamos jantar a casa dele, ou já te esqueceste?

 

- Oh, na sexta-feira. Mas não posso ir, mamã... O pai da Sarah ficou de nos levar a Inverness para irmos ao novo cinema e depois do filme vamos comer batatas fritas, e essas coisas, no Harry Ramsden’s. Não posso faltar... prometi à Sarah que ficava a dormir em casa dela.

 

- Oh, Claire!

 

- De qualquer maneira, o que é que eu iria fazer a casa dele? A mãe e ele só sabem falar de assuntos em que eu não estou interessada.

 

- Obrigada por nada - ripostou Eleanor com ironia.

 

- Mas, mãe, é verdade. Quer dizer... ele é simpático e tudo o mais, mas...

 

- Está bem. - Eleanor deixou os ovos meio batidos e calçou os sapatos.

 

- Onde é que a mãe vai?

 

- Vou dizer ao Gavin que não podes jantar em casa dele. Suponho que não queiras ser tu a fazer isso.

 

- Obrigada, mãezinha, é maravilhosa.

 

- Podíamos combinar o jantar para outra noite - sugeriu Gavin -, mas só é possível marcar para daqui a duas semanas... No sábado tenho de me ir embora..

 

- Eu sei. Tenho muita pena.

 

- Não tem importância... Mas a Eleanor vem jantar na sexta-feira como tínhamos combinado, não vem?

 

Ainda na soleira da porta, Eleanor hesitou. Não tinha aceite o convite dele para que entrasse; cruzou os braços, envolvendo o torso como se estivesse a abraçar-se, protegendo-se do vento frio.

 

- Sim, se é isso que... se tiver a certeza.

 

- Imagino que, seja como for, a Claire prefira estar com as amigas.

 

- É verdade - confirmou Eleanor com um sorriso de alívio.

 

- Sendo assim, cá a espero na sexta-feira. As sete da noite está bem para si?

 

Enquanto percorria a curta distância até sua casa, Eleanor apercebeu-se de que havia qualquer coisa que se alterara no relacionamento entre os dois. Começou a pensar na noite de Hogmanay, assunto que nunca mais tinham voltado a abordar, excepto para gracejarem pelo facto de ambos se terem embebedado ao ponto de não se lembrarem de quase nada do que acontecera nessa noite de passagem do ano. Mas não me esqueci do passeio, dissera ele. Ela recordava-se de mais, de o ouvir a dizer: Gostaria de fazer sexo consigo, neste preciso momento. Seria que ele ainda se lembrava disso?

 

- Podem ter um jantar muito romântico, não? - disse Claire quando ela recomeçou a preparar a refeição que interrompera.

 

- Põe-te a andar! - retorquiu Eleanor, levantando a tampa do fogão e colocando a frigideira das omoletas ao lume para a aquecer.

- Tira a alface do frigorífico, Claire, e lava-a.

 

Em conjunto, mãe e filha prepararam a refeição, sem terem voltado a falar de Gavin. Mas, mais tarde, Claire voltou ao assunto.

 

- Ele não é o seu namorado, pois não, mãe? Pensei que a mãe andava a namorar o Andrew.

 

- Já estou velha de mais para ter namorados - respondeu Eleanor.

 

- Isso não é verdade. A mãe da Anny divorciou-se e já arranjou um namorado - contrapôs Claire, que estava deitada no sofá e com os pés apoiados no braço. Eleanor tomava o seu café enquanto lia o Scotsman.

 

- Faz ela muito bem - retrucou, virando uma página do jornal.

 

Claire estava como que hipnotizada a olhar para a parte nua do corpo entre a bainha da camisola de algodão e o cós das calças, última moda entre os jovens.

 

- Sabe uma coisa? O meu umbigo é diferente do das outras pessoas.

 

- A sério?!

 

- É mais fundo e parece ter um formato mais largo - explicou, espetando um dedo no umbigo, após o que o puxou para fora.

- Está a ver, o de toda a gente é assim...

 

- Pára de fazer isso... parece obsceno - ripostou Eleanor erguendo o olhar.

 

- A mãe acha que eu sou gorda?

 

- Não - replicou Eleanor.

 

- Tenho a impressão de que o meu rabo é muito grande. Se me puser defronte do espelho, com as costas viradas para trás, está a ver?, e se voltar a cabeça e...

 

- Não sejas tolinha. Tens uma figura muito bonita.

 

Claire decidiu abandonar aquela linha de raciocínio, pegando na sua revista.

 

- Pelo menos, o Andrew é bastante bem-parecido - acentuou ela. - Quanto ao Gavin, bem... ele é feio, não lhe parece. Quer dizer, tem montes de sardas nos braços.

 

Mas Eleanor não achava que Gavin fosse feio. Era possível que, por detrás da postura dele durante o dia, um homem magro e comum que usava camisas de fazenda axadrezada e calças de ganga, ela continuasse a ver o halo do clarão das chamas da lareira à sua volta, sentindo o calor do seu corpo quando se aproximava dele. Reconhecia que andava nervosa face à expectativa com que aguardava a noite da próxima sexta-feira.

 

Às dezasseis horas, Claire pôs-se a caminho com as amigas; as horas desde então até às sete da noite arrastavam-se interminavelmente. Se ainda houvesse luz do dia, ela poderia ter dado um passeio até ao estuário. Mas, como já fazia escuro, o que é que podia fazer além de acabar de passar a roupa a ferro, ler ou mudar de roupa? Ao princípio do dia tinha ido a Inverness, percorrendo as lojas do centro da cidade, à procura de qualquer coisa que pudesse vestir para o jantar. Tinha roupa mais do que suficiente, pelo que sóquando se sentia aborrecida é que se decidia a ir às compras. Marion tinha o hábito de fazer as suas compras nos grandes armazéns mais conservadores, apresentando sempre um aspecto muito elegante e cuidado. Porém, Eleanor descobrira que tinha talento para encontrar roupas elegantes em lojas que vendiam vestuário em segunda mão, ou nos saldos, agora que não precisava de se vestir para agradar a ninguém além de si própria. Às vezes, até mesmo Claire comentava: ”Isso é muito bonito”, se bem que ela própria continuasse determinada a nunca usar nada que viesse das lojas da Oxfam.

 

Em vez de roupa nova, Eleanor acabou por ir a uma loja de bebidas com a intenção de escolher uma garrafa de vinho. Ficou a olhar para as prateleiras com inúmeros tipos de vinho, perguntando a si mesma se uma garrafa de um vinho caro seria garantia da sua qualidade. O empregado, a quem recorreu, limitou-se a um encolher de ombros, apontando para os vinhos que estavam em promoção. Por fim, Eleanor acabou por escolher um dos que lhe foram indicados, tendo-se arrependido da sua escolha assim que saiu do estabelecimento. Devia ter gasto mais dinheiro.

 

Às dezoito horas, começou a encher a banheira para tomar um banho bastante prolongado e o resultado foi ter-se atrasado; quando chegou à porta da casa de Gavin, ia toda corada, desfazendo-se em desculpas pelo atraso.

 

- Veio muito a tempo - sossegou-a ele. - Entre, entre.

 

- Não sei o que é, mas cheira bem - comentou Eleanor, estendendo-lhe a garrafa de vinho. - Espero que seja bom.

 

- É magnífico, obrigado. Dê-me o seu casaco.

 

Desta vez não havia tantas velas, mas continuava a haver várias na prateleira da lareira e em cima da mesa, o que dava à sala uma luz tremeluzente que projectava sombras nas paredes. ”Afinal, ele não se esqueceu.” Essa noite, não tencionava beber muito, apenas um copo de vinho durante o jantar, no máximo dos máximos uns dois, mantendo assim a resolução que tomara havia vários anos.

 

Junto da lareira, encontrava-se uma garrafa de vinho tinto que já fora aberta. Gavin serviu-lhe um copo.

 

- O jantar está quase pronto - informou ele. Na cozinha, Eleanor deparou com vários tachos ao lume, todos a ferver; o ar estava impregnado de um aroma a comida bem apaladada e condimentada com tomate. Gavin deitou arroz no tacho maior que não tinha tampa.

 

- São só mais uns dez minutos - disse ele. Eleanor olhou em redor, observando a cozinha que era do mesmo tamanho da sua, mas as semelhanças paravam aí; o velho fogão Rayburn fora substituído e as bancadas tinham tampos de mármore, enquanto os armários, feitos de encomenda, eram em madeira de pinho. A verdade é que estava tudo muito desarrumado e atravancado; o peitoril da janela achava-se cheio de vasos com plantas, em número excessivo.

 

- Vamos comer na sala... Aqui só temos este balcão que serve apenas para se tomar um pequeno-almoço à pressa.

 

- Não lhe agrada?

 

- Você teria concebido uma cozinha como esta? - perguntou ele.

 

- Antigamente, a minha cozinha era igual a esta - respondeu Eleanor, sorrindo-lhe. - A única diferença era ser mais espaçosa e arrumada.

 

- Mais arrumada é coisa que não seria difícil de conseguir, não acha?

 

Mais tarde, Eleanor diria a Marion que ele sabia cozinhar muito melhor do que ela própria. Todavia, seria de esperar que os homens soubessem cozinhar assim tão bem? Eleanor havia sentido um certo mal-estar por haver alguém que a servisse à mesa, não se tendo cansado de elogiar a refeição, dizendo que estava excelente. Mas o vinho ajudava, aquecendo-lhe o corpo todo.

 

- Não, estou bem assim - recusou ela quando ele lhe ofereceu mais vinho. - Regra geral, não tenho o hábito de beber.

 

- E porque não?

 

- Porque não quero, mais nada - reiterou ela.

 

- No entanto, a Eleanor não é abstémia, não tem de conduzir até casa e não está doente... Portanto, beba mais um copo - insistiu Gavin.

 

Ela acabou por ceder, mas com a intenção de deixar a maior parte do vinho no copo. Todavia, sem saber bem como, deu conta de que o copo ficara vazio, tendo voltado a ser pressurosamente cheio por ele. Disse a si mesma que a última vez que se entregara àquelas libações não lhe acontecera nada de mal.

 

- O que é que se passa? - perguntou ele depois de já ter levantado a mesa e levado o café para a sala.

 

- Desculpe, mas não estou a entender.

 

- De que é que tem medo, caso decida tomar um copo a mais? De perder o domínio sobre si própria?

 

- Não, nada disso, tem a ver com algo que me aconteceu. Não teria acontecido se eu tivesse estado sóbria.

 

- Sentimentos de culpa - resumiu ele. - A grande qualidade de todos os escoceses.

 

- Você não sabe de que estou a falar - ripostou Eleanor, muito ruborizada.

 

- Não - concordou Gavin. - E que tal se me contasse?

 

- Não posso - replicou ela, renitente.

 

- De acordo - retorquiu ele, tendo, aparentemente, perdido o interesse que o assunto de início lhe suscitara.

 

- E se nos sentássemos junto da lareira?

 

- De onde é você? - perguntou Eleanor depois de ambos se terem instalado. Reparou que, uma vez mais, tinha o copo cheio. Teria bebido alguma coisa do terceiro copo? Não tivera intenção de o fazer. - Não sou capaz de situar o seu sotaque.

 

- Oh, vivi durante muitos anos em Inglaterra. O mais provável foi ter estado em Londres quando você também viveu lá. Mas nasci em Perth. Pode-se dizer que sou quase um nativo das Highlands - respondeu Gavin com uma careta risonha e erguendo a garrafa. Ainda restava bastante vinho, o que significava que não poderiam ter bebido tanto como ela estava a pensar. Mas aquela talvez já fosse a segunda garrafa... dava a impressão de ser a que ela trouxera. Tinham-se sentado no tapete diante da lareira; Gavin instalara-se de pernas cruzadas, enquanto Eleanor se havia encostado a uma poltrona.

 

- A minha mãe deixou o meu pai quando eu tinha catorze anos - começou ele a dizer inopinadamente. - Nessa altura, eu estudava num colégio interno. Houve um Verão em que vim para casa durante as férias, tendo sido informado de que passaria a segunda metade dessas mesmas férias com a minha mãe, na sua nova casa. Foi a primeira vez que ouvi falar na separação dos meus pais.

 

- Mas isso deve ter sido um choque terrível! - exclamou Eleanor.

 

- Ora, não sei. Nessa altura já nós nos tínhamos mudado para Edimburgo, embora a minha mãe tivesse continuado a viver em Borders. Ela conhecia um sujeito que costumava levar-me com os filhos a escalar colinas. Eram mais velhos do que eu. Nesse ano, aprendi muita coisa.

 

- Por conseguinte, com quem é que ficou a viver?

 

- A maior parte do tempo com o meu velhote. Senti que ele precisava de companhia; além do mais, não era uma boa altura para estar a mudar de colégio. A minha mãe acabou por casar com o sujeito que gostava de escalar colinas. Um homem bastante simpático e de quem se podia depender, ao contrário do meu pai. O meu velhote continuou a ter os seus casos amorosos, mas fiquei com a impressão de que não lhe davam tanta satisfação depois de eliminado o aspecto de secretismo a que a presença da minha mãe o obrigava.

 

- Você está a brincar comigo, não é verdade? - perguntou Eleanor, atónita.

 

- Só um bocadinho - admitiu Gavin.

 

- E quanto a si? Disse-me que não era casado com a Kate. ”Sim, e a respeito da Kate?”, interrogava-se ela, a qual desaparecera havia tão pouco tempo. Vira uma mulher de cabelos pretos e curtos a entrar num automóvel. E isso era tudo o que Eleanor sabia em relação a ela. O resto limitava-se ao que Gavin lhe contara, o que talvez não fosse inteiramente fiável.

 

- Não - admitiu ele -, mas já fui casado uma vez. Não durou muito porque o casamento não resultou.

 

Aquela confidência fez com que Eleanor se recordasse de David, o qual concluía muito amiúde que as coisas não resultavam.

 

- Portanto, também não teve nenhum filho dessa mulher? perguntou Eleanor, afivelando uma expressão de indiferença, embora se tratasse de uma pergunta que exigia um ”não” por resposta, como em tempos aprendera nas aulas de Latim. Mas a expectativa saiu-lhe gorada.

 

- Sim, sim, tivemos um filho, um rapaz. No entanto, foi difícil manter-me em contacto com ele depois de nos termos separado. Ela pensou que era melhor se eu não o visse, para que o garoto pudesse levar uma vida mais tranquila. O miúdo teria... o quê? Uns dois anos. E de qualquer modo, por imperativos profissionais, eu era forçado a ausentar-me durante muito tempo. Todavia, reconheço que devia ter-me esforçado mais. Agora apercebo-me disso. Entretanto, ela adoeceu, passando a andar em tratamentos psiquiátricos que retomava e interrompia constantemente... Na verdade, quem criou o garoto foi a mãe dela que, vá-se lá saber porquê, não engraçava muito comigo - acrescentou Gavin sorrindo-lhe com um encolher de ombros, como se nada daquilo tivesse grande importância. - Claro que agora ele já é um homem. Já fez vinte e quatro anos. Vejo-o ocasionalmente, sempre que vou a Glasgow.

 

Como que atordoada, Eleanor sentia o peso da tragédia de outra pessoa que, em meia dúzia de frases, era esvaziada de toda e qualquer importância.

 

- É uma situação tão triste - comentou, mas nas suas palavras não se adivinhava um mínimo de compreensão pelos sentimentos de outrem. A narrativa dele, dita de uma maneira tão fria, havia-o afastado dela, dando a impressão de o ter isolado, deixando-o a sós com o seu passado. Eleanor não queria inteirar-se de mais nada quanto àquele assunto, não desejando que agora adquirisse importância. Um homem, um jovem de vinte e quatro anos, já adulto, sem necessitar da presença de um pai. No entanto, a presença dele parecia pairar por perto, recordando-lhe como seria impossível que ela e Gavin encetassem um novo relacionamento que mudaria a vida de ambos. Perguntava-se como é que as outras pessoas conseguiam fazer isso, numa fase das suas vidas semelhante àquela por que ambos passavam, quando para trás já tinha ficado tanta coisa, tanta tristeza que os endurecera antes mesmo de se conhecerem.

 

- Não tarda muito vou ter de ir para casa - anunciou Eleanor, inclinando-se para trás e fechando os olhos.

 

No silêncio que se seguiu, pressentiu antes de ele o fazer que Gavin iria tocar-lhe. Sentiu a mão pesada e quente na sua coxa.

 

- Eleanor. - Ela abriu os olhos. Ali estava ele, com a pele trigueira que a luz das chamas lhe emprestava, com o colarinho da camisa aberto, mostrando os pêlos encaracolados de um ruivo-dourado que lhe assomavam ao pescoço vindos do peito. Com suavidade, a mão dele envolveu-lhe a parte de trás da cabeça, aproximando o rosto dela do seu.

 

- Descontraia-se - pediu ele num sussurro -, não tem nada a recear.

 

Gavin limitou-se a beijá-la vezes sem conto, beijos cada vez mais alongados em que ela sentia nas faces a aspereza da barba dele, enquanto a mão lhe acariciava a face e o queixo, com a língua a sondá-la, ao princípio demorada e carinhosamente, e depois com mais insistência, até que ela começou a sentir-se como se não possuísse ossos nos seus braços, com as mãos a subirem pelo peito dele para lhe dizer que parasse, mas acabando por se desviarem quase sem se aperceberem, para pouco depois voltarem ao corpo dele; desta feita, os seus braços enlaçavam-lhe o pescoço e a cintura, sentindo a aspereza da barba e a suavidade do cabelo, a macieza do tecido de algodão da camisa.

 

- Vamos - disse ele, ajudando-a a levantar-se do chão, até que ambos ficaram de pé, sem ela saber bem como é que as pernas conseguiam sustê-la... Bebera vinho a mais, mesmo muito, e sentia a cabeça cheia do que talvez fosse música, o rufar cadenciado de um tambor.

 

O quarto estava frio, mas não frio ao ponto de a fazer ter consciência dos seus actos. Eleanor estava quente, tal como Gavin; a frialdade dos lençóis era como um lenitivo. Ambos estavam meio vestidos, ajudando-se mutuamente a despir as peças de roupa que ainda faltava tirar.

 

- Estás bem? - insistia ele em perguntar. - Estás bem? - ao que ela respondia ”Sim” e por vezes: ”Eu não devia, oh, eu não devia...” Porém, ao mesmo tempo, por trás dessas hesitações, havia uma vozinha a medo, mas bastante clara, que lhe dizia: E porque nãóí

 

De súbito, Gavin deteve-se, soerguendo-se apoiado sobre o cotovelo para poder olhá-la bem.

 

- És um espanto de mulher - declarou ele com um sorriso.

- Tão, tão bonita, Eleanor. Mas com certeza que estás bem ciente da tua beleza, decerto que terás a noção disso. Não posso evitar perguntar a mim mesmo por que razão não existe um homem na tua vida, porque continuas sozinha? - Mas então riu-se, beijando-lhe o pescoço, abraçando-a, chegando-a mais a si. - Sorte a minha acrescentou. Mas Eleanor afastou-se dele, esforçando-se por recuperar o domínio das suas emoções, bem consciente e ansiosa.

 

- Gavin, eu não, não estou... Já passou tanto tempo...

 

- Ei, prometo que cuido bem de ti - retorquiu ele, acenando-lhe com a mão a poucos centímetros dela, a qual tremia toda arrepiada perante aquele quase toque da mão dele. - Olha bem para ti... és tão encantadora.

 

E ela olhou. Como se o fizesse pela primeira vez. A luz esbranquiçada do luar filtrava-se pela janela do quarto, emprestando luminescência à sua pele. Eleanor viu o seu corpo como quando era jovem, sem nada que o desfeasse. Já fora casada e tivera uma filha, mas agora parecia-lhe que nada disso lhe deixara a mínima marca. Como se uma nova virgindade a tivesse deixado sem mácula, permanentemente jovem e perfeita. Agora sentia a mão cálida dele a afagar-lhe o peito, acariciando-lhe os seios. Sentiu que os mamilos enrijeciam devido ao frio que fazia no quarto, e, quando ela se voltou, Gavin viu que a pele de Eleanor tinha adquirido uma coloração translúcida de alabastro, indo ao encontro dele, apercebendo-se de que o corpo de Gavin tinha uma cor de um branco-azulado onde nunca andava exposto ao Sol, enquanto as outras partes tinham um tom bronzeado cor de cobre. Toda ela estremecia, consciente de que se encontrava completamente nua em presença de um estranho. Mas agora era tarde de mais para poder mudar de ideias, uma vez que ele já estava a preparar-se, colocando-se em cima dela.

 

- Não posso... - começou Eleanor a dizer.

 

- Desculpa - murmurou Gavin, penetrando-a com firmeza e determinação. - Eu devia esperar, mas não sou capaz... Oh, meu Deus, Eleanor. - Ela arquejou, erguendo os joelhos para lhe facilitar as investidas, permitindo que ele continuasse a penetrá-la, acompanhando com o seu os movimentos do corpo dele.

 

Era a mesma coisa, embora não fosse o mesmo. Saciado, ele abraçou-a com força, cerrando os braços à volta dela, após o que se deitou de costas, mantendo-a colada a si a todo o comprimento do corpo, abraçando-a com um braço que continuava a enlaçá-la.

 

- Desculpa - repetiu Gavin. - Estavas a milhas de distância, não é verdade? - perguntou, virando-se para ela. - Queres vir-te?

 

- O quê?!

 

- Não te vieste, pois não?

 

- Não, mas... - Esteve prestes a dizer: ”Nunca me venho”, mas não foi capaz de articular as palavras, como se continuasse a parecer-lhe que seria uma traição enorme se as dissesse. - Isso não interessa - acabou Eleanor por dizer.

 

- Interessa, sim. Chega-te a mim.

 

- Não sou capaz - replicou ela momentos depois, afastando a mão dele.

 

Se aquele expediente nunca dera resultado, por que razão agora seria diferente? Não queria chegar àquele pico de frustração uma vez mais. Era evidente que lan havia tentado, mas ela acabara por decidir que era uma coisa que não devia voltar a ser experimentada. Talvez tivessem sido os dois a desistir ao mesmo tempo.

 

- Estou bem assim - costumava Eleanor dizer ao marido. Não me importo. - E, contudo, a verdade é que agora se importava.

 

Gavin ergueu-se, sentando-se na cama, cobrindo-a com os cobertores.

 

- Mantém-te quente - disse ele -, e vê se consegues dormir um pouco. Temos a noite toda diante de nós.

 

- Nem pensar, tenho de voltar para casa! - ripostou ela, tentando erguer-se, mas ele obrigou-a a deitar-se.

 

- Sei de que é que estás com medo.

 

- Não tenho medo de nada, eu...

 

- Pensas que a Edie pode ver-te quando passares sorrateiramente pela casa dela, e depois ela fica a saber que, ao fim e ao cabo, não és a viúva virtuosa que ela pensa que és.

 

- Tens toda a razão - replicou Eleanor sem conseguir conter o riso. - Além do mais, ela costuma levantar-se bastante cedo.

 

- Nesse caso, o melhor é ficares para tomares o pequeno-almoço comigo; fica até uma hora a que possas voltar para casa como se tivesses vindo à minha para me pedires um raminho de salsa - sugeriu ele, sentado com as mãos atrás da cabeça. - Por que razão é que achas que alguém poderia pedir um raminho de salsa a um vizinho?

 

Eleanor também se sentou, encostando-se à cabeceira da cama.

 

- Não sei - admitiu.

 

- Aninha-te debaixo dos cobertores - disse Gavin num tom autoritário, aconchegando a roupa da cama à volta dos dois. ”Nunca conseguirei adormecer”, pensou Eleanor momentos antes de cair no sono.

 

Despertou repentinamente a meio da noite, com as ideias claras, sentindo-se perplexa por se encontrar ali, na cama ao lado dele. Gavin acordou ao mesmo tempo que ela, já preparado para fazer amor, desejando-a de novo. Sentindo um misto de gratidão e perplexidade perante a ternura que ele lhe mostrava, ela deixou que ele a acariciasse e mexesse onde bem lhe apetecia, rindo-se um pouco, umas risadas tolas, enquanto se abraçava a ele, sabendo de antemão que aquelas carícias não teriam qualquer efeito em si, o que não obstava a que quisesse agradar-lhe. Mas, por fim, sem que a sua vontade tivesse tido a mínima interferência, começou a sentir, vaga após vaga, frémitos de prazer, enquanto o puxava para dentro de si, quente e molhada, movimentando-se a um ritmo que não era dele nem dela, cada vez mais depressa e com mais veemência, com mais força e mais profundamente. Eleanor sentia-se incapaz de controlar as suas emoções, não sendo capaz de dizer onde é que ela própria acabava e ele começava. Com movimentos sucessivos, ele continuava a penetrá-la, retirando o pénis, voltando a tocar-lhe, até que ela começou a sentir um prazer intenso que se espalhava pelas coxas, uma sensação enorme de calidez que se acumulava dentro de si, que fazia com que se soerguesse e arqueasse o corpo de súbito, atingindo, finalmente, o clímax do orgasmo, como um pássaro que voasse a pique depois de ter chegado ao cimo de uma falésia, uma pedra que rolasse pela encosta abaixo até ao fundo.

 

Com força, Eleanor empurrou-o, tirando-o de cima de si, aninhando-se sobre si mesma, afastando-se dele com um gemido de alívio e receio.

 

- Aí tens - disse Gavin, obrigando-a a voltar-se de novo para ele. - Desta vez foi melhor, não é verdade? - perguntou-lhe como se ela fosse uma garota que era preciso tranquilizar porque se mostrava rabugenta. As lágrimas molhavam as faces de Eleanor, lágrimas que ele limpou com a ponta do lençol, abraçando-a numa atitude triunfante.

 

Mais tarde, passando ousadamente pela porta da frente de casa de Edie a caminho da sua, às onze da manhã, Eleanor tomou consciência do que tinha ficado a saber. Aquilo que sempre acreditara ser uma falha da sua parte, um defeito seu, ao fim e ao cabo, possivelmente ter-se-ia devido a lan. Ou, no mínimo, seria uma falta partilhada pelos dois, algo de que em conjunto ambos careciam.

 

E agora... estava mudada!

 

Depois de Gavin se ter ido embora, a caminho de Aberdeen ao volante do seu automóvel, telefonou a Marion. Mas detectou imediatamente algo pouco familiar na entoação da irmã, até mesmo antes de Marion ter tido oportunidade de discernir o que é que havia de diferente na sua própria voz.

 

- Oh, tenho estado tão enjoada - disse Marion. - Estou a sentir-me um bocado em baixo.

 

Eleanor imobilizou-se como se o coração lhe tivesse caído aos pés. Como era capaz de se sentir feliz quando Marion estava tão doente?
Durante todo o caminho até casa de Marion, pela estrada de Dingwall, abrandando antes da ponte do caminho-de-ferro logo a seguir à curva e aumentando de velocidade no último trecho do percurso que a levaria à cidade, a alegria parecia elevar-se dentro de Eleanor qual bolha de riso.

 

Estou bem, repetia em pensamento em palavras cadenciadas. Não há nada de estranho comigo.

 

Durante todos aqueles anos, teria ela realmente acreditado que havia alguma coisa de anómalo em si? Durante todos aqueles anos... aconteceria isso com frequência às outras mulheres, com regularidade? À Marion? Ela e a irmã não tinham segredos entre si, com a excepção desse assunto. Durante os primeiros anos dos respectivos casamentos haviam vivido longe uma da outra, e aquele não era um assunto que se pudesse abordar nas cartas que trocavam ou de que se falasse ao telefone. Tenho tido uns orgasmos que são uma verdadeira maravilha ou, no caso de Eleanor, Nunca consegui chegar a esse ponto, não, nunca senti... Eleanor soltou uma sonora gargalhada, incapaz de conter o riso.

 

Não guardava recordação do último trecho do caminho até casa de Marion, de ter parado nos semáforos, de contornar a esquina do separador que dividia a rua. ”Sou uma mulher completamente doida”, pensou para consigo. ”Nunca me tinha sentido assim, jamais.” Como se continuasse a ver-se percorrida por aquele frémito, qual eco que a atazanasse, trocista.

 

Deparou com uma Marion bastante empalidecida e com um aspecto de muito cansaço, mas não doente. Eleanor, sentindo-se dividida entre um sentimento de culpa e alívio, disse:

 

- Estás a sentir-te bem? Queres que vá preparar um chá para nós duas?

 

- Se te apetecer. Mas o mais certo é eu não ser capaz de o beber - respondeu a irmã.

 

Ambas foram para a sala de estar, bastante desarrumada, com jornais espalhados por todo o lado, além de canecas e copos.

 

- Desde ontem à noite que não arrumo nada na sala – confessou Marion, começando a arrumar as coisas, o que fazia, manifestamente, com pouca vontade, esforçando-se por não se baixar de mais nem muito depressa.

 

- Deixa-me fazer isso - ofereceu-se Eleanor, que se sentia como se tivesse a energia de meia dúzia de mulheres. Pouco depois, a sala de estar estava toda em ordem.

 

- O que é que aconteceu? - perguntou Marion à irmã quando esta, finalmente, se sentou junto de si.

 

- Nada! - apressou-se ela a responder.

 

- Eleanor, estás com um aspecto... Bem, tenho de admitir que estás com uma aparência fantástica.

 

- Tenho tanta pena, sinto-me tão mal quando tu não estás bem.

 

- Por amor de Deus, por que carga de água é que hás-de sentir-te assim? São apenas umas náuseas. Os efeitos secundários, o Fergus diz que é muito comum. A Mary Mackay já me tinha avisado, assim como o especialista em oncologia. Mas o pior já passou, estou a sentir-me muito melhor - afirmou ela, recostando-se no sofá. - Mas deixemos isso; conta-me o que é que te sucedeu.

 

- Oh, não sei - replicou Eleanor, toda corada. - Estou a falar a sério, eu própria nem sei o que é que está a acontecer comigo.

 

- É esse homem, não é? Mas eu estava convencida de que ele ia partir dentro em breve?

 

- Foi-se embora, hoje mesmo.

 

- Agora me lembro, estava combinado jantares com ele, tu e a Claire, não era?

 

- A Claire não foi. Preferiu ir ao cinema com a Sarah... e depois ficou a dormir em casa dos Patterson.

 

- Estou a ver - disse Marion, verificando que a irmã continuava com a mesma expressão radiante. ”Louvado seja Deus”, pensou, ”já não era sem tempo!” - Ora bem, quem diria - acrescentou em voz alta. - Só espero que estejas a ser... precavida.

 

- Oh, ele foi muito cuidadoso - apressou-se Eleanor a dizer, voltando a corar, rindo-se e fazendo um movimento com a cabeça em que os cabelos bastos lhe caíram para o rosto, ocultando a alegria que se reflectia na sua fisionomia. - Isto é uma loucura acrescentou num murmúrio. - Sinto-me como se voltasse a ter quinze anos.

 

- Pensei que os homens com cabelos cor de cenoura estavam fora de questão - comentou Marion, acrescentando o seu riso ao da irmã.

 

- Eu sei, eu sei... mas eu... não sei, Marion. Sinto-me entontecida.

 

- Estou a ver que sim.

Marion deduziu que a irmã estaria apaixonada por Gavin.

”Talvez eu esteja”, pensou Eleanor, perguntando-se se a irmã teria razão. ”Já passou tanto tempo desde que... e é um assunto de que sei tão pouco. O amor.”

 

- Depois, telefono-te - prometera ele.

 

- De uma plataforma petrolífera? - perguntara ela, admirada.

 

- Não sei se sabes, mas temos telefones a bordo - informou Gavin, mostrando-se divertido. - Claro que sim, tenciono ligar-te dentro de alguns dias.

 

Porém, logo no domingo à noite, um dia depois dessa conversa entre os dois, já ela esperava ansiosamente que o telefone tocasse. Mas, quando isso aconteceu, quem lhe falou do outro lado da linha foi o pai.

 

- Estou a telefonar-te para saber como é que a Marion tem passado - disse ele. - Não se cansa de me dizer que está bem.

 

- Ela tem sentido muitas náuseas - explicou Eleanor -, além de estar muito cansada. Mais nada. Mas não se preocupe, estes sintomas são muito comuns.

 

- É por causa da quimioterapia - acrescentou ele. - Quanto tempo é que esses tratamentos duram?

 

- Duram mais ou menos um dia e tem de os fazer de três em três semanas. Passa a noite no hospital e depois volta para casa. Ambas já tinham explicado isso mesmo ao pai, mas, ao que tudo indicava, a informação não ficara registada na sua memória. Marion até dissera a Eleanor: ”Ele é como eu, que não me lembro de nada do que o médico me diz... É o medo e a ansiedade... Parece que há qualquer coisa que bloqueia as informações.” - Vai ter de os fazer durante mais uns três ou quatro meses. Ao todo, são seis tratamentos - voltou ela a explicar ao pai -, e só depois é que eles fazem mais exames computorizados. E em seguida, talvez ela só tenha de fazer uns quantos tratamentos de radioterapia. Mas isso é uma coisa que ainda não sabemos ao certo.

 

- Mas até agora, ela tem estado bem?

 

- Sim - confirmou Eleanor, não querendo voltar a mencionar os enjoos de que a irmã estava a sofrer. Em boa verdade, era preferível que ele não tivesse conhecimento desses pormenores. Se a mãe ainda fosse viva, a situação mudaria de figura. Não haveria maneira de a proteger da verdade, uma vez que ela fora senhora de uma percepção que lhe permitia ter conhecimento de tudo antes do resto da família. - E quanto ao David? - continuou ela, mudando de assunto. - Recebeu notícias? Desde o Ano Novo que não sei nada dele.

 

- Ah, é verdade, ele telefonou-me, mas quando foi isso? Na segunda-feira... acho eu, ultimamente tenho andado muito esquecido. Foi num dia qualquer da semana passada.

 

- Já começou a trabalhar?

 

- Já, sim. Uma coisa qualquer com computadores.

 

Alguns minutos mais tarde, Eleanor recebeu outro telefonema.

 

Desta feita, atendeu no telefone da cozinha. Claire estava no seu quarto com Sarah e mais duas ou três raparigas. Tinha de ser para ela. Aos fins-de-semana, as garotas davam a impressão de passarem horas esquecidas ao telefone, ligando umas para as outras: três raparigas numa casa e quatro numa outra, todas aos gritinhos e com risadas tolas. Desde os ”telefonemas em conferência” de David antes do Natal que Claire tinha andado a implorar à mãe que lhe permitisse fazer o mesmo, para poder falar com as amigas todas ao mesmo tempo. Mãezinha, seria fantástico!, argumentava ela cheia de entusiasmo.

 

Desta vez, porém, era David.

 

- Acabei agora mesmo de falar ao telefone com o pai - disse ela. - Como é que estás?

 

- Estou óptimo... não podia estar melhor. Esta coisa com o Phil está mesmo a avançar. Passo a vida de um lado para o outro numa autêntica roda-viva.

 

- O que é que tens andado a fazer?

 

- A visitar os clientes - respondeu David -, a resolver-lhes problemas. Sabes como é.

 

Contudo, como seria de esperar, era claro que Eleanor não sabia como era. Aquilo era David no seu pior, cheio de si próprio e excessivamente expansivo, com grandes planos e conhecimentos que nunca vinham a concretizar-se.

 

- Ainda bem que está tudo a correr pelo melhor. Fico satisfeita por ti.

 

- E quanto a ti, como é que estás? E a Marion? Ela já começou com os tratamentos de quimioterapia?

 

- O quê? Sim, claro que já começou. Na próxima semana vai fazer a segunda série.

 

- E como é que ela está a aguentar-se? Não sei se sabes, mas a sócia do Phil já foi casada. O marido morreu de uma doença cancerosa. De um tipo diferente, como é óbvio, mas ela passou um mau bocado por causa disso. Contei-lhe acerca da Marion e ela mostrou-me a maior compreensão, chama-se Sophie. Extremamente simpática e compreensiva.

 

- Isso é mesmo o que queremos ouvir, David, não haja dúvida! - ripostou Eleanor com um suspiro de irritação. - Por amor de Deus, agora que não te passe pela cabeça falares à Marion dos teus amigos que morreram de cancro.

 

- O que é que pensas que eu sou? - replicou ele, mostrando-se melindrado, mas não o suficiente para ficar calado. - Eu só quis dizer, não sei se percebes, que a Sophie é o tipo de pessoa que compreende muito bem esse género de situações. É uma pena que a Marion não possa falar com ela. Ela tem alguém assim com quem possa desabafar?

 

Eleanor ansiara poder dizer a David: ”Olha uma coisa, a minha vida mudou muito e continua a mudar.” Mas por que motivo é que ele não se apercebera de imediato de que havia qualquer coisa de diferente nela, entrando na sua sintonia. Em tempos, era o que teria acontecido. Marion continuava a conseguir detectar qualquer alteração na irmã.

 

- A Marion tem andado muito adoentada - prosseguiu Eleanor. - Tem sido muito difícil para ela. O Fergus diz que ela terá de deixar de trabalhar.

 

- A verdade é que ela não tem necessidade nenhuma de trabalhar. Com o bom do doutor a prover o sustento da família.

 

- Oh, por amor de Deus, David! - Desejara que o irmão se mantivesse sempre em contacto, tendo mesmo sentido a falta dele. Mas a sua maneira de ser não tinha remédio. - Tenho de desligar

- mentiu. - A Claire está a chamar-me.

 

Fez-se uma pausa em que ele não disse nada, mas depois retomou a conversa repentinamente.

 

- Desculpa. Tomei uns quantos copos antes de te telefonar. Dá beijinhos meus à Marion, não te esqueças.

 

- Está bem, podes ficar descansado, eu... - Eleanor ouviu um clique seguido de silêncio. Ele tinha cortado a ligação. Então fora isso, o que ela devia ter adivinhado; ele já estivera a beber.

 

Depois da conversa com o irmão, o telefone tocara em mais três ocasiões. As amigas de Claire. Conversas muito prolongadas à mistura com muitas vozes segredadas e risinhos à socapa. A cama de Eleanor ficou toda em desalinho por elas se terem sentado em cima da colcha.

 

Instalara-se na sala de estar com uma chávena de café que estava a arrefecer, tentando, mas não conseguindo, escrever um poema cujo tema era o sexo. Ficou a olhar para as palavras desprovidas de sentido na folha de papel, as quais não reflectiam, nem de perto nem de longe, aquilo que ambos haviam experimentado, as emoções que ela sentira. Como é que iria conseguir viver durante as próximas três semanas sem o ver? Esquecendo-se de dia para dia do seu semblante, da maneira como ele baixava a voz sempre que falava com ela, da sensação que as mãos dele lhe davam.

 

Mais tarde, deitadas ao lado umas das outras no sofá-cama do quarto que servia de arrecadação, as raparigas ficaram a conversar até altas horas da noite, confortavelmente aconchegadas. Eleanor foi sozinha para a sua cama sem conseguir conciliar o sono.

 

Aquando da sessão seguinte de quimioterapia, foi Eleanor quem levou a irmã ao hospital. Estava um belo dia de Fevereiro, com um bom tempo repentino e enganador, ameno como um dia primaveril. O Sol, baixo, reflectia os seus amarelos nas águas mansas do estuário. As árvores continuavam despidas de folhagem, mas por toda a parte, caso se observasse atentamente, viam-se os embriões ainda muito reduzidos e escuros que dariam origem aos novos rebentos e, no solo humedecido do Inverno, os rebentos verdejantes começavam a querer rebentar.

 

- Mas que dia tão bonito - comentou Eleanor, abrindo a porta do carro para que Marion pudesse entrar. A irmã fez uma cara de desagrado.

 

- Que dia para se ir para o hospital!

 

- Eu sei... mas é só por uma noite. É possível que o tempo se aguente assim por mais uns dois dias.

 

Durante algum tempo, prosseguiram viagem em silêncio.

 

- O teu amigo, o Gavin... está fora, não é verdade?

 

- Está, disse que um dia destes me telefonaria.

 

- Tenho a certeza de que há-de ligar - afirmou Marion, que detectara um sentimento de desespero no timbre de voz da irmã. ”Já”, pensou para consigo. O homem só havia partido há coisa de uma semana. Talvez o que Eleanor sentisse por ele fosse a sério. Não era difícil ver que ela encarava a relação com seriedade, o que seria de esperar da parte dela. Marion só desejava que o que Gavin Soutar sentia pela irmã fosse recíproco. Se ao menos Eleanor não esperasse tanto daquela relação.

 

Marion continuou a pensar nestes moldes, satisfeita por poder concentrar-se em algo que lhe desviasse o pensamento da cama do hospital, do médico que a iria ver, da solução intravenosa que entraria no seu braço gota a gota, das horas intermináveis até à manhã seguinte, quando ela poderia voltar para casa.

 

- Porque é que os médicos não lhe podem dar apenas uns comprimidos para a mãe tomar em casa? - perguntara Eilidh.

 

- O tratamento não é com comprimidos, é com uma injecção e a administração de uma substância por via intravenosa, o que é feito com muita lentidão, e durante esse tempo tenho de permanecer deitada - replicou Marion, achando que não conseguia explicar o processo mais pormenorizadamente.

 

Uma ou duas das suas amigas tinham-lhe dito (quem sabe, à falta de outras palavras de conforto mais adequadas que lhe pudessem oferecer) que, pelo menos, o facto de ela ser casada com um médico era uma maneira de ter resposta a todas as suas perguntas de natureza clínica. Mas, é claro que as coisas não eram assim. Fergus fazia o seu melhor, mas a relutância que mostrava em dar conselhos numa área da medicina com que estava pouco familiarizado, a preocupação que sentia porque não queria afligir Marion, eram factores que os haviam impedido de falar demoradamente sobre os tratamentos, ou os efeitos secundários, a que ela tinha de se submeter. Marion sentia dificuldade em reter na cabeça o que os médicos do hospital lhe diziam, além de não ter sido capaz de elaborar perguntas que fizessem sentido, até mesmo quando tinha oportunidade para tal. Isso abalava-a mais do que qualquer outra coisa. Pensou que a doença fazia com que as pessoas passassem a comportar-se com uma certa infantilidade. Apesar de todos os esforços, os seus pensamentos concentraram-se nesses aspectos da sua doença, enquanto Eleanor contornava a rotunda de Maryburgh, seguindo em direcção à estrada pela colina, a caminho de Inverness.

 

- Voltaste a ter notícias do David? - perguntou Marion à irmã, esforçando-se ao máximo para pensar noutro assunto.

 

- Não. Acho que já te tinha dito que ele me telefonou, não disse? E que perguntou por ti - replicou Eleanor, suspirando. No entanto, ele mostrou-se horrível, foi uma conversa deveras desagradável.

 

- Horrível, sob que aspecto? Disseste-me que ele tinha estado a beber.

 

- Ora, sabes como é. Com grandes fanfarronadas a respeito do trabalho, em que eu, para te falar com franqueza, continuo a não acreditar. Estava como que descontrolado. Foi impossível manter uma conversa com pés e cabeça com ele.

 

- Há ocasiões em que penso que o David não parece fazer parte da nossa família - comentou Marion.

 

- Claro que faz. Só que é muito diferente de nós. Mas não sei dizer porquê. - Agora era Eleanor que sentia ter a obrigação de o defender.

 

Marion sabia que havia qualquer coisa que ligava Eleanor a David que ela não era capaz de compreender. Era algo que se relacionava com lan, mas ali havia mais do que Eleanor lhe confidenciara depois do funeral. Marion simpatizara bastante com lan, embora sentisse que não podia dizer que ele era uma pessoa que conhecesse verdadeiramente. Tinham-se mudado para o Sul logo a seguir ao casamento, tão depressa que mal houvera tempo para se conhecerem melhor. Ele não era o tipo de homem com quem uma pessoa pudesse manter uma amizade chegada durante visitas que duravam apenas um fim-de-semana de cada vez, ou aquando de alguns períodos curtos de férias. Marion recordava-se de o ver sempre em boa forma física e com uma pele ligeiramente bronzeada, um homem de olhos azuis e pestanas louras e fartas. Atraente e impaciente. Isto é, essa impaciência revelava-se em relação a Eleanor, assim como na presença de Claire, até mesmo quando esta era ainda muito pequena. Pensou que seria o último homem no mundo que alguém imaginasse que poderia vir a ter um ataque de coração aos trinta e sete anos de idade. ”Tal como eu sou a última mulher no mundo que se pensaria poder ter um cancro”, reflectiu ela naquele momento, com a falta de um seio e um mundo que se desmoronara em seu redor. Aquilo não augurava nada de bom; só conseguia pensar no dia e noite que tinha pela frente.

 

- Detesto ter de te deixar - disse Eleanor, mostrando-se hesitante quando já se encontravam no átrio do hospital. Depois de ter estacionado o automóvel, insistira em acompanhar Marion até dentro do hospital.

 

- Podes acreditar que estou bem.

 

- Amanhã, telefona-me, quando quiseres que eu venha buscar-te.

 

- Fica descansada que telefono - replicou Marion com um sorriso que se destinava a tranquilizar Eleanor, uma vez que esta não conseguiria inverter os papéis ainda que o desejasse.

 

Eleanor achou que a irmã lhe parecia muito pequena no corredor amplo, pintado de um tom esbranquiçado. Como uma figura etérea através da luz do Sol, a imagem da mãe apareceu de repente, para logo desaparecer. Eleanor virou costas à irmã, dirigindo-se para o carro.

 

Desta vez, depois do tratamento, Marion deixou o hospital num estado muito mais combalido.

 

- A quimioterapia está a afectar-me - admitiu ela, falando com Fergus depois de chegar a casa.

 

- Vais ver que esse mal-estar acabará por passar - retorquiu ele. - Mas, caso isso não se verifique dentro de pouco tempo, só teremos de te arranjar uns comprimidos contra as náuseas. De facto, a verdade é que já devias ter começado a tomá-los.

 

- Mais drogas - resmungou ela. - E depois é de volta ao hospital para recomeçar tudo de novo.

 

- Deves fazer a contagem decrescente dos dias, das semanas aconselhou Fergus -, se achares que isso te poderá ajudar. Não era má ideia se fizessem um mapa... alguns pacientes fazem isso.

 

- Mas acontece que eu não sou alguns pacientes - ripostou ela, irritada. - Sou a tua mulher. - Depois desse desabafo, desatou a chorar, sentindo-se culpada. - Lamento muito, peço desculpa... não tenho o hábito de chorar diante de mais ninguém, a sério que não.

 

As pessoas amigas de Marion costumavam comentar entre si, assim como quando falavam com Fergus ou com Eleanor, que ela estava a reagir maravilhosamente, sempre com muita coragem e animada.

 

- É uma questão de orgulho - explicara a Eleanor. - Não podemos dar-nos ao luxo de permitir que os outros se apercebam do que estamos a sentir. Mas há ocasiões em que fico muito encolerizada. Nessas alturas, sei que não estou a ser justa, mas parece que estou a vê-los a pensar. E qual será? Só me apetece erguer a mão e apontar, dizendo: ”Vocês jamais adivinhariam, pois não?” E não é por estarem a olhar para mim enquanto pensam: ”Será que ela está a ficar com falta de cabelo?”

 

- Oh, Marion, as pessoas não querem o teu mal, toda a gente se mostra tão ansiosa para que tu melhores. - Eleanor era forçada a admitir que ela própria já se interrogara quanto à queda de cabelo da irmã.

 

- Eu sei - retorquiu Marion com um suspiro. - Desculpa a minha atitude, sei bem que tens razão. Só precisamos de ver os cartões e missivas com votos de melhoras que continuo a receber, a maneira como toda a gente passa cá por casa para me visitar. Só desejava que por vezes não se mostrassem tão preocupados com a minha saúde, mais nada. Sinto-me demasiado exausta até mesmo para conversar - concluiu, reclinando-se para trás na poltrona e fechando os olhos.

 

Eleanor aguardava, sem saber o que dizer. ”Não sirvo para nada. Não tenho maneira de poder ajudá-la.” Mas então, Marion abriu os olhos, sorrindo à irmã.

 

- Desculpa. É horrível que eu me comporte com tanta rabugice, sentindo-me tão infeliz quando estou com as pessoas que me são mais queridas. Tu e o Fergus são os que têm de aturar todas as minhas lamúrias.

 

- É precisamente para isso que estamos aqui; tem de haver alguém para cima de quem tu possas descarregar. ”Mas será isso que eu faço por ela? Não me parece que seja grande coisa.” No entanto, sentia-se satisfeita por Marion ter tido aquele desabafo. - Seja como for - continuou Eleanor -, tens de parar de fazer o que quer que seja. Pensa bem no teu dia de hoje... quando cheguei estavas a fazer sopa. Passa a comprar sopa enlatada. Podes ficar descansada que ninguém morrerá por isso.

 

Contudo, Eleanor sabia que Marion não faria caso do que estava a dizer-lhe. Esforçava-se ao máximo por levar uma vida normal, acorrendo às necessidades de toda a família, como costumava fazer.

 

Houve, então, um dia em que Eleanor chegou a casa da irmã, dando com ela extremamente pálida e com as faces cheias de lágrimas. Vinha a descer as escadas quando a ouviu gritar da porta da cozinha: Sou eu!

 

- O que é que se passa? - perguntou Eleanor, aflita ao ver a irmã naquele estado. - Aconteceu alguma coisa?

 

- Não, só tenho estado a vomitar, mais nada - respondeu Marion encostando-se ao corrimão das escadas. - O cancro é uma doença que não tem nada de deslumbrante.

 

- Uma vez que estás a sentir-te assim, devias ir para a cama, repousar um pouco. Oh, Marion...

 

- Não, desculpa, já estou a sentir-me melhor. Muito melhor.

 

Desde que saíra de sua casa, durante todo o percurso de automóvel, só pensara em Gavin. Concluiu que era uma idiota. Aquilo não tinha nenhum significado para ele. Na sua imaginação, ele estava a transformar-se numa pessoa desagradável, chegando à conclusão de que nem sequer era capaz de visualizar as suas feições, sentir a sua presença. Gavin não lhe telefonara. Estava como que obcecada pelo silêncio dele, interpretando o significado que aquele silêncio poderia ter, interpretação essa que mudava de hora para hora, acabando sempre por concluir o mesmo: tinha cometido um erro terrível.

 

Naquele momento, enquanto ajudava Marion a instalar-se confortavelmente no sofá, levando-lhe um copo de água e sentando-se ao seu lado, sentiu (pela primeira vez) o cheiro a doença que emanava da irmã, o vomitado, e, envergonhada, assolou-a um grande sentimento de culpa. Ficaram sentadas em silêncio enquanto Marion se recompunha.

 

- Oh, meu Deus! - murmurou esta. - Ainda bem que isto aconteceu quando as crianças estavam na escola. E pelo menos... Já estive a ver... A meio do semestre terei a semana em que me sentirei melhor, antes de ter de ir para o hospital de novo. - Nesse momento, menos pálida, Marion sentou-se mais a direito. - Precisamente antes do tratamento seguinte, há qualquer coisa que muda. Há uma manhã em que acordo e sinto que aquela sensação horrível desapareceu. Não consigo explicar. Durante alguns dias é quase como se tivesse voltado ao meu estado normal. Mas depois tenho de fazer o tratamento e, uma vez mais, os efeitos secundários põem-me de rastos. O Fergus diz que é o que normalmente acontece, portanto, quando essa fase passar, tudo voltará ao normal. Durante um brevíssimo período, sinto essa normalidade e é quando digo a mim mesma que no fim tudo acabará por correr pelo melhor.

 

- Claro que correrá bem. Desde que os tratamentos consigam erradicar a doença totalmente. Isso é que é o mais importante.

 

- Sabes, costumo ficar a olhar para o recipiente, a pensar naquela coisa que entra dentro de mim, gota a gota, interrogando-me sobre o que estará a matar no meu organismo. Tento cuidar bem de mim... comer racionalmente, aconselham eles, e apanhar ar fresco. Mas, ai de mim! Há dias em que só me apetece dormir.

 

- Eu sei, eu sei - retorquiu Eleanor que em boa verdade não sabia, mas chegando-se mais à irmã, desejando que esta continuasse a explicar-lhe.

 

- Mas o pior... - Marion tinha consciência de que havia muitos anos que não se abria com a irmã, com tanta franqueza, a respeito de si própria. Mas a quem mais é que ela poderia fazer aquele tipo de confidências? Era possível que Eleanor não conseguisse apreender por inteiro o que lhe dizia (ninguém poderia), mas, pelo menos, estaria sempre presente, nunca se mostraria avessa a ouvir a irmã.

 

- O quê? O que é que para ti é o pior? - perguntou Eleanor, instigando a irmã a falar.

 

- Oh, costumo ter uns sonhos. Sonho que continuo a ter o seio. Que lhe toco, acredito que tenho os dois seios como antes.

 

- Oh, meu Deus... - Eleanor sentiu as lágrimas que lhe assomavam aos olhos. ”Não chores”, repreendeu-se, ”minha idiota, não estejas com choros.” Engoliu em seco para conter o pranto.

 

- Quem me dera que assim fosse - continuou Marion, de olhos secos. - Quem me dera poder voltar a ser a mesma. Talvez eu não devesse ter sido tão precipitada. Agora não consigo pensar noutra coisa.

 

- Precipitada?! Mas não havia alternativa... Tu própria disseste que o cirurgião recomendou a operação!

 

- Sim, é verdade, mas isso é a profissão dele. Começar sempre por operar. Por esse motivo é que ele recomenda que se proceda assim. Mas o Fergus queria que eu fosse a Aberdeen, para uma consulta no instituto de oncologia da cidade. Talvez eles tivessem começado por recomendar que eu fizesse tratamentos de quimioterapia, para que o tumor regredisse. No fim, quem sabe... talvez eles tivessem podido salvar... quer dizer, talvez não houvesse necessidade de ser operada.

 

- O que estás tu a dizer? Que não eras obrigada a... Que podias ter ido a outro lugar onde eles talvez pudessem... Mas porque não fizeste isso? Porque não disseste nada a esse respeito?

 

- Ora, tomei a decisão - replicou Marion, soltando um suspiro de frustração. - Não fui capaz de enfrentar essa perspectiva, Eleanor, pensar que tinha de me ausentar. Estar fora de casa. E, no fim, talvez isso não tivesse servido para nada. Pensei que o melhor era resolver o assunto de uma vez por todas.

 

Enquanto Eleanor chorava e Marion tentava confortá-la, esta pensava em como havia imaginado o pior, pensando que poderia yir a perder mais do que um seio... se tivesse decidido não ser operada, quem sabe se não teria sido a decisão mais errada, acabando por vir a morrer em nome da vaidade (pelo menos era o que lhe parecia), para preservar um mamilo, um corpo que continuasse mais ou menos na mesma. Apesar da intimidade que partilhava com Eleanor naquele momento, não lhe disse, não era capaz de se forçar a dizer-lhe: Sinto falta do meu seio, dessa parte do meu corpo. Costumo acordar desse sonho a chorar, ansiando poder recuperar esse peito.

 

- Deus me valha! - exclamou Eleanor com a voz embargada

 

- Sou uma criatura tão patética. Porque é que estou a chorar?

 

- Porque é o que sempre fizeste quando eu sofro, ou quando o David se aleijava. Tens um coração muito sensível.

 

Ambas desataram a rir, um riso trémulo, começando a falar de outros assuntos.

 

Nessa mesma noite, Gavin telefonou. Quando Eleanor ouviu a voz dele, encontrava-se tão pouco preparada para isso, a despeito de como ansiara ouvir a sua voz, ao que se juntara a espera, que, durante uns momentos, ficou incapaz de falar.

 

- Olá... Eleanor? - A voz dele parecia vir de muito longe; imaginou-o no alto mar, com as vagas a rebentarem em seu redor. Mas decerto que isso não corresponderia à verdade; ele dissera que tinham salas onde viam televisão, acomodações confortáveis e boas refeições.

 

- Olá! Eu... Tu pareces... pensei...

 

- Como estás? A Claire está boa? - Ele dava a impressão de estar a recomeçar, não assumindo qualquer intimidade entre os dois.

 

- Estamos bem - respondeu Eleanor, que também optou por se mostrar reservada.

 

- Dentro em pouco, regressarei a casa - continuou Gavin. Ficarei durante quase três semanas.

 

- Muito bem - retorquiu ela, mas tinha deixado de acreditar naquilo.

 

- Importas-te de ver se está tudo em ordem em minha casa?

 

- perguntou ele. - Tinha a intenção de te pedir isso... para que visses se há correio, se está tudo bem. Amanhã, volto a telefonar-te

 

- Está bem, de acordo.

 

- Tenho a impressão de que passou uma eternidade desde que estivemos juntos - acrescentou Gavin num tom de voz mais baixo, de maior intimidade. - Para variar, sinto-me ansioso por voltar para casa.

 

- Sim - proferiu Eleanor, esforçando-se por imprimir alguma cordialidade ao seu timbre de voz, mas não conseguindo. - Bom... até mais ver.

 

Depois, porém, começou a sentir o coração a bater-lhe depressa e com mais força. Estava a acontecer, disse a si mesma enquanto se apressava a ir a casa dele, tirando a chave de debaixo de uma pedra junto à entrada da frente. Começava a convencer-se de que aquele relacionamento teria continuidade.

 

No Inverno em que Marion tinha doze anos, o nevão que se abateu sobre Pitcairn foi tão rigoroso que houve uma manhã em que se viram obrigados a furar pela neve para conseguir sair pela porta das traseiras, tendo de escavar uma espécie de trincheira até à capoeira. Marion, que estava a convalescer de uma febre de origem glandular, tinha sido instalada num quarto das traseiras, dormindo numa cama que fora colocada junto da janela, de modo a que ela pudesse ver tudo o que se passava no jardim, além de não perturbar Eleanor durante a noite. Nessa altura, já ela começara a querer fazer qualquer coisa, se bem que mal tivesse energia para ir além de ver o que os outros faziam ou ler um pouco de vez em quando.

 

No jardim coberto de neve, onde apenas as árvores e os arbustos mais altos, com as suas ramagens despidas de folhagem, conseguiam espreitar por entre a camada de neve, David e Eleanor ajudavam os pais e Ruby a abrirem uma trincheira. No dia anterior, David e Stanley tinham começado a construir um iglu. Naquela manhã, Stanley não conseguira chegar a casa deles, pelo que David foi ajudado pelo pai a acabar de construir o iglu, uma vez que era impossível chegar ao fundo do caminho particular, quanto mais pensar em conseguir chegar a Aberdeen para poder ir trabalhar. Naquele dia, o mundo como que se imobilizou devido à muita neve. A estação dos correios abriu, mas apenas temporariamente, voltando a encerrar pouco depois, dado que ninguém conseguia ir até lá. As escolas fecharam durante uma semana, a qual para as crianças foi gloriosa.

 

Porém, ao segundo dia, Stanley conseguiu chegar a Pitcairn graças à sua pertinácia que nada era capaz de abalar. Quando alcançou a casa estava tão molhado que teve de mudar de roupa, vestindo alguma de David. Em seguida, os dois saíram para o jardim e o resultado foi ficarem, outra vez, todos molhados. Marion ouvia o barulho que os dois faziam no jardim, arremessando grandes mãos-cheias de neve um ao outro. Ainda tentou entrar na brincadeira, mas, quando foi atingida, correu logo para dentro de casa a choramingar, queixando-se dos rapazes à mãe. Marion sentava-se em cima das almofadas enormes, observando aquela brancura que parecia cobrir tudo até ao infinito, transformando a paisagem, ocultando todos os pontos de referência. Não obstante não poder fazer mais nada, além de olhar, continuava demasiado enfraquecida para se sentir incomodada com a sua incapacidade física.

 

Ao fim do dia, a temperatura dela continuava a subir, fazendo com que se sentisse quente, o que, consequentemente, lhe causava desconforto. Fartava-se de dar voltas na cama, enrolando os lençóis debaixo do corpo, ouvindo as vozes que vinham de fora do quarto ou as que ecoavam na sua cabeça, elevando-se e baixando. Porém, agora não se sentia muito mal. Na fase pior do estado febril, saía da cama sem ter consciência do que fazia, chamando pela mãe. Tinha a sensação de que estava permanentemente a meio da noite, o tipo de noite em que o tempo parece decorrer com uma lentidão atroz, acabando por parar. Marion sentia-se como se estivesse a cair dentro de um extenso túnel, pouco depois, começando a ser perseguida por uma bola gigantesca que não parava de rolar, cada vez mais pesada e rápida, sentindo um sabor metálico na boca, o que fazia com que gritasse e enfiasse a ponta do casaco de pijama dentro da boca, numa tentativa para se livrar daquele sabor horrível, da sensação que aquela bola lhe dava, a qual parecia não parar de rolar sobre si mesma.

 

Então, dava consigo sentada num cadeirão, envolta num roupão, e, repentinamente, sentia frio quando devia sentir-se quente, e à luz que vinha da galeria via a mãe a fazer a cama com lençóis limpos; os outros, encharcados em suor, estavam amontoados no soalho. Vamos lá a ver... e então a mãe ajudava-a a deitar-se, sentindo-se como se as pernas fossem de gelatina, pouco depois estava deitada uma vez mais, sentindo a frescura dos lençóis de algodão, com a botija de água quente, que a mãe voltara a encher, a aquecer-lhe os pés. Deixava-se ficar muito quieta, grata pela macieza dos lençóis, ao mesmo tempo que sentia um pano humedecido na face, ao que se seguia uma toalha seca, macia e a cheirar a frio, como se fosse ar fresco.

 

No entanto, a febre acabou por passar e Marion começou a sentir-se melhor, se bem que durante bastante tempo continuasse a mostrar-se muito enfraquecida. Chegou à parte agradável de estar doente: a lareira acesa no quarto, com o clarão das chamas a iluminar o quarto até mesmo muito depois de a luz do candeeiro ter sido apagada; as bonecas de papel que Eleanor ajudara a recortar, com as muitas roupas que se prendiam nos ombros com pequenas abas que se dobravam para trás; os novos livros aos quadradinhos e os que vinham da biblioteca pública.

 

E depois a neve começou a cair. Marion estava acordada quando ela chegou, apercebendo-se pela luz que se filtrava pelos cortinados (naquele quarto de um tecido mais fino que deixava entrar a luz do luar) que algo estava a acontecer. Sentou-se na cama e estendeu a mão, tocando numa das extremidades do cortinado, conseguindo abri-lo um pouco. Ficou a olhar através do bocado de vidro descoberto, vendo a neve que não parou de cair durante toda a noite. Na manhã seguinte, pôde dizer que sabia, que tinha sido a primeira a ver a neve quando os outros foram ao seu quarto para lho anunciar.

 

A neve continuou a cair. Depois chegou o dia em que construíram o iglu, ao que se seguiu o dia seguinte em que ninguém conseguia ir a lado nenhum. Marion deixou-se ficar na cama a ler Shirley Flight - Hospedeira de Ar, pensando que quando fosse crescida talvez escolhesse essa profissão. Mas era difícil imaginar-se vestida de novo, com roupa que não fosse o pijama, podendo andar de um lado para o outro, quanto mais pensar no dia em que, já crescida, entrasse num avião.

 

- Não haverias de gostar - disse-lhe Eleanor. - Terias saudades de casa.

 

- Eu sei - admitiu Marion com um suspiro. E foi o fim desse sonho. Jamais seria como Shirley Flight. Eleanor sentara-se na beira da cama com um bloco de desenho, uma caixa de lápis de cor e uma tesoura. Tencionavam fazer as suas próprias bonecas de recortar, desenhando, especialmente, os vestidos e respectivos acessórios.

 

- Em vez disso, seremos estilistas - sugeriu Marion. - É um trabalho que se pode fazer em casa.

 

- O pai disse que amanhã temos de voltar a ir à escola - informou Eleanor enquanto coloria uma saia de azul. - Esta manhã, o limpa-neves conseguiu desobstruir o caminho.

 

- Quem me dera que não tivesses de ir. Vou ficar sozinha outra vez.

 

- Assim que as estradas estiverem desimpedidas, a tia Mamie e a tia Alice disseram que vinham visitar-nos. A mãezinha disse que elas andam preocupadas por causa de ti.

 

- Mas não é o mesmo que tu estares aqui, não achas?

 

- Elas trazem sempre um monte de prendas. Doces e coisas no género.

 

- Não me apetece comer doces - disse Marion.

 

- Mas também costumam trazer livros aos quadradinhos.

 

- A leitura aborrece-me.

 

- Então, elas podiam ler-te ou contar-te histórias.

 

- Por amor de Deus, não sou nenhum bebé!

 

- Eu só estava a dar-te sugestões, mais nada - ripostou Eleanor, encrespada. - Não posso faltar à escola, não achas?

 

Marion amuou, manifestamente maldisposta.

 

- Eu sei que não. Mas estou muito aborrecida e irritada.

 

- Porque ainda não te sentes bem - retorquiu Eleanor, tentando animar a irmã. - Queres que vá buscar o tabuleiro para poderes desenhar os vestidos de noiva comigo, se quiseres... um para a minha boneca e outro para a tua?

 

Mas aquele sacrifício era de mais para Marion, que desatou a chorar. Admirada com o choro da irmã, Eleanor também começou a chorar.

 

- Desculpa - disse Marion, assoando o nariz. - Desculpa, mas estar doente é horrível. Nem pareço a mesma.

 

Secretamente, Eleanor estivera esperançada em apanhar a mesma doença da irmã, de maneira a poder ficar também de cama com a lareira do quarto acesa, confortável e quentinha. Tudo o que tinha para aquecer o seu quarto era um aquecedor a parafina, muito malcheiroso, colocado na galeria e que pouca diferença fazia em relação ao frio. Se ficasse de cama, poderia ler até se fartar e fazer desenhos durante todo o dia, tal como Marion podia fazer.

 

Porém, quando Marion voltou a poder vestir-se e a descer ao piso térreo, por mais tempo do que a meia hora habitual e vestida com o roupão, a neve já tinha começado a derreter-se e por toda a parte só se ouvia as pessoas a queixarem-se por causa das canalizações rebentadas e as terras alagadas. Durante várias semanas, depois de os caminhos terem sido desimpedidos, ainda se via neve acumulada nas valas ou em pequenos amontoados por baixo da copa das árvores. Entretanto, o iglu desmoronou-se, tendo-se transformado num monte de gelo acinzentado e irregular, cada dia mais pequeno.

 

Uma vez mais, entregue a si mesma, Marion entretinha-se a brincar com a casa das bonecas. Era verdade que já estava muito crescida para brincar com aquilo, mas quando não havia ninguém que lhe fizesse companhia, podia voltar a ler os livros com histórias para criancinhas, assim como brincar com os brinquedos para os mais novos. O boneco que fazia de pai era o que estava em mais mau estado; os arames debaixo do enchumaçado das pernas já se viam, além de ter perdido o elegante casaco azul, o que acontecera havia bastante tempo. O boneco tinha uma aparência vagamente dissoluta, para o que contribuía o facto de o rosto se ter apagado tantas vezes, tendo sido preciso voltar a redesenhá-lo, enquanto o cabelo de lã quase desaparecera por completo. Todavia, a mãe e a filha estavam em melhor estado. Faith fizera-lhes vestidos novos, enquanto Eleanor tivera um cuidado muito especial quando lhes pintara os olhos de azul, as bochechas rosadas e os lábios de vermelho. Às vezes, quando Marion brincava com elas, fingia que não eram mãe e filha, mas sim irmãs, enquanto ao pai cabia o papel de irmão mais velho, o qual, regra geral, se encontrava no estrangeiro, entregue às suas expedições por terras de África. Uma vez que David se encontrava na escola, não podendo, por isso, levantar objecções, ela podia brincar com o comboio dele. Então, os três bonecos, instalados no vagão das mercadorias, podiam fazer viagens bastante demoradas pela sala de estar, aventurando-se pelas terras que ficavam por detrás do sofá ou, em alternativa, faziam-se ao mar, o qual era o tapete azul diante da lareira.

 

Quando Marion se fartou dessa brincadeira, sentia-se demasiado cansada para voltar a arrumar. Entretanto, Faith ralhou-lhe, dizendo-lhe que fosse descansar para o quarto no primeiro andar, arrumando ela própria o mobiliário e os bonecos da casa das bonecas de uma maneira qualquer, estragando a brincadeira. Então, Marion decidiu que no dia seguinte se entreteria com outra coisa qualquer; agora já estava crescida de mais para brincar com a casa das bonecas, para não mencionar que brincar com aquilo sozinha era enfadonho. Assim, olhou à sua volta, à procura de qualquer coisa com que pudesse brincar, mas estava apática, incapaz de se concentrar no assunto.

 

Concluiu que o ter estado doente a tinha mudado: estava mais magra e as pernas, até mesmo quando não estavam a tremer, eram muito altas e magricelas.

 

- Cresceste - afirmou Faith, agitando a água tépida com que enchia a banheira, olhando para Marion de camisola interior e cuecas. Quando ficou sozinha, Marion entrou cuidadosamente na banheira. Na casa de banho, pelo menos, o aquecedor de parafina aquecia um pouco, embora não muito; apesar disso, só as partes do corpo que ficavam debaixo de água é que ela não sentia frias. Também lhe acontecera outra coisa: os seios, que até adoecer tinham apenas começado a inchar, estavam agora mais gordos. Os mamilos pareciam maiores, tendo adquirido um rosado mais escuro. Quando lhes tocava, verificava que eram muito sensíveis ao toque, como se todo aquele processo do crescimento doesse um pouco. Além disto, estavam a acontecer-lhe outras coisas: sentia, debaixo de água, os pêlos na região do corpo entre as pernas, naquele alto que, ao que tudo indicava, não tinha nome. ”Não te esqueças de te lavares bem por baixo”, recomendara Faith, o que abrangia tudo aquilo de que não se falava.

 

Marion sentia um misto de orgulho e receio devido às transformações por que o seu corpo começava a passar. Não se sentia mal face a nenhuma dessas mudanças, até à noite em que Faith se sentou na beira da sua cama enquanto Eleanor continuava lá em baixo a jogar ao ludo com David e o pai. Sonolenta e quentinha depois do banho, Marion comia uma torrada que acompanhava com pequenos goles de leite morno, tentando não espalhar migalhas na cama, sabendo que não faltaria muito para que estivesse completamente restabelecida, pelo que aqueles mimos acabariam.

 

- Vamos lá a ver uma coisa - começou Faith. - Acho que chegou a altura de te explicar umas coisas. - Marion sentiu um sobressalto no coração. A mãe não se mostrava constrangida, apenas consciente do que estava a dizer com um ar de grande solenidade enquanto falava. Acabou, dizendo: - A Eleanor ainda é muito nova, por isso, não deves falar com ela sobre este assunto. Quando ela chegar à tua idade, terá muito tempo para se inteirar destas coisas.

 

Mas acontecia que Marion não estava disposta a guardar só para si aquelas notícias horrorosas, ainda que se sentisse privilegiada. Quando a mãe já não pudesse ouvir, sendo pouco provável que David aparecesse inesperadamente, ela tinha a intenção de explicar a Eleanor o horror que era a menstruação. Ao fim e ao cabo, Eleanor era tão alta quando Marion fora antes de ter adoecido com a febre; portanto, não faltaria muito para que chegasse a sua vez.

 

- A mamã pediu-me para não te dizer nada - avisou ela -, portanto, se lhe disseres alguma coisa, nunca mais te conto nada.

 

- Sendo assim, não me digas nada - retorquiu Eleanor, não querendo arcar com aquela responsabilidade. Sentindo-se frustrada, Marion pôs o assunto de parte.

 

- Muito bem, já que queres comportar-te como uma criancinha...

 

- Não, não quero... Vá, conta-me lá o que querias dizer.

 

O problema era que nenhuma das duas acreditava no que a mãe dissera a Marion.

 

- Não é todos os meses - proferiu Eleanor. - E não deve ser com toda a gente.

 

- Acontece a toda a gente - confirmou Marion -, mas não sou capaz de imaginar a tia Alice...

 

- Quem eu não consigo imaginar é a tia Mamie - retorquiu Eleanor cheia de ingenuidade. - Faço ideia da confusão que ela deve fazer.

 

- Não é possível dizer quando está a acontecer a qualquer pessoa, é um segredo. A mamã diz que ninguém é capaz de adivinhar.

- Mas, para si própria, Marion disse em pensamento: Nesses dias não tenciono ir à escola.

 

- Bem... - continuou Eleanor com um suspiro, a qual, fugindo à regra, se sentia aliviada por ser a irmã mais nova -, pelo menos, é uma coisa que só me acontecerá daqui a séculos. - Talvez acrescentou esperançosa - nunca venha a acontecer-me.

 

- é inevitável - afirmou Marion -, caso contrário, nunca poderás ter bebés.

 

- Não me importo, de qualquer maneira, também não quero ter bebés.

 

- Mas eu quero - ripostou Marion com ênfase. Ainda que para isso tivesse de passar por todos aqueles inconvenientes, estava firmemente decidida a ter filhos. Queria ter cinco: três rapazes e duas raparigas. Até já escolhera os nomes para todos, os quais mudavam consoante o livro que estivesse a ler a dada altura. As meninas chamar-se-iam Shirley e Caroline, pelo menos, por agora.

 

- Eu tenciono ser uma artista - declarou Eleanor -, portanto, seria melhor se não tivesse filhos. - Naquela altura, desenhava um vestido para Stephanie, a boneca de papel recortado. Tinha lantejoulas na orla da bainha e era decotado.

 

Entretanto, Faith inspeccionava o uniforme escolar de Marion que regressaria à escola na próxima segunda-feira. Naquele momento, esta olhava-se ao espelho do guarda-fatos, segurando na saia à sua frente.

 

- Está excessivamente curta. Devo ter crescido uns trinta centímetros.

 

Eleanor continuava a desenhar. Tinha inveja do uniforme da academia, mal conseguindo esperar até ela própria poder usar um uniforme como aquele, o que aconteceria no ano seguinte.

 

- Amanhã, as tias vêm cá - disse ela.

 

Alice e Mamie haviam adiado a visita devido ao mau tempo, mas, mesmo assim, chegaram com todo o espavento e drama de pessoas que tivessem sido obrigadas a percorrer os caminhos mais inóspitos para conseguir chegar ao seu destino.

 

- Ora bem, Faith - começou Alice enquanto as duas despiam vários agasalhos próprios para andarem na rua, enchendo o vestíbulo de casacos, cachecóis e galochas. - Ainda não começaste a pensar em mudar para a cidade? Tens vivido demasiado isolada aqui.

 

- O Parque Duthie parecia o Pólo Norte - Acrescentou Mamie, dirigindo-se às duas, entrando na sala de estar a fim de se aquecer junto da lareira.

 

- E a tia já esteve no Pólo Norte? - perguntou David. Mamie colocou-se de costas para o lume, erguendo a saia de modo a que o calor das chamas lhe subisse pelas pernas. Marion sentiu-se constrangida pela atitude da tia, desviando o olhar. Alice agarrou-a pelos ombros, obrigando-a a imobilizar-se.

 

- Cresceste muito - comentou. - E também ficaste muito mais magra.

 

- Sim, eu sei - retorquiu Marion, libertando-se das mãos da tia e retrocedendo para fora da sala.

 

No primeiro andar, verificou que o seu novo quarto estava frio porque a lareira estava apagada. Já se sentia melhor, assim, não havia necessidade de estar acesa. Mas a verdade é que não se sentia melhor. Sentia-se diferente e muitas vezes só lhe apetecia chorar. Faith, que andava à sua procura, deu com a filha sentada na beira da cama, olhando como que pasmada para as suas novas pernas que tão altas eram.

 

- Vem lá para baixo... Aqui dentro está muito frio.

 

- Posso continuar a dormir neste quarto?

 

- Já te disse que é demasiado frio. Estás a dizer que não queres continuar a partilhar o quarto com a Eleanor?

 

- Sim - confirmou Marion.

 

- Veremos - retorquiu Faith depois de ter reflectido naquilo por uns instantes.

 

- Por favor. Gosto do guarda-vestidos e do toucador deste quarto... também gosto dos retorcidos da madeira. Portanto, a mãe não teria de comprar mobília nova nem nada disso.

 

- Oh, que bom! - exclamou Faith, sarcástica, embora estivesse a sorrir.

 

Marion levantou-se da cama e dirigiu-se para o toucador. Passara muitas horas naquele quarto, tendo tido oportunidade para explorar todos os cantos da mobília a que não estivera habituada.

 

- Tudo isto já estava na casa antes de nos termos mudado para cá, não é verdade?

 

- Parte da mobília já cá estava, sim. Mas não esta cama.

 

- Olhe, mãezinha, esta gaveta pequenina do toucador... está fechada à chave. A mãe tem a chave?

 

- Ora, Marion, claro que não... Este quarto quase nunca é usado, excepto quando as tuas tias dormem cá. A Alice foi a última a dormir aqui, uma vez em que eu e o pai fomos para fora.

 

- Eu lembro-me dessa ocasião - disse Marion, abrindo o compartimento de tamanho ínfimo no centro do toucador, abaixo do espelho. No interior havia duas gavetas pequenas, uma que se podia abrir e que estava vazia enquanto a outra, por baixo desta, se encontrava fechada à chave.

 

- É esta, quem diria! - comentou Faith. - Nem sequer havia reparado nisso.

 

- Talvez alguém tenha escondido jóias lá dentro. O mapa de um tesouro ou um testamento antigo... Acha que dentro da gaveta possa estar alguma coisa assim?

 

- Tu andas a ler histórias a mais - retorquiu Faith, embora se tivesse detido a pensar. - Vou dizer-te uma coisa... Havia algo que a tua avó costumava fazer... estou a referir-me à avó Cairns. Houve uma ocasião em que ela me disse... - Faith interrompeu-se, levando a mão atrás do espelho e começando a apalpar a parte de trás. - Ora bem... - Começou a ouvir-se o som de algo que se descolava e quando ela tirou a mão trazia um bocado de fita gomada; agarrada a esta via-se uma pequena chave.

 

- Oh, mãezinha!

 

- Vamos experimentar, a ver se abre a gaveta. - A chave pertencia àquela fechadura. Faith virou-se para Marion. - Aqui tens... tu é que vais abri-la, para veres se aí dentro está um colar de diamantes.

 

Os dedos de Marion tremiam incontrolavelmente. Mas tudo aquilo foi em vão: no interior da gaveta, encontraram apenas um gancho do cabelo e uma moeda de prata de seis pence. Marion mostrou-se desiludida.

 

- Não fiques triste - disse-lhe a mãe. - Agora já tens uma gaveta secreta onde podes guardar as tuas próprias jóias. E os seis pence talvez sejam uma moeda da sorte.

 

- Não diga a ninguém - pediu Marion à mãe.

 

- É o nosso segredo - prometeu-lhe Faith. - Agora vem lá para baixo onde está quentinho. Não te quero aqui toda macambúzia.

 

- Mas posso ficar com este quarto, não posso? - Marion queria que a mãe lhe respondesse de forma a poderem continuar a conversar, a partilhar segredos que ficariam só entre as duas. De repente, Faith pareceu ter perdido o interesse na conversa. Virou costas à filha.

 

- Não estejas a aborrecer-me. Já te tinha dito que depois veremos.

 

Marion seguiu a mãe até ao rés-do-chão. Em pensamento, já havia começado a decorar o seu novo quarto.

 

Alice ajudava David a fazer os trabalhos de casa. Mamie tricotava e Eleanor, sentada ao lado da tia, manejava duas agulhas de tricô, grossas e de madeira, e um novelo de lã cor-de-rosa. O pai das garotas já comentara em mais de uma ocasião que Mamie e Eleanor eram muito parecidas, e Marion viu o que ele queria dizer: ambas tinham cabelos louros (as únicas pessoas louras da família), com uma pele de um branco cremoso que ruborizava de um momento para o outro de entusiasmo ou devido ao calor, e ambas eram senhoras de uns olhos muito azuis. Marion tinha uns olhos de um castanho-dourado como os da mãe, enquanto os de David eram cinzentos como os da tia Alice. ”Somos todos parecidos com alguém”, pensou Marion. Ao fim e ao cabo, talvez Eleanor não fosse nada parecida com a tia Mamie, uma vez que o cabelo desta era muito fofo e seco por causa das permanentes que fazia constantemente, enquanto o de Eleanor era ondulado e muito sedoso. A tia Mamie era anafada e de meia-idade, enquanto Eleanor era muito jovem e esbelta. Eleanor detestava que a comparassem com quem quer que fosse, muito em especial com Mamie.

 

- Como é que eu posso ser parecida com ela? A tia já é muito velha e eu sou muito nova. Além do mais, a tia Mamie é gorda e só usa roupas com muitos folhos e rendinhas.

 

Marion, poeta, gostava das roupas que ela usava, das blusas rendadas, das pulseiras que tiniam sempre que ela mexia as mãos e dos lenços de seda muito coloridos. Ergueu o olhar para o aparador onde se encontravam todos os retratos da família, em grande número, encostados à parede. Uma daquelas fotografias fora tirada no dia do casamento de Mamie: lá estava o tio Tom, do qual nenhuma das crianças se recordava, mostrando uma fisionomia muito austera com o seu uniforme da força aérea; havia outra de Mamie e Alice (esta última fora a dama de honor) com fatos que se haviam usado nos anos quarenta, com os chapéus inclinados para o lado. A blusa da tia Mamie tinha uma gola que era um cós encimado por um folho, enquanto a de Alice era muito simples.

 

- Uma blusa de seda cor-de-rosa - dissera Mamie às garotas.

- Eu própria escolhi o tecido e o feitio. Mas ela nem sequer quis que tivesse uns botões de fantasia. Ela, nem pensar!

 

Marion baixou o olhar, fitando Eleanor, que lhe franziu o sobrolho, erguendo o olhar que concentrara no seu tricô. Com alguma dificuldade, passou o fio solto por cima da laçada na agulha.

 

- Para dentro, por cima, através e sai - dizia Mamie. Consegues lembrar-te disso?

 

- Para dentro, por cima, através e sai - resmungava Eleanor por entre os dentes cerrados, e de facto deu a laçada, mas com demasiada rapidez, pelo que a malha lhe caiu. Eleanor, ao ver a malha de lã cor-de-rosa que descia uns dois centímetros desatou a chorar.

 

- Dá cá - disse Mamie, pondo de parte o trabalho em tricô de um branco alvo; estava a meio da manga de um casaco de malha. - Não puxes, Eleanor, vais fazer com que a malha caia ainda mais.

 

- Está uma porcaria - choramingou Eleanor, desolada. Não sou capaz de fazer malha.

 

- Ora bem... - disse Faith, que naquele momento entrou na sala. - Espero que não estejas a chocar alguma.

 

Eleanor parou de chorar, olhando para a mãe.

 

- Talvez esteja - respondeu a garota com uma expressão esperançosa.

 

- Eu faço isso - ofereceu-se Marion, sentando-se ao lado de Eleanor no chão. - Está a ver, tia Mamie. Eu sei apanhar malhas caídas.

 

- Não há dúvida de que tens boas mãos - concordou Mamie, orientando Marion enquanto esta ia apanhando a malha, volta após volta.

 

Eleanor já tinha perdido o interesse no tricô, indo atrás da mãe para a cozinha. David, desistindo dos trabalhos de aritmética, pousou o caderno e foi atrás da irmã. Marion ficou com Alice e Mamie, confortavelmente instalada diante da lareira.

 

- É melhor começarmos a pensar em ir para casa – anunciou Alice. Pegou no atiçador para espevitar o fogo na lareira, o que não era necessário, dando origem a uma nuvem de fagulhas. - Antes que comece a escurecer.

 

- As tias não ficam para jantar? - perguntou Marion, erguendo o olhar.

 

- As estradas continuam bastante más em algumas partes justificou Mamie, dobrando o tricô em que estivera a trabalhar e guardando-o dentro do saco de tapeçaria.

 

- Lembra-se de quando éramos pequenas... - começou Marion a dizer. - Costumávamos arrumar esse saco?

 

- Desarrumá-lo seria a palavra mais adequada! - ripostou Mamie, rindo-se. Marion fechou-lhe o saco, passando a ponta dos dedos pelas pequenas bolsas que tinha na superfície exterior, nas quais a tia guardava os alfinetes e as agulhas, assim como os carrinhos de linhas, tesouras e fios soltos de restos de lã.

 

Na janela da sala de estar, as crianças ficaram a ver as tias que se afastavam no automóvel, a uma velocidade reduzida, pela alameda bordejada de árvores, em direcção aos portões.

 

- Vão levar horas esquecidas a chegar a casa - comentou David -, à velocidade de três quilómetros por hora.

 

- Quem me dera que elas não tivessem ido - disse Marion.

 

- Eu não. A tia Alice não se cansa de falar dos trabalhos de casa - acrescentou David, fazendo uma pirueta com as mãos no chão e ficando de pernas para o ar, posição que manteve por uns momentos antes de se deslocar um pouco e acabando por cair. Estão a ver? - exclamou, corado de tanto entusiasmo. - Estive quase a andar com as mãos!

 

Durante o dia, Marion dormira durante muito tempo. Agora, à noite, não era capaz de adormecer. Muito embora não quisesse admiti-lo, a verdade é que sentia falta das conversas com Eleanor, a qual ainda se achava no quarto antigo, com a luz apagada apesar de serem apenas oito e meia da noite. Marion ligara a luz do seu novo candeeiro de mesa-de-cabeceira, tendo ficado a ler durante algum tempo, mas não tardou a fartar-se também da leitura, apagando a luz e ficando deitada no escuro. O degelo da neve dera lugar à chuva; batia contra os vidros da janela, uma combinação irritante de vento e chuva em rajadas que sacudiam a casa e açoitavam o jardim.

 

Por fim, mergulhada numa semi-sonolência, ouviu os pais quando subiram as escadas, e a luz que entrava pela fresta da base da porta ampliou-se quando Faith foi ver as filhas.

 

- Não estou a dormir - disse Marion numa entoação de firmeza que não deixava lugar a dúvidas, mas a mãe limitou-se a entalar as cobertas.

 

- Não tarda, já terás adormecido - retorquiu a mãe, voltando a sair do quarto. Algum tempo mais tarde, depois de passos de um lado para o outro, o som da água a correr, a descarga da sanita e portas que se fechavam, a luz do vestíbulo apagou-se e o silêncio apoderou-se da casa mergulhada na escuridão. Lá fora, a ventania dava largas ao seu mau feitio entre as árvores e batendo contra as janelas, mas, dentro de casa, tudo estava sossegado e preparado para uma noite de sono reparador.

 

Talvez ela tivesse adormecido. Seja como for, Marion pensou que havia sido despertada por qualquer coisa, tendo consciência de um sonho que se desvaneceu, de cores que se esbatiam. No escuro, Marion abriu os olhos. Entretanto, o vento amainara; não foi capaz de dizer se continuava a chover. Embora pouco, conseguia distinguir os contornos da mobília, o que significava que o céu devia estar limpo, uma vez que a pequena abertura nos cortinados deixava entrar um feixe de luz do luar, o suficiente para ela ver alguma coisa, distinguindo tudo o que lhe era familiar, tendo noção do sítio onde se encontrava.

 

Pôs-se a escutar o silêncio e pouco depois ouviu um pequeno som, muito vago. Possivelmente, seria o vento outra vez, a suspirar entre a ramagem das árvores. Mas, então, voltou a ouvir o mesmo barulho, mais elevado e definido, permitindo-lhe ter uma maior percepção. Marion sentou-se na cama de olhos arregalados. Algures dentro de casa, escutou o choro de um bebé. Passou as pernas por cima da beira da cama e com os pés começou à procura dos chinelos. ”Talvez eu esteja a sonhar”, disse para consigo, dirigindo-se para a porta que abriu com cuidado para não fazer barulho. O som tinha parado. Pouco depois, voltou a escutá-lo, o choro fraco e de desespero de um recém-nascido, o qual mal sabe por que razão é que deve chorar.

 

Marion saiu para a comprida galeria envolta em trevas. O seu quarto situava-se numa das extremidades, enquanto o dos pais era na outra; as escadas totalmente às escuras ficavam a meio dos dois. Devagar, começou a caminhar em direcção ao choro que ouvira. Tencionava chamar a mãe, que saberia o que fazer. Talvez não fosse um bebé, mas sim um gatinho pequeno que tivesse ficado fechado num lugar qualquer. Marion esperava que de facto fosse um gatinho. Porém, quando já se encontrava perto da porta do quarto da mãe, começou de súbito a ouvir o choro mesmo atrás de si; virou-se apenas por uma fracção de segundos, avistando uma silhueta escurecida ao cimo das escadas, a qual tinha uma trouxa nos braços, e o choro elevou-se, numa entoação de premência, como que vindo de outro mundo, ecoando na escuridão.

 

Marion soltou um grito involuntário, precipitando-se pela porta do quarto da mãe, que a deixara entreaberta, e dirigindo-se para a cama. Quando Marion chegou junto de Faith, viu que esta se tinha levantado, sentindo o coração a bater freneticamente.

 

- O que é que se passa... o que é que aconteceu? - perguntou Faith, abraçando a filha com força e afagando-lhe os cabelos. Vamos lá a acalmar. Tiveste um sonho mau? - Apalpou-lhe a testa.

- Estás a sentir-te febril outra vez, não é verdade? Vê se te acalmas, sossega que está tudo bem.

 

Nessa altura, já David e Eleanor tinham começado a chamar, cabendo a John ir aos quartos de ambos para os acalmar. Porém, sem se saber bem como, momentos depois os três encontravam-se na cama dos pais, com David agitadíssimo, tanta a excitação que sentia, enquanto Eleanor chorava aterrorizada e Marion continuava encostada à mãe, sentindo o bater apressado do coração de Faith ao mesmo ritmo do seu; pouco depois, a pulsação de ambas começou a ficar menos acelerada.

 

- É um ladrão. A Marion viu um ladrão?

 

- Não sejas disparatado, David.

 

- Eu vi um fantasma - afirmou Marion, falando para o irmão.

 

- Isso é uma tolice! - Mas era tarde de mais. Eleanor e David acreditaram logo na existência de um fantasma; a casa onde viviam estava assombrada. David puxou o lençol, tapando a cabeça.

 

- Ele fez assim... uuu... uuu? - perguntou ao pai, puxando o lençol para trás.

 

- Parem com isso, os três - admoestou Faith. - Os fantasmas não existem.

 

Todavia, não havia maneira de conseguirem voltar a adormecer. Precisaram de tomar leite morno e foi necessário voltar a encher as botijas de água quente, como se só agora é que se preparassem para se deitar. David ficou com os pais, tendo adormecido rapidamente, mas dava-lhes tantos pontapés e mexia-se tanto que nenhum dos dois conseguiu descansar. Marion foi para o seu antigo quarto, que passara a ser apenas de Eleanor, dormindo na sua cama de antigamente. Assim que as duas garotas ficaram sozinhas, Eleanor apressou-se a deitar-se na cama da irmã. Já não tinham medo: a luz da galeria ficara acesa, além de ouvirem a voz da mãe, que falava num murmúrio, e a voz mais grave do pai, que lhe respondia.

 

- Conta-me tudo outra vez - pediu Eleanor num sussurro.

- Qual era o aspecto da senhora?

 

Marion não se cansara de repetir: Eu vi uma senhora, vi uma senhora que tinha uma coisa qualquer nos braços, pensei que era o bebé dela. Depois, proferiu mais reflectidamente:

 

- Parecia-se um pouco com a tia Alice. Eleanor sentiu-se mais tranquila ao ouvir aquilo.

 

- Isso quer dizer que não metia medo.

 

- Não, Eleanor - replicou Marion, insistente -, metia medo! Não cheguei a ver a cara dela, só consegui distinguir que tinha cabelo escuro e era alta.

 

- Mas agora já se foi embora - retrucou Eleanor, dando outra volta na cama, aninhando o rabo no corpo de Marion, suspirando e fechando os olhos. - A mamã disse que tinhas sonhado. Talvez tenhas sonhado com ela.

 

- O choro não foi nenhum sonho. Eu ouvi muito bem um bebé a chorar.

 

- Sim, mas também disseste que podia ter sido um gatinho. Marion não lhe deu resposta. É verdade que a vi. Também ouvi o choro. Pouco depois apercebeu-se de que Eleanor já adormecera porque começou a ouvir os barulhos dela a chuchar no dedo, sabendo que a irmã nunca metia o polegar na boca a menos que estivesse a dormir. Marion aninhou-se mais, chegando-se a Eleanor, que dormia de costas para si, encostando a face à macieza da fronha de algodão e pondo-se à escuta. Mas o bebé já parara de chorar e a mulher (se é que tinha havido alguma mulher) já se fora embora. No quarto dos pais, John também acabou por adormecer, desligando-se do mundo, tal como Eleanor fizera, aconchegando a roupa da cama junto do seu corpo. Faith estava deitada com os braços à volta do corpo inquieto de David, tentando mantê-lo sossegado, esperando pelo raiar da manhã. Sei bem quem tu és, disse ao fantasma da senhora que Marion vira. Será que nunca mais me largas!

 

Em finais de Fevereiro, Gavin veio a terra, precisamente na altura em que Marion se submetia ao terceiro tratamento de quimioterapia. Eleanor ouviu o barulho do Saab que percorria o caminho de acesso à casa, sabendo de imediato que era o automóvel dele. Quando desligou o motor, assomou à janela da cozinha para ter a certeza. Sentiu-se grata por ele já ter entrado em casa; podia olhar para o carro dele, sentindo o coração a bater acelerado, mas sem ser obrigada a vê-lo para já. Assim, ficou à espera, sentindo-se febril devido a tanta incerteza. Pouco depois, forçou-se a afastar-se da janela, encaminhando-se para a cozinha, ciente de que tinha de fazer qualquer coisa que lhe preenchesse os pensamentos. Fosse o que fosse. Mas o quê? Qualquer coisa.

 

Claire, que passou por casa de Gavin a caminho da sua, alguns minutos depois quando vinha da escola, foi a primeira a cruzar-se com ele. Tinha ido buscar uma caixa cheia de géneros de mercearia que deixara no automóvel.

 

- Olá - saudou-a Gavin. - Estás boa?

 

- Estou óptima - respondeu Claire sem se deter. Gavin, que lhe queria dizer mais qualquer coisa, teve de a chamar.

 

Claire largou a mochila da escola no corredor de sua casa.

 

- Aquele homem, o Gavin, já voltou - disse à mãe quando entrou na cozinha, abrindo a porta do frigorífico. - O que é que eu posso comer que não engorde, mas que me mate a fome?

 

- Uma maçã? - sugeriu a mãe.

 

- Não sei - retorquiu Claire, fazendo uma careta. - Ele disse que tencionava passar por cá mais tarde, para ver a mãe. - Barrou duas fatias de pão com manteiga, fazendo uma sanduíche de queijo. - É esta noite que a mãe tem aulas?

 

- Não, é amanhã.

 

- Pão e queijo são bons para a saúde, não são?

 

- Bem... o queijo de verdade faz muito bem - respondeu Eleanor.

 

- Este é queijo verdadeiro. De qualquer maneira, não gosto daquele queijo malcheiroso que a mãe costuma comer. Tem um cheiro asqueroso.

 

”Quero alguém que me faça companhia”, pensou Eleanor, falando com os seus botões, ”e comer comida a sério, uma pessoa que goste das mesmas coisas de que eu gosto. Quero outro adulto nesta casa. Já, agora!”

 

Porém, quando Gavin lhe abriu a porta de sua casa e ela disse: ”Olá, deixei a tua correspondência na cozinha; já viste?”, a sua voz saiu tensa e esganiçada; toda ela tremia.

 

Ele estava na mesma. Tinha um aspecto cansado e um pouco desleixado, com a barba por fazer, mas ao vê-la sorriu-lhe com uma satisfação que era genuína e, ignorando a correspondência, tomou-a nos braços (o que aconteceu assim que ela entrou).

 

- Foi muito tempo, não achas? - murmurou Gavin com a boca no pescoço dela, causando-lhe arrepios por todo o corpo, a barba áspera na pele sensível, incendiando as emoções de Eleanor.

 

- Oh - exclamou ela arquejante -, afinal, sempre era a sério.

 

- A sério?! Isto é a sério que chegue... Tive muitas saudades de ti.

 

- Sim. - E agora sentia que podia dizê-lo. - Sim, tive saudades de ti. - E depois, as mãos de Gavin já estavam debaixo da camisola dela, geladas na pele quente, dedos que se metiam por baixo do sutiã, empurrando-o para cima, mãos que em seguida começaram a descer, mais para baixo, e momentos mais tarde, abrindo o fecho de correr das calças de ganga, encontrando os lugares secretos com tanta rapidez que ela ficou com a respiração entrecortada; uma vez mais, tentou detê-lo, mas sentindo, apesar dos seus protestos, a humidade traiçoeira que molhava os dedos dele.

 

- Não posso, aqui, não. Tenho de voltar para casa... a Claire...

 

As pessoas não faziam coisas daquelas, não na vida real, apossando-se dos outros com tanta sofreguidão, com a porta mal fechada, num corredor demasiado estreito, a alcatifa excessivamente áspera que lhe magoava a coluna enquanto ele entrava dentro dela, que com o seu corpo acompanhava os movimentos do dele; naquele momento, Eleanor sentia-se incapaz de impedir a fogosidade de Gavin, era-lhe impossível não ceder.

 

- Queres ir lá para cima? - perguntou ele quando já estava exausto e depois de se ter recomposto um pouco, abraçando-a e apertando-a a si, com os lábios de novo no pescoço de Eleanor, beijando-a com muita delicadeza.

 

- Não, não, tenho de voltar para minha casa. - Levantou-se do chão, começando a apanhar as roupas que despira, recuperando o bom senso. E se Claire tivesse ido atrás dela, ou lhe fosse dizer que tinha um telefonema, ou apenas para lhe dizer qualquer coisa trivial? - Oh, meu Deus, tenho de ter algum domínio sobre mim mesma. - Estava afogueada, alarmada e, contudo, continuava a tremer, tal o prazer que aquele interlúdio lhe proporcionara, desejando ficar, para chegar uma vez mais ao lugar onde ele a levara da última vez.

 

Gavin, todo nu, estava sentado no corredor estreito, encostado aos casacos pendurados na parede enquanto a observava com uma expressão divertida.

 

- Tens de voltar - disse ele. - Volta mais tarde.

 

- Vou tentar - prometeu Eleanor.

 

Claro que ela voltaria. O que ele sabia de antemão quando deixou que ela se fosse embora.

 

Marion chegara ao ponto em que odiava ir ao hospital. Até então, sempre pensara que os hospitais eram lugares bons, onde os problemas de saúde eram resolvidos, as dores mitigadas e as pessoas doentes se curavam. Naquele momento, enquanto se aproximava do complexo de edifícios de linhas rectilíneas, sentindo nas narinas o cheiro acre do asfalto do parque de estacionamento, a sensação de náusea que lhe atingia a boca do estômago intensificou-se. Aquilo era a expressão do medo. Tinha medo do hospital. Em todo o lado, ouvia histórias de pessoas que saíam mais doentes do que quando entravam, ou a sofrerem de novos sintomas ou de qualquer incapacidade física. Por que motivo é que antes da sua doença nunca tinha ouvido aquele tipo de histórias? Era impossível que todas fossem verdadeiras.

 

Não era somente a doença que a atemorizava. As enfermeiras e demais pessoal médico, que em tempos lhe haviam parecido tão simpáticos e cordiais, actualmente nem sempre lhe davam aquela impressão. O primeiro choque que Marion tivera fora logo a seguir ao Ano Novo, altura em que se dirigira ao hospital por causa da prótese que substituiria a temporária. Foi obrigada a esperar durante muito tempo, e todos se mostraram bastante ríspidos para com ela. ”Excepto nós, as pobres amazonas”, reflectiu Marion. ”Nós não éramos ríspidas.” Os moldes de borracha macia, de formas estranhas, que tinha de meter dentro do sutiã, experimentando os diversos tamanhos e formatos, eram comicamente desajeitados. Quando, por fim, optou por um modelo, a enfermeira recomendou-lhe que andasse de um lado para o outro, que se baixasse e que estendesse as mãos para cima.

 

- Tudo movimentos normais - explicara ela. - Para ver como é que se sente, minha querida.

 

Marion ressentiu-se daquele ”minha querida”, do conselho, da porta basculante que não se imobilizou logo que a enfermeira saiu. Lamentou não ter pedido a Eleanor que a acompanhasse. Pelo menos, teria alguém que a ajudasse a fazer troça da situação. Inclinou-se para a frente, o que talvez tenha feito com demasiada rapidez, porque a prótese saiu do seu lugar, caindo no chão com um barulho surdo.

 

- Merda! - exclamou Marion em voz alta, Marion, que nunca dizia uma asneira nem perdia a calma. - Oh, que grande merda,!

 

- O que devias fazer - disse Eleanor quando Marion lhe descreveu aquela visita ao hospital - é arranjar sutiãs novos. Devias ir falar com alguém que perceba do assunto. Com certeza que nas lojas mais tradicionais ainda há pessoas que fazem coisas por medida, naquelas que são caras. Decerto que existirão sutiãs especiais para pessoas como tu, não te parece? Pois bem, é desses que tens de comprar... uns que sejam realmente bonitos.

 

- Essa é a primeira sugestão sensata que alguém me dá - retorquiu Marion. - É isso mesmo que terei de fazer. - Eleanor ficou radiante ao ouvir aquilo, sabendo que, ao menos uma vez na vida, dissera algo de útil.

 

Marion comprara um livro cujo tema era a saúde feminina e outro que dizia o que fazer quando se sofria de uma doença cancerosa. O primeiro era muito feminista e alegre, tendo por objectivo incentivar as mulheres a examinarem a sua própria vagina. O outro era mais clínico, explicando tudo com grande pormenor, de facto, com mais minúcia do que Marion desejava, ou que fosse capaz de absorver. No entanto, nenhum dos livros, como fez notar a Eleanor, mencionava a sensação pegajosa que a prótese lhe provocava junto da pele quando tinha um pouco mais de calor.

 

- Uma pessoa fica a transpirar por baixo da prótese. Não sou capaz de imaginar um Verão inteiro com isto.

 

Ela e Eleanor leram os dois livros, comparando-os um com o outro. O que dizia respeito à saúde feminina tinha um capítulo com o título de ”Como Olhar pelos Seus Seios”. Como se, comentou Eleanor, fossem cachorrinhos ou plantas de interior. No fim da parte que encorajava as mulheres a examinarem-se a si próprias, assim como a adoptarem um regime alimentar saudável, listava algumas estatísticas.

 

- Uma em cada doze mulheres sofre de cancro da mama leu Marion em voz alta para Eleanor. - E depois diz que este número devia ser posto em perspectiva. - Abismadas, ficaram a olhar uma para a outra.

 

- Meu Deus! - exclamou Eleanor. - Isto significa que existem milhares de mulheres que sofrem deste mal, até mesmo milhões.

 

Eleanor deu consigo a distanciar-se de Claire, aproximando-se ora de Gavin ora de Marion, para logo voltar a Gavin, dividida entre a excitação e o terror, tendo a sensação de que se deslocava através de um trilho estreito que atravessasse montanhas rochosas, tão altas dos dois lados que impediam a passagem em qualquer direcção, excepto para trás (o que era impossível) ou em frente (o que era perigoso). De quando em vez, dava-se uma avalancha de pedras que rolavam pela encosta com um estrondo tremendo. Não obstante, até ao momento não tinha sido atingida por nenhuma dessas pedras. Todavia, essa situação não duraria por muito mais tempo.

 

- Uma em cada doze - voltou ela a repetir em voz alta. Marion continuou a ler.

 

- Oitenta por cento destas mulheres não morrem - disse ela a Eleanor.

 

- Espero bem que não - ripostou Eleanor, manifestamente irritada -, tendo em vista a porra dos tratamentos todos a que te submetem.

 

- No entanto - continuou Marion, mostrando uma expressão de dúvida -, também diz que somente setenta por cento é que cinco anos mais tarde estarão vivas e de boa saúde. Esta percentagem não devia ser de oitenta por cento? O que é que acontece aos outros dez por cento? - Folheou algumas páginas para trás, mas pouco depois desistiu, atirando o livro para o chão. - Não sou capaz de apreender tudo isto. Ultimamente, tenho-me sentido tão estúpida.

 

- Não, isso não é verdade - contrapôs Eleanor, que desejava apanhar o livro, lendo ela própria o que a irmã estivera a ler, mas apercebeu-se de que Marion já tinha a sua quota-parte quanto àquele assunto. - Assim que os tratamentos de quimioterapia acabarem, verás que te sentirás bem. Nesta altura já vais quase a meio.

 

Marion voltou a pegar no livro.

 

- Os nódulos linfáticos - murmurou. - Quanto a isso, tenho sorte. Os meus não parecem ter sido afectados.

 

Eleanor não fazia a mais pequena ideia do que eram os nódulos linfáticos, além do mais, não estava particularmente interessada em inteirar-se.

 

- Não leias mais a esse respeito - aconselhou. - Acho que este tipo de livros só serve para fazer com que uma pessoa se sinta pior.

 

- Tens toda a razão - concordou Marion. - É tão bom que tu venhas fazer-me companhia. Nesta fase, não sou capaz de suportar a presença das outras pessoas, e o Fergus não quer que eu diga seja o que for acerca da minha doença. Bem... ele faz um esforço por me ouvir, mas, um minuto ou dois depois, arranja logo qualquer coisa para fazer. Vou só ver a luz que disseste que andava a tremer... Vou trazer o carvão para dentro..., por isso, acabo sempre por me calar. Mas, para ti, isto não deve ser nada divertido, falar a respeito da minha doença.

 

- Não sejas disparatada... o teu bem-estar é um assunto que me interessa muito. Quero ser a pessoa com quem falas a respeito deste assunto. - Soergueu-se. - Estás a sentir-te cansada? Queres que me vá embora?

 

- Não, a menos que queiras - respondeu Marion, suspirando. - Pelo menos, tu não estás sempre inclinada para a frente, como a Lynn costuma fazer, assim como a Sue e as outras todas.

 

- Inclinadas para a frente? - repetiu Eleanor sem compreender.

 

- Assim - exemplificou Marion com um esforço, deslocando-se no assento e inclinando-se na direcção de Eleanor, olhando-a de frente com um olhar cheio de intensidade. - Diz-me, como é que te sentes realmente? - perguntou numa voz sussurrada, imitando as amigas.

 

- A intenção delas é mostrarem-se simpáticas - observou Eleanor, rindo-se.

 

- Eu sei, mas não deixa de ser horrível. Podem ver por elas próprias como é que me estou a sentir. Feia. O cabelo está a cair-me às mãos-cheias... não sou capaz de acreditar que isto esteja a acontecer comigo. Olha bem para mim, não tarda muito ficarei totalmente careca, como uma das personagens de O Caminho das Estrelas... como um ser oriundo de outra galáxia.

 

- Na minha opinião, continuas muito magra - afirmou Eleanor. - De facto, magra de mais.

 

- É o que o Fergus está sempre a dizer - retorquiu Marion, esboçando um sorriso.

 

- Tanto ele como eu gostamos muito de ti... mesmo que não tivesses cabelo nenhum, isso nunca mudaria, continuaríamos a gostar de ti. - Mas Eleanor sentiu um baque de medo, de alívio, por ela própria não ter de enfrentar uma situação daquelas.

 

Já a caminho de casa, não parava de meter os dedos pela sua basta cabeleira loura, como se quisesse certificar-se de que os cabelos continuavam no seu lugar. ”Eu não seria capaz de suportar uma situação destas”, dizia para consigo. ”Como é que ela consegue?” E Gavin, continuaria ele a desejá-la daquela maneira cheia de fogosidade e tão ousada, caso o seu cabelo começasse a rarear, se começasse a ficar com as feições encovadas, apática, como estava a acontecer a Marion? Marion, que havia vários anos fazia dieta constantemente, para a interromper com a mesma regularidade, sempre a querer ser mais magra do que o seu metabolismo lhe permitia. Naquela altura, porém, as saias e as calças estavam-lhe todas largas, enquanto as blusas deixavam ver as clavículas com toda a clareza.

 

Nada daquilo fazia a mínima diferença no tocante a Fergus. Eleanor ansiava vir a ser amada com toda aquela dedicação. Somente Claire é que a amava de modo tão incondicional, não estando nas suas mãos alterar esse estado de coisas; as crianças amavam sem que a sua vontade tivesse alguma coisa a ver com o assunto, gostando mesmo dos pais mais horríveis. Era só olhar para Gavin, que continuava a admirar o pai que tão pouca atenção lhe dedicara, arranjando desculpas que justificassem a sua atitude, até mesmo na brincadeira. Nas duas semanas desde que voltara a casa entre eles tinha-se estabelecido uma intimidade que com certeza não se deveria apenas à relação sexual. ”Estamos apaixonados um pelo outro, é o que este sentimento tem de ser”, disse Eleanor, falando consigo própria; andava sempre à procura nele de sinais que lhe confirmassem que lhe tinha amor, que se sentia interessado e que gostava de estar com ela. Sim, estar apaixonado era aquilo mesmo. Ao fim e ao cabo, não era coisa que tivesse sido exagerada, como ela costumava pensar, pelos poetas e os que escreviam letras de canções.

 

Esforçava-se para que Claire não se apercebesse muito do seu novo estado de espírito.

 

- Ora bem - dizia Claire com um suspiro sempre que Eleanor desaparecia na casa de Gavin, o que fazia muito amiúde, dizendo que só se demorava meia hora, mas acabando por ficar sempre durante quase duas horas. - Desde que a mãe goste dele. Parece-me que ele é bastante simpático.

 

Então, houve um serão em que a filha se manteve perto dela depois do jantar, durante o tempo suficiente para poder ajudar a lavar a louça, e em que disse:

 

- Mãezinha... quer saber uma coisa?

 

- O quê?

 

- Tenho andado a sair com alguém.

 

Eleanor ficou imobilizada, mas, pouco depois, continuou a lavar a caçarola.

 

- Ora bem, e quem é essa pessoa?

 

- É um rapaz que conheci na escola. Chama-se Stephen.

 

- E é bom rapaz, simpático?

 

- Anda sempre muito bem arranjado, mamã. Há um monte de raparigas que engraçam com ele.

 

- Muito me contas... Quando é que costumas sair com ele?

 

- Sabe como é. Costumo ir com ele à Discoteca Maryburgh. E combinámos ir todos ao Sporty na sexta-feira à noite. Vou de camioneta com a Sarah.

 

- Estás a referir-te ao Sports Centre?

 

- Sim - confirmou Claire.

 

- Sabes uma coisa, Claire. Talvez não fosse má ideia se falasses comigo antes de combinares essas saídas.

 

- Mas tenho a certeza de que a mãe não se oporia, não é verdade? Quem me dera que não vivêssemos no campo. O Stephen mora em Digwall; todos os meus amigos vivem na cidade, excepto a Sarah e eu própria. Somos as únicas que temos de ir para o colégio na camioneta da escola.

 

- Portanto, deduzo que a camioneta deve andar sempre bastante vazia.

 

- Mãe... sabe muito bem o que quero dizer. Toda a gente fica a conversar na rua depois das aulas, mas eu tenho de apanhar a porcaria da camioneta. Posso passar a ir para casa da tia Marion e depois a mãe vai buscar-me mais tarde?

 

- Não, a tua tia Marion está muito doente. Neste momento, já tem que lhe chegue para lhe dar trabalho.

 

- Mas eu prometo que não a aborreço nem nada disso. Ela não está assim tão doente, pois não?

 

O que poderia Eleanor dizer perante aquilo?

 

- São os tratamentos que fazem com que fique muito doente.

 

- Estou a ver - retorquiu Claire, virando costas e dirigindo-se para a porta da rua.

 

Mais tarde, Eleanor estava sentada na sala de estar de Gavin, aninhada no sofá junto dele, dando voz às suas preocupações.

 

- Na escola já lhe explicaram tudo o que ela tem de saber, além de eu já ter falado com ela a respeito... dos rapazes, estás a perceber? Mas ela parece simpatizar muito com este. O que nunca tinha acontecido antes. Antigamente eram sempre muitos... saíam todos em grupo.

 

- Estás a pensar que ela talvez queira começar a ter relações sexuais, é isso?

 

- Não! Deus do céu, espero bem que não! Por amor de Deus, ela só tem catorze anos.

 

- O que serve para um, serve para os outros - ripostou ele na brincadeira, fazendo uma careta risonha e dando-lhe um beijo na orelha. - Nos tempos que correm, os jovens começam cedo.

 

”Mas que diabo de exemplo é que eu sou?”, perguntou-se Eleanor deitada na cama de Gavin, consciente de que teria de se ir embora dentro de instantes, que Claire não tardaria a chegar de casa de Sarah, vinda da escola ou da discoteca, ou talvez precisasse de se levantar para a ir buscar no automóvel. Tinha a impressão de que estava sempre a deixar Gavin quando sentia a vulnerabilidade feita da calidez e angústia do pós-sexo, sensível e até mesmo um pouco dorida, continuando a experimentar aquela espécie de dor que indicava uma boa relação sexual. Depois, tinha de se vestir, assumir a postura de mulher sensata, de mãe, de mulher como devia ser.

 

Tudo o que faziam juntos estava imbuído de um certo perigo, como se fosse algo prestes a chegar ao fim, qualquer coisa de que era necessário tirar todo o partido, intenso, transitório e cheio de ansiedade. Não faltava muito para que ele tivesse de partir de novo, deixando-a sozinha outra vez durante duas semanas. Retomaria as aulas nocturnas, passando a dispor de mais tempo para se encontrar com Marion, podendo prestar mais atenção a Claire. Fosse como fosse, estava na altura de se afastarem um pouco um do outro. Cada vez ele esperava mais tempo para colocar o preservativo, penetrando-a por uns momentos antes de o fazer. Ao que ela não se opusera.

 

O risco era tanto dele como dela. Como é que Eleanor poderia aconselhar Claire, quando ela própria se comportava de maneira tão irresponsável? Não, uma interrupção seria apropriada naquele momento. Era necessária. Teria oportunidade para relaxar, voltar a alimentar-se racionalmente. E não tencionava ficar à espera, ansiando pela presença dele, a pensar nele o tempo todo. Aquilo era exaustivo.

 

Quando visitou Marion na tarde do dia seguinte, não foi para confortar e animar a irmã, mas sim para que ela própria deixasse de se preocupar por Gavin partir dentro de dois dias. Sentia desprezo por si mesma quando tomava consciência dessa realidade, sabendo que o que queria era que Marion a confortasse.

 

De uma das janelas do andar de cima, Marion avistou o carro de Eleanor que entrava no acesso a sua casa. Estava no quarto de Ross, a escolher umas roupas que ele já não usava, algumas das quais nem sequer serviam para vender em segunda mão. Uma das suas amigas, Lynn, fora lá a casa da parte da manhã enquanto dava a volta para recolher as coisas que venderiam na Feira da Primavera organizada pela escola.

 

- Eles encarregaram-me de ficar na tenda da roupa em segunda mão - dissera ela, bebendo o café que Marion lhe oferecera e deixando cair descuidadamente as migalhas dos biscoitos.

 

- Eu vejo o que é que tenho... - começou Marion a dizer.

 

- Não tem importância... Eu só não queria que tu pensasses que me tinha esquecido de ti, que achasse que não valia a pena dizer-te nada. Se bem que nesta altura ninguém está à espera que participes. - Com estas palavras, levantara-se, sacudindo as últimas migalhas que lhe haviam caído na saia. - Muito bem. Tenho de ir andando, ainda vou passar por casa da Sue... Disse-me que tinha um monte de coisas da Shona que ela já não veste.

 

- Eu passo uma vista de olhos pelo meu guarda-roupa - prometeu Marion. - Seja como for, está na altura de eu fazer uma limpeza. E a cómoda do Ross... Há séculos que não escolho a roupa dele.

 

Por conseguinte, era aquilo que Marion estava a fazer quando deu pela chegada do automóvel de Eleanor. No entanto, não adiantara muito aquela tarefa, tendo-se visto forçada a sentar-se na cama, uma vez que lhe custava manter-se de pé durante muito tempo. Estava a guardar o seu próprio guarda-vestidos para mais tarde, para quando se sentisse melhor. Aquele não era um dos seus melhores dias. Nos últimos vinte minutos não tinha feito nada, além de se pôr a olhar para o vazio, sem sequer ouvir o programa que a Rádio 4 transmitia na telefonia perto de si. Estivera a pensar no seu corpo, em como cada vez lhe parecia menos ser o seu, aquele com que estivera tão familiarizada. Foi com uma sensação de alívio que desceu ao piso térreo para saudar a irmã.

 

- Não estás nada com bom aspecto - notou Eleanor.

 

- É impressão tua; sinto-me bem.

 

Eleanor foi atrás da irmã até ao primeiro andar.

 

- O que estás a fazer? - perguntou a Marion.

 

- A Lynn passou por cá por causa da feira da escola. Ela é que está encarregada da tenda de roupa em segunda mão. Podias ajudar-me a escolher a roupa do Ross... Tenho a impressão de que não estou a fazer progressos nenhuns.

 

No entanto, limitaram-se a ficar sentadas no quarto, rodeadas de cartazes de estrelas de rock e jogadores de futebol, entre uma grande confusão de livros escolares, disquetes de computador, lápis e canetas roídos na ponta. Eleanor era a que falava. Por seu lado, Marion, incapaz de se interessar fosse pelo que fosse que não dissesse directamente respeito ao seu estado de saúde, mostrou-se satisfeita com aquela distracção que a alheava dos seus pensamentos.

 

- No teu lugar, eu não me preocuparia muito por a Claire ter arranjado um namorado - comentou Marion. - Nessas idades, é uma coisa que quase nunca dá em nada.

 

- Para te ser franca, tenho de dizer que estou mais preocupada comigo própria do que com ela - retorquiu Eleanor. - Por ter arranjado um namorado na minha idade.

 

- É isso que ele é?

 

- Bem, não sei de que outra maneira é que poderei classificá-lo.

 

- Isso quer dizer que o caso é a sério?

 

- Digamos que é bastante... intenso - redarguiu Eleanor, corando.

 

Foi com uma sensação de alívio que Marion pensou em Fergus, reflectindo em como as coisas eram fáceis quando se vivia com uma pessoa há vários anos. ”Eu já não teria a energia suficiente”, pensou para consigo, ”para sentir tanta emoção e incerteza. Mesmo que estivesse de boa saúde.” No entanto, Eleanor, naquele momento, possuía uma beleza clamorosa que Marion sentia impossível não admirar, e que teria invejado, caso lhe tivesse sido possível albergar um sentimento tão negativo pela irmã.

 

- Ora bem - prosseguiu Eleanor -, veremos como é que as coisas correm. - Olhou para o rosto cansado e de expressão tristonha da irmã Marion, que se esforçava tanto por ser útil, por voltar a ser normal. - Anda - disse ela -, vamos até lá abaixo para tomarmos uma chávena de chá. Tive uma ideia.

 

- Que ideia é essa?

 

- Estou a pensar em levar as garotas a Aberdeen durante a Páscoa. O Gavin estará no mar até à segunda semana das férias; portanto, posso levá-las a Pitcairn; podemos aproveitar para visitar as tias e para irmos às compras, também podemos ir ao cinema. Para tu descansares um pouco, não achas? Só com o Fergus e o Ross em casa terás mais tranquilidade. Se o Ross quisesse vir, não me importava de o levar connosco. O que é que te parece?

 

- Elas hão-de gostar da ideia - afirmou Marion, reflectindo na proposta da irmã. - Mas acho que o Ross terá de estudar, uma vez que os exames estão à porta.

 

- E quanto a ti? A ideia agrada-te? Não gostarias de ter a casa apenas para ti durante alguns dias?

 

- Õh... - fez Marion, que naquela fase da sua vida ficara incapaz de tomar decisões dessa natureza. Receava ter os filhos longe de si, querendo sempre que se encontrassem todos em casa. Não obstante, quando estavam presentes, sentia-se exausta, ansiando por um pouco de paz e sossego. - De acordo - anuiu por fim. Podemos perguntar-lhes.

 

Nessa noite, deitada nos braços de Gavin, consciente de que não faltava muito para que ele partisse de novo, Eleanor pensava em como a ida a Pitcairn a ajudaria a encher os dias vazios até que ele regressasse. Propunha-se fazer aquilo por si própria e não por Marion, sentindo-se envergonhada por ser forçada a admiti-lo.

 

- Em que estás a pensar? - perguntou Gavin. - Estás muito tensa outra vez.

 

- Estou?

 

- Descontrai-te, aninha-te junto de mim. A Claire está em casa da amiga, segundo tu disseste, e assim temos pelo menos mais uma hora.

 

- Não é isso.

 

- Então, o que é que se passa? - perguntou ele, apertando-a nos seus braços. - Estás a pensar no sexo?

 

- O quê?

 

- Não te vieste - adiantou ele.

 

- Bem, às vezes isso não acontece. Sabes... pensei que depois da primeira vez, seria sempre assim. Que tinha conseguido, que a situação se invertera, que passaria a acontecer sempre. Porém, tenho a impressão de que isso também depende de outros factores - concluiu Eleanor, chegando-se-lhe mais e aninhando uma perna entre as dele, acariciando-lhe a barriga e sentindo que ele estremecia ao toque da sua mão.

 

- Queres tentar outra vez?

 

- Para te dizer a verdade, não tem importância. Isso agora já não interessa. Era muito mais relevante quando eu estava convencida de que jamais conseguiria. Mas agora, o amor é tão... variado, não achas? Não tem a ver só com os orgasmos, com grandes sensações. É aquilo que damos, o que tiramos um ao outro, a surpresa que tudo isto é. É isso que faz com que seja tão...

 

- Maravilhoso?

 

- Bem... sim.

 

- Tu és uma maravilha para o meu ego - declarou Gavin, rindo-se.

 

No dia anterior ao da partida, em que esteve uma tarde de temporal, foram dar um passeio até ao estuário, onde observaram um par de cisnes a alinharem as crias em fila, começando a atravessar as águas de um cinzento cintilante. Sempre que o trilho na margem o permitia, Gavin dava-lhe a mão, caminhando ao seu lado. Pararam nos viveiros em ruínas dos salmões, sentando-se num degrau largo diante de um deles, puxando as golas dos agasalhos para cima, numa tentativa para se protegerem da ventania. Acima deles, viram uma ave de rapina que pairava por perto, mas, pouco depois, retomou lentamente o seu voo, afastando-se para longe.

 

- Olha! - indicou-lhe ele. - Acho que é um milhafre-ruivo. Extraordinário! Sim, é isso mesmo.

 

- Como é que podes estar tão certo? - perguntou Eleanor.

 

- Porque tinha a cauda bifurcada. É assim que se distingue um milhafre-ruivo, até mesmo a esta distância.

 

- Bifurcada?!

 

- Sim, isso mesmo.

 

Eleanor escondeu o rosto no casaco de Gavin, abraçando-o e apertando-o com força.

 

- Tu és o meu milhafre-ruivo - disse ela, mostrando-se numa atitude um pouco tonta, tal a intensidade do amor que lhe dedicava.

 

- Mais uma noite e abandonarei o ninho - retorquiu ele -, voando para longe.

 

Haviam sido muitas as noites em que Eleanor se sentira sozinha, quando Claire pernoitava em casa das amigas. Mas, naquele momento, sempre que isso acontecia, ficava contente. Desta vez, na sua última noite em casa, Gavin foi a casa dela, o que só fazia muito raramente. Eleanor começou a pensar no cheiro característico dele, o calor e o cunho tão pessoal que permaneceriam nos seus lençóis mesmo depois de ele ter partido.

 

- Diz-me - pediu Gavin quando estavam deitados lado a lado depois de terem feito amor, prontos para retomar a conversa interrompida.

 

- Digo-te o quê?

 

- O que aconteceu.

 

- Não sei de que é que estas a falar.

 

- Conta-me as circunstâncias em que o teu marido faleceu.

 

- Não, isso não interessa. Há muito que deixei de pensar nesse assunto.

 

O que era uma mentira que não passou despercebida a Gavin, apesar de não ter insistido.

 

- Deixa-me fazer com que te venhas - pediu ele numa voz murmurada, beijando-lhe os seios. - Agora, quando tu te vens, os teus gemidos...

 

- Pára com isso... já me vim. Com certeza que não seria capaz de me vir outra vez... Deixa-te de coisas, Gavin.

 

- Podes, sim - insistiu ele.

 

”Serei eu, para ele, alguma experiência?”, perguntou-se Eleanor. ”Estará ele a querer provar o quanto é bom na cama?” Gavin mostrava-se sempre tão satisfeito consigo próprio.

 

- Não - recusou ela. - A sério que não - insistiu, empurrando-o; de repente, sentia-se mal-humorada e o corpo ficou de novo muito tenso.

 

- O que é que se passa? - perguntou Gavin ao ver a mudança na atitude dela.

 

- Não é nada.

 

O problema era ele estar prestes a partir de novo. ”Conseguirei suportar uma situação destas?”, interrogou-se Eleanor, as partidas e as chegadas, as ausências entretanto, toda aquela gloriosa actividade sexual quando ele se encontrava presente... a incerteza sempre que ele se ausentava? Gavin voltou a abeirar-se dela, penetrando-a languidamente, sem pressas; Eleanor deixou-o continuar, embora a sua participação não fosse muita.

 

- Nunca te fartas? - perguntou-lhe. - Estou a referir-me ao sexo.

 

- Nunca me canso de ti - replicou ele; entretanto, ela começara a ceder, ansiando por que as palavras dele fossem verdadeiras, acompanhando os movimentos do corpo dele.

 

- Quem me dera que não fosses obrigado a ir.

 

- Também eu - disse ele. - Tenho de fazer alguma coisa para alterar esta situação - acrescentou Gavin, saindo de cima dela. Ficaram deitados lado a lado.

 

Mais tarde, já pela noite dentro, Eleanor apercebeu-se de que ambos estavam acordados, passando a ser parte dele antes de ter tido tempo para pensar, formando uma espécie de simbiose com ele, ainda naquela sonolência em que não dormia nem estava acordada. De súbito, na escuridão, foi-lhe fácil dizer o que lhe parecera absolutamente impossível havia uma hora.

 

- Só não quero que me odeies - murmurou ela. - Caso eu me decida a contar-te.

 

- Contar-me o quê?

 

- É muito possível que passes a odiar-me. Mas se eu não te disser agora, o mais certo é nunca mais voltar a ter coragem. E se não me odiares, então...

 

- Então, as coisas estarão bem, é isso que queres dizer? Que estará tudo bem entre nós dois?

 

- Bem...

 

- É evidente que não te odiarei, claro que não, independentemente do que possas dizer. Mas, quanto ao futuro, não posso fazer promessas, se é isso que queres. Como é que poderia, tendo em consideração o meu passado? Não sou um homem em quem se possa ter confiança. Do que estás bem ciente.

 

Eleanor sentiu que o mundo se desmoronava à sua volta, perdendo a coragem que conseguira reunir.

 

- Sim, eu sei.

 

- Mas... - continuou Gavin, soerguendo-se sobre o cotovelo e ligando o candeeiro da mesa-de-cabeceira. - Olha uma coisa, se é que te serve de algum consolo, quero dizer-te que tenciono procurar um emprego em terra. Quero poder estar mais tempo contigo. Não quero que a nossa relação acabe.

 

Aquilo era o suficiente para ela. Com uma sensação de alívio, virou-se para ele, começando a contar-lhe o que mais ninguém conhecia, além de David, o que até mesmo Marion não sabia ao certo, a única coisa que Eleanor ocultara da irmã.

 

- O lan morreu por minha culpa - começou ela a dizer. Parecia estar a vê-lo de novo, a descer as escadas, na vivenda de quatro divisões onde viviam, a casa que tinha umas janelas enormes e um vasto jardim, as casas de banho muito alegres, a cozinha com os seus armários em madeira de pinho mandados fazer de encomenda. ”A nossa casa modelo, o nosso casamento modelo”, pensou Eleanor. lan, branco como a cal da parede, assomando à porta da sala de estar; David, que a fazia rir a bandeiras despregadas, ao ponto de ficar sem forças. A música a tocar. Ela e David embriagados, tendo passado todo o serão na brincadeira. lan, irritado e distante, não nutrindo a mínima simpatia por David, razão por que não quisera que ele passasse o Hogmanay em sua casa. lan, especado na ombreira da porta, dizendo que se ia deitar.

 

- Fica a pé, para entrares no novo ano connosco - urgira Eleanor.

 

- Toma um copo... Ao fim e ao cabo, o uísque é teu - dissera David extremamente bem-humorado, no seu pior. Agora pensava naquilo como sendo a mais odiosa faceta do irmão. Nessa altura, achava apenas que David tinha o condão de a fazer rir, sentindo-se muito bem na sua companhia; era divertido e muito agradável estar com ele. Principalmente, depois dos longos silêncios de lan, a dedicação ao trabalho que o tornava tão distante e indiferente.

 

Contudo, ele voltara a reaparecer na sala um pouco antes da meia-noite, ainda não vestira o pijama, com o colarinho da camisa desabotoado, segurando a porta que mantinha aberta.

 

- Esplêndido! - exclamara David. - Um homem sensato... Mudaste de ideias... decidiste celebrar a passagem do ano... tomar um copo connosco.

 

Como resposta, só o silêncio. Como se os três estivessem a suster a respiração. Mas, então, lan virara-lhes as costas, afastando-se sem proferir palavra, voltando a subir as escadas para o quarto. Bastante mais tarde, quando ela própria se foi deitar, deu com ele estendido na cama completamente vestido. O quarto estava frio. O marido tinha os olhos abertos, mas havia qualquer coisa de estranho na forma como respirava.

 

- Eu estava tão embriagada - disse ela a Gavin - que não me apercebi... Pensei que ele teria levado uma garrafa para o quarto, tendo tomado uns copos sozinho. Senti o cheiro a gim. Pensei igualmente que ele estava irritado comigo, mas eu também me sentia aborrecida com ele. Ao fim e ao cabo, eu não tinha feito nada de mal; limitara-me a tomar uns copos com o meu irmão.

 

- Achas que eu devia chamar o médico? -- perguntara-lhe lan.

 

- Na noite da passagem do ano?

 

- Parecia estar a ouvir a sua própria voz numa entoação que era um misto de incredulidade e desinteresse.

 

- Por fim - continuou Eleanor a contar a Gavin -, acho que acabei por adormecer. Ambos adormecemos. Quando despertei, vi que o lan estava com falta de ar, mal conseguia respirar, não conseguia falar comigo. Corri imediatamente para o telefone e chamei uma ambulância. Fiquei em estado de pânico. Comecei a sentir uma dor no peito, uma dor excruciante, como se o coração também me doesse... De vez em quando, continuo a sentir essa dor. E ali estava ele deitado na cama, e eu não parava de me abeirar, sempre a falar com ele, a dizer-lhe que o médico estava a chegar, que ele não tardaria a ficar bom.

 

Naquele momento, Eleanor já chorava, um pranto que ocultava com a cara nas mãos.

 

- Assim que me apercebi, fiz qualquer coisa, a sério que fiz.

 

- O que é que aconteceu? - perguntou Gavin, pegando-lhe nas mãos, que afastou do rosto.

 

- Ele morreu. Morreu quando já ia na ambulância, a caminho do hospital. Eu estive presente, mas os paramédicos interpunham-se entre ele e mim, impedindo-me de o ver como deve ser... Ele acabou por falecer. - Eleanor continuou a chorar, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, ensopando o lençol. - A Claire tinha ficado com o David em casa, ela ainda era muito pequena. Ainda era uma criança; nem sequer acordou.

 

- Pára de chorar, isso já lá vai, agora estás bem, Eleanor proferiu Gavin, abraçando-a com força, mas ela continuava inconsolável, a tremer nos braços dele, num pranto que não conseguia conter. Ele manteve-se abraçado a ela, esperando que se acalmasse.

 

- Quando é que isso foi? - perguntou, quando achou que ela já se teria acalmado um pouco. - Quando é que isso aconteceu?

 

- Há cinco... há mais de cinco anos.

 

Gavin fez uma pausa. Quando viu que ela havia serenado, exausta e encostada a ele, retomou a conversa.

 

- Já foi há muito tempo. Devias deixar de te atormentar com isso.

 

Eleanor afastou-se um pouco, estendendo a mão para a caixa dos lenços de papel e assoando-se. Fora dos braços dele, começou a sentir frio.

 

- Não olhes para mim - pediu. - A minha cara deve... depois de tanto chorar.

 

- Olha para mim - exigiu Gavin num tom autoritário. Chega-te cá e olha para mim. - Mas ela não foi capaz. Ele sentou-se na cama, pegando-lhe na mão. A outra mão de Eleanor amarfanhava um lenço de papel ensopado em lágrimas.

 

- Já passou tempo que chegue - insistiu ele. - Cinco anos. Devias deixar de pensar nisso. Já está na altura de pores esses sentimentos de culpa para trás das costas, isso agora não te serve de nada.

 

Para ele, aquilo era fácil de dizer, até mesmo por ser um homem que dava a impressão de não acarretar com qualquer sentimento de culpa. Apesar de tudo, Eleanor sentiu algum consolo, muito embora não fosse capaz de especificar porquê. Aquela sensação de alívio, de vazio, depois de tantas lágrimas amargas, pelo menos era alguma coisa.

 

- Não ficaste a odiar-me?

 

- Já te disse para pores isso para trás das costas. Todo esse sentimento de culpa... De que é que isso te serve, excepto para infernizar a vida que tens actualmente?

 

Eleanor encostou-se para trás, sentindo as lágrimas frias a correrem-lhe pelas faces.

 

- Oh, não sei dizer. Não mereço ser feliz.

 

- Tretas! - ripostou ele, escarninho. - Até mesmo que não tivesses tocado numa pinga de álcool, isso não impediria que ele sofresse o ataque de coração, que deve ter sido bastante forte. Uma coisa dessas... Se ele estava destinado a morrer disso, não havia nada que pudesse evitá-lo.

 

- Mas a questão não é essa! Eu devia... - atalhou Eleanor sem acabar a frase.

 

- Por amor de Deus, Eleanor, todos temos coisas que devíamos ter feito, de que nos arrependemos.

 

Eleanor deu-se conta, sentindo as batidas fortes e aceleradas do coração, de que ele não conseguia ver a situação pelo seu prisma. Não achava que ela devesse ser culpabilizada. Porém, Gavin não estivera presente, como era óbvio, por conseguinte, não era capaz de partilhar do horror, ao contrário do que se passara com David. Mas, mesmo assim, o facto de ele ver as coisas de modo tão diferente era um alívio. Apesar de ele estar enganado. Até mesmo Eleanor, habituada a enganar-se com tanta frequência, via isso. Mas não estava na disposição de o contradizer. Chegava-lhe saber que havia alguém que não considerava que ela devia ser culpabilizada.

 

Aquele caso com Gavin era uma relação que não duraria muito. Como é que poderia durar? Por que razão é que ela deveria ser feliz? Não era merecedora de felicidade. Contudo, pela primeira vez, começou a acreditar que talvez fosse possível.

 

Às primeiras horas da manhã, acordou e voltou a sentir aquele fardo que se recusava a largá-la, o peso da tragédia que ocorrera no seu passado. Então, qual nuvem que tivesse obscurecido a Lua, afastou-se, e ela chegou-se mais a ele, partilhando o calor que irradiava do corpo de Gavin. Adormecido, Gavin murmurou qualquer coisa e mudou de posição, pousando um braço pesado em cima do torso dela, prendendo-a a si. Lá fora, pareceu surgir uma sombra que passou pela janela, etérea e negra.

 

Faith veio imediatamente, tendo apanhado o primeiro comboio depois do Ano Novo.

 

- Quem é que devo contactar? Quem é que queres que eu chame? - perguntara David a Eleanor quando ela lhe telefonou do hospital.

 

- Vais ter de preparar o pequeno-almoço da Claire - replicou. - Ela gosta de banana com torradas.

 

- Eu sei disso - respondeu ele. - Já tinha pensado no assunto.

 

- Sim. Isso mesmo.

 

- Eleanor, queres que eu vá ter contigo ao hospital? Não quero que estejas sozinha. Vou telefonar à Barbara para lhe pedir que fique com a Claire, apesar de ainda ser muito cedo, com certeza que ela não se importará. E depois vou ter contigo ao hospital, de acordo? - perguntou ele numa voz tremente e um pouco esganiçada.

 

- Não te preocupes. Eu estou bem - replicou Eleanor, tentando sossegá-lo.

 

Estava muito calma, no gabinete da freira que era a chefe das enfermeiras, no Serviço de Urgência, observando através do vidro as fileiras de cadeiras de plástico cheias de pessoas doentes e feridas que aguardavam a sua vez de serem atendidas, os acidentados de outras celebrações de Ano Novo que haviam corrido mal, com os olhos negros e possíveis fracturas. Sentavam-se, claramente mal-humorados e de olhar vazio, com a expressão de quem fora parar ao purgatório, se é que esse lugar existia, pensava Eleanor, mal se tendo apercebido de que ela própria já transpusera os portões que davam acesso a esse lugar.

 

lan continuava num dos cubículos, tapado por um lençol. Já tinham desistido da reanimação, pelo que a confusão e a situação de pânico já lá iam e, consequentemente, o cubículo ficara vazio e o pessoal médico já levara os carrinhos e o equipamento de reanimação. Dali a pouco tempo, o corpo dele seria transportado para a casa mortuária do hospital. Contudo, Eleanor sentia-se muito calma. Dentro em pouco, acordaria, dando consigo na cama em sua casa, com lan, que continuava a respirar, deitado ao seu lado, uma vez que o pesadelo teria terminado. ”Quando nos acontece uma coisa destas”, dissera mais tarde à mãe, ”não se quer acreditar. Não pode ser verdade, por isso, recusamo-nos a acreditar.”

 

- A mãe - dissera ela ao telefone. - Vai buscar a mãezinha.

 

- Oh, meu Deus!

 

- O que é que foi?

 

- Não, tens razão, tens toda a razão. Acabei de me lembrar de que tenho de lhes dizer, vou ter de dizer a toda a gente.

 

- Se isso te aflige tanto, eu própria me encarregarei de lhes dizer - contrapôs Eleanor. - Não te preocupes mais com isso.

 

- Não... Por amor de Deus, é o mínimo... Vou já telefonar à mãe e ao pai.

 

Eleanor estava a sentir muito a falta da mãe. Se havia alguém que pudesse pôr tudo nos eixos, essa pessoa seria Faith.

 

Nos dias que mediaram entre a morte de lan e o funeral, Eleanor continuou a manter-se muito calma, deixando que fosse a mãe a indicar-lhe como tratar da certidão de óbito, do funeral, de resolver os assuntos junto do banco, falar com o advogado, numa palavra, disse-lhe como tratar do assunto que era a morte. Sentava-se com Claire ao colo, ou ao seu lado, sem largar a filha e sem que nenhuma das duas chorasse. Mas depois Faith combinou as coisas de modo a que Claire fosse para casa de Barbara todas as tardes. Barbara dava-lhe o lanche e ela brincava com Hannah, sem pensar na morte ou no pai.

 

- As crianças são protegidas pela sua própria juventude - disse Faith. - Deixa-a brincar... Devemos tentar manter as coisas tão normais quanto for possível no que lhe diz respeito.

 

- É o que tenciono fazer. Estou a tentar.

 

O encarregado da agência funerária pedira a Eleanor que lhe levasse umas roupas de lan... aquilo que ela bem entendesse. Algumas pessoas, de acordo com que o homem dissera, gostavam que os seus mortos fossem sepultados usando fatos completos, enquanto outras optavam por trajes de passeio. Aquele aspecto foi o único que levou Eleanor ao limiar da histeria.

 

- O que é que hei-de fazer? - perguntara a David. A mãe achava-se na cozinha a preparar uma refeição; Claire ajudava-a. Eleanor e David encontravam-se na sala de estar, sentados diante do aquecimento a gás, ele com um copo de uísque na mão.

 

- Pois bem, é coisa que não interessa, não te parece? - perguntou David com um encolher de ombros. - Quer dizer, uma vez que ele vai ser cremado, quem diabo é que se importa com o que ele possa vestir? - acrescentou, rindo-se. - É tão grotesco... vestir um fulano com o seu melhor fato para o meter dentro do raio de um caixão.

 

Eleanor também começara a rir-se perante aquela perspectiva.

 

- Mas é o que ele usava sempre - disse ela. - Gostava de estar sempre de fato completo. Trabalhar... era o que ele mais gostava de fazer. Do trabalho. Não de mim ou da Claire. Oh, meu Deus!

 

Toda ela tremia. As mãos agitavam-se-lhe como se tivesse sofrido uma trombose. Imediatamente, David levantou-se, aproximou-se da irmã e sentou-se no chão, agarrando-lhe as mãos, as suas fortes e quentes, as dela, geladas, tentando acalmá-la para que os tremores parassem.

 

- Não me fales acerca do que se passou - proferiu ela como se estivesse a avisá-lo, levando uma mão ao rosto do irmão, à sua boca. - Não quero falar a respeito disso.

 

Assim, nenhum dos dois tocou no assunto.

 

Mais tarde, foi com a mãe que Eleanor falou.

 

- Eu não teria conseguido ultrapassar esta situação sem a presença da mãe. Jamais teria conseguido fazer o que era necessário.

 

- Foi uma coisa terrível - retorquira Faith. - Uma tragédia difícil de imaginar. - A mãe jamais dissera, então ou em qualquer outra altura: ”Ainda és muito nova, haverás de conseguir ultrapassar esta tragédia”, dando-se conta, no seu íntimo, que esse tipo de conforto barato não assentaria bem na filha. Todavia, Eleanor sabia que a mãe achava que ela voltaria a casar e que, verdade fosse dita, devia fazê-lo. E se bem que as duas mantivessem uma relação tão chegada, durante as semanas que decorreram após a morte de lan, Eleanor nunca lhe confidenciou a razão por que essa alternativa seria impossível. Queria que a mãe pensasse bem dela. Numa ocasião, ansiando por uma serenidade que sabia de antemão não poder sentir, dissera quando falava com a mãe:

 

- Sinto que sou culpada da morte dele. Devia ter-me apercebido de que havia qualquer coisa que não estava bem, tinha obrigação de ter dado por isso mais cedo.

 

A mãe apressara-se a pôr energicamente aquele assunto de lado, olhando para a filha, alta, afagando-lhe o cabelo enquanto o afastava para trás, como fizera tantas vezes quando Eleanor era pequena, quando estava doente ou com alguma birra.

 

- Vamos lá a ver - dissera Faith -, não estejas a torturar-te com isso. Uma morte súbita faz sempre com que fiquemos a pensar nas coisas que podíamos ter feito. Ninguém é perfeito, mas tu foste uma boa mulher para ele, Eleanor.

 

Tinha aceite o conforto da mãe, pactuando com a falsidade, pelo bem-estar da mãe, para ter a certeza de que a mãe continuava a ter uma boa opinião a seu respeito. Ela e David, sem nunca abordarem o assunto, partilhando a verdade apenas entre os dois, assim como os sentimentos de culpa.

 

Aquando do funeral de lan, o crematório estava à cunha. Ele tinha sido um membro da localidade; os seus pais ainda eram pessoas activas na comunidade onde viviam; ele trabalhara para uma empresa de grande dimensão. Além do mais, quando morreu ainda era muito novo.

 

- O paizinho conhecia estas pessoas todas? - perguntara Claire, com a mão bem cerrada na da mãe, sentindo a pelica escorregadia contra a sua luva de lã.

 

- Sim - respondera Eleanor.

 

- E a mãe conhece estas pessoas todas?

 

- Algumas. - Mas, verdade fosse dita, o número dos que conhecia não era assim tão grande, do que não tardou a aperceber-se. Aquela era a terra natal de lan, o lugar de onde ele era oriundo e não ela. Pouco depois, saíram do crematório, já sem o caixão, sem o corpo de lan; mãe e filha colocaram-se ao lado dos pais e da irmã de lan, apertando a mão de todos os que apresentavam os seus pêsames, enquanto lhes agradeciam por terem ido ao funeral. Subitamente, ocorreu a Eleanor que não seria obrigada a continuar a viver na casa que agora lhe pertencia, mas de que nunca gostara. Se quisesse, nem sequer teria de continuar a viver em Inglaterra.

 

Depois de todos terem regressado a suas casas, Marion e Fergus, os primeiros, e algum tempo depois a mãe, David ofereceu-se para ficar com ela, mas ela não queria a presença do irmão. Havia uma certa crispação entre os dois, ele irritava Eleanor. O sentimento de culpa que conseguira manter afastado das suas emoções (porque a mãe estivera presente), começara a invadi-la, de maneira cada vez mais acentuada, de dia para dia, e a presença de David só servia para agravar a situação.

 

- Vou-me embora - anunciara ele, levando-a a imaginar que estava a pensar em regressar a Londres. Todavia, só muitos meses depois é que voltou a ter notícias do irmão. De maneira muito casual, quando numa ocasião se cruzou com um amigo dele na estação ferroviária de Victoria, ficou a saber, muito por acaso, que ele se encontrava algures no Médio Oriente, a trabalhar para uma multinacional. Mas o amigo não lhe soube dizer, concretamente, o que é que ele fazia, tal como não tinha o endereço dele.

 

Eleanor sentia-se como se vivesse num limbo. Os amigos e familiares que a haviam rodeado antes e depois do funeral tinham deixado de lhe telefonar ou de passar por sua casa todos os dias. Todos retomaram as suas próprias vidas em que não se verificara qualquer alteração de maior. Quanto a si, continuara a tratar das flores, deitando fora as que iam murchando, mas agora a última jarra ficara vazia, a última coroa de flores já definhara. Pálidos e modestos, depois da extravagância dos lilases e dos cravos, começaram a aparecer uns quantos botões de narcisos amarelos no jardim. Eleanor não os apanhou. Os pais de lan, destroçados pelo desgosto que não lhes deu tréguas durante as primeiras semanas após o funeral do filho, tinham a sua vida, com a rotina do dia-a-dia, que teriam de retomar: os jogos de brídege, os de golfe, tudo aquilo que ocupava a vida dos recém-aposentados e que tão pouco exigia deles. Era isso que lhes dava ânimo para continuarem. Eleanor, que gostara da família de lan, muito embora nunca tivesse sentido que fazia parte dela, cada vez sentia mais relutância em os visitar, até mesmo em pegar no telefone para falar com eles. Para além de lan, não tinham mais de que falar. Claro que existia Claire, o que ajudava muito. Inundavam a garota de presentes e ofertas em dinheiro. Mas então, em Março, foram de viagem, uma longa visita, há muito planeada, ao outro filho, James, o qual vivia na Austrália com a sua própria família.

 

”Nunca mais voltarei a ver o James”, pensara Eleanor, recordando-se do homem jovial que estivera presente no seu casamento, oito anos mais velho do que lan, de feições mais grosseiras, mas com os mesmos olhos azuis emoldurados por pestanas fartas. Haviam sido muitas as vezes em que lan dissera que um dia iriam a Melbourne, que fariam uma visita alongada ao irmão. Eleanor, que nunca se mostrara muito interessada, quer fossem quer não, agora sentia-se defraudada, privada dessa viagem.

 

Toda ela era um acumulado de emoções contraditórias e irracionais. Sentia-as como que a debaterem-se dentro de si, quais pássaros engaiolados, receosos e encurralados. Não possuía qualquer defesa que a protegesse desses sentimentos, uma vez que nem sequer tinha uma rotina em que pudesse refugiar-se, ao contrário dos demais. Quando as outras mulheres se sentavam ao volante dos seus automóveis com destino à estação ferroviária, indo ao encontro dos respectivos maridos que chegavam do trabalho, Eleanor e Claire ficavam em casa. Os seus dias haviam deixado de começar e acabar da mesma maneira.

 

No início da Primavera, com os dias cada vez mais compridos e radiosos, os narcisos amarelos de linhas esguias, que pareciam rivalizar com o açafrão laranja que despontava aqui e ali ao longo do trilho do jardim, não lhe davam esperança alguma, como ela sabia que, em princípio, deviam fazer. ”Isto nunca mais chegará ao fim?” pensava Eleanor. Primavera após Primavera sem ele, sem nunca ter a oportunidade, jamais, de poder dar a volta à situação, pô-la como devia ser, fazer com que ele a amasse da maneira como ela ansiara ser amada, sem a mínima hipótese de lhe retribuir esse amor.

 

Então, na Páscoa, Marion fez-lhe outra visita com os filhos, para uma estada de alguns dias.

 

- Quem me dera que vivêssemos mais perto uma da outra - dissera esta. - Os telefonemas não são a mesma coisa... muito em especial, agora.

 

- Tenho andado a pensar em mudar-me para o Norte - comunicou Eleanor como se estivesse a apalpar o terreno, perguntando a si mesma o que pensaria Marion acerca daquela hipótese. Contudo, o rosto da irmã iluminou-se de imediato.

 

- Para Aberdeen? Ou talvez estejas a pensar em mudar-te para as Highlands?

 

- Bem, sim. Para perto de ti. O que é que te parece?

 

- Adorava que fosses - respondeu Marion. Virou a cabeça, pondo-se a olhar através das portas de vidro que davam para o jardim. Observou o jardim da vivenda de Eleanor, a que os narcisos amarelos davam uma atmosfera alegre. Claire empurrava Eilidh, que andava de balouço.

 

- Sim - disse Eleanor como se adivinhasse os pensamentos da irmã -, estava a pensar nelas.

 

Todavia, Eleanor pensava igualmente que num outro lugar talvez o facto de ela ser uma mulher sozinha não interessasse. Ali, naquela urbanização residencial, viviam famílias completas com maridos que trabalhavam e mães jovens. Durante os meses de Verão, ela seria a única mulher que não teria um marido que aos domingos lavasse o carro ou que podasse as sebes, aparando os arbustos.

 

- Sendo assim - acrescentou Marion -, é melhor eu começar à procura de casa para ti.

 

- Uma que seja pequena - sugeriu Eleanor. - Quero poupar tanto dinheiro quanto me for possível, o suficiente para poder continuar em casa até a Claire não precisar de mim sempre perto dela.

 

Em pensamento, Marion começou imediatamente a calcorrear as ruas de pequenas povoações, à procura de um lugar adequado para onde Eleanor pudesse mudar-se.

 

No dia seguinte, Eleanor pôs a sua casa à venda no mercado de imobiliário. ”Voltarei às origens”, decidiu, e, muito embora nunca tivesse vivido nas Highlands, tendo ficado alojada em casa de Marion apenas para pequenos períodos de férias e durante a quadra natalícia, sabia bem onde queria viver. Imaginou o pequeno mercado da vila onde Marion residia, com as suas casas de estilo vitoriano e as novas urbanizações que se estendiam pela colina, já na periferia. No outro lado, dividindo a vila da ilha Black, situava-se o estuário do Cromarty. ”Vou arranjar uma casa com vista para o estuário”, pensou. ”Poderei olhar para a água todos os dias enquanto ouço os gansos-bravos com o seu grasnar constante quando se reúnem em pleno ar, como se contassem uns aos outros as peripécias da viagem de regresso a casa.”

 

Na primeira semana das férias da Páscoa, Eleanor levou Claire e Eilidh a Pitcairn. Kirsty ficou com a mãe de Fergus. A tosquia das ovelhas já tinha começado e os Macleods haviam convidado os netos para uma estada na quinta da família. Uma das amigas de Marion, Sue, conduzi-la-ia ao hospital onde receberia o seu quinto tratamento.

 

- Sinto-me tão mal por te deixar - disse Eleanor.

 

- Está na altura de a Eilidh sair daqui por uns tempos para desanuviar - replicou Marion. - Não te preocupes comigo porque eu fico bem. O Fergus está a pensar em tirar uns dias de férias na próxima semana até tu regressares, portanto, no tocante a férias já está tudo tratado.

 

- Assim que chegar a Pitcairn telefono-te - acrescentou Eleanor, abraçando a irmã, a qual sempre respirara saúde, mas que agora lhe dava uma sensação de tanta fragilidade nos seus braços, com a pele desidratada, os cabelos finos e quebradiços, sentindo-lhe os ossos pontiagudos por baixo da pele. Eleanor recuou, receando magoá-la. Sinto dores no corpo todo, confessara Marion. Até parece que os ossos me doem.

 

Chegada a Pitcairn, Eleanor começou logo a limpar a cozinha, após o que aspirou as escadas e o vestíbulo e depois foi às compras, enchendo os armários com uma grande variedade de géneros alimentícios. O tempo estava óptimo, permitindo-lhe ajudar o pai a tratar do jardim. Queria que os dias fossem completamente preenchidos para nunca ficar inactiva, de modo a não ter tempo para se preocupar com Marion, tal como também não morreria de saudades de Gavin. Claire e Eilidh ficavam na cama até ao meio-dia e quando se levantavam para tomar banho enchiam a banheira, não deixando água quente para mais ninguém, viam filmes no vídeo e pintavam as unhas. Passavam a vida a segredar, rindo-se à socapa, mas interrompendo-se de súbito sempre que pensavam que havia alguém que as pudesse ouvir.

 

Na quarta-feira seguinte, Eleanor foi de automóvel até à cidade, levando as garotas consigo. A intenção era irem às lojas de vestuário onde ambas gastariam o dinheiro que lhes fora oferecido por ocasião de aniversários e do Natal e que haviam poupado, enquanto Eleanor aproveitaria para as levar a almoçar ao McDonald’s. Fez-lhes notar com toda a firmeza, e repetidamente, o quanto era importante que se encontrassem no local combinado as quinze horas.

 

- Mãezinha... nós sabemos - atalhou Claire, agastada. - Pare de se preocupar. - As duas saíram do automóvel, acenando-lhe num gesto de despedida. Pelo espelho retrovisor, Eleanor ficou a vê-las desaparecer entre a multidão. Mas então a luz do semáforo ficou verde e ela foi forçada a continuar, seguindo pela Union Street, a artéria ampla onde o movimento do tráfego era ininterrupto e que atravessava o centro da cidade, seguindo em direcção à zona onde Mamie e Alice continuavam a viver, próximo do Parque Duthie.

 

Começou por se desfazer em desculpas por não estar acompanhada das duas raparigas. Mamie tinha saído, mas Alice andava numa grande azáfama pela cozinha. Mostrava um aspecto de cansaço; além de estar pálida, parecia ter emagrecido. Por breves instantes, Eleanor encostou a face macia à pele seca da tia. Pouco depois, Alice começou a escolher os talheres para a refeição.

 

- Vamos a ver - começou ela por dizer -, acho melhor dizer-te uma coisa.

 

- Passa-se algo de anormal?

 

- Não, nada de anormal.

 

- A tia está doente?

 

- Eu? Que ideia! Sinto-me lindamente. - Mas era manifesto que Alice estava irritada; bateu com as colheres da sopa no tabuleiro onde as colocara.

 

- Não me leve a mal, mas pensei que...

 

- A Mamie só foi à loja para comprar um pacote de bolachas de água e sal para comermos com o queijo. Tinha-se esquecido de as trazer ontem - justificou, olhando bem de frente para Eleanor.

- Nos últimos tempos, a memória dela não tem sido tão boa como era.

 

- Ora bem, suponho... - Eleanor quisera dizer: ”Ela está a ficar velha”, mas acontecia que Alice ainda era mais velha do que a irmã. Como é que se poderia dizer uma coisa daquelas sem as ofender? Alice era uma mulher muito lúcida, sempre bastante ciosa da sua independência; não havia dia nenhum em que não acabasse as suas palavras cruzadas, além de se entreter a ler livros de história e biografias, sem nunca faltar às reuniões da Associação de Mulheres, ao que aliava a sua participação no coro da igreja que frequentava. Mas... e quanto a Mamie?

 

- As coisas estão a chegar ao ponto em que ela não é capaz de manter seja o que for na cabeça durante cinco minutos. Mas, pergunte-se-lhe o que é que vestiu para ir à igreja no domingo da Páscoa de há vinte anos! - Alice dava a impressão de estar a sentir-se mais irritada do que preocupada. - Só espero que isto não seja o princípio de qualquer coisa. Sabes a que estou a referir-me. Não é fácil viver com ela.

 

Entretanto, a porta da frente abriu-se e fechou-se: Mamie tinha regressado. Saudou Eleanor com manifestações esfuziantes de satisfação, começando a tirar as coisas que trazia numa cesta e que pousara na mesa. Naquele momento, a sopa já cheirava, quente e apetitosa, quando começou a ferver. Alice mexeu a panela, baixando o lume sem nunca deixar de observar Mamie.

 

- Onde é que estão as bolachas de água e sal?

 

Sobre a mesa havia um pão de forma, um pacote de manteiga e várias caixas de fósforos. Mamie ergueu o olhar com as faces afogueadas.

 

- Vá-se lá acreditar numa coisa destas! Esqueci-me da única coisa que me levou a sair propositadamente para comprar.

 

- Não tem importância - interveio Eleanor, tentando pôr água na fervura. - Eu passo a vida a fazer isso... subir as escadas para logo depois ter de voltar a descê-las, a ver se me recordo do que me fez ir ao primeiro andar.

 

- Tenho de reconhecer que estou a ficar velha.

 

- Eu sirvo a sopa - afirmou Alice. - Eleanor, os pratos estão mesmo ao teu lado.

 

A interpelada passou-lhe os pratos, um a um, e depois de cheios levou-os num tabuleiro para a casa de jantar, onde fazia um frio de enregelar. Mamie desaparecera para tirar o chapéu e despir o casaco.

 

- Ela deve estar lá em cima - alvitrou Alice. - Vou chamá-la cá de baixo.

 

- Oh, já está na hora de comer? Devias ter-me dito - ripostou Mamie aparecendo ao cimo das escadas.

 

A sopa estava bastante saborosa; tinha sido Alice quem a fizera. Eleanor perguntava-se em que é que Mamie ultimamente ocuparia o seu tempo, além de fazer malha. Acompanharam o queijo com biscoitos de aveia, enquanto Eleanor explicava (o que fazia pela terceira vez) onde as meninas tinham ido, informando as tias do local onde combinara encontrar-se com elas.

 

- Eu levanto a mesa e depois vou fazer o café... - ofereceu-se Mamie. - Apetece-te um cafezinho, Eleanor?

 

- Boa ideia. Posso ajudar?

 

- Não, não, está tudo sob controlo. Vai para a sala de estar... A lareira já está acesa.

 

A luz do Sol iluminava a sala que se situava na parte da frente da casa. Eleanor, apesar de ter comido a sopa quente, arrefecera na casa de jantar fria virada a norte. Optou por andar de um lado para o outro, observando todos os objectos tão familiares, as figurinhas de Hummel, as aguarelas já bastante desbotadas. Ouvia as vozes de Mamie e Alice a falarem na cozinha, atarefadas a preparar o café e abrindo latas de biscoitos. Ouviu a água a correr enquanto a louça era lavada, uma vez que era melhor não deixar essa tarefa para mais tarde. Contudo, pensou Eleanor, não tinham mais nada que fazer durante o resto do dia. Porque não deixariam a louça para mais tarde? ”Não tarda muito, terei de me ir embora.”

 

Deteve-se junto do aparador, cujo tampo estava repleto de fotografias de família. De David, de Marion e de ela própria retratados em várias fases das suas juventudes; as fotografias do dia em que haviam terminado o curso liceal, erguendo orgulhosamente os canudos de papel que representavam os diplomas, usando capas que naquele momento lhe soavam a falsidade, além de lhe parecerem ridículas. As fotografias do casamento de Marion (tão gorducha e jovem que ela era e Fergus com um cabelo bastante comprido, uma franja muito escorrida) e também do seu. lan, bem-parecido e com uma expressão austera, ela mesma toda corada e cheia de entusiasmo. ”Eu pensava que estava a embarcar numa grande aventura”, apercebeu-se ela, ”casando com ele e mudando-me para Inglaterra, encetando uma nova vida.” Pegou nos retratos emoldurados, examinando-os mais atentamente. ”Agora estou tão diferente.” Pousou a fotografia, ao lado de uma de David no selim da sua primeira bicicleta, na qual ele e Stanley pedalavam à vez pelo caminho particular de Pitcairn, com o que ficara apeado a correr ao lado da bicicleta. Um deles (nenhum dos dois se dispunha a especificar qual) não tardou muito a espetar-se numa vala com a bicicleta; o guiador ficara todo retorcido e os cromados riscados.

 

Pouco depois, Mamie entrou na sala com o tabuleiro onde trazia o café e um prato com biscoitos.

 

- Minha querida - começou Mamie a dizer depois de se ter inteirado, uma vez mais, de que Eleanor tomava o café com leite e açúcar -, ainda não nos deste notícias da Marion. Como é que ela está a dar-se com os tratamentos? Ainda lhe faltam muitos?

 

Todavia, Eleanor já lhes falara de Marion quando se sentaram à mesa para comer. Alice, que entretanto chegou à sala de estar, ouviu aquilo, olhando para Eleanor e fazendo um pequeno abanar de cabeça. Eleanor sentou-se com o seu café com leite, aceitou um biscoito e voltou a dar notícias, com todos os pormenores, de Marion a Mamie.

 

- Deus me valha, pobre cachopa - observou Mamie enquanto sacudia as migalhas energicamente do casaco de malha, numa tentativa para ocultar a angústia que sentia. ”Ela está velha”, disse Eleanor para consigo, ”e está a ir-se um pouco abaixo, o que não me é difícil ver.” Sentiu-se invadida por uma onda de compaixão por Mamie, que cada vez se mostrava mais vaga e confusa, enquanto Alice estava cada vez mais tesa e lúcida, pensamentos que obliteraram tudo o mais por uns momentos.

 

Enquanto conduzia de regresso ao centro da cidade, a fim de se encontrar com Claire e Eilidh, Eleanor apercebeu-se de que tinha uma nova percepção do seu próprio vigor, como que electrizada e cheia de força, pronta para o que quer que fosse. A nova vida que tencionava encetar acabaria por se concretizar. Antes de ter partido, Gavin voltara a dizer que tinha intenção de tentar encontrar um emprego em terra. ”Sei de dois ou três que serão uma possibilidade dentro em pouco. E para te falar com franqueza, tenho de dizer que estou farto desta vida.” Aquilo significava que ele queria estar com ela. Pensando nisso, Eleanor sentiu uma vaga que a aquecia de amor e conforto.

 

- Vamos visitar a tia Mamie e a tia Alice? - perguntou Claire quando Eleanor já se dirigia para o parque de estacionamento com as duas garotas.

 

- Não, vamos já para Pitcairn.

 

- Que pena... eu também as queria ver.

 

- Pensei que só quisessem fazer compras.

 

- E queríamos, mas agora quem me dera que tivéssemos ido com a mãe.

 

- E quanto a ti, Eilidh? - perguntou Eleanor. - De qualquer maneira, já havíamos planeado regressar a casa amanhã.

 

- É-me indiferente - replicou a garota com um encolher de ombros.

 

Eleanor achou que ela estava com um aspecto cansado.

 

- Estás a sentir-te bem?

 

- Sinto-me um pouco adoentada.

 

- Sendo assim, é melhor voltarmos para casa do avô, não acham?

 

Assim que chegaram a Pitcairn, Eilidh perguntou:

 

- Posso telefonar à minha mãe?

 

- Claro que podes.

 

Marion disse que estava bem e que tinha aproveitado para descansar muito, mas Eilidh continuou a mostrar-se muito calada.

 

Mais tarde, numa altura em que estava a sós com o pai no jardim, Eleanor observou:

 

- Provavelmente, o melhor é regressarmos amanhã. A Eilidh parece que tem andado um pouco estranha... Estou em crer que sente saudades de casa. Sente a falta da Marion.

 

- Sim, é possível - concordou John, com uma pernada de forsítias na mão para a podar com a tesoura manual. No carrinho de mão atrás dele já havia uma grande quantidade de ramagens que cortara. Eleanor pegou num ancinho, começando a recolher as folhas mortas e ramos cortados espalhados pelo canteiro em que trabalhavam. No ar, que ecoava com o chilrear dos pássaros, pairava uma fragrância primaveril.

 

”Uma vez mais, a vida renasce por toda a parte”, reflectia Eleanor, ”e daqui a pouco tempo, a Marion começará a melhorar.” Tinha de melhorar. Em seguida, começou a pensar em Mamie e em Alice, interrompendo o que estava a fazer e virando-se para o pai, olhando-o de frente.

 

- A tia Mamie está a ficar desmemoriada - comentou ela. Está a parecer-me que isso irrita a Alice.

 

- É a velhice. Esquece-se das coisas. E, verdade seja dita, a Alice nunca teve muita paciência. Meu Deus! Viste aquilo? - Por entre os arbustos, houve qualquer coisa que saltou repentinamente e John apressou-se a ir atrás do que quer que fosse. - O diabo dos coelhos! É impossível mantê-los afastados daqui.

 

Eleanor pegou no carrinho de mão, indo despejá-lo na fogueira que entretanto ela e o pai tinham feito. Quando o pai se lhe juntou, depois de ter perdido o coelho de vista, ela perguntou-lhe:

 

- Quer que eu vá fazer um chá?

 

- Sim, cachopa, boa ideia - aceitou ele, pegando no carrinho de mão. - Daqui a um minuto vou para dentro.

 

Num passo lento, Eleanor atravessou o jardim. Deteve-se na porta das traseiras para descalçar as botas enlameadas, deixando-as do lado de fora da porta. Apoiando-se à ombreira, descalçou a primeira e depois a outra. Endireitando-se, com o olhar percorreu o jardim até ao fundo, para ver onde é que o pai se encontrava. O Sol do fim do dia estava baixo no horizonte e por uns momentos ela sentiu-se ofuscada, com tonturas por ter estado de cabeça baixa durante tanto tempo, conseguindo ver apenas a fímbria de um rosa translúcido do céu azul, assim como os contornos escurecidos dos dois maciços de lilases que bordejavam o caminho, com os seus ramos que se tocavam. Pouco depois, a visão de Eleanor aclarou-se, avistando entre as árvores, em que a folhagem nova ainda estava em rebento, uma silhueta quase imperceptível que se deslocava. Mas não era o pai, era, isso sim, uma figura franzina, com o corpo ligeiramente inclinado para a frente devido ao peso de uma trouxa que trazia nos braços. Eleanor agarrou-se com força à ombreira da porta, enclavinhando as unhas na tinta que estava a lascar e cerrando os olhos com força. Quando voltou a abri-los, não viu nada que se deslocasse junto dos maciços de lilases, além de um melro que esvoaçava entre as ramagens.

 

Na manhã seguinte, ela e as garotas partiram a caminho de casa, tendo ido à ilha Black antes de regressarem a Dingwall, um desvio que teriam de fazer para ir buscar Kirsty a casa dos avós. Quando atravessavam Munlochy, avistaram o primeiro autocarro de luxo com os turistas da Primavera, parado junto da árvore frondosa que conheciam pelo nome de Clootie Well.

 

- Olhem - indicou Claire -, há algumas pessoas junto da árvore; acham que elas sabem que devem pedir um desejo?

 

- Estou em crer que o motorista já se encarregou de as pôr a par dessa tradição.

 

A localidade era-lhes familiar. A água que brotava de uma nascente saía por um cano para uma pedra coberta de musgo. Acima, todos os ramos e galhos da frondosa árvore estavam pejados de centenas de faixas de tecido que haviam sido amarradas ao longo de várias gerações; cada uma estava associada a um desejo ou a uma oração. Ao longo dos anos, os pedaços de pano tinham ficado sujos e desbotados, acumulando-se uns em cima dos outros até que a passagem do tempo e as condições climatéricas os haviam como que cimentado perpetuamente. Aquela visão desagradava muito a Eleanor; não era capaz de se imaginar a querer pendurar na árvore qualquer bocado de pano que em tempos tivesse tido um valor sentimental para si.

 

- Os desejos costumam realizar-se? - perguntou Claire, insistente. - Conheces alguém que tenha tido um desejo realizado?

E Eilidh conhecia; tinha um manancial de histórias que o corroboravam.

 

Quando as duas raparigas foram com Kirsty, já na quinta, inspeccionar os cordeiros recém-nascidos, Nan Munro e Eleanor aproveitaram para tomar um chá enquanto falavam a respeito de Marion. Nan era tão idosa quanto Alice, embora aparentasse ser mais jovem, continuando a ser uma mulher bastante enérgica e sempre com uma atitude maternal. Eleanor apercebeu-se de que ela se sentia preocupada por causa de Marion, se bem que falasse a respeito do assunto com bastante calma.

 

- Veremos como é que ela se sente depois de os tratamentos terem acabado - comentou ela quando as duas se encontravam na porta das traseiras a observar as garotas que se aproximavam pelo trilho dos campos iluminados pela luz do Sol, com Kirsty a saltitar de um lado para o outro, bastante atrás das outras duas.

 

- Muito bem - disse Eleanor quando as três chegaram junto de si -, vamos lá levar-vos para casa.

 

Kirsty estava sem respiração por ter tido de correr para alcançar as outras. Lançou-se de braços abertos para a avó, que enlaçou, e esta imobilizou-se, submetendo-se ao amplexo da neta, afagando os cabelos de Kirsty ao mesmo tempo que lhos afastava do rosto.

 

- Agora ouve o que te digo - recomendou ela à neta mais pequena -, tens de te portar como uma boa menina com a tua mãe quando chegares a casa.

 

- A Claire disse que podemos pedir um desejo quando passarmos pela Clootie Well - anunciou Kirsty. - Para pedirmos que a mamã melhore.

 

Eleanor e Nan Munro entreolharam-se em silêncio.

 

- Ora bem - retorquiu a avó, desprendendo-se dos braços da criança -, acho que vale a pena tentar seja o que for.

 

No caminho de regresso, Kirsty insistiu para que parassem junto da árvore.

 

- Mas não tenho nada que possamos prender na árvore - alegou Eleanor, dirigindo-se à garota. - Tem de ser qualquer coisa... uma faixa de tecido, o que quer que seja, que possua algum significado afectivo, uma coisa que para nós tenha muito valor.

 

- Porém, mesmo assim, podemos fazê-lo mais tarde? - perguntou Claire. - Arranjar qualquer coisa para a próxima vez que passarmos por aqui?

 

- Sim, se quiseres.

 

Eilidh olhava pela janela do automóvel sem participar na conversa.

 

Em sua casa, Marion achara os dias demasiado compridos quando ficou entregue a si mesma, e embora tivesse tentado sentir-se grata pelo descanso, viu-se quase à beira das lágrimas, tanto era o alívio, quando viu o automóvel de Eleanor a entrar no caminho particular de sua casa.

 

- O paizinho? Como é que estava? - perguntou quando ela e Eleanor tiveram uma oportunidade de se sentar para uma conversa a sós.

 

- Está óptimo. Muito bem. Ontem também fui a casa das tias Alice e Mamie. A Alice pareceu-me muito cansada, não achei que estivesse nada bem. Quanto à Mamie, não é capaz de reter nada na memória durante dois minutos.

 

- Ambas estão a envelhecer - retorquiu Eleanor.

 

- Elas são velhas, Marion. Até certo ponto, é como se fossem um casal de idosos casados há muitos anos. Passam a vida a embirrar uma com a outra, mas mesmo assim partilham um grande afecto.

 

- Achas que sim? - perguntou Marion, mostrando-se duvidosa. -- Sempre pensei que foi uma pena que a tia Mamie nunca tivesse voltado a casar. Ela devia ter tido filhos, ter uma vida própria. E não passando a viver com a Alice, como uma espécie de governanta com estatuto de membro da família.

 

- Talvez sim. Mas falemos de ti... Como é que tens passado? Um pouco a custo, Marion conseguiu esboçar um sorriso.

 

- Passei mais uma noite no hospital - replicou. - E depois disso fiz outra TAC. Se os resultados forem bons... talvez não seja preciso fazer mais nenhum tratamento.

 

- Estás a referir-te aos tratamentos de quimioterapia?

 

- Sim, espero que não precise de mais.

 

- Estás farta, não é verdade?

 

- Estou bem.

 

Mas a verdade é que não estava, do que Eleanor se apercebeu de imediato, dando-se conta de como a doença tinha progredido na sua ausência, durante os poucos dias em que estivera em Pitcairn.

 

- Lamento muito. Tenho muita pena por me ter ausentado neste momento.

 

- Não, tu tinhas toda a razão. Não deves sentir que és obrigada a estar constantemente junto de mim. Seja como for, nesta altura não sou grande companhia. - Marion não queria continuar a falar sobre as suas dores e sintomas. - Fala-me do Gavin - pediu à irmã. - Tens falado com ele?

 

- Não, desde que fui para Aberdeen. Mas disse-lhe que voltava esta noite. É muito provável que ele me telefone - informou Eleanor, corando, sentindo-se afogueada ao pensar naquilo, mas incapaz de falar mais sobre o assunto até ter voltado a casa e falado com ele outra vez.

 

- Sabes o que é que as miúdas querem fazer? - perguntou, mudando de assunto. - Lembras-te daquela árvore horrorosa em Munlochy, aquela que tem uma data de trapos pendurados nos ramos... a Clootie Well? A Claire diz que é a ”árvore dos desejos”. É um lugar preferido pelos ciganos, não é?

 

- Sim, e o que é que tem de mais?

 

- A Kirsty quer amarrar um pedaço de tecido nessa árvore, pedindo um desejo para que tu melhores.

 

- Oh, suponho que tudo possa ajudar - replicou Marion com um sorriso.

 

- Eu disse-lhe que tinha de ser qualquer coisa que para ti tivesse valor. Não uma rodilha velha da louça.

 

- Muito bem - anuiu Marion, ficando a pensar naquilo. E depois, com uma energia que Eleanor não lhe via há muitas semanas, levantou-se da poltrona. - Oh... oh! Fiz isto com demasiada rapidez.

 

- O que é que se passa? Queres que te vá buscar alguma coisa?

 

- Sim, está bem. Lá em cima, na minha cómoda, na gaveta de cima da esquerda, onde eu guardo a roupa interior... Debaixo de tudo, ao fundo, embrulhado em papel de seda - indicou, recostando-se toda para trás na poltrona. - Importas-te?

 

- Não, claro que não. Mas a que estás a referir-te? - perguntou Eleanor.

 

- Espera e verás. Pergunto a mim mesma se serás capaz de reconhecer aquilo de que te estou a falar.

 

Eleanor subiu até ao quarto de Marion. As calças de bombazina de Fergus tinham ficado em cima de uma cadeira, havia livros espalhados pelo chão e a janela estava aberta para deixar entrar o ar primaveril, com as cortinas suavemente agitadas por uma ligeira brisa. Não havia nada no quarto que fugisse ao habitual, tal como nada que indicasse que havia alguém doente, com a vida ameaçada. Mas, na mesa-de-cabeceira do lado da cama em que Marion dormia, Eleanor viu os frascos de comprimidos que ela tomava. Desviou o olhar e dirigiu-se para a cómoda, procurando o que a irmã lhe pedira.

 

Por baixo das peças de roupa interior de algodão e de seda, as simples e as mais sofisticadas, os sutiãs especiais preparados para a prótese mamaria que Marion detestava e que a incomodava, facto de que Eleanor tinha conhecimento, os seus dedos encontraram o papel macio, retirando um pequeno embrulho achatado. Quando o abriu, viu mais ou menos trinta centímetros de fita rendilhada de um tom creme, e já um pouco quebradiça por ser antiga, que lhe escorregou para a mão. Por que razão é que Marion teria guardado aquilo? Seria do seu vestido de noiva, de um vestido de baptizado? Todavia, Eleanor recordou-se, obtendo resposta à sua pergunta. Era o bocado de renda que a mulher do latoeiro vendera à mãe havia já tantos anos, quando os três irmãos eram pequenos. Marion apressara-se a apoderar-se da fita, enquanto os rapazes tinham ficado a brincar com as molas da roupa, fingindo que eram soldadinhos.

 

E a cigana regressara, para se passear pelo jardim deles. Representaria ela um aviso ou uma ameaça, uma profetisa ou apenas um fantasma infeliz? A mão de Eleanor fechou-se à volta do pedaço de renda, sentindo-a áspera contra a pele.

 

- É o bocado de renda que a mãe comprou à cigana, não é verdade? - perguntou a Marion quando desceu, voltando à sala de estar.

 

- Não te esqueceste.

 

- Pois não - confirmou Eleanor.

 

- Às vezes pergunto a mim mesma o que será feito dessa mulher. Ela tinha um bebé, não é verdade?

 

O rosto de Eleanor ensombrou-se, e Marion acrescentou, deixando adivinhar algum receio que não tinha qualquer razão de ser:

 

- O que é que foi? Passa-se alguma coisa? Não te importas de te desfazer dela, pois não?

 

- Não, claro que não. Livra-te disso. É uma pena que a tenhas guardado durante tanto tempo.

 

Eleanor não tinha a certeza se Marion sabia como a mulher havia morrido. De qualquer maneira, aquela não era a melhor altura de abordar esse assunto, tal como não tencionava dizer-lhe como ela regressara para se passear pelos jardins de Pitcairn.

 

- Estás a sentir-te bem, Eleanor?

 

- Não é nada, só me sinto um pouco cansada. É por ter guiado durante tantas horas. É melhor irmos para casa.

 

- Coitada de ti. Peço desculpa, foi egoísmo da minha parte ter-te empatado.

 

- Fui eu que quis ficar. Já sentia saudades de ti, Marion.

 

- Com certeza que não foi por eu ultimamente ser uma companhia muito animada - comentou Marion com ironia, sorrindo e acompanhando Eleanor até à porta da rua.

 

A hora já havia mudado; quando Eleanor e Claire chegaram à pequena vivenda ainda havia luz do dia. Exclamaram de surpresa ao verem as túlipas que durante a ausência delas tinham florido nos canteiros da frente; pouco depois, foram para dentro, desfizeram as malas e começaram a preparar o jantar. John Cairns telefonou ao serão.

 

- Recebi uma chamada da Mamie - começou ele a dizer. A Alice não está a sentir-se muito bem. Não gostamos de incomodar o médico à noite, mas talvez fosse melhor eu dizer à Mamie que lhe telefonasse, o que é que achas?

 

- O que é que ela tem...? A Mamie explicou o que se passava?

 

- Só disse que a Alice estava a sentir-se um pouco tonta, pelo que se foi deitar.

 

- Quer que eu lhes telefone?

 

- Não, não. Nos últimos tempos, a Mamie fica aflita até por coisas de nada. É possível que seja apenas uma constipação ou qualquer outra coisa sem importância.

 

- Não sei, paizinho. Quando a fui visitar aqui há dias, pareceu-me que a Alice não estava nada com bom aspecto.

 

- Ora... desculpa por te ter incomodado, cachopa. Já tens com que te preocupar por causa da Marion.

 

- Olhe uma coisa... Diga à Mamie que ligue para o médico, quanto mais não seja para lhe pedir que a aconselhe, caso esteja assim tão preocupada. No mínimo, ela podia fazer isso.

 

- Sim, é boa ideia. Talvez o médico lhe diga para não ser tão tola.

 

- Amanhã falo consigo - prometeu Eleanor. - Para saber como é que ela está.

 

Porém, na manhã seguinte, quando telefonou para Pitcairn por volta das onze, não obteve resposta. ”Ele deve estar no jardim”, disse para consigo própria, ”não consegue ouvir a campainha do telefone.”

 

Da parte da tarde, foi o pai quem lhe telefonou. Alice tivera um ataque do coração, sendo levada de urgência para o hospital. ”Não pode ser a mesma coisa”, disse Eleanor em pensamento. ”Eu não estive lá. Eu disse-lhe que ligasse para o médico. Não dependia de mim, a responsabilidade era da Mamie. A Mamie que se mostrava tão confusa e perdida, a qual, durante quase quarenta anos, permitira que todas as decisões fossem tomadas pela Alice. Eu disse ao pai que chamasse o médico. Que mais é que eu poderia ter feito?” Não obstante aquele raciocínio, o velho sentimento aflitivo e doentio fez-se sentir, avassalador, aliado àquele rufar de tambor na sua cabeça: ”Por minha culpa, por minha culpa, por minha culpa.”

 

- A Alice há-de acabar por melhorar - disse Marion quando Eleanor passou por casa dela mais tarde, ainda nessa mesma tarde.

 

- Quando a Claire voltar para a escola, tenciono meter-me no carro e ir até lá - informou Eleanor. - Só por um dia.

 

No fim, porém, acabou por se concluir que Alice não era tão rija como se pudesse pensar. E quem é que seria, quando era o coração que falhava, perguntava-se Eleanor, dando-se conta de que teria de emalar roupa para um funeral no mesmo dia em que, em princípio, Gavin chegaria a terra.

 

Claire, quando chegou da escola na terça-feira à tarde, tomou conhecimento da morte da tia.

 

- A tia Mamie vai sentir muito a falta dela, não vai? - perguntou depois de ter chorado um pouco.

 

- Sim, vai sentir - confirmou Eleanor virando-se para o fogão para ver se o estufado já estava pronto. - O funeral é às duas da tarde na sexta-feira. Tencionamos ir para lá logo de manhã, regressando no mesmo dia, para que o avô não tenha de estar com o trabalho de fazer as camas para nós dormirmos.

 

- A tia Marion também vai?

 

- Sim, vamos todos.

 

- A Eilidh e eu fomos ao funeral da avozinha, não fomos? Mas a Kirsty ainda era muito pequenina... Desta vez ela também vai?

 

- Sim, vai. - Kirsty tinha a mesma idade de Claire quando esta assistira ao seu primeiro funeral. Eleanor fechou os olhos por uns breves momentos: aquele dia frio de Janeiro, Claire com o seu casaco e chapéus vermelhos, porque essas eram as únicas peças de roupa que ela tinha para vestir que fossem quentes e elegantes. Parecera uma jóia entre o preto do luto.

 

- Claire, vai pôr a mesa.

 

- E quanto ao tio David... ele vai ao funeral?

 

- Ainda não consegui falar com ele - admitiu Eleanor. Mas deixei uma mensagem no atendedor de chamadas. Esta noite tenciono tentar outra vez.

 

- Pelo menos, a mãe agora tem o número de telefone dele notou Claire, sentando-se à mesa das refeições.

 

Ao princípio da noite, Eleanor voltou a ligar o número de David. Apesar de o telefone ter tocado durante bastante tempo, o atendedor de chamadas não entrou em acção, pelo que ela esperou. Finalmente, ouviu a voz do irmão.

 

- Estou?

 

- David, sou eu. Tenho más notícias - disse Eleanor.

 

- A Marion...

 

- Não, não, ela está bem. Foi a tia Alice - informou, fazendo uma pausa. Voltou a ouvir o eco, continuava presente, escutando a voz de David no vestíbulo, pintado de azul-claro, da sua casa inglesa, dizendo a Marion: O lan morreu, informando todas as pessoas que conheciam, porque ela estava incapaz de o fazer. E muito mais tarde, o pai a dizer-lhe: É a tua mãe, Eleanor. Como é que se dava uma notícia dessas às pessoas?

 

- Lamento muito, David, não sei bem como... Ela teve outro ataque do coração. Faleceu esta manhã.

 

Decerto que ele diria algumas palavras de pesar e conforto, lamentando a morte da tia, mas não passaria daí. Agora, mantinha um distanciamento tão grande da família; para ele, que significado é que a morte de uma tia com oitenta anos de idade poderia ter? Mas ele não disse nada.

 

- Ela ainda estava no hospital quando o pai me ligou - continuou Eleanor perante o silêncio do irmão. - A pobre da Mamie está numa grande aflição, diz o pai. Na última vez que fui a casa delas, pensei que a Alice...

 

- A tia Alice morreu?

 

- Sim, foi do coração... Sabes que ela teve um ataque do coração na semana passada. O pai disse-me que te tinha dito.

 

- Sim, mas ele também me disse que ela estava bem, que estava a melhorar.

 

- É preciso não esquecer que ela tinha mais de oitenta anos. Suponho que o coração não conseguiu aguentar-se. Tenho muita pena. Davy. Estás a sentir-te bem?

 

- Sim, claro que estou bem. - Mas a verdade é que tinha a voz embargada.

 

- O funeral é na sexta-feira, às duas da tarde. A igreja delas fica próximo de Holborn e depois ainda temos o crematório. Se quiseres, até podias ficar em casa do pai. Nós tencionamos regressar no mesmo dia, para evitar ter de se estar a fazer camas. Seremos sete... não, oito... acho que a mãe do Fergus também quer ir ao funeral.

 

- Não posso ir.

 

- O quê?!

 

- As coisas por aqui estão muito complicadas. Na sexta-feira... não me parece que possa ir, Eleanor. Lamento muito.

 

- Mas... - começou ela a dizer.

 

- Tenho muita pena. E agora tenho de desligar. Quando me ligaste estava a falar com uma pessoa.

 

- Davy...

 

- Telefono-te mais tarde. Se conseguir despachar-me.

 

Marion, quando ela lhe contou a conversa que tivera com o irmão, mostrou-se impaciente e irritada.

 

- É tão típico dele. Bem sei que ele não era particularmente chegado à tia Alice, mas, quanto mais não fosse por causa do pai, mesmo assim ele devia estar presente.

 

- Ele pareceu-me ter ficado triste.

 

- Mas não assaz triste para alterar os seus planos, como é por de mais evidente - ripostou Marion, desabrida.

 

Eleanor, que queria defender David, sabia que não havia como. Se Marion estava disposta a fazer esse esforço, apesar da doença grave que a consumia e que a deixava exausta, com certeza que ele também poderia ir ao funeral. As coisas por aqui estão muito complicadas, alegara ele, mas com ele isso não era novidade nenhuma. Nesse momento, como se se tivesse feito luz na sua cabeça, teve a percepção de que a ”pessoa” com quem o irmão estava quando lhe telefonou era uma mulher.

 

Na quinta-feira à noite, Gavin telefonou-lhe.

 

- O colega que vinha substituir-me adoeceu - informou ele.

- O mais certo é não poder sair da plataforma até sábado.

 

- Não tem importância... amanhã vou ter de ir para fora retorquiu Eleanor, começando a explicar-lhe o sucedido. Apesar de ele ter manifestado a sua simpatia, mostrando-se compreensivo, fê-lo de uma maneira impessoal. Uma tia que vivera mais de oitenta anos... quando morria, uma pessoa sentia pesar. Mas nunca choque face à morte nessas circunstâncias.

 

Mamie não saía do pensamento de Eleanor, pensando no quanto ela estaria a sentir-se perdida sem a companhia de Alice. Masquem sabe...? talvez a vida lhe desse outra oportunidade, permitindo-lhe que recomeçasse agora que ficara sozinha. Em tempos, era o que teria acontecido, apercebeu-se Eleanor, mas, muito plausivelmente, agora seria tarde de mais.

 

No funeral, Mamie, vestida de azul-marinho e com um chapéu a condizer, mostrava-se muito chorosa, com as faces de um vermelho congestionado à luz daquele Sol de Abril. No entanto, mantinha a compostura, apoiando-se no braço de uma prima enquanto apertava a mão dos que lhe davam os pêsames à porta da igreja. Apesar de o funeral não ter tido muitos acompanhantes, havia mais gente do que Marion e Eleanor tinham esperado ver. O que não era de admirar, dado que Alice continuara a ter uma vida bastante activa, o que justificava haver muitas pessoas no funeral que elas não conheciam; na sua maioria eram senhoras já de idade. Houve um homem, com as costas curvadas, que saudou John e Mamie quando saiu da igreja e que lhes disse que tinha trabalhado com Alice durante trinta anos. Olhou em seu redor, parecendo que a cabeça e o pescoço lhe saíam do casaco preto e do colarinho rijo da camisa branca, como se fosse um cágado.

 

- O que é feito do rapaz? - perguntou ele. - O rapaz está aqui? - John e Mamie ficaram a olhar um para o outro, até que o primeiro disse:

 

- Não, ele está a trabalhar fora. - O rapaz, deduziu Eleanor quando já descia os degraus a caminho do automóvel, dando a mão a Claire (a primeira vez em vários anos, com Claire muito solene e intimidada), o rapaz era David.

 

Mais tarde, o pai esclareceu-a.

 

- Era o Peter Simpson. Ele era o sócio mais antigo quando a Alice começou a trabalhar no escritório de advocacia Simpson e Dalgarno. Nesta altura, ele já deve ter mais de noventa anos.

 

- E quanto ao Dalgarno? - indagou Eleanor, perguntando a si mesma como é que a vida profissional de Alice teria sido. Uma mulher independente, muito à vontade num escritório, como se estivesse em casa, eficiente e indispensável. Não lhe era difícil imaginar essa vida.

 

- Esse já morreu há muitos anos. Aposentou-se pouco depois de a Alice ter começado a trabalhar no escritório, acho eu. O outro sócio era o Fraser, Alex Fraser. E durante alguns anos houve outra pessoa qualquer, um outro sócio. Foi uma coisa que causou algum furor. Quando abandonou a firma, saiu com mais dinheiro do que aquele a que tinha direito; mudou-se para o Sul.

 

- O quê... Ele roubou esse dinheiro? - perguntou Eleanor, rindo-se. Aquelas pessoas idosas, advogados respeitáveis e enfadonhos. Todavia, um deles era uma ovelha ranhosa. Com certeza que o homem não teria conseguido enganar a tia Alice.

 

- Seja como for, tratou-se de um assunto de contornos pouco claros. Contudo, ninguém tomou qualquer medida, tanto quanto me recordo. A Alice continuou a trabalhar lá... Isso não teve nada a ver com o Peter Simpson.

 

- O pai está a dizer que eles se limitaram a fazer vista grossa? Apesar do desvio de fundos?

 

- O quê?! - replicou o pai mostrando-se espantado. - Ora, o caso não foi tão mau como possa parecer à primeira vista.

 

- Mas o pai disse...

 

- Vai ver se a Mamie precisa de ajuda, sê uma boa menina continuou o pai, pondo-se de pé. Aquela conversa teve lugar quando já tinham regressado a Pitcairn, sentados no banco das traseiras da casa, só os dois. Agora, que o Sol já desaparecera, começava a fazer frio.

 

Mamie tinha-os enxotado para fora da cozinha, dizendo que se encarregaria de preparar o chá. Acrescentou que trouxera um bolo de frutas. Elas não podiam encetar a longa viagem de regresso a casa sem que primeiro comessem uma fatia de bolo. Porém, quando os dois voltaram para dentro de casa, depararam com ela sentada à mesa da cozinha, sem ter despido o casaco nem tirado o chapéu e sem ter feito nada.

 

- Está a sentir-se bem, tia Mamie? - perguntou-lhe Eleanor.

 

- Sim, estou bem. Apenas um tudo-nada cansada, Eleanor. Acabaram-se as idas ao hospital.

 

John deixou-as sozinhas, tal como Eleanor sabia que ele faria. Começou a ajudar Mamie a pôr as chávenas e os pires na mesa e a cortar o bolo.

 

- A tia vai ficar bem sozinha? - perguntou, reparando que as mãos, gorduchas e cheias de veias azuis, tremiam quando ela deitou leite para dentro da leiteira.

 

- Deus seja louvado, cachopa - replicou ela, erguendo o olhar e esboçando um sorriso. - Vou sentir a falta dela, Eleanor, mas acho que vou conseguir aguentar-me.

 

- A tia podia vir comigo, passar uns dias em minha casa, se lhe apetecer - convidou ela, movida por um impulso de piedade, mas arrependendo-se do convite assim que o fez. Começou a pensar no quarto de hóspedes, tão exíguo, em Gavin, na impossibilidade de ocultar de Mamie aquilo que tentava esconder de Claire. De súbito, Eleanor sentiu que a fadiga se apoderava de si, sentando-se, como que avassalada. Mamie remexia numa gaveta, à procura das colheres de chá.

 

- Não. Ultimamente tenho andado com falta de memória, mas a Alice era um pouco impaciente. Se eu ficar sozinha, cá me hei-de arranjar. Tu não vais querer uma velha rabugenta como eu a empatar-te a vida.

 

- A tia não é nenhuma velha rabugenta - protestou Eleanor, fazendo um esforço para sorrir.

 

- Outrora não sentia que o fosse, mas na verdade é o que sou- replicou Mamie dando uma palmadinha afectuosa no ombro da sobrinha. - Estás muito pálida, Eleanor. O que é que se passa?

 

- Nada, só estou a sentir-me um pouco em baixo. Provavelmente, por me ter levantado tão cedo. Não é nada que uma chávena de chá não resolva.

 

- Estou à espera que a água ferva na chaleira... - Mamie, contudo, esquecera-se de ligar a chaleira eléctrica. - Deus me valha, não admira que a água esteja a levar tanto tempo a ferver! Pronto, já está ligada - disse, sentando-se na cadeira defronte de Eleanor. - E a Marion, como é que ela tem passado? Ela emagreceu terrivelmente, a pobre cachopa.

 

- Já falta pouco para o último tratamento. Depois, talvez consiga recuperar um pouco.

 

- Sim, esperemos que sim. Ela tem estado a atravessar uma fase muito difícil; é uma tristeza.

 

Eleanor continuava a sentir-se esquisita. Devagar e com algum esforço levantou-se da mesa, fazendo menção de querer pegar no tabuleiro. Mas Mamie apressou-se a impedi-la.

 

- Isso está muito pesado para tu lhe pegares. Vai chamar o David. - Ficaram a olhar uma para a outra. - O que é que eu estou para aqui a dizer? O Ross. O cachopo da Marion. Ele pode levar o tabuleiro para a sala.

 

- Eu vou chamá-lo - ofereceu-se Eleanor, mas, quando já se encaminhava para a porta, Mamie acrescentou:

 

- É uma pena que ele não tenha podido estar presente no funeral da própria mãe.

 

Eleanor hesitou, tendo estado quase a dizer: ”Mas ele esteve presente.” Todavia, mudou de ideias, indo chamar Ross para que levasse o tabuleiro para a sala.

 

Quando Ross já tinha entrado na cozinha, com a gravata preta e o casaco que o pai lhe emprestara (demasiado largo nos ombros), Eleanor sentou-se ao lado de Marion.

 

- Não me parece que a Mamie esteja bem - disse num murmúrio. - Aparenta estar bem, mas depois diz as coisas mais disparatadas que se possam conceber.

 

- Num dia como este, isso não é para admirar. Para ela, deve ser terrível. Até acho que está a aguentar-se muito bem.

 

Entretanto, Mamie e Ross acabavam de entrar na sala de estar, pelo que Eleanor não acrescentou mais nada.

 

Como era habitual, as duas irmãs fizeram a primeira parte da viagem juntas, com Claire e Eilidh sentadas no banco de trás.

 

- É uma geração de gente estóica - comentou Marion quando retomaram o assunto do funeral. - Há quanto tempo é que a Mamie e a Alice viviam juntas? Toda uma vida. Mas, apesar de ser óbvio que a Mamie já chorara algumas lágrimas antes de chegarmos, durante o resto do dia não mostrou sinais de ter vontade de chorar. À semelhança do pai. Apesar de ser a sua própria irmã.

 

- Elas viviam juntas - começou Eleanor a dizer, mas interrompendo-se para fazer o cálculo -, desde o ano que antecedeu o nascimento do David. Ele faz anos no fim do mês.

 

- Ao menos, este ano sabemos para onde é que devemos enviar o cartão de parabéns.

 

- Marion, esta tarde a tia Mamie disse-me uma coisa estranhíssima. Deixou-me bastante abalada.

 

- O quê?

 

- Não se trata apenas da falta de memória, a verdade é que ela anda um pouco confusa - respondeu Eleanor, baixando o tom de voz, se bem que as duas garotas, sentadas atrás, estivessem de todo alheadas da conversa entre as respectivas mães. Claire lia uma revista, enquanto Eilidh estava por completo embrenhada na leitura de um livro. - Ela deixou-me absolutamente desconcertada. Disse-me que era uma pena que o David não tivesse ido ao funeral da mãe. Fiquei sem saber se ela se tinha esquecido de que ele esteve presente... embora seja verdade que só chegou no último minuto... ou se pensou que o funeral da mãezinha era hoje. Muito francamente, foi uma situação que me deixou bastante perplexa. Fiquei sem saber o que lhe dizer, por isso, optei por ignorar o que ela proferiu.

 

- No teu lugar, não me preocuparia muito com isso - retorquiu Marion, tentando tranquilizá-la. - A mim pareceu-me que ela estava óptima. Vais ver que até é capaz de se dar lindamente a viver sozinha. Há muitos anos que a Alice só lhe dava ordens.

 

Todavia, Eleanor não se esquecera dos tremores que vira nas mãos de Mamie, assim como o olhar desfocado quando deu com ela sentada à mesa da cozinha, como que apática.

 

- O David podia muito bem ter vindo ao funeral - acrescentou Eleanor em voz alta.

 

- Ora, Eleanor, a atitude dele não devia deixar-te surpreendida. Nunca pensa em mais ninguém, além de si próprio - acrescentou Marion, encostando-se para trás e cerrando as pálpebras. Eleanor lançou-lhe um olhar de lado e não disse mais nada. Deixaria que a irmã dormisse; duas viagens no mesmo dia pela A96 constituíam um esforço demasiado esgotante para ela, dado o seu estado de saúde. Mas a verdade é que a irmã não quisera deixar de assistir ao funeral. Por que motivo é que David não teria ido? Havia sentido a falta dele, quisera que o irmão estivesse presente. Durante todas as outras crises da sua vida, David estivera ao seu lado, apercebeu-se Eleanor naquele momento. A morte da tia Alice poderia ser considerada uma crise? Eleanor sentiu um baque de pesar pelo falecimento da tia, recordando-se do último passeio que as duas tinham dado no Natal, apesar do frio do Inverno. Alice a parar, tendo ficado sem respiração por uns momentos. ”Ainda não”, disse para consigo, as lágrimas prontas para lhe assomarem aos olhos, ”esta crise ainda não está a acontecer.”

 

Quando já se encontravam próximo de casa, começou a pensar em Gavin, pondo de parte qualquer outro assunto. Amanhã. Amanhã poderia vê-lo.

 

Porém, antes de isso acontecer, David telefonou-lhe. Foi na manhã de sábado. O Sol brilhava em todo o seu esplendor, acompanhado de uma brisa forte que agitava a roupa de Eleanor, estendida a secar, elevando-a pelos ares - branco recortado contra o azul. O vento também fazia com que as túlipas se vergassem de lado junto da porta da frente. Eleanor partiu uma ponta seca de rosmaninho do arbusto junto dos degraus da fachada, enquanto aguardava a carrinha do carteiro que já vinha pela alameda, sentindo o vento que lhe revolteava os cabelos. Edie também saíra de casa, dirigindo-se num passo apressado para a vedação.

 

- Já sei que passou por uma situação triste. Como é que está o seu pobre pai? Um homem encantador, esse seu pai, sempre com um sorriso nos lábios.

 

- O meu pai está óptimo.

 

O carteiro entregou-lhes a respectiva correspondência, aproveitando para trocar algumas palavras sobre o tempo, após o que as duas continuaram a conversar enquanto o homem se afastava sem ter parado na moradia de Gavin.

 

- Ele... - começou Edie acenando na direcção da terceira casa. - Ele foi para o mar outra vez, não foi? Com certeza que a Eleanor sabe melhor do que eu, uma vez que dá mais conta das idas e vindas dele. - A visada enrubesceu, mas não descortinou a mínima expressão de malícia na fisionomia de Edie, apenas curiosidade. No entanto, a verdade é que ela tinha reparado: nada escapava a Edie.

 

- Em princípio, ele deve voltar esta noite.

 

- Passará a ter quem lhe faça companhia, minha querida, e, tanto quanto sei, ele agora está sozinho - acrescentou Edie dando uma palmadinha de cumplicidade no braço de Eleanor. - Mas tenha cuidado, não se apresse a tomar decisões de que mais tarde possa vir a arrepender-se. E também lhe quero dizer que tem andado muito pálida. Eu até já disse ao Jim: ”Ela não anda nada com bom aspecto, ficou abalada com o falecimento da tia, além das preocupações por causa da saúde da Marion.” Como é que ela está, a pobre pequena?

 

Alguns minutos depois, Eleanor foi para dentro, pensando que ali era impossível ter-se segredos. A vida de cada um era constantemente exposta à curiosidade dos outros. A única excepção era a vida sexual de cada um; isso era segredo - não o facto de ter lugar (Eleanor corou de irritação), mas como e aquilo que se fazia com o parceiro.

 

Encontrava-se na cozinha quando o telefone começou a tocar. Claire atendeu na extensão do quarto, gritando do primeiro andar momentos depois.

 

- Mamã! É o tio David!

 

- Porque é que não foste ao funeral! - perguntou ela de chofre assim que atendeu.

 

- Desculpa, lamento muito. Como é que correu? O pai está bem?

 

- O pai está óptimo. Mas a Mamie anda muito pesarosa e ficou tristíssima quando soube que não irias ao funeral.

 

- Tive intenção de ir.

 

- Então, porque é que não foste?

 

- Meu Deus, Eleanor, tu não serias capaz... Não posso abordar esse assunto. Desculpa. Mas pensei muito em todos vocês. Ficarias surpreendida se soubesses o quanto pensei em vocês.

 

- Tenho a certeza que sim.

 

- Deixa-te de ironias. Eu ter ido ou não... é coisa que não faria qualquer diferença à Alice, não achas?

 

- Não, suponho que não - admitiu Eleanor com um suspiro. - A questão não é essa.

 

- Mas, adiante - prosseguiu David. - O que se está a passar em relação à casa e tudo o mais?

 

- Que casa?! - perguntou ela, surpresa.

 

- A casa da Alice.

 

- É claro que a Mamie vai continuar a viver lá. A casa pertencia as duas, não é verdade?

 

- Não, creio que só pertencia à Alice. Ela deixou-a à Mamie?

 

- Deixá-la a ela? Deus te valha, David, como é que eu hei-de saber? Suponho que o paizinho seja o parente mais próximo, mas, seja como for, acho que estás enganado. Elas costumavam contar-nos uma história, bom, a Mamie é que a contava... Sabes o que quero dizer, de como compraram a casa quando chegaram à conclusão de que o andar onde a Alice vivia era demasiado pequeno?

 

- Decerto que ela terá deixado um testamento.

 

- O quê?!

 

- Não te esqueças de que a Alice trabalhou num escritório de advogados durante grande parte da sua vida. Tem de ter feito um testamento.

 

Onde diabo quereria ele chegar? Duas senhoras de idade que viviam das suas reformas... decerto não haveria grandes dinheiros. Apenas a casa. Mas David queria dinheiro. Eleanor sentiu que o coração lhe caía aos pés.

 

- Olha uma coisa... o pai há-de deslindar tudo isso. Tenho a certeza de que mais cedo ou mais tarde ele há-de esclarecer-nos.

 

- Sim, isso mesmo. Desculpa, mas agora vou ter de desligar. No fim do mês, tenciono estar em casa para passar uns tempos com o pai. Talvez eu possa tirar uns dois dias para te visitar e à Marion.

 

- Vem passar os teus anos connosco - sugeriu ela, adivinhando na entoação de voz do irmão que as coisas não lhe estariam a correr muito bem; uma vez mais, os seus projectos deviam ter ido por água abaixo.

 

- Achas que existe alguma razão para celebrar? - perguntou David num resmungo mal-humorado.

 

- O último dos tratamentos de quimioterapia da Marion... o facto de ela ter conseguido sobreviver.

 

- Claro, isso merece ser celebrado. Talvez nessa altura eu já tenha algumas novidades.

 

- Que novidades? - perguntou Eleanor.

 

Mas ele não quis adiantar mais pormenores e a conversa acabou por terminar com um sabor a insatisfação. David disse que havia alguém a bater à porta do seu apartamento, alegando que tinha de desligar.

 

- Eu depois digo qualquer coisa - prometeu. - Dá um beijinho à Marion por mim.

 

- Afinal, porque é que ele não foi ao funeral? - perguntou Claire pouco depois.

 

- Imagino que tivesse tido de trabalhar - respondeu a mãe.

 

- Sim, mas isso não impediu o tio Fergus de ir e ela nem sequer era tia dele. - Claire estava contagiada pela irritação que Eleanor sentia para com a atitude do irmão. Aquele tipo de questão era uma coisa que a deixava preocupada, tendo a percepção de que existiam assuntos de que os adultos tinham conhecimento e ela não.

 

- Eu gosto muito do teu tio David - continuou Eleanor, sentando-se -, ele tem muitas qualidades. Mas... acontece que leva uma existência bastante diferente.

 

- Como? - retorquiu Claire sem compreender.

 

- Não é capaz de assentar nem de manter um emprego. Nunca casou e nem sequer consegue ter uma namorada certa durante muito tempo.

 

- Isso quer dizer que neste momento ele tem uma namorada?

 

- Tem - respondeu Eleanor, que naquele instante ficou certa disso. - Ou acho que tem. E estou muito desconfiada de que se trata de alguém com quem ele não devia dar-se.

 

- E porque não?

 

- Não sei dizer - replicou Eleanor, apercebendo-se de que já dissera de mais. - Estou apenas a pôr-me a adivinhar.

 

- Já sei, a mãe acha que ela é uma mulher casada.

 

- Não, claro que não! - Mas aquilo era precisamente o que Eleanor pensava. Também se deu conta do que acontecia quando não existia outro adulto por perto em quem se pudesse confiar; acabava por confidenciar coisas à filha de catorze anos de que ela não devia ter conhecimento. Eleanor não sabia se devia sentir-se encolerizada consigo própria ou com Claire, uma garota tão perspicaz. Claire, entretanto, decidira mudar de assunto.

 

- E quanto à tia Mamie... acha que ela vai passar a viver em casa do avô?

 

- Por que carga de água é que pensaste numa coisa dessas? perguntou Eleanor, perplexa.

 

- Bem, quanto mais não seja, pela companhia. Eles são primos, não é verdade?

 

- Não me parece que essa ideia agradasse muito ao teu avô. Quando as pessoas começam a envelhecer, adquirem os seus próprios hábitos, maneiras de ser muito peculiares.

 

- Estou aborrecida - afirmou Claire ligando o televisor, que na altura transmitia um concurso, cujo barulho encheu a sala. Eleanor apercebeu-se de que o tema da conversa havia mudado uma vez mais.

 

- Ah, estás? - perguntou a mãe. Ultimamente, perdera todo o interesse pela televisão. Contudo, ao cabo de quase seis horas ao volante de um automóvel, uma viagem que culminara com um telefonema de David, tudo o que lhe apetecia fazer era ficar sentada no sofá, a olhar para o vazio e sem se mexer. Momentos depois, acrescentou: - Continuas a sair com esse rapaz de que me falaste... Como é que ele se chama?

 

- Stephen - elucidou Claire.

 

- Sim, isso mesmo.

 

- Não, já não saio com ele.

 

- Que pena.

 

- Não tem importância, não fiquei nada chateada - acrescentou Claire pouco depois, desviando o olhar do televisor.

 

- Óptimo. Pensei que fosse por causa disso que estavas a sentir-te um pouco aborrecida.

 

- Nada disso - ripostou Claire num tom desdenhoso. O período está para me vir, mais nada. É uma chatice... E para mais, o dia pior coincide com o da festa da Nicky.

 

- Quando é a festa?

 

- Claro que é na terça-feira. Ela faz a festa no próprio dia dos anos porque é durante as férias.

 

- Tu fartas-te de ir a festas - murmurou Eleanor, pensando: ”Poderei passar a noite inteira com o Gavin” e corando. Corou, como se Claire pudesse ler os seus pensamentos. Mas, com o comando à distância, Claire percorria os canais, um a um.

 

- E quanto à mãe? - perguntou a garota. - Regra geral, temos o período na mesma altura, não é verdade? A mãe da Nicky diz que as freiras que vivem juntas num convento têm o período ao mesmo tempo. Não é esquisito?

 

A própria Eleanor sentia aquela guinada quase imperceptível no ventre que lhe anunciava a chegada da menstruação. Contudo, havia uma semana que tinha aquele sintoma.

 

- Sim - concordou. - É uma coisa qualquer que tem a ver com a fase da Lua, pelo menos era o que as pessoas antigamente costumavam dizer. - Levantou-se e saiu da sala de estar. Deteve-se por uns momentos junto do Rayburn na cozinha, com a chaleira na mão, mas sem se mexer para a encher, dando-se conta de que afinal não lhe apetecia a chávena de chá que tencionara tomar. E se...

 

A sensação de receio foi como uma pedra no charco, caindo através do seu coração, algo fisicamente frio, uma coisa repentina. E se...

 

Voltou a pousar a chaleira, sentando-se numa das cadeiras da mesa da cozinha. ”Estás a ser estúpida”, admoestou-se a si mesma, ”não há motivo para teres preocupações. Ao fim e ao cabo, já tens quarenta anos.” Com gestos suaves, apalpou os seios. Estavam muito sensíveis. Dentro de alguns dias teria o período, o fluxo familiar de sangue, o ciclo que se completava. Ouvia o tiquetaque do relógio, acompanhado pelo barulho surdo do aquecedor, enquanto continuava sentada à mesa da cozinha como que imobilizada.

 

Só engravidara em duas ocasiões: a primeira vez da Claire e depois do bebé que posteriormente perdera. Pensou que era uma expressão estranha, mas as pessoas não gostavam que se dissesse que um bebé tinha morrido. A verdade é que o seu morrera, pensou Eleanor; tinha estado vivo e a crescer dentro do seu ventre, mas depois do acidente de automóvel tinha morrido. Por muito pouco formado que estivesse, pouco mais do que uma ameba, uma série de células em mutação, era inegável que morrera. Dizer que tinha ”perdido” um bebé era o mesmo que dizer que não sabia onde o deixara, talvez num banco de jardim, tendo-se esquecido de o levar para casa.

 

Eleanor não se recordava do acidente, provavelmente porque no momento da colisão perdera a consciência. Fosse como fosse, não guardava na memória qualquer imagem que preenchesse o vazio entre o aterrador chiar dos travões, em que o coração lhe parara de bater, e a carrinha a guinar violentamente na estrada defronte deles, e toda a gente especada na berma da estrada enquanto ela era levada para a ambulância depois de a terem colocado numa maca. Sentira-se um tanto disparatada, na posição horizontal em plena luz do dia: contudo, parecia que isso não a incomodava; as dores eram tantas que só queria chegar ao hospital onde haveria alguém que sabia o que fazer para que tudo voltasse ao normal.

 

Durante muito tempo, todos se tinham mostrado tão contentes por ela não ter perdido a vida, lan, David e ela própria, sentindo um alívio tão indescritível por Claire estar sã e salva junto deles, que o aborto espontâneo devido ao acidente era abordado como se fosse um pequeno preço a pagar. Mas coubera a Eleanor pagar esse preço, apercebeu-se ela posteriormente. Quando se casou com lan, não se preocupara muito com o facto de vir a ter filhos ou não, se bem que isso fosse um aspecto importante para todos os casais que conheciam; Claire sempre fora uma criança bonita e dócil, fácil de amar. Por outro lado, Marion havia sido sempre muito diferente; até mesmo quando tinha apenas dez anos já planeava a família que viria a constituir.

 

- Vou ter quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Primeiro os meninos, que se chamarão James e Edward, e depois as meninas, a quem porei os nomes de Shirley e Caroline. - Os nomes estavam sempre a mudar; no entanto, as idades e os sexos já haviam sido firmemente determinados. Marion sabia bem o que queria.

 

Houve uma ocasião em que Eleanor ofendera a irmã ao dizer-lhe com uma expressão sonhadora, depois de, uma vez mais, terem conversado a respeito desses planos de maternidade: ”Quando eu crescer, tenciono ter seis gatos e vou dar-lhes o nome de Um, Dó, Li, Tá...” (aqui fez uma pausa de reflexão enquanto contava) ”e Jonathan e Linda.”

 

Marion mostrara-se furibunda, se bem que Eleanor não tivesse tido a intenção de embirrar com a irmã.

 

Depois de Claire ter nascido, como seria de esperar, lan e ela tencionavam ter mais um filho. Era o que todos os outros faziam. Pouco depois, lan foi promovido, o que lhes permitiu mudarem-se para Heatherlea. ”No próximo ano”, diziam os dois. ”Para o ano que vem teremos outro filho.” Entretanto, David chegou de fora, começando a passar os seus tempos livres com o casal. Bem-sucedido profissionalmente, lan estava lançado para se guindar ao topo da carreira, o que o obrigava a trabalhar muitas horas, e o resultado era deitar-se às dez da noite todos os dias, pouco depois de chegar a casa. Mas Eleanor ficava a pé até tarde, a conversar com David. Aos fins-de-semana, lan ia jogar golfe, satisfeito por ter caído nas boas graças do clube da localidade. ”Foi um autêntico prodígio”, reflectiu Eleanor naquele momento, ”que eu tenha voltado a engravidar.”

 

No entanto, foi o que aconteceu. Mais tarde, ainda a recuperar do braço fracturado, tentando esquecer o acidente e o aborto, Eleanor concluiu que se não tivesse outro filho de imediato, dentro em pouco, era possível que essa gravidez jamais viesse a concretizar-se. Pouco tempo depois disso, Claire entrou para o jardim-infantil; lan voltou a ser promovido; David deixou a polícia e ficou desempregado, passando cada vez mais tempo em casa da irmã. A pouco e pouco, a vida deles começou a voltar ao normal. Toda a gente dizia a Eleanor: ”Não penses nisso, não tentes apressar as coisas. Tens muito tempo. Primeiro tens de te pôr boa.”

 

Naquele momento, porém, sabia que todos tinham estado muito enganados.

 

- Nessa altura, eu era muito influenciável - proferiu em voz alta na cozinha em silêncio. Mas a perspectiva de aos quarenta anos vir a ter outra criança, sem ser casada e de um homem como Gavin... isso não seria nada bom... para Claire, para ela própria. - És uma idiota! - invectivou-se a si mesma como se existissem duas Eleanores, uma sensata que não aprovava a sua atitude e a outra tola e fraca.

 

Apesar disso, pela primeira vez na sua vida, sentiu um baque de nostalgia, um sentimento que lhe parecia ser a outra face do desejo sexual: o de voltar a engravidar, mau grado as possíveis consequências, num desafio a toda a sensatez. ”Isto está a acontecer porque sinto de maneira diferente em relação ao Gavin”, concluiu em pensamento, ”porque, com ele, a relação sexual é diferente.” Nunca lhe passara pela cabeça que o medo e a esperança pudessem coexistir, formando uma simbiose, em simultâneo, com uma intensidade em partes iguais.

 

No entanto, aquele momento passou, tendo-lhe deixado apenas uma sensação de receio.

 

Em finais de Abril, Marion e Eleanor enviaram a David cartões de parabéns pelo seu aniversário, prometendo-lhe presentes para quando as visitasse. Mas ele não foi ver as irmãs.

 

Ao pai coube a tarefa de ser o testamenteiro de Alice. Ajudou Mamie a tratar dos aspectos burocráticos do testamento, do seguro de vida, dos assuntos que decorriam de um falecimento. Todavia, John Cairns mostrava-se reservado quanto àquele assunto. Se Marion não estivesse prestes a ir para o hospital, para o seu último tratamento de quimioterapia, e se Eleanor não passasse os seus dias com Gavin, era possível que as duas filhas lhe tivessem feito mais perguntas. Marion desconfiava que havia qualquer coisa que o pai não lhes dizia. No entanto, Alice deixara seis mil libras a cada uma. Durante toda a sua vida de trabalho, ela tivera o cuidado de poupar, pelo que quando morreu tinha amealhado algum dinheiro.

 

- E também deixou acções - informou o pai, falando com as duas filhas -, por isso, vai levar algum tempo até que tudo esteja resolvido.

 

- Isso quer dizer que a Mamie ficará bem - insistiu Marion. O pai não lhe respondera directamente.

 

- Estou a partir do princípio - dissera ela a Eleanor enquanto seguiam de automóvel para Inverness - de que o David receberá a mesma quota-parte. Ainda me custa a acreditar... Seis mil libras, Sem dúvida que este dinheiro me fará muito jeito. Tenho de reconhecer que nos dará muito jeito.

 

- Estou de acordo - concordou Eleanor, assolada por um sentimento de culpa por estar tão satisfeita por ter herdado aquele dinheiro.

 

- Ele ainda mantém aquele emprego, seja lá o que for? - perguntou Marion.

 

- O David? Acho que sim.

 

- Ele tinha obrigação de ter ido ao funeral - acrescentou Marion, o que dizia uma vez mais. Nos últimos tempos não havia muita coisa a que ela dedicasse as poucas energias que lhe restavam, mas a situação mudava de figura com relação aos assuntos de fàmília.

 

- Sabes o que é que eu queria? - perguntou a Eleanor quando viraram para o parque de estacionamento.

 

- Não teres de fazer mais tratamentos.

 

- Ora, disso já nem se fala. É claro que sim. Mas estava a referir-me... De que coisas, ditas normais, é que te parece que eu sinto falta realmente?

 

- De dar aulas? - sugeriu Eleanor.

 

- Nem por isso, não sinto tanta falta como pensei que sentiria. Sabes bem que eu sou uma mulher muito caseira.

 

- Então, só pode ser da jardinagem.

 

- Sim, essa é uma das coisas. Tratar do jardim, fazer bolos... Devo dizer que não me ralei com o jardim até o tempo ter começado a aquecer. Agora vejo as ervas que entretanto cresceram; é tão frustrante não ter forças para as arrancar. Costumo sentar-me naquele banquinho que tenho e inclino-me para os canteiros, tentando tirá-las com o sacho. Mas não vale a pena... Eu devia revolver a terra para semear as flores.

 

Eleanor estacionou num lugar vago e desligou o motor.

 

- Hás-de voltar a fazer isso. Decerto que o jardim conseguirá sobreviver a uma Primavera sem os teus cuidados. Pede ao Ross que sache a terra. Se quiseres, eu mesmo posso ir a tua casa para tentar tratar do jardim.

 

- Se eu morresse - proferiu Marion inesperadamente -, os meus narcisos amarelos, as túlipas e os bolbos de corola dupla que plantei no ano passado por baixo das macieiras... continuariam a florescer na próxima Primavera, não achas?

 

Eleanor ficou sem saber o que dizer. Aquilo era bom ou mau? Começou a pensar no jardim que Mamie e Alice tinham sempre muito bem cuidado, as roseiras em que punham fertilizante e podavam com regularidade, tendo o cuidado de cortar as folhas e flores secas, a cor-de-rosa junto ao portão, a que Mamie sempre dissera chamar-se Maiden’s Blush devido ao tom de um rosado delicado. Com certeza que já teriam recomeçado a florescer. Não obstante a ausência de Alice.

 

- Desculpa - continuou Marion. - Não tive a intenção de ser mórbida. Está na hora de me despachar.

 

- Seja como for, hoje nem sequer está um dia muito bom para a jardinagem - comentou Eleanor quando já atravessavam o parque de estacionamento. Ergueu o olhar para o firmamento encoberto e abotoou o casaco, sentindo frio. Não havia nada que as abrigasse do vento que açoitava o espaço aberto onde os carros estavam estacionados, como que expostos e desamparados.

 

As portas de vidro abriram-se automaticamente quando elas se aproximaram e Eleanor entrou com Marion.

 

- Vais ver que hás-de ficar boa - disse, persuasiva. - Não vais morrer e nem sequer quero que penses nisso; estás a ouvir?

 

- Prometo fazer o meu melhor - retrucou Marion, esboçando um sorriso.

 

- Isto não há-de durar para sempre. - Mas era como se ela implorasse a Marion que acreditasse nisso, ao invés de lhe instilar confiança.

 

Fugazmente, Marion tocou no braço da irmã.

 

- Até amanhã - despediu-se antes de lhe virar costas, começando a afastar-se no interior do hospital.

 

Durante a tarde, Eleanor trabalhou no jardim da sua pequena vivenda, tendo sentido vontade de fazer qualquer coisa que lhe exigisse esforço físico e ao ar livre, a despeito do tempo pouco convidativo. Claire ligou às quatro e meia da tarde.

 

- Estou em casa da tia Marion - informou a garota. A mãe pode vir buscar-me depois da Neighboursl

 

- Tu só sabes fazer disparates, Claire. Porque é que não vieste para casa na camioneta da escola?

 

-- Decidi vir com a Eilidh. Mas, seja como for, eu teria de ter ido a pé pela alameda e a minha mochila está superpesada. A mãe não se lembra que eu hoje tive Educação Física e corta-mato?

 

- De acordo - anuiu Eleanor com um suspiro. - Até logo.

- Voltou a sair para o jardim, mas a interrupção fez com que perdesse o interesse na jardinagem. Se tivesse sabido que a filha chegaria tarde, poderia ter passado toda a tarde com Gavin. Quando o deixara às três e meia ele fora a Inverness. Eleanor guardou o sacho e a pá na arrecadação, deitando o saco com as folhas secas e as ramagens que podara no contentor do lixo. Em seguida, foi para dentro a fim de mudar de roupa.

 

A última vez que Gavin estivera em casa, no final das férias da Páscoa, ela passou quase toda a primeira semana num terror crescente, pensando que talvez estivesse grávida.

 

- O que é que se passa? - perguntava ele constantemente, mas sem nunca obter uma resposta satisfatória. Porém, dias depois, verificou que estava tudo em ordem: viu o sangue que foi acompanhado por uma imensa sensação de alívio. Nessa altura, estava em condições de lhe poder dizer o que a atormentara.

 

- Deus do céu! - exclamou ele - Isso teria sido uma complicação inesperada.

 

Eleanor, que durante mais de uma semana andara irritada consigo própria, ao ouvir aquilo assestou a sua cólera nele.

 

- Eu tentei avisar-te, quanto à falta de cuidado.

 

- A mim?! - perguntou ele, atónito.

 

- Se te agrada mais, então estou a referir-me a nós dois.

 

- São precisos dois, Eleanor - ripostou ele, afastando-se e franzindo o sobrolho, com uma expressão carregada e distante. Eleanor voltou a sentir um aperto no coração, invadida por um outro género de alívio. De início, sentira traços de uma espécie de... o quê, desilusão? Algo nesses moldes. Mas não agora. Agira disparatadamente ao pensar que ele alguma vez quisesse uma criança, que isso seria como um laço de união entre os dois.

 

Gavin sentara-se na cama, olhando pela janela do quarto, deixando ver o perfil que se recortava contra a luminosidade, de traços acentuados e sem a sombra de um sorriso.

 

- Muito bem - acrescentou ele, afastando a roupa da cama.

- É melhor levantar-me. Queres uma chávena de chá antes de te ires embora? - Vestindo-se com rapidez, deixou-a sozinha, desaparecendo na cozinha. Eleanor ouvia-o a encher a chaleira, o entrechocar das canecas enquanto ele assobiava. Deixou-se ficar deitada na cama durante mais algum tempo, sentindo que arrefecia. Pouco depois, pôs-se a pé.

 

Todavia, não teve o bom senso - ou a experiência - que lhe daria a saber que por agora devia deixar aquele assunto em paz.

 

- O que é que tu terias feito - perguntou-lhe -, se, efectivamente, eu estivesse grávida?

 

- Mas não estás! - ripostou Gavin. - Consequentemente, essa questão nem sequer se põe.

 

- Mas...

 

- Temos de passar a ter mais cuidado - continuou ele. Não podemos dar-nos ao luxo de correr mais riscos.

 

- Não - retorquiu Eleanor. - Pelo menos, eu tenciono fazer qualquer coisa a esse respeito. Amanhã vou ao médico.

 

- Oh! - exclamou ele com uma expressão de perplexidade. -- Isso mesmo. O que... - Ela começou a explicar-lhe e ambos abordaram o assunto do controlo de natalidade, em termos muito corteses, durante alguns minutos.

 

Eleanor andara a adiar tomar qualquer medida até ao momento.

 

Conhecia os médicos bem de mais; era-lhe impossível falar com Fergus ou Andrew. Contudo, conseguira reunir a coragem suficiente para ir consultar Mary Mackay, a médica de Marion.

 

- Essa perspectiva deixa-te horrorizado, não é verdade? - perguntou ela a Gavin, pousando a caneca sem sequer ter provado o chá. - Pensei que tu, pelo menos, mostrarias alguma compreensão.

- Se não tivesse cuidado, as lágrimas começariam a correr-lhe pelas faces. ”Por que razão estou tão sozinha?”, perguntou-se em pensamento. ”Não sou capaz de aguentar esta situação.” Sentia-se irritada com lan por este ter morrido, por a ter deixado entregue à sua sorte. Aquela não era a vida que tinha esperado vir a ter. E, aos quarenta anos, querer que um homem não a abandonasse devido a uma gravidez, suplicando-lhe que ficasse... Eleanor estremeceu, enclavinhando as mãos em volta da caneca, não olhando mais para ele.

 

- Pois bem, se tivesse acontecido, teríamos de encarar a situação. Seríamos obrigados a fazer qualquer coisa - admitiu Gavin. Pouco depois, acrescentou: - Peço desculpa, não estou a lidar muito bem com este problema. Olha uma coisa... não tem nada a ver contigo, ou com os meus sentimentos para contigo. - Estendeu a mão, inclinando-lhe o rosto ao de leve, de modo a que os olhos dela fossem ao encontro dos seus. - A minha ex-mulher... só me casei porque ela engravidou. Foi um grande erro. Jurei que nunca mais voltaria a repetir o mesmo erro. Quero que fiques ciente, Eleanor, que jamais voltarei a casar.

 

Sentindo-se incapaz de suportar aquilo, Eleanor começou a chorar.

 

- Oh, meu Deus, desculpa. Vem aqui. Está tudo bem, vê se te acalmas. - Abraçou-a de uma maneira que o rosto dela ficou oculto na camisola de lã grossa e áspera, sentindo as mãos cálidas dele na nuca, nos ombros.

 

- Vou ter de ir para Aberdeen um dia mais cedo - informou Gavin mais tarde -, um dia antes de sair para o mar. Combinei falar com uma pessoa da companhia petrolífera onde trabalho. A respeito de um emprego em terra.

 

- E é isso que tu queres? - perguntou Eleanor.

 

- Sim. E apesar do que eu disse com relação ao casamento... bem vês, nós já não somos crianças. Seja como for, podíamos começar a viver juntos. Não te parece? Quanto mais não seja, para vermos como é que as coisas corriam.

 

Ela sentia-se confusa; a fé que depositava nele havia sido abalada. Mas, apesar desse facto, sim, era isso o que ela queria. ”Uma vida a que pudesse chamar minha”, pensou Eleanor, ”e alguém que se interessasse pelo meu bem-estar.”

 

Este episódio tivera lugar há pouco mais de duas semanas. Agora, ele acabara de regressar a casa e ela mostrava-se cheia de esperança. Eles sentiam-se bem um com o outro, mantinham uma relação muito íntima, quer na cama quer fora desta.

 

- O emprego de que te falei parece quase certo - informou Gavin quando entrou no seu automóvel naquela tarde. - Mas podemos falar deste assunto mais tarde.

 

Enquanto conduzia em direcção a casa de Marion, para ir buscar Claire, Eleanor ia a pensar no assunto, começando a acreditar que tudo acabaria por se resolver a seu contento. Gavin amá-la-ia, estariam juntos e Marion haveria de melhorar.

 

Claire estava no andar de cima, no quarto de Eilidh, a ver televisão com a prima. Apesar disso, continuavam a falar, à espera da transmissão da série Neighbours, sem se mostrarem interessadas no programa que estava a dar entretanto. Eilidh sentava-se na sua cama, enquanto Claire optara pelo chão, onde fazia um quebra-cabeças para crianças que encontrara dentro de uma caixa debaixo da cama.

 

- Ela pensa que eu não sei - dizia Claire. Falavam de Gavin.

 

- O quê? Que eles andam a fazer aquilo? E andam?

 

- Bem... não há dúvida de que ela vai a casa dele e nessas alturas costuma dizer-me: ”Não me demoro mais de meia hora.” Mas a meia hora transforma-se sempre em duas horas] Quando volta para casa, vem sempre muito corada, como se estivesse afogueada.

 

- Mas tu disseste que ela ia a casa dele da farte da tarde, não foi?

 

- Eu sei. Eles já estão muito velhos para isso, não achas? A minha mãe tem quarenta anos e ele é mais velho do que ela. Pelo menos, na minha opinião, parece mais velho. Ela está perdida de amores por ele. Eu costumava pensar que as pessoas dessa idade não ficavam assim. Só as pessoas da nossa idade. Mas estava enganada.

 

- Talvez ela venha a casar com ele - alvitrou Eilidh.

 

- Talvez - admitiu Claire fazendo uma careta. Pegou numa revista que começou a folhear.

 

- E se ela casasse com ele, importavas-te?

 

- Não sei. Ele passa muito tempo fora, nas plataformas petrolíferas.

 

Portanto, deduzo que não seria obrigada a vê-lo com muita frequência. Mas acho que não faria muito sentido, eles passarem a viver na mesma casa. A nossa é tão pequena, assim como a dele. Em qualquer dos casos, e para todos os efeitos, eles vivem um ao lado do outro; portanto, por que motivo é que havíamos de querer mudar a mobília toda dele para a nossa casa? Ou a nossa para a dele?

 

- Eles podiam comprar outra casa, uma que fosse maior sugeriu Eilidh. - Mas, olha lá, seria um pouco embaraçoso eles continuarem a fazer aquilo se vivessem todos na mesma casa.

 

- Oh, meu Deus, seria asqueroso! - ripostou Claire, atirando a revista para o chão. - Que nojo! - acrescentou, começando a rir-se. - Eu passaria a vê-lo de pijama, não é? Oh, meu Deus, isso é tão nojento!

 

Ambas desataram a rir, mas, pouco depois, Eilidh retomou a conversa, afivelando de novo uma expressão de austeridade.

 

- E quanto ao teu pai? Não te sentirias mal por causa dele, caso a tia Eleanor decidisse casar-se com outro homem?

 

- Bem, o Gavin não poderia ser como o meu pai, não te parece? De maneira nenhuma. - Claire tentou visualizar as feições do pai, mas tudo o que conseguia ver era Gavin com um sorriso de orelha a orelha, com os seus cabelos avermelhados. - Às vezes nem sequer sou capaz de me recordar do meu pai. Isto é, não é bem assim, lembro-me dele, mas não sou capaz de me recordar das suas feições ou da voz. Não, a sério que não. Só quando olho para as fotografias é que volto a lembrar-me bem dele.

 

- Acreditas no céu? - perguntou Eilidh.

 

- Sim, mais ou menos - respondeu Claire, tentando imaginar um lugar onde as pessoas se sentissem permanentemente felizes, cheio de flores, supunha ela. Quente e nublado. Por onde o pai andava de um lado para o outro sem destino certo, ou talvez, mas menos improvável, a avó e a tia Alice.

 

- Eu não acredito - declarou Eilidh peremptória. - Nem sequer acredito em Deus. O Ross também não acredita. Mas a Kirsty acredita. Ela continua a ir à catequese.

 

Claire sentou-se sobre os calcanhares, sentindo-se um pouco embatocada. Nunca lhe passara pela cabeça que se pudesse fazer aquele tipo de escolha, em que uma pessoa se limitasse a dizer, com toda a determinação Não acredito. Era uma ideia que a atemorizava ao mesmo tempo que a atraía. Era como o abrir de uma porta atrás da qual não houvesse nada, apenas um espaço vazio, sem sequer ter chão. Aquilo deixava-a entontecida.

 

- Mas não digas nada à minha mãe - advertiu Eilidh. Talvez ela fique preocupada por causa disso.

 

- Os Neighbours já começaram? - perguntou Kirsty, abrindo a porta do quarto.

 

- Dentro de um minuto.

Kirsty entrou, sentando-se no chão ao lado de Claire.

 

- Esse quebra-cabeças é meu - disse ela.

 

- Primeiro foi do Ross e depois meu - recordou-lhe Eilidh.

 

- Sim, mas depois passou para mim, e como não há mais ninguém na família que seja mais novo do que eu, continua a ser meu

- reiterou ela, desfazendo a imagem e recomeçando a juntar as peças. - Eu costumava pensar que este era muito difícil, quando era pequenina. - Com toda a perícia, começou a juntar as peças. A tia Eleanor vem buscar-te?

 

- Sim, à hora do lanche.

 

- Podemos perguntar-lhe? Da última vez esqueci-me.

 

- O quê?

 

- Acerca da ”árvore dos desejos”. Ela disse que podíamos ir lá para pendurar qualquer coisa pela minha mãe.

 

- Está bem - anuiu Claire.

 

Naquele momento teve início o tema musical da abertura da série televisiva e as três garotas apressaram-se a sentar-se na cama de Eilidh para ver o programa.

 

- Tem cuidado, Kirsty. Não podes sentar-te no chão? Em cima da cama não há espaço para ti.

 

- Não, se for para o chão fico com o pescoço dorido por ter de olhar para cima.

 

Embirraram por mais uns momentos, até que se aquietaram, ficando em silêncio.

 

Kirsty, porém, que dera pela chegada de Eleanor mais tarde, foi a primeira a levantar-se da cama e a descer as escadas.

 

- Tia Eleanor, podemos ir à ”árvore dos desejos”? Eleanor ainda tinha o bocado de renda dentro do porta-luvas do seu carro, embrulhado no papel de seda.

 

- Muito bem - anuiu por fim -, isto é, se o vosso pai estiver de acordo. Podíamos ir logo a seguir ao lanche.

 

- E depois podemos ir visitar a avozinha?

 

- Não, porque, se fôssemos a casa dela, fazia-se muito tarde. Se quiseres fazer isso, teremos de combinar para outro dia.

 

- Não, vamos hoje - insistiu Kirsty, que não queria estar com mais demoras.

 

Mais tarde, Eleanor deixou-se ficar junto do automóvel enquanto Kirsty, com uma atitude cheia de solenidade, amarrava o bocado de renda a um galho, com Claire e Eilidh a darem-lhe instruções. As vozes das garotas sobrepunham-se ao marulhar suave da água da nascente na pedra. Pela primeira vez, Eleanor observou atentamente o que as pessoas haviam pendurado na árvore ao longo dos anos. Alguns dos pedaços de tecido não passavam de trapos arrancados a panos de cozinha aos quadrados azuis; também havia outros que não era difícil ver que tinham pertencido a toda uma diversidade de peças de roupa. Houvera alguém que até pendurara um par de sapatos de ténis em muito mau estado ao fundo da árvore. Os bocados de tecido amarrados mais recentemente ainda tinham as cores originais, agitando-se suavemente ao sabor da brisa. Os trapos mais antigos, tesos e sem se agitarem, eram de um acinzentado uniforme. Eleanor sentiu um aperto de consternação quando pensou que fazer votos pelas melhoras de Marion pudesse ter alguma coisa a ver com aquele lugar... ou que estivesse relacionado com o pedaço de renda que viera de alguém que havia morrido há muito tempo e cuja morte causara tanta perturbação à mãe e ao pai. Apesar daqueles pensamentos, era uma maneira de se ver livre daquela coisa de uma vez por todas.

 

- Trata de arranjar um lugar onde possas amarrá-la longe das outras coisas - insistia Eilidh. - Não a prendas ao lado de nenhum desses trapos todos sujos.

 

Por fim, a renda ficou pendurada; tinha um aspecto limpo e de ter sido colocada na árvore há pouco tempo, confrangedoramente pequena e isolada.

 

- Sinto-me mal por ter de a deixar aqui - disse Claire. Parece bonita de mais. Onde é que arranjou esta renda, mãe?

 

- Era da tua tia Marion. Ela já a tinha há muito tempo - replicou Eleanor.

 

Kirsty retrocedeu alguns passos, ficando a olhar para a árvore.

 

- O nosso bocado também vai ficar rijo e sujo como os outros? - perguntou a garota.

 

- Mais cedo ou mais tarde.

 

- Isso significa que o desejo foi completado, que se realizou, ou coisa assim - explicou Eilidh.

 

- De verdade? - Kirsty olhou para Eleanor como que à espera que a tia confirmasse as palavras da irmã.

 

- Não tenho bem a certeza. Pediste o teu desejo?

 

- Não, agora é que estou a pedir - respondeu Kirsty fechando os olhos com força e mantendo os punhos cerrados, concentrada a pedir o seu desejo.

 

Eleanor, que já se encaminhava para o carro, fez votos pelas melhoras de Marion, tentando não pedir um desejo para si própria. Pensou que para isso precisaria de outra coisa qualquer, não um pedaço de renda de uma cigana.

 

Nessa noite choveu e ela pensou no pedaço de renda de onde a água estaria a pingar para o solo mais abaixo. Quando se levantou para correr os cortinados, fechando a noite chuvosa lá fora, o telefone começou a tocar. Esperava que fosse Gavin, o qual, muitas vezes, telefonava a avisá-la de que iria a sua casa, perguntando se não haveria problema em que fosse e se ela queria que ele levasse uma garrafa de vinho. Mas era o pai.

 

- Eleanor, a Marion não está em casa; o Fergus disse-me que é a noite que ela passa no hospital. Mas eu disse-lhe que eu próprio falaria contigo, que não valia a pena estar a incomodar a tua irmã. Queria saber se podias vir até cá por um dia.

 

- O que é que se passa? - Seria a Mamie? Outra morte. Não se achava capaz de aguentar outro falecimento na família.

 

- A Mamie deu uma queda. Caiu pelas escadas abaixo e fracturou a bacia. Está internada em Foresterhill.

 

- Oh, não! Mas ela vai ficar boa?

 

- Os médicos vão ter de lhe pôr um parafuso. Como seria de esperar, está muito abalada. Mas eles dizem que ela ficará boa da fractura.

 

- Deus nos valha. Como é que isso aconteceu? - Teria ela ficado caída no vestíbulo, cheia de dores, à espera que alguém fosse a sua casa? Eleanor ficou perturbada ao imaginar aquela situação, sentindo um aperto na garganta.

 

- Apesar de tudo, ela teve muita sorte, porque quando deu o trambolhão tombou o telefone, o que lhe permitiu chegar a ele para chamar uma ambulância.

 

- Não sei se se poderá dizer que isso foi muita sorte - protestou Eleanor -, mas estou contente por ela não ter sido obrigada a ficar sozinha durante muito tempo. - A verdade é que não queria ir a Aberdeen. Gavin ainda ficaria em casa por mais uma semana e meia. Contudo, era evidente que não lhe restava qualquer alternativa.

 

- O pai quer que eu a vá visitar?

 

- Bem, tenho a certeza de que ela te ficaria muito agradecida por isso; mas a questão, Eleanor, tem a ver com o motivo por que ela deu a queda: ela estava a passar revista às coisas da Alice, o que, diga-se de passagem, já não era sem tempo; disse-me que tinha andado a adiar. Mas, seja como for, ela preparava-se para descer as escadas com uma braçada de roupa, que não lhe servia para nada, uma vez que a Alice era um pau de virar tripas, e houve qualquer coisa que escorregou para o chão e em que ela tropeçou, vindo aos trambolhões pelos degraus abaixo.

 

- Portanto, isso quer dizer que ela não acabou de escolher as roupas; é isso?

 

- Bem... não se trata somente das roupas. Ela quer saber se... com o que eu também concordo... uma vez que isso faria com que ela ficasse mais tranquila, se tu te importarias de acabar o que ela não pôde fazer, Eleanor? Escolher o que a Alice deixou, as roupas, a papelada e sabe-se lá que mais. Não é tarefa para um homem.

 

- Mas a Mamie...

 

- A Mamie disse-me para eu pedir às raparigas. Diz para vocês ficarem com o que quiserem. A Alice tinha um medalhão muito bonito e um colar de pérolas; ela quer que tu e a Marion fiquem com essas peças. Não há muito mais... A Alice não era grande apreciadora de jóias. Mas, seja como for, eu prometi à Mamie que te abordaria nesse sentido. Ela estava um bocado agitada por causa deste assunto.

 

- Não me parece que a Marion já esteja em condições para uma tarefa dessas. Talvez dentro de umas duas semanas - sugeriu Eleanor, sem dizer que, além do mais, Gavin já se teria ido embora nessa altura, como era evidente.

 

- É melhor tratar do assunto enquanto a Mamie estiver no hospital - retorquiu o pai, insistente. - Não me é difícil ver que esta questão está a perturbá-la.

 

- Está bem - cedeu Eleanor, tendo-se decidido. - Eu própria irei a casa dela e, se houver alguma coisa que eu não saiba que destino lhe dar, pode muito bem ficar à espera que a Mamie tenha alta do hospital. O que é que o pai acha?

 

- Sim, isso seria magnífico. E uma preocupação a menos que me sai do pensamento.

 

- Dê beijinhos meus à tia Mamie.

 

- Amanhã de manhã os médicos vão operá-la. Ela ficará inconsciente durante o resto do dia, mas, mesmo assim, tenciono ir visitá-la ao fim da tarde.

 

- Eu telefono-lhe amanhã - prometeu Eleanor. - Tenho de ver com quem é que vou deixar a Claire, mas logo que me for possível vou para aí.

 

Fergus foi buscar Marion ao hospital no dia seguinte. Quando Eleanor passou por casa da irmã para a ver, ao princípio da noite, deparou com uma Marion deprimida, a descansar, mas satisfeita por a ver.

 

- A Kirsty disse-me que foram pendurar o bocado de renda na Clootie Well.

 

- Ela estava muito empenhada em fazer isso.

 

- Sei que sim. Obrigada.

 

- Ouve, aconteceu uma coisa - acrescentou Eleanor, explicando-lhe o que sucedera a Mamie.

 

- E isso não pode esperar uns dois dias? - perguntou Marion. - Eu gostaria de ir contigo. Os primeiros dias depois do tratamento... são os piores. Além do mais, tenho aftas outra vez, ao que se acrescenta uma nova colecção de ulcerações na boca. Estou a sentir-me conspurcada, a sério que estou. Graças a Deus que este tormento já acabou. Pelo menos, espero bem que sim.

 

- Há-de acabar.

 

- Importas-te se eu for contigo?

 

- Importar-me? Adoraria que pudesses vir. Não hei-de saber o que fazer com metade da tralha, para não mencionar que seria horrível ter de escolher tudo sem a ajuda de ninguém. Mas o pai deixou bem claro que quer que isso seja feito enquanto a Mamie estiver no hospital. - Eleanor sentiu-se mais animada ao pensar que Marion iria consigo. - Eu conduzo e tudo o mais. Podemos dormir uma noite em Pitcairn e voltar no dia seguinte.

 

- Talvez durante o fim-de-semana? - sugeriu Marion. Claire, porém, dormiria fora pelo menos uma noite durante o fim-de-semana, noite que ela queria passar com Gavin.

 

- E que tal se deixássemos a viagem para segunda ou terça-feira? Terias mais tempo para te recompores. Não sei por quanto tempo é que a Mamie ficará internada, mas acho que, no mínimo, será uma semana, não te parece?

 

E foi assim que tudo se passou. Eleanor combinou as coisas de maneira a que Claire ficasse em casa de Sarah durante a sua ausência, enquanto Fergus disse que tiraria um dia de folga para poder ficar em casa. As duas irmãs combinaram que partiriam na terça-feira de manhã, planeando regressar na tarde de quarta-feira.

 

Juntas, as duas haviam feito a viagem até Aberdeen em muitas ocasiões e durante os últimos anos nem sempre nas circunstâncias mais felizes, parecia a Marion. Claro que não poderiam saber que nesse regresso à casa paterna tudo lhes pareceria diferente; até mesmo a paisagem estaria mudada à luz de novos conhecimentos que iriam adquirir. O mundo dar-lhes-ia a impressão de estar diferente porque, de facto, teria mudado e sido alterado para sempre.

 

Todas as perguntas que os pais lhe faziam eram invariavelmente a respeito da escola. Sempre sobre a escola. Os exames e a ida para a universidade. Marion estava prestes a acabar o seu curso universitário, pelo que no próximo ano entraria no estágio de formação. Por seu lado, Eleanor andava no primeiro ano da faculdade, tendo optado por Inglês e Psicologia. As duas continuavam a viver em casa dos pais, se bem que por vezes pernoitassem em Aberdeen, em casa das tias ou, com mais frequência, a dormir no chão de algum apartamento partilhado por outras estudantes. Marion oficializaria o seu noivado no próximo Natal. A mãe dizia que ela parecia estar muito bem encaminhada. Aprovava a escolha da filha, Fergus, uma vez que ele se formaria em Medicina. Quanto a si, Eleanor desistira da ideia disparatada de frequentar um curso de Belas-Artes. Talvez viesse a optar também por uma carreira de professora. Assim, o casal Cairns não tinha razões para se preocupar com o futuro das filhas.

 

Ele supunha que também continuaria a estudar. Todavia, teria de ir para outro lugar qualquer - Edimburgo ou Saint Andrews. A verdade é que não poderia continuar a viver em casa dos pais. O único problema era que primeiro teria de passar nos exames de admissão à faculdade. Estava-se quase em Maio e ele ainda não estudara nada com vista a esse objectivo.

 

Durante os períodos de férias e fins-de-semana, trabalhava na Mains, a exemplo do que fazia desde os seus catorze anos. Às vezes tinha de carregar fardos de feno ou de sair para os campos com o tractor; verdade fosse dita, estava convencido de que se sentiria feliz durante o resto da sua vida só a fazer aquilo. Tudo o que era preciso era meter mãos à obra: sentir os músculos distendidos e doridos devido ao esforço físico, suportar o vento gélido ou o sol que escaldava nas costas e no pescoço, sem ter de pensar em mais nada.

 

Detestava ter de ir à escola. Tinha a impressão de que naquele ano ficara demasiado crescido para caber na carteira, sem espaço para poder estender as pernas sem que fossem bater na mochila de algum dos seus colegas ou então sem arrastar a carteira pelo soalho.

 

Andava sempre metido em sarilhos, nada de muito grave, uma vez que não eram problemas de maior. A realidade é que eles andavam sempre a atazaná-lo, não lhe dando um momento de paz. Porque se atrasava, porque os trabalhos da escola não eram feitos com cuidado (ou, muito simplesmente, não eram feitos de todo); diziam que ele não prestava atenção aos estudos, que perturbava as aulas. Crescera de mais, sempre muito inquieto, grande de mais para andar naquela escola. Havia rapazes com quem ele crescera que naquele momento já tinham empregos, tendo começado a ganhar o seu dinheiro. ”Olha para o Stan - é aprendiz do pai, anda a aprender o ofício de marceneiro, a poupar dinheiro para poder comprar uma mota.” Naquele momento, o amigo já arranjara uma namorada certa, uma loura pequenina que se chamava Irene, toda muito espevitada e possessiva. Mas Stan também se sentia inquieto. O que David sabia: ultimamente, os dois tinham-se encontrado muitas vezes.

 

Quando começaram a estudar na academia haviam ficado em turmas diferentes. Desde o princípio que Stan sentira aversão pela escola, mostrando-se descarado para com os professores e faltando às aulas. Todavia, a maior parte das vezes conseguia sair-se airosamente. Era um rapaz muito popular: difícil de disciplinar, mas era impossível não se gostar dele. Durante a escola primária, David fora sempre o chefe, o que tinha as ideias e planeava os esquemas. Mas, agora, Stanley conseguira reunir à sua volta um tipo diverso de pessoas; tinha os seus próprios amigalhaços. David, determinado a enveredar por uma carreira académica, indo para a universidade, havia sido excluído desse grupo. Ao princípio, ele e Stanley continuavam a passar os sábados na companhia um do outro. No entanto, em finais do primeiro ano, tinham-se afastado.

 

Logo a seguir ao seu décimo sétimo aniversário, David decidiu passar um dia inteiro sem ir à escola. Claro que não era a primeira vez que faltava às aulas; não havia ninguém que não fizesse o mesmo de tempos a tempos. Mas apenas aquando do último dia do semestre ou para faltar às duas horas de Matemática ao fim da tarde de sexta-feira. Toda a gente fazia o mesmo - embora não o fizessem amiúde, apenas uma ou duas vezes ao longo do ano. Porém, aquilo era diferente. Ele saíra da camioneta da escola, encaminhando-se para os portões desta, juntamente com os outros alunos. Mas, chegado aí, detivera-se. Os colegas passaram por ele, atravessando o recreio em direcção à entrada principal que era reservada aos alunos.

 

Continuou no mesmo lugar, a olhar fixamente para o edifício da escola. lan Johnson virou-se quando deparou com ele, gritando-lhe qualquer coisa.

 

- Sim, dentro de um minuto - respondeu-lhe David também aos gritos. Em seguida, todos desapareceram no interior da escola, após o que se ouviu o toque da sineta.

 

Tinha estado a chover, uma chuva leve e miudinha de Abril. A escola recomeçara havia duas semanas, depois das férias da Páscoa, mas o tempo estava menos primaveril do que nunca. Agora, David apercebeu-se de que parara de chover. Acima dele, as nuvens começaram a apartar-se, dando passagem aos raios solares que logo a seguir desapareciam para depois voltarem a aparecer; e então, subitamente, começou a fazer calor e o céu ficou de um azul resplandecente sem uma única nuvem; muito próximo dele, começou a escutar os trinados límpidos de um melro que parecia não se cansar do seu chilrear, pousado bem ao alto, numa árvore que tinha as suas raízes nos terrenos da escola. As folhas haviam acabado de desabrochar, ostentando um verde profundo com o brilho da folhagem nova.

 

David começou a pensar no cheiro cediço e a mofo que pairava nas salas de aulas, o som monótono das vozes, o arrastar de carteiras e as muitas horas passadas num espaço confinado, a fazer coisas enfadonhas que ele odiava. Quando virou costas à escola, voltando as ruas laterais da vila, até ter chegado de novo a um caminho rural, seguindo em direcção a casa, não fazia a mínima ideia daquilo que iria fazer. Vestido com o uniforme escolar, de camisa, gravata e casaco, dava muito nas vistas para poder andar a passear-se pelas ruas de Inverurie. Decidiu parar na berma do caminho para despir o casaco e tirar a gravata, que enfiou dentro da mochila. Em seguida, desabotoou o botão do colarinho da camisa e arregaçou as mangas. Naquele momento, o céu era uma imensidão de azul e a brisa que soprava mal agitava as ervas altas que se elevavam acima da vala. Estava um dia glorioso. Olhando em seu redor, David verificou que não havia nada no caminho, após o que largou a mochila da escola na valeta. Estava seca, talvez um pouco lamacenta no fundo, mas teve o cuidado de encostar a mochila ao alto a uma pedra grande. Ajeitou as ervas de forma a ocultarem-na. Em seguida, saiu da estrada e tomou pelo caminho de uma quinta que acompanhava os campos durante cerca de dois quilómetros.

 

Continuava sem saber onde é que os seus passos o levariam.

 

Mais tarde, poderia voltar ali para recuperar a mochila, comer as suas sanduíches e pedir uma boleia a alguém que passasse por sua casa. Se alguém lhe perguntasse alguma coisa, diria que perdera a camioneta para Aberdeen. Não saberiam se ele devia estar na escola. Tinha de altura mais de um metro e oitenta, embora ainda fosse muito magro, mas já com o sombreado de uma barba que fazia com que parecesse ter mais de dezassete anos.

 

Chegado ao topo da colina, semioculta durante a maior parte do caminho por um maciço de pinheiros-bravos, deparou com a casa da quinta e demais construções. Tencionava passar ao largo, contornando os campos à sua direita e retomando o caminho que o levaria de regresso a Inverurie. Durante o primeiro semestre escolar, os alunos da academia costumavam atravessar por ali, pelo que ele conhecia bem aquela área: um território que lhe era familiar. Não tencionava entrar em Inverurie, mas sim voltar atrás pelo campo mais abaixo. Esse seria o pior trecho do percurso - uma caminhada difícil, mas se optasse por outro trajecto ficaria bastante perto da estrada, correndo o risco de ser visto por alguém que se perguntasse o que é que ele andaria a fazer por ali.

 

A pensar em tudo aquilo, chegou ao cimo da colina. Sentado em cima da grade de entrada na quinta, avistou Stanley, que fumava um cigarro. Havia mais ou menos quinze minutos que Stanley o observava, mas, porque lhe custava a ver ao longe, só naquele momento é que reconheceu a pessoa que subia pelo trilho num passo lento, apanhando mãos-cheias de ervas altas com a mão direita enquanto assobiava de mansinho.

 

Com alguma surpresa, ficaram a olhar um para o outro.

 

- Olá, por aqui? - disse Stanley. - Vieste dar um passeio?

 

- Senti vontade de esticar as pernas - respondeu David com uma expressão risonha.

 

- Fizeste gazeta?

 

- O que é que te parece?

 

- Queres um cigarro?

 

Os dois ficaram sentados na grade, a fumar.

 

- Mas diz lá... o que é que estás a fazer por aqui? - perguntou David.

 

- Ora, o meu velho foi àquela casa a falar com uma pessoa, por causa de um trabalho, pintar um sótão ou coisa assim - explicou com um encolher de ombros. - Eu disse que esperava aqui fora.

 

- E agrada-te? - inquiriu David. - Trabalhar com o teu pai?

 

- É uma chatice. Não é que me importe com o trabalho; por acaso, até gosto. Desde que ele não se meta nos copos - retorquiu Stanley, olhando David de esguelha. E quanto a ti, baldaste-te às aulas, não é verdade?

 

- É como estás a ver.

 

Ambos desataram a rir. David apagou o seu cigarro no cimo do poste da grade, esmagando o filtro até este ficar todo retorcido e desfeito.

 

- Bem vês... - acrescentou ele. - Eles estão convencidos de que eu vou para a universidade, como as minhas irmãs. Para ser um contabilista ou outra porra do género.

 

- Não é nada mau, a vida de estudante. Muita bebida, festas e mulheres à farta.

 

- Mas é uma pena que primeiro tenha de passar nos exames de admissão.

 

- Ora, sempre foste muito esperto na escola.

 

- Mas já não sou. Bem, a verdade é que os estudos deixaram de me interessar.

 

- Sim, mas as pessoas como tu... Não vais ser nenhum marceneiro, pois não? Ou um comerciante.

 

- Não há nada de mal com essas profissões - replicou David.

 

- E quanto ao teu pai... Ele não está a pensar em arranjar-te um emprego na empresa do Shanks?

 

- Nem morto eu trabalharia para esse capitalista! - respondeu David com uma expressão desdenhosa. Começou a pensar na cara bolachuda e muito avermelhada de Eddie Shanks, a maneira como o homem costumava bater nas costas dos outros, fazendo com que se ficasse a tossir, uma espécie de saudação muito característica dele. Tinha uns olhos porcinos, pequeninos, e uma mulher gorda com quem vivia numa casa muito espalhafatosa em Rubislaw Den; ela usava sempre uns brincos enormes em ouro e pérolas, as filhas andavam no Colégio Albyn, com a sua maneira de falar muito fina, tão rebuscada que por vezes os próprios pais não eram capazes de entender o que elas diziam. Não, ele jamais trabalharia na empresa de Shanks.

 

- Mas o teu pai gosta bastante dele, não gosta?

 

O pai dissera que ele era um bom patrão, que não se metia no trabalho dos seus funcionários, que nunca interferia, além de ser generoso.

 

- Esse tipo de gente só está interessado em ganhar dinheiro acrescentou David. - Esse é o único objectivo do negócio.

 

- Bem, desde que dê dinheiro - admitiu Stanley. - Isso é a única coisa que interessa à maior parte das pessoas.

 

- Portanto, é isso - atalhou David, trocista. - Vais ser um marceneiro e passarás a viver em Aberdeenshire para o resto da tua vida. - Começou a entusiasmar-se com o futuro que estava a desenhar para Stanley. - Vais casar-te com a Irene, terás dois filhos e, quem sabe, talvez o teu filho também venha a ser um marceneiro, não é? - Stanley ficou a olhar para o solo, sem lhe dar resposta, pelo que David prosseguiu: - E viverás numa casa da urbanização camarária, passarás as férias em Maiorca, nas noites de sexta-feira irás ao bar e lerás o Press and Journal, mas nunca nenhum livro... e votarás no Partido Conservador.

 

- Nunca votarei na porra dos conservadores! - ripostou Stanley, indignado.

 

- Eu sabia que isso te ia chatear muito - retorquiu David com um sorriso rasgado. - Nesse caso, só te resta votar no Partido Trabalhista - acrescentou dando uma cotovelada cúmplice a Stanley. - Mas estás a ver o que quero dizer? De uma maneira ou de outra, a tua vida ficará na mesma, não hás-de percorrer o mundo, a tua existência não fará qualquer diferença digna de nota no mundo, não mudarás seja o que for.

 

- Mas esse não será também o caso contigo? - perguntou Stanley, virando-se para o amigo com uma expressão de desafio. Tu vais mudar o mundo? David Cairns, primeiro-ministro. - Deu um empurrão com tanta força a David que este escorregou de cima da grade da entrada da quinta, pagando-lhe na mesma moeda e, de modo inexplicável, sem saberem bem como acontecera, deram consigo numa luta corpo a corpo a rebolarem pelo chão. Uma rixa de uma fúria cega em que ambos arfavam, puxando-se pelos colarinhos, dando socos e pontapés à toa.

 

- Rapazes! Que raio é que se está a passar aqui? Levantem-se já do chão, imediatamente!

 

Era o pai de Stanley, com a cabeça de fora da janela da carrinha. Devagar, os dois rapazes apartaram-se, levantando-se do chão e fitando-se com olhares de desconfiança. A camisa branca do uniforme escolar de David, assim como as calças escuras, estavam cheias de terra de um castanho-acinzentado e uma das mangas da camisa ficara rasgada na costura do ombro. Quanto a Stanley, que vestia calças de ganga e uma camisola de trabalho, não estava com um aspecto tão desalinhado.

 

- David Cairns, por que carga de água é que não estás na escola? - perguntou Jimmy Robertson saindo da carrinha.

 

Lá se iam as esperanças de David em que ninguém reparasse nele ou que se desse conta de que faltara à escola. Soltou um resmungo. Todavia, Jimmy não se mostrava particularmente interessado em obter resposta à sua pergunta.

 

- Entrem na carrinha - ordenou o homem.

 

Stanley subiu para a parte de trás, onde o pai tinha as ferramentas; David que se sentasse ao lado do pai. Durante alguns minutos, mantiveram-se em silêncio enquanto o veículo rolava pelo caminho.

 

- Estás num lindo estado, não haja dúvida! Não vale a pena levar-te para a escola, não é verdade?

 

- Não. Mas deixei a minha mochila na valeta da berma da estrada. Perto da cabina telefónica.

 

- Estou a ver.

 

- Acho melhor... ir buscá-la. - Depois desta troca de palavras, fez-se silêncio. O pai de Stanley seguia em direcção à estrada de Inverurie e quando chegou à cabina telefónica parou a carrinha, permitindo a David que fosse buscar a mochila da escola.

 

- Tenho um trabalho no outro lado de Pitcairn - disse o homem quando o garoto voltou a entrar na carrinha. - Vou deixar-te ao fundo do caminho que vai dar à tua casa.

 

- Obrigado - agradeceu David numa voz resmungada.

 

- Tanto quanto sei, para ti os exames estão à porta, não é?

 

- No mês que vem - confirmou David.

 

- Isso quer dizer que irás para longe, para a faculdade?

”Ele está a par deste assunto”, pensou David, irritado. Naquele momento, sentia-se preocupado. Tencionaria Jimmy contar aos pais o que se passara?

 

- Ele preferia arranjar um emprego - interveio Stanley, falando da parte de trás da carrinha.

 

- Ah, sim? E que tipo de trabalho é que gostavas de arranjar?

 

- Primeiro... - começou Stanley, mas, depois de ter pensado melhor, resolveu remeter-se ao silêncio.

 

- Não me importava de poder andar por aí à minha vontade, como o senhor - explicou David, sentindo-se inspirado. - Odeio ter de estar confinado à escola e não quero acabar fechado numa biblioteca ou coisa assim.

 

- Tens habilidade com as mãos, é isso?

 

- Sim - confirmou David, apesar de não fazer a mais pequena ideia se isso corresponderia à verdade.

 

- Tenho um amigo, o Ronnie Farquhar, que vive em Kintore. No próximo Outono, ele vai precisar de um rapazote jeitoso com as mãos.

 

- Ele também é marceneiro, como o senhor?

 

- Não, é canalizador. Trata de canalizações e sistemas de aquecimento central.

 

- Oh, estou a ver.

 

- Pensa nisso. É um ofício muito respeitável. Não é preciso ter estudos.

 

Estaria Jimmy a gozar com ele?

 

- Mas ele não quer ser canalizador - atalhou Stanley, metendo a colherada, mal conseguindo conter o riso que se adivinhava na sua voz. - Ele vai mudar o mundo!

 

- Pois bem, a verdade é que são precisas muitas mudanças limitou-se o pai a dizer.

 

Pararam ao fundo do caminho de acesso à Casa Pitcairn. David saiu, não se esquecendo da sua mochila.

 

- Obrigado - agradeceu. - E vou pensar... naquilo de que me falou. - ”E porque não?”, reflectia ele, colocando a mochila ao ombro e começando a percorrer o caminho até casa. Era melhor do que nada. Melhor do que estar encafuado na escola. Podia aprender um ofício. E depois, com algum dinheiro na mão, até podia tirar um ano para ir até à Europa. Talvez mesmo ao Canadá.

 

Os campos que ladeavam o caminho eram banhados pelo calor do primeiro dia quente do ano. Os raios solares filtravam-se por entre a folhagem das árvores. Os canteiros estavam bordejados de giestas e urzes; as giestas continuavam negras, mas as urzes já haviam adquirido um amarelo garrido e no ar pairava uma fragrância semelhante à do coco. Num dia como aquele, tudo parecia ser possível.

 

Quando chegou aos pilares de pedra ao fundo do caminho particular, David hesitou. O pai devia estar a trabalhar e a mãe... estaria a fazer o quê? Agora que os três já se achavam crescidos, em que é que a mãe ocupava os seus dias... Na lida da casa? Mas Ruby continuava a ir lá a casa para ajudar nas tarefas domésticas, embora agora só fosse duas vezes por semana. Havia muitos anos que os bandos de garotinhas tinham deixado de vir para as aulas de dança clássica aos sábados. E, na verdade, o pai é que tratava do jardim,

 

apesar de no Verão ela encher as floreiras com gerânios, além de colher os produtos hortícolas.

 

Talvez ela tivesse saído... David sabia que a mãe dedicava parte do seu tempo a trabalhos de voluntariado, especificamente não sabia em quê, no hospital. Num passo lento, contornou a casa. Quando dobrou a esquina, viu a mãe, que se encontrava no relvado onde estavam as cordas da roupa, com um cesto de roupa aos pés que ia estendendo. Tirou um lençol do açafate e, sem movimentos desnecessários, estendeu-o por cima do arame, esticando-o antes de o prender com as molas. Todos os seus movimentos eram comedidos e graciosos. Sem se mexer, e sustendo a respiração, David ficara a observar a mãe. Em seguida, ela estendeu uma correnteza de toalhas e fronhas na outra metade da corda. Quando acabou, baixou-se para pegar no açafate, mas, a meio caminho, mudou de ideias. Voltou a endireitar-se, erguendo os braços num gesto delicado, de modo a ficarem abertos para os lados. Usava uma blusa de manga curta, branca e com um motivo decorativo em azul, e calças cinzentas. Erguendo um pé arqueado até ao joelho, elevou-se na ponta do outro. Um dos braços descreveu um movimento em arco acima da cabeça e depois começou a deslocar-se. Fez um movimento curvilíneo e gracioso com os braços, um rodopiar do corpo, um passo de dança, um salto e ela lançou-se pelo jardim, executando uma série de movimentos alargados em pirueta. Chegada aos maciços de lilases, Faith deteve-se e deixou que o corpo descaísse, baixando os braços. Virou-se para trás. Apressadamente, David ocultou-se no outro lado da esquina da casa, de maneira a que ela não o visse.

 

Quando dava as suas aulas de balé aos sábados, os filhos tinham de se manter afastados e bem-comportados. Ele costumava sair com Stanley, percorrendo os campos ou indo até ao bosque onde ficava até à hora do jantar. Naquele momento, David encostou-se à esquina da casa, com uma respiração ofegante. Não acreditava que alguma vez tivesse visto a mãe a dançar daquela maneira. Havia aspectos que se desconheciam em relação aos pais, coisas de um passado secreto, pensamentos ocultos. Ter-se-ia a mãe arrependido de abandonar a sua dança, lamentando ter desistido para se casar e ter filhos? A novidade extraordinária que para ele era aquela ideia deixou-o extremamente abalado e imbuído de um sentimento de insegurança, receoso e, contudo, num estado de exaltação. Apercebeu-se de que se sentia orgulhoso da mãe que tinha; se bem que constrangido e desconcertado, estava orgulhoso. Ela mostrara uma aparência tão rejuvenescida, movendo-se como alguém acostumada a dançar daquele modo durante toda a sua vida, a apresentar-se num palco.

 

David voltou a colocar a mochila ao ombro, encaminhando-se para o arvoredo onde tencionava ficar até ser horas de ir para casa, como se tivesse acabado de chegar da escola.

 

Depois desse dia, as escapadelas passaram a ser mais fáceis. Descobriu que se escrevesse notas bastante concisas, sem qualquer erro ortográfico, não era difícil justificar satisfatoriamente as faltas à escola. Ninguém se dava ao trabalho de verificar a sua veracidade, caso pensassem que o aluno em questão estivera doente. A tia Alice costumava sofrer de enxaquecas que a obrigavam a ficar de cama pelo menos um dia inteiro. Apesar de haver muito tempo que esse mal não a afligia, David ainda se recordava de ouvir a mãe a dizer que a tia se tinha ”debatido” com aquele mal-estar, que tivera início há muito tempo, desde os seus dezassete anos. David decidiu que também passaria a sofrer desse mal. Só tinha de se manter muito calado na sala de aulas no dia seguinte, levando as mãos à cabeça de vez em quando.

 

As ausências passaram a ser mais frequentes. Durante a época de exames, era fácil faltar aos pontos. Como supostamente devia fazer, foi aos exames de final do curso; abria as folhas do exame ao mesmo tempo que os colegas o faziam, ficando a ouvir o riscar suave das canetas, os movimentos, os suspiros e os passos leves dos professores que fiscalizavam as provas, percorrendo as filas de carteiras. Escrevia qualquer coisa, respondendo às perguntas, supunha ele. Havia ocasiões em que ficava imobilizado durante muito tempo, a olhar fixamente para o soalho, como se estivesse a familiarizar-se com os veios das tábuas de madeira, observando atentamente o nó mesmo junto de uma perna da sua carteira.

 

- Como é que correu? - perguntavam eles. - O exame? Correu-te bem?

 

- Muito bem - respondia David -, não era muito difícil.

 

Nessa altura, a tia Alice fora internada no hospital para uma pequena cirurgia. Quando teve alta, foi convalescer para Pitcairn durante alguns dias. Era estranho vê-la sem Mamie ao seu lado, mas esta fora ao funeral da mãe de Tom que falecera com a provecta idade de noventa e cinco anos, tendo decidido prolongar a estada, aproveitando para visitar algumas das suas amigas de há muito que viviam em Northumberland. Alice não tinha o aspecto de quem estava doente. Sentava-se no jardim a ler ou ajudava o pai de David a tratar dos canteiros de flores ou a pôr estacas nas ervilhas. Os exames de final de curso de Marion estavam à porta, pelo que passava todos os serões fechada no quarto a estudar. Eleanor tinha os exames de admissão à faculdade, o que também a obrigava a dedicar-se ao estudo. A casa encontrava-se mergulhada num silêncio industrioso.

 

Quando os exames acabaram, David quase desistiu de ir à escola. Era frequente que nem sequer se desse ao trabalho de apanhar a camioneta escolar, limitando-se a esperar que o transporte escolar passasse, após o que regressava pelo mesmo caminho em direcção ao bosque. Às vezes, Martin Cleland ia ter com ele. Martin era o filho do médico e dele esperava-se que obtivesse notas excelentes nos seus exames de admissão à faculdade, o que lhe daria acesso ao curso de Medicina na Universidade de Aberdeen. Mas Martin também estava farto da escola. Era um seguidor, a exemplo do que Stanley havia sido quando ele e David tinham oito anos. No entanto, não era destemido como Stanley, mostrando-se constantemente preocupado por poder vir a ser apanhado. Por isso, em grande parte, David acabava por ficar entregue a si mesmo. Mantinha-se pelo arvoredo a ler, sendo frequente que acabasse por adormecer. Muitas vezes sentia-se aborrecido, mas fora ele próprio quem criara aquela situação, não lhe parecendo que houvesse maneira de poder inverter as coisas. Naquele ano, o tempo continuava quente e soalheiro. Se não trabalhasse na Mains todos os fins-de-semana, o que justificava o bronzeado da sua pele, era possível que esse mesmo bronzeado tivesse começado a levantar suspeitas, dado que, em princípio, ele devia ir à escola todos os dias da semana. Porém, mesmo assim, sabia que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por ser apanhado.

 

Houve um dia em que Stanley foi ter com ele. O pai tinha-se metido nos copos outra vez, dissera ele. Só na semana seguinte é que retomaria o trabalho.

 

- Não percebo porque é que te escondes no bosque comentou Stanley. - De que é que isso te serve? Só tens de lhes dizer que não queres continuar a ir à escola.

 

- Em princípio, devo continuar a estudar por mais um ano justificou David.

 

- Para quê?

 

- Bem, para começar, devo ter chumbado nos exames todos. Portanto, terei de repetir o ano.

 

- E é isso que te apetece fazer?

 

Posto perante aquela perspectiva, outro ano na escola, David sentiu-se assolado por um grande desânimo e uma sensação de náusea.

 

- Não - admitiu por fim. - Não, tenciono deixar de estudar.

 

- Nesse caso, só tens de lhes dizer - concluiu Stanley.

 

- Mas também não quero ser canalizador, Stan - acrescentou David com ênfase, como que a advertir o amigo.

 

- Não te rales - retrucou Stanley com uma gargalhada. Nunca pensei que quisesses. Não estou a ver-te nunca a arranjar canos rotos, uma vez que estás destinado a ser primeiro-ministro.

 

Os dois rapazes desataram a rir, pensando no dia em que tinham rebolado pela terra, numa luta corpo a corpo, porque David tinha a intenção de mudar o mundo e Stanley fizera troça dele.

 

- Mas mudemos de assunto - continuou David. - E quanto a ti, o que é que queres fazer?

 

- Ora... - começou Stanley, encolhendo os ombros. - Desde que o meu velho não abuse da pinga, que ninguém tenha pena de nós.

 

- Mas tu também não queres ficar aqui, pois não?

 

- Neste momento, não tenho grande escolha - replicou Stanley, resignado.

 

- Tens, sim, podias...

 

- Não - atalhou Stanley peremptório.

 

- O que é que se passa? - perguntou David, surpreendido pela mudança de tom da voz do amigo, erguendo o olhar.

 

- A Irene emprenhou.

 

- Por amor de Deus! - exclamou David que inicialmente não compreendera. - De facto, isso é um grande problema.

 

- Podes ter a certeza. Ela ainda não disse à mãe, mas quando disser...

 

- O quê é que acontece?

 

- Os sinos tocarão no casamento do Stan.

 

- Mas tu ainda nem sequer tens dezoito anos, por isso não podes casar.

 

- Experimenta dizer isso à mãe da Irene.

 

Os dois passaram o resto da manhã juntos e só depois é que Stanley foi para casa com o intuito de levantar o pai da cama. David deixou-se ficar pelo arvoredo durante mais alguns momentos. O tempo ainda estava bastante quente, com o ar opressivo devido à acumulação de nuvens, ao que se aliava a ameaça de uma trovoada. Pôs-se de pé. ”Casa”, pensou. ”Esta noite tenho de lhes dizer. Vou deixar de estudar.”

 

Desta feita, quando contornou a parede lateral da casa, ouviu vozes: a da mãe e a da tia Alice. A desta última sobrepunha-se à de Faith, o que era invulgar. Então houve algo que lhe disse que aquilo não era uma conversa trivial. As vozes eram calmas e controladas, mas as duas mulheres estavam a discutir. Uma discussão acesa. David hesitou, mas depois acabou por contornar a esquina da casa. Mas não as viu. Apercebeu-se de que tinham acabado de ir para dentro de casa, decidindo avançar. Do jardim das traseiras, conseguia vê-las através da janela da cozinha, ambas de pé junto da mesa, de frente uma para a outra. Nenhuma deu pela presença do rapaz, não se tendo virado nessa direcção. Aquilo era como num sonho: não havia nada que não se deslocasse com lentidão, tinha a sensação de estar dentro de uma bolha do tempo, perdido no espaço; as vozes das duas mulheres não possuíam a entoação do costume.

 

Anos mais tarde, David perguntaria a si próprio por que razão é que fora de compreensão tão lenta. Todavia, o que as duas mulheres diziam não fazia o mínimo sentido. Discutiam sobre alguém que designavam pelo termo ”o rapaz”. Mas o rapaz era ele... Quem mais é que poderia ser?

 

- Ele podia ficar em nossa casa quando fosse para a faculdade dizia Alice, inclinando-se para a frente, como que para dar mais ênfase às suas palavras. - Está na altura de ele saber, já é mais que tempo!

 

- Isso só serviria para o perturbar, atendendo à sua atitude ultimamente - argumentou a mãe, sentando-se à mesa. Conseguia ver o topo da cabeça de cabelos escuros, com o olhar fixo no chão da cozinha.

 

- Por favor. - David ficou com a sensação de que nunca ouvira a tia a dizer aquelas palavras: por favor. Era-lhe difícil proferi-las, como se fosse preciso espremê-las para que lhe saíssem da boca.

 

- Não - contrapôs a mãe, voltando a soerguer o olhar. Tenho andado preocupada por causa dele. Esta manhã recebi um telefonema da escola.

 

David sentiu que o coração lhe saltava no peito e, instintivamente, deu um passo atrás, ficando como que pregado ao chão.

 

Fez-se silêncio, mas, pouco depois, Alice continuou, agora numa voz acabrunhada.

 

- Não tenciono ir contra ti ou contra o John. Tanto tu como o teu marido fizeram o que acharam melhor para ele. Contudo, na minha opinião, mais cedo ou mais tarde é forçoso que ele saiba. Isto não é nada fácil para mim, ter de admitir o meu erro... mais de um erro, ter de olhar para o passado. Hoje em dia, a gente nova quer saber tudo; pretendem saber mais do que nós quando tínhamos a idade deles.

 

- O rapaz terá de ter conhecimento do assunto, o que eu sei perfeitamente. Não sou estúpida, Alice, este tipo de coisas acaba sempre por vir a saber-se. Todavia, ainda não, não para já - insistiu Faith.

 

Alice disse qualquer coisa como resposta àquilo, mas falou num tom de voz quase imperceptível, o que o impediu de compreender o que ela dizia. Pouco depois, a tia saiu da cozinha. David pensou que agora poderia esgueirar-se furtivamente dali para fora, mas, sem saber como, dessa vez não procedeu assim. Como que compelido por forças ocultas, aproximou-se da porta aberta da cozinha, entrando.

 

- Que conversa foi essa que a mãe teve com a tia? - perguntou a Faith.

 

Mostrando-se chocada e sobressaltada, Faith levou a mão ao peito, empalidecendo. O garoto nunca tinha visto ninguém mudar de cor daquela maneira, com tanta rapidez.

 

- David? - pronunciou ela numa voz que pouco mais era do que um murmúrio.

 

- Peço desculpa... fiz gazeta à escola. Decidi vir para casa com a intenção de dizer à mãe... Seja como for, lamento muito, mas não quero continuar a estudar.

 

Faith tremia, mas respirou fundo, numa tentativa para se acalmar.

 

- Pregaste-me um grande susto.

 

- Desculpe - disse ele outra vez. Faith parecia estar a recompor-se, apreendendo, pela primeira vez desde que David chegara, o que ele lhe dissera.

 

- Não estou surpreendida - continuou ela. - Quando Mister Brodie me telefonou, esta manhã, adivinhei logo o que tinha para me dizer antes mesmo de ele ter aberto a boca. O estado em que às vezes chegavas a casa deu-me a entender que não tinhas ido à escola.

 

David apercebeu-se de que Faith estava preocupada com qualquer coisa que devia ser bastante mais importante do que a questão de ele faltar ou não à escola. E isto da parte de uma mãe que ultimamente não falara de outra coisa que não fossem os exames de final do curso, da universidade e de como ele teria de fazer alguma coisa por si próprio.

 

- De que é que a mãe e a tia Alice estavam a falar? Faith mordeu o lábio, desviando o olhar.

 

- Mais tarde tenciono falar contigo a esse respeito. Quando a Alice se for embora. A Mamie chega esta noite... Amanhã tenciona regressar a Duthie Terrace.

 

- Estou a ver.

 

- Quero que mantenhas segredo deste assunto - prosseguiu Faith. - Não deves dizer nada às meninas nem ao pai.

 

- O quê... acerca de faltar à escola?

 

- Não, a respeito do que eu tenciono conversar contigo - especificou Faith.

 

- Mas... a mãe vai falar com o pai por eu não querer continuar a estudar?

 

- Sim, vou.

 

Aquela não era a primeira combinação que a mãe fazia com ele. Contudo, as negociações infantis por causa das refeições, mesadas e saídas até mais tarde - eram questões a uma escala inteiramente diversa. Assuntos em que ela não tinha nada a perder, não correndo qualquer risco. Mas aquilo era muito diferente.

 

Nessa noite, já na cama, David sentia-se intrigado ao recordar as palavras que ouvira. No dia seguinte, nem sequer se deu ao trabalho de fingir que ia para a escola.

 

- O que é que se passa contigo? - perguntou Eleanor, que se detivera na ombreira da porta do quarto dele.

 

- Tenho dores de cabeça.

 

- Não, não tens. Estás a fazer gazeta à escola. Há várias semanas que tens vindo a fazer gazeta. A mãe e o pai estiveram a falar sobre esse assunto ontem à noite, depois de a tia Alice se ter ido deitar. Só espero que tenhas feito os exames. Fizeste?

 

- Põe-te a andar! - ripostou ele, virando-se e tapando a cabeça com as cobertas.

 

- Deves ter sido um changeling - afirmou Eleanor, trocista.

- Enquanto a Marion e eu nos fartamos de estudar e nos esforçamos para nos comportar como deve ser, olha para ti. O que é que tencionas fazer com a tua vida? Em vez de te portares bem, de ires para a universidade, como os pais querem que faças?

 

- O que é um changeling? - perguntou David. - Eu sabia, mas esqueci-me.

 

- Isso porque na tua cabeça não fica nada - ripostou Eleanor, saindo do quarto sem lhe responder: os seus pensamentos já se concentravam no dia que teria pela frente, em lan Cooper que a convidara para sair, a ela. Havia séculos que três das suas amigas andavam atrás dele.

 

- Isso não é verdade, Eleanor, diz-me. O que é que quer dizer?

 

- O quê, um changeling? É um bebé que as fadas deixam em lugar de um verdadeiro. Por isso, cresce como se fosse uma espécie de criança duende, que só sabe arranjar problemas - explicou Eleanor, espetando um dedo que acenava na direcção dele enquanto virava costas com um revoltear acentuado da saia florida e com o tinir das pulseiras de prata.

 

David encostou-se para trás, olhando fixamente para o tecto.

 

Levantou-se da cama depois de se ter certificado de que o pai já saíra para o trabalho, após grande parte da manhã já ter passado, a seguir ao pequeno-almoço. Mamie viera buscar Alice. No andar de baixo, o silêncio era dono e senhor. Foi dar com a mãe sentada na sala de estar, com o jornal no colo; as chávenas do café ainda estavam na mesa junto da janela. Ela olhou para David quando este entrou.

 

- Aí estás tu - disse Faith.

 

- Desculpe, eu devia ter-me levantado para cumprimentar a tia Mamie.

 

- Eu disse às tias que estavas maldisposto.

 

- Ainda bem.

 

David sentou-se na cadeira em frente de Faith, estendendo as pernas. Ainda vestia as calças de pijama e uma camisola de algodão de manga curta; tinha os cabelos espetados, o que lhe dava um ar desalinhado, com os olhos ainda ensonados e remelosos.

 

- ´É melhor ires-te lavar e vestir - disse ela. - Queres comer alguma coisa? - perguntou, fazendo menção de se levantar.

 

- Eu sou adoptado, não sou?

 

A mãe voltou a sentar-se na cadeira. Com gestos lentos, começou a dobrar o Press and Journal que colocou em cima do soalho.

 

- Não.

 

- Então, sou o quê? - insistiu David.

 

- Nunca chegámos a adoptar-te - esclareceu Faith.

 

- Isso quer dizer que tenho razão. Não sou vosso filho, sou filho de outras pessoas quaisquer. Portanto, o que é feito da minha mãe e do meu pai... Estão mortos ou quê?

 

A mãe mostrou-se chocada, com o rosto muito empalidecido.

 

- Não, não. Claro que não morreram. Pensei... pensei que tivesses adivinhado, que soubesses já.

 

- Adivinhado o quê? A mãe e a tia Alice estavam a discutir. Ela quer que eu saiba que sou adoptado, ou o que quer que seja, não é? Mas a mãe não quer, não é verdade? Mas o que é que o assunto tem a ver com ela?

 

E então, enquanto a mãe cobria a face por uns momentos com as duas mãos, ao mesmo tempo que soltava um suspiro e o fitava com uma expressão que, finalmente, espelhava toda a verdade, David adivinhou. Ficou a saber o que até então lhe fora ocultado.

 

Stanley acompanhou-o até Newcastle. Ao princípio, os dois rapazes não tinham tido dificuldade em arranjar boleias; um dos camionistas até lhes pagou uma refeição de ovos estrelados e toucinho fumado numa área de serviço. Não lhe passou despercebido que os dois rapazes haviam fugido de casa, razão por que não tinham nenhum destino em particular; mas decidiu dar-lhes de comer, oferecendo-lhes um cigarro quando tomavam uma caneca de chá, tendo acabado por os deixar na A9, a sul de Newcastle. Ia fazer uma entrega em Sunderland.

 

Chegados a Newcastle, Stanley perdeu a coragem.

 

- O quê? Queres realmente voltar para casa? Voltar a trabalhar com o teu pai, casar com a Irene... tudo isso?

 

- Não, mas tenho de lhes dizer que estou bem. O meu velho ia ficar aflito. Na quinta-feira, vamos começar um trabalho muito importante, por isso, ele precisa de arranjar outra pessoa que o ajude.

 

- Nesse caso, põe-te a caminho - disse David. - Porra, volta para Inverurie! Só não estejas à espera que eu vá contigo.

 

A amizade que Stanley tinha a David levara-o a percorrer metade da região, atravessando a linha limítrofe da Escócia, tendo ido até mais longe do que alguma vez se aventurara. Mas sentia que estava a entrar em pânico, tão longe de casa. E não era apenas por causa do pai e do trabalho. Havia que pensar também em Irene e no bebé. O que é que as pessoas ficariam a pensar dele se a abandonasse à sua sorte? Todavia, Stanley não queria partilhar aquelas preocupações com David.

 

Durante vários anos, ele mantivera uma amizade muito íntima com David: o esconderijo que os dois tinham no jardim de casa deste, as brincadeiras em que mais ninguém participava, as longas semanas das férias de Verão em que Stanley passava mais tempo em Pitcairn do que em sua própria casa. E se não tivessem sido os anos de escola secundária que os obrigara a seguir caminhos separados, arranjando novos amigos que não partilhavam, continuariam a ter sido inseparáveis: unidos pela infância e pelo secretismo, pelas chamas da amizade que continuavam bem acesas.

 

Do exíguo jardim da frente de sua casa, ao lado do pai, ele também assistira ao incêndio no palheiro dos Mackies. Jimmy tinha acabado de chegar a casa vindo do bar, razão por que cambaleava um pouco; apesar de se ter sentido assombrado, não estivera suficientemente sóbrio para poder percorrer os mais ou menos dois quilómetros que os separavam da Mains, oferecendo-se para ajudar a apagar o incêndio, à semelhança do que todos os homens da localidade haviam feito. Um ponto a favor do bar.

 

- Estive a tomar uns copos com o latoeiro - dissera o pai. Contou-me que a família passaria a noite na Mains. - Em seguida, dera meia volta entrando em casa e dirigindo-se imediatamente num passo incerto para a garrafa de uísque que guardava no aparador, deixando Stanley sozinho junto do portão, o qual sentia um forte aperto no coração.

 

Estava ligado a David por laços indissolúveis. Era esse apego que o levara a acompanhá-lo até tão longe. No entanto, era possível que existisse um limite que não poderia ser ultrapassado. Actualmente, Stanley também mantinha laços afectivos que o ligavam a outras pessoas.

 

Os dois rapazes estavam parados na berma da estrada, ao lado um do outro, vendo o movimento do tráfego automóvel que passava ruidosamente por eles, deixando na sua esteira rajadas de vento agreste. Agora mais do que nunca, David queria continuar a sua viagem, ansiando por pôr tanta distância quanto lhe fosse possível entre si e a vasta teia de mentiras em que a sua vida se transformara. Mas, ao mesmo tempo, verificava que não havia ninguém com quem pudesse partilhar aquilo. Virou-se para Stanley, com um aspecto emagrecido e frágil no seu blusão de couro e calças de ganga, carregando uma mochila que obviamente era demasiado pesada para as suas forças.

 

- Anima-te! - incentivou David. - Está tudo bem. Vais regressar a casa. Cá me hei-de arranjar... Prometo que te envio um bilhete postal.

 

Stanley hesitou antes de estender a mão a David, que a agarrou na sua, maior e mais forte.

 

- Isso mesmo. Portanto, estamos entendidos. Vai dando notícias, de acordo? Até mais ver, Davy - despediu-se Stanley, começando a atravessar a passagem aérea para peões que o levaria ao outro lado da estrada. Depois, durante algum tempo, os dois rapazes ficaram em bermas opostas da estrada, à espera que alguém lhes desse uma boleia que os levaria em direcções opostas. David foi o primeiro a arranjar transporte - um Jaguar com um casal sentado nos assentos dianteiros que ia de férias. Quando David já se encontrava sentado no banco traseiro da viatura, virou-se para trás a fim de acenar a Stanley que já se encontrava muito distante para conseguir ver o gesto de despedida do amigo, concentrado como estava em manter o braço estendido com o polegar em riste, observando os veículos que passavam por si.

 

David reclinou-se todo para trás e fechou os olhos.

 

- Andas à boleia, não é verdade? - perguntou a mulher, voltando-se para trás e oferecendo-lhe um Toffee. - Vocês, os estudantes... têm sempre umas férias tão prolongadas e maravilhosas...

 

- Sim - concordou David. - É magnífico.

 

Eleanor passou o serão de domingo em casa de Gavin.

 

- Tencionamos regressar na quarta-feira à noite - disse ela.

- Encontramo-nos nessa altura.

 

- Hei-de conseguir sobreviver. De facto, até vou sair na quarta-feira - retorquiu Gavin.

 

- Oh!

 

- Com um sujeito que eu conheço e que agora está a trabalhar em Aberdeen... Foi visitar a irmã. Combinámos ir tomar um copo. Não te preocupes - acrescentou ele -, não se trata de outra mulher.

 

- Não pensei que fosse - ripostou Eleanor, batendo-lhe com um almofadão na brincadeira, apesar de nem por isso ter deixado de pensar: ”Poderei eu confiar realmente nele?”

 

- Ando a tentar cimentar as minhas amizades - continuou Gavin. - Para quando me mudar para Aberdeen.

 

- Mudar?!

 

- Muito provavelmente, dentro de seis meses. Não mais. Gavin reparou na expressão de perplexidade estampada no rosto dela. - Eu já te tinha falado a respeito disto, Eleanor, acerca do novo emprego.

 

- Sim, mas eu pensei que ficarias a trabalhar aqui.

 

- Isso seria impossível. Em que é que eu poderia trabalhar aqui? Os escritórios são em Aberdeen. É aí que ficarei sedeado.

 

- Mas eu pensei... pensei que querias... - Não conseguiu obrigar-se a acabar. Teria ela feito uma leitura completamente errada da situação?

 

- Eu tinha esperança de que te decidisses a vir comigo prosseguiu Gavin, passando um braço pelos ombros dela. - Podíamos arranjar uma casa... ver como é que as coisas correm entre nós dois. Mas pensei, uma vez que ainda faltam muitos meses, que teríamos muito tempo para discutir o assunto mais tarde. Compreendo que neste momento há assuntos de família que exigem a tua atenção.

 

- Sim, mas...

 

- Não queres - atalhou Gavin, não permitindo que ela acabasse.

 

- Não. Sim. Pensei... - Ela imaginara, agora apercebia-se de que disparatadamente, que ele ficaria a trabalhar em Inverness, o que lhes permitiria continuar a levar o mesmo estilo de vida como até então, pelo menos sem grandes alterações, planeando, quem sabe, a compra de uma casa maior onde viveriam juntos, dali a vários anos, quando Claire já tivesse saído da casa materna. Desde a morte de lan que a percepção que Eleanor tinha do futuro passara a estar como que envolta em brumas. Mas, naquele caso, aquela havia sido uma visão bastante nítida.

 

- Não posso sair daqui - disse ela. - A Claire detestaria mudar-se para outro lugar. Além do mais, para o ano tem exames; por conseguinte, não posso perturbar-lhe os estudos.

 

- Não serias forçada a mudares-te de imediato - sugeriu ele.

- Eu podia vir cá aos fins-de-semana, talvez até ela ter feito os exames.

 

Mais separações e reencontros, pensou Eleanor, só que pior do que até então. Ele não estaria na plataforma petrolífera, ao abrigo de possíveis tentações; ao invés, passaria a trabalhar na cidade onde levaria uma existência inteiramente separada da dela.

 

- Também é preciso não esquecer a Marion - acrescentou Eleanor.

 

- Mas tu disseste que ela já tinha acabado os tratamentos. Daqui a seis meses, já estará muito melhor. Acredita no que te digo.

 

Eleanor deu-se conta de que ele não compreendia. Ela nunca poderia viver tão longe quando Marion tivesse de ser submetida a qualquer exame médico, caso precisasse de mais tratamentos de quimioterapia, se o cancro voltasse a afligi-la. Teria de continuar a viver ali; essa era uma situação que não podia ser alterada.

 

- Não sei - disse Eleanor. - Não sei o que dizer.

 

- Não te preocupes com isso - aconselhou Gavin. - Não há necessidade de tomar qualquer decisão nesta altura.

 

Nessa noite, Eleanor não dormiu bem e quando se levantou antes de Claire ter ido para a escola sentiu-se cansada. Às oito e meia, quando levantava a louça do pequeno-almoço, pensou em telefonar a David. Talvez ele quisesse encontrar-se com as irmãs em Aberdeen. Entre as coisas que Alice deixara, decerto que não havia nada que ele quisesse; além do mais, não tardaria que ele ficasse de posse das suas seis mil libras; no entanto, no mínimo, tinha direito a ser informado das acções delas. Todavia, quando ligou para o apartamento do irmão, Eleanor não obteve resposta.

 

- Sim, eu própria tentei ligar-lhe ontem à noite - disse Marion quando a irmã lhe deu conta daquilo. - Ele deve ter estado fora de casa durante toda a noite.

 

Quando chegaram a Pitcairn, ficaram a saber que o pai também tentara ligar a David.

 

- Deve ter ido para fora por causa de qualquer negócio concluiu ele. - Vou buscar as chaves da casa das tias.

 

- Como é que a Mamie está?

 

- Vai indo. Eles já a puseram a pé para que tente andar.

 

- É para admirar que ela não tenha morrido depois de ter dado uma queda como a que deu - comentou Marion.

 

- Ela tem muita carne, com a qual amorteceu a queda - replicou o pai na brincadeira, estendendo-lhes as chaves.

 

- Sendo assim, encontramo-nos à hora do chá, a menos que o pai tencione vir connosco a casa das tias.

 

- Não, não. Vou visitar a Mamie ao hospital e depois tenciono voltar para casa. Mas porque é que vocês não lancham lá em casa para depois poderem passar pelo hospital, ainda que seja por pouco tempo? Evitariam ter de fazer a viagem até aqui para depois terem de voltar para a cidade.

 

- Não está mal pensado... é boa ideia - concordou Eleanor, que se preocupava, receando que todas aquelas voltas de automóvel acabassem por fatigar Marion desnecessariamente.

 

Depois de terem almoçado sanduíches, o pai saiu para o hospital.

 

- De quanto tempo é que achas que vamos precisar? - perguntou Marion quando lavavam os pratos e as canecas.

 

- Não sei. Umas duas horas?

 

- Sendo assim, é escusado estarmos com pressas, podemos ir por volta das três.

 

- Está bem... Podes aproveitar para repousar um pouco até essa hora.

 

O Sol brilhava, o dia estava tão agradável que Marion decidiu sentar-se numa das cadeiras de jardim nas traseiras da casa, onde ficou a ler durante uma hora.

 

Quando abriram a porta da frente da casa de Alice, sentiram logo um cheiro a bafio. Os raios solares atravessavam o vestíbulo, mas a galeria no primeiro andar dava a impressão de estar mergulhada na escuridão. Ao cimo das escadas, depararam com um monte de roupa empilhada de qualquer maneira.

 

- Olha. Ela devia levar esta braçada de roupa quando tropeçou. Calculo que o pai a tenha apanhado depois - comentou Eleanor subindo as escadas num passo leve e apressado; quando chegou ao cimo, virou-se e olhou para trás, vendo que Marion estava encostada ao corrimão da escada de caracol. - Vai sentar-te na sala de estar. Eu dou uma vista de olhos pelas coisas para ver o que é que hei-de levar para baixo, ou também podes subir.

 

- Está bem - concordou Marion, reparando no pó que cobria todas as superfícies, se bem que a sala estivesse arrumada, sem nada fora do lugar, à excepção de um número da People’s Friend deixado sobre a mesinha de café e o saco onde Mamie costumava guardar o seu tricô, encostado ao braço de um cadeirão. Marion sentou-se, preparada para esperar por Eleanor.

 

Esta mal sabia por onde começar e como. Encaminhou-se para o quarto de Alice. Ficava na parte de trás da casa, e por isso era frio e sombrio. Eleanor nunca estivera muitas vezes no quarto da tia, muito embora o visse através da porta aberta quando passava a caminho da casa de banho. Ali estava a cómoda e o guarda-fatos de madeira de carvalho que tão familiares lhe eram, a colcha de cetim verde, o papel de parede com violetas e rosas muito miudinhas, a mesinha-de-cabeceira com o candeeiro que tinha um quebra-luz que também era verde ao lado do despertador. Por todo o resto da casa não havia superfície nenhuma que não tivesse fotografias emolduradas, pastoras de porcelana e figurinhas de Hummel, animais em vidro, taças de prata cheias de rosas. Talvez tudo aquilo pertencesse a Mamie. No quarto não havia qualquer motivo decorativo e no toucador, com a excepção do pente e da escova com cabos de tartaruga que haviam pertencido a Alice, além de um boião de creme Pond’s, viu apenas um retrato numa pequena moldura dourada. Eleanor pegou na fotografia, que era de David quando este devia ter uns doze anos, tendo sido tirada nos jardins de Pitcairn. Ele parecia sorrir a Eleanor, com um sorriso rasgado e cabelos despenteados; usava uma camisa de colarinho aberto e calções. Voltou a olhar à sua volta, mas não avistou mais nenhuma fotografia, não havendo nada que não fosse funcional e necessário. No canto junto da janela, existia uma pequena escrivaninha de linhas elegantes, em madeira de nogueira bem polida, com duas gavetas. Havia três livros em cima do tampo: uma biografia de Mary Wollstonecraft, um manual de jardinagem e um romance histórico cuja acção decorria durante as guerras napoleónicas. Tanto a biografia como o romance histórico pertenciam à biblioteca pública, devendo ter sido devolvidos há várias semanas. Eleanor pô-los de parte para que o pai pudesse entregá-los posteriormente.

 

A porta do guarda-fatos estava aberta. No interior ainda se encontravam algumas saias e vestidos pendurados, enquanto no chão se via um rolo de sacos de plástico preto. Eleanor inspeccionou as gavetas da cómoda: continham várias saias de baixo e demais roupa interior branca, pijamas de algodão e meias. Fechou as gavetas, sentindo-se pouco à vontade ao tocar naquelas peças de roupa. Porém, a verdade é que teria de dispor delas, havendo muitas obras de beneficência que agradeceriam a oferta. Portanto, era fácil saber o que fazer com as roupas. Podia dobrá-las, metendo-as nos sacos de plástico que depois fecharia. Antes de meter mãos à obra, só teria de se certificar se não haveria qualquer coisa com que ela própria ou Marion gostassem de ficar. As roupas de Alice eram de boa qualidade, apesar de serem bastante simples, não sendo difícil a Eleanor imaginar-se a usar um dos casacos dos fatos cinzentos ou azul-marinho com calças de ganga ou com uma saia comprida de fazenda axadrezada.

 

Dirigiu-se para a escrivaninha, abrindo o tampo que rangeu quando se deslocou. Nos escaninhos havia várias cartas e documentos, tudo dobrado e enrolado com fita, de maneira muito organizada. No centro, existia um pequeno compartimento fechado à chave sem que se visse qualquer vestígio desta. Eleanor experimentou a chave que abria o tampo, mas verificou que era demasiado grande. Procurou dentro dos escaninhos, retirando tudo o que continham e que foi espalhando em cima da superfície coberta de pelica, destinada à escrita, de um vermelho desbotado, orlada por um filete a dourado que em alguns pontos já se tinha sumido. Com cuidado, Eleanor foi abrindo as gavetas. A de cima continha papel de carta, sobrescritos e agendas onde estavam registados os compromissos diários dos últimos dois ou três anos, a par de algumas canetas e lápis. Na gaveta do fundo, deparou com alguns álbuns de fotografias, uns já bastante antigos, e duas pequenas caixas de joalharia, compridas e estreitas. Numa delas viu o medalhão, enquanto a outra continha o colar de pérolas de uma só volta. Eleanor tirou as caixas da gaveta, colocando-as sobre o tampo da escrivaninha junramente com os papéis. Em seguida, fechou a gaveta. Tinha a intenção de reservar os álbuns para mais tarde, para quando os pudesse ver com Marion. Então, como se houvesse alguma coisa - alguém – que estivesse a acicatá-la, abriu a caixa que continha o medalhão, tirando-o para fora. Era um medalhão bastante grande e antigo. Eleanor julgava que havia pertencido à sua avó, da qual mal se recordava. Não foi capaz de decifrar as iniciais entrelaçadas na parte da frente. Deparou com alguma dificuldade para o abrir, mas finalmente conseguiu meter uma unha por baixo do fecho pequeníssimo, abrindo-o. No interior havia dois retratos de tamanho ínfimo. Eleanor aproximou-se mais da janela.

 

Um deles retratava um homem de outros tempos com bigode e colarinhos muito engomados e tesos; talvez fosse o seu avô. A outra fotografia era de uma mulher jovem que tinha os cabelos apanhados ao alto e que usava um vestido com uma gola alta muito cingida ao pescoço. Enquanto Eleanor manuseava aquela representação minúscula de alguém de quem guardava uma vaga ideia de ter sido uma mulher idosa, sempre de avental e senhora de uma voz quezilenta, a cheirar a hortelã-pimenta, o retrato escorregou-lhe da mão, indo cair no soalho. Eleanor estava prestes a baixar-se para o apanhar quando viu que por trás daquela havia outra fotografia - não admirava, pois, que a de cima tivesse estado solta. Um bebé. Um recém-nascido com os olhos fechados e embrulhado numa envolta. Seria a tia Alice? Com muito cuidado, Eleanor tocou na fotografia do avô que também acabou por sair da sua moldura oval. Por detrás desta também deparou com outro retrato. De um garoto que devia ter uns seis ou sete anos, uma imagem desbotada pelo tempo, mas que desta feita não lhe deixava qualquer margem para dúvida. Eleanor sentia que o coração lhe batia a um ritmo mais acelerado. Aquilo era uma espécie de intromissão que lhe causava mal-estar. O quarto de Alice, as suas roupas, as suas jóias, os pais há muito falecidos. Os seus segredos.

 

Eleanor voltou a ajustar os retratos dentro do medalhão que guardou na caixa de onde o retirara. Em seguida, puxou o banquinho do toucador e sentou-se à escrivaninha, começando a abrir os documentos enrolados com fita cor-de-rosa, um a um. Limitava-se a passar-lhes uma vista de olhos apressada, tendo a percepção de que procurava qualquer coisa, embora não soubesse muito bem o quê. Até mesmo quando encontrou o que buscava, abrindo a folha de papel, ressequido pelo tempo e pelo pouco manuseamento, tentando ler o conteúdo numa tentativa para encontrar algum sentido nas informações que com tanta frieza lhe transmitia... até mesmo depois dessa leitura, ao princípio não foi capaz de apreender inteiramente o significado da descoberta que acabara de fazer.

 

No andar de baixo, Marion passara uma vista de olhos indolente pela People’s Fríend, sentindo-se confortada ao ver a maneira como se mantinha inalterável desde que começara a lê-la em criança quando ia visitar as tias. Contudo, no espaço de alguns minutos as páginas principiaram a ficar desfocadas e a sonolência começou a apoderar-se dela. Aquecida pela luz solar que se espalhava pela carpete e pelos cadeirões, começou a dormitar, com a cabeça encostada aos almofadões da poltrona de costas altas de Alice. Tinha a sensação de nadar dentro e fora dos sonhos enquanto ouvia o mugir do gado que pastava pelos campos por trás de Pitcairn, tendo a sensação de que ouvia Kirsty e Elidh a conversarem. Então viu a mãe, não na cozinha de Pitcairn, mas na da casa da própria Marion. Com as mangas arregaçadas e de avental, a estender a massa com o rolo em cima da mesa de pinho de Marion. Esta mostrava-se irritada por ela própria não ser capaz de fazer a tarte, devido a estar demasiado cansada, se bem que se sentisse bastante aliviada por a mãe ter chegado para poder olhar por todos.

 

- E o David que me está a preocupar - dizia a mãe.

 

- Marion!

 

Abriu os olhos, tentando focar a visão. Eleanor encontrava-se na sala de estar, a sala de estar de Alice e de Mamie, erguendo uma folha de papel, o que parecia ser um impresso qualquer.

 

- Peço desculpa, estavas a dormir. Mas Marion... - Eleanor tinha as faces ruborizadas e os olhos arregalados. Marion fez um esforço para conseguir sentar-se a direito.

 

- O que é que se passa?

 

- Isto... Olha bem para isto - replicou Eleanor.

 

- O que é isso? - perguntou Marion sem compreender. Eleanor colocou o papel mesmo à frente dos olhos da irmã, que o endireitou de forma a poder inteirar-se do que dizia.

 

- É uma certidão de nascimento - disse ela, sentindo-se estúpida e de raciocínio lento.

 

- É do David - esclareceu Eleanor, deixando-se cair desamparada na outra poltrona junto da lareira. A de Mamie, mais pequena e macia.

 

Marion voltou a examinar a certidão, após o que soergueu o olhar, fitando a irmã.

 

- Não pode ser. É... Valha-nos Deus, a Alice teve um filho, há muitos anos... é isso que este documento nos diz. Que ela teve um bebé. Por que carga de água é que...

 

- Foi o David.

 

- Bem, o nome é o mesmo, mas isso pode ser apenas uma coincidência.

 

- Mas não é, olha para a data. É impossível que seja outra criança.

 

- Oh, meu Deus! - exclamou Marion, examinando o documento com mais atenção.

 

- Mas isto não pode ser verdade, pois não? Marion, diz-me que tem de existir outra explicação qualquer.

 

- Não - negou Marion com um abanar de cabeça. - Tens toda a razão. David John Cairns, nascido no dia vinte e sete de Abril, em Aberdeen, no Hospital Royal Maternity.

 

- Mas o nome da mãe... não é o nome da nossa mãe. É o nome da Alice.

 

- E também não tem o nome do pai... o nome dele não consta da certidão.

 

- Nesse caso, quem... - começou Eleanor a perguntar.

 

- Ora bem, a quem é que agora podemos fazer essa pergunta?

 

- Ao pai. À Mamie.

 

- Vamos ter de perguntar, quer queiramos quer não. Não te parece?

 

Eleanor não sabia o que responder. Deixaram-se ficar sentadas em silêncio. Marion continuava com a certidão de nascimento na mão.

 

- Olha - disse Marion, decorridos uns momentos. - Foi o pai que nos pediu que escolhêssemos as coisas da tia Alice.

 

- E a Mamie.

 

- Ambos sabiam muito bem que acabaríamos por encontrar este documento.

 

- Achas que... - Eleanor hesitou. - Achas que eles queriam que encontrássemos isto?

 

- Sim. Não é isso que te parece?

 

- Não sei. Tenho a sensação de que deixei de saber seja o que for. Parece-me que o mundo ficou rachado de um extremo ao outro.

 

- E encontraste mais papéis? - perguntou Marion.

 

- Bem, encontrei, mas ainda não tinha avançado muito quando deparei com este.

 

- Vou contigo até lá acima - disse Marion, levantando-se do cadeirão.

 

- Não, está muito frio lá em cima. Prefiro trazer tudo para baixo, a papelada toda. Na escrivaninha, só falta um pequeno compartimento que não sou capaz de abrir. Não tenho a chave. Mas, tirando isso, posso trazer tudo o que está dentro dos outros escaninhos.

 

- Experimenta procurar no toucador - sugeriu Marion. Preso com fita gomada por detrás do espelho.

 

- De que é que estás a falar?

 

- Da outra chave - explicou Marion.

 

- De verdade?

 

Veio a concluir-se que Marion tinha razão: na parte de trás do espelho do toucador encontraram uma chave muito pequena. Eleanor desprendeu-a, servindo-se dela para abrir o pequeno compartimento central da escrivaninha. No interior, encontrou dois retratos a preto e branco e uma carta. Uma das fotografias era de Alice, de pé junto de uma janela, com uma criança nos braços embrulhada numa envolta. Todavia, ela não olhava para a criança que tão firmemente mantinha ao colo; olhava fixamente para a objectiva da máquina fotográfica, sem sequer esboçar um sorriso. Mostrava uma expressão fisionómica tensa e estranha, como alguém que nunca tivesse tido uma criança ao colo. Contudo, na postura dela havia qualquer coisa de inquietantemente familiar, algo que se espelhava na sua maneira de estar. Eleanor colocou esta fotografia por detrás da outra que começou a examinar com atenção. Um homem que não era jovem nem tão-pouco bem-parecido, mas que tinha umas feições bem definidas e de aspecto vigoroso, com uma belíssima cabeleira de cabelos escuros e senhor de um nariz aquilino. Era um instantâneo que fora tirado ao ar livre. Estava inclinado e com os braços apoiados no parapeito de uma ponte; atrás dele viam-se várias árvores. O homem vestia um par de calças desportivas e um pulôver por cima de uma camisa com o colarinho desabotoado. Sorria, embora o sorriso fosse fixo, como se tivesse sido obrigado a manter a pose durante demasiado tempo, pelo que o sorriso espontâneo para a câmara deixara de ser natural, adquirindo rigidez e sem qualquer vestígio de bom humor.

 

Eleanor reuniu tudo nos braços: papéis, fotografias e cartas, que levou para o piso térreo. Em conjunto, ela e Marion passaram tudo a pente fino.

 

- Sabes... - começou Eleanor a dizer quando ambas meteram mãos à obra. - O pai é o testamenteiro. Com certeza que ele teve de examinar toda esta papelada, não achas?

 

- Não necessariamente. Não estou a ver nenhuns extractos bancários, nem livros de cheques, nada desse género de coisas. O que me leva a concluir que ele deve ter levado tudo isso. Assim como o testamento.

 

- É isso mesmo - concordou Eleanor. - Ele disse que ela deixou acções, assim como outros documentos relativos a um fundo de investimentos; contudo, não estou a ver nada disso entre esta papelada. Estes documentos são todos de natureza pessoal.

 

- Mas a verdade é que ele já teve oportunidade de examinar tudo isto - notou Marion. - Ou então foi outra pessoa que se encarregou disso. Talvez a Mamie.

 

- Como é que sabes?

 

- A fita está amachucada... olha, como se o nó já tivesse sido dado num outro sítio qualquer.

 

- Meu Deus, como tu és observadora!

 

- Cuidadosa e vagarosa, mais nada - replicou Marion com um sorriso. - Não sou capaz de acompanhar a tua velocidade de raciocínio.

 

- É como ser um detective, não te parece? - disse Eleanor. Excepto o facto de ser demasiado... não sei bem. De súbito, sinto-me muitíssimo ansiosa. Quero mais... provas.

 

- De quê? De que o David é filho da Alice?

 

- Será que a mãe e o pai o adoptaram?

 

- Talvez sim. Ou, quem sabe, muito simplesmente, ele tenha vindo viver connosco. Não há dúvida de que ele veio viver connosco desde que era muito pequeno, mesmo muito pequeno. - Marion começou a pensar na criança que alguém tirara de um carrinho, erguendo-a para que ela a pudesse ver. O teu novo maninho. - Por que motivo é que a tia Alice não terá ficado com ele?

 

- Porque ela era solteira. Suponho que o fulano se tenha posto a andar - aventou Eleanor, pegando no retrato do homem inclinado sobre o parapeito da ponte. - Acho que era este.

 

- Meu Deus! - exclamou Marion. - Estou a ver o que queres dizer.

 

- David?

 

- Oh, sim. - Marion tirou o retrato da mão da irmã. - Sem dúvida que é o pai do David.

 

Eleanor estendeu a outra fotografia na direcção de Marion.

 

- Estava no compartimento fechado à chave da escrivaninha juntamente com isto... A Alice com o David, presumo eu.

 

Marion também tirou essa fotografia da mão de Eleanor, ficando a observá-la por uns momentos em silêncio.

 

- Ela é como... - murmurou. - Não sei. Faz com que me recorde de qualquer coisa.

 

- Eu sei. Acho que se trata apenas de uma parecença de família... como o pai com ela. E suponho que também com o David.

 

- Talvez.

 

- Também encontrei esta carta. Ainda não a abri. Está endereçada a Alice mas para outra morada... Viewfield Road?

 

- Acho que esse era o endereço do apartamento onde ela costumava morar - adiantou Marion. - Antes de a tia Mamie ter começado a viver com ela.

 

Eleanor separava uma folha isolada de papel.

 

- Eric - disse ela. - Foi remetida por alguém que se chamava Eric.

 

- O que é que diz?

 

Os dedos de Eleanor tremiam um pouco quando passou a carta para a mão da irmã. Tinha os olhos rasos de lágrimas.

 

- Oh, Deus me valha, oh, Marion.

 

- Então, não se trata de uma carta de amor - comentou Marion depois de ter lido a missiva.

 

- Mas que bandalho. Foi ele, esse tal Eric que a engravidou. E depois abandonou-a.

 

- Mas, Eleanor... - começou Marion a dizer, mas interrompeu-se, mordendo o lábio antes de prosseguir. - Eleanor, nessa altura já ela tinha mais de quarenta anos. Para ser mais exacta, tinha quarenta e dois anos. Já não era nenhuma rapariguinha na flor da idade.

 

- O que agrava a situação ainda mais - ripostou Eleanor com uma percepção bastante clara das circunstâncias, pensando que a irmã se sentia demasiado segura no seu casamento para conseguir compreender uma situação daquelas.

 

- Todas estas cartas - acrescentou Marion, pegando num dos maços -, aí também não há cartas de amor, pois não? São cartas escritas durante a guerra. Algumas são do pai.

 

- E de amigas dela. Além de alguém que se chamava Jack, ou talvez fosse Jackie, pelo que também é possível que tenha sido uma mulher - acrescentou Marion, examinando atentamente a assinatura. - Mas, seja como for, todas são cartas de amigas. Nem uma única é romântica.

 

- Deve ter sido horrível para ela - continuou Marion, voltando a pegar na fotografia do homem.

 

- Ele não se parece com uma pessoa que tenha o nome de Eric - comentou Eleanor.

 

- É possível que não, mas a verdade é que é o nosso homem, o pai do David. Não te parece?

 

- Sim, sem dúvida - concordou Eleanor. - Agora sei, sou capaz de ver. A linha do maxilar, o cabelo... Aposto que também nunca assentou em lugar nenhum. Os homens como ele... são capazes de fazer tanto mal. - Disse isto com o pensamento concentrado em Gavin, sem saber ao certo se as lágrimas que vertia eram por Alice ou por si própria. Mas sabia que toda a sua piedade era canalizada para Alice, a qual vivera numa época em que um filho ilegítimo era um verdadeiro escândalo, um motivo de muita vergonha.

 

- Estou a reconhecer este nome - disse Marion, que continuava a ler. - Era de alguém que esteve com ela no Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea... Estas cartas e bilhetes-postais foram todos enviados por ela. E as cartas escritas pela Mamie. Uma é a respeito do tio Tom... olha - disse Marion, recostando-se para trás com uma das cartas na mão. - Eleanor, quando é que a Mamie se mudou para Aberdeen?

 

- Não tenho a certeza, mas acho que foi mais ou menos na altura em que o David nasceu.

 

- Vamos ter de perguntar ao pai. Mas estou em crer que foi antes disso. Ela veio para cá porque a Alice estava grávida, não te parece?

 

- Sim - concordou Eleanor. - Pelo menos, é o que tu ou eu faríamos nas mesmas circunstâncias.

 

- E elas eram como se fossem irmãs - acrescentou Marion que acabara de se aperceber desse aspecto.

 

- Verdade seja dita, estamos perante uma data de questões para que não temos resposta - acentuou Eleanor.

 

- Olha uma coisa - continuou Marion -, a esta velocidade, esta tarefa vai levar séculos até estar concluída. Porque é que não levamos a papelada toda e as jóias...

 

- É verdade, o medalhão. Tenho de te mostrar o medalhão atalhou Eleanor, interrompendo a irmã. - Espera um pouco; deixei-o lá em cima.

 

- Espera aí... também temos de pensar nas roupas. Devíamos escolher tudo o que se destina à Oxfam, ou similar, ainda hoje.

 

Depois, podemos encaixotar as coisas que quisermos levar para Pitcairn, a fim de as escolhermos mais tarde e com mais calma. Ou talvez mesmo o que quisermos levar para nossas casas.

 

- Sim, tens razão. Queres ficar com alguma peça de roupa, Marion? Ela tinha umas blusas e uns casacos muito elegantes, isto é, para alguém já com oitenta anos.

 

- Deus nos valha - comentou Marion, rindo-se. - Tudo isto parece tão estranho, não achas? - Pôs-se de pé. - Vou fazer uma chávena de chá enquanto tu começas a escolher as roupas. Subirei dentro de um minuto.

 

Já na cozinha, à espera que a água da chaleira começasse a ferver, Marion pensava em Alice e Mamie a viverem naquela casa durante tantos anos, enquanto o filho de Alice estava a ser criado por outra pessoa. Perguntou a si mesma se Mamie teria desejado que David tivesse vivido com elas. Quem é que teria tomado aquela decisão? E a sua mãe... Marion não era capaz de imaginar como é que toda aquela situação se desenrolara. ”Como se”, reflectia ela, ”quando o lan morreu, a Eleanor tivesse tido um bebé que eu tratei de criar. Ou não, se ela tivesse um filho agora e esse tal Gavin desaparecesse...” Mas aquilo estava tão longe da realidade que pôs o assunto de parte, preparando o chá que levou a Eleanor juntamente com uma lata de biscoitos de chocolate que encontrara.

 

As duas irmãs conjugaram esforços, encaixotando as roupas que iam seleccionando enquanto conversavam, pondo de lado uma blusa ou um casaco, se bem que se tivessem mantido sempre conscientes de que o que importava realmente com relação ao legado de Alice se encontrava no soalho da sala de estar, no piso térreo, algo que lhes contava uma história totalmente diversa daquela que o quarto frio lhes transmitia através das roupas simples da vida de uma solteirona.

 

A questão que agora se lhes punha, como era evidente, era saber se David tinha conhecimento daquilo, e, a não ser esse o caso, como é que deviam dizer-lhe... se fosse isso que deviam fazer.

 

- De uma maneira qualquer - disse Marion mais tarde quando já iam no automóvel a caminho do hospital -, quando se descobre uma coisa desta natureza, por muito chocante que possa ser, até certo ponto, uma pessoa sente que subconscientemente sempre teve conhecimento do caso.

 

- Continuo sem saber muito bem o que é que vamos dizer à tia Mamie - replicou Eleanor com um suspiro. - É preciso não esquecer que ela acabou de se submeter a uma operação bastante complicada, que a deixou muito abalada.

 

- Podíamos esperar e, em vez de abordarmos o assunto com ela, falamos com o pai - sugeriu Marion. - Mas, primeiro, temos de ir visitar a Mamie.

 

Foram encontrar a doente sentada na cama, rosada devido à temperatura aquecida da enfermaria; vestia uma camisa de dormir com rendas e o batom com que pintara os lábios estava ligeiramente esborratado, mas o facto de o ter aplicado era um gesto de desafio, uma prova de como ela se sentia animada. Tinha o cabelo espetado, como se formasse uma lanugem branca, e, assim que elas chegaram, Mamie desculpou-se pelo seu penteado.

 

- É impossível uma pessoa ficar com boa aparência quando se está num hospital - queixou-se ela. - Olhem para mim, não estou com um aspecto nada apresentável. Amanhã de manhã, quero lavar o cabelo.

 

- Está com uma aparência excelente - observou Eleanor, inclinando-se para baixo a fim de poder beijar a face de pele macia, sentindo o cheiro da doença e do azedume por baixo de uma nuvem de um perfume com uma fragrância a flores. Na verdade, Mamie apresentava melhor aspecto do que Marion, que se sentara imediatamente numa das cadeiras de plástico; estava branca como a cal da parede.

 

- Trouxemos-lhe algumas flores e uma revista - disse Eleanor, colocando as coisas em cima da cama.

 

- Que simpático da vossa parte, minha querida. O teu pai já passou por cá esta tarde. Disse-me que vocês duas tinham ficado de vir cá.

 

Marion e Eleanor trocaram um olhar de fugida. Depois, Eleanor foi buscar outra cadeira. Quando voltou ao quarto, Mamie perguntou-lhe:

 

- Hoje já estiveste em nossa casa?

 

- Sim, espero que a tia não se importe por eu ter ido. O pai disse-nos que queria que escolhêssemos as coisas da tia Alice.

 

- A verdade é que eu tenho andado a adiar fazer isso - admitiu Mamie. - Deus nos valha, é uma tarefa muito triste, sermos forçados a livrar-nos das coisas que pertenceram a alguém que já não se encontra entre nós. - Interrompeu-se, dando uma palmada na cama. - E agora olhem bem para mim. Uma velha pateta, não acham? Uma tonta que deu um trambolhão pelas escadas abaixo.

 

- Podia ter morrido - atalhou Eleanor.

 

- Nem pensar, eu não morro com essa facilidade toda - ripostou ela, rindo-se à socapa enquanto pegava nas flores para as cheirar. - Gosto muito de frésias - comentou ela, voltando a pousar as flores. - Agora, vamos lá a ver uma coisa. Viram a papelada que estava dentro da escrivaninha?

 

- Sim - respondeu Eleanor -, tirámos tudo para fora.

 

- E o que é que encontraram?

 

”Ela sabe”, concluiu Marion em pensamento. ”Está bem ciente do que encontrámos.” Ela e Eleanor trocaram outro olhar de relance, sem saberem bem o que dizer perante aquilo.

 

- Eu disse ao vosso pai que já não era sem tempo, que ele já devia ter-vos dito qualquer coisa. Era inevitável que vocês acabassem por descobrir, mais cedo ou mais tarde; na verdade, se a Alice tivesse levado a. sua avante, o vosso pai teria posto tudo em pratos limpos quando a vossa mãe faleceu. Contudo, ele não quis ir contra os últimos desejos da vossa mãe. A Alice não foi capaz de o persuadir a fazer isso.

 

- Mamie, o que é que aconteceu? - perguntou Eleanor. Encontrámos a certidão de nascimento do David... Para nós, foi um choque tremendo.

 

- Claro que foi. Um disparate ter mantido esse assunto em segredo durante todos estes anos. Não que a culpa seja toda da vossa mãe. A Alice mostrou-se igualmente determinada a manter o segredo. Pensei muitas vezes que uma simples palavra menos adequada... Havia ocasiões em que era como se caminhássemos por uma corda bamba, mas o problema é que, quanto mais tempo ocultamos um segredo, mais difícil se torna revelá-lo. - Lançou um olhar arguto a Marion. - Pobre cachopa, tudo isto tem sido de mais para ti, o que não me é difícil de ver. Ainda não estás em condições para visitar pacientes em hospitais. Ponham-se a andar, as duas. Passem por cá amanhã antes de regressarem a vossas casas. Eles deixam-vos entrar, tenciono falar com a enfermeira-chefe.

 

- Lamento muito - começou Eleanor a dizer - que sejamos forçadas a voltar já amanhã para casa. - Gostaria de ter ficado durante mais tempo para poder fazer mais perguntas a Mamie. Tinha a certeza de que Mamie é que poderia esclarecer toda aquela situação de contornos tão pouco nítidos, para não mencionar que receava afligir o pai que decerto teria mais dificuldades em abrir-se com relação àquele assunto. Mas Marion estava com um aspecto francamente adoentado, o que as obrigava a regressar a Pitcairn o mais depressa possível, para que ela pudesse deitar-se.

 

Quando se preparavam para se despedir e Eleanor se inclinava para dar outro beijo à tia, não conseguiu conter-se.

 

- Tia Mamie, o David sabe? - perguntou.

 

- Ah - proferiu ela, e pela primeira vez durante a visita mostrou um aspecto envelhecido e acabrunhado. - Isso é coisa que não sei dizer. No entanto, nada vos impede de tirarem as vossas próprias conclusões a esse respeito.

 

- Tenho muita pena - lamentou-se Marion enquanto Eleanor manobrava por entre o tráfego, seguindo finalmente em direcção à Deeside. - Devíamos ter ficado mais tempo para podermos conversar. Mas...

 

- Não tem importância. Tu estás exausta. O que não é para admirar. Todos estes malditos segredos... é esgotante.

 

- Ainda me custa a acreditar.

 

- Eu sei que isto é um disparate, mas acabei de me aperceber de que... o David não é nosso irmão.

 

- Não sei porquê - replicou Marion. - Quanto a mim, esse é o aspecto menos surpreendente em todo este assunto.

 

- Oh, Marion.

 

- É inegável que ele sempre foi diferente. Estás recordada daquela confusão toda por causa dos exames de final do curso? Ele estava mais do que habilitado para os fazer. E que dizer da maneira como ele fugiu de casa? Jamais me esquecerei daqueles dias horríveis em que não sabíamos do seu paradeiro. Na verdade, foram semanas, até ele ter dado sinais de vida. E somente porque o pobre do Stanley mudou de ideias quando chegaram a Newcastle, resolvendo voltar para casa; se não tivesse sido isso, não teríamos tido quaisquer notícias. O coitado não só teve de enfrentar o pai e aquela mulher horrível, a Irene, mas também foi forçado a falar com os nossos pais. O Stanley subiu muito na minha consideração por ter vindo falar com a mãe com o desassombro que ele mostrou.

 

- Foi no ano em que te casaste - comentou Eleanor.

 

- Foi isso mesmo... licenciei-me em Julho e casei em Setembro. E nem uma palavra por parte do David até quase ao dia anterior ao do casamento. Foi preciso que passassem muitos anos para que eu não me sentisse irritada sempre que pensava nisso. Indubitavelmente, ele estragou esse Verão. Devia ter sido um Verão belíssimo. - Só de pensar naquilo, Marion voltava a sentir uma irritação crescente. - E vê bem a confusão que ele fez da sua vida desde então para cá.

 

- Não é uma confusão... quer dizer, a vida dele não é mais confusa do que a minha - afirmou Eleanor, que continuava a sentir-se muito ligada a David, tendo a sensação de que um completava o outro. Era-lhe impossível imaginar que ele tivesse tido conhecimento daquela situação absolutamente inconcebível, sem que partilhasse esse conhecimento com ela. ”A Marion está convencida de que eu sou como ela, mas não sou; sou como o David”, reflectiu Eleanor.

 

- Não digas disparates - ripostou Marion. - A tua vida não é uma confusão. Aconteceram-se coisas atrozes... teres perdido um bebé e depois a morte do lan. Mas mostraste-te sempre forte e corajosa: conseguiste recomeçar uma nova vida para ti e para a Claire, foste capaz de ultrapassar sozinha todas as adversidades. A única coisa que me preocupa é a possibilidade de esse Gavin não ser um homem que esteja à tua altura. Outro cabeça-no-ar, como o David, incapaz de assentar. É isso que eu mais receio.

 

A estrada tinha pouco movimento e o automóvel rolava a uma velocidade moderada. As árvores perfilavam-se ao longo das duas bermas e para lá destas viam-se os campos. A condução era fácil, mas para Eleanor era quase um esforço excessivo. As suas mãos tensas agarravam-se ao volante enquanto se mantinha inclinada para a frente.

 

- Achas que sim? - perguntou. - Achas realmente que eu consegui aguentar-me bem?

 

- Sim, ao contrário do David - prosseguiu Marion -, que andou sempre em bolandas de um lado para o outro, sem nunca ter um pouso certo, tendo tido dúzias de empregos, além de ter andado a saltar de mulher para mulher, do que não me resta a mínima dúvida. Não sou capaz de me convencer de que não existe a possibilidade de ele, durante uma das ausências mais prolongadas, não ter estado encarcerado numa cadeia qualquer.

 

- Oh, não, Marion!

 

- Bem... - A irmã remeteu-se ao silêncio, pondo-se a olhar através da janela.

 

- Ele continua a ser nosso primo - acrescentou Eleanor decorridos uns momentos.

 

- Pergunto a mim mesma como é que o pai dele seria, esse tal Eric - prosseguiu Marion, mostrando uma expressão meditativa.

 

- Pelo menos na fotografia, dava a impressão de ser um homem com uma personalidade bastante vincada.

 

- Ele saiu do apartamento dela.

 

- Talvez tenha sido ela quem não o quis - alvitrou Eleanor.

 

- Ora bem, conhecendo a Alice como nós a conhecíamos, realmente, essa hipótese não deve ser posta de parte - anuiu Marion, rindo-se com vontade.

 

- Como é que as coisas se conjugaram para terem dado origem a uma situação destas? - perguntou Eleanor, mais para si própria do que para a irmã. - Não sei porquê, mas não sou capaz de imaginar... as discussões que eles devem ter tido. A ideia de dar o David para adopção terá vindo da Alice? E, face a isso, a mãe e o pai teriam dito que estavam dispostos a criá-lo?

 

- Suponho que as coisas se tenham passado mais ou menos nesses moldes - retorquiu Marion com um acenar de assentimento.

- Mas não vale a pena estarmos para aqui a aventar hipóteses. Temos de perguntar ao pai.

 

No entanto, apesar daquelas palavras, as duas irmãs continuaram a especular durante todo o percurso até Pitcairn.

 

Quando já se aproximavam da frente da casa, Marion perguntou:

 

- Tencionas dizer alguma coisa?

 

- Eu?!

 

- Sendo assim, direi eu. Mas o quê? Talvez soasse melhor se viesse de ti.

 

- Porquê? - perguntou Eleanor.

 

- Porque foste tu quem descobriu a certidão de nascimento - replicou Marion com um encolher de ombros. - Sinto-me tão pouco à vontade. Não se pode dizer que seja o género de assunto que possamos abordar facilmente com os nossos pais.

 

Eleanor desligou o motor, mas nenhuma delas fez menção de querer sair do automóvel.

 

- Seja como for, ele deve saber -- afirmou Eleanor, convicta.

 

- Ele mostrou-se tão interessado em que eu passasse a papelada toda a pente fino.

 

Quando as duas irmãs chegaram, o pai via televisão. Apressou-se a desligar o televisor assim que as viu, pondo-se de pé.

 

- Sentem-se. Como é que a Mamie estava?

 

Eleanor mantinha-se junto da ombreira da porta enquanto Marion se sentava numa poltrona perto da lareira. Não estava frio, mas o pai tinha o hábito de cortar madeira ao longo de todo o ano e gostava de ter a lareira sempre com um bom fogo. E ele, apercebeu-se Marion, era quem sempre se encarregara de remover as cinzas e acender a lareira todas as manhãs, o que fazia antes de ir trabalhar. David costumava ficar a observá-lo, querendo ele próprio fazer aquilo, desejando ser a pessoa que riscava o fósforo, chegando a chama à lenha. Porém, quando já tinha idade suficiente para poder ser incumbido daquela tarefa, perdera todo o interesse, sem sequer se chegar à lareira. Marion compreendeu naquele momento que fora então que ele desistira de brincar com fósforos.

 

Todavia, essa recordação, a exemplo de todas as outras, talvez tivesse de ser ajustada. Ao fim e ao cabo, ele não era irmão delas.

 

- Queres um chá, um café ou qualquer outra coisa, Marion?

 

- perguntou Eleanor.

 

- Tomava uma chávena de chá, se não for muito incómodo para ti.

 

- Paizinho?

 

- Sim, boa ideia. Há um bolo dentro de uma das latas. A Mamie obrigou-me a trazê-lo de casa dela. Disse que acabaria por se estragar se o deixasse lá.

 

Quando ficou sozinha com o pai, Marion pôs-se a olhar fixamente para as chamas na lareira, mantendo-se em silêncio.

 

- Como é que as coisas correram? - perguntou John Cairns, inclinando-se para a frente para pegar no atiçador a fim de espevitar as chamas dos troncos que ardiam. Estes desagregaram-se, dando lugar a um clarão vermelho no espaço entre os toros, tendo ele colocado outro em cima dos que já ardiam.

 

- Conseguimos separar as roupas todas. A Eleanor ficou com o medalhão e eu fiquei com o colar de pérolas. O pai vê algum inconveniente nesta divisão?

 

- Tenho a certeza de que está bem. A Mamie disse-me que queria que vocês ficassem com esses objectos.

 

Entre pai e filha instalou-se um silêncio feito de algum mal-estar. Mas, pouco depois, Eleanor voltou trazendo um tabuleiro.

 

- A chaleira está quase a ferver - anunciou ela. - O chá estará pronto daqui a um minuto. - Pousou o tabuleiro em cima da mesa junto da janela e voltou a sair da sala. O pai fez um comentário em relação ao tempo, que mereceu o acordo de Marion. Uma vez mais, o silêncio voltou a reinar até ao regresso de Eleanor.

 

O bolo era escuro, com uma textura húmida, e estava recheado de frutos. Contudo, nenhum deles foi capaz de o comer. Limitaram-se a tomar o chá, os três com uma percepção nítida do assunto que nenhum se atrevia a abordar, mas que se encontrava bem presente na sala com eles.

 

- Portanto - começou o pai, pousando a caneca sobre a mesa -, passaram revista aos papéis que estavam na escrivaninha? Eu já havia tirado os livros de cheques e documentos similares, mas tive o cuidado de deixar tudo o mais que ela tinha guardado lá dentro. Havia alguns álbuns de fotografias que pensei que vocês duas talvez gostassem de ter. Algumas das fotografias foram tiradas antes de a Alice ter nascido... pertenciam aos vossos avós. Estou em crer que vocês mal se recordam deles. Mas são instantâneos que nos mostram a vida deles, quando eles ainda possuíam a oficina de ferreiro. Recordam-se de que o vosso avô Cairns tinha o ofício de ferreiro?

 

- Sim. Acho que sim.

 

- E a mãe e o pai da Mamie, o Alex e a Rose. É possível que tu já não te lembres deles, Marion. Eles costumavam visitar-nos logo a seguir a termo-nos mudado para esta casa. - Pareceu ficar a reflectir por uns momentos naquelas vidas que há tanto tempo haviam terminado. - Porém, depois o Alex faleceu e ela foi viver para um lar - recomeçou John Cairns a desfiar as suas recordações.

 

- Paizinho - interrompeu Eleanor, incapaz de dar continuidade àquela charada. - Pai, há uma coisa de que tenho de lhe falar. Mas o pai já sabe a que é que estou a referir-me, não é verdade? Encontrámos a certidão de nascimento do David.

 

John Cairns recostou-se todo para trás no seu cadeirão, levando uma mão à frente do rosto, ocultando os olhos, que esfregou com força, após o que passou a mão pelos sobrolhos, continuando até ao couro cabeludo.

 

- Sim - admitiu ele. - É inevitável que para vocês tenha sido um grande choque. O que significa que vocês não sabiam de nada. Nem sequer desconfiavam de qualquer coisa?

 

- Como é que podíamos desconfiar? - ripostou Marion numa explosão de irritação. - Como é que havíamos de desconfiar?

 

- Peço desculpa - replicou ele, contrito. - Tenho muito ipena que isto vos tenha acontecido - acrescentou John Cairns; Ia pele do rosto adquirira uma coloração acinzentada. Eleanor sentiu lum baque de piedade que lhe atravessou o corpo.

 

- Òh, paizinho! - disse num lamento. - Por que razão nunca nos disse nada? Não estamos a censurá-lo, acredite, não é nada disso.

 

- Foi a Alice? - perguntou Marion. - Foi ela que não quis que ninguém soubesse?

 

- A Alice e a vossa mãe - respondeu ele, esboçando a custo um sorriso de pesar. - Eu não tinha maneira de ir contra as duas, não vos parece? - Uma vez mais, espevitou as chamas com o atiçador, fazendo mais mal do que bem. - E no fim, verificou-se que era a melhor solução. Fomos nós que o criámos, era o nosso rapaz.

 

- Mas vocês queriam que nós viéssemos a inteirar-nos, não é verdade? - instigou Marion. - Isso deveu-se ao facto de a mãe e a tia Alice já não... estarem entre nós?

 

- Ora bem, não me restava alternativa. Devido ao testamento.

 

- O testamento?!

 

”Eu sabia que havia qualquer coisa”, pensou Marion, confirmando as suas suspeitas.

 

- A Alice deixou a casa ao David.

 

- Mas como é que ela foi capaz de fazer uma coisa dessas? perguntou Eleanor, franzindo a testa. - A casa também pertence à tia Mamie.

 

- Não, a casa pertencia apenas à Alice. A Mamie tem direito a gozar do usufruto enquanto for viva, mas depois passará automaticamente para a posse do David.

 

- A casa. A casa na Duthie Crescent é propriedade do David proferiu Eleanor, que não era capaz de meter aquela realidade na cabeça. - E além do mais, também recebeu um legado de seis mil libras... como a Marion e eu, não é verdade?

 

O pai mostrava-se pouco à vontade.

 

- A verdade é que ele tem direito a um pouco mais do que isso. Além dos legados que couberam à Mamie, a mim e a vocês, ele herda tudo o mais - acrescentou John Cairns com um suspiro. - Os testamentos só servem para criar ressentimentos entre as pessoas. A Mamie é de opinião que vocês duas deviam ter herdado em partes iguais, tanto como o David. Ela disse que fez notar à Alice que vocês duas é que se davam ao incómodo de as visitar, além de se encarregarem de coisas que elas vos pediam, mantendo-se em contacto com as duas e trazendo os cachopos quando as visitavam. Ora o David nunca fez nada disto.

 

- E o que é que isso tem de mais? - ripostou Marion com secura. - Ao fim e ao cabo, ele é filho dela.

 

- Era precisamente assim que a Alice via a situação. - Eleanor era a que se encontrava mais próximo do pai, que lhe deu uma palmadinha afectuosa no joelho. - Para não mencionar que, quando eu morrer, vocês duas é que herdarão esta casa. Não que eu tenha muito dinheiro para vos deixar. Mas, com o preço a que as casas estão actualmente, até mesmo a tanta distância de Aberdeen, cada uma de vós receberá uma quantia bastante jeitosa.

 

- O dinheiro é coisa que não me interessa! - ripostou Eleanor, extremamente encolerizada. - É o secretismo que me incomoda... é o facto de me terem ocultado esse assunto. Sinto-me como se o pai e a mãe nos tivessem mentido ao longo de toda a nossa vida.

 

- Deus me valha, vejam bem o enxame de vespas que este assunto despertou. Eu sabia que era isto que aconteceria - disse o pai, amargurado, levantando-se da poltrona, incapaz de continuar sentado. - E que tal se tomássemos um dedal de uísque? Tenho a certeza de que nos faria bem.

 

Marion recusou, mas isso não o impediu de servir porções generosas para si mesmo e para Eleanor. Com o primeiro gole, emborcou metade do seu uísque.

 

- Assim está melhor.

 

- Oh, paizinho.

 

- Lamento muito, Eleanor. Lamento por vocês duas. Mas o que é que eu podia ter feito?

 

- Conhecendo a mãe e a tia Alice, é preciso admitir que nada reconheceu Marion. - Não se preocupe, só estamos a sentir-nos um pouco atordoadas. E agora só queremos saber como é que tudo isso aconteceu, mais nada.

 

- Ora, a Mamie é capaz de vos contar muito melhor do que eu. Pelo menos no tocante à parte em que a Alice deu à luz o cachopo, na idade dela, depois de ter sido uma mulher solteira durante toda a sua vida. Há que notar que ela nunca se mostrou interessada em nenhum homem, pelo menos que eu me tenha apercebido. Apesar de ter sido uma rapariga bastante atraente quando era nova.

 

- Pai, o David já sabe? - perguntou Eleanor. Fez-se uma pausa enquanto o pai tomava outro trago de uísque.

 

- Sim - respondeu ele. - Não que tenhamos sido nós a dizer-lhe. Nunca foi nossa intenção diferenciá-lo de vocês duas, fosse de que maneira fosse. E, verdade seja dita, até hoje não sou capaz de dizer exactamente como é que ele se inteirou. Mas que sabe, sabe.

 

- Também sabe que herdou a casa e o dinheiro que a Alice deixou? - perguntou Marion.

 

- Não, não faz a mais pequena ideia quanto a isso. Tenho tentado ligar o número de telefone que ele me deu, mas nunca há ninguém que atenda.

 

- Pobre do coitado do David - proferiu Marion meio a rir.

- Devíamos difundir um S.O.S para que o encontrassem.

 

- Assim como um anúncio no jornal - sugeriu Eleanor. Se David Cairns entrar em contacto com a sua família, ficará a saber de algo que lhe será muito proveitoso.

 

As duas irmãs desataram a rir, mas pararam quase de imediato, olhando para o pai, como se merecessem ser censuradas. Contudo, ele dava a impressão de se sentir aliviado, retribuindo-lhes o sorriso. Parte da tensão que os invadira tinha desaparecido.

 

- Então, conte-nos o que se passou - urgiu Eleanor. - Diga-nos como é que a tia Alice se viu nessa situação.

 

E foi assim que, naquele princípio de uma noite amena de Maio, com a última luz do dia a sumir-se por detrás dos maciços de lilases e as chamas da lareira a crepitarem na sala mergulhada numa semiobscuridade, o pai de ambas começou a falar, revelando-lhes aquela história já tão antiga.

 

- A primeira vez que ouvimos falar desse assunto - começou John Cairns - foi quando a Mamie veio ter connosco. Nessa altura, a Mamie ainda vivia em Northumberland. O tio Tom tinha falecido no ano anterior, mas a tia Mamie continuava a viver na casa da polícia, uma vez que ainda não havia sido necessária para outro agente. Ela trabalhava numa loja de fazendas e retrosaria, além de vender camisolas e casacos de malha que tricotava em casa, o que fazia na loja. Já pensara em regressar a Aberdeen; todavia, gostava de viver na aldeia à beira-mar, ao que se acrescia o facto de ter feito boas amigas na localidade.

 

- Por vontade dela, não teria regressado de todo, pois não calculou Marion acertadamente -, se a Alice não tivesse engravidado?

 

- Quem é que poderá dizer? A verdade é que a Alice entrou em contacto com ela, pedindo-lhe que voltasse para cá. ”Preciso da tua ajuda”, alegou ela. A Mamie nunca foi pessoa para virar costas a alguém que precisasse do seu auxílio. A vossa mãe e eu costumávamos dizer que era uma pena que ela própria nunca quisesse ter tido cachopos. Quando a Mamie chegou, apercebeu-se imediatamente de que a Alice estava grávida. Havia mais de um mês que ela não se aproximava de nós - continuou John Cairns. - Desculpava-se, dizendo-nos que tinha muito que fazer no escritório.

 

Por conseguinte, fora Mamie quem dera a notícia a Faith e a John. A casa onde o casal vivia em Aberdeen ficava no extremo oposto da cidade, tomando como referência o apartamento de Alice, à distância de duas viagens de autocarro. Mamie perdera o segundo autocarro, tendo acabado por ser forçada a fazer os últimos três quilómetros a pé. Quando chegou, deparou com Faith no jardim a apanhar a roupa das cordas, enquanto Marion se entretinha no balouço. Eleanor, que nessa altura mal tinha começado a andar, agarrava-se às saias da mãe. Estava um dia de Outono de grande ventania, um bom dia para secar a roupa, apesar de haver uma nuvem negra que se elevava no horizonte, o que levara Faith a apressar-se a apanhar a roupa, dobrando-a antes de a levar para dentro de casa. Não dera pela chegada de Mamie, tendo estado prestes a deixar cair o açafate cheio quando se virou para trás: Mamie não estava acostumada a andar a pé; até mesmo nessa idade, já era uma mulher anafada e quando chegou a casa de Faith já ia com falta de ar. Durante uns momentos, nenhuma das duas falou. Mais tarde, Mamie diria: ”Eu mal precisei de dizer uma única palavra. A vossa mãe era uma pessoa muito perspicaz. Ela viu logo que havia qualquer problema.”

 

Já na cozinha, as duas mulheres começaram a conversar. Foram muitas as vezes em que foram interrompidas pelas crianças; numa dessas ocasiões, Faith teve de se levantar da mesa para ir buscar o bacio para Eleanor ou para desatar a touca de lã de uma das bonecas de Marion - pequenas coisas rotineiras de que as crianças precisavam.

 

Aquilo fez com que Mamie começasse a pensar no ”problema” de Alice, dando-lhe a forma de um bebé, uma outra vida, alguém que chamaria, choraria e brincaria como Marion e Eleanor.

 

- Fica para jantar - convidou Faith. - Quando os cachopos se forem deitar poderemos comer em paz e sossego.

 

- Obrigada, mas não. Quero estar em casa quando a Alice chegar do trabalho. Ela tem andado muito em baixo.

 

- Anda preocupada? - Faith não era capaz de a imaginar assim. Não havia nada que parecesse perturbar Alice: ela mostrava-se sempre tão calma, tão plácida.

 

- Bem... sim. Mas não se pode dizer que dê... parte de fraca

- replicou Mamie à falta de palavras que melhor descrevessem a situação. - Guarda tudo dentro de si. A irritação.

 

- Irritação?!

 

- Sim, isso mesmo. Está a ter dificuldade em ultrapassar o que lhe está a acontecer. Eu bem lhe digo que é uma coisa que pode acontecer às mulheres mais irrepreensíveis; não há ninguém que não cometa erros. Por vezes, a natureza é que dita o nosso destino. Contudo, a verdade é que ela estaria disposta a fazer fosse o que fosse para poder alterar o rumo das coisas. Percebes o que quero dizer, não é verdade.

 

- Oh, não, Mamie. Com certeza que não. Mas como...? Ambas conheciam apenas mulheres respeitáveis e médicos. Porém, isso não impedira que já tivessem ouvido falar de outro género de pessoas. No entanto, daquela vez, Mamie batera o pé, uma coisa muito rara nela.

 

- Eu disse-lhe que a ajudaria em tudo o que estivesse ao meu alcance. ”Eu própria criarei o cachopo se for caso disso. Mas recuso-me a ter o que quer que seja a ver com essas criaturas de becos esconsos.”

 

Talvez que, no fim, Alice não tivesse sabido o que fazer para se ver livre do bebé. Ou então ter-lhe-ia faltado a coragem para o fazer. Todavia, dera continuidade à sua vida como se lhe fosse possível ocultar aquele segredo para sempre. Recusava-se a falar com quem quer que fosse sobre aquele assunto.

 

- Mas... e no emprego? - perguntou Eleanor ao pai. - Nesses tempos, isso era um verdadeiro escândalo. Ela teve muita sorte por não a terem despedido.

 

- Ora, em nome da decência, não poderiam ter agido de outro modo - atalhou John, desdenhoso. - Ao fim e ao cabo, eles é que haviam dado emprego ao sujeito.

 

- O tal Eric?

 

- Sim, era esse o nome dele. Já me tinha esquecido. Mas recordo-me de que o apelido dele era Foster - acrescentou com a mesma expressão de desdém. - Seja como for, o fulano foi-se embora, levando consigo mais do que o bom nome da Alice. Também levou uma determinada quantia em dinheiro a que não tinha qualquer direito. Mas, no fim, o Peter Simpson optou por abafar o assunto. Às vezes penso que procedeu assim para salvaguardar a reputação da Alice. É preciso dizer que, à sua maneira, ele gostava bastante dela.

 

- Por que razão esse tal Eric não casou com ela? Ou dar-se-ia o caso de ser um vigarista? - perguntou Marion.

 

Agora, tudo aquilo se ajustava. O homem de idade que assistira ao funeral, a alusão que o pai fizera ao sócio que abandonara a firma. Esse sócio era o tal Eric; o Eric era o amante de Alice.

 

- Foi isso mesmo que a tua mãe perguntou: ela não podia ter casado? Mas a Mamie respondeu que o sujeito já tinha abandonado a cidade. Ela estava convencida de que ele teria uma mulher algures. Não sei dizer ao certo. Pouco depois, como já tive oportunidade de dizer, descobriu-se que ele se apoderara de dinheiro que não lhe pertencia. O Peter culpou-se a si próprio por causa disso. Estou em crer que ele sentiu que a obrigação dele teria sido ficar mais atento ao homem, que devia ter-se apercebido de algo de anormal.

 

- Ele chegou a ser levado a tribunal? Conseguiram descobrir o seu paradeiro? - quis saber Eleanor.

 

- O Peter e eu ainda tentámos descobrir-lhe a morada respondeu o pai. - No mínimo, para conseguirmos obter algum dinheiro para a Alice, para o cachopo. Mas ela impediu-nos de continuar. Disse-nos que se recusava a aceitar um tostão que fosse que viesse dele. A Alice era uma mulher muito orgulhosa! Por Deus que era, como poucas!

 

Durante toda a gravidez, Alice insistira em que o bebé fosse adoptado logo após o nascimento. Mamie esforçara-se por persuadi-la a não proceder dessa maneira, oferecendo-se para ficar a viver com ela a fim de poder cuidar da criança.

 

- Não lhe faltará absolutamente nada - garantira Mamie;

 

- Faltar-lhe-á um pai - replicou Alice. - Seria criado por duas solteironas... Nem pensar. É preferível que seja adoptado. Há muitos casais que querem bebés e não os podem ter.

 

E então, depois de a criança ter nascido, Alice mudou de ideias. Eleanor e Marion tentaram imaginar como é que aquilo teria acontecido, dando consigo numa grande frustração, incapazes de preencher as lacunas na narrativa do pai. Eleanor concluiu que essas mesmas lacunas é que constituíam os aspectos mais importantes, mas não havia ninguém que lhes pudesse dizer o que teria passado pela cabeça de Alice. Em qualquer dos casos, a verdade é que ela já não queria que a criança fosse adoptada por estranhos. Todavia, recusava-se a dar-lhe de mamar ou a mudar-lhe as fraldas. Assim que chegou a casa depois de ter tido alta da maternidade, entregou-o completamente aos cuidados de Mamie.

 

No entanto, a maneira de ser desta também sofreu alterações. Na altura, tinha quarenta e um anos; de súbito, apercebeu-se dos muitos esforços que um recém-nascido exigiam a uma pessoa. David chorava muito. Passava grande parte do dia e toda a noite a chorar, pelo menos era o que parecia àquelas duas mulheres desesperadas, enquanto Mamie andava com ele ao colo e Alice aquecia Ovaltine para as duas, o que servia para as reconfortar ao longo daquelas noites tão compridas.

 

- O que é que tencionas fazer? - perguntou-lhe Mamie numa ocasião, ao que Alice lhe replicara, tentando fazer-se ouvir acima do choro da criança, um pranto que parecia furar os tímpanos das duas.

 

- Não sei, mas parece-me errado entregá-lo a gente que não conhecemos de lado nenhum. Como é que poderíamos saber que lhe darão uma educação como deve ser?

 

- Achas que devíamos ser nós a criá-lo? - perguntava Mamie com a criança ao colo, dando esta a impressão de que redobrava os seus esforços, berrando cada vez mais alto. Porém, naquele momento, Mamie receava o que poderia vir a acontecer caso Alice lhe respondesse que sim.

 

- Nesse caso, toda a gente ficaria a saber que ele não tem pai! gritou-lhe Alice. Então, pela primeira vez desde a gravidez, ela foi-se abaixo, desatando a chorar desabaladamente. - Não tem pai, nem irmãos nem irmãs... Que tipo de vida é que poderíamos proporcionar-lhe?

 

Mamie nunca se esquecera dessa noite. Alice com umas olheiras muito profundas por baixo dos olhos escuros, enrolada sobre si mesma na cama. Mamie a andar de um lado para o outro, de uma ponta à outra do quarto, sem parar, tentando calar a criança. Finalmente, sentindo-se exausta, deitou-o no carrinho que ambas haviam comprado e, de súbito, sem restos de choro, sem qualquer aviso, ele adormeceu num sono profundo. As duas ficaram sentadas em silêncio, um silêncio que conseguia ser ainda mais aterrador do que a berraria que o precedera, chorando em conjunto.

 

- Por fim - continuou John Cairns falando com as duas filhas - a vossa mãe disse-lhes que nós próprios o criaríamos. Ela não tencionava vir a ter mais filhos, uma vez que a Eleanor nascera de cesariana, altura em que os médicos lhe disseram que não seria aconselhável ter mais filhos. Contudo, ela sabia que eu gostaria de ter tido um rapazinho. - John viu o modo como Eleanor e Marion se entreolhavam.

 

- No entanto - prosseguiu -, nessa altura já eu tinha as minhas duas meninas. Deixei de me importar com um rapazinho. Marion sorriu ao mesmo tempo que abanava a cabeça. - Tenho muito orgulho nas minhas duas raparigas - afirmou ele pigarreando, manifestamente constrangido. - Bem, a vossa mãe tinha apenas vinte e oito anos. Ainda era muito jovem. Portanto, disse que ficaria com ele.

 

- E a Alice e a Mamie estiveram de acordo com essa solução? perguntou Marion.

 

- Desconfio que, na altura, ambas sentiram um alívio indescritível. Era impossível que houvesse outra criança que berrasse tanto como o David berrava nas primeiras semanas de vida - declarou John com um sorriso enquanto abanava a cabeça. - Mas, apesar disso, quando ele veio para nossa casa, apenas algumas semanas depois de ter nascido, passados dois ou três dias acalmou-se. A vossa mãe conseguiu fazer com que ele dormisse durante quase toda a noite - acrescentou John com um suspiro. - Portanto, pode-se dizer que as coisas se resolveram pelo melhor, não acham?

 

- Mas o pai e a mãe decidiram adoptá-lo oficialmente? - quis saber Eleanor.

 

- Nunca vimos necessidade para isso. Talvez tenhamos acabado por protelar o assunto até ser tarde de mais. Receávamos a interferência de terceiros. Era um assunto que só dizia respeito à nossa família. Na altura, a vossa mãe disse-me: ”Ele está melhor aqui do que em qualquer outro lugar onde fosse criado como sendo um filho único.” Ela própria foi filha única, além de ter tido uma mãe demasiado possessiva, que não se mostrou nada satisfeita quando a vossa mãe decidiu casar-se comigo, tendo desistido do bailado clássico.

 

Eleanor e Marion já haviam ouvido aquela história, pelo que não viram qualquer necessidade de abordar o mesmo assunto uma vez mais.

 

- Por conseguinte, isso quer dizer que não chegou a haver uma adopção oficial? - persistiu Eleanor.

 

- Não - confirmou o pai.

 

- Mas... e quando ele precisou de uma certidão de nascimento? Não percebo por que razão é que não lhe disseram a verdade logo de princípio?

 

- Nem a vossa mãe nem a Alice queriam ouvir falar no assunto. Nesse ponto, ambas estavam inteiramente de acordo. Além do mais, não é muito difícil arranjar uma certidão de nascimento abreviada, onde só conste o nome, data e local de nascimento. Não é obrigatório que o nome dos pais figure nesse documento. E serve para resolver a maior parte dos assuntos.

 

- Portanto, toda a gente esteve de acordo quanto a isso? A mãezinha e a tia Alice partilhavam do mesmo ponto de vista?

 

- Bem vês... enquanto o David fosse pequeno, não havia grande problema. Ou pelo menos era o que nos parecia na altura. A Alice nunca interferia em nada. - Olhando para trás, John concluía que as suas palavras tinham tanto de justas como de verdadeiras. Todavia, as palavras revelavam tão pouco. Deixaria que fosse Mamie a contar-lhes os pormenores, decidiu para consigo próprio ao verificar que lhe era demasiado doloroso regressar ao passado. As mulheres tinham mais tacto para lidar com assuntos daquela natureza.

 

Decorrido mais ou menos um ano, admitiu John, Faith manifestara vontade de oficializar a adopção. No entanto, Alice nem sequer queria ouvir falar nesse assunto: concordou em que não se dissesse nada a David, comprometendo-se a não interferir em nada que lhe dissesse respeito, todavia, recusou-se terminantemente a desistir do filho, oficializando a adopção. Faith ficava acordada à noite, deitada na sua cama, preocupada com aquele assunto. No fim, foi aquele aspecto que a convenceu quando John começou a pensar em comprar Pitcairn, em vez de outra casa na cidade. Em Aberdeen, viviam demasiado próximos uns dos outros: havia muita gente que os conhecia. Desde que fisicamente afastado da cidade, longe de Alice, David adaptar-se-ia melhor à maneira de viver do casal. Mesmo assim, Faith continuou a afligir-se com aquilo.

 

- Caso ela decida mudar de ideias, querendo que ele lhe seja devolvido - dissera ela na altura -, poderíamos fazer alguma coisa a esse respeito? Achas que poderíamos ir com ela para tribunal?

 

- Para o tribunal! - exclamou John mostrando-se horrorizado. Aquela era a sua família; uma atitude dessas seria absolutamente inconcebível.

 

- Não, tens razão - concordou Faith -, mas a verdade é que gostaria de sentir que estamos em segurança.

 

Contudo, David só lhes arranjara preocupações enquanto crescia, sempre metido em problemas, especialmente quando fez dezassete anos. Essa tinha sido uma fase muito má na vida deles.

 

No entanto, durante toda a infância do filho, Alice mantivera-se fiel à sua palavra, permitindo que Faith e John criassem e educassem a criança da melhor maneira, na opinião deles. Faith começou a sentir-se mais tranquila. À medida que o tempo ia passando, cada vez era menos plausível que a situação viesse a sofrer grandes alterações. Alice queria o melhor para David, a fazer fé nas suas palavras. Para já, não tencionava privá-lo daquela família. Não se tinha sentido muito satisfeita aquando da mudança para Pitcairn, muito embora mais tarde tivesse confessado a John que compreendia que aquela decisão havia sido o melhor para David.

 

- Tem espaço para poder correr à vontade - afirmara ela então. - Os rapazes têm uma reserva inesgotável de energia. Aqui, no campo, ele estará mais em segurança.

 

Com regularidade, Alice enviava os seus cheques, insistindo naquela contribuição para o sustento do filho, e, com a mesma regularidade, Faith depositava esses montantes num fundo de investimentos de que David era o único titular. Quando chegasse a altura de ele iniciar os seus estudos universitários, aquele dinheiro ajudaria a custear as despesas, alegava ela, recusando-se a tocar-lhe para comprar roupas, brinquedos ou comida. Era Alice quem comprava as bicicletas dele, oferecendo-lhe uma nova sempre que ele ficava demasiado crescido (ou desse um uso excessivo) para a anterior. Aquilo não agradava a Faith; todavia, ela não se opunha abertamente.

 

- É melhor manter o meu nome fora do assunto - dissera Alice. - Não há necessidade de dizer qual a proveniência do dinheiro. - Sentindo algum mal-estar, a que se associava um certo sentimento de culpa, Faith acabara por ceder.

 

Mantendo alguma distância, Alice parecia satisfeita com a sua vida muito organizada de mulher solteira. Ela e Mamie costumavam passar as férias de Verão na Suíça ou na Áustria, tendo havido um ano em que optaram pelos lagos de Itália. Ambas eram pessoas activas na igreja que frequentavam; Mamie ajudava numa das lojas da Oxfam, enquanto Alice era a presidente da Associação de Mulheres, além de fazer parte do coro da igreja. Alice também continuou a trabalhar no escritório de advogados dos Simpson e Dalgarno, apanhando o autocarro que a levava todas as manhãs até ao centro da cidade e regressando a casa às cinco horas, um percurso que fazia a pé a fim de praticar algum exercício físico. Mamie era quem cozinhava e tratava da lida da casa. Aos fins-de-semana, ambas tratavam do jardim. Tanto uma como a outra levavam uma vida activa e produtiva.

 

- Continuo a não compreender como é que ela conseguia seguir a sua existência como se não tivesse acontecido nada que pudesse ser considerado anormal - comentou Eleanor, intrigada. Ela não queria que o David viesse a saber quem era a sua mãe biológica? Eu jamais seria capaz de suportar uma situação dessas. Para ela, deve ter sido absolutamente atroz.

 

- Actualmente, vivemos num mundo muito diferente, cachopa - retorquiu o pai. - A Alice detestava a ideia de alguém poder vir a saber que tinha tido um filho à margem da sagrada união do matrimónio. E o mais caricato era o facto de até mesmo as pessoas que sabiam que ela tivera esse filho, as que trabalhavam com ela ou as que conhecia da igreja, parecerem quase ter-se esquecido desse incidente. Era como se ela tivesse apagado o passado. Apagado por completo.

 

Eleanor pensou no medalhão com as suas fotografias ocultas.

 

- Não acredito nisso. Era impossível que ela tivesse conseguido apagar esse acontecimento face a si própria.

 

- Tens toda a razão - concordou o pai. - Porque quando o David fez dezassete anos, de repente, ela meteu na cabeça que queria contar-lhe a verdade.

 

- Não! - exclamou Marion. - Porquê, passados tantos anos?

 

- Ela apanhou um susto... Surgiu-lhe um caroço no peito... explicou John. Sem proferirem palavra, Eleanor e Marion entreolharam-se. - Mas ela teve mais sorte do que tu, uma vez que veio a provar-se não ser nada de importância, não era um tumor maligno. Teve de ser operada, uma coisa insignificante, e ficou como nova. Mas a verdade é que apanhou um grande susto.

 

Talvez, conjecturou Eleanor, Alice tivesse receado que se viesse a morrer, caso o segredo continuasse sem ser revelado, David jamais soubesse quem era a sua mãe biológica. Uma perspectiva que ela não podia conceber. Todavia, Marion não aceitava aquela hipótese de bom grado.

 

- Ora, deixe-se disso, paizinho, era impossível que ele não viesse a descobrir.

 

- Sim, é verdade - admitiu o pai. - Era forçoso que isso viesse a acontecer. E aconteceu. Seja como for, pode-se dizer que esse assunto foi motivo de atrito entre a vossa mãe e a Alice durante algum tempo.

 

Faith considerava que David estava numa idade muito perigosa; andava extremamente preocupada por causa dele.

 

- Essa revelação nesta altura só servirá para o prejudicar - insistira Faith. - Ao menos espera que ele acabe de fazer os exames.

 

Finalmente, Alice acabara por acatar esse conselho.

 

- E vocês já conhecem essa história - prosseguiu o pai. Do David e dos seus exames.

 

- Isso quer dizer que a Alice concordou em que nunca se lhe diria nada?

 

- Bem, esse foi o Verão em que ele partiu para Londres, onde lhe perdemos o rasto. Quando por fim se decidiu a dar-nos notícias, a vossa mãe e a Alice sentiram-se de tal modo aliviadas por o saberem são e salvo... que nunca mais se voltou a falar desse assunto. Ambas concordaram em não dizer nada. De uma maneira bastante curiosa, todo esse assunto serviu para as aproximar ainda mais uma da outra.

 

No seu íntimo, era muito possível que Alice não aprovasse a maneira como o filho fora educado; Faith, o pai do rapaz, os genes desconhecidos. Contudo, a realidade é que as duas mulheres desejavam o melhor para aquele filho de carácter tão difícil.

 

Marion bocejou, sentindo o corpo percorrido por um pequeno arrepio.

 

- Deus me valha, isto é um pouco de mais para mim.

 

- Está na hora de ires para a cama - disse Eleanor, mantendo-se sempre atenta ao bem-estar da irmã, o que não passou despercebido ao pai; ultimamente, ela era muito cuidadosa quanto ao estado de saúde de Marion.

 

- Amanhã têm muito tempo para poderem falar com a Mamie acrescentou John. - Ela poderá contar-vos mais pormenores.

 

Quando Marion já se tinha ido deitar, Eleanor foi ao quarto da irmã onde permaneceu durante uma meia hora. Sentou-se na beira da cama e as duas ficaram a conversar. Contudo, aquela era uma conversa que não poderia ser concluída. Continuaria indefinidamente, ao longo dos vários anos vindouros.

 

- Agora devias tentar dormir - aconselhou Eleanor, pondo-se de pé. - Amanhã temos de tentar, sem falta, entrar de novo em contacto com o David. Talvez eu consiga descobrir o paradeiro do sócio dele. O homem tinha um nome bastante invulgar... Como é que era?

 

- Tudo isto é tão estranho - murmurou Marion, ajeitando as almofadas antes de se deitar por completo. Tinha um aspecto jovem e muito infantil, com o cabelo escuro e o rosto empalidecido contra as fronhas brancas. Eleanor sentiu-se momentaneamente invadida por um sentimento de receio, temendo pelo bem-estar da irmã. ”Agora já não tenho um irmão. Durante todos estes anos, julguei que tinha um irmão.” Era algo que não era capaz de lhe entrar na cabeça, o facto de David ter deixado de ser seu irmão. Uma ideia que a levava a querer agarrar-se à irmã mais do que nunca.

 

Eleanor ficou acordada na cama durante muito tempo, incapaz de conciliar o sono. Durante breves instantes, quando mergulhara num estado de semi-sonolência, pensou ter ouvido o choro de uma criança, o que a despertou imediatamente. Concluiu, no entanto, que se tratava apenas do piar de um mocho que ecoava pelo arvoredo. Enquanto se mantinha atenta a esse ruído, ocorreu-lhe à mente o grande alvoroço na noite em que Marion correra para o quarto dos pais a gritar que tinha visto um fantasma com um bebé ao colo que chorava. Mais tarde, nessa mesma noite, ela e Marion haviam dormido na mesma cama, aninhadas uma na outra. Não se recordava se nessa altura ainda partilhavam o mesmo quarto - ou seria que uma delas tinha procurado conforto junto da outra no quarto desta? ”Devo ter sido eu”, concluiu Eleanor, mergulhada numa semi-sonolência, ”eu sempre rui a que se assustava com tudo e mais alguma coisa, sempre a precisar da companhia dela.” O cabelo de Marion a fazer-lhe cócegas no rosto, como se fossem penas, a macieza do pijama Winceyette, as pernas de ambas entrelaçadas na cama estreita.

 

Qual era o aspecto dela, da senhora?

 

Era um pouco como a tia Alice.

 

Talvez tenha sido um sonho.

 

O choro não era sonho nenhum. Eu bem ouvi esse choro.

 

Portanto, de onde é que esse fantasma teria vindo com um bebé nos braços? ”Eu também a vi”, pensou Eleanor, ”no jardim em Pitcairn, anos mais tarde. Julguei que era a cigana, a mulher do latoeiro que morreu no incêndio sem largar o seu bebé. Um pouco como a tia Alice.”

 

Eleanor virou-se na cama, deixando-se adormecer de novo, a sonhar com Gavin e que, ao fim e ao cabo, iria ter o filho dele. Quando acordou, continuando a acreditar naquilo, sentiu que tinha as faces molhadas de lágrimas. O sonho havia sido tão vívido, tão real na sua perspectiva, que agora mal se dava conta de ter despertado durante a noite. Tinha-lhe surgido qualquer coisa, uma ideia nova de que não se recordava. Concretamente, não era capaz de especificar a natureza dessa coisa.

 

No dia seguinte, Eleanor e Marion encetaram a viagem de regresso a casa, depois de terem ido visitar Mamie ao hospital. A doente tinha um aspecto mais cansado do que no dia anterior ao fim da tarde.

 

- Eles puseram-me a andar apoiada a duas canadianas de uma ponta à outra daquele corredor - dissera-lhes ela. Ambas ficaram sem saber se estaria a vangloriar-se ou a queixar-se. Devia permanecer internada até ao fim da semana, após o que seria levada para um lar em Deeside, onde ficaria a convalescer. Era com ansiedade que ela antevia essa estada: ouvira dizer que a comida era de boa qualidade, além de haver uma cabeleireira que ia ao lar com regularidade, o que lhe permitiria ter sempre o cabelo bem arranjado.

 

- Já conseguiram entrar em contacto com o David? - não parava Mamie de perguntar-lhes. - Decerto que ele vai querer ir ver a casa. - Os temas da conversa dela haviam-se cingido àquilo e a uma história que uma das enfermeiras lhe contara. - Ela vai oficializar o noivado no próximo Natal, portanto, perguntei-lhe de que é que estava à espera. ”Porque é que na sua idade há-de esperar?”

 

Eleanor e Marion olharam uma para a outra. O que poderiam elas perguntar-lhe, se é que haveria alguma coisa? Ficaram com a impressão de que era mais difícil chegar a Mamie. Inesperadamente, porém, ela mudou de assunto.

 

- Falaram com o vosso pai? - perguntou.

 

- Falámos - respondeu Eleanor. Hesitou, o que levou Marion a pegar na conversa.

 

- Tia Mamie, chegou a conhecer esse tal Eric... o pai do David?

 

Com uma expressão de concentração, Mamie semicerrou os olhos.

 

- Sim, conheci - respondeu com um acenar de cabeça. -- Mas isso foi muito antes de a Alice se ter metido em sarilhos. Quando cheguei a Aberdeen, já o homem desaparecera. No entanto, eu tinha estado em Aberdeen alguns meses antes, ocasião que aproveitámos para almoçar no Esslemont e Mackintosh. Havia no restaurante um ambiente bastante agradável, além de ser muito em conta.

 

Apesar de actualmente se achar muito desmemoriada, Marion sabia que a tia Mamie seria capaz de se recordar de todos os pratos que constavam da ementa nesse dia, podendo mesmo descrevê-los ao pormenor. Tentou fazer com que ela se concentrasse naquilo em que estava realmente interessada.

 

- Isso quer dizer que o viu no escritório? Qual era o aspecto dele?

 

- Não. Não, ele veio ter connosco quando nos encontrávamos no restaurante. Estávamos quase a acabar o primeiro prato... empada de carne de vaca e rim, acho eu. A Alice só quis comer uma tosta de queijo; ela nunca comia muito a meio do dia. Mas adiante... Ele aproximou-se da nossa mesa, pelo que a Alice não teve alternativa senão apresentar-mo. Mas não era difícil ver que o fez bastante contrariada.

 

- Porque é que não queria apresentá-lo?

 

- Ora, porque ela era assim mesmo. Uma pessoa muito reservada.

 

- É possível que nessa altura já existisse qualquer coisa entre os dois, não? - sugeriu Eleanor.

 

- Não me pareceu - replicou Mamie com um vigoroso abanar de cabeça. - E não se pode negar que ele era um homem muito bem-parecido, posso garantir-vos.

 

- Aprumado - sugeriu Eleanor. - Para utilizar uma expressão da Claire.

 

- É verdade que ele usava camisa e gravata - acrescentou Mamie, sem entender o que a sobrinha quisera dizer. - Nesses tempos, todos se vestiam bem no escritório. Não era como a gente nova de hoje em dia, sempre de calças de ganga.

 

- Tia Mamie - começou Eleanor -, o David é parecido com ele?

 

- Claro que sim. Ainda bem que ele abandonou esta região. Se tivesse continuado a viver aqui, teria sido impossível não se ter dado conta de que o David era seu filho - afirmou ela antes de fazer uma pausa. - Mas ele era um gastador, um malandro, um homem de mau carácter. Portou-se muito mal para com a Alice, que era uma mulher como devia ser. Ele tinha obrigação de ter agido com mais honestidade. - Mamie sentia-se tão indignada que corou, como se os anos que mediavam esse episódio tivessem desaparecido, pelo que as más acções de outrora continuavam a ter toda a actualidade.

 

- Sei que ele se apoderou de dinheiro que não lhe pertencia, o que o pai nos disse. No entanto, devia ter algumas boas qualidades

- atalhou Marion num tom insistente.

 

- Ele era um homem encantador - continuou Mamie. Do que eu tenho a certeza.

 

- Isso quer dizer que não era mau! - perguntou Eleanor, sabendo de antemão o que Marion tentava deslindar. - Um malandro como a tia disse, que muito provavelmente ficou assustado quando soube que ela estava grávida, mas que não se podia dizer que fosse uma pessoa de mau carácter.

 

O olhar de Mamie fixara-se num ponto atrás das duas, percorrendo todo o comprimento da enfermaria. Marion tocou no braço de Eleanor.

 

- Ali, ali está ela! - indicou Mamie.

 

- Quem?

 

- A enfermeira franzina de que vos falei. Peçam-lhe que vos mostre o anel... é lindíssimo. Enquanto está de serviço, costuma trazê-lo num fio à volta do pescoço.

 

Eleanor e Marion ficaram a olhar uma para a outra sem saberem o que pensar. Com um suspiro, Mamie reclinou-se para trás.

 

- Hoje estou a sentir-me muito em baixo. Só ficarei satisfeita quando me vir daqui para fora. Já vos disse que eles vão pôr-me em Deeside? Vou poder ter o cabelo sempre arranjado, o que é uma bênção.

 

- Ainda bem - redarguiu Eleanor, levantando-se da cadeira onde se sentara. - Aí poderá repousar mais do que em casa. Agora é melhor deixarmos a tia em paz e sossego.

 

- A esta hora já o vosso pai estará a perguntar-se por onde é que vocês andarão.

 

- Não, quando sairmos daqui, iniciaremos a viagem de regresso a casa, tia Mamie.

 

As duas irmãs despediram-se da tia, beijando-a na face de pele macia e deixando-a deitada com os olhos cerrados.

 

- Ela hoje não está grande coisa - comentou Marion quando saíram do hospital.

 

- Não admira... foi um choque muito grande.

 

- Estás a referir-te à operação ou aos segredos que ultimamente têm vindo a lume?

 

- Às duas coisas - respondeu Eleanor.

 

Durante a primeira parte da viagem, nenhuma das duas se mostrou muito conversadora. Era como se houvessem chegado a uma barreira impossível de derrubar até terem falado com David. Estavam fartas de tantas especulações, sentindo a espécie de vazio que acompanhava uma verdade posta a descoberto.

 

- Todas estas mentiras - disse Eleanor -, repetidas vezes sem conto, durante anos e anos a fio.

 

- Ora... - suspirou Marion. - Falemos de outra coisa qualquer.

 

Apesar destas palavras, as duas irmãs remeteram-se ao silêncio. Pouco depois, Eleanor foi forçada a parar quando chegou a uns sinais luminosos que assinalavam trabalhos na estrada, altura em que o mutismo provou ser demasiado para Marion.

 

- E quanto ao Gavin? - perguntou. - Nesta altura, ele está em casa, não é verdade?

 

- Está - confirmou Eleanor, esperando que as luzes mudassem antes de prosseguir.

 

- Combinaste encontrar-te com ele esta noite?

 

- Ele vai começar a trabalhar em Aberdeen - disse Eleanor sem responder à pergunta da irmã.

 

- Oh, estou a ver! Quando é que começa?

 

- Dentro de seis meses - respondeu Eleanor.

 

- Muito bem. - Fez-se outra pausa. - Portanto... o que é que o levou a tomar essa decisão? Foi a firma onde trabalha que o transferiu ou foi por iniciativa dele?

 

- Ele está farto de trabalhar no mar alto - replicou Eleanor, observando a irmã pelo canto do olho. - Mas não está a pensar em me abandonar nem nada do género. Quer que eu me mude com ele para Aberdeen.

 

- Para Aberdeen?!

 

- Sim, eu sei que é impossível. Não posso mudar-me para lá.

 

- E porque não? Não que eu queira que te vás embora acrescentou Marion pressurosamente. - Claro que não quero.

 

- Ora, deixa-te disso, Marion. Eu seria incapaz de levar a Claire para longe daqui. No próximo ano tem os exames nacionais, para não mencionar que ela detestaria ter de se mudar, e ainda por cima para uma cidade, depois de toda a liberdade de que desfruta aqui.

 

- É bastante provável que venha a ficar-te muito agradecida, principalmente quando fizer dezassete anos e começar a querer ir às discotecas.

 

- Seja como for... não posso mudar-me, assim sem mais nem menos, para longe de ti.

 

- Oh, Eleanor - retorquiu Marion, perturbada. - Não podes viver a tua vida centrada na minha doença. Em qualquer dos casos, dentro em pouco estarei completamente recuperada, para não mencionar que tenho o Fergus e as crianças. Tu precisas de ter a tua própria vida.

 

- Ouve uma coisa - atalhou Eleanor por entre os dentes cerrados, enclavinhando os dedos no volante. - Quero continuar aqui. O meu lar é aqui.

 

”Ela sente-se encolerizada”, reflectiu Marion. ”O que é que eu lhe terei dito?”

 

- Eleanor - murmurou, tocando no braço da irmã e sentindo-o rígido, tanta a tensão que se apoderara dela. - Olha uma coisa, não há motivo para preocupações. Quero que procedas da maneira que te fizer mais feliz. Não te quero pressionar, ainda que inconscientemente. Tens sido uma irmã excelente para mim ao longo destes últimos meses que tão horríveis têm sido. Não sei o que teria feito sem ti.

 

Fez-se silêncio. Mas os dedos de Eleanor desenclavinharam-se e os nós perderam a coloração esbranquiçada. ”Tão difícil que tudo isto é”, pensou Marion. ”Perdemos o nosso irmão; agora temos medo de virmos a perder-nos uma à outra.” Havia mais de uma maneira para que essa perda se concretizasse.

 

Pararam no Baxter’s para comer, pouco depois das duas horas da tarde. Ali, no restaurante de ambiente tranquilo, com as suas mesas de madeira e o aroma que provinha de uma sopa e das panquecas que estavam a ser preparadas, ambas se embrenharam numa das muitas conversas triviais que costumavam travar entre si. Começaram a falar dos respectivos filhos. Em resumo, talvez não tivessem outros assuntos que pudessem discutir, nem tão-pouco pontos de vista a trocar, excepto aqueles que haviam abordado numa dúzia de ocasiões anteriores, mal ouvindo o que a outra dizia, o que não impedia que se sentissem satisfeitas. Depois dessa conversa, o resto da viagem não lhes pareceu ser tão maçador.

 

Eleanor levou Marion a casa, após o que foi buscar Claire a casa de Sarah.

 

- Entre - convidou Andrea. - Tive um dia horrível a arrumar o sótão, portanto, uma chávena de chá vai saber-me às mil maravilhas. Quer fazer-me companhia? E a sua tia, como é que está?

 

Eleanor tivera a intenção de seguir directamente para casa, a fim de poder estar com Gavin logo que lhe fosse possível, ainda que apenas por uma hora, antes de ele sair ao princípio da noite com o amigo. Mas a cordialidade com que Andrea a acolheu, aliada ao pensamento do acolhedor jardim de Inverno nas traseiras da casa, onde ambas poderiam sentar-se a falar das coisas banais da vida, tornaram-se imediatamente irresistíveis.

 

- Não deves correr atrás dele; este é o único conselho que tenciono dar-te - proferira Marion; dado que, quando a irmã lhe disse aquilo, a atmosfera entre as duas voltara a ser de franca abertura, Eleanor não se sentira ressentida com ela.

 

- Obrigada - agradeceu a Andrea. - Aceito com todo o prazer.

 

O que Eleanor mais desejava partilhar com Andrea era, como seria de esperar, as coisas de que se inteirara ao longo dos últimos dois dias. Seria uma grande fonte de conversa (e de mexeriquices) durante os próximos meses. No entanto, isso seria impraticável, uma vez que se tratava de assuntos que não poderia abordar com estranhos à família. Ao invés, começaram a falar das respectivas filhas e das próximas férias de Verão.

 

- Estou em crer que este ano vou fazer umas férias como deve ser - disse Eleanor, pensando naquilo ao mesmo tempo que as palavras lhe saíam da boca. - A minha tia deixou-me algum dinheiro em herança. Poderei levar a Claire a um lugar qualquer que seja exótico - acrescentou, rindo-se. - O único problema é que ela também haveria de querer levar, pelo menos, metade das colegas de turma.

 

- É verdade, parece que elas não são capazes de viver sem as amigas - concordou Andrea prontamente.

 

O sol daquele fim de tarde filtrava-se, cálido pela parede de vidro. Andrea abrira a porta e várias janelas; as duas mulheres começaram a sentir-se preguiçosas com o calor, relutantes em fazer fosse o que fosse. Eleanor acabou por se mexer e Andrea foi chamar Claire.

 

- Sei que só estive fora durante dois dias - disse Eleanor quando ela e a filha já percorriam a alameda de automóvel, aproximando-se da pequena vivenda -, mas, por qualquer razão que não entendo, tenho a sensação de que estive ausente durante várias semanas. - É claro que ela conhecia bem o motivo, mas ainda não podia dizer nada a Claire. Ela e Marion tinham discutido a possibilidade de contar aos filhos. Deveriam partilhar aquilo com eles e, a ser esse o caso, qual seria a melhor altura?

 

- Acho melhor falar primeiro com o Fergus - sugerira Marion por fim. - Ele costuma ser bom a ajudar-me a resolver assuntos desta natureza.

 

Quando já se aproximavam de casa, Gavin surgiu à porta da frente da sua varanda, acenando-lhes. Antes que Eleanor tivesse tempo de sair do carro, ele começou a aproximar-se das duas.

 

- Olá - saudou Eleanor, satisfeita por revê-lo, sentindo-se mais segura. Ele devia ter estado à espera de a ver chegar. Quando Claire começou a brincar com o gato de Jim e de Edie, aproveitou para a chamar à parte.

 

- Eleanor - começou Gavin a dizer, pegando-lhe pelo braço, sendo óbvio que lhe queria comunicar qualquer coisa sem que Claire ouvisse.

 

- Como é que estás? - Ela tencionava falar-lhe de David. Já que Marion podia aconselhar-se com Fergus, certamente que nada a impediria de falar com Gavin, não seria assim?

 

- O teu irmão está aqui.

 

- O quê?!

 

- Ao princípio não tive a certeza de que era ele, mas a Edie reconheceu-o. Dei com ele a bater à tua porta com toda a força enquanto gritava pelo teu nome.

 

- O David? Quando é que isso aconteceu?

 

- A noite passada. Apareceu por volta das... sei lá, deviam ser umas dez horas. Quando ouvi a gritaria vim à porta para ver o que se estava a passar. Entretanto, a Edie espreitava por entre as cortinas. Quando ela me viu, também saiu de casa. Foi então que me disse que era o teu irmão.

 

-- Mas agora onde é que ele está?

 

- Dei-lhe a chave sobresselente. Espero que não te importes. Entrei com ele. Ter-lhe-ia oferecido uma bebida, mas, para te ser franco, apercebi-me de que ele já tinha mais do que a sua conta.

 

- Então, ele ainda se encontra em minha casa?

 

- Eu estava mesmo a pensar que talvez fosse melhor ir ver como é que ele estava, quando avistei o teu automóvel.

 

- Como é que ele veio até aqui? - perguntou Eleanor.

 

- Não faço a mais pequena ideia. Talvez de comboio, não? Seja como for, fiquei com a impressão de que conseguiu chegar a Dingwall, onde foi até ao bar, tendo saído umas duas horas depois, bêbedo que nem um cacho, tendo-se dirigido para a estrada de Strathpeffer. Não sei... também é possível que tenha vindo à boleia, ou talvez se tenha decidido a vir a pé, se bem que atendendo ao estado em que se encontrava...

 

Eleanor encaminhou-se para a porta de sua casa.

 

- É melhor eu ir para dentro, ver como é que ele está - decidiu ela, embora hesitante. - Desculpa, mas estou um pouco atordoada; esta noite vais sair, não é verdade?

 

- Sim, mas não estou a pensar em ficar fora até muito tarde. Se quiseres, podes telefonar-me. Ou então posso bater à tua porta quando chegar. Para ver se está tudo bem.

 

- Gavin, tu disseste que ele estava embriagado. Mas hoje já o viste? Ele está bem?

 

- Claro que sim. Esta manhã fui a tua casa e fiz-lhe um café e umas torradas. Além das escoriações que tem no rosto, ele está bem. É claro que também deve ter outros hematomas; parece-me um bocado em baixo de forma.

 

- O que é que a cara dele tem? - perguntou Eleanor sem compreender.

 

- Posso ir para casa? - interveio Claire. - Mamã, onde é que está a chave?

 

- Espera um pouco... é só um minuto.

 

Gavin abanou a cabeça, sendo nítida a relutância em acrescentar o que quer que fosse, estando Claire, cheia de impaciência, a ouvir as suas palavras. O gato estava preguiçosamente estendido no caminho; tiveram de passar por cima dele para conseguir chegar à porta da frente.

 

- Ele teve algum acidente ou coisa no género? - perguntou Eleanor, que mostrava uma expressão como que alheada.

 

- Pode-se dizer que sim - respondeu Gavin, acenando com a cabeça em direcção a Claire. - Olá, divertiste-te em casa da tua amiga Sarah? Vocês duas foram aos locais na berra ontem à noite?

 

Claire brindou-o com um olhar cheio de frieza.

 

- Tivemos de fazer os trabalhos de casa - replicou ela por fim. - Hoje era dia de escola.

 

- Já meti a pata na poça! - retorquiu ele, fazendo uma careta sorridente às duas e apertando afectuosamente o braço de Eleanor.

- Vemo-nos mais tarde. Deixa-me levar isso... - acrescentou Gavin, pegando no saco de viagem de Eleanor e transportando-o até à porta da frente, que abriu, pousando o saco no vestíbulo. Em seguida, regressou à sua própria casa. Eleanor apercebeu-se de que Edie assomara à janela da sua sala de estar, fazendo-lhe uns sinais frenéticos.

 

- Claire, espera um pouco. Acho que a Edie quer falar connosco.

 

Claire, porém, já começara a transpor a porta. Passados poucos instantes, voltou a aparecer à entrada, branca como a cal da parede e com uma expressão de perplexidade.

 

- Mamã... o tio David está deitado no sofá e tem a cara toda inchada e arroxeada. Está com um aspecto horrível e tem um corte enorme na boca... Era disso que o Gavin estava a falar consigo?

 

Naquele momento já Edie se encontrava à porta de sua casa, com a cabeça a acenar freneticamente, numa manifestação de ansiedade.

 

- Não há motivo para preocupações - disse Eleanor numa tentativa para a tranquilizar. - O Gavin já me pôs a par da situação. Lamento muito que o David tenha perturbado o vosso sossego.

 

- Deus nos valha, pobre rapaz, só espero que consigam apanhar quem lhe fez uma coisa daquelas. É uma verdadeira maldade. O seu irmão deve ter sido atacado por um homem muito corpulento, ou teria sido mais do que um? O seu irmão é alto, não é verdade? Eu até disse ao Jim: ”Eles são uma família de gente alta, olha para o pai dela, mas é claro que a Marion não é assim tão alta...”

 

Eleanor viu-se forçada a interromper, receando que aquela verborreia se arrastasse por mais de uma hora.

 

- Peço desculpa, Edie, mas vou ter de ir para dentro, para ver como é que ele está.

 

- Oh, sim, claro. Mais tarde, trago-lhe um pouquinho de sopa

- ofereceu-se ela, voltando a entrar apressadamente dentro da sua própria casa.

 

- Oh, meu Deus - desabafou Eleanor -, que situação horrível por que estamos a passar. O que é que virá a seguir?

 

- Porque é que a mãe está a dizer isso, que mais é que aconteceu? - perguntou Claire, que seguiu a mãe até à sala de estar.

 

David estivera a dormir estendido no sofá, mas a presença de Claire decerto lhe teria provocado constrangimento. Já se tinha sentado com os pés apoiados no chão.

 

- Eleanor - disse ele. - Graças a Deus - acrescentou numa voz pastosa, arrastando as palavras.

 

Desde a última vez em que o vira, o mundo tinha sofrido algumas alterações. Ele já não era irmão de Eleanor, mas tão-pouco era uma pessoa sem raízes que não tivesse onde cair morto. Possuía dinheiro e uma casa. O conhecimento recente destas circunstâncias havia-o distanciado dela. Fora nisto que o seu pensamento se concentrara durante toda a viagem de regresso a casa, sempre que ela e Marion se tinham mantido em silêncio. Todavia, agora, quando ele se aproximou dela, tudo o que Eleanor sentia era um grande choque, compaixão e descrença. O rosto dele!

 

- Fui contra uma porta - justificou-se David, tentando o esboço de um sorriso, no que não foi bem-sucedido. Sorrir e falar eram esforços que lhe causavam dores tremendas. Tinha um olho negro que mantinha semiaberto, além de sangue seco num corte no lábio, ao que se acrescia uma face inchada e cheia de hematomas arroxeados: as escoriações eram tão graves que lhe alteravam a fisionomia por completo.

 

- Não me abraces - disse ele numa voz tartamudeada quando Eleanor lhe estendeu os braços. - Desculpa, mas acho que devo ter umas duas costelas fracturadas.

 

- Senta-se - indicou ela. - Vou telefonar ao médico. Ou, então, também podemos ir ao Serviço de Urgência do hospital. Estás com um aspecto horrível... O que é que te sucedeu?

 

- Não, nada de médicos. Também não quero ir ao hospital. Isto há-de passar. A sério. Basicamente, só preciso de dormir.

 

- Vou pedir ao Fergus que venha cá. Onde é que eu tenho a cabeça? Claro que é preciso chamar o Fergus.

 

- Nãol - recusou ele, peremptório, levando a mão ao rosto.

- Oh, meu Deus. Está descansada que isto não tarda a melhorar... só preciso de um pouco de tempo. Perdi um dente, mas como é dos de trás não se vê. De qualquer maneira, já tinha uma obturação enorme. Ainda tenho a boca a saber a sangue. O que é o pior. Eles agora já não ligam as costelas fracturadas. - David pronunciava tudo aquilo muito devagar, articulando as palavras com bastante dificuldade. Mas foi então que reparou na presença de Claire, que se mantinha na ombreira da porta, de olhos arregalados; David tentou sorrir-lhe, mas ao invés ergueu a mão num gesto de saudação. Olá.

 

Um pouco mais tarde, Edie trouxe a sopa que prometera, tendo tido o cuidado de a liquefazer previamente. David bebeu-a através de uma palhinha larga cuja extremidade fora cortada ao meio, o que Claire encontrara numa das gavetas da cozinha e que sobrara de uma festa que teria tido lugar há muito tempo. Edie subiu alguns pontos na estima de Eleanor. A vizinha tinha-se dado conta de que David não seria capaz de ingerir sólidos.

 

- É muito simpático da sua parte - agradeceu Eleanor enquanto acompanhava Edie até à porta da rua; estava quase à beira das lágrimas, tanta a gratidão que sentia, demasiado chocada para poder continuar a manter uma aparência de calma.

 

- Ora, vamos lá a acalmar - disse Edie, dando-lhe uma palmadinha cordial no braço. - Vai ver que amanhã de manhã ele já estará muito melhor. Chame o médico para que venha observá-lo. O doutor não se recusará a vir, não acha?

 

- Sim - concordou Eleanor, demasiado esgotada para estar com grandes explicações. - Boa noite, Edie, obrigada por tudo.

 

- Não tem importância, não tem nada que me agradecer. Se precisar de mais alguma coisa, só tem de ir bater à minha porta. Se tiver conhaque em casa, dê-lhe um pouquinho e verá que lhe faz bem.

 

Porém, Eleanor sabia que não devia dar nada de alcoólico a beber a David. Ela e Claire fizeram a cama no sofá do quarto de hóspedes onde David se deitou depois de ter bebido a quantidade de sopa que o seu estômago conseguia reter. Eleanor ajudou-o a descalçar os sapatos e a despir a camisola. Custava-lhe muito a dobrar-se ou a levantar os braços acima da cabeça.

 

- Obrigado, obrigado por tudo - murmurava ele de cada vez que ela lhe fazia alguma coisa. - É nestas ocasiões que se dá valor ao facto de se ter irmãs. Devia ter-me mantido afastado de todas as outras mulheres, não achas?

 

- Com que então foi isso - comentou Eleanor.

 

- Isso o quê? - perguntou Claire quando as duas já haviam descido ao piso térreo.

 

- Nada - respondeu Eleanor.

 

- Houve alguém que lhe deu uma grande tareia, não foi?

 

- Sim, pelo menos é o que me parece.

 

- A mãe acha que a polícia conseguirá encontrar os que lhe bateram?

 

- Duvido muito.

 

- Mas isso não está certo. Coitado do tio David.

 

”Ele não é teu tio”, pensou Eleanor para consigo. ”Talvez primo em segundo grau ou coisa que o valha. Mas não é teu tio. É, isso sim, um mentiroso, possivelmente um gatuno e sem dúvida alguma que é um malandro. A exemplo do pai dele.”

 

”Que grande complicação!”, reflectiu ela, irritada, quando por fim conseguiu ir para a sua própria cama, atordoada de cansaço, devido aos múltiplos choques. Enquanto adormecia, voltou a ver a estrada que parecia correr depressa ao seu encontro, com os carros a passarem a toda a velocidade, a guinarem de forma acentuada quando ela metia travões a fundo, despertando precipitadamente. Durante alguns minutos, ficou à escuta, mas não ouviu ruído nenhum que viesse do quarto de Claire, escutando apenas o ranger ao de leve da cama quando a filha se virou; de David não vinha som nenhum. Na manhã seguinte tencionava ligar a Marion, mas não demasiado cedo. Marion, nos últimos tempos, nunca estava no seu melhor logo de manhã, mas, duas horas depois de se ter levantado, começava a melhorar.

 

”A minha irmã”, pensou Eleanor, deixando que o sono se apoderasse de novo de si. ”O meu irmão. Não, não é meu irmão.”

 

Na manhã seguinte, o inchaço no rosto de David já começara a atenuar-se. Não estava com tão mau aspecto, mas talvez, deduziu Eleanor, essa impressão se devesse apenas ao facto de ela estar a sentir-se menos chocada com a aparência dele. Depois de Claire ter ido para a escola, ela foi vê-lo. Já tinha acordado, embora estivesse atordoado.

 

- Conseguiste dormir? - perguntou-lhe Eleanor.

 

- Mais ou menos. Acordei muitas vezes porque tenho o corpo todo dorido e rígido.

 

- Vou buscar-te mais comprimidos de paracetemol. Queres uma chávena de chá?

 

Ele assentiu com a cabeça.

 

Enquanto David ainda estava deitado, Eleanor ligara para o consultório de Fergus, deixando recado para que ele lhe telefonasse logo que pudesse. Alguns minutos depois, o cunhado ligou-lhe.

 

- Eleanor? Fala o Fergus, passa-se alguma coisa? - Como seria de esperar, ele pensava em Marion e no sogro, apercebeu-se Eleanor. Em poucas palavras, relatou-lhe o que se passara com David.

 

- Ele não me explicou o que é que aconteceu... É verdade que tem bastante dificuldade em falar, dado o estado em que ficou. A julgar pelo seu aspecto, deve ter apanhado um grande enxerto de pancada. Levou vários murros na cara e nas costelas... O mais certo é também ter levado alguns pontapés. O que é que achas que eu deva fazer?

 

- Não podes fazer grande coisa. Tem algum osso partido? perguntou Fergus.

 

- Não me parece.

 

- Eu passo por aí à hora do almoço, para ver como é que ele está. Entretanto, vê se ele tem algum corte e desinfecta-lo; dá-lhe paracetemol para as dores e ele que descanse.

 

- De acordo.

 

- E tu? Estás bem? Tu e a tua irmã têm tido a vossa dose de choques, não precisavam de mais este.

 

- Estou bem - replicou Eleanor, sentindo-se tocada pelas palavras do cunhado. - Estava a pensar em telefonar à Marion... mas talvez seja melhor deixar isso para mais tarde.

 

- Esta manhã ela não estava nos seus melhores dias... obriguei-a a ficar na cama. E que tal se fosse eu a dizer-lhe à hora do jantar, depois de ter visto o David?

 

- Está bem. Até mais logo.

 

Quando voltou a meter a cabeça pela abertura da porta do quarto de hóspedes, viu que David tinha adormecido. Pouco depois das onze horas, Eleanor ouviu-o a levantar-se e ir à casa de banho. Passado algum tempo, desceu para o rés-do-chão, já vestido com umas calças de ganga e uma camisola, a mesma roupa que tinha vestido na noite anterior. A roupa estava amarrotada e enxovalhada e a camisola de algodão tinha uma nódoa escura na parte da frente.

 

- Queres que te encha a banheira? Um banho de imersão ajudava-te a relaxar o corpo.

 

- Sim, boa ideia - concordou ele, sentando-se cuidadosamente numa das cadeiras da cozinha.

 

- Apetece-te comer alguma coisa?

 

- O quê? - perguntou ele, alheado, mostrando uma atitude de abandono. - Sim, talvez seja melhor comer qualquer coisa.

 

- Já telefonei ao Fergus. Ele disse que quando fosse para casa à hora de almoço passava por cá.

 

Sem lhe dar resposta, David limitou-se a um encolher de ombros.

 

- Vou pôr a água a correr e enquanto a banheira enche faço-te uns ovos mexidos - disse Eleanor, detendo-se junto da porta. Oh, Davy!

 

A custo, ele conseguiu soerguer uma comissura da boca num arremedo de sorriso, o canto menos magoado.

 

- Estou óptimo; não te preocupes comigo.

 

- Trouxeste alguma muda de roupa? Trouxeste um saco?

 

- Acho que o deixei no vestíbulo.

 

- Nesse caso, posso pôr de molho a que trazes vestida. Isso é sangue?

 

- Suponho que sim - replicou David, baixando o olhar para a nódoa.

 

Eleanor abriu a torneira da água quente, juntando alguns sais à água na banheira, perguntando a si mesma o que é que teria acontecido a David. ”Ele está convencido de que tem algo a dizer-me, mas nem sonha as coisas que eu tenho para lhe dizer.” Simultaneamente, Eleanor sentia uma vontade enorme de falar, de voltar a aproximá-lo de si, aquele estranho tão maltratado. ”Mas o que é que me interessa”, reflectiu, ”que a tua mãe não tenha sido quem pensávamos que fosse, enquanto o teu pai foi um homem que nunca chegámos a conhecer. Continuas a ser o David... cresceste connosco.” Fechou as torneiras e endireitou-se, sentindo-se um pouco apatetada, embora aliviada.

 

David tomou um longo banho de imersão de onde saiu com muito melhor aspecto, apesar de ainda não se ter barbeado; em contrapartida, vestia uma muda de roupas limpas e tinha o cabelo molhado e brilhante. Entretanto, Eleanor desemalara o saco, tendo passado a ferro a camisa que encontrara, assim como outro par de calças de ganga. Ele não trouxera muito mais; era óbvio que saíra de casa à pressa.

 

Ao meio-dia e meia hora, Fergus bateu à porta, entrou e começou a examinar David sem que este lhe opusesse resistência.

 

- Ele não sofreu nada de grave... Acho que tem umas costelas fracturadas - informou Fergus quando já se preparava para sair. Podias levá-lo ao Serviço de Urgência... Deixar que sejam eles a decidir se precisa de qualquer tratamento especial ou de ser radiografado.

 

- Mas ele recusa-se a ir - retorquiu Eleanor.

 

- Ora bem, o tempo é o melhor tratamento, como se costuma dizer, portanto, vamos ter de deixar o assunto nas mãos da natureza. Mas se vires que ele começa a ficar febril, ou se se queixar de dores de cabeça, ou de tonturas, diz-me. Caso contrário, faz como já te disse.

 

- Portanto... tencionas contar à Marion?

 

- Sim. Queres que eu lhe diga que depois falas com ela?

 

- Se puder deixar o David sozinho, estou a pensar em passar lá por casa esta tarde.

 

- Ele já te disse alguma coisa de como é que isto lhe aconteceu? - perguntou Fergus, detendo-se quando já se encontrava na soleira da porta da frente.

 

- Não - respondeu Eleanor.

 

- Pois bem, estou certo de que a seu tempo acabaremos por nos inteirar.

 

Quando Fergus já se afastava no seu automóvel, Gavin surgiu à porta de casa.

 

- Olá, como é que as coisas vão?

 

- Vem até cá - convidou Eleanor. - Está muito frio para ficarmos a conversar aqui fora. - Já no corredor estreito da casa dela, Gavin segurou-a pelo pescoço para lhe dar um beijo. Ela afastou-se dele, ruborizando ao pensar que David se encontrava na sala de estar. - O David está ali dentro - disse num murmúrio.

 

- Como é que está a sentir-se? - perguntou Gavin, entrando na sala e sentando-se de imediato. Eleanor deixou-se ficar na ombreira da porta.

 

- Tenho uma panela de sopa que a Edie me trouxe - disse ela. - Apetece-vos um prato?

 

Assim, os três sentaram-se a comer a sopa. David molhava o pão na sua para o amolecer, a única maneira de conseguir comê-lo. A presença de Gavin não deixava ninguém inibido, pelo que entre os três reinava uma atmosfera de bem-estar que nunca se verificara quando era lan que se encontrava com eles, ao longo de todos os anos em que haviam estado casados. Ele e David antipatizavam profundamente um com o outro, agindo como cães que descrevessem círculos em redor um do outro, marcando o seu território; o máximo que haviam conseguido tinham sido umas breves tréguas. O que não era o caso com Gavin, que conversava com facilidade, envolvendo Eleanor na conversa, mostrando-se abertamente curioso com respeito a David, se bem que não se pudesse dizer que estivesse a intrometer-se onde não devia. David parecia sentir-se descontraído e mais animado.

 

- Importas-te de ficar por mais algum tempo? - perguntou Eleanor enquanto Gavin limpava a louça que ela ia lavando. Queria dar um salto a casa da Marion, mas não me agrada nada deixar o David sozinho.

 

- Claro que fico. Vai descansada.

 

- Talvez possamos conversar mais tarde.

 

- Podias ir até minha casa esta noite - sugeriu ele.

 

Marion estivera à espera de ver chegar a irmã. Tinha-se levantado da cama pouco antes de Fergus e as filhas chegarem para almoçar. Ross andava a estudar para os exames, pelo que quando Eleanor chegou, estava deitado no sofá a ver televisão com a mãe.

 

- Pensei que os teus exames começavam dentro de uma semana?

 

- Passei a manhã toda a rever a matéria que demos em Matemática - respondeu ele com um sorriso de orelha a orelha.

 

- Vai pôr a chaleira ao lume - pediu-lhe Marion. - Vais outra vez para o teu quarto?

 

Vou - respondeu o garoto saindo da sala.

 

Não te preocupes com o chá - disse Eleanor.

 

Para te ser franca, também não me está a apetecer. Nesta altura, só me sabe a água de lavar louça. No entanto, tenho a impressão de que toda a nossa vida é pontuada por chávenas de chá. Suponho que assinalem as fases de crise.

 

Não é que isso nos ajude muito - retorquiu Eleanor com um sorriso. - Muito provavelmente, aquilo de que precisamos realmente é de uma bebida das fortes. Pelo menos é o que os homens costumam fazer, em vez de beberem chá como nós.

 

Bem, pelo menos no tocante ao David - afirmou Marion com alguma crispação.

 

Estás horrivelmente pálida... Sentes-te bem?

 

Sentir-me-ia se não fosse obrigada a tomar todas aquelas cápsulas horríveis - retorquiu Marion, levantando-se para ir desligar o televisor. - Assim está melhor. Deus do céu, olha bem para mim, instalada em frente da televisão a meio do dia. - Voltou a sentar-se na poltrona. - Mas deixemos isso; o que é que se passa com o David?

 

Eleanor voltou a contar a história, preenchendo algumas das lacunas que Fergus deixara em branco.

 

Não lhe disseste nada a respeito da tia Alice?

 

Não me pareceu que fosse a altura mais adequada e, além do mais, ele mal consegue falar.

 

Estou a ver. Suponho que não haja pressa.

 

Ambas ficaram em silêncio, Eleanor a pensar em David, enquanto Marion se concentrava no postal que chegara naquela manhã, indicando a data e a hora a que a tomografia seria efectuada. A sua contagem dos glóbulos esta muito baixa, dissera-lhe Mary Mackay no dia anterior, quando ela tinha ido ao consultório da médica; haviam ficado a falar daquele assunto enquanto ela lhe passava outra receita, discutindo o resultado das análises ao sangue.

 

Diz-me a verdade: tu não estás realmente incomodada por causa do David, pois não? - perguntou Eleanor, interrompendo a linha de pensamento da irmã.

 

O quê? Claro que lamento muito que ele esteja magoado.

 

No entanto, atrevo-me a dizer que ele devia estar a pedi-las - respondeu Marion, mas, ao ver a expressão no rosto de Eleanor, acrescentou:

 

- Desculpa, mas ando preocupada. Com coisas bastante aborrecidas... a contagem dos meus glóbulos, a TAC... tudo isso.

 

- Para quando é que a TAC esta marcada? Eles já te indicaram alguma data?

 

- Suponho que não se possa dizer que falte muito - acrescentou Marion depois de lhe ter comunicado a data. - No entanto, a mim parece uma eternidade.

 

- Mas, então, se tudo estiver bem - replicou Eleanor, numa tentativa para tranquilizar a irmã -, não terás de te preocupar mais com isso.

 

- Não é bem assim; mesmo que os tratamentos acabem agora, eles continuarão a precisar que eu continue a fazer tomografias.

 

- As TAC vão continuar?

 

- Apenas para verem se está tudo bem. De três em três meses, acho eu, pelo menos ao princípio, depois passam a ser de seis em seis meses. E, finalmente, uma vez por ano. Não te sei dizer durante quanto tempo.

 

- Mas a doença já regrediu - afirmou Eleanor, sentindo-se abismada. Aquilo nunca mais teria fim? Imaginou, com demasiada acuidade para o seu gosto, a ansiedade que a irmã deveria sentir antes e depois de cada tomografia, a tensão e o medo de novo renovados. Outra espera angustiante.

 

- Eles precisam de fazer esse tipo de exames - acrescentou Marion, encolhendo os ombros, num gesto de quem se conformava com a situação.

 

- Sim, estou a ver.

 

- Seja como for - continuou Marion energicamente, mudando de assunto -, sinto-me obrigada a fazer um esforço. Para variar, tenho de começar a pensar nos outros.

 

- Não, se tu... Oh, raios partam o David e toda esta situação... O passado.

 

- Lamento muito, Eleanor. Não foi minha intenção comportar-me desta maneira. Mas o cancro... acho que muda qualquer pessoa. Eu sei que não continuarei doente para sempre, a sentir-me desta maneira, mas, neste momento, tenho grande dificuldade em conseguir concentrar-me noutra coisa qualquer.

 

Marion dera-se conta, ao longo das últimas semanas, que o cancro era o que configurava o seu mundo. A doença, a ameaça que esta constituía, o receio de que no fim acabasse por morrer. Mas não era isso que preocupava todos os que a rodeavam, com excepção, talvez, de Fergus. Até mesmo os filhos dela... a vida destes continuava inalterada. Via que eles se preocupavam com o seu bem-estar: Eilidh, pensava ela, era a que se sentia mais afectada. Todavia, a filha e Fergus tinham feito o possível e o impossível para que tudo continuasse como sempre, tentando dar tão pouca importância quanto estava ao seu alcance a todo aquele assunto. Assim, até mesmo Eilidh, a despeito de ser uma garota tão sensível, não fazia da doença da mãe o centro da sua vida. Uma atitude que estava certa, era assim que devia ser. Contudo, Marion, embora ciente disso, tinha a percepção de como se sentia sozinha, isolada e impaciente. Quando alguém se encontra perante a sua própria mortalidade, que outra coisa lhe poderá interessar além disso? Talvez aquela separação fria dos outros, envolta em tanta infelicidade, se devesse em parte aos efeitos dos medicamentos, ao facto de se sentir perpetuamente cansada e em sofrimento. Qualquer tipo de ligação com os outros passara a ser mais difícil, ao mesmo tempo que se sentia cada vez menos inclinada a fazer qualquer esforço para remediar essa situação.

 

Mais tarde, já no automóvel a caminho de sua casa, Eleanor sentiu-se deprimida ao verificar como Marion se mostrara distante. Não tinha ninguém a quem pudesse recorrer: Marion isolara-se no seu mundo, David estava incapaz de falar coerentemente, fechado numa qualquer situação de infelicidade que se recusava a partilhar com os demais, e Gavin a fazer planos com vista a mudar-se para Aberdeen, quer ela fosse com ele quer não. ”Quero continuar a acreditar que o David é meu irmão”, pensou Eleanor, guardando ressentimento ao passado perigoso que ameaçava interpor-se entre os dois.

 

Quando chegou a casa, David estava muito animado: ele e Gavin conversavam acerca de música, tendo descoberto que gostavam dos mesmos géneros musicais. Claire já chegara da escola, se bem que se encontrasse no andar de cima a ouvir um tipo de música completamente diverso.

 

- O tio David e o Gavin parece que estão a dar-se às mil maravilhas - informou ela a mãe quando esta foi ao seu quarto. Claire estava na cama deitada de barriga para baixo, enquanto fazia os trabalhos de casa de Francês.

 

- Senta-te à tua secretária - disse-lhe Eleanor. - Foi para isso que a comprámos. Não admira que a tua caligrafia seja uma desgraça.

 

- Hum... - fez Claire, mas sem se mexer.

 

Depois do jantar, Eleanor deixou a filha e David sentados defronte do televisor enquanto ia a casa de Gavin.

 

- Vamos para a cama - disse este, assim que ela chegou. Primeiro o sexo e depois a conversa.

 

Foi com satisfação que ela concordou. A parte do sexo era fácil, não era preciso pensar muito. Mas, já na cama, mostrava-se tensa.

 

- Não estás verdadeiramente aqui comigo, pois não? - perguntou Gavin depois de ter feito tudo aquilo que, regra geral, resultava na perfeição, mas que desta vez não encontrava grande receptividade da parte dela.

 

- Lamento muito - retorquiu Eleanor, contrita.

 

- O que é que se passa... É por causa do teu irmão? Ele já te disse quem é que lhe deu a tareia que o pôs naquele estado?

 

- Não, ainda não houve oportunidade para isso.

 

Gavin sentou-se, endireitando as almofadas junto à cabeceira da cama antes de se encostar.

 

- Aninha-te junto de mim. - Ela encaixou-se entre o braço e o torso dele, sentindo o odor de Gavin que agora lhe era tão familiar como o seu, mas que apesar disso continuava a ser tão intoxicante.

 

- Não me parece que estarei a revelar qualquer segredo começou ele a dizer -, se te contar que há uma mulher por detrás de toda esta situação.

 

- Ora, isso já eu tinha calculado. Ele abriu-se contigo?

 

- Nem por isso. Mas deduzo que se trate de uma mulher casada.

 

- Eu também já calculara isso mesmo. Mas só Deus sabe quem é que o atacou com tanta violência... Com certeza que não foi a mulher em questão, não achas?

 

- Para isso teria de ser uma mulher e pêras! - ripostou ele, rindo-se. - Não, essa é a parte da história que ele ainda não revelou. Mas não me parece que tenhas motivos para te preocupares com ele. Ele há-de recuperar, regressará a casa e de futuro deixará essa senhora em paz e sossego... isto é, se tiver alguma sensatez.

 

Eleanor suspirou, continuando encostada a Gavin. Actualmente, teria David algum lar a que pudesse regressar? Duthie Crescent, número vinte e três, pensou ela, mas era absurdo imaginar David a viver na casa onde em cada canto continuava a haver a presença de Alice e de Mamie, com o papel florido de parede que elas próprias haviam escolhido e as figurinhas de porcelana fina, além da mobília de boa madeira sólida.

 

- Estás a sentir-te bem? - perguntou Gavin.

 

- Estou. Só que... há mais coisas em relação ao David do que parece à primeira vista. Mais que é preciso saber.

 

- O quê?

 

- Deixa, um dia destes ponho-te a par de tudo. É um assunto que por agora não interessa. - Seria que Gavin contava para ela do mesmo modo que Fergus contava para Marion? - Acontece que...

- começou ela a dizer, sentando-se na cama - o David não é realmente meu... nosso... irmão. Houve este grande segredo de família...

 

- Ele foi o percalço de uma menina solteira, é isso? - perguntou Gavin, mostrando-se muito divertido.

 

- Bem, estás recordado de que eu te disse... - Mas quando Eleanor começou a tentar explicar-lhe, apercebeu-se de que Gavin sabia muito pouco. Não conhecia nenhuma das pessoas a que ela estava a referir-se... com excepção de David, o qual naquele momento nem sequer se parecia consigo mesmo, e Marion, que conhecia apenas muito superficialmente. A verdade é que era preciso começar por qualquer lado, decidiu ela. Se a intenção dos dois era construírem uma vida em comum, era forçoso que ele tomasse conhecimento daqueles assuntos da sua família.

 

- Ora, todas as famílias têm os seus segredos escabrosos - foi tudo o que ele disse quando ela terminou. - Hoje em dia, ninguém se incomoda com essas coisas. Eu tive um tio que mais tarde veio a revelar-se que de facto era meu primo. Essa geração da minha família tinha uma fixação na legitimidade, a actividade sexual tinha de ser dentro de toda a legalidade... e todas essas tretas. Hoje em dia, quem é que se interessa com isso?

 

- Importo-me eu - ripostou Eleanor. - A nossa família continua a ser daquelas para quem essas coisas são importantes. E não tem nada a ver com os aspectos legais, se bem que isso faça diferença... propriedades, heranças e tudo o mais. Eu nunca tinha pensado nesses aspectos. Mas a questão é que... de facto, é uma coisa muito importante para a nossa família. A família é tão importante...

 

- Na minha opinião, exageradamente importante - retorquiu Gavin com frieza.

 

Eleanor começou a pensar no significado que Marion tinha para si, e David, sim, David também, sempre e para sempre. Não é meu irmão, continua a ser meu irmão.

 

Encostou-se para trás, chegando-se mais a Gavin. Com indolência, ele pôs-se a acariciar-lhe os seios, afagando-lhe os mamilos até começarem a enrijecer. Eleanor afastou-se, de forma a que ele não pudesse chegar-lhe.

 

- Gavin, se eu tivesse uma doença cancerosa e fosse obrigada a remover um dos meus seios, continuarias a desejar-me? Continuarias a gostar de fazer amor comigo?

 

- O que diabo é que te levou a falar desse assunto?

 

- E então?

 

- A Marion piorou, é isso?

 

Eleanor afastou as cobertas para os pés, levantando-se e ficando a tremer à beira da cama. ”Eu não o conheço”, reflectiu, ”mal o conheço.”

 

- Onde é que estão as minhas roupas? Acho melhor ir para casa.

 

Gavin ficou a vê-la a apanhar atabalhoadamente a roupa interior que ficara caída no chão, começando a vestir-se. Pouco depois, ele também saiu da cama.

 

- Eleanor.

 

Ela estava a chorar. Sentia um desprezo enorme por si própria, a chorar por nada, quando Marion mostrava tanta coragem, apesar da gravidade da doença de que sofria.

 

- Não, deixa-me em paz. Vou para casa. Onde é que esta situação nos pode levar, Gavin? Estamos a milhas de distância um do outro, nem sequer pensamos minimamente da mesma maneira. E em qualquer dos casos, tu vais mudar-te para Aberdeen, e sabes muito bem que eu não posso fazer isso... sabes bem. De que é que isto serve? Porque estamos nós a dar-nos ao incómodo?

 

- Por amor de Deus, é muito possível que isso nunca venha a concretizar-se. E sabes bem que eu quero que venhas comigo. Isso depende inteiramente de ti.

 

- Não sei nada disso - replicou Eleanor, continuando a chorar, incapaz de prender o fecho do sutiã, como se os dedos não soubessem o que faziam. Desistiu, arremessando com ele para o chão e apanhando a camisola de algodão.

 

- Vê lá se te acalmas, isto é ridículo, não compreendo por que razão é que estás nesse estado, mas tenho a certeza que não tem nada a ver comigo.

 

- Não, tens toda a razão. Absolutamente nada. - Tudo o que conseguia fazer era ficar ali, seminua, a chorar sem controlo.

 

Gavin aproximou-se, tomando-a nos seus braços, o corpo quente dele encostado à pele fria dela, como se a protegesse, afagando-lhe os cabelos.

 

Os dois voltaram para a cama. Sem saber como, Eleanor deu consigo outra vez deitada, com ele em cima dela e desta vez não havia maneira de o parar, e ela deixou de se importar, queria aquilo, o esquecimento, os ritmos poderosos do desejo físico, a realização dos sentidos.

 

- Ora bem - disse ele mais tarde, muito mais tarde, quando os dois estavam deitados lado a lado, sentindo-se exaustos. - Ora bem, desta vez foi muito melhor.

 

E durante algum tempo de facto assim foi.

 

Eleanor tinha imaginado que quando David estivesse melhor, e capaz de falar sem sentir dores, ela iria levá-lo no seu carro a casa de Marion e os três conversariam. Essa conversa serviria para os unir de novo, uma vez que todos os mal-entendidos ficariam devidamente esclarecidos. As duas garantir-lhe-iam que ele continuava a ser-lhes tão querido como sempre fora, assegurando-lhe que a identidade da sua mãe não tinha a mínima importância. Nem tão-pouco a do pai. E David diria... Neste ponto, a imaginação de Eleanor falhava. O que é que ele diria? Ele soubera e, todavia, não hesitara em lhes mentir. Talvez já soubesse há vários anos. Até mesmo se ele lhes confessasse quem é que o atacara, ainda que lhes contasse alguma história sobre como descobrira que Alice era a sua mãe biológica, como é que elas poderiam saber que era verdade... ou parcialmente verdade?

 

Ficou deitada sem conseguir dormir, ansiando poder ir para a cama de Gavin, embora não o fizesse porque agora tinha de ficar com David, ainda que Claire houvesse passado a noite fora de casa. Era obrigada a ficar... E para quê? Para o guardar?

 

Apesar de todas as suas conjecturas, a conversa não teve lugar nos moldes bem organizados que imaginara. No dia seguinte, David melhorara tanto que ela deixou de sentir pena dele. Falou com o pai pelo telefone, e ele disse-lhe que iria a casa dela para falar quando David estivesse em condições de ouvir o que ele tinha a dizer a respeito de Alice e da casa que esta deixara. Marion não estaria presente.

 

- De que é que serve estar a apressar as coisas? - perguntara ela quando Eleanor lhe telefonou. - Já esperámos muitos anos, por isso, acho que não nos fará mal esperar mais algum tempo. Decerto que ele será capaz de se explicar cabalmente.

 

David desceu por volta das dez horas, tratando de fazer o café e as torradas, mas deixando tudo numa desarrumação tal que Eleanor pensou não ser possível: a tábua do pão e a mesa cheias de migalhas, as borras do café espalhadas junto da chaleira e a água a pingar da bancada, formando uma poça no chão da cozinha. Extremamente irritada, começou a limpar a porcaria que ele tinha feito.

 

- E quanto ao teu trabalho? - perguntou ela. - Já tiveste o cuidado de telefonar ao teu sócio... como é que ele se chama?, para lhe explicares o que te sucedeu?

 

- Não me parece que valha a pena - respondeu ele, desviando o olhar do jornal que estava a ler.

 

- E porque não? - insistiu ela sem desarmar.

 

- Foi ele quem me deu a sova.

 

- O quê? Ele é que te bateu?

 

- Não pessoalmente. Mas é preciso não esquecer que ele nunca fez nada com as suas próprias mãos, desde que conseguisse arranjar um trouxa que fizesse as coisas por ele. Ele tem alguns amigalhaços que não são muito avessos a um tudo-nada de violência.

 

- Mas por que carga de água? Isto é horrível. Nunca me passou pela cabeça que tu te desses com gente dessa laia.

 

David resfolegou, uma vez que ainda não era capaz de se rir sem sentir dores.

 

- Bem, a verdade é que ele tinha uma boa razão de queixa.

 

- Uma boa razão de queixa? - perguntou Eleanor sem compreender, sentando-se à mesa diante dele.

 

- Foi dar comigo na cama com a gaja dele. Bem, não se pode dizer que tenha sido na cama, mas sim no chão. Com certeza que estás a perceber.

 

Eleanor corou. Apenas alguns meses antes, não teria compreendido uma situação daquelas. Por que motivo é que alguém haveria de correr riscos por causa de uma relação sexual? Porém, agora sabia que essa era a realidade, que as pessoas estavam dispostas a correr esse tipo de riscos.

 

- Essa era a que se chamava Sophie, não é verdade? A mesma Sophie que era tão compreensiva?

 

- Sim, essa mesmo.

 

- Mas ele ter-te dado uma tareia como essa... arranjar alguém que o fizesse por ele... é uma coisa que ultrapassa todas as marcas. É um procedimento criminoso, David. Tu podias levá-lo a tribunal.

 

- Digamos apenas que foi uma lição que eu aprendi, de acordo? - replicou ele com um sacudir de cabeça.

 

- E quanto a essa tal Sophie, ela está bem? Ele não...

 

- Não sei. Não te esqueças de que me vim embora um pouco à pressa. Não me detive para averiguar se ela ficava bem.

 

- Mas não te sentes minimamente preocupado com ela? Podias tentar telefonar-lhe. Se quiseres posso ligar por ti.

 

- Eleanor - proferiu David, pousando a mão em cima da dela e mexendo nervosamente nas migalhas que continuavam espalhadas pela mesa. - São o género de pessoas que nunca conseguirás compreender, não tens nada em comum com elas. E acredita no que te digo: a Sophie está bem. Ainda bem que me vi livre dessa gente.

 

A mão grande de David continuava a cobrir a de Eleanor. Os nós esfolados dos dedos (pelos vistos ele dera luta a quem o agredira), o dedo médio torto que tinha fracturado aos quinze anos quando jogava râguebi. A mão dele era-lhe tão familiar quanto a sua. A mão do meu irmão. Não é a mão do meu irmão.

 

- David - começou ela -, há uma coisa que tenho de te dizer.

 

- Tem alguma coisa a ver com o Gavin?

 

- Não - negou Eleanor.

 

- Ele é bom tipo... já não é sem tempo, há muito que devias ter arranjado um homem.

 

- David, nós fomos a casa da Alice e passámos revista às coisas dela. A Marion e eu. Ainda tentámos entrar em contacto contigo, todos tentámos, até mesmo o pai. Mas acabámos por nos vermos forçados a prosseguir sem ti.

 

- E...? - perguntou ele, retirando a mão num gesto vagaroso.

 

- Encontrámos a tua certidão de nascimento.

 

- Ah, sim?

 

- O pai disse... o pai disse que tu já sabias.

 

- Sim, claro que sabia - respondeu ele com um olhar embaciado e os lábios cerrados numa linha estreita e apertada.

 

- Por que razão nunca nos disseste nada, à Marion e a mim? Porque guardaste segredo disso? Há quanto tempo é que sabias?

 

- Desde os meus dezassete anos.

 

Sentindo-se indignada e atónita, Eleanor arrastou a cadeira para trás levantando-se.

 

- Dezassete?! Há já vinte anos?

 

Os olhos de David ensombraram-se e corou intensamente.

 

- Por que diabo é que pensas que me pus na alheta nesse Verão antes de se saberem os resultados dos exames finais?

 

- Fugir - corrigiu ela. - Tu fugiste de casa - disse ela a arfar, voltando a sentar-se. - Explica-me, David, por favor.

 

O que ele fez. E contudo, até mesmo naquele momento, doía-lhe sempre que se recordava do episódio.

 

- Eu andara desassossegado durante o ano todo, farto da escola, querendo deixar de estudar - justificou-se ele. - Mas, depois disso, cheguei à conclusão de que me era impossível ficar. Não era capaz de enfrentar quem quer que fosse. Além do mais, senti-me completamente desenraizado, sem família. Sem dúvida alguma que não queria voltar a ver a Alice, tão-pouco confrontá-la com o sucedido. Meu Deus! O embaraço que isso provocaria. Quando se tem dezassete anos, esse é o pior sentimento que se pode ter. Bem, não exactamente. Mas a verdade é que não somos capazes de fazer face à situação, quando estamos a sentir o pior que se possa imaginar.

 

- Como que atraiçoado? - sugeriu Eleanor.

 

- Posto à margem. Eu não pertencia ao seio da família onde vivia.

 

- Mas pertencias, continuas a pertencer! - contrapôs Eleanor com veemência. Como é que lhe poderia ter passado pela cabeça que não fosse assim?

 

- Não. A Faith não era minha mãe. - Aquele segredo tão bem guardado, reflectindo-se fugazmente na bailarina que atravessara o relvado, silenciosa e plena de graciosidade. David sentira um misto de orgulho e mistificação: a sua mãe era uma mulher especial, mágica. E, depois, vir a descobrir que afinal não era sua mãe, que não tinha qualquer relação consanguínea com Faith... Isso fora o pior de tudo.

 

- E quanto ao pai? Para ti, acredito que o pior de tudo tenha sido não saberes quem era o teu pai.

 

- Para te dizer a verdade, não foi. Sim, foi horrível, mas o pai era um autêntico compincha, como tu bem sabes. De facto, o que eu sentia por ele não se alterou. Não havia mais ninguém que pairasse por perto, à espera de se poder assumir como meu pai. Ao contrário do que acontecia com a Alice. Não sei se serás capaz de compreender isto? Como poderás? Ele não deixou de ser meu tio, continuava a ser da minha família. Com a Faith era diferente. E este aspecto... foi o que mais me marcou. Em qualquer dos casos, não me parece que a mãezinha... isto é, a Faith, tenha dito ao pai que eu estava a par do segredo. Pelo menos durante algum tempo. Ela receava que o facto de eu ter fugido de casa tivesse sido por sua culpa. E foi. A culpa foi dela! Dela e da Alice.

 

- Meu Deus! - exclamou Eleanor. - Todos esses segredos.

 

- Não te esqueças de que tu também os tinhas - recordou-lhe ele.

 

- Mas não os escondi de ti, Davy.

 

- Para ti, teria sido muito melhor se eu me tivesse mantido afastado - retorquiu David, endireitando os ombros e tentando esboçar um sorriso com os lábios doridos. - Eu nunca devia ter-me aproximado tanto de ti e do lan. Não devia ter estado presente quando ele faleceu. Teria sido preferível para o bem de todos.

 

- Oh, não, eu precisava de ti, tinha-me sentido tão sozinha...

 

- Se eu não tivesse estado contigo, tu terias ido ter com ele, chamado o médico mais cedo. Fui eu que te persuadi a não fazeres isso.

 

Eleanor levou as mãos à cabeça, fazendo pressão.

 

- Não me recordo de nada disso.

 

- Só te lembras dos teus sentimentos de culpa. Mas a culpa nunca foi tua. O lan não gostava de mim... um sentimento que ambos manipulávamos. Ele e eu. Tu estavas no meio, não passavas de uma espécie de joguete nas mãos dos dois. O grande culpado disso era ele, mas a mim também cabia parte das culpas. Mas não havia nada a censurar-te.

 

- Mas... - começou Eleanor a dizer.

 

- Eleanor, tu tentaste ir ao primeiro andar, embora já tivesses bebido de mais, mais do que eras capaz de aguentar. Do que eu estava bem ciente, apesar de ter continuado a insistir para que bebesses ainda mais. Por conseguinte, quando te convenci a deixares o lan sozinho, tu acataste o que eu te disse. Sentiste-te aliviada... ele mostrara muita frieza para contigo desde a minha chegada.

 

- Achas que sim?

 

David falava com lentidão, como se sopesasse cada palavra.

 

- Ele nunca gostou de mim. Sentia ciúmes de mim. Eleanor não lhe deu resposta. Durante alguns momentos, os dois mantiveram-se em silêncio, com Eleanor a olhar fixamente para o chão. Havia uma coisa que era forçoso que perguntasse a David, mas as palavras como que se lhe colavam à garganta.

 

- O lan... - tentou. - No entanto, o lan não sabia, pois não? Que tu não eras meu irmão?

 

- O que é que te parece?

 

- Bem, como é que ele podia saber, uma vez que nem sequer eu sabia?

 

- A questão não teria sido essa - retorquiu David com um encolher de ombros. - Ele tinha muitos ciúmes. Tu sentias-te mais à vontade quando estavas comigo, mais feliz.

 

Portanto, aquilo significava que ele se importara, pensou Eleanor. Ele importava-se com ela. O sofrimento que isto lhe causou, a desolação, apertava-lhe tanto o peito que ficou de novo sem respiração.

 

David levantou-se para colocar os pratos dentro do lava-loiça.

 

- Seja como for - continuou -, devias sentir-te satisfeita por ao fim e ao cabo eu não ser teu irmão. Só sei arranjar problemas. A Marion tem razão... onde quer que me encontre, é certo e sabido que acontecerá uma tragédia. Eu costumava pensar que isso se devia à minha falta de discernimento, mas é evidente que não tem nada a ver com isso. É algo que se encontra entranhado em mim, qualquer coisa destrutiva que já nasceu comigo.

 

Eleanor ficou a olhar para ele, mas não conseguiu proferir uma única palavra.

 

- Houve outras pessoas a quem aconteceram coisas más por minha causa - acrescentou David, retomando o seu lugar na cadeira defronte dela. - Basta olhares para o Stanley, pobre rapaz.

 

- Ora, deixa-te disso, David, não se pode dizer que o facto de ele estar na cadeia tenha alguma coisa a ver contigo.

 

- Mas teve qualquer coisa a ver comigo quando éramos miúdos.

 

- A que estás a referir-te? - perguntou Eleanor.

 

- Lembras-te do fogo na quinta dos Mackies?

 

- Claro que me lembro.

 

- A mãe... isto é, a Faith, ela acreditou que fui eu quem o pegou.

 

- Oh, não! O que estás a dizer é ridículo. - Todavia, ela recordava-se de ouvir o pai a falar daquele assunto, depois de Faith ter falecido. Ele estava em casa muito antes de o incêndio ter começado. - Nunca podias ser responsável por isso... ela nunca acreditou nisso. Muito simplesmente, sentia-se assustada... Nessa noite chegaste a casa já tarde, não é verdade? Eles tiveram dificuldade em encontrar-te, assim como ao Stanley. A culpa não foi tua.

 

- Não, não fui eu quem pegou o raio do fogo. Eu até nem estava no palheiro, nesse dia não fomos à quinta dos Mackies. Ou pelo menos não me parece que tenhamos ido. Mas agora, tantos anos depois, já não tenho a certeza de nada. Como é que se pode ter? A nossa infância passa a ser uma amálgama de contornos pouco delineados; os anos e as aventuras de que nos recordávamos tão vívidamente, como que se fundem. Não é verdade? De facto, o que é que nos fica na memória?

 

- Aquele clarão vermelho no céu... que vimos quando assomámos à janela com a Marion. Tu estavas junco de nós, louco de entusiasmo, a correr freneticamente de uma janela para a outra. Estou em crer que te terias sentido atemorizado caso tivesses alguma responsabilidade nesse incêndio.

 

- Achas que sim? - perguntou David, mostrando-se duvidoso. - No dia seguinte, a polícia não enviou nenhuma equipa de perícia criminal ao local, pois não? Não era a prática nesses tempos. O latoeiro foi quem levou com as culpas... O homem fumava. Reclinou-se para trás, cruzando os braços e fitando Eleanor, observando a reacção dela. - Tal como nós também fumávamos. Todos fumávamos. Era precisamente por essa razão que queríamos os fósforos. O Stanley costumava bifar os cigarros ao pai. Isto aconteceu muito antes de o Jimmy ter apanhado o susto por causa dos pulmões, quando começou a fumar cachimbo. De muito que isso lhe serviu, quando ele já estava conservado em álcool. Surripiávamos-lhe os paivantes e os miúdos do latoeiro faziam o mesmo ao pai deles, quando ele estava tão bêbedo que nem dava por isso, quando tinham a certeza de que não lhes daria uma tareia com o cinto.

 

- Uma vez que tu te recordas de tudo isso - disse Eleanor -, com certeza que estás lembrado do que aconteceu nessa noite.

 

- Para te ser franco, não me lembro - retrucou David com um abanar de cabeça. - O que não invalida que eu continue a sentir-me responsável. Pelo que quer que tenha acontecido. Responsável! Mas esta não é a palavra mais apropriada para mim, pois não?

 

- Tudo isso... nada tem a ver com quem te deu o ser.

 

- Ah, não? - David olhou à sua volta à procura dos cigarros, acendendo um. - Desculpa, posso fumar aqui? Estou a precisar de fumar um cigarro.

 

- Claro que podes fumar - disse ela, respirando o fumo que ele expelia.

 

David girou o cigarro aceso entre os dedos, observando a ponta que ardia.

 

- A Marion é que tem razão - prosseguiu ele. - Eu sou uma maldição... só trago desgraça aos outros. Procedi muito bem quando decidi partir; é preferível que me mantenha afastado.

 

Eleanor achou que David estava a dramatizar, o que fez com que se sentisse irritada com ele, uma irritação a que o mal-estar se associava.

 

- Nunca te passou pela cabeça como era horrível para nós não sabermos do teu paradeiro? - perguntou.

 

David encolheu os ombros, inspirando o fumo do cigarro.

 

- Sabes, eu costumava pensar que um dia haveria de procurar o meu pai. O meu pai verdadeiro.

 

- E chegaste a fazer isso?

 

- Não - admitiu David.

 

- Mas sabias quem ele era? - ”Serei eu forçada a dizer-lhe isto?”, perguntou-se Eleanor. ”Por favor, meu Deus, não me obrigues a ter de dizer, a quem quer que seja, seja o que for; estou farta!”

 

- Claro que sim, a. mãe disse-me. A Faith - corrigiu ele com um encolher de ombros, rindo-se de si próprio com um arremedo de gargalhada. - Portanto, concluí que se ele era um malandro daquela laia, não valia a pena querer conhecê-lo. Excepto, talvez, para lhe escarrar na cara.

 

- Oh, David, não digas uma coisa dessas.

 

- Ao fim e ao cabo, se eu sou um fardo assim tão grande, decerto que será por causa dele, não? Sou o legado dele.

 

- Mas a mãe e o pai é que são os teus verdadeiros pais, foram eles que te criaram - alegou Eleanor mordendo o lábio. - Nunca conseguirei habituar-me a esta situação, jamais!

 

- Estás a referir-te ao facto de eu não ser teu irmão de sangue? - perguntou David.

 

- A nada disto. As mentiras. A anos e anos de mentiras. Tanto da parte da mãe como do pai, da Alice e da Mamie. E também as tuas mentiras. - Eleanor respirou fundo. - E para cúmulo, ainda me dizes que, quando o lan teve o ataque de coração, as coisas não aconteceram da maneira como me recordo. Apresentas-me uma versão diferente. Mas por que razão é que eu hei-de acreditar no que tu me dizes? Desde os teus dezassete anos que tens andado a mentir-me. E não apenas acerca dos teus empregos, das namoradas e em relação ao que tens andado a fazer durante todo este tempo. A respeito da pessoa que tu és de facto.

 

Sem lhe responder, David baixou o olhar.

 

- Por isso, diz-me - continuou ela como se lhe implorasse, agora com os olhos rasos de lágrimas - por que razão, digas tu o que disseres, sobre o que quer que seja, eu hei-de acreditar que é verdade? Como é que alguém poderá saber se estás a mentir ou não? Tu nem sequer és capaz de te recordar do que fizeste. Não te lembras daquilo de que talvez sejas culpado. - Devido às lágrimas, Eleanor via-o desfocado; pouco depois, deixou de o ver de todo. - Acontece que não existe nenhum fundo de verdade no que tu dizes - acrescentou ela pouco depois, levantando-se e retirando uma toalha do rolo de papel de cozinha para se assoar.

 

- Lamento muito - disse David. - Sei que devia ter falado contigo e com a Marion. Mas muito em especial contigo.

 

- Pois bem, porque é que não o fizeste?

 

- Não sei dizer, Eleanor. É preciso não esquecer o pai, que se mantinha calado porque era o que a mãe queria. Até mesmo depois do funeral dela... quando a Alice foi falar com ele para lhe dizer que tinha de me contar tudo. Foi então que o pai lhe disse, como seria de esperar: ”O David já sabe, Alice. Sabe desde que deixou de estudar.”

 

- Oh, meu Deus. O que é que ela disse ao ouvir isso?

 

- Qualquer coisa nos moldes de que se eu tivesse querido, como era evidente, já teria ido falar com ela. Qualquer coisa no sentido de estar a ser castigada pelas suas acções. Deus sabe que mais. De qualquer maneira, a verdade é que o dinheiro continuou a ser-me enviado.

 

- De que dinheiro é que estás a falar? - perguntou Eleanor sem compreender.

 

David narrou-lhe aquelas conversas acaloradas com o pai, explicando-lhe o que Alice havia estabelecido para pagar aquilo a que ela se referia como sendo o ”sustento” dele.

 

- A tua mãe quer que eu converse contigo a respeito deste assunto - dissera John Cairns, indo buscar o livro com a documentação referente ao fundo de investimento de que ele era o beneficiário, os registos que eles tinham guardado desde o princípio.

 

- ”Qual delas? Que mãe?”, perguntei eu. Nessa altura já tinha dezanove anos - prosseguiu ele dirigindo-se a Eleanor - e continuava irritado como não conseguirás imaginar.

 

- Constrangido e confuso, o pai respondera-lhe que estava a referir-se a Faith.

 

- E foi assim - concluiu David com um encolher de ombros.

- Sempre que precisei de dinheiro, este nunca me faltou. O que aconteceu durante as minhas muitas... crises.

 

- Tu nunca... - começou Eleanor, hesitando. - Nunca abordaste esse assunto frontalmente com a Alice ou ela contigo?

 

- Não - declarou ele.

 

- Nem sequer lhe deste a entender que... tinhas conhecimento do assunto?

 

David não lhe respondeu de forma directa.

 

- Eu andava encolerizado e magoado, além de que também me sentia culpado por ter decidido sair de casa, afligindo toda a gente. Assim, o silêncio deu a impressão de se tornar cada vez mais forte. No fim, foi impossível quebrá-lo. E a verdade... eu nunca quis que essa fosse a verdade. Quis continuar a fingir que a Faith... bem, quis continuar a acreditar naquilo em que havia acreditado quando era criança. - David esboçou um sorriso, escarnecendo de si mesmo. - No entanto, isso não me impediu de continuar a aceitar o dinheiro, como é óbvio.

 

- E agora ela está morta e tu herdaste todo o dinheiro que ela possuía - retorquiu Eleanor sem reflectir, sem sequer pensar por um momento como é que aquilo soaria a David.

 

- Repete o que acabaste de dizer! - ripostou ele, arrastando violentamente a cadeira para trás.

 

- Oh, meu Deus. Não sei se sabes, mas o pai também tentou contactar-te. Quando te sentires melhor, ele tenciona vir até cá para falar contigo. Precisamente a respeito deste assunto.

 

- A respeito de quê? - perguntou David.

 

- A Alice deixou-te a casa e o dinheiro como herança - explicou Eleanor.

 

- Ela não pode ter feito uma coisa dessas - ripostou ele, branco como a cal da parede.

 

- Pois bem, foi o que fez. Quer dizer... a Mamie fica bem, continuará a viver na casa até ao fim dos seus dias. Mas o proprietário és tu, tal como o dinheiro também é teu. Não sei quanto é, mas o pai diz que... David, estás a sentir-te bem?

 

- Meu Deus!

 

- O que é que se passa?

 

- Não percebes que não posso aceitar isso. Não posso ficar com a casa nem com o dinheiro... nem sequer a merda de um cêntimo.

 

- E porque não? É teu de direito, ao fim e ao cabo, ela era a tua mãe. Queria que fosses tu a herdar os seus bens.

 

- Eu nunca tive tomates, os tomates para sequer falar com ela. Não posso aceitar.

 

- David... - Eleanor nunca o vira naquele estado.

 

- Por amor de Deus, Eleanor, peço desculpa, mas tenho de sair daqui para fora.

 

- Não podes, ainda não estás totalmente restabelecido. David olhou em seu redor com uma expressão tresloucada, agarrou na camisola que estava pendurada nas costas de uma cadeira e vestiu-a pela cabeça, retraindo-se todo quando a lã lhe tocou no rosto.

 

- Tenho de me ir embora. Não te preocupes. Só preciso de apanhar um pouco de ar fresco, de dar um pequeno passeio, mais nada.

 

- Não vás para longe... deixa-me acompanhar-te.

 

- Não! Deixa-me em paz, deixa-me, Eleanor. Por favor.

 

Ela deixou-o ir. ”Isto não é nada bom. Está tudo a desmoronar-se, toda a nossa família.” Eleanor acabou por parar de chorar daquela maneira em que se sentia tão desgraçada, assoando-se de novo antes de se dirigir para o telefone; queria ligar ao pai. Tencionava pedir-lhe que viesse imediatamente. Ele é que teria de resolver aquela situação, falar com David.

 

John levou muito tempo para atender o telefone. Eleanor deduziu que ele devia estar no jardim. ”Tentarei mais tarde.” Contudo, quando já estava prestes a desligar, o pai atendeu.

 

- Paizinho, está bem? Andava lá fora?

 

- Não, não, mas tenho de andar devagar, levo mais tempo.

 

- Olhe uma coisa... tenho muita pena, mas já falei com o David sobre a casa da tia Alice... Foi-me impossível não abordar o assunto com ele. Estamos fartos de falar. O pai acha que poderia vir até cá agora? Pode vir logo que lhe seja possível? Ele disse-me que não tenciona aceitar o dinheiro nem a casa. O David está francamente perturbado por causa de tudo isto.

 

- Por mim, iria com prazer, cachopa, mas existe um problema

 

- replicou John Cairns.

 

- O que é que se passa?

 

- Lembras-te quando eu torci o tornozelo no Natal passado?

 

- No Natal? Eleanor mal se recordava daquele incidente. - Está a parecer-me que tenho outra entorse no mesmo sítio. Não sei, mas esse tornozelo deve ter ficado mais fraco. Escorreguei quando estava a descer da escada de mão.

 

- O que diabo é que o pai estava a fazer em cima de um escadote? Está a sentir-se bem?

 

- Estou, sim, mas tive de chamar o médico e tenho o pé todo ligado. Ele disse que eu tinha de fazer uma radiografia. Já está combinado que a ambulância que costuma ir a casa das pessoas de idade passará por cá para me vir buscar e levar ao hospital. Bem vês, não estou em condições de conduzir o carro.

 

- Oh, paizinho. Deus me valha. Sendo assim, acha que podíamos levar o David para falar consigo aí? Não descansarei enquanto este assunto não estiver resolvido.

 

- De acordo, cachopa. Trá-lo até cá.

 

- E o pai está a conseguir aguentar-se sozinho. Sente-se bem?

 

- A Ruby tem passado por cá. Ela é muito boa pessoa, a Ruby.

 

- Sendo assim, iremos até aí, chegaremos dentro de um ou dois dias.

 

- Podes aproveitar para visitar a Mamie. Com o pé neste estado, não tenho podido ir vê-la.

 

- Está bem. Vou falar com o David - concluiu Eleanor. Mas primeiro teria de falar com Marion.

 

- O que é que te parece? - perguntou à irmã. - Tenho razão, não achas? O pai é que deve falar com ele. - O silêncio foi a resposta da irmã. ”O que é que eu terei dito de mal?”, perguntou-se Eleanor. ”Estarei eu enganada quanto a este assunto, completamente enganada uma vez mais?”

 

- Eu também vou contigo - afirmou Marion por fim, numa voz com uma firmeza que a irmã não lhe ouvia há vários meses. Tu, eu e o David, só os três. Temos de falar com o pai, os três em conjunto e, provavelmente, também com a Mamie.

 

- Tens a certeza? - perguntou Eleanor, soltando um suspiro.

- Oh, Marion, nem imaginas o alívio que estou a sentir. Tens a certeza de que estás em condições de poderes fazer a viagem?

 

- Tenho. Ainda não morri. Além do mais, não tenho a mínima intenção de morrer.

 

- Claro que não, não foi minha intenção...

 

- Não te preocupes. Eu estou bem. Não, não estou bem, sinto-me pessimamente, mas não posso continuar assim, a ver a minha vida a passar-me ao lado. Tenho de lutar por ela. Por conseguinte, estou decidida a ir contigo.

 

David subira a encosta da colina, tendo-se sentado num penedo próximo dos portões da quinta onde a própria Eleanor havia, amiudadas vezes, parado para recuperar a respiração depois da caminhada, desfrutando do panorama como se fosse uma pintura enorme que abarcasse com os seus braços. Abaixo deles, espraiavam-se as águas cintilantes do estuário, a elevação suave da ilha Black mais ao fundo, com pequenos aglomerados de casas que se erigiam sobre um solo fértil, verdejante e dourado com o florescimento que a Primavera trouxera consigo. Sobre a água, os pequenos pontos brancos que eram ostraceiros ou pegas-do-mar, demasiado distantes para se conseguir distinguir quais, com movimentos oscilantes que acompanhavam a ondulação suave da água. A superfície do estuário espelhava o firmamento, reflectindo tons de azul e cinza.

 

- Esta é a minha vista - disse Eleanor quando chegou junto dele com a respiração arquejante, sentindo um grande alívio ao ver que ele se limitava a estar sentado a fumar um cigarro, olhando para lá da encosta da colina, concentrando a sua atenção no arvoredo e nas águas calmas do estuário, observando o que se estendia mais além. - Adoro vir aqui acima.

 

- Estou a ver porquê - retrucou ele sem cruzar o olhar com o dela, pelo menos para já.

 

- Estás bem?

 

- Claro que sim - respondeu David.

 

- O pai voltou a torcer o tornozelo e ao que parece com alguma gravidade. Mas eu insisti em que queríamos falar com ele e como... como é evidente, ele não está em condições de vir cá...

 

- O quê?

 

- Bem, podíamos ir nós a Pitcairn. A Marion já disse que também queria ir. Só nós três. Para falarmos com o pai. - David apagou o cigarro, pisando a ponta que se enterrou no chão, sem dizer nada. - Chega-te para lá - disse Eleanor. - O penedo tem espaço para que os dois nos possamos sentar.

 

Em silêncio, ficaram sentados lado a lado enquanto um bando de patos-bravos se elevava no ar, levantando voo da água, com o seu grasnar que formava um coro à distância; ambos ficaram a observá-los a descrever meia volta, momentaneamente ocultos pelas nuvens que a seguir se apartaram, deixando passar os raios solares por breves instantes, alterando a intensidade da luz de momento a momento.

 

- No que me diz respeito, continuas a ser meu irmão - afirmou Eleanor decorrida uma pausa.

 

- Para que é que havemos de nos estar a preocupar com os factos, não é? - perguntou ele, rindo-se.

 

- Cala-te com isso - ripostou ela, corando. - Porque é que estás a gozar comigo?

 

- Nada disso. Peço desculpa.

 

- Sabes, aqui há tempos pensei que estava grávida - disse ela inopinadamente; as palavras saíram-lhe da boca quase antes de saber que as diria. - Convenci-me de que ia ter um filho, do Gavin. Mas depois pensei que ele me deixaria, que talvez até voltasse para a... a mulher com quem vivia. Ainda não me sentia muito segura dos sentimentos dele para comigo, tudo me parecia um tudo-nada irreal. Compreendi que muito facilmente poderia vir a ter uma criança sem que o pai estivesse presente. E antes de ter tido conhecimento de tudo isto, este assunto relativo à Alice, pensei: ”Pois bem, poderei falar com o David, pedir-lhe que me ajude, que venha fazer-me companhia.”

 

- Pedir-me a mim? - perguntou ele, perplexo.

 

- Sim, pensei: ”Se não puder ter o Gavin, terei de passar por isto sozinha, mas o David virá para junto de mim. Decerto que me ajudará a criar esta criança.”

 

Durante vários minutos, que pareceram eternizar-se, David não proferiu qualquer palavra. Eleanor continuava com o olhar preso no estuário, à espera que ele se decidisse a falar. Pouco depois, ele passou-lhe um braço pelos ombros, apertando-a afectuosamente.

 

- Queres saber uma coisa? São as palavras mais agradáveis que alguém alguma vez me disse - declarou ele com um abanar de cabeça, quase como se estivesse a rir-se consigo mesmo, mas Eleanor viu o brilho das lágrimas presas nas suas pestanas, o que o levou a pestanejar numa tentativa para as afastar. - Oh, meu Deus, Eleanor, mas que destino esse para qualquer criança. Eu como seu tutor.

 

- Bem - retorquiu Eleanor num timbre persistente -, era precisamente isso que eu teria desejado.

 

- Então, isso quer dizer que não estás? Quer dizer... grávida? perguntou ele.

 

- Não, desta vez safei-me - respondeu ela com um sorriso. Isto é, tu é que te safaste.

 

- Para te ser franco, a perspectiva ter-me-ia agradado bastante acrescentou David, sorrindo e colocando o braço em volta dos ombros dela com um cuidado exagerado, consciente das costelas que ainda lhe doíam. - Uma razão para não me afastar para muito longe. Para desafiar a maldição.

 

- Tu não precisas de razão nenhuma para ficares por aqui redarguiu Eleanor, virando-se para ele e tocando-lhe ao de leve na face magoada. - Poderás contar sempre connosco.

 

- Ah! - exclamou David, que continuava a sorrir, virando a cabeça de modo a poder beijar-lhe a palma da mão. - As minhas irmãs.

 

- Isso mesmo.

 

- Muito bem, irmã Eleanor - retorquiu ele, uma vez mais cheio de animação, brindando-a com uma expressão sorridente. Fala-me desse tal Gavin que é fraco de mais para se manter por perto aquando do nascimento do seu próprio filho.

 

- Eu nunca disse isso!

 

- A sério que não? É a tua vez, Eleanor, é a tua vez de falares. Ao ar livre, a verdade começou a ser revelada, envolvendo-os

 

como se fosse um manto, um território por explorar e que contudo lhes era familiar, que Eleanor sentia ser tão familiar como a sua própria pele ou a de David; Eleanor apercebeu-se de que agora poderia dizer o que lhe viesse à cabeça, fosse o que fosse, que isso não faria mal nenhum. ”É possível que isto não dure muito”, reflectiu ela, ”mas, neste momento, podemos dizer qualquer coisa um ao outro.”

 

- Diz-me tudo - pediu David outra vez. - Conta-me tudo sobre esse assunto, sem me ocultares nada.

 

- Vou a Pitcairn por um ou dois dias - disse Marion a Fergus quando ele chegou a casa ao fim da tarde, no mesmo dia em que tomara essa decisão. Não tinha visto o marido desde que ele a deixara na cama às oito horas dessa manhã.

 

- E por que motivo?

 

- O meu pai voltou a torcer o tornozelo.

 

- Ah, estou a ver.

 

Marion punha os talheres na mesa para a refeição da noite.

 

- O jantar já está pronto? - perguntou Fergus. - Queres que chame os miúdos?

 

- Daqui a um minuto - respondeu ela, virando-se para o fogão e espetando o garfo nas batatas para ver se estavam cozidas. Mais dois minutos.

 

- Nesse caso, vou mudar de roupa. - Mas quando ele chegou à porta da cozinha, Marion chamou-o. Ele já se dera conta de que havia mais. Viu-a sentar-se à mesa da cozinha, com muito cuidado, como se sentisse dores.

 

- A Eleanor disse-me que o David se recusa a aceitar a casa e o dinheiro que a tia Alice lhe deixou.

 

- Essa visita a Pitcairn deve-se a isso? Duvido muito que haja alguma coisa que vocês possam fazer quanto a isso.

 

- Mesmo assim, já decidimos que vamos os três falar com o nosso pai. A Eleanor, o David e eu.

 

- Tu e a tua irmã são as mediadoras? - perguntou Fergus.

 

- Estás a brincar comigo.

 

- Não, a sério que não - replicou ele, sentando-se diante dela. - Já tens o suficiente com que te preocupar. Além do mais, o David devia estar a repousar.

 

- Eu sei, mas...

 

- Todo este assunto foi um grande choque. Todos precisamos de um pouco de tempo para conseguirmos ajustar-nos.

 

- Sim, de facto precisamos - concordou Marion com um acenar de cabeça. - Mas, de uma maneira estranha, para mim, até não é tão mau como poderia esperar. É um assunto que não me perturba tanto como preocupa a Eleanor. Até se pode dizer que sinto mais afecto pelo David devido a isso. E sabes, acho que estou a precisar de me concentrar em qualquer coisa que não tenha a ver com a minha doença, com o meu próprio corpo.

 

- Pois bem, desde que tenhas cuidado contigo. Não quero que te excedas. É a Eleanor quem vai a conduzir?

 

- Sim, terá de ser ela.

 

- Óptimo - disse Fergus, satisfeito.

 

Ambos ficaram sentados em silêncio por uns momentos, até que ele lhe deu uma palmadinha afectuosa nas mãos entrelaçadas.

 

- Já não falta muito.

 

Contudo, tanto um como o outro sabiam que aquilo não correspondia à verdade. De facto, não faltava muito para a próxima TAC, para o resultado, tal como não faltava muito para o tratamento seguinte ou, com um pouco de sorte, até à próxima tomografia, até ao próximo resultado que fosse favorável. Mas faltava mais tempo até ao outro a seguir a esse. O tempo dava a impressão de querer eternizar-se, qual estrada oculta pela escuridão, cheia de curvas e contracurvas.

 

- As batatas já devem estar cozidas - disse Marion. - Chama os garotos antes de ires mudar de roupa.

 

Nessa mesma noite, Eleanor foi a casa de Gavin para o pôr a par do desenrolar dos acontecimentos.

 

- Durante quanto tempo é que estás a pensar ficar fora?

 

- No máximo, dois dias - respondeu ela.

 

- Está bem.

 

- Gavin.

 

- Não tem importância. Tens assuntos de família que precisas de resolver.

 

- Sim. Olha uma coisa, talvez seja melhor deixarmos o assunto para quando eu voltar, mas a verdade é que temos de ter uma conversa muito a sério, não te parece?

 

- Com certeza, se é isso que queres - replicou Gavin, sorrindo-lhe sem se mostrar minimamente perturbado, numa atitude amistosa.

 

- Gavin?

 

- Sim...? - Recostou-se para trás no seu cadeirão, observando-a atentamente. Eleanor mantinha-se de pé, pouco à vontade, no meio da sala. Queria perguntar o que nunca havia perguntado a Gavin. Nunca houvera necessidade disso, como era óbvio. Mas agora ele parecia estar mais distante, como que separado dela por todas as coisas que se haviam interposto no caminho: o passado dele e o dela, as vidas diferenciadas de ambos. ”Quero voltar a partilhar a mesma intimidade com ele.” Não sabia quais as palavras que deveria utilizar.

 

- Achas que podíamos... antes de eu ir para casa... podíamos ir para a cama?

 

- Meu Deus - disse ele rindo-se -, a julgar pela tua expressão, pensei que te preparavas para me pedir qualquer coisa realmente impossível de satisfazer!

 

- Como o quê? - Naquele momento já ela estava sentada nos joelhos dele, que a abraçava; a voz de Eleanor soava abafada por ter a cara encostada ao peito de Gavin.

 

- Se eu queria casar contigo ou qualquer outra coisa horrível nesses moldes.

 

- Oh! - gritou ela. - O que é que isso teria de mais? - Na verdade, o que ela queria era o conforto que o corpo dele lhe proporcionava, ajustado a todo o comprimento do seu, o cheiro, o sabor e o toque dele, o casamento da carne. ”Estou embriagada com o sexo”, pensou Eleanor quando ele já se movimentava dentro de si, acompanhando os movimentos cadenciados do seu próprio corpo. Ali, pelo menos, não havia necessidade de tentar tirar o mínimo sentido daquilo que poderia vir a suceder, ou tentar discernir um passado confuso, saber e pensar no que quer que fosse que não se relacionasse com aquela cama onde ambos se aninhavam, como numa pequena embarcação no meio de um vasto oceano, rodeados por um mar bravo mas que, todavia, lhes proporcionava segurança.

 

- Claro que é um risco - disse Marion.

 

Já iam a caminho de Pitcairn, tendo parado no Brodie’s para comer uma sopa. Numa viagem habitual, aquela paragem seria demasiado cedo, logo à saída de Forres, mas quando iniciaram a viagem já passava das onze.

 

- O que é que é um risco? - perguntou David, que se aproximava da mesa com os guardanapos e os talheres.

 

- O facto de a Eleanor estar a apostar tanto na relação que tem com o Gavin - explicou Marion.

 

- Isso quer dizer que tencionas dar continuidade a essa relação?

 

Ambos olhavam atentamente para ela. Eleanor sentia-se exasperada, mas ao mesmo tempo comovida, ao ver a preocupação que ambos mostravam por ela.

 

- Não posso. Já te tinha dito isso... Tenho de pensar na Claire e na Marion, para já não mencionar toda a minha vida.

 

- A Claire não constituirá qualquer problema - observou Marion, tentando tranquilizar a irmã.

 

- Eu próprio olharei pela Marion... de acordo? - acrescentou David pegando na sua colher de sopa, com a qual acenou como que para dar mais ênfase às suas palavras. - Passarei a viver na tua vivenda, para que tenhas onde habitar caso as coisas não te corram bem com o Gavin.

 

- Tu deixas-me absolutamente assombrada, David Cairns comentou Marion, abanando a cabeça.

 

- O extraordinário David Cairns e a sua dança ainda mais espantosa... O que é que foi?

 

- As gaivotas - explicou Eleanor ao ver um par dessas aves que faziam um voo a pique em direcção ao jardim do restaurante para apanhar pedaços de pão com o bico.

 

- Indiscrições, foi o que pensei - retorquiu David com um sorriso. Tamborilou sobre o tampo da mesa junto do prato de Marion. - Come a tua sopa toda - incitou ele. - Faz-te muito bem.

 

- Estou a tentar - replicou Marion, sorrindo-lhe. - Mas, para mim, tudo tem o mesmo sabor. Como se fosse uma pasta de papel de parede. - Todavia, via-se que ela fazia um esforço, tendo conseguido comer algumas colheres de sopa.

 

Haviam-se sentado na parte do restaurante que constituía um jardim de Inverno, uma estrutura toda envidraçada; as portas que davam para o jardim estavam abertas. De vez em quando sentiam a passagem de uma rajada de vento frio, mas o Sol brilhava com intensidade, banhando-os na sua luminosidade cálida.

 

- Está um dia quente de mais para se comer sopa - comentou Marion com um suspiro, como se pedisse desculpa, ao mesmo tempo que afastava o prato meio cheio.

 

- O que é que te apetece comer em vez da sopa? Um sorvete?

 

- Não, obrigada, Não me apetece nada, David. A sério.

 

- Então queres um café?

 

- Eu quero um café - disse Eleanor.

 

- Talvez um copo de água? - alvitrou Marion, recusando o café com um abanar de cabeça.

 

- Com certeza - afirmou David, prestável, voltando a entrar na fila que se formava junto do balcão.

 

- O que é que estamos a fazer? - perguntou Marion, inclinando-se sobre a mesa na direcção da irmã.

 

- A que é que estás a referir-te?

 

- Estou a perguntar-te o que é que vamos fazer a Pitcairn?

 

- Ora essa, vamos falar com o pai.

 

- Acerca da Alice?

 

Eleanor remeteu-se ao silêncio, fixando o olhar no jardim onde uma família se instalava, sentando-se a uma das mesas de piquenique, instalando as crianças nas respectivas cadeiras e tirando os pratos com as refeições dos tabuleiros. Estavam todos a falar ao mesmo tempo.

 

- Não sei - acabou ela por dizer. - Suponho que queiramos compreender melhor o que efectivamente aconteceu. Além do mais, temos de persuadir o David a aceitar a herança que a tia Alice lhe deixou em testamento... a casa e o dinheiro.

 

- Voltaste a abordar esse assunto com ele? - perguntou Marion.

 

- Estás a referir-te à casa? Não, não se pode dizer que o tenha feito... Ele ficou tão perturbado quando lhe falei nisso.

 

- Mas ele concordou em vir connosco?

 

- Sim. Sei, todavia, que não se sente muito bem consigo próprio por ter cedido.

 

Ambas se viraram para trás para observar David. Naquele momento, ele discutia os méritos dos bolos caseiros, que se encontravam à venda, com a rapariga que trabalhava ao balcão, absolutamente alheado da fila que continuava a engrossar atrás de si. A rapariga apontava para os bolos e biscoitos em questão, olhando para David com um sorriso cheio de cordialidade enquanto respondia às perguntas dele. Entretanto, David pareceu ter, finalmente, feito a sua escolha, gracejando a esse respeito e fazendo com que a rapariga se risse enquanto com a pinça dos bolos tirava do balcão o que ele queria, entregando-lhe os pires.

 

- Por amor de Deus - desabafou Marion com um suspiro.

- Eu tinha-lhe dito que não queria comer mais nada.

 

- Ele está a tentar cuidar de ti - fez-lhe ver Eleanor. - Tu continuas a perder peso.

 

- Ora - disse Marion, mostrando-se impaciente. Mas pouco depois a sua atitude suavizou-se. - Peço desculpa, tens toda a razão.

 

A intenção dele é boa, para variar. - Voltou a concentrar-se em Eleanor. - A cara dele está muito melhor. E quanto ao homem que mandou os outros dar-lhe uma tareia? Suponho que ele não tenciona voltar a trabalhar com ele?

 

- Nem pensar - replicou Eleanor, que estava quase certa de que isso não aconteceria. - Acho que ele está a falar a sério quando diz que tenciona ficar por aqui. Está a parecer-me que agora sente-se mais ligado a nós... para ele tornou-se mais fácil manter um relacionamento mais chegado a nós.

 

- Agora que todos estamos ao corrente do segredo da Alice? perguntou Marion.

 

Eleanor voltou a olhar para David. Tinha acabado de pagar a conta na caixa registadora, tendo pegado no tabuleiro cheio para o trazer para a mesa.

 

- Não lhe deve ter sido nada fácil, ter de guardar um segredo como esse sem o partilhar com ninguém. Não admira que ele tivesse passado a vida a ir para longe. - Apesar das suas palavras, Eleanor continuava a ter alguma dificuldade em lhe perdoar o silêncio, a omissão da verdade que ele mantivera ao longo de um período da vida de ambos em que ela pensara que eram muito unidos. Todavia, esforçava-se por compreender.

 

- Não estejas a pensar que ele se manterá por cá durante muito tempo - previu Marion. - Vais ver. Não está na sua maneira de ser, até mesmo quando já não existem segredos que tenham de ser guardados.

 

- Tu é que não queres que ele fique - contrapôs Eleanor, embora sorrisse à irmã, transformando as suas palavras numa brincadeira. - Continuas a pensar que ele só traz problemas.

 

- Pois bem, é verdade. Quem sabe, talvez a doença faça com que comecemos a imaginar coisas, para além de nos enfraquecer acrescentou Marion virando a cabeça para poder olhar para David, o qual se detivera com o tabuleiro nas mãos para falar com uma criança pequena que se atravessara no seu caminho e cuja mãe a agarrara, pedindo desculpa e respondendo a David quando este fizera um comentário a respeito da criança. ”Depois de tudo somado”, pensou ela, ”que mal é que ele parece ter causado? Um cão que tinha morrido por ocasião de um Natal, um acidente de viação de que ele não tivera culpa nenhuma, um ataque de coração que, sem sombra de dúvida, ele não poderia ter causado, e Eleanor que insiste em manter uma relação com um homem que de certeza absoluta lhe destroçará o coração... E eu? Não, não, nada disto teve alguma coisa a ver com o David. E contudo...”

 

- Aqui temos. Pensei que talvez te apetecesse um biscoito ou algo do género. A rapariga disse que os de manteiga são muito bons anunciou David, começando a tirar as coisas do tabuleiro e colocando na mesa dois pratos cheios, um com biscoitos de manteiga e outro com uma fatia de um bolo qualquer que exibia uma camada generosa de uma cobertura com amendoim caramelizado. - Este aguçou-me o apetite - acrescentou -, mas, se apetecer a uma de vocês, podem comê-lo à vontade. - Sentou-se, apercebendo-se de que as duas irmãs se riam dele, o que o levou a afivelar uma expressão de falso pesar. - Ora bem.

 

- Não te preocupes, podes comer essa coisa com os amendoins - disse-lhe Eleanor pegando na sua chávena de café.

 

- Eu não consigo comer isto tudo - começou Marion a dizer, mas então viu o olhar que a irmã lhe lançava. - De qualquer maneira, obrigada. Posso comer metade e tu ficas com o resto.

 

”A maneira cuidadosa como falamos uns com os outros”, pensou Eleanor, partindo o seu biscoito de manteiga em vários pedaços, sentindo nos dedos a aspereza do açúcar com que estava polvilhado.

 

- O que é que tencionas fazer? - perguntou Marion, dirigindo-se a David -, se por acaso ficares a viver nas Highlands?

 

- Oh, mas podes crer que vou ficar - retorquiu ele, mexendo energicamente o seu café depois de o ter adoçado. - Conheço um fulano que vive nos Estados Unidos da América... um velho conhecido, que está envolvido num esquema de transferência de tecnologia industrial: pessoas de um determinado país vão para outro, com um contrato de trabalho de seis meses ou de um ano, onde trabalham na mesma área em que trabalhavam. O que lhes proporciona uma nova experiência, para além de partilharem os seus conhecimentos técnicos com outros. Os cientistas fazem isto, assim como os homens de negócios e até mesmo os agricultores. Ele acha que eu poderia tratar dessa actividade nesta parte do país. Há muito tempo que é prática corrente na região central. De facto, até tenho andado a pensar em pôr de parte o negócio da Internet, para poder começar a trabalhar para o Jay em Edimburgo. No entanto, isto parece-me uma oportunidade melhor... uma coisa realmente inovadora... que eu poderia implementar nas Highlands. - Só então é que David pareceu dar conta do silêncio que se instalara entre Marion e Eleanor, que se limitavam a entreolhar-se, sem sequer olharem para ele. - Há-de correr tudo bem, o Jay é um sujeito verdadeiramente decente... Quanto a isso não há motivo para preocupações. - Trincou uma generosa porção da sua fatia de bolo com amendoim caramelizado, brindando-as com um sorriso radiante.

 

- Bem... - começou Eleanor a dizer. - De facto parece interessante.

 

- É tudo uma questão de arranjar contactos - prosseguiu David, muito animado. - Por isso é que pensei que talvez fosse bom arranjar um emprego por aqui durante algum tempo, talvez mesmo algum trabalho de consultadoria, só até conhecer o meio em que circulo - explicou David, virando-se para Eleanor. - Até é possível que possa arranjar alguma coisa que tu possas fazer, se continuares a viver nesta área. Ou até mesmo se te mudares para Aberdeen.

 

Durante uns momentos, Eleanor imaginou-se num fato de saia e casaco, movimentando-se no mundo empresarial, tendo de viajar de avião com regularidade para a América do Norte.

 

- Mas onde é que isso dá dinheiro? - perguntou Marion. Quer dizer, esse tal Jay tenciona pagar-te alguma coisa?

 

- Bem, trabalharei à comissão. Receberei uma percentagem por cada troca que conseguir levar a cabo.

 

- Estou a ver. - Eleanor baniu do seu pensamento a mulher que envergava o fato de saia e casaco, com o seu telemóvel e computador portátil. Ela começou a afastar-se com os seus sapatos de salto alto, uma figura de ficção, impossível de existir.

 

David examinava atentamente o último pedaço do seu bolo com amendoim.

 

- Seja como for, pensei que não teria nada a perder se experimentasse.

 

- Portanto, não tencionas viver na casa que a tia Alice te deixou? - perguntou Marion. ”Tem de haver alguém que o diga”, pensou. ”Não podemos continuar a andar com pezinhos de lã, para depois acabarmos por fazer uma cena desagradável em Pitcairn. Não seria justo para com o pai ou mesmo para com a Mamie.”

 

- A casa é da Mamie - respondeu David, corando. - Por quem é que me tomas? Por acaso não estás a sugerir que eu podia viver com ela? Isso é que seria uma ideia verdadeiramente disparatada. - Dentro dele, algures, existia o reconhecimento de que todas as ideias que tinha possuíam um cunho de alguma loucura, mas Marion sabia que não era o momento mais apropriado para estar a aprofundar aquele assunto.

 

Entretanto, Eleanor pensava no que o pai lhes dissera. Sentia vontade de contar. ”A Mamie costumava andar de um lado para o outro contigo ao colo durante toda a noite, para ver se paravas de chorar. Berravas e berravas, mas era ela que te dedicava todos os cuidados maternais, quando a Alice se sentia incapaz de o fazer... quando se recusava a assumir o papel de mãe.”

 

- Não - disse ela falando com David -, claro que não poderias fazer isso. Tu queres ter uma vida independente. Mas pelo menos sabes que a casa um dia será tua. Decerto que te proporcionará uma espécie de segurança, não é verdade?

 

- Eu nem sequer saberia o que fazer com esse tipo de segurança depois de todos estes anos a viver sem isso. Quanto à Mamie... quando, mais cedo ou mais tarde a casa for minha, tenciono vendê-la e dividir o dinheiro entre os vossos filhos. - A expressão no rosto de David fechara-se e Eleanor sentiu-se receosa, como se ele continuasse a manter a distância entre si e elas, separados por segredos que nenhuma das duas poderia saber. A partilha dos acontecimentos que envolviam o nascimento dele parecia ter servido para os unir, mas talvez isso fosse de pouca duração. Também era possível que isso o levasse a afastar-se de novo.

 

- Não há necessidade nenhuma de estares a preocupar-te com isso agora - disse ela com suavidade, tocando-lhe no braço. A Mamie ainda há-de viver por muitos anos e a casa, para todos os efeitos, é dela, como tu próprio disseste.

 

A linha estreita e apertada que os lábios de David formavam relaxou-se.

 

- Sim - disse ele. - Nada poderá alterar isso.

 

- E quanto ao dinheiro? Decerto que sabes que a Alice também te deixou algum dinheiro?

 

- Sim, sei - replicou ele, virando-se para Marion enquanto falava. - Ora vamos lá a ver - acrescentou -, com certeza que sabes que eu poderia desbaratá-lo com a maior das facilidades.

 

- Sim, e é precisamente isso o que mais receio.

 

- Sendo assim, a única alternativa é tu manteres-me na linha retorquiu David com um encolher de ombros. - Tens de te encarregar de gerir isso ou qualquer coisa no género.

 

- Posso dar-te o suficiente para que consigas viver, mas nada que te permita gastar em negócios das arábias que só servem para se perder dinheiro. É isso?

 

Manifestamente ansioso, o olhar de Eleanor ia de David a Marion, verificando que ambos sorriam.

 

- Sim - concordou David. - Qualquer coisa nesses moldes. Durante algum tempo, nenhum deles falou. Eleanor acabava de beber o seu café, enquanto Marion afastava o prato da sua frente, tendo deixado metade do biscoito de manteiga.

 

- Talvez seja melhor pormo-nos a caminho, não acham? sugeriu David momentos depois.

 

Cada um pegou nas suas coisas. De repente, David colocou-se diante das duas, abrindo as mãos com os braços para os lados.

 

- O que eu disse a respeito da casa foi a sério. É em Aberdeen, pelo que valerá algum dinheiro, proporcionando a cada um dos vossos filhos uma bela maquia... quer para os estudos universitários, quer para a entrada de um apartamento, ou ainda para poderem percorrer o mundo de mochila às costas... Enfim, para eles fazerem o que lhes apetecer. Se eu proceder assim, ficarei com a sensação de que fiz algo de bom. Estão a perceber?

 

- Sim - respondeu Marion. - Entendemos o que queres dizer.

 

Os olhos de Eleanor encheram-se de lágrimas, obrigando-a a virar a cabeça para que eles não se apercebessem da sua comoção. ”O que é que posso fazer?”, perguntou a si mesma, ”que seja considerado uma coisa boa?” Uma espécie de expiação. Sabia bem o que David queria dizer, muito melhor do que Marion alguma vez conseguiria entender.

 

Num passo lento, os três atravessaram a loja situada entre a sala do restaurante e a entrada, apontando uns aos outros alguns dos artigos expostos. Marion parou junto de um expositor de roupa, enquanto David optou pela prateleira das iguarias destinadas a gastrónomos e Eleanor se deteve junto de uma pilha de cestas de verga^ de todos os tamanhos e feitios, próximo da porta. Sempre que um parava, os outros seguiam-lhe o exemplo. ”Ora esta”, reflectiu Eleanor. ”É como a felicidade, esta espécie de bolha em que nos encontramos.” Mas era evidente que não poderia ser felicidade: ali estava Marion a sofrer de uma doença cancerosa, David com problemas de alcoolismo, em certa medida, e a própria Eleanor com a sua quota-parte de sentimentos de culpa cada vez mais reduzida, mas nem por isso menos presente, para além de estar apaixonada por alguém que jamais quereria casar com ela. Pior ainda, ao longo de toda a vida dos três haviam sido enganados. As verdades fundamentais tinham-se dissipado no espaço de uma tarde; nada era como eles haviam acreditado que fosse. David, porém, que sempre fora conhecedor da verdade, ficara semidestruído por ela. Por conseguinte, como é que a leveza e a doçura da tarde podiam ser alguma coisa que não se traduzisse numa paz ilusória? Os três eram como pessoas vulgares que decidiam fazer uma paragem durante a viagem.

 

”Mas quem sabe”, reflectiu Eleanor para consigo própria enquanto David mantinha a porta aberta para que ela e Marion pudessem passar, saindo para a luz do Sol, ”se a felicidade não será isto mesmo.”

 

Aquela área de serviço tinha muito movimento, o que os obrigara a estacionar na extremidade mais afastada do parque de estacionamento, entre o arvoredo. A meio caminho do automóvel, Marion deu-se conta de que não tinham comprado nada que pudessem oferecer ao pai.

 

- Podíamos comprar-lhe um boião daquela compota de laranja com sabor a uísque - sugeriu David. - Assim podemos combinar os dois géneros alimentícios que parece nunca faltarem lá em casa.

 

- Eu volto atrás - ofereceu-se Marion. - De nós os três, sou a que tem mais hipóteses de encontrar qualquer coisa que não seja disparatada.

 

- Tens a certeza de que não estás cansada? - perguntou Eleanor, mostrando-se ansiosa por causa do estado de saúde da irmã.

 

- Estou bem, Eleanor - limitou-se Marion a responder, esforçando-se por não deixar ver a irritação que sentia. Deu meia volta e começou a encaminhar-se para a loja.

 

Quando voltou a sair, não conseguiu avistar Eleanor nem David. Mas depois viu-os - junto do carro, ao lado um do outro, entretidos a conversar. Estavam debaixo das árvores, à sombra, mas por breves instantes o cabelo de Eleanor reflectiu os raios solares quando se mexeu. David, bastante mais alto do que ela, parecia agigantar-se ao seu lado. Gesticulava, fazendo gestos largos para ilustrar um ponto qualquer enquanto falava. Porém, na perspectiva de Marion, durante breves segundos, pareceu-lhe que ele lançava um feitiço. Deteve os seus passos e houve qualquer coisa que nada tinha a ver com a sua doença ou com os tratamentos, que a fez suster a respiração. E se ele decidir ficar? E se desta feita ele estiver realmente apensar em ficar?

 

John Cairns estava sentado no banco das traseiras da casa, observando o jardim. Havia tanta coisa que era preciso fazer naquela época do ano e ele incapaz, daquela maneira. Tinha o pé todo ligado, deslocando-se num passo vacilante com a ajuda de muletas. Irritado, com o pé bom deu um pontapé numa das muletas encostadas ao seu lado no banco corrido, a qual foi cair no chão.

 

- Porra! - resmungou, baixando-se para a apanhar do solo. Viu as horas no seu relógio de pulso. As filhas tinham-lhe dito que chegariam mais ou menos a meio da tarde. Quase sem se aperceber de que o fazia, mantinha-se atento à espera de ouvir o barulho do motor do automóvel.

 

Quando fora a última vez que ele reunira os três em sua casa? Não desde a juventude deles, quando ainda viviam na casa paterna. Fechou os olhos, começando a ouvir a voz da mulher, da sua jovem esposa, que costumava apoiar a cabeça de cabelos escuros no seu ombro, se bem que fosse tão franzina que mal lhe chegava, mais inclinada para o braço do marido do que encostada ao ombro, enquanto dizia: ”Vamos ficar com ele, John, poderemos proporcionar-lhe um bom lar.”

 

Porém, esse episódio não tivera lugar ali, em Pitcairn. Tinha-se passado na casa, muito mais pequena, em Aberdeen, ainda as duas filhas eram crianças; nessa altura, a própria Eleanor não era muito mais do que um bebé. A memória de John já começava a pregar-lhe partidas. Ultimamente, era mais difícil reviver com clareza aquelas recordações, custando-lhe separar umas das outras. Todavia, continuava a recordar-se do que ela lhe dissera nessa altura:

 

- Desde que ela não venha a mudar de ideias. Isso é a única coisa que me deixa preocupada.

 

- Trata-se de uma decisão que não deve ser nada fácil para ela

- advertira ele -, ter de desistir do garoto.

 

- Sim - dissera Faith com um estremecimento -, perder um cachopo, deve ser a pior coisa no mundo. - Todavia, Faith estivera a pensar em si própria ao dizer aquilo e não em Alice.

 

Inexoravelmente, os pensamentos de John remontaram ao incêndio na quinta dos Mackies, recordando-se da cigana que morrera com o bebé nos braços. A pior coisa no mundo. Eles também haviam passado por essa experiência, até certo ponto, no Verão em que David se sumira. Levou a mão ao rosto, esfregando a face, relutante em deixar entrar aquela recordação que continuava a ser tão dolorosa, tendo a impressão de estar a ouvir a voz de Faith na sua cabeça enquanto ela chorava nos seus braços nessa noite, sentindo-se encolerizada e receosa.

 

- Queres saber uma coisa? - perguntara ela sentando-se na cama e assoando-se, num desafio às lágrimas. John não quisera ouvir o que ela tinha para lhe dizer, apesar de saber que não lhe restava qualquer alternativa.

 

- Nós já discutimos esse assunto... - começou ele a dizer.

 

- Eu costumava sonhar que a Alice um dia viria buscá-lo. Quando ele ainda era pequeno, um bebé, sonhava que ela mo roubava. Houve uma ocasião em que até pensei... - acrescentara, mas interrompeu-se abanando a cabeça. - Mas agora... agora quase desejo que ela tivesse feito isso.

 

- Tu não estás a falar a sério, nunca quiseste que isso acontecesse - retorquira John, tentando acalmá-la, abraçando-a quando ela se encostou ao seu peito com a respiração arquejante, esforçando-se por não chorar para não acordar as filhas. A ansiedade era como uma pedra no peito de John que se recusava a deslocar-se. Ele sentia-se impotente: não havia nada que pudessem fazer. Mas, pior do que tudo o mais, havia sido a maneira como ela chorara, a sua mulher que tão raramente chorava e que nunca mais voltou a entregar-se a um pranto como aquele.

 

Nunca, pensou ele, erguendo o olhar para uma nuvem que cobria o Sol, escurecendo as sombras que se projectavam sobre os arbustos, entre os maciços de lilases. A fragrância dos botões rendilhados das pinhas tenras chegava-lhe às narinas, empurrada pela brisa através do jardim, uma fragrância intensa e doce. Durante alguns momentos, teve a sensação de estar a vê-la de novo. Não, não era a mulher do latoeiro, não, não era ela, mas sim a sua mulher, pequenina e muito ágil, andando com pés que mal pareciam tocar no chão. Encostou-se para trás, esfregando os olhos. Quando voltou a olhar, não viu ninguém no jardim, o único movimento vinha de um melro que voava por entre a ramagem das árvores.

 

Não, não - disse John como se estivesse a admoestar-se a si próprio. Em Pitcairn não havia nenhum fantasma. Era tudo fruto da sua imaginação. Então, John voltou-se, inclinando a cabeça e pondo-se à escuta. Teve a impressão de que ouvia o barulho do automóvel de Eleanor, o som dos pneus sobre a alameda de gravilha, os filhos que chegavam a casa.

 

Através dos campos da Quinta Mains de Pitcairn, deslocando-se lentamente pelo ar onde não soprava uma brisa que fosse, chegavam os cheiros quentes de madeira queimada, de palha em chamas, acompanhados de algo mais que não era tão natural nem limpo. Eram cheiros que formavam uma bruma do que deixara de ser fumo, tendo dado lugar a um vapor invisível que pairava acima dos caminhos e das copas das árvores, como um manto de poeira fina formada por cinzas. Naquele momento não era possível vê-lo, mas entranhava-se na garganta sempre que se respirava. Na quinta, o ar continuava a reverberar acima dos escombros do palheiro, mas isso talvez tivesse sido apenas o calor da tarde soalheira, mais pesado e intenso do que no dia anterior.

 

No extremo mais afastado dos jardins de Pitcairn, por baixo das macieiras, fazia mais fresco; aí, agora mal se conseguia sentir o cheiro do fumo. Eleanor estava sentada com as costas contra o tronco de uma das árvores, espalhando em círculo a sua colecção de folhas. Hoje, em Pitcairn, contou ela, havia quatro adultos, três crianças e dois gatos. Um dos gatos pertencia à família, era novo e assustadiço; o outro já tinha muitos anos e era um gato malhado que viera da Mains, passando mais tempo em Pitcairn do que na quinta. Eleanor tinha uma folha para cada membro da família. Também incluiu o gato malhado que começou a rebolar de costas ao seu lado; a pelagem do estômago do felino era da cor do mel; estendeu uma das patas para tocar numa das folhas. Até ao momento só havia quatro, e isso porque Eleanor levava tanto tempo a escolher a que melhor correspondesse a cada pessoa.

 

A do pai era de um castanheiro-da-índia, uma folha da árvore que ficava ao fundo do caminho particular de acesso à casa. Tinha cinco pontas: uma por cada membro da família que vivia em Pitcairn (desta vez sem contar com os gatos), porque ele olhava por todos. A que correspondia à mãe era um par de folhas de sicómoro. Qual pequena dançarina.

 

Quando ouviu alguém chamar pelo seu nome, Eleanor imobilizou-se, olhando para cima. Encontrava-se ao fundo da vereda próximo das macieiras, fora da vista de qualquer pessoa. Era a mãe que chamava por ela.

 

- Estou aqui!

 

Faith imobilizara-se no caminho estreito, a poucos metros de distância.

 

- A tia Alice quer tirar algumas fotografias com a nova máquina fotográfica.

 

- Tenho de ir? Estou muito ocupada.

 

- Não demora muito tempo.

 

- Mas o vento é capaz de levar as minhas folhas para longe.

 

- Despacha-te - disse Faith, virando costas e seguindo em direcção à casa. - Estamos todos à tua espera.

 

Com alguma relutância, Eleanor levantou-se do chão, deixando a sua brincadeira para trás.

 

Estavam todos junto do banco na porta das traseiras da casa. Quando Faith reapareceu, Alice ergueu a câmara fotográfica e carregou no botão: dique.

 

- Oh! - exclamou Faith. - Nem sequer tive tempo para dar uma penteadela ao cabelo.

 

Mamie já tirara a caixa de pó-de-arroz da sua bolsa, olhando-se ao pequeno espelho. O pai de Eleanor estava sentado no banco à espera, tendo Marion ao seu lado a embalar a boneca com que brincava.

 

- Quero voltar para o meu feijão-verde - disse ele. - Ainda não tinha acabado de lhe pôr as estacas.

 

- Que é feito do David? - perguntou Alice. - Ainda há pouco pensei que ele estava aqui.

 

Foram dar com David em cima de uma árvore, obrigando-o a descer. Finalmente, Alice conseguiu reunir a família: os adultos sentados no banco e as crianças ajoelhadas diante destes. Assim que ela tirou a primeira fotografia, John Cairns foi-se embora, regressando à sua horta.

 

- Vou tirar uma só com os cachopos - disse Alice.

 

- Então é melhor despachares-te - avisou Faith. - Estás a ver aquelas nuvens escuras?

 

Enquanto tratava dos seus feijões, John ouvia as mulheres a conversar. A voz aguda de Faith indicou-lhe que David não estava a portar-se como devia ser, o que o levou a suspirar. Pouco depois, calculou que deveriam ter ido para dentro de casa porque deixou de os ouvir. Alguns minutos mais tarde, Eleanor passou despreocupadamente pela vedação que delimitava a horta, cantando para si própria e acenando com um monte de folhas.

 

Mais tarde, quando John sachava a terra à volta das cenouras, sentiu uma ou duas gotas de chuva que caíam do ar mormacento, mostrando-se satisfeito quando Faith surgiu ao portão.

 

- Vens oferecer-me uma chávena de chá? - perguntou-lhe, pousando o sacho. - Vinha mesmo a calhar, está um dia muito quente para se trabalhar a terra. Há pouco senti uns pingos de chuva... Não tarda muito que tenhamos trovoada.

 

- Já pus a chaleira ao lume - retorquiu Faith, aproximando-se dele. - John... aconteceu uma coisa terrível.

 

- O que é que foi? - perguntou ele, se bem que conseguisse perceber pela expressão no rosto dela, pela maneira firme como Faith caminhava, que não se tratava de nenhuma crise por causa de uma das crianças. Quando David caíra do castanheiro-da-índia, fracturando a cabeça, ela viera a correr pelo jardim, branca como o mármore e quase sem respiração.

 

- A Sheila Mackie esteve cá em casa - disse Faith.

 

- Ah. Como é que ela está?

 

- Ora, sabes como a Sheila é. Não é mulher para se queixar respondeu Faith com uma expressão grave.

 

- Tiveram um prejuízo tremendo, o feno que eles ceifaram ficou todo estragado e... - começou John a dizer. Faith estendeu a mão, tirando um galho que se agarrara à manga do marido. - Passa-se mais alguma coisa? - perguntou ele.

 

- Sim - confirmou ela.

 

John aguardou, mas, então, ela olhou-o bem de frente.

 

- Encontraram dois cadáveres - informou Faith. - Morreram no incêndio... devem ter ficado encurralados. - John agarrou-a pelo braço, como que para impedir que ela caísse, mas a verdade é que foi para ele próprio se apoiar a ela. - A mulher do latoeiro e o bebé - continuou ela. - Foi aquela mulher ainda nova que ontem bateu à nossa porta. A Sheila disse-me que o Dan tinha acabado por correr com eles com receio que o homem fumasse no palheiro. Mas, mesmo assim, eles devem ter ido para lá sem que ninguém desse por isso.

 

- Deus nos valha! - exclamou John, aliviando o aperto no braço da mulher quando se afastou um pouco dela; já não se olhavam de frente, ambos mantinham os olhos no solo acastanhado, com a terra ressequida e fendida pelo calor.

 

- O que é que o David disse? - perguntou John por fim.

 

- Já te disse. Eles nem sequer chegaram perto da Mains. Mantiveram-se longe - repetiu ela.

 

- Rezo a Deus para que isso seja verdade. Não seria capaz de suportar a ideia se pensasse, por um minuto que fosse, que...

 

Faith ergueu uma mão que levou aos lábios do marido, pressionando-os suavemente.

 

- Os outros garotos estão bem - prosseguiu ela. - Os dois rapazes pequenos não estavam com a mãe. - A voz de Faith encrespou-se. - Encontraram o homem dela caído numa valeta, esta manhã, com uma garrafa vazia. Acham que ele deixou uma ponta de cigarro acesa no palheiro antes de sair; ficou a arder lentamente... - Faith interrompeu-se, dando uns passos atrás para observar a fisionomia do marido que se iluminava.

 

- O Davy e o Stanley... achas que eles estiveram a brincar com esses cachopos?

 

- É o que eu penso. O Davy está com medo de dizer, porque sabe que devia ter vindo para casa há muito tempo, além de saber também que eu não quero que brinque com esses garotos. Mas eles dizem que estiveram a brincar no bosque, como de costume. Esqueceram-se das horas.

 

- Sim, foi isso mesmo que deve ter acontecido - concordou John, fazendo uma pausa. - Os rapazes ficarão preocupados se lhes contarmos o que sucedeu.

 

- De qualquer maneira, acabarão por ouvir falar do assunto, é impossível evitá-lo - retorquiu Faith, batendo afectuosamente no braço de John. - Apesar disso, nesta casa não falaremos desse assunto.

 

À distância, começaram a ouvir o troar surdo da trovoada que ribombava como o rugido abafado de uma besta que se agitasse abaixo da linha do horizonte, impressão com que se ficava devido ao tecto baixo e muito enegrecido de nuvens.

 

- Vem para dentro - disse Faith. - Não tarda muito que comece a chover, o que já não é sem tempo.

 

- Está bem. - No entanto, depois de ela já se ter ido embora, John deixou-se ficar durante uns minutos, que pareciam intermináveis, encostado ao cabo do sacho e com o olhar perdido na terra.

 

Mais ao fundo, junto das macieiras, Eleanor, uma vez mais dispunha as suas folhas, desta vez em círculo. O gato já tinha desaparecido, deixando-a sozinha. Era frequente que aos domingos ela e Marion brincassem juntas durante todo o dia, havendo ocasiões em que David se juntava às duas, porque domingo era o único dia em que Violet e Stanley não tinham autorização para irem a Pitcairn. Violet costumava ir a casa da tia que vivia em Aberdeen, onde jantava, enquanto Stanley ia a casa da avó logo a seguir à catequese. Nessas alturas, parecia um rapaz diferente, com a sua camisa branca e calções muito bem vincados, o cabelo brilhante por o ter penteado com Brylcreem, muito achatado junto do couro cabeludo. Por vezes, ainda aparecia à hora do jantar, sendo autorizado a ficar durante uma hora. No entanto, naquele dia, ele e Davy estavam metidos num grande sarilho por terem chegado a casa tão tarde na noite anterior; por conseguinte, Eleanor não pensava que Stanley se mostrasse lá por casa durante alguns dias.

 

O tempo quente e opressivo exacerbava os nervos de toda a gente. Pouco depois de as tias terem chegado para jantar, todos se mostravam irritados. Eleanor ficara satisfeita por poder estar sozinha, mas agora sentia-se aborrecida. Aquele jogo das folhas era uma idiotice; já não lhe apetecia brincar com aquilo. Em qualquer dos casos, o que é que ela poderia fazer agora que já arranjara uma folha por cada pessoa? Tinha a impressão de que o ar fazia pressão sobre si, como se a sufocasse. Já ouvira um ou dois trovões, mas a trovoada continuava a soar muito ao longe, pelo que não se sentia assustada. Depois, subitamente, os ramos das árvores agitaram-se com violência, açoitados por uma rajada forte que era acompanhada por uns quantos pingos de chuva que ao princípio caíam suavemente, mas que depois começaram a tombar com mais força e rapidez, fazendo com que a folhagem se inclinasse de lado e as ramagens lhe picassem os braços e as pernas. Deu por alguém que vinha pelo caminho estreito, uma presença que ela pressentiu mais do que ouviu. Virou-se para trás, avistando uma figura escura, que trazia uma trouxa ao colo, entre o arvoredo. Por uns momentos, Eleanor pensou que ela era a cigana que na véspera tinha visto acampada no bosque. Vindo de algures, ouviu um grito agudo como o vento, o qual ecoou pelo ar que escurecia.

 

Então viu que era a tia Alice que a vinha buscar para que fosse para dentro de casa. A tia Alice, que trazia um casaco e o guarda-chuva, para que ela não se molhasse quando corresse pelo extenso jardim até à porta das traseiras. De súbito, sobressaltando-a ao ponto de ter dado um pulo involuntário, o gato malhado passou por ela como uma flecha, com a cauda muito tesa e na horizontal, miando descontente devido à chuva e correndo para se abrigar.

 

- Vem-te embora, Eleanor - chamou a tia Alice. - Vem aí uma grande chuvada - acrescentou, entregando o casaco à sobrinha e colocando o chapéu-de-chuva de modo a abrigar as duas. Estás pronta?

 

Naquele momento, a chuva já caía torrencialmente sobre o jardim, açoitada pelo vento. Eleanor mantinha-se chegada à tia Alice; as duas desataram a correr, rindo-se porque em poucos instantes ambas ficaram encharcadas.

 

- Já cá estamos - disse Alice, sacudindo o guarda-chuva junto da porta das traseiras enquanto Eleanor se apressava a entrar na cozinha. - Já estão todos em casa?

 

- Não - respondeu Faith. - Só Deus sabe por onde é que o David andará. - Lá fora, a chuva continuava a cair em bátegas, qual manto cinzento que cobrisse o jardim.

 

- Ele deve estar no esconderijo - adiantou Marion. - No esconderijo por detrás da capoeira.

 

Entretanto, o firmamento foi cortado por um relâmpago de uma luz amarelada. Instintivamente, todos retrocederam e John começou a fechar a porta. Faith agarrou-o pelo braço, impedindo-o de continuar.

 

- O David - disse ela, mas Alice já se dirigia para a porta, pronta para sair outra vez, abrindo o chapéu-de-chuva contra o vento cortante, com a saia em remoinho enrolando-se à volta das pernas.

 

- Eu vou - ofereceu-se ela, transpondo a porta e saindo para a chuva.

 

- Só espero que ela não seja atingida por um raio - disse Marion enquanto Eleanor, deveras atemorizada, desatava a chorar.

 

- Não sejas parva - ralhou a mãe. Todos começaram a rir com a excepção de Faith, que nem sequer esboçava um sorriso. Mantendo-se na soleira da porta, ficou à espera que Alice trouxesse David para dentro.

 

Ao fundo do jardim, junto das macieiras, soprou uma rajada de vento que levou as folhas que Eleanor dispusera em círculo, levantando-as do chão em remoinho pelo ar. A folha de uma faia que para ela representava David, a mais leve de todas, foi soprada por cima do muro, indo cair num campo à distância.

 

                                                                                Moira Forsyth  

 

                      

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