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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS IRMÃZINHAS DE ELURIA / Stephen King
AS IRMÃZINHAS DE ELURIA / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS IRMÃZINHAS DE ELURIA

 

Os livros da série A Torre Negra começam com Roland de Gilead, o último pistoleiro num mundo arrasado que “está segurando as pontas”, perseguindo um mago de túnica preta. Roland vem perseguindo Walter por muito, muito tempo. No primeiro livro do ciclo, finalmente consegue alcançá-lo. Contudo, a presente história ocorre quando Roland ainda está à procura de Walter.

 

TERRA PLENA. A CIDADE VAZIA. OS SINOS. O RAPAZ MORTO. A CARROÇA VIRADA. O POVO VERDE.

Num dia em Terra Plena, tão quente que parecia sugar a respiração do peito antes que se pudesse usá-la, Roland de Gilead chegou aos portões de uma aldeia nas montanhas Desatoya. Viajava sozinho então, e logo estaria viajando a pé também. Nessa última semana, esperara encontrar um médico de cavalos, mas tinha o palpite que um sujeito desses não adiantaria de nada, mesmo que a cidade tivesse um. Sua montaria, um cavalo ruão de dois anos, estava praticamente liquidada.

Os portões da cidade, ainda decorados com as flores de algum festival, permaneciam abertos e acolhedores, mas havia algo errado no silêncio além deles. O pistoleiro não ouvia o clop-clop dos cavalos, nem o rumor das rodas de carroça, nem os gritos de barganha na praça do mercado. O único som que se ouvia era um zumbido baixo dos grilos (algum inseto, de qualquer modo, mais sonoro do que grilos), um som esquisito de batidas em madeira e o tilintar tênue e irreal de pequenos sinos.

Além disso, as flores entrelaçadas ao portão ornamental de ferro batido há muito estavam secas.

Entre os joelhos, Topsy deu dois grandes espirros ocos — atichum! atichum! — e cambaleou obliquamente. Roland desmontou, parte por respeito ao cavalo e parte por respeito a si mesmo — não queria quebrar uma perna debaixo de Topsy, se ele escolhesse aquele momento para desistir e partisse a meio galope para a clareira no final de seu atalho.

O pistoleiro de botas empoeiradas e jeans desbotados, de pé sob o sol inclemente, alisava o pescoço emaranhado do animal, parando, de vez em quando, para desfazer com os dedos os nós de sua crina, e uma vez para enxotar as minúsculas moscas que se amontoavam nos cantos dos olhos do animal. Que pusessem seus ovos e incubassem suas larvas ali depois que Topsy morresse, mas não antes.

Assim, Roland prestou homenagem ao cavalo da melhor forma que podia, enquanto escutava os distantes sinos irreais e o estranho som de batidas na madeira. Depois de algum tempo, parou e olhou pensativo o portão aberto.

A cruz que o encimava era um tanto incomum, mas, à exceção disso, o portão era um típico exemplo de sua linhagem, um lugar-comum no oeste; não útil, mas tradicional — todas as cidadezinhas pelas quais Roland passara nos últimos dez meses pareciam ter um portão grandioso assim à entrada e outro não tão grandioso à saída. Nenhum fora construído para excluir visitantes; certamente, este também não. Ficava entre dois muros de adobe rosa que desciam num declive de cascalho por uns seis metros dos dois lados da estrada e de repente acabavam. Se o portão fosse fechado com muitas trancas, só exigiria uma curta caminhada para que se contornasse um pedaço ou outro de muro de adobe.

Além do portão, Roland via o que, em muitos aspectos, era uma Rua Principal perfeitamente comum — uma hospedaria, dois saloons (um dos quais chamava-se Porco Agitado; a tabuleta do outro estava excessivamente desbotada para poder ser lida), um mercado, uma ferraria, um Salão de Reunião. Havia também uma pequena mas adorável construção de madeira com um modesto campanário com sino lá no alto, uma sólida fundação de pedra bruta na parte de baixo e uma cruz pintada a ouro em suas portas duplas. A cruz, como a do portão, assinalava o lugar como local de culto para os que aderiam ao Homem-Jesus. Não era uma religão comum no Mundo Médio, mas estava longe de ser desconhecida; o mesmo poderia ter sido dito da maioria dos cultos daquela época, inclusive o de Baal, Asmodeus e uma centena de outros. Como tudo mais nesse mundo, a fé tinha ido em frente. Para Roland, o Deus da Cruz era apenas outra religião ensinando que amor e assassinato estavam indissoluvelmente ligados — e que, no final, Deus sempre bebia sangue.

Enquanto isso, prosseguia o zumbido cantante de insetos que pareciam quase grilos. O tilintar irreal dos sinos. E aquelas esquisitas batidas na madeira como um punho chocando-se contra uma porta. Ou contra a tampa de um caixão.

Há algo de muito errado aqui, pensou o pistoleiro. Atenção, Roland; este lugar tem um cheiro avermelhado.

Atravessou com Topsy o portão enfeitado com as flores mortas e entrou pela Rua Principal. No pátio do mercado, onde os velhos deviam estar reunidos para falar sobre colheitas, política e as loucuras da geração mais jovem, havia uma fileira de cadeiras de balanço vazias. Debaixo de uma delas, como se deixado cair por alguma mão descuidada (e há muito desaparecida), estava um cachimbo de espiga de milho escurecido pelo fogo. O local para amarrar cavalos em frente ao Porco Agitado exibia-se vazio, e as próprias janelas do saloon estavam escuras. Uma das portas de vaivém fora arrancada, e estava agora encostada à lateral da construção; a outra pendia enviesada, suas ripas de um verde desbotado borrifadas de algo marrom-avermelhado que, embora pudesse ser tinta, provavelmente não era.

A frente da loja de provisões para cavalos permanecia intacta, como o rosto de uma mulher que não é mais jovem, porém tem acesso a bons cosméticos. Já o celeiro duplo atrás dela era um esqueleto carbonizado. O incêndio devia ter acontecido num dia chuvoso, pensou o pistoleiro, ou o diabo da cidade teria desaparecido totalmente nas chamas; um alegre rodopio e um espetáculo para qualquer um por perto.

À sua direita agora, a meio caminho de onde a rua se abria para a praça da cidade, ficava a igreja, com faixas de relva dos dois lados: uma separando-a do Salão de Reunião, e outra separando-a da pequena casa construída ao lado para o pastor e sua família (isto é, se aquela era uma das seitas de Jesus que permitia a seus xamãs terem esposas e famílias; algumas, claramente administradas por lunáticos, exigiam pelo menos a aparência de celibato). Embora dando a impressão de ressecadas, a maioria das flores nessas faixas de relva ainda estava viva. Assim, o que quer que tivesse esvaziado o lugar, não ocorrera há muito tempo. Uma semana, talvez. Duas no máximo, considerando o calor.

Topsy espirrou de novo — atichum! — e abaixou a cabeça com ar de cansaço.

O pistoleiro viu a fonte do tilintar. Acima da cruz nas portas da igreja, uma corda fora esticada fazendo um arco longo e frouxo. Pendendo dela, havia talvez duas dúzias de minúsculos sinos de prata. Havia pouquíssima brisa naquele dia, mas o suficiente para que os sinos jamais se aquietassem... se um vento de verdade passasse a soprar, Roland pensou, o som do tilintar dos sinos seria provavelmente bem menos agradável; muito mais como o movimento estridente de línguas mexericando.

— Alô! — gritou Roland, olhando para o outro lado da rua, onde a grande tabuleta de uma fachada falsa anunciava ser ali o Hotel Bons Leitos. — Alô, cidade!

Só os sinos e os insetos cantantes responderam e aquela esquisita batida na madeira. Nenhuma resposta, nenhum movimento... mas havia gente ali. Gente ou alguma coisa. Roland estava sendo observado. Os minúsculos pêlos de sua nuca se eriçaram.

Conduzindo Topsy, ele avançou para o centro da cidade, a cada passo levantando a poeira solta da Rua Principal. Quarenta passos adiante, parou em frente a uma construção baixa, assinalada por uma única e curta palavra: LEI. O escritório do xerife (se havia algo assim num lugar tão distante) parecia notavelmente semelhante à igreja — tábuas de madeira exibiam um severo tom marrom-escuro acima de uma fundação de pedra.

Os sinos atrás dele roçaram uns nos outros, sussurrando.

Roland deixou o cavalo no meio da rua e subiu os degraus até o escritório da LEI. Tinha uma noção aguda dos sinos, do sol queimando-lhe o pescoço e do suor escorrendo pelas laterais de seu corpo. A porta estava fechada, mas destrancada. Abriu-a, e então encolheu-se para trás, erguendo um pouco a mão, quando o calor aprisionado jorrou para fora num arquejar sem som. Se todos os edifícios fechados estivessem quentes assim por dentro, cogitou ele, em breve os celeiros de provisões para cavalos não seriam os únicos queimados. Sem nenhuma chuva para deter as chamas (e certamente nenhum Corpo de Bombeiros de voluntários, também), a cidade não ficaria por muito tempo na face da Terra.

Entrou, tentando engolir pequenas doses do ar sufocante em vez de respirá-lo em profundidade. Imediatamente ouviu o zumbido baixo de moscas.

Havia uma única cela, espaçosa e vazia, cuja porta de barras estava aberta. Sapatos imundos feitos de pele, um deles descosturado, jaziam sob um catre manchado com a mesma substância ressecada e marrom-avermelhada vista no Porco Agitado. Era ali que estavam as moscas, arrastando-se sobre a mancha, alimentando-se dela.

Sobre a escrivaninha havia um livro de registros. Roland virou-o para si e leu o que estava gravado na capa vermelha:

 

REGISTRO DE MÁS AÇÕES & REPARAÇÕES NOS ANOS DE NOSSO SENHOR ELURIA

Então, agora ele sabia o nome da cidadezinha, pelo menos — Eluria. Bonito, mas de certo modo agourento também. Mas, dadas as circunstâncias, qualquer nome pareceria agourento, pensou Roland. Virou-se para ir embora e viu uma porta fechada com uma tranca de madeira.

Foi até ela e parou por um momento, sacando um dos grandes revólveres que trazia bem baixo nos quadris. Esperou mais um pouco, a cabeça baixa, pensando (seu velho amigo Cuthbert gostava de dizer que as roldanas na cabeça de Roland giravam lenta mas tremendamente bem), e então destrancou a porta. Ao abri-la, recuou imediatamente, erguendo a arma, à espera de que um corpo (talvez o do xerife de Eluria) caísse para dentro da sala com a garganta cortada e os olhos arrancados, vítima de uma MÁ AÇÃO e precisando de REPARAÇÃO...

Nada.

Bem, meia dúzia de macacões manchados, usados provavelmente por prisioneiros com sentenças longas; dois arcos; uma aljava para flechas; um motor velho e empoeirado; um rifle que certamente disparara pela última vez havia 100 anos e um esfregão... mas, na mente do pistoleiro, tudo aquilo não significava nada. Era apenas um armário de guardados.

Voltou à escrivaninha, abriu o registro e folheou-o. Até as páginas estavam quentes, como se o livro tivesse sido cozinhado. De certo modo, achou que tinha sido. Se a aparência da Rua Principal fosse diferente, poderia ter esperado um grande número de delitos religiosos registrados, mas não ficou surpreso de não encontrar nenhum — se a igreja do Homem-Jesus coexistira com dois saloons, o pessoal da igreja devia ser bastante razoável.

O que Roland encontrou foram os habituais delitos menores, e alguns não tão menores — um assassinato, um roubo de cavalo, a Desgraça de uma Senhora (o que provavelmente significava estupro). O assassino fora removido para um lugar chamado Lexingworth para ser enforcado. Roland nunca ouvira falar do local. No final, uma nota dizia Povo verde enviado a partir daqui. A entrada mais recente era a seguinte:

 

12/ Fe /99. Chas. Homem livre, ladrão de gado para ser julgado.

 

Roland não estava familiarizado com a anotação 12/ Fe/99, mas como fevereiro estava longe, ele supôs que Fe pudesse significar Terra Plena [Full Earth] De qualquer modo, a tinta parecia tão recente quanto o sangue no catre da cela, e o pistoleiro imaginou que aquele Chas. Homem livre, ladrão de gado encontrara uma luz no fim do túnel.

Saiu do prédio, mergulhando novamente no calor e no som rendilhado dos sinos. Topsy olhou-o apaticamente e abaixou a cabeça de novo, como se houvesse algo na poeira da Rua Principal que o cavalo pudesse pastar. Na verdade, como se fosse querer pastar novamente algum dia.

O pistoleiro pegou as rédeas, com elas deu uma lambada no jeans completamente desbotado e continuou a percorrer a rua. O som de batidas na madeira ficava cada vez mais alto, à medida que Roland caminhava (não colocara a arma no coldre ao sair do escritório da LEI, nem se dera ao trabalho de guardá-la agora). Enquanto ia se aproximando da praça da cidade, que deveria ter abrigado o mercado de Eluria em tempos mais normais, ele afinal notou movimento.

Na outra extremidade da praça havia um longo bebedouro para cavalos aparentemente feito de pau-ferro (o que alguns chamavam de “sequóia” por ali), dando a impressão de ter sido alimentado em tempos mais felizes por um enferrujado cano de aço que se projetava, agora sem água, acima da extremidade sul do bebedouro. Pairando sobre um dos lados desse oásis municipal, mais ou menos na sua metade, havia uma perna vestida com uma calça de um tom cinza-desbotado terminando numa bota de caubói muito mastigada.

O mastigador era um cachorro grande, talvez dois tons mais cinzento do que a calça de veludo cotelê. Em outras circunstâncias, Roland imaginou, o vira-lata teria arrancado a bota há muito tempo, mas talvez o pé e o tornozelo tivessem inchado dentro dela. De qualquer modo, o cão estava prestes a eliminar o obstáculo mastigando-o vigorosamente, agarrando a bota e sacudindo-a para a frente e para trás. De vez em quando, o salto da bota colidia com a lateral de madeira do bebedouro, produzindo nova batida oca. Afinal de contas, parece que o pistoleiro não se equivocara tanto ao pensar em tampas de caixão.

Por que o cão não recua alguns passos, pula dentro do bebedouro e investe contra o homem?, cogitou Roland. Como não sai nenhuma água do cano, ele não precisa ter medo de se afogar.

Topsy soltou outro espirro oco e cansado e, quando o cão deu umas guinadas por ali em resposta, Roland entendeu por que ele fazia as coisas do modo mais difícil. Uma de suas pernas dianteiras fora quebrada e emendada de maneira torta. Andar devia ser um esforço para ele, pular estava fora de questão. O animal tinha no peito uma mancha de pêlos brancos sujos e, saindo dessa mancha, pêlos negros formavam mais ou menos uma cruz. Um Câo-Jesus, esperando por um lugar na comunhão da tarde.

Entretanto, o rosnado que começou a sair de seu peito não tinha nada de religioso, assim como o rolar de seus olhos remelentos. O cão levantou o lábio superior numa trêmula expressão escarninha, revelando uma afiada fileira de dentes.

— Dá o fora — disse Roland. — Enquanto pode.

O cão recuou até que seu traseiro se apertasse contra a bota mastigada. Fitava cheio de medo o recém-chegado, mas demonstrando nitidamente que defenderia seu terreno. O revólver na mão de Roland não significava nada para ele. O pistoleiro não se surpreendeu — imaginou que o cachorro jamais tivesse visto um revólver, não tinha idéia de que era mais do que uma espécie de bastão, algo que só poderia ser atirado uma vez.

— Vai embora depressa, agora — disse Roland, mas, mesmo assim, o cão não se moveu.

Ele devia ter atirado — o cão não tinha nenhuma valia para si próprio, e um animal que adquiriu o gosto de carne humana não poderia ter valia para ninguém —, mas, de algum modo, não quis atirar. Matar o único ser ainda vivo naquela cidade (isto é, além dos insetos cantantes) parecia um convite à má sorte.

Disparou na poeira perto da pata da frente do cachorro, a pata boa. O som esmagou-se contra o dia quente, silenciando temporariamente os insetos. Aparentemente, o cão podia correr, embora num trote oblíquo que machucou os olhos de Roland... e um pouco seu coração também. O cão parou no outro lado da praça, junto a uma carroça virada (parecia haver mais sangue seco derramado no lado do fretador), e olhou para trás. Emitiu um uivo desesperado que eriçou ainda mais os pêlos da nuca de Roland. Então o animal virou-se, contornou a carroça destruída e coxeou pela alameda que se abria entre dois estábulos. O caminho para o portão dos fundos de Eluria, imaginou Roland.

Ainda conduzindo seu cavalo moribundo, o pistoleiro atravessou a praça para o bebedouro de pau-ferro e espiou lá dentro.

O dono da bota mastigada não era um homem e sim um rapaz que começara a ganhar estatura de homem — e teria sido bem grande, avaliou Roland, mesmo pondo-se de lado o efeito do inchaço causado pela imersão, por um período indeterminado, em 20 centímetros de água tremulando sob o sol de verão.

Os olhos do rapaz, agora apenas bolas leitosas, fixavam cegamente o pistoleiro, como os olhos de uma estátua. Seus cabelos pareciam brancos como os de um velho, embora isso fosse efeito da água; provavelmente fora louro. Suas roupas eram as de um caubói, apesar de não poder ter muito mais de 14 ou 16 anos. Em seu pescoço, cintilando na água turva que se tornava aos poucos um ensopado de carne sob o sol de verão, havia um medalhão de ouro.

Roland mergulhou a mão na água, sem vontade, mas sentindo uma certa obrigação de fazê-lo. Agarrou o medalhão e puxou-o, rebentando a corrente; então içou a coisa pingando até o ar.

Esperava ver um sigul *do Homem-Jesus, o que era chamado crucifixo ou cruz — mas, em vez disso, um pequeno retângulo parecendo de ouro puro pendia da corrente. Gravado nele havia as seguintes palavras:

 

James

Amado pela família. Amado por DEUS,

 

Roland, cuja repugnância quase o impedira de enfiar a mão na água poluída (se fosse mais jovem, jamais teria conseguido), ficou contente por tê-lo feito. Poderia jamais esbarrar com alguém que tivesse amado o rapaz, mas sabia o suficiente de ka**para achar que isso pudesse ocorrer. De qualquer modo, era a atitude certa. Da mesma forma que seria certo dar ao rapaz um enterro decente... isto é, presumindo que pudesse tirar o corpo do bebedouro sem que ele se desmantelasse dentro das roupas.

Roland ponderava a respeito, tentando equilibrar seu dever nessas circunstâncias com o crescente desejo de sair da cidade, quando Topsy finalmente morreu.

O animal caiu com um estalo dos arreios e um último gemido ao atingir o chão. Roland virou-se e viu oito pessoas caminhando para ele em fileira, como atiradores que esperam abater pássaros ou tanger caça menor. A pele deles era de um verde ceroso. Criaturas com uma pele assim fulgurariam no escuro como fantasmas. Era difícil dizer a que sexo pertenciam, e que importância isso teria — para eles ou para qualquer pessoa. Eram lentos mutantes, caminhando com a curvada deliberação de cadáveres reanimados por alguma mágica misteriosa.

A poeira abafara o som de seus pés como um tapete. Com o cão enxotado, eles poderiam muito bem ter chegado a uma distância de ataque se Topsy não tivesse feito a Roland o favor de morrer num momento tão oportuno. Nenhuma arma que Roland pudesse ver; seguravam bastões. Pernas de cadeiras e de mesas, na maior parte, mas Roland viu que uma delas parecia mais fabricada do que aproveitada de algo — tinha uma cerda de pregos enferrujados que se projetavam, e ele suspeitou que tivesse pertencido outrora a um segurança do bar, possivelmente o que montava guarda no Porco Agitado.

Roland ergueu a pistola, apontando para o sujeito no centro da fila. Agora ouvia o arrastar dos pés e a inalação bloqueada e úmida da respiração deles. Como se todos tivessem o peito tomado por gripes severas.

Saíram das minas, provavelmente, pensou Roland. Havia minas de rádio em algum lugar por ali. Isso explicaria a pele deles. Por que será que o sol não os mata?

Então, enquanto Roland observava, o sujeito no final da fileira — uma criatura cujo rosto tinha uma aparência de cera de vela derretida — morreu... ou desmoronou. Ele (Roland tinha certeza de que era um homem) ajoelhou-se com um grito baixo de duende, procurando a mão da coisa que caminhava a seu lado — algo com uma cabeça careca e encaroçada, e feridas vermelhas fervilhando no pescoço. Esta criatura não prestou atenção ao companheiro caído, mas mantinha os olhos opacos presos em Roland, cambaleando em passos desiguais com seus companheiros que haviam restado.

— Parem onde estão! — disse Roland. — Cuidado comigo, se quiserem ver o final do dia! Muito cuidado comigo!

Falava principalmente para o do centro, que usava um antigo suspensório vermelho sobre farrapos de camisa, e um imundo chapéu-coco. O cavalheiro tinha apenas um olho bom, que espiava o pistoleiro com uma cobiça tão horrível quanto inequívoca. A que estava ao lado de Chapéu-coco (Roland acreditava tratar-se de uma mulher, com os pendentes vestígios dos seios por baixo do colete) atirou nele a perna de cadeira que segurava. A trajetória foi correta, mas o míssil caiu uns dez metros à frente do alvo.

Roland engatilhou o revólver e atirou de novo. Dessa vez, a poeira deslocada pela bala ricocheteou para cima, cobrindo os restos esfarrapados dos sapatos de Chapéu-coco, em vez de a perna manca de um cachorro.

O povo verde não fugiu como o cachorro, mas parou, fixando Roland com uma expressão de cobiça obtusa. Teria o povo de Eluria terminado nos estômagos dessas criaturas? Roland não podia acreditar nisso... embora soubesse perfeitamente que as criaturas ali não tinham qualquer escrúpulo em relação ao canibalismo. (E talvez na realidade não fosse canibalismo; como podiam coisas como aquelas serem consideradas humanas, fosse lá o que pudessem ter sido no passado?) Eram lentos demais, estúpidos demais. Se tivessem ousado voltar à cidade depois que o xerife os expulsara, teriam sido queimados ou apedrejados até a morte.

Sem pensar no que fazia, querendo apenas liberar a outra mão para sacar a segunda arma se as aparições não se mostrassem razoáveis, Roland enfiou o medalhão que retirara do garoto morto no bolso do jeans, empurrando para dentro dele a corrente arrebentada de elos finos.

Os seres continuavam a olhá-lo fixamente, com suas sombras estranhamente torcidas alongando-se atrás de si. O que fazer agora? Dizer a eles que voltassem para o lugar de onde tinham saído? Roland não sabia se o fariam e, de qualquer modo, decidira que os preferia num lugar em que pudesse vê-los. Pelo menos agora não havia mais a questão de ficar para enterrar o garoto chamado James; esse dilema fora resolvido.

— Fiquem onde estão — ele falou num tom baixo, começando a recuar. — O primeiro que se mover...

Antes que pudesse terminar, um deles — uma criatura de peito avantajado e boca protuberante de sapo e o que pareciam guelras dos lados da papada do pescoço — investiu para a frente, tagarelando numa voz estridente e peculiarmente débil. Poderia ter sido uma espécie de riso. Ele brandia o que aparentemente era uma perna de piano.

Roland disparou. O peito do Sr. Sapo escavou-se numa reentrância como um telhado de má qualidade. Ele recuou, correndo vários passos para trás, tentando recuperar o equilíbrio e agarrando o peito com a mão que não segurava a perna de piano. Seus pés, calçados com chinelos de veludo vermelho sujo, com artelhos revirados para cima, embaralharam-se um no outro, e ele caiu, emitindo o som esquisito de um gargarejo solitário. Soltou o bastão, rolou para um lado, tentou levantar e voltou a cair de costas na poeira. O sol brutal fulgurava em seus olhos abertos e, enquanto Roland observava, brancos novelos de vapor começaram a sair da pele da criatura, que rapidamente perdia o tom verde subjacente. Ouviu-se também um som de assobio, como uma cusparada na chapa de um fogão quente.

Pelo menos poupa explicações, pensou Roland, e varreu os outros com os olhos.

— Muito bem, ele foi o primeiro a se mexer. Quem quer ser o segundo?

Aparentemente, nenhum queria. Apenas continuaram ali, observando Roland, sem avançar para ele... mas também sem recuar. Roland pensou (como fizera com o cachorro-cruz) que deveria matá-los enquanto estavam ali, apenas sacar sua outra arma e ceifá-los. Seria tarefa de segundos, e uma brincadeira de criança para suas mãos talentosas, mesmo se algum fugisse. Mas não ia fazer isso. Não a frio, assim. Não era um matador desse tipo... ainda não, pelo menos.

Muito lentamente, começou a recuar, primeiro contornando o bebedouro, depois colocando-o entre si próprio e os outros. Quando Chapéu-coco andou um passo para a frente, Roland não deu aos outros a chance de imitá-lo; atirou na poeira da Rua Principal, a dois centímetros de distância do pé de Chapéu-coco.

— Este é o último aviso — disse, ainda em voz baixa. Não fazia idéia se o entendiam, nem ligava para isso. Tinha um palpite de que sacavam sua melodia bastante bem. — A próxima bala que eu disparar vai direto no coração de alguém. E o negócio é o seguinte: vocês ficam e eu vou. Vocês têm essa chance. Se me seguirem, todos vocês vão morrer. Está quente demais para brincadeiras e eu perdi minha...

— Buu! — gritou uma voz áspera e aquosa por trás dele. Havia um inequívoco tom de diversão nela. Roland viu uma sombra crescer da sombra da carroça de carga derrubada, aonde ele estava quase chegando agora, e só teve tempo de entender que outra criatura verde estivera escondida ali.

Quando começou a se virar, um bastão atingiu seu ombro, entorpecendo-lhe o braço direito até o pulso. Manteve a arma firme e disparou uma vez, mas a bala entrou numa das rodas da carroça, amassando um dos raios de madeira, fazendo-a girar em seu eixo com um som alto e pedregoso. Por trás dele, ouviu o povo verde emitir gritos roucos enquanto avançava pela rua.

A coisa que saíra de debaixo da carroça virada era um monstro com duas cabeças subindo do pescoço, uma delas com o rosto deformado e caído como o de um cadáver. A outra, embora tão verde quanto a primeira, era mais viva. Lábios grossos abriam-se num sorriso animado, enquanto ele levantava o bastão para atacar de novo.

Roland sacou com a mão esquerda — a que não estava entorpecida e distante. Teve tempo para disparar uma bala no sorriso do fora-da-lei, atirando a coisa para trás num chuveiro de sangue e dentes, o bastão voando de seus dedos frouxos. Então os outros caíram em cima de Roland com bastonadas e pancadas.

O pistoleiro conseguiu evitar os dois primeiros golpes e, por um momento, achou que poderia contornar a parte de trás da carroça, dar meia-volta e ir à luta com as suas armas. Claro que sua busca pela Torre Negra não iria terminar na rua batida pelo sol de uma cidadezinha do faroeste chamada Eluria, nas mãos de meia dúzia de seres de pele verde em mutação lenta. Certamente ka não poderia ser tão cruel.

Mas Chapéu-coco atingiu-o com um golpe perverso com a lateral da mão, e Roland caiu, chocando-se com a roda traseira da carroça que girava lentamente, em vez de contorná-la. Enquanto engatinhava, esforçando-se para virar, tentando fugir dos golpes que choviam sobre ele, viu que havia agora muito mais do que meia dúzia de criaturas. Percorrendo a rua na direção da praça da cidade, estavam pelo menos 30 homens e mulheres verdes. Não era um clã e sim a droga de uma tribo. E em plena luz quente do dia! Segundo a experiência de Roland, mutantes lentos eram criaturas que amavam a escuridão, quase como cogumelos com cérebro, e ele jamais vira um desse tipo. Eles...

O de colete vermelho era do sexo feminino. Seus seios oscilando sob o sujo colete vermelho foi a última visão nítida de Roland, enquanto as criaturas agrupavam-se em torno e acima dele, desancando-o com os bastões. O bastão cravejado de pregos desceu na parte de baixo do tornozelo direito de Roland, afundando nele suas estúpidas e enferrujadas presas. O pistoleiro tentou novamente erguer uma das grandes armas (sua visão estava sumindo agora, mas isso não ajudaria as criaturas se ele conseguisse atirar; sempre fora o mais talentoso deles — Jamie DeCurry certa vez declarara que Roland conseguia atirar com uma venda nos olhos porque tinha olhos nos dedos), mas ela foi chutada de sua mão, caindo na poeira. Embora o pistoleiro ainda pudesse sentir a coronha lisa como sândalo da arma, achou, contudo, que não estava mais lá.

Podia sentir o cheiro deles — o cheiro rico e podre da carne em decadência. Ou eram apenas suas próprias mãos, quando as levantou num esforço fraco e inútil para proteger a cabeça? As mãos que mergulhara na água poluída onde flutuavam flocos e tiras de pele do corpo morto?

Os bastões continuavam batendo nele, chocando-se contra seu corpo inteiro, como se o povo verde quisesse não só espancá-lo até a morte mas amaciá-lo também. E enquanto Roland afundava na escuridão achando que ia morrer, ouvia os insetos cantando, os latidos do cão que poupara e o bimbalhar dos sinos pendurados na porta da igreja. Tais sons misturavam-se numa música estranhamente doce. Então isso também desapareceu e a escuridão devorou tudo.

 

SUBINDO. SUSPENSO. BELEZA BRANCA.  DOIS OUTROS. O MEDALHÃO.

A volta do pistoleiro ao mundo não foi como voltar à consciência depois de um golpe, o que já lhe acontecera várias vezes antes, e também não foi como acordar de um sonho. Foi como se erguer.

Estou morto, pensou ele em algum momento durante esse processo... quando o poder de pensar foi parcialmente restaurado nele. Morto e nascendo para qualquer vida que houvesse depois da morte. Deve ser isso. O canto que ouço é o canto das almas mortas.

A escuridão total cedeu ao cinza-escuro das nuvens de chuva, depois ao cinza mais claro do nevoeiro. Iluminando-se até a claridade uniforme do espesso nevoeiro momentos antes de o sol irromper. E através de tudo havia aquela sensação de subida, como se ele tivesse sido preso em uma suave mas poderosa corrente de ar ascendente.

Como a sensação de subida começasse a diminuir, e a claridade por trás das pálpebras aumentasse, Roland finalmente começou a acreditar que ainda estava vivo. Foi o canto que o convenceu disso. Nada de almas mortas, nem do celestial cortejo de anjos descrito, às vezes, pelos pregadores do Homem-Jesus, mas apenas aqueles insetos. Um pouco como grilos, mas de canto mais doce. Os que tinha ouvido em Eluria.

Com tal pensamento, Roland abriu os olhos.

Sua crença em que ainda estava vivo passou por um teste severo, pois viu-se pendurado num mundo de branca beleza — seu primeiro e aturdido pensamento foi de que estava no céu, flutuando numa nuvem de bom tempo. Em torno dele ouvia-se o canto agudo dos insetos. E agora escutava o bimbalhar dos sinos também.

Tentou virar a cabeça e oscilou numa espécie de arreio que estalava. O suave canto dos insetos, como grilos na relva no fim do dia em sua casa em Gilead, hesitou e quebrou o ritmo. Quando isso ocorreu, o que parecia uma árvore de dor cresceu nas costas de Roland. Ele não tinha idéia do que poderiam ser aqueles galhos ardentes, mas o tronco era certamente sua espinha. Uma dor muito mais mortal afundou-se na parte inferior de uma das pernas — em sua confusão, não conseguiu saber qual. Foi onde o bastão com os pregos me atingiu, pensou. E mais dor lhe percorreu a cabeça. Seu crânio dava a impressão de um ovo mal quebrado. Roland gritou, mal podendo acreditar que o áspero crocitar que ouviu saísse de sua própria garganta. Pensou também ter ouvido, muito tênue, o latido do cão-cruz, mas isso certamente era sua imaginação.

Estou morrendo! Terei acordado mais uma vez no próprio fim?

Subitamente, a mão de alguém alisou sua testa. Ele podia senti-la, mas não vê-la — dedos passando por sua pele, fazendo uma pausa aqui e ali para massagear uma saliência ou uma ruga. Delicioso como um gole de água fria num dia quente. Começou a fechar os olhos e então uma idéia terrível lhe ocorreu: e se aquela mão fosse verde, e sua dona estivesse usando um esfarrapado colete vermelho sobre os seios pendentes?

E se fosse? O que você poderia fazer?

— Silêncio, homem — disse a voz de uma mulher... ou a voz de uma garota. Certamente a primeira pessoa em que Roland pensou foi Susan, a garota de Mejis, a que se dirigira a ele como vós.

— Onde... onde...

— Silêncio, não se mexa. É cedo demais.

A dor nas costas de Roland estava diminuindo agora, mas a imagem da dor como uma árvore permanecia, pois sua própria pele parecia se mover como folhas numa brisa leve. Como era possível aquilo?

Deixou passar essas perguntas — deixou passar todas as perguntas — e concentrou-se na pequena e fria mão alisando sua testa.

— Silêncio, homem bonito, que o amor de Deus esteja sobre você. Contudo, você está bastante machucado. Fique quieto. Cure-se.

O cão cessara de latir (se é que chegara a latir), e Roland tornou-se consciente daquele baixo som de estalo novamente. Lembrava-lhe cordas amarrando um cavalo ou coisa semelhante

(cordas de enforcado)

e ele não gostou de pensar nisso. Agora acreditava que podia sentir pressão sob as coxas, sob as nádegas e talvez... sim... nos ombros.

Não estou numa cama, de modo nenhum. Acho que estou acima de uma cama. Como é possível?

Imaginou que podia estar numa grande tipóia. Lembrou que certa vez, quando garoto, um sujeito fora suspenso daquele modo no consultório do médico de cavalos por trás do Grande Salão. Um ajudante de estábulo que se queimara demais com querosene para poder deitar numa cama. O homem morrera, mas não cedo o bastante: por duas noites, seus guinchos tinham enchido o doce ar de verão dos Campos de Reunião.

Será que estou queimado, apenas um carvão de pernas pendendo de tiras?

Uns dedos tocaram o meio de sua testa, desfazendo numa massagem a tensão que se formava ali. E foi como se a dona da mão tivesse lido seus pensamentos, recolhendo-os com as pontas dos dedos espertos e consoladores.

— Estaremos bem, se Deus quiser — disse a voz que pertencia à mão. — Mas o tempo pertence a Deus, não a você.

Não, ele teria dito se pudesse. O tempo pertence à Torre.

Então Roland afundou de novo, e tão suavemente como subira, afastando-se da mão e dos sons irreais dos insetos que cantavam e dos sinos tilintando. Houve um intervalo que pode ter sido sono ou talvez inconsciência, mas Roland não chegou a afundar até o final.

Num determinado ponto, ele pensou ter ouvido a voz da garota, embora não pudesse ter certeza, porque dessa vez estava alteada de fúria, ou medo, ou ambos. “Não!”, gritou ela. “Você não pode tirar isso dele e sabe disso! Vá em frente e pare de falar no assunto, ande!”

Quando ele voltou à consciência pela segunda vez, não estava mais forte no corpo, no entanto sentia-se um pouco mais ele mesmo na mente. O que viu quando abriu os olhos não foi o interior de uma nuvem, mas no início aquela mesma frase — beleza branca — lhe ocorreu. Em alguns aspectos, era o lugar mais bonito que Roland já vira em sua vida... em parte porque ainda tinha uma vida, claro, mas sobretudo porque era tão encantado e apaziguante.

Roland estava numa enorme sala, alta e comprida. Quando finalmente virou a cabeça — cautelosamente, bem cautelosamente — para medir o lugar como podia, achou que este deveria ter pelo menos uns 200 metros de uma extremidade à outra. Era uma construção estreita, mas sua altura dava uma sensação de um fantástico arejamento.

Não havia paredes ou tetos como aqueles com que estava familiarizado e era como estar numa vasta tenda. Acima de Roland, o sol brilhava e difundia sua luz pelos ondulantes painéis de fina seda branca, transformando-os nos drapeados brilhantes que ele inicialmente tomara por nuvens. Abaixo desse dossel sedoso, a sala era tão cinzenta quanto o crepúsculo. As paredes, também de seda, tremulavam como velas numa brisa tênue. Penduradas de cada painel de parede, cordas frouxas sustentavam pequenos sinos. Estes apoiavam-se contra o tecido e tocavam num uníssono baixo e encantador, como sinos de vento, quando as paredes tremulavam.

Uma passagem percorria a longa sala até o centro; de cada lado dela viam-se filas de leitos guarnecidos de limpos lençóis e imaculados travesseiros, todos brancos. Havia talvez 40 leitos na outra extremidade da passagem, todos vazios, e mais 40 no lado de Roland. Dois deles estavam ocupados, um logo à sua direita. O sujeito...

É o rapaz. O que estava no bebedouro.

A idéia arrepiou Roland e o fez estremecer de um modo desagradável e supersticioso. Espiou mais atentamente o rapaz adormecido.

Não pode ser. Você está aturdido, é isso. Não pode ser.

Contudo, um exame mais atento impediu-o de descartar a idéia. Certamente parecia o rapaz do bebedouro, provavelmente doente (por que outro motivo estaria num lugar daqueles?), mas longe de estar morto; Roland podia ver o peito do outro subindo e descendo lentamente, e o estremecimento ocasional dos dedos que pendiam ao lado da cama.

Você não deu uma olhada nele boa o suficiente para ter certeza de coisa alguma, e depois de alguns dias naquele bebedouro, nem a própria mãe teria certeza de reconhecer o filho.

Mas Roland, que não tinha mãe, sabia que a coisa não era tão simples. Também sabia que vira o medalhão de ouro no pescoço do rapaz. Pouco antes do ataque do povo verde, ele o retirara do cadáver do jovem e o pusera no bolso. Agora alguém — provavelmente os proprietários do lugar, os que por artes de feitiçaria haviam restaurado a vida do garoto chamado James — o havia tirado de Roland, colocando-o novamente no pescoço do rapaz.

Teria a garota com a mão maravilhosamente fria feito aquilo? Conseqüentemente, teria considerado Roland um espírito maléfico que roubaria os mortos? Não lhe agradou pensar isso. Na verdade, a idéia o fez sentir-se pior do que a possibilidade de o corpo inchado do jovem caubói ter voltado ao seu tamanho normal e depois se reanimado.

Mais abaixo na passagem daquele lado, cerca de uma dúzia de leitos adiante do rapaz e dele, o pistoleiro viu um terceiro residente daquela estranha enfermaria. O sujeito parecia ter pelo menos quatro vezes a idade do rapaz, e o dobro da idade de Roland. Tinha uma longa barba, mais cinzenta do que preta, que pendia sobre o peito em duas emaranhadas pontas. Seu rosto era escurecido de sol, bastante enrugado, e empapuçado sob os olhos. Percorrendo sua face esquerda e passando pelo nariz, havia uma marca espessa que Roland pensou ser uma cicatriz. O homem barbado parecia adormecido ou inconsciente — Roland podia ouvi-lo roncando — e estava suspenso acima da cama, sustentado por uma complexa série de correias brancas que cintilavam na obscuridade do ar. Elas se entrecruzavam, fazendo uma série de oitos por todo o corpo do homem. Ele parecia um inseto na teia de alguma aranha exótica. Usava uma roupa de dormir branca e diáfana. Uma das correias passava sob suas nádegas, elevando a virilha de um modo que parecia oferecer o volume de sua genitália ao ar cinzento e irreal. Bem mais abaixo de seu corpo, Roland podia ver as formas sombreadas de suas pernas, parecendo torcidas como velhas árvores mortas. Não gostou de pensar em quantos lugares deviam estar quebradas para ter aquela aparência. E, no entanto, pareciam se mover. Como seria possível, se o homem estava inconsciente? Era um truque da luz, talvez, ou das sombras... talvez a roupa transparente que o homem usava se mexesse na brisa leve, ou...

Roland afastou os olhos, contemplando os ondulantes painéis de seda no alto, tentando controlar as batidas aceleradas do coração. O que viu não fora causado pelo vento, sombra ou qualquer outra coisa. As pernas do homem de algum modo se moviam sem se mover... como Roland parecera sentir suas próprias costas, movendo-se sem se mover. Ignorava o que poderia causar tal fenômeno e queria continuar assim, pelo menos por enquanto.

“Não estou pronto”, sussurrou com os lábios muito secos. Fechou os olhos de novo, querendo dormir, querendo não pensar sobre o que as pernas torcidas do homem barbado podiam indicar sobre sua própria condição. Mas...

Mas é melhor ficar pronto.

Era a voz que parecia sempre surgir quando ele tentava deixar para lá um trabalho ou procurava o caminho mais fácil contornando um obstáculo. Era a voz de Cort, seu velho professor. O homem cuja bengala todos eles haviam temido quando garotos. Haviam temido ainda mais sua boca do que sua bengala. Suas zombadas quando estavam fracos, seu desprezo quando se queixavam ou tentavam lamuriar-se de sua sorte.

Você é um pisotoleiro, Roland? Se é, é melhor ficar pronto.

Ele abriu os olhos de novo e mais uma vez virou a cabeça para a esquerda. Quando o fez, sentiu algo se movimentar sobre seu peito.

Movendo-se muito lentamente, ergueu a mão direita retirando-a da tipóia que a segurava. Sua dor nas costas acordou e resmungou. Roland parou de se mexer até chegar à conclusão de que a dor não ia piorar (pelo menos, se fosse cuidadoso), depois ergueu a mão até o peito, encontrando uma fazenda finamente tecida. Algodão. Moveu o queixo para seu esterno e viu que usava uma vestimenta de dormir como a do homem barbado.

Estendeu a mão até a gola da roupa e apalpou uma vistosa corrente. Um pouco mais para baixo, seus dedos tocaram uma forma retangular de metal. Achou que sabia o que era, mas tinha que se certificar. Retirou-a, ainda se mexendo com muito cuidado, tentando não comprometer nenhum músculo das costas. Um medalhão de ouro. Desafiou a dor, erguendo-o até ler o que estava gravado em sua superfície:

 

James

Amado pela família. Amado por Deus.

 

Enfiou-o novamente para dentro da roupa de dormir e olhou o rapaz adormecido no leito próximo — deitado no leito, não sobre ele. O lençol estava puxado até o tórax do rapaz, e o medalhão jazia no imaculado peitoral branco de sua roupa. O mesmo medalhão que Roland usava agora. No entanto...

Roland achou que entendia, e entender foi um alívio.

Olhou de novo para o homem barbado e viu algo tremendamente estranho: a espessa linha de cicatriz no seu rosto e nariz desaparecera. Em seu lugar, agora via-se a marca vermelho-rosada de um ferimento cicatrizando... um corte ou talvez um golpe.

Eu imaginei isso.

Não, pistoleiro, replicou a voz de Cort. Gente como você não foi feita para imaginar. Como bem sabe.

O pequeno movimento o cansara de novo... ou talvez fosse pensar que o esgotara. A combinação dos insetos cantantes e os sinos bimbalhando havia produzido algo parecido demais com uma canção de ninar para que se pudesse resistir. Desta vez, ele fechou os olhos e dormiu.

 

CINCO IRMÃS. JENNA. OS MÉDICOS DE ELURIA. O MEDALHÃO. UMA PROMESSA DE SILÊNCIO.

Quando Roland acordou de novo, a princípio tinha certeza de que ainda dormia. Sonhava. Tinha um pesadelo.

Certa vez, na época em que encontrara Susan Delgado e se apaixonara por ela, Roland conhecera uma feiticeira chamada Rhea — a primeira feiticeira verdadeira do Mundo Médio que já vira. Fora ela que causara a morte de Susan. embora Roland tivesse feito a sua parte. Agora, abrindo os olhos e vendo Rhea não apenas uma mas cinco vezes, ele pensou: Isso é o que dá lembrar dos velhos tempos. Invocando Susan, invoquei Rhea do Cöos também. Rhea e suas irmãs.

As cinco vestiam hábitos ondulantes tão brancos quanto as paredes e os painéis do teto. Seus rostos senis eram emoldurados por toucas de freira tão brancas quanto as paredes, mas a pele era tão cinzenta e riscada como terra ressequida. Pendendo como talismãs das faixas de seda que prendiam seus cabelos (se de fato tinham cabelo), havia fios de minúsculos sinos que bimbalhavam quando elas se moviam ou falavam. Sobre o peitoral de seus hábitos, imaculados como neve nova, via-se bordada uma rosa vermelho-sangue... o sigul da Torre Negra. Vendo isso, Roland pensou: Não estou sonhando. Essas bruxas são verdadeiras.

— Ele acordou! — exclamou uma delas com uma voz horripilantemente coquete.

— Ooohh!

— Ooohh!

— Ah!

Elas adejaram como pássaros. A do centro deu um passo à frente e, ao fazer isso, o rosto delas pareceu tremular como as paredes de seda do pavilhão. Elas não eram nem um pouco velhas — de meia-idade talvez, mas não velhas.

Sim. São velhas. Elas mudaram.

A que agora assumia o comando era mais alta que as outras, com uma testa ampla e levemente abaulada. Curvou-se para Roland e os sinos que faziam uma franja em sua testa tilintaram. De algum modo, o som o fez sentir-se doente, e mais fraco do que se sentira um momento atrás. Os olhos dela, cor de avelã, eram atentos e talvez ávidos. Ela tocou-lhe o rosto por um momento, e um entorpecimento pareceu espalhar-se ali. Então ela espiou para baixo e uma expressão talvez perturbada contraiu seu rosto. Retirou a mão.

— Acorde, homem bonito. Então acordou. Que bom.

— Quem são vocês? Onde estou?

— Somos as Irmãzinhas de Eluria — disse ela. — Sou Irmã Mary. Está é Irmã Louise, e Irmã Michela, e Irmã Coquina...

— E Irmã Tamra — disse a última. — Uma moça adorável de 21 anos. — Deu uma risadinha. Seu rosto tremulou e, por um momento, era de novo velho como o mundo, com uma pele cinzenta e nariz de gancho. Roland pensou mais uma vez em Rhea.

Elas se aproximaram mais, cercando os complicados arreios que o suspendiam. E quando Roland se encolheu, a dor lancinante percorreu-lhe espinha acima e instalou-se na perna machucada. Ele gemeu. As correias que o seguravam estalaram.

— Aahhh!

— Dói!

— Está doendo!

— Dói tão forte!

Elas se aproximaram ainda mais, como se a dor de Roland as fascinasse. Agora ele sentia o cheiro delas, um cheiro seco e terroso. A que se chamava Michela estendeu a mão...

— Vá embora! Solte-o! Eu já não disse?

Elas pularam para trás ao som dessa voz, sobressaltadas. A Irmã Mary pareceu especialmente aborrecida. Mas recuou, com um último olhar feroz (Roland seria capaz de jurar) para o medalhão no peito dele. Roland enfiara-o novamente sob a roupa ao acordar pela última vez, mas agora o medalhão estava visível.

Uma sexta irmã apareceu, esgueirando-se rudemente entre Mary e Tamra. Esta última talvez fosse a única de 21 anos, de faces enrubescidas, pele lisa e olhos escuros. Seu hábito branco ondulava como um sonho. A rosa vermelha em seu peito destacava-se como uma maldição.

— Vão embora! Deixem-no em paz!

— Aahh, minha querida — exclamou Irmã Louise, rindo e furiosa ao mesmo tempo. — Quer dizer que Jenna, o bebê, se apaixonou por ele?

— É verdade! — disse Tamra, rindo. — O bebê pôs seu coração à venda para ele!

— Ah, então é isso! — concordou Irmã Coquina.

Mary virou-se para a recém-chegada, os lábios numa linha apertada.

— Você não deve se meter nisso, garota atrevida.

— Me meto sim, se achar que devo — replicou Irmã Jenna. Parecia ter mais controle de si mesma agora. Um cacho de cabelo preto escapara de sua touca, fazendo-lhe uma vírgula na testa. — Agora, vão embora. Ele não está a fim de suas brincadeiras e risos.

— Não nos dê ordens — disse Irmã Mary — porque nós nunca brincamos. Você sabe disso, Irmã Jenna.

O rosto da moça suavizou-se um pouco, e Roland viu que ela estava com medo. Isso o fez temer por ela. Por si mesmo também.

— Vão embora — repetiu a moça. — Não é o momento. Não há outros para cuidar?

Irmã Mary pareceu ponderar, enquanto as outras a observavam. Finalmente concordou com a cabeça e sorriu para Roland. Novamente o rosto dela pareceu tremular, como algo visto através de uma névoa de calor. O que ele viu (ou pensou ver) por baixo era horrível e vigilante.

— Fique bem, homem bonito — disse ela a Roland. — Fique um pouquinho conosco e nós o curaremos.

Que escolha tenho?, pensou Roland.

As outras riram, risadinhas de pássaro erguendo-se na obscuridade como fitas. Irmã Michela soprou-lhe até um beijo.

— Vamos, senhoras! — exclamou Irmã Mary. — Vamos deixar Jenna com ele um pouco em memória de sua mãe, a quem amávamos tanto! — E com isso, levou as outras embora, cinco pássaros brancos esvoaçando pela passagem central, as saias movendo-se de um lado para o outro.

— Obrigado — disse Roland, erguendo os olhos para a dona da mão fresca... pois sabia ter sido ela quem o afagara.

Como para provar isso, ela pegou os dedos dele e acariciou-os.

— Elas não querem lhe fazer nenhum mal — disse. Mas Roland viu que ela não acreditava em suas palavras; nem ele. Estava metido numa grande encrenca ali, uma encrenca enorme.

— Que lugar é este?

— O nosso lugar — disse ela simplesmente. — O lar das Irmãzinhas de Eluria. Nosso convento, se quiser.

— Isto não é um convento — Roland olhou além dela para os leitos vazios. — É uma enfermaria, não é?

— Um hospital — ela respondeu, ainda lhe acariciando os dedos. — Servimos os médicos... e eles nos servem. — Fascinado pelo cacho preto sobre a clara testa da moça, Roland o teria acariciado se ousasse esticar a mão para sentir sua textura. Achava-o lindo porque era a única coisa escura em todo aquele branco. Para ele, o branco perdera o encanto. — Somos enfermeiras... ou éramos, antes que o mundo seguisse em frente.

— Vocês são seguidoras do Homem-Jesus?

Ela pareceu surpresa por um momento, quase chocada. Então riu alegremente.

— Não, nós não!

— Se são auxiliares... enfermeiras... onde estão os médicos?

Ela olhou-o mordendo os lábios, como se tentasse resolver alguma coisa. Roland achou sua dúvida muito encantadora e percebeu que, doente ou não, olhava uma mulher como mulher pela primeira vez desde que Susan Delgado morrera, e isso fora há muito tempo. O mundo inteiro mudara desde então, e não fora para melhor.

— Gostaria de saber mesmo?

— Sim, claro — disse ele, um pouco surpreso. Um pouco inquieto também. Continuou esperando que o rosto dela tremulasse e mudasse como os rostos das outras, mas isso não aconteceu. Também não havia nela aquele desagradável cheiro de terra e de mortos.

Um momento, acautelou-se. Não acredite em nada aqui, muito menos em seus próprios sentidos. Ainda não.

— Acho que você deve saber — disse ela com um suspiro. Este fez tilintar os sinos em sua testa, que eram mais escuros do que os que as outras usavam, não pretos como o cabelo dela, mas da cor do carvão, de certo modo como se tivessem sido defumados em uma fogueira. O som deles, contudo, era da prata mais cristalina. — Prometa que não vai gritar e acordar o pube ali no leito.

— Pube?

— O garoto. Promete?

— Se prometo — disse ele, voltando novamente ao dialeto meio esquecido do Arco Exterior sem ter consciência disso. O dialeto de Susan. — A última vez que gritei foi há muito tempo, beleza.

Ela enrubesceu ainda mais ao ouvir aquilo, e rosas mais naturais e vivas do que a de seu peito estamparam-se em suas faces.

— Não chame de beleza o que não pode ver bem — disse ela.

— Então tire essa touca que está usando.

Ele podia ver perfeitamente o rosto dela, mas queria muito ver o seu cabelo — quase ansiava por ele. Uma inundação total de preto em todo esse branco irreal. Claro que o cabelo podia ser aparado bem curto, as Irmãs de sua ordem podiam usá-lo assim, mas de algum modo ele não lembrou disso.

— Não, isso não é permitido.

— Por quem?

— Pela Grande Irmã.

— A que se chama Mary?

— Sim, sim. — Ela começou a se afastar e então fez uma pausa, olhando para trás por cima do ombro. Em outra garota de sua idade, alguém que fosse tão bonita assim, tal olhadela seria um convite ao flerte. Mas a garota tinha uma expressão séria.

— Lembre de sua promessa.

— Está bem, nenhum grito.

Ela foi até o homem barbado, a saia oscilando. Na obscuridade, lançava apenas uma mancha de sombra nos leitos vazios pelos quais passava. Quando alcançou o homem (que, segundo Roland, estava inconsciente e não apenas dormindo), ela olhou para trás mais uma vez. Roland fez um aceno afirmativo com a cabeça.

Irmã Jenna aproximou-se do homem suspenso no outro lado do leito, de modo que Roland a via através dos laços e voltas da seda branca entretecida. Ela pousou levemente as mãos no lado esquerdo do peito dele, curvou-se... e sacudiu a própria cabeça de um lado para o outro, como se expressasse uma viva negativa. Os sinos de sua testa tocaram agudamente, e Roland mais uma vez sentiu aquele movimento esquisito nas costas, acompanhado por um baixo dedilhar de dor. Era como se tivesse estremecido sem fazê-lo de fato, ou estremecido num sonho.

O que aconteceu a seguir quase lhe extraiu um grito, e ele teve que morder os lábios para contê-lo. Mais uma vez as pernas do homem inconsciente pareceram mover-se sem se mover... porque foi o que estava em cima delas que se movera. As canelas peludas, os tornozelos e os pés do homem mostravam-se abaixo da bainha da roupa. Mas agora uma negra onda de insetos os percorriam cantando ferozmente, como uma coluna de exército que canta ao marchar.

Roland lembrou da cicatriz preta atravessando o rosto e o nariz do homem — a cicatriz que desaparecera. Eles eram em maior número, claro. E os insetos estavam em cima do homem, também. Por isso ele podia estremecer sem propriamente fazê-lo. Os insetos se espalhavam por suas costas inteiras. Regalando-se nele.

Não, ficar sem gritar não era tão fácil quanto Roland pensara.

Os insetos correram para os artelhos suspensos do homem, depois saltaram deles em ondas, como criaturas saltando numa margem e dentro de um local para nadar. Organizaram-se rápida e facilmente no brilhante lençol branco abaixo, e começaram a marchar para o chão num batalhão de 30 centímetros de largura. Roland não conseguia dar uma boa olhada neles, a distância era muito grande e a luz insuficiente, mas achou que tinham talvez o dobro do tamanho de formigas e eram pouco menores do que as gordas abelhas que enxameavam nos canteiros de flor de sua casa.

E cantavam ao marchar.

Mas o homem barbado não. Quando o enxame de insetos que revestia suas pernas começou a diminuir, ele estremeceu e gemeu. A jovem pôs a mão na testa dele e o acalmou, deixando Roland um pouco ciumento mesmo em sua repulsa ante o que via.

E o que via de tão horrível afinal? Em Gilead, sanguessugas haviam sido usadas para tratar de certas doenças — inchaços do cérebro, das axilas e da virilha, basicamente. Quando se tratava de cérebro, as sanguessugas, apesar de feias, certamente eram preferíveis ao próximo passo — a trepanação.

Mesmo assim, havia algo detestável neles, talvez porque não os pudesse ver direito, e era horrível imaginá-los por suas costas inteiras enquanto ele pendia ali, desamparado. Mas não cantavam. Por quê? Porque estavam se alimentando? Dormindo? Os dois ao mesmo tempo?

Os gemidos do homem barbado diminuíram. Os insetos afastaram-se pelo chão em direção a uma das paredes sedosas e suavemente ondulantes. Roland perdeu-os de vista nas sombras.

Jenna voltou para ele, com uma expressão ansiosa.

— Você se saiu bem. Mesmo assim, vejo como se sentiu; está no seu rosto.

— Os médicos — disse ele.

— Sim. Seu poder é muito grande, mas... — Ela abaixou a voz. — Acredito que aquele tropeiro está além da ajuda deles. Suas pernas estão um pouco melhores, e os machucados do rosto quase curados, mas ele tem ferimentos que os médicos não podem alcançar. — Fez um gesto com a mão indicando o meio do corpo sugerindo a localização dos ferimentos, se não sua natureza.

— E eu? — perguntou Roland.

— Você foi levado pelo povo verde — disse ela. — Deve ter provocado uma tremenda raiva neles, para não o matarem imediatamente. Em vez disso, o amarraram e arrastaram. Tamra, Michela e Louise estavam lá fora colhendo ervas. Viram o povo verde brincando com você e pediram a eles que parassem, mas...

— Os mutantes sempre obedecem a vocês, Irmã Jenna?

Ela sorriu, talvez contente por ele lembrar seu nome.

— Nem sempre, mas na maioria das vezes. Dessa vez obedeceram, ou você estaria agora na clareira entre as árvores.

— Acho que sim.

— A pele de suas costas foi quase toda esfolada... você estava vermelho da nuca à cintura. Nós sempre tratamos as cicatrizes, mas os médicos foram longe na sua cura. E o canto deles é bastante bonito, não é?

— É — Roland concordou, mas o pensamento daquelas coisas pretas instaladas em suas costas, em sua carne viva, ainda o repugnava. — Tenho que lhe agradecer e o faço de bom grado. O que eu puder fazer por você...

— Então me diga seu nome. Vamos.

— Eu me chamo Roland de Gilead. Eu estava com revólveres, Irmã Jenna. Sabe onde estão?

— Não vi revólver nenhum — ela respondeu, mas desviou os olhos. As rosas de seu rosto floresceram de novo. Ela podia ser bonita e uma boa enfermeira, mas mentia muito mal. Roland ficou contente. Bons mentirosos eram comuns. Por outro lado, a honestidade era rara.

Deixe a inverdade de lado, por hora, disse a si mesmo. Ela fala isso de medo, acho.

— Jenna! — O grito veio da sombra profunda na outra extremidade da enfermaria, que hoje parecia ao pistoleiro mais comprida que nunca, e Irmã Jenna pulou, culpada. — Venha! Você já conversou o suficiente para distrair 20 homens! Deixe ele dormir!

— Sim! — gritou ela e virou-se para Roland. — Não deixe que saibam que eu lhe mostrei os médicos.

— Vou fechar o bico, Jenna.

Ela fez uma pausa mordendo novamente os lábios e depois subitamente abaixou a touca, que caiu em sua nuca num suave bimbalhar de sinos. Libertado do confinamento, seu cabelo varreu-lhe as faces como sombras.

— Sou bonita? Sou? Diga a verdade, Roland de Gilead... nada de lisonjas. A lisonja tem a duração de uma vela que queima.

— Bonita como uma noite de verão.

O que ela viu no rosto dele pareceu agradá-la mais do que suas palavras, porque ela sorriu radiante. Puxou a touca novamente para cima, enfiando o cabelo rapidamente para dentro dela com rápidas cutucadas dos dedos pequenos.

— Estou decente?

— Tão decente quanto bonita — disse ele. Então, cautelosamente, ergueu um braço e apontou para a testa dela. — Um cacho ficou de fora... bem ali.

— Sim, esse sempre me amola. — Com uma caretinha engraçada, ela enfiou o cacho sob a touca. Roland pensou quanto gostaria de beijar suas faces rosadas... e quem sabe sua boca rosada.

— Está tudo bem — disse ele.

— Jenna! — O grito era mais impaciente que nunca. — Meditações!

— Estou indo agora mesmo! — gritou ela, levantando as volumosas saias para voltar. Mas virou-se mais uma vez, com o rosto muito grave e sério agora. — Mais uma coisa — disse quase num sussurro e olhando rapidamente em torno. — O medalhão de ouro que usa... você o usa porque é seu. Entende... James?

— Entendo. — Ele virou um pouco a cabeça para olhar o rapaz adormecido. — Aquele ali é meu irmão.

— Se perguntarem, sim. Dizer qualquer outra coisa iria pôr Jenna numa encrenca séria.

Até que ponto séria, ele não perguntou. De qualquer modo, ela desaparecera, parecendo flutuar ao longo da passagem entre todos os leitos vazios, a saia presa numa das mãos. As rosas haviam fugido de seu rosto, deixando-lhe as faces e a testa cor de cinza. Lembrou-se do olhar ávido no rosto das outras, como haviam se reunido em torno dele num nó estreito... e o modo como seus rostos tremulavam.

Seis mulheres, cinco velhas e uma jovem.

Médicos que cantavam e depois arrastavam-se pelo chão quando dispensados pelo toque de sinos.

E um inverossímil pavilhão hospitalar com 100 leitos talvez, de teto e paredes de seda...

... e com todos os leitos vazios, exceto três.

Ele não compreendia por que Jenna tirara o medalhão do bolso do rapaz morto e o colocara no pescoço dele, Roland, mas imaginou que, se descobrissem o que Jenna fizera, as Irmãzinhas de Eluria poderiam matá-la.

Ele fechou os olhos e o doce canto dos insetos-médicos mais uma vez o fez flutuar para o sono.

 

UMA TIGELA DE SOPA. O RAPAZ NO LEITO PRÓXIMO. AS ENFERMEIRAS NOTURNAS.

Roland sonhou que um inseto muito grande (um inseto-médico, talvez) voava em torno de sua cabeça e esbarrava repetidamente em seu nariz — colisões mais irritantes do que dolorosas. Ele tentava repetidamente atingir o inseto e, embora suas mãos fossem rápidas em circunstâncias normais, não conseguia pegá-lo. E cada vez que isso acontecia, o inseto dava uma risadinha.

Estou lento porque estou doente, pensou Roland.

Não, porque fui emboscado. Arrastado pelo chão por seres em mutação lenta, e salvo pelas Irmãzinhas de Eluria.

Subitamente ocorreu-lhe a vivida imagem da sombra de um homem saindo das sombras de uma carroça de carga virada; ouviu uma voz áspera e alegre gritar “Buuh!”.

Roland acordou com um sobressalto forte o suficiente para balançar seu corpo nas complicadas tiras que o sustentavam. A mulher que estava perto de sua cabeça e que ria dando leves batidinhas com uma colher de madeira no nariz dele recuou com tanta rapidez que a tigela em sua outra mão escorregou.

As mãos de Roland cortaram o ar e foram rápidas como sempre — sua frustração em pegar o inseto fora apenas parte do sonho. Pegou a tigela antes que mais algumas gotas se derramassem. A mulher — Irmã Coquina — olhou para ele com olhos arregalados.

Com o movimento repentino, a dor percorreu de alto a baixo as costas de Roland, mas não chegou nem perto da que ele sentira antes — e não havia movimento algum em sua pele. Talvez os “médicos” estivessem apenas dormindo, mas ele achou que tinham ido embora.

Estendeu a mão para a colher com que Coquina o estivera importunando (descobriu que não ficara nem um pouco surpreso com o fato de que uma delas importunasse um homem adormecido e doente — só teria se surpreendido se fosse Jenna), e ela lhe entregou a colher, os olhos ainda arregalados.

— Como você é rápido! — disse. — Foi como um truque de mágica, e você ainda está acordando!

— Lembre-se disso, sai — ele falou, experimentando a sopa. Havia minúsculos pedaços de galinha flutuando nela. Roland provavelmente teria considerado a sopa algo leve demais em outras circunstâncias, mas naquela situação a comida parecia ambrosia. Pô-se a comer avidamente.

— O que está querendo dizer? — perguntou ela. A luz estava muito fraca agora, os painéis da parede exibindo um laranja rosado que sugeria o pôr-do-sol. Sob esta luz, Coquina parecia muito jovem e bonita; mas Roland tinha certeza de que era magia, uma espécie de maquiagem enfeitiçante.

— Nada em especial — disse ele, descartando a colher por ser lenta demais e preferindo levar a própria tigela à boca. Desse modo, tomou a sopa em quatro grandes goles. — Vocês têm sido boas para mim...

— É, temos mesmo! — disse ela, indignada.

— E espero que sua bondade não tenha nenhum motivo oculto. Se tiver, Irmã, lembre-se que sou rápido. E eu nem sempre tenho sido bom.

Ela não respondeu, apenas pegou a tigela quando Roland a devolveu. Fez isso com delicadeza, talvez não querendo tocar nos dedos dele, e seus olhos caíram sobre o medalhão novamente escondido sob a roupa de Roland. Ele não disse mais nada; não queria enfraquecer a ameaça implícita lembrando-lhe que quem a fizera estava desarmado, quase nu e suspenso no ar porque suas costas não podiam suportar o peso do corpo.

— Onde está Irmã Jenna? — perguntou ele.

— Oooo — disse Irmã Coquina, erguendo as sobrancelhas. — Nós gostamos dela, não é? Ela faz o nosso coração disparar... — Pôs a mão na rosa que havia em seu peito e tamborilou rapidamente.

— De modo nenhum, de modo nenhum — disse Roland —, mas ela era boa. Duvido que tivesse me importunado com uma colher, como outras fazem.

O sorriso de Irmã Coquina desapareceu. Ela parecia zangada e preocupada.

— Não conte nada disso a Mary, se ela aparecer mais tarde. Você poderia me causar problemas.

— Por que isso deve me importar?

— Posso me vingar de alguém que me causou problemas complicando a vida da pequena Jenna — disse Irmã Coquina. — De qualquer modo, ela está na lista negra da Grande Irmã neste momento. Irmã Mary não gostou nem um pouco do jeito como Irmã Jenna falou com ela sobre você... e também não gostou que Jenna voltasse para nós usando os Sinos Escuros.

Isso acabara de sair de sua boca quando Irmã Coquina tapou com a mão aquele órgão freqüentemente imprudente, como se percebesse que falara demais.

Intrigado com o que ela dissera, mas sem querer demonstrá-lo naquele momento, Roland respondeu:

— Vou ficar calado sobre você, se você não disser nada a respeito de Jenna a Irmã Mary.

Coquina pareceu aliviada.

— Sim, está combinado. — Inclinou-se confidencialmente para a frente. — Ela está na Casa da Meditação. É a pequena caverna no flanco da colina onde temos que ir e meditar quando a Grande Irmã decide que nos comportamos mal. Ela terá que ficar lá e refletir sobre sua imprudência até que Mary a deixe sair. — Fez uma pausa e então disse abruptamente: — Quem é esse aí do lado? Você o conhece?

Roland virou a cabeça e viu que o rapaz estava acordado, e escutava a conversa. Seus olhos eram tão escuros quanto os de Jenna.

— Se eu o conheço? — perguntou Roland, tentando assumir um ar de escárnio. — Como posso não conhecer meu próprio irmão?

— É mesmo? Ele tão jovem e você tão velho? — Irmã Tamra, que dissera ter 21 anos, materializou-se saindo da escuridão. Um momento antes de ela alcançar a cama de Roland, seu rosto era de uma velha repulsiva que deveria estar muito além dos 80 anos... ou dos 90. Então essa imagem tremulou e surgiu mais uma vez a fisionomia gorducha e saudável de uma matrona de 30 anos. A não ser pelos olhos. Eles continuavam de córneas amarelas, grudentos nos cantos e vigilantes.

— Ele é o mais novo e eu sou o mais velho — disse Roland. — Entre nós há outros sete, e 20 anos das vidas de nossos pais.

— Que doçura! E se ele é seu irmão, você sabe o nome dele, não é? Sabe muito bem.

Antes que o pistoleiro se atrapalhasse, o rapaz disse:

— Elas acham que você esqueceu um nome tão simples como John Norman. Como são tolas, hein, Jimmy!

Coquina e Tamra olharam para o rapaz pálido no leito ao lado de Roland, nitidamente zangadas... e nitidamente vencidas. Pelo menos por um tempo.

— Você já lhe deu essa porcaria para comer — disse o rapaz (cujo medalhão indubitavelmente o chamava de John, Amado pela família. Amado por Deus). — Por que não vai embora e nos deixa bater um papo?

— Bom! — retrucou Irmã Coquina. — Como gosto da gratidão que reina aqui, vou fazer isso!

— Sou grato pelo que me dão — respondeu Norman, olhando-a com firmeza —, mas não pelo que me tiram.

Tamra bufou, virou-se com força suficiente para que o giro de sua roupa jogasse uma lufada de ar no rosto de Roland, e então pediu licença para ir embora. Coquina permaneceu por um momento.

— Seja discreto, e talvez uma pessoa de quem você gosta mais do que de mim seja posta em liberdade pela manhã, e não daqui a uma semana.

Sem esperar resposta, ela se virou e seguiu Irmã Tamra. Roland e John Norman esperaram até que estivessem longe e então Norman falou em voz baixa para Roland:

— Meu irmão. Morto?

Roland assentiu com a cabeça.

— Peguei o medalhão para o caso de me encontrar com alguém da família dele. E pertence a você, por direito. Lamento por sua perda.

— Obrigado, sai. — O lábio inferior de John Norman tremeu e então se firmou. — Eu sabia que os homens verdes tinham acabado com ele, embora essas velhotas não me dissessem com certeza.

— Talvez as Irmãs não tivessem certeza.

— Tinham, não há dúvida. Elas não dizem muito, mas sabem demais. A única um pouco diferente é Jenna. É aquela a quem a velha megera chamou de “sua amiga”, não é?

Roland concordou com a cabeça.

— E ela disse algo sobre Sinos Escuros. Eu saberia mais a respeito disso, se querer fosse poder.

— Jenna é especial, sim. Mais como uma princesa, cujo posto não pode ser recusado por ser determinado por linhagem sangüínea diferentemente das outras irmãs. Fico aqui deitado e finjo que estou dormindo... é mais seguro, acho... mas as ouvi falando. Jenna voltou para elas recentemente, e aqueles Sinos Escuros significam algo especial... Mas Mary ainda é quem dá as cartas. Acho que os Sinos Escuros são apenas cerimoniais, como os anéis que os antigos Barões costumavam passar de pai para filho. Foi ela quem colocou o medalhão de Jimmy em você?

— Foi.

— Não o tire do pescoço, não importa o que você faça. — Seu rosto estava tenso, sombrio. — Não sei se é o ouro ou o Deus, mas elas não gostam de se aproximar muito dele. Acho que é a única explicação para o fato de eu ainda estar aqui. — Sua voz baixou quase até um murmúrio. — Elas não são humanas.

— Bem, talvez um pouco tresloucadas e cheias de magias, mas...

— Não! — Com um esforço nítido, o rapaz ergueu-se num cotovelo. Olhou francamente para Roland. — Você está pensando em xamãs ou feiticeiras. Elas não são nem uma coisa nem outra. Elas não são humanas!

— Então o que são?

— Não sei.

— Por que está aqui, John?

Falando em voz baixa, John Norman contou a Roland o que sabia ter-lhe acontecido. Ele, seu irmão e quatro outros rapazes que eram rápidos e tinham bons cavalos haviam sido contratados como batedores, cavalgando à frente e atrás, protegendo uma comprida caravana de sete carroças de carga levando mercadorias — sementes, alimentos, ferramentas, correio e quatro noivas encomendadas para a comuna ainda não agregada de Tejuas, uns 300 quilômetros a oeste de Eluria. Os batedores cavalgavam na frente e atrás do comboio de carroças, em rodízio; um irmão cavalgava com cada grupo porque, como Norman explicou, quando estavam juntos brigavam como... bem...

— Como irmãos — sugeriu Roland.

John Norman conseguiu dar um rápido e sofrido sorriso.

— É.

O trio de que John fazia parte vinha cavalgando na retaguarda, cerca de três quilômetros atrás das carroças de carga, quando os mutantes verdes armaram uma emboscada em Eluria.

— Quantas carroças você viu quando chegou lá? — ele perguntou a Roland.

— Uma. Virada.

— Quantos corpos?

— Só o do seu irmão.

John Norman assentiu sombriamente.

— Não o levaram por causa do medalhão, eu acho.

— Os mutantes?

— As Irmãs. Os mutantes não dão a mínima para ouro ou Deus. Mas essas vacas... — Olhou a escuridão, que agora era quase completa. Roland sentiu a letargia se arrastando por ele de novo, mas só mais tarde percebeu que a sopa continha alguma droga.

— E as outras carroças? — perguntou Roland. — As que não foram derrubadas?

— Os mutantes devem ter levado as carroças e as mercadorias — disse Norman. — Eles não ligam para ouro ou Deus; as Irmãs não ligam para mercadorias. É provável que tenham sua própria comida, algo em que eu não gosto de pensar. Coisa nojenta... como aqueles insetos.

Ele e os outros cavaleiros da retaguarda galoparam para Eluria, mas, quando chegaram lá, a luta já havia terminado. Os homens estavam caídos por ali, alguns mortos, mas muitos ainda vivos. Pelo menos duas das noivas encomendadas ainda estavam vivas também. Os sobreviventes capazes de andar estavam sendo tangidos num grupo pelo povo verde — John Norman lembrava muito bem do que usava chapéu-coco e da mulher de colete vermelho esfarrapado.

Norman e os outros dois haviam tentado lutar. Ele vira um de seus companheiros ser atingido por uma flecha, e a seguir não vira mais nada — alguém o acertara na cabeça por trás, e as luzes haviam sumido.

Roland imaginou se quem o emboscara teria gritado “Bu!” antes de atacar, mas não perguntou.

— Quando acordei de novo, estava aqui — disse Norman. — Vi que alguns outros... a maioria... estavam cobertos por aqueles malditos insetos.

— Outros? — Roland olhou para os leitos vazios. Na escuridão crescente, eles cintilavam como ilhas brancas. — Quantos foram trazidos para cá?

— Pelo menos 20. Eles se curaram... os insetos os curaram... e então eles foram desaparecendo, um por um. A gente dormia e quando acordava havia mais um leito vazio. Sumiram, um por um, até que só restamos eu e aquele ali.

Fitou solenemente Roland.

— E agora você.

— Norman — a cabeça de Roland estava girando. — Eu...

— Eu acho que sei o que você tem — disse Norman. Parecia falar de muito longe... talvez do outro lado da Terra. — É a sopa. Mas um homem tem que comer. A mulher também. Se ela é uma mulher normal, de qualquer modo. Essas aí não são. Mesmo a Irmã Jenna não é. É simpática, mas não é normal. — Cada vez mais e mais distante. — E ela vai ser como as outras no final. Preste atenção ao que eu digo.

— Não consigo me mover. — Mesmo dizer isso exigia um esforço gigantesco. Era como empurrar rochedos.

— Não. — Norman riu de repente. Um som chocante ecoando na crescente escuridão que enchia a cabeça de Roland. — Não é só remédio para dormir que elas põem na sopa, é remédio para-não-se-mover também. Não há nada errado comigo, irmão... então por que acha que ainda estou aqui?

Norman falava agora não do outro lado da Terra, mas talvez da Lua:

— Acho que nem eu nem você vamos ver o Sol brilhando num pedaço de chão de novo.

Nisso você está errado, Roland tentou replicar, e pensou em outras frases do gênero, mas não conseguiu. Navegava pelo lado escuro da Lua, perdendo todas as palavras no vácuo que encontrou ali.

Mesmo assim, não perdeu totalmente a consciência de si. Talvez a dose do “remédio” na sopa da Irmã Coquina não tivesse sido bem calculada, ou talvez simplesmente nunca tivessem aplicado seu malefício num pistoleiro, e não sabiam que tinham em mãos um deles agora.

Exceto Irmã Jenna, claro — ela sabia.

Em algum ponto da noite, vozes murmurando, risadinhas e o toque leve de sinos o acordaram da escuridão onde estivera esperando, não muito adormecido ou inconsciente. Em torno dele, tão constantes que agora raramente os ouvia, estavam os “médicos” cantores.

Roland abriu os olhos. Viu uma luz pálida e incerta dançando no ar negro. As risadinhas e os murmúrios se aproximaram. Ele tentou virar a cabeça e no início não conseguiu. Descansou, reuniu toda a sua força de vontade e tentou de novo. Dessa vez a cabeça virou. Apenas um pouco, mas o suficiente.

Eram cinco Irmâzinhas — Mary, Louise, Tamra, Coquina e Michela. Elas surgiram na comprida passagem da enfermaria escura, rindo juntas como crianças que tivessem saído para brincar, carregando longas velas de cera em castiçais de prata, os sinos nas faixas das toucas com suas carreirinhas prateadas de som. Elas se reuniram à volta do homem barbado. De dentro de seu círculo, um fulgor de velas ergueu-se numa coluna trêmula que morreu antes de chegar à metade do teto sedoso.

Irmã Mary falou rapidamente. Roland reconheceu sua voz, mas não as palavras — não era o falar vulgar nem o alto idioma, mas uma linguagem inteiramente diferente. Uma frase se destacou — can de lach, mi him en tow — e ele não tinha idéia do que significava.

Percebeu que agora só conseguia ouvir o bimbalhar dos sinos — os insetos-médicos haviam silenciado.

— Ras me! On! On! — exclamou Irmã Mary numa voz poderosa e áspera. As velas se apagaram. A luz brilhando através das asas das toucas ao se reunirem em torno do homem barbado desaparecera, e mais uma vez a escuridão era completa.

Gelado, Roland esperou o que aconteceria a seguir. Tentou flexionar as mãos ou os pés, mas não pôde. Conseguira mover a cabeça talvez uns 15 graus; fora isso, continuava tão paralisado quanto uma mosca cuidadosamente embrulhada e pendurada numa teia de aranha.

Um baixo toque de sinos na escuridão... e a seguir, sons de gente sugando nas trevas. Assim que os ouviu, Roland sabia que os ouviria. Uma parte dele soubera o tempo todo o que eram as Irmâzinhas de Eluria.

Se pudesse erguer as mãos, teria tapado os ouvidos para bloquear os sons. Na situação atual, só podia ficar ali deitado, imóvel, escutando e esperando que parassem.

Por um longo tempo — que pareceu durar para sempre —, elas não pararam. Chupavam e grunhiam como porcos absorvendo a comida meio liqüefeita de uma gamela. Houve até um ressonante arroto, seguido por mais risadinhas sussurradas (elas terminaram quando Irmã Mary emitiu uma única e curta palavra — “Hais!”). E mais uma vez ouviu-se um grito gemido e baixo — era o homem, Roland teve certeza. Se isso era verdade, foi o último grito que deu na superfície da Terra.

Aos poucos, os sons delas se alimentando começaram a diminuir. Enquanto isso, os insetos voltaram a cantar — primeiro de modo hesitante, depois com mais confiança. Os sussurros e as risadinhas recomeçaram. As velas foram novamente acesas. Roland estava agora deitado com a cabeça virada na outra direção. Não queria que soubessem que vira, e também não sentia mais nenhuma vontade de ver o que ocorria. Vira e ouvira o suficiente.

Mas as risadinhas e os sussurros vinham agora na sua direção. Roland fechou os olhos, concentrando-se no medalhão que jazia contra seu peito. Não sei se é o ouro ou o Deus, mas elas não gostam de chegar muito perto dele, dissera John Norman. Era bom lembrar disso enquanto as Irmãzinhas se aproximavam, cochichando e sussurrando em sua estranha língua secreta. O medalhão, porém, parecia uma débil proteção no escuro.

Tenuemente, a uma grande distância, Roland ouviu o latido do cão-cruz.

Enquanto as Irmãs cercavam sua cama, o pistoleiro percebeu que podia sentir o cheiro delas. Era um odor abjeto, desagradável, como de carne estragada. E que outro odor poderiam exalar nessas circunstâncias?

— Um homem tão bonito — disse Irmã Mary, num tom baixo e meditativo.

— Mas usa um sigul feio — disse Irmã Tamra.

— Vamos tirá-lo dele! — disse Irmã Coquina.

— E então ganhamos beijos — disse Irmã Coquina.

— Beijos para todas! — exclamou Irmã Michela, com tanto entusiasmo que todas riram. Roland descobriu que nem todo o seu corpo estava paralisado. De fato, parte dele se erguera do sono ante o som das vozes delas e estava agora bem ereto. A mão de uma delas se estendeu por baixo de sua roupa, tocou-lhe o membro rígido, envolveu-o, acariciou-o. Roland permaneceu num horror silencioso, fingindo dormir, quando um jorro quente e úmido foi cuspido dele quase imediatamente. A mão continuou onde estava por um momento, o polegar esfregando para cima e para baixo a haste que murchava. Então soltou-a e deslizou um pouco mais para o alto. Encontrou a umidade empoçada no baixo ventre de Roland.

Risadinhas, suaves como o vento.

Tilintar de sinos.

Roland abriu os olhos o mínimo possível, fitando os rostos envelhecidos rindo dele à luz das velas — olhos cintilantes, faces amarelas, dentes protuberantes que se salientavam do lábio inferior. Irmã Michela e Irmã Louise pareciam estar de cavanhaque agora, mas aquilo certamente não era uma mancha escura de pêlos e sim o sangue do homem barbado.

Mary fez uma concha com a mão, passando-a de Irmã a Irmã; cada uma lambeu da palma de Mary à luz das velas.

O tempo todo Roland ficou de olhos fechados, esperando que elas fossem embora, o que finalmente aconteceu.

Nunca mais vou dormir de novo, pensou ele, e cinco minutos depois esquecera de si e do mundo.

 

IRMÃ MARY. UMA MENSAGEM. UMA VISITA DE RALPH. O DESTINO DE NORMAN. IRMÃ MARY DE NOVO.

Quando Roland acordou era dia claro, o teto de seda lá em cima era de um branco brilhante e ondulava numa brisa suave. Os insetos-médicos cantavam contentes. À esquerda, Norman dormia profundamente e com a cabeça tão virada para o lado que seu rosto, onde a barba ia despontando, apoiava-se no ombro.

Roland e John Norman eram os únicos ali. Ainda mais longe, do mesmo lado da enfermaria, via-se o leito vazio onde o homem barbado estivera, com os lençóis de cima estendidos e nitidamente arrumados, o travesseiro cuidadosamente forrado por uma fronha estalando de fresca. As complicadas tipóias em que seu corpo havia descansado desapareceram.

Roland lembrou das velas — o modo como seu fulgor se tinha combinado e reunido numa coluna, iluminando as Irmãs enquanto elas se juntavam à volta do homem. Dando risadinhas. Seus desgraçados sinos tilintando.

Como se fosse convocada pelos pensamentos de Roland, Irmã Mary apareceu, avançando rapidamente com Irmã Louise em sua esteira. Louise segurava uma bandeja e parecia nervosa. Mary franzia a testa, obviamente não muito bem-humorada.

Ranzinza depois de ter comido tão bem?, Roland pensou. Que feio, Irmã.

Ela chegou ao leito do pistoleiro e fitou-o.

— Tenho pouco que lhe agradecer, sai — disse ela sem qualquer preâmbulo.

— Eu lhe pedi que agradecesse? — Roland respondeu numa voz que parecia tão empoeirada e pouco usada como as páginas de um velho livro.

Ela não deu atenção.

— Você se juntou com quem sempre foi despudorada e irrequieta, com uma atitude totalmente rebelde. Bem, a mãe dela era igual, e morreu por causa disso não muito depois de devolver Jenna ao lugar adequado a ela. Levante a mão, ingrato.

— Não posso. Não consigo me mover.

— Ah, tolo! Nunca ouviu dizer “não engane sua mãe, a não ser que ela não esteja por perto”? Sei muito bem o que pode ou não fazer. Agora, levante a mão.

Roland levantou a mão direita, tentando fingir mais esforço do que precisava fazer de fato. Pensou que naquela manhã poderia estar suficientemente forte para se libertar daquelas tiras... mas, e depois? Qualquer caminhada pra valer ainda estaria além de suas forças por horas, mesmo sem outra dose de “remédio”... e atrás de Irmã Mary, Irmã Louise destampava uma nova tigela de sopa. Quando Roland olhou a comida, seu estômago roncou.

A Grande Irmã ouviu e deu um pequeno sorriso.

— Mesmo ficar deitado na cama abre o apetite de um homem forte, se é por muito tempo. Você não acha, Jason, irmão de John?

— Meu nome é James. Como você bem sabe, Irmã.

— Sei? — Ela riu raivosamente. — Ah! E se eu chicoteasse sua namoradinha com força bastante e com tempo bastante... até que o sangue escorresse das suas costas como gotas de suor, digamos... eu não arrancaria dela um nome diferente a chicotadas? Ou você não contou a ela na conversinha que tiveram?

— Se tocar nela, eu mato você.

Ela riu novamente. Seu rosto bruxuleou; a boca firme transformou-se em algo semelhante a uma água-viva moribunda.

— Não fale em nos matar, tolo, a não ser que falemos disso com você.

— Irmã, se você e Jenna não têm exatamente a mesma opinião, por que não a liberam dos votos e a deixam seguir o caminho dela?

— Gente como nós jamais pode ser liberada dos votos, nem seguir seu caminho. A mãe dela tentou e depois voltou, moribunda, com a menina doente. Ora, fomos nós que cuidamos de Jenna e a recuperamos depois que a mãe já era apenas poeira na brisa que sopra para o Mundo Final, e como ela nos agradece pouco! Além disso, ela porta os Sinos Escuros, o sigul de nossa irmandade. De nossa ka-tet. Agora coma... sua barriga diz que você está com fome!

Irmã Louise ofereceu a tigela, mas seus olhos continuaram vagando para a forma do medalhão sob a roupa de Roland. Você não gosta dele, não é?, pensou Roland, e então lembrou de Louise à luz de velas, do sangue do fretador em seu queixo, dos olhos senis e ávidos enquanto ela se inclinava para lamber o seu sêmen da mão de Irmã Mary.

Virou a cabeça para o lado.

— Não quero nada.

— Mas você está com fome! — protestou Louise. — Se não comer, James, como vamos fazer suas forças voltarem?

— Mande Jenna vir até aqui. Eu como o que ela trouxer.

Irmã Mary franziu a testa, sombria.

— Não vamos mais vê-la. Ela só foi liberada da Casa da Meditação com a promessa solene de dobrar seu tempo de meditação... e ficar fora da enfermaria. Agora coma, James, ou seja lá quem você for. Tome o que está na sopa ou cortamos você com uma faca e esfregamos os cortes com uma flanela molhada em ungüento para dor. De um modo ou de outro, não faz nenhuma diferença para nós. Faz, Louise?

— Nah — Louise disse. Ela ainda estendia a tigela, de onde saía vapor e um cheiro bom de galinha.

— Mas poderia fazer diferença para você — Irmã Mary sorriu sem humor, desnudando os dentes inusitadamente grandes. — O sangue correndo é arriscado por aqui. Os médicos não gostam disso. Ficam agitados.

Não eram só os insetos que ficavam agitados à vista do sangue, e Roland sabia disso. Também sabia que não tinha escolha quanto à sopa. Pegou a tigela de Louise e tomou lentamente. Daria tudo para apagar a expressão de satisfação no rosto de Irmã Mary.

— Ótimo — disse ela, depois de se certificar que a tigela que ele devolvera estava completamente vazia. A mão de Roland caiu com um baque novamente na tipóia providenciada para isso, já pesada demais para se sustentar. Podia sentir o mundo se desvanecendo novamente.

Irmã Mary inclinou-se, e a ondulante parte superior de seu hábito tocou a pele do ombro direito de Roland. Ele sentiu o cheiro dela, um odor maduro e seco, e teria sentido ânsias de vômito se tivesse forças para tal.

— Tire essa coisa de ouro nojenta de você quando suas forças voltarem... coloque-a no urinol debaixo da cama. O lugar dela é ali. Porque o simples fato de ficar perto de onde ela está faz minha cabeça doer e a garganta fechar.

Falando com um enorme esforço, Roland disse:

— Se quiser, pode tirá-lo. Como posso impedir que faça isso, sua vaca?

Mais uma vez a testa franzida da Irmã transformou-se numa nuvem de trovoada. Roland achou que ela o teria esbofeteado se ousasse tocá-lo tão perto do local onde estava o medalhão. Mas essa capacidade parecia terminar acima da cintura dele.

— Acho que seria melhor você pensar um pouco mais no assunto — disse ela. — Ainda posso mandar chicotear Jenna, se eu quiser. Ela porta os Sinos Escuros, mas eu sou a Grande Irmã. Reflita muito bem nisso.

Foi embora. Irmã Louise a seguiu, lançando um olhar — uma estranha combinação de temor e lascívia — por cima do ombro.

Preciso sair daqui, pensou Roland. Preciso mesmo.

Mas, em vez disso, deslizou novamente para a zona escura que não era bem sono. Ou talvez tenha dormido ao menos por um tempo; talvez tenha até sonhado. Mais uma vez, dedos acariciaram seus dedos, e lábios beijaram inicialmente sua orelha e depois sussurraram nela: “Olhe debaixo do travesseiro, Roland... mas não deixe ninguém saber que estive aqui.”

Em algum momento posterior, ele abriu os olhos de novo, um pouco esperançoso de ver o rosto jovem e bonito de Irmã Jenna pairando acima dele. E aquela vírgula de cabelo escuro mais uma vez saindo de sua touca. Mas não havia nada. Os drapeados de seda lá em cima estavam mais brilhantes que nunca e, embora fosse impossível saber as horas com alguma precisão, Roland adivinhou que era por volta do meio-dia. Talvez três horas depois de sua segunda tigela de sopa das Irmãs.

No leito ao lado, John Norman ainda dormia, a respiração assobiando em tênues roncos nasais.

Roland tentou erguer a mão e deslizá-la sob o cobertor, mas ela não se mexeu. Conseguiu movimentar a ponta dos dedos, mas foi só. Esperou, acalmando a mente tanto quanto pôde, reunindo paciência. Não foi fácil, até que a paciência surgisse. Continuou pensando no que Norman dissera — que tinha havido 20 sobreviventes da emboscada... pelo menos de início. Foram sumindo, um por um, até sobrar apenas eu e aquele lá. E agora você.

A garota não estava ali. Sua mente falou no tom suave e pesaroso de Alain, um de seus velhos amigos, morto já há muitos anos. Ela não ousaria, não com as outras vigiando. Isso foi apenas um sonho que você teve.

Entretanto, pensou que talvez tivesse sido mais que um sonho.

Algum tempo depois — a lenta mudança da claridade lá em cima o fez acreditar que se passara uma hora —, Roland experimentou a mão de novo. Dessa vez conseguiu passá-la por baixo do travesseiro estofado e macio, aconchegado na ampla tipóia que sustentava seu pescoço. No início, não encontrou nada, mas, à medida que seus dedos se aprofundaram, ele tocou em algo que parecia um rígido feixe de varetas finas.

Roland fez uma pausa, reunindo um pouco mais de força (cada movimento era como nadar em cola), e então mergulhou a mão um tanto mais. Parecia um buquê morto, amarrado com uma fita.

Ele olhou em volta, certificando-se de que a enfermaria ainda continuava vazia e que Norman dormia; então puxou as varetas sob o travesseiro. Eram seis caules quebradiços, de um verde desbotado, com caniços amarronzados nas pontas. Deles saía um estranho aroma de levedo que lembrou a Roland as expedições que fazia para pedir coisas no início da manhã às cozinhas da Grande Casa quando era criança — expedições que geralmente fazia com Cuthbert. Os caniços estavam amarrados com uma larga fita de seda branca e tinham um cheiro de torrada queimada. Por baixo da fita, havia uma dobra de tecido. Como aparentemente todo o resto naquele lugar amaldiçoado, o tecido era de seda.

Roland ofegava, sentindo gotas de suor na testa. Mas ainda estava sozinho — ótimo. Pegou o pedaço de pano e desdobrou-o. Escrita com esforço em manchadas letras a carvão, havia a mensagem:

 

MORDISQUE LENTAMENTE AS PONTAS MARRONS. UMA POR HORA. DEMAIS, CÃIBRAS OU MORTE. AMANHÃ À NOITE. NÃO PODE SER MAIS CEDO. TENHA CUIDADO!

Nenhuma explicação, mas Roland achou que elas não eram necessárias. Não tinha outra opção; se continuasse ali, morreria. As Irmãzinhas só precisavam tirar o medalhão dele, e Roland tinha certeza de que Irmã Mary era suficientemente esperta para imaginar um jeito de fazê-lo.

Mordiscou a ponta da cabeça seca de um dos caniços. O sabor não era de modo nenhum como a torrada que pediam na cozinha quando garotos; era amargo na garganta e quente no estômago. Pouco depois da mordiscada, as pulsações de Roland dobraram. Seus músculos acordaram, mas não de modo agradável, como depois de um bom sono; inicialmente pareciam trêmulos e a seguir duros, como se dessem nós. Tal sensação passou rapidamente, e as suas pulsações voltaram ao normal antes que Norman acordasse, mais ou menos uma hora depois. Roland, contudo, entendeu por que o bilhete de Jenna o avisara para dar apenas uma mordidinha de cada vez — o negócio era muito poderoso.

Guardou o buquê de caniços novamente sob o travesseiro, tendo o cuidado de varrer os poucos farelos caídos no lençol. Então usou o polegar para apagar as palavras escritas com esforço a carvão no pedaço de seda. Quando terminou, só havia ali borrões sem sentido. Enfiou o tecido de novo sob o travesseiro.

Quando Norman acordou, ele e o pistoleiro falaram brevemente sobre o lar do jovem batedor — Delain, às vezes conhecido em zombarias como a Toca do Dragão, ou o Paraíso do Mentiroso. Dizia-se que todas as histórias extravagantes originavam-se em Delain. O rapaz pediu a Roland que levasse seu medalhão e o de seu irmão para casa, para seus pais, se fosse possível, e explicasse o que acontecera a James e John, filhos de Jesse.

— Você mesmo vai fazer isso — disse Roland.

— Não. — Norman tentou levantar a mão, talvez para coçar o nariz, e não conseguiu. A mão se ergueu uns 15 centímetros e a seguir caiu novamente na coberta da cama com um pequeno baque. — Acho que não. É uma pena para nós termos nos conhecido assim, sabe... eu gosto de você.

— E eu de você, John Norman. Seria melhor termos nos conhecido de outro modo.

— É. Sem a presença dessas senhoras tão fascinantes.

Ele apoiou a cabeça para dormir de novo pouco depois. Roland nunca mais falou com John Norman... embora certamente ouvisse falar dele. Sim. Roland estava mergulhado no sono acima do leito quando John Norman gritou pela última vez.

Irmã Michela chegou com a sopa da noite exatamente quando Roland sofria o tremor dos músculos e as pulsações galopantes como resultado de sua segunda mordiscada no caniço marrom. Michela fitou o rosto vermelho dele com alguma preocupação, mas teve que aceitar quando Roland a tranqüilizou dizendo que não se sentia febril; ela não conseguiu se obrigar a tocá-lo e avaliar o calor de sua pele por si mesma — o medalhão a mantinha longe.

Junto da sopa havia um pão recheado de carne. O pão parecia couro e a carne dentro dele estava dura, mas mesmo assim Roland devorou tudo avidamente. Michela observava-o com um sorriso complacente, as mãos cruzadas à frente, assentindo com a cabeça de vez em quando. Quando ele terminou, ela pegou sua tigela cuidadosamente, certificando-se de que seus dedos não o tocassem.

— Estamos sarando — disse ela. — Logo você estará no seu caminho de novo, e guardaremos apenas a sua lembrança, Jim.

— É verdade? — perguntou ele calmamente.

Ela apenas o olhou e, tocando o lábio superior com a própria língua, deu uma risadinha e foi embora. Roland fechou os olhos e encostou-se no travesseiro, sentindo a letargia dominá-lo novamente. Os olhos especulativos dela... sua língua furtiva. Vira mulheres olhando assim para galinhas assadas e pernas de carneiro, calculando quando estariam prontas.

O corpo dele queria desesperadamente dormir, mas Roland aferrou-se à consciência pelo que imaginou ser uma hora. Depois pescou um dos caniços debaixo do travesseiro. Com uma nova dose do “remédio para-não-se-mover” no sistema, ele precisava fazer um enorme esforço, e não estava certo se conseguiria fazê-lo se não tivesse retirado o caniço da fita que prendia os outros. Amanhã à noite, dissera o bilhete de Jenna. Se isso significava fugir, a idéia parecia monstruosa. Sentindo-se como estava agora, podia ficar naquela cama até o final dos tempos.

Mordiscou. A energia entrou no seu organismo como um vagalhão, retesando-lhe os músculos e fazendo seu coração bater com força, mas o jorro de vitalidade desapareceu logo depois que veio, enterrado sob a droga mais forte das Irmãs. Roland podia apenas ter esperança... e dormir.

Quando acordou, a escuridão era total, e ele descobriu que podia mover braços e pernas na rede de tipóias quase naturalmente. Puxou um dos caniços sob o travesseiro e mordiscou-o cautelosamente. Ela deixara meia dúzia, e dois deles já haviam sido quase inteiramente consumidos.

Colocou o caule novamente sob o travesseiro e começou a tremer como um cachorro molhado num aguaceiro. Comi demais, pensou. Se não tiver convulsões, é porque tenho sorte...

O coração dele disparou como um motor em fuga. Então, para piorar as coisas, viu luz de velas na outra extremidade da passagem. Um momento depois, ouviu o roçar dos hábitos das Irmãs e o arrastar de seus chinelos.

Céus, por que agora?1 Elas vão me ver tremendo, vão saber...

Invocando cada fragmento de seu controle e força de vontade, Roland fechou os olhos, concentrando-se em acalmar os membros espasmódicos. Se pelo menos estivesse na cama em vez de pendurado nessas amaldiçoadas tipóias, que pareciam tremer com sua própria febre a cada movimento!

As Irmãzinhas aproximaram-se mais. A luz das velas fulgurava num tom avermelhado nas pálpebras fechadas de Roland. Naquela noite não havia risadinhas nem sussurros entre elas. Só quando estavam quase em cima de Roland é que este percebeu o estranho entre elas — uma criatura que respirava através do nariz em grandes fungadas úmidas de ar e muco.

O pistoleiro permaneceu de olhos fechados, as grandes contrações e os pulos das pernas e braços sob controle, mas com os músculos ainda dando nós, com cãibras latejantes por baixo da pele. Qualquer um que o olhasse atentamente veria imediatamente que algo estava errado com ele. Seu coração disparado como um cavalo chicoteado, certamente elas iriam ver...

Mas não era para ele que olhavam — pelo menos, por enquanto.

— Tira isso dele — disse Irmã Mary. Falava numa versão abastardada da língua vulgar que Roland pouco entendia. — E depois o outro. Vai, Ralph.

— Ocês têm uísh-que? — perguntou o fungador em seu dialeto mais pesado ainda que o de Mary. — Ocês têm t’baco?

— Temos, temos muito uísque e muito fumo, mas só depois que você tirar essas coisas desgraçadas! — Ela estava impaciente. Talvez com medo, também.

Roland virou cuidadosamente a cabeça para a esquerda e abriu os olhos.

Cinco das seis Irmâzinhas de Eluria amontoavam-se em torno do outro lado do leito do adormecido John Norman, as velas levantadas para iluminá-lo. A luz caía também em seus próprios rostos, que teriam dado pesadelos ao homem mais forte. Agora, na calada da noite, seu glamour era posto de lado e elas eram apenas antigos cadáveres em hábitos volumosos.

Irmã Mary tinha uma das armas de Roland na mão. Vendo isso, Roland sentiu um jorro brilhante de ódio dela, e prometeu a si mesmo que Mary pagaria pela ousadia.

A coisa em pé junto do leito, estranha como era, parecia quase normal em comparação com as Irmãs. Era uma criatura do povo verde. Roland reconheceu Ralph imediatamente. Levaria muito tempo para esquecer aquele chapéu-coco.

Ralph contornou lentamente o leito de Norman e aproximou-se de Roland, bloqueando momentaneamente a visão que o pistoleiro tinha das Irmãs. O mutante, contudo, prosseguiu até a cabeceira de Roland, expondo as bruxas novamente à fatia de visão do pistoleiro.

O medalhão de Norman estava exposto — o rapaz talvez tivesse acordado por um instante suficiente para retirá-lo de suas roupas, esperando que ele o protegesse melhor assim. Ralph o recolheu com a mão que tinha aparência de gordura derretida. As Irmãs observavam avidamente sob o fulgor de suas velas enquanto o homem verde esticava o medalhão até o fim da corrente... e o soltava de novo. Os rostos das Irmãs expressavam desapontamento.

— Não ligo para essas coisas — disse Ralph com a voz obstruída. — Quero uísh-que! Quero t’baco!

— E vai receber isso — disse Irmã Mary. — O bastante para você e todo o seu clã desprezível. Mas primeiro precisa tirar essa coisa horrível dele! Dos dois! Está entendendo? E não vai ficar nos provocando.

— E se ficar? — perguntou Ralph. Riu com um som gargarejado e sufocado, o riso de alguém morrendo de uma doença má da garganta e dos pulmões. Mas, mesmo assim, Roland ainda gostava mais desse riso do que das risadinhas das Irmãs. — E se ficar, Irmãssinha Mary, cê vai beber o meu sangui? Meu sangui faz ocê cair morta aí onde está se iluminando no escuro!

Mary levantou o revólver do pistoleiro e apontou-o para Ralph.

— Tire o raio daquela coisa, ou quem vai morrer é você.

— E na certa vou morrer depois que eu fizer o que ocê quer.

Irmã Mary não respondeu. Com os olhos negros, as outras espiavam Ralph na escuridão.

Ralph abaixou a cabeça, parecendo pensar. Roland suspeitou que seu amigo Chapéu-coco podia pensar também. Irmã Mary e suas asseclas podiam não acreditar nisso, mas Ralph tinha que ser esperto para sobreviver por tanto tempo. Mas é claro que, quando fora até lá, não pensara nas armas de Roland.

— Smasher não devia ter dado os paus-de-fogo para ocês — disse ele finalmente. — Dar eles e não me contar. Você deram uísh-que a ele? T’baco?

— Não é da sua conta — replicou Irmã Mary. — Tire aquela coisa de ouro do pescoço dele agora mesmo, ou eu atiro no que sobrou do seu cérebro.

— Está bem — disse Ralph. — Como ocê quiser, sai.

Mais uma vez, ele esticou o braço e pegou o medalhão de ouro com a mão derretida. Fez isso lentamente; o que aconteceu depois, aconteceu rápido. Ele deu um puxão, rebentando a corrente e arremessando o ouro na escuridão sem fazer pontaria. Com a outra mão, afundou as compridas unhas denteadas no pescoço de John Norman, dilacerando-o.

O sangue jorrou da garganta do rapaz num fluxo direto do coração, mais negro do que vermelho à luz das velas, e ele emitiu um único grito borbulhante. As mulheres gritaram — mas não de horror. Gritaram como mulheres num frenesi de excitação. O homem verde foi esquecido, Roland foi esquecido, tudo foi esquecido, exceto o sangue da vida jorrando da garganta de John Norman.

Elas deixaram cair as velas. Mary deixou cair o revólver de Roland do mesmo modo acidental e descuidado. A última coisa que o pistoleiro viu enquanto Ralph voava para sumir nas sombras (o uísque e o fumo ficam para outra ocasião, deve ter pensado Ralph, naquela noite era melhor se concentrar em salvar a própria vida) foi as Irmãs curvando-se para a frente a fim de aproveitarem o melhor que podiam o fluxo, antes que secasse.

Roland jazia na escuridão, os músculos tremendo, o coração batendo com força, escutando as harpias se alimentarem do rapaz deitado na cama a seu lado. Aquilo pareceu durar para sempre. Ao terminarem, as Irmãs tornaram a acender as velas e foram embora murmurando.

Quando a droga na sopa sobrepujou mais uma vez a dos caniços, Roland ficou grato... contudo, pela primeira vez desde que chegara ali, seu sono foi assombrado.

No sonho, ele fitava o corpo inchado no bebedouro da cidade, pensando na frase de um livro com a inscrição REGISTRO DE MÁS AÇÕES & REPARAÇÕES. Povo verde enviado a partir daqui, lera, e talvez o povo verde tivesse sido enviado a partir dali, mas então uma tribo pior tinha aparecido. As Irmãzinhas de Eluria, elas se chamavam. E, um ano depois, podiam ser as Irmãzinhas de Tejuas, ou de Kambero, de alguma outra aldeia no longínquo oeste. Elas vinham com seus sinos e seus insetos... de onde? Quem saberia? Isso importava?

Uma sombra desceu ao lado dele na água espumante do bebedouro. Roland tentou virar e encará-la, mas não conseguiu; estava imobilizado. Então uma mão verde agarrou-lhe o ombro e fez Roland girar. Era Ralph. Seu chapéu-coco estava colocado para trás e o medalhão de John Norman, agora vermelho de sangue, pendia de seu pescoço.

— Buu! — gritou Ralph, os lábios esticados num sorriso sem dentes. Ele ergueu um grande revólver com uma gasta coronha de sândalo. Engatilhou-o...

...e Roland acordou num repelão, tremendo todo, a pele molhada e gelada ao mesmo tempo. Olhou para o leito à esquerda, vazio, com os lençóis puxados para cima e enfiados cuidadosamente sob o colchão, o travesseiro descansando dentro da fronha branca como a neve. De John Norman, nenhum sinal. O leito poderia estar vazio há anos.

Roland via-se sozinho agora. Que Deus o ajudasse, era o último paciente das Irmãzinhas de Eluria, as doces e pacientes Irmãs hospitaleiras. O último ser humano ainda vivo naquele lugar terrível, o último com sangue quente fluindo nas veias.

Ali suspenso, Roland fechou o medalhão de ouro na mão e olhou através da passagem a longa fileira de leitos vazios. Depois de algum tempo, puxou um dos caniços debaixo do travesseiro e mordiscou.

Quando Maiy chegou 15 minutos depois, o pistoleiro pegou a tigela trazida por ela com uma demonstração de fraqueza que, na verdade, não sentia. Dessa vez era mingau de aveia em vez de sopa... mas Roland não tinha dúvida de que o ingrediente básico ainda era o mesmo.

— Como está com boa aparência esta manhã, sai — disse a Grande Irmã. Ela própria parecia bem... não havia nenhum tremular que denunciasse a antiga wampir escondida dentro dela. Ela havia ceado bem, e sua refeição a deixara forte. O estômago de Roland revolveu-se ante esse pensamento. — Vai estar de pé logo logo, eu lhe asseguro.

— Isso é besteira — disse Roland, falando num resmungo pouco natural. — Se me puser em pé, vai ter que me apanhar do chão logo depois. Estou começando a pensar se não estão pondo alguma coisa na comida.

Ela riu alegremente daquilo.

— Ora, vocês rapazes! Sempre ansiosos para pôr a culpa de sua fraqueza na conspiração de uma mulher! Como vocês têm medo de nós... sim, bem lá no fundo de seus corações de meninos, vocês têm medo!

— Onde está meu irmão? Sonhei que havia uma confusão com ele na noite passada, e agora estou vendo a cama dele vazia.

O sorriso dela estreitou-se. Seus olhos cintilaram.

— Ele pareceu febril e teve um acesso. Nós o levamos para a Casa da Meditação, que no passado já foi mais de uma vez um refúgio contra doenças contagiosas.

Vocês o levaram foi para o túmulo, pensou Roland. Talvez aquilo seja uma Casa da Meditação, sai, mas, de um modo ou de outro, pouco se saberia.

— Sei que você não é irmão daquele rapaz — disse Mary, observando-o comer. Roland já podia sentir a substância escondida no mingau drenando suas forças mais uma vez. — Sigul ou não sigul, sei que não é irmão dele. Por que mente? É um pecado contra Deus.

— O que a faz pensar isso, sai? — perguntou Roland, curioso de ver se ela mencionaria as armas.

— A Grande Irmã sabe das coisas. Por que não confessar, Jimmy? A confissão é boa para a alma, dizem.

— Mande-me Jenna para passar o tempo e talvez eu lhe conte — disse ele.

A estreita lâmina de sorriso desapareceu do rosto da Irmã Mary como palavras escritas a giz numa tempestade.

— Por que quer falar com uma pessoa dessas?

— Ela é gentil — disse Roland. — Diferente de algumas.

Os lábios dela se fecharam sobre os dentes grandes demais.

— Você não vai mais vê-la, tolo, Você a deixou agitada, deixou mesmo, e eu não vou mais admitir isso.

Ela se virou para ir embora. Ainda fingindo estar fraco e procurando não exagerar (representar nunca fora o seu forte), Roland estendeu a tigela de mingau.

— Não quer ficar com isso?

— Ponha-a na cabeça e use-a como gorro, não dou a mínima. Ou enfie no seu rabo. Você vai falar antes de eu terminar com você, tolo... vai falar até eu pedir que cale boca, e aí vai implorar para falar um pouco mais!

Com isso, afastou-se majestosamente, erguendo a saia do chão. Roland ouvira dizer que coisas como a Irmã Mary não podiam sair à luz do dia, e aquela parte das velhas histórias era certamente mentirosa. Mas outra parte parecia quase verdadeira; uma forma indistinta e amorfa mantinha-se junto dela, correndo ao longo da fileira de leitos vazios à direita, mas Irmã Mary não fazia nenhuma sombra real.

 

JENNA. IRMÃ COQUINA. TAMRA, MICHELA, LOUISE. O CÃO-CRUZ. O QUE ACONTECEU NAS SÁLVIAS.

Aquele foi um dos dias mais longos da vida de Roland. Cochilou, mas nunca profundamente; os caniços faziam seu trabalho, e ele começara a acreditar que, com a ajuda de Jenna, realmente pudesse sair dali. E havia a questão das suas armas — talvez ela pudesse ajudar naquilo também.

Passou as lentas horas pensando nos velhos tempos — em Gilead e seus amigos, no enigma que quase conseguira acertar numa das Feiras da Terra Plena. No final, outro ganhara o ganso, mas ele sem dúvida tivera sua chance. Pensou nos pais, pensou em Abel Vannay, que galgara seu caminho ao longo de uma vida de gentil bondade, e em Eldred Jonas, que galgara seu caminho ao longo de uma vida de maldade... até que Roland o derrubara da sela num bonito dia no deserto.

Como sempre, pensou em Susan.

Se você me ama, então me ame, dissera ela... e assim fizera ele.

Assim fizera ele.

Desse modo o tempo passou. Em intervalos de cerca de uma hora, ele pegava um caniço debaixo do travesseiro e o mordiscava. Agora os músculos não tremiam tanto quando a substância entrava em seu organismo, nem o coração batia tão ferozmente. A substância nos caniços não precisava mais lutar contra o remédio das irmãs com tanta ferocidade, pensou Roland; os caniços estavam vencendo.

A claridade difusa do sol moveu-se através do teto de seda branca do pavilhão, e pelo menos a obscuridade que sempre parecia pairar no nível do leito começou a sumir. A parede oeste da longa sala florescia com os tons rosa-laranja do pôr-do-sol.

Foi Irmã Tamra quem lhe trouxe o jantar naquela noite — sopa e outro pão recheado de carne, depositando também um lírio do deserto ao lado da mão dele. Sorriu ao fazê-lo, com as faces coloridas. Todas tinham boas cores nos rostos naquele dia, como sanguessugas que se empanturraram quase ao ponto de estourar.

— De sua admiradora, Jimmy — disse. — Ela é tão carinhosa com você! O lírio significa “Não esqueça minha promessa”. O que lhe prometeu ela, Jimmy, irmão de Johnny?

— Que viria me ver de novo e que conversaríamos.

Tamra riu tanto que os sinos em sua testa tilintaram. Entrelaçou as mãos num perfeito êxtase de alegria.

— Doce como mel! Ah, sim! — Inclinou o olhar sorridente para Roland. — É triste que tal promessa não possa ser cumprida. Você nunca mais a verá, bonitão. — Ela pegou a tigela e levantou-se, ainda sorrindo. — A Grande Irmã decidiu. Por que não tira esse feio sigul de ouro?

— Acho que não vou tirar.

— Seu irmão tirou o dele... olhe! — Ela apontou e Roland viu o medalhão de ouro caído bem longe na passagem, onde fora atirado por Ralph.

Irmã Tamra o olhou ainda sorrindo.

— Chegou à conclusão de que o medalhão também o estava deixando doente e jogou-o fora. Você deve fazer o mesmo, se for esperto.

— Acho que não — Roland repetiu.

— Bem — disse ela como despedida, e deixou-o com os leitos vazios tremulando nas sombras que aumentavam.

Apesar do sono crescente, Roland esperou que as cores quentes sangrando através da parede oeste da enfermaria esfriassem até virarem cinza. Então mordiscou outro caniço e sentiu uma força — força real, não um latejante substituto que fazia o coração disparar — florescer em seu corpo. Olhou para o medalhão cintilando à última luz e prometeu silenciosamente a John Norman que o entregaria, juntamente com o outro, aos parentes dele, se ka quisesse que os encontrasse em suas viagens.

Sentindo-se totalmente confortável em termos mentais pela primeira vez naquele dia, o pistoleiro cochilou. Ao despertar, a escuridão era total. Os insetos-médicos cantavam com uma estridência extraordinária. Ele puxara um caniço debaixo do travesseiro e começara a mordiscá-lo, quando uma voz fria disse:

— A Grande Irmã tinha razão. Você vem guardando segredos.

O coração de Roland quase parou. Olhando em torno, viu Irmã Coquina levantando do chão. Enquanto ele cochilava, ela se arrastara para debaixo do leito à direita dele para observá-lo.

— Onde conseguiu isso? — perguntou ela. — Foi...

— Ele conseguiu isso de mim.

Coquina virou-se. Jenna caminhava pela passagem em direção a eles. Seu hábito desaparecera. Ainda usava a touca com a franja de sinos na testa, mas a ponta dela tocava nos ombros de uma simples camisa xadrez. Além disso, usava jeans e arranhadas botas de deserto. Tinha algo nas mãos. Embora estivesse escuro demais para Roland ter certeza, achou...

— Você — murmurou Irmã Coquina com um ódio infinito. — Quando eu contar à Grande Irmã...

— Você não vai contar nada a ninguém — disse Roland.

Se ele tivesse planejado fugir das tipóias que o envolviam, sem dúvida teria se saído bem mal. Como sempre, porém, o pistoleiro se dava melhor quando pensava menos. Seus braços ficaram livres num instante, assim como a perna esquerda. Mas a perna direita torcia-se presa à altura do tornozelo, fazendo-o pender com os ombros na cama e a perna no ar.

Coquina virou-se para ele, silvando como um gato, os lábios arreganhados mostrando dentes finos como agulhas, os dedos esticados. Suas unhas pareciam agudas e denteadas.

Roland agarrou o medalhão e jogou-o na direção dela. Ela se encolheu, ainda silvando, e virou-se de novo para Irmã Jenna num súbito movimento de saias.

— Você vai ver, seu monstro que se mete onde não deve! — exclamou numa voz baixa e áspera.

Roland lutou para liberar a perna, mas não conseguiu. Estava firmemente presa, a droga da tipóia enrolada à volta de seu tornozelo como um laço.

Jenna ergueu as mãos e ele viu que tinha razão: ela segurava seus revólveres nos coldres, pendendo de dois cinturões que ele usara em Gilead depois do último incêndio.

— Atire nela, Jenna! Atire nela!

Em vez disso, ainda segurando as armas nos coldres, Jenna sacudiu a cabeça como fizera no dia em que Roland a convencera a abaixar a touca para que pudesse ver o seu cabelo. Os sinos emitiram um tom agudo que pareceu penetrar na cabeça do pistoleiro como uma lança.

Os Sinos Escuros. O sigul do ka-tet delas. O que...

O som dos insetos-médicos subiu até um grito esganiçado entre os caniços, sinistro como o som dos sinos usados por Jenna. Agora não havia nada doce neles. As mãos de Irmã Coquina hesitaram a caminho da garganta de Jenna; a própria Jenna nào estremecera ou piscara.

— Não! — sussurrou Coquina. — Você não pode fazer isso!

—Já fiz — disse Jenna, e Roland viu os insetos. Ele vira um batalhão descendo das pernas do homem barbado, mas o que via agora saindo das sombras era um exército para liquidar todos os exércitos; se fossem homens em vez de insetos, poderiam ser mais do que todos os homens que já portaram armas na longa e sangrenta história do Mundo Médio algum dia.

Mas a visão deles avançando pelas tábuas da passagem não era o que Roland sempre lembraria, nem o que assombraria seus sonhos por mais de um ano; era o modo como cobriam as camas, que iam se tornando negras duas a duas em ambos os lados da passagem, como pares de luzes retangulares e indistintas se apagando.

Coquina guinchou e pôs-se a sacudir a cabeça, tocando seus próprios sinos. O som que faziam era tênue e sem sentido, comparado ao som agudo dos Sinos Escuros.

Mesmo assim, os insetos marchavam, escurecendo o chão, enegrecendo os leitos.

Jenna passou voando por Irmã Coquina que guinchava, deixou as armas de Roland caírem ao lado dele e deu um forte puxão na tipóia torcida. Roland libertou sua perna.

— Venha — disse ela. — Eu os pus em movimento, mas ficar com eles pode ser uma coisa diferente.

Os guinchos de Irmã Coquina agora não eram de horror e sim de dor. Os insetos a haviam encontrado.

— Não olhe — disse Jenna, ajudando Roland a ficar em pé. Ele achara que nunca em sua vida ficara tão contente de estar nessa posição. — Venha. Precisamos nos apressar... ela vai alertar as outras. Coloquei suas botas e roupas ao lado do atalho para fora daqui... levei o máximo delas que pude. Como você está? Sente-se forte?

— Graças a você. — Quanto tempo continuaria forte, Roland não sabia... e naquele momento não era uma questão importante. Viu Jenna pegar dois dos caniços... com a luta de Roland para escapar das tipóias, eles se haviam espalhado pela cabeceira da cama... então Jenna e Roland saíram correndo pela passagem, afastando-se dos insetos e de Irmã Coquina, cujos gritos agora estavam diminuindo.

Roland afivelou as armas e atou-as na perna sem diminuir o passo.

Passaram apenas por três leitos de cada lado antes de alcançarem a entrada da tenda... e então ele viu que era uma tenda e não um vasto pavilhão. As paredes e o teto de seda eram lona esfiapada, fina o suficiente para deixar entrar a luz de uma lua em quarto crescente. E os leitos não eram de modo nenhum leitos, e sim fileiras duplas de catres em mau estado.

Roland se virou e viu uma corcova negra contorcendo-se no chão onde estivera Irmã Coquina. E foi assaltado por uma idéia desagradável.

— Esqueci o medalhão de John Norman! — Uma aguda sensação de remorso, quase de luto, perpassou-o como o vento.

Jenna enfiou a mão no bolso do jeans e puxou-o para fora. O medalhão cintilou ao luar.

— Peguei-o do chão. Roland não sabia o que o deixava mais contente — se ver o medalhão ou vê-lo na mão dela. Isso significava que ela não era como as outras.

No entanto, como se quisesse desfazer essa noção antes que criasse raízes muitos firmes nele, Jenna disse:

— Fique com ele, Roland... não posso segurá-lo mais. — E, quando ele o pegou, viu inequívocas marcas de queimadura nos dedos da moça.

Ele segurou a mão dela e beijou-a.

— Obrigada, sai — disse Jenna, e ele viu que ela chorava. — Obrigada, querido. Ser beijada tão carinhosamente vale qualquer dor. Agora...

Roland acompanhou o movimento dos olhos dela. Luzes fugidias desciam por um atalho rochoso. Além delas, ele viu a construção onde as Irmãzinhas viviam — não um convento e sim uma hacienda arruinada que parecia ter mil anos de idade. Havia três velas. Quando se aproximaram, Roland viu que eram apenas três irmãs. Mary não estava entre elas.

Ele sacou as armas.

— Oooo, aqui temos um pistoleiro! — disse Louise.

— Um homem assustador! — disse Michela.

— E ele encontrou sua dama assim como seus paus-de-fogo! — disse Tamra.

— Sua puta-putinha! — disse Louise.

Risos raivosos. Sem medo... pelo menos das armas dele.

— Abaixe as armas — disse Jenna a ele e, quando olhou, viu que ele já o havia feito.

Enquanto isso, as outras tinham se aproximado.

— Ooo, vejam, ela chora! — disse Tamra.

— Ela tirou o hábito! — disse Michela. — Talvez chore pelos votos que quebrou.

— Por que as lágrimas, docinho? — disse Louise.

— Porque ele beijou meus dedos queimados — disse Jenna. — Nunca fui beijada antes. Isso me fez chorar.

— Ooooo!

— A-do-rá-vel!

— Depois ele vai enfiar a coisa dele nela! Mais a-do-rá-vel ainda!

Jenna suportou suas zombadas sem qualquer sinal de raiva. Quando terminaram, a disse:

— Vou com ele. Saiam da frente.

Elas abriram a boca, o riso contrafeito desaparecendo no choque.

— Não! — murmurou Louise. — Está maluca? Você sabe o que vai acontecer!

— Não, e nem vocês sabem — disse. — Mesmo assim, não me importo. — Ela se virou e esticou a mão para a entrada do antigo hospital. Era de um desbotado tecido verde-oliva ao luar, com uma velha cruz vermelha desenhada no teto. Roland imaginou em quantas cidades as Irmãs haviam estado com essa tenda, tão pequena e comum do lado de fora, tão enorme e gloriosamente obscurecida do lado de dentro. Quantas cidades e por quantos anos.

Agora, enchendo a boca da tenda numa língua brilhante e negra estavam os insetos-médicos. Haviam parado de cantar. Seu silêncio era terrível.

— Fiquem de lado, ou faço com que se lancem sobre vocês — disse Jenna.

— Você nunca faria isso! — exclamou Irmã Michela numa voz baixa e horrorizada.

— Sim. Já os lancei em Irmã Coquina. Ela é parte do remédio deles, agora.

O ofegar delas era um vento gelado passando por árvores mortas. Nem toda a consternação era dirigida a suas próprias e preciosas peles. O que Jenna fizera estava nitidamente além da compreensão das Irmãs.

— Então você está danada — disse Irmã Tamra.

— Quem são vocês para falar em danação! Fiquem de lado.

Elas o fizeram. Roland passou por elas e elas se encolheram para longe dele... mas se encolheram ainda mais para longe dela.

— Danada? — perguntou ele depois que deixaram a hacienda para trás e chegaram ao caminho além dela. A lua em quarto crescente cintilava acima de um aglomerado de rochas caídas. Ante sua luz, Roland pôde ver uma pequena abertura baixa na escarpa, e adivinhou que era a caverna chamada pelas Irmãs de Casa da Meditação. — O que quiseram dizer?

— Não tem importância. Agora só temos que nos preocupar com Irmã Mary. Não gosto do fato de que ainda não a tenhamos visto.

Ela tentou caminhar mais rápido, mas ele agarrou o braço dela e virou-a. Ainda podia ouvir o canto dos insetos, mas tenuemente; estavam deixando o lugar das Irmãs para trás. Eluria também, se a bússola em sua cabeça ainda funcionava; Roland achou que a cidade ficava na outra direção. A casca seca da cidade, emendou.

— O que quiseram dizer?

— Talvez coisa nenhuma. Não me pergunte, Roland... de que adianta? Está feito, a ponte está queimada. Não posso voltar. Nem faria isso, se pudesse. — Ela olhou para baixo mordendo o lábio e, quando levantou os olhos, Roland viu novas lágrimas escorrendo pelo seu rosto. — Eu fiz refeições com elas. Às vezes não conseguia evitar, do mesmo modo que você tomava aquela sopa desgraçada, por mais que soubesse o que havia nela.

Roland lembrou de John Norman dizendo Um homem tem que comer... a mulher também. Ele assentiu com a cabeça.

— Não descerei mais aquela estrada. Se tem que haver danação, que seja minha a escolha, não delas. Minha mãe teve boa intenção em me trazer de volta para cá, mas estava errada. — Olhou-o timidamente, as lágrimas descendo... mas encarou-o. — Seguirei ao seu lado em sua estrada, Roland de Gilead. Por tanto tempo quanto puder, ou pelo tempo que você me quiser.

— Você é bem-vinda a partilhar o meu caminho — disse ele. — E eu me sinto...

Abençoado por sua companhia. Mas, antes de poder terminar a frase, uma voz falou de dentro do luar e das sombras à frente deles, onde o atalho finalmente subia, saindo do vale estéril e rochoso onde as Irmâzinhas exerciam seus feitiços.

— É um dever triste deter uma fuga tão bonita, mas tenho que fazer isso.

Irmã Mary saiu das sombras. Seu belo hábito branco com a brilhante rosa vermelha revertera ao que era realmente: a mortalha de um cadáver. Encapuzado em suas dobras sujas estava um rosto enrugado e caído de onde espiavam dois olhos negros. Pareciam tâmaras podres. Abaixo deles, expostos pelo sorriso da coisa, cintilavam quatro grandes incisivos.

Sobre a pele esticada da testa de Irmã Mary, os sinos tilintaram... mas não os Sinos Escuros, pensou Roland. Era isso.

— Fique longe — disse Jenna. — Ou eu lanço os can tam contra você.

— Não — disse Irmã Mary, aproximando-se —, não lança não. Eles não se afastam tanto dos outros. Sacuda a cabeça e tilinte esses sinos desgraçados até que eles caiam, mas mesmo assim eles não virão.

Jenna fez como ela sugeriu, sacudindo a cabeça furiosamente de um lado para o outro. Os Sinos Escuros tocaram penetrantemente, mas sem aquele tom extra, quase psíquico, que entrara na cabeça de Roland como uma lança. E os insetos-médicos... o que Jenna chamara de can tam... não vieram.

Sorrindo ainda mais (Roland achava que a própria Mary não estava completamente certa de que eles não viriam até a experiência ser feita), a mulher-cadáver bloqueou o caminho deles, parecendo flutuar acima do chão. Seus olhos bruxulearam na direção dele.

— E abaixe isso — disse ela.

Roland olhou para a mão que empunhava uma das armas. Não lembrava de tê-la sacado.

— A não ser que esteja abençoada ou mergulhada no líquido sagrado de alguma seita... sangue, água, sêmen... não pode prejudicar alguém como eu, pistoleiro. Pois sou mais sombra que substância... e, mesmo assim, igual àqueles como você.

A Irmã pensou que Roland atiraria, de qualquer modo; ele viu isso nos olhos dela, que diziam: Esses paus-de-fogo são tudo o que você tem. Sem eles, você pode muito bem voltar à tenda que sonhamos à sua volta, preso nas tipóias e esperando o nosso prazer.

Em vez de atirar, ele guardou o revólver no coldre e avançou para ela com as mãos estendidas. Irmã Mary emitiu um grito sobretudo de surpresa, mas não foi longo; os dedos de Roland cravaram-se em sua garganta e sufocaram o som antes que começasse.

O toque de sua carne era obsceno — parecia não apenas vivo, mas múltiplo, nas mãos de Roland, como se tentasse arrastar-se para longe. Ele podia senti-la correndo como líquido, fluindo, e a sensação era mais horrível do que pudesse descrever. Mesmo assim, ele apertou com mais força, determinado a sufocá-la até a morte.

Então surgiu um lampejo azul (não no ar, pensou ele depois, e sim em sua cabeça, um único relâmpago quando ela desencadeou uma breve mas poderosa tempestade cerebral), e as mãos dele voaram para longe do pescoço dela. Por um momento, os olhos ofuscados de Roland viram grandes sulcos molhados na carne cinzenta de Mary — sulcos no formato das mãos dele. Então foi atirado para trás, batendo no amontoado rochoso às suas costas e escorregando, e sua cabeça atingiu uma rocha saliente, dura o bastante para provocar um segundo e menor lampejo de luz.

— Não, homem bonito — disse ela fazendo uma careta, rindo com seus terríveis olhos opacos. — Você não consegue sufocar seres como eu, e vou pegar você lentamente por sua impertinência... vou cortá-lo em pequenas tiras e em 100 lugares para saciar minha sede! Mas primeiro vou cuidar dessa garota sem votos... e tirar esses sinos desgraçados dela, também.

— Venha e veja se é capaz! — gritou Jenna com uma voz trêmula, sacudindo a cabeça de um lado para outro. Os Sinos Escuros tilintaram zombeteiramente, provocantemente.

O sorriso-careta de Mary se extinguiu.

— Ah, sou sim — disse por entre os dentes. Então escancarou a boca. Ao luar, suas presas cintilavam nas gengívas como agulhas de osso enfiadas numa almofada vermelha. — Sou capaz e...

Ouviu-se um rosnado acima deles, que foi aumentando e se estilhaçou numa rodada de latidos. Mary virou-se para a direita e, um instante antes que a coisa pulasse da rocha onde estava, Roland pôde ver a atônita perturbação no rosto da Grande Irmã.

A coisa atirou-se sobre ela, apenas uma forma escura contra as estrelas, pernas esticadas como um morcego esquisito. Mas, mesmo antes que se chocasse contra a criatura, atacando-a no peito acima dos braços meio erguidos e enterrando os dentes na garganta dela, Roland soube exatamente do que se tratava.

Quando a forma derrubou-a de costas, Irmã Mary emitiu um guincho inarticulado que penetrou na cabeça de Roland como os próprios Sinos Escuros. Ele cambaleou, arquejando. A coisa em forma de sombra dilacerou Irmã Mary, as patas da frente plantadas nos dois lados de sua cabeça, as patas traseiras na mortalha-túmulo acima do peito, onde estivera a rosa.

Roland agarrou Jenna, que contemplava a Irmã caída com um paralisado fascínio.

— Vamos! — gritou ele. — Antes que essa coisa resolva morder você também!

O cão não deu importância a eles quando Roland passou puxando Jenna. Arrancara quase totalmente a cabeça de Mary.

A carne da Irmã parecia estar mudando — decompondo-se, provavelmente —, mas fosse lá o que estivesse acontecendo, Roland não queria vê-lo, nem queria que Jenna o visse.

Meio caminhando, meio correndo, chegaram ao topo da crista e ali fizeram uma pausa para respirar, as cabeças baixas ao luar, as mãos enlaçadas, ambos arquejando com dificuldade.

Os grunhidos e rosnados lá embaixo haviam cessado, mas ainda eram tenuemente audíveis, quando Irmã Jenna ergueu a cabeça e perguntou a Roland:

— O que foi isso? Você sabe... vi em seu rosto que sabe. E como essa coisa pôde atacá-la? Todas temos poder sobre os animais, mas Mary é quem tem... quem tinha... o maior poder.

— Não sobre aquele. — Roland lembrou do infeliz rapaz no leito próximo a ele. Norman não sabia por que o medalhão mantinha as Irmãs a distância... se era o ouro ou o Deus. Roland agora conhecia a resposta. — Era um cachorro. Apenas um cão sem dono. Eu o vi na praça antes que o povo verde me derrubasse e me levasse para as Irmãs. Acho que os outros animais que puderam fugir já fugiram, mas não aquele. De algum modo, ele sabia que não precisava ter medo das Irmãzinhas de Eluria. Levava o sinal do Homem-Jesus no peito. Seu pêlo era negro e branco, apenas um acidente de nascença, imagino. De qualquer modo, agora está tudo terminado para ela. Eu sabia que ele estava espreitando por ali; ouvi-o latindo duas ou três vezes.

— Por quê? — sussurrou Jenna. — Por que ele apareceu? Por que ficou? E por que a atacou assim?

Roland de Gilead respondeu como sempre fazia e como sempre faria quando tais perguntas inúteis e perturbadoras fossem feitas:

— Foi ka. Vamos. Vamos para o mais longe possível deste lugar antes de nos escondermos durante o dia.

O mais longe possível era no máximo 12 quilômetros... provavelmente bem menos, pensou Roland, enquanto os dois afundavam num atalho de sálvias de cheiro doce sob uma rocha saliente. Oito, talvez. Era o próprio Roland quem os tornava mais lentos; isto é, os resíduos do veneno na sopa. Quando se tornou claro para ele que não podia prosseguir sem ajuda, pediu a Jenna um dos caniços. Ela recusou, dizendo que a substância junto ao exercício a que ele não estava mais acostumado poderia estourar seu coração.

— Além do mais, elas não vão nos seguir — disse Jenna, enquanto deitavam à margem de um pequeno promontório. — As que sobraram... Michela, Louise, Tamra... estarão fazendo as malas para se mudar. Elas sabem a hora de ir embora quando precisam. Por isso as Irmãs sobreviveram por tanto tempo. Nós sobrevivemos. Somos fortes em certos aspectos, mas fracas em muitos outros. A Irmã Mary esqueceu-se disso, e sua arrogância a liquidou tanto quanto o cachorro-cruz, eu acho.

Ela escondera não apenas as botas e roupas de Roland depois do topo do monte, mas a menor das duas bolsas dele também. Quando começou a se desculpar por não ter trazido seu colchonete de dormir e a bolsa maior (ela tentara, mas eram muito pesados), Roland a fez calar-se com um dedo nos lábios. Considerava um milagre ter tudo aquilo ao seu dispor. Além disso (não falou, mas talvez ela soubesse mesmo assim), as armas eram os únicos objetos que realmente importavam. As armas de seu pai, e do pai de seu pai, até os dias de Arthur Eld, quando sonhos e dragões ainda caminhavam pela Terra.

— Você vai ficar bem? — perguntou ele quando se instalaram. A lua desaparecera, mas a aurora só viria dali a três horas pelo menos. Estavam rodeados pelo doce cheiro da sálvia, um cheiro púrpura, pensou, agora e sempre. Já podia sentir as sálvias formando uma espécie de tapete mágico sob ele, que logo o faria flutuar para o sono. Jamais se sentira tão cansado.

— Não sei, Roland. — disse ela. Mas, mesmo naquele momento, ele achou que ela sabia. A mãe de Jenna a trouxera de volta no passado. Nenhuma outra mãe traria a filha de volta para ali. E ela alimentara-se com as outras, tomara a comunhão das Irmãs. Ka era uma roda; era também uma rede da qual ninguém escapava.

Mas ele estava cansado demais para pensar... e de que serviria pensar, afinal de contas? Como dissera ela, a ponte fora queimada. Ele adivinhou que, mesmo se voltassem ao vale, só encontrariam a caverna que as Irmãs chamavam de Casa da Meditação. As Irmãs sobreviventes teriam empacotado sua tenda de pesadelos e seguido em frente, apenas um som de sinos e insetos cantores movendo-se pela brisa, tarde da noite.

Fitando-a, ele ergueu a mão que parecia pesada e tocou o cacho que mais uma vez atravessava a testa de Jenna.

Ela riu sem jeito.

— Esse daí sempre escapa. É rebelde como a dona.

Jenna levantou a mão para enfiar o cacho novamente na touca, mas Roland segurou-a antes que ela pudesse fazê-lo.

— É lindo — disse ele. — Negro como a noite e tão lindo como sempre.

Sentou-se com esforço; o cansaço percorria-lhe o corpo como mãos macias. Roland beijou o cacho e Jenna fechou os olhos, suspirando. Ele a sentiu tremer sob seus lábios. A pele da testa dela era muito fria; a curva escura do cacho era macia como seda.

— Puxe a touca para trás, como você fez antes — disse ele.

Ela obedeceu sem falar. Por um momento, ele apenas a fitou. Jenna devolveu-lhe o olhar gravemente, sem deixar os olhos de Roland. Ele acariciou os cabelos dela, sentindo seu peso macio (como chuva, pensou, chuva com peso), depois segurou-lhe os ombros e beijou-a nas duas faces. Então afastou-se por um momento.

— Você me beijaria como um homem beija uma mulher, Roland? Na boca?

— Sim.

E como pensara em fazer quando estava deitado na tenda-enfermaria de seda, ele beijou os lábios de Jenna. Ela respondeu ao seu beijo com a desajeitada doçura de quem nunca beijara antes, exceto talvez nos sonhos. Roland pensou em fazer amor com ela — já se passara muito, muito tempo, e ela era linda —, mas adormeceu ainda beijando-a.

Sonhou com o cachorro-cruz latindo na grande paisagem aberta. Roland seguiu-o, querendo ver a fonte de sua agitação, e logo a localizou. Na extremidade distante da planície ficava a Torre Negra, sua pedra escurecida pela fumaça erguendo-se em silhueta contra a bola opaca e laranja do sol poente, as temíveis janelas erguendo-se numa espiral. O cachorro parou ante aquela visão e começou a uivar.

Sinos — peculiarmente agudos e tão terríveis como uma condenação — puseram-se a tocar. Sinos Escuros, ele sabia, mas seu tom era tão claro quanto a prata. Ante esse som, as janelas escuras da Torre fulguravam com uma luz vermelha mortal — o vermelho de rosas envenenadas. Um grito de dor insuportável ergueu-se na noite.

O sonho desvaneceu-se num instante, mas o grito continuou, passando a um gemido. Essa parte era real — tão real quanto a Torre, ruminando ali no próprio término do Mundo Final. Roland voltou à claridade da aurora e ao cheiro púrpura e suave da sálvia do deserto. Sacara as duas armas e estava de pé antes de perceber completamente que acordara.

Jenna desaparecera. Suas botas vazias estavam ao lado da bolsa dele, e a pouca distância Roland viu o jeans de Jenna no chão, desinflado como uma pele de cobra abandonada, com a camisa intrigantemente enfiada nas calças. Perto das roupas, ele notou a touca vazia, com a franja de sinos caída no chão empoeirado. Achou, por um momento, que estavam tocando, equivocando-se com o som que ouvira inicialmente.

Não eram sinos, mas insetos. Os insetos-médicos que cantavam nas sálvias, lembrando um pouco grilos, porém mais doces.

— Jenna?

Nenhuma resposta... a não ser que os insetos estivessem respondendo. Pois o canto parou subitamente.

— Jenna?

Nada. Apenas o vento e o cheiro de sálvia.

Sem pensar no que fazia (refletir, como representar, não era o forte de Roland), ele se curvou, pegou a touca e sacudiu-a. Os Sinos Escuros tocaram.

Por um momento, não aconteceu nada. Depois, mil pequenas criaturas escuras apressaram-se a sair das sálvias, juntando-se sobre a terra gretada. Roland pensou no batalhão marchando ao lado do leito do fretador e deu um passo para trás. Depois manteve sua posição. Já que, como via, os insetos estavam mantendo a deles.

Achou que entendera. Parte dessa compreensão vinha de sua lembrança do toque na carne de Irmã Mary... como parecera diversa, não uma coisa só, mas muitas. Parte disso era o que ela dissera: Eu me alimentei com elas. Coisas desse tipo nunca morriam... mas podiam mudar.

Os insetos tremiam, uma nuvem escura deles cobrindo a terra branca e empoeirada.

Roland sacudiu novamente os sinos.

Um tremor percorreu os insetos numa onda sutil, e então eles começaram a adquirir um formato. Hesitaram, inseguros de como continuar, reagruparam-se, começaram de novo. Depois desenharam a letra C, uma das Grandes Letras, na brancura da areia entre os floridos e lilases tufos de sálvia.

No entanto, não era exatamente uma letra, como viu o pistoleiro; era um cacho.

Começaram a cantar, e para Roland era como se cantassem o seu nome.

Os sinos caíram de sua mão sem nervos e, quando atingiram o chão e tilintaram ali, a massa de insetos se dividiu, correndo em várias direções. Roland pensou em chamá-los de volta — tocar os sinos de novo poderia fazer isso —, mas para quê? Com que objetivo?

Não me pergunte, Roland. Está feito, a ponte foi queimada.

Mesmo assim, ela viera a ele uma última vez, impondo sua vontade sobre mil diversas partes que deviam ter perdido a capacidade de pensar quando o todo perdera a coesão... e mesmo assim ela pensara de algum modo — o suficiente para produzir aquela forma. Quanto esforço teria sido necessário?

Os insetos se espalhavam cada vez mais amplamente, alguns desaparecendo entre as sálvias, outros rolando pelos lados de uma rocha saliente, despejando-se nas fendas onde talvez esperariam terminar o calor do dia.

Então desapareceram... Ela desaparecera.

Roland sentou-se no chão e pôs as mãos no rosto. Achou que poderia chorar, mas, aos poucos, o impulso passou. Quando levantou a cabeça, seus olhos estavam secos como o deserto ao qual chegaria depois, ainda seguindo o rastro de Walter, o homem de preto.

Se tiver que haver danação, dissera ela, que seja minha a escolha, não delas.

Ele próprio conhecia um pouco da danação... e tinha idéia de que a lição apenas começava.

Jenna lhe trouxera a bolsa contendo o fumo. Ele enrolou um cigarro e, acocorado, fumou-o até a guimba fulgurante, olhando as roupas vazias dela, lembrando o olhar firme em seus olhos escuros. Lembrando as marcas da queimadura causada pela corrente do medalhão em seus dedos. Mesmo assim, Jenna o pegara, desafiando a dor, porque sabia que ele o queria. Roland agora usava os dois medalhões no pescoço.

Quando o sol estava a pino, o pistoleiro prosseguiu para oeste. Depois encontraria outro cavalo, ou uma mula, mas, por enquanto, estava contente em andar. Fora assombrado o dia inteiro por um som de campainha, de canto, um som como o de sinos. Por várias vezes parou e olhou em torno, certo de que veria uma forma escura flutuando sobre o chão, acossando-o como as sombras de nossas melhores e piores lembranças, mas nada disso apareceu. Ele estava só, entre as colinas baixas do território a oeste de Eluria.

Completamente só.



 

* Marca de identificação como, por exemplo, a suástica para os nazistas na Segunda Guerra Mundial. [N. do. E.]

** Ka faz parte de toda uma idéia de “destino” criada pelo autor da série A Torre Negra, em que ka-tet representa as pessoas com as quais temos de encontrar obrigatoriamente durante a vida para completarmos um destino. [N. do E.]

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

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